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IPEMIG/FACULDADE BATISTA DE MINAS GERAIS

THALES DE PAULA RODRIGUES

OS DONS ESPIRITUAIS:
DEBATE ENTRE O CONTINUACISMO E O CESSACIONISMO

BELO HORIZONTE/MG – 2020

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THALES DE PAULA RODRIGUES

OS DONS ESPIRITUAIS:
DEBATE ENTRE O CONTINUACISMO E O CESSACIONISMO

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado ao IPEMIG/Faculdade
Batista de Minas Gerais como pré-
requisito para obtenção do título de
Especialista em Teologia

BELO HORIZONTE/MG – 2020

1
RESUMO

O presente trabalho tratará da controvérsia entre os que creem na


continuidade dos dons espirituais (continuacionistas) e os que creem na cessação
dos dons (cessacionistas). Para tanto, analisar-se-á o que sejam dons espirituais e
sua conceituação, sistematizando o tema. Para se estudar tema tão complexo, faz-
se necessário constatar o que os reformadores da igreja pensavam a seu tempo,
com relação aos dons do Espírito Santo. Passadas as conceituações, passar-se-á
ao debate entre os continuacionistas e cessacionistas e seus diversos argumentos e
teses. Registre-se daí a metodologia adotada embasada na pesquisa bibliográfica,
de cunho teórico-qualitativo, porém, pragmático. Destaque-se aqui o emprego de
obras de renomados autores que tratam do tema em questão, a saber: Armínio,
Calvino, Schreiner, Carson, Storms, Verbrugge, Reid, Grudem, dentre outros.
Conclui-se que a moderação neste assunto pode ser a melhor solução, sem que se
enverede por um caminho, excluindo-se automaticamente o outro lado da história.
Deveras, os dons espirituais continuam sendo um tema polêmico e cujos estudos,
devem sempre ser fomentados.

Palavras-chave: Dons espirituais; Cessacionismo; Continuacionismo.

ABSTRACT

The present work will deal with the controversy between those who believe in
the continuity of spiritual gifts (continuationist) and those who believe in the cessation
of gifts (cessationist). For that, it will be analyzed what are spiritual gifts and their
conceptualization, systematizing the theme. To study such a complex subject, it is
necessary to verify what the church reformers thought at their time, regarding the
gifts of the Holy Spirit. Once the conceptualizations are over, the debate will continue
between the continuationists and cessationists and their various arguments and
theses. Hence the methodology adopted based on bibliographic research, which is
theoretical and qualitative, but pragmatic. We highlight here the use of works by
renowned authors that deal with the subject in question, namely: Arminius, Calvin,
Schreiner, Carson, Storms, Verbrugge, Reid, Grudem, among others. It is concluded
that moderation in this matter can be the best solution, without going down a path,
automatically excluding the other side of the story. Indeed, spiritual gifts remain a
controversial topic and whose studies should always be encouraged.

Keywords: Spiritual gifts; Cessationism; Continuationism.

2
SUMÁRIO

Resumo ...................................................................................................................... 2
Abstract ...................................................................................................................... 2
1 Introdução ............................................................................................................... 4
2 Conceituação de dons espirituais ........................................................................... 5
3 A questão dos dons espirituais para os reformadores da igreja ............................. 5
4 O debate entre o continuacismo e o cessacionismo nos dons de profecia, línguas e
cura ............................................................................................................................ 8
5 Conclusão ............................................................................................................. 13
6 Referências ........................................................................................................... 14

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1 INTRODUÇÃO

Observa-se ao redor do mundo, um crescimento exponencial do


evangelicalismo carismático em relação àquele tradicional. Apesar do pouco tempo
de existência do movimento pentecostal, remetendo-se ao chamado “avivamento da
Rua Azusa” no início do século XX, percebe-se uma adesão maior a este nicho,
comparativamente às denominações históricas. Tal tensão, acende o debate entre
aqueles que creem na continuidade dos dons espirituais até os dias de hoje (os
chamados continuacionistas) e aqueles que creem que os dons espirituais cessaram
com os apóstolos (que se denominam cessacionistas). O continuacionismo é,
majoritariamente, a posição daqueles que se denominam pentecostais; o
cessacionismo, por sua vez, é a vertente hegemônica daqueles que se denominam
tradicionais ou históricos. Muito embora, seja verdadeiro afirmar, que há certo
hibridismo, por assim dizer, no meio protestante.
Este trabalho versará por conceituar o que são dons espirituais, em suas
diversas elucidações. Tratar-se-á, também, dos pressupostos históricos daqueles
que são os maiores vultos entre os reformadores, emprestando seus nomes aos
principais sistemas teológicos que derivam daí: Jacob Herman (ou Jacó Armínio) e
Jean Calvin (ou João Calvino). Em seguida, definir-se-á o que arvoram os
pensamentos cessacionista e continuacionista, e em que argumentos fiam seus
desígnios. Por fim, se debaterá aquela que é a maior divergência entre ambos os
entendimentos: teriam os dons cessado ou não?
O presente artigo não tem a pretensão de esgotar o debate sobre a cessação
ou não dos dons espirituais, no entanto, intenta contribuir para fomentar sua
discussão séria, acadêmica e desapaixonada. O método empregado para se obter
tais fins será a pesquisa bibliográfica, valendo-se de autores reconhecidos como
Jacó Armínio, João Calvino, Thomas Schreiner, Donald Arthur Carson, Sam Storms,
Verlyn Verbrugge, Daniel Reid, Wayne Grudem, dentre outros.

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2 CONCEITUAÇÃO DE DONS ESPIRITUAIS

Faz-se necessário neste preâmbulo, conceituar o que sejam os dons


espirituais. Reid (2012, p.495) entende que “as mudanças que o Espírito opera e os
dons espirituais que ele concede ao indivíduo não constituem mero
autodesenvolvimento: os crentes devem usá-los para benefício de seus irmãos em
Cristo (1Co 12.7;14.5-26)”. Corrobora com este entendimento a definição de
Verbrugge (2018, p.627):

Para Paulo, a multiforme manifestação da única graça nos cristãos


individuais, por um só Espírito, é charisma, uma dotação pessoal de graça.
Esse é o uso especializado de charisma, distinto do geral [...] Em Rm 12.3-8
e 1Co 12, Paulo desenvolve o significado desta dotação especial para o
serviço à comunidade. Ela possui aspectos voltados tanto para o interior
como para o exterior: a profecia, como dom de proclamação, o serviço, o
ensino, a exortação espiritual, a liderança na congregação, a beneficência e
a compaixão. Em 1 Co 12.9,10,28-30, Paulo acrescenta a fé, os dons de
curar, a autoridade especial para discernir os espíritos, a variedade de
línguas, a interpretação de línguas e, como primeiro na ordem das funções,
o serviço apostólico (12.28). É inconcebível para Paulo que exista um
cristão sem charisma.

Há também algumas distinções na conceituação dos dons espirituais. Para


Grudem (1999, p.859), “dom espiritual é qualquer talento potencializado pelo Espírito
Santo e usado no ministério da igreja”. Contudo, cabe ressaltar que um talento inato,
parece ser dispensável no que cerne um dom espiritual. Carson (2013, p.21) afirma
que “claramente um cognato de χάρις (graça), na sua forma mais simples se refere a
algo que foi dado pela graça, um ‘dom da graça’, se preferir”.
Tal compreensão também pode ser observada no período da Reforma, no
século XVI. Francisco de Suárez apud Pelikan (2016, p.450) define dom espiritual
como “um dom garantido sobre e acima da natureza e de tudo relacionado com a
natureza”. Com tal afirmação, Suárez corrobora com o entendimento da maioria dos
autores modernos e contraria a posição de Grudem.

3 A QUESTÃO DOS DONS ESPIRITUAIS PARA OS REFORMADORES DA


IGREJA

Iniciar-se-á um breve desenvolvimento sobre o tema dos dons da graça,


focalizado no período da Reforma, centrado no século XVI. Observa-se que até

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mesmo entre os contrarreformadores católicos, dentre os quais Roberto Belarmino,
a concepção sobre a graça estava cristalizada. Belarmino apud Pelikan (2016,
p.450) afirma que graça é “aquilo que não é devido nem garantido como uma
compensação ou recompensa, mas é doada gratuita e livremente”. Outro expoente
católico, Cornélio Jansênio, corrobora a opinião de Belarmino, fundamentando-a
com o evangelho de João 15.5, no qual se lê, “sem mim vocês não podem fazer
coisa alguma” e que a graça era necessária para toda boa obra (PELIKAN, 2016,
p.450).
É inquestionável a contribuição de Martinho Lutero para que a igreja sofresse
uma reforma e voltasse à sua função precípua: glorificar a Deus. Inúmeros foram os
benefícios das traduções bíblicas nas línguas nacionais, permitindo aos leigos, que
pudessem acessar o rico conteúdo da Palavra de Deus. Também é verdade que em
termos de sistematização teológica, Armínio e Calvino, representam as duas
principais vertentes do protestantismo moderno, emprestando seus nomes às
construções teológicas firmes, que permanecem até os dias hodiernos.
Passemos, então, à forma como Armínio concebia o assunto dos dons
espirituais. Ao descrever a perfeição das Escrituras, diz ele (2015, p.23):

Uma vez que iniciemos a defesa dessa perfeição contra inspirações, visões,
sonhos e outras coisas novas e entusiásticas, afirmamos que, desde a
época em que Cristo e seus apóstolos peregrinaram pela terra, nenhuma
inspiração de qualquer coisa necessária para a salvação de qualquer
indivíduo ou da Igreja foi feita a nenhuma pessoa ou congregação de
pessoas, coisa essa que não esteja, de uma maneira plena e extremamente
perfeita, contida nas Sagradas Escrituras.

Esta declaração de Armínio é no sentido de contrariar “inspirações, visões,


sonhos e outras coisas novas e entusiásticas” e reafirmando a suficiência das
Escrituras. Com isso, está ele a ratificar o postulado de que o dom da profecia
cessou e que não há nova revelação na atualidade, uma vez que a Bíblia encerra
toda a revelação de Deus. Outro expoente teológico, Calvino (2015, p.120-121),
afirma sobre a diversidade de dons e ministérios:

Acresce que o Senhor constituiu em sua igreja tal diversidade de graças que
há nela sempre qualidades particularmente excelentes em seus dons para a
sua edificação. Porque ele lhe deu apóstolos, profetas, mestres ou doutores
e pastores, os quais, todos eles, em diferentes ofícios, mas com a mesma
coragem, fossem empregados para a edificação da igreja, até que todos
estejamos ligados na unidade da fé, como também do conhecimento do

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Filho de Deus, com perfeição e na medida completa do seu cumprimento
em Cristo.

Calvino (2015, p.95) trata ainda da questão da consciência daquele que


recebeu dons e na forma como os ministra ao demais, ao que afirma:

Todos aqueles que, presos a essas reservas e restrições, todavia se


atrevem a agir sempre contra a consciência, querendo mostrar-se
pertinazes e corajosos, com isso não se afastam de Deus? Por outro lado,
aqueles que têm maior temor a Deus, sendo levados, ainda que
constrangidos, a fazer muitas coisas contra a sua consciência, caem em
terrível pavor e confusão. Ora, todos quantos fazem uso dessa forma de tais
coisas, quer por obstinação contra a sua consciência quer por temor e
confusão, tanto uns como os outros não recebem nenhum dos dons de
Deus com ações de graças, pela qual, e somente pela qual, seus dons
sempre são santificados para o nosso uso, como testifica o apóstolo Paulo.
Refiro-me à ação de graças que procede de um coração que reconhece a
bondade e a liberalidade de Deus na distribuição de seus dons.

Conclui-se, por conseguinte, que Calvino se manifesta de maneira a denotar a


crença na existência dos dons espirituais, alertando ao crente de consciência no uso
de tais dádivas. Analisar-se-á em sequência, confissões de fé reconhecidas no
período da Reforma.
A Confissão de Fé de Westminster (2001, p.15) atesta da suficiência bíblica, e
que “isso torna a Escritura Sagrada indispensável, tendo cessado aqueles antigos
modos de Deus revelar a sua vontade ao seu povo”. A mesma Confissão de Fé
(2001, p.21) ainda afirma:

Todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a


glória dele e para a salvação, fé e vida do homem, ou é expressamente
declarado na Escritura ou pode ser lógica e claramente deduzido dela. À
Escritura nada se acrescentará em tempo algum, nem por novas revelações
do Espírito, nem por tradições dos homens; reconhecemos, entretanto, ser
necessária a íntima iluminação do Espírito de Deus para a salvadora
compreensão das coisas reveladas na Palavra, e que há algumas
circunstâncias, quanto ao culto de Deus e ao governo da Igreja, comuns às
ações e sociedades humanas, as quais têm de ser ordenadas pela luz da
natureza e pela prudência cristã, segundo as regras da Palavra, que sempre
devem ser observadas.

De forma peremptória, a mesma Confissão de Fé (2001, p.25) assevera:

O Juiz Supremo, pelo qual todas as controvérsias religiosas têm de ser


determinadas, e por quem serão examinados todos os decretos de
concílios, todas as opiniões dos antigos escritores, todas as doutrinas de
homens e opiniões particulares, o Juiz Supremo, em cuja sentença nos

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devemos firmar, não pode ser outro senão o Espírito Santo falando na
Escritura.
Percebe-se uma preocupação nos tempos da Reforma com uma supervalorização
dos dons espirituais, de modo semelhante ao que se observava na igreja de Corinto,
o que Paulo realça em sua primeira epístola àquela congregação. Pode-se então
concluir que, ao afirmarem de forma tão veemente e enfática a suficiência das
Escrituras, o que se quis, sobretudo, foi precaver-se de uma profusão de novas
revelações, as quais pudessem equivaler-se autoritativamente aos escritos bíblicos.

4 O DEBATE ENTRE O CONTINUACISMO E O CESSACIONISMO NOS DONS DE


PROFECIA, LÍNGUAS E CURA

Restrigir-se-á o debate nos três dons espirituais, dos quais se questiona a


cessação ou não: dons de profecia, línguas e cura. Começar-se-á definir os referidos
dons. Sobre o dom de profecia, diz Schreiner:

Alguns dizem que a profecia é a exegese carismática, definida como a


interpretação dos textos bíblicos guiada pelo Espírito. Essa visão deve ser
rejeitada porque não está claro que os profetas estivessem envolvidos na
interpretação das Escrituras. Eles pronunciavam oráculos, palavras do
Senhor; não dependiam de textos para proclamar a palavra do Senhor.

Com isso, Schreiner nota haver “outra visão que tem sido popular na história
da igreja é que profecia é pregação [...] vários estudiosos têm uma visão similar hoje
em dia” (2019, p.90). Concordando com essa assertiva, Fee (2019, p.752-753) aduz
que:

O profeta era uma pessoa que falava ao povo de Deus sob a inspiração do
Espírito. A ‘fala inspirada’ vinha por revelação e anunciava juízo
(geralmente) ou salvação. Embora com frequência os profetas realizassem
atos simbólicos, que então interpretavam, a corrente predominante de
atividade profética, pelo menos a que veio a ser canonizada, não tinha
quase relação alguma com ‘êxtase’, em especial ‘frenesi’ ou ‘mania’. Em
geral, os profetas eram compreendidos muitíssimo bem! [...] Com o
derramamento do Espírito no ‘final dos tempos’, os primeiros cristãos
entenderam que a palavra profética de Joel (2.28-30) havia se cumprido, de
maneira que a ‘profecia’ não apenas se tornou um fenômeno renovado, mas
também estava potencialmente disponível a todos, pois agora todos tinham
plenamente o Espírito (cf. At 2.17,18) [...] Indicam que consistia em
mensagens espontâneas, inspiradas pelo Espírito e inteligíveis, entregues
de forma oral na assembleia reunida, destinadas à edificação ou ao
encorajamento das pessoas.

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Grudem reitera que não se deve definir profecia como “previsão do futuro”
mas como “dizer algo que Deus traz de modo espontâneo à mente”; conclui ainda
que “as profecias na igreja hoje devem ser consideradas palavras meramente
humanas, não palavras de Deus [...] a profecia é imperfeita e impura, contendo
elementos a que não se deve obedecer ou em que não se deve crer” (1999,
p.892,897). Storms (2016, p.104) vai além, quando diz que “qualquer crente poderia
profetizar, mas isso não significa que todo crente deve esperar atuar como um
profeta na igreja constantemente”. Contrapondo-se ao entendimento majoritário de
que profecia e pregação são similares, Carson (2013, p.94) argumenta:

Na verdade, há uma tradição que identifica a profecia do Novo Testamento


com o que chamamos hoje de pregação ou exposição das Escrituras. As
razões propostas são muitas. Uma das mais comuns é que a profecia do
Antigo Testamento é amplamente dedicada a chamados para restauração e
renovação: ou seja, é parenética. Portanto, ministérios parenéticos sob a
nova aliança são também um tipo de profecia. Logicamente, essa relação
não pode ser feita, a não ser que profecia e parênese estejam tão
fortemente relacionadas a ponto de nunca mais serem encontradas
separadas ou em qualquer outra relação – um total absurdo.

Schreiner (2019, p.99) contesta a dificuldade existente, caso a falibilidade da


profecia seja verdadeira, já que “não leva em consideração a necessidade de
discernir entre profetas verdadeiros e falsos, pois fazer esse tipo de juízo seria difícil
demais se as palavras dos verdadeiros profetas contivessem tanto verdades, quanto
erros”. Schreiner (2019, p.102) reitera, “quem acha que os profetas do Novo
Testamento podem errar defende que as profecias são avaliadas, não os profetas” e
a dificuldade deste raciocínio é que a base pela qual os profetas
veterotestamentários eram avaliados eram justamente suas profecias. Para
Schreiner, um cessacionista moderado, defende que por suas características
intrínsecas, não temos hoje profecias stricto sensu e ele conclui (2019, p.109):

O que a maioria chama de profecia de profecia nas igrejas hoje, pois a


profecia do Novo Testamento é inerrante. Não devemos, entretanto, concluir
que o que acontece nas igrejas carismáticas hoje é demoníaco. É melhor
caracterizar o que acontece hoje como o compartilhar de impressões e não
como profecia. Deus pode imprimir algo no coração ou na mente de alguém,
e essa pessoa pode usar essas impressões para ajudar outras pessoas em
sua caminhada espiritual. É uma questão de definição: o que alguns
chamam de profecias são, na verdade, impressões, quando alguém sente
que Deus o está guiando a falar para outra pessoa, ou a fazer algum tipo de
declaração sobre uma situação.

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Passemos ao segundo tópico, o dom de línguas. Grudem (1999, p.910) define
“falar em línguas é oração ou louvor expresso em sílabas não compreendidas pelo
locutor”. Sobre o falar em línguas, “deve-se dizer para começar que a palavra
glossã, traduzida por ‘língua’, é empregada não só para designar a língua física que
fica dentro da boca, mas também para designar a ‘linguagem’” (GRUDEM, 1999,
p.909). Esta distinção é importante, uma vez que o texto de Atos de Apóstolos 2.6
atesta que “cada um os ouvia falar na sua própria língua” (grifo meu), o que entende-
se como um idioma. Sendo assim, para Grudem (1999, p.911) “parece, portanto,
que às vezes o falar em línguas pode implicar discurso em línguas humanas reais,
às vezes até mesmo em línguas compreensíveis para alguns que ouvem”. O autor
ainda admite que haja línguas que ninguém compreende ou para as quais não haja
interpretação, valendo-se do texto de 1 Coríntios 14.2 (GRUDEM, 1999, p.911).
Ainda na perspectiva continuacionista, Storms (2019, p.146) observa os
contrastes usados pelo apóstolo Paulo na primeira epístola aos coríntios:

A profecia é superior às línguas não interpretadas somente porque, por ser


inteligível, ela edifica os outros. Quando as línguas são interpretadas, elas
se tornam um equivalente funcional à profecia (ver 1 Co 14.5). Línguas não
interpretadas são ininteligíveis, portanto não podem edificar os outros.
Somente por essa razão elas são consideradas inferiores à profecia.
Línguas interpretadas são inteligíveis e, por conseguinte, edificam. Logo,
não as proíba (v.39).

Por sua vez, Carson (2013, p.81) propõe que a questão central do fenômeno
de falar em línguas em 1 Coríntios deve ser debatida: trata-se de “xenoglossia (ou
seja, falar em um idioma humano sem aprendizado prévio) ou glossolalia (ou seja,
falar em padrões vocálicos que não podem ser identificados em nenhum idioma
humano)?”. Para o autor “o que Lucas descreve em Pentecostes são idiomas
existentes, conhecidos e humanos” (CARSON, 2013, p.82). Ainda para Carson
(2013, p.85), “certamente as línguas em Atos exerceram algumas funções diferentes
das que eram exercidas em 1 Coríntios; mas não há evidência substancial que
sugira que Paulo pensasse as duas como essencialmente diferentes”. Para o
cessacionista moderado Schreiner (2019, p.115) “o dom de línguas é o dom de falar
em línguas humanas”. Schreiner (2019, p.121) bem aduz:

Se o falar em línguas se refere a idiomas humanos e não consiste em


expressões extáticas, o que devemos fazer com o falar em línguas
contemporâneo que assume, claramente, a forma de expressões extáticas?
Quase nenhum falar em línguas hoje se encaixa na representação bíblica

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de línguas, já que as pessoas não estão falando em idiomas discerníveis. O
‘dom’ contemporâneo não corresponde ao que está na Bíblia. Com isso não
concluímos que o falar em línguas seja ruim ou demoníaco.

Schreiner (2019, p. 147) conclui que, “talvez o dom de línguas ainda exista
hoje, mas tenho minhas dúvidas, já que o mais praticado hoje são as expressões
extáticas, e o dom, como eu o entendo, é o falar em línguas humanas”. Para o autor,
parece que os cristãos não estão recebendo este dom hoje em dia e se estiverem,
parece ser extremamente raro (SCHREINER, 2019, p.147).
Por fim, apresenta-se o(s) dom(ns) de curar. Grudem (1999, p.905) discorre
que o propósito do dom de cura é servir de sinal para autenticação da mensagem do
evangelho. Ainda segundo Grudem (1999, p.908), “os que possuem ‘dons de cura’
(tradução literal dos plurais em 1Co 12.9,28) são os que percebem que suas
orações por cura são atendidas de maneira mais frequente e completa que as dos
outros”. O autor ainda complementa que a igreja deve incentivar os que possuem
evidências deste dom, “dando-lhes mais oportunidade de orar pelos doentes”
(GRUDEM, 1999, p.908).
Storms (2019, p.59) acrescenta que “existe uma ligação estreita entre dons de
curar – assim como o dom de milagres – e o dom da fé, que os precede
imediatamente na lista de carismas de Paulo”. Para Storms (2019, p.59) “o papel da
fé na cura é crucial e se manifesta de várias maneiras”. Carson (2013, p.41-42)
expõe sobre o uso do plural dons de curar:

Isso sugere fortemente que havia diferentes dons de curar: nem todos
estavam sendo curados por uma pessoa, e talvez algumas pessoas com um
desses dons de curar poderiam, pela graça do Senhor, curar algumas
doenças específicas ou uma variedade de doenças, mas somente em
determinados momentos. Talvez, portanto, uma das coisas que nossa
geração precisa evitar é a institucionalização dos dons. Se algum cristão
recebeu o χαρισμα (charisma) para curar pessoa em particular de uma
doença específica em dado momento, esse cristão não deve presumir que o
dom de curar lhe foi concedido, iniciando assim um ‘ministério de cura’.

Para Schreiner (2019, p.148-149), há uma dificuldade em atestar a existência


dos dons de cura hoje, para o que argui:

O que devemos pensar dos dons de curas e milagres? Uma vez mais, o
problema não é tão significativo, já que não afirmam uma nova revelação. A
minha tendência é achar que esses dons não existem hoje. Se uma pessoa
tem o dom de curar, parece que haveria um padrão de cura. E as curas

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deveriam acontecer no mesmo nível do que vemos no Novo Testamento:
curar o cego, o paralítico, o surdo, o que está à beira da morte.
Reivindicações de cura são muitas vezes bem subjetivas: resfriados, gripe,
dores de estômago e nas costas, lesões esportivas etc. Não estou negando
que Deus não possa curar nessas ocasiões, e somos gratos a ele por isso!
A questão é que, na maioria das vezes, é difícil verificar se o que aconteceu
foi realmente um milagre. Para mim não está claro se algumas pessoas têm
um dom de curas ou milagre.

De todos os dons mais polêmicos, o mais propenso a comprovação empírica


seria o de cura, já que a cura seria resposta a uma oração específica. No entanto,
dada a subjetividade teórica que o envolve (variando de acordo com cada autor),
bem como a dificuldade de se mensurar se se trata de determinado dom de cura (o
que se torna de difícil desambiguação), tem-se, por conseguinte, a manutenção da
polêmica. Há alguns pontos de contato entre as várias teses propostas, no entanto,
há muitas divergências até entre continuacionistas e cessacionistas lato sensu, não
sendo possível formar uma tese unívoca. Os argumentos que mais se verificam em
ambos os casos foram homenageados neste artigo.

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5 CONCLUSÃO

Como disse Aristóteles virtus in medium est. Percebe-se coerência bíblica e


teórica em ambos os lados do front teológico. Por um lado, continuacionistas
defendem a continuidade dos dons espirituais, alicerçados nas evidências que,
alegadamente possuem. O único ponto de concordância que se verifica entre um
lado e outro do debate, é quanto à cessação do dom apostólico, dadas as
exigências de Atos dos Apóstolos 1.21-22. Do outro lado, cessacionistas defendem
que os dons, tais como apresentados no texto bíblico já não se observam nos dias
de hoje, portanto, existem ainda lampejos do agir do Espírito Santo, no entanto, não
com o mesmo vigor que se observa em meados do século I d.C., especialmente, nos
dias apostólicos. Há ainda cessacionistas mais radicais, que negam a manifestação
dos dons espirituais de qualquer forma, hoje em dia.
Retomando o argumento de Aristóteles, a virtude está no centro, na
moderação. Os argumentos de ambos os lados são válidos e devem ser
considerados à guisa de informação, numa leitura sem preconceitos. Evidentemente,
qualquer leitor bíblico observará o texto das Escrituras segundo sua própria
ideologia, mas não há nada mais improdutivo, em se tratando de um tema tão
polêmico quanto os dons espirituais, que se desconsiderar quaisquer das
exposições por prenoção. Descarte-se as alegações contrárias e o que se terá é
uma casa construída sem fundamentos; oportunize-se os pressupostos antagônicos,
e o que se terá é uma edificação sólida e bem fundamentada.
Não se defende uma ou outra posição no presente artigo, entretanto, o
propósito é fomentar o debate desta importante doutrina bíblica, que deve ser
mitigada e esmiuçada a fim de se fortalecer o entendimento do estudante das
Escrituras. Destarte, que outros estudos venham, sejam aqueles enviesados a
defender determinado ponto de vista ou outros debates que coloquem lado a lado,
as visões antagônicas, e que assim, cada um julgue segundo o Espírito Santo o
revelar, com embasamento bíblico e com respeito pelo divergente.
Algo com que ambos os lados da disputa concordam, é que o Espírito Santo
continua presente e atuante na vida da igreja. Que ele mesmo nos guie na direção
da verdade!

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REFERÊNCIAS

A Confissão de Fé de Westminster. São Paulo: Cultura Cristã, 2001.


ARMÍNIO, Jacó. As obras de Armínio – Volume 2. Rio de Janeiro: CPAD, 2015.
CALVINO, João. As institutas – Volume 4. São Paulo: Cultura Cristã, 2015.
CARSON, D. A. A manifestação do Espírito. São Paulo: Vida Nova, 2013.
GRUDEM, Wayne. Teologia Sistemática. São Paulo: Vida Nova, 1999.
PELIKAN, Jaroslav. A tradição cristã – Volume 4. São Paulo: Vida Nova, 2016.
REID, Daniel G (ed.). Dicionário teológico do Novo Testamento. São Paulo: Vida
Nova/Loyola, 2012.
SCHREINER, Thomas R. Dons espirituais – uma perspectiva cessacionista. São
Paulo: Vida Nova, 2019.
STORMS, Sam. Dons espirituais – uma introdução bíblica, teológica e pastoral.
São Paulo: Vida Nova, 2019.
VERBRUGGE, Verlyn D (org.). Novo dicionário internacional de teologia do
Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2018.

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