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A CONTEMPORANEIDADE DAS “BEM-AVENTURANÇAS” E SUA INFLUÊNCIA

NO CENÁRIO ESCATOLÓGICO

Thales de Paula Rodrigues1

RESUMO

Este trabalho versa acerca das “bem-aventuranças”, que compõem a introdução do


“Sermão do Monte” no Evangelho de Mateus e da coletânea do Evangelho de Lucas,
intitulada “Sermão da Planície”. Para tanto, examinar-se-á o emprego do termo “bem-
aventurado” em seu texto original, a fim de constatar a abordagem preliminar do
discurso. A proposta, pois, consiste em responder aos vários questionamentos e
indagações, ora perquiridos, quais sejam: “Seriam as ‘bem-aventuranças’
contemporâneas e, ao mesmo tempo, configuraria parte de um cenário escatológico?”
“Em que medida podemos verificar sua atuação nos crentes modernos e que aspectos
compreenderiam a promessa futura?” “Teriam os leitores dos Evangelhos alguma
evidência ou modelo com tais características?” Outrossim, o objetivo é, identificar
elementos que comprovem a dualidade das “bem-aventuranças” e, analisar seu
modus operandi: na segurança presente e na esperança futura. Registre-se daí a
metodologia adotada embasada na pesquisa bibliográfica, de cunho teórico-
qualitativo, porém, pragmático. Destaque-se aqui o emprego de obras de renomados
autores que tratam do tema em questão, a saber: Ladd, Brown, Ryle, Stott, Stern,
Bailey, dentre outros. Conclui-se, por conseguinte, que as “bem-aventuranças”
compreendem uma rica introdução, que coaduna com o Sermão de Jesus, enfocando-
se a segurança dos crentes bem como a esperança futura. Deveras, Jesus é o modelo
de “bem-aventurado”!

Palavras-chave: Bem-aventuranças; Felicidade; Jesus Cristo - Ensinamentos;


Sermão da Montanha; Vida cristã.

ABSTRACT

This work deals with the "beatitudes", which compose the introduction of the "Sermon
on the Mount" in the Gospel of Matthew and the Gospel of Luke collection entitled
"Sermon on the Plain." In order to do so, we will examine the use of the term "blessed"
in its original text in order to verify the preliminary approach to discourse. The proposal,
therefore, consists in answering to the various questions and inquiries, now
questioned, which are: "Would the contemporary 'beatitudes' be at the same time part
of an eschatological scenario?" "What extent can we verify their performance in
modern believers and what aspects would they understand the future promise?"
"Would the readers of the Gospels have any evidence or model with such
characteristics?" In addition, the objective is to identify elements that prove the duality
of the" beatitudes" and to analyze their modus operandi: in present security and in

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Pastor batista da Convenção Batista Brasileira (CBB/MG), filiado à Ordem dos Pastores Batistas do Brasil
(OPBB). É pós-graduando em Teologia do Novo Testamento Aplicada pela Faculdades Batista do Paraná
(FABAPAR), bacharel em Ciências Econômicas pela Faculdade de Ciências Econômicas do Triângulo Mineiro
(FCETM) e bacharelando em Teologia pela Faculdade Batista de Minas Gerais (FBMG).
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future hope. Here we record the methodology adopted based on the bibliographical
research, with a theoretical-qualitative but pragmatic approach. Renowned authors
deals with the theme in question like: Ladd, Brown, Ryle, Stott, Stern, Bailey, among
others. It follows, therefore, that the "beatitudes" comprise a rich introduction, which
fits in with the Sermon of Jesus, focusing on the safety of believers as well as future
hope. Indeed, Jesus is the model of "blessed"!

Keywords: Beatitudes; Happiness; Jesus Christ - Teachings; Sermon on the Mount;


Christian life.

1 INTRODUÇÃO

O mundo dos dias terrenos de Cristo, era marcado pelo domínio do poderoso
Império Romano, cujos imperadores, impunham aos arraiais judaicos, uma condição
de vida penuriosa. A desesperança e apatia, eram as características predominantes
nos sofridos judeus, em meados do século I. Não seria exagero dizer que a única
expectativa de libertação, era a do Messias restaurar o reino a Israel, o que foi
admitido pelos próprios discípulos, em Atos 1.6. Em resposta, Jesus reitera não caber
a eles saber os tempos e épocas reservados exclusivamente ao Pai (Atos 1.7).
Noutras palavras, o Reino tem aspectos terrenos, no entanto, possui outro conjunto
de valores e um viés espiritual inegável.
O público que se punha a ouvir o ensino do Senhor era, portanto, desvalido de
recursos materiais, sem uma estrutura de poder imperial favorável e sem qualquer
expectativa de melhora, por parte daquele governo. É neste cenário controverso que
Jesus apresenta um Reino, no qual os crentes gozarão segurança advinda do próprio
Deus. Desta feita, Ladd bem afirma não ser fácil decidir se “o Reino é futuro ou
presente. As bem-aventuranças têm um aspecto escatológico” (2003, P.103). A
parênese de Cristo, denominada “Sermão do Monte” ou “Sermão da Planície”,
retratados pelos evangelistas Mateus e Lucas, é de suma importância para
compreender a ética do Reino de Deus. O Senhor preconiza alguns traços que devem
estar presentes naqueles que hão de herdar o Reino escatológico, que deverão se
fazer notados no agora.
A extensão da parênese, especialmente no evangelho de Mateus, levar-nos-á
a enfocarmos apenas num dos tópicos essenciais e, que inaugura a alocução: as
“bem-aventuranças”. O conceito de “bem-aventurança”, do qual Jesus se utiliza, já
fora antes empregado na literatura grega, desde o poeta jônico Homero, no século IX
a.C. e possui um realce importante nas perícopes que serão analisadas, em
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pormenores, nos escritos de Mateus e Lucas. Trata-se de um estado já realizado de


felicidade, e não uma bênção que se espera ou invoca da parte de Deus. O realce
dado pelo Mestre é tão significativo, que contrasta sentimentos reputados de menor
importância (como pobreza, choro, fome, sede), com a herança prometida no futuro
e, ao mesmo tempo, o Reino já é. Esta atemporalidade é acentuada na perícope de
Mateus, enquanto Lucas sublinha uma crítica social e sociológica – ideias que se
complementam e nos permitem enxergar uma pintura mais ampla da parênese.
Pretende-se com este artigo, argumentar acerca da contemporaneidade das
“bem-aventuranças” e sua relevância no contexto escatológico. Explicar-se-á
inicialmente, o emprego original da expressão “bem-aventurado”, a fim de observar o
que se tencionou ao escolher um termo, em detrimento de outro. Isto posto, far-se-á
uma exegese nos conjuntos denominados “Sermão do Monte” e no trecho específico
do “Sermão da Planície”. Daí, observar-se-á as diferentes aplicações dos Evangelhos
de Mateus e Lucas, cuja conjuntura, destina-se à leitores primários. Enquanto Mateus
salienta os elementos presentes e futuros das “bem-aventuranças”, Lucas
contrabalança as “bem-aventuranças” com os “ais”. Por fim, ver-se-á o modelo
supremo de “bem-aventurado”, cumprindo-se cabalmente no múnus de Jesus.
O que se intenta, pois, é demonstrar a atemporalidade das “bem-aventuranças”
e seus efeitos nos salvos. Trata-se de uma obra divina na vida de cada crente ao invés
de um “modelo” a ser seguido mecanicamente. Ao cabo deste artigo, quer-se postular
uma posição veemente acerca dos benefícios das “bem-aventuranças” na vida
cotidiana e na consumação dos séculos.

2 O SIGNIFICADO ORIGINAL DO TERMO “BEM-AVENTURADO” NO GREGO

A fim de assimilar o sentido original dos Evangelhos de Mateus e Lucas, para


a passagem em epígrafe, faz-se necessário esclarecer as duas palavras previstas no
idioma grego para designar “bem-aventurado/abençoado”. O primeiro termo εὐλογέω
é usado “na oração quando quem ora pede a Deus uma bênção que ele, o indivíduo,
ou a comunidade estão desejosos de receber” (BROWN apud BAILEY, 2016, P.69).
As “bem-aventuranças”, no entanto, valem-se de outro vocábulo grego, a saber,
μακάριος. Bailey (2016) afirma acerca de μακάριος não se invocar alguma bênção e
sim, o reconhecimento do estado realizado de felicidade. Strong (2018, tradução
própria) corrobora definindo μακάριος:
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μακάριος (de mak-, "tornar longo, grande") – propriamente, quando Deus


estende Seus benefícios (a vantagem que Ele confere); abençoado. μακάριος
("abençoado") descreve um crente em invejável ("afortunada") posição de
receber provisões de Deus (favor) – as quais (literalmente) se estendem
("fazer longo, grande") Sua graça (benefícios). Isso acontece com o
recebimento (obediência) das intenções da fé de Deus.

Strong (2018, tradução própria) destaca o uso poético da palavra assim:


“μακάριος, μακαρία, μακάριον (poético μάκαρ) (de Píndaro, Platão para baixo),
abençoado, feliz: juntou-se aos nomes de Deus, 1 Timóteo 1:11; 1 Timóteo 6:15 (cf.
μακαρες Θεοί em Homero e Hesíodo)2”. Brown (1989) assente com este entendimento
ao afirmar que μακάριος é uma forma paralela de μάκαρ “atestado pela primeira vez
em Píndaro, e significa ‘livre dos cuidados e preocupações de todos os dias’”. Brown
(1989) elucida:

Na linguagem poética, descreve a condição dos deuses e daqueles que


compartilham da existência feliz deles. No século IV a.C., foi perdendo este
sentido, e veio a ser uma palavra de uso comum, como nossa palavra “feliz”,
sendo, portanto, evitada pelos poetas (cf. Platão, Meno, 71a). [...] Daí, pode-
se parabenizar uma pessoa por causa de um evento feliz.

Shedd (2011, P.13) traduz μακάριος como feliz, e, alega ainda, “não por causa
das circunstâncias externas, mas por causa da fé mediante a qual o crente recebe
antecipadamente os benefícios que Deus lhe prometeu (Hb 11.1)”. Coaduna com este
pensamento Stott (1989, P.22) quando alude que o vocábulo não se constitui de
deveres éticos, mas sim uma “fórmula básica para a saúde mental”, na qual “todos os
cristãos podem testemunhar da experiência de que há uma relação íntima entre a
santidade e a felicidade”. Neste quesito, Ryle (2002, P.28) assevera que o cristianismo
é uma religião prática, cujo padrão de santidade não pode ser inferior ao fomentado
no “Sermão da Montanha”. A afirmação de Ryle, portanto, aponta para o sentido ético
do cristão, em oposição à felicidade proporcionada pela santidade, defendida por
Shedd e Stott.

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Conforme BROWN (1989) descreve: “‘No seu conteúdo, as bem-aventuranças, que são comuns tanto na poesia
como na prosa, no decurso dos séculos, refletem as tristezas e aflições, as aspirações e os ideais dos gregos’ (F.
Hauck, TDNT IV 363). Os pais são parabenizados por causa dos seus filhos (Aristóf., Vespas, 1512), os ricos por
causa das suas riquezas (Baquíl., 5, 50), os são pela sua saúde (Bacchyl., 5, 50), os sábios por causa do seu
conhecimento (Platão, Leis, 2, 660e), os piedosos por causa do seu bem-estar interior (Eur., Frag. 256, ed. Nauck
434), iniciados por causa da sua experiência com Deus (Hino homérico a Deméter 480) e (nas inscrições
funerárias) os mortos por terem escapado à vaidade das coisas (Ésqu. Persas 712).”
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Brown (1989, P.299), reitera ser “meramente aspectos diferentes da atitude


para com um mundo que chega perto do fim, uma atitude de esperança e paciência
duradouras”. Conclui-se que, estas características são enfatizadas nas “bem-
aventuranças”.

3 AS “BEM-AVENTURANÇAS” EM MATEUS E LUCAS

Em primeiro lugar é necessário pormenorizar os aspectos dos Evangelhos de


Mateus e Lucas, no que tange aos seus destinatários. Mateus foi escrito
provavelmente na região da Síria-Palestina entre os anos 70-80 d.C., para um público
judeu (KEENER, 2017, P.43-44). Daí se verifica que Mateus retrata Jesus como a
epítome das esperanças de Israel (KEENER, 2017, P.45). O Evangelho de Lucas, por
sua vez, deve ter sido redigido em um momento não posterior à década de 70 d.C. e
endereçado aos gentios (KEENER, 2017, P.204). Uma das teorias mais prestigiadas
pelos eruditos bíblicos (dentre os quais, Friedrich Schleiermacher) trata da dupla fonte
para os Evangelhos de Mateus e Lucas: Evangelho de Marcos e “fonte Q”. Configura-
se como “fonte Q” (do alemão quelle) um texto dos ditos ou logia de Jesus. Sobre isto
devemos considerar:

Ao lado da hipótese marconiana (que afirma que o evangelho de Marcos é o


mais antigo), a hipótese da fonte Q foi estabelecida em 1900, e ambas
constituem os fundamentos dos estudos modernos sobre as origens dos
evangelhos. O estudioso inglês Burnett H. Streeter formulou uma visão
amplamente aceita de como seria a fonte Q: ela teria sido um documento
escrito (e não apenas uma tradição oral), composta em grego, e que quase
todo o seu conteúdo aparece em Mateus ou em Lucas, ou em ambos, e que
o evangelho de Lucas é o que mais preserva sua forma original na ordem do
texto do que Mateus. Na hipótese das duas fontes, Mateus e Lucas usam o
evangelho de Marcos e a fonte Q como suas fontes. Alguns eruditos postulam
que Q era na verdade uma pluralidade de fontes, algumas compostas por
escrito, e outras orais. Outros tem tentado determinar as etapas nas quais Q
foi composta.

Superada a questão da dupla fonte, examinemos a diversidade de tratamento


da questão “bem-aventuranças” por Mateus e Lucas. Segundo Bailey (2016, P.67):

O Evangelho de Mateus contém uma coletânea de ditos de Jesus chamada


“O Sermão do Monte” (Mt 5-7). Uma coletânea semelhante, mas menor,
aparece no Evangelho de Lucas e é chamada “O Sermão da Planície” (Lc
6.20-49). Lucas registra quatro bem-aventuranças positivas (“Bem-
aventurados os [...] porque ...”), equilibradas com as negativas
correspondentes (“Ai daqueles [...] porque ...”). Mateus apresenta uma lista
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de nove bem-aventuranças, mas não registra nenhuma negativa para


contrabalançar. Ele inclui as mesmas quatro que aparecem em Lucas e dá
aos leitores cinco outras não encontradas em Lucas.

Os quatro últimos pares de Lucas (ai dos ricos, dos satisfeitos, dos que riem e
dos respeitados) contrastam com os quatro primeiros pares (bem-aventurados os
pobres, os que têm fome, os que choram e os que forem odiados). Lucas se vale do
estilo conhecido como quiasmo. Michaelis (2018) define quiasmo como “figura de
estilo que consiste na repetição de duas frases do texto, invertendo-se sua ordem, de
maneira que se forme uma antítese ou um paralelo”. No contexto lucano a “bem-
aventurança” dos pobres é equilibrada com a “mal-aventurança” dos ricos. “O clímax
no meio é a única referência cristológica de toda a passagem” (BAILEY, 2016, P.67).
Percebe-se a importância da ênfase cristológica conforme Bailey (2016, P.68):

É impressionante notar que, tanto em Mateus quanto em Lucas, o par cujo


foco é a perseguição tem conteúdo extra no centro. Esse conteúdo a mais,
em ambos os textos, começa com negativas, que em seguida são
contrabalançadas com afirmações positivas. Em ambas as passagens
aparece uma afirmação cristológica no meio do ‘sanduíche’. [...] A diferença
é que em Lucas há sete palavras/expressões no centro, enquanto em Mateus
todas as bem-aventuranças formam um ‘sanduíche’ de sete expressões.
Esses sanduíches dão ao tema da perseguição uma ênfase importante e
singular.

Ressalte-se ainda, o aspecto escatológico das “bem-aventuranças” afora o


presente. Segundo Ladd (2003, P.103):

As bem-aventuranças consideram o Reino como uma dádiva. Os pobres de


espírito, os perseguidos por causa da justiça, recebem a dádiva (Mt 5.3,10).
Não é fácil decidir se nessas expressões o Reino é futuro ou presente. As
bem-aventuranças têm um aspecto escatológico. As afirmações sobre herdar
a terra, alcançar misericórdia (no dia do juízo) e ver a Deus são basicamente
escatológicas. Entretanto, o principal objetivo das bem-aventuranças é
ensinar uma bênção presente, em lugar de prometer bênçãos por ocasião da
consumação. [...] As bem-aventuranças manifestam tanto a salvação
escatológica como a bênção que pode ser desfrutada no presente.

Destarte há que se considerar, a manifestação da salvação, em parte presente,


na vida do eleito sendo a mesma, cabalmente realizada no período escatológico.
Vejamos detidamente, o contexto apresentado por cada escritor evangélico.

3.1 As “bem-aventuranças” em Mateus


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O Evangelho de Mateus apresenta um conjunto de nove “bem-aventuranças”


listadas sequencialmente. A primeira “bem-aventurança” é trazida em Mateus 5.3
(NVI): “Bem-aventurados os pobres em espírito, pois deles é o Reino dos céus”. Os
“pobres em espírito” não se tratam daqueles privados de bens materiais; mas sim,
uma designação para os humildes e piedosos, cônscios de sua necessidade da graça
de Deus (BAILEY, 2016). Ryle (2002, P.26) depreende que, Jesus se referia “aos
humildes, modestos quanto a seu auto-conceito, auto-rebaixados”, cientes de “sua
própria pecaminosidade diante de Deus”. Stott (1989, P.21) reitera que se trata aqui,
não de uma condição espiritual, daí “tinham firmado a sua fé e esperança em Deus”.
O “Reino dos céus”, portanto, aparece como promessa em Mateus 5.3,10. Sobre isso
Bailey (2016, P.71) notifica:

Mas o que realmente é o reino de Deus? A resposta a essa pergunta não é


simples. Tudo o que Jesus disse e fez está de alguma forma relacionado com
o reino de Deus. Diz respeito ao governo de Deus na vida dos indivíduos e
das sociedades. A Oração do Senhor tem a frase: ‘Venha a nós o vosso
reino’, que obviamente olha para um futuro que está se revelando. Contudo,
o reino já veio em Jesus Cristo, que disse: ‘Mas, se é pelo dedo de Deus que
eu expulso demônios, então o reino de Deus chegou a vocês’ (Lc 11.20).

Strong (2018) atesta que a expressão βασιλεία τῶν οὐρανῶν quer dizer: “um
reino sempre exige um rei – como o reino de Deus faz com o Rei Jesus! βασιλεία
especialmente refere ao governo de Cristo no coração dos crentes” (tradução própria).
Corrobora com este argumento, Dunnett (2015), ao afirmar da ocorrência da sentença
“reino dos céus”, exclusiva do Evangelho de Mateus (DUNNETT, 2015).
Isto posto, passemos à segunda “bem-aventurança” em Mateus 5.4 (NVI):
“Bem-aventurados os que choram, pois serão consolados”. Ryle (2002, P.26) ratifica
que Jesus estava se referindo àqueles “que se entristecem por causa do pecado, e
que também se lamentam diariamente por causa das suas próprias falhas”. Stott
(1989, P.30) reitera que “nós deveríamos chorar mais pela maldade do mundo, como
os homens piedosos dos tempos bíblicos”. Coaduna com esses conceitos, Bailey
(2016, P.73):

Esta bem-aventurança também apela para que os fiéis chorem por causa do
mal na própria vida deles, quando perceberem sua incapacidade de derrotá-
lo sem ajuda. A incapacidade de amar a Deus e ao nosso próximo deve
produzir tristeza em nós. Os bem-aventurados são aqueles que vivenciam
essa tristeza. [...] E o que acontece com as pessoas que choram por seu
próprio sofrimento e, ao mesmo tempo são insensíveis à dor dos outros? Não
há qualquer indício de que tais pessoas estejam entre os bem-aventurados.
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Em contrapartida, os que têm consciência de sua incapacidade de cumprir a


régia Lei divina de amar a Deus e ao próximo desfrutarão o consolo de Deus
em meio ao seu choro.

A terceira “bem-aventurança” se encontra em Mateus 5.5 (ARA): “Bem-


aventurados os mansos, porque herdarão a terra”. A tradução NVI traz humildes ao
invés de mansos, mas trataremos da tradução original. Bailey (2016, P.75-76) relata:

O termo grego prays (‘manso’) não se refere a uma pessoa na presença de


Deus, mas, sim designa relações entre pessoas. Aristóteles, na Ética a
Nicômaco, obra do quinto século a.C., define prays como a virtude de agir no
meio-termo entre a imprudência, por um lado, e a covardia, por outro. Para
Aristóteles, o caminho da virtude sempre foi a ‘média dourada’ entre os dois
extremos. O indivíduo verdadeiramente prays (manso) é aquele que fica com
raiva pelo motivo certo, contra a pessoa certa, da maneira certa, no momento
certo e pelo período certo de tempo. O significado da palavra hebraica por
trás do texto nos manda aceitar a orientação de Deus e seguir
obedientemente a vontade de Deus. A palavra grega nesse texto aconselha
uma via ética média que ajudará a resolver problemas, conflitos e
desentendimentos. Pode-se dizer com segurança que os dois matizes de
sentido fazem parte dos tesouros no texto.

Stott (1989, P.32) acrescenta ainda acerca dos “mansos”, o autocontrole


refletido primordialmente em seus relacionamentos pessoais, dando-se de forma
cortês, gentil, humilde e atenciosa. Ressalte-se, pois, a fonte deste comportamento
baseado em “uma estimativa correta de si mesmo” (STOTT, 1989). Para Ryle (2002,
P.27) os “mansos” são “os que se dispõem a serem com pouca honra neste mundo,
capazes de sofrer injustiças sem guardar ressentimentos”. Desta perspectiva, advém
a promessa de herdar a terra. A herança da terra não é para descendentes étnicos ou
a homens dados à violência; e sim, para os filhos de Deus “que cuidarão dela e nela
viverão com harmonia” (BAILEY, 2016). Stott (1989, P.33) bem aduz:

Até mesmo os filhos de Israel tiveram de lutar por sua herança, embora o
Senhor seu Deus lhes desse a terra prometida. Mas a condição pela qual
tomamos posse de nossa herança espiritual em Cristo não é a força, mas a
mansidão, pois, conforme já vimos, tudo é nosso se somos de Cristo.

A quarta “bem-aventurança” se encontra em Mateus 5.6 (NVI): “Bem-


aventurados os que têm fome e sede de justiça, pois serão satisfeitos”. Conforme
Bultmann (1955 apud BAILEY, 2016, P. 81) “Mateus 5.6 obviamente não se refere
àqueles que ‘sempre tentando, se esforçam’ para atingir a perfeição ética, mas
àqueles que anelam que Deus pronuncie o veredicto ‘justo’ como decisão sobre eles
no juízo”. Enfatiza Bultmann (1955 apud BAILEY, 2016, P. 80) que a justiça “não é
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algo que alguém tem em si mesmo; ao contrário, é algo que a pessoa tem no veredicto
do ‘fórum’ perante o qual ela presta contas”. Justiça, portanto, é imputada e não
meritória. Se obtém através de Cristo, como destaca Paulo: “Deus tornou pecado por
nós aquele que não tinha pecado, para que nele nos tornássemos justiça de Deus” (2
Coríntios 5.21 NVI). Vejamos como diz Bailey (2016, P.83):

A justiça de Deus são seus atos salvíficos na história. Essa salvação concede
a seu povo o dom de aceitação diante dele. Por sua vez, esse povo busca
incansavelmente o estilo de vida adequado ao relacionamento que lhe é
concedido como dom. Molda sua resposta segundo o modo que Deus lidou
com ele com seus poderosos atos em seu favor. Essa resposta inclui justiça
e compaixão para com os fracos.

Superado o conceito de justiça passemos à “fome e sede”. Stott (1989, P.34)


ratifica que “os famintos e os sedentos que Deus satisfaz são, aqueles que ‘têm fome
e sede de justiça’. Tal fome espiritual é uma característica do povo de Deus, cuja
ambição suprema não é material, mas espiritual”. Ryle (2002, P.27) concorda quando
diz: “eles anelam não tanto por se tornarem ricos ou poderosos ou eruditos, mas por
serem santos [...] um dia terão o suficiente do que desejam”. A saciedade aqui é
espiritual e não material, é um anelo por santidade.
A quinta “bem-aventurança” é esta: “Bem-aventurados os misericordiosos, pois
obterão misericórdia” (Mateus 5.7 NVI). Firmado nisto, Bailey (2016, P.84) explana
que “reagir à necessidade humana com compaixão e ação é a essência do que
significa ser misericordioso. Mas tem mais... Ser misericordioso e receber misericórdia
está profundamente relacionado a perdoar e a ser perdoado”. Faz sentido esta
afirmação ao notar-se que o Evangelho de Mateus versará acerca do tema no corpo
do “Sermão do Monte”, em 6.14-15 (NVI): “Pois, se perdoarem as ofensas uns dos
outros, o Pai celestial também perdoará vocês. Mas, se não perdoarem uns aos
outros, o Pai celestial não perdoará as ofensas de vocês”.
Segundo Lenski (1964 apud STOTT, 1989, P.37):

O substantivo eleos (misericórdia) [...] sempre trata da dor, da miséria e do


desespero, que são resultados do pecado; e charis (graça) sempre lida com
o pecado e com a culpa propriamente ditos. A primeira concede alívio; a
segunda, perdão; a primeira cura e ajuda, a segunda purifica e reintegra.

Do mesmo modo, “os misericordiosos receberão a misericórdia de Deus. A


misericórdia de seus companheiros humanos pode ser escassa, mas a misericórdia
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de Deus jamais lhes faltará” (BAILEY, 2016). Assim, “os misericordiosos” “se mostram
compassivos com seus semelhantes” (RYLE, 2002). Daí a promessa para os que
agirem com misericórdia: o perdão de seus pecados por Deus.
A sexta “bem-aventurança” está escrita em Mateus 5.8 (NVI): “Bem-
aventurados os puros de coração, pois verão a Deus”. Para Bailey (2016, P.86):

Søren Kierkegaard, o filósofo e teólogo dinamarquês do século 19, é bem


conhecido por seu argumento de que os puros de coração são aqueles que
desejam uma só coisa. Ele reconhecia a realidade de que, muitas vezes, por
trás do comportamento humano se encontra uma multiplicidade de motivos.
Com os puros de coração, ‘as aparências não enganam’, numa expressão
coloquial. Eles têm um motivo para o que fazem e não têm segundas
intenções.

O escrito de Mateus relembra quase literalmente o Salmo 24.3-4: “Quem


poderá subir o monte do Senhor? Quem poderá entrar no seu Santo Lugar? Aquele
que tem as mãos limpas e o coração puro, que não recorre aos ídolos nem jura por
deuses falsos”. Os “puros de coração” não almejam uma exibição externa de
religiosidade e sim, uma santidade interior (RYLE, 2002). Stott (1989), reitera ainda,
que os “puros de coração” são inteiramente sinceros e sua vida é transparente diante
de Deus e dos homens.
A sétima “bem-aventurança” em Mateus 5.9 (NVI) é assim prolatada: “Bem-
aventurados os pacificadores, pois serão chamados filhos de Deus”. Stott (1989, P.41)
destaca que “a pacificação é uma obra divina, pois paz significa reconciliação, e Deus
é o autor da paz e da reconciliação”. Bailey (2016, P.86) bem aduz da paz “aqui
referida é sobretudo a paz de Deus, que [...] ‘excede todo o entendimento’ (Fp 4.7)”.
Para Ryle (2002), os “pacificadores”, sobretudo, farão uso de sua influência pessoal
para promover a paz e o amor, onde estiverem.
A oitava “bem-aventurança” é apresentada em Mateus 5.10 (NVI): “Bem-
aventurados os perseguidos por causa da justiça, pois deles é o Reino dos céus”.
Bailey (2016, P.87) relaciona a perseguição mencionada no versículo a todas as
outras “bem-aventuranças” ao dizer dos “que se acham desprezados por que
promovem essas coisas podem afirmar com legitimidade que são ‘perseguidos por
causa da justiça’ e que o reino é deles”. Não será o caso de discorrer-se acerca da
justiça, tratada minuciosamente na quarta “bem-aventurança”. Temos como fonte da
perseguição o esforço por se viver como verdadeiros crentes (RYLE, 2002). Atesta
Stott (1989, P.43), “a perseguição é simplesmente o conflito entre dois sistemas de
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valores irreconciliáveis”. Os “perseguidos” o são a contragosto daqueles que


rejeitaram Cristo, a quem deseja-se seguir fielmente.
Por fim, a nona “bem-aventurança” é trazida em Mateus 5.11-12 (NVI): “Bem-
aventurados serão vocês quando, por minha causa, os insultarem, os perseguirem e
levantarem todo tipo de calúnia contra vocês. Alegrem-se e regozijem-se, porque
grande é a sua recompensa nos céus, pois da mesma forma perseguiram os profetas
que viveram antes de vocês”. Diz Ryle (2002, P.28), “o mundo menospreza as próprias
virtudes que nosso Senhor Jesus exaltou”, esta é a condição si ne qua non se impõe
a perseguição, insultos e calúnias sofridos pelos eleitos. Para Bailey (2016, P.86):

Houve agora uma mudança fundamental nas bem-aventuranças. Até esse


ponto todas elas podem ser explicadas com base nas Escrituras hebraicas.
No entanto, algo surpreende o leitor. Esses oito elevados padrões têm sua
melhor expressão na vida de Jesus. O leitor aos poucos chega a essa
conclusão à medida que a lista se alonga. Na nona bem-aventurança, a
lealdade à pessoa de Jesus é apresentada abertamente. Essa mesma
lealdade é inevitável se o leitor se volta para Jesus como o modelo de
cumprimento do padrão de justiça.

Vale ressaltar ainda que “a perseguição é um sinal de genuinidade, um


certificado da autenticidade cristã, pois assim perseguiram aos profetas que viveram
antes de nós (STOTT, 1989). Sendo assim, “podemos perder tudo aqui na terra, mas
herdaremos tudo nos céus, não como uma recompensa meritória, mas porque ‘a
promessa da recompensa é gratuita’” (STOTT, 1989). Ante à perseguição, o cristão
deve se alegrar e exultar “porque grande é a sua recompensa nos céus”.
Os aspectos do presente nas “bem-aventuranças” podem ser sobrepostos ao
que Paulo denomina “fruto do Espírito” em Gálatas 5.22-23 (NVI): “Mas o fruto do
Espírito é amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade, mansidão
e domínio próprio. Contra essas coisas não há lei”. O estado já realizado de “bem-
aventurado” é possível por obra do Espírito Santo na vida dos crentes. Senão,
vejamos.
O “amor” está relacionado em todas as “bem-aventuranças”, mas, sobretudo,
nos “misericordiosos” (Mateus 5.7). “Alegria” se apresenta nominalmente na nona
“bem-aventurança” (Mateus 5.11-12). A “paz” é manifesta nos “pacificadores” (Mateus
5.9). “Amabilidade” é característica dos “mansos” e “pacificadores” (Mateus 5.5,9). A
“bondade” é expressa nos “puros de coração” (Mateus 5.8). “Fidelidade” ou “fé” está
presente na certeza da promessa aos “perseguidos por causa da justiça” (Mateus
12

5.10). “Mansidão” é qualidade dos “mansos”, bem como “domínio próprio” (Mateus
5.5). Os “pobres em espírito” e os que “choram”, só o fazem por obra do Espírito Santo,
convencendo o homem do pecado, da justiça e do juízo (João 16.8). Shedd (2011,
P.125) corrobora dizendo que “seria fácil concluir que esse fruto crescerá de modo
natural, independentemente de qualquer iniciativa nossa”.
Há que se considerar, entretanto, haver um aspecto escatológico nas “bem-
aventuranças”. Mateus elenca as seguintes promessas futuras: “serão consolados”
(Mateus 5.4), “receberão a terra por herança” (Mateus 5.5), “serão satisfeitos” (Mateus
5.6), “obterão misericórdia” (Mateus 5.7), “verão a Deus” (Mateus 5.8), “serão
chamados filhos de Deus” (Mateus 5.9) e “grande é a sua recompensa nos céus”
(Mateus 5.12). Conclui-se, por conseguinte, que as “bem-aventuranças” são um
estado realizado, concreto para o presente muito embora, se manifestará de forma
peremptória no período escatológico, na consumação dos tempos.

3.2 As “bem-aventuranças” em Lucas

Não se dá o caso de se repetir a exegese das expressões “pobres”, “famintos”,


“que choram” e “os perseguidos”. Lucas endereça seu Evangelho ao mundo gentio e
sua abordagem vale-se da compreensão de seu público. Stott (1989, P.19-20)
assevera:

Sabemos muito bem que há uma discrepância, pelo menos verbal, entre as
bem-aventuranças do Evangelho de Mateus e as de Lucas. Assim, Lucas diz:
‘Bem-aventurados vós os pobres’, enquanto que Mateus declara: ‘Bem-
aventurados os humildes (pobres) de espírito’. Em Lucas temos: ‘Bem-
aventurados vós os que agora tendes fome’ e, em Mateus: ‘Bem-aventurados
os que têm fome e sede de justiça’. Por causa disto, alguns argumentam que
a versão de Lucas é a verdadeira; que Jesus estava julgando os pobres e os
famintos do ponto de vista social ou sociológico; que ele estava prometendo
alimento aos subnutridos e ao proletariado no reino de Deus; e que Mateus
espiritualizou o que constituía originalmente uma promessa material. Mas
esta interpretação é impossível, a não ser que estejamos prontos a crer que
Jesus se contradisse ou que os evangelhos foram demasiado ineptos para
fazê-lo parecer assim.[...] Com isso não sugerimos que Jesus ficasse
indiferente à pobreza e fome físicas. Pelo contrário, ele sentia compaixão
pelos necessitados e alimentava os famintos, e disse aos seus discípulos que
fizessem o mesmo. Mas a bênção do seu reino não era em primeiro lugar
uma vantagem econômica.

Destaque-se a literatura contendo a dualidade “bênçãos” e “maldições” era uma


forma comum, especialmente, no Antigo Testamento e no judaísmo. No texto em voga
13

de Lucas 6.20-26 “é possível que elas façam um paralelo com as bênçãos e maldições
da aliança anunciadas nos montes em Deuteronômio 27-28” (KEENER, 2017, P.227).
Sobre as bênçãos e maldições específicas dos escritos lucanos em apreço é
verossímil traçar um paralelo com Isaías 65.13-16 (KEENER, 2017).
Tratar-se-á da ênfase dada por Lucas ao tema perseguição. A tabela mostra o
quiasmo apresentado no “Sermão da Planície”:

Tabela 1 – As “bem-aventuranças” em Lucas 6.20-26

Bem-aventurados vocês os pobres, BEM-AVENTURADOS – POBRES


pois a vocês pertence o Reino de Deus. Porque – Reino
Bem-aventurados vocês que agora têm BEM-AVENTURADOS – FAMINTOS
fome, Porque – Satisfeitos
pois serão satisfeitos.
Bem-aventurados vocês que agora BEM-AVENTURADOS – QUE CHORAM
choram, Porque – Rirão
pois haverão de rir.
Bem-aventurados serão vocês quando BEM-AVENTURADOS – ODIADOS
os odiarem,
expulsarem -
e insultarem, -
e eliminarem o nome de vocês, como -
sendo mau,
por causa do Filho do homem. Por causa do Filho do Homem
Regozijem-se nesse dia +
e saltem de alegria, +
porque grande é a sua recompensa no +
céu. Pois assim os antepassados deles Porque – O mesmo com os profetas
trataram os profetas.
Mas ai de vocês os ricos, AI – RICOS
pois já receberam sua consolação. Porque – Famintos
Ai de vocês que agora têm fartura, AI – SATISFEITOS
porque passarão fome. Porque – Chorarão
Ai de vocês que agora riem, AI – OS QUE RIEM
pois haverão de se lamentar e chorar. Porque - Chorarão
Ai de vocês quando todos falarem bem AI – RESPEITADOS
de vocês, pois assim os antepassados Porque – O mesmo com os falsos
deles trataram os falsos profetas. profetas
Fonte: Bailey, 2016, P.68.

Uma ênfase importante e singular é dada à perseguição, numa referência


cristológica do texto (BAILEY, 2016). Fazendo jus ao exposto, ressalte-se que a
maioria dos judeus eram pobres, o que se ocasionou “especialmente depois de o
general romano Pompeu redistribuir a terra dos judeus, cerca de um século antes de
14

Jesus” (Keener, 2017, P.227). De igual modo, “a fome afligia as famílias pobres nos
tempos de carestia (a situação da Palestina rural era melhor que a do Egito, mas pior
que a de Corinto ou da Itália)” (Keener, 2017, P.227). Depreende-se daí a
perseverança, da qual os crentes precisariam dispor nos dias de Jesus, para
sobreviver às chicanas do Império Romano.
O contraponto seria feito em relação aos destinatários dos “ais”. Segundo
Keener (2017, P.228) “a maioria dos ouvintes de Jesus era pobre, mas os leitores
greco-romanos urbanos de Lucas provavelmente vivam em melhores condições [...]
Lucas não poupa o próprio público”. O riso estava associado ao escárnio (KEENER,
2017). Com relação aos “respeitados” Keener (2017, P.228) afirma:

Os filósofos gregos, que desprezavam, com frequência, a opinião das


massas, às vezes chegavam a se queixar quando as multidões falavam bem
deles. Mas a comparação que Jesus faz com os profetas é ainda mais
adequada: o ônus da prova estava sempre com aqueles profetas que diziam
às pessoas o que elas queriam ouvir (Jr 6.14; 28.8,9). Embora os ouvintes
muitas vezes suspeitassem haver alguma verdade nas afirmações dos
profetas genuínos (Jr 21.1,2; 37.3; 42.2; cf. 1Rs 22.27), os profetas falsos
costumavam desfrutar de maior popularidade (1Rs 22.12,13; Jr 5.31;
23.13,14).

Desse modo, Lucas se dirige aos seus ouvintes alertando-os em relação ao


seu status quo. “Chorar era sinal de luto ou arrependimento” (Keener, 2017, P.227).
Sem arrependimento por parte da sociedade greco-romana urbana não desfrutariam
das “bem-aventuranças”; em contrapartida, aqueles que estavam sofrendo
perseguições e privações, deveriam se alegrar por serem “bem-aventurados” e lhes
estar reservada uma grande recompensa celestial. Conclui-se daí a ambivalência
entre a segurança presente das “bem-aventuranças” e sua esperança escatológica,
cujas promessas se cumprirão plenamente no Reino.

4 JESUS, O MODELO DE “BEM-AVENTURADO”

A interligação entre as “bem-aventuranças” e o Reino de Deus é inexorável.


Neste ponto, Brown (1989, P. 299) bem aduz:

Os pronunciamentos escatológicos se distinguem dos apocalípticos pelas


suas declarações paradoxais (o reino pertence aos humildes de espírito, aos
fracos, aos tristes), e pelo fato de ser este reino de Deus vinculado com a vida
e mensagem de Jesus. Exemplificam aquilo que Mt 11:5 quer dizer: a
mensagem de alegria é trazida aos pobres. A salvação que aqui se anuncia
15

depende do reino vindouro de Deus, o qual, por sua vez, é inseparável


dAquele que o traz.

Desta feita, Jesus é o elo de ligação entre a salvação (em seu estado final e
definitivo) e o Reino de Deus que se manifestará em sua vinda (παρουσία). Vivemos
no interregno “entre a inauguração do domínio (reino) de Deus, na vinda de Jesus
Cristo, e sua conclusão, no final da história” (Bailey, 2016, P.71). Não tendo a história
chegado ao seu desfecho, é oportuno valer-se de um modelo de “bem-aventurado”, a
saber, Jesus. O clímax se dá na nona “bem-aventurança” trazida por Mateus e a
quarta de Lucas, tornando-se indissociável à pessoa de Jesus (BAILEY, 2016).
Duas passagens caracterizam Jesus como modelo de “bem-aventurado”, quais
sejam: Filipenses 2.5-11 e Isaías 53. Enquanto o Imperador Nero ambicionava tornar-
se divino, Jesus renuncia voluntariamente à sua alta posição (KEENER, 2017). “O
‘servo’ de Isaías 53 também foi ‘derramado’ ou ‘esvaziou-se’, ainda que não na
encarnação, mas na morte (Is 53.12; cf. Fp 2.8).” (Keener, 2017, P.669). O ápice da
humilhação de Cristo é a sua morte na cruz. Keener (2017, P.669) afirma:

Nas histórias dos mártires, o judaísmo louvava a obediência até a morte. A


crucificação era a forma mais degradante de execução, reservada aos
criminosos não romanos escravizados ou aos homens livres da mais baixa
posição social. Os autores e oradores às vezes reiteravam alguma palavra
(‘morte’, aqui) para conferir maior ênfase à mensagem.

O apóstolo Paulo ainda ressalta a importância da morte na cruz, rememorando


Deuteronômio 21.23, quando escreve em Gálatas 3.13 (NVI): “Cristo nos redimiu da
maldição da Lei quando se tornou maldição em nosso lugar, pois está escrito: ‘Maldito
todo aquele que for pendurado num madeiro’”. Vale considerar que Filipenses 2.9 é o
ponto-de-virada da narrativa, passando da humilhação para a exaltação. Paulo
possivelmente está “contrastando a exaltação realizada por Deus com o sofrimento
pelo qual Jesus passou entre os seres humanos” (Keener, 2017, P.669). Destaque-
se, entretanto, que a ênfase paulina vem a calhar no aspecto atemporal das “bem-
aventuranças”: nesta terra os eleitos poderão padecer perseguições, mas ao cabo
obterão as promessas no Reino vindouro.
Filipenses 2.10 dá a dimensão da exaltação de Deus a Cristo quando diz que
“todos os seres de todas as categorias existentes são obrigados a reconhecer a
soberania de Cristo, porque ele está exaltado acima de todos. Era comum ajoelhar-se
em obediência diante de um soberano ou de uma divindade” (Keener, 2017, P.669).
16

A mitologia grega incluía a adoração a deuses no céu, na terra, no mar e no mundo


subterrâneo; Jesus se mostrará superior a Zeus, Poseidon, Hades e todas as
divindades gregas, ao passo que todos terão que se dobrar diante de sua sublimidade
divinal (KEENER, 2017).
Conclui-se, por conseguinte, que Jesus padeceu toda sorte de sofrimentos,
culminando na aviltante crucificação, mas, não obstante, a exaltação veio de Deus. O
modelo de “bem-aventurado” sofreu para dar exemplo e de igual modo, suscitou a
esperança do galardão no Reino de Deus. Pedro afirmou:

Para isso vocês foram chamados, pois também Cristo sofreu no lugar de
vocês, deixando exemplo, para que sigam os seus passos. Ele não cometeu
pecado algum, e nenhum engano foi encontrado em sua boca. Quando
insultado, não revidava; quando sofria, não fazia ameaças, mas entregava-
se àquele que julga com justiça. Ele mesmo levou em seu corpo os nossos
pecados sobre o madeiro, a fim de que morrêssemos para os pecados e
vivêssemos para a justiça; por suas feridas vocês foram curados. (1 Pedro
2:21-24 NVI).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em face do exposto, conclui-se que, as “bem-aventuranças” são uma obra


exclusiva do Espírito Santo, legada a todos que se convertem de seus maus
caminhos. Elas representam a mudança de comportamentos e atitudes, semelhantes
àquelas observadas em Jesus ao longo de sua vida e ministério. Observa-se, pois, na
vida dos que se propõem a andar de modo digno do Senhor, uma preocupação ética
com sua conduta de vida, que está presente em todos os seus relacionamentos. Este
fato, sobrepuja uma mera vontade, extrapolando simples desejos pessoais, e,
consolidando-se num modus vivendi cristão.
O grande realce desta transformação, promovida pelo Espírito Santo, se faz
notar em relação ao mundo no qual se vive. Muito embora houvesse pobreza, choro,
fome, sede, sublinhando o sofrimento dos judeus ante o Império Romano, agora, há
a esperança do Reino, da saciedade da justiça, a promessa da “terra”, a “Jerusalém
Celestial”. É possível suportar os dissabores nesta vida, porque o Senhor mesmo
fortalecerá os seus, aos quais já serviu de “modelo de bem-aventurado”, e cujas
promessas escatológicas, não deixarão de se cumprir.
Não obstante, denota-se que empiricamente se verificam virtudes já presentes
na vida dos eleitos, há que se contrastar com aqueles, cujos objetivos de vida, não
17

pressupõem agradar a Deus. Daí se faz mister ressaltar que, por esforços humanos
(ainda que louváveis sejam), o homem não consegue atingir o patamar estabelecido
por Deus para os seus filhos. Nestes tais, resta a expectação de juízo, caso não se
observe um arrependimento genuíno. Certamente, os fariseus e sua justiça própria,
nos servem de paradigmas deste outro padrão. Rituais ascéticos de purificação,
observância de práticas estritamente religiosas, orações profusas e repetitivas, a
despeito de impressionar os leigos, não tem qualquer efeito em termos de salvação.
Há que se ressaltar, entretanto, não se tratar de uma utopia, algo inatingível,
mas possível por obra exclusiva do Espírito Santo. Assim sendo, a divergência lucana
sublinha “bem-aventuranças” dos salvos (apesar de pobres, famintos, de chorarem e
serem odiados), como mais virtuosos em relação aos ricos, que se fartam, que riem e
são elogiados por outrem, mas “ai” deles. Mateus, complementarmente, demonstra as
promessas de agora e do futuro. Não podemos afirmar qual dos dois traz a versão
original de Jesus, no entanto, a comunicação se dá satisfatoriamente nos ouvintes
judeus e gentios, de ambos os evangelhos. A mensagem é clara e direta ao coração
dos homens!
Desta feita, Jesus constitui-se o modelo de “bem-aventurado”. Ele é o varão
perfeito, no qual todo homem de Deus deve espelhar-se. Devemos considerar as
agruras e sofrimentos presentes como transitórios, incapazes de ofuscar a glória que
há de se manifestar naqueles, cujos corações estão em Deus. Imprescindível dizer,
portanto, que o efeito pragmático das “bem-aventuranças” consistirá na segurança
presente e a esperança futura de salvação, enquanto o Senhor trabalha na vida dos
salvos, operando nos tais, a santificação.
Conforme observado no decurso deste artigo, as “bem-aventuranças” são o
aspecto central e introdutório do “Sermão do Monte”, no evangelho de Mateus.
Constitui-se num discurso sobre a ética do Reino de Deus. A importância deste
assunto poderá servir àqueles que, posteriormente, quiserem pesquisar sobre tão
relevante tema. A dialética de Lucas, entre “bem-aventuranças” e “ais”, componentes
do mesmo discurso de Jesus, também é um tema que pode estimular novos estudos,
bem como as constatações atemporais, enfatizadas por Mateus. As probabilidades
são muitas, e novas pesquisas poderão lançar mais luz sobre este tópico, viabilizando
novas perspectivas. Quaisquer investigações que se empreendam sobre o assunto,
são notícias auspiciosas aos que querem se servir do conhecimento infindável da
Palavra de Deus e dos ensinos do Senhor Jesus...
18

REFERÊNCIAS

A hipótese da fonte Q e as origens dos evangelhos de Mateus e Lucas. Disponível


em: <http://www.efapsaocarlos.net.br/docs/hipotese_fonte_Q.pdf>. Acesso em: 01
fev. 2018.

BAILEY, Kenneth E. Jesus pela ótica do Oriente Médio: Estudos culturais sobre os
evangelhos. 1ª Edição. São Paulo: Vida Nova, 2016. 448 p.

BROWN, Colin. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo


Testamento: Volume I: A-D. 1ª Edição. São Paulo: Vida Nova, 1989. 710 p.

DUNNETT, Walter M. Panorama do Novo Testamento. 1ª Edição. São Paulo: Vida


Nova, 2015. 144 p.

KEENER, Craig S. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia. 1ª Edição. São Paulo:


Vida Nova, 2017. 960 p.

LADD, George Eldon. Teologia do Novo Testamento. 1ª Edição. São Paulo: Hagnos,
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RYLE, J. C. Meditações no evangelho de Mateus. 2ª Edição. São Paulo: Fiel, 2002.


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STERN, David H. Comentário Judaico do Novo Testamento. 1ª Edição. Belo


Horizonte: Atos, 2008. 946 p.
19

STOTT, John R.W. A mensagem do Sermão do Monte. 2ª Edição. São Paulo: ABU,
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Acesso em: 01 fev. 2018.

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