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COMENTÁRIO BÍBLICO

BEACON
LUCAS 1-9
COMENTÁRIO BÍBLICO

BEAC0N
LUCAS 1-9

D A V I D A. NEALE
GERÊNCIA EDITORIAL Luke 1-9 New Beacon Bible Commentary / David A. Neale / © 2011
Published by Beacon Hill Press of Kansas City, A division of Nazarene Publishing
E DE PRODUÇÃO
House. Kansas City, Missouri, 64109 USA. This edition published by arrangement
Jefferson Magno Costa
with Nazarene Publishing House. All rights reserved.
Copyright © 2015 por Editora Central Gospel.

COORDENAÇÃO
EDITORIAL
Michelle Candida Caetano
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

COORDENAÇÃO
DE COMUNICAÇÃO Autor: NEALE, David A.
E DESIGN Título em português: Novo Comentário Bíblico Beacon: Lucas
Regina Coeli 1—9
Título original: Luke 1-9 New Beacon Bible commentary
Rio de Janeiro: 2015
TRADUÇÃO 280 páginas
Elias Santos Silva
1. Bíblia - Teologia I. Título II.

REVISÃO
Maria José Marinho
Queila Memoria

CAPAE
PROJETO GRÁFICO
Eduardo Souza

Nota do editor no Brasil: Com o objetivo de facilitar a com preensão do


DIAGRAMAÇÃO
comentário original, em alguns casos, a Central Gospel fez traduções livres
Raquel Frazão
de termos e palavras em inglês que não encontram equivalência nas versões
oficiais do texto bíblico traduzido para o Português. Ressalte-se, todavia, que

IMPRESSÃO E foram preservadas a ideia e a estrutura textual idealizadas pelo autor.


ACABAMENTO
Rotaplan

1a edição: Outubro/2015

Editora Central Gospel Ltda


Estrada do Guerenguê, 1851 - Taquara
Cep: 22.713-001
Rio de Janeiro - RJ
TEL: (21)2187-7000
www.editoracentralgospel.com
DEDICATÓRIA

À Christine
EDITORES DO COMENTÁRIO
Editores gerais
Alex Varughese George Lyons
Ph.D., Drew University Ph.D., Emory University
Professor de Literatura Bíblica Professor do Novo Testamento
Mount Vernon Nazarene University Northwest Nazarene University
Mount Vernon, Ohio Nampa, Idaho

Roger Hahn
Ph.D., Duke University
Reitor do Corpo Docente
Professor do Novo Testamento
Nazerene Theological Seminary
Kansas City, Missouri

Editores secionais

Joseph Coleson Kent Brower


Ph.D., Brandels University Ph.D., The University o f Manchester
Professor do Antigo Testamento Vice-reitor
Nazarene Theological Seminary Palestrante Sênior de Estudos Bíblicos
Kansas City, Missouri Nazarene Theological College
Manchester, Inglaterra
Robert Branson
Ph.D., Boston University
George Lyons
Professor Emérito de Literatura Bíblica
Ph.D., Emory University
Olivet Nazarene University
Professor do Novo Testamento
Bourbonnais, Illinois
Northwest Nazarene University
Alex Varughese Nampa, Idaho
Ph.D., Drew University
Professor de Literatura Bíblica Frank G. Carver
Mount Vernon Nazarene University Ph.D., New College, University o f Edinburgh
Mount Vernon, Ohio Professor Emérito de Religião
Point Loma Nazarene University
Jim Edlin San Diego, Califórnia
Ph.D., Southern Baptist Theological Seminary
Professor de Literatura Bíblica e Línguas
Coordenador do Departamento
de Religião e Filosofia
MidAmerica Nazarene University
Olathe, Kansas
SUMARIO

Prefácio dos editores gerais...........................................................................................15


Prefácio do autor............................................................................................................17
Abreviações.................................................................................................................... 19
Bibliografia.....................................................................................................................25
INTRODUÇÃO..........................................................................................................33
A. Lucas e sua comunidade................................................................................. 33
1. Autoria e data.............................................................................................. 33
2. Fontes sinóticas........................................................................................... 35
3. A fonte do Antigo Testamento.................................................................. 36
4. Os primeiros leitores...................................................................................39
B. Temas teológicos em Lucas............................................................................ 40
1. Os pecadores encontram o arrependimento............................................ 40
2. A eleição redefinida.....................................................................................42
3. Outros temas............................................................................................... 44
C. Temas e métodos literários............................................................................ 45
D. Estrutura e trama............................................................................................ 47
E. Conflito............................................................................................................ 48
F. Caracterização.................................................................................................49
G. Lucas e a vida cristã.........................................................................................51
1. O apocalipse................................................................................................ 51
2. Discipulado.................................................................................................. 54
Dissertação: As parábolas em Lucas.............................................................................56
COMENTÁRIO......................................................................................................... 61
I. O nascimento e a infância de Jesus (1.1—2.52)............................................61
A. Prólogo (1.1-4)................................................................................................ 61
B. O nascimento de João Batista (1.5-80)..........................................................67
1. Zacarias e Isabel (1.5-7).............................................................................. 67
2. A epifania de Zacarias (1.8-25)................................................................. 72
3. A visita de Gabriel a Maria (1.26-38)........................................................75
4. Maria visita Isabel (1.39-45).......................................................................83
SUMÁRIO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

5. O cântico de Maria (1.46-56)....................................................................85


6. Nascimento, circuncisão e nomeação de João (1.57-66)........................ 88
7. A profecia de Zacarias (1.67-80)...............................................................90
C. O nascimento e os primeiros anos de Jesus (2.1-52)............................... 96
1. O segundo prólogo (2.1-5)........................................................................ 96
2. Nascimento e circuncisão de Jesus (2.6-21)..............................................101
3. Os profetas do templo e a consolação de Israel (2.22-40).......................105
4. O menino Jesus no templo (2.41-52)........................................................110
II. O início do ministério de João e o batismo de Jesus (3.1-38)........................117
A. O início do ministério de João (3.1-20)........................................................117
1. O chamado de João (3.1-6).........................................................................117
2. João adverte o povo quanto ao juízo (3.7-9)..............................................122
3. Demandas éticas (3.10-14)..........................................................................125
4. “És tu o Messias?” (3.15-17).......................................................................127
5. Herodes prende João (3.18-20).................................................................. 130
B. O batismo de Jesus (3.21,22)...........................................................................132
C. A genealogia de Jesus (3.23-38)...................................................................... 136
III. O ministério de Jesus na Galileia (4.1—9.50)................................................139
A. O início do ministério (4.1—5.11)...............................................................139
1. A provação de Jesus (4.1-13).......................................................................139
2. Jesus retorna para Nazaré (4.14-30)...........................................................151
3. A sinagoga de Cafarnaum (4.31-37)..........................................................157
4. Da casa de Pedro em diante (4.38-44).......................................................159
5. A pesca e o chamado para segui-lo (5.1-11)...............................................162
B. Surgem conflitos enquanto Jesus cura e prega (5.12—6.16).......................168
1. Um leproso é curado (5.12-16)................................................................... 168
2. O paralítico é curado e perdoado (5.17-26)..............................................172
3. Levi segue Jesus e oferece um banquete (5.27-32).................................... 178
4. As parábolas das roupas e dos odres de vinho (5.33-39)..........................183
5. “O Filho do homem é Senhor do sábado” (6.1-5).................................... 185
6. Jesus cura o homem da mão atrofiada (6.6-11).........................................189
7. Jesus escolhe os Doze (6.12-16).................................................................. 193
C. O Sermão da Montanha (6.17-49)............................................................... 194
1. As bem-aventuranças (6.17-26).................................................................. 194
2. Ame os seus inimigos (6.27-31)................................................................. 198
3. Ame sem reciprocidade (6.32-36).............................................................. 200
4. Não julgue (6.37,38)....................................................................................201
5. A viga que está em seu próprio olho (6.39-42)......................................... 202

10
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON SUMÁRIO

6. Bons frutos (6.43-45).................................................................................203


7. “Por que vocês me chamam ‘Senhor, Senhor’?” (6.46-49)......................204
D. Jesus ensina e cura em cidades e vilarejos (7.1—8.21)................................ 206
1. A cura do servo do centurião (7.1-10)......................................................206
2. A ressurreição do filho da viúva de Naim (7.11-17)................................214
3. Jesus e João Batista (7.18-35).....................................................................217
a. Os discípulos de João visitam Jesus (7.18-23).......................................217
b. Jesus fala à multidão a respeito de João (7.24-30)................................219
c. A parábola das crianças na praça (7.31-35).......................................... 221
4. A mulher pecadora é perdoada (7.36-50)................................................224
5. As mulheres da Galileia (8.1-3).................................................................232
6. A parábola do semeador (8.4-15).............................................................. 236
7. Três aforismos (8.16-18)............................................................................ 244
8. A verdadeira família de Jesus (8.19-21)....................................................246
E. Jesus viaja para Gerasa e retorna (8.22-56)...................................................247
1. Jesus acalma a tempestade (8.22-25)........................................................ 248
2. O endemoninhado geraseno (8.26-39).....................................................249
3. A filha de Jairo e a mulher com fluxo de sangue (8.40-56).....................253
E Jesus e os Doze (9.1-17)...................................................................................258
1. A missão dos Doze (9.1-6)........................................................................ 258
2. Herodes ouve a respeito de Jesus (9.7-9)..................................................262
3. A alimentação dos cinco mil (9.10-17).....................................................263
G. A identidade de Jesus é revelada (9.18-36)...................................................266
1. Os discípulos descobrem a identidade e o destino de Jesus (9.18-22).... 266
2. A vida do verdadeiro discípulo (9.23-27).................................................269
3. A transfiguração (9.28-36)........................................................................ 272
H. A conclusão do ministério galileu (9.37-50)............................................... 277
1. A difícil expulsão de um demônio (9.37-43a)......................................... 277
2. A segunda predição do destino de Jesus (9.43b-45)................................278
3. Discípulos argumentativos (9.46-48)....................................................... 279
4. Um homem desconhecido expulsando demônios (9.49,50)..................279

11
ÍNDICE DE ANOTAÇÕES
COMPLEMENTARES

A descendência sacerdotal de Levi.............................................................................. 68


O voto nazireu............................................................................................................... 73
Comparação entre o cântico de Maria e a oração de Ana......................................... 86
Os judeus na sociedade romana do primeiro século.................................................. 92
Estatura física como sinal de realeza............................................................................ 93
A cronologia do nascimento de Jesus e o recenseamento de Lucas 2.1-7................ 100
A Páscoa e o segundo dízimo........................................................................................111
Sínteses em 1 Samuel e Lucas......................................................... .............................114
A primazia da fé no judaísmo.......................................................................................123
Estrutura narrativa das instruções éticas de João........................................................126
O batismo com o Espírito Santo em Lucas.................................................................128
O trigo e a palha no Antigo Testamento.....................................................................129
A B atQ ôl.........................................................................................................................134
A voz do céu....................................................................................................................135
Contrastes de narrativa usados por Lucas nas cenas da provação............................ 144
Provado no deserto: real ou roteirizado?....................................................................146
A sinagoga no primeiro século......................................................................................153
Lucas e Isaías...................................................................................................................155
Pecado, impureza e enfermidade nas histórias do capítulo 5....................................163
Pecado, impureza e enfermidade em Lucas.................................................................. 171
A teologia do perdão no judaísmo................................................................................ 176
Três modos de expressão no discurso religioso judaico: Halacã, Hagadã
eM idrash..........................................................................................................................190
Estrutura dos pares dísticos............................................................................................197
Centuriões paralelos em Lucas 7 e Atos dos Apóstolos 10.......................................208
A pureza ritual e os centuriões em Lucas e Atos dos Apóstolos............................... 210
A fé em Lucas e em Atos dos Apóstolos......................................................................212
Mulheres, propriedade e patriarcado........................................................................... 234
O movimento como um tema em Lucas......................................................................236
O Evangelho de Tomé....................................................................................................238
Jesus e a alegoria nas parábolas.....................................................................................243
Semelhanças entre o acalmar da tempestade (e passagens relacionadas em Lucas)
e a história de Jonas........................................................................................................ 248
A teologia da cruz em Lucas......................................................................................... 270
PREFÁCIO DOS EDITORES GERAIS

O propósito do N ovo C om entário B íblico B eacon é tornar disponível a pas­


tores e alunos um comentário bíblico do século 21 que reflita a melhor cultura
da tradição teológica wesleyana. O projeto deste comentário visa tornar essa
cultura acessível a um público mais amplo, a fim de auxiliá-lo na compreensão
e na proclamação das Escrituras como Palavra de Deus.
Os escritores dos volumes desta série, além de serem eruditos na tradição
teológica wesleyana e especialistas em suas áreas de atuação, têm também um
interesse especial nos livros designados a eles. A tarefa é comunicar claramente
o consenso crítico e o amplo alcance de outras vozes confiáveis que já comen­
taram sobre as Escrituras. Embora a cultura e a contribuição eruditas para a
compreensão das Escrituras sejam as principais preocupações desta série, esta
não tem como objetivo ser um diálogo acadêmico entre a comunidade erudita.
Os comentaristas desta série, constantemente, visam demonstrar em seu traba­
lho a significância da Bíblia como o Livro da Igreja e, também, a relevância e a
aplicação contemporânea da mensagem bíblica. O objetivo geral deste projeto
é tornar disponível à Igreja e ao seu serviço os frutos do trabalho dos eruditos
que são comprometidos com a fé cristã.
A Nova Versão Internacional (NVI) é a versão de referência da Bíblia usa­
da nesta série; entretanto, o foco do estudo exegético e os comentários são o
texto bíblico em sua linguagem original. Quando o comentário usa a NVI, ele
é impresso em negrito. O texto impresso em negrito e itálico é a tradução do
autor. Os comentaristas também se referem a outras traduções em que o texto
possa ser difícil ou ambíguo.
A estrutura e a organização dos comentários nesta série procuram faci­
litar o estudo do texto bíblico de uma forma sistemática e metodológica. O
estudo de cada livro bíblico começa com uma I n tro d u çã o , que fornece uma
visão panorâmica de autoria, data, proveniência, público-alvo, ocasião, propó­
sito, questões sociológicas e culturais, história textual, características literárias,
questões hermenêuticas e temas teológicos necessários para entender-se o livro.
Essa seção também inclui um breve esboço do livro e uma lista de obras gerais
e comentários padrões.
A seção de comentários para cada livro bíblico segue o esboço do livro apre­
sentado na introdução. Em alguns volumes, os leitores encontrarão súmulas sec­
cionais de grandes porções da Bíblia, com comentários gerais sobre sua estrutura
PREFÁCIO DOS EDITORES GERAIS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

literária global e outras características literárias. Uma característica consistente


do comentário é o estudo de parágrafo por parágrafo dos textos bíblicos. Essa
seção possui três partes: P or trás do texto, N o texto e A p a rtir do texto.
O objetivo da seção P or trás do texto é fornecer ao leitor todas as informa­
ções relevantes necessárias para a compreensão do texto. Isso inclui situações
históricas específicas refletidas no texto, no contexto literário do texto, nas
questões sociológicas e culturais e nas características literárias do texto.
No texto explora o que o texto diz, seguindo sua estrutura, versículo por
versículo. Essa seção inclui uma discussão dos detalhes gramaticais, dos estudos
de palavras e da ligação do texto com livros/passagens bíblicas ou outras partes
do livro em estudo (o relacionamento canônico). Além disso, fornece translite-
rações de palavras-chaves em hebraico e grego e seus significados literais. O obje­
tivo aqui é explicar o que o autor queria dizer e/ou o que o público-alvo teria en­
tendido como o significado do texto. Essa é a seção mais ampla do comentário.
A seção A p a rtir do texto examina o texto em relação às seguintes áreas:
significância teológica, intertextualidade, história da interpretação, uso das ci­
tações do Antigo Testamento no Novo Testamento, interpretação na história,
na atualização e em aplicações posteriores da Igreja.
O comentário fornece anotações complem entares sobre tópicos de interes­
se que são importantes, mas não necessariamente fazem parte de uma explana­
ção do texto bíblico. Esses tópicos são itens informativos e podem conter ques­
tões históricas, literárias, culturais e teológicas que sejam relevantes ao texto
bíblico. Ocasionalmente, discussões mais detalhadas de tópicos especiais são
incluídas como digressões.
Oferecemos esta série com nossa esperança e oração, a fim de que os leito­
res a tenham como um recurso valioso para a compreensão da Palavra de Deus
e como uma ferramenta indispensável para um engajamento crucial com os
textos bíblicos.
Roger Hahn, Editor-geral da Iniciativa Centenária
Alex Varughese, Editor-geral (Antigo Testamento)
George Lyons, Editor-geral (Novo Testamento)

16
PREFÁCIO DO AUTOR

Muitas histórias do Evangelho de Lucas já entraram em nossa imaginação


compartilhada. Somente Lucas nos conta sobre Zacarias e Isabel e sobre o nas­
cimento de João Batista. Do mesmo modo, é ele quem nos conta sobre a visita
de Gabriel a Maria e o jubiloso encontro com Isabel alguns meses mais tarde.
Lucas fala do cântico de júbilo de Maria, dos pastores na manjedoura e da ado­
ração de Ana e Simeão no templo.
Outras histórias famosas são encontradas somente em Lucas: o menino
Jesus no templo, o bom samaritano, o filho pródigo, o fariseu e o publicano
orando no templo, e o pequeno Zaqueu lá no alto da árvore. Em sua narrativa
pós-ressurreição, somente ele retrata os discípulos andando cabisbaixos pela
estrada de Emaús após a ressurreição, conversando com o Cristo ressuscitado.
E sozinho entre os evangelistas, Lucas descreve a ascensão de Jesus em detalhes
no capítulo 24 do seu Evangelho e depois em Atos, capítulo 1.
Todas essas histórias são uma rica parte da herança cristã contribuída pelo
Evangelho de Lucas. Entretanto, não é só o seu material especial que faz dele
um estudo tão gratificante. Ao escrever sob um sentimento de divina compul­
são, ele pegou essas histórias e combinou-as com diversos materiais existentes a
seu dispor, para criar um documento histórico e teológico peculiar. Começan­
do no Evangelho e continuando em Atos, Lucas estabelece um novo paradigma
para a história da salvação. No mundo do Evangelho de Lucas, as boas-novas
eclodem do confinamento de seu contexto original judaico e espalham-se pelo
mundo romano, convidando todos os povos, judeus e gentios, a uma nova co­
munidade de fé baseada no arrependimento e no perdão no nome de Jesus.
Todas essas imagens tornam o seu Evangelho peculiar. No entanto, a ênfa­
se na liberdade do espírito humano é a sua marca característica. É a liberdade
de escolher uma vida antiga ou uma vida nova. A semente daquilo que pode
ser interpretado como uma salvação universalmente acessível está presente em
todos os Evangelhos. Contudo, o Evangelho de Lucas codifica esse acesso em
um novo paradigma teológico. Ele oferece aos leitores, seja qual for a identida­
de deles, a chance de começarem uma vida nova toda vez em que houver um
arrependimento. E essa liberdade humana de escolher a redenção que destaca
a ênfase teológica distinta de Lucas. O Evangelho dele é de segundas chances.
Muitas das histórias que só ele preservou possuem esse tema preponderante.
Uma obra literária toma-se um clássico porque possui uma qualidade atem­
poral que toca os leitores de diversas culturas, gerações e séculos. Toda a Escritura
PREFÁCIO DO AUTOR NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

pertence a essa categoria, como certamente pertence o Evangelho de Lucas. Des­


de Agostinho, Tertuliano, Orígenes e Ambrósio, no início da era cristã (veja Ke-
aly, 2005, p. 12,13,28), até a pintura de R etu m o fth e P rodigal [O retom o d o filh o
p ród igo\, por Rembrandt, Lucas tem capturado o coração das gerações passadas.
Na imaginação moderna, pelo menos entre os biblicamente instruídos,
Lázaro ainda se reclina no seio de Abraão, e as imagens da parábola do bom
samaritano continuam ressoando. Todas essas histórias demonstram a atração
do Evangelho de Lucas acima dos limites da cultura e do tempo.
O Evangelho de Lucas permanece popularmente relevante entre os Evan­
gelhos por causa de seu otimismo para cura da condição humana. É aí que o
seu Evangelho conecta-se incisivamente com a abertura e o otimismo da teo­
logia wesleyana. Lucas dirige-nos não só pelo seu gênio literário, mas por sua
compreensão da experiência humana do pecado e do sofrimento. Ele refere-se
a isso na linguagem tradicional da Escritura: pecado, enfermidade e impureza.
Ao longo do caminho de sua narrativa, esses fardos humanos são aliviados na
medida em que o pecado dá lugar à retidão; a impureza dá lugar à pureza; e
a enfermidade dá lugar à cura. Os meios pelos quais essa redenção surge são
o arrependimento, o perdão e a salvação por intermédio do Filho do gracio­
so Deus. O mais importante é que isso está disponível a todos na história de
Lucas: aos leprosos, às mulheres pecadoras, ao rei gentio, aos cobradores de
impostos, aos fariseus, aos judeus e aos centuriões romanos.
A história que Lucas conta parece argumentar que, como família huma­
na, nós nunca conseguimos colocar de lado a experiência que compartilhamos
com o pecado, a impureza e a enfermidade e nem com a nossa necessidade de
salvação. O Evangelho de Lucas permanece relevante porque a sua solução para
o problema do sofrimento humano continua relevante. Embora o nosso mun­
do tenha mudado desde que ele escreveu o seu Evangelho, parece claro que a
natureza humana permanece a mesma.
Lucas oferece conforto ao coração moderno do mesmo modo que ele o
fez com o coração do povo da era antiga. Nós estamos alienados do sentimen­
to divino pelo nosso egoísmo deliberado e encontramos o nosso caminho de
volta a esse sentimento divino por meio do humilde arrependimento. Estamos
contaminados de culpa e remorso pelos fracassos de nossa vida, e Lucas dá-nos
o caminho de volta à santidade, por meio do perdão e da presença capacitadora
do Espírito. E assim, ao revisitarmos essa história com uma perspectiva moder­
na, renovamos o seu significado para o leitor moderno. Uma releitura de Lucas
é sempre valiosa, e as poderosas ideias encontradas nele trarão um sentido re-
descoberto de esperança, uma segunda chance para todos.
18
ABREVIAÇÕES
Com raras exceções, estas abreviações seguem as que estão no livro The SBL Handbook o f
Style (Alexander, 1999).
Geral
a.C. antes de Cristo
Ad loc. Ad locum y no local discutido
A.E.C. antes da Era Comum
AT Antigo Testamento
ca. cerca de, tempo aproximado
cap. capítulo/capítulos
cf. confira
d.C. depois de Cristo
E.C. Era Comum
esp. especialmente
etc. et ceteray e o restante
i.e. id est, isto é
lit. literalmente
L XX Septuaginta (Tradução grega do AT)
MS Manuscrito
MS S Manuscritos
n. nota
nn. notas
NT Novo Testamento
s.d. sem data
s.e. sem editora
ss. e os seguintes
s.v. sub verbo, implícito
TM Texto Massorético (do AT)
V. versículo(s)
VS. versus
11 Paralelo aos Evangelhos Sinóticos

Palavras de referência frequentemente citadas


ABD A nchor B ible D ictionary. Veja Freedman.
BDF Greek G rammar o f th e New Testament a n d O ther Early
Crhistian Literature. Veja Blass e Debrunner.
TDNT Theological D ictionary o f th e N ew Testament. Veja Kittel.
Versões bíblicas
ARA Almeida Revista e Atualizada
AR C Almeida Revista e Corrigida
NASB New American Standard Bible
NIV New International Version
N K JV New King James
N RSV New Revised Standard Version
ABREVIAÇÕES NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

NTLH Nova Tradução na Linguagem de Hoje


NVI Nova Versão Internacional
Por trás do texto: Informações históricas ou literárias preliminares que os leitores
medianos podem não inferir apenas pela leitura do texto bíblico.
No texto: Comentários sobre o texto bíblico, palavras, gramática, e assim
por diante.
A partir do texto: O uso do texto por intérpretes posteriores, relevância
contemporânea, implicações teológicas e éticas do texto, com
ênfase especial nas questões wesleyanas.
Antigo Testamento
Gênesis Gn
Êxodo Êx
Levítico Lv
Números Nm
Deuteronômio Dt
Josué Js
Juízes Jz
Rute Rt
1 Samuel 1 Sm
2 Samuel 2 Sm
1 Reis 1 Rs
2 Reis 2 Rs
1 Crônicas 1 Cr
2 Crônicas 2 Cr
Esdras Ed
Neemias Ne
Ester Et
Jó Jó
Salmos SI
Provérbios Pv
Eclesiastes Ec
Cantares Ct
Isaías Is
Jeremias Jr
Lamentações Lm
Ezequiel Ez
Daniel Dn
Oseias Os
Joel J1
Amós Am
Obadias Ob
Jonas Jn
Miqueias Mq
Naum Na
Habacuque Hc

20
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON ABREVIAÇÕES

Sofonias Sf
Ageu Ag
Zacarias Zc
Malaquias Ml
(Nota: A numeração de capítulo e versículo no TM e na LX X geralmente difere em com-
paração com as Bíblias em inglês/português. Para evitar confusão, todas as referências bí­
blicas seguem a numeração de capítulo e versículo das traduções para o português, mesmo
quando o texto TM e L X X está em discussão).
Novo Testamento
Mateus Mt
Marcos Mc
Lucas Lc
João Jo
Atos dos
Apóstolos At
Romanos Rm
1 Coríntios 1 Co
2 Coríntios 2 Co
Gálatas G1
Efésios Ef
Filipenses FP
Colossenses Cl
1 Tessalonicenses lT s
2 Tessalonicenses 2 Ts
1 Timóteo 1 Tm
2 Timóteo 2 Tm
Tito Tt
Filemom Fm
Hebreus Hb
Tiago Tg
1 Pedro 1 Pe
2 Pedro 2 Pe
1 João ljo
2 João 2 Jo
3 João 3 Jo
Judas Jd
Apocalipse Ap
Apócrifos
Bar. Baruque
1 —2 Mac. 1 —2 Macabeus
3 —4 Mac. 3 —4 Macabeus
O. Man. A Oração de Manasses
Tob. Tobias
SS A Sabedoria de Salomão

21
ABREVIAÇÕES NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Pais da Igreja
Irineu Haer. Contra as H eresias
Eusébio Hist. Eel. H istória Eclesiástica
Tertuliano Marc. Contra M arcião
Pseudoepígrafos do AT
lE n . 1 Enoque (Apocalipse Etiópico)
As. Mo. A Assunção de Moisés
Jos. Asen. José e Asenate
Jub. Os Jubileus
S. Sal. Os Salmos de Salomão
T. Ab. Testamento de Abraão
T.Jac. Testamento de Jacó
Pergaminhos do mar M orto e textos relacionados
Q Qumrã
1 QHa Hodayota ou Hinos de Ações de Graças
1 QM Milhamah ou Pergaminho da Guerra
1QS Serek Hayahad ou Regra da Comunidade

Josefo
Ant. Antiguidades Judaicas
Textos rabínicos
Avot Aboth
k Talmude B abilónico
H ag H agigah
m. M ixná
Sabb. Sabbat
Sanh. Sinédrio
Tamid Tamid
Yoma Yoma
Transliteração do grego
Grego Letra Transliteração
CL alfa a
ß beta b
r gam a g
y gam a n asal n (antes de y y k , \y%)
8 delta d
£ epsílon e
zeta z
*1
eta ê
e teta th
1 iota i
K capa k
lam bda 1
P m u/m i m
V nu/ni n

22
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON ABREVIAÇÕES

1 csi X

0 omicron o
7T P1 p
P rô r

P rô (em in ício de palavra) rh


ç sigm a s
T tau t
V upsilon y
V upsilon u (em d iton g os: au,
eu, ëu, ou, ui)

* fi ph

X chi ch

* psi ps
CO oméga Õ
respiração elaborada h (antes de vogais
iniciais ou ditongos'

T ra n slite ra ç ã o d o h e b ra ic o
H e b ra ic o L e tra T ra n slite ra ç ã o
K d le f *
2 bêt b; v (fricativa)
g u ím e l g
7 d á let d
n he h
1 vav V OU w
T zain Z

n b êt h
0 tét t
iod e y
2 ca f k
lâ m ed 1
Ö m em m
nun n
D sâm eq s
17 din *
2 pê p ; f (fricativa)
X tsade s
P co f q
rêsh r
tf sin s
tf shin s
n tau t

23
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31
INTRODUÇÃO

A. Lucas e sua comunidade


1. Autoria e data
Já que o nome do autor não aparece em lugar algum na narrativa, o Evan­
gelho é uma obra anônima. A atribuição a alguém chamado Lucas é uma ques­
tão de tradição pela qual a evidência externa é escassa. O título encontrado
na ultima página do manuscrito mais antigo é eu an gelion kata Loukan - O
E vangelho S egun do L ucas (o códice de papiro P75 é datado de 175—225 d.C.;
Fitzmyer, 1981, 1:35). Além disso, vários manuscritos antigos indicam que a
atribuição do Evangelho a Lucas já era comum no final do segundo século e no
início do terceiro.
A referência mais antiga à autoria de Lucas encontra-se no Cânone Mu-
ratoriano (170—180 d.C.). “O terceiro livro do Evangelho: Segundo Lucas.
Esse Lucas era um médico. Após a ascensão de Cristo, quando Paulo o levou
consigo como alguém dedicado a cartas, ele a escreveu sob o seu próprio nome,
por meio do que ouvia dizer. Ele não havia visto o Senhor pessoalmente, mas,
na medida em que conseguia acompanhar (tudo isso), começou, então, seu
relato a partir do nascimento de João” (citado de Fitzmyer, 1981, 1:37).
Em uma passagem datada do final do segundo século, Irineu refere-se à
autoria desse Evangelho (.H aer 3.1.1): “Lucas, também companheiro de Paulo,
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

escreveu em um livro o evangelho assim como lhe fora pregado”. Um docu­


mento do final do segundo século, conhecido como o Prólogo do Evangelho,
registrou: “Lucas era um sírio da Antioquia, médico de profissão, discípulo
dos apóstolos e seguidor de Paulo até o seu martírio. Ele serviu ao Senhor sem
distração, sem esposa e sem filhos. E morreu com a idade de 84 anos, na Be­
ócia, cheio do Espírito Santo” (Tradução de Fitzmyer, [1981, 1:38]; para o
grego, veja Aland, 1964, p. 533). Na obra de Tertuliano, Against Marcion 4.2.2
(início do terceiro século), encontramos: “Lucas, entretanto, não era um após­
tolo, mas apenas um homem da era apostólica; não era mestre, mas discípulo,
portanto, inferior ao mestre — e pelo menos muito posterior (do que eles)
ao apóstolo a quem ele seguiu, sem dúvida, Paulo (foi posterior aos outros)”
(Fitzmyer, 1981, 1:40).
Outras referências primárias sobre Lucas como o autor do Evangelho fo­
ram feitas por Tertuliano (207—208 d.Q), Orígenes (254 d.C.), Eusébio (303
d.C.) e Jerônimo (398 d.C.; veja Fitzmyer, 1981, 1:39,40). Esses textos estabe­
lecem que Lucas era considerado o autor do terceiro Evangelho. Contudo, eles
dão apenas datas indiretas sobre a sua identidade e sobre quando ele viveu.
A evidência interna do NT para a identidade de Lucas é de dois tipos. O
primeiro refere-se a ele fora da tradição Lucas/Atos. Aqui, temos três referên­
cias. Em Colossenses 4.14, Paulo envia saudações de seu “amado amigo Lucas,
o médico,” aos Colossenses. Nas saudações de Paulo a Filemom, ele escreveu:
“Epafras, meu companheiro de prisão por causa de Cristo Jesus, envia-lhe sau­
dações, assim como também Marcos, Aristarco, Demas e Lucas, meus coope-
radores” (Fm 1.23,24). Em 2 Timóteo 4.11, Paulo confidencia: “Só Lucas está
comigo”. Essas passagens, escritas antes de 60 d.C., estabelecem Lucas como um
companheiro íntimo de Paulo. Porém, elas não podem conectá-lo diretamente
ao Evangelho que leva o seu nome, já que ele ainda não havia sido escrito.
O segundo tipo de evidência para a autoria do terceiro Evangelho é de na­
tureza indutiva — evidência interna dentro do Evangelho e de Atos. Primeiro,
nós sabemos que o autor não foi uma testemunha ocular dos eventos de Jesus,
porque ele nos diz isso (Lc 1.2). Entretanto, as seções “nós”, em Atos (16.10­
17; 20.5-15; 21.1-18; 27.1—28.16), sugerem que o autor era um companheiro
de Paulo.
Se o homem que escreveu o terceiro Evangelho era o Lucas das cartas de
Paulo, é interessante considerar qual conexão existia entre as comunidades de
Paulo e a tradição sinótica, mesmo que isso não seja aparente a partir dos escritos
de Paulo. Deve ter havido uma presença generalizada da tradição sinótica no
primeiro século do judaísmo da Palestina, o qual gerou a tradição pela forma

34
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

como ela espalhou-se pela bacia do Mediterrâneo, por meio de evangelistas


itinerantes como Paulo.
A partir da evidência interna do Evangelho, outras observações podem ser
feitas sobre as ideias do autor. Os mapas não estavam amplamente disponíveis
naquela época, e ele tem uma vaga noção da geografia da Palestina, particular­
mente da Samaria (Lc 17.11-19). Logo, ele não é palestino e é provável que nun­
ca esteve lá. No entanto, ele é um ardoroso admirador do judaísmo do templo,
como fica evidente pelas narrativas da infância de João e de Jesus. Ele tem o sacer­
dócio em alta honra (1.5) e considera a obediência à Lei desejável (1.6,7). Para
Lucas, João Batista é um profeta palestino judeu. Essas características demarcam
a perspectiva de Lucas na história de Jesus com base no templo e na Torá.
Mais especificamente, Lucas dirige a sua obra, tanto no Evangelho quanto
em Atos, a um homem de sua comunidade chamado Teófilo. O nome grego
significa “amigo de Deus”, então, a identidade desse indivíduo é questionada
(veja Otoole, 1992, 6:511,512). Alguns creem que ele era uma pessoa real, um
benfeitor que patrocinava o projeto literário de Lucas. Outros sugerem que o
nome represente um pseudônimo inteligente para proteger o destinatário da
perseguição política, escondendo a sua identidade. O Evangelho de Lucas é o
único dirigido a um indivíduo.
E provável que a escrita de Lucas date do primeiro século (década de 80).
Isso pode ser visto, de forma indireta, em outro aspecto da narrativa. O seu
Evangelho, mais notavelmente o capítulo 21, parece interpretar a narrativa es-
catológica (aparentemente derivada de Marcos 13) de uma forma não apoca­
líptica. Em particular, a destruição de Jerusalém (70 d.C.), já um fato histórico
na época em que Lucas escreveu, não é um sinal do fim dos tempos, mas um
sinaleiro ao longo do caminho rumo à culminação da história (veja o comentá­
rio em 21.20-24). A destruição de Jerusalém existe dentro do drama da Igreja;
porém ela não é a culminação desse drama. Na visão de Lucas, a significativa
diferença sobre o mundo, às vezes, é chamada de sua visão sobre a “história da
salvação” — o longo drama da vida da Igreja ainda por ser concluído. Essa é
outra razão pela qual Lucas parece tão relevante para a Igreja moderna. Para
ele, o drama da vida humana é contínuo, e ele molda a sua apresentação do
Evangelho nessa perspectiva.

2. Fontes sinóticas
O assim chamado Problema Sinótico é um debate constante sobre a inter­
dependência de Mateus, Marcos e Lucas como fontes literárias. Embora não
35
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

universalmente aceita, a “primazia de Marcos” é a ideia de que o Evangelho


dele foi escrito primeiro e depois usado por Mateus e Lucas. É razoável dizer
que essa tenha sido a visão majoritária nos estudos dos Evangelhos por dois
séculos.
A posição assumida neste comentário é que Lucas molda livremente o
Evangelho de Marcos aos seus próprios propósitos literários. Ele inclui quase
todo o texto de Marcos de uma forma ou de outra. Entretanto, isso é entrelaça­
do tão habilidosamente que até mesmo o leitor atento mal consegue discernir
as emendas. Mesmo assim, Lucas não escreveu um comentário sobre Marcos,
mas uma nova narrativa sobre Jesus (Evans e Sanders, 1993, p. 4). Ele, presu­
mivelmente, pensava que seu material fosse melhor do que o que já havia sido
produzido ou supria um material essencial que faltava em Marcos.
Lucas também expande a história de Marcos com o acréscimo de materiais
de outra fonte. Estes incluem uns 230 ditos de Jesus, que estão contidos tanto
em Mateus quanto em Lucas. Alguns eruditos acreditam que existiu uma única
fonte Q (de Q uelle, significando “fonte”). Outros disputam isso (sobre esse
debate, veja Tuckett, 1996, p. 1-39, e Goodacre, 2002). De qualquer forma,
Mateus e Lucas possuem um significativo corpo de material em comum que
Marcos não tinha ou escolheu não incluir. Estudos do Evangelho não resolve­
ram se Lucas usou a suposta fonte Q ou se tinha o Evangelho de Mateus para
consultar.

3. A fonte do Antigo Testamento


O relacionamento do texto de Lucas com o cânone do AT é central para o
estudo literário do Evangelho. Como fica óbvio pela tradição sinótica em geral,
Jesus estava intimamente inteirado da história bíblica do judaísmo — a Torá,
os Profetas e as Escrituras. Ele frequentemente se valia do AT para fornecer o
contexto de Sua mensagem aos Seus contemporâneos. Certo autor identifi­
cou 590 referências diretas ou indiretas somente a Isaías no NT. Essas alusões
cobrem toda a extensão de Isaías, e muitas dessas citações ocorrem nos Evan­
gelhos (Evans e Sanders, 1993, p. 14). Os textos sagrados do AT eram o léxico
compartilhado de significância entre os palestinos do primeiro século, dos ju­
deus da diáspora e dos gentios tementes a Deus. Não é de surpreender, então,
que o NT seja cheio de referências ao AT.
Vários termos foram usados nas pesquisas recentes para descrever o uso do
AT no NT. Dizem que os autores do NT “releram” o texto do AT e reinter-
pretaram-no para a sua época. Esse fenômeno, às vezes, é chamado de “a Bíblia
36
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

reescrita” ou “intertextualidade”. Outros usam o termo “m idrash comparativo”


para ressaltar como o tratamento do NT em relação aos textos do AT tem al­
guma afinidade com o hábito judaico de explanar os textos sagrados em forma
de comentário. Outros termos, como “ha gad â dentro da Escritura”, “exegese
centro-bíblica” e “reescrita parabíblica”, também têm sido usados para descre­
ver o hábito dos escritores do NT de remodelar o significado dos textos do AT
dentro dos contextos literários do N T (Evans e Sanders, 1993, p. 3).
Por uma questão de fato histórico e literário, Jesus usou o AT como base
de Sua mensagem evangelística. E é assim que todos os evangelistas retratam
a mensagem de Jesus. Contudo, no Evangelho de Lucas, os ensinamentos do
Mestre são relidos pelas lentes da própria compreensão de Lucas quando ao AT.
Isso faz parte do processo humano para preservar a tradição sagrada. Na
medida em que as décadas passam, essa tradição é readaptada para mantê-la re­
levante a uma nova geração de leitores. Esse processo é feito gradativamente, de
forma a não quebrar a cadeia da tradição de nenhuma forma substancial, para
que a reinterpretação não seja rejeitada pelos guardiões da tradição. A reinter-
pretação do texto sempre viaja p ela mente e pelo coração de seus intérpretes
mais recentes, e não em torno deles, como se a história fosse uma entidade com
uma existência independente. Uma leitura retórica e literária sugere que o sig­
nificado do texto reside, em última análise, no coração e na mente do próximo
leitor. Lucas é um leitor do AT que o interpreta para uma nova geração, que,
por sua vez, leva o seu próprio coração e sua mente à tarefa da interpretação.
Esse é um processo no qual se entende que a inspiração divina requer a
participação humana. O autor do Evangelho ocupa a função fundamental no
processo de inspiração. Entretanto, a inspiração do Espírito Santo continua
em cada nova geração de leitores que ac* ssam o significado do texto. Isso não
é uma concepção mecânica ou verbal da inspiração divina, mas uma compre­
ensão enraizada na crença de que o engajamento de Deus com os homens é
real — até o ponto da participação humana na criação do texto das sagradas
Escrituras.
Logo, a interpretação do AT apresentada em Lucas pode dizer-nos muita
coisa sobre como a mensagem do Evangelho foi atualizada para a um novo
público. Ele usa o texto do AT para mostrar aos primeiros leitores como os
eventos da vida de Jesus deviam ser entendidos na comunidade contemporânea
e nas situações de vida deles próprios. Isso significa que a apresentação do AT
por Lucas não só reflete os alicerces da mensagem histórica de Jesus, mas tam­
bém explica o momento presente aos seus leitores.
37
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Essa dependência do AT não é apenas uma cobertura para a história de


Jesus, um aceno obrigatório para a tradição escriturai judaica. Ela é, de fato,
a profunda estrutura sobre a qual a história do Evangelho apoia-se. “Lucas
usa protótipos bíblicos para construir cenas inteiras. Em ambos os volumes
[Lucas e Atos], histórias peculiares de Lucas parecem depender da imitação
de modelos bíblicos, seja por detalhes linguísticos ou pela completa estrutura
da história” (Johnson, 1991, p. 409). O mundo histórico de Lucas não é um
mundo novo, de forma alguma; é uma extensão de um mundo existente de
significado já conhecido dos leitores. Nesse sentido, a “reescrita parabíblica”
descreve precisamente a atividade literária de Lucas. O ponto-chave é que ele
usa a história do AT para explicar o mundo no qual o seu público vive — uma
história viva constantemente desenvolve novos níveis de significado para Lucas
e seus leitores.
Todos os escritores dos Evangelhos usaram o AT como fundamento de seu
mundo histórico, mas Lucas usou essa abordagem de forma muito mais ampla.
Isso pode ser visto de duas formas importantes. A primeira é a forma como a es­
trutura das narrativas de Lucas sobre a infância de João e de Jesus referem-se ao
AT. Dentre os muitos exemplos que serão notados neste comentário, observe
a esterilidade de Isabel (1.6,7 — Gênesis; Êxodo; Deuteronômio), a tradição
dos nazireus por detrás da abstinência de João (1.15 — Números; Levítico), a
semelhança do ministério de João com o de Elias (1.17 — Malaquias), a suces­
são do poder davídico (1.32,33 — 2 Samuel; Isaías; Salmos), a dependência
intertextual do cântico de Maria com o cântico de Ana (1.46-56 — 1 Samuel;
Salmos; Miqueias) e até as referências à estatura física de Jesus, que reflete as
histórias de Samuel, Saul e Davi (1.80 — 1 Samuel). Essas são apenas algumas
maneiras pelas quais o primeiro capítulo depende dos temas do AT para obter­
-se uma estrutura mais profunda do mundo histórico. Cada página do Evange­
lho contém alguma conexão com o AT.
Segunda importância: o Jesus de Lucas relê o AT extensivamente em Suas
aparições pós-ressurreição. No último capítulo do Evangelho, o Jesus de Lucas
engaja-se em um extensivo estudo bíblico, que faz uma releitura e reaplica nume­
rosos textos do AT, para que sejam agora compreendidos à luz do evento da res­
surreição. Jesus censura os dois discípulos no caminho de Emaús: “Como vocês
custam a entender e como demoram a crer em tudo o que os profetas falaram!
Não devia o Cristo sofrer estas coisas, para entrar na sua glória?
E começando por Moisés e todos os profetas, explicou-lhes o que constava a
respeito dele em todas as Escrituras” (24.25-27).
38
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

Os discípulos, de fato, recebem novas lentes hermenêuticas com as quais


releem suas Bíblias e reinterpretam o significado de crucificação e ressurreição.
As respostas estão lá em Moisés e nos profetas, e Jesus argumenta-as. No entan­
to, é somente por meio da ressurreição que os discípulos recebem a chave para
compreenderem o que estava escondido naqueles textos.
Essa observação tem significação para o autoconhecimento da comunida­
de de Lucas. Aquelas pessoas não eram meramente canais para a tradição do
AT, mas eram esclarecedoras dessa tradição. Por intermédio do Jesus ressuscita­
do, elas possuíam um novo e profundo conhecimento, escondido das gerações
prévias e agora revelado pela ressurreição.

4. Os primeiros leitores
Para quem Lucas escreveu o seu Evangelho? Já que nada se sabe sobre a
comunidade na qual ele vivia, as tentativas de descrevê-la são uma questão de
conjectura. Todavia, a informação sobre a comunidade dos primeiros leitores
pode ser deduzida por sua abordagem teológica.
Primeiro, a mensagem tem um apelo fundamental àqueles que estão fora
do judaísmo étnico. Ela é um convite para os que eram anteriormente excluí­
dos, a fim de que se unam à salvação do Deus de Israel. Numerosas histórias no
Evangelho tornam esse ponto evidente (a viúva de Sarepta em Sidom, Naamã,
o sírio [ambos do material L], o centurião, o endemoninhado geraseno [ambos
do material sinótico], o banquete messiânico, no qual os filhos de Israel são ex­
cluídos e outros são incluídos [material Q]). Quando essa ênfase é combinada
com a mensagem do evangelho de Atos aos gentios, sugere-se que, pelo menos
parcialmente, o público de Lucas não era judeu.
Entretanto, essa não é a história completa, já que Lucas, assim como to­
dos os Evangelhos, também apela à exclusão dos judeus étnicos dentro de
Israel (os leprosos, os publicanos e pecadores, a mulher com o fluxo de san­
gue [todos Sinóticos], a mulher pecadora, os samaritanos, o filho pródigo,
Lázaro, Zaqueu [todos L], o grande banquete ignorado [Q]). Logo, é difícil
categorizar o público do Evangelho como judeu ou como gentio, já que ele
apela a todos os que estão sofrendo uma exclusão baseada na ortodoxia reli­
giosa. O primeiro público de Lucas quase certeiramente incluía tanto judeus
quanto gentios.
Se esse Lucas for o companheiro de Paulo, que viveu viajando amplamente
pela bacia do Mediterrâneo, podemos concluir que o seu público era, em gran­
de parte, não palestino. Sua pouca noção de geografia palestina sugere que o seu

39
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Evangelho foi a criação de uma diáspora; e o seu apelo principal seria o público
daquele mundo.

B. Temas teológicos em Lucas


1. Os pecadores encontram o arrependimento
No mundo teológico de Lucas, os pecadores arrependem-se e encontram
um caminho para a salvação por meio do encontro com Jesus. Esse é o paradig­
ma teológico principal de seu Evangelho. Em seu recente tratamento do papel
e da função do arrependimento em Lucas/Atos, Guy Nave descreve a ênfase
de Lucas:
A principal palavra grega para “arrepender” e “arrependimento” ocorre 25
vezes em Lucas/Atos. Isso significa mais de 45% de todas as ocorrências no
Novo Testamento inteiro. Somente Lucas apresenta João Batista definin­
do a aparência dos “frutos dignos de arrependimento”. Apenas ele conta
histórias de Jesus convocando o povo para arrepender-se. Lucas ilustra,
exclusivamente, Jesus convencendo o perverso a arrepender-se e a pagar de
volta seus ganhos ilícitos. Somente Lucas/Atos oferece relatos explícitos
de pessoas respondendo aos chamados ao arrependimento proferidos por
João Batista, por Jesus e pelos discípulos. Apenas Atos retrata Pedro eco­
ando João Batista e convocando as pessoas: “Arrependam-se, e cada um de
vocês seja batizado em nome de Jesus Cristo para perdão dos seus pecados”
(At 2.38). É o livro Atos, e não as epístolas paulinas, que registra Paulo
declarando (em duas ocasiões) que o seu ministério incluía proclamar a
mensagem do arrependimento. O arrependimento é, sem dúvida alguma,
um aspecto fundamental de Lucas/Atos. (2002, p. 3)

A teologia do arrependimento, em Lucas, está baseada na dicotomia na


qual as pessoas estão separadas em grupos: aquelas que entendem e aceitam a
posição divina de Jesus; e aquelas que a rejeitam. Os personagens da história
são, por um lado, os pecadores, os discípulos e as multidões que aceitam a Jesus
como um homem de Deus. Por outro lado, são a elite religiosa: os sacerdotes,
os fariseus, os escribas e seus associados que estão indispostos a aceitarem Jesus
como um profeta. A tremenda ironia, é claro, para todos os Evangelhos, é que
os pecadores possuem visão espiritual, e a elite religiosa é espiritualmente cega.
A proclamação inicial do convite ao arrependimento é feita por João Ba­
tista em Lucas 3.3,8. O tema do arrependimento é depois materializado na
40
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

vida de seis indivíduos que se encontram com Jesus (veja Tannehill, 2005, p.
84-101). A confissão de Simão Pedro introduz o tema: “Afasta-te de mim, Se­
nhor, porque sou um homem pecador!” (5.8). Isso aparece próximo à história
do chamado de Levi (5.27-32) e da controvérsia entre Jesus e os fariseus sobre
a comunhão com os pecadores. No final dessa história, Jesus anuncia: “Eu não
vim chamar justos, mas pecadores ao arrependimento”.
O arrependimento também é a proclamação paradigmática da parte cen­
tral de Lucas. Depois, vem o arrependimento da mulher pecadora em 7.36-50,
do filho pródigo em 15.11-32, do publicano em 18.1-8 e, finalmente, do arre­
pendimento de Zaqueu, o cobrador de impostos em 19.1-10.
Na passagem final sobre Zaqueu nessa temática, um anúncio conclusivo
sobre o arrependimento dos pecadores é encontrado: “Hoje houve salvação
nesta casa! Porque este homem também é filho de Abraão. Pois o Filho do
homem veio buscar e salvar o que estava perdido” (Lc 19.9,10). Essa declaração
faz o encerramento do ministério galileu, quando Jesus entra em Jerusalém no
final do capítulo 19. Talvez seja o objetivo de Lucas que aqueles que lessem cui­
dadosamente pudessem encontrar a oportunidade para a sua própria redenção
nas histórias desses penitentes. Se esses terríveis pecadores podiam ser salvos,
os leitores concluiriam muito bem que eles também poderiam ser salvos. Se for
assim, o propósito retórico de Lucas não é apenas contar a história de Jesus,
mas induzir os leitores ao arrependimento.
As causas para o arrependimento de seus leitores são variadas: um milagre
(Pedro), um chamado (Levi), estar na presença de Jesus (a mulher pecadora), a
experiência de uma necessidade extrema (o pródigo), a santidade no templo (o
publicano) e uma visita de Jesus (Zaqueu). Os resultados da experiência tam­
bém são diferentes: Pedro prostra-se de joelhos; Levi abandona sua mesa de
coleta; a mulher pecadora fica cheia de remorso e gratidão; o pródigo humi­
lha-se e volta para casa; o publicano bate no peito, e Zaqueu promete devolver
o dinheiro. Contudo, todos são transformados de alguma maneira.
Existe uma linha de narrativa que permeia a ilustração desses pecadores —
um sentimento compartilhado de santidade. Todos eles experimentam temor e
reverência em seu encontro com Jesus. E há um resultante sentimento de culpa
pessoal (e institucional) que leva ao arrependimento e à transformação. Essas
experiências dos personagens de Lucas alimentam o seu paradigma de arrepen­
dimento e perdão no decorrer do Evangelho.
Na perspectiva da teologia prática, será que essa salvação pelo arrepen­
dimento e perdão é expressa na plena transformação do indivíduo? Nós não
vemos nesse Evangelho o resultado de discípulos transformados em cristãos
41
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

cheios do Espírito. Na ilustração dos pecadores, enxergamos o exterior da ope­


ração do arrependimento e do perdão, mas não o interior. Pedro permanece
uma figura quebrantada no final do Evangelho. Não sabemos do destino da
mulher pecadora do capítulo 7 ou do futuro do filho pródigo do capítulo 15,
nem do destino do publicano arrependido do capítulo 18.
A vida do cristão cheio do Espírito, a culminação desse tema, será traçada
na história do Pentecostes e além, no livro de Atos dos Apóstolos. Nele, en­
contraremos muitos exemplos de como o arrependido será capacitado a viver
uma vida no Espírito. Contudo, aqui, no Evangelho, os “frutos que mostrem
arrependimento”, descritos por João, permanecem escondidos.
É por meio dos encontros de Jesus com esses indivíduos e do conflito que
isso gera com os religiosos contemporâneos que Lucas define o que Jesus veio
realizar. Os pecadores arrependem-se, e os líderes religiosos demonstram ape­
nas o escárnio dos desprezados. Essa é a máquina do conflito que impulsiona a
narrativa do Evangelho adiante.

2. A eleição redefinida
Em Lucas, os termos usados para descrever o relacionamento da huma­
nidade com Deus são mudados de eleitos (Israel) e não eleitos (as nações ou
os gentios) do AT para “perdidos” e “achados” do Evangelho. Colocando isso
de outra forma, os israelitas, como o povo de Deus no centro da história da
salvação, são substituídos por um novo povo — aquele que se arrepende e é
perdoado. A categoria de “nações”, característica da teologia do AT, é suplan­
tada por uma nova categoria, os perdidos — todos os que se recusam a aceitar
o Messias de Israel.
Nesse novo conceito de salvação, Israel é privilegiado ou excluído, conde­
nado ou salvo; é um povo que simplesmente perde sua posição de ser singu­
lar entre os escolhidos. Assim como todos os povos, ele deve arrepender-se e
humilhar-se diante de Deus. Para usar a ilustração de Lucas 13.22-30, aqueles
que não se arrependerem, sejam judeus ou gentios, achar-se-ão excluídos do
banquete messiânico. Eles serão deixados de fora, nas ruas escuras e perigosas.
“Em Lucas/Atos, a expansão da salvação e a inclusão de todas as pessoas da
família de Deus representam o plano do Senhor. Além do mais, a reação de
arrependimento do homem à oferta da salvação abrange uma parte vital desse
plano” (Nave, 2002, p. 29).
Em Lucas, então, a aliança entre Deus e Sua vinha, Israel (Is 5), ficou
subordinada a uma mensagem de salvação mais ampla. Essa é uma inovação
42
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

teológica tão radical dentro da narrativa que os discípulos de Jesus respondem:


“Que isso nunca aconteça!” (20.16; veja 20.9-19). No paradigma de Lucas,
Israel tem pleno acesso à salvação, porém não mais baseado na eleição. Ao
contrário, o seu acesso é na base do arrependimento e do perdão, assim como
todas as demais nações.
Embora seja demonstrado em cada uma das ilustrações dos pecadores an­
teriormente relatadas, isso alcança sua plena expressão na história do filho pró­
digo, no coração do Evangelho de Lucas. No capítulo 15, Lucas mostra o que
devemos sentir (humildade) e o que devemos fazer (arrepender-nos) para en­
trarmos no caminho da bondosa vontade de Deus. Dessa forma, o Evangelho
de Lucas fornece a antropologia da nova experiência da salvação. A essência
existencial da reação apropriada ao evangelho é a experiência da humildade e
do arrependimento — duas emoções muito humanas.
A capacidade de o perdido encontrar seu caminho de volta a Deus está no
centro desse novo paradigma de salvação. Não é somente por meio de Sua von­
tade que eles deverão ser salvos, mas também pelo que eles sentem e fazem em
resposta a essa graça. Isso se torna possível pela graça de Deus e é possibilitado
pela graça antecipada (como os wesleyanos diriam). No entanto, o que é novo
aqui, da perspectiva dos Evangelhos Sinóticos, é a profunda função da vontade
humana e sua capacidade de buscar e encontrar a salvação do Senhor. Aliás, no
entendimento de Lucas sobre o evangelho, a salvação de Deus não pode ser
encontrada sem o movimento do coração do homem em direção a Ele. Nesse
sentido, a teologia de Lucas funciona com a visão que os wesleyanos têm adota­
do como uma premissa teológica: aquilo que fazemos e até aquilo que sentimos
têm significância para a nossa salvação. As ações e as atitudes do coração não
causam a salvação. Elas não são nem mesmo o mecanismo operativo central da
salvação (que é a graça de Deus). Entretanto, a salvação não pode ser experi­
mentada sem a ação correta e um coração humilde. Isso está completamente de
acordo com os ensinos de Jesus, conforme apresentados por Lucas.
Os exemplos dos pecadores da especial temática de Lucas demonstram
essa questão. A mulher pecadora, em 7.36-50, chora em penitência aos pés
de Jesus. E seus pecados são declarados “perdoados” (v. 48). O filho pródigo,
humilhado e cheio de remorso por causa de suas monumentais transgressões,
encontra um abraço do pai e a restauração à sua família (15.11-32). O fari­
seu e o publicano ficam lado a lado no altar do templo. Contudo, é o homem
que bate no peito e evidencia um coração humilde de arrependimento que vai
“para casa justificado” (18.14). Jesus declarou que Zaqueu era um dos perdidos
que Ele “veio buscar e salvar” (19.10), porque ele zelosamente prometeu ser
43
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

justo c promover devoluções por quaisquer delitos de seu passado. Todos es­
ses pecadores demonstraram como a salvação funciona. A conduta deles como
pecadores arrependidos exemplifica a vida de santidade e plenitude que Jesus
veio disseminar.
Os gentios realmente encontram o caminho para Jesus no Evangelho, ali­
ás, demonstram uma grande fé (7.1-10; 23.7). A semente da integração do gen­
tio está contida no sermão inaugural de Jesus em Nazaré. Nele, Cristo exalta a
bondosa inclusão de Deus quanto aos gentios por intermédio de Elias e Eliseu
(4.25-30). Todavia, a significância desse novo paradigma não é plenamente re­
alizada na teologia de Lucas antes de seu segundo volume, Atos dos Apóstolos.
Neste, os primeiros não judeus a serem incluídos no movimento cristão fazem
isso na base do arrependimento e do perdão, demonstrando que não é pela
identidade étnica ou pelos termos históricos da referência de Deus e de Sua
nação eleita que a salvação funciona (At 10.43).
O novo mecanismo da salvação é a atitude do coração — independente­
mente se o indivíduo é judeu ou gentio. É aí, no deslocamento do evangelho
de Jerusalém para Roma, em Atos, que a nova visão de Lucas sobre o acesso
universal à salvação emerge — o estágio da salvação é vastamente expandido
para a nova era da Igreja (veja mais, Por trás do texto, Lc 15.1-10).

3. Outros temas
Jerusalém . Lucas é um autor cujo olhar repousa sobre o centro geográfico
do judaísmo do templo — Jerusalém. A história viaja em um circuito, come­
çando em Jerusalém e seus arredores com as narrativas do nascimento de João
e do de Jesus, e depois vai da Galileia de volta a Jerusalém, nos capítulos 5— 19>
em que o drama final acontece nos capítulos 20—24. Como é a cidade de Seu
destino (9.31,44,51), Jesus não pode perecer em nenhum outro lugar (13.33).
Ele p a rte de Jerusalém após a Sua ressurreição, indicando a trajetória exterior
que o evangelho, então, percorrerá (24.15,46,47). Dessa órbita em torno da
cidade mais santa do judaísmo, esse centro de gravidade, a mensagem será lan­
çada ao mundo gentio.
Esperança suspensa. Existe também um forte sentimento de expectativa
messiânica davídica no decorrer do Evangelho (1.32; 18.35-43). A comunida­
de de Lucas havia ficado desanimada na antecipação de seu livramento. M ui­
tas décadas se passaram desde que Jesus andara pelas montanhas da Galileia,
e Paulo já havia morrido há tempos. Aquela era uma comunidade que queria
44
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

desistir. Lucas lidou com esse tema em seu material especial em 18.1-8 (veja
também o comentário em 21.19). A hostilidade contra o movimento cristão
havia se tornado a realidade dominante na época em que o Evangelho de Lucas
foi escrito. A perseverança da comunidade da fé é uma das lentes fundamentais
pela qual a narrativa de Lucas deve ser lida. É nesse sentido de esperança sus­
pensa que o material de Lucas sobre a expectativa messiânica discorre.

C. Temas e métodos literários


Todos os comentários têm bases metodológicas com as quais abordam o
texto, e as ferramentas do estudo do NT têm sido ricamente variadas na his­
tória da erudição. No período pré-moderno, os métodos interpretativos liam a
Escritura pelas lentes da piedade pessoal, da autoridade de Igreja, da alegoria e
até da pesquisa filosófica. Esse período era caracterizado pela ausência do ceti­
cismo histórico tão característico do período moderno.
Quando as questões sobre a precisão histórica dos Evangelhos começaram
a surgir em meados do século 19, outros métodos mais científicos começaram
a ser aplicados ao estudo da Escritura. Esses métodos, frequentemente, busca­
vam estabelecer “o que realmente aconteceu” e remover aquilo que se acredi­
tava ser uma aparência de mito piedoso, o qual se acumulara à literatura nos
estágios iniciais de sua preservação.
No século passado, muitos tipos de métodos interpretativos produziram
novos esclarecimentos quanto ao significado da Escritura. Os nomes são fami­
liares aos alunos da literatura bíblica: criticismo da forma, criticismo da fon­
te, criticismo textual e linguístico, para citar apenas alguns. Intérpretes mais
recentes têm usado métodos de teoria histórica, sociológica, feminista, pós-
-moderna e literária para minerar os textos antigos do AT, a fim de alcançarem
dimensões adicionais de significado.
A preocupação primordial neste volume é ler Lucas como uma unidade
literária. Isso equivale dizer que o propósito aqui é mais “interpretativo” do
que “documentário” (como em Green, 1997, p. 15). Os métodos empregados
concentram-se nos temas, nas mensagens e em mecanismos distintos de Lucas.
Uma quantidade significativa de material encontrado em Lucas não é nem de
Marcos, nem de Mateus. Logo, um material “especial” de Lucas é especialmen­
te importante para os propósitos desta leitura literária, cuja análise provê a fon­
te mais rica para a compreensão das perspectivas peculiares de Lucas e recebe
uma atenção particular.
45
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Nós iremos também enfatizar plenamente as forças retóricas persuasivas


que Lucas traz aos seus leitores. Ele é um evangelista no sentido de que busca
convencer seus leitores a adotar uma vida de arrependimento e redenção. Existe
uma forte corrente de reação do leitor em ação na narrativa, que Lucas procura
influenciar seus leitores a tomarem decisões redentoras sobre a sua mensagem.
Ocasionalmente, faremos uma pausa e consideraremos a reação que o Evange­
lho de Lucas procura extrair de seus leitores.
Este comentário não presume apresentar uma análise literária altamente
técnica. Ao contrário, ele lida com as realidades simples da história como uma
literatura, a fim de garimpar o significado e a intenção de Lucas. Alguns dos
elementos que serão comumente referidos são: a intertextualidade da narrativa
com o AT, o desenvolvimento de sua trama, a estrutura da narrativa e, espe­
cialmente, o modo pelo qual o autor desenvolve os seus personagens (carac­
terização). O uso frequente do termo “narrativa”, por exemplo, indica que o
Evangelho deve ser entendido como uma criação literária unitária. Essa simples
estrutura literária de referência pretende elucidar um significado que, às vezes,
passa despercebido pela pesquisa histórica tão somente.
Ocasionalmente, o termo “mundo histórico” é usado. Ele refere-se à ideia
geral que constitui o mundo do pensamento do autor. No mundo histórico
de Lucas, por exemplo, as intervenções sobrenaturais são reais: Deus previu o
advento do Messias, os demônios existem, vozes do céu são ouvidas, os mortos
são ressuscitados, e os enfermos são curados milagrosamente. Essas realidades
constituem a base do mundo histórico de Lucas, sua estrutura ideológica de re­
ferência. Nós podemos compartilhar a crença nessas realidades com Lucas; ou
podemos achar esses acontecimentos fantásticos e até incríveis. Contudo, eles
são reais para Lucas, e nenhum dos Evangelhos pode ser lido proveitosamente
sem que haja um apreço por essa visão de primeiro século do mundo e sua rica
riquíssima variedade de poderes espirituais.
A análise literária não se preocupa muito com a pesquisa histórica. Ela
enfatiza a função do autor em transmitir o significado, em vez de avaliar sua
precisão histórica ou procurar descobrir “o que realmente aconteceu”. Esse uso
do método literário não tem a intenção de depreciar a pesquisa histórica, nem
mesmo de suplantá-la. Ele tem a intenção de suplementar o método histórico
que está interessado em outros tipos de questões. Enquanto a pesquisa históri­
ca também estiver presente neste comentário, a análise literária trará ferramen­
tas alternativas para descobrirem-se outros níveis de significado no texto.
46
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

D. Estrutura e trama
Algumas observações gerais podem ser feitas sobre a trama do Evangelho
de Lucas. Em Marcos e Mateus, o ministério de Jesus, quando adulto, aparece
completamente formado no capítulo 1. Lucas, seguindo um prólogo normal,
expõe um complexo contexto cronológico e religioso para as origens de Jesus.
Sua história começa com uma extensa narrativa do precursor do Messias, João
Batista. Tendo criado esse contexto, Lucas passa para o nascimento de Cristo, e
dois acontecimentos no templo confirmam a Sua identidade como o escolhido
de Deus (Simeão e Ana). Pulando para 12 anos depois, Lucas traz uma ilustra­
ção do menino Jesus no templo, trazendo mais confirmação e complexidade à
imagem do jovem. Com outro salto cronológico de 18 anos, a história começa
a convergir com o retrato sinótico do início do ministério de João como um
homem já adulto.
Seguindo o teste inaugural de sua lealdade a Deus no deserto, a parte cen­
tral do Evangelho de Lucas começa recontando o ministério de Jesus em Sua
cidade natal e nos arredores. A porção galileia de Seu ministério estende-se até
9.50. Em uma série de eventos de curas, libertações e ensinamentos, o ministé­
rio de Jesus é apresentado com a aprovação de Seus seguidores e do público em
geral. Obscuridades começam a surgir, entretanto, quando os líderes religiosos
fazem objeção à Sua conduta. Desde questões legais, do tipo de companhia que
Ele tinha até as referências cada vez mais evidentes à Sua identidade como Fi­
lho de Deus, um ethos de conflito começa a formar-se em torno de Jesus como
uma figura controversa. O auge dessa seção é a transfiguração, na qual a Sua
identidade é plenamente revelada, e Seus oponentes são claramente revelados
como injustos. O palco agora est dark edges á preparado para o restante da
história.
No final do capítulo 9, numerosas referências ao martírio começam a surgir
no texto, e o Seu percurso para Jerusalém, cidade de Seu destino, fica estabele­
cido. Ali, Ele encontrará a Sua morte preordenada. Dos capítulos 10 a 19, Jesus
ministra no caminho para Jerusalém em um contexto narrativo cronológico e
geográfico levemente apresentado. Na medida em que a narrativa desenvolve­
-se rumo à climática entrada em Jerusalém, muito do material peculiar de Lu­
cas é encontrado: Suas parábolas sobre o filho perdido, o administrador astuto,
o fariseu e o publicano e a história de Zaqueu. Essas características constituem
a influência mais marcante de Lucas na tradição do Evangelho.
Uma vez que Jesus entra na cidade sagrada, a história de Seu sofrimento fica
bem paralela à tradição sinótica. Seguidamente à Sua morte, Lucas novamente
47
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

traz um material exclusivo para lançar na narrativa pós-ressurreição, no caminho


de Emaús. Ali, o Jesus ressurreto torna-se o Jesus da Igreja — um mestre interpre­
tando as Escrituras para encorajar Seus discípulos que, agora, serão comissiona­
dos a ensinarem o Seu evangelho às nações. Nesse ponto, termina a história do
Evangelho, que será continuada no “segundo volume” de Lucas, o livro de Atos
dos Apóstolos.

E. Conflito
A trama tem uma máquina de conflito impulsionando a história adiante.
Em Lucas, cinco histórias de conflito fornecem o combustível para a contro­
vérsia em torno de Jesus: a cura do paralítico (5.17-26); o chamado de Levi
(5.27-32); a questão do jejum (5.33-39); a colheita do grão no sábado (6.1-5)
e a cura do homem da mão atrofiada, no sábado (6.6-11). Lucas segue Marcos
nesse material (Mc 2.1—3.6).
Todas as cinco histórias têm um formato comum:

• Uma cura ou acontecimento provocante ocorre no ministério.


• Os adversários de Jesus fazem objeção e desafiam-no verbalmente.
• Jesus responde com um provérbio, que traz resolução à passagem.
• AJém do mais, todas elas identificam os fariseus como os principais opo­
nentes.
• Todas registram um incidente que gera oposição.
• Todas concluem com um ditado ou com uma ação que justifique Jesus.
Essas são histórias de conflitos partidários, é claro, e possuem valor lim i­
tado na reconstrução do judaísmo histórico nesse período de tempo. Ainda
assim, nós conseguimos ter uma percepção de como Jesus provavelmente se
diferenciava de Seus contemporâneos.
Da perspectiva do leitor, as histórias apelam para um sentimento inato
daquilo que é correto e apropriado na prática religiosa. Jesus e Seus seguidores
veem o senso comum; e os fariseus são caracterizados como religiosos sérios,
que não conseguem enxergar a verdade inequívoca. Esse retrato dos fariseus é
contrastado rigidamente com o dos pecadores e enfermos que aceitam a autoi-
dentificação de Jesus como o Filho do Homem e alegram-se com Suas palavras
e Seus feitos. Esses são pecadores “sadios”, aqueles que, de fato, já ouviram o
médico de 5.31.
48
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

Cada um desses dois grupos paradigmáticos representa a extrema margem


dos injustos (Isto é, os pecadores que realmente são os santos!) e dos justos
(Isto é, os fariseus e outros que realmente são os pecadores!). Eles são colocados
em conflito, com Jesus mediando no centro.
As raízes dessa ideia estão na retórica de “as ovelhas perdidas de Israel”, vis­
ta primeiro em Ezequiel 34 (veja A partir do texto, em Lc 5.29-32; Por trás do
texto, em L cl5 .1 -1 0 ,eo comentário; e a história de Zaqueu, em 19.1-10). Essa
ideia é reiterada por Jesus; e, assim, ela entra na tradição do Evangelho. O fato
de alguns membros de Israel serem considerados “ovelhas perdidas” provém
da crítica profética do AT do judaísmo do templo (veja as seções citadas ante­
riormente) e coloca o conflito principal do Evangelho na base desse criticismo.

F. Caracterização
Os autores constroem personagens para preencherem seus mundos his­
tóricos. Em certos pontos do comentário, alguma referência será feita sobre
como Lucas constrói os seus personagens. Ele confere aos personagens de sua
história, entre outras coisas, opiniões, motivação, padrões de comportamento
e falas, emoções, ambição, defeitos e fracassos. Os personagens desenvolvem
uma relação uns com os outros. Alguns são protagonistas, outros, antagonistas,
e ainda outros, espectadores. Por meio dos relacionamentos entre esses perso­
nagens, o autor constrói um mundo histórico de significado.
Na narração do Evangelho por Lucas, encontramos o diabo, Deus, os
profetas, Jesus, José, Maria, Zacarias e Isabel, João Batista, Simeão e Ana, os
discípulos, as multidões, os pecadores e os cobradores de impostos, Herodes,
Zaqueu, o filho pródigo, o bom samaritano, os fariseus e os mestres da lei, e
muitos outros. Esses são os protagonistas da história, e o que sabemos sobre
eles vem inteiramente da caracterização do autor sobre cada um. Uma rápida
olhada para Jesus e para os fariseus pode demonstrar esse ponto.
Em todos os quatro Evangelhos, Jesus é uma figura complexa, alguém que
faz uma ponte entre o mundo divino e o humano. Em Lucas, Jesus consegue
vencer todo tipo de oposição e tem confiança em Sua missão como o Filho
de Deus. Ele surpreende aquele à Sua volta, falando e agindo de maneira que
transforma aqueles a quem Ele encontra. No decorrer da narrativa, Cristo so­
brepõe o diabo e os fariseus por um lado, e a doença física, a insanidade e a
morte (do filho da viúva de Naim) por outro lado. Os demônios, os centuriões
e as multidões obedecem à Sua palavra e cumprem Suas ordens. Sua divindade
49
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

é atestada por todos esses feitos, pela voz do próprio Deus e pelos profetas da
antiguidade, que ficaram ao Seu lado no monte da Transfiguração.
Quando Jesus entra em Jerusalém, entretanto, Ele entrega-se aos poderes
ceifadores da morte e voluntariamente se submete às autoridades de Jerusalém,
até mesmo à morte na cruz. E necessário que Ele “sofra” e “seja morto” (9.22),
conforme a narrativa nos diz. E uma questão de compulsão redentora, e Ele,
final e prontamente, submete-se à autoridade dos sacerdotes por uma questão
de escolha. Quando Jesus morre, Ele o faz porque assim escolhe (“não seja feita
a minha vontade, mas a tua” [22.42]). E é aí que a força moral e espiritual da
morte reside. Ele é uma figura complexa e sobrenatural, mas é alguém com
quem o leitor rapidamente se simpatiza de maneira plena.
A escolha que Ele faz de submeter-se à cruz é central ao significado de Sua
morte. Pode-se até dizer que, da perspectiva de Lucas, Jesus sujeita-se à morte
na cruz como o Seu supremo ato de humildade. Essa é a mesma característica
que salva a todos no Evangelho de Lucas (veja mais no comentário em 23.32­
43).
Toda essa caracterização faz parte da estrutura teológica de referência de
Lucas. Embora o mal tenha o seu dia de glória na crucificação de Jesus, isso
acontece com a permissão divina. Ao mesmo tempo, Jesus tem uma responsa­
bilidade humana que surge de Sua existência humana. O drama duplo da pro­
vidência e da agência humana mistura-se na apresentação da paixão por parte
de Lucas. O aspecto humano da natureza de Jesus está livre para agir (como
afirma a teologia wesleyana). Contudo, isso tudo ocorre dentro da agência so­
berana de Deus. Esse é o supremo mistério da vinda de Cristo para o meio dos
homens — Deus e os homens como coautores em um mundo. A força da teo­
logia wesleyana está na disposição de abraçar o mistério da função humana na
ação divina e de tentar entender a vida na ambiguidade desse mistério. Nesse
sentido, a caracterização de Jesus carrega o coração da mensagem teológica de
Lucas.
A caracterização dos fariseus, por outro lado, é quase inteiramente nega­
tiva no terceiro Evangelho. Os fariseus servem como uma perfeita frustração
para a sabedoria e o poder de Jesus, os quais eles não conseguem compreender.
Eles são o exemplo negativo dos leitores, instruindo-os em como não devem
pensar e agir em relação à reivindicação de Jesus quanto à filiação.
Os leitores contemporâneos não devem, porém, adotar a caracterização
como um retrato histórico dos líderes judaicos em geral ou como a seita dos
fariseus em particular. Embora alguns de Seus contemporâneos realmente se
oponham a Jesus, essa caracterização dos líderes judaicos em oposição a Ele
50
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

deve ser reconhecida como um artifício literário. O estereótipo dos “fariseus”


como oponentes de Jesus originou-se em Marcos e foi assimilado por Mateus e
Lucas. Cada escritor deu à caracterização dos fariseus uma pátina exclusiva, às
vezes, simpática, mas geralmente negativa.
No Evangelho de João, essa tipologia alcançou sua forma mais importuna
quando os oponentes de Jesus foram chamados simplesmente de “os judeus”
Esse uso reflete a crescente fenda entre o cristianismo e o judaísmo nos anos
mais avançados do primeiro século. Frequentemente, no passado do cristianis­
mo, a caracterização negativa dos Evangelhos era tomada literalmente como
uma descrição histórica, tornando o judaísmo em um implacável inimigo da
verdade.
A erudição, desde o meado do século 20, tem mostrado que o judaísmo era
diversificado no primeiro século d.C. Uma caracterização negativa de todos os
judeus da Palestina naquele período não é nada mais apropriada do que seria
para qualquer grupo religioso em qualquer época. Jesus era judeu, afinal de
contas, assim como eram todos os discípulos e os primeiros cristãos. No en­
tanto, a realidade histórica era que alguns, talvez muitos, na liderança religiosa
do judaísmo, sentissem que o Mestre da Galileia fosse uma ameaça à prática do
judaísmo tradicional, como eles entendiam. Isso era particularmente verdadei­
ro com relação à lei e à santidade ritual. Todos os mestres, naquela época, deba­
tiam essas questões. Entretanto, Jesus era um operador de maravilhas e alguém
que tinha posições controversas sobre a lei, o Messias, e outras questões. Com
grandes multidões seguindo-o, Ele atraía atenção de pessoas influentes. Isso o
separava para uma violenta controvérsia (Lc 11.53; 19.47).

G. Lucas e a vida cristã

1. O apocalipse
A passagem desta presente época e a chegada do tempo futuro era uma
característica central na ideologia do cristianismo primitivo. As primeiras es­
critas de Paulo são evidências de que o fim da história era tido como iminente,
especialmente em 1 e 2 Tessalonicenses. A tradição sinótica também contém
material que lida com o fim da história e a introdução do mundo celestial que
virá. Analisadas em conjunto, as testemunhas dos Evangelhos e os escritos de
Paulo indicam que havia um grande sentimento entre os primeiros seguidores
de Jesus de que o presente século estava rapidamente chegando ao fim e que o
Reino de Deus seria logo estabelecido.
51
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

O conceito de uma era futura, que suplantaria o mundo histórico, não


começou com o cristianismo. Suas raízes originais estão em algum lugar nas
distantes origens da religião persa. A ideia da culminação da história foi prova­
velmente trazida ao judaísmo pelas peregrinações dos judeus no exílio na Ba­
bilônia, no quinto século a.C.. Ela começou a entrar no judaísmo do primeiro
século antes de Jesus. Nos dois séculos anteriores a Jesus, os fariseus adotaram
a ideia de uma vida após a morte e um fim da história e incorporaram esse pen­
samento em sua teologia. O judaísmo tradicional do AT tinha pouco a dizer
sobre o céu e a vida futura, conceitos completamente formados nos ensinos
tanto de Paulo como de Jesus.
Os profetas do sétimo e oitavo séculos do AT olhavam para o futuro para
discernir o caminho de Deus para a nação. Todavia, eles não olhavam muito
adiante no porvir. A profecia hebraica tinha a tendência de preocupar-se com
as realidades sociais e históricas de médio prazo da nação de Israel, e não com
o amanhã distante e o fim do mundo, que era uma característica da literatura
apocalíptica do primeiro século. Essa profecia de médio prazo era ancorada
em um cenário sócio-histórico, em particular, e baseada na esperança de que
uma reforma da ordem atual estava para chegar. Nesse tipo de profecia, Deus
deveria operar p o r in term éd io do Seu povo para efetuar a reforma; o profeta
interpretava “sua visão da presença de Deus em uma realidade sócio-histórica
real” (Chance e Home, 2000, p. 122).
A posição nacional de Israel foi corroída pelas potências estrangeiras em
meados do milênio antes de Cristo. Concomitante com isso, o surgimento da
ideia apocalíptica fez aparecer uma mudança no ímpeto profético. O seu foco
foi mudado do futuro próximo para o futuro distante. Nesse novo foco, a pre­
sente ordem mundial terminaria, e a opressão e a injustiça dos inimigos do
Senhor seriam varridas para longe, pela intervenção final de Deus na história.
Enquanto a esperança de uma preeminência terrena de Israel declinava-se,
a confiança em uma visão de mundo na qual a história seria engolida por uma
nova realidade mundial ganhava popularidade. Essa visão mundial era caracte­
rizada por uma falta de esperança de que o mundo, assim como existia, poderia
ser redimido. Isso significa que o tempo presente era tão corrupto que a sua
reforma era impossível. Ele deveria ser apagado, substituído por uma nova re­
alidade celestial na qual Deus reinasse sem a coação do mal. Nessa forma mais
apocalíptica da escatologia, Deus opera em fa v o r de Seu povo para efetuar a
introdução do Seu Reino.
Logo, temos essas duas visões competitivas do futuro no registro bíblico.
Será que Jesus era mais como um profeta hebreu preocupado em reformar o
52
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

presente? Ou será que Ele concebia um Reino na terra que logo chegaria? Nos
estudos do Evangelho, Marcos parece, para muitos, ser o mais apocalíptico em
seu tom (Mc 13; veja, porém, as visões expressas por Brower, M arcos, também
presente nesta série, que enxerga Marcos 13 como essencialmente relacionado
à destruição do templo). A reedição de Marcos por Mateus também é conside­
rada mais inclinada ao apocalíptico. Lucas, entretanto, parece ter amenizado
a natureza apocalíptica desse material (veja Fitzmyer, 1981, 1:18-22), assim
como nós também.
A comunidade de todos os evangelistas tinha a sua própria perspectiva
sobre a transformação dos séculos. Quando mais desesperada fosse a situação
dela com respeito às potências da região, mais se engajaria em uma especulação
apocalíptica para aliviar o aparente desespero de sua luta. Lucas parece ter ame­
nizado ainda mais o tom apocalíptico de Marcos e Mateus.
Diversas características dão vazão a essa observação: a mais óbvia é que
Lucas escreveu uma obra em dois volumes, que contava não só a história de
Jesus, mas também a história da Igreja primitiva, isto é, Lucas viu o drama da
história desenrolando-se em três estágios: a era da lei e dos profetas, a era de
Jesus na terra e a era da Igreja (à qual o livro de Atos é dedicado; Conzelmann,
1982, p. 95). O último estágio era entendido por Lucas como um longo espaço
de tempo, a era da Igreja. Essa ênfase deu ânimo à jovem Igreja para viver no
mundo assim como ele era, enfrentar as perseguições e engajar-se nos empreen­
dimentos missionários em um esforço para transformar o mundo.
A inclinação para amenizar o sentimento apocalíptico do material do
Evangelho pode ser visto de outras formas. Lucas é conhecido, como abun­
dantes evidências neste comentário demonstrarão, por sua preocupação com
o atual sofrimento do pobre, do enfermo e do marginalizado. A evidência do
Reino é a cura dos doentes e a expulsão dos demônios no tempo presente, isto
é, na mitigação do sofrimento neste mundo.
Em Lucas 6.20, a bem-aventurança diz: “Bem-aventurados vocês, os po­
bres, e não os pobres em espírito”, como em Mateus 5.3. Em Lucas, a teologia
do arrependimento e do perdão parece cobrir a teologia da redenção pela obra
da cruz. Seus seguidores são exortados a tomar aquela cruz e a carregá-la “dia­
riamente” (9.23). A comunidade de Lucas aceitou a vida cristã como um com­
promisso para a vida toda, sem expectativa alguma de uma morte prematura
trazida pelo fim do mundo.
Considerar que Marcos 13 é ou não um texto apocalíptico é uma questão
de debate. Entretanto, Lucas especificamente lança o denominado “pequeno
apocalipse” no contexto da destruição de Jerusalém. Para Lucas, os eventos de
53
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

17.22-37 e 21.5-38 são uma exortação para suportar-se a conquista de Jerusa­


lém pelo exército romano em 70 d.C. Logo, Lucas escolhe lançar o material
apocalíptico de Marcos no cenário sócio-histórico do período da destruição
de Jerusalém.

2. Discipulado
A próxima observação na distinta teologia de Lucas vem da nova visão de
discipulado que emerge na narrativa pós-ressurreição. Há muito se observa que
Lucas conserva uma perspectiva da “história da salvação” em sua obra de dois
volumes. Isso significa que ele coloca a experiência cristã em um contexto no
qual uma ampla longevidade da Igreja é esperada. Assim, o segundo volume
de sua obra (Atos) lida com os primeiros dias da Igreja e sua transformação de
um movimento sectário em Jerusalém para um movimento religioso em Roma.
O Evangelho de Lucas desenvolve uma teologia para levar a Igreja àquela vida
prolongada na terra após a partida de Jesus, na ascensão.
O fundamento para essa tradução em Lucas/Atos é o esclarecimento dos
discípulos no período da pós-ressurreição. Como notaremos no comentário
em 24.13-27, o encontro com o Jesus ressurreto no caminho de Emaús é uma
indicação de que o discipulado implicará em um compromisso para toda a
vida, e não apenas um breve interlúdio antes da chegada do Reino. Ali e nas
subsequentes aparições aos discípulos, Jesus torna-se o Mestre ressurreto. Ele
reinterpreta as Escrituras hebraicas para os Seus seguidores em luto. Ele repre­
ende-os, dizendo: “Não devia o Cristo sofrer estas coisas, para entrar na sua
glória?”
Ele, então, coloca em operação uma nova exegese da Escritura hebraica à
luz da ressurreição: “E começando por Moisés e todos os profetas, explicou­
-lhes o que constava a respeito dele em todas as Escrituras” (24.27). Aos discí­
pulos reunidos, Ele diz: “Foi isso que eu lhes falei enquanto ainda estava com
vocês: Era necessário que se cumprisse tudo o que a meu respeito estava escrito
na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos” (v. 44).
• Isso é tão importante quanto o aspecto eficaz da vida cristã em Lucas e o
seu esplendor no período pós-ressurreição. Os discípulos não receberão a es­
perada vindicação pública da identidade messiânica de Jesus na parusia. Ao
contrário, eles serão chamados para viver a duração da vida em fé, em estudo
e em reflexão. Os discípulos da pós-ressurreição terão de buscar um novo en­
tendimento da Escritura. Então, eles deverão viver em testemunho da verdade,
que permanece velado a todos, exceto aos cristãos.
54
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

A compreensão da vida cristã como uma longa jornada de serviço a Deus


está no fundamento do compromisso wesleyano do viver santo. E uma vida
capacitada pelo Espírito, mas também uma vida vigorosa de testemunho, estu­
do, oração e persistência. De acordo com o Jesus ressuscitado de Lucas, essas
eram as novas realidades da experiência cristã da pós-ressurreição. Uma vida
de esforço para ser santo em fé e palavra é transmitida à Igreja, no caminho
de Emaús, naquele dia. E a partir desse novo paradigma de discipulado que os
cristãos obtêm o seu chamado, e a vida santa obtém sua necessidade.
Outro aspecto importante do novo discipulado em Lucas é a observância
da Ceia do Senhor. Essa é uma experiência que conecta os cristãos em um ritual
sagrado de união (veja o comentário em 24.28-35, A partir do texto). Já que
isso representa a presença de Jesus dentro da Igreja, o símbolo teológico da
comunhão reside próximo ao centro da teologia da santificação. Antes de Sua
paixão, Jesus encontrou-se com Seus discípulos para instituir a Santa Ceia. O
pão e o vinho representam a Sua presença em memória.
Após a ressurreição, o Jesus ressurreto senta-se à mesa com os dois que o
encontraram no caminho de Emaús. “Quando estava à mesa com eles, tomou
o pão, deu graças, partiu-o e o deu a eles. Então os olhos deles foram abertos e
o reconheceram, e ele desapareceu da vista deles” (24.30,31). A ideia de Jesus
presente durante a refeição aparece novamente, quando Ele come na presença
de Seus discípulos, em 24.41-44. Durante aquela refeição, as mentes deles fo­
ram “abertas” por Jesus.
No mundo histórico de Lucas, a Igreja da pré-ressurreição é unida com a
Igreja da pós-ressurreição, na mesa compartilhada com Jesus. A mesa da co­
munhão une e santifica os cristãos de todos os tempos, da pré-ressurreição e da
pós-ressurreição. E, de maneira semelhante, ela une todos os cristãos na presen­
ça de Cristo, independentemente de denominação, doutrina ou nacionalidade.
A santificação é mediada à Igreja pela presença de Jesus à mesa. É Lucas quem
mostra como a mesa cobre o abismo entre o Seu ministério terreno e a Sua
presença ressurreta na Igreja.
Acrescentando ainda à vida do cristão, existe uma ênfase wesleyana no tó­
pico da persistência na oração em 18.1-8 (veja A partir do texto). Nessa pas­
sagem, encontramos a história de um juiz injusto que cede à súplica da pobre
viúva, para fazer-lhe justiça. Nessa história, Deus é representado pela figura
de um juiz que responde à súplica humana (11.1-4). De modo semelhante,
nos versículos 5-8, Deus é análogo ao amigo importuno ou ao compassivo Pai
celestial, que não é menos amável que o pai humano nos versículos 9-13. Em
55
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

outras palavras, a vontade e a ação humanas podem mover Deus quando vêm
em forma de um coração ardente e santo.
Essa é a teologia de Lucas sobre a necessidade da oração. E uma teologia
distintamente relacional, que enfatiza o dinamismo entre Deus e o cristão. A
escolha tem uma importância moral, e as responsabilidades do discipulado de­
terminam o relacionamento de alguém com Deus. A responsabilidade humana
é relevante para a vida. Esse destaque está na ênfase da teologia wesleyana sobre
a graça responsável.
Finalmente, Lucas conduz o nosso coração a pensar sobre as questões mo­
rais. Ele desafia-nos a aceitarmos um chamado radical para a santidade. É, na
verdade, a confusão moral de nosso mundo de mudanças rápidas que convida
uma interpretação renovada de Lucas e dos outros Evangelhos. Em tempos de
rápidas mudanças, um anseio pelo permanente e pela verdade leva-nos de volta
à história de Jesus.
Qualquer leitor que se engajar seriamente no texto do Evangelho encon­
trará nele uma produtiva experiência moral. Entretanto, aqueles que o fazem
com um coração de fé também o acharão espiritualmente vivificante, abrindo
novas janelas de possibilidades para a vida de santidade. O presente de Lucas
para a teologia do Evangelho é a liberdade do espírito humano de escolher
a redenção. A responsabilidade de escolher a santidade vem junto com essa
liberdade. Ao abraçar as boas-novas da liberdade e da graça para escolher a re­
denção, o Evangelho também convida seus leitores ao imperativo da vida santa.

Dissertação: As parábolas em Lucas

Uma característica central do ensino de Jesus nos Evangelhos é o uso do


gênero da parábola. Lucas usa inicialmente o termo pa rábola, pa ra b olê, em
4.23, 5.36 e 6.39 ARC. Entretanto, esses ditados são mais parecidos com os
provérbios do que com os exemplos amplamente desenvolvidos desse gênero
(Evans, 1990, p. 369). Em 4.23, a NVI traduz essa palavra como p rovérbio. Em
8.4, Lucas usa a palavra no primeiro exemplo substancial de uma parábola na
narrativa (|| Mt 13.1-23 e Mc 4.1-20).
Lucas contém muitas parábolas exclusivas. Jeremias identifica 37 parábolas
sinóticas, das quais 14 aparecem somente em Lucas (1972, p. 247,248). Com
uma concentração tão pesada de um material exclusivo, Jesus é, como certo autor
expressou, o autor dessa parte do terceiro Evangelho (Shillington, 1997, p. xiii).
56
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

PARABOLAS EXCLUSIVAS EM LUCAS

O b om s a m a rita n o

O a d m in is tra d o r in ju s to 16 .1-8

A re co m p e n sa do se rvo 17 .7 -10

xc
O fa ris e u e o p u b lic a n o

(títulos segundo Jeremias, 1972)

As questões que surgem na interpretação das parábolas em Lucas são, ob­


viamente, comuns aos três Evangelhos Sinóticos. Primeiro, a definição: O que
é uma parábola? É uma breve história ilustrativa que tem uma moral a contar.
Contudo, questões complexas de interpretação surgem na leitura das parábo­
las. Será que as parábolas são charadas designadas a esconder algum significa­
do? Ou são histórias autoexplanatórias, cujas lições são designadas a ser óbvias
a todos? Será que elas transmitem apenas um significado objetivo de baixo
nível, como nas interpretações alegóricas? Ou são metáforas complexas, cuja
experiência é diferente para leitores em diferentes épocas e lugares ?
Essas são algumas das perguntas que a pesquisa da parábola tem feito. No
final do século 19, Adolf Jülicher (D ie G leinchnisreden J esu , 1886) foi o pri­
meiro a desafiar o antigo método de interpretação alegórica para as parábolas,
um método no qual tanto os evangelistas do N T quanto os pais da Igreja pri­
mitiva eram particularmente apegados. Jülicher, seguindo Aristóteles, pensava
57
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

que as parábolas tivessem uma única moral — livre da preocupação alegórica


com detalhes (Young, 1989, p. 23). Ademais, ele distinguiu o uso “direto” e
“indireto” (literal e não literal) da linguagem nas parábolas. O primeiro trans­
mite o sentido convencional da língua. O último comunica um mundo mais
complexo de metáfora (Kjàrgaard, 1986, p. 136). Essa distinção torna-se im­
portante quando inquirimos se Jesus intencionava esconder ou revelar Seu sig­
nificado pelas parábolas.
No século 20, C. H. Dodd {Parables o f th e K in gd om , inicialmente publica­
do em 1958) e Joachim Jeremias {The Parables o f Jesus, inicialmente publicado
em 1954) falaram da significância escatológica das parábolas de Jesus e eluci­
daram seu fundamento judaico. Eles acreditavam que a chave para a interpre­
tação das parábolas estava em entender o Sitz im L eben delas, ou a “situação em
vida” condicionada histórica e socialmente (veja Young, 1989, p. 20-54).
A obra deles apoiava a visão de que os leitores modernos deviam entender
as parábolas como metáforas, e não como alegorias. Isso tem o efeito de libertar
o significado da parábola das amarras das interpretações alegóricas — aquelas
impostas pelo texto bíblico ou pelos subsequentes intérpretes. Uma vez que os
intérpretes afastam-se do método alegórico, múltiplos significados de parábo­
las emergem, e a complexidade da tarefa interpretativa multiplica-se.
Enquanto a pesquisa da parábola progredia no decorrer do século 20, ou­
tras definições mais técnicas surgiam. Estas enfatizavam a natureza sofisticada
do gênero. Bernard Brandon Scott descreveu a parábola como “curta narrativa
de ficção que faz referência a um símbolo transcendente” (1989, p. 8). Evans
referiu-se às parábolas como “pronunciamentos oraculares em forma de histó­
ria conclamando atenção a algum aspecto da regra de Deus ou do propósito
divino” (1990, p. 372). Shillington chama-as de “imagens criptografadas de
uma nova realidade”, que explicam o símbolo transcendente do Reino de Deus
(ex.: 8.1,10; 19.11; 21.29-31; também Mt 13.24,31,33; 1997, p. 1).
Essas definições destacam o poder das parábolas de comunicar ideias
metafísicas complexas, e não apenas simples lições de vida. Para balancear, o
consenso moderno é que as parábolas são muito mais do que simples histórias
folclóricas com uma moral única e simples.
Uma das questões mais controversas da pesquisa moderna da parábola é se
as interpretações fornecidas nos Evangelhos são originais de Jesus ou são forne­
cidas pela Igreja. Em 18 das parábolas de Lucas, ele fornece uma interpretação
para seus significados (Stein, 2000, p. 33). A maioria dos eruditos modernos
pensa que essas interpretações surgiram nas comunidades que preservaram as
58
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

parábolas (veja as anotações complementares sobre Jesus e a alegoria nas pará­


bolas). Essas interpretações refletem, argumentam os eruditos, a situação da
comunidade do autor, e não o cenário de Jesus. Nessa visão, as interpretações
são consideradas aplicações das parábolas originais (e geralmente ambíguas)
de Jesus no contexto posterior das diversas comunidades que as preservaram.
Se essa conclusão for aceita (i.e., se a aplicação for uma expansão secundária da
parábola original), estudar a parábola sem adornos pode trazer outros níveis de
significado além daqueles fornecidos pelos evangelistas.
Talvez as ambiguidades que surgem na interpretação das parábolas são as
fontes mais ricas de significado. Quando envoltas em suas ambiguidades, as
parábolas podem ser, como sugeriu Dodd, tanto históricas como modernas,
tanto literais como não literais, tanto diretas como metafóricas, em fascinantes
combinações. Elas “interpretam a vida para nós” e, logo, são “históricas e con­
temporâneas no mais profundo sentido possível” (1958, p. vii).
As ambiguidades e os dilemas morais não resolvidos das parábolas causam
reflexão. Eles forçam os ouvintes a lutarem com o seu significado, projetando
seu poder de ensino mais profundamente na mente. Ambos não são apenas
“portadores de significado” em um sentido objetivo, como na similitude e na
alegoria, mas “criam um significado, forçando o leitor a participar do evento
parabólico” (Stein, 2000, p. 35).
Um erudito sobre parábolas, certa vez, escreveu: “Nós ficamos bem diante
de Jesus quando lemos as Suas parábolas” (Jeremias, 1972, p. 12). Elas são uma
janela para o mundo do pensamento de Jesus. A linguagem das parábolas pare­
ce revelar como Sua mente funcionava — deslocando-se dos símbolos diários,
comuns, para os níveis mais profundos de significado espiritual. Seu uso de
parábolas indica a vivacidade de Sua mente. Ele expressava-se coloridamente,
de forma humana, não falando de doutrinas ou pronunciamentos legais.
As parábolas não são um atalho para a sabedoria. Elas nutrem a sabedoria
pela reflexão, para meditação e para engajamento emocional. Elas desafiam as
normas aceitas e subvertem as tentativas de atribuir-se um significado simplis­
ta (ex.: veja os comentários em 5.36-39). Ao interpretar as parábolas, deve-se
trabalhar pela recompensa e, depois, apossar-se do resultado. Ironicamente,
as tentativas de explicar as parábolas arriscam arruinar a beleza delas. Que as
parábolas de Jesus continuam a estimular, mesmo séculos depois que foram
pronunciadas, prova que Ele era um mestre desse gênero.

59
COMENTÁRIO

I. 0 NASCIMENTO E A INFÂNCIA DE JESUS: LUCAS 1.1­


2.52

A. Prólogo (1.1-4)

POR TRÁS DO TEXTO

As primeiras quatro frases de Lucas são o prólogo literário. Essa abertura


técnica tem precedente na literatura daquela época. O propósito do prólogo é
moldar as expectativas dos leitores e informá-los sobre a natureza do documen­
to. A introdução de Lucas convida os leitores a considerarem a história de sua
narrativa, a autenticidade de suas fontes e o propósito de sua escrita.
Em suas introduções, todos os Evangelhos moldam as expectativas de
seus leitores de diversos modos. Marcos usa uma única sentença simples para
introduzir o seu Evangelho: “Princípio do evangelho de Jesus Cristo, o Filho
LUCAS 1 9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

de Deus” (Mc 1.1). Mateus introduz o seu relato com a genealogia de Jesus,
enfatizando a importância da linhagem e da história judaica para começar a
narrativa. O famoso prólogo de João começa com uma sofisticada declaração
teológica sobre a natureza da pessoa de Cristo.
Lucas inicia apelando aos que procuram a verdade histórica. Nesse senti­
do, o método confessado por Lucas é particularmente “moderno”. Hoje, mui­
tos leitores se identificarão com essa estrutura de referência histórica mesmo
que não estejam inteiramente convencidos de sua precisão histórica.
O tom geralmente objetivo dos versículos 1-4, contudo, é substituído de
forma rápida, a partir do versículo 5, por uma história com estilo mais judaico,
caracterizada por epifanias e numerosas alusões ao AT. Isso significa, especial­
mente, o caso no decorrer das narrativas dos nascimentos (cap. 1—3). Em­
bora esses capítulos tenham informação histórica sobre governantes e datas,
essa questão dá lugar, no capítulo 4, a um estilo mais impreciso e cronológico
característico da Bíblia em geral e do material sinótico em particular.
“O corpo do Evangelho em si abandona qualquer pretensão de secularida-
de e é tanto uma proclamação como todos os outros” (Nolland, 1989, p. 11).
Mais parecido com Josefo do que com Tucídides nesse sentido, Lucas vê a mão
de Deus em tudo o que transpira e nunca é reticente para invocar o envolvi­
mento divino nas questões humanas.

NO TEXTOI

I 1 As primeiras palavras de um livro são importantes; e Lucas escolheu-as


cuidadosamente. Em sua primeira sentença, ele identifica três questões sobre
como a sua narrativa deve ser entendida. Primeira: ele reconhece que outros
já escreveram sobre aquele assunto e que a obra deles informa a sua. Segunda:
ele apela às testemunhas oculares instrumentais ao processo de preservação.
Terceira: seu próprio relato ordenado é para Teófilo, seu patrocinador, ou para
seu público mais amplo, simbolizado como “amigos de Deus” (veja Lucas e sua
comunidade, na introdução).
Em primeiro lugar, o reconhecimento dos outros que já haviam escrito sobre
a vida de Jesus está nesses itens. Muitos já escreveram sobre as coisas que se
cumpriram entre nós (v. 1). Ao dizer isso, ele indica que, como uma narrativa
(diêgêsin), sua história tem substanciais precursores orais e textuais. Não
podemos afirmar se ele deseja suplantar esses outros ou apenas remodelar e
62
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

melhorar a história deles para o seu público. Independentemente, a motivação


dele impulsiona-o a empreender a tarefa de escrever um Evangelho.
O assunto da narrativa de Lucas é sobre fatos que se cumpriram entre nós
(v. 1). A frase em grego enfatiza a origem divina dos fatos que se cumpriram
(p ep lerop h orém en õn , voz passiva). Isso significa que eles foram realizados por
Deus, e não simplesmente por alguma ação humana. Lucas vê esses fatos por
meio das lentes de sua leitura do AT, a profunda estrutura na qual sua história
apoia-se. Essa linguagem de cumprimento não indica o tema promessa/cum­
primento ou uma exegese intertextual. A história do AT é central a todas essas
coisas que ocorreram.
Lucas, o historiador, já deu um indício de seus pensamentos sobre a causali­
dade divina. Diferente do estilo histórico de Tucídides, ele prontamente en­
contra uma causa divina em ação nesses acontecimentos. Logo, Lucas refere-se
ao AT de maneira contínua, como uma forma de explicar p o r q u e esses fatos
ocorreram. Como os capítulos subsequentes revelam, o AT é o fundamento da
teologia de Lucas; e o Deus que age na história é o centro dessa teologia.
H 2 A segunda preocupação de Lucas é que os relatos criados por seus prede­
cessores foram atestados por testemunhas oculares. Ele repassa essas tradições
sagradas — conforme nos foram transmitidos por aqueles que desde o iní­
cio foram testemunhas oculares e servos da palavra (v. 2). “Transmitir” uma
tradição {paredosan), na linguagem bíblica, é comunicá-la fielmente aos outros
(veja 10.22). Em Atos, Lucas refere-se às tradições como sendo “legadas” por
Moisés (At 6.14) e pelos apóstolos quando “transmitiam” as decisões do con­
cílio de Jerusalém (At 16.4). P aradidõm i, nas cartas paulinas, refere-se à fiel
transmissão, especialmente em 1 Coríntios 11.2,23 e em Lucas 15.3. Lucas usa
essa ideia mais do que os evangelistas sinóticos (veja somente Mt 11.27), talvez
sob a influência de Paulo (presumindo a tradição de que Lucas era o compa­
nheiro incógnito de viagem de Paulo nas seções “nós”, de Atos dos Apóstolos;
veja At 16.11 e Cl 4.14).
É particularmente importante para Lucas que aqueles que comprovaram a
tradição fossem testemunhas oculares e servos da palavra (v. 2). O termo
“testemunhas oculares” (autoptai) ocorre apenas na Bíblia. Isso se refere a um
ponto inicial para a historiografia antiga que ancora um acontecimento no
tempo e no espaço (Green, 1997, p. 41; Evans, 1990, p. 126,127; veja 2 Pe
1.16). Josefo e Tucídides também usam esse termo pela mesma razão. A proxi­
midade dessas testemunhas oculares com os fatos ocorridos na vida de Jesus, na
visão de Lucas, dá ao testemunho delas um peso peculiar. Ele fica ansioso para
63
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

preservar isso, talvez consciente de que esses membros originais da comunida­


de estejam morrendo. Para Lucas, eles são mais do que testemunhas estéreis,
como em uma sala de julgamento. Eles são servos da palavra (v. 2) que deram
a vida a serviço desse testemunho.
Ironicamente, as testemunhas da narrativa de Lucas dificilmente estão acima
de suspeita. Elas ficam aterrorizadas pelo que veem (1.12; 9.34), descreem na­
quilo que ouvem (1.18; 8.53) e não compreendem uma conversa aparentemen­
te simples (9.45). Nesse sentido, as testemunhas de Lucas são uma turma de
inconstantes. Entretanto, da perspectiva pós-ressurreição, uma verdadeira tes­
temunha é alguém que esteve “conosco durante todo o tempo em que o Senhor
Jesus viveu entre nós” (At 1.21,22). Essas testemunhas devem ser ouvidas não
apenas porque são uma fonte confiável de informação histórica, mas também
porque exemplificam uma persistência fiel. Lucas enxerga a autoptês como uma
testemunha da história e como alguém que provou ser fiel a Jesus. Isso torna
Lucas mais um evangelista do que um historiador incompassivo. Sua ligação
entranhável a essa turma de testemunhas é essencial para a compreensão de sua
narrativa.
■ 3 -4 O versículo 3 começa com edoxe\ “Pareceu-me (...) a mim” (ARC).
Essa é uma das “expressões mais familiares na língua grega” (Evans, 1990, p.
128). Os primeiros comentaristas de Lucas, tais como Orígenes, criticaram-no
por sua presunção intelectual inerente nessa frase. Ele tinha “uma confiança
humanista grega na razão e no julgamento” (Evans, 1990, p. 128). Lucas difere
dos outros evangelistas neste aspecto: ele projeta ousadamente sua presença
na narrativa desde as primeiras linhas. Ele está presente não só como narrador,
mas também como um investigador que anuncia a sua dependência na razão e
na pesquisa histórica como fatores justificadores dentro da narrativa.
A ousadia da presença autoral de Lucas modera, nos capítulos subsequentes,
como ele confia fortemente nas fontes sinóticas para estruturar sua narrativa.
Ao longo de seu Evangelho, na verdade, sua presença como narrador é subju­
gada. Ele sutilmente modela suas fontes e, de forma silenciosa, suplementa o
material tradicional existente com seus próprios acréscimos e temas. Por fim,
Lucas demonstra ser um evangelista tradicional, alguém cuja presença fica es­
condida atrás da mensagem, ao contrário do racionalista confiante dos versí­
culos 1-4.
Lucas descreve seu método como tendo investigado tudo cuidadosamente,
desde o começo (v. 3). O adverbio akribõs (cuidadosamente) é mais bem con­
siderado como um modificador do particípio parêkolouthêkoti (investigado).
Logo, ele realizou essa investigação “atenciosamente”.
64
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

A pesquisa dele inicia-se no começo histórico (v. 3, an õth en ) da história de


Jesus, nas narrativas dos nascimentos, e não no princípio da Palavra [do Verbo],
como em João. Ele escreve um relato ordenado (v. 3, kathexês)y “uma exposi­
ção em ordem” (ARA). Isso é semelhante à explicação “por ordem” de Pedro
(ARC) sobre suas atividades em Cesareia (At 11.4, kathexês). Essas expressões
indicam um narrador ousado e engajado.
O excelentíssimo Teófilo (v. 3) era o patrocinador de Lucas, um amigo ou
simplesmente um “catecúmeno ou neófito” (Fitzmeyer, 1981, 1:301). Teófi­
lo estava sendo instruído: As coisas que te foram ensinadas (v. 4). O nome
Teófilo significa literalmente “amigo de Deus”. Era um nome comum naquela
época, então, a maioria dos comentaristas presume que ele seja um indivíduo
real, e não uma referência simbólica a algum leitor implícito (Evans, 1990, p.
132; Marshall, 1978, p. 43; e contra: Nolland, 1989, p. 10). Talvez ele fosse
uma figura importante na comunidade cristã que tivesse comissionado a obra
para avançar a causa do evangelho a um público mais amplo. Ou, porventura,
ele pudesse ser uma pessoa que Lucas estivesse tentando ganhar para a fé. Não
temos certeza.
O propósito da narrativa de Lucas é declarado no versículo 4. Ele escreve para
Teófilo ter certeza das coisas que te foram ensinadas (v. 4). A palavra aspba-
leia n , certeza, tem a conotação de “confiabilidade, segurança, garantia”, em um
sentido cognitivo (Fitzmyer, 1981, 1:300). Essa é a “linguagem da história” e a
“parte da secularidade estudada do prefácio” (Nolland, 1989, p. 11). Apesar da
natureza historicista do prólogo, o propósito de Lucas é fundamentalmente o
de um partidário cristão: estimulá-lo a confiar na “verdade sobre os ensinamen­
tos que recebeu” (NTLF1).

A PARTIR DO TEXTO
Para Lucas, o evangelho é uma tradição de vida repassada de testemunha a
testemunha. Por meio de sua história, essas “testemunhas oculares e servos da
palavra” (1.2) entram no presente para testificar a um novo público. Apesar de
seu professado interesse na certeza histórica, Lucas não é um juiz da história
sagrada e nem um participante dela. Ainda assim, o desejo de saber “o que
realmente aconteceu” é tão antigo como o fato de lembrar-se. Para Lucas,
a informação dos fatos é importante na busca da verdade. Nós devemos,
65
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

argumenta ele, ser capazes de confiar em nossa informação. Logo, Lucas inicia
o seu Evangelho com a premissa de que a comunidade não pode funcionar sem
um entendimento compartilhado da realidade.
Em A H u ndred Years o fS o litu d e, Gabriel Garcia Márquez conta a história
de um vilarejo que contrai amnésia comunitária devido a um vírus estranho.
Eventualmente, quando a base linguística compartilhada fica perdida, os mem­
bros da comunidade começam a colocar sinais nas coisas para lembrarem-se
dos nomes delas. Com o tempo, eles se esquecem do próprio alfabeto. Essa
amnésia coletiva provoca um completo colapso na comunidade e na cultura
daquele vilarejo.
Semelhantemente, as comunidades cristãs não podem funcionar sem o
compartilhamento do alfabeto e seus significados. Lucas acredita que a con­
fiabilidade histórica de seu relato é fundamental para a comunidade comparti­
lhada. Isso nos diz algo significativo sobre a natureza da inspiração bíblica. O
relato de Lucas é informado por aqueles que haviam previamente pesquisado e
compilado a história. Ela, então, é reformulada em sua mente, alimentada pela
curiosidade intelectual e pelo desejo de conhecer a verdadeira história. A ins­
piração do texto deriva do Espírito, mas chega à página escrita por meio do in­
telecto da pesquisa humana por um significado. Essa união da mente humana
com a experiência do divino Espírito produz um texto que une a comunidade.
Quando um conjunto de verdades compartilhadas no texto é colocado em
comum com o Espírito, a possibilidade de uma comunidade profunda é criada.
Reciprocamente, quando um senso compartilhado de verdade entra em colap­
so, é inevitável que a comunidade entre em colapso — uma advertência impor­
tante para a igreja moderna. Se entregarmos a ideia da verdade compartilhada
ao relativismo moderno ou pós-moderno, a igreja certamente irá perder o seu
caminho no mundo, assim como aconteceu com o vilarejo latino ficcional de
Márquez.

66
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

B. O nascimento de João Batista (1.5-80)

1. Zacarias e Isabel (1.5-7)

POR TRÁS DO TEXTO


Lucas é peculiar entre os escritores dos Evangelhos em sua cuidadosa ci­
tação dos acontecimentos políticos e dos governantes mencionados nas nar­
rativas do nascimento de João e do de Jesus. Para ele, as realidades políticas
são sinalizações históricas dentro da história, especialmente nos primeiros três
capítulos do Evangelho (veja 2.1,2; 3.1,2; veja At 26.26: “Nada se passou num
lugar qualquer”).
O Herodes do versículo 5 é Herodes, o Grande, que governou a Judeia
de 37 a 4 a.C. O reinado dele começou no final da Dinastia Hasmoneana. O
período Macabeu em que os hasmoneanos reinaram começou em 165 a.C.,
quando Matatias e seu filho Judas Macabeus revoltaram-se contra o governa­
dor da Selêucida, Antíoco IV Epifânio. Isso introduziu um período de ressur-
gência nacional no qual uma nação judaica independente cresceu até alcançar
o tamanho do reino de Salomão, há séculos antes. Com o tempo, as tensões
religiosas e políticas daquele período levaram os hasmoneanos ao declínio,
quando Roma começou a exercer uma influência dominante naquelas regiões
(veja McGehee, 1992). Como resultado dessa influência, Herodes, rei declara­
do da Judeia pelos romanos em 40 a.C., tomou o país à força, em 37 a.C.
Esse Herodes expandiu o templo e foi, de modo geral, um partidário do
povo judeu. Mesmo assim, sendo um idumeu, ele era desprezado pelos judeus
da Judeia e da Galileia. Os idumeus formavam uma população mista de edomi-
tas, judeus e árabes que habitavam a parte sul da Palestina desde Hebrom até
Berseba. Os antigos edomitas não quiseram permitir que Moisés e os israelitas
passassem pela terra deles depois do êxodo — Edom estava localizado a sudeste
do mar Morto (Nm 20.14-21; 1 Cr 18.12,13). Os idumeus foram forçados
a converter-se ao judaísmo pelo macabeu João Hircano, em 129 a.C. Sua as­
cendência idumeia de “meio-judeu” era apenas um pretexto para a verdadeira
razão da animosidade dos judeus em relação a Herodes. Ele era um comprome­
tido rei vassalo instalado por Roma.
Herodes era um soberano cruel, que se agarrava ao poder a qualquer cus­
to. Em sua lascívia para reter o poder, ele assassinou sua esposa Mariamme I
67
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

e depois três de seus próprios filhos — Alexandre, Aristóbulo e Antípatro.


Em sua campanha de 37 a.C., ele insensivelmente afogou o último herdeiro
do sumo sacerdócio hasmoneano, um jovem de 17 anos chamado Aristóbulo.
Ele, então, mandou matar todos os parentes do rapaz. No lugar dos sumo sa­
cerdotes hasmoneanos, ele indicou sacerdotes comuns, escolhidos segundo a
lealdade que tinham a ele. Sua corrupção do sumo sacerdócio era um pecado
imperdoável para muitos judeus.
O sumo sacerdote do tempo de Zacarias era um dos filhos de Boethus (não
zadoquita), Joezer ou Eleazar. Lucas não menciona a ilegitimidade de sua rei­
vindicação ao posto e evita problemas políticos do sacerdócio ao descrever a
linhagem de Zacarias e Isabel. Mesmo assim, a profanação da linhagem sacer­
dotal por Herodes era uma das principais fontes de confrontos sectários entre
os judeus daquele período tumultuado.
Alguns grupos, como os sectários do Qumrã, romperam completamente
com Jerusalém. Os eruditos supõem que a remoção deles para um acampamen­
to isolado no litoral do mar Morto foi ocasionado em resposta à corrupção
do sacerdócio de Jerusalém. As tensões sobre a pureza da observância judaica
sempre carregavam tonalidades políticas na Palestina, e eventualmente essas
tensões levaram à rebelião judaica contra Roma em 66 d.C. Disputas como
essas culminaram com a destruição do templo em 70 d.C.

A descendência sacerdotal de Levi


O sacerdócio em Israel tra d ic io n a lm e n te consistia dos d escendentes
de Levi (Gn 3 5 .2 3 ), filho de Jacó. Tanto Moisés q uanto Arão e ra m descen­
d en tes de Levi (Êx 6 .1 6 -2 0 ), m as Arão e seus filhos foram designados
para realizar os serviços sagrados no tab ern áculo (Êx 2 8 .1 -5 ; 2 Cr 2 6 .1 8 ).
Os sacerdotes da linh agem de Z ad o q u e , um d escend ente de Arão (1 Cr
6 .8 ), serviam com o sum o sacerdotes desde a época de Davi a té a Revolta
dos M acabeus (veja Jerem ias, 1 9 6 2 , p. 1 8 1 ,1 8 2 ). D aí por d ian te, os sum o
sacerdotes e ra m de d escendência m a c a b eia ou hasm on ean a. Já na época
da nossa história, com o observam os, a posição era por n om eação política.
A segunda c a m a d a de posição sacerdotal depois dos zadoquitas era
os filhos restantes de Arão. Zacarias era m em bro desse grupo. A terceira
c a m ad a era os levitas, os descend entes não aarônicos de Levi. Os levitas
e ra m com o um " cleros m in o r ", que rea liza v a m tare fa s m enores, com o
cuidar do gado, c o le ta r os impostos do te m p lo , lim p ar e controlar as m ul­
tidões. Eles não fa zia m p a rte nos sacrifícios. O núm ero total de sacerdotes
e levitas na Palestina na época de Jesus teria sido e n tre 1 8 .0 0 0 a 2 0 .0 0 0

68
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

(veja Jerem ias, 1 9 6 2 , p. 2 0 4 e Sanders, 1 9 9 2 , p. 77; c om pare com o nú­


m ero m uito m aio r em 1 Cr 2 3 .3 ).
Os filhos de Arão e os levitas e ra m cidadãos com uns, q ue tra b a lh a ­
v a m com o operários, artesãos e com erciários nos vilarejos e nas cidades
da Judeia e G alileia. Duas vezes ao ano, um sacerdo te com o Zacarias
viajava para Jerusalém para cum prir um a sem an a de escala de serviço no
tem plo . Com o herdeiros da trad ição sacerdotal iniciada por D avi, esses
hom ens serviam no tem p lo , assim com o as g erações d e seus pais fize ra m
antes deles.

NO TEXTO
H 5 Depois do prólogo, a narrativa muda imediatamente para um novo tom.
Lucas abandona sua linguagem técnica e adota um estilo mais próximo à nar­
ração judaica de histórias do que a objetividade tucididiana. Ele introduz o
personagem principal do capítulo: Havia um sacerdote chamado Zacarias.
Zacarias era um sacerdote comum do vilarejo que estava trabalhando em uma
de suas escalas semianuais de serviço no templo. Ele é membro do grupo de
Abias, um dos 24 grupos de sacerdotes que trabalhavam na escala (1 Cr 24.10).
É digno de nota que o grupo de Abias precede imediatamente a nona rotação
de Yeshua (o nome hebraico de Jesus), assim como João precede Jesus nesse
drama.
Lucas é cuidadoso em apontar que até a mãe de João tem uma estirpe sacerdo­
tal impecável. Isabel é uma das filhas de Arão {ek tõn thu gaterõn A arõn). O ca­
samento de sacerdotes com as filhas de sacerdotes era altamente valorizado no
costume judaico. O cuidado tomado nes >as questões era tanto que a linhagem
de uma possível noiva tinha de ser confirmada por muitas gerações passadas.
Essa estirpe sacerdotal da família de João, tanto do pai como da mãe, eleva a
posição do Batista na narrativa. Finalmente, é a linhagem que determina a po­
sição social entre o povo comum da antiga Palestina, e não a riqueza ou a posi­
ção. Embora Jesus mesmo não seja de uma linhagem sacerdotal (veja Hb 7.14),
Seu nascimento é plenamente afirmado pela tradição sacerdotal em Lucas.
■ 6 Zacarias e Isabel não apenas possuem a linhagem sacerdotal apropriada,
mas ambos eram justos aos olhos de Deus (v. 6). Justo (dikaioi) é a lingua­
gem do AT usada para designar aqueles que observam as Leis de Deus com um
coração puro. “Pelo menos nas passagens narrativas que descrevem os relacio­
namentos judaicos, a palavra dikaios sempre se refere aqui à fidelidade à Lei”
69
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

(Schrenk, 1964, p. 189; veja também Marshall, 1978, p. 52,53; veja 1.17; 2.25
e 12.57).
Isso ressoa no restante da frase: Obedecendo de modo irrepreensível a todos
os mandamentos e preceitos do Senhor (v. 6). Mandamentos (entolais\ veja
18.20; 23.56) significam decretos legais. A palavra preceitos (dikaiõm asin) é
frequentemente encontrada na LXX como um estatuto legal ou lei (ex.: Gn
26.5; Dt 4.40). A LXX é uma tradução grega primitiva do AT usada nas sina­
gogas de língua grega naquele tempo.
A palavra dikaiõm a deve também ser entendida como referindo-se à guarda da
“tradição dos anciãos” (um termo aludido em 11.37-41; || Mc 7.3; Mt 15.2).
Esses são os halak ahot judaicos, ou prescrições legais, tanto escritas quanto
orais, que faziam parte integrante da vida e piedade judaicas (veja as anotações
complementares em 6.6-11).
Na narrativa de Lucas, Zacarias e Isabel representam tudo o que é nobre na
prática do judaísmo do primeiro século: devoção pessoal, respeito a Deus e
ao templo e justiça moral em observação à lei, em perfeito equilíbrio com a
devoção ao Senhor. Ao enfatizar a justiça deles e sua linhagem sacerdotal, Lu­
cas mostra que ele não compartilha a visão das outras seitas judaicas, como a
comunidade Qumrã, de que o templo é irremediavelmente corrupto. Embora,
talvez um ideal romântico, esse é o ambiente religioso do qual João surgiu no
mundo histórico de Lucas.
1 7 Eles não tinham filhos, porque Isabel era estéril; e ambos eram de ida­
de avançada. Isso parece irônico, dado o ideal de judaísmo que o casal apresen­
ta. A falta de filhos e a infertilidade apresentadas na Bíblia são consideradas um
sinal do desfavor de Deus, até mesmo uma indicação de pecado (Ex 23.26; Dt
7.14; Pv 30.16). Entretanto, essa é a situação na qual Isabel e Zacarias encon­
tram-se. Assim como outros casais bíblicos, cuja falta de filhos tornou-se uma
fonte dè bênção para Israel, a esterilidade deles tem um propósito particular e
uma função a desempenhar-se na história da aliança.
Essa história assemelha-se à de Abraão e Sara (Gn 18.9-15). Green vê uma
extensa interdependência entre a história de Abraão em Gênesis 11—21 e
Lucas 1.5—2.52 (1997, p. 52-58). Observando a referência a Abraão em Lu­
cas 1.55,73, ele considera a abertura de Lucas como uma continuação de uma
história “enraizada na aliança abraâmica” (1997, p. 57). Ambos os casais são
avançados em idade, sem filhos e recebem uma visitação especial de um ser
angelical. Como um sacerdote da ativa, Zacarias deveria ter menos de 50 anos
(veja Nm 8.25), ainda jovem pelos padrões contemporâneos ocidentais.
70
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

Embora Isabel não fosse tão idosa quanto Sara (Gn 17.17), ela era estéril e
de idade avançada (v. 7). Ambos os casais descreram na promessa de Deus
de torná-los pais. Contudo, finalmente, Sara dá à luz o filho que estabelece a
nação de Israel, Isaque. Isabel, após uma vida sem filhos, dá à luz o arauto do
Messias de Israel.
Ao alinharmos a narrativa do nascimento de João com a de Isaque, Lucas desta­
ca as memoráveis implicações do nascimento de João. Assim como a narrativa
de Isaque posiciona-se na inauguração da nação de Israel, a narrativa de João
posiciona-se na inauguração do reino messiânico de Davi. Ambos procedem
de um ventre estéril como um sinal de bênção e fertilidade, que atende à pre­
sença de Deus no ponto de virada da história.

A PARTIR DO TEXTO
A teologia da santidade enfatiza que as obrigações da vida ética devem ser
mantidas em equilíbrio com uma genuína fidelidade interior para com Deus.
Essa visão encontra suporte no equilíbrio da lei e da devoção encontradas na
narrativa de Zacarias. As regras e os regulamentos da vida religiosa são meros
legalismos, a não ser quando estão infusas com genuína devoção ao Senhor.
Reciprocamente, o entusiasmo religioso desgovernado pelos imperativos mo­
rais e éticos do evangelho é mero emocionalismo. A arte da vida santa é encon­
trada na integração desses dois imperativos: devoção de coração e fidelidade às
demandas morais de uma vida justa.
Zacarias e Isabel são apresentados como um casal idealizado. Eles são fiéis
de coração e na prática, sacerdotais de linhagem e, contudo, pessoas comuns
do vilarejo. Isso deve ser algo como o ideal judaico daquela época. No entanto,
a vida deles tem os seus desapontamentos; a infertilidade dela é a antítese do
mandamento da aliança abraâmica de multiplicar-se. Essa ironia parecia cruel
para Isabel, referindo-se à anulação do “meu opróbrio perante os homens”
(1.25 ARA).
Até quando Deus intervém na vida deles com uma gravidez, a dor de ambos
não chega ao fim. A alegria deles fica misturada à vergonha da incredulidade de
Zacarias. Mais tarde, a vida de João como um profeta ascético pode ter gerado
uma alienação da família e do lar, como parece ter acontecido na experiência
de Jesus. A visita de Deus a Zacarias e Isabel é jubilosa, mas é também o início
de uma vida de perturbação e incerteza. Quando o mensageiro angelical de
Deus aparece, todo sentimento de normalidade e de ordem desaparecem.
71
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Essas histórias bíblicas repercutem-se para os cristãos modernos. Um en­


contro com o sagrado, às vezes, substitui a paz pelo caos, e o familiar, pelo
desconhecido. A vida de fé não é a cessação de sofrimentos na vida ou o desli­
gamento das duras realidades. É um ousado empreendimento para criar o bem
em um mundo caído, uma vida com sua própria dor, cujos fiéis pacientemente
darão à luz.

2. A epifania de Zacarias (1.8-25)

NO TEXTO
H 8 - 1 0 Zacarias estava servindo como sacerdote diante de Deus (v. 8).
A oportunidade de levar a oferta de incenso caía sobre um homem uma vez
na vida (veja m. T am id 5:2—6:3) e, ainda assim, apenas para aquele escolhi­
do por sorteio (v. 9). Esse momento singular para Zacarias deve ter sido uma
questão de providência e bênção. Zacarias entra no sa n tu á rio (v. 9, ton naon,
não simplesmente no templo, ieron ). Ali, o sacerdote nomeado deve oferecer
incenso no altar do sacrifício, um vestíbulo dentro da estrutura na qual ficava
o Santo dos Santos. Uma cortina cobrindo uma porta separava o vestíbulo do
Santo dos Santos. A oferta de Zacarias, nesse texto, é o ta m id , ou oferta diária
inteira (Êx 30.7,8).
Cinco indivíduos entram no santuário para preparar a oferta: “Um segurando
o coletor de cinzas; outro, a vasilha de azeite; outro, o fogo; outro, a vasilha de
[incenso]; e outro, a concha e a tampa” (Mixná Tamid, 7:2). Depois que todas
as preparações são feitas, o sacerdote com o incenso fica sozinho no santuário
para queimar a oferta e prostrar-se em reverência. Era provavelmente a oferta
da tarde, e não a oferta da manhã, já que uma multidão se fazia presente: “O
povo todo estava orando do lado de fora” (v. 10; veja a comovente oração Ta­
m id de Esdras em Ed 9.6-15). Essa assembleia incluiria sacerdotes, levitas e
homens judeus, mas não mulheres. O altar estava no átrio dos israelitas, logo,
fora do limite das mulheres e dos gentios.
H 1 1 - 1 5 a Um anjo apareceu (õph tbe) a Zacarias à direita do altar de incenso,
o lugar de honra (v. 11; veja Dn 9.21). Ele é identificado como Gabriel em 1.19
(veja Por trás do texto, em 1.26-38). A posição do anjo significa que ele traz
boas novas, e não más (veja M t 22.44). Ele diz a Zacarias: Não tenha medo (v.
13, m êp h o b o u ), frase que é lugar-comum em Lucas na ocasião de milagres, epi­
fanias e mensagens proféticas (1.30; 2.10; 5.10; 8.35,50; 9.34; fora disso, só em
72
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

Mc 5.36, nos Sinóticos). O medo é uma reação humana normal que aparece
na Bíblia quando ocorre manifestação do que é divino (m êp b o b o u aparece 36
vezes na LXX). Uma epifania é uma aberração, um desvio da ordem natural.
Significa que ela não pode ser prevista. Uma aparição inesperada do que é divi­
no é, por natureza, um acontecimento espontâneo — Deus toma a iniciativa.
O medo parece uma resposta natural quando Deus ou Seus agentes aparecem.
O anjo também diz: Sua oração foi ouvida (v. 13; veja Dn 9.22,23). Os leito­
res presumem que ele esteja falando da oração do casal por um filho; mas eles
também podem ter orado pela libertação da nação (veja 2.25). Talvez essa seja
a oração à qual o anjo se refere. Uma oração dessas, naquela época, expressa­
va o anseio messiânico de todos os judeus: “Veja, Senhor, e levanta-lhes o rei
deles, filho de Davi, para reinar sobre Israel, seu servo, no tempo que escolhes­
te, Deus” (5. Sal. 17.21, primeiro século d.C.). A declaração do anjo refere-se
além do nascimento de um filho para um casal estéril. Ela tem a ver com a
alegria que vem com o livramento nacional: M uitos se alegrarão por causa do
nascimento dele, pois será grande aos olhos do Senhor (v. 14b, 15a; também
1.32,69,76; 2.10,11,28-32).
■ 15b-17 O discurso direto do anjo continua até o versículo 17. O filho
prometido nunca tom ará vinho nem bebida fermentada (v. 15b). Essa frase
alude ao voto nazireu em Números 6.1-21. Três proeminentes personagens bí­
blicos são chamados de nazireus por toda a vida: Samuel (1 Sm 1.11), Sansão
(Jz 13.3-5) e João Batista. Todas as três histórias possuem narrativas de nasci­
mentos com intervenção divina.
Logo, a frase e será cheio do Espírito Santo desde antes do seu nascimento
(v. 15c) enfatiza a ordenança divina do ministério de João como uma interven­
ção de Deus na história. Isso também evoca a conexão de João com Samuel, um
colega nazireu. Samuel foi o profeta/nazireu inaugural da monarquia davídica
original, e João é o profeta/nazireu inaugural da nova era davídica.

O voto nazireu
O te rm o nzr, e m hebraico, significa "um consagrado". O voto nazireu
invocava um período de abstinência de q u a lq u e r produto da vinha, uso de
navalhas e im p ureza ao aproxim ar-se d e m ortos. Em Núm eros 6, o voto é
volu ntário e tem p o rá rio , com o no caso de Paulo, em Atos 2 1 .2 3 ,2 4 . Isso
torna o voto vitalício de João e de seus predecessores, Sam uel e Sansão,
atos peculiares d e devoção a Deus. O fato d e os sacerdotes a b sterem -se
do vinho e n q u a n to s e rvem no tem p lo dá ao voto nazireu um a sensação

73
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

sacerdotal (Lv 1 0 .9 ). Tiago, irm ão de Jesus, líder da igreja de Jerusalém ,


foi ch am ad o de nazireu por Hegésipo (ca. 1 8 0 d .C , Eusébio, Hist. Ecl.,
2 :2 3 .4 ).

A ideia de que João Batista fará retornar (...) o povo de Israel ao Senhor, o
seu Deus (v. 16) identifica o seu ministério como um movimento de renova­
ção do judaísmo. Dada a ênfase anterior de Lucas sobre a ligação de Zacarias
ao sacerdócio, pelo menos parte da convocação está de volta à fidelidade a essa
tradição. Entretanto, ele rapidamente amplia esse contexto ao mencionar o po­
der profético de Elias no discurso do anjo: João virá no espírito e no poder de
Elias (v. 17). Isso se refere à predição de Malaquias 4.4-6 de que Elias aparece­
rá antes do Dia do Senhor. O NT expande a ideia do reaparecimento de Elias
em Mateus 17.10-13 11Marcos 9.11-13 (veja também Mt 11.10 e Lc 7.27). Ali,
João é identificado como Elias. Mas, João só repetiu alguns traços da vida de
Elias, porém jamais foi o mesmo.
Elias deixará um povo preparado para o Senhor e voltará o coração dos filhos
de Israel ao Senhor seu Deus e dos pais a seus filhos (v. 17; citando M l 4.6;
sobre filhos e pais aqui, veja Marshal, 1978, p. 59,60). A alienação entre pais
e filhos parece ser um mal-estar na comunidade da aliança que Lucas deseja
abordar.
Esse mal-estar tem este paralelo: os que são desobedientes à sabedoria dos
justos (v. 17). Essas duas condições, alienação familiar e rebelião, serão, de al­
guma forma, corrigidas por uma figura semelhante a Elias. O texto não sugere
como isso será realizado. Todavia, caracteriza o movimento de reforma de João
como preocupado com a cura das famílias (veja os comentários em 12.49-53) e
em restaurar a autoridade dos “justos” dentro da comunidade.
A ligação com Elias novamente enfatiza que João lidera um movimento de re­
novação como um precursor do Dia do Senhor (veja Fitzmyer, 1981, 1:327).
João é mais um profeta do que um reformador, anunciando o cumprimento da
profecia do AT (Webb, 1991, p. 62,63). Não obstante, o compromisso trans­
formador de João prefigura as tentativas semelhantes de Jesus de reformar as
práticas corruptas dentro do judaísmo.
A prática judaica apropriada do Jesus de Lucas inclui os pilares do templo e a
Lei (ex.: 5.14; 11.42; 18.18-22), mas essas práticas devem ser vivificadas com
humildade, arrependimento, perdão e preocupação com o próximo (ex.: 1.52;
5.32; 10.25-37; 13.3; 17.4; 24.47).
H 1 8 - 2 5 Zacarias é incapaz de entender como a mensagem do anjo pode-

74
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

ria ocorrer. Como posso ter certeza disso? (v. 18). A sua dúvida provoca a
repreensão e o juízo de Gabriel: Agora você ficará mudo. Não poderá falar
até o dia em que isso acontecer, porque não acreditou em minhas palavras,
que se cumprirão no tempo oportuno (v. 20). Zacarias fracassa em crer nas
palavras do anjo. Consequentemente, ele não conseguia falar nada (v. 22).
Logo, é incapacitado de unir-se à recitação da bênção tradicional (m . T amid
7:2) quando sai do santuário.
A perda da fala, às vezes, surge por ordem de Deus, conforme descrita na Bíblia
(Êx 4.11). Ficar mudo é um símbolo bíblico para a falta de entendimento (Is
56.10). O silêncio de Zacarias é uma indicação inicial no Evangelho acerca da
consequência da rejeição à mensagem recebida. A dúvida de Zacarias é con­
trastada com a fidelidade de Isabel que, aos cinco meses de gravidez (v. 24),
regozija-se: Isto é obra do Senhor! Agora ele olhou para mim favoravel­
mente, para desfazer a minha humilhação perante o povo (v. 25). Isabel não
é abençoada como recompensa por acreditar nas “coisas certas”. No entanto,
diferentemente de Zacarias, quando confrontada com a evidência da inter­
venção divina, ela responde com fidelidade, sem duvidar (Green, 1997, p. 89).
Nesse sentido, Isabel e Maria evidenciam uma resposta positiva a Gabriel (veja
1.38 e o Cântico de Maria a Deus, em 1.46-55).

3. A visita de Gabriel a Maria (1.26-38)

POR TRÁS DO TEXTO


A cidade natal de Maria é “Nazaré, cidade da Galiléia” (v. 26), com uma
população de não mais que algumas centenas de pessoas. É tão obscura que
nunca é mencionada no AT e nem na lista de Josefo das 56 cidades da Gali-
leia. Nazaré tampouco é mencionada no Talmude, que lista 63 cidades nele.
“A partir dos textos literários judaicos de então e no decorrer de quase 1.500
anos, nada” (Crossan, 1991, p. 15). Essa completa obscuridade é em si mesma
um tema literário; Jesus, oriundo de uma cidade que ninguém nota, eleva-se à
proeminência no palco central de Jerusalém, embora tragicamente.
Contudo, o vilarejo não era isolado. Ele ficava perto de Séforis, a sete quilô­
metros de distância. Séforis era o centro administrativo da Baixa Galiléia, uma
cidade com uma população mista de judeus e gentios, de 30.000 pessoas. Josefo
chamava-a de “o ornamento de toda a Galiléia”. Surpreendentemente, nenhum
dos Evangelhos menciona Séforis. Tampouco mencionam a segunda cidade mais
proeminente da Galiléia, Tibérios (veja Theissen e Merz, 1996, p. 170,171).
Jesus provavelmente visitava essas cidades, mas o silêncio dos Evangelhos

75
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

pode ter conotações políticas. Os sinédrios locais das grandes cidades pratica­
vam uma forma de expulsão cívica para os pregadores renegados com base em
Deuteronômio 13 (veja Neale, 1993, p. 87-101; veja o comentário em 9.1-6 e
10.8-16). Certamente, Jesus teria sido exposto à cultura romana e ao alvoroço
de uma grande rota comercial enquanto crescia em Nazaré. Ele pôde, aliás, ter
trabalhado como artesão em Séforis (mas falta evidência direta quanto a isso).
A epifania de Maria começa com a aparição do anjo Gabriel (v. 26). Pouco
se fala sobre Gabriel na Bíblia. Ele aparece na Escritura apenas aqui e em Da­
niel (8.16; 9.21). No entanto, é frequentemente mencionado na literatura não
bíblica do período intertestamentário. Nela, Gabriel é identificado como um
dos sete arcanjos da tradição judaica: Uriel, Gabriel, Rafael, Raguel, Miguel,
Sariel e Jeremiei. Segundo o livro extrabíblico T estam ento d e J a có (T. Jac. 5.10­
15; cerca de 100 d.C.), Gabriel é o arcanjo do paraíso que acompanhou Jacó
até o céu. Essas histórias pseudoepígrafas eram uma parte comum do mundo
histórico judaico do primeiro século e provavelmente informavam a compre­
ensão dos leitores sobre esse pitoresco personagem. Até os gentios “tementes
a Deus” podem ter sido bem familiarizados com essa literatura judaica (veja o
perfil do leitor implícito de Tyson, [1992, p. 35-37]).
Essa aparição a Maria é o segundo “tipo de cena de anunciação” em Lucas
(Green, 1997, p. 83,51-58). As semelhanças entre o nascimento de Jesus e o de
João ficam imediatamente aparentes (veja Fitzmyer, 1981, 1:313-316; Green
1997, p. 82-85). O tratamento de Lucas quanto às duas narrativas no capítulo
1 compartilha as seguintes características:

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76
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

A base intertextual mais ampla dessas narrativas é encontrada nas histórias


sobre esterilidade que ocorrem em pontos estratégicos da história de Israel.
Repetidamente no AT, Deus demonstra Sua capacidade de moldar a história
ao derrotar a infertilidade, a principal ameaça contra a Sua promessa de uma
nação para Abraão.
Os exemplos são histórias bem conhecidas da Bíblia. Sara, a mulher de
Abraão, mãe de Isaque, foi estéril durante um período de sua vida (Gn 15.1-6;
17.1-22; 18.9-15). Assim também foi com Rebeca, esposa de Isaque, a mãe dos
patriarcas de duas nações, Jacó e Esaú (Gn 25.21). Raquel, a esposa de Jacó,
também foi estéril por um longo tempo em sua vida (Gn 29.31-35; 30.22-24),
contudo, seu filho José livrou Israel da fome do Egito. A mãe anônima de San-
são foi estéril até que deu à luz aquele que libertou Israel dos filisteus (Jz 13.2­
24). A esterilidade, de forma frequente, ameaça a promessa da fertilidade na
história de Israel, e a intervenção de Deus repetidamente preserva a linhagem.
Lucas tem um artifício semelhante em funcionamento — os indivíduos
principais nas narrativas do nascimento também não têm filhos. Isabel é idosa
e estéril, e Maria é jovem e virgem. Dois “problemas” completamente diferen­
tes, mas, ainda assim, ambos são barreiras para o cumprimento da história da
salvação. Logo, uma longa linhagem de mulheres bíblicas estéreis que deram à
luz personagens importantes é evocada por Lucas.
O drama bíblico está desenrolando-se dramaticamente. Enquanto que o
plano da salvação ficou repetidamente pendurado pela fina linha da esterilida­
de nas gerações passadas, o padrão agora está alterado de forma radical. Isabel,
assim como todas as suas predecessoras nesse tema bíblico, é tipicamente esté­
ril, mas concebe de forma natural. Entretanto, agora, uma virgem conceberá
e trará o drama da infertilidade a uma conclusão. Por fim, no nascimento do
filho de Maria, a promessa de uma nação a Abraão será realizada de maneira
plena (L 5 5 e 7 3 ),e a ameaça de infertilidade será removida permanentemente.
De particular importância à narrativa de Maria é a infertilidade de Ana (1
Sm 1—2), a mãe do primeiro profeta da monarquia israelita (ca. 1000 a.C.).
O cântico de louvor de Maria em Lucas 1 depende grandemente da forma e do
conteúdo do cântico de Ana. Lucas acredita que a alusão ao herdeiro eterno do
trono de Davi, em 2 Samuel 7.13, é cumprida em Lucas 1.32,33. Maria não é
estéril; mas a sua falta de filhos é semelhante à de Ana. Em ambos os casos, isso
é um obstáculo ao cumprimento da história da salvação. Em cada caso, Deus
intervém para reverter a falta de filhos dessas mulheres e preservar o Seu plano
para a salvação da humanidade.
77
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Os versículos 26-28 também introduzem, na narrativa, a ideia de que Jesus


é o “Filho”. Em Mateus, a narrativa do nascimento refere-se a “Jesus Cristo, fi­
lho de Davi, filho de Abraão” (1.1,18) e a “Cristo” (2.4). Contudo, para Lucas,
Jesus é o “Filho” na narrativa da infância.
Inúmeros contextos sociais e linguísticos podem ter influenciado a adoção
dessa linguagem em referência à identidade de Jesus. O AT, a filosofia grega, o
Qumrã e o culto imperial em Roma usavam a linguagem de “filho” para referir­
-se à divindade de indivíduos específicos.
O culto imperial romano, por exemplo, procurava situar a ontologia do
imperador em algum lugar entre o humano e o divino. Esse conceito foi citado
como um intertexto cultural para o uso da linguagem da filiação divina no
NT. Os termos familiares a nós, a partir dos Evangelhos, também tinham sido
aplicados a César: sõtêr, “Salvador” (veja 1.47; 2.11) e huios tou theou, “Filho de
Deus” (veja 4.3,9,41; 8.28; 22.70). A prática romana era especialmente predo­
minante da época de César Augusto em diante, 27 a.C.— 14 d.C. (para textos
gregos e romanos com esses termos, veja Price, 1984, p. 54-57; também Jeal,
2011, p. 5-10). Na inscrição de Priene, datada de 9 a.C., Augusto é referido
como o “salvador” {sõtêr), aquele que é “de Deus” {tou th eou ), cuja “aparência”
{epiphanea) traz “boas-novas” (eu a n gelion ). Isso é importante para a compre­
ensão dos contextos linguísticos que informam a emergente literatura do NT.
A religião e a política não eram esferas separadas no antigo Oriente Próxi­
mo, como é demonstrado pelo culto da divindade imperial. Essa fusão de poder
político e religião tem sido chamada de “rede do poder”, que existia na bacia
mediterrânea nos dois primeiros séculos da era cristã (Price, 1984, p. xi,56-59).
A prática romana daquele período fornece um valioso fundo histórico para o
uso dessa linguagem pela comunidade cristã primitiva em conexão com Jesus.
Os cristãos primitivos recusavam-se a aceitar a divindade do imperador nas
cerimônias públicas, uma significativa fonte de conflito entre as autoridades
romanas (Mackay, 2004, p. 259). Na visão deles, somente Jesus merecia a lin­
guagem de divindade.

NO TEXTO
H 2 6 - 2 8 O relato em prosa da epifania de Maria contém detalhes pessoais
íntimos e também importantes temas teológicos. Note a semelhança de estilo e
conteúdo com a história do nascimento de Sansão. Ambas são histórias muito
humanas, até encantadoras. Elas tratam de uma mulher estéril, da aparição de
um anjo, da mensagem do mensageiro e de um nascimento miraculoso (veja Jz
13.2-24 e o comentário em Lc 1.15b-17).
78
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

O relato de Lucas sobre a aparição de Gabriel perante Maria (v. 26-28) segue
o mesmo padrão da aparição a Zacarias (v. 5-20). Essa repetição do padrão co­
necta os dois incidentes e cria uma dramática ação na história. Uma promessa
divina, primeiro, traz um bebê para uma mulher idosa e estéril e, depois, outro
bebê para uma jovem virgem, mulheres estas em posições opostas na experiên­
cia de vida e fertilidade. Isso cria um contraste pungente totalmente peculiar à
experiência feminina, tudo mediado pelo mesmo mensageiro angelical.
Maria é uma virgem prom etida em casamento a certo homem chamado
José, descendente de Davi (v. 27). O noivado era um processo em que a jovem
desposada (de 12 ou 13 anos de idade) continuava a viver na casa de seu pai
por um período de tempo depois de ficar noiva. Foi durante esse período que
Gabriel apareceu a Maria. O tema davídico é introduzido aqui pela primeira
vez em Lucas; mas será referido outras 12 vezes no Evangelho dele (veja o co­
mentário em 1.32,33; veja também Tannehill, 1996, p. 47-49).
Na interpretação grega de Lucas sobre a saudação de Gabriel a Maria, há um
ritmo aliterativo: Chaire, kecharitõmenê\ Alegre-se, agraciada! O Senhor
está com você! (v. 28). A palavra agraciada transmite o sentido de uma bên­
ção divina (o cognato charin aparece no v. 30: Vocêf o i agraciada p o r D eus). A
saudação cla ire, “alegre-se”, é exuberante, semelhante ao júbilo do povo restau­
rado por Deus em Sofonias 3.14: C ante \chaire], ó cidade de Sião. A sauda­
ção “preenche melhor o quadro de júbilo que permeará o terceiro Evangelho”
(Green, 1997, p. 87). A passiva perfeita k echaritõm enê indica alguém favoreci­
do por Deus. A visitação de Gabriel (v. 26) transfere a narrativa para a esfera
do sobrenatural e confirma o nascimento (veja 1.11).
H 2 9 - 3 1 M aria ficou perturbada com a aparição de Gabriel (veja 1.12,29:
tarassõ/diatarassõ, “profundamente confusa ou chocada”). A exortação «ão te ­
m a s é frequente nas epifanias do AT e também em Lucas (1.30; 2.10; 5.10;
8.35,50; 9.34). Gabriel gentilmente diz a Maria; Não tenha medo, M aria;
você foi agraciada por Deus! (v. 30; veja v. 13).
Já que Gabriel aparece somente em Daniel no AT, essa epifania relembra os
leitores do acontecimento central de Daniel: a profanação do templo por An-
tíoco IV Epifânio (167 a.C., Dn 8.16; 9.21-27). Ao ecoar a imagem de vitória
sobre Antíoco, o texto implica que a história novamente chega a um ponto de
virada e que Deus restaurará a dignidade de Israel. Os leitores bem podem es­
perar que isso aconteça, assim como aconteceu nos dias dos macabeus — pela
revolta dos camponeses. Já que aquela vitória sobre Antíoco era de natureza
política e militar, não seria de surpreender que alguns entendessem que essa
79
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

epifania estivesse apontando para acontecimentos que estivessem destinados a


libertar Israel das amarras da opressão romana.
A narrativa descontrói essa visão militar da missão de Jesus. Entretanto, não é
antes de 6.27-38 que começamos a aprender que os inimigos devem ser amados
e a retaliação esquecida. Até lá, a caracterização de Jesus em Lucas retém o po­
tencial para uma mudança revolucionária no estilo dos macabeus. Isso cria uma
dramática tensão que eventualmente coloca o caminho de amor e antiviolência
adotado por Jesus em alto relevo.
O anjo diz a Maria: Você ficará grávida e dará à luz um filho, e lhe porá o
nome de Jesus (v. 31). O nome do menino é comum. Todavia, nesse caso, tem
um significado particularmente simbólico. O hebraico para Jesus é Yeshua, que
significa “Jeová é a salvação”. O versículo 31 é similar à construção em Isaías
7.14 e pode ter a intenção de ressoar o senso de expectativa messiânica ali (ape­
sar de Fitzmyer, 1981, 1:336). Os leitores que têm conhecimento podem ter
percebido uma alusão a uma tradução desta passagem na LXX: “Portanto, o
Senhor mesmo vos dará um sinal: Eis que a virgem ficará grávida e dará à luz
um filho, e o chamará Emanuel”1 (tradução nossa).
0 termo usado para “virgem”, em grego, em Isaías 7.14, ép a rth en os (veja Brown,
1979, p. 143-149). O texto hebraico usa a palavra a lm a h y geralmente “mulher
jovem”, o que não necessariamente impede que seja uma “virgem” (veja Watts,
1985, p. 98,99). Pode argumentar-se um caso para ambos os significados. Al­
gumas traduções gregas usam neanis, “mulher jovem”, em vez de parthenos. É
provável que essa tradução faça melhor sentido do texto original hebraico de
Isaías. Nele, a declaração foi dirigida ao perverso rei Acaz em uma profecia so­
bre o futuro de Judá (Brown, 1979, p. 147; Watts, 1985, p. 98). No entanto, a
LXX retém p a rth en os, que é mais particular. A tradução de p a rth en os, virgem,
por judeus e cristãos primitivos, fazia parte do debate com os judeus tradi­
cionais do primeiro século. Quando alguns cristãos reliam a tradução grega
de Isaías 7.14, procurando evidência profética que predissesse o nascimento
de Jesus, eles naturalmente preferiam a tradução de “virgem” do que “mulher
jovem”, tal como Maria havia-se declarado (Lc 1.34). Embora o relato de Lucas
possa ser entendido como uma gravidez por meios naturais (como Fitzmyer
argumentou [1981,1:338]; veja Brown, 1979, p. 517-533; veja Watts, 1985, p.
100-104), Mateus 1.18-25 inequivocamente apresenta o nascimento de Jesus
como virginal.
H 3 2 - 3 3 Gabriel diz a Maria que Jesus seria Filho do Altíssim o. O Senhor

1 O texto em língua estrangeira é: "Therefore the Lord himself will give you a sign: The
Virgin will be with child and will give birth to a son, and will call him Immanuel".

80
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

Deus lhe dará o trono de seu pai Davi, e ele reinará para sempre sobre o
povo de Jacó; seu Reino jamais terá fim (v. 32,33). Essas palavras transmitem
a essência do entendimento de Lucas sobre a identidade de Jesus como o Filho.
Suas diversas expressões para a filiação de Jesus são maneiras diferentes de ex­
pressar o relacionamento peculiar de Cristo com Deus. Ele é o Filho de Deus
(1.35; 3.22; 4.3,41; 9.35), Filho do Altíssimo (1.32; 8.28) e Filho do Homem
(5.24; 6.5; 7.34; 9.22 etc.).
A apresentação característica de Lucas do nascimento de Jesus nessa lingua­
gem foi provavelmente informada por uma variedade de contextos linguísti­
cos, incluindo o AT. O Messias davídico como o Filho de Deus origina-se em
2 Samuel 7.14; Salmo 2.7; 89.26; SS 18.13. Pode também haver influência da
ideia grega do theios a n êr, “Homem divino” (Martitz, 1972, p. 338-340). Na
literatura do Qumrã, as frases “Filho de Deus” e “Filho do Altíssimo” apare­
cem pela primeira vez em um texto pseudodaniélico (do ultimo trimestre do
primeiro século a.C.; veja Fitzmyer, 1977, 2:90-93 e 102-107 citando M ilik).
Os termos podem originalmente ter sido aplicados a um dos governantes se-
lêucidos da síria.
Essas diversas instâncias de literatura apontam para um complexo ambiente so­
cial e linguístico para a linguagem do humano e do divino no primeiro século.
Os cristãos primitivos adotaram essa linguagem do divino para o seu Senhor e
debateram pelo seu direito exclusivo de usá-la.
Jesus também se assentará no trono de Davi, de acordo com Lucas (v. 32; tam­
bém 1.27,69; 2.4,11; 18.38; 20.41). Aqui, Jesus como o Filho aparece pela pri­
meira vez ligado ao conceito do messianismo davídico. Além do mais, a eterni-
zação da dinastia davídica, o povo de Jacó, está implícita no v. 33: Seu Reino
jamais terá fim. Essa é uma referência intertextual a 2 Samuel 7.12-16. Nesse
ponto, Deus promete, pela primeira vez, estabelecer uma dinastia davídica que
continuará para sempre (veja SI 89.3,4; 132.11,12; Is 9.7; D n 7 .l4 ; M q4.7). O
fato de o Reino de Jesus, como Filho de Davi, durar para sempre transforma a
profecia de Natã em 2 Samuel. Ele esperava uma dinastia terrestre duradoura;
Lucas, entretanto, esperava um escatológico “Reino sem fim do Messias” —
uma mudança sutil, porém significativa (Tannehill, 1996, p. 49).
A expectativa de um herdeiro davídico para o trono era corrente entre os ju­
deus do primeiro século, não apenas como um conceito religioso, mas também
político (Wright, 1996, p. 491; Horsley, 1992, p. 792). Os Salmos de Salomão
17.21,22 levantam o espectro de uma Jerusalém reivindicada pelos gentios por
intermédio do “Filho de Davi” Os leitores estariam inclinados a ver um poten­
cial militante para o advento de Jesus.
81
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Será que as referências a Jesus como o “Filho”, o “Salvador”, o “Messias” e o


“Senhor” (2.11,26; 9.20) dadas por Lucas tinham a intenção de indicar a Sua
divindade? Enquanto muitos defendem esse ponto, outros são mais circuns­
pectos. A filiação divina fazia parte da “retórica real messiânica do judaísmo
pré-cristão”. Enquanto a linguagem filial aponta para uma “posição especial”
diante de Deus, ela não assinala necessariamente uma posição divina no senti­
do que emerge na cristologia clássica (Hurtado, 2003, p. 103).
■ 3 4 - 3 8 Maria, estando apenas desposada, fica atônita com o anúncio do
anjo. Aqui, um verdadeiro tempo presente contínuo grego é usado por Lucas:
C om o p o d e s e r isso, j á q u e não estou a tu a lm en te co m \ginõskõ\ u m h o m em (v.
34) ? Gabriel responde à pergunta de Maria: O Espírito Santo virá sobre você,
e o poder do Altíssimo a cobrirá com a sua sombra (v. 35). Isso é claramente
um paralelismo poético, e não um eufemismo para relação sexual (Marshall,
1978, p. 70). A linguagem é “altamente figurativa” (Fitzmyer, 1981,1:337). As
imagens visuais para “vir” e “cobrir” referem-se a ser subsumida pela presença
divina. Em Lucas, os poderes espirituais frequentemente “vêm sobre” as pesso­
as em ocasiões memoráveis (9.34; 11.22; 21.26; no Pentecostes, At 1.8; 8.24).
A linguagem é simbólica da totalidade da presença de Deus nesses eventos.
De modo semelhante, a palavra grega episkiadzõ normalmente significa “co­
brir”, no sentido físico. O uso dela aqui, em referência à concepção, é pecu­
liar a partir de um ponto de vista linguístico (Fitzmyer, 1981, 1:337,338). Em
Êxodo 40.35, a palavra conota a presença de Deus sobre o tabernáculo no de­
serto (veja Êx 25.20; 40.34-38; Nm 9.22; Dt 33.12; 1 Sm 16.13; SI 91.4; 1
Cr 28.18; Is 11.1,2; 32.15; e no NT: M t 17.5; At 5.15). Da mesma forma, na
criação (Gn 1.2), o ruah, o Espírito de Deus, movia-se sobre as águas figurati­
vamente. Logo, a visitação de Maria pelo Espírito é descrita de forma a sugerir
que o Espírito de Deus move-se sobre Maria em um novo ato de criação (veja
Brown, 1979, p. 290).
Lucas agora aplica os títulos mais exaltados a Jesus. Assim, aquele que há de
nascer será chamado Santo, Filho de Deus (v. 35b). A significância desse
título surge de sua importância óbvia no vocabulário da teologia trinitária de
Lucas (Pai, Filho e Espírito Santo; ex.: 9.26; 10.21,22; 1.35b; e esp. 3.21,22).
Entretanto, a sua importância vem do cuidado particular de Lucas em situar o
nascimento de Jesus em um contexto político (1.5; 2.1-7; 3.1-3). Ao colocar o
nascimento em um mundo histórico geopolítico mais amplo, ele garante que
César, apesar de suas reivindicações de uma posição divina e do poder alardeado
como imperador, não está no controle da história. O Filho de Deus tem com
o Pai um relacionamento anterior à criação, que está acima de qualquer poder
82
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

humano. É Deus quem reina, e não César.


Depois, em óbvio contraste à reação de Zacarias ao anúncio de Gabriel, M a­
ria simplesmente diz: Que aconteça comigo conforme a tua palavra (v. 38).
Essa expressão de fé faz jus à mãe do Filho de Deus. E Lucas estampa-a como
exemplar.

4. Maria visita Isabel (1.39-45)

POR TRÁS DO TEXTO


O local tradicional da casa de Zacarias é Ain Karem, nas montanhas, a
poucos quilômetros a oeste de Jerusalém e a aproximadamente 100 km de Na­
zaré. Essa é a cidade de Bete-Haquerém, de Jeremias 6.1, a moderna Ramat
Raziel (veja Gibson, 2004, p. 25-31), acessível apenas ao longo dos cumes das
colinas a oeste de Jerusalém. Para chegar-se lá, era necessária uma árdua e pe­
rigosa viagem para qualquer viajante, especialmente para uma jovem. Maria
não conseguiria fazer essa viagem sozinha. Bandidos e salteadores eram uma
ameaça constante aos viajantes que passavam ali, e algum tipo de caravana deve
tê-la acompanhado. Ou Lucas não sabia o nome do vilarejo para o qual Maria
viajou, ou escolheu não mencioná-lo.

NO TEXTO
H 3 9 - 4 5 Maria preparou-se e foi depressa para a uma cidade da região
montanhosa da Judéia (v. 39). Quando Maria chega, Isabel tem uma expe­
riência extática, na qual ela é cheia do Espírito Santo (v. 41). Essa plenitude
cumpre a profecia de Gabriel em 1.15 de que João, um nazireu vitalício, seria
cheio do Espírito Santo ainda “antes de seu nascimento” (veja o comentário em
1.15b-17).
O tema da presença e da plenitude do Espírito Santo é proeminente nas nar­
rativas da infância e da juventude, ocorrendo nove vezes nos capítulos 1—3
(1.15,35,41,67; 2.25,26,27; 3.16,22). Esse tema culmina com a descida do
Espírito sobre Jesus em Seu batismo (3.22). Daí em diante, o Espírito San­
to é mencionado sete vezes em Lucas, sendo a última menção no capítulo 12
(4.1,14,18; 10.21; 11.13; 12.10,12). Certamente, o Espírito Santo é um dos
personagens dominantes nos estágios iniciais da história do Evangelho de Lu­
cas. Ele aparece sempre em conexão com proclamações sobre a identidade de
83
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Jesus como o Cristo.


Isabel é a primeira a reconhecer o advento da criança sagrada, referindo-se à
Maria como Bendita (...) entre as mulheres (v. 42; o famoso “Ave Maria”, do
latim: Ave M aria) e a mãe do meu Senhor (v. 43). A presença física de Maria
faz com que o futuro João Batista dê pulos no útero de Isabel (veja Gn 25.22
LXX; skiptaõ como em Lc 1.42).
Isso mostra a primazia de Cristo no drama. Ele causa o regozijo no útero de
Isabel. Ambas as mulheres experimentam esse advento com uma intensa inti­
midade física e espiritual que Zacarias e José não podem conhecer. A experi­
ência de Isabel com o Espírito é fisicamente invasiva, penetrando até seu ven­
tre (v. 41; veja 1.15b). Depois, o Espírito fisicamente (“em forma corpórea”
[sõm atikõ]) invade Jesus em Seu batismo (veja 3.21,22 e a anotação comple­
mentar em 3.16). De maneira semelhante, João é invadido ainda no útero de
sua mãe. Como um profeta pré-natalício, o seu pulo declara o advento do Filho
(Green, 1997, p. 95).
Da perspectiva da narrativa, os homens são personagens secundários que ficam
de lado, como um incrédulo (Zacarias) ou um humilde carpinteiro (José). As
mulheres estão no centro do drama de Lucas como vasos santos por meio dos
quais Deus cumpre o Seu propósito, pessoas de fé que vivenciam o poder pro­
fético da proclamação do anjo.
Essa reversão das funções masculina e feminina em um drama bíblico princi­
pal prefigura a redefinição dos relacionamentos sociais em Lucas. De diversas
maneiras, o Evangelho reverterá as categorias sociais. Os humildes serão exal­
tados, e os poderosos serão humilhados. Os pecadores e os “justos”, o pobre e
o rico, o poderoso e o sem poder e, agora, o homem e a mulher — todos esses
encontrarão seu lugar reverso no novo Reino.

A PARTIR DO TEXTO
Uma donzela em uma aldeia retrógrada recebe uma mensagem de Deus
longe de Jerusalém e do templo. A história dela não poderia ser mais diferente
da de Zacarias e Isabel. Eles têm status sacerdotal e são fiéis servos do templo
de Jerusalém. Como parente de Isabel, Maria deve compartilhar dessa heran­
ça, mas ela está sobrecarregada pela suspeita de infidelidade ao seu noivo. É
somente por José que ela tem qualquer conexão com a tribo de Judá e a casa de
Davi, a raiz de Jessé da qual o Messias surgiria (Is 11.10; Lc 3.23 11M t 1.16; Rm
15.12; veja 1 Sm 17.12; Hb 7.14-19; Ap 5.5). Ela é uma candidata improvável
para sua função como mãe do Senhor (v. 43).
84
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

A história de Lucas extrai energia dramática da ironia dessa reversão de


expectativa. A localização de Maria no espectro físico, social e religioso está no
extremo das margens. A linhagem sacerdotal e a posição de Zacarias e Isabel
devem suplantar a posição humilde de Maria; mas a ordem social está sendo
invertida. Jerusalém, o exaltado centro da adoração judaica, deve suplantar a
humilde Nazaré da Galileia; mas a ordem da geografia sagrada está sendo rede­
finida. João possui credenciais sacerdotais; mas a plebeia Maria gerará o novo
Rei, o Filho de Davi que reina sobre o sacerdócio. João é o “profeta do Altíssi­
mo” (v. 76), mas Jesus é mais exaltado como grande e (...) Filho do Altíssimo
(v. 32). As aparências exteriores e a realidade interior são justapostas na his­
tória, assim como os extremos do mundo social são justapostos nos capítulos
seguintes.
Essa redefinição da realidade social tem um foco especial no Evangelho
de Lucas. Como veremos, a nova comunidade que surge em resposta à vida, e
mensagem de Jesus inclui aqueles das margens extremas da sociedade. O lugar
deles na sociedade é transformado pelo surgimento de uma nova comunidade
moldada pela sua experiência no Espírito. A santidade não será mais definida
por posição, cargo e exclusão da comunhão, mas pela plenitude do Espírito,
pela humildade, pela graça e pela inclusão para todos. Isso realmente tem a ver
com as boas novas (veja Brower, 2005, p. 59,60,122-29).

5. O cântico de Maria (1.46-56)

POR TRÁS DO TEXTO


O cântico de Maria, o m a gn ijica t (latim), é um material especial de Lucas
e o primeiro de quatro cânticos no Evangelho. Temos ainda o benedictus, por
Zacarias (1.67-79), o g lo ria in exclesis, pelo coral angelical (2.13,14), e o n u n c
dim ittis, por Simeão (2.28-32; sobre os cânticos em Lucas, veja Brown, 1979,
p. 346-350). O cântico de Maria é estruturado como os hinos de louvor no sal­
tério, com uma introdução (v. 46,47), uma estrutura (v. 48-53) e uma conclu­
são (v. 49-53). O cântico é a primeira utilização de Lucas em um discurso mais
extenso de um personagem principal, para elucidar seus temas teológicos (veja
os comentários sobre Tucídides em 1.1-4; outros discursos extensos ocorrem
em 1.67-79; At 2.14-36; 7.2-53; 17.22-31).
O cântico de Maria é modelado segundo à oração de Ana, em 1 Samuel
2.1-11. A anotação complementar enfatiza o relacionamento do cântico de
85
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Maria com a oração de Ana. Ela também chama a atenção para a confiança de
Ana nas ideias de outras partes do AT (especialmente os Profetas Menores e
os Salmos).
As adorações de ambas as mulheres justapõem a humildade e o orgulho, o
pobre e o rico, o fraco e o forte, o justo e o injusto. Ambos são hinos de júbilo
de uma mulher que concebe um filho pela graça de Deus. O cântico de Maria
está profundamente arraigado na história bíblica.
A oração de Ana questiona os poderes estabelecidos e apela ao retomo
da justiça bíblica para o oprimido. Ao modelar o cântico de Maria na oração

COMPARAÇÃO ENTRE O CÂNTICO DE


MARIA E A ORAÇÃO DE ANA

A b ra ã o 1.55 Mq 7 .2 0 ; Gn 1 7.7

de Ana e em outros textos do AT, Lucas (como os outros evangelistas) retrata


a mensagem de Jesus semelhante à de um profeta do AT (Mt 21.11; Mc 6.4;
Lc 13.33; Jo 6.14). Esse é um tema que permeará a história de Lucas (Evans e
Sanders, 1993, p. 8).
Adicionalmente, a ideia de um futuro rei ideal cria uma expectativa de
uma resposta para os problemas da sociedade articulados nessas adorações
(Lc 1.32,33; veja 2 Sm 7.12,13). Esses problemas, especialmente a opressão
do fraco pelo forte, são os mesmos que os identificados na história de Samuel
86
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

(Lc 1.51-53; veja 1 Sm 2.11; 2 Sm 7.14). Um novo rei da linhagem de Davi


introduzirá uma nova sociedade na qual a justiça reina, e os seus problemas são
tratados.

NO TEXTO

■ 4 6 - 5 0 Maria regozija-se pelo nascimento de seu filho e pelas profecias


acerca dele. Suas palavras, o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador
(v. 47), são da oração de Habacuque pedindo ajuda em meio a um problema
(Hc 3.18; veja 1 Sm 2.1; Mq 7.7). Isso é apropriado, considerando-se a situação
de Maria. Salvador, sõtêr, é pouco frequente nos Evangelhos, ocorrendo ape­
nas aqui, em 2.11 e em João 4.42 (veja At 5.31 e 13.23). Isso evoca uma frase
comum do AT (Sl 24.5; 25.5; Hc 3.18). Assim como a Ana estéril, Maria ca­
racteriza sua posição como uma humilde serv a de Deus (v. 48; veja 1 Sm 1.11).
Maria é uma mulher dos níveis mais humildes da cultura da aldeia e, agora, está
sob a suspeita de imoralidade. Sua humildade nasce da vergonha e da gratidão:
Pois o Poderoso fez grandes coisas em meu favor; santo é o seu nome (v.
49). O “Poderoso” é o guerreiro de Deus (Sf 3.17). A reação de Maria quanto à
situação é declarar a santidade de Deus, assim como Ana fez (1 Sm 2.2).
Maria descreve a misericórdia de Deus como estendendo-se àqueles que o
temem de geração em geração (v. 50). Isso mostra continuidade com a tradi­
ção do AT e seus heróis e heroínas passados e identifica os personagens atuais
como elos vivos dessa história das gerações (veja 1.1,2). Além disso, também
implica que o drama alcança até o futuro com os filhos prometidos ainda por
nascerem.
I 5 1 - 5 3 Os versículos 51-53 são uma diatribe contra o orgulho (veja no­
vamente 1 Sm 2.3-8). Todos os verbos estão em tempo verbal aoristo. Signi­
fica que o nascimento introduz uma realidade presente, e não uma promessa
futura. Isso enfatiza a força “aperfeiçoadora” do aoristo, em vez de sua força
temporal (Beale e Carson, 2007, p. 262). A gravidez de Maria indica que aque­
les que são soberbos no mais íntimo do coração foram dispersos (v. 51). Os
governantes já foram derrubados de seus tronos (v. 52), e os humildes já fo­
ram exaltados (v. 52). Os famintos agora (no presente) já foram saciados (v.
53). Os que são ricos já foram despedidos de mãos vazias (v. 53). Esses verbos
aoristos sugerem que a opressão do pobre e humilde já foi vencida pela ação de
Deus em relação à Maria.
O conceito da presente ordem social, já tendo sido reformada pela presença do
Espírito de Deus, é típica dos profetas hebreus. É uma profecia ancorada em
87
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

um cenário sócio-histórico particular. Contudo, isso expressa a esperança pela


reforma da presente ordem por meio da presença do povo de Deus no mundo.
O mundo não será varrido e substituído por um reino escatológico; ele será
transformado por dentro.
Essa ideia há muito tem instruído a abordagem wesleyana da justiça social. Os
cristãos são convidados a trazer a visão profética para a realidade por meio de
seu trabalho, de sua espiritualidade e de sua pureza moral. Essa nova ordem é a
realidade que a nossa esperança cristã nos diz que é para ser. Como tal, o cânti­
co de Maria é um convite ao engajamento na ação social para corrigir os erros
trazidos pela soberba e opressão, os quais visitaram os abatidos.
■ 5 4 - 5 6 Os versículos 54 e 55 ecoam Isaías 41.8,9, nos quais Israel é descrito
como “servo” de Deus e “descendentes de Abraão, amigo” [de Deus]. No ver­
sículo 54, Deus ajudou a seu servo Israel. O fundamento mais profundo da
aliança abraâmica é invocado pela primeira vez em Lucas. A promessa a Abraão
e seus descendentes para sempre (v. 55) refere-se à garantia de Deus em dar
terra e progénie a Abraão em Gênesis (12.1-4; 17.7; 18.18; veja Lc 1.73).
A expressão “para sempre”, no versículo 55, traz à mente mais uma vez a alian­
ça messiânica com Davi pela casa de Jacó, em 1.33. No passado distante, essa
promessa resultou na criação de uma poderosa nação-estado sob o reinado de
Salomão. Aquele estado passou séculos antes de declinar sob o domínio es­
trangeiro. Entretanto, Deus já está trazendo a reconstituição de Sua nação em
termos radicalmente diferentes do que os esperados. O novo reino davídico
(v. 32) será diferente de seu predecessor social e politicamente. Contudo, este
sobreviverá “para sempre”.

6. Nascimento, circuncisão e nomeação de João (1.57-66)

POR TRÁS DO TEXTO


Lucas emprega uma estrutura comum para nascimento, circuncisão e no­
meação de João e de Jesus. A estrutura de João é a mais curta dentre os dois:
• A configuração da cena (1.57,58 ||2.1-7).
• O nascimento (1.57 11 2.8-20).
• Circuncisão e nomeação (1.59,64 ||2.21).
• A reação do público (1.65,66 || 2.22-38).
• Conclusão indicando a maturação do bebê (1.80 || 2.39,40; veja Brown,

88
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

1979, p. 408-412).
Seguindo uma breve descrição do nascimento de João, os vizinhos e fami­
liares reúnem-se. No oitavo dia foram circuncidar o menino (v. 59). João é
circuncidado segundo o mandamento de Gênesis 17.9-14.
A circuncisão era praticada de diversas formas no antigo Oriente Próximo,
desde um período remoto, principalmente pelos sacerdotes e guerreiros nas
culturas sírias e egípcias (Hall, 1992, p. 1025-1031). Os israelitas adotaram
a prática como um sinal de inclusão na aliança abraâmica, que lhes prometia
descendentes como “multidões de nações” e a terra dos cananeus como perpe­
tuidade. A circuncisão também é uma metáfora bíblica para um coração ple­
namente obediente à vontade de Deus ou comprometido com Deus (Js 5.2-9;
> 4 .4 ).
A cultura greco-romana do primeiro século d.C. considerava a circuncisão
uma prática degenerada, o que levava à zombaria e à exclusão dos judeus de
uma sociedade maior, especialmente do ginásio, uma instituição importante
da cultura helenizada de Jerusalém na época do nascimento de João.

NO TEXTO
■ 5 7 - 6 6 Lucas narra as circunstâncias da nomeação de João em um estilo
direto. O Senhor elevou Isabel da “humilhação” para a grande misericórdia
(1.25,58). O Senhor, kyrios, é encontrado frequentemente nos Evangelhos em
referência a Deus. No capítulo 1, kyrios é usado diversas vezes referindo-se a
Deus (1.25,28,32,45,58,66). No entanto, kyrios também serve como uma for­
ma respeitosa de dirigir-se a um homem (comparável a Senhor), como quando
se dirigiam a Jesus ou a outros.
Lucas caracteriza Deus de forma direta, como pessoalmente envolvido no
desenrolar dos fatos. Logo, no versículo 58, grande misericórdia (...) o Se­
nhor (...) havia dem onstrado a Isabel indica que isso é mais do que sorte ou
providência comum. Ambas as mulheres são receptoras da atenção especial de
Deus, como nas histórias do AT em que Deus intervém na vida das mulheres
estéreis.
Os meninos recém-nascidos tradicionalmente recebiam o nome no dia da cir­
cuncisão, e o ritual da nomeação era crucial para perpetuar e verificar a genea­
logia da família. Isso era especificamente importante nas famílias sacerdotais,
como na de Zacarias. Logo, os vizinhos ficam surpresos e protestam quando
Isabel escolhe o nome de João (v. 60,65; veja 1.13), que não fazia parte de sua
árvore genealógica. Isabel espontaneamente escolhe o nome que o anjo deu a

89
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Zacarias, parte do milagre do nascimento (Brown, 1979, p. 369,375).


As pessoas não estão preparadas para acatar a palavra de uma mulher em uma
questão tão importante. Então, elas fazem sinais ao pai (v. 62, en en eu o n , “mexer
a cabeça ou fazer sinais”). No versículo 22, Zacarias “fazia sinais” {dianeuõn).
Somos informados de que Zacarias ficou m u d o (kõphos\ v. 22). Contudo, já que
os parentes e familiares gesticulam para ele, ele deve ter ficado surdo também
(veja 1.20; veja 7.22: “Os surdos ouvem”). Zacarias confirma a escolha de Isabel
escrevendo em uma tabuinha: O nome dele é João (v. 63).
Gabriel havia profetizado que o silêncio de Zacarias seria quebrado quando
esses fatos se cumprissem “no tempo oportuno” (1.20). E, então, sua boca se
abriu, sua língua se soltou e ele começou a falar, louvando a Deus (v. 64).
Zacarias é curado de sua mudez e surdez quando o calendário divino se mani­
festa em Lucas. Mais tarde, Lucas registrará que Jesus apela para a cura do surdo
como uma prova para João de que a hora do Messias havia chegado (7.22).
Com a primeira profecia de Gabriel se cumprindo, o narrador sintetiza os fatos
nos versículos 65 e 66. Os vizinhos experimentaram temor {phobos, em vez de
admiração) e ficaram falando e comentando sobre todas essas coisas (v. 65).
A comunidade é dominada pelo desenrolar do drama do nascimento de João e
de suas implicações para a vida dela.

7. A profecia de Zacarias (1.67-80)

NO TEXTO
I 6 7 Assim como o cântico de Maria, o cântico de Zacarias tem uma intro­
dução (v. 68), uma estrutura (v. 69-79) e uma conclusão (v. 80). Ele tem outra
estrutura dupla: os versículos 68-75 referem-se ao Messias vindouro; os versí­
culos 76-79 referem-se a João Batista.
Agora, Zacarias também foi cheio do Espírito Santo e profetizou (v. 67), as­
sim como Isabel e o bebê João haviam sido cheios do Espírito na visita de Maria
(v. 15, 41). Os verbos para encher estão na voz passiva (plêsthésetai/eplêsthê),
indicando que Isabel, Zacarias e João são os receptáculos, e não os iniciadores
da ação divina. Na narrativa sobre Maria, o Espírito Santo a “cobrirá” (v. 35).
De uma forma quase contagiosa, a presença do Espírito Santo está espalhando­
-se na narrativa, engolfando todos aqueles envolvidos no drama.
Essa visitação do Espírito na vida pessoal é o aspecto definidor da nova comu­
nidade. Quando as pessoas entram na comunidade, elas compartilham uma
90
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

experiência comum no Espírito. A obra do Espírito é tanto pessoal como cole­


tiva. Isso antecipa um tema de Lucas, especialmente evidente em Atos. Neste, a
plenitude do Espírito sempre trata da entrada na comunidade cristã (At 2.1-4;
8.14-25; 9.17-19; 19.1-6).
Esse Espírito contagioso é reminiscente da profecia israelita primária, na qual
a inundadora presença divina tinha em si uma fisicalidade, afetando os que
estavam na proximidade do fato (veja 1 Sm 10.9-13). Assim como um profe­
ta dominado por uma compulsão divina (Jr 4.19), Zacarias experimenta uma
santidade extática, difusora, que arrasta tudo em seu caminho.
Lucas define o discurso de Zacarias como uma profecia (Lc 1.67), em vez de
uma oração ou hino de ação de graças. Como um sa cerdote que profetiza, ele
é uma raridade na tradição israelita (Wilson, 1980, p. 26,27). Aqui, Zacarias
traz ao drama a influência de sua posição como sacerdote, com a autoridade do
templo e o poder profético do Espírito. O Espírito opera pela instituição do
templo, além de inundar diretamente a vida dos nossos personagens.
I 6 8 - 7 0 Lucas usa o tempo aoristo para seus verbos no versículo 68, nova­
mente indicando que a redenção já está realizada no sentido profético (como
nos v. 51-53). Deus visitou e redim iu o seu povo (v. 68b). O grego epeskepsato,
“já veio” ou “visitou”, ocorre no início e no fim do cântico (v. 68b, 78b), criando
delimitadores literários em torno do hino.
Lucas cita uma frase da LXX identificando Deus: “Bendito seja o Senhor, Deus
de Israel” (v. 68a ARA; veja SI 41.13; 106.48; 1 Rs 8.15). O anúncio de que Ele
já redim iu o seu povo (Lc 1.68b) é uma incrível declaração de fé e esperança
messiânicas, dadas as terríveis circunstâncias políticas de Israel na época.
Essa é a primeira vez que Lucas usa a palavra lytrõsis> red en çã o ou resg a te, que
ocorre somente aqui e em 2.38 (“redenção de Jerusalém”) e, ademais, no NT,
somente em Hebreus 9.12. A palavra ocorre na LXX referindo-se à vida (SI
49.8), ao povo (SI 111.9; 130.7) e à obra do Senhor (Is 63.4). O uso dela aqui
é uma declaração teológica significativa sobre a importância do nascimento de
João e de Jesus.
Ele promoveu poderosa salvação para nós (Lc 1.69; veja 2 Sm 22.3; SI 18.2).
Na literatura bíblica, o chifre do animal simboliza poder [Lucas 1.69 NIV usa
horn o f salvation, “chifre de salvação”]. O seu tamanho denota seu relativo po­
der (veja Dn 7.8; 8.21). Quando ele é cortado, isso significa uma perda de po­
der (Jr 48.25). O Messias é “um poderoso Salvador” (Lc 1.69 N TLH), isto é,
ele “trará um poderoso resgate”. A linhagem do seu servo Davi (v. 69) reitera
os versículos 27 e 32. Zacarias não tem seu próprio filho João em vista (já que
ele é da linhagem de Abias), mas um novo rei davídico que vem após João (veja
91
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

a genealogia de Jesus em 3.23-37).


H 7 1 Salvando-nos dos nossos inimigos e da mão de todos os que nos
odeiam é uma linguagem bíblica. Isso tinha ressonância com o fato de os judeus
viverem sob a ocupação romana na época de Zacarias (veja 2.38 e SI 106.10).
Além disso, também era bem-vindo pela comunidade de Lucas, que vivia em
um mundo pós-templo de hegemonia romana. A reiteração desse tema em Lu­
cas 1.74 reforça a significância política da profecia como um acontecimento
de médio prazo. Zacarias não está falando de inimigos espirituais em séculos
vindouros, mas de inimigos seculares da época atual.

Os judeus na sociedade romana do primeiro século


Os judeus sofriam perseguições no interior do Im pério Romano do
prim eiro século, por m u itas razões (veja Hadas-Lebel, 1 9 9 3 , p. 2 0 0 -2 0 6 ).
• Na antigu idad e, não se ficava um dia sem trabalh ar. Os judeus e ra m
considerados preguiçosos e desleais ao im pério, porque d escansa­
v a m por um dia e m honra ao Sábado do Senhor.
• Já dissem os que a circuncisão era um a prática por q ue eles sofriam
escárnio (veja 1 .5 9 ).
• Os judeus e ra m ta m b é m considerados ateístas por causa da recusa
de a d o ra r aos deuses rom anos ou ao im perador. Os tum ultos políticos
que se le v a n ta v a m por causa da im posição d e Roma ao reinado vas­
salo de Herodes, o G rande, e su b s e q u e n te m e n te o governo direto da
Judeia depois de 6 d .C , a u m e n ta v a m essas dificuldades.

A g ra n d e revolta de 6 6 -7 0 d.C. foi um a expressão da angústia nacio­


nal, que já fazia p arte da vida jud aica nos dias de Zacarias. Essa angústia
aum e n to u com um a crise na sétim a d écad a do prim eiro século. Logo, a
destruição d e Jerusalém e do tem p lo , sete décadas depois do nascim ento
d e João, m ostra que as p alavras de Z acarias tin h a m um significado real.
Sua esperan ça pela salvação era de n atu reza política e religiosa. Vivendo
na era da pós-destruição, a com un idad e de Lucas continuava a e s p e rar
por um a redenção política, um a esperan ça que so m e n te retrocedia com
o passar do tem po .

H 7 2 - 7 5 Uma referência é feita pela segunda vez no capítulo ao jura­


mento que Deus fez ao nosso pai Abraão (v. 73; veja v. 53). Nas narrativas
do nascimento, a promessa de fertilidade é a ideia principal em foco. O
miraculoso nascimento do filho de Zacarias e Isabel é uma renovada afir-
92
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

mação da antiga promessa de fertilidade para o povo de Israel (Gn 12.1-4;


22.16,17). O nascimento de João afirma o cumprimento da promessa de
procriação. Deus agora mostrará misericórdia a Israel e lembrar sua santa
aliança (v. 72).
O tema do resgate no versículo 72 é reiterado no versículo 74, no con­
texto dessa promessa de fertilidade. Compare com “da mão de todos os
que nos odeiam”, no versículo 71, com resgatar-nos da mão dos nossos
inimigos, no versículo 74. A fertilidade e a segurança nacional são dois
eixos da existência de Israel. Sem elas, a nação não consegue sobreviver;
sem elas, o conceito de p o d ero sa sa lv a çã o é impossível para Zacarias.

■ 7 6 - 7 7 Aq ui, a ênfase desvia-se do Messias vindouro (v. 69-75) de volta


para o precursor João (v. 76,77). E você, menino, será chamado profeta do
Altíssimo, pois irá adiante do Senhor, para lhe preparar o caminho (v. 76).
O texto amplifica as palavras de Gabriel em 1.17: “No espírito e no poder de
Elias (...) para deixar um povo preparado para o Senhor”. Isso também prefigu­
ra os temas proféticos que surgirão no ministério de João, em 3.1-6 e 7.26,27
(Tannehill, 1986,p.33).
Certamente, existem aqui ecos de Malaquias 3.1: “Vejam, eu enviarei o meu
mensageiro, que preparará o caminho diante de mim. E então, de repente, o Se­
nhor que vocês buscam virá para o seu templo” (veja também Ml 4.5; Lc 1.17;
Mt 11.14). Lucas 1.76 também antecipa a citação de João sobre Isaías 40.3-5
no início de seu ministério (Lc 3.4-6): “Preparem o caminho para o Senhor”.
Lucas tem a intenção de que a proclamação de João, sem dúvida, seja entendida
como o cumprimento dessa profecia de Isaías.
O texto no versículo 77 continua com esta frase: Para dar ao seu povo o co­
nhecimento da salvação, mediante o perdão dos seus pecados. O tema do
perdão dos pecados era central no ministério público de João. (Como indicado
em Josefo em Ant. 18.5.2, §§116-119 - João “exortava os judeus a levarem uma
vida justa”. Veja Lc 3.1-21; 7.18-36 para algo mais sobre o ministério de João.)
A linguagem no versículo 77 prefigura a importância que o perdão assumirá
no mundo histórico mais amplo de Lucas à medida que sua narrativa progride.
Para Lucas, o tema do arrependimento e do perdão dos pecadores é o paradig­
ma condutor da salvação (veja a introdução, temas teológicos).
H 7 8 - 7 9 O versículo 78a mostra o meio pelo qual o perdão dos pecados
se tornará disponível: Por causa das ternas misericórdias de nosso Deus
(v. 78). As misericórdias de Deus não são simplesmente a causa do perdão dos
pecados (como na NVI). Ela é a agência pela qual o perdão é encontrado (“pe-
93
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

las entranhas da misericórdia do nosso Deus”, ARC). O perdão é uma jornada


empreendida pelo exercício do arrependimento, como as muitas histórias de
Lucas sobre os pecadores ilustrarão.
Perceba novamente os parênteses criados pelo uso de episkepsetai, visita d o, nos
versículos 68b e 78b. Na narração de Lucas, somos visita d os por uma ofuscante
presença de Deus nesses eventos. A visitação nos vem como um amanhecer:
Pelas quais do alto nos visitará o sol nascente (v. 78b). Nós não causamos
isso, nem o procuramos; simplesmente é a hora de sua chegada — sua hora
marcada. Como em todas as epifanias (v. 11-15a), esse sol nascente tem a ver
com Deus agindo primeiro, entrando no drama humano espontaneamente.
Para Lucas, o advento do Messias significa que a luz de Deus brilhará sobre
aqueles que estão vivendo nas trevas (v. 79). Essa imagem é dependente da
profecia de Isaías sobre a Galileia, em Isaías 9.1,2 (veja Mt 4.5-16). E uma con­
tinuação da metáfora do sol nascente em Lucas 1.78b. No Salmo 107.10 e em
Isaías 42.7, os prisioneiros que Deus resgata estão “nas trevas”. O h odon eirên ês,
“o caminho da paz” (Lc 1.79 ARC), é aquele prometido pelo “Príncipe da Paz”
de Isaías 9.6,7 (Lc 1.32; veja Is 59.8; Rm 3.17).
I 8 0 Em uma característica estilística padrão, Lucas conclui a narrativa do
nascimento de João com uma declaração sintetizadora: E o menino crescia e
se fortalecia em espírito; e viveu no deserto, até aparecer publicamente a
Israel. A mesma fórmula aparecerá ao final da narrativa do nascimento de Jesus
e também ao final da narrativa de Sua juventude (Lc 2.40,52). Essas declara­
ções sintetizadoras devem seu formato a 1 Samuel 2.26: E o m en in o S am u el
contin uava a crescer, sen do cada vez m ais estim ado p elo S en hor e p elo povo. (Veja
o comentário em Lc 2.52 para os paralelos. Note o exemplo menos importante
de Ismael em Gn 21.20,21.)
João viveu uma vida ascética no deserto (veja 3.2,4; 7.24) até entrar em seu
ministério público. Ele evoca comparações com outras figuras importantes do
AT, tais como: Abraão, Moisés e Elias. Cada um deles também peregrinou no
deserto enquanto seguia a Deus (veja Por trás do texto 9.T6). João parece ter
sido um ascético de um tipo diferente, entretanto, já que ele aparentou ser um
residente permanente do deserto (3.2,3; 7.24). As pessoas iam até ele naquele
local; ele não ia às cidades delas.
O Evangelho de João coloca as atividades dele nessa época em algum lugar
ao sudeste de Jerico (veja Jo 1.28 e outros comentários em Lc 3.T6). Existe
uma afinidade entre o modo de vida de João e os adeptos do Qumra, uma
comunidade ascética também localizada ao sudeste de Jerico, no litoral do mar
Morto. Assim como João, esse grupo se separava daquilo que acreditavam ser a
94
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

corrupção de Jerusalém e do sacerdócio de seu templo.


João Batista e a comunidade Qumrã eram ambos representantes de movimen­
tos de protesto dentro do judaísmo na época de Jesus. Eles tinham pensamen­
tos similares ascéticos e contrários ao sistema e usavam uma linguagem sobre­
natural semelhante.
Os movimentos religiosos, porém, não surgem em um vácuo social. Eles sur­
gem no contexto de conflitos sociais e religiosos complexos. A motivação que
impulsionava João para o deserto pode ter tido origens parecidas com aquelas
que levaram os protestantes de Qumrã para os litorais do mar Morto.

Estatura física como sinal de realeza


O corolário da prom essa da fertilid a d e a A braão é q ue seus filhos
cresçam e fiq u em fortes. Em 1 S am uel, o livro bíblico tra ta do e s ta b e le ­
cim en to da m onarquia de Israel, da esta tu ra física e da b eleza, q ue e ra m
m arcas de um líder de nascença. Saul, o prim eiro rei da nação, foi louvado
por sua e statu ra e b eleza: "Não havia outro h o m em m ais belo do que ele;
desde os om bros para cim a, sobressaía a todo o povo" (1 Sm 9 .2 ARC).
S e m e lh a n te m e n te , quando procurava um substituto para Saul
e n tre os filhos de Jessé, Eliabe, o irm ão m ais velho de D avi, foi louva­
do por Sam uel por sua es ta tu ra e beleza. Q uando c h e g a ra m , Sam uel
viu Eliabe e pensou: "Com c e rte za é es te aqui que o S enhor q u e r ungir.
O S enhor, contudo, disse a Sam uel: Não considere sua aparência nem sua
altu ra, pois eu o rejeitei. O S enhor não vê com o o hom em : o hom em vê a
aparência, m as o S enhor v ê o coração" (1 Sm 1 6 .6 ,7 ). Até D avi, em b ora
fosse baixo, "era ruivo, de belos olhos e boa aparência" (1 Sm 1 6 .1 2 ). Davi
com pen sava sua falta de e s ta tu ra física com a b ravura e um coração fiel,
um te m a central das narrativas davídicas.

A PARTIR DO TEXTO
O ministério de João é teologicamente importante para Lucas, porque
João enfatiza que o arrependimento e o perdão dos pecados são exigidos da
comunidade para a vinda do Messias (1.77; 3.8). Nessa teologia, a mera ideia
de um messias inspira contrição, porque o seu advento deve ser a consumação
da busca humana pelo perdão dos pecados. Mais amplamente no NT, essa con­
sumação é a resolução de toda a história da rebelião humana, desde Adão até
95
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Cristo (veja Rm 4.15; 1 Co 15.22,45).


Se o ministério de João parece rígido nessa insistência de penitência nos
próximos capítulos (veja 3.1-21), é porque nada menos do que penitência é
arrogância, na presença do Messias. Do ponto de vista teológico, a mensagem
de João não é tão rígida quanto é francamente realística.
A comunidade, seja a de Zacarias, a de Lucas ou a nossa, não pode apresen­
tar-se diante de um messias com uma atitude insincera sobre o pecado e a re­
belião. Essa falta de sinceridade era uma afronta a todos os profetas anteriores
a João. Lucas, por intermédio de João, renova essa chamada profética a Israel
para um arrependimento pessoal e nacional. No nível nacional, os ouvintes de
João foram chamados a apresentarem-se ao Messias como um povo santo —
uma nação de penitentes preparados para o Seu advento.

C. O nascimento e os primeiros anos de Jesus


(2.1-52)

1. O segundo prólogo (2.1-5)

POR TRÁS DO TEXTO


Existem cinco estágios na estrutura geral do Evangelho:
l.As narrativas da infância de João e de Jesus (1.1—2.40).
2 .0 breve relato da experiência juvenil de Jesus no templo (2.41-52).
3. A vida de Jesus na Galileia (3.1—9.50).
4. A viagem de Jesus para o sul, rumo a Jerusalém (9.51 —19.44).
5. A última semana de Jesus em Jerusalém (19.45—24.53).
Com o capítulo 2, entramos no principal corpo do Evangelho, a seção
que lida com a vida de Jesus, capítulos 2—24. Quanto à unidade da estrutura,
quase todos os eruditos acreditam que Lucas compôs o Evangelho inteiro. Não
há evidência de que Lucas jamais tenha circulado sem os primeiros capítulos.
Entretanto, alguns eruditos observam que o Evangelho poderia começar em 2.1
ou até mesmo em 3.1, sem prejudicar as características principais dessa história
(Fitzmyer, 1981, 1:3,11,392; Brown, 1979, p. 240). Alguns até sugerem que
Lucas compôs os capítulos 3—24 primeiro e acrescentou as narrativas das
96
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

infâncias (Fitzmyer, 1981, 1:310,311; Green [1997, p. 48] chama 1.5—2.52


de “uma unidade autocontida dentro do Terceiro Evangelho”).
Lucas 2.1-5 é, de fato, um “segundo prólogo”. O leitor talvez note que o
capítulo 2 começa com o decreto de um recenseamento e que o versículo 5
diz que a esposa de José estava esperando um filho, embora já estejamos bem
conscientes disso desde o primeiro capítulo. Depois (3.2), Lucas novamente
identifica João como o filho de Zacarias, não pressupondo a familiarização do
leitor com o capítulo 1. O material da cena da nomeação também é repetido
(veja 1.31; 2.21; também 1.27,32; 2.11). Ainda, o primeiro capítulo fornece
uma base crucial para o mundo histórico. Nenhuma leitura literária de Lucas
pode ou deve desprender-se dos capítulos iniciais do restante do livro.
. A representação da passagem do tempo nessa estrutura quíntupla é com­
plexa. O material das narrativas das infâncias cobre um período de aproxima­
damente 15 meses. A história, então, salta 12 anos para a visita do menino
Jesus ao templo, cobrindo menos de uma semana. A parte central retoma cerca
de 15 anos depois da cena do menino e é um período de tempo indeterminado
em sua vida adulta. A semana final de sua vida em Jerusalém ocupa mais de
20% do texto.
Lucas, alternadamente, salta no tempo, desacelera o tempo ou acelera o
tempo, de acordo com seus propósitos literários. Isso pode ser visto, por exem­
plo, quando comparamos a narrativa da infância de Jesus com o relato de M a­
teus. Os homens sábios de Mateus visitam uma “casa” (oikos\ Mt 2.11), e não a
“manjedoura” (ph an te) visitada pelos pastores de Lucas (2.16). Mateus enfatiza
a paranoia de longo prazo de Herodes, que resulta na matança dos meninos de
“dois anos para baixo” em Belém (Mt 2.16), indicando, assim, uma existência
mais estabelecida de Maria e José em Belém, dando à narrativa de Mateus uma
qualidade mais ampla, mais reflexiva.
A narrativa de Lucas, por outro lado, eleva o teor dramático do evento
com um quadro de referência de apenas algumas horas em uma única noite.
Também condizente com um parto urgente em um local improvisado, os pas­
tores “foram apressadamente” (2.16 ARA) para ver o recém-nascido na mes­
ma noite de Seu nascimento. Essa sequência de acontecimentos faz parte do
tom retórico de Lucas — o nascimento é urgente e miraculoso, um tom que se
transfere para a sua mensagem.
Reciprocamente, na seção central, exceto pela exata indicação do ponto
inicial em 3.1,2, quase não há marcadores cronológicos além do tipo “então” e
“depois disso” (apesar da cuidadosa atenção dada à cronologia em 1.1—3.2). O

97
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

drama galileu é de um ano, dois, três? Isso parece não ter importância dentro
da narrativa, porque Lucas não está focado em “o que aconteceu quando”, mas
em “quem Jesus é”.
Então, na narração de Sua última semana, o tempo novamente desacelera
e quase para. Os momentos têm importância, e os detalhes pessoais íntimos
de extrema ansiedade, sonolência, medo e ira trazem cor e emoção à narrativa.
Retoricamente, Lucas atrai profundamente o leitor para o drama da paixão ao
desacelerar o tempo.
A maioria das características do nascimento de Jesus descritas no capítulo
2 é peculiar a Lucas:
• O recenseamento e o motivo da viagem (v. 1-7).
• O anúncio aos pastores (v. 8-20).
• A circuncisão e a oferta de purificação no templo (v. 21-24).
• A apresentação a Simeão (v. 25-35).
• O reconhecimento da profetisa Ana da “redenção de Jerusalém” (v. 36­
38).
• A volta à Galileia e os anos intermediários de Seu crescimento (v. 39,40).
• A viagem de retorno a Jerusalém como um menino que encanta os profes­
sores locais (v. 41-51).
Quando comparado a Mateus, que introduz a única outra narrativa de
nascimento de Jesus na Bíblia, a diferença de tom e substância é marcante. A
descrição de Mateus não tem recenseamento/motivo da viagem, não tem um
José e uma Maria desabrigados procurando um refugio urgente em uma man­
jedoura para o parto. Em Mateus, Belém parece ser o local de residência de
José e Maria, enquanto que, em Lucas, ela é a cidade natal que eles visitam por
ocasião do recenseamento. Mateus tem a estrela, e não os pastores, mas Lucas
não tem os magos. A lente política de Lucas é global, enfatizando o nascimento
em “todo o mundo romano”, enquanto Mateus é distintamente local, focado
em Herodes, o rei vassalo da Palestina.
Embora bem diferentes, essas duas narrativas do nascimento têm sido con­
fundidas na imaginação popular. Os magos e os pastores ajoelham-se juntos
ao presépio moderno. Isso aponta para um contexto folclórico mais amplo, no
qual essas histórias residem no cristianismo moderno.

98
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

NO TEXTO
I 1 - 3 A historicidade do recenseamento (v. 1, apographesthai, lit., r e g is ­
tra r ou a lista r) tem sido questionada pelos intérpretes modernos. Embora a
realização de um recenseamento de larga escala não fosse desconhecida na­
quele período, nenhum abrangeu “o mundo inteiro”, como a frase de Lucas
pa san tên oik oum enên insinua quando ele a utilize em outros lugares (4.5;
21.26; At 11.24; 17.31; 24.5). A NVI traduz a frase como todo o império
romano (possível em At 24.5).
A importância do recenseamento é o modo pelo qual ele se situa no nasci­
mento de Jesus no palco do mundo. Um recenseamento mundial estabelece
um amplo contexto geopolítico para a natividade e garante que o nascimento
do Messias seja de importância global. Ao invocar o desejo de César Augusto
(v. 1) no recenseamento e a facilitação do governador da Síria, Quirino (v. 2),
Lucas mostra a significância do nascimento em relação às estruturas do poder
político do dia — uma questão significativa, sem dúvida, para os leitores.
Entretanto, no mundo histórico, Lucas mostra que esses governantes são ape­
nas pequenos personagens no drama do Messias, meramente cumprindo o
papel designado a eles por Deus. Desde os assuntos internacionais de César,
dos assuntos regionais de Quirino até uma insignificante aldeia judaica, é o
Deus onipotente que reina na narrativa de Lucas, e não César. Logo, essa nar­
rativa transporta a ênfase do primeiro capítulo de que a história de Jesus está
na encruzilhada da história.
O recenseamento é também politicamente significante, já que o alistamento
estabelece uma responsabilidade fiscal. Um recenseamento, de forma inva­
riável, trazia um aumento de impostos para os residentes, o que significava
uma menor safra para a subsistência — uma questão de vida ou morte para
os camponeses plebeus que viviam em uma estreitíssima margem de sobre­
vivência (Crossan, 1991, p. 126). Não é de surpreender, por exemplo, que o
recenseamento de Quirino no ano 6 d.C. causara uma revolta entre o povo
da Galileia e o da Judeia.
Essa revolta foi liderada por Judas da Galileia (At 5.37), que, na história con­
tada por Josefo, fundou o movimento dos zelotes, finalmente responsáveis
pela Grande Revolta de 65—70 d.C. Logo, a realização do recenseamento
foi uma causa na cadeia de acontecimentos que, eventualmente, culminaram
na destruição do templo. Em vista dessas realidades políticas, o posiciona­
mento que Lucas deu ao nascimento de Jesus no contexto do recenseamento
é significativo. A mensagem de um Salvador na época do recenseamento car­
rega consigo conotações de libertação das mãos de um opressor e enfatiza, de
modo sutil, as implicações políticas do advento do Messias para os primeiros
leitores de Lucas.
99
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A cronologia do nascimento de Jesus


e o recenseamento de Lucas 2.1-7
Os Evangelhos concordam que Jesus nasceu d u ran te o reinado de
Herodes, o G rande, que m orreu em 4 a.C. (M t 2.1; Lc 2 .1 -7 ). As passagens
sobre a cronologia do n ascim ento de Jesus são Lucas 1.5; 2 .1 -3 ; 3 .1 ,2 ,2 3 ;
9 .7 -9 (veja M t 2 .1 ,1 6 ; 1 4 .1 -1 2 ; Mc 6 .1 4 -1 6 ).
Lucas 3.1 diz que o m inistério d e João Batista com eçou no ano 15
do im p e ra d o r Tibério, que foi em 2 7 — 28 d.C. Já q ue Lucas nos conta em
3 .2 3 q ue Jesus tinha "cerca de trin ta anos" q uando com eçou Seu m in isté­
rio público, podem os inferir um a d ata de n ascim en to no final da vida de
Herodes (veja M t 2 .1 6 ). As o utras figuras políticas m en cion adas por Lucas
em 3 .1 ,2 enc a ix a m -s e em 2 7 — 2 8 d.C ., com o d ata provável em q ue Jesus
ingressou na vida pública.
De acordo com fontes não bíblicas, um rec e n se a m e n to provincial foi
ordenado por Q uirino q uando a Judeia foi a n exad a à província rom ana em
6 d.C. Josefo discute esse rec e n se a m e n to em A n t 1 8 .1 -1 0 , § 2 3 -2 6 , usan­
do a m esm a p alavra grega usada aqui por Lucas, apographõ, "registrar,
alistar". Ele coloca a d ata do recen seam en to , e n tre ta n to , no trig ésim o sé­
tim o ano da vitória de Áccio por César, ou 6 /7 d.C., quase d ez anos depois
do nascim ento de Jesus.
A opinião m ajo ritária te m sido contra a precisão de Lucas na des­
crição do rec e n se a m e n to m undial, na época do n ascim en to de Jesus (a
p artir de 1 8 3 5 , com os a rg um entos de D. F. Strauss). Ainda assim , outros
d efe n d e m sua a p resen tação com o h istoricam ente plausível (veja Nolland,
1 9 8 9 , p. 9 9 -1 0 2 ; veja a "en o rm e lite ra tu ra da controvérsia" sobre esse
assunto em Schm itz, 1 9 9 2 , p. 8 8 3 -8 8 5 ; Brown, 1 9 7 9 , p. 5 4 8 -5 5 5 ; Safrai
e Stern, 1 9 7 4 , 1 :3 7 2 -3 7 4 ; e outros). Pelo m enos, a referência de Lucas
ao edito im perial da realização do re cen seam en to com o um a fe rra m e n ta
de governo m ostra a sua conscientização das im plicações políticas de tal
edito no nascim ento de Jesus (Brown, 1 9 7 9 , p. 5 4 9 ).

H 4-5 Não há evidência fora de Lucas de que os procedimentos do recensea­


mento romano exigijam a repatriação do indivíduo para o local de nascimento.
Não obstante, Lucas afirma que José e M aria fizeram exatamente dessa forma,
a fim de alistarem -se (v. 5). As perguntas dos leitores surgem sobre José e sua
relação com Belém. Ele volta para lá para registrar-se, conforme o texto nos diz,
porque a sua origem ancestral pertencia à casa e à linhagem de Davi (v. 4; 1
Sm 16). Contudo, será que seus pais ainda estavam vivos? Será que ele tinha
100
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

outros parentes na região? Será que ele nasceu em Belém ou morou lá alguma
vez? Se a resposta para qualquer uma dessas perguntas for sim, podemos ape­
nas imaginar por que José e Maria encontravam-se tão sozinhos na hora em que
mais precisavam de ajuda.
A significância da localização de Belém na narrativa tem a ver com a identida­
de de Jesus como o Filho de Davi. Essa é a essência da identidade de Jesus em
Lucas (1.27,32,33,69; 2.11; veja Mt 1.1). O nascimento em Belém reforça esse
proeminente tema de 1 Samuel 16.1, no qual a cidade é chamada de casa de
Davi. A “cidade de Davi” {polin dauid) geralmente se refere a Jerusalém (ex.: 2
Sm 5.7; 2 Rs 9.28). Contudo, aqui é Belém, cidade de Davi, ou a “cidade de
Davi, chamada Belém” (ARA).
O nascimento de Jesus em Belém demonstra a conscientização de Lucas so­
bre uma passagem entendida pelos cristãos primitivos como uma profecia da
localização do nascimento do Messias. “Mas tu, Belém-Efrata, embora sejas
pequena entre os clãs de Judá, de ti virá para mim aquele que será o governante
sobre Israel. Suas origens estão no passado distante, em tempos antigos” (Mq
5.2, citado em Mt 2.5; veja Jo 7.42). Essa evidência textual torna o nascimento
do Messias em Belém uma necessidade teológica para os cristãos primitivos.
Ele não poderia ter acontecido em nenhum outro lugar.

2. Nascimento e circuncisão de Jesus (2.6-21)

POR TRÁS DO TEXTO


O anúncio do Reino do Messias vem dos membros mais humildes da so­
ciedade, os pastores (v. 8), mediados por exaltados seres celestiais. Um único
anjo (v. 9-12) é acompanhado de uma grande multidão do exército celestial
(v. 13). Os contrastes elevam a tensão dramática da narrativa de Lucas. Existe
uma justaposição do local banal do campo dos pastores perto de Belém, que
significa “casa do pão” (v. 15), com o exército celestial do local transcendente
dos “céus” (v. 13,15). A sagrada geografia do céu invade o campo dos pastores.
O advento do Messias transforma o comum.
Outro contraste é visto na atividade corriqueira dos pastores. Sua sono­
lenta vigília noturna é iluminada pela brilhante luz da “glória do Senhor” (v.
9), e exércitos celestiais cantam louvores a Deus. A plena conscientização da
iluminação espiritual é contrastada com a inconsciência do sono.
Essa justaposição do extraordinário e do comum vai alinhavando toda a
101
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

história: um sacerdote comum e sua esposa, uma humilde donzela, e agora pas­
tores comuns — todos são visitados por extraordinários seres angelicais. A re­
petição do tema da inclusão de “todas as pessoas” (1.48; 2.10,31; 3.6) enfatiza
ainda mais o amplo alcance desse advento para as pessoas comuns.

NO TEXTO
I 6-7 José, em uma urgente necessidade de encontrar um lugar para sua mu­
lher dar à luz, não encontra acolhimento em Belém. A hospitalidade era uma
característica vital da cultura judaica nesse momento, contudo, nem mesmo
a hospedaria (v. 7, em tõ katalym ati) podia acomodar o desesperado casal. Já
que Lucas usa o termo técnicop a n d och eion para uma hospedaria comercial em
10.34, parece provável que aqui ele se refere a uma casa particular.
O bebê recém-nascido é colocado em uma manjedoura da propriedade (v. 7,
p h a tn ê, um estábulo ou um cocho para a alimentação de animais; veja 13.15).
Lucas é enfático nesse ponto, mencionando a manjedoura três vezes (v. 7,12,16).
Alguns sugerem que o emprego de katalym ati aqui se refira a um canto de um
cômodo central lotado de uma casa da Palestina, isto é, não havia lugar para o
bebê no cômodo principal, então, ele foi colocado de lado, em um espaço reser­
vado para os animais (Nolland, 1989, p. 106; veja Carlson, 2010, p. 326-342).
Era comum que os animais fossem guardados dentro das casas naquela cultura.
Ironicamente, aquele que subirá ao trono de Davi ingressa no mundo como um
desabrigado. Da mesma forma, Lucas menciona duas vezes o detalhe íntimo
de que Maria o envolveu em panos (v. 7,12; ARA: “enfaixou-o”). Ela impro­
visou uma solução para a noite fria. Esses detalhes dão a Lucas uma narrati­
va de infância imediatista e pungente, um “paradoxo de divina complacência”
(Nolland, 1989, p. 106).
De qualquer forma, nem os familiares nem os amigos estão presentes para
prestar socorro ao casal, embora isso possa ser esperado da cidade natal de José
(Carlson, 2010, p. 327). O clima da narrativa dessa passagem comunica o iso­
lamento, o medo e a solidão das circunstâncias nessa história. Esses detalhes
íntimos servem para diminuir o ritmo da ação da narrativa e dramatizar a cena.
Esse nascimento sem teto é profético da falta de um lar permanente para Jesus
no decorrer do Evangelho. O Jesus de Lucas está constantemente em movimen­
to, mesmo antes de Seu nascimento. Ainda antes de nascer, Ele viaja de Nazaré
para a casa de Isabel, em Ain Karem, e depois de volta a Nazaré. Maria carrega
o bebê em seu ventre de Nazaré a Belém. Após o nascimento, Mateus registra a
fuga da família toda da Judeia para o Egito, antes de retornar para Nazaré, anos
102
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

mais tarde (Mt 2.14,22,23) — um detalhe totalmente omisso em Lucas.


0 tema da falta de um lar continua em Lucas quando Jesus viaja durante o Seu
ministério (ex.: 4.14,30,31,42,44; 5.11,12; veja o comentário em 9.1-7,57,58).
As circunstâncias desesperadas de Seu nascimento pressagiam a itinerância de
toda a Sua vida e a Sua falta de lar.
1 8 - 1 2 Esses versículos relatam a terceira epifania das narrativas do nasci­
mento (1.11-20,26-38). Novamente, o padrão normal dos assuntos humanos é
interrompido por uma intervenção divina. Dessa vez, é um anônimo anjo do
Senhor (v. 9) que aparece aos pastores. Assim como Zacarias e Maria, o medo
é a reação dos pastores à aparição. Novamente, o anjo traz a mensagem de con­
forto: Não tenham medo (v. 10; 1.13,30).
O anjo proclama: Hoje, na cidade de Davi, lhes nasceu o Salvador, que é
Cristo, o Senhor (2.11; veja 1.30-33). O tema davídico (1.27,32,69) é nova­
mente promovido quando o anjo proclama a afirmação central do Evangelho
— Jesus é o Salvador, o Cristo e o Messias (1.32,35,47,69; 2.11). Da perspecti­
va da reação do leitor, os leitores agora devem carregar a responsabilidade que
vem com o conhecimento. A indiferença torna-se cada vez mais inatingível
quando o narrador desafia o leitor a aceitar ou a rejeitar a reivindicação. Está,
na natureza do Evangelho, o ato de convidar o leitor a sair da neutralidade e a
tomar uma decisão; nesse sentido, Lucas é realmente um evangelista.
Repetindo a localização e as circunstâncias da criança (v. 7), o anjo indica que o
Salvador será encontrado envolto em panos e deitado numa m anjedoura (v.
12). Isso significa um sinal (v. 12) para os pastores de que as coisas são como o
anjo predisse. Entretanto, é também um sinal de que, contrário às expectativas
populares, eles encontrariam o bebê em circunstâncias humildes. Esse Cristo é
encontrado na manjedoura, não em um palácio, um sinal de Sua humildade e
identificação com o que é comum (veja Craddock, 1990, p. 52).
■ 1 3 - 1 4 0 anúncio do nascimento de Jesus é confirmado pelo aparecimento
repentino de uma grande m ultidão do exército celestial. Eles estavam lou­
vando a Deus e cantando: G lória a D eu s na s m a io res a ltu ra s, e p a z n a terra
a to d o s so b r e os q u a is a Sua v o n ta d e p e r m a n e ce (v. 14). Essa linguagem de
atribuir glória a Deus não é do AT, mas do judaísmo do segundo templo (veja
Bar. 2.18; 4 Mac. 1.12; e S. Sal. 18.10 (Fitzmyer, 1981, 1:410).
Uma variante textual na segunda parte do versículo possui significativas im­
plicações teológicas. Paz na terra àqueles “aos quais ele concede o seu favor”
é a tradução de en an th ròp ois eudokias. O predicado genitivo eudokias, “favor,
bom prazer”, é difícil de ser interpretado (veja BDF, §165; Metzger, 1975, p.
133; veja Fitzmyer, 1997,1.102,103 sobre a base hebraica dessa frase). Alguns
103
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

manuscritos antigos têm, em vez disso, a forma nominativa, eudokia,, seguida


da familiar expressão: “Boa vontade para com os homens” Todavia, quase to­
das as versões modernas adotam o texto original em sua forma anterior. Isso
significa que o anjo anuncia o favor de Deus sobre o povo por meio do nasci­
mento do Messias. Ele não anuncia a criação da boa vontade en tre o povo —
uma tremenda diferença de significado (Fitzmyer, 1981, 1:411).
A inscrição Priene (veja o comentário Por trás do texto, em 1.26-38) sugere a
influência do culto imperial como base para essa linguagem. Diziam que César
Augusto viria como um “salvador” (sõtêr) que traria um fim à guerra e “boas­
-novas” (eu a n gelion ), semelhante a essa passagem em Lucas.
Um anjo já havia declarado Maria como altamente “agraciada” (1.28). Agora, o
favor de Deus também repousa sobre aqueles a quem o anjo aparece (v. 14). As
bênçãos messiânicas estão começando a espalhar-se; esse é o primeiro anúncio
fora da família. Primeiro, as bênçãos apareceram na vida privada de Zacarias,
Isabel, José e Maria. Agora, as novidades da chegada do Messias estão rompen­
do em direção ao domínio público.
H 1 5 - 2 1 Os pastores correram para lá e encontraram Maria e José, e o
bebê deitado na manjedoura (v. 16). Essa é a terceira menção da localização
do nascimento de Jesus na manjedoura (v. 7,12,16). O estábulo significa que
Ele não poderia ter nascido em um estado social pior. O contraste das circuns­
tâncias e da identidade de Jesus é mais uma das dramáticas justaposições de
Lucas.
A palavra do anjo e do exército celestial no campo dos pastores é a primeira
proclamação pública da vinda do Messias na narrativa (v. 10). O segundo pro­
nunciamento público é feito pelos pastores na manjedoura: E todos os que
ouviram (...) ficaram admirados (v. 18; veja também v. 33). “Todas as pesso­
as” (geralmente pantes, às vezes, b oi ochloi) estavam “admiradas” (geralmente
thaum azõ ou existêm i; veja 2.47; 4.22,32,36; 5.23) com Jesus e com os aconte­
cimentos de Sua vida.
Aqui, no versículo 18, todos estão “admirados” com as palavras dos pastores.
Depois, ficam “admirados” com Seu entendimento quando ainda era menino
(2.47), com Suas bondosas palavras e Seu ensinamento (4.22,32) e com as li­
bertações que faz (5.26, ekstasis\ 8.56; 9.43; 11.14). Finalmente, os discípulos
ficam admirados com o relato de Sua ressurreição (24.22). A confirmação pú­
blica demonstra que todas as pessoas comuns compreendem e apreciam quem
Jesus é, algo que os Seus oponentes, como logo se verá, não conseguem fazer.
A caracterização quase inteiramente positiva de Lucas quanto ao “povo” e às
“multidões” tem um importante papel teológico nessa mensagem. São eles que
104
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

logo entendem e reagem à Sua mensagem altamente em contraste com as au­


toridades religiosas. Mesmo quando as massas estão no erro, como em 3.7-10,
depois de corrigidas, elas imediatamente se arrependem (3.10; as exceções são
as cenas em Nazaré [4.23-30] e no jardim [22.47]; veja o comentário da carac­
terização de Lucas quanto às multidões em 5.12-16 e 7.11-17).
Ao estabelecer as percepções contrastantes das multidões e das autoridades re­
ligiosas, Lucas cria “paradigmas de percepção”. Estes buscam influenciar a rea­
ção de seus leitores quanto à narrativa (Darr, 1992, p. 50-59). Os leitores não
são deixados na dúvida sobre onde sua simpatia deve repousar.
Ao ouvir as palavras dos pastores, Maria guardava todas essas coisas e sobre
elas refletia em seu coração (v. 19). Entre os autores sinóticos, somente Lucas
apresenta um retrato pessoal de Maria, referindo-se a ela 14 vezes (seis vezes em
Mateus). Ele inclui uma informação íntima sobre o estado mental dela em sua
narrativa. Maria fica alternada e tremendamente perturbada (1.29), amedron­
tada (v. 30), perplexa (v. 48), firme (v. 38), extática (v. 46-55), humilde (v. 48),
grata (v. 48) e maravilhada (2.33). Afetuosamente, ela vai depressa ver Isabel
(1.39). Essas passagens são um vislumbre peculiar à intimidade da vida da mãe
de Jesus e são úteis para o desenvolvimento da teologia sobre Maria como um
exemplo de fé e santidade. Claramente, em quaisquer dessas iniciativas, deve-se
olhar para Lucas como a fonte primordial (veja Perry, 2006; Gaventa, 1999).

3. Os profetas do templo e a consolação de Israel (2.22-40)

POR TRÁS DO TEXTO

Até este ponto, as narrativas dos nascimentos têm sido cheia de admiração
e júbilo. Os anjos prepararam os participantes para a chegada do Messias e
anunciaram gloriosamente o Seu nascimento. Uma sombra sinistra agora co­
meça a escurecer a narrativa. Embora Simeão e Ana profetizem publicamente
sobre a unção do menino como “o Cristo do Senhor” que efetua “a redenção
de Jerusalém” (v. 26,38), os leitores aprenderão que uma tragédia ocorrerá nas
próximas páginas (v. 33-35).
As palavras-chaves nos versículos 34 e 35 determinam o clima do conflito:
destino, queda e elevação, oposição, a perfuração da alma. Quanto mais longe
a mensagem viaja no domínio público na narrativa, maior é a complexidade de
sua recepção. Inicialmente, todos se alegram com as novas do Messias. Entre­
tanto, em cada novo cenário público (templo, o diabo no deserto, Nazaré, Ca-
105
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

farnaum etc.), torna-se claro que o advento do Messias criará problemas com a
presente ordem.

NO TEXTO
1 2 2 - 2 4 Maria e José apresentam-se para a purificação no templo em Jerusa­
lém, depois do nascimento da criança (v. 22). A mulher era considerada ritual­
mente impura por sete dias após o parto, até que o menino fosse circuncidado
no oitavo dia (v. 21; Lv 12.1-8). Essa oferta tirava a impureza ritual contraída
pela mulher no processo do nascimento, para que ela pudesse novamente en­
trar no templo. Embora Lucas se refira à purificação deles (v. 22), essa oferta
tecnicamente se aplicava somente às mulheres (Marshall, 1978, p. 116). Já que
eram pobres, José e Maria oferecem a mais barata oferta de purificação: Duas
rolinhas ou dois pombinhos (v. 24; Lv 12.6-8; veja Beale e Carson 2007, p.
269-271).
A consagração do primogênito, por outro lado, era uma oferta separada (v.
23). Deus havia ordenado, no êxodo, que todo primogênito macho em Israel
deveria ser consagrado a Ele (Ex 13.11-15). No caso dos animais, isso signifi­
cava matá-los. Contudo, os primogênitos do homem eram “resgatados” por
um sacrifício substituto. José e Maria buscavam tanto a purificação de Maria
quanto a consagração de Jesus.
Essa história se assemelha à consagração de Samuel por Ana (1 Sm 1.21-28).
Samuel, o profeta que estabeleceria a linhagem davídica ao ungir o rei Davi, foi
dedicado ao Senhor desde o nascimento. Ana levou Samuel ao templo assim
que ele foi desmamado e deixou que seu filho fosse criado pelos sacerdotes.
Jesus, é claro, não foi deixado no templo por Seus pais, tampouco era nazireu
como Samuel e João (veja o comentário em 1.15b-17). Ainda assim, todos es­
ses três personagens desempenham um papel importante no drama bíblico do
advento do Messias davídico.
1 2 5 - 2 6 Os anjos fizeram a primeira proclamação pública do nascimento aos
pastores de Belém (2.8-14). Esses pastores divulgaram a palavra a todos os qu e
ouviram (v. 17,18). Duas outras confirmações da identidade de Jesus se suce­
dem: uma particular e outra pública. Ambas ocorreram no recinto do templo.
A primeira proclamação vem de Simeão. Lucas indica que o Espírito Santo
estava sobre ele (v. 25). O Espírito Santo, que encheu Zacarias, Maria e Isabel
(1.35,41,67; veja o comentário em 1.39-45), está agora sobre Simeão (N TLH:
“estava com ele”). O Espírito está so b r e ou co m Simeão, semelhante ao modo
pelo qual Ele veio sobre e a cobriu (1.35). Isso reflete a percepção de Lucas
106
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

quanto ao local sagrado e ecoa a fisicalidade da presença do Espírito nos profe­


tas da Bíblia hebraica (ex.: 1 Sm 11.6; 16.3,14,23; 2 Rs 2.15; veja o comentário
em 1.67).
Deus tinha prometido a Simeão que ele veria o Cristo do Senhor (v. 26, ton
christon k yriou), uma expressão exclusiva encontrada apenas aqui no NT. A ex­
pressão de Simeão, consolação de Israel (v. 25), também não é encontrada em
nenhum outro lugar na Escritura. Ela, porém, expressa ricamente a expectativa
de Israel de que o sofrimento terminaria por causa do advento daquela criança.
O testemunho de Simeão mostra como as boas novas emergem da privacidade
de uma manjedoura para uma praça pública do templo de Jerusalém. Mais uma
vez, Lucas justapõe os locais com um efeito dramático. O bebê trazido de um
estábulo de Belém ao santuário do judaísmo é reconhecido como o Messias,
em ambos os ambientes. Isso estabelece plenamente a identidade de Jesus na
narrativa.
H 2 7 - 3 3 Quando toma o bebê em seus braços, Simeão declara um salmo de
louvor, tradicionalmente chamado de N unc D im itis. O hino ecoa as passagens
de Isaías, que enfatizam a “luz para as nações”. Essa é uma expressão-chave na
oferta universal de salvação em Isaías (Is 9.1-3; 42.6; 49.6; 51.4; 60.3). Essa
salvação, diz Simeão, é aquela que Deus preparou à vista de todos os povos:
luz para revelação aos gentios e para a glória de Israel, teu povo (v. 31,32; veja
Is 52.10).
Essa é a primeira referência direta em Lucas sobre a salvação para os gentios,
um tema que se estende ao longo do Evangelho e culmina no livro de Atos
(uma possível alusão em 1.79; veja a introdução, temas teológicos em Lucas;
também At 13.47,48; 26.23).
Dentro do louvor de Simeão, Lucas lança o principal projeto teológico de seu
Evangelho — redefinir as fronteiras da salvação (v. 30) da comunidade da
aliança histórica de Israel e para a comunidade dos gentios que se arrependem.
Lucas diz que essa nova comunidade é formada por todos os povos (v. 31). Nos
capítulos que se seguem, a reação dos pecadores a Jesus, incluindo os gentios,
será confrontada com a reação dos que estão dentro das fronteiras tradicionais
de IsraeL Os que reconhecem Sua identidade messiânica respondem a Deus
com arrependimento e recebem perdão. Os que fracassam em arrepender-se,
geralmente os fariseus de Lucas, os mestres da lei e os profetas, “tropeçam” na
rocha da identidade messiânica de Jesus (Is 8.14; veja o comentário em Lc 7.18­
23; 17.1-4 e 19.40).
As novas fronteiras da salvação em Lucas incluem os gentios. Elas não excluem,
porém, a nação de Israel. Essa salvação é também para os judeus: Para a glória
107
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

de Israel, teu povo (v. 32). A nova teologia do “universalismo” de Lucas abar­
ca, simultaneamente, tanto Israel quanto os gentios. A oferta da salvação é para
todos os que se arrependerem, sem importar a identidade nacional ou étnica.
Isso é semelhante em natureza à oferta da salvação a todos no universalismo
de Paulo. A teologia dele funciona com a declaração de Jesus como o Senhor,
como seu princípio fundamental. Lucas difere um pouco da fórmula de Paulo
ao colocar a ênfase principal na importância operacional do arrependimento.
Ainda assim, a ideia da oferta da salvação a todos é o fio de ligação entre o mun­
do do pensamento de Paulo e o de Lucas.
I 3 4 - 3 5 O surgimento de Jesus, segundo Simeão, é também o prenúncio do
julgamento. A mensagem de Simeão é uma palavra particular a Maria, a qual o
leitor tem o privilégio de ouvir também. Isso revela tanto a vida interior da mãe
quanto o futuro turbulento do filho. A vida de Jesus não será pacífica, e sim
atormentada por conflitos e oposições. Este menino está destinado a causar
a queda e o soerguimento de muitos em Israel (v. 34). Uma sombra apocalíp­
tica é lançada sobre a vida do bebê. Ela aponta para a descrição da vida de Jesus
como alguém que colocará o pai contra o filho (12.51-53).
A vida dele dividirá o coração de homens e mulheres, uns contra os outros, e
exporá profundamente a vida de ambos — o pensamento de muitos corações
será revelado (v. 35). A revelação de pensamentos e feitos é um tema caracte­
rístico do julgamento apocalíptico (veja Rm 2.5; 1 Co 3.13; Ap 15.4).
E uma espada atravessará a sua alm a (v. 35). Dada a divisão que a vida de
Jesus trará às famílias, essa não é uma espada de julgamento, como em Ezequiel
14.17, mas uma espada de angústia (veja Bock, 1994, 1:248-1250 para suges­
tões sobre como interpretar essa passagem).
Maria sentirá a dor pessoal de um filho que repudia sua própria família e é
eventualmente traído por todos (Evans, 1990, p. 220). “Simeão insinua a difi­
culdade que ela terá em aprender que a obediência à Palavra de Deus transcen­
derá até os laços familiares” (Fitzmyer, 1981, 1:430; veja o comentário dos v.
48-52 a seguir; em 8.19-21; 9.59-62; e 12.51-53).
I 3 6 - 3 9 As mulheres continuaram a desempenhar um papel importante na
história. A piedade e o sofrimento de Ana eventualmente a levaram a uma
vida de devoção dentro do templo. Ela era uma profetisa (v. 36), uma posição
obtida por apenas algumas mulheres na Bíblia (Êx 15.20; Jz 4.4; 2 Rs 22.14;
Ne 6.14). Assim como a impotente virgem Maria e a estéril Isabel, essa mulher
idosa era socialmente desprivilegiada. Nesse caso, ela tinha estado viúva depois
de apenas sete anos de casamento (v. 36).
Na Bíblia hebraica, as viúvas simbolizam a desolação e a angústia (ex.: Is 54.4,5;
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

Lm 1.1,2). Elas tinham pouca chance de ter uma vida normal. Entretanto, as
viúvas têm um lugar especial na história de Lucas. Somente ele registra as his­
tórias das viúvas encontradas em 4.26; 7.11-17 e 18.1-8. Talvez, essa simpatia
leve Lucas a escolher a profetiza viúva como uma das primeiras pessoas a pro­
clamar a identidade de Jesus.
Ana, agora próxima da morte, finalmente encontra a alegria: Deu graças a
Deus e falava a respeito do menino a todos (v. 38). A tribo dela, Aser, signifi­
ca “alegria”. Isso parece encaixar-se com o aparecimento do bebê, especialmente
depois da longa e dificultosa vida de Ana como uma viúva. Aser era uma tribo
do norte, que respondeu ao convite de celebrar a Páscoa em Jerusalém depois
da queda de Samaria (2 Cr 30.10-12).
Alguns sugerem que essa referência seja uma precursora da missão de Lucas aos
samaritanos em Atos 8.1-25 (Beale e Carson, 2007, p. 274). Parece também
uma conjectura razoável, já que Lucas usa o termo “luz para revelação aos gen­
tios”, emprestado de Isaías 42.6 e 49.6, no louvor de Simeão e em seu crescente
interesse temático por esse assunto (veja At 13.47; 26.23).
I 4 0 A afirmação sintetizadora de Lucas no final da narrativa do nascimento
de João (1.80) depende de 1 Samuel 2.26. Novamente, quase idêntica a 1 Sa­
muel, Lucas sumariza a narrativa do nascimento de Jesus: O menino crescia e
se fortalecia, enchendo-se de sabedoria; e a graça de Deus estava sobre ele
(v. 40; compare com o v. 52; veja o quadro adiante).
A temática da sabedoria aparece na descrição de Isaías sobre o ramo do tronco
de Jessé, em Isaías 11.1-3, uma passagem com implicações messiânicas davídi-
cas. A figura messiânica terá “o Espírito que dá sabedoria e entendimento, o
Espírito que traz conselho e poder, o Espírito que dá conhecimento e temor do
Senhor” (compare com S. Sal. 17.37; 1 En. 49.2,3).
A estatura física robusta de Jesus teria sido considerada como um sinal da bên­
ção de Deus (veja o comentário em Lc 1.80). Essa descrição de Seu crescimento
e força em 1.40 encaixa-se no perfil esperado para um líder judeu. Devemos
imaginar um Jesus histórico, na idade de 12 anos, como precavido, energéti­
co, ruivo e inquisitivo. Alguns autores têm especulado sobre “os anos ocultos”
de Jesus, na maior parte pelo ângulo da análise psicológica (veja Capps, 2000,
p. 129-163; Miller, 1997, p. 31-54). Uma questão frequentemente se levanta
sobre o pai de Jesus e a probabilidade de Sua morte precoce. Que tipo de efei­
to isso teria tido sobre o jovem Jesus, especialmente como o filho mais velho
de uma família palestina? O nosso conceito sobre Jesus é enriquecido quando
consideramos tais aspectos naturais de Sua experiência humana.

109
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

4. O menino Jesus no templo (2.41-52)

POR TRAS DO TEXTO


Entre os versículos 40 e 41, o narrador nota uma lacuna de um período
de 12 anos. A vida de Jesus desde a infância até a adolescência é um mistério.
Entre os evangelhos canônicos, somente Lucas preserva essa breve história da
pré-adolescência de Jesus. Além dos “evangelhos tardios e apócrifos” de uma
infância fantasiosa, os leitores são deixados praticamente sem informação so­
bre os primeiros 30 anos da vida de Jesus.
No mundo histórico dos Evangelhos, o silêncio sobre os primeiros anos de
vida de Jesus cria um ar de mistério. Contra esse pano de fundo, Sua repentina
manifestação como uma figura profética em Seu batismo é ainda mais inten­
samente retratada. Esse vislumbre do garoto de 12 anos confirma as extraor­
dinárias reinvindicações na narrativa do nascimento, demonstra a “sabedoria”
do menino (como afirmada no v. 40) e prepara o leitor para a manifestação de
Jesus como um adulto, no capítulo 3. Para Lucas, o Jesus adulto entra em cena
como uma pessoa quase completamente desconhecida, assim como Ele é des­
crito nos outros Evangelhos.
No segundo século d.C. e mais tarde, muitos autores procuraram preen­
cher o vazio dos evangelhos canônicos sobre o início da vida de Jesus. Os evan­
gelhos “apócrifos”, em geral, concentravam-se na infância e nos primeiros anos
de Jesus. Nessas narrativas antigas, as palmeiras inclinam-se reverentemente
diante de Maria no caminho para Belém, e o menino Jesus dá vida aos pombos
de argila (para uma conveniente coleção de evangelhos da infância, veja Barns­
tone, 1984, p. 383-408). Embora eles não sejam de valor histórico, esses relatos
fictícios apresentam um interessante contraponto ao silêncio quase militante
dos evangelhos canônicos sobre os detalhes da vida infantojuvenil de Jesus.
Em 1.5-7, somos inteirados da posição sacerdotal impecável dos pais de
João. Semelhantemente, José e Maria demonstram respeito pela lei e pelo
templo, seguindo as prescrições da purificação e consagração (2.21-25) e
apresentando anualmente a criança nos átrios do templo (2.27,37,41). Agora,
12 anos depois, a cuidadosa observação da lei e da tradição continua nos
textos quando os pais levam o menino a Jerusalém “para a festa da Páscoa (...)
conforme o costume” (v. 41,42).
Todos os judeus fiéis eram obrigados a “subir” a Jerusalém três vezes por

110
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

ano, para os dias santos — Páscoa, Pentecostes (ou Festa das Semanas) e a Fes­
ta das Tendas (ou Tabernáculos; veja Ex 34.23; Dt 16.16; quanto à idade dos
jovens participantes, veja m. Hag. T.l). O termo “subir” deriva da altitude de
Jerusalém, situada no alto de uma longa serra no leste da Palestina.
A Páscoa era a principal festa anual. Ela atraía um número imenso de pe­
regrinos de grandes distâncias, todos os anos. Parece razoável que de “300.000
a 500.000” judeus inundassem a cidade anualmente. Isso teria exigido o sacri­
fício de 30.000 cordeiros, um para cada dez pessoas (Sanders, 1992, p. 128; e
não os 255.600 sugeridos por Josefo). A população normal de Jerusalém era de
30.000 pessoas, mas o templo podia acomodar 400.000 adoradores, e a Páscoa
era a festa mais popular (Sanders, 1992, p. 128).
Tal jornada era impossível para muitos judeus de locais distantes. No en­
tanto, José e Maria empreendiam a árdua caminhada de 150 km, todos os
anos. Isso indica a piedade deles e a importância social da celebração na capital
espiritual do judaísmo. Os peregrinos da mesma região viajavam juntos (v. 44;
veja Sanders, 1992, p. 125-138; Safrai e Stern, 1974, 2:891,892).

A Páscoa e o segundo dízimo

Em D eutero nô m io 1 2 .1 7 ,1 8 , todos os judeus foram intim ados a pag ar


seu "segundo d ízim o ” em Jerusalém , na época da Páscoa (Jeremias, 1 9 7 2 ,
p. 57; Sanders, 1 9 9 2 , p. 1 2 8 ,1 2 9 ). Isso fazia da festa um m o m e n to de
g rande regozijo e celebração. C om ida, música e com unhão era m as prin­
cipais ativid ades, tudo à som bra do im p o n en te tem p lo de Jeová.
Para os m oradores da pequena aldeia nortenha de N azaré, a via g e m
anual de Páscoa à Cidade Santa d ev e ria ser o destaqu e do ano. Q uando
José e M aria vo lta ra m para casa com um vasto c o n tin gen te de fam iliares
e am igos, eles p resum iram que o m enino estivesse em algum lugar na
m ultidão de peregrinos. Para o espanto deles, depois que h aviam saído da
cidade, d escobriram que o m enino estava ausen te.

NO TEXTO
1 4 1 - 4 7 Aos doze anos de idade (v. 42), Jesus estaria próximo da época em

111
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

que os judeus hoje chamam de bar m itzvahy o “filho dos mandamentos” {m.
Avot, 5.21). Essa é a fase de transição da infância para a idade adulta. Esperava-
se que os jovens assumissem o jugo da Lei. Embora a emancipação não seja
mencionada no texto, a idade de 12 anos tem um significado para a matura­
ção de Jesus e para Sua criação como um judeu. Em Lucas, esse é o evento da
“emancipação” de Jesus.
Não é difícil imaginar um menino maravilhado com a Cidade Santa e os átrios
do templo (v. 46), uma maravilha arquitetônica do mundo. As expectativas de
Seus pais logo podem ser esquecidas. O conhecimento do garoto impressiona
os mestres de Jerusalém. A educação dos filhos começava aos cinco anos. As
famílias que tinham condições enviavam seus filhos para ayesh iva (escola paro­
quial). Jesus deve ter tido o privilégio de estudar com os melhores professores
de Sua aldeia. O maior custo de frequentar-se a escola era a ausência dos filhos
na profissão dos pais, um grande peso para as famílias pobres. O ponto de vista
de Lucas sugere que o “Filho de Deus” era obrigado a aprender. Nada acerca de
Sua divindade o dispensava de Sua necessidade humana.
O menino precoce de 12 anos atraía a atenção nos átrios do templo de Jeru­
salém. Isso é extraordinário em si se o número de pessoas presentes na Páscoa
for considerado. Depois de três dias inteiros que o menino desapareceu, Ele
ainda continuava profundamente engajado na conversação com os mestres no
templo. O menino Jesus estava sentado entre os mestres, ouvindo-os e fa­
zendo-lhes perguntas. Todos os que o ouviam ficavam maravilhados com
o seu entendimento e com as suas respostas (v. 46,47).
Essa cena é remetida para trás e para frente na narrativa. Para trás, porque a
precocidade de Jesus deriva de Sua identidade como “o Filho de Deus” (1.35),
e para frente, porque pressagia Sua posição como um grande mestre e rabi em
Seu ministério público.
Mais especificamente, esse relato prefigura 19.47 e o próximo retorno de Jesus
ao templo, onde “todos os dias ele ensinava”. A extensa narrativa sobre o ensino
em 20.1—21.38 é paralela a do menino Jesus no templo. De uma forma quase
midráshica, ouvimos sobre como Sua experiência inicial aos 12 anos floresce na
vida do Jesus adulto. Isso está em acordo com aquilo que Ele realmente diz e faz
no templo e como os outros reagem. De maneira irônica, em cada referência
subsequente sobre o templo em Lucas, Jesus está em conflito com as autorida­
des dali (ex.: 20.1 ss.; 21.6; 22.52).
Na caracterização de Lucas, desde os dias iniciais como menino até a culmina­
ção de Seu ministério em Jerusalém, Jesu s en sina as Escrituras. Até mesmo em
Sua pessoa pós-ressurreta, no caminho de Emaús, a mente de Jesus está imersa
112
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

na Escritura e no seu ensino. Para Lucas, isso é o que Jesus é e deve ser conside­
rado, ou seja, uma das facetas centrais de Sua caracterização (veja o comentário
em 24.13-49; At 1.3).
1 4 8 - 5 2 Jesus separa-se de Sua família quando saem de Jerusalém. Uma vez
que eles percebem isso, seus pais desesperadamente procuram encontrá-lo. Os
três dias que gastam para encontrá-lo incluem um dia de viagem, saindo de
Jerusalém, um dia de retorno e um dia procurando na cidade (Marshall, 1978,
p. 127). Ao ser encontrado no templo, a cena de Maria e José com seu filho
introduz um elemento no Evangelho que reaparecerá mais tarde em Sua vida.
Maria expressa o que qualquer mãe sentiria em situação semelhante: Filho,
por que você nos fez isto? Seu pai e eu estávamos aflitos, à sua procura (v.
48) . A resposta de Jesus à Sua mãe sugere impaciência: Por que vocês estavam
me procurando? Não sabiam que eu devia estar na casa de meu Pai? (v.
49) . A devoção ao templo evidenciada pelos pais é refletida na vida do menino
Jesus. Porém, mais importante, isso demonstra a preeminência que a lealdade à
obra de Deus terá na vida de Jesus.
A frase genitiva tou p a tros m ou — d e m eu P ai — tem um sentido tanto de
localização como de origem. Jesus enxerga essa casa como mais santa do que
qualquer outra; e Ele identifica-se com ela como uma representação de Seu
relacionamento com Seu Pai. Essa é uma declaração de autoidentificação em
termos de lugar sagrado.
Essa frase sugere uma origem patrilinear. A expressão “casa do pai”, ou b et *av, é
um dos três níveis do sistema social de parentesco. Juntamente com tribo e clã,
ela identifica o lugar de alguém na sociedade (veja os comentários em 15.11­
16). E uma localização física, onde a terra, os rebanhos e a família encontram­
-se. Entretanto, é também uma declaração de linhagem, estabelecendo o lugar
de alguém dentro das gerações.
Jesus não é o filho de José, pelo que se parece dizer, mas o filho do Pai (compare
com Pv4.3; Ne 1.6). Assim comojacó e sua escada em Gênesis 28.12-22, a casa
de Seu Pai é um lugar de realização da promessa, o lugar para onde Seu coração
sempre ansiará regressar.
A tensão entre Jesus e Sua família surgirá na narrativa de Lucas durante Sua ida­
de adulta. Dois eventos da tradição tripla (Mateus 11 Marcos 11 Lucas) mostram
que Jesus experimentou uma distância emocional de Sua família posteriormen­
te em Sua vida (Lc 8.19-21; Mt 12.46-50; Mc 3.31-35; Lc 14.26; Mt 10.37;
Mc 8.34). Na tradição dupla ou material Q (Mateus || Lucas), temos a difícil
113
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

máxima: “Deixe que os mortos sepultem os seus próprios mortos” (Lc 9.59-62
||Mt 8.21-22); e o monólogo sobre a divisão dentro da família (Lc 12.51-53 ||
Mt 10.34-36), os quais refletem uma distância emocional de Sua família. Ou­
tras referências sobre esse assunto ocorrem uma única vez no Evangelho (Mc
3.21; Lc 11.27 e Jo 2.4). Os Evangelhos não teriam preservado uma evidência
tão difícil dessa sobre a vida pessoal de Jesus, sugere um erudito, “sem a garantia
dos fatos” (Taylor, 1952, p. 235; veja Miller, 1997, p. 31-54).
Lucas conclui tanto a narrativa do nascimento quanto a da pré-adolescência
com declarações sumárias em 2.40 e 2.52 (veja 1.80). Isso é uma emulação
consciente de 1 Samuel 2.26 e 3.19, nos quais um par de sumários semelhantes
delimitam as narrativas do nascimento e da juventude de Samuel.

A familiaridade de Lucas com 1 Samuel continua a ser óbvia quando ele


conecta Jesus conceitualmente à história do surgimento do trono davídico em

SÍNTESES EM 1 SAMUEL E LUCAS

E o m enino Samuel Enquanto Samuel O menino crescia Jesus ia crescendo


continuava a cresc- crescia, o Senhor e se fortalecia, em sabedoria,
er, sendo cada vez estava com ele, enchendo-se de estatura e graça
m ais estim ado pelo e fazia com que sabedoria; e a diante de Deus e
Senhor e pelo povo. todas as suas pa- graça de Deus dos homens.
lavras se cum pris- estava sobre ele.
sem.

1 Samuel (veja o comentário em 1.7,15b-17,27,32,33,54-56,68-70; 2.8-12).

A PARTIR DO TEXTO
O aspecto humano da experiência de Jesus em relacionamentos familiares
nos ensina muita coisa sobre a cristologia e a natureza física de Cristo. Jesus
experimentou os laços íntimos da vida familiar e conheceu Suas alegrias e Seus
conflitos. A cristologia deve incorporar essa realidade. O Filho de Deus teve a
responsabilidade de ser o filho primogênito, experimentando a pobreza conhe­
cida de todos os aldeãos, as demandas e os custos do esforço para aprender um
ofício em meio a essas pressões e a necessidade de estar em conformidade com
as expectativas da família e da aldeia de inúmeras maneiras.
A conscientização das responsabilidades cotidianas de Jesus deve encora­
114
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

jar a todos os que lutam na vida. Jesus passou por tensões e problemas em Sua
vida que não são muito diferentes dos nossos. Como de costume ocorre no
caso de pais modernos, os pais de Jesus “não compreenderam o que lhes dizia”
(2.50). O exemplo mais pleno da humanidade dele é inimaginável. No final,
entretanto, Ele foi “obediente” (v. 51) e voltou para casa com José e Maria.
Teologicamente, as realidades humanas de Sua natureza física nos ensinam
que todas as nossas lutas são compreendidas por Deus. Ele foi “um homem de
dores e experimentado no sofrimento e, embora sendo Filho, ele aprendeu a
obedecer por meio daquilo que sofreu” (Is 53.3; Hb 5.8). Cristo vem a nós e
se coloca ao nosso lado — compartilhando a nossa humanidade no sofrimento
corriqueiro da vida diária comum a todos. Ninguém que experimenta o rom­
pimento da família e do lar ou o desespero da pobreza precisa sentir-se só. O
próprio Deus está conosco.

115
II. 0 INÍCIO DO MINISTÉRIO DE JOÃO E O BATISMO DE
JESUS: LUCAS 3.1-38

A. O início do ministério de João (3.1-20)

1. O chamado de João (3.1-6)

POR TRÁS DO TEXTO

A pregação de João Batista aparece em todos os quatro Evangelhos e co­


meça com a mesma mensagem básica. As fontes da pregação de João nos
Evangelhos incluem a tradição tripla (Mateus, Marcos e Lucas), Q (Ma­
teus || Lucas); João 1.19-23; M, Marcos e L (as fontes independentes
dos evangelistas sinóticos: Mt 3.1-6; Mc 1.2-6; Lc 3.1-6; Webb [1991, p.
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

60,61] enumeram 28 perícopes de João em Lucas e Atos). Todos os três


Evangelhos Sinóticos enfatizam o arrependimento e o batismo (Lc 3.3). E
todos, incluindo João, citam Isaías 40.3 (Lc 3.4-6), referindo-se ao papel
de João Batista como o precursor de Jesus.

A mensagem de João é apresentada pelos Evangelhos como primariamen­


te religiosa, e não política, quanto à natureza. Os dois mundos estão, é claro,
muito entrelaçados. No entanto, é provável que os evangelistas minimizam os
aspectos políticos da mensagem de João como defesa contra acusações de rebe­
lião. Esses temores não eram infundados: Herodes Antipas sentiu-se ameaçado
politicamente pela popularidade de João aponto de prendê-lo e executá-lo (Lc
3.18-20). Josefo fala da preocupação de Herodes com o fato de João ser capaz
de incitar uma “agitação cívica” (Ant. 18.5.2, §118), como uma razão para eli­
minar João. Nos primeiros anos do primeiro século, os pregadores populares
que reuniam multidões apresentavam às autoridades reinantes problemas polí­
ticos e desafios à frágil paz romana.
A reconstrução histórica de Lucas sobre os fatos políticos nem sempre
é impecável (veja o comentário em 2.1-5). Não obstante, os líderes políticos
citados no início do capítulo três fornecem um sólido contexto histórico para
o início do ministério de João. Ao ensaiar o contexto político global e regional
(veja 1.5; 2.1,2), Lucas mostra que as mensagens de João e as de Jesus trans­
cendem a esfera da religião e da política locais de Jerusalém (veja Por trás do
texto, em 2.1-7).
Lucas fornece pouco detalhe concernente aos movimentos de João no
início de seu ministério. Ele apenas diz que a palavra de Deus veio a João no
deserto, na região do Jordão. O Evangelho de João identifica a área do minis­
tério inicial de João como “Betânia, do outro lado do Jordão” (Jo 1.28; veja
o comentário em 1.80 sobre o tema do deserto; sobre a conexão do Qumrã,
veja Taylor, 1997, p. 42-48). A tradição coloca esse local a nove quilômetros
ao sudeste de Jerico, em Al-Maghtas. O quarto Evangelho também relata que
João e Jesus ministraram lado a lado por um período, na área de “Enom, perto
de Salim” (Jo 3.22,23). Isso é cerca de 37 km da ponta sul do mar da Galileia,
do lado oeste do rio Jordão.
João Batista também atuava no lado leste do rio Jordão, isto é, na Pereia (Lc
3.3; Taylor, 1997, p. 46). Foi nessa área que João enraiveceu Herodes Antipas
com a sua pregação contra o casamento de Herodes com Herodias (3.18-20).
Os viajantes judeus que partiam da Galileia para o sul geralmente atravessavam
para essa região do lado leste do Jordão, perto de Bete-Seã, para evitar o terri­
tório não judeu de Samaria.
118
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

NO TEXTO

1 1 - 3 Os líderes políticos mencionados por Lucas incluem: Tibério (reinou


entre 14—37 d.C.), Pôncio Pilatos (26—36 d.C.), Herodes Antipas, da Ga-
lileia (4 a.C.—39 d.C.), Filipe, de Itureia e Traconites (4 a.C.—34 d.C.), e
Lisânias, de Abilene (conhecido somente por essa referência bíblica).
Lucas menciona líderes religiosos, como o sumo sacerdote Caifás (v. 2, lide­
rou durante 18—37 d.C.) e Anás (6—13 d.C.), um antigo sumo sacerdote.
Deposto do cargo na época de João e Jesus, Anás ainda exercia influência nos
casos judaicos (veja At 4.6) como sogro de Caifás. O décimo quinto ano do
reinado de Tibério César (v. 1) foi em 27—28 d.C. Logo, João estaria com
30 e poucos anos.
Uma cuidadosa atenção ao contexto político do surgimento de João ressoa o
tema de 1.3 e 2.1-7. Nestes, as narrativas dos nascimentos receberam um cená­
rio geopolítico semelhante. Lucas parece preocupado em mostrar que os po­
deres políticos do momento não são um palco central na história da salvação.
Eles estão presentes, têm influências óbvias, mas estão subordinados ao poder
e ao plano de Deus.
Após a descrição dos poderes da presente época (1.3; 2.1-7; 3.1,2), João apa­
rece na narrativa, toma a iniciativa e revela o plano de Deus. Nesse sentido, as
referências de Lucas quanto a entidades políticas tratam da questão fundamen­
tal do verdadeiro poder nos assuntos do mundo. Embora a consumação ainda
não tenha chegado, e César ainda reine no mundo histórico de Lucas, Deus
permanece definitiva e plenamente no controle do drama mundial.
Em 1.80, Lucas relatou que João viveu “no deserto, até aparecer publicamente
a Israel”. Em Lucas 3.2b,3, chega a hora: Veio a palavra do Senhor a João,
filho de Zacarias, no deserto. Ele percorreu toda a região próxima ao Jor­
dão. O poder imperial e o deserto estão justapostos. O uso de Isaías 40.3-5 nos
versículos 4-6, descrevendo a aparência de João no “deserto”, ecoa o retorno
de Israel do exílio da Babilônia. Talvez isso também evoque esperanças para
o seu futuro livramento de um opressor semelhante — Roma. Assim como
Deus restaurou Israel após o exílio, Ele agora traz uma nova restauração para
o Seu povo. Nós já aprendemos, porém, que essa restauração não será como a
última, um reestabelecimento da nação em seu território. Ela incluirá todas
as nações (1.79; 2.32; 3.6) e será baseada na transformação da ordem social
(Green, 1997, p. 163).
João está pregando um batismo de arrependimento para o perdão dos pe­
cados. A redação de Lucas nessa frase segue literalmente a de Marcos (Mc
119
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

I. 4b). A formulação de Mateus é, de certa forma, diferente: “Arrependam-se,


porque o Reino dos céus está próximo” (Mt 3.2). Eles “eram por ele batizados
no rio Jordão, confessando os seus pecados” (v. 6 ARC).
A frase “pregando um batismo” é uma “expressão altamente incomum”, evi­
denciando uma interpretação cristã da atividade de João (Evans, 1990, p. 235).
Ela parece conceber a pregação (kêryssõn) desse batismo como uma obra do
próprio Deus. Lucas indica que o movimento de João Batista foi uma força
significante por si só, alcançando até a Ásia Menor 20 anos depois de Jesus
(At 19.1-4). A evidência de um movimento Batista independente é abundante
em Lucas (5.33; 7.18,33; 9.19; 11.1; 20.6; At 1.5,22; 10.37; 11.16; 13.24,25;
18.25; 19.1-4). A pregação de João sobre um “batismo de arrependimento”
teve a sua própria marca no movimento Batista durante muitos anos.
Os intérpretes procuram as raízes históricas do batismo de João em diversos lu­
gares. Bock oferece três opções: a prática do Qumrã (também Fitzmyer, 1981,
1:454), o batismo prosélito de gentios pelos judeus (o tevila h , imersão de con­
vertidos em rituais de banho; também Wigoder, 1989, p. 184) e o batismo de
arrependimento peculiar a João (Bock, 1994, p. 288,289). Dentre essas op­
ções, uma quarta deve ser acrescentada: a prática tradicional de abluções no AT
associada à purificação, tanto ritual quanto moral (Evans, 1990, p. 236; ex.: Lv
I I . 36; 15.16; 22.1-6; SI 26.6; 51.2; Is 1.16; Is 11.16; Ez 36.25; Zc 13.1).
O arrependimento já era conhecido pelos convertidos dentro do judaísmo
(Webb, 1991, p. 184,185). No entanto, João conecta o batismo com água ao
imperativo ético do arrependimento — um desenvolvimento importante. A
associação dessas duas ideias obscurece a linha existente entre a impureza ritual,
para a qual a água era necessária, e a impureza moral, para a qual o arrependi­
mento é a solução. Esse era um passo que os sectários do Qumrã já haviam to­
mado (Klawans, 2000, p. 75; veja a anotação complementar: Pecado, Impureza
e Enfermidade, em Lc cap. 5). Todavia, isso não era comum no judaísmo dessa
época. Isso faz da prática do Qumrã a linha mais frutífera de investigação para
a compreensão do batismo de João.
As abluções do Qumrã tinham duas funções: purificação e iniciação (Webb,
1991, p. 161,162). O batismo de João tem aspectos das duas. A purificação é
dupla: moral e ritual. Ela é também iniciatória porque João prega esse ato como
uma introdução na comunidade do Messias (v. 17). As implicações desse ponto
de vista se expandirão nos capítulos 5 e 6. Neles, o pecado, a impureza e a en­
fermidade são considerados no contexto da atividade de cura e ensino de Jesus.
O batismo de João é descrito ainda como para o perdão dos pecados. Isso se
alinha com a ampla apresentação de Lucas à nova comunidade do Messias —
120
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

tanto para os judeus como para os gentios. Nos capítulos 5—19, seis exemplos
dessa experiência demonstrarão aos leitores a eficácia do arrependimento para
os pecadores (veja, a seguir, A partir do texto e Por trás do texto, para 5.1-11).
O batismo de João possui um imperativo existencial, moral e ritual (3.10-14).
Todos estes preparam o caminho não só para o Messias, mas para a apresenta­
ção de Lucas sobre como a salvação opera na nova era.
■ 4 - 5 Isaías 40.3 é citado em várias formas por todos os quatro escritores dos
Evangelhos (Mt 3.3; Mc 1.2,3; Lc 3.4-6 [que sozinho acrescenta Is 40.4,5]; Jo
1.23). Os Evangelhos tratam do texto como um m idrash. Eles oferecem uma
exposição tipop esh er sobre Isaías 40, que interpreta a missão de João como um
retorno do exílio. Já que o retorno foi um momento para a restauração nacio­
nal, assim também a mensagem de João trará restauração. Dessa vez, entretan­
to, ela será baseada no arrependimento, e não na hegemonia política.
A referência ao “deserto” (v. 2) ecoa a profecia de Isaías (veja Is 40.3): Voz do
que clama no deserto (Lc 3.4). Em Isaías, o deserto refere-se à terra entre a
Babilônia e Jerusalém, atravessada pelos exilados que retornaram (veja Is 35).
Isaías clama para que o caminho do deserto torne-se reto. O Evangelho reaplica
isso a João, que “preparará” o caminho de Jesus (Fitzmyer, 1981, 1:452,453).
Somente Lucas, entre os Sinóticos, cita também Isaías 40.4,5. Isaías promete
que todos os vales, ao longo do caminho, serão levantados. Lucas coloca o
verbo gregop lêrõth êseta i, preenchido, com sentido duplo aqui. P lcroõ é usado
21 vezes nos Evangelhos (sete em Lucas) e em Atos, para indicar o cumpri­
mento de uma profecia. O ministério preparatório de João metaforicamente
preenche os vales, aplanando o caminho para o Messias. Contudo, a vinda dele
também cu m pre a profecia.
Da mesma forma, o verbo tapeinõthêsetai, usado na frase todas as montanhas
e colinas, niveladas e em outras partes do NT, sempre significa “humilhado”.
O ministério do batismo para o arrependimento pregado por João chama os
pecadores para humilharem-se diante de Deus. Então, Lucas novamente em­
prega um sentido duplo baseado na passagem de Isaías.
As estradas tortuosas serão endireitadas e os caminhos acidentados, apla­
nados. No m idrash de Lucas, essa frase de Isaías 40 refere-se às demandas éticas
da mensagem de João. A estrada tortuosa é o caminho do ímpio (Pv 2.12-15);
a estrada endireitada é o dos justos (Pv 3.6). Em Lucas 3.10-14, João explici­
tamente indica às “multidões” como as estradas tortuosas podem ser endirei­
tadas. A fim de evitar o martelo do julgamento, o povo deve fazer doações aos
necessitados e viver uma vida honesta.
121
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

I 6 Com a inclusão da citação de Isaías 40.5, Lucas foi além de seus compa­
nheiros evangelistas para enfatizar a promessa de salvação aos gentios: Todas as
pessoas verão a salvação de Deus (Lc 3.6; veja 2.30,31). Essa salvação encontra
sua culminação nos versículos finais de Atos: “Portanto, quero que saibam que
esta salvação de Deus é enviada aos gentios; eles a ouvirão!” (At 28.28).

2. João adverte o povo quanto ao juízo (3.7-9)


I 7 - 9 Com as primeiras palavras faladas por João, a narrativa entenebrece.
Anteriormente, o cântico de Maria havia aludido ao julgamento apocalíptico,
já que Deus “dispersou os que são soberbos e derrubou governantes dos seus
tronos” (1.51,52). Dessa ideia surgem as duras palavras de João sobre aqueles
que saíam para ouvi-lo. Ele os chama de raça de víboras. A raiva dele emerge
de um aparente interesse pessoal pelas multidões — “quem vos induziu a fugir
da ira vindoura?” (v. 7 ARA). Existe uma disparidade entre a palavra de arre­
pendimento deles e as atitudes de seus corações.
Nesse exemplo, as “multidões” representam os que estão presentemente excluí­
dos da salvação ou da compreensão da mensagem de João. Outros exemplos de
m u ltidões como uma categoria literária, juntamente com os “fariseus” e os “pu-
blicanos e pecadores”, surgirão nos capítulos subsequentes. Esses personagens
são “paradigmáticos”; por intermédio deles, o narrador estabelece uma “hierar­
quia de perspectivas” (Darr, 1992, p. 57; veja 50). Os leitores, sob influência
da persuasão do narrador, simpatizam-se com os personagens da narrativa que
conseguem entender a mensagem (a multidão arrependida, v. 10) e julgam os
que não conseguem.
A víbora (v. 7), uma cobra venenosa, é um símbolo do mal, conforme descrito
na Bíblia. O uso dele aqui é um insulto provocativo. Em uma passagem paralela
sobre o início do ministério de João, em Mateus 3.7, as palavras de João são
pronunciadas contra os fariseus (veja Mt 12.34; 23.33). Lucas amplia seu pú­
blico para que inclua a todos: (...) Às multidões que saíam para serem bati­
zadas por ele (v. 7). A aplicação de víboras, usada por Lucas em relação a toda
a multidão, torna a expressão duplamente dura. João castiga aqueles que estão
buscando o livramento. João vê a multidão como quem ainda não demonstra a
conduta ética esperada daqueles que confessam o arrependimento.
A ira que se aproxima (v. 7) soa como um tema familiar do AT. Aqui, pela
primeira vez em Lucas 3.7-9 (veja Sf 1.14,15; 2.1,2; M l 3.2,3), a advertência
apocalíptica chama Israel para um acerto. Frequentemente direcionado a Israel
por intermédio de seus profetas, o arrependimento era exigido sempre que se
122
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

confiava no ritual, e não na fidelidade da aliança para um relacionamento cor­


reto com Deus.
João confronta o diálogo interior de algumas pessoas de seu público que estão
naquela cena: E não comecem a dizer a si mesmos: Abraão é nosso pai. Pois
eu lhes digo que destas pedras Deus pode fazer surgir filhos a Abraão (v. 8).
João desafia a compreensão própria de Israel como o povo escolhido de Deus
(veja Green, 1997, p. 175-77). A pureza étnica é insignificante se a conduta
correta não está em evidência. Deus poderia até fazer com que as pedras o
servissem, se Ele assim desejasse (Is 51.1).
João rejeita totalmente o templo, a tradição e a lei. No entanto, as palavras
de João são um corretivo para a prática de colocar-se essas características no
centro da religião judaica. Ao contrário, João convida o povo à retidão, tanto
pessoal como corporativa, baseada no arrependimento (v. 8).

A primazia da fé no judaísmo

A fé sem p re foi central à própria prática do judaísm o. No extensivo


uso de Lucas da tradição de S am uel, a fid e lid a d e do coração é crucial à
história. Davi foi ace itá v e l para com Deus por causa do estado do seu
coração, e não por causa de sua posição com o rei dentro da nação ou de
sua escrupulosa observação da Lei.
Essa ênfase na fé interio r está no centro da tradição d eu teron om ista
do AT. O que alguém faz indica a condição do seu coração. No NT, Tiago é
bem conhecido por causa de sua ênfase nessa ideia; m as os Evangelhos
iden tificam o m esm o princípio com o fu n d a m e n ta l no ensino de Jesus. A
fé interio r é eviden ciad a na a titu d e externa; q u a lq u e r coisa a m enos é
hipocrisia.
Paulo rastreia as raízes da justificação pela fé a té ch e g a r a Abraão,
que foi justificado não porque cum priu a exigência e x te rn a da circuncisão,
m as por causa de seu coração fiel (Rm 4 .9 -1 2 ; Gl 5 .6 ).
Ao e n fa tiz a r a im portância da ação ética, João fala com o um re fo rm a ­
dor, algu ém que convida os judeus de volta às raízes de sua tradição de
fé e prática da justiça. Suas palavras não são um criticism o do jud aísm o
em si, m as um a "crítica profética" do judaísm o. Isso é um a distinção vital
(Evans e Sanders, 1 9 9 3 , p. 8; veja Taylor, 1 9 5 2 , p. 1 2 7 -1 3 2 ). Os principais
personagens dos Evangelhos, João e Jesus, não se opõem ao judaísm o,
m as c h a m a m ao q u estio n am en to as práticas corruptas do e ntão jud aísm o
con tem po rân eo.

123
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

João exorta seu público: Q ue o vosso co ra çã o p e n ite n te p ro d u z a u m fr u t o d ig ­


n o (v. 8). Os israelitas não devem presumir que o título deles como filhos de
Abraão os protegerá contra a ira vindoura. Se os “frutos que mostrem arrepen­
dimento” podem suplantar a linhagem, então os que estão fora do judaísmo
também podem ser salvos.
Essa não é uma ideia nova, é claro. Gênesis 17.4 diz sobre Abraão: “Você será
o pai de muitas nações. E Sara será mãe de nações” (Gn 17.16 NTLH; veja
49.10). Semelhantemente, em Isaías, todas as nações correrão para Deus (2.2;
5.26; 11.10; 42.1; 45.20a; 51.4; 55.5; 56.6-8; 62.2). O ponto de vista é de­
monstrado em Lucas de modo sutil, mas o convite aberto à salvação para todos
está em terra bíblica firme. Atos continua esse tema ao retratar Paulo como um
campeão da salvação para os gentios (At 15.12-18; 18.6).
Toda árvore que não der bom fruto será cortada e lançada ao fogo (Lc
3.9b). João adverte que o fogo profético consumirá todo aquele que falhar em
produzir bom fruto. A guinada para o tom apocalíptico é abrupta e, talvez, in­
tencionalmente inquietante no fluxo da narrativa. De repente, de acordo com
João, a presente ordem está ameaçada — “ameaçada em suas próprias raízes”
pelo poder invasivo de Deus (Eichrodt, 1961, p. 345).
As profecias pré-exílicas tinham a tendência de focar no contexto político e re­
ligioso imediato dos profetas. O alcance da profecia pós-exílica muda para uma
visão mais longa, mais ordenada, da restauração nacional. Nesta, o templo e
seus cultos são considerados como instituições intergeracionais altamente está­
veis, no centro da restauração (veja, por exemplo, Esdras e Neemias). Contudo,
aqui, a perspectiva apocalíptica de João retrata a destruição iminente — o juízo
que assolará as árvores improdutivas, em breve e repentinamente. O machado
já está posto à raiz das árvores (veja Lc 13.6-9).
O verbo no tempo presente do versículo 9 dá uma forte urgência à advertência.
Essas coisas estão acontecendo agora, mas a linha entre o presente e o futuro
é incerta. O João Batista de Lucas espera um fim cataclísmico em um futuro
próximo — tão próximo que “já” está presente. Da perspectiva da narrativa,
isso é uma moderada virada nos acontecimentos daquilo que havia sido, até
esse ponto, uma história positiva e esperançosa.

A PARTIR DO TEXTO
Um exemplo moderno de corrupção demonstra a importância da fé interior
no judaísmo. Recentemente, um financista judeu caloteou bilhões de dólares
de investidores em uma enorme fraude financeira. Muitos dos investidores
124
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

eram instituições caridosas, escolas e universidades, inclusive a universidade


Yeshiva, de Nova Iorque. O financista era o tesoureiro do conselho, e a
universidade perdeu milhões. O rabi Benjamin Blech, professor de filosofia
da lei na Yeshiva, disse que esse lamentável incidente era “uma oportunidade
para transmitir aos alunos que o ritual sozinho não é o único determinante
do nosso judaísmo, que ele deve ser combinado com a humanidade, com o
comportamento ético, com os valores adequados e, o mais importante de tudo,
com a consideração ao nosso relacionamento com os outros seres humanos” —
uma pungente descrição dos valores judaicos de fé interior {New York Times,
22 de dezembro de 2008).

3. Demandas éticas (3.10-14)

■ 1 0 - 1 4 O cenário da instrução de João à multidão é uma caracterização


estilizada de sua pregação em geral, em vez de uma descrição histórica de um
único evento. Atos usa esse artifício no sermão de Pedro, no Pentecostes. Nele,
a multidão verbaliza uma resposta quase idêntica: “Irmãos, que faremos?” (At
2.37 || Lc 3.10). Esse tipo de discurso é uma variedade do discurso indireto.
As exatas palavras são do narrador, caracterizando a mensagem típica de João.
A severa caracterização de Lucas quanto à mensagem de João pode ser parcial­
mente explicada em bases literárias. Suas duras palavras produzem uma res­
posta penitente da multidão. Isso enfatiza o foco de Lucas no arrependimento
como o caminho para a salvação (veja os v. 3 e 8; 5.32; 13.3,5; 15.7; 16.30;
17.4; 24.47; veja At 2.37). Em resposta, as multidões imploraram: “O que de­
vemos fazer então?”. A pergunta é repetida duas vezes para dar ênfase; na pri­
meira, pelos publicanos (v. 12) e, depois, pelos soldados (v. 14). A prontidão
das multidões para arrependerem-se cria um efeito de retórica persuasiva nos
leitores de Lucas, fechando a lacuna entre eles e o narrador.
Em cada repetição, há uma pergunta, uma resposta e uma instrução ética. A
linha comum nas exortações é o uso responsável dos recursos e a importância
da equidade na vida comunitária. Na primeira exortação, João fala às multi­
dões sobre a responsabilidade para com os bens materiais (v. 11). Na segunda,
ele dirige-se aos publicanos e fala da justiça na coleta dos impostos (v. 13). Na
terceira, ele fala aos soldados, para evitarem a extorsão e a violência, exortando­
-os a ficarem contentes com o seu salário (v. 14). Esses fatos éticos constituem
o fruto do arrependimento (v. 8; na pregação de João sobre o arrependimento,
veja mais em Nave, 2002, p. 146-159).
125
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

ESTRUTURA NARRATIVA DAS


INSTRUÇÕES ÉTICAS DE JOÃO (3.10-15)
§ Resposta “ ? ’^Ki4r * • * Êmm.i * : '*zt\
3»- * ’

V. 10,11 Perguntavam as João respondia (...). Quem tem duas


m ultidões (...). túnicas dê uma
a quem não tem
nenhum a (...).

V? 1 2,43 Alguns publicaWos Não cobrem nada


(...) perguntaram além do que lhes
U h . foi estipulado (...).

Alguns soldados lhe Ele respondeu (...). Não pratiquem


V. 14,15 pe rguntaram (...). extorsão (...);
contentem -se com
o seu salário.

O uso consciente do dinheiro como um sinal de integridade espiritual é uma


característica especial do Evangelho de Lucas. Aqui, ela é expressa na pregação
de João às multidões (veja o comentário em 9.1-6; 11.39; 12.13-34; 16.10­
15,19-31; 19.13-27,45,46; 21.1-4).
Após o tom apocalíptico radical nos versículos 7 e 9, é irônico que João aconse­
lhe nada mais do que a conduta ética na disposição dos bens e na participação
da economia local. Ele não convida a multidão, por exemplo, para levantar-se
contra Roma ou contra a corrupta aristocracia do templo de Jerusalém. Tam­
pouco condena os cobradores de impostos por servirem aos poderes opresso­
res. E os soldados romanos são encorajados a serem honestos, e não a se unirem
a uma rebelião contra o império.
Apesar da ardente retórica apocalíptica de João, o real conteúdo de sua prega­
ção em Lucas é apolítico. Sua visão é moral, e não política. Parece haver ver­
tentes variantes de um material tradicional aqui, algumas ardentes e políticas, e
outras mais tranquilas e acolhedoras. Lucas une essas vertentes, mas não de um
modo inteiramente convincente. A mensagem de João é uma estranha combi­
nação de julgamento impiedoso e persuasão moral.
Como veremos nos versículos 19 e 20, a pregação de João, decerto, não é
considerada politicamente benigna pelo rei vassalo de Roma, Herodes. Não
obstante, Lucas apresenta um João apolítico, talvez nos interesses do contexto
da comunidade de seus leitores. Esse Evangelho foi escrito em anos penosos,
após a destruição de Jerusalém, ocasionada por uma revolução que acabou mal.
As questões que a inflamaram foram os impostos e a ocupação romana. Ambas,
126
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

é provável, ainda estariam politicamente sensíveis na comunidade de Lucas; e


isso explica o retrato de João como politicamente neutro.

4. "És tu o Messias?" (3.15-17)

H 15-17 Voltando ao tom dos versículos 7 e 9, Lucas novamente retrata João


como um profeta incendiário do fim dos tempos. Mais uma vez, a mudança
de tonalidade é uma indicação da complexidade do material apocalíptico nos
Evangelhos Sinóticos, uma evidência da tentativa de Lucas de trilhar o cami­
nho do meio. João era visto como um revolucionário por Herodes e morreu
em uma prisão em Pereia, como um prisioneiro político (Mt 14.3-12; Mc 6.17­
29). Lucas, em contraste com Mateus e Marcos, não comenta sobre a morte de
João.
O relacionamento de João com a mensagem de amor de Jesus é complexo em
Lucas. As duas tradições parecem estar em certa tensão. A pergunta que João
fez da prisão sobre a identidade de Jesus, “Es tu aquele que haveria de vir ou
devemos esperar algum outro?” (Lc 7.19), indica que João tinha dúvidas sobre
a abordagem de Jesus quanto ao Seu ministério messiânico.
O povo, no versículo 15, é apresentado como um grupo mais simpático do
que as m ultidões com interesses próprios, do versículo 1 0 .0 povo estava em
grande expectativa, questionando em seus corações se acaso João não seria
o Cristo. O sentimento de expectativa mostra o ânimo que a pregação de João
produzia na multidão. Sua mensagem traz esperança de livramento em um mo­
mento de confusão política e tumulto religioso. Isso era provavelmente tão ver­
dadeiro na comunidade de Lucas como teria sido no ano 27 d.C., quando João
pregava. Existe um subtexto na descrição de João feita por Lucas: Será que as
vozes de acomodação e apaziguamento quanto à hegemonia romana deveriam
vencer? Ou será que a resistência era o melhor caminho? Essas perguntas eram
relevantes para ambas as épocas.
No versículo 16, João volta-se para o assunto do batismo. A justaposição do
batismo com água e o batismo com fogo enfatiza o contraste entre o humil­
de arrependimento e o julgamento apocalíptico. O batismo com água para o
arrependimento é pessoal e assinala uma mudança interior. O batismo com
fogo, reciprocamente, destruirá a presente ordem e mudará o curso da história.
Como símbolos bíblicos, a água e o fogo são elementos que servem para pu­
rificar, mas por meios completamente diferentes (veja Is 4.4; Dunn, 1970, p.
127
LUCAS 1-9 NOVO
NOVOCOMENTÁRIO
COMENTÁRIO BÍBLICO
BÍBLICO BEACON
BEACON

12). A água simboliza a pureza moral (SI 26.6; 51.2; Is 1.16; Zc 13.1), e o
fogo representa a presença purificadora do próprio Deus (Gn 15.17-18; Êx
3.2; 19.16-21; Is 6.6,7; Ml 3.2). A água e o fogo eram “purgativos e refinadores,
para aqueles que se arrependiam, e destrutivos... para os que permaneciam im­
penitentes” (Dunn, 1970, p. 13).
O advento do Messias, segundo João, virá com o batismo com o Espírito San­
to, descrito como o batismo com fogo (v. 16). João, Zacarias, Isabel, Maria
e Simeão, todos foram descritos como “cheios do Espírito Santo” Eles foram
indivíduos sobre os quais o Espírito Santo repousou (1.15,35,41,67; 2.25). A
mensagem de João oferece essa plenitude como disponível ao público em ge­
ral: Ele os [plural, hym as] batizará com o Espírito Santo e com fogo.
Esse batismo co m [en\ o Espírito Santo é uma expansão da comunidade sa­
grada para incluir o povo comum. A experiência da intimidade com Deus vem
junto com essa inclusão, por intermédio do Espírito Santo, uma intimidade an­
teriormente reservada apenas para os personagens principais no drama: João,
Zacarias, Isabel, Maria, Simeão e Ana. A mensagem de João diz que haverá
uma repentina “democratização” da intimidade de Deus com o surgimento do
Messias. Isto é clássico da teologia de Lucas: o povo comum pode compartilhar
imediatamente da vida cheia do Espírito por meio do arrependimento (v. 3).

O batismo com o Espírito Santo em Lucas

O con texto do “ench im en to do Espírito" aparece em Lucas


1 .1 5 ,3 5 ,4 1 ,6 7 e 2 .2 5 . Aqui, em 3 .1 6 , tra ta -s e do batism o com o Espírito
S a n to , um a expressão que a p arece n o v a m e n te em Atos 1.5. Será que o
uso dela em Atos refere-se a um a iniciação à com un idad e, com o parece
ser aqui no Evangelho? Ou será que é um a referência a um a capacitação
sub sequ ente à iniciação?
A rgum entos tê m sido feito em am b as as direções (veja Ervin, 1984;
Stronstad, 19 8 4; Dunn, 1 9 7 0 ). (Bock [1 9 9 4 , p. 3 2 2 -3 2 4 ] e n u m e ra quatro
opções inte rp re ta tiv a s sobre o batism o com Espírito e fogo.) Do ponto
de vista da n arrativa, parece plausível in te rp re ta r esse batism o em 3 .1 6
e em Atos 1.5 com o s im p lesm en te um a porta de e n tra d a para a nova
com un idad e santa. Se essa fo r a in te rp re ta ç ão correta, então o "batism o
com o Espírito não é algo distinto e subsequente à e n tra d a no Reino; era
som ente por m eio do batism o com o Espírito que alg u ém poderia e n tra r
[na com un idad e s a g ra d a ]“ (D unn, 1 9 7 0 , p. 2 2 ).

128
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

O d e b a te sobre o assunto da capacitação , subsequ ente m ais tard e


em Atos e e m Paulo, é um a questão de tal com plexidad e que é m e lh o r ser
estu dad a nesses contextos. No e n ta n to , aqui, em Lucas 3, a ling uag em do
batism o com o o Espírito refere-se à iniciação na com un idad e cristã.
Existe um a clara disjunção e n tre a visão apocalíptica de João no ca­
pítulo 3 e a vinda do Espírito para a com un idad e prim itiva cristã no Pen­
tecostes, em Atos 2. A linguagem do batism o com o Espírito é a m esm a,
m as o to m e a substância são bem d iferen tes. Em Lucas 3, João fala urg en ­
te m e n te de um perigo im in ente. O batism o com o fogo e o Espírito Santo
é o único je ito de es c ap a r desse perigo. Em Atos, ao contrário, um a nova
era com eçou, e a vinda do Espírito é tan to um a iniciação na com un idad e
sagrada com o um a iniciação no te s te m u n h o e na prática por toda a vida.
Lucas parece e n tre te c e r esses te m a s juntos e m sua obra mais am p la , em
dois volum es.

No versículo 17, a voz de João novamente assume um tom severo. As “boas


novas” do versículo 18 são contrabalanceadas pelas más notícias para a pa­
lha. As pessoas representadas pela palha queimarão com fogo que nunca
se apaga, uma imagem aterradora de um julgamento destrutivo. O Messias
juntará o trigo em seu celeiro. Isso é uma metáfora para o julgamento final,
mas também se refere à iniciação em uma nova comunidade messiânica. A
estrutura interpretativa do restante do Evangelho de Lucas será sombreada
pela ameaça apocalíptica introduzida em Lucas 3.7-17. O advento do Messias
deve ser acompanhado de alegria e expectativa, mas também com a ameaça do
julgamento.

O trigo e a palha no Antigo Testamento

Existem inúm eras referências à palha, ao trigo e ao fogo na Bíblia. Na


eira, o trigo colhido é lançado ao a r com um a e n o rm e pá (v. 17). A leve
casca do grão, a palha, é c o m p le ta m e n te soprada para longe. O caniço
mais pesado acum ula-se na b eirada da p latafo rm a. E o grão, a p arte mais
densa da p lanta, cai d ire ta m e n te no chão. O ve n to que sopra a palha para
longe do grão representa o Espírito separan do os inúteis dos dignos, na
term in olo gia bíblica.

129
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

No AT, essa im a g e m é aplicada à com un idad e da aliança d u ran te os


períodos de infidelid ad e a Jeová. Por e xem p lo , os israelitas que oferecem
sacrifícios h um anos são com o "p alha que num redem oinho vai-se de um a
eira" (Os 1 3 .3 ). Os que são am eaçado s com o exílio para a Babilônia são
com o "a palha levada pelo vento do deserto" (Jr 1 3 .2 4 ).
Esse cenário da palha ta m b é m é aplicado aos "ím pios" fora da co­
m u n id ade israelita, os q ue estão a lém dos lim ites da salvação (SI 1.4; Jó
2 1 .1 8 ). Sofonias 2 .1 ,2 associa essa im ag em ao "dia da ira do Senhor", um
te m p o de um ju lg a m e n to p le n a m e n te consum idor: "Reúna-se e a ju n te ­
-se, nação sem pudor, antes que chegue o tem p o d ete rm in a d o e aqu ele
dia passe com o a palha, antes q ue venh a sobre vocês a ira im petuosa do
Senhor, antes que o dia da ira do Senhor os alcance".
A im ag em do fogo é n a tu ra lm e n te associada à palha, q ue a conecta
ao m otivo do ju lg a m e n to . M alaquias 4 .1 diz de Israel: "Pois c e rta m e n te
ve m o dia, a rd e n te com o um a fornalha. Todos os arrogantes e todos os
m alfeito res serão com o palha, e aqu ele dia, que está chegando, a te a rá
fogo neles", diz o Senhor dos Exércitos. João usa essa rica im a g e m do
ju lg a m e n to para c a ra c teriza r a vinda do Messias. Será um te m p o em que
o bom será separado do ím pio, com o o trigo da palha.
Jesus usa um a im a g e m s e m e lh a n te em Seus ensin am ento s. Na p a­
rábola do joio e do trigo, e m M ateus 1 3 .2 4 -3 0 : (...) "D eixem q ue cresçam
juntos [o trigo e o joio] a té à colheita. Então direi aos encarregados da co­
lheita: Juntem prim eiro o joio e a m a rre m -n o e m feixes para ser queim ado;
depois ju n te m o trigo e g u ard em -n o no m eu celeiro" (v. 30 ). Em M ateus
1 2 .3 3 -3 7 , a im a g e m da árvore com o fru to e a expressão "raça de víbo ­
ras" são m en cionadas pelos lábios de Jesus. Em Lucas 1 3 .6 -9 , a figueira
infrutífera d eve ser cortada.

5. Herodes prende João (3.18-20)


I 18-20 As boas novas (v. 18, eu an gelizõ, uma forma verbal) são anunciadas
por uma variedade de pessoas em Lucas. Primeiro, elas são proclamadas pelos
anjos (1.19; 2.10), agora, por João Batista (3.18). No decorrer do restante do
Evangelho, a proclamação das “boas novas” é central à mensagem de Jesus (veja
4.43 e o comentário em 8.1-3).
Herodes Antipas (v. 19) é o tetrarca da Galileia (como em 3.1; reinou em 4
a.C. - 39 d.C.). Ele não deve ser confundido com o rei Herodes, de 1.5. O
filho dele, Herodes Antipas, reinou no lado oeste do Jordão, na Galileia, e no
130
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

lado leste, na Pereia, uma região que se estendia desde o rio Arnom, no sul, até
o rio Jarmuque, no mar da Galileia. Herodes Antipas era casado com a filha de
Aretas IV, rei de Nabateia (9 a.C - 40 d.C.), o reino sul da Pereia.
Essa articulação produziu um longo período de paz entre os dois reis. No en­
tanto, Herodes Antipas apaixonou-se por Herodias (v. 19), a mulher de seu
meio-irmão Filipe (Lc 3.1; Mc 6.17). Herodias exigiu que Antipas se divor­
ciasse de sua esposa nebateia e se casasse com ela, o que ele fez. Isso enfure­
ceu Aretas, a quem a primeira mulher de Antipas recorreu. Aretas e Antipas,
eventualmente, guerrearam por causa dessa questão, uma guerra na qual Aretas
prevaleceu.
João se opôs à união de Herodes Antipas e Herodias porque a lei judaica proi­
bia o casamento com a esposa do irmão enquanto ele ainda estivesse vivo (veja
o comentário em Lucas 15.11,16 e 20.27-40; compare com Marcos 6.18). João,
ao que tudo indica, garante que tal articulação tornava Herodes ritualmente
impuro e também um fora da lei (Webb, 1991, p. 33,367). Tal pregação na
região da Pereia teria atrapalhado os interesses de Herodes naquela localidade.
Não é de surpreender que Herodes não tolerava tal conduta de um populista
que conseguia reunir grandes multidões. Os nabateus que moravam na Pereia
sentiram grande ofensa pelo desprezo de sua casa real e, sem dúvida, apoiaram
a agitação de João contra Herodes. Isso levou a uma instabilidade política na
região. Não obstante, Herodes piorou a situação, colocando João na prisão (v.
20). Josefo diz que Herodes agiu contra João porque temia uma revolta lidera­
da por João (A nt. 18.5.2, §118).

A PARTIR DO TEXTO

O batismo do arrependimento e a ênfase sobre a ética andam lado a lado


na mensagem de João. Os dois formam uma ligação inseparável em sua prega­
ção sobre a experiência religiosa. A prova do arrependimento pessoal é uma
reforma ética; e um comportamento reformado é a marca do verdadeiro ar­
rependimento. Estes são os impulsos da mensagem de João: a reforma ética é
um imperativo de redenção, e a judeidade (ou ser descendente de Abraão) é
insignificante se o comportamento pessoal (e corporativo) for “torto”.
A santidade pessoal é a fundação da santidade corporativa. E é essa santi­
dade corporativa que torna um povo preparado para o Messias. João preparará
“o caminho do Senhor” ao preparar o coração do povo para o aparecimento
131
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

de seu Salvador. As pessoas precisam apresentar uma santidade pessoal e cor­


porativa, a fim de serem preparadas para a vinda do Messias. Além do mais, a
convicção de que o arrependimento e a reforma ética devem ser reestabelecidos
como o centro da autocompreensão de Israel está implícita na mensagem de
João.
Zacarias profetizou que o ministério de João capacitaria o povo de Deus
a servi-lo “sem medo, em santidade e justiça, diante dele todos os nossos dias”
(1.74,75). Ele profetizou ainda que João iria diante do Senhor “para dar ao
seu povo o conhecimento da salvação, mediante o perdão dos seus pecados”
(v. 77). E ntão, a luz do alto aparece. Por extensão, o arrependimento começa
a abrir a porta para a comunidade do Messias e para os gentios que também se
arrependerem.
A parte central de Lucas transmite a mensagem da salvação para o peniten­
te. Nos capítulos 5— 19, todas as principais personalidades encenam reformas
éticas e arrependimento pessoal — todas elas são pecadoras: Pedro, o pescador
(5), o publicano Levi (5), a mulher pecadora que unge os pés de Jesus (7), o
filho pródigo (15), o publicano (18) e Zaqueu, o coletor de impostos (19). Em
todos esses casos, os personagens são exemplos perfeitos de corações penitentes
produzindo b o n sfru to s (3.8).
O corpo principal do Evangelho é, em certo sentido, uma vitrine para as
diferenças entre os pecadores penitentes e os religiosos soberbos. Com uma
inesperada ironia, somente os perdidos no pecado reconhecem e reagem à
mensagem de Jesus. A inclusão dos gentios nessa salvação é o foco do segun­
do volume da obra de Lucas, Atos dos Apóstolos. Contudo, as sementes estão
aqui, no terceiro Evangelho.

B. O batismo de Jesus (3.21,22)

POR TRÁS DO TEXTO


Anjos e profetas anunciaram o nascimento de Jesus e o de João nos pri­
meiros dois capítulos. Porém, a posição de Jesus como o Filho de Deus é anun­
ciada por uma voz do céu em Seu batismo. Os anúncios do nascimento são
proféticos; mas a voz do céu é supraprofética — é a voz do próprio Deus. Isso
introduz um novo nível de autoridade narrativa, que desafia a fé baseada na
Torá. Se as questões fundamentais, como a identidade do Messias, podem ser
confirmadas por uma voz do céu, a Torá, como a base do judaísmo, é chamada
ao questionamento.
132
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

A identidade da comunidade de Lucas é uma questão de conjectura, mas


ele faz esse movimento significativo para longe da Torá como uma autoridade
solitária de fé sem explicação. Isso implica que o público de Lucas não é judaico
por tradição, mas provavelmente um público para o qual tal abnegação da Torá
é aceitável, como a comunidade dos gentios da diáspora.

NO TEXTO
I 2 1 - 2 2 Lucas, diferentemente de Mateus 3.13 e Marcos 1.9, não afirma
explicitamente que João batizou Jesus. Q u a n d o to d o o p o v o estava sen d o b a ti­
zado, ta m b ém J esu s o f o i (v. 21). Também não fica definido quem ouviu a voz
do céu. Em Mateus, é um acontecimento público — “Este é o meu Filho ama­
do” (Mt 3.17). Em Marcos e Lucas, parece ser uma epifania pessoal — “Tu és o
meu Filho amado”. Existem poucos detalhes no relato de Lucas, comparados a
Mateus e Marcos. Embora minimize sua natureza pública, ele retém a essência
do fato — uma autenticação divina da posição de Jesus.
Essa afirmação divina introduz uma nova informação na narrativa. Os leitores
já sabem da identidade de Jesus como o Filho do Altíssimo (1.32,76), o Filho
de Deus (1.35) eo Salvador da casa de Davi (1.69; 2.11). Nós já sabemos sobre
o batismo (3.3,7). E o Espírito Santo tem sido uma força ativa no decorrer
da narrativa (1.15,35,41,67; 2.25,26; 3.16). Todas essas características já estão
presentes na narrativa antes que Lucas narre o batismo de Jesus.
O que é diferente é o modo pelo qual todas essas características da narrativa
são unidas em uma cena sintetizadora; e a consolidação teológica acontece ali.
A partir dessa localização, a história se move agressivamente em direção ao
ministério de Jesus (veja Green, 1997, p. 186). Dois outros detalhes precisam
ser observados.
Primeiro, na cena onde uma interferência da teologia trinitária pode, pela pri­
meira vez, ser discernida no Evangelho, o fato é autenticado por uma voz do
céu (B at Q ôl). O Pai fala do céu; Jesus, o Filho, é batizado na terra; e o Espírito
Santo media a presença de Deus. A voz celestial é a suprema e incontrovertível
testemunha da revelação de Deus. Essa é uma n ova palavra de Deus, acima e
além das formas passadas de revelação. Ironicamente, isso confirma a verdade
dos pronunciamentos passados do AT sobre o advento do Messias.
Segundo, o tema trinitário nunca antes manifesto nos Evangelhos pode ser
mais desenvolvido em Lucas, com base nesse fato fundamental. Por exemplo,
os leitores são preparados para enxergar o Filho como um representante do
Pai no tempo vindouro (9.26). A descrição íntima do relacionamento Pai/
133
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Filho em 10.21,22 parece uma parte natural da teologia em desenvolvimen­


to, considerando-se o que sabemos sobre o início de Jesus (também 22.29,42;
23.34,40). No final do Evangelho, todas as três pessoas estão presentes na as­
censão: “Eu lhes envio a promessa de meu Pai; mas fiquem na cidade até serem
revestidos do poder do alto” (24.49). Uma teologia trinitária implícita foi in­
diretamente idealizada na narrativa.

A B a tQ ô l

A B a tQ ô l, lite ra lm e n te a "filha de um a voz", era um a convenção bem


conhecida no jud aísm o (Gn 2 1 .1 7 ; 2 2 .1 1 ). Q uando a profecia declinou
após o exílio, a voz celestial foi considerada por alguns com o sendo a nova
form a de com unicação profética. A voz do céu re p resentava a suprem a re­
v elação para as questões alé m do alcance da razão. Os rabinos som ente
d ariam ouvidos a um a ostensiva B a tQ ô l quando não "p udessem ou nunca
conseguissem alc an ç a r a conclusão pela força [deles] da a rg u m e n ta ç ão e
da razão" (U rbach, 1 9 8 7 , p. 3 0 1 ). Se aceita com o a u tê n tic a , tal voz seria
um a au to rid a d e contra a qual nenhum a rg u m e n to poderia ser levantado.
Ainda assim , os sábios q uestio navam se um a voz do céu poderia le­
g itim a m e n te resolver as disputas. Afinal, os profetas h aviam recebido a
s e m e n te de seus ensin am ento s no Sinai, por interm édio de Moisés. A B at
Qôl, por sua própria n atu reza, d esafiava a visão de que as escritas dos
profetas era m invioláveis. Se a tradição profética pudesse ser superada
por um a B a tQ ô l , e ntão a p erm an ência do jud aísm o baseado na Torá seria
o b v ia m e n te c h a m a d a ao q uestio nam ento.
Em certa história rabínica, o próprio Senhor apareceu no fundo de
um a sala cheia de sábios que e s ta v a m discutindo um ponto da Torá.
Q uando Ele levan tou Sua voz para o fe re c e r um a interp retação , os rabinos
p ed iram que Ele se calasse, dizendo: "Você nos deu a Torá, agora deixe
que nós a in te rp re te m o s !". A Torá veio de Deus, m as a in terp retação dela
era o d ireito de p rim o gen itu ra de Seus filhos! É fácil e n x e rg a r por que a
afirm ação cristã sobre a voz do céu, designando Jesus com o o Messias,
era polêm ica para os jud eus tradicionais e por que as histórias rabínicas
quanto a isso surgiram no período pós-destruição.

O Espírito que desceu (v. 22) é descrito por Lucas como sõm atikõi, em forma
corpórea. A forma corpórea desceu (hõs peristeran ) como uma pomba. Isso
significa que o Espírito veio, não na imagem de uma pomba, mas planando
134
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

como uma pomba. Em Lucas, há uma tendência geral de descrever o Espírito


em termos de localização física. O Espírito “cobrirá” Maria (1.35). Agora o
Espírito desce (3.22) como um ser angelical, planando lá de cima para pousar
em Jesus.
Essa descida do Espírito Santo deve ser lida no contexto das passagens em que
Zacarias, João, Isabel e Maria foram cheios do Espírito Santo. Ali, os visitan­
tes angelicais anunciaram o Cristo e concederam o Espírito (1.15,35,41,67;
2.25). No entanto, aqui, no batismo de Jesus, o Espírito foi visto invadindo-o
corporalmente, uma imagem muito mais intensa. Não há como sabermos se
essa experiência “inaugurou” o sentimento de filiação de Jesus ou se foi uma
“culminação” de um longo processo (veja Dunn, 1975, p. 62-67). Todavia, da
perspectiva da narrativa, essa é a finalização do ministério de João e o início do
ministério de Jesus.

A VOZ DO CÉU
B ^ S a l m o 2.7 ___ ® li Isaías 4 2.1
hi i f f f i r r ^ — —• >5 .. -H l -

Tu és meu filho; eu hoje Eis o m eu servo, a quem Eis o m eu servo, a quem


te gerei. sustento, o m eu escolhido, sustento, o meu escolhido,
em quem tenho prazer. em quem tenho prazer.

A voz do céu diz: Tu és o m eu F ilho a m a d o ; a le g r o -m e co m v o c ê ! (v. 22). Dois


textos do AT parecem informar a expressão dessa voz. O Salmo 2.7 é consi­
derado por muitos como sendo um dos textos-chave por detrás do uso da ex­
pressão “Filho de Deus”, no NT, em geral, e em Lucas 3.22a, em particular.
Contudo, a frase no Salmo está longe do profundo título que isso se torna no
NT. Gênesis 6.2; Deuteronômio 14.1; 2 Samuel 7.14; Jó 1.6; 2.1; 38.7; Salmos
29.1; 82.6; Oseias 2.1 e outros textos também podem ter influenciado esse uso
no NT (Fitzmyer, 1997, 2:103-107).
Sob a influência do Salmo 2.7, alguns escribas do texto ocidental alteraram
o texto de Lucas para que se diga: “Eu hoje te gerei” (Metzger, 1975, p. 136).
Lucas 3.22 também parece refletir a linguagem de Isaías 42.1a: “Eis o meu ser­
vo, a quem sustento, o meu escolhido, em quem tenho prazer” (também 2 Sm
22.20). A combinação de ideias unidas por Lucas “não é sem precedente no
judaísmo” (Marshall, 1978, p. 156). Porém, o mais provável é que isso repre­
sente uma ousada mudança, por parte dos cristãos, para apropriarem-se de um
profundo título para Jesus (Fitzmyer, 1997, 2:103, citando Bousset).
135
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Green capta a significância panorâmica da expressão: “Aqui, Lucas demonstra


Jesus recebendo a Sua vocação divina; a Sua capacitação pelo Espírito Santo;
o Seu status como um representante de Davi, de Abraão e, aliás, de toda a hu­
manidade; e Sua firme solidariedade com o propósito de Deus” (1997, p. 184).

C. A genealogia de Jesus (3.23-38)

POR TRÁS DO TEXTO


Há duas genealogias no NT. Ambas ocorrem nas seções introdutórias de
seus respectivos Evangelhos, Mateus e Lucas. Ambas são derivadas de fontes
disponíveis somente para aquele autor, e elas são bem diferentes. As genea­
logias modernas fornecem informação sobre a ascendência para satisfazer a
curiosidade dos descendentes. O propósito das genealogias bíblicas é mais es­
pecializado. Primariamente, elas conectam os indivíduos aos seus ancestrais, a
fim de estabelecer seu status e os direitos de herança e assegurar, assim, a legi­
timidade dentro da comunidade. Tais questões eram importantes em culturas
na quais o parentesco era o princípio organizador da sociedade (veja 15.11­
16 sobre o parentesco). Em termos de valor histórico, as genealogias antigas
podem variar de construções factuais a vastamente simbólicas, que concedem
uma substancial liberdade quanto à sucessão e às datas.
Existem dois tipos de genealogias: segmentada e linear. O primeiro é como
uma árvore genealógica e tende a abarcar quatro ou cinco gerações. Esse tipo
estabelece a igualdade ou a superioridade de classificação entre as pessoas das
gerações recentes. As genealogias de Jesus são as do segundo tipo, o linear. Elas
são simples listas que estabelecem uma conexão profunda com os ancestrais.
No caso de Mateus, ela liga Jesus a Abraão. No caso de Lucas, a conexão per­
corre todo o caminho até Adão, filh o d e D eus. Como tal, ambas as genealogias
possuem uma grande profundidade, ou penetração na história, mas elas ofere­
cem pouca coisa em forma de conteúdo histórico verificável.

NO TEXTO
I 2 3 - 3 8 Como uma introdução à Sua genealogia, somos informados de que
Jesus tinha cerca de trinta anos de idade quando começou seu ministério (v.
23). Doze anos era a idade da passagem para a idade adulta na cultura judaica.
136
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

Trinta anos era a idade da autoridade {m. Avot 5:21; Lc 4.6).


Esse marco cronológico ecoa a menção da idade de doze anos de Jesus em 2.42.
Lucas não muda a cena temporal tão abruptamente como Mateus, que tem
uma lacuna de 30 anos entre o nascimento de Jesus e o Seu ministério adul­
to. Ainda assim, o salto de Lucas, de 18 anos no tempo, é significativo. Pode­
mos até esperar encontrar tais liberdades na literatura épica daquele período.
Contudo, o gênero do Evangelho toma liberdades literárias semelhantes, sem
preocupar-se que a lacuna possa diminuir a nossa compreensão da mensagem.
Muitos já estudaram as genealogias bíblicas. As tentativas de reconciliar seus
conteúdos com as histórias não têm obtido êxito (veja a pesquisa em Fitzmyer,
1981,1:488-498). Marshall chama os problemas das genealogias de “insolúveis
com as evidências atualmente ao nosso dispor” (1978, p. 159). Johnson consi­
dera as explorações da historicidade das genealogias “fúteis ou até presunçosas”
(1991, p. 72).
Em termos gerais, a de Lucas tem 76 nomes; a de Mateus tem 42. Os nomes em
Lucas estão listados em ordem crescente; em Mateus, decrescente. Onde as lis­
tas cobrem o mesmo período de história bíblica, elas concordam em 12 nomes,
desde Abraão até Davi, mas somente em dois nomes de Davi até José. Marshall
revê as diversas soluções propostas para essas discrepâncias, sem adotar uma
solução (1978, p. 157-161).
Wesley observou que, apesar das dificuldades técnicas da genealogia, “a grande
questão em vista” é que Jesus é o prometido da semente de Abraão (Wesley,
1981, vol. 1, notas em Mt 1.1). Mateus e Lucas traçam de Jesus a Davi, sucessi­
vamente, até Abraão. Essas conexões são centrais às reivindicações de herança
que têm sido importantes para Lucas na história até então. Recorde-se do cui­
dado que Lucas teve para estabelecer as credenciais familiares e sacerdotais de
Zacarias e Isabel (1.5). Aqui, Lucas conclui sua genealogia com a memorável
frase filho de Adão, filho de Deus (3.38).
O propósito da genealogia de Lucas é conectar o ministério de Jesus às gerações
mais amplas de Adão, o pai de toda a humanidade, em vez de apenas aos filhos
de Abraão (3.6; Brower, 2005, p- 17). Esse é um dos pontos mais significativos
que podem ser defendidos sobre a extensão feita por Lucas na genealogia de
Jesus até às origens da família humana.
Nessa estrutura narrativa mais ampla, a genealogia de Lucas possui outra fun­
ção. Enquanto a genealogia parece interromper o fluxo da narrativa, ela ver­
dadeiramente solidifica a linhagem que Lucas estabeleceu com cuidado: Jesus
nasceu dentro da nação judaica. Ele é um fiel membro dessa comunidade, assim
como todos ao Seu redor. Suas credenciais como profeta e herdeiro de Davi
(por intermédio de José) são impecáveis. No âmbito mais amplo da história,
essa linhagem justifica o papel de Jesus como crítico e reformador da fé. Isso
137
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

significa que Seu convite para a reforma vem de dentro da comunidade.


A localização da herança de Jesus dentro da família humana também tem sig-
nificância para a Sua vinda. As raízes humanas, físicas, de Jesus estendem-se de
modo profundo, até a família ancestral de Abraão. Isso testifica de Sua huma­
nidade e identifica Jesus como alguém que participa sobremaneira em nossa
condição humana (veja Brower, 2005, p. 47,51). Teologicamente, toda cristo-
logia procede desse fundamento.

138
III. 0 MINISTÉRIO DE JESUS NA GALILEIA: LUCAS 4.1­
9.50

A. O início do ministério (4.1—5.11)

1. A provação de Jesus (4.1-13)

POR TRÁS DO TEXTO


No decorrer da história bíblica, Deus tem testado a lealdade de Seus ser­
vos. Os nomes desses indivíduos evocam imagens diferentes na mente do lei­
tor: Adão e sua “maçã”, Noé e sua arca absurda, Abraão e o sacrifício de seu
filho, Jó e seu sofrimento, Moisés e suas dificuldades insuperáveis, Elias e sua
rival Jezabel com seus profetas de Baal, Isaías e seus implacáveis adversários,
Jonas no fundo do oceano, e a nação de Israel, perdida em seu próprio deserto
por 40 anos.
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Todas essas são figuras centrais na história bíblica e fornecem um valioso


contexto intertextual para a provação de Jesus. A maioria passa por algum tipo
de deserto, seja literal (Moisés e Elias) ou figurado (Adão, Jó, Noé e Jonas).
A maioria, eventualmente “passa” no teste de fidelidade a Deus, mas não sem
momentos de fraqueza. Outros parecem fracassar completamente. Na maio­
ria dessas histórias, o futuro da comunidade de Deus pesa na balança (com
exceção de Jó). Alguns desses elementos estão presentes na provação de Jesus.
Contudo, nenhuma dessas histórias fornece um paralelo exato para a Sua ex­
periência no deserto.
Jesus é “tentado” no deserto após o Seu batismo (v. 2). A NVI traduz
peiraz õ como tentar; mas o contexto da história sugere testa r como uma me­
lhor tradução aqui. Um teste é um tipo de procedimento analítico designado
a medir o desempenho; e em qualquer teste real existe a possibilidade de um
fracasso. Jesus passou por três desses testes de fidelidade a Deus nas mãos do
diabo. Cada teste vem de uma fonte externa, e não de um “conflito interno”
(Fitzmyer, 1981, 1:510).
O ponto da narrativa não é que Jesus pode resistir à tentação de pecar; Ele
não renuncia seriamente, até onde a narrativa indica. Ele acabou de ser batiza­
do e ungido pelo Espírito Santo; e uma voz do céu proclamou que Ele é o Fi­
lho de Deus (3.21,22). Neste contexto, a questão parece ser que Jesus deve de­
monstrar Sua prontidão de assumir Sua função como o Messias. A experiência
do deserto não é um teste da moral de Jesus, mas um teste de Sua “competência
de desempenho” (Green, 1997, p. 191). A fidelidade a Deus é a qualificação
primária. E neste sentido que a história da provação de Jesus se alinha intertex-
tualmente com os outros personagens bíblicos.
A identidade de Jesus como o Filho de Deus não o isenta da provação e do
sofrimento. Sua identidade é, aliás, a causa de Sua provação. Lucas apresentou
o advento de Jesus como uma parte integral do propósito de Deus na história.
Mas o fato de Ele ter-se feito homem o expõe à queda da humanidade, incluin­
do o potencial para o pecado e a desobediência.
Em nenhum momento da provação, Jesus parece estar em perigo de su­
cumbir ao teste do diabo quanto à Sua lealdade. Não obstante, o teste é real.
Isto é, pode haver um fracasso. Se este não for o caso, não há nenhum mérito
em passar no teste. Se passar é inevitável, a narrativa da apresentação da huma­
nidade de Jesus está reduzida à mera aparência. Em todas essas questões, Lucas
permanece silencioso, deixando o trabalho teológico para os seus leitores.
Em 3.21—4.13, Lucas brevemente cria um mundo histórico paralelo no
qual os poderes espirituais vêm à tona na narrativa. Este mundo paralelo é um
140
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

mundo no qual Jesus é uma figura recessiva. O Seu personagem é ofuscado em


um desafio arranjado para Ele pelas potências espirituais dominadoras.
A genealogia interveniente (3.23-38) parece fora de lugar inserida em um
segmento do texto tão centrado no espiritual. Por um lado, o propósito da ge­
nealogia é estabelecer a importância ancestral de Jesus, os direitos de herança e
a legitimidade dentro da comunidade de Abraão. Por outro lado, a presença da
genealogia aqui na narrativa tem a intenção de indicar que Jesus não é apenas
um profeta carismático. Ele é o profeta da casa e linhagem de Davi em quem a
herança e a aprovação divina convergem. Diferentemente de Mateus, que traça
a genealogia de Jesus até Abraão (Mt 1.1), Lucas rastreia a linhagem retroce­
dendo até o filho de Adão, filho de Deus (3.38). Esta é a potente combinação
que todo o Israel estava esperando.
Assim como todos os testes, a provação de Jesus no deserto foi administra­
da por outros. Ele é entregue ao diabo pelo Espírito Santo (4.1) para um teste
de Sua lealdade aos propósitos de Deus. Esta identidade recessiva indica que
Jesus é, pelo menos temporariamente, retratado como um agente de Deus, e
não como uma entidade independente. Que Ele é um agente de Deus em Seu
“papel central e ativo” no evangelho e a “raiz da identidade de Jesus em Lucas/
Atos” (Green, 1997, p. 191).
Embora possa parecer muito ao contrário em certos pontos na história
mais ampla do evangelho, a pergunta ainda permanece: quem é o verdadeiro
protagonista, o ator principal? Será que é o Espírito (como em 4.1) ou Deus
(como em 1.19) ou Jesus, ou mesmo o diabo (como em 4.3)? Deus é, em
última análise, o principal protagonista do mundo histórico. Mas Ele está
também profundamente velado na maior parte do tempo na narrativa. Como
ali na provação, outros protagonistas dão um passo à frente em determinados
pontos para assumir temporariamente o papel principal.
A linguagem de 4.1-13 diz respeito ao equilíbrio do poder. Jesus não deci­
de entrar no deserto; Ele é “levado” para lá pelo Espírito. Marcos 1.12 chega ao
ponto de dizer que o Espírito “o impeliu” (ekballei). Uma vez no deserto, Jesus
é “conduzido” pelo diabo, que controla todo o encontro.
Lucas emprega uma caracterização plana de Jesus aqui. Não há ambiguida­
de nem tensão de um propósito oscilante. Ele é uma figura estoica, impassível
em uma luta. O diabo também é plano na caracterização. Ele só quer uma coisa
- desviar a lealdade de Jesus a Deus para si mesmo. Além do mais, tanto Jesus
como o diabo são agentes representando os interesses de seus reinos espirituais
invisíveis e conflitantes; eles não agem como entidades independentes.
141
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

O diabo tem o seu grandioso momento na provação do deserto. Mas sua


presença pessoal logo recua na narrativa. Ele não se retira da história, mas vai
para o “subterrâneo” trabalhar por intermédio dos antagonistas humanos
e espirituais de Jesus, ironicamente, incluindo Seus discípulos Judas e Pedro
(22.3,31; compare também com Mateus 16.21 ||Marcos 8.31). Ele ressurge na
narrativa da paixão na sedução de Judas (22.3; veja Pageis, 1995, p. 90).
A tentação de Adão tem sido proposta como uma lente interpretativa para
a tentação de Jesus no deserto (por exemplo, Neyrey, 1985, p. 165-184; Evans
e Sanders, 1993, p. 36-45). Se o encontro com o diabo é visto como uma insti­
gação ao pecado em um sentido sedutor, Lucas (assim reivindicam) lança Jesus
como o novo Adão. Ele enfrenta um teste como o do jardim quanto à Sua obe­
diência a Deus. A serpente testou Eva no jardim: “Foi isto mesmo que Deus
disse: ‘Não comam de nenhum fruto das árvores do jardim’?” (Gn 3.1). Jesus
é ten tado a pecar, como o novo Adão com uma nova “maçã”. O fruto proibido
não é o conhecimento, como foi com Adão, mas a hegemonia do mundo.
O sucesso de Jesus ao passar no teste garante a redenção da humanidade
da queda original, levando-o à cruz e também vencendo o pecado de Adão
que nos escraviza. Nesta leitura, Jesus, o segundo Adão, reverte o grave erro do
primeiro homem com Sua justa resistência ao diabo. “Mas, diferentemente de
Adão, cujo fracasso resultou em derrota e morte pelas mãos de Satanás, o su­
cesso de Jesus resulta em vida (cf. 1 Co 15.45)” (Evans e Sanders, 1993, p. 45).
Outros autores enxergam a narrativa de Lucas pelas lentes da história de
Israel (Tannehill, 2005, p. 125-144). O sacrifício de Abraão quando ofereceu
Isaque é um intertexto significante (Gn 22.1-14). O compromisso de Abraão
para com Deus é testado pela ordem de oferecer seu filho como sacrifício:
“Passado algum tempo, Deus pôs Abraão à prova” (Gn 22.1; Hb: nsa, LXX:
peirazõ). Deus testa Abraão para determinar se o seu compromisso é genuíno,
se ele está qualificado a ser o pai de muitas nações. Após impedi-lo de matar
seu filho por uma voz celestial (Eat QôU sugestiva de Lc 3.22), Deus reafirma
Sua promessa de fazer uma grande nação a partir de Abraão (Gn 22.15-19).
O patriarca de Israel passa no teste de sua lealdade na inauguração da aliança.
A experiência de Jesus no deserto é um teste inaugural de Sua lealdade e
aptidão para a Sua filiação. Abraão inaugura a primeira aliança por meio de um
teste sacrificial de seu filho, e Deus inaugura a segunda ou a nova aliança por
meio de um teste de Seu próprio Filho (veja 1.55,73; 3.8,34, onde a história de
Abraão é fundamental ao advento de Jesus).
A peregrinação de Moisés e do povo de Israel no deserto é outra instância
de um “teste” de um personagem bíblico (Dt 8.2; novamente Hb: nsas e LXX:
142
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

ekpeirazõ\ veja Green, 1997, p. 192). Israel é o “filho primogênito” de Deus (Êx
4.22) assim como Jesus é o Filho de Deus. Ambos são testados pelo Pai. Deu-
teronômio 8.2 diz, “Lembrem-se de como o Senhor, o seu Deus, os conduziu
por todo o caminho no deserto, durante estes quarenta anos, para humilhá-los
e pô-los à prova, a fim de conhecer suas intenções, se iriam obedecer aos seus
mandamentos ou não”. Os temas de ser guiado pelo deserto por 40 anos/dias
(veja Êx 16.35; 24.18) e testados estão presentes em ambas as histórias. Jesus
mesmo cita Deuteronômio 6.16 ao diabo (Lc 4.12: “Não ponha à prova o Se­
nhor, o seu Deus”) comparando Sua própria provação com as lutas de Israel no
deserto.
As diferenças entre Jesus e Israel são simplesmente impressionantes. A
questão de Lucas pode muito bem ser que Jesus passou no teste do deserto,
enquanto que Israel não passou. Logo, Jesus mostra-se obediente à chamada
de Deus e preparado para assumir Suas obrigações como o Messias (Green,
1997, p. 193; Fitzmyer, 1981, 1:510). Além do mais, a peregrinação de Israel
no deserto é um castigo por sua culpa de desobediência (veja Js 5.6). Este não é
o caso de Jesus nem de Abraão; ambos são inocentes.
Jó é outro personagem que pode fornecer alguma base intertextual para a
provação de Jesus. (Bock [1994, p. 364] chama Jó de “o paralelo mais próximo
do AT”. Mas ele insiste que a provação de Jesus é um incidente “sem preceden­
tes” na literatura bíblica). Jó é um dos pagãos piedosos da Bíblia, semelhante a
Melquisedeque, aos marinheiros de Jonas e o rei de Nínive, e a Ciro, rei da Pér­
sia. A pergunta global do livro de Jó é filosófica em tom e é representada pela
indagação do adversário: “Será que Jó não tem razões para temer a Deus?” (Jó
1.9). Tanto Jó como Jesus são figuras inocentes, presumidas puras por Deus.
Ambos emergem vindicados da provação; Jesus, porém, mais do que Jó.
O mais impressionante é a “negociação” fechada pelo adversário (Hb: stn ,
Satanás; LXX; diabolos) e Deus em Jó. Será que o Espírito Santo e o diabo (ho
diabolos) semelhantemente cooperaram em Lucas ? Em Jó, a negociação é ex­
plícita (Jó 1.6-12). Em Lucas, ela é implícita. Isto é, a negociação entre Deus e
o diabo se deu fora do palco, antes do encontro com Jesus. Mas o Espírito clara­
mente leva Jesus para o deserto. A conduta de Jesus em Seu deserto poderia ser
considerada o supremo exemplo de piedade altruísta. Jó falhou de alguma for­
ma (Jó 3), mas Jesus permaneceu firme em Sua lealdade e obediência a Deus.
Em termos da estrutura de Lucas 3.T I 3, Lucas usou duas características.
A primeira é uma série de contrastes usados para elevar o drama da cena da
provação. A segunda é um evento, uma fala e uma estrutura de resposta.
143
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Contrastes de j p rrativ&usados por Lucas nas cenas da provação


lisísLjâfcJleL
Jesus le va d o p elo E sp írito (v. 1) Jesus le v a d o p elo d ia b o (v. 5)

Jesus c h e io d o E s p í n t c l f ^ I \ Jesus te s ta d o p e lo d ia b o (v. 2 ^

O rio Jordão (v. 1)

Jesus "c h e io " do

Pão (v. 3)

Q u a re n ta d ia s {v. 2)

Para cim a (v. 5,9) Para b aixo (v. 9)

A apresentação das provações é estereotipada. Apesar da natureza sobre­


natural dos testes, o estilo da narrativa é realístico. Lucas não dá nenhuma in­
dicação de que isso seja um sonho ou uma visão. Os acontecimentos de 40 dias
são condensados em uma breve passagem; e há um sentimento de estar sendo
empurrado em uma experiência caótica. O tempo passa rapidamente. O trata­
mento dessa narrativa é bem diferente do passo vagaroso que Lucas usou nos
textos de Maria e de Isabel.
Da perspectiva sinótica, Mateus e Lucas usaram sua fonte Q para expandir
o breve tratamento de Marcos sobre as provações em Marcos 1.12,13 (veja Fit-
zmyer, 1981, 1:506-308). Mateus e Lucas variam a ordem das três provações.
Mateus coloca o desafio de provar a Deus pulando do pináculo do templo em
segundo lugar; Lucas coloca-o em terceiro. Isso permite que Lucas, como sem­
pre no Evangelho, conclua a cena em Jerusalém. Além disso, os tratamentos em
Mateus e Lucas são essencialmente os mesmos.

NO TEXTO

I 1 - 2 Jesus voltou do Jordão (v. 1), a região sudeste de Jerico onde Seu ba­
tismo aconteceu (veja 3.3). Uma tradição do sétimo século localiza a provação
144
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

nas montanhas áridas acima de Jerico, ao nordeste de Jerusalém. O famoso


monte da Tentação é visto de longe acima de Jerico. Com os temas da peregri­
nação no deserto e do jejum, a tentação de Jesus há muito tem sido um texto
tradicional para a época da quaresma, um período de jejum por 40 dias antes
da Páscoa.
O cenário da narrativa contrasta a exuberância do rio Jordão com a esterili­
dade da montanha deserta. Nós recordamos que João havia acabado de pro­
fetizar que os caminhos do Senhor seriam endireitados no “deserto”, que as
montanhas seriam aplanadas e que os vales preenchidos em (3.3-6). O convite
metafórico de João para a conquista das montanhas e vales ocorre com a bata­
lha de Jesus contra o diabo. Isso acontece no deserto e nas montanhas em torno
de Jerico, um cumprimento parcial das palavras de João.
E dito que Jesus é imediatamente ch eio d o E spírito S an to e lev a d o por este.
Contudo, Ele também é ten ta d o p e lo dia b o. A narrativa apresenta essas duas
polaridades: o Espírito Santo e o diabo. Eles parecem ser atores em um palco
humorístico, enfrentando uma batalha com Jesus no centro. Os leitores não
conhecem nada sobre a pessoa de Jesus nesse ponto do texto. Ele é descrito em
termos vagos - nós sabemos apenas que Ele tem “fome” e que “responde” ao
diabo. O Seu personagem somente fica mais complexo na narrativa quando a
provação do deserto termina e Ele entra em Nazaré.
O teste é conduzido pelo diabo. Mas não é um evento dualístico no sentido de
que os poderes do bem e do mal sejam iguais. E um acontecimento monoteís-
tico, no qual a disputa é supervisionada pelo Espírito, o representante de Deus
na história. Assim como em Jó, a supremacia não está em dúvida na narrativa.
Tampouco parece haver uma séria possibilidade de que o plano de Deus seja
descarrilado por uma derrota pelas mãos do diabo (Kingsbury, 1991, p. 14).
Ainda assim, teologicamente, o potencial fracasso do Messias precisa ser real,
como qualquer teste verdadeiro (veja Brower, 2003, p. 51). De outra forma, a
narrativa não teria força moral.
O diabolos não é um sumo sacerdote do mal aqui. Ao contrário, ele é um
antagonista segundo o estilo de Satanás no A T:
• Na história de Jó (Jó 1.6), ele é um caluniador ou adversário, aquele que
serve à função de cético da corte e de encrenqueiro (Jó 1; 2). Ele é como
o advogado do diabo [lat: advocatus diabolic\ no processo de beatificação
no catolicismo romano, cujo trabalho é levantar objeções à concessão da
beatificação (Cline, 1989, p. 25).
• Podemos também comparar Zacarias 3.T5, no qual Satanás levanta-se
para “acusar” o sumo sacerdote Josué na presença do anjo do Senhor.
145
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Semelhantemente, em 1 Crônicas 21.1, Satanás “incitou” Davi a realizar


o recenseamento. Esses três incidentes representam a atividade de Satanás
no AT: ele “testa, ele acusa, ele desencaminha” (Garrett, 1989, p. 39).
Em Jó, S ata n ás fica d en tro da corte celestial como um oficial cínico. Para ele,
a preeminência do bem não é um fato aceito. O diabolos na provação de Jesus
não aceita que o bem seja incorruptível. Ele acredita que até Jesus pode ser
corrompido por recompensas vulgares. Ele é perigoso para Jesus, não simples­
mente porque é sobrenatural, mas porque ele é tão inteligente (Pageis, 1995,
p. 39). O que ele diz faz perfeito sentido, especialmente para aqueles a quem a
experiência diz que o bem está em falta no mundo.
Em Jó 2.4, Satanás desempenha o seu papel perfeitamente, “Pele por pele!”,
respondeu Satanás. “Um homem dará tudo o que tem por sua vida”. Assim
como em Jó, a provação de Jesus é orquestrada por Deus. E um teste no qual
D eus deve demonstrar que o Filho consegue passar. O diabo é meramente um
instrumento no procedimento. Na narrativa de Abraão, a função do teste é
praticamente a mesma. Mas a importante diferença é que o próprio Deus assu­
me o papel de adversário.
Lucas usa o termo ho satanas como um nome próprio cinco vezes em seu Evan­
gelho (10.18; 11.18; 13.16; 22.3,31). Mas ele usa ho diabolos aqui no capítulo
4 (v. 2,3,5,9,13). Este uso parece mais aproximado do acusador impessoal/ad-
versário/caluniador, o Satanás, de Jó e do AT em geral.
No período chamado de intertestamentário, o primeiro uso conhecido da pala­
vra Satanás como nome próprio éJub. 23.29 zAs. Mo. 10.1 no segundo século
a.C. Mas, nos apócrifos do AT e pseudoepígrafos, as referências a esses tipos de
personagens aumentam em número. Isso estava, provavelmente, debaixo da in­
fluência da religião persa, com a qual os judeus tiveram contado durante o exí­
lio (Hamilton, 1992, p. 988). Nessa literatura, uma vasta variedade de termos
é usada para descrever personagens demoníacos, e Satanás como nome próprio
é encontrado somente ocasionalmente. Os termos ocorrem somente três vezes
na literatura Qumrã (1 QHa 4.6; 45.3; 1QS 1.8; veja mais em Hamilton, 1992,
p. 987-989) e nunca como um nome próprio.

Provado no deserto: real ou roteirizado?


Será que a provação de Jesus no deserto foi um te s te real ou m e ra ­
m e n te um roteiro preordenado que Ele d everia d es e m p e n h a r no plano
divino? O retrato não m ostra n enhum indício de vacilo por p arte de Jesus.

146
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

Mas um Jesus p ie n a m e n te h um ano d everia te r sido um risco real de fra ­


casso no tes te de obediência. A fim de te r um a im portância teológica e
prática para a igreja, a escolha de Jesus de v iv e r e m santidad e precisa te r
sido real. E ela é real s o m ente se o te s te foi real.
Isso te m im plicações para o papel de Jesus com o um exem p lo para os
cristãos. Jesus to rna-se para nós um m odelo de santidad e d e n tro de Sua
experiên cia h um an a (veja Brower, 2 0 0 5 , p. 18). Ele convida Seus seguido­
res à santidad e a p artir de sua posição dentro da h um an idad e, e não de
um local acim a e além da m esm a.
Jesus passou no tes te pela virtud e de Sua iden tid ade m essiânica
(3 .2 2 b ), m as ta m b é m por Sua unidade com o Espírito (4 .1 ,1 4 ). Isso con­
vida os discípulos a p ers e ve ra r no desafio às lealdades que e nfren tam os
por m eio da confiança no Espírito. Essa visão m uda o desafio da vida san­
ta focalizada na resistência às seduções da te n ta ç ã o (necessário q uanto
isso possa ser, às vezes) para um a vida de afirm ação ativa da v o n tad e de
Deus. Cada decisão nossa invoca a lealdade a Deus e o desejo de a n d a r
no cam inho para o qual Ele cham ou-nos.

O Espírito Santo não é mencionado nos v. 5-13. Em contraste ao Diabo, Ele


fica silenciosamente fora do palco enquanto Jesus esforça-se sozinho com Seu
protagonista. Na verdade, o Espírito Santo está sobre Ele (3.22), enche-o, e
conduze-o (4.1). Ele logo encherá Jesus com poder (4.14). Mas a disputa com
o diabo parece ser para que Jesus vença ou perca. Contudo, não é uma luta so­
zinho. Como agente de Deus, o Espírito também está presente com Jesus, mas
somente com um papel secundário, coadjuvante. A dignidade do livre arbítrio
é dada a Jesus. Ao mesmo tempo Ele sente a força da presença do Espírito.
Também se encontra na narrativa o contraste entre cheio (v. 1) e fome (v. 2).
Jesus está cheio do Espírito, mas de estômago vazio. A fome é uma das necessi­
dades mais viscerais do homem, e Jesus deve ter ficado no limite da resistência
humana. Os sobrevivencialistas podem dizer que, em condições extremas, o
homem consegue ficar três horas sem abrigo, três dias sem água e três semanas
sem comida. Chegando ao final dos 40 dias, a tentação de transformar a pedra
em pão (v. 3) chega a Jesus em um momento de extrema necessidade física.
Este é, portanto, o supremo teste de Sua humanidade. Ao passar nesse teste,
Ele mostra que a natureza física não comprometeu a presença divina de Jesus.
Ele, aliás, mostra para si mesmo que está acima da corrupção que acompanha o
homem. O teste é real e também o é a força moral da opção de Jesus de perma­
necer leal à vontade de Deus.

147
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

1 3 -4 O grego <1° versículo 3 é vago e as palavras do diabo têm o poder da


simplicidade: Se és o Filho de Deus. Esta é a primeira de três perguntas in­
troduzidas pela conjunção condicional “se” (v. 3: eiy v. 7: ean> v. 9: ei). Os ver­
sículos 3 e 9 indicam a questão da filiação em uma linguagem idêntica. Esse
sarcasmo é um desafio direto à B at Q ôl de Lucas 3.22 e parece calculado para
ferir e provocar um homem fraco.
O diabo é astuto. Enquanto Jesus está passando por uma fome como a de Êxo­
do, o diabo propõe uma solução divina semelhante ao maná, pão da pedra
(veja Green, 1997, p. 194). Como poderia o Filho rejeitar criar pão para si mes­
mo? Afinal, Deus salvou os israelitas miraculosamente, por que o Filho não
deveria ser salvo como nas promessas das Escrituras (SI 33.18,19; Dt 28.1-14)?
Mas Jesus se recusa a usar Sua posição divina para Sua autopreservação. Ou
seja, Sua recusa é sacrificial em natureza. Será que Sua oração a Deus pedindo
provisão diária mais tarde em Lucas 11.3 foi influenciada por Sua experiência
de fome no deserto ? A necessidade de subsistência não pode conduzi-lo (ou a
nós) para longe da vontade de Deus.
Considerando-se a fome de Jesus, o saciar seria o perfeito teste de Sua vontade.
Mas, contrariar as leis da natureza e transformar a pedra em pão, como o diabo
propôs, requereria que Jesus violasse a realidade de Sua condição humana, e
logo, falhasse no teste de Deus. A recusa de Jesus de agir em interesse próprio
demonstra que Sua experiência no Espírito nunca é voltada para Sua própria
vantagem. Ele anda no Espírito para trazer boas-novas ao pobre, e não glória e
alimento para si mesmo (4.18). Esta é uma significativa lição para a igreja cheia
do Espírito (At 8.18-20).
Jesus cita Deuteronômio 8.3 ao diabo: “nem só de pão viverá o homem, mas
de toda palavra que procede da boca do Senhor”. Esta passagem é do sermão de
Moisés a Israel nas ribanceiras leste do Jordão, não muito longe do monte da
Tentação. Ali, Moisés advertiu os israelitas dos perigos da conquista que eles
estavam prestes a realizar em Canaã. A progénie da nação e a ocupação da Terra
Prometida estavam dependentes da obediência aos mandamentos do Senhor.
Da mesma maneira, a inauguração do ministério de Jesus, Sua própria travessia
do Jordão, precisa vencer o teste de lealdade aos mandamentos de Deus.
H 5-8 O lugar alto (v. 5 a n a ga gon , lit. “conduziu-o para cima”) para o qual o
diabo leva Jesus é um cume, um lugar de onde se pode avistar ao longe. A nar­
rativa usa a imagem de ascensão para criar o clímax da cena. Aqui, novamente
está a fórmula: evento/fala do diabo/resposta bíblica de Jesus.
148
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

A turnê celestial de Jesus e o diabo possui um intertexto contemporâneo em


uma narrativa pseudoepígrafa do final do primeiro século d.C., o Testam ento d e
Abraão. Ali, o arcanjo Miguel é enviado por Deus para levar a alma de Abraão
aos seus pais em morte. Abraão recusa-se a ir e exige uma turnê no “mundo
inabitado”. Miguel coloca-o em uma carruagem, e eles flutuam sobre o mundo
onde veem todas as atividades humanas à mostra ( T A b. 10.1-15).
Aparentemente, o diabo leva Jesus em semelhante turnê circular por todos os
reinos do mundo (v. 5). A oferta do dom de toda a autoridade sobre eles e
todo o seu esplendor (v. 6) equivale ao que Deus já havia prometido a Jesus:
“seu Reino jamais terá fim” (1.33; veja SI 2.7,8). Esta é a parte do “evento” da
estrutura tripla. A condição para esse dom de autoridade e esplendor é austera:
Então, se me adorares, tudo será teu (v. 7). Mas Jesus permanece fiel à Sua
identidade de “Filho” (3.22). Ele alimenta-se da plenitude do Espírito que está
nele (4.1) e recusa aceitar esse atalho para a exaltação.
Em Sua resposta à oferta condicional, Jesus cita Deuteronômio 6.13, “Está
escrito: ‘Adore o Senhor, o seu Deus, e só a ele preste culto’” (Lc 4.8). Isso
refere-se à advertência aos israelitas para que recusassem a seguir outros deuses
na terra de Canaã, na qual estavam prestes a entrar. A “autoridade e esplendor”
na oferta “do Diabo” são comparados, figuradamente, aos falsos deuses de Ca­
naã. Não é que esses poderes sejam menos que real. Mas, o Senhor tem ciúmes
das afeições do Seu povo, assim como no Êxodo.

A PARTIR DO TEXTO
O perigo do mal às vezes é encontrado em suas semelhanças com o bem:
as predições de um falso profeta realizam-se (Dt 13.1-3); 666 é só um pouco
menor que a perfeição divina de 777 (Ap 13.18); o falso Messias exteriormente
parece ser uma figura genuína e facilmente mal interpretada como o verdadeiro
Messias (Lc 21.8; 2 Co 11.13-15). O perigo do mal é a forma como ele se mas­
cara como o caminho reto.
O diabo tenta Jesus para que burle as restrições de Sua natureza física ao
pegar um caminho mais fácil para a Sua legítima herança, e não aquele exigido
pela Sua humanidade. O destino é o mesmo; o diabo simplesmente e razoavel­
mente sugere, “Por que não pegar outro caminho ? O custo único é pequeno
- simplesmente adore-me”. O caminho para o maior bem envolve sofrimento
e dificuldade na história bíblica. Esse foi o caso de Jesus. E assim deve ser co-

149
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

NO TEXTO
1 9-12 O diabo leva Jesus para o pináculo do templo para testá-lo com outro
ato de autopreservaçao. O templo era o símbolo de tudo o que era sagrado no
judaísmo do primeiro século. A posição do diabo na parte mais alta (v. 9) am­
plifica a blasfêmia de seu sarcasmo. Isso também reitera o “lugar alto” do v. 5 e
ecoa a dúbia reivindicação do diabo à autoridade e à exaltação.
No duelo das citações das Escrituras, o diabo cita Salmo 91.11,12, Pois está es­
crito: “’Ele dará ordens a seus anjos a seu respeito, para o guardarem; com
as mãos eles o segurarão, para que você não tropece em alguma pedra’” (Lc
4.10,11). A resposta de Jesus é da mesma passagem de Deuteronômio 6 que Ele
havia citado no segundo teste. Dessa vez, a resposta é do v. 16: Não ponham à
prova o Senhor, o seu Deus.
O texto de Deuteronômio refere-se ao teste de Deus pelo povo de Israel em
Massá em Êxodo 17.1-7. Ali, o povo estava morrendo de sede e “testou” o Se­
nhor, exigindo saber, “O Senhor está entre nós, ou não?” Talvez, Jesus tenha
usado essa passagem para refletir um entendimento de que o pecado de Massá
foi a falta de confiança explícita no Senhor, independente de quão desespera­
do ra é a situação. A questão para Jesus, como foi anteriormente para os israeli­
tas, era a fidelidade a Deus.
BI 13 O diabo agora deixa Jesus até ocasião oportuna. O comentário parece
referir-se ao seu reaparecimento na narrativa da paixão na sedução de Judas
(22.3). Ao contrário, existe apenas uma breve referência a ele como um perso­
nagem na parábola do semeador (8.12). Do ponto de vista da narrativa, o dia­
bo está decisivamente e prontamente dispensado como um oponente bem me­
nos que formidável na história. Como diz Milton, o diabo “está bem perdido,
e todos os seus dardos já foram gastos”. A disputa dos cosmos estava bem longe
de ser perdida nesses testes. Jesus passou nesse teste estilo Êxodo com uma inal­
terável fidelidade a Deus e uma genuína piedade altruísta como a de Jó.

A PARTIR DO TEXTO
Na obra B rothers K aram azov, de Dostoievski, o inquisidor geral argu­
menta que Cristo poderia ter resolvido todos os problemas da humanidade
se Ele simplesmente tivesse cedido aos testes do diabo. Milagres, mistério e
autoridade - é isso que as pessoas vis e ignorantes exigem, argumenta o diabo.
Dê-lhes um pão miraculoso para acalmar o estômago, um mistério para acal­
mar sua mente confusa e um pouco de autoridade para aliviá-las das dolorosas
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

responsabilidades da liberdade. Preencha essas necessidades, ele argumenta, e


os homens irão alegremente trocar a liberdade pela tirania.
Cristo resistiu aos argumentos do inquisidor, acreditando que o bem
maior era a liberdade do povo de ter fé. As certezas do inquisidor não pode­
riam ser usadas para burlar o direito fundamental da criação - a liberdade de
escolha (como em Gn 3.1-7). Sim, a fome, a confusão e as incertezas da auto­
determinação são cargas compartilhadas por todos os homens; mas, rescindir a
liberdade do homem seria trágico, argumenta o Cristo de Dostoievski.
Jesus demonstra Sua fidelidade a Deus ao resistir o diabo na narrativa do
Evangelho. Porém, mais importantemente, Ele mostra-nos um melhor cami­
nho na vida - aquele para o qual fomos chamados. A nossa vida é predeter­
minada, mas nela somos livres para engajar verdadeiramente o mundo criado
por Deus. O inquisidor argumenta que a humanidade poderia ter sido verda­
deiramente feliz com milagres, mistério e autoridade. Mas, em vez disso, Jesus
deu-nos a liberdade, uma vocação mais elevada, mais sublime.
É a liberdade para duvidar ou para ter fé, para odiar ou amar, para seguir
seu próprio caminho ou seguir nos passos de outro. Essa liberdade traz consigo
as cargas da vida pensante e suas concomitantes responsabilidades morais. Mas
essa vida de liberdade, embora complexa, difícil, e, às vezes dolorosa, deve ser
desejada mais do que a certeza.

2. Jesus retorna para Nazaré (4.14-30)

POR TRÁS DO TEXTO


A visita de Jesus a Nazaré encontra-se na tradição tripla (Mt 13.54-58; Mc
6.1-6; Lc 4.14-30). Essa cena demonstra como Lucas tipicamente molda sua
história a partir de material tradicional. Essa passagem revela a mão distinta de
Lucas de várias maneiras: p rim eiro , Lucas coloca o incidente de Nazaré no iní­
cio do ministério galileu de Jesus. Marcos e Mateus mencionam a visita apenas
incidentalmente, e no meio do ministério galileu. Em Mateus, a visita segue
uma extensa apresentação dos ensinos de Cristo. Mateus menciona apenas que
eles “ficaram ofendidos” com Ele em Nazaré, de forma que Ele não pôde fazer
mais milagres ali (Mt 13.57,58). O tratamento de Marcos é ainda mais breve
e incidental (Mc 6.1-6). Mais importantemente, segue-se um período extenso
do ministério em Cafarnaum (Mc 1.21; 2.1).
151
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Lucas está consciente das atividades anteriores de Jesus em Cafarnaum


(4.23). Não obstante, Ele torna a visita à Sua cidade natal de Nazaré o even­
to inaugural de Seu ministério público. Isso estabelece um tom definitivo de
conflito e rejeição por todo o ministério. Somente Lucas menciona que, após
procurar a Sua própria comunidade, Jesus acha-se ameaçado de morte (v. 29).
Esse tema prefigura a crucificação e será repetido frequentemente no ministé­
rio galileu (9.44,51; 13.31; 17.22; 18.31-34; 19.47).
S egu n do, distinto da narrativa de Nazaré na composição de Lucas, está o
seu arranjo estrutural peculiar. Jesus entra em duas sinagogas uma após outra
nos v. 14,15 e 16-30. Os resultados são diametralmente opostos no início da
narrativa (Tannehill, 2005, p. 8,12). Nas sinagogas circunjacentes, “todos o
[Jesus] elogiavam” (v. 15), enquanto que o povo de Nazaré rejeita-o.
A justaposição de receptividades diferentes nas sinagogas é expandida pelo
acréscimo da história da sinagoga de Cafarnaum nos v. 31-37. O povo de Ca­
farnaum fica maravilhado e proclama a Sua autoridade. Isso enfatiza ainda mais
Sua rejeição pelos nazarenos (Fitzmyer, 1981, 1:528,529). A reação do indiví­
duo a Jesus é a chave para a entrada na comunidade do penitente em Lucas. Es­
sas sinagogas serviam como representações paradigmáticas de possíveis reações
a Jesus e à Sua mensagem no Evangelho. A escolha é um tema emergente.
T erceiro, o conflito em Nazaré prefigura a rejeição cívica de Jesus e a alie­
nação de Sua família (veja 2.34; 10.13-16; 12.52,53). Somente Lucas omite a
referência humana dos irmãos de Jesus incluída em Marcos 6.3 e Mateus 13.55.
Em Lucas, Jesus é solitário desde o começo de Seu ministério. Ele nunca é re­
tratado como um homem de família.
Q uarto, somente em Lucas (v. 18,19) Jesus lê Isaías 61.1,2. Esta passagem
toca nos temas da pobreza, do livramento e da cegueira mencionados anterior­
mente nas canções de Maria e Zacarias (1.52,53,71,79). Essa distinta preocupa­
ção lucana pelos menos favorecidos irá reaparecer em 6.20b; 12.33; 14.13,21;
15.14-19; 16.19-30; e em outros lugares.
Q uinto, outras características peculiares surgem da substancial expansão
de Lucas nos aspectos do material sinótico. Mateus e Marcos notam apenas
que os habitantes de Nazaré “ficavam escandalizados” com Jesus (Mt 13.57;
Mc 6.3), enquanto que Lucas fornece uma longa digressão sobre a causa dessa
ofensa (4.23-30). Mateus e Marcos simplesmente notam que Jesus não pôde
realizar grandes milagres em Nazaré e ficou impressionado com a incredulida­
de deles (Mt 13.58 || Mc 6.6). Lucas novamente estende a narrativa com um
relato de uma tentativa de apedrejarem Jesus por heresia (4.28-30). Logo, para
Lucas, o incidente de Nazaré é a fonte do conflito na história.
152
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

Há uma intimidade no estilo redacional da narrativa de Lucas quanto ao


tratamento da cena de Nazaré. O tempo desloca-se lentamente, e nós senti­
mos como se estivéssemos presentes na sinagoga lotada. Podemos ouvir Seus
vizinhos primeiro respondendo com aprovação do filho favorito deles, só para
ficarem irados e rejeitarem-no violentamente.
Lucas fornece ao leitor um esclarecimento da comunidade fechada de Na­
zaré, uma aldeia com cerca de 400 pessoas. Nós sentimos a dor da alienação
na rejeição de Jesus (Reed, 2000, p. 152). A paz da cidade é estilhaçada pelo
tumulto religioso. Sua intensidade aponta para a natureza profundamente per­
turbadora da discórdia sobre as palavras e a identidade de seu filho nativo.

A sinagoga no primeiro século


O incidente na sinagoga de N azaré é um a das poucas 70 referências
à prática do jud aísm o nas sinagogas prim itivas pré-d.C.. Esta é con sidera­
da a descrição mais antiga do que re a lm e n te acontecia em um a sinagoga
do prim eiro século (Kim ball, 1 9 9 4 , p. 1 0 1 ). Aliás, aqui e em Atos 1 3 .1 3 ­
15, estão as nossas fontes p rim árias q uanto ao m odo com o as sinagogas
e ra m conduzidas nos dias de Jesus. C u rio sam ente, o te rm o “sinagoga"
nunca a p arece nos escritos de Paulo.
Os serviços da sinagoga consistiam de leituras do AT, ta lv e z no d ia le ­
to local, aqui em aram aico . D everia h a v e r ta m b é m a recitação de orações
p re determ inadas, um a hom ilia por um dos m em bros p ro em inen tes da co­
m u n id ade, e um a bendição (Kim ball, 1 9 9 4 , p. 1 0 1 ). As leituras seriam
c o s tu m e ira m e n te da Lei e dos profetas. Este é o caso de Jesus aqui e de
Paulo em Atos 1 3 .1 3 -1 5 .
O uso dos Salm os ta m b é m era com um nas sinagogas. Paulo fe z ci­
tações dos Salm os três vezes em seu serm ão na sinagoga na Antioquia
da Psídia e m Atos 1 3 .1 6 -4 1 . O livro de Salm os é o mais citado no NT. Sa­
bem os que o uso de Salm os foi, em d ete rm in a d o m o m e n to , proibido nas
sinagogas, já que con sideravam que d esviava o foco da Lei e dos Profetas
(m. Sabb. 16.1; veja N eale, 1 9 9 1 , p. 7 7 ).

NO TEXTO
1 1 4 - 1 5 Lucas usa uma fórmula concisa para fazer a transição de um estágio
para outro da história. O sumário contém:
153
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

• Um aspecto geográfico (Ele voltou para a Galiléia via Cafarnaum).


• Um aspecto sobrenatural (no poder do Espírito).
• Um aspecto público (e por toda aquela região se espalhou a sua fama).
O poder do Espírito em Jesus já está manifestando-se em atos poderosos como
os relatos sobre Ele proclamam (veja 4.23).
Do ponto de vista da narrativa, o ministério de Jesus agora está completamente
lançado. Estamos preparados, como leitores, para o próximo estágio da obra -
Suas atividades de ensino, libertação e cura na Galiléia. O versículo 15 indica
que Jesus ensinava nas sinagogas deles. Duas cenas de sinagoga são introduzi­
das em sequência; uma em Nazaré (v. 16-30) e outra em Cafarnaum (v. 31-37).
Ele ensinava nas sinagogas, e todos o elogiavam (v. 15). A aprovação da mul­
tidão é um tema que Lucas irá mencionar novamente no v. 22. Isso coloca a
futura rejeição em Nazaré em uma narrativa mais elevada. A narrativa irá retor­
nar a esta aprovação após o violento interlúdio na sinagoga de Nazaré (4.32,36;
5.26; 8.56; 9.43; 11.14; veja o comentário em 2.15-21).
H 1 6 - 1 9 Jesus cita Isaías 61.1,2 como uma autorreferência na sinagoga de
sua terra. Pela primeira vez, Ele declara publicamente Seu autoconhecimento
como o ungido de Deus. E Ele faz isso para as pessoas entre as quais havia sido
criado (v. 16). Há pouca evidência de que leituras predeterminadas de textos
dos Profetas fossem usadas nas sinagogas naquela época. Quando Jesus recebeu
o rolo de Isaías, a escolha desse texto específico foi dele (v. 17, veja Fitzmyer,
1981,1:531,532).
A citação em si é uma fusão de Isaías 61.1,2 e 58.6 (veja 6.20,21; 7.22; At 4.27;
10.38 para mais alusões a esta passagem em Lucas). Já que está indicado que
Jesus “leu” o texto (v. 16), alguns intérpretes descrevem a cena da sinagoga de
Nazaré como uma composição lucana. Isto é, a apropriação do texto de Isaías
tem uma significância “programática” ou “típica” para definir o propósito da
unção de Jesus. (Marshall [1978, p. 178, 180] não dispensa a “historicidade”
do evento. Veja Tannehill, 2005, p. 4). Outros intérpretes sugerem que textos
mistos assim não eram incomuns em leituras nas sinagogas. Os leitores fre­
quentemente escolhiam textos mistos por “registro de palavras”. Isto é, dois
textos, Isaías 61.1 e 58.6, que compartilhavam a mesma palavra, como aphesis
aqui, eram combinados para a leitura (Evans e Sanders, 1993, p. 21). Mesmo
assim, a cena de Nazaré foi, sem dúvida, sujeita à moldagem de Lucas rumo a
um final programático.
Jesus declara: o Espírito do Senhor está sobre mim (v. 18). Lucas tem afirmado
repetidamente como os personagens principais de sua narrativa foram tocados
154
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

pelo Espírito. Eles foram “cheios” (1.35,41,67; 2.25) do Espírito. Ele “revelou”
algo para eles (2.26), Ele os “guiou” (2.27), ou os “batizará” (3.16,21). Este
tema culmina com Jesus em Lucas 3.22. Ali, o Espírito desce “sobre ele”, como
uma pomba. Agora, o Espírito também repousa “sobre” Jesus, ungindo-o para
esta missão. O senso de Lucas quanto ao local sagrado para o Espírito, sobre as
pessoas, é semelhante à presença do Espírito sobre os profetas da antiguidade
(veja comentário em 1.67 e 2.25,26).
O texto define o ministério de Jesus em termos de compaixão e boas novas
para os pobres, presos, cegos e oprimidos (4.18; veja comentário em 8.1).
Naquela que alguém diz ser “provavelmente a passagem mais importante de
Lucas/Atos” (Kimball, 1994, p. 97), a compaixão para os desfavorecidos é co­
locada no centro deste Evangelho.
Isaías 61.2, o ano da graça do Senhor (v. 19), refere-se ao ano do jubileu e às
ideias associadas a ele, como o perdão das dívidas, a repatriação da propriedade,
e a libertação dos escravos (Evans e Sanders, 1993, p. 21,22). Isso teria sido,
sugere Sanders, uma das passagens favoritas da congregação. Eles, sem dúvida,
enxergavam a si mesmos como os destinatários a quem o livramento foi prome­
tido. Ao ouvirem a interpretação de Jesus, que identificava os gentios como os
destinatários, a admiração deles transformou-se em ofensa.
Nos capítulos 5—19, a história continua retornando repetidamente a esse
tema do compassivo tratamento dos desfavorecidos. A definição de “pobre”
deve ser entendida em termos de uma série de questões relacionadas à posição
social na cultura mediterrânea, e não da simples pobreza. Essa compreensão
mais ampla de “pobre” concorda bem com o âmbito de indivíduos representa­
dos como pecadores em Lucas. Embora alguns sejam economicamente pobres,
outros são pobres em “educação, gênero, herança familiar, pureza religiosa, vo­
cação, economia, e assim por diante” (Green, 1997, p. 211; veja p. 209-213).
A visão social de Lucas é que as atuais estruturas sociais serão invertidas. A
opressão e a necessidade serão abolidas pelo Reino de Deus. A alegria irá subs­
tituir o sofrimento dos humildes (veja Is 58.6-9; veja o comentário em 1.46-53;
6.17-26,27-31 e 7.18-23).

Lucas e Isaías
Lucas acred ita que a com preensão das Escrituras é a chave para a
in te rp re ta ç ão da vida de Jesus. Ele te m "u m a firm e convicção de que um a
leitura correta das Escrituras, de Moisés e dos Profetas fornece a capaci­
d ad e de e n x e rg a r o que está acontecendo no m undo real" (Evans e San­
ders, 1 9 9 3 , p. 18).

155
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Existem 5 9 0 referências a Isaías em 23 livros do N T Essas referências


citam 63 dos 65 capítulos de Isaías (Evans e Sanders, 1 9 9 3 , p. 14). Essa
citação inaugural de Isaías 61 esta b e le c e a agen da para o m inistério de
Jesus. Isso pode ser visto com o a referência culm in a n te q uanto à im por­
tân cia da Escritura na com preensão da iden tid ade e do propósito de Jesus
enfatizad os e m 2 4 .4 4 -4 7 (veja 1 6 .2 9 -3 1 ; veja Evans e Sanders, 1 9 9 3 , p.
1 4 -2 5 ). Essas duas referências fo rm a m parêntesis em torno do m inistério,
colocando a in te rp re ta ç ão correta da Escritura no centro da com preensão
correta sobre Jesus.

■ 20-22 0 momento da autorrevelação de Jesus tem um dramático cenário


literário. Com todos os olhos da sinagoga fitos nele (atenizõ: “olhar atenta­
mente”), Jesus anunciou: “Hoje se cumpriu a Escritura que vocês acabaram
de ouvir”. Significantemente, o Jesus lucano não completa o texto de Isaías,
que se refere ao “dia da vingança”. Esse é um anúncio de esperança, e não de
julgamento. Portanto, Lucas minimiza a tendência deuteronômica de Isaías
61.2b (Fitzmyer, 1981, 1:532). A apresentação do autoconceito de Jesus aqui
concentra-se na compaixão, e não no julgamento (veja Jo 3.17).
Todos na sinagoga inicialmente falavam bem de Jesus. Eles estavam admira­
dos com as palavras de graça que saíam de seus lábios (v. 22). Mas a Sua in­
terpretação do texto favorito mudou a atitude deles. Em outras circunstâncias
de Lucas, “admirados” é um termo de genuína aprovação (2.18,47; 4.22,32,36;
5.26). Mas aqui, seu propósito parece ser colocar a rejeição vindoura em um
relevo particularmente alto.
■ 2 3 - 3 0 A próxima significante digressão lucana de Marcos e Mateus en­
contra-se nos v. 23-27. Ali, Lucas explica como Jesus ofendeu as pessoas de Sua
aldeia. No v. 23, a visita de Jesus à Sua terra dá uma guinada tenebrosa. Assim
como “todos falavam bem dele” (v. 22), Jesus parece decido em provocar Seus
conterrâneos.
Jesus refere-se à provisão de alimento que Elias concedeu à mulher gentia de
Sarepta durante uma seca (v. 26; 1 Rs 17.8-24). Ele também menciona Eliseu
curando Naamã, o sírio, um gentio leproso (v. 27; 2 Rs 5.T I 9; veja o comen­
tário em Lc 5.12-16). As referências de Jesus sobre esses dois profetas implica
que eles estabeleceram o precedente para o Seu ministério profético. Assim
como o ministério deles, a missão de Jesus será reservada aos gentios, e não a Is­
rael, os eleitos de Deus (veja mais na Introdução, Temas teológicos em Lucas).
156
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

Uma das distintas preocupações de Lucas/Atos dos Apóstolos é a questão dos


relacionamentos judeus e gentios. A inclusão dos gentios na salvação encontra
repetidas expressões em Lucas/Atos (veja 7.1-10, Por trás do texto). Sugerir
que Deus favoreceria aos gentios acima dos judeus no plano da salvação era
rejeitar o dogma central do judaísmo: a primazia de Israel como a comunidade
da aliança com o Senhor.
Tal crítica da mente limitada de Israel era um tema comum na mensagem dos
profetas de Israel e Judá (veja 1.32; 3.8,16,17; 13.24-30) e sempre incômodo
para o judaísmo baseado no templo. Não é de admirar que Seus vizinhos fos­
sem induzidos à ira com essa interpretação de Isaías 61 (veja Evans e Sanders,
1993, p. 22-25)!
A multidão ficou tão violentamente agitada que o levou ao topo de uma mon­
tanha para atirá-lo abaixo. Se os vizinhos de Jesus o acharam culpado de here­
sia, eles devem ter sentido a obrigação cívica de expulsá-lo da cidade e apedrejá­
-lo (Dt 13.6-18; m. Sanh. 6.4; veja Neale, 1993, p. 90-100). Esquivando-se
como Elias (1 Rs 18.46), Jesus simplesmente caminhou entre a multidão e saiu,
provavelmente, para nunca mais voltar (9.58).

3. A sinagoga de Cafarnaum (4.31-37)

POR TRÁS DO TEXTO


A narrativa agora passa para as atividades de Jesus em Cafarnaum (v. 31).
Esse nome significa “aldeia de Naum” (um indivíduo desconhecido). A cidade
estava localizada no litoral oeste do mar da Galileia. Sua população naquela
época é estimada entre 600 e 1500 habitantes (Reed, 2000, p. 152).
A região agora é estéril, embora nos dias de Jesus fosse bem arborizada. A
aldeia existia desde a Idade do Bronze (1900— 1550 a.C.); mas foi eventual­
mente abandonada após a invasão muçulmana da Terra Santa no sétimo século
d.C.. O local ficou enterrado e desconhecido até ser redescoberto em 1894
pelos franciscanos.
Em 1968, as ruínas de dois prédios foram escavadas por arqueólogos em
Cafarnaum. Um dos prédios é uma sinagoga do quarto século, aparentemente
construída sobre a base da sinagoga dos dias de Jesus. O outro é o que chamam
de a casa de Pedro. Esta vasta residência consiste de diversos pátios com cômo­
dos adjacentes. Suas ruínas escavadas são visíveis hoje.
157
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A identificação desta casa como o domicílio de Simão Pedro é especula­


tiva. Mas, se estiver correta, ele deve ter sido um pescador bem de vida e um
proeminente cidadão de Cafarnaum. João 1.44 identifica a aldeia vizinha, Bet­
saida, como a cidade de Pedro. A casa de Pedro é o cenário para os eventos em
Lucas 4.38-41.

NO TEXTO
I 31-37 Continuando o padrão de ensinar em sinagogas locais no sábado
(v. 31; veja 4.16,44), Jesus começou Seu ministério na próspera aldeia pesquei­
ra de Cafarnaum. A autoridade (v. 32) de Jesus sobre o reino espiritual é um
tema emergente na história de expulsão de demônios nos v. 33-36. Ser testado
pelo diabo na primeira parte do capítulo prepara o pano de fundo para a luta
de Jesus contra as forças demoníacas dos vilarejos da Galileia.
No deserto, o diabo reivindicou ter domínio sobre “todos os reinos do mundo”
(4.5). Nos capítulos vindouros, Lucas registra quatro histórias de indivíduos
possuídos por demônios (4.33-37; 8.26-39; 9.37-43; 11.14-23). Numerosas
referências passageiras e declarações sumárias referem-se ao ministério de Jesus
como um libertador (4.41; 6.18; 7.21,33; 8.1-3; 9.1,49,50; 10.17-20; 11.24­
26; 13.31,32).
As histórias são exemplos da luta espiritual global na teologia de Lucas. A
luta pelo domínio do mundo espiritual é “de significância gigantesca” para a
compreensão de Lucas (Garrett, 1989, p. 37). Ela culmina na controvérsia de
Belzebu em 11.14-23. Depois que Jesus foi acusado de expulsar demônios por
Belzebu, Ele afirma, “se é pelo dedo de Deus que eu expulso demônios, então
chegou a vocês o Reino de Deus” (11.20).
O objetivo de Lucas nesse estágio da história não é sobre a compaixão ou a
salvação individual. O interesse dele é demonstrar a vitória de Deus sobre o
mestre secular do reino terrestre, o próprio diabo e seus ajudantes (veja o co­
mentário em 9.1-6).
A história da libertação em 4.33-37 é representativa desta emergente vitória
do Reino. Enquanto que a ascendência do reino foi proclamada pelos anjos
(1.32,33; 2.11), ela é agora proclamada pelos poderes opostos do mundo espi­
ritual, os demônios (veja Por trás do texto em 8.26-39).
O homem desta história estava possesso de um demônio, de um espírito
imundo (v. 33). Isto é, mais precisamente, ele tinha “um espírito imundo”. O
fato de Lucas usar o adjetivo akathartos, im u n d o , para descrever um demônio
é peculiar. Isso pode ter surgido da cultura greco-romana na qual os demônios
158
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

são simplesmente os espíritos dos que se foram (Grundmann, 1964, p. 6,9-8).


O demônio fala no plural: “Ah!, que queres conosco, Jesus de Nazaré? Vies­
te para nos destruir? Sei quem tu és: o Santo de Deus!” (v. 34). Isso indica
a pluralidade ou talvez a quantidade de maldade no homem. O demônio fala
como um representante de seu reino, um embaixador da comunidade de Sata­
nás. O objetivo do incidente é reforçar que Jesus é a autoridade absoluta sobre
o reino espiritual.
O demônio chama Jesus de Santo de Deus. Isso é do material de Marcos (Mc
1.23-28); Lucas segue a linguagem dele. A frase refere-se a Deus em 1 João
2.20 e Apocalipse 16.5. Ela não é geralmente usada acerca de Jesus nos Evan­
gelhos. No AT, Arão, Sansão e Eliseu são chamados de homens santos de Deus
(SI 106.16; Jz 13.7; 16.7; 2 Rs 4.9; veja Beale e Carson, 2007, p. 291). Aqui, a
frase ecoa em Lucas 1.35: “aquele que há de nascer será chamado Santo, Filho
de Deus” (veja 4.41). Essa frase tem conotações davídicas em Atos 2.31 e 13.35
que citam o Salmo 16.10.
O método de expulsão de demônios usado por Jesus é simplesmente falar com
os demônios. Cale-se e saia dele! (v. 35). A ausência de procedimentos mági­
cos no método de Jesus é um afastamento dos relatos de exorcismos pratica­
dos na época (ex.: Tob. 6.1-9; ] o s z fo yAnt. 8.45-49, §8.2.5). A eficácia de Jesus
como um libertador depende de Sua identidade como o Filho, e não de méto­
dos populares.
Em seu estilo típico, Lucas sintetiza a história com um relatório da reação das
multidões: Todos ficaram admirados, e diziam uns aos outros: “Que pala­
vra é esta? Até aos espíritos imundos ele dá ordens com autoridade e po­
der, e eles saem!” (v. 36). Novamente, com sua amplitude característica, Lucas
indica que as notícias sobre Jesus começaram a alcançar toda a região circun­
vizinha (v. 37). Todos os personagens da narrativa agora concordam. Os anjos
proclamaram o papel divino de Jesus. Os demônios identificaram-no como o
Filho. E o povo está admirado de Sua autoridade e comando sobre os poderes
espirituais.

4. Da casa de Pedro em diante (4.38-44)

POR TRÁS DO TEXTO


A cura da sogra de Pedro é um material de tripla tradição. É uma cena
tocante no estilo de Marcos. Lucas adota a formulação básica de Marcos
159
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

(Lc 4.31-44 ||Mc 1.21-39). A conexão entre a possessão demoníaca e a enfer­


midade não é explícita para os autores do Evangelho. Mas, o fato de Marcos
ter colocado a cura da sogra de Simão entre duas expulsões de demônios é su­
gestivo. Semelhantemente, Lucas enumera a possessão demoníaca entre uma
série de enfermidades (Lc 7.21). Ele parece despreocupado com essa conexão
implícita, senão sutil, da enfermidade física com uma causa espiritual sinistra.

NO TEXTO
H 3 8 - 4 4 Pessoas amontoaram-se em torno da casa de Pedro buscando cura
para vários tipos de doenças (v. 40) e possessões demoníacas. Os versículos
40,41 funcionam como outra declaração sumária dos acontecimentos iniciais
do ministério de Cafarnaum. Eles reforçam o motivo da hegemonia de Jesus
no reino espiritual. Os leitores devem entender que as expulsões de demônios
e suas proclamações de Sua filiação foram característicos daquele período inau­
gural da obra de Jesus. O efeito cumulativo confirma esse sentimento de ine­
vitabilidade do sucesso de Jesus em Seu papel de Filho. Os demônios exclama­
vam, “Tu és o Filho de Deus!” (v. 41).
O sucesso da missão é tanto que não pode ser confinado geograficamente a
uma aldeia (veja Tyson, 1992, p. 24-26). A história está explodindo em ter­
mos de geografia. Jesus precisa visitar outras aldeias e cidades para proclamar
as boas-novas. Ele reitera a citação de Isaías 61 no v. 18, E necessário que eu
pregue as boas novas do Reino de Deus noutras cidades também, porque para
isso fui enviado (v. 43; veja o tratamento de Nave [2002, p. 13-24] quanto à
necessidade divina em Lucas).
Quais são as boas novas do Reino ? A expressão “trazer boas-novas” (evan geliz o)
foi dita primeiramente pelos lábios dos anjos em Lucas 1.19 e 2.10 referindo-
-se ao nascimento de João e de Jesus. João “pregava as boas novas” (3.18), que
eram, entre outras coisas, um “batismo de arrependimento para o perdão dos
pecados” (3.3; veja o comentário em 3.15-17).
Semelhantemente, em 7.22, Jesus aconselha os discípulos de João que lhe di­
gam que “as boas novas são pregadas aos pobres”. Em Atos, as “boas-novas”
referem-se à identidade de Jesus como o Cristo (At 5.42; 8.12,35). Logo, “as
boas novas do Reino de Deus” têm um amplo raio de significados em Lucas.
Jesus proclama o reino, não de uma posição geográfica estacionária, mas em
movimento. Essa é a antítese da teologia baseada no templo. Seus ensinamentos
não tinham paredes, nem geografia sagrada. O reino deve ser espalhado
160
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

fisicamente, e não pode emanar de um só local. Ele deve ser levado às cidades
e aldeias (veja 9.2,60).
O relacionamento de Jesus com as cidades e aldeias da Galileia é o componen­
te chave no Evangelho de Lucas. Ele era geralmente bem-vindo inicialmente,
mas eventualmente, desaprovado por muitos. As referências de cidades e vila­
rejos na Galileia e em Samaria são encontradas em 5.12,17; 7.11; 8.1; 9.10,57;
10.1,10,13-15,38; 13.22; 19.1.
A história tem sua primeira virada dramática para o palco de um público mais
amplo quando Jesus sai para visitar as sinagogas da Judéia (4.44). Essa iden­
tificação das aldeias como Judéia é problemática, já que Lucas 4.14; Mateus
4.23; e Marcos 1.29 indicam a Galileia como a proveniência das primeiras
atividades de Jesus. Geralmente, diferente dos Sinóticos, o Evangelho de João
presume que Jesus ia e voltava entre as duas regiões. Os copistas posteriores
mudaram o texto de Lucas para “Galiléia”. Mas Judeia é usada pelos tradutores
modernos porque é a leitura mais difícil. Logo, é mais provável que seja o texto
original de Lucas.

A PARTIR DO TEXTO
O que podemos dizer sobre os demônios ? Na linguagem do mundo his­
tórico do NT existe uma tensão universal, até um equilíbrio do bem e do mal.
Wesley observou que, ‘A totalidade da vida espiritual é um sutil equilíbrio que
está sempre suscetível a desequilibrar” (Oden, 1994, p. 339). As boas-novas
garantem que um dia as forças do bem vencerão as força do mal. O evangelho
também reconhece que esse dia ainda não chegou, e por isso, a nossa necessi­
dade do evangelho. As forças demoníacas são uma parte natural e necessária do
mundo histórico de Lucas. São também as lentes pelas quais todos os autores
do NT enxergam o mundo e organizam sua compreensão da vida.
No evangelho (e em quase todas as formas de religião) essas forças são
personificadas. Existe um filho de Deus e um diabo. Existem anjos; e existem
demônios. Existe um céu e um inferno. Todos esses representam sua posição na
estrutura cosmológica do mundo criado.
Essa visão de mundo, ao personificar o bem e o mal, transforma o universo
cosmológico em um universo moral. Os respectivos poderes querem amar, des­
viar, punir, ditar, persuadir, fazer o bem, e fazer o mal, assim como as pessoas
fazem. Essas polaridades do bem e do mal estão na base da crença cristã da
antiguidade. E por extensão, constituem o fundamento da fé cristã tradicional.
161
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Em meados do século 20, Rudolf Bulrmann declarou a morte disso como


“mitologia” do NT. “O homem moderno não valoriza o fato de que o curso da
natureza e da história (...) nunca é interrompido por causa da intervenção dos
poderes sobrenaturais” (1958, p. 16). Esse ponto de vista parece ter sido escri­
to em nosso mundo pós-moderno. Mas ainda descreve a atual e amplamente
defendida visão científica de que o mundo não é nada mais do que uma relação
de causas e efeitos, tanto naturais como racionais.
Seja o que for que os leitores modernos possam acreditar sobre as realida­
des subjacentes da linguagem do NT quanto a anjos e demônios, seria um erro
dispensar tal linguagem como irrelevante. Bultmann pensava que toda lingua­
gem de poderes sobrenaturais fosse meramente metafórica. Não obstante, ele
disse que a linguagem do NT sobre os poderes do mal expressam este esclare­
cimento :

De que o mal não só é encontrado aqui e ali no mundo, mas que todos
os males em particular formam um só poder que, em última análise, cres­
ce a partir das próprias ações dos homens, que formam uma atmosfera,
uma tradição espiritual, que sobrepuja todo homem. As consequências
e os efeitos dos nossos pecados tornam-se um poder que nos domina, e
não podemos livrar-nos dele (...) Um poder que misteriosamente escraviza
cada membro da raça humana. (21)

A nossa experiência de vida no século 20 dificilmente rejeita essa descrição


dos poderes do mal. A história do evangelho fornece-nos a lente cosmológica
pela qual podemos enxergar a vida moderna. Isso pode parecer arcaico para
alguns. Mas o mundo de realidades espirituais absolutas capacita-nos a viver
significativamente e a buscar o bem no qual cremos que eventualmente irá su­
perar tudo (veja Lane, 1996).

5. A pesca e o chamado para segui-lo (5.1-11)

POR TRÁS DO TEXTO


No capítulo cinco, Lucas começa a ensinar-nos que o pecado, a impureza e
a enfermidade dominam a vida em seu mundo histórico. O capítulo funciona
como uma parábola sobre essas questões fundamentais da condição humana.
Um pescador, um leproso, um paralítico e um cobrador de impostos, todos
encontram Jesus e experimentam uma transformação. Cada personagem

162
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

representa a experiência de uma ou mais dessas realidades. Cada um encontra


o livramento para a sua condição: o pecado dá lugar à retidão, a impureza à
pureza, e a doença à cura.
Essas condições são encontradas em uma variedade de combinações entre
os personagens de Lucas. O pescador, por exemplo, é pecador aos seus próprios
olhos, mas não é doente nem ritualmente impuro. O leproso é ritualmente
impuro e enfermo, mas não é pecaminoso. O paralítico é doente, mas não im­
puro, nem moralmente, nem ritualmente. Levi é moralmente impuro e possi­
velmente ritualmente impuro.
O encontro de cada personagem com Jesus destaca um aspecto distinto de
Sua missão. No final do capítulo 5, descobrimos que Lucas lidou com os diver­
sos conflitos do mundo histórico por intermédio desses personagens típicos.
Um é perdoado, outro é declarado ritualmente puro, outro fica fisicamente
restaurado, e um abandona a vida de pecado.
Todos esses personagens experimentam a salvação por meio de seus diver­
sos tipos de fé, o tema unificador entre eles. Pedro tem fé para colocar os barcos
ao mar novamente (v. 5). O leproso cai no chão, rogando a Jesus, “podes pu­
rificar-me” (v. 12b). Os amigos do homem paralítico têm fé e descem-no pelo
telhado (v. 19,20). Levi tem fé para abandonar sua mesa de impostos (v. 28).
Justapostos em forte contraste, os fariseus, uma seita famosa por seus ritu­
ais de purificação e prática rigorosa, são retratados como moralmente impuros.
Eles fracassam em reagir em amor para com o perdido. Sua ofuscante falta de fé
é a moral da história. Lucas ensina: seja como o pescador e seus amigos, e não
como os fariseus.

PECADO, IMPUREZA E ENFERMIDADE NAS


HISTÓRIAS DO CAPÍTULO 5

163
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Entramos agora mais amplamente em Lucas, naquela parte da narrativa


(cap. 5— 19) em que o pecado, a impureza e a doenças são vencidos na vida de
numerosos personagens. Seis indivíduos são destacados por Lucas com uma
ênfase especial no arrependimento. Cada personagem tem uma crise existen­
cial que leva ao arrependimento:
• Pedro em 5.1-11.
• Levi em 5.27-32.
• A mulher pecadora em 7.36-50.
• O filho pródigo em 15.11-32.
• O cobrador de impostos em 18.1-8.
• Zaqueu em 19.1-10.
Essas histórias individuais são todas exclusivas do Evangelho de Lucas.
Pedro é o primeiro dos penitentes em Lucas. Como principal discípulo
de Jesus, ele é um perfeito arquétipo do penitente (veja a Introdução, Temas
teológicos em Lucas). Todos os Evangelhos Sinóticos fazem do convite ao ar­
rependimento a característica central da pregação de Jesus (Mt 3.2; 4.17; Mc
1.4,15; 6.12; mas não João). Lucas estrutura sua mensagem narrativa e teológi­
ca em torno das histórias desses penitentes.
Lucas sintetiza sua teologia em suas passagens-chave: A primeira está em
24.46-47: “E lhes disse: Está escrito que o Cristo haveria de sofrer e ressuscitar
dos mortos no terceiro dia, e que em seu nome seria pregado o arrependimento
para perdão de pecados a todas as nações, começando por Jerusalém”. A segun­
da está em Atos 11.18. Em reação a Pedro ter batizado Cornélio, seus colegas
admitem, “Então, Deus concedeu arrependimento para a vida até mesmo aos
gentios”!
A história em Lucas 5.1-11 tem um formato semelhante àquele usado na
tentação do diabo em 4.1-13: fato (5.1-7), fala (5.10b-l 1), resposta (5.8-10a).
Este padrão é encontrado em várias permutações ao longo do capítulo nos v.
12-16, 17-26 e 27-32.
Os versículos 4-11 relatam a história de uma pesca milagrosa. Essa cena ser­
ve como um precursor para o comissionamento formal dos discípulos em 6.12­
16. Lucas une duas passagens em Marcos 4.1,2 e 1.16-20. Ele, então, expande
a tradição acrescentando a história da pesca maravilhosa nos v. 4-9. Mateus e
Marcos registram apenas que Simão, André e João abandonaram suas redes ao
chamado de Jesus (Mt 4.18-22 || Mc 1.16-20). Nenhum dos dois menciona a
pesca milagrosa. Mas todos os três Evangelhos Sinóticos contêm a máxima a
164
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

respeito dos “pescadores de homens” (previamente em Mt 4.19 e Mc 1.17).


Essa passagem é um raro exemplo no qual o Evangelho de João e o de Lu­
cas incluem uma história que esteja ausente na tradição sinótica. O relato de
Lucas é semelhante à abundante pesca pós-ressurreição em João (Jo 21.1-11;
veja Brown, 1970, p. 1090). Isso levanta a possibilidade de que Lucas tenha
preservado uma forma daquela mesma tradição, inserindo-a mais cedo no mi­
nistério de Jesus. Se Lucas foi escrito antes de João, não há dúvida quanto à
dependência direta. Mas, talvez Lucas conhecesse a história de outra forma,
simplesmente como um dos milagres de Jesus.
A história introduz o tema do “pecador” no terceiro Evangelho. No decor­
rer de sua história, Lucas introduz “pecadores bons e saudáveis”. Eles não são
os “ímpios” irremediáveis do AT (Hb: reshaim ; geralmente ha m artõloi, “peca­
dores” na LXX). Em Lucas, os pecadores são, independentemente de sua vida
pregressa, simples e honestos membros da comunidade, prontos para expressar
a fé e renunciar o erro de seus caminhos. Os pecadores arquétipos em Lucas são
personagens espiritualmente genuínos e heroicos. Eles sem pre evidenciam uma
boa conduta religiosa (veja o comentário em 6.32-36).
Os versículos 1-11 introduzem à história, o personagem Simão. Simão
tem um relacionamento especial com Jesus ao longo de Lucas (veja 9.28-36;
22.54-61). Este começa aqui no capítulo 5. Lucas é cuidadoso ao desenvolver
o personagem de Simão como o discípulo principal, aquele que interage com
Jesus em favor deles. Jesus fica na casa de Simão, usa o barco dele e tem longas
conversas com ele (4.38; 5.3,4,5,8-10). Tudo isso é um material único de Lucas.
O chamado de Pedro tem sido comparado a chamados narrados no AT
(Êx 3.T22; Js 1.1-9; Jr 1.4-10; esp. Is 6.1-10; Beale e Carson, 2007, p. 292;
Green, 1997, p. 233). Mas nenhuma dessas histórias fornece uma conexão in­
tertextual satisfatória. A história é sustentada por si mesma como a única nar­
rativa da chamada dos discípulos de Jesus.

NO TEXTO
I 1 - 3 A chamada dos discípulos começa com Jesus perto do lago de Ge-
nesaré, com as pessoas amontoadas ao Seu redor ouvindo a palavra de Deus
(5.1). Aqui, Lucas começa a construir sua caracterização de Jesus como um
mestre. Ele já ensinava “nas sinagogas” (4.15) e em Nazaré “com autoridade”
(4.32). Todos ficavam “admirados” com Suas palavras (4.22,32). Assim como
em todos os Evangelhos Sinóticos, o ensino será a atividade principal do mi­
nistério galileu (veja Mt 4.23; Mc 1.39). Intercalados com essa atividade estão
165
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

as curas e as controvérsias. Mas, acima de tudo, Jesus é retratado como alguém


que leva a palavra de Deus.
Lucas reúne textos de Marcos 4.1,2 e 1.16-20 para criar uma única cena de en­
sino na praia do mar da Galileia. A multidão o comprimia de todos os lados
para ouvir a palavra de Deus (v. 1). A frase a palavra de Deus é a expressão
favorita de Lucas (aqui; 8.21; 11.28; e 11 vezes em Atos; compare com uma vez
em Mateus 15.6; Marcos 7.13). O cenário é idílico, com Jesus sentado em um
barco ensinando os que estavam à Sua volta. Entre o público estão Simão e seus
companheiros calmamente lavando as suas redes (v. 2).
I 4 - 9 A pedido de Jesus, Simão e seus companheiros afastaram-se para as
águas (...) mais fundas para fazer uma segunda tentativa de pesca, embora ti­
vessem trabalhado em vão a noite toda (v. 4,5). Aguas fundas conotam uma
nova direção de vida que eles estavam prestes a tomar. Trabalhar em vão no
escuro é uma alusão à atual posição espiritual deles. Chamar isso de alegórico
seria demais. Mas existe uma qualidade parabólica nisso (Bock, 1994, p. 455).
Em uma única manhã, aqueles homens são convidados a embarcar em uma
nova missão que irá dominar o resto de seus dias - águas profundas, realmente.
“Simão” e “Simão Pedro” são usados intercaladamente até 6.14. Esse milagre
faz com que Pedro proclame sua própria pecaminosidade. Como resultado da
pesca, ele prostrou-se aos pés de Jesus e disse: “Afasta-te de mim, Senhor,
porque sou um homem pecador!” (v. 8). Pedro sente culpa ou um senso de
indignidade em reação àquele acontecimento. Sua reação penitencial é curiosa;
nós esperaríamos admiração ou alegria, mas não culpa.
Como um “homem pecador”, o instinto de Pedro é fugir do sagrado. Nesse
contexto literário, a resposta de Pedro funciona como um exemplo do pecado
diante da presença do sagrado. Isso é semelhante à experiência de Moisés com a
sarça ardente. “Moisés cobriu o rosto, pois teve medo de olhar para Deus” (Ex
3.6; compare com Gn 3.10; 15.1; 21.17; 28.17; Êx 34.30).
A chamada de Isaías (Is 6.1-10) possui semelhanças quanto à forma: epifania,
reação, garantia, comissão (Green, 1997, p. 233). Pedro não é apresentado
como um indivíduo ativamente perverso. Ao contrário, ele é meramente um
homem normal cujo senso de moral o sobrecarrega quando está diante do sa­
grado. Essa normalidade mantém seu personagem acessível ao leitor. Como
um personagem típico, Pedro traz uma força persuasiva para a reação do leitor.
“Seja como Pedro”, assim Lucas parece animar o seu público.
Pedro e os outros pescadores ficam perplexos (v. 9). O substantivo th am bos é
usado no NT somente por Lucas. Admirados é a mesma palavra usada para
a reação das testemunhas da expulsão do demônio por Jesus na sinagoga em
166
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

Cafarnaum em 4.36. Ela também descreve a reação da multidão na cura do


homem coxo de nascimento em Atos 3.10. A palavra conota não só admiração,
mas temor, uma reação que seria justificável ao se presenciar um milagre.
Jesus exorta Pedro e os discípulos, Não tenha medo (v. 10). Essa é a mesma
exortação dada a Zacarias, M aria e aos pastores em suas epifanias (1.13,30;
2.10; veja Nolland, 1989, p. 222). A exortação é uma conexão fundamental,
demonstrando que todos esses fatos são manifestações divinas. Para Lucas, o
ponto de encontro é humildade, temor e penitência. Essas são as principais
características de seu paradigma emergente da salvação pelo arrependimento.
A resposta de Jesus para os discípulos é encontrada em todos os Sinóticos:
“Não tenha medo; de agora em diante você será pescador de homens” (v.
10; veja também Mt 4.19; Mc 1.17). Lucas, ao inserir a pesca milagrosa em
5.4-9 cria um foco mais forte nesse aforismo do que os equivalentes em Mateus
e Marcos. O comentário de Jesus sobre os Seus discípulos “pescarem homens”
identifica a pesca como um ato metafórico ou alegórico. A metáfora da pesca­
ria como um símbolo para reunir Israel tem equivalentes em Jeremias 16.14­
16; Habacuque 1.13-17; e Amos 4.2.
Exemplos semelhantes de atos metafóricos de Jesus em Lucas incluem o acal­
mar da tempestade (8.22-25), a alimentação dos cinco mil (9.10-17), e pos­
sivelmente até a transfiguração (9.28-36). Atos simbólicos semelhantes nos
Evangelhos certamente incluem a maldição da figueira estéril em Marcos 11.20
e a transformação da água em vinho em João 2.1-11.
1 10-11 Os principais discípulos são introduzidos na história aqui. Além de
Pedro, eles são Tiago e João, os filhos de Zebedeu, sócios de Simão. André,
irmão de Simão mencionado em Marcos, não aparece em Lucas até 6.14. Em
resposta ao milagre da segunda pesca, eles guardaram seus barcos, deixaram
tudo, e o seguiram (5.11).
Tem-se notado que o registro de Lucas fornece uma cena mais “psicologica­
mente plausível” do que as que se encontram em Mateus e Marcos. Lá, os discí­
pulos simplesmente abandonam tudo e seguem a Jesus em seu primeiro encon­
tro. Na história de Lucas, Simão já conhece Jesus, já o tinha visto trabalhando
em Cafarnaum (4.3T39; Fitzmyer, 1981, 1:560). Talvez, esta tenha sido uma
das razões pela qual Lucas acrescentou o material sobre a pesca à chamada ini­
cial dos discípulos.
O tema da falta de uma residência e da pobreza como uma condição para o
discipulado começa aqui. Muitos serão chamados para abandonar tudo e
“seguir”Jesus (v. 11, incluindo os discípulos, v. 11,27,28; os prováveis discípulos,
18-22; as multidões, 7.9; 9.11; veja Por trás do texto em 9.1-6 e 23-25; e o
167
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

comentário em 9.57-62 e 14.27). Jesus irá eventualmente coroar esse tema


com a afirmação de que aqueles que abandonaram tudo serão recompensados
muitas vezes no mundo porvir (18.28-30).
Daí em diante, em Lucas, Jesus irá operar Seu ministério com um círculo social
que o acompanha para todos os lados. Esses discípulos, pescadores comuns da
classe trabalhadora, serão Seus constantes companheiros na narrativa até que
se dissolvem no fundo do cenário após a Sua prisão. Ao ponto da negação e da
traição, eles param de “seguir” - a principal condição do discipulado (22.54;
veja Marcos 14.50; Mt 26.56 onde, em vez disso, os discípulos “fugiram”).
Mesmo assim, o movimento de Jesus foi transformado, na narrativa, do traba­
lho de um rabi viajante solitário para o de uma comitiva.

B. Surgem conflitos enquanto Jesus cura e prega


(5.12-6.16)

1. Um leproso é curado (5.12-16)

POR TRÁS DO TEXTO


No AT, “lepra” era um termo aplicado a uma ampla variedade de doenças
da pele (veja Wright e Jones, 1992, p. 277,278). Na época de Jesus, o termo le ­
p ra no NT, provavelmente, incluía a doença conhecida hoje como hanseníase.
Mas não se tem certeza disso.
A lepra nos dias de Jesus era uma doença com implicações sociais e religio­
sas complexas, que embaçavam a linha entre a doença física e o pecado (Wright
e Jones, 1992, p. 279,280; veja, por ex.: Nm 12.10-15; Dt 28.27; 2 Cr 26.16­
21). No AT, a doença é às vezes um castigo pela soberba ou desobediência (Nm
12.1-16; 2 Sm 3.29; 2 Rs 5.27; 2 Cr 26.19). Mas, ao todo, a ligação entre a lepra
e o pecado não parece estar em foco nas poucas referências a essa doença nos
Evangelhos, exceto talvez em Lucas 4.27.
A narrativa mais longa sobre essa doença encontra-se em Levítico 13;
14. Levítico 13.45 prescreve que o leproso deve usar vestes esfarrapadas, viver
fora do acampamento e, quando chegasse perto dos outros, deveria gritar:
“Imundo, imundo!” (veja Lc 17.12). O leproso era excluído da comunidade
para evitar a disseminação da doença e para ficar em quarentena como uma
potencial fonte de impureza ritual. Tal isolamento rebaixava o infeliz sofredor
168
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

à desclassificação social - “Viverá separado, fora do acampamento” (Lv


13.46). Isso era uma doença física que resultava em impureza ritual e exclusão
comunitária e religiosa. Era frequentemente, mas nem sempre, considerada
como tendo sido causada por uma impureza moral.
As semelhanças entre o incidente de Pedro nos v. 1-11 e o incidente do
leproso criam um ritmo na narrativa.
• Ambos prostraram-se em humildade e necessidade (v. 8,12).
• Ambos clamaram queixosamente (v. 8,12).
• Jesus fala uma palavra que define cada um (v. 10,13).
• Ambos da cena com uma vida nova (v. 11,14).

A principal diferença entre as duas histórias é que:

• Pedro identifica-se como um “pecador”.


• O leproso é simplesmente um homem com uma enfermidade.

Essa cura prepara o ambiente para duas outras narrativas sobre leprosos
que somente Lucas registra: a história do leproso Lázaro em 16.19-31 e a cura
dos dez leprosos em 17.11-19. A segunda história novamente enfatiza Jesus
curando e incluindo os renegados. Ambas as histórias desenvolvem esse tema
no Evangelho um pouco mais.

NO TEXTO
I 1 2 - 1 6 Essa história da purificação do leproso introduz um tema impor­
tante em Lucas: a restauração da família, da sociedade e do templo marginali­
zados. Os leprosos sofriam uma dupla maldição do contágio físico da impureza
ritual. Eles ocupavam uma posição extrema entre os excluídos da sociedade. No
início de Lucas, esses indivíduos são curados e recebidos em um novo reino. A
cura deles é citada como evidência da identidade de Jesus como o Cristo em
7.22: “Voltem e anunciem a João o que vocês viram e ouviram: os cegos vêem,
os aleijados andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são
ressuscitados e as boas novas são pregadas aos pobres”.
Em 4.27, Lucas menciona Naamã, o leproso gentio que simbolizava o extremo
em marginalização física e social. A menção de Jesus quanto à cura dele sinaliza
que os desterrados d e d en tro e d efo ra da etnia de Israel serão incluídos em Sua
nova comunidade. O fato de Lucas usar a história do leproso nos v. 12-16 ex­
pande seu tema de salvação para os excluídos.
169
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

O homem estava coberto de lepra (v. 12), uma frase que enfatiza o infortú­
nio de sua condição. Ele vive em estado permanente de impureza ritual cau­
sado por sua condição natural, e não por ter pecado. Ele prostrou-se em terra
e rogou que Jesus o limpasse. O clamor dele foi: Senhor, “Se quiseres, podes
purificar-me” (v. 12). Assim como os outros personagens do capítulo 5, ele é
humilde, prostra-se com o rosto em terra, e está cheio de fé. O leproso pede
uma purificação, e não a cura. Isso sugere a natureza unitária de sua condição
em sua mente. Sua impureza e doença para ele são uma só coisa.
Jesus estendeu a mão e tocou nele (v. 13). Ao fazer isso, Ele não violou a Lei
de Moisés, já que Levítico 13 não diz que um leproso não pode ser tocado (veja
Green, 1997, p. 237; Nolland, 1989, p. 227). Mas, esse ato teria transferido
uma impureza ritual a Jesus. Isso não é particularmente significante em si. Uma
vez curado, a impureza do leproso é facilmente limpa, como demonstrado pela
instrução de Jesus ao leproso para que se apresentasse ao sacerdote local (v. 14).
Semelhantemente, a Jesus seria exigido uma ação rotineira de purificação. Mas
o contato entre Jesus e o leproso tem uma significância mais profunda aqui.
Contrário às expectativas, o toque de Jesus reverte o caminho normal do con­
tágio da lepra. A pureza, em vez da impureza, torna-se contagiosa (Blomberg,
2005, p. 137). Logo, ele disse ao leproso, S eja p u r ifica d o ! (v. 13, seja lim po).
Sua palavra e Seu toque removem tanto a doença como a impureza ritual. Não
há distinção na narrativa entre a impureza ritual e a enfermidade. A linguagem
da purificação serve o propósito de curar ambas as condições.
Existe uma ideia subversiva aqui em relação ao templo. No curso normal das
coisas, os sacerdotes não curam nem purificam leprosos. Eles simplesmente os
declaram limpos quando a condição é removida. O sacerdote é apenas o me­
diador da santidade que emana do templo, e não a fonte da mesma. Mas Jesus
transmite pureza pela ação direta. Aliás, Ele suplanta a atividade mediadora do
sacerdócio.
O papel do ritual torna-se obsoleto, e a pureza do templo é, de fato, sinônima
do contado com a mão de Jesus. Isso é uma inovação radical.
A injunção Não conte isso a ninguém (v. 14) é minimizada em Lucas ao ser
comparada a Marcos. Ali, Jesus advertiu “firmemente” ao leproso para manter
silêncio (Mc 1.43). Jesus ordenou ao leproso, que já estava limpo e curado: vá
mostrar-se ao sacerdote e ofereça pela sua purificação os sacrifícios que
Moisés ordenou, para que sirva de testemunho (v. 14). Será que isso não se­
ria um ato desafiador comparado com 5.22-26? Isto é, será que Jesus cura para
poder confrontar Seus contemporâneos com Sua identidade? Ou, será que a
Sua ordem é simplesmente um ato de submissão à Lei? O contexto sugere que
170
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

isso pode ser mais do que uma simples submissão.


A ordem de discrição alimentou a disseminação das novas sobre a cura: To­
davia, as notícias a respeito dele se espalhavam ainda mais, de forma que
multidões vinham para ouvi-lo e para serem curadas de suas doenças (v.
15). Não só um grupo de pessoas, mas “grandes multidões” (ARA) começam
a procurar Jesus. Da perspectiva da narrativa, os desafios começam a aumentar
quando o ministério de Jesus torna-se mais público.
À medida que a multidão crescia, assim também crescia a necessidade de Jesus
retirar-se para um lugar solitário, onde Ele orava (v. 16; 4.42). Ele não fica
fisicamente sozinho novamente na narrativa até 22.41, a cena do Jardim (Jo
18.1) do Getsêmani (Mt 26.36; Mc 14.32; Lucas não menciona nenhum as­
pecto do local).

Pecado, impureza e enfermidade em Lucas


A diferença e ntre im pureza m oral e ritual te m sido o assunto de
recentes estudos por eruditos do judaísm o antigo (veja Klawans, 2 0 0 0 ).
Será que no jud aísm o antigo a presença da im pureza ritual im plicava na
presença de pecado? O AT e a literatu ra do jud aísm o do segundo tem plo ,
em geral, não re tra ta m a im p ureza ritual com o pecam inosa. Reciproca­
m e n te , a força co n tam in ad o ra do pecado tam p o u co é ritualística por n a­
tu reza (Klawans, 2 0 0 0 , p. 1 3 6 -1 3 8 ). Havia exceções quanto a isso e n tre os

diversos "judaísm os" do prim eiro século d.C.. O Q um rã é um exem p lo cla­

ro disso. Na lite ra tu ra do Q um rã, a im p ureza m oral e a ritual são pela "pri­

m eira vez (...) fundidas e m um só conceito de con tam inação" (Klawans,


2 0 0 0 , p. 75; Blom berg, 2 0 0 5 , p. 7 9 ). Essa observação leva-nos a um ponto

salien te para os estudos do NT: as questões do relacion am en to da im p u ­

reza ritual e da im pureza m oral e ra m , com o muitos aspectos do judaísm o

do prim eiro século, um tópico de d e b a te sectário (Klaw ans, 2 0 0 0 , p. 1 3 8 ).

A im pureza ritual com um poderia ser contraída por um a e n o rm e v a ­

ried ad e de a tivid ades naturais, p artic u la rm e n te aquelas que e nvo lviam a

em issão d e fluidos corporais. A condição era inócua e fac ilm en te re m e ­

diada, fre q u e n te m e n te no decurso de um só dia (veja Lv 1 1 — 15 e Nm

19). Nos tipos mais severos, sete dias de purificação era m exigidos para

re m o v e r a condição. A im pureza ritual não era pecado e não era incom um .


Era inevitável na vida e tinh a um a curta d uração ("im p u re za perm itida"

vs. "im pu reza proibida", causada por um co m p o rta m e n to imoral; W right e

171
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Hubner, 1 9 9 2 , p. 7 2 9 , 7 3 0 , 7 3 3 ). Aliás, para tornar-se ritu a lm e n te im puro,

era o casio nalm en te obrigatório com o no c u m p rim e n to das responsabili­

dades para com os mortos (Klawans, 2 0 0 0 , p. 1 3 7 ).

A linguagem da "im pu reza m oral" surge de Levítico 18 e 19. Ali, o

pecado sexual, a idolatria e o assassinato "c o n ta m in a m " (Lv 1 8 .2 4 -3 0 ;

1 9 .31 ; Nm 3 5 .3 3 ,3 4 ; com pare com Mc 7 .2 0 -2 3 ; veja Klawans, 2 0 0 0 , p. 2 1 ­

31, 148; W right e Hubner, 1 9 9 2 , p. 7 2 9 ,7 3 0 . Essa con tam inação é "distin­

ta " e "g rave", m as não é ritu a l em natu reza (Klawans, 2 0 0 0 , p. 2 1 ). Isto é,

ela não im p ede que o indivíduo e n tre no tem p lo nem a p resen ta q u a lq u e r

im p ed im en to físico na vida.

Isso vai contra diversos estudos anteriores do NT. De Jerem ias a Borg,

os pecadores são identificados de m an eira que v a ria m desde a lgu ém que

é ritu alm e n te im puro, alg u é m que se engaja e m ativid ades profissionais

particulares, a té a lgu ém que evidencia um e x tre m o fracasso m oral. Borg

descreve o jud aísm o do prim eiro século com o um a "sociedade de pure­

za", que g erava "acentu ad as fronteiras sociais" b aseadas na im pureza

ritual. Suas ideias tiv e ra m am pla influência (Borg, 1 9 9 4 , p. 1 1 1 ,1 1 2 ). Mas,

se a im pureza ritual não era considerada pecam inosa, com o Klawans ar­

g u m en ta, é difícil reivindicar que havia lim ites sociais e ntre os pecadores

e os justos baseados apenas na pureza nos dias de Jesus.

2. O paralítico é curado e perdoado (5.17-26)

POR TRÁS DO TEXTO


A cura do paralítico é o próximo evento na coleção de Lucas de parábolas
da condição humana no capítulo 5. Aquele homem era paralítico. A paralisia
não é tanto uma doença como é uma incapacitação. Não havia indicação de
falha moral naquele homem; e a causa de sua paralisia não foi discutida. Nesta
história, a ênfase está na fé, e não na humildade dele.
Esta história introduz outro grupo de fatos relacionados no período inicial
do ministério de Lucas. A cura do paralítico é a primeira de cinco histórias em
5.17—6.11. Estas estabelecem um padrão de oposição contra os fariseus. São
elas:
172
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

• A cura do paralítico (Lc 5.17-26).


• A chamada de Levi (Lc 5.27-32).
• A questão do jejum (Lc 5.33-39).
• A colheita de cereal em um sábado (Lc 6.1-5).
• A cura do homem da mão mirrada em um sábado (Lc 6.6-11).
Todas as cinco têm em comum o formato evento-oposição-fala:

• Uma cura ou fato provocativo acontece no ministério.


• Os adversários de Jesus discordam e desafiam-no verbalmente.
• Jesus responde com uma expressão que traz solução à passagem.

Lucas segue Marcos neste material (Mc 2.1—3.6). O propósito narrativo


dessas histórias de conflito é comparar e contrastar o ministério de Jesus com
o dos fariseus.

NO TEXTO
■ 1 7 - 1 9 A cura do paralítico é uma história complexa e dramática em Lucas.
Especuladores importantes, incluindo mestres da lei e fariseus, vieram de to­
dos os povoados da Galiléia, da Judéia e de Jerusalém (v. 17). Essa descrição
levanta um nível de conflito porque a oposição de Jesus é vista representan­
do uma ampla área geográfica. Além disso, as multidões são um contraponto
quanto ao sigilo ordenado na história anterior (v. 14). O drama é ainda enfati­
zado pela observação de que o poder do Senhor estava com ele para curar os
doentes (v. 17). A cena tem a sensação de um evento altamente volátil.
No ambiente desse episódio em Marcos, Jesus estava simplesmente “em casa”
(Mc 2.1). Esse episódio também é menos público no equivalente em Mateus
9.1,3. Mas, em Lucas, a cura é programada como um evento crucial. A mesma
tendência de ajustar o cenário é vista em Lucas 6.17 comparado com Mateus
5.1.
Os fariseus (v. 17,21) são introduzidos aqui pela primeira vez como os prin­
cipais antagonistas de Jesus. Eles desempenharão esse papel consistentemente
ao longo do restante de Lucas. A dúvida e a oposição deles neste incidente se
tornarão a reação característica de todos os fariseus na narrativa. Os leitores,
a par desta informação confidencial sobre esses adversários (v. 21), tornam-se
indispostos a considerá-los simpaticamente. Eles são “uma caricatura daqueles
que devem ser evitados moralmente” (Darr, 1992, p. 92).
173
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A multidão (v. 19) é a designação de Lucas para o povo “normal” presente. Ela
é tão grande que uma massa caótica de pessoas restringe o acesso físico a Jesus.
Pode-se imaginar o barulho, os empurrões e a tensão lutando por um espaço.
Esse acontecimento tem uma sensação catalítica, especialmente em relação à
presença de líderes políticos de toda a região.
O paralítico (v. 18) e seus amigos estão determinados a conseguir acesso a Je­
sus. Não conseguindo fazer isso, por causa da multidão, subiram ao terraço
e o baixaram em sua maca, através de uma abertura, até o meio da multi­
dão, bem em frente de Jesus (v. 19). Nesta cena, o paralítico e seus amigos são
contrastados com os fariseus e os mestres da lei que estão passivos e cheios de
dúvidas. Eles simplesmente observam e opõem-se a Jesus questionando Suas
ações no coração (v. 21).
Essa justaposição de ansiedade e passividade demonstra aos leitores que os su­
plicantes têm a atitude correta; e as autoridades religiosas, a atitude errada. O
autor onisciente oferece aos leitores acesso aos pensamentos escondidos dos
fariseus: “As ideias sobre personagens, eventos, cenários, ideologia etc. estão
continuamente sendo reafirmadas, negadas, revisadas e suplementadas. (...) As
construções mentais são sequenciais, cumulativas e sujeitas a mudanças” (Darr,
1992, p. 30). Lucas constrói a caracterização dos simpatizantes e oponentes de
Jesus sequencialmente e cumulativamente.
1 2 0 - 2 6 Em resposta à grande fé do paralítico e seus amigos, Jesus diz: “Ho­
mem, os seus pecados estão perdoados” (v. 20). Isso é equivalente a dizer: “a
sua fé o salvou” (como em 17.19). Era comumente entendido no judaísmo que
somente Deus pode perdoar pecados (SI 130; Is 43.25). Aqui, a voz passiva -
“seus pecados estão perdoados” - era um modo convencional que os mestres
judeus às vezes insinuavam uma ação de Deus (Sanders, 1995, p. 213). Mas os
v. 21 e 24 desmentem essa interpretação. Jesus concede o perdão em nome de
Deus, e a declaração é chocante para pelo menos alguns dos que estavam pre­
sentes, que descreveram isso como uma blasfêmia (v. 21).
A teologia do perdão do pecado intencional no AT é direta. Ela envolve confis­
são, restituição e uma oferta (veja a anotação complementar). Aqui, a disputa
com os fariseus é a apropriação de Jesus do direito de declarar algo normalmen­
te concedido apenas por Deus. Assim como a purificação que Jesus concedeu
ao leproso ao tocá-lo diretamente, isso também traz uma reivindicação radical
ajesus.
Por que um homem paralítico precisa do perdão de pecados ? Havia uma linha
indefinida e sutil entre o pecado e a enfermidade no AT e no judaísmo contem­
porâneo. Essa é outra situação na qual as duas questões chocam-se. Jesus parece
174
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

reforçar o senso de causação ao discutir o perdão com o paralítico (Marshall,


1978, p. 219). Essa é a primeira referência de Lucas à fé (v. 20; Green, 1997, p.
240). O homem não está simplesmente paralítico e recebe a cura. Ele está cheio
de “fé” e recebe “perdão”. E recebe a cura baseado naquela fé. Logo, as questões
complexas em torno da impureza, do pecado e da enfermidade convergem-se
nessa história.
O propósito de Lucas não é explicar o relacionamento entre a doença e o pe­
cado, mas demonstrar o poder de Jesus em restaurar o homem à integridade. A
linha entre a impureza e a doença é embaçada porque isso não importa para o
homem. Sua luta contra o pecado, a impureza e a doença, para ele, tudo isso é
um problema só.
Isso pode ter implicações teológicas também. Com esse ato de fé, ele adquire o
perdão e a cura. Esse resultado mostra a natureza unitária da salvação em Lu­
cas. Pela fé, o homem cujo mundo está estilhaçado pela desordem da impureza
e da enfermidade é restaurado à “santidade” - o que a antropóloga Mary Dou­
glas, certa vez, eloquentemente, chamou de “unidade, perfeição e integridade”
da vida (1970, p. 68).
Ainda em outro nível, a declaração de perdão carrega uma implicação cristo-
lógica para a narrativa mais ampla de Lucas: aquele que declara o perdão nesta
cena caótica é o Messias crucificado, mediando o perdão por meio do Seu sa­
crifício (At 10.39-43).
Os fariseus levantaram uma questão razoável, Quem pode perdoar pecados,
a não ser somente Deus ? (v. 21). Em resposta, Jesus oferece uma resposta legal
(halakhic) aos seus companheiros eruditos: Que é mais fácil dizer; ‘Os seus
pecados estão perdoados’, ou: ‘Levante-se e ande’? (v. 23; veja também 6.9).
Na disputa rabínica, tal pergunta é chamada de boruth> “uma vulgaridade”, des­
tinada a envergonhar o oponente colocando uma pergunta sem resposta. Esse
método é usado contra Jesus em Lucas 20.22 e Marcos 12.18-27. A cura ime­
diata do paralítico não deixa dúvida de que o Filho do homem tem na terra
autoridade para perdoar pecados (v. 24). Todos do povo ficaram atónitos (v.
26, ekstasisy “perplexidade, êxtase, assombro”). Eles disseram: hoje vimos coi­
sas extraordinárias! Essa demonstração de autoridade estabelece um pouco
mais o caráter messiânico de Jesus na narrativa.
Essa é a primeira referência ao Filho do homem em Lucas. Essa é uma frase
que ele irá usar frequentemente (25 vezes), mas com significados variados. Ela
é, às vezes, uma simples forma de autorreferência, com raízes particularmente
na tradição de Ezequiel (Ez 2.1 e geralmente daí em diante; ex.: veja Lucas
5.24; 6.5; 7.34; 11.30; 19.10). Em outras ocasiões, ela refere-se àquele que irá
175
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

sofrer (9.22,44; 22.22,48,69; 24.7), a Jesus como uma figura de conflito (6.22;
12.8,10), e a alguém que retorna escatologicamente (como em 9.26; 12.40;
17.22,24,26,30; 21.27).
Em 21.27, Lucas cita Daniel 7.13, onde o uso de “Filho do homem” certamen­
te tem uma conotação apocalíptica. Mas essa influência não está sempre clara­
mente presente no uso dessa frase por Lucas. Embora pareça ser um termo um
tanto benigno de referência própria aqui em 5.24, a passagem de Daniel 7 não
pode estar longe da mente do leitor antigo como um subtexto tumultuador.
(Veja 17.22,23 e o comentário em 18.31-34 e 21.27)

A teologia do perdão no judaísmo


A teologia do perdão no judaísm o antigo é d erivad a de Levítico 6 .1 -7 .
Aqueles que pecam in te n c io n a lm e n te en co n tram o p erdão pela confissão,
restituição e um a o ferta pela culpa (veja ta m b é m Nm 5 .5 -7 ). O perdão
é um a q uestão re la tiv a m e n te d ireta e disponível o te m p o todo se essas
condições forem atingidas.
A exigência da confissão em Levítico é mais parecida com o p aradig ­
m a do a rre p e n d im e n to e m Lucas. Todos os seis pecadores e xem p lares de
seu Evangelho evid en ciam algo parecido com a confissão. Pedro confessa:
Eu "sou um h om em p ecad or!" (v. 8). A m u lh e r pecadora chora (7 .3 8 ). O
pródigo diz, "pequei contra o céu" (1 5 .2 1 ). O cob rador de impostos b ate
no peito (1 8 .1 3 ). Z aq ueu oferece, "se de alg u ém extorqui (...)" (1 9 .8 ).
Existe algu m a evidên cia da segunda exigência, a restituição. Levi d ei­
xa a sua m esa de coletor, o que pode ser um a form a de restituição, por
exem plo. Z aq u e u concorda, "d evolverei quatro vezes mais" (1 9 .8 ).
Existe m enos evidência da terceira exigência, um a o ferta cultual pela
culpa. Os leprosos são obrigados a le v ar um a o ferta (5 .1 4 ; 1 7 .1 4 ). Mas,
fora isso, nen hu m a exigência cultual é m en cion ada. Nesse ponto, E. P.
Sanders e s tava certo de sugerir que este foi um dos aspectos ofensivos
da carreira de Jesus (veja Blom berg, 2 0 0 5 , p. 2 5 ). É aí que os dois p arad ig ­
m as de Levítico e Lucas divergem .
O p aradig m a levítico vê o "pecado" com o um a transgressão
pública, envolvendo propriedade e direitos. Logo, a restituição m aterial
era necessária. O p aradig m a de Lucas é m ais existencial, enxergand o
o pecado com o um a condição da alm a que, em si m esm a, precisa de
reparação. Existe em Lucas um aspecto d o m in a n te de responsabilidade
pessoal pelo pecado e um a correspondente liberdade de escolha para se
seguir em direção à redenção e à santidad e em um nível pessoal. Isto
é, e m b o ra a ação salvífica de Deus seja sem p re e p le n a m e n te bondosa,

176
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

com o a "preocupação q uanto à o rientação " defend ida pela teologia


w esleyan a, sem a nossa participação responsável, a graça não irá salvar
(M addox, 1 9 9 4 , p. 19; veja ta m b é m N ew m an , 2 0 1 0 , p. 2 8 -3 1 ).
Mais ta rd e , em Atos, um aspecto da p ro pried ade com un itária surge
n o v a m e n te no pecado de Ananias e Safira (At 5 .1 -1 1 ), um a rep resentação
m ais parecida com a abo rd agem levítica. Nesse sentido, o Evangelho de
Lucas é mais propício a um a leitura w esleyan a do q ue Atos.

A PARTIR DO TEXTO
A resposta de Jesus ao paralítico introduz um novo aspecto da caracteri­
zação de Lucas quanto à Sua identidade. Ele apropria-se da prerrogativa de de­
clarar o perdão de Deus. Essa garantia de “autoridade” pelo “Filho do homem”
é um ponto decisivo na narrativa. Logo, é um ponto decisivo para o leitor. As
linhas de conflito foram traçadas, e os leitores precisam decidir: “Do lado de
quem ficarei neste conflito ?”. Esse é o propósito retórico do texto de um Evan­
gelho. A indiferença não é uma opção; o indivíduo deve decidir agora como irá
responder a esta apresentação de Jesus como o Filho do Homem. Ele pode ficar
do lado dos fariseus, os adversários estereotipados da obra de Jesus. Ou, pode
ficar do lado dos pecadores, que aceitam Jesus e Sua cura.
O narrador não é desinteressado; e os leitores estão sujeitos às “sequenciais
e cumulativas” articulações mentais que o narrador criou - uma “hierarquia de
perspectivas”. O narrador é visto como confiável, assim como o são os simpá­
ticos personagens da história. Os adversários, em contraste, são duvidosos por
causa de sua transparente falta de fé e da hostilidade para com Jesus. Isso leva à
“percepção retórica” à qual os leitores estão sujeitos na narrativa (Darr, 1992,
p. 30,53-59).
Dentro desse processo, questões pertinentes surgem para o leitor. Quem,
realmente, pode perdoar pecados senão Deus? E quem entre nós pode facil­
mente tolerar, como os fariseus são desafiados a fazer, a desconstrução de cren­
ças tão queridas? Será que um milagre é causa suficiente para abandonar as
convicções sagradas? E, isso seria sábio, de alguma forma? De que maneiras
a aderência à tradição cega-nos para uma nova verdade? Essas são perguntas
sugestivas a partir da cura do paralítico e da declaração de Jesus.
Em um nível mais pragmático, as ações dos amigos do paralítico refletem
o pensamento público criado pela paralisia naquela cultura. A imobilidade de
177
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

um membro da comunidade onerava os recursos de toda a aldeia. Um para­


lítico precisava ser cuidado, não podia trabalhar e ocupava o tempo daqueles
que tinham de carregá-lo para um lado ou outro. Os homens que carregavam
aquela vítima da paralisia buscavam não só a cura do indivíduo, mas também a
liberação do peso dos cuidados que ele requeria.
A imagem de um homem sendo baixado diretamente no meio de uma casa
lotada é uma cena maravilhosa de caos e criatividade, mas isso demonstra o
desespero e a determinação tanto como a fé que tinham aqueles homens. Cla­
ramente, o paralítico e seus amigos tipificam a fé que o leitor é encorajado a
adotar.

3. Levi segue Jesus e oferece um banquete (5.27-32)

POR TRAS DO TEXTO


Levi é o representante inaugural do cobrador de impostos como uma ti­
pologia no Evangelho (5.27-32; 7.28-35; 15.1,2; 18.9-14; 19.2-10). A história
dele é de pares correspondentes: um no início da seção central (5.31,32), e
outro no final (19.9,10). Ambos registram uma declaração paradigmática do
propósito da missão de Jesus.
Neste capítulo, Lucas estabelece a estrutura conceituai para os capítulos
centrais de seu Evangelho. Já mencionamos as quatro pessoas arquetípicas
que respondem a Jesus no capítulo 5. Agora, outros temas desta estrutura são
aprimorados ou introduzidos: o aumento do conflito, o perdão, a inclusão dos
marginalizados na nova comunidade.
A narrativa do capítulo 5 está sendo incrementada passo a passo em dire­
ção a esta importante decisão de Levi:
• As multidões comprimem-se em torno de Jesus para ouvir Seu ensinamen­
to (v. 1).
• Acontece o milagre da segunda pesca milagrosa (v. 4-7).
• Pedro proclama sua pecaminosidade, e ele e seus companheiros seguem a
Jesus (v. 8-11).
• Proeminentes mestres vêm de todas as regiões do país para ouvir Jesus (v.
17).
• Um paralítico é curado e perdoado (v. 18-26).
178
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

As multidões exclamam, “Hoje vimos coisas extraordinárias!” (v. 26).


Agora, o arrependimento de um cobrador de impostos comum é o clímax
dessa série de acontecimentos miraculosos.
A profissão de cobrador de impostos era desprezada pela população judai­
ca em geral por razões óbvias. Os cobradores de impostos eram contratados
pelo governo romano. Eles coletavam pedágios e impostos de trânsito entre as
jurisdições. Um israelita nato que aceitava esse serviço de Roma estava alienan­
do-se de seus compatriotas (veja Derret, 1970, p. 178-185; Michel, 1972, p.
88-105). Os leitores já sabem como a honestidade dos cobradores de impostos
estava em questionamento por causa da admoestação de João para que eles não
cobrassem mais do que “o devido” (3.13).
Havia, sem dúvida, cobradores de impostos honestos na Palestina. Então,
estamos lidando novamente aqui com uma caracterização estereotipada, assim
como os fariseus, os soldados e as multidões. Mas nos Evangelhos, os cobrado­
res de impostos são uma categoria que está sujeita a uma desaprovação especial.
Logo, esse encontro tem várias camadas de complexidade. Um encontro irê-
nico entre Levi e Jesus é tão maravilhoso como quaisquer dos acontecimentos
prévios do capítulo 5.

NO TEXTO
1 2 7 - 2 8 O publicano chamado Levi, como é característico de todos os co­
bradores de impostos e pecadores em Lucas, responde positivamente ao con­
vite de Jesus e segue-o. Ele deixou tudo e seguiu Jesus imediatamente, assim
como Pedro e seus companheiros pescadores. Para Levi, aquilo era uma com­
pleta quebra da rotina de sua antiga vida e ocupação, um ato concreto de ar­
rependimento (Nave, 2002, p. 167, 169). Isso é incrementado no comentário
de Lucas 3.12 concernente aos publicanos que vieram ser batizados por João
Batista. Os pecadores arquetípicos estavam ansiosos para reagir positivamente
a João e a Jesus. Uma atração gravitacional de pecadores em direção a Jesus está
acumulando-se na narrativa, juntamente com uma correspondente alienação
da elite religiosa.
I 2 9 - 3 2 Então Levi ofereceu um grande banquete a Jesus em sua casa.
Havia muita gente comendo com eles: publicanos e outras pessoas (v. 29).
Essa cena alegre na casa de Levi é um paradigma do programa de Lucas quan­
to ao perdão e a inclusão para os pecadores. A cena é um grande banquete,
patrocinado por Levi. Essa expressão só é usada depois na descrição de Lucas
sobre um banquete em 14.13. Em Mateus, Jesus está simplesmente “jantando
179
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

na casa” (Mt 9.10). Essa não seria necessariamente a casa de Levi, afinal (Mt
9.10 ||Mc 2.15).
O banquete de Levi, como um evento planejado, é intensificado pela presença
de “uma multidão de publicanos e outros” (v. 29b ARC). Os outros Sinóticos
referem-se simplesmente a “publicanos e pecadores” (Mt 9.11; Mc 2.15).
Quem eram esses “outros” convidados? Do ponto de vista literário, eles são
indivíduos considerados além dos limites da inclusão pela elite religiosa. A
passagem não estabelece a identidade histórica dos acompanhantes de Jesus,
somente que Ele se associa com os que estão fora da aceitação religiosa ma­
joritária. Ele está em conflito com Seus correligionários sobre a inclusão das
pessoas de fora na comunidade da aliança (veja a Introdução, Temas teológicos
em Lucas).
Os fariseus egongyzon, queixaram-se (v. 30) sobre os hábitos de Jesus à mesa.
Essa palavra grega é frequentemente usada na LXX para a murmuração dos
filhos de Israel no deserto (ex.: Êx 15.24; 16.7-12; 17.3; Nm 11.1; Beale e Car­
son, 2007, p. 293). Eles perguntaram aos Seus discípulos: Por que vocês co­
mem e bebem com publicanos e ‘pecadores’? (v. 30). Os oponentes de Jesus
consideravam Sua interação com aquelas pessoas inapropriada.
A acusação contra Jesus não era traição, como se estivesse comendo com cola­
boradores romanos. Do contrário, os fariseus teriam dito, “Por que o seu mes­
tre está traindo Israel?” Isso seria uma acusação muito mais eficaz; mas eles
parecem não objetar a associação de Jesus com os publicanos e pecadores até
que Ele com a com eles (veja Blomberg, 2005, p. 98-103; Adams, 2008, p. 115­
117).
Jesus estaria correndo o risco de consumir d em a i, ou alimento não dizimado
no banquete. Uma parte da colheita sempre devia ser reservada para os sacer­
dotes segundo as leis bíblicas do dízimo. Aqueles que desejavam ser gentis £ob­
servadores simplesmente separavam o dízimo no prato, se não tivessem certeza
da situação do mesmo. Mas as pessoas, geralmente, violavam as leis do dízimo
nesse período; e a maioria estava ritualmente impura quase todo o tempo. Os
fariseus, entretanto, eram escrupulosos em ambos os casos. Essa pode ter sido
a base para a afronta deles.
Jesus, certamente, contrairia impureza ritual de Seus anfitriões. Como resul­
tado, Ele seria impedido temporariamente de entrar no templo. Mas isso era
a Galileia, então, ninguém estaria preocupado, a não ser os sectários que se
empreendiam em um nível supérfluo de observância (Neale, 1991, p. 24-26).
Tais eram as preocupações dos fariseus, e não da sociedade em geral. Isso mal
podería ter sido a causa de um escândalo público.
180
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

Ainda assim, a comunhão à mesa tinha uma profunda significância naquela


cultura (veja Borg, 1984, p. 82-86; Blomberg, 2005, p. 17-30; e esp. Thomp­
son, 2007, 79-92). M. A vot 3.3 diz: “Mas se três indivíduos comeram juntos e
falaram à mesa palavras da Lei, é como se tivessem comido à mesa de Deus, pois
está escrito, ‘E ele me disse, ‘Esta é a mesa que está diante do Senhor”.”
Comer juntos tinha a conotação de uma ligação sagrada. A cena encontra seu
significado no simples, porém, potente símbolo cultural da comunhão. Seja
qual for a causa histórica da ofensa, sua explicação neste contexto é provavel­
mente tão literária quanto histórica.
Em resposta à crítica dos fariseus quanto ao Seu comportamento, Jesus replica:
“Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes.
Eu não vim chamar justos, mas pecadores ao arrependimento” (v. 31,32).
Apenas Lucas acrescenta ao arrependimento à chamada. Essa máxima define
ainda a declaração do ministério em 4.18,19 na sinagoga em Nazaré e recorda
o provérbio de Lucas 4.23. Novamente, Lucas unifica as categorias de doença
e impureza moral no provérbio em Lucas 5.32. Isso reforça a ideia de que tais
distinções não estavam claramente demarcadas na mente do narrador antigo
nem de seus primeiros leitores.
O versículo 32 funciona com base em uma analogia: os pecadores são metafo­
ricamente doentes; e o arrependimento cura-os. Falando de outra maneira, o
arrependimento cura a impureza moral. Em Lucas, esta é a solução universal
para qualquer mal do pecador.
A referência de Jesus aos “justos” é geralmente entendida como irônica. São os
fariseus “como eles imaginavam que eram” (Marshall, 1978, p. 220) ou uma
“paródia” de sua verdadeira condição (Green, 1997, p. 248). E uma caracteriza­
ção “retórica” de como eles se veem (Bock, 1994, p. 498). Lucas, aliás, demons­
tra uma mão cuidadosa quando mostra Jesus chamando Seus convidados ao
banquete de “publicanos e outros”, enquanto que os fariseus chamam a todos
esses de “pecadores”. O significado do termo aqui é, afinal, sempre determinado
pelos lábios de quem ele é encontrado.
Logo, o provérbio poderia ter sido interpretado literalmente: “Se você estiver
bem, você não precisa de cura”. Isto é, se você for humilde e estiver arrependido,
você não precisa da cura do médico. Mas o “doente” realmente precisa desse
remédio. Esse era o caso de Levi no momento. Nessa leitura, os adversários
de Jesus são os justos; e Ele justifica Seu ministério aos pecadores como Sua
responsabilidade básica. Isso vai de encontro à caracterização uniformemente
negativa dos adversários de Jesus, entretanto. E difícil se escapar da ironia do
termo “justos”, no v. 32.
181
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Mesmo assim, o convite de Jesus aos pecadores não é radical e nem heroico.
E a responsabilidade bíblica de o pastor buscar as ovelhas perdidas de Isra­
el (Ez 34.4-16). Essa é a responsabilidade que os fariseus aboliram enquanto
pastores. Ao estender a graça ao publicano Levi, Jesus simplesmente fez o que
o servo do Senhor deve fazer. O Filho do Homem precisa chamar o desviado
de volta ao relacionamento com Deus.
Jesus chama Israel de volta aos seus valores fundamentais de amor e compaixão
pelos perdidos e à lei original de amor ao próximo como a si mesmo. Logo, Ele
mostra que é um verdadeiro e fiel pastor para as ovelhas de Israel. A chamada
dele é radical, porém, no “grau” de graça que Ele estende àqueles descritos pelo
termo normalmente reservado aos irredimíveis - pecadores.
A base para o termo “pecadores” no AT da LXX é “ímpios” (Hb: reshaim\
Gg: ham artõloí), o irremediavelmente perdido (veja o comentário em 6.32­
36). Aqui, os pecadores são incorporados em uma nova comunidade. O uso
do termo desta forma é uma inovação do N T; o irremediavelmente perdido é
prontamente salvo (Neale, 1993, p. 94,95).

A PARTIR DO TEXTO
Os profetas de Israel chamavam os israelitas de volta aos valores funda­
mentais do judaísmo monoteísta quando eles perdiam-se em seus caminhos.
O criticismo profético dos pastores de Israel em Ezequiel 34.4-24 é um bom
exemplo. Ali, as autoridades religiosas são acusadas por Deus de não estar cui­
dando dos perdidos: “Vocês não fortaleceram a fraca nem curaram a doente
nem enfaixaram a ferida. Vocês não trouxeram de volta as desviadas nem pro­
curaram as perdidas. Vocês têm dominado sobre elas com dureza e brutalidade”
(Ez 34.4). Em Ezequiel 34.8,16, o próprio Deus disse, “uma vez que os meus
pastores não se preocuparam com o meu rebanho (...) Procurarei as perdidas”.
Essa passagem era, provavelmente, bem conhecida entre os contemporâ­
neos de Jesus. O uso da linguagem de Ezequiel 34 por Ele indica que Jesus
estava acusando aqueles fariseus em particular de descuido no dever sagrado.
Eles tinham um comissionamento sagrado de cuidar das ovelhas perdidas de
Israel. Essas eram os publicanos e os pecadores que eles menosprezavam. Era
d ev er dos fariseus procurar essas ovelhas perdidas em vez de desprezá-las como
pecadoras.
Nessa narrativa, Jesus e Seus oponentes fariseus diferem quanto à
localização dos limites para a exclusão da comunidade da aliança. Lucas já
nos mostrou um Jesus que acredita que até os gentios estão dentro do escopo
182
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

dos cuidados de Deus (4.26,27). Agora Ele também abrange aqueles nas mais
distantes margens da comunidade da aliança (5.29,30). Em Atos, Lucas irá
estender essas fronteiras ainda mais até alcançar o distante mundo dos gentios,
a própria Roma.
Em 5.31 há um eco do comovente relato da redenção de Manassés, o pior
pecador da história de Israel. Manassés era culpado de uma longa lista de pe­
cados, mas finalmente arrependeu-se (2 Rs 21.1-18; 2 Cr 33.12,13). Sua ora­
ção de arrependimento está registrada no apócrifo A oração d e M anassés: “Tu
porém, ó Senhor, Deus dos justos, não designaste a graça para os justos como
Abraão, Isaque e Jacó, aqueles que não pecaram contra ti; mas designaste a
graça para mim, que sou um pecador” (v. 8). A similaridade com a máxima de
Jesus no v. 31 é impressionante. Será que Ele conhecia essa oração evocativa do
maior pecador de Israel e usou o arrependimento de Manassés como um mode­
lo para aqueles considerados irremediavelmente perdidos para a elite religiosa?

4. As parábolas das roupas e dos odres de vinho (5.33-39)

POR TRAS DO TEXTO


O registro de Lucas sobre o controverso banquete de Levi é seguido de
duas parábolas que tratam da natureza da mudança e do desafio que a mes­
ma apresenta às expectativas tradicionais. Primeiro, os antagonistas de Jesus
perguntam por que os discípulos de Jesus não jejuam como os fariseus ou os
discípulos de João. Alguns fariseus evidentemente jejuavam duas vezes por se­
mana (Lc 18.12). Isso era uma prática comum no AT, especialmente durante os
momentos de crises e de luto entre os líderes de Israel (2 Sm 12.16; SI 35.13).
A história dos remendos de roupa e dos odres de vinho introduz uma for­
ma abreviada do gênero da parábola em Lucas (veja 6.4-49, o primeiro exemplo
pleno; veja Snodgrass, 2008, p. 333; Mt 9.16,17 ||Mc 2.21,22). Uma parábola
pode ter múltiplas camadas de significados, isso faz parte do gênio desse gê­
nero. O posicionamento dessas duas parábolas aqui permite que o contexto
mais amplo de 5.27-35 influencie a interpretação das mesmas. A missão para os
publicanos e outros marginalizados (v. 27-32) e a festa e o jejum na presença do
noivo (v. 33-35) são criticadas pelos contemporâneos de Jesus. Eles não con­
seguem aceitar Sua comunhão com os marginalizados como uma causa para
alegria. Tampouco podem eles celebrar Sua posição profética de noivo.
183
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

1 3 3 - 3 5 Jesus e Seu círculo social serão criticados for sua franca comensalida-
de ao longo do Evangelho (5.30; 11.37-41; 14.12-14,15-24; 15.1,2; 19.1-10).
Os hábitos de comer e beber de Jesus são questionados em 7.33,34 novamente
em conexão com os discípulos de João. João era famoso como ascético. Sendo
nazireu, ele abstinha-se do vinho (Lc 1.15; 7.33). Sem dúvida, os discípulos de
João tinham hábitos semelhantes de abnegação, o que deve ter alimentado o
criticismo dos fariseus quanto a Jesus e Seus discípulos.
Comparado com o asceticismo de João, o prazer de Jesus na comida e no
vinho parecia uma devassidão para alguns de Seus contemporâneos. Sua res­
posta a esse criticismo é uma interessante janela para o Seu senso interior de
identidade. Ele tem uma jubilante abordagem de Sua vida e missão. O jejum
estava associado aos momentos de amargura na tradição judaica (veja 1 Sm
31.13; 2 Sm 1.12; 1 Cr 10.12; Beale e Carson, 2007, p. 293). Jesus respon­
deu às objeções de Seus adversários. Simplesmente não era hora de abstenção:
Podem vocês fazer os convidados do noivo jejuar enquanto o noivo está
com eles? (v. 34). Jesus identifica a si mesmo como o “noivo”. A celebração do
casamento, como um dos aspectos mais alegres da cultura hebraica, representa
um forte contraponto para o jejum.
O casamento era a principal instituição social dos judeus. O processo do
noivado significava o júbilo e a antecipação da unidade do casal. A festa de
casamento em si era uma exultante procissão com música, comida e risos. Que
Jesus tenha estabelecido a si mesmo como o noivo nesse papel é um retrato
íntimo do jubiloso relacionamento que Ele compartilhava com os Seus segui­
dores. O luto viria com o tempo; dias virão quando o noivo lhes será tirado,
disse Jesus (v. 35). Mas agora era hora de celebração. Essa é a primeira vez que
Lucas faz alusão à morte de Jesus (veja Lc 2.35; também Snodgrass, 2008, p.
480; Fitzmyer [1981, p. 1.599] discorda).
1 3 6 - 3 9 A parábola dos remendos e das vasilhas de vinho é um comentário,
e não a incompatibilidade entre a Antiga e a Nova Aliança (como sugerem
alguns: Fitzmyer, 1981, p. 1.601). Em Lucas, sua preocupação é com a dificul­
dade de aceitarem uma maneira diferente de enxergar uma situação familiar.
Nesse caso, o que está em discussão é uma mudança da etnia para o arrependi­
mento como o método de entrada na nova comunidade. Não é a substituição
do judaísmo por uma nova religião. A parábola convida o judaísmo a abraçar
novamente a inclusão dos gentios, de acordo com a salvação universal prevista
pelos profetas da antiguidade.
184
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

Essa parábola faz-nos refletir sobre como uma mudança de perspectiva


deforma e desafia a tradição. Uma roupa velha não pode ser remendada com
pano novo - o novo não combinará com o velho, e o novo ficará destruído
(veja Lv 19.19; Dt 22.11). Por um lado, Jesus procura reformar uma prática
imperfeita de judaísmo (a roupa velha). Por outro lado, Ele irá reconstruir um
judaísmo renovado sobre a base do antigo (a roupa nova). Esse movimento de
reforma traz violência e mudança, bem como renovação e crescimento. A re­
forma que Jesus traz ao judaísmo terá elementos de desconstrução bem como
de construção, a roupa certamente irá rasgar, e o odre de vinho certamente se
romperá.
O significado simbólico do vinho na narrativa bíblica ajuda na interpre­
tação das duas parábolas. O vinho é o símbolo da bênção de Deus na terra da
aliança, tanto agora como na ordem escatológica (ex.: Gn 27.28; Jl 3.18). Jesus
reconhece como será difícil para a velha ordem cultual farisaica abraçar a nova
ordem messiânica, especialmente dada a crescente oposição que tem estado em
evidência nos versículos anteriores.
Somente Lucas inclui esse aforismo no v. 39: WE ninguém, depois de be­
ber o vinho velho, prefere o novo, pois diz: ‘O vinho velho é m elhorf”.
Marcião omitiu esse versículo de seu texto revisionista porque pensava que o
mesmo afirmava a retidão dos velhos costumes do judaísmo e da lei acima do
novo caminho do evangelho (Green, 1997, p. 230; Metzger, 1975, p. 139).
O comentário é mais provavelmente uma simples afirmação de fato, e uma
observação particularmente compassiva de Jesus. Ele reconhece quão confor­
táveis são os antigos caminhos para o povo, e agora muitos preferem o antigo,
não importa o quão maravilhoso seja o advento do novo.

5. "O Filho do homem é Senhor do sábado" (6.1-5)

POR TRAS DO TEXTO


As duas últimas das cinco histórias de conflito em Lucas 5.17—6.11 apa­
recem no capítulo 6. Como as histórias anteriores, elas possuem o formato
evento-oposição-fala. Ambas as histórias envolvem os fariseus como anta­
gonistas e ambas têm problemas com as restritas leis de trabalho no Sábado,
como interpretadas por alguns fariseus (veja Gn 2.2,3; Ex 16.22-30; 20.8-11;
31.14,15; Dt 5.12-15).
185
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

O descanso sabático era a prática definidora que diferenciava os judeus de


seus vizinhos pagãos. Era uma expressão cultural de um ideal religioso, seme­
lhante à circuncisão. Essas práticas culturais definiam a identidade judaica em
uma sociedade hostil e funcionavam como um “sinal” entre Deus e Seu povo
(Ez 20.12; Green, 1997, p. 252).
A ideia do Sábado originou na história da criação, em que Deus descansa
após seis dias de trabalho (Gn 2.1-3). As referências aos Sábados são encontra­
das ao longo do AT, especialmente no Pentateuco e nos profetas, e não tanto
nos livros poéticos (somente em SI 92.1). Os judeus do primeiro século enfati­
zavam o Sábado (como as leis da circuncisão e do kosher) como um significan-
te marco de fronteira que separava os judeus e os gentios.
No NT, o Sábado é mencionado frequentemente nos Evangelhos e em
Atos (26 vezes em Lucas /Atos; 9 vezes em Mateus; 7 vezes em Marcos). Fora
isso, ele só é mencionado em Colossenses 2.16 e Hebreus 4.9 (como parte de
uma grande discussão sobre o “descanso” de Deus).
No nível cultural, a observância do Sábado originou como um aspecto
socio-humanitário ao permitir o descanso do trabalho. E também, segundo
Amós 8.4-6, tinha um propósito moral: controlar a ganância no comércio. Tal­
vez, mais importantemente, a prática do descanso sabático sinalizou para a so­
ciedade em geral a “alteridade” da vida judaica. Qualquer diminuição de rigor
na guarda do Sábado era interpretada como um desafio à identidade judaica.
Uma posição branda em sua observância era mais do que um assunto de debate
teológico infrutífero. As atividades de Jesus no Sábado eram provavelmente
vistas como um teste decisivo de Seu empreendimento como judeu. O tex­
to deixa claro que alguns consideravam Suas ideias subversivas para a agenda
político-social judaica.

NO TEXTO
H 1-5 Os discípulos de Jesus estavam catando espigas no campo de um agri­
cultor; os observadores farisaicos foram contra esse comportamento, que con­
sideravam impróprio. A presença dos fariseus, aparentemente muito próximos
de Jesus, dá continuidade à sensação de alto drama iniciada em 5.17. Ali, “os
fariseus e mestres da lei” de cada canto do país tinham vindo observar Jesus.
Do ponto de vista da narrativa, a fase privada do ministério de Jesus havia ter­
minado. Por essa razão, os leitores não ficam particularmente surpresos pela
presença dos adversários de Jesus ao Seu lado.
186
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

Há uma decrescente lacuna entre o narrador, os personagens e os leitores nessa


cena. É como se os leitores estivessem olhando sobre os ombros de Jesus, como
se estivessem presentes ali no campo. Nós observamos as interações, olhando
os discípulos esfregando os grãos de cereais em suas mãos. Tal é a nossa proxi­
midade para com o narrador e os personagens, e identificamo-nos com Jesus
e Seus discípulos e repudiamos as vistas severas de Seus oponentes (veja Darr,
1992, p. 31).
A colheita dos cereais, como descrita no versículo 1, era permitida em Deu-
teronômio 23.25 (veja também Lv 19.9,10; 23.22; Rt 2.1-7). Mas realmente
violava as leis contra colher e debulhar no Sábado (Êx 34.21; veja m. Sabb. 7.2
para as 39 classes de trabalhos proibidos no Sábado: “(...) semear, arar, colher,
amarrar feixes, debulhar, peneirar, limpar a lavoura (...)”). Essa preocupação
pode ser vista na pergunta dos fariseus: “Por que vocês estão fazendo o que
não é perm itido no sábado?” (v. 2).
Jesus comparou aquela colheita ad hoc com o fato de Davi comer os pães con­
sagrados em 1 Samuel 21.1-9. Naquela passagem, Davi desobedeceu à proi­
bição contra o consumo do alimento reservado aos sacerdotes. Esse é um uso
inesperado dessa passagem. 1 Samuel 21 não diz respeito à observância do Sá­
bado, mas a uma questão bem diferente - a impureza ritual baseada no ato
sexual (1 Sm 21.4-8; veja Lv 24.9).
Os discípulos de Jesus, entretanto, realmente quebram um mandamento sabá­
tico extrabíblico (halahkah) da colheita. Jesus argumenta que esse comporta­
mento “ilegal” era justificado pela necessidade humana de sobrevivência (veja
2 Rs 4.42-44). O conflito em ambas as histórias, 1 Samuel e Lucas, é sobre a
tensão entre a rígida observância da lei e outra visão mais branda da lei como
um guia de conduta. Nem Davi nem Jesus argumentam pela quebra da lei; mas
ambos reservam-se a prerrogativa de interpretar e julgar prescrições baseados
em sua própria interpretação liberal da lei.
Marcos, aliás, inclui um comentário de Jesus que indica que Ele pensava que as
prescrições do Sábado tinham ido longe demais nesse caso: “O sábado foi feito
por causa do homem, e não o homem por causa do sábado” (Mc 2.27). Apa­
rentemente, no pensamento de Jesus, os princípios de compaixão e necessidade
humana sobrepujam quaisquer perigos que a interpretação da lei de Deus de
maneira mais humana possa ocasionar.
187
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Em Lucas, a máxima de Marcos sobre o Sábado ser feito para os homens é omi­
tida. Somente a declaração sumária permanece: O Filho do homem é Senhor
do sábado (compare com 5.24). Essa sutil revisão torna a comparação de Jesus
a Davi o assunto da história lucana. Isso não é só uma disputa sobre o Sábado
ou a pureza das leis. Jesus descreve a si mesmo como o “Filho do homem”, o
“Senhor do sábado”. Essa descrição torna-se um comentário sobre Sua iden­
tidade real e Sua prerrogativa. Jesus parece dizer, “Já que Davi torceu a lei por
necessidade humana, eu posso torcer a lei por uma necessidade humana”. Jesus
assume a prerrogativa do rei-herói para fazer julgamentos sobre a santidade e
a lei.
A citação da história de Davi evoca um nível ainda mais profundo de significa­
do intertextual no argumento. Davi era um rei justo, devidamente ungido por
Samuel, mas perseguido pelo corrupto Saul. Enquanto fugia, Davi encontrou
um aliado em Aimeleque, o sacerdote do vilarejo de Nobe, que havia disposto
os pães consagrados (1 Sm 21.2) e os deu a Davi e a seus homens famintos. A
compaixão de Aimeleque é contrastada com a figura de Doegue o edomita,
um mercenário gentio que se dispôs a massacrar os 85 sacerdotes de Nobe em
retribuição à bondade de Aimeleque para com Davi. Os próprios soldados de
Saul haviam recusado a ordem do rei de matar os sacerdotes (1 Sm 22.18); mas
Doegue cumpriu o desejo do rei.
Quando Jesus se refere a essa história em resposta à objeção dos fariseus acerca
da colheita ad hoc, Ele faz três coisas:
1.Identifica a si mesmo como o Filho de Davi com as mesmas prerrogativas
reais, incluindo a discrição no uso daquilo que é ritualmente santo.
2. Ao descrever a si mesmo como o “Senhor do sábado”, Ele apropriou para si
o papel do árbitro da lei, valorizando a compaixão e a necessidade humana
acima da rígida observância da lei. Essa crescente independência de pensa­
mento em questões de interpretações legais (veja 5.22,30,31) é um aspecto
emergente da caracterização que Lucas faz de Jesus.
3. Ele lança seus adversários em uma luz discordante em referência à história
de Samuel quando sutilmente os alinhou aos oponentes de Davi. Doegue
implementou a cruel retribuição de Saul que se opôs à ação de Davi. De
modo semelhante, os fariseus são vistos em oposição a Jesus, mostrando
que eles são mais como Saul e Doegue do que como o compassivo Aimele­
que. Os adversários de Jesus teriam ficado ofendidos com essa insinuação.

188
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

6. Jesus cura o homem da mão atrofiada (6.6-11)

POR TRÁS DO TEXTO


Em resposta aos pensamentos íntimos de Seus críticos, Jesus faz uma per­
gunta legalista sobre a questão da cura no Sábado (veja 13.13-17; 14.1-6). Tais
prescrições halakhic eram, por natureza, produto de um longo processo de de­
bate entre os rabis e sábios. No decorrer do tempo, a opinião majoritária sobre
uma disputada questão da prática judaica prevaleceu. O propósito dessa dispu­
ta era dar direção aos judeus sobre como evitar violar a lei, especialmente em
tópicos não abordados diretamente no AT.
Nesse caso em particular, o ponto de contenda é se a cura se enquadra no
trabalho proibido no Sábado. Jesus não revoga a lei do AT em si, ao curar no
Sábado. Mas Sua posição realmente transgride o halakhah, o qual Seus adversá­
rios consideravam autoritário nesse assunto. O Mixná prorroga a data da épo­
ca de Jesus; mas pelo menos alguns de seus argumentos derivam de assuntos e
debates com raízes no primeiro século. M. Yoma 8.6 discute a propriedade da
cura no Sábado e registra um halakhah que parece que apoiaria a posição mais
branda de Jesus: “Sempre que houver dúvida se a vida está em perigo, isso é
superior ao Sábado”. Mateus inclui um argumento similar em defesa de Jesus
quanto à Sua cura: “Qual de vocês, se tiver uma ovelha e ela cair num buraco
no sábado, não irá pegá-la e tirá-la de lá? Quanto mais vale um homem do que
uma ovelha! Portanto, é permitido fazer o bem no sábado” (Mt 12.11,12).
Os adversários de Jesus aderiram a uma interpretação mais rígida, que bus­
cava preservar o Sábado até do “trabalho” de curar. A posição de Jesus é mais
liberal, mais suave. Nós não sabemos se isso era realmente uma posição mino­
ritária em Seus dias. Mas isso certamente ia de encontro à imagem que o NT
retrata da posição dos fariseus nesse assunto.
A necessidade de preservação da identidade e cultura étnica judaica argu­
mentou pela rígida observância da lei para diferenciar Israel de seus vizinhos.
Um abrandamento na rigidez levaria inevitavelmente ao decréscimo da iden­
tidade judaica. Por outro lado, Jesus argumenta que a teologia da compaixão e
inclusão é mais representativa da verdadeira natureza do Senhor. A compaixão
está acima da identidade cultural; e aí reside a fonte da contenda entre Jesus e
Seus rivais.
Essa questão da severidade vs. a brandura quanto à identidade cultural
tornou-se um assunto divisor de águas entre os judeus tradicionais e os judeus

189
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

cristãos. À medida que o cristianismo cada vez mais recebia os gentios em


sua comunidade, ele abandonou o exclusivismo ético e cultural do judaísmo
e abraçou uma ética de inclusão mais ampla. Logo, a santidade foi redefini­
da, saindo de uma antiga ideia enraizada em rituais, etnia e lei, para um novo
movimento nascido do Espírito, um movimento de arrependimento e perdão
para judeus e gentios igualmente (At 11.18). Os princípios subjacentes nessas
disputas tinham implicações muito abrangentes para a emergente comunidade
cristã do primeiro século. A medida que os judeus cristãos deslocavam-se da
rigorosa prática legalista, as sementes da separação entre a sinagoga e a igreja
foram semeadas.

Três modos de expressão no discurso religioso judaico:


H a la c á , H a g a d á e M id r a s h

A antiga prática jud aica expan diu -se na m e n sag em básica da Bíblia
de três modos. Dois era m orais e um era escrito (veja Neale, 1 9 9 1 , p. 2 8 ­
36 ).
A halacá é definida com o "u m a expressão ou um a história sobre a
m an eira com o algo d eve ser feito , um a declaração designada a te r um
efeito prático e p o rtar um a auto rid a d e n orm ativa, ou um a indagação da
lógica ou do princípio legal que está por trás de um a regra" (N eusner,
1 9 7 1 , 3:5).
A halacá era evolucionária porque era um diálogo e n tre os rabis, ao
longo das gerações, sobre com o a plicar a Escritura às d em a n d a s diárias
da vida. E v e n tu a lm e n te , por m eio desta d ialética, surgia um a solução que
obtinha a m edida de um p recedente. Dessa fo rm a, o jud aísm o a d a p ta v a a
lei ao m eio social, o qual está em con stan te m udança.
A halacá era legítim a em n atu reza. Era a Torá expan did a para cobrir
muitos assuntos da vida não e s p e c ific a m en te tra tad o s ali. No NT, isso é
g e ra lm e n te cham ado de "trad ição dos anciãos", e m b o ra essa frase não
seja usada por Lucas (M t 15.2; Mc 7 .3 ,5 ARA). O propósito principal da
halacá era p re v e n ir o d e s m e m b ra m e n to da Torá, o q ue Pirke Aboth 1.1
( m . A vo t) c e leb re m e n te cham a de "colocar um a cerca e m torno da lei".
A segunda form a oral era o hagadá, um term o d erivado da palavra
ara m a ic a que significa "fluir". O seu propósito era tra n s m itir "e n s in a m e n ­
tos m orais e éticos q ue tra ta v a m de problem as da fé e da a rte de v iver"
(Herr, 1 9 7 1 , p. 3 5 6 ). Era um m étod o a lta m e n te a d a p tá v e l. Ele abraçava
a alegoria e a analogia com o ferra m e n ta s básicas e buscava inspirar a fé

190
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

dos crentes com uns, e m v e z de e s ta b e le c e r d outrina. Parábolas, truísm os,


histórias e m e tá fo ra s e ra m fe rra m e n ta s do hagadá. O b v ia m en te, Jesus
era um m e stre nesse m odo d e expressão.
O terceiro m étod o da expressão jud aica era o m idrash. Esse era um
m étod o escrito e exegético de se c h e g a r à halacá e ao hagadá.

NO TEXTO
■ 6 - 1 1 Em outro Sábado, Jesus curou um homem que tinha a mão atrofiada.
A narrativa continua a desenvolver-se como um conflito hostil com os fariseus
e os mestres da lei (v. 7). Eles estavam p r o cu r a n d o u m m o tiv o para a cu sa r Je­
sus (v. 7, como em um procedimento legal). E lesfica ra m fu rio so s e co m eça ra m
a d iscu tir e n tr e si o q u e p o d e r ia m fa z e r co n tra J esu s (v. 11). A ação de Jesus
é ostensivamente confrontante. Ele ordena ao homem: “Levante-se e venha
para o meio” (v. 8). Lucas omite a descrição de Marcos sobre a resposta emo­
cional de Jesus aos Seus críticos. Lá, Ele “Irado, olhou para os que estavam à sua
volta e, [ficou] profundamente entristecido por causa do coração endurecido
deles”, uma descrição consoante com o tom do ambiente de Lucas (Mc 3.5).
O ponto crucial é colocado como uma pergunta: “Eu lhes pergunto: o que é
permitido fazer no sábado: o bem ou o mal, salvar a vida ou destruí-la?”
(v. 9). Isso é um boru th , uma pergunta sem resposta designada a envergonhar
Seus oponentes (veja 5.23 e 20.22). Isso tem o efeito de aumentar a tensão do
ambiente. Ele desafia os adversários a declararem sua opinião. A pergunta dele
insinua, “Um homem está sofrendo de uma aflição durante toda a sua vida.
Como podería o alívio dessa aflição ser considerado qualquer outra coisa a não
ser bom?” A postura branda de Jesus tem a lógica da compaixão ao Seu lado.
Sua ira mostra a intensidade do debate.
Günther Bornkamm disse acerca dos provérbios de sabedoria de Jesus: “A ca­
racterística deles é esta, eles apelam diretamente ao conhecimento, à experiên­
cia e à compreensão do homem e rejeita qualquer necessidade de prova externa”
(1960, p. 106). O mesmo pode ser dito de Sua cura compassiva. Assim como
nos conflitos anteriores, a compaixão supera o escrúpulo religioso. A maioria
das pessoas consegue enxergar o sentido disso, e os leitores ficam admirados
de que os fariseus e os mestres da lei não enxergassem. Aliás, os fariseus pare­
cem um tanto ridículos nessa cena, e esse é o propósito do narrador: reforçar a
empatia do leitor pela postura de Jesus ao retratar Seus adversários com uma

191
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

caricatura negativa. Os fariseus são “paradigmas de inépcia” (Darr [1992, p.


92-95] acompanha o desenvolvimento do caráter dos fariseus em Lucas).
A narrativa agora estabeleceu um perigoso conflito no qual os oponentes de
Jesus tramam abertamente contra Ele. Eles discutem o que poderiam fazer
contra Jesus (v. 11). Isso é até uma forma mais branda de expressão do que a
que está em Marcos. Lá eles conspiram com os herodianos “como poderiam
matá-lo” (Mc 3.6).

A PARTIR DO TEXTO
O relacionamento da comunidade de Lucas com seus próprios inimigos
era, sem dúvida, um ímpeto adicional para essa imagem negativa dos adver­
sários de Jesus. Os textos literários podem conter história; mas eles também
continuam a viver na vida de seus leitores. Aqueles fariseus, de certa forma,
também representavam os adversários da própria comunidade de Lucas, assim
como, talvez, eles representem para nós hoje. Raramente nos vemos na rigoro­
sidade dos fariseus e estamos muito mais propensos a enxergar os nossos opo­
nentes como cegos e hipócritas. A ética do amor pode ser maravilhosamente
destrutiva do dogma ou do preconceito não examinado. Esse texto ganha vida
quando investigamos a respeito das maneiras pelas quais nossos próprios siste­
mas de crença impedem-nos de demonstrar compaixão.
Os movimentos, às vezes, escolhem a estrada da diferenciação cultural
como o caminho para se estabelecer e preservar uma identidade separada. A
“alteridade” do movimento pode ser mantida exigindo-se comportamentos
culturais que, com efeito, erigem um muro em volta da comunidade. A ex­
clusão é o princípio operante que define tal comunidade diferenciada. O NT
apresenta os fariseus como quem prefere esse tipo de exatidão cultural acima
da compaixão. Isso o impede de abraçar a ideia inclusiva do amor de Deus de­
fendida por Jesus.
Quando uma comunidade de fé segue o caminho da inclusão e da com­
paixão, a comunidade se evolve e muda de formas inesperadas. Os valores da
abertura e da inclusão são perigosos para a tradição. O caminho da santidade
como exemplificado na vida de Jesus era (e ainda é) tanto cheio de perigo como
de promessa. O mesmo é verdade quando a igreja moderna escolhe a ética da
inclusão e da compaixão para os de sua sociedade. O caminho é um perigo para
entidades ultrapassadas baseadas na exclusão como uma forma de operação.
Porém, ele é cheio de aventura de graça e ação.
192
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

7. Jesus escolhe os Doze (6.12-16)

POR TRÁS DO TEXTO


A caracterização dos discípulos começa aqui com a lista dos Doze. O retra­
to de Simão Pedro é o mais íntimo e o que ocupa o palco central nos principais
eventos da narrativa (5.4-11; 8.45,51; 9.20). Tiago e João unem-se a Pedro na
cura da filha de Jairo e na transfiguração. Portanto, eles ficam no segundo lugar
em importância (sobre os Doze, veja Bauckham, 2006, p. 93-113; e Gerhards-
son, 2001, p. 37-40). A maioria dos doze nunca mais é mencionada novamente
em Lucas (Bauckham, 2006, p. 96). Apesar da apresentação franca dos discí­
pulos como imaturos e incompreensivos da tradição do evangelho, o grupo
representa uma testemunha autoritária da vida de Jesus em Lucas (1.2) e em
Atos (1.21; Gerhardsson, 2001, p. 96).
Lucas ocasionalmente também usa o termo “discípulos” para descrever
os grupos inclassificáveis, mais amplos, que acompanhavam Jesus em Suas via­
gens. Outras vezes os “discípulos” estão simplesmente presentes em diversos
eventos descritos no Evangelho (ex.: 9.14b; 10.17; 19.37) ou sendo ensinados
por Jesus (6.17; 11.1; 12.1; 16.1; 17.1; 20.45 etc.).

NO TEXTO
I 1 2 - 1 6 O círculo mais íntimo dos discípulos de Jesus é chamado de os
Doze (6.13; 8.1; 9.1,12; 18.31; 22.3,28-30). Mas, ocasionalmente, o termo
“discípulos” também é usado em referência a este grupo (7.11; 8.22; 9.18,43b).
Os Doze são os confidentes de Jesus e ficam a par dos segredos do reino (8.10).
Jesus promete-lhes um lugar especial no mundo porvir (18.28-30). Jesus reve­
la-lhes Sua identidade e iminente morte. Mas eles não entendem o que Ele quer
dizer (9.18-27; 18.31-34). Eles conduzirão as doze tribos de Israel (22.28-30;
veja£. Sal. 17.6).
O relacionamento de Jesus com Seus discípulos já foi comparado com os re­
lacionamentos dos mestres rabínicos e seus alunos naquela época. Os minis­
térios de outros mestres rabínicos daquela época eram caracterizados por um
local fixo, um período limitado de compromisso com o mestre (ex.: At 22.3), a
transmissão da tradição estática e apenas homens como membros (Theissen e
Merz, 1996, p. 214). Os discípulos de Jesus diferiam no sentido de que levavam
uma vida itinerante, eram considerados como tendo feito um compromisso
permanente, experimentaram a “tradição da livre formação” e incluía mulheres
(Theissen e Merz, 1996, p. 214).
193
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

C. O Sermão da Montanha (6.17-49)

1. As bem-aventuranças (6.17-26)

POR TRÁS DO TEXTO


A nomeação dos Doze prepara o ambiente para o início do ministério de
ensino de Jesus. Um movimento muito maior está ganhando força na narra­
tiva. Os versículos 17-20 servem tanto como um sumário do ministério até
então, como uma introdução para essa nova fase de ensino altamente pública.
Os ecos das multidões, dos demônios e das curas encontradas nos sumá­
rios e introduções anteriores estão presentes aqui também (4.40,41; 5.15,17).
Em 6.17, pessoas da região toda reuniram-se: “de toda a Judéia, de Jerusalém
e do litoral de Tiro e de Sidom”. Embora a cena seja uma remota região rural
na baixa Galileia, os Evangelhos retratam Jesus atraindo pessoas do principal
centro religioso, Jerusalém (100 km) ao sul, e de Tiro, capital da Fenícia (60
km) ao norte (Rogerson, 1989, p. 74).
Eles vieram para ouvi-lo (v. 18); mas a grande ênfase nessa introdução
está em Seus poderes de cura. Eles queriam ser curados de suas doenças e dos
espíritos imundos. Logo, todos procuravam tocar nele, porque dele saía
poder que curava a todos (v. 18,19). A cura demonstra Sua autoridade (veja
5.24) e dá seriedade ao Seu ensino. Considerando esse extraordinário cenário,
o sermão deveria ser entendido como um sumário introdutório da instrução
mais importante de Jesus em Lucas. Logo, a caracterização de Jesus intimamen­
te une Suas funções de curador e mestre.
O contexto do ensino no Sermão da Montanha é o conflito sectário que
surgiu na narrativa. O fundamento mais abrangente do ambiente da narrativa
do sermão é a expulsão de Jesus da sinagoga de Nazaré (4.14-30, um material
exclusivo de Lucas). A base imediata, porém, são as cinco histórias de conflitos
de 5.17—6.11 (Green, 1997, p. 262). Essas são derivadas de Marcos, mas o ma­
terial do sermão está presente somente em Mateus e Lucas. A versão de Lucas é
a mais curta. Ambas moldam o material do sermão aos seus próprios propósi­
tos (Marshall, 1978, p. 243); mas Mateus coloca o sermão em 5.1—7.28, bem
antes de introduzir essas histórias de oposição (9.1-17; 12.1-14). Lucas, porém,
insere o sermão imediatamente após as histórias dos conflitos.
194
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

O contexto do conflito do sermão em Lucas cria uma perspectiva interpre-


tativa significantemente diferente. O sermão agora se torna um tratado sobre
o conflito religioso, particularmente em relação aos fariseus. A perigosa luta
entre Jesus e os Seus contemporâneos prossegue e é amplificada no ensino do
sermão. As palavras de conflito nos v. 22-26 (“ira”, “excluir”, “insulto”, “rejeitar”,
“ai”) refletem a crescente tensão entre Jesus e Seus oponentes na narrativa.

NO TEXTO
H 1 7 - 1 9 Jesus desce de Sua noite de poder no monte para ficar em um lugar
plano (v. 17). Isso tem sugerido um “segundo Moisés” para alguns (veja Êx
3.1-15). Moisés trouxe a Lei lá de cima do monte, assim como Jesus desce da
montanha para estabelecer os Seus ensinamentos. Mas a maioria vê isso apenas
como nominalmente presente em Lucas (veja Bock, 1994, p. 562; Fitzmyer,
1981, 1:623).
Todos procuravam tocá-lo porque dele saía poder que curava a todos (v. 19).
A vigília de oração durante toda aquela noite anda de mãos dadas com o Seu
poder de curar (compare 4.1,42; 5.17).
A referência à Tiro e Si dom (v. 17) alude ao tema lucano mais amplo da salva­
ção para os gentios (já em 2.31,32; 3.6; 4.24-27), desenvolvido um pouco mais
posteriormente no Evangelho e em Atos. Em Lucas 10.32, os moradores dessas
cidades gentias são citados como exemplos de disposição para o arrependimen­
to - uma contundente crítica aos judeus que se recusam a fazer isso. Essa refe­
rência é uma precursora de Lucas 24.47, na qual, “em seu nome seria pregado
o arrependimento para perdão de pecados a todas as nações, começando por
Jerusalém”.
1 2 0 - 2 6 Duas coisas importantes são realizadas na história pelo Sermão da
Montanha. A primeira é a tremenda diferenciação entre os discípulos de Jesus e
os adversários de Cristo. Os discípulos são equiparados aos “verdadeiros” pro­
fetas (v. 23); os adversários são equiparados aos falsos profetas (v. 26).
Esse é um julgamento definidor a respeito da identidade e solidariedade da
emergente comunidade de Jesus, e um julgamento definidor que se torna uma
característica do mundo histórico deste ponto em diante. A história procede
com base em um “conosco” (os discípulos e os simpatizantes) vs. “eles” (os
fariseus e mestres da lei). Isso esclarece as decisões que os leitores devem tomar
ao interagir com a história.
O segundo resultado do sermão é uma redefinição conceituai extremamente
abrangente das realidades sociais enfrentadas pelos ouvintes (e mais tarde, pelos
195
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

leitores) das palavras de Jesus. Na nova economia, as estruturas sociais serão


invertidas, as durezas da vida serão aliviadas, e a experiência do sofrimento será
substituída pelo regozijo.
Por meio de uma reversão das expectativas, Jesus apresenta uma visão de vida
corrigida pela justiça de Deus. A desigualdade, a opressão e a necessidade serão
lançadas fora pelo Reino de Deus. Os ímpios receberão sua justa recompensa
(v. 25: vocês passarão fome e haverão de lamentar e chorar - verbos no fu­
turo). A fome e a angústia do pobre (v. 20) serão substituídas pela saciedade e
alegria. A fortuna e o regozijo do rico (v. 24) serão substituídos pela fome e a
angústia. A reversão do tema da nova economia redefine o mundo, ao “erigir
este fundamento [AT], um novo grupo de disposições das quais irão florescer
novas práticas, percepções e atitudes” (Green, 1997, p. 261).
Essas duas coisas juntas, a tremenda diferença entre o discípulo e o oponente,
e a radical redefinição de como a realidade deve ser enxergada, são ideias que
são fundamentais para a cosmovisão do terceiro Evangelho. Edificando sobre a
declaração acerca do arrependimento em 5.31,32, os capítulos seguintes mos­
trarão que alguém passa de adversário a discípulo por meio da porta do arre­
pendimento (veja o comentário em 7.48-50).
Os versículos 20-26 formam uma estrutura dos pares dísticos (veja a seguir).
Quatro dísticos contrastam os discípulos e seus oponentes. Esses sugerem que
os anteriores são equivalentes a verdadeiros profetas; e os últimos, aos falsos
profetas (v. 23,26). Um grupo de dísticos é prefaciado por Bem-aventurados
serão vocês. O outro grupo é prefaciado por Ai de vocês. Cada um é sub­
dividido em duas partes, nas quais o resultado de seu posicionamento é de­
terminado. O pobre recebe o Reino de Deus; o rico já tem todo o conforto
que irá receber etc. O tratamento de Mateus quanto a esse material não tem
o componente “A i”. Tampouco Mateus compara explicitamente os falsos pro­
fetas com os verdadeiros profetas. A representação distinta de Lucas quanto a
esse material é, então, propriamente entendida no contexto do conflito com os
opositores de Jesus.
Os temas desses dísticos são consoantes com a narrativa de Lucas até este
ponto: pobreza e riquezas (1.5T53; 6.20), saciando o faminto (1.53; 6.21), o
ódio e o medo que o povo de Deus sentia (1.71,74; 2.34,35; 6.22), e o regozijo
(1.47; 2.29; 6.23). Do capítulo um em diante, essas ideias espelham-se em uma
vasta gama de fontes dos Salmos e dos profetas maiores e menores (veja Beale
e Carson, 2007, p. 295,296). Em Lucas 4.16-19, essas ideias foram colocadas
no centro da atenção pela citação de Isaías 61.1,2 por Jesus e sua subjacente
confiança no tema do Jubileu - o “ano do favor do Senhor”. Existe uma extensa
intertextualidade subjacente na linguagem dos dísticos.
196
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

Estrutura dos pares dísticos

Bem -aventurados vocês, que agora têm fome Pois serão satisfeitos
Ai de vocês, que agora têm fartura Porque passarão fom e

Bem -aventurados serão vocês, quando os


Pois assim os antepassados deles tra ta ­
odiarem, expulsarem e insultarem , e e lim i­
ram os profetas
narem o nome de vocês, como sendo mau,
p o r causa do Filho do homem Pois assim os antepassados deles tra ta ­
A i de vocês, quando todos falarem bem de ram os falsos profetas
vocêsOs chefes dos sacerdotes e as nossas
autoridades

A maioria dos eruditos presume que uma única tradição que se originou
em Jesus fundamenta o famoso Sermão do Monte e o Sermão da Montanha.
Contudo, Lucas preserva essas declarações em uma forma que enfatiza sua
significância social e física. Ele acredita que os “pobres” e os que “têm fome”
ficarão livres de sua aflição física. Mateus, por outro lado, acredita que os “po­
bres em espírito” e aqueles que “têm fome e sede de justiça” serão abençoa­
dos. Esse é um exemplo de como os evangelistas moldam o material sinótico
aos seus próprios propósitos teológicos. Tais diferenças são, às vezes, devido à
redação das fontes, mas elas também podem apontar para questões complexas
sobre a natureza das fontes das quais os evangelistas obtiveram o material (veja
Marshall, 1978, p. 243-245).
A referência a verdadeiros profetas e falsos profetas (v. 23b, 26b) acres­
centa uma dimensão prática ao tema de conflito inerente a essa passagem.
Como os fiéis irão reconhecer o profeta “como” Moisés que lhes “dirá tudo”
aquilo que Deus lhes ordena (como prometido em Deuteronômio 18.15-22)?
Deuteronômio tem dois testes: primeiro, se as palavras do profeta provam
não ser verdadeiras, aquele profeta é um falso profeta (Dt 18.22; veja Neale,
1993, p. 90-94). Segundo, se o profeta anuncia um “sinal miraculoso ou um
prodígio”, e isso realmente acontece, mas ele encoraja Israel a “seguir outros
deuses” (Dt 13.1,2), esse também é um falso profeta. Logo, o teste do profeta é
sempre o teste de Israel. Jesus desafia Sua nova comunidade a fazer julgamentos
sobre aqueles que reivindicam falar em nome do Senhor. Ele já tinha sido acu­
sado de blasfêmia pelos Seus adversários (5.21) e a acusação de falsa profecia,
sem dúvida, logo seguiria. Jesus chama os Seus discípulos para alinharem-se
197
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

com Ele como um verdadeiro profeta - como Moisés (9.33). O peso do discer­
nimento da verdade em meio à ambiguidade faz parte do desafio do discipula-
do na nova comunidade.

2. Ame os seus inimigos (6.27-31)


I 2 7 - 2 8 Jesus promete a Seus discípulos mais do que uma realidade social.
Ele desafia-os a praticar um modo de conduta radical para receber essa realida­
de. Jesus admoesta os Seus seguidores: Amem os seus inimigos, façam o bem
aos que os odeiam, abençoem os que os amaldiçoam, orem por aqueles que
os maltratam (Lc 6.27,28 || Mt 5.44). Essa ênfase radical sobre o amor náo é
uma inovação. Jesus geralmente permanece “dentro do quadro de referência”
da teologia judaica e da Escritura com Sua confirmação do cumprimento
duplo dos mandamentos em Deuteronômio 6.5 e Levítico 19.18 (citados em
Lc 10.25-28 ||Mt 22.23-40 ||Mc 12.30,31; Chilton e McDonald, 1987,p. 8).
Encorajar a bondade para com os inimigos não é desconhecido no AT (Pv
24.17,18; 25.21,22). Mas isso não é proeminente, e abençoar aos seus inimi­
gos não tem antecedentes na literatura judaica (Marshall, 1978, p. 259). A or­
dem de Jesus de “amar os seus inimigos” pode meramente estar reformulando
a tradicional ordem de Levítivo 19.18, “ame cada um o seu próximo” para uma
expressão muito mais radical (Beale e Carson, 2007, p. 297). Dar aos inimigos
o mesmo amor que aos outros é uma ideia quase irracional no contexto dos
contratos sociais humanos normais. Isso viola todos os instintos naturais.
No entanto, nós somos chamados por Jesus para fazer exatamente isso. O cha­
mado dele não é meramente passividade na presença dos inimigos, mas o amor
buscado ferrenhamente.
Em Lucas, o Sermão da Montanha é colocado dentro do contexto da discor­
dância sectária dentro do judaísmo contemporâneo. A estrutura da narrativa
sugere que Jesus demonstra o significado do amor pelo próximo e pelo inimigo
nas cinco histórias de conflito em Lucas 5.17—6.11 (veja Por trás do texto em
5.17-19). Ele cura o paralítico, janta com os publicanos e pecadores, ensina
sobre a dificuldade de se abraçar a mudança, debate a piedade sabática com
os fariseus e cura um homem que há muito tempo estava deficiente. Tudo isso
ocorre em um contexto de oposição e descrença entre alguns daqueles que es­
tavam presentes.
Odiar, expulsar, insultar, amaldiçoar e maltratar (v. 22,27,28) caracterizam
a recepção de Jesus, desde o Seu comparecimento à sinagoga de Nazaré, por
198
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

meio desses cinco conflitos. Jesus encoraja Seus discípulos a amar os “inimigos”
como aqueles responsáveis por essas experiências (veja Green [1997, p. 272],
que sugere que os próprios pecadores são os “inimigos”).
Essa ética de amor segue o caminho do bem para com os outros, independente
das oposições. Jesus não aconselha uma submissão passiva quanto à maldade.
Ao contrário, Ele recomenda o amor como uma força urgentemente ativa.
Lucas implica que, “E dessa forma que devemos interpretar o que Jesus acabou
de fazer em relação a esses cinco conflitos. É isso que esse sermão significa em
termos de ação humana”. Ame aqueles que os opõem.
I 2 9 - 3 1 Três admoestações têm uma sequência de um aspecto pessoal e físi­
co. Talvez os discípulos de Jesus já tivessem experimentado a violência física ou
tivessem sido roubados. Ofereça-lhe também a outra (v. 29a); não o impeça
de tirar-lhe a túnica (v. 29b); Dê a todo aquele que lhe pedir (v. 30). É isso
que os discípulos engajados no ministério devem especificamente fazer para
responder aos adversários do Filho do Homem.
Muitos dos verbos e pronomes nesses verbos estão no plural, indicando uma
responsabilidade comunitária em ação. Quando os indivíduos agem sem vio­
lência e com generosidade, isso é poderoso. Mas, quando as comunidades o
fazem, isso é muito mais poderoso, levando à transformação de uma cultura.
Como uma declaração sumária sobre a ética de vida segundo o reino, Jesus
exorta Seus seguidores: Como vocês querem que os outros lhes façam, fa­
çam também vocês a eles (v. 31). Existem comparações paralelas quanto a
isso na literatura contemporânea da época (veja Marshall, 1978, p. 262). Elas
são encontradas tanto na formulação negativa, e mais raramente, a formulação
positiva é encontrada aqui. O intertexto é Levítico 19.18, “ame cada um o seu
próximo como a si mesmo”.
O tratamento de Mateus quanto a esse material (Mt 5.38-42) refere-se a Exodo
21.23-25. Esse texto prescreve uma restituição proporcional nos casos de injú­
ria pessoal: “olho por olho, dente por dente, mão por mão” (v. 24). A lei procu­
rava manter a restituição proporcional ao dano causado, e, logo, prevenia uma
vingança excessiva. Aqui em Lucas, a exortação é abrir mão desse princípio
para o bem do reino (6.27-31).

A PARTIR DO TEXTO
Alguns já disseram que a não violência como um meio político de vida era
característico da Igreja primitiva antes de Constantino. Nos tempos modernos,
o ímpeto do pacifismo tem encontrado expressão na teologia dos anabatistas,
199
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

quakers e muitas figuras proeminentes como Tolstoy, Gandhi e King. Alguns


eruditos, como John Howard Yoder, considera esses ensinamentos de Jesus
como sendo o coração de Sua mensagem (vejayí p olítica d e Jesus, 1972).
Israel Abrahams, o grande exegeta judeu do início do século 20, chamou
o axioma de amar o próximo de a suprema evidência da “solidariedade da raça
humana” (1967, p. 20). Tratar os outros com a dignidade que nós mesmos de­
sejamos está em harmonia com a natureza ativista do amor que tem sido suge­
rida aqui como uma interpretação da ética de Jesus.
Assim como na parábola do bom samaritano (Lc 10.29-37), a definição
de “próximo” nos ensinos de Jesus envolve um “fazer” altamente proativo.
Ali, amar o próximo inclui fazer os curativos, ungir, dar abrigo e alimento (Lc
10.23-37, esp. v. 34,35). Nessa teologia, a famosa Regra de Ouro - fazer aos
outros como queremos que eles nos façam - torna-se um valor fundamental
que orienta toda a interação humana. Maddox descreve a “antropologia rela­
cional” de John Wesley como aquela na qual servir amavelmente aos outros é
“central para a verdadeira existência humana” (1994, p. 68). Certamente, esse
ativismo do amor é uma característica central do pensamento e prática da teo­
logia wesleyana.

3. Ame sem reciprocidade (6.32-36)


1 3 2 - 3 6 Os versículos 32-36 são um acréscimo à admoestação para amarmos
os nossos inimigos. Jesus explica que não existe um mérito moral para o amor,
as boas obras ou o empréstimo quando a reciprocidade está envolvida (veja Dt
23.19,20). A frase, que mérito vocês terão, é repetida três vezes (v. 32,33,34).
Também é repetida três vezes a afirmação: até os ‘pecadores’ amam, fazem o
bem e emprestam àqueles que eles já amam (v. 32-34). Amar os que nos amam
é bom; mas não há poder de cura quando a reciprocidade é a força motriz.
O uso de “pecadores” nos lábios de Jesus nesta forma negativa é interessante.
Esses pecadores não são os pecadores bons e saudáveis que são as característi­
cas dos heróis da narrativa de Lucas (veja Por trás do texto em 5.1-11). Esses
são verdadeiramente os imorais, irremediavelmente perdidos, mais próximos
à linguagem tradicional de “ímpio/pecador” do AT e da LXX (também em
Lc 5.29,30; Neale, 1991, p. 75-95). Mais especificamente, esses pecadores são
aqueles que sempre buscam o seu próprio interesse. Isto é, eles amam, fazem o
bem, e emprestam somente quando há reciprocidade.
Existe, porém, uma emergente redenção do pecador na narrativa (5.1-11;
5.27-32; 7.36-50; 15.11-32; 18.1-8; 19.1T0). Os que são colocados como os
200
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

condenados prototípicos começam a responder à oferta de perdão de Jesus.


Essas histórias do Evangelho (e esta é a própria descrição delas) são exemplos
do poder transformador do amor ético. Ele faz uma ponte sobre o golfo entre
os salvos e os perdidos.

4. Não julgue (6.37,38)


I 3 7 - 3 8 Fitzmy er descreve os ensinos de Jesus preservados nos v. 37-45
como direcionados àqueles que estão dentro da comunidade dos discípulos
(1981, 1:630). Mas isso pode não captar plenamente o impacto do ensino
de Jesus sobre julgar os outros. Os verbos estão na segunda pessoa do plural,
implicando um padrão de comportamento compartilhado comunitariamente.
Eles estão no presente, indicando um comportamento habitual. E estão na voz
imperativa, indicando uma forte demanda. Negativamente, nós não devemos
julgar nem condenar. Proativamente, devemos perdoar e dar. Mas essa ética é
direcionada também àqueles que estão além da comunidade.
Em resposta à contenção de julgar ou condenar os outros, nós iremos, ironica­
mente, receber a retribuição de Deus segundo as nossas ações. Nós não deve­
mos retribuir, contudo, Deus nos pagará segundo os nossos feitos: uma boa
medida, calcada, sacudida e transbordante será dada a vocês (v. 38a). O
mundo só poderá ser curado de seu ciclo de violência quando a comunidade es­
tiver disposta a abandonar suas reivindicações de retribuição, uma prerrogativa
reservada exclusivamente a Deus. Nós devemos praticar o amor incondicional,
não somente para com os companheiros discípulos, mas até para com nossos
inimigos, confiando na justiça de Deus para corrigir isso no final. Como isso
é diferente da esperança de renovação política/nacional tão ansiada por Israel
(At 1.6)!
Finalmente, porém, a retribuição é plenamente realizada, até no Reino de
Deus. Embora agir sem considerações egoístas seja primordial, a participação
na comunidade do reino também carrega consigo uma imutável lei de causa
e efeito: Pois a medida que usarem, também será usada para medir vocês
(v. 38b). Deus recebe bondosamente o indigno, mas, uma vez atraído para a
comunidade do amor, seus membros têm a responsabilidade de agir, e serão
recompensados segundo os seus esforços.
Aqui está o contrabalanceamento da não reciprocidade (veja os v. 32-36):
os discípulos não devem ficar esperando um retorno pela bondade feita; mas
Deus, sim, espera um retorno pela graça que Ele deu. A recompensa dele é
201
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

condicional aos feitos. A recompensa da aprovação divina depende da nossa


reciprocidade para com Deus.
Isso não é uma teologia das “obras”; é uma teologia da responsabilidade e
gratidão demonstradas pelas ações. Sugerir que as obras não são exigidas dos
verdadeiros discípulos é inteiramente avesso ao pensamento e ensino de Jesus.
Bem ao contrário; a nossa salvação, assim Lucas prega, exige as obras. Se os
discípulos são chamados para seguir Jesus, eles também estarão envolvidos em
Sua missão e ministério.

5. A viga que está em seu próprio olho (6.39-42)


H 3 9 - 4 0 Sob o pretexto de contar uma “parábola”, Lucas combina dois afo­
rismos (ou truísmos; v. 39,40) e uma parábola (v. 41,42). O material em Lucas
6.39-42 é encontrado em três lugares diferentes em Mateus (15.14; 10.24,25;
7.3-5). A sutileza literária de Lucas nas emendas de suas fontes é geralmente
tão perfeita que é difícil dizer onde uma fonte termina e o seu próprio trata­
mento inicia. Mas, neste caso, a compilação do material mostra um pouco de
revisão editorial.
O tema global dos três provérbios é humildade na liderança. As metáforas de
apoio estão baseadas na vista ou na cegueira. Primeiro, aquele que é fisicamen­
te cego, obviamente não é um bom guia. Ele é apresentado aqui como uma
metáfora para o espiritualmente cego. O que é cego fisicamente cai em um
buraco físico; o que é espiritualmente cego cai no buraco, que é um símbolo do
julgamento (Is 24.17,18; Jr 48.43,44). Essa história ilustra o humor que Jesus
frequentemente usava em Seus ensinamentos. O cego guiando o cego só pode
levar a um final humorístico, e a história é um tanto lúdica (Phipps, 1993, p.
94).
Por outro lado, o discípulo, quando bem preparado (k atêrtism enos, v. 40), verá
a verdade assim como o mestre. O verbo katartizõ é incomum para Lucas. E
uma conotação, em Paulo, para “o caráter cristão trabalhado no sentido da uni­
dade dos membros da comunidade” (1 Co 1.10; Ef 4.12; 1 Ts 3.10; Delling,
1964, 1:476). O discípulo bem preparado é uma responsabilidade comunitá­
ria. Isto é, os discípulos existem somente dentro do contexto da comunidade,
e não como entidades independentes. Que o discípulo seja humilde e não (...)
acima do seu mestre (v. 40) convida os discípulos a ser uma força unificadora
dentro da comunidade, reforçando a autoridade do mestre.
202
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

I 4 1 - 4 2 Pior do que o guia cego é o hipócrita que alega ver, mas é o mais
cego de todos. A imagem mental de alguém com uma viga no olho, tentando
remover um cisco do olho do outro, tudo isso em uma tentativa hipócrita de
corrigir os defeitos do outro, é engraçado. Isso não é “intencionalmente grotes­
co” (Fitzmyer, 1981, 1:642); mas é comicamente eficaz (Phipps, 1993, p. 94).
A exclamação hipócrita deve ter sido feita com um sorriso torto e recebida
com uma gargalhada da multidão. O objetivo das histórias nos v. 41,42 é fa­
cilmente compreendido. Os que presumem ensinar ou guiar devem fazê-lo em
espírito de humildade.

6. Bons frutos (6.43-45)


1 43-45 Lucas e Mateus dividem-se em como usam a história de Jesus sobre a
árvore boa e a árvore ruim (v. 43). Mateus usa isso em um cenário controverso
no qual os fariseus acusam Jesus de expulsar demônios por Belzebu (Mt 12.22­
37).
Lucas, ao contrário (veja 11.14-23), o inclui em uma compilação mais geral
dos ensinos de Jesus. Como resultado, a mesma carrega uma aplicação menos
pontiaguda para Lucas. O aforismo central é, "Toda árvore é reconhecida
por seus frutos” (v. 44). Seu princípio é a reprodução segundo a sua espécie.
Isto é, os espinheiros não produzem figos, nem as ervas daninhas produzem
uvas etc. Um intertexto importante para esse princípio é a história do jardim
do Éden. Gênesis 1.11 diz que todas as coisas foram criadas para reproduzirem
segundo sua espécie.
Os figos são considerados a fruta mais deliciosa daquela região. Eles servem
como um símbolo poderoso não só do desejo, mas também da bênção de Deus
(v. 44; Is 36.16; Lc 13.6). Zacarias e Miqueias usam o figo como um símbolo
para a futura era do Reino de Deus (Mq 4.4; Zc 3.10). Os espinheiros e as er­
vas daninhas, como contraste, são sempre associados com a maldição de Deus
sobre Israel (v. 44; Êx 22.6; Is 7.19; Jó 31.40).
Jesus aplica a analogia da reprodução segundo a espécie ao coração humano e
às palavras que procedem dele. O coração refere-se ao centro do pensamento
e da vontade do homem. O homem bom tira coisas boas do bom tesouro que
está em seu coração, e o homem m au tira coisas m ás do m al que está em seu
coração, porque a su a bocafa la do que está cheio o coração (v. 45).

203
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Embora a bondade de uma árvore seja demonstrada pelos seus frutos, a bon­
dade de uma pessoa é demonstrada por suas palavras e ações. A bondade flui
facilmente do interior do indivíduo. Dessa bondade, fluem as ações do corpo e
as palavras da boca. Esse é um retrato simples e pleno da vida santa.

7. "Por que vocês me chamam 'Senhor, Senhor'?" (6.46-49)

■ 4 6 - 4 9 Novamente, Lucas segue o material Q, o qual compartilha com


Mateus (Mt 7.21-27). Mateus 7.22,23, porém, é encontrado em Lucas 13.25­
27. O intertexto é Malaquias 1.6, a crítica do profeta aos sacerdotes corruptos
(veja o comentário em 7.24-30 para a dependência de Lucas no estilo retórico
de Malaquias). Em Malaquias 1.6, encontramos uma fórmula semelhante, uma
pergunta retórica seguida por um desafio à lealdade: “Se eu sou pai, onde está
a honra que me é devida?”. O termo kyrios {Senhor) aparece tanto em Lucas
como na LXX de Malaquias.
A parábola em Lucas elucida a conexão entre o que as pessoas dizem efa z em .
Jesus adverte contra a disjunção entre as duas. A consistência em palavra e ação
reflete um relacionamento correto com o nosso kyrios. A hipocrisia é a confis­
são sem ação, e é comparada com algo sem alicerces (v. 49).
O casamento da confissão (‘Senhor, Senhor’) com a ação é semelhante ao
alicerce construído sobre a rocha (v. 48). Ouvir as palavras de Jesus cria uma
responsabilidade de “fazer” — de agir consistentemente. Um exemplo das
consequências da falha de agir aparece em Lucas 13.25-27. Onde aqueles que
clamavam: “Comemos e bebemos contigo, e ensinaste em nossas ruas” são des­
pedidos da casa do dono com: “Não os conheço”.
Snodgrass chama a história dos dois alicerces de “A primeira parábola de Lu­
cas” (2008, p. 333). A parábola descreve o caráter daqueles que agem segundo
as palavras de Jesus. Os aforismos dos v. 39-42 são baseados na metáfora da
visão e da cegueira. Aqui, a metáfora principal é a audição.
Os que “ouvem” e “fazem” são como aqueles que constroem um alicerce sobre
a pedra. Eles estão a salvo das tempestades metafóricas da vida. Os que ou­
vem, mas não agem consistentemente, são como aqueles que constroem sobre
a areia e são levados pelas enchentes e rios metafóricos da adversidade da vida.
O objetivo da parábola pode ser afirmado simplesmente como, “£ >ualquer que
ou ve as pa la vras d e Jesu s e não as executa é um tolo” (Snodgrass, 2008, p. 337).
204
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

Lucas usa a audição como uma analogia para a conscientização espiritual nova­
mente em 8.4-15, em conexão com a parábola do semeador.

A PARTIR DO TEXTO
“Por que vocês me chamam ‘Senhor, Senhor’ e não fazem o que eu
digo?”. A pergunta de Jesus toca profundamente. Por que, realmente, as
pessoas o chamam Senhor, porém, agem como se Ele não o fosse? Em suas
D issertações, Michel de Montaigne capturou bem o dilema humano, “Mas nós
somos, não sei como, duplos por dentro, com o resultado de que não cremos
naquilo que cremos, e não conseguimos livrar-nos daquilo que condenamos”.
Infelizmente, às vezes, até os devotos agem contrários às suas convicções. As
palavras de Jesus convidam a uma íntima conexão de fé e ação.
Jesus convida-nos para muito mais do que uma mera obediência. A ética
ativista de amar os inimigos é um remédio para a ira que separa as pessoas. São
os nossos in im igos, afirma Jesus, que precisam ser amados. Essa solução radical
para o mal social é repetida em Lucas 10.25-37, onde Jesus identifica o nosso
“próximo” como sendo o samaritano odiado.
Há uma inovação dupla na ética de Jesus. Primeiro, Ele radicalmente es­
tende a definição de próximo para que inclua aqueles a quem preferiríamos
odiar. Segundo, Ele diz que a nossa ira, a evidência de nossa necessidade de
Deus, ensina-nos a quem devemos amar. O princípio é eternamente declarado:
“Amem, porém, os seus inimigos, façam-lhes o bem e emprestem a eles, sem
esperar receber nada de volta” (Lc 6.35).
A reciprocidade, a qual Jesus repudia no comportamento ético pessoal do
homem, é prerrogativa de Deus somente. A recompensa pela bondade para
com os inimigos vem em forma de serem chamados filhos do Altíssimo, por­
que ele é bondoso para com os ingratos e maus (v. 35). Essa frase tem um
poder programático para a história completa de Lucas.
A salvação do ingrato e do mau torna-se o programa da narrativa. Isso es­
tabelece uma completa reversão das expectativas com respeito à sua identidade
diante de Deus. Serão exatamente aqueles que antes foram ingratos e maus
que compreenderão a verdadeira identidade de Jesus. Os que eram suposta­
mente “justos”, que continuam sem entender, estão de fora. O fator operante, o
fator evangelho, é a misericórdia de Deus para com os ingratos e maus: “Sejam
misericordiosos, assim como o Pai de vocês é misericordioso” (v. 36; compare
com “ser perfeito” em Mateus 5.48).
205
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

D. Jesus ensina e cura em cidades e vilarejos


(7.1-8.21)

1. A cura do servo do centurião (7.1-10)

POR TRÁS DO TEXTO

A cura do servo do centurião aprofunda ainda mais o tema da salvação dos


gentios na narrativa. Previamente, na canção de Simeão, o ancião descreveu o
menino Jesus como “luz para revelação aos gentios” (2.32). João Batista disse
que “toda a humanidade verá a salvação de Deus” (3.6) por intermédio da­
quele que viria. Em Lucas 4.16-30, a rejeição de Jesus na sinagoga de Sua terra
foi causada por Sua referência aos gentios - à viúva de Sarepta em Sidom e à
Naamã, o sírio (v. 25-27). Jesus disse que havia muitos em Israel que tinham
necessidades; mas foi somente a esses gentios que Deus curou.
Jesus critica a segregação religiosa e étnica de muitos de Seus contempo­
râneos judeus, declarando assim que a salvação está disponível aos gentios no
Reino de Deus. Essa é a inter-relação fundamental entre a clássica tradição
profética e a tradição do Evangelho (veja os comentários em 4.23-27).
A inclusão dos gentios na salvação de Deus se tornará crescentemente ex­
plícita no Evangelho. Não encontrada mais somente nos lábios dos sacerdotes
e dos profetas (1.79; 2.29-32), essa salvação será vista na resposta dos não ju­
deus a Jesus nessa história. Aqui, temos a história do centurião gentio (7.1-10).
Mais tarde, em Lucas, outras histórias reforçarão o tema:
• O endemoninhado geraseno (8.26-39).
• O ostensivo arrependimento dos moradores de Tiro e Sidom (10.13-15).
• A parábola do bom samaritano (10.29-37).
• A descrição do banquete messiânico (13.22-30).
• A história dos leprosos de Samaria (17.11-19).
Todas essas histórias são sobre os gentios que responderam positivamente
a Jesus (ou, no caso dos samaritanos, dos que eram vistos como apóstatas pelos
judeus tradicionais).
A convicção de que a salvação é para todos é desenvolvida um pouco mais
em Atos. A mensagem do evangelho é dirigida tanto a judeus como a gentios
(At 26.20,23). A estrutura de Atos dos Apóstolos é sobre o deslocamento do
206
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

evangelho de suas raízes em Jerusalém à sua proclamação em Roma, o centro


gentio do Império Romano. Ao longo desse caminho, os gentios são recebidos
na comunidade da fé dos apóstolos.
Em Lucas 7 e além, os alicerces para o recebimento dos gentios na comu­
nidade da salvação são estabelecidos. Ao recontar as histórias dos não judeus
a quem Jesus encontrou em Seu ministério, Lucas até sugere que a salvação
virá aos gentios com a exclusão daqueles judeus que repudiam a missão de Je­
sus (13.22-30; também 21.23,24). Falando aos aldeães judeus a caminho de
Jerusalém, Jesus diz que eles “não conseguirão” entrar pelo caminho estreito
(13.24). Ele acrescenta que muitos gentios virão a um grande banquete do les­
te, oeste, norte e sul, mas os judeus incrédulos como vocês serão “lançados fora”
(13.28 ARC). O paralelo de Mateus é ainda mais enfático: os “súditos do Rei­
no” - os judeus - serão lançados nas trevas exteriores no banquete escatológico
(Mt 8.11-13). Isso não é um repúdio ao judaísmo, mas uma afirmação de um
alcance mais amplo para o reino do que o que alguns estavam preparados para
aceitar.
Na teologia de Lucas, ser membro da comunidade de Israel não é nem uma
vantagem nem uma desvantagem para se obter a salvação. Todos são iguais na
nova comunidade. A igualdade humana é fundamental para a convicção de
Lucas de que somente o arrependido entrará no banquete messiânico, quer
seja judeu, gentio ou pecador. Essa igualdade é a base do paradigma teológico
de Lucas e torna o seu Evangelho radical para qualquer perspectiva insular,
judaica ou cristã. Logo, a história do centurião crente é um ponto de virada na
narrativa, onde um alcance mais amplo da salvação é introduzido.

NO TEXTO

I 1-5 A cena retorna a Cafarnaum (v. 1) após um período nas cidades e al­
deias circunvizinhas (4.44—6.49). Cafarnaum, em contraste com Nazaré
(4.20-29), recebeu Jesus calorosamente (4.31-37) e continua sendo retratada
positivamente no Evangelho (até Lc 10.15). Em Cafarnaum, alguns líderes re­
ligiosos dos judeus (7.3; veja 4.36) abraçam o ministério de Jesus e rogam-lhe
que socorra o piedoso centurião, citando as suas boas obras.
Esse retrato positivo dos residentes de Cafarnaum coloca os adversários de
Jesus em uma luz ainda mais desagradável. Ele é acolhido pela população
local, mas é oposto pelos que são de longe. Os fariseus e os mestres que o
desafiaram anteriormente (5.21) eram “procedentes de todos os povoados da
207
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Galiléia, dajudéia e de Jerusalém” (5.17). O fato de Seus adversários viajarem


para espioná-lo (contraste com Mt 9.1; Mc 2.1,2) dá à oposição deles uma
tonalidade ainda mais tenebrosa. Do ponto de vista da narrativa, eles fazem
parte de uma trama maior, conspiratória contra Jesus.
Lucas apresenta o centurião como um gentio exemplar, fiel a Deus, a quem
Atos chama de “temente a Deus” (At 10.2). Ele é estimado pelos seus vizinhos
judeus e são os líderes religiosos judeus (v. 3) que vão a Jesus rogar pelo cen­
turião: “Este homem merece que lhe faças isso, porque ama a nossa nação e
construiu a nossa sinagoga” (v. 4,5; veja 8.41).
Essa é a primeira vez em que encontramos fidelidade fora da comunidade ju­
daica em Lucas, mas é também a primeira vez em que encontramos uma fé
exemplar demonstrada por a lgu ém no Evangelho. Essa história mostra uma
radical ampliação no alcance do ministério de Jesus para incluir os que estão
fora da propriedade social e religiosa do judaísmo tradicional.
I 6-10 Esse centurião é uma figura similar a Cornélio em Atos 10.2. Ambos
os homens eram líderes militares, piedosos, apoiadores da comunidade judai­
ca, procuraram a ajuda divina e receberam a ajuda que pediram. A anotação
complementar abaixo enfatiza os paralelos. O centurião de Atos 10 é o pri­
meiro gentio confirmado na fé cristã pelo batismo do Espírito Santo. Em certo
sentido, Lucas forneceu aos leitores uma estrutura teológica da salvação dos
gentios por meio desses dois centuriões. O primeiro é um modelo de discipli­
na demonstrando uma fé salvadora; o segundo, um gentio exemplar, cheio do
Espírito.

CENTURIÕES PARALELOS EM LUCAS 7


E ATOS DOS APÓSTOLOS 10

Ação do c e n tu riã o Ele o u v iu fa la r de Jesus e e n v i- "U m s a n to a n jo lhe disse


o u -lh e a lg u n s líd ere s re lig io s o s q u e o c h a m a s s e à sua
dos ju d e u s , p e d in d o -lh e q u e casa, para que e le ouça o
fo sse c u ra r o seu s e rvo (v. 3). q u e v o c ê te m p ara d iz e r"
(v. 22).

208
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

su p li- --T* "E le e to d a a sua fa m ília


ncia :. Te ra m p ie d o s o s e te m e n ­
. ^ . :ce q u e lhe t e s a D eus; d ava m u ita s
^ l^ a ^ i s s p ^ p o r q ü e a m a a nossa , ' e s m o la s ao p o v o e o ra v a
n a ç ã Â cogsfe uiu a nossa . " “ c o n tin ü à m e n te a D eu s"
%s i n a & Ü a " fy J lL 5 )., . (v. 2). *
1 t "E le é u m h o m e m ju s to
e te m e n te a D eus, res­
p e ita d o p o r to d o o p o v o *
ju d e u " (v. 2 2).
.-/•T w & r m r ........:■
Fé do c e n tu riã o "S e n h o r, não te in co m o d e s, "C o rn é lio re s p o n d e u : 'H á
pois não m e re ço re ce b e r-te q u a tro d ias eu e s ta v a
d e b a ix o do m e u te to . e m m in h a casa o ra n d o a
Por isso, nem m e c o n sid e re i e sta hora, às trê s horas
d ig n o de ir ao te u e n co n tro . da ta rd e . De re p e n te ,
Mas dize um a p a la vra , e o m eu co lo c o u -s e d ia n te de m im
se rvo será cu ra d o (...)" (v. 6 ,7 ). um h o m e m com ro up a s
re s p la n d e c e n te s
e disse: 'C o rn é lio , Deus
o u v iu sua o ra ç ã o e le m ­
b rou -se de suas e sm ola s
(...)'. A ssim , m a n d e i
b u s c a r-te im e d ia ta m e n te ,
e fo i b om q ue te n h a s
v in d o . A g o ra e s ta m o s
to d o s aqu i na prese n ça
de D eus, p ara o u v ir tu d o
q ue o S e n h o r te m a n d o u
d iz e r-n o s '" (v. 3 0 ,3 1 ,3 3 ).

"E n q u a n to Pedro a in d a #
e s ta v a fa la n d o e s ta s !t
p a la v r a s fo E s p írito S a n to
d e sce u s o b re to d o s os
q u e o u v ia m a T n e n s a g e m .
Os ju d e u s c o n v e rtid o s
q u e v ie ra m c o m Pedro
fic a ra m a d m ira d o s de :
q u e o d o m do E sp írito
S a n to fo s s e d e rra m a d o
a té s o b re os g e n tio s ", (v.
4 4 ,4 5 ) *

A fo rism o su m á rio sobre a Ao o u v ir isso, Jesus a d m iro u -s e "E n tã o Pedro c o m e ç o u a


fé dos g e n tio s d e le e, v o lta n d o -s e para a m u l­ fa la r: 'A g o ra p e rc e b o v e r­
tid ã o q u e o se gu ia , disse: "Eu d a d e ira m e n te q ue Deus
lhes d ig o q u e nem e m Israel não tra ta as pessoas com
e n c o n tre i ta m a n h a fé " (v. 9). p a rc ia lid a d e , m a s de
to d a s as nações a ceita
to d o a q u e le q ue o te m e e
fa z o q u e é ju s to (...) '" (v.
3 4 ,3 5 ).

Lucas 7 idealiza a caracterização do centurião de diversas maneiras:


1) Sua fé é sem incertezas e com amor, até mesmo sob a pressão da en­
fermidade mortal de seu servo. Seu servo é e n tim o s - v a loriz a d o, p r ecio so e
a lta m en te co n sid era d o - pelo seu mestre (v. 2). Ele não precisa ver para crer,

209
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

mesmo tendo apenas ouvido falar de Jesus (v. 3). Esse tipo de fé fica em con­
traste com o tipo que requer provas visíveis e demanda sinais (veja 11.16).
2) Ele é humilde e confiante: nem me considerei digno de ir ao teu en­
contro. Mas dize uma palavra, e o meu servo será curado (v. 7). Em Mateus
8.3, o centurião vem pessoalmente a Jesus, mas não aqui em Lucas. Aqui, a
humildade do centurião o impede de aproximar-se de Jesus.
3) Ele é um soldado da ocupação romana, e, logo, um renegado para os
judeus. Mas, ele é um homem compassivo. Ele pede a Jesus para curar um servo
que estava (...) doente, quase à morte (v. 2).
Ele possui, em suma, todas as características de um discípulo ideal. E irô­
nico que o líder militar das forças ocupantes da Galileia seja o indivíduo mais
piedoso que Jesus encontrou no Evangelho até agora. Em contraste, Seus ad­
versários judeus responderam com fúria quando Jesus curou o homem da mão
atrofiada no Sábado (6.11). Mais tarde, eles irão acusar Jesus de falar em nome
de Belzebu (11.15). O centurião, e aqueles que se opõem a Jesus, representam
os polos opostos de como as pessoas reagem a Jesus em Lucas. É claro que, é
com o primeiro que o simpático leitor está sendo não tão sutilmente encora­
jado a identificar-se. Lucas conclama: “Seja como o centurião, e não como os
que duvidam”.

A pureza ritual e os centuriões em Lucas e Atos dos Apóstolos


O centurião em Lucas 7 envia seus servos para in te rc e p ta rem Jesus
quando Ele estava “p erto da casa" (v. 6). Isso pode te r sido um a cortesia,
para p erm itir que Jesus evitasse c o n tra ir a im pureza que o contato físico
com o gentio ou sua casa pudesse transm itir-lh e. Em outro paralelo com
a história de Cornélio, seus servos ta m b é m não presum em ir d ire ta m e n te
a Pedro na casa de Sim ão, o curtidor. Ao contrário, eles p aram a um a dis­
tân cia razoável, no portão, e dali c h a m a m Pedro (At 1 0 .1 7 ,1 8 ).
Em Atos, tan to Pedro com o o centurião sabe q ue os judeus são proibi­
dos de "associar-se a um gentio ou m esm o visitá-lo". Todavia, Pedro e n tra
na casa de Cornélio e diz, “ Mas Deus m e m ostrou que eu não d everia cha­
m a r im puro ou im undo a h om em nen hu m " (At 1 0 .2 8 ). S e m e lh a n te m e n te ,
o Jesus de Lucas, p re s u m ive lm e n te tinh a a intenção de e n tra r na casa do
centurião e o teria feito se não houvesse se enco ntrad o com ele do lado
de fora.
A n arrativa de Lucas desconstrói a pureza ritual com o um im p erativo
para a salvação de um a form a lenta e increm ental. Am bos os centuriões
gentios, em b ora ritu alm e n te impuros, d em o n s tra m fé e um a pureza

210
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

interior não eviden ciad a pelos judeus ritu alm e n te observadores. Do ponto
de vista da n arrativa, am bas as histórias a rm a m o caso da inclusão dos
gentios na com un idad e salva. Am bas ta m b é m ap o n ta m a estre ite za de
m e n te daqueles q ue se opõem a Jesus e à inclusão dos gentios (veja At
11). Todavia, elas fa ze m isso sem d ar um a d eclaração contra as leis da
pureza.
Enquanto o je s u s de Lucas dem on stra um a ten d ên cia geral de ignorar
as leis da pureza ritual (5 .3 0 ; 1 1 .3 8 -4 1 ), Ele não denigre as observâncias
em si (5 .1 4 ). A Sua aprovação da conduta do fiel, tan to judeu com o gentio,
afirm a isso (5 .1 4 ; 7 .6 ,7 ,3 9 -4 9 ; 8 .4 6 -4 8 ). Ele rejeita, porém , a inextricável
conexão que a m aioria dos judeus presum ia existir e n tre a pureza ritual e
a santidad e pessoal (veja o com entário em 5 .1 2 -1 6 ; 7 .3 9 e 8 .4 2 b -4 8 ). E,
assim , um a a titu d e judaica que excluiria os gentios da salvação baseada
em questões de pureza é p ro gressivam en te desconstruída por Lucas.

O centurião diz, eu também sou homem sujeito a autoridade (v. 8). O


peso do poder parece unir o centurião a Jesus em um nível pessoal. Ele sabia
que Jesus, por causa de Sua autoridade com Deus, precisava apenas dizer uma
palavra para curar o seu servo. Mas dize uma palavra, e o meu servo será
curado (v. 7). Isso está de acordo com o padrão de Lucas, no qual os supostos
pecadores, neste caso um soldado romano, são os verdadeiros justos, e os supos­
tos justos, os fariseus e os mestres da lei, são os verdadeiros pecadores. A contí­
nua reversão das expectativas prepara ainda mais os leitores para o conceito de
um evangelho amplamente inclusivo.
A fé do centurião enfatiza a falta de fé dos adversários religiosos de Jesus.
Jesus diz, iVao encontrei uma fé tão exemplar, n em m esm o em Isra el (v. 9).
Essa frase é comparativa. Jesus louva a imensa quantidade de fé do centurião
ao invés de sua fé em algo específico (ex.: em que Jesus é o Messias). Sua fé
expressa sua confiança de que Deus é compassivo e poderoso. Similarmente,
no primeiro uso da palavra “fé” por Lucas em 5.20, ele faz observação sobre a
fé dos homens que procuraram baixar o amigo paralítico pelo telhado da casa
de Pedro. O comportamento extremo deles demonstrou que aqueles homens
tinham um espírito exemplar, primordial da fé.
Em uma passagem semelhante sobre a natureza da fé em Lucas 17.5,6, os
discípulos imploram ao Senhor, “Aumenta a nossa fé!”. Jesus refere-se à fé tão
pequena como o grão de mostarda como sendo suficiente. Não é o objeto da fé
que é enfatizado nessas histórias tanto como sua qualidade e quantidade. Quan­
do a fé é combinada com o arrependimento (o que logo veremos na história
211
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

da mulher pecadora), o entendimento de Lucas sobre o caminho da salvação


torna-se claro para os leitores. Além do mais, é um tipo de fé que se apoia dire­
tamente em Deus e não em um grupo de ideias. Como tal, a fé é amplamente
acessível àqueles que estão às margens da observância religiosa. Aos pecadores
de Lucas, não se exige que assumam uma posição intelectual. A eles é exigido
que assumam uma postura humilde para com um Deus misericordioso.

A fé em Lucas e em Atos dos Apóstolos


A fé é p ro em inen te em Lucas. A palavra fé (p is tis ) é enco ntrad a 11
vezes em Lucas e 14 vezes em Atos (oito vezes em M ateus; em Marcos,
cinco vezes). Em bora p ro em in en te, o uso do te rm o em Lucas e Atos não é
fa c ilm e n te categorizado.
No Evangelho, a m aioria das referências à fé é enco ntrad a em con e­
xão com as curas. O utras d eclaram o perdão; ainda outras referências e n ­
corajam a constância pessoal (veja a seguir). Em apenas um exem plo, a fé
é colocada em conexão com um e ven to sobrenatural, a calm aria do m ar,
na p ergunta de Jesus aos Seus discípulos: "O nde está a sua fé?" (Lc 8 .2 5 ).
Em geral, p istis parece referir-se a um a certeza em p írica sobre Deus
em Lucas, um a crença sentida que leva à ação. O uso de pistis por Lucas
está mais relacionado ao conceito de fé em Hebreus 11 com o um a firm e
p erseverança, do que com a fé descrita com o o m ecanism o de salvação
em Atos e Paulo (ex.: At 3 .1 6 ou Ef 2 .8 ). Lucas 7 .5 0 pode ser um a rara
exceção.
Em Atos, a discussão sobre a fé m uda para o conteúdo da crença
em vez de algo que é p rim a ria m e n te sentido e ex p e rim e n ta d o , em b ora
esse últim o não seja descartado. Em Atos, o indivíduo é introduzido à fé,
p erm an ece na fé, te m fé em Jesus, fica cheio de fé, ou é purificado pela
fé. Com essa am pla série de significados, esse é um conceito-chave para
a salvação lucana. Sem p istis não se pode e n co n trar a cura, o perdão, a
purificação do coração, a constância ou a filiação na nova com unidade.

Ocorrência de p istis por tema

Fé em re la çã o à cura 5.20; 7.9; 8 .4 8 ; 1 7.1 9; 18.42

Fé em re la çã o aos m ila g re s 8 .2 5 ; 1 7 .5 ,6

212
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

Fé em re la çã o à co n s tâ n c ia no
22.32
c o m p ro m is s o

A " fé ” co m o a d e scriçã o da cre nça cris tã 6.7; 13.8; 14.22; 16.5

C heio de fé 6.5; 1 1 .2 4

P u rifica n d o os co ra çõ e s pela fé 15.9; 26 .18

A PARTIR DO TEXTO
A história da fé do centurião é pungente porque surge de um lugar inespe­
rado, a presença militar romana na Palestina. Não existe uma indicação osten­
siva na história sobre as complexas questões sociais e políticas que uma força de
ocupação na Galileia levantaria. Contudo, o subtexto do conflito social nunca
está longe da consciência do leitor.
Como em todo lugar nos retratos de Lucas sobre o ministério de Jesus,
aqueles de quem a fé é menos esperada possuem a mais nobre fé. A fé do cen-
turião é como a dos marinheiros e dos ninivitas no livro de Jonas, pagãos que
demonstraram a melhor piedade, para o desgosto dos escolhidos (Jn 3.4,5; Lc
11.32). Ele é como Naamã, o sírio, em Lucas 4.27 (2 Rs 5.1-15), outra figura
militar que aborda o profeta judeu Eliseu pedindo cura.
A interação entre o centurião e Jesus enfatiza a humildade na aproximação
de alguém a Deus, a compaixão pelos necessitados e a abertura aos margina­
lizados. Tais peculiaridades são práticas saudáveis para todos os cristãos, mas
particularmente para os wesleyanos, cuja teologia enfatiza a santidade como
meio de vida. O estilo de vida santa é um compromisso pessoal que deve levar a
uma vida de ação e responsabilidade social em vez da autoabsorção e infindável
introspecção.
O drama do centurião e de Jesus desenvolveu-se no contexto de um confli­
to social, político e religioso real, no qual o desejo de cruzar todos os tipos de
fronteiras trazia cura e restauração. E para semelhante vida de coragem, decisão
e abertura, que a igreja moderna é chamada.
213
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

2. A ressurreição do filho da viúva de Naim (7.11-17)

POR TRÁS DO TEXTO


A história da ressurreição do filho da viúva de Naim é um material lucano
especial. Naim era uma pequena cidade a aproximadamente dez quilômetros
ao sul de Nazaré, ou 34 km a sudoeste de Cafarnaum. Em 1982, uma equipe
arqueológica localizou os muros da cidade.
Jesus ia para Naim acompanhado de seus discípulos e uma grande multi­
dão (ochlospolys). A referência a uma multidão é sempre usada por Lucas para
indicar um evento público em uma conjuntura significante do ministério de
Jesus.
• “M uita gente” estava presente no banquete de Levi (5.29).
• Várias vezes enquanto Jesus estava pregando (5.17; 6.17; 8.4; 14.25).
• Ao pé do monte da transfiguração (9.37).
Agora uma grande multidão atende a este milagre em uma remota cidade
do sul da Galileia. Parece historicamente improvável que grandes grupos de
pessoas pudessem ser encontrados em lugares obscuros como na casa de um
cobrador de impostos, em montanhas remotas ou em planícies distantes. Em
Lucas, essas multidões podem ser entendidas como um dispositivo literário
indicando a natureza pública do evento.
Embora as atividades de Jesus sejam amplamente rurais, grandes mul­
tidões continuavam a segui-lo. Isso levanta interessantes questões históricas.
Quem são essas pessoas? Quantas pessoas são necessárias para se considerar
uma grande multidão? Será que elas adotam o estilo de vida itinerante de Je­
sus e de Seus discípulos, deixando empregos e famílias para trás ? As respostas
para essas perguntas revelariam informação interessante sobre a natureza e a
substância do movimento inicial de Jesus. Infelizmente, o texto não contém
informação histórica sobre esse assunto. Lucas 8.1-3 chama a atenção para uma
característica particularmente interessante de seguir a Jesus: a presença de mu­
lheres com Ele na estrada.
Em Lucas, o ministério público de Jesus é apresentado como um movimen­
to rural populista de grande escala (veja Theissen e Merz, 1996, p. 170,171).
Se houvesse, de fato, milhares de pessoas que sofreram um descolamento social
para seguir a Jesus, o efeito sobre uma população rural teria sido realmente
significante. E o governo romano obrigatoriamente teria notado. Pelo lado de
214
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

fora, certamente ficaria parecendo que uma revolta galileia estava em anda­
mento. No todo, parece mais historicamente plausível que os que realmente
viajaram com Ele em Seu ministério itinerante eram em centenas e não em
milhares.

NO TEXTO
H 1 1 - 1 3 A ressurreição do filho da viúva de Naim é um ponto importante
na narrativa. Esse não era o primeiro milagre público (veja 5.25; 6.10,18), mas
é o mais marcante do ministério de Jesus até esse ponto. A grande multidão
não só está acompanhando Jesus, mas uma grande multidão da cidade está
presente também (7.11,12).
O texto retrata uma cena visual de duas grandes multidões convergindo-se,
com Jesus, a viúva, e seu filho morto no centro do quadro. A partir dessa loca­
lização, emana um poderoso milagre da ressurreição de um morto.
Existe, aliás, um crescente padrão de maravilhas na narrativa. Os demônios
foram expulsos, e os enfermos foram curados (4.33-37,39,40,41; 5.13,17-26;
6.6-11; 7.1-10). Agora, a ressurreição de um homem é escalada adiantada na
narrativa lucana. Estruturalmente, esse acontecimento levará à pergunta de
João Batista sobre a identidade de Jesus: “Es tu aquele que haveria de vir?” (Lc
7.19). A identidade de Jesus é completamente pública em Naim e só é esclare­
cida pelos eventos subsequentes no decorrer da narrativa.
Quando Jesus entrou em Naim, Ele deparou-se com uma procissão funerária
de uma viúva que havia perdido seu filho único (v. 12; sobre a preocupação
de Lucas pelas viúvas, veja 2.36-40; 4.23-27; 7.1-17; 18.1-8; 20.47; 21.2; At
6.1). Ao vê-la, o Senhor se compadeceu dela e disse: “Não chore” (v. 13).
Lucas tende a referir-se a Jesus como o Senhor, uma expressão usada previa­
mente em seu Evangelho apenas em referência a Deus (1.28; 2.15). Essa é uma
significante declaração cristológica (compare também com 7.19; 10.1,39,41;
11.39; 12.42; 13.15; 17.5,6; 18.6; 19.31,34). De outra forma, em Mateus e
Marcos, temos essa forma de abordagem em apenas alguns lugares (ex.: Mt
21.3; 24.42; Mc 5.19; 11.3).
O Jesus de Lucas é geralmente mais estoico do que o de Mateus e Marcos. Eles
frequentemente usam o jargão da palavra compaixão (splangchnizom ai); en­
quanto Lucas, geralmente, omite-a no material compartilhado (Mt 14.14) ou
omite a história toda (M t 15.32-39; 18.27-35). Mas aqui ele usa a palavra (tra­
duzido: Seu coração enterneceu-se; veja também 10.33 e 15.20).
215
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A compaixão de Jesus por essa viúva é semelhante à que Elias expressou pela
viúva de Sarepta, que também perdeu seu único filho por causa de uma enfer­
midade (4.25,26). Em 1 Reis 17.17-24, Elias ressuscita o filho da viúva em uma
cena similar de ternura. A história lucana também ecoa a ressurreição do filho
da sunamita por Eliseu em 2 Reis 4.8-37. Isso ocorreu a apenas três quilôme­
tros ao sul de Naim em Suném (Rogerson, 1989, p. 141). A história da viúva
de Naim tem o sentimento de uma história do AT descrevendo as proezas de
um profeta.
H 14-17 Depois, aproximou-se e tocou no caixão, e os que o carregavam
pararam (v. 14). Note que Jesus tocou os soros, um esquife ou maca, e não um
caixão fechado (Fitzmyer, 1981, 1:659). Esse ato teria transmitido uma impu­
reza ritual a Jesus, algo do qual Ele não foge em Lucas (veja anteriormente em
7.1-10). A contínua minimização da importância da pureza ritual estabelece o
caso de Lucas de que a fé, e não o templo, é o princípio adjudicante do evan­
gelho. Também, como se em uma afirmação da fé do centurião em 7.7, nova­
mente, Jesus cura com apenas uma palavra: Jesus disse: “Jovem, eu lhe digo,
levante-se!” (v. 14; veja 1 Rs 17.20,21).
A ressurreição em Naim tem outro ponto de intercessão com a viúva de Sa­
repta. Após a ressurreição de seu filho, a viúva de Sarepta disse: “Agora sei que
tu és um homem de Deus e que a palavra do Senhor, vinda da tua boca, é a
verdade” (1 Rs 17.24). Em Naim, a ressurreição do morto primeiro causa um
alarme - “Todos ficaram com muito medo” (v. 16 N TLH ; “medo” em vez de
temor é o significado normal deph ob os em Lucas). Assim como em Sarepta, a
ressurreição de uma pessoa faz com que as pessoas glorifiquem a Deus: “Um
grande profeta se levantou entre nós”, diziam eles (v. 16). Jesus é aclamado
um profeta como Elias.
Em 7.16, a realização da “visitação” predita na profecia de Zacarias (1.68,78) é
cumprida. Ali, a palavra episkeptom ai, “visitar”, forma um inclusio (i.e., colche­
tes literários) na canção sobre a vinda da salvação. O hino começa e termina
com essa significante “visitação” divina no nascimento de João. Em 7.16, essa
palavra reaparece. Deus agora, de fato, interveio em favor (epeskepsato) do seu
povo. A ressurreição do filho da viúva de Naim é, então, uma evidência direta
da realização da profecia de Zacarias.
Por causa da grande multidão (v. 12) que estava presente, as notícias do mi­
lagre espalharam-se por toda a Judéia e regiões circunvizinhas (v. 17). O
ministério de Jesus agora deu uma virada decisiva em sua natureza pública. Daí
em diante, Sua própria ação tem implicações públicas na narrativa.
216
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

3, Jesus e João Batista (7.18-35)

POR TRÁS DO TEXTO


O propósito da narrativa em Lucas 7.18-30 é trazer resolução à função de
João Batista. Ele era uma grande figura na parte inicial do Evangelho (1.1-80;
3.1-20). Mas, ele agora começa a sair da história. O narrador, sempre conspí­
cuo nos sumários de Lucas (veja 7.17), está particularmente evidente aqui. Ele
é onisciente e fornece aos leitores uma informação privilegiada. O narrador
sabe o que os discípulos de João fizeram e o que João disse, embora esses acon­
tecimentos transpirem em época e lugar diferentes do cenário da narrativa.
João teve como palco central 3.1-20 e falou ali em discurso direto. Aqui,
ele aparece atrás das cenas, conhecido pelos leitores apenas por meio da narra­
tiva anterior e da pergunta de seus discípulos. Subsequentemente, ele desapa­
rece da história, aparecendo somente em breves apartes (7.33; 9.7-9; 16.16),
para nunca mais aparecer.
O encarceramento de João é registrado em Lucas 3.20. Sem mencionar isso
novamente, a história ainda o tem por perto, incapacitado de vir pessoalmente
a Jesus. Josefo (Ant. 18.5.2, §119) registra que João ficou preso em Macaréus,
um desolado quartel no litoral leste do mar Morto. A saída de João da história
é enfatizada por dois fatores: isolamento físico e distância da narrativa (i.e., o
narrador apresenta João falando apenas por meio de representantes). Mesmo
em seu extremo isolamento, João segue cuidadosamente o ministério de Jesus
por meio dos relatórios de seus discípulos. O interesse de João em Jesus, mesmo
à distância, funciona como um endossamento indireto de Seu ministério.

NO TEXTO

a. Os d is c íp u lo s d e J o ã o v is it a m J e s u s ( 7 .1 8 - 2 3 )

1 1 8 - 2 2 Os discípulos de João perguntam a Jesus: “És tu aquele que haveria


de vir ou devemos esperar algum outro?” (v. 19). Lucas 1.17 relata a predição
de Gabriel a Zacarias sobre o nascimento de João. Seu pronunciamento alude a
Malaquias 4.5,6 (veja o comentário em 1.17). A insinuação é que João seja Elias
redivivu s (Webb, 1991, p. 62), trazido de volta à vida. Ele prepara o caminho
do “Senhor” (i.e., Jesus).
Os discípulos de João pareciam perguntar: “Você é aquele que chamam de
217
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Malaquias?” (veja 1.76; 7.27). Da perspectiva da narrativa, a interrogação de


João torna-se um teste decisivo para a identidade de Jesus, já que João acredita
que ele próprio seja o precursor do Senhor.
A questão também indica uma distância física e emocional entre os dois, enfati­
zando as dúvidas de João. Eles estiveram juntos brevemente no Jordão (3.3,21;
veja João 1.29,35,36), mas Lucas não diz nada a respeito dos movimentos pos­
teriores de João (contraste Jo 3.22,23; 10.40). No registro de Lucas, não houve
uma comunicação direta entre eles após o batismo e antes do encarceramento
de João. Eles comunicavam-se via discípulos (veja Lc 5.33).
Baseado no entendimento de João sobre avinda do Messias (3.15-17), ele não
tinha certeza se Jesus era aquele que haveria de vir (7.19). João esperava um
“fogo que nunca se apaga” (3.17). Ao contrário, Jesus era um curador e mestre.
Para enfatizar sua dúvida, a pergunta de João é repetida pelos seus discípulos no
v. 20: “És tu aquele que haveria de vir ou devemos esperar algum outro?”.
Semelhantemente, as façanhas de Jesus também são repetidas nos v. 21,22 em
resposta à pergunta de João.
A lista dos feitos de Jesus é citada em resposta ao foco da pergunta de João so­
bre o alívio do sofrimento humano. Primeiro, Jesus curou muitos que tinham
males, doenças graves e espíritos malignos, e concedeu visão a muitos que
eram cegos (v. 21). Segundo, os cegos vêem, os aleijados andam, os leprosos
são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados e as boas
novas são pregadas aos pobres (v. 22). A lista descreve a redenção da presente
condição humana, e não o estabelecimento da escatologia, do mundo porvir.
Compare com Isaías 35.5,6, onde as duas ideias parecem convergir-se.
Lucas informa seus leitores nos capítulos 1 e 3 de que a função de João é pre­
parar o caminho para o Messias chamando Israel ao perdão dos pecados (1.77;
3.3). Ele já fez isso (3.8). Mas João espera que o Messias batize com “o Espírito
Santo e com fogo” (3.16). A imagem da colheita implica que Ele deveria execu­
tar o juízo sobre os ímpios (veja o comentário em 3.16,17). O Messias deveria
apresentar uma nova era, e não simplesmente reviver o sofrimento humano. Je­
sus era um Messias diferente do que ele esperava. Logo, a pergunta, “devemos
esperar algum outro?” (v. 20). Essa dissonância cria uma tensão dramática
para o leitor, que também está confuso com a identidade de Jesus. Mas, por en­
quanto, os leitores serão quase plenamente convencidos de que Ele é o Messias.
Esse é um bom exemplo do artifício literário de estranhamento. Ao apresentar
novas ideias, a desconstrução do familiar tem de ocorrer. As expectativas de
João parecem razoáveis, dado o seu entendimento messiânico. Elas ressoam
com o anseio de seus leitores pela liberdade. Mas o ministério de Jesus faz com
218
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

que João (e os leitores de Lucas) reavalie sua perspectiva à luz da nova infor­
mação (Darr, 1992, p. 32). As expectativas de João servem como um desvio
enfatizando suas diferen ças da natureza do ministério messiânico de Jesus.
I 2 3 A palavra de Jesus aos discípulos de João é: feliz é aquele que não se
escandaliza por minha causa (v. 23). Mateus e Lucas usam a mesma frase
grega, kai makarios estin hos ean m c sk andalisthc en em ou Ela é diversamente
traduzida nas Bíblias modernas. M akarios, como em bem-aventuranças, sem­
pre é traduzido como “bendito”. O restante da frase é visto de várias formas:
“aquele que não achar em mim motivo de tropeço” (ARA), “não duvidam de
mim” (N TLH), ou “aquele que em mim se não escandalizar” (ARC) (John­
son, 1991, p. 121).
Essa noção de tropeçar é uma referência intertextual de Isaías 8.14,13. Ali, o
Senhor todo-poderoso é referido como a causa do tropeço para o desobediente
Israel. Paulo cita esse texto de Isaías em seu discurso na aceitação do evangelho
pelos gentios e sua rejeição pelos judeus. A reivindicação de que Jesus era o
Cristo era para eles uma “pedra de tropeço” (Rm 9.32). A linguagem de Jesus
em Lucas 7.23 evoca a advertência profética de Isaías para não se achar nesse
tipo de oposição a Deus.
O uso de skandalizõ no NT é frequentemente encontrado em referência a per­
cepções ofuscantes. Quando Pedro não consegue aceitar o sofrimento de Jesus
como integrante de Sua função messiânica, ele é chamado de sk anadalon, uma
pedra de tropeço (Mc 8.33; Mt 13.5711Mc 6.3 ||Lc 20.17,18; SI 118.22). A in­
certeza de João acerca da identidade de Jesus e a resposta de Jesus na linguagem
de Isaías 8.14,15 implicam que João estava em perigo da cegueira espiritual que
Isaías predisse (Lc 7.23).

b. Jesus fala à multidão a respeito de João (7.24-30)

I 2 4 - 3 0 Nos v. 24-35 do capítulo sete, Malaquias continua sendo o nosso


modelo interpretativo. Esse é um material comum a Lucas e Mateus. A fonte
adota uma retórica de pergunta-resposta no estilo de Malaquias (|| M t 11.7­
14). Deus questiona Seu povo, e eles respondem (Ml 1.2,6,8; 2.10). Os dois
temas principais de Malaquias são o fracasso da fidelidade da aliança do sacer­
dócio e a vinda do Dia do Senhor.
O monólogo de Jesus (Lc 7.24-35), após a saída dos discípulos de João, assume
o mesmo tom de sarcasmo expressado por Deus em Malaquias. Os fariseus e
219
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

doutores da lei comunicam um tom semelhante de egoísmo e irritabilidade


(ex.: 5.21,22,30,33; 6.2,7 etc.; veja 7.31-35; veja mais Neale, 1991, p. 137,138,
e o comentário dos v. 31-35).
Assim como em Malaquias, Jesus questiona os Seus ouvintes (aqui, sobre a aná­
lise deles a respeito de João), mas responde a Suas próprias perguntas. Essas
são perguntas retóricas, e não um diálogo. Também como em Malaquias, Jesus
questiona a fidelidade da aliança do povo (em 7.24-36): O que vocês foram
ver no deserto? (v. 24).
Será que João era um caniço agitado pelo vento ou um homem vestido de
roupas finas (v. 24,25)? Obviamente, nenhum desses dois é encontrado nor­
malmente no deserto. Os leitores de Lucas sabem que os caniços não nascem
em lugares áridos; eles crescem junto às águas. Os homens de roupas finas não
habitam no deserto; eles moram em palácios (v. 25). Essa é a clara indicação
do comentário sarcástico/irônico de Jesus.
O menosprezo das multidões (v. 24) parece desafiar seus motivos para que se­
guissem João. Jesus censura-os pela superficialidade e pela busca curiosa (como
em 3.7-9; veja 9.18,19). Se não é um caniço nem um homem em roupas finas,
o que vocês vieram ver? Um profeta? (v. 26). As repetidas perguntas retóricas
são características da frustração do Senhor para com os que falham em mostrar
integridade em seus deveres sacerdotais em Malaquias 2.4-9.
Isso é semelhante à dependência de Lucas 6.46 em Malaquias 1.6. Em Mala­
quias, a frase, “Se eu sou senhor, onde está o temor que me devem?” encontra a
sua contraparte em Lucas: “Por que vocês me chamam ‘Senhor, Senhor’ e não
fazem o que eu digo ?”. O efeito é o mesmo. É uma crítica profética daqueles
que deveriam ser o fiel povo da aliança, mas demonstram uma frustrante dis­
plicência.
No v. 26, Jesus afirma que João é mais que profeta. Essa declaração e a citação
seguinte identificam João como a figura predita em Malaquias 3.1 e 4.5,6, que
apresentaria o “dia do Senhor”. Do ponto de vista da narrativa, a identidade
de João como Elias redivivu s está agora estabelecida. Mateus inclui uma decla­
ração direta dessa identidade: “E se vocês quiserem aceitar, este é o Elias que
havia de vir” (Mt 11.14). A razão para a cautela de Lucas não é óbvia.
O v. 27 cita Malaquias 3.1 (veja Êx 23.20; Evans, 1990, p. 354): Este é aquele
a respeito de quem está escrito: “’Enviarei o meu mensageiro à tua frente;
ele preparará o teu caminho diante de ti’. A ênfase na resolução apocalípti­
ca em Malaquias é a provável raiz do pessimismo de João sobre a identidade
de Jesus. Jesus concentra-se em resgatar o menor no Reino de Deus (v. 28).
João, aparentemente, pensava que o Messias iria imediatamente eliminar os
220
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

sacerdotes infiéis com o “fogo que nunca se apaga” (3.17). Isso foi previsto em
Malaquias 3.2b: “ele será como o fogo do ourives”.
O narrador, mais uma vez, entra no palco central nos v. 29,30 para dar ao leitor
uma análise da opinião da multidão. O alinhamento conceituai com Malaquias
prossegue. Todo o povo, até os publicanos (v. 29) ficaram do lado de João
Batista. Ele era o mensageiro de Deus para preparar o caminho do Senhor. A
“multidão” e o “povo” conseguem claramente ver a mão de Deus trabalhando.
A elite religiosa está cega. Os sacerdotes em Malaquias defendem a si mesmos
com interrogações petulantes quando chamados a prestar contas com Deus
(Ml 1.2,6,13; 2.17), e, semelhantemente, os fariseus recusam-se a reconhecer o
que o povo comum e os pecadores conseguem ver: Elias já veio!

c. A p a r á b o la d a s c r ia n ç a s n a p r a ç a (7 .3 1 -3 5 )

1 3 1 - 3 2 Essa passagem está sujeita a diferentes interpretações (veja Fitzmyer,


1981, 1:678,679; Bock, 1994, p. 681; Neale, 1991, p. 137-140). A parábola
das crianças na praça era provavelmente uma história popular da época. Ela
ridicularizava o egoísmo (Heródoto 1.141 e Fábulas d e Esopo 27; veja Neale,
1991, p. 138). Jesus adotou a história para ilustrar Seu objetivo sobre a cegueira
espiritual em relação à Sua identidade.
A primeira pergunta que surge na interpretação é: quem são os homens desta
geração (v. 31) contra quem a crítica de Jesus é direcionada? Se ela refere-se à
população em geral, a parábola transforma-se em uma crítica profética contra
o “povo” amplamente entendida.
Nessa leitura, a população para a qual o “Filho do homem” (v. 34) vem é com­
parada às crianças brincando na praça (v. 32). Elas estão confusas e conflitan­
tes, cantando em tons contraditórios (a dança e o lamento) umas às outras (v.
32) e no geral, agindo como ovelhas perdidas.
Isso poderia ser uma referência à tensão entre os seguidores de João e os segui­
dores de Jesus (veja os v. 24-26). Isso contrasta o asceticismo de João com a
vida de celebração de Jesus. Será que os discípulos de João e de Jesus são como
crianças barulhentas na praça? Será que eles estão insultando uns aos outros
afirmando sua respectiva superioridade de liderança?
Será que desta geração refere-se aos líderes religiosos do v. 30, os fariseus e os
peritos na lei? Se assim for, as crianças na praça referem-se a eles (Green, 1997,
p. 305). Se essa for a intenção de Lucas, esses líderes são como os petulantes
sacerdotes de Malaquias. Eles estavam engajados em semelhante disputa
221
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

retórica com o Senhor. Nessa leitura, os líderes religiosos criticam Jesus por
falhar em jogar pelas regras deles, quer o jogo seja um casamento ou um funeral
- a dança ou o lamento.
A maioria dos comentaristas entende os homens desta geração (v. 3 1) em ter­
mos da segunda opção. As crianças na praça são a elite religiosa, elite que critica
tanto Jesus como João (por exemplo, Green, 1997, p. 303; Tannehill, 1996,
133; Bock 1994, p. 681; Marshall, 1978, p. 297).
O editorial complementar nos v. 29,30 parece retratar a população em geral
em uma luz positiva e os fariseus em uma luz negativa. Essa interpretação é
apoiada também pelo discurso indireto nos v. 33,34, que só fazem sentido nos
lábios dos críticos de Jesus.
Mais uma ironia levanta-se. Jesus e João seguem caminhos diferentes ao cum­
prir cada um o seu chamado - celebração vs. abnegação, no entanto, eles são
incapazes de separarem-se de seus padrões tradicionais de pensamento. A João,
eles dizem de fato, “O seu jejum não é o nosso estilo”. A Jesus, eles dizem: “Sua
celebração não é o nosso estilo”. Eles são incapazes de receber os mensageiros
de Deus, independentemente do estilo de vida no qual a mensagem é expressa.
É isso que faz a prática religiosa deles parecer tão empolada ao leitor.
Os fariseus e peritos na lei devem ser vistos como crianças que ficam senta­
das na praça e gritam umas às outras: ‘Nós lhes tocamos flauta, mas vocês
não dançaram; cantamos um lamento, mas vocês não choraram’ (v. 32). Os
sacerdotes incrédulos em Malaquias responderam a Deus em termos insolentes
(1.6,7,13; 2.17; 3.13). Essa parábola semelhantemente reprova a inconstância
dos fariseus por suas atitudes. Eles são petulantes, egoístas e indispostos a ou­
vir. Eles não ficam satisfeitos, não importa qual seja a situação. Eles não aceita­
ram o asceticismo de João nem aceitavam a conduta mais liberal de Jesus para
com os pecadores. Quem poderá agradar o inconstante e o egocêntrico? Para
acrescentar ao aguilhão da parábola, as crianças inconstantes representam os
líderes do povo.
H 33-35 Pois veio João Batista, que jejua e não bebe vinho, e vocês di­
zem: ‘Ele tem demônio’ (v. 33). Um sentido consecutivo é comunicado por
P ois v eio no início do v. 33. Isto é, isso explica um pouco mais a inconstância
dos fariseus sobre os gritos e o lamento no v. 32c. Semelhantemente, o v. 34
explica a inconstância sobre as flautas e a dança no v. 32b.
O ponto fundamental da explanação expandida dos v. 33,34 é que a elite reli­
giosa interpreta erroneamente tanto a atividade de João como a de Jesus. Por
222
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

um lado, interpreta-se mal o asceticismo de João como sendo uma possessão


demoníaca. Por outro lado, interpreta-se mal a comunhão de Jesus com os pe­
cadores como sendo um sinal de impiedade. Ambos estão exatamente errados!
O asceticismo de João é a verdadeira piedade no estilo de Elias; e a associação
de Jesus com os pecadores, de fato, é a evidência do novo reino. Ironicamente,
o criticismo contra o ministério de Jesus no v. 34 torna-se uma descrição do que
Sua vida realmente significa: Ele é um “amigo dos pecadores”.
Com referência a Jesus comer com os pecadores, os v. 29,30 indicam que os
fariseus e os peritos na lei recusam-se a reconhecer o batismo de João como
sendo de Deus. Mas os pecadores veem isso claramente (v. 29). Isso valida a
adequação da comunhão de Jesus à mesa com os pecadores: Pois veio João
Batista, que jejua e não bebe vinho, e vocês dizem: ‘Ele tem demónio’ Veio
o Filho do homem, comendo e bebendo, e vocês dizem: ‘Aí está um comi­
lão e beberrão, amigo de publicanos e “pecadores’” (v. 33,34). Jesus come,
implica o texto, com aqueles que compreendem a identidade de João Batista e
do Filho do Homem. Aliás, esta comunhão à mesa valida o lugar deles no
reino.

A PARTIR DO TEXTO
Em Malaquias 1.6, Deus causticamente pergunta aos Seus sacerdotes, “Se
eu sou pai, onde está a honra que me é devida?” Semelhantemente, aqui em
Lucas, chegou a hora de Elias preparar o ambiente para que o Messias resolva
a intolerável arrogância. João não conseguia enxergar nenhuma solução para
arrogância, a não ser o fogo e a destruição. Mas Jesus tem uma concepção mais
ampla do reino e de seus novos participantes, os pecadores.
Em Malaquias (1.3,11,14), as nações gentias são elogiadas por sua fideli­
dade. Agora, no mundo histórico de Lucas, todos os que foram excluídos pela
elite religiosa são novamente chamados a abraçar o convite de Deus para a in­
clusão. Eles são os pecadores, os publicanos, e os gentios - os últimos que pode­
ríamos esperar que tivessem um esclarecimento espiritual quanto à identidade
do Filho do Homem.
Como em Malaquias 2 e também em Lucas: Deus vira o Seu rosto em dire­
ção àqueles que demonstram integridade e justiça. Mas a sabedoria é compro­
vada por todos os seus discípulos (v. 35). Essa resolução da parábola capta a
ideia de que a sabedoria não respeita o cargo nem o privilégio - ela sempre fica
do lado da justiça (veja Green, 1997, p. 304).
223
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

4. A mulher pecadora é perdoada (7.36-50)

POR TRÁS DO TEXTO


Essa história evocativa continua a atrair a atenção dos comentaristas (ex.:
Adams, 2008, p. 140-147; Blomberg, 2005, p. 132-137; Carey, 2009, p. 1-16;
Darr, 1992, p. 32-35,101-103; Mullen, 2004; Tannehill, 2005, p. 257-270;
Thompson, 2007, p. 84-86). Essa atenção é bem merecida. A história da mu­
lher pecadora é importante para a narrativa de Lucas por inúmeras razões:
• Primeiro, ela é uma das maiores cenas sobre um pecador experimentando
o perdão. Logo, é um passo sequencial crucial no caminho do estabeleci­
mento do arrependimento como o método preferido de Lucas de acesso à
nova comunidade. Lucas tem seis personagens principais em seu drama de
arrependimento nos capítulos 5— 19. (Veja o esboço do cap. 5)
• Segundo, o retrato de Simão, o fariseu, concretiza e solidifica a história do
pecador e fariseu na narrativa (Darr, 1992, p. 34).
• Terceiro, a história lida com questões de pureza e impureza. Logo, a nar­
rativa retorna a esse tema pela primeira vez desde a introdução na história
do leproso em Lucas 5.12-16.
• Quarto, é uma continuação o tema da comunhão à mesa que vem crescen­
do na narrativa, e fornece uma visão aberta a esse assunto íntimo. Isso é
inicialmente abordado à mesa de Levi em Lucas 5.29-32.
A parábola das crianças na praça e a história da mulher pecadora estão
conectadas estruturalmente. Em 7.28-35, Lucas identifica a comunhão de Je­
sus com os cobradores de impostos e pecadores como um sinal do reino, e não
como um pecado. Mas os fariseus e mestres da lei falharam em entender isso.
Os fariseus na história continuam a ver essa comunhão à mesa como um sé­
rio pecado. Para eles, afirmar que Jesus é “amigo de publicanos e pecadores’”
(7.34,39) é uma crítica a Jesus. Isto é, eles não enxergam um alcance a esses
indivíduos marginalizados como uma atividade apropriada para os religiosos
sérios. Talvez eles presumissem que esse fosse o caso do provérbio inglês, “pás­
saros da mesma plumagem voam juntos”.
Ao mesmo tempo, Lucas apresenta os hábitos de comunhão de Jesus para
demonstrar que Ele é inocente de cometer erros concernentes ao Seu relacio­
namento com os pecadores. Aliás, essa confraternização à mesa é exatamente
a atividade que o marca como um homem justo, no pensamento de Lucas.
224
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

Ambos Lucas 7.28-35 e 7.36-50 demonstram esse ponto. Ironicamente, Ele


é realmente um “amigo dos pecadores'”. Porém, longe de ser uma falha mo­
ral, esse é o ideal em torno do qual o Seu ministério é formado. A história
da mulher pecadora serve para expandir e reforçar esse tema; dessa vez, pela
experiência dessa pessoa em particular.
Na preparação do cenário dessa história de Lucas, o último vilarejo men­
cionado é Naim (7.11). Mas, a localização geográfica desse evento não parece
importante para Lucas, e ele não o menciona. Contudo, a transição de 7.24-35
para 7.36-50 é tranquila e imediata. Isso parece indicar que Jesus se desloca di­
retamente para a casa do fariseu para comer: Convidado por um dos fariseus
para jantar, Jesus foi à casa dele e reclinou-se à mesa (v. 36).
Imediatamente após a acusação de que Jesus comia com os pecadores (v.
34), Lucas coloca Jesus à mesa com um pecador e um fariseu (v. 36-50). Logo,
a presente história é uma espécie de temática “parábola da vida” na narrativa.
Como geralmente é o caso de Jesus nos Evangelhos: Ele ensina fazendo.
O ambiente da mesa aqui é crucial. Simão, o fariseu, en carna os intransi­
gentes fariseus em Lucas (veja 5.21,30; 6.2,7; 7.29). Ele falha em reconhecer a
verdadeira piedade quando a mesma está assentada bem à sua frente. Da pers­
pectiva da história, o verdadeiro arrependimento (o da mulher pecadora) vem
face a face com a falsa piedade (a de Simão); e o desprezo pelo pecador é reve­
lado como o verdadeiro pecado. Lucas demonstra que Jesus encontra a maior
impiedade não à mesa com os pecadores, como era acusado, mas à mesa com o
fariseu (para mais sobre Jesus comendo com os pecadores, veja o comentário
em 5.29-32).
Em termos da história da tradição desta seção, uma história semelhante
aparece nos outros Evangelhos (Mt 26.6-13; Mc 14.3-9; Jo 12.1-8). As diferen­
ças, porém, são suficientemente significantes para que a história de Lucas seja
tratada como uma tradição independente.
Em Mateus e Marcos, o anfitrião é Simão, o leproso, e não Simão, o fariseu.
O que estava em questão era o preço do perfume da mulher e não a sua moral.
O cenário é a iminente paixão em Betânia, e não uma cena do início do minis­
tério de Jesus na Galileia. Em Mateus, Marcos e João, a mulher unge a cabeça
de Jesus, e não Seus pés, como aqui em Lucas (Craddock, 1990, p. 104). Em
Marcos, o preço do perfume tem implicações quanto ao cuidado para com os
pobres (Mc 14.5). Em Mateus, o perfume faz parte do ritual do enterro (Mt
26.12). Em contraste, em Lucas, o alto custo do perfume significa a autentici­
dade do arrependimento da mulher.
225
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Há quatro partes na estrutura dos v. 36-50.


>Primeiro, o ato de contrição da mulher e de unção na casa de Simão (v.
36-38).
>Segundo, a parábola dos dois devedores (v. 39-43).
>Terceiro, Jesus aplicou a parábola a Simão e à mulher (v. 44-47).
• Quarto, a estrutura fica completa com a afirmação sobre a autoridade de
Jesus em perdoar pecados (v. 48-50) e uma declaração sumária.

NO TEXTO
H 3 6 - 3 8 Somente em Lucas, Jesus entra na casa de um fariseu para comer. Ele
faz isso três vezes (7.39; 11.37; 14.1; veja Thompson, 2007, p. 79-90; Tyzon,
1992, p. 64,65). Em 7.39, assim como em 11.37, Lucas acrescenta o detalhe do
material da tradição tripla e adota um modo estereotipado de expressão. Em
14.1, toda a cena da refeição na casa do fariseu é material lucano. A presença
dessas refeições na narrativa enfatiza a importância que a comunhão à mesa
tem para os relacionamentos de Jesus com os fariseus em Lucas (veja mais em
Brower, 2005, p. 54,55).
Jesus está na casa do fariseu reclinando à mesa (v. 36), como era o costume
oriental. Essa é uma cena de grande intimidade. Ela combina a proximidade de
uma refeição em conjunto, as sutilezas da hospitalidade e, mais indiretamente,
uma referência aos cânones da pureza ritual.
Uma suposição subjacente da narrativa é que se pode esperar a pureza ritual
à mesa de um fariseu praticante (Green, 1997, p. 307; Thompson, 2007, p.
87,88). A tensão da história surge porque esse, aliás, não é o caso.
A imagem da mulher aos pés de Jesus, descobrindo a cabeça e banhando os
pés dele com suas lágrimas é uma das cenas mais emotivas do NT: Chorando,
começou a molhar-lhe os pés com suas lágrimas. Depois os enxugou com
seus cabelos, beijou-os e os ungiu com o perfume (v. 38).
O fato de a mulher soltar os cabelos tem conotações eróticas, de certa forma
é parecido com a nudez pública na sociedade de hoje (Green, 1997, p. 310).
Logo, a atenção dela para com Jesus pode ter levantado questionamentos na
mente de Simão sobre a natureza do contato físico. Ela prostra-se aos pés de
Jesus (veja Jos. Asen. 15.11), chorando e derramando um perfume caro. E uma
cena de um memorável poder emotivo.
A mulher não é bem-vinda: ela é: uma ‘pecadora’ (v. 39), diz o fariseu em
seu coração. Ela é caracterizada pelo narrador como tendo vivido uma vida
226
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

de pecado (v. 37) na cidade. Mas, cabe a nós supor o significado dessa frase. A
provável reclamação contra ela seria de prostituição (Derrett, 1970, p. 167,168;
Corley, 1989, 520,521). Outros apontam para um grupo mais complexo de
questões sociais que resultam na posição rebaixada dela (veja Carey, 2009, p.
1-15). De qualquer forma, sua condição de pecadora é referida três vezes na
história (v. 37,39,47). Isso insinua que ela era “realizada em suas transgressões”
(Mullen, 2004, p. 110).
Lavar os pés dos viajantes cansados era considerado um refrescante ato de hos­
pitalidade nos dias de Jesus. O caro frasco de alabastro com perfume (v. 37),
que a mulher usa, simboliza o ato que ela realiza. Talvez, ele contivesse mirra
ou incenso, unguentos que eram raros e caros no antigo Oriente Próximo (veja
Mc 14.5). Nesse caso, sua raridade representa a profundidade de sua sinceri­
dade, uma penitência extravagante. Podemos imaginar a inebriante fragrância
enchendo o ambiente, um símbolo potente de sua vida quebrantada e oprimi­
da.
Embora tal realização tenha sido um ato público de hospitalidade, neste caso,
as lágrimas dela, o cabelo solto e a prostração tornam a cena de uma intimidade
chocante. Ela parece alheia aos outros que estavam no aposento. Sua angústia
misturava-se com a gratidão em um gesto profundo. Isso fica claro, embora a
mulher não fale nada. Talvez um silêncio envergonhado entre os convidados
servisse de recepção àquele ato, especialmente dada a sua reputação como mu­
lher de baixa moral. “Ela entra em uma casa onde não é convidada, interrompe
um banquete e, publicamente, comporta-se com intimidade imprópria” (Tan­
nehill, 1996, p. 135). É assim que Lucas molda a história para exemplificar a
ética do arrependimento em seu Evangelho.
H 3 9 Aq ui, o narrador novamente demonstra onisciência ao revelar o que
o fariseu estava pensando. Esse artifício é ocasionalmente usado pelos outros
Evangelhos (veja Mt 12.25; Mc 14.4); mas Lucas faz um uso particular desse
método aqui no v. 39: “Se este homem fosse profeta, saberia quem nele está
tocando e que tipo de mulher ela é: uma ‘pecadora’”. Normalmente, nin­
guém pode ler a mente do outro; e Lucas está no melhor de seu editorial aqui
(embora Jesus realmente pareça ler a mente das pessoas em Lucas [veja 9.47;
11.17]). Lucas mostra a frieza exterior do coração de Simão e sua vida julgado­
ra interior no mesmo versículo. Essa penetração ao cerne da vida do pensamen­
to do mundo histórico é uma característica lucana (3.8; 12.17; 15.17; 16.3,15).
Os pensamentos íntimos do fariseu aqui são semelhantes àqueles do fariseu
injusto em Lucas 18.11. Ele fica à parte e agradece a Deus em seu coração
227
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

porque “não [é] como os outros homens”. Ambos são exemplos de orgulho, que
é o oposto da humildade salvadora em Lucas. Em contraste, o arrependimento
da mulher alcança os mais profundos pensamentos de seu coração e depois é
demonstrado exteriormente, o corpo e o coração em harmonia e humildade
diante de Jesus.
Simão é caracterizado como o representante insensível dos fariseus. A empada
e a sinceridade do ato da mulher perdem-se nele; ele só consegue vê-la como
uma pecadora, e não como uma penitente (v. 40). Da perspectiva dos leitores
de Lucas, a lógica do arrependimento e do perdão está começando a sobrepujar
todas as considerações da religiosidade. A frieza de Simão coloca a compaixão
de Jesus pelos perdidos em alto relevo.
Isso faz ficar aparente que a reclamação dos fariseus sobre o hábito de Jesus
comer com os pecadores seja moralmente falha (5.30; 7.34). Simão, o fariseu,
parece ser exatamente como a criança que brinca na praça: egoísta e cego para
com os outros.
Simão faz uma particular objeção à mulher tocando Jesus. Tocar não é apenas
um ato íntimo do discurso social (“que tipo de mulher é esta?”), mas também
de muitos níveis de significado na cultura Palestina. Jesus toca as crianças para
abençoá-las (18.15). Ele toca para curar (veja 5.12-16; 7.14; 22.51). Mas, às
vezes, as pessoas procuram tocar Jesus, como se para adquirir uma bênção por
meio de m idras (“pressão”—i.e., transmitido pelo toque). Note especialmente
a mulher com o fluxo de sangue (veja os comentários em 8.44; 6.19). Ela asse­
melha-se ao caso da mulher pecadora aqui. Ela procura ser abençoada e aben­
çoar por meio do toque humano. A base para a reação de Simão provavelmente
envolve um complexo de razões (contra Snodgrass, 2008, p. 86).
■ 4 0 - 4 3 Alguns dos momentos mais notáveis em Lucas são aqueles em que
Jesus volta-se, em uma conversação pessoal, para um indivíduo (veja 5.10,14,27;
7.13; 8.48; 9.20 e outros). Esse é o caso aqui. Nesses momentos, Ele lida com
a condição do coração do indivíduo. Aqui, Simão não é um malvado fariseu,
mas um ser humano que precisa de instrução (veja as análises da caracterização
de Simão por Tannehill, 2005, p. 268-270; também mais em geral, veja Snod­
grass, 2008, p. 77-92). O texto mostra a intimidade do momento quando Jesus
usa o seu nome: Simão. Somente aqui e em 22.31 Jesus usa um nome pessoal
no discurso direto em Lucas. A história da mulher pecadora e de Simão é, em
todos os aspectos, muito pessoal quanto à tonalidade.
A história dos dois devedores é a tentativa de Jesus de explicar a grande emoção
da mulher. O perplexo Simão não consegue entender o que vê acontecendo
228
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

diante de seus olhos. Ele não é retratado como um pecador, mas como alguém
que não consegue entender a tremenda emoção sentida por um pecador per­
doado. A mulher é como aquele a quem muito foi perdoado; Simão, ao que
pouco foi perdoado (v. 47). Lucas não presume nada sobre a vida pregressa de
Simão como pecador ou justo. Seu objetivo é mostrar que o verdadeiro erro
de Simão é a falta de gratidão, o indicador mais importante de uma vida santa
para Lucas.
A lição da história é baseada na proporção da dívida cancelada. A história con­
ta sobre um credor que perdoou a dívida de duas pessoas. Uma pessoa fica
livre de uma dívida de quinhentos denários, cerca de um ano e meio de salário
de um trabalhador. A outra fica livre da dívida de cinquenta denários (v. 41),
cerca de um mês e meio de salário. Jesus pergunta: Qual deles o amará mais?
(v. 42).
A história faz uma ligação peculiar do perdão, aqui análogo à dívida perdoa­
da, ao amor. Aquele cuja maior dívida é cancelada ama mais (v. 42; maior em
qualidade e quantidade de amor, assim como a fé em 7.9 e 17.5,6). A mulher,
cujos pecados são muitos, amou muito (v. 47). Os verbos traduzidos como
a m a r (do agapaõ, v. 42 e 47) não se referem à afeição ou união emocional, mas
à gratidão e lealdade (como em 10.27). Jesus explica a Simão que essas emoções
são a fonte da extravagante demonstração da mulher (v. 44-46).
I 4 4 - 4 7 O aforismo sumário em 7.47 está posicionado sobre duas ideias
contraditórias. O ato de contrição da mulher nos v. 36-39 é, no sentido tex­
tual, a p recon d içã o para o perdão, que é proclamado no v. 47. Ela demonstra
seu generoso amor antes que Jesus pronuncie o Seu perdão. Na parábola dos
dois devedores, porém, o amor é a consequência do perdão. O versículo 47 tem
elementos de ambas as sequências. Portanto, eu lhe digo, os muitos pecados
dela lhe foram perdoados; pois ela amou muito. Mas aquele a quem pouco
foi perdoado, pouco ama.
Sobre a questão da causalidade, Blomberg diz:

Apesar de séculos de debates entre intérpretes católicos e protestantes so­


bre o versículo 47, existe agora uma ampla concordância entre os erudi­
tos de ambas as comunidades de que a cláusula causal: “porque ela muito
amou”, deve modificar o verbo “dizer”, e não “foram perdoados”. (...) Em
outras palavras, Jesus não está pronunciando o perdão de Deus sobre a
mulher por causa do amor que acabou de ser derramado sobre Ele. (2005,
P -135)
229
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

O atual consenso pode forçar a língua demasiadamente. A questão de causa e


efeito nas relações humanas não pode ser expressa tão categoricamente. Com
as pessoas, a cadeia de circunstâncias e eventos complicados sempre traz uma
mudança interior. O texto deixa espaço para se considerar que o ato de peni­
tência e a concessão de perdão sejam interdependentes em Lucas. Quer alguém
ame primeiro e subsequentemente encontre o perdão, ou é primeiro perdoado
e depois ame, o resultado é o mesmo: redenção e libertação do pecado. Em um
ambiente emocional tal como essa história, a bondade de Jesus dá vida a ambas
as possibilidades. Aqui em Lucas, o arrependimento, o perdão e o amor são,
todos, linhas de uma única peça de tecido.
■ 4 8 - 5 0 A cena conclusiva dessa história resume o desenvolvimento do tema
do arrependimento e perdão.
• O tema foi introduzido pela confissão do pecado de Pedro em 5.7 (veja
também 3.3,8; 5.32).
• Logo após, aparece na perícope a cura de um paralítico. Ali, Jesus declara,
“Homem, os seus pecados estão perdoados” (5.20).
Aqui no capítulo 7, em linguagem quase idêntica à usada no capítulo cinco,
Jesus declara a mesma mensagem à mulher pecadora: “Seus pecados estão
perdoados” (7.48). Assim como no capítulo cinco, aqueles que estão à volta
de Jesus novamente replicam: “Quem é este que até perdoa pecados ?” (7.49;
veja 5.21).
No capítulo 5, a apropriação da prerrogativa de Deus por parte de Jesus quan­
to ao perdão cria um momento divisor de águas na narrativa. Isso pronuncia
a declaração temática do Evangelho quanto ao arrependimento, “Eu não vim
chamar justos, mas pecadores ao arrependimento” (Lc 5.32). Esse mesmo tema
é reiterado e sumarizado no encontro de Jesus com a mulher pecadora.
O tema do arrependimento irá receber sua mais clara expressão nos capítulos
vindouros. O “coração do terceiro Evangelho” é frequentemente considerado
como sendo o capítulo 15. Ali, o tema do arrependimento domina (15.7,10,11­
32; vejo também 13.5; 17.4). Mais tarde, na conclusão da parte da viagem, nos
capítulos 18 e 19, dois episódios novamente enfatizam a importância do arre­
pendimento:

O primeiro é o arrependimento do publicano em 18.9-15.


O segundo ocorre fora de Jerusalém, em Jerico, onde o maior pecador -
Zaqueu - arrepende-se. Ali, Jesus irá declarar, “Pois o Filho do homem
veio buscar e salvar o que estava perdido” (19.10).
230
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

É dentro desse contexto mais abrangente que a história da mulher pecadora


encontra seu significado.
O argumento de conclusão dessa seção é uma declaração de Jesus sobre a posi­
ção da mulher, “Sua fé a salvou; vá em paz” (v. 50). A fé foi elogiada por Jesus
duas vezes em Lucas até este ponto, em 5.20 e 7.9, ambos em conexão com a
cura (veja a anotação complementar em 7.6-10). Aqui, isso funciona como o
mecanismo pelo qual a mulher pecadora obtém a salvação.
Em que sentido a mulher pecadora é salva? Lucas usa a expressão “salvo” di­
versas vezes no Evangelho (8.12; 13.23; 18.26 e 23.35). Essas passagens não
respondem claramente à pergunta. Mais amplamente em Lucas, os temas da
salvação e do perdão frequentemente aparecem juntos. Ambos são ênfases te­
ológicas proeminentes em Atos (3.19,26; 5.31; 10.43; 13.38,39; veja Bock,
1994, p. 707). Na convergência dessas duas ideias, o entendimento do concei­
to mais amplo de Lucas sobre a salvação deve ser encontrado. Certamente, a
mulher é salva da prisão da culpa de seu passado pecaminoso. Ela é salva, talvez,
do juízo futuro; porém, mais do que uma salvação individualista está em vista
aqui. Ela também é restaurada à comunidade da fé, da qual tinha sido cruel­
mente expulsa (Green, 1997, p. 314,315). Sua opressão é suspensa, e a vida de
paz finalmente chega à mulher pecadora liberta de seu passado.

A PARTIR DO TEXTO
O teólogo e professor de Cambrige, C. F. D. Moule, explora a ligação cau­
sal entre o divino perdão e o perdão de uma pessoa para com a outra no nível
humano. A versão de Mateus sobre a oração do Senhor parece sugerir termos
condicionais para o perdão de Deus: “Perdoa as nossas dívidas, assim como
perdoamos aos nossos devedores” (Mt 6.12; o tempo verbal perfeito indica
um presente estado resultante de um acontecimento passado). A tradução em
Lucas parece mais aberta a um perdão contemporâneo, um perdão que ocorre
quando ou depois que Deus perdoa: “Perdoa-nos os nossos pecados, pois tam­
bém perdoamos a todos os que nos devem” (11.4, no tempo verbal presente).
A explicação de Moule é digna de nota:

A chave para a resposta a esta pergunta está, por um lado, em distinguir en­
tre ganhar ou merecer o perdão, e, por outro lado, adotar uma atitude que
torne possível o perdão (...). Tornar o perdão condicional ao arrependi­
mento não é de forma alguma o mesmo que dizer que o perdão tem de ser
(ou realmente possa ser) merecido pelo recebedor. O real arrependimento,
231
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

em contraste com um mero remorso egoísta, é certamente um sin e qua


non do recebimento do perdão - uma condição indispensável. Por mais
desejoso que o perdoador possa estar para oferecer o perdão, o mesmo não
pode ser recebido, e a reconciliação não pode ser alcançada, sem o arre­
pendimento. Mas, o arrependimento não pode fazer por merecer o perdão
ou tornar o destinatário digno do mesmo, pois, por definição, o perdão é
sempre um ato de generosidade imerecida. (1982, p. 281,282)

Os wesleyanos entendem que a volição humana provê a capacidade de


abraçar o mistério do divino e o arbítrio humano tanto no arrependimento
como na redenção.

5. As mulheres da Galileia (8.1-3)

POR TRÁS DO TEXTO


Jesus continua a viajar com Seus discípulos pelas cidades e povoados
proclamando as boas novas do Reino de Deus (v. 1). O termo “discípulos”
foi introduzido em 5.30-33, e eles estiveram ao lado de Jesus no decorrer da
narrativa (6.1,13,17; 7.11). A caracterização de Seu círculo de amizades agora
é expandida com o acréscimo de algumas mulheres (v. 2) da Galileia (veja Mt
27.55). Elas são em número não identificado, mas três são citadas por nome:
Maria Madalena, Joana e Susana (v. 2,3).
Os apoiadores mais chegados de Jesus são descritos pela primeira vez sim­
plesmente como os Doze (v. 1). Esse grupo específico de homens foi escolhi­
do em 6.13 (veja o comentário em 6.12-16). Os Doze também aparecem em
9.1,12; 18.31; 22.3 e 47.
A caracterização das mulheres é positiva na tradição do Evangelho em ge­
ral, mas, isso é particularmente verdadeiro em Lucas. Não existem vilãs nas
escritas de Lucas (exceto talvez a trapaceira Safira). As mulheres são retratadas
como fiéis e piedosas do começo ao fim, mesmo aquelas que vieram de vidas
pecaminosas. Em contraste, os homens são sempre retratados como incrédulos
(fariseus, Pedro, Judas), argumentativos e egotistas (os discípulos, 9.46; 22.24),
e desconsiderado o testemunho das mulheres como “loucura” (24.11). Lucas
realmente tem um viés de gênero; o qual se inclina em favor das mulheres. Para
Lucas, as boas-novas são decididamente contracultura nesse ponto.
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

As mulheres desempenham papéis proeminentes em Lucas. Isabel e Maria


dominam as narrativas da infância e adolescência nos três primeiros capítulos
(Isabel em 1.5-7,13,24,25,36,40-45,56-61; Maria em 1.26-56; Ana em 2.36­
38). O capítulo 1 de Lucas é “ginocêntrico” (Bauckham, 2002, p. 47-76). Pos­
teriormente em Lucas, a mulher pecadora e a viúva de Naim tornam-se figuras
proeminentes na história (7.11-17,36-50). Agora, as mulheres da Galileia assu­
mem um importante papel de apoio para o ministério itinerante de Jesus. Mais
tarde, outras mulheres assumirão esse papel, todas peculiares a Lucas:
• Marta e Maria (10.38-42).
• A mulher encurvada (13.10-17).
• A mulher e a moeda perdida (15.8-10).
• A viúva e o juiz (18.1-8).
• O relatório das mulheres no sepulcro (24.22-24) (veja Bock, 1994, p. 710).
Essas histórias são uma declaração sobre gênero e fé no Evangelho. Sobre
essa questão, Lucas é um dos mais igualitários de todos os escritores bíblicos.
Sua representação das mulheres, se não uma completa desconstrução do pa-
triarcalismo como um fundamento da crença religiosa, é pelo menos uma mar­
cante equalização dos sexos como participantes da nova comunidade. Mais do
que um simples igualitário, a história de Lucas estabelece as mulheres como
heroínas do ministério de Jesus.
Nessa passagem, no início do capítulo 8, as mulheres assumem seus luga­
res ao lado dos discípulos de Jesus como seguidoras de perto na caminhada.
As mulheres estarão no palco central novamente na paixão, especialmente em
Lucas 23.55—24.10. “Diferentemente de Mateus e Marcos, onde o leitor fica
sabendo de surpresa, durante a narrativa da paixão, que muitas mulheres ha­
viam acompanhado Jesus desde a Galileia e provido para Ele (Mt 27.55,56; Mc
15.40,41), Lucas torna claro que essas mulheres discípulas eram companhias
constantes de Jesus desde o estágio inicial do ministério galileu” (Bauckham,
2002, p. 112,113; veja p. 279-283).
As mulheres da comitiva de Jesus são um grupo misto, algumas eram ob­
viamente mulheres abastadas (v. 3); mas outras pareciam ser marginalizadas.
Por exemplo, M aria Madalena e outras que haviam sido curadas de espíritos
malignos e doenças (v. 2), estavam além dos limites da aceitação social. A
linguagem do espírito de possessão provavelmente descreve um estigma so­
cial complexo que tais mulheres sofreram. Elas eram consideradas religiosa­
mente e fisicamente inaptas para o convívio da comunidade e, efetivamente,
233
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

excomungadas da sociedade saudável. Havia também “muitas outras” viajan­


do com Jesus (v. 3). Será que elas eram divorciadas, solteiras ou casadas? In­
dependentemente, a presença de todas elas ao lado de Jesus teria sido causa
de escândalo.

Mulheres, propriedade e patriarcado


Os com entário s de Lucas sobre m ulheres que fin a n c ia ram a obra de
Jesus são te o lo g ic a m e n te e h istoricam ente notáveis (v. 3). Na sociedade
patriarcal do prim eiro século na Palestina, as m ulheres tin h am um a posi­
ção social m e n o r que os hom ens. A unidade fa m ilia r israelita era o b e t 'av,
ou a "casa do pai". Um a função dessa estrutura social era a preservação
da terra e da pro pried ade na m o rte de um patriarca; as leis do levirato
foram desenvolvidas para g a ra n tir isso. O h om em era obrigado a casar-se
com a esposa de seu falecido irm ão para que a terra d ele e suas posses
não passassem do seu clã para o da esposa (veja o c om entário em 1 5 .1 1 ­
16).
A d ep end ência dos m estres itin eran tes em m ulheres para seu susten­
to não era incom um no antigo O rie n te Próximo (Bock, 1 9 9 4 , p. 7 1 0 ). Mas
isso teria levan tad o objeções sobre a disposição da pro pried ade na cul­
tura de parentesco. As m ulheres casadas p roduziam herdeiros, m as fora
isso, d e s e m p e n h a v a m um papel subordinado com direitos lim itados de
propriedades. O direito de disposição de bens, na m aioria dos casos, não
estava nas m ãos da m u lh e r e m um c a s am e n to (B auckham , 2 0 0 2 , p. 1 1 7 ).
Em Lucas 8, as m ulheres v ia ja v a m para fora e u savam m eios econô­
micos do b e t 'a v para su s te n ta r um m e stre itin e ra n te . Não é difícil im a ­
g in ar alguns dos conflitos que isso poderia te r causado na fam ília dessas
m ulheres. Essas q uestões p od eriam ser um sub texto para algu m as das
oposições que Jesus encontrou em Sua itinerância.
Houve circunstâncias em q ue as m ulheres judias tin h am salário e pro­
priedades ao seu dispor. Por exem p lo , poderia h av e r um a herança do pai
ou do m arido, ou p resentes, com o aqueles dados à esposa pelo m arido na
época do casam ento. Poderia h a v e r um d ote, q ue tinh a de ser devolvido
se o m arido m orresse ou se divorciasse da m ulher, ou recebesse salário
(B auckham , 2 0 0 2 , p. 1 2 1 ). Mas não se tornou socialm en te ace itá v e l que
um a m u lh e r viajasse para longe de casa, g astand o dinheiro sem o seu
m arido. Fazer isso, p a rtic u la rm e n te na com pan hia de outros hom ens, se­
ria u m a condição vergonhosa.
O fluxo m o n etá rio das m ulheres para com a m issão itin e ra n te de Je­
sus le v an ta p ergu ntas interessantes sobre dinheiro, p od er e política sexu­
al na Palestina do prim eiro século. Isso te m ta m b é m im plicações para a
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

com preensão das funções das m ulheres no início do cristianism o. D ada a


posição p ro em in e n te q ue as m ulheres o cu pavam no m inistério de Jesus, é
difícil im a g in a r as com unidades cristãs prim itivas, com o a de Lucas, logo
voltand o para os cam inhos in te ira m e n te patriarcais.

NO TEXTO

l l - 3 Enquanto Jesus andava de cidade em cidade, Ele ia proclamando as


boas novas do Reino de Deus (v. 1; veja o comentário em 6.20; sobre as lo­
calizações em Lucas, veja Tyson, 1992, p. 24-26). Isso é uma reiteração da ex­
pressão “boas novas”, usada pela primeira vez em 1.19 e repetida em 2.10; 3.18;
e 4.43.
As mulheres que acompanham Jesus são: Maria Madalena, Joana e Susana (v.
2,3). A personagem principal é Maria, que foi curada de espíritos malignos e
doenças (v. 2). Ela é mencionada mais tarde entre as mulheres que descobri­
ram o túmulo vazio (24.10). Estranhamente, Lucas não menciona nenhuma
mulher testemunhando o Jesus ressurreto (contraste com Mc 16.1; Mt 28.1).
Será que Maria é a mulher anônima que ungiu os pés de Jesus no capítulo 7?
Não há indicação textual disso. Mas alguns chegaram a essa conclusão, embora
nenhuma possessão demoníaca seja indicada na história da mulher pecadora.
Essa Maria do capítulo 8 foi possessa por sete demónios (v. 2). Esse número
sugere sua condição tremendamente desesperadora (veja 11.26). Ironicamen­
te, e não diferente da história do endemoninhado geraseno, a nossa história
encontra a mulher possessa pelos demônios, curada e assentada tranquilamen­
te ao lado de Jesus. Nesse caso, é notado ainda que ela está ajudando a custear
a obra de Jesus.
Joana, mulher de Cuza, administrador da casa de Herodes (v.3) é a única
especificamente mencionada como casada (Bauckham a chama de “Joana, a
apóstola” [2002, p. 117; veja p. 135-130]). Sua presença na lista indica que
indivíduos socialmente proeminentes haviam aderido ao grupo dos itineran­
tes. Os comentaristas há muito especulam que ela seja a maior doadora. Não
há informação sobre a enigmática Susana, mencionada apenas aqui na Bíblia
(Bauckham, 2002, p. 117).
A coisa mais marcante sobre a presença dessas mulheres na comitiva de Jesus
é que elas compartilham plenamente das dificuldades da vida itinerante. Ter
discípulas seria incomum para um rabi. Mas tê-las viajando pelas aldeias da
235
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Galileia em companhia de homens teria sido escandaloso (Green, 1997, p.


318,319: “no mínimo, o comportamento delas é vergonhoso e, bem provavel­
mente, teria sido visto como ilicitamente sexual”).
A questão da posição dessas mulheres dentro do grupo de viajantes é interes­
sante. A influência geralmente segue o dinheiro, e imagina-se se isso pode ter
reforçado a posição delas como patrocinadoras do grupo de viajantes. Embo­
ra elas não sejam chamadas de “discípulas”, elas estavam com ele (v. 1) assim
como os Doze. Não há insinuação de que as mulheres gozavam de uma parti­
cipação nada menos que completa na comunidade.
Em Lucas 10.1, as mulheres estavam indubitavelmente incluídas na missão de
Jesus dos “outros setenta e dois”. Já que viajavam em pares, podemos muito bem
imaginar duas mulheres viajando de cidade em cidade, proclamando as boas­
-novas do reino. A presença delas com Jesus na estrada é suficiente para mostrar
a natureza radical de Seu tratamento para com as mulheres.

O movimento como um tema em Lucas


Um din am ism o geográfico na n arrativa re tra ta o Reino d e Deus com o
um a an títes e da religião institucional estática (i.e ., jud aísm o baseado no
tem p lo ). O reino á, ao contrário, um a força e n e rg iza n te , c o n s ta n te m e n te
em m o vim en to , s e m e lh a n te à representação do Espírito Santo com o um a
força m o v e n te na n arrativa m ais am p la. O Espírito Santo sem p re está no
m eio das cenas m ais d inâm icas (1 .1 5 ,3 5 ,4 1 ,6 7 ; 2 .2 5 ,2 6 ; 3 .1 6 ,2 2 ; 4 .1 ). Os
verbos de m o v im e n to d om in am a n arrativa aqui: "e n c h e r", "virá", "a g i­
tou -se", "descansou", "fogo", "desceu". O m o vim en to , e não a e stática,
cara c teriza o re tra to de Lucas sobre o p oder espiritual do reino. Em 8 .1 6 ,
há um senso de m o v im e n to geográfico envolvido na percepção da luz
(no te "esconde", "debaixo", "sobre", "e n tra ").

6. A parábola do semeador (8.4-15)

POR TRÁS DO TEXTO


Lucas já relatou algumas das parábolas curtas de Jesus (5.36; 6.39). Mas, a
parábola do semeador é um exemplo desse gênero em sua forma plena. É uma
236
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

história familiar. Lê-la é como ler um romance de mistério pela segunda vez;
todas as dicas parecem tão óbvias quando se conhece o final. Nós conhecemos
a interpretação alegórica da parábola fornecida nos v. 9-15 e não conseguimos
enxergar a parábola por nenhuma outra lente.
Embora o significado pareça óbvio, os discípulos ficaram confusos com a
parábola até que Jesus a explicasse para eles. Essa é uma forma pela qual Lucas
inclui seus leitores em um relacionamento privilegiado. Nós sabemos de coisas
que nem os discípulos sabem ou não podem saber.
A história mais ampla do gênero da parábola tem sido amplamente pes­
quisada. Guias compreensivos continuam a ser publicados (veja Snodgrass,
2008, p. 1-60, sobre o fundamento da parábola). As parábolas foram usadas
tanto na cultura hebraica como greco-romana na época de Jesus, contudo, o
uso generalizado desse gênero não é encontrado antes do primeiro século d.C..
Existem exemplos rabínicos, mas com datas posteriores a Jesus. Disso podemos
ter certeza, como contador de parábolas, Jesus destacou-se como um inovador
e mestre do gênero (McArthur e Johnston, 1990, p. 165,166).
Nunca se pode expressar exageradamente a importância da parábola do
semeador para os estudos dos Evangelhos Sinóticos. Esse é o primeiro exemplo
substancial desse gênero em todos os três Evangelhos. A versão de Marcos é o
“meio termo”, a fonte da qual os outros derivaram. Em todos os três, ela con­
tém, dentro de sua estrutura, uma explicação da interpretação baseada em Isaí-
as 6.9,10. Snodgrass chama isso de parábola acerca das parábolas” (2008, p.
145).
Existem, na realidade, quatro versões da parábola do semeador. Além dos
Evangelhos Sinóticos, a quarta está no Evangelho de Tomé (veja Snodgrass,
2008, p. 149; anotação complementar). Com exceção de Tomé, existe uma
estrutura dupla: a parábola em si (Lc 8.4-8 || Mt 13.1-9 || Mc 4.1-9) e uma
interpretação alegórica da parábola (Lc 8.11-15 ||Mt 13.18-23 ||Mc 4.13-20).
Tomé não registra uma explicação alegórica.
O contexto narrativo mais amplo da parábola é o conflito entre Jesus e
Seus contemporâneos. Esse cenário contém as seguintes cenas: as cinco his­
tórias de conflito de Lucas 5.17—6.11, as exclusivas contrapartes ai das bem­
-aventuranças no Sermão da Montanha (6.24-26), o convite para se amar os
perseguidores (6.27), o conflito com os fariseus sobre o batismo de João e o
ministério de Jesus (7.33-35), e a história da mulher pecadora e a controvérsia
causada quando Jesus perdoa os pecados dela (7.36-50).
Esse é o contexto do conflito ao qual a parábola do semeador pertence
e que vem crescendo desde o capítulo 5. Jeremias considerou todas essas
237
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

parábolas “armas de controvérsia”, que exigem uma resposta imediata dos


oponentes (1972, p. 21; McArthur e Johnston, 1990, p. 171). Essa é também a
função da parábola do semeador em Lucas.
Snodgrass enumera oito interpretações possíveis para essa parábola (2008,
p. 156). Não existe um consenso entre os comentaristas sobre a interpretação
“correta”. Mas, para os nossos propósitos, a parábola do semeador, e todas as
parábolas e aforismos do capítulo 8, devem ser entendidas como parte da guer­
ra de palavras entre Jesus e Seus adversários. Essas parábolas e aforismos são
uma resposta àqueles que não conseguem enxergar o sentido do ministério de
Jesus aos pecadores, mesmo na presença de atos miraculosos de libertação, de
cura e de perdão. A identidade alegórica do solo pobre é quase certamente os
Seus oponentes.

O Evangelho de Tomé
Em 1945, 13 códices antigos foram descobertos perto d e Nag
H a m m a d i, no Egito. Entre esses docum entos, que d a ta m do século 15
d.C., estava um e vang elh o atribuído a Dídim o Judas T o m é (veja Robinson,
1 9 7 7 , p. 1 1 7 ). O Evangelho de Tomé, desde então, te m sido de interesse
para os eruditos do NT, já que registra paralelos com alguns dos m ateriais
dos evang elh os canônicos.
O Evangelho de Tomé con tém versões de três parábolas fam osas do
Evangelho: a parábola do sem eado r, a parábola do trigo e o joio, e a p a­
rábola da vinha. Todas as versões de Tomé desses paralelos o m item as
exten sas interp retações alegóricas contidas em suas c o n trap artes c anô ­
nicas. Alguns eruditos a rg u m e n ta m q ue o Evangelho de Tomé contenha
form atos sucintos e mais antigos dessas parábolas. Outros co n ten d em
que o Evangelho de Tomé ten h a rem ovido o m aterial alegórico do fo rm ato
original da parábola por razões teológicas (Scott, 1 9 8 9 , p. 3 0 ,3 1 ).

H 4 - 7 Uma grande m ultidão estava reunida, a qual tinha vindo de várias


cidades (veja o comentário em 7.11-17). Não só Jesus viaja de cidade em cida­
de, mas as multidões seguem-no de cidade em cidade também. A diversidade
geográfica daqueles que se ajuntam para ouvir Jesus é uma característica lucana
(veja 5.17). A localização dele é simplesmente lá entre as cidades e aldeias, e
não em um local em particular (8.1).
238
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

Semear sementes é a analogia agrícola de Jesus para propagar a palavra de


Deus (v. 11; veja o comentário em 5.1) - pregar. Tipicamente, a semeadura
era feita no outono depois que as chuvas do final do outono amaciavam a terra.
O solo era preparado para receber a semente por meios primitivos de arados
puxados por animais. A semente era espalhada pelo se m ea d o r (lavrador; veja
Jr 31.27; Ez 36.9; Os 2.23).
O texto grego utiliza aliteração na primeira frase da parábola (ho speirõn tou
speirai ton sp oron : “Um semeador saiu a semear a sua semente” [v. 5 ARC]). A
frase é rítmica e tem rimas, um início quase poético para a parábola. A semente
cai em quatro tipos diferentes de solo: no caminho, sobre pedras, entre os
espinhos e em boa terra (v. 5-8). Os três primeiros ambientes para a semen­
te finalmente não produziram nenhuma colheita. Em contraste, a boa terra
produziu boa colheita (o f r u t o : veja a advertência de João em Lucas 3.8) a
cem por um (v. 8). A interpretação de Lucas sobre essa abundante colheita
encontra-se no v. 15.

Ela ilustra o supremo sucesso escatológico que atenderá à pregação de Je­


sus, apesar de todos os obstáculos humanos que serão encontrados: “(...)
Deus criou um início, trazendo consigo uma colheita de recompensas
além de tudo o que foi pedido ou concebido. Apesar de cada falha e opo­
sição, dos inícios sem esperança, Deus concede o final triunfante que Ele
havia prometido”. (Fitzmyer, 1981, 1:701, seguindo Jeremias)

A parábola, sabemos pela alegoria, identifica a semente como “a palavra” (veja


Jr 17.8). O caminho, as pedras, os espinhos e a boa terra representam os quatro
tipos de pessoas que respondem ao evangelho. É improvável que isso fosse uma
ideia nova para os ouvintes de Jesus. O Mixná, uma fonte de ensino rabínico
do segundo século, tem uma descrição lúdica que também contrasta quatro
tipos diferentes de indivíduos (m. A vot 5.10-15). Entre os discípulos, existem
aqueles que são rápidos no ouvir e rápidos no perder, os que são lentos no ouvir
e lentos no perder, os que são rápidos no ouvir e lentos no perder e os que são
lentos no ouvir e rápidos no perder. Entre os que se assentam na presença dos
sábios, existe a esponja que absorve tudo, o funil que recebe de um lado e libera
do outro, o coador que deixa passar o vinho e fica com a escória, e a peneira que
elimina o produto bruto e fica com o fino.
A parábola do semeador tem uma abordagem quádrupla semelhante às
características dos que ouvem a pregação cristã. O subtexto é que a resposta
239
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

de alguém à palavra de Deus (v. 11) é uma questão de abertura pessoal e de


esforço. Todos nós podemos, como a parábola nos ensina, ser rápidos no ouvir
e lentos no perder, uma esponja, uma peneira que guarda o que é bom, se
simplesmente o escolhermos. Esse modo de falar realça a responsabilidade dos
discípulos de reagirem ao ensino de Jesus. Na teologia de Lucas, está, no poder
dos discípulos, a escolha de entender e de reter a palavra.
H 8 “Aquele que tem ouvidos para ouvir, ouça”. A “explicação” dessa pa­
rábola nos v. 11-15 concentra a atenção em como o público de Jesus ouve a
palavra e reage à mensagem. Esse é o tema superior em Lucas 8.4-21. A palavra
ouvir aparece oito vezes (v. 8,10,12,13,14,15,18 e 21); palavra, aparece quatro
vezes v. 11,13,15 e 21; Scott, 1989, p. 349). Logo, a interpretação alegórica
concentra-se no v. 8 da parábola. A visita dos parentes de Jesus (8.21) reforça
este ponto: Sua verdadeira mãe e irmãos são aqueles que “ouvem a palavra e a
retêm” (v. 15).
I 9 - 1 0 Seus discípulos perguntaram-lhe o que significava aquela pará­
bola. Lucas usa o raro modo verbal optativo para indicar o discurso indireto
(BDF, p. 195). A resposta de Jesus implica que Ele diz parábolas para dividir
o Seu público. As parábolas descobrem o conhecimento dos mistérios do
Reino de Deus aos Seus discípulos, enquanto encobrem esse conhecimento
a os o u tro s (v. 10).
A falta de entendimento dos discípulos indica que a parábola era uma chara­
da para eles. Ela não se recomendava ao senso comum deles, e seu significado
precisava ser elucidado para eles. Isso significa andar contra a missão de Jesus
de buscar e salvar o perdido (5.32; 19.10). Ou seja, se o Seu ensino era de fato
apenas compreendido por poucos, não poderia ao mesmo tempo agradar am­
plamente a todos que pudessem escolher aceitá-lo.
Aqui, o método literário e o método histórico colidem-se. Da perspectiva da
narrativa, a ignorância dos discípulos diminui a distância entre o narrador e
seus leitores. Como leitores, entendemos aquilo que os discípulos não conse­
guem entender. Isso leva-nos mais adiante no compartilhamento da verdade
com o narrador. Mas será que Jesus realmente escondeu o significado de Seu
primeiro público, e até dos discípulos, por meio das parábolas?
O AT relata que Deus, em certas ocasiões, cegou Seus adversários e endureceu
o coração deles para servir ao Seu propósito (ex.: Faraó em Êx 10.1; 11.10;
14.8). Mas é difícil pensar sobre a história do evangelho nesses termos. Isso
torna a rejeição das boas-novas pelos adversários de Jesus uma questão de cau-
sação divina, e não de escolha humana. E, se a rejeição do evangelho não for
por escolha, nem os que aceitam nem os que rejeitam são responsáveis pelas
consequências - Deus é.
240
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

O cerne da questão depende da interpretação da conjunção h in a na frase mas


aos outros falo por parábolas, para que [A/#^]‘vendo, não vejam; e ouvin­
do, não entendam’. Será que hin a denota propósito ? Se for afirmativo, foi in­
tenção de Deus cegá-los. Ou será que denota resultado\ em cujo caso foi inten­
ção de Deus que eles entendessem, mas a obstinação deles cegou-os (veja BDF,
§187).
Um suporte para a visão de que o propósito de Jesus era velar a verdade pode
ser encontrado na citação de Isaías: para que vendo, não vejam; e ouvindo,
não entendam (v. 10; Is 6.9,10). A citação vem da narrativa do convite de Isa­
ías e da calorosa crítica da vinha infrutífera de Israel em Isaías 5. Em Isaías
6.9,10, Deus disse:
“Vá, e diga a este povo: “Estejam sempre ouvindo, mas nunca entendam;
estejam sempre vendo, e jamais percebam. Torne insensível o coração des­
te povo; torne surdos os seus ouvidos e feche os seus olhos. Que eles não
vejam com os olhos, não ouçam com os ouvidos, e não entendam com o
coração, para que não se convertam e sejam curados”.

Nessa passagem, Deus castiga o povo obstinado e desobediente fazendo com


que eles fiquem ainda mais tolos e cegos. Assim também com a parábola de Je­
sus, pode-se argumentar que a cegueira de Seus adversários pode ser vista como
o castigo deles pela obstinação.
Por outro lado, o encobrimento divino da verdade realmente não se encaixa
no paradigma teológico de Lucas. O Evangelho de Lucas é amplamente so­
bre a obstinação da cegu eira causada pelo próprio homem. No decorrer de
seu Evangelho, Lucas enfatiza que a vontade de aceitar a identidade de Jesus e
arrepender-se dos pecados concede a admissão em uma nova comunidade. O
conceito de Lucas sobre a salvação presume a liberdade de escolha: arrependa­
-se e será salvo. Tal liberdade e responsabilidade também estão no coração da
soteriologia wesleyana.
Logo, em Lucas, os primeiros personagens fazem escolhas salvíficas no decor­
rer na narrativa (ex.: Pedro, Levi, o publicano, a pecadora, o filho pródigo, Za-
queu). Dada sua estrutura de referência, parece provável que Lucas toma Isaías
6.9,10 como uma precaução contra o endurecimento do coração à mensagem
do reino, como Faraó fez (Êx 8.15,32; 9.34). A recusa voluntária de reconhecer
Jesus como o Messias é a causa da cegueira. Sugerir o contrário é inconsistente
com a narrativa globalizante de Lucas.
Os discípulos (v. 9) são os que decidem caminhar em direção a Deus ao darem
ouvidos a Jesus. Os outros (v. 10) são aqueles cuja inconstância leva-os para
241
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

longe de Deus. E ambos carregam a responsabilidade de suas próprias escolhas


pessoais. Os “discípulos” têm “ouvidos para ouvir”; os “outros” têm o coração
endurecido. Essa interpretação está mais de acordo com o paradigma teológico
geral de Lucas.
■ 11-15 Ao explicar a parábola aos Seus discípulos, Jesus identifica a semen­
te como a palavra de Deus (v. 11). Lucas é o único evangelista que faz isso, e
ele usa a expressão “palavra de Deus” diversas vezes (veja 5.1; 8.21 e 11.28).
Mateus identifica a semente como “a palavra do Reino” (13.19 ARC); Mar­
cos diz simplesmente “a palavra” (4.14). Os outros evangelistas Sinóticos usam
“palavra de Deus” infrequentemente (somente Mc 7.13 || Mt 15.6). Em Atos
dos Apóstolos, a “palavra de Deus” significa a pregação da igreja (4.31; 6.2,7;
8.14; 11.1; 12.24; 13.5,7,46; 17.13; 18.11). Aqui, não é tão certo que esse seja
o significado.
O que a expressão “palavra de Deus” significa nos lábios do Jesus de Lucas ?
Isso é o que exatamente constitui “a proclamação das boas-novas do Reino de
Deus” (v. 1; veja também 1.19; 4.18,43; 7.22; 16.16)? Se olharmos isso pelas
lentes do contexto narrativo ao redor, as boas-novas referem-se à totalidade da
vida de Jesus, incluindo Seus ensinos e maravilhas em Lucas 5—8.
Entende-se que as boas-novas abrangem amplamente:
• O convite ao arrependimento (3.3).
• O alívio para os pobres (4.18).
• A cura dos enfermos (4.40; 7.10).
• A libertação dos possessos (4.41; 8.36).
• O perdão para os pecadores (5.20; 7.47).

Tudo isso está compreendido na potente expressão palavra de Deus na his­


tória de Lucas. Ela ilumina aqueles que a aceitam (8.16), mas traz divisão e
conflito aos que não aceitam.
A interpretação de Jesus sobre Sua própria parábola, então, imediatamente se
volta para o solo. O primeiro tipo de solo ficou endurecido à beira do caminho
(v. 12). Os antigos comentaristas, amplificando essa alegoria, viram a semente
da palavra como a catequese da igreja. O diabo furta a lição da igreja dos cora­
ções endurecidos pela falta de atenção ou pelos cuidados do mundo (Ephrem,
o Sírio, citado em Just, 2003, p. 133).
As sementes semeadas nas pedras (v. 13) são aquelas que frequentam alegres
cultos na igreja, mas que, ao sair da igreja, imediatamente se esquecem da lição
(Cirilo de Alexandria, citado por Just, 2003, p. 134). As sementes que caem
242
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

entre espinhos (v. 14) são aquelas que “cresceram demais com ocupações va­
zias” (Cirilo de Alexandria, citado por Just, 2003, p. 134).
Os vários tipos de solo representam diferentes tipos de reações ao ministério
itinerante de Jesus:
• Aqueles que ouvem, mas não seguem (ex.: 18.23).
• Aqueles que seguem por um tempo, mas desviam-se, sufocados pelos cui­
dados do mundo (12.16-21).
• Aqueles que deixam tudo e unem-se à comunidade itinerante (5.11,28).

Esses últimos posicionam-se contra todos os outros como a única “boa terra”.
Esses são aqueles que ouvem a palavra e permanecem firmes com um coração
bom e generoso. Eles a retêm e dão fruto, com perseverança (v. 15).

Jesus e a alegoria nas parábolas


Existem 28 p arábolas em Lucas (qu atro de tripla tradição , nove de
dupla tradição [do Q], 14 do m a te ria l lucano especial e um a e n c o n tra ­
da apenas em Marcos e Lucas; Jerem ias, 1 9 7 2 , p. 1 7 7 ). Em oito dessas,
um a interp retação é fornecida den tro da n arra tiv a. S o m en te e m Lucas
1 9 .1 1 , há u m a explicação fornecida pelo autor. Nos outros exem plos,
as aplicações são colocadas nos lábios de Jesus. De todas as parábolas
de Jesus nos Evangelhos, s o m e n te q uatro v ê m a c om pan had as de um a
in te rp re ta ç ão alegórica: as parábolas...
• do s e m e a d o r (Mc 4 .1 3 -2 0 || Lc 8 .1 1 -1 5 || M t 1 3 .1 8 -2 3 );
• do trigo e do joio (M t 1 3 .3 7 -4 3 );
• da rede (M t 1 3 .4 9 ,5 0 );
• da porta das ovelhas (Jo 1 0 .7 -1 8 ).
Alguns a rg u m e n ta m q ue Marcos produziu a in te rp re ta ç ão da p ará ­
bola do sem eado r, que equaciona o s e m e a r da s e m e n te com a pregação
da igreja (Evans, 1 9 9 0 , p. 3 74; G reen, 1 9 9 7 , p. 3 2 7 ). A m aioria concorda
q ue a in te rp re ta ç ão de M arcos ten h a sido apropriada por Lucas e M ateus
(Fitzm yer, 1 9 8 1 , 1 :7 1 0 ; veja Nolland, 1 9 8 9 , p. 3 8 2 ).
A falh a de a s e m e n te g e rm in a r serve com o um a apologia pela falh a
do m inistério de pregação da igreja (Jeremias, 1 9 7 2 , p. 7 7 -7 9 ; Fitzm yer,
1 9 8 1 , 1 :7 1 1 ; Scott, 1 9 8 9 , p. 3 4 3 ,3 4 4 ; Nolland, 1 9 8 9 , p. 3 8 3 ). Isto é, a
falh a está naqueles q ue se recusam a ouvir (o solo), e não naqueles que
p regam (a s e m e n te ).
Tais arg u m en to s estão baseados p arc ialm e n te em dados linguísticos.
Por exem plo, a parábola do s e m e a d o r usa palavras q ue a p a re ce m apen as

243
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

in fre q u e n te m e n te na tradição sinótica. Mais n o ta d a m e n te são as palavras


logos (palavra) e speirein (semear, no sentido m etafó rico de p regar).
Os evang elistas, a rg u m e n ta -s e , c riaram um a in terp retação que re fle ­
te a experiên cia da igreja. Logo, as parábolas tê m um "duplo cenário his­
tórico" (Jeremias, 1 9 7 2 , p. 2 3 ). Isto é, as p arábolas tê m um cenário dentro
do m inistério de Jesus e outro na vida das com unidades dos evangelistas.
Isso não significa que Jesus nunca ten h a fornecido interp retações
para Suas parábolas. Alguns intérp retes d izem que parábolas agrícolas
n a tu ra lm e n te req uerem interp retações alegóricas. Eles insistem que Je­
sus foi o origin ado r tan to da parábola com o da in te rp re ta ç ão (veja Scott,
1 9 8 9 , p. 3 4 5 ). Mas a p arábola do s e m e a d o r c la ra m e n te te m um uso mais
a c entuad o de alego ria, q ue não se enco ntra em n en hu m a outra parábola
de Jesus (veja Nolland, 1 9 8 9 , p. 3 8 3 ).

7. Três aforismos (8.16-18)

I 1 6 - 1 8 Lucas reúne três breves ditos proverbiais que expandem o tema


da reação à palavra de Deus como enfatizada na interpretação da parábola do
semeador. O provérbio sobre o candeeiro (v. 16; veja 11.33) é uma “parábola
embrionária” (McArthur e Johnston, 1990, p. 166). Aqui, ele introduz dois
provérbios intimamente relacionados (v. 17,18), ambos com uma inclinação
distintamente escatológica. Todos os três provérbios elaboram na natureza do
solo bom e do solo ruim da prévia parábola.
Se a “palavra de Deus” (v. 11) refere-se à totalidade da vida e o ensino de Jesus,
então o primeiro provérbio equaciona-se com a lâmpada e o candeeiro. Nin­
guém acende uma candeia e a esconde num jarro ou a coloca debaixo de
uma cama. Ao contrário, coloca-a num lugar apropriado, de modo que
os que entram possam ver a luz (v. 16). Ao recusar restringir Suas atividades,
Jesus indica que Ele não irá acomodar o Seu trabalho segundo o criticismo de
Seus adversários. A natureza pública de Suas atividades coloca a luz no lugar
apropriado para que todos vejam. Suas atividades libertam os que estão pró­
ximos de Sua luz reveladora das garras da cegueira espiritual. Aqui, essa é a
cegueira mostrada pelos oponentes de Jesus na narrativa.
Verbos e preposições de lugar dominam esse versículo:
244
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

• K alyptei: tira r d e vista ou esco n d er.


• H ypokatõ: d eb a ix o, abaixo.
• Epi: so b re (v. 16).

Aqueles que veem a luz devem também mudar de lugar; eles precisam en­
trar para que possam ver a luz (v. 16). Isso sugere uma localização geográfica
associada à luz. Quando isso é combinado com o dinamismo geográfico dos
v. 1-3 (veja o comentário) em geral, os temas de movimento e espaço ficam
evidentes na narrativa. Existe localização, movimento e ação da parte dos que
veem essa luz. Se você “entrar” onde a luz se encontra, sua cegueira espiritual
será tirada. Aqueles que “entram” na comunidade de Jesus verão a luz. Esse
tema faz parte da estratégia narrativa de Lucas.
Em Lucas, a entrada na comunidade cristã requer um desejo de participar
da suprema forma do movimento e do lugar sagrado - isto é, a itinerância. O
provérbio implica que, ao entrar na vida itinerante, os discípulos se engajarão
na semeadura da luz da palavra. Estendendo a analogia à vida cristã moderna,
“o cristão maduro, por causa de sua retenção da palavra de Deus e de sua persis­
tência, torna-se uma luz para os outros’” (Fitzmyer, 1981, 1:718).
No julgamento vindouro, não há nada oculto que não venha a ser re­
velado, e nada escondido que não venha a ser conhecido e trazido à luz
(v. 17; veja 12.1-3,33). A reivindicação de que as coisas serão trazidas à luz é
outro tema de lugar e movimento. Isso sugere que o dia do juízo irá m o v er as
ações humanas das trevas para a luz. Aqui novamente, a luz refere-se ao “lugar
sagrado”.
Os comentários de Jesus aqui aumentam mais ainda a importância da de­
cisão que os leitores fazem concernente à Sua identidade. A garantia de que
tudo será revelado no julgamento deve fazer o leitor parar e pensar: que tipo de
solo eu sou? O texto insinua que o tipo de solo que escolhemos ser é conhecido
de Deus. Já que Ele é o juiz, as nossas escolhas irão determinar a nossa redenção
ou o nosso julgamento.
Logo, os ouvintes são prevenidos a prestar cuidadosa atenção em como
responder: A quem tiver, mais lhe será dado; de quem não tiver, até o que
pensa que tem lhe será tirado (v. 18; veja 19.26). A falha em responder afir­
mativamente à luz resultará na perda de todas as coisas.
245
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

8. A verdadeira família de Jesus (8.19-21)

POR TRAS DO TEXTO


Lucas continua seguindo a sequência e o conteúdo geral de Marcos, como
tem feito desde Lucas 5.17 (= Mc 2.13). O paralelo de Lucas 8.19-21 é Marcos
3.31-35 e 3.20,21. Em Marcos, a família de Jesus veio para “apoderar-se” dele
(kratêsai\ 3.21 NASB). Esse termo forte, em outro lugar em Marcos é traduzi­
do como “prender” (ex.: 6.17; 12.12). Eles planejam fazer isso porque conside­
ram que Jesus “está fora de si” (Mc 3.21). A NVT corretamente designa essa in­
tervenção a “seus familiares” (h o ip a r a u to u ; Taylor, 1952, p. 235,236), em vez
de “Seu próprio povo” (NASB, NKJV). Tanto Mateus como Lucas omitem
a referência a essa intervenção familiar, talvez considerando isso embaraçoso
demais para mencionar.
Esse conflito familiar foi, sem dúvida, histórico. A igreja seria improvável
de criar um tema desses, “pois sem a garantia de um fato, nenhum narrador
primitivo teria alegado que a família de Nazaré pensasse que Jesus estivesse
fora de si e sairiam para pegá-lo” (Taylor, 1952, p. 235; veja Metzger, 1975,
p. 82). Isso reforça e expande o tema de conflito de Lucas; ele estende-se até à
intimidade da família.

NO TEXTO
■ 1 9 - 2 1 A mãe e os irmãos de Jesus não conseguem se aproximar de Jesus
por causa do tamanho da multidão (v. 19). Mais do que isso, eles ficaram lá
fora (v. 20). Essa indicação do lugar não só se refere à localização física deles,
mas, simbolicamente, indica que a família de Jesus estava fora de Sua comuni­
dade itinerante.
Jesus declina-se a trazer sua família para dentro quando seus parentes se apre­
sentam. Essa distância física e emocional é um símbolo das prioridades e da le­
aldade que governa a missão de Jesus. Os laços familiares não são simplesmente
secundários em importância quanto ao discipulado; eles são suplantados por
seus imperativos. “Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a pala­
vra de Deus e a praticam” (v. 21).
O que significa praticar a palavra de Deus? Isso traduz um singular particípio
grego (poiountes). A NRSV traduz simplesmente como: “Faça-a”. Na narrativa
lucana, isso significa levantar-se e andar, ou seja, “seguir” Jesus (5.27; 9.23,61;
14.27; 18.22).
246
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

A injunção ouvem a palavra de Deus no v. 21 reitera o apelo de Jesus que con­


clui a parábola do semeador: “Aquele que tem ouvidos para ouvir, ouça!” (Lc
8.8). Os verdadeiros familiares de Jesus não são os que compartilham a mesma
carne e sangue, mas aqueles que “ouvem a palavra de Deus e a praticam” (v. 15).
O fato de a família de Jesus ter sido exortada a ouvir “a palavra de Deus” (veja
v. 11) relaciona-se com a aceitação de Seus parentes (ou a falta da mesma em
Marcos) quanto à identidade dele. Outras passagens lucanas tratam do rela­
cionamento de Jesus com a Sua família (11.27; 12.53; 14.26; 18.28-30; veja o
comentário em 12.53 e 14.26; para os nomes dos membros da família de Jesus,
veja Mc 6.3).

E. Jesus viaja para Gerasa e retorna (8.22-56)

POR TRAS DO TEXTO

Nessa seção, Lucas relata um milagre natural, uma libertação e dois inci­
dentes de cura em uma rápida sucessão (|| Mc 5.1-43). Esses quatro eventos
têm como tempo de duração apenas um dia (v. 22) em Lucas 8.22-56:
• A travessia do mar da Galileia e a calmaria da tempestade (v. 22-25).
• O incidente com o endemoninhado geraseno (v. 26-39).
• A ressurreição da filha de Jairo (v. 40-42a, 49-56).
• A cura de uma mulher com um fluxo de sangue (v. 42b-48).
Como um artifício narrativo, esse dia cheio de ações tem o efeito de desa­
celerar o tempo e aumentar a intensidade dramática da história.
Analisados em conjunto, essas histórias definem ainda mais a identidade
de Jesus e as fronteiras da comunidade salva. A narrativa move-se da falta de fé
dos discípulos na calmaria da tempestade, para a redenção do endemoninha­
do entre os gentios, seguida da fé exemplar do líder da sinagoga, até à cura de
uma mulher impura de Israel. Esses temas poderosos, colocados lado a lado,
demonstram o alcance do evangelho. As águas caóticas e os demônios obede­
cem-no (até em território gentio); a morte física é superada por uma palavra;
e doenças de longa data são curadas com um toque - tudo em uma rápida su­
cessão. Essas histórias indicam como alguém deve reagir como uma “boa terra”
(Green, 1997, p. 343).
247
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

1. Jesus acalma a tempestade (8.22-25)

NO TEXTO
H 22-25 A calmaria da tempestade é um material da tripla tradição (Mc 4.35­
41 || Mt 8.23-37) e o antecedente da visita de Jesus aos gerasenos pagãos. A
cena é similar à aventura marítima de Jonas, que também concerne à evange­
lização dos pagãos (veja o quadro abaixo). Os leitores originais familiarizados
com a história de Jonas, e que talvez soubessem da simpatia de Jesus pela men­
sagem de Jonas (veja 11.29-32), conseguiriam fazer uma conexão entre essas
duas histórias.
Assim como em Jonas, a calmaria da tempestade prepara o caminho para a
visita de Jesus a uma terra pagã (aqui, Gerasa). A narrativa é sobre a legitimida­
de de Deus estender-se aos que não eram judeus. Ela também ecoa o tema da
onipresença de Deus fora da Terra Santa em Jonas, e a irônica conversão dos
odiosos gentios inimigos de Israel. Analisada juntamente com o acontecimen­
to de Gerasa, a calmaria da tempestade funciona como uma crítica profética do
judaísmo baseado no templo que excluía as nações gentias da salvação.

SEMELHANÇAS ENTRE O ACALMAR DA


TEMPESTADE (E PASSAGENS RELACIONADAS EM
LUCAS) E A HISTÓRIA DE JONAS

V io le n ta te m p e s ta d e no m a r e 8 .2 3 1.4
um n a vio ch eio de água.

Uma p ergunta para o profeta 8 .2 4 1.6


dorm inhoco.

A irôn ica c o n ve rsã o dos p a g ã o s/ 1.79; 2.32 1 .1 4 -1 6 ; 3.6


g e n tio s.

O p o d e r d e Deus so bre a n a tu re za , 8 .2 5 b 1.15


esp. o caos na á gua.

248
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

Jesus salva os Seus discípulos do perigo (v. 23) acalmando o mar bravio.
Esse ato demonstra o mesmo poder dominante manifestado por Deus sobre as
águas caóticas na história de Jonas (1.15; veja também Gn 1.2). Os discípulos
de Jesus perguntam, “Quem é este que até aos ventos e às águas dá ordens, e
eles lhe obedecem?” (Lc 8.25). A pergunta retórica levanta uma comparação
implícita entre Deus e Jesus, os quais, ambos, ordenaram o mar. Existe, então,
uma sutil alusão à divina identidade de Jesus na comparação.
Os discípulos não passam no teste de fé representado pelo barco que se
afundava. Os marinheiros gentios do navio de Jonas tiveram fé. Os ninivitas
gentios tiveram fé. Mas, quando seu barco estava em perigo, os discípulos de
Jesus não tiveram fé: “Mestre, Mestre, vamos morrer!” (v. 24). Ele pergunta-
-Ihes, “Onde está a sua fé?” (v. 25). Como ocorre frequentemente em Lucas,
a fé está faltando onde deveria ser encontrada. E a fé é encontra, em vez disso,
nos lugares inesperados, nesse caso, em Gerasa dos gentios quando o barco che­
ga ao litoral do outro lado.

2. O endemoninhado geraseno (8.26-39)

POR TRAS DO TEXTO


A libertação do endemoninhado geraseno é narrada no estilo de Marcos
(veja Marshall [1978, p. 336,337] para as dificuldades concernentes ao nome
da região). Lucas e Mateus têm uma versão um tanto truncada da história de
Marcos (Lucas omite Marcos 5.3-5, e Mateus omite Marcos 5.15-20), mas os
detalhes evocativos ainda permanecem. Mateus e Lucas, geralmente mais dig­
nificados que Marcos, retêm o estilo descaído e o ritmo caótico de confronta­
ção dele, primeiro com a natureza e depois com o mundo espiritual.
O relato em si é apresentado como um evento um tanto estranho na vida
de Jesus. Contudo, outras características da história tornam-na quase parabó­
lica, completa com analogia e até alegoria. Os sepulcros, os locais solitários, a
nudez, o abismo, os porcos e o afogamento, tudo funciona como um símbolo
religioso no mundo histórico de Lucas. A história está carregada de camadas
de significados simbólicos.
A história é peculiar em outro aspecto. Quase toda passagem do Evangelho
ecoa histórias do AT. Embora haja símbolos bíblicos presentes na história do
endemoninhado de Gerasa, ela parece ficar bem fora da tradição na narrativa
bíblica. Sua abrupta introdução (v. 26), detalhes bizarros e efeito visceral
249
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

sugerem estar mais em comum com as superstições palestinas do primeiro


século do que com a tradição bíblica (Marshall, 1978, p. 336).
O endemoninhado geraseno é o mais detalhado das quatro libertações
explícitas de Lucas (4.31-37; 8.26-39; 9.37-43; 11.14-23). Existem outras bre­
ves referências a possessões demoníacas em Lucas 7.33; 8.1-3; 9.49; 11.24-26;
13.31,32 e seis declarações sumárias mencionando libertações como uma ca­
racterística do ministério de Jesus (4.36,37; 4.41; 6.18; 7.21; 9.1; 10.17-20;
veja Garrett, 1989, p. 57-60). Essas histórias demonstram a autoridade de Jesus
sobre o reino espiritual e o alvorecer do Reino de Deus. Esse conflito “está bem
no coração da história de Lucas” (Garrett, 1989, p. 58).
As histórias bíblicas sobre demônios apresentam aos leitores modernos
ocidentais uma visão de mundo alienada, antiga. Nos dias de Jesus, enfermi­
dades e desordens psicológicas eram largamente atribuídas à possessão demo­
níaca. Seu ministério de cura demonstrou libertação dessas forças invisíveis.
Doenças, pragas, debilidades e espíritos maus são sempre mencionados juntos
nesses sumários. Hoje, esses sintomas seriam diagnosticados como enfermida­
de (9.37-43), incapacidades físicas (11.14) e desordens psicológicas (8.26-39).
Independente do correto diagnóstico moderno, na narrativa de Lucas, Je­
sus liberta as pessoas de quaisquer prisões ou forças inescrutáveis que as apri­
sionavam, e a história do endemoninhado geraseno é uma das mais poderosas
nos Evangelhos. De uma existência torturada no túmulo, emerge um ser huma­
no pleno e restaurado e senta-se calmamente aos pés de Jesus (v. 35).

NO TEXTO
■ 2 6 - 2 7 Jesus chega aos túmulos escuros da região dos gentios, e Sua luz cura
o indivíduo mais marginalizado daquela população. Isso certamente expressa a
natureza extremamente alcançadora da teologia da salvação em Lucas.
A região dos gerasenos está na Decápolis dos gentios, as “dez cidades” do li­
toral leste do mar da Galileia. A região leva o nome da cidade de Gerasa, a
moderna Jerash. As cidades da região eram cosmopolitas. Embora tivessem al­
gumas populações judaicas, eram, na maior parte, helenistas em ética e religião
(Rogerson, 1989, p. 210).
A visita de Jesus ali era uma rara excursão no território gentio. Ele deixa o país
judaico somente mais uma vez nos Evangelhos - para visitar Tiro e Sidom (Mc
7.24 || Mt 15.21), uma viagem que Lucas falha em mencionar. Logo, da pers­
pectiva da narrativa, essa história é paradigmática das atitudes de Jesus nas re­
lações judia e gentia. O texto não diz tão explicitamente, mas parece presumir
que o endemoninhado fosse gentio.
250
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

Ler a libertação do endemoninhado geraseno como uma simples história seria


ignorar uma enorme quantidade de significado textual transmitido pelas deta­
lhadas descrições dos evangelistas sobre o incidente. Que o homem havia mui­
to tempo não usava roupas, nem vivia em casa alguma, mas nos sepulcros
(v. 27) sugere a vergonha bíblica da nudez (ex.: Gn 3.7; Is 47.3). A impureza
do túmulo reflete “o lugar mais baixo possível em contraste com os altos céus”
(veja Gn 1.2; Dt 33.13; Is 7.11; Mt 11.23; Ryken, W ilhoit e Longman, 1998,
p. 349). O lar do endemoninhado entre os túmulos é também evocativo de sua
morte espiritual (em outros lugares no NT, ex.: Rm 6.4,5).
I 28-33 O homem possesso chama a si mesmo de Legião. Ele chama Jesus
de Filho do Deus Altíssimo (v. 28; veja 4.34, “o Santo de Deus”). O que é obs­
curo no reino físico está patentemente claro para a Legião no reino espiritual
(recordando de “Quem é este?” em 8.25). A ascendência do reino, proclamada
pelos anjos (1.32,33; 2.11) e afirmada pelos demônios (4.34), é proclamada
novamente por um homem cativo de um virtual exército de demônios.
O nome Legião indica que uma multidão de demônios possuía o homem. Ele
foi vitimado por uma pluralidade maligna porque muitos demônios haviam
entrado nele (v. 30, veja 4.34, onde o demônio pergunta a Jesus por que Ele
tinha vindo para “nos” destruir). A Legião, assim como o demônio em 4.33-37,
serve como um embaixador para Satanás e suas forças.
O demônio frequentemente levava o homem para lugares solitários (v. 29).
Isso parece simbolizar o deserto onde o povo de Deus peregrinou (Ex 14.11) e
onde Jesus foi testado pelo diabo (Lc 4.1).
Lucas descreve os demônios como implorando a Jesus que não os enviassem
para o Abismo (v. 31; compare com Mc 5.10: “daquela região”). Em outros
lugares do NT, o termo refere-se ao abismo sem fundo, morada dos mortos no
submundo (somente em Rm 10.7; Ap 9.1-11; 11.7; 17.8; 20.1-3).
Em vez disso, Jesus manda-os para os “porcos” (v. 33). Os judeus considera­
vam esses animais imundos e um símbolo do desrespeito pagão pela tradição
judaica. Durante o segundo século a.C., Antíoco IV Epifânio forçou os judeus
a sacrificarem e a comer porcos, um dos fatores que levaram à Revolta dos Ma-
cabeus (1 Mac. 1.47). Os demônios expulsos, agora nos porcos, atiraram-se
precipício abaixo em direção ao lago (v. 33) e afogaram-se.
A história, como um acontecimento histórico é um tanto bizarra: Jesus con­
versa com os demônios, por intermédio de um homem demente, e envia-os aos
porcos, os quais afogam-se.

251
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

O maior problema está na demonologia pressuposta na história, que é tão


semelhante àquela certificada nas superstições populares daquela época
que é difícil acreditar que corresponda a um fato objetivo. Pode muito
bem ser que Jesus, embora não compartilhando das superstições do ho­
mem, permitiu a destruição dos porcos a fim de convencê-lo de que real­
mente estava livre dos demônios. (Marshall, 1978, p. 336)

Essa história enfatiza as dificuldades em discernir as fronteiras entre um even­


to e seu significado, entre um ato como história e um ato como parábola. As
linhas embaçam-se nessa história como em poucas outras nos Evangelhos.
No nível da narrativa, a destruição dos porcos endemoninhados parece ser um
símbolo da vitória vindoura do Reino de Deus sobre os seus opressores. O fato
torna-se algo de uma alegoria para o fim dos tempos: as forças do mal são sub­
sumidas nas águas do lago, assim como Deus pairava sobre as águas do caos no
primeiro dia da criação e demonstrava Seu domínio sobre tudo. Assim tam­
bém, o reino vindouro não permite nenhuma oposição do reino do mal. O mal
é lançado nas profundezas, e esse Jesus rapidamente despacha todos os poderes
do mal, mesmo estando em Gerasa gentia.
I 3 4 - 3 9 Os gerasenos ficaram com medo (v. 35) desses acontecimentos e
pediram que Jesus fosse embora. Assim como outros gentios mencionados em
Lucas (ex.: a viúva de Sarepta, Naamã, o centurião), esses pagãos temem a Deus
mais do que o povo de Israel. Em Jonas, recordamos, os ninivitas gentios mos­
traram um temor adequado a Deus quando foram ordenados a arrepender-se.
Mais significantemente, o gentio curado pede para acompanhar Jesus. Mas
Jesus responde, “Volte para casa e conte o quanto Deus lhe fez”. Assim, o
homem se foi e anunciou na cidade inteira o quanto Jesus tinha feito por
ele (v. 39). O segrego em torno da identidade de Jesus em Marcos, nunca forte
em Lucas (somente em 4.35,41), foi completamente revogada no testemunho
do homem ao povo de Gerasa. Nas duas histórias de possessão demoníacas que
ainda virão na narrativa (9.37-43; 11.14-23), o segredo não existe mais.
O versículo 39 sintetiza a história do geraseno. Sua estrutura gramatical grega
é digna de nota. O autor coloca as palavras gregas para Deus (“Senhor” em
Mc 5.19) e Jesus em paralelo no final de suas respectivas frases. Em resposta à
exortação de Jesus de contar o quanto Deus havia feito por ele, o homem diz
o quanto Jesus fez por ele. A sutil insinuação cristológica parece ser que Jesus
não é meramente “Senhor”, mas de certa forma Deus. Isso prepara os leitores
para afirmações mais categóricas da identidade de Jesus em 9.20-36.
252
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

A característica mais notável da história é a expansão intencional do ministério


de Jesus até Gerasa - um território gentio. Jesus exorta o homem a voltar à sua
aldeia e propagar as novas de sua cura. Essa é uma ordem para evangelizar os
moradores não judeus de Gerasa. Em Marcos 5.20, a ordem é ainda mais am­
pla, “em Decápolis”. Isso se expande na afirmação em Lucas 8.21 de que os ver­
dadeiros membros da família de Jesus “ouvem a palavra de Deus e a praticam”.
Entende-se que a família dele agora inclui os gentios.

3. A filha de Jairo e a mulher com fluxo de sangue (8.40-56)

POR TRÁS DO TEXTO


Essa história é baseada em Marcos 5.21-43 (|| Mt 9.18-26). Sua estrutura
estilo “sanduiche” assemelha-se a da história da maldição da figueira em Mar­
cos (11.12-14,20-22) onde ele insere a purificação do templo (v. 15-19) no
meio da história. A figueira era amplamente reconhecida como um símbolo
da nação de Israel. O efeito geral da passagem parece indicar a necessidade de
reformar a instituição central da nação.
Existe uma intercalação semelhante na história de Jairo. Jesus encontra o
líder da sinagoga, Jairo, e ressuscita sua filha única (8.40-42a,49-56). Inserida
no meio está a cura de uma mulher com hemorragia (8.42b-48). A justaposi­
ção do piedoso líder da sinagoga e da mulher impura mostra como Jesus faz
uma ponte sobre o abismo entre eles. Ambos recebem Sua bondosa cura, sem
respeito pela posição ou gênero sexual.

NO TEXTO
H 4 0 - 4 2 a Jairo é um dos poucos líderes judeus que os Evangelhos caracte­
rizam de piedosos. José de Arimateia é outro (veja 23.50-53 || Mc 15.42-46 ||
Mt 27.57-60). De outra forma, no material especial de Lucas, os fariseus que
aconselham Jesus a fugir para salvar a sua vida (13.31) conseguem sua única re­
presentação positiva no terceiro evangelho. Paulo era um fariseu, é claro, assim
como o eram outros cristãos primitivos. E a representação dos fariseus em Atos
é geralmente bem positiva (15.5; 23.7-9,26). Na realidade, Jesus, provavelmen­
te, tinha mais do que alguns patrocinadores entre a liderança judaica (ex.: veja
Jo 3.1,2), mas não encontramos menção deles no Evangelho de Lucas.
253
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Jairo era um líder da sinagoga de Cafarnaum. Ele pode muito bem ser aquele
que recomendou o centurião a Jesus, de acordo com Lucas 7.3-5. Há um sen­
timento de urgência em sua fé (8.41). Nisso, ele assemelha-se à mulher curada
do fluxo de sangue na próxima vinheta (v. 47). Semelhantemente, os detalhes
acerca da idade da menina doente - doze anos (v. 42) - e a duração da condi­
ção da mulher - doze anos (v. 43) dificilmente parece coincidência.
Tanto Jairo como a mulher sofrem com o peso de uma enfermidade: o ho­
mem por causa de sua filha; a mulher por si mesma. Ambos ficam cheios de
emoção em sua interação com Jesus. Jairo humildemente prostrou-se aos pés
de Jesus, implorando-lhe que fosse à sua casa (v. 41). A mulher, primeiro
chegou por trás dele; depois de ser curada, ela veio tremendo e prostrou­
-se aos seus pés (v. 47). A súplica dos pecadores em Lucas é entusiasmada
e sincera (5.8,12b,18,19; 7.2-4,13,38). A caracterização cumulativa de Lucas
quanto à abordagem adequada de Jesus continua a crescer nessas duas histórias
entrelaçadas.
Os adversários de Jesus, por outro lado, são caracterizados por Lucas como
frios e calculistas (5.21; 6.3,7; 7.39). Isso reforça a percepção dos leitores de
que aqueles que encontram a cura e o perdão têm a resposta emocional apro­
priada associada à penitência. Essa unidade existencial naquilo que alguém
sente, faz e acredita é característico da antropologia da salvação de Lucas.
Isso não é uma difamação da razão na teologia de Lucas. Mas sua teologia re­
almente tem uma concepção pronunciada acerca da natureza relacional da ex­
periência cristã. A conexão entre as emoções humanas e a experiência do amor
de Deus e perdão é encorajada e celebrada tanto no terceiro Evangelho como
em Atos. A narrativa de Lucas certamente nos mostra, como nenhum outro
Evangelho, o pkthos - a experiência emocional - daqueles que vêm a Jesus.
H 4 2 b -4 8 O tamanho da multidão que seguia Jesus veio aumentando pro­
gressivamente.
• Em 6.17: “Estavam ali muitos dos seus discípulos e uma imensa multidão
procedente de toda a Judéia, de Jerusalém e do litoral de Tiro e de SidonT.
• Em 7.11: Ele está acompanhado de “uma grande multidão”.
• Em 8.4: “Reunindo-se uma grande multidão e vindo a Jesus gente de várias
cidades”.
Na cena da cura da mulher hemorrágica a multidão o comprimia (v. 42; veja
o v. 45). Lucas retrata o ministério galileu de Jesus como manifestamente, até
caoticamente, público. Como leitores, estamos preparados para os aconteci­
mentos dramáticos e conflitos que refletem essa sequência de eventos.
254
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

Enquanto caminhavam para a casa de Jairo, eles encontram uma mulher he­
morrágica (v. 42b). Ela não seria bem-vinda na casa de Jairo devido sua impure­
za ritual causada por sua crônica desordem menstrual (Lv 15.25-33). Sua cura
ao longo do caminho indica que o ministério de Jesus estende-se dos líderes da
sinagoga àqueles categoricamente excluídos da vida ritual da religião da nação.
Fortes questões de gênero, sangue e impureza estão representadas na enfermi­
dade da mulher. Ela exemplifica não só a posição marginalizada das mulheres
em geral, mas também daquela cuja condição física (emissão de sangue) a torna
uma fonte de impureza ritual a todos os que a tocam. Isso provavelmente expli­
ca sua tentativa de tocar Jesus secretamente: Ela chegou por trás dele, tocou
na borda de seu manto (v. 44).
Ao fazer isso, a mulher transmite uma impureza m idras, uma violação por meio
da “pressão” do toque. Essa transmissão de impureza ritual pelo toque é uma
condição particular conhecida apenas por quem a possui (Lv 12.4; Nm 19.11).
O conhecimento da mulher, de que ela estava em estado de impureza ritual é,
então, um assunto pessoal. Já que o estado de impureza ritual não produz ne­
nhum efeito visível, geralmente ninguém, exceto a pessoa contaminada, sabe
da condição.
As proibições associadas com a pureza ritual são observadas em um sistema de
honra. Isso explica porque os fariseus, que voluntariamente tentavam manter­
-se na pureza ritual dos sacerdotes, evitavam os mercados públicos ou outros
contatos comuns com a população em geral. A pessoa nunca sabe quem está
impuro. Logo, o escrúpulo coordenava seus contatos sociais de forma a evitar
os que fossem “suspeitos” ou aqueles cuja pureza ritual fosse desconhecida.
O verbo to ca r aparece três vezes nessa seção (v. 44,46,47). Mais cedo, Jesus “es­
tendeu a mão e tocou” o leproso (5.13). Agora, Sua atitude casual em relação à
impureza da mulher sinaliza que a condição dela não é vista com alarme (veja
o comentário e a anotação complementar em 5.12-16). Isso também sinaliza a
prioridade que Ele dá à compaixão em detrimento da pureza ritual.
O comportamento supersticioso e furtivo da mulher indica o seu desespero
pelo poder curador de Jesus. Ela procurava tocá-lo, mesmo que fosse subver­
sivamente. A piedade dela era trapaceira, e Jesus tacitamente aprovou isso (v.
48). Assim como a mulher pecadora do capítulo 7, e Jairo no capítulo 8, ela
simplesmente p recisa va ter graça para enfrentar o momento seguinte de sua
vida.
Em muitas das histórias dos pecadores em Lucas, a necessidade desesperada
empurra os suplicantes para a presença de Jesus. Em contraste com aqueles
que estão preocupados com regras e regulamentos, a necessidade intensa
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

impulsiona alguns a violarem as regras para romper através da graça de Deus.


Isso aponta para a piedade que os leitores de Lucas são encorajados a buscar,
uma piedade que não é do tipo amarrado à tradição.
A condição da mulher é bondosamente sanada pelo poder de Deus emanado
de Jesus, algo do qual Ele é imediatamente conscientizado. “Alguém tocou
em mim; eu sei que de mim saiu poder” (v. 46). A comunicação do poder de
cura pelo toque é análoga, mas em reverso, à propagação da impureza pelo to­
que. O poder de Jesus de curar flui tão secretamente como a impureza m idras
(transmitida pelo toque). Ela passa naturalmente e sem esforço da mulher. Isso
demonstra que a narrativa apresenta a santidade de Jesus como mais forte que a
impureza ritual. Pode também haver um subtexto no qual a autoridade de Jesus
para purificar ultrapasse ou até suplante a do ritual do templo.
Jesus responde, “Filha, a sua fé a curou! Vá em paz” (v. 48). A fé que aquela
mulher tinha, alimentada pela necessidade, é tudo o que é necessário para rece­
ber a graça de Deus. A história implica que as estruturas formais da religião não
são o fator determinante para a graça curadora. O sentimento de necessidade
da mulher e a intensa busca fazem com que a graça traga vida à sua vida. Isso é
mais uma evidência da teologia relacional de Lucas. Nesse sentido, essas histó­
rias particularmente ressoam com uma perspectiva wesleyana.
I 4 9 - 5 6 A história da ressurreição da filha de Jairo tem um paralelo com a
ressurreição do filho da sunamita por Eliseu em 2 Reis 4.25b-37.
• Em ambas as histórias, os suplicantes prostram-se aos pés do profeta e im­
ploram por ajuda (2 Rs 4.27 ||Lc 8.41).
• Uma tem só um filho, e o outro só tem uma filha (2 Rs 4.14; Lc 8.42).
• Ambas as ressurreições ocorrem em um cômodo fechado da casa (2 Rs
4.32,33; Lc 8.51).
• Em ambos, os profetas apresentam a criança ressuscitada para a alegria dos
pais (2 Rs 4.36,37; Lc 8.53,56).
• Não é difícil enxergar porque chegaram a Herodes histórias de que “um
dos profetas do passado tinha voltado à vida” (repetido em Lc 9.8 e 19b).
• A história da filha de Jairo também se desenvolve sobre um padrão que
primeiro foi visto na ressurreição do filho da viúva de Naim:
• A viúva só tem um filho (7.12).
• Jairo só tem uma filha (8.42).
• Jesus manda que ambos os genitores parem de chorar (7.13; 8.52).
• Jesus ordena que a criança morta levante-se (7.14; 8.54).
• Todos ficam maravilhados (7.16; 8.56).

256
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

O que foi proclamado como verdadeiro no capítulo 7 é demonstrado como


mais verdadeiro ainda aqui no capítulo 8: “‘Um grande profeta se levantou
entre nós’”, diziam eles. “Deus interveio em favor do seu povo” (7.16).
Jesus ordena aos pais que não contassem a ninguém o que tinha acontecido
(v. 56). Esse detalhe depende de Marcos, onde esse tema é proeminente (ex.:
Mc 5.43). Como já foi afirmado (veja comentário em 5.12-16), o elemento do
sigilo não é característico de Lucas concernente ao ministério de cura de Jesus.
Em termos do desenvolvimento da narrativa de Lucas sobre a identidade de
Jesus, tal sigilo parece fora de lugar aqui (veja 8.39). Mateus omite o pedido
de sigilo, ao contrário, registra que “a notícia deste acontecimento espalhou-se
por toda aquela região” (Mt 9.26).

A PARTIR DO TEXTO
Três histórias no capítulo 8 tratam de forças sobre as quais as pessoas não
têm controle: o mar bravio (v. 22-25), a possessão demoníaca (v. 26-39) e a
enfermidade debilitante (v. 40-56). Lucas demonstra nessas histórias que Jesus
controla a natureza, as potestades espirituais e as enfermidades do corpo. Em
Sua identidade como o “Cristo” (2.11,26; 4.41; 9.20; 20.41; 22.67; 23.35,39;
24.46), o “Santo de Deus” (4.34), e “o Filho de Deus” (4.3,9,41; 8.28; 22.70),
Ele comanda esses poderes. E eles têm de obedecer à Sua soberana autoridade.
Cada vez mais, tudo o que Jesus faz na história é visto através das lentes
dessa identidade emergente. Esses atos de controle sobre os reinos físico e espi­
ritual são possíveis por causa de quem Ele é: o Cristo, o Santo de Deus, o Filho
de Deus. Por tais meios, Lucas convida seus leitores a abraçarem Jesus nessa
identidade e tornarem-se Seus obedientes seguidores.
Mais amplamente, os instrumentos de separação de Deus são descontru-
ídos na narrativa. A impureza ritual e o pecado não mais excluem a mulher
pecadora da presença do Filho de Deus. A doença, a morte, a possessão demo­
níaca, que há muito separavam suas vítimas de Deus, têm o seu poder repen­
tinamente revertidos e derrubados. Os mortos são ressuscitados. Os doentes
são curados, e os endemoninhados tornam a ganhar uma mente sã. O toque
de Jesus suplanta as noções convencionais de impureza ao reverter o fluxo da
impureza, tornando limpos aqueles que o tocam (5.12-16; 8.42b-48).
A nova comunidade possui uma santidade de livre fluxo, liberta das con­
venções que a mantinham presa antes que o Messias surgisse. Todos os que
entram na comunidade sentem seus efeitos de formas terapêuticas e transfor­
madoras de vida. Esse poder liberador pode inspirar as comunidades cristãs
257
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

modernas a chegar até aqueles que estão alienados de Cristo e da igreja. Como
nos pecadores em Lucas, a ênfase da graça redentora oferece um convite aberto
à comunidade cristã para os desprivilegiados e todos os que têm necessidades
desesperadoras. A graça e a piedade renegada estão acima da prática ritual e da
tradição.
À medida que a identidade de Jesus “amadurece” na narrativa, torna-se
evidente que Ele é aquele que está no controle absoluto de tudo o que está
à Sua volta. As forças da oposição acumulam-se, mas não podem prevalecer
contra o Seu poder. Nem toda tempestade é acalmada, nem todo demônio é
expulso e nem todo enfermo é curado. Mas, esses incidentes mostram que a luz
está raiando, e as trevas estão sendo vencidas.
Como Jesus enfatizou para os discípulos de João Batista, “Voltem e anun­
ciem a João o que vocês viram e ouviram: os cegos vêem, os aleijados andam,
os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados e as
boas novas são pregadas aos pobres; e feliz é aquele que não se escandaliza por
minha causa” (7.22,23).

F. Jesus e os Doze (9.1-17)

1. A missão dos Doze (9.1-6)

POR TRÁS DO TEXTO


Jesus agora convida Seus discípulos para imitar o Seu próprio estilo de vida
itinerante ao enviá-los a proclamar o evangelho. A própria itinerância de Jesus é
inicialmente pressagiada em Sua jornada como um bebê ainda no ventre, indo
de “Nazaré da Galiléia para a Judéia, para Belém, cidade de Davi” (2.4). Não
há “lugar para eles na hospedaria” (2.7). Aquele sentimento de desabrigo con­
tinuou sendo um tema na vida de Jesus no decorrer dos capítulos 4 —9. Jesus
inicia Seu ministério em Nazaré, mas logo sai dali dizendo, “E necessário que
eu pregue as boas novas do Reino de Deus noutras cidades também, porque
para isso fui enviado” (4.43).
O “palco” para as atividades de Jesus, com Suas constantes e instáveis mo­
vimentações, são as inumeráveis cidades, vilarejos e aldeias da região da Galiléia
(5.17; 8.1,4; 13.22; veja Tyson, 1992, p. 24,25). Ele declara no final do capítulo
9: “As raposas têm suas tocas e as aves do céu têm seus ninhos, mas o Filho do
258
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

homem não tem onde repousar a cabeça” (v. 58). O Jesus dos Evangelhos não
tem um lugar para chamar de lar. Lucas insinua que o mesmo é, de certa forma,
verdadeiro quanto aos seguidores de Jesus.
O tema da itinerância ecoa em diversos outros assuntos relacionados em
Lucas:
• A alienação da família (veja 8.19; 12.53; 14.26; 18.28-30).
• O desprendimento de uma existência e emprego garantidos (2.6,7;
5.11,28; 9.57-62; 18.28-30).
• A dependência da caridade para o sustento (8.3; 9.3; 10.4).
• A polarização da comunidade foi, na verdade, encorajada por Jesus no co­
missionamento dos Doze (9.5; 10.10-16).
Tal itinerância e pobreza são encontradas na vida de outros profetas pe­
regrinos na Bíblia. Moisés, Elias, Eliseu e João Batista, todos viveram sem um
lar permanente durante seu ministério. Os fariseus dos dias de Jesus também
tinham seus pregadores itinerantes (Mt 23.15). Pelo menos outro judeu ope­
rador de maravilhas do primeiro século, Hanina ben Dosa, vivia em extrema
pobreza (veja Vermes em Judeus carismáticos, 1973, p. 69-80).
Paulo de Tarso foi um evangelista cristão primitivo que abandonou o con­
forto do lar e da família para viajar pregando o evangelho (veja 1 Co 9.5,6). Lu­
cas e Atos mencionam outros pregadores e homens que expulsavam demônios
quase contemporâneos (ex.: Lc 9.49,50; At 1.8; 8.4,5; 10.23,24; 19.13,14).
Alguns eruditos comparam Jesus com os filósofos cínicos, ambulantes de
rua descritos por Epiteto. Eles eram pedintes sem-teto, sujos, grosseiros e mal­
trapilhos. “Seminus, imundos, expostos aos elementos, e vivendo dia a dia -
não é de admirar que Epiteto alertasse o futuro cínico quanto a ingressar nesse
modo de vida” (Hock, 1992, p. 1223,1224). A influência direta dos cínicos na
tradição do evangelho, porém, nunca foi estabelecida.
Qualquer que seja sua origem e precedentes, a itinerância era uma vida de
extrema dureza e privação, e foi para isso que Jesus chamou os Seus seguido­
res. Algo sobre a transitoriedade desse estilo de vida itinerante é essencial para
o Reino de Deus na narrativa. Não levar nada pelo caminho: nem bordão,
nem saco de viagem, nem pão, nem dinheiro, nem túnica extra (9.3) sugere
a iminência do reino. E agora. Nessa forma temporária, ele não pode continuar
indefinitivamente. Não tendo sacola, nem pão, nem dinheiro não é uma vida
sustentável. O seu fim - tanto como objetivo e conclusão - há de vir.
259
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

NO TEXTO

I 1-6 Após um período de intensa preparação, Jesus envia Seus discípulos a


empreenderem uma atividade independente para o Reino de Deus. Os Doze
agora adotam sua própria vida de asceticismo e itinerância. Em certo senti­
do, os discípulos atingem a maturidade nessa passagem. Há evidência de que
a vida inicial de itinerância deles seguindo Jesus já envolvera fome física (6.3;
9.13; Mc 8.2). Nessa nova fase do estágio deles, eles não devem levar nada
pelo caminho: nem bordão, nem saco de viagem, nem pão, nem dinheiro,
nem túnica extra (v. 3). Talvez seja assim que os discípulos devam aprender a
compaixão pelos pobres. Talvez, seja também para ensiná-los a viver em total
dependência da providência de Deus.
Uma total dedicação ao reino requer que os discípulos dependam inteiramente
de esmolas - as bondosas doações dos outros. A autossuficiência é, de alguma
forma, contrária aos propósitos do chamado para seguir Jesus. Talvez, por não
terem nada, e nada a perder, eles possam entender a suficiência plena da visão
que Jesus estabeleceu para a nova economia de Deus.
Que distância considerável os discípulos percorreram! Eles trocaram o confor­
to de uma vida na aldeia de pescadores ou uma cadeira de autoridade atrás de
uma mesa de arrecadação de impostos por um pacto com um sábio viajante.
Eles agora encontram-se sem nenhum meio previsível de subsistência, a não ser
a mensagem de libertação e cura do evangelho.
O envio dos Doze envolve um novo nível de engajamento público para o mi­
nistério. Já não é mais um sábio com um grupo de seguidores. Agora é um
sábio e doze recém-comissionados emissários com posições independentes (o
que Theissen e Merz [1996, p. 217] chamam de “carismáticos secundários”). O
comissionamento deles é o início do m o vim en to Jesus, aquele ponto de infle­
xão na história cristã no qual as palavras de um mestre começam a criar raízes
em uma comunidade de evangelistas ativistas. Já não é mais só Jesus contra os
demônios e as enfermidades. São Ele e Seu crescente grupo de seguidores dis­
postos contra esses poderes.
A narrativa passa de Jesus agindo sozinho contra Satanás na provação (4.1-13),
para a chamada dos Doze (6.12-16), ao comissionamento dos Doze para luta­
rem contra o mal em sua própria missão (9.1-6), ao comissionamento de um
grupo maior, os 70 (10.1-12). Lucas, então, retrata o substancial crescimento
260
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

do movimento Jesus no decorrer dos capítulos seguintes. Depois, ele encontra


sua suprema extensão além da Palestina no drama de Atos - chegando final­
mente a Roma.
A cura e a expulsão de demônios são centrais na missão dos Doze (veja Por trás
do texto em 8.26-39). Aqui no capítulo 9, os discípulos são especificamente
capacitados para expulsar todos os demônios e curar doenças (v. 1). Essa
atividade é parte integrante da proclamação do Reino de Deus (v. 2). Os Doze
estendem o ministério de Jesus em um novo e público impulso. O foco dos
Doze é não só pregar o Reino, mas curar e expulsar demônios (v. 2 e 6).
Por que essa ênfase em demônios e enfermidades? Como isso é importante na
narração da história do Evangelho? Por que Jesus não manda Seus seguidores
alimentar o pobre e trabalhar para banir o sofrimento deles, quer seja por
meios políticos ou religiosos?
É fácil ficar enamorado pelo simbolismo da conquista do mal inerente à
expulsão de demônios e à cura (veja o comentário em 4.31-37). Mas, essen­
cialmente, o resultado dessa atividade no ministério de Jesus é a atenuação
do sofrimento humano. Isto é, expulsar demônios é um ato de compaixão no
Evangelho e também a demonstração da hegemonia sobre os poderes sinistros.
Outra característica da comissão apostólica é a emergente ênfase política da
aceitação ou rejeição dos emissários de Jesus no nível cívico. O teste da aceita­
ção ou rejeição começará com a casa na qual os discípulos ficarem (v. 4). Isso
refere-se à unidade familiar da cidade. Mas, estende-se diretamente à cidade na
qual a casa está: Se não os receberem, sacudam a poeira dos seus pés quan­
do saírem daquela cidade, como testemunho contra eles (v. 5).
A ênfase não é mais na reação dos indivíduos aos representantes de Jesus. Ago­
ra é a reação da casa e da cidade aos representantes de Jesus que importa. Isso
significa a amplificação do alcance de Sua missão. Certamente, as comunidades
são compostas de indivíduos. Mas, ao fomentar a rejeição do Messias, a comu­
nidade em si torna-se sujeita à rejeição de Deus. É um testemunho contra eles
(v. 5; veja 10.12). Esse é um novo avanço na história.
O sacudir a poeira dos pés representa a dissociação dos discípulos do povo
da cidade e da cidade em relação à crescente comunidade de Deus. A rejeição
de Jesus em Samaria (em 9.52,53) e em Jerusalém (em 19.41-44) continuará
o tema da crescente oposição a Jesus e ao Seu movimento. Essa questão será
expandida por Lucas no capítulo 10 no discurso da maldição sobre as cidades.
261
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

2. Herodes ouve a respeito de Jesus (9.7-9)

NO TEXTO
H 7 - 9 Esse Herodes não é o Herodes, o Grande, mencionado em Lucas 1.5.
Esse é o filho dele, Herodes Antipas, o tetrarca da Galileia, inimigo de João Ba­
tista mencionado em Lucas 3.1 (também em 13.31; 23.7). A caracterização de
Lucas quanto a Herodes é um tanto equivocada em seu Evangelho. Ele é uma
figura perigosa, como a morte de João Batista por suas mãos indica. Mas, com
Jesus, Herodes demonstra mais curiosidade do que más intenções.
Herodes tentou ver Jesus (v. 9). Mais tarde, quando Jesus é enviado a Herodes
por Pilatos, Herodes “ficou muito alegre, porque havia muito tempo queria ve­
do. Pelo que ouvira falar dele, esperava vê-lo realizar algum milagre” (Lc 23.8).
Em Lucas 13.31, alguns fariseus avisam a Jesus que Herodes o quer morto.
Mas, quando teve a oportunidade de tê-lo executado em Jerusalém, Herodes
meramente o insulta, veste-o de roupas elegantes, e envia-o de volta a Pilatos
(23.11).
Lucas 9.7-9 é uma interessante janela para a percepção pública de Jesus por
Seus contemporâneos. Herodes já havia decapitado João. Mas alguns agora
estavam dizendo que João tinha ressuscitado dos mortos (v. 7). Aqui, Lucas
confirma a morte de João, embora omita a narrativa de sua execução (relatada
em Mc 6.17-29 ||Mt 14.1-12). Herodes fica perplexo pelos rumores de que
Jesus é João que voltou à vida, mas dispensa-os referindo-se à decapitação de
João.
Não há nada em nenhum lugar na literatura daquele período sobre uma pessoa
morrer e voltar à vida como outra pessoa. Marshall chama esse relato sobre
João de uma “superstição popular mal concebida”, mas não consegue ver por
que “crenças tão estranhas não deveriam ter existido” (Marshall, 1978, p. 356;
veja 9.19). As três frases nos v. 7-9 formam referências a crenças sobre a ressur­
reição :
• Ê gerthê ek nekrõn: ressuscitado dos mortos (v. 7).
• Elias ep han ê: Elias tinha aparecido (v. 8).
• P rophêtés tis tõn archaiõn an estê: um dos profetas do passado tinha vol­
tado à vida (v. 8).
No nível da narrativa, essas referências estabelecem o fundamento conceituai
para a compreensão da ressurreição de Jesus.
262
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

A referência a Jesus como Elias redivivu s em 9.7 pressagia o aparecimento de


Elias em 9.30. João havia sido identificado como Elias em 1.17 (veja o comen­
tário em 7.18-23). Essa identidade sugerida para Jesus é desfeita pelo surgimen­
to do próprio Elias no monte da Transfiguração. A pergunta sobre a identidade
de Jesus é feita pungentemente por Herodes. Se Jesus não é nem João nem
Elias, Quem, pois, é este de quem ouço essas coisas? (v. 9; note como isso
ecoa em 5.21; 7.19,49; 8.25). A pergunta permanece sem resposta, mas apenas
por um instante, já que o narrador está para revelar a verdade em 9.20. Green
propõe que essa questão é paradigmática para o propósito retórico da narrativa
inteira de Lucas. A pergunta a que o narrador está sofrendo tanto para respon­
der é: quem é este Jesus? (1997, p. 361).

3. A alimentação dos cinco mil (9.10-17)

POR TRÁS DO TEXTO


O relato de Lucas sobre as especulações de Herodes Antipas em 9.7-9 tem
fornecido uma suficiente sensação de tempo para os Doze retornarem de sua
missão na narrativa. Durante suas viagens, eles passaram fome e aprenderam
a depender da caridade para as suas provisões. Imediatamente após o retor­
no, eles são obrigados a lidar com a multidão faminta que se ajuntava a Jesus
em Suas viagens (v. 13). A história da alimentação é representada em todos
os quatro Evangelhos (veja João 6.1-14). Marcos (6.30-44; 8.1-10) e Mateus
(14.13-21; 15.32-39) relatam duas dessas alimentações. As versões de Mateus
e de Lucas são um tanto mais abreviadas do que a de Marcos; mas, todas as três
têm essencialmente a mesma história.
Histórias de alimentações miraculosas são encontradas em outros pontos
da Bíblia. Em Êxodo 16.4-21, Moisés media a provisão de Deus, do maná e das
codornizes, no deserto. Ali, o Senhor diz, “Eu lhes farei chover pão do céu”
(Êx 16.4). Uma história semelhante em 2 Reis 4.42-44 apresenta Eliseu como
o agente de Deus. Ele ordenou que um homem de Baal-Salisa distribuísse 20
pães de cevada para 100 pessoas. 2 Reis 4.44 relata: “Então ele serviu a todos,
e conforme a palavra do Senhor, eles comeram e ainda sobrou”. A história da
alimentação dos cinco mil ecoa essas histórias da provisão sobrenatural do Se­
nhor. Em todas essas histórias, a alimentação miraculosa divinamente sanciona
a chamada do profeta.
263
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

NO TEXTO

I 10-11 Jesus e os discípulos prosseguem em constante movimento. Eles


retiram-se para Betsaida (v. 10). Essa é a Betsaida Julias em Gaulanitis, na
jurisdição de Felipe. Cafarnaum e Betsaida estavam a apenas quatro quilôme­
tros de distância e eram cidades que ficaram na fronteira de seus respectivos
distritos. Betsaida, a cidade natal de Pedro (Jo 1.44), teria uma população mais
gentia, enquanto que Cafarnaum na Galileia tinha a predominância de cida­
dãos judeus (Rogerson, 1989, p. 140).
Que Jesus e Seus discípulos se retiraram sozinhos é similar à saída deles de Ca­
farnaum em 4.42. Ali, Jesus tentou escapar das multidões, mas foi encontrado
por elas. Ele e Seus discípulos parecem exercer uma atração gravitacional sobre
as multidões. Estas são atraídas a eles pelo desejo de ouvir boas novas e pela
necessidade da cura física e expulsão de demônios. Uma inexorável atração tem
sido entretecida no fio da história da narrativa. Impulsionadas pelos movimen­
tos de Jesus, as multidões o seguiam (v. 11). Quando as multidões o seguem
para Betsaida, sua resposta é calorosa: Ele as acolheu, e falava-lhes acerca do
Reino de Deus, e curava os que precisavam de cura (v. 11).
1 12-16 Grandes multidões reúnem-se em um lugar remoto no final do dia.
Não há esperança de encontrar comida ou abrigo naquele ambiente inóspito. A
própria inviabilidade da logística cria uma tensão dramática. A narrativa trans­
mite um senso de caos na cena, algo muito além das fronteiras do bom senso.
Tendo acabado de voltar de sua própria missão, os discípulos encontram-se
diante de uma urgente necessidade humana de uma escala enorme. Estavam
ali cerca de cinco mil homens (v. 14). Números que descrevem multidões nas
Escrituras são, geralmente, mais simbólicos do que históricos. Mesmo assim,
incluindo mulheres e crianças, o número de pessoas seria bem amplo.
Os discípulos, um grupo pragmático, desejam mandar embora a multidão a
fim de que eles possam ir aos campos vizinhos e aos povoados, e encontrem
comida e pousada por si mesmos. Eles explicam: porque aqui estamos em
lugar deserto (v. 12). Eles sugerem, bem razoavelmente, que Jesus envie as pes­
soas às aldeias vizinhas para que cuidem de si mesmas. Dois fatores da narrativa
militam contra essa solução.
P rim eiro, da perspectiva da narrativa, “as forças gravitacionais” que atraem
as multidões são inexoráveis. As multidões vinham demonstrando o mesmo
264
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

compromisso com a itinerância que Jesus e Seus discípulos. Elas adotaram


0 estilo de vida do reino; elas não podem ser dispensadas assim. A tensão
dramática teria sido tirada da história, e isso seria contrário à caracterização da
multidão que Lucas vem construindo desde o início. Os problemas práticos
não são a ordem do dia nessa história.
S egun do, quando procurado, Jesus tem reagido consistentemente com compai­
xão em todo o Evangelho; e Ele torna a fazer isso aqui novamente. Seu próprio
senso de missão manda que Ele proveja para essas multidões que entraram em
Sua comunidade em crescimento.
Uma série de contrastes caracteriza a história do milagre:
• O asceticismo de Jesus e de Seus seguidores é contrastado com a abundân­
cia de provisão feita para a multidão.
• Os cinco pães e dois peixes (v. 13,16), quase comicamente inadequados,
são contrastados com os doze cestos cheios de pedaços (v. 17).
• A praticidade dos discípulos é contrastada com a ordem inviável de Jesus:
“Dêem-lhes vocês algo para comer” (v. 13).

1 1 7 Os doze cestos cheios de pedaços não são apenas uma questão de


alimentos de sobra. Alguns comentaristas sugeriram que isso é uma alusão aos
Doze apóstolos, um cesto para cada. Os cestos podem também representar a
abundância da provisão de Deus (veja também Marshall, 1978, p. 363; Bock,
1994, p. 835).
Outros intérpretes sugerem que os cestos que sobraram eram um dízimo te-
rum ah. Essa oferta alçada (um sessenta avos da colheita) era separada por ob­
servadores escrupulosos do dízimo (Dt 26.1-4). Concernente ao alimento,
certo erudito pergunta: “Os dízimos do mesmo foram pagos?” (Green, 1997,
p. 365). Também, teria sido necessário separar o tal primeiro dízimo como um
presente para os sacerdotes (veja Neale, 1991, p. 46-49). Aliás, era proibido que
esse alimento fosse ingerido por alguém senão os sacerdotes. Essa multidão en­
tusiástica pode muito bem ter expressado sua devoção ao observar meticulosa­
mente o dízimo naquele dia. Mais generalizadamente, as crescentes multidões
podem ter demonstrado seu compromisso a Jesus aumentando a observância
do código da santidade de m uitas m aneiras, morais e bíblicas.
265
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

G. A identidade de Jesus é revelada (9.18-36)

1. Os discípulos descobrem a identidade e o destino de


Jesus (9.18-22)

POR TRÁS DO TEXTO


Jesus pergunta aos Seus discípulos, “Quem as multidões dizem que eu
sou?” (v. 18). Essa pergunta traz à mente uma série de rumores que estavam
circulando sobre a identidade de Jesus:
• Ele é “um grande profeta” (7.16).
• Ele é “aquele que haveria de vir” (7.19).
• Ele é “um comilão e beberrão, amigo de publicanos e pecadores’” (7.34).
• Esse homem não pode ser um “profeta”, pode? (7.39).
• “Quem é este que até perdoa pecados?” (7.49).
• “Jesus [é o] Filho do Deus Altíssimo” (8.28).
• E, “Quem, pois, é este de quem ouço essas coisas?” (9.9).
A narrativa preparou os leitores para a resolução da pergunta da identida­
de de Jesus.

NO TEXTO
1 1 8 - 2 0 Jesus desafia os discípulos a oferecerem suas próprias opiniões sobre
a Sua identidade. Isso faz parte do desenvolvimento narrativo deles enquanto
seguidores. Ou seja, eles precisam responder a essa pergunta “corretamente” a
fim de que o significado da identidade de Jesus se aprofunda na história. Como
notamos no início do capítulo, um processo de uma era vindoura para os dis­
cípulos está em ação aqui.
A pergunta de Jesus vem em dois estágios. O primeiro é mais impessoal:
“Quem as multidões dizem que eu sou?” (v. 18). As multidões têm sido um
importante personagem apoiador na história até esse ponto. Mas o entendi­
mento delas acerca de Jesus é falho e obscuro. Elas pensam que Ele pode ser
João Batista ou Elias ou um dos profetas do passado que ressuscitou (v. 19).
A segunda pergunta é mais direta. Jesus desafia os Seus seguidores: “E vocês,
o que dizem?” perguntou. “Quem vocês dizem que eu sou?” (v. 20). Pedro,
266
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

como o principal porta-voz, oferece a afirmação de que Jesus é “O Cristo de


Deus” (v. 20; “O Messias de Deus”). Agora, pela primeira vez, a afirmação da
identidade messiânica é feita por um de Seus discípulos.
A narrativa, agora, claramente passa para uma conscientização pós-confissão
da identidade messiânica de Jesus (veja 1.32,33). Daqui em diante, a experiên­
cia dos leitores concernente à história será moldada pela proclamação de Pedro
(como também em Mc 8.29 11M t 16.16). E como se o véu fosse retirado breve­
mente e o mistério revelado.
Como leitores, somos transformados pela revelação e repentinamente lembra­
dos das afirmações do início do Evangelho sobre a identidade de Jesus como o
Cristo (2.11— “Salvador (...) Cristo, o Senhor”; 2.26 - “o Cristo do Senhor”;
4.41 - “Filho de Deus”). A partir dessas indicações primárias, o assunto da
identidade de Jesus como o Messias tem sido uma questão de rumores, procla­
mada por demônios, mas não explicitamente declarada.
1 2 1 - 2 2 Jesus advertiu severamente os Doze para que não dissessem nada
sobre a revelação de Sua identidade como o Cristo. Diferentes soluções têm
sido propostas para explicar esse pedido de silêncio, a partir da perspectiva his­
tórica. Talvez Jesus não deseje criar uma expectativa de um Messias político.
Talvez Ele hesite seguir em frente em direção à proclamação com temor da fal­
ta de compreensão quanto à natureza de Sua função como o Messias sofredor
(veja Bock, 1994, p. 846, nessas e outras tentativas assim).
Do ponto de vista da narrativa, o leitor é atraído a aceitar o pronunciamento.
Os leitores esclarecidos compartilham algo que somente o narrador e os per­
sonagens centrais entendem, e isso fecha um pouco mais o abismo da empa­
da. Nós sabemos o segredo que o público não sabe (veja Por trás do texto em
9.28-36). Isso age como uma força persuasiva sobre os leitores, compelindo-os
a aceitar a declaração da identidade de Jesus. Além do mais, os leitores que já
estão bem familiarizados com a história de Cristo encontram reforço no enten­
dimento do “segredo” da identidade e da ressurreição de Jesus.
A confissão de Pedro abre o caminho para Jesus falar sobre o futuro e a predi­
ção de Sua morte: “É necessário que o Filho do homem sofra muitas coisas
e seja rejeitado pelos líderes religiosos, pelos chefes dos sacerdotes e pelos
mestres da lei, seja morto e ressuscite no terceiro dia” (v. 22; sobre o Filho
do homem, veja o comentário em 5.24). Essa extraordinária revelação é a pri­
meira de quatro indicações da morte de Jesus no capítulo 9 (v. 22,31,44,45,51;
veja 2.34,35 e 5.35 para indicações prefigurativas de Sua morte). Em cada pas­
sagem adicional, os detalhes são revelados. O cenário composto inclui:
267
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

• Sofrimento (v. 22a).


• Rejeição pelos líderes religiosos (v. 22a).
• Ser morto (v. 22b).
• Ressuscitar no terceiro dia (v. 22b).
• Ser morto em Jerusalém, esse é agora o destino deles (v. 31,51).
• Ser “entregue nas mãos dos homens” (v. 44), e isso acontecerá em breve (v.
51).
Posteriormente em Lucas, a marcha da morte irá incluir Jesus sendo en­
tregue aos gentios, açoites, zombaria e insultos (18.31-34; e também 17.25).
Por que é necessário que o Filho do Homem sofra muitas coisas (v. 22) ?
Assim como a Sua verdadeira identidade agora foi revelada, a ideia de um Mes­
sias sofredor também entra na história pela primeira vez. Aliás, o Evangelho de
Lucas não explica por que Jesus precisa sofrer. Lucas não indica, como Marcos,
que isso é “dar a sua vida em resgate por muitos” (Mc 10.45). Seu sofrimento foi
predito pelos profetas (Lc 18.31; 22.37; 24.27). Satanás foi cúmplice (22.3).
Sua paixão é a vontade de Deus (22.22,42). Mas, finalmente, o sofrimento e a
morte de Jesus é simplesmente um fato para Lucas: “Não devia o Cristo sofrer
estas coisas, para entrar na sua glória?” (Lc 24.26).
Olhando adiante para o segundo volume de Lucas, em Atos dos Apósto­
los, a ideia da morte de Jesus está ligada ao perdão (At 2.36-38; 5.30,31; 10.39­
43). Ao todo, Atos enfatiza a ressurreição de Cristo como o centro teológico
do evangelho (At 4.10; 5.30; 10.39,40), e não a Sua crucificação. Os teólogos
cristãos, de Paulo em diante lutaram com a questão do por que o Messias tinha
de sofrer. Mas, essa não é uma pergunta que Lucas faz diretamente (veja o co­
mentário em 9.23).
O destino intencional de Jesus para Jerusalém foi revelado indiretamente
aos discípulos no v. 22. O mesmo torna-se direto no v. 31. A jornada agora irá
dominar a narrativa até o encerramento do capítulo 19. O tema da jornada
reaparece em 9.53; 13.22,33-35; 17.11; 18.31-34; 19.11,28 e 41-44. Outras
referências complementares sobre Jerusalém são encontradas em 10.30 e 13.4.
Assim como o contexto da narrativa foi mudado pela confissão da identi­
dade messiânica de Jesus, a mesma agora foi mudada por Sua predição de Seu
sofrimento e morte, que devem acontecer em Jerusalém. Uma grandiosa luz
agora ilumina a história por causa da revelação da revelação da identidade de
Jesus. Mas uma sinistra sombra alternativa também é lançada pela revelação de
Seu futuro sofrimento.

268
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

2. A vida do verdadeiro discípulo (9.23-27)


1 2 3 Cinco axiomas são encontrados nos v. 23-27, um para cada versículo (||
Mc 8.34 - 9.1 ||Mt 16.24-28). O tema da morte, a partir de Lucas 9.22, é o fio
da narrativa que une todos os cinco ditos:
• Cruz (v. 23).
• Perder a vida (v. 24).
• Destruir a vida (v. 25).
• Envergonhado no julgamento (v. 26).
• Provar a morte (v. 27).
Os versículos 23-27 introduzem a noção de que, ao compartilhar o poder de
Jesus, os discípulos irão também compartilhar o Seu sofrimento. Há uma pro­
gressão nos cinco axiomas, desde a cruz com sua viva agonia, à perda da vida
em si, à finalidade do julgamento, até provar a morte em si. O versículo 23 diz,
“Se alguém quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome diariamente a
sua cruz e siga-me” (veja 14.27).
A cruz era a forma mais comum de execução no primeiro século na Palestina
(sobre crucificação, veja Hengel, 1977). Mas, a ênfase aqui não é nos martí­
rios literais dos discípulos, mas a vida de obrigação imposta pelas notícias do
iminente sofrimento de Jesus (v. 22). Os discípulos aprendem que o p o d e r e a
a u torid a d e (9.1) entregues a eles por Jesus vêm com um preço - eles também
irão sofrer.
Metaforicamente, levar a cruz envolve “abnegação” e o “seguir”. O ministério
itinerante, é claro, ocasiona uma imensa quantidade de verdadeira abnegação
para os seguidores de Jesus. Mas, essas ideias são sutilmente apropriadas para
descrever a vida diária do discipulado. A “cruz” torna-se uma metáfora para as
responsabilidades do discipulado que, por sua vez, são uma forma de “morte”
em relação à velha vida.
A expressão tome (...) a sua cruz não é anterior ao tempo de Jesus, pelo que
sabemos. Isso tem levado alguns a afirmarem que essa linguagem foi colocada
posteriormente nos lábios de Jesus pela igreja (Fitzmyer 1981, 1:785; Funk e
Hoover 1993, p. 79). De qualquer forma, Lucas acrescenta a condição de que
o discípulo tome a sua cruz diariam ente (|| Mc 8.34 || Mt 16.24). Isso torna
o carregar a cruz uma questão de estilo de vida rotineira para o discípulo da
pós-ressurreição. A partir dessa perspectiva, carregar a cruz é uma poderosa
metáfora para a devoção sacrificial exigida dos discípulos.

269
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A teologia da cruz em Lucas

Lucas refere-se à cruz s im p lesm en te com o um instru m en to de m orte


(2 3 .2 6 ; At 2 .2 3 , 4 .1 0 ). Na p resente passagem , ela refere-se m e ta fo ric a ­
m e n te às cargas e responsabilidades do discipulado (9 .2 3 ; 1 4 .2 7 ). A cruz
não é um sím bolo da m o rte expiatória de Cristo e m n enhum lugar em
Lucas, com o, por exem p lo , em Colossenses 1.20; 2 .1 4 . Tam pouco é um a
p alavra código para a fé cristã - a "cruz d e Cristo" (com o e m 1 Co 1.17;
Gl 6 .1 2 , por exem p lo ).
Lucas usa a cruz para referir-se à vida de discipulado. Ela refere-se
"à a titu d e de ab n eg ação q ue concerne sua vida neste m undo com o já
con sum a da” (M arshall, 1 9 7 8 , p. 3 7 3 ). "Para Lucas, e n tã o , a teo log ia da
cruz está e n ra izad a , não ta n to na teo ria da expiação, m as no re tra to da
narrativa da vida do fiel discipulado com o o cam inho da cruz" (G reen,
1 9 9 7 , p. 3 7 2 ).
Paulo o casio nalm en te se refere à "crucificação" na vida dos crentes
em term o s sim ilares aos de Lucas (ex.: Gl 2 .2 0 ). T ip icam en te, porém , Pau­
lo refere-se à cruz ta n to com o o instru m en to da m o rte de Cristo e do d ivi­
no m eio de salvação.
Em bora n en hu m a teologia da expiação esteja explícita no Evangelho
de Lucas, Atos designa um significado salvífico à m o rte de Jesus: "onde o
m a ta ra m , suspendendo-o num m adeiro" (At 1 0 .3 9 ). A isso, Lucas acres­
centa: "de que todo o que nele crê recebe o perdão dos pecados m e d ia n ­
te o seu nom e" (At 1 0 .4 3 ). Isso é o mais próxim o que Lucas chega da
teologia da expiação. A d eclaração mais conhecida e explícita da ideia da
expiação na tradição sinótica aparece e m Marcos 1 0 .4 5 : Jesus deu "a sua
vida em resgate por m uitos".

H 24-26 Os próximos três axiomas prosseguem o tema da morte, isto é, o


ganhar e o perder a vida. As palavras de Jesus parecem irônicas: “Pois quem
quiser salvar a sua vida a perderá; mas quem perder a vida por minha causa,
este a salvará” (v. 24). Em termos literais, isso poderia dizer que os discípulos
deveriam receber o martírio a fim de ganharem a salvação eterna. Mas Lucas,
com certeza, propõe esse ponto metaforicamente. Nesse sentido, levar a cruz
significa que os discípulos perdem a sua vida ao gastá-la altruisticamente. Re­
servar a vida para propósitos egoístas significa perder o valor espiritual da vida.
Dar a sua vida para Deus e os outros levará às riquezas espirituais.
270
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

Essa é uma ideia comum em outras religiões orientais onde a “ligação” a rea­
lidades físicas é geralmente considerada a causa de todo sofrimento. Ao “des­
prender-se” dos desejos mundanos, a vida espiritual torna-se possível. A ideia
do axioma de Jesus não é tão diferente. Sua chamada ao altruísmo não desva­
loriza a vida, como o faz o martírio. Ao contrário, ela exorta os discípulos a
valorizar o aspecto espiritual da vida acima do físico.
O versículo 25 expande essa ideia. Aqui, o problema específico é o apego às
posses. Aquele que ganhar o mundo irá, no entanto, perder a vida. Aque­
les que valorizam os bens materiais acima dos espirituais colocam-se em risco.
Aliás, cada um irá negar a si mesmo e perderá sua verdadeira identidade. O
materialismo cobra um preço mortal da alma. É por isso que até os “pobres” em
Lucas podem ter alegria (6.20).
No v. 26, Jesus adverte: aqueles que se envergonham de mim e das minhas
palavras, demonstram colocar a opinião dos companheiros humanos acima
da opinião do divino. Isso é, novamente, uma valorização do físico acima do
espiritual.
1 2 7 0 dito final desse grupo de cinco é tão enigmático que já deu lugar a vá­
rias interpretações: alguns que aqui se acham de modo nenhum experimen­
tarão a morte antes de verem o Reino de Deus. Alguns intérpretes sugerem
que isso pode referir-se à ressurreição de Jesus e ao estabelecimento da igreja no
Pentecostes. Outros sugerem que a passagem alude à transfiguração, a narrati­
va da qual segue imediatamente em 9.28-36 (Green, 1997, p. 376; Fitzmyer,
1981, 1:786). Isso presume que o Reino de Deus refere-se à glória de Deus
revelada na presença de Moisés e Elias na montanha. Já que a transfiguração
foi apenas alguns dias mais tarde, a mesma não pode resolver completamente a
dificuldade (Evans, 1990, p. 412). Se o Reino de Deus refere-se ao apocalipse,
então Lucas preserva uma profecia falha de Jesus, já que todos os Seus discí­
pulos imediatos morreram sem ver a chegada do mesmo. Ele havia predito:
alguns que aqui se acham de modo nenhum experimentarão a morte antes
de verem isso. Dependendo de quando Lucas escreveu, será que ele teria pre­
servado uma predição tão problemática?

A PARTIR DO TEXTO
Os três imperativos do v. 23 (abnegar-se, levar diariamente a cruz e seguir
Jesus) são a “base da lealdade cristã” (Fitzmyer, 1981,1:784). Albert Schweitzer,
certa vez, disse que os maiores ditos de Jesus são como bombas explosivas soltas
em um canto esquecido. Quando encontramos um e o pegamos, examinando
271
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

atentamente, o mesmo tem o poder de transformar completamente nossa vida


e nossos compromissos. A verdadeira abnegação é consoante com a ênfase de
Jesus em deixar a casa e a família por causa do reino (8.21; 12.53; 14.26; 18.28­
30). Isso desafiaria até o mais devoto entre os discípulos a reexaminar suas
prioridades. Talvez poucos sejam plenamente capazes de fazer isso.
O objetivo é que os discípulos carreguem a própria cruz e sigam Jesus. In­
terpretado através das lentes da história mais ampla, isso convida a um estilo de
vida de humildade. Assim como Jesus irá ensinar mais adiante no Evangelho:
“Pois aquele que entre vocês for o menor, este será o maior” (9.48); “há últimos
que serão primeiros, e primeiros que serão últimos” (13.30); e “todo o que se
exalta será humilhado, e o que se humilha será exaltado” (14.11). A ordem de
seguir convida os prováveis discípulos a imitar o exemplo de Jesus em Sua hu­
mildade e serviço aos outros.

3. A transfiguração (9.28-36)

POR TRÁS DO TEXTO


A história da transfiguração tem uma convergência de três temas:
• A revelação progressiva da identidade de Jesus.
• Jerusalém como o objetivo da narrativa da viagem (v. 9-19).
• O sofrimento, a morte e a ressurreição de Jesus.
Vistos em conjunto, esses temas fornecem a estrutura do restante da nar­
rativa de Lucas.
Primeiro, a revelação progressiva de Sua identidade tem sido vista já no
capítulo 9. Quanto mais clara Sua identidade é retratada no capítulo, porém,
menor é o número de pessoas a quem ela é revelada. Esse é um contraponto
do perfil do crescente público do ministério. As “multidões” pensam que Jesus
possa ser João Batista ou Elias ou um dos profetas do passado que voltou
dos mortos (v. 18,19). Mas eles mal compreendem a Sua identidade. Mais inti­
mamente ainda, na presença dos Doze, Ele é revelado como o Cristo de Deus
(v. 20). Mas, para os Seus três discípulos mais chegados - Pedro, Tiago e João,
Ele é revelado na presença de Moisés e Elias como o Filho a quem Deus havia
escolhido (v. 28-36). Para o círculo íntimo, Sua identidade é revelada em glo­
rioso esplendor (v. 31).

272
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

Segundo, a centralidade de Jerusalém quanto à história é reafirmada na


transfiguração. Até Moisés e Elias sabem que o destino de Jesus está na Cidade
Santa: falavam sobre a partida de Jesus, que estava para se cumprir em Je­
rusalém (v. 31). Somente Lucas registra o conteúdo da conversa deles (veja Mt
17.3 ||Mc 9.4).
Jerusalém aparece na narrativa de Lucas 31 vezes, comparada com 12 em
Mateus e 11 em Marcos. Na parte do ministério da Galileia, Lucas refere-se
à Jerusalém 14 vezes; Mateus, oito vezes; Marcos, sete. A narrativa da paixão
em Lucas refere-se a Jerusalém dez vezes, comparada com as duas de Mateus e
quatro em Marcos.
Em todos os três Evangelhos, a jornada para Jerusalém é importante para
a estrutura da narrativa do ministério galileu. Mas em Lucas, ela é uma busca
constante e passional. As referências exclusivas de Lucas a Jerusalém são en­
contradas em 5.17; 9.31,51; 10.30; 13.4,22,33; 17.11; 19.11,41; 21.20,24;
23.7,28; 24.13,18,33,47,52. Somente em Lucas, Jesus diz “preciso prosseguir
hoje, amanhã e depois de amanhã, pois certamente nenhum profeta deve mor­
rer fora de Jerusalém!” (13.33).
Em Atos, Lucas continua seu foco em Jerusalém, com a estrutura da narra­
tiva formada em torno do progresso do evangelho de Jerusalém a Roma: “Mas
receberão poder quando o Espírito Santo descer sobre vocês, e serão minhas
testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia e Samaria, e até os confins da ter­
ra” (At 1.8; também 19.21).
Finalmente, o terceiro tema é o sofrimento e a morte de Jesus. Isso é
reafirmado na transfiguração quando Moisés e Elias falam sobre a Sua partida
(v. 31). Isso significa que a iminente morte de Jesus está preordenada por Deus
e é parte do plano divino, e não um acidente da história.
O tratamento de Lucas quanto à transfiguração é mais circunspecto do que
o de Mateus e Marcos. Estes evangelistas indicam que Jesus foi m eta m orp h õth ê
em prosthen a u tõn , “transfigurado diante deles” (Mt 17.2 ||Mc 9.2). Lucas afas­
ta-se dessa linguagem direta. Em vez disso, ele afirma que to eidos tou prosõpou
h etero n , a aparência de seu rosto se transformou (v. 29). Essa linguagem está
mais sintonizada com o tema de uma visão. Note que o evento ocorre à noite.
Somente Lucas descreve os três discípulos como dominados pelo sono (v. 32).
Logo, eles veem os dois homens com Jesus quando acordam (veja Jó 33.14,15;
Is 29.7; Dn 7.1,2).
273
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

NO TEXTO
I 2 8 - 2 9 Assim como em tantos momentos significativos em Lucas, o con­
texto desse evento é a oração (3.21; 6.12; 9.18). Eles haviam se retirado, mais
uma vez, para um local solitário para orar; dessa vez, foram para um monte (v.
28).
A transfiguração tem numerosas alusões a outras histórias do AT. Enquanto
os três seguidores mais íntimos de Jesus olhavam para Ele, a aparência de seu
rosto se transformou (v. 29). Isso é reminiscente da glória brilhante no rosto
de Moisés quando ele esteve na presença de Deus (Êx 34.30-35). As roupas de
Jesus ficaram alvas e resplandecentes como o brilho de um relâmpago ou
“muito branca e brilhante” (NTLH), assim como a vestimenta de Deus era
“branca como a neve” em Daniel (7.9; veja At 9.3).
Significantemente, o texto de Daniel 7.13,14 logo depois fala do Filho do Ho­
mem que recebeu “autoridade, glória e o reino; todos os povos, nações e ho­
mens de todas as línguas o adoraram. Seu domínio é um domínio eterno que
não acabará, e seu reino jamais será destruído” (v. 14). Esse crucial ensinamen­
to do AT sobre o Filho do Homem não poderia estar longe da mente do antigo
leitor, já que Lucas refere-se ao Filho do Homem frequentemente (25 vezes)
em seu Evangelho, e recentemente em Sua autoidentificação em 9.22 (veja o
comentário em 5.24).
I 3 0 - 3 3 Quando Moisés e Elias (v. 30) repentinamente aparecem conver­
sando com Jesus, eles também aparecem em glorioso esplendor (v. 31). O
aparecimento dessas duas figuras centrais do AT com Jesus indica que Ele é o
profeta prometido “como” Moisés. Deus prometeu a Moisés em Deuteronô-
mio que Ele levantaria “do meio dos seus irmãos um profeta como você; porei
minhas palavras na sua boca, e ele lhes dirá tudo o que eu lhe ordenar” (Dt
18.18; At 3.22,23). Deus também prometeu a Moisés em Deuteronômio que
pediria “contas” a todos se não obedecessem às palavras do profeta (Dt 18.19).
Em Atos 7.37, Lucas especificamente identifica Jesus como o profeta de quem
Moisés se referia. Dada a controvérsia com os líderes religiosos sobre a identi­
dade de Jesus em Lucas, a alusão a essa profecia aqui parece particularmente
relevante. Em Deuteronômio, a autenticidade de um profeta era comprovada
quando suas profecias cumpriam-se (Dt 18.21,22). Já que Jesus acaba de profe­
tizar a Sua morte e ressurreição (Lc 9.22), o leitor sabe que Jesus é o verdadeiro
profeta a quem Moisés se referia. E, contundentemente, Moisés e Jesus ficam
lado a lado no monte da Transfiguração, com o próprio Moisés dando a Jesus a
sua aprovação como profeta.
274
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

O onisciente narrador está ciente do tópico da conversa entre Moisés, Elias


e Jesus: falavam sobre a partida de Jesus, que estava para se cumprir em
Jerusalém (v. 31). Eles conversam sobre a partida de Jesus. Em grego, isto é
ex odon, “um termo poderosamente simbólico” já que foi pelo Êxodo que Moi­
sés tirou o povo da escravidão do Egito (Craddock, 1990, p. 134). Aqui, isso
aparece como uma circunlocução ou eufemismo para a Sua morte. Esse êxodo
é descrito como algo que Ele faria se cumprir em (v. 31). Isso indica que a
Sua morte está de acordo com a vontade de Deus. Deus está no controle, e a
iminente morte não é um acidente da história nem uma vitória para os Seus
inimigos.
A soberania de Deus leva em conta as experiências iniciais de Jesus de ser tes­
tado no deserto (4.1-13). Está também em jogo a Sua disputa com os poderes
demoníacos (4.33-36; 6.18; 7.21; 8.26-39). Dessa forma, o tema subjacente
da história é que os propósitos redentores de Deus nunca estão em perigo de
serem superados pelo mal. A referência ao cumprimento também explica, in­
diretamente, porque o Filho do Homem deve “sofrer” (9.22): é a vontade de
Deus.
Moisés e Elias também falam de Sua jornada para Jerusalém (v. 31). Essa é a
primeira referência a esse destino final. Significantemente, Lucas é o único a
incluir tal afirmação. Em uma cena marcante, os critérios normais de tempo e
de espaço são colocados de lado.
A natureza surreal do evento é também vista na experiência de Pedro, Tiago
e João. Eles estão dominados pelo sono (ARC: “carregados de sono”). Isso
parece indicar uma cena noturna. Mas, após a transfiguração, eles ficam com­
pletamente acordados (v. 32).
Pedro oferece-se para construir três skênas, abrigos (v. 33), para celebrar o
momento sagrado. Parece um gesto fraco para imortalizar esse evento trans­
cendente, mas isso pode referir-se à Festa dos Tabernáculos (Êx 23.16; 34.22;
Fitzmyer, 1981, 1:801). Durante esse festival anual do outono, os peregrinos
viajavam alegremente para Jerusalém para celebrar a colheita. Talvez, o ato de
construir três tendas fosse inspirado pela referência a Jerusalém. Mas o narra­
dor deixa claro que Pedro não sabia o que estava dizendo (v. 33).
■ 34-36 A nuvem representa a presença de Deus no AT (Êx 16.10; 19.9,18;
24.15-8). Aqui, ela remete às aparições de Deus a Moisés no monte Sinai du­
rante os eventos do Êxodo. O temor é a reação típica (Êx 20.18-20) a tal teo-
fania. Pedro, João e Tiago ficaram com medo ao entrarem na nuvem (v. 34).
Quem entra na nuvem? Os discípulos, Jesus e os dois dignitários do AT, ou
todos eles ?
275
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Uma voz celestial emana da nuvem: “Este é o meu Filho, o Escolhido; ouçam -
-no!” (v. 35). Marcos e Mateus registram “meu amado Filho” (ho huios m ou ho
agapêtos\ Mc 9.7 ||Mt 17.5). Essa B a tQ ô l (= “filha de uma voz”) é semelhante
à ocorrência no batismo de Jesus (veja 3.21,22). Em ambas as experiências, a
voz declara que Jesus é meu Filho. Essas declarações são o centro teológico do
Evangelho de Lucas (como também em Mt 3.17 e 17.5 || Mc 1.11 e 9.7). Elas
estabelecem a questão da identidade de Jesus por meio da proclamação divina.
A dependência dos cristãos primitivos nessa passagem teria sido controversa
entre os judeus (veja o comentário sobre o batismo em 3.21,22). A voz do céu
na tradição judaica constituía uma autoridade divina que o argumento racio­
nal não poderia contestar. A reivindicação cristã de uma voz declarando Jesus
como Filho de Deus usurpava a Torá no assunto central da fé judaica. Tal rei­
vindicação teria sido especialmente provocativa após a destruição do templo,
quando a Torá ficou sozinha no centro da prática judaica.
As precisas palavras da voz celestial diferem um pouco daquelas pronunciadas
no batismo de Jesus. P rim eiro, agora ela está na terceira pessoa: Este é o meu
Filho (v. 35), e não na segunda pessoa: “Tu és o meu Filho” (3.22). Isso torna-a
um anúncio aos discípulos, e não uma afirmação pessoal a Jesus.
S egu n do, dessa vez ela não está acompanhada de um modificador, o Escolhido,
e da ordem: ouçam-no. A palavra escolhi (<ek lelegm enos, fonte da palavra “elei­
ção”, em português) ecoa a linguagem da eleição, feita por Deus, de Israel entre
as nações (SI 33.12; 65.4; Is 41.8; At 13.17), da tribo de Judá (SI 78.68-70), e
de Moisés (SI 105.26).
Semelhantemente, Jesus “escolheu” Seus discípulos (eklegom ai, Lc 6.13; At
1.2). Essa palavra não é usada nos outros Evangelhos (veja Mc 3.13-19 || Mt
10.1-4). Essa linguagem também ecoa em Deuteronômio 18.15-21 (veja an­
teriormente o comentário em 9-30). Em Deuteronômio, a aceitação de um
profeta como Moisés é acompanhada pela obrigação de aceitar o que ele diz:
“O Senhor, o seu Deus, levantará do meio de seus próprios irmãos um profe­
ta como eu; ouçam-no” (Dt 18.15). Logo, temos aqui em Lucas: ouçam-no
(9.35). Jesus é o profeta como Moisés, que deve ser obedecido.
276
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

H. A conclusão do ministério galileu (9.37-50)

I. A difícil expulsão de um demônio (9.37-43a)

NO TEXTO
H 3 7 - 4 3 a Uma sensação de expectativa acompanha a descida de Jesus do
monte após a transfiguração: No dia seguinte, quando desceram do monte,
uma grande multidão veio ao encontro dele (v.37). Talvez pudéssemos ter
antecipado um grande milagre ou uma proclamação pública após a sublime ex­
periência da transfiguração. Ao contrário, encontramos Jesus em uma expulsão
de demônio particularmente turbulenta.
Certo homem implora que Jesus atenda ao seu único filho: Um espirito o do­
mina; de repente ele grita; lança-o em convulsões e o faz espumar; quase
nunca o abandona, e o está destruindo (v. 39). As convulsões e a boca espu­
mando são características de uma enfermidade de ataques epiléticos (compare
com o endemoninhado geraseno, que também era “apoderado” pelo demônio,
8.29).
O paralelo de Mateus refere-se ao menino como um “epilético” (Mt 17.15
NTLH). Essa condição era associada, nos tempos antigos, com as fases da lua.
Logo, os que sofriam disso eram chamados de selên iadz om ai, lu n á ticos. De for­
ma irônica, os que eram afligidos pela epilepsia antigamente eram considera­
dos santos, por causa das similaridades entre os ataques e o estado profético de
êxtase (Sussman, 1992, p. 12).
Embora Jesus tenha facilmente curado o menino, Sua frustração é diferente de
tudo que já encontramos na narrativa até este ponto. O objeto de Sua conster­
nação está em Seus discípulos. Ele lhes diz: O geração incrédula e perversa (v.
41). Lucas falha em dizer o que causou aquele comentário de Jesus. De acordo
com Mateus, os discípulos não tiveram fé suficiente para expulsar o demônio
(17.20-21). Semelhantemente, Marcos culpa a “incredulidade” como o empe­
cilho para expulsar demônios. O pai do menino roga: “Ajuda a minha incredu­
lidade!” (Mc 9.24 ARC).
Lucas conclui sem comentar sobre a causa da incapacidade de os discípulos
expulsarem o demônio. Ele diz apenas que as pessoas estavam atônitas ante a
grandeza de Deus e maravilhadas com tudo o que Jesus fazia (Lc 9.43).
277
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

2. A segunda predição do destino de Jesus (9.43b-45)


H 43b-45 Ouçam atentamente o que vou lhes dizer: o Filho do homem
será traído e entregue nas mãos dos homens (v. 44). Essa é a segunda de
quatro referências à iminente morte de Jesus no capítulo 9 (v. 22,31,44,45,51).
Na primeira, não há indicação da resposta ou da compreensão dos discípulos.
Aqui, Lucas registra a reação deles como uma confusão (v. 45).
Os discípulos não entendiam o que isso significava; era-lhes encober­
to, para que não o entendessem (v. 45). Os discípulos foram avisados
claramente de que Jesus seria traído pelas mãos dos homens, mas esse sig­
nificado era-lhes encoberto (p a ra k ek a lym m en o n ; compare com k ek rym -
m en o n em 18.34). O verbo grego está na voz passiva. Os discípulos foram
ativamente impedidos por Jesus de obterem esse conhecimento. Será que
Deus é a causa não declarada da falta de entendimento deles? Ou será que
isso é uma realidade histórica?
Considerando-se o conjunto, a representação dos discípulos tem sido positiva
em Lucas. Isso é bem diferente de Marcos, no qual os discípulos rotineiramente
ficam perplexos com Jesus. No entanto, quando a história se torna mais com­
plexa e o segredo da identidade de Jesus e Sua iminente morte é revelado, os
discípulos tornam-se m enos esclarecidos em sua compreensão. Embora tenham
sido anteriormente retratados como guardiães das portas da sabedoria de Jesus
(veja 8.10), eles agora estão incapacitados de compreender o futuro, embora
Ele os tenha dito plenamente (9.45). Mais uma vez, no capítulo 18, eles fracas­
sam em compreender: “Os discípulos não entenderam nada dessas coisas. O
significado dessas palavras lhes estava oculto, e eles não sabiam do que ele esta­
va falando” (18.34). Os leitores têm sido privilegiados em saber pelo narrador
onisciente o que vem à frente, mas os discípulos não. Isso aprofunda a sensação
dos leitores de estarem dentro da história.
Historicamente, é provável que o propósito de Jesus estivesse envolto em ambi­
guidade, até mesmo para Seus seguidores mais próximos. O drama todo parece
bastante óbvio em retrospectiva. Contudo, esses comentários do narrador in­
dicam que a morte de Jesus era inesperada pelos Seus seguidores. Embora Jesus
houvesse falado sobre Sua morte em Jerusalém, os Seus seguidores, até mesmo
os Doze, talvez não tivessem nada mais do que um pressentimento de tragédia
associado com a viagem à Jerusalém. Quer seja realidade histórica ou artifício
literário, o leitou interpretará o restante do Evangelho por meio das lentes da
iminente morte de Jesus. Uma sensação de perigo e tensão permeará tudo o
que ocorre. Isso é um artifício significativo na história.
278
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON LUCAS 1-9

3. Discípulos argumentativos (9.46-48)


■ 46-48 Os discípulos mostram-se homens normais ao debaterem seus re­
lativos méritos e argumentarem sobre qual deles seria o maior (v. 46). Existe
um bom humor nessa cena com Jesus, Seus discípulos e uma criança. Enquanto
os discípulos discutiam sobra a sua própria grandeza, Jesus gentilmente tomou
uma criança e a colocou em pé, a seu lado (v. 47). Ironicamente, aqueles que
receberam o dom da sabedoria divina (8.10) agiram agora como as próprias
crianças.
Em resposta à insensatez dos discípulos, Jesus empregou um duplo sentido
aqui, pois aquele que entre vocês for o menor, este será o maior (v. 48).
A palavra grega para menor é m ikroteros, que também significa m ín im o . Da
mesma forma, a palavra maior é m egas, que também pode significar am plo.
Com uma criança em pé ao Seu lado, Ele divertiu-se à custa dos discípulos. Era
como se Ele estivesse dizendo: “Vocês pensam que esta criança é insignificante
\mikroteros\ porque ela é de pequena estatura \mikroteros\. No entanto, vocês,
que são fisicamente grandes [megas], discutem entre si, de modo tolo, acerca
de quem é o maior [m egas]”. Julgar pelos padrões humanos, como tamanho e
idade, pode levar a erros sobre o valor humano (lembre-se de Davi, pequena
estatura, mas grande coração para Deus, em 1 Sm 16.7). A realização pessoal e
a posição social na comunidade, assunto do debate deles, não eram a verdadeira
medida da grandeza.
O relato de Lucas é o único do incidente que enfatiza o bom humor do comen­
tário de Jesus. Mateus interpreta o tamanho da criança como uma metáfora
para a humildade (Mt 18.4). Marcos toma-o como uma metáfora para último,
a aparente insignificância de ser um servo (Mc 9.35).

4. Um homem desconhecido expulsando demônios


(9.49,50)
■ 49-50 As deficiências espirituais dos discípulos tornam-se óbvias em
um comentário creditado ao apóstolo João. Essas são as únicas palavras
explicitamente creditadas a João nos Evangelhos, e Jesus não as aprova. Os
discípulos tinham acabado de ser instruídos sobre o erro de julgar pelos valores
humanos. As crianças, embora pequenas, têm um coração que crê. Os adultos,
mesmo aqueles a quem os segredos do Reino foram confiados (8.10) e que
acabaram de descer do monte da Transfiguração (9.28), mostram-se incapazes
de colocar a fé em ação contra um inimigo obstinado (9.41). Apesar de
279
LUCAS 1-9 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

multidões enormes tornarem-se parte do ministério peregrino de Jesus, João


ainda busca a política da exclusão ao desejar negar o exercício do poder de Jesus
a um estranho.
Disse João: Mestre, vimos um homem expulsando demônios em teu nome
e procuramos impedi-lo, porque ele não era um dos nossos (v. 49). O Jesus
de Lucas tem desconstruído barreiras sociais ao longo da narrativa. Aqui, Ele
oferece novamente uma nova visão de uma comunidade na qual a exclusão não
é o princípio governamental. Por meio de contraste, João parece um tanto fa­
risaico, querendo reservar o poder de expulsar demônios somente aos Doze.
O princípio de comunidade de Jesus é amplamente inclusivo, estendendo os
braços abertos a todos os que não são contra vocês (v. 50). Aliás, aquele rene­
gado e desconhecido homem é o primeiro no Evangelho a expulsar demônios
“em nome de Jesus”. Ele é um pioneiro entre os setenta que logo serão enviados
por toda a região aos pares, para curarem e pregarem, e é um exemplo da pieda­
de renegada que Jesus endossou na narrativa. Os setenta retornarão relatando
que “até os demônios se submetem a nós, em teu nome” (10.17). O movimento
de Jesus continua a expandir seu alcance na comunidade.

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C O M E N T Á R IO B ÍB L IC O

BEACON
LUCAS 1-9
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DAVID A. NEALE é vice-presidente e reitor acadêmico da Booth University College, em


Winnipeg, e professor emérito na Ambrose University College (antiga Canadian N azarene
University C ollege), em Calgary. Ele é bacharel em Sociologia pela Idaho State University,
possui mestrado em Teologia pelo Fuller Theological Sem inary e PhD pela University o f
Sheffield, na Inglaterra.

Estrada do Guerenguê, 1851 - Taquara


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