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1 ,2 e 3 J0ÃO
((Q
ACADÊMICO
COMENTÁRIO BÍBLICO
BEACON
l , 2 e 3 JOÃO
RICK WILLIAMSON
CENTRAL
GOSPEL
DIRETORA EXECUTIVA 1 ,2 e 3 John New Beacon Bible Commentary / Rick Williamson / © 2010
Elba Alencar Published by Beacon Hill Press of Kansas City, A division of N a za -
rene Publishing House
Kansas City, Missouri, 6 4109 U S A
GERÊNCIA EDITORIAL
This edition published by arrangement with N azare ne Publishing
E DE PRODUÇÃO H ouse. All rights reserved.
Gilmar Chaves Copyright © 2 0 1 7 por Editora Central Gospel.
GERÊNCIA DE PROJETOS
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (C IP)
ESPECIAIS
Jefferson Magno Costa
Autor: W IL L IA M S O N , Rick
Título em português: Novo Comentário Bíblico Beacon: 1, 2 e 3
COORDENAÇÃO
João
EDITORIAL Título original: 1, 2e3 John New Beacon Bible Commentary
Michelle Candida Caetano Rio de Janeiro: 2 0 1 7
224 páginas
COORDENAÇÃO IS B N : 9 78-85-7689-570-1
DE COMUNICAÇÃO 1. Bíblia - Teologia I. Título II.
E DESIGN
Regina Coeli
É proibida a reprodução total ou parcial do texto deste livro por quais
TRADUÇÃO quer meios (mecânicos, eletrônicos, xerográficos, fotográficos etc.),
Elon Canto a não ser em citações breves, com indicação da fonte bibliográfica.
Este livro está de acordo com as mudanças propostas pelo novo
REVISÃO Acordo Ortográfico, que entrou em vigor a partir de janeiro de 2009.
Maria Jo sé Marinho Nota do editor no Brasil: C om o objetivo de facilitar a compreen
são do comentário original, em alguns casos, a Central Gospel fe z
CAPA traduções livres de termos e palavras em inglês que não encon
E PROJETO GRÁFICO tram equivalência nas versões oficiais do texto bíblico traduzido
Eduardo S o u za para o Português. Ressalte-se, todavia, que foram preservadas a
ideia e a estrutura textual idealizadas pelo autor.
DIAGRAMAÇÃO
Raquel Frazão
1 a edição: Julho/2017
IMPRESSÃO E
ACABAMENTO
Rotaplan
Editores gerais
Alex Varughese
Ph.D., Drew University George Lyons
Professor de Literatura Bíblica Ph.D., Emory University
Mount Vernon Nazarene University Professor do Novo Testamento
Mount Vernon, Ohio Northwest Nazarene University
Nampa, Idaho
Roger Hahn
Ph.D., Duke University
Reitor do Corpo Docente
Professor do Novo Testamento
Nazarene Theological Seminary
Kansas City, Missouri
Editores secionais
Joseph Coleson Kent Brower
Ph.D., Brandeis University Ph.D., The University o f Manchester
Professor do Antigo Testamento Vice-reitor
Nazarene Theological Seminary Palestrante Sênior de Estudos Bíblicos
Kansas City, Missouri Nazarene Theological College
Manchester, Inglaterra
Robert Branson
Ph.D., Boston University George Lyons
Professor Emérito de Literatura Bíblica Ph.D., Emory University
Olivet Nazarene University Professor do Novo Testamento
Bourbonnais, Illinois Northwest Nazarene University
Nampa, Idaho
Alex Varughese
Ph.D., Drew University Frank G. Carver
Professor de Literatura Bíblica Ph.D., New College, University of Edinburgh
Mount Vernon Nazarene University Professor Emérito de Religião
Mount Vernon, Ohio Point Loma Nazarene University
San Diego, Califórnia
Jim Edlin
Ph.D., Southern Baptist Theological
Seminary
Professor de Literatura Bíblica e Línguas
Coordenador do departamento de
Religião e Filosofia
MidAmerica Nazarene University
Olathe, Kansas
SUMÁRIO
COMENTÁRIO.......................................................................................................... 55
I. Prólogo e premissas: ljoão 1.1-10.................................................................... 55
A. A vida se manifestou (1.1-4)......................................................................... 55
B. Perdão e purificação (1.5-10)..........................................................................66
II. Pertencer a Deus e resistir ao inimigo: 1João 2.1-29.....................................81
A. Jesus, nosso defensor (2.1-6).......................................................................... 81
B. Na luz ou nas trevas? (2.7-11)....................................................................... 90
C. Palavras para todas as idades (2.12-14)........................................................ 94
D. Ame Deus, não o mundo (2.15-17)...............................................................98
E. Anticristos (2.18-23)........................................................................................100
F. Uma unção e promessa (2.24-29)....................................................................107
III. O amor cristão agora e quando Cristo vier: 1João 3.1-24........................... 113
A. Quando Ele vier: um chamado à purificação (3.1-6)..................................113
B. Destruindo as obras do diabo (3.7-10)......................................................... 121
C. Amor e ódio, vida e morte (3.11-15)............................................................ 126
D. Amor em ação (3.16-24)................................................................................. 129
IV. Examinando os espíritos e confiando no amor de Deus: 1João 4.1-21.......137
A. Examine os espíritos (4.1-6)........................................................................... 137
B. O Filho de Deus, um sacrifício de expiação (4.7-15)...................................145
C. O perfeito amor lança fora o medo (4.16-21)............................................. 152
V. Vida no Filho, morte na separação: 1 João 5.1-21...........................................159
A. Fé vencedora (5.1-5)........................................................................................159
B. Testemunhas da verdade (5.6-12)...............................................
C. Confiança na vida eterna (5.13-17)............................................................... 169
D. Coisas que sabemos (5.18-21)........................................................................176
2 JOÃO.......................................................................................................................... 182
INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 183
A. Autoria, data, origem, público, ocasião, propósito, questões socioculturais e
história textual.......................................................................................................183
B. Características literárias...................................................................................183
C. Temas teológicos..............................................................................................184
D. Questões hermenêuticas.................................................................................184
COMENTÁRIO.......................................................................................................... 187
VI. Boas-vindas e alertas: 2João 1-13.................................................................... 187
A. Saudações e relacionamentos (1-3)............................................................ 187
6
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON SUMÁRIO
7
PREFÁCIO GERAL DOS EDITORES
10
PREFÁCIO DO AUTOR
Com raras exceções, estas abreviações seguem as que estão no livro The SBL H a n d b ook o f
S tyle (Alexander, 1999).
Geral
ad loc. a d lo cu m , no local discutido
d.C. depois de Cristo
a.C. antes de Cristo
A.E.C antes da Era Comum
E.C. Era Comum
ca. cerca de, tempo aproximado
cf. confira
cap. capítulo/capítulos
ex. ex em p li g ra tia , por exemplo
esp. especialmente
etc. e t cetera , e o restante
ss. e os seguintes
i.e. i d est , isto é
k tl etc. (em transliterações em grego)
lit. literalmente
LXX Septuaginta (tradução grega do AT)
MS Manuscrito
MSS Manuscritos
TM Texto Massorético (do AT)
n. nota
s.d. sem data
s.e. sem editora
s.l. sem local
s.p. sem página
NT Novo Testamento
AT Antigo Testamento
s.v sub verbo, implícito
V. versículo(s)
vs. versu s
Versões bíblicas
ARA Almeida Revista e Atualizada
ARC Almeida Revista e Corrigida
NASB New American Standard Bible
NKJV New King James
NLT New Living Translation
NRSV New Revised Standard Version
ABREVIAÇÕES NOVO COMENTÁRIO BlBLICO BEACON
Antigo Testamento
Gn Gênesis
Êx Êxodo
Lv Levítico
Nm Número
Dt Deuteronômio
Js Josué
Jz Juizes
Rt Rute
1 Sm 1 Samuel
2 Sm 2 Samuel
1 Rs 1 Reis
2 Rs 2 Reis
1 Cr 1 Crônicas
2 Cr 2 Crônicas
Ed Esdras
Ne Neemias
Et Ester
J° Jó
SI Salmos
Pv Provérbios
Ec Eclesiastes
Ct Cantares
Is Isaías
Jr Jeremias
Lm Lamentações
Ez Ezequiel
Dn Daniel
Os Oseias
J1 Joel
Am Amós
Ob Obadias
14
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON ABREVIAÇÕES
Jn Jonas
Mq Miqueias
Na Naum
Hc Habacuque
Sf Sofonias
Ag Ageu
Zc Zacarias
Ml Malaquias
Novo Testamento
Mt Mateus
Mc Marcos
Lc Lucas
Jo João
At Atos
Rm Romanos
1 Co 1 Coríntios
2 Co 2 Coríntios
G1 Gálatas
Ef Efésios
Fp Filipenses
Cl Colossenses
1 Ts 1 Tessalonicenses
2 Ts 2 Tessalonicenses
1 Tm 1 Timóteo
2 Tm 2 Timóteo
Tt Tito
Fm Filemon
Hb Hebreus
Tg Tiago
1 Pe 1 Pedro
2 Pe 2 Pedro
ljo 1 João
2 Jo 2 João
3 Jo 3 João
Jd Judas
Ap Apocalipse
Apócrifos
A POT The A p ocryp h a a n d P s eu d ep ig ra p h a o f t h e O ld T estam ent. E di
ta d o p o r R. H. C harles. 2 v. O xford, 1913.
15
ABREVIAÇÕES NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
Bar. Baruque
A. Dan. Adições em Daniel
O. Aza. A Oração de Azarias
Bel. Bel e o dragão
Cant. Jov. Cântico dos três jovens
Sus. Susana
1—2Ed. 1—2 Esdras
A. Est. Adições em Ester
C. Jer. A carta de Jeremias
Jud. Judite
1—2 Mac. 1—2 Macabeus
3—4 Mac. 3—4 Macabeus
O. Man. A Oração de Manasses
SI 151 Salmo 151
Sir. Sabedoria de Siraque, Eclesiástico ou Sirácida
Tob. Tobias
SS Sabedoria de Salomão
Pseudoepígrafos do AT
A biqar A h iq a r
Apoc. Ab. A p oca lip se d e A braão
Apoc. Ad. A p oca lip se d e A dão
Apoc. D an. A p oca lip se d e D a n iel
Apoc. El. (H ) A p oca lip se E lebreu d e E lias
Apoc. El. (C ) A p oca lip se C óp tico d e E lias
Apoc. M o. A p oca lip se d e M oisés
Apoc. Sadr. A p oca lip se d e S a d ra q u e
Apoc. S of. A p oca lip se d e S ofo n ia s
Apocr. Ez. A p ócrifo d e E z eq u iel
Aris. Ex. A risteias, o E x egeta
A ristob. A ristób u lo
A rtap. A rta p a n o
As. M o. A A ssu n ção d e M oisés
2 Bar. 2 B a ru q u e (A pocalipse S iría co )
3 Bar. 3 B a ru q u e (A pocalipse G rego)
4 Bar. 4 B a ru q u e (P a ra leip o m en a J e r e m io u )
L. N oé L iv ro d e N oé
Cv. Tes. C a v ern a d o s T esouros
Cl. M al. C leo d em o M a lco
D em . D em étrio (o C ro n ó gra fo )
El. M od. E ld a d e e M ed a d e
lE n . 1 E n oq u e (A pocalipse E tióp ico)
2 En. 2 E n oq u e (A pocalipse E slavo)
3 En. 3 E n o q u e (A pocalipse E lebreu)
Eup. E u p olem o
Ez. Trag. E z eq u iel, o T rágico
4 Ed. 4 E sdras
16
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON ABREVIAÇÕES
17
ABREVIAÇÕES NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
T .Z eb. T esta m en t o fZ e b u lo m
T. 3 Patr. T esta m en tos d o s 3 P a tria rca s
T.Ab. T esta m en to d e A braão
T.Isa. T esta m en to d e Isa q u e
T.Jac. T esta m en to d e J a c ó
T.Ad. T esta m en to d e A dão
T.Ez. T esta m en to d e E zequias
T.JÓ T esta m en to d e J ó
T.M o. T esta m en to d e M oisés
T.Sal. T esta m en to d e S a lom ã o
Teód. T eód oto so b re os J u d e u s
Trat. S em T ratado d e S em
V.Ed Visão d e E sdras
Josefo
Vita Vida
Vida A Vida
C.Ap. C on tra A pião
Ant. A n tig u id a d es J u d a ica s
G J. G u erra J u d a ica s
Pais Apostólicos
B arn. B a rn a b é
1 - 2 C iem . 1 - 2 C le m e n te
D id. D id a q u ê
D iogn . D io g n eto
H errn. M a n d . P a sto r d e H errnas, M a n d a to
H erm . Sim . P a sto r d e H errnas, S em elh a n ça
E lerm. Vis. P a sto r d e H errnas, Visão
In. Ef. In á cio , a os E fésios
In. M ag. In á cio, a os M a gn ésio s
Ign. Esmir. In á cio, a os E sm irn ien ses
In. Fil. In á cio, a os F ila d elfos
In. R om . In á cio, a os R om a n o s
In. Pol. In á cio, a P o lica rp o
In. Trai. In á cio, a os T ralianos
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NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON ABREVIAÇÕES
Pais da Igreja
H ist. Ecl. Eusébio, F listória eclesiá stica
Epid. Irineu, E pideix is d a P r ed ica çã o A postólica
Her. Irineu, C on tra a s h eresia s
M arc. Tertuliano, C on tra M a rciã o
Transliteração do grego
Grego Letra Transliteração
a a lfa a
p b eta b
7 gam a g
7 g a m a n a sa l n (antes de y , k , f)
S d e lta d
£ ep silo n e
Ç z eta z
'l eta €
e teta th
l io ta i
K ca p a k
la m b d a l
P m u/m i m
V nu/ ni n
\ csi X
0 o m ícr o n 0
7T pi p
P rô r
P rô (em início de palavra) rh
ç s ig m a s
T ta u t
V ú p silon y
V ú p silon u (em ditongos: au,
eu, êu, ou, ui)
fi ph
X hi ch
p si ps
CO ô m eg a õ
resp ira çã o ela b o ra d a h (antes de vogais iniciais (
Transliteração do hebraico
Hebraico/Aramaico Letra Transliteração
X á le f *
a bêt b ; v (fricativa)
i g u ím e l g
ABREVIAÇÕES NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
7 d á le t d
n he h
v av V O U IV
T z a in z
n h êt h
D té t t
io d e y
3 caf k
âm ed l
a m em m
3 nun n
o sám eq
v á in ‘
D pê cativa)
s tsad e s
p co f q
7 rêsh r
& ■&
sin s
sh in s
n ta u t
20
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25
BIBLIOGRAFIA NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
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NOVO COMENTÁRIO BlBLICO BEACON BIBLIOGRAFIA
27
1,2 e 3 JOÃO
1 JO Ã O
INTRODUÇÃO
A. Autoria
Esses escritos começaram a ser identificados como de autoria de João, o
discípulo do Senhor (Irineu, Her. 3.16.5; Tertuliano, M arc. 5.16; Bruce, 1970,
p. 18). No século 20, alguns estudiosos hesitavam em identificar o autor como
o apóstolo João, mas podiam aceitar a atribuição tradicional de 1 João e o
Evangelho de João para o mesmo autor (Brooke, 1912, p. xviii).
Outros estudiosos respeitáveis diferenciam o autor do Evangelho do autor
das cartas, particularmente Raymond E. Brown (1979, p. 95). Com base na
linguagem, no tema e na situação, a maioria dos intérpretes concorda com o
fato de que todas as cartas vêm do mesmo escritor (por exemplo, Smith, 1991,
p. 14; Brown, 1979, p. 94; Marshall, 1978, p. 46; Bruce, 1970, p. 13).
As cartas são anônimas. Em 2 e 3 João, a autodesignação de “o presbítero”
(bo presbyteros, 2 Jo 1; 3 Jo 1) ocorre, mas não oferece indício real quanto à
identidade do autor. Em outras partes do NT, sempre que “presbítero” aparece
é an arthrous (sem artigo). O termo indica líderes cristãos de igrejas locais (dez
vezes em At; 1 Tm 4.14; 5.19; Tt 1.6; Tg 5.14; 1 Pe 5.1).
O autor das cartas estava ansioso para que seus leitores ouvissem seu con
selho. Então, por que não se identificar como o antigo e poderoso “discípulo
a quem Jesus amava” (Jo 13.23; 19.26; 20.2; 21.7,20) ou até mesmo como o
“apóstolo”? É difícil imaginar que os membros da comunidade joanina te
nham-se afastado do apóstolo João no mesmo nível que os “anticristos” (l Jo
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
B. Data
A maioria dos estudiosos data as cartas algum tempo depois do Quarto
Evangelho, mas antes da época de Inácio de Antioquia (martirizado ca. 110
d.C.; Bruce, 1970, p. 18). Isso as coloca na última década do primeiro século
(Thomas, 2004, p. 10; Brown, 1979, p. 96; Bruce, 1970, p. 31). O fato de se
rem posteriores ao Evangelho é sugerido pela ausência de qualquer crítica dos
adversários externos do Evangelho, “os judeus” — os líderes religiosos judeus
que se opunham ajesus (ex.: Jo 2.18; 5.10,16,18; 6.41; 7.1; 8.52).
O Quarto Evangelho afirma enfaticamente a divindade de Cristo como
uma crença-chave contra detratores judeus que não foram convencidos a se tor
narem cristãos. As cartas, no entanto, respondem aos críticos que, antes, faziam
parte da comunidade joanina, mas a deixaram. Esses “separatistas” parecem
ter enfatizado tanto a divindade de Cristo que descartaram a Sua humanidade
autêntica. João e os leitores das cartas não estavam distanciando-se do judaís
mo. Essa separação, em grande parte, já havia ocorrido. Essa nova comunidade
religiosa, os cristãos joaninos, enfrentou o problema de pessoas que se separa
vam dela. Seus oponentes não eram estranhos obstinados, mas ex-membros.
Alguns desenvolvimentos teológicos também podem sugerir que as car
tas sejam posteriormente. Considere sua soteriologia. No Evangelho, não há
referências claras à natureza salvadora do sangue de Cristo. Porém, em 1 João,
a linguagem explícita afirma que “o sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de
todo pecado” (1.7) e afirma Jesus como uma “propiciação pelos nossos peca
dos” (2.2; 4.10; possivelmente 5.6).
A escatologia do Evangelho é mais “realizada” (atualmente experiente).
Em João 3.15-18, a crença traz a vida eterna agora, e o pronunciamento de
Jesus em João 11.25, “Eu sou a ressurreição e a vida”, está em contraste com a
33
INTRODUÇÃO NOVO COMhNTÁRIO BÍBLICO BEACON
C. Origem
Onde essas cartas foram escritas? Elas são tradicionalmente associadas a
Éfeso, a principal cidade da antiga Ásia Menor. De forma mais ampla, as epís
tolas joaninas parecem ter-se originado na Ásia Proconsular (governada por
um procônsul romano nomeado pelo Senado). A tradição faz uma ligação en
tre o apóstolo João e Efeso em seus últimos anos. Mesmo que o autor não seja o
apóstolo, a área de Efeso é um dos possíveis locais de escrita das cartas.
Vários cristãos judeus migraram para a Ásia Menor nos anos 60 d.C., de
vido ao aumento das tensões com os romanos. A revolta judaica em 66 d.C.
e a destruição do templo em 70 d.C. pelos romanos desempenharam papéis
importantes em sua decisão de se mudarem para a Ásia Menor. Além disso, o
cristianismo tinha sido estabelecido muito tempo antes (a atividade missio
nária de Paulo na região é datada no início dos anos 50; veja At 19.10; Bruce,
1970, p. 13).
Pérgamo era a sede inicial do governo proconsular. No entanto, a capital
foi transferida para Éfeso, onde permaneceu durante os tempos do NT. Éfeso
era um centro da cultura grega e proeminente na atividade missionária pri
mitiva (At 19.1-41; 20.17-38; veja At 19.10: “todos os judeus e os gregos que
viviam na província da Ásia ouviram a palavra do Senhor”).
A igreja de Éfeso (Ap 2.1) e outras igrejas próximas figuram proeminente
mente como o público-alvo de Apocalipse (provavelmente escrito na década
de 90). Uma das cartas mais ricas de Paulo foi endereçada a Éfeso. Alguns ma
nuscritos antigos sugerem que Efésios seja uma carta circular destinada a ser
compartilhada entre várias igrejas (veja Cl 4.16). A possibilidade de que 1, 2 e
3 João tenham circulado dentro de uma rede de igrejas joaninas próximas de
Éfeso é consistente com o que sabemos sobre as cartas encíclicas cristãs.
D. Público
As três cartas joaninas aparentemente foram escritas para indivíduos
e igrejas a certa distância do autor (2 Jo 12; 3 Jo 14). Isso sugere uma área
34
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO
E. Ocasião e propósito
Embora o autor, os leitores e o destino desses escritos não possam ser con
clusivamente estabelecidos, as questões são claras. A maior obra, 1 João, é mais
um tratado ou ensinamento pastoral do que uma carta pessoal. Ela apresenta
uma série de questões importantes: cristologia, soteriologia, o Espírito, ética,
“o mundo”; eclesiologia e escatologia (consulte a seção teológica mais adiante).
35
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
F. Questões socioculturais
As informações socioculturais sobre os escritos são limitadas devido à in
certeza quanto à localização, ao público e à data. Vale a pena notar, em primei
ro lugar, o modo como as igrejas mantinham ligações entre si e, em segundo
lugar, o uso que 1, 2 e 3 João fazem da linguagem familiar para descrever as
relações das igrejas.
vezes; “pais” e Deus como “Pai”, 17 vezes; “amigos”, 12 vezes). Essa terminologia
familiar acolhedora se expande em 2 João, na qual o presbítero se dirige à
“senhora eleita” (2 Jo 1; “senhora” no v. 5). As saudações de uma igreja vizinha
vêm dos “filhos da sua irmã eleita” (v. 13).
Essas frases distintamente femininas podem referir-se a mulheres na lide
rança pastoral. As mulheres certamente desempenhavam cargos ministeriais
proeminentes em todo o NT. Priscila era professora e ministra visitante (At
18.24-26). O sermão de Pentecostes de Pedro cita a predição do profeta Joel:
“Suas filhas profetizarão” (At 2.17), e o derramamento do Espírito profético de
Deus foi destinado a seus “servos” e suas “servas” (At 2.18).
Essas referências femininas em 2 e 3 João também podem referir-se a mu
lheres que ofereciam suas casas para acolher as igrejas domésticas. Oferecer
hospitalidade era participar do ministério.
Igrejas d om éstica s
O s c ris tã o s ju d e u s c o n t in u a r a m a p r e s ta r c u lto s n a s s in a g o g a s e n o
t e m p lo d e J e r u s a lé m a té s u a d e s t r u iç ã o , e m 7 0 d .C . D o is fa t o r e s , n o e n
t a n t o , le v a r a m a o a u m e n t o d a u tiliz a ç ã o d e c a s a s p a rtic u la re s p a ra re u
n iõ e s c ris tã s . E m p rim e iro lu g a r , o d e s e n v o lv i m e n t o d e te n s õ e s e n tr e os
ju d e u s q u e a c e ita r a m Je s u s c o m o M e s s ia s e o s q u e n ã o p r e s s io n a r a m os
s e g u id o r e s d e Je s u s a d e ix a r e m a s s in a g o g a s . O E v a n g e l h o d e Jo ã o in d ic a
q u e a lg u n s c ris tã o s fo r a m e x c o m u n g a d o s d a s in a g o g a ( 9 .2 2 ) .
A s e g u n d a r a z ã o p a ra o a u m e n t o d a s re u n iõ e s c ris tã s fo ra d a s s in a
g o g a s e ra o c re s c e n te n ú m e r o d e c re n te s g e n t io s . C o m o o s g e n tio s n ã o
p o d ia m p a r tic ip a r p le n a m e n t e d o c u lto ju d a ic o , u m lo ca l d if e r e n t e , a b e r to
a t o d o s , e ra n e c e s s á rio . A s s im , u m a " ig re ja q u e se r e ú n e c o m v o c ê e m
s u a c a s a " se to r n o u u m a re s p o s ta ( F m 2 ; v e ja R m 1 6 .5 ; 1 C o 1 6 .1 9 ; Cl
4 .1 5 ; E h r m a n , 2 0 0 8 , p . 1 9 3 ) .
G. Testemunhas textuais
Os primeiros manuscritos contendo 1, 2 e 3 João sobreviveram em papiro.
Três são do terceiro século (papiros 9, 20 e 23). Outros têm origem no final do
terceiro ou início do quarto século (papiros 72 e 78), ou a partir do quarto para
o sétimo século (papiros 54,74 e 81).
H. Características literárias
C a rta s g re c o -ro m a n a s
A s c a r ta s e r a m u m a fo r m a c o m u m d e c o m u n ic a ç ã o n o m u n d o g re c o -
-r o m a n o , m a s c o m v a r ia ç õ e s d is tin ta s . C a r t a s p a rtic u la re s a a m ig o s e r a m
d ife r e n te s d e c a rta s a b e r t a s a u m p ú b lic o m a is a m p lo . C a r t a s fo r m a is
d e v e m s e r d ife r e n c ia d a s d e c a r ta s o c a s io n a is e b ilh e te s c a s u a is . C a r ta s
p a rtic u la re s d e r e c o m e n d a ç ã o d e o u tr o in d iv íd u o n ã o s ã o a m e s m a co isa
q u e t r a t a d o s p ú b lic o s s o lic ita n d o u m a d e t e r m in a d a a ç ã o . A p e s a r d e ta is
v a r iá v e is , h a v ia v á r io s c o m p o n e n t e s c o n s is te n te s n a s c a rta s a n tig a s .
A o c o n trá rio d a s c a r ta s m o d e r n a s , a s d o m u n d o a n tig o c o m e ç a v a m
id e n tific a n d o o r e m e t e n te p o r n o m e o u títu lo . E m s e g u id a , a c a rta n o r
m a lm e n te m e n c io n a v a o (s ) d e s t in a t á r io ( s ) , e x p r e s s a n d o c o n s id e ra ç õ e s
p o s itiv a s , c u m p r im e n t o s o u o ra ç õ e s o tim is ta s p a ra o (s ) d e s tin a tá r io ( s ) .
E s s a s o b s e r v a ç õ e s in tr o d u tó r ia s e r a m c o n v e n c io n a is e n ã o d e v e r ía m s e r
in te r p r e ta d a s lite r a lm e n te . ( C o m p a r e c o m a p rá tic a m o d e r n a d e n o s d iri
g irm o s a a lg u é m q u e n ã o c o n h e c e m o s c o m o " p r e z a d o " . P a ra a m o s tr a s d e
c a rta s a n tig a s , v e ja E lw e ll e Y a r b r o u g h , 1 9 9 8 , p . 1 9 4 .)
O c o r p o d a c a rta v in h a e m s e g u id a , e x p r e s s a n d o o s d e s e jo s e a s
p re o c u p a ç õ e s do r e m e te n te . Um e n c e rra m e n to com c a ra c te rís tic a s
38
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO
c o n v e n c io n a is c o m p le t a v a a c a r t a . N e l e , p o d e r ía m s e r in c lu íd a s p a la v ra s
d e in c e n tiv o o u d e s a fio , e x p r e s s õ e s d e e s p e r a n ç a d e q u e o s a u to r e s e os
le ito re s p u d e s s e m e n c o n tr a r -s e e m u m fu tu r o p r ó x im o e , m a is u m a v e z ,
p a la v r a s d e b ê n ç ã o o u o ra ç õ e s ( Jo h n s o n , 1 9 8 6 , p . 2 5 2 ,2 5 3 ) .
O c o m p r im e n to d a s c a r ta s a n tig a s v a r i a v a , e m b o r a u m a fo lh a d e p a
p iro fo s s e o típ ic o . A s c a r ta s d e 2 e 3 J o ã o , b e m c o m o F ile m o m e Ju d a s ,
t ê m m a is o u m e n o s e s s e c o m p r im e n to . C o m o n ã o h a v ia s is te m a p o s ta l
p a ra c id a d ã o s , a s c a r ta s c o s t u m a v a m s e r e n tr e g u e s e m m ã o s , p o r a m ig o s
o u s e r v o s d e c o n fia n ç a . D e s s a f o r m a , o s e n tr e g a d o r e s p o d e r ia m e s c la re
c e r o t o m d a c a r t a , se s u rg ire m d ú v id a s d e s e u s d e s tin a tá r io s . À s v e z e s ,
o s e n tr e g a d o r e s e r a m m e n c io n a d o s e m c a r ta s ( p o r e x e m p l o , T íq u ic o , e m
E f 6 .2 1 ,2 2 ; C l 4 . 7 ; F e b e , e m R m 1 6 . 1 ; E h r m a n , 2 0 0 8 , p . 1 8 6 - 1 8 8 ) .
As cartas joaninas têm sido, muitas vezes, classificadas como escritos cató
licos ou universais, destinados a cristãos de todos os lugares. Porém, a rigor, não
são. Brown rejeita a noção de que 1 João fora uma carta universal, argumentan
do que uma mensagem a igrejas de todos os lugares, partindo de um remetente
não identificado, teria pouco peso (1982, p. 88). Essas cartas eram destinadas
a locais e circunstâncias bastante específicos. Identificar 2 e 3 João como cartas
universais define-as com base em sua canonicidade, não em sua intenção.
Os recursos literários dos escritos incluem o uso da primeira pessoa do
plural (especialmente em 1 Jo 1.1 -4), identificando o autor como parte de uma
comunidade de crentes. Isso pode indicar um tipo formal de “escola” (Culpe-
pper, 1975, p. 34-38,261-290) ou uma rede mais informal de igrejas e indiví
duos com a mesma ideologia, influenciados por João. Pelo menos, esse é um as
pecto do uso frequente de linguagem familiar nas cartas joaninas (veja o tópico
Questões socioculturais). Elas transmitem um forte senso de investimento na
manutenção de relações próximas entre os crentes da região.
2. Formas poéticas
Outra característica literária, evidente em 1 João, é o paralelismo poético.
João reflete um estilo semelhante à poesia hebraica, em que linhas sucessivas
repetem ou reformulam frases, expressando pensamentos semelhantes com
palavras diferentes. O prólogo (1.1 -4) e grande parte do capítulo 1 têm uma
estrutura repetitiva, paralela. No versículo 1, os verbos criam um gradual tes
temunho paralelo:
“Ouvimos...”
“Vimos...”
“Contemplamos...”
As várias palavras paralelas (“proclamamos”, três vezes no prólogo) e con
ceitos contrastantes (luz contra escuridão, verdade contra falsidade, pecados
contra perdão, amor contra ódio) prestam-se a um sentido lírico que permeia
1 João. Elementos poéticos marcam 1.6—2.1, com a repetição de “se afirmar
mos” (v. 6,8,10), seguida de respostas/resultados, com formulações semelhan
tes: “Se (...) andamos” (v. 7); “se confessarmos” (v. 9); e “se (...) alguém [dentre
nós] pecar” (2.1).
Ainda mais aparentes, e normalmente indicados como poesia em tradu
ções, são os refrãos de 1 João 2.12-14. As orações e as frases repetem e ampliam
as idéias de João em linguagem compacta e memorável. Uma frase concisa e
repetitiva (“eu lhes escrevo/escrevi porque” [seis vezes]) é seguida de um ponto
específico de celebração (“foram perdoados”, “conhecem”, “venceram”).
40
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO
Há uma intensificação das palavras utilizadas, bem como três linhas para
lelas no versículo 14:
Vocês são fortes,
E em vocês a Palavra de Deus permanece
E vocês venceram o Maligno.
As três orações formam uma afirmação com linhas paralelas sinônimas: a vi
tória espiritual deriva da atividade da Palavra de Deus na vida de alguém. Linhas
paralelas semelhantes aparecem em outras passagens (veja em 4.3; 5.12,13).
I. Temas teológicos
Apenas algumas das ênfases teológicas mais significativas das cartas joani-
nas podem ser abordadas aqui. Mais serão reveladas de modo mais natural no
41
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
comentário adequado. Alguns dos temas mais proeminentes incluem: (1) cris-
tologia, a pessoa e a obra de Cristo; (2) soteriologia, como o pecado é entendi
do e remediado; (3) o Espírito de Deus; (4) ética, a natureza do amor humano
por Deus e pelo próximo; (5) “o mundo” e a oposição a ele; (6) hospitalidade,
extensão das boas-vindas a estranhos; (7) eclesiologia, a visão da igreja; e (8)
escatologia, ou últimas coisas.
1. Cristologia
Um grupo cristão renegado, com uma perspectiva diferente sobre a pessoa
e a obra de Jesus, gerou uma forte resposta do autor dessas cartas. Claramente,
a questão é se Jesus tinha ou não vindo “em carne” (1 Jo 4.2; veja v. 1-3). Apa
rentemente, alguns integrantes do grupo estavam ensinando que Jesus apenas
pareceu ser homem de forma plena. Ou ensinavam que, se Jesus tivesse sido ver
dadeiramente humano, Ele não permanecera assim. Com base no tempo verbal
perfeito em 4.2, elêlythota, pode-se argumentar que Jesus não apenas veio “em
carne”, mas também permaneceu homem. Em substância, os separatistas nega
vam a plena continuidade do histórico Jesus de Nazaré no Cristo exaltado.
Sabemos que grupos cristãos posteriores com tendências gnósticas resisti
ram à ideia de um Cristo plenamente encarnado. Eles identificaram o reino es
piritual como bom, e o campo carnal e material como inerentemente maligno,
no qual um Cristo divino não poderia habitar. Tal pensamento é derivado de
um dualismo que combina mais com a filosofia grega do que com o pensamen
to bíblico. Os gregos costumavam distinguir os deuses eternos, que não nasce
ram nem morreram, dos semideuses. Essas deidades de nível inferior eram seres
humanos comuns, que foram elevados ao status divino por apoteose na morte.
Assim, os separatistas podem ter considerado a sua cristologia mais elevada do
que a da comunidade joanina.
Alguns cristãos gnósticos distinguiam Jesus, o homem, do Cristo, que des
ceu sobre Jesus (talvez em Seu batismo). Esse ponto de vista, uma espécie de
“adocionismo”, afirmava que Jesus tinha sido revestido pelo “Cristo”; mas “o
Cristo” retirou-se dele antes de Sua morte. Assim, embora Jesus tenha verda
deiramente sofrido e morrido, o Cristo, um ser totalmente espiritual, era imu
ne a tais experiências terrenas (Bruce, 1970, p. 16,17).
Os adversários de João, ao negarem a natureza humana de Cristo, renun
ciavam Jesus como totalmente Deus e totalmente homem. Para eles, o melhor
que pode ser dito foi que Cristo “parecia” ser homem. Esse ponto de vista, que
veio a ser chamado de docetismo (com base em dokeõ, “parecer”), rebaixava a
42
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO
2. Soteriologia
A soteriologia (de sõtêria : “salvação”) tenta explicar a natureza do pecado e
como o homem pode ser liberto dele. Esse é, obviamente, um conceito podero
so ao longo das Escrituras e, com certeza, aqui também. Deus é santo e chama
as pessoas para participarem de Sua santidade. O pecado é vivido universal
mente; mas não é normal. O pecado é o desvio do homem do plano de Deus.
Assim, o pecado é um problema que deve ser tratado por Deus e pelo homem.
O pecado é generalizado (1 Jo 1.8,10) e manifesta-se como a iniquidade
(3.4) e “toda injustiça” (5.17). João apresenta o não pecar como o padrão cris
tão (2.1; 3.6,9). No entanto, aqueles que pecam podem ser perdoados e purifi
cados (1.9). A libertação do pecado, na verdade, a destruição final do pecado,
flui a partir da atividade da graça de Jesus Cristo, o Filho de Deus. O sangue
de Jesus “nos purifica de todo pecado” (1 Jo 1.7); Jesus veio como “propiciação
pelos nossos pecados” (2.2; 4.10).
João insiste no fato de que qualquer pessoa “que pratica o pecado é do dia
bo, porque o diabo vem pecando desde o princípio”. Porém, afirma igualmente
que, “para isso, o Filho de Deus se manifestou: para destruir as obras do diabo”
(3.8). Consequentemente, argumenta que quem “é nascido de Deus (...) não
pode estar no pecado” (3.9). O texto em 1 João é concluído com a menção
enigmática de um “pecado que leva à morte” e de um “pecado que não leva à
morte” (5.16,17), que será abordada no comentário.
3. O Espírito
O Espírito Santo está implícito nas cartas (veja 2 Jo 7). Brown chama suas
referências limitadas ao Espírito de “silêncio eloquente” (1979, p. 141). O texto
43
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
4. Ética
O amor de Deus pelas pessoas e o manifesto de amor na igreja entre as pes
soas é uma preocupação vital desses escritos. Como alguém pode ter uma vida
que exemplifica o amor santo ? Como é uma vida em harmonia com o coração
de Deus ? Para João, o tema consistente para análise ética é o amor (a ga p ê e
cognatos ocorrem mais de 40 vezes nos três escritos).
A expressão “Deus é amor” define o tema (1 Jo 4.8,16) e é a base de grande
parte da teologia de João. O amor divino obrigou Deus a agir, enviando Cristo,
o Filho (4.9), “como propiciação pelos nossos pecados” (4.10). Porque “deu a
sua vida por nós” (3.16), Ele permitiu que fôssemos “chamados filhos de Deus”
(3.1). Esse amor que busca a fim de resgatar, aconselha João, deve estar eviden
te na vida daqueles que o recebem. O autêntico amor vem de Deus, flui na vida
daqueles que o aceitam e depois flui para fora, para o próximo.
44
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO
A marca dos cristãos é esta: “Que nos amemos uns aos outros” (3.11,23;
4.7,11,12; 2 Jo 5) de maneira tangível. Isso inclui apoio material aos necessi
tados (3.16-18). O amor interno liberta o crente do medo do juízo que virá
(4.17,18). A tensão entre o amor cristão em ação, que João recomenda, e as
duras palavras que ele usa nas cartas dirigidas a adversários destacam o tipo de
desafio que cada era enfrenta para dar uma expressão amorosa e teologicamen
te fundamentada à fé cristã (Black, 1990, p. 39).
5. O mundo
Os leitores de 1 João são claramente chamados a amar os “irmãos” e as
irmãs da comunidade joanina (3.10,17; 4.20,21). Porém, não devem amar “o
mundo” (2.15-17). Em primeiro lugar, “o mundo” (kosmos) é a humanidade e
os sistemas humanos hostis a Deus e ao Seu povo. No entanto, o termo não é
utilizado exclusivamente nesse sentido negativo.
Deus ama o mundo, de acordo com o Quarto Evangelho (3.16). Contudo,
as cartas insistem no fato de que os crentes não devem amar o mundo, porque
fazê-lo seria demonstrar que o amor de Deus não habita neles e entre eles. O
mundo em 1 João é um lugar de luxúria (2.16,17) e maldade (5.19), onde falsos
profetas, anticristos e enganadores trabalham (4.1,3; 2 Jo 7). O mundo não re
conhece os verdadeiros crentes como filhos de Deus. Em vez disso, ele odeia-os
(3.13). Todavia, Deus (por intermédio de Cristo e do Espírito), que reside no
crente, vence o mundo; assim como todos os que vivem em Cristo (5.4,5). O
mundo passa (2.17). Então, o mundo é caracteristicamente visto em um senti
do dualista como o reino do mal.
No entanto, foi a este mundo caído que o Pai enviou o Seu Filho (4.9),
com o propósito de ser o Salvador (4.14). O próprio sacrifício de Cristo foi
“pelos pecados de todo o mundo” (2.2). E no mundo atual, não apenas em
algum mundo futuro, que crentes em Jesus Cristo podem ser como Deus. “O
amor está aperfeiçoado entre nós, para que no dia do juízo tenhamos confian
ça, p o rq u e neste m u n do som os com o ele” (1 Jo 4.17, grifo do autor).
6. Hospitalidade
A hospitalidade cristã é significativa nesses escritos (Koenig, 1992, p. 299-
301; Malherbe, 1983, p. 92-112). João está convencido de que o amor se ma
nifesta em atos concretos de boa vontade (1 Jo 3.17). O amor vem de Deus e é
45
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
vivido por meio da bondade para com os outros. O amor de Deus leva a lares
abertos, onde as boas-vindas são praticadas por meio da comunhão em refeições
partilhadas. O amor de Deus dentro de um lar faz com que ele seja um lugar
onde irmãos e irmãs de fé possam encontrar alojamento, oração, apoio e amor.
E esperado que essa hospitalidade de portas abertas remova as antigas bar
reiras de raça, gênero e status socioeconômico (veja Gl 3.28). Ao fornecer abri
go, os que oferecem hospitalidade contribuem para a evangelização daqueles
que eles receberam (3 Jo 8).
A missão cristã primitiva claramente dependia dessa hospitalidade (Mt
10.40-42; At 16.14,15; Rm 16.1,2; D id. 12). Havia poucas acomodações se
guras, limpas e baratas na Antiguidade. Viajantes cristãos beneficiavam-se do
alojamento e da amizade oferecidos por proprietários simpáticos. As casas dos
anfitriões derivavam o valor do ministério informal dos ministros itinerantes
que passavam tempo juntos durante as refeições. Não é de surpreender que os
cristãos “inventaram” o hospital como um lugar de hospitalidade.
Reter a hospitalidade pode ser algo necessário quando uma profunda di
ferença de doutrina e prática impossibilita a genuína comunhão (2 Jo 10,11).
Às vezes, a recusa em acolher “irmãos”, no entanto, pode ser motivada de forma
errada (3 Jo 10).
7. Eclesiologia
As evidências de estrutura e práticas da igreja são relativamente escassas
nessas cartas. A palavra “igreja” (ekklêsia) ocorre três vezes, apenas em 3 João (v.
6,9,10). Porém, claramente, não havia uma rede de igrejas com alguma relação
de conexão entre si. O uso da primeira pessoa do plural de João em 1 João (qua
se 70 vezes) aponta para um grupo interno que sua escrita representa. É certo
que a primeira pessoa do plural seja comum nas cartas do NT, pois os autores
buscavam identificar-se com os destinatários de suas cartas (ou como um “nós”
editorial modesto, que significa simplesmente “eu”). Como João usa a primeira
pessoa do singular inúmeras vezes (2.1,7,8,12-14; 5.13; 2Jo 5,12; 3Jo 4,9,13),
o “nós” comunal deve ser mais do que convencional.
Além disso, existe uma íntima comunhão ligando as congregações, indi
cada pela linguagem familiar. Isso é especialmente evidente em 2 João. O pres
bítero escreve à “senhora eleita” (v. 1), em nome de sua “irmã eleita” (v. 13).
Ambas as mulheres têm “filhos” (v. 1,13) — aparentemente crentes reunidos
(a Igreja) — em cada localidade.
46
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO
8. Escatologia
que seja para alguns, o termo “anticristo” não aparece em outro lugar na Bíblia
que não seja nessas cartas.
A escatologia pode referir-se à morte espiritual. João escreve sobre um “pe
cado que leva à morte” (5.16), que parece implicar não só a morte física, mas
também a morte espiritual. A primeira carta refere-se a um “dia de juízo” es-
catológico (4.17). A única preparação adequada para esse dia, uma preparação
que permitirá que tenhamos “confiança”, é ter o amor de Deus “aperfeiçoado”.
Esse aperfeiçoamento ocorre nesta vida, uma vez que, por definição, “neste
mundo somos como ele” (v. 17). As cartas falam um pouco mais sobre o dia
do juízo, com exceção de um breve comentário sobre sermos “recompensados
plenamente” (2 Jo 8), se não formos desviados pelo “enganador” (2 Jo 7).
Há pouca menção da segunda vinda. Isso é compatível com o Evangelho
de João, no qual não existe um ensino desenvolvido sobre um segundo adven
to. A única possível referência a um retorno no Evangelho está na promessa de
Jesus: “Voltarei e os levarei para mim, para que vocês estejam onde eu estiver”
(Jo 14.3). Há um contraste gritante entre ela e os Evangelhos Sinóticos, pois
cada um possui um “apocalipse” importante sobre a vinda do Filho do Homem
e sinais escatológicos (Mt 24.1-51; Mc 13.1-36; Lc 21.5-36). Breves alusões à
segunda vinda surgem em 1 João (2.28; 3.2: “quando ele se manifestar”).
Certa expectativa escatológica se reflete na expressão “a última hora” (duas
vezes em 2.18). João não discorre sobre a expressão, exceto para ligar “última
hora” a “anticristos”. A falsa cristologia dos separatistas que negavam a humani-
zação é oferecida como prova de que o fim dos tempos já havia chegado (4.2,3).
A linguagem escatológica limitada nas cartas pode refletir a escatologia
mais “realizada” do Evangelho de João. Nele, Jesus aparece como já glorifi-
cado, em certa medida. Ele age, muitas vezes, por meio de prerrogativas di
vinas, em vez de humanas. Além disso, a realidade da ressurreição não é um
acontecimento futuro, “no último dia” (Jo 11.24). Ela já se realizou na pessoa
de Jesus: “Eu sou a ressurreição e a vida” (Jo 11.25). O Espírito, em um sentido
real, realiza a promessa do retorno de Cristo para estar com Seus seguidores
(veja os capítulos 14, 15 e 16).
J. Questões hermenêuticas
Pelo menos três questões interpretativas importantes surgem nas cartas.
Em primeiro lugar, de que modo o ponto de vista de alguém sobre a autoria
desses escritos pode afetar a leitura do texto? Em segundo lugar, a nossa
48
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO
perspectiva sobre a ocasião histórica das cartas molda nossa percepção dos
adversários sendo criticados? Em terceiro lugar, como devemos entender a
relação das cartas com o Evangelho de João ?
Apocalipse. Lá, o Cristo vivo e resplandecente, que esteve “morto”, agora está
“vivo para todo o sempre”, no meio das igrejas (Ap 1.18; veja os v. 11-20). Na
passagem, Ele fala uma mensagem no presente, de acordo com Suas necessida
des específicas (Ap 2.1,8,12,18; 3.1,7,14).
Nas duas cartas menores (2 e 3 João), o “presbítero” pode ser interpretado
como um membro da geração de professores que sucederam as testemunhas
oculares. Tais pessoas ensinaram em uma “corrente” de autoridade, porque re
ceberam a mensagem do evangelho daqueles que viram e ouviram Jesus (Bro-
wn, 1979, p. 100-103).
Se uma experiência contínua do Senhor ressuscitado for combinada com a
transmissão das tradições recebidas sobre Jesus, então a autoridade residirá tanto
no passado lem brado (tradições orais e textos) como na experiência atual (muitas
vezes, em adoração). Entretanto, permitir que apenas a experiência defina a nossa
compreensão de Jesus, sem o controle do equilíbrio de tradições constantemente
lembradas e recordadas, pode resultar em uma “tradição” adaptativa e em cons
tante mudança. Essa “tradição” correria o risco de transformar-se em quaisquer
circunstâncias contextuais que se apresentassem em novas terras e novos tempos.
O intérprete responsável valoriza ambos os aspectos dessas alegações em
1 João. A mensagem sobre o Jesus que viveu no passado, recebida por meio
do testemunho confiável das primeiras testemunhas, é um recurso precioso.
Assim é a mensagem que flui do Jesus vivo, que continua a falar como o Senhor
da Igreja e deve ser mantida sempre em vista. Há força na memória apostólica
de Jesus. E há poder na experiência atual de Jesus. As duas testemunhas são
complementares, não competitivas.
uma grande preocupação para João e de já terem feito parte das comunidades
de fé, não há dúvidas quanto a quem ele se dirige (2.19). Eles não praticavam
uma heresia adversária e externa. Em vez disso, seus pontos de vista eram uma
expressão tangente, uma variante do cristianismo joanino que, na visão de João,
atingia um excesso significativo. Ele nunca sugeriu que os separatistas fossem
influenciados por algum grupo externo, algo que dificilmente seria omitido se
fosse o caso (Brown, 1979, p. 106).
O grupo separatista pode ter exercido uma cristologia excessivamente ele
vada, um exagero da cristologia do Evangelho de João (Brown, 1982, p. 54).
Era justamente o fato de já terem sido aliados íntimos das visões de João e de
seu círculo que os tornava especialmente perigosos.
Seus pontos de vista extremistas, que consideravam apenas a divindade e
renunciavam a plena humanidade, provavelmente, surgiram da tendência do
Evangelho de João em enfatizar a divindade de Jesus. Por serem tão parecidos
com a comunidade de João, sua ênfase excessiva poderia atrair adeptos para sua
posição cristológica. Embora João os rotulasse de “anticristos” (2.18) e escre
vesse em tons de inimizade ferrenha, o apóstolo reconheceu que eles já fizeram
parte do “nós” — membros de seu círculo de cristãos (2.19).
Os separatistas provavelmente se consideravam defensores leais da plena
divindade do Filho. Eles estavam fazendo isso separando Cristo, como pessoa
celestial, de Jesus, como indivíduo terreno. Jesus (terreno, humano, mortal) po
deria também ser o Cristo (celestial, divino, eterno)? Se assim for, poderíam
argumentar: o divino não ficaria poluído se fosse misturado com o humano ?
Um Deus verdadeiramente divino permanecería sempre como tal.
Tão grande resistência em aceitar a entrada de Deus no homem passou
a ser identificada como docetismo. Os docetistas acreditavam que Cristo não
se tornou humano, mas que apenas pareceu fazê-lo. Elevar Cristo ao domínio
das deidades helenistas seria fácil de imaginar. Porém, afirmar a entrada de uma
divindade no mundo material seria impensável (Burge, Cohick e Green, 2009,
p. 416). O fato de Jesus, na forma de Cristo, ter morrido, dificilmente, poderia
ser imaginado.
Todavia, o coração da teologia de João carrega uma forte paixão missioná
ria. Embora ele escreva de formas acentuadamente dualistas, o apóstolo fala,
de modo consistente, do amor redentor de Deus para com a humanidade pe-
cadora. As fronteiras não são imóveis; o amor de Deus veio para o nosso meio
(Kóstenberger, 2009, p. 280).
Algumas das primeiras dificuldades da fé cristã em entender a pessoa de Je
sus surgiram nesse ponto. Ele era plenamente Deus ? Era plenamente humano ?
51
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
Era um pouco dos dois e nenhum dos dois ? Mais tarde, declarações de credo
afirmavam tanto a plena divindade como a plena humanidade de Jesus.
No quarto século, o Credo Niceno referiu-se a Jesus Cristo como o “ver
dadeiro Deus do verdadeiro Deus, gerado, não criado, de uma só substância
[essência] com o Pai”. Ele também afirmou: “Por nós, homens, e por nossa
salvação, desceu dos céus, foi feito carne por intermédio do Espírito Santo e
da Virgem Maria, e tornou-se homem” (Schaff, 2007, 2:58,59). Tal credo não
existia quando essas cartas foram escritas.
A partir dessas cartas e dos credos que se desenvolveram mais tarde, é evi
dente que as primeiras contendas cristológicas não tiveram origem na negação
da divindade de Jesus. Em vez disso, o erro surgiu da resistência em aceitar Sua
plena humanidade.
53
COMENTÁRIO
NO TEXTO
cinco ocorrências dep h a n eroõ em 1 João (1.2; 3.5,8; 4.9) referem-se à vinda de
Cristo ao mundo. Essa aparição foi soteriológica — para “tirar os nossos peca
dos” (3.5); “para destruir as obras do diabo” (3.8); “para que pudéssemos viver
por meio dele” (4.9). Jesus revela o amor de Deus; e essa revelação continua no
testemunho vivo das igrejas (Müller, 1993, p. 414).
A locução verbal “foi manifestada” (ARC) está na voz passiva, indicando
que a ação foi feita por outro agente. Ao utilizar a voz passiva, em vez da voz
ativa, os escritores bíblicos podiam referir-se a Deus como o agente que reali
zou uma ação sem mencionar Seu nome. Essa voz “passiva divina” foi uma das
maneiras dos judeus pós-exílicos evitarem o erro de seus antepassados. Eles não
diriam o nome de Deus em vão.
V o z p assiva d ivin a
A v o z p a s s iv a d iv in a n o N T d e r iv a d o h á b it o h e b r a ic o d e e v i t a r o
n o m e d iv i n o . E s s a m e d id a e x t r a d e c a u t e la t e m lig a ç ã o c o m u m a p o s
t u r a d e r e v e r ê n c ia p a r a c o m D e u s , q u e é d ig n o d e h o n r a a c im a d e t u d o .
E la t a m b é m e x p r e s s a o t e m o r re v e r e n c ia i d ia n t e d a s a n t id a d e t e m ív e l
d a p r e s e n ç a d iv i n a . A o s q u e c o lo c a m o R e in o e a ju s tiç a e m p r im e ir o lu
g a r , " s e r ã o a c r e s c e n t a d a s " ( p o r D e u s ) a s c o is a s n e c e s s á r ia s p a r a a v id a
( M t 6 .3 3 ) . P e d ir c o m f é , e m o r a ç ã o , s ig n ific a q u e " lh e s s e r á d a d o ” — p o r
D e u s (M t 7 .7 ) .
Q u a n d o o s c re n te s p re c is a m d e p a la v r a s p a ra d a r u m fie l t e s t e m u n h o
p e r a n t e a s a u to r id a d e s , Je s u s p r o m e t e q u e " lh e s s e rá d a d o o q u e d iz e r "
( M t 1 0 .1 9 ) . E m A p o c a lip s e , a v o z p a s s iv a d iv in a in clui a p r o v is ã o d e p u
r e za — " c a d a u m d e le s re c e b e u u m a v e s t e b r a n c a " ( A p 6 . 1 1 ) e p ro te ç ã o
( A p 1 2 .1 4 ) . A v o z p a s s iv a d iv in a a firm a D e u s c o m o a lg u é m q u e a g e a tiv a
m e n te n a h is tó r ia , m a s s e m n o m e á -lo a b e r t a m e n t e n o t e x t o . E la t a m b é m
tr a n s m ite a id e ia d e q u e t o d a s a s c o is a s o c o r r e m d e n tr o d a p e rm is s ã o d e
D e u s . N a d a d o q u e a c o n te c e p o d e s u r p r e e n d e r o u a tr a p a lh a r o p ro p ó s ito
d iv in o .
T e s te m u n h o fiel e m a rtírio
H 3 Bruce faz uma distinção entre o uso “exclusivo” e “inclusivo” de nós. Ele
argumenta que é exclusivo no versículo 3: “Nós tivemos essa experiência, e vo
cês não”. Ele insiste no fato de que o prólogo é melhor compreendido como as
palavras da primeira geração cristã, abordando cristãos de uma geração que veio
depois (1970, p. 38).
O testemunho fiel sobre Jesus vem de uma comunidade de fé. O autor fala
com uma voz corporativa, utilizando a primeira pessoa do plural — nós — em
três verbos nesse versículo. Esse testemunho coletivo indica que a experiência
que teve com Jesus não era um fenômeno religioso solitário. Era algo compar
tilhado como parte de uma comunidade de culto.
O verbo principal dos versículos 1-3, proclamamos (,ap an gellom en ), ante
cipado no versículo 2, finalmente se torna explícito. A palavra que conota um
61
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
de escribas que fazia várias cópias de 1 João. Nesse ambiente, as palavras hêm õn
e hym õn, nossa e “vossa”, poderíam ser facilmente confundidas.
Os tradutores da NVI (e também de outras versões) preferiram utilizar
nossa (h êm õn) no versículo 4, com base em dois importantes manuscritos un-
ciais do quarto século, S inaiticus e Vaticanus. Como a leitura era inesperada,
isso é mais provável. Um editor, mais tarde, poderia ser esperado para suavizar
a leitura, não a tornar mais difícil.
As palavras alegria/alegrei aparecem mais quatro vezes nas cartas joaninas
(2 Jo 4,12; 3 Jo 3,4). A alegria mútua que tinham por causa de seus compro
missos em comum levava-os a preservar nas comunicações escritas e a esperar
contatos face a face.
Os leitores de 1 João familiarizados com o Quarto Evangelho, sem dúvida,
ouviram ecos da alegria enfatizada no discurso final de Jesus (Jo 15.11; 16.24;
17.13; vejajo 3.29). O padrão de João 15 é semelhante: uma relação comparti
lhada — comunhão — resultante em alegria. O significado tanto no Evange
lho como na epístola se estende para incluir a alegria da salvação.
João escreve para que a alegria do círculo joanino possa ser completa
(p ep lêrõm en ê, “cheia”) e abundante (veja 2 Jo 12). O pretérito perfeito do par-
ticípio sugere uma alegria trazida à plenitude e sustentada. Além disso, a voz
passiva lembra aos leitores que sua alegria é um dom de Deus. Esse presente é
melhor aproveitado quando recebido em um ambiente corporativo e fiel, no
qual os ouvintes obedecem ao que lhes foi ensinado pela autoridade apostólica.
Em resumo, os versículos 1-4 antecipam, em essência, a mensagem — o
testemunho teológico de toda a carta. Primeiro, a continuidade da revelação
entre o Pai e o Filho encarnado é implícita. Segundo, João enfatiza a verdade
bíblica de que a vida do cristão é uma relação que compreende tanto o evange
lho como a ética. É a combinação de “o que Deus fez” e “o que devemos fazer”
— a unidade inerente das dimensões horizontal e vertical da vida cristã.
É essencial, para o nosso bem-estar espiritual e para a saúde da Igreja, que
essas duas coisas sejam mantidas em equilíbrio. A presença e a interpenetração
de ambas são necessárias. “A vida (...), a vida eterna,” é a “comunhão conosco” e
“com o Pai e com seu Filho”.
A P A R T IR D O T E X T O
Aqueles que possuem a vida eterna (v. 2) têm a obrigação de serem fiéis
exemplos e porta-vozes nesta vida. Ouvintes de cada geração contam a história
64
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
M a n u sc rito s d o M a r M o rto
E m 1 9 4 7 , p e r to d a c o s ta n o ro e s te d o m a r M o r t o , u m m a n a n c ia l d e
m a n u s c r ito s a n tig o s c o m e ç o u a s e r d e s c o b e r to n a s c a v e r n a s d a re g iã o . O
lo c a l, c h a m a d o Q u m r ã , fo r n e c e d a d o s im p o r ta n t e s p a ra a c o m p r e e n s ã o
d o p e n s a m e n to re lig io s o d e u m a c o m u n id a d e ju d a ic a s e p a r a t is t a , b e m
c o m o a lg u n s a s p e c to s d o c ris tia n is m o p r im itiv o . O s M M M in c lu e m c ó p ia s
d e to d o s o s livro s d o A T , e x c e t o E s t e r , b e m c o m o u m g r a n d e n ú m e r o d e
e s c rito s n ã o c a n ô n ic o s . P a ra u m m a te r ia l in tr o d u tó r io s o b re a c o m u n id a d e
d e Q u m r ã , t r a d u ç õ e s e m in g lê s d o s m a n u s c r ito s e e x t e n s a b ib lio g ra fia ,
v e ja V e r m e s ( 2 0 0 4 ) ; p a ra u m a c u r ta h is tó ria d o s M M M , v e ja Fie ld s ( 2 0 0 6 ) .
66
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
NO TEXTO
estão presentes nas “consequências” e nas “explicações”. Sendo que as duas úl
timas são colocadas juntas para equilibrar os versículos em uma estrutura mais
formal. Assim, os problemas e as soluções que João colocou são de caráter ético
e cristológico.
Os verbos nos três pares de declarações estão no modo subjuntivo. Isso
sugere uma probabilidade hipotética, mas não uma certeza (Wallace, 1996, p.
461). Uma pessoa pode ou não fazer tais afirmações. Um cristão professo pode
optar por andar nas trevas, mas isso não é uma certeza. Uma tradução expan
dida para capturar as idéias seria: Se afirmarmos que temos comunhão com
ele (em b o ra s e p o ss a f a z e r t a l a firm a çã o o u n ã o ) — e andarmos nas trevas
{em bora isso n ã o p r e c is e a co n tece r).
A frase repetida se afirmarmos parece indicar que alguns, fora ou dentro
das igrejas de João, realmente fizeram tais alegações. Isso é o que João visa cor
rigir (Smith, 1991, p. 43). João considerava esses pontos de vista aberrantes um
grave perigo para seus leitores. Alguns talvez já tivessem sido seduzidos por
essas posições. E arriscado reconstruir os pontos de vista de um grupo lendo
seus materiais críticos que foram escritos por outros. Todavia, os adversários
de João parecem estar próximos, até mesmo pessoas que antes estavam dentro
das igrejas joaninas ( l Jo 2.19). João, sem dúvida, entendia muito bem o que os
adversários estavam ensinando (Bogart, 1977, p. 28,29).
Ao usar a primeira pessoa do plural, João poderia estar identificando-se
com o grupo a quem ele escrevia (Strecker, 1996, p. 29). Ele permanecia como
um deles, a fim de dissuadi-los dos perigos dos separatistas. Porém, a repetição
de se afirmarmos (v. 6,8,10) pode ser meramente um dispositivo estilístico.
Bogart considera as três primeiras pessoas do plural dos versículos como equi
valente aos três pronomes impessoais em 1 João 2, representado pelos particí-
pios substantivos ho legõn { aquele q u e diz, 2.4,6,9; Bogart, 1977, p. 28).
Ambos os verbos da primeira oração, “dizemos” (NTLH) e temos, estão
no presente. Então, se afirmarmos que estamos em um relacionamento contí
nuo e compartilhado (k oinõnia) com Cristo, mas vivermos de uma maneira
que seja inconsistente com a nossa declaração, na verdade, estamos vivendo
nas trevas. Ao fazermos isso, andamos em desacordo com a verdade (v. 6: n ã o
esta m o s p r a tica n d o a verdade-, veja Jo 3.21).
Isso envolvería acreditar em um ensinamento diferente do das igrejas jo
aninas (2 Jo 9-11). A questão também seria não amar os “outros” (1 Jo 1.7;
2.9-11; 3.23). Então, quando andamos nas trevas, simplesmente praticamos
o autoengano: mentimos ipseudom etha) e não praticamos a verdade.
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NOVO COMENTÁRIO BlBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
V e rd a d e
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1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
O ato divino de perdoar (aphéi) (...) pecados pode significar mandá-los em
bora, perdoar uma dívida ou livrar de uma pena. Brooke entende que o perdão
dos pecados pode ser entendido como um ato simbólico em que a barreira que os
pecados criaram entre Deus e as pessoas é removida (Brooke, 1912, p. 20).
Nos versículos 6-8, João usou verbos no presente para discutir o que Deus
faz e o que as pessoas fazem. Aqui, em um ponto estratégico de seu argumento,
ele usa o tempo aoristo para falar do que Deus se propõe a fazer, isto é, nos
perdoar e purificar. O tempo aoristo no grego é o pretérito perfeito. Isso não
significa necessariamente fazer uma declaração específica sobre quando algo
ocorreu, mas simplesmente ver o ato como realizado, não a sua duração ou o
seu resultado (Haas, Dejonge e Swellengrebel, 1972, p. 38). Por vezes, no en
tanto, ele pode ter o sentido de uma ação completa, e até decisiva.
É intrigante que somente aqui o aoristo apareça como referência ao que
Deus faz ao purificar de toda injustiça (adikias). O alfa (a) no início da pala
vra nega a palavra à qual ele está ligado. Dessa forma, Deus remove tudo o que
não é justo. A conexão entre as palavras usadas por João para falar da natureza
de Deus e do que Ele pode fazer pelas pessoas é vista quando se traduz: Ele é
(...) justo (dikaios) para (...) nos purificar de toda injustiça {adikias).
Antes (v. 6-8), João salientou a contínua obra da salvação de Deus (e da
resposta do crente a ela) com verbos no presente. Ao usar verbos aoristas, João
pode estar enfatizando uma ação realizada por Deus, não como contínua, mas
como um ato decisivo. A obra de Deus atende à necessidade universal do ho
mem de ser perdoado e purificado para a restauração relacionai e cura pessoal.
João exorta seus leitores a compreender e experimentar tanto o perdão como
a purificação.
João Calvino, acertadamente, viu que a confissão ocasionava “um fruto
duplo (...), que Deus, que é reconciliado com o sacrifício de Cristo, nos perdoa;
e que Ele nos corrige e nos reforma” (1959, p. 241). No entanto, Calvino resis
tiu à ideia de um tratamento completo do pecado no presente. Ele identificava
o ato de pecar com estar neste corpo. Ele descarta a clara intenção do versículo
9, insistindo: “João não está dizendo-nos o que Deus realiza em nós agora”
(1959, p. 241).
Apenas Deus pode purificar. No entanto, Ele não substitui a vontade
humana para realizar a purificação. Os verbos (perdoar — aphêi-, e purificar
— katharisêi), ambos no modo subjuntivo, são combinados com a conjunção
condicional ean. A construção iniciada por “se” é uma declaração condicional,
indicando o que pode ou não acontecer (Mounce, 2003, p. 293). Deus
pode purificar-nos e quer fazê-lo. O perdão e a pureza que Ele oferece estão
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1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
a nós mesmos”, demonstramos que “a verdade não está em nós” (v. 8). E quando
fazemos Deus de mentiroso, logo, sua palavra não está em nós (v. 10).
O paralelismo nesses versículos sugere que “a verdade” (v. 6,8) seja iguala
da à palavra de Deus (v. 10). Essa ligação entre a verdade e a palavra de Deus
também pode ser vista no Quarto Evangelho (Jo 17.17). A mensagem do evan
gelho não foi ouvida nem respondida, isto é, Cristo não foi recebido!
Afirmações falsas levam à ilusão crescente. No versículo 6, afirmar ter um
relacionamento íntimo com Deus e viver em desobediência é efetivamente
uma “mentira” contada para os outros. Em seguida, no versículo 8, negarmos
que o pecado afeta nossa vida é “enganarmos [mentirmos] a nós mesmos”. Por
fim, a acusação mais inimaginável, no versículo 10, negar ter cometido pecado
é chamar Deus de mentiroso!
A P A R T IR D O T E X T O
0 perigo da hipocrisia
Ser purificado de todo o pecado é o que cada crente deve procurar, o que
ele tem direito de esperar e o que deve ter nesta vid a , a fim de preparar-se
para encontrar o seu Deus. Cristo não é um S alvador p a rcia l; Ele salva ao
extremo e purifica de TODO p eca d o (Clarke s.d., p. 904).
Deus quer purificar-nos de tudo o que é diferente de Deus. Com essa lim
peza, todo pecado (v. 7) e toda injustiça (v. 9) são derrotados. Ao longo do
tempo, Deus trabalha para suavizar as falhas persistentes na nossa vida — para
remover tudo o que é incompatível com o Seu caráter.
Até que ponto podemos participar com cristãos que possuem pontos de
vista e práticas diferentes ? Quando a comunhão vai além de vidas compartilha
das e se torna comprometimento ? Que questões ou práticas doutrinais não são
negociáveis ? Há perigo em rotular rápido demais aquele de quem discordamos
como alguém que está nas trevas (v. 5,6). Porém, também é perigoso acolher
rápido demais teologias e práticas divergentes.
John Wesley tratou do assunto em seu sermão “Espírito Universal”. Ele
pediu firmeza naquilo em que se “acredita ser a verdade como ela é em Jesus”
(não ter “uma compreensão turva”). Firmada em suas convicções teológicas e
ativa em uma congregação local, a pessoa de espírito universal ainda tem um
“coração (...) estendido a todos” que amam Jesus Cristo, amam o próximo e
procuram sempre agradar a Deus (Wesley, 1978-1979, 5:502-504).
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II. PERTENCER A DEUS E RESISTIR AO INIMIGO:
1 JOÃO 2.1-29
NO TEXTO
Embora João tenha escrito “escrevemos” em 1.4, aqui, nas primeiras nove ve
zes, ele passa para a primeira pessoa singular — escrevo (2.7,8,12,13,14; 5.13).
Essa aparente mudança de “voz” ocorre de vez em quando na carta. Nas linhas
introdutórias de 1 João, a primeira pessoa do plural representa o testemunho co
letivo e histórico da tradição apostólica. Agora, João dá uma palavra mais pessoal,
no singular, talvez ressaltando sua preocupação pastoral urgente com seu público.
No início do capítulo 2, João revela tanto seu coração pastoral como o gran
de chamado para ser cristão. Ele escreve para manter um relacionamento com seu
público. Ele quer protegê-lo de tudo o que poderia levá-lo a pecar. Seu objetivo é
claro: para que vocês não pequem. O aoristo do verbo grego sugere a evasão total
de pecados de qualquer tipo. Assim, ele implica no fato de que cristãos são capazes
de “impecabilidade” (Brooke, 1912, p. 23). Seus leitores devem reconhecer a natu
reza onipresente do pecado enquanto vivem sem pecar habitualmente (Marshall,
1978, p. 116).
Uma prática regular de pecado como regra geral para os cristãos é estranha a
1 João. No entanto, João insiste igualmente no fato de que os cristãos não podem
alegar não ter pecado algum com que lidar (1.8). Todos tinham pecados que pre
cisavam ser perdoados (1.9,10). Então, o que 2.1 quer dizer? Certamente, ele não
está adotando aqui a posição que criticava em 1.8 e 10 (Kruse, 2000, p. 71).
A afirmação condicional, se, porém, alguém pecar, apresenta um caso hipo
tético, mas real. O verbo ham artêi está no modo subjuntivo, indicando uma possi
bilidade, que não é inevitável. João diz que alguém pode pecar, e se isso acontecer?
Uma paráfrase destacando isso pode ser a seguinte: C onsiderem os a situ a çã o em
qu e a lgu ém p eca , em b ora ta l n ecessid a d e n u n ca seja p ra tica d a .
O verbo está no tempo aoristo, o pretérito perfeito. O tempo imperfeito teria
servido melhor para João se ele quisesse enfatizar uma prática contínua de pecado,
em vez de uma ocasião. O subjuntivo aoristo sugere um lapso no pecado, não uma
vida de pecado contínuo (Painter, 2002, p. 158).
O texto afirma um padrão de vida que está acima do pecado. Porém, João,
realisticamente, reconhece que alguns cristãos vacilam, de forma ocasional, em sua
caminhada. Para eles, ele afirma a oferta contínua de reconciliação com Deus. Esses
cristãos do primeiro século ilustram uma tensão e um desafio atemporais. Podemos
livrar-nos da prática habitual do pecado por meio da graciosa ajuda de Deus. No
entanto, às vezes, esse ideal não é a realidade em nossa vida. Então, como podemos
permanecer fiéis tanto ao caráter santo de Deus como à Sua expectativa de que a
santidade esteja presente em nós de forma autêntica?
Esse texto, na verdade, toda a Escritura, chama o povo de Deus a viver uma
vida santa. Como admoesta o versículo 1, o pecado não precisa ser fatal, devido à
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NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3JOÁO
morte expiatória de Cristo (Rensberger, 2006, p. 287). Atos de pecado não afetam
somente a pessoa que os comete, mas também o corpo de crentes. Se, porém,
alguém [singular] pecar, temos [plural] um intercessor para ajudar-nos (veja
Brooke, 1912, p. 27).
João afirma a santidade do chamado de Deus e o Seu chamado para que as
pessoas sejam santas. A santidade de Deus trabalha de forma redentora. Embora
o pecado seja real, temos um intercessor. Essa frase traduz uma única palavra em
grego (parakléton), composta por “ao lado de” (para) e “chamar” (kalein).
A metáfora remete a um advogado que fala em nome de alguém, o qual re
presenta um cliente no tribunal. Esse “intercessor” ficaria ao lado da pessoa e ofe
recería o apoio de sua presença. A palavra pode ter um sentido menos técnico de
alguém chamado para ajudar. Frequente no grego não bíblico, o termo aparece no
NT somente na literatura joanina.
No Evangelho, Jesus usa paraklêtos para descrever o “Espírito Santo” (Jo
14.26), o “Espírito da verdade” (Jo 14.17; 15.26). Os quatro casos de paraklêtos no
Evangelho (14.16,26; 15.26; 16.7) são traduzidos como “Conselheiro” na NVI.
O “Conselheiro” é enviado pelo Pai a pedido de Jesus (14.16) e em Seu “nome”
(14.26). Ou Jesus envia o Espírito (16.7) do Pai (15.26). Em 1 João, Jesus, não o
Espírito, é o paraklêtos.
As interpretações do termo não são tão diferentes quanto parecem de início.
O uso nos dois escritos sugere alguma fluidez ou desenvolvimento na utilização do
termo. Quando Jesus se ausentou fisicamente depois da ressurreição, as igrejas lem
braram a Sua linguagem sobre o envio de “outro Conselheiro” (allon parakléton)
(Jo 14.16). Allon sugere outro do mesmo tipo, e elas poderíam ter adotado o termo
para o Jesus “ausente, porém presente pelo Espírito”.
Jesus é chamado de o Justo (dikaion). As três ocorrências desse título em Atos
(3.14; 7.52; 22.14) possuem o sentido de identidade messiânica dentro de um dis
curso ou sermão feito por líderes cristãos importantes do início da Igreja — Pedro,
Estêvão e Paulo.
O profeta Isaías usa a mesma imagem quando fala do Senhor Deus — “glória
(...) ao Senhor” (Is 24.15), em paralelo com “Glória (...) ao Justo” (Is 24.16). Jere
mias profetizou “um Renovo justo” (Jr23.5; 33.15) como “o Senhor é a Nossa Jus
tiça” (Jr 23.6) da linhagem de Davi. Zacarias viu um “rei” chegar a “Sião”, que era
“justo e vitorioso” (Zc 9.9). As passagens do livro apócrifo de Enoque que chamam
o Messias de “o Justo” (1 En. 38.2; 53.6), provavelmente, refletem um dos primei
ros usos do termo que chegou, de forma natural, ao vocabulário cristão primitivo,
f l 2 “Jesus Cristo, o Justo” (v. 1) é a propiciação (hilasmos, também em 4.10)
pelos nossos pecados. Cristo fica ao lado do crente que sucumbiu ao pecado para
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1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
ajudá-lo e falar por ele. Porém, Ele faz mais do que ficar ao lado dele; Ele torna-se
ativamente a solução do dilema causado pelo pecado. Essa é a linguagem de sacrifí
cio; ela utiliza imagens do sistema do templo 6 demonstra a gravidade de pecar-se
contra Deus.
Hilasmos
A p a la v r a h ila s m o s e a re la c io n a d a h ila stê rio n a p a r e c e m c o m p o u c a
fr e q u ê n c ia n o N T ( s o m e n t e a q u i e e m R m 3 .2 5 , H b 9 .5 e 1 Jo 4 .1 0 ) . E s s a s
p a s s a g e n s s ã o t r a d u z i d a s c o m o " p r o p ic ia ç ã o " ( 1 Jo 2 .2 ; 4 . 1 0 ) , " s a c rifíc io
p a ra p ro p ic ia ç ã o " ( R m 3 .2 5 ) o u " p r o p ic ia tó r io ” ( H b 9 .5 A R C ) . P a la v ra s e
im a g e n s re la c io n a d a s n o N T p r o c u r a m e x p lic a r o q u e a c o n te c e u n a m o r te
d e Je s u s p a ra p e r m itir a re c o n c ilia ç ã o c o m D e u s . E la s , m u ita s v e z e s , re
fle t e m a s p rá tic a s d e s a c rifíc io s d e a n im a is d e n tr o d o ju d a ís m o ( E f 5 .2 ; H b
1 0 .1 2 ) . E la s s e re fe re m a C ris to c o m o o C o r d e ir o (Jo 1 .2 9 ,3 6 ; 1 C o 5 .7 ; e
3 0 v e z e s e m A p ) e u s a m a lin g u a g e m d e re s g a te (M c 1 0 .4 5 ) , c o m p r a ( 1 C o
6 .2 0 ; 7 .2 3 ) , r e d e n ç ã o e p e r d ã o (G l 3 . 1 3 ,1 4 ; 4 .5 ; E f 1 . 7 ; Cl 1 . 1 4 ) .
A p a la v r a h ila s m o s e m 1 J o ã o 2 .2 é , m u ita s v e z e s , t r a d u z id a c o m o
" p r o p ic ia ç ã o " o u " e x p ia ç ã o " ( V C ) . A d a m C la r k e ( s .d ., p . 9 0 5 ) p re fe ria
"s a c rifíc io e x p ia tó r io " . N a L X X , h ila stê rio n e ra a s s o c ia d a a o " p r o p ic ia t ó
rio " (v e ja H b 9 .5 A R C ) , o lu g a r o n d e a re c o n c ilia ç ã o e ra r e a liz a d a . T a n to
h ila stê rio n c o m o h ila sm o t a m b é m e s tã o lig a d a s a o s m e io s p e lo s q u a is a
re c o n c ilia ç ã o o c o r ria .
A lg u n s in te r p r e t a m a t r a n s a ç ã o c o m o o m e io p e lo q u a l D e u s é p r o p i
c ia d o e o p e c a d o é e x p ia d o (B ü c h s e l e H e r r m a n n , 1 9 6 5 , p . 3 1 7 ,3 1 8 ) . Isso
s u g e re q u e D e u s , c o m o a p a r te o fe n d id a , p re c is a s e r a p a z ig u a d o . C o n t u
d o , o N T in d ic a r e p e t id a m e n t e q u e D e u s t o m a a in ic ia tiv a d e r e s ta u r a r o
h o m e m p e c a d o r a u m r e la c io n a m e n t o c o rre to c o n s ig o m e s m o (Jo 3 .1 6 ; 2
C o 5 . 1 8 ,1 9 ; 1 Jo 4 .1 0 ) . " P r o p ic ia ç ã o " e n fa tiz a a m u d a n ç a q u e o c o r re n o
la d o d iv in o — D e u s e ra a p a z ig u a d o . " E x p i a ç ã o " c o n c e n tr a -s e m a is n o la d o
d o h o m e m — o s a c u s a d o s e r a m lim p o s e r e s ta u r a d o s .
A t r a d u ç ã o " s a c rifíc io e x p ia tó r io " e n fa tiz a o e fe ito d e s a lv a ç ã o d a
m o r te d e C r is t o , s e m in d ic a r s e a m u d a n ç a o c o rre m a is n o D e u s s a n to o u
n o h o m e m p e c a d o r. D e u s f e z t u d o o q u e e ra n e c e s s á rio p a ra re c o n c ilia r-s e
c o m o h o m e m p e c a d o r . A d e c la r a ç ã o d e P a u lo e m 2 C o rín tio s 5 .1 9 , " D e u s
e m C ris to e s t a v a re c o n c ilia n d o c o n s ig o o m u n d o " , re fle te a p e r s p e c tiv a d e
c o n tro le d o s e s c rito r e s d o N T , q u e t e n t a v a m tr a n s m itir o q u e o c o r re u na
m o r te d e C ris to ( B ü c h s e l e H e r r m a n n , 1 9 6 5 , p . 3 1 7 ; M itt o n , 1 9 6 2 , p . 3 1 3 ) .
A maioria das traduções ignora o pronome enfático (autos, ele). Ele é gramati
calmente desnecessário, uma vez que o objeto está implícito no verbo: Ele é (estin).
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NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
A P A R T IR D O T E X T O
Que pensamento incrível: aquele que morreu por nós, pecadores, representa-
-nos diante do Pai (v. 1)! O paráclito Jesus, que está ao nosso lado para ajudar, acre
dita tanto em nós que já passou por um sofrimento supremo pelo pecado. Estamos
diante de Deus; mas não estamos sozinhos. O perdão é oferecido. A reconciliação
é real. A obra de Deus em nossa vida é aperfeiçoada (teteleiõtai, v. 5) e tem um
grande custo para Cristo. A declaração de Cristo da cruz, “está consumado” [tete-
lestai; Jo 19.30), destaca a obra concluída. A plena obediência de Cristo ao Pai o
levou à cruz, onde Ele cumpriu a intenção divina de redenção. Da mesma forma, a
nossa plena obediência ao Pai, para onde quer que ela nos leve, cumpre o propósito
divino em nós.
Pecar é necessário?
A plena obediência a Cristo pode significar que nós não pecamos (v. 1). Algu
mas pessoas poderíam facilmente descartar essa possibilidade, argumentando que
“errar é humano”, assim como pecar.
Martinho Lutero não teve forças para enfrentar o grande objetivo do versículo
1; em vez disso, ele concentrou-se na inevitabilidade do pecado. “Mas, mesmo que
você se fortaleça ao máximo, o pecado permanece, e você peca dia a dia” (Pelikan,
1967, p. 235). Lutero, no entanto, paradoxalmente, também afirmou a respeito de
1 João 3.6: “Aquele que está nele, isto é, em Cristo, não peca; pois, quando Cristo
está presente, o pecado é vencido”. Ele acrescentou: “Mesmo que pequem, eles não
permitem que o pecado reine” (Pelikan, 1967, p. 270).
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NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
Como “todos pecaram” (Rm 3.23), o pecado não precisa ser a norma para
o povo de Deus. Esse assunto, importantemente, volta-se para como o pecado
é definido. Se o pecado é qualquer falta de perfeita conformidade com a lei de
Deus, conhecida ou desconhecida, então a liberdade do pecado certamente ilude
o homem.
No entanto, e se o pecado for uma violação intencional de uma lei conhecida
de Deus ? Então, certamente, a obra redentora de Cristo na cruz e o poder da res
surreição são suficientes. Cristo pode captar nossa atenção para que possamos ser
libertos do pecado habitual. A graça não só alcança, mas também perdoa e, mais
importante, cura. Comentando sobre o versículo 1, John Wesley escreveu: “Todas
as palavras, instituições e juízos de Deus são feitos contra o pecado, mesmo que
não possa ser cometido ou que possa ser abolido” (Wesley, 1983).
Quando os cristãos não conseguem agir de maneira santa, isso desafia sua de
claração de vida em santidade. É possível afirmar ser santo e fazer uma crítica com
palavras duras ou guardar ressentimentos profundos e resistir à confissão de tais
falhas ? Alguns dos que testemunharam graça santificante e libertação do pecado
resistem em confessar fracassos de qualquer tipo. Eles pensam erroneamente que
fazer isso seria negar seu credo e enfraquecer sua teologia. Outros dão desculpas
e deixam de admitir seu pecado, rotulando-o de “erro”. Ao saberem que machu
caram outra pessoa, eles não pedem perdão a ela ou a Deus. Eles talvez pensem:
“Deus conhece meu coração”. A atividade do Espírito de Deus em nós deve tornar-
-nos mais propensos a notar quando machucamos alguém, mais aptos a admitir
nossa culpa e pedir perdão.
Outra ênfase que afeta tanto a pregação quanto o cuidado pastoral gira em
torno do alcance da morte expiatória de Cristo. Ele morreu por todos — “pelos
pecados de todo o mundo” (v. 2; veja também 2 Co 5.14,15). A morte de Cristo
é motivo suficiente para a salvação de qualquer um, mas isso não pressupõe esse
resultado para todos. Paulo distingue, de modo semelhante, a oferta de salvação
universal totalmente suficiente e a limitação do alcance que se aplica apenas aos
crentes. Ele falou sobre “todos” por quem Cristo morreu (2 Co 5.14), mas também
sobre “aqueles que vivem” como um número mais restrito (2 Co 5.15).
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1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
NO TEXTO
parece tão antiga quanto Levítico 19.18: “Ame cada um o seu próximo como a
si mesmo”. Esse texto foi ligado ao Shemá de Deuteronômio 6.4 pelo “perito na
lei”, que perguntou a Jesus qual era o maior mandamento da lei (Lc 10.27,28).
Contudo, esse mandamento é tão antigo quanto o princípio.
Como interpretamos o princípio? No Evangelho de João (1.1), o princípio
é “o” princípio, antes da criação, em uma linguagem que evoca o texto de Gênesis
1.1 da LXX. No entanto, aqui, João, como em 1.1, está referindo-se mais ao iní
cio do efeito do evangelho em seus leitores. Foi o que ouviram que os trouxe à fé
cristã (veja 2.24 e 3.1). A referência é semelhante às linhas iniciais do Evangelho
de Marcos. Nessa passagem, o “princípio do evangelho” (Mc 1.1) é identificado
com o ministério público da mensagem anunciada e recebida de Jesus. O antigo,
portanto, trata-se do princípio do evangelho neles.
■ 8 João acabou de dizer que não escreve “um mandamento novo” (v. 7). Porém,
já na próxima frase, diz que sim! Ele ainda não definiu a natureza exata do man
damento. Antecipando onde ele quer chegar (v. 10), João recorda as palavras de
Jesus em João 13.34: “Um novo mandamento lhes dou: Amem-se uns aos outros.
Como eu os amei, vocês devem amar-se uns aos outros”. Todavia, primeiro, ele liga
o mandamento novo à metáfora dualista de luz e trevas. Isso lembra o prólogo do
Quarto Evangelho: “A luz brilha nas trevas, e as trevas não a derrotaram” (Jo 1.5).
A verdadeira luz é uma reminiscência de João 1.9: “Estava chegando ao mun
do a verdadeira luz, que ilumina todos os homens”. O pensamento do Evangelho e
da epístola é escatológico. Uma nova era de luz está rompendo a idade das trevas. A
ênfase aqui está no evangelho de Cristo, “a Palavra da vida” (1.1).
Essa luz que já brilha ainda não eliminou totalmente as trevas. As sombras es
tão vivendo além da conta e se dissipando. Como no Evangelho, a “verdadeira luz,
que ilumina”, está varrendo as trevas de todas as pessoas (Jo 1.9). Somos lembrados
de Gênesis 1, que fala como Deus separou a luz e as trevas (1.4,5), e da correção do
caos que isso causou (1.1,2).
B 9 João passa diretamente para um desafio ao leitor. Qualquer ódio por outro
crente é uma prova de trevas; ele participa do espírito caótico antiDeus. O ódio
tenta desfazer o que Deus, na criação e em Seu governo soberano, está trabalhando
para realizar. Isso, obviamente, não é possível.
Porém, a questão é: vamos interferir com o propósito divino de associar-nos às
“trevas [que] estão se dissipando”? Ou vamos cooperar com Deus ao aceitarmos a
“luz” que “já brilha” (v. 8) ? Paulo expressa uma expectativa escatológica semelhante
quando escreve que “a noite está quase acabando; o dia logo vem” (Rm 13.12). A
antecipação desse triunfo revelador da luz sobre as trevas coloca o povo de Deus
“no meio do tempo” (tradução do título original de D ie M itte d er Zeit, Conzel-
mann, 1954) à espera de uma vitória final futura da “verdadeira luz”.
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1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
Se alguém afirma estar na luz, isso não prova necessariamente a sua lealdade
a Deus. A dissonância entre os sons que a pessoa fala — afirma — e o clamor que
acompanha o ódio abafam o que se fala da boca para fora (veja os desafios de João
em 1.6,8,10). É desonesto afirmar estar em um estado de graça cristã, enquanto
odeia seu irmão ou sua irmã. O ódio, aparentemente, descreve as visões falsas, a
atitude arrogante e o comportamento faccioso dos separatistas.
A palavra irmão (adelphos), um termo favorito de João, ocorre com grande
frequência no restante da carta (2.10,11; 3.10,12,14,15,17; 4.20,21; 5.16). A pa
lavra é usada por Jesus nos Evangelhos (Mt 25.40; 28.10; Mc 3.33,34,35; Lc 6.42;
17.3; Jo 20.17). Ela aparece em Atos (9.17; 22.13) e é comum nos escritos de Pau
lo. Chamar alguém de “irmão” é uma adaptação cristã da linguagem de “fraterni
dade” espiritual do judaísmo. A definição aparece também em um sentido religioso
em autores seculares gregos (von Soden, 1964, p. 144-146).
O termo irmão, em 1 João, não se refere exclusivamente aos irmãos do sexo
masculino. O grego, como muitas outras línguas, usa substantivos coletivos mascu
linos para referir-se a ambos os sexos. O termo adelphos fala mais sobre a língua gre
ga do que sobre os limites do amor divino (Smith, 1991, p. 58). Traduções recentes
que utilizam “irmão ou irmã” esclarecem adequadamente a intenção da linguagem
de João para os leitores modernos.
João estreitou o sentido de irmão para apenas cristãos que concordavam com
a sua perspectiva cristológica? Quem não concordava com o ensinamento joani-
no não era mais irmão (veja 2 Jo 10)? O apóstolo não hesita em rotular aqueles
que antes faziam parte da comunidade joanina e foram chamados de “anticristos”
(2.18,19).
Será que a repetição do apelo de 1 João para amar “um ao outro” e amar o ir
mão se estende aos separatistas ? Parece uma questão em aberto. No entanto, é mais
provável que João, nesse contexto, usasse irmão para indicar alguém que ainda
estivesse dentro da comunidade de fé das igrejas joaninas. A questão é o compor
tamento daqueles que estavam perturbando a comunidade, não o mundo em um
sentido neutro (Jo 3.16) ou até mesmo negativo (2.15).
I 1 0 Em contraste com “odeia” e “trevas” (v. 9), temos ama e luz. O amor ao
“irmão ou à irmã” (NRSV) significa trazer diante deles nada que cause derrota
espiritual, nada que seja causa de tropeço (skandalon). O termo skandalon retrata
uma armadilha ou um laço preparado para um inimigo e, metaforicamente, um
obstáculo ou uma ofensa. Essas palavras de cautela de João surgem naturalmente de
seu contexto. As igrejas estavam brigando por diversidade cristológica e questões
resultantes de liderança e unidade.
Jesus chama Pedro de skandalon quando ele se opõe a Jesus, apontando para
o Seu destino na cruz (Mt 16.23). Fazer “pequeninos” pecarem é um skandalon e
92
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
recebe uma forte repreensão de Jesus (Mt 18.6-9). Paulo usa skandalon quando
fala sobre Isaías 28.16 para referir-se a “uma rocha que faz cair” (Rm 9.33). Surpre
endentemente, assim como João, Paulo escreveu sobre “amor de uns pelos outros”
como cumprimento da lei (Rm 13.8,10).
B 1 1 Odiar o irmão demonstra que a pessoa está nas trevas atualmente e anda
nas trevas. Tal pessoa não sabe para onde vai porque as trevas que escolheu a ce
garam. As trevas são progressivas; elas levam a mais trevas e, por fim, à cegueira. O
que está em jogo em amar/odiar é o discernimento espiritual, tanto em cristologia
como em ética. As questões agora apenas declaradas são a compreensão de Deus
como revelada no Jesus encarnado e na qualidade de vida em comunidade que ine
vitavelmente se segue.
Essa passagem fala daqueles que passaram da luz para as trevas e, assim, cada
vez mais, escolheram a cegueira. Ironicamente, Paulo já odiou quem um dia acaba
ria chamando de “irmão” (At 9.17). Aqui, João aconselha aqueles que chamam o
próximo de irmão para que não odeiem. Enquanto Deus estiver fornecendo luz, é
aconselhável que se ande nessa luz — “Andem enquanto vocês têm a luz, para que
as trevas não os surpreendam, pois aquele que anda nas trevas não sabe para onde
está indo” (Jo 12.35). Em 1 João e em Levítico 19.14, não enxergar, cegueira ou
escuridão estão associados a skandalon (Stáhlin, 1971, p. 339-358).
A P A R T IR D O T E X T O
Relacionamentos na igreja
NO TEXTO
Filhinhos (teknia), no primeiro conjunto (v. 12,13b), pode ser uma forma de
dirigir-se coletivamente aos membros das igrejas. Nenhuma declaração de valor
sobre o desenvolvimento espiritual deles parece ter sido intencionada. O segundo
conjunto (v. 13c,l4) começa com outro termo coletivo, filhinhos (paidia). Esse
termo era equivalente, em função, ao teknia no versículo 12 (ex.: 2.1,28).
As referências a pais e jovens podem indicar tanto a idade cronológica como
a maturidade espiritual. Nessa abordagem, há duas declarações gerais para toda a
comunidade (filhinhos) e duas categorias de crentes, os pais e os jovens (Brooke,
1912, p. 43; hesitantemente, Akin, 2001, p. 102,103, veja Brown, 1982, p. 297-
299). Ainda assim, a interação da linguagem ao longo dessa seção é difícil de acom
panhar.
Os filhinhos (v. 13) conhecem aquele que os pais conhecem, ou seja, aquele
que é desde o princípio. O paralelo com o pai nos versículos sugere que aquele
é Deus. Embora seja mais provável que, como em 1.1 e 2.7, o princípio se refira
à vinda de Jesus, em quem o evangelho veio pela primeira vez para eles. Jesus é o
único em quem “a vida eterna, que estava com o Pai” (1.2), foi revelada. Os jovens,
no entanto, venceram o Maligno.
As descrições m udam nas seções endereçadas aos filhinhos. Primeiro, enfati
za-se que seus pecados foram perdoados (v. 12); em seguida, que eles conhecem
o Pai (v. 14). A descrição direcionada aos jovens se expande de venceram o Ma
ligno para vocês são fortes, e em vocês a Palavra de Deus permanece (v. 14).
Quanto aos pais, as descrições permanecem inalteradas em ambos os casos.
Essas mudanças e expansões expressam nuances de afirmação espiritual de for
ma poética, mas não necessariamente em ordem cronológica. A ausência de metá
foras femininas na seção é curiosa, uma vez que o “presbítero” de 2 de João dirige-se
às igrejas como “senhora eleita” (2 Jo 1) e “irmã eleita” (2 Jo 13).
A voz passiva foram perdoados apresenta Deus perdoando os pecados sozi
nho. O tempo perfeito indica que o perdão traz libertação da culpa das violações
do passado e se estende para o futuro (Bultmann, 1964, p. 509-512). O perdão dos
pecados é obtido por meio do seu nome, como referência a “Jesus Cristo, o Justo
(...) [que] é a propiciação pelos nossos pecados” (2.1,2a).
A pequena palavra hoti, porque (seis vezes nos v. 12-14), indica que João
escreve por esta razão: seus leitores estão entre os que j á fora m perdoados. Nesse
mesmo sentido, Brown não traduz hoti, tratando-a funcionalmente como dois
pontos. Mais como uma declaração de uma realidade presente: “Estou escrevendo
para vocês, crianças: seus pecados estão perdoados” (Brown, 1982, p. 300,301).
Smith prefere “porque”. Isso significa que, pelo resultado do perdão, eles são capazes
de recusar o amor do mundo (Smith, 1991, p. 63).
95
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
A P A R T IR D O T E X T O
0 mal no mundo
O mal, de acordo com João, manifesta-se no Maligno (v. 13,14), mas, junto
com pensar no mal pessoal, os cristãos são desafiados a pensar em como o mal se
manifesta institucionalmente. O mal sistêmico aparece em nações, corporações e
até mesmo em igrejas.
A presença do mal no mundo é facilmente demonstrada. Assista a qualquer
noticiário por alguns minutos. Nós prontamente reconhecemos o mal “lá fora”.
Todavia, será que a igreja e seus líderes reconhecem e derrotam o mal “aqui den
tro”? Estamos preparados para enfrentar o mal que, às vezes, surge no caminho das
funções da igreja corporativamente e na vida daqueles que a compõem?
A linguagem masculina nessa seção (pais e jovens) pode indicar a rica diver
sidade dos que são chamados de testemunhas fiéis. O profeta Joel descreve “filhos
e (...) filhas (...), velhos (...), jovens (...), servos e (...) servas”, sugerindo uma missão
cristã de inclusão total que atravessa as fronteiras de gênero, idade e status social
(2.28,29). O sermão do Pentecostes de Pedro evoca esse refrão (At 2.16,18).
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1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
NO TEXTO
I 1 5 João passa para uma admoestação direta ao aconselhar seus leitores: Não
amem o mundo (m êagapate ton kosmon). No entanto, o Evangelho de João afirma
que “Deus (...) amou o mundo” (3.16; êgapêsen ho theos ton kosmon). No Evange
lho, kosmos indica aqueles por quem Cristo morreu, porque foi amado por Deus.
Aqui, em 1 João, kosmos fala sobre uma mentalidade hostil a Deus.
Aceitar o mundo era opor-se à revelação de Deus em Cristo (Marrow, 2002, p.
101). O mundo, devido ao seu espírito estranho a Deus e a tudo o que é santo, cria
oportunidades para as tentações que apelam aos apetites comuns. Por isso, ele pode
levar ao mau uso das boas dádivas de Deus. Valorizar as coisas do mundo de forma
desproporcional ou ilegal é amar as coisas acima de Deus. Isso é idolatria anteci
pando a advertência que encerra 1João: “Filhinhos, guardem-se dos ídolos” (5.21).
O amor do Pai não está em quem tanto ama o mundo. Isso fecha o coração
da pessoa contra o amor do Pai direcionado a ela. Ela não está permitindo que
Deus a ame em perdão e purificação (1.7,9). Amar a Deus e ser amado por Ele estão
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NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
A P A R T IR D O T E X T O
O amor pelo mundo repele Deus (v. 15). Não há espaço em nosso coração
para amar coisas que se excluem mutuamente. Devemos escolher. O dilema pessoal
e o desafio pastoral ocorrem nessa altura. Alguns tentam viver com um coração
dividido. Eles querem amar Deus, mas também manter um apreço impróprio por
coisas menores. O remédio, tanto pessoal como corporativamente, com certeza, é
amar Deus e deixar que o Seu amor por nós, que permeia a nossa vida, reflita com
precisão os nossos verdadeiros valores.
A vontade de Deus
Até que ponto podemos saber qual é a intenção de Deus para nós? O que João
escreve sobre quem faz a vontade de Deus (v. 17) considera a possibilidade de essa
pessoa compreender o que é a “vontade de Deus”. Como saber?
Em primeiro lugar, a Escritura pode orientar em direção às intenções de Deus.
Em segundo lugar, precisamos da perspectiva do povo de Deus agora, assim como
da sabedoria coletiva de cristãos por meio dos tempos (“tradição”, no melhor sen
tido). Eles têm sido igualmente desejosos de encontrar e fazer a vontade de Deus,
assim como nós.
Entender os propósitos de Deus surge de um espírito de oração e aprendiza
do. Orar para que Reino de Deus venha é orar para que a Sua vontade seja feita na
terra, dentro e por intermédio de nós, como já foi determinado no céu (Mt 6.9,10).
Um conselho espiritual sensato pode ajudar-nos a evitar que as armadilhas
projetem interesses egoístas em nossas decisões, chamando-os de vontade de Deus.
A intenção de Deus sempre leva a uma devoção mais profunda a Ele e ao próximo,
à forma como servimos e com quem fazemos a jornada.
E. Anticristos (2.18-23)
NO TEXTO
A essa altura da carta, João nada disse sobre falsos ensinamentos. Em um novo
início, ele se concentra nos falsos mestres. O que talvez tenha ficado sob o seu
material parenético (exortativo) anterior aparece agora nos versículos 18-23 como
um confronto direto.
H 18 O termo afetuoso de João continua — filhinhos. A terminologia de família
reflete seu relacionamento com eles como seu “pai” espiritual e, talvez, como um
homem de idade avançada. Ele declara a última hora, uma frase carregada de im
plicações escatológicas. Se João esperava que Cristo aparecesse durante sua vida ou
não está além de nosso conhecimento. Sua linguagem pode ser a de uma declaração
da era escatológica de Cristo e da Igreja como inaugurada pela morte, pela ressur
reição de Cristo e pelo derramamento do Espírito Santo (At 2.1-4). A realidade
plena do Reino ainda estava por vir (At 1.6,7).
Winston Churchill, em um discurso em 1942, pode ajudar-nos aqui. Em re
ferência a uma vitória dos Aliados no norte da África durante a Segunda Guerra
101
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
Mundial, Churchill advertiu: “Agora, esse não é o fim. Nem é o início do fim. Mas
é, talvez, o fim do começo”. Uma ajuda similar para entender a referência de João
à última hora pode ser encontrada nos escritos de Hans Conzelmann. O título
alemão de seu estudo da teologia do Evangelho de Lucas era D ie M itte d er Z eit (“o
meio do tempo”). Seu trabalho sugere que, embora muitos cristãos do primeiro sé
culo esperassem um breve retorno de Cristo, essa demora fez com que repensassem
nessa expectativa (Conzelmann, 1961, p. 233,234).
Da mesma forma, a primeira vinda de Cristo pode ser entendida como uma
inauguração do “fim do começo”. Assim, a Igreja vive no “meio do tempo”, ainda es
perando a vinda de eschaton, a última hora. A Igreja, então, é intimada a viver com
os aspectos éticos do caráter de Deus em longo prazo. A fidelidade e a confissão
fiel não são consideradas agora como parte apenas do fim dos tempos, mas do que
a Igreja faz em todas as épocas. A Igreja vive em perseverança (Lc 8.15), permitida
pelo Espírito (Conzelmann, 1961, p. 233,234).
Embora a última hora apareça apenas nessa parte dos escritos joaninos, “hora”
aparece inúmeras vezes nos Evangelhos. Ela marca um tempo de importância, até
mesmo um tempo determinado ou profetizado. Haverá uma hora em que o jul
gamento virá na aparição do Filho do Homem (Mt 24.36,42,44,50; 25.13; Mc
13.32; Lc 12.39,40,46; Ap 3.3,10). A “hora” do Evangelho de João pode referir-se
à morte de Jesus como o caminho para a glória, à Sua ressurreição (5.25,28) e à
Sua ascensão, ou seja, Seu regresso ao Pai (7.30; 8.20; 12;23,27; 13.1; 17.1). Uma
expressão de frequência similar, “último dia”, fala de Deus ressuscitando os mortos
(6.39,40,44,54; 11.24; 12.48) em todos os exemplos, exceto um.
João escreve que o anticristo está vindo, com a ênfase no detalhe de que mui
tos anticristos têm surgido. João não é incomodado por uma única figura cha
mada de “o anticristo”, como alguma personalidade antiDeus. Em vez disso, sua
preocupação pastoral é com uma pluralidade de anticristos que deixaram as igrejas
joaninas (Painter, 2002, p. 203), e cuja influência já estava sendo sentida (Kruse,
2000, p. 101). Qualquer um que tenha tomado uma posição a respeito de Cristo
contrária ao ensino cristão tradicional (a visão de João) se enquadra nessa categoria
“contra Cristo”.
Dídimo (quarto século) escreveu que “é [justamente] por terem sido cristãos
que eles agora são chamados de anticristos” (Bray, 2000, p. 186,187). A preposição
anti também pode significar aquele que toma o lugar do outro, como um usurpa
dor, alguém que alega ser Cristo. Os Evangelhos mencionam “falsos cristos” (Mt
24.24; Mc 13.22). No entanto, aqui, o sentido de anti é o de alguém que se opõe a
outra pessoa.
102
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
A n tic ris to
■ 19 João está convencido de que esses separatistas não faziam parte, verdadei
ramente, dos cristãos joaninos. A linguagem de separação (nosso/nossos/conos-
co, cinco vezes nesse versículo, e a terceira pessoa do plural, cinco vezes) destaca
a nítida diferenciação que João sente. Ainda assim, é claro que eles tinham entra
do na vida da comunidade joanina em algum momento: Saíram do nosso meio.
Aqueles que saíram provavelmente são os “muitos falsos profetas [que] têm saído
pelo mundo” (4.1) e os “muitos enganadores [que] têm saído pelo mundo” (2 Jo 7;
Strecker, 1996, p. 63).
A separação aparentemente foi iniciada pelos adversários. A carta não dá evi
dência de qualquer tipo de excomunhão. A afirmação de João de que na realidade
103
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
não eram dos nossos é mais bem compreendida como seu raciocínio de como
os separatistas conseguiram deixar as comunidades cristãs joaninas. Ele não podia
querer dizer que eles foram apenas membros aparentes (Marshall, 1978, p. 152).
Ele também não insinua que aqueles que saíram nunca foram verdadeiramente
cristãos ou que nunca foram “salvos”. O desafio para João e seus leitores era com
preender o impensável: que ninguém rejeitaria a verdade.
A palavra permanecido (memenêkeisan) é importante para João (Brooke,
1912, p. 54). O verdadeiro crente deve permanecer em Deus (2.24,27; cf. Jo 15.4-
10). Ao dizer que eles não permaneceram, João identifica os separatistas como par
te dos “muitos anticristos” (v. 18). A partida deles demonstrou que, no julgamento
de João, eles nunca foram, verdadeiramente, parte da comunidade.
A tradução de hina na NVI como resultado, em vez de propósito, minimiza o
impacto da linguagem original. Parece que a saída dos separatistas não só mostrou
quem eles realmente eram, mas também f o i pa ra q u e (hina) eles fo ssem m a n ifes
tados. O verbo phanerõthõsin está na voz passiva. Isso sugere que Deus os revelou
como os traidores que eram. A frase não eram dos nossos é, literalmente, tod os
eles (pantes) n ã o fa z ia m p a r te d e nós.
A questão que levou a essa ruptura de comunhão foi a cristologia. A disputa
sobre ter vindo “em carne” ou não (4.2; 2 Jo 7) indica isso. A controvérsia cristoló-
gica parece ser uma disputa entre um Jesus totalmente encarnado contra um tipo
de cristologia docética (veja Temas teológicos, na Introdução).
1 2 0 - 2 1 Ao dizer “quanto a vocês” (Brown, 1982, p. 341), João afirma fortemen
te que seus leitores têm uma unção (chrism a) que procede do Santo, isto é, de
Deus/Cristo (veja v. 27). Alguns “anticristos” (v. 18) parecem ter alegado possuir
um conhecimento especial, talvez ligado à ideia de unção.
João usa conhecimento com frequência nessa seção (v. 18,20, duas vezes no
v. 21). Ele afirma que o verdadeiro conhecimento reside no lado dos cristãos joani-
nos; eles não precisam “que alguém os ensine” (v. 27). Ele não reconhece a unção
(chrisma) dos separatistas. Ele insiste no fato de que a autêntica chrisma repousa
apenas sobre aqueles que permaneceram na comunidade joanina.
O texto grego emprega um maravilhoso jogo de palavras. Aceitar Jesus como
Cristo (Christos, o u n gid o), que veio em carne, era a experiência da unção (chris
ma). Separar-se da comunidade joanina significava a ausência ou perda da chrisma
e também o rótulo de “anticristo” (v. 22).
Santo pode referir-se tanto ao Pai como ao Filho. “O Santo de Israel” é um
título frequente de Deus no AT (SI 71.22; 78.41; Is 1.4; 5.19; 17.7; 30.12,15;
37.23; 41.20). Apocalipse 3.7 fala “daquele que é santo”, referindo-se claramente à
104
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
A P A R T IR D O T E X T O
A frase esta é a última hora (v. 18) desafia a presunção de que a vida de alguém
será longa. Não se deve presumir o luxo de se ter muitos anos. Agora, é o momento
para uma profunda aceitação da mensagem do evangelho e uma caminhada ao lado
de Cristo. Todos os seguidores sérios de Jesus procuram viver com a eternidade em
vista e, assim, vivem dia a dia com um estilo de vida cristão.
Quem é o "anticristo"?
Muita energia foi gasta na questão do anticristo (v. 18,22). Uma especulação
considerável prosseguiu por meio de todas as eras. Protótipos da ideia cristã de
anticristo aparecem em Gogue e Magogue, de Ezequiel. As imagens bestiais de
Daniel conseguem descrever os opressores dos judeus. Em textos não canônicos,
como os Testamentos dos Doze Patriarcas, uma figura demoníaca pretende afastar
Israel da adoração de Deus. Para João, no entanto, anticristos eram pessoas do pri
meiro século com uma cristologia defeituosa.
Policarpo (segundo século) segue a visão de 1 João do anticristo como o es
pírito de heresia, especialmente negando a real humanização divina (Pol. Fp. 7.1).
Vários escritos cristãos focavam uma criatura do mal. Muitas vezes, eles estendiam
as imagens dos dois animais descritos em Apocalipse 13; 16.12-16; 17; 19.19-21
(para a literatura apocalíptica pós-NT, veja Charles-worth, 1983).
Na Idade Média, alguns viam o Papa como o anticristo, uma ligação que mui
tos reformadores (Wyclif, Huss, Lutero, Calvino, Zwinglio, Knox, Cranmer) ge
ralmente apoiavam. Uma amostra desse pensamento aparece em João Calvino, que
aceitava que “todas os sinais que o Espírito de Deus apontava no anticristo apare
ciam claramente no Papa” (1959, p. 256).
Em resposta, Roma acusou alguns reformadores de serem anticristos. Em
vários pontos da história da Igreja, o título foi atribuído de forma imprudente,
utilizando leituras inventivas do 666 de Apocalipse para identificar o anticristo
como uma vasta gama de indivíduos (Rist, 1962, p. 140-143). Para um resumo de
estudos sobre a teologia do termo “anticristo”, veja Akin (2001, p. 267-270).
106
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
NO TEXTO
■ 2 4 João chama seus ouvintes para voltarem ao princípio (archês, como em 1.1).
Com uma nova ênfase (cuidem, a nuance do pronome hym eis), ele exorta-os a
continuar aceitando a verdade do evangelho que veio para eles (2.7). Um conceito
joanino favorito, permaneça/permanecer/permanecerão (m enõ), aparece uma
vez cada somente nesse versículo. Variações da palavra ocorrem especialmente na
literatura joanina (40 vezes no Evangelho, 24 vezes em 1 Jo e três vezes em 2 Jo).
A palavra {menõ) fala de uma relação duradoura que seus leitores deveriam ter
com a verdade que ouviram desde o princípio. Ele assegurou-lhes de uma relação
firme no Filho e no Pai (contraste com o v. 22). A menção de ambos em relação
à permanência do cristão é única nos escritos joaninos. Essa permanência era uma
realidade recíproca — quando as pessoas “permanecem” em Cristo, então Cristo
permanece nelas (Jo 15.4-7). O termo carrega o sentido de lealdade a Cristo, assim
como viver em um novo reino como resultado da presença de Deus em Jesus Cristo
(Hübner, 1981, p. 407,408).
■ 2 5 A frase e esta é, provavelmente, refere-se ao que precede (v. 24) e à promessa
que se segue. Deus/Cristo (como ha utê é enfático, provavelmente Cristo) fez uma
promessa (...): a vida eterna. A expressão vida eterna ocorre 16 vezes no Evange
lho de João, de modo mais memorável em João 3.16.
A frase, tanto lá como aqui (1.2; 2.25; 3.15; 5.11,13,20), sugere uma qualida
de atual de vida, bem como uma vida que dura por meio das eras. Essa vida eterna é
algo quej ã se tem : “Deus nos deu a vida eterna” (1 Jo 5.11); e “que vocês saibam que
têm a vida eterna” (5.13). Essa é a vida da promessa. O versículo repete palavras
relacionadas tanto ao verbo como ao seu objeto: A p ro m essa {hê epangelia) q u e Ele
p ro m eteu (epéngeilato) a nós.
■ 2 6 João escreve com uma preocupação pastoral ativa sobre o impacto daqueles
que podem enganar os cristãos joaninos. Os separatistas os querem enganar (lit.:
ilu d i-lo s). O verbo refere-se a alguém que vaga (Hb 11.38) e afasta-se da verdade
(Tg 5.19) intencionalmente. Formas dessa palavra ocorrem em 1 João 1.8, “enga-
namo-nos a nós mesmos”, e em 2 João 7, “enganadores”. João escreve para alertá-los,
lembrando declarações anteriores (v. 12-14; 5.13).
■ 2 7 Quanto a vocês introduz uma nova ênfase no tema unção (veja 2.20). A
passagem reflete as funções do Espírito Santo, o Paráclito do Evangelho de João. A
107
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
ideia de unção lembra as palavras de Jesus sobre o Espírito como Aquele que ensi
naria, chamaria à memória e tornaria claras as palavras de Jesus (Jo 14.26; 16.13).
Alguns veem a unção (v. 20,27) como uma referência ao ritual do batismo
ou algum ritual de selamento com óleo (Smith, 1991, p. 72). No primeiro século,
não há embasamento para isso. Porém, a unção estava ligada ao batismo por vários
autores cristãos antigos — Severo da Antioquia, quinto século; Ecumênio, sexto
século; André, sétimo século; Beda, sétimo século (Bray, 2000, p. 188). O trabalho
inicial e contínuo do Espírito Santo no crente está em vista, incluindo principal
mente o seu papel de ensino (Smith, 1991, p. 72,74).
Há uma ironia na insistência de João para que os leitores não precisem de al
guém para ensiná-los e passem a fazer exatamente isso. Provavelmente, ele queria
alertar contra dar ouvidos a quaisquer outros professores, exceto aqueles cuja men
sagem fora bem recebida nas igrejas joaninas. João declara, com urgência, a fonte
divina de ensinamento que eles devem aceitar com sua ênfase na unção (duas vezes
em grego aqui, também no v. 20).
Uma afiada linguagem dualista aparece — verdadeira (alêthês) contra falsa
(pseudos). A ordem das palavras destaca a ênfase que João deseja dar. Ele coloca
alêthês na enfática primeira posição — v erd a d eiro e q u e n ã o éfa lso . Instruído pela
verdadeira unção, João ordena: Permaneçam nele (isto é, em Jesus, veja o v. 28).
Na passagem anterior, versículos 18-23, João estabeleceu o erro teológico que
colocava em perigo a comunidade joanina. A heresia cristológica era dupla: (1) a
negação da completa humanidade do Filho divino e, portanto, (2) a negação da
plena continuidade entre o Pai e o Filho em ação reveladora e redentora. Essa era a
mentira dos falsos mestres.
Agora, nos versículos 24-27, João enfatiza as duas formas pelas quais seus lei
tores podem proteger-se de tal erro: em primeiro lugar, nos versículos 24 e 25, é
a tradição apostólica. Em segundo lugar, nos versículos 26 e 27, é a unção divina.
Uma mente aplicada às Escrituras e um coração aberto ao Espírito Santo são a rede
de segurança espiritual do cristão. Esse é o nosso privilégio agraciado, a verdade do
evangelho de Cristo. E assim que nós “permanecemos nele”.
H 2 8 - 2 9 João faz uma transição, com esses versículos, da importância de uma
cristologia correta para a necessidade de uma ética apropriada. O fato de os cris
tãos terem de viver como “filhos de Deus” (3.1) ocupa o apóstolo até 3.24. Em
2.28—3.3, João traz o tema do futuro retorno de Cristo para prosseguir com seus
imperativos éticos.
I 2 8 Depois de fortes advertências e de um apelo para acompanhamento, João
novamente emprega uma linguagem calorosa e pessoal — filhinhos. Quando os
crentes permanecerem nele, eles terão confiança (parrêsia, “cora gem , con vicçã o,
108
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
ousadia, destem or,” BDAG, 2000, p. 781) no momento em que Cristo se ma
nifestar. João usa parrêsia para falar sobre estar confiante diante de Deus em um
sentido escatológico (aqui e em 4.17). Entretanto, o termo também fala de ousadia
para aproximar-se de Deus em oração agora (3.21; 5.14). Assim, o cristão j á pode
ter confiança no dia do julgamento na presença de Deus.
O verbo phaneroõ indica tornar algo claro (veja v. 19). João declara Jesus
como aquele que revela o amor salvífico de Deus por meio do ato de humanizar-se
(3.5,8). Em 1.2, “a vida se manifestou”, e a revelação de Deus continua na tradição
viva da Igreja de Jesus (Müller, 1993, p. 413,414). A voz passiva do verbo sugere
que a aparição de Cristo tenha sido uma apresentação do Pai.
Permanecer em Cristo impede que alguém seja en v ergo n h a d o . A voz passiva
indica que Deus pode envergonhar rebeldes. A palavra parousia (vinda, somente
aqui nos escritos joaninos) geralmente significava a chegada ou presença de alguém
(veja 1 Co 16.17; 2 Co 10.10; Fp 1.26; 2.12). No entanto, no NT,parousia desen
volveu uma nuance especial como uma referência à futura aparição ou presença
de Jesus para governar, ressuscitar os mortos e estabelecer plenamente o Reino de
Deus (Mt 24.3,27,37,39; 1 Co 15.23; 1 Ts 2.19; 3.13; 4.15; 5.23; 2 Ts 2.1,8; 1 Tm
6.14; 2 Tm 1.10; 4.1,8; Tt 2.13; Tg 5.7; 2 Pe 1.16; 3.4).
A palavra parousia era utilizada para a visita de um rei ou imperador (Brooke,
1912, p. 66; Diessmann, 1995 [1927], p. 268-270). O uso no NT é um exemplo
de um cristão empregando palavras e títulos da arena pública como protestos sub
versivos contra a prática blasfema do culto ao imperador (Brooke, 1912, p. 67). O
verdadeiro Senhor de todos, não César, mas Jesus, aparece como o único diante de
quem “se dobre todo joelho” (Fp 2.10).
A parousia envolvia sair para receber uma figura real ou poderosa que chegava
a uma cidade. Ela não tinha a ideia de ir a algum lugar com essa figura real (Wright,
2008, p. 128-136). Em alguns escritos da Igreja primitiva, o retorno do Senhor é
chamado de h ê deutera parousia, a segu n d a v in d a (Justino, Apologia, 1.52). Um
jogo de palavras sonoro pode estar presente no versículo. O texto promete que os
filhinhos que permanecerem nele (...) podem ter confiança {parrêsia) (...) na sua
vinda {parousia).
■ 29 A mudança de ênfase de João para a ética agora se torna direta. Deus (ou
Cristo, com 2.6; 3.3; 4.17; Brown, 1982, p. 382) é justo, e todo aquele que pratica
a justiça deixa evidente que é nascido dele. O antecedente de dele não é claro.
Se relacionado ao versículo 28, então é Cristo, mas, geralmente, no uso joanino,
refere-se a Deus (veja 3.9; 4.7; 5.1,4,18; Jo 1.13; von Wahlde, 2002, p. 319-322;
Brown, 1982, p. 384). A ênfase em praticar a justiça soa como em Tiago, que insis
te no fato de que um relacionamento justo com Cristo deve manifestar-se em uma
109
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
vida de retidão (Tg 2.18). João diz que praticamos a justiça (lit.: o q u e éjusto-, veja
Mq 6.8) como resultado do novo nascimento.
A justiça de Deus, revelada na vida de Jesus (1 Jo 2.6), é vivida como uma ati
vidade presente e contínua. Viver em justiça é uma evidência de que a pessoa pas
sou por um renascimento espiritual. O verbo passivo perfeito {gegennêtai) sugere:
N ascido d e D eus e co n tin u a sen d o filh o d e Deus.
Justiça é mais sobre como alguém é visto por Deus. O justo é aquele que per
mite que a vida de Deus em que é nascido seja vivida.
Essa imagem de nascimento espiritual — nascido de Deus — aparece como
uma nova ideia na epístola (Marshall, 1978, p. 167). No entanto, o conceito de
nascimento espiritual já está implícito no uso frequente de filhinhos em 1 João
(cinco vezes no cap. 2). O uso intencional de metáforas de nascimento espiritual
é claro a partir daqui (3.9; 4.7; 5.1,4,18). A linguagem ecoa no Evangelho de João
(Jo 1.13; 3.6,8). João mantém uma posição distinta para Jesus, o único que é “Fi
lho” (huios) de Deus, ao passo que os cristãos em 1 João são sempre “filhos” (teknia
oupaidia). Porém, Jesus (Mt 5.9) e Paulo (Rm 8.14; G13.26; 4.4-7) referem-se aos
crentes coletivamente como “filhos” (huioi) de Deus (Marshall, 1978, p 168).
A P A R T IR D O T E X T O
Vale a pena lembrar. Sermos lembrados muitas vezes nos mantém fazendo o
que é certo. Boa parte da vida consiste em reaprender o que já sabemos. Pedro
110
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
escreveu: “Por isso, sempre terei o cuidado de lembrar-lhes estas coisas, se bem
que vocês já as sabem” (2 Pe 1.12). Manter um espírito ensinável é uma viagem
para toda vida. Ler e meditar sobre as Escrituras alimenta nosso desenvolvimento
cristão. Aprendemos também ficando abertos para o que o Espírito de Deus pode
estar dizendo para nós por intermédio dos outros. A vontade de Deus, geralmente,
é mais bem compreendida quando ouvimos a voz daqueles que compõem o povo
da aliança.
Embora haja grande força em pertencer a uma comunidade de fé comprome
tida, não ousamos tentar viver a vida cristã sozinhos, com mera força humana. O
texto fala de uma importante unção (v. 27). Esse dom gratuito do Espírito estabi
liza indivíduos e igrejas espiritualmente, mantendo-os no caminho certo. Desvio
espiritual, sem controle, pode levar-nos para muito mais longe de Deus do que
podemos imaginar. Contudo, estarmos atentos aos sussurros do Espírito mantém
nossa experiência cristã atual.
Por muitas vezes, pessoas piedosas esperam tanto a segunda vinda que inves
tem todas as suas energias em estarem preparadas para uma saída precoce do mun
do. Porém, estamos aqui para viver os valores do Reino por toda a nossa vida.
O objetivo da vida cristã não é afastar-se deste mundo. Em vez disso, deve-se
investir no Reino neste mundo, para que possamos recebê-lo com confiança e não
sejamos envergonhados (v. 28). Vamos recebê-lo como o Rei que já apareceu en
tre nós, trazendo uma maravilhosa resposta final para a oração que muitos fazemos
— “Venha o teu Reino (...) na terra” (Mt 6.10).
111
III. 0 AMOR CRISTÃO AGORA E QUANDO CRISTO VIER:
1 JOÃO 3.1-24
NO TEXTO
■ 1-6 João continua com suas preocupações éticas afetadas pela aparição de Cris
to. Os versículos 1-3 têm Sua vinda futura em mente; mas os versículos 4-6 voltam
à Sua primeira vinda com a reintrodução de João da terminologia de pecado a par
tir de 1.7—2.2,12.
■ 1 João comanda o leitor a v er ou lem b ra r (idete, imperativo) como é grande
o amor que o Pai nos concedeu. O verbo eidon é usado como uma declaração
reveladora de visão profética no Evangelho de João — “Vejam! [Ide] E o Cordei
ro de Deus” (Thomas, 2004, p. 147; Jo 1.29,36,47; 19.14,26,27). Outra forma,
idou, aparece em Apocalipse, relacionada à vinda de Cristo (Ap 16.15; 22.7,12).
Algumas versões não traduzem idete, reduzindo a forte exortação. Outras versões
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
traduzem idete como “vede” (ARC). O leitor provavelmente está sendo intimado
tanto a lem brar como a com preender (veja eidõm en em 1 Co 2.12).
Esse versículo lembra a metáfora visual de 1.1-4, em que alguém vê o amor
de Deus olhando para Jesus. Esse amor que o Pai nos concedeu tem sido mara
vilhosamente dado — como é grande (“maravilhoso” [BDAG, 2000, p. 85] ou
enorme). Marcos 13.1 usa o mesmo adjetivo para descrever as imensas pedras e
magníficas construções do complexo do templo de Jerusalém. Em Mateus 8.27,
a palavra denota a surpresa dos discípulos com o grande poder de Jesus (Brooke,
1912, p. 80). O tempo perfeito de concedido (dedõken) indica que esse amor,
dado no passado, continua a ter efeito.
Tal amor divino concedido é a base para a inclusão na família de Deus. Por
esse meio, entra-se em um relacionamento com Deus e recebe-se o poder de perma
necer na comunidade espiritual. João emprega metáforas de família para descrever
relações espirituais e obrigações éticas (van der Watt, 1999, p. 491). Essas imagens
refletem o poder da identidade familiar no antigo Oriente Próximo. As pessoas
viviam de modo a não trazer desonra para sua família. Lealdade para com a família
excluía todas as outras lealdades (van der Watt, 1999, p. 497,510).
O Pai d eu (dedõken) esse amor; ele não foi conquistado. O amor concedido
de Deus vem como um presente para nós. Não é baseado em mérito, pois Deus
toma a iniciativa. Temos a oportunidade de tornar-nos verdadeiros descendentes
espirituais de Deus apenas porque o amor divino foi oferecido a nós primeiro. Essa
iniciativa de Deus é frequentemente chamada de graça preveniente. A palavra “pre-
veniente” é formada por duas palavras em latim que significam “vir antes”. A graça
preveniente torna possível a nossa ida a Deus, porque Ele veio primeiro até nós
(vejajo 6.44).
João faz uma declaração ousada. O que se declara sobre seus leitores — filhos
de Deus — eles realmente são (e n ós som osl). A voz passiva de chamados sugere
que Deus é quem faz a declaração. Isso não é meramente um relacionamento posi
cionai, apenas de nome, com Deus. O caráter de Deus torna-se parte de quem nós
somos. Assim como o Criador planejou que o casal original refletisse a imagem di
vina, aqui os leitores são o que Deus declarou que eles são (Bruce, 1970, p. 85,86).
Participar na família de Deus faz do crente um mistério para o mundo. O não
cristão não nos conhece, porque não o conheceu. Esse não reconhecimento de
Jesus aparece também em João 1.10. Na passagem, a palavras gregas, embora em
ordem diferente, são idênticas (Thomas, 2004, p. 149). A ignorância da mente e do
coração em relação à verdadeira identidade de Jesus impede que o mundo reconhe
ça os seguidores de Jesus como filhos de Deus. Eles são incapazes de entender por
que os cristãos agem e vivem assim. Como filhos de Deus de nascimento, devemos
114
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
viver como pessoas que não podem ser compreendidas separadamente de Jesus.
Para conhecer-nos de verdade, eles devem aprender a conhecê-lo. E esperamos que,
ao aprenderem a conhecer-nos, aprendam a conhecê-lo.
■ 2 João continua afirmando a posição de família — amados (lit.: q u erid os a m i
g o s ; veja também 2.7; 3.21; 4.1,7,11). Sermos filhos de Deus não é algo adiado
para o fim dos tempos —, quando ele se manifestar. J á é verdade — somos (es-
m en) verdadeiramente parte da família de Deus agora (nyn). Ainda assim, João diz
que a presente relação familiar é pouco em comparação com o que está por vir. A
experiência de ser filho de Deus é agora, mas a realidade plena dessa transformação
ainda não. A escatologia futurista (“ainda não”) e a escatologia perceptível (“já é”)
ficam em tensão nos escritos joaninos. Devido a essa natureza mista, a escatologia
joanina pode ser descrita como uma “escatologia progressivamente perceptível”
(van der Watt, 2007, p. 74-76).
Essa esperança futura ainda não se manifestou. A ação verbal sugere que a re
velação virá a critério de Deus. O texto é reservado em especular sobre os detalhes
escatológicos, uma modéstia que os cristãos contemporâneos deveríam considerar
(Smith, 1991, p. 80). Esse futuro relacionamento com Deus virá apenas quando
for revelado por Ele. A plenitude dessa revelação espera um dia futuro. A termi
nologia ainda não (oupõ) combina com cenários apocalípticos (Brown 1982, p.
392,393). A mesma palavra é usada por Jesus nos discursos escatológicos em que
fala de “guerras e rumores de guerras”. No entanto, Ele diz que “ainda não é o fim”
(Mc 13.7; Mt 24.6).
A declaração quando ele se manifestar (ean phanerõthêi) cumpre a expecta
tiva do que ainda não se manifestou (oupõ ephanerõthe). E essa é a verdade certa
de tornar-se como Cristo. Sobre o estado futuro, sabemos que (...) seremos se
melhantes a ele. A visão atual será melhorada majestosamente, permitindo que
os seguidores de Cristo o vejam como ele é, no esplendor da ressurreição. O co
nhecimento pós-ressurreição aperfeiçoará a visão/o saber de Jesus pelos discípulos
(Smith, 1991, p. 78). A visão final de Cristo significará um conhecimento pleno
dele e sem obstáculos. O véu diminuindo o brilho de Sua santidade será removido.
A visão é de exatamente como ele é. Ver Cristo como Ele é vê-lo com novos olhos
de entendimento, como pela primeira vez.
O padrão de santidade é bastante claro. Santidade é, supremamente, sermos
semelhantes a ele. O ato de sermos descendentes de Deus nos chama a refletir Seu
caráter. Escolhas, valores, atitudes, estilo de vida — tudo isso está cada vez mais se
adaptando à imagem de Cristo. Ver Jesus terá o efeito de olhar para o espelho, mas
com uma diferença importante. Em vez de ver-nos como somos agora, teremos
a possibilidade de ver-nos na posse da glória compartilhada de Cristo (Marshall,
115
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
1978, p. 172,173). Com a expectativa de Paulo: “E todos nós, que com a face des
coberta contemplamos a glória do Senhor, segundo a sua imagem estamos sendo
transformados com glória cada vez maior, a qual vem do Senhor, que é o Espírito”
(2 Co 3.18).
I 3 João faz a aplicação ética do versículo 2 com uma simples afirmação: Todo
aquele que (...) purifica-se. E justamente aquele que se p u rifica que possui a es
perança de ter semelhança com Cristo. Uma vida atual mudada comprova a au
tenticidade da esperança futura. Essa resplandecente esperança (elpida, só aqui na
literatura joanina) chama os leitores para uma santidade escatológica no presente.
A salvação chega ao ápice na vinda de Cristo e na esperança da nossa ressurreição.
Esse anseio escatológico aponta para uma participação na glória de Cristo; ele já foi
iniciado por nosso estado atual como filhos de Deus (Mayer, 1990, p. 438).
Todos ficarão na presença de Deus no fim dos tempos. Tal esperança obriga-
-nos a entregar-nos totalmente a Ele agora. Uma esperança focada em Cristo, ine
vitavelmente, tem um efeito purificador sobre aqueles que confiam nele (Bruce,
1970, p. 88). A escatologia impulsiona a ética, e a ética torna a nossa escatologia
credível. Temos um compromisso futuro com Deus. Porém, já somos cidadãos do
Reino de Deus e estamos vivendo diariamente de acordo com valores do Reino.
Os crentes lutam para viver uma vida de pureza, porque Cristo é puro
(hagnizei... hagnos). O pronome ele traduz o pronome demonstrativo ekeinos (lit.:
a q u ele), um termo frequentemente usado em 1 João para referir-se a Jesus (Smith,
1991, p. 78; 2.6; 3.3,5,7,16; 4.17). O pronome faz uma designação específica —
aquele. O Jesus terreno (2.6) define a pureza em vista.
A palavra puro (hagnos) significa santo, pertencente a Deus (BDAG, 2000,
p. 13). A pureza de Cristo chama Seu discípulo a abraçar essa mesma pureza. No
entanto, curiosamente, hagnos nunca é usado nos Evangelhos para identificar Jesus
(Brown, 1982, p. 397). A forma verbal (hagnizõ) só aparece aqui e em João 11.55
em todo o corpus joanino. Mais frequente na literatura joanina são katharos, “lim
pos” (Jo 13.10,11; 15.3; Ap 15.6; 19.14; 21.18),katharizõ, “purificar” (1 Jo 1.7,9),
e katharismos, “purificações” (Jo 2.6; 3.25).
A medida da verdadeira santidade é a semelhança com Cristo. Santidade não é
uma prioridade à adesão a regras ou normas. Pelo contrário, é a vida divina que está
sendo vivida por intermédio de nós. A frase assim como (kathõs, utilizada para
comparação) ele é puro envolve a posse do mesmo tipo de caráter que Cristo exi
bia. Veremos Cristo “como ele é” (v. 2), e essa visão desimpedida leva a uma pureza
de vida que é com o a dele.
Todavia, o que João quer dizer com purifica-se a si mesmo? A ideia básica é
a preparação necessária para entrar na presença divina (Brown, 1982, p. 397,398).
116
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
A n o m ia
Dois sentidos podem estar presentes em 1 João 3.4. Em prim eiro lugar, o pe
cado é uma quebra da lei. As pessoas criam um registro de desem penho de violações;
elas descumprem a lei de forma contínua.
Em segundo lugar, as pessoas podem ter um espírito hostil às leis de Deus — o
p eca d o é um esp írito transgressor. O pecado pode ser entendido principalmente
como uma atitude transgressora em relação a Deus (Bruce, 1970, p. 89). Assim, o
pecado é uma condição da qual os crentes devem libertar-se (Smith, 1991, p. 82).
Paulo descreve o pecado da mesma forma, como uma compulsão interna que com
bate o seu bom senso espiritual (veja Rm 7.23).
Fundamentalmente, João parece acreditar no fato de que as pessoas pecam
porque são pecadoras. Elas têm uma atitude antiDeus que se manifesta em opo
sição aos propósitos divinos. Assim, a necessidade mais fundamental de todos é
118
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
encontrar a correção para o problema central de caráter, uma resposta que voltará
as afeições do coração fortemente em direção a Deus. Tal solução tornaria tão na
tural praticar o bem, o santo, quando antes era “natural” praticar o mal, o pecado.
■ 5 Tal correção radical do problema do pecado encontra expressão forte aqui.
Com terminologia semelhante à que ele tinha acabado de usar para a futura vinda
de Cristo (3.2), João escreve agora sobre a primeira vinda de Cristo. Vocês sabem
que ele se manifestou (ephanerõthê) para tirar os nossos pecados. A humaniza-
ção e, por extensão, toda a vida e obra de Cristo tinham o propósito de tirar (arei)
pecados. Outros manuscritos, preservando talvez a melhor leitura, simplesmente
registram “tirar os pecados” (NTLH), sem especificar de quem. Uma minoria de
manuscritos descrevem “os pecados do mundo”, talvez em uma tentativa de harmo
nizar com 2.2.
O verbo airõ é usado no Quarto Evangelho com o sentido de uma mudança
de localização (Jo 2.16; 11.39,41; 19.31,38; 20.1,13). Os pecados são levados pela
obra expiatória do “Cordeiro de Deus” (Jo 1.29), cuja morte foi um livramento do
pecado representativo (Radl, 1990, p. 41; Marshall, 1978, p. 177; veja 1 Pe 2.24;
1 Jo 2.2; 4.10).
Contudo, o termo pode implicar mais do que simplesmente tirar. Ele tam
bém pode sugerir remoção no sentido de destruição. João 11.48 usa a palavra para
referir-se à possibilidade de que os romanos “tirarão” (arousin) o templo e o estilo
de vida judaico. Os judeus em João 19.15 (ARC) pedem a morte, por execução, de
Jesus: “Tira! Tira! \aron\ Crucifica-o!” (cf. Lc 23.18). Paulo recebe o mesmo tipo
de ameaças de morte das multidões de Jerusalém — “Tira esse homem da face da
terra! Ele não merece viver!” (At 22.22; veja 21.36). Esses usos não sugerem apenas
uma nova residência para o pecado, mas a sua eventual remoção por derrota/des
truição (Radl, 1990, 1:41).
João não está apresentando Cristo como alguém que veio simplesmente para
contrabalancear o pecado no coração do homem, isto é, prender o mal para que a
santidade tenha uma oportunidade de ter sucesso na vida do crente. Cristo veio
para completar uma vitória decisiva sobre o pecado. Ecumênio (sexto século) afir
mou que, uma vez que Cristo, que não tinha pecado, veio para tirar os pecados,
não há desculpa para a prática contínua do pecado (Bray, 2000, p. 197). Para João,
pureza significava libertação do pecado (Marshall, 1978, p. 174).
I 6 O texto agora declara que, para a q u ele q u e co n tin u a m en te p erm a n ece em
(m enõn, um particípio presente) Deus/Cristo, o hábito do pecado é quebrado. O
verbo que se segue também está presente e pode ser disposto como — n ã o co n ti
n u a p ra tica n d o o p eca d o . João luta por uma fé cristã que se mova um a um nível
119
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
mais elevado de vida. Deus vence e acaba por destruir o pecado. Deus não pode
coexistir com ele.
Dois verbos perfeitos aparecem. O primeiro, não o viu, afirma que a pessoa
que continua a viver habitualmente no pecado nunca viu Cristo e, com certeza, não
tem Cristo em vista agora. O segundo, nem o conheceu, salienta que tal pessoa
nunca conheceu Cristo verdadeiramente e, de modo óbvio, não o conhece agora.
A verdadeira visão e o conhecimento têm resultados permanentes (Brooke, 1912,
p. 86). Esses verbos fornecem um contraste direto com as linhas iniciais da carta.
Permanecer em Jesus significa que o pecado é excluído. Por outro lado, pecar
continuamente significa que Cristo não é conhecido. As visões de João aqui são
consistentes com o dualismo expresso ao longo do texto (Smith, 1991, p. 83). Esse
versículo não declara que ocasiões de pecado sejam impossíveis. Pelo contrário, afir
ma que uma vida pecaminosa não caracteriza o filho de Deus (Bruce, 1970, p. 90).
Quando se permanece constantemente, mantém-se livre da prática do pecado. A
imagem de impecabilidade é um chamado sublime para uma vida santa e consis
tente em obediência a Deus.
A P A R T IR D O T E X T O
deve indicar-nos que devemos descobrir o que está prejudicando a saúde do corpo.
Como cuidamos dos espiritualmente feridos entre nós também indica nosso com
promisso com a vida espiritual.
NO TEXTO
sido chamado de justo (1.9; 2.1,29). O adjetivo descreve a Sua natureza de vida
como sempre justa em caráter e em todas as Suas relações (Brown, 1982, p. 404).
No uso grego clássico, a pessoa dikaios era alguém cujo comportamento cum
pria suas obrigações com os “deuses” e também com o homem (Brown, 1978, p.
353). A ideia de justiça (dikaiosyné) do AT é direcionada à ideia de um comporta
mento consistente com o relacionamento entre Deus e as pessoas. A pessoa dikaios
é devota e demonstra a justiça de Deus em seus relacionamentos santos com o pró
ximo (Brown, 1978, p. 355).
H 8 As consequências da vida de alguém são a prova de sua fidelidade. Cometer
pecado demonstra lealdade ao diabo, cujo pecado ocorreu desde o princípio.
João 8.44 é semelhante; o diabo é descrito desta forma: “Ele foi homicida desde o
princípio (...) é mentiroso e pai da mentira” (van der Watt, 2007, p. 38). A ausência
de pecado demonstra fidelidade a Deus, que é santo.
João continua a esclarecer o tema de várias maneiras. Para isso, Cristo veio
com o propósito (eis touto) de dominar o pecado. O verbo lysêi significa, em alguns
casos, liberar, mas também pode significar destruir, acabar completamente (veja
Ef 2.14; Jo 2.19). Aqui, João insiste no fato de que Deus pretende alcançar uma
derrota decisiva e inconfundível do pecado.
O paralelismo poético nos versículos 5 e 8 sugere que remover o pecado e
destruir as obras do diabo é a mesma coisa (Thomas, 2004, p. 164).
• “Ele se manifestou para tirar os nossos pecados” (v. 5).
• '"[Ele] se manifestou: para destruir as obras do Diabo” (v. 8).
Os versículos 7 e 8 contêm um paralelismo poético semelhante:
• “Aquele que pratica a justiça é justo” (v. 7).
• “Aquele que pratica o pecado é do Diabo” (v; 8).
Essas linhas destacam duas esferas mutuamente excludentes da existência.
Uma delas só pode pertencer a um domínio e traz a marca e a lealdade daquele
domínio (Brown, 1978, p. 362).
No versículo 8, a referência à aparição de Cristo fala de Sua primeira vinda ao
mundo, Seu primeiro advento, para inutilizar o pecado. Entretanto, em 3.2, João
escreve sobre Sua futura vinda ao mundo, a segunda vinda, total e finalmente, para
estabelecer um ambiente de justiça purificado, livre de pecado.
Calvino entendia corretamente “que a carne e suas concupiscências não pre
valecem, mas são dominadas e colocadas sob um jugo, a fim de serem controladas”
(1959, p. 272). Sua linguagem sugere mais uma supressão do pecado do que sua
conquista. No entanto, Calvino não lutava por um cristianismo que permitisse que
o pecado a florescesse. Em vez disso, ele acreditava no fato de que o Espírito de
Deus trazia superioridade ao crente. Antes, Dídimo (quarto século) ensinou que
122
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
Cantos escuros ainda podem existir. Todavia, nos lugares onde a luz tem acesso ela
domina a escuridão.
João já desafiou, com tenacidade, as declarações de impecabilidade dos sepa
ratistas (1.8,10). No entanto, essa passagem insiste no fato de que os verdadeiros
seguidores de Cristo terão liberdade do pecado quando o caráter santo de Deus
residir dentro deles. O texto defende uma espiritualidade que elimina atos volun
tários de pecado, caso a pessoa permaneça totalmente em Cristo. O pecado nunca
é a norma na vida dos crentes (van der Watt, 2007, p. 63). Não se pode, simulta
neamente, obedecer a Deus e desobedecê-lo de forma intencional. “Aquele cuja
vida é regida pela lei do amor — amor a Deus e ao seu próximo — não pode pecar,
porque ele não pode, ao mesmo tempo, amar alguém e intencionalmente pecar
contra ele” (Blaney, 1967, p. 380).
John Wesley abordou a questão da seguinte forma: “Mas ‘todo aquele que
é nascido de Deus’, enquanto permanecer em fé e amor, e em espírito de oração
e ação de graças, não só não cometerá, como também não será capaz de cometer
pecado” (1978, 5:227).
A posição do cristão como filho de Deus é uma realidade presente, e a liberta
ção do pecado é associada a ele. Na verdade, quanto mais essa semente transforma
o cristão, mais improvável é que o cristão peque (Brown, 1982, p. 431).
1 1 0 Cristo 1 “se manifestou” (ephanerõthê ) para “tirar os nossos pecados” (v. 5) e,
assim, “destruir as obras do diabo” (v. 8). O que Cristo veio para fazer ap arecerá
(phanera) em uma vida que pratica a justiça. João insiste no fato de que a justiça
é relacionai. E relacionai primeiro em relação a Deus — filhos de Deus. Isso traz
uma relação positiva com o próximo. Uma pessoa relacionada corretamente a Deus
ama seus irmãos.
Quem não pratica a justiça claramente está entre os filhos do diabo (diabo-
lou-, vejajo 8.31-59). Pecados de omissão, ações corretas que não são feitas, podem
ser uma evidência de uma condição espiritual falha tão grande quanto pecados
cometidos. João assume, de forma clara, a presença de um maligno no mundo cuja
influência é sempre contrária à justiça. Semelhante a Tiago 2.18, o versículo 10
definitivamente considera fé e obras em conjunto. O amor de Deus por Seus fi
lhos vive nas rotinas da vida. Seu amor flui em reuniões de adoração e também, de
forma autêntica, no serviço amoroso que encontra o povo de Deus espalhado pelo
mundo.
O versículo 10 resume e conclui a preocupação de João em viver na “justiça”
que predominava em 2.29—3.9. Com o uso de metáforas familiares, João aplica
a dupla vinda de Cristo à ética cristã. Essa polêmica sutil contra os falsos mestres
culmina no retorno do tema que agora predomina — de amor pelo irmão e pela
124
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
irmã (veja 2.9-11). Assim, o versículo 10 funciona como uma transição para o que
se segue em 3.11-18 e, em grande medida, em 3.11—4.21.
A P A R T IR D O T E X T O
Livre do pecado
A declaração não pratica o pecado (v. 9) cria desafios para o ministro cristão.
Como se deve pregar/ensinar com base nesse texto difícil? Alguns simplesmente o
evitam por completo, mas isso é irresponsabilidade. Corre-se o risco de criar-se um
“cânon dentro do cânon”, adotando uma abordagem seletiva para o que os textos
falam sobre fé e prática. João reconhece o pecado (1.8,10;2.1)e convida seus leito
res a viverem livres do pecado (veja a discussão em 1.8).
Se acomodarmos o pecado em nossa vida, também rejeitaremos prontamente
o chamado para uma vida santa desse escrito. A nossa abordagem deve aceitar a
totalidade do texto. O pecado ocorre, mas nunca pode ser o padrão da vida cristã.
O texto em 1 João 2.1 assegura que Deus, em Cristo, fez provisão para o peca
do que invade a vida de um crente.
A tarefa do pregador é oferecer esperança de restauração para aqueles que fa
lharam e caíram. Ao mesmo tempo, devemos chamar todos a viver em obediência
consistente às normas de Deus, o que significa liberdade do pecado intencional.
O diabo e o mal
Por outro lado, alguns cristãos não levam a sério o suficiente a enormidade
do mal no mundo. Eles não aceitam a doutrina da queda, preferindo uma visão da
humanidade que evolui de forma crescente. Minimizar ou ignorar o problema do
pecado sistêmico e individual dessa forma não dá uma resposta realmente adequa
da para o problema do mal.
NO TEXTO
1 1 1 João afirma o motivo pelo qual ele enfatiza o tema do amor no versículo 10.
O mandamento amemos uns aos outros da mensagem (lit.: n otícia ou a n ú n
cio ) não é novo (1.5). Fazia parte da fé, desde o princípio, que o público de João
tivesse ouvido desde o momento de suas primeiras experiências como cristãos. A
mensagem evoca 1.5. O termo aparece pela primeira vez na mudança da revelação
da vida em Jesus Cristo (1.1-4) para sua aplicação redentora e ética em 1.6—2.11
(Strecker, 1996, p. 107,108).
O chamado para o amor é uma realidade presente vivenciada em comunidade
— vocês, nos e uns aos outros. A vida de amor mútuo entre os cristãos joaninos
não dependia de sentimentos, uma vez que era um mandamento (Jo 13.34;
15.12,17; 1 Jo 3.23). É uma obrigação que se pode e se deve fazer. Amar é agir da
mesma maneira amorosa como Cristo demonstrava.
■ 1 2 - 1 3 As primeiras narrativas bíblicas referem-se a uma triste narrativa (Gn
4.1-16) que João desenvolve como uma ilustração negativa. Ele lembra a seus lei
tores que Caim (...) pertencia ao Maligno, e, por isso, o amor tinha desaparecido
de seu coração, de modo que ele foi capaz de matar seu próprio irmão de sangue.
Lançar a sorte com o Maligno fez com que Caim caísse em depravação em um ní
vel muito maior do que ele poderia ter imaginado. Caim já pertencia ao Maligno
e, posteriormente, cometeu o acidente. A única explicação de João para a ação de
Caim era porque suas obras eram más e as de seu irmão eram justas (dikaia).
O verbo sphazõ (matou) sempre inclui um sentido de violência (Brooke,
1912, p. 92). Ele descrevia o crime especialmente hediondo de matar um membro
da família (Michel, 1971, 7:932,934). Na LXX, muitas vezes, há conotações de
sacrifício (Gn 22.10; Êx 29.11; Lv 1.5; Nm 11.22). Variações da palavra no NT
são encontradas somente aqui e em Apocalipse (5.6,9,12; 6.4,9; 13.3,8; 18.24).
O termo refere-se mais frequentemente à crucificação de Cristo ou à matança dos
Seus seguidores. João retrata a violência de Caim como decorrente de um coração
já comprometido com o mal. Por sua lealdade ser errada, atos errados se seguiram.
126
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
A P A R T IR D O T E X T O
Por que o amor é tão importante ? Porque a falta de amor convida o Maligno
(v. 12) e pode levar ao assassinato. Os motivos que levam ao ódio, à inveja, à luxúria
e ao homicídio começam na retenção do amor. Pessoas que querem justificar uma
vida de baixo nível perguntam: “O quanto eu preciso fazer?” O amor cristão per
gunta: “O que posso conceder? Quanto posso fazer?”
Todo pecado é uma distorção dos propósitos de Deus. Um amor disforme
pelo próximo pode tornar-se um desejo de controlá-lo, em vez de honrá-lo. Dese
jos sexuais normais dados por Deus podem tornar-se pensamentos e ações lascivos
fora da vontade de Deus. Uma autoestima apropriada, se não for controlada, por
mudar para uma vida voltada para si mesmo. Uma preocupação financeira necessá
ria pela família pode transformar-se em ganância e avareza.
Perdendo o caminho
A apostasia espiritual pode manifestar-se como ódio por “um irmão” (v. 15).
A passagem fala: Passamos da morte para a vida (v. 14). Implícito nessas palavras
de advertência consta que, uma vez entre o povo de Deus, ainda é possível ser cap
turado pelo ódio e sofrer a perda da vida eterna (v. 15). Claramente, 1João adverte
contra sair da comunidade de fé. Aqueles que o fazem rejeitam a verdade do amor
128
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
Do ódio ao assassinato
Como pode um irmão matar outro irmão ? A história de Caim e Abel destaca
o profundo risco de fratricídio que se esconde em cada coração. Se não forem trata
dos, raiva e ciúmes crescem. Por fim, o ódio vem em seguida. Infelizmente, atitudes
erradas podem levar uma pessoa, ou uma nação, a acreditar que o assassinato de
outro é a melhor opção.
NO TEXTO
H 1 6 Essa seção está em nítido contraste com o exemplo trágico de Caim. Em vez
de matar seu irmão, Jesus entregou sua vida {tên psychên autou, sua a lm a ) pelos
outros (Brown, 1982, p. 473). João argumenta que a humanidade não seria capaz
de conhecer o amor em toda sua extensão, sem vê-lo no autossacrifício de Cristo na
cruz. É por isso que nós sabemos o que é o amor.
A morte de Cristo não foi um acidente colossal; ela tinha um propósito. Sua
vida foi dada, não tirada dele. A NVI insere o nome de Jesus Cristo para a palavra
129
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
3.18)? Nesse momento, estamos precisando de confiança! Podemos viver sob a au-
tocondenação, embora nossa condição espiritual real, conhecida melhor por Deus
do que por nós, seja segura. Um coração perturbado pode refletir uma condição
desnecessariamente ansiosa, com falta de confiança. Porém, Deus é maior do que
o nosso coração; Sua misericórdia é a palavra definitiva. Ele é mais misericordioso
conosco do que a nossa própria consciência. João quer que seus leitores encontrem
sua confiança em Deus, que, apesar de conhecer todas as coisas sobre nós, ainda
nos ama imensamente.
Contudo, o que são todas as coisas que Deus conhece: que somos melho
res ou piores do que pensamos ? Temos falhado em amar ou temos amado melhor
do que pensamos ? Isso significa que Deus “sabe que basicamente amamos nossos
irmãos (v. 14) e, portanto, somos ‘da verdade’ (v. 19)” (Bultmann, 1973, p. 57).
Nossa confiança se baseia fundamentalmente em nosso desempenho ou no amor e
na misericórdia de Deus ?
Uma vez que a questão aqui é quando o nosso coração nos condenar, con
sideraremos a segunda opção — a base cristológica da confiança (2.1). O amor
perdoador de Deus no “sangue de Jesus” (1.7; 5.6,8; veja 1.9; 2.1,2; 4.9,19) é maior
do que o nosso coração (veja Nauck, 1957, p. 78-82). A condição é nosso coração
atribulado, a consequência é que Deus, em Cristo, é maior do que o nosso coração.
E a explicação é que Deus nos conhece melhor do que nós mesmos. Podemos con
fiar em Seu amor!
M 21 Agora, a condição é se o nosso coração não nos condenar. Nós estamos
amando o próximo no melhor de tempo e habilidade com a consequência de que
temos confiança diante de Deus. A nossa consciência está limpa. Por quê? Por
que estamos obedecendo “aos seus mandamentos” (v. 22; veja v. 23,24). A base da
confiança do cristão agora é sua resposta ética a Deus: estamos amando de forma
genuína. Mas, de forma fascinante, se não profundamente, viver em obediência a
Deus envolve crer e amar para João (v. 23). A nossa resposta está além do que o
legalismo ou o moralismo poderia exigir.
Assim, o amor do Deus onisciente permite que o Seu povo tenha confiança
diante de Deus. Em grego,parrêsian transmite os significados “cora gem , con fia n
ça, ousadia, d estem o r” (BDAG, 2000, p. 781; veja também 2.28; 4.17; 5.14). For
talecidos pelo Juiz perante o qual todos ficarão um dia, podemos aproximar-nos,
não com medo, mas com segurança. Deus nos chama para sermos santos e permite
que nos tornemos o que Ele quer. Assim, a confiança que desfrutamos existe tanto
agora (especificamente relacionada à oração) como em preparação para o futuro
(veja o comentário sobre 2.28).
132
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
A P A R T IR D O T E X T O
Quando Isaac Watts viu a cruz, ele descobriu que nada no mundo traria sa
tisfação como saber quem morreu por todos. A cruz traz vivamente diante de nós
o servo do Senhor que levou “a iniquidade” de muitos (Is 53.12). A cruz lembra
Jesus, o Bom Pastor, que dá a Sua vida pelas Suas ovelhas (Jo 10.11,15).
A morte de Cristo, que se entregou voluntariamente pelo próximo, serve de
modelo de desafio para o ministério. Deus define o amor; o amor é autossacrifício
até a morte (1 Jo 3.16,17). O amor é ativo, não reativo. Amar a Deus é compro
meter-se a amar a família de Deus (van der Watt, 1999, p. 508-510). Ministrar
em nome de Cristo é servir com um espírito marcado por menos de si e mais dele.
Quando servimos fielmente onde Deus nos plantou, damos nossa vida pelos ou
tros diariamente. No ministério, damos uma parte de nossa vida pelos outros todos
os dias.
A afirmação de João que diz que uma oração de fé nos assegura de que pode
mos receber dele tudo o que pedimos (v. 22) coloca desafios teológicos. Qual é
a natureza da oração e da mordomia? Em uma seção que fala sobre receber tudo,
o texto também nos confronta com a clara obrigação de dar recursos materiais ao
nosso irmão em necessidade (v. 17). A palavra tudo poderia ser mal interpretada
135
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
como mais recursos materiais, com a justificativa de se ter mais para compartilhar
com os necessitados, afinal!
Entretanto, é somente após demonstrarmos generosidade por meio de ação e
em verdade (v. 18) que podemos experimentar um coração assegurado por Deus.
Somente depois de dar ao próximo é que estamos em posição de pedir para nós
mesmos. Mesmo assim, aquele que ora tem confiança diante de Deus (v. 21) ape
nas por causa do hábito de fazer o que agrada a Deus. Se estivermos perto do co
ração de Deus, nós nos encontraremos pedindo em grande parte para os outros e
pouco para nós mesmos.
136
IV. EXAMINANDO OS ESPÍRITOS E CONFIANDO NO
AMOR DE DEUS: 1 JOÃO 4.1-21
NO TEXTO
H 1 João se dirige a seus leitores novamente como amados (como em 2.7; 3.2,21;
4.7,11). Esse termo de afeto, no entanto, é imediatamente seguido por palavras
duras de advertência. Essa parte da carta é um chamado para o discernimento.
Uma aceitação indiscriminada da mensagem de falsos profetas, alegando falar sob
138
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1.2E3JOÁO
verbo enfatiza um lugar. Em 2.19, ex- aparece cinco vezes, quando João descreve
aqueles que haviam deixado a comunidade joanina. Os separatistas já não estavam
nas igrejas de João, mas competindo com elas. Esses falsos profetas, anteriormente
chamados de “anticristos” (2.18), haviam transferido sua cidadania ao mundo por
terem saído das igrejas de João (2.19). Simbolicamente, o mundo é o domínio da
atividade antiDeus (veja Temas teológicos, na Introdução).
O verbo saído (exelêlythasin, pretérito perfeito) sugere que esses pseudopro-
fetas haviam se afastado anteriormente das igrejas joaninas e permaneceram sepa
rados delas. Pode não haver distinção significativa na alteração entre o pretérito
e o tempo perfeito (Brown, 1982, p. 490). Entretanto, o tempo perfeito parece
destacar uma saída anterior de algumas pessoas da comunidade joanina, que conti
nuou como uma separação estabelecida. O pretérito, o aoristo, teria sido suficiente
se João estivesse apenas relatando um acontecimento passado.
H 2 Um refrão contínuo em toda a carta salienta que o teste decisivo de ortodoxia
é a cristologia, ou seja, a questão da humanização. Os critérios para reconhecer o
Espírito de Deus se transformam completamente em cristologia. Os separatistas
parecem ter aceitado uma cristologia que enfatizava tanto a divindade de Cristo
que a Sua plena humanidade foi negada. João, em contraste, afirmava uma cristo
logia antidocética totalmente “Emanuel”. Para João, Jesus e o Cristo eram a mesma
coisa. O eterno Filho entrou, de forma completa, na experiência humana — veio
em carne {en sarki elêlytkota). O Cristo preexistente foi manifestado como a glória
de Deus em forma humana (Brooke, 1912, p. 109), na qual Ele se tornou carne
{sarx, Jo 1.14).
O verbo veio (elêlythota, no tempo perfeito) aponta não só para o fato da hu
manização, mas também para o seu significado duradouro (Yarbrough, 2008, p.
221; Rensberger, 1997, p. 112). João está dizendo que havia uma permanência na
humanização? O tempo perfeito certamente apoia tal entendimento. Como tal,
até mesmo o Cristo glorificado permanece humano por completo. Sua presença
em carne é uma realidade contínua (Marshall, 1978, p. 205). Cristo, que veio em
carne, continua a ser o Filho encarnado (Thomas, 2004, p. 203).
Quando Jesus apareceu em glória pós-ressurreta para os discípulos em Jeru
salém, Ele assegurou-lhes de que não estavam vendo um “espírito” {pneuma): Ele
tinha “carne” [sarx] e “ossos” (Lc 24.39). A promessa de 1 João 3.2, “quando ele
se manifestar, seremos semelhantes a ele”, sugere que nosso corpo ressuscitado será
como o corpo de carne e de glória de Cristo. A era vindoura não é um abandono da
criação, mas uma afirmação dela (Wright, 2008, p. 147-163).
Aceitar um Cristo plenamente homem era algo a ser reconhecido (“d ecla ra
do, professa d o, lou va d o, ” BDAG, 2000, p. 708 s.v. hom ologeo). João Batista usou
140
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
o termo para afirmar que ele não era o Cristo — “Ele confessou” (hõm ologèsen,]o
1.20). Paulo, antes de Félix, empregava o termo para afirmar sua clara fidelidade ao
caminho cristão — “Confesso-te” (hom ologo, At 24.14). Em Mateus 10.32, o reco
nhecimento necessário é crucialmente cristológico, com o destino ligado à confis
são — “Quem, pois, me confessar \homologêsei\ diante dos homens, eu também o
confessarei [hom ologêsõ] diante do meu Pai que está nos céus”.
H 3 Os versículos 2b e 3 estão em um paralelismo antitético. A confissão positiva,
de confirmação conduz a uma negação de descrédito (Jones, 2009, p. 164).
“Todo espírito que confessa que “Mas todo espírito que não
Jesus Cristo veio em carne proce confessa a Jesus não procede de
de de Deus” (v. 2). Deus” (v. 3).
Essas são confissões que implicam comunhão. Não confessar era recusar a par
ticipação na comunidade (Jones, 2009, p. 168). Os dois elementos da confissão
— “Cristo” e “em carne” — são essenciais (Culpepper, 1998, p. 268). Dos cinco
usos de anticristo nessas cartas (2.18,22; 4.3; 2 Jo 7), todos focam a negação do
homem Jesus como o Cristo. Duas das três passagens (4.3; 2 Jo 7) deixam claro que
as negações incluíam Sua vinda “em carne” (Burge, 1996, p. 175).
A batalha pela fidelidade era mais do que intelectual. João entendia essa
luta como uma batalha espiritual. A terminologia de Espírito é abundante (3.24;
4.1,2,3,6,13). A mesma palavra {pneuma) é usada tanto de forma positiva (Espírito
de Deus, qualquer espírito que justamente confesse Jesus) quanto negativa (o es
pírito do anticristo e confissões erradas). Os leitores são advertidos a não confiar
em todo espírito, mas a “examinar os espíritos” (v. 1). A validação do “Espírito
de Deus” (v. 2) surge quando um “espírito (...) confessa que Jesus Cristo veio em
carne” (v. 2). Porém, todo espírito que não reconhec Jesus como de Deus está iden
tificando que não procede de Deus. A distinção era a autenticidade da declaração
de inspiração divina do profeta.
Em vez de não confessa (m ê hom ologei) a Jesus, alguns manuscritos trazem
um sentido muito mais sério — an u la ou d estró i (lyei\ “d e str u ir ,p ô r fim , a b o lir”,
BDAG, p. 607, s.v. lyõ-, veja 3.8, onde o mesmo verbo é usado). Embora d estró i seja
apoiado apenas por uma minoria de manuscritos, alguns intérpretes o preferem
como a leitura mais difícil (Lieu, 1991, p. 46). Brown argumenta em favor de lyei
em parte, por recordar o sentido de 3.8 (1982, p. 496). Ainda assim, a leitura majo
ritária é provavelmente a preferida (Haas, Dejonge e Swellengrebel, 1972, p. 103).
A leitura mais pesada, d estrói, pode ser uma expressão dos debates cristológicos do
segundo século (Rensberger, 1997, p. 113).
141
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
143
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
A P A R T IR D O T E X T O
Cristologia
Um consenso cristológico levou séculos para ser alcançado nos credos for
mais das igrejas. Em 325, o Concilio de Niceia declarou Cristo como “gerado, não
criado” e “da mesma substância que o Pai”. O Concilio de Calcedônia, em 451,
afirmou Jesus Cristo como, ao mesmo tempo, plenamente Deus e homem (Smith,
1991, p. 101,102). Alguns cristãos ainda minimizam a humanidade de Jesus em
favor de uma forte afirmação de Sua divindade. Outros, para enfatizar Sua huma
nidade, obscurecem ou rejeitam Sua natureza divina. João insiste no fato de que
ambos são essenciais para a salvação humana.
144
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
Escolhendo amigos
POR TRÁS DO T EX T O
NO TEXTO
■ 7 João retorna à sua preocupação com o amor mútuo (veja 3.11-24) chamando
seus amados para viverem em amor — amemos (no modo subjuntivo). O amor
deve manifestar-se nas relações com o próximo. O amor origina-se em Deus e flui
145
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
a p a rtir de Deus. O amor de Deus vem para todos, tanto pela criação como pela
graça (Marshall, 1978, p. 212); qualquer um pode optar por receber e expressar
esse amor divino.
João deixa claro que aquele que expressa o amor de Deus pelo próximo mani
festa o próprio caráter de Deus (Akin, 2001, p. 177; Brooke, 1912, p. 117). Agir
em amor apresenta evidências de que é nascido de Deus e conhece a Deus. João
reúne em nascido e conhece a linguagem de concepção física e relação íntima para
reforçar o seu argumento. Ele reconhece Deus por quem e o que Ele é — um Deus
de amor (Strecker, 1996, p. 144).
Quando João escreve aquele que ama, ele não está dizendo que os atos de
amor fornecem provas conclusivas de que se é cristão. A palavra agapõn (um parti-
cípio presente ativo) sugere uma ação contínua e é mais bem compreendida como
aq u ele q u e con tin u a a a m a r os outros. João enfatiza que um estilo de vida óbvio
de amor demonstra que a vida de Deus está realmente presente em nós. Com base
nisso, a pessoa conhece {ginoskei: está sa b en d o) a Deus.
1 8 Esse conhecimento atual de Deus e da verdadeira natureza do amor não é um
segredo revelado apenas para poucos escolhidos. Ele flui de um relacionamento
disponível para todos. Amar deve ser um estilo de vida. Assim, João afirma que vi
ver em uma condição habitual de n ã o a m a r é viver como estranhos a Deus. Quem
vive dessa maneira não conhece a Deus, porque Deus é amor. Ao manifestar amor,
demonstramos que conhecemos a Deus. Nosso caráter se torna cada vez mais o
que nós fomos criados e redentoramente recriados para ser. Quando nascemos de
Deus, começamos a conhecer a Deus.
Desenvolver um relacionamento com Deus e com o Seu povo é aprofundar
esse conhecimento. É como uma criança que passa o tempo com os pais e outros
familiares próximos e amigos e começa a conhecer uma série de coisas por experi
ência íntima. Esse conhecimento é baseado e enriquecido em relacionamentos que
as crianças têm com aqueles que conhecem bem. Da mesma forma, a ausência de
amor reflete ignorância em relação a Deus, que é amor (veja 4.18).
A inspirada afirmação de João de que Deus é amor indica a base do manda
mento anterior de amar. Nenhuma das equações de João, “Deus é espírito” (Jo
4.24), “Deus é luz” (1 Jo 1.5) ou Deus é amor aqui, é uma definição ontológica
do ser de Deus. Nenhuma delas esgota tudo o que pode ser dito sobre Deus. Essas
afirmações funcionam um pouco como as descrições das maneiras características
em que Deus trabalha na revelação e na redenção.
I 9 Deus manifestou (ephanerõthê) o seu amor na pessoa de Cristo em Sua
primeira vinda (Jo 1.14; 3.16). Em 1 João 2.28, ephanerõthê refere-se à futura
146
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
vinda de Cristo: “na Sua vinda”. O amor de Deus motiva tanto a primeira como a
segunda vinda de Cristo.
João faz duas ênfases. O amor de Deus é vivido corporativamente, nas comu
nidades de adoração — entre nós. Porém, o amor de Deus também é vivido de
forma bastante pessoal — d en tro d e nós. O amor divino transforma indivíduos
e igrejas. A autêntica experiência de Deus é sempre pessoal, mas nunca solitária.
Deus enviou \apestalken, tempo perfeito] o seu Filho Unigênito. A missão
de Cristo ao mundo continua a ter impacto. O enviado alistou outras pessoas e
as enviou (Jo 20.21; Jo 17.18; veja Rm 10.15). O verbo apostellõ significa enviar
em uma missão como representante oficial (“apóstolo”). A arena da atividade mis
sionária de Deus em 1 João — o mundo — é quase sempre uma referência a uma
localidade ou mentalidade antiDeus (2.15-17; 3.1,13; 4.1,3,4,5; 5.4,5,19, também
em 2 Jo 7). No entanto, também é necessário que Deus faça Sua obra de salvação
(2.2; vejajo 3.16).
A frase seu Filho Unigênito evoca João 3.16. Ela também lembra o leitor de
João 1.14, em que a glória vista em Cristo era “glória como do Unigênito vindo do
Pai”. No Evangelho de João, m onogenês combina as idéias de “unigênito” e “amado”
(Bruce, 1970, p. 108). A palavra transmite não só a ideia de um “filho único”, mas
também a de um filho amado de forma especial.
Em Hebreus 11.17, Isaque é o m onogenês de Abraão, que também teve Ismael.
Isaque é o filho único, o filho “ímpar”, porque, por intermédio dele, a promessa
continuou (Jones, 2009, p. 183). Da mesma forma, Jesus é o Filho único de Deus
no sentido de que Ele é plenamente divino (Earle, 1984, p. 107). Por intermédio
dele, todas as promessas de Deus são cumpridas. Ao enviar Seu Filho m onogenês,
Deus demonstra o alcance ilimitado de Seu amor para conosco. Como Filho Uni
gênito de Deus, Jesus é o único que pode mediar a salvação (vejajo 1.18). Além
disso, por Jesus ser m onogenês, deve-se ter fé somente nele; não há outro. Deixar de
crer em Jesus é ficar sob o julgamento (Büchsel, 1967, p. 737-741).
O envio do Filho Unigênito torna possível a vida de Deus em nós — para que
pudéssemos viver. Porém, Ele não garante isso. Nem a vida é irrevogável. O verbo
está no modo subjuntivo, sugerindo que a vida é condicional. E possível ter vida
por aceitar a Cristo, mas é possível perder a vida por rejeitar a Cristo. A oferta e a
possibilidade de responder são de graça. Deus enviou Jesus. E somente por causa
de Sua iniciativa pela humanidade caída, quebrantada e pecadora é que podemos
esperar voltar à vida.
Aqui, viver não se refere à vida física (bios). A palavra usada para vida aqui é
um cognato de zoê, enfatizando a qualidade de vida. “Vida eterna” no NT é sempre
zoè (três vezes em Mateus e Lucas, duas vezes em Marcos, dezesseis vezes em João,
147
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
e nove vezes nas cartas de Paulo). Pode-se viver e respirar fisicamente e ainda ser
desprovido da vida de Deus. A vida que Deus oferece é conhecer e ser conhecido
por Ele. E viver em íntima relação com o Criador.
Gênesis adverte que comer da “árvore do conhecimento do bem e do mal”
(Gn 2.17) significa que “vocês morrerão” (3.3). O resultado não foi a morte física
imediata, mas a separação relacionai de Deus simbolizada pela expulsão do Éden.
A morte espiritual começa com a desobediência. A vida oferecida por Deus se dá
somente por meio dele, de quem o Pai enviou. Não existe outra fonte para a vida;
somente Deus, como revelado em Cristo, é a única fonte da verdadeira vida. Deso
bedecer é distanciar-se de Deus e aceitar cada vez mais a morte. Obedecer é aceitar
Deus e experimentar a Sua vida, que flui do Filho.
■ 1 0 A iniciativa para a transformação espiritual vem de Deus. O amor a Deus
está em nós, porque ele nos amou. Deus tomou a iniciativa, já que, como cria
turas caídas, nós geralmente apresentamos egoísmo em vez do amor altruísta de
Deus (Smith, 1991, p. 107). O amor é fundamentado na perfeição de Deus, não na
imperfeição do homem (Yarbrough, 2008, p. 239). Esse relacionamento rompido
com Deus só pode ser restaurado por Cristo (Burge, 1996, p. 188). Uma pessoa
pode autenticamente conhecer o amor por causa da eficácia da morte salvífica de
Jesus (Yarbrough, 2008, p. 240). Deus enviou Seu Filho para demonstrar Seu amor
definitivo (Brooke, 1912, p. 119).
No versículo 9, o tempo perfeito descreve o envio de Cristo, enfatizando os
efeitos contínuos da humanização. Aqui, o aoristo enfatiza o evento do ato de Deus
(Marshall, 1978, p. 214). A missão de Cristo teve uma finalidade precisa e profun
da. O Filho veio a fazer por nós o que não poderiamos fazer por nós mesmos. O
perdão por nossos pecados foi alcançado por Deus ao assumir as consequências
da nossa rebelião (Marshall, 1978, p. 215). O objetivo do envio do Filho, além
de Sua natureza humana, foi para trazer-nos de volta a Deus (Akin, 2001, p. 180).
A morte salvadora de Cristo chama a atenção para a enormidade do amor divino
(Culpepper, 1998, p. 270). O envio tinha a reconciliação em vista — o Filho como
propiciação pelos nossos pecados.
A palavra traduzida como propiciação (hilasmos) é “expiação” em outras
versões (VC). Propiciação coloca o Filho como apaziguador do Deus Pai, a parte
ofendida. Expiação enfatiza a limpeza e a restauração resultantes dos pecadores.
Isso é obtido por um sacrifício que remove o pecado (Brown, 1982, p. 519).
A tradução de propiciação deixa a ênfase precisa da palavra para o leitor (veja
o quadro “Hilasmos" em 2.2). Na LXX, hilastêrion identificava o “propiciatório”
(veja Hb 9.5 ARC) como o lugar de reconciliação. O termo tinha um significado
148
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
cognoscível em certa medida, uma vez que está (...) em nós quando vivemos o Seu
amor pelo próximo. O amor de Deus, residente nos seguidores de Jesus, demonstra
poderosamente o Seu propósito no mundo (Bruce, 1970, p. 109).
Mesmo que Deus não possa ser visto diretamente como pensavam hereges
gnósticos, Ele pode ser visto quando o Seu povo age em amor. João insiste no fato
de que o amor divino injetado em nós pode ser aperfeiçoado. Ou seja, ele cumpre
0 seu propósito ou atinge o seu fim (telos) entre nós, que vivemos no amor. O amor
é aperfeiçoado (teteleiõm enè, veja 2.5 e 4.17,18). Esse particípio passivo prova
velmente presume Deus como o sujeito oculto que aperfeiçoa os crentes — nos
traz para o objetivo que Ele tem em mente para nós. A perfeição cristã não é uma
conquista do homem com base em mérito ou luta. E Deus trabalhando em graça,
alcançando Suas intenções para nós quando amamos uns aos outros.
1 1 3 João escreve todo o texto em grande desacordo com a declaração dos sepa
ratistas que possuem um conhecimento esotérico especial. Entretanto, ele insistiu
no fato de que ele e todos os verdadeiros crentes de sua comunidade possuíam um
conhecimento próprio definido: Sabemos (ginõskomen)\ O verbo é um dos favo
ritos de João, aparecendo quase 40 vezes, mas apenas algumas vezes nos Sinóticos.
E o que os cristãos joaninos afirmam saber? Que permanecemos nele e que
Deus permanece em nós. Essa profunda mutualidade de relação continua o tema
e a terminologia do versículo 12b. Algumas versões traduzem o verbo m enei como
“vive”. A NVI prefere o termo “permanece” (16 vezes no Evangelho de João e em
1 Jo 2.24,27). A NTLH normalmente traduz m enei como “vive” para descrever
essa estreita relação entre Deus/Cristo e os crentes (veja especialmente Jo 15.4-10).
A prova confirmando que Deus habita no coração do homem é que ele nos
deu do seu Espírito (veja 3.24). Com isso (en toutõi: não traduzido na NVI) liga
o versículo 12 ao caráter do Espírito recebido. A presença do Espírito de Deus é o
Espírito de amor (v. 7-12) e de fé (v. 14-16; veja v. 9,10). A presença do Espírito
nos crentes e dentro da comunidade adoradora não era uma conquista do homem.
Durante todo o texto, a graça é mantida claramente em vista. Deus inicia,
permanece/habita e traz os crentes à perfeição. Os cristãos não são, no entanto,
arrastados irresistivelmente pela Sua graça. Nós respondemos aceitando o Seu pre
sente. No entanto, até mesmo a nossa capacidade de responder é graças à Sua graça
(Ef 2.8,9).
Ele nos deu (um verbo no tempo perfeito) o Espírito como uma realidade
permanente. Além disso, o Espírito é recebido, não por meio de uma busca soli
tária por Deus, mas por uma crença comunitária — nós. O Deus que busca dá o
Espírito, gerando em nós um desejo por Ele.
150
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
■ 1 4 A declaração vimos aponta de volta para o versículo 12. Nós “vimos” Deus,
em certo sentido, apesar do fato de que “ninguém jamais viu a Deus” (v. 12). João
afirma: Vimos (...) que o Pai enviou seu Filho para ser o Salvador do mundo.
(veja o v. 10). Ligado à presença do Espírito na comunidade de amor, há uma visão
de fé na atividade de Deus na salvação: “A visão de fé evidencia sua certeza no fato
de que carrega o seu testemunho consigo” (Bultmann, 1973, p. 70,71). A capaci
dade de amar e a capacidade de acreditar asseguram-nos da presença do Espírito
(veja 5.10).
As mudanças de tempo verbal de João nessa passagem parecem ser inten
cionais. Ele diz vimos, no tempo perfeito, indicando uma visão anterior com um
impacto contínuo. O tempo presente que se segue, testemunhamos, sugere uma
prática contínua de contar a história do Deus Pai, que enviou o Filho para ser o
Salvador.
O Salvador, de sõtêr, aparece somente aqui e em João 4.42, nos escritos joa-
ninos. Esse título “tem paralelos com o culto helenístico de heróis e com o culto
romano ao imperador, assim como com a adoração dos deuses de cura no período
helenístico” (Strecker, 1996, p. 158). Na LXX, Deus é sõtêr, especialmente nos
Salmos e em Isaías.
No NT, o termo “salvador” é usado para referir-se, às vezes, a Deus, mas, na
maioria das vezes, refere-se ajesus (Lc 2.11; Jo 4.42; At 5.31; 13.23; Fp 3.20; 2 Tm
1.10; Tt 1.3,4; 3.6; 2 Pe 1.1,11; 2.20; 3.18). A salvação que Deus quer é a do mun
do, uma oferta ilimitada de transformação para todos os que já foram hostis a Ele.
H 1 5 João mantém a porta da oportunidade aberta para todos — alguém {qual
q u er um ). Ninguém está excluído do convite de Deus. Qualquer um pode vir con
fessando Jesus como Filho de Deus. A tradução de confessa parece sugerir apenas
consentimento. No entanto, o verbo transmite um sentido mais público e ativo de
confessar (hom ologêsè) ou fazer um pedido público e uma declaração de modo de
vida (Mt 10.32). No Evangelho de João, confissões de fé em Jesus poderíam causar
expulsão da sinagoga (Jo 9.22; 12.42). Em Romanos 10.9,10, confessar Jesus como
Senhor está indissociavelmente ligado à obra salvífica de Deus (Hofius, 1991, p.
514-517).
Ao longo da carta, João enfatiza o cristianismo relacionai, uma fé não vincula
da a um código legal. Pelo contrário, ela exige o envolvimento em uma relação de
amor com Deus por intermédio de Cristo: Deus (...) nele, e ele em Deus. A partir
disso, obediência e doutrina consistentes fluiriam. Esse privilégio, o resultado do
trabalho do Salvador (v. 14), é efetuado mediante a confissão de que Jesus é o Filho
de Deus (veja 1.9).
151
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
A P A R T IR D O T E X T O
Deus chama os cristãos para serem exemplo das qualidades de Deus, mais no
tavelmente de Seu amor. Assim como o Senhor se manifestou no mundo, envian
do Seu Filho Unigênito (v. 9), os seguidores de Cristo são chamados para deixar
evidente o amor de Deus no mundo (v. 9,14). Seguir a Cristo fielmente permite
que o Deus invisível seja visto em atos de amor ao próximo.
NO TEXTO
começa a fazê-lo neste m undo, no mesmo lugar onde anticristos (2.18,22; 4.3),
falsos profetas (4.1) e enganadores (2 Jo 7) operam.
O amor universal de Deus pode ser vivido p o r interm édio de nós, de modo que
as outras pessoas possam ver, em alguma medida, como Deus é. Nós participamos
da natureza de Deus agora-, neste m undo somos com o ele (lit.: assim como aquele
também somos nós neste mundo-, veja 2.6; 3.7).
João espera que os crentes estejam de acordo com a imagem de Jesus em amor
no presente (Lieu, 1991, p. 90). A santidade não está reservada apenas para depois
da morte. Calvino disse: “Deus está no céu, Ele convida-nos a estar neste mun
do, para que possamos ser reconhecidos como Seus filhos” (1959, p. 295). Essa
promessa surpreendente, ser com o ele, não pode ser subestimada. Compartilhar
a natureza de Deus é uma possibilidade presente (2 Pe 1.4). E uma realidade libe
rada até depois da morte. E a única preparação adequada para a morte, quando
estivermos diante de Deus no dia do juízo. Essa firme fundação está sempre ligada
ao amor de Deus trabalhando entre as pessoas. Confiança diante de Deus e amor
cristão andam juntos (Bruce, 1970, p. 113).
D ia d o ju ízo
O c o n c e ito d e u m d ia d e ju l g a m e n t o fu tu r o a p a r e c e p r e c o c e m e n te e
c o m fr e q u ê n c ia n a s E s c r itu r a s . " D ia " n ã o s e re fe re a p e n a s a u m p e río d o
d e 2 4 h o r a s . N a p rá tic a h e b r a ic a , r e fe re -s e a a c o n te c im e n t o s h is tó ric o s
d e c is iv o s . Is a ía s fa lo u d o " d ia d o S e n h o r " ( 1 3 .6 ,9 ) e d o " d ia d a v i n g a n
ça d o n o s s o D e u s " ( 6 1 .2 ) . J e r e m ia s m e n c io n a o " d ia d a ira d o S e n h o r "
( L m 2 .2 2 ) , a s s im c o m o E z e q u ie l (" d ia d a ira d o S e n h o r " ( 7 . 1 9 ) . N a L X X ,
t u d o isso s e t r a n s fo r m a n a fr a s e g re g a "o d ia d o S e n h o r " (v e ja Jl 1 . 1 5 ;
2 . 1 , 1 1 ,3 2 ; 3 .1 4 ; A m 5 .1 8 ; S f 1 . 1 4 - 1 6 ) .
A fr a s e " d ia d e D e u s " a p a r e c e r a r a m e n t e n o N T (2 Pe 3 .1 2 ; A p 1 6 .1 4 ) .
N o N T , o " d ia d o S e n h o r " t e m u m a a s s o c ia ç ã o a p o c a líp tic a c o m Je s u s
c o m o k y rio s (v e ja 1 C o 1 .8 ; 5 .5 ; 2 C o 1 . 1 4 ; F p 1 . 6 ,1 0 ; 2 .1 6 ) . A lite ra tu ra ju
d a ic a in te r t e s t a m e n t á r ia in clui e x p r e s s õ e s s e m e lh a n t e s ( 1 En. 1 0 .6 ; 1 6 . 1 ;
Jub. 5 .1 0 ; 2 4 .3 0 ; 4 Ed. 7 . 1 1 3 ; SI. Sal. 1 5 .1 3 ) .
E s s e s v á r io s t e x t o s ju d a ic o s e c ris tã o s v is lu m b r a m u m t e m p o d e re s
p o n s a b ilid a d e , e m q u e in d iv íd u o s e n a ç õ e s fic a r ã o d ia n te d e D e u s . N a p re
s e n ç a d a g ló ria d e D e u s , o n d e a s a n tid a d e é o p a d r ã o p a ra o ju l g a m e n t o ,
t u d o o q u e e s tá e r r a d o s e rá c o rrig id o . O m a l s e rá p u n id o ju s t a m e n t e . A
ju s tiç a s e rá r e c o m p e n s a d a . E s s e d r a m a d iv in o e h u m a n o t r a z o ju l g a m e n
to ju s to d e D e u s s o b re t o d o s , v iv o s e m o r to s . O ju lg a m e n to d o s m o r to s
p a re c e p r e s s u p o r re s s u rre iç ã o , u m a id e ia e n c o n tr a d a d e fo r m a m a is c la ra
p e la p rim e ira v e z e m D a n ie l 1 2 .1 - 3 . P o d e -s e a r g u m e n t a r , n o e n t a n t o , q u e
154
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
A P A R T IR D O T E X T O
Qualquer expressão verdadeira de amor tem sua origem no Deus que é amor.
O amor flui de Deus por intermédio das pessoas (v. 16), independentemente se a
pessoa reconhece Deus. Até mesmo ateus e agnósticos são parte da obra de Deus
no mundo (v. 14), quando eles atuam em amor. Quando expressamos o amor de
Deus aos outros, simultaneamente nos aproximamos do coração de Deus.
O amor perfeito leva tempo, mas pode ser real em nós agora
prepara para o futuro dia do juízo (v. 17), quando teremos a confiança que Deus
promete.
Amor praticado
158
V. VIDA NO FILHO, MORTE NA SEPARAÇÃO:
1 JOÃO 5.1-21
A. Fé vencedora (5.1-5)
“Jesus” aparece sozinho em apenas 2.6 (NLT); “Cristo” aparece sozinho em apenas
2 João 9.
NO TEXTO
com o versículo 3. Assim sabemos que amamos os filhos de Deus porque nós
aceitamos e vivemos os mandamentos de Deus (4.20,21).
O amor de Deus trabalha de formas redentoras. O amor que flui de Deus e é
multiplicado pelas vidas que invade nos atrai para relacionamentos com os outros.
Esse versículo reflete o espírito do “maior mandamento da Lei” (Mt 22.36; veja v.
37-40; Lv 19.18; Dt 6.4). A adoração, uma resposta obediente a Deus, origina-se
em Deus e se expressa nas relações interpessoais. Amar a Deus de modo supremo e
amaropróximo comoasi mesmo resumemalei (Mc 12.28-31;Lc 10.27).
H 3 A obediência a Deus é esperada: Nisto consiste o amor (...): obedecer. Deso
bediência a Ele nunca pode ser entendida como prática cristã normal. Ela prejudica
a comunidade. O amor a Deus significa devoção inabalável aos Seus mandamen
tos. Sentimentos semelhantes aparecem no Quarto Evangelho. O amor a Deus
significa obedecer ou guardar (variações de têreo) o “mandamento” de Jesus (Jo
14.15) ou Sua “doutrina” (Jo 14.23; 14.24).
Esse não é um padrão que seres humanos normais podem alcançar sem ajuda.
Os mandamentos de Deus não são pesados (bareiai), mas não somos capazes de
obedecer sem a Sua assistência. Jesus lamenta pelos “mestres da lei e os fariseus”
que colocavam “fardos pesados \barea]” de regulamentações tradicionais sobre os
outros (Mt 23.2,4). Ele os criticava, usando outra forma da palavra da família bar-,
por sua negligência em relação a questões de exigências de Deus “mais importantes
\barytera]” (Mt 23.23). Atos 15.28 ressalta o desejo de não impor fardos desneces
sários (baros) sobre gentios aceitando a fé em Jesus.
João não considera os mandamentos de Deus um fardo a ser suportado. Pelo
contrário, quando os cristãos obedientemente os aceitam, provam os nossa vida
nova dada por Deus. Essa nova vida é vivida na vitória porque Deus nos capacita
para que possamos obedecer (Haas, Dejonge, e Swellengrebel, 1972, p. 116).
■ 4 João enfatiza a vitória novamente: O que é nascido {gegennêm enon) de Deus
vence o mundo. O particípio perfeito grego implica que os nascidos de Deus con
tinuam em seu novo estilo de vida. Elesj á são vitoriosos. As palavras vence nos ver
sículos 4,5 (de nikao) e vitória (nikê) no versículo 4 derivam da mesma raiz grega.
O Jesus ressuscitado e que reina já é vitorioso. O particípio aoristo (nikêsasa, v.
4b), substituindo o nikai anterior (v. 4a), significa “venceu”. Cristãos participam da
vitória “de uma vez por todas” de Jesus sobre o mundo (Jo 16.23) pela fé (Marshall,
1978, p. 229; Bultmann, 1973, p. 77).
O que os crentes vencem? Anteriormente, João mencionou vencer “falsos pro
fetas” (4.1) e “o espírito do anticristo” (4.3). Aqui, é o mundo. Ele não é um novo
adversário. Todas as três expressões descrevem aqueles que deixaram a comunidade
joanina (2.19).
162
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
“Todo aquele que crê que Jesus é o Aquele que crê que Jesus é o
Cristo” (v. 1) Filho de Deus (v. 5)
pas hopisteuõn hóti ho pisteuõn hoti lêsous estin ho
lêsous estin ho Christos huios tou theou
A P A R T IR D O T E X T O
Viver em amor
Viver em alegria
A frase não são pesados (v. 3) fala de uma fé ancorada pela alegria. Jesus ad
vertiu sobre aqueles que colocavam demandas religiosas pesadas sobre os outros e
aconselhou: “Não façam o que eles fazem” (Mt 23.3). Ele descreveu suas exigências
para aqueles que vêm a Ele por comparação: “Meu jugo é suave e o meu fardo é
leve” (Mt 11.30). O que poderia acontecer se um avivamento de obediência com
alegria à Palavra de Deus varresse as igrejas e as casas do nosso mundo ?
“Quem rejeitava a lei de Moisés morria sem misericórdia pelo depoimento de duas
ou três testemunhas”. Ele prossegue apontando o maior “testemunho” do “Filho de
Deus” e do “Espírito da graça” (10.28,29).
Jesus aplicou o princípio de “duas ou três testemunhas” às Suas instruções para
a resolução de conflitos em Sua Igreja (Mt 18.15,16). Paulo usou o padrão para
determinar se uma acusação contra um presbítero poderia ser sustentada (1 Tm
5.19). Ele parecia considerar apenas a repetição do testemunho, pessoalmente ou
por carta, como suficiente (2 Co 13.1-3; Carver, 2009, p. 360). Essa norma do AT
quanto ao que constitui um testemunho credível é fundamental para essa passa
gem de 1 João.
NO TEXTO
Também não conseguiam aceitar a morte de Cristo na cruz, se essa era a referência
de sangue. João, no entanto, afirmava tanto a humanização como a crucificação
como momentos de salvação importantes, em oposição à visão dos separatistas
(Marshall, 1978, p. 232).
Brooke observou corretamente que o batismo marcava o início da obra de
Cristo na cruz e sua consumação nos Evangelhos Sinóticos (1912, p. 133). Con
tudo, o Quarto Evangelho nunca menciona explicitamente o batismo de Jesus por
João. Somente uma consciência do paralelo Sinótico aponta para ele.
Da perspectiva joanina, a humanização aceitava a existência corporal plena de
Jesus, desde o nascimento até a morte na cruz (Jones, 2009, p. 211; Burge, 1996, p.
202). A referência ao sangue quase certamente remete a 1.7 (“o sangue de Jesus...
nos purifica de todo pecado”), que claramente se refere ao significado redentor da
morte de Cristo (Jones, 2009, p. 211).
O papel do Espírito como aquele que dá testemunho parece correlacionar-
-se bem com João 15.26,27, onde ele é o “Espírito da verdade”, o “Conselheiro”.
A passagem do Evangelho também relata o testemunho do Espírito “da parte do
Pai” a “respeito” de Jesus. Os discípulos também foram obrigados a testemunhar.
O testemunho deles deveria ser permitido pelo Espírito que lhes foi enviado pelo
“ausente”, embora presente, Jesus (veja Jo 16.7; veja o quadro “Verdade” em 1.6).
João atribui uma enorme importância ao testemunho fiel conforme se aproxi
ma da conclusão de sua carta. Esse tema recorda a declaração de abertura: “A vida
se manifestou; nós a vimos e dela testemunhamos” (1.2). No capítulo 5, João em
prega variações de “testemunho” dez vezes em cinco versículos (v. 6,7, quatro vezes
no v. 9, três vezes no v. 10 e no v. 11).
A água e o sangue podem ter conotações sacramentais (batismo e santa ceia).
Se assim for, eles testemunham a obra salvífica de Jesus de uma forma repetitiva
(Smith, 1991, p. 124). Todavia, o Quarto Evangelho nunca menciona explicita
mente a instituição da comunhão.
Um conjunto de leituras variantes ocorre no versiculo 6. Alguns manuscritos
descrevem água e sangue. Outros têm água e espírito. Uns, ainda, água e sangue
e espírito (todos os três) em várias combinações. Todos parecem ser tentativas
posteriores dos escribas de harmonizar a redação da epístola com os paralelos do
Evangelho já citados.
H 7 - 8 Esses versículos sugerem uma terminologia trinitária: Há três que dão tes
temunho. Esses três testemunham continuamente (m artyrountes, um particípio
presente). No versículo anterior, o “Espírito” era a testemunha {to m artyroun), “dá
testemunho”. Agora, as testemunhas são três. Escribas posteriores não conseguiram
deixar de estender o pensamento em uma explícita terminologia sobre a Trindade.
166
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
A P A R T IR D O T E X T O
Testemunhas fiéis
O plano de Cristo era chamar e treinar algumas pessoas (“os doze”), para con
tar aos outros. Eles, por sua vez, contariam a outros. Todos os que ouviram o evan
gelho fazem parte desse conjunto de testemunhas fiéis. O conjunto atinge desde
o primeiro testemunho do descobrimento do túmulo vazio e encontra-se com o
Cristo ressuscitado no presente. Como corredores de revezamento, recebemos o
168
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
Integridade pessoal
Como podemos aceitar o testemunho dos homens (v. 9), se aqueles que tes
temunham não têm integridade? Estabilidade social, equilíbrio, saúde familiar e
relações espirituais requerem pessoas cujas palavras sejam verdadeiras. Pessoas de
todas as épocas, infelizmente, demonstraram a capacidade humana de esconder e
distorcer a verdade. Devemos viver com sinceridade e de forma consistente, para
que os outros possam acreditar em nós com facilidade. No entanto, apesar de nos
esforçarmos ao máximo, o testemunho de Deus é maior.
Segurança espiritual
POR TRÁS DO T EX T O
A expressão vida eterna é frequente nos escritos joaninos. Ela ocorre seis vezes
em 1 João (1.2; 2.25; 3.15; 5.11,13,20), e 16 vezes no Evangelho. Nos Evangelhos
Sinóticos, ela aparece apenas oito vezes. E um conceito distintamente do NT. Uma
169
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
ideia similar no AT aparece apenas em Daniel 12.2, que se refere à “vida eterna”,
com uma clara referência ao futuro. A literatura joanina enfatiza de modo especial
a experiência atual da vida eterna.
NO TEXTO
1 13 João refere-se ao que ele já havia escrito (aoristo, veja o comentário em 2.14).
A NVI traduz isso no pretérito perfeito — escrevi-lhes, interpretando o verbo
como uma referência à carta acabada, do ponto de vista de seus leitores. João não
se referia a uma carta anterior. Esse é um “aoristo epistolar”. A redação da carta
ocorreu no passado, do ponto de vista do leitor, embora, naturalmente, João esti
vesse escrevendo no presente. Isso explica a diferença entre as traduções literais de
equivalência e dinâmica (Earle, 1984, p. 109).
Smith sugere que 1 João possa ter originalmente encerrado em 5.13. Ele se
refere a “problemas de finalização” semelhantes nos Evangelhos de João e Marcos e
em Romanos (1991, p. 121,122). Contudo, Jones demonstra, de forma convincen
te, que 5.13-21 assemelha-se a um epílogo clássico (2009, p. 223).
Por 36 vezes em 1 João e uma vez em 2 João e em 3 João, o autor afirma escre
ver para que seus ouvintes saibam. A declaração para que vocês saibam, no modo
subjuntivo, indica que João reconhecia que o conhecimento deles era condicional.
A confiança que tinham em ter vida dependia da resposta que dariam para a ori
gem da vida. A palavra bina introduz uma oração de “propósito”. João escrevia a
fim de que eles pudessem saber. Ele pretendia que suas comunidades pudessem ficar
totalmente confiantes de que tinham vida eterna como realidade pessoal e corpo
rativa (vocês, no plural). Porém, isso dependia de realidades alheias à sua vontade.
A frase a vocês que creem traduz um particípio presente. Isso enfatiza a ne
cessidade da fé contínua: A vocês que continuam crendo. Acreditar no nome do
Filho de Deus é mais do que um evento. Isso pode começar em um momento de
confiança, mas exige aprovação contínua. Quando a entrega a Deus acontece, a
vida e a obediência devem ir atrás (Brooke, 1912, p. 143).
Há uma sequência de afirmações de crença no capítulo 5 (v. 1,5,10,13). Em
cada uma, a terminologia muda para salientar novos pontos. Esses quatro versí
culos destacam o paralelismo poético e o desenvolvimento da fé. O cristão ou os
cristãos:
crê que (boti) Jesus é o Cristo (v. 1)
crê que (boti) Jesus é o Filho de Deus (v. 5)
crê no (eis) Filho de Deus (v. 10)
creem no (eis) nome do Filho de Deus (v. 13)
170
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
João escreve à comunidade cristã: Se sabemos que ele nos ouve (...) sabemos
que temos o que dele pedimos. Os crentes podem ter confiança de que Deus
os ouve, porque juntos pedem em harmoniá com a vontade de Deus. O que João
promete é que aqueles que buscam sinceramente a vontade de Deus em sua vida a
encontrarão.
Muitos crentes sinceros compreendem erroneamente a oração em “nome de
Jesus”. Eles imaginam que uma marca de identificação no final de suas orações, de
alguma forma, obriga Deus a cumprir suas solicitações. Na verdade, a oração em
“nome de Jesus” significa pedir de modo consistente, com os propósitos de Deus
trabalhando por intermédio de Jesus, pelo Espírito.
Orar “no nome” (v. 13) é pedir de acordo a sua vontade (v. 14), não contrário
a ela. Será que algum verdadeiro filho de Deus quer outra coisa senão a vontade de
Deus? Pedir a Deus “no nome” significa que representamos fielmente o caráter de
Cristo em todas as formas — Sua vida, Sua morte, Sua ressurreição e Seu reinado
vindouro. Orar “no nome” afirma a contínua presença de Cristo no mundo pelo
Espírito, que nos ajuda a orar (Carver, 1996, p. 81-89).
Um pedido equivocado, voltado ao encantamento, consegue pouco mais do
que frustração e anemia espiritual. Pedir fora da vontade de Deus nada traz de po
sitivo. Quando oramos em nome de Jesus, buscamos a vontade de Deus. Só dessa
forma conseguimos avançar com clara segurança. Deus, que coloca em nosso cora
ção para orarmos dessa maneira, trabalha para permitir a resposta. Ou seja, tem os
0 p ed id o q u e fiz em o s a Ele.
1 16 Nesse complicado versículo, a questão aparentemente continua a ser a se
gurança relacionada às nossas orações. De que modo a confiança na oração (v. 14)
afeta nossa confiança na vida eterna (v. 13)? João está dizendo que alguns objetos
da oração intercessora aumentarão a nossa confiança e outros não ? Será que ele está
enfatizando que a oração tem os seus limites ? Quais são as distinções que ele quer
que reconheçamos ?
Uma oração por um irmão [que] cometer pecado que não leva à morte pode
ser expressa com confiança (v. 14,15)? Uma oração por alguém cujo pecado leva à
morte não pode ser feita com confiança? Como podemos saber as consequências
futuras de um pecado particular? Pecados particularmente hediondos precisam de
mais de intercessão ? Como sabemos que não precisamos orar em tais circunstâncias ?
Será que João está sugerindo que nós nunca podemos orar por esses pecadores,
nem por esses pecados ? Será que João, por outro lado, está sugerindo que a nossa
oração por si só pode garantir o perdão divino para o menor dos pecados das outras
pessoas sem que precisem orar?
172
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
A P A R T IR D O T E X T O
A existência de um pecado que leva à morte (v. 16), que está além de orações,
é uma ideia assustadora. Embora o sentido completo do significado do texto nos
escape, a advertência é clara. O pecado é letal; e alguns pecados matam mais rápi
do do que outros. Independentemente da velocidade, a estrada da rebelião contra
Deus tem sempre a morte como destino final. Contudo, deixar os toques do Espí
rito, ajudados pelas orações do povo de Deus, conduz-nos cada vez mais conduz à
vida.
A distinção entre pecados pelos quais o leitor é convidado a orar em contraste
com aqueles pelos quais não é necessário orar tem alguns desenvolvimentos
históricos interessantes. Quanto ao “pecado para a morte”, Agostinho concentrava-
-se especialmente em pessoas que chegavam ao fim da vida em “perversidade”.
175
1.2E3JOÀO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
NO TEXTO
particípio perfeito), não por alguma experiência posterior (Brooke, 1912, p. 148).
João não dá espaço para uma “religião pecadora” aqui.
Os três versículos estão todos no tempo presente (ouch ham artanei: ele não
con tin u a a pecar-, terei: ele está m antendo-, e ouch haptetai: ele n ã o está to ca n d o ).
Eles sugerem que a libertação do pecado seja uma questão contínua e relacionai
(Smith, 1991, p. 136). Os cristãos não pecam habitualmente. Eles não vivem em
pecado (Burge, 1996, p. 216). Contudo, viver sem pecado contínuo não é automá
tico. Isso exige decisões morais significativas (Smith, 1991, p. 136). Não pecar é
uma sociedade entre Deus e o homem.
O sentido da parte do meio do versículo não é claro: aquele que nasceu de
Deus também parece ser o mesmo que o protege. Podemos esperar que o texto
diga: “Aquele que nasceu de Deus, Deus mantém seguro” (Schnackenburg, 1992,
p. 253). Vários intérpretes entendem aquele que nasceu {gennêtheis) de Deus
como uma referência ajesus (Strecker 1996, p. 208; Marshall, 1978, p. 252; Bult-
mann, 1973, p. 88-90).
A gramática, no entanto, parece antes indicar que o que nasceu de Deus —
isto é, o cristão — é também aquele que o protege. Porém, o que isso significa?
Alguns manuscritos tentam resolver esse enigma constando m a n tém ele m es
m o em vez de o mantém. Isso exigiría a tradução m a n tém ele m esm o segu ro. Ne
nhuma leitura variante é plenamente satisfatória.
Independentemente disso, o que João quer dizer parece bastante claro: os
cristãos são protegidos, seja por Deus/Cristo, seja por eles mesmos. A questão é a
mesma. Podemos proteger-nos apenas porque nascemos de Deus (Brown, 1982,
p. 622).
O poder de Deus é maior do que o M aligno. Isso é fato. Jesus disse: “O prínci
pe deste mundo (...) não tem nenhum direito sobre mim” (Jo 14.30). No entanto,
muitos cristãos vivem como se Satanás tivesse vantagem sobre suas vidas resgata
das. O mal é real. Porém, é bastante limitado pela permissão soberana de Deus. O
mal não pode ir além do que Deus permite. Na verdade, Jesus orou por essa mesma
proteção para Seus seguidores e Seus futuros convertidos (Jo 17.15).
João faz uma declaração ousada: O M aligno não o atinge. A promessa é con
fusa à primeira vista. Todos nós já sentimos, em algum momento ou outro, o “to
que” do mal em nossa vida. Entretanto, atinge (haptetai) aqui tem mais a ver com
o contato que se prende — que segura e não solta. Esse mesmo verbo aparece na
admoestação do Jesus ressurreto a Maria Madalena de não o segurar como antes,
já que Ele estava subindo a Deus (Jo 20.17). O verbo pode referir-se a relações de
ligação, como o casamento (1 Co 7.1). Assim, João parece dizer que aquele que
177
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BF.ACON
nasceu de Deus não pode ser aprisionado nas garras do mal. O cristão e o Maligno
não têm relação sustentada. Ser filho de Deus exclui alianças menores.
1 1 9 João novamente declara sabemos. Nós temos uma certeza experiencial dada
por Deus. Não é um conhecimento “privilegiado” e secreto, não é uma visão esoté
rica superespiritual que somente alguns podem ter (como pensavam os gnósticos).
Aqueles que são verdadeiramente de Deus são mantidos seguros. Eles têm a garan
tia de um conhecimento que é suficiente.
Os leitores de João sa b em que são filhos de Deus. Ao mesmo tempo, João faz
a impressionante afirmação de que o mundo todo está sob o poder do Maligno.
Essa é uma linguagem hiperbólica. Quando João diz o mundo todo, ele lembra a
visão de mundo dualista em que o espírito do anticristo está em oposição hostil aos
cristãos joaninos (veja 2.15,16). E claro que João não quer dizer que toda as partes
do globo e todos aqueles que estão sobre ele estão sendo manipulados por forças
satânicas. Seu ponto é claramente este: Ele protege os verdadeiros filhos de Deus
(v. 18), apesar daqueles que se opõem a eles. Mesmo agora eles estão protegidos do
Maligno.
I 2 0 Como alguém pode saber a verdade? Apenas quando ela é revelada por
Deus: O Filho de Deus veio e nos deu entendimento. A confiança de João na
segurança ética de suas comunidades (v. 19) tem uma base cristológica, que é cui
dadosa e claramente construída.
A verdade existe e é cognoscível. A verdade reside e é comunicada por inter
médio de uma pessoa — aquele que é o Verdadeiro. Uma mente clara, com en
tendimento (dianoian), vem do Pai por intermédio do Filho de Deus. O tempo
perfeito do verbo grego traduzido como deu sugere que Deus continua a abrir
nossa mente para mais verdades em Cristo.
A verdade pode ser vivida ordenando nossa vida de acordo com as verdades re
veladas sobre Deus. Porém, João declara mais que isso. A fé que ele aponta também
envolve viver em relacionam ento ju sto com o autor da verdade. Estamos naquele
que é o Verdadeiro, ou seja, estamos em Jesus Cristo. Quando entramos em um
relacionamento com o Filho de Deus, entramos na verdade. A verdade está exclusi
vamente em Cristo. Contudo, a verdade também está nos crentes que confiam em
Cristo. Receber essa verdade nos restaura para o conhecimento do único verdadei
ro Deus, e conhecê-lo é a vida eterna (Jo 17.3).
A frase este é o verdadeiro Deus é ambígua. João está referindo-se ao Pai ou
a Jesus como o verdadeiro Deus? Este traduz houtos. Seu antecedente imediato é
claramente Jesus Cristo. As frases naquele que é o Verdadeiro e seu Filho estão
no caso dativo, confirmando essa identificação.
178
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
Após uma análise cuidadosa, Jones concorda com o fato de que existe um forte
argumento para relacionar o verdadeiro Deus e a vida eterna com o Filho (Jones,
2009, p. 235). Assim, esse texto faz uma das afirmações mais ousadas do NT sobre
a natureza divina de Jesus. Cristo é o verdadeiro Deus, que é a vida eterna. Essa
afirmação ousada de encerramento de 1 João lembra uma declaração semelhante
em João 20.28 — a declaração de Tomé do Jesus ressurreto: “Senhor meu e Deus
meu! .
João estava lutando bravamente para garantir que seus leitores compreendes
sem o quanto estavam seguros por conhecerem Deus por intermédio de Cristo. Tal
conhecimento ligava-os intimamente a Deus e a todos que pertencem a Ele. Em tal
relação, a condição atual e o destino futuro deles eram a vida eterna.
João estava convencido de que a segurança do cristão é a presença do Cristo
celestial, vivendo o caráter do Jesus terreno no dia a dia dos que estão em seu Filho
Jesus Cristo. A segurança é um tema recorrente em toda a carta. Isso não é presun
ção, uma vez que dá testemunho daquele que é o verdadeiro Deus e a vida eterna.
BI 2 1 A epístola encerra-se repetindo alguns dos temas com os quais começou.
João emprega uma terminologia de família — filhinhos — em sua bênção pessoal.
Acompanhando essa calorosa conclusão, no entanto, há um lembrete claro de que
comprometer-se é mortal. A preocupação pastoral de João leva-o a dizer palavras
de segurança, mas também de cautela. Ele comanda os leitores: Guardem-se (um
verbo imperativo).
Responder a Deus é necessariamente pessoal; ninguém pode obedecer p o r ou
tra pessoa. No entanto, nossa resposta a Deus acontece en tre outras pessoas. João
é, como todos os verdadeiros ministros, pastor e profeta. Ele cuida, afirma e ama.
Todavia, ele ama demais o seu público para encobrir os perigos que este enfrenta.
Sem aviso, sua sentença final menciona a ameaça dos ídolos. Ele não oferece
explicação ou elaboração sobre os perigos específicos que seus leitores enfrentam.
Suas palavras podem advertir contra o pecado em geral ou até mesmo, literalmen
te, contra a idolatria a imagens.
Todavia, no contexto atual, o significado de ídolos provavelmente resume suas
advertências explícitas em toda a carta contra os separatistas e sua falsa cristologia
(Smith, 1991, p. 137; Marshall, 1978, p. 255,256; Bultmann, 1973, p. 90; Bruce,
1970, p. 128). Assim, a admoestação de João coloca diante de seus ouvintes a clara
escolha entre o Cristo crucificado, ressuscitado e reinante, que dá vida eterna (v.
20), e qualquer falsificação (Hills, 1989, p. 285-310).
Com esse foco final em Jesus como o Cristo, que é a revelação única de Deus,
o escrito termina. Uma minoria de manuscritos conclui a epístola de uma forma
liturgicamente apropriada, com um claro e definitivo am ém .
179
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
A P A R T IR D O T E X T O
Redenção do mundo
O mundo todo (...) sob o poder do Maligno (v. 19) parece deixar os cristãos
em um dilema. Se o mal realmente controla o nosso mundo, pode parecer tentador
abandonar o mundo por ser perdido, de forma irremediável. A linguagem hiper
bólica da passagem poderia deixar-nos desnecessariamente pessimistas em relação
ao mundo.
No entanto, a maior narrativa bíblica demonstra que Deus está trabalhando
para curar não só indivíduos, mas comunidades. Deus está trabalhando fervoro
samente para consertar no m undo o que o pecado quebrou. O mundo não está
destinado à destruição total, mas à restauração. Por isso ser verdade, os cristãos
certamente devem ser, agora, colaboradores de Deus, trabalhando para trazer cura
ao mundo que Deus criou e ama. Jesus orou, afinal: “Pai Nosso (...), seja feita a tua
vontade, assim na terra” (Mt 6.9,10).
180
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
181
2 JOÃO
INTRODUÇÃO
B. Características literárias
Veja o quadro “Cartas greco-romanas” em Características literárias na primei
ra Introdução. Essa breve carta pessoal inclui a saudação habitual do escritor (“o
presbítero”, v. 1). As linhas de abertura dão nome aos destinatários (“à senhora elei
ta e aos seus filhos”). O autor expressa o desejo de “visitá-los” (v. 12) e termina com
o tradicional termo “saudações” (v. 13).
Como em 1 João, uma característica literária importante é a utilização de
uma terminologia de relacionamento, especialmente, de família. O presbítero usa
termos afetuosos (“senhora eleita”, v. 1; “senhora”, v. 5; e “irmã eleita”, v. 13). Os
crentes são chamados de “filhos” (v. 1,4,13). Os personagens divinos mencionados
incluem o “Pai” (v. 3,4,9) e o “Filho” (v. 3,9). A ausência de “irmão” é um pouco
curiosa. Ocorre 13 vezes em 1 João e três vezes em 3 João. Nenhum nome pessoal
aparece em 2 João, embora os destinatários pareçam ser bastante conhecidos para
o presbítero, que permanece sem nome.
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
C. Temas teológicos
Inúmeros intérpretes entendem a expressão “senhora eleita” (v. 1) como uma
personificação simbólica da Igreja (veja Jones, 2009, p. 251; Thomas, 2004, p. 40;
Painter, 2002, p. 333; Culpepper, 1998, p. 276; Strecker, 1996, p. 220; Marshall,
1978, p. 60). O AT, às vezes, refere-se a Israel utilizando uma terminologia de per
sonificação similar. Jerusalém foi comparada a uma criança abandonada, deixada
para morrer na beira da estrada (Ez 16.1-14). O amor de Deus pela Israel desviada
é comparado ao casamento de Oseias com sua esposa infiel. Paulo via maridos e
esposas como ilustrações de Cristo e da Igreja (Ef 5.21-33). Em Apocalipse 21.2, a
nova Jerusalém é a “noiva”. Há muitos casos de linguagem simbólica descrevendo o
povo de Deus com termos de gênero feminino.
Além disso, é possível que a “senhora eleita” tenha sido uma mulher que dis
ponibilizou um local para uma igreja doméstica. Em Atos, Lídia acolhe Paulo e
seus companheiros (At 16.11-15). Priscila e Aquila ministraram a Apoio na pró
pria casa (At 18.24-26). John Wesley considerava o grego kyria (“senhora”) um
nome próprio — Kyria (1983, s.p.), embora nenhum estudioso moderno aceite
esse ponto de vista. Ainda assim, é plausível que o presbítero tenha escrito para
uma importante anfitriã.
D. Questões hermenêuticas
Quem é “o presbítero” {presbyteros, v. 1; também 3 Jo 1) ? Com o artigo, “o
presbítero”, não há outros casos no NT. Formas anárquicas (sem artigo — “presbí
tero” ou “presbíteros”) aparecem com frequência. Nos Evangelhos e no início de
Atos, a palavra “presbíteros” refere-se a líderes judeus. Até metade de Atos, o ter
mo começa a referir-se a líderes das igrejas (At 14.23; 15.2,4,6,22,23; 16.4; 20.17;
21.18).
Os últimos presbíteros eram escolhidos para administrar a igreja (1 Tm 5.17;
Tt 1.5) e liderar no ministério (1 Tm 4.14; Tg 5.14; 1 Pe 5.1). Não há evidência no
primeiro século de presbíteros de uma igreja com jurisdição sobre outras congre
gações. O título assumiu esse sentido de supervisão mais tarde (Bruce, 1970, 144,
n. 2 citando Irineu). Porém, a ordem da igreja do segundo século não deve ser lida
sob um texto do primeiro século.
Qualquer discussão sobre 2 João deve abordar a questão da hospitalidade aos
ministros viajantes. O significado teológico e prático é grande. Pregadores itine
rantes recebidos com hospedagem e alimentação faziam dos anfitriões parceiros
de sua obra (3 Jo 6). Por outro lado, a hospitalidade deveria ser negada aos que
184
NOVO COMENTÁMO BÍBUCO BE.AC.ON INTRODUÇÃO
185
COMENTÁRIO
Essa carta combina terminologia de família (senhora eleita e aos seus filhos,
v. 1; e “os filhos da sua irmã eleita”, v. 13) com preocupação pastoral. Embora te
nha tom pessoal, a carta, obviamente, aborda uma igreja. Alguns haviam deixado a
comunidade (1 Jo 2.19). A partida deles ocasionou advertências incisivas para que
permanecessem fiéis à verdade (cinco vezes nos v. 1-4; veja o quadro “Verdade” em
1 .6 ).
Havia “muitos” adversários incômodos (v. 7), aparentemente recrutando pes
soas para “obras malignas” (v. 11). Pessoas desse tipo eram “o enganador e o anti-
cristo” (v. 7). A identidade exata delas não é clara. Contudo, sua principal ofensa
era uma cristologia falha, que negava que Jesus veio “em corpo” (v. 7).
Alguns separatistas eram pregadores itinerantes que esperavam apoio material
das igrejas joaninas. O presbítero é inflexível: “Não o recebam em casa nem o sau
dem” (v. 10). Professores viajantes dependiam basicamente de outras pessoas para
hospedagem e alimentação. A D idaquê aborda esse assunto especificamente.
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
P ro fe sso re s itin e ra n te s
O m i n i s t é r i o it i n e r a n t e d e f i n e , e m g r a n d e p a r t e , a s v i a g e n s m i s s i o
n á r ia s d o a p ó s t o l o P a u lo . E l e e s e u s c o l e g a s v i a j a r a m p o r t o d a a re g i ã o
n o r t e - m e d i t e r r â n i c a . À s v e z e s , e le s r e c e b i a m h o s p e d a g e m e a p o i o m a t e
rial d e b e n f e i t o r e s c r i s t ã o s . Q u e s t õ e s d e s e g u r a n ç a e r e a l i d a d e fi n a n c e i r a
e r a m f a t o r e s d e s s a p r á t i c a . F ic a r e m c a s a d e a m i g o s c o n f i á v e i s r e d u z i a
a s d e s p e s a s e o s ris c os a s s o c i a d o s a e s t a b e l e c i m e n t o s p ú b lic o s ( v e j a A t
1 6 .1 5 ; 1 8 .2 ,3 ; e F m 22 ).
F o r n e c e r a l i m e n t a ç ã o e h o s p e d a g e m a m in is t r o s v i a j a n t e s d a v a a b e r
t u r a a a b u s o s . O p r e s b í t e r o p e d i a d i s c e r n i m e n t o q u a n t o a q u e m o fe re c ia
h o s pita lida d e. A li m e n ta ç ã o , h a b ita ç ã o e d inheiro d e v e r ia m a p o ia r m in is
t é r i o s c r i s tã o s l e g í t i m o s , e n ã o e n c o r a j a r fa ls o s m e s t r e s . S e o s v i a j a n t e s
s e h o s p e d a s s e m m a i s d o q u e d o i s o u t r ê s d ia s , o u l e v a s s e m m a i s d o q u e
u m p ã o d a c a s a o u p e d i s s e m d i n h e i r o , d e v e r i a m s e r c o n s i d e r a d o s fa ls o s
p r o f e t a s ( D id . 1 1 ; K o e n i g , 1 9 9 2 , p. 2 9 9 - 3 0 1 ) .
NO TEXTO
U 1 Quem é o presbítero? Sem dúvida, sua identidade era conhecida pelos des
tinatários originais da carta. Todavia, não é tão evidente para nós. O presbítero
(presbyteros) é um título único, usado apenas duas vezes no NT, aqui e em 3 João
1. Ele pode simplesmente referir-se a uma pessoa mais velha (Rm 9.12; 1 Tm 5.2;
1 Pe 5.5). Ele também identifica líderes do Sinédrio judaico (Mt 16.21; At 6.12) e
líderes de igrejas locais (At 11.30; 20.17; 1 Tm 5.1,17,19; 1 Pe 5-1).
Em 1 Pedro, alguns líderes cristãos são chamados de “presbíteros”. A diferença
aqui é o sentido exclusivo, o presbítero (grifo do autor), talvez seja uma declaração
de autoridade única. Nenhum texto do NT relata um presbítero único, com pode
res de supervisão para inserir-se nos assuntos de outra congregação. O termo em 2
João e 3 João parece deixar implícito uma pessoa com conhecimento das tradições,
cuja reputação e influência eram significativas (Brown, 1982, p. 648-651).
A carta dirige-se à senhora eleita e aos seus filhos. Será que o presbítero es
tava escrevendo a um destinatário do sexo feminino e à sua casa? Por que ela era o
objeto de sua preocupação espiritual especial? O termo senhora (kyria) é a forma
feminina da palavra usada na sociedade greco-romana educada do primeiro século,
para dirigir-se a um homem como “senhor” (kyrios).
Será que o presbítero estava usando linguagem figurada? Se for o caso, ele
dirigiu-se à igreja corporativamente como uma mulher personificada e usou
188
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
Eleiçã o
S e r e le i t o in dica u m a r e la ç ã o d e a l ia n ç a c o m D e u s , b a s e a d a n a g r a ç a .
E l e i ç ã o n ã o é a l g o q u e s e c o n q u i s t a . D e u s t o m a a in ic i a t iv a . A e le i ç ã o é a
o f e r t a d e i n t i m i d a d e c o m D e u s . Isra el e n t e n d i a s e u r e l a c i o n a m e n t o c o m
D e u s c o m o n a ç ã o e le ita : " P o is v o c ê s s ã o u m p o v o s a n t o p a r a o S e n h o r ,
o seu D e u s . O S e n h o r , o seu D e u s , os e sc olh e u d e n tre to d o s os p o v o s da
fa c e da terra p ara ser o seu p o v o , o seu te s o u ro p e sso a l" ( D t 7 .6 ; veja
1 4 . 2 ; SI 1 0 5 . 6 ; 1 3 5 . 4 ; Is 4 1 . 8 , 9 ; 4 4 . 1 ; 4 9 . 7 ) .
In d iv íd u o s p r o e m i n e n t e s f o r a m " e l e i t o s " ( e x . : D a v i n o SI 8 9 . 3 ; M o i
s é s e A r ã o n o SI 1 0 5 . 2 6 ) . D e u s d e s i g n o u reis d e S u a e s c o l h a p a r a Israel
e Ju d á ( 1 S m 1 0 .2 4 ; 1 6 . 1 ; 1 Rs 8 .1 6 ) . A t é m e s m o lugares c o m o Je ru s a
lé m e o t e m p l o f o r a m e s c o l h i d o s p o r D e u s ( 1 R s 8 : 4 4 , 4 8 ; 1 1 . 1 3 , 3 2 ; 2 C r
6 .6 ,3 4 ,3 8 ).
N o N T J e s u s é o e s c o l h i d o d e D e u s ( L c 9 . 3 5 ; 2 3 . 3 5 ; 1 Pe 1 . 2 0 ; 2 . 4 , 6 ) . O s
d is c íp u lo s s ã o o s e s c o l h i d o s d e J e s u s (Jo 6 . 7 0 ; 1 3 . 1 8 ; 1 5 . 1 6 , 1 9 ) . E m p a s s a
g e n s e sc atológ ic as , "eleito s" a p a r e c e m c o m fre q u ê n c ia (M t 2 4 . 2 2 ,2 4 , 3 1 ;
M c 1 3 . 2 0 , 2 2 , 2 7 ) . O s c r i s tã o s e a s ig re ja s s ã o o s e le i t o s d e D e u s ( E f 1 . 1 ; Cl
3 . 1 2 ; 1 Ts 1 . 4 ; 1 Pe 1 . 1 , 2 ; 2 . 9 ; 5 . 1 3 ; P a tr ic k , 1 9 9 2 , p . 4 3 4 - 4 4 1 ; S h o g r e n ,
1 9 9 2 , p. 4 3 4 , 4 4 4 ; M e n d e n h a l l , 1 9 6 2 , p. 7 6 - 8 2 ) .
A P A R T IR D O T E X T O
O termo senhora (v. 1,5) transmite honra às mulheres. Se essa senhora era
pastora de uma igreja doméstica, isso afirma o papel das mulheres no ministério.
Adam Clarke sugeriu:
A carta foi enviada para alguma senhora cristã eminente (...) que era, prova
velmente, diaconisa da igreja [e] (...) tinha uma igreja em casa, ou em cuja
casa os apóstolos e os evangelistas viajantes frequentemente pregavam e eram
entretidos (Clarke, s.d., p. 936).
191
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
A oração é íntima
A expressão seu Filho (v. 3) lembra a forma como Jesus se referiu a Deus como
“Pai” (em Mc 14.36, transliterando e traduzindo o termo aramaico Abba, como
também em Rm 8.15 e G14.6; Ashton, 1992, p. 7,8). Da mesma forma, a voz divi
na, tanto no batismo de Jesus (Mt 3.17; Mc 1.11, Lc 3.22) como na transfiguração
(Mt 17.5; Mc 9.7; Lc 9.35), chamou-o de “Filho”. Quando oramos, entramos em
uma conversa íntima.
NO TEXTO
A P A R T IR D O T E X T O
Discipulado é diário
NO TEXTO
197
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
separatistas ensinar os crentes joaninos em tais casas (Brown, 1979, p. 676). A frase
não (...) o saúdem é literalmente: Não fa le m p a ra cu m p rim en tá -los.
Acolher os falsos mestres era conceder-lhes afirmação teológica. Dar-lhes
apoio material era torná-los cúmplices, compartilhando a mesma responsabilidade
{koinõnei, p a rticip a r) pelas suas obras malignos (veja o uso do mesmo termo em
1 Jo para referir-se a Satanás em 2.13,14; 3.12; 5.18). Hospedar falsos mestres era
como convidar Satanás para jantar!
A P A R T IR D O T E X T O
Ir além (v. 9) retrata alguém se separando do grupo. Correr sozinho nos des-
conecta espiritualmente da Igreja. Na companhia de outros cristãos, somos mais
propensos a correções ocasionais que nos ajudarão na jornada.
Em que ponto algumas questões são tão importantes que devemos evitar a
comunhão com o próximo? O presbítero não permite o comprometimento da
cristologia. A Igreja deve discernir o falso do verdadeiro. Temos de aprender a ser
redentores sem comprometer crenças essenciais e fundamentais.
Nossa lealdade é para com a pessoa de Jesus Cristo. Porém, isso deve ser equi
librado com devoção e mandamentos aos textos que nos permitem aprender sobre
Ele. Estamos longe da época de Jesus. Portanto, precisamos depender de textos,
especialmente das Escrituras. Todavia, também podemos aprender com outros
testemunhos escritos úteis para o desenvolvimento da fé cristã, como os credos
199
1,2 E 3 JOÂO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
0 anticristo
O que devemos concluir com o fascínio moderno com o anticristo (v. 7)? O
termo é raro na Bíblia. João diz: “o anticristo está vindo”, mas logo amplia o con
ceito, dizendo que, em sua época, já havia “muitos anticristos” (1 Jo 2.18). O pres
bítero aplica o rótulo de anticristo a todas as pessoas do primeiro século que não
conseguiam afirmar Cristo como totalmente encarnado.
O presbítero não tinha interesse em uma mítica e suprema encarnação do mal
do fim dos tempos. Os cristãos modernos fariam bem em seguir o exemplo do pres
bítero. Devemos perguntar como o espírito do anticristo se manifesta em nosso
mundo e se recusa a prever ou a identificar umapessoa escatológica. O que importa
é de que forma o mal já está entre nós. Como o espírito do anticristo tem invadido
nossa vida e nossos sistemas; e o que podemos fazer quanto a esse mal agora? (veja
o quadro “Anticristo” em 1 Jo 2.18).
NO TEXTO
BI 1 2 O presbítero ainda tinha muito que (...) escrever. As cartas podem exercer
autoridade apostólica e preocupação pastoral. Porém, ele percebeu as limitações
do papel (chartou, somente aqui no NT) e da tinta (m elanos, lit.: “preto”, em outra
passagem, apenas em 3 Jo 13 e 2 Co 3.3, no NT; Earle, 1984, p. 111). O presbítero
esperava encontrar seus leitores face a face (lit.: boca a b oca p a ra fa la r). Essas me
táforas retratam, de forma vivida, a conversa pessoal. Nas linhas de encerramento
de 3 João 13, temos palavras idênticas (veja o comentário).
A LXX, por vezes, exprime a ideia de realizar reuniões pessoais de “boca” (es
torna, traduzido como “face” em Gn 32.30; Nm 12.8). Em outras passagens, “face
200
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
a face” traduz literalmente o grego (Dt 5.4; 34.10; Jz 6.22). Em um dos casos, “face
a face” traduz “visto claramente” (Nm 14.14 NTLH). Em Êxodo 33.11, traduz
“cara a cara” (TB).
G r a n d e p a r te d o N T e m p r e g a a s p e c to s d o g ê n e r o e p is to la r g re c o -
-r o m a n o . A s c a rta s d o N T in c r e m e n t a v a m a m is s ã o c ris tã e m to d o s os
q u ilô m e tr o s d e s e p a r a ç ã o n e c e s s á rio s . E la s a fir m a v a m a fid e lid a d e d a s
ig re ja s e a d v e r t ia m c o n tr a e rro s d e c re n ç a o u p r á tic a . A s c a rta s in s tru ía m
o s c re n te s (c a te q u e s e ) o u d e f e n d ia m a fé c o n tr a o s c rític o s (a p o lo g é tic a ).
C o n t a to s p o r e s c rito p o d ia m m e d ia r u m a m u d a n ç a d e a titu d e e d e a ç ã o
d e u m in d iv íd u o ( F ile m o m ) o u d e u m g r u p o d e ig re ja s ( G á la t a s ) . U m a c a r
ta tr a n s m itia a s id é ia s d e a lg u é m e , e m c e rto s e n tid o , tr a n s f o r m a v a -s e
n a p re s e n ç a p e s s o a l d o e s c r ito r q u a n d o s u a s p a la v r a s e r a m lid a s . Pe lo
m e n o s a lg u n s c o n s id e r a v a m a s c a r ta s d e P a u lo m a is e fic a z e s d o q u e a
s u a p r e g a ç ã o (2 C o 1 0 .1 0 ) .
P o d e -s e a r g u m e n t a r q u e 2 1 d o s 2 7 liv ro s d o N T s ã o a lg u m tip o d e
c a r t a . A s ú n ic a s e x c e ç õ e s s ã o o s q u a t r o E v a n g e l h o s , A t o s e A p o c a lip s e .
P o r é m , a té A p o c a lip s e é o rg a n iz a d o c o m o u m a c a r ta ( A p 1 .4 - 6 ; 2 2 .2 1 ) .
A m e n ç ã o d e c a rta s p e rd id a s a p a r e c e n o N T . P a u lo r e c e b e u c a rta s d o s
c o rín tio s — " q u a n t o a o s a s s u n to s s o b re o s q u a is v o c ê s e s c r e v e r a m " ( 1 C o
7 . 1 ) . O s re s to s d e u m c o m u n ic a d o à s ig re ja s s u r g e m e m A t o s n a fo r m a d e
u m a c a rta e m b u t id a n a n a r r a tiv a ( 1 5 .2 3 - 2 9 ) . F in a lm e n t e , e x is te m a s s e te
" c a r ta s " d o C ris to re s s u s c ita d o à s ig re ja s e m A p o c a lip s e 2 — 3 ( a d a p t a d o
d e E h r m a n , 2 0 0 8 , p . 1 8 6 - 1 8 8 ; S t o w e r s , 1 9 9 2 , 2 :2 9 0 - 2 9 3 ; S e i t z , 1 9 6 2 , p .
1 1 3 -1 1 5 ).
“seus filhos” (v. 1) não tivessem aceitado a opinião do presbítero, a carta provavel
mente não teria sobrevivido.
A palavra para completa ipeplêrõm enê, no tempo perfeito) carrega o sentido
àe p reen ch id a — sua alegria mútua estava quase transbordando. O tempo verbal
indica um evento com um efeito contínuo: R eceb em os a legria e con tin u a m os a
v iver nessa a legria . Essa alegria consumada entre Jesus e Seus seguidores é carac-
terística dos escritos de João (Jo 3.29; 15.11; 16.24; 17.13; 1Jo 1.4; Hübner, 1993,
p. 108).
A promessa de alegria completa pode antecipar a era messiânica (Strecker,
1996, p. 250). Lucas liga metaforicamente alegria ao dom do Espírito de Deus:
“Os discípulos continuavam cheios de alegria e do Espírito Santo” (At 13.52).
I 13 O presbítero conclui 2 João do mesmo modo como começou, com uma
terminologia de família. A expressão singular irmã apresenta uma metáfora da
igreja como um todo interligado e vivo. Os crentes são filhos. A igreja de onde o
presbítero escreve também é eleita (veja o quadro no v. 1). Essa comunicação não
era apenas entre o presbítero e uma igreja. Todavia, era sua tentativa de ligar pelo
menos duas congregações um a à outra.
As saudações pessoais finais de 2 João são típicas. A identidade e a localização
dos destinatários, a “senhora eleita” e “seus filhos” (v. 1) e a congregação represen
tados na saudação final — os filhos da sua irmã — continuam sendo um mistério.
O grau de interdependência entre as igrejas geograficamente distantes duran
te o final do primeiro século é difícil de determinar. As cartas do NT testemunham
que havia laços importantes. Há menções ocasionais de comunicação intercon-
gregacional em Atos. Atos 15 relata uma importante reunião entre enviados da
Antioquia e líderes de Jerusalém. Atos é, em grande parte, o registro de viagens
apostólicas com o fim de visitar igrejas estabelecidas ou plantar igrejas novas. As
sim, “escrever” e “falar (...) face a face” fez com que a igreja crescesse de forma im
portante e mantivesse seu senso de família.
A P A R T IR D O T E X T O
203
3 JOÃO
INTRODUÇÃO
B. Características literárias
A carta que chamamos de 3 João é o menor livro no NT. Este é singular
por ser o único escrito do N T que não menciona Jesus ou Cristo e por ser o úni
co escrito joanino que se refere à “igreja” (v. 6,9,10; Culpepper, 1998, p. 278).
A carta inclui aspectos tradicionais de cartas greco-romanas clássicas (veja
o quadro “Cartas greco-romanas” em Características Literárias, na Introdução
de 1 João; veja Thomas, 2004, p. 16,17, para comparações com cartas não bíbli
cos semelhantes). Nelas, estão incluídos: o remetente (“o presbítero”), o desti
natário (“Gaio”) e as palavras calorosas de saudação (“a quem amo na verdade”).
O conteúdo da carta aborda as preocupações e as esperanças do presbíte
ro. A carta termina com uma despedida tradicional (“a paz seja com você”) e
saudações finais (“os amigos daqui lhe enviam saudações” e “saúde os amigos
daí, um por um”). O comprimento da carta é típico de cartas antigas: cerca de
uma página. A espera de uma visita pessoal (v. 14) pode sugerir o porquê de
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
a carta ser tão breve. A situação é urgente (v. 10), e um encontro pessoal era
necessário tanto para enfrentar Diótrefes como para dar apoio a Gaio (Jones,
2009, p. 277).
C. Temas teológicos
A carta destaca a hospitalidade como forma de apoiar os ministros cristãos
itinerantes (veja o quadro “Professores itinerantes” em 2 Jo 1-3). Ela pressu
põe que oferecer ou negar hospitalidade era baseado em diferenças teológicas
e também pessoais. Quando alguém recebia ministros viajantes, oferecendo
comida e abrigo, essa hospitalidade manifestava o seu apoio ao trabalho deles.
Recusar-se em recebê-los era rejeitar os ensinamentos de seus visitantes (Varu-
ghese, 2005, p. 336). A hospitalidade não era uma simples questão social; era
uma questão teológica de importância considerável no cristianismo primitivo.
Outra questão teológica vital era como a liderança deveria ser adquirida e
perpetuada. Quando um líder é legítimo e quando não é ? O presbítero escre
veu “à igreja” (v. 9), buscando apoio para os ministros cujo trabalho ele admi
rava. Porém, um líder local, Diótrefes, talvez o pastor da igreja, havia rejeitado
o apelo do presbítero. Além disso, Diótrefes expulsava “da igreja” (v. 10) quem
se atrevia a oferecer hospitalidade aos representantes viajantes do presbítero.
Apesar de o presbítero e Diótrefes aparentemente fazerem parte do mes
mo círculo de igrejas joaninas (van der Watt, 2007, p. 20), uma discordância
significativa relacionada à autoridade criou um desentendimento entre eles.
Dois grupos rivais de missionários viajantes competiam pelo controle das igre
jas joaninas domésticas da região (Jones, 2009, p. 272, embora haja poucas
evidências).
O quanto as igrejas locais do final do primeiro século eram autônomas?
Havia ministros supervisores para fiscalizar uma região? À medida que a fé
cristã se afastava cada vez mais no tempo de suas origens apostólicas, ocorriam
expressões variantes em locais, culturas e línguas muito diferentes. Em muitos
casos, isso levou a uma independência crescente. A tensão óbvia em 3 João pro
vavelmente não foi um caso isolado. Cristãos, antes e agora, lutam para enten
der e viver a fé em meio às diferenças culturais e interpessoais.
D. Questões hermenêuticas
Alguns desafios interpretativos surgem nessa carta. Um deles é a declara
ção: “Oro para que você tenha boa saúde” (v. 2). Alguns cristãos tomavam isso
206
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO
como uma promessa divina de saúde perpétua para cristãos. Outros entendem
a frase como apenas uma palavra culturalmente condicionada e convencional
de saudação habitual de cartas antigas.
A referência a “pagãos” (NTLH), no versículo 7, pede explicações e uma
tradução mais sensível. Esse rótulo faz com que as pessoas fiquem na defensiva.
Ele desnecessariamente coloca uma divisão entre os representantes do Senhor
Deus e os que ainda não aceitaram a oferta da Sua graça.
A carta também traz disciplina eclesiástica e lutas pelo poder entre os lí
deres da igreja em vista. O que o texto em 3 João tem a dizer sobre a ordem
eclesiástica? Excomunhão é uma forma adequada de disciplina hoje? O que
significa expulsar as pessoas “da igreja” (v. 10)?
207
COMENTÁRIO
Em 2 João, o presbítero dirigiu-se a uma “irmã” muito amada (v. 1). Aqui, ele
escreve ao a m a d o Gaio. Em ambas as cartas, seu amor pelos destinatários é em
verdade (2Jo 1; 3Jo 1).
O texto em 3 João segue muitas convenções de cartas greco-romanas. Quan
do o prebístero escreve oro para que você tenha boa saúde (v. 2), ele emprega
uma saudação social comum. Em uma carta greco-romana do Egito, um jovem
(Aurelius Dius) saudou o pai com palavras quase idênticas: “Oro para que você
desfrute de boa saúde” (Ehrman, 2008, p. 187, tradução de Oxyrhynchus Papyri
10, n. 1296; veja outros exemplos em Elwell e Yarbrough, 1998, p. 194). Os escri
tores do NT eram pessoas de seu próprio tempo, e suas cartas refletem o estilo de
correspondência pessoal daqueles dias.
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
NO TEXTO
B 1 O autor chama a si mesmo de presbítero (veja o comentário em 2 Jo 1). En
quanto 2 João utiliza uma linguagem de família, 3 João tende a usar termos de
amizade. O presbítero chama Gaio de “querido” (NTLH; lit.: amado). Em 3 João,
todas as ocorrências de amado (v. 1,2,5,11) traduz uma forma de agapêtos. A carta
também usa o termo “amigos” {philoi, duas vezes no v. 15). No entanto, 3 João
inclui linguagem familiar (“irmão”, nos v. 3,5,10, e “filhos”, no v. 4).
Quem é Gaio? Esse nome, comum no Império Romano, pertencia a dois ou
três outras pessoas mencionadas noNT (veja 1 Co 1.14; At 19.29; 20.4; Rm 16.23;
Brown, 1982, p. 702). Nenhuma ligação convincente pode ser demonstrada com
qualquer um deles (Culpepper, 1998, p. 279; Marshall, 1978, p. 81,82). Portanto,
temos aqui mais outro Gaio (Smith, 1991, p. 149).
A afeição do presbítero por Gaio é clara: A quem amo na verdade (veja o
quadro “Verdade” em 1 Jo 1.6). As palavras gregas para verdade (sete vezes), a m o r
(seis vezes) e testemunho (cinco vezes) são as mais frequentes nessa carta. Elas
também são comuns no Evangelho de João (Thomas, 2004, p. 20). A exortação
de Jesus para “amar-se uns aos outros” (Jo 13.34; 15.12,17) tornou-se uma parte
importante do vocabulário de João (1 Jo 3.11,23; 4.7,11,12; 2Jo 5). A comunidade
joanina considerava o amor como algo ativo. Ele deveria ser visível nas ações das
pessoas, não apenas sentido. O amor divino age de formas semelhantes a Cristo.
O que quer dizer a frase amo na verdade (evocando 2Jo 1)? O amor de Deus
manifestado em Cristo colocava o presbítero e Gaio em um relacionamento com
Deus, a fonte de toda a verdade. Depois de se aproximarem de Deus, eles se apro
ximaram um do outro.
A teologia joanina é centrada em uma crença de prática da verdade. A verdade
tornou-se um padrão inflexível para o presbítero, um meio pelo qual ele definia
aqueles que estavam na fé, que ele considerava ortodoxa, e os que estavam fora dela.
A palavra aparece 11 vezes em 1 João (1.6,8; 2.4,8,20,21; 3.18,19; 4.6; 5.6); cinco
vezes em 2 João (1,2,3,4); e seis vezes em 3 João (1,3,4,8,12). O termo concentra-se
em conteúdo — as verdades que compõem a verdade. No entanto, a verdade não
pode ser limitada a um ensino formal de crenças fundamentais. Aqui, ela era como
um slogan que crentes verdadeiros empregavam para distinguir-se dos separatistas
(Lieu, 1991, p. 95).
B 2 O presbítero manifestava interesse na saúde na alma de Gaio (psychê, nos
escritos joaninos, geralmente vida-, Smith, 1991, p. 150; Bultmann, 1973, p. 97).
O NT fala, muitas vezes, sobre a p sych ê como a essência da pessoa, entendida de
forma holística (Schweizer, 1974, p. 639,642-644). O dualismo de uma alma ima-
terial presa em um corpo físico não tem suporte no NT.
210
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
A P A R T IR D O T E X T O
0 dom da amizade
O presbítero ora pelo amigo e diz isso para ele (v. 2). O amor é mais bem
conhecido quando é expressado. Orar pelo próximo é uma expressão de amor. O
amor a Deus torna-nos cada vez mais capazes de amar os outros. Quando a fonte
da verdade é o nosso foco, somos levados para mais perto de todos os que estão
igualmente próximos de Deus.
Saúde e riqueza?
com cristãos de qualquer geração, cuja vida e caminhada são inegáveis, mas que lu
tam com enfermidades físicas, necessidades financeiras ou relacionamentos feridos
sem terem culpa? Que consolo podemos oferecer a mães cristãs em cantos empo
brecidos do mundo que ainda veem metade de seus bebês morrerem na infância?
Alegria verdadeira
O uso absoluto do Nome (v. 7) é intrigante. Deus colocava o Seu nome divino
em lugares específicos — no tabernáculo, no templo, na arca da aliança e em Jeru
salém (Dt 12.21; 26.2; 2 Sm 6.2; 1 Rs 3.2; 5.3,5; 8.17,20; 2 Rs 21.4,7). A expressão
“meu nome”, referindo-se a Deus, ocorre mais de 100 vezes na Bíblia. Ela é dita
pelo Jesus terreno 24 vezes nos Evangelhos em referência a si mesmo. O Senhor
ressuscitado fala “meu nome” em Atos (9.15,16) e em Apocalipse (2.3,13; 3.8).
O termo grego kyrios, utilizado na LXX para referir-se a Deus, veio a ser
usado referindo-se a Jesus por escritores do NT. O mesmo tipo de desenvolvi
mento parece ter ocorrido com “o nome”. Esse é o mais próximo do que presbí
tero chegou a dizer do nome de Jesus em 3 João (Marshall, 1978, p. 86, n. 10).
Missionários cristãos que procuram tornar o nome de Deus conhecido
viajaram por muitos lugares, pela fé, confiando nas orações e no apoio material
do povo de Deus. Receber um ministro viajante em um lar de família era uma
importante forma de apoiar o seu trabalho (veja o quadro “Professores itine
rantes” em 2 Jo, Por trás do texto).
213
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
NO TEXTO
(Jo 17.12, grifo do autor). Para os autores bíblicos, o “nome” (onom a) e a pessoa
que ele representa são inseparáveis. Então, falar pelo Nome era falar com o enten
dimento de que Cristo estava presente na fala (Strecker, 1996, p. 259).
O presbítero relata não receber ajuda alguma dos gentios (ethnikõn). A
NTLH traduz como “pagãos”. Essa pode ser a melhor opção (Painter, 2002, p.
370; Smith, 1991, p. 152). Culpepper insiste no fato de que a tradução usual em
outras partes do NT, gentios, não pode ser o sentido aqui. Os três nomes citados
em 3 João são típicos nomes gentios (1998, p. 280). O presbítero aparentemente
usava o termo para referir-se a não cristãos, não como uma distinção étnica entre
judeus e gentios.
O argumento do presbítero seria que os cristãos apoiassem ministérios cris
tãos e não esperassem que os incrédulos fizessem isso (Smith, 1991, p. 152). O
povo de Deus tem a responsabilidade de financiar a Sua obra. Embora a generosi
dade das pessoas que ainda não eram cristãs pudesse ser aceita (veja At 10), o pe
dido de doar, de forma generosa, para apoiar o trabalho missionário é direcionado
principalmente a pessoas dentro de círculos cristãos.
1 8 O presbítero retrata a hospitalidade como uma esperada expressão de um ge
neroso apoio aos missionários. Isso é claro na sua inserção do pronome enfático nós
(.bêm eis; Bruce, 1970, p. 151). Sua intenção é clara: Nós m esm os d evem o s receb er
tais co m o esses. Hospitalidade incluiria hospedagem, alimentação e dinheiro para
a futura viagem de tais missionários (v. 6).
Quando pessoas como Gaio e os que estavam com ele apoiavam irmãos como
esses, as igrejas envolvidas compartilhavam o ministério: cooperadores em favor
da verdade. Alguns cristãos plantavam o evangelho em novo solo geográfico e en
tre diversos grupos de pessoas. Outros forneciam um sistema de apoio, os meios
materiais que permitiam que evangelistas e missionários itinerantes tivessem liber
dade de dedicar mais tempo à pregação e ao ensino.
A semente do conceito missionário está nessa passagem. A obra de Deus é
mundial, e todos os seguidores de Cristo estão alistados nesse trabalho. Deus em
prega pessoas como cooperadores (synergoi). O verbo ginõm etha, q u e p o d em o s
to rn a r-n o s, sugere uma decisão a ser tomada. O verbo é precedido por hina, indi
cando finalidade. O presbítero queria que a carta motivasse as igrejas que ele dirigia
a tornarem-se colaboradoras de Deus e entre si.
Essa é a quinta ocorrência de verdade em 3 João (com mais duas por vir). A
verdade de Cristo é o elo entre o coração dos cristãos (“amo na verdade”, v. 1). Ver
dade exige fidelidade (v. 3) contínua (veja v. 3,4). Ela atesta o caráter de alguém (v.
12) e flui dos fiéis (v. 12). O presbítero chama seus leitores para trabalharem juntos
em prol da verdade.
216
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
A P A R T IR D O T E X T O
A igreja não é definida pelo pronome “eu”, mas por “nós”. Juntos, podemos
alcançar resultados que não seríamos capazes de alcançar individualmente. A
obra de Deus no mundo avança conforme vivemos em comunidade e na ver
dade (v. 3,4). A verdade que flui de Deus nos impele a envolver-nos em evan
gelismo, dizer a verdade àqueles que ainda não foram convencidos. A fome de
verdade do homem pode levá-lo a Deus.
NO TEXTO
H 9 Strecker acha que a frase escrevi à igreja seja uma alusão a 2 João (1996, p.
253-254,263). Porém, a evidência não é convincente. Bruce, após discutir as pos
sibilidades, conclui que a referência é a uma carta perdida (1970, p. 152; também
Marshall, 1978, p. 88).
Jones considera que o grego ti {algo, não traduzido em algumas versões) é
tentador, mas não específico (2009, p. 271). A carta anterior do presbítero, aparen
temente, não tinha alcançado o resultado pretendido.
O presbítero afirma que Diótrefes (...) gosta muito de ser o mais importan
te e não nos recebe. As mesmas palavras no versículo 10 descrevem o que Diótre
fes faz aos representantes do presbítero — os “irmãos” (v. 5,10). A tradução “não
quer dar atenção ao que eu disse” (NTLH) não é textualmente defensável (BDAG,
2000, p. 370). A melhor tradução é não nos recebe em ambas as passagens (Mi-
tchell, 1998, p. 317).
217
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
A P A R T IR D O T E X T O
NO TEXTO
1 1 1 0 presbítero adverte seus leitores: Não imite o que é mal. Ele provavelmente
se referia ao que Diótrefes estava fazendo. Ele pediu aos seus leitores que se
220
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON 1,2 E 3 JOÃO
De Deus
ao fato de que 2 João foi escrito para uma igreja (a “senhora eleita” e seus “filhos”,
2 João 1), enquanto 3 João é dirigido a um indivíduo (“ao amado Gaio”, 3 João 1).
Como em 2 João, o presbítero fala de sua relutância em escrever longamente, pre
ferindo ver o seu destinatário em pessoa (v. 14). O presbítero escreve usando uma
pena, literalmente, uma cana afiada para ser usada como instrumento de escrita.
H 1 4 - 1 5 O presbítero, como todos os outros autores dos documentos do NT,
apreciava o valor da palavra escrita. No entanto, ele também conhecia o poder de
uma visita pessoal. A presença de alguém normalmente comunica mais do que um
documento sem rosto. Então, ele desejava ver Gaio em pessoa (face a face, veja o
comentário sobre 2 Jo 12). Literalmente, ele se refere a falar boca a boca, uma me
táfora culturalmente apropriada para uma conversa pessoal. O presbítero antecipa
que o encontro pode ocorrer em breve, logo após a chegada da carta (Bruce, 1970,
P- 156).
O presbítero termina a carta com uma bênção. Ela está no versículo 15 no
texto grego (e também na NVI), mas outras versões a juntam ao versículo 14. Ela
é uma benção hebraica cheia de graça: A paz seja com você. Paulo tipicamente
combinava a bênção hebraica de paz (shalom ) com uma saudação grega hebraica
de “graça” (charis, uma variação do charein padrão, saudações). O autor de 3 João,
no entanto, refere-se apenas à paz.
Embora seja uma convenção padrão de cartas da época, a expressão tem algu
ma tensão com o relacionamento obviamente tenso entre o ele e Diótrefes. Tal
vez o presbítero ofereça a palavra não só como uma interação social habitual, mas
como algo mais — uma oração para a reconciliação entre as igrejas. Em uma carta
sobre conflitos na igreja, essa saudação hebraica é impactante. Talvez a paz estivesse
para sempre cimentada no vocabulário cristão devido ao uso dela pelo Cristo res-
surreto (Jo 20.19,21,26). O presbítero deve ter desejado que ela tivesse um efeito
tranquilizante nas igrejas dele (Boice, 1979, p. 173).
A carta termina com saudações tradicionais, tanto dos amigos daqui com o
presbítero quanto dos amigos daí com Gaio. O presbítero pedia que seus leitores
enviassem saudações a seus irmãos de fé um p o r um, mas não mencionou o nome
deles. Ocasionalmente, outras cartas do NT cumprimentam pessoas especificadas
por nome (Rm 16.1-15; Cl 4.15; 2 Tm 4.19). Várias cartas do NT concluem
com uma saudação mais geral a todos. A terminologia amigos pode sugerir que
as saudações fossem dirigidas a todos aqueles que concordavam com o presbítero
(Marshall, 1978, p. 94,95). Isso deixa implícito um círculo de amigos ao qual Gaio
pertence, mas que pode não reconhecer a autoridade de Diótrefes (Bultmann,
1973, p. 103).
223
1,2 E 3 JOÃO NOVO COMENTÁRIO BlBLICO BEACON
A P A R T IR D O T E X T O
Embora termos como “mal” e “bom” fluam livremente nas cartas joaninas,
ofensas raramente são um argumento convincente para declarar o direito de sua
posição. Rotular outra pessoa como “má” ou “sem Deus” tem mais potencial
de acabar com relacionamentos do que restaurá-los. Diótrefes poderia ter-se
reconciliado de forma mais fácil com as outras pessoas da comunidade se o
presbítero não tivesse dito que ele gostava m uito de ser o mais im portante (v. 9)?
A declaração pública de Demétrio certamente o incentivou a fazer ainda mais no
futuro. Talvez a nossa lição seja presumir que outros cristãos estejam agindo com a
melhor das intenções e não condenando apressadamente. Isso nos obriga a dar ao
presbítero o benefício da dúvida, mesmo se hesitarmos em seguir o seu exemplo ao
caracterizar nossos adversários.
Com quem e com o quê nós nos comprometemos nos define. Escolhas
levam a hábitos, e hábitos formam o nosso caráter. Quando a nossa vida é total
mente entregue à soberania de Cristo, a evidência flui de dentro de nós. Viver
em paz uns com os outros exige que todos vivamos em um relacionamento
amoroso e íntimo com Deus, a fonte de amor e de tudo que é bom e verdadeiro.
A paz seja com você (v. 15).
224
(íy ^w '
COMENTÁRIO BÍBLICO
BEACON
l , 2 e 3 JOÃO
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B íblico B ea con expandirá sua compreensão e aprofundará seu apreço pelo significado e pela
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