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1 ,2 e 3 J0ÃO

((Q
ACADÊMICO
COMENTÁRIO BÍBLICO

BEACON
l , 2 e 3 JOÃO

RICK WILLIAMSON

CENTRAL
GOSPEL
DIRETORA EXECUTIVA 1 ,2 e 3 John New Beacon Bible Commentary / Rick Williamson / © 2010
Elba Alencar Published by Beacon Hill Press of Kansas City, A division of N a za -
rene Publishing House
Kansas City, Missouri, 6 4109 U S A
GERÊNCIA EDITORIAL
This edition published by arrangement with N azare ne Publishing
E DE PRODUÇÃO H ouse. All rights reserved.
Gilmar Chaves Copyright © 2 0 1 7 por Editora Central Gospel.

GERÊNCIA DE PROJETOS
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (C IP)
ESPECIAIS
Jefferson Magno Costa
Autor: W IL L IA M S O N , Rick
Título em português: Novo Comentário Bíblico Beacon: 1, 2 e 3
COORDENAÇÃO
João
EDITORIAL Título original: 1, 2e3 John New Beacon Bible Commentary
Michelle Candida Caetano Rio de Janeiro: 2 0 1 7
224 páginas
COORDENAÇÃO IS B N : 9 78-85-7689-570-1
DE COMUNICAÇÃO 1. Bíblia - Teologia I. Título II.
E DESIGN
Regina Coeli
É proibida a reprodução total ou parcial do texto deste livro por quais­
TRADUÇÃO quer meios (mecânicos, eletrônicos, xerográficos, fotográficos etc.),
Elon Canto a não ser em citações breves, com indicação da fonte bibliográfica.
Este livro está de acordo com as mudanças propostas pelo novo
REVISÃO Acordo Ortográfico, que entrou em vigor a partir de janeiro de 2009.
Maria Jo sé Marinho Nota do editor no Brasil: C om o objetivo de facilitar a compreen­
são do comentário original, em alguns casos, a Central Gospel fe z
CAPA traduções livres de termos e palavras em inglês que não encon­
E PROJETO GRÁFICO tram equivalência nas versões oficiais do texto bíblico traduzido
Eduardo S o u za para o Português. Ressalte-se, todavia, que foram preservadas a
ideia e a estrutura textual idealizadas pelo autor.

DIAGRAMAÇÃO
Raquel Frazão

1 a edição: Julho/2017
IMPRESSÃO E
ACABAMENTO
Rotaplan

Editora Central Gospel Ltda


Estrada do Guerenguê, 1851 - Taquara
C ep : 2 2 .713 -0 0 1
Rio de Janeiro - R J
T E L : (2 1 )2 1 8 7 -7 0 0 0
www.editoracentralgospel.com
DEDICATÓRIA

À minha amada esposa, Gladys,


e aos nossos queridos filhos, Melissa e Jared,
por seu amor, sua paciência e seu apoio.
EDITORES DO COMENTÁRIO

Editores gerais
Alex Varughese
Ph.D., Drew University George Lyons
Professor de Literatura Bíblica Ph.D., Emory University
Mount Vernon Nazarene University Professor do Novo Testamento
Mount Vernon, Ohio Northwest Nazarene University
Nampa, Idaho
Roger Hahn
Ph.D., Duke University
Reitor do Corpo Docente
Professor do Novo Testamento
Nazarene Theological Seminary
Kansas City, Missouri

Editores secionais
Joseph Coleson Kent Brower
Ph.D., Brandeis University Ph.D., The University o f Manchester
Professor do Antigo Testamento Vice-reitor
Nazarene Theological Seminary Palestrante Sênior de Estudos Bíblicos
Kansas City, Missouri Nazarene Theological College
Manchester, Inglaterra
Robert Branson
Ph.D., Boston University George Lyons
Professor Emérito de Literatura Bíblica Ph.D., Emory University
Olivet Nazarene University Professor do Novo Testamento
Bourbonnais, Illinois Northwest Nazarene University
Nampa, Idaho
Alex Varughese
Ph.D., Drew University Frank G. Carver
Professor de Literatura Bíblica Ph.D., New College, University of Edinburgh
Mount Vernon Nazarene University Professor Emérito de Religião
Mount Vernon, Ohio Point Loma Nazarene University
San Diego, Califórnia
Jim Edlin
Ph.D., Southern Baptist Theological
Seminary
Professor de Literatura Bíblica e Línguas
Coordenador do departamento de
Religião e Filosofia
MidAmerica Nazarene University
Olathe, Kansas
SUMÁRIO

Prefácio geral dos editores.............................................................................................09


Prefácio do autor............................................................................................................ 11
Abreviações.....................................................................................................................13
Bibliografia..................................................................................................................... 21
1JOÃO..........................................................................................................................30
INTRODUÇÃO......................................................................................................... 31
A. Autoria..............................................................................................................31
B. Data....................... 33
C. Origem..............................................................................................................34
D. Público..............................................................................................................34
E. Ocasião e propósito......................................................................................... 35
F. Questões socioculturais................................................................................... 36
1. Ligações entre as igrejas do primeiro século.............................................. 36
2. Uso de linguagem familiar.......................................................................... 36
G. Testemunhas textuais...................................................................................... 38
H. Características literárias..................................................................................38
1. Formas de carta e 1, 2 e 3 João....................................................................38
2. Formas poéticas............................................................................................40
3. Alusões às Escrituras limitadas...................................................................41
4. 1, 2 e 3 João e o Evangelho de João............................................................ 41
I. Temas teológicos...............................................................................................41
1. Cristologia.................................................................................................... 42
2. Soteriologia.................................................................................................. 43
3. O Espírito..................................................................................................... 43
4. Ética...............................................................................................................44
5. O mundo...................................................................................................... 45
6. Hospitalidade...............................................................................................45
7. Eclesiologia.................................................................................................. 46
8. Escatologia................................................................................................... 47
J. Questões hermenêuticas...................................................................................48
1. Autoria e interpretação das cartas..............................................................49
2. Perspectiva do autor e perfil dos oponentes.............................................. 50
3. Relação das cartas com o Evangelho de João e como isso contribui para
nossa interpretação.......................................................................................... 52
SUMÁRIO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BF.ACON

COMENTÁRIO.......................................................................................................... 55
I. Prólogo e premissas: ljoão 1.1-10.................................................................... 55
A. A vida se manifestou (1.1-4)......................................................................... 55
B. Perdão e purificação (1.5-10)..........................................................................66
II. Pertencer a Deus e resistir ao inimigo: 1João 2.1-29.....................................81
A. Jesus, nosso defensor (2.1-6).......................................................................... 81
B. Na luz ou nas trevas? (2.7-11)....................................................................... 90
C. Palavras para todas as idades (2.12-14)........................................................ 94
D. Ame Deus, não o mundo (2.15-17)...............................................................98
E. Anticristos (2.18-23)........................................................................................100
F. Uma unção e promessa (2.24-29)....................................................................107
III. O amor cristão agora e quando Cristo vier: 1João 3.1-24........................... 113
A. Quando Ele vier: um chamado à purificação (3.1-6)..................................113
B. Destruindo as obras do diabo (3.7-10)......................................................... 121
C. Amor e ódio, vida e morte (3.11-15)............................................................ 126
D. Amor em ação (3.16-24)................................................................................. 129
IV. Examinando os espíritos e confiando no amor de Deus: 1João 4.1-21.......137
A. Examine os espíritos (4.1-6)........................................................................... 137
B. O Filho de Deus, um sacrifício de expiação (4.7-15)...................................145
C. O perfeito amor lança fora o medo (4.16-21)............................................. 152
V. Vida no Filho, morte na separação: 1 João 5.1-21...........................................159
A. Fé vencedora (5.1-5)........................................................................................159
B. Testemunhas da verdade (5.6-12)...............................................
C. Confiança na vida eterna (5.13-17)............................................................... 169
D. Coisas que sabemos (5.18-21)........................................................................176
2 JOÃO.......................................................................................................................... 182
INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 183
A. Autoria, data, origem, público, ocasião, propósito, questões socioculturais e
história textual.......................................................................................................183
B. Características literárias...................................................................................183
C. Temas teológicos..............................................................................................184
D. Questões hermenêuticas.................................................................................184
COMENTÁRIO.......................................................................................................... 187
VI. Boas-vindas e alertas: 2João 1-13.................................................................... 187
A. Saudações e relacionamentos (1-3)............................................................ 187
6
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON SUMÁRIO

B. Alegria por causa da obediência (4-6).............................................................192


C. Alertas para andar em fé (7-11)...................................................................... 195
D. Planos futuros (12-13)....................................................................................200
3 JOÃO..........................................................................................................................204
INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 205
A. Autoria, data, origem, público, ocasião, propósito, questões socioculturais e
história textual...................................................................................................... 205
B. Características literárias...................................................................................205
C. Temas teológicos..............................................................................................206
D. Questões hermenêuticas.................................................................................206
COMENTÁRIO............... 209
VII. Apoiando ministros e separações dolorosas: 3 João 1-14.........................209
A. Saudações e relacionamentos (1-4)................................................................209
B. Ministério e hospitalidade (5-8).....................................................................213
C. Divisão perigosa (9-10)...................................................................................217
D. Palavras de cura e esperança (11-15)............................................................. 220

7
PREFÁCIO GERAL DOS EDITORES

O propósito do N ovo C om entário B íblico B eacon é tornar disponível a pas­


tores e alunos um comentário bíblico do século 21 que reflita a melhor cultura
da tradição teológica wesleyana. O projeto deste comentário visa tornar essa
cultura acessível a um público mais amplo, a fim de auxiliá-lo na compreensão
e na proclamação das Escrituras como Palavra de Deus.
Os escritores dos volumes desta série, além de serem eruditos na tradição
teológica wesleyana e especialistas em suas áreas de atuação, têm também um
interesse especial nos livros designados a eles. A tarefa é comunicar claramente
o consenso crítico e o amplo alcance de outras vozes confiáveis que já comen­
taram sobre as Escrituras. Embora a cultura e a contribuição eruditas para a
compreensão das Escrituras sejam as principais preocupações desta série, esta
não tem como objetivo ser um diálogo acadêmico entre a comunidade erudita.
Os comentaristas desta série, constantemente, visam demonstrar em seu traba­
lho a significância da Bíblia como o Livro da Igreja e, também, a relevância e a
aplicação contemporânea da mensagem bíblica. O objetivo geral deste projeto
é tornar disponível à Igreja e ao seu serviço os frutos do trabalho dos eruditos
que são comprometidos com a fé cristã.
A Nova Versão Internacional (NVI) é a versão de referência da Bíblia usa­
da nesta série; entretanto, o foco do estudo exegético e os comentários são o
texto bíblico em sua linguagem original. Quando o comentário usa a NVI, ele
é impresso em negrito. O texto impresso em negrito e itálico é a tradução do
autor. Os comentaristas também se referem a outras traduções em que o texto
possa ser difícil ou ambíguo.
A estrutura e a organização dos comentários nesta série procuram faci­
litar o estudo do texto bíblico de uma forma sistemática e metodológica. O
estudo de cada livro bíblico começa com uma I n tro d u çã o , que fornece uma
visão panorâmica de autoria, data, proveniência, público-alvo, ocasião, pro­
pósito, questões sociológicas e culturais, história textual, características literá­
rias, questões hermenêuticas e temas teológicos necessários para entender-se o
livro. Essa seção também inclui um breve esboço do livro e uma lista de obras
gerais e comentários padrões.
A seção de comentários para cada livro bíblico segue o esboço do livro
apresentado na introdução. Em alguns volumes, os leitores encontrarão súmu­
las seccionais de grandes porções da Bíblia, com comentários gerais sobre sua
PREFÁCIO GERAL DOS EDITORES NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

estrutura literária global e outras características literárias. Uma característica


consistente do comentário é o estudo de parágrafo por parágrafo dos textos
bíblicos. Essa seção possui três partes: Por trás do texto , No texto e A p a rtir
do texto.
O objetivo da seção Por trás do texto é fornecer ao leitor todas as informa­
ções relevantes necessárias para a compreensão do texto. Isso inclui situações
históricas específicas refletidas no texto, no contexto literário do texto, nas
questões sociológicas e culturais e nas características literárias do texto.
No texto explora o que o texto diz, seguindo sua estrutura, versículo por
versículo. Essa seção inclui uma discussão dos detalhes gramaticais, dos estudos
de palavras e da ligação do texto com livros/passagens bíblicas ou outras partes
do livro em estudo (o relacionamento canônico). Além disso, fornece transli-
terações de palavras-chaves em hebraico e grego e seus significados literais. O
objetivo aqui é explicar o que o autor queria dizer e/ou o que o público-alvo
teria entendido como o significado do texto. Essa é a seção mais ampla do co­
mentário.
A seção A p a rtir do texto examina o texto em relação às seguintes áreas:
significância teológica, intertextualidade, história da interpretação, uso das ci­
tações do Antigo Testamento no Novo Testamento, interpretação na história,
na atualização e em aplicações posteriores da Igreja.
O comentário fornece anotações complementares sobre tópicos de inte­
resse que são importantes, mas não necessariamente fazem parte da explanação
do texto bíblico. Esses tópicos são itens informativos e podem conter ques­
tões históricas, literárias, culturais e teológicas que sejam relevantes ao texto
bíblico. Ocasionalmente, discussões mais detalhadas de tópicos especiais são
incluídas como digressões.
Oferecemos esta série com nossa esperança e oração, a fim de que os leito­
res a tenham como um recurso valioso para a compreensão da Palavra de Deus
e como uma ferramenta indispensável para um engajamento crucial com os
textos bíblicos.

Roger Hahn, Editor-geral da Iniciativa Centenária


Alex Varughese, Editor-geral (Antigo Testamento)
George Lyons, Editor-geral (Novo Testamento)

10
PREFÁCIO DO AUTOR

As cartas associadas ao nome de João formam apenas sete capítulos, mas


seu conteúdo tem uma importância que vai além do seu tamanho. O chamado
a uma vida transformada apresentado nelas foi importante para cristãos em
geral e, principalmente, para a tradição de santidade.
Em 1 João, há declarações significativas: “Meus filhinhos, escrevo-lhes es­
tas coisas para que vocês não pequem” (2.1); “todo aquele que é nascido de
Deus não está no pecado (5.18). Elas devem ser interpretadas de acordo com
seu contexto original, sem dispensar as implicações espirituais duradouras que
possuem. Este comentário tenta equilibrar o chamado das Escrituras a uma
vida santa e o chamado pastoral para tratar, com redenção, aqueles que falham.
As cartas menores de 2 e 3 João chamaram pouca atenção da maioria dos
primeiros comentaristas. João Calvino comentou somente 1 João. Martinho
Lutero ensinou extensivamente sobre 1 João, mas ignorou as cartas menores.
A obra E xplanatory Notes on th e N ew Testam ent de John Wesley oferece rela­
tivamente poucos comentários sobre 2 e 3 João. Essas cartas pessoais oferecem
uma janela importante para a vida dessas igrejas do primeiro século. Os leito­
res encontram questões de eclesiologia (liderança da igreja, questões de gênero
e como as igrejas estão interligadas) e realidades socioculturais. Aqui, vemos
principalmente como a hospitalidade nas Igrejas primitivas estava relacionada
ao evangelismo itinerante.
Várias pessoas ajudaram a moldar este volume. Shannon Pavlovic, embora
ainda graduando em estudos teológicos na Mount Vernon Nazarene Univer-
sity (MVNU), fez várias melhorias em estilo e conteúdo. Os pastores Tracy
Ogden Johnson, Bob Morrison e Merrill Williams revisaram capítulos selecio­
nados de acordo com sua pregação e seus valores pastorais. Walver Baughman,
bibliotecário da MVNU, sugeriu melhorias de estilo e clareza. Devo muito a
Frank Carver por sua paciência e sábia edição durante o processo.
Por fim, minha apreciação vai para os estudantes que exploraram este rico
material comigo nas aulas de Literatura Grega ejoanina nos últimos anos. Que
todos os que foram chamados para pregar, ensinar e pastorear levem adiante a
causa de Jesus Cristo e desafiem os Seus seguidores a “[andar] na luz, como ele
está na luz”. Que todos tenhamos “comunhão uns com os outros, e o sangue de
Jesus, seu Filho, nos” purifique “de todo pecado” (1 Jo 1.7).
ABREVIAÇÕES

Com raras exceções, estas abreviações seguem as que estão no livro The SBL H a n d b ook o f
S tyle (Alexander, 1999).

Geral
ad loc. a d lo cu m , no local discutido
d.C. depois de Cristo
a.C. antes de Cristo
A.E.C antes da Era Comum
E.C. Era Comum
ca. cerca de, tempo aproximado
cf. confira
cap. capítulo/capítulos
ex. ex em p li g ra tia , por exemplo
esp. especialmente
etc. e t cetera , e o restante
ss. e os seguintes
i.e. i d est , isto é
k tl etc. (em transliterações em grego)
lit. literalmente
LXX Septuaginta (tradução grega do AT)
MS Manuscrito
MSS Manuscritos
TM Texto Massorético (do AT)
n. nota
s.d. sem data
s.e. sem editora
s.l. sem local
s.p. sem página
NT Novo Testamento
AT Antigo Testamento
s.v sub verbo, implícito
V. versículo(s)
vs. versu s

Versões bíblicas
ARA Almeida Revista e Atualizada
ARC Almeida Revista e Corrigida
NASB New American Standard Bible
NKJV New King James
NLT New Living Translation
NRSV New Revised Standard Version
ABREVIAÇÕES NOVO COMENTÁRIO BlBLICO BEACON

NTLH Nova Tradução na Linguagem de Hoje


NVI Nova Versão Internacional
RSV Revised Standard Version
TB Tradução Brasileira
VC Versão Católica

Por trás do texto: Informações históricas ou literárias preliminares que os leitores


medianos poderão inferir apenas pela leitura do texto
bíblico.
No texto: Comentários sobre o texto bíblico, palavras, gramática, e
assim por diante.
A partir do texto: O uso do texto por intérpretes posteriores, relevância contem­
porânea, implicações teológicas e éticas do texto, com ênfase
especial nas questões wesleyanas.

Antigo Testamento
Gn Gênesis
Êx Êxodo
Lv Levítico
Nm Número
Dt Deuteronômio
Js Josué
Jz Juizes
Rt Rute
1 Sm 1 Samuel
2 Sm 2 Samuel
1 Rs 1 Reis
2 Rs 2 Reis
1 Cr 1 Crônicas
2 Cr 2 Crônicas
Ed Esdras
Ne Neemias
Et Ester
J° Jó
SI Salmos
Pv Provérbios
Ec Eclesiastes
Ct Cantares
Is Isaías
Jr Jeremias
Lm Lamentações
Ez Ezequiel
Dn Daniel
Os Oseias
J1 Joel
Am Amós
Ob Obadias

14
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON ABREVIAÇÕES

Jn Jonas
Mq Miqueias
Na Naum
Hc Habacuque
Sf Sofonias
Ag Ageu
Zc Zacarias
Ml Malaquias

(Nota: A numeração de capítulo e versículo no TM e na LXX geralmente difere em com-


paração com as Bíblias em inglês/português. Para evitar confusão, todas as referências bí­
blicas seguem a numeração de capítulo e versículo das traduções para o português, mesmo
quando o texto TM e LXX está em discussão.)

Novo Testamento
Mt Mateus
Mc Marcos
Lc Lucas
Jo João
At Atos
Rm Romanos
1 Co 1 Coríntios
2 Co 2 Coríntios
G1 Gálatas
Ef Efésios
Fp Filipenses
Cl Colossenses
1 Ts 1 Tessalonicenses
2 Ts 2 Tessalonicenses
1 Tm 1 Timóteo
2 Tm 2 Timóteo
Tt Tito
Fm Filemon
Hb Hebreus
Tg Tiago
1 Pe 1 Pedro
2 Pe 2 Pedro
ljo 1 João
2 Jo 2 João
3 Jo 3 João
Jd Judas
Ap Apocalipse

Apócrifos
A POT The A p ocryp h a a n d P s eu d ep ig ra p h a o f t h e O ld T estam ent. E di­
ta d o p o r R. H. C harles. 2 v. O xford, 1913.

15
ABREVIAÇÕES NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Bar. Baruque
A. Dan. Adições em Daniel
O. Aza. A Oração de Azarias
Bel. Bel e o dragão
Cant. Jov. Cântico dos três jovens
Sus. Susana
1—2Ed. 1—2 Esdras
A. Est. Adições em Ester
C. Jer. A carta de Jeremias
Jud. Judite
1—2 Mac. 1—2 Macabeus
3—4 Mac. 3—4 Macabeus
O. Man. A Oração de Manasses
SI 151 Salmo 151
Sir. Sabedoria de Siraque, Eclesiástico ou Sirácida
Tob. Tobias
SS Sabedoria de Salomão

Pseudoepígrafos do AT
A biqar A h iq a r
Apoc. Ab. A p oca lip se d e A braão
Apoc. Ad. A p oca lip se d e A dão
Apoc. D an. A p oca lip se d e D a n iel
Apoc. El. (H ) A p oca lip se E lebreu d e E lias
Apoc. El. (C ) A p oca lip se C óp tico d e E lias
Apoc. M o. A p oca lip se d e M oisés
Apoc. Sadr. A p oca lip se d e S a d ra q u e
Apoc. S of. A p oca lip se d e S ofo n ia s
Apocr. Ez. A p ócrifo d e E z eq u iel
Aris. Ex. A risteias, o E x egeta
A ristob. A ristób u lo
A rtap. A rta p a n o
As. M o. A A ssu n ção d e M oisés
2 Bar. 2 B a ru q u e (A pocalipse S iría co )
3 Bar. 3 B a ru q u e (A pocalipse G rego)
4 Bar. 4 B a ru q u e (P a ra leip o m en a J e r e m io u )
L. N oé L iv ro d e N oé
Cv. Tes. C a v ern a d o s T esouros
Cl. M al. C leo d em o M a lco
D em . D em étrio (o C ro n ó gra fo )
El. M od. E ld a d e e M ed a d e
lE n . 1 E n oq u e (A pocalipse E tióp ico)
2 En. 2 E n oq u e (A pocalipse E slavo)
3 En. 3 E n o q u e (A pocalipse E lebreu)
Eup. E u p olem o
Ez. Trag. E z eq u iel, o T rágico
4 Ed. 4 E sdras

16
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON ABREVIAÇÕES

5 S l Sir. Apocr. C in co S a lm os S iría co s A pócrifos


Apoc. Gr. Ed. A p oca lip se G rego d e E sdras
H ec. Ab. H eca teu d e A bdera
0 . H ei. Sin. O rações H elen ista s S in a go ga is
H ist.Jos. H istória d e J o s é
H ist. R ec. H istória d o s R eca b ita s
J a n .J a m . Ja n es e Ja m b res
fos. A sen. J o s é e A sen a te
Ju b. Os J u b ile u s
L.A.B. L ib er a n tiq u ita tu m b ib lica r u m
VA.E. Vida d e A dão e E va
Esc. Ja c. A E sca d a d e J a c ó
C. Aris. C arta d e A risteias
Vid. Pro. Vida d o s P r o feta s
Tr. Per. T ribos P erd id a s
Ps. -F ilo Veja L.A.B.
3 M ac. 3 M a ca b eu s
4 M ac. 4 M a ca b eu s
5 M ac. 5 M a ca b eu s (A rabe)
M a rt. A scen. Isa. M a rtírio e A scen sã o d e Isaías
Od. Sal. O des d e S a lo m ã o
F ilo Poe. É. F ilo, o P o eta E pico
0 . J a c. A O ração d e J a c ó
O .Jos. A O ração d e J o s é
O. M an . A O ração d e M a n a ssés
O .M o. A ora çã o d e M oisés
Ps. Eup. P seu d o eu p o lem o
Ps.-H ec. P seu d o -H eca teu
P s .-O r f P seu d o -O rfeu
Ps. Foc. P seu d o fo cílid es
Sl. Sal. S a lm os d e S a lo m ã o
Q: E d Q u estões d e E sdras
Apoc. E d A p ocalipse d e E sdras
Or. Sib. O rã culos S ib ilin os
F. M en . Sir. F rases d o M en a n d ro S iría co
T. 12 Patr. T esta m en tos d o s D oz e P a tria rca s
T. Ase. T esta m en to d e A ser
T. B en j. T esta m en to d e B en ja m in
T .D ã T esta m en to d e D ã
T .G ad. T esta m en to d e G a de
T.Iss. T esta m en to d e Issa ca r
T.Jos. T esta m en to d e J o s é
T. J u d . T esta m en to d e J u d ã
T. L ev. T esta m en to d e L ev i
T .N af. T esta m en to d e N a fia li
T .R úb. T esta m en to d e R ú b en
T. Sim . T esta m en t o f S im eã o

17
ABREVIAÇÕES NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

T .Z eb. T esta m en t o fZ e b u lo m
T. 3 Patr. T esta m en tos d o s 3 P a tria rca s
T.Ab. T esta m en to d e A braão
T.Isa. T esta m en to d e Isa q u e
T.Jac. T esta m en to d e J a c ó
T.Ad. T esta m en to d e A dão
T.Ez. T esta m en to d e E zequias
T.JÓ T esta m en to d e J ó
T.M o. T esta m en to d e M oisés
T.Sal. T esta m en to d e S a lom ã o
Teód. T eód oto so b re os J u d e u s
Trat. S em T ratado d e S em
V.Ed Visão d e E sdras

Manuscritos do Mar Morto e textos relacionados


Q Qumrã
lQapGen" A p ócrifo d e G ênesis
1QH» H o d a y o t ou H in os d e A ções d e G raças
1QIsaa is a ía f
1Qlsab I s a ía J
1QM M ilh a m a h ou P e rg a m in h o d a G uerra
lQpHab P esh er d e H a b a cu q u e
1QS Serek H a ya k a d or ou R egra d a C o m u n id a d e
CD G en izá d e C airo, C ópia d o D o cu m en to d e D a m a sco

Josefo
Vita Vida
Vida A Vida
C.Ap. C on tra A pião
Ant. A n tig u id a d es J u d a ica s
G J. G u erra J u d a ica s

Pais Apostólicos
B arn. B a rn a b é
1 - 2 C iem . 1 - 2 C le m e n te
D id. D id a q u ê
D iogn . D io g n eto
H errn. M a n d . P a sto r d e H errnas, M a n d a to
H erm . Sim . P a sto r d e H errnas, S em elh a n ça
E lerm. Vis. P a sto r d e H errnas, Visão
In. Ef. In á cio , a os E fésios
In. M ag. In á cio, a os M a gn ésio s
Ign. Esmir. In á cio, a os E sm irn ien ses
In. Fil. In á cio, a os F ila d elfos
In. R om . In á cio, a os R om a n o s
In. Pol. In á cio, a P o lica rp o
In. Trai. In á cio, a os T ralianos

18
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON ABREVIAÇÕES

M art. Pol. M a rtírio d e P o lica rp o


Pol. Fp. P o lica rp o , a os F ilip en ses

Pais da Igreja
H ist. Ecl. Eusébio, F listória eclesiá stica
Epid. Irineu, E pideix is d a P r ed ica çã o A postólica
Her. Irineu, C on tra a s h eresia s
M arc. Tertuliano, C on tra M a rciã o

Transliteração do grego
Grego Letra Transliteração
a a lfa a
p b eta b
7 gam a g
7 g a m a n a sa l n (antes de y , k , f)
S d e lta d
£ ep silo n e
Ç z eta z
'l eta €
e teta th
l io ta i
K ca p a k
la m b d a l
P m u/m i m
V nu/ ni n
\ csi X
0 o m ícr o n 0
7T pi p
P rô r
P rô (em início de palavra) rh
ç s ig m a s
T ta u t
V ú p silon y
V ú p silon u (em ditongos: au,
eu, êu, ou, ui)
fi ph
X hi ch
p si ps
CO ô m eg a õ
resp ira çã o ela b o ra d a h (antes de vogais iniciais (

Transliteração do hebraico
Hebraico/Aramaico Letra Transliteração
X á le f *
a bêt b ; v (fricativa)
i g u ím e l g
ABREVIAÇÕES NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

7 d á le t d
n he h
v av V O U IV
T z a in z
n h êt h
D té t t
io d e y
3 caf k
âm ed l
a m em m
3 nun n
o sám eq
v á in ‘
D pê cativa)
s tsad e s
p co f q
7 rêsh r
& ■&

sin s
sh in s
n ta u t

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27
1,2 e 3 JOÃO
1 JO Ã O
INTRODUÇÃO

A. Autoria
Esses escritos começaram a ser identificados como de autoria de João, o
discípulo do Senhor (Irineu, Her. 3.16.5; Tertuliano, M arc. 5.16; Bruce, 1970,
p. 18). No século 20, alguns estudiosos hesitavam em identificar o autor como
o apóstolo João, mas podiam aceitar a atribuição tradicional de 1 João e o
Evangelho de João para o mesmo autor (Brooke, 1912, p. xviii).
Outros estudiosos respeitáveis diferenciam o autor do Evangelho do autor
das cartas, particularmente Raymond E. Brown (1979, p. 95). Com base na
linguagem, no tema e na situação, a maioria dos intérpretes concorda com o
fato de que todas as cartas vêm do mesmo escritor (por exemplo, Smith, 1991,
p. 14; Brown, 1979, p. 94; Marshall, 1978, p. 46; Bruce, 1970, p. 13).
As cartas são anônimas. Em 2 e 3 João, a autodesignação de “o presbítero”
(bo presbyteros, 2 Jo 1; 3 Jo 1) ocorre, mas não oferece indício real quanto à
identidade do autor. Em outras partes do NT, sempre que “presbítero” aparece
é an arthrous (sem artigo). O termo indica líderes cristãos de igrejas locais (dez
vezes em At; 1 Tm 4.14; 5.19; Tt 1.6; Tg 5.14; 1 Pe 5.1).
O autor das cartas estava ansioso para que seus leitores ouvissem seu con­
selho. Então, por que não se identificar como o antigo e poderoso “discípulo
a quem Jesus amava” (Jo 13.23; 19.26; 20.2; 21.7,20) ou até mesmo como o
“apóstolo”? É difícil imaginar que os membros da comunidade joanina te­
nham-se afastado do apóstolo João no mesmo nível que os “anticristos” (l Jo
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

2.18,19). Nós usamos o termo “anticristos” para referir-nos aos adversários do


autor, que se separaram da comunidade joanina (Brown, 1979, p. 70; veja Bru-
ce, 1970, p. 70). Brown duvidava de que os cristãos do primeiro século tivessem
resistido à autoridade do presbítero, como fez Diótrefes, se “o presbítero” fosse
o Discípulo Amado (1979, p. 95).
Algumas das primeiras autoridades expressaram ressalvas quanto à autoria
do apóstolo João. Eusébio (quarto século) classificou 1 João entre os escritos
“reconhecidos” (h om ologou m en a ). Porém, 2 e 3 João apareceram entre os “dis­
putados” (a n tilegom en a ) registros do cânon emergente. Eusébio pensou que
eles pudessem ser o trabalho de outro autor anterior com o mesmo nome (Hist.
Ecl. 3.24.17 e 3.25.2,3; Brown, 1979, p. 19).
Essa antiga tendência de abrir o leque de potenciais autores continua. Es­
tudiosos propõem candidatos com base em sugestões internas e tentativas de
reconstruções da situação original dos escritos joaninos.
Alguns estudiosos apontam para João 21.24 como evidência de que o ma­
terial joanino teve um redator posterior. A linguagem parece sugerir alguém
que escrevera após a morte do Discípulo Amado. Sua morte pode ter causado
confusão, até mesmo desespero, entre aqueles que acreditavam que Jesus tinha
prometido que ele não morrería antes do retorno do Senhor. Ehrman sugere
que João 21.22,23 sirva como uma clarificação das palavras de Jesus e uma ga­
rantia para a comunidade de fé (2008, p. 182,183).
Outros não identificam o autor da carta como o discípulo João nem como
o redator final do Evangelho. Eles preferem a definição “o presbítero” (2 Jo
1; 3 Jo 1), uma figura anônima dentro da escola de pensamento joanina. Essa
“escola”, uma rede de igrejas e indivíduos de mesma ideologia, preservou e per­
petuou as tradições evangélicas do Discípulo Amado (sobre a escola de João,
veja Culpepper, 1975, p. 261-290). Esses cristãos joaninos deram tons distin­
tos à linguagem em 1, 2 e 3 João e no Evangelho de João. O vocabulário desses
escritos carrega mais semelhanças entre si do que com outras partes do NT
(Smith, 1991, p. 36).
O uso proeminente da primeira pessoa do plural em 1 João 1.1-4 sugere
uma origem dentro de um grupo claramente definido: “Ouvimos (...), vimos
(...), contemplamos e as nossas mãos apalparam (...), proclamamos (...). Vimos
(...), testemunhamos (...), proclamamos (...), nos foi manifestada (...), procla­
mamos (...), vimos e ouvimos (...), conosco (...). Nossa comunhão (...). Escre­
vemos”. Esse uso é semelhante ao encerramento do Evangelho. Nele, o texto
utiliza uma combinação interessante de pronomes — “este é o discípulo que dá
testemunho dessas coisas e que as registrou. Sabem os que o seu testemunho é
verdadeiro” (Jo 21.24, grifo do autor).
32
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

Enquanto 1, 2 e 3 João são escritos anônimos, isso não os exclui de um


círculo de influência joanina. O autor (ou autores) certamente pertencia a uma
comunidade de fé que compartilhava da mesma posição teológica e do mesmo
estilo literário. A questão da autoria permanece em aberto, “um enigma envol­
to em mistério” (Smith, 1991, p. 17).
Embora não possamos precisar a identidade do autor das cartas, a questão
da autoria não põe em questão nossa capacidade de dar sentido às suas preocu­
pações pastorais. Mesmo que a autoria de 1, 2 e 3 João seja incerta, para evitar
a expressão paliativa “o autor”, geralmente me referirei ao autor de 1João como
“João” e ao autor de 2 e 3 João como “o presbítero”.

B. Data
A maioria dos estudiosos data as cartas algum tempo depois do Quarto
Evangelho, mas antes da época de Inácio de Antioquia (martirizado ca. 110
d.C.; Bruce, 1970, p. 18). Isso as coloca na última década do primeiro século
(Thomas, 2004, p. 10; Brown, 1979, p. 96; Bruce, 1970, p. 31). O fato de se­
rem posteriores ao Evangelho é sugerido pela ausência de qualquer crítica dos
adversários externos do Evangelho, “os judeus” — os líderes religiosos judeus
que se opunham ajesus (ex.: Jo 2.18; 5.10,16,18; 6.41; 7.1; 8.52).
O Quarto Evangelho afirma enfaticamente a divindade de Cristo como
uma crença-chave contra detratores judeus que não foram convencidos a se tor­
narem cristãos. As cartas, no entanto, respondem aos críticos que, antes, faziam
parte da comunidade joanina, mas a deixaram. Esses “separatistas” parecem
ter enfatizado tanto a divindade de Cristo que descartaram a Sua humanidade
autêntica. João e os leitores das cartas não estavam distanciando-se do judaís­
mo. Essa separação, em grande parte, já havia ocorrido. Essa nova comunidade
religiosa, os cristãos joaninos, enfrentou o problema de pessoas que se separa­
vam dela. Seus oponentes não eram estranhos obstinados, mas ex-membros.
Alguns desenvolvimentos teológicos também podem sugerir que as car­
tas sejam posteriormente. Considere sua soteriologia. No Evangelho, não há
referências claras à natureza salvadora do sangue de Cristo. Porém, em 1 João,
a linguagem explícita afirma que “o sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de
todo pecado” (1.7) e afirma Jesus como uma “propiciação pelos nossos peca­
dos” (2.2; 4.10; possivelmente 5.6).
A escatologia do Evangelho é mais “realizada” (atualmente experiente).
Em João 3.15-18, a crença traz a vida eterna agora, e o pronunciamento de
Jesus em João 11.25, “Eu sou a ressurreição e a vida”, está em contraste com a
33
INTRODUÇÃO NOVO COMhNTÁRIO BÍBLICO BEACON

futura ressurreição. Em 1 João, uma escatologia futurista é proeminente: “Ago­


ra somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que havemos de ser, mas
sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, pois o vere­
mos como ele é” (3.2; van der Watt, 2007, p. 24).

C. Origem
Onde essas cartas foram escritas? Elas são tradicionalmente associadas a
Éfeso, a principal cidade da antiga Ásia Menor. De forma mais ampla, as epís­
tolas joaninas parecem ter-se originado na Ásia Proconsular (governada por
um procônsul romano nomeado pelo Senado). A tradição faz uma ligação en­
tre o apóstolo João e Efeso em seus últimos anos. Mesmo que o autor não seja o
apóstolo, a área de Efeso é um dos possíveis locais de escrita das cartas.
Vários cristãos judeus migraram para a Ásia Menor nos anos 60 d.C., de­
vido ao aumento das tensões com os romanos. A revolta judaica em 66 d.C.
e a destruição do templo em 70 d.C. pelos romanos desempenharam papéis
importantes em sua decisão de se mudarem para a Ásia Menor. Além disso, o
cristianismo tinha sido estabelecido muito tempo antes (a atividade missio­
nária de Paulo na região é datada no início dos anos 50; veja At 19.10; Bruce,
1970, p. 13).
Pérgamo era a sede inicial do governo proconsular. No entanto, a capital
foi transferida para Éfeso, onde permaneceu durante os tempos do NT. Éfeso
era um centro da cultura grega e proeminente na atividade missionária pri­
mitiva (At 19.1-41; 20.17-38; veja At 19.10: “todos os judeus e os gregos que
viviam na província da Ásia ouviram a palavra do Senhor”).
A igreja de Éfeso (Ap 2.1) e outras igrejas próximas figuram proeminente­
mente como o público-alvo de Apocalipse (provavelmente escrito na década
de 90). Uma das cartas mais ricas de Paulo foi endereçada a Éfeso. Alguns ma­
nuscritos antigos sugerem que Efésios seja uma carta circular destinada a ser
compartilhada entre várias igrejas (veja Cl 4.16). A possibilidade de que 1, 2 e
3 João tenham circulado dentro de uma rede de igrejas joaninas próximas de
Éfeso é consistente com o que sabemos sobre as cartas encíclicas cristãs.

D. Público
As três cartas joaninas aparentemente foram escritas para indivíduos
e igrejas a certa distância do autor (2 Jo 12; 3 Jo 14). Isso sugere uma área
34
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

metropolitana, com várias igrejas domésticas, dentro de uma razoável distância


de viagem.
O autor das cartas não oferece dados geográficos; por isso não podemos
saber com certeza a localização daqueles a quem ele escreve. Todavia, um cen­
tro urbano como Éfeso e uma rede de igrejas como a do Apocalipse parecem
possíveis (Brown, 1979, p. 98).
Gaio e Diótrefes (3 Jo) parecem ser da mesma área, embora possivelmente
pertençam a igrejas diferentes. O presbítero tentou obter hospitalidade para
seus ministros viajantes na igreja de Gaio e fez com que fossem rejeitados pela
igreja doméstica de Diótrefes (Brown, 1979, p. 98)? A primeira carta de João
pode ter sido escrita para reforçar pessoas do maior centro urbano que eram
leais a João. A segunda carta poderia ter sido enviada a uma igreja de uma das
cidades periféricas, onde separatistas estavam tentando afastar alguns dos fiéis
joaninos.
A terceira carta de João implica no fato de que Diótrefes havia rejeitado
representantes do presbítero. Então, o presbítero escreveu a Gaio, solicitando
a hospitalidade que Diótrefes havia recusado (Brown, 1979, p. 99). Esses es­
critos podem ter sido enviados como um pacote de três cartas ao mesmo tem­
po e para o mesmo local. Essa junção das cartas pequenas com 1 João, a mais
substancial, pode explicar a preservação e eventual canonização de 2 e 3 João,
apesar de seu conteúdo limitado (Johnson, 1986, p. 503-510).
A identidade dos leitores pode ser plausivelmente reconstruída, mas não
confirmada. A presença significativa de igrejas influenciadas pela comunidade
joanina e a situação geográfica estão de acordo com os dados.
Os destinatários de 2 e 3 João parecem estar a certa distância do presbíte­
ro. Em ambas as cartas, o autor repassa saudações aos destinatários de outras
pessoas (2 Jo 13; 3 Jo 14). Ambas expressam sua esperança de visitá-los pesso­
almente (2 Jo 12; 3 Jo 14). É claro que a menção de visitá-los pode ser um aviso
velado aos leitores. Isso pode aumentar a probabilidade de sua conformidade
com seus desejos (compare com 2 Co 13.10; Fm 22).

E. Ocasião e propósito
Embora o autor, os leitores e o destino desses escritos não possam ser con­
clusivamente estabelecidos, as questões são claras. A maior obra, 1 João, é mais
um tratado ou ensinamento pastoral do que uma carta pessoal. Ela apresenta
uma série de questões importantes: cristologia, soteriologia, o Espírito, ética,
“o mundo”; eclesiologia e escatologia (consulte a seção teológica mais adiante).
35
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

F. Questões socioculturais
As informações socioculturais sobre os escritos são limitadas devido à in­
certeza quanto à localização, ao público e à data. Vale a pena notar, em primei­
ro lugar, o modo como as igrejas mantinham ligações entre si e, em segundo
lugar, o uso que 1, 2 e 3 João fazem da linguagem familiar para descrever as
relações das igrejas.

1. Ligações entre as igrejas do primeiro século


As igrejas dessas cartas parecem ter fortes ligações entre si. Há certa
autonomia local devido às limitações impostas pela distância entre as igre­
jas e o atraso das comunicações resultantes. Porém, as congregações são
intencionalmente interligadas. O fato de exercerem sua fé em comunhão com
outras é um tema recorrente (a primeira pessoa do plural aparece quase 80 ve­
zes em 1 Jo). Paulo, de modo similar, manteve sua autoridade apostólica por
meio de contato escrito com algumas congregações e alguns ministros.
As “cartas” embutidas de Apocalipse 2—3 demonstram uma ligação en­
tre as igrejas da região. O que é dito a uma d eterm in a d a igreja em Apocalip­
se (2.1,8,12,18; 3.1,7,14) é destinado “às igrejas”, no p lu ra l (Ap 2.7,11,17,29;
3.6,13,22).
O fato de todas as três cartas joaninas terem sido preservadas é notável.
Sua sobrevivência e eventual canonização demonstram uma estreita relação de
confiança entre o autor e os destinatários. Tais ligações entre cristãos também
se desenvolveram por meio de visitas pessoais. O presbítero esperava visitar es­
sas igrejas distantes (2 Jo 12; 3 Jo 14). As notícias eram entregues oralmente de
lugar para lugar, por intermédio de amigos de confiança. Ministros itinerantes
reforçavam essa rede de fé.
Essas ligações funcionavam, no entanto, em detrimento da fé ortodoxa,
como veremos. Entretanto, em geral, esses eram os laços que uniam os crentes,
tornando o uso repetido da primeira pessoa do plural pelo autor compreensí­
vel, como uma expressão de sua mentalidade corporativa (um “corpo”; veja 1
Co 12.27). Pertencer a Cristo era pertencer um ao outro em uma comunidade
de fé, mais especificamente, uma comunidade joanina da fé.

2. Uso de linguagem familiar


Uma segunda questão sociológica é o sentido de família espiritual. A
linguagem familiar é abundante nas cartas (“filhos”, 18 vezes; “irmão(s)”, 18
36
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

vezes; “pais” e Deus como “Pai”, 17 vezes; “amigos”, 12 vezes). Essa terminologia
familiar acolhedora se expande em 2 João, na qual o presbítero se dirige à
“senhora eleita” (2 Jo 1; “senhora” no v. 5). As saudações de uma igreja vizinha
vêm dos “filhos da sua irmã eleita” (v. 13).
Essas frases distintamente femininas podem referir-se a mulheres na lide­
rança pastoral. As mulheres certamente desempenhavam cargos ministeriais
proeminentes em todo o NT. Priscila era professora e ministra visitante (At
18.24-26). O sermão de Pentecostes de Pedro cita a predição do profeta Joel:
“Suas filhas profetizarão” (At 2.17), e o derramamento do Espírito profético de
Deus foi destinado a seus “servos” e suas “servas” (At 2.18).
Essas referências femininas em 2 e 3 João também podem referir-se a mu­
lheres que ofereciam suas casas para acolher as igrejas domésticas. Oferecer
hospitalidade era participar do ministério.

Igrejas d om éstica s

O s c ris tã o s ju d e u s c o n t in u a r a m a p r e s ta r c u lto s n a s s in a g o g a s e n o
t e m p lo d e J e r u s a lé m a té s u a d e s t r u iç ã o , e m 7 0 d .C . D o is fa t o r e s , n o e n ­
t a n t o , le v a r a m a o a u m e n t o d a u tiliz a ç ã o d e c a s a s p a rtic u la re s p a ra re u ­
n iõ e s c ris tã s . E m p rim e iro lu g a r , o d e s e n v o lv i m e n t o d e te n s õ e s e n tr e os
ju d e u s q u e a c e ita r a m Je s u s c o m o M e s s ia s e o s q u e n ã o p r e s s io n a r a m os
s e g u id o r e s d e Je s u s a d e ix a r e m a s s in a g o g a s . O E v a n g e l h o d e Jo ã o in d ic a
q u e a lg u n s c ris tã o s fo r a m e x c o m u n g a d o s d a s in a g o g a ( 9 .2 2 ) .
A s e g u n d a r a z ã o p a ra o a u m e n t o d a s re u n iõ e s c ris tã s fo ra d a s s in a ­
g o g a s e ra o c re s c e n te n ú m e r o d e c re n te s g e n t io s . C o m o o s g e n tio s n ã o
p o d ia m p a r tic ip a r p le n a m e n t e d o c u lto ju d a ic o , u m lo ca l d if e r e n t e , a b e r to
a t o d o s , e ra n e c e s s á rio . A s s im , u m a " ig re ja q u e se r e ú n e c o m v o c ê e m
s u a c a s a " se to r n o u u m a re s p o s ta ( F m 2 ; v e ja R m 1 6 .5 ; 1 C o 1 6 .1 9 ; Cl
4 .1 5 ; E h r m a n , 2 0 0 8 , p . 1 9 3 ) .

Por outro lado, as referências femininas podem ser inteiramente figura­


tivas, referindo-se a uma comunidade cristã como a “escolhida” de Deus (Jo-
nes, 2009, p. 251; Ehrman, 2008, p. 186,187). As palavras “senhora” e “irmãs”
poderíam ter um uso muito parecido com a prática moderna de referir-se a
navios, aviões, carros, e assim por diante, com pronomes femininos. A palavra
grega para igreja é um substantivo feminino. Embora a questão seja discutível
(Bruce, 1970, p. 137), o texto presta-se à possibilidade de mulheres pastoras
37
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

como líderes da comunidade de fé joanina ou espiritualmente proeminentes


para acolher reuniões cristãs (veja 2 Jo 1).

G. Testemunhas textuais
Os primeiros manuscritos contendo 1, 2 e 3 João sobreviveram em papiro.
Três são do terceiro século (papiros 9, 20 e 23). Outros têm origem no final do
terceiro ou início do quarto século (papiros 72 e 78), ou a partir do quarto para
o sétimo século (papiros 54,74 e 81).

H. Características literárias

I. Formas de carta e 1, 2 e 3 João


Esses três textos são frequentemente classificados como do mesmo gênero,
isto é, como cartas. No entanto, há diferenças importantes. Tanto 1 João quan­
to 2 João parecem ser cartas verdadeiras; 1 João claramente demonstra menos
elementos de cartas greco-romanas.

C a rta s g re c o -ro m a n a s

A s c a r ta s e r a m u m a fo r m a c o m u m d e c o m u n ic a ç ã o n o m u n d o g re c o -
-r o m a n o , m a s c o m v a r ia ç õ e s d is tin ta s . C a r t a s p a rtic u la re s a a m ig o s e r a m
d ife r e n te s d e c a rta s a b e r t a s a u m p ú b lic o m a is a m p lo . C a r t a s fo r m a is
d e v e m s e r d ife r e n c ia d a s d e c a r ta s o c a s io n a is e b ilh e te s c a s u a is . C a r ta s
p a rtic u la re s d e r e c o m e n d a ç ã o d e o u tr o in d iv íd u o n ã o s ã o a m e s m a co isa
q u e t r a t a d o s p ú b lic o s s o lic ita n d o u m a d e t e r m in a d a a ç ã o . A p e s a r d e ta is
v a r iá v e is , h a v ia v á r io s c o m p o n e n t e s c o n s is te n te s n a s c a rta s a n tig a s .
A o c o n trá rio d a s c a r ta s m o d e r n a s , a s d o m u n d o a n tig o c o m e ç a v a m
id e n tific a n d o o r e m e t e n te p o r n o m e o u títu lo . E m s e g u id a , a c a rta n o r­
m a lm e n te m e n c io n a v a o (s ) d e s t in a t á r io ( s ) , e x p r e s s a n d o c o n s id e ra ç õ e s
p o s itiv a s , c u m p r im e n t o s o u o ra ç õ e s o tim is ta s p a ra o (s ) d e s tin a tá r io ( s ) .
E s s a s o b s e r v a ç õ e s in tr o d u tó r ia s e r a m c o n v e n c io n a is e n ã o d e v e r ía m s e r
in te r p r e ta d a s lite r a lm e n te . ( C o m p a r e c o m a p rá tic a m o d e r n a d e n o s d iri­
g irm o s a a lg u é m q u e n ã o c o n h e c e m o s c o m o " p r e z a d o " . P a ra a m o s tr a s d e
c a rta s a n tig a s , v e ja E lw e ll e Y a r b r o u g h , 1 9 9 8 , p . 1 9 4 .)
O c o r p o d a c a rta v in h a e m s e g u id a , e x p r e s s a n d o o s d e s e jo s e a s
p re o c u p a ç õ e s do r e m e te n te . Um e n c e rra m e n to com c a ra c te rís tic a s

38
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

c o n v e n c io n a is c o m p le t a v a a c a r t a . N e l e , p o d e r ía m s e r in c lu íd a s p a la v ra s
d e in c e n tiv o o u d e s a fio , e x p r e s s õ e s d e e s p e r a n ç a d e q u e o s a u to r e s e os
le ito re s p u d e s s e m e n c o n tr a r -s e e m u m fu tu r o p r ó x im o e , m a is u m a v e z ,
p a la v r a s d e b ê n ç ã o o u o ra ç õ e s ( Jo h n s o n , 1 9 8 6 , p . 2 5 2 ,2 5 3 ) .
O c o m p r im e n to d a s c a r ta s a n tig a s v a r i a v a , e m b o r a u m a fo lh a d e p a ­
p iro fo s s e o típ ic o . A s c a r ta s d e 2 e 3 J o ã o , b e m c o m o F ile m o m e Ju d a s ,
t ê m m a is o u m e n o s e s s e c o m p r im e n to . C o m o n ã o h a v ia s is te m a p o s ta l
p a ra c id a d ã o s , a s c a r ta s c o s t u m a v a m s e r e n tr e g u e s e m m ã o s , p o r a m ig o s
o u s e r v o s d e c o n fia n ç a . D e s s a f o r m a , o s e n tr e g a d o r e s p o d e r ia m e s c la re ­
c e r o t o m d a c a r t a , se s u rg ire m d ú v id a s d e s e u s d e s tin a tá r io s . À s v e z e s ,
o s e n tr e g a d o r e s e r a m m e n c io n a d o s e m c a r ta s ( p o r e x e m p l o , T íq u ic o , e m
E f 6 .2 1 ,2 2 ; C l 4 . 7 ; F e b e , e m R m 1 6 . 1 ; E h r m a n , 2 0 0 8 , p . 1 8 6 - 1 8 8 ) .

O texto em 1 João começa abruptamente, sem indicação alguma de quem


está escrevendo ou para quem. Suas várias ocorrências de “escrevo” (2,12,13,14;
5.13) não ajudam na identificação do autor. Nenhuma bênção conclui o docu­
mento, somente uma palavra final de exortação: “Filhinhos, guardem-se dos
ídolos” (5.21).
A obra parece mais uma carta aberta ou um ensaio persuasivo escrito a
uma comunidade (Ehrman, 2008, p. 190). Contudo, ela não tem a organização
sistemática que esperávamos. Johnson considera 1 João “não realmente uma
carta, mas uma palavra de exortação” (1986, p. 504). Jones a chama de “epís­
tola” com uma função “pastoral-polêmica” (2009, p. 1). No entanto, às vezes,
a distinção entre cartas e epístolas é “bastante nítida em muitas obras do N T”
(Brown ,1982, p. 87, n. 191).
O texto em 1 João realmente manifesta grandes preocupações pastorais
em resposta à saída de alguns da comunidade joanina (2.19). O escrito surgiu
do coração pastoral de alguém alarmado com acontecimentos negativos nas
igrejas. A carta era uma peça ocasional — “um folheto destinado a um proble­
ma” (Burge, Cohick e Green, 2009, p. 412), escrito para combater a ameaça
apresentada por aqueles que não só estavam separando-se da comunidade, mas
também evangelizando ativamente outras pessoas para juntarem-se a eles.
A primeira e a segunda carta de João refletem as convenções de uma típica
carta greco-romana. Elas começam identificando o autor e os leitores. Palavras
de saudação se seguem, com expressões de melhores votos e orações. O corpo
da carta conclui com um cumprimento pessoal e uma saudação. Elas parecem
cartas desse período em todos os sentidos.
39
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

As cartas joaninas têm sido, muitas vezes, classificadas como escritos cató­
licos ou universais, destinados a cristãos de todos os lugares. Porém, a rigor, não
são. Brown rejeita a noção de que 1 João fora uma carta universal, argumentan­
do que uma mensagem a igrejas de todos os lugares, partindo de um remetente
não identificado, teria pouco peso (1982, p. 88). Essas cartas eram destinadas
a locais e circunstâncias bastante específicos. Identificar 2 e 3 João como cartas
universais define-as com base em sua canonicidade, não em sua intenção.
Os recursos literários dos escritos incluem o uso da primeira pessoa do
plural (especialmente em 1 Jo 1.1 -4), identificando o autor como parte de uma
comunidade de crentes. Isso pode indicar um tipo formal de “escola” (Culpe-
pper, 1975, p. 34-38,261-290) ou uma rede mais informal de igrejas e indiví­
duos com a mesma ideologia, influenciados por João. Pelo menos, esse é um as­
pecto do uso frequente de linguagem familiar nas cartas joaninas (veja o tópico
Questões socioculturais). Elas transmitem um forte senso de investimento na
manutenção de relações próximas entre os crentes da região.

2. Formas poéticas
Outra característica literária, evidente em 1 João, é o paralelismo poético.
João reflete um estilo semelhante à poesia hebraica, em que linhas sucessivas
repetem ou reformulam frases, expressando pensamentos semelhantes com
palavras diferentes. O prólogo (1.1 -4) e grande parte do capítulo 1 têm uma
estrutura repetitiva, paralela. No versículo 1, os verbos criam um gradual tes­
temunho paralelo:
“Ouvimos...”
“Vimos...”
“Contemplamos...”
As várias palavras paralelas (“proclamamos”, três vezes no prólogo) e con­
ceitos contrastantes (luz contra escuridão, verdade contra falsidade, pecados
contra perdão, amor contra ódio) prestam-se a um sentido lírico que permeia
1 João. Elementos poéticos marcam 1.6—2.1, com a repetição de “se afirmar­
mos” (v. 6,8,10), seguida de respostas/resultados, com formulações semelhan­
tes: “Se (...) andamos” (v. 7); “se confessarmos” (v. 9); e “se (...) alguém [dentre
nós] pecar” (2.1).
Ainda mais aparentes, e normalmente indicados como poesia em tradu­
ções, são os refrãos de 1 João 2.12-14. As orações e as frases repetem e ampliam
as idéias de João em linguagem compacta e memorável. Uma frase concisa e
repetitiva (“eu lhes escrevo/escrevi porque” [seis vezes]) é seguida de um ponto
específico de celebração (“foram perdoados”, “conhecem”, “venceram”).
40
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

Há uma intensificação das palavras utilizadas, bem como três linhas para­
lelas no versículo 14:
Vocês são fortes,
E em vocês a Palavra de Deus permanece
E vocês venceram o Maligno.
As três orações formam uma afirmação com linhas paralelas sinônimas: a vi­
tória espiritual deriva da atividade da Palavra de Deus na vida de alguém. Linhas
paralelas semelhantes aparecem em outras passagens (veja em 4.3; 5.12,13).

3. Alusões às Escrituras limitadas


Um aspecto notável das formas literárias nesses escritos é a ausência de
citações. Não há citações diretas de passagens bíblicas. É especialmente notável
a ausência de qualquer apelo ao Evangelho de João (Brown, 1982, p. 33).
A ausência de referências de citação a escritos que acabaram incluídos no
NT é compreensível. Um tempo considerável se passou antes que o NT viesse
a ser reconhecido como tal. Os livros que agora compõem o NT não foram re­
conhecidos como normativa quando essas cartas foram escritas, como eram os
livros do AT. No entanto, a ausência total de citações diretas do AT é curiosa.
Todavia, o mesmo poderia ser dito das cartas de Paulo aos cristãos macedôni-
cos — nossas 1 e 2 Tessalonicenses e Filipenses. Alguns estudiosos chamam a
atenção para as semelhanças entre as idéias dos escritos joaninos e os textos do
Qumrã (Manuscritos do Mar Morto). Porém, não há citações claras que pos­
sam ser demonstradas.

4. 1, 2 e 3 João e o Evangelho de João


Há semelhanças marcantes na linguagem em comum das cartas e do Quar­
to Evangelho. Pontos substanciais de acordo temático e até mesmo na redação
estão presentes (van der Watt, 2007, p. 22-25; Brown, 1982, p. 757-759; veja a
última seção da Introdução). Se um discípulo de João, ou da “escola” joanina,
escreveu as cartas, as semelhanças se dão devido ao contexto joanino em co­
mum; diferenças refletem suas diferentes autorias.

I. Temas teológicos
Apenas algumas das ênfases teológicas mais significativas das cartas joani-
nas podem ser abordadas aqui. Mais serão reveladas de modo mais natural no
41
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

comentário adequado. Alguns dos temas mais proeminentes incluem: (1) cris-
tologia, a pessoa e a obra de Cristo; (2) soteriologia, como o pecado é entendi­
do e remediado; (3) o Espírito de Deus; (4) ética, a natureza do amor humano
por Deus e pelo próximo; (5) “o mundo” e a oposição a ele; (6) hospitalidade,
extensão das boas-vindas a estranhos; (7) eclesiologia, a visão da igreja; e (8)
escatologia, ou últimas coisas.

1. Cristologia
Um grupo cristão renegado, com uma perspectiva diferente sobre a pessoa
e a obra de Jesus, gerou uma forte resposta do autor dessas cartas. Claramente,
a questão é se Jesus tinha ou não vindo “em carne” (1 Jo 4.2; veja v. 1-3). Apa­
rentemente, alguns integrantes do grupo estavam ensinando que Jesus apenas
pareceu ser homem de forma plena. Ou ensinavam que, se Jesus tivesse sido ver­
dadeiramente humano, Ele não permanecera assim. Com base no tempo verbal
perfeito em 4.2, elêlythota, pode-se argumentar que Jesus não apenas veio “em
carne”, mas também permaneceu homem. Em substância, os separatistas nega­
vam a plena continuidade do histórico Jesus de Nazaré no Cristo exaltado.
Sabemos que grupos cristãos posteriores com tendências gnósticas resisti­
ram à ideia de um Cristo plenamente encarnado. Eles identificaram o reino es­
piritual como bom, e o campo carnal e material como inerentemente maligno,
no qual um Cristo divino não poderia habitar. Tal pensamento é derivado de
um dualismo que combina mais com a filosofia grega do que com o pensamen­
to bíblico. Os gregos costumavam distinguir os deuses eternos, que não nasce­
ram nem morreram, dos semideuses. Essas deidades de nível inferior eram seres
humanos comuns, que foram elevados ao status divino por apoteose na morte.
Assim, os separatistas podem ter considerado a sua cristologia mais elevada do
que a da comunidade joanina.
Alguns cristãos gnósticos distinguiam Jesus, o homem, do Cristo, que des­
ceu sobre Jesus (talvez em Seu batismo). Esse ponto de vista, uma espécie de
“adocionismo”, afirmava que Jesus tinha sido revestido pelo “Cristo”; mas “o
Cristo” retirou-se dele antes de Sua morte. Assim, embora Jesus tenha verda­
deiramente sofrido e morrido, o Cristo, um ser totalmente espiritual, era imu­
ne a tais experiências terrenas (Bruce, 1970, p. 16,17).
Os adversários de João, ao negarem a natureza humana de Cristo, renun­
ciavam Jesus como totalmente Deus e totalmente homem. Para eles, o melhor
que pode ser dito foi que Cristo “parecia” ser homem. Esse ponto de vista, que
veio a ser chamado de docetismo (com base em dokeõ, “parecer”), rebaixava a
42
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

realidade da humanização. A alegação no Evangelho de João de que “a Palavra


tornou-se carne” (Jo 1.14) revelou-se particularmente problemática para o do-
cetismo.
Além disso, e inevitavelmente, o docetismo minimizava a centralidade da
cruz e da ressurreição. Se o enviado do céu não era a mesma pessoa que morreu,
então a cruz foi esvaziada do seu poder expiatório. Um “salvador” que foi leva­
do antes da cruz não precisava de ressurreição. O docetismo e o dualismo, que
consideravam o mal do corpo, também corroeram a visão bíblica fundamental
da criação como “boa” (Gn 1.4,10,12,18,21,25), de fato, “tudo havia ficado
muito bom” (Gn 1.31).

2. Soteriologia
A soteriologia (de sõtêria : “salvação”) tenta explicar a natureza do pecado e
como o homem pode ser liberto dele. Esse é, obviamente, um conceito podero­
so ao longo das Escrituras e, com certeza, aqui também. Deus é santo e chama
as pessoas para participarem de Sua santidade. O pecado é vivido universal­
mente; mas não é normal. O pecado é o desvio do homem do plano de Deus.
Assim, o pecado é um problema que deve ser tratado por Deus e pelo homem.
O pecado é generalizado (1 Jo 1.8,10) e manifesta-se como a iniquidade
(3.4) e “toda injustiça” (5.17). João apresenta o não pecar como o padrão cris­
tão (2.1; 3.6,9). No entanto, aqueles que pecam podem ser perdoados e purifi­
cados (1.9). A libertação do pecado, na verdade, a destruição final do pecado,
flui a partir da atividade da graça de Jesus Cristo, o Filho de Deus. O sangue
de Jesus “nos purifica de todo pecado” (1 Jo 1.7); Jesus veio como “propiciação
pelos nossos pecados” (2.2; 4.10).
João insiste no fato de que qualquer pessoa “que pratica o pecado é do dia­
bo, porque o diabo vem pecando desde o princípio”. Porém, afirma igualmente
que, “para isso, o Filho de Deus se manifestou: para destruir as obras do diabo”
(3.8). Consequentemente, argumenta que quem “é nascido de Deus (...) não
pode estar no pecado” (3.9). O texto em 1 João é concluído com a menção
enigmática de um “pecado que leva à morte” e de um “pecado que não leva à
morte” (5.16,17), que será abordada no comentário.

3. O Espírito

O Espírito Santo está implícito nas cartas (veja 2 Jo 7). Brown chama suas
referências limitadas ao Espírito de “silêncio eloquente” (1979, p. 141). O texto
43
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

em 1 João omite várias funções do Espírito enfatizadas no Quarto Evangelho


(Brown, 1979, p. 140). Talvez o mais surpreendente seja o fato de Jesus, e não o
Espírito, ser chamado de intercessor (1 Jo 2.1,2; compare com Jo 14—15).
O Espírito ip n eu m a ) em 1 João refere-se principalmente ao Espírito de
Deus e aparece apenas em duas seções (Brown, 1979, p. 140). Em 3.24—4.6, o
Espírito de Deus permite que “examinem os espíritos”. Em 5.6-10, o testemu­
nho fiel é central. O “Espírito é quem dá testemunho” como “a verdade” (5.6),
tanto no sentido externo (junto com “água e sangue”) como no interno, por
meio de um testemunho “em si mesmo” (5.10).
A palavra p n eu m a é usada no sentido negativo, ligada a “falsos profetas”
(4.1) e ao “anticristo” (4.3). O Espírito de Deus demonstra que a pessoa vive em
Deus (3.24; 4.13). Envolve mais do que confissão ortodoxa (4.15) ou conduta
de amor (4.16). O Espírito dá capacidade para discernir o falso do verdadeiro
(4.1) e, assim, confessar corretamente que “Jesus Cristo veio em corpo” (2 Jo 7).
Tal discernimento é resultado da “unção” (ch rism a) permanente recebi­
da, “que procede do Santo” (1 Jo 2.20,27; Burge, 2009, p. 418,419). As várias
referências ao “Pai” e ao “Filho” (v. 22,23,24) mesclam-se com “unção” em uma
alusão trinitária. Isso fornece um antídoto divino para a atividade do anticristo
(2.18,22) e dos falsos profetas (4.1). Como Jesus, o Ungido (christos) foi “un­
gido” pelo Espírito no início de Sua missão messiânica (Lc 4.18; veja Is 61.1),
do mesmo modo como os seguidores de Cristo devem ser “pequenos ungidos”
(Kõstenberger, 2009, p. 400-402).

4. Ética
O amor de Deus pelas pessoas e o manifesto de amor na igreja entre as pes­
soas é uma preocupação vital desses escritos. Como alguém pode ter uma vida
que exemplifica o amor santo ? Como é uma vida em harmonia com o coração
de Deus ? Para João, o tema consistente para análise ética é o amor (a ga p ê e
cognatos ocorrem mais de 40 vezes nos três escritos).
A expressão “Deus é amor” define o tema (1 Jo 4.8,16) e é a base de grande
parte da teologia de João. O amor divino obrigou Deus a agir, enviando Cristo,
o Filho (4.9), “como propiciação pelos nossos pecados” (4.10). Porque “deu a
sua vida por nós” (3.16), Ele permitiu que fôssemos “chamados filhos de Deus”
(3.1). Esse amor que busca a fim de resgatar, aconselha João, deve estar eviden­
te na vida daqueles que o recebem. O autêntico amor vem de Deus, flui na vida
daqueles que o aceitam e depois flui para fora, para o próximo.
44
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

A marca dos cristãos é esta: “Que nos amemos uns aos outros” (3.11,23;
4.7,11,12; 2 Jo 5) de maneira tangível. Isso inclui apoio material aos necessi­
tados (3.16-18). O amor interno liberta o crente do medo do juízo que virá
(4.17,18). A tensão entre o amor cristão em ação, que João recomenda, e as
duras palavras que ele usa nas cartas dirigidas a adversários destacam o tipo de
desafio que cada era enfrenta para dar uma expressão amorosa e teologicamen­
te fundamentada à fé cristã (Black, 1990, p. 39).

5. O mundo
Os leitores de 1 João são claramente chamados a amar os “irmãos” e as
irmãs da comunidade joanina (3.10,17; 4.20,21). Porém, não devem amar “o
mundo” (2.15-17). Em primeiro lugar, “o mundo” (kosmos) é a humanidade e
os sistemas humanos hostis a Deus e ao Seu povo. No entanto, o termo não é
utilizado exclusivamente nesse sentido negativo.
Deus ama o mundo, de acordo com o Quarto Evangelho (3.16). Contudo,
as cartas insistem no fato de que os crentes não devem amar o mundo, porque
fazê-lo seria demonstrar que o amor de Deus não habita neles e entre eles. O
mundo em 1 João é um lugar de luxúria (2.16,17) e maldade (5.19), onde falsos
profetas, anticristos e enganadores trabalham (4.1,3; 2 Jo 7). O mundo não re­
conhece os verdadeiros crentes como filhos de Deus. Em vez disso, ele odeia-os
(3.13). Todavia, Deus (por intermédio de Cristo e do Espírito), que reside no
crente, vence o mundo; assim como todos os que vivem em Cristo (5.4,5). O
mundo passa (2.17). Então, o mundo é caracteristicamente visto em um senti­
do dualista como o reino do mal.
No entanto, foi a este mundo caído que o Pai enviou o Seu Filho (4.9),
com o propósito de ser o Salvador (4.14). O próprio sacrifício de Cristo foi
“pelos pecados de todo o mundo” (2.2). E no mundo atual, não apenas em
algum mundo futuro, que crentes em Jesus Cristo podem ser como Deus. “O
amor está aperfeiçoado entre nós, para que no dia do juízo tenhamos confian­
ça, p o rq u e neste m u n do som os com o ele” (1 Jo 4.17, grifo do autor).

6. Hospitalidade
A hospitalidade cristã é significativa nesses escritos (Koenig, 1992, p. 299-
301; Malherbe, 1983, p. 92-112). João está convencido de que o amor se ma­
nifesta em atos concretos de boa vontade (1 Jo 3.17). O amor vem de Deus e é
45
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

vivido por meio da bondade para com os outros. O amor de Deus leva a lares
abertos, onde as boas-vindas são praticadas por meio da comunhão em refeições
partilhadas. O amor de Deus dentro de um lar faz com que ele seja um lugar
onde irmãos e irmãs de fé possam encontrar alojamento, oração, apoio e amor.
E esperado que essa hospitalidade de portas abertas remova as antigas bar­
reiras de raça, gênero e status socioeconômico (veja Gl 3.28). Ao fornecer abri­
go, os que oferecem hospitalidade contribuem para a evangelização daqueles
que eles receberam (3 Jo 8).
A missão cristã primitiva claramente dependia dessa hospitalidade (Mt
10.40-42; At 16.14,15; Rm 16.1,2; D id. 12). Havia poucas acomodações se­
guras, limpas e baratas na Antiguidade. Viajantes cristãos beneficiavam-se do
alojamento e da amizade oferecidos por proprietários simpáticos. As casas dos
anfitriões derivavam o valor do ministério informal dos ministros itinerantes
que passavam tempo juntos durante as refeições. Não é de surpreender que os
cristãos “inventaram” o hospital como um lugar de hospitalidade.
Reter a hospitalidade pode ser algo necessário quando uma profunda di­
ferença de doutrina e prática impossibilita a genuína comunhão (2 Jo 10,11).
Às vezes, a recusa em acolher “irmãos”, no entanto, pode ser motivada de forma
errada (3 Jo 10).

7. Eclesiologia
As evidências de estrutura e práticas da igreja são relativamente escassas
nessas cartas. A palavra “igreja” (ekklêsia) ocorre três vezes, apenas em 3 João (v.
6,9,10). Porém, claramente, não havia uma rede de igrejas com alguma relação
de conexão entre si. O uso da primeira pessoa do plural de João em 1 João (qua­
se 70 vezes) aponta para um grupo interno que sua escrita representa. É certo
que a primeira pessoa do plural seja comum nas cartas do NT, pois os autores
buscavam identificar-se com os destinatários de suas cartas (ou como um “nós”
editorial modesto, que significa simplesmente “eu”). Como João usa a primeira
pessoa do singular inúmeras vezes (2.1,7,8,12-14; 5.13; 2Jo 5,12; 3Jo 4,9,13),
o “nós” comunal deve ser mais do que convencional.
Além disso, existe uma íntima comunhão ligando as congregações, indi­
cada pela linguagem familiar. Isso é especialmente evidente em 2 João. O pres­
bítero escreve à “senhora eleita” (v. 1), em nome de sua “irmã eleita” (v. 13).
Ambas as mulheres têm “filhos” (v. 1,13) — aparentemente crentes reunidos
(a Igreja) — em cada localidade.
46
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

Da mesma forma, a terminologia de eleição em 2 João, “eleita” {eklektêi),


presume metáforas de aliança do AT. Nele, o povo de Deus é descrito como
um comunidade de fé (Dt 7.6; 14.2; SI 33.12; Is 42.1; 43.4; 44.1; 45.4; 65.22;
Ez 20.5).
A comunidade eleita por Deus (no chamado de Deus para Abraão; veja
Gn 12) criou o primeiro povo de Deus, a nação de Israel. Abraão apenas acei­
tou a oferta e viveu em obediência a Ele. Da mesma forma, a eleição divina
criou o povo de Deus renovado, a igreja cristã. A ideia de eleição é proeminen­
te em todo o NT (Mt 24.22,24,31; Mc 13.20,22,27; Rm 8.33; 11.7; 16.13; Cl
3.12; 2 Ts 2.13; 2 Tm 2.10; Tt 1.1; 1 Pe 1.1,2; 2.9; Ap 17.14). Na maioria dos
casos, a expressão “os eleitos” refere-se àqueles que optaram por aliar-se a Jesus,
aceitando o Seu convite para serem discípulos. Ao usar “eleitos” para referir-
-se a seu círculo de igrejas, o presbítero identifica a empreitada missionária na
qual ele trabalha. A igreja é a continuação do povo escolhido de Deus do AT
no NT.
Referir-se a igrejas como a “senhora eleita” (2 Jo 1) e a “irmã eleita” (2 Jo
13) segue a tradição judaica de referir-se ao povo da aliança de Deus com uma
metáfora feminina. O AT refere-se a Israel e Jerusalém como a Noiva do Se­
nhor (Is 54.1-8; 62.4,5; Jr 2.2; Os 1—3). Ambos também são descritos como
uma mãe (Is 54.1-3; Bar. 4.5—5.9). O padrão continua no NT. A igreja é des­
crita como uma mulher (1 Pe 5.13), a Noiva de Cristo (2 Co 11.2; Ef 5.21-33;
Ap 19.6-8; 21.2) e uma mãe (1 Pe 5.13; Ap 12.1,2,17).
Outro elemento dessas cartas que reflete a consciência de igreja do autor
é o termo “presbítero” {presbyteros) em 2 João 1 e 3 João 1. A expressão pode
indicar que o escritor exerceu o cargo de presbítero em uma igreja doméstica
(At 14.23; 20.17; 1 Tm 5.17; 1 Pe 5.1), ou a designação pode simplesmente
ter sido um lembrete do tipo de respeito que deveria ser dado aos mais velhos
(idosos) da comunidade de fé (1 Tm 5.2; 1 Pe 5.5).

8. Escatologia

João gasta uma energia considerável alertando contra os “anticristos”


(2.18,22; 4.3, 2 Jo 7). Quem não reconhece que Jesus veio de Deus tem “o
espírito do anticristo” (4.3). Essa não é uma referência a alguma personificação
do mal no fim dos tempos. Em vez disso, para João, um “anticristo” era qualquer
pessoa do primeiro século cuja cristologia não aceitasse que Jesus veio da parte
de Deus e, especialmente, que veio “em corpo” (2 Jo 7). Por mais surpreendente
47
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

que seja para alguns, o termo “anticristo” não aparece em outro lugar na Bíblia
que não seja nessas cartas.
A escatologia pode referir-se à morte espiritual. João escreve sobre um “pe­
cado que leva à morte” (5.16), que parece implicar não só a morte física, mas
também a morte espiritual. A primeira carta refere-se a um “dia de juízo” es-
catológico (4.17). A única preparação adequada para esse dia, uma preparação
que permitirá que tenhamos “confiança”, é ter o amor de Deus “aperfeiçoado”.
Esse aperfeiçoamento ocorre nesta vida, uma vez que, por definição, “neste
mundo somos como ele” (v. 17). As cartas falam um pouco mais sobre o dia
do juízo, com exceção de um breve comentário sobre sermos “recompensados
plenamente” (2 Jo 8), se não formos desviados pelo “enganador” (2 Jo 7).
Há pouca menção da segunda vinda. Isso é compatível com o Evangelho
de João, no qual não existe um ensino desenvolvido sobre um segundo adven­
to. A única possível referência a um retorno no Evangelho está na promessa de
Jesus: “Voltarei e os levarei para mim, para que vocês estejam onde eu estiver”
(Jo 14.3). Há um contraste gritante entre ela e os Evangelhos Sinóticos, pois
cada um possui um “apocalipse” importante sobre a vinda do Filho do Homem
e sinais escatológicos (Mt 24.1-51; Mc 13.1-36; Lc 21.5-36). Breves alusões à
segunda vinda surgem em 1 João (2.28; 3.2: “quando ele se manifestar”).
Certa expectativa escatológica se reflete na expressão “a última hora” (duas
vezes em 2.18). João não discorre sobre a expressão, exceto para ligar “última
hora” a “anticristos”. A falsa cristologia dos separatistas que negavam a humani-
zação é oferecida como prova de que o fim dos tempos já havia chegado (4.2,3).
A linguagem escatológica limitada nas cartas pode refletir a escatologia
mais “realizada” do Evangelho de João. Nele, Jesus aparece como já glorifi-
cado, em certa medida. Ele age, muitas vezes, por meio de prerrogativas di­
vinas, em vez de humanas. Além disso, a realidade da ressurreição não é um
acontecimento futuro, “no último dia” (Jo 11.24). Ela já se realizou na pessoa
de Jesus: “Eu sou a ressurreição e a vida” (Jo 11.25). O Espírito, em um sentido
real, realiza a promessa do retorno de Cristo para estar com Seus seguidores
(veja os capítulos 14, 15 e 16).

J. Questões hermenêuticas
Pelo menos três questões interpretativas importantes surgem nas cartas.
Em primeiro lugar, de que modo o ponto de vista de alguém sobre a autoria
desses escritos pode afetar a leitura do texto? Em segundo lugar, a nossa
48
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

perspectiva sobre a ocasião histórica das cartas molda nossa percepção dos
adversários sendo criticados? Em terceiro lugar, como devemos entender a
relação das cartas com o Evangelho de João ?

1. Autoria e interpretação das cartas


O ponto de vista de alguém sobre quem é o autor das cartas e quando fo­
ram escritas por ele afeta o modo como são interpretadas. Se adotarmos a visão
tradicional de que o autor era o apóstolo João, as primeiras linhas de 1 João se­
rão o relatório de uma testemunha ocular dos acontecimentos da vida de Jesus.
As declarações “ouvimos (...), vimos (...), contemplamos e (...) apalparam” (1
Jo 1.1) dão um imediatismo e uma autoridade ao texto e à sua mensagem que
é difícil de ultrapassar. Ás palavras utilizadas são auditivas, visuais e até mesmo
táteis. Certamente, como muitos têm sugerido, essas são as palavras de uma
testemunha ocular.
Porém, e se os verbos na primeira pessoa do plural (dez vezes em 1.1 -3) ou
as ocorrências de “nosso(as)” (duas vezes) e “nos”/”conosco” (uma vez cada)
não refletirem o depoimento de uma testemunha ocular? E se o autor não foi
um dos Doze, mas um discípulo posterior de João, do primeiro século, que se
identificava com a comunidade dos cristãos joaninos e era bastante considera­
do por ela?
Os cristãos joaninos alegavam ter uma ligação direta com o Jesus histórico.
Entretanto, isso não presumia necessariamente que o autor de 1 João fosse uma
testemunha ocular do ministério de Jesus. O seu conhecimento de Jesus che­
gou a eles por uma cadeia ininterrupta de testemunho fiel “desde o princípio”
(1.1), quando a “Palavra da vida” (1.1) foi proclamada (1.1,2,3).
A linguagem do capítulo 1 pode ser entendida como palavras de cristãos
da segunda geração. No entanto, eles poderíam não considerar Jesus uma figura
do passado lembrado, mas alguém vivo e presente na comunidade de culto,
com uma “voz contínua”. Assim, o autor expressa confiança na capacidade de
Deus/Cristo/Espírito manter atualizada a experiência da comunidade cristã.
Os verbos perfeitos traduzidos como “ouvimos” e “vimos” enfatizam que esses
acontecimentos passados têm um efeito de continuação.
Eugene Boring referiu-se ajesus como uma voz “contínua” (Boring, 1991).
Os versículos de abertura de 1 João podem ser uma ocorrência dessa voz con­
tínua. A voz de Jesus, que não foi silenciada na cruz, é ouvida continuamente.
A primeira pessoa do plural em 1 João 1.1-4 sugere que a voz de Jesus seja
encontrada na adoração corporativa. Isso é capturado em imagens vividas em
49
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Apocalipse. Lá, o Cristo vivo e resplandecente, que esteve “morto”, agora está
“vivo para todo o sempre”, no meio das igrejas (Ap 1.18; veja os v. 11-20). Na
passagem, Ele fala uma mensagem no presente, de acordo com Suas necessida­
des específicas (Ap 2.1,8,12,18; 3.1,7,14).
Nas duas cartas menores (2 e 3 João), o “presbítero” pode ser interpretado
como um membro da geração de professores que sucederam as testemunhas
oculares. Tais pessoas ensinaram em uma “corrente” de autoridade, porque re­
ceberam a mensagem do evangelho daqueles que viram e ouviram Jesus (Bro-
wn, 1979, p. 100-103).
Se uma experiência contínua do Senhor ressuscitado for combinada com a
transmissão das tradições recebidas sobre Jesus, então a autoridade residirá tanto
no passado lem brado (tradições orais e textos) como na experiência atual (muitas
vezes, em adoração). Entretanto, permitir que apenas a experiência defina a nossa
compreensão de Jesus, sem o controle do equilíbrio de tradições constantemente
lembradas e recordadas, pode resultar em uma “tradição” adaptativa e em cons­
tante mudança. Essa “tradição” correria o risco de transformar-se em quaisquer
circunstâncias contextuais que se apresentassem em novas terras e novos tempos.
O intérprete responsável valoriza ambos os aspectos dessas alegações em
1 João. A mensagem sobre o Jesus que viveu no passado, recebida por meio
do testemunho confiável das primeiras testemunhas, é um recurso precioso.
Assim é a mensagem que flui do Jesus vivo, que continua a falar como o Senhor
da Igreja e deve ser mantida sempre em vista. Há força na memória apostólica
de Jesus. E há poder na experiência atual de Jesus. As duas testemunhas são
complementares, não competitivas.

2. Perspectiva do autor e perfil dos oponentes


As cartas joaninas representam a opinião do autor canônico. Conhecemos
os adversários apenas por meio da lente do autor de 1, 2 e 3 João. Se essa visão é
sempre justa com os separatistas ou não, isso não pode ser descoberto. Porém,
talvez possamos fazer algumas observações sobre os separatistas, ex-membros da
comunidade cristã de João que foram embora. João, aparentemente, não viu ra­
zão alguma para reconhecer os pontos positivos dos separatistas, os quais ele con­
siderava anticristos perigosos. Seus leitores sabiam muito bem quem eles eram e
o que tinham feito. Contudo, não devemos esquecer que estamos lendo a corres­
pondência alheia.
Portanto, o intérprete moderno é sábio ao ter certa cautela em rotular rá­
pido demais aqueles contra os quais as cartas falam. Quanto ao fato de serem
50
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

uma grande preocupação para João e de já terem feito parte das comunidades
de fé, não há dúvidas quanto a quem ele se dirige (2.19). Eles não praticavam
uma heresia adversária e externa. Em vez disso, seus pontos de vista eram uma
expressão tangente, uma variante do cristianismo joanino que, na visão de João,
atingia um excesso significativo. Ele nunca sugeriu que os separatistas fossem
influenciados por algum grupo externo, algo que dificilmente seria omitido se
fosse o caso (Brown, 1979, p. 106).
O grupo separatista pode ter exercido uma cristologia excessivamente ele­
vada, um exagero da cristologia do Evangelho de João (Brown, 1982, p. 54).
Era justamente o fato de já terem sido aliados íntimos das visões de João e de
seu círculo que os tornava especialmente perigosos.
Seus pontos de vista extremistas, que consideravam apenas a divindade e
renunciavam a plena humanidade, provavelmente, surgiram da tendência do
Evangelho de João em enfatizar a divindade de Jesus. Por serem tão parecidos
com a comunidade de João, sua ênfase excessiva poderia atrair adeptos para sua
posição cristológica. Embora João os rotulasse de “anticristos” (2.18) e escre­
vesse em tons de inimizade ferrenha, o apóstolo reconheceu que eles já fizeram
parte do “nós” — membros de seu círculo de cristãos (2.19).
Os separatistas provavelmente se consideravam defensores leais da plena
divindade do Filho. Eles estavam fazendo isso separando Cristo, como pessoa
celestial, de Jesus, como indivíduo terreno. Jesus (terreno, humano, mortal) po­
deria também ser o Cristo (celestial, divino, eterno)? Se assim for, poderíam
argumentar: o divino não ficaria poluído se fosse misturado com o humano ?
Um Deus verdadeiramente divino permanecería sempre como tal.
Tão grande resistência em aceitar a entrada de Deus no homem passou
a ser identificada como docetismo. Os docetistas acreditavam que Cristo não
se tornou humano, mas que apenas pareceu fazê-lo. Elevar Cristo ao domínio
das deidades helenistas seria fácil de imaginar. Porém, afirmar a entrada de uma
divindade no mundo material seria impensável (Burge, Cohick e Green, 2009,
p. 416). O fato de Jesus, na forma de Cristo, ter morrido, dificilmente, poderia
ser imaginado.
Todavia, o coração da teologia de João carrega uma forte paixão missioná­
ria. Embora ele escreva de formas acentuadamente dualistas, o apóstolo fala,
de modo consistente, do amor redentor de Deus para com a humanidade pe-
cadora. As fronteiras não são imóveis; o amor de Deus veio para o nosso meio
(Kóstenberger, 2009, p. 280).
Algumas das primeiras dificuldades da fé cristã em entender a pessoa de Je­
sus surgiram nesse ponto. Ele era plenamente Deus ? Era plenamente humano ?
51
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Era um pouco dos dois e nenhum dos dois ? Mais tarde, declarações de credo
afirmavam tanto a plena divindade como a plena humanidade de Jesus.
No quarto século, o Credo Niceno referiu-se a Jesus Cristo como o “ver­
dadeiro Deus do verdadeiro Deus, gerado, não criado, de uma só substância
[essência] com o Pai”. Ele também afirmou: “Por nós, homens, e por nossa
salvação, desceu dos céus, foi feito carne por intermédio do Espírito Santo e
da Virgem Maria, e tornou-se homem” (Schaff, 2007, 2:58,59). Tal credo não
existia quando essas cartas foram escritas.
A partir dessas cartas e dos credos que se desenvolveram mais tarde, é evi­
dente que as primeiras contendas cristológicas não tiveram origem na negação
da divindade de Jesus. Em vez disso, o erro surgiu da resistência em aceitar Sua
plena humanidade.

3. Relação das cartas com o Evangelho de João e como


isso contribui para nossa interpretação
O Evangelho de João dá informações que permitem uma reconstrução
parcial da história da comunidade joanina de seus primeiros dias até a época da
escrita do Evangelho (Brown, 1979, p. 13-24). Geralmente, esse é considerado
um período em que a comunidade joanina passou de uma identidade de fé
dentro do judaísmo para um grupo excluído da sinagoga.
Os adversários do Evangelho são rotulados de “os judeus” (referindo-se
aos líderes judeus que se opunham a Jesus, não à raça judaica). Os seguidores
de Cristo, no Evangelho, foram pressionados a deixar as sinagogas (Jo 9.22;
12.42; 16.2). Isso levou os cristãos joaninos a uma separação mais marcada do
judaísmo.
Em contraste com o Evangelho, os adversários nas cartas de João são ex-
-membros que saíram da comunidade joanina. As cartas dão uma ideia do que
aconteceu entre a escrita do Evangelho e a das cartas. Na época em que as cartas
foram escritas, a comunidade joanina não estava dentro da sinagoga, mas bem
separada dela (Ehrman, 2008, p. 179-183; Brown, 1979, p. 33-35).
Embora o Evangelho não seja citado nas cartas, uma série de declarações
formuladas de modo semelhante aparece em ambos:
• A palavra “princípio” (1 Jo 1.1; também 1 Jo 2.13,14) evoca João 1.1,
assim como “a vida” (1 Jo 1.2; vejajo 1.4).
• Referir-se à “vida” como “vida eterna” (1 Jo 1.2; 2.25; 3.15; 5.11,13,20)
é típico do Evangelho (16 vezes).
52
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

• A declaração “vimos” (eth easa m etha) é a mesma palavra e forma verbal


traduzida como “vimos” em João 1.14.
• A ideia de tornar a “alegria (...) completa” (1 Jo 1.4) lembra João 15.11
ejoão 16.24.
• A “verdade” como algo que se faz (1 Jo 1.6: n ã o esta m o s p r a tica n d o a
v er d a d e ) em conjunto com a “luz” (1 Jo 1.5; Jo 3.19-21).
• A morte de Jesus foi “pelos pecados de todo o mundo” (1 Jo 2.2; veja
Jo 1.29).
• A expressão “mandamento novo” ( l Jo 2.7,8) aparece em João 13.34,
e a respectiva especificação “amemos uns aos outros” é reaplicada com
exatidão em 2 João 5.
• O conceito de negar ou reconhecer o “Filho” é o mesmo que fazê-lo
ao “Pai” (1 Jo 2.23) e tem certa semelhança com João 5.23: “Aquele
que não honra o Filho, também não honra o Pai que o enviou” (veja
também Jo 15.23).
Mais exemplos de semelhanças entre a linguagem do Evangelho de João e
a da primeira carta poderíam ser citados (Brown, 1982, p. 757-759). Contudo,
os exemplos mostrados são suficientes para deixar isso claro. Esses exemplos
não refletem necessariamente a utilização direta do Evangelho pelo autor das
cartas. No entanto, eles sugerem que ambos compartilhavam da mesma escola
de pensamento. Eles empregam o linguajar “de membro” de uma comunidade
de fé — em que diferentes autores compartilham uma ideologia comum e são
influenciados pelos mesmos valores espirituais. As cartas foram escritas mais
ou menos na mesma época, pelo mesmo autor, e falam sobre as implicações dos
mesmos problemas que as igrejas joaninas enfrentavam (ex.: Ehrman, 2008,
p. 186-188; Johnson, 1986, p. 501-504; Brown, 1979, p. 32; Bruce, 1970, p.
13-18).

53
COMENTÁRIO

I. PRÓLOGO E PREMISSAS: 1 JOÃO 1.1-10

A. A vida se manifestou (1.1-4)

POR TRÁS DO TEXTO

As palavras que o autor usa fazem parte da interpretação desse pequeno


escrito. Isso vale especialmente para os verbos e os pronomes dessa seção. Os
personagens da antiga história do texto não têm o nome citado em 1 João, po­
rém não deixam de ser personagens.
Nos versículos 1-4, há dez verbos gregos na primeira pessoa do plural e
seis pronomes relacionados (“nos” e “conosco”, uma vez cada; “nosso[s]” e
“nossa[s], quatro vezes). Esses pronomes situam o autor em um grupo de cris­
tãos de mesma ideologia (nós), escrevendo para outro grupo de cristãos (vocês,
v. 2,3, sempre no plural). Ele, então, para de referir-se aos leitores como vocês,
preferindo identificar-se com eles usando a primeira pessoa do plural (v. 6-10).
Os temas comuns ao longo dos escritos joaninos, junto com pequenas dicas na
linguagem usada por João, sugerem a existência de uma “escola” de discípulos
identificados com o apóstolo João (Brown, 1979; Culpepper, 1975).
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

O prólogo de 1 João (v. 1-4) introduz a proclamação apostólica do


evangelho. João faz isso com declarações que apontam para o que ele procura
enfatizar durante todo o restante da carta.
O prólogo de 1 João lembra o prólogo do Evangelho de João (1.1- 18).
Contudo, está longe de ser um comentário sobre ele (Smith, 1991, p. 36). Co­
nhecer um pouco do prólogo do Evangelho ajuda a dar sentido aos versículos
iniciais de 1 João. João 1.1-18 e 1 João 1.1-4 possuem vocabulário e conceitos
em comum (princípio, Palavra, luz, vida, testemunha[mos] e vimos).

NO TEXTO

I 1 O que é frequentemente chamado de carta de 1João não tem a maioria das


características formais de cartas greco-romanas do período (veja a Introdução).
Ela não identifica o remetente e os destinatários. Ela não inclui saudações
costumeiras e nenhuma garantia de orações ou melhores votos. Sua conclusão
não tem as despedidas esperadas.
Ao mesmo tempo, 1 João dá provas de que é algum tipo de carta. Em 2.19,
a formulação de João (“saíram do nosso meio”) é uma descrição dele e de seus
leitores como uma comunidade de fé identificável. Além disso, 1 João emprega
formas do verbo gra p h õ (“escrevemos”, “escrevo”, “escrevi”) 13 vezes, em dez
versículos (1.4; 2.1,7,8,12,13,14,21,26; 5.13). Assim como um documento de­
cididamente escrito, 1 João aborda leitores específicos. Seu uso frequente de
afetuosidade no tratamento (“filhinhos” e “filhos de Deus”, 15 vezes; “amados”,
seis vezes) cria o tom de uma carta pessoal (veja a Introdução).
A palavra princípio (archês), em certa m edida, evoca o prólogo do Evange­
lho, que leva os leitores de volta a Gênesis 1.1. Porém, vários estudiosos veem
o princípio em 1 João 1.1 como uma referência a Jesus (Strecker, 1996, p. 57;
Brown, 1982, p. 158,175), ao início do movimento cristão (Jones, 2009, p.
19,20; Bruce, 1970, p. 35) ou, especificamente, à própria humanização (Bult-
mann, 1973, p. 9). O termo pode destacar a inauguração da mensagem do
evangelho especialmente nos círculos joaninos (Smith, 1991, p. 36,37).
O que era desde o princípio foi o que ouvimos (também no v. 3). No
entanto, isso era mais do que uma mensagem proclamada. Os verbos ver, ouvir
e apalpar são um argumento a favor de um logos encarnado e personificado,
não apenas uma mensagem pregada. Algumas traduções identificam esse logos
como Cristo por meio de inicial maiuscula — Palavra (também na ARC e na
N TLH ; veja Brown, 1982, p. 163,166).
Esse evangelho foi o que ouvimos (akékoam en) e vimos (heõrak am en). O
pretérito perfeito grego de ambos os verbos indica que a experiência passada de
56
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

João e da comunidade de Cristo teve um efeito “permanente” (Brooke, 1912,


p. 2) ou “duradouro” (Strecker, 1996, p. 12). As palavras do Evangelho rever-
beraram em seus ouvidos. O que eles viram deixou uma imagem indelével nos
olhos de sua mente.
Os verbos contemplamos (eth easa m etha; veja Jo 1.14) e apalparam
(.epsélaphêsan) mudam para o aoristo (pretérito). Isso sugere que o pretérito
perfeito anterior de João fora intencional. Bruce indica que a ap aren te dupli­
cação de verbos visuais — vimos e contemplamos — tentava evocar a lingua­
gem de João 14.9. O que se viu foi além da mera visão exterior, para discernir a
glória interior (1970, p. 36). Brooke liga, de forma semelhante, a utilização do
aoristo ao caráter do que foi visto (1912, p. 4).
João enfatiza a experiência visual — com os nossos olhos. O acréscimo de
olhos enfatiza e personaliza a exposição, dando um imediatismo ao relato da
experiência de Cristo (Marshall, 1978, p. 101; Brooke, 1912, p. 2). Da mesma
forma, nossas mãos, que são funcionalmente desnecessárias, salientam a evi­
dência tátil. Cristo foi experimentado em todos os sentidos sensoriais (Brooke,
1912, p. 5).
As declarações de João nas linhas de abertura são ousadas e estão na pri­
meira pessoa do p lu ra l (nós). Alguns intérpretes as compreendem como pala­
vras de uma testemunha ocular da vida de Jesus, que fala como um represen­
tante coletivo. Eles entendem que o “nós” quer dizer “eu” e a primeira geração
de crentes. Eles presumem que o apóstolo João tenha sido o autor. Isso, certa­
mente, é possível.
Todavia, se o autor de 1 João quisesse alegar ser uma testemunha pessoal
dos acontecimentos da vida de Jesus, por que ele não usou a primeira pessoa do
singular ? Ele poderia facilmente ter escrito “o que ouvi, o que vi”. A primeira
pessoa do singular aparece muitas vezes em outras partes da carta — 14 vezes.
Uma alegação na primeira pessoa do singular teria afirmado claramente a au­
toridade única do apóstolo como testemunha ocular. Isso parece uma tática
natural e convincente, considerando sua batalha teológica e ética contra adver­
sários formidáveis.
As palavras do prólogo alegam um encontro com Jesus, que é uma realida­
de altamente pessoal e presente. Entretanto, elas não são obrigadas a exigir que
o autor seja uma testemunha ocular. A linguagem pode ser uma maneira pa­
dronizada de expressar a confiança de que a mensagem do evangelho veio fiel­
mente aos leitores por meio de uma corrente ininterrupta desde o princípio.
O uso do nós pode indicar que o autor seja o porta-voz de uma “escola”
joanina (veja a Introdução), que preservava e passava adiante as tradições sobre
57
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Jesus provenientes do Discípulo Amado (Brown, 1982, p. 175). As palavras —


ouvimos, vimos, contemplamos e apalparam — enfatizam a importância do
testemunho pessoal de Jesus (Brown, 1982, p. 163).
Jesus é a Palavra da vida {tou logou tês zõês). No entanto, João não
menciona Jesus até o versículo 3. Considerando que o Evangelho salienta a
pessoa da Palavra, aqui a ênfase está na vida de salvação que ele transmitiu.
Porém, essa vida, que realmente vimos, ouvimos e apalparam, era inconce­
bível separadamente do Filho encarnado por intermédio de quem ela veio. O
“assunto”, a vida, é a pessoa de Cristo (Bultmann, 1973, p. 8). A linguagem é
fortemente experiencial. Como uma encarnação plenamente humana do Deus
invisível, Ele se tornou visível, audível e tangível (Smith, 1991, p. 39). As im­
plicações teológicas disso são o centro dessas cartas.
João ansiosamente defende uma cristologia que respeita a humanidade de
Jesus de forma completa. O Evangelho de João pressupõe a humanidade de Cris­
to e fala sobre Sua divindade. Em 1 João, a ênfase é invertida e enfatiza Sua hu­
manidade de modo significativo (Black, 1990, p. 40; veja 1 Jo 1.1-3; 2.2; 4.2,10).
Essa mudança de ênfase parece uma resposta às reivindicações docéticas
de ex-membros da comunidade joanina. A fé cristã foi firmemente enraizada
em uma pessoa, Jesus, e também ancorada na história — tempo, lugar e evento.
Portanto, João pode dar um sentido sutil e facetado ao logos, como a encarna­
ção — Palavra —, e tam bém à mensagem pregada — palavra — sobre Cristo
(veja Fp 2.16; Flemming, 2009, p. 124).
No versículo 1, a frase isto proclamamos não está no texto em grego, mas
foi retirada do versículo 3. O versículo 1 é, estritamente falando, um anacolu-
to, ou seja, uma construção frasal fragmentada. João não completa, de forma
gramatical, as frase que ele começa. Ele inicia a oração com uma série de frases
seguidas de objeto direto — o que (...), o que (...), o que (...), o que (...). Porém,
não indica imediatamente um verbo ou assunto explícito. Após um parêntese
no versículo 2, João finalmente esclarece seu ponto no versículo 3, oferecendo
o sujeito e o verbo que deixou de expressar no versículo 1.
H 2 Jesus Cristo — essa pessoa, que é a vida encarnada — se manifestou; ou
“apareceu” (NTLFí). A ideia de vida “manifestada” (ARC) ou encarnada tem
sua base no Quarto Evangelho: “Nele estava a vida” (Jo 1.4) e “Eu sou (...) a
vida” (Jo 14.6). A raiz do verbo grego ep h a n erõth ê influenciou a palavra “epi-
fania” e pode referir-se à aparição de uma divindade. Muitas vezes, transmite a
ideia de tornar visível o que é invisível.
Várias passagens do NT usam o termo “epifania” para referir-se a uma apa­
rição do Senhor ressuscitado (Mc 16.9,12,14; Lc 24.34; Jo 21.1,14). Todas as
58
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

cinco ocorrências dep h a n eroõ em 1 João (1.2; 3.5,8; 4.9) referem-se à vinda de
Cristo ao mundo. Essa aparição foi soteriológica — para “tirar os nossos peca­
dos” (3.5); “para destruir as obras do diabo” (3.8); “para que pudéssemos viver
por meio dele” (4.9). Jesus revela o amor de Deus; e essa revelação continua no
testemunho vivo das igrejas (Müller, 1993, p. 414).
A locução verbal “foi manifestada” (ARC) está na voz passiva, indicando
que a ação foi feita por outro agente. Ao utilizar a voz passiva, em vez da voz
ativa, os escritores bíblicos podiam referir-se a Deus como o agente que reali­
zou uma ação sem mencionar Seu nome. Essa voz “passiva divina” foi uma das
maneiras dos judeus pós-exílicos evitarem o erro de seus antepassados. Eles não
diriam o nome de Deus em vão.

V o z p assiva d ivin a

A v o z p a s s iv a d iv in a n o N T d e r iv a d o h á b it o h e b r a ic o d e e v i t a r o
n o m e d iv i n o . E s s a m e d id a e x t r a d e c a u t e la t e m lig a ç ã o c o m u m a p o s ­
t u r a d e r e v e r ê n c ia p a r a c o m D e u s , q u e é d ig n o d e h o n r a a c im a d e t u d o .
E la t a m b é m e x p r e s s a o t e m o r re v e r e n c ia i d ia n t e d a s a n t id a d e t e m ív e l
d a p r e s e n ç a d iv i n a . A o s q u e c o lo c a m o R e in o e a ju s tiç a e m p r im e ir o lu ­
g a r , " s e r ã o a c r e s c e n t a d a s " ( p o r D e u s ) a s c o is a s n e c e s s á r ia s p a r a a v id a
( M t 6 .3 3 ) . P e d ir c o m f é , e m o r a ç ã o , s ig n ific a q u e " lh e s s e r á d a d o ” — p o r
D e u s (M t 7 .7 ) .
Q u a n d o o s c re n te s p re c is a m d e p a la v r a s p a ra d a r u m fie l t e s t e m u n h o
p e r a n t e a s a u to r id a d e s , Je s u s p r o m e t e q u e " lh e s s e rá d a d o o q u e d iz e r "
( M t 1 0 .1 9 ) . E m A p o c a lip s e , a v o z p a s s iv a d iv in a in clui a p r o v is ã o d e p u ­
r e za — " c a d a u m d e le s re c e b e u u m a v e s t e b r a n c a " ( A p 6 . 1 1 ) e p ro te ç ã o
( A p 1 2 .1 4 ) . A v o z p a s s iv a d iv in a a firm a D e u s c o m o a lg u é m q u e a g e a tiv a ­
m e n te n a h is tó r ia , m a s s e m n o m e á -lo a b e r t a m e n t e n o t e x t o . E la t a m b é m
tr a n s m ite a id e ia d e q u e t o d a s a s c o is a s o c o r r e m d e n tr o d a p e rm is s ã o d e
D e u s . N a d a d o q u e a c o n te c e p o d e s u r p r e e n d e r o u a tr a p a lh a r o p ro p ó s ito
d iv in o .

Uma paráfrase interpretativa do versículo 2 seria: Deus nos revelou p le­


nam ente, n a pessoa deJesus, a Sua p ró p ria vida, que antes era desconhecida
p ara nós. A ênfase não está em Jesus como testemunha de Deus. Pelo contrá­
rio, a Sua humanização permitiu que os crentes vissem o que Seus inimigos não
conseguiam ver: “O mundo não o reconheceu (...), mas os seus não o recebe­
ram” (Jo 1.10,11). Eles viram-no por quem e o que Ele realmente era.
59
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Assim, a vida divina, identificada como a vida eterna, foi colocada em


exposição, claramente diante dos olhos do homem. Contemplando o que era a
vida encarnada, as pessoas poderiam vir a conhecer a natureza de Deus. Ataná-
sio explicou isso como a experiência cristã de “tornar-se pela graça o que Deus
é por natureza” (Sobre a E ncarnação, I). Ele destacou o conhecimento de Deus
não apenas como informação, mas fundamentalmente como transformação.
Essas frases de introdução têm um tom similar ao da experiência de Tomé
no Evangelho (Jo 20.24-29). Ele não acreditaria a menos que pudesse ver por
si mesmo e tocar as feridas do Jesus ressurreto. Em ambos os casos, ouvir, ver e
tocar são provas conclusivas de que a morte de Cristo não foi o fim da história.
Esse fato verdadeiramente significativo tornou a história de Jesus uma boa no­
tícia que tinha de ser contada. O Cristo crucificado e ressurreto foi visto como
vivo e vitorioso sobre a morte. Caso contrário, a vida seria impossível (veja 1
Co 15.14).
As palavras vida e eterna são combinadas frequentemente como vida
eterna {tên zoén tên a iõ n io n ) em outras partes do NT (oito vezes nos Evange­
lhos Sinóticos; nove vezes nas cartas de Paulo; duas vezes em At). Contudo, a
vida eterna tem uma importância especial no Evangelho de João (16 vezes) e
em 1 João (seis vezes: 1.2; 2.25; 3.15; 5.11,13,20).
João vê a vida eterna como a “vida de outra era (a iõn ...) ou esfera. Na ver­
dade, é a vida do próprio Deus” (Brown, 1982, p. 168). E uma vida de qua­
lidade diferente, não apenas a vida do presente século continuando sem fim.
A Palavra (Jo 1.1) encarnada como Jesus nos trouxe a vida eterna (Jo 6.68;
10.28; 12.50; 17.2). Cristo é a verdadeira vida (1 Jo 5.20). Ele revela a vida de
Deus, desde a eternidade e por toda ela. Jesus é o passado, o presente e o futuro
de Deus (Ap 4.8; veja 1.4,8).
João difere dos gnósticos de forma importante aqui. Os gnósticos localiza­
vam a vida eterna em um reino quase inacessível além do tempo e do espaço.
Contudo, a visão de João traz a vida eterna para o presente e fixa-a firmemente
à pessoa de Jesus Cristo (Jo 17.3). A vida de eternidade reside em nós (Jo 4.14;
6.27; 12.25; Link, 1976, p. 482).
Jesus dá vida e luz (Jo 8.12); na verdade, Ele é “a luz do mundo” (Jo 8.12).
Ele dá luz e vida até para a própria criação (Jo 1.3-5). A vida eterna que Jesus
oferece é escatológica — ela revela o fim dos tempos em tipo e duração. A
implicação é que quem tiver essa vida não se perderá na eternidade (Jo 6.40;
10.28). A vida eterna é também, na interpretação joanina, uma realidade pre­
sente, algo que se pode ter agora (Jo 3.36; 5.24; 6.47; Schottroff, 1991, p.
108).
60
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

O versículo 2 discorre no presente: Nós (...) testemunhamos (m artyrou -


m en) (...) e proclamamos (a p a n gellom en ). A autoridade apostólica e cristã é
dupla: experiência pessoal e missão. A tradução esta m o s co n tin u a m e n te tes­
tem u n h a n d o e p r o cla m a n d o destaca a ênfase contínua do tempo presente.
O autêntico testemunho está em curso, uma história que nunca termina. A
palavra grega para testemunho deu origem à palavra “mártir”. Mais tarde, em
círculos cristãos, “testemunhas” eram aqueles que estavam dispostos a morrer
em vez de negar sua devoção intransigente a Cristo. Essa ainda não era a expe­
riência dos crentes em 1 João (Beutler, 1981, 2:392,393).

T e s te m u n h o fiel e m a rtírio

N o liv ro d e A p o c a lip s e , o títu lo " t e s t e m u n h a fie l" (h o m a rty s ho pis-


tos) é a tr ib u íd o , e m p rim e iro lu g a r , a Je s u s C r is to ( A p 1 .5 ) . P a ra a ig re ja
e m L a o d ic e ia , o S e n h o r re s s u rre to se id e n tific a c o m o " t e s t e m u n h a fiel e
v e r d a d e ir a " ( A p 3 .1 4 ) . T e s t e m u n h a r p e la fé n ã o s ig n ific a , in ic ia lm e n te ,
m o r r e r p o r s u a f é . P o r é m , o m a r tírio a c a b o u t o r n a n d o -s e s in ô n im o d e t e s ­
t e m u n h o fie l a té a m o r te . Isso s e d e v e u , e m p a r t e , à e x p a n s ã o d a p e rs e ­
g u iç ã o d o s c ris tã o s p e lo Im p é r io R o m a n o .
A s p rim e ira s te n d ê n c ia s d e a s s o c ia r e s s a s id é ia s já a p a r e c e m e m
A p o c a lip s e : " A n t ip a s , m in h a fie l t e s t e m u n h a , fo i m o r to n e s s a c id a d e "
( 2 .1 3 ) . A s a fir m a ç õ e s "s e ja fie l a té a m o r t e , e e u lh e d a re i a c o ro a d a v id a "
( A p 2 .1 0 ) e " q u e fo r a m d e c a p it a d o s p o r c a u s a d o t e s t e m u n h o d e Je s u s "
( A p 2 0 .4 ) a c e n tu a m a in d a m a is o c r e s c e n te p r o b le m a d o m a r tírio n o fin a l
d o p rim e iro s é c u lo ( a d a p t a d o d e M e n o u d , 1 9 6 2 , p . 2 8 8 ) .

H 3 Bruce faz uma distinção entre o uso “exclusivo” e “inclusivo” de nós. Ele
argumenta que é exclusivo no versículo 3: “Nós tivemos essa experiência, e vo­
cês não”. Ele insiste no fato de que o prólogo é melhor compreendido como as
palavras da primeira geração cristã, abordando cristãos de uma geração que veio
depois (1970, p. 38).
O testemunho fiel sobre Jesus vem de uma comunidade de fé. O autor fala
com uma voz corporativa, utilizando a primeira pessoa do plural — nós — em
três verbos nesse versículo. Esse testemunho coletivo indica que a experiência
que teve com Jesus não era um fenômeno religioso solitário. Era algo compar­
tilhado como parte de uma comunidade de culto.
O verbo principal dos versículos 1-3, proclamamos (,ap an gellom en ), ante­
cipado no versículo 2, finalmente se torna explícito. A palavra que conota um
61
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

mensageiro trazendo notícias era empregada nos contextos sagrado e secular.


A palavra aparece em relatos de ressurreição (Mt 28.8,10; Mc 16.10,13; Lc
24.9); da mensagem de Deus (Mt 11.4; Lc 7.22); e declarando Jesus como o
Mensageiro de Deus (Mt 12.18; Hb 2.12; Schniewind, 1964, p. 56-73).
Várias palavras compostas com a n gellõ ocorrem no NT, com essencial­
mente o mesmo significado (veja o v. 5, “transmitimos” \anangellomen\). Essas
palavras relacionadas, muitas vezes, transmitem um sentido técnico especial,
o anúncio da intenção de Deus em salvar. Essa não é uma declaração de uma
nova era vindoura tanto quanto é uma lembrança e um esclarecimento de algo
já conhecido (Becker e Müller, 1978, p. 46,47).
O acúmulo de verbos experienciais de testemunho de João e a retenção do
verbo principal enfatizava o con teú do da mensagem, em vez do ato de procla­
mação (Marshall, 1978, p. 100). No versículo 3, a ordem verbal é vimos (...)
ouvimos. Invertendo a ordem do versículo 1, ouvimos (...) vimos. Junto com
o vimos do versículo 2, essa repetição poética intensifica o impacto.
João queria que seus leitores aceitassem aquele que foi visto e ouvido e,
assim, entrassem em comunhão (k oinõnian). Ter comunhão era ter algo em
comum. Parceiros de negócios (Lc 5.10); aqueles que compartilham uma “fé
comum” (Tt 1.4); aqueles que possuem a graça de Deus, junto com os outros
(Fp 1.7); aqueles que participam em Cristo (1 Co 1.9); e gentios que compar­
tilham os benefícios das “bênçãos espirituais” dos judeus (Rm 15.27) todos
experimentam uma espécie de koinõnia.
Após o Pentecostes, Lucas descreveu a vida dos primeiros cristãos simples­
mente como têi koinõniai (At 2.42). Diante disso, sem dúvida, estava a “quali­
dade de vida compartilhada” no Espírito Santo, agora entendida em termos de
participação na vida, na morte e na ressurreição de Jesus.
A palavra koinõnia ocorre apenas nesse capítulo das cartas (1 Jo 1.3,6,7)
e nunca no Quarto Evangelho. No entanto, a palavra m en õ (“permaneço”) no
Evangelho transmite, em muito, o mesmo conceito e aparece com frequência
(Smith, 1991, p. 38; Bruce, 1970, p. 38,39). A comunhão de 1 João tornou-se
possível e desenvolveu-se com base em uma proclamação fiel do evangelho.
Essa teia de ricas relações — entre crentes e Deus, e entre os irmãos de fé
— foi uma consequência natural da humanização (Strecker, 1996, p. 20). Pelo
fato de a vida de Deus ter sido revelada em Cristo, relacionamentos autênticos
e espiritualmente valiosos poderiam desenvolver-se entre as pessoas. O tempo
presente do verbo exête (vocês... tenham) sugere que João esteja falando com
aqueles que já eram cristãos, encorajando-os a permanecerem fiéis (Marshall,
1978, p. 105).
62
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

Estar em comunhão com Cristo era pertencer a uma comunidade de cren­


tes — vocês e conosco { m ethéhêm õn ). Interações horizontais saudáveis envol­
vem pessoas relacionadas justamente a outras. Contudo, João também escreve
sobre ligações entre seus leitores e o Pai e com seu Filho Jesus Cristo. Nessas
relações verticais, os adoradores relacionam-se com Deus, o objeto de adoração
e o autor de todas as ligações humanas justas. Na realidade, o relacionamento
entre os cristãos, em seu nível mais profundo, é simplesmente Jesus!
De modo aparente, João estava preocupado com alguns leitores que não
eram mais ligados a ele e à sua mensagem. Por isso, escreveu a fim de tirar os
fiéis de um compromisso potencialmente destruidor para um ensinamento
apostólico de acordo com o seu entendimento. Outra evidência disso pode
ser vista nas seções subsequentes da epístola sobre andar na luz em oposição
às trevas (1.5-7) e a definição de “anticristos” para aqueles que “saíram do” seu
“meio” (2.18,19). João não escreve do nada, mas com base em preocupações
pastorais verdadeiras. O versículo 3 expressa o objetivo de sua proclamação:
Para que vocês também tenham comunhão conosco, em vez de comunhão
com eles. Seu desejo por uma autêntica comunhão exigia que eles resistissem à
ameaça trazida à comunidade pelos professores errantes.
I 4 Esse versículo toca em um aspecto vital do avanço do evangelho, isto é,
a importância da escrita — escrevemos. João enfatiza essa forma de cuidado
pastoral a distância em um número excessivo de vezes para uma cara tão peque­
na (escrevemos, escrevo e escrevi aparecem dez vezes — 1.4; 2.1,12,13,14,21;
5.13). Nas cartas de um capítulo, ele diminui o valor da escrita (enquanto es­
creve!) e expressa sua preferência por uma visita pessoal (2Jo 12; 3Jo 13).
A Bíblia está disponível para os leitores modernos, porque os líderes cris­
tãos do primeiro século escreveram. Autores e incontáveis escribas fielmente
copiaram manuscritos à mão antes da invenção da imprensa. Profetas colo­
cavam a caneta no papel em resposta às ordens divinas (Is 30.8; Jr 30.2; Hc
2.2). Apocalipse registra o comando (de Deus/Cristo/um anjo) de “escrever”
12 vezes (1.11,19; 2.1,8,12,18; 3.1,7,14; 14.13; 19.9; 21.5).
João escreve para permitir a alegria da comunhão. A palavra alegria (ch a-
ra, relacionada a charis, “graça”) aparece sete vezes nos lábios de Jesus no Quar­
to Evangelho (3.29; 15.11; 16.20-24; 17.13). As palavras gregas em 1 João 1.4
são idênticas às de João 16.24 (ARA): “Que a vossa alegria seja completa”, exce­
to em manuscritos de 1 João que tem “nossa” em vez de “vossa”.
A variante v o ssa em 1 João pode ter sido introduzida por um escriba ten­
tando harmonizar a epístola com o Evangelho. Alternativamente, um escriba
poderia ter ouvido errado quando um leitor do scriptoriu m ditava a um grupo
63
1,2 E 3 JOÂO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

de escribas que fazia várias cópias de 1 João. Nesse ambiente, as palavras hêm õn
e hym õn, nossa e “vossa”, poderíam ser facilmente confundidas.
Os tradutores da NVI (e também de outras versões) preferiram utilizar
nossa (h êm õn) no versículo 4, com base em dois importantes manuscritos un-
ciais do quarto século, S inaiticus e Vaticanus. Como a leitura era inesperada,
isso é mais provável. Um editor, mais tarde, poderia ser esperado para suavizar
a leitura, não a tornar mais difícil.
As palavras alegria/alegrei aparecem mais quatro vezes nas cartas joaninas
(2 Jo 4,12; 3 Jo 3,4). A alegria mútua que tinham por causa de seus compro­
missos em comum levava-os a preservar nas comunicações escritas e a esperar
contatos face a face.
Os leitores de 1 João familiarizados com o Quarto Evangelho, sem dúvida,
ouviram ecos da alegria enfatizada no discurso final de Jesus (Jo 15.11; 16.24;
17.13; vejajo 3.29). O padrão de João 15 é semelhante: uma relação comparti­
lhada — comunhão — resultante em alegria. O significado tanto no Evange­
lho como na epístola se estende para incluir a alegria da salvação.
João escreve para que a alegria do círculo joanino possa ser completa
(p ep lêrõm en ê, “cheia”) e abundante (veja 2 Jo 12). O pretérito perfeito do par-
ticípio sugere uma alegria trazida à plenitude e sustentada. Além disso, a voz
passiva lembra aos leitores que sua alegria é um dom de Deus. Esse presente é
melhor aproveitado quando recebido em um ambiente corporativo e fiel, no
qual os ouvintes obedecem ao que lhes foi ensinado pela autoridade apostólica.
Em resumo, os versículos 1-4 antecipam, em essência, a mensagem — o
testemunho teológico de toda a carta. Primeiro, a continuidade da revelação
entre o Pai e o Filho encarnado é implícita. Segundo, João enfatiza a verdade
bíblica de que a vida do cristão é uma relação que compreende tanto o evange­
lho como a ética. É a combinação de “o que Deus fez” e “o que devemos fazer”
— a unidade inerente das dimensões horizontal e vertical da vida cristã.
É essencial, para o nosso bem-estar espiritual e para a saúde da Igreja, que
essas duas coisas sejam mantidas em equilíbrio. A presença e a interpenetração
de ambas são necessárias. “A vida (...), a vida eterna,” é a “comunhão conosco” e
“com o Pai e com seu Filho”.

A P A R T IR D O T E X T O

Um desafio de testemunhar fielmente

Aqueles que possuem a vida eterna (v. 2) têm a obrigação de serem fiéis
exemplos e porta-vozes nesta vida. Ouvintes de cada geração contam a história
64
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

e compartilham a vida que ela oferece. Desde os primeiros cristãos, passando


por aqueles que nos trouxeram as Escrituras e seguindo adiante pelo nosso fiel
testemunho, a história nunca termina.
Como podemos testemunhar de forma fiel? Aceitando pessoalmente a fé
cristã e a pessoa de Jesus Cristo. O testemunho fiel acontece quando mergu­
lhamos nessa fé. Ao estudar e viver a Sua mensagem, tornamo-nos confiantes
contadores da história. A nossa competência como testemunhas fiéis melhora
com a prática.

Uma preocupação em manter o paradoxo cristológico

A antiga luta para manter, em tensão criativa, a plena divindade e a plena


humanidade de Cristo evidentes nessa carta continua até hoje. Jesus era um ju­
deu de Sua época, um professor rabínico que viveu na Israel do primeiro século.
Alguns o veem como um revolucionário social, corajoso (Crossan, 1991), mas
certamente não como divindade (Crossan, 1994; para a crítica de tal ceticismo,
veja Johnson, 1996, p. 20-27). Porém, o testemunho primordial do NT afirma
Jesus como “Deus” (Jo 1.1), “pois foi agrado de Deus que nele habitasse toda
a plenitude” (Cl 1.19), é “igual a Deus” (Fp 2.6) e “o resplendor da glória de
Deus e a expressão exata do seu ser” (Hb 1.3).
Por outro lado, alguns cristãos bem-intencionados ficaram com medo de
qualquer coisa que pudesse diminuir as declarações de deidade feitas nas Escri­
turas e nos primeiros credos sobre Jesus. Então, eles acabaram com um Cristo
que nunca se tornou realmente encarnado. Eles concebiam a Sua humanidade
como uma ilusão ou um disfarce que Ele deixou para trás quando voltou ao Pai.
Esse foi precisamente o erro enfrentado em 1 João. Alguns negavam que Cristo
viera e permanecera “em carne” (4.2,3).
Manter ambos os aspectos da cristologia, mesmo que estivessem em tensão
paradoxal, reflete a fé cristã histórica. Tanto a plena divindade quanto a plena
humanidade de Cristo são igualmente verdadeiras. Uma das primeiras decla­
ração do Credo do Concilio de Niceia (325 d.C.), que mais tarde foi adaptada
em Calcedônia (451 d.C.), declarava que Cristo era “verdadeiro Deus de ver­
dadeiro Deus”, mas também que “se encarnou (...) e se fez homem” (Bettenson,
1971, p. 26).

Um chamado para a alegria na comunidade cristã

No NT, a alegria está associada principalmente ao nascimento de Jesus


(Mt 2.10; Lc 1.14,44; 2.10) e à Sua ressurreição (Mt 28.8; Lc 24.41,52). A
65
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

alegria flui naturalmente de uma vida transformada (Lc 15.7,10) e dentro da


comunidade que passou por uma renovação espiritual (At 8.8). A alegria não
depende das circunstâncias. Ela pode estar presente independentemente de to­
dos os aspectos de nossa vida estarem fluindo sem problemas. Em vez disso, a
alegria consiste de uma paz interior e permanente, sabendo-se que, indepen­
dentemente do que aconteça, a pessoa é justamente relacionada a Deus e ao
próximo. Essa alegria escatológica já sentida (assegurada pela fé na ressurrei­
ção; Jo 16.20-22) antecipa um cumprimento que ainda está por vir (1 Co 2.9;
veja Bultmann, 1973, p. 14, n. 28, que vê uma salvação escatológica com base
em jo 17.13).
Pode-se conhecer a alegria individualmente, mas ela é mais bem vivida na
companhia de outras pessoas. Nossa fidelidade a Jesus Cristo é alimentada por
outros crentes. A primeira carta de João aconselha-nos a experimentar a rique­
za das amizades humanas, ancoradas e enriquecidas pela comunhão com Deus.

B. perdão e purificação (1.5-10)

POR TRÁS DO TEXTO

O vocabulário teológico dessa seção se parece muito com os manuscri­


tos não bíblicos, conhecidos como Manuscritos do Mar Morto (M M M ). Essa
coleção de documentos e os essênios — que provavelmente os compuseram,
reuniram-nos e conservaram-nos — defendem uma teologia fortemente dua-
lista. Aqueles que eram devidamente aliados a Deus e à justiça eram “filhos da
luz”, e aqueles que eram hostis a Deus e seriam julgados eram “filhos das trevas”.

M a n u sc rito s d o M a r M o rto

E m 1 9 4 7 , p e r to d a c o s ta n o ro e s te d o m a r M o r t o , u m m a n a n c ia l d e
m a n u s c r ito s a n tig o s c o m e ç o u a s e r d e s c o b e r to n a s c a v e r n a s d a re g iã o . O
lo c a l, c h a m a d o Q u m r ã , fo r n e c e d a d o s im p o r ta n t e s p a ra a c o m p r e e n s ã o
d o p e n s a m e n to re lig io s o d e u m a c o m u n id a d e ju d a ic a s e p a r a t is t a , b e m
c o m o a lg u n s a s p e c to s d o c ris tia n is m o p r im itiv o . O s M M M in c lu e m c ó p ia s
d e to d o s o s livro s d o A T , e x c e t o E s t e r , b e m c o m o u m g r a n d e n ú m e r o d e
e s c rito s n ã o c a n ô n ic o s . P a ra u m m a te r ia l in tr o d u tó r io s o b re a c o m u n id a d e
d e Q u m r ã , t r a d u ç õ e s e m in g lê s d o s m a n u s c r ito s e e x t e n s a b ib lio g ra fia ,
v e ja V e r m e s ( 2 0 0 4 ) ; p a ra u m a c u r ta h is tó ria d o s M M M , v e ja Fie ld s ( 2 0 0 6 ) .

66
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

A comunidade de Qumrã era composta de sacerdotes que abandonaram


totalmente o templo estabelecido em Jerusalém e mudaram-se para longe, no
mar Morto. Essa separação física, que já era uma rejeição acentuada aos líderes
do templo, foi acoplada a uma linguagem crítica voltada a Jerusalém (1QS
VIII, 8,9,14,15; IX, 4,5; veja Vermes, 2004, p. 77-84). Eles entendiam sua
função no vale do Jordão como um cumprimento de Isaías 40.3: “No deserto
preparem o caminho para o Senhor; façam no deserto um caminho reto para
o nosso Deus”.
Essa seita judaica separatista era contemporânea do movimento cristão em
desenvolvimento. Ambos eram expressões judaicas da fé religiosa com simila­
ridades significativas em linguagem e visão de mundo. Ambos destinavam-se a
perpetuar o melhor do judaísmo; e ambos afirmavam a vinda do Messias. No
entanto, os essênios esperavam um messias (ou dois; 1QS VIII, 10; Vermes,
2004, p. 86) que estava p o r vir, enquanto os cristãos joaninos comemoravam o
Messias que j á havia chegado.
Tanto os essênios quanto os cristãos joaninos tinham uma perspectiva
acentuadamente dualista (ex.: verdade/mentira, luz/trevas). A autoidentidade
dos essênios como verdadeira luz é muito parecida com a linguagem de 1 João
(Vermes, 2004, p. 84,85; 1QM I, 1-15). Em 1 João 2.8, “já brilha a verdadeira
luz” (veja Jo 1.4-9). Ambos viam o futuro como um confronto apocalíptico
entre o bem e o mal que se aproximava. As referências em 1 João, a “última
hora” e os “anticristos” (2.18), refletem um ponto de vista religioso semelhante
ao do Qumrã.
Ambos os grupos praticavam o batismo nas águas. Todavia, é discutível
se o seu significado era semelhante. As lustrações ritualísticas do judaísmo
eram repetidas várias vezes (por exemplo, antes da entrada do templo). Em
contraste, o batismo associado a João Batista e aceito pelos seguidores de Jesus
tinha um caráter único e transformador.
Os essênios, assim como Jesus, criticavam a liderança do templo de Jerusa­
lém. O relato de João sobre a limpeza do templo (2.13-22) fornece uma repre­
ensão mais dura e severa do que os Evangelhos Sinóticos. João localiza essa ação
de Jesus envolta em tensão no início do seu Evangelho, enquanto os Sinóticos a
relatam próxima ao fim da vida de Jesus. O evento aumenta a tensão entre a li­
derança do templo e Jesus (Jo 7.32; 8.20,59). A declaração de Jesus, “destruam
este templo” (Jo 2.19), embora tenha sido dita em referência ao Seu corpo, iro­
nicamente aponta para a destruição real do templo pelos romanos em 70 d.C.
A pregação de João Batista no vale do Jordão também contém temas
encontrados na literatura joanina e no Qumrã. Como os essênios, ele pregou
67
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

palavras de advertência contra os líderes religiosos (“fariseus e saduceus”)


para fugir da “ira vindoura” de certo julgamento de fogo. Batista esperava
uma separação final entre o “trigo” e o “joio”. Ele também pedia que os judeus
não dependessem de sua descendência de Abraão como garantia contra esse
j ulgamento vindouro (vej a Mt 3.7-12). Isso reflete o tipo de dualismo encontrado
no Qumrã e evidente em 1 João.

NO TEXTO

Em 1 João 1.1 -4, o contexto fundamental da proclamação cristã é introdu­


zido. Isso significa que a preocupação abrangente sobre como os cristãos se re­
lacionam com Deus e com os outros é tecida com os fios de uma ética adequada
e uma cristologia apropriada. No conteúdo e na estrutura gramatical de 1.5-10,
João agora passa para uma exploração mais detalhada da estrutura interna ou
teológica de seu testemunho do evangelho. Essa é a primeira, e fundamental,
exposição de sua proclamação. Se entendermos esses versículos, entenderemos
a mensagem de toda a epístola. Neles, João utiliza explícita ou implicitamente
todos os seus conceitos essenciais na relação interior que possuem.
I 5 A mensagem (a n gelia ) cristã tinha sido ouvida e ainda estava soando em
seus ouvidos (akêkoamen, pretérito perfeito). Porém, esse anúncio é contínuo
— esta m o s d e cla r a n d o (a n a n gello m en ). A maior fonte da proclamação é Deus
(ou Cristo; veja o v. 3). O conteúdo dessa mensagem é que Deus é luz e nele
não há treva alguma. Essa é uma proclamação essencial para a interpretação
que João faz do evangelho aos seus leitores. E “o núcleo teológico de sua visão
de mundo” (Houlden, 1973, p. 57).
A associação entre Deus e luz aparece na primeira página da Bíblia. Gêne­
sis 1.2 relata que as “trevas cobriam a face do abismo” e foram dissipadas por
Deus. Ele trouxe luz à existência pela fala e declarou-a como “boa” (Gn 1.3). O
Salmo 104.2 descreve Deus “envolto de luz”. O Salmo 27 iguala salvação e luz
e identifica Deus como a fonte de ambas.
O prólogo do Evangelho de João emprega a linguagem da narrativa da
criação de Gênesis para falar de Cristo: “Nele estava a vida, e esta era a luz
dos homens. A luz brilha nas trevas, e as trevas não a derrotaram” (1.4,5). O
Quarto Evangelho fala de luz 23 vezes e apresenta Cristo como “a luz” (“luz do
mundo” em Jo 8.12; 9.5). No entanto, em 1 João, só Deus é luz.
Vida e luz expressam a salvação oferecida para aqueles que creem em Cris­
to (Jo 1.4). Porém, a luz também fala da autorrevelação de Deus como “a ver­
dadeira luz, que ilumina todos os homens” (Jo 1.9). Assim, a “verdadeira luz”
68
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

é uma necessidade que pertence à natureza moral de Deus e a fonte de toda a


iluminação moral.
A linguagem de João parece contrariar o uso gnóstico de vida e luz como
conhecimento secreto para poucos. Em vez disso, os termos significam a reve­
lação de Deus de forma clara para todos. Nas imagens dualistas da literatura do
Qumrã, luz e trevas tipificavam a diferença radical entre o bem e o mal. Os
sectários do mar Morto referiam-se a si mesmos como “filhos da luz” (Pergami­
nhos de Guerra 1QM, 1Q 33,4Q 491-497, 4Q471, veja Vermes, 2004, p. 161-
185; Ritt, 1993, 3:448). Eles eram governados pelo “Príncipe da Luz”, em opo­
sição aos grandes inimigos de Deus, que eram liderados pelo “Anjo das Trevas”
(1QS III, 13-IV, 1). Testamento d e L evi 19.1, um documento pseudoepígrafo
judaico, fala dos “filhos da luz” e dos “filhos das trevas” (veja Jo 12.35,36,46;
também 1 Ts 5.5: “vocês todos são filhos da luz, filhos do dia”).
As metáforas de luz em contraste com as trevas em 1 João identificam os
aliados da comunidade joanina, em contraste com os separatistas. Andar “na
luz” (v. 7) é viver pela verdade (implícita no v. 6). Viajar na luz da autorreve-
lação de Deus em Jesus é ter comunhão com o povo de Deus e purificar-se “de
todo pecado” (v. 7). Deus é luz e “amor” (1 Jo 4.16) e, por inferência, é “verda­
de” (1.6). Deus, como luz, amor e verdade, é bom; e o mal não pode coexistir
com o bem (Marshall, 1978, p. 109).
■ 6 Uma série de alegações falsas começa. As declarações falsas nos versículos
6, 8 e 10 são combinadas com antídotos verdadeiros nos versículos 7, 9 e em
2.1. Cada conjunto de afirmações errôneas é introduzido por: se afirmarmos
(ean eipõm en). No versículo 6, se afirmarmos é seguido de “andamos” (v. 7).
No versículo 8, “se afirmamos” está emparelhado com “se confessarmos” (v. 9).
No versículo 10, “se afirmarmos” tem o seu corolário em 2.1.
João expressa as falsas afirmações heréticas em ordem de clímax. Isso sig­
nifica que os problemas que ele enfrenta vão do geral para o específico, e de­
pois para o mais condenável no nível pessoal (v. 6,8,10). As soluções seguem o
mesmo padrão, do geral para o específico e, em seguida, para a vida terrena do
discípulo (v. 7,9; 2.1,2).
A estrutura de cada versículo na sequência é quase idêntica — condição,
consequência e explicação (1.6,7,8,9,10; 2.1b,2). O versículo 6 é típico: Se
afirmarmos que temos comunhão com ele, mas andamos nas trevas é a
condição. Ele é seguido por consequência: mentimos, e explicação: não prati­
camos a verdade (Nauck, 1957, p. 23,24).
O caráter ético do problema que João aborda é enfatizado principalmen­
te nas três “condições” nos versículos 6, 8 e 10. Suas implicações cristológicas
69
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

estão presentes nas “consequências” e nas “explicações”. Sendo que as duas úl­
timas são colocadas juntas para equilibrar os versículos em uma estrutura mais
formal. Assim, os problemas e as soluções que João colocou são de caráter ético
e cristológico.
Os verbos nos três pares de declarações estão no modo subjuntivo. Isso
sugere uma probabilidade hipotética, mas não uma certeza (Wallace, 1996, p.
461). Uma pessoa pode ou não fazer tais afirmações. Um cristão professo pode
optar por andar nas trevas, mas isso não é uma certeza. Uma tradução expan­
dida para capturar as idéias seria: Se afirmarmos que temos comunhão com
ele (em b o ra s e p o ss a f a z e r t a l a firm a çã o o u n ã o ) — e andarmos nas trevas
{em bora isso n ã o p r e c is e a co n tece r).
A frase repetida se afirmarmos parece indicar que alguns, fora ou dentro
das igrejas de João, realmente fizeram tais alegações. Isso é o que João visa cor­
rigir (Smith, 1991, p. 43). João considerava esses pontos de vista aberrantes um
grave perigo para seus leitores. Alguns talvez já tivessem sido seduzidos por
essas posições. E arriscado reconstruir os pontos de vista de um grupo lendo
seus materiais críticos que foram escritos por outros. Todavia, os adversários
de João parecem estar próximos, até mesmo pessoas que antes estavam dentro
das igrejas joaninas ( l Jo 2.19). João, sem dúvida, entendia muito bem o que os
adversários estavam ensinando (Bogart, 1977, p. 28,29).
Ao usar a primeira pessoa do plural, João poderia estar identificando-se
com o grupo a quem ele escrevia (Strecker, 1996, p. 29). Ele permanecia como
um deles, a fim de dissuadi-los dos perigos dos separatistas. Porém, a repetição
de se afirmarmos (v. 6,8,10) pode ser meramente um dispositivo estilístico.
Bogart considera as três primeiras pessoas do plural dos versículos como equi­
valente aos três pronomes impessoais em 1 João 2, representado pelos particí-
pios substantivos ho legõn { aquele q u e diz, 2.4,6,9; Bogart, 1977, p. 28).
Ambos os verbos da primeira oração, “dizemos” (NTLH) e temos, estão
no presente. Então, se afirmarmos que estamos em um relacionamento contí­
nuo e compartilhado (k oinõnia) com Cristo, mas vivermos de uma maneira
que seja inconsistente com a nossa declaração, na verdade, estamos vivendo
nas trevas. Ao fazermos isso, andamos em desacordo com a verdade (v. 6: n ã o
esta m o s p r a tica n d o a verdade-, veja Jo 3.21).
Isso envolvería acreditar em um ensinamento diferente do das igrejas jo­
aninas (2 Jo 9-11). A questão também seria não amar os “outros” (1 Jo 1.7;
2.9-11; 3.23). Então, quando andamos nas trevas, simplesmente praticamos
o autoengano: mentimos ipseudom etha) e não praticamos a verdade.
70
NOVO COMENTÁRIO BlBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

V e rd a d e

O c o n c e ito d e " v e r d a d e " ( a lê th e ia ) a p a r e c e m a is d e 2 0 v e z e s n o


E v a n g e l h o d e J o ã o , o d o b r o d o s E v a n g e l h o s S in ó tic o s c o m b in a d o s . V e r d a ­
d e é a p a la v r a -c h a v e m a is f r e q u e n te n a s c a r ta s ( T h o m a s , 2 0 0 4 , p . 2 0 ,3 9 ) .
N o E v a n g e l h o d e J o ã o , v e r d a d e p o d e re fe rir-s e a o c o n te ú d o a s e r
a c re d ita d o — " S e v o c ê s p e r m a n e c e r e m fir m e s n a m in h a p a la v r a , v e r d a ­
d e ir a m e n t e s e r ã o m e u s d is c íp u lo s . E c o n h e c e r ã o a v e r d a d e , e a v e r d a d e
o s lib e r ta r á " ( 8 .3 1 ,3 2 ; v e ja v . 4 0 - 4 6 ) . A " p a la v r a [ d e D e u s ] é a v e r d a d e "
( 1 7 .1 7 ) .
C o n t u d o , a v e r d a d e t a m b é m im p lic a v iv e r um re la c io n a m e n to ju s to
co m "o ú n ic o D e u s v e r d a d e ir o " ( 1 7 . 3 ) . Je s u s é a v e r d a d e e n c a r n a d a c o m o
a re v e la ç ã o d e D e u s ( 1 . 1 7 ; 1 4 .6 ; B u l t m a n n , 1 9 7 3 , p . 9 7 ,9 9 ) , e o E s p írito
S a n t o é "o E s p ír ito d a v e r d a d e " ( 1 4 . 1 7 ; 1 5 .2 6 ; 1 6 .1 3 ) . O in d iv íd u o q u e
r e c e b e a v e r d a d e d e D e u s a " p r a t ic a " ( 3 .2 1 ) , a d o r a e m e s p ír ito e e m v e r ­
d a d e e é s a n tific a d o p e la v e r d a d e ( 1 7 . 1 7 ) .
O m u n d o , u m d o m ín io d e t r e v a s e m e n t i r a , fo i in v a d id o p o r C r is t o , "a
v e r d a d e ir a lu z " ( 1 .9 ) . J e s u s , a tiv o n a c ria ç ã o ( 1 . 1 0 ) , v e io a o m u n d o q u e
a ju d o u a f o r m a r , " m a s o s s e u s n ã o o r e c e b e r a m " ( 1 . 1 1 ) . Ir o n ic a m e n t e , a s ­
s im c o m o Je s u s é ju lg a d o e c o n d e n a d o , o m u n d o e s tá em ju lg a m e n to p o r
r e je i t a r a v e r d a d e ( K õ s t e n b e r g e r , 2 0 0 9 , p .2 8 8 ,2 8 9 ,4 3 7 - 4 4 1 ) .
N a s c a r t a s , Jo ã o g a r a n t e a s e u s le ito re s q u e e le s " t ê m u m a u n ç ã o
q u e p ro c e d e d o S a n t o , e ( ...) t ê m c o n h e c im e n t o " ( 1 Jo 2 .2 0 ; v e ja 2 Jo 1 ; Jo
8 .3 2 ) . E m 3 Jo ã o 8 , o s c re n te s d e v e m t r a b a lh a r ju n t o s , e m v e r d a d e (Jo n e s ,
2 0 0 9 , p . 2 6 8 ) . A s c in c o o c o r rê n c ia s d e " v e r d a d e " e m 2 Jo ã o 1 - 4 e m a is
c in c o e m 3 Jo ã o p o d e m s e r u m sin a l d a p r e o c u p a ç ã o d o p re s b íte ro c o m
a d o u t r in a , a o c h a m a r s e u s le ito re s a a n d a r e m " n a v e r d a d e " (3 Jo 3 ). N o
e n t a n t o , s u a s m e tá fo r a s in d ic a m q u e s u a p r e o c u p a ç ã o n ã o é c o m a e s t á ­
tic a o r to d o x ia d o c re d o (Jo n e s , 2 0 0 9 , p . 2 6 8 ; v e ja L i e u , 1 9 9 1 , p . 9 4 -9 6 ). A
im a g e m d e a n d a r r e tr a ta a v e r d a d e c o m o u m a re la ç ã o d in â m ic a , c o n tín u a
e c o m p a r t ilh a d a .
A v e r d a d e p o d e s e r p e rs o n ific a d a e , a s s im , d a r t e s t e m u n h o e m n o m e
d e o u tr o (3 Jo 1 2 ) . C r e n te s a n d a m n a v e r d a d e e , d e f a t o , p o d e m v i v e r e m
v e r d a d e p a ra s e m p r e (2 Jo 2 ; 3 Jo 3 ,4 ) . P a ra o p r e s b íte r o , v e r d a d e s ig n i­
fic a n ã o s ó a m e n s a g e m c r is tã , m a s t a m b é m Je s u s e n c a r n a d o , q u e p e lo
E s p ír ito p o d e e n tr a r n o c r e n te ( M a r s h a ll, 1 9 7 8 , p . 6 2 , n . 1 7 ) . C ris to n ã o é
só o r e v e la d o r d a v e r d a d e , m a s t a m b é m E le m e s m o é a v e r d a d e (Jo 1 4 .6 ) .
P o r t a n t o , c o n h e c e r a v e r d a d e s ig n ific a m a is d o q u e o u v ir a s p a la v r a s d e
C r is to ; e n v o lv e a u n iã o p e s s o a l c o m E le ( D o d d , 1 9 6 8 , p . 1 7 7 , 1 7 8 ) .

71
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

O tema de praticar a verdade aparece também na literatura do Qumrã —


1QS I, 5: “Que eles se abstenham de todo o mal e se apeguem a todo o bem;
que eles possam p ra tica r a verdade, a justiça e a retidão V, 3: “Eles devem
praticar a verdade e a humildade em comum, e a justiça, e a retidão, e a caridade,
e a modéstia em todas as suas formas”; VIII, 2: “Eles (...) devem expiar o pecado
pela prática da justiça” (grifo do autor; veja Vermes, 2004, p. 98,103,109).
A verdade estimula a ação. Em 1 João, p r a tica r a v e r d a d e inclui agir com
amor para com um crente (2.9,10) e ser generoso em apoio material para com
“seu irmão [e irmã] em necessidade” (3.17; veja v. 16-18). Isso é muito seme­
lhante a Tiago, para quem a verdadeira fé é sempre demonstrada por ações (Tg
2.14-26). Além disso, p r a tica r a v e r d a d e significa não se desviar do que foi
ouvido “desde o princípio” (1 Jo 2.24). A ênfase na comunhão com Deus e a
menção do “sangue de Jesus, seu Filho,” no versículo 7 indica que a cristologia,
bem como a ética, está em vista.
Andar, ter comunhão e praticar a verdade são atividades relacionadas e
contínuas. Abandonar uma delas reflete a cessação das outras. A antiga metáfo­
ra de caminhar naturalmente se tornou parte do vocabulário cristão. Jesus dis­
se: “Quem me segue, nunca andará em trevas, mas terá a luz da vida” (Jo 8.12;
também 11.9,10; 12.35). O apóstolo Paulo usou a imagem de andar muitas
vezes (peripateõ é traduzido como “viver” em Rm 6.4; 8.4; G15.16; Ef4.1; 5.8).
A metáfora aparece várias vezes nos Salmos (1.1; 15.2; 86.11; 128.1). An­
dar junto de alguém era estar de acordo com essa pessoa (Am 3.3) e manter-se
no mesmo ritmo (G1 5.25). Permanecer alinhado às igrejas de João era estar
“andando na verdade” (2 Jo 4; 3 Jo 4) e “andar como ele andou” (1 Jo 2.6).
I 7 A obra de Deus em nós purifica (katharizei, presente do indicativo) e
pode ser interpretada com um aspecto contínuo — está p u r ifica n d o co n tin u ­
a m en te. A purificação continua conforme andamos com Deus. A purificação
é tanto o q u e D eus fa z p o r nós quanto uma realidade que se revela, conforme
nossa obed iên cia nos p erm ite v iv er em u m relacion am en to d e pu rificação com Ele.
O sangue de Jesus fala de Seu sofrimento na cruz até a morte. João apresen­
ta-o como base suficiente para purificar de todo pecado. Essa pureza, condicio­
nada a uma resposta obediente contínua à graça de Deus, significa que essa obra
de Deus não é realizada de uma vez só. Harvey Blaney, com razão, salientou:
É um erro pensar que tudo o que João implica aqui pode ser alcançado em
um momento ou em resposta a uma entrega total momentânea a Deus.
Jesus disse: “Sigam-me”. Apenas aqueles que começam a seguir e a cami­
nhar na luz podem experimentar os resultados relatados (Blaney, 1967, p.
354,355).
72
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

Continuamos andando, e Deus continua com a eficácia purificadora dos


méritos da morte de Cristo aplicados à nossa vida. Nunca podemos presumir
que somos purificados do pecado pelos nossos próprios esforços.
Andar na luz permite que os crentes tenham comunhão uns com os ou­
tros. A metáfora de caminhar na luz é encontrada nos Salmos (SI 56.13; 89.15)
e em Isaías: “Andemos na luz do Senhor” (2.5). No Evangelho de João, a metá­
fora é a de um discipulado de fé e amor por Jesus (Jo 8.12).
A comunidade dos essênios considerava andar na luz uma evidência de
que se estava entre os filhos da justiça. Em contraste, andar nas trevas revelava
que a pessoa era filho da perversidade (1QS III, 20; Vermes, 2004, p. 101). Em
1 João, andar na luz é viver em obediência a Deus, que “é luz” (v. 5). E experi­
mentar a presença de Deus e ser moldado pelo Seu caráter revelado em Jesus,
seu Filho.
Anteriormente, no versículo 6, a declaração “temos comunhão com ele”
foi negada pelo “andamos nas trevas”. Então, agora, pode-se esperar que João
diga que andar na luz leva à comunhão com Deus. Em vez disso, João estende
o pensamento para mais um passo (Brooke, 1912, p. 15). O resultado de cami­
nhar na luz significa que temos comunhão uns com os outros. Para cristãos
joaninos, a comunhão com o Pai e com o Filho está intimamente ligada com a
fidelidade à comunidade de fé (1.3).
João tem o cuidado de salientar o fato de que é Deus, por intermédio de
Jesus, seu Filho, quem faz a purificação. Mais especificamente, é o sangue de
Jesus que purifica. Muitas mentes modernas resistem profundamente à metá­
fora de sacrifício de sangue. No entanto, João, o testemunho coletivo do NT,
e, de fato, toda a Bíblia apontam para o conceito de reconciliação entre a hu­
manidade pecaminosa e o sagrado e amoroso Deus. Isso foi cumprido por uma
morte, o que significou o derramamento do sangue de Cristo. Sua morte, con­
cebida como um sacrifício de sangue, aparece no NT, em várias passagens (Mc
14.24; Rm 3.25; 1 Co 11.25; Ef 1.7; Hb 9.11-14) e, em breve, aparecerá nessa
carta (veja o comentário sobre 1 Jo 2.2).
A palavra purifica (katharizei, v. 9), em uma variedade de usos no NT e na
LXX, sugere tornar limpo. Significa limpar do pecado em Hebreus 9.22,23; 10.2.
Lucas, relatando as palavras de Pedro sobre o derramamento do Espírito Santo
sobre os gentios na casa de Cornélio, descreve o dom do Espírito Santo como
forma de alcançar o katharisas de seus corações (At 15.9). O ponto principal de
Hebreus e Atos é a remoção de tudo que impede o relacionamento com Deus.
No Evangelho de João, formas de katharizõ aparecem em 15.2,3 para des­
crever a limpeza de ramos que não produzem frutos. Em João 13.10,11, a ideia
73
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

é aplicada metaforicamente para explicar que nem todos os doze discípulos


foram katharoi, uma referência a Judas, o traidor, como alguém que tinha um
coração estranho ao de Jesus.
Em Mateus, o termo descreve alguém sendo purificado da lepra (8.2,3;
10.8). Essa transformação concede aceitação cerimonial e ritual ao que foi pu­
rificado. João, no versículo 7, afirma que Deus faz mais do que v er uma pessoa
de modo diferente devido à morte de Cristo e quando ela está “em” Cristo.
Deus purifica para que a pessoa se torn e moralmente diferente quando tem
um relacionamento com Ele. O que era sujo se torna limpo. A contaminação
do pecado, o fato e os efeitos de se viver contra à vontade de Deus, é purificada
(veja em 1.9).
A obra de Deus enfatizada em 1 João pede uma organização ética da vida
como resultado natural de um novo relacionamento. É uma santidade que,
embora certamente e sempre derive de Cristo e alcance a reconciliação com
Deus por intermédio dele, torna-se uma realidade transformadora na vida do
discípulo de Jesus.
Quão profunda é a purificação ? E de todo pecado. Brooke interpreta a
frase nos purifica de todo pecado como se indicasse “a rem oção do pecado” da
vida do crente (1912, p. 15). Brooke propõe ainda que João vê o pecado aqui
como um poder ativo, não como uma referência a atos específicos de pecado
(Brooke, 1912, p. 16,17). Smith fala de pecado como a primeira causa prin­
cipal, uma condição de alienação de Deus que leva a expressões pecaminosas
(Smith, 1991, p. 46). Marshall escreve que “purificação significa a remoção não
só da culpa do pecado, m as tam b ém d o p o d e r d o p eca d o no coração do homem”
(1978, p. 114, grifo do autor). A ideia de uma condição interna de pecamino-
sidade é perceptível em outras passagens do NT, notavelmente, o modo como
Paulo fala do pecado em Romanos como uma força que trabalha nas pessoas
(Rm 6.12-14; 7.11,13).
A frase de todo pecado transmite, portanto, uma maravilhosa promessa.
A atividade de purificação de Deus que flui da morte de Cristo é um trabalho
profundo e completo, atendendo a “tudo o que é chamado de pecado” (Blaney,
1967, p. 355). A palavra gregap a s é traduzida como “todo(a)” em três casos
em 1 João, quando ela é usada como adjetivo de um substantivo no singular —
aqui, no versículo 7, todo pecado {pasés hamartias)-, versículo 9, “toda injusti­
ça” (pasês adikias); e em 5.17, “toda maldade” (pasa adikia, NTLH).
A purificação é de todo pecado (“qualquer pecado” na KJA). Variações
de pa s são traduzidas como “qualquer”, em 1 João, como adjetivo de um subs­
tantivo no singular — em 4.1 como “qualquer espírito” { pantipneum atí) e em
74
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

4.2,3 como “todo espírito” (p a n p n eu m a ). Qualquer que seja a tradução usada,


a implicação é que o remédio de Deus para o pecado é completo. O pecado não
pode continuar a contaminar a pessoa, ou a comunidade de fé, que caminha
continuamente na luz.
Dois casos em 1 João poderiam ser interpretados como uma aproximação
de uma definição de pecado. O “pecado é a transgressão” (an om ia , 3.4), e “toda
injustiça [adikia] é pecado” (5.17). A declaração em 3.4 sugere o pecado como
uma condição. Em 5.17, o sentido óbvio é de violações. Em João 16.9, Jesus fala
do pecado como descrença. A falta de uma crença adequada em Jesus (cristolo-
gia) é um dos problemas fundamentais enfrentados na carta.
Portanto, nos escritos joaninos, o pecado é contra a lei de Deus, contra
a justiça e a falta de crença em Jesus. Enquanto há apenas uma ocorrência de
“lei” nas cartas, “mandamento” aparece 12 vezes. Os mandamentos são de dois
tipos: (1) “creiamos no nome de seu Filho Jesus Cristo” (3.23; 5.10,13); e (2)
“amemos uns aos outros” (3.11,23; 4.7,11,12). Quando João escreve sobre uma
purificação de todo pecado e de toda a injustiça, ele aponta para um remédio
divino para tudo o que é contra a lei e o caráter de Deus e contra Cristo.
Aquilo de que precisamos, Deus provê. A libertação do pecado por meio
da morte expiatória de Cristo é oferecida a todos, pois o pecado é universal
(Strecker, 1996, p. 31). João, nesse conjunto bem estruturado de versículos
(1.5—2.2), traz uma linguagem forte para abordar os desafios pastorais em
questão. O pecado é real, pessoal, sério e generalizado. Todavia, a correção di­
vina é tudo isso também.
I 8 A ação de afirmarmos que estamos sem pecado cria um desafio de in­
terpretação. O tempo presente do verbo talvez indique uma força contínua:
S e esta m o s a tu a lm en te a leg a n d o q u e n ã o tem o s p e ca d o . Depois, João faz um
apelo para que seus leitores não vivam mais sob o domínio do pecado (2.1). No
entanto, ele reconhece que o pecado pode invadir a vida dos cristãos.
João, obviamente, não concorda com o que seus adversários estão dizendo.
Dois tipos diferentes de perfeccionismo aparecem em 1 João, o “herético” e o
“ortodoxo” (Bogart, 1977, p. 47-49). Os defensores do “perfeccionismo heré­
tico” rival perverteram a compreensão joanina. Ele parece presumir influências
gnósticas, que viam o universo material, incluindo o corpo humano, como ma­
ligno. João resiste vigorosamente a essa interpretação como um perigo teológi­
co e prático para suas igrejas (v. 6,8,10).
O apóstolo sustenta energicamente a outra opção, o “perfeccionismo or­
todoxo”. Esse tipo significa que ser “nascido de Deus” (3.9), ter os pecados per­
doados e a obra de purificação de Deus é uma realidade presente pelo “sangue
75
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BlBLICO BEACON

de Jesus” (1.7,9). Esse perfeccionismo ortodoxo é marcado pela rejeição ao pe­


cado por meio da permanência em Cristo — “todo aquele que nele permanece
não está no pecado” (3.6). Aqui, no versículo 8, aqueles que afirmam estar sem
pecado estão declarando ter conhecimento de um tipo superior. Como seres
essencialmente “espirituais”, ao invés de físicos, o pecado não lhes é moral, nem
se relaciona dessa forma com a vida deles.
O uso de pecado (singular) e o contraste que se segue no versículo 9, em
que se fala sobre “pecados”, podem permitir que ha m artian seja interpretado
como p eca m in o sid a .d e, uma condição em vez de atos de desobediência. Beda
entendia o termo dessa forma, como uma pecaminosidade herdada. Ele apelou
para essa passagem em oposição aos pelagianos, que ensinavam que as crianças
nasciam sem tal propensão pecaminosa (Bray, 2000, p. 172).
Afirmar estar sem pecado é praticar um autoengano intencional. A ordem
de palavras gregas pode ser traduzida enfaticamente como: E stam os en g a n a n ­
d o -n os. João adverte repetidamente seus leitores contra isso (2.26; 3.7).
Antes (v. 6), João relacionava andar “nas trevas” com o ato de não praticar
a verdade. Da mesma forma, aqui, ele diz que a verdade não está em quem
erroneamente afirma impecabilidade.
I 9 João oferece como alternativa para a falsa alegação de impecabilidade a
confissão dos pecados. Ele não indica a quem a confissão deve ser feita. A pro­
posta e a promessa são aconselhadas a seus leitores de forma corporativa — ver­
bos na primeira pessoa do plural e nós. João pode estar fazendo um chamado,
assim como Tiago, para a confissão mútua — “uns aos outros” (Tg 5.16). Em
última análise, a confissão é destinada a Deus/Cristo, que concede perdão e
pureza, como resultado.
Na D idaquê (14), a confissão dos pecados ocorreu no “dia do Senhor”. Ela
também era recomendada como preparação para esse dia — “no dia do Senhor,
preparem e partam o pão e deem graças, após terem confessado seus pecados,
para que o sacrifício seja puro” (Bettenson, 1971, p. 66).
O ato de confessarmos aparece relativamente pouco no NT, e apenas al­
guns (Mt 3.6; Mc 1.5; Tg 5.16) estão relacionados à confissão dos pecados.
Textos gregos seculares empregam h om ologeõ para admissão de culpa ou erro,
mas não com uma conotação religiosa (Hofius, 1991, p. 515).
Diante do pecado humano, e principalmente quando os pecados são
confessados, Deus é fiel (pistos). A palavra pode significar “confiável” ou “seguro”
(BDAG, 2000, p. 820; veja Mt 25.21; 2 Tm 2.2), ou é usada para referir-se a pro­
messas que são certas. O caráter de Deus é justo (dikaios, reto). A justiça de Deus
se manifesta como fidelidade, apesar da infidelidade humana (veja Hb 10.23).
76
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

O ato divino de perdoar (aphéi) (...) pecados pode significar mandá-los em­
bora, perdoar uma dívida ou livrar de uma pena. Brooke entende que o perdão
dos pecados pode ser entendido como um ato simbólico em que a barreira que os
pecados criaram entre Deus e as pessoas é removida (Brooke, 1912, p. 20).
Nos versículos 6-8, João usou verbos no presente para discutir o que Deus
faz e o que as pessoas fazem. Aqui, em um ponto estratégico de seu argumento,
ele usa o tempo aoristo para falar do que Deus se propõe a fazer, isto é, nos
perdoar e purificar. O tempo aoristo no grego é o pretérito perfeito. Isso não
significa necessariamente fazer uma declaração específica sobre quando algo
ocorreu, mas simplesmente ver o ato como realizado, não a sua duração ou o
seu resultado (Haas, Dejonge e Swellengrebel, 1972, p. 38). Por vezes, no en­
tanto, ele pode ter o sentido de uma ação completa, e até decisiva.
É intrigante que somente aqui o aoristo apareça como referência ao que
Deus faz ao purificar de toda injustiça (adikias). O alfa (a) no início da pala­
vra nega a palavra à qual ele está ligado. Dessa forma, Deus remove tudo o que
não é justo. A conexão entre as palavras usadas por João para falar da natureza
de Deus e do que Ele pode fazer pelas pessoas é vista quando se traduz: Ele é
(...) justo (dikaios) para (...) nos purificar de toda injustiça {adikias).
Antes (v. 6-8), João salientou a contínua obra da salvação de Deus (e da
resposta do crente a ela) com verbos no presente. Ao usar verbos aoristas, João
pode estar enfatizando uma ação realizada por Deus, não como contínua, mas
como um ato decisivo. A obra de Deus atende à necessidade universal do ho­
mem de ser perdoado e purificado para a restauração relacionai e cura pessoal.
João exorta seus leitores a compreender e experimentar tanto o perdão como
a purificação.
João Calvino, acertadamente, viu que a confissão ocasionava “um fruto
duplo (...), que Deus, que é reconciliado com o sacrifício de Cristo, nos perdoa;
e que Ele nos corrige e nos reforma” (1959, p. 241). No entanto, Calvino resis­
tiu à ideia de um tratamento completo do pecado no presente. Ele identificava
o ato de pecar com estar neste corpo. Ele descarta a clara intenção do versículo
9, insistindo: “João não está dizendo-nos o que Deus realiza em nós agora”
(1959, p. 241).
Apenas Deus pode purificar. No entanto, Ele não substitui a vontade
humana para realizar a purificação. Os verbos (perdoar — aphêi-, e purificar
— katharisêi), ambos no modo subjuntivo, são combinados com a conjunção
condicional ean. A construção iniciada por “se” é uma declaração condicional,
indicando o que pode ou não acontecer (Mounce, 2003, p. 293). Deus
pode purificar-nos e quer fazê-lo. O perdão e a pureza que Ele oferece estão
77
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

condicionados à nossa resposta. Como agentes morais, podemos responder


positivamente ou resistir à oferta de graça.
■ lO A lg uns leitores do primeiro século (perfeccionistas heréticos) parecem
ter ido tão longe a ponto de dizer que não haviam cometido pecado algum do
qual precisassem ser perdoados ou libertos. Porém, João não permitirá que tais
afirmações falsas passem em branco. Afirmar não ter pecado é chamar Deus
de mentiroso. Isso é evidência de que a Palavra de Deus não está residindo em
nós. O termo mentiroso lembra o “mentimos” do versículo 6. Os termos po­
dem ser um tipo de inclusio ( “acondicionamento” de uma parte do texto como
delimitador literário, por assim dizer) da passagem (Brown, 1982, p. 225).
João contesta qualquer um que diga: Não temos cometido pecado.
O tempo perfeito refere-se a pecados passados com efeitos persistentes no
presente. Os separatistas aparentemente alegavam que não haviam cometido
pecados dos quais precisassem de perdão. Ou alegavam que seus pecados do
passado não causaram consequência alguma no presente.
Independentemente disso, o tempo verbal perfeito de João prejudica as
duas noções. Nisso, ele concorda com a afirmação de Paulo: “Todos pecaram
e estão destituídos da glória de Deus” (Rm 3.23). Todos continuam a ser afe­
tados por pecados do passado, perdoados e purificados ou não. Nós não pode­
mos alegar um passado sem pecado. E não podemos imaginar que o pecado do
passado não tenha impacto sobre o presente.
Que coisa perigosa é chamar Deus de mentiroso {pseustên)\ João não su­
gere que os separatistas digam isso com todas as letras. Entretanto, isso é o que
suas crenças e práticas implicam. A negação do pecado, dizer que não temos
cometido pecado, declara que Deus está errado sobre nós.
A palavra traduzida como mentiroso aparece apenas oito vezes no NT.
Ela ocorre duas vezes no Evangelho de João, em que Jesus chama o diabo e
os que lhe dão ouvidos de “mentirosos” (Jo 8.44,55; cf. Rm 3.4). Significati­
vamente, mentiroso aparece cinco vezes em 1 João. Duas delas referindo-se
a palavras ou crenças de uma pessoa que denigre Deus como um mentiroso
(1.10; 5.10). Por três vezes, ela identifica pessoas que desafiam as ordens de
Deus, negam Cristo e desconsideram seus irmãos e suas irmãs (2.4,22; 4.20).
João diz que negar ter cometido pecado significa que sua palavra não
está em nós. Essa frase é idêntica em grego e na parte final do versículo 8:
• 1.8: “a verdade não está em nós” (h êa lêth eia ouk estin en h êm in ).
• 1.10: sua palavra não está em nós (ho logos autou ouk estin en h êm in ).
Além disso, essas duas linhas sustentam o pensamento anterior. Quando
“mentimos”, obviamente, “não praticamos a verdade” (v. 6). Quando “enganamos
78
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

a nós mesmos”, demonstramos que “a verdade não está em nós” (v. 8). E quando
fazemos Deus de mentiroso, logo, sua palavra não está em nós (v. 10).
O paralelismo nesses versículos sugere que “a verdade” (v. 6,8) seja iguala­
da à palavra de Deus (v. 10). Essa ligação entre a verdade e a palavra de Deus
também pode ser vista no Quarto Evangelho (Jo 17.17). A mensagem do evan­
gelho não foi ouvida nem respondida, isto é, Cristo não foi recebido!
Afirmações falsas levam à ilusão crescente. No versículo 6, afirmar ter um
relacionamento íntimo com Deus e viver em desobediência é efetivamente
uma “mentira” contada para os outros. Em seguida, no versículo 8, negarmos
que o pecado afeta nossa vida é “enganarmos [mentirmos] a nós mesmos”. Por
fim, a acusação mais inimaginável, no versículo 10, negar ter cometido pecado
é chamar Deus de mentiroso!

A P A R T IR D O T E X T O

0 perigo da hipocrisia

Quando nos comportamos de maneira moralmente corrupta e continu­


amos a afirmar que somos cristãos, estamos vivendo uma mentira de forma
descarada (v. 6). Porém, pior que isso, enganamos a nós mesmos (v. 8). Por
fim, a linha entre mentira e verdade torna-se tão turva que chamamos Deus de
mentiroso, negando até mesmo que pecamos (v. 10). Tragicamente, acredita­
mos que não temos necessidade espiritual alguma (veja Ap 3.17).

A necessidade de limpeza divina

Às vezes, assim como ocorreu com os adversários do João, a falha mais


significativa em nós pode ser o autoengano de que não temos falhas! A recusa em
reconhecer os próprios pecados (não confessando) significa que Deus está blo­
queado, sendo chamado de mentiroso, e a Sua Palavra está ausente de nós (v. 10).
Deus purificará de todo pecado (v. 7) e de toda injustiça (v. 9). John
Wesley interpretou todo pecado no versículo 7 como uma referência tanto ao
“original quanto ao atual, tirando toda a culpa e poder” (Wesley, 1983, s.p.).
Adam Clarke, da mesma forma, falou do pecado em dois “modos”: “culpa, que
requer p erd ã o ou in d u lto”, e “p olu içã o, que requer pu rificação” (Clarke, s.d., p.
904). Martinho Lutero, citando Santo Agostinho, diferenciava entre pecado
como condição (“pecado interior”) e atos pecaminosos (Pelikan, 1967, p. 228).
Adam Clarke faz uma poderosa afirmação:
79
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Ser purificado de todo o pecado é o que cada crente deve procurar, o que
ele tem direito de esperar e o que deve ter nesta vid a , a fim de preparar-se
para encontrar o seu Deus. Cristo não é um S alvador p a rcia l; Ele salva ao
extremo e purifica de TODO p eca d o (Clarke s.d., p. 904).
Deus quer purificar-nos de tudo o que é diferente de Deus. Com essa lim­
peza, todo pecado (v. 7) e toda injustiça (v. 9) são derrotados. Ao longo do
tempo, Deus trabalha para suavizar as falhas persistentes na nossa vida — para
remover tudo o que é incompatível com o Seu caráter.

A natureza relacionai da santidade

O tema comunhão (v. 4,6) salienta a natureza essencial da justiça como


relacionai. Ser purificado de todo pecado não significa que passamos por uma
intervenção cirúrgica, como se o pecado fosse orgânico. Em vez disso, ser pu­
rificado do pecado significa entrar em um relacionamento de purificação com
Deus. Somos purificados por termos um relacionamento correto com o Deus
que é puro e que sempre purifica o que é entregue a Ele. Purificação é o resulta­
do de viver-se em Cristo.
O uso que João faz de tudo (v. 7,9) expressa sua confiança de que Deus não
se limita a corroer o pecado em nossa vida. Sua intenção é derrotar decisiva­
mente o pecado. Portanto, fiel e justo descrevem adequadamente o verdadeiro
caráter, não simplesmente a posição ou a situação do povo de Deus.

Os limites da comunhão cristã

Até que ponto podemos participar com cristãos que possuem pontos de
vista e práticas diferentes ? Quando a comunhão vai além de vidas compartilha­
das e se torna comprometimento ? Que questões ou práticas doutrinais não são
negociáveis ? Há perigo em rotular rápido demais aquele de quem discordamos
como alguém que está nas trevas (v. 5,6). Porém, também é perigoso acolher
rápido demais teologias e práticas divergentes.
John Wesley tratou do assunto em seu sermão “Espírito Universal”. Ele
pediu firmeza naquilo em que se “acredita ser a verdade como ela é em Jesus”
(não ter “uma compreensão turva”). Firmada em suas convicções teológicas e
ativa em uma congregação local, a pessoa de espírito universal ainda tem um
“coração (...) estendido a todos” que amam Jesus Cristo, amam o próximo e
procuram sempre agradar a Deus (Wesley, 1978-1979, 5:502-504).
80
II. PERTENCER A DEUS E RESISTIR AO INIMIGO:
1 JOÃO 2.1-29

A. Jesus, nosso defensor (2.1-6)

NO TEXTO

I I A expressão de afabilidade — meus filhinhos — é frequentemente citada na


carta (2.12,28; 3.7,18; 4.4; 5.21). Ela sugere um relacionamento caloroso entre o
autor e seus leitores. Ela também pode indicar que o autor era de idade avançada.
A palavra filhinhos fornece uma metáfora poderosa de relacionamento espiritual
entre um líder e seus seguidores. Contudo, o apóstolo João e seus leitores são “fi­
lhos de Deus” (3.1).
João destaca sua preocupação pastoral interrompendo meus filhinhos, escre­
vo-lhes (...) com a estrutura que ele empregou nos versículos 6-10. O fato de 2.1,2
pertencer à linha de pensamento que começou no versículo 5 é indicado pela con­
tinuação da sequência — condição, consequência, explicação (v. lb, lc, 2; Nauck,
1957, p. 23,24).
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Embora João tenha escrito “escrevemos” em 1.4, aqui, nas primeiras nove ve­
zes, ele passa para a primeira pessoa singular — escrevo (2.7,8,12,13,14; 5.13).
Essa aparente mudança de “voz” ocorre de vez em quando na carta. Nas linhas
introdutórias de 1 João, a primeira pessoa do plural representa o testemunho co­
letivo e histórico da tradição apostólica. Agora, João dá uma palavra mais pessoal,
no singular, talvez ressaltando sua preocupação pastoral urgente com seu público.
No início do capítulo 2, João revela tanto seu coração pastoral como o gran­
de chamado para ser cristão. Ele escreve para manter um relacionamento com seu
público. Ele quer protegê-lo de tudo o que poderia levá-lo a pecar. Seu objetivo é
claro: para que vocês não pequem. O aoristo do verbo grego sugere a evasão total
de pecados de qualquer tipo. Assim, ele implica no fato de que cristãos são capazes
de “impecabilidade” (Brooke, 1912, p. 23). Seus leitores devem reconhecer a natu­
reza onipresente do pecado enquanto vivem sem pecar habitualmente (Marshall,
1978, p. 116).
Uma prática regular de pecado como regra geral para os cristãos é estranha a
1 João. No entanto, João insiste igualmente no fato de que os cristãos não podem
alegar não ter pecado algum com que lidar (1.8). Todos tinham pecados que pre­
cisavam ser perdoados (1.9,10). Então, o que 2.1 quer dizer? Certamente, ele não
está adotando aqui a posição que criticava em 1.8 e 10 (Kruse, 2000, p. 71).
A afirmação condicional, se, porém, alguém pecar, apresenta um caso hipo­
tético, mas real. O verbo ham artêi está no modo subjuntivo, indicando uma possi­
bilidade, que não é inevitável. João diz que alguém pode pecar, e se isso acontecer?
Uma paráfrase destacando isso pode ser a seguinte: C onsiderem os a situ a çã o em
qu e a lgu ém p eca , em b ora ta l n ecessid a d e n u n ca seja p ra tica d a .
O verbo está no tempo aoristo, o pretérito perfeito. O tempo imperfeito teria
servido melhor para João se ele quisesse enfatizar uma prática contínua de pecado,
em vez de uma ocasião. O subjuntivo aoristo sugere um lapso no pecado, não uma
vida de pecado contínuo (Painter, 2002, p. 158).
O texto afirma um padrão de vida que está acima do pecado. Porém, João,
realisticamente, reconhece que alguns cristãos vacilam, de forma ocasional, em sua
caminhada. Para eles, ele afirma a oferta contínua de reconciliação com Deus. Esses
cristãos do primeiro século ilustram uma tensão e um desafio atemporais. Podemos
livrar-nos da prática habitual do pecado por meio da graciosa ajuda de Deus. No
entanto, às vezes, esse ideal não é a realidade em nossa vida. Então, como podemos
permanecer fiéis tanto ao caráter santo de Deus como à Sua expectativa de que a
santidade esteja presente em nós de forma autêntica?
Esse texto, na verdade, toda a Escritura, chama o povo de Deus a viver uma
vida santa. Como admoesta o versículo 1, o pecado não precisa ser fatal, devido à
82
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3JOÁO

morte expiatória de Cristo (Rensberger, 2006, p. 287). Atos de pecado não afetam
somente a pessoa que os comete, mas também o corpo de crentes. Se, porém,
alguém [singular] pecar, temos [plural] um intercessor para ajudar-nos (veja
Brooke, 1912, p. 27).
João afirma a santidade do chamado de Deus e o Seu chamado para que as
pessoas sejam santas. A santidade de Deus trabalha de forma redentora. Embora
o pecado seja real, temos um intercessor. Essa frase traduz uma única palavra em
grego (parakléton), composta por “ao lado de” (para) e “chamar” (kalein).
A metáfora remete a um advogado que fala em nome de alguém, o qual re­
presenta um cliente no tribunal. Esse “intercessor” ficaria ao lado da pessoa e ofe­
recería o apoio de sua presença. A palavra pode ter um sentido menos técnico de
alguém chamado para ajudar. Frequente no grego não bíblico, o termo aparece no
NT somente na literatura joanina.
No Evangelho, Jesus usa paraklêtos para descrever o “Espírito Santo” (Jo
14.26), o “Espírito da verdade” (Jo 14.17; 15.26). Os quatro casos de paraklêtos no
Evangelho (14.16,26; 15.26; 16.7) são traduzidos como “Conselheiro” na NVI.
O “Conselheiro” é enviado pelo Pai a pedido de Jesus (14.16) e em Seu “nome”
(14.26). Ou Jesus envia o Espírito (16.7) do Pai (15.26). Em 1 João, Jesus, não o
Espírito, é o paraklêtos.
As interpretações do termo não são tão diferentes quanto parecem de início.
O uso nos dois escritos sugere alguma fluidez ou desenvolvimento na utilização do
termo. Quando Jesus se ausentou fisicamente depois da ressurreição, as igrejas lem­
braram a Sua linguagem sobre o envio de “outro Conselheiro” (allon parakléton)
(Jo 14.16). Allon sugere outro do mesmo tipo, e elas poderíam ter adotado o termo
para o Jesus “ausente, porém presente pelo Espírito”.
Jesus é chamado de o Justo (dikaion). As três ocorrências desse título em Atos
(3.14; 7.52; 22.14) possuem o sentido de identidade messiânica dentro de um dis­
curso ou sermão feito por líderes cristãos importantes do início da Igreja — Pedro,
Estêvão e Paulo.
O profeta Isaías usa a mesma imagem quando fala do Senhor Deus — “glória
(...) ao Senhor” (Is 24.15), em paralelo com “Glória (...) ao Justo” (Is 24.16). Jere­
mias profetizou “um Renovo justo” (Jr23.5; 33.15) como “o Senhor é a Nossa Jus­
tiça” (Jr 23.6) da linhagem de Davi. Zacarias viu um “rei” chegar a “Sião”, que era
“justo e vitorioso” (Zc 9.9). As passagens do livro apócrifo de Enoque que chamam
o Messias de “o Justo” (1 En. 38.2; 53.6), provavelmente, refletem um dos primei­
ros usos do termo que chegou, de forma natural, ao vocabulário cristão primitivo,
f l 2 “Jesus Cristo, o Justo” (v. 1) é a propiciação (hilasmos, também em 4.10)
pelos nossos pecados. Cristo fica ao lado do crente que sucumbiu ao pecado para
83
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

ajudá-lo e falar por ele. Porém, Ele faz mais do que ficar ao lado dele; Ele torna-se
ativamente a solução do dilema causado pelo pecado. Essa é a linguagem de sacrifí­
cio; ela utiliza imagens do sistema do templo 6 demonstra a gravidade de pecar-se
contra Deus.

Hilasmos
A p a la v r a h ila s m o s e a re la c io n a d a h ila stê rio n a p a r e c e m c o m p o u c a
fr e q u ê n c ia n o N T ( s o m e n t e a q u i e e m R m 3 .2 5 , H b 9 .5 e 1 Jo 4 .1 0 ) . E s s a s
p a s s a g e n s s ã o t r a d u z i d a s c o m o " p r o p ic ia ç ã o " ( 1 Jo 2 .2 ; 4 . 1 0 ) , " s a c rifíc io
p a ra p ro p ic ia ç ã o " ( R m 3 .2 5 ) o u " p r o p ic ia tó r io ” ( H b 9 .5 A R C ) . P a la v ra s e
im a g e n s re la c io n a d a s n o N T p r o c u r a m e x p lic a r o q u e a c o n te c e u n a m o r te
d e Je s u s p a ra p e r m itir a re c o n c ilia ç ã o c o m D e u s . E la s , m u ita s v e z e s , re ­
fle t e m a s p rá tic a s d e s a c rifíc io s d e a n im a is d e n tr o d o ju d a ís m o ( E f 5 .2 ; H b
1 0 .1 2 ) . E la s s e re fe re m a C ris to c o m o o C o r d e ir o (Jo 1 .2 9 ,3 6 ; 1 C o 5 .7 ; e
3 0 v e z e s e m A p ) e u s a m a lin g u a g e m d e re s g a te (M c 1 0 .4 5 ) , c o m p r a ( 1 C o
6 .2 0 ; 7 .2 3 ) , r e d e n ç ã o e p e r d ã o (G l 3 . 1 3 ,1 4 ; 4 .5 ; E f 1 . 7 ; Cl 1 . 1 4 ) .
A p a la v r a h ila s m o s e m 1 J o ã o 2 .2 é , m u ita s v e z e s , t r a d u z id a c o m o
" p r o p ic ia ç ã o " o u " e x p ia ç ã o " ( V C ) . A d a m C la r k e ( s .d ., p . 9 0 5 ) p re fe ria
"s a c rifíc io e x p ia tó r io " . N a L X X , h ila stê rio n e ra a s s o c ia d a a o " p r o p ic ia t ó ­
rio " (v e ja H b 9 .5 A R C ) , o lu g a r o n d e a re c o n c ilia ç ã o e ra r e a liz a d a . T a n to
h ila stê rio n c o m o h ila sm o t a m b é m e s tã o lig a d a s a o s m e io s p e lo s q u a is a
re c o n c ilia ç ã o o c o r ria .
A lg u n s in te r p r e t a m a t r a n s a ç ã o c o m o o m e io p e lo q u a l D e u s é p r o p i­
c ia d o e o p e c a d o é e x p ia d o (B ü c h s e l e H e r r m a n n , 1 9 6 5 , p . 3 1 7 ,3 1 8 ) . Isso
s u g e re q u e D e u s , c o m o a p a r te o fe n d id a , p re c is a s e r a p a z ig u a d o . C o n t u ­
d o , o N T in d ic a r e p e t id a m e n t e q u e D e u s t o m a a in ic ia tiv a d e r e s ta u r a r o
h o m e m p e c a d o r a u m r e la c io n a m e n t o c o rre to c o n s ig o m e s m o (Jo 3 .1 6 ; 2
C o 5 . 1 8 ,1 9 ; 1 Jo 4 .1 0 ) . " P r o p ic ia ç ã o " e n fa tiz a a m u d a n ç a q u e o c o r re n o
la d o d iv in o — D e u s e ra a p a z ig u a d o . " E x p i a ç ã o " c o n c e n tr a -s e m a is n o la d o
d o h o m e m — o s a c u s a d o s e r a m lim p o s e r e s ta u r a d o s .
A t r a d u ç ã o " s a c rifíc io e x p ia tó r io " e n fa tiz a o e fe ito d e s a lv a ç ã o d a
m o r te d e C r is t o , s e m in d ic a r s e a m u d a n ç a o c o rre m a is n o D e u s s a n to o u
n o h o m e m p e c a d o r. D e u s f e z t u d o o q u e e ra n e c e s s á rio p a ra re c o n c ilia r-s e
c o m o h o m e m p e c a d o r . A d e c la r a ç ã o d e P a u lo e m 2 C o rín tio s 5 .1 9 , " D e u s
e m C ris to e s t a v a re c o n c ilia n d o c o n s ig o o m u n d o " , re fle te a p e r s p e c tiv a d e
c o n tro le d o s e s c rito r e s d o N T , q u e t e n t a v a m tr a n s m itir o q u e o c o r re u na
m o r te d e C ris to ( B ü c h s e l e H e r r m a n n , 1 9 6 5 , p . 3 1 7 ; M itt o n , 1 9 6 2 , p . 3 1 3 ) .

A maioria das traduções ignora o pronome enfático (autos, ele). Ele é gramati­
calmente desnecessário, uma vez que o objeto está implícito no verbo: Ele é (estin).
84
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

No entanto, o pronome proporciona uma ênfase importante — Ele p ró p rio (au­


tos) é o sacrifício expiatório. Assim, Cristo é, ao mesmo tempo, o Sumo Sacerdote
que oferece o hilasmos e o hilasmos que é oferecido (Marshall, 1978, p. 118,119;
Brooke, 1912, p. 28). Em Hebreus 9.26, Cristo oferece “o sacrifício de si mesmo”.
O Pai inicia o processo, portanto, Ele não pode ser visto como um juiz relutante,
indisposto, esperando para ser apaziguado. Ele fornece o Filho por intermédio do
qual o perdão é oferecido (1 Jo 4.9).
Essa oferta redentora de Cristo não tem um escopo limitado. Ele morreu pe­
los nossos pecados e também pelos pecados de todo o mundo. Não há expiação
limitada aqui. Calvino admiravelmente afirmou: “Cristo sofreu o suficiente para o
mundo inteiro”. No entanto, ele infelizmente também considerava que a referência
a todo o mundo era apenas aos que creem (1959, p. 244). Contudo, a inferência
clara do texto é que Cristo morreu por todos, não apenas por aqueles que acredi­
tam. Cristo não poupou esforços. Todos os que creem podem receber a vida por
meio dos méritos de Sua morte.
A palavra mundo (kosmos) ocorre 22 vezes em 16 versículos em 1 João. Ape­
nas aqui e em 4.9,14, kosmos refere-se ao mundo como o objeto do amor redentor
de Deus, como em João 3.16. Em todos os outros casos, o mundo é alienado de
Deus e está em oposição a Ele, um lugar de falsos profetas e ódio, e algo a ser supe­
rado (2.15-17; 3.1,13; 4.1,3-5; 5.4,5,19). A remoção de todos os pecados de todo
o mundo evoca o testemunho de João a Jesus no Quarto Evangelho: “É o Cordeiro
de Deus, que tira o pecado do mundo!” (1.29,36).
■ 3 - 1 1 0 tema do conhecimento de Deus substitui o tema da comunhão com
Ele nesses versículos. João passa da realidade do pecado na experiência humana
(1.5—2.2) para a necessidade da obediência em conhecer a Deus (v. 2-7). Ele de­
fine obediência como amor (v. 7-11). João expande a tese do versículo 3 nos versí­
culos 4-6, primeiro, de forma negativa (v. 4), em seguida, de forma positiva (v. 5),
e, por fim, de forma específica (v. 6).
■ 3 A passagem afirma um conhecimento atual de Deus. Sabemos [ginõskomen)
está no presente. O que sabemos no presente e é baseado em uma experiência an­
terior que ainda é verdade. E que o conhecemos iegnõkam en) está no pretérito
perfeito. Conhecemos Deus, e essa realidade continua a ser a verdade, porque obe­
decemos aos seus mandamentos. Eles estavam demonstrando o conhecimento de
sua experiência cristã anterior por meio de seus resultados permanentes (Brooke,
1912, p. 30).
João não apresenta a obediência como “a condição”, nem como um meio de
obter-se o conhecimento de Deus. Pelo contrário, é “a característica do conhecimento
de Deus” (Bultmann, 1973, p. 25). A obediência flui a partir do conhecimento. A
85
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

graça encontra-nos, perdoa-nos e começa a curar-nos. Nossa vida começa a dizer


“obrigado” quando anda em obediência aos mandamentos de Deus.
1 4 João continua a manter a diferença entre àquele que diz e aquele que obedece
ou, mais precisamente, aquele que é. Alegações verbais (en q u a n to está dizendo,
legõn, um particípio no presente) são fraudulentas e inúteis, a menos que resultem
em uma mudança de estilo de vida marcada pela obediência à Palavra de Deus (Fle­
ming, 1999, p. 66). Tal pessoa n ã o está o b ed ecen d o aos mandamentos de Deus.
0 particípio presente sugere uma prática contínua de desobediência. Um testemu­
nho com base apenas no passado, vim a co n h ecê-lo , é mais do que suspeito para
João. Na verdade, ele torna alguém um mentiroso (veja 1 Jo 1.6).
O texto grego colocapseustês em uma posição enfática no início da sentença:
m en tiroso ele é. A frase é mentiroso refere-se a mais de um indivíduo passando
por um lapso ocasional (Brooke, 1912, p. 31; veja 1 Jo 1.6,8). João rotula de men­
tiroso alguém que desobedece aos mandamentos de Deus habitualmente. Esse
rótulo é ligado à afirmação de que a verdade não está nele (em alguns manuscri­
tos, lê-se: a v erd a d e d e D eus). João não mede palavras quando a autêntica fé cristã
é desafiada (veja 2.22; 4.20; 5.10; Jo 8.44; Ap 22.15).
1 5 A ênfase passa para aqueles que obedecem, ressaltando a resposta pessoal ne­
cessária. A palavra alguém (lit.: q u em p u d er) e o verbo obedece (lit.: m an tiver,
subjuntivo) transmitem a ideia de que a obediência não é automática. Pode-se es­
colher obedecer ou não obedecer. A vida que leva à semelhança de Cristo é refleti­
da em uma resposta contínua à Palavra de Deus.
A linguagem de obedecer aos mandamentos/palavra de Deus é distinta­
mente joanina. Ela ocorre 12 vezes no Evangelho (Jo 5.24, “ouve”; 8.51,52,55;
14.15,21,23,24; 15.10,20; 17.6) eoito vezes nas cartas (í Jo2.3,4,5; 3.22,24; 5.2,3;
2 Jo 6) e seis vezes em Apocalipse (3.8,10; 12.17; 14.12; 22.7,9). Obedecendo aos
comandos e andando em obediência, o amor de Deus alcança sua finalidade.
O amor de Deus é “quase certamente” um genitivo subjetivo designando o
amor de Deus ao cristão, em vez de um genitivo objetivo, indicando o amor de
alguém por Deus (Jones, 2009, p. 54; Thomas considera ambos “potencialmente
presentes”, 2004, p. 98).
Marshall sugere uma terceira opção: a gramática apoia a ideia de um amor di­
vino (Marshall, 1978, p. 124). Isso parece excessivamente flexível, já que Deus está
agindo de forma amorosa, completando o amor do tipo divino nos crentes (Jones,
2009, p. 54). A obra do amor de Deus está no ser humano — nele. Ainda assim,
sabemos que o amor divino vem primeiro e permite a resposta de amor do homem
(Brooke, 1912, p. 31; veja 1 Jo 2.15; 3.17; 4.12; 5.3).
86
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

Quando o amor alcança seu objetivo, está aperfeiçoado (teteleiõtai). A voz


passiva do verbo implica que Deus é o agente ativo (veja o quadro “Voz passiva
divina” em 1 Jo 1.2). Quem é aperfeiçoado ainda precisa de mais desenvolvimen­
to. Contudo, a intenção do amor divino só pode ser concretizada naqueles que
obedecem às palavras de Deus. João continuará a particularizar essa obediência nos
versículos 7-11 como o amor de irmãos de fé (veja 4.11-21).
O amor de Deus definitivamente vem primeiro e permite qualquer resposta
de amor do homem (Brooke, 1912, p. 31; veja 1 Jo 2.15; 3.17; 4.12; 5.3). É Deus,
não o esforço do homem, quem traz os crentes à perfeição. A perfeição ou plenitu­
de de amor está nele e, portanto, definitivamente, não está em nós sem Cristo.
A palavra grega é a mesma usada na declaração de Jesus na cruz: “Está consu­
mado” {tetelestai, Jo 19.30). Ela transmite a ideia de trazer algo à conclusão a que
se destina, com uma nota de triunfo. O termo aparece seis vezes no Evangelho (Jo
4.34; 5.36; 17.4,23; 19.28,30), indicando a conclusão do trabalho dado a Jesus por
Deus (Thomas, 2004, p. 99).
João apresenta essa conclusão ou esse aperfeiçoamento em amor como normal
para o cristão. João Wesley baseou-se em palavras de 1 João (2.5; 4.12,17) para
apoiar sua doutrina de “amor perfeito”, característico de cristãos totalmente dedi­
cados (Wesley, 1978-1979, p. 366-446). Esse amor divino é perfeito em atingir a
sua finalidade (Marshall, 1978, p. 125, n. 14).
Tanto aqui como no Quarto Evangelho, obedecer aos mandamentos de Deus
significa expressar o amor por Cristo e pelo próximo. Esse amor, então, retoma a
Deus em adoração e intimidade completa (Jo 14.21,23; veja também 1 Jo 5.3).
Esse movimento recíproco de amor que sai de Deus e depois volta para Ele permite
a conclusão, ou o aperfeiçoamento, da intenção do amor. E o amor de Deus que
alcança o propósito divino quando se desenvolve nos relacionamentos (Brown,
1982, p. 257).
H 6 Um dever moral importante aparece no versículo 6. A pessoa deve (opheilei,
o que se deve) andar de certa maneira. Esse apelo profundo nos chama a andar
como ele andou; isto é, assim co m o a lgu ém an dou , d e v e -se an dar.
Quem afirma que possui um relacionamento íntimo com Cristo — que per­
manece nele (q u e ha bita n e le) — por si só não prova a sua fidelidade espiritual.
A prova está no andar, em um relacionamento obediente e crescente de caminhar
ao lado de Cristo. A metáfora de andar salienta a natureza regular, diária, de um
passo de cada vez, do estilo de vida do caminhar. Essa caminhada é tão distinta­
mente santa que é identificada com o caminhar do próprio Jesus. E a linguagem do
discipulado autêntico, caminhar juntos, e assim cada vez mais andar como aquele
com quem andamos.
87
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Metáforas de caminhada são abundantes no AT. Em Deuteronômio 5.33


(pouco antes da grande confissão de fé de Israel no Shemá — “Ouça, ó Israel...”), o
povo de Deus é intimado a andar “sempre pelo caminho que o Senhor, o seu Deus,”
lhe “ordenou” (veja Dt 10.12; 11.22; 26.17; e Js 22.5). Salmos promete acesso ao
santuário de Deus para aquele “que anda em sinceridade” (SI 15.2 ARC; 84.11).
O grande profeta do oitavo século, Isaías, chamou a nação para andar “em suas
[de Deus] veredas” (Is 2.3), “na luz do Senhor” (Is 2.5) e “retamente” (Is 57.2).
Miqueias resumiu boa parte da mensagem do propósito de Deus nas palavras ma­
jestosas que chamam as pessoas a andarem “humildemente com o seu Deus” (Mq
6 .8 ).

A P A R T IR D O T E X T O

Aquele que está ao lado para ajudar

Que pensamento incrível: aquele que morreu por nós, pecadores, representa-
-nos diante do Pai (v. 1)! O paráclito Jesus, que está ao nosso lado para ajudar, acre­
dita tanto em nós que já passou por um sofrimento supremo pelo pecado. Estamos
diante de Deus; mas não estamos sozinhos. O perdão é oferecido. A reconciliação
é real. A obra de Deus em nossa vida é aperfeiçoada (teteleiõtai, v. 5) e tem um
grande custo para Cristo. A declaração de Cristo da cruz, “está consumado” [tete-
lestai; Jo 19.30), destaca a obra concluída. A plena obediência de Cristo ao Pai o
levou à cruz, onde Ele cumpriu a intenção divina de redenção. Da mesma forma, a
nossa plena obediência ao Pai, para onde quer que ela nos leve, cumpre o propósito
divino em nós.

Pecar é necessário?

A plena obediência a Cristo pode significar que nós não pecamos (v. 1). Algu­
mas pessoas poderíam facilmente descartar essa possibilidade, argumentando que
“errar é humano”, assim como pecar.
Martinho Lutero não teve forças para enfrentar o grande objetivo do versículo
1; em vez disso, ele concentrou-se na inevitabilidade do pecado. “Mas, mesmo que
você se fortaleça ao máximo, o pecado permanece, e você peca dia a dia” (Pelikan,
1967, p. 235). Lutero, no entanto, paradoxalmente, também afirmou a respeito de
1 João 3.6: “Aquele que está nele, isto é, em Cristo, não peca; pois, quando Cristo
está presente, o pecado é vencido”. Ele acrescentou: “Mesmo que pequem, eles não
permitem que o pecado reine” (Pelikan, 1967, p. 270).
88
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

Como “todos pecaram” (Rm 3.23), o pecado não precisa ser a norma para
o povo de Deus. Esse assunto, importantemente, volta-se para como o pecado
é definido. Se o pecado é qualquer falta de perfeita conformidade com a lei de
Deus, conhecida ou desconhecida, então a liberdade do pecado certamente ilude
o homem.
No entanto, e se o pecado for uma violação intencional de uma lei conhecida
de Deus ? Então, certamente, a obra redentora de Cristo na cruz e o poder da res­
surreição são suficientes. Cristo pode captar nossa atenção para que possamos ser
libertos do pecado habitual. A graça não só alcança, mas também perdoa e, mais
importante, cura. Comentando sobre o versículo 1, John Wesley escreveu: “Todas
as palavras, instituições e juízos de Deus são feitos contra o pecado, mesmo que
não possa ser cometido ou que possa ser abolido” (Wesley, 1983).

Honestidade quando o pecado ocorre

Quando os cristãos não conseguem agir de maneira santa, isso desafia sua de­
claração de vida em santidade. É possível afirmar ser santo e fazer uma crítica com
palavras duras ou guardar ressentimentos profundos e resistir à confissão de tais
falhas ? Alguns dos que testemunharam graça santificante e libertação do pecado
resistem em confessar fracassos de qualquer tipo. Eles pensam erroneamente que
fazer isso seria negar seu credo e enfraquecer sua teologia. Outros dão desculpas
e deixam de admitir seu pecado, rotulando-o de “erro”. Ao saberem que machu­
caram outra pessoa, eles não pedem perdão a ela ou a Deus. Eles talvez pensem:
“Deus conhece meu coração”. A atividade do Espírito de Deus em nós deve tornar-
-nos mais propensos a notar quando machucamos alguém, mais aptos a admitir
nossa culpa e pedir perdão.

Cristo morreu por todos

Outra ênfase que afeta tanto a pregação quanto o cuidado pastoral gira em
torno do alcance da morte expiatória de Cristo. Ele morreu por todos — “pelos
pecados de todo o mundo” (v. 2; veja também 2 Co 5.14,15). A morte de Cristo
é motivo suficiente para a salvação de qualquer um, mas isso não pressupõe esse
resultado para todos. Paulo distingue, de modo semelhante, a oferta de salvação
universal totalmente suficiente e a limitação do alcance que se aplica apenas aos
crentes. Ele falou sobre “todos” por quem Cristo morreu (2 Co 5.14), mas também
sobre “aqueles que vivem” como um número mais restrito (2 Co 5.15).
89
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Deus vem em graça e convida — atraindo e permitindo, mas Ele a ninguém


coage. A morte de Cristo não leva a uma teoria de expiação limitada. Isso significa
que Ele não morreu apenas pelos “eleitos”, màs também por todos. As cartas de 1
João 2.2 e 2 Coríntios 5 argumentam fortemente em favor de uma compreensão da
morte de Cristo como verdadeiramente para todos. No entanto, elas afirmam que a
pessoa tem uma resposta, permitida pela graça, para a salvação oferecida por meio
dessa morte, para o bem ou para o mal e para a eternidade.

B. Na luz ou nas trevas? (2.7-11)

POR TRÁS DO TEXTO

As metáforas dualistas chamam a atenção para a teologia de alguns dos per­


gaminhos encontrados próximo ao mar Morto, no Qumrã. Temas de luz e trevas,
amor e ódio e verdade e mentira eram todos familiares nos círculos judaicos sectá­
rios do Qumrã. Os primeiros cristãos eram, em sua maioria, judeus e faziam parte
do seu patrimônio cultural (veja Por trás do texto em 1 Jo 1.5- 10).
É importante que, no desenvolvimento dessa seção, tenha-se em mente como
a linguagem de mandamento (v. 7,8) fora ouvida por ouvidos judaicos. Os Dez
Mandamentos (Ex 20.1-17) foram lembrados rapidamente. Embora João não se
tenha apresentado como um Moisés dos últimos dias, o uso de mandamento é
proeminente nos escritos joaninos (veja a discussão em 2.5). Além disso, o novo
mandamento de amar o próximo (v. 7,8; veja Jo 13.34; 2 Jo 5) baseia-se no chama­
do do AT, “ame cada um o seu próximo como a si mesmo” (Lv 19.18), como uma
expressão tangível do amor supremo de alguém por Deus (Dt 6.5).
Assim, a preocupação ética de João continua em 1 João 2.7-11, em que ele
repete a linguagem de mandamento dos versículos 3 e 4 e a desenvolve de uma
maneira nova e poderosa. Ele faz isso usando três contrastes — novo e antigo, tre­
vas e luz, ódio e amor.

NO TEXTO

I 7 A linguagem familiar e amorosa continua a tecer o seu caminho pela epís­


tola. João se dirige a seus leitores como amados (agapétoi, de agapê, “amor”). Essa
linguagem calorosa é comum nas cartas {agapétoi, 1 Jo 3.2,21; 4.1,7,11; e agapête,
3 Jo 2,5,11).
João diz que não escreve um mandamento novo (veja 2 Jo 5), mas um
mandamento antigo, que remonta ao princípio. A mensagem de amar o próximo
90
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

parece tão antiga quanto Levítico 19.18: “Ame cada um o seu próximo como a
si mesmo”. Esse texto foi ligado ao Shemá de Deuteronômio 6.4 pelo “perito na
lei”, que perguntou a Jesus qual era o maior mandamento da lei (Lc 10.27,28).
Contudo, esse mandamento é tão antigo quanto o princípio.
Como interpretamos o princípio? No Evangelho de João (1.1), o princípio
é “o” princípio, antes da criação, em uma linguagem que evoca o texto de Gênesis
1.1 da LXX. No entanto, aqui, João, como em 1.1, está referindo-se mais ao iní­
cio do efeito do evangelho em seus leitores. Foi o que ouviram que os trouxe à fé
cristã (veja 2.24 e 3.1). A referência é semelhante às linhas iniciais do Evangelho
de Marcos. Nessa passagem, o “princípio do evangelho” (Mc 1.1) é identificado
com o ministério público da mensagem anunciada e recebida de Jesus. O antigo,
portanto, trata-se do princípio do evangelho neles.
■ 8 João acabou de dizer que não escreve “um mandamento novo” (v. 7). Porém,
já na próxima frase, diz que sim! Ele ainda não definiu a natureza exata do man­
damento. Antecipando onde ele quer chegar (v. 10), João recorda as palavras de
Jesus em João 13.34: “Um novo mandamento lhes dou: Amem-se uns aos outros.
Como eu os amei, vocês devem amar-se uns aos outros”. Todavia, primeiro, ele liga
o mandamento novo à metáfora dualista de luz e trevas. Isso lembra o prólogo do
Quarto Evangelho: “A luz brilha nas trevas, e as trevas não a derrotaram” (Jo 1.5).
A verdadeira luz é uma reminiscência de João 1.9: “Estava chegando ao mun­
do a verdadeira luz, que ilumina todos os homens”. O pensamento do Evangelho e
da epístola é escatológico. Uma nova era de luz está rompendo a idade das trevas. A
ênfase aqui está no evangelho de Cristo, “a Palavra da vida” (1.1).
Essa luz que já brilha ainda não eliminou totalmente as trevas. As sombras es­
tão vivendo além da conta e se dissipando. Como no Evangelho, a “verdadeira luz,
que ilumina”, está varrendo as trevas de todas as pessoas (Jo 1.9). Somos lembrados
de Gênesis 1, que fala como Deus separou a luz e as trevas (1.4,5), e da correção do
caos que isso causou (1.1,2).
B 9 João passa diretamente para um desafio ao leitor. Qualquer ódio por outro
crente é uma prova de trevas; ele participa do espírito caótico antiDeus. O ódio
tenta desfazer o que Deus, na criação e em Seu governo soberano, está trabalhando
para realizar. Isso, obviamente, não é possível.
Porém, a questão é: vamos interferir com o propósito divino de associar-nos às
“trevas [que] estão se dissipando”? Ou vamos cooperar com Deus ao aceitarmos a
“luz” que “já brilha” (v. 8) ? Paulo expressa uma expectativa escatológica semelhante
quando escreve que “a noite está quase acabando; o dia logo vem” (Rm 13.12). A
antecipação desse triunfo revelador da luz sobre as trevas coloca o povo de Deus
“no meio do tempo” (tradução do título original de D ie M itte d er Zeit, Conzel-
mann, 1954) à espera de uma vitória final futura da “verdadeira luz”.
91
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Se alguém afirma estar na luz, isso não prova necessariamente a sua lealdade
a Deus. A dissonância entre os sons que a pessoa fala — afirma — e o clamor que
acompanha o ódio abafam o que se fala da boca para fora (veja os desafios de João
em 1.6,8,10). É desonesto afirmar estar em um estado de graça cristã, enquanto
odeia seu irmão ou sua irmã. O ódio, aparentemente, descreve as visões falsas, a
atitude arrogante e o comportamento faccioso dos separatistas.
A palavra irmão (adelphos), um termo favorito de João, ocorre com grande
frequência no restante da carta (2.10,11; 3.10,12,14,15,17; 4.20,21; 5.16). A pa­
lavra é usada por Jesus nos Evangelhos (Mt 25.40; 28.10; Mc 3.33,34,35; Lc 6.42;
17.3; Jo 20.17). Ela aparece em Atos (9.17; 22.13) e é comum nos escritos de Pau­
lo. Chamar alguém de “irmão” é uma adaptação cristã da linguagem de “fraterni­
dade” espiritual do judaísmo. A definição aparece também em um sentido religioso
em autores seculares gregos (von Soden, 1964, p. 144-146).
O termo irmão, em 1 João, não se refere exclusivamente aos irmãos do sexo
masculino. O grego, como muitas outras línguas, usa substantivos coletivos mascu­
linos para referir-se a ambos os sexos. O termo adelphos fala mais sobre a língua gre­
ga do que sobre os limites do amor divino (Smith, 1991, p. 58). Traduções recentes
que utilizam “irmão ou irmã” esclarecem adequadamente a intenção da linguagem
de João para os leitores modernos.
João estreitou o sentido de irmão para apenas cristãos que concordavam com
a sua perspectiva cristológica? Quem não concordava com o ensinamento joani-
no não era mais irmão (veja 2 Jo 10)? O apóstolo não hesita em rotular aqueles
que antes faziam parte da comunidade joanina e foram chamados de “anticristos”
(2.18,19).
Será que a repetição do apelo de 1 João para amar “um ao outro” e amar o ir­
mão se estende aos separatistas ? Parece uma questão em aberto. No entanto, é mais
provável que João, nesse contexto, usasse irmão para indicar alguém que ainda
estivesse dentro da comunidade de fé das igrejas joaninas. A questão é o compor­
tamento daqueles que estavam perturbando a comunidade, não o mundo em um
sentido neutro (Jo 3.16) ou até mesmo negativo (2.15).
I 1 0 Em contraste com “odeia” e “trevas” (v. 9), temos ama e luz. O amor ao
“irmão ou à irmã” (NRSV) significa trazer diante deles nada que cause derrota
espiritual, nada que seja causa de tropeço (skandalon). O termo skandalon retrata
uma armadilha ou um laço preparado para um inimigo e, metaforicamente, um
obstáculo ou uma ofensa. Essas palavras de cautela de João surgem naturalmente de
seu contexto. As igrejas estavam brigando por diversidade cristológica e questões
resultantes de liderança e unidade.
Jesus chama Pedro de skandalon quando ele se opõe a Jesus, apontando para
o Seu destino na cruz (Mt 16.23). Fazer “pequeninos” pecarem é um skandalon e
92
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

recebe uma forte repreensão de Jesus (Mt 18.6-9). Paulo usa skandalon quando
fala sobre Isaías 28.16 para referir-se a “uma rocha que faz cair” (Rm 9.33). Surpre­
endentemente, assim como João, Paulo escreveu sobre “amor de uns pelos outros”
como cumprimento da lei (Rm 13.8,10).
B 1 1 Odiar o irmão demonstra que a pessoa está nas trevas atualmente e anda
nas trevas. Tal pessoa não sabe para onde vai porque as trevas que escolheu a ce­
garam. As trevas são progressivas; elas levam a mais trevas e, por fim, à cegueira. O
que está em jogo em amar/odiar é o discernimento espiritual, tanto em cristologia
como em ética. As questões agora apenas declaradas são a compreensão de Deus
como revelada no Jesus encarnado e na qualidade de vida em comunidade que ine­
vitavelmente se segue.
Essa passagem fala daqueles que passaram da luz para as trevas e, assim, cada
vez mais, escolheram a cegueira. Ironicamente, Paulo já odiou quem um dia acaba­
ria chamando de “irmão” (At 9.17). Aqui, João aconselha aqueles que chamam o
próximo de irmão para que não odeiem. Enquanto Deus estiver fornecendo luz, é
aconselhável que se ande nessa luz — “Andem enquanto vocês têm a luz, para que
as trevas não os surpreendam, pois aquele que anda nas trevas não sabe para onde
está indo” (Jo 12.35). Em 1 João e em Levítico 19.14, não enxergar, cegueira ou
escuridão estão associados a skandalon (Stáhlin, 1971, p. 339-358).

A P A R T IR D O T E X T O

Relacionamentos na igreja

Como no primeiro século e em todas as eras, as pessoas esquecem com facili­


dade coisas que já sabem. O mandamento antigo (v. 7), amar a Deus e ao próximo,
precisa ser trazido diante da igreja de vez em quando. Verdades aprendidas no iní­
cio de uma vida cristã, mesmo no princípio (v. 7), podem perder-se nos trâmites
da tomada de decisões em um corpo local de crentes.
A linguagem de família em 1 João é mesclada com passagens que usam as
palavras odeia e trevas (v. 9,11). Um desafio pastoral importante surge quando,
dentro de uma congregação, as pessoas começam a ressentir-se daqueles a quem
deveríam amar. As cartas de João refletem mais questões de relacionamentos
problemáticos do que de teologia e liderança, com algumas pessoas consideradas
“de dentro” e outras “de fora”. Divisões desnecessárias sempre colocam a jornada
espiritual de uma congregação na direção das trevas (v. 9,11). As trevas sempre
levam para longe de Deus e da verdade. Rotular de malignos aqueles com quem
discordamos nos separa.
93
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A escatologia deve influenciar nossa ética


Pessoas que esperam uma intervenção culminante de Deus na história devem,
portanto, ordenar a vida delas. Devem viver tendo em vista a proximidade dos
eventos apocalípticos descritos nas Escrituras, cientes de que eles podem aconte­
cer em breve. Aqueles que esperam um crescimento gradual do Reino de Deus
conquistando novos territórios certamente desejarão viver de modo a tornar seus
princípios e valores cada vez mais uma realidade onde vivem “na terra” (Mt 6.10).

C. Palavras para todas as idades (2.12-14)

POR TRÁS DO TEXTO

A terminologia de família utilizada nessas cartas baseia-se em, pelo menos,


dois contextos. A família era uma instituição no judaísmo. Temas familiares tam­
bém derivam de imagens de aliança do AT. Jeremias identifica Deus como “pai”
para “Efraim” (Israel), o “filho mais velho” de Deus (Jr 31.9). Ezequiel descreve
Jerusalém como uma criança abandonada a quem o Senhor adotou e amou (Ez
16). Em Oseias 11.1, Deus chama Israel de “meu filho”.
Alguns aspectos das competições atléticas greco-romanas do primeiro século
aparecem nos versículos 13 e 14. O termo venceram (nikaõ) significava ser o cam­
peão que derrotou todos os adversários. Paulo faz várias referências a uma corrida
(1 Co 9.24-26; G1 2.2; 5.7; Fp 2.16; veja também Hb 12.1). A deusa grega da vi­
tória, Nike, mostra a ênfase dada ao vencedor. A verdadeira conquista, pensavam
alguns, só poderia ser alcançada pelos deuses (Bauernfeind, 1967, p. 942-945). A
linguagem de vitória, nos versículos 13 e 14, certamente se baseia nessa ideia. As
cartas às sete igrejas do Apocalipse registram as promessas do Senhor de recom­
pensar todos os que venceram (Ap 2.7,11,17,26; 3.5,12,21).
João continua a enfatizar a escrita (1 Jo 1.4; 2.1,7) enquanto assegura seus
leitores em relação aos falsos mestres. Ele baseia seu lembrete na situação atual
dos cristãos joaninos nos propósitos de Deus em Seu Filho, “Jesus Cristo, o Justo”
(2.1). Esses versículos de sermão fornecem a base para a exortação a seguir, nos
versículos 15-17 (Marshall, 1978, p. 134,135; Bultmann, 1973, p. 30).

NO TEXTO

■ 1 2 - 1 4 Uma sequência interessante de pessoas aparece duas vezes nesses versí­


culos — filhinhos (v. 12,13), pais (v. 13,14) e, em seguida, jovens (v. 13,14). Isso
reflete o hábito de João de usar termos familiares com seus leitores.
94
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

Filhinhos (teknia), no primeiro conjunto (v. 12,13b), pode ser uma forma de
dirigir-se coletivamente aos membros das igrejas. Nenhuma declaração de valor
sobre o desenvolvimento espiritual deles parece ter sido intencionada. O segundo
conjunto (v. 13c,l4) começa com outro termo coletivo, filhinhos (paidia). Esse
termo era equivalente, em função, ao teknia no versículo 12 (ex.: 2.1,28).
As referências a pais e jovens podem indicar tanto a idade cronológica como
a maturidade espiritual. Nessa abordagem, há duas declarações gerais para toda a
comunidade (filhinhos) e duas categorias de crentes, os pais e os jovens (Brooke,
1912, p. 43; hesitantemente, Akin, 2001, p. 102,103, veja Brown, 1982, p. 297-
299). Ainda assim, a interação da linguagem ao longo dessa seção é difícil de acom­
panhar.
Os filhinhos (v. 13) conhecem aquele que os pais conhecem, ou seja, aquele
que é desde o princípio. O paralelo com o pai nos versículos sugere que aquele
é Deus. Embora seja mais provável que, como em 1.1 e 2.7, o princípio se refira
à vinda de Jesus, em quem o evangelho veio pela primeira vez para eles. Jesus é o
único em quem “a vida eterna, que estava com o Pai” (1.2), foi revelada. Os jovens,
no entanto, venceram o Maligno.
As descrições m udam nas seções endereçadas aos filhinhos. Primeiro, enfati­
za-se que seus pecados foram perdoados (v. 12); em seguida, que eles conhecem
o Pai (v. 14). A descrição direcionada aos jovens se expande de venceram o Ma­
ligno para vocês são fortes, e em vocês a Palavra de Deus permanece (v. 14).
Quanto aos pais, as descrições permanecem inalteradas em ambos os casos.
Essas mudanças e expansões expressam nuances de afirmação espiritual de for­
ma poética, mas não necessariamente em ordem cronológica. A ausência de metá­
foras femininas na seção é curiosa, uma vez que o “presbítero” de 2 de João dirige-se
às igrejas como “senhora eleita” (2 Jo 1) e “irmã eleita” (2 Jo 13).
A voz passiva foram perdoados apresenta Deus perdoando os pecados sozi­
nho. O tempo perfeito indica que o perdão traz libertação da culpa das violações
do passado e se estende para o futuro (Bultmann, 1964, p. 509-512). O perdão dos
pecados é obtido por meio do seu nome, como referência a “Jesus Cristo, o Justo
(...) [que] é a propiciação pelos nossos pecados” (2.1,2a).
A pequena palavra hoti, porque (seis vezes nos v. 12-14), indica que João
escreve por esta razão: seus leitores estão entre os que j á fora m perdoados. Nesse
mesmo sentido, Brown não traduz hoti, tratando-a funcionalmente como dois
pontos. Mais como uma declaração de uma realidade presente: “Estou escrevendo
para vocês, crianças: seus pecados estão perdoados” (Brown, 1982, p. 300,301).
Smith prefere “porque”. Isso significa que, pelo resultado do perdão, eles são capazes
de recusar o amor do mundo (Smith, 1991, p. 63).

95
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

O tempo perfeito é usado novamente em venceram. Esses pais vieram a co­


nhecer previamente aquele que é desde o princípio. Esse conhecimento ainda é
real: Vocês viera m a co n h ecê-lo e con tin u a m a co n h ecê-lo . A vitória que alcança­
ram sobre maligno estava em andamento: Vocês ven cera m e co n tin u a ra ven cer. O
tempo perfeito transmite tanto segurança como desafio. A batalha, embora tenha
sido decisivamente vencida por Cristo, deve continuar.
A referência a filhinhos (v. 14) pode ser aos que são novos na fé. Esse termo
afetuoso também pode indicar que eles estão sendo instruídos. A palavra “peda­
gogia” deriva de paidion e agõ (guiar), ou seja, “guiado como uma criança por um
instrutor”. A palavra pai {patêra, v. 14; pateres, v. 13,14) é usada três vezes. Quando
aparece no singular em 1 João, ela sempre se refere a Deus (13 vezes na NVI). No
plural, o termo pais refere-se aos líderes na igreja (2.13,14).
Uma variação ocorre nas palavras traduzidas como escrevo. Os três primeiros
casos empregam um verbo no presente do indicativo {graphõ), escrevo ou estou
escreven d o. Os três últimos verbos estão todos no aoristo (passado). Eles podem
ser traduzidos como escrevi. Provavelmente, são exemplos do aoristo epistolar. O
que era o presente para João se tornaria passado até o público receber sua carta.
Portanto, ele pretendia manter o verbo no presente, escrevo. Depois, quando João
usou egrapsa (2.21; 5.13), ele aparentemente pretendia usar o tempo presente. As­
sim, a mudança de tempo verbal em 2.12-14 pode ser apenas uma escolha estilística
(Smith, 1991, p. 63). Alguns manuscritos posteriores tentam harmonizar as inter­
pretações anteriores e usar o tempo presente aqui no versículo 14.
João fala também sobre jovens (v. 13,14), que eram bem desenvolvidos espiri­
tualmente — vocês são fortes (v. 14). A palavra pode sugerir força física ou poder
espiritual. A LXX, de modo ocasional, usa força para descrever uma qualidade
de Deus (2 Sm 22.31). Em Apocalipse, a palavra (traduzida como “poderoso” na
NVI) refere-se a Deus (18.2), aos anjos (5.2; 10.1; 18.2,21) e aos adversários de
Deus (6.15; 19.18). Os jovens eram fortes, porque apalavra de Deus habitava ne­
les (como em Jo 15.7: “minhas palavras permanecerem em vocês”). Eles venceram
porque a palavra de Deus, que faz com que Deus/Cristo seja conhecido na vida
deles, deu-lhes o poder vitorioso.
A vitória alcançada é sobre o Maligno (ton ponêron, v. 13,14). O termo é usa­
do para referir-se a Satanás em 1João (3.12; 5.18,19). A terminologia é comum em
Mateus (5.37; 6.13; 13.19,38). Ela aparece uma vez no Evangelho de João (17.15)
e duas vezes nas cartas de Paulo (E f6.l6; 2Ts 3-3). Esse Maligno se destaca como o
paralelo dramático e adversário de Jesus — “o Justo” (2.1). Na oração do Pai-nosso,
Jesus ensinou Seus discípulos a orar por livramento do “mal” (Mt 6.13).
Ecos do Evangelho de João (1.1), como nas linhas de abertura da carta, apare­
cem nos versículos 12-14 com desde o princípio e o uso de Palavra.
96
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

A P A R T IR D O T E X T O

Quem pode perdoar pecados?

Essa controvérsia é evidente nos Evangelhos (Mt 9.6; Mc 2.7-11; Lc 5.20-24)


e se estende para a história do cristianismo. O perdão dos pecados é uma transação
direta entre a pessoa e Deus, por intermédio de Cristo? Ou a pessoa deve confes­
sar-se com um padre ou com um agente oficial da igreja? A discussão se baseia em
João 20.23: “Se perdoarem os pecados de alguém, estarão perdoados; se não os
perdoarem, não estarão perdoados”. Protestantes tendem a entender o pronuncia­
mento de perdão como o reconhecimento do quejá f o i transacionado entre Deus e
a pessoa. O tempo perfeito do verbo “perdoarem” sugere que elesfo ra m p erd o a d os
ep erm a n ecem assim .
Os católicos romanos apelam para Mateus 16.19 e 18.18, alegando uma au­
toridade geral dada à Igreja de dispensar perdão. O texto em 1 João 2.12, seus
pecados foram perdoados, não paira de forma conclusiva em um dos lados desse
debate. De importância crucial é o fato de que o perdão só é experimentado graças
ao nome de Jesus (v. 12). Nisso todos os cristãos podem concordar.

0 mal no mundo

O mal, de acordo com João, manifesta-se no Maligno (v. 13,14), mas, junto
com pensar no mal pessoal, os cristãos são desafiados a pensar em como o mal se
manifesta institucionalmente. O mal sistêmico aparece em nações, corporações e
até mesmo em igrejas.
A presença do mal no mundo é facilmente demonstrada. Assista a qualquer
noticiário por alguns minutos. Nós prontamente reconhecemos o mal “lá fora”.
Todavia, será que a igreja e seus líderes reconhecem e derrotam o mal “aqui den­
tro”? Estamos preparados para enfrentar o mal que, às vezes, surge no caminho das
funções da igreja corporativamente e na vida daqueles que a compõem?

Quem está "na luta"?

A linguagem masculina nessa seção (pais e jovens) pode indicar a rica diver­
sidade dos que são chamados de testemunhas fiéis. O profeta Joel descreve “filhos
e (...) filhas (...), velhos (...), jovens (...), servos e (...) servas”, sugerindo uma missão
cristã de inclusão total que atravessa as fronteiras de gênero, idade e status social
(2.28,29). O sermão do Pentecostes de Pedro evoca esse refrão (At 2.16,18).
97
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

D. Ame Deus, não o mundo (2.15-17)

POR TRÁS DO TEXTO

A tradição de advertências apocalípticas está por trás da terminologia: O


mundo e a sua cobiça passam (v. 17). Essa tradição leva leitores informados de
volta aos textos do AT sobre “o dia do Senhor” como uma época de destruição (J1
1.15) e “trevas” (Jl 2.2; Am 5.18,20). Nessa época, “o sol se tornará em trevas, e a
lua em sangue” (Jl 2.31). Essa temática do mundo sob o julgamento também apa­
rece em diversas passagens do NT. Em 1 Tessalonicenses 5.2,3, o “dia do Senhor”
é um tempo de “destruição” e “dores”. O texto em 2 Pedro 3.13 adverte os leitores
para manterem-se no caminho da vontade de Deus.
Em 1 João, há algumas características definitivamente apocalípticas. O mun­
do está passando. A apostasia é uma ameaça, porque é “a última hora” (1 Jo 2.18).
Os “anticristos” estão aparecendo (2.18,22; 4.3; 2Jo 7). Esses temas refletem a pre­
sença romana no mundo mediterrâneo do primeiro século. A urgência de João
provavelmente se relaciona com a pressão que ele sentia com as crescentes tensões
sociais/políticas entre cristãos e Roma. Todo o livro de Apocalipse pode ser lido
como uma resposta a Roma, como um empreendimento antiDeus (Rossing, 1999)
e como um grito de justiça (Fiorenza, 1998).

NO TEXTO

I 1 5 João passa para uma admoestação direta ao aconselhar seus leitores: Não
amem o mundo (m êagapate ton kosmon). No entanto, o Evangelho de João afirma
que “Deus (...) amou o mundo” (3.16; êgapêsen ho theos ton kosmon). No Evange­
lho, kosmos indica aqueles por quem Cristo morreu, porque foi amado por Deus.
Aqui, em 1 João, kosmos fala sobre uma mentalidade hostil a Deus.
Aceitar o mundo era opor-se à revelação de Deus em Cristo (Marrow, 2002, p.
101). O mundo, devido ao seu espírito estranho a Deus e a tudo o que é santo, cria
oportunidades para as tentações que apelam aos apetites comuns. Por isso, ele pode
levar ao mau uso das boas dádivas de Deus. Valorizar as coisas do mundo de forma
desproporcional ou ilegal é amar as coisas acima de Deus. Isso é idolatria anteci­
pando a advertência que encerra 1João: “Filhinhos, guardem-se dos ídolos” (5.21).
O amor do Pai não está em quem tanto ama o mundo. Isso fecha o coração
da pessoa contra o amor do Pai direcionado a ela. Ela não está permitindo que
Deus a ame em perdão e purificação (1.7,9). Amar a Deus e ser amado por Ele estão
98
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

no mesmo conjunto. O primeiro é baseado no segundo (4.19; Bultmann, 1973, p.


59; veja o comentário sobre 2.5).
H 1 6 O mundo, alienado de Deus, é a cobiça da carne (sarx). Nos escritos de
Paulo, sarx geralmente se refere ao que se manifesta como hostilidade contra Deus,
em vez do ser físico. É viver “segundo a carne”, em oposição à vida “segundo o Espí­
rito” (Rm 8.4). João concorda com Paulo quanto à carne ser a mentalidade sobre o
que ela “deseja” em vez daquilo “que o Espírito deseja” (Rm 8.5). O primeiro é viver
pelo temporário; o segundo é viver pelo duradouro.
A expressão cobiça ou d esejo (epithym ia) dos olhos evoca a linguagem do
Éden, onde Eva “viu” e achou “atraente aos olhos” (Gn 3.6). Os olhos servem, mui­
tas vezes, como a porta de entrada para nossos desejos. João queria que seus leitores
protegessem os olhos.
A ostentação dos bens (lit.: o o rgu lh o da v id a ) pode significar “o orgulho
das riquezas” (Strecker, 1996, p. 59). Ele chama a atenção para o problema de se ter
uma visão inflada de si mesmo e de suas realizações. Essa arrogância não provém
do Pai, mas do mundo e está condenada a ser destruída junto com ele (v. 17). O
desejo incorreto e o orgulho desmedido separam-nos do sagrado; mas fazer “a von­
tade de Deus” leva-nos à vida “para sempre” (v. 17).
■ 1 7 João avisa que o mundo passa (veja Por trás do texto). Essa mentalidade
apocalíptica exprime a tensão do “já” e o “ainda não”. O “já” fala do que tem sido
realizado pela intervenção de Deus por meio da primeira vinda de Cristo. O “ainda
não” antecipa o que falta acontecer na Sua segunda vinda. Paulo exprime uma ideia
similar: “A forma presente deste mundo está passando” (1 Co 7.31). O mesmo
acontece em 2 Pedro 3.12: “Naquele dia os céus serão desfeitos pelo fogo, e os ele­
mentos se derreterão pelo calor”.
A ideia de um fim dos tempos cataclísmico deriva dos profetas hebreus. Eles
descrevem “o dia do Senhor” em termos de sinais de julgamento (J1 2.30,31). O
fim dos tempos, no entanto, será marcado por um derramamento do Espírito de
Deus sobre todos (J12.28,29).
Isaías pensa no dia vindouro como um tempo de “novos céus e nova terra” (Is
65.17; 66.22). Esse refrão é captado por 2 Pedro 3.13 e Apocalipse 21.1. A passa­
gem do mundo não significa a obliteração da criação (cf. Rm 8.19-23). Para João,
o mundo que passa é uma ordem mundial, um sistema alienado aos propósitos de
Deus. O fim removerá permanentemente quaisquer elementos hostis a Deus. O
fim será muito parecido com o princípio. A redenção e a renovação da criação serão
como um casamento entre o céu e a terra, quando Deus descerá para habitar entre
Seu povo. A presença de Jesus faz com que a criação e tudo o que há nela esperem
ansiosamente na ponta dos pés (Wright, 2008, p. 104-108; Ap 21—22).
99
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A P A R T IR D O T E X T O

As pessoas amarão algo

O amor pelo mundo repele Deus (v. 15). Não há espaço em nosso coração
para amar coisas que se excluem mutuamente. Devemos escolher. O dilema pessoal
e o desafio pastoral ocorrem nessa altura. Alguns tentam viver com um coração
dividido. Eles querem amar Deus, mas também manter um apreço impróprio por
coisas menores. O remédio, tanto pessoal como corporativamente, com certeza, é
amar Deus e deixar que o Seu amor por nós, que permeia a nossa vida, reflita com
precisão os nossos verdadeiros valores.

A vontade de Deus

Até que ponto podemos saber qual é a intenção de Deus para nós? O que João
escreve sobre quem faz a vontade de Deus (v. 17) considera a possibilidade de essa
pessoa compreender o que é a “vontade de Deus”. Como saber?
Em primeiro lugar, a Escritura pode orientar em direção às intenções de Deus.
Em segundo lugar, precisamos da perspectiva do povo de Deus agora, assim como
da sabedoria coletiva de cristãos por meio dos tempos (“tradição”, no melhor sen­
tido). Eles têm sido igualmente desejosos de encontrar e fazer a vontade de Deus,
assim como nós.
Entender os propósitos de Deus surge de um espírito de oração e aprendiza­
do. Orar para que Reino de Deus venha é orar para que a Sua vontade seja feita na
terra, dentro e por intermédio de nós, como já foi determinado no céu (Mt 6.9,10).
Um conselho espiritual sensato pode ajudar-nos a evitar que as armadilhas
projetem interesses egoístas em nossas decisões, chamando-os de vontade de Deus.
A intenção de Deus sempre leva a uma devoção mais profunda a Ele e ao próximo,
à forma como servimos e com quem fazemos a jornada.

E. Anticristos (2.18-23)

POR TRÁS DO TEXTO

A unção (chrism a, v. 20,27) baseia-se em um rico complexo de metáforas do


AT, mas com um significado central consistente. O óleo de unção era associado
100
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

às funções sacerdotais do templo (24 vezes em Êx e Lv). Arão e os sacerdotes que


vieram depois dele eram ungidos para essa função (Êx 29.7). Os vasos utilizados no
templo eram ungidos em uma dedicação cerimonial (Êx 40.9; Lv 8.10). Reis eram
ungidos quando entronizados (1 Sm 15.1; 1 Rs 1.34; 1 Cr 29.22). Unção sugere
a ideia de cura no Salmo do Pastor (Sl 23.5), uma aplicação que continuou na era
cristã (Tg 5.14).
A metáfora é aplicar óleo em uma pessoa ou em um objeto; o que indica que
ela ou ele foi escolhido especialmente para a função que realizaria. Quando Jesus
anunciou Sua missão em curso na sinagoga de Sua cidade natal, Nazaré, Ele estru­
turou Seu ministério com uma passagem do profeta Isaías: “O Espírito do Sobera­
no Senhor está sobre mim porque o Senhor ungiu-me para levar boas notícias aos
pobres” (Is 61.1; veja Lc 4.17-21). Essa ligação entre a unção e o Espírito de Deus
é uma metáfora de controle em todos os usos mencionados.
O Espírito de Deus equipa e estabelece pessoas em locais de serviço. A unção
de Deus dedica-se à utilidade adequada. O Espírito do Senhor traz a cura de todos
os tipos. A autoridade e a eficácia do ministério devem-se somente ao Espírito. A
palavra “Ungido” acaba tornando-se um título messiânico que antecipa um futuro
redentor (Dn 9.25,26). O uso da palavra “Cristo” como título para Jesus de Nazaré
usa essa terminologia de expectativa messiânica. Em Atos 4.26, Jesus é declarado o
“Ungido” (Johnson, 1962, p. 563-571; Szikszai, 1962, p. 138,139).

NO TEXTO

A essa altura da carta, João nada disse sobre falsos ensinamentos. Em um novo
início, ele se concentra nos falsos mestres. O que talvez tenha ficado sob o seu
material parenético (exortativo) anterior aparece agora nos versículos 18-23 como
um confronto direto.
H 18 O termo afetuoso de João continua — filhinhos. A terminologia de família
reflete seu relacionamento com eles como seu “pai” espiritual e, talvez, como um
homem de idade avançada. Ele declara a última hora, uma frase carregada de im­
plicações escatológicas. Se João esperava que Cristo aparecesse durante sua vida ou
não está além de nosso conhecimento. Sua linguagem pode ser a de uma declaração
da era escatológica de Cristo e da Igreja como inaugurada pela morte, pela ressur­
reição de Cristo e pelo derramamento do Espírito Santo (At 2.1-4). A realidade
plena do Reino ainda estava por vir (At 1.6,7).
Winston Churchill, em um discurso em 1942, pode ajudar-nos aqui. Em re­
ferência a uma vitória dos Aliados no norte da África durante a Segunda Guerra
101
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Mundial, Churchill advertiu: “Agora, esse não é o fim. Nem é o início do fim. Mas
é, talvez, o fim do começo”. Uma ajuda similar para entender a referência de João
à última hora pode ser encontrada nos escritos de Hans Conzelmann. O título
alemão de seu estudo da teologia do Evangelho de Lucas era D ie M itte d er Z eit (“o
meio do tempo”). Seu trabalho sugere que, embora muitos cristãos do primeiro sé­
culo esperassem um breve retorno de Cristo, essa demora fez com que repensassem
nessa expectativa (Conzelmann, 1961, p. 233,234).
Da mesma forma, a primeira vinda de Cristo pode ser entendida como uma
inauguração do “fim do começo”. Assim, a Igreja vive no “meio do tempo”, ainda es­
perando a vinda de eschaton, a última hora. A Igreja, então, é intimada a viver com
os aspectos éticos do caráter de Deus em longo prazo. A fidelidade e a confissão
fiel não são consideradas agora como parte apenas do fim dos tempos, mas do que
a Igreja faz em todas as épocas. A Igreja vive em perseverança (Lc 8.15), permitida
pelo Espírito (Conzelmann, 1961, p. 233,234).
Embora a última hora apareça apenas nessa parte dos escritos joaninos, “hora”
aparece inúmeras vezes nos Evangelhos. Ela marca um tempo de importância, até
mesmo um tempo determinado ou profetizado. Haverá uma hora em que o jul­
gamento virá na aparição do Filho do Homem (Mt 24.36,42,44,50; 25.13; Mc
13.32; Lc 12.39,40,46; Ap 3.3,10). A “hora” do Evangelho de João pode referir-se
à morte de Jesus como o caminho para a glória, à Sua ressurreição (5.25,28) e à
Sua ascensão, ou seja, Seu regresso ao Pai (7.30; 8.20; 12;23,27; 13.1; 17.1). Uma
expressão de frequência similar, “último dia”, fala de Deus ressuscitando os mortos
(6.39,40,44,54; 11.24; 12.48) em todos os exemplos, exceto um.
João escreve que o anticristo está vindo, com a ênfase no detalhe de que mui­
tos anticristos têm surgido. João não é incomodado por uma única figura cha­
mada de “o anticristo”, como alguma personalidade antiDeus. Em vez disso, sua
preocupação pastoral é com uma pluralidade de anticristos que deixaram as igrejas
joaninas (Painter, 2002, p. 203), e cuja influência já estava sendo sentida (Kruse,
2000, p. 101). Qualquer um que tenha tomado uma posição a respeito de Cristo
contrária ao ensino cristão tradicional (a visão de João) se enquadra nessa categoria
“contra Cristo”.
Dídimo (quarto século) escreveu que “é [justamente] por terem sido cristãos
que eles agora são chamados de anticristos” (Bray, 2000, p. 186,187). A preposição
anti também pode significar aquele que toma o lugar do outro, como um usurpa­
dor, alguém que alega ser Cristo. Os Evangelhos mencionam “falsos cristos” (Mt
24.24; Mc 13.22). No entanto, aqui, o sentido de anti é o de alguém que se opõe a
outra pessoa.
102
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

A n tic ris to

E m b o r a s e ja a m p l a m e n t e u t iliz a d o e m c írc u lo s c ris tã o s a tu a is , o


t e r m o " a n tic r is to " é ra ro n a B íb lia . E le s ó a p a r e c e n a s c a r ta s jo a n in a s
( 2 .1 8 ,2 2 ; 4 .3 ; 2 Jo 7 ) . J o ã o n ã o u s a o t e r m o p a ra c o n c e n tr a r -s e e m u m a
fig u r a s in g u la r q u e v irá n o fin a l d o s t e m p o s , m a s p a ra d e s c r e v e r , c o m o
e le m e s m o e screv e u , u m e s p ír ito o u e n s in a m e n to s o b re C ris to s e n d o t r a ­
b a lh a d o p e lo s o p o n e n te s d o c ris tia n is m o jo a n in o . P a ra J o ã o , o t e r m o " a n t i­
c ris to " s ig n ific a v a q u a lq u e r u m q u e tiv e s s e t o m a d o u m a p o s iç ã o d e n e g a r
q u e Je s u s e ra o C ris to ( 2 .2 2 ) e , e s p e c if ic a m e n te , q u e Je s u s c o m o C ris to
v e io " e m c a r n e " ( 4 .2 ; 2 Jo 7 ) . E s s a n e g a ç ã o d a h u m a n id a d e d e C r is to ,
e f e t i v a m e n t e , a n u la v a o s e n tid o e x p ia tó r io d e S u a m o r te ( 2 .2 ) .
A t r a d iç ã o d e fa ls o s C ris to s a p a r e c e n o s e n s in a m e n to s d e Je s u s (M c
1 3 .5 ,6 ,2 1 ,2 2 ) . P o r é m , a q u e le q u e a le g a f a ls a m e n te s e r C ris to é u m p o u c o
d ife r e n te d e a lg u é m q u e s e c o n fig u r a c o m o a d v e r s á r io d e C r is to . É c e rto
q u e o c o n c e ito d e fa ls o s C r is to s , p o r v e z e s , c o n fu n d e -s e c o m o d e a n tic ris -
to s c o m o u m t e m a e s c a to ló g ic o .
A e x p r e s s ã o " h o m e m d o p e c a d o " (2 Ts 2 .3 ) é , m u it a s v e z e s , v is ta
c o m o o u tr a m a n e ir a d e re fe rir-s e a u m " a n tic r is t o " , m a s a te r m in o lo g ia
d e P a u lo e Jo ã o n ã o t e m q u a lq u e r lig a ç ã o c la ra . O d e s e n v o lv i m e n t o d e
fig u r a s q u e s ã o a p e rs o n ific a ç ã o d o m a l e n c o n tr a e x p r e s s ã o v iv a e m A p o ­
c a lip s e (v e ja A p 1 3 . 3 ,1 1 ) . E m b o r a o c o r ra u m a fu s ã o d e m e tá fo r a s d e s s e s
t e x t o s fo r a d e 1 Jo ã o e 2 J o ã o , e m e s p e c ia l, e m u m a in te r p r e ta ç ã o p o s ­
te r io r , h á p o u c o n a s c a rta s jo a n in a s p a ra s e g u ir-s e u m a " d o u t r in a " d e
a n tic ris to (s ) ( a d a p t a d o d e R is t, 1 9 6 2 , p . 1 4 0 - 1 4 3 ; W a t s o n , 1 9 9 2 , p . 7 6 1 ;
K o e s te r , 2 0 0 6 , 1 7 5 - 1 7 8 ) .

■ 19 João está convencido de que esses separatistas não faziam parte, verdadei­
ramente, dos cristãos joaninos. A linguagem de separação (nosso/nossos/conos-
co, cinco vezes nesse versículo, e a terceira pessoa do plural, cinco vezes) destaca
a nítida diferenciação que João sente. Ainda assim, é claro que eles tinham entra­
do na vida da comunidade joanina em algum momento: Saíram do nosso meio.
Aqueles que saíram provavelmente são os “muitos falsos profetas [que] têm saído
pelo mundo” (4.1) e os “muitos enganadores [que] têm saído pelo mundo” (2 Jo 7;
Strecker, 1996, p. 63).
A separação aparentemente foi iniciada pelos adversários. A carta não dá evi­
dência de qualquer tipo de excomunhão. A afirmação de João de que na realidade
103
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

não eram dos nossos é mais bem compreendida como seu raciocínio de como
os separatistas conseguiram deixar as comunidades cristãs joaninas. Ele não podia
querer dizer que eles foram apenas membros aparentes (Marshall, 1978, p. 152).
Ele também não insinua que aqueles que saíram nunca foram verdadeiramente
cristãos ou que nunca foram “salvos”. O desafio para João e seus leitores era com­
preender o impensável: que ninguém rejeitaria a verdade.
A palavra permanecido (memenêkeisan) é importante para João (Brooke,
1912, p. 54). O verdadeiro crente deve permanecer em Deus (2.24,27; cf. Jo 15.4-
10). Ao dizer que eles não permaneceram, João identifica os separatistas como par­
te dos “muitos anticristos” (v. 18). A partida deles demonstrou que, no julgamento
de João, eles nunca foram, verdadeiramente, parte da comunidade.
A tradução de hina na NVI como resultado, em vez de propósito, minimiza o
impacto da linguagem original. Parece que a saída dos separatistas não só mostrou
quem eles realmente eram, mas também f o i pa ra q u e (hina) eles fo ssem m a n ifes­
tados. O verbo phanerõthõsin está na voz passiva. Isso sugere que Deus os revelou
como os traidores que eram. A frase não eram dos nossos é, literalmente, tod os
eles (pantes) n ã o fa z ia m p a r te d e nós.
A questão que levou a essa ruptura de comunhão foi a cristologia. A disputa
sobre ter vindo “em carne” ou não (4.2; 2 Jo 7) indica isso. A controvérsia cristoló-
gica parece ser uma disputa entre um Jesus totalmente encarnado contra um tipo
de cristologia docética (veja Temas teológicos, na Introdução).
1 2 0 - 2 1 Ao dizer “quanto a vocês” (Brown, 1982, p. 341), João afirma fortemen­
te que seus leitores têm uma unção (chrism a) que procede do Santo, isto é, de
Deus/Cristo (veja v. 27). Alguns “anticristos” (v. 18) parecem ter alegado possuir
um conhecimento especial, talvez ligado à ideia de unção.
João usa conhecimento com frequência nessa seção (v. 18,20, duas vezes no
v. 21). Ele afirma que o verdadeiro conhecimento reside no lado dos cristãos joani-
nos; eles não precisam “que alguém os ensine” (v. 27). Ele não reconhece a unção
(chrisma) dos separatistas. Ele insiste no fato de que a autêntica chrisma repousa
apenas sobre aqueles que permaneceram na comunidade joanina.
O texto grego emprega um maravilhoso jogo de palavras. Aceitar Jesus como
Cristo (Christos, o u n gid o), que veio em carne, era a experiência da unção (chris­
ma). Separar-se da comunidade joanina significava a ausência ou perda da chrisma
e também o rótulo de “anticristo” (v. 22).
Santo pode referir-se tanto ao Pai como ao Filho. “O Santo de Israel” é um
título frequente de Deus no AT (SI 71.22; 78.41; Is 1.4; 5.19; 17.7; 30.12,15;
37.23; 41.20). Apocalipse 3.7 fala “daquele que é santo”, referindo-se claramente à
104
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

visão do Cristo glorificado em Apocalipse 1 (como fazem todas as sete cartas de Ap


2—3). Nos Evangelhos, “o Santo de Deus” refere-se a Cristo (Mc 1.24; Jo 6.69).
O Santo permitiu que tivessem conhecimento — vocês têm conhecimento.
O texto grego não tem as palavras a verdade no versículo 20. Algumas traduções
assumem uma referência ao versículo 21, que afirma que os leitores de João conhe­
cem a verdade [tên alêtheian), usando as mesmas palavras. Em alguns manuscri­
tos, constam: Vocês sa b em d e tod a s a s coisas (veja Jo 16.13). Embora possamos
equivocar-nos quanto ao que a expressão tod a s as coisas significa (veja Brown,
1982, p. 349), ambas as leituras afirmam enfaticamente o verdadeiro conhecimen­
to dos cristãos joaninos contra o suposto conhecimento daqueles que haviam dei­
xado a comunidade. A verdade e a mentira estão em contraste: Nenhuma mentira
procede da verdade (veja 3.19; Jo 18.37). João afirma que nenhuma mentira tem
sua origem na verdade ou pertence a ela (Brown, 1982, p. 351).
H 2 2 A língua é afiada. A quele q u e n ega a Jesus como Messias é o mentiroso e
o anticristo (veja 4.3). O uso do artigo definido — ho, o — antes de mentiroso
e anticristo parece apontar para uma pessoa, não para várias pessoas. Contudo,
a ênfase está no caráter genérico, não na identidade pessoal dos separatistas. Por
exemplo, o mentiroso é um falso mestre. João está dizendo que qualquer um que
negue que Jesus é o Cristo é um mentiroso e um anticristo (veja o v. 18, “muitos
anticristos”).
O foco de João não está em uma personalidade exagerada, mas em um erro
doutrinário que é hostil à cristologia ortodoxa. Ele está preocupado com os muitos
ativistas anticristos de seu tempo. Ele demonstra pouco interesse em discutir uma
figura de anticristo. John Wesley referiu-se ao “espírito do anticristo”, que aponta
para “todos os falsos mestres e inimigos da verdade” (Wesley, 1983, s.p., n.).
H 2 3 Todo o que nega o Filho (vejajo 5.23; 15.23) descreve aqueles cuja cristo­
logia era contrária à ortodoxia joanina. Aceitando uma cristologia docética (veja
Temas teológicos na Introdução), eles tomaram caminhos alternativos que acaba­
ram levando-os para longe de visões ortodoxas. Contudo, esses oponentes, pessoas
não inteiramente desprovidas de compreensão cristã, provavelmente, estavam ten­
tando compreender a vida e os ensinamentos de Jesus.
Uma íntima interação entre Filho e Pai aparece diversas vezes nas cartas
joaninas. No versículo 22, aquele “que nega que Jesus é o Cristo (...) nega o Pai
e o Filho.” Aqui, quem nega o Filho também não tem o Pai. De forma inversa,
a afirmação positiva também é verdadeira — quem confessa publicamente o
Filho tem também o Pai (veja 1 Jo 4.15; 5.1, 2 Jo 9). Para João, uma cristologia
105
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

adequada, um Filho que revela plenamente a pessoa e a obra do Pai, é o caminho


para um conhecimento adequado de Deus (Jo 14.6).

A P A R T IR D O T E X T O

Quando será a última hora?

A frase esta é a última hora (v. 18) desafia a presunção de que a vida de alguém
será longa. Não se deve presumir o luxo de se ter muitos anos. Agora, é o momento
para uma profunda aceitação da mensagem do evangelho e uma caminhada ao lado
de Cristo. Todos os seguidores sérios de Jesus procuram viver com a eternidade em
vista e, assim, vivem dia a dia com um estilo de vida cristão.

Quem é o "anticristo"?

Muita energia foi gasta na questão do anticristo (v. 18,22). Uma especulação
considerável prosseguiu por meio de todas as eras. Protótipos da ideia cristã de
anticristo aparecem em Gogue e Magogue, de Ezequiel. As imagens bestiais de
Daniel conseguem descrever os opressores dos judeus. Em textos não canônicos,
como os Testamentos dos Doze Patriarcas, uma figura demoníaca pretende afastar
Israel da adoração de Deus. Para João, no entanto, anticristos eram pessoas do pri­
meiro século com uma cristologia defeituosa.
Policarpo (segundo século) segue a visão de 1 João do anticristo como o es­
pírito de heresia, especialmente negando a real humanização divina (Pol. Fp. 7.1).
Vários escritos cristãos focavam uma criatura do mal. Muitas vezes, eles estendiam
as imagens dos dois animais descritos em Apocalipse 13; 16.12-16; 17; 19.19-21
(para a literatura apocalíptica pós-NT, veja Charles-worth, 1983).
Na Idade Média, alguns viam o Papa como o anticristo, uma ligação que mui­
tos reformadores (Wyclif, Huss, Lutero, Calvino, Zwinglio, Knox, Cranmer) ge­
ralmente apoiavam. Uma amostra desse pensamento aparece em João Calvino, que
aceitava que “todas os sinais que o Espírito de Deus apontava no anticristo apare­
ciam claramente no Papa” (1959, p. 256).
Em resposta, Roma acusou alguns reformadores de serem anticristos. Em
vários pontos da história da Igreja, o título foi atribuído de forma imprudente,
utilizando leituras inventivas do 666 de Apocalipse para identificar o anticristo
como uma vasta gama de indivíduos (Rist, 1962, p. 140-143). Para um resumo de
estudos sobre a teologia do termo “anticristo”, veja Akin (2001, p. 267-270).
106
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

F. Uma unção e promessa (2.24-29)

NO TEXTO

■ 2 4 João chama seus ouvintes para voltarem ao princípio (archês, como em 1.1).
Com uma nova ênfase (cuidem, a nuance do pronome hym eis), ele exorta-os a
continuar aceitando a verdade do evangelho que veio para eles (2.7). Um conceito
joanino favorito, permaneça/permanecer/permanecerão (m enõ), aparece uma
vez cada somente nesse versículo. Variações da palavra ocorrem especialmente na
literatura joanina (40 vezes no Evangelho, 24 vezes em 1 Jo e três vezes em 2 Jo).
A palavra {menõ) fala de uma relação duradoura que seus leitores deveriam ter
com a verdade que ouviram desde o princípio. Ele assegurou-lhes de uma relação
firme no Filho e no Pai (contraste com o v. 22). A menção de ambos em relação
à permanência do cristão é única nos escritos joaninos. Essa permanência era uma
realidade recíproca — quando as pessoas “permanecem” em Cristo, então Cristo
permanece nelas (Jo 15.4-7). O termo carrega o sentido de lealdade a Cristo, assim
como viver em um novo reino como resultado da presença de Deus em Jesus Cristo
(Hübner, 1981, p. 407,408).
■ 2 5 A frase e esta é, provavelmente, refere-se ao que precede (v. 24) e à promessa
que se segue. Deus/Cristo (como ha utê é enfático, provavelmente Cristo) fez uma
promessa (...): a vida eterna. A expressão vida eterna ocorre 16 vezes no Evange­
lho de João, de modo mais memorável em João 3.16.
A frase, tanto lá como aqui (1.2; 2.25; 3.15; 5.11,13,20), sugere uma qualida­
de atual de vida, bem como uma vida que dura por meio das eras. Essa vida eterna é
algo quej ã se tem : “Deus nos deu a vida eterna” (1 Jo 5.11); e “que vocês saibam que
têm a vida eterna” (5.13). Essa é a vida da promessa. O versículo repete palavras
relacionadas tanto ao verbo como ao seu objeto: A p ro m essa {hê epangelia) q u e Ele
p ro m eteu (epéngeilato) a nós.
■ 2 6 João escreve com uma preocupação pastoral ativa sobre o impacto daqueles
que podem enganar os cristãos joaninos. Os separatistas os querem enganar (lit.:
ilu d i-lo s). O verbo refere-se a alguém que vaga (Hb 11.38) e afasta-se da verdade
(Tg 5.19) intencionalmente. Formas dessa palavra ocorrem em 1 João 1.8, “enga-
namo-nos a nós mesmos”, e em 2 João 7, “enganadores”. João escreve para alertá-los,
lembrando declarações anteriores (v. 12-14; 5.13).
■ 2 7 Quanto a vocês introduz uma nova ênfase no tema unção (veja 2.20). A
passagem reflete as funções do Espírito Santo, o Paráclito do Evangelho de João. A
107
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

ideia de unção lembra as palavras de Jesus sobre o Espírito como Aquele que ensi­
naria, chamaria à memória e tornaria claras as palavras de Jesus (Jo 14.26; 16.13).
Alguns veem a unção (v. 20,27) como uma referência ao ritual do batismo
ou algum ritual de selamento com óleo (Smith, 1991, p. 72). No primeiro século,
não há embasamento para isso. Porém, a unção estava ligada ao batismo por vários
autores cristãos antigos — Severo da Antioquia, quinto século; Ecumênio, sexto
século; André, sétimo século; Beda, sétimo século (Bray, 2000, p. 188). O trabalho
inicial e contínuo do Espírito Santo no crente está em vista, incluindo principal­
mente o seu papel de ensino (Smith, 1991, p. 72,74).
Há uma ironia na insistência de João para que os leitores não precisem de al­
guém para ensiná-los e passem a fazer exatamente isso. Provavelmente, ele queria
alertar contra dar ouvidos a quaisquer outros professores, exceto aqueles cuja men­
sagem fora bem recebida nas igrejas joaninas. João declara, com urgência, a fonte
divina de ensinamento que eles devem aceitar com sua ênfase na unção (duas vezes
em grego aqui, também no v. 20).
Uma afiada linguagem dualista aparece — verdadeira (alêthês) contra falsa
(pseudos). A ordem das palavras destaca a ênfase que João deseja dar. Ele coloca
alêthês na enfática primeira posição — v erd a d eiro e q u e n ã o éfa lso . Instruído pela
verdadeira unção, João ordena: Permaneçam nele (isto é, em Jesus, veja o v. 28).
Na passagem anterior, versículos 18-23, João estabeleceu o erro teológico que
colocava em perigo a comunidade joanina. A heresia cristológica era dupla: (1) a
negação da completa humanidade do Filho divino e, portanto, (2) a negação da
plena continuidade entre o Pai e o Filho em ação reveladora e redentora. Essa era a
mentira dos falsos mestres.
Agora, nos versículos 24-27, João enfatiza as duas formas pelas quais seus lei­
tores podem proteger-se de tal erro: em primeiro lugar, nos versículos 24 e 25, é
a tradição apostólica. Em segundo lugar, nos versículos 26 e 27, é a unção divina.
Uma mente aplicada às Escrituras e um coração aberto ao Espírito Santo são a rede
de segurança espiritual do cristão. Esse é o nosso privilégio agraciado, a verdade do
evangelho de Cristo. E assim que nós “permanecemos nele”.
H 2 8 - 2 9 João faz uma transição, com esses versículos, da importância de uma
cristologia correta para a necessidade de uma ética apropriada. O fato de os cris­
tãos terem de viver como “filhos de Deus” (3.1) ocupa o apóstolo até 3.24. Em
2.28—3.3, João traz o tema do futuro retorno de Cristo para prosseguir com seus
imperativos éticos.
I 2 8 Depois de fortes advertências e de um apelo para acompanhamento, João
novamente emprega uma linguagem calorosa e pessoal — filhinhos. Quando os
crentes permanecerem nele, eles terão confiança (parrêsia, “cora gem , con vicçã o,
108
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

ousadia, destem or,” BDAG, 2000, p. 781) no momento em que Cristo se ma­
nifestar. João usa parrêsia para falar sobre estar confiante diante de Deus em um
sentido escatológico (aqui e em 4.17). Entretanto, o termo também fala de ousadia
para aproximar-se de Deus em oração agora (3.21; 5.14). Assim, o cristão j á pode
ter confiança no dia do julgamento na presença de Deus.
O verbo phaneroõ indica tornar algo claro (veja v. 19). João declara Jesus
como aquele que revela o amor salvífico de Deus por meio do ato de humanizar-se
(3.5,8). Em 1.2, “a vida se manifestou”, e a revelação de Deus continua na tradição
viva da Igreja de Jesus (Müller, 1993, p. 413,414). A voz passiva do verbo sugere
que a aparição de Cristo tenha sido uma apresentação do Pai.
Permanecer em Cristo impede que alguém seja en v ergo n h a d o . A voz passiva
indica que Deus pode envergonhar rebeldes. A palavra parousia (vinda, somente
aqui nos escritos joaninos) geralmente significava a chegada ou presença de alguém
(veja 1 Co 16.17; 2 Co 10.10; Fp 1.26; 2.12). No entanto, no NT,parousia desen­
volveu uma nuance especial como uma referência à futura aparição ou presença
de Jesus para governar, ressuscitar os mortos e estabelecer plenamente o Reino de
Deus (Mt 24.3,27,37,39; 1 Co 15.23; 1 Ts 2.19; 3.13; 4.15; 5.23; 2 Ts 2.1,8; 1 Tm
6.14; 2 Tm 1.10; 4.1,8; Tt 2.13; Tg 5.7; 2 Pe 1.16; 3.4).
A palavra parousia era utilizada para a visita de um rei ou imperador (Brooke,
1912, p. 66; Diessmann, 1995 [1927], p. 268-270). O uso no NT é um exemplo
de um cristão empregando palavras e títulos da arena pública como protestos sub­
versivos contra a prática blasfema do culto ao imperador (Brooke, 1912, p. 67). O
verdadeiro Senhor de todos, não César, mas Jesus, aparece como o único diante de
quem “se dobre todo joelho” (Fp 2.10).
A parousia envolvia sair para receber uma figura real ou poderosa que chegava
a uma cidade. Ela não tinha a ideia de ir a algum lugar com essa figura real (Wright,
2008, p. 128-136). Em alguns escritos da Igreja primitiva, o retorno do Senhor é
chamado de h ê deutera parousia, a segu n d a v in d a (Justino, Apologia, 1.52). Um
jogo de palavras sonoro pode estar presente no versículo. O texto promete que os
filhinhos que permanecerem nele (...) podem ter confiança {parrêsia) (...) na sua
vinda {parousia).
■ 29 A mudança de ênfase de João para a ética agora se torna direta. Deus (ou
Cristo, com 2.6; 3.3; 4.17; Brown, 1982, p. 382) é justo, e todo aquele que pratica
a justiça deixa evidente que é nascido dele. O antecedente de dele não é claro.
Se relacionado ao versículo 28, então é Cristo, mas, geralmente, no uso joanino,
refere-se a Deus (veja 3.9; 4.7; 5.1,4,18; Jo 1.13; von Wahlde, 2002, p. 319-322;
Brown, 1982, p. 384). A ênfase em praticar a justiça soa como em Tiago, que insis­
te no fato de que um relacionamento justo com Cristo deve manifestar-se em uma
109
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

vida de retidão (Tg 2.18). João diz que praticamos a justiça (lit.: o q u e éjusto-, veja
Mq 6.8) como resultado do novo nascimento.
A justiça de Deus, revelada na vida de Jesus (1 Jo 2.6), é vivida como uma ati­
vidade presente e contínua. Viver em justiça é uma evidência de que a pessoa pas­
sou por um renascimento espiritual. O verbo passivo perfeito {gegennêtai) sugere:
N ascido d e D eus e co n tin u a sen d o filh o d e Deus.
Justiça é mais sobre como alguém é visto por Deus. O justo é aquele que per­
mite que a vida de Deus em que é nascido seja vivida.
Essa imagem de nascimento espiritual — nascido de Deus — aparece como
uma nova ideia na epístola (Marshall, 1978, p. 167). No entanto, o conceito de
nascimento espiritual já está implícito no uso frequente de filhinhos em 1 João
(cinco vezes no cap. 2). O uso intencional de metáforas de nascimento espiritual
é claro a partir daqui (3.9; 4.7; 5.1,4,18). A linguagem ecoa no Evangelho de João
(Jo 1.13; 3.6,8). João mantém uma posição distinta para Jesus, o único que é “Fi­
lho” (huios) de Deus, ao passo que os cristãos em 1 João são sempre “filhos” (teknia
oupaidia). Porém, Jesus (Mt 5.9) e Paulo (Rm 8.14; G13.26; 4.4-7) referem-se aos
crentes coletivamente como “filhos” (huioi) de Deus (Marshall, 1978, p 168).

A P A R T IR D O T E X T O

Constância no relacionamento com Deus

A palavra m enõ (permanece, v. 27; permaneçam, v. 28) sugere que a fé cristã


não se limita a momentos especiais da experiência religiosa. Como a fé cristã é, na
maior parte, vivida na rotina dos dias normais, o nosso desenvolvimento espiritual
requer uma rotina para estabilizar-nos.
Saltos esporádicos para momentos emocionais elevados, sem uma profundi­
dade comparável desenvolvida pelo estudo da Bíblia, da oração e da adoração, não
oferecem o suficiente para firmar a coluna espiritual. João recomenda o valor da
confiança contínua — permanecerão no Filho e no Pai (v. 24) e permaneçam
nele (v. 28). O texto também confirma o benefício encontrado no estado em um
ensino sólido — cuidem para que aquilo que ouviram desde o princípio perma­
neça em vocês (v. 24; Jo 15.7).

A voz de Deus nas Escrituras e as pessoas

Vale a pena lembrar. Sermos lembrados muitas vezes nos mantém fazendo o
que é certo. Boa parte da vida consiste em reaprender o que já sabemos. Pedro
110
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

escreveu: “Por isso, sempre terei o cuidado de lembrar-lhes estas coisas, se bem
que vocês já as sabem” (2 Pe 1.12). Manter um espírito ensinável é uma viagem
para toda vida. Ler e meditar sobre as Escrituras alimenta nosso desenvolvimento
cristão. Aprendemos também ficando abertos para o que o Espírito de Deus pode
estar dizendo para nós por intermédio dos outros. A vontade de Deus, geralmente,
é mais bem compreendida quando ouvimos a voz daqueles que compõem o povo
da aliança.
Embora haja grande força em pertencer a uma comunidade de fé comprome­
tida, não ousamos tentar viver a vida cristã sozinhos, com mera força humana. O
texto fala de uma importante unção (v. 27). Esse dom gratuito do Espírito estabi­
liza indivíduos e igrejas espiritualmente, mantendo-os no caminho certo. Desvio
espiritual, sem controle, pode levar-nos para muito mais longe de Deus do que
podemos imaginar. Contudo, estarmos atentos aos sussurros do Espírito mantém
nossa experiência cristã atual.

A vinda do Senhor e o nosso serviço nesse meio-tempo

Por muitas vezes, pessoas piedosas esperam tanto a segunda vinda que inves­
tem todas as suas energias em estarem preparadas para uma saída precoce do mun­
do. Porém, estamos aqui para viver os valores do Reino por toda a nossa vida.
O objetivo da vida cristã não é afastar-se deste mundo. Em vez disso, deve-se
investir no Reino neste mundo, para que possamos recebê-lo com confiança e não
sejamos envergonhados (v. 28). Vamos recebê-lo como o Rei que já apareceu en­
tre nós, trazendo uma maravilhosa resposta final para a oração que muitos fazemos
— “Venha o teu Reino (...) na terra” (Mt 6.10).

111
III. 0 AMOR CRISTÃO AGORA E QUANDO CRISTO VIER:
1 JOÃO 3.1-24

A. Quando Ele vier: um chamado à


purificação (3.1-6)

NO TEXTO

■ 1-6 João continua com suas preocupações éticas afetadas pela aparição de Cris­
to. Os versículos 1-3 têm Sua vinda futura em mente; mas os versículos 4-6 voltam
à Sua primeira vinda com a reintrodução de João da terminologia de pecado a par­
tir de 1.7—2.2,12.
■ 1 João comanda o leitor a v er ou lem b ra r (idete, imperativo) como é grande
o amor que o Pai nos concedeu. O verbo eidon é usado como uma declaração
reveladora de visão profética no Evangelho de João — “Vejam! [Ide] E o Cordei­
ro de Deus” (Thomas, 2004, p. 147; Jo 1.29,36,47; 19.14,26,27). Outra forma,
idou, aparece em Apocalipse, relacionada à vinda de Cristo (Ap 16.15; 22.7,12).
Algumas versões não traduzem idete, reduzindo a forte exortação. Outras versões
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

traduzem idete como “vede” (ARC). O leitor provavelmente está sendo intimado
tanto a lem brar como a com preender (veja eidõm en em 1 Co 2.12).
Esse versículo lembra a metáfora visual de 1.1-4, em que alguém vê o amor
de Deus olhando para Jesus. Esse amor que o Pai nos concedeu tem sido mara­
vilhosamente dado — como é grande (“maravilhoso” [BDAG, 2000, p. 85] ou
enorme). Marcos 13.1 usa o mesmo adjetivo para descrever as imensas pedras e
magníficas construções do complexo do templo de Jerusalém. Em Mateus 8.27,
a palavra denota a surpresa dos discípulos com o grande poder de Jesus (Brooke,
1912, p. 80). O tempo perfeito de concedido (dedõken) indica que esse amor,
dado no passado, continua a ter efeito.
Tal amor divino concedido é a base para a inclusão na família de Deus. Por
esse meio, entra-se em um relacionamento com Deus e recebe-se o poder de perma­
necer na comunidade espiritual. João emprega metáforas de família para descrever
relações espirituais e obrigações éticas (van der Watt, 1999, p. 491). Essas imagens
refletem o poder da identidade familiar no antigo Oriente Próximo. As pessoas
viviam de modo a não trazer desonra para sua família. Lealdade para com a família
excluía todas as outras lealdades (van der Watt, 1999, p. 497,510).
O Pai d eu (dedõken) esse amor; ele não foi conquistado. O amor concedido
de Deus vem como um presente para nós. Não é baseado em mérito, pois Deus
toma a iniciativa. Temos a oportunidade de tornar-nos verdadeiros descendentes
espirituais de Deus apenas porque o amor divino foi oferecido a nós primeiro. Essa
iniciativa de Deus é frequentemente chamada de graça preveniente. A palavra “pre-
veniente” é formada por duas palavras em latim que significam “vir antes”. A graça
preveniente torna possível a nossa ida a Deus, porque Ele veio primeiro até nós
(vejajo 6.44).
João faz uma declaração ousada. O que se declara sobre seus leitores — filhos
de Deus — eles realmente são (e n ós som osl). A voz passiva de chamados sugere
que Deus é quem faz a declaração. Isso não é meramente um relacionamento posi­
cionai, apenas de nome, com Deus. O caráter de Deus torna-se parte de quem nós
somos. Assim como o Criador planejou que o casal original refletisse a imagem di­
vina, aqui os leitores são o que Deus declarou que eles são (Bruce, 1970, p. 85,86).
Participar na família de Deus faz do crente um mistério para o mundo. O não
cristão não nos conhece, porque não o conheceu. Esse não reconhecimento de
Jesus aparece também em João 1.10. Na passagem, a palavras gregas, embora em
ordem diferente, são idênticas (Thomas, 2004, p. 149). A ignorância da mente e do
coração em relação à verdadeira identidade de Jesus impede que o mundo reconhe­
ça os seguidores de Jesus como filhos de Deus. Eles são incapazes de entender por
que os cristãos agem e vivem assim. Como filhos de Deus de nascimento, devemos
114
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

viver como pessoas que não podem ser compreendidas separadamente de Jesus.
Para conhecer-nos de verdade, eles devem aprender a conhecê-lo. E esperamos que,
ao aprenderem a conhecer-nos, aprendam a conhecê-lo.
■ 2 João continua afirmando a posição de família — amados (lit.: q u erid os a m i­
g o s ; veja também 2.7; 3.21; 4.1,7,11). Sermos filhos de Deus não é algo adiado
para o fim dos tempos —, quando ele se manifestar. J á é verdade — somos (es-
m en) verdadeiramente parte da família de Deus agora (nyn). Ainda assim, João diz
que a presente relação familiar é pouco em comparação com o que está por vir. A
experiência de ser filho de Deus é agora, mas a realidade plena dessa transformação
ainda não. A escatologia futurista (“ainda não”) e a escatologia perceptível (“já é”)
ficam em tensão nos escritos joaninos. Devido a essa natureza mista, a escatologia
joanina pode ser descrita como uma “escatologia progressivamente perceptível”
(van der Watt, 2007, p. 74-76).
Essa esperança futura ainda não se manifestou. A ação verbal sugere que a re­
velação virá a critério de Deus. O texto é reservado em especular sobre os detalhes
escatológicos, uma modéstia que os cristãos contemporâneos deveríam considerar
(Smith, 1991, p. 80). Esse futuro relacionamento com Deus virá apenas quando
for revelado por Ele. A plenitude dessa revelação espera um dia futuro. A termi­
nologia ainda não (oupõ) combina com cenários apocalípticos (Brown 1982, p.
392,393). A mesma palavra é usada por Jesus nos discursos escatológicos em que
fala de “guerras e rumores de guerras”. No entanto, Ele diz que “ainda não é o fim”
(Mc 13.7; Mt 24.6).
A declaração quando ele se manifestar (ean phanerõthêi) cumpre a expecta­
tiva do que ainda não se manifestou (oupõ ephanerõthe). E essa é a verdade certa
de tornar-se como Cristo. Sobre o estado futuro, sabemos que (...) seremos se­
melhantes a ele. A visão atual será melhorada majestosamente, permitindo que
os seguidores de Cristo o vejam como ele é, no esplendor da ressurreição. O co­
nhecimento pós-ressurreição aperfeiçoará a visão/o saber de Jesus pelos discípulos
(Smith, 1991, p. 78). A visão final de Cristo significará um conhecimento pleno
dele e sem obstáculos. O véu diminuindo o brilho de Sua santidade será removido.
A visão é de exatamente como ele é. Ver Cristo como Ele é vê-lo com novos olhos
de entendimento, como pela primeira vez.
O padrão de santidade é bastante claro. Santidade é, supremamente, sermos
semelhantes a ele. O ato de sermos descendentes de Deus nos chama a refletir Seu
caráter. Escolhas, valores, atitudes, estilo de vida — tudo isso está cada vez mais se
adaptando à imagem de Cristo. Ver Jesus terá o efeito de olhar para o espelho, mas
com uma diferença importante. Em vez de ver-nos como somos agora, teremos
a possibilidade de ver-nos na posse da glória compartilhada de Cristo (Marshall,
115
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

1978, p. 172,173). Com a expectativa de Paulo: “E todos nós, que com a face des­
coberta contemplamos a glória do Senhor, segundo a sua imagem estamos sendo
transformados com glória cada vez maior, a qual vem do Senhor, que é o Espírito”
(2 Co 3.18).
I 3 João faz a aplicação ética do versículo 2 com uma simples afirmação: Todo
aquele que (...) purifica-se. E justamente aquele que se p u rifica que possui a es­
perança de ter semelhança com Cristo. Uma vida atual mudada comprova a au­
tenticidade da esperança futura. Essa resplandecente esperança (elpida, só aqui na
literatura joanina) chama os leitores para uma santidade escatológica no presente.
A salvação chega ao ápice na vinda de Cristo e na esperança da nossa ressurreição.
Esse anseio escatológico aponta para uma participação na glória de Cristo; ele já foi
iniciado por nosso estado atual como filhos de Deus (Mayer, 1990, p. 438).
Todos ficarão na presença de Deus no fim dos tempos. Tal esperança obriga-
-nos a entregar-nos totalmente a Ele agora. Uma esperança focada em Cristo, ine­
vitavelmente, tem um efeito purificador sobre aqueles que confiam nele (Bruce,
1970, p. 88). A escatologia impulsiona a ética, e a ética torna a nossa escatologia
credível. Temos um compromisso futuro com Deus. Porém, já somos cidadãos do
Reino de Deus e estamos vivendo diariamente de acordo com valores do Reino.
Os crentes lutam para viver uma vida de pureza, porque Cristo é puro
(hagnizei... hagnos). O pronome ele traduz o pronome demonstrativo ekeinos (lit.:
a q u ele), um termo frequentemente usado em 1 João para referir-se a Jesus (Smith,
1991, p. 78; 2.6; 3.3,5,7,16; 4.17). O pronome faz uma designação específica —
aquele. O Jesus terreno (2.6) define a pureza em vista.
A palavra puro (hagnos) significa santo, pertencente a Deus (BDAG, 2000,
p. 13). A pureza de Cristo chama Seu discípulo a abraçar essa mesma pureza. No
entanto, curiosamente, hagnos nunca é usado nos Evangelhos para identificar Jesus
(Brown, 1982, p. 397). A forma verbal (hagnizõ) só aparece aqui e em João 11.55
em todo o corpus joanino. Mais frequente na literatura joanina são katharos, “lim­
pos” (Jo 13.10,11; 15.3; Ap 15.6; 19.14; 21.18),katharizõ, “purificar” (1 Jo 1.7,9),
e katharismos, “purificações” (Jo 2.6; 3.25).
A medida da verdadeira santidade é a semelhança com Cristo. Santidade não é
uma prioridade à adesão a regras ou normas. Pelo contrário, é a vida divina que está
sendo vivida por intermédio de nós. A frase assim como (kathõs, utilizada para
comparação) ele é puro envolve a posse do mesmo tipo de caráter que Cristo exi­
bia. Veremos Cristo “como ele é” (v. 2), e essa visão desimpedida leva a uma pureza
de vida que é com o a dele.
Todavia, o que João quer dizer com purifica-se a si mesmo? A ideia básica é
a preparação necessária para entrar na presença divina (Brown, 1982, p. 397,398).
116
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

O plano cultuai da terminologia é o da pureza ritual (Strecker, 1996, p. 91). Em


João 11.55, aqueles que se preparavam para a Páscoa foram para Jerusalém, “para
a sua purificação cerimonial” (hagnisõsin, veja Êx 19.10,11). Porém, aqui o termo
deve ser entendido de forma ética como no restante do NT (Tg 4.8; 1 Pe 1.22). As
preocupações com “transgressão” e “pecados” seguem imediatamente (1 Jo 3.4-6).
Uma terminologia relacionada aparece em João 17.19, quando Jesus diz: “Eu
me santifico” (bagiazõ em auton). Essa é a preparação de Jesus pouco antes de Seu
retorno para a presença imediata do Pai. A autossantificação de Jesus (santificar-
-se!) é a Sua dedicação à cruz em cumprir a vontade do Pai (“para que também
eles sejam santificados”). É a ética da missão redentora de Cristo, o estilo de vida
revelado de forma suprema.
No entanto, não é possível realizar humanamente essa purificação, santifican-
do o trabalho necessário para vencer o pecado. Apenas o Deus santo pode purgar e
santificar de forma completa. Purificar-se deve ser entendido no contexto do per­
dão e purificação do pecado (1.7,9; 2.1,2,12; 3.4-6), que está disponível apenas por
meio da morte expiatória de Cristo (2.2; Brown, 1982, p. 398). Porém, depois de
aceitar o sacrifício de Cristo pelo pecado, apresentamos nossa vida “em sacrifício
vivo, santo e agradável a Deus” (Rm 12.1). Colocar nossa vida resgatada totalmente
à disposição de Deus é como o chamado para a autopurificação deve ser entendido.
Essa consagração total a Deus é evidenciada por escolhas contínuas em di­
reção ao santo. O presente do indicativo do verbo hagnizei sugere uma tradução
dinâmica, contínua —p u rifica r con tin u a m en te. Esse tipo de fé viva honra a Deus
e obedece à Escritura. Uma vida entregue a Deus dá espaço para se trabalhar. Na
medida em que convidamos a presença purificadora de Deus em nossa vida, é nessa
medida que estamos empenhados a purificar-nos.
A plenitude do que “seremos” (v. 2) ainda não é conhecida. No entanto, no
presente, estamos preparando-nos para ficar na presença do Santo por meio de
uma resposta obediente e contínua a essa Palavra de Deus. A pureza não é apresen­
tada como uma recompensa futura para o cristão. Pelo contrário, é uma qualifica­
ção para poder ver Deus um dia (“bem-aventurados os puros de coração, pois verão
a Deus” [Mt 5.8]).
1 4 0 retorno de João para o tema pecados (veja 2.12) destaca uma tensão cons­
tante na carta. A realidade é que o pecado pode ocorrer (2.1). O objetivo para o
qual somos chamados é que o pecado seja destronado. João estabelece uma defi­
nição de pecado (ham artia) como transgressão (anom ia), uma combinação de
nomos (lei) e um prefixo de alfa que nega a palavra. Em alguns casos, a palavra sig­
nifica uma pessoa que não conhece a lei. Gentios podem pecar independentemente
da lei mosaica (1 Co 9.20,21).
117
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A n o m ia

As p a la v r a s h a m a rtia e a n o m ia são usadas com o e xp re s sõ e s


e q u iv a le n t e s à L X X d o S a lm o 3 2 .1 . E m p r e g a n d o p a ra le lis m o d e s in ô n im o s ,
n o t e x t o c o n s t a : " C o m o é fe liz a q u e le q u e t e m s u a s tr a n s g r e s s õ e s [ a n o ­
m ia /] p e r d o a d a s e s e u s p e c a d o s [ham artiai] a p a g a d o s ! " .
A id e ia d e a n o m ia c o m o t r a n s g r e s s ã o s u g e r e to n s a p o c a líp tic o s . N o
S e r m ã o d o M o n t e , Je s u s d iz q u e a " m a l d a d e " ( a n o m ia n ) s e rá m u ltip lic a d a
(M t 2 4 .1 2 ) . A n t e s , E le fa lo u d o s fa ls o s p r o fe ta s q u e p r a t ic a v a m a n o m ia
( M t 7 .2 2 ,2 3 ) . O t e x t o e m 2 T e s s a lo n ic e n s e s u sa a n o m ia e m u m c e n á rio
e s c a to ló g ic o p a ra d e s c r e v e r "o h o m e m d o p e c a d o " ( 2 .3 ) e o " m is té r io d a
in iq u id a d e " ( 2 .7 ) .
N o e s c rito d o s e g u n d o s é c u lo , D id a q u ê ( 1 6 .3 ,4 ) , o s ú ltim o s d ia s , o s
fa ls o s p r o fe ta s e a n o m ia e s tã o in tim a m e n te a s s o c ia d o s ( B r o w n , 1 9 8 2 ,
p . 4 0 0 ; R ic h a r d s o n , 1 9 4 3 , p . 1 7 8 ) . O " filh o d o p e c a d o " , q u e é u m fa ls o
C r is to , a p a r e c e n o e s c rito p ó s - N T A p o c a lip s e d e E lia s 3 . 1 - 1 0 ( L im b e c k ,
1 9 9 0 , 1 : 1 0 6 ; C h a r le s w o r th , 1 9 8 3 , p . 7 2 9 ,7 3 0 ) .
E n t ã o , a p a la v r a a n o m ia e ra e n te n d id a c o m o u m a m a n ife s t a ç ã o fin a l
d o m a l, c o m o u m a re b e liã o c o n tr a D e u s . E la c o lo c a ria a p e s s o a n a c o m ­
p a n h ia d o in im ig o d e D e u s , o d ia b o (v . 8 - 1 0 ) , e c o m o s " a n tic r is to s " m e n ­
c io n a d o s a n te r io r m e n t e e m 1 J o ã o 2 .1 8 (M a r s h a ll, 1 9 7 8 , p . 1 7 6 , 1 7 7 ) . E s s a
tr a n s g r e s s ã o d e e s p ír ito é p a r t e d e u m a o p o s iç ã o e s c a to ló g ic a a D e u s e
n ã o p o d e s e r c o n c ilia d a c o m u m a e s p e r a c o n fia n te p e lo S e u r e to r n o . N ã o
se p o d e e s t a r a n s io s o p e lo re to rn o d o S e n h o r e , a o m e s m o t e m p o , e m
re b e liã o c o n tra E l e ( T h o m a s , 2 0 0 4 , p . 1 5 5 ) .

Dois sentidos podem estar presentes em 1 João 3.4. Em prim eiro lugar, o pe­
cado é uma quebra da lei. As pessoas criam um registro de desem penho de violações;
elas descumprem a lei de forma contínua.
Em segundo lugar, as pessoas podem ter um espírito hostil às leis de Deus — o
p eca d o é um esp írito transgressor. O pecado pode ser entendido principalmente
como uma atitude transgressora em relação a Deus (Bruce, 1970, p. 89). Assim, o
pecado é uma condição da qual os crentes devem libertar-se (Smith, 1991, p. 82).
Paulo descreve o pecado da mesma forma, como uma compulsão interna que com­
bate o seu bom senso espiritual (veja Rm 7.23).
Fundamentalmente, João parece acreditar no fato de que as pessoas pecam
porque são pecadoras. Elas têm uma atitude antiDeus que se manifesta em opo­
sição aos propósitos divinos. Assim, a necessidade mais fundamental de todos é
118
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

encontrar a correção para o problema central de caráter, uma resposta que voltará
as afeições do coração fortemente em direção a Deus. Tal solução tornaria tão na­
tural praticar o bem, o santo, quando antes era “natural” praticar o mal, o pecado.
■ 5 Tal correção radical do problema do pecado encontra expressão forte aqui.
Com terminologia semelhante à que ele tinha acabado de usar para a futura vinda
de Cristo (3.2), João escreve agora sobre a primeira vinda de Cristo. Vocês sabem
que ele se manifestou (ephanerõthê) para tirar os nossos pecados. A humaniza-
ção e, por extensão, toda a vida e obra de Cristo tinham o propósito de tirar (arei)
pecados. Outros manuscritos, preservando talvez a melhor leitura, simplesmente
registram “tirar os pecados” (NTLH), sem especificar de quem. Uma minoria de
manuscritos descrevem “os pecados do mundo”, talvez em uma tentativa de harmo­
nizar com 2.2.
O verbo airõ é usado no Quarto Evangelho com o sentido de uma mudança
de localização (Jo 2.16; 11.39,41; 19.31,38; 20.1,13). Os pecados são levados pela
obra expiatória do “Cordeiro de Deus” (Jo 1.29), cuja morte foi um livramento do
pecado representativo (Radl, 1990, p. 41; Marshall, 1978, p. 177; veja 1 Pe 2.24;
1 Jo 2.2; 4.10).
Contudo, o termo pode implicar mais do que simplesmente tirar. Ele tam­
bém pode sugerir remoção no sentido de destruição. João 11.48 usa a palavra para
referir-se à possibilidade de que os romanos “tirarão” (arousin) o templo e o estilo
de vida judaico. Os judeus em João 19.15 (ARC) pedem a morte, por execução, de
Jesus: “Tira! Tira! \aron\ Crucifica-o!” (cf. Lc 23.18). Paulo recebe o mesmo tipo
de ameaças de morte das multidões de Jerusalém — “Tira esse homem da face da
terra! Ele não merece viver!” (At 22.22; veja 21.36). Esses usos não sugerem apenas
uma nova residência para o pecado, mas a sua eventual remoção por derrota/des­
truição (Radl, 1990, 1:41).
João não está apresentando Cristo como alguém que veio simplesmente para
contrabalancear o pecado no coração do homem, isto é, prender o mal para que a
santidade tenha uma oportunidade de ter sucesso na vida do crente. Cristo veio
para completar uma vitória decisiva sobre o pecado. Ecumênio (sexto século) afir­
mou que, uma vez que Cristo, que não tinha pecado, veio para tirar os pecados,
não há desculpa para a prática contínua do pecado (Bray, 2000, p. 197). Para João,
pureza significava libertação do pecado (Marshall, 1978, p. 174).
I 6 O texto agora declara que, para a q u ele q u e co n tin u a m en te p erm a n ece em
(m enõn, um particípio presente) Deus/Cristo, o hábito do pecado é quebrado. O
verbo que se segue também está presente e pode ser disposto como — n ã o co n ti­
n u a p ra tica n d o o p eca d o . João luta por uma fé cristã que se mova um a um nível
119
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

mais elevado de vida. Deus vence e acaba por destruir o pecado. Deus não pode
coexistir com ele.
Dois verbos perfeitos aparecem. O primeiro, não o viu, afirma que a pessoa
que continua a viver habitualmente no pecado nunca viu Cristo e, com certeza, não
tem Cristo em vista agora. O segundo, nem o conheceu, salienta que tal pessoa
nunca conheceu Cristo verdadeiramente e, de modo óbvio, não o conhece agora.
A verdadeira visão e o conhecimento têm resultados permanentes (Brooke, 1912,
p. 86). Esses verbos fornecem um contraste direto com as linhas iniciais da carta.
Permanecer em Jesus significa que o pecado é excluído. Por outro lado, pecar
continuamente significa que Cristo não é conhecido. As visões de João aqui são
consistentes com o dualismo expresso ao longo do texto (Smith, 1991, p. 83). Esse
versículo não declara que ocasiões de pecado sejam impossíveis. Pelo contrário, afir­
ma que uma vida pecaminosa não caracteriza o filho de Deus (Bruce, 1970, p. 90).
Quando se permanece constantemente, mantém-se livre da prática do pecado. A
imagem de impecabilidade é um chamado sublime para uma vida santa e consis­
tente em obediência a Deus.

A P A R T IR D O T E X T O

Tornando-se parte da família

Chamar os cristãos de filhos de Deus (v. 2) proporciona temas de pregação


em torno das terminologias de nascimento (Jo 3.16; 1 Pe 1.23) e adoção (Rm
8.15,23; G14.6). Essas e outras analogias do NT são emprestadas de terminologias
do AT referindo-se a Israel como “filho” de Deus (Os 11.1; Jr 31.9).
Algumas pessoas não entendem a ideia de ser filho de Deus, insistindo no fato
de que todos são filhos de Deus. Isso é verdade em um sentido. Todos são criados
com um valor imensurável e uma imagem residual do Deus criador. Porém, a fé em
Cristo e a obediência a Ele demonstram o nosso nascimento espiritual. Jesus disse
que alguns são, por suas escolhas contra Deus, filhos do diabo (3.10; Jo 8.44).

Sustentando a vida na Igreja

A igreja tem a responsabilidade de nutrir novos crentes — os filhos. Nós não


deixaríamos um filho recém-nascido sobreviver por conta própria. Da mesma
forma, damos especial atenção àqueles que são novos para a fé cristã. Além disso,
se a igreja é saudável, os filhos são um resultado natural. A falta de filhos novos
120
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

deve indicar-nos que devemos descobrir o que está prejudicando a saúde do corpo.
Como cuidamos dos espiritualmente feridos entre nós também indica nosso com­
promisso com a vida espiritual.

Estar bem preparado para encontrar Cristo

Saúde de espírito é necessário para ficar na presença de Cristo um dia. A po­


derosa frase que havemos de ser (v. 2) fala de uma vida eterna além da nossa com­
preensão atual. A presença de Cristo naquele dia futuro significará a correção total
de enfermidades e fraquezas. Os teólogos, às vezes, referem-se a esse trabalho esca-
tológico de graça como glorificação.
João deixa claro que a correção do ato de peca r inclui o perdão como um as­
pecto essencial. A correção dapecam inosidade requer limpeza como um elemento
obrigatório. Ambos podem e devem ocorrer aqui e agora. Todavia, a restauração
completa de tudo que foi marcado pelo pecado, esses efeitos residuais, será corrigida
quando Ele aparecer (v. 2). Então, a nossa visão desobstruída de Jesus nos trans­
formará, para que possamos ser como Ele. A vinda de Cristo para tirar os nossos
pecados significa “destruir todos eles, raiz e galhos, sem deixar sobrevivente algum”
(Wesley, 1983, s.p.). Adam Clarke também recomendou enfaticamente o remédio
de Deus para o pecado nesta vida: “Ele veio ao mundo para destruir o poder, per­
doar a culpa e purificar da poluição do pecado (...). Pode-se supor que Ele não quer
ou não p od e realizar o objetivo de Sua própria vinda?” (Clarke s.d., 6:914).

B. Destruindo as obras do diabo (3.7-10)

NO TEXTO

H 7 Com íilhinhos, um termo favorito (3.2,7,21; 4.1,7,11), o autor continua a


usar uma linguagem familiar para expressar sua preocupação ética nos versículos
7-10. Pertencer a Deus por nascimento (v. 9) como filhos (v. 7,10) é ser parte de
uma família espiritual, mas ser ainda um sujeito a ser levado ao engano.
Essa semelhança de coração familiar descrita como justiça (dikaios) é vivida
por meio de atos corretos — aquele que pratica a justiça {tên dikaiosynên, q u e fa z
o q u e p e certo). O povo de Deus reflete o Seu caráter. O padrão de justiça nas pes­
soas é a justiça de Cristo — assim como ele é justo {dikaios). A expressão é seme­
lhante à anterior: “assim como ele é puro” (v. 3). Essa é a quarta vez que Cristo tem
121
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

sido chamado de justo (1.9; 2.1,29). O adjetivo descreve a Sua natureza de vida
como sempre justa em caráter e em todas as Suas relações (Brown, 1982, p. 404).
No uso grego clássico, a pessoa dikaios era alguém cujo comportamento cum­
pria suas obrigações com os “deuses” e também com o homem (Brown, 1978, p.
353). A ideia de justiça (dikaiosyné) do AT é direcionada à ideia de um comporta­
mento consistente com o relacionamento entre Deus e as pessoas. A pessoa dikaios
é devota e demonstra a justiça de Deus em seus relacionamentos santos com o pró­
ximo (Brown, 1978, p. 355).
H 8 As consequências da vida de alguém são a prova de sua fidelidade. Cometer
pecado demonstra lealdade ao diabo, cujo pecado ocorreu desde o princípio.
João 8.44 é semelhante; o diabo é descrito desta forma: “Ele foi homicida desde o
princípio (...) é mentiroso e pai da mentira” (van der Watt, 2007, p. 38). A ausência
de pecado demonstra fidelidade a Deus, que é santo.
João continua a esclarecer o tema de várias maneiras. Para isso, Cristo veio
com o propósito (eis touto) de dominar o pecado. O verbo lysêi significa, em alguns
casos, liberar, mas também pode significar destruir, acabar completamente (veja
Ef 2.14; Jo 2.19). Aqui, João insiste no fato de que Deus pretende alcançar uma
derrota decisiva e inconfundível do pecado.
O paralelismo poético nos versículos 5 e 8 sugere que remover o pecado e
destruir as obras do diabo é a mesma coisa (Thomas, 2004, p. 164).
• “Ele se manifestou para tirar os nossos pecados” (v. 5).
• '"[Ele] se manifestou: para destruir as obras do Diabo” (v. 8).
Os versículos 7 e 8 contêm um paralelismo poético semelhante:
• “Aquele que pratica a justiça é justo” (v. 7).
• “Aquele que pratica o pecado é do Diabo” (v; 8).
Essas linhas destacam duas esferas mutuamente excludentes da existência.
Uma delas só pode pertencer a um domínio e traz a marca e a lealdade daquele
domínio (Brown, 1978, p. 362).
No versículo 8, a referência à aparição de Cristo fala de Sua primeira vinda ao
mundo, Seu primeiro advento, para inutilizar o pecado. Entretanto, em 3.2, João
escreve sobre Sua futura vinda ao mundo, a segunda vinda, total e finalmente, para
estabelecer um ambiente de justiça purificado, livre de pecado.
Calvino entendia corretamente “que a carne e suas concupiscências não pre­
valecem, mas são dominadas e colocadas sob um jugo, a fim de serem controladas”
(1959, p. 272). Sua linguagem sugere mais uma supressão do pecado do que sua
conquista. No entanto, Calvino não lutava por um cristianismo que permitisse que
o pecado a florescesse. Em vez disso, ele acreditava no fato de que o Espírito de
Deus trazia superioridade ao crente. Antes, Dídimo (quarto século) ensinou que
122
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

o pecado não é intrínseco à natureza humana. É acidental, resultado de intrusão


no plano de Deus para o homem (Bray, 2000, p. 198). Uma derrota completa da
maldição do pecado é a resposta final de Deus.
■ 9 Esse versículo é estruturado artisticamente como um quiasmo (Thomas, 2004,
p. 165), uma repetição de linhas em estilo espelho:
a - Todo aquele que é nascido de Deus
b - não pratica o pecado,
c - porque a semente de Deus permanece nele;
b’ - ele não pode estar no pecado
a’ - porque é nascido de Deus.
João retorna à metáfora do novo nascimento (2.29). Como indicado pelo
quiasmo, a semente de Deus é a ideia central. Claramente, pecado e Cristo não
podem coexistir. A semente (sperma autou) de Deus, pela sua própria natureza,
expele o pecado. A palavra sperma transmite a metáfora de ter filhos, em vez de
plantio e colheita. A semente de Deus significa a própria vida que Deus depositou
no crente. A provável associação de sperm a é o Espírito (Brooke, 1912, p. 89; Jo
3.6,9, veja Brown, 1982, p. 408-411).
Os gnósticos pensavam em uma semente divina preexistente que gerasse fi­
lhos divinos (Brown, 1982, p. 411). João pôde empregar essa linguagem com uma
nuance similar. Isso indica que pertencer a Deus significa que a vida divina reside
na pessoa.
A “unção” descrita anteriormente por João (2.20,27) envolvia ser ensinado
pelo Espírito. A mesma ideia pode estar sendo trabalhada aqui. Em 1 Tessalonicen-
ses 1.5,6, o Espírito e a Palavra de Deus servem em conjunto para alcançar o novo
nascimento. Por extensão, o Espírito e a Palavra de Deus garantem o crescimento
da nova vida, e a vida divina interior necessariamente expele o pecado.
João insiste que uma prática contínua do pecado significa que a vida de Deus
está sendo sufocada ou que nunca esteve presente. A vida de Deus dentro de al­
guém realiza uma transformação radical. O pecado, antes natural, ou melhor, típi­
co do homem, agora se torna antinatural (Bruce, 1970, p. 92). Quando a semente
de Deus é nutrida, ele permanece em uma pessoa e a vida acontece e cresce.
João não pode estar dizendo que o pecado é impossível na vida do cristão;
ou 1.8,10 e 2.1 não têm sentido. Não significa que seja impossível pecar, mas que
é possível não pecar. O pecado pode acontecer, mas é uma intrusão. O pecado,
quando acomodado, coloca a vida espiritual da pessoa — a semente de Deus —
em perigo. Quando a vida de Deus recebe a oportunidade de fazer o que quer,
ela expulsa o pecado, assim como o ato de acender uma vela dissipa a escuridão.
Quanto mais luz se expande, mais a escuridão foge. A luz pode ter graus de sucesso.
123
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Cantos escuros ainda podem existir. Todavia, nos lugares onde a luz tem acesso ela
domina a escuridão.
João já desafiou, com tenacidade, as declarações de impecabilidade dos sepa­
ratistas (1.8,10). No entanto, essa passagem insiste no fato de que os verdadeiros
seguidores de Cristo terão liberdade do pecado quando o caráter santo de Deus
residir dentro deles. O texto defende uma espiritualidade que elimina atos volun­
tários de pecado, caso a pessoa permaneça totalmente em Cristo. O pecado nunca
é a norma na vida dos crentes (van der Watt, 2007, p. 63). Não se pode, simulta­
neamente, obedecer a Deus e desobedecê-lo de forma intencional. “Aquele cuja
vida é regida pela lei do amor — amor a Deus e ao seu próximo — não pode pecar,
porque ele não pode, ao mesmo tempo, amar alguém e intencionalmente pecar
contra ele” (Blaney, 1967, p. 380).
John Wesley abordou a questão da seguinte forma: “Mas ‘todo aquele que
é nascido de Deus’, enquanto permanecer em fé e amor, e em espírito de oração
e ação de graças, não só não cometerá, como também não será capaz de cometer
pecado” (1978, 5:227).
A posição do cristão como filho de Deus é uma realidade presente, e a liberta­
ção do pecado é associada a ele. Na verdade, quanto mais essa semente transforma
o cristão, mais improvável é que o cristão peque (Brown, 1982, p. 431).
1 1 0 Cristo 1 “se manifestou” (ephanerõthê ) para “tirar os nossos pecados” (v. 5) e,
assim, “destruir as obras do diabo” (v. 8). O que Cristo veio para fazer ap arecerá
(phanera) em uma vida que pratica a justiça. João insiste no fato de que a justiça
é relacionai. E relacionai primeiro em relação a Deus — filhos de Deus. Isso traz
uma relação positiva com o próximo. Uma pessoa relacionada corretamente a Deus
ama seus irmãos.
Quem não pratica a justiça claramente está entre os filhos do diabo (diabo-
lou-, vejajo 8.31-59). Pecados de omissão, ações corretas que não são feitas, podem
ser uma evidência de uma condição espiritual falha tão grande quanto pecados
cometidos. João assume, de forma clara, a presença de um maligno no mundo cuja
influência é sempre contrária à justiça. Semelhante a Tiago 2.18, o versículo 10
definitivamente considera fé e obras em conjunto. O amor de Deus por Seus fi­
lhos vive nas rotinas da vida. Seu amor flui em reuniões de adoração e também, de
forma autêntica, no serviço amoroso que encontra o povo de Deus espalhado pelo
mundo.
O versículo 10 resume e conclui a preocupação de João em viver na “justiça”
que predominava em 2.29—3.9. Com o uso de metáforas familiares, João aplica
a dupla vinda de Cristo à ética cristã. Essa polêmica sutil contra os falsos mestres
culmina no retorno do tema que agora predomina — de amor pelo irmão e pela
124
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

irmã (veja 2.9-11). Assim, o versículo 10 funciona como uma transição para o que
se segue em 3.11-18 e, em grande medida, em 3.11—4.21.

A P A R T IR D O T E X T O

Livre do pecado

A declaração não pratica o pecado (v. 9) cria desafios para o ministro cristão.
Como se deve pregar/ensinar com base nesse texto difícil? Alguns simplesmente o
evitam por completo, mas isso é irresponsabilidade. Corre-se o risco de criar-se um
“cânon dentro do cânon”, adotando uma abordagem seletiva para o que os textos
falam sobre fé e prática. João reconhece o pecado (1.8,10;2.1)e convida seus leito­
res a viverem livres do pecado (veja a discussão em 1.8).
Se acomodarmos o pecado em nossa vida, também rejeitaremos prontamente
o chamado para uma vida santa desse escrito. A nossa abordagem deve aceitar a
totalidade do texto. O pecado ocorre, mas nunca pode ser o padrão da vida cristã.
O texto em 1 João 2.1 assegura que Deus, em Cristo, fez provisão para o peca­
do que invade a vida de um crente.
A tarefa do pregador é oferecer esperança de restauração para aqueles que fa­
lharam e caíram. Ao mesmo tempo, devemos chamar todos a viver em obediência
consistente às normas de Deus, o que significa liberdade do pecado intencional.

O diabo e o mal

Alguns acham sofisticado descartar a ideia de um diabo pessoal. Contudo,


por quatro vezes, esse texto fala de um desses (v. 8,10). A palavra diabo aparece
cerca de 30 vezes no NT. Um ser antiDeus pessoal é claramente visto como real e
terrível pelos escritores do NT.
A seriedade com que muitos cristãos veem o diabo consta no texto do credo
batismal ainda usado em muitas igrejas. O oficiante pergunta: “Você renuncia ao
diabo e a todas as suas obras?” (para ler a história, veja Gilmore, 1949,9:488,489).
Existem dois extremos no cristianismo moderno. Em um deles, os crentes
parecem obcecados pelo diabo. A falta de disciplina pessoal ou pecado flagrante
(por exemplo, gula ou ganância) são atribuídos à atividade demoníaca. As pressões
financeiras devido a hábitos de gastos imprudentes são dispensadas como obra de
Satanás. A doença física que deriva de comer-se indisciplinadamente ou de um
estilo de vida sedentário é atribuída ao diabo. Essa preguiça espiritual e o erro teo­
lógico são ofensivos para cristãos conscientes e reflexivos.
125
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Por outro lado, alguns cristãos não levam a sério o suficiente a enormidade
do mal no mundo. Eles não aceitam a doutrina da queda, preferindo uma visão da
humanidade que evolui de forma crescente. Minimizar ou ignorar o problema do
pecado sistêmico e individual dessa forma não dá uma resposta realmente adequa­
da para o problema do mal.

C. Amor e ódio, vida e morte (3.11-15)

NO TEXTO
1 1 1 João afirma o motivo pelo qual ele enfatiza o tema do amor no versículo 10.
O mandamento amemos uns aos outros da mensagem (lit.: n otícia ou a n ú n ­
cio ) não é novo (1.5). Fazia parte da fé, desde o princípio, que o público de João
tivesse ouvido desde o momento de suas primeiras experiências como cristãos. A
mensagem evoca 1.5. O termo aparece pela primeira vez na mudança da revelação
da vida em Jesus Cristo (1.1-4) para sua aplicação redentora e ética em 1.6—2.11
(Strecker, 1996, p. 107,108).
O chamado para o amor é uma realidade presente vivenciada em comunidade
— vocês, nos e uns aos outros. A vida de amor mútuo entre os cristãos joaninos
não dependia de sentimentos, uma vez que era um mandamento (Jo 13.34;
15.12,17; 1 Jo 3.23). É uma obrigação que se pode e se deve fazer. Amar é agir da
mesma maneira amorosa como Cristo demonstrava.
■ 1 2 - 1 3 As primeiras narrativas bíblicas referem-se a uma triste narrativa (Gn
4.1-16) que João desenvolve como uma ilustração negativa. Ele lembra a seus lei­
tores que Caim (...) pertencia ao Maligno, e, por isso, o amor tinha desaparecido
de seu coração, de modo que ele foi capaz de matar seu próprio irmão de sangue.
Lançar a sorte com o Maligno fez com que Caim caísse em depravação em um ní­
vel muito maior do que ele poderia ter imaginado. Caim já pertencia ao Maligno
e, posteriormente, cometeu o acidente. A única explicação de João para a ação de
Caim era porque suas obras eram más e as de seu irmão eram justas (dikaia).
O verbo sphazõ (matou) sempre inclui um sentido de violência (Brooke,
1912, p. 92). Ele descrevia o crime especialmente hediondo de matar um membro
da família (Michel, 1971, 7:932,934). Na LXX, muitas vezes, há conotações de
sacrifício (Gn 22.10; Êx 29.11; Lv 1.5; Nm 11.22). Variações da palavra no NT
são encontradas somente aqui e em Apocalipse (5.6,9,12; 6.4,9; 13.3,8; 18.24).
O termo refere-se mais frequentemente à crucificação de Cristo ou à matança dos
Seus seguidores. João retrata a violência de Caim como decorrente de um coração
já comprometido com o mal. Por sua lealdade ser errada, atos errados se seguiram.
126
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

O versículo lembra-nos de que não devemos admirar-nos (thaum azete, “m a­


ravilhar-nos, espantar-nos” [BDAG, 2000, p. 444]), se o mundo os odeia (veja At
7.31; Ap 13.3).
O mundo já foi descrito em 1 João como hostil a Deus (1 Jo 2.15-17; 3.1;
veja também Jo 15.18-20). João o descrevá mais tarde como o domínio dos falsos
profetas e anticristos (1 Jo 4.1-5), um lugar dado ao “Maligno” (5.19) e, portanto,
uma esfera a ser derrotada (5.4,5).
1 1 4 Com os versículos 14 e 15, João introduz um novo dualismo de vida contra
a morte. Ele acrescenta a seus dualismos anteriores: luz e trevas, justiça e pecado,
ódio e amor. O apóstolo continua a ver em um ou outro termo a forma como aplica
seu evangelho à situação de suas igrejas.
João fala de dentro da comunidade. O pronome elíptico “nós” (hêm eis) no
início da frase enfatiza o pronome já implícito no verbo oidam en — sabemos. O
sentido é que nós m esm os sa b em os disso\ O que está sendo afirmado de modo tão
enfático ? É uma transformação espiritual dramática — da morte para a vida. O
tempo verbal perfeito passamos (metabebêkam en) transmite a ideia de uma reloca-
ção definida: “passou [metabebêken] da morte para a vida” (Jo 5.24).
O Evangelho usa o mesmo verbo para escrever sobre a morte iminente de Je­
sus —“havia chegado o tempo em que deixaria [metabê\ este mundo” (Jo 13.1).
Então, aqui, João descreve uma transformação espiritual. Eles não apenas “viraram
uma nova página”; eles receberam uma nova vida. Sua condição anterior era a de
morte espiritual (thanatou). Agora, por sua fé em Cristo, Deus trouxe vida de
ressurreição (zõên) para eles. Agir em amor ao próximo é a prova suprema de vida
espiritual — porque amamos nossos irmãos. A falta de atos de amor demonstra
que cristãos professos permanecem na morte espiritual.
Entretanto, quem são nossos irmãos para o presbítero? Aqueles que “saíram”
da comunhão Joanina (2.19) certamente não eram considerados família. Na ver­
dade, aqueles que saíram eram rotulados de “falsos profetas” (4.1), “enganadores”
(2 Jo 7) e “anticristos” (2.18; 2 Jo 7). Os irmãos a quem os leitores são chamados
para amar eram os crentes que, claramente, ainda estavam em harmonia com os
ensinamentos e as práticas das igrejas joaninas. João pode estar enfatizando o man­
damento para condenar a atitude e o comportamento dos separatistas.
Em 2 João, há uma forte proibição contra até mesmo oferecer hospitalidade
(alimentação e hospedagem) para pregadores itinerantes, cuja cristologia seja
errada. O desconforto joanino quanto a quem deve ser recebido/amado e quem
não deve pode ser a razão para algumas das variantes textuais desse versículo. O
mais provável é que a leitura original da última parte do versículo seja como na
NVI — quem não ama. Seria uma afirmação genérica, a qual alguns escribas,
127
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

aparentemente, queriam tornar mais específica. Consequentemente, alguns


manuscritos foram emendados, como a m a o irm ã o, e outros mais específicos,
como am a a seu irm ão.
H 1 5 O texto avança de forma radical. Aquele que odeia seu irmão não só perma­
nece na morte, mas também espalha um espírito mortífero aos outros. O amor leva
à vida, a falta de amor leva à morte; ambos são contagiosos. Como Jesus ligou “se
irar contra seu irmão” (Mt 5.22) com assassinato e julgamento consequente, João
adverte sobre o perigo do amor perdido.
Quando o amor escapa, muitas vezes, é substituído por ódio. Quando o ódio
se infiltra, a pessoa abre a porta para a possibilidade de tornar-se um assassino
(.anthrõpoktonos: m a ta d o r d e h om en s). A palavra aparece apenas outra vez no NT,
onde se refere ao “diabo” como “um homicida” (Jo 8.44). O texto de 1 João 3.15
fala do condicionamento espiritual — vida eterna — que poderia ser perdida pelo
ódio pelo nosso irmão cristão.

A P A R T IR D O T E X T O

Vivendo em amor pelo próximo

Por que o amor é tão importante ? Porque a falta de amor convida o Maligno
(v. 12) e pode levar ao assassinato. Os motivos que levam ao ódio, à inveja, à luxúria
e ao homicídio começam na retenção do amor. Pessoas que querem justificar uma
vida de baixo nível perguntam: “O quanto eu preciso fazer?” O amor cristão per­
gunta: “O que posso conceder? Quanto posso fazer?”
Todo pecado é uma distorção dos propósitos de Deus. Um amor disforme
pelo próximo pode tornar-se um desejo de controlá-lo, em vez de honrá-lo. Dese­
jos sexuais normais dados por Deus podem tornar-se pensamentos e ações lascivos
fora da vontade de Deus. Uma autoestima apropriada, se não for controlada, por
mudar para uma vida voltada para si mesmo. Uma preocupação financeira necessá­
ria pela família pode transformar-se em ganância e avareza.

Perdendo o caminho

A apostasia espiritual pode manifestar-se como ódio por “um irmão” (v. 15).
A passagem fala: Passamos da morte para a vida (v. 14). Implícito nessas palavras
de advertência consta que, uma vez entre o povo de Deus, ainda é possível ser cap­
turado pelo ódio e sofrer a perda da vida eterna (v. 15). Claramente, 1João adverte
contra sair da comunidade de fé. Aqueles que o fazem rejeitam a verdade do amor
128
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

de Deus e perdem a vida eterna. A salvação é relacionai; quando as relações com


Deus e o Seu povo são cortadas, a vida que se tem nesses relacionamentos também
é perdida.

Do ódio ao assassinato

Como pode um irmão matar outro irmão ? A história de Caim e Abel destaca
o profundo risco de fratricídio que se esconde em cada coração. Se não forem trata­
dos, raiva e ciúmes crescem. Por fim, o ódio vem em seguida. Infelizmente, atitudes
erradas podem levar uma pessoa, ou uma nação, a acreditar que o assassinato de
outro é a melhor opção.

D. Amor em ação (3.16-24)

POR TRÁS DO TEX TO

Uma fé cristã genuína se expressa de formas tangíveis. O AT é repleto de cha­


mados à generosidade ao “órfão” e às “viúvas” (Dt 10.18; 24.17-21; 26.12,13; Is
1.17,23; Jr 7.6; 22.3; Ez 22.7; Zc 7.10). Tais advertências para que cuidem dos
pobres e dos desfavorecidos continuam no NT. Jesus teve compaixão por multi­
dões famintas e alimentou-as (Mt 14.14-21; Mc 6.30-44; Lc 9.10-17; Jo 6.1-13).
A Igreja primitiva distribuía alimentos para as viúvas como parte de seu ministério
(At 6.1). Tiago fez palavras duras de advertência sobre os riscos de não tratar os
outros com justiça (Tg 5.1-6).
A ética do amor que João salientou em 1João 3.11-15 é agora descrita de duas
formas nos versículos 16-24: em primeiro lugar, como é o amor na prática (v. 16-
18); e, em segundo, como esse amor está relacionado à segurança cristã (v. 19-24).

NO TEXTO
H 1 6 Essa seção está em nítido contraste com o exemplo trágico de Caim. Em vez
de matar seu irmão, Jesus entregou sua vida {tên psychên autou, sua a lm a ) pelos
outros (Brown, 1982, p. 473). João argumenta que a humanidade não seria capaz
de conhecer o amor em toda sua extensão, sem vê-lo no autossacrifício de Cristo na
cruz. É por isso que nós sabemos o que é o amor.
A morte de Cristo não foi um acidente colossal; ela tinha um propósito. Sua
vida foi dada, não tirada dele. A NVI insere o nome de Jesus Cristo para a palavra
129
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

ekeinos {aquele). Em 1 João, eikeinos consistentemente se refere à vida de Cristo


(2.6; 33,5,7; 4.17). Ele deu a sua vida (vejajo 10.11,17,18). Nenhum governante
terrestre tinha o poder de tirar a vida dele, nem mesmo o governador romano Pi-
latos (Jo 19.11).
Sua vida renunciada tinha o próximo em mente. Foi por (hyper: em n o m e de)
nós. João alega que a única resposta adequada a esse amor é viver uma vida de sacri­
fício altruísta, ou seja, viver como Cristo. Essa vida não épara ter m érito com Deus,
mas para expressar gratidão a Deus. Esse sacrifício e esvaziamento de si estende-se
até o ponto de dar a nossa vida (veja Fp 2.5-11 para um retrato vivido de outras
vidas centradas em Cristo).
O exemplo de Cristo convida Seus seguidores a viver por {hyper) nossos ir­
mãos. A repetição de hyper implica no fato de que a nossa vida de sacrifício é do
mesmo tipo que a de Jesus, que estava disposto a morrer pelo próximo. A breve se­
ção começando com o vresículo 10 apresenta a terminologia de família espiritual,
“irmão”, inúmeras vezes (v. 10,12-17). O apelo para entregar-nos por nossos irmãos
e nossas irmãs está em nítido contraste com o fratricida Caim.
1 1 7 Transmitir amor ao próximo não é meramente expressar pensamentos afá­
veis. Amor compartilhado tem substância. O amor consiste em dar bens, recursos
materiais (lit.: a vid a \bios\ d o m u n do). A palavra bios aparece raramente no NT
e sempre sugere a vida em seus aspectos externos; ela expressa preocupações com
questões de existência material (Ritz, 1990, p. 219; Brooke, 1912, p. 97). Em 2.16,
a NVI traduz como os “bens” de alguém. Provavelmente, o sentido pretendido
aqui é as “coisas da vida”, as necessidades da vida no mundo. Quando o filho pródi­
go pediu ao pai: “Pai, quero a minha parte da herança”, o pai “repartiu sua proprie­
dade” {bion, Lc 15.12).
Quando o próximo tem falta material, podemos abrir o nosso coração e res­
ponder à sua necessidade. Ou, em vez disso, podemos não nos compadecer dele.
O texto em grego é vivido, dizendo que alguns podem ser tentados afe ch a r {kleisêi)
seu in terio r pa ra ele. Recusar-se a ajudar o outro quando Deus colocou os meios
em nossas mãos é restringir esses recursos dentro de nós mesmos, longe dos outros
necessitados. O verbo kleiõ sugere uma chave ou porta trancada, mantendo alguém
do lado de fora (Mt 23.13; Lc 11.7). Não se compadecer é trancar a compaixão
para outra pessoa.
João emprega a palavra splanchna (lit.: intestinos), metaforicamente, para re-
ferir-se ao ser interior. Naquela época, splanchna transmitia a ideia do centro mais
íntimo de uma pessoa, onde profundos sentimentos residiam. Para leitores moder­
nos, na maioria das culturas, uma tradução salientando sentimentos de compaixão
capta o sentido.
130
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

João levanta a pergunta retórica: Como podemos deixar de atender às necessi­


dades concretas de outro sem bloquear o amor de Deus para conosco e o próximo ?
Não podemos manter a nossa segurança material à custa dos outros e, ao mesmo
tempo e na mesma medida, ter o amor de Deus. Nós colocamos a nossa própria
segurança espiritual em perigo sempre que não estamos nele. Jesus ensinou que o
caminho para salvar a vida de alguém é dá-la (Mc 8.35).
I 18 Com palavras calorosas — filhinhos —, João admoesta sobre ir além das
palavras para a prática do amor. O amor verdadeiro trabalha; ele se expressa em
ação (veja Mc 13.34). Pode-se sentir o amor, mas não o praticar — amar apenas de
palavra ou boca. Contudo, esse amor é de valor duvidoso. Um “amor” somente de
palavra não é realmente amor (v. 17; Mt 7.16-20; Tg 1.22; 2.16). A fé de que João
fala vê necessidades e age para atendê-las. Alguém que tenha meios materiais para
ajudar e em cujo coração a vida de Deus esteja ativa, instintivamente, demonstra o
amor de Deus compartilhando com o próximo (Bruce, 1970, p. 97).
■ 1 9 Nos versículos 19-24, João reúne os temas de uma cristologia apropriada e a
ética correspondente. Por preocupação pastoral, ele lida com a obrigação de amar
(v. 16-18) no que se refere à confiança do cristão (veja 2.1).
Assim, sinaliza a aplicação de João da exigência do amor à consciência do
crente. João apresenta os fundamentos da confiança do cristão, primeiro, em ter­
mos teológicos/cristológicos (v. 19,20) e, depois, éticos, de caráter (v. 21,22). A
referência de ambos é o amor em ação.
Só uma fé que trabalha pode tranquilizar o nosso coração. O termo coração
traduz o kardia. Escritores bíblicos ocasionalmente usam o conceito de personali­
dade corporativa em que uma pessoa representa toda a comunidade. Aqui, muitos
são representados por um substantivo no singular, coração. O efeito serve para
enfatizar a unidade do corpo de crentes. Embora sejamos muitos, temos um só
coração. E, quando esse grupo de um só coração agir em amor, tranquilizaremos
(peisom en, lit.: persuadirem os-, veja Hb 13.18) o nosso coração conjunto diante
de Deus (emprosthen autou: a n te d ele). A expressão tranquilizaremos diante (...)
dele sugere o tribunal de Deus ou Cristo (Mt 25.32; Lc 21.36; 2 Co 5.10; 1 Ts
2.19; 3.13).
O verbo saberemos {gnõsometha) é uma voz sugerindo um conhecimento que
valida a alegação da pessoa — p a ra n ós m esm os. Em alguns manuscritos, consta
simplesmenteginõskomen { estam ossabendo). Esse conhecimento nos garante que
somos da verdade (veja o quadro “Verdade” em 1.6).
■ 2 0 No entanto, o coração pode não ser um indicador confiável. A questão é o
nosso exercício de amor como nós o percebemos. Isso significa que temos falha­
do em amar como deveriamos (veja 1.7, “comunhão uns com os outros”, 1.3; 2.6;
131
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

3.18)? Nesse momento, estamos precisando de confiança! Podemos viver sob a au-
tocondenação, embora nossa condição espiritual real, conhecida melhor por Deus
do que por nós, seja segura. Um coração perturbado pode refletir uma condição
desnecessariamente ansiosa, com falta de confiança. Porém, Deus é maior do que
o nosso coração; Sua misericórdia é a palavra definitiva. Ele é mais misericordioso
conosco do que a nossa própria consciência. João quer que seus leitores encontrem
sua confiança em Deus, que, apesar de conhecer todas as coisas sobre nós, ainda
nos ama imensamente.
Contudo, o que são todas as coisas que Deus conhece: que somos melho­
res ou piores do que pensamos ? Temos falhado em amar ou temos amado melhor
do que pensamos ? Isso significa que Deus “sabe que basicamente amamos nossos
irmãos (v. 14) e, portanto, somos ‘da verdade’ (v. 19)” (Bultmann, 1973, p. 57).
Nossa confiança se baseia fundamentalmente em nosso desempenho ou no amor e
na misericórdia de Deus ?
Uma vez que a questão aqui é quando o nosso coração nos condenar, con­
sideraremos a segunda opção — a base cristológica da confiança (2.1). O amor
perdoador de Deus no “sangue de Jesus” (1.7; 5.6,8; veja 1.9; 2.1,2; 4.9,19) é maior
do que o nosso coração (veja Nauck, 1957, p. 78-82). A condição é nosso coração
atribulado, a consequência é que Deus, em Cristo, é maior do que o nosso coração.
E a explicação é que Deus nos conhece melhor do que nós mesmos. Podemos con­
fiar em Seu amor!
M 21 Agora, a condição é se o nosso coração não nos condenar. Nós estamos
amando o próximo no melhor de tempo e habilidade com a consequência de que
temos confiança diante de Deus. A nossa consciência está limpa. Por quê? Por­
que estamos obedecendo “aos seus mandamentos” (v. 22; veja v. 23,24). A base da
confiança do cristão agora é sua resposta ética a Deus: estamos amando de forma
genuína. Mas, de forma fascinante, se não profundamente, viver em obediência a
Deus envolve crer e amar para João (v. 23). A nossa resposta está além do que o
legalismo ou o moralismo poderia exigir.
Assim, o amor do Deus onisciente permite que o Seu povo tenha confiança
diante de Deus. Em grego,parrêsian transmite os significados “cora gem , con fia n ­
ça, ousadia, d estem o r” (BDAG, 2000, p. 781; veja também 2.28; 4.17; 5.14). For­
talecidos pelo Juiz perante o qual todos ficarão um dia, podemos aproximar-nos,
não com medo, mas com segurança. Deus nos chama para sermos santos e permite
que nos tornemos o que Ele quer. Assim, a confiança que desfrutamos existe tanto
agora (especificamente relacionada à oração) como em preparação para o futuro
(veja o comentário sobre 2.28).
132
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

Duas variantes textuais no versículo são dignas de nota. A evidência do ma­


nuscrito está igualmente dividida entre duas leituras relativas a kardia. Como no
versículo 19, o substantivo singular kardia, em grego, é traduzido como “coração”,
porque é seguido pelo pronome possessivo nosso (hêm õn ) em alguns manuscritos.
João enfatiza a personalidade corporativa da Igreja. Embora sejam muitos, eles têm
um só coração. Outros manuscritos omitem o pronome e simplesmente constam
o coração. Isso evita o aparente problema gramatical de um substantivo no singular
com um pronome que designa coletividade.
A segunda leitura variante vem com a frase não nos condenar. Na maioria
dos manuscritos, consta simplesmente que o cora çã o n ã o con d en a . Porém, vários
acrescentam nosso, e alguns, seu. A leitura mais simples, menos específica, prova­
velmente, é a mais original — se o cora çã o n ã o con d en a . E provável que o acrésci­
mo dos pronomes fora devido a tentativas de escribas de esclarecer se a mensagem
é dirigida a nós ou vocês. A diferença é pequena. Ambos são possíveis. João poderia
estar identificando-se com seus leitores oufa la r com eles.
H 2 2 - 2 4 O direito de o cristão ser tranquilizado agora é esclarecido totalmen­
te com esses versículos. A consciência condenada devido à nossa incapacidade de
amar encontra a grandeza do perdão de Deus em Cristo (v. 19,20). Os cristãos
que praticam o amor têm a consciência limpa, devido à presença santificadora e
tranquilizadora do Espírito, por viverem diante de Deus e pelo próximo (v. 22-24).
João explica que a confiança cristã é confirmada ao se viver em obediência aos
mandamentos de Deus. Obediência é fazer o que lhe agrada (v. 22, o q u e é a cei­
tá v el d ia n te dele-, vejajo 8.29). A vida obediente ou agradável permite-nos crer em
Deus mais facilmente pela oração respondida (veja 1 Jo 5.14,15). Nós recebemos
dele (3.22, um verbo no presente — estam os recebendo-, veja Mc 11.24).
E quais são algumas das respostas à oração que contribuem para a “confiança”
do cristão “diante de Deus” (1 Jo 3.21; veja em 5.16,17)? Em 3.24, pelo menos três
aparecem. Uma delas é estar na presença de Deus — permanecem nele. Outra é
ter a vida de Deus em nós. Essa é a primeira menção de Deus habitando no crente.
Várias qualidades divinas foram mencionadas como coisas que moram/permane-
cem no cristão. Estas incluem a “verdade” (1.8), a “palavra” de Deus (1.10), a “un-
ção” (2.27), a “semente de Deus” (3.9) e, em 3.15, a “vida eterna” (Thomas, 2004,
p. 194).
A terceira resposta à oração é o testemunho interior pelo Espírito que nos
deu. Essa é a primeira referência explícita de João ao Espírito. No entanto, o Espíri­
to certamente está presente como agente da “unção” mencionada antes, em 2.20,27
(Bruce, 1970, p. 100,102; veja 4.1,13; 5.6,8). Embora o Espírito seja uma presença
com pouca ênfase em 1 João, essa ainda é uma afirmação forte. O cristão sabe que
133
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Deus/Cristo vive no seu interior, por virtude do testemunho do Espírito do dom


da presença de Deus.
Outra resposta certamente é tornar-se cada vez mais conforme à imagem de
Cristo pela presença interior de Deus. Além disso, ser como Cristo leva a gestos
generosos para com os outros. Que melhor resposta para a oração recebemos dele
(v. 22) do que estar em paz com Deus, com os outros e com nós mesmos ?
A confiança inspirada pelo Espírito é vivida de forma mais profunda na capa­
cidade de crer no nome de seu Filho Jesus Cristo e amar uns aos outros (v. 23). A
presença do Espírito permite que o cristão receba o amor de Deus e responda a esse
amor com amor ao próximo. Essa ênfase é paralela ao diálogo entre Jesus e um “pe­
rito na lei”. Na passagem, está escrito que a vida eterna repousa no amor supremo
a Deus e no amor altruísta ao próximo (Lc 10.25-28). João insiste no fato de que a
fé em Deus será evidente no amor concreto pelos outros. Crer no Filho e amar uns
ao outros constituem um mandamento. Uma única oração une os dois como um
só. A fé que trabalha flui da fé em Cristo.
Nenhuma fé autêntica pode desviar-se de Cristo, pois essa fé é em nome de
seu Filho. A ênfase no nome aparece muitas vezes nas Escrituras. O nome das
pessoas poderia referir-se à sua autoridade e ao seu caráter. Tudo o que uma pessoa
representava era assumido a partir de seu nome (Haas, Dejonge e Swellengrebel,
1972, p. 97; veja 5.13 e 3 Jo7).
Seis vezes em Apocalipse, a palavra nome refere-se a Deus/Cristo (2.13:3.12;
11.18; 14.1; 16.9; 19.13). O uso mais extensivo de nome está em Atos (29versícu-
los, com 27 referindo-se a Deus e Jesus). O uso absoluto em Atos 5.41, “humilha­
dos por causa do Nome” (grifo do autor), reflete o uso da expressão como um título
para Jesus (como em 3 Jo 7).
A segurança da vida em Deus/Cristo vem de várias maneiras. Em primeiro
lugar, há a confiança que vem de se viver d e fo rm a consistente diante de Deus (1 Jo
3.22). Em segundo, há a segurança desse texto, o testemunho da Escritura (v. 24).
Em terceiro, há o testemunho do Espírito (v. 24). O Espírito Santo é um presente
para nós que confirma o que a Escritura promete e o que a nossa vida tem aceitado.
Confiança diante de Deus é mais do que otimismo esperançoso. E uma segurança
do que sabemos [ginõskomen). Variações da palavra ocorrem 35 vezes nas cartas de
João, dando uma forte segurança aos leitores.
Boa parte de 1 João 3 pode ser encontrada antes, mas não são repetições de
uma mente errante. Em vez disso, são temas profundamente considerados que são
retomados de uma forma calculada. Amar uns aos outros não só pode cultivar o re­
lacionamento entre as pessoas, mas também assegurar a intimidade contínua entre
o crente e Deus.
134
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

A evidência suprema dessa mutualidade de vida é que Deus dá o Espírito. Obe­


decer aos mandamentos de Deus e fazer o que lhe agrada (v. 22) demonstram fé
no Filho de Deus, Jesus Cristo (v. 23). Deus exige que amemos uns aos outros
(v. 23). Obedecer a esse mandamento e, na verdade, a todos os mandamentos de
Deus significa que nele permanecemos (v. 24). O Espírito que nos deu (v. 24) tes­
temunha a intimidade dessa relação. E esse Espírito de fé e amor que nos permite
acreditar e amar, permitindo-nos saber que Deus vive em nós. Então, Deus (Pai),
Jesus Cristo (Filho) e o Santo Espírito são todos afirmados juntos nessa passagem.
Há outra espécie de “trindade”. O amor de Deus por um crente flui para ou­
tros crentes. Todos os três — Deus, o crente e o outro crente — compartilham
expressões recíprocas de amor em ação. João escreverá mais explicitamente sobre
isso quando retornar ao tema segurança em 4.7-21.

A P A R T IR D O T E X T O

A expressão mais magnífica de amor é a cruz

Quando Isaac Watts viu a cruz, ele descobriu que nada no mundo traria sa­
tisfação como saber quem morreu por todos. A cruz traz vivamente diante de nós
o servo do Senhor que levou “a iniquidade” de muitos (Is 53.12). A cruz lembra
Jesus, o Bom Pastor, que dá a Sua vida pelas Suas ovelhas (Jo 10.11,15).
A morte de Cristo, que se entregou voluntariamente pelo próximo, serve de
modelo de desafio para o ministério. Deus define o amor; o amor é autossacrifício
até a morte (1 Jo 3.16,17). O amor é ativo, não reativo. Amar a Deus é compro­
meter-se a amar a família de Deus (van der Watt, 1999, p. 508-510). Ministrar
em nome de Cristo é servir com um espírito marcado por menos de si e mais dele.
Quando servimos fielmente onde Deus nos plantou, damos nossa vida pelos ou­
tros diariamente. No ministério, damos uma parte de nossa vida pelos outros todos
os dias.

Pedindo por nada

A afirmação de João que diz que uma oração de fé nos assegura de que pode­
mos receber dele tudo o que pedimos (v. 22) coloca desafios teológicos. Qual é
a natureza da oração e da mordomia? Em uma seção que fala sobre receber tudo,
o texto também nos confronta com a clara obrigação de dar recursos materiais ao
nosso irmão em necessidade (v. 17). A palavra tudo poderia ser mal interpretada
135
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

como mais recursos materiais, com a justificativa de se ter mais para compartilhar
com os necessitados, afinal!
Entretanto, é somente após demonstrarmos generosidade por meio de ação e
em verdade (v. 18) que podemos experimentar um coração assegurado por Deus.
Somente depois de dar ao próximo é que estamos em posição de pedir para nós
mesmos. Mesmo assim, aquele que ora tem confiança diante de Deus (v. 21) ape­
nas por causa do hábito de fazer o que agrada a Deus. Se estivermos perto do co­
ração de Deus, nós nos encontraremos pedindo em grande parte para os outros e
pouco para nós mesmos.

Permanecendo diante de Deus

Encontramos segurança e paz ao sermos completamente conhecidos por


Deus (veja Hb 4.12,13). Mesmo assim, é irônico o fato de que, para muitos, a ideia
de estar diante de Deus traga pensamentos ansiosos, até mesmo temor. Porém, a
presença examinadora de Deus em nossa vida agora flui de Sua graça. Deus é por
nós, não contra nós, e trabalha para edificar santidade dentro de nós, preparando-
-nos diariamente para aquele dia futuro. Quando aceitamos essa verdade, o temor
desaparece.

136
IV. EXAMINANDO OS ESPÍRITOS E CONFIANDO NO
AMOR DE DEUS: 1 JOÃO 4.1-21

A. Examine os espíritos (4.1-6)

POR TRÁS DO TEX TO

Embora a linguagem dualista seja característica de 1 João, essa passagem é


especialmente marcada por dualismos. Os pares opostos desses breves versículos
incluem: Espírito de Deus (v. 2) e espírito do anticristo (v. 3); verdade (v. 6)
contra falsos e erro (v. 1,6); de Deus (v. 2,3,4,6) e do mundo (v. 1,3,4,5); aquele
que está em vocês (v. 4) e aquele que está no mundo (v. 4). Esses contrastes retra­
tam um pronunciado dualista ético dentro do cristianismo joanino.
As categorias contrastantes demonstram pontos de ligação com o Evangelho
de João — vida e morte, Deus e o diabo, livre do pecado e escravizado pelo pecado,
verdade e mentira, luz e escuridão (veja van der Watt, 2007, p. 32,33, para uma lista
detalhada). Essas metáforas altamente dualistas refletem uma mentalidade judaica
comparável aos Manuscritos do Mar Morto do Qumrã. A comunidade do Qumrã
e os cristãos joaninos compartilhavam certo vocabulário — luz/trevas, verdade/
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

falsidade e terminologia espiritual (veja Por trás do texto de 1 Jo 1.5-10). Essas


semelhanças sugerem uma escola de pensamento comum. Todavia, não podemos
provar conclusivamente qualquer influência direta entre os cristãos joaninos e a
seita judaica do Qumrã (van der Watt, 2007, p. 142,143).
Dentro dessa mentalidade dualista, João emprega uma afiada terminologia de
adversários. Ele rotula os adversários como falsos profetas (v. 1) e anticristo (v. 3).
Os termos são parte do vocabulário retórico de 1 João e são baseados na tradição
profética do AT e nos ensinamentos de Jesus. Os principais profetas escritores (Isa-
ías, Jeremias, Ezequiel) alertavam sobre “falsos” profetas que pregavam sem terem
sido verdadeiramente enviados com a Palavra de Deus (Is 44.25; Jr 14.14; Lm 2.14;
Ez 22.28).
Jesus menciona pseudoprofetas no Sermão do Monte; “Cuidado com os falsos
profetas” (Mt 7.15). No Sermão do Monte, Ele adverte que “aparecerão falsos cris­
tos e falsos profetas que realizarão sinais e maravilhas para, se possível, enganar os
eleitos” (Mc 13.22; cf. Mt 24.11,24 e Lc 6.26). Escritores do AT e do NT pronta­
mente afirmam que, por vezes, aqueles que se declaram profetas estão, na verdade,
proclamando mentiras.
A referência em Marcos 13.22 a “falsos cristos” carrega uma nuance diferente
do termo “anticristos” das cartas joaninas. Há muita diferença entre alegar falsa­
mente ser o “Cristo” e ser hostil a Jesus como o Cristo. Embora possa haver um grau
de sobreposição, e provavelmente alguns assim consideram, os termos são devem
ser equiparados.
Escritos populares sobre o fim dos tempos que falam do “anticristo” na era
moderna podem levar a uma grande variedade de textos de “anticristo” na Bíblia.
Porém, o termo aparece apenas nas cartas joaninas (cinco vezes em quatro versícu­
los). João pode ter antecipado uma personificação do mal do fim dos tempos (1 Jo
2.18), embora dizer se seria em um futuro próximo ou distante seja difícil. Ele es­
tava mais incomodado com falsos mestres que haviam abandonado a fé de João em
sua época (4.3; veja 2.19; 2 Jo 7). Esses opositores separatistas eram considerados
anticristos (contra Cristo), pois negavam tanto o Pai quanto o Filho ao rejeitarem
a verdadeira humanidade de Cristo (1 Jo 2.22,23).

NO TEXTO
H 1 João se dirige a seus leitores novamente como amados (como em 2.7; 3.2,21;
4.7,11). Esse termo de afeto, no entanto, é imediatamente seguido por palavras
duras de advertência. Essa parte da carta é um chamado para o discernimento.
Uma aceitação indiscriminada da mensagem de falsos profetas, alegando falar sob
138
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1.2E3JOÁO

a inspiração divina, certamente seria desastrosa. Os espíritos (pneum ata) errados


levariam os ouvintes de João a prejuízos espirituais. A ligação dessa passagem com
2.16-23 é clara por lidar, mais uma vez, com o erro cristológico.
Esse é o único exemplo nos escritos joaninos em que os leitores são advertidos:
Não creiam (mê... pisteuete). No entanto, ele evoca claramente as advertências de
Jesus nos Sinóticos. Ele advertiu Seus discípulos, “não acreditem”, quando falsos
relatos do Seu aparecimento chegassem a eles (Mt 24.23,26; Mc 13.21). João ti­
nha acabado de ordenar aos seus leitores: “Creiamos no nome de seu Filho” (1 Jo
3.23; também 5.13). A aliteração, possivelmente deliberada, das palavras gregas na
introdução do versículo 1 são de interesse estilístico:pantipneum atipisteuete (Bro-
wn, 1982, p. 485). Isso pode ter sido concebido para memorização e certamente
teria capturado os ouvidos dos ouvintes.
Os espíritos soltos pelo mundo deveriam ser cuidadosamente examinados
(,dokimazete). Na LXX, dokimazõ, às vezes, refere-se a um teste para determinar
que uma contagem precisa do dinheiro foi feita (Gn 23.16; 1 Cr 28.18; 29.4).
Pode referir-se ao teste de metais preciosos com fogo para garantir a sua pureza (Pv
17.3; 27.21; SS 3.6; Sir. 2.5).
No NT, a palavra refere-se ao caráter (Rm 5.4) e à autenticidade da fé (1 Pe
1.7). Paulo advertiu os tessalonicenses: “Ponham à prova todas as coisas” (panta de
dokimazete, 1 Ts 5.21). Um escrito cristão de não muito tempo depois de 1 de João
concorda que é necessário colocar os profetas à prova (D id. 11.12) e fazer de seu
comportamento um critério de autenticidade (Brown, 1982, p. 506). Os leitores
de 1 João são ordenados a examinar os espíritos (modo imperativo). O teste era
uma obrigação permanente (co n tin u em testan d o).
Um bom teste discernirá os que eram genuinamente de Deus, em contraste
com aqueles que eram falsos profetas (pseudoprophêtai). Esses pseudoprofetas re­
presentavam um desafio sério e imediato para a fé cristã praticada por João e seus
leitores. Aqueles que tinham se separado das igrejas joaninas haviam se tornado
inimigos da fé a seu ver.
Além disso, eles aparentemente haviam levado um número significativo de
pessoas com eles. O texto relata que eram muitos (polloi). Isso reflete uma referên­
cia anterior a “muitos anticristos” (2.18) e parece prenunciar os “muitos enganado­
res” de 2 João 7. A repetição de muitos nos dois casos e as características bastante
semelhantes atribuídas a eles argumentam que eles são do mesmo grupo. Em 2
João, o presbítero adverte contra os “enganadores”, equiparando-os ao “anticristo”
(Strecker, 1996, p. 133).
João descreve a área de atividade desses adversários como fora de suas comu­
nidades — eles têm saído (exelêlythasin). O prefixo preposicional ex- ligado ao
139
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

verbo enfatiza um lugar. Em 2.19, ex- aparece cinco vezes, quando João descreve
aqueles que haviam deixado a comunidade joanina. Os separatistas já não estavam
nas igrejas de João, mas competindo com elas. Esses falsos profetas, anteriormente
chamados de “anticristos” (2.18), haviam transferido sua cidadania ao mundo por
terem saído das igrejas de João (2.19). Simbolicamente, o mundo é o domínio da
atividade antiDeus (veja Temas teológicos, na Introdução).
O verbo saído (exelêlythasin, pretérito perfeito) sugere que esses pseudopro-
fetas haviam se afastado anteriormente das igrejas joaninas e permaneceram sepa­
rados delas. Pode não haver distinção significativa na alteração entre o pretérito
e o tempo perfeito (Brown, 1982, p. 490). Entretanto, o tempo perfeito parece
destacar uma saída anterior de algumas pessoas da comunidade joanina, que conti­
nuou como uma separação estabelecida. O pretérito, o aoristo, teria sido suficiente
se João estivesse apenas relatando um acontecimento passado.
H 2 Um refrão contínuo em toda a carta salienta que o teste decisivo de ortodoxia
é a cristologia, ou seja, a questão da humanização. Os critérios para reconhecer o
Espírito de Deus se transformam completamente em cristologia. Os separatistas
parecem ter aceitado uma cristologia que enfatizava tanto a divindade de Cristo
que a Sua plena humanidade foi negada. João, em contraste, afirmava uma cristo­
logia antidocética totalmente “Emanuel”. Para João, Jesus e o Cristo eram a mesma
coisa. O eterno Filho entrou, de forma completa, na experiência humana — veio
em carne {en sarki elêlytkota). O Cristo preexistente foi manifestado como a glória
de Deus em forma humana (Brooke, 1912, p. 109), na qual Ele se tornou carne
{sarx, Jo 1.14).
O verbo veio (elêlythota, no tempo perfeito) aponta não só para o fato da hu­
manização, mas também para o seu significado duradouro (Yarbrough, 2008, p.
221; Rensberger, 1997, p. 112). João está dizendo que havia uma permanência na
humanização? O tempo perfeito certamente apoia tal entendimento. Como tal,
até mesmo o Cristo glorificado permanece humano por completo. Sua presença
em carne é uma realidade contínua (Marshall, 1978, p. 205). Cristo, que veio em
carne, continua a ser o Filho encarnado (Thomas, 2004, p. 203).
Quando Jesus apareceu em glória pós-ressurreta para os discípulos em Jeru­
salém, Ele assegurou-lhes de que não estavam vendo um “espírito” {pneuma): Ele
tinha “carne” [sarx] e “ossos” (Lc 24.39). A promessa de 1 João 3.2, “quando ele
se manifestar, seremos semelhantes a ele”, sugere que nosso corpo ressuscitado será
como o corpo de carne e de glória de Cristo. A era vindoura não é um abandono da
criação, mas uma afirmação dela (Wright, 2008, p. 147-163).
Aceitar um Cristo plenamente homem era algo a ser reconhecido (“d ecla ra ­
do, professa d o, lou va d o, ” BDAG, 2000, p. 708 s.v. hom ologeo). João Batista usou
140
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

o termo para afirmar que ele não era o Cristo — “Ele confessou” (hõm ologèsen,]o
1.20). Paulo, antes de Félix, empregava o termo para afirmar sua clara fidelidade ao
caminho cristão — “Confesso-te” (hom ologo, At 24.14). Em Mateus 10.32, o reco­
nhecimento necessário é crucialmente cristológico, com o destino ligado à confis­
são — “Quem, pois, me confessar \homologêsei\ diante dos homens, eu também o
confessarei [hom ologêsõ] diante do meu Pai que está nos céus”.
H 3 Os versículos 2b e 3 estão em um paralelismo antitético. A confissão positiva,
de confirmação conduz a uma negação de descrédito (Jones, 2009, p. 164).
“Todo espírito que confessa que “Mas todo espírito que não
Jesus Cristo veio em carne proce­ confessa a Jesus não procede de
de de Deus” (v. 2). Deus” (v. 3).

Essas são confissões que implicam comunhão. Não confessar era recusar a par­
ticipação na comunidade (Jones, 2009, p. 168). Os dois elementos da confissão
— “Cristo” e “em carne” — são essenciais (Culpepper, 1998, p. 268). Dos cinco
usos de anticristo nessas cartas (2.18,22; 4.3; 2 Jo 7), todos focam a negação do
homem Jesus como o Cristo. Duas das três passagens (4.3; 2 Jo 7) deixam claro que
as negações incluíam Sua vinda “em carne” (Burge, 1996, p. 175).
A batalha pela fidelidade era mais do que intelectual. João entendia essa
luta como uma batalha espiritual. A terminologia de Espírito é abundante (3.24;
4.1,2,3,6,13). A mesma palavra {pneuma) é usada tanto de forma positiva (Espírito
de Deus, qualquer espírito que justamente confesse Jesus) quanto negativa (o es­
pírito do anticristo e confissões erradas). Os leitores são advertidos a não confiar
em todo espírito, mas a “examinar os espíritos” (v. 1). A validação do “Espírito
de Deus” (v. 2) surge quando um “espírito (...) confessa que Jesus Cristo veio em
carne” (v. 2). Porém, todo espírito que não reconhec Jesus como de Deus está iden­
tificando que não procede de Deus. A distinção era a autenticidade da declaração
de inspiração divina do profeta.
Em vez de não confessa (m ê hom ologei) a Jesus, alguns manuscritos trazem
um sentido muito mais sério — an u la ou d estró i (lyei\ “d e str u ir ,p ô r fim , a b o lir”,
BDAG, p. 607, s.v. lyõ-, veja 3.8, onde o mesmo verbo é usado). Embora d estró i seja
apoiado apenas por uma minoria de manuscritos, alguns intérpretes o preferem
como a leitura mais difícil (Lieu, 1991, p. 46). Brown argumenta em favor de lyei
em parte, por recordar o sentido de 3.8 (1982, p. 496). Ainda assim, a leitura majo­
ritária é provavelmente a preferida (Haas, Dejonge e Swellengrebel, 1972, p. 103).
A leitura mais pesada, d estrói, pode ser uma expressão dos debates cristológicos do
segundo século (Rensberger, 1997, p. 113).
141
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Em vez do Jesus na primeira oração, alguns escribas posteriores parecem ter


adicionado o título “Cristo” para enfatizar o aspecto terreno da confissão.
Uma série de manuscritos adicionam em ca rn e vin d o (em harmonia com o
v. 2 e 2 Jo 7), a fim de interpretar o ponto como a não confissão da vinda de Jesus
em carne (Smith, 1991, p. 98,99). Diferentes manuscritos ligam a vinda em car­
ne diversas vezes a Jesus, o Senhor Jesus, ou Jesus Cristo. As inúmeras variantes
demonstram o quanto esse versículo é central para as controvérsias cristológicas
refletidas nessas cartas.
Uma confissão insatisfatória de Jesus era interpretada como oposição a Cristo.
O drama era uma disputa espiritual entre o “Espírito de Deus” (v. 2) e o espírito
do anticristo. No texto grego, não consta espírito, simplesmente kai touto estin to
tou antichristou (Esse é o... anticristo). A palavrapneum a está em elipse e consi­
derada por ser substantivo mais recente que concorda com o artigo neutro grego
to. A construção aqui permite ler o versículo como o anticristo ou “o espírito do
anticristo” (...) está vindo.
Os falsos profetas do versículo 1 entre os separatistas estavam tão alinhados
com uma teologia errante que foram rotulados por João como alguém que tinha
o espírito do anticristo. Esse espírito pode estar presente em “muitos” indivídu­
os (2.18). João não parece muito interessado em uma figura escatológica de um
futuro distante — o Anticristo. Em vez disso, qualquer pessoa de sua época que
propusesse uma cristologia que negasse a humanização demonstrava sua lealdade a
um grupo anticristo que já está no mundo. Sua preocupação era o agora (nyn) das
igrejas joaninas.
Se João esperava uma figura única como uma personalidade do fim dos tem­
pos, é difícil de determinar. Ele entendia sua época como parte do escaton — o fim
dos tempos (agora e já). Porém, suas preocupações escatológicas concentravam-se
em um núm ero de indivíduos, cujos ensinamentos estavam prejudicando a fé das
igrejas dentro de sua esfera de influência. Ele parece pouco interessado em eventos
e personagens futuros. Os ensinamentos desses adversários do primeiro século, já
caracterizados como “muitos anticristos” em 2.18, eram capazes e perigosos. Os
instintos pastorais de João estavam em estado de alerta (veja o quadro “Anticristo”
em 2.18 e a seção A partir do texto de 2.18-23).
O foco desse versículo, na verdade o da escrita de João, é cristológico. A com­
paração de 2.18-22 e 4.1 -3 revela como cada passagem retorna a atenção para Jesus.
No primeiro caso, a relação com o Pai leva a uma visão correta do Filho. No segun­
do caso, a relação com o Espírito leva, mais uma vez, a uma visão correta do Filho.
João descreve o Filho como central (Burge, 1996, p. 176). No entanto, a cristologia
142
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

de João tem implicações soteriológicas inerentes. Para ele, a cristologia determina


a fé e a vida dos cristãos conforme ele demonstra em toda a carta. O vínculo entre
a teologia e a ética é essencial.
BI 4 A posição de filhinhos dos cristãos joaninos está ligada ao fato de serem
de Deus. Seu caráter deveria ser marcado pela justiça e pela rejeição do pecado,
expressa em amor por Deus e por seus irmãos de fé (Lieu, 1991, p. 39). Embora
sejam chamados de filhinhos, eles obtiveram vitória espiritual e continuaram vi­
toriosos (como sugere o tempo perfeito de nenikêkate-. v en cera m e m a n tivera m a
v itó ria ).
João retoma a sua menção anterior de categorias de faixas etárias em 2.12-14
(“filhinhos”, “pais” e “jovens”). Em 2.13,14, ele escreveu que “jovens (...) venceram
o Maligno”. Aqui, os filhinhos venceram aqueles que eram do “espírito do anti-
cristo” (v. 3) e aquele que está no mundo.
João não diz quando e como essa vitória foi obtida. Será que ele se refere ao
que Cristo realizou na cruz, visto nos círculos joaninos como uma vitória irônica?
O Evangelho refere-se ao encontro de Jesus com a cruz como Sua hora de “glória”
(veja Jo 7.39; 12.16; 17.5).
Os filhinhos vencem quando sua fé pessoal aceita o Cristo da cruz (veja 5.4,5).
Eles haviam aceitado a declaração joanina do evangelho e experimentaram seu efei­
to contínuo vivido por eles. Variações da palavra grega para vitória — nikê — apa­
recem em todas as “cartas” às sete igrejas em Apocalipse 2—3. O Cristo ressuscita­
do promete uma recompensa para todo “vencedor” (Ap 2.7,11,17,26; 3.5,12,21).
Isso faz com que a vitória seja algo que ainda será p len am en te realizado.
Nessa seção de 1 João, a vitória já foi conquistada a té certo ponto. Por causa
daquele (Deus [v. 4,6] ou Cristo) que vive neles, eles foram habitados pelo poder
divino. Esse poder já havia superado (m eizõn: maior) aquele que está no mundo.
A superação dos cristãos não foi realização deles, mas da força de Deus, que já era
uma realidade na vida de cada um, porque Deus permanecia neles.
■ 5 João destacou negativamente “aquele que está no mundo” (v. 4), referindo-se
ao “espírito do anticristo (...) no mundo” (v. 3). Há também uma série de adver­
sários (perceba o plural eles e os) que são do mundo (ek tou kosmou). O mundo
representa o diabo e tudo o que se opõe a Deus (Lieu, 1991, p. 83).
João também faz uma nítida linha de contraste entre os do mundo e suas igre­
jas. Observe a construção paralela:

Eles vêm do mundo (5 v). j “Nós viemos de Deus” (v. 6).


autoi ek tou kosmou eisin j hém eis ek tou theou esmen

143
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Isso lembra uma passagem do Evangelho: “Se vocês pertencessem ao mundo,


ele os amaria como se fossem dele. Todavia, vocês não são do mundo, mas eu os es­
colhí, tirando-os do mundo; por isso o mundo os odeia” (Jo 15.19; veja 17.6-24).
A fidelidade, afirma João em 1 João 5, afeta a forma como se ouve e como se fala.
Aqueles que são aliados ao mundo e ao líder “que está no mundo” (v. 4) aprende­
ram a falar a mesma língua. O texto grego diz literalmente: Do mundo elesfalam
(ek tou kosmou lalousin), embora o que falam procede do mundo capte o sentido.
O uso de do não tem sentido de separação e distância, mas refere-se à origem e à
natureza (Smith 1991, p. 100).
A fala ocorre no tempo presente. A ação ocorre no tempo de João. Quando a
gente ouve no sentido bíblico, necessariamente organizamos nossa vida pelo que
ouvimos. O exemplo clássico no Shemá (“Ouça e obedeça, ó Israel!” [Dt 6.3]) apa­
rece no NT também. Ouvir Jesus significa conformidade com a Sua doutrina (Mt
17.5), respondendo de forma adequada e reconciliando-se (Mt 18.15).
H 6 João sustentava que os verdadeiros crentes recusariam as mensagens do “mun­
do” (v. 5). Eles recusam-se a dar ouvidos aos “falsos profetas” (v. 1), que haviam
deixado as igrejas joaninas (“saído pelo mundo”, v. 1). João chama seus leitores a
rejeitarem a cristologia docética dos separatistas. Eles deveríam ouvi-lo e também
a seus aliados. Ele insiste no fato de que, quando alguém não nos ouve e opta por
ouvir um evangelho contrário, mostra que não é de Deus.
Uma declaração positiva desse princípio aparece em João 8.47: “Aquele que
pertence a Deus ouve o que Deus diz”. Desenvolver um cristianismo ortodoxo é
visto nas questões constestadas entre João e seus oponentes. Para João, ensinar algo
alheio a seus pontos de vista claramente colocava a pessoa na arena do erro ou
engano. Ouvi-lo era ouvir a verdade. A pessoa inevitavelmente ouvirá um espírito
ou outro.

A P A R T IR D O T E X T O
Cristologia

Um consenso cristológico levou séculos para ser alcançado nos credos for­
mais das igrejas. Em 325, o Concilio de Niceia declarou Cristo como “gerado, não
criado” e “da mesma substância que o Pai”. O Concilio de Calcedônia, em 451,
afirmou Jesus Cristo como, ao mesmo tempo, plenamente Deus e homem (Smith,
1991, p. 101,102). Alguns cristãos ainda minimizam a humanidade de Jesus em
favor de uma forte afirmação de Sua divindade. Outros, para enfatizar Sua huma­
nidade, obscurecem ou rejeitam Sua natureza divina. João insiste no fato de que
ambos são essenciais para a salvação humana.
144
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

Escolhendo amigos

Nossos amigos e os contextos sociais de que fazemos parte nos inclinam em


direção a certos hábitos. Nossos associados afetam a forma como nos divertimos
e como gastamos nosso tempo e dinheiro. É certo que nem sempre podemos es­
colher o nosso ambiente. Porém, devemos sempre escolher o santo, ao invés do
contrário. Susanna Wesley aconselhou seu filho John:
Seja lá o que enfraqueça o seu juízo, prejudique a ternura de sua consciên­
cia, obscureça seu senso de Deus ou tire o seu gosto das coisas espirituais; em
suma, tudo o que aumenta a força e a autoridade do seu corpo sobre sua mente
é pecado para você, por mais inocente que seja em si mesmo (Wallace, 1997,
p. 109).
Escolhas de hábitos e associados derivam de nosso senso do caráter de Deus e
das expectativas dele sobre como a vida deve ser vivida. Os cristãos devem pergun­
tar-se continuamente: Como é Jesus? Que tipo de evangelho devemos proclamar?
E como devemos viver, então? Escolhas moldam hábitos. Hábitos influenciam a
direção, e a direção determina o destino.
Discernir as influências espiritualmente nutridoras da vida dos prejudiciais
raramente é fácil. Como é que rejeitamos ensinamentos extravagantes e, ao mesmo
tempo, permanecemos abertos às coisas novas que Deus pode estar fazendo? De­
vemos viver ancorados pela Escritura e comprometidos com a comunidade cristã.
A sabedoria coletiva do povo de Deus atual e passada pode ajudar-nos a encontrar
o caminho. Porém, a tarefa não é algo feito apenas uma vez. É um trabalho contí­
nuo, uma resposta diária de discipulado.

B. O Filho de Deus, um sacrifício de expiação (4.7-15)

POR TRÁS DO T EX T O

Para uma discussão sobre “sacrifício expiatório”, veja o quadro “Hilasmos” em


1 João 2.2.

NO TEXTO

■ 7 João retorna à sua preocupação com o amor mútuo (veja 3.11-24) chamando
seus amados para viverem em amor — amemos (no modo subjuntivo). O amor
deve manifestar-se nas relações com o próximo. O amor origina-se em Deus e flui
145
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

a p a rtir de Deus. O amor de Deus vem para todos, tanto pela criação como pela
graça (Marshall, 1978, p. 212); qualquer um pode optar por receber e expressar
esse amor divino.
João deixa claro que aquele que expressa o amor de Deus pelo próximo mani­
festa o próprio caráter de Deus (Akin, 2001, p. 177; Brooke, 1912, p. 117). Agir
em amor apresenta evidências de que é nascido de Deus e conhece a Deus. João
reúne em nascido e conhece a linguagem de concepção física e relação íntima para
reforçar o seu argumento. Ele reconhece Deus por quem e o que Ele é — um Deus
de amor (Strecker, 1996, p. 144).
Quando João escreve aquele que ama, ele não está dizendo que os atos de
amor fornecem provas conclusivas de que se é cristão. A palavra agapõn (um parti-
cípio presente ativo) sugere uma ação contínua e é mais bem compreendida como
aq u ele q u e con tin u a a a m a r os outros. João enfatiza que um estilo de vida óbvio
de amor demonstra que a vida de Deus está realmente presente em nós. Com base
nisso, a pessoa conhece {ginoskei: está sa b en d o) a Deus.
1 8 Esse conhecimento atual de Deus e da verdadeira natureza do amor não é um
segredo revelado apenas para poucos escolhidos. Ele flui de um relacionamento
disponível para todos. Amar deve ser um estilo de vida. Assim, João afirma que vi­
ver em uma condição habitual de n ã o a m a r é viver como estranhos a Deus. Quem
vive dessa maneira não conhece a Deus, porque Deus é amor. Ao manifestar amor,
demonstramos que conhecemos a Deus. Nosso caráter se torna cada vez mais o
que nós fomos criados e redentoramente recriados para ser. Quando nascemos de
Deus, começamos a conhecer a Deus.
Desenvolver um relacionamento com Deus e com o Seu povo é aprofundar
esse conhecimento. É como uma criança que passa o tempo com os pais e outros
familiares próximos e amigos e começa a conhecer uma série de coisas por experi­
ência íntima. Esse conhecimento é baseado e enriquecido em relacionamentos que
as crianças têm com aqueles que conhecem bem. Da mesma forma, a ausência de
amor reflete ignorância em relação a Deus, que é amor (veja 4.18).
A inspirada afirmação de João de que Deus é amor indica a base do manda­
mento anterior de amar. Nenhuma das equações de João, “Deus é espírito” (Jo
4.24), “Deus é luz” (1 Jo 1.5) ou Deus é amor aqui, é uma definição ontológica
do ser de Deus. Nenhuma delas esgota tudo o que pode ser dito sobre Deus. Essas
afirmações funcionam um pouco como as descrições das maneiras características
em que Deus trabalha na revelação e na redenção.
I 9 Deus manifestou (ephanerõthê) o seu amor na pessoa de Cristo em Sua
primeira vinda (Jo 1.14; 3.16). Em 1 João 2.28, ephanerõthê refere-se à futura
146
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

vinda de Cristo: “na Sua vinda”. O amor de Deus motiva tanto a primeira como a
segunda vinda de Cristo.
João faz duas ênfases. O amor de Deus é vivido corporativamente, nas comu­
nidades de adoração — entre nós. Porém, o amor de Deus também é vivido de
forma bastante pessoal — d en tro d e nós. O amor divino transforma indivíduos
e igrejas. A autêntica experiência de Deus é sempre pessoal, mas nunca solitária.
Deus enviou \apestalken, tempo perfeito] o seu Filho Unigênito. A missão
de Cristo ao mundo continua a ter impacto. O enviado alistou outras pessoas e
as enviou (Jo 20.21; Jo 17.18; veja Rm 10.15). O verbo apostellõ significa enviar
em uma missão como representante oficial (“apóstolo”). A arena da atividade mis­
sionária de Deus em 1 João — o mundo — é quase sempre uma referência a uma
localidade ou mentalidade antiDeus (2.15-17; 3.1,13; 4.1,3,4,5; 5.4,5,19, também
em 2 Jo 7). No entanto, também é necessário que Deus faça Sua obra de salvação
(2.2; vejajo 3.16).
A frase seu Filho Unigênito evoca João 3.16. Ela também lembra o leitor de
João 1.14, em que a glória vista em Cristo era “glória como do Unigênito vindo do
Pai”. No Evangelho de João, m onogenês combina as idéias de “unigênito” e “amado”
(Bruce, 1970, p. 108). A palavra transmite não só a ideia de um “filho único”, mas
também a de um filho amado de forma especial.
Em Hebreus 11.17, Isaque é o m onogenês de Abraão, que também teve Ismael.
Isaque é o filho único, o filho “ímpar”, porque, por intermédio dele, a promessa
continuou (Jones, 2009, p. 183). Da mesma forma, Jesus é o Filho único de Deus
no sentido de que Ele é plenamente divino (Earle, 1984, p. 107). Por intermédio
dele, todas as promessas de Deus são cumpridas. Ao enviar Seu Filho m onogenês,
Deus demonstra o alcance ilimitado de Seu amor para conosco. Como Filho Uni­
gênito de Deus, Jesus é o único que pode mediar a salvação (vejajo 1.18). Além
disso, por Jesus ser m onogenês, deve-se ter fé somente nele; não há outro. Deixar de
crer em Jesus é ficar sob o julgamento (Büchsel, 1967, p. 737-741).
O envio do Filho Unigênito torna possível a vida de Deus em nós — para que
pudéssemos viver. Porém, Ele não garante isso. Nem a vida é irrevogável. O verbo
está no modo subjuntivo, sugerindo que a vida é condicional. E possível ter vida
por aceitar a Cristo, mas é possível perder a vida por rejeitar a Cristo. A oferta e a
possibilidade de responder são de graça. Deus enviou Jesus. E somente por causa
de Sua iniciativa pela humanidade caída, quebrantada e pecadora é que podemos
esperar voltar à vida.
Aqui, viver não se refere à vida física (bios). A palavra usada para vida aqui é
um cognato de zoê, enfatizando a qualidade de vida. “Vida eterna” no NT é sempre
zoè (três vezes em Mateus e Lucas, duas vezes em Marcos, dezesseis vezes em João,
147
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

e nove vezes nas cartas de Paulo). Pode-se viver e respirar fisicamente e ainda ser
desprovido da vida de Deus. A vida que Deus oferece é conhecer e ser conhecido
por Ele. E viver em íntima relação com o Criador.
Gênesis adverte que comer da “árvore do conhecimento do bem e do mal”
(Gn 2.17) significa que “vocês morrerão” (3.3). O resultado não foi a morte física
imediata, mas a separação relacionai de Deus simbolizada pela expulsão do Éden.
A morte espiritual começa com a desobediência. A vida oferecida por Deus se dá
somente por meio dele, de quem o Pai enviou. Não existe outra fonte para a vida;
somente Deus, como revelado em Cristo, é a única fonte da verdadeira vida. Deso­
bedecer é distanciar-se de Deus e aceitar cada vez mais a morte. Obedecer é aceitar
Deus e experimentar a Sua vida, que flui do Filho.
■ 1 0 A iniciativa para a transformação espiritual vem de Deus. O amor a Deus
está em nós, porque ele nos amou. Deus tomou a iniciativa, já que, como cria­
turas caídas, nós geralmente apresentamos egoísmo em vez do amor altruísta de
Deus (Smith, 1991, p. 107). O amor é fundamentado na perfeição de Deus, não na
imperfeição do homem (Yarbrough, 2008, p. 239). Esse relacionamento rompido
com Deus só pode ser restaurado por Cristo (Burge, 1996, p. 188). Uma pessoa
pode autenticamente conhecer o amor por causa da eficácia da morte salvífica de
Jesus (Yarbrough, 2008, p. 240). Deus enviou Seu Filho para demonstrar Seu amor
definitivo (Brooke, 1912, p. 119).
No versículo 9, o tempo perfeito descreve o envio de Cristo, enfatizando os
efeitos contínuos da humanização. Aqui, o aoristo enfatiza o evento do ato de Deus
(Marshall, 1978, p. 214). A missão de Cristo teve uma finalidade precisa e profun­
da. O Filho veio a fazer por nós o que não poderiamos fazer por nós mesmos. O
perdão por nossos pecados foi alcançado por Deus ao assumir as consequências
da nossa rebelião (Marshall, 1978, p. 215). O objetivo do envio do Filho, além
de Sua natureza humana, foi para trazer-nos de volta a Deus (Akin, 2001, p. 180).
A morte salvadora de Cristo chama a atenção para a enormidade do amor divino
(Culpepper, 1998, p. 270). O envio tinha a reconciliação em vista — o Filho como
propiciação pelos nossos pecados.
A palavra traduzida como propiciação (hilasmos) é “expiação” em outras
versões (VC). Propiciação coloca o Filho como apaziguador do Deus Pai, a parte
ofendida. Expiação enfatiza a limpeza e a restauração resultantes dos pecadores.
Isso é obtido por um sacrifício que remove o pecado (Brown, 1982, p. 519).
A tradução de propiciação deixa a ênfase precisa da palavra para o leitor (veja
o quadro “Hilasmos" em 2.2). Na LXX, hilastêrion identificava o “propiciatório”
(veja Hb 9.5 ARC) como o lugar de reconciliação. O termo tinha um significado
148
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

técnico de culto ou de sacrifícios em relação ao Dia da Expiação (Lv 25.9), bem


como uma referência geral ao perdão de Deus (em SI 130.4; Lieu, 1991, p. 63).
Tanto a propiciação como a expiação produzem argumentos teológicos im­
portantes. Deus, que é contrariado pelo pecado do homem, é reconciliado com a
morte de Cristo na propiciação. A mudança é do lado divino. O pecado é grave e
requer sacrifício para ser expiado. A teologia joanina da cruz no Quarto Evangelho
enfatiza a morte de Jesus como exaltação. Porém, passagens com metáforas sacri-
ficiais aparecem (Jones, 2009, p. 184) em João 1.29 e 36. Jesus é entregue à morte
no horário em que os cordeiros pascais eram abatidos (Jo 19.14-16). Sacrifício
também está implícito no sacrifício do pastor por suas ovelhas (Jo 10.11).
Entretanto, a vinda do Filho aborda a necessidade de que os pecados sejam
removidos ou limpos em expiação. Isso diz respeito à mudança do lado humano do
evento expiatório. O pecado na vida humana deve ser removido por uma purifica­
ção completa.
Ao insistir no sofrimento devido ao pecado e pelo sofrimento em nome da hu­
manidade pecadora, Deus demonstra que (1) o pecado é sério e deve ser tratado de
forma radical, e (2) Ele é gracioso e torna possível a reconciliação (2 Co 5.18,19).
Deus reconcilia enviando o Filho. Todavia, Deus é também aquele que é reconci­
liado por meio do que o Filho realizou na cruz pelos nossos pecados. Os objetos
da iniciativa de Deus são reconciliados com Deus por meio de uma remissão e
purificação de pecados (tõn ham artiõn). Assim como João inclui várias pessoas
em nossas violações que exigem a cruz, assim também muitos estão incluídos na
provisão de Deus.
■ H O amor de Deus é descrito da mesma forma como o familiar João 3.16 —
Deus assim (houtõs) nos amou. Esse amor que enviou o Filho, insiste João, deveria
obrigar-nos a amar uns aos outros. A palavra devemos (opheilom en) sugere uma
dívida moral (veja Mt 18.28; Rm 13.8). O pronome enfático substantivo hêmeis,
nós, intensifica a declaração, uma vez que já está implícita na terminação do verbo.
Um relacionamento espiritual correto no plano vertical — Deus com o homem
— se manifestará justamente em uma relação de amor na horizontal — pessoa a
pessoa.
H 1 2 Que Deus é invisível é uma ênfase bíblica consistente. Uma declaração idên­
tica aparece em João 1.18: Ninguém jamais viu a Deus. Êxodo 33.20 é represen­
tante de ensino do AT. Lá, o Senhor disse a Moisés: “Você não poderá ver a minha
face, porque ninguém poderá ver-me e continuar vivo”. O NT descreve Deus como
“invisível” (l Tm 1.17; Flb 11.27).
O tempo perfeito viu enfatiza que Deus não foi visto no passado e continua
a ser invisível no presente. Embora ninguém possa ver Deus diretamente, Ele é
149
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

cognoscível em certa medida, uma vez que está (...) em nós quando vivemos o Seu
amor pelo próximo. O amor de Deus, residente nos seguidores de Jesus, demonstra
poderosamente o Seu propósito no mundo (Bruce, 1970, p. 109).
Mesmo que Deus não possa ser visto diretamente como pensavam hereges
gnósticos, Ele pode ser visto quando o Seu povo age em amor. João insiste no fato
de que o amor divino injetado em nós pode ser aperfeiçoado. Ou seja, ele cumpre
0 seu propósito ou atinge o seu fim (telos) entre nós, que vivemos no amor. O amor
é aperfeiçoado (teteleiõm enè, veja 2.5 e 4.17,18). Esse particípio passivo prova­
velmente presume Deus como o sujeito oculto que aperfeiçoa os crentes — nos
traz para o objetivo que Ele tem em mente para nós. A perfeição cristã não é uma
conquista do homem com base em mérito ou luta. E Deus trabalhando em graça,
alcançando Suas intenções para nós quando amamos uns aos outros.
1 1 3 João escreve todo o texto em grande desacordo com a declaração dos sepa­
ratistas que possuem um conhecimento esotérico especial. Entretanto, ele insistiu
no fato de que ele e todos os verdadeiros crentes de sua comunidade possuíam um
conhecimento próprio definido: Sabemos (ginõskomen)\ O verbo é um dos favo­
ritos de João, aparecendo quase 40 vezes, mas apenas algumas vezes nos Sinóticos.
E o que os cristãos joaninos afirmam saber? Que permanecemos nele e que
Deus permanece em nós. Essa profunda mutualidade de relação continua o tema
e a terminologia do versículo 12b. Algumas versões traduzem o verbo m enei como
“vive”. A NVI prefere o termo “permanece” (16 vezes no Evangelho de João e em
1 Jo 2.24,27). A NTLH normalmente traduz m enei como “vive” para descrever
essa estreita relação entre Deus/Cristo e os crentes (veja especialmente Jo 15.4-10).
A prova confirmando que Deus habita no coração do homem é que ele nos
deu do seu Espírito (veja 3.24). Com isso (en toutõi: não traduzido na NVI) liga
o versículo 12 ao caráter do Espírito recebido. A presença do Espírito de Deus é o
Espírito de amor (v. 7-12) e de fé (v. 14-16; veja v. 9,10). A presença do Espírito
nos crentes e dentro da comunidade adoradora não era uma conquista do homem.
Durante todo o texto, a graça é mantida claramente em vista. Deus inicia,
permanece/habita e traz os crentes à perfeição. Os cristãos não são, no entanto,
arrastados irresistivelmente pela Sua graça. Nós respondemos aceitando o Seu pre­
sente. No entanto, até mesmo a nossa capacidade de responder é graças à Sua graça
(Ef 2.8,9).
Ele nos deu (um verbo no tempo perfeito) o Espírito como uma realidade
permanente. Além disso, o Espírito é recebido, não por meio de uma busca soli­
tária por Deus, mas por uma crença comunitária — nós. O Deus que busca dá o
Espírito, gerando em nós um desejo por Ele.
150
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

■ 1 4 A declaração vimos aponta de volta para o versículo 12. Nós “vimos” Deus,
em certo sentido, apesar do fato de que “ninguém jamais viu a Deus” (v. 12). João
afirma: Vimos (...) que o Pai enviou seu Filho para ser o Salvador do mundo.
(veja o v. 10). Ligado à presença do Espírito na comunidade de amor, há uma visão
de fé na atividade de Deus na salvação: “A visão de fé evidencia sua certeza no fato
de que carrega o seu testemunho consigo” (Bultmann, 1973, p. 70,71). A capaci­
dade de amar e a capacidade de acreditar asseguram-nos da presença do Espírito
(veja 5.10).
As mudanças de tempo verbal de João nessa passagem parecem ser inten­
cionais. Ele diz vimos, no tempo perfeito, indicando uma visão anterior com um
impacto contínuo. O tempo presente que se segue, testemunhamos, sugere uma
prática contínua de contar a história do Deus Pai, que enviou o Filho para ser o
Salvador.
O Salvador, de sõtêr, aparece somente aqui e em João 4.42, nos escritos joa-
ninos. Esse título “tem paralelos com o culto helenístico de heróis e com o culto
romano ao imperador, assim como com a adoração dos deuses de cura no período
helenístico” (Strecker, 1996, p. 158). Na LXX, Deus é sõtêr, especialmente nos
Salmos e em Isaías.
No NT, o termo “salvador” é usado para referir-se, às vezes, a Deus, mas, na
maioria das vezes, refere-se ajesus (Lc 2.11; Jo 4.42; At 5.31; 13.23; Fp 3.20; 2 Tm
1.10; Tt 1.3,4; 3.6; 2 Pe 1.1,11; 2.20; 3.18). A salvação que Deus quer é a do mun­
do, uma oferta ilimitada de transformação para todos os que já foram hostis a Ele.
H 1 5 João mantém a porta da oportunidade aberta para todos — alguém {qual­
q u er um ). Ninguém está excluído do convite de Deus. Qualquer um pode vir con­
fessando Jesus como Filho de Deus. A tradução de confessa parece sugerir apenas
consentimento. No entanto, o verbo transmite um sentido mais público e ativo de
confessar (hom ologêsè) ou fazer um pedido público e uma declaração de modo de
vida (Mt 10.32). No Evangelho de João, confissões de fé em Jesus poderíam causar
expulsão da sinagoga (Jo 9.22; 12.42). Em Romanos 10.9,10, confessar Jesus como
Senhor está indissociavelmente ligado à obra salvífica de Deus (Hofius, 1991, p.
514-517).
Ao longo da carta, João enfatiza o cristianismo relacionai, uma fé não vincula­
da a um código legal. Pelo contrário, ela exige o envolvimento em uma relação de
amor com Deus por intermédio de Cristo: Deus (...) nele, e ele em Deus. A partir
disso, obediência e doutrina consistentes fluiriam. Esse privilégio, o resultado do
trabalho do Salvador (v. 14), é efetuado mediante a confissão de que Jesus é o Filho
de Deus (veja 1.9).
151
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A P A R T IR D O T E X T O

Qualidades divinas em pessoas que ainda não são cristãs

Incontáveis atos de amor em serviço e compaixão são realizados por pessoas


sem motivação religiosa. Elas também estão manifestando o caráter de Deus ? Cer­
tamente, mesmo que não reconheçam e mesmo que não aceitem que Deus existe!
Um trabalho de compaixão realizado por indivíduos ou grupos de pessoas
é evidência da graça d e Deus trabalhando p o r interm édio deles. Deus está traba­
lhando graciosam ente para trazê-los à f é . K menor capacidade de amar é devida
à graça (Akin, 2001, p. 177). Essa graça que precede a fé cristã intencional é, às
vezes, chamada de graça preveniente, uma graça que “vem antes”. Por Deus estar
trabalhando de formas redentoras em todas as vidas e sistemas, o Seu caráter pode
ser demonstrado mesmo àqueles que não ainda não estejam abertamente alinhados
com Ele.

Qualidades divinas em cristãos

Deus chama os cristãos para serem exemplo das qualidades de Deus, mais no­
tavelmente de Seu amor. Assim como o Senhor se manifestou no mundo, envian­
do Seu Filho Unigênito (v. 9), os seguidores de Cristo são chamados para deixar
evidente o amor de Deus no mundo (v. 9,14). Seguir a Cristo fielmente permite
que o Deus invisível seja visto em atos de amor ao próximo.

Deus em três pessoas

A expressão plena da Trindade aparece nessa passagem. Nos versículos 7-15,


Deus aparece treze vezes, Filho, quatro vezes, e Espírito, uma vez. A atividade do
Pai é um envio do Filho motivado pelo amor (v. 9,10,14). O Filho, com Sua morte
pelos pecados, disponibiliza a vida (v. 10). O Espírito confirma a relação entre
Deus e os crentes e entre irmãos em Cristo (v. 13).

C. O perfeito amor lança fora o medo (4.16-21)

NO TEXTO

I 1 6 João afirma a experiência atual das igrejas. Elas têm conhecimento


(conhecemos) e fé (confiamos, lit.: te m o s fé em , pepisteukam en).]oão descreve as
152
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

experiências passadas que continuam a impactar o presente. A força desses verbos


perfeitos pode ser concebida como: Viemos a conhecer e continuamos a conhecer
e acreditamos e continuamos a acreditar.
Deus e o amor são sinônimos — Deus é amor (repetindo 4.8). Ele define o
amor verdadeiro. Essa forte e clara equação é expandida pela ideia de viver (m enõn,
permanecer — verbo no particípio presente) no amor, que é viver em Deus. A
imagem é de estabelecer-se no amor de Deus, fazer sua morada segura no coração
dele. A fé cristã não é ocasional, mas constante. A fé não é apenas para grandes
eventos, mas vivida em todos os momentos da rotina da vida.
João expressa o amor absoluto — no amor; e, portanto, ilimitado. “Ele está
pensando não só no amor de Deus pelos seres humanos ou o no amor dos seres hu­
manos por Deus, mas também no amor dos seres humanos uns pelos outros” (Stre-
cker, 1996, p. 161). Nenhum dos três aspectos pode ser isolado individualmente.
■ 17 Essa vida em amor, que é viver em Deus e Deus viver em nós, faz com que
o amor dele seja aperfeiçoado. E o amor trazido à totalidade (teteleiõtai, de telos:
fin al, objetivo, propósito-, veja em 2.5 e 4.2). Ele cumpre o propósito para o qual
foi criado (Boice, 1979, p. 119). Esse trabalho de aperfeiçoamento (no v. 18, va­
riações de telos são traduzidas “perfeitamente”) não é uma conquista humana. A
voz passiva do verbo descreve a ação divina que traz plenitude. Deus aperfeiçoa
os crentes. Alguns enfatizam a atividade do homem de “seguir a Cristo” como o
caminho para o amor perfeito (Smith, 1991, p. 114).
Ainda assim, a realização de Deus não é alcançada sem a resposta do homem.
O trabalho de aperfeiçoamento de Deus ocorre em pessoas que fazem parte de
uma comunidade de fé — entre nós (m eth’hêm õn, sugerindo em nossa companhia
ou em cooperação conosco-, Brown, 1982, p. 527). Em seguida, é expresso em nosso
amor pelos outros. O amor de Deus encontra conclusão ou perfeição — seu ver­
dadeiro fim {telos) — na medida em que é compartilhado entre as pessoas (Burge,
1996, p. 189). A santidade não se desenvolve tanto na solidão como no relaciona­
mento.
Momentos tranquilos e fora da rotina podem ser parte da formação espiritual.
Porém, o verdadeiro teste de santidade ocorre quando o amor de Deus se manifesta
em contatos entre pessoas na comunidade. João enfatizou que o amor de Deus não
é para uso privado, mas para ser compartilhado. A primeira pessoa do plural (nós)
aparece três vezes nesse versículo. Deus deseja transformar as comunidades cristãs
de modo que tenhamos confiança (veja 2.28) na Sua presença à medida que en­
frentamos o futuro (2.28; 4.17) e oramos aqui e agora (3.21; 5.14).
Essa obra de Deus que traz plenitude espiritual não deve ser adiada para dias
distantes. Na verdade, o Deus santo que deseja aperfeiçoar a santidade em nós
153
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

começa a fazê-lo neste m undo, no mesmo lugar onde anticristos (2.18,22; 4.3),
falsos profetas (4.1) e enganadores (2 Jo 7) operam.
O amor universal de Deus pode ser vivido p o r interm édio de nós, de modo que
as outras pessoas possam ver, em alguma medida, como Deus é. Nós participamos
da natureza de Deus agora-, neste m undo somos com o ele (lit.: assim como aquele
também somos nós neste mundo-, veja 2.6; 3.7).
João espera que os crentes estejam de acordo com a imagem de Jesus em amor
no presente (Lieu, 1991, p. 90). A santidade não está reservada apenas para depois
da morte. Calvino disse: “Deus está no céu, Ele convida-nos a estar neste mun­
do, para que possamos ser reconhecidos como Seus filhos” (1959, p. 295). Essa
promessa surpreendente, ser com o ele, não pode ser subestimada. Compartilhar
a natureza de Deus é uma possibilidade presente (2 Pe 1.4). E uma realidade libe­
rada até depois da morte. E a única preparação adequada para a morte, quando
estivermos diante de Deus no dia do juízo. Essa firme fundação está sempre ligada
ao amor de Deus trabalhando entre as pessoas. Confiança diante de Deus e amor
cristão andam juntos (Bruce, 1970, p. 113).

D ia d o ju ízo

O c o n c e ito d e u m d ia d e ju l g a m e n t o fu tu r o a p a r e c e p r e c o c e m e n te e
c o m fr e q u ê n c ia n a s E s c r itu r a s . " D ia " n ã o s e re fe re a p e n a s a u m p e río d o
d e 2 4 h o r a s . N a p rá tic a h e b r a ic a , r e fe re -s e a a c o n te c im e n t o s h is tó ric o s
d e c is iv o s . Is a ía s fa lo u d o " d ia d o S e n h o r " ( 1 3 .6 ,9 ) e d o " d ia d a v i n g a n ­
ça d o n o s s o D e u s " ( 6 1 .2 ) . J e r e m ia s m e n c io n a o " d ia d a ira d o S e n h o r "
( L m 2 .2 2 ) , a s s im c o m o E z e q u ie l (" d ia d a ira d o S e n h o r " ( 7 . 1 9 ) . N a L X X ,
t u d o isso s e t r a n s fo r m a n a fr a s e g re g a "o d ia d o S e n h o r " (v e ja Jl 1 . 1 5 ;
2 . 1 , 1 1 ,3 2 ; 3 .1 4 ; A m 5 .1 8 ; S f 1 . 1 4 - 1 6 ) .
A fr a s e " d ia d e D e u s " a p a r e c e r a r a m e n t e n o N T (2 Pe 3 .1 2 ; A p 1 6 .1 4 ) .
N o N T , o " d ia d o S e n h o r " t e m u m a a s s o c ia ç ã o a p o c a líp tic a c o m Je s u s
c o m o k y rio s (v e ja 1 C o 1 .8 ; 5 .5 ; 2 C o 1 . 1 4 ; F p 1 . 6 ,1 0 ; 2 .1 6 ) . A lite ra tu ra ju ­
d a ic a in te r t e s t a m e n t á r ia in clui e x p r e s s õ e s s e m e lh a n t e s ( 1 En. 1 0 .6 ; 1 6 . 1 ;
Jub. 5 .1 0 ; 2 4 .3 0 ; 4 Ed. 7 . 1 1 3 ; SI. Sal. 1 5 .1 3 ) .
E s s e s v á r io s t e x t o s ju d a ic o s e c ris tã o s v is lu m b r a m u m t e m p o d e re s­
p o n s a b ilid a d e , e m q u e in d iv íd u o s e n a ç õ e s fic a r ã o d ia n te d e D e u s . N a p re ­
s e n ç a d a g ló ria d e D e u s , o n d e a s a n tid a d e é o p a d r ã o p a ra o ju l g a m e n t o ,
t u d o o q u e e s tá e r r a d o s e rá c o rrig id o . O m a l s e rá p u n id o ju s t a m e n t e . A
ju s tiç a s e rá r e c o m p e n s a d a . E s s e d r a m a d iv in o e h u m a n o t r a z o ju l g a m e n ­
to ju s to d e D e u s s o b re t o d o s , v iv o s e m o r to s . O ju lg a m e n to d o s m o r to s
p a re c e p r e s s u p o r re s s u rre iç ã o , u m a id e ia e n c o n tr a d a d e fo r m a m a is c la ra
p e la p rim e ira v e z e m D a n ie l 1 2 .1 - 3 . P o d e -s e a r g u m e n t a r , n o e n t a n t o , q u e

154
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

e s t a v a p r e v is to n a v is ã o d e E z e q u ie l d a " re s s u rr e iç ã o " d a n a ç ã o d e Israel


d o s " o s s o s s e c o s " , d o e x ílio b a b ilô n ic o ( E z 3 7 . 1 - 1 4 ) , e u m re to rn o à te rra
d e Is ra e l.
A o lo n g o d a s E s c r itu r a s , o ju lg a m e n to é e s p e r a d o e m u m t e m p o d e ­
t e r m in a d o n o c a le n d á r io d e D e u s . O ju lg a m e n to e s c a to ló g ic o n ã o é u m
d o s m u ito s e v e n to s e m q u e D e u s ju lg a in d iv íd u o s e n a ç õ e s a o lo n g o d a
h is tó ria . P e lo c o n tr á r io , é u m e v e n t o g r a n d io s o e t e m ív e l d e ju l g a m e n t o ,
m a r c a n d o a tr a n s iç ã o d a e ra a tu a l p a ra a id a d e d a p le n itu d e d o R e in o
d e D e u s . (V e ja a p a r á b o la d e Je s u s s o b re o Filh o d o H o m e m q u e s e p a ra
" o v e lh a s " e " b o d e s ” p a ra " c a s tig o e te r n o " o u " v id a e t e r n a " , e m M a te u s
2 5 .3 1 - 4 6 ; e o c e n a d o ju l g a m e n t o " g r a n d e t r o n o b r a n c o " d e A p o c a lip s e
2 0 . 1 1 - 1 5 ; H ie r s , 1 9 9 2 , p . 7 9 - 8 2 ; e J e n n i, 1 9 6 2 , p . 7 8 4 ,7 8 5 .)

A obra santificadora e aperfeiçoadora de Deus nesta vida oferece-nos ga­


rantias para o futuro dia do julgamento. Como um corpo coletivo de Cristo,
seremos santos diante do Deus santo, “perfeitamente restaurados (...), transfor­
mados de glória em glória (...), perdidos em maravilha, amor e louvor” (Charles
Wesley, “Love Divine, All Loves Excelling”; Kimbrough, 1987, p. 82).
H 1 8 A expressão do perfeito amor refere-se a ser amado por Deus perfeitamen­
te. Porém, essa é apenas parte da história. Certamente, a origem de todo o amor é
Deus, e sabemos como amar apenas “porque ele nos amou primeiro” (4.19). Con­
tudo, o amor de Deus não é apenas algo que recebemos. Ele também nos trans­
fo rm a e perm ite a nossa resposta de amor a Deus e ao próximo (Haas, Dejonge e
Swellengrebel, 1972, p. 113). A permanecer no amor de Deus, vivendo no fluxo
do perfeito amor, somos capazes de amar uns ao outros autenticamente (Painter,
2002, p. 283).
Em um relacionamento de amor recíproco, não há nenhuma necessidade de
ter medo na presença de Deus (Marshall, 1978, p. 224). O amor é personificado
como o agente que expulsa todo o medo. O poder do amor triunfa sobre o medo
(Strecker, 1996, p. 167). Esse perfeito amor, que tem origem em Deus, atinge a
sua meta em pessoas, umas pelas outras, e retorna a Deus. Este expulsa o medo
(Rensberger, 1997, p. 122). O amor naquele dia não poderá ser condenado pelo
Amor! O medo é la n ça d o fo r a {exo bailei), uma frase que lembra o julgamento
de pessoas más lançadas na escuridão (Mt 8.12; 22.13; 25.30) e os exorcismos de
espíritos malignos por Jesus (Mc 1.34 — exebalen; Mc 1.39 — ekballõn).
A declaração não há medo ocasionalmente tem sido forçada além do seu sig­
nificado. A libertação realizada pelo amor divino remove o medo do castigo (kola-
siri). No NT, a palavra só ocorre aqui e em Mateus 25.46, onde se denota “castigo
155
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

eterno” (kolasin aiõnion). Portanto, o medo do qual a pessoa é liberta é o medo de


estar diante de Deus no dia final (“dia do juízo”, v. 17). Aquele que tem medo está
continuamente (um particípio presente contínuo) ansioso quanto ao seu encontro
escatológico com o Juiz divino. O amor de Deus que trabalha nos crentes afasta o
medo.
Contudo, ainda se pode temer outras coisas. Na verdade, as pessoas devem
aprender a temer algumas coisas para fins de segurança pessoal e para serem boas
administradores da vida que receberam. Porém, o amor aperfeiçoado pode harmo­
nizar nossa vida com o caráter de Deus de tal forma que entrar na presença do San­
to não representa temor algum para nós. O caráter santo de Deus pode expressar-se
em juízo ardente sobre os pecadores. Ou a santidade pode realizar uma limpeza
profunda nos pecadores, transformando-os totalmente. Essa santidade nos crentes
concede a paz, porque atende ao requisito divino. Deus prepara-nos com o seu
perfeito amor, que flui para nós e por intermédio de nós para os outros. Isso nos
permite entrar na presença divina com confiança (v. 17).
B 1 9 Somos capazes de amar, uma vez que Deus nos amou primeiro e, assim,
permite a nossa resposta humana de amar. Esta é uma declaração de fato — nós
amamos, não uma exortação — “amemos”. O amor não é autogerado, mas de ori­
gem divina (Brooke, 1912, p. 125). O amor, como a santidade, tem a sua fonte e
definição em Deus. Não podemos tornar-nos verdadeiramente santos ou genuina­
mente amorosos por esforço próprio. Somente quando recebemos o santo amor ou
a santidade amorosa do Deus Criador podemos afirmar essas qualidades. Por isso,
tudo é pela graça.
Alguns escribas sentiram a necessidade de expandir o texto, esclarecendo o
objeto do amor humano. Alguns manuscritos registram amamos a Deus-, outros, o
amamos; e outros ainda, amamos um a o ou tro. Todavia, os melhores manuscritos
apoiam a leitura mais curta: simplesmente amamos — um amor sem designação
e sem limite.
B 2 0 A prova de amor é vista em ação. De forma sucinta, João alega que o amor
pelo irmão, a quem vê, dá um testemunho credível do amor a Deus, a quem não
vê. João não mede as palavras. Quem odiar (veja 2.9,11; 3.15) um irmão e alegar
amar a Deus é mentiroso. A ordem das palavras em grego particularmente enfatiza
isso — mentiroso ele é (pseustês estin).
Mesmo que as pessoas sem amor possam ser identificadas publicamente com a
igreja, falhar no teste de amor degrada-as a uma categoria reservada para infratores
graves. A definição de mentiroso aplica-se àqueles que desobedecem aos manda­
mentos de Deus (2.4) e que negam que Jesus é o Cristo (2.22). Mentirosos são
anticristos (2.22), que negam a Deus e a Cristo.
156
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

Muitos manuscritos simplesmente declaram no final do versículo 20 que o


mentiroso não pode amar {ou dynatai agapan). Outros colocam uma pergun­
ta retórica. C om o ele é capaz d e a m a r (põs dynatai agapan)? A força semântica
das duas leituras é idêntica. A pergunta espera claramente uma resposta negativa
(Haas, Dejonge e Swellengrebel, 1972, p. 114).
H 2 1 O amor por Deus é evidenciado pelas atitudes e pelos relacionamentos que
se tem por um irmão (adelphon). O termo irmão indica um membro da comunida­
de joanina (15 vezes em 1 Jo, três vezes em 3 Jo). Esse amor não é automático nem
dependente de sentimentos. Se o amor pode ser controlado, João pressupõe que
a obediência é uma escolha. A obediência é um ato de vontade, não uma resposta
emocional involuntária. O mandamento é fazer a coisa certa, independentemente
de como nos sentimos em relação aos outros. Se pudermos obedecer ao manda­
mento de amar, então certamente poderemos desobedecer a ele. Caso contrário,
o mandamento não é verdadeiramente tal, e não somos responsáveis pelo que fa­
zemos.

A P A R T IR D O T E X T O

0 amor de Deus vem por intermédio de muitas pessoas

Qualquer expressão verdadeira de amor tem sua origem no Deus que é amor.
O amor flui de Deus por intermédio das pessoas (v. 16), independentemente se a
pessoa reconhece Deus. Até mesmo ateus e agnósticos são parte da obra de Deus
no mundo (v. 14), quando eles atuam em amor. Quando expressamos o amor de
Deus aos outros, simultaneamente nos aproximamos do coração de Deus.

O amor perfeito leva tempo, mas pode ser real em nós agora

O amor aperfeiçoado ou completo (v. 17) engloba um espaço de tempo. O


aperfeiçoamento do amor de Deus nas pessoas começou com a declaração de Deus
em Gênesis 1 de que toda a criação era algo “bom” (Gn 1.18,21,25), até mesmo
“muito bom” (Gn 1.31). A restauração do que o pecado fez perder ocorre por meio
da cruz e entra na nossa vida quando respondemos, com fé, à oferta de Deus em
Cristo.
Além disso, o aperfeiçoamento do amor é uma realidade presente e viva. E
feita por Deus em nós neste mundo, para que sejamos como ele (v. 17). João tem
a intenção de combater os separatistas que negavam que Cristo veio em carne (4.2;
2 Jo 7). Finalmente, a conclusão do amor de Deus em nós neste mundo (v. 17) nos
157
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

prepara para o futuro dia do juízo (v. 17), quando teremos a confiança que Deus
promete.

Amor praticado

A profissão de fé cristã obriga os crentes a expressarem essa fé em atos amo­


rosos pelos outros (v. 20), tanto na igreja como além dela. A prática pastoral que
ajuda as pessoas a reconciliarem-se umas com as outras é essencial para a missão da
Igreja. Amar o irmão na igreja nos deixa livres para amar a Deus por completo (v.
20) e demonstra que o amor de Deus, verdadeiramente, reside em nós.

158
V. VIDA NO FILHO, MORTE NA SEPARAÇÃO:
1 JOÃO 5.1-21

A. Fé vencedora (5.1-5)

POR TRÁS DO T EXTO

A declaração Jesus é o Cristo (v. 1) combina um elevado título honorífico


e um nome pessoal. Cristo, da palavra grega Christos, significa “ungido”. A LXX
traduz a palavra hebraica como “Messias”. No AT, Messias refere-se ao rei de Israel
ou Judá (29 vezes; veja, por exemplo, Saul, em 1 Sm 24.6; Davi, em 2 Sm 19.21; e
Salomão, em 2 Cr 6.42).
No NT, a forma aramaica messias aparece apenas em João 1.41 e 4.25. Em
ambos os casos, Messias é imediatamente seguido por seu equivalente grego. Todas
as outras ocasiões no NT (mais de 200) usam apenas o grego christos.
A expectativa de um ungido como algo m ais do que um rei terreno, no entan­
to, tornou-se parte da esperança futura de Israel. Essa expectativa está presente tan­
to no AT como na literatura intertestamentária. Para alguns, o esperado tornou-se
um redentor celeste escatológico (veja Is 9.1-7; 11.1-9; Mq 5.2-5; e Zc 9.9,10).
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A expectativa messiânica incluía, para alguns, a ideia de um precursor ou agen­


te de antecedência, que prepararia o caminho para a vinda do Messias (Ml 4.5,6).
Os Evangelhos descrevem João Batista como um “mensageiro (...) [que] preparará
[...] o caminho para o Senhor” (Mc 1.2,3; veja Ml 3.1; Mt 3.1-3; Lc 3.1-18; Jo 1.6-
8,19-23). Marcos afirma explicitamente que João Batista cumpre a passagem de
Malaquias.
No tempo de Jesus, havia visões concorrentes sobre o Messias. Alguns tinham
uma cristologia “baixa” (de origem terrena), vendo o Messias como um rei davídico,
que surgiria para livrar Israel da sua ocupação romana do primeiro século. Outros
defendiam uma cristologia “alta”, prevendo o Messias como uma figura redentora
celestial. Esse ponto de vista foi parcialmente informado pela descrição da entro-
nização no céu de um Filho do Homem em Daniel 7.13,14. Escritos associados ao
nome de Enoque também usam a terminologia Filho do Homem para descrever
um campeão celestial dos justos (1 En. 62.7-9; 69.30-36; 71.14).
A expectativa messiânica cristã no NT inclui as duas concepções. Jesus foi
considerado um rei davídico e o Filho do Homem celestial. Os Evangelhos o iden­
tificam no sentido davídico 17 vezes, mas usam “Filho do Homem” mais de 80
vezes (todas em frases de Jesus sobre si mesmo). A expectativa messiânica no NT
também entende claramente Jesus em termos do homem das dores de Isaías (esp.
cap. 53). Os Evangelhos descrevem Jesus como um homem justo perseguido, que
sofre em nome de outras pessoas.
A comunidade do Qumrã imaginava um futuro em que um ou dois Messias
estariam em atividade. Alguns textos dos Manuscritos do Mar Morto (MMM) vis­
lumbram uma figura davídica real — um Messias rei chamado de “O ramo de Davi”,
“Messias de Israel” e “Príncipe de [toda] a Congregação”. Eles também antecipavam
um Messias sacerdotal, chamado de “Messias de Arão”, “O sacerdote” e “Intérprete
da Lei” (Vermes, 2004, p. 86).
Tanto a comunidade joanina quanto a do Qumrã esperavam uma vitória es-
catológica. O Qumrã esperava que a vitória ocorresse em breve. Para os leitores de
1 João, a vitória do fim dos tempos tinha já sido alcançada por Cristo e era uma
conquista contínua nas congregações (Schnackenburg, 1992, p. 230, n. 103; Bult-
mann, 1973, p. 78, n. 17).
Quando João desafia seus leitores a acreditar que Jesus é o Cristo (v. 1), o
artigo definido (ho, o) destaca o título. Jesus é o Messias. Na maioria dos casos nes­
sas cartas, o uso mais típico e completo, “Jesus Cristo”, aparece (1.3; 2.1; 3.16,23;
4.2; 5.6,20; 2 Jo 3,7). “Jesus”, sem “Cristo” que o acompanha, ocorre cinco vezes
(1.7; 2.6; 4.3,15; 5.5), embora a definição “Cristo” raramente seja removida. Outros
identificadores importantes também aparecem, como “Filho” e “Filho de Deus”.
160
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

“Jesus” aparece sozinho em apenas 2.6 (NLT); “Cristo” aparece sozinho em apenas
2 João 9.
NO TEXTO

B 1 As preocupações de João com uma cristologia correta (2.18-27; 4.1-6) e com


uma ética de amor adequada a ela (2.7-11; 2.28—3.18; 4.7-21) agora vêm em con­
junto (veja também 3.1-24).
A carta transmite um tom ecumênico de boas-vindas. O uso de todo parece
convidar todos os que creem à comunidade cristã. O particípio presente parece
enfatizar uma crença contínua — to d o a q u ele q u e tem a cred ita d o —, não um
momento único de renascimento espiritual. Crença e obediência contínua (v. 2)
fornecem evidências de quem é nascido de Deus. A frase ek tou theou (d eriva d o
d e D eus) sugere que os crentes têm origem em Deus (veja 2.29; 3.9,10; 4.7; 5.18).
As crenças erradas sobre Jesus mantidas pelos separatistas excluíam-nos da
categoria de “irmão”. Portanto, eles não faziam parte daqueles a quem o público
de João deveria amar (Brown, 1982, p. 566). As diferentes cristologias, a joanina
e a dos que “saíram do nosso meio, mas na realidade não eram dos nossos” (2.19),
devem ser mantidas em mente.
A afirmação de que Jesus é o Cristo está em paralelismo antitético gritante
com a negação dos separatistas em 2.22 de queJ esu s n ã o é o C risto (Brooke, 1912,
p. 128). João trabalha com urgência contra as incursões dos que possuem uma cris­
tologia perigosamente variante. O centro unificador para João era uma aceitação
correta de Jesus, que “veio em carne” (4.2), como o ungido de Deus, o Cristo.
Tanto a fé como o nascimento espiritual figuram de modo importante nessa
passagem de 1 João. Ele enfatiza a fé sete vezes em cinco versículos (v. 1,4,5,10,13).
O nascimento espiritual é mencionado nos versículos 1 (três vezes; veja em Pai e
filh o a seguir), 5 e 18 (duas vezes). O verbo nascido ressalta o nascimento espiritu­
al como um evento passado com consequências no presente.
Após passar pelo nascimento espiritual, a resposta natural é amar o Pai (mui­
tas traduções usam a palavrafilh o para uma tradução mais legível). O texto grego,
no entanto, diz que to d o a q u ele q u e am a o q u e g e r o u a m a ta m b ém a q u ele que
f o i g era d o a p a rtir dele. Assim, a pessoa que ama Deus certamente também ama o
Filho de Deus (veja 4.19).
1 2 O amor se dá por natureza recíproca. Origina-se em Deus, porque “Deus
é amor” (4.8,16). Ele circula de volta ao Criador, quando os crentes o adoram e
amam ao próximo (4.19-21). A evidência de que alguém ama a Deus verdadeira­
mente é demonstrada obedecendo (lit.:p ra tica n d o ) aos seus mandamentos. Al­
guns manuscritos leem m a n ten d o /o b ed ecen d o em vez de p ra tica n d o , consistente
161
1,2 E 3 JOÀO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

com o versículo 3. Assim sabemos que amamos os filhos de Deus porque nós
aceitamos e vivemos os mandamentos de Deus (4.20,21).
O amor de Deus trabalha de formas redentoras. O amor que flui de Deus e é
multiplicado pelas vidas que invade nos atrai para relacionamentos com os outros.
Esse versículo reflete o espírito do “maior mandamento da Lei” (Mt 22.36; veja v.
37-40; Lv 19.18; Dt 6.4). A adoração, uma resposta obediente a Deus, origina-se
em Deus e se expressa nas relações interpessoais. Amar a Deus de modo supremo e
amaropróximo comoasi mesmo resumemalei (Mc 12.28-31;Lc 10.27).
H 3 A obediência a Deus é esperada: Nisto consiste o amor (...): obedecer. Deso­
bediência a Ele nunca pode ser entendida como prática cristã normal. Ela prejudica
a comunidade. O amor a Deus significa devoção inabalável aos Seus mandamen­
tos. Sentimentos semelhantes aparecem no Quarto Evangelho. O amor a Deus
significa obedecer ou guardar (variações de têreo) o “mandamento” de Jesus (Jo
14.15) ou Sua “doutrina” (Jo 14.23; 14.24).
Esse não é um padrão que seres humanos normais podem alcançar sem ajuda.
Os mandamentos de Deus não são pesados (bareiai), mas não somos capazes de
obedecer sem a Sua assistência. Jesus lamenta pelos “mestres da lei e os fariseus”
que colocavam “fardos pesados \barea]” de regulamentações tradicionais sobre os
outros (Mt 23.2,4). Ele os criticava, usando outra forma da palavra da família bar-,
por sua negligência em relação a questões de exigências de Deus “mais importantes
\barytera]” (Mt 23.23). Atos 15.28 ressalta o desejo de não impor fardos desneces­
sários (baros) sobre gentios aceitando a fé em Jesus.
João não considera os mandamentos de Deus um fardo a ser suportado. Pelo
contrário, quando os cristãos obedientemente os aceitam, provam os nossa vida
nova dada por Deus. Essa nova vida é vivida na vitória porque Deus nos capacita
para que possamos obedecer (Haas, Dejonge, e Swellengrebel, 1972, p. 116).
■ 4 João enfatiza a vitória novamente: O que é nascido {gegennêm enon) de Deus
vence o mundo. O particípio perfeito grego implica que os nascidos de Deus con­
tinuam em seu novo estilo de vida. Elesj á são vitoriosos. As palavras vence nos ver­
sículos 4,5 (de nikao) e vitória (nikê) no versículo 4 derivam da mesma raiz grega.
O Jesus ressuscitado e que reina já é vitorioso. O particípio aoristo (nikêsasa, v.
4b), substituindo o nikai anterior (v. 4a), significa “venceu”. Cristãos participam da
vitória “de uma vez por todas” de Jesus sobre o mundo (Jo 16.23) pela fé (Marshall,
1978, p. 229; Bultmann, 1973, p. 77).
O que os crentes vencem? Anteriormente, João mencionou vencer “falsos pro­
fetas” (4.1) e “o espírito do anticristo” (4.3). Aqui, é o mundo. Ele não é um novo
adversário. Todas as três expressões descrevem aqueles que deixaram a comunidade
joanina (2.19).
162
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

A promessa de vitória é a temática semelhante nas frases no final de cada uma


das sete cartas em Apocalipse 2—3. Na passagem, ao “vencedor” são prometidas
recompensas apropriadas: “Darei” (Ap 2.7,11,17,26; 3.5,12,21). Em 1João, vencer
está ligado à fé, ou seja, à confiança contínua em Deus. Essa fé não é individualista,
mas corporativa/comunal (Jones, 2009, p. 209). Não somos deixados para sobre­
viver sozinhos. É nossa fé compartilhada, em comum com toda a comunidade,
que nos permite participar da vitória já alcançada por Cristo (Haas, Dejonge e
Swellengrebel, 1972, p. 117).
Curiosamente, a expressão participativa traduzida como o que {pan) é nascido
é de gênero neutro. Talvez isso aconteça porque a palavra grega para criança (tek-
non) seja neutra (Marshall, 1978, p. 228). Se assim for, a frase pode referir-se ao
público de João — to d o filh o d e D eus n a scido. No entanto, a palavra pan pode
ser traduzida como tu d o e sugere uma aplicação mais ampla do versículo 4. Jones
chama o neutro aqui e o de 2.16 de “abrangente” (2009, p. 209).
Pessoas resgatadas, certamente, e talvez toda a criação, terão uma nova vida de
Deus na nova era e participarão da vitória de fé. A redenção, decerto apenas insinu­
ada aqui, aparece claramente no pensamento de Paulo: “A própria natureza criada
será libertada da escravidão da decadência em que se encontra, recebendo a glorio­
sa liberdade dos filhos de Deus” (Rm 8.21). Um retrato vivido de culto universal
aparece em Apocalipse 5.13: “Ouvi todas as criaturas existentes no céu, na terra,
debaixo da terra e no mar, e tudo o que neles há” louvando a Deus e ao Cordeiro.
O texto em 1 João 5.4 usa a mesma raiz da palavra tanto no objeto como
no particípio que o acompanha. Assim, a última parte desse versículo pode ser
traduzida: Esta é a con q u ista q u e con q u ista o m u n do. Tal repetição hebraica
enfatiza fortemente a vitória. Outros exemplos desse dispositivo retórico apa­
recem com outras palavras. No versículo 9, “o testemunho \martyria\ de Deus,
que ele dá” (m em artyréken); versículo 10, “testemunho [martyrian\ que Deus dá”
(m em artyréken). No versículo 15, “o que pedimos” (ta aitêm ata ha êtêkamen) é,
literalmente, os p e d id o s q u e n ós p ed im os. No versículo 16, “cometer pecado” {ha-
m artanonta ham artian) é, literalmente, p e ca r u m p eca d o .
■ 5 João emprega uma linguagem utilizada anteriormente — “que Jesus é o Cris­
to” (v. 1). O versículo 5 muda um pouco a linguagem. A fé que vence o mundo
agora pertence àqueles que acreditam que Jesus é o Filho de Deus (veja 2.22,23).
A expressão Filho de Deus (ou apenas “Filho, referindo-se a Ele), aparece mais de
20 vezes em 1 João. Quase metade aparece no capítulo 5 (v. 5,9,10,11,12,13,20).
Os primeiros cristãos referiam-se a Jesus como “Cristo” (v. 1) e Filho de Deus. A
estrutura paralela dos versículos 1 e 5 reflete um paralelismo sinônimo típico da
poesia hebraica:
163
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

“Todo aquele que crê que Jesus é o Aquele que crê que Jesus é o
Cristo” (v. 1) Filho de Deus (v. 5)
pas hopisteuõn hóti ho pisteuõn hoti lêsous estin ho
lêsous estin ho Christos huios tou theou

Para a cristologia joanina, o Jesus humano é o Cristo como o Filho de Deus


(1.3:4.10,14).

A P A R T IR D O T E X T O

Viver em amor

E se cada um que declarasse nascido de Deus (v. 1) manifestasse isso de forma


consistente amando os outros ? Deus estende a mão em amor para estabelecer um
relacionamento conosco. Quando o amor de Deus se enraiza em nós, ele se espalha
para a vida dos outros. O amor age. Nem sempre é fácil saber o que fazer, mas parte
de amar é viver de acordo com o quej á se entende.

Viver em alegria

A frase não são pesados (v. 3) fala de uma fé ancorada pela alegria. Jesus ad­
vertiu sobre aqueles que colocavam demandas religiosas pesadas sobre os outros e
aconselhou: “Não façam o que eles fazem” (Mt 23.3). Ele descreveu suas exigências
para aqueles que vêm a Ele por comparação: “Meu jugo é suave e o meu fardo é
leve” (Mt 11.30). O que poderia acontecer se um avivamento de obediência com
alegria à Palavra de Deus varresse as igrejas e as casas do nosso mundo ?

B. Testemunhas da verdade (5.6-12)

POR TRÁS DO TEXTO

A validade do testemunho pessoal no AT estava ligada a um número especí­


fico de testemunhas credíveis. De acordo com Deuteronômio, “duas ou três tes­
temunhas” eram necessárias para estabelecer a culpa ou a inocência em acusações
criminais (19.15). Somente com essa base alguém poderia ser condenado à morte
(17.6).
Esse requisito é mencionado várias vezes no NT. Hebreus adverte seus leitores
contra a rejeição de Cristo. Argumentando do menor para o maior, o autor afirma:
164
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

“Quem rejeitava a lei de Moisés morria sem misericórdia pelo depoimento de duas
ou três testemunhas”. Ele prossegue apontando o maior “testemunho” do “Filho de
Deus” e do “Espírito da graça” (10.28,29).
Jesus aplicou o princípio de “duas ou três testemunhas” às Suas instruções para
a resolução de conflitos em Sua Igreja (Mt 18.15,16). Paulo usou o padrão para
determinar se uma acusação contra um presbítero poderia ser sustentada (1 Tm
5.19). Ele parecia considerar apenas a repetição do testemunho, pessoalmente ou
por carta, como suficiente (2 Co 13.1-3; Carver, 2009, p. 360). Essa norma do AT
quanto ao que constitui um testemunho credível é fundamental para essa passa­
gem de 1 João.
NO TEXTO

1 6 0 versículo 6 evoca o Evangelho de João ? Na cruz, as costelas de Jesus foram


perfuradas, e “sangue e água” (haim a kai h yd õ r,]o 19.34) surgiram. Isso fez com
que “aquele que o viu” afirmasse o seu testemunho (m artyria) como “verdadeiro”
(.alêthê, 19.35).
A convergência de água (hydatos), sangue (haim atos), testemunho (mar-
tyroun) e verdade (alêtheia) nessa passagem é marcante. A linguagem, com cer­
teza, reflete uma familiaridade com o Quarto Evangelho e, possivelmente, uma
dependência direta dele. Ela também pode evocar João 3 (veja água [hydatos] e
Espírito \pneumatos\ nov. 5).
Brown examina as várias teorias sobre o possível significado de água e sangue
em 1 João 5.6. Ele as reduz a quatro grupos. Aqueles que se referem: (1) aos sacra­
mentos do batismo e da santa ceia; (2) à vinda de Cristo; (3) ao batismo e à morte
de Jesus; e (4) ao significado da morte de Jesus. Ele entende que o último resolve
mais problemas do que qualquer outra teoria, uma vez que enfatiza o efeito salvífi-
co da morte de Jesus (Brown, 1982, p. 575-578).
No entanto, muitos intérpretes aceitam a terceira categoria (Culpepper, 1998,
p. 272; Smith, 1991, p. 123; Marshall, 1978, p. 231; Bruce, 1970, p. 118). Bruce
observa que a sequência (água, depois sangue) corresponde à ordem histórica do
batismo e da Paixão de Cristo. A afirmação dupla — por água e sangue — pode ter
sido usada para combater visões gnósticas. Alguns ensinavam que “o Cristo” (um
ser espiritual ou “Cristo-Espírito”) desceu sobre Jesus no Seu batismo e o deixou
antes da cruz (Smith, 1991, p. 124; Bultmann, 1973, p. 80; Bruce, 1970, p. 118).
Os oponentes de João conseguiam aceitar que Jesus veio por água, se isso fosse
uma referência ao Seu batismo. Porém, eles não conseguiam afirmar a autentici­
dade da humanização, se vir por água indicasse Seu nascimento humano natural.
165
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Também não conseguiam aceitar a morte de Cristo na cruz, se essa era a referência
de sangue. João, no entanto, afirmava tanto a humanização como a crucificação
como momentos de salvação importantes, em oposição à visão dos separatistas
(Marshall, 1978, p. 232).
Brooke observou corretamente que o batismo marcava o início da obra de
Cristo na cruz e sua consumação nos Evangelhos Sinóticos (1912, p. 133). Con­
tudo, o Quarto Evangelho nunca menciona explicitamente o batismo de Jesus por
João. Somente uma consciência do paralelo Sinótico aponta para ele.
Da perspectiva joanina, a humanização aceitava a existência corporal plena de
Jesus, desde o nascimento até a morte na cruz (Jones, 2009, p. 211; Burge, 1996, p.
202). A referência ao sangue quase certamente remete a 1.7 (“o sangue de Jesus...
nos purifica de todo pecado”), que claramente se refere ao significado redentor da
morte de Cristo (Jones, 2009, p. 211).
O papel do Espírito como aquele que dá testemunho parece correlacionar-
-se bem com João 15.26,27, onde ele é o “Espírito da verdade”, o “Conselheiro”.
A passagem do Evangelho também relata o testemunho do Espírito “da parte do
Pai” a “respeito” de Jesus. Os discípulos também foram obrigados a testemunhar.
O testemunho deles deveria ser permitido pelo Espírito que lhes foi enviado pelo
“ausente”, embora presente, Jesus (veja Jo 16.7; veja o quadro “Verdade” em 1.6).
João atribui uma enorme importância ao testemunho fiel conforme se aproxi­
ma da conclusão de sua carta. Esse tema recorda a declaração de abertura: “A vida
se manifestou; nós a vimos e dela testemunhamos” (1.2). No capítulo 5, João em­
prega variações de “testemunho” dez vezes em cinco versículos (v. 6,7, quatro vezes
no v. 9, três vezes no v. 10 e no v. 11).
A água e o sangue podem ter conotações sacramentais (batismo e santa ceia).
Se assim for, eles testemunham a obra salvífica de Jesus de uma forma repetitiva
(Smith, 1991, p. 124). Todavia, o Quarto Evangelho nunca menciona explicita­
mente a instituição da comunhão.
Um conjunto de leituras variantes ocorre no versiculo 6. Alguns manuscritos
descrevem água e sangue. Outros têm água e espírito. Uns, ainda, água e sangue
e espírito (todos os três) em várias combinações. Todos parecem ser tentativas
posteriores dos escribas de harmonizar a redação da epístola com os paralelos do
Evangelho já citados.
H 7 - 8 Esses versículos sugerem uma terminologia trinitária: Há três que dão tes­
temunho. Esses três testemunham continuamente (m artyrountes, um particípio
presente). No versículo anterior, o “Espírito” era a testemunha {to m artyroun), “dá
testemunho”. Agora, as testemunhas são três. Escribas posteriores não conseguiram
deixar de estender o pensamento em uma explícita terminologia sobre a Trindade.
166
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

Alguns dos últimos manuscritos da Vulgata (tradução latina da Bíblia cria­


da por Jerônimo no fim do quarto século e início do quinto século) expandem a
referência mencionando três testemunhas que “dão testemunho no céu: o Pai, a
Palavra e o Espírito Santo, e esses três são um”. Essa óbvia expansão teológica do
texto não aparece em quaisquer manuscritos gregos conhecidos antes do século 16.
Também não é citada por algum escritor da Igreja primitiva. Certamente teria sido
se tivesse feito parte do texto original (Marshall, 1978, p. 236; veja o cuidadoso
excurso em Akin, 2001, p. 198-200).
A terminologia de três pode sugerir uma tendência trinitária no pensamento
de João. Porém, mais provavelmente, foi uma expressão joanina da regra hebraica
de “duas ou três testemunhas” (Dt 19.15). João relata que as três testemunhas da
história do evangelho — o Espírito, a água e o sangue — são unânimes. Ele sa­
lienta a unanimidade do seu testemunho comum, porque vieram do testemunho
do “Espírito [que] é a verdade” (v. 6).
H 9 João argumenta aqui do menor para o maior (tecnicamente, um m inori ad,
maius). Se as pessoas receberem testemunho do homem, elas estarão ainda mais
inclinadas a receber o testemunho (m artyria) de Deus. O caráter de Deus define
integridade, então o testemunho divino é imensamente superior ao do homem.
O testemunho de Deus é focado na pessoa de Cristo — acerca do seu Filho. O
testemunho tríplice (v. 8) é o testemunho superior de Deus (Strecker, 1996, p.
192,193). O Evangelho de João ressalta que Deus provê um testemunho confiável
sobre Jesus (5.37; 8.18; veja o quadro “Testemunho fiel e martírio” em 1 Jo 1.2).
Deus d eu o Seu testemunho sobre Seu Filho no passado. No entanto, o teste­
munho ainda ressoa no presente (o verbo mem artyrêken está no pretérito perfeito).
João convida seus leitores/ouvintes a entrarem na história e aceitarem o testemu­
nho acerca do Filho de Deus.
H 1 0 Aceitar a palavra de Deus é dar um testemunho em si mesmo. Outros ma­
nuscritos descrevem simplesmente tem o testem u n h o em si, mas em si mesmo tem
o melhor respaldo manuscrito. A palavra “coração” (NTLH) é um acréscimo que
parafraseia o texto. A confirmação de fé é abrangente, envolvendo comportamento
exterior e convicção interior, mente e emoções, cabeça e coração. A verdade cogni­
tiva do testemunho de Deus nos agarra pelo centro do nosso ser — o que a Bíblia
frequentemente chama de “coração”. O testemunho de Deus não deve ser intelec­
tualizado, mas interiorizado. Ou seja, o testemunho tem de tornar-se a posse de
fé (Schnackenburg, 1992, p. 240). Isso significa simplesmente que “o evento da fé
é o testemunho” (Bultmann, 1973, p. 82). Nossa própria capacidade de acreditar
constitui o testemunho de Deus em nosso coração (veja Rm 5.5).
167
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Outras evidências textuais no versículo 10 variam. Há um forte apoio para a


leitura não crê (ou confia) em Deus. Alguns manuscritos, no entanto, descrevem
não crê no Filho, enquanto, em outros, consta não crê no Filho de Deus.
João insiste veementemente no fato de que quem resiste ao testemunho que
Deus dá acerca de seu Filho faz de Deus um mentiroso. Os separatistas preferem
a sua própria versão da verdade. A ordem das palavras é enfática: mentiroso ele o
fez. Os traidores da comunidade joanina não fizeram apenas uma inferência de que
Deus é mentiroso. A insistência teimosa deles em sua cristologia alternativa é uma
afronta permanente a Deus. Eles persistem em visões falsas [pepoiêken, elefez, está
no pretérito perfeito).
H 1 1 A declaração de João, este é o testemunho, evoca o início da carta (1.5; Cul-
pepper, 1998, p. 272). O testemunho de Deus a Seu Filho vem com uma oferta
de mudança de vida. Deus deu a vida eterna (veja 1.2; 2.25; 3.15). A ordem grega
é enfática: A vida eterna Deus nos deu (Haas, Dejonge e Swellengrebel, 1974, p.
122). Muitos esperam ter vida eterna sem render-se à soberania de Cristo. Entre­
tanto, a vida eterna vem somente por meio da fé em Jesus Cristo: Essa vida está
em seu Filho.
H 12 João conclui: Quem tem o Filho tem a vida. Rejeitar o testemunho de
Deus sobre Seu Filho é rejeitar a vida eterna oferecida somente por intermédio
desse Filho (v. 11). Rejeitar o Filho traz a ira de Deus (Jo 3.36) e morte. O versícu­
lo 12 é um exemplo bem condensado da forma poética de paralelismo de antítese:
• Quem tem o Filho tem a vida.
ho echõn ton h u ion ech ei tên zõên
• Quem não tem o Filho de Deus não tem a vida.
ho m ê echõn ton h u ion tou theou tên zõên ouk ech ei
Os versículos 11 e 12 englobam o impulso essencial de toda a carta. A vida de
salvação é encontrada som ente no Filho de Deus.

A P A R T IR D O T E X T O

Testemunhas fiéis

O plano de Cristo era chamar e treinar algumas pessoas (“os doze”), para con­
tar aos outros. Eles, por sua vez, contariam a outros. Todos os que ouviram o evan­
gelho fazem parte desse conjunto de testemunhas fiéis. O conjunto atinge desde
o primeiro testemunho do descobrimento do túmulo vazio e encontra-se com o
Cristo ressuscitado no presente. Como corredores de revezamento, recebemos o
168
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

testemunho de fé fiduciária com a responsabilidade de transmiti-la. Testemunhas


fiéis têm uma responsabilidade pessoal. Porém, não estão sozinhas. Nosso teste­
munho junta-se ao coro de uma “grande nuvem de testemunhas” (Hb 12.1) que
compartilham a mesma missão (At 1.8).

Integridade pessoal

Como podemos aceitar o testemunho dos homens (v. 9), se aqueles que tes­
temunham não têm integridade? Estabilidade social, equilíbrio, saúde familiar e
relações espirituais requerem pessoas cujas palavras sejam verdadeiras. Pessoas de
todas as épocas, infelizmente, demonstraram a capacidade humana de esconder e
distorcer a verdade. Devemos viver com sinceridade e de forma consistente, para
que os outros possam acreditar em nós com facilidade. No entanto, apesar de nos
esforçarmos ao máximo, o testemunho de Deus é maior.

Segurança espiritual

Ter uma confiança interna em um relacionamento correto com Deus pode


manter-nos firmes nas circunstâncias mais difíceis. Quando John Wesley teve seu
encontro “comovente” com Deus, em 24 de maio de 1738, ele escreveu em seu diá­
rio: “Uma certeza me foi dada de que ele tinha tirado meus pecados, até mesmo os
meus, e m e salvado da lei do pecado e da morte” (1978, 1:103). Somente o Espírito
de Deus pode dar essa confiança.
O segundo sermão de Wesley sobre “O Testemunho do Espírito” descreve a
confiança cristã como:
Uma impressão interior da alma, por meio da qual o Espírito de Deus ime­
diata e diretamente testemunha ao meu espírito de que sou filho de Deus;
que Jesus Cristo me amou e se entregou por mim; que todos os meus pecados
foram apagados, e eu, até mesmo eu, estou reconciliado com Deus (Wesley,
1978,5:124,125).

C. Confiança na vida eterna (5.13-17)

POR TRÁS DO T EX T O

A expressão vida eterna é frequente nos escritos joaninos. Ela ocorre seis vezes
em 1 João (1.2; 2.25; 3.15; 5.11,13,20), e 16 vezes no Evangelho. Nos Evangelhos
Sinóticos, ela aparece apenas oito vezes. E um conceito distintamente do NT. Uma
169
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

ideia similar no AT aparece apenas em Daniel 12.2, que se refere à “vida eterna”,
com uma clara referência ao futuro. A literatura joanina enfatiza de modo especial
a experiência atual da vida eterna.

NO TEXTO

1 13 João refere-se ao que ele já havia escrito (aoristo, veja o comentário em 2.14).
A NVI traduz isso no pretérito perfeito — escrevi-lhes, interpretando o verbo
como uma referência à carta acabada, do ponto de vista de seus leitores. João não
se referia a uma carta anterior. Esse é um “aoristo epistolar”. A redação da carta
ocorreu no passado, do ponto de vista do leitor, embora, naturalmente, João esti­
vesse escrevendo no presente. Isso explica a diferença entre as traduções literais de
equivalência e dinâmica (Earle, 1984, p. 109).
Smith sugere que 1 João possa ter originalmente encerrado em 5.13. Ele se
refere a “problemas de finalização” semelhantes nos Evangelhos de João e Marcos e
em Romanos (1991, p. 121,122). Contudo, Jones demonstra, de forma convincen­
te, que 5.13-21 assemelha-se a um epílogo clássico (2009, p. 223).
Por 36 vezes em 1 João e uma vez em 2 João e em 3 João, o autor afirma escre­
ver para que seus ouvintes saibam. A declaração para que vocês saibam, no modo
subjuntivo, indica que João reconhecia que o conhecimento deles era condicional.
A confiança que tinham em ter vida dependia da resposta que dariam para a ori­
gem da vida. A palavra bina introduz uma oração de “propósito”. João escrevia a
fim de que eles pudessem saber. Ele pretendia que suas comunidades pudessem ficar
totalmente confiantes de que tinham vida eterna como realidade pessoal e corpo­
rativa (vocês, no plural). Porém, isso dependia de realidades alheias à sua vontade.
A frase a vocês que creem traduz um particípio presente. Isso enfatiza a ne­
cessidade da fé contínua: A vocês que continuam crendo. Acreditar no nome do
Filho de Deus é mais do que um evento. Isso pode começar em um momento de
confiança, mas exige aprovação contínua. Quando a entrega a Deus acontece, a
vida e a obediência devem ir atrás (Brooke, 1912, p. 143).
Há uma sequência de afirmações de crença no capítulo 5 (v. 1,5,10,13). Em
cada uma, a terminologia muda para salientar novos pontos. Esses quatro versí­
culos destacam o paralelismo poético e o desenvolvimento da fé. O cristão ou os
cristãos:
crê que (boti) Jesus é o Cristo (v. 1)
crê que (boti) Jesus é o Filho de Deus (v. 5)
crê no (eis) Filho de Deus (v. 10)
creem no (eis) nome do Filho de Deus (v. 13)
170
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

A fé tem um conteúdo intelectual. Cristãos aceitam como verdade sobre Jesus


o fato de que Ele é o Cristo/Filho de Deus. A fé também tem uma dimensão rela­
cionai. Ela é a confiança depositada em um a pessoa. A mudança nos versículos 10
e 13 enfatiza essa nuance de confiança pessoal (Jones, 2009, p. 226; veja Mt 18.6;
Mc 9.42; Jo 14.1; At 24.24; 26.18).
João expande a afirmação de que quem crê no Filho acredita também no
nome do Filho de Deus. Isso pode apontar para o uso de “nome” no sentido téc­
nico encontrado em Atos 5.41 (veja o comentário em 1 Jo 3.23 e 3 Jo 7). A fra­
se creem no nome é uma construção tipicamente joanina (Jo 1.12; 2.23; 3.18; 1
Jo 3.23; 5.13). Isso implica rendição pessoal completa para a revelação divina em
Cristo (Hartman, 1981, p. 520).
■ 1 4 - 1 5 João faz uma ligação entre a certeza da vida eterna dos cristãos e a
confiança em oração. Nossa confiança (veja o comentário em 2.28; 3.21; 4.17)
de que nossas orações serão respondidas não deve considerar que Deus tenha de
fazer o que nós pedimos. Ao pedirmos (lit.: solicita rm os, traduzido duas vezes no
v. 16 como “ore” e “orar”), o nosso pedido, em primeiro lugar, nos mudará. João
possivelmente emprega a entonação com o significado de perguntar para si mesmo
(Brown, 1982, p. 609; Westcott, 1952, p. 190). O texto considera que aqueles que
pedem se tornarão cada vez mais alinhados com as intenções de Deus (Haas, De-
Jonge e Swellengrebel, 1972, p. 125).
O objetivo de orar não é apenas obter coisas de Deus, mas “falar a mesma
língua” que Ele. A oração não é uma técnica pela qual podemos obter tudo (lit.:
tu d o o q u e p ed im os). Pelo contrário, é um meio de obter intimidade com Deus.
A medida que aprendemos a pedir de acordo com a sua vontade, sabemos que
Deus nos ouve. Certamente, o maior benefício da oração está em ficar mais perto
do coração de Deus. A medida que aprendemos cada vez mais o que Deus quer, en­
tramos plenamente na alegria das respostas do que dele pedimos (Marshall, 1978,
p. 245). As ocorrências da primeira pessoa do plural (oito vezes) nos lembram de
que a oração é melhor em concordância com cristãos que pensam da mesma forma.
Diversos versículos do Quarto Evangelho assemelham-se fortemente aos ver­
sículos 14 e 15. João 14.13 relata a promessa de Jesus: “Eu farei o que vocês pedi­
rem em meu nome”. Em 15.16, ele assegura que “o Pai lhes conceda o que pedirem
em meu nome”; em 16.23: “Meu Pai lhes dará tudo o que pedirem em meu nome”.
Todas essas declarações devem ser lidas com as palavras-chave do último discurso
de Jesus. João 15.7 é fundamental: “Se vocês permanecerem em mim, e as minhas
palavras permanecerem em vocês, pedirão o que quiserem, e lhes será concedido”.
A oração cristã é sempre moldada pelas palavras do Senhor e por um relaciona­
mento saudável com Ele.
171
1,2 E 3 JOÂO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

João escreve à comunidade cristã: Se sabemos que ele nos ouve (...) sabemos
que temos o que dele pedimos. Os crentes podem ter confiança de que Deus
os ouve, porque juntos pedem em harmoniá com a vontade de Deus. O que João
promete é que aqueles que buscam sinceramente a vontade de Deus em sua vida a
encontrarão.
Muitos crentes sinceros compreendem erroneamente a oração em “nome de
Jesus”. Eles imaginam que uma marca de identificação no final de suas orações, de
alguma forma, obriga Deus a cumprir suas solicitações. Na verdade, a oração em
“nome de Jesus” significa pedir de modo consistente, com os propósitos de Deus
trabalhando por intermédio de Jesus, pelo Espírito.
Orar “no nome” (v. 13) é pedir de acordo a sua vontade (v. 14), não contrário
a ela. Será que algum verdadeiro filho de Deus quer outra coisa senão a vontade de
Deus? Pedir a Deus “no nome” significa que representamos fielmente o caráter de
Cristo em todas as formas — Sua vida, Sua morte, Sua ressurreição e Seu reinado
vindouro. Orar “no nome” afirma a contínua presença de Cristo no mundo pelo
Espírito, que nos ajuda a orar (Carver, 1996, p. 81-89).
Um pedido equivocado, voltado ao encantamento, consegue pouco mais do
que frustração e anemia espiritual. Pedir fora da vontade de Deus nada traz de po­
sitivo. Quando oramos em nome de Jesus, buscamos a vontade de Deus. Só dessa
forma conseguimos avançar com clara segurança. Deus, que coloca em nosso cora­
ção para orarmos dessa maneira, trabalha para permitir a resposta. Ou seja, tem os
0 p ed id o q u e fiz em o s a Ele.
1 16 Nesse complicado versículo, a questão aparentemente continua a ser a se­
gurança relacionada às nossas orações. De que modo a confiança na oração (v. 14)
afeta nossa confiança na vida eterna (v. 13)? João está dizendo que alguns objetos
da oração intercessora aumentarão a nossa confiança e outros não ? Será que ele está
enfatizando que a oração tem os seus limites ? Quais são as distinções que ele quer
que reconheçamos ?
Uma oração por um irmão [que] cometer pecado que não leva à morte pode
ser expressa com confiança (v. 14,15)? Uma oração por alguém cujo pecado leva à
morte não pode ser feita com confiança? Como podemos saber as consequências
futuras de um pecado particular? Pecados particularmente hediondos precisam de
mais de intercessão ? Como sabemos que não precisamos orar em tais circunstâncias ?
Será que João está sugerindo que nós nunca podemos orar por esses pecadores,
nem por esses pecados ? Será que João, por outro lado, está sugerindo que a nossa
oração por si só pode garantir o perdão divino para o menor dos pecados das outras
pessoas sem que precisem orar?
172
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

João declarou anteriormente o seu propósito de escrever a fim de que seus


leitores nunca pecassem (2.1). Aqui, no entanto, ele reconhece a possibilidade de
os crentes pecarem. Um irmão pode cometer pecado (ham artanonta ham artian,
lit.: p eca n d o um p eca d o , uma maneira de falar da LXX; Brown, 1982, p. 611) e
precisar de correção. O verbo p eca n d o pode sugerir cair em um padrão pecamino­
so, não apenas cometer um pecado isolado (Bruce, 1970, p. 124; Blaney, 1967, p.
402; Brooke, 1912, p. 146,147).
João afirma que os cristãos são obrigados a orar uns pelos outros — ore. Pedir
a Deus em nome de outra pessoa é garantido de modo especial, quando um com­
panheiro cristão está em dificuldade ou faz escolhas abertamente pecaminosas. Os
filhos de Deus são a família, a quem o evangelho foi confiado, e os responsáveis uns
pelos outros. A terminologia familiar (irmão) provavelmente se refere aos crentes
das igrejas joaninas, distinguindo-os dos separatistas (2.19). Essa obrigação de orar
pelos companheiros de fé é contrastada com outros pecadores pelos quais, aparen­
temente, não são obrigados a orar. O tom é semelhante ao de Jesus em João 17.9:
“Não estou rogando pelo mundo”.
A diferença está no que João quer dizer por pecado que não leva à morte
(ham artian m êp ros thanaton), em contraste com pecado que leva à morte (ha-
m artiapros thanaton). Algumas passagens do AT vinculam pecado à morte física
(Nm 18.22; Dt 22.26, veja também Jub. 21.22; 26.34; 33.13,18). A segunda frase
parece sugerir uma situação em que o pecador está fora do alcance da graça divina.
Isso explica por que João não exige que seus leitores orem por essas pessoas. Porém,
esse pode realmente ser o significado? Há alguém que está além da graça de Deus?
E possível que João tenha um pecado específico em vista? Alguns apelaram
para a distinção católica romana tradicional entre pecado “mortal” e “venial”. Há
pecados específicos que, quando cometidos, isentam outros cristãos de orar por
essas pessoas?
A intenção de João é problemática. O contexto sugere a arena de oração que
está dentro vontade de Deus (v. 14,15). Os cristãos são chamados a compreender
que não é a vontade de Deus que alguém pereça (2 Pe 3.9). Assim, orar para que
alguém se arrependa parece ser uma oração dentro da vontade de Deus.
Bruce sugeriu que, como a carta combate os perigos do cristianismo docético
que negam a natureza humana de Cristo, os adversários separatistas estão em vista
aqui. O pecado que leva à morte, então, é entendido como crenças cristológicas
falsas, um posicionam ento herético no qual se escolhe persistir. Deixar a comunidade
de cristãos joaninos era visto como um abandono do grupo em que foi encontrada
a vida eterna (Bruce, 1970, p. 125).
173
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Aqueles que haviam deixado a comunidade joanina (identificados como “an-


ticristos” em 2.18 e 2 Jo 7) deliberadamente escolheram um caminho de separação.
Essa apostasia da verdadeira fé está apoiada no apelo: “Guardem-se dos ídolos” (l
Jo 5.21). Isso pode ser entendido como proteger-se contra os falsos ensinos (Bult-
mann, 1973, p. 87,90) — idolatria ideológica. Permanecer de modo obstinado em
suas falsas crenças opostas aos ensinamentos de João significava que eles morreríam
em seus pecados. Assim, os separatistas estavam cometendo o pecado que leva à
morte (Jones, 2009, p. 230; veja Jo 8.24; van der Watt, 2007, p. 63). Isso é coerente
com outras passagens de 1 João que afirmam que a morte espiritual é o resultado
de sepersistir no pecado, demonstrado por uma falha em amar (3.14) e uma conse­
quente negação de Cristo (5.12).
Dessa forma, havia a esperança de ajuda para o cristão joanino (o irmão), mas
não para aqueles que continuavam fora do círculo joanino (Brown, 1982, p. 611).
As igrejas de João foram desencorajadas até mesmo de orar pelos separatistas, para
deixar o destino deles com Deus.
O pecado que leva à morte de João referia-se a pecados que eram incompa­
tíveis com a condição de filhos de Deus (Marshall, 1978, p. 247). Esses pecados
incluiriam negar que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus (2.22,23); recusar-se a obe­
decer aos mandamentos de Deus (2.4); amar o mundo (2.15-17); e odiar compa­
nheiros de fé (2.9,11; 3.15; 4.20).
Calvino entendia o pecado de morte não como uma referência a “uma que­
da parcial ou à transgressão de um único mandamento, mas à apostasia, homens
alienando-se completamente de Deus” (1959, p. 311; veja Mt 7.6; Rm 1.28).
Embora João considerasse que seus leitores do primeiro século entenderíam
o que ele queria dizer, conclusões firmes nos escapam no século 21. A discussão
acadêmica oferece uma variedade de pontos de vista quanto à referência ao pecado
para a morte. Jones enumera oito (2009, p. 231).
A frase pode ter servido para separar claramente os cristãos joaninos restantes
daqueles que romperam com eles, como mencionado anteriormente. Em qualquer
caso, nenhuma permissão legítima para deixar de orar por outra pessoa na era mo­
derna pode ser derivada a partir desse texto.
O fato de João usar a palavra grega pros (à) aqui parece sugerir uma “morte”,
que ainda não ocorreu, uma vez que pros pode conter o sentido de “tende a” (Jo­
nes, 2009, p. 231; Liddell, 1996, p. 1497). Assim, a intenção de João não pode ter
sido a de proibir seu público original de orar por aqueles por quem já estava morto
fisicamente.
H 1 7 Esse versículo iguala a injustiça ao pecado. Estendendo a analogia, se toda
a injustiça é pecado, então a justiça se manifestaria como uma ausência de pecado.
174
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

Embora tenha sido mencionada apenas brevemente na passagem, a suposição de


João é clara. Podemos, se nos submetermos à vontade de Deus, cessar a prática
do pecado. Portanto, orar para que isso aconteça na vida de outra pessoa é certo e
esperado — “ore” pelo irmão (v. 16). O pecado ainda pode invadir, mas não pre­
cisa controlar o cristão. Mesmo se o pecado e o Filho de Deus ocasionalmente se
encontrarem, eles não poderão viver juntos em harmonia (Akin, 2001, p. 212).
Alguns manuscritos omitem a partícula grega negativa {ou), alterando, assim,
o versículo 17 para existe um p e ca d o p a ra a m orte, fazendo-o concordar com o
versículo 16b. Porém, a variante textual aqui apenas destaca a formulação proble­
mática. Escribas antigos, assim como intérpretes posteriores, foram duramente
pressionados a esclarecer completamente a passagem.

A P A R T IR D O T E X T O

Orar urgentemente pelo próximo

A confiança de orar dentro da vontade de Deus é precedida pela certeza es­


piritual de saber que você tem a vida eterna (v. 13). Aquele que crê no nome do
Filho de Deus (v. 13) está em uma boa posição para orar. A confiança também
tem base no fundamento dos propósitos de Deus — a Sua vontade (v. 14). Orar
pelos que estão em luta espiritual é uma vocação que está dentro da vontade de
Deus. Nossas orações não podem sobrepor as opções contrárias de outras pessoas,
mas a oração de intercessão pode suavizar o coração delas.

Pecado, morte e vida

A existência de um pecado que leva à morte (v. 16), que está além de orações,
é uma ideia assustadora. Embora o sentido completo do significado do texto nos
escape, a advertência é clara. O pecado é letal; e alguns pecados matam mais rápi­
do do que outros. Independentemente da velocidade, a estrada da rebelião contra
Deus tem sempre a morte como destino final. Contudo, deixar os toques do Espí­
rito, ajudados pelas orações do povo de Deus, conduz-nos cada vez mais conduz à
vida.
A distinção entre pecados pelos quais o leitor é convidado a orar em contraste
com aqueles pelos quais não é necessário orar tem alguns desenvolvimentos
históricos interessantes. Quanto ao “pecado para a morte”, Agostinho concentrava-
-se especialmente em pessoas que chegavam ao fim da vida em “perversidade”.
175
1.2E3JOÀO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Ecumênio, de forma similar, entendia que apenas os pecados sem arrependimento


levavam à morte (Bray, 2000, p. 226,227). No período medieval, desenvolveu-se
uma distinção entre pecados mortais (era necessário confessar-se ao próximo) e
pecados veniais (pedidos privados de perdão eram considerados adequados; Lieu,
1991,p. 113).

D. Coisas que sabemos (5.18-21)

POR TRÁS DO TEXTO

Quase metade das 11 ocorrências no NT de Maligno (v. 18) está em 1 João


(2.13,14; 3.12; 5.18,19; cf. Mt 5.37; 6.13; 13.19,38; Jo 17.15; Ef 6.16; 2 Ts 3.3).
Nas passagens do Evangelho, o termo aparece nos discursos de Jesus. Duas instân­
cias em Paulo provavelmente refletem esse uso. A frequência da frase em 1 João
sugere que a comunidade joanina identificava essa memória de Jesus.
A advertência contra “ídolos” (v. 21) demonstra uma longa tradição da Bíblia
hebraica. Os profetas advertiam energicamente contra a idolatria, apesar de seus
chamados, muitas vezes, obterem resultados variáveis. Advertências contra ídolos
aparecem desde os Dez Mandamentos (Ex 20.4) e várias vezes depois disso no AT
(“ídolo”, 37 vezes, “ídolos”, 157 vezes, e “idolatria”, quatro vezes).
As referências explícitas do NT à idolatria são mais limitadas. Há 27 casos dos
três termos combinados. Entretanto, o ensino continua a ser claro e consistente: o
povo de Deus nunca deve substituir coisas menores por Deus. João pode evocar a
palavra ídolos encontrada nas graves advertências de Apocalipse 2—3. Esses capí­
tulos lembram os apelos urgentes de Paulo aos coríntios, especialmente no tema
“alimentos sacrificados aos ídolos” (1 Co 8.1,4,7,10; 12.2; Ap 2.14,20; 9.20).

NO TEXTO

1 18 Sabemos é uma das expressões favoritas de João, aparecendo em 17 versícu­


los (2.3,5,18; 3.1,2,10,14,16,19,24; 4.13,16; 5.2,15,18,19,20). Os três casos pouco
distanciados aqui (v. 18,19,20) dão a esses versículos uma cadência rítmica (Burge,
1996, p. 216).
A preocupação ética de João é reafirmada de forma resumida na conclusão,
com uma proclamação ousada de libertação do poder opressivo do pecado: todo
aquele que é nascido de Deus não está no pecado (3.6,9). A prática do pecado
é quebrada pelos resultados permanentes do novo nascimento (gegenném enos, um
176
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

particípio perfeito), não por alguma experiência posterior (Brooke, 1912, p. 148).
João não dá espaço para uma “religião pecadora” aqui.
Os três versículos estão todos no tempo presente (ouch ham artanei: ele não
con tin u a a pecar-, terei: ele está m antendo-, e ouch haptetai: ele n ã o está to ca n d o ).
Eles sugerem que a libertação do pecado seja uma questão contínua e relacionai
(Smith, 1991, p. 136). Os cristãos não pecam habitualmente. Eles não vivem em
pecado (Burge, 1996, p. 216). Contudo, viver sem pecado contínuo não é automá­
tico. Isso exige decisões morais significativas (Smith, 1991, p. 136). Não pecar é
uma sociedade entre Deus e o homem.
O sentido da parte do meio do versículo não é claro: aquele que nasceu de
Deus também parece ser o mesmo que o protege. Podemos esperar que o texto
diga: “Aquele que nasceu de Deus, Deus mantém seguro” (Schnackenburg, 1992,
p. 253). Vários intérpretes entendem aquele que nasceu {gennêtheis) de Deus
como uma referência ajesus (Strecker 1996, p. 208; Marshall, 1978, p. 252; Bult-
mann, 1973, p. 88-90).
A gramática, no entanto, parece antes indicar que o que nasceu de Deus —
isto é, o cristão — é também aquele que o protege. Porém, o que isso significa?
Alguns manuscritos tentam resolver esse enigma constando m a n tém ele m es­
m o em vez de o mantém. Isso exigiría a tradução m a n tém ele m esm o segu ro. Ne­
nhuma leitura variante é plenamente satisfatória.
Independentemente disso, o que João quer dizer parece bastante claro: os
cristãos são protegidos, seja por Deus/Cristo, seja por eles mesmos. A questão é a
mesma. Podemos proteger-nos apenas porque nascemos de Deus (Brown, 1982,
p. 622).
O poder de Deus é maior do que o M aligno. Isso é fato. Jesus disse: “O prínci­
pe deste mundo (...) não tem nenhum direito sobre mim” (Jo 14.30). No entanto,
muitos cristãos vivem como se Satanás tivesse vantagem sobre suas vidas resgata­
das. O mal é real. Porém, é bastante limitado pela permissão soberana de Deus. O
mal não pode ir além do que Deus permite. Na verdade, Jesus orou por essa mesma
proteção para Seus seguidores e Seus futuros convertidos (Jo 17.15).
João faz uma declaração ousada: O M aligno não o atinge. A promessa é con­
fusa à primeira vista. Todos nós já sentimos, em algum momento ou outro, o “to­
que” do mal em nossa vida. Entretanto, atinge (haptetai) aqui tem mais a ver com
o contato que se prende — que segura e não solta. Esse mesmo verbo aparece na
admoestação do Jesus ressurreto a Maria Madalena de não o segurar como antes,
já que Ele estava subindo a Deus (Jo 20.17). O verbo pode referir-se a relações de
ligação, como o casamento (1 Co 7.1). Assim, João parece dizer que aquele que
177
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BF.ACON

nasceu de Deus não pode ser aprisionado nas garras do mal. O cristão e o Maligno
não têm relação sustentada. Ser filho de Deus exclui alianças menores.
1 1 9 João novamente declara sabemos. Nós temos uma certeza experiencial dada
por Deus. Não é um conhecimento “privilegiado” e secreto, não é uma visão esoté­
rica superespiritual que somente alguns podem ter (como pensavam os gnósticos).
Aqueles que são verdadeiramente de Deus são mantidos seguros. Eles têm a garan­
tia de um conhecimento que é suficiente.
Os leitores de João sa b em que são filhos de Deus. Ao mesmo tempo, João faz
a impressionante afirmação de que o mundo todo está sob o poder do Maligno.
Essa é uma linguagem hiperbólica. Quando João diz o mundo todo, ele lembra a
visão de mundo dualista em que o espírito do anticristo está em oposição hostil aos
cristãos joaninos (veja 2.15,16). E claro que João não quer dizer que toda as partes
do globo e todos aqueles que estão sobre ele estão sendo manipulados por forças
satânicas. Seu ponto é claramente este: Ele protege os verdadeiros filhos de Deus
(v. 18), apesar daqueles que se opõem a eles. Mesmo agora eles estão protegidos do
Maligno.
I 2 0 Como alguém pode saber a verdade? Apenas quando ela é revelada por
Deus: O Filho de Deus veio e nos deu entendimento. A confiança de João na
segurança ética de suas comunidades (v. 19) tem uma base cristológica, que é cui­
dadosa e claramente construída.
A verdade existe e é cognoscível. A verdade reside e é comunicada por inter­
médio de uma pessoa — aquele que é o Verdadeiro. Uma mente clara, com en­
tendimento (dianoian), vem do Pai por intermédio do Filho de Deus. O tempo
perfeito do verbo grego traduzido como deu sugere que Deus continua a abrir
nossa mente para mais verdades em Cristo.
A verdade pode ser vivida ordenando nossa vida de acordo com as verdades re­
veladas sobre Deus. Porém, João declara mais que isso. A fé que ele aponta também
envolve viver em relacionam ento ju sto com o autor da verdade. Estamos naquele
que é o Verdadeiro, ou seja, estamos em Jesus Cristo. Quando entramos em um
relacionamento com o Filho de Deus, entramos na verdade. A verdade está exclusi­
vamente em Cristo. Contudo, a verdade também está nos crentes que confiam em
Cristo. Receber essa verdade nos restaura para o conhecimento do único verdadei­
ro Deus, e conhecê-lo é a vida eterna (Jo 17.3).
A frase este é o verdadeiro Deus é ambígua. João está referindo-se ao Pai ou
a Jesus como o verdadeiro Deus? Este traduz houtos. Seu antecedente imediato é
claramente Jesus Cristo. As frases naquele que é o Verdadeiro e seu Filho estão
no caso dativo, confirmando essa identificação.
178
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

Após uma análise cuidadosa, Jones concorda com o fato de que existe um forte
argumento para relacionar o verdadeiro Deus e a vida eterna com o Filho (Jones,
2009, p. 235). Assim, esse texto faz uma das afirmações mais ousadas do NT sobre
a natureza divina de Jesus. Cristo é o verdadeiro Deus, que é a vida eterna. Essa
afirmação ousada de encerramento de 1 João lembra uma declaração semelhante
em João 20.28 — a declaração de Tomé do Jesus ressurreto: “Senhor meu e Deus
meu! .
João estava lutando bravamente para garantir que seus leitores compreendes­
sem o quanto estavam seguros por conhecerem Deus por intermédio de Cristo. Tal
conhecimento ligava-os intimamente a Deus e a todos que pertencem a Ele. Em tal
relação, a condição atual e o destino futuro deles eram a vida eterna.
João estava convencido de que a segurança do cristão é a presença do Cristo
celestial, vivendo o caráter do Jesus terreno no dia a dia dos que estão em seu Filho
Jesus Cristo. A segurança é um tema recorrente em toda a carta. Isso não é presun­
ção, uma vez que dá testemunho daquele que é o verdadeiro Deus e a vida eterna.
BI 2 1 A epístola encerra-se repetindo alguns dos temas com os quais começou.
João emprega uma terminologia de família — filhinhos — em sua bênção pessoal.
Acompanhando essa calorosa conclusão, no entanto, há um lembrete claro de que
comprometer-se é mortal. A preocupação pastoral de João leva-o a dizer palavras
de segurança, mas também de cautela. Ele comanda os leitores: Guardem-se (um
verbo imperativo).
Responder a Deus é necessariamente pessoal; ninguém pode obedecer p o r ou­
tra pessoa. No entanto, nossa resposta a Deus acontece en tre outras pessoas. João
é, como todos os verdadeiros ministros, pastor e profeta. Ele cuida, afirma e ama.
Todavia, ele ama demais o seu público para encobrir os perigos que este enfrenta.
Sem aviso, sua sentença final menciona a ameaça dos ídolos. Ele não oferece
explicação ou elaboração sobre os perigos específicos que seus leitores enfrentam.
Suas palavras podem advertir contra o pecado em geral ou até mesmo, literalmen­
te, contra a idolatria a imagens.
Todavia, no contexto atual, o significado de ídolos provavelmente resume suas
advertências explícitas em toda a carta contra os separatistas e sua falsa cristologia
(Smith, 1991, p. 137; Marshall, 1978, p. 255,256; Bultmann, 1973, p. 90; Bruce,
1970, p. 128). Assim, a admoestação de João coloca diante de seus ouvintes a clara
escolha entre o Cristo crucificado, ressuscitado e reinante, que dá vida eterna (v.
20), e qualquer falsificação (Hills, 1989, p. 285-310).
Com esse foco final em Jesus como o Cristo, que é a revelação única de Deus,
o escrito termina. Uma minoria de manuscritos conclui a epístola de uma forma
liturgicamente apropriada, com um claro e definitivo am ém .
179
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A P A R T IR D O T E X T O

Redenção para que a prática do pecado seja quebrada

O pecado habitual chega ao fim para aqueles verdadeiramente nascidos de


Deus. A fé cristã genuína se manifesta em uma vida de obediência à vontade conhe­
cida d e Deus. A vida cristã não pode coexistir com desobediência habitual à lei de
Deus.
A definição de pecado é importante aqui. Alguns definem “pecado” como a
falta de perfeita conformidade com a lei de Deus, conhecida ou desconhecida. Até
mesmo erros não intencionais e ações não tão graves, feitas por ignorância, cairiam
dentro dessa definição.
Wesleyanos acreditam que há uma grande diferença entre errar o alvo por ig­
norância e errar o alvo por desobediência. Teólogos reformados definem ambos
como pecado. João Wesley, no entanto, definia “pecado propriamente dito” como
“uma transgressão voluntária de uma lei conhecida” de Deus (1978, 11:396). O
Cristo ressuscitado capacita o crente a obedecer. Por meio da presença interior do
Espírito Santo, o crente é capaz de vencer o pecado, ou seja, o pecado definido
como rebelião deliberada ou desobediência consciente. Nem Wesley nem os wes­
leyanos professam “perfeição sem pecado”. Porém, a Escritura apresenta a promessa
de “perfeito amor” (1 Jo 4.18). Com base nisso, os wesleyanos se recusam a mini­
mizar as possibilidades de graça, incluindo o poder de Deus de permitir que crente
não peque (veja 1 Jo 2.1,2; 3.3-6,9).

Redenção do mundo

O mundo todo (...) sob o poder do Maligno (v. 19) parece deixar os cristãos
em um dilema. Se o mal realmente controla o nosso mundo, pode parecer tentador
abandonar o mundo por ser perdido, de forma irremediável. A linguagem hiper­
bólica da passagem poderia deixar-nos desnecessariamente pessimistas em relação
ao mundo.
No entanto, a maior narrativa bíblica demonstra que Deus está trabalhando
para curar não só indivíduos, mas comunidades. Deus está trabalhando fervoro­
samente para consertar no m undo o que o pecado quebrou. O mundo não está
destinado à destruição total, mas à restauração. Por isso ser verdade, os cristãos
certamente devem ser, agora, colaboradores de Deus, trabalhando para trazer cura
ao mundo que Deus criou e ama. Jesus orou, afinal: “Pai Nosso (...), seja feita a tua
vontade, assim na terra” (Mt 6.9,10).
180
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

Moldado por Cristo ou moldado segundo nossos próprios ídolos?

O momento de encerramento da epístola (v. 21) não é uma pós-reflexão des­


cuidadamente oferecida ou apenas um costume doxológico. Ele representa os te­
mas centrais de toda a carta.
Em todas as eras, houve pessoas que tentaram remodelar Cristo conforme sua
preferência, ignorando ou distorcendo declarações bíblicas fundamentais ditas por
Ele e sobre Ele. Todavia, o objetivo de 1João, na verdade, de toda a Escritura, é que
Cristo deve m oldar-nos segundo a Sua imagem. O texto de 1João apresenta Cristo
como divino (“Palavra de vida”, “vida” e “vida eterna”, 1.1,2) e plenamente homem
(“veio em carne”, 4.2,3; 2 Jo 7). Interpretá-lo de outra forma, escolhendo apenas
parte do registro escrito, é subestimá-lo e também subestimar a nós mesmos. Deus
tem uma vida transformada em vista para nós, quando aceitamos a Cristo por tudo
o que Ele é.
A exigência de devoção indivisível a Cristo diz muito. Se Jesus é verdadeira­
mente Senhor, então todo o restante deve ser menos priorizado ou renunciado por
completo. Fazer menos que isso é viver uma vida subcristã. Colocar Deus como
centro de nossa vida e, assim, declarar a Cristo, o Filho divino e humano, nossa le­
aldade suprema, e andar dia a dia em harmonia com os toques do Espírito de Deus,
é viver uma vida de santidade cristã. A santidade desenvolve-se naturalmente para
a pessoa que encontrou a alegria de querer apenas uma coisa: conhecer e fazer a
vontade de Deus com uma devoção intransigente a Jesus Cristo.

181
2 JOÃO
INTRODUÇÃO

A. Autoria, data, origem, público, ocasião,


propósito, questões socioculturais e história
textual
Veja a discussão dessas questões na primeira Introdução do comentário.

B. Características literárias
Veja o quadro “Cartas greco-romanas” em Características literárias na primei­
ra Introdução. Essa breve carta pessoal inclui a saudação habitual do escritor (“o
presbítero”, v. 1). As linhas de abertura dão nome aos destinatários (“à senhora elei­
ta e aos seus filhos”). O autor expressa o desejo de “visitá-los” (v. 12) e termina com
o tradicional termo “saudações” (v. 13).
Como em 1 João, uma característica literária importante é a utilização de
uma terminologia de relacionamento, especialmente, de família. O presbítero usa
termos afetuosos (“senhora eleita”, v. 1; “senhora”, v. 5; e “irmã eleita”, v. 13). Os
crentes são chamados de “filhos” (v. 1,4,13). Os personagens divinos mencionados
incluem o “Pai” (v. 3,4,9) e o “Filho” (v. 3,9). A ausência de “irmão” é um pouco
curiosa. Ocorre 13 vezes em 1 João e três vezes em 3 João. Nenhum nome pessoal
aparece em 2 João, embora os destinatários pareçam ser bastante conhecidos para
o presbítero, que permanece sem nome.
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

C. Temas teológicos
Inúmeros intérpretes entendem a expressão “senhora eleita” (v. 1) como uma
personificação simbólica da Igreja (veja Jones, 2009, p. 251; Thomas, 2004, p. 40;
Painter, 2002, p. 333; Culpepper, 1998, p. 276; Strecker, 1996, p. 220; Marshall,
1978, p. 60). O AT, às vezes, refere-se a Israel utilizando uma terminologia de per­
sonificação similar. Jerusalém foi comparada a uma criança abandonada, deixada
para morrer na beira da estrada (Ez 16.1-14). O amor de Deus pela Israel desviada
é comparado ao casamento de Oseias com sua esposa infiel. Paulo via maridos e
esposas como ilustrações de Cristo e da Igreja (Ef 5.21-33). Em Apocalipse 21.2, a
nova Jerusalém é a “noiva”. Há muitos casos de linguagem simbólica descrevendo o
povo de Deus com termos de gênero feminino.
Além disso, é possível que a “senhora eleita” tenha sido uma mulher que dis­
ponibilizou um local para uma igreja doméstica. Em Atos, Lídia acolhe Paulo e
seus companheiros (At 16.11-15). Priscila e Aquila ministraram a Apoio na pró­
pria casa (At 18.24-26). John Wesley considerava o grego kyria (“senhora”) um
nome próprio — Kyria (1983, s.p.), embora nenhum estudioso moderno aceite
esse ponto de vista. Ainda assim, é plausível que o presbítero tenha escrito para
uma importante anfitriã.

D. Questões hermenêuticas
Quem é “o presbítero” {presbyteros, v. 1; também 3 Jo 1) ? Com o artigo, “o
presbítero”, não há outros casos no NT. Formas anárquicas (sem artigo — “presbí­
tero” ou “presbíteros”) aparecem com frequência. Nos Evangelhos e no início de
Atos, a palavra “presbíteros” refere-se a líderes judeus. Até metade de Atos, o ter­
mo começa a referir-se a líderes das igrejas (At 14.23; 15.2,4,6,22,23; 16.4; 20.17;
21.18).
Os últimos presbíteros eram escolhidos para administrar a igreja (1 Tm 5.17;
Tt 1.5) e liderar no ministério (1 Tm 4.14; Tg 5.14; 1 Pe 5.1). Não há evidência no
primeiro século de presbíteros de uma igreja com jurisdição sobre outras congre­
gações. O título assumiu esse sentido de supervisão mais tarde (Bruce, 1970, 144,
n. 2 citando Irineu). Porém, a ordem da igreja do segundo século não deve ser lida
sob um texto do primeiro século.
Qualquer discussão sobre 2 João deve abordar a questão da hospitalidade aos
ministros viajantes. O significado teológico e prático é grande. Pregadores itine­
rantes recebidos com hospedagem e alimentação faziam dos anfitriões parceiros
de sua obra (3 Jo 6). Por outro lado, a hospitalidade deveria ser negada aos que
184
NOVO COMENTÁMO BÍBUCO BE.AC.ON INTRODUÇÃO

declaravam uma teologia aberrante (2 Jo 10,11; consulte o quadro “Professores


itinerantes”).
As principais questões interpretativas são relacionadas ao “anticristo” (v. 7).
A preocupação do presbítero não era mais uma futura personificação do mal. A
atividade do anticristo já era evidente na própria época (veja o quadro “Anticristo”
em 1 Jo 2.18 e o comentário em 1 Jo 4.1,3). Esses “anticristos”, que ensinavam em
desacordo com as tradições evangélicas de João, e^avam vivos e saudáveis na Ásia
Menor.

185
COMENTÁRIO

VI. BOAS-VINDAS E ALERTAS: 2 JOÃO 1-13

A. Saudações e relacionamentos (1-3)

POR TRÁS DO TEX TO

Essa carta combina terminologia de família (senhora eleita e aos seus filhos,
v. 1; e “os filhos da sua irmã eleita”, v. 13) com preocupação pastoral. Embora te­
nha tom pessoal, a carta, obviamente, aborda uma igreja. Alguns haviam deixado a
comunidade (1 Jo 2.19). A partida deles ocasionou advertências incisivas para que
permanecessem fiéis à verdade (cinco vezes nos v. 1-4; veja o quadro “Verdade” em
1 .6 ).
Havia “muitos” adversários incômodos (v. 7), aparentemente recrutando pes­
soas para “obras malignas” (v. 11). Pessoas desse tipo eram “o enganador e o anti-
cristo” (v. 7). A identidade exata delas não é clara. Contudo, sua principal ofensa
era uma cristologia falha, que negava que Jesus veio “em corpo” (v. 7).
Alguns separatistas eram pregadores itinerantes que esperavam apoio material
das igrejas joaninas. O presbítero é inflexível: “Não o recebam em casa nem o sau­
dem” (v. 10). Professores viajantes dependiam basicamente de outras pessoas para
hospedagem e alimentação. A D idaquê aborda esse assunto especificamente.
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

P ro fe sso re s itin e ra n te s

O m i n i s t é r i o it i n e r a n t e d e f i n e , e m g r a n d e p a r t e , a s v i a g e n s m i s s i o ­
n á r ia s d o a p ó s t o l o P a u lo . E l e e s e u s c o l e g a s v i a j a r a m p o r t o d a a re g i ã o
n o r t e - m e d i t e r r â n i c a . À s v e z e s , e le s r e c e b i a m h o s p e d a g e m e a p o i o m a t e ­
rial d e b e n f e i t o r e s c r i s t ã o s . Q u e s t õ e s d e s e g u r a n ç a e r e a l i d a d e fi n a n c e i r a
e r a m f a t o r e s d e s s a p r á t i c a . F ic a r e m c a s a d e a m i g o s c o n f i á v e i s r e d u z i a
a s d e s p e s a s e o s ris c os a s s o c i a d o s a e s t a b e l e c i m e n t o s p ú b lic o s ( v e j a A t
1 6 .1 5 ; 1 8 .2 ,3 ; e F m 22 ).
F o r n e c e r a l i m e n t a ç ã o e h o s p e d a g e m a m in is t r o s v i a j a n t e s d a v a a b e r ­
t u r a a a b u s o s . O p r e s b í t e r o p e d i a d i s c e r n i m e n t o q u a n t o a q u e m o fe re c ia
h o s pita lida d e. A li m e n ta ç ã o , h a b ita ç ã o e d inheiro d e v e r ia m a p o ia r m in is­
t é r i o s c r i s tã o s l e g í t i m o s , e n ã o e n c o r a j a r fa ls o s m e s t r e s . S e o s v i a j a n t e s
s e h o s p e d a s s e m m a i s d o q u e d o i s o u t r ê s d ia s , o u l e v a s s e m m a i s d o q u e
u m p ã o d a c a s a o u p e d i s s e m d i n h e i r o , d e v e r i a m s e r c o n s i d e r a d o s fa ls o s
p r o f e t a s ( D id . 1 1 ; K o e n i g , 1 9 9 2 , p. 2 9 9 - 3 0 1 ) .

NO TEXTO

U 1 Quem é o presbítero? Sem dúvida, sua identidade era conhecida pelos des­
tinatários originais da carta. Todavia, não é tão evidente para nós. O presbítero
(presbyteros) é um título único, usado apenas duas vezes no NT, aqui e em 3 João
1. Ele pode simplesmente referir-se a uma pessoa mais velha (Rm 9.12; 1 Tm 5.2;
1 Pe 5.5). Ele também identifica líderes do Sinédrio judaico (Mt 16.21; At 6.12) e
líderes de igrejas locais (At 11.30; 20.17; 1 Tm 5.1,17,19; 1 Pe 5-1).
Em 1 Pedro, alguns líderes cristãos são chamados de “presbíteros”. A diferença
aqui é o sentido exclusivo, o presbítero (grifo do autor), talvez seja uma declaração
de autoridade única. Nenhum texto do NT relata um presbítero único, com pode­
res de supervisão para inserir-se nos assuntos de outra congregação. O termo em 2
João e 3 João parece deixar implícito uma pessoa com conhecimento das tradições,
cuja reputação e influência eram significativas (Brown, 1982, p. 648-651).
A carta dirige-se à senhora eleita e aos seus filhos. Será que o presbítero es­
tava escrevendo a um destinatário do sexo feminino e à sua casa? Por que ela era o
objeto de sua preocupação espiritual especial? O termo senhora (kyria) é a forma
feminina da palavra usada na sociedade greco-romana educada do primeiro século,
para dirigir-se a um homem como “senhor” (kyrios).
Será que o presbítero estava usando linguagem figurada? Se for o caso, ele
dirigiu-se à igreja corporativamente como uma mulher personificada e usou
188
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

terminologia de família para descrever os membros da igreja (Thomas, 2004, p.


40; Strecker, 1996, p. 220; Lieu, 1991, p. 93; Brown, 1982, p. 652; Boice, 1979, p.
161; Marshall, 1978, p. 60; Haas, Dejonge e Swellengrebel, 1972, p. 138; Brooke,
1912, p. 167-170).
Será que ambas as aplicações poderíam estar em vista? Bruce tende a uma in­
terpretação corporativa, mas deixa a questão em aberto (1970, p. 137). Se senhora
eleita refere-se a uma igreja ou a um indivíduo, ou a ambos, é incerto (Earle, 1984,
P- no).
O destinatário da carta é descrito como eleita (eklektêi). A terminologia de
eleição sugere que o destinatário seja uma igreja.

Eleiçã o

S e r e le i t o in dica u m a r e la ç ã o d e a l ia n ç a c o m D e u s , b a s e a d a n a g r a ç a .
E l e i ç ã o n ã o é a l g o q u e s e c o n q u i s t a . D e u s t o m a a in ic i a t iv a . A e le i ç ã o é a
o f e r t a d e i n t i m i d a d e c o m D e u s . Isra el e n t e n d i a s e u r e l a c i o n a m e n t o c o m
D e u s c o m o n a ç ã o e le ita : " P o is v o c ê s s ã o u m p o v o s a n t o p a r a o S e n h o r ,
o seu D e u s . O S e n h o r , o seu D e u s , os e sc olh e u d e n tre to d o s os p o v o s da
fa c e da terra p ara ser o seu p o v o , o seu te s o u ro p e sso a l" ( D t 7 .6 ; veja
1 4 . 2 ; SI 1 0 5 . 6 ; 1 3 5 . 4 ; Is 4 1 . 8 , 9 ; 4 4 . 1 ; 4 9 . 7 ) .
In d iv íd u o s p r o e m i n e n t e s f o r a m " e l e i t o s " ( e x . : D a v i n o SI 8 9 . 3 ; M o i ­
s é s e A r ã o n o SI 1 0 5 . 2 6 ) . D e u s d e s i g n o u reis d e S u a e s c o l h a p a r a Israel
e Ju d á ( 1 S m 1 0 .2 4 ; 1 6 . 1 ; 1 Rs 8 .1 6 ) . A t é m e s m o lugares c o m o Je ru s a ­
lé m e o t e m p l o f o r a m e s c o l h i d o s p o r D e u s ( 1 R s 8 : 4 4 , 4 8 ; 1 1 . 1 3 , 3 2 ; 2 C r
6 .6 ,3 4 ,3 8 ).
N o N T J e s u s é o e s c o l h i d o d e D e u s ( L c 9 . 3 5 ; 2 3 . 3 5 ; 1 Pe 1 . 2 0 ; 2 . 4 , 6 ) . O s
d is c íp u lo s s ã o o s e s c o l h i d o s d e J e s u s (Jo 6 . 7 0 ; 1 3 . 1 8 ; 1 5 . 1 6 , 1 9 ) . E m p a s s a ­
g e n s e sc atológ ic as , "eleito s" a p a r e c e m c o m fre q u ê n c ia (M t 2 4 . 2 2 ,2 4 , 3 1 ;
M c 1 3 . 2 0 , 2 2 , 2 7 ) . O s c r i s tã o s e a s ig re ja s s ã o o s e le i t o s d e D e u s ( E f 1 . 1 ; Cl
3 . 1 2 ; 1 Ts 1 . 4 ; 1 Pe 1 . 1 , 2 ; 2 . 9 ; 5 . 1 3 ; P a tr ic k , 1 9 9 2 , p . 4 3 4 - 4 4 1 ; S h o g r e n ,
1 9 9 2 , p. 4 3 4 , 4 4 4 ; M e n d e n h a l l , 1 9 6 2 , p. 7 6 - 8 2 ) .

A senhora, interpretada como um indivíduo, podería ter sido uma influente


benfeitora que sediava a igreja domiciliar. Por três vezes nos versículos 4 e 5, o pres­
bítero usa pronomes da segunda pessoa do singular, sugerindo que ele escreve para
um indivíduo. No decorrer da carta, ele emprega verbos e pronomes da segunda
pessoa do plural para abordar seus leitores (dez vezes nos v. 6,8,10,12).
Os filhos (tekna, veja v. 4,13) fiéis da senhora também são abordados. O ter­
mo ocorre 14 vezes em 1 João e uma vez em 3 João. O presbítero compartilha a
189
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

mesma fé cristã que os destinatários da carta e todos os que conhecem a verdade.


A palavra conhecem (egnõkotes, no pretérito perfeito) indica um evento passado
com efeito contínuo — to d o s os q u e viera m a co n h ecer a v erd a d e n o p a ssa d o e
ain da a con h ecem .
1 2 A verdade (alethêian) era muito valorizada nos círculos joaninos (veja o qua­
dro “Verdade” em 1 Jo 1.6). A palavra ocorre 21 vezes nas cartas e 24 vezes no
Quarto Evangelho. Em comparação, há apenas 11 ocorrências em todos os Evan­
gelhos Sinóticos. Paulo usou a palavra livremente (mais de 50 vezes).
Em 2 João, verdade é o m eio pelo qual os cristãos amam uns aos outros (v. 1).
Também se refere ao conteúdo que se conhece. A verdade é personificada — ela per­
manece nos cristãos. Características de Deus, “graça”, “misericórdia” e “paz”, estão
conosco em verdade (v. 3). Além disso, a verdade é relacionai e progressiva, algo
em que andamos (v. 4).
A frase permanece em nós refere-se literalmente à verd a d e q u e a tu a lm en te
vive em nós. Uma antiga verdade que vive em nós seria inadequada. Uma “verdade”
estagnada e estática também fracassa. A verdade deve continuar em nós, repetida­
mente, “recebida mais uma vez como um presente” (Bultmann, 1973, p. 108). A
referência do presbítero à verdade que permanece em nós e estará conosco para
sempre pode estar evocando o ensino sobre o Espírito no Quarto Evangelho. Lá,
Jesus garante a Seus seguidores que o Espírito “vive com vocês e estará em vocês”
(Jo 14.17).
BI 3 A saudação é rica: graça (charis), misericórdia (eleos) e paz (eiréné) colocam
importantes dons divinos em um conjunto. Em todas as cartas de Paulo, “graça” e
“paz” aparecem juntas. A graça e a paz combinam saudações helenísticas e judaicas
típicas (Strecker, 1996, p. 227). Em outros casos, misericórdia também aparece
em duas cartas pastorais de Paulo (1 Tm 1.2; 2 Tm 1.2).
Graça, misericórdia e paz são qualidades de Deus e da Sua intenção para Seu
povo. Graça é uma nuance distintamente cristã em uma típica saudação de uma
carta greco-romana. A palavra normal para “saudação” (charein) foi revisada para
a correspondente cristã “graça” {charis). Misericórdia {eleos) transmite conceitos
bíblicos de compaixão e misericórdia. Paz {eirênê, expressando o hebraico shalom)
é uma bênção tradicional de saúde e integridade.
A terminologia familiar surge. Deus é Pai. Jesus Cristo é Filho. E surpre­
endente que o Espírito Santo não seja mencionado em 2 João, dadas as ligações
temáticas entre 2 João e o Quarto Evangelho (v. 2 e Jo 14.17; v. 5 e Jo 13.34,35; v.
6eJo I4.23;ev. 12eJo 15.11; 16.24). “Espírito” aparece muitas vezes em 1 João
(3.24; 4.2,6,13; 5.6,8).
190
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

Entretanto, a terminologia do presbítero pode deixa implícita a presença do


Espírito. Ele escreve sobre verdade (...) conosco (v. 2) e sobre graça, misericórdia
e paz (...) conosco. Essa ênfase está de acordo com o papel do Espírito no Quarto
Evangelho (14.17; 15.26; 16.13). Portanto, o Espírito Santo pode e silenciosa­
m ente presente em 2 João. A carta não apresenta a verdade como apenas informa­
ções em que se deve acreditar, mas uma presença permanente que transforma vidas.
A verdade é relacionai e dinâm ica — ela “permanece em nós” (v. 2). Assim como é
com o Espírito, a verdade será praticada, levando-nos a “and [ar] na verdade” (v. 4;
veja O Espírito em Temas teológicos, na Introdução de 1 João).
A expressão seu Filho (tou huiou toupatros) está redigida de forma única, mas
consistente com o argumento de João no versículo 9 (Bruce, 1970, p. 138). Painter
diz que a frase é distintamente joanina (2002, p. 342), embora a construção grega
exata não apareça em outra parte do NT. O presbítero enfatiza o relacionamento
Pai/Filho em uma linguagem que se destina a combater adversários que tentavam
separar o Jesus terreno do Filho celestial de Deus (Haas, Dejonge e Swellengrebel,
1972, p. 141). Dessa forma, a saudação de João é uma preparação para a advertên­
cia nos versículos 7-11.

A P A R T IR D O T E X T O

Relacionamentos importantes da vida

O autor é o presbítero (v. 1). Sua senioridade provavelmente se refere à sua


idade, à sua maturidade na fé e à sua posição de liderança. As pessoas de hoje su­
bestimam uma vida bem vivida e a integridade de uma longa obediência na mesma
direção. Enquanto o presbítero se aproximava do fim da vida, seus olhos estavam fi­
xos em Deus, na igreja e nos ricos relacionamentos da vida. Isso é poder verdadeiro!

As mulheres na vida da Igreja

O termo senhora (v. 1,5) transmite honra às mulheres. Se essa senhora era
pastora de uma igreja doméstica, isso afirma o papel das mulheres no ministério.
Adam Clarke sugeriu:
A carta foi enviada para alguma senhora cristã eminente (...) que era, prova­
velmente, diaconisa da igreja [e] (...) tinha uma igreja em casa, ou em cuja
casa os apóstolos e os evangelistas viajantes frequentemente pregavam e eram
entretidos (Clarke, s.d., p. 936).
191
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Mesmo que o presbítero estivesse apenas usando imagens femininas como


uma analogia para a igreja, isso dignificaria a condição das mulheres. O fato de
a igreja ser comparada a uma mulher temente a Deus enfatiza a importância das
virtudes femininas tradicionais de educação, proteção e toque de cura.

Crianças são valiosas

O jovem na idade oú na fé deve estar no topo da lista de prioridades de qual­


quer igreja. Os filhos (v. 1) aqui podem referir-se a “crianças” (Mc 10.14-16). A
referência pode também ser para as crianças na fé, ou seja, os recém-convertidos
que precisam ser intimamente ligados à verdade (v. 1,2).

A oração é íntima

A expressão seu Filho (v. 3) lembra a forma como Jesus se referiu a Deus como
“Pai” (em Mc 14.36, transliterando e traduzindo o termo aramaico Abba, como
também em Rm 8.15 e G14.6; Ashton, 1992, p. 7,8). Da mesma forma, a voz divi­
na, tanto no batismo de Jesus (Mt 3.17; Mc 1.11, Lc 3.22) como na transfiguração
(Mt 17.5; Mc 9.7; Lc 9.35), chamou-o de “Filho”. Quando oramos, entramos em
uma conversa íntima.

A verdade mora nas pessoas

A fé bíblica é colocada no Pai e no Filho. Consequentemente, Deus, o autor


da verdade, vive em nós. Essa fé permite um relacionamento crescente com base
em uma ampliação da verdade que estará conosco para sempre (v. 2). A verdade
de Deus continua vivendo dentro de nós enquanto continuamos a ser obedientes.
Shema (Dt 6.3) lembra-nos de que ouvir de verdade exige fiel obediência.

B. Alegria por causa da obediência (4-6)

NO TEXTO

B 4 As cartas e aqueles que as entregavam ofereciam uma importante ligação entre


cristãos que estavam distantes. Aqui, essa comunicação evocava uma grande ale­
gria. A expressão me alegrei, provavelmente, na voz passiva divina (veja o quadro
em 1Jo 1.2), presume que Deus era a fonte de alegria do presbítero. O NT, muitas
vezes, identifica a experiência da alegria como de origem divina (Jo 15.11; 17.13;
At 13.52; lT s 1.6).
192
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

O fato de alguns estarem vivendo em obediência à verdade pode indicar que


nem todos estavam (Burge, 2002, p. 233; Haas, Dejonge e Swellengrebel, 1972,
p. 142). A frase, no mínimo, indica que alguns estavam oscilando (Jones, 2009, p.
256). A situação da comunidade, incluindo conflitos com Diótrefes (3 Jo 9,10),
tornou insustentável a declaração de que “todos os seus filhos” estavam “andando
na verdade” (Strecker, 1996, p. 228). Bruce, no entanto, alega que a frase se refere
apenas àqueles que o presbítero havia conhecido. Porém, nada implica sobre a obe­
diência ou a falta dela nos outros (1970, p. 139). Contudo, a escrita do presbítero
parece expressar uma preocupação pastoral de que alguns poderíam coibir-se da
verdade.
O termo andando (no gerúndio) representa uma experiência contínua e rela­
cionai de verdade. Andar na verdade ou na “luz” (1 Jo 1.7) é andar no caráter de
Deus. Essa metáfora tem precedentes no AT (Pv 4.18; Is 2.5; paralelos no Qumrã,
veja 1QS 3.20; 5.10; Vermes, 1997, p. 101,104). Nos escritos de João, peripateõ é
usado para referir-se a uma caminhada tanto literal como figurativa (Ebel, 1978, p.
943-945). Na maioria das vezes, a palavra simboliza fidelidade espiritual (Jo 8.12;
12.35; ljo 1.7; 2.6).
1 5 A palavra senhora aborda novamente a “senhora eleita” (v. 1). Assim como
antes (v. 1), pode ser uma referência simbólica à igreja (Marshall, 1978, p. 66). O
termo reflete o tom respeitoso que kyria pretende dar, muito parecido com o nosso
madame .
O mandamento de amar não é novo. Ele lembra as palavras de Jesus; “O meu
mandamento é este: amem-se uns aos outros” em João 15.12 e 17. O presbítero va­
ria em linguagem usando a primeira pessoa do plural (duas vezes no v. 5 e novamen­
te no v. 6). Isso deixa claro que ele se situa entre aqueles que amam uns aos outros.
O Quarto Evangelho é evocado no versículo 5 nas palavras desde o princípio.
As vezes, nas cartas, “princípio” lembra Gênesis 1.1, a origem do universo. Mais
frequentemente, é uma referência aos primeiros dias do evangelho na comunidade
joanina (veja em 1 Jo 1.1; 2.13,14; e, possivelmente, 3.8). Eles ouviram o manda­
mento de amar de João. Essa tradição continuou a chamar a um comportamento
cristão, um amor altruísta pelos outros.
I 6 Uma paráfrase que capta a ênfase em este é o amor seria: É assim q u e d ev e
ser o v erd a d eiro am or. O v erd a d eiro a m o r significa andar: “Andemos segundo os
seus mandamentos” (ARC). É um desejo expresso do presbítero que seus leitores
andem em obediência. O verbo traduzido como andemos está no modo subjun-
tivo. Esse era o propósito de João em escrever, mas andar ainda era decisão deles.
Discipulado nunca é forçado.
193
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Os presbítero passa de “mandamento”, no versículo 5, para mandamentos,


no versículo 6. Obedecer ao maior mandamento, amar a Deus acima de tudo e
amar o próximo como a nós mesmos (Mt 22.36-40), inevitavelmente conduz à
obediência a outros mandamentos. Desenvolvemos uma vida santa por meio de
nossas escolhas depois de estabelecermos a questão maior de nosso amor a Deus. O
amor divino flui em nós, purifica-nos e leva-nos a uma maior conformidade com a
vontade de Deus.
Há um aspecto cíclico no amor de Deus. O círculo começa com Deus, cujo
amor não pode permanecer passivo, pois ele nos busca. Esse amor que busca nos
enviou Cristo, que tomou forma plenamente do amor do Pai. Quando esse amor
divino encontra um lugar dentro de nós, somos chamados à comunidade cristã.
Na comunidade de fé e em todas as nossas relações, somos capazes de ter em nós o
amor de Deus.
Transformados pelo amor divino, ficamos insatisfeitos em simplesmente des­
cansar sob o seu brilho. Assim como o Deus que nos buscou, procuramos servir aos
outros de maneiras tangíveis — em obediência aos seus mandamentos. Todos
os atos de amor verdadeiro do mundo têm origem em Deus, a única fonte de todo
o amor. Quando experimentamos o amor de Deus, achamos natural retribuí-lo
como louvor a Ele.
Obedecer aos mandamentos de Deus é “andar na verdade” (v. 4), na obedi­
ência e no “amor” (v. 5). Esse amor não é um sentimento vago; não está ligado à
ética. O amor verdadeiro nos transforma. Nós pensamos diferente, experimentan­
do uma nova mente (Rm 12.1,2), que revoluciona o modo como lidamos com a
verdade e remodela nossa visão de mundo. Valorizar a verdade em conceito leva à
verdade em ação.
Como pessoas resgatadas, pensam os de formas diferentes. Sentimos com mais
profundidade. Escolhemos com mais sabedoria. No entanto, a natureza condicio­
nal da nossa relação espiritual permanece. O presbítero novamente usa um verbo
no modo subjuntivo — andem (çperipatête). Andar em obediência era a intenção
do presbítero para seus leitores, mas ele sabia que a forma como eles andavam de­
pendia das escolhas diárias de cada um.

A P A R T IR D O T E X T O

Discipulado é diário

O chamado de Jesus, “sigam-me”, para Seus primeiros candidatos a discípu­


lo foi um convite para caminhar com Ele (Mt 4.19; Mc 1.17). Amós perguntou:
“Duas pessoas andarão juntas se não estiverem de acordo?” (3.3). Discipulado pede
194
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

que se coloque um pé na frente do outro continuamente, sem desistir. Discipulado


requer que nossos olhos se mantenham em Cristo, indo para onde Ele vai, sem ir
à frente, sem ficar para trás, mas sempre se esforçando para que “andemos também
pelo Espírito” (G1 5.25).

Discipulado é andar com o próximo

Jesus chamou diversos seguidores e esperava que eles caminhassem em harmo­


nia. Mateus era cobrador de impostos, um agente de Roma. Simão, o Zelote, cujas
inclinações políticas radicais eram ligadas ao seu nome, ressentia-se de qualquer
pessoa associada a Roma. Que desafios de comunhão esses dois têm? Simão Pedro,
quando não sabia o que fazer ou dizer, deixava escapar algo e seguia em frente. João
parecia mais disposto a ouvir e refletir. Seguir Jesus não mudou a personalidade
deles, mas Ele esperava que eles alimentassem a comunhão mútua.

Nossa compreensão da verdade aumenta

A verdade (v. 4) não é um corpo de conhecimento “engolido” por inteiro no


início da jornada cristã. E claro que é preciso saber algo sobre o evangelho para
começar a viagem. Entretanto, a plenitude da verdade divina só será conhecida, em
última análise, na presença de Deus no Reino que está por vir (veja 1 Co 13.12).
Ainda assim, a verdade torna-se cada vez mais uma realidade em nossa vida confor­
me andamos em obediência ao que conhecemos.

C. Alertas para andar em fé (7-11)

NO TEXTO

1 7 0 presbítero alerta sobre os enganadores que eram o anticristo. Esses dois


rótulos identificam o mesmo grupo (Burge, 1996, p. 233,234; Haas, Dejonge e
Swellengrebel, 1972, p. 145). Esses adversários eram muitos, indicando uma ame­
aça de alto nível. Eles não eram figuras sobrenaturais, mas adversários humanos
(Strecker, 1996, p. 237). Junto com 1 Timóteo 4.1, esse versículo ressalta o caráter
demoníaco da falsa doutrina (Bócher, 1993, p. 100).
A referência em 1 João 2.18 a “muitos anticristos” oferece um paralelo ao ver­
sículo 7. Quais eram as marcas que distinguiam os enganadores? A palavra enga­
nadores (planoi) pode identificá-los como quem vagava (Hb 11.38) para longe
195
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

da verdade (Tg 5.19). Os inimigos de Jesus consideravam enganadores Ele e Seus


discípulos (Jo 7.12,47; Mt 27.62,63).
Como em 1 João 4.2, os enganadores de 2 João negavam que Jesus veio em
corpo. Alguns intérpretes sugerem que isso enfatiza a humanidade contínua de
Jesus. Sua natureza humana não era algo momentâneo na eternidade. Ela implica
a Sua própria permanência (Marshall, 1978, p. 70; Brooke, 1912, p. 175). Jesus
continua sendo verdadeiramente Deus e homem. Jones afirma que essa visão, que
se tornou ortodoxa nos credos ecumênicos, ultrapassar o contexto atual (2009, p.
259).
Strecker argumenta a favor de um sentido futuro; a vinda escatológica de Cris­
to (1996, p. 234-236). Porém, isso está totalmente ausente do contexto e contrário
ao presente do indicativo do verbo veio (Bultmann, 1973, p. 112). O versículo
claramente é paralelo a 1 João 4.2,3, que não tem uma preocupação expressa por
um segundo advento (Jones, 2009, p. 258).
A preocupação aqui, como em 1 João 4.2, é combater a cristologia docética
(Smith, 1991, p. 144; Bruce, 1970, p. 140,41), a negação gnóstica da natureza hu­
mana (Jones, 2009, p. 258). Essas palavras sobre a humanização — em corpo {en
sarki) — evoca a enfática declaração do Quarto Evangelho: “A Palavra tornou-se
carne [sarx\ e viveu entre nós” (Jo 1.14).
Os separatistas eram os enganadores (os “anticristos” de 1 Jo 2.18-23; Smith,
1991, p. 144), que haviam deixado as igrejas joaninas e negavam a natureza huma­
na de Cristo. Eles consideravam o espírito bom e o corpo mau. Eles não podiam
aceitar uma divindade totalmente encarnada ou que morreu na cruz e ressuscitou
corporalmente do túmulo. Eles optaram por uma cristologia docética (a partir de
dokeõ, “parecer”). Eles acreditavam que Cristo zptnís. pareceu habitar em carne,
mas não o fez de verdade (veja Temas teológicos, na Introdução). Eles eram enga­
nadores porque alegavam que Sua humanidade era um engano. O presbítero con­
siderava que eles aceitavam um espírito de oposição a uma verdade sobre Cristo,
portanto, eles eram “anti” (contra) Cristo.
Os enganadores eram separatistas. Eles tinham saído da comunidade joanina
e abandonado a fé. Em 1 João 2.19, sair “do nosso meio” era a prova de que “eles”
nunca fizeram parte da comunidade de verdade, apesar de já terem sido identifi­
cados com o círculo joanino de igrejas. Esses antigos membros estavam engajados
em uma atividade missionária projetada para atrair cristãos joaninos a adotar a sua
cristologia contrária e concorrente (Thomas, 2004, p. 45). A saída deles lembra a
saída de Judas depois de Satanás entrar nele (Jo 13.27,30; Brown, 1984, p. 668).
Eles têm saído pelo mundo, isto é, para a apostasia. O mundo era o local do
anticristo (1 Jo 2.15-19). Muitas pessoas adotaram essa visão docética anticristã.
196
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

Embora o presbítero se refira a muitos e a tal pessoa, ele os rotula coletivamente


com um artigo no singular — o enganador (ho planos) e o anticristo {ho anti-
christos). O anticristo não era do futuro; ele “já está no mundo” (1 Jo 4.3). Não
era uma exposição do mal em uma única pessoa. Ao contrário, ele era um “espírito”
(1 Jo 4.3), que se manifestou em todas as eras e não reconhece Jesus Cristo como
totalmente humano.
I 8 O presbítero alerta — tenham cuidado (lit.: cu id em d e si m esm os). A frase
expressa um forte alerta em passagens apocalípticas do NT (Ef 5.15; Cl 2.8; Hb
10.25; Mc 13.5; Thomas, 2004, p. 47).
O aviso se destinava a evitar que perdessem o fruto do seu trabalho. A perda
era possível, mas poderia ser evitada. A terminologia usada pelo presbítero aqui
não parece referir-se ao potencial de perda da salvação, mas da recompensa. O
modo subjuntivo do verbo sugere um resultado que ainda será determinado. É
possível que sejam recompensados plenamente (uma expressão única nos escritos
joaninos). Porém, eles podem optar por andar em desobediência, escolher a apos­
tasia e sofrer a perda.
Qual é a recom p en sa {misth os) ? Na LXX, misthos refere-se à “porção” atribuí­
da aos levitas (Nm 18.31) e aos sacerdotes (Mq 3.11) ou ao pagamento de um tra­
balhador (Êx 2.9; Dt 15.18). Nos Evangelhos (Mt 20.8; Lc 10.7; Jo 10.12), misthos
é o salário do diarista. A palavra pode significar reembolso (Mt 5.12; 1 Co 3.8).
O paralelo mais provável de 2 João 8 é João 4.36. Na passagem, “salário” (mis­
thos) refere-se figurativamente à “colheita” da recompensa de uma missão bem-
-sucedida (Pesch, 1991, p. 432). Será que recompensados plenamente implica a
possibilidade de uma recompensa parcial? E provável que não. O presbítero sim­
plesmente incentiva a plena obediência em hipérbole.
O texto aqui parte da terceira pessoa do plural, tenham cuidado, para a primei­
ra pessoa do plural, o fruto do nosso trabalho, e volta para a terceira pessoa, sejam
v o cês recompensados. Posteriormente, escribas procuraram suavizar esses tempos
verbais. Contudo, as evidências favorecem manuscritos em que o segundo verbo está
na primeira pessoa do plural. A terminologia serve tanto para confrontar — o vocês
muitas vezes transmite esse tom — como para identificar-se com os leitores — nós.
■ 9 Aquele que vai além (proagõn), “ultrapassando” a ortodoxia, está acrescen­
tando ensinamentos “avançados” às tradições recebidas de Jesus (Marshall, 1978,
p. 73)? Será que ele se considera progressista? Esse é o sentido de “ir além” com um
suposto “ensino avançado” (Haas, Dejonge e Swellengrebel, 1972, p. 146; Bruce,
1970, p. 141). Ele não conseguiu andar “pelo Espírito” (G1 5.25; Earle, 1984, p.
111).

197
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

O isolamento dos separatistas daqueles com quem costumavam andar mol­


dava a autocompreensão da comunidade joanina. Eles já haviam experimentado
essa mentalidade “por nós ou contra nós” quando foram expulsos das sinagogas
(Jo 9.22). Mais tarde, a partida dos separatistas reforçou isso (Brown, 1979, p. 56).
Junto com a perda da recompensa em potencial (v. 8), o presbítero alerta que
todo aquele que não permanece no ensino de Cristo (...) não tem Deus. Qual­
quer um que se separasse da comunidade de fé perdería “o fruto do” seu “trabalho”
(v. 8). Ninguém está isento da possibilidade de fracasso espiritual. Para evitar essa
perda, deve-se p erm a n ecer. A metáfora não é passiva, mas relacionai, com base na
metáfora da videira e dos ramos em João 15 (onde as formas do mesmo verbo são
usadas repetidamente). Continuar, ou permanecer, é ficar ligado intencionalm ente
à vida divina (Deus/Cristo) e aos que pensam da mesma forma (a Igreja).
Alguns intérpretes veem em 2 João um aumento no interesse pelo ensino re­
cebido. É fato que didachê, ensino, não pode ser encontrado em 1 João (mas veja
João 7.16,17; 18.19; compare com 1 Tm 2.15; 2 Tm 3.14). Essa mudança de ênfase
pode sutilmente passar o foco da pessoa de Cristo para os conceitos sobre Ele (Lieu,
1991, p. 94). Todavia, o Evangelho de João não separa de forma clara a pessoa de
Jesus e as palavras sobre Ele.
João 15 pede que os discípulos permaneçam em Cristo. Entretanto, o capítulo
também enfatiza permanecer nas palavras d e Jesus (15.7,10). Tanto a pessoa de Je­
sus quanto a instrução cuidadosa sobre Ele fazem parte da fé cristã. A distinção de
Lieu pode ser mais aparente do que real.
O que o presbítero quis dizer com ensino de Cristo? Pode significar as tradi­
ções recebidas do próprio Jesus. Isso leva a dizer que o próprio Cristo ensinou (um
genitivo subjetivo). No entanto, o presbítero pode referir-se ao ensino de Cristo
como a mensagem do evangelho padrão sobre Jesus (um genitivo objetivo, Smi-
th, 1991, p. 145). Qualquer uma dessas interpretações é possível (Bruce, 1970, p.
141,142). Aprender de Cristo ou sobre Ele é ter Deus, isto é, ter o Pai e também
o Filho (veja 1 Jo 2.23).
■ 1 0 - 1 1 No caso de um professor itinerante com uma cristologia aberrante pro­
curar hospedagem em uma das igrejas de João, o presbítero insiste; Não o recebam
em casa nem o saudem. Essa recusa de hospitalidade expande uma prática judaica
voltada aos gentios. Os judeus religiosamente evitavam compartilhar a mesa com
os gentios (veja At 10.28; G1 2.11-13). Parece que o presbítero adaptou a prática
“judeu vs. gentio” para erguer uma barreira protetora contra os que possuíam uma
cristologia docética.
A proibição era especialmente contra receber alguém em casa. Como as
Igrejas primitivas se reuniam em casas, era uma restrição específica ao acesso dos
198
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

separatistas ensinar os crentes joaninos em tais casas (Brown, 1979, p. 676). A frase
não (...) o saúdem é literalmente: Não fa le m p a ra cu m p rim en tá -los.
Acolher os falsos mestres era conceder-lhes afirmação teológica. Dar-lhes
apoio material era torná-los cúmplices, compartilhando a mesma responsabilidade
{koinõnei, p a rticip a r) pelas suas obras malignos (veja o uso do mesmo termo em
1 Jo para referir-se a Satanás em 2.13,14; 3.12; 5.18). Hospedar falsos mestres era
como convidar Satanás para jantar!

A P A R T IR D O T E X T O

Fé solitária não é fé cristã

Ir além (v. 9) retrata alguém se separando do grupo. Correr sozinho nos des-
conecta espiritualmente da Igreja. Na companhia de outros cristãos, somos mais
propensos a correções ocasionais que nos ajudarão na jornada.

Oferecer hospitalidade é uma expressão da graça cristã

Abrir a nossa casa oferecendo comida, alojamento e nutrição espiritual é es­


tender o convite do nosso Deus acolhedor. Ele está estendendo boas-vindas carre­
gadas de implicações espirituais. Refeições compartilhadas constroem vidas com­
partilhadas.

Recusar hospitalidade pode ser uma expressão do princípio cristão

Em que ponto algumas questões são tão importantes que devemos evitar a
comunhão com o próximo? O presbítero não permite o comprometimento da
cristologia. A Igreja deve discernir o falso do verdadeiro. Temos de aprender a ser
redentores sem comprometer crenças essenciais e fundamentais.

A pessoa de Jesus e os textos que falam dele

Nossa lealdade é para com a pessoa de Jesus Cristo. Porém, isso deve ser equi­
librado com devoção e mandamentos aos textos que nos permitem aprender sobre
Ele. Estamos longe da época de Jesus. Portanto, precisamos depender de textos,
especialmente das Escrituras. Todavia, também podemos aprender com outros
testemunhos escritos úteis para o desenvolvimento da fé cristã, como os credos
199
1,2 E 3 JOÂO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

ecumênicos e os escritos da Igreja primitiva. Estamos aptos a participar da fé de


nossos pais e nossas mães, porque eles registraram fielmente suas lutas e seus acor­
dos, preservando-os por escrito. Nós somos herdeiros da “fé de uma vez por todas
confiada aos santos” (Jd 3) por meio de textos e daqueles que os preservaram.
Entretanto, o perigo está em confiar em textos em detrimento de uma fé pes­
soal e vital em Cristo. Esse enfoque pode criar uma desconexão entre a cabeça e o
coração, enquanto uma fé bíblica verdadeira é holística (veja Dt 6.5; Mt 22.37; Mc
12.30; Lc 10.27).

0 anticristo

O que devemos concluir com o fascínio moderno com o anticristo (v. 7)? O
termo é raro na Bíblia. João diz: “o anticristo está vindo”, mas logo amplia o con­
ceito, dizendo que, em sua época, já havia “muitos anticristos” (1 Jo 2.18). O pres­
bítero aplica o rótulo de anticristo a todas as pessoas do primeiro século que não
conseguiam afirmar Cristo como totalmente encarnado.
O presbítero não tinha interesse em uma mítica e suprema encarnação do mal
do fim dos tempos. Os cristãos modernos fariam bem em seguir o exemplo do pres­
bítero. Devemos perguntar como o espírito do anticristo se manifesta em nosso
mundo e se recusa a prever ou a identificar umapessoa escatológica. O que importa
é de que forma o mal já está entre nós. Como o espírito do anticristo tem invadido
nossa vida e nossos sistemas; e o que podemos fazer quanto a esse mal agora? (veja
o quadro “Anticristo” em 1 Jo 2.18).

D. Planos futuros (12-13)

NO TEXTO

BI 1 2 O presbítero ainda tinha muito que (...) escrever. As cartas podem exercer
autoridade apostólica e preocupação pastoral. Porém, ele percebeu as limitações
do papel (chartou, somente aqui no NT) e da tinta (m elanos, lit.: “preto”, em outra
passagem, apenas em 3 Jo 13 e 2 Co 3.3, no NT; Earle, 1984, p. 111). O presbítero
esperava encontrar seus leitores face a face (lit.: boca a b oca p a ra fa la r). Essas me­
táforas retratam, de forma vivida, a conversa pessoal. Nas linhas de encerramento
de 3 João 13, temos palavras idênticas (veja o comentário).
A LXX, por vezes, exprime a ideia de realizar reuniões pessoais de “boca” (es­
torna, traduzido como “face” em Gn 32.30; Nm 12.8). Em outras passagens, “face
200
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

a face” traduz literalmente o grego (Dt 5.4; 34.10; Jz 6.22). Em um dos casos, “face
a face” traduz “visto claramente” (Nm 14.14 NTLH). Em Êxodo 33.11, traduz
“cara a cara” (TB).

C a rta s d os cristã o s p rim itivo s com o fe rra m e n ta s d e m inistério

G r a n d e p a r te d o N T e m p r e g a a s p e c to s d o g ê n e r o e p is to la r g re c o -
-r o m a n o . A s c a rta s d o N T in c r e m e n t a v a m a m is s ã o c ris tã e m to d o s os
q u ilô m e tr o s d e s e p a r a ç ã o n e c e s s á rio s . E la s a fir m a v a m a fid e lid a d e d a s
ig re ja s e a d v e r t ia m c o n tr a e rro s d e c re n ç a o u p r á tic a . A s c a rta s in s tru ía m
o s c re n te s (c a te q u e s e ) o u d e f e n d ia m a fé c o n tr a o s c rític o s (a p o lo g é tic a ).
C o n t a to s p o r e s c rito p o d ia m m e d ia r u m a m u d a n ç a d e a titu d e e d e a ç ã o
d e u m in d iv íd u o ( F ile m o m ) o u d e u m g r u p o d e ig re ja s ( G á la t a s ) . U m a c a r­
ta tr a n s m itia a s id é ia s d e a lg u é m e , e m c e rto s e n tid o , tr a n s f o r m a v a -s e
n a p re s e n ç a p e s s o a l d o e s c r ito r q u a n d o s u a s p a la v r a s e r a m lid a s . Pe lo
m e n o s a lg u n s c o n s id e r a v a m a s c a r ta s d e P a u lo m a is e fic a z e s d o q u e a
s u a p r e g a ç ã o (2 C o 1 0 .1 0 ) .
P o d e -s e a r g u m e n t a r q u e 2 1 d o s 2 7 liv ro s d o N T s ã o a lg u m tip o d e
c a r t a . A s ú n ic a s e x c e ç õ e s s ã o o s q u a t r o E v a n g e l h o s , A t o s e A p o c a lip s e .
P o r é m , a té A p o c a lip s e é o rg a n iz a d o c o m o u m a c a r ta ( A p 1 .4 - 6 ; 2 2 .2 1 ) .
A m e n ç ã o d e c a rta s p e rd id a s a p a r e c e n o N T . P a u lo r e c e b e u c a rta s d o s
c o rín tio s — " q u a n t o a o s a s s u n to s s o b re o s q u a is v o c ê s e s c r e v e r a m " ( 1 C o
7 . 1 ) . O s re s to s d e u m c o m u n ic a d o à s ig re ja s s u r g e m e m A t o s n a fo r m a d e
u m a c a rta e m b u t id a n a n a r r a tiv a ( 1 5 .2 3 - 2 9 ) . F in a lm e n t e , e x is te m a s s e te
" c a r ta s " d o C ris to re s s u s c ita d o à s ig re ja s e m A p o c a lip s e 2 — 3 ( a d a p t a d o
d e E h r m a n , 2 0 0 8 , p . 1 8 6 - 1 8 8 ; S t o w e r s , 1 9 9 2 , 2 :2 9 0 - 2 9 3 ; S e i t z , 1 9 6 2 , p .
1 1 3 -1 1 5 ).

O presbítero escreve a uma comunidade de crentes. Duas vezes, nesse versí­


culo, ele usa e refere-se a vocês. Alguns manuscritos, provavelmente devido à in­
fluência do uso de vocês, contêm “sua” alegria, enquanto outros contêm nossa
alegria. A segunda opção expressa uma boa noção de sua reciprocidade. A alegria
compartilhada deles por fim se tornaria completa. Isso sugere que a alegria deva
amadurecer para atingir plenamente a finalidade para a qual ela foi designada. O
tema alegria aparece em todas as cartas (1 Jo 1.4; 2 Jo 4,12; 3 Jo 3,4). Essa alegria
provavelmente era associada à amizade entre o presbítero e suas igrejas. Ele se ale­
grava com sua crescente clareza doutrinai.
A carta termina com um tom esperançoso. O resultado dessa carta e da espe­
rada visita face a face deve ter tido um resultado positivo. Se a “senhora eleita” e os
201
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

“seus filhos” (v. 1) não tivessem aceitado a opinião do presbítero, a carta provavel­
mente não teria sobrevivido.
A palavra para completa ipeplêrõm enê, no tempo perfeito) carrega o sentido
àe p reen ch id a — sua alegria mútua estava quase transbordando. O tempo verbal
indica um evento com um efeito contínuo: R eceb em os a legria e con tin u a m os a
v iver nessa a legria . Essa alegria consumada entre Jesus e Seus seguidores é carac-
terística dos escritos de João (Jo 3.29; 15.11; 16.24; 17.13; 1Jo 1.4; Hübner, 1993,
p. 108).
A promessa de alegria completa pode antecipar a era messiânica (Strecker,
1996, p. 250). Lucas liga metaforicamente alegria ao dom do Espírito de Deus:
“Os discípulos continuavam cheios de alegria e do Espírito Santo” (At 13.52).
I 13 O presbítero conclui 2 João do mesmo modo como começou, com uma
terminologia de família. A expressão singular irmã apresenta uma metáfora da
igreja como um todo interligado e vivo. Os crentes são filhos. A igreja de onde o
presbítero escreve também é eleita (veja o quadro no v. 1). Essa comunicação não
era apenas entre o presbítero e uma igreja. Todavia, era sua tentativa de ligar pelo
menos duas congregações um a à outra.
As saudações pessoais finais de 2 João são típicas. A identidade e a localização
dos destinatários, a “senhora eleita” e “seus filhos” (v. 1) e a congregação represen­
tados na saudação final — os filhos da sua irmã — continuam sendo um mistério.
O grau de interdependência entre as igrejas geograficamente distantes duran­
te o final do primeiro século é difícil de determinar. As cartas do NT testemunham
que havia laços importantes. Há menções ocasionais de comunicação intercon-
gregacional em Atos. Atos 15 relata uma importante reunião entre enviados da
Antioquia e líderes de Jerusalém. Atos é, em grande parte, o registro de viagens
apostólicas com o fim de visitar igrejas estabelecidas ou plantar igrejas novas. As­
sim, “escrever” e “falar (...) face a face” fez com que a igreja crescesse de forma im­
portante e mantivesse seu senso de família.

A P A R T IR D O T E X T O

Ministério por meio de lares consagrados

Muitos lares cristãos do primeiro século recebiam ministros itinerantes e suas


mensagens. O presbítero informou seus planos de visitá-los e falar (...) face a face
com os crentes em tal ambiente (v. 12). Isso significaria, pelo menos, uma refeição
e um alojamento em curto prazo. Paulo esperava ser acolhido na casa de Filemom
(Fm 22). Pedro recebeu a hospitalidade de Simão, o curtidor de couro de Jope (At
202
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

10.6), em seguida, mudou-se para Cesareia e permaneceu por um tempo na casa


de um gentio convertido (At 10.48). Cristãos de Jerusalém reuniam-se na casa de
Maria, mãe de João Marcos (At 12.12). Em Filipos, Paulo e Silas encontraram uma
anfitriã em Lídia, uma recém-convertida (At 16.13-16,40).
Como nossas casas podem ser mais cristãs ao receber pessoas? O que precisa
ser removido ou ajustado para criar um espaço que honre a Cristo? Vamos orar
e planejar para fazer avançar o Reino de Deus de forma mais eficaz, por meio da
atmosfera do nosso lar.

Ministério e relacionamentos se unem em nossa teologia

As preocupações de 2 João desenvolveram-se dentro de um relacionamento


presbítero/igreja, assim como pessoa/pessoa e igreja/igreja. Teologia e prática sau­
dável são formadas na companhia de outras pessoas, não de forma isolada.
Pertencer à igreja é abraçar a segurança da fé compartilhada. Isolar-nos é con­
vidar o erro teológico e até mesmo a eventual prática do “anticristo” (v. 7). Então,
ouvindo o presbítero, confessamos que realmente precisamos uns dos outros. Pre­
cisamos uns dos outros para entrar na fé, mantê-la crescente e avançar para uma fé
aperfeiçoada, a qual atinja o seu objetivo.
E certo que papel e tinta (v. 12) têm valor, assim como uma série de disposi­
tivos de comunicação eletrônica. Eles são suficientes nos intervalos da vida em que
estamos separados. Porém, os melhores e mais importantes meios de colocar em
prática o mistério da humanização de Cristo é por meio de vidas interligadas, face
a face e pessoais.
Essa pequena e importante carta é, muitas vezes, esquecida. Raramente
se ouve sermões sobre 2 João. João Calvino escreveu comentários sobre o
Evangelho de João e 1 João, mas não sobre 2 João ou 3 João. Lutero lecionou
sobre 1 João, mas não sobre 2 João ou 3 João (Smith, 1991, p. 146). Os
comentários de John Wesley sobre 2 João e 3 João são esparsos, de poucas
linhas (Wesley, 1983, s.p.). Essa carta merece uma renovação de interesse nas
igrejas de hoje.

203
3 JOÃO
INTRODUÇÃO

A. Autoria, data, origem, público, ocasião,


propósito, questões socioculturais e história
textual
Veja a discussão dessas questões na primeira Introdução do comentário.

B. Características literárias
A carta que chamamos de 3 João é o menor livro no NT. Este é singular
por ser o único escrito do N T que não menciona Jesus ou Cristo e por ser o úni­
co escrito joanino que se refere à “igreja” (v. 6,9,10; Culpepper, 1998, p. 278).
A carta inclui aspectos tradicionais de cartas greco-romanas clássicas (veja
o quadro “Cartas greco-romanas” em Características Literárias, na Introdução
de 1 João; veja Thomas, 2004, p. 16,17, para comparações com cartas não bíbli­
cos semelhantes). Nelas, estão incluídos: o remetente (“o presbítero”), o desti­
natário (“Gaio”) e as palavras calorosas de saudação (“a quem amo na verdade”).
O conteúdo da carta aborda as preocupações e as esperanças do presbíte­
ro. A carta termina com uma despedida tradicional (“a paz seja com você”) e
saudações finais (“os amigos daqui lhe enviam saudações” e “saúde os amigos
daí, um por um”). O comprimento da carta é típico de cartas antigas: cerca de
uma página. A espera de uma visita pessoal (v. 14) pode sugerir o porquê de
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

a carta ser tão breve. A situação é urgente (v. 10), e um encontro pessoal era
necessário tanto para enfrentar Diótrefes como para dar apoio a Gaio (Jones,
2009, p. 277).

C. Temas teológicos
A carta destaca a hospitalidade como forma de apoiar os ministros cristãos
itinerantes (veja o quadro “Professores itinerantes” em 2 Jo 1-3). Ela pressu­
põe que oferecer ou negar hospitalidade era baseado em diferenças teológicas
e também pessoais. Quando alguém recebia ministros viajantes, oferecendo
comida e abrigo, essa hospitalidade manifestava o seu apoio ao trabalho deles.
Recusar-se em recebê-los era rejeitar os ensinamentos de seus visitantes (Varu-
ghese, 2005, p. 336). A hospitalidade não era uma simples questão social; era
uma questão teológica de importância considerável no cristianismo primitivo.
Outra questão teológica vital era como a liderança deveria ser adquirida e
perpetuada. Quando um líder é legítimo e quando não é ? O presbítero escre­
veu “à igreja” (v. 9), buscando apoio para os ministros cujo trabalho ele admi­
rava. Porém, um líder local, Diótrefes, talvez o pastor da igreja, havia rejeitado
o apelo do presbítero. Além disso, Diótrefes expulsava “da igreja” (v. 10) quem
se atrevia a oferecer hospitalidade aos representantes viajantes do presbítero.
Apesar de o presbítero e Diótrefes aparentemente fazerem parte do mes­
mo círculo de igrejas joaninas (van der Watt, 2007, p. 20), uma discordância
significativa relacionada à autoridade criou um desentendimento entre eles.
Dois grupos rivais de missionários viajantes competiam pelo controle das igre­
jas joaninas domésticas da região (Jones, 2009, p. 272, embora haja poucas
evidências).
O quanto as igrejas locais do final do primeiro século eram autônomas?
Havia ministros supervisores para fiscalizar uma região? À medida que a fé
cristã se afastava cada vez mais no tempo de suas origens apostólicas, ocorriam
expressões variantes em locais, culturas e línguas muito diferentes. Em muitos
casos, isso levou a uma independência crescente. A tensão óbvia em 3 João pro­
vavelmente não foi um caso isolado. Cristãos, antes e agora, lutam para enten­
der e viver a fé em meio às diferenças culturais e interpessoais.

D. Questões hermenêuticas
Alguns desafios interpretativos surgem nessa carta. Um deles é a declara­
ção: “Oro para que você tenha boa saúde” (v. 2). Alguns cristãos tomavam isso
206
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

como uma promessa divina de saúde perpétua para cristãos. Outros entendem
a frase como apenas uma palavra culturalmente condicionada e convencional
de saudação habitual de cartas antigas.
A referência a “pagãos” (NTLH), no versículo 7, pede explicações e uma
tradução mais sensível. Esse rótulo faz com que as pessoas fiquem na defensiva.
Ele desnecessariamente coloca uma divisão entre os representantes do Senhor
Deus e os que ainda não aceitaram a oferta da Sua graça.
A carta também traz disciplina eclesiástica e lutas pelo poder entre os lí­
deres da igreja em vista. O que o texto em 3 João tem a dizer sobre a ordem
eclesiástica? Excomunhão é uma forma adequada de disciplina hoje? O que
significa expulsar as pessoas “da igreja” (v. 10)?

207
COMENTÁRIO

VII. APOIANDO MINISTROS E SEPARAÇÕES DOLOROSAS:


3 João 1-14

A. Saudações e relacionamentos (1-4)

POR TRÁS DO TEX TO

Em 2 João, o presbítero dirigiu-se a uma “irmã” muito amada (v. 1). Aqui, ele
escreve ao a m a d o Gaio. Em ambas as cartas, seu amor pelos destinatários é em
verdade (2Jo 1; 3Jo 1).
O texto em 3 João segue muitas convenções de cartas greco-romanas. Quan­
do o prebístero escreve oro para que você tenha boa saúde (v. 2), ele emprega
uma saudação social comum. Em uma carta greco-romana do Egito, um jovem
(Aurelius Dius) saudou o pai com palavras quase idênticas: “Oro para que você
desfrute de boa saúde” (Ehrman, 2008, p. 187, tradução de Oxyrhynchus Papyri
10, n. 1296; veja outros exemplos em Elwell e Yarbrough, 1998, p. 194). Os escri­
tores do NT eram pessoas de seu próprio tempo, e suas cartas refletem o estilo de
correspondência pessoal daqueles dias.
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

NO TEXTO
B 1 O autor chama a si mesmo de presbítero (veja o comentário em 2 Jo 1). En­
quanto 2 João utiliza uma linguagem de família, 3 João tende a usar termos de
amizade. O presbítero chama Gaio de “querido” (NTLH; lit.: amado). Em 3 João,
todas as ocorrências de amado (v. 1,2,5,11) traduz uma forma de agapêtos. A carta
também usa o termo “amigos” {philoi, duas vezes no v. 15). No entanto, 3 João
inclui linguagem familiar (“irmão”, nos v. 3,5,10, e “filhos”, no v. 4).
Quem é Gaio? Esse nome, comum no Império Romano, pertencia a dois ou
três outras pessoas mencionadas noNT (veja 1 Co 1.14; At 19.29; 20.4; Rm 16.23;
Brown, 1982, p. 702). Nenhuma ligação convincente pode ser demonstrada com
qualquer um deles (Culpepper, 1998, p. 279; Marshall, 1978, p. 81,82). Portanto,
temos aqui mais outro Gaio (Smith, 1991, p. 149).
A afeição do presbítero por Gaio é clara: A quem amo na verdade (veja o
quadro “Verdade” em 1 Jo 1.6). As palavras gregas para verdade (sete vezes), a m o r
(seis vezes) e testemunho (cinco vezes) são as mais frequentes nessa carta. Elas
também são comuns no Evangelho de João (Thomas, 2004, p. 20). A exortação
de Jesus para “amar-se uns aos outros” (Jo 13.34; 15.12,17) tornou-se uma parte
importante do vocabulário de João (1 Jo 3.11,23; 4.7,11,12; 2Jo 5). A comunidade
joanina considerava o amor como algo ativo. Ele deveria ser visível nas ações das
pessoas, não apenas sentido. O amor divino age de formas semelhantes a Cristo.
O que quer dizer a frase amo na verdade (evocando 2Jo 1)? O amor de Deus
manifestado em Cristo colocava o presbítero e Gaio em um relacionamento com
Deus, a fonte de toda a verdade. Depois de se aproximarem de Deus, eles se apro­
ximaram um do outro.
A teologia joanina é centrada em uma crença de prática da verdade. A verdade
tornou-se um padrão inflexível para o presbítero, um meio pelo qual ele definia
aqueles que estavam na fé, que ele considerava ortodoxa, e os que estavam fora dela.
A palavra aparece 11 vezes em 1 João (1.6,8; 2.4,8,20,21; 3.18,19; 4.6; 5.6); cinco
vezes em 2 João (1,2,3,4); e seis vezes em 3 João (1,3,4,8,12). O termo concentra-se
em conteúdo — as verdades que compõem a verdade. No entanto, a verdade não
pode ser limitada a um ensino formal de crenças fundamentais. Aqui, ela era como
um slogan que crentes verdadeiros empregavam para distinguir-se dos separatistas
(Lieu, 1991, p. 95).
B 2 O presbítero manifestava interesse na saúde na alma de Gaio (psychê, nos
escritos joaninos, geralmente vida-, Smith, 1991, p. 150; Bultmann, 1973, p. 97).
O NT fala, muitas vezes, sobre a p sych ê como a essência da pessoa, entendida de
forma holística (Schweizer, 1974, p. 639,642-644). O dualismo de uma alma ima-
terial presa em um corpo físico não tem suporte no NT.
210
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

No Evangelho de João, p sych ê refere-se à própria vida, não à existên­


cia espiritual. Como o bom pastor, Jesus dá a vida {psychê) pelas ovelhas (Jo
10.10,15,17). Pedro impetuosamente declarou para Jesus: “Darei a minha vida
por ti!” {psychê, Jo 13.37). No versículo 2, o presbítero pode ter usado psychê
para referir-se à condição espiritual de Gaio. Porém, o mais provável é que ele
apenas orasse pela saúde de Gaio em todos os aspectos de sua vida.
Desejar saúde (oro) aparece em cartas seculares do período (Thomas, 2004, p.
22). O termo pode invocar uma divindade e, portanto, uma oração. Todavia, tam­
bém pode expressar simplesmente um desejo sincero (Greeven, 1964, p. 775-777).
A frase tudo lhe corra bem não deve ser interpretada como uma promessa
divina implícita de saúde física em todos os momentos para o povo de Deus.
Certamente, não é uma base para um evangelho de prosperidade de “confissão
positiva” e “saúde e riqueza” (Thomas, 2004, p. 22). É apenas uma típica saudação
secular. Ela emprega a metáfora de ser guiado por um bom {eu) caminho ou uma
boa estrada {hodos, Earle, 1984, p. 112; Marshall, 1978, p. 83; Haas, Dejonge e
Swellengrebel, 1972, p. 150). O infinitivo passivo sugere que Deus seja a fonte de
todo verdadeiro sucesso e saúde (Michaelis, 1967, p. 109-114).
■ 3 Receber notícias de Gaio causou m u ita a leg ria {echarên, veja 2 Jo 4) ao pres­
bítero. A a leg ria foi sentida pela primeira vez com a chegada de alguns irmãos,
que vieram como representantes Gaio. Isso por si só, provavelmente, agradou o
presbítero. Além disso, a mensagem de que Gaio e os que estavam com ele conti­
nuavam andando na verdade {peripateis, no tempo presente) foi motivo de mais
celebração. A caminhada deles, de modo provável, tinha em vista tanto a sua ade­
são à verdade ética de amar como à verdade cristológica de acreditar (Jones, 2009,
p. 268; veja 1 Jo 3.23).
Não é possível saber se a notícia de Gaio foi entregue oralmente ao presbítero
ou se foi por carta. O texto implica uma comunicação oral {martyrountõn, testifi­
can do). Contudo, as cartas antigas costumavam ser lidas em voz alta.
H 4 A frase meus filhos identifica uma relação espiritual íntima entre o presbítero
e essa comunidade de fé. Talvez Gaio e os outros tivessem aceitado a fé por meio
do ministério do presbítero. É possível que a mentoria do presbítero a esses jovens
cristãos houvesse estabelecido uma ligação emocional familiar entre eles.
O presbítero estava muito satisfeito — não tenho alegria maior (veja o v. 3
e 2 Jo 4) — por seus filhos estarem seguindo o caminho cristão. Andar na verda­
de enfatiza os conceitos a serem acreditados e o estilo de vida a ser praticado. O
particípio presente traduzido como estão andando transmite a metáfora de uma
jornada contínua.
211
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BlBLICO BEACON

O presbítero, aparentemente, recebeu a notícia de certa distância. Talvez res­


ponsabilidades de ministério e viagens impedissem que visitasse Gaio e sua igreja
com a frequência que ele desejava. Ou a idade e a enfermidade podem ter prejudi­
cado a capacidade de o idoso viajar. Então, ele tinha de contentar-se com mensagei­
ros e cartas pessoais para mantê-lo um pouco atualizado. Ele ficou muito animado
pela notícia de que continuavam no caminho da verdade.

A P A R T IR D O T E X T O

0 dom da amizade

Quanto mais faria a obra de Deus avançaria no mundo se aprofundássemos


nossas amizades com outros crentes ? Quanto mais eficaz seria o nosso testemunho
se oferecéssemos amizade genuína para aqueles que ainda não estão na fé ? Como
Gaio aceitou a fé ? Quem alimentou seu discipulado em desenvolvimento ? Ponde­
rar sobre essas questões é agradecer pela graça divina que traz pessoas à fé em Jesus
Cristo e às igrejas.

0 dom de oração e amor

O presbítero ora pelo amigo e diz isso para ele (v. 2). O amor é mais bem
conhecido quando é expressado. Orar pelo próximo é uma expressão de amor. O
amor a Deus torna-nos cada vez mais capazes de amar os outros. Quando a fonte
da verdade é o nosso foco, somos levados para mais perto de todos os que estão
igualmente próximos de Deus.

Saúde e riqueza?

Se interpretado de forma errada, o versículo 2 poderia ser usado para afirmar


que a única norma cristã aceitável é a saúde física contínua e a prosperidade mate­
rial. Porém, isso contradiz o sentido claro das Escrituras, bem como a experiência
do povo de Deus em todas as épocas. Os únicos que já lucraram com o evangelho
da prosperidade são pregadores sem escrúpulos, desonestos ou moralmente cegos.
Como conciliar o “evangelho” da prosperidade com o testemunho de Paulo
em 2 Coríntios 6.4-10 e 2 Coríntios 11.23-29, em que sua fidelidade a Cristo signi­
ficava sofrimento e prejuízos de todo tipo? O que se pode entender da observação
de Paulo sobre deixar Trófimo “doente” em Mileto (2 Tm 4.20) ? Será que Paulo ou
Trófimo não tinham a fé necessária para a cura? O que vamos fazer a respeito do
“espinho na carne” de Paulo (2 Co 12.7-10)? Como devemos lidar honestamente
212
NOVO COMENTÁRIO BlBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

com cristãos de qualquer geração, cuja vida e caminhada são inegáveis, mas que lu­
tam com enfermidades físicas, necessidades financeiras ou relacionamentos feridos
sem terem culpa? Que consolo podemos oferecer a mães cristãs em cantos empo­
brecidos do mundo que ainda veem metade de seus bebês morrerem na infância?

Alegria verdadeira

De que consiste a alegria? Muitos dizem: “Na abundância de bens materiais”.


Todavia, essa abundância pode ser perdida facilmente e, em última análise, é insa­
tisfatória. E quanto à fama? A fama é passageira. Talvez poder? Mas o poder pode
corroer a intimidade e partir a confiança se não for cuidadosamente controlado.
Prazer? O prazer só é gratificante se puder ser apreciado na presença de um Deus
santo e lembrado sem arrependimentos.
Para o presbítero, a alegria maior estava em celebrar a vida em Cristo com ou­
tras pessoas. A declaração do presbítero de que a notícia de fidelidade espiritual foi
a sua maior alegria deveria fazer-nos parar. Nós aceitamos coisas menores, as quais
competem pelo lugar dessa alegria maior (v. 4).

B. Ministério e hospitalidade (5-8)

POR TRÁS DO TEX TO

O uso absoluto do Nome (v. 7) é intrigante. Deus colocava o Seu nome divino
em lugares específicos — no tabernáculo, no templo, na arca da aliança e em Jeru­
salém (Dt 12.21; 26.2; 2 Sm 6.2; 1 Rs 3.2; 5.3,5; 8.17,20; 2 Rs 21.4,7). A expressão
“meu nome”, referindo-se a Deus, ocorre mais de 100 vezes na Bíblia. Ela é dita
pelo Jesus terreno 24 vezes nos Evangelhos em referência a si mesmo. O Senhor
ressuscitado fala “meu nome” em Atos (9.15,16) e em Apocalipse (2.3,13; 3.8).
O termo grego kyrios, utilizado na LXX para referir-se a Deus, veio a ser
usado referindo-se a Jesus por escritores do NT. O mesmo tipo de desenvolvi­
mento parece ter ocorrido com “o nome”. Esse é o mais próximo do que presbí­
tero chegou a dizer do nome de Jesus em 3 João (Marshall, 1978, p. 86, n. 10).
Missionários cristãos que procuram tornar o nome de Deus conhecido
viajaram por muitos lugares, pela fé, confiando nas orações e no apoio material
do povo de Deus. Receber um ministro viajante em um lar de família era uma
importante forma de apoiar o seu trabalho (veja o quadro “Professores itine­
rantes” em 2 Jo, Por trás do texto).
213
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

NO TEXTO

1 5 0 presbítero continua usando uma linguagem calorosa e relacionai — ama­


do. Ele elogia a fidelidade de Gaio por ter servido aos irmãos. Esse espírito aco­
lhedor transformou desconhecidos (zenos, ou “convidados”; Bruce, 1970, p. 149)
em amigos (Jones, 2009, p. 269). Gaio vivia fiel (lit.: v o cê está fa z en d o fielm en te).
O presbítero adotou uma forte rede de cristãos que, embora estivessem espa­
lhados por uma região vasta, estavam empenhados em apoiar um ao outro. Essa
rede de fé levava a atos concretos. Gaio e outros membros da sua igreja já haviam
tratado bem os mensageiros do presbítero (v. 6). A carta incentiva a contínua ge­
nerosidade de Gaio.
1 6 Essa é a primeira ocorrência de igreja (ekklêsia) nos escritos joaninos. O termo
aparece novamente nos versículos 9 e 10 e 20 vezes em Apocalipse. Embora tenha
uso limitado, ele faz parte do vocabulário cristão em desenvolvimento no primeiro
século (Brown, 1982, p. 710).
Gaio e a igreja são convidados a encaminhar os representantes do presbítero
— os “irmãos” (v. 5) — em sua viagem. Essa era uma maneira educada e indireta
de pedir ajuda (alimentos, dinheiro, condições de habitação, companheiros de via­
gem) para os missionários (Thomas, 2004, p. 26; Haas, Dejonge e Swellengrebel,
1972, p. 152). Essa frase, encontrada somente nessa parte do NT, assemelha-se ao
desejo expressado por Paulo às igrejas de Roma para ajudá-lo em sua “viagem para
lá” (Rm 15.24; veja At 15.3; 1 Co 16.6,11; 2 Co 1.16; Tt 3.13). Você fará bem é
uma forma idiomática de transmitir um pedido ou expressar um agradecimento
antecipadamente (Marshall, 1978, p. 85; Bruce, 1970, p. 150).
O padrão de hospitalidade do presbítero é de modo agradável a Deus (veja
Cl 1.10; 2 Ts 2.12). O tema evoca o ensinamento de Jesus: “O que vocês fizeram
a algum dos meus menores irmãos a mim o fizeram” (Mt 25.40). A epístola aos
Hebreus transmite uma ideia similar: “Não se esqueçam da hospitalidade; foi pra-
ticando-a que, sem o saber, alguns acolheram anjos” (Hb 13.2). Embora a genero­
sidade possa ser abusada, o chamado para honrar aqueles que honram a Deus pede
que se atentem para o lado da generosidade (Marshall, 1978, p. 86).
O empreendimento missionário do primeiro século era sustentado em dois
aspectos importantes. Os primeiros missionários cristãos, muitas vezes, tinham
duas vocações, como Paulo — que era fabricante de tendas (At 18.3). O avanço do
evangelho também dependia da generosidade dos cristãos comuns que forneciam
alimento, abrigo, encorajamento e dinheiro. Paulo pretendia visitar os cristãos de
Roma — “depois de ter desfrutado um pouco da companhia de vocês”. Ele edu-
214
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

cadamente expressou sua esperança de hospitalidade e apoio financeiro para sua


missão na Espanha por parte dos cristãos em Roma, que, em sua maioria, eram
desconhecidos quando ele escreveu (Rm 15.24).
Paulo também escreveu sobre várias ofertas que recebeu de Filipos (Fp
4.16,18). Os filipenses, no entanto, parecem ser uma exceção entre suas igrejas. Ele
escreve que, “nos seus primeiros dias”, somente eles o haviam apoiado dessa forma
(Fp 4.15). Então, o apoio financeiro era desigual, se o caso de Paulo for represen­
tativo.
Um conjunto de frases de 3 João parece refletir uma estrutura de desenvolvi­
mento nas igrejas joaninas, com uma relação especial à atividade missionária. As
expressões encaminhar, agradável a Deus (v. 6) e cooperadores (v. 8) implicam
uma rede de trabalhadores cristãos. Esse arranjo é mais característico da tradição
paulina (Lieu, 1991, p. 93). Porém, há sobreposições suficientes entre as viagens de
Paulo e as localizações geográficas associadas a João para interpretar as frases como
uma janela útil para a prática da Igreja primitiva em geral.
H 7 Os pregadores itinerantes saíram, talvez um termo técnico usado para ativida­
des evangelísticas (Jones, 2009, p. 270), por causa do Nome. Paulo escreve sobre o
“nome que está acima de todo nome”, o “nome de Jesus”, que um dia fará com que
todos se curvem e o confessem como Senhor (Fp 2.10). Atos 4.12 é semelhante:
“Não há salvação em nenhum outro, pois, debaixo do céu, não há nenhum outro
nome dado aos homens pelo qual devamos ser salvos”. Os apóstolos de Jerusalém
se alegraram “por terem sido considerados dignos de serem humilhados por causa
do Nome” (At 5.41). O uso absoluto de Nome também é encontrado em cartas de
Inácio a Éfeso e Filadélfia (Brooke, 1912, p. 185).
A frase por causa do Nome deriva de inúmeros precedentes do AT. Lá, o
“nome” é o do Senhor Deus (1 Sm 12.22; SI 25.11; 31.3; 79.9; 109.21; Is 45.4;
48.9; Jr 14.7,21; Ez 20.9,14,22,44; 36.22). Entretanto, em 3 João, o Nome pro­
vavelmente se refere a Jesus (Jones, 2009, p. 270; Painter, 2002, p. 373; Marshall,
1978, p. 86; Bultmann, 1973, p. 99; Bruce, 1970, p. 150).
Em outras passagens joaninas, “o nome” se refere principalm ente a Jesus (Jo
1.12; 2.23; 3.18; 14.13,26; 15.16,21; 16.23,26; 20.31; 1 Jo 2.12; 3.23; 5.13) Oca­
sionalm ente ele é aplicado ao Pai (Jo 10.25 por Jesus; em 12.13, pela multidão a
respeito de Deus quando celebravam a vinda de Jesus em Jerusalém).
Atos reflete o desenvolvimento do uso de “nome” associado a Jesus (At 5.41;
9.16; 15.26; 21.13). Jesus fala de forma impressionante no Quarto Evangelho —
“Pai santo, protege-os em teu nome, o nome que m e deste” (Jo 17.11, grifo do au­
tor). Em seguida, ele acrescenta: “Eu os protegi e os guardei no nome que m e deste”
215
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

(Jo 17.12, grifo do autor). Para os autores bíblicos, o “nome” (onom a) e a pessoa
que ele representa são inseparáveis. Então, falar pelo Nome era falar com o enten­
dimento de que Cristo estava presente na fala (Strecker, 1996, p. 259).
O presbítero relata não receber ajuda alguma dos gentios (ethnikõn). A
NTLH traduz como “pagãos”. Essa pode ser a melhor opção (Painter, 2002, p.
370; Smith, 1991, p. 152). Culpepper insiste no fato de que a tradução usual em
outras partes do NT, gentios, não pode ser o sentido aqui. Os três nomes citados
em 3 João são típicos nomes gentios (1998, p. 280). O presbítero aparentemente
usava o termo para referir-se a não cristãos, não como uma distinção étnica entre
judeus e gentios.
O argumento do presbítero seria que os cristãos apoiassem ministérios cris­
tãos e não esperassem que os incrédulos fizessem isso (Smith, 1991, p. 152). O
povo de Deus tem a responsabilidade de financiar a Sua obra. Embora a generosi­
dade das pessoas que ainda não eram cristãs pudesse ser aceita (veja At 10), o pe­
dido de doar, de forma generosa, para apoiar o trabalho missionário é direcionado
principalmente a pessoas dentro de círculos cristãos.
1 8 O presbítero retrata a hospitalidade como uma esperada expressão de um ge­
neroso apoio aos missionários. Isso é claro na sua inserção do pronome enfático nós
(.bêm eis; Bruce, 1970, p. 151). Sua intenção é clara: Nós m esm os d evem o s receb er
tais co m o esses. Hospitalidade incluiria hospedagem, alimentação e dinheiro para
a futura viagem de tais missionários (v. 6).
Quando pessoas como Gaio e os que estavam com ele apoiavam irmãos como
esses, as igrejas envolvidas compartilhavam o ministério: cooperadores em favor
da verdade. Alguns cristãos plantavam o evangelho em novo solo geográfico e en­
tre diversos grupos de pessoas. Outros forneciam um sistema de apoio, os meios
materiais que permitiam que evangelistas e missionários itinerantes tivessem liber­
dade de dedicar mais tempo à pregação e ao ensino.
A semente do conceito missionário está nessa passagem. A obra de Deus é
mundial, e todos os seguidores de Cristo estão alistados nesse trabalho. Deus em­
prega pessoas como cooperadores (synergoi). O verbo ginõm etha, q u e p o d em o s
to rn a r-n o s, sugere uma decisão a ser tomada. O verbo é precedido por hina, indi­
cando finalidade. O presbítero queria que a carta motivasse as igrejas que ele dirigia
a tornarem-se colaboradoras de Deus e entre si.
Essa é a quinta ocorrência de verdade em 3 João (com mais duas por vir). A
verdade de Cristo é o elo entre o coração dos cristãos (“amo na verdade”, v. 1). Ver­
dade exige fidelidade (v. 3) contínua (veja v. 3,4). Ela atesta o caráter de alguém (v.
12) e flui dos fiéis (v. 12). O presbítero chama seus leitores para trabalharem juntos
em prol da verdade.
216
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

A P A R T IR D O T E X T O

Apoio para quem faz parte do ministério

Um apoio generoso para evangelismo e missões é completamente bíblico


e cristão. Infelizmente, alguns ministros presumem que ser tratado de forma
pródiga é seu direito. Isso leva ao hábito incorreto de tirar proveito da bondade
dos outros. Há uma grande diferença entre apoio necessário para as necessida­
des diárias (alimentação, vestuário, abrigo) e uso do ministério para ganhos
pessoais extravagantes.

Compartilhar com quem faz parte do ministério

A igreja não é definida pelo pronome “eu”, mas por “nós”. Juntos, podemos
alcançar resultados que não seríamos capazes de alcançar individualmente. A
obra de Deus no mundo avança conforme vivemos em comunidade e na ver­
dade (v. 3,4). A verdade que flui de Deus nos impele a envolver-nos em evan­
gelismo, dizer a verdade àqueles que ainda não foram convencidos. A fome de
verdade do homem pode levá-lo a Deus.

C. Divisão perigosa (9-10)

NO TEXTO

H 9 Strecker acha que a frase escrevi à igreja seja uma alusão a 2 João (1996, p.
253-254,263). Porém, a evidência não é convincente. Bruce, após discutir as pos­
sibilidades, conclui que a referência é a uma carta perdida (1970, p. 152; também
Marshall, 1978, p. 88).
Jones considera que o grego ti {algo, não traduzido em algumas versões) é
tentador, mas não específico (2009, p. 271). A carta anterior do presbítero, aparen­
temente, não tinha alcançado o resultado pretendido.
O presbítero afirma que Diótrefes (...) gosta muito de ser o mais importan­
te e não nos recebe. As mesmas palavras no versículo 10 descrevem o que Diótre­
fes faz aos representantes do presbítero — os “irmãos” (v. 5,10). A tradução “não
quer dar atenção ao que eu disse” (NTLH) não é textualmente defensável (BDAG,
2000, p. 370). A melhor tradução é não nos recebe em ambas as passagens (Mi-
tchell, 1998, p. 317).
217
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

O presbítero escreveu a Gaio porque Diótrefes recusou hospitalidade aos


seus ministros viajantes (v. 10). Consequentemente, o presbítero acusa Diótrefes
de colocar-se acima do ministério, dizendo que ele gosta de ser o mais impor­
tante. A palavra grega philoprõteuõn (de phileõ, amar, e prntos, em primeiro lugar)
não aparece em nenhum outro lugar do NT ou na literatura cristão não canônica.
Talvez tenha sido cunhada pelo presbítero para depreciar Diótrefes (Bultmann,
1973, p. 100).
Em 1 Coríntios 5.9-13, Paulo escreve sobre expulsar da igreja “qualquer que,
dizendo-se irmão, seja imoral”, porque havia pecado e não demonstrava arrependi­
mento. Se esse tipo de ação está em vista em 3 João, então o integrantes do grupo do
presbítero estão sendo tratados por Diótrefes como pecadores não arrependidos!
O que poderia causar uma divisão tão profunda em uma comunidade unida
pelo amor ? É tentador inserir o cenário de 2 de João em 3 João. Essa interpretação
pode sugerir que o presbítero e seu grupo tivessem uma cristologia de humanização
ortodoxa; e que Diótrefes e sua igreja fossem um grupo separatista com tendências
docéticas (Jones, 2009, p. 272,274). Porém, a leitura da carta por si só não sugere
nada do tipo (Thomas, 2004, p. 18; Marshall, 1978, p. 90). Lieu vê uma guerra de
palavras e ofensas, mas não encontra base teológica para o debate (1991, p. 92).
Aqui, os pressupostos de um intérprete sobre a origem das três obras têm uma po­
derosa influência na forma de interpretá-los (veja a Introdução a 1 João).
Painter cita a referência similar a “obras malignas” de 2 João 11, as “palavras
maldosas” de 3 João 10 e a visão de Diótrefes como evidência de que ele era um
dos falsos mestres (2002, p. 364-365,375). Entretanto, se Diótrefes aceitava uma
falsa cristologia, o presbítero não o rotulava como enganador ou pior (Culpepper,
1998, p. 281; Smith, 1991, p. 154).
O texto em 3 João pode ser evidência de algum tipo de luta pelo poder entre
dois líderes das igrejas joaninas (van der Watt, 2007, p. 20,21). Bultmann repete
a sugestão de Eíarnack (1897) de que o conflito era sobre a organização congrega-
cional (1973, p. 100).
H 1 0 O presbítero escreve se eu for, usando o modo subjuntivo. Embora sua pos­
sível visita tenha permanecido no futuro incerto, parece indicar algo que ele espe­
rava que acontecesse (Haas, Dejonge e Swellengrebel, 1972, p. 154). Em 1 João
2.28, “quando ele se manifestar” refere-se, de modo semelhante, à certeza da futura
aparição de Cristo. Apenas o tempo era incerto. Assim, o presbítero promete, tal­
vez, q u an do realmente os visitasse: Chamarei a atenção dele; ou mostrará em sua
verdadeira luz (Brooke, 1912, p. 189) as palavras mal-intencionadas que estavam
sendo ditas falsamente sobre ele.
218
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

Será que o ancião implicava um enfrentamento público, uma disputa perante


a congregação que era iminente? O presbítero parece supor que ele devesse ter
certa influência sobre Diótrefes, ou, no mínimo, ele alega tal influência (compare
com G1 2.11-14).
O presbítero apresenta várias acusações contra Diótrefes. Ele falava mal do
presbítero e de seus seguidores. Ele dizia palavras maldosas, espalhava acusações
falsas contra ele (Earle, 1984, p. 113). Além disso, Diótrefes recusou hospitalidade
aos representantes do presbítero — os irmãos. Isso demonstra uma reversão irô­
nica de 2 João 10,11. Lá, o presbítero prescreve a recusa de hospitalidade para os
representantes dos separatistas. Em 3 João, o presbítero e seus associados de con­
fiança eram o alvo da prática! Essa tática eclesiástica foi usada por vários lados para
seus próprios fins (Bruce, 1970, p. 154). Porém, como nos lembra Brown, em uma
comunidade com mentalidade tão dualista como os círculos joaninos, divisões tão
nítidas eram esperadas (1982, p. 747).
A resistência de Diótrefes, no entanto, ia além de recusar receber aqueles que
eram aprovados pelo presbítero. Qualquer um que oferecesse hospitalidade ao gru­
po do presbítero, ele expulsava da igreja. O verbo ekballõ, expulsa, significa lançar
fora ou longe. Ele descreve o que Jesus fez aos demônios (Mt 8.16; Mc 1.34) e aos
vendedores no templo (Mt 21.12). Ele descreve como, “logo após, o Espírito o
impeliu [ekballei] para o deserto” (Mc 1.12). Em uma cena dramática após o ser­
mão da sinagoga de Jesus em Sua cidade natal, o povo de Nazaré “expulsaram-no
[exebalon] da cidade” (Lc 4.29).
A palavra, obviamente, tem grande força. Ela exige uma ação formal. Clarke
(s.d., p. 942) usou o termo “excomungou”. Entretanto, pode ter sido uma pres­
são mais informal por parte de Diótrefes que agitou a congregação e isolou certos
membros (Haas, Dejonge e Swellengrebel, 1972, p. 156). Se Diótrefes sediava a
igreja doméstica, suas ações podem ser interpretadas como disciplina local, não
como uma decisão eclesiástica abrangente (Painter, 2002, p. 376,377).
Independentemente disso, a palavra nesse contexto propõe algum tipo de ex­
pulsão dos que ofereciam hospitalidade aos representantes do presbítero (Brooke,
1912, p. 190,191). Uma retratação de uma prática similar aparece no Evangelho,
em que um cego de nascença, mas curado por Jesus, foi expulso (exebalon) por
confessar sua fé em Cristo (Jo 9.34). Lá, o ex-cego foi jogado para fora da sinagoga
pelos líderes judeus (9.22,34).
Embora Diótrefes fosse uma pessoa com certa autoridade, sua posição não pa­
rece ter prevalecido. A sobrevivência e a canonização dessa pequena carta sugerem
que o apelo do presbítero fora bem-sucedido (Bruce, 1970, p. 153). Caso contrá­
rio, o NT poderia ter incluído cartas escritas por Diótrefes!
219
1,2 E 3 JOÂO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A P A R T IR D O T E X T O

Buscar prestígio é contrário ao espírito cristão

Como um cristão é capaz de gostar de ser o mais importante (v. 9) se Jesus


disse: “Se alguém quiser ser o primeiro, será o último, e servo de todos” (Mc 9.35)?
No entanto, o povo de Deus não está imune ao fascínio pelo poder, mesmo dentro
do pequeno “reino” de uma pequena igreja local. Aqueles que seguem e são molda­
dos por Jesus fazem bem em lembrar o Seu testemunho: “Mas eu estou entre vocês
como quem serve” (Lc 22.27).
Bons cristãos envolvidos no ministério por causa de Jesus, muitas vezes, dis­
cordam, até de forma profunda. Atos relata um “desentendimento (...) sério” entre
Paulo e Barnabé quanto ao papel de João Marcos no ministério cristão primitivo
(At 15.36-40).

Buscar poder pode minar relacionamentos

Sempre que o prestígio e o poder tornam-se as principais preocupações da


vida de uma igreja, os relacionamentos são prejudicados e, às vezes, partidos. A
interconectividade do Corpo de Cristo (1 Co 12.27) significa que o sofrimento e a
honra de uma pessoa tornam-se a experiência de todo o Corpo (1 Co 12.26). Uma
procura por prestígio fere a confissão, o arrependimento e o perdão.

O uso mal-intencionado da língua causa feridas profundas em


relacionamentos

Quando o prestígio e o poder são ameaçados, palavras mesquinhas podem


entrar em erupção. Qual a melhor maneira de defender-nos sem castigar outras
pessoas? Qual a melhor maneira de melhorar nossa posição sem degradar outras
pessoas? Porém, como isso não é cristão! Um dano profundo pode ter origem em
palavras ditas mais por egoísmo do que como respostas racionais e baseadas em
oração que visam à saúde da igreja (veja Tg 3.1-12).

D. Palavras de cura e esperança (11-15)

NO TEXTO

1 1 1 0 presbítero adverte seus leitores: Não imite o que é mal. Ele provavelmente
se referia ao que Diótrefes estava fazendo. Ele pediu aos seus leitores que se
220
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

baseassem no que é bom. A linguagem aqui é semelhante à de Paulo (cf. Ef 5.1;


1 Ts 1.6; 2 Ts 2.14). Embora a palavra “imitador” derive da palavra grega aqui,
“modelo após o outro” é preferível.
Fazer o que é bom evoca 1 João 2.29, em que fazer “a justiça” é prova de que a
pessoa é nascida de Deus. A ideia surge em um sentido negativo em 1 João 3.10 —
“quem não pratica a justiça não procede de Deus”. Para o presbítero, não existia fé
sem tocar a ética. Os filhos de Deus dão provas disso nas escolhas diárias pelo bem
e contra o mal.

De Deus

A e x p r e s s ã o " d e D e u s " (e k tou th eou ) é p r o e m in e n t e n a lite ra tu ra


jo a n in a . E la s u g e r e q u e a p e s s o a s e ja o r ig in a d a d e D e u s (Jo n e s , 2 0 0 9 , p .
2 7 5 ) . E m 1 Jo ã o 4 . 2 - 7 , a e x p r e s s ã o a p a r e c e s e te v e z e s . A s p a la v r a s s ã o
a s s o c ia d a s a o s e s p ír ito s q u e d e v e m s e r e x a m in a d o s e m 1 J o ã o 4 .1 - 3 . A
e x p r e s s ã o a fir m a q u e o s c ris tã o s jo a n in o s s ã o d e D e u s , S e u s " filh in h o s "
( 4 .4 ) ; e q u e "o a m o r p ro c e d e d e D e u s " ( 4 .7 ) . Q u e m n ã o " p r a tic a a ju s tiç a "
n ã o é d e D e u s ( 3 .1 0 ) .
N e n h u m d o s E v a n g e l h o s S in ó tic o s u s a a e x p r e s s ã o . O E v a n g e l h o d e
J o ã o , p e lo c o n tr á r io , t e m 1 1 o c o r rê n c ia s . A m a io r ia sai d o s lá b io s d e Je s u s
( 6 .4 6 ; 7 . 1 7 ; 8 .4 0 ,4 2 ; 1 3 .3 ; 1 6 .2 7 ,3 0 ) . P a u lo u s o u -a e x t e n s iv a m e n t e , c o m
u m a g r a n d e v a r ie d a d e d e a p lic a ç õ e s . N a m a io r ia d o s c a s o s , a fr a s e re fe re -
-s e a q u a lid a d e s d iv in a s ( c o m o c o n s o lo , s a n tid a d e , p o d e r , ju s tiç a , s a b e ­
d o ria ) o u à p re s e n ç a d iv in a n a p e s s o a d o E s p ír ito S a n t o ( 1 C o 2 . 1 2 ; 6 .1 9 ) .
N e s s e a m p lo u s o e m t o d o o N T , a m a io r u tiliz a ç ã o d a e x p r e s s ã o " d e
D e u s " é r e fe r e n te à o r ig e m d e C ris to (e d e S e u s s e g u id o r e s ) . T o d a v ia , t a m ­
b é m c a r a c te r iz a s u a fin a lid a d e e d e s tin o . S e r " d e D e u s " p o d e s e r a b a s e
d e u m a fu tu r a r e c o m p e n s a (2 Jo 8) e , e s p e c if ic a m e n te , d a e s p e r a n ç a d a
v in d a d e C ris to (2 Jo 7 ) . C o n t u d o , a v e r d a d e e a p re s e n ç a d e D e u s já se
m a n ife s t a m n o s c r e n te s . P o r t a n t o , s e r " d e D e u s ” é t a n t o " já ” c o m o " a in d a
n ã o " ( S tr e c k e r , 1 9 9 6 , p . 2 6 6 ) .

O presbítero alega que seus adversários, como Diótrefes, e seus seguidores,


não viram Deus. Essa é uma clara inversão positiva de 1 João 1.1,3 — “vimos”.
Os adversários não são testemunhas fiéis a Cristo, mas “estranhos a Ele” (Wesley,
1983, s.p.).
A justaposição bíblica entre bem e mal começa já na “árvore do conhecimen­
to do bem e do mal”, em Gênesis 2.9. O par de extremos opostos aparece mais de
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1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

30 vezes no AT e mais de 20 vezes no NT. Porém, a única outra ocorrência de


bem e mal na literatura joanina é no Quarto Evangelho. Lá, Jesus fala da futura
ressurreição e do julgamento: “Todos os que estiverem nos túmulos ouvirão a sua
voz e sairão; os que fizeram o bem ressuscitarão para a vida, e os que fizeram o mal
ressuscitarão para serem condenados” (Jo 5.28,29).
H 12 D em étrio era, obviamente, aquele em quem o presbítero tinha confiança.
Ele o descreve como alguém de quem todos dão bom testem unho (veja o v. 3). As
palavras são, obviamente, hiperbólicas, pois o grupo de Diótrefes claramente não
partilha dessa opinião. A frase, que contém um particípio passivo perfeito, sugere
uma vida comprovada ao longo do tempo (Jones, 2009, p. 276).
O presbítero escreve que a p ró p ria verdade testemunha a favor do caráter de
Demétrio. Essa personificação da verdade (veja Jo 8.32; 2 Jo 2) e a ligação de “Es­
pírito” e “verdade” nos escritos de João (Jo 14.17; 16.13; 1Jo 5.6) sugerem que essa
possa ser uma descrição silenciosa do Espírito Santo (Brooke, 1912, p. 192,193).
É algo para medir-se com base nas expectativas das outras pessoas. Todavia,
ter uma boa medida baseada no padrão objetivo de elogiar o caráter é notável.
O presbítero escreve: Nós tam bém dam os (...) testem unho das boas coisas de
Demétrio. Usando nós, o presbítero fala por si mesmo e por todos os seus aliados.
Três testemunhas atestam a favor de Demétrio — a comunidade joanina, a própria
verdade e o presbítero. Isso está de acordo com a exigência da Torá em Deuteronô-
mio 19.15 (Thomas, 2004, p. 33).
Quem era D em étrio, além do possível entregador da carta (Jones, 2009, p.
276; Burge, 2009, p. 422; Marshall, 1978, p. 93)? O nome ocorre duas vezes na
Bíblia, aqui e em Atos 19. Devemos resistir à tentação de ligá-los. O Demétrio de
Atos (19.24,38) era um trabalhador adulto na época em que Paulo estava em Éfeso,
em meados dos anos 50, no máximo. Ele seria um idoso na década de 90 quando
3 João foi escrito. É improvável que a mesma pessoa fosse um ministro viajante em
seus anos últimos anos.
A preferência por determinadas palavras por parte do presbítero aparece nes­
sa frase. Ele usa formas de m artyria (testem unho) três vezes e alêtheia (verdade)
duas vezes (veja o quadro “Verdade” em 1 Jo 1.6). A afirmação nosso testem unho
é verdadeiro lembra João 19.35 e 21.24. Palavras que declaram a verdade do tes­
temunho de alguém parecem ter-se tornado um padrão entre as igrejas joaninas
(Smith, 19 9 1, p. 158).
H 13 O presbítero reconhece que sua carta deixa muito por dizer: Tenho m uito
que lhe escrever (veja Jo 20.30). As despedidas na carta são semelhantes às de 2
João 12, apesar de as palavras específicas variarem. Parte dessa variedade se deve
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NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO

ao fato de que 2 João foi escrito para uma igreja (a “senhora eleita” e seus “filhos”,
2 João 1), enquanto 3 João é dirigido a um indivíduo (“ao amado Gaio”, 3 João 1).
Como em 2 João, o presbítero fala de sua relutância em escrever longamente, pre­
ferindo ver o seu destinatário em pessoa (v. 14). O presbítero escreve usando uma
pena, literalmente, uma cana afiada para ser usada como instrumento de escrita.
H 1 4 - 1 5 O presbítero, como todos os outros autores dos documentos do NT,
apreciava o valor da palavra escrita. No entanto, ele também conhecia o poder de
uma visita pessoal. A presença de alguém normalmente comunica mais do que um
documento sem rosto. Então, ele desejava ver Gaio em pessoa (face a face, veja o
comentário sobre 2 Jo 12). Literalmente, ele se refere a falar boca a boca, uma me­
táfora culturalmente apropriada para uma conversa pessoal. O presbítero antecipa
que o encontro pode ocorrer em breve, logo após a chegada da carta (Bruce, 1970,
P- 156).
O presbítero termina a carta com uma bênção. Ela está no versículo 15 no
texto grego (e também na NVI), mas outras versões a juntam ao versículo 14. Ela
é uma benção hebraica cheia de graça: A paz seja com você. Paulo tipicamente
combinava a bênção hebraica de paz (shalom ) com uma saudação grega hebraica
de “graça” (charis, uma variação do charein padrão, saudações). O autor de 3 João,
no entanto, refere-se apenas à paz.
Embora seja uma convenção padrão de cartas da época, a expressão tem algu­
ma tensão com o relacionamento obviamente tenso entre o ele e Diótrefes. Tal­
vez o presbítero ofereça a palavra não só como uma interação social habitual, mas
como algo mais — uma oração para a reconciliação entre as igrejas. Em uma carta
sobre conflitos na igreja, essa saudação hebraica é impactante. Talvez a paz estivesse
para sempre cimentada no vocabulário cristão devido ao uso dela pelo Cristo res-
surreto (Jo 20.19,21,26). O presbítero deve ter desejado que ela tivesse um efeito
tranquilizante nas igrejas dele (Boice, 1979, p. 173).
A carta termina com saudações tradicionais, tanto dos amigos daqui com o
presbítero quanto dos amigos daí com Gaio. O presbítero pedia que seus leitores
enviassem saudações a seus irmãos de fé um p o r um, mas não mencionou o nome
deles. Ocasionalmente, outras cartas do NT cumprimentam pessoas especificadas
por nome (Rm 16.1-15; Cl 4.15; 2 Tm 4.19). Várias cartas do NT concluem
com uma saudação mais geral a todos. A terminologia amigos pode sugerir que
as saudações fossem dirigidas a todos aqueles que concordavam com o presbítero
(Marshall, 1978, p. 94,95). Isso deixa implícito um círculo de amigos ao qual Gaio
pertence, mas que pode não reconhecer a autoridade de Diótrefes (Bultmann,
1973, p. 103).
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1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BlBLICO BEACON

Essa breve carta retrata o presbítero como um forasteiro, enfrentando a


oposição de outros cristãos. Mesmo assim, ele tem a autoridade de sua posição
pessoal entre as igrejas e pretende exercêda. O fato de 3 João ter-se tornado parte
do NT sugere que a interpretação do presbítero do cristianismo joanino na região
prevalecera como a visão ortodoxa.

A P A R T IR D O T E X T O

Rotular outras pessoas

Embora termos como “mal” e “bom” fluam livremente nas cartas joaninas,
ofensas raramente são um argumento convincente para declarar o direito de sua
posição. Rotular outra pessoa como “má” ou “sem Deus” tem mais potencial
de acabar com relacionamentos do que restaurá-los. Diótrefes poderia ter-se
reconciliado de forma mais fácil com as outras pessoas da comunidade se o
presbítero não tivesse dito que ele gostava m uito de ser o mais im portante (v. 9)?
A declaração pública de Demétrio certamente o incentivou a fazer ainda mais no
futuro. Talvez a nossa lição seja presumir que outros cristãos estejam agindo com a
melhor das intenções e não condenando apressadamente. Isso nos obriga a dar ao
presbítero o benefício da dúvida, mesmo se hesitarmos em seguir o seu exemplo ao
caracterizar nossos adversários.

Escolhas refletem o centro de orientação da nossa vida

Com quem e com o quê nós nos comprometemos nos define. Escolhas
levam a hábitos, e hábitos formam o nosso caráter. Quando a nossa vida é total­
mente entregue à soberania de Cristo, a evidência flui de dentro de nós. Viver
em paz uns com os outros exige que todos vivamos em um relacionamento
amoroso e íntimo com Deus, a fonte de amor e de tudo que é bom e verdadeiro.
A paz seja com você (v. 15).

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COMENTÁRIO BÍBLICO

BEACON
l , 2 e 3 JOÃO
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