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COMENTÁRIO BÍBLICO

BEAC0N
HEBREUS

KEVIN L. ANDERSON

CENTRAL
GOSPEL
EDITORA
VICE-PRESIDENTE Hebrews (New Beacon Bible Commentary) / Kevin L. Anderson / © 2013
Talita Malafaia Published by Beacon Hill Press of Kansas City, a division of Nazarene
Publishing House.
CEO CENTRAL GOSPEL Kansas City, Missouri, 64109 USA
EDITORA This edition published by arrangement with Nazarene Publishing House.
Elba Alencar All rights reserved.
Copyright © 2022 por Central Gospel Editora.
CONSULTOR EDITORIAL
D a d o s I n t e r n a c i o n a i s de C a t a l o g a ç ã o na P u b l i c a ç ã o (CIP)
Gilmar Vieira Chaves (Câmara B r a s i l e i r a do Livro, SP, Brasil)

Anderson, Kevin L.
GERENTE DE MARKETING Novo comentário bíblico Beacon Hebreus / Kevin L.
Anderson ; tradução Sonia Ribeiro Alves. -- 1. ed. --
Sarah Lole Rio de Janeiro, RJ : Central Gospel, 2022.

Título original: New Beacon Bible commentary :


GERENTE EDITORIAL Hebrews.
ISBN 978-65-5760-058-0
Jane Castelo Branco
1. Bíblia. N.T. Hebreus - Comentários 2. Bíblia -
Estudo e ensino I. Título.
COORDENADORA
EDITORIAL
22-121853 CDD-225.7
Michelle Candida Caetano
índices p a r a c a t á l o g o sistemático:

TRADUÇÃO 1. Novo Testamento : Bíblia : Comentários 225.7


Sonia Ribeiro Alves Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380

REVISÃO
É proibida a reprodução total ou parcial do texto deste livro por quais­
Maria José Marinho
quer m eios (mecânicos, eletrônicos, xerográficos, fotográficos etc.),
a não ser em citações breves, com indicação da fonte bibliográfica.
PROJETO GRÁFICO
Este livro está de acordo com as m udanças propostas pelo novo
Eduardo Souza
Acordo Ortográfico, que entrou em vigor a partir de janeiro de 2009.

DIAGRAMAÇÃO Nota do editor no Brasil: Com o objetivo de facilitar a com preen­


Equipe editorial são do com entário original, em alguns casos, a Central G ospel fez
traduções livres de term os e palavras em inglês que não encon­
tram equivalência nas versões oficiais do texto bíblico traduzido
CAPA
para o Português. R essalte-se, todavia, que foram preservadas a
André Faria
ideia e a estrutura textual idealizadas pelo autor.

1a edição: outubro/2022

Central Gospel Editora Ltda.


CENTRAL
GOSPEL Estrada do Guerenguê, 1851 - Taquara
EDITORA Cep: 22.713-001
Rio de Janeiro — R J
TEL: (21)2598-2019
centralgospelm ax.com .br
CW '
COMENTÁRIO BÍBLICO

BEACON
HEBREUS
DEDICATÓRIA

À minha mãe. Seu amor pela Palavra de Deus e sua paixão


ministério tiveram um efeito indelével em mim.
EDITORES DO COMENTÁRIO

Editores gerais
G eorge Lyons
Alex Varughese Ph.D., Em ory University
Ph.D. D rew University Professor do N ovo Testamento
Professor de L iteratura Bíblica N orthw est Nazarene University
M ount Vernon Nazarene University N ampa, Idaho
M ount Vernon, O hio

R oger Hahn
Ph.D., D uke University
R eitor do corpo docente
Professor de Novo Testamento
Nazarene Theological Seminary
Kansas City, Missouri

E ditores secionais

Jo sep h C oleson Jim Edlin


Ph.D., Brandeis University Ph.D., Southern Baptist Theological Seminary
Professor do A ntigo Testamento Professor de Literatura Bíblica e Línguas
Nazarene Theological Seminary C oordenador do departam ento de
Kansas City, Missouri Religião e Filosofia
M idAm erica Nazarene University
R obert Branson O lathe, Kansas
Ph.D., Boston University
Professor Emérito de Literatura Bíblica K ent Brower
O livet Nazarene University Ph.D., University o f Manchester
Bourbonnais, Illinois Vice-reitor
Palestrante sênior de estudos bíblicos
Alex Varughese Nazarene Theological College
Ph.D., Drew University Manchester, Inglaterra
Professor de Literatura Bíblica
M ount Vernon Nazarene University G eorge Lyons
M ount Vernon, O hio Ph.D., Em ory University
Professor do Novo Testamento
N orthw est Nazarene University
N ampa, Idaho
SUMÁRIO

Prefácio geral dos editores................................................................................11


Prefácio do autor..............................................................................................13
Abreviações..................................................................................................... 15
Bibliografia...................................................................................................... 25
índice de anotações complementares............................................................... 41
INTRODU ÇÃ O...........................................................................................45
A. Mistério e poder revelador.................................................................45
B. Autor...................................................................................................47
C. Destino............................................................................................... 57
D. Data e situação do público..................................................................60
E. Gênero...................................................................... ..........................64
F. Propósito............................................................................................. 65
G. Teologia.............................................................................................. 68
COMENTÁRIO........................................................................................... 77
I. Ouvir o Apóstolo e Sumo Sacerdote da nossa confissão:
Elebreus 1.1—4.13.................................................................................. 77
A. Ouvir o Filho de Deus nestes últimos dias: Jesus, o Sumo Sacerdote
misericordioso e fiel (1.1—2.18)........................................................ 78
1. Devemos prestar atenção à revelação definitiva de Deus no Filho
(1.1—2.4)....................................................................................... 79
a. A ação definitiva de Deus no Filho(1.1-4).............................. 82
b. Argumentos bíblicos para a majestade do Filho sobre os anjos
(1.5-14)...................................................................................... 93
c. Preste atenção ao que foi lalado noFilho (2.1-4)......................100
2. Jesus aperfeiçoado como um Sumo Sacerdote misericordioso e fiel
(2.5-18)........................................................................................... 107
a. A humilhação e a exaltação de Jesus (2.5-9)............................ 111
b. A identificação de Jesus com a humanidade (2.10-18)............120
B. Ouvir a Palavra de Deus hoje: Jesus, o Apóstolo e Sumo Sacerdote
de nossa confissão (3.1—4.13)........................................................... 134
1. Compromisso como parceiros de Cristo,casa de Deus (3.1 -6)..136
SUMÁRIO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

2. Entrar no descanso de Deus: advertência e promessa


(3.7—4.13)..................................................................................... 151
a. O perigo de desafiar a voz de Deus (3.7-19)............................ 151
b. Advertência para não ficar aquém do descanso prometido
(4.1-13)....................................................................................... 164
II. O sumo sacerdócio superior de Jesus: Hebreus 4.14—10.18..............193
A. As qualificações do grande Sumo Sacerdote (4.14—5.10)..............193
1. O grande Sumo Sacerdote (4.14-16)........................................... 197
2. Qualificações dos sumo sacerdotes ordinários (5.1-4)................. 203
3. Qualificações do sumo sacerdote como Melquisedeque (5.5-10)....206
B. Preparação para o ensino avançado sobre o sumo sacerdócio de Cristo
(5.11—6.20)........................................................................................219
1. Repreensão em relação ao desenvolvimento espiritual interrompido
(5.11-14)......................................................................................... 222
2. Exortação para prosseguir para a maturidade (6.1-3)...................230
3. Advertência sobre apostasia irreversível (6.4-8)........................... 234
4. Palavras de segurança (6.9-12)..................................................... 242
5. Encorajamento poderoso baseado na confiabilidade de Deus
(6.13-20)......................................................................................... 246
C. O Sumo Sacerdote como Melquisedeque: o Filho aperfeiçoado
para sempre (7.1-28)............................................................................264
1. A grandeza do sacerdócio de Melquisedeque (7.1-10)................ 266
2. A imperfeição do sacerdócio levítico (7.11-19)........................... 275
3. O sacerdócio permanente e perfeito do Filho (7.20-28)..............281
D. O ministério superior do sumo sacerdócio do Filho (8.1 —10.18) ..292
1. Introdução ao ministério superior de Cristo (8.1-13)................. 293
2. O tabernáculo superior e mais perfeito (9.1-14).......................... 300
3. A morte sacrificial de Cristo inaugurou a nova aliança (9.15-28)....312
4. A oferta obediente de Cristo aperfeiçoa os adoradores para sempre
(10.1-18)......................................................................................... 321
III. Chamado à fé perseverante e adoração aceitável:
Hebreus 10.19—13.25............................................................................ 335
A. Exortações para perseverar na fé (10.19—12.13)........................... 337
1. Confiança e perseverança na fé (10.19-39).................................. 337
a. Invocação à adoração e à vida fiel (10.19-25).......................... 339
b. Expectativa terrível de juízo para os apóstatas (10.26-31)...... 348
c. Louvor pela perseverança passada (10.32-34)..........................353
d. Exortação para perseverar na fé (10.35-39)............................. 358
2. Exemplos dignos de fé (11.1-40)..................................................361
a. Da criação ao dilúvio (11.1-7)............................................... 363
8
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON SUMÁRIO

b. De Abraão ajosé (11.8-22).................................................... 371


c. De Moisés a Raabe (11.23-31)................................................ 379
d. Muitos mais fiéis: do triunfo ao sofrimento (11.32-40)......... 384
3. Treinamento para uma fé permanente (12.1-13)...................... 389
B. Exortações para oferecer uma adoração aceitável (12.14—13.25) ....406
1. Receba o Reino inabalável com gratidão e adoração (12.14-29).... 407
a. Busque a paz e a santidade (12.14-17)..................................... 409
b. Montanha do terror e montanha da celebração (12.18-24).... 414
c. Ouça a voz celestial (12.25-29)................................................420
2. Instruções para a adoração como estilo de vida (13.1-25)........... 424
a. Exortações ao amor, à pureza e à confiança (13.1-6)............... 426
b. Apelo final para compromisso e adoração (13.7-19).............. 432
c. Bênção e posfácio (13.20-25).................................................. 445

9
PREFÁCIO GERAL DOS EDITORES

O propósito do Novo Comentário Bíblico Beacon é tornar disponível a


pastores e alunos um comentário bíblico do século 21 que reflita a melhor cul­
tura da tradição teológica. O projeto deste comentário visa tornar essa cultura
acessível a um público mais amplo, a fim de auxiliá-lo na compreensão e na
proclamação das Escrituras como Palavra de Deus.
Os escritores dos volumes desta série, além de serem eruditos na tradição
teológica e especialistas em suas áreas de atuação, têm também um interesse
especial nos livros designados a eles. A tarefa é comunicar claramente o con­
senso crítico e o amplo alcance de outras vozes confiáveis que já comentaram
sobre as Escrituras. Embora a cultura e a contribuição eruditas para a com­
preensão das Escrituras sejam as principais preocupações desta série, esta não
tem como objetivo ser um diálogo acadêmico entre a comunidade erudita. Os
comentaristas desta série, constantemente, visam demonstrar em seu trabalho
a significância da Bíblia como o Livro da Igreja e, também, a relevância e a
aplicação contemporânea da mensagem bíblica. O objetivo geral deste projeto
é tornar disponível à Igreja e ao seu serviço os frutos do trabalho dos eruditos
que são comprometidos com a fé cristã.
A Nova Versão Internacional (NVI) é a versão de referência da Bíblia usa­
da nesta série; entretanto, o foco do estudo exegético e os comentários são o
texto bíblico em sua linguagem original. Quando o comentário usa a NVI, ele
é impresso em negrito. O texto impresso em negrito e itálico é a tradução do
autor. Os comentaristas também se referem a outras traduções em que o texto
possa ser difícil ou ambíguo.
A estrutura e a organização dos comentários nesta série procuram faci­
litar o estudo do texto bíblico de uma forma sistemática e metodológica. O
estudo de cada livro bíblico começa com uma Introdução, que fornece uma
visão panorâmica de autoria, data, proveniência, público-alvo, ocasião, propó­
sito, questões sociológicas e culturais, história textual, características literárias,
questões hermenêuticas e temas teológicos necessários para entender-se o li­
vro. Essa seção também inclui um breve esboço do livro e uma lista de obras
gerais e comentários padrões.
A seção de comentários para cada livro bíblico segue o esboço do livro
apresentado na introdução. Em alguns volumes, os leitores encontrarão súmulas
PREFÁCIO GERAI. DOS EDITORES NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

seccionais de grandes porções da Bíblia, com comentários gerais sobre sua


estrutura literária global e outras características literárias. Uma característica
consistente do comentário é o estudo de parágrafo por parágrafo dos textos
bíblicos. Essa seção possui três partes: Por trás do texto, No texto c A. partir
do texto.
O objetivo da seção Por trás do texto é fornecer ao leitor todas as informa­
ções relevantes necessárias para a compreensão do texto. Isso inclui situações
históricas específicas refletidas no texto, no contexto literário do texto, nas
questões sociológicas e culturais e nas características literárias do texto.
No texto explora o que o texto diz, seguindo sua estrutura, versículo por
versículo. Essa seção inclui uma discussão dos detalhes gramaticais, dos estudos
de palavras e da ligação do texto com livros/passagens bíblicas ou outras partes
do livro em estudo (o relacionamento canônico). Além disso, fornece transli-
terações de palavras-chaves em hebraico e grego e seus significados literais. O
objetivo aqui é explicar o que o autor queria dizer e/ou o que o público-alvo
teria entendido como o significado do texto. Essa é a seção mais ampla do co­
mentário.
A seção A partir do texto examina o texto em relação às seguintes áreas:
significância teológica, intertextualidade, história da interpretação, uso das ci­
tações do Antigo Testamento no Novo Testamento, interpretação na história,
na atualização e em aplicações posteriores da Igreja.
O comentário fornece anotações complementares sobre tópicos de inte­
resse que são importantes, mas não necessariamente fazem parte da explanação
do texto bíblico. Esses tópicos são itens informativos e podem conter ques­
tões históricas, literárias, culturais e teológicas que sejam relevantes ao texto
bíblico. Ocasionalmente, discussões mais detalhadas de tópicos especiais são
incluídas como digressões.
Oferecemos esta série com nossa esperança e oração, a fim de que os leito­
res a tenham como um recurso valioso para a compreensão da Palavra de Deus
e como uma ferramenta indispensável para um engajamento crucial com os
textos bíblicos.

Roger Hahn, Editor-geral da Iniciativa Centenária


Alex Varughese, Editor-geral (Antigo Testamento)
George Lyons, Editor-geral (Novo Testamento)

12
PREFÁCIO DO AUTOR

A Carta aos Hebreus é um dos livros mais desafiadores da Bíblia. O desafio


está em dois níveis. O primeiro, e mais importante, é a sua incansável convoca­
ção para um firme compromisso com Cristo. O segundo é a maneira sofisticada
como desenvolve a sua mensagem: com interpretações profundas de passagens
do AT e argumentação retórica magistral. Muito do que lemos em Hebreus é
estranho aos leitores contemporâneos. O texto apresenta uma infinidade de
desafios para o comentarista.
Daí a minha apreensão quando fui convidado a escrever um comentário
sobre Hebreus para a série Novo Comentário Bíblico Beacon. Após a conclusão
do comentário, ainda me sinto honrado pela oportunidade de oferecer minha
pequena contribuição para a compreensão deste livro. Eu me senti como um
corredor, muitas vezes cansado pela corrida que me foi proposta, mas animado
por uma grande nuvem de testemunhas (comentaristas e estudiosos) que me
precederam. A erudição sobre Hebreus é enorme, impossível para qualquer um
dominar. Lamentavelmente, o comentário de Gareth Cockerill, de 2012, che­
gou às minhas mãos tarde demais para que eu pudesse interagir com ele aqui.
Minha própria jornada com Hebreus teve três influências importantes.
Minha primeira introdução formal a Hebreus foi em um curso universitário
sobre a epístola, ministrado por Sam Brelo, no Colégio Bíblico da Trindade.
A abordagem de Sam ao estudar e ensinar Hebreus era contagiante. Ele foi
modelo para mim da fusão de uma tremenda paixão com a precisão técnica e
acadêmica. Minha segunda grande influência veio do estudo de William Lane,
Call to Commitment (1985), o precursor de seu principal comentário sobre
Hebreus (1991). Lane abriu o mundo de Hebreus como um sermão dirigido
a uma comunidade de fé em crise. Seu reconhecimento de Hebreus como um
sermão destinado a ser ouvido foi revolucionário para mim na época — e ainda
é. Minha terceira influência foi um curso de Hebreus com Morris Weigelt (ago­
ra professor emérito de Novo Testamento) no Seminário Teológico Nazareno.
Morris me ensinou que Hebreus (e a Bíblia como um todo) não é um livro que
dominamos, mas um livro com o qual vivemos. Mesmo depois de escrever um
comentário sobre Hebreus, sinto como se estivesse apenas começando a viver
com este livro majestoso.
PREFÁCIO DO AUTOR NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Ao escrever este comentário, beneficiei-me do apoio de muitas pessoas.


Gostaria de agradecer ao Comitê de Desenvolvimento do Corpo Docente e à
administração da Universidade de Asbury, que me concedeu uma licença sabá-
tica durante o outono de 2009. O trabalho nunca podería ter sido concluído
sem esse importante tempo de liberação. Também gostaria de agradecer aos
meus colegas do Departamento de Estudos Cristãos e Filosofia que acompa­
nharam este projeto com interesse e encorajamento. Sou grato pelo incansável
trabalho de George Lyons na edição do manuscrito. O resultado final é muito
melhor devido aos seus esforços, embora quaisquer deficiências que permane­
çam sejam minhas. Por último, mas não menos importante, à minha esposa,
Sandi, que tem sido uma fonte indispensável de amor e apoio.
Minha oração é que este comentário ajude de alguma forma a estender a
mensagem desafiadora de Hebreus. Como Escritura, Hebreus convoca cada
nova geração a prestar atenção à voz de Deus em Seu Filho e nosso grande
Sumo Sacerdote, Jesus Cristo.
Kevin Anderson
16 de maio de 2012

14
ABREVIAÇÕES

C om raras exceções, estas abreviações seguem as que estão no livro The SBL Handbook o f
Style (Alexander, 1999).

Geral
-> veja o com entário em
II passagem paralela
a.C. antes de Cristo (após uma data) (equivalente a A EC )
AT A ntigo Testam ento
BDAG BAUER, W.; D A N K E R , F. W.; A R N D T , W. F.; G IN G R IC H ,
F. W. Greek-English Lexicon o f the New Testament and Other
Early Christian Literature. 3. ed. Chicago e Londres: University
o f Chicago Press, 2000.
c. circa, cerca de
EDNT Exegetical Dictionary o f the New Testament. Editado por Η .
Balz e G. Schneider. G rand Rapids: Eerdmans, 1990-1993.
esp. especialmente
fl. floresceu (latim : floruit)
gr- grego
hb. hebraico
ktl. kai ta loipa (“e o restante”) = etc. (do grego)
lat. latim
LCL Loeb Classical Library
lit. literalm ente
L& N Greek-English Lexicon oftheNew Testament: Based on Semantic
Dom ains. Editado p o r J. P. Louw e E. A. N ida. 2. ed. New
York: U nited Bible Societies, 1989.
LSJ L ID D E L L , H . G.; S C O T T , R.; JO N E S . H . S .A Greek-English
Lexicon. 9. ed. C om suplem ento revisado. O xford and New
York: O xford University Press, 1996.
LXX Septuaginta
m. m orto
mg leitura marginal (ex.: N IV mg)
MM M O U L T O N , J. H .; M IL L IG A N , G. Vocabulary o f the Greek
New Testament. L ondon: H odder & Stoughton, 1930. Repr.
Peabody, Mass.: H endrickson, 1997.
MS M anuscrito
MSS M anuscritos
n. nota(s)
N ID B New Interpreter’s Dictionary o f the Bible. Editado p o r Katharine
D oob Sakenfeld. Vol. 5. Nashville: A bingdon, 2006-9.
N ID N T T New International Dictionary o f New Testament Theology.
Editado p o r C. Brown, v. 4. G rand Rapids: Z ondervan,
1975-1985.
NT N ovo Testam ento
P papyrus manuscrito
ABREVIAÇÕES NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

PG L Patristic Greek Lexicon. Editado por G. W. H . Lampe. O xford:O xford


University Press, 1968.
pl. plural
rev. revisado
sg· singular
s.d. sem data
s.I. sem local
Str-B ST R A C K , PE L.; BILLERBECK, P. Kommentar zum Neuen Testament
aus Talmud undMidrasch . M unich: C. H . Beck, 1922-1961. 6 v.
supl. suplemento
TDNT Theological Dictionary o f the New Testament. Editado por G. K ittel e G.
Friedrich. Traduzido por G. W. Bromiley. G rand Rapids: Eerdmans,
1964-176. v. 10.
TLNT S P IC Q , C. TheologicalLexicon o f the New Testament. Traduzido e editado
por J. D. Ernest. Peabody, Mass.: H endrickson, 1994. 3 v.
TM Texto Massorético

Versões bíblicas
ACF Almeida C orrigida e Fiel
ARA Almeida Revista e Atualizada
A RC Almeida Revista e C orrigida
ARIB A lmeida Revisada Imprensa Bíblia
BCAM Bíblia Católica Ave Maria
BKJ Bíblia King James 1611
BSEP Bíblia Sagrada Edição Pastoral (Paulus)
BSC Bíblia Sagrada Católica
CEB C om m on English Bible
CEV C ontem porary English Version
ESV English Standard Version
GNT G ood News Translation (= Today’s English Version)
GW G O D ’S W O R D Translation
H C SB H olm an C hristian Standard Bible
JFA João Ferreira de Almeida Atualizada
KJA K ingjam es Atualizada
KJV King James Version
LEB Lexham English Bible
NAA Nova Almeida Atualizada
NAB N ew American Bible
NASB N ew American Standard Bible (1977 e 1995)
NASB95 N ew American Standard Bible (1995 update)
NCV N ew C entury Version
NEB N ew English Bible
N ET New English Translation
NVI Nova Versão Internacional
N IV New International Version (1984)
N IV11 New International Version (2011)
N IV 1"8 New International Version, leitura marginal
NJB New Jerusalem Bible
N K JV New K ingjam es Version
N LT New Living Translation

16
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON ABREVIAÇÕES

NTLH Nova Tradução na Linguagem de H oje


N RSV New Revised Standard Version
NVT Nova Versão Transformadora
OL O Livro
PH IL LIPS New Testam ent in M odern English
REB Revised English Bible
RSV Revised Standard Version
TB Tradução Brasileira
T N IV Todays New International Version
TYNDALE Tyndale’s N ew Testam ent (1534 ed.)
VC Versão Católica

Por trás do texto: Informações históricas ou literárias preliminares que os leitores medianos
poderão inferir apenas pela leitura do texto bíblico.
No texto: Comentários sobre o texto bíblico, palavras, gramática, e assim por diante.
A partir do texto: O uso do texto por intérpretes posteriores, relevância contemporânea,
implicações teológicas e éticas do texto, com ênfase especial nas questões
wesleyanas.

A ntigo Testam ento


Gn Gênesis
Êx Êxodo
Lv Levítico
Nm N úm ero
Dt D euteronôm io
Js Josué
Jz Juizes
Rt Rute
1 Sm 1 Samuel
2 Sm 2 Samuel
1 Rs 1 Reis
2 Rs 2 Reis
1 Cr 1 Crônicas
2 Cr 2 Crônicas
Ed Esdras
Ne Neemias
Et Ester
Jó Jó
SI Salmos
Pv Provérbios
Ec Eclesiastes
Ct Cantares
Is Isaías
Jr Jeremias
Lm Lamentações
Ez Ezequiel
Dn Daniel
Os Oseias
Ji Joel
Am Amós

17
ABREVIAÇÕES NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Ob Obadias
Jn Jonas
Mq .Miqueias
Na Naum
Hc H abacuque
Sf Sofonias
Ag Ageu
Zc Zacarias
Ml Malaquias

(N ota: A numeração de capítulo e versículo no T M e na LX X geralmente difere em com-


paração com as Bíblias em inglês/português. Para evitar confusão, todas as referências
bíblicas seguem a numeração de capítulo e versículo das traduções para o português, mes-
mo quando o texto T M e L X X está em discussão.)

N ovo Testam ento


Mt Mateus
Mc Marcos
Lc Lucas
Jo João
At Atos
Rm Romanos
1 Co 1 C oríntios
2 Co 2 C oríntios
G1 Gálatas
Ef Efésios
Fp Filipenses
Cl Colossenses
1 Ts 1 Tessalonicenses
2 Ts 2 Tessalonicenses
1 Tm 1 T im óteo
2 Tm 2 T im óteo
Tt T ito
Fm Filemon
Hb H ebreus
Tg Tiago
1 Pe 1 Pedro
2 Pe 2 Pedro
1 J° 1 João
2 Jo 2 João
3 Jo 3 João
Jd Judas
Ap Apocalipse

Apócrifos
Ep.Jr Epístola de Jeremias
1—4 Mac. 1—4 Macabeus
Sl. Aza. Salmo de Azarias

18
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON ABREVIAÇÕES

Sir. Sabedoria de Siraque, Eclesiástico ou Sirácida


SS Sabedoria de Salomão
Sus. Susana
Tob. Tobias

Pseudoepígrafos do AT
2 Bar. 2 Baruque (Apocalipse Siríaco)
3 Bar. 3 Baruque (Apocalipse Grego)
4 Ed. 4 Esdras
1 En. 1 Enoque (Apocalipse Etiópico)
2En. 2Enoque (Apocalipse Eslavo)
3En 3 Enoque (Apocalipse Hebraico)
Apoc. Ab. Apocalipse de Abraão
Apoc. El. Apocalipse de Elias
Apoc. Sof. Apocalipse de Sofonias
As. Is. Ascensão de Isaías 6— 11
C. Ari. Carta de Aristeas
Eup. Eupolemus
L.A.B. Liber antiquetatum biblicarum (Pseudofílon)
Od. Sal. Odes de Salomão
P. Ed. Perguntas de Esdras
Ps.F. Pseudofociletos
Sib. Oráculos Sibilinos
S.S. Salmos de Salomão
T. 12 Patr. Testamentos dos doze patriarcas
T. Benj. Testamento de Benjamim
T. Dá Testamento de Dã
T. Jud. Testamento de Judá
T Levi Testamento de Levi
T.Naft. Testamento de Naftali
T. Rub. Testamento de Rúben
T. Sim. Testamento de Simeão
T. 3 Patr. Testamentos dos três patriarcas
T.Ab. Testamento de Abraão
T.Is. Testamento de Isaque
T.Jac. Testamento deJacó
T.JÓ Testamento deJó
V.A.E. Vida de Adão e Eva

Escritos Judaicos
Pergaminhos do Mar Morto
1Q H ’ Hodayota ou Hino de Ação de Graças
1QS Regra da Comunidade
lQ Sb Regra das Bênçãos (Apêndice b á Regra da Comunidade [1QSJ)
4T212 Carta de Enoque
4QFlor Florilegium
1 lQM elch Melquisedeque
CD Cairo Genizah cópia do Documento de Damasco

19
ABREVIAÇÕES NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Josefo
CA. Contra Apião
Ant. Antiguidadesjudaicas
C.Ap. Contra Apionem
G.J. Guerra dosJudeus
Fílon
Abraão Da Vida de Abraão
Agricultura Da Agricultura
Confusão Da Confusão de Línguas
Congr. De congressu eruditionis gratia
Criação Da Criação do Mundo
Decálogo Do Decálogo
Deus Sobre Deus
Embriaguez Da Embriaguez
Embaixada Na Embaixada antes de Gaio
Est. Prel. Dos Estudos Preliminares
Leis Esp. Das Leis Especiais
Fuga Da Fuga e Descoberta
Gigantes Dos Gigantes
Herdeiro Quem éo Herdeiro?
Imutável Qiie Deus é Imutável
Int.Al. Interpretação Alegórica
Migração Da migração de Abraão
Moisés 1, 2 Da Vida de Moisés 1, 2
Nomes Da Mudança de Nomes
Pessoa Boa Qiie toda Pessoa Boa é Livre
Pior Que o Pior Ataca o Melhor
Plantar Sobre Plantar
Posteridade Da Posteridade de Caim
PR Perguntas e Respostas sobre o Gênesis
Querubins Dos Querubins
Recompensas Das Recompensas e Punições
Sacrifícios Dos Sacrifícios de Caim e Abel
Sobriedade Da Sobriedade
Sonhos Dos Sonhos
Virtudes Sobre as Virtudes
Obras Rabínicas (precedendo b. = Talmude Babilônico; y. = Talmude de Jerusalém; t. = trata­
dos de Tosefta; ex.: b. Sank.)
Hag. Hagigah
Midr. Midrash
Ned. Nedarim
Pesah. Pesahim
Pesiq. Rab. Pesiqta Rabbati
Pirqe R. El. Pirqe Rabbi Eliezer
Rab. Rabbah (+ livro bíblico; ex.: Gn Rab.)
Rosh. Hash. Rosh HaShanah
Sank. Sanhedrin
Shabb. Shabbat
Sipre Nm Sipre Num

20
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON ABREVIAÇÕES

Sipre Zuta Sipre Zuta


Tank. Tanhuma
Tg. Neof. Targum Neofiti
Tg. Ps.J. Targum Pseudojônatas
Yoma Yoma (= Kippurim)

Escritos cristãos primitivos


Barn. Barnabé
Const. Apos. Constituições Apostólicas e Cânones
1-2 Ciem. 1-2 Clemente
Diog. Diogneto
Herm. Mand. Pastor de Hermas, Mandato
Herm. Sim. Pastor de Hermas, Similitude
Herm. Vis. Pastor de Hermas, Visão
In. Ef. Inácio, Aos Efésios
In. Mag. Inácio, Aos Magnésios
In. Rm. Inácio, Aos Romanos

Textos gnósticos
Ev. Tm. Evangelho de Tomé
CN H Códigos Nag Hammadi

Pais da Igreja
Ambrósio
Paen. De paenitentia
Clemente de Alexandria
Strom. Stromata
Cipriano
Ep. Epístolas
Epifânio
Pan. Panarion (Adversus haereses) = Refutação de todas as Heresias
Eusébio
Hist. Ecl. História Eclesiástica
Prep. Ev. Preparação para o Evangelho
Hipólito
Trad. Ap. A Tradição Apostólica
Jerônimo
Ep. Epístolas
Justino
1 Apol. Primeira Apologia
Dial. Diálogo com Trifão
Orígenes
Cel. Contra Celsus
Pseudo-Justino
Coh. Gr. Cohortatio ad Graecos (Exortação contra os Gregos)
Tertuliano
An. De anima (sobre a alma)
Bat. Batismo
Pud. De pudicitia (sobre Modéstia)

21
ABREVIAÇÕES NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Outros escritos antigos


Antonino Liberal
Meta. Metamorphõseõn synagõge (Metamorfoses da sinagoga — Coleção de
Transformações)
Apiano
Hisp. Hispânica (Guerras na Espanha)
Aristóteles
Et. Nic. Ética a Nicômaco
Pol. Política
Ret. Retórica
Rhet. Alex. Rhetorica adAlexandrum (Retórica a Alexandre)
Artemidoro Daldiano
Onir. Onirocritica Esquilo
Agamenon
Ag'
Cícero
Inv. De inventione rhetorica (A invenção da retórica)
Leg. De legibus (Das leis)
Part.Or. Parititiones oratoriae (Divisórias oratórias)
Rab. Perd. Pro Rabirius Perduellionis Reo
Rhet. Her. Rhetorica ad Herennium (Retórica a Herênio)
Diodoro Siculo
Bib. Biblioteca de História
Diogenes Laércio
Diog. Laert. Vidas dos Eminentes Filósofos
Epiteto
Diatr. Diatribai (Diatribes)
Frag. Fragmentos
Esopo
Fab. Fábulas
Estobeu
Flor. Florilegium
Eurípedes
Alc. Alcestis
Orest. Orestes
Heliodoro
Aeth. Aethiopica
Hermógenes
Inv. Sobre Invenção
Prog. Progymnasmata
Heródoto
Hist. Histórias
Homero
Od. Odisséia
Horácio
Carm. Carmina Burana (Odes)
Isócrates
Archid. Arquidamo
Dem. Para Demonicus
Paz Sobre Paz

22
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON ABREVIAÇÕES

Mc. Para Nicocles


FU. Para Filipe
Juvenal
Sat. Sátiras
Luciano
Flistória Como Escrever História
Icar. Icaromenipus
Peregr. Passagem do Peregrino
Tox. Toxaris
Lucrécio
Ndt. Da Natureza das Coisas
Ovídio
Meta. Metamorfoses
Píndaro
01. Odes Olímpicas
Platão
Leg. Leges (Leis)
Resp. Respublica (República)
Tim. Timaeus
Plutarco
Mor. Moralia
Quaest.conv. Ufuaestionum convivialum libri IX
Sol. Solon
Suave viv. Non posse suaviter vivi secundum Epicurum (Incapaz de viver docemente de
acordo com Epicuro)
Políbio
Hist. Histórias
Pólux
Onorn. Onomasticon
Quintiliano
Inst. Institutio oratoria (Instituição Oratória)
Sêneca
Ben. De beneficiis (De benefícios)
Ep. Epístolas Morais
Sexto Empírico
Pir. Contornos do Pirronismo
Suetônio
Claud. Divus Claudius
Tácito
Ann. Annales (Anais)
Teofrasto
Car. Caracteres
Xenofonte
Anab. Anabasis (Anábase)
Cyr. Cyropaedia (Ciropédia ou Educação de Ciro)

Transliteração do grego
Grego Letra Transliteração
α alfa a
β beta b

23
ABREVIAÇÕES NOVO COMENTÁRH

y gama g ,
y gama nasal n (antes de γ, κ, ξ,
δ delta d
8 epsilon e
ζ zeta z
η eta ê
θ teta th
1 iota i
Κ capa k
λ lambda 1
μ mn/mi m
V nu/ni n
ξ Csi/Xi X
0 ômicron 0
π pi P
Ρ ro r
Ρ rô (em início de palavra) rh
ς sigma s
τ tau t
υ úpsilon y
υ úpsilon u (em ditondos: í
φ fi ph
λ chi ch
ψ psi Ps
ω omega δ
respiração elaborada h (antes de vogais

Transliteração do hebraico
Hebraico/Aramaico Letra Transliteração
X á le f
3 bêt b; v (fricativa)
Λ guímel g
~l dálet d
Π he h
1 vav v ou w
I zain z
Π hêt h
0 tét t
Ί iode y
3 caf k
'7 âmed l
a mem m
3 nun n
D sâmeq s
V áin
D pê /'//'(fricativa)
3 tsaae s
Ρ cof q
Ί rêsh r
Iff sin s
ιtf shin s
n tau t

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40
ÍNDICE DE ANOTAÇÕES
COMPLEMENTARES

Quadro Localização
Analogia verbal 4.3b-5
Antiga filosofia sobre o medo da morte 2.15
Autores prováveis de Hebreus Introdução, B.
Autor
Brincando com começos e fins 5.9
“Casa” de Deus 3.2
Cinco advertências contra a apostasia Introdução, E
Propósito
Citando as Escrituras em Hebreus 1.5-14
Coisas “superiores” em Hebreus 1.4
Consciência 9.8-10
Contextos literário e histórico de Hebreus 5.7-10 5.7
Contrastes precisos 10.11-14
Corações endurecidos 3.7b-8
Cristologia em rima 1.3
Descanso e salvação em Hebreus 4.1-13
Por trás do texto
Descanso sabático e mundo vindouro 4.1-13
Por trás do texto
INDICE DE ANOTAÇÕES COMPLEMENTARES NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Destino eterno da geração do êxodo 4.3b-5


Diferentes fundações, diferentes sacerdócios 7.15-17
Educação no mundo helenístico 5.12
Encadeamento 4.6-7
Esaú, o imoral na tradição judaica 12.15-16
Escândalo do sofrimento de Cristo 2.5-18
Por trás do texto
Escatologia em Hebreus 2.5
Estrangeiros e peregrinos 11.13
Filhos vs. escravos nos tempos bíblicos 3.5-6a
Fílon e Hebreus sobre Deus jurando por si 6.13-15
Hospitalidade no mundo antigo 13.2
Iluminação e batismo 6.4a
Imagens antigas do progresso educacional 5.13
Imagens culturais 5.11—6.20
Por trás do texto
Interpretar as Escrituras com os escritos em 6.18-20
Hebreus
Jargão jurídico em Hebreus 6.13-20
Jesus, o campeão 2.10
John Wesley sobre a restauração da apostasia 11—6.20
A partir do texto
Mediador 8.6
Midrash 3.7-19
Por trás do texto
Misterioso Melquisedeque 7.7-8
Moisés: bonito e de alta classe desde o nascimento 11.23
“O dia” 10.24-25
“Os céus” na cosmologia antiga e em Hebreus 4.14
O que aconteceu com Timóteo? 13.23
Parceiros de Cristo 3.14
“Pela graça de Deus” ou “à parte de Deus” (2.9) ? 2.9
Pensadores antigos dissecam a alma 4.12

42
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON ÍNDICE DE ANOTAÇÕES COMPLEMENTARES

Por que a comparação de Jesus com anjos em 2.2


Hebreus ?
Prisão no mundo romano antigo 10.34
Propiciação, expiação ou redenção? 2.17-18
“Quatrocentos anos de silêncio” 1.1
Rasgando o véu do templo 10.20
Repetindo a proposição 4.15
Revelação de Deus: passado e presente 1.1-4
Sabedoria cristã e hinódia em 1.2b-3 1.2b-c
Sacerdócios antigo e novo 7.23-25
Salmo 22: Jesus como sofredor e líder de adoração 2.12
Salmo 110 em Hebreus 1.13
Santidade em Hebreus 3.1
Sem segundo arrependimento ou sem segundo ba­ 6.6
tismo?
Sêneca e Hebreus sobre sofrimento e disciplina 12.11
divina
Sião e a Jerusalém celestial: imagens do templo de 12.22a
Deus
Sinal externo, graça interna 10.22
Subjuntivos exortativos em Hebreus 4.1
“Suportes” de 4.14-16 e 10.19-23 4.14— 5.10
Por trás do texto
“Vamos...” 4.1
Uso de comparação (synkrisis) 3.1-6
Por trás do texto
Uso do nome “Jesus” em Hebreus 2.9
Virtudes 6.10

43
INTRODUÇÃO

A. M istério e p o d er re velado r
James Denney, teólogo escocês do século 19, explicou que, ao interpre­
tar os documentos do NT, “a principal tarefa do comentarista é elucidar seu
significado como veículos de revelação” (citado em Marshall, 1966, p. 207).
Essa tarefa é praticamente frustrada em múltiplas frentes quando se trata da
Epístola aos Hebreus. Respostas definitivas a questões fundamentais da análise
literária simplesmente nos escapam. Que tipo de obra é essa? Quem a escre­
veu? Para quem ele estava escrevendo? Onde estava o autor? Onde estavam os
seus destinatários? Quando ele escreveu? Quais eram a situação do público e
o propósito do autor ao escrever-lhes? Qual é a estrutura discernível da obra?
Os leitores não vão muito longe antes de perceber que Hebreus é um texto
difícil de compreender. Por exemplo: por que a extensa comparação de Cristo
com os anjos? O que significa ser “perfeito para sempre”? O que é entrar no
descanso de Deus? É realmente impossível arrepender-se novamente depois de
cair? Quem é a figura obscura, Melquisedeque, e por que o autor recorrería a
ele para explicar o papel sacerdotal de Jesus ?
Mesmo declarações que a princípio parecem simples e informativas levan­
tam mais perguntas do que respostas. Por exemplo, a menção de Timóteo em
13.23 pressupõe que o público está ciente das informações que gostaríamos de
saber. É esse o Timóteo que foi o colaborador de confiança do apóstolo Pau­
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

lo ? Sua “libertação” indica prisão ? Se sim, onde ? Onde Timóteo se encontrará


com o autor? Qual era a relação do autor e de Timóteo com os leitores? Em
13.24, a expressão “os da Itália” sugere que o autor está escrevendo de ou para
destinatários na Itália?
A luz das muitas questões literárias, sócio-históricas e teológicas
decorrentes de Hebreus, William Lane declarou a carta como “um deleite para
a pessoa que gosta de quebra-cabeças” (1991, p. xlvii). Em 1906, William Wre-
de chamou seu estudo de O Enigma Literário da Epístola aos Hebreus (tradução
do alemão; Brown, 1997, p. 689-690). A descrição de E. F. Scott (1922, p. 1)
da perplexidade de Hebreus é particularmente memorável: “Entre os escritos
cristãos primitivos, ela se destaca solitária e misteriosa, ‘sem pai, sem mãe, sem
genealogia, como aquele Melquisedeque sobre a quem seu argumento se volta”.
Apesar de nossa dificuldade em elucidar o significado de Hebreus, ela ain­
da funciona como veículo da revelação divina. Muitas passagens em Hebreus
contêm linguagem e imagens tão poderosas que têm a capacidade de transcen­
der seus contextos literários e retóricos para falar diretamente conosco. “Pois
a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais afiada que qualquer espada de dois gu­
mes [...]” (4.12). “Jesus Cristo é o mesmo, ontem, hoje e para sempre” (13.8).
“Porque, tendo em vista o que ele mesmo sofreu quando tentado, ele é capaz de
socorrer aqueles que também estão sendo tentados” (2.18). “Aproximemo-nos
do trono da graça com toda a confiança, a fim de recebermos misericórdia e
encontrarmos graça que nos ajude no momento da necessidade” (4.16). Que
cristão não foi inspirado pelo grande “hall da fé” em Hebreus 11 ou pela bên­
ção de 13.20,21 ?
Alguns dos grandes hinos da Igreja recorrem à Epístola aos Hebreus para
se inspirar. O hino de Charles Wesley “Amor Divino, Todos Amam a Exce­
lência” ecoa o tema do descanso divino (4.1-11): “Vamos todos em ti herdar,
/ Vamos encontrar esse segundo descanso”. “Quão Firme Alicerce” utiliza a
linguagem do refúgio (6.18) e a promessa: “Nunca o deixarei; nunca o aban­
donarei” (13.5): “Que mais pode Ele dizer, do que a vós Ele disse: A vós, que
fugistes para o refúgio em Jesus?” e “Aquela alma, embora todo o inferno deva
esforçar-se para abalar, / eu nunca, não, nunca, não, nunca abandonarei”. O
hino “A Rocha Sólida” incorpora livremente a imagem de Hebreus (6.17-19;
7.22; 13.20): “Em todo vendaval forte e tempestuoso, / Minha âncora segura
dentro do véu” e “Seu juramento, Sua aliança, Seu sangue, / Sustentam-me no
dilúvio devastador. / Quando tudo ao redor da minha alma cede, / Ele então é
toda a minha esperança e permanência” (Lincoln, 2006, p. 7).

46
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

Nenhum cristão que lê Hebreus com interesse pode sair dela sem ficar
impressionado com dois aspectos de sua mensagem. Primeiro, ela magnífica
Cristo como a revelação definitiva de Deus e o meio de salvação. Segundo, exor­
ta a um compromisso radical com Cristo. Esses pontos são tão inconfundíveis
e importantes que não devem ser perdidos em todos os emaranhados de ques­
tões literárias, históricas e teológicas que cercam Hebreus. O autor anônimo
provavelmente ficaria surpreso por sua obra ter gerado tantos quebra-cabeças.
Certamente ele nos exortaria a não nos concentrar muito naqueles assuntos
que, no final, são apenas tangenciais à mensagem vital que ele comunicou.

B. A u to r

Estudantes curiosos de Hebreus invariavelmente perguntam: “Quem


você acha que o escreveu?” Essa questão tem ocupado os leitores desde os
tempos antigos. Com exceção do Pentateuco, nenhum outro livro da Bíblia
teve tanta energia e imaginação dedicadas à questão de sua autoria. Consi­
deramos primeiro um perfil do autor discernível a partir do próprio livro.
Em seguida, analisamos as três propostas de autoria mais significativas.
Que tipo de homem escreveu Hebreus? O escritor de Hebreus não se es­
força para revelar detalhes pessoais sobre si mesmo. Em comparação com as
declarações intensamente pessoais e autobiográficas que encontramos nas
cartas de Paulo, o autor de Hebreus é discreto (Ellingworth, 1993, p. 11).
Entretanto, muitos fatos sobre o autor surgem no decorrer de sua escrita.
Um fato mundano, mas básico, é revelado em seu uso de um particípio mas­
culino em 11.32, a saber, que ele é realmente “ele”. Portanto, não se trata de
uma autora feminina, como Priscila ou a Virgem Santíssima. Seis aspec­
tos principais do perfil do autor emergem do texto de Hebreus (veja Lane,
1991, p. xlix-li; Trotter, 1997, p. 42-47; G. Guthrie, 2001, p. 50-52):
(1) Em 2.3, o autor se classifica, não entre os apóstolos, mas como um
daqueles que receberam deles a mensagem salvadora do evangelho. Ele se
submete a líderes anteriores da comunidade a que se dirige (13.7), talvez
mensageiros apostólicos familiares. Ele se classifica entre os atuais líderes
da comunidade. Ele exorta seu público a obedecer e a orar por seus líderes
(13.17,18). Seu pedido de orações por seu rápido retorno a eles (13.19)
sugere que ele estava intimamente envolvido com a comunidade.
(2) A menção de Tim óteo (13.23) provavelmente indica a ligação do
autor com o círculo paulino. Infelizmente, ele oferece detalhes insuficientes

47
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

para determinar se escreve antes ou depois da morte de Paulo. E ele não diz
nada específico sobre a prisão de Timóteo e sua recente libertação.
(3 ) 0 escritor era altamente instruído. Sua facilidade com o grego pode
muito bem ser a melhor do NT. Mesmo em português, Hebreus dá a im­
pressão de que estamos lidando com um intelecto imponente. Seu domínio
de vários campos do conhecimento transparece no texto. Ele facilmente
se lembra de termos técnicos de muitas facetas da cultura, como negócios,
educação, direito e medicina (-> 5.11—6.20, anotação complementar:
“Imagens culturais”; e 6.13-20 anotação complementar: “Jargão jurídico
Hebreus”). Metáforas educacionais formam uma parte fundamental de seu
discurso direto para a situação do público (-> 5.11—6.1; 12.4-11; e 5.13
anotação complementar: “Imagens antigas do progresso educacional”). Ele
está familiarizado com conceitos filosóficos do platonismo e do estoicismo.
Lane (1991, p. 1) sugere que nosso autor teve uma educação comparável à
de Fílon.
O autor parece ter atingido o mais alto nível de formação educacional:
retórica (-> 5.12 anotação complementar: “Educação no mundo helenísti-
co”). O rico vocabulário, a disposição, os recursos retóricos e os métodos de
argumentação em hebraico refletem alguém com considerável habilidade
retórica.
(4) O aprendizado excepcional do autor foi aplicado à sua interpretação
das Escrituras de Hebreus. Ele tinha um vasto conhecimento das Escrituras
em grego, embora o Pentateuco e os Salmos fossem as principais fontes para
suas citações (Lane, 1991, p. cxvi). Ele empregou técnicas hermenêuticas
rabínicas em uso nas sinagogas helenísticas do primeiro século.
Dois princípios interpretativos são essenciais para o desenvolvimento
das idéias em Hebreus: a analogia verbal e o argumento do menor para o
maior (G. Guthrie, 2001, p. 51). O autor de Hebreus é capaz de fazer uma
exposição bíblica marcada por atenção cuidadosa ao texto bíblico, insights
criativos e aplicação poderosa para seu público.
(5) As sensibilidades religiosas do autor foram moldadas dentro de ce­
nários distintamente judaicos e cristãos. Seu pensamento está saturado com
a linguagem cultuai da LXX. Seus argumentos centrais em 7.1 — 10.18 são
dedicados a assuntos relacionados ao sacerdócio levítico, ao tabernáculo e
à aliança. Seu conhecimento e interesse em relação à contaminação, ao san­
gue e à purificação são essenciais para sua interpretação da morte de Cristo.
Ele também está familiarizado com as lavagens cerimoniais judaicas e os
regulamentos alimentares (6.2; 9.10; 13.9). Essa estrutura mental sugere
48
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

que ele teve uma séria e longa exposição ao culto e estudo nas sinagogas
judaicas helenísticas.
Ele também era herdeiro das tradições e confissões das igrejas cristãs
primitivas. Central para a compreensão do autor sobre salvação é a confis­
são da pessoa e obra de Cristo. Ele repetidamente exorta seus ouvintes a se
comprometerem com Cristo por meio dessa confissão (3.1; 4.14; 10.23;
13.15). A realidade concreta do Jesus histórico fornece a chave hermenêu­
tica que abre as Escrituras. O sofrimento de Jesus, que o aperfeiçoou como
Sumo Sacerdote, e Sua exaltação à mão direita de Deus constituem o ponto
de virada na história (2.5-18; 5.7-10; 7.11,14-16; 9.26). O escritor partilha
com as primeiras igrejas a crença de que elas estão vivendo nos “últimos
dias” (1.2), já estão participando das realidades da era vindoura (2.5; 6.4,5;
10.1) e estão aguardando a herança e a salvação definitivas de acordo com
as promessas de Deus (ex.: 1.14; 6.12; 9.15,28; 13.14). Esses compromissos
cristológicos e escatológicos são fundamentais para a fé cristã autêntica.
(6) O autor tem um coração pastoral. Ele ordena seu aprendizado, sua
habilidade interpretativa e sua capacidade de oratória para formar uma
“palavra de exortação” a fim de abordar os medos e as lutas de uma comuni­
dade específica. Ele sabe o suficiente sobre eles (10.25,32-34; 13.7-24) para
confrontá-los ousadamente sobre suas falhas (5.11-14), avisá-los sobre as
consequências do fracasso (2.1-4; 3 Jo 10.26-39; 12.14-29) e encorajá-los
a perseverar em seu compromisso com Cristo (10.19— 12.13). Como um
pregador e intérprete talentoso, o autor emprega exposições penetrantes das
Escrituras a serviço de exortações retoricamente poderosas ao seu público.
Quem fo i o autor? Estudiosos repetidamente propõem três prováveis
autores de Hebreus.
Paulo. A versão King James preserva um título para Hebreus que ocor­
re na tradição do manuscrito grego: “A Epístola de Paulo, o Apóstolo aos
Hebreus”. Certamente não era original, uma vez que a inscrição anterior
e mais simples “Aos Hebreus” foi adicionada por um compilador antigo.
Todavia, na parte oriental do Império Romano, os cristãos atribuíram H e­
breus a Paulo bem cedo (mas não por unanimidade). A aceitação ocidental
de Hebreus foi mais lenta e mais difícil.
A mais antiga coleção existente de cartas de Paulo (o Papiro Beatty
II, J346), datando de cerca de 200 d.C., coloca Hebreus entre Romanos e
1 Coríntios. Por volta da mesma época, alguns eruditos cristãos no Egito
incluíram Hebreus entre as cartas de Paulo, com qualificação. Clemente de

49
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Alexandria afirmou que seu professor, Panteno, ensinou que Paulo escreveu
Hebreus. Mas dois problemas ficaram imediatamente evidentes.
Primeiro, Hebreus é anônima. Muitos especularam que Paulo omitiu
seu nome por modéstia. O apóstolo dos gentios não queria dar a impressão
de que estava impondo-se aos judeus como um apóstolo no lugar do pró­
prio Senhor (Eusébio, Hist. Ecl. 6.14.3,4).
Segundo, o estilo de Hebreus difere marcadamente do de Paulo. Alguns
explicam isso especulando que a obra foi originalmente escrita em hebraico.
Com base em semelhanças estilísticas, Clemente pensou que Lucas a tradu­
ziu e publicou para os gregos (Eusébio, Hist. Ecl. 6.14.2).
O sucessor de Clemente, Orígenes, afirmou a autoria paulina, com
reservas. Para Orígenes, a variação de estilo era um grande obstáculo. A
dicção de Hebreus é manifestamente superior à de Paulo, que, por sua pró­
pria admissão, é “rude no discurso” (2 Co 11.6 BKJ). Orígenes pensava que
um aluno de Paulo havia escrito Hebreus, mas acatou a tradição de autoria
paulina (Eusébio, Hist. Ecl. 6.25.11-14). Ele consistentemente se referiu
às quatorze epístolas de Paulo e introduziu passagens de Hebreus com “o
apóstolo diz” ou “Paulo diz” (Ellingworth, 1993, p. 5).
Orígenes tinha conhecimento de outras propostas relativas à autoria,
a saber, Clemente de Roma e Lucas. Sua incerteza provavelmente o fez ou­
sado o suficiente para pressionar suavemente contra uma forte tradição. O
veredito final de Orígenes é lendário: “Mas quem escreveu a epístola, na
verdade, Deus sabe” (Eusébio, Hist. Ecl. 6.25.14).
No ocidente, Hebreus não foi aceita inicialmente como uma das cartas
de Paulo. Não foi incluída no Canon M uratoriano (datado de 180 d.C.),
uma lista de livros do N T autoritativos aceitos em Roma. De acordo com
Fócio (Bibliotheca, p. 232), tanto Irineu (século dois) quanto H ipólito (iní­
cio do terceiro século) afirmaram que Hebreus não foi escrita por Paulo.
Tertuliano (início do terceiro século) atribuiu-a a Barnabé. Eusébio (início
do quarto século) relatou desafios contínuos à autoria paulina em Roma
{Hist. Ecl. 3.3.5; 6.20.3).
Somente no final do quarto século, o ocidente incluiu Hebreus entre
as cartas de Paulo. Isso veio com o estímulo dos pesos pesados, Jerônimo
e Agostinho, e por causa da unidade da Igreja entre o oriente e o ocidente.
Como Hebreus era uma arma valiosa na luta contra o arianismo, ambos
insistiram em sua aceitação, apesar das dúvidas contínuas sobre a autoria
paulina. Jerônimo escreveu {Ep., 129, citado em Lincoln, 2006, p. 4): “Não

50
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

faz diferença de quem é, já que é de um clérigo, e é celebrada nas leituras


diárias das Igrejas”.
Desse momento em diante, o status de Hebreus como a décima quarta
epístola de Paulo parecia seguro. No entanto, durante a Reforma (início
do século 15), o julgamento contra a autoria paulina pelo erudito católico
Erasmo e os reformadores protestantes, Lutero e Calvino, deu início a uma
mudança radical. Um século mais tarde, W illiam Tyndale, em seu prólogo
a Hebreus, expressou dúvidas quanto à autoria paulina. No século 17, o pu­
ritano John Owen sentiu a necessidade de m ontar uma defesa rigorosa da
autoria paulina (1812, 1:62-90). Hoje, se os estudiosos — tanto católicos
como protestantes — podem chegar a um consenso sobre qualquer coisa
a respeito de Hebreus, é que Paulo certamente não a escreveu. A evidência
contra a autoria paulina é esmagadora (veja Achtemeier, Green e Thom p­
son, 2001, p. 468):
(1) A obra é anônima, o que está fora do caráter de Paulo. Não é crível
que Paulo tenha ocultado sua identidade, como afirmaram Panteno e Cle­
mente de Alexandria. Paulo sempre se identifica no início das cartas e (de
acordo com 2 Ts 3.17) “assina” com um pós-escrito de seu próprio punho.
Hebreus não inclui nenhuma das referências autobiográficas e pessoais típi­
cas das cartas de Paulo.
(2) O vocabulário e o estilo literário de Paulo e Hebreus são mundos
à parte. Ellingworth apresenta uma lista impressionante de diferenças de
vocabulário (1993, p. 7-12). Como exemplo de sinal, Paulo frequentemen­
te usa dikaiosynê e seus cognatos para descrever a justificação forense. Mas,
em Hebreus, a palavra grupo é usada principalmente para justiça ética (i.e.,
obediência à vontade de Deus; veja 1.9; 12.11; Trotter, 1997, p. 56).
Os leitores da Grécia Antiga não puderam deixar de detectar o estilo
literário superior de Hebreus. Seu planejamento retórico é executado com
muito mais disciplina do que o de Paulo. Lane observa que o autor de H e­
breus tinha “uma mente arquitetônica” (1991, p. xlix). Ele afirma uma tese
e depois a desenvolve por meio de análise. Mesmo suas digressões parecem
deliberadas, ao contrário de Paulo, que se desvia, às vezes, e nunca retorna
ao seu ponto original.
(3) Existem inúmeras diferenças na ênfase teológica, principalmente
na apresentação de Jesus como Sumo Sacerdote em Hebreus, totalmente
ausentes em Paulo. Hebreus usa outros títulos distintos para Cristo, como
“autor [archigos]” (2.10; 12.2) ou “apóstolo” (3.1), não em Paulo. As ênfases
distintivas de Paulo na justificação pela fé e união com Cristo estão ausentes

51
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

em Hebreus. Enquanto Paulo destaca os aspectos forenses e redentores da


morte de Cristo, Hebreus acentua seus aspectos cultuais como um sacrifí­
cio purificador, santificador e aperfeiçoador. A apropriação de Hebreus de
um texto-chave paulino (Hc 2.4 em 10.37-39) é notavelmente diferente da
de Paulo em Romanos 1.17 e Gálatas 3.11 (veja D. Guthrie, 1990, p. 672-
673; Trotter, 1997, p. 56-57).
(4) A evidência decisiva contra a autoria paulina é a afirmação do autor
de que a mensagem da “salvação, primeiramente anunciada pelo Senhor,
foi-nos confirmada por aqueles que a ouviram” (2.3). Paulo nunca teria fei­
to uma linha tão clara de separação entre ele e os apóstolos. Em vez disso,
Paulo afirma vigorosamente seu apostolado e sua recepção do evangelho
por revelação direta de Jesus (veja 1 Co 9.1; G1 1.1,12).
Um professor universitário meu, quando um estudante expressou a
opinião de que Hebreus representa “um pedaço de Paulo”, respondeu seca­
mente: “Paulo? Bobagem! Você não conhece Paulo!”.

Autores prováveis de Hebreus

A u to r p ro v á ve l Ju stificativ a P ro p o n en te(s)
P a u lo A t e s t a d o na p r im e ir a P a n te n o ; C le m e n t e
c o le ç ã o d e c a r t a s d e d e A le x a n d r ia (fin a l
P a u lo (J346); m e n ç ã o d o s é c u lo d o is); a
d e T im ó t e o (1 3 .2 3 ); m a io r ia d o s p a is
a p o ia d a p e lo s p a is d a g r e g o s d e p o is d is so ;
Ig reja O r ie n ta i. c o n s e n s o d a Igreja
a p ó s o s é c u lo q u a tro
a té o s t e m p o s
m o d e rn o s .
C le m e n t e d e R o m a P a ra le lo s v e r b a is e E u s é b io ( H is t . E d .

c o n c e it u a is c o m 1 3 .38 ); E ra s m o ;
C le m e n t e . C a lv in o ( c o m o u m a
p o s s ib ilid a d e ) .
B a rn a b é U m le v ita T e r tu lia n o (fin a l d o
f a m ilia r iz a d o c o m s é c u lo d o is); Jo h n
r it u a is d e c u lto e A.T. R o b in s o n ; P h ilip
s a c r if íc io s ju d a ic o s ; Hughes
ch am ad o de
" e n c o ra ja d o r"
(A t 4 .3 6 ; c o m p a r e
H b 1 3 .2 2 ).

52
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

A p o io A d e s c r iç ã o d e le e m M a r t in h o L u te ro ;
A t o s d o s A p ó s t o lo s m u ito s o u tro s
1 8 .2 4 - 2 8 e n a s c a r ta s e s t u d io s o s m o d e rn o s
d e P a u lo s e e n c a ix a d o NT.
a d m ir a v e lm e n t e no
p e rfil d e a u to r ia d e
H e b re u s .
L u c a s (c o m o t r a d u t o r S e m e lh a n ç a s C le m e n t e d e
d a s o b r a s d e P a u lo ) e s t ilís t ic a s e n tre A le x a n d r ia
H e b re u s e L u c a s -A to s .
L u c a s (c o m o a u to r S e m e lh a n ç a s C a lv in o (c o m o u m a
so lo ) e s t ilís t ic a s e n tre p o s s ib ilid a d e ) ; G ró c io ;
H e b re u s e L u c a s -A to s ; D a v id A lle n (2 0 1 0 ).
a f in id a d e s t e o ló g ic a s ;
re c o n stru çã o
h is tó r ic a re la tiv a a o
e n v o lv im e n t o d e
L u c a s c o m P a u lo e m
s e u s ú lt im o s d ia s e
c o m a c o m p o s iç ã o
d a s E p ís t o la s
P a s to ra is .
T im ó t e o (c o m u m P a u lo e n v io u J. D. L e g g ; J. R a m s e y
p ó s - e s c rito d e P a u lo ) e sse se rm ã o por M ic h a e ls ( 2 0 0 9 , p.
T im ó t e o (q u e 3 1 0 -3 1 1 ).
e s t a v a na p ris ã o ),
a c re s c e n ta n d o su a
p ró p ria " c a r t a d e
a p r e s e n t a ç ã o ” no
fin a l.
S ila s / S ilv a n o M e m b ro d o c írc u lo B o e h m e ; T. H e w itt.
p a u lin o ; s e m e lh a n ç a s
lit e r á r ia s c o m 1 Pe dro.
P ris c ila ( a s s is tid a p o r T o q u e s f e m in in o s A d o lf v o n H a rn a c k ;
Á q u ila ) (ex.: m u lh e r e s R u th H o p p in (2 0 0 9 ).
m e n c io n a d a s n o c a p .
11); fo i in s tr u to ra d e
A p o io .
E p a fra s P re o cu p a çõ e s C. P. A n d e r s o n ; R o b e rt
s e m e lh a n t e s s o b re a J e w e tt ( 1 9 8 1 , p. 7-9).
h e re s ia g n ó s t ic a (v e ja
C l 1.7; 4 .1 2 ,1 3 ).

53
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

F ilip e E s c rito d e C e s a re ia , S ir W illia m R a m s a y


F ilip e re c o m e n d a o
e v a n g e lh o d e P a u lo
a o s c r is tã o s ju d e u s
e m J e ru s a lé m .
M a ria , a m ã e d e Je s u s T o q u e s fe m in in o s . J. M a s s y n g b e r g e Ford
(c o m a a ju d a d e Jo ã o
e L u ca s)

Barnabé. Essa é uma das poucas propostas alternativas a Paulo que teve
origem nos tempos antigos (além de Lucas e Clemente de Roma). Tertuliano
(ca. 200 d.C.) nomeou Barnabé como o autor de Hebreus. Ele o fez de forma
suficientemente casual, que pode não ter sido uma ideia sua. Mas, se ele depen­
dia da tradição, deve ter ficado confinado ao norte da África. Dois séculos mais
tarde, Jerônimo estava ciente da proposta de Tertuliano (veja Ellingworth,
1993, p. 14). Alguns estudiosos modernos defenderam a autoria de Barnabé
(notavelmente Robinson [1976, p. 217-220] e Hughes [1977, p. 24,25,29]).
Três linhas de evidência apoiam esse ponto de vista:
(1) Barnabé era um levita e natural de Chipre (At 4.36). Sua ascendência
levítica explicaria seu interesse pelo sacerdócio e culto sacrificial, como encon­
tramos em Hebreus. Como Judeu da diaspora, ele estaria mais familiarizado
com a LXX.
(2 ) 0 nome Barnabé era um apelido (para José), que Atos 4.36 interpreta
como “Filho do Encorajamento [paraklêseõs]” (NVT). Isso se originou com o
seu dom como solucionador de problemas e mediador na Igreja primitiva (At
9.26-30; 11.22-30; 15.22-39; Robinson, 1976, p. 218)? Talvez Barnabé tenha
cumprido esse papel ao enviar Hebreus como uma "palavra de exortação" \pa-
rakleseõs\ (Hb 13.22) para uma igreja problemática em Roma (-» C. Destino).
(3) Barnabé era conhecido por sua abnegação e generosidade exemplares
(At 4.37). Ele patrocinou, com Paulo, uma missão de alívio da fome para as
igrejas na Judeia (At 11.29). Uma preocupação importante em Hebreus é a
liberdade da ganância (13.5,6). Ele elogia a alegre perda de posses (10.34) e
a demonstração de amor e verdadeiro sacrifício por meio da partilha com os
outros (6.10,11; 13.16).
As impressionantes correlações entre Barnabé e Hebreus podem não pas­
sar de coincidências. Elas não podem provar nem refutar sua autoria. Outros
motivos argumentam contra Barnabé como autor:

54
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

Primeiro, quer Roma seja a origem, quer seja o destino da obra (13.24), é
notável que a identidade de Barnabé como seu autor era desconhecida ali. Não
há evidência de que Barnabé tenha feito quaisquer negócios em Roma, exce­
to de acordo com os historicamente pouco confiáveis Clementine Recognitions
(1.7-13; veja Robinson, 1976, p. 217).
Segundo, pode ter existido alguma confusão entre Hebreus e a espúria
Epístola de Barnabé. Tertuliano cita claramente Hebreus (6.4-8), mas chama a
obra que está citando tanto de “uma epístola aos Hebreus” como “a epístola de
Barnabé” (Pud. 20).
Terceiro, a qualidade do estilo de Hebreus supera a de Paulo. Entretan­
to, foi Paulo, não Barnabé, que agiu como “o principal portador da palavra”
[NAA] durante a primeira viagem missionária (At 14.12). Isso não prova
que Barnabé não pudesse ter a habilidade oratória para igualar a exibição
retórica em Hebreus. Contudo, Atos toma nota da proeza retórica quando
está presente (ex.: Estêvão [6.10] e Apoio [18.23-28]).
Apoio. Essa é a brilhante sugestão feita por M artinho Lutero. Desde o
século 19, muitos estudiosos têm defendido Apoio como o autor, incluin­
do F. Sleek, F. W. Farrar, T. Zahn, T. W. Manson, H . Montefiore, R. C. H.
Lenski e C. Spicq. Muitos estudiosos recentes tiram seu chapéu para essa
visão como a mais viável (ex.: Lane, Ellingworth, Hagner, Pfitzner, L. T.
Johnson; veja D. Guthrie, 1990, p. 679-680; G. Guthrie, 2001, p. 42-49).
Apoio, de acordo com a descrição em Atos dos Apóstolos 18.24-28 e
detalhes adicionais das cartas de Paulo, corresponde ao nosso perfil do autor
de Hebreus (-» Que tipo de homem escreveu Hebreus? em páginas anteriores).
Ele não era um apóstolo, mas podia afirmar que a mensagem que pregava
era confirmada pelos apóstolos. Ele estava em contato com o círculo pauli-
no. Tinha relações com Priscila e Aquila, e com o próprio Paulo em Efeso
(At 18.26; 1 Co 16.12). Alguns estudiosos especulam que “os da Itália” (Hb
13.24) é uma referência oblíqua a Priscila e Aquila. Atos chama Apoio de
“homem culto” [anêr logios\ (At 18.24), uma expressão empregada por Fí-
lon e outros para significar grande aprendizado e eloquência (Lane, 1991,
p. 1; BDAG, p. 598). Sua cidade natal também evidencia seu alto nível de
educação, já que Alexandria era o principal centro de cultura helenística e
ensino superior no m undo romano do primeiro século.
Apoio era “poderoso [dynatos] ” [ACF], isto é, “uma autoridade” nas
Escrituras (At 18.24 NAB). Era capaz de fazer um discurso ousado e uma
argumentação vigorosa com os judeus na sinagoga (18.26,28). Ele ensinou
com precisão a respeito de Jesus e provou pelas Escrituras que Jesus é o Mes­

55
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

sias (18.25,28), assim como as exposições bíblicas em Hebreus. Sua adesão


passada ao ensino de João Batista fornece um pano de fundo plausível para
as referências de Hebreus aos “batismos” (H b 6.2; 9.10), bem como sua dou­
trina não desenvolvida do Espírito Santo (compare At 18.25 com 19.1-6).
Apoio também é descrito como nutrindo a fé dos novos convertidos na
Acaia (At 18.27; 1 Co 3.6). Ele aparece como um líder da Igreja, trabalhan­
do em cooperação com o apóstolo Paulo (1 Co 16.12). Na última vez que
o vimos, ele viajou para Creta a caminho de outra missão (Tt 3.13). Assim,
Apoio parece ter sido procurado como um pregador talentoso e apaixonado
que foi eficaz em confirmar a fé dos crentes.
A força da autoria apolínea é que não há fatos concretos contra ela (D.
Guthrie, 1990). No entanto, existem três impedimentos a considerar:
Primeiro, Apoio não foi nomeado como o autor até a época de Lute-
ro. Se Apoio escreveu Hebreus, é notável que ninguém na Igreja primitiva
se lembrasse disso. Tampouco temos conhecimento de que ele tenha se
engajado em qualquer atividade literária. Embora a falta de testemunhos
positivos iniciais ou vestígios literários fique aquém de provar que Apoio
foi o autor, isso não o refuta.
Segundo, alguns estudiosos admitem que Apoio se encaixa no perfil
geral de autoria, mas insistem que deve ter havido outros na Igreja primitiva
que eram iguais a ele em habilidade exegética e retórica (Attridge, 1989, p.
4). G. Guthrie contraria essa suposição, apontando para a linguagem espe­
cialmente forte que Lucas usa para descrever Apoio em Atos dos Apóstolos
18.24-28 (2001, p. 52). Apoio impressionou tanto a igreja de Corinto com
seu aprendizado e eloquência que alguns inadequadamente o elevaram aci­
ma dos apóstolos Pedro e Paulo (1 Co 1.12; 3.4). Por todas os relatos, Apoio
foi uma figura excepcional. Não havia alguém como ele em cada esquina do
movimento cristão primitivo.
Terceiro, se Apoio fosse o autor, podería enfraquecer o argumento para
um destino romano de Hebreus (-» C. Destino, a seguir). Mas esse é um ar­
gumento do silêncio. Não sabemos para onde Apoio viajou ou residiu antes
de sua chegada a Éfeso (At 18.24). Além de seu trabalho em Corinto, Efeso
e depois em Creta, não sabemos nada sobre seus movimentos.
Priscila e Aquila retornaram a Roma (depois que a ordem de expul­
são de Cláudio caducou [At 18.1; Rm 16.3-5]). E Paulo acabou lá como
prisioneiro (At 28.11-31). Apoio cooperou com todos esses três líderes da
Igreja primitiva. Paulo imaginou estabelecer uma base em Roma para uma
missão projetada na Espanha (Rm 15.24,28). Assim, algum envolvimento

56
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

de Apoio com as igrejas em Roma no final dos anos 50 não é improvável (G.
Guthrie, 2001, p. 53).
Infelizmente, não podemos saber com certeza quem escreveu Hebreus.
Qualquer proposta de autoria é inevitavelmente especulativa, com base nas
poucas informações de que dispomos. Ficamos com o pronunciamento des­
gastado de Orígenes: “Mas quem escreveu a epístola, na verdade, Deus sabe”.

C. D estino
Numerosos destinos possíveis foram propostos para a Epístola aos He­
breus: Colossos, Éfeso, Galácia, Corinto, Síria (possivelmente Antioquia),
Chipre e até Bereia (veja D. Guthrie, 1990, p. 700-701). Três propostas obtive­
ram o maior apoio: Jerusalém, Alexandria e Roma.
Jerusalém. O título “Aos Hebreus [Pros Hebraious]” não é original.
Provavelmente adicionado no segundo século, quando Hebreus foi compilada
em uma coleção de cartas de Paulo (como J346), criada para corresponder a ou­
tros títulos indicando destinatários (ex.: “Aos Romanos [Pros Rõmaious]”).
A primeira menção da Epístola aos Hebreus por esse título remonta a Irineu
(observado em Eusébio, Hist. Ecl. 5.26). Esse é o título que encontramos mais
tarde em Tertuliano, Clemente de Alexandria e Orígenes. O título foi pro­
vavelmente um palpite, baseado no conteúdo do trabalho. Significava um
público judeu, mais especificamente cristãos judeus. Também estava implíci­
to um destino na Terra Santa. João Crisóstomo (final do quarto século) foi o
primeiro a deixar isso explícito, afirmando que os destinatários estavam “em
Jerusalém e na Palestina” (1996, p. 364).
Por volta do século quatro até os tempos modernos, a visão tradicional tem
sido que Hebreus foi escrita para um grupo de cristãos judeus em Jerusalém
ou em seus arredores. Uma variação do século 20 identificou os destinatários
como sacerdotes convertidos na Palestina (veja At 6.7). Entre eles estavam os
essênios, que eram associados ou antigos membros da comunidade de Qumran
(Spicq, 1952, 1:226-231; Hughes, 1977, p. 10-15). Essa teoria surgiu no fer­
vor da descoberta dos Manuscritos do Mar Morto, mas não sobreviveu a uma
investigação acadêmica detalhada.
Existem muitas incongruências em relação ao destino de Jerusalém (veja
Brown, 1997, p. 698-699; Trotter, 1997, p. 37; Koester, 2001, p. 48-49):
(l) É estranho que o autor tenha escrito em grego tão polido para um pú­
blico cuja língua nativa era o aramaico. Clemente de Alexandria percebeu esse

57
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

problema e fez a impossível sugestão de que Paulo originalmente tenha escrito


a obra em hebraico (= aramaico) e Lucas a traduzido para o grego.
(2) O autor escreveu como se nenhum de seus leitores tivesse sido testemu­
nha em primeira mão de Jesus (2.3) ou ascendido ao papel de mestre (5.11-14).
Ambas as alegações não combinam com a Igreja primitiva em Jerusalém.
(3) As perseguições passadas descritas em 10.32-34, bem como o comen­
tário em 12.4, sugerem que ninguém na comunidade experimentou o martírio.
Mas as perseguições dos primeiros cristãos em Jerusalém resultaram na morte
de Estêvão e Tiago, irmão de João (At 7.58—8.3; 12.1,2).
(4) Os leitores de Hebreus foram exemplares em sua generosidade para
com os outros (6.10; 10.34; 13.16). Mas sabemos que os crentes na Judeia eram
notavelmente pobres e, muitas vezes, eles mesmos precisavam de assistência
(At 24.17; Rm 15.26; G12.10).
(5) Também parece estranho que a longa discussão do autor sobre o sa­
cerdócio levítico e o culto faça repetidas referências ao antigo tabernáculo e
nenhuma ao templo em Jerusalém.
(6) O livro de Atos dos Apóstolos atesta que os cristãos judeus — inclusive
Paulo — participavam de atividades de adoração no templo de Jerusalém (At
21.23,24,26). Se Hebreus foi escrito antes de 70 d.C., de que adiantaria orien­
tá-los a não voltar aos rituais dos quais nunca desistiram? Após 70 d.C., como
os cristãos judeus poderíam retornar a um culto sacrificial que já não existe?
(7) É plausível que qualquer autor, muito menos um cristão paulino de se­
gunda geração, pensasse que podería persuadir os cristãos judeus em Jerusalém
a renunciar às atividades de culto no templo ? A piedade judaica modelada pelo
proeminente líder da igreja de Jerusalém, Tiago, irmão de Jesus (61 d.C.), não
teria dado lugar facilmente ao argumento. Isso foi especialmente verdadeiro
nos anos que antecederam a Guerra judaica e a destruição final do templo,
quando o nacionalismo judaico estava em alta.
Alexandria. Uma visão da moda nos dois últimos séculos tem defendido
um público-alvo em Alexandria, baseado na “coloração Alexandrina” ou su­
postas semelhanças com Fílon (D. Guthrie, 1990, p. 700; veja Bruce, 1990,
p. 12-13). Mas é pouco crível, já que os primeiros estudiosos a propor (erro­
neamente) que Paulo compôs Hebreus estavam em Alexandria. De qualquer
forma, a “coloração” da epístola pode dizer-nos mais sobre o autor do que sobre
seu público. O declínio dessa teoria parece corresponder à crescente rejeição da
visão outrora popular de que Hebreus fora profundamente influenciada pelo
pensamento filônico ou platônico (veja Hurst, 1990, p. 7-42).

58
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

Roma. Desde meados dos anos 1700, a visão de que Hebreus fora diri­
gida a uma comunidade cristã em Roma ganhou cada vez mais favor (veja D.
Guthrie, 1983, p. 27; Bruce, 1990, p. 13-14; Hagner, 1990, p. 5; Lane, 1991,
lviii-lx; Ellingworth, 1993, p. 29; Pfitzner, 1997, p. 30-31; G. Guthrie, 1998,
p. 20-21; Koester, 2001, p. 49; France, 2006, p. 22-23; O ’Brien, 2010, p. 15).
O único marcador explícito no texto, “os da Itália”, é ambíguo (-» 13.24). A
interpretação mais provável é que o autor envie saudações de alguns de seus
companheiros italianos para seus companheiros cristãos no seu país de origem.
Uma série de conexões entre evidências externas e internas são coerentes com
um destino romano:
(1) Os primeiros usos de Hebreus foram associados a Roma. Clemente de
Roma citou Hebreus extensivamente em sua carta aos coríntios (7 Clemente-,
ca. 96 d.C.). O Pastor de Hermas, também escrito em Roma (final do primeiro
século), estava em dívida para com os Hebreus (veja tópico 2 a seguir). Irineu
foi o primeiro a mencionar Hebreus por seu título (“Aos Hebreus”). Antes de
tornar-se bispo na Gália, ele residia em Roma. Tanto ele como seu discípulo,
Hipólito de Roma, negaram que Paulo tenha escrito Hebreus.
(2) Em termos de conteúdo, existem várias correlações entre as primeiras
fontes romanas (1 Clemente e Hermas) e Hebreus:
Primeira, o vocabulário usado para descrever os “líderes” cristãos parece ser
distinto de Roma. Os termos não são utilizados como títulos para líderes cris­
tãos em nenhuma fonte além daquelas originárias de Roma (hêgonmenoi: Hb
13.7,17,24; / Ciem. 1.3; proêgoumenoi·. 1 Ciem. 21.6; Herm. Vis. 2.2.6; 3,97).
Segunda, o Pastor de Hermas está ciente da doutrina rigorista em Hebreus
(que é impossível arrepender-se novamente após a conversão e subsequente
apostasia). Um mensageiro celestial modifica esse ensinamento, permitindo
uma oportunidade adicional de arrependimento após o batismo {Herm. Mand.
4.3.1-7; veja Herm. Vis. 2.2.4,5). Esse relaxamento da posição de Hebreus
atraiu o fogo de Tertuliano, que apelidou Hermas de “aquele pastor apócrifo
de adúlteros” {Pud. 20).
Terceira, embora menos certa, diz respeito ao motivo da apostasia. Em
Hermas, certos crentes não se “apegavam” aos santos {Herm. Sim. 8.8.1; 8.9.1),
porque eram ricos ou enredados em negócios (9.20.1,2). Robinson (1976, p.
211-212) detecta a mesma razão para alguns leitores de Hebreus se absterem
de “amor e boas obras” e se retirarem da assembléia cristã (10.24,25). Pelo me­
nos alguns deles eram ricos. No passado, eles tinham sido generosos (6.10)
e dispostos a abrir mão de suas posses em vez de negar o seu compromisso
com Cristo (10.34). Mas agora eles precisavam ser advertidos contra a ganân­

59
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

cia (13.5) e lembrados de compartilhar com os outros (13.16; veja 6.10,11).


Robinson também aponta para a preponderância de imagens comerciais: Deus
é um recompensador (11.6); salvação é uma “recompensa” (10.35; 11.26),
posses/bens (10.34), ou uma herança (1.2,4,14; 6.12,17; 9.15; 11.8; 12.17); a
obediência é ordenada porque seus líderes devem “prestar [uma] conta”, e uma
má avaliação seria “inútil” (13.17 BJK).
(3) O registro de generosidade da Igreja está de acordo com as celebrações
da generosidade dos cristãos romanos {In. Rm. Abertura; Eusébio, Hist. Ecl.
4.23.10; Pfitzner, 1997, p. 31).
(4) Em uma data inicial, havia cristãos em Roma (Rm 1.7; 16.3-5,14,15)
e em sua cidade portuária, Potéoli (At 28.13-15). Há muito tempo havia co­
munidades judaicas nessas duas cidades (Josefo, G.J. 2.104; Fílon, Embaixada,
p. 155). As igrejas fundadas nessas cidades tinham muitos membros gentios
(Rm 1.5,6,13-15), embora incluíssem cristãos judeus proeminentes (ex.: Pris­
cila e Aquila [Rm 16.3]). Muitos cristãos romanos permaneceram fortemente
dedicados à sua herança judaica (veja Rm 9— 11; 1 Clemente). Ambrosiastro
comentou no prefácio de sua exposição de Romanos; “Os romanos abraçaram
a fé de Cristo, embora de acordo com o rito judaico”. Hipólito de Roma (Trad.
Ap. 20.5) menciona os cristãos que prescreveram banhos purificadores seme­
lhantes aos ritos judaicos (Lane, 1991, p. lix). Essa identidade judaica entre as
igrejas romanas é coerente com as preocupações tratadas em Hebreus.
Em sua Carta aos Romanos, Paulo está ciente de várias igrejas domésticas
em Roma (16.3-16). Hebreus provavelmente foi escrita para um dessas igre­
jas. As exortações para lembrar, obedecer e saudar os líderes (Hb 13.7,17,24)
sugerem uma estrutura organizacional frouxa, reconhecida pelas várias igrejas
domésticas. O afastamento da “reunião” (10.25) envolveu indivíduos abando­
nando a igreja doméstica? Ou a própria igreja doméstica se absteve de grandes
reuniões públicas com as outras igrejas domésticas em Roma?
(5) A preocupação com a situação de Timóteo (13.23) enquadra-se em
um destino romano, uma vez que as igrejas ali estavam em contato com líderes
na órbita do ministério de Paulo (Rm 16.3,7). As igrejas romanas conheciam
Timóteo e outros identificados por Paulo como cristãos judeus (Rm 16.21;
veja 16.7,11).

D. Data e situ ação do público


Não estamos mais certos sobre a data de Hebreus ou a situação exata de
seus leitores originais do que estamos sobre o seu autor. Hebreus indica que

60
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

algum tempo se passou desde que a comunidade recebeu pela primeira vez a
mensagem da salvação (2.1-4; 3.14; 5.12; 6.10; 10.32-34; 13.7). Uma vez que
tanto o autor quanto seus leitores estavam familiarizados com o círculo pauli-
no (13.23), Hebreus não pode ser datada antes do final dos anos 50. Sua última
data plausível parece ser 96 d.C., quando Hebreus é citada pela primeira vez
por Clemente de Roma (ex.: 1 Ciem. 36.1-5).
A destruição de Jerusalém e seu templo em 70 d.C. foi para os judeus, de
certa forma, semelhante à queda das Torres Gêmeas na cidade de Nova York,
em 11/09/2001, para os americanos. A conquista romana da Judeia foi notícia
mundial. Foi celebrada e propagada pelos romanos de várias maneiras: uma
procissão triunfal em 71 d.C.; a cunhagem de moedas Judaea Capta por 25
anos sob o imperador Vespasiano e seus filhos, Tito e Domiciano; o alojamen­
to dos espólios do templo de Jerusalém no recém-construído Templo da Paz
ao lado do Fórum Romano, dedicado em 75 d.C.; e, no Arco de Tito, erguido
por volta de 81 d.C., após a morte de Tito (Aitken, 2005, p. 137-138,145).
Se Hebreus foi escrita após o saque de Jerusalém, é extraordinário que nunca
mencione a destruição do templo de Jerusalém.
Esse argumento do silêncio de que Hebreus foi escrita antes de 70 d.C.
não convenceu muitos estudiosos. Não apenas seu autor nunca menciona a
destruição do templo, como também não faz nenhuma referência ao templo
em Jerusalém. Hebreus refere-se exclusivamente ao tabernáculo do deserto, ao
sacerdócio levítico e às ofertas descritas no Pentateuco. Claro, isso demonstra
apenas o foco bíblico-exegético do autor. Não diz nada sobre a continuação do
culto do templo em Jerusalém. O autor podería ter ignorado propositalmente
a menção do templo para não o legitimar?
Hebreus regularmente se refere a ações sacerdotais no tempo presente (ex.:
7.27,28; 8.4,5; 9.6,7; 13.11). Isso pode sugerir que o culto do templo ainda es­
tava em operação. Os críticos são rápidos em apontar, no entanto, que outros
escritos após 70 d.C. referem-se ao templo ou às ofertas de sacrifício no tempo
presente (Josefo, Ant. 3.224-57; CA. 2.77, 193-198; 1 Ciem. 41.2; Diog. 3.5).
Todavia, várias declarações em Hebreus dificilmente poderíam ter sido ex­
pressas da mesma forma se o templo já estivesse em ruínas. O autor fala “para
os nossos dias” quando “as ofertas e os sacrifícios” [estão sendo] “oferecidos”
(9.9). Ele escreve sobre “os mesmos sacrifícios repetidos ano após ano” (10.1) e
que “dia após dia, todo sacerdote apresenta-se e exerce os seus deveres religio­
sos” (10.11). Esses sacrifícios nunca poderíam remover pecados ou aperfeiçoar
os adoradores. Se pudessem, “não deixariam de ser oferecidos" (10.2)? Se o
templo já estivesse destruído, a afirmação em 8.13 não seria ainda mais con­

61
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

tundente do que é: “O que se torna antiquado e envelhecido está a ponto de


desaparecer”?
Se o autor escreveu após a destruição do templo, ele podería ter resistido
a comentar sobre a cessação do culto do templo, principalmente à luz do argu­
mento da obra ? A Epístola de Barnabé é a única outra obra cristã primitiva que,
como Hebreus, apresenta um argumento sustentado a favor da superioridade
de Cristo e Sua morte sacrificial aos sacrifícios e práticas rituais do judaísmo.
Claramente escrito após 70 d.C. (ca. 130), PseudoBarnabé faz exatamente o
que esperaríamos: refere-se explicitamente à queda de Jerusalém e seu templo
para reforçar seu argumento {Barn. 16.1-5). Ele é o primeiro escritor cristão a
fazê-lo (Robinson, 1976, p. 313).
Da mesma forma, se o templo tivesse sido demolido antes da escrita de
Hebreus, “teria pontilhado os is e cruzado os ts de tudo que o autor estava
trabalhando para provar” (Robinson, 1976, p. 204). O autor de Hebreus dis­
cerniu a demonstração do Espírito Santo de que um caminho para o lugar
santíssimo não seria revelado “enquanto ainda permanecia o primeiro taberná-
culo” (9.8). Quanto mais, então, ele teria traçado a intenção do Espírito Santo
na destruição efetiva do templo de Jerusalém?
Assim, podemos estar razoavelmente confiantes de que Hebreus foi escrita
antes da destruição de Jerusalém. Analogamente, em nossos dias, esperaríamos
que livros escritos especificamente sobre terrorismo global não se referissem à
destruição do World Trade Center em Nova York apenas se tivessem sido escri­
tos antes de 11 de setembro de 2001. No entanto, assim como outras questões
relativas a Hebreus, não podemos ser dogmáticos quanto à sua data.
É possível ampliar ainda mais os tempos e a situação da comunidade cristã
primitiva para a qual Hebreus foi escrita? Esboçar um quadro coerente a partir
dos poucos dados de que dispomos é um exercício de reconstrução histórica.
Devemos estar cientes de que é provisório e sujeito à revisão ou rejeição. A
melhor proposta é a de William Lane (1985, p. 22-25; 1991, p. Ixiii-lxvi). Ba­
seia-se no argumento de que Hebreus foi escrita para uma comunidade cristã
judaica primitiva em Roma. Hebreus revela-nos dois períodos principais na
vida da comunidade.
O primeiro período foi durante os “primeiros dias” depois que eles foram
originalmente iluminados pelo evangelho (10.32; veja 3.14; 6.4) em respos­
ta à pregação da Palavra de Deus (2.3; 13.7). A comunidade estava passando
por “muita luta e muito sofrimento” devido à sua confissão de Cristo (10.32).
A perseguição sofrida pela comunidade encaixa-se na angústia que os cristãos
judeus experimentaram em 49 d.C. em Roma. O biógrafo romano Suetônio
62
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

relatou motins no bairro judeu de Roma “por instigação de Cresto” {Claud.


25.4). Os historiadores consideram o nome do escravo “Chrestus [Cresto]”
uma forma equivocada de “Christus” (Cristo).
Os cristãos judeus estavam evidentemente evangelizando no bairro judeu,
proclamando o Jesus crucificado e ressurreto como o Messias prometido (o
Cristo). As respostas mordazes à Sua pregação explodiram em violência. A
agitação e os tumultos provocaram uma ação rápida e decisiva do imperador
Cláudio. Ele expulsou muitos judeus de Roma (Suetônio, Claud., 25.4), in­
cluindo cristãos judeus como Áquila e Priscila (At 18.2). Outras dificuldades
observadas em Hebreus 10.32-34 são consistentes com tal ação imperial: expo­
sição pública a abusos verbal e físico, prisão e apreensão de propriedade.
O segundo período foi concomitante com a escrita de Hebreus, aproxi­
madamente quinze anos depois. Cerca de dez anos antes, vários cristãos judeus
banidos, incluindo Priscila e Áquila, haviam se reassentado em Roma após a
morte de Cláudio (54 d.C.; veja Rm 16.3-5). Então, em 64 d.C. um grande
incêndio devastou mais de 70% de Roma. Os cristãos, que já eram foco de ridi­
cularização e suspeita pública, agora se tornaram alvos de perseguição oficial.
Para desviar os rumores de que ele havia causado o incêndio, o imperador Nero
transferiu a culpa para os cristãos (Tertuliano, An. 15.44). Cristãos proemi­
nentes foram presos e torturados. Outros foram condenados à morte.
Não podemos ter certeza de que esse era o cenário do público original
de Hebreus. Mas a experiência deles foi consistente com isso. Hebreus esta­
va endereçada a uma comunidade sob uma ameaça tão severa que eles foram
escravizados pelo “medo da morte” (2.14,15). Essa paralisia do medo torna-
va-os cada vez mais resistentes a ouvir a Palavra de Deus (2.1,3; 3.7,15; 4.7;
5.11; 12.25). Seu crescimento espiritual foi atrofiado (5.11-14); e eles estavam
sofrendo de falta de coragem para avançar em sua fé (6.1-3,11-20). Estavam
ficando cansados e desanimados (12.3,12,13). Eles precisavam ser encorajados
em sua confissão de Cristo (3.6; 4.14; 10.23,35).
O pano de fundo da perseguição neroniana também se encaixa na ênfase
de Hebreus no exemplo da perfeição de Jesus por meio do sofrimento e da
morte (2.9,10; 5.8,9). Repetidas exortações para perseverar são apoiadas por
exemplos de fiéis do passado que sofreram alienação (11.13), prisão, tortura,
exílio e execução (11.35-40). Esses homens e mulheres dignos são uma “grande
nuvem de testemunhas” da luta atual dos leitores (12.1). Mas a perseverança de
Jesus na crucificação é o padrão supremo para a perseverança na fé dos leitores
(12.2,3). Eles ainda não lutaram a ponto de derramar sangue (12.4). Mas eles
tinham de estar preparados para dar tudo de si em devoção a Cristo. O clímax

63
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

do chamado ao compromisso está em 13.13: “Portanto, saiamos até ele, fora do


acampamento, suportando a desonra que ele suportou”.
Embora longe de ser certo, o cenário de Hebreus encaixa-se plausivelmente
no período conturbado para os cristãos em Roma entre o grande incêndio de 64
d.C. e o suicídio de Nero em 68. Essa data inicial coincide com a expectativa de
Hebreus do retorno iminente de Cristo (10.25,37-39; veja 9.28) e a consciência
do papel ativo de Timóteo nas Igrejas primitivas (13.23; Lane, 1991, p. lxvi).

E. G ênero
Η. E. Dana disse que Hebreus “começa como um tratado, prossegue como
um sermão e termina como uma epístola” (citado em Brown, 1997, p. 690). O
debate envolve a identificação do gênero de Hebreus. Mas estudiosos recentes
concordam cada vez mais que foi escrita com profunda preocupação pastoral
para uma comunidade real em crise (veja Lane, 1991, p. lxxiv; Lincoln, 2006,
p. 11). Apesar de sua majestosa abertura e rica teologia, Hebreus não é um
tratado teológico.
O autor descreve sua própria composição como uma “palavra de exorta­
ção” (-» 13.22). O mesmo rótulo em Atos 13.15 designa um sermão na sinagoga
que Paulo faz após a leitura da Lei e dos Profetas (sobre Hebreus como uma
homília na sinagoga, veja Gelardini, 2005). Várias características em Hebreus
confirmam essa identificação:
(1) Embora Hebreus seja obviamente uma composição escrita, assume
principalmente formas de expressão orais. Antes do pós-escrito (13.22-25), o
autor evita deliberadamente referências à leitura ou à escrita. Em vez disso,
refere-se consistentemente à fala (2.4,5; 5.11; 6.9; 8.1; 9.5; 11.32; 13.6) e à
audição (2.1,3; 3.7,15,16; 4.2,7; 5.11). O falar de Deus é a primordial preocu­
pação em Hebreus (ex.: 1.1,2a; 12.25-27).
(2) O autor mantém um tom pessoal por todo o texto. Isso pode ser visto
em sua frequente identificação com seu público por meio do uso da primeira
pessoa do plural (“nós” e “nos”; seu uso do subjuntivo exortativo é ilustrativo;
-> 4.1 anotação complementar: “Vamos...”). Ele também entrelaça habilmente
discurso diretos a seus ouvintes na segunda pessoa (“vocês”; veja 5.11—6.20;
10.19-39). Por exemplo, mesmo em meio a argumentos jurídicos técnicos
no capítulo 7, o autor introduz fragmentos de encorajamento pastoral (v.
19,22,25,26).
(3) A abordagem do autor para interpretar as Escrituras era comum nas
antigas sinagogas judaicas e helenísticas e no judaísmo rabínico posterior. Mi-
64
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

drash (-» 3.7-19 Por trás do texto, anotação complementar: “Midrash”), como
é chamado, incorpora várias estratégias interpretativas, como analogia verbal,
tipologia, argumento do silêncio e argumento do menor para o maior (-» 4.3£-
5, “Analogia verbal”; -» 7.1-28 Por trás do texto). A alternância do autor entre
exposições de textos bíblicos e exortações a seus ouvintes é característica de
homílias antigas (veja At 13.16-41; Lincoln, 2006, p. 10-11).
(4) Hebreus é a melhor exibição retórica do NT. O autor utiliza muitas
figuras retóricas elegantes e padrões de argumentação. Uma pequena lista inclui
inclusio, comparação (synkrisis), quiasma, aliteração, anáfora, antítese, exemplos
{exempla), jogo de palavras e o frequente argumento do menor para o maior
(para explicações convenientes, veja Trotter, 1997, p. 66-75,164-180; Lincoln,
2006, p. 19-21). Ao longo do comentário, damos aos leitores insights sobre a
força retórica de tais técnicas, a estruturação retórica da obra, bem como do
domínio estilístico do Grego em Hebreus.
Como Hebreus é um sermão, muitas vezes me refiro ao autor como “o pre­
gador”. No entanto, Hebreus também é uma epístola; e seu autor, um escritor
de cartas. O capítulo 13 contém muitos elementos do encerramento de cartas
antigas (-> 13.1-25 Por trás do texto). A urgência da situação do público e a
incapacidade do pregador de entregar sua “palavra de exortação” pessoalmente
exigia um modo epistolar. Ele confiou seu sermão por escrito e enviou-o a eles
por meio de uma carta (13.22b). Assim, podemos, justificadamente, referir-nos
à “Epístola aos Hebreus”, embora o gênero dominante da obra seja o de uma
homília ou sermão.

F. Propósito
O propósito de Hebreus é responder diretamente à situação do público
(-> D. Data e situação do público em páginas anteriores). Hebreus apresenta
“forte encorajamento” (6.18 ESV, RSV, NASB; veja 12.5; 13.22) a um grupo
de cristãos judeus que estão atualmente ou, em breve, serão submetidos a uma
grande prova de sofrimento. A sociedade ao seu redor está marcando-os com
desonra e vergonha por causa de sua confissão de Jesus Cristo. Sentimentos de
vulnerabilidade, insegurança, isolamento e medo estão abalando sua confiança
e certeza na fé cristã.
Um extremo desânimo tomou conta de certos membros da pequena igreja
doméstica. Como resultado, alguns são culpados de um compromisso flagran­
te com Cristo. Essa tendência os tornou desatentos ao ensino cristão avançado
(5.11; 6.1-3). Sua clareza moral e sua maturidade espiritual estão em declínio

65
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

(5.12-14; 12.5-11). O pregador está preocupado que a sua lentidão (5.11; 6.12)
e determinação enfraquecida (12.12,13) levem à descrença e à desobediência
(3.12; 4.11). Isso pode, em última análise, resultar no abandono total de seu
compromisso cristão. Assim, Hebreus contém cinco advertências assustadoras
sobre o perigo da apostasia (2.1-4; 3.7—4.13; 5.11—6.12; 10.19-39; 12.14-
29; veja Bateman, 2007a).

Cinco advertências contra a apostasia

H e b re u s A d v e rtê n c ia

2 .1 -4 A d e s a t e n ç ã o e o a f a s t a m e n to d a m e n s a ­
g e m d e s a lv a ç ã o a n u n c ia d a p e lo S e n h o r s ã o
m a is p e r ig o s o s d o q u e a t r a n s g r e s s ã o d a lei
s o b a a n tig a a lia n ç a .
3 .7 — 4 .1 3 A s s im c o m o o s is r a e lit a s d e c o r a ç ã o d u ro
fo ra m d e s tr u íd o s n o d e s e r t o p o r c a u s a d e
s u a in c r e d u lid a d e e d e s o b e d iê n c ia , t a m b é m
a q u e le s q u e d e s c r e r e m e d e s o b e d e c e re m
a o e v a n g e lh o s e r ã o im p e d id o s d e e n t r a r no
d e s c a n s o f in a l d e D e u s.
5 .1 1 — 6 .1 2 É im p o s s ív e l s e r re s ta u r a d o a o a r r e p e n d i­
m e n to d e p o is d e p a r t ilh a r a s b ê n ç ã o s da
s a lv a ç ã o e r e p u d ia r d e c is iv a m e n t e o Filho
d e D e u s.
1 0 .1 9 - 3 9 A p r o fa n a ç ã o d e lib e r a d a , p e r s is t e n t e e
c o n s c ie n t e d o F ilh o d e D e u s, d o s a c r if íc io d a
a lia n ç a e d o E s p ír ito g r a c io s o d e ix a m a p e s ­
s o a s e m s a c r if íc io e fe t iv o p e lo s p e c a d o s ou
lib e r ta ç ã o d a t e r r ív e l e x p e c t a t iv a d o ju lg a ­
m e n to d iv in o .
1 2 .1 4 - 2 9 É im p e r a tiv o p r e fe r ir a s r e a lid a d e s c e le s t ia is
d o R e in o in a b a lá v e l d e D e u s à s p r e o c u p a ­
ç õ e s te rre n a s . A o d e ix a r d e f a z e r isso , c o rre
o ris c o d e p e r d e r a h e ra n ç a p r o m e tid a d e
D e u s (c o m o E sa ú ) e a e x p o s iç ã o a o fo g o
c o n s u m id o r d o ju lg a m e n t o d e D e u s.

Hebreus exorta os leitores a evitarem cair ou voltar atrás em sua fidelidade


a Cristo. Mas o pregador não declara explicitamente a que eles recuariam —

66
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

exceto incredulidade e destruição (3.12-19; 4.1,11; 10.39). A visão tradicional


é que eles foram tentados a voltar às crenças e práticas do judaísmo com as
quais estavam acostumados antes de receber o evangelho. A devoção a Cristo
deixou-os expostos à perseguição. O judaísmo era uma religião protegida sob
o estado romano. Assim, a opção lógica e segura seria simplesmente regressar à
sua identidade e os seus compromissos judaicos pré-cristãos.
A perspectiva tradicional tem sido criticada em estudos recentes (-»
13.13,14). David deSilva, por exemplo, rejeita tanto a ameaça de violência
como a opção atraente de retornar ao judaísmo como fatores motivadores para
a apostasia (2000a, p. 16-20; veja Attridge, 1989, p. 13). A contínua alienação
da cultura circundante e a falta de estima e riqueza que poderíam estar dis­
poníveis para eles, por meio de uma boa posição na sociedade, foram causas
suficientes para afastar-se da confissão cristã. As recompensas esperadas pelo
compromisso com Cristo não se materializaram. A comunidade tornou-se
desgastada pela pressão externa e maus-tratos de seus vizinhos e pelo desejo
interno de um status honroso e reputação favorável na sociedade.
A análise da dinâmica social da posição precária dos leitores é uma con­
tribuição bem-vinda para nossa compreensão do cenário sociocultural do
público. Não possui, contudo, escopo explicativo adequado e poder para ex­
plicar as dimensões teológicas e religiosas do propósito de Hebreus. Hebreus
faz uma comparação e um contraste sustentados entre a revelação passada de
Deus por intermédio dos profetas e a revelação escatológica definitiva no Filho
(1.1,2a). A revelação de Deus no Filho é superior à mensagem entregue por
meio de anjos (1.4—2.4). Jesus mantém uma posição mais exaltada como o
Filho sobre a casa de Deus, em comparação com Moisés, que foi um servo fiel
na casa de Deus (3.1-6). Fflebreus argumenta meticulosamente que o sumo sa­
cerdócio de Cristo, a nova aliança, o santuário celestial e o sacrifício expiatório
são superiores aos arranjos de culto sob a Lei Mosaica (7.1 — 10.18; d 7.23-
25, anotação complementar: “Sacerdócios antigo e novo”, para uma visão geral
dos contrastes). Os ápices retóricos da obra incluem o contraste entre o monte
Sinai terreno e o monte Sião celestial (12.18-29) e o apelo para identificar-se
com o sofrimento de Jesus fora do portão da cidade/do acampamento de Jeru­
salém (13.11-14). Isso deve ter tido alguma relevância para os apegos religiosos
do público, não apenas para sua situação social.
“Um interesse tão grande no relacionamento das duas dispensações” prova­
velmente teve influência sobre as opções consideradas pelos leitores (Lincoln,
2006, p. 58). Não há indicações críveis de que o público tivesse alguma inclina­
ção para o paganismo (ex.: atos que conduzem à morte não implicam idolatria;

67
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

-> 6.1b). Se eles estivessem afastando-se de sua devoção a Cristo, retroceder


em seu “modo de vida anterior no judaísmo” (Gl 1.13) seria uma alternativa
natural. Isso é fortemente sugerido na resposta lenta dos leitores à exposição
em profundidade da confissão cristã (5.10,11). Também está implícito em sua
aparente disposição de manter-se firme nas crenças teológicas básicas que não
estipulavam a centralidade de Cristo pela qual o pregador estava lutando (6.Ι ­
ό). A visão tradicional, portanto, continua sendo a interpretação mais viável do
propósito de Hebreus.

G. Teologia
O autor de Hebreus figura entre os evangelistas e Paulo como uma das
mentes teológicas mais criativas do NT. Ele é um teólogo pastoral consumado.
As verdades teológicas que ele transmite são mais bem compreendidas pela
exposição à própria obra. Só assim podemos experimentar a exposição bíblica
magistral, a argumentação sutil e a apropriação das reivindicações cristãs para
a situação do público. Separar o conteúdo da forma nivela a profundidade e a
textura da teologia de Hebreus e enfraquece as suas forças expressiva e persua-
siva. No entanto, é benéfico orientar os leitores na estrutura teológica básica
de Hebreus.
Escatologia: o Antigo e o Novo. Em termos mais simples, escatologia é “o es­
tudo dos últimos tempos” (eschata, “últimas coisas” + logos, “discurso, razão”).
Aplicada a Hebreus, a escatologia é a crença de que a revelação e a ação salva­
dora de Deus estão culminando no fim dos tempos por intermédio do Filho.
Essa perspectiva escatológica é imediatamente visível na majestosa abertura de
Hebreus (1.1-4). A revelação divina (Deus “falou” [1.2a\) e a salvação foram
decisivamente introduzidas “nestes últimos dias” (1.2a) por meio da provisão
do Filho de purificação dos pecados e em Sua subsequente exaltação (1.3c).
A escatologia está no centro do método teológico de Hebreus. Ela está
subjacente à interpretação do autor dos textos bíblicos e do seu modo de argu­
mentação. O autor lê as Escrituras com um olhar voltado para a forma como
elas apontam para um tempo futuro de cumprimento. Por exemplo, os Salmos
110.1 (Hb 1.13) e 8.4-6 (Hb 2.6b-8a) são interpretados como profecias sobre
a sujeição do “mundo que há de vir”, não aos anjos, mas ao Filho (2.5; veja
2.8b-c). Moisés testemunhou “o que havería de ser dito no futuro” (3.5). A lei
mosaica é apenas uma sombra dos “benefícios que hão de vir” (10.1).
O pregador encontra indicações nos textos bíblicos de que uma velha
ordem do passado era imperfeita, fraca e temporária. Ela precisava ser subs­

68
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

tituída por uma futura “nova ordem” que fosse perfeita, firme e eterna (9.10;
veja4.8; 7.11,17-19; 8.7-8,13; 9.8-10; 10.9; 12.15-26). Um texto fundamental
a esse respeito é a profecia em Jeremias 31.31-34 (Hb 8.8-12; veja 10.16,17)
concernente ao estabelecimento de uma “Nova Aliança” por parte de Deus.
Essa “aliança superior” é garantida por um novo e superior sumo sacerdócio
(7.22). Ela foi inaugurada em um “maior e mais perfeito tabernáculo” (9.11)
pelo sacrifício definitivo de Cristo (“uma vez por todas”) oferecido “no fim dos
tempos” (9.26). Esse método difundido de comparar o antigo com o novo é
confirmado nas referências frequentes do autor aos aspectos da obra de Deus
nesses dias finais como “melhor” ou “superior” (-> 1.4 anotação complementar:
“Coisas superiores’ em Hebreus”; veja Lane, 1991, p. cxxix).
Em consonância com esse ponto de vista escatológico está o importante
tema da perfeição. A linguagem da perfeição (cognatos de telos, “fim, objeti­
vo”) indica levar algo ou alguém a um fim ou propósito desejado. O próprio
Jesus foi equipado ou qualificado (“aperfeiçoado”) para Seu papel como Sumo
Sacerdote por meio do sofrimento (2.10; 5.8,9). Ele tornou-se “o autor e con-
sumador da nossa fé” (12.2). Seu sacrifício único “no fim dos tempos” realizou
o que nenhuma das provisões da antiga aliança podería fazer (9.26). Nem o
sacerdócio levítico nem qualquer um dos arranjos legais sob a antiga aliança
podería trazer “perfeição” (7.11,19).
Com relação ao povo de Deus, Hebreus descreve a perfeição em termos
da purificação da consciência do pecado, que os sacrifícios de animais nun­
ca poderíam obter (9.9; 10.1). O sacrifício de Cristo removeu decisivamente
(9.26,28; 10.4,11) e purificou os pecados (9.14; 10.2,22) para que os crentes
sejam “aperfeiçoados para sempre” (10.14). Logo, eles são completamente san­
tificados e conformados para a adoração na santa presença de Deus.
Embora a vinda de Cristo tenha inaugurado um tempo de cumprimento,
Hebreus está bem ciente de que os propósitos de Deus ainda não estão com­
pletos. Todas as coisas estão atualmente sujeitas ao Filho exaltado (2.8). Mas
a plena realização desse domínio não ocorrerá até que todos os Seus inimigos
sejam finalmente vencidos (“postos por escabelo de seus pés” [10.13 ACF]).
Os crentes agora experimentam “os poderes da era que há de vir” (6.5). Mas
a obtenção final da salvação é consistentemente expressa em termos de espe­
rança (3.6; 6.11,18; 7.19; 10.23; 11.1). Somente na segunda vinda de Cristo
a salvação se tornará uma realidade para os crentes (9.28), e o julgamento virá
sobre aqueles que se opuseram a Deus (9.27; 10.27,30,37,38). Exploraremos
a dimensão futura da salvação mais detalhadamente a seguir (-» Salvação nas

69
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

páginas seguintes; 2.5 anotação complementar: “Escatologia em Hebreus”,


para o tratamento adicional do “já” e do “ainda não” em Hebreus).
Cristologia: Filho e Sumo Sacerdote. Hebreus faz uma das declarações mais
conhecidas sobre Jesus: “Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e para sempre”
(13.8). Na “alta cristologia” de Hebreus, Jesus não é meramente um ser humano
que viveu e morreu. Ele é o Filho de Deus que existia antes da criação do mun­
do e agora está exaltado à destra de Deus. O pregador tem uma compreensão
completa da natureza e da obra de Cristo, correspondendo ao que encontra­
mos em outras partes do NT. Mas ele complementa isso com idéias e ênfases
criativas que tiveram um impacto duradouro na fé cristã e na formulação teoló­
gica. (Para uma leitura adicional sobre a cristologia de Hebreus, veja Marshall,
2004, p. 621-625; Lincoln, 2006, p. 85-89; Powell, 2009, p. 435-439.)
Hebreus relata um quadro completo da vida de Cristo: preexistência
(1.2; 10.5), encarnação (2.14-18; 5.5-7), sofrimento e morte (2.9,10,18; 5.8;
9.15,26; 12.2; 13.12), ressurreição (13.20), exaltação (1.3,13; 4.14; 7.26; 8.1;
9.24; 10.12; 12.2), intercessão celestial (7.25; veja 2.18; 4.15,16; 8.1,2; 12.24)
e segunda vinda para trazer salvação e julgamento (9.27,28; 10.25,37-39).
Hebreus emprega os títulos familiares “Cristo” e “Senhor”. Seu significado
não é tão pronunciado como o que encontramos em outros autores do NT. O
primeiro ocorre uma dúzia de vezes, mas principalmente como um nome pró­
prio para Jesus. Em alguns casos, pode funcionar como um título que aponta
para Jesus como o “Messias” (6.1; 11.26; talvez também “Jesus Cristo” [10.10;
13.8,21] = “Jesus, o Cristo”?). “Senhor” é usado inequivocamente para Jesus
apenas quatro vezes: duas vezes em relação à Sua carreira terrena (2.3; 7.14),
duas vezes a Seu status exaltado (1.10; 13.20), mas nunca com a ênfase que
encontramos em Paulo (ex.: 1 Co 12.3; 2 Co 4.5; Fp 2.11). Depois, há o raro
termo “autor \archégos\” (Hb 2.10; 12.2). É um título primitivo, encontrado
em outros lugares apenas nos lábios de Pedro e dos primeiros apóstolos ao pro­
clamar Jesus como o Salvador crucificado e ressuscitado (At 3.15; 5.31; -> 2.10
anotação complementar: “Jesus, o campeão”).
Dois títulos são essenciais para a cristologia distinta de Hebreus: “Filho” e
“Sumo Sacerdote”. Eles são unidos por um terceiro, o nome simples de “Jesus”
(-» 2.9 anotação complementar: “Uso do nome ‘Jesus’ em Hebreus”). Ao apre­
sentar Cristo sob esses termos, Hebreus prova ser uma fonte-chave do N T para
a confissão cristã central de que Ele é totalmente divino e totalmente humano.
O sermão que chamamos de Hebreus começa com um tributo impres­
sionante à preeminência de Cristo como Filho. O Filho é o reflexo da glória
divina e a expressão exata da natureza de Deus (1.3a). Ele é o agente por meio
70
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

de quem Deus criou e sustenta o universo (1.2c,'ib, 10). Seu governo justo é
eterno (1.8,9), e Seu caráter divino é imutável (1.7,11,12). De fato, o Filho é
diretamente identificado como “Deus” (1.8).
O eterno Filho de Deus também foi designado “herdeiro de todas as coisas”
(1.2b). Mas ao “primogênito” de Deus não foi dado o domínio sobre o “mundo
que há de vir” (1.6; 2.5) apenas por causa de Seu status divino. Deus considerou
apropriado e necessário (2.10,17) que o Filho participasse da humilhação da
mortalidade da humanidade pela carne e pelo sangue. Só então Ele podería
derrotar o poder da morte que exercia seu terrível domínio sobre a humanidade
e trazer muitos filhos com Ele para a glória da herança divina (2.5-18).
Mais explicitamente do que qualquer outro autor do NT, FFebreus de­
fende a razão pela qual o Filho teve de tornar-se humano. Ele teve de entrar
completamente na condição humana — “porém, sem pecado” (4.15) — para
que pudesse tornar-se um sumo “sacerdote misericordioso e fiel” (2.17). Quan­
to à Sua fidelidade, para tornar-se o autor ou fonte da salvação eterna (2.10;
5.9; veja 7.28), Jesus teve de ser “aperfeiçoado” por meio do sofrimento. Tal
perfeição, paradoxalmente, envolveu o Filho eterno aprendendo a obediên­
cia por meio do sofrimento (5.8,9; -> 4.14—5.10 A partir do texto para uma
discussão sobre esse paradoxo). Jesus demonstrou Sua fidelidade como nosso
Sumo Sacerdote fazendo a vontade de Deus (10.5-10; veja 5.7). Isso significava
oferecer-se a si mesmo (9.7,14,25,26; ou Seu corpo: 10.5,10,20) como expia-
ção pelos pecados (2.17).
Passar pela provação final — o sofrimento da morte — também equipou
Jesus para ser um Sumo Sacerdote misericordioso. Ele pode identificar-se com­
pletamente com a luta humana contra a tentação e proporcionar ajuda real e
intercessão compassiva para aqueles que são tentados (2.18; 4.15,16; 7.25). Seu
triunfo sobre o pecado e Sua perfeição como Sumo Sacerdote foram assinala­
dos por Sua subsequente exaltação ao céu (4.14; 7.26-28; 8.1). A resistência
de Jesus ao sofrimento e à vergonha da cruz o torna crível como o “autor e
consumador” da fé para aqueles que seguem Seu exemplo de perseverança fiel
(12.1-4; veja 13.13).
Filiação é uma identificação cristológica tradicional (ex.: abundante nos
Evangelhos e em Paulo). Também permanece central para a cristologia de
Hebreus, apesar da designação frequente e distinta de Jesus como Sumo Sa­
cerdote. O Apóstolo e Sumo Sacerdote de nossa confissão é, afinal, “o Filho”
(3.1,6). Nosso “grande sumo sacerdote que adentrou os céus é Jesus, o Filho de
Deus” (4.14; veja 5,4-6; 7.3,28; 10.21,23,29; Pfitzner, 1997, p. 38). Jesus não é
reconhecido como Sumo Sacerdote em nenhum outro lugar na tradição cristã

71
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

primitiva (mas veja a descrição sacerdotal do Cristo celestial em Apocalipse


1.12-16). O que podería sugerir isso, já que — como Hebreus admite (7.13)
— Jesus não descendia da tribo sacerdotal dos levitas? Hebreus foi obrigado a
fornecer evidências e argumentos razoáveis para essa identificação.
A garantia para o sumo sacerdócio de Jesus nos é apresentada por meio de
uma comparação do Filho com a misteriosa figura Melquisedeque, mencionada
em apenas dois textos do AT (Gn 14.18-20; Sl 110.4). O engenhoso Midrash
do pregador sobre esses textos, bem como seus argumentos cuidadosamente
desenvolvidos, são mais bem apreciados lendo o comentário sobre Hebreus 7.
Mas dois pontos principais emergem em defesa do sumo sacerdócio do Filho.
Primeiro, como Melquisedeque (7.3,6) e de acordo com o oráculo do Sal­
mo 110.4 (Hb 7.11-19), Jesus foi designado Sumo Sacerdote expressamente
por ordem de Deus.
Segundo, como Melquisedeque (7.3,8) e de acordo com o Salmo 110.4
(Hb 7.20-25), Deus declarou sob juramento que o Filho desfrutará de um
sacerdócio permanente: “Tu és sacerdote para sempre”. Ao contrário dos sacer­
dotes levíticos, Jesus não foi nomeado com base na estipulação da Lei Mosaica
em relação à ancestralidade natural, mas porque Ele possui “o poder de uma
vida indestrutível” (7.16). Portanto, não há mais necessidade de uma geração
após a outra de sacerdotes terrenos. O Filho é o supremo Sumo Sacerdote.
Além disso, a excelência moral de Jesus e a exaltação ao céu significavam que
Ele não precisava oferecer repetidos sacrifícios de animais por Seus próprios
pecados, como faziam os sacerdotes comuns. Jesus ofereceu-se como o sacrifí­
cio “de uma vez por todas” pelos pecados (7.26-28).
Salvação. A salvação em Hebreus é regularmente mencionada em relação à
obra de Cristo. Ela vem como resultado da proclamação de Cristo (2.3), morte
sacrificial (2.10; 5.8,9), intercessão do Sumo Sacerdote (7.25) e segunda vinda
(9.28). A salvação é uma realidade completamente escatológica, pois é ampla­
mente concebida em termos de sua realização futura. E uma herança futura
(1.14; veja 6.12,17; 9.15) descrita como entrada na glória (2.10). Até mesmo
suas bênçãos e seus privilégios atuais são uma participação nas vitalidades espi­
ritual e celestial “da era que há de vir” (6.4-5; veja 2.4).
A amplitude de imagens para a salvação que encontramos em todo o N T
está representada em Hebreus (Lincoln, 2006, p. 90). Conceitos forenses de
julgamento divino e responsabilidade humana estão claramente presentes
(4.12,13; 6.2,7,8; 9.27; 10.27,30,31). Entretanto, a linguagem da justiça não
é empregada no típico sentido paulino de justificação pela fé, mas, sim, para
denotar fidelidade e justiça ética (veja 10.37-39; 11.4,7).
72
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

As imagens tanto do campo de batalha (vitória sobre poderes hostis a


Deus e à humanidade) como do mercado de escravos (redenção) descrevem a
salvação em 2.14,15. De fato, aqui encontramos um dos exemplos mais claros
do N T do motivo Christus Victor (veja Aulén, 2003). Cristo destruiu aquele
que detém o poder da morte (o diabo) e livra Seus filhos do medo escravizador
da morte. Essas idéias, no entanto, não são mais desenvolvidas. O vocabulário
da redenção aparece em 9.15 a respeito do “resgate” de Cristo das pessoas da
escravidão aos pecados que continuaram sob a primeira aliança.
A rica concepção de salvação de Paulo como reconciliação com Deus não
está presente em Hebreus. Contudo, em Hebreus, a restauração do relaciona­
mento das pessoas com Deus é expressa por meio da imagem doméstica de
pertencer à família ou à “casa de Deus” (2.11-13,17; 3.6; 10.21), à linguagem
comercial de parceria com Cristo (3:14; veja 3:1; 6:4), à promessa do AT da
Nova Aliança de Deus (8.6-13; veja 7.22; 9.15-22; 10.15-18) e à ação cultuai
de aproximar-se de Deus em adoração (4.16; 7.19,25; 10.22; 12.22).
A salvação em Hebreus é articulada predominantemente por meio de ima­
gens cultuais de sacrifício e adoração. O objetivo da obra salvadora de Cristo
é tornar as pessoas santas (2.11). Ele realiza isso purificando-as da contami­
nação do pecado (9.14), tornando-as aptas a aproximar-se de um Deus santo
em adoração. Três elementos principais da salvação estão relacionados à morte
sacrificial de Cristo:
Primeiro, a morte de Cristo proporcionou expiação pelos pecados (2.17).
Isto envolveu expiação: a remoção decisiva dos pecados que agiam como uma
barreira entre Deus e os homens (9.26,28; 10.4,11). Implícita também está a
propiciação: o afastamento da ira feroz e do julgamento de Deus contra os
pecadores (veja 3.10,11; 6.7,8; 9.27; 10.26-31; 12.25-27,29).
Segundo, o sacrifício de Cristo proporcionou a santificação necessária para
inaugurar uma nova e eterna relação de aliança entre Deus e Seu povo. Hebreus
prevê o sacrifício de Cristo em termos do Dia da Expiação (9.6-14; 13.11-14),
o sacrifício da novilha vermelha (9.13) e a inauguração da aliança sob Moisés
(9.18-22). Tanto as pessoas como o local de adoração (veja 9.23,24) foram pre­
parados por meio de um sacrifício que proporciona purificação/limpeza (1.3;
9.13,14,22,23) ou o perdão dos pecados (9.22). Dessa forma, eles são feitos
santos ou santificados. Logo, são separados de tudo que é profano ou impuro
e dedicados inteiramente ao serviço e adoração a Deus em santidade. O sacri­
fício de Cristo efetuou decisivamente a santificação do povo de Deus (2.11;
9.13,14; 10.10,15,29; 13.12). Cristo, nosso mediador (8.6; 9.15; 12.24), trou­

73
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

xe-nos a um novo relacionamento de aliança com Deus por meio dos efeitos
purificadores de Seu sangue da aliança (9.20; 10.29; 12.24; 13.20).
Terceiro, a auto-oferta de Cristo “aperfeiçoou para sempre” aqueles que são
santificados (10.14). Para os hebreus, a preparação para aproximar-se de Deus
envolve mais do que a purificação cerimonial exterior (9.10,13). O problema
do pecado humano é muito mais profundo, exigindo uma profunda transfor­
mação moral da pessoa interior. O sacrifício de Cristo é superior aos sacrifícios
ineficazes de animais sob a antiga aliança. Eles foram incapazes de remover os
efeitos do pecado no coração do homem. Ao contrário dos sacerdotes levíticos,
Cristo não tinha pecado e, portanto, não precisava oferecer sacrifícios por si
mesmo. O sacrifício de si mesmo “no fim dos tempos” era, portanto, um sacri­
fício definitivo que precisava ser oferecido apenas “uma vez por todas” (9.26;
veja 7.27; 9.12,28; 10.10).
A natureza decisiva do sacrifício significa que Ele realizou algo que sacrifí­
cios anteriores e ineficazes não podiam fazer: tornar os adoradores “perfeitos”
com respeito à sua consciência (9.9 NRSV; 10.1,2; veja 9.14; 10.22). A cons­
ciência é tão completamente limpa da culpa que as pessoas podem entrar na
presença de Deus com uma sensação de completa liberdade e confiança (4.16;
10.19). Tal purificação conclusiva e renovação moral interior é o cumprimento
das promessas da Nova Aliança (10.15-18). A salvação alcançada por meio da
oferta obediente de Cristo de Seu próprio corpo é apropriadamente chamada
de “um novo e vivo caminho” para o lugar santíssimo (10.19,20; veja 9.8).
A noção de Jesus abrindo um caminho por meio de Sua morte sacrificial
conecta-se com a orientação futura da salvação. Jesus é o poderoso conquistador
sobre a morte que leva “muitos filhos à glória” (2.10,14,15). Ele é o precursor
que ancorou nossa esperança “até o outro lado da cortina” na presença de Deus
(6.19,20). Assim, a salvação é a grande conquista de Cristo em nosso favor,
iniciada e concedida pela graça de Deus. E também uma convocação — um
“chamado celestial” (3.1) — para os crentes embarcarem em uma jornada, uma
peregrinação em direção ao reino celestial. Isso se expressa por meio de quatro
imagens que incluem a ideia de movimento ou viagem:
Primeiro, a linguagem cultuai utilizada nas exortações para “aproximar-se
[proserchõmetha]” de Deus (4.16; 10.22) está em consonância com o padrão da
reentrada de Cristo na presença de Deus (6.19,20; veja 4.14; 8.1; 9.24; 12.2).
Em certo sentido, os adoradores atualmente desfrutam de acesso ao lugar san­
tíssimo como resultado da obra de Cristo; já eles “chegaram” (proselélythate) ao
monte Sião celestial (12.22). Em outro sentido crucial, os crentes ainda estão

74
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

no processo de receber o reino futuro e inabalável (12.28). A salvação não será


trazida a eles em sua plenitude até a segunda vinda de Cristo (9.28).
Segundo, uma imagem que precede o chamado para aproximar-se de Deus
é encontrada nas exortações urgentes e repetidas para “entrar” no descanso
escatológico de Deus (4.1-11; -» 4.1-13 Por trás do texto, anotação comple­
mentar: “Descanso sabático e mundo vindouro”).
Terceiro, os crentes são convidados a identificar-se com Abraão, o pere­
grino em Canaã. Ele foi chamado a “sair [,exelthein]” de seu país de origem
para um lugar que recebería como sua herança (11.8 ARIB, BKJ, JFA; com­
pare “haviam saído [exebêsan\” em 11.15 ARC). Os patriarcas viviam como
“estrangeiros e peregrinos na terra” (11.13), pois acolheram de longe as pro­
messas de Deus de uma pátria melhor, celestial, e uma cidade futura construída
somente por Deus (11.10,16). Como os antigos, que sofreram por sua fideli­
dade enquanto aguardavam sua recompensa (11.26; veja 11.13,39), os leitores
também devem arriscar a possibilidade de sofrimento e vergonha ao “sair” para
Jesus (13.13). “Pois não temos aqui nenhuma cidade permanente, mas busca­
mos a que há de vir” (13.14).
Finalmente, o pregador caracteriza a vida cristã como uma corrida. “A cor­
rida que nos é proposta” exigirá resistência ao pecado (12.1,4) por meio da fé
perseverante e da força de caráter que vêm somente por meio do programa
divino de disciplina (12.5-13). Cristo é o exemplo para aqueles que estão cor­
rendo a corrida, pois Sua própria perseverança fiel foi demonstrada em Seu
sofrimento e em Sua exaltação (12.2). Ele já ganhou o prêmio como nosso
“precursor” vitorioso (6.20 ARA).
Fé e perseverança. A dimensão orientada para o futuro da vida cristã per­
meia a concepção de Fiebreus do que significa comprometer-se totalmente
com Cristo. O fundamento do ensino cristão começa com arrependimento e
fé em Deus (6.1). O pregador descreve o primeiro passo na jornada cristã como
receber “o conhecimento da verdade” (10.26) ou ser “iluminado” (6.4; 10.32).
Este último pode estar associado à submissão ao batismo cristão.
A base inicial e contínua para a vida de fé é uma “confiança” profunda
(3.14) ou compromisso de parceria com Cristo “até o fim”. Esse compromisso
é descrito como um olhar fixo em Jesus, “o apóstolo e sumo sacerdote da nossa
confissão” (3.1 ACF, ARIB, ARA, ARC; veja 12.2). Isso implica um firme ape­
go à nossa confissão de Jesus (4.14) e à esperança que nos é proporcionada por
essa confissão (10.23). O compromisso firme é uma salvaguarda indispensável
para a inclusão contínua na família de Deus e eventual recepção da herança
prometida (3.6; 6.11,18; 7.19; 11.1).

75
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

O chamado de Hebreus ao compromisso é frequentemente expresso em


termos de uma resposta atenta e fiel à voz de Deus (2.1-3; 3.7,15,16; 4.2,7;
12.25). Deixar de prestar atenção à mensagem divina da salvação é perigoso,
como muitas advertências de Hebreus contra a apostasia deixam claro (-» F.
Propósito, anotação complementar: “Cinco advertências contra a apostasia”).
Mas compromisso ou fé inabalável não é uma questão de pura força de von­
tade. Hebreus fundamenta “a plena certeza da esperança” (6.11 ARA, KJA,
NAA, NVT) e “a plena certeza da fé” (10.22 ARA, NAA) na confiabilida­
de do caráter de Deus (6.16-18; 10.23; 11.11) e a fidelidade de Jesus (2.17;
3.2,5,6; 6.19,20).
A própria fé é definida como uma garantia “daquilo que esperamos” e a
evidência ou prova “das coisas que não vemos” (-» 11.1). E uma forma de ver
e tomar posse das realidades futuras e celestiais. A fé genuína, por sua própria
natureza, não recua diante da adversidade (10.38,39). É uma virtude voltada
para o futuro, que se apega a promessas, tendo sua confiança e encorajamento
da natureza imutável do propósito de Deus (6.17,18). A fé é a base firme para
o tipo de perseverança exibida pelos santos da Antiguidade (6.12,15; 11.1-40)
e por Jesus em Sua morte fiel na cruz (12.2). Esses exemplos de fé perseverante
são para todos os que precisam suportar as dificuldades desta vida e, finalmen­
te, receber os “bens superiores e permanentes” de nossa herança (10.34-36;
12.1,3,7; veja 10.32).

76
COMENTÁRIO

I. OUVIR 0 APÓSTOLO E SUMO SACERDOTE DA NOSSA


CONFISSÃO: HEBREUS 1.1-4.13
A primeira parte de Hebreus concentra-se em prestar atenção e prestar
contas à Palavra de Deus. A epístola começa com a declaração de que Deus
falou definitivamente “por meio do Filho” (1.1,2a). A primeira parte termina
enfatizando a Palavra de Deus como “viva e eficaz”, uma “espada de dois gumes”
de julgamento que penetra em nossas motivações mais íntimas; e Deus como o
juiz a quem “havemos de prestar contas” (4.12,13).
O tema de dar ouvidos à Palavra de Deus perpassa 1.1—4.13. Em 2.1, o
pregador faz seu primeiro apelo para que os leitores “prestem mais atenção”
à mensagem de salvação falada por intermédio do Filho. A geração do deser­
to serve como uma lição objetiva das consequências negativas de recusar-se
em ouvir a voz de Deus (3.7—4.13). Um repetido refrão bíblico dessa história
trágica dirige-se aos leitores: “Hoje, se ouvirem a sua voz, não endureçam o co­
ração” (3.7,8,15; 4.7). O tema será retomado na segunda parte (4.14— 10.18),
principalmente na referência à lentidão do leitor para ouvir (5.11, lit.: “audição
lenta”). O tema chegará ao seu clímax na exortação a não recusar Aquele que
fala do céu e abalará o céu e a terra (12.25-27).
A mensagem a que devemos prestar atenção diz respeito à confissão de Je­
sus como “apóstolo e sumo sacerdote” (3.1). Em 1.1—2.18, Jesus é apresentado
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

como Aquele que é mais adequado para trazer salvação à humanidade. Ele é o
exaltado Filho de Deus que compartilha a própria natureza de Deus (1.1-14),
no entanto providenciou a purificação dos pecados (1.3c). O autor da salvação
alcançou Sua perfeição adequada e necessária, identificando-se com a humani­
dade até o ponto de sofrer a morte (2.5-18).
A extensão do movimento de Cristo de Filho eterno à humilhação, ao
sofrimento na encarnação e à Sua exaltação diante de Deus leva à tese ou
proposição de todo o sermão em 2.17,18. A solidariedade de Jesus com a hu­
manidade faz dele um “sumo sacerdote misericordioso e fiel”. Seu sofrimento e
Sua morte proporcionaram expiação pelo pecado. Mas Sua morte fiel e subse­
quente exaltação como nosso Sumo Sacerdote nos fornecem, respectivamente,
um exemplo digno de perseverança sob a pressão da tentação, bem como ajuda
oportuna para aqueles que estão atualmente sofrendo tentações (compare com
4.14-16; 7.25).
Hebreus 3.1—4.13 abre o caminho para o restante do sermão, concen­
trando-se na necessidade dos leitores de comprometerem-se plenamente com
Cristo. O exemplo positivo da superioridade de Cristo sobre Moisés como o
Filho fiel sobre a casa de Deus (3.1-6) e o exemplo negativo da desobediência
de Israel no deserto (3.7—4.13) servem para esse fim. O público é exortado a
“apegar-se” corajosamente em sua confissão de Cristo (3.1,6,14) e a exercer a
devida diligência para entrar na salvação final (descanso de Deus [4.11]; veja
4.1,6,9). O sofrimento de Cristo, como principal exemplo de perseverança, fé e
sacrifício definitivo pelos pecados, constitui o fundamento para a exaltação do
Filho como Sumo Sacerdote. E também a base para os apelos ao compromisso
radical com Cristo repetidos ao longo do sermão (4.14-16; 10.19-25; 12.1-4;
13.13).

A. O u vir o Filho de D eus n estes últim os dias:


Jesus, o Sum o Sacerd ote m isericordioso e fiel
( 1 . 1— 2 . 18 )
O pregador aos Hebreus atende fielmente a duas tarefas ao longo de seu
sermão. Por um lado, ele fixa seu olhar em Jesus, o “sumo sacerdote misericor­
dioso e fiel” (2.17) e “autor da [nossa] salvação” (2.10). Por outro, ele encoraja
seu público a compartilhar sua visão do Filho de Deus, para que as pessoas
respondam adequadamente à graciosa palavra e obra de Cristo e entrem plena­
mente em adoração e serviço diante de um Deus santo. Esse duplo conjunto de
preocupações está em evidência nessa primeira seção da primeira parte.

78
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

Essa seção é composta por duas unidades. Na primeira (1.1—2.4), a intro­


dução de todo o discurso, o pregador combina uma exposição do Filho exaltado
com uma exortação poderosa para prestar atenção à mensagem da salvação. A
segunda (2.5-18) desempenha um papel de apoio. Ela o faz demonstrando a
necessidade de adequação da encarnação para aperfeiçoar o Filho como Salva­
dor e Sumo Sacerdote.

1. Devemos prestar atenção à revelação definitiva de Deus


no Filho (1.1—2.4)

POR TRÁS DO TEXTO

H ebreus 1 .1 — 2.4: U m exordium . Hebreus 1.1—2.4 funciona facilmente


como uma introdução formal ao sermão. Na retórica clássica, a introdução de
um discurso era conhecida como exordium em latim e, em grego, como^rao-
em iu m . Muitos comentaristas viram apenas 1.1-4 como o exo rd iu m e tiveram
dificuldade em descrever sua relação com as subunidades seguintes (1.5-14 e
2.1-4). Há três razões, no entanto, para reconhecer todo o 1.1—2.4 como uma
introdução cuidadosamente construída.
(1) Duração. O texto em Hebreus 1.1-4 é demasiadamente breve para
servir de exordium para um discurso desse tamanho e complexidade. A intro­
dução de um discurso era geralmente de 200 a 300 palavras, ou vários minutos
de duração. Uma vez que Hebreus levaria cerca de quarenta e cinco a cinquenta
minutos para ser proferido, um exordim n ocupando cerca de três a quatro mi­
nutos (1.1—2.4 equivalendo a cerca de 320 palavras) estaria dentro dos limites
apropriados (Koester, 2001, p. 175; para instruções gerais sobre a duração do
exórdio, veja Quintiliano, Inst. 4.1.62).
(2) E nquadram ento. A unidade 1.1—2.4 é admiravelmente estruturada,
começando com uma frase cuidadosamente equilibrada em 1.1 -4 e concluindo
com outra em 2.2-4. A linha de abertura de cada subseção de enquadramen­
to é projetada para o ouvido em grego, utilizando aliteração com o som p (->
No texto em 1.1 e 2.1). Tematicamente, as duas subunidades (1.1-4; 2.1-4)
enquadram a discussão dentro do contexto dos modos da fala divina (usando
formas do verbo grego laleõ [“falar”, “proferir”] em 1.1,2; 2.2,3,5) e enfatizam
a natureza definitiva da revelação de Deus por intermédio do Filho. Não é por
acaso que o autor também enquadra a introdução fazendo referência aos des­

79
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

tinatários da revelação final de Deus, a saber, ele mesmo e seu público (“nós”
[2.1,3]; “nos” [1.2; 2.3]).
(3) E stru tu ra e m o vim en to . O exordium a Hebreus segue uma estrutu­
ra cuidadosa. Sua abertura elegante em 1.1-4 estabelece uma comparação da
revelação de Deus no Filho com a de mensageiros divinos anteriores. Essa com­
paração é focalizada na subunidade seguinte por meio de um contraste entre
o Filho e os anjos. A conclusão dessa comparação é declarada de antemão em
1.4 e apoiada (observe o “pois [gar]” em 1.5) por meio de uma cadeia de sete
citações bíblicas (1.5-14). Finalmente, o autor encerra o exordium (2.1-4). Ele
emprega um proeminente “por isso [D ia to u to ]” em 2.1 e traz a dignidade e
majestade do agente supremo da revelação divina para influenciar a resposta de
seus ouvintes à mensagem de salvação.
O movimento dentro do exordium , da exposição cristológica à poderosa
exortação, é auxiliado por um movimento vertical do pensamento do autor em
relação ao Filho. Em 1.1-4, o pregador passa dos vários modos de revelação no
passado para a revelação final de Deus no Filho, que "se assentou à direita da
Majestade nas alturas" (1.3, ecoando o SI 110.1) e recebeu a herança suprema
(1.4).
Em 1.5-14, o movimento se repete. As citações bíblicas demonstram a
preeminência do Filho sobre os anjos, construindo a intensidade em direção
ao texto-chave do Salmo 110.1: “Senta-te à minha direita, até que eu faça dos
teus inimigos um estrado para os teus pés” (Hb 1.13). Os ouvintes também
estão associados à dignidade do Filho, pois, por intermédio dele, são herdeiros
da salvação e servidos pelo exército celestial (1.14).
Essa visão ascendente será significativa na próxima seção (veja 2.9), mas
no exo rd ium é utilizada para impulsionar um objetivo principal de persuasão:
impressionar os ouvintes com a absoluta necessidade de prestar atenção à men­
sagem salvadora de Deus no Filho (2.1 -4). Os ouvintes ignorarão essa revelação
apenas por sua própria conta e risco, e essa urgência será enfatizada repetida­
mente ao longo do sermão (3.7,15,16; 4.7; 6.1-8; 10.19-39), culminando em
12.25-29 (observe o dramático reaparecimento de Deus como "aquele que fala"
[12.25; compare 1.1,2]).
A exortação final, portanto, fornece ao exordium sua “recompensa” retó­
rica adequada. Não basta maravilharmo-nos com a glória do Filho; devemos
responder com a devida atenção a “tão grande salvação” (2.3). A gravidade
da resposta é também indicada pelo “palco cheio” que completa a introdu­
ção (Westfall, 2005, p. 98). Todos os atores importantes povoam a primeira
exortação do pregador em 2.1-4: autor, destinatários, anjos, o Senhor Jesus,
80
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

testemunhas apostólicas e Deus. Isso ressalta a importância de nossa resposta


à revelação divina. Completar o circuito retórico do argumento persuasivo à
resposta necessária em 1.1—2.4 é o que dá a esse exord iu m sua integridade
e seu dinamismo inigualáveis, e caracteriza sua função como uma verdadeira
introdução retórica.
Os propósitos de u m exordium . O exordium em discursos antigos serviu a
pelo menos duas funções. Primeira, introduzia as idéias principais desenvolvi­
das no discurso. Aristóteles aconselhou que o exórdio “forneça uma amostra
do assunto, para que os ouvintes possam saber de antemão do que se trata, e
para que a mente não seja mantida em suspense, pois o que é indefinido leva
ao erro; então aquele que põe o começo, por assim dizer, na mão do ouvinte
permiti-lhe, se ele se apegar a ele, a seguir a história” (Ret. 3.14.6). O exordium
a Hebreus antecipa com maestria o tema que será ampliado ao longo do ser­
mão, a saber, Jesus como Filho e grande Sumo Sacerdote (veja 1.3). Também
emprega estratégias persuasivas que veremos ao longo do discurso, como com­
paração (synkrisis ), considerações baseadas na lógica e nas Escrituras (1.5-14),
exortação (2.1) e o argumento do menor para o maior (2.2-4).
Segundo, o exordium prepara os ouvintes para assistirem ao restante do
discurso. Os antigos manuais retóricos concordam que a exórdio deve ser
projetado para tornar os ouvintes “bem-dispostos, atentos e receptivos” (Cí­
cero, Inv. 1.15.20; veja R het. Her. 1.4.6-7; Quintiliano, Inst. 4.1.5; R het. A lex.
I436a35). O escritor aos Hebreus parece não ter tido necessidade de assegurar
a boa vontade de seu público. Em nenhum lugar do sermão encontramos um
indício de má vontade em relação a ele que precisasse ser dissipada. Ele parece
ter tido um relacionamento pessoal e caloroso com eles (13.18,19,23,24). A
questão premente é a resposta dos ouvintes à Palavra de Deus, e sobre isso o
pregador coloca uma ênfase considerável. O poder persuasivo do exo rd iu m de
Hebreus pode ser encontrado na decisão do autor de privilegiar, não seu pró­
prio discurso, mas o de Deus (veja Koester, 2001, p. 175-176). Assim, além de
sua demonstração de habilidade retórica, o pregador não faz nenhum esforço
para estabelecer seu próprio caráter ou autoridade como orador. Em vez disso,
ele se inclui entre os “nós” (ou “nos”), que são responsáveis perante a poderosa
Palavra de Deus (1.2; 2.1,3).
A abordagem de alguém para tornar os ouvintes atentos depende do tipo
de causa que se está promovendo, seja honrosa, maldosa, duvidosa, extraordi­
nária, obscura ou mesmo escandalosa (Quintiliano, Inst. 4.1.40). A causa em
Hebreus é obscura (dysparakolouthêton , “difícil de seguir”), embora o pregador
não revele esse fato incômodo até mais tarde. Ele afirmará que a sua exposição

81
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

de Jesus como Sumo Sacerdote na ordem de Melquisedeque é “difícil de expli­


car” (dyserm êneutos) porque seu público ficou “tardio em ouvir” (5.11 ARIB,
ARA, BKJJFA; veja 6.12).
Por enquanto, na introdução, o pregador procura chamar atenção pela
grandeza e seriedade do próprio assunto e por meio de um apelo direto para
que seus ouvintes “prestem maior atenção \prosechein ]” (2.1; compare o uso
repetido desse verbo com respeito ao exórdio em R het. A lex. I436b5-15,
l438al). “O ouvinte receptivo é aquele que está disposto a ouvir com aten­
ção” {Rhet. H er. 1.4.7), e a maneira de tornar os ouvintes atentos é relacionar
a eles assuntos “que são importantes, que dizem respeito a seus interesses, que
são surpreendentes, que são agradáveis” (Aristóteles, Ret. 3.14.7). Isso é pre­
cisamente o que o pregador aos Hebreus faz, não apenas na introdução, mas
também em todo o seu sermão.

NO TEXTO

a. A a ç ã o d e fin itiv a de D e u s no Filh o (1.1-4)

A linha de abertura de Hebreus soa como uma “introdução eufônica”


(Wiley, 1984, p. 24). O autor apela ao ouvido por meio do grego rítmico, in­
corporando aliteração (com a repetição do som do^> no início das palavras) e
assonância (rima das palavras), o que pode ser bastante apreciada na translate -
ração a seguir:
P olym erõi k a i polytropõs_paled ho theos lalêsas tois p a tra sin en tois
prophêtais (1.1).
Todo o texto em 1.1-4 é uma sentença periódica em grego. Um período é
um “grupo de palavras compactas e ininterruptas que abraçam um pensamento
completo” (Rhet. Her. 4.19.27). Geralmente é composto de cláusulas cuidado­
samente balanceadas, usadas para expressar antíteses (Aristóteles, R et. 3.9.5-8;
Rhet. A lex. l435b25-35). A abertura de Hebreus apresenta dois contrastes: o
primeiro em 1.1,2; e o segundo em 1.3,4. Nestes, o Filho é comparado com os
profetas e os anjos, respectivamente.

Revelação de Deus: passado e presente


H e b re u s 1 .1 ,2 a c o n t é m u m c o n t r a s t e c u id a d o s a m e n t e c o n s t r u íd o e n ­
tre o s m o d o s d e re v e la ç ã o d e D e u s d o p a s s a d o a o p re s e n te :

82
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

D eus fa lo u ...
T em po D e s t in a t á r io A gente M a n e ir a
1 No p a ssa d o A o s n o sso s P or m eio M u ita s v e z e s e de
a n te p a s s a ­ d o s p ro fe ta s v á ria s m a n e ira s
dos
2a N os últim os A nós P or m eio do [ p o r im p lic a ç ã o :
d ias Filho d e fin itiv a m e n te ]

(1) A Palavra de Deus dos dias passados aos últimos dias


( 1. 1- 2 )

Esses dois versículos contêm a cláusula principal da declaração inicial do


pregador. O autor estabelece um contraste que ele descompactará mais tarde
no sermão (ex.: entre o sacerdócio levítico e o de Cristo [cap. 7] ou a antiga e
a nova aliança [cap. 8]). Mas aqui a descontinuidade entre os modos divinos
de revelação, passado e presente é traçada em continuidade por meio do falar
de Deus. O mesmo Deus (o sujeito da cláusula principal) que falou ao antigo
Israel (1.1) também falou (o verbo principal da cláusula principal) em Jesus
Cristo (1.2a).
O pregador nunca desvaloriza as palavras autorizadas de Deus nas Escritu­
ras de Hebreus, mas insiste que a revelação de Deus por meio do Filho é m ais
autorizada, e que as próprias Escrituras apontam para isso (ex.: 3.5; 8.7,8,13;
12.18-29). O pregador expressa contrastes entre as instâncias da revelação de
Deus com respeito a maneira, tempo, destinatários e agente em 1.1,2a.
1 O autor começa com uma consideração sobre a natureza da revelação
passada de Deus. No texto grego, aparece primeiro a maneira da revelação:
Muitas vezes e de várias maneiras (polím eros k a i polytropõs). A primeira pa­
lavra (polím eros ) pode ser traduzida temporalmente, muitas vezes (ACF; veja
ARA; “em várias ocasiões” [KJA]), mas é mais provável que em muitas partes
seja pretendido (compare “fragmentada” [NEB]; “parcial” [NAB]; “em muitas
porções” [NASB]). O autor pode muito bem estar explorando um antigo sen­
timento comum de que o simples, inteiro, básico ou puro deve ser preferido ao
complexo, composto, fragmentado ou misturado.
O segundo advérbio, várias (polytropõs ), indica a variedade de modos pe­
los quais a revelação ocorreu. Estes incluem visão e profecia, poesia e provérbio,
parábola e história. Intérpretes anteriores, como Crisóstomo, tomaram a frase
adverbial polím eros k a i polytropõs como uma hendíadis (duas palavras unidas

83
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

por uma conjunção para expressar um ponto), significando “todos os tipos de


maneiras”. No entanto, comentaristas posteriores provavelmente estão corre­
tos de que o autor expressa duas idéias. Isso é elegantemente capturado pela
NEB: “Quando em tempos antigos Deus falou aos nossos antepassados, ele
falou de formafragmentada e variada por meio dos profetas” (ênfase nossa). A
revelação passada de Deus era diversa, dispersa e incompleta.
O tempo da revelação anterior de Deus estava no passado. Essa é uma re­
ferência ao passado distante, como na tradução “antigamente” (ACF, ARIB,
ARC, NAA, JFA).

"Quatrocentos anos de silêncio"


P a ra o s ju d e u s , o t e m p o d a re v e la ç ã o há m u ito h a v ia d e s a p a r e c id o
c o m o ú lt im o d o s p r o fe ta s H e b re u s , M a la q u ia s . O c r o n is ta d o s M a c a -
b e u s re g is tro u u m t e m p o d e g r a n d e a fliç ã o d u r a n t e a q u e le p e r ío d o d a
h is tó r ia d e Isra e l, " c o m o n u n c a t in h a h a v id o , d e s d e q u e o s p r o fe ta s d e ­
s a p a r e c e r a m ” (1 M a c . 9 .2 7 B S E P ; v e ja t a m b é m 1 4 .4 1 ). A s s im , o p e río d o
in t e r t e s t a m e n t á r io é f r e q u e n t e m e n t e c h a m a d o d e " Q u a t r o c e n t o s a n o s d e
s ilê n c io " , p o r c a u s a d a in t e r r u p ç ã o d a v o z p ro fé tic a . E ss a p e r s p e c t iv a c o n ­
tin u o u e n tre o s ju d e u s a p ó s a d e s tr u iç ã o d e J e ru s a lé m e m 7 0 d .C . Isso se
re fle te n o a u to r a p o c a líp t ic o q u e e s c r e v e u s o b o p s e u d ô n im o d e B a ru q u e :

A lé m d is s o , s a ib a q u e n o s s o s p a is e m t e m p o s p a s s a d o s e g e r a ç õ e s
a n te r io r e s t iv e r a m a ju d a n te s , p r o fe ta s ju s t o s e h o m e n s s a n to s ...
M a s a g o ra o s ju s t o s e s t ã o re u n id o s , e o s p r o fe ta s e s t ã o d o r m in d o .
T a m b é m d e ix a m o s n o s s a te rra , e S iã o fo i tir a d a d e n ó s , e n ã o t e m o s
n a d a a g o ra a lé m d o P o d e r o s o e s u a Lei. (2 B a r. 8 5 .1 ,3 )

N ã o é d e a d m ir a r q u e , q u a n d o Je s u s e n tro u e m c e n a , a n u n c ia n d o o
R e in o d e D e u s e re a liz a n d o t o d o tip o d e m ila g r e s , u m a r e s p o s ta foi: "U m
g r a n d e p ro fe ta s e le v a n t o u e n tre n ó s " (Lc 7 .1 6 ). O s a u to r e s d o N T id e n t if i­
c a m Je s u s c o m o "o p r o fe ta s e m e lh a n t e a M o is é s " p re d ito p e lo S e n h o r p o r
m e io d o a n tig o le g is la d o r (D t 1 8 .1 5 ,1 8 ; 3 4 .1 0 ; v e ja Lc 2 4 .1 9 ; Jo 6 .1 4 ; 7.40 ;
A t 3 .2 2 ,2 3 ; 7 .3 7 ). P a ra o a u to r d e H e b re u s , o F ilh o é m a is q u e u m p ro fe ta .
E le é a re v e la ç ã o d e f in it iv a d e D e u s.

Os destinatários das revelações milenares foram nossos antepassados (lit.:


os pais). Apenas mais duas vezes o pregador mencionará os pais, ambos em
citações bíblicas. Nelas, ele refere-se à geração do deserto que o Senhor tirou
do Egito (3.9; 8.9; “nossos pais” [ARA] em 12.9 é uma referência geral aos an­
cestrais masculinos). Ele também se referirá “aos antigos \presbyteroí\” (11.2).

84
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

Os agentes da revelação passada de Deus foram os profetas. Mais uma vez


o pregador falará de “os profetas”, e então apenas em uma lista rápida de fiéis
dignos (11.32). Os profetas eram o principal meio de comunicação divina com
o antigo Israel. Mas eles eram apenas uma sombra da comunicação clara e face
a face do Senhor com Moisés (Nm 12.6-8). “Eu mesmo falava aos profetas,
dava-lhes muitas visões, e por meio deles falava em parábolas”, falou o Senhor
por intermédio de Oseias (12.10). “O Senhor usou um profeta para tirar Israel
do Egito, e por meio de um profeta cuidou dele” (Os 12.13). O Senhor falou
com confiança a Israel por meio de Seus “servos, os profetas” (2 Rs 9.7; 17.13;
Ez 38.17; Zc 1.6), como Deus repetidamente os lembrou em Jeremias (26.5;
29.19; 35.15; 44.4). O pregador de Hebreus tem uma profunda consciência de
que a leitura de textos proféticos torna a voz de Deus audível (-> 1.5-14 anota­
ção complementar: “Citando as Escrituras em Hebreus”).
■ 2a Λ antítese ou contrapartida de 1.1 é dada em 1.2. Aqui o pregador es­
tabelece o tempo, os destinatários e o agente da revelação definitiva de Deus.
Ao relatar o tempo da revelação final de Deus, o autor exibe sua perspectiva
escatológica. O Deus que falou por meio dos profetas falou agora nestes ú l­
tim os dias. O pregador talvez tenha encontrado pela primeira vez a frase no
final dos dias (<?// eschatou tõn hêmerõn) em sua Bíblia, a LXX. A frase exata
ocorre quatro vezes (Nm 24.14; Jr 23.20; 49.39; Dn 10.14) e muitas mais vezes
em formas ligeiramente diferentes (Gn 49.1; D t 4.30; 8.16; Js 24.27; Is 2.2; Jr
37.24; Ez 38.16; Dn 2.28,29,45; Os 3.5; Mq 4.1).
A expressão, de acordo com seu original hebraico (bêahãrit hayyãmím,
“nos últimos dias”), refere-se ao período final da história, quando Deus agirá
decisivamente para trazer julgamento e salvação. Nosso autor compartilha com
outros escritores do N T a convicção de que a época final da história da salvação
já chegou (veja At 2.17; 2 Pe 3.3). Ele escreve não apenas sobre os últimos dias,
mas sobre “estes últimos dias” (“esta é a era final” [REB]).
Cristo “apareceu uma vez por todas no fim dos tempos” (Hb 9.26) e
inaugurou a era messiânica de cumprimento, para a qual todos os profetas
apontavam (l Pe 1.10,11). Como Paulo explicou: “Mas, quando chegou a ple­
nitude do tempo, Deus enviou seu Filho” (G1 4.4), e, assim, os seguidores de
Cristo são aqueles “sobre quem tem chegado o fim dos tempos” (1 Co 10.11).
O pregador se inclui entre aqueles a quem Deus dirige Sua palavra final:
a nós. Estes são os destinatários da revelação final de Deus. Eles percebem sua
identidade como uma comunidade do fim dos tempos. Isso não é apenas por
causa da encarnação do Filho, mas também porque Deus fez Sua presença sal-

85
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

vífica conhecida a eles pelo Espírito Santo de forma milagrosa (2.4), por meio
do gosto da comunidade dos “poderes da era que há de vir” (6.5).
Em Eíebreus, o agente supremo da autorrevelação de Deus é o Filho. O u­
tras testemunhas do N T mostram a posição de Jesus como Filho — como a
narração dos Evangelhos Sinóticos sobre o batismo de Jesus (Mc 1.9-11 par.),
o Evangelho do “Filho unigênito” de João (1.14,18; 3.16,18; 1 Jo 4.9) e muitas
referências de Paulo ao Filho (Rm 1.3,4,9; 8.3,29,32; Gl 1.15; 2.20; 4.4 etc.).
Eíebreus acrescenta sua voz única ao coro. O pregador retornará repetidamen­
te à identidade de Jesus como Filho como um ponto-chave em seu argumento.
Essa identificação é introduzida em \.Ία·. Nestes últimos dias falou-nos
por meio do Filho. A frase simples de duas palavras do autor em grego (en
huio) é mais compacta e perspicaz do que o português pode transmitir, em­
bora a NRSY chegue perto de “por um filho” (compare “através de um filho”
[NAB]; “em um filho” [NET]). Pode-se esperar o artigo definido (Deus falou
“pelo Filho”); mas a falta do artigo é deliberada. O pregador enfatiza a impor­
tância qualitativa da revelação escatológica de Deus por intermédio “daquele
que é Filho” (Westcott, 1909, p. 7).
O autor de Hebreus se referirá a nosso Senhor (1.10; 2.3b) principalmente
como Filho no exordium, e não por Seu nome pessoal, Jesus, até 2.9. De acordo
com as descrições do Filho no capítulo 1, e ao longo de todo o discurso, a prio­
ridade da revelação de Deus no Filho deve ser encontrada não apenas no que
Jesus diz, mas supremamente em quem Ele é e no que Ele realizou como Filho.
Antes de prosseguir com as descrições do Filho em \.2b-A, deve-se notar
que não há paralelo formal em 1.2a para a maneira de revelação encontrada
em 1.1 (“muitas vezes e de várias maneiras”). A implicação da omissão é incon­
fundível: a revelação de Deus por meio do Filho é única e decisiva. Mais tarde,
o pregador acentuará a natureza “de uma vez por todas” da obra de Cristo
(hápax: 9.26,28; ephapax: 7.27; 9.12; 10.10). Aqui o contraste entre o antigo e
o novo ocorre de dois modos.
Primeiro, a natureza da comparação em 1.1,2a é típica do exórdio nos dis­
cursos e na escrita da história. Neles, por exemplo, uma multiplicidade de obras
passadas pode ser ponderada (geralmente desfavoravelmente) contra a obra
presente do autor (Lc 1.1-4 serve como um possível exemplo bíblico; veja tam­
bém Josefo, G.J. Prefácio 1,3,4; C. Ap. Prefácio 1).
Segundo, o pregador demonstrará detalhadamente a primazia e a singula­
ridade da majestade do Filho sobre a ordem criada no restante desse capítulo.
H 2b-C Duas cláusulas subordinadas fornecem as duas primeiras descrições
do Filho em termos das ações posteriores de Deus por meio dele. Já apren­

86
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

demos que Deus “falou” pelo Filho. Deus ainda é o sujeito dos verbos nessas
cláusulas (constituiu e fez), embora o foco do tópico esteja no Filho por meio
do pronome relativo quem.
A primeira cláusula subordinada modifica “Filho” ao declarar que Ele é
aquele a quem Ele [i.e., Deus] constituiu herdeiro. A herança foi um elemen-
to-chave na aliança de Deus com o antigo Israel, envolvendo bênção contínua
de Deus e posse da terra prometida (veja 11.8; 12.17). No N T houve uma
expansão da herança divina. Agora é verdadeiramente sobrenatural em seu al­
cance, como evidenciado pela modificação de Jesus do Salmo 37.11 (“Mas os
humildes receberão a terra por herança”) para “bem-aventurados os humildes,
pois eles receberão a terra por herança” (Mt 5.5).
No Filho cumpre-se a promessa da coroação entregue aos reis de Israel:
“Pede-me, e eu te darei as nações” (SI 2.8 ARA). Talvez o Salmo 2.8 estivesse na
mente do pregador, dada sua citação do Salmo 2.7 em Hebreus 1.5. O Filho é
herdeiro de todas as coisas. Como herdeiro divino, o Filho é “senhor de tudo”
(Gl 4.1 ARA), ou seja, senhor de toda a ordem criada.
E importante ressaltar que o Filho foi constituído, não criado, herdeiro. O
Filho compartilha eternamente a natureza, os atributos e o domínio divinos.
Nunca houve um tempo em que o Filho não fosse o Filho. Nunca houve um
tempo em que Ele não irradiasse a glória divina ou refletisse a imagem divina.
Ele sempre foi a fonte de existência para todas as coisas criadas.
Então, por que ele precisava ser nomeado herdeiro de todas as coisas se já
as possuía? Teodoreto de Cyr respondeu: “Cristo, o Senhor, é herdeiro de to­
das as coisas, não como Deus, mas como homem” (Fdeen e Krey, 2005, p. 8). O
Filho eterno não foi designado herdeiro para o seu próprio bem, mas por causa
da humanidade. As pessoas foram criadas para participar da glória divina, mas
carecem dela por causa do pecado (Rm 3.23). O Filho foi designado herdeiro
para que pudéssemos “herdar a salvação” (Fdb 1.14; 9.15). O Filho restaurou a
herança divina para a humanidade, entrando na situação humana de pecado,
sofrimento e morte, e prevalecendo sobre eles por meio de Sua morte expiató­
ria e exaltação.
Fdebreus também enfatiza o caráter escatológico da herança. Outros es­
critores do N T fazem o mesmo quando mencionam a herança da vida eterna
(Mt 19.29; Tt 3.7) ou o Reino de Deus (Mt 25.34; 1 Co 6.9,10; 15.50; Gl
5.21; El 5.5; Tg 2.5). O Filho apareceu “no fim dos tempos” para acabar com o
pecado por meio do “sacrilício de si mesmo” (Hb 9.26), e Sua nomeação como
herdeiro envolve Sua instalação como rei sobre “o mundo que há de vir” (2.5;
compare 1.6).

87
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A segunda descrição do Filho relata Seu papel na criação: Por meio de


quem [= o Filho] ele [= Deus] fez o universo. João, Paulo e Hebreus falam a
uma só voz sobre a ação intermediária do Filho na criação do mundo por Deus
(usando a preposição grega dia, “por”, por meio de; veja Jo 1.3; 1 Co 8.6; Cl
1.16). Em Seu papel criador, o Filho é entendido como sabedoria divina. A
palavra grega aiõnas, universo ou eras, denota aqui “todo o universo criado de
tempo e espaço” (Bruce, 1990, p. 47).
Lane (1991, p. 12) considera a ordem das duas descrições — herdeiro
primeiro, criação depois — irônica. Mas é perfeitamente apropriado que o
pregador, em duas cláusulas paralelas (observe a correspondência entre “todas
as coisas” e “universo”), anuncie tanto o destino glorioso como a origem da
criação no Filho.

Sabedoria cristã e hinódia em 1.2b-3


A lit e r a t u r a s a p ie n c ia l ju d a ic a e ra u m v e r d a d e ir o t e s o u r o p a ra a re ­
fle x ã o c ris tã p r im it iv a s o b re a p r e e x is t ê n c ia e a n a tu r e z a d e C ris to . A
s a b e d o r ia p e r s o n if ic a d a c o m o a g e n te d a c r ia ç ã o d iv in a e ra v is t a c o m o
d ir e ta m e n t e a p lic á v e l a o Filho, n ã o a p e n a s e m F le b re u s , m a s t a m b é m p o r
o u tro s e s c r it o r e s d o N T (Jo 1 .3 ,1 0 ; R m 1 1 .3 6 ; 1 C o 8.6; Cl 1 .1 6 ). V á rio s a s ­
p e c to s d a " C r is t o lo g ia d a S a b e d o r ia " a p a r e c e m e m H e b re u s 1 .2 b -3 :

H ebreus L iteratura de S abed or ia


P o r m eio d e q u em fe z o " Q u a n d o e le e s t a b e le c e u o s c é u s ,
u n iv e rso (1.2 b ). lá e s t a v a e u [ s a b e d o ria ] , q u a n d o
tr a ç o u o h o r iz o n te s o b re a s u p e r­
f íc ie d o a b is m o [...] o c o lo c o u a s
nuvens [...] e s t a b e le c e u as fo n ­
t e s d o a b is m o [...] d e t e r m in o u a s
f r o n t e ir a s d o m a r [...] m a rc o u o s
lim ite s d o s a lic e r c e s d a te rra [...]
e u e s t a v a a o s e u la d o , e e ra o se u
a r q u it e t o " (P v 8 .2 7 -3 0 ).
" D e u s d e n o s s o s p a is [...] q u e t o ­
d a s a s c o is a s c r ia s t e s p e la v o s s a
p a la v r a [...] p o r v o s s a s a b e d o r ia ,
f o r m a s te s o h o m e m [...] a o v o s s o
la d o e s tá a s a b e d o r ia [...] q u a n ­
d o f iz e s t e o m undo" (S b 9 .1 ,2 ,9
B C A M ).

88
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

O re s p le n d o r da g ló ria d e D eu s " E la [ s a b e d o ria ] é [...] um a ir­


(1.3 a). ra d ia ç ã o lím p id a da g ló r ia do
T o d o - p o d e ro s o [...] u m a e fu s ã o d a
lu z e t e r n a " (S b 7 .2 5 ,2 6 B C A V ).
E a e x p re s s ã o ex a ta d o seu s e r "É e la [ s a b e d o ria ] u m e s p e lh o s e m
(1.3 a). m a n c h a d a a t iv id a d e d e D e u s , e
u m a im a g e m d e s u a b o n d a d e " (Sb
7 .2 6 B C A V ).

Uma vez que a forma e o conteúdo de 1.2ú,3 se assemelham a outras con­


fissões de Cristo semelhantes a hinos (veja Fp 2.6-11; Cl 1.15-18; Jo 1.1-18;
lTm 3.16; 1 Pe 3.18-19,22), muitos estudiosos têm argumentado que o autor
incorporou um hino cristológico primitivo nesse ponto. No entanto, não há
acordo sobre se é assim e, se for, se o hino original teria começado em 1.2^
com o primeiro pronome relativo “quem”, ou em 1.3a (veja Attridge, 1989, p.
41,42). Independentemente de o pregador ter entoado um hino a Cristo já fa­
miliar para seus ouvintes, ou composto um de sua autoria, ele abriu seu sermão
com uma amostra do tipo de “confissão” à qual mais tarde exortará seus leitores
a manterem-se firme (3.1; 4.14; 10.23).

(2) A majestade do filho acima dos anjos (1.3,4)

1 3 O Filho (hos, “quem”) é o assunto de outra cláusula importante, embo­


ra secundária, na declaração de abertura do autor. Os verbos principais nessa
cláusula são assentar {\3 d ) e “herdar” (1.4). Estes formam o clímax da des­
crição do Filho em comparação com os anjos. Incorporadas nesse esqueleto
gramatical estão quatro cláusulas que dão corpo à confissão do pregador sobre
a majestade do Filho. A primeira cláusula (começando com o particípio grego
õn, “ser”, é) introduz um par de declarações complementares que descrevem o
papel único do Filho como o revelador de Deus.
No primeiro par, Ele é o resplendor da glória de Deus. Os intérpretes
há muito lutam para saber se a palavra grega apaugasma deve ser tomada no
sentido ativo ou passivo. Ativamente significa “radiância” (ESV, FEB, NASB,
REDE, REB, TNIV; “irradia” [NVT]), “brilho” (KJV) ou “refulgência”
(NAB). Passivamente significa “reflexo” (NJB, NRSV). A diferença é compa­
rável à que existe entre o sol e a lua. Ativamente, um raio de luz brilha do sol e
possui um brilho contínuo com o próprio sol. Passivamente, o luar é o reflexo

89
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

de um corpo diferente da origem da luz. A distinção foi fundamental para as


controvérsias trinitarianas do quarto século, e a leitura ativa foi consagrada no
Credo de Niceia: “Luz de Luz, verdadeiro Deus de verdadeiro Deus”.
Já no segundo par, a expressão exata do seu ser, também figurou em
grande parte nas controvérsias cristológicas do quarto e quinto séculos. A
“impressão exata do próprio ser de Deus” da NRSV dificilmente pode ser me­
lhorada. A palavra grega cbaraktêr (expressão exata) muitas vezes se referia
ao relevo ou carimbo usado para imprimir moedas, ou às próprias moedas im­
pressas, e depois às características de algo ou alguém, como estilo de escrita
ou personalidade única e inata de um indivíduo (Gess, 1979, p. 288). A pa­
lavra traduzida por ser (hypostasis) referia-se ao que é básico ou fundamental,
portanto, a natureza ou essência de uma pessoa ou coisa. O Filho revela Deus
perfeitamente, de modo que, se alguém viu o Filho, essa pessoa “viu o Pai” (Jo
14.9; veja 1.14,18; 14.7).
Calvino adverte, com razão, contra especulações desnecessárias, dando a
devida permissão aos limites da analogia da criatura ao descrever o divino. A in­
tenção do pregador “não era descrever a semelhança do Pai com o Filho dentro
da Divindade, mas [...] edificar frutuosamente a nossa fé, para que aprendamos
que Deus não nos é revelado de outra forma senão em Cristo [...] [enjquanto
Deus é incompreensível para nós em si mesmo, ainda Sua forma aparece para
nós no Filho” (Calvino, 1976, p. 8).
A segunda cláusula declara o papel providencial do Filho como governa­
dor sobre toda a ordem criada. O particípio sustentando (pherõn) transmite
a ação de “suportar” (Tyndale) ou “sustentar” (ESV, KJV, RSV; veja NASB).
Essa não é uma imagem de Jesus carregando o mundo em Seus ombros, “pois o
Filho não é um Atlas que sustenta o peso morto do mundo” (Westcott, 1909,
p. 13-14). Nem é simplesmente que “todas as coisas subsistem” nele (Cl 1.17).
A ideia não é apenas apoiar, mas também agir, mover ou guiar a criação em
direção aos objetivos pretendidos por Deus (veja os comentários de Erasmo,
citados em FFughes, 1977, p. 45, n. 22).
Essa ação está intimamente ligada à afirmação anterior sobre o Filho como
revelador divino. Os dois são unidos pela palavra de conexão te em grego. Pode
ser traduzida como “assim” ou “portanto” (Smyth, 1984, p. 666 §2968; Wes­
tcott, 1909, p. 13). E sua prerrogativa divina governar, “e assim Ele suporta
todas as coisas”. A autoridade providencial abrangente de Cristo é executada
meramente por sua palavra poderosa (o grego tem um sabor semítico, “pela
Palavra do seu poder” [KJA]).

90
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

Cristologia em rima
A h a b ilid a d e re tó ric a d o p r e g a d o r é v is ív e l e m s e u u s o d e p a r o m o iõ -

s is , q u e é s e le c io n a r p a la v r a s c o m s o n s s e m e lh a n t e s n o in íc io ou n o fin a l
d a s o r a ç õ e s ( A ris tó te le s , R e t. 3 .9 .9 ; R h e t. A le x . 1 4 3 6 a 5 -1 4 ) . H e b re u s
u sa m a g is t r a lm e n t e e s s a t é c n ic a d e rim a n o in íc io e n o fim d a s q u a tro
c lá u s u la s e m 1.3 p a ra a u m e n t a r o im p a c t o a c ú s tic o d e s s a c o n fis s ã o d a
m a je s ta d e d o Filho:
Q uem sen d o [h o s õn] o r e s p le n d o r d a s u a g ló r ia
e c a r im b o d o s e u s e r [té s h y p o s ta s e õ s a u to u ],

te n d o [p h e rõ n ] t o d a s a s c o is a s
p e la p a la v r a d o s e u p o d e r [ tê s d y n a m e õ s a u to u ],

p u r if ic a ç ã o [ k a t h a r is m o n ]

d e p e c a d o s t e n d o f e it o [ p o iê s a m e n o s ] ,

e le s e n t o u - s e [ e k a t h is e n ] à d ir e it a
d a M a je s t a d e n a s a lt u r a s [ e n h y p s é lo is ] .

A terceira cláusula incorporada, depois de ter realizado a purificação


dos pecados (1.3c), introduz uma mudança importante na linha de pensamen­
to do pregador. Isso se expressa de duas maneiras:
Primeira, o particípio que governa essa cláusula (poiêsamenos, tendo feito,
depois de ter realizado) é colocado no final da cláusula grega. Nas duas cláu­
sulas anteriores, os particípios aparecem no início. Talvez esse particípio tenha
sido escolhido por sua capacidade de estender a rima (hypostaseõs... dynameõs...
poiêsamenos-, -> 1.3 anotação complementar: “Cristologia em rima”).
Segunda, os dois particípios anteriores — ser e sustentar — estão no
tempo presente. Mas esse está no tempo aoristo (um pretérito grego). O Filho
revelar a natureza de Deus e sustentar o universo são atividades contínuas. Seu
sacrifício de expiação é um ato histórico completo.
Muitos intérpretes notaram o uso do autor da voz média grega aqui. Isso
pode transmitir o que uma antiga adição ao texto procurou esclarecer: que o Fi­
lho providenciou purificação “por si mesmo” (KJV) ou “em sua própria pessoa”
(Tyndale). Mas é mais provável que a voz média seja apenas uma variação de
estilo. Os autores gregos frequentemente empregavam o verbo “fazer \poieõ\ ”
na voz média com substantivos verbais (como katharismos, purificação) para
expressar a mesma ação que o verbo simples correspondente (katharizõ, “puri­
ficar”; veja Smyth, 1984, p. 391 §1722).

91
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

O pregador aborda apenas brevemente um tópico ao qual dedicará um


espaço considerável mais tarde, a saber, o Filho como nosso grande Sumo
Sacerdote. A morte expiatória de Cristo era de suma importância para o prega­
dor. Isso é evidenciado por Sua aparição tanto aqui na declaração de abertura
como na proposição para todo o sermão (2.17). Barnabé Lindars sugere que os
primeiros leitores de Hebreus estavam terrivelmente preocupados com a im­
pureza de seus pecados pós-batismais. Isso explica o lembrete do autor de que
a obra definitiva de purificação dos pecados foi realizada na cruz (1991, p. 41).
O clímax da declaração de abertura é que ele se assentou à direita (1.3t/).
Isso alude a um texto-chave para a cristologia do autor: Salmo 110.1 (-» 1.13
anotação complementar: “Salmo 110 em Hebreus”). Tendo descrito o Filho
como revelador, governador e sacerdote, o pregador agora fala do Filho como
herdeiro real. O circunlóquio para “Deus”, a M ajestade nas alturas, serve para
aumentar a dignidade e a honra que o Filho possui. O título, que indiretamen­
te se refere a Deus, indica que o Filho goza de um status equivalente ao de Deus
Pai. A palavra M ajestade é rara no N T (duas vezes em Hebreus [1.3; 8.1], uma
vez em Judas [25]) e usada somente para Deus.
Ü 4 Uma quarta e última cláusula participial incorporada em grego completa a
declaração de abertura com uma comparação entre o Filho e os anjos. A entro-
nização celestial do Filho demonstra a Sua superioridade em relação aos anjos:
Tornando-se tão superior aos anjos quanto o nome que herdou é superior
ao deles. Herdar um grande nome é receber reconhecimento e honra.
O nome que Ele herdou não pode ser outro senão “Filho” (veja 1.5; 5.5).
Preexistente como Deus, Ele já possuía todos os atributos e prerrogativas di­
vinos. Assim, foi como um ser humano que sofreu, morreu e foi exaltado que
Ele restaurou o favor divino e a filiação à humanidade, que havia sido perdida
com Adão.
Ao mencionar o Filho como herdeiro desde o início (1.1,2a) e Sua herança
do nome superior, “Filho”, no final (1.4), o pregador encerra a declaração de
abertura. E, ao passar de uma comparação com os profetas na primeira metade
(1.1,2) para uma comparação com os anjos na segunda (1.3,4), ele prepara seus
leitores para os argumentos a seguir, em 1.5-14.

Coisas "superiores" em Hebreus


O v o c á b u lo " m e lh o r [ k r e it t õ n , k r e is s õ n ] " é u m a p a la v r a - c h a v e e m
H e b re u s , u s a d a t r e z e v e z e s . À s v e z e s , é t r a d u z id a c o m o " m a io r ” ou " s u ­
p e r io r " na NVI.

92
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

R eferência a "S uperior /m e l h o r . . . " H ebreu s


o F ilh o " s u p e r io r " a o s a n jo s 1.4
o p ú b lic o o p r e g a d o r e s tá 6 .9
c o n fia n t e n a s " c o is a s
m e lh o r e s " re la tiv a s à
s u a s a lv a ç ã o
M e lq u is e d e q u e " s u p e r io r " a A b r a ã o 7.7
e sp e ra n ça " s u p e r io r " à Lei 7 .1 9
ju r a m e n t o d e D e u s Je s u s , a g a r a n t ia d e 7 .2 2
u m a " a lia n ç a
s u p e r io r "
m in is t é r io d e Je s u s m e d ia d o r d e u m a 8 .6 (d u a s v e z e s )
" a lia n ç a s u p e r io r " ,
fu n d a d a e m " p r o m e s ­
s a s s u p e r io r e s "
c o is a s c e le s t ia is p u r ific a d a s c o m " s a ­ 9 .2 3
c r if íc io s s u p e r io r e s "
a p e rd a p a s s a d a d e s u p o rto u na e x ­ 1 0 .3 4
lib e r d a d e e p o s s e s d o p e c t a t iv a d e " b e n s
p ú b lic o s u p e r io r e s e p e r m a ­
n e n te s "
o s p a t r ia r c a s a n s ia v a m p o r " u m a 1 1 .1 6
p á tria m e lh o r "
m á r tir e s m a c a b e u s re c u s a r a m - s e a e s c a ­ 1 1 .3 5
p a r d a t o rtu r a p a ra
o b t e r u m a " r e s s u r r e i­
ç ã o s u p e r io r "
t o d o s o s s a n t o s a n te s o " a lg o m e lh o r " q u e 1 1 .4 0
d e C r is to D e u s p r o v id e n c io u :
q u e e le s fo s s e m a p e r­
f e iç o a d o s c o n o s c o
a s p e rs ã o do sa n g u e " fa la m e lh o r " d o q u e 1 2 .2 4
d e C r is to o san gu e de A bel

b. A rg u m e n to s b íb lico s p a ra a m a je sta d e do Filho so b re os


anjos (1.5-14)
Uma corrente, ou cadeia, de passagens bíblicas em 1.5-14 reforça a propo­
sição feita em 1.4 sobre a superioridade do Filho sobre os anjos. Mas isso não é

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HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

simplesmente uma série de textos de prova. Em vez disso, o autor os organiza


em argumentos lógicos, chamados entimemas na retórica antiga.
Um entimema é como um silogismo formal, exceto que qualquer um
(ou dois) dos componentes do silogismo — premissa maior, premissa menor
ou conclusão — pode estar ausente (i.e., implícito). O pregador empilha um
entimema sobre o outro em 1.5-14. Ele emprega uma passagem bíblica (ou
passagens) no centro de cada argumento lógico. Eles chegam a um clímax em
1.13, seguidos por uma conclusão em 1.14.
A cadeia das escrituras é cuidadosamente forjada. Três textos do AT —
dois no início e um no final — são introduzidos com uma fórmula semelhante:
A qual dos anjos Deus alguma vez disse [...] ? (1.5,13). Todos os três (SI 2.7; 2
Sm 7.14; SI 110.1) eram geralmente aceitos como textos messiânicos. A cadeia
prossegue em três etapas definíveis: a primeira apresenta a posse do Filho como
herdeiro real (1.5,6); a segunda, a constância do Filho (1.7,12); a terceira, a
exaltação do Filho (1.13,14).

Citando as Escrituras em Hebreus


O e s c r it o r d e H e b re u s lê e c ita a s S a g r a d a s E s c r it u r a s (i.e, o AT) p r in ­
c ip a lm e n t e p a ra o u v ir a v o z d e D e u s. Q u a s e s e m e x c e ç ã o , e le n ã o e s tá
in t e r e s s a d o e m o b s e r v a r o s a u to r e s h u m a n o s d a s c it a ç õ e s b íb lic a s (ve ja
4.7; 9 .1 9 ,2 0 ). M e s m o e m 4 .7 , e m q u e D a v i é id e n t if ic a d o c o m o o a u to r d o
S a lm o 9 5 , is s o é fe it o p a ra e s t a b e le c e r u m p e r ío d o d e t e m p o im p o rt a n t e
p a ra a in t e r p r e ta ç ã o d o p re g a d o r. D e q u a lq u e r fo rm a , é D e u s f a la n d o " p o r
in t e r m é d io d e D a v i" . O p r e g a d o r in tro d u z v a g a m e n t e o S a lm o 8 .4 -6 e m
H e b re u s 2 .6 c o m " h á u m lu g a r o n d e a lg u é m d e u t e s t e m u n h o " (v e ja 4.4).
M a s o p r e g a d o r c o s t u m a a p r e s e n t a r t e x t o s b íb lic o s c o m o d is c u r s o d iv in o .
D a s trin ta e c in c o c it a ç õ e s d e H e b re u s d o AT, v in t e s ã o a t r ib u íd a s
a Deus ( 1 .5 a ,5 b ,6 ,7 ,8 ,9 ,1 0 - 1 2 ,1 3 ; 4.4; 5 .5,6; 6 .1 4 ; 7 .1 7 ,2 1 ; 8 .5 ,8 -1 2 ;
1 0 .3 0 a , 3 0 b ,3 7 ,3 8 ; 1 2 .2 6 ; 1 3 .5 ), q u a tro a o F ilh o ( 2 .1 2 ,1 3 a ,1 3 b ; 10 :5 -9 )
e c in c o a o E s p ír ito S a n to ( 3 . 7 b - l l [v e ja 3 .1 5 ]; 1 0 .1 5 ; e e v id e n t e m e n t e
4 .3 ,5 ,7 ; v e ja t a m b é m 9.8; L a n e , 1 9 9 1 , p. c x v ii).
É im p o r t a n t e r e s s a lta r q u e o p r e g a d o r n u n c a in ic ia a s c it a ç õ e s c o m a
fó rm u la " c o m o e s tá e s c rit o " , c o m u m e n tre o u tro s a u to r e s d o NT. E m v e z
d is s o , e le p re fe re u s a r v e r b o s p a ra f a la r e, m u ita s v e z e s , no t e m p o p re ­
s e n t e (ex.: le g õ [1 4 v e z e s ]: 1.6,7; 2 .6 ,1 2 ; 3 .7 ,1 5 ; 4.7; 5.6; 6 .1 4 ; 7.21 ; 8.8;
1 0 .5 ,8 ; 1 2 .2 6 ; p h e m i\ 8.5). H e b re u s r e c o n h e c e n a s E s c rit u ra s a v o z d iv in a
d e a d v e r t ê n c ia (8.5 ), c r ít ic a (8.8), p r o m e s s a (6.1 3; 1 2 .2 6 ) e t e s t e m u n h o
s o le n e (2.6; 7 .1 7 ; 1 0 ,1 5 ). A E s c rit u ra n ã o é u m a le tra m o rta d o p a s s a d o
h is tó r ic o , m a s a p a la v r a " v iv a e a t iv a " d e D e u s n o p r e s e n te (4 .1 2 ,1 3 ). S u a

94
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

a b o rd a g e m d a s E s c r it u r a s s e r v e d e e x e m p lo p a ra n ó s, p o is , a o le r m o s a s
S a g ra d a s E s c ritu ra s , t a m b é m d e v e m o s o u v ir a v o z d e D e u s f a la n d o n e la s
e p o r m e io d e la s .

(1) A instalação do Filho como herdeiro real (1.5,6)

Í 5 A pergunta retórica de abertura, p ara qual d o s an jos D eu s já disse


(1.5a), liga a cadeia à comparação entre o Filho e os anjos, iniciada em 1.4.
O autor apresenta três textos bíblicos. O segundo e o terceiro estão ligados
ao primeiro por meio de fórmulas introdutórias semelhantes: E ou tra vez
\kaipalin\ (1.5c); “e novamente [dcpalin\” (1.6a).
A primeira citação vem de Salmo 2.7: Tu és meu Filho; eu hoje te gerei.
O Salmo 2 é um salmo real, já mencionado na declaração de abertura (Sl 2.8
em 1.2£). O salmo inclui palavras solenes proferidas na coroação de um novo
rei israelita. A apropriação cristã do salmo associou o Salmo 2.7 com a declara­
ção de Jesus como Filho de Deus em Seu batismo (Mc 1.11||), transfiguração
(Mc 9.7||) e ressurreição (At 13.33).
A segunda citação de 2 Samuel 7.14 aparece dentro do contexto da promessa
da aliança de Deus de reinado perpétuo à casa de Davi: Eu serei seu Pai, e ele
será meu Filho (1.5d). Esse texto não é citado em nenhum outro lugar do NT.
Mas uma interpretação messiânica da promessa à “semente” de Davi em 2 Samuel
7.12 aparece em várias passagens (Jo 7.42; At 13.23; Rm 1.3; veja Lc 1.32,33). A
conexão da filiação divina e da realeza Israelita está implícita em João 1.49. Que o
Salmo 2.7 e 2 Samuel 7.12 foram vistos em conjunto como profecias messiânicas
é confirmado por um texto de Qumran (4QFlor I, p. 10-11).
Esses dois textos são usados no desdobramento do primeiro argumento
lógico do pregador. A premissa principal, já apresentada em Hebreus 1.4, é de
que o nome Filho é superior a qualquer outro nome. A premissa principal é de
que Deus é aquele que chamou essa pessoa de Seu Filho, e isso recebe apoio de
autoridade no Salmo 2.7 e em 2 Samuel 7.14. A conclusão já foi declarada no
final da declaração de abertura: ele herdou, portanto, um nome superior do
que os anjos (1.4).
1 6 A terceira citação bíblica em 1.6 é um pouco mais difícil de identificar.
Todos os anjos de D eus o adorem assemelha-se tanto a Deuteronômio 32.43
como ao Salmo 97.7 na LXX. No entanto, corresponde exatamente a uma ver­
são do “Cântico de Moisés” nas Odes de Salomão (2.34), anexado aos Salmos
em uma tradição manuscrita da LXX (Códice A, 55; veja também Justino,

95
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Dial. 130). Aparentemente, o pregador apela para uma adaptação litúrgica de


um texto bíblico. Isso é comparável aos pregadores de hoje que apontam para
uma verdade bíblica expressa em um dos grandes hinos da igreja.
A fórmula introdutória, quando D eu s introduz o P rim ogênito no m un­
do, também apresenta uma dificuldade. Primeiro, alguns intérpretes pensam
que essa frase se refere à segunda vinda. Mas isso toma incorretamente o advér­
bio ainda com o verbo introduzir. Na verdade, e ainda é o último marcador
para essa série de citações (“Deus alguma vez disse [...] ? E outra vez [...] ? E
ainda [...]” [Hb 1.5,6]).
Segundo, outros entendem o fato de Deus introduzir o Filho no mundo
como uma referência à encarnação. No entanto, em Hebreus, a encarnação de
Jesus não marca a exaltação do Filho, mas Sua humilhação, Ele ser feito um
“pouco menor do que os anjos” (2.7,9). Além disso, Flebreus usa a palavra kos-
mos (“mundo”), em vez de oikoumenê (-> a seguir), para referir-se a este mundo
criado (4.3; 9.26; 11.7,38; veja 9.1 \kosmikon, “terrestre”] e 10.5 [entrada de
Cristo no kosmos em Sua encarnação]).
Terceira, há uma interpretação preferível. O m undo (oikoumenê) é ainda
definido como o “mundo que há de vir” em 2.5. Assim, o autor está falando
sobre a ascensão-glorificação de Cristo. Somente na conclusão da vida terrena
de Cristo (5.7) — depois de ter suportado sofrimento e morte —, Ele foi “co­
roado de honra e glória” (2.9). E em Sua entronização que Deus ordenou aos
anjos que se curvassem diante dele.
O título honorífico de P rim ogênito não se refere ao nascimento de Jesus,
nem em relação à Sua geração eterna do Pai, nem à Sua encarnação. Em vez
disso, significa a Sua preeminência como herdeiro divino-humano “de toda a
criação” (Cl 1.15) como o ressuscitado (Cl 1.18; Ap 1.5) e precursor de todos
“aqueles que hão de herdar a salvação” (Hb 1.14; veja Rm 8.29).
Isso estabelece outro argumento lógico, com a premissa principal: aquele
que é adorado é maior do que o adorador. Esse é um axioma não expresso na
ordem de Hebreus 7.7: “Sem dúvida alguma, o inferior é abençoado pelo supe­
rior”. A premissa secundária é mais uma vez apoiada por uma citação bíblica:
os anjos adoram o Filho (1.6). A conclusão não expressa é difundida em todo
esse capítulo: o Filho é superior aos anjos.

(2) A constância do Filho (1.7-12)

7 Uma segunda subunidade é composta por três passagens bíblicas, costu­


radas como segue. O autor assinala o início de um contraste na introdução à

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NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

primeira passagem: Ao falar dos anjos por um lado (kai pros men tons ange-
lous legei [1.7]). A contrapartida é expressa em 1.8a\ “Mas [oupor outro lado\
a respeito do Filho, diz [pros de ton huion\\ seguido pela segunda escritura
(1.8£,9). Uma terceira passagem continua a segunda metade do contraste em
1.10-12, introduzida por: “Ele também diz”.
A premissa principal desse argumento era um truísmo no mundo antigo,
especialmente para aqueles influenciados pelo platonismo. Essa filosofia sus­
tentava que as coisas que não mudam são superiores às que mudam.
A premissa secundária é que, enquanto os anjos são mutáveis (1.7), o Filho
é imutável (1.8-12). Os anjos são claramente instáveis, seres criados. O Salmo
104.4 (LXX) afirma que Deus os faz {poiõn) tornar-se forças elementares e
fugazes da natureza, como vento ou fogo. Ele faz dos seus anjos ventos, e dos
seus servos, clarões reluzentes (Hb 1.7). Deve-se notar que a palavra para
ventos também pode ser traduzida como “espíritos” (ACF, BKJ), como em
1.14. Assim, os anjos são parte da ordem criada em mudança.
1 8 0 Filho, no entanto, é constante e eterno. O pregador demonstra isso
por citações do Salmo 45.6,7 (LXX) em Hebreus 1.8,9 e do Salmo 102.25-27
(LXX) em Hebreus 1.10-12. A citação do Salmo 45 sublinha a constância do
Filho na soberania e no julgamento justo.
O Filho entronizado é chamado de Deus: O teu trono, ó D eu s, subsiste
para to d o o sempre (Hb 1.8b). Não apenas a soberania do Filho perdurará,
mas será executada em justiça: C etro de equidade é o centro do teu R eino
(1.8c). O cetro é usado figurativamente (por metonímia) para referir-se a tudo
que estava implicado no exercício da soberania de um monarca. Isso é muito
parecido com a nossa associação de reis com coroas, juizes com martelos, po­
liciais com distintivos. A autoridade do Filho não é apenas simbolizada, mas
também realizada em Seu estabelecimento de justiça.
H 9 Am as a justiça e odeias a iniquidade (v. 9a). Esperava-se que os reis de Is­
rael administrassem a retidão e a justiça (veja 1 Rs 3.28; 10.9; 2 Cr 9.8; SI 71.1;
Pv 16.12,13; 20.8,28; 25.5; 29.4; Jr 22.15). Eles estavam sujeitos à maldição de
Deus quando não o fizeram, pois Deus era o Rei Justo que eles deveriam imitar
(Sl 99.4). Os profetas predisseram um rei vindouro, o “Renovo justo” da casa
de Davi (Jr 23.5). Esse é o Messias, o Justo (Is 53.11; At 3.14; 7.52; 1 Jo 2.1),
cujo Reino é estabelecido em justiça e retidão para sempre (Is 9.7).
O olhar do pregador se move, como sempre, para a exaltação (= unção) do
Filho como rei: Por isso D eu s, o teu D eu s, escolh eu -te dentre os teus com ­
panheiros, ungin d o-te com óleo de alegria (Hb l.9b-c). Profetas, sacerdotes
e reis foram ungidos no AT. A unção com óleo significava a designação especial

97
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

de Deus, consagração e capacitação espiritual de pessoas para o Seu serviço.


Além disso, não passaria despercebido aos leitores gregos que a palavra para
“ungir \chriõ]” está relacionada à palavra para “Cristo \Christos, ‘Ungido’]”.
«10 A citação do Salmo 102.25-27 em Hebreus 1.10-12 enfatiza o contraste
entre a constância do Filho como Criador e a contingência da ordem criada.
N o princíp io, Senhor, firmaste os fundam entos da terra, e os céus são
obras das tuas m ãos (v. 10). O Filho eterno existia antes da criação, e a criação
passou a existir por ordem dele (veja 1.2c; 3.3,4). O autor não hesita em atri­
buir a Cristo o que o autor do AT atribuiu a Deus.
l i 1 1 -1 2 O Filho é contrastado com uma criação em mudança e deteriora­
ção: Eles perecerão, mas tu perm anecerás; envelhecerão [lit., envelhecer\
com o vestim entas (1.11).
Não apenas o universo é perecível, mas o Filho — o Criador eterno (1.2c)
— podería retirar Seu poder sustentador (1.3c) e acabar com o universo pre­
sente com a mesma facilidade com que se pode tirar e despir as roupas: Tu os
enrolarás com o um m anto; com o roupas eles serão trocados (1.12 a-b).
O Filho é diferente do cosmos em constante mudança: Mas tu perm ane­
ces o m esm o, e os teus dias jam ais terão fim (1.12c). O pregador mais tarde
resumirá esta verdade na memorável declaração: “Jesus Cristo é o mesmo, on­
tem, hoje e para sempre” (13.8). Dadas as premissas principais e secundárias
desse argumento, a conclusão é mais uma vez clara. O Filho, que é eterno e
constante, é superior aos anjos que, como parte da ordem criada, estão sempre
mudando.

(3) A exaltação do Filho (1.13,14)

H 13 A sétima e última citação bíblica, Salmo 110.1, completa a cadeia. Essa


é uma das passagens favoritas do pregador. Ele já fez alusão a isso em FFebreus
1.3c/e voltará a fazer várias vezes (8.1; 10.12; 12.2).
A cadeia começou (1.5a), e agora termina, com uma fórmula semelhan­
te expressa como uma pergunta retórica, A qual dos anjos D eus algum a vez
disse [...]? (1.13a). Há uma diferença sutil, mas importante, entre as duas fór­
mulas, que é difícil de representar na tradução para o português. Em 1.5a, o
autor usou o pretérito simples (aoristo, eipon), traduzido como um pretérito
enfático na NVI (disse). Aqui, em 1.13a, ele usa o tempo perfeito grego, tem
[...] dito (eireken). O tempo perfeito descreve uma ação como concluída no
passado, mas tendo efeitos duradouros. O pronunciamento do Salmo 110.1,
nunca proferido a respeito de nenhum anjo, agora foi pronunciado resoluta­

98
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

mente do Filho: Senta-te à m inha direita, até que eu faça dos teus inim igos
um estrado para os teus pés (SI 110.1 em Hb 1.13 Ac). O clímax da entroni-
zação à direita de Deus, que apareceu no final da declaração de abertura (13d),
é repetido aqui no final da cadeia (1.5-14).

Salmo 110 em Hebreus


P o d e s e r u m e x a g e r o a firm a r, c o m o G. W. B u c h a n a n ( 1 9 7 2 , p. x ix -
-xxx ), q u e H e b re u s é u m " m id r a s h h o m ilé t ic o " n o S a lm o 1 1 0 . M a s e s s e
s a lm o , n o e n ta n to , d e s e m p e n h a u m p a p e l p r im o r d ia l n o a p o io à p r o p o ­
s iç ã o p r in c ip a l d o s e r m ã o — q u e Je s u s é o n o s s o S u m o S a c e r d o te (ve ja
1 .1 7 ,1 8 ).
O t e x t o - c h a v e e m 8 .1 re s u m e a m e n s a g e m d o s e r m ã o n o s t e r m o s d o
S a lm o 1 1 0 .1 ,4 : "O m a is im p o r t a n t e d o q u e e s t a m o s t r a t a n d o é q u e t e m o s
um s u m o s a c e r d o t e c o m o e s s e ” — ou se ja , na o rd e m d e M e lq u is e d e q u e
(c o m o e m SI 1 1 0 .4 ). O a u to r d e s ta c o u e s s e p o n to na d is c u s s ã o a n te r io r
(Hb 5 — 7). E le c o n tin u a d iz e n d o q u e e s s e s a c e r d o t e " s e n t o u - s e à d ir e ita
d a M a je s ta d e n o c é u " (c o m o n o SI 1 1 0 .1 ; v e ja 1.3).
O p r e g a d o r a lu d e a o S a lm o 1 1 0 .1 no in íc io d e H e b re u s 1 (v. 3) e o c ita
e x p lic it a m e n t e n o fin a l d o m e s m o c a p ít u lo (v. 13). E le t a m b é m e c o a e s s e
v e r s íc u lo e m m u ita s o u tra s p a s s a g e n s (8.1; 1 0 .1 2 ,1 3 ; 12 .2 ; t a lv e z t a m ­
b é m 4 .1 4 e 7 .2 6 ). E le u s a o S a lm o 1 1 0 .4 a in d a m a is e x t e n s iv a m e n te . E le
o c ita in ic ia lm e n t e e m H e b re u s 5.6, re to m a s u a lin g u a g e m s o b re o s u m o
s a c e r d ó c io d e M e lq u is e d e q u e e o ju r a m e n t o d e D e u s n o s c a p ít u lo s 5 — 7
(5.10; 6 .1 7 ,2 0 ; 7 .3 ,1 1 ,1 5 ,2 0 ,2 4 ,2 8 ) e o c ita m a is d u a s v e z e s e m 7 .1 7 ,2 1
(ve ja L in c o ln , 2 0 0 6 , p. 1 2 -1 3 ).
C la r a m e n t e , o S a lm o 1 1 0 s e r v e c o m o e s p in h a d o r s a l p a ra a r e fle x ã o
c r is to ló g ic a e m H e b re u s . É a fo n te p a ra a e x p o s iç ã o in s p ir a d a d o p r e g a ­
d o r s o b re Je s u s c o m o o " g r a n d e s u m o s a c e r d o t e q u e a d e n tr o u o s c é u s "
(4.1 4).

■ 14 Essa escritura (Sl 110.1), também, é parte de um argumento lógico em


Hebreus 1.14. A premissa principal, outro truísmo, é que aquele que governa é
superior àqueles que o servem (veja Jo 13.16; 15.20). A premissa secundária é
que o Filbo é o governante (como demonstrado na citação do Sl 110.1 em Hb
1.13). Em contraste, os anjos [...], to d o s eles, são servos (1.14). A servidão
dos anjos é sublinhada de dois modos:
Primeiro, eles são espíritos m inistradores (leitourgika pneumata). Isso
ecoa a linguagem do Salmo 104.4 em Hebreus 1.7. O pregador pode muito

99
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

bem estar pensando no ministério de adoração que os anjos realizam diante do


trono de Deus no céu (1.6; 12.22).
Segundo, anjos são enviados para servir (lit., enviados para serviço). Os
anjos são divinamente comissionados para ajudar os seres humanos na terra.
Os beneficiários particulares desse serviço angélico são aqueles que hão de
herdar a salvação. O Filho é “o herdeiro” por excelência (1.26). Os crentes são
atraídos para a herança divina por meio de sua união com Cristo. Assim, os anjos
são dedicados não apenas ao serviço de Deus, mas também ao Seu povo. Não
há dúvida sobre a conclusão deste argumento final: o Filho é superior aos anjos.

c . P re ste a te n ç ã o ao q u e foi falad o no Filh o (2.1-4)

Dizer que 1.1-4 ou 1.1-14 compreende o exordium a Flebreus seria lamen­


tavelmente inadequado. Claramente, 2.1-4 constitui o ponto interpretativo de
tudo que o precede. O autor não passa da exposição e argumentação (1.1-14)
para a exortação (2.1-4) apenas para inserir uma digressão homilética. Não,
essa advertência é o destino para o qual a introdução tem se dirigido o tempo
todo. Isso é indicado pelo enfático por isso (Dia touto) que encabeça essa su-
bunidade.
Essa exortação remonta ao ponto de partida em 1.1,2a: o Deus quefala. O
verbo “proferir, falar (laleõf retorna (transm itida [2.2 NVI, ARA]; anuncia­
da [2.3]; veja 1.11,2a), mas agora junto à sua importante contrapartida: ouvir
a mensagem (2.1,36). Além disso, assim como 1.2a fez referência aos destinatá­
rios da palavra divina (a nós), agora somos nós que devemos prestar a máxima
atenção (2.1), e não escaparemos se “negligenciarmos tão grande salvação”
(2.3a ARA, NVT), que nos foi confirmada pelos apóstolos (2.36).
Em 2.1-4, o pregador traz sua comparação (synkrisis) do Filho e os anjos à
sua conclusão adequada (o 2.5,16). Agora podemos determinar o motivo dessa
comparação. Ela reside na comparação do menor para o maior entre as mensa­
gens entregues pelos anjos e pelo Filho. A conclusão é de que desconsideramos
a palavra de Deus no Filho por nossa própria conta e risco.
Esse parágrafo final do exordium consiste em duas frases. A primeira, em
2.1, contém aliteração usando a letra p (perissoterõs prosechein... pararyõmen)
como em 1.1. A segunda é outra sentença periódica (2.2-4), como na declara­
ção de abertura (1.1-4). Ele constrói um argumento afortiori (do menor para
o maior) sob a forma de uma pergunta retórica contendo uma condição (se...
[2.2]) e um resultado proposto (C om o escaparem os [...]? [2.3,4]). Embora
2.2-4 seja uma frase complexa em grego, 2.36,4 detalha o fundamento para a

100
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

grande salvação sobre a qual o autor está falando e, portanto, pode ser explora­
da em um título separado.

(1) Exortação para prestar a máxima atenção (2.1)

I 1 O resultado de todas as comparações entre o Filho e os anjos apresen­


tadas no capítulo 1 é que é preciso que prestem os m aior atenção ao que
temos ouvido, para que [...]. O uso do verbo preciso {dei) com o advérbio
mais cuidadosamente [perissoterõs) é enfático, e o sentido é bem captado na
interpretação: “Nós somos obrigados a prestar mais atenção” (REB). O verbo
traduzido como prestar [...] atenção {prosechein) é usado em contextos náu­
ticos para direcionar um navio em direção a um porto para ali ser ancorado
(LSJ, p. 1512). Isso dificilmente parecería relevante, se não fosse pela cláusula
de propósito a seguir: Para que jam ais nos desviem os. O verbo desviar-se
(pararyõmen) pode referir-se a desviar-se do curso (LSJ supp., p. 240; veja
REB). As imagens náuticas comunicam vividamente o perigo insidioso de ne­
gligenciar a mensagem da salvação.

(2) O p erig o d e n e g lig e n c ia r a m en sa g em (2 .2 ,3 a )

l i 2 Agora o pregador aproveita sua comparação do Filho com os anjos para


obter o máximo efeito persuasivo. O que se segue fornece uma base adicional
para a exortação em 2.1 (observe o p or \gar\). Ele começa com uma condição:
Se a m ensagem transm itida por anjos (2.2). A m ensagem é a lei de Moisés.
Flebreus não está sozinho ao afirmar que a Lei foi dada a Moisés por meio de
intermediários angélicos (veja At 7.38; G1 3.19). O aspecto jurídico da men­
sagem é pontuado pelo vocabulário jurídico. A mensagem era obrigatória
{bebaios, “firme”, “válida”, “em vigor”), e tod a transgressão e desobediência
[lit., recusa em ouvir\ recebeu a devida punição. A lei mosaica continha
sanções para a desobediência, bem resumidas na citação de Paulo de Deute-
ronômio 27.26 em Gálatas 3.10: “Maldito todo aquele que não persiste em
praticar todas as coisas escritas no livro da Lei”.

Por que a comparação de Jesus com anjos em Hebreus?


A c o m p a r a ç ã o s u s t e n ta d a e n tre C r is t o e o s a n jo s e m H e b re u s 1 — 2
te m a t o r m e n t a d o o s e s t u d io s o s . O a u to r e s tá a b o rd a n d o u m p ro b le m a
e s p e c ífic o e n tre s e u s le ito re s ?

101
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

U m a s u g e s t ã o é q u e , c o m o o s c o lo s s e n s e s (v e ja C l 2 .1 8 ), h a v ia um
p r o b le m a c o m a a d o r a ç ã o d e a n jo s (M a n s o n , 1 9 4 9 , p. 1-17; Je w e tt, 1 9 8 1 ,
p. 5 -7 ,3 9 ). N o e n ta n to , u m a v e z q u e n ã o há p o lê m ic a e x p líc it a c o n tra ta l
p r á tic a — e s p e c ia lm e n t e à lu z d a já c la r a t r a d iç ã o d e re c u s a a n g e lic a l d e
a d o r a ç ã o (Tob. 1 2 .1 6 -2 2 ; A p 1 9 .1 0 ; 2 2 .9 ; A p o c . S o f. 6 .1 1 -1 5 ; A s. Is. 7 .1 8 -
23; 8 .5 ) — , e s s a v is ã o n ã o é c o n v in c e n t e .
O u tra s u g e s t ã o é q u e o p r e g a d o r e s tá c o m b a t e n d o u m a c ris to lo g ia
a n g é lic a . V á rio s m o d e lo s d e re fle x ã o ju d a ic a s o b re o s p a p é is e s c a to ló g i-
c o s, s u m o s s a c e r d o t a is ou, à s v e z e s , m e s s iâ n ic o s d o s a n jo s p o d e m t e r
d e s e m p e n h a d o u m p a p e l na e s p e c u la ç ã o s o b re a n a tu r e z a e a fu n ç ã o d e
Je su s, o C r is t o ( p a ra u m a p e s q u is a d e t a lh a d a , v e ja A ttrid g e , 1 9 8 9 , p. 51 -
52 ). E m D a n ie l, p o r e x e m p lo , o a r c a n jo M ig u e l lu ta p e lo s filh o s d e Israel
(D n 1 2 .1 ). E m Q u m ra n , M e lq u is e d e q u e e ra v is t o c o m o u m rei e s a c e r d o t e
m e s s iâ n ic o d o fim d o s t e m p o s , q u e t a m b é m p o d e t e r s id o c o n s id e r a d o
u m a n jo ( l l Q M e l c h ; -> H b 7 .7 ,8 a n o ta ç ã o c o m p le m e n ta r : " M is te r io s o M e l­
q u is e d e q u e " ) . F ilo n f r e q u e n t e m e n t e d e s c r e v ia a fig u r a in te rm e d iá r ia , o
L o g o s , c o m o u m a n jo (E m b a ix a d a 3 .1 7 7 .6 2 ; D eus 1 .1 8 2 ; Fuga 1.5; N om es

1 .8 7 ; Sonhos 1 .2 3 9 ).
T a m b é m s a b e m o s q u e t a is m o d e lo s a n g é lic o s ju d a ic o s in fo rm a r a m
f o r m u la ç õ e s c r is t o ló g ic a s e n tre c e r t o s c r is tã o s n o s e g u n d o s é c u lo (ve ja
J u s tin o , D ia l. 3 4 .2 ; H e r m . S im . 8 .3 .3 ; 9 .1 2 .7 -8 ; C o n s t. A p o s . 8 .1 2 .7 , 23; Ev.

Tm . 13 [3 4 ,3 4 ]). T a lv e z H e b re u s q u is e s s e e n f a t iz a r je s u s c o m o n ã o a p e n a s
u m d o s " f ilh o s d e D e u s ” , m e s m o q u e o m a is e x a lt a d o (ou se ja , an jo s; -» N o
te x t o e m 2.7). C r is to é o e te r n o e ú n ic o F ilh o d e D e u s. M a is u m a v e z , na
a u s ê n c ia d e re fu t a ç õ e s e x p líc it a s a u m a c r is to lo g ia a n g é lic a e m F le b re u s ,
e s s a v is ã o p o d e s e r p o u c o m a is q u e e s p e c u la ç ã o .
M a is fir m e m e n t e f u n d a m e n t a d o n o te x t o d e F le b re u s é u m p a n o d e
fu n d o e m q u e o s a n jo s e ra m c o n s id e r a d o s m e d ia d o r e s d a lei d e M o is é s
(2.2) e g o v e r n a d o r e s d a p r e s e n te o rd e m c ó s m ic a (2.5). U m a c re n ç a g e ­
n e r a liz a d a e n tre o s ju d e u s n o p e r ío d o in t e r t e s t a m e n tá r io , b e m c o m o no
NT, e ra d e q u e a Lei n ã o fo ra d a d a d ir e ta m e n t e a M o is é s p o r Y a h w e h , m a s
p o r m e io d a a ç ã o in t e r m e d iá r ia d e a n jo s (Ju b . 1 .2 7 ,2 9 ; 2.1; Jo s e fo , A n t.

1 5 .1 3 6 ; A t 7 .5 3 ; G l 3 .1 9 ; H b 2.2). E m c o n e x ã o c o m e s s a c a p a c id a d e , o s
a n jo s e ra m líd e r e s d a litu rg ia c e le s t ia l e a d o r a ç ã o d e D e u s d e Isra el (Is
6.3; 1 En. 3 9 .1 0 -1 3 ; Ju b. 2 .2 ,1 8 ; 1 5 .2 7 ; 3 1 .1 4 ; T. L e v i 3.5; l Q S b 4 .2 5 ,2 6 ;
A sc. Is. 7 .3 7 ; 8 .1 7 ; 9 .2 8 -3 3 ; 3 En. 1 .12 ). D e a c o r d o c o m o s J u b ile u s , os

a n jo s o b s e r v a v a m o s á b a d o , a F e sta d a s S e m a n a s e a té fo ra m c r ia d o s
c ir c u n c íd a d o s (Ju b . 2 .1 7 ,1 8 ; 6 .1 8 ; 1 5 .2 6 ,2 7 ).
A lé m d is s o , a c r e d ita v a - s e q u e o s a n jo s e ra m r e s p o n s á v e is p e lo g o ­
v e r n o d e t o d o o u n iv e rs o , in c lu in d o n a ç õ e s (D t 3 2 .8 LX X ; D n 1 0 .1 3 ,2 0 ,2 2 ;
1 2 .1 ), re in o s c e le s t ia is (T Levi 3; 1 En. 3 - 2 0 ) , e o s p r o c e s s o s f ís ic o s d o
c o s m o s , t a is c o m o c o rp o s c e le s t e s , f e n ô m e n o s c lim á t ic o s e o c r e s c im e n t o
d e p la n t a s e a n im a is (Ju b . 2 .2 ; 1 En. 6 0 .1 6 -2 2 ; 8 2 .9 -2 0 ; 1 En. 19; l Q H a

102
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

1 .1 0 ,1 1 ). P o d e -s e p e r g u n t a r s e P a u lo e m G á la t a s e s t a v a e x p lo r a n d o t a is
t r a d iç õ e s a o a s s o c ia r a Torá c o m a m b o s o s a n jo s (G l 3 .1 9 ) e o s s t o ic h e ia

( " e s p ír ito s e le m e n t a is " [G l 4 .3 ,9 N R S V , N T LH ; v e ja Cl 2 .8 ,2 0 ).


C o m o o u tro s a u to r e s d o NT, H e b re u s d e c la r a a s u p r e m a c ia d e C r is to
s o b re to d o p o d e r c ó s m ic o (E f 1 .2 0 ,2 1 ; Cl 1.16 ; 1 Pe 3 .2 2 ). E n q u a n to o s
a n jo s s e r v ir a m e c o n t in u a m a s e r v ir a D e u s n e s ta e ra p r e s e n t e (H b 1 .6 ,1 4 ;
1 2 .2 2 ; 1 3 .2 ), o F ilh o d e D e u s d e s e m p e n h a u m p a p e l p r e e m in e n te " n e s t e s
ú ltim o s d ia s " (1 .2 a ) o u n o " m u n d o q u e há d e v ir " (2.5 ). A v e lh a o rd e m
d e u lu g a r à n o v a o rd e m d e s a lv a ç ã o , a g o ra f o c a d a na m o rte e x p ia t ó r ia d o
Filho (1 2 .2 4 ) e S u a in t e r c e s s ã o c e le s t ia l p e lo p o v o d e D e u s (7 .2 5 ). S e o s
a n jo s já s e r v ir a m c o m o v ic e - r e g e n t e s e in t e r m e d iá r io s d e D e u s , a g o ra o
F ilho re in a c o m o Rei e S u m o S a c e rd o te , s o m e n t e p o r m e io d e q u e m p o d e ­
m o s t e r a c e s s o a D e u s. S e r m e m b r o d a f a m ília d e D e u s , p o r ta n to , re q u e r
h o n ra r e a d o r a r a D e u s p o r in t e r m é d io d o Filh o , n ã o p o r m e io d a s p r á t ic a s
d a a n tig a a lia n ç a , q u e e s t a v a m s o b a o r ie n t a ç ã o d e a n jo s.

■ 3a A condição é seguida por um resultado proposto. Se a mensagem,


comunicada por intermédio de mensageiros inferiores (anjos), estipulou con­
sequências tão severas para o descumprimento, com o escaparem os n ós, se
negligenciarm os tão grande salvação? (23a). Isso, é claro, é uma pergunta
retórica. A resposta implícita é: “Não vamos!” Negligenciar não é ignorar de
forma casual, mas um desrespeito ativo e desdenhoso. Não é uma perda de me­
mória ou um descuido não intencional, mas uma falta culposa de preocupação
(como em nossa frase “negligência infantil”; veja 8.9). Porque o descaso por
uma salvação tão grande implica desonrar a fonte de todo o benefício, o pró­
prio Deus (deSilva, 2000a, p. 106).

(3) A lin h a g em de ta l g ra n d e salvação ( 2 .3 b ,4)

■ 3 b-c O restante do exordium é uma série de cláusulas que modifica ainda


mais a “salvação” em 2.3^: Prim eiram ente anunciada pelo Senhor (23b). O
pregador usa uma expressão no estilo do melhor grego clássico para sugerir, não
simplesmente prioridade cronológica, mas que a mensagem teve sua origem na
pregação do evangelho p elo Senhor (i.e., Jesus) (“anunciada originalmente”
[NAB]; veja Mc 1.1; 1 Jo 2.7,24; 3.11; 2 Jo 5,6).
Foi-nos confirm ada pelos que a ouviram (23c). O verbo foi confirm a­
da (bebaiõtbe) é um cognato do adjetivo “firmeza” (2.2a) e tem a conotação
de validação legal. Especialmente em Lucas-Atos, vemos os apóstolos de Jesus
103
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBI.ICO BEACON

designados como testemunhas qualificadas do que eles “viram e ouviram’’ (At


4.20; 22.15), particularmente com relação à ressurreição de Jesus (Lc 24.48;
At 1.8,21,22; 2.32; 3.15; 5.32; 10.39,41; 13.31; veja Anderson, 2006, p. 34-
37,188-193).
Üi 4 Mas, se isso não bastar, D eu s tam bém deu testem unho dela. O verbo
synepimartyreõ é mais um termo legal que significa “testemunhar ao mesmo
tempo”, “testemunhar junto a” ou corroborar.
Os elementos da corroboração divina incluem sinais e maravilhas. No
AT, essa é uma expressão padrão para as obras poderosas de Deus em conexão
com o êxodo (Êx 7.3; Dt 4.34; 6.22; 7.19; 29.3; SI 135.9; Jr 32.20,21). No NT,
a expressão se refere a diversos m ilagres realizados por Jesus (At 2.22) e pelas
mãos dos apóstolos (At 2.43; 4.30; 5.12; 6.8; 14.3; 15.12; Rm 15.19; 2 Co
12.12). A palavra m ilagres (dynameis) refere-se a poderes milagrosos.
Finalmente, embora o pregador fale de distribuições ou divisões {me-
rismoi; distribuídos), certamente ele pretende uma divisão não do Espírito
Santo, mas dos dons do Espírito Santo. Determinar se de acordo com a sua
vontade se refere à intenção do Espírito Santo ou de Deus (como especifica
o Codex Bezae) é desnecessário. Em uma passagem paralela em 1 Coríntios
12.11, é claramente o Espírito que distribui dons “como ele determina”. No
entanto, Paulo ensina em 1 Coríntios 12.4-7 que cada pessoa do Deus trino
opera no dom do Corpo de Cristo.

A PARTIR DO TEXTO

Hebreus começa onde toda teologia deve começar: na revelação divina.


“Deus falou” (1.1). O autor de Hebreus é um mestre teólogo e pregador que
traz diante de seu público a revelação completa de Deus. Ele é um padrão para
todos os outros pregadores do evangelho. Nosso objetivo deve ser conduzir os
ouvintes à presença de um Deus maravilhoso, santo e gracioso.
O autor da apreensão e apropriação da revelação divina por Hebreus tem
algumas semelhanças com o chamado quadrilátero wesleyano. Essa é uma
abordagem de interpretação que busca apreender a revelação divina por meio
das Escrituras, tradição, razão e experiência (veja Gunter, 1997; Olson, 2002,
cap. 2; Thorsen, 2005).
Primeiro, o principal depósito de revelação do autor são as Escrituras. Cla­
ro, o Filho é a revelação final de Deus para a humanidade. Mas o pregador
pesquisa diligentemente as Escrituras para ouvir a voz do Deus trino. Ele faz
uso abundante de alusões e citações no capítulo 1, incluindo as tradições de
104
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

sabedoria nas Escrituras. Ele explora-as para explicar a natureza e o destino do


Filho. A exegese bíblica continuará a ser básica para a estratégia do pregador
para o ministério pastoral aos seus leitores.
Segundo, o pregador reconhece sua dívida — que tem em comum com
seus ouvintes -— para com o testemunho dos apóstolos. A mensagem da sal­
vação foi primeiro falada pelo Senhor Jesus, mas foi mediada e confirmada
para nós por “aqueles que a ouviram” (2.3c). Para nós, ainda hoje é verdade
que a Igreja é “edificada sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, tendo
Jesus Cristo como pedra angular” (Ef 2.20). Nunca devemos esquecer o en­
raizamento histórico da nossa fé. Não devemos negligenciar dois mil anos de
história da Igreja. Ao longo de sua história, a chama da verdade foi transmitida
por crentes fiéis, pregadores e teólogos.
Desde o tempo dos Pais da Igreja primitiva até agora, Deus tem guiado a
compreensão da fé da Igreja, às vezes, chamada de Grande Tradição. Muitos
crentes ambiciosos saíram por conta própria, tentando restaurar o cristianis­
mo à glória primitiva de que a Igreja supostamente desfrutou no tempo de
Jesus e dos apóstolos. No entanto, essas são quase sempre tentativas orgulhosas
e impraticáveis de descobrir a fé dentro do pequeno círculo da compreensão
humana de um indivíduo.
O fato é que não podemos deixar de estar sobre os ombros de gigantes
espirituais na Igreja de Cristo. Isso começa com os apóstolos — Pedro, Tiago,
João e outros. Em seguida, abrange aqueles que passaram o bastão apostólico
ao longo da história da Igreja. Nomes como Justino Mártir, os pais da Capa-
dócia, Agostinho, Tomás de Aquino, Lutero, Calvino, Wesley e Barth vêm
prontamente à mente. A Abadia de Westminster de Elebreus 11 foi considera­
velmente ampliada desde que o pregador pregou seu sermão pela primeira vez!
Terceiro, o pregador coloca a razão a serviço da causa do evangelho. Ele já
utilizou comparações, considerações (mais tecnicamente chamadas de entime-
mas) e argumentos lógicos (como afortiori). No mundo do primeiro século, a
maior realização da educação era a retórica, e o pregador é bastante realizado
nela. O livro de Elebreus é um exemplo brilhante de como um ser humano edu­
cado pode ser usado por Deus para a proclamação do evangelho por meio de
linguagem cativante, pensamento ordenado e lógico e também argumentação
persuasiva.
Quarto, o pregador aponta o rompimento da revelação de Deus na expe­
riência de seus ouvintes. Deus falou-wo? no Filho (1.2^). Quando o evangelho
é pregado, Deus dá testemunho corroborativo dele por meio de “sinais, ma­
ravilhas [...] milagres e dons do Espírito Santo” (2.4). O pregador estava de

105
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

acordo com os apóstolos ao perceber que esse milagroso testemunho divino é


um indicador da mudança dos tempos. A morte, a ressurreição e a exaltação de
Jesus marcaram uma transição da antiga era do pecado e da morte para a era
vindoura de justiça e vida.
O método teológico não deve ofuscar a impressionante afirmação cristoló-
gica feita no exordium de Hebreus (1.1—2.4). Poucas passagens no N T são tão
lúcidas quanto essa ao declarar a divindade de Jesus Cristo. Apenas o prólogo
do Evangelho deJoão(l.l-18)é igualmente explícito e enfático, especialmente
em sua linha de abertura: “No princípio era aquele que é a Palavra. Ele estava
com Deus, e era Deus” (Jo 1.1).
Não surpreendentemente, o Evangelho de João e Elebreus foram armas
primárias no arsenal contra a heresia ariana que começou no quarto século.
Ário sustentou que o Filho não é da mesma natureza que Deus Pai. O Filho
não existiu eternamente, mas foi o primeiro ser criado.
O poderoso testemunho da natureza divina e da existência eterna de Jesus
em Hebreus 1 levou alguns arianos a contestar o status do livro como apostó­
lico. Outros distorceram os textos de Hebreus para se adequarem à doutrina
ariana (Epifânio, Pan. 69.37). Eles aproveitaram a afirmação em 1.04 que o
Filho “tornou-se” superior aos anjos, mas mais comumente apontaram para a
afirmação de que o Filho era fiel a Deus, que o havia “constituído” (-» 3.2).
Defensivamente, os defensores da crença ortodoxa e trinitária poderíam
facilmente refutar essas interpretações (ex.: veja Atanásio em 1.4 [Heen e
Krey, 2005, p. 19] e Epifânio em 3.2 [Pan. 69-37-39]). Ofensivamente, muitos
elementos de Hebreus 1 foram interpretados para apoiar a plena divindade e
eternidade do Filho:
• Quy o universo (lit., “as eras”) foi criado pelo Filho (1.2c) significa
que Ele existia antes de todas as eras. Somente Deus, de acordo com
o SI 55.19 FXX, existiu “antes dos tempos” (Teodoro de Mopsuéstia;
Heen e Krey, 2005, p. 8).
• Que o Filho é “o resplendor da glória de Deus” (Hb 13a) indica que o
Filho tem a mesma natureza que Deus (Teodoro de Mopsuéstia; Heen
e Krey, 2005, p. 11). E impossível conceber a luz de Deus existindo
eternamente sem irradiar eternamente o brilho do Filho. Da mesma
forma, 13 b diz que o Filho era “a expressão exata do seu ser [de Deus]
Portanto, os arianos estão errados em dizer: “Houve uma vez quan­
do ele não era” (Atanásio; Teodoreto de Cyr; Heen e Krey, 2005, p.
12,14,15,16).

106
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

• “Sustentando todas as coisas por sua palavra poderosa” (1.3c) evi­


dencia o poder divino e criativo do Filho. Ele evita que o universo
desmorone na inexistência (Crisóstomo; Gregório de Nissa; Fieen e
Krey, 2005, p. 16).
• Somos proibidos nas Escrituras de adorar coisas criadas. Que os anjos
são ordenados a adorar o Filho (1.6) implica que Ele deve ser adorado
como Deus (Dídimo, o Cego; Eleen e Krey, 2005, p. 24).
• O Filho é tratado como “Deus” e é declarado que Seu Reino será eter­
no (1.8; Teodoreto de Cyr; Heen e Krey, 2005, p. 24).
Poderiamos continuar. Hebreus 1 se encaixa no padrão de revelação bíbli­
ca por trás da verdade confessada sobre Cristo no Credo de Niceia (325 d.C.):
“Da mesma essência do Pai, Deus de Deus, Luz da Luz, verdadeiro Deus de
verdadeiro Deus, gerado, não feito, sendo da mesma substância com o Pai”.
A revelação de Jesus Cristo como mais do que uma figura exaltada, mas o
Filho divino, que é superior até mesmo aos anjos, não tem apenas o propósito
de fazer uma declaração doutrinária sobre a divindade de Cristo. Em Hebreus,
o objetivo dessa visão elevada de Cristo é impressionar os leitores com a mag­
nitude de sua responsabilidade para com a mensagem de salvação falada pelo
Filho (2.1-4). O pregador não quer que simplesmente expressemos a crença em
Jesus como o Filho de Deus. Ele quer que nos entreguemos a Ele como nosso
Salvador, que nos torna santos por meio de Sua morte expiatória e nos conduz
à glória de Sua herança.

2. Jesus aperfeiçoado como um Sumo Sacerdote


misericordioso e fiel (2.5-18)

POR TRÁS DO TEXTO

Tendo solicitado a plena atenção de seus ouvintes no exordium (1.1 —2.4),


o pregador agora se volta para uma declaração de fatos (2.5-16) e proposição
(2.17,18). Chamado narratio (lat.; gr. diêgêsis) por antigos professores de re­
tórica, a declaração de fatos serve a três funções importantes em um discurso.
Primeira, apresenta a história de fundo relevante para os argumentos que se
seguirão. Segunda, fornece a natureza do assunto em questão. Terceira, conduz
à proposição do discurso, que, muitas vezes, segue imediatamente a declara­
ção dos fatos (Quintiliano, Inst. 4.4.1). A proposição relaciona o(s) ponto(s)
central(is) do discurso. Como uma conclusão à exposição dos fatos, é uma sín­

107
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

tese de seu conteúdo e uma introdução aos argumentos sucessivos (Übelacker,


1989, p. 193).
Havia considerável flexibilidade na composição de uma declaração de
fatos (veja Rhet. Her. 1.8.12,13). Em discursos deliberativos, podia-se narrar
eventos passados, catalogar uma série de fatos presentes ou prever eventos fu­
turos {Rhet. Alex. 1338a5). Visto que Hebreus é um sermão breve, a exposição
dos fatos não é um resumo completo dos argumentos a seguir. E uma platafor­
ma de encenação sobre a qual tudo mais no sermão é construído. Tem em vista
o estado de coisas no presente e futuro (ou seja, a sujeição atual do mundo que
há de vir em 2.5) como resultado do grande drama da encarnação. Ele aborda
de frente o desafio central ao compromisso dos ouvintes com o senhorio de
Cristo: a noção desanimadora de que o Filho de Deus veio para sofrer e mor­
rer. Em termos retóricos, essa é “a cabeça de todo o assunto [kephalaion estin\”
(Quintiliano, Inst. 3.10.27). Sem lidar com esse assunto de antemão, o prega­
dor não seria capaz de persuadir seus ouvintes, não com qualquer número de
outros argumentos, do sumo sacerdócio de Cristo ou da conveniência de Sua
fidelidade a Ele. A narmtio é o lugar apropriado para lidar com um assunto tão
fundamental para todo o caso que está sendo discutido.

Escândalo do sofrimento de Cristo


U m o b s t á c u lo p r im á r io q u e o s h e b r e u s d e v e m s u p e r a r é o tr e m e n d o
e s c â n d a lo d o s o fr im e n t o d e C ris to . D e u s e s a p a r e c e n d o c o m o h u m a n o s
n ã o e ra u m a id e ia e s t r a n h a p a ra o s g r e g o s (v e ja A t 1 4 .1 1 ,1 2 ; O v íd io , M e ta .

8 .6 1 1 - 7 2 5 ) , e o s ju d e u s e s t a v a m c ie n t e s d e a n jo s a p a r e c e n d o e m fo rm a
h u m a n a (G n 1 8 .1 -1 5 ; Js 5 .1 3 -1 5 ; Jz 1 3 .1 -7 ; Tob. 1 2 .1 9 ; v e ja H b 1 3 .2 ). E n ­
tre ta n to , a n o ç ã o d e f ig u r a s d iv in a s ou a n g é lic a s t a n t o p a r t ic ip a n d o d a
c o n d iç ã o h u m a n a c o m o a p o n to d e s o fr e r e m o rre r — e s p e c ia lm e n t e a
m o rte d e u m c r im in o s o na c r u z — e ra rid íc u la , r e p u ls iv a e e s c a n d a lo s a
p a ra ju d e u s e g e n t io s ig u a lm e n t e (1 C o 1 .23 ).
A c r u c if ic a ç ã o d e C r is t o s e r v iu d e b a s e p a ra a v a lia ç õ e s n e g a tiv a s
d a fé c ris tã . T á c ito d if ic ilm e n t e p o d e r ía e n c o n t r a r a d je t iv o s d e p r e c ia t iv o s
s u fic ie n t e s p a ra d e s c r e v e r o s c r is t ã o s p e r s e g u id o s s o b N e ro . Q u e C r is ­
to , s e u f u n d a d o r, " s o fr e u a p e n a e x t r e m a " (ou se ja , a c r u c ific a ç ã o ) s o b
P ô n c io P ila to s d e m o n s t r a n d o s u fic ie n t e m e n t e s e u s c o m e ç o s d e s o n ro s o s
(An. 1 5 .4 4 ). D e a c o r d o c o m J u s tin o M á rtir, o s c r ít ic o s p a g ã o s d o s c r is tã o s
a c r e d ita v a m q u e e ra " lo u c u r a [...] q u e d e m o s a u m h o m e m c r u c ific a d o
u m s e g u n d o lu g a r e m re la ç ã o a o im u tá v e l e e t e r n o D e u s, o C r ia d o r d e
tu d o " (1 A p o l . 1 3 .4 ). J u s tin o t a m b é m re la to u o p r o te s to q u e T rifã o s u s c ito u

108
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

e n tre o s ju d e u s : " M a s e s t e s e u c h a m a d o C r is t o fo i d e s o n r o s o e in g ló rio ,


ta n t o q u e a ú lt im a m a ld iç ã o c o n t id a na le i d e D e u s c a iu s o b re e le , p o is fo i
c r u c if ic a d o ” ( D ia l. 3 2 .1 ).
T ais c r ít ic a s a o C r is t o s o fr e d o r le v o u o p r e g a d o r a o s H e b re u s a in s is t ir
q u e C r is t o s o fre u n o b re e c o r a jo s a m e n t e e m f a v o r d o s o u tro s p a ra tra z e r-
-Ihes o s b e n e fíc io s d a s a lv a ç ã o e te rn a .

A declaração dos fatos deve ser concisa, clara e confiável (veja Rhet. Alex.
I438a20-bl0; Rhet. Her. 1.9.14-16; Quintiliano, Inst. 4.2.31-60). A declara­
ção dos fatos em Hebreus é certamente clara e concisa. Ela detalha a ação de
Deus de colocar todas as coisas sob a autoridade do Filho, trazendo salvação à
humanidade por meio da encarnação e derrotando a morte e o diabo, tudo em
um compasso relativamente curto.
A qualidade mais importante da declaração dos fatos é que ela seja crível
(Quintiliano, Inst. 4.2.32-34; outros retóricos acrescentam plausível, provável
ou convincente [veja Quintiliano, Inst. 4.2.31-32; Rhet. Alex. I438a20]). Isso
é alcançado, “se, em relação a fatos que são improváveis, apresentarmos razões
[aitiai\ que façam com que os eventos que alegamos pareçam prováveis de te­
rem ocorrido” {Rhet. Alex. 1438b 1; veja Quintiliano, Inst. 4.2.52).
Tanto a razão quanto o propósito por trás das ações de Deus em Jesus
são privilegiados na narratio de Hebreus. Observe a frequência de conectivos
inferenciais como “por isso [di‘ hên aitian ]” (2.11 b), “visto que [epei oun\ ”
(2.14^), “é claro [gar dêpou]” (2.16) e “por essa razão \hothen\” (2.17a), e cláu­
sulas de propósito como “para que [hopõs]” (2.9b), ‘“para que’/ ‘para’ \hina]”
(2.14/ç \7b) e “para \eis to]” (2.17c). Além disso, há referências às ações de
Deus ou de Cristo como graciosas (2.9c), apropriadas (“convinha” [2.10]),
sagradas {2.1\d), honradas (“coroado de glória e honra” [2.9b\ \ “não se enver­
gonha” [2.11 b\), e necessárias (“era necessário que ele” [2.17]). Outros sinais
indicadores mostram que 2.5-18 constitui a declaração de fatos e proposição
do sermão:
Primeiro, o pregador abre a declaração negando que o mundo vindouro
tenha sido submetido a anjos (2.5). Os antigos retóricos insistiam (veja Quin­
tiliano, Inst. 4.2.132) que a declaração deveria terminar onde a questão a ser
determinada começou. Assim, vemos a declaração começando e terminando
com a negação dos anjos como beneficiários da salvação divina (2.5,16). O tom
de conversação de 2.5 e 16 também contribui para a nossa identificação de

109
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

2.5-16 como a declaração dos fatos. A proposição segue imediatamente em


2.17,18.
Segundo, o pregador apresenta Jesus pelo nome pela primeira vez, e enfa­
ticamente (o 2.9 anotação complementar: “Uso do nome ‘Jesus’ em Hebreus”).
Jesus também recebe títulos que têm um sabor arcaico judaico (“filho do ho­
mem” [2.6]) e helenístico (“autor [arcbêgos]” [2.10]) e evocam imagens de
um grande campeão para o povo de Deus. O mais notável, porém, é o apa­
recimento de Jesus como orador. “O que realmente tem peso nos discursos
deliberativos”, escreve Quintiliano (Inst. 3.8.12), “é a autoridade do orador”.
Portanto, é significativo que o pregador apresente declarações da figura de au­
toridade do próprio Jesus em 2.12,13. Apenas em outro lugar o autor citará
Jesus diretamente (10.5-7) — novamente, de forma significativa, em relação à
encarnação de Cristo.
Finalmente, o pregador apela às emoções de seus leitores (veja Quintiliano,
Inst. 4.2.111-15). O que é potencialmente o aspecto mais incrível de seu caso,
ou seja, o sofrimento e a morte humilhantes de Jesus, o pregador apresenta
como a principal força da obra de Deus pela humanidade na encarnação. O so­
frimento de Jesus não pode ser considerado sem sentido ou desprezível, porque
Sua morte foi nobre. Ele morreu pelos outros, por todos (2.9), para exaltá-los
à glória (2.1CU), torná-los santos (2.11 a) e reivindicá-los como membros da fa­
mília de Deus (2.11 £-13). De fato, era apropriado que Deus “tornasse perfeito”
Jesus “mediante o sofrimento, o autor da salvação deles” (2.10c). Além disso,
Jesus veio para destruir o diabo, que detinha o poder da morte, e libertar Seus
irmãos do maior medo de todos, o medo da morte (2.14,15). Assim, o prega­
dor apela aos sentimentos de admiração, gratidão e coragem de seus ouvintes
em contraste com o fato de suscitar o medo deles no exordium (2.1-4).
A exposição dos fatos desenvolve-se da seguinte forma. Ela começa com
uma consideração da questão principal: se a herança futura e o Reino de Deus
realmente pertencem ao Filho, em contraste com o domínio que existiu sob
a administração dos anjos (2.5-9). O pregador usa o Salmo 8.4-6 como um
guia oficial para entender o curso dos eventos na encarnação. Além disso, ele
introduz a questão do sofrimento de Jesus como o prelúdio necessário para
Sua exaltação. Então, em Hebreus 2.10-15, o pregador examina a conveniência
e a necessidade da completa identificação do Filho com a humanidade mortal
para trazer a salvação. Em 2.16, ele volta ao ponto onde a discussão começou,
afirmando que a poderosa liderança de Jesus diz respeito aos filhos de Abraão,
não aos anjos.

110
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

A discussão da comunhão de Jesus no sofrimento humano leva à propo­


sição ou tese em 2.17,18 (observe “por essa razão” em 2.17). A proposição é
dupla, correspondendo aos objetivos expositivos e exortatórios do sermão:
Do lado expositivo, a identificação de Jesus com a humanidade o qualifica
como um Sumo Sacerdote que é compassivo e fiel e que faz expiação pelos
pecados. A imagem de Jesus como o grande Sumo Sacerdote é, naturalmente,
a chave para o argumento do pregador em Hebreus (compare 2.17 com 3.1;
4.14,15; 5.1,5,6,10; 6.20; 7.11,15-17,21,26; 8.1; 9.11,25; 10.12,21; 13.11).
Do lado exortativo, o pregador deseja encorajar seus ouvintes a suportar
todas as tentações e sofrimentos com a ajuda de Cristo e em fidelidade a esse
grande Sumo Sacerdote (compare 2.18 com 3.1,6; 4.14-16; 6.18-20; 10.19-39;
12.1-28). Podemos ver, então, como a declaração dos fatos e a proposição são
fundamentais para enquadrar os objetivos retóricos de todo o sermão.

NO TEXTO

a. A h u m ilh a ç ã o e a e x a lta ç ã o d e Je su s (2.5-9)

■ 5 Essa passagem está intimamente ligada ao exordium anterior por meio do


uso da conjunção pois (gar [2.5]; não traduzida na NVI). O pregador se baseia
em seus argumentos anteriores para a supremacia do Filho sobre os anjos: Pois
não foi a anjos que Ele sujeitou o m undo que há de vir.
Os judeus antigos pensavam que os anjos tinham jurisdição sobre as na­
ções da terra, com base em textos como Deuteronômio 32.8 LXX: “Quando
o Altíssimo dividiu as nações, quando dispersou os filhos de Adão, estabeleceu
limites para as nações de acordo com o número dos anjos de Deus”. Assim, no
AT, o profeta Daniel reconheceu príncipes angelicais sobre Israel e Pérsia (Dn
10.13,20-22; 12.1).
No NT, os anjos são classificados entre os governantes e poderes sobre­
naturais (Rm 8.38; 1 Pe 3.22; -> Hb 2.2 anotação complementar: “Por que a
comparação de Jesus com anjos em Hebreus?”). Contudo, Ele (ou seja, Deus)
não concedeu soberania aos anjos no vindouro Reino de Deus. Esse privilégio
pertence a Cristo e à Sua Igreja (veja 1 Co 3.21-23; 6.2,3; Ef 1.20-23; 3.10; Cl
1.13; 2 Tm 2.12; Hb 12.28; Tg 2.5; 2 Pe 1.11; Ap 1.5,6,9; 5.10; 22.5).
O verbo sujeitar, de acordo com a etimologia latina por trás de nossa
palavra portuguesa, bem como o grego aqui, em Hebreus 2.5 (hypotassõ), sig­
nifica “colocar sob”, isto é, “colocar algo sob o firme controle de alguém” (L&N

111
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

37.31). O uso desse verbo antecipa sua aparição na última linha da citação do
salmo em 2.6b-8a, bem como suas recorrências na interpretação do pregador
do Salmo 8.4-6 em Hebreus 2.8b-c.
O objeto dessa sujeição é o m undo que há de vir. O m undo aqui é o
mesmo encontrado em 1.6. Ali, os anjos foram ordenados a adorar o Filho
quando Ele foi introduzido “no mundo”. O m undo (oikoumenê) é aquele reino
de autoridade e dignidade no qual Cristo entrou quando fez a “purificação dos
pecados” e “se assentou à direita da Majestade” nas alturas (1.3). Aqui, em 2.5,
o pregador se refere mais claramente a esse reino como o mundo que há de
vir (mellousan) ou “mundo futuro” (ACF). Esse é o mundo que Jesus herdou
mediante Sua morte e Sua exaltação. E a realidade presente e segura da vinda
do Reino de Deus (veja 1.8; 12.26-28) a respeito do qual estam os falando
(“qual é o nosso tema” [REB]).

Escatologia em Hebreus
A e s c a t o lo g ia d o p r e g a d o r ( c o m p r e e n s ã o d a s ú lt im a s c o is a s ) re fle te
a t e n s ã o d o " já - m a s -a in d a n ã o " e m t o d o o NT. P o r u m la d o , a e x a lt a ç ã o
d e Je s u s d e u in íc io à r e a liz a ç ã o d a s " d a s c o is a s b o a s p o r v ir " (1 0 .1 N VT),
q u e e ra m a p e n a s s o m b r a s na Lei. Je s u s " a p a r e c e u u m a v e z p o r t o d a s no
fim d o s t e m p o s " p a ra lid a r d e c is iv a m e n t e c o m o p e c a d o p o r m e io d e S e u
a u t o s s a c r ifíc io (9 .2 6 ). A s s im , m e s m o a g o ra , o s c r e n t e s p r o v a m "o s p o d e ­
re s d a e ra q u e há d e v ir " (6.5 ) e e s t ã o no p r o c e s s o d e e n t r a r n o p r o m e tid o
" d e s c a n s o " d o fim d o s t e m p o s (4.3). Je s u s já e n tro u no " m u n d o q u e há d e
v ir " (2.5; v e ja 1.6), d e m o d o q u e a Igreja a t u a lm e n t e p a r t ic ip a c o m E le d a s
r e a lid a d e s d a c id a d e c e le s t ia l d e J e ru s a lé m (1 2 .2 2 -2 4 ).
P o r o u tro la d o , " a g u a r d a m o s a c id a d e p o r v ir " ( 1 3 .1 4 [N V T]). N o s s a
e n t r a d a no d e s c a n s o d iv in o e s tá n o fu tu ro (-» 4 .1 1 ), a s s im c o m o o " ju íz o
e te r n o " d e D e u s (6.2; v e ja 9 .2 7 ; 1 0 .2 7 ,3 0 ; 1 3 .4 ). V is to q u e n o s s a h e ra n ç a
d e s a lv a ç ã o é u m a p e r s p e c t iv a fu tu ra (1 .1 4 ), o p r e g a d o r fa la c o n s is t e n t e ­
m e n te d e la e m t e r m o s d e " e s p e r a n ç a " (3.6; 6 .1 1 ,1 8 ; 7 .1 9 ; 1 0 .2 3 ; 11 .1 ).
O F ilh o já e s tá in v e s t id o d e a u to r id a d e u n iv e r s a l s o b re o m u n d o v in d o u ro ;
" a in d a n ã o v e m o s q u e t o d a s a s c o is a s lh e e s tã o s u je it a s " (2 .8 c), n ã o a té
q u e o R e in o in a b a lá v e l d e D e u s se ja t o t a lm e n t e re v e la d o (1 2 .2 6 -2 8 ; v e ja
1 0 .1 3 ).
A t e n s ã o e n tre o " já " e o " a in d a n ã o " d e v e - s e a o fa to d e v iv e r m o s
e n tre o s d o is m o m e n t o s c r u c ia is d a a ç ã o s a lv ífic a d e D e u s e m C risto : "A s ­
s im t a m b é m C r is t o fo i o fe r e c id o e m s a c r if íc io u m a ú n ic a v e z , p a ra t ir a r
o s p e c a d o s d e m u ito s ; e a p a r e c e r á s e g u n d a v e z , n ã o p a ra t ir a r o p e c a d o ,
m a s p a ra t r a z e r s a lv a ç ã o a o s q u e o a g u a r d a m " (9 .2 8 ). D a p e r s p e c t iv a d o

112
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

te m p o , e n tã o , t e m o s a e sp e ra n ç a d a s a lv a ç ã o ; d a p e r s p e c t iv a d a e t e r n i­
d a d e , e s t a m o s re c e b e n d o a r e a lid a d e d a s a lv a ç ã o . O e lo e n tre a s d u a s
é a fé (v e ja 1 1 .1 ), p e la q u a l re c e b e m o s a s p r o m e s s a s d e D e u s (4.1 -3;
6.12; 1 0 .2 2 ,2 3 ,3 6 ; 1 1 .6 ,9 ,1 3 ,1 7 ,3 3 ) . P a ra u m a d is c u s s ã o m a is a p r o f u n d a ­
da s o b re a e s c a t o lo g ia d e H e b re u s , v e ja C. K. B a r r e tt ( 1 9 5 6 , p. 3 6 3 - 3 9 3 ) e
L in c o ln ( 2 0 0 6 , p. 9 2 -1 0 0 ).

B 6 -7 Em 2.6-8α, o testemunho das Escrituras contradiz (mas, de [2.6a])


a noção de que os anjos governarão o mundo vindouro (já negada em 2.5).
A introdução indescritível — alguém em certo lugar (lit., em algum lugar
alguém) — não indica desconhecimento quanto ao local e autoria da citação
a seguir. Talvez ser vago dê ao público o prazer de reconhecer por si mesmo
uma citação tão conhecida. Mais provavelmente, como Fílon, estudioso judeu
de Alexandria, e rabinos judeus posteriores, o pregador está tirando a ênfase
do meio humano do texto escriturístico e concentrando-se no fato de que, em
última análise, é Deus quem testem unhou nas Escrituras (-» 1.5-14 anotação
complementar; “Citando as Escrituras em Hebreus”).
O salmista no Salmo 8 deleita-se com a majestade de Deus e a grandeza da
Sua criação. No Salmo 8.4-6 (citado em Hb 2.6b-8a), ele reflete sobre a ironia
da insignificância da humanidade em comparação com sua predominância di­
vinamente concedida no mundo. Certamente, o pregador aos Hebreus estava
bem ciente do comentário do salmista sobre a natureza humana e sua dívida
para com Gênesis 1.26-28. Mas, para Hebreus, como para Paulo, a dignidade
e o destino divino da humanidade só se realizam por intermédio do “homem
do céu” (1 Co 15.47-49), Jesus Cristo, a verdadeira imagem de Deus (Hb 1.3;
2 Co 4.4; Cl 1.15). A abordagem cristológica do pregador ao Salmo 8.4-6 é
perceptível de vários modos.
Primeiro, como já vimos, sua leitura do texto está preocupada com o go­
verno do “mundo que há de vir” (Hb 2.5), ao qual ele já fez alusão ao longo
do capítulo 1. Duas ligações verbais entre 2.5 e a citação do salmo em 2.6b-8a
deixa isso claro: anjos (2.5,7a) e sujeito (hypotassõ [2.5,8 λ — debaixo]).
Segundo, não é coincidência que a citação do Salmo 8.4-6 em Hebreus
2.6b-8a apareça em contiguidade ao Salmo 110.1 em Hebreus 1.13. Os pri­
meiros cristãos interpretaram esses textos em conjunto como profecias sobre a
exaltação de Jesus, usando uma técnica hermenêutica rabínica chamada geze-
rah shawah (-> 4.3 b-5 anotação complementar: “Analogia verbal”). Esse era um

113
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

princípio de analogia, pelo qual dois textos eram interpretados mutuamente


com base em palavras-chave ou frases que apareciam em ambos, como segue:
• Salmo 110.1: “Até que eu faça dos teus inimigos um estrado para os
teus pés”.
• Salmo 8.6: “Sob os seus pés tudo puseste”.
Paulo reúne os mesmos dois textos como duplo testemunho do fato de que
Deus colocou “todas as coisas” ou “inimigos” sob os pés do Cristo exaltado (1
Co 15.25-27; Ef 1.20-22; veja Fp 3.21; 1 Pe 3.22). Hebreus é provavelmente
um herdeiro dessa herança interpretativa.
Terceiro, nas duas cláusulas paralelas do Salmo 8.4, que é o hom em ,
para que com ele te im portes? E o filho do hom em , para que com ele te
preocupes? (Hb 2,6b-c), uma leitura direta igualaria o hom em (ou seja, a
humanidade) com filho do hom em (“meros seres humanos” [GNT]). O para­
lelismo sinônimo é comum na poesia hebraica e tendería a apoiar tal leitura. O
pregador também sabería, por seu vasto conhecimento do AT, que a expressão
filho do hom em pode ser empregada simplesmente como um equivalente para
hom em (ex.: noventa e três vezes em Ezequiel).
No entanto, é difícil escapar do que deve ter saltado da página para os pri­
meiros leitores cristãos. E “o homem Cristo Jesus” (1 Tm 2.5; veja Rm 5.15,17)
que no N T é “o Filho do Homem” (Hb 2.6c). Eles o identificaram com a figura
real em Daniel 7.13,14, a quem é concedido o domínio universal (como nos SI
110.1 e 8.6). Esse é o Filho do Homem sentado (ou de pé em At 7.56) à destra
de Deus (Mt 26.64; Mc 14.62; Lc 22.69; veja Hb 1.3,13).
A falta do artigo definido o antes de filho do hom em no texto em grego
(SI 8.5 LXX em Hb 2.6c) não exclui a interpretação da expressão como um
título cristológico, uma vez que terminologias idênticas em outros lugares se
referem ajesus como Filho do Homem (Jo 5.27; Ap 1.13; 14.14). É significa­
tivo notar também que Hebreus 2.5-18 é delimitado por seções (1.1—2.4 e
3.1-6) nas quais Jesus é proeminentemente identificado como o “Filho” divino
(1.2,5[duas vezes],8; 3.6), como Ele é ao longo de Hebreus (“Filho” [5.5,8;
7.28]; “Filho de Deus” [4.14; 6.6; 7.3; 10.29]). Em Hebreus, Jesus é tanto o
ser humano por excelência em Sua completa identificação com o sofrimento
e a humanidade mortal, como o Filho do Homem em Sua autoridade real à
direita de Deus.
Quarto, em 2.7,8a, o pregador lê essa seleção do Salmo 8 de uma forma
que realça a sequência apropriada dos principais acontecimentos relacionados
à encarnação. O uso pelo pregador da versão grega do AT (a LXX) facilitou
sua interpretação única e inspirada do salmo. O texto hebraico do Salmo 8.5
114
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBRF.US

expressa claramente a ideia da preeminência da humanidade dentro da or­


dem criada. No texto hebraico, a humanidade está apenas um pouco abaixo
de “Deus” (ARIB, ARA, NAA, NVT, TB; “um deus” [NAB, NJB, REB]). A
palavra hebraica comumente usada para “Deus [ ’E lõhim]” também pode ser
traduzida como “seres celestiais” (NVI) ou “anjos” (KJA, ACF, ARC, BKJ),
seguindo a LXX. Para o pregador, no entanto, o salmista não está fazendo uma
declaração sobre o estado exaltado da humanidade, mas sobre a humilhação do
Filho do Homem.
Uma possibilidade interpretativa na LXX (citada em Hebreus) se presta a
essa leitura. A expressão um p ou co (2.7a, 9a) da NVI preserva a ambiguidade
de brachy ti da LXX. Esta expressão pode traduzir fielmente a ideia quase certa
de espaço ou grau no texto hebraico do Salmo 8.5<í (“um bocadinho”). Mas,
tanto na LXX como em Hebreus 2.7fz,9íí, é mais provável que transmita a ideia
de um breve período de tempo: por um p ou co (NAA, ARA, NVI, KJA; “por
uma temporada” [Tyndale]).
Assim, em vez de as duas cláusulas no Salmo 8.5 serem paralelas e sinôni­
mas, elas são vistas como antitéticas. Tu o fizeste um p o u co m enor do que
os anjos se refere à entrada do Filho “no mundo” (10.5), iniciando “os seus
dias [de Jesus] de vida na terra” (5.7). Essa é a primeira fase da encarnação de
Cristo, quando Ele participou plenamente da fragilidade e mortalidade da vida
humana (2.14) e providenciou a purificação dos pecados (1.3; 10.10). Afrase o
coroaste de glória e de honra é a segunda fase, a exaltação que se seguiu à hu­
milhação temporária do Filho. E a Sua entronização à direita de Deus (1.3c, 13;
8.1; 10.12; 12.2). A terceira fase do cumprimento do propósito divino pelo
Filho é visualizada em 2.8^.
M 8 Outro par de cláusulas paralelas aparece no Salmo 8.6, mas a citação em
Hebreus passa por cima do primeiro deles (“Tu o fizeste dominar sobre as obras
das tuas mãos”). Como resultado, a leitura do texto do salmo pelo pregador
não expande o domínio da humanidade sobre a criação celebrado no Salmo
8.5. Em vez disso, prediz a culminação, não apenas da vida de obediência e
sofrimento do Filho, mas da história mundial sob a autoridade do Filho na era
por vir; Deus sujeitou tudo debaixo d os seus pés (veja Hb 1.13; 10.13). O
movimento de três partes da encarnação (do sofrimento e morte, à exaltação,
à supremacia final sobre toda a criação) será esclarecido na interpretação do
texto do salmo que se segue em 2.8b,9.
Uma breve interpretação do Salmo 8.4-6 começa em Hebreus 2.8b-c, apro­
veitando a frase sujeitaste debaixo da última linha da citação. O verbo sujeitar
{colocar debaixo-, hypotassõ) foi introduzido em 2.5 em antecipação à citação

115
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

das Escrituras. Agora é repetido duas vezes (sujeitaste debaixo [2.8a\ , sujeitar
[2 .8 /7 ]) e juntado pelo adjetivo relacionado não sujeito (anypotakton [2.8c]).
A segunda declaração em 2.8b é uma sinonímia (ou “interpretação”) na
qual um orador reafirma uma ideia para aprofundar seu impacto no público
(Rhet. Her. 4.28.38):
A o sujeitar todas as coisas,
[Deus] não deixou nada que não lhe estivesse sujeito.
Não tão facilmente visto em português é o padrão quiasmático (em forma
de x, ABBA’) em grego:
Sujeitar {hypotaxai) todas as coisas {panta)
X
Nada (ouden) não [...] sujeito (,anypotakton)
Assim, o pregador afirma categoricamente que o Filho tem domínio
sobre tudo. Muitos estudiosos pensam que esse versículo é sobre a humanida­
de, como refletido na tradução “para eles” (NIV11, NRSV; veja REB) em vez
de para ele {auto). Outros pensam que o autor está sendo intencionalmente
ambíguo, para que ele possa referir-se tanto à humanidade como a Jesus (deSil-
va 2000a, p. 109-110). Essas interpretações não são impossíveis, especialmente
porque o destino glorioso do povo de Deus se entrelaça com o do Filho em
2.10-18. Entretanto, o impulso cristológico da citação e interpretação do sal­
mo parece superior (-> 2.6,7).
Surpreendentemente, o pregador apresenta um aparente desafio à autori­
dade universal do Filho: A gora, porém , ainda não vem os que todas as coisas
lhe estejam sujeitas. O autor não contradiz diretamente a afirmação em 2.8h.
Ele não diz que tudo não está sujeito a ele. Em vez disso, ele diz que não vemos
atualmente (grifo nosso) tudo que já foi (como sugere o tempo perfeito em
grego) e, de fato, está sujeito (hypotetagmena) a ele. Outras traduções esclare­
cem um detalhe importante em grego: ainda não vem os (oupõ) tudo que está
sujeito a Ele (NVI, ACF, ARA, ARC, ARIB, KJA, NAA, JFA, BKJ).
A preocupação do pregador é escatológica, bem como perceptiva. Con­
tudo, atualmente contrasta com “o mundo que há de vir” (2.5), que já foi
submetido ao Filho, mas não foi finalmente manifestado no julgamento e na
salvação divinos. O Salmo 8.6b (em Hb 28a), como já vimos, pode ser correla­
cionado com o Salmo 110.1 (em Hb 1.13). O paradoxo, prontamente aparente
na exposição de Paulo de ambos os textos em 1 Coríntios 15.24-28, é que, de
fato, Deus colocou todas as coisas sob os pés de Cristo (l Co 15.27,28; veja Ef
1.20-22), mas “é necessário que Cristo reine até que tenha colocado todos os
seus inimigos debaixo de seus pés” (1 Co 15.25).
116
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

Assim também Hebreus 10.12,13 distingue claramente entre a entroniza-


ção do Filho à direita de Deus e a subjugação final de Seus inimigos. Portanto,
pela fé, podemos ver “que o dia se aproxima” (10.25) quando nossa salvação
será completa e o último inimigo, destruído (veja 1 Co 15.26). Mas é verdade
que ainda não vem os com nossos olhos. Há uma interação sustentada entre o
que é visto pela fé e o que é visto ou ainda não visto com os olhos em Hebreus
11.1,3,7,13,26,27.
1 9 0 versículo 8b-c se concentra na última linha do salmo (SI 8.6b em Hb
2.8^). Em 2.9, as duas linhas anteriores (SI 8.5 em Hb 2.7) servem como base
para uma interpretação autorizada da encarnação e suas implicações para a
humanidade. A complexidade da composição grega é difícil de capturar na
tradução portuguesa. Aqui está a minha própria tradução literal de 2.9, na ten­
tativa de fazê-lo:
Mas é aquele que por um pouco fo i feito menor do que os anjos que ve­
mos, Jesus, por causa do sofrimento da morte coroado de glória e honra,
para que pela graça de Deus Ele pudesse provar a morte por todos.
Observe que o que não vemos agora em 2.8c contrasta com o que vemos
aqui em 2.9. A palavra traduzida que vem os (blepomen) é o verbo principal de
toda a frase. Jesus, descrito com a linguagem da citação do salmo, é o objeto
de nossa visão. Observe como o nome daquele de quem é dado testemunho no
salmo é lançado no final da primeira cláusula em grego (veja a ACF e a ARIB).
Esse arranjo aumenta o suspense, visto que essa é a primeira ocorrência de Seu
nome próprio em Hebreus.

Uso do nome "Jesus" em Hebreus


A c o lo c a ç ã o a d ia d a d o n o m e d e J e s u s p a ra ê n fa s e é e x c lu s iv a d e H e ­
b re u s. D a s n o v e o c o r r ê n c ia s d o n o m e Je s u s p o r si s ó (n ã o , p o r e x e m p lo ,
"Jesu s C r is to " ) , p o r o ito v e z e s e le p e r m a n e e n fa t ic a m e n t e e m g re g o , se ja
no fin a l d e u m a c lá u s u la (2.9; 6 .2 0 ; 1 2 .2 ,2 4 ; v e ja 4 .1 4 ), s e ja e m u m a s e n ­
te n ç a (3.1; 7 .2 2 ; 1 0 .1 9 ; 1 3 .2 0 ). D e s s a fo rm a , o p r e g a d o r c h a m a a t e n ç ã o
da h u m a n id a d e p a ra a q u e le q u e le v a e s s e n o m e in c o m p a r á v e l: Je su s.

O salmo citado em 2.7a dá testemunho da humilhação temporária de Jesus.


A ordem das palavras do salmo em grego (fizeste-o, por um p ou co [ARA] [...]
menor que os anjos) é alterada aqui para por um pouco feito menor que os
anjos. A frase por um p ou co é empurrada para o início da frase para priorizar

117
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

a ideia de brevidade (-> 2.6-8 por um tempo). No entanto, que a humilhação


de Jesus é temporária não minimiza sua importância; de fato, Sua exaltação
depende disso.
O salmo também atesta a alta posição de Jesus, agora coroado de glória
e honra. A imagem da coroação está associada ao reconhecimento da vitória
atlética de alguém (l Co 9.25; 2Tm 2.5) ou à recompensa pela perseverança
fiel (Tg 1.12; 1 Pe 5.4; Ap 2.10). A coroação de Jesus foi a sequência adequada
de Ele ter sido rebaixado. Mais precisamente, Ele foi coroado por ter sofrido a
m orte. Tanto a construção gramatical quanto a compreensão do sofrimento de
Jesus ao longo de Hebreus (2.10,18; 5.8; 9.26; 13.12) sugerem que o pregador
está falando sobre o sofrimento que é a morte. Assim, a NVI traduz de maneira
útil: Por ter sofrido a m orte.
Para o escritor aos Hebreus, então, o Salmo 8.7 seria uma das próprias
profecias que anunciam “os sofrimentos de Cristo e as glórias que se seguiríam”
(1 Pe 1.11). O próprio Jesus falou de Seu destino messiânico predito pelos
profetas: “Não devia o Cristo sofrer estas coisas, para entrar na sua glória?” (Lc
24.26). Esse tema do sofrimento para a glória também é evidente no famoso
hino a Cristo de Paulo, no qual (como em Hebreus) é precisamente por causa
da morte humilde, obediente e vergonhosa de Cristo (ou seja, na cruz) que:
“Por isso Deus o exaltou à mais alta posição” (Fp 2.9).
Finalmente, o propósito da encarnação de Jesus, e mais particularmen­
te Sua morte, encontra expressão no final de Hebreus 2.9 (para que [... ] ) - o
maior escândalo da fé cristã é Cristo crucificado. Paulo disse que “é escândalo
para os judeus e loucura para os gentios” (1 Co 1.23). Na próxima seção, o
pregador demonstrará a adequação e a necessidade da identificação completa
de Jesus com a humanidade por meio do sofrimento. Por enquanto, porém, ele
antecipa essa discussão afirmando três fatos importantes sobre o propósito da
morte de Jesus.
Primeiro, a morte de Jesus foi iniciada p ela graça de D eus. A graça está
no coração do evangelho, pois Deus “não poupou a seu próprio Filho, mas o
entregou por todos nós” (Rm 8.32). A morte veio por intermédio de Adão,
mas “muito mais a graça de Deus, isto é, a dádiva pela graça de um homem,
Jesus Cristo, transbordou para muitos!” (Rm 5.15). Essas são as passagens
que Crisóstomo aponta em sua homília sobre o nosso presente texto (1996,
p. 383). Ele também podería ter apontado para Efésios 1.6,7: “Para o louvor
da sua gloriosa graça, a qual nos deu gratuitamente no Amado. Nele temos
a redenção por meio de seu sangue, o perdão dos pecados, de acordo com as
riquezas da graça de Deus”. A graça de Deus é mencionada explicitamente

118
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

apenas mais meia dúzia de vezes em Hebreus (veja 4.16 [duas vezes]; 10.29;
12.15; 13.9,25), mas permanece não menos como o fundamento (junto à
santidade) das relações de Deus com a humanidade, pois Seu trono é “o trono
da graça” (4.16).

"Pela graça de Deus" ou "à parte de Deus" (2.9)?

A le itu ra " p e la g r a ç a d e D e u s [ c h a r it i th e o u ]" t e m a p o io in ic ia l e


a m p lo e n tre o s m a n u s c r it o s d o N T G r e g o , in c lu in d o o im p o r t a n t e e a n t i­
g o φ 46. C o n tu d o , a v a r ia n t e d e le itu ra "à p a rte d e D e u s [ c h õ r is t h e o u ] " ,

p a r c a m e n t e a t e s t a d a e m m a n u s c r it o s e v e r s õ e s g r e g a s ta r d ia s , fo i a m ­
p la m e n t e d e fe n d id a p o r m u ito s P a is d a Igreja. O r íg e n e s a e n c o n tr o u e m
a lg u n s m a n u s c r it o s já n o te r c e ir o s é c u lo .
A m b a s a s le it u r a s fig u r a r a m e m c o n t r o v é r s ia s c r is to ló g ic a s . E s c rito re s
o rto d o x o s , c o m o A t a n á s io e A m b ró s io , a r g u m e n t a r a m a p a r t ir d a le itu ra
"à p a rte d e D e u s " q u e a n a tu r e z a d iv in a n ã o p a r t ic ip a v a d o s o f r im e n t o d e
C r is to (a d o u tr in a d a im p a s s ib ilid a d e d iv in a ). O u tro s P a is o rto d o x o s , c o m o
E c u m ê n io e T e o fila to , a c u s a r a m o s n e s t o r ia n o s d e in t r o d u z ir e s s a le itu ra
no te x t o (v e ja o la n ç a m e n t o d e a c u s a ç õ e s p a ra fre n te e p a ra t r á s n a s
s e le ç õ e s d e E c u m ê m io e T e o d o ro d e M o p s u é s tia e m H e e n e K re y , 2 0 0 5 ,
p. 3 8 -3 9 ).
E m b o ra "à p a rte d e D e u s " se ja a le itu ra m a is d ifíc il, s u a a p a r ê n c ia é
f a c ilm e n t e e x p lic a d a : u m e s c r ib a c o n fu n d iu a p a la v r a " p e la g r a ç a [ c h a r i­

t i] " p o r "à p a rte d e [ c h õ r is ] " . O u u m a n o ta m a r g in a l ("à p a rte d e D e u s ” )


p a ra H e b re u s 2 .8 , in s p ira d a p e la q u a lific a ç ã o d e P a u lo d o S a lm o 8 .6 e m
1 C o r ín tio s 1 5 .2 7 , fo i c o n fu n d id a c o m u m a c o rr e ç ã o p a ra a le itu ra " p e la
g ra ç a d e D e u s " e m H e b re u s 2.9. U m e s c r ib a p o s t e r io r e n t ã o t r a n s fe r iu
e s s a n o ta m a r g in a l p a ra o te x t o d e 2.9.
D a d o o a p o io t e x t u a l e s m a g a d o r p a ra " p e la g r a ç a d e D e u s " e a s p ro ­
b a b ilid a d e s d e t r a n s c r iç ã o p a ra o s u r g im e n t o d a le itu ra v a r ia n t e "à p a rte
d e D e u s ", a p r im e ir a p r o v a v e lm e n t e fo i a le itu ra o rig in a l. A lé m d is s o , q u e
Je s u s e x p e r im e n t o u a m o rte " p e la g r a ç a d e D e u s ” fa z m u ito m a is s e n tid o
no c o n t e x to ( p a ra u m a d is c u s s ã o m a is d e t a lh a d a s o b re e s s a q u e s tã o t e x ­
tu a l, v e ja M e tz g e r, 1 9 9 4 , p. 59 4 ; H u g h e s , 1 9 7 7 , p. 9 4 -9 7 ).

Segundo, a morte de Jesus foi real. A frase experim entasse a m orte pode
dar a impressão de uma mera amostragem, como alguns a interpretariam (ex.:
Crisóstomo e Lutero). Todavia, esse é um idioma bíblico que indica a experi­

119
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

ência real e pessoal de morte (veja Mt 16.28; Mc 9.1; Lc 9.27; Jo 8.52). Jesus
bebeu até a morte; Ele esvaziou a taça amarga até a última gota.
Terceiro, a morte de Jesus foi vicária, isto é, foi vivida em favor de outros.
O alcance da representação de Jesus era universal. Ele provou a morte em fa­
vor de todos. Jesus não morreu apenas por alguns escolhidos, mas por todo o
mundo (assim, por exemplo, 1 Jo 2.2; 2 Co 5.14,15; 1 Tm 2.4-6). Ele morreu
até mesmo por aqueles que poderíam afastar-se dele e efetivamente crucifica­
do novamente (Hb 6.6), pisoteá-lo e profanar Seu sangue da aliança que os
santificou (Elb 10.29).

b. A id e n tific a ç ã o d e Je su s co m a h u m a n id a d e (2.10-18)

Tendo mencionado o sofrimento da morte de Jesus em 2.9, o pregador


agora se volta para uma explicação do porquê de o Filho se tornar totalmente
humano — até o ponto da morte. A discussão é emoldurada por declarações
sobre a adequação (2.10) e a necessidade (2.17a) do sofrimento de Jesus.
A primeira parte da discussão (2.10-13) demonstra a intenção divina de
que Jesus seja totalmente solidário com o povo de Deus, inclusive com de­
clarações bíblicas do próprio Jesus nesse sentido (2.12,13). A segunda parte
(2.14-18) detalha os benefícios da participação de Jesus em nossa humanidade,
especialmente Sua libertação do povo de Deus do medo da morte (2.14-16), e
Sua preparação para o serviço de Sumo Sacerdote em Seu nome diante de Deus
(2.17,18).
10 A afirmação central em 2.10 é impressionante: era apropriado para Deus
aperfeiçoar o autor da salvação mediante o sofrimento. O verbo convinha
(eprepen) está no início da frase em grego. Refere-se a algo que é cabível, ade­
quado ou apropriado para alguém ou para um conjunto de circunstâncias. O
verbo ocorre apenas seis outras vezes no N T em contextos onde algo se encaixa
no sentido de ser apropriado para atender a uma necessidade (como em 7.26)
ou ser moralmente apropriado (Mt 3.15; 1 Co 11.13; Ef 5.3; 1 Tm 2.10; Tt
2.1). Somente aqui a palavra é usada em referência a D eus.
Parece haver algo inapropriado em deliberar sobre o que pode ou não ser
adequado para Deus. E uma linha de pensamento muito mais à vontade na
filosofia helenística do que na teologia judaica. Entretanto, mesmo no pen­
samento judaico-helenístico, teria sido uma impropriedade identificar Deus
com a humanidade sofredora. Aqui, em Hebreus, como no restante do NT, a
adequação da ação de Deus na morte de Cristo não está em sua acomodação à

120
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

necessidade humana, mas no cumprimento do propósito eterno de Deus. Deus


é aquele por causa de quem e p or m eio de quem tu d o existe (veja Rm 11.36;
1 Co 8.4-6). Assim, em Deus, podem ser encontrados a origem e o destino de
todas as coisas. A tragédia humana do pecado e da morte não desviou Deus da
“natureza imutável de seu propósito” (Hb 6.17). A morte de Cristo estava de
acordo com a vontade expressa de Deus (10.5-10).
Então, como é que a morte do Filho foi apropriada para Deus? Foi apro­
priada para Deus, cujo caráter essencial é descrito em todas as Escrituras como
gracioso (ou amoroso) e santo. Esses mesmos atributos divinos essenciais
flanqueiam nosso versículo atual, com graça em 2.9 e santidade em 2.11. A
identificação de Jesus com a humanidade mediante o sofrimento e a morte
preenche ambos os aspectos da natureza de Deus, ao mesmo tempo em que
cumpre o propósito de Deus para a humanidade. Isso se desenvolverá apenas
quando aprendermos mais sobre a morte expiatória de Jesus e o ministério do
sumo sacerdote em Hebreus.
O propósito de Deus em aperfeiçoar Cristo deve ser encontrado ao le ­
var m uitos filhos à glória. Os estudiosos debatem se o verbo levar {agagonta)
pertence a Deus ou a Jesus (ou seja, o autor da salvação). Escolher entre as
duas opções não tem consequências reais, embora a última seja mais provável.
Por um lado, o propósito de Deus é trazer muitos filhos à glória — em ou­
tras palavras, a salvação deles. A glorificação é o fim desejado por Deus para
aqueles que estão em Cristo (veja Rm 8.30). Por outro lado, o verbo levar cer­
tamente pertence à palavra seguinte no texto grego (autor \archêgon\), pois as
duas palavras estão em concordância gramatical (veja deSilva, 2000a, p. 112,
n. 56). Assim, em cumprimento do propósito de Deus, Jesus é aquele que traz
m uitos filhos à glória. Ele se inclinou em nosso mundo de sofrimento e, con­
sequentemente, foi coroado com glória e honra (2.7,9), para que, como nosso
“precursor” (6.20 ACF), Ele pudesse conduzir-nos à gloriosa presença de Deus.
Em estilo característico, o pregador se envolve em um jogo de palavras
inteligente nesse versículo. O título para Jesus, autor {archegos), é difícil de
traduzir {-> 2.10 anotação complementar: “Jesus, o campeão”). E jogado con­
tra duas palavras relacionadas nesse versículo. A segunda parte de archêgos é
derivada do verbo agõ (“conduzir, trazer, levar”), que é a raiz do verbo que
já encontramos {agagonta, levar, trazer, conduzir). Jesus, o “líder [archêgos]”,
“conduz [agagonta] ” m uitos filhos à glória.
A primeira parte da palavra archêgos é derivada do substantivo arché,
“princípio”. Isso produz um trocadilho com a expressão tornasse perfeito
(.teleiõsai), que significa levar algo ao seu fim ou objetivo apropriado (-> 5.9

121
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

anotação complementar: “Brincando com começos e fins”). Além desse jogo


de palavras, tornasse perfeito também carrega a conotação de Jesus estar pre­
parado ou qualificado para o ministério sacerdotal. A linguagem da perfeição
(o verbo teleioõ e o substantivo teleiõsis) ocorre em conexão com a consagração
dos sacerdotes na lei de Moisés (Êx 29.9,29,33,35; Lv 4.5; 7.27; 8.33; 16.32;
21.10; Nm 3.3; veja Lane, 1991, p. 57-58).

Jesus, o campeão

O tít u lo p a ra J e s u s e m 2 .1 0 (autor [a rc h è g o s]) é d ifíc il d e tra d u z ir ,


c o m o e v id e n c ia d o p e la s m u ita s t r a d u ç õ e s d a p a la v ra : " a u t o r " (A R A , A R IB ,
N A A ); " líd e r " (N VT); " p io n e ir o " (N IV 11, N R S V , REB); " f u n d a d o r " (ESV);
" fo n t e " (G W , H C S B ); " c a p it ã o " (BKJ); " s e n h o r " (T Y N D A L E ), [ " p r ín c ip e "
(A C F , A R C )]. E m b o ra n ã o se ja u m a p a la v r a ra ra , t a m b é m n ã o é c o m u m ,
o c o rr e n d o v in t e e s e t e v e z e s na L X X c o m m u ito s s ig n ific a d o s d ife re n te s ,
s o m e n t e q u a tro v e z e s n o N T (A t 3 .1 5 ; 5 .3 1 ; H b 2 .1 0 ; 1 2 .2 ), a p e n a s c o m o
u m tít u lo p a ra o Je s u s r e s s u s c it a d o e e x a lta d o .
A p a la v r a tin h a u m s a b o r a r c a ic o e lit e rá r io q u e e v o c a v a im a g e n s d e
a n tig o s f u n d a d o r e s d e c id a d e s , p a tro n o s r e n o m a d o s o u h e ró is d iv in o s .
O c o n t e x to d e 2 .1 0 - 1 8 s u g e re q u e Je s u s e s tá s e n d o re tra ta d o c o m o u m
c a m p e ã o d o p o v o d e D e u s, q u a s e c o m o o fa m o s o h e ró i g r e g o H é r c u le s ,
o "ca m p e ã o [a rc h è g o s ]" e " s a lv a d o r [s õ té r] " q u e triu n fo u s o b re a M o rte ,
"o s e n h o r d o s m o rto s d e m a n to e s c u ro " (E u r íp e d e s , Ate. 2 .8 4 3 -8 4 4 ; v e ja
L a n e , 1 9 9 1 , p. 5 6 ,5 7 ; W it h e rin g to n , 2 0 0 7 , p. 1 4 9 ). Je s u s a s s u m iu c a r n e e
s a n g u e p a ra t r iu n f a r n o c o m b a t e m o rta l c o m o d ia b o e liv r a r a s p e s s o a s
d o m e d o d a m o rte . A s s im , Je s u s é o " c a m p e ã o q u e in ic ia e a p e r f e iç o a a
n o s s a fé " (1 2 .2 NLT).

1 1 Que a perfeição do campeão de Deus por meio do sofrimento significa­


va Sua qualificação como Sumo Sacerdote é confirmada em 2.11. Aqui Jesus é
designado como o que santifica. Tornar santo (hagiazõ), ou santificar, ou con­
sagrar, é a principal função de um sacerdote. Em um contexto judaico, envolvia
purificar as pessoas de seus pecados para prepará-las para a adoração (1.3;
9.13,14,22; 10.2,22), marcando-as como santas, isto é, dedicadas a Deus. Isso
agora é realizado mediante a morte sacrificial de Jesus (10.10,14,29; 13.12).
A perfeição de Jesus por meio do sofrimento era apropriada e necessária,
pois a única maneira de as pessoas se identificarem com um Deus santo é por
122
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

meio da santidade (12.10,14). Tanto o que santifica \ho’hagiazõn\ quanto


os que são santificados (hoi hagiazomenoí) estão relacionados com Deus por
meio da santidade.
De fato, a fonte de toda santidade é Deus. Tanto o santificador quanto o
santificado são “todos de um” (como a ACF literalmente traduz ex henospan-
tes). As versões bíblicas geralmente traduzem a expressão ex henos (“de um”)
como uma referência a Deus (“um Pai” [HCSB, NASB, NRSV]; “mesmo Pai”
[GW, NLT]), uma referência mais geral à “origem” (ESV, NAB, NET, RSV),
ou para ser membro da mesma família (CEV, NCV, NIV; “da mesma linha­
gem” [NJB]; “de uma linhagem” [REB]). A seguinte linha de pensamento,
centrada no parentesco de Jesus com a humanidade, fala a favor da interpreta­
ção da mesma família. No entanto, essa tradução muito rapidamente coloca
o resultado da obra de Deus em Cristo (observe o p or isso em 2.11 b) no lugar
de suafonte (implícita pela preposição ek/ex, “de”). Além disso, o gênero mas­
culino da palavra henos (“um”), bem como a designação anterior de Deus como
aquele “por causa de quem e por meio de quem tudo existe” (2.10), parecem
indicar que a associação entre santificador e santificado deriva de apenas uma
fonte, Deus.
Por isso, ou mais precisamente, “por essa razão \di hên aitian ] ” (KJA)
introduz o resultado da santa obra de Deus em aperfeiçoar Jesus e levar muitos
filhos à glória por meio de Sua morte e exaltação: Jesus não se envergonha
de cham á-los de irmãos. O pregador usa uma figura de linguagem chamada
litotes — eufemismo (ex.: quando “não um pouco” significa “muito, muitos”
em At 12.18; 14.28; 15.2; 17.4,12; 19.23; 26.29; 27.20). Quando diz que Jesus
não se envergonha, significa que Ele se sente honrado em chamá-los de irmãos
(veja Rm 1.16). Deus falou de forma semelhante sobre os patriarcas fiéis (veja
Hb 11.16).
A ironia é que o caminho para uma posição tão honrosa para Cristo e Seus
irmãos foi por meio da vergonha de Seu sofrimento e morte (veja 13.12,13).
Suportar a vergonha presente em vista da glória futura foi o mesmo caminho
seguido por Moisés (11.26), e isso já foi experimentado em certa medida pelo
público (10.36); mas é o próprio exemplo de Jesus (“desprezando a vergonha”
[12.2 NYI, KJA]; “suportando a desonra” [13.13]) que encoraja os cristãos
Hebreus a perseverarem em sua fé para continuar como membros da família
de Deus (3.6).
As palavras “irmãos e irmãs” (NIV") antecipam sua aparição na primeira
citação das Escrituras que se segue no próximo versículo. Uma faceta proemi­
nente da obra salvadora de Deus em Cristo Jesus é a adoção dos crentes como

123
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

filhos de Deus (Rm 8.15,23; G14.5; Ef 1.5) ou herdeiros do Reino (Rm 8.17; 1
Co 6.9,10; 15.50; Gl 3.29; 4.7; 5.21; Ef 1.14,18; 5.5; Cl 3.24; Tt 3.7; Hb 1.14;
6.17; 9.15; 1 Pe 1.4; 3.9; Ap 21.7). “Pois aqueles que de antemão conheceu”,
escreve Paulo, “também os predestinou para serem conformes à imagem de seu
Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos” (Rm 8.29).
B 1 2 A demonstração bíblica do relacionamento de irmãos de Jesus com
aqueles que Ele santificou segue em 2.12,13. Três passagens do AT são citadas.
Dois fatores são significativos sobre elas.
Primeiro, elas são citadas como citações do próprio Jesus. A palavra tradu­
zida como Ele diz, no início de 2.12, não inicia uma nova sentença em grego.
Em vez disso, completa o pensamento em 2.11 de que Jesus não se envergonha
de chamá-los de irmãos, dizendo [...] (legon). Considerar as escrituras não ape­
nas como sobre Cristo, mas como faladas por Ele, é um aspecto único do uso
da Escritura por parte de Hebreus.
Segundo, o autor seleciona passagens bíblicas de contextos que já eram
bem conhecidos por seu testemunho de Cristo, como veremos.
A primeira citação do Salmo 22 foi uma escritura que enriqueceu profun­
damente a compreensão da Igreja primitiva sobre a morte de Jesus. O pregador
ouve a voz de Jesus falando no Salmo 22.22: Proclam arei o teu nom e a meus
irmãos; na assem bléia te louvarei. Jesus reconhece Seus “irmãos e irmãs”
(NIV11) na “congregação” [NYT] (ekklêsia, Igreja; veja Hb 12.23). Aquele
que é adorado pelos anjos (1.6) humilbou-se abaixo dos anjos para tornar-se o
líder da comunidade adoradora. Em Hebreus, o ministério de Sumo Sacerdote
de Jesus prepara os crentes para aproximarem-se de Deus na adoração (4.16;
7.19; 10.19-22; 12.22-29 [especialmente os v. 24 e 28]; 13.15).

Salmo 22: Jesus como sofredor e líder de adoração

O S a lm o 2 2 e s tá n o t a v e lm e n t e c o n e c t a d o c o m a p a ix ã o d e C r is t o no
N T (SI 2 2 .7 [M t 2 7 .3 9 e M c 1 5 .2 9 ]; 2 2 .7 ,8 [M t 2 7 .4 3 e Lc 2 3 .3 5 ,3 6 ]; 2 2 .1 5
[Jo 1 9 .2 8 ]; 2 2 .1 8 [M t 2 7 .3 5 ; M c 1 5 .2 4 ; Lc 2 3 .3 4 ; Jo 1 9 .2 4 ]). D e fa to , su a
p r im e ir a lin h a (SI 2 2 .1 a ) s e r v iu c o m o a s ú lt im a s p a la v r a s d e Je s u s na c ru z
e m M a r c o s 1 5 .3 4 e M a te u s 2 7 .4 6 : " M e u D e u s, m e u D e u s, p o r q u e m e
a b a n d o n a s te ? ".
H e b r e u s p r o v a v e lm e n t e c ita e s s e s a lm o p o r q u e já e ra re c o n h e c id o
c o m o u m a ric a fo n te p a ra r e fle x ã o c ris to ló g ic a . E x c e p c io n a lm e n t e , p o ré m ,
H e b re u s c ita a ú lt im a p a rte d o s a lm o , o n d e o ju s t o s o fr e d o r lo u v a a D e u s

124
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

p o r S u a a ju d a (SI 2 2 .2 2 ). A q u i, e le r e a lm e n t e o u v e a v o z d o p ró p rio Je su s,
c o m o o S u m o S a c e r d o te e x a lta d o , le v a n d o a Igreja à p r e s e n ç a d e D e u s
p a ra ad o ra r.

■ 13 A segunda e terceira passagens em 2.13 são provenientes do capítulo 8


de Isaías. Isaías 8.14 foi uma profecia importante a respeito de Cristo como
pedra de tropeço para Israel (Lc 2.34; Rm 9.33; 1 Pe 2.8). No contexto original
de Isaías, Yahweh predisse tanto a condenação como a salvação de Israel por
meio dos nomes dos filhos de Isaías (Is 8.1,3; 7.3). Em uma época de turbu­
lência nacional e infidelidade, o profeta resolveu confiar em Deus (Is 8.17) e
apegar-se aos sinais da providência divina dados a ele no nome de seus filhos
(Is 8.18).
Mais uma vez, Hebreus ouve nesses versículos a voz contemporânea de
Jesus. Talvez a proximidade das profecias sobre o Emanuel em Isaías 7.14 e o
Maravilhoso Conselheiro em Isaías 9.6 tenham contribuído para que ele esti­
vesse sintonizado para ouvir a voz do Messias em Isaías 8.
Na segunda das três escrituras, uma citação de Isaías 8.17, Jesus diz: N ele
porei m inha confiança (Hb 2.13a). Jesus se solidarizou com a humanidade
mediante Sua confiança incondicional em Deus. A marca de Sua humanidade
em Hebreus é Sua fiel obediência a Deus, especialmente em face do sofrimento
(5.7,8). Sua fidelidade o qualifica como o Filho honrado que é encarregado da
família de Deus (ou “casa”), e Ele é, portanto, o grande exemplo de fidelida­
de para qualquer membro dessa família (3.1-6). A perseverança fiel de Jesus o
torna “o autor e consumador” da fé (12.2). Paulo também falou do significado-
-chave da “fidelidade de Jesus Cristo” (Rm 3.22 CEB, NET; Gl 2.16 CEB,
NET).
A terceira passagem em Hebreus 2.13£ é acrescentada (novam ente ele
diz) para completar o pensamento de que Jesus estava unido com o povo de
Deus. A qui estou eu, Jesus diz nas palavras de Isaías 8.18, com os filhos que o
Senhor m e deu. Quem pertence à família de Deus não faz parte de um clube
instituído por seres humanos. São pessoas, na verdade, que responderam ao
chamado divino (3.1; 9.15; veja Rm 8.28). Elas são, como Jesus afirma repe­
tidamente no Evangelho de João, aquelas que o Pai lhe deu (Jo 6.39; 10.29;
17.2,6,7,9,24; 18.9).
■ 14 0 Filho participou plenamente na humanidade, de modo a vir em seu
socorro (Hb 2.14). A encarnação foi um resultado (portanto [oun\ ) da inten­
ção divina para a salvação da humanidade. Da mesma forma, o sofrimento do

125
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Filho permitiu-lhe experimentar plenamente a situação da humanidade. Isso


foi apenas apropriado, dado o caráter de Deus revelado nas Escrituras (-> 2.10).
Retomando a linguagem da escritura citada em 2.13^, o autor aponta para
os filhos que Cristo veio salvar. É porque os filhos são pessoas de carne e san­
gue e ele tam bém participou dessa condição humana. O que a humanidade
tem em comum [kekoinõnêken, ter) é carne e sangue. A expressão carne e san­
gue não se refere simplesmente à existência corpórea. Isso podería igualmente
ser comunicado pela expressão “carne e ossos” (Lc 24.39; veja Gn 2.23; Jó 2.5).
Carne e sangue enfatizam a inferioridade da humanidade em relação a Deus
(Mt 16.17; Gl 1.16), bem como a fragilidade e a mortalidade (l Co 15.50; veja
Sir. 14.18). A última conotação se encaixa nas referências seguintes ao poder e
medo da morte (Hb 2.14^,15). Em Hebreus a ordem das palavras é invertida
para sangue e carne (como em Ef 6.11). Ao colocar sangue em primeiro lugar,
o autor pode sutilmente sugerir a morte sacrificial de Jesus, um tema central em
Hebreus (Isaacs, 2002, p. 43).
A plena participação de Jesus na condição humana é expressa fortemente
na cláusula que ele tam bém p articipou dessa condição humana. Em pri­
meiro lugar, ele é um pronome pessoal enfático no texto grego, muitas vezes
traduzido como “ele mesmo” (ESV, KJV, NASB, NRSV). Em segundo, a iden­
tificação completa de Jesus com a humanidade é duplamente expressa. Ele da
mesma maneira (paraplêsiõs, “semelhantemente, da mesma forma”; também)
compartilhou as mesmas coisas (tõn autõn, veja ARC, ACF; condição hu­
mana). A humanidade de Jesus não era uma sombra ou um fantasma. Logo,
Hebreus enfatiza a identidade de Jesus como um ser humano “em todos os
aspectos” (2.17).
No entanto, há uma distinção entre a participação da humanidade em car­
ne e sangue e a participação de Jesus nisso. A participação da humanidade é um
estado de coisas de longa data, característico de sua identidade (tempo perfeito
kekoinõnêken, “compartilhar, compartilhar”, ter). Mas, para Cristo, a nature­
za humana não era nativa dele. O Filho divino participou ou compartilhou
(tempo aoristo meteschen) na natureza humana como um ato histórico em obe­
diência à vontade de Deus (10.5-10). Bengel observa que o verbo usado para
compartilhar (meteschen) pode expressar a semelhança de um com o restante;
manter em comum (kekoinõnêken) à semelhança de muitos entre si (Bengel,
1877,4:364).
A encarnação tem um duplo propósito: primeiro, negativamente, destruir
aquele que detinha o poder da morte. Segundo, positivamente, para libertar
aqueles que foram mantidos cativos pelo medo da morte.
126
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

O primeiro gancho da declaração de propósito {hina, para que) está em


2.14b. Jesus veio para derrotar aquele que tem o p od er da m orte, isto é, o
diabo. Em nenhum outro lugar da Bíblia o p od er da m orte é tão expressa­
mente atribuído ao diabo. No entanto, uma leitura cristã da história da queda
da humanidade em Gênesis 3 revela o papel do diabo em enganar Adão e Eva
para seguir o caminho da morte (veja também SS 2.23,24). De acordo com
João 8.44, o diabo é o primordial assassino e mentiroso, e, em 1 João 3.12, o as­
sassinato de Abel por Caim, seu irmão, é o pecado mais intimamente associado
com aquele que pertence ao maligno.
O diabo não tem o poder da morte inerentemente, mas apenas por meio
de trapaça e intimidação (At 13.10; Ef 6.11; 1 Tm 3.6,7; 2 Tm 2.26; Ap 12.9;
20.10) e não pode infligir um golpe mortal, a menos que Deus permita (Jó
1.12; 2.6). Dessa forma, Cristo veio ιρΆΐζ destruir o diabo. Aqui aparece o mes­
mo verbo (katargeõ, “tornar impotente ou ineficaz”) usado por Paulo para o
último inimigo a ser “destruído” — a morte (1 Co 15.26; veja 2 Ts 2.8; 2 Tm
1.10; 1 Jo 3.8).
O meio pelo qual Jesus desferiu um golpe mortal no diabo foi por sua
morte. Como isso pode ser assim? O pregador não explica, mas podemos in­
ferir várias coisas do que ele diz em outros lugares em Hebreus sobre a morte
de Jesus: Sua morte foi em obediência à vontade de Deus (10.10; veja 5.7); Sua
morte foi imerecida, pois, quando testado pelo sofrimento, Ele nunca pecou
(2.18; 4.15). Ele é “santo, inculpável, puro, separado dos pecadores” (7.26) que
suportou tal hostilidade dos pecadores (12.3).
Portanto, como Ele não morreu devido a qualquer pecado que tenha
cometido, Sua morte foi puramente por outros. Ele, “em favor de todos, expe­
rimentou a morte” (2.9) para resgatá-los de seus pecados (9.15; veja 1.3; 2.17;
7.27; 9.26,28; 10.12). Porque Sua morte não ocorreu devido a Seus próprios
pecados, mas foi um ato de santa obediência, e “era impossível que a morte o re­
tivesse” (At 2.24; veja Hb 7.16). Dessa forma, Jesus, o campeão (archêgos [2.10])
empunhava o próprio instrumento de terror e escravidão do diabo contra ele.
■ 15 0 segundo propósito relacionado à morte de Jesus é libertar as pessoas
do m edo da m orte. A terrível condição das vítimas da morte é descrita como
um medo persistente e escravizador. Essa fobia de morte é uma condição crôni­
ca da existência humana. E “ao longo de toda a vida” (KJA; tod a a vida), de
modo que domina as nossas atitudes, decisões e relacionamentos. A escraviza-
ção é expressa redundantemente como mantida em [enochoi, “sujeito a” (ACF,
ARA, ARC, JFA, NAA)] escravidão (douleias).

127
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Antiga filosofia sobre o medo da morte


O s a u to r e s g r e c o - ro m a n o s c o m u m e n te c o m p a r a v a m o m e d o d a m o rte
à e s c r a v id ã o . E u r ip id e s e s c re v e u : " V o c ê é e s c r a v o e te m m e d o d a m o r­
te , q u e p o d e lib e r tá - lo d o s o f r im e n t o ? " (O re s t. 1 5 2 2 ). O u tro s c o m e n t a r a m
s o b re e s s a f a m o s a lin h a . F ílo n e s c r e v e u " q u e n a d a é t ã o c a lc u la d o p a ra
e s c r a v iz a r a m e n te c o m o t e m e r a m o rte p e lo d e s e jo d e v iv e r " (P e s s o a

Boa 22 ). P lu ta rc o e s c re v e u : " Q u e m p o d e s e r e s c r a v o s e n ã o d á a t e n ç ã o à
m o rte " (M o r. 3 4 b ).
O s a n tig o s filó s o f o s m o ra is fr e q u e n t e m e n t e fa la v a m d o b e m - e s t a r
e m o c io n a l a lc a n ç a d o p e la s u p e r a ç ã o d o m e d o d a m o rte . O s e p ic u r is ta s
p r o c u r a v a m d is s u a d ir s e u s a lu n o s d e t e m e r a m o rte r a c io n a liz a n d o q u e ,
n o fin a l, e la n ã o é n a d a . A m o rte é m e r a m e n te o t é r m in o d a e x is t ê n c ia d e
a lg u é m , e n t ã o n ã o há ra z ã o p a ra t e m e r o c a s tig o e te r n o ( L u c ré c io , N a t.

1 .1 0 2 -1 2 6 ) . O t íp ic o e p it á f io e p ic u r is ta e ra : "E u n ã o e ra , e u e ra , n ã o so u ,
n ã o m e im p o rto " . O s e s t o ic o s a p o n t a v a m p a ra a m o rte c o m o a fu g a d e f i­
n itiv a d o s o fr im e n t o o u a p e la v a m p a ra u m s e n s o d e h o n ra , e n c o r a ja n d o
a s p e s s o a s a e n c a r a r a m o rte c o m n o b re z a , c o m o fe z S ó c ra te s . S ê n e c a
e s c r e v e u q u e a ra z ã o h u m a n a " n o s fa z a le g r e s d ia n t e d a m o rte , fo r t e s e
c o ra jo s o s , n ã o im p o rta e m q u e e s t a d o o c o rp o e s t e ja " (E p . 3 0 .3 ).
E m H e b re u s , n o e n ta n to , o p r e g a d o r n ã o e n fr e n ta o m e d o d a m o r­
te d im in u in d o s u a re a lid a d e , n e m a p r e s e n t a a v a le n t e b a ta lh a d e Je s u s
c o n tra a m o rte m e r a m e n te c o m o u m n o b re e x e m p lo d e c o m o s u p o r t a r
o s o fr im e n to , e m b o r a o se ja . M a is d o q u e iss o , o p ró p rio tr iu n fo d e Je s u s
s o b re a m o rte s ig n ific a q u e E le p o d e " s a lv a r d e f in it iv a m e n t e " (7 .2 5 ) d a
tir a n ia d a m o rte ( 2 .1 4 ,1 5 ). P o r m e io d e S e u p ró p rio s o fr im e n to , o Filho
fo i a p e r f e iç o a d o c o m o " fo n te d e e te r n a s a lv a ç ã o p a ra t o d o s o s q u e lh e
o b e d e c e m " (5.9 ). O s c r e n t e s tê m a e s p e r a n ç a d e e s t a r n o c a m in h o p a ra a
g ló r ia q u e S e u c a m p e ã o , Je s u s , a b riu p a ra e le s .

S 16 O pregador intervém em forma de conversação: Pois é claro que não é


a anjos que ele ajuda, mas aos descendentes de Abraão. Primeiro, ele mar­
ca suas palavras enfaticamente com a palavra certamente ou claro (dépou).
Segundo, ele muda abruptamente para o tempo presente (ajuda). Mas o que
pode parecer uma interrupção ajuda a unir as discussões em 2.5-9 e 2.10-18
por meio de referências a anjos (2.5,7,9,16). O sermão até agora foi pontua­
do com comparações entre Jesus e os anjos (veja também 1.4,5,6,7,13; 2.2).
(Apenas mais duas referências aos anjos ocorrerão no final do discurso [12.22;
13.2].) A referência aos anjos em 2.16 sinaliza uma conclusão para as partes

128
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

introdutórias do sermão e conduz à declaração de fatos (-» 2.17,18 e Por trás


do texto em 2.5-18).
O significado do verbo epilam banetai (ajuda) tem sido objeto de deba­
te. Os Pais da Igreja (grego e latinos) traduziram unanimemente esse verbo
como “apoderar-se” e entenderam que significava que o Filho tomou sobre si a
natureza humana. Essa visão foi mantida pelos escolásticos, bem como por re­
formadores como Calvino. Os estudiosos modernos geralmente têm rejeitado
essa interpretação clássica, optando por outro significado atestado do verbo,
como “socorrer, ajudar, preocupar-se” (veja especialmente Sir. 4.11). Isso foi
seguido pela maioria das traduções (“ajuda” [NYI, NVT, NTLH ]; “preocu­
pação” [NET]; “está preocupado” [RSV]), com poucas exceções (“tomou [ou
toma] em” [ACF, ARC]; “tomou [ou toma] para si mesmo” [NEB, NJB];
“tornou-se” [PHILLIPS]).
Nenhuma dessas interpretações faz justiça ao texto de Hebreus. Por um
lado, tanto os anjos quanto os descendentes de Abraão são classes de seres, nada
tão abstrato como a natureza humana ou tão concreto como “carne e sangue”
que alguém “assumiría”. Em todo caso, apesar da opinião dos Pais da Igreja (im­
pulsionada como era pela controvérsia cristológica), o verbo epila m b a n o m a i
nunca é empregado no sentido de “assumir a natureza de”. Mesmo Crisóstomo,
que promove a interpretação patrística, reconhece que o texto de Hebreus diz
“toma posse”, e não “o toma” (1996, p. 388).
Por outro lado, uma tradução como ajuda ou “preocupar-se com” é muito
fraca. O verbo transmite fortemente a ação de agarrar, tomar ou aproveitar.
Olhando para 2.18, o pregador só então declarará explicitamente que Jesus
vem em nosso auxílio, usando o verbo comum e esperado para ajuda (boêtheõ ).
Mas entender o significado de ep ilam banom ai em 2.16 é alcançado olhando-se
para trás, para a sequência de imagens vividas em 2.14,15.
Jesus é descrito como “quebrando o poder” (NIVU) do diabo, que tem a
morte em suas garras {ton to kratos echonta-, lit., “quem tem o poder” [2.14]; ob­
serve o verbo cognato krateõ , “apeguemo-nos” [4.14 NVT; 6.18 ESV, LEB]).
Consequentemente, Jesus pode “livrar” ou libertar (ap a lla xê [2.15]) pessoas
que tenham sido “mantidas” em escravidão ao medo da morte (enochos; “ser
mantido ou constrangido” [BDAG, p. 338]). Então Jesus liberta as pessoas das
garras do diabo sobre a morte. Ele se apodera (epilabanetai [2.16]) daqueles
que foram mantidos em escravidão ao medo da morte. O verbo epila m b a n o m a i
ocorre apenas mais uma vez em Hebreus, na citação de Jeremias 31.32 em He­
breus 8.9. Da mesma forma, a ação de agarrar é para o propósito de libertação.

129
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Por que Jesus se apodera dos descendentes de Abraão (lit., “semente de


Abraão”) em vez da humanidade em geral? Essa expressão tem um significa­
do teológico particular em conexão com o tema da herança divina. Esse tema
ressoou no primeiro capítulo a respeito tanto do Filho (1.1,4) como daqueles
que Ele salva (1.14), em contraste com os anjos. O Filho cumpre a promessa
feita a Abraão de numerosos descendentes (veja 11.12) ao “levar muitos filhos
à glória” (2.10). Os herdeiros da promessa a Abraão são aqueles que se mantêm
firmes à esperança da salvação em Jesus Cristo (6.11-20).
E verdade que essa esperança está ao alcance de todos, pois Jesus provou a
morte por todos (2.9). No entanto, ela só é válida para aqueles que se tornam
verdadeiros filhos (2.10; 12.5,7,8). É para aqueles que são santificados (2.11 a)
e, portanto, são irmãos (2.11^,12,17; veja 3.1,12; 10.19; 13.1,22), parceiros de
Cristo (3.1,14), membros da Igreja (ekklêsia [2.12]; veja 12.23), filhos de Deus
(2.13,14) e “povo [laos]” de Deus (2.17; veja 4.9; 13.12).
17-18 A comparação de Cristo com os anjos termina no versículo 16.
Assim, 2.17,18 serve como uma conclusão, não apenas para a discussão em
2.10-18 sobre a solidariedade de Jesus com o povo de Deus, mas para tudo que
foi dito até esse ponto no sermão. Esses dois versículos também compreendem
a proposição para todo o discurso. Isso anuncia o tema que ocupará o equilí­
brio do sermão.
O pregador anuncia pela primeira vez que Jesus é o sum o sacerdote {ar­
chiereus [2.17]). Isso talvez tenha a intenção de brincar foneticamente com o
título archêgos (“autor”) em 2.10. Uma das principais ações sacerdotais de Jesus
é fazer propiciação p elos pecados. Isso forma uma ligação com o início do
sermão, onde se diz que o Filho “realizou a purificação dos pecados” (1.3c).
A introdução de Jesus como Sumo Sacerdote (2.17) é acompanhada de enco­
rajamento sobre a Sua assistência em tempos de provação (2.18). Temos em
miniatura, então, o procedimento do pregador ao longo do sermão: exposição
sobre Cristo como Sumo Sacerdote e exortação à perseverança.
Por essa razão aponta para o propósito {para isso) para o qual a identifica­
ção completa de Jesus com a humanidade “era vital” (2.17 KJA). O sofrimento
que era considerado “apropriado” (2.10 [NVT]) é uma obrigação do Sumo
Sacerdote (2.17). O verbo traduzido era necessário que (õpheilen) é usado
em um contexto semelhante em 5.3 da obrigação de um sumo sacerdote de
oferecer sacrifícios.
Aqui, a eficácia do ministério sumo sacerdotal de Jesus depende de Ele se
tornar sem elhante à humanidade em to d o s os aspectos (katapanta). Eviden­
temente, a expressão to d o s os aspectos abrange Seu sofrimento e Sua morte.

130
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

Tornar-se sem elhante (hoynoiõthênai ) significa que Jesus compartilhou {nie-


teschen ) as mesmas coisas que os filhos têm em comum (kekoinõnêken [2.14]).
Especificamente, Ele compartilhou da fragilidade e mortalidade da humani­
dade. Isso tornou possível Sua perfeição como Sumo Sacerdote mediante o
sofrimento (2.10). Paulo também diz que Deus enviou Seu Filho “à semelhan­
ça \en h o m oiõm ati\ do homem pecador, como oferta pelo pecado” (Rm 8.3).
O ministério de Jesus estende-se a seus irm ãos, já orgulhosamente no­
meados em 2.11,12. Isso antecipa o discurso direto do pregador aos Hebreus
como “santos irmãos” em 3.1 e a discussão sucessiva da liderança do Filho sobre
a família de Deus (3.1-6).
Assim, a completa identificação de Jesus com a humanidade sofredora
qualificou-o para se tornar sum o sacerdote m isericordioso e fiel. Ele é m i­
sericordioso (eleêm õn ; “compassivo” [NJB]) na medida em que é capaz de
“compadecer-se das nossas fraquezas” porque é “alguém que, como nós, passou
por todo tipo de tentação \k a ta p a n ta k a th hom oiotéta\, porém, sem pecado”
(4.15; compare ele [...] quando tentado [...] aqueles que tam bém estão sen ­
do tentados [2.18]). Portanto, podemos nos “aproximar do trono da graça
com toda a confiança” para “recebermos misericórdia [eleos\ e encontrarmos
graça que nos ajude no momento da necessidade \boêtheia\ ” (4.16; compare
ajuda, boéthêsai [2.18]). Pode-se ver como a completa semelhança, misericór­
dia e ajuda na tentação em 4.15,16 reflete o que encontramos em 2.17,18.
O ministério sumo sacerdotal de Jesus está a serviço de Deus (ta pros ton
theon\ lit., “nas coisas concernentes a Deus” [JFA]). Essa expressão bíblica um
tanto incomum é usada em contextos em que um ministro representa Deus
(Ex 4.16; 18.19; D t 31.27; Rm 15.17). Ambas as ocorrências da expressão em
Hebreus (2.17; 5.1) relacionam-se com a representação do povo por um sumo
sacerdote em assuntos pertencentes a Deus, especialmente em relação à oferta
de sacrifícios: Fazer propiciação p elos pecados do povo.

Propiciação, expiação ou redenção?


P a ra e x p ia ç ã o , a NVI o fe r e c e o u tra t r a d u ç ã o e m u m a n o ta d e ro d a p é :
" D e s v ia r a ira d e D e u s d o s p e c a d o s e r e m o v ê - lo s " (2 .1 7 N IV ms). Isso c o m ­
b in a d u a s v is õ e s c o n c o r r e n t e s d e c o m o t r a d u z ir o v e r b o g r e g o h ila s k o m a i

(e a s p a la v r a s r e la c io n a d a s a h ila s t é r io n [R m 3 .2 3 ] e a h ila s m o s [1 Jo 2.2;


4.10 ]).
N a p r im e ir a , " d e s v ia r a ira d e D e u s ” re fle te a t r a d u ç ã o t r a d ic io n a l d e
" fa z e r p r o p ic ia ç ã o ” (NVI, A R IB , A R A , KJA, JFA). N a s e g u n d a , " r e m o v e r [ p e ­

131
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

c a d o s ] " re fle te " f a z e r e x p ia ç ã o " (R E B , RSV ; o u " e x p ia r ” [A C F, A R C ]). U m a


t e n d ê n c ia m a is re c e n t e é t r a d u z ir o v e r b o c o m o f a z e r re d e n ç ã o (N E T) ou
" f a z e r u m s a c r if íc io d e r e d e n ç ã o ” (N R S V ). Isso e v it a o d e b a t e te o ló g ic o ,
b e m c o m o o s t e r m o s d e s a c r if íc io c o n t e s t a d o s c o m o s q u a is a m a io r ia d o s
le it o re s n ã o e s tá fa m ilia r iz a d a .
M u ito s e s t u d io s o s m o d e rn o s d o N T n e g a m a n o ç ã o d e a p a z ig u a r ou
c o n c ilia r D e u s n o u s o b íb lic o d o v e r b o h ila s k o m a i, a p e s a r de seu uso g e ­
n e r a liz a d o n e s s e s e n t id o n o m u n d o g r e g o a n tig o . P a re c e c e n s u r á v e l q u e a
ira d e D e u s p r e c is e s e r e v it a d a p o r m e io d o s a c r if íc io d e C ris to . P o rta n to ,
a r g u m e n t o s s ã o f e it o s p a ra in t e r p r e ta r e s s e g r u p o d e p a la v r a s e m c o ­
n e x ã o c o m a r e m o ç ã o ou e lim in a ç ã o d o s p e c a d o s ( e x p ia ç ã o ) e m v e z d e
a p la c a r a ira d e D e u s p a ra c o m o s p e c a d o s ( p ro p ic ia ç ã o ) .
C o n tu d o , a h o s tilid a d e c o n s t a n te e s a n ta d e D e u s p a ra c o m o p e c a ­
d o (ou s e ja , S u a ira e S e u ju lg a m e n t o ; v e ja H b 2.3; 3 .1 0 - 1 2 ,1 7 ,1 8 ; 4.3;
6 .7 ,8 ) n ã o é in c o m p a t ív e l c o m S e u ig u a lm e n t e fo r t e a m o r p e lo s p e c a ­
d o re s . S o m e n t e p o r m e io d a c r u z a m b o s o s a s p e c t o s d a n a tu r e z a d iv in a
p o d e r ía m s e r a d e q u a d a m e n t e p o s to s e m a ç ã o : a c o n d e n a ç ã o d o p e c a d o
p o r D e u s (n a q u a l S u a ira c o n t r a e le s e e s g o ta ) e S e u a m o r p e la h u m a n i­
d a d e p e c a d o ra .
E m H e b re u s , o c o m p r o m is s o c o n t ín u o c o m a o b ra s a n t ific a d o r a d o
s a c r if íc io d e C r is t o é e s s e n c ia l p a ra s e r lib e r to d a ira d e D e u s. P e rd e r a
g r a ç a d e D e u s (1 2 .1 5 ) e re je ita r p e c a m in o s a m e n t e o s a c r if íc io d e C r is to
( 1 0 .2 6 ,2 9 ) só p o d e e x p o r a p e s s o a a " u m a t e r r ív e l e x p e c t a t iv a d e ju lg a ­
m e n to e d e fo g o in t e n s o q u e c o n s u m ir á o s in im ig o s d e D e u s " (1 0 .2 7 ; v e ja
1 2 .2 9 ). "T e rrív e l é c a ir n a s m ã o s d o D e u s v iv o " (1 0 .3 1 ). P o rta n to , D e u s
g r a c io s a m e n t e e n v io u Je s u s p a ra q u e , " e m f a v o r d e to d o s , e x p e r im e n t a s ­
s e a m o r t e " (2.9 ), " p a r a f a z e r p r o p ic ia ç ã o p e lo s p e c a d o s d o p o v o " (2 .1 7 ).

De acordo com o que já foi observado (veja comentários sobre “os des­
cendentes de Abraão” [2.16]), a obra sumo sacerdotal de Cristo é efetuada
especialmente sobre a metade do povo de Deus que Ele representa. Esse povo
está em continuidade histórica com o povo de Israel, mas não apenas genetica­
mente. Os laços mais importantes entre os Hebreus abordados pelo pregador
e o antigo povo de Deus de Israel são vistos por meio de exemplos de respos­
tas fiéis (6.12-18; 11.1 — 12.2) ou infiéis às promessas de Deus (3.7—4.13;
12.16,17). E para esse tópico que o pregador se voltará nos capítulos 3 e 4.
A capacidade de Jesus de socorrer \boêthêsai\ aqueles que tam bém estão
sendo tentados (2.18) é um exemplo claro de Sua qualificação como um sumo
sacerdote m isericord ioso [...], o que ele m esm o sofreu quando foi tentado.

132
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

Que Jesus é fiel (pistos) também está associado à Sua obediência fiel a Deus em
face do sofrimento e da morte (-> 2.13λ anteriormente). A fidelidade de Jesus
será destacada na seguinte passagem (3.1-6).

A PARTIR DO TEXTO

Hebreus é um dos colaboradores mais importantes para nossa compreen­


são da cristologia. O pregador dificilmente podería relatar mais plenamente
tanto a divindade como a humanidade de Cristo. O capítulo 1 demonstrou
claramente a divindade do Filho. O capítulo 2 (particularmente v. 10-16) não
podería articular mais fortemente a extensão total da identificação de Jesus
com a humanidade. O pregador, por sua vez, não está preocupado com os de­
bates na teologia filosófica referentes às duas naturezas de Cristo. Isso não foi
resolvido até 451 d.C. com a Definição de Calcedônia. Em vez disso, ele está
preocupado com a questão tão habilmente colocada por Anselmo de Canter­
bury no título de seu influente trabalho sobre a expiaçao, “Por que Deus se
tornou homem”.
Hebreus capta o drama sobrenatural da descida do Filho “por um pouco
menor dos anjos” para alcançar o ponto mais baixo da existência humana — a
morte. Ele está plenamente consciente de que a morte de Cristo foi degradante
e vil aos olhos da cultura ao seu redor (-» anteriormente, na anotação comple­
mentar Por trás do texto, “Escândalo do sofrimento de Cristo”). Mas a morte
de Jesus foi realmente honrosa e corajosa, pois foi por uma causa nobre (veja a
exposição da coragem de Aristóteles em Et. Nic. 1115al-1115bl2). Hebreus
2.14,15 pode muito bem ser o mais antigo retrato vivido do chamado Christus
Victor (“Cristo, o vitorioso”) compreensão da expiação. Jesus é o archêgos ou
campeão que assume com sucesso a tarefa hercúlea de destruir o diabo e resga­
tar a humanidade das garras tirânicas do medo da morte. Contudo, a morte de
Jesus também é vista como um sacrifício propiciatório (2.17c).
A morte de Cristo foi apropriada porque foi fundamentada na natureza
de Deus, que é gracioso e santo (2.9c, 11). Mas também era necessária porque
era apenas assumindo a mortalidade que Ele podería derrotá-la. Assim, Jesus,
como explicou Anselmo, fez o que somente Deuspoderia fazer, mas o que so­
mente os seres humanos deveríam fazer. Foi em Sua humanidade obediente, de
fato, que Jesus revelou mais claramente o amor e a santidade de Deus. Cristo
como “o homem para os outros” (para emprestar a frase de Dietrich Bonhoef-
fer) era o homem por excelência para Deus.

133
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Qual deve ser a nossa resposta a esse poderoso campeão que em uma luta
épica com o diabo nos libertou do medo paralisante da morte? Para os leitores
modernos, a conclusão em 2.17,18 pode quase parecer um anticlímax, já que
não estamos familiarizados com a figura de um sumo sacerdote e não estamos
tão obcecados com os perigos da tentação quanto judeus e cristãos do primeiro
século estavam. A grande conquista de Jesus, o grande Sumo Sacerdote, em
nosso favor, é que, por meio de Sua morte e exaltação Ele nos leva a Deus. Mas
“levar muitos filhos à glória” requer que eles sejam “santificados” (2.10.11). E
por isso que ser purificado do pecado e evitar ceder à tentação é algo tão im­
portante.
Em Hebreus, podemos ver os primórdios da doutrina da theosis (“divini-
zação”) formulada por Pais gregos como Irineu e Atanásio. Em Jesus, Deus se
tornou humano, para que pudéssemos tornar-nos como Deus. Na linguagem
de Hebreus, Jesus participou (meteschen [2.14]) em nossa humanidade para
que também pudéssemos ser participantes (m etochoi ) em Seu “chamado ce­
lestial” (3.1; veja 3.14; 6.4; 12.8). Isso se torna possível porque partilhamos
a semelhança familiar da fidelidade, coragem, esperança e santidade de Jesus
(2.1 la ; veja 12.14). É por isso que Ele veio, para tornar-nos verdadeiros filhos
de Deus (2.11^,13^; veja 12.4-17).

B. O u vir a Palavra de Deus hoje: Jesus, o A p ó sto lo


e Sum o S a cerd ote de nossa con fissão
( 3 . 1 — 4 . 13 )

Normalmente a exposição dos fatos seria seguida por uma série de provas,
ou seja, os principais argumentos de um discurso (-» Por trás do texto para
2.5-18.) Mas não é isso que encontramos nos capítulos 3 e 4 de Hebreus. Pelo
contrário, encontramos uma espécie de “segundo e x o rd iu m ”, como Quinti-
liano podería chamá-lo, que “pode formar uma preparação muito útil para o
exame da questão principal” e ser oferecido “com vistas a excitar ou apaziguar
o juiz ou dispondo-o a dar ouvidos favoráveis às nossas provas” (Inst. 4.3.9).
Tal digressão (gr. parekbasis-, lat. egressus ou eggressio) é “a manipulação de
algum tema, que deve, no entanto, ter alguma relação com o caso, em uma pas­
sagem que envolve uma digressão da ordem lógica do discurso” (Quintiliano,
Inst. 4.3.14). Podería ser usada em praticamente qualquer parte de um discur­
so. Pode envolver ampliar ou abreviar um tópico, fazer um apelo emocional ou
introduzir tópicos que adicionem charme e elegância à oratória, como “luxo,

134
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

avareza, religião, dever”. “Mas dificilmente seriam digressões, pois estão tão in­
timamente ligadas a argumentos sobre assuntos semelhantes que fazem parte
da textura do discurso” (Inst. 4.3.15).
Hebreus 3—4 é uma espécie de repetição do exordium em 1.1—2.4.
Compara Jesus e Moisés (3.1-6), embora de forma mais sucinta do que a com­
paração entre o Filho e os anjos em 1.1-14. Em ambos os casos, Jesus mostra-se
superior, com um nome melhor em 1.4 e “mais honra” em 3.3.
Em 3.7—4.13,o pregador faz um apelo ainda mais direto e expansivo a seu
público do que em 2.1-4. Ele usa a experiência de desobediência de Israel no
deserto como um exemplo negativo de advertência e promessa para entrar no
descanso sabático de Deus. Na prática retórica, um orador usa a digressão para
“exaltar pessoas ou lugares, descrever regiões, registrar exemplos históricos ou
mesmo ocorrências lendárias” (Quintiliano, Inst. 4.3.12). O pregador faz duas
dessas coisas: ele exalta Jesus por meio da comparação com Moisés em 3.1-6;
ele aponta para o precedente histórico da desobediência de Israel (3.7—4.13)
e suas terríveis consequências (3.16-19; 4.1,5,6,11).
O tema de ouvir a palavra de Deus retorna. O que foi falado (laleõ) por
Deus por intermédio do Filho “nestes últimos dias” (1.1,2), a salvação primei­
ramente falada “pelo Senhor” (2.3), é agora denominado como;
• “o que havería de ser dito no futuro \tõn lalethêsomenõn]” (3.5; veja
4.8);
• a pregação do evangelho (4.2,4);
• a “espada de dois gumes” da palavra de Deus (4.12; veja 4.2).
A urgência em atender à palavra de Deus dada por intermédio do Filho
em 2.1-4 é ainda mais pronunciada nos capítulos 3 e 4. O pregador destaca a
importância de responder à palavra de Deus “hoje” (3.13; 4.7). Ele faz isso par­
ticularmente por meio da repetição do apelo do Salmo 95.7,8: “Hoje, se vocês
ouvirem a sua voz, não endureçam o coração” (3.7,15; 4.7). Prestar atenção à
mensagem (veja 2.1) é ainda identificado como apegar-se à nossa confissão e
confiança em Cristo (3.1,6,14; 4.14) e responder com fé (4.2) como parceiros
do Filho fiel (3.1,2,14). Isso contrasta com a infidelidade (3.12,19; 4.2) e a
desobediência (3.18; 4.6,11) da geração de Israel no deserto.
Seguindo a convenção retórica, o pregador compôs uma digressão que não
é realmente uma digressão. Seus tópicos são tão cuidadosamente associados
ao argumento principal que é integralmente “parte da textura do discurso”
(Quintiliano, Inst. 4.3.15).
Por um lado, o pregador desloca sua atenção mais incisivamente para seu
público, duas vezes se dirigindo a eles diretamente como “irmãos” (3.1,12).

135
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Pela primeira vez, ele emite ordens (3.1,12,13) e proibições (3.8,15; 4.7).
Ele exorta seus ouvintes repetidamente na primeira pessoa do plural (“tema­
mos...” [4.1,11,14,16]). Uma maior concentração de imperativos, proibitivos
c subjuntivos exortativos não reaparecerá até o fim do sermão (-> introdução
a 10.19— 13.25; no subjuntivo exortatório, -> 4.1 anotação complementar:
“Vamos...”). O foco principal nessa seção é sobre os ouvintes e sua resposta à
convocação da palavra de Deus.
Por outro lado, o autor cuidadosamente liga essa seção à tese que ele ar­
gumentará longamente no devido tempo — que Jesus é nosso grande Sumo
Sacerdote. Hebreus 3.1-6 baseia-se na seção anterior (observe o “portanto” em
3.1, logo após 2.5-18). Hebreus 3.1 e 6 antecipam fatos-chave que se repetirão
em 4.14-16:
• céu (“chamado celestial” [3.1]; Jesus “adentrou os céus” [4.14]);
• Jesus como “sumo sacerdote” (3.1; 4.14,15);
• Jesus como mensageiro divino (“apóstolo” [3.1]; “Filho de Deus”
[4.14]; veja 1.2,5; 3.6);
• confissão (3.1; 4.14);
• ousadia (3.6; 4.16).
Assim, 3.1 e 6 formam conexões para a seção de transição em 4.14-16,
que, por sua vez, funcionará como uma reafirmação e expansão da proposição
declarada em 2.17,18.

1. Compromisso como parceiros de Cristo, casa de Deus


(3.1-6)

POR TRÁS DO TEXTO

A primeira vista, pode parecer que o tema principal dessa unidade seja
a superioridade de Jesus sobre Moisés. De fato, a maior glória de Jesus como
Filho sobre a casa de Deus é o fato em torno do qual gira a comparação do
pregador. Mas a comparação desses dois números serve a um propósito mais
persuasivo. Essa unidade é enquadrada por referências aos ouvintes como ir­
mãos santos e parceiros celestiais com Jesus em 3.1 e membros da família de
Deus em 3.6. Sua própria identidade e fidelidade como povo de Deus são cru­
ciais para a mensagem da seção maior (3.1—4.13), que essa unidade apresenta.
O chefe de família da casa de Deus, Jesus, é muito mais honrado do que
Moisés, que era um servo na casa de Deus. Então, quanto mais responsáveis

136
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

são os crentes presentes à palavra de Deus entregue pelo Filho do que o povo
de Israel que ouviu apenas o testemunho de Moisés (veja 3.16-19; 4.12,13)? A
força retórica de 1.1—2.4 e 3.1—4.13 é bastante similar. O pregador emprega
as exposições da grandeza de Cristo para reforçar exortações a um maior com­
promisso.
A comparação entre Jesus e Moisés teria sido significativa para os cris­
tãos que tinham uma associação anterior com o judaísmo. O nome “Moisés”
tornou-se uma cifra para toda a fé judaica. Exemplos suficientes disso são a
referência de Paulo aos filhos de Israel sendo “em Moisés [...] batizados” (1 Co
10.2) e a acusação de alguns judeus de que Estêvão havia blasfemado “contra
Moisés e contra Deus” (At 6.11). A estatura de Moisés como o renomado líder
e legislador do antigo Israel era bem merecida. Ele era o profeta e sacerdote
arquetípico que tinha acesso direto a Deus. Assim como Números 12.6-8 dá
testemunho, o SENHOR falou aos profetas por meio de visões, sonhos e enig­
mas, mas com Moisés fez isso “face a face” (veja Êx 33.11; D t 34.10; Sir. 45.5).

Uso de com paração (syn krisis)

A c o m p a r a ç ã o (s y n k r is is ) e ra u m e x e r c íc io re tó ric o u s a d o e m d is c u r ­
s o s d e lo u v o r o u c e n s u r a (ex.: d is c u r s o s e p id ít ic o s , c o m o e lo g io s ; v e ja
A r is t ó t e le s , R h e t. 1 .9 .3 8 ,3 9 ). S y n k r is is pode se r um a c o m p a ra çã o de bom
c o m b o m , ru im c o m ru im ou b o m c o m ru im . S e u o b je tiv o e ra e x a lt a r v ir­
t u d e s o u d e n u n c ia r c o m p o r t a m e n t o s in d ig n o s . N ã o e ra p a ra d e n e g r ir o
c a r á t e r d a s p e s s o a s , m e s m o a q u e la s c o m a ç õ e s p e r v e r s a s , m a s p a ra
a m p lia r o u m in im iz a r ( c o n fo rm e o c a s o ) a q u e le s c o m p o r t a m e n t o s q u e d e ­
v e r ía m s e r im ita d o s ou e v it a d o s (v e ja R h e t. H e r. 1 4 4 1 a 2 7 -1 4 4 1 b 2 8 ).
O s jo v e n s e s t u d a n t e s d e re tó ric a e ra m r o t in e ir a m e n t e o b r ig a d o s a
p r o d u z ir c o m p a r a ç õ e s b io g r á fic a s c h a m a d a s p ro g y m n a s m a ta (v e ja Q u in -
tilia n o , In st. 2 .4 .2 1 ). O s t ó p ic o s u t iliz a d o s p a ra c o m p a r a ç ã o in c lu ía m
n a s c im e n t o , a s c e n d ê n c ia , educação, s a ú d e , fo rç a e b e le z a . P lu ta rc o
a p e rfe iç o o u a s c o m p a r a ç õ e s re t ó r ic a s c o m o u m a fo rm a d e a r te e m s u a s
fa m o s a s P a r a lle l L iv e s (T h o m p s o n , 2 0 0 8 , p. 13).
H e b re u s e m p r e g a s y n k r is is e m m u ito s p o n to s . O a u to r c o m p a r a C r is ­
to c o m o s a n jo s (ca p . 1 — 2), M o is é s (3 .1 -6 ) e o s a c e r d ó c io d o A T (5 .1 -1 0 ;
7 .1 — 1 0 .1 8 ). E le c o m p a r a o s c r e n t e s a t u a is c o m a g e r a ç ã o in fie l d o d e s e r ­
to (3 .1 2 ,1 3 ; 4 .2 ,3 ,6 ,1 0 ) . Isso e s tá d e a c o r d o c o m u m in t e r e s s e g e r a l e m
a m p lia r o fa to d e q u e C r is t o e a n o v a a lia n ç a s ã o s u p e r io r e s à a n tig a (-»
1.4 a n o ta ç ã o c o m p le m e n ta r : " C o is a s 's u p e r io r e s ' e m H e b re u s " ) . "A a m ­
p lia ç ã o " , e s c r e v e u A r is t ó t e le s , " é c o m ra z ã o c la s s if ic a d a c o m o u m a d a s

137
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

fo r m a s d e lo u v o r, p o is c o n s is te e m s u p e r io r id a d e , e s u p e r io r id a d e é u m a
d a s c o is a s q u e s ã o n o b r e s " (R h e t. 1 .9 .3 9 ).

No período do NT, a posição de Moisés havia atingido alturas ainda maio­


res. Ele não era apenas “o hebreu mais nobre de todos” (Josefo, A n t. 2.229),
mas, segundo os historiadores judeus helenísticos, ele foi o pai de muitos avan­
ços na cultura. Estes incluíam a invenção do alfabeto (Eupolemo em Clemente
de Alexandria, Strom . 1.23.153.4; Eusébio, Prep. Ev. 9.25.4), navios, polias de
pedra, irrigação, armamento egípcio e filosofia (Artapano em Eusébio, Prep.
Ev. 9.27.22-25); e, é claro, Moisés foi considerado o “primeiro mestre religio­
so” (Thallus em Pseudojustino, Coh. Gr. 9).
De acordo com Fílon, Moisés foi designado por Deus como rei de Israel,
legislador, sumo sacerdote, profeta (M oisés 2.2,3,6,66,187,292; Recompensas
53), e até mesmo “deus e rei de toda a nação” (M oisés 1.158; veja Ex 4.16; 7.1).
Mas, como amigo de Deus, Moisés participou (m etechõ ) do eu de Deus e de
todas as posses de Deus, tomando, assim, “o mundo inteiro” como sua herança
e ganhando domínio sobre os elementos do cosmos (Fílon, M oisés 1.155-57;
veja 2 Bar. 59.3-12).
Ninguém jamais “viu a glória do Senhor” como Moisés viu (Nm 12.8
LXX), de modo que se refletiu em seu rosto (Ex 34.29,30,35) — até Jesus (Mt
17.1-9; Mc 9.2-10; Lc 9.28-36; 2 Co 3.12-18). Ben Sirach afirma que Deus
lez Moisés “igual em glória aos santos” (Sir 45.2), isto é, aos anjos. A tradição
rabínica posterior identificou Moisés como aquele coroado com glória e honra
no Salmo 8 (b. Rosh H ash. 21b; h. N ed . 38a; M idr. Sl. 8.7). Inclusive, alguns
rabinos até chegaram a afirmar que ele recebeu uma classificação acima dos an­
jos ministradores e dos anjos do santuário celestial {Sipre Z u ta em Nm 12.6-8;
Sipre N m 103).
Até que ponto o autor de Elebreus estava familiarizado com tais tradições
é impossível determinar. Se ele estivesse ciente de uma tradição de que Moisés
superou os anjos em poder e glória, então não parecería desnecessário, depois
de demonstrar a superioridade de Jesus aos anjos, passar a demonstrar que ele
também é superior à figura mais exaltada de Moisés (Lane, 1991, p. 73). En­
tretanto, o pregador não oferece uma polêmica contra Moisés. Ele oferece uma
comparação (synkrisis ) entre Jesus e Moisés. A comparação é baseada em um
olhar detalhado em Números 12.7 (aludido em Eíb 3.2 e vagamente citado em
3.5). Os pontos na comparação são baseados em sua ordem na citação solta

138
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

em 3.5: Moisés foi fiel (3.1,2); em toda a sua casa (3.3,4); como servo (3.5,6;
Koester, 2001, p. 249).

NO TEXTO

f 1 Portanto (hothen), no início de 3.1, sinaliza que o material a seguir se


baseia no que o pregador já disse sobre a identificação de Jesus com a humani­
dade e a perfeição como Sumo Sacerdote em 2.5-18. Em termos de conteúdo,
3.1 compartilha várias conexões com a seção anterior. Seu discurso direto a
seus ouvintes como santos irm ãos lembra tanto o vínculo comum da santida­
de divina compartilhado por Jesus e os crentes (2.1 \a) como o vínculo fraterno
declarado por Jesus nas Escrituras (2.11^,12) e promulgado por meio de Sua
encarnação (2.17a). Dirigir-se aos leitores como santos (hagioi) aponta o sig­
nificado da santidade para a identidade cristã autêntica. Aqui está o único uso
da expressão santos irm ãos em toda a Bíblia.

Santidade em Hebreus

A s a n t id a d e é d e s u m a im p o r t â n c ia e m H e b re u s . T e rm o s d o g ru p o
d e p a la v r a s h a g io s ( " s a n to " ) o c o rr e m v in t e e o ito v e z e s e m H e b re u s . S e u
uso , n ã o s u r p r e e n d e n t e m e n t e , é d e v id o à L X X e, p o r s u a v e z , b a s e a d o no
g ru p o d e p a la v r a s qõdes ( " s e p a r a d o " , " s a n to " ) n o A T H e b ra ic o . E m s e u s
c o n t e x to s b íb lic o s , a s a n t id a d e e s tá a s s o c ia d a n ã o a p e n a s a o e n v o lv im e n ­
to d a a d o r a ç ã o n o t e m p lo , m a s t a m b é m à n a tu r e z a d o e u d e D e u s e à
p r e p a r a ç ã o c e r im o n ia l e m o ra l d a h u m a n id a d e p a ra e n c o n t r a r o S a n to .
E m s e u s e n t id o m a is g e ra l, s a n t id a d e re fe re -s e à s e p a r a ç ã o e n tre o
s a g r a d o e o p ro fa n o . C e r t o s lu g a re s , c o is a s , e v e n t o s e p e s s o a s s ã o s e ­
p a ra d o s c o m o p r o p r ie d a d e d e D e u s. A s s im , o " s a n t u á r io " , c o m o na L X X
(ve ja N m 3 .2 8 ,3 8 ), é lit e r a lm e n t e " L u g a r S a n to " ou " S a n t o d o s s a n t o s "
e m H e b re u s (8.2; 9 .1 ,2 ,8 ,1 2 ,2 4 ,2 5 ; 1 0 .1 9 ; 1 3 .1 1 ), u m a v e z q u e a c â m a r a
m a is in te rn a d o t e m p lo é c h a m a d a d e "o S a n to d o s S a n to s " (9,3; v e ja Ê x
2 6 .3 3 ; H b 6 .1 9 ).
D e u s é a fo n te d e t o d a a s a n t id a d e (-» 2 .1 1 ). O c a r á t e r d iv in o d a s a n ­
t id a d e é u m d o m p a ra o s s e r e s h u m a n o s (1 2 .1 0 ), m a s p o r m e io d a o b ra
s a n t ific a d o r a d e C r is to (2 .1 1 ) e d a p a r t ic ip a ç ã o no E s p ír ito S a n to (6.4).
Je s u s é s in g u la r m e n t e q u a lific a d o c o m o o S u m o S a c e r d o te q u e t r a z a
p u r ific a ç ã o d e fin it iv a , p o r q u e E le m e s m o é t o t a lm e n t e " s a n t o [ h o s io s ] , in-
c u lp á v e l, p u ro , s e p a r a d o d o s p e c a d o re s , e x a lt a d o a c im a d o s c é u s " (7 .2 6 ).

139
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

É p a r t ic u la r m e n t e p o r m e io d o s a c r if íc io d e Je s u s q u e a s p e s s o a s s ã o
" s a n t if ic a d a s " ( 1 0 .1 0 ,1 4 ,2 9 [ou "fe ito s a n ta s " ] ; 1 3 .1 2 ). É m a is e fic a z d o
q u e o s s a c r if íc io s d e a n im a is s o b a a n tig a a lia n ç a , p o r q u e é u m a s a n t if ic a ­
ç ã o q u e f a z m a is d o q u e p r o p o r c io n a r u m a p u r ific a ç ã o c e r im o n ia l e x te rn a
d o s a d o r a d o r e s (9 .1 3 ). E fe tu a u m a t r a n s f o r m a ç ã o in te rn a d o a d o r a d o r p o r
m e io d a p u r ific a ç ã o d o s p e c a d o s (1.3 ) n o n ív e l m a is p ro fu n d o : a p u r ific a ­
ç ã o d a c o n s c iê n c ia (9.1 4; 1 0 .2 ,2 2 ; v e ja 9.9).
C o m b a s e n is s o , o p r e g a d o r c h a m a o s c r e n t e s d e " s a n t o s irm ã o s "
(3.1 ) ou " p o v o s a n t o " (6.1 0; 1 3 .2 4 [NVTJ; lit., " s a n t o s " , le m b r a n d o o d is ­
c u rs o d e P a u lo à s s u a s ig re ja s , p o r e x e m p lo , e m R m 1.7; 1 C o 1.2; 2 C o
1.1; Fp 1.1; C l 1.2). A s a n t ific a ç ã o d o s c r e n t e s é c e r t a m e n t e u m b e n e fíc io
d o s a c r if íc io d e C r is t o d e u m a v e z p o r t o d a s ( " s a n tific a d o " : t e m p o p e r­
f e it o e m H b 1 0 .1 0 ; t e m p o a o ris t o e m 1 0 .2 9 ; 1 3 .1 2 ). M a s é t a m b é m um
p r o c e s s o c o n t ín u o d e d is c ip lin a , a d m in is t r a d o s o b e r a n a m e n t e p o r D e u s
Pai e s u p o r t a d o e s u b m e t id o p e lo s filh o s d e D e u s. P e r s e v e r a r na s a n t ifi­
c a ç ã o s ig n ific a lu t a r c o n t ra o p e c a d o (1 2 .1 ,3 ,4 ; v e ja 1 0 .1 9 -3 9 ; 1 1 .2 5 ) e
b u s c a r p a z e s a n t id a d e (1 2 .1 4 ). Isso d e v e s e r fe it o t a n t o in d iv id u a lm e n t e
(3 .1 2 ) q u a n t o c o m u n it a r ia m e n t e (3 .1 3 ). D e u s Pai u s a a s d if ic u ld a d e s d a
v id a p a ra e d u c a r - n o s e m u m a v id a s a n ta , p r o d u z in d o u m "fru to d e ju s t iç a
e p a z " (1 2 .1 1 ) e p e r m it in d o - n o s p a r t ic ip a r d a p ró p ria s a n t id a d e d e D e u s
( 1 2 . 1 0 ).

No discurso endereçado aos participantes [m etochoi\ no chamado celes­


tial, pode-se lembrar como Jesus “participou \m eteschenY na natureza humana
para libertar as pessoas do medo escravizador da morte (2.14) e trazer “muitos
filhos para a glória” (2.10). Jesus participou em nossa condição humilde para
que pudéssemos participar de Sua natureza celestial. “Pois passamos a ser par­
ticipantes de \m etochoi\ Cristo” {'òA A ).M etochoi também pode ter a conotação
de parceiros, um sentido comum em papiros gregos antigos (-> 3.14 anotação
complementar: “Parceiros de Cristo”).
O chamado celestial (klêseõs epouraniou ) corresponde a Jesus abrindo ca­
minho para nós no “próprio céu” (9.24; veja 4.14; 7.26; 8.1). Atualmente os
crentes “provaram o dom celestial [eporaniou ]” da salvação (6.4) e têm uma
esperança que está ancorada na própria presença de Deus. Ali, no “santuário
interior, por trás do véu, [...] Jesus”, nosso precursor, “adentrou” (6.19,20). A
realidade futura para a qual fomos “chamados [hoi keklêm enoí\ ” é “a promessa
da herança eterna” (9.15). E “uma pátria melhor, isto é, uma pátria celestial
[iepourianou ] ” pela qual os patriarcas ansiavam (11.16), e “a Jerusalém celes­

140
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

tial [epourianõ] ” (12.22). Como crentes, nossos nomes já foram registrados lá


como cidadãos (“no céu” [12.23]). É o “descanso” prometido no qual o prega­
dor exortará seus ouvintes a entrar (4.1,3,10,11).
A primeira ordem emitida aos leitores de Hebreus aparece em 3.1. O im­
perativo fixem os seus pensamentos é uma forma do verbo katanoeõ. Refere-se
à ação de considerar, contemplar ou observar algo cuidadosamente (“conside­
rai” [ACF, ARA, ARC, ARIB, NAA, NVT, TB, KJA, JFA]; “reflita” [NAB];
“tome nota” [NET]; “pense com cuidado sobre” [NLT]; “volte suas mentes
para” [NJB]). A exortação em Colossenses 3.1 é semelhante: “fixe o seu cora­
ção nas coisas de cima, onde Cristo está sentado à direita de Deus”. Os objetos
imediatos dessa intensa reflexão são dois títulos para Jesus: apóstolo e sumo
sacerdote.
Somente em Hebreus encontramos Jesus designado como apóstolo. Em
outros lugares, esse título (apostolos, “aquele que é enviado”) é aplicado aos pri­
meiros discípulos de Jesus (os Doze: Mt 10.2; Mc 3.14; Lc 6.13; Ap 21.14) ou a
outros como Paulo e Barnabé (At 9.27; 1 Co 9.1-6), que foram comissionados
para pregar o evangelho. Contudo, Jesus foi o primeiro a proclamar o evange­
lho do Reino de Deus (Mc 1.14,15). Hebreus nos diz que nesses últimos dias
Deus nos falou “por meio do Filho” (1.2) e que “esta salvação" foi "primeira­
mente anunciada pelo Senhor” (2.3). Enquanto os apóstolos foram enviados
por Jesus, Jesus foi enviado diretamente de Deus. No Evangelho de João, Jesus é
caracteristicamente identificado como aquele a quem o Pai enviou (Jo 3.17,34;
5.36,38; 6.29,57; 7.29; 8.42; 10.36; 11.42; 17.3,8,18,21,23,25; 20.21).
Assim, o pregador corretamente reconhece Jesus como o apóstolo por
excelência. O título é apropriado para Jesus em Hebreus 1—4, pois Ele é com­
parado a outros mensageiros enviados por Deus, tais como profetas (1.1,2),
anjos (1.5-14) e Moisés (3.1-6; Westfall, 2005, p. 112). A palavra ou mensagem
de Deus é um tema proeminente nesses capítulos (1.1,2; 2.2-4; 3.5; 4.12,13).
Jesus é o “mensageiro” final da palavra de Deus (3.1 VC).
Os ouvintes também devem contemplar Jesus como sumo sacerdote.
Como apóstolo, Jesus representa Deus ao comunicar a palavra de Deus à hu­
manidade. Como sumo sacerdote, Ele representa Seu povo diante de Deus e
leva-o à presença de Deus. As principais funções sacerdotais de Jesus já foram
mencionadas: proporcionar expiação pelos pecados (1.3c; 2.17) e tornar as
pessoas santas (2.11).
Dada a singularidade desses títulos cristológicos, pode ser uma surpresa
que o pregador fale do apóstolo e sumo sacerdote da nossa confissão. Ao usar
o substantivo confissão com o artigo definido {tês homologias, a confissão)
141
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

ele denota não apenas o ato de confessar (que confessamos, da NVI), mas
também seu conteúdo. Isso não quer dizer que os primeiros cristãos confessa­
ram Jesus como Apóstolo e Sumo Sacerdote exatamente nesses termos. Se tais
designações fossem comuns, o autor dificilmente podería “ter muito a dizer”
mais tarde sobre Jesus como Sumo Sacerdote que seus ouvintes achariam difícil
de compreender (5.11).
No entanto, as funções sacerdotais de Jesus de poder salvador por meio da
expiação e intercessão celestial são inerentes às primeiras confissões cristãs. Es­
sas foram confissões de Jesus como o Cristo, o Filho de Deus, que veio de Deus
em carne (1 Jo 4.2,3,15; 2 Jo 7; G1 4.4; Fp 2.6-8), morreu para o perdão dos
pecados (1 Co 15.3; Cl 1.20), ressuscitou dos mortos (1 Co 15.4; Rm 10.9) e
foi exaltado ao céu (Fp 2.9-11; 1 Tm 3.16). A confissão cristã concisa e mais
primitiva de todas foi “Jesus é Senhor” (Rm 10.9; 1 Co 12.3; Fp 2.11).
O apóstolo e sumo sacerdote de nossa confissão é Jesus. Como em 2.9, o
nome de Jesus é reservado no final da frase para dar ênfase (veja a KJA de 3.1
para um reflexo da ordem das palavras gregas; -> 2.9 anotação complementar:
“Uso do nome ‘Jesus’ em Flebreus”).
ü 2 O pregador agora introduz uma comparação (synkrisis) entre Jesus e Moi­
sés. Tem sua base exegética em Números 12.7, aludido aqui e citado em 3.5.
Que Jesus foi fiel já foi descrito em 2.6-18. A identificação do Filho com a
humanidade por meio do sofrimento é o que o aperfeiçoou (2.10). Isso fez dele
um “sumo sacerdote misericordioso e fiel” que efetuou expiação pelos pecados
(2.17) e libertação do “medo da morte” (2.15,16).
Jesus foi fiel àquele que o havia constituído. A forma do verbo poieõ é
traduzida como “apontado” por praticamente todas as traduções (veja o mes­
mo uso em 1 Sm 12.6 LXX; Mc 3.14; At 2.36). O verbo pode ser traduzido
legitimamente como “feito”, com o sentido de “criado”, em contextos apropria­
dos (ex.: Gn 1.1 LXX). Recentemente, Luke Timothy Johnson tem favorecido
essa última tradução, uma vez que se encaixa no contexto anterior (2.10-18),
em que o Jesus humano é “certamente uma criatura” (Johnson, 2006, p. 107).
No entanto, a cláusula inicial em 3.2 não é independente, mas conectada
ao comando em 3.1 como segue: “Fixem os seus pensamentos em Jesus [...] que
foi fiel àquele que o havia constituído”. Consequentemente, o verbo (ou mais
precisamente o particípio poiêsantí) não é usado em um sentido absoluto ou
não qualificado (por exemplo, em Is 17.7 LXX). Crisóstomo explica: ‘“Quem
foi fiel’, diz ele, ‘Àquele que O fez’ — [O] fez o quê? ‘A póstolo e Sumo Sacer­
dote”’ (Crisóstomo, 1996, p. 390). O Filho é claramente distinguido dos seres
criados em 1.2^,10-12. Ele é tratado como “Deus” em 1.8. Ele está alinhado
142
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

com Deus, o construtor, contra a casa que é construída (= tudo), em 3.3,4.


Portanto, é mais provável que o autor esteja falando da nomeação de Cristo
para os ofícios de apóstolo e sumo sacerdote do que da criação de Sua natureza
humana (veja Koester, 2001, p. 244).
O ponto de comparação entre Jesus e Moisés é a fidelidade. Jesus foi fiel
assim como M oisés foi fiel. As falhas do legislador não foram ocultadas pelo
registro bíblico. Estas incluem o assassinato de um egípcio (Êx 2.11-15); sua
reticência e timidez em seguir as ordens de Deus para liderar o povo de Is­
rael (Êx 3—4); e suas ações iradas e presunçosas nas águas de Meribá, que o
desqualificaram de conduzir os israelitas à terra prometida (Nm 20.9-13). No
entanto, nenhuma menção delas é feita (aqui ou em Hb 11.23-28). Ter feito
isso teria sido inadequado para essa comparação retórica (-> 3.1-6 Por trás do
texto, anotação complementar: “Uso de comparação”).
O pregador se concentra, em vez disso, na qualidade virtuosa destacada
pelo próprio Deus no texto de Números 12. Nesse texto, Miriã e Arão, usando
o casamento de Moisés com uma mulher cuxita como pretexto, falaram contra
a primazia de Moisés como porta-voz de Deus (Nm 12.1,2). O próprio Senhor
defendeu Moisés, confirmando-o como o maior dos profetas (Nm 12.6-8),e
declarando que ele “é fiel em toda a minha casa” (Nm 12.7b).
Moisés foi fiel em toda a casa de Deus [lit., sua\. O referente preciso para
casa torna-se claro apenas em Hebreus 3.6b. De fato, o pregador explorará essa
figura multifacetada ao prosseguir com sua comparação.

"Casa" de Deus

A " c a s a [oikos]" d e D e u s p o d e s ig n ific a r m u ita s c o is a s d ife re n te s .


P o d e ría s ig n ific a r s im p le s m e n t e o t e m p lo , c o m o q u a n d o Je s u s s e re fe riu
a o t e m p lo c o m o " c a s a d o m e u P a i" (Jo 2 .1 6 ; v e ja Lc 2 .4 9 ) d e a c o r d o c o m o
u s o d o A T ( " c a s a d o S e n h o r" ; hb., bêt YHW H = gr. o ik o s k y r io u : Ê x 2 3 .1 9 ;
3 4 .2 6 ; D t 2 3 .1 8 ; 1 R s 3.1; 9.1; 10 .5 ).
" C a s a " p o d e re fe rir-s e à c o m u n id a d e d o p o v o d e D e u s ( " c a s a d e Is­
ra e l": Ê x 1 6 .3 1 ; R t 4 .1 1 ; 1 S m 7.2; SI 1 1 5 .1 2 ; Jr 3 1 .3 1 [ c ita d o e m H b 8.8];
O s 9 .1 5 ; M t 10 .6 ; 1 5 .2 4 ; A t 2 .3 6 ) ou à d in a s t ia d a v íd ic a d iv in a m e n t e f a v o ­
re c id a ( " c a s a d e D a v i": 1 S m 2 0 .1 6 ; 2 S m 7 .1 1 -2 9 ; 1 R s 1 2 .1 9 ,2 0 ,2 6 ; 2 R s
1 7 .2 1 ; SI 1 2 2 .5 ; Is 7 .2 ,1 3 ; 16 .5 ; 2 2 .2 2 ; Jr 2 1 .1 2 ; Z c 1 2 .7 ,8 ,1 0 ,1 2 ; 13 .1 ; Lc
1 .2 7 ,6 9 ; 2.4). A Igreja p r im it iv a t a m b é m c o n s id e r a v a a c o m u n id a d e c ris tã
c o m o a m o ra d a d e D e u s (1 C o 3 .9 -1 7 ; E f 2 .2 2 ; 1 T m 3 .1 5 ; 1 Pe 2.5; 4 .1 7 ).

143
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

O m u n d o c e le s t ia l, ou t o d o o u n iv e r s o c ria d o , p o d e r ía s e r re fe rid o
c o m o a " c a s a " d e D e u s (F ílo n , P o s t e r id a d e 5; P la n t a r 50; S o b r ie d a d e 62-
64; Sonhos 1 .1 8 5 ; v e ja A ttrid g e , 1 9 8 9 , p. 1 0 9 , n. 5 9 -6 0 ).
H e b re u s e x p lo r a e s s a ric a im a g e m e m 3 .1 -6 .
• E m 3 .2 , p o d e - s e a d iv in h a r q u e a c a s a d e D e u s s e re fe re a o p o v o
d e Isra e l (m a s v e ja a in t e r p r e ta ç ã o ra b ín ic a d e N m 1 2 .7 e m Tg.

N e o f.: " E m t o d o o m u n d o q u e c rie i, [M o is é s ] é f ie l” ).


• E m 3.3, e le re fe re -s e a u m a c a s a c o m o u m e d if íc io fís ic o .
• E m 3.4, a c a s a d e D e u s re fe re -s e a t o d o o c o s m o s ("tu d o ").
• A lg u é m p o d e a té p e r g u n t a r s e a p r o m e s s a d in á s t ic a a D a v i ("E u
o fa re i fie l e m m in h a c a s a ” [1 C r 1 7 .1 4 L X X ]) ou a p r o m e s s a d e
u m a c a s a s a c e r d o t a l ("E u s u s c ita r e i [...] u m s a c e r d o t e fie l [...] e
e d ific a r e i u m a c a s a f ie l" [1 S m 2 .3 5 L X X ]) e s tá n o fu n d o d o s p e n ­
s a m e n t o s d o p re g a d o r.
• T a m b é m n ã o s e d e v e e s q u e c e r q u e a s a s s o c ia ç õ e s d e " c a s a " ou
d e p a r e n t e s c o d e J e s u s c o m o F ilh o e a c o m u n id a d e c re n te c o m o
S e u s irm ã o s e s t ã o p r ó x im a s e p e r fe it a m e n t e c o m p r e e n s ív e is
d e n tro d e u m c o n t e x to g re c o - ro m a n o .
N o fin a l, a m e t á fo r a f a m ilia r p a re c e p r e v a le c e r , p o is a c o m u n id a d e
c ris tã é id e n t if ic a d a c o m o a c a s a d e D e u s e m H e b re u s 3 .6 . N o e n ta n to ,
v is t o q u e o F ilh o é o h e rd e ir o d e t o d a s a s c o is a s (1 .2 b ) e q u e S e u s irm ã o s
tê m a p r o m e s s a d e u m a p a rte na h e ra n ç a e te r n a (1.1 4; 6 .1 2 ; 9 .1 5 ), a c a s a
d e D e u s f in a lm e n t e a s s u m e p r o p o r ç õ e s s o b re n a tu r a is .

S 3 O pregador explica a razão pela qual {para [gar\ \ não traduzido na NVI)
seus ouvintes devem voltar seus pensamentos para o apóstolo e sumo sacerdote
de nossa confissão (veja 3.1,2): Porque Jesus foi considerado digno de maior
glória [doxa; honra] do que M oisés, da m esma form a que o construtor de
uma casa tem m ais honra [timê\ do que a própria casa. Na antiga sociedade
Mediterrânea, a honra era um valor fundamental. Ter um bom nome, ser con­
siderado e estimado dentro de sua comunidade, era uma grande preocupação
para os homens e suas famílias. Aqui o autor de Hebreus usa o vocabulário
(como já foi observado) associado a esse valor social.
Que Jesus foi considerado digno (um verbo passivo perfeito, êxiõ ta i )
provavelmente significa um passivo divino. Isso indica que Deus o considerou
digno. O pregador já identificou quando ocorreu essa determinação divina.
E verdade que o Filho irradiou eternamente a “glória [doxa]” de Deus (1.3a).
Mas a exaltação de Cristo marcou o ponto em que Deus o considerou digno de

144
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

maior honra (1.4,5). Em 2.7 e 9, a exaltação de Jesus é descrita como “coroado


de glória [doxa\ e honra [time] ”.
Não é apenas como Filho, mas como Sumo Sacerdote, que Deus consi­
derou Jesus digno de m aior glória e m ais honra. A mesma terminologia de
honra reaparece em 5.4,5. Ali, o pregador observa que ninguém toma sobre
si a “honra [time]” do sumo sacerdócio. Nem Cristo “tomou sobre si a glória
[heauton edoxasen}”. Deus conferiu-a a Ele nas declarações do Salmo 2.7 (veja
Elb 1.5) e do Salmo 110.4.
Embora a linguagem usada aqui seja sugestiva, não devemos antecipar-nos
à lógica do pregador. As implicações da fidelidade de Jesus como Filho sobre a
casa de Deus tornam-se explícitas apenas em 3.6. Por enquanto, o argumento
é simplesmente que Jesus foi considerado mais digno de honra do que Moisés:
O construtor de uma casa tem mais honra do que a própria casa. Isso é um
truísmo, uma máxima que os leitores teriam reconhecido e com a qual teriam
prontamente concordado. O poeta cômico Menandro, entre outros, dizia que
“o trabalhador é maior que a obra” (Justino Mártir, 1 Apol. 20). Fílon, da mes­
ma forma, escreveu que “aquele que obteve a posse é melhor do que a posse, e
aquele que fez do que aquilo que ele fez” (Plantar, p. 68; veja Migração, p. 193).
ÍS4 A imagem concreta de uma casa como edifício estende-se a toda a criação.
A evidência do pregador é outro ditado comum: Pois toda casa é construída
por alguém. Pessoas razoáveis — tanto antigas como modernas — concorda­
riam, como afirma Fílon, que uma casa cuidadosamente construída implica um
arquiteto e um construtor (Int. Al. 3.98). M as Deus é o edificador de tudo
aponta para Deus como o criador de todas as coisas. Inferir do cosmos que
existe um criador também era um argumento comum (veja Fílon, Int. Al. 3.97-
100; Migração 193; Querubins 126-127; vejaSS 13.1-9).
Vamos resumir a lógica do pregador até este ponto: tanto Jesus como Moi­
sés podem ser comparados como pessoas que foram fiéis a Deus (3.2). Mas a
honra de Jesus é maior do que a de Moisés na mesma medida em que o cons­
trutor de uma casa é mais digno de honra do que a própria casa. De fato, a
diferença de honra é tão vasta quanto aquela entre Deus e a criação (3.3).
Mas como isso pode ser assim? Como Jesus e Moisés podem ser fiéis a
Deus, todavia Jesus — como Deus — de alguma forma transcende a ordem
criada? Leitores atentos anteciparão a resposta encontrada em 3.5,6. Como
Filho, Jesus compartilha a glória de Deus (1.3a), foi instrumental na criação
(1.2c, 10) e feito herdeiro e governante de tudo (panta; veja 1.2b\ 2.8,9).
■ 5 -6 a A comparação entre Moisés e Jesus é levada a uma conclusão culminan­
te em 3.5,6a. O contraste entre eles é marcado gramaticalmente, como capturado

145
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

na REB: “Moisés, de fato, foi fiel \k a iM ouses m e n pistos] [...] mas Cristo [Chris­
tos de] é fiel” — observe os hom ens [...] de {por um lado [...] por outro lado )
contraste também encontrado em 1.7,8. Hebreus cita livremente Números 12.7,
reordenando a LXX para enfatizar dois pontos-chave no texto bíblico:
H o therapõn m ou M ouses en holõ tõ oikõ m o u pistos estin.
Meu servo Moisés em toda a minha casa éfiel (Nm 12.7 LXX).
K a i M ouses m en pistos en holõ tõ oikõ auto u hõs therapõn.
Moisés, de fato, fo i fie l em toda a sua casa [de D eus] como servo (Hb 3.5).
Primeiro, o pregador antecipa o fato de que Moisés foi fiel. Ele faz isso
porque essa é a virtude comum entre Moisés e Jesus em torno da qual gira sua
comparação (veja 3.2). Segundo, ele adia o papel de Moisés como servo para
o final da cláusula, pois isso estabelece o principal ponto de contraste entre
Moisés e Jesus.
O vocábulo usado para servo (therapõn ) não é a palavra normal para um
“escravo \doulos\ comum”. Difere de doulos porque pode referir-se ao serviço
prestado livremente, em oposição à escravidão forçada ou herdada (Liddell e
Scott, 1995, “therapõn ”, p. 363). Therapõn é frequentemente usado em contex­
to religioso ou cultuai (ou seja, de alguém que presta serviço a uma divindade)
e é particularmente aplicável a Moisés na literatura bíblica, pseudepigráfica do
AT e cristã primitiva (BDAG, p. 453). Seu cognato therapeia pode referir-se a
uma “família” ou “servos da casa” (Lc 12.42 NVT). Tais conexões domésticas
são bastante apropriadas em Hebreus 3.5. Embora therapõn assuma diferen­
tes tons de significado do que outras palavras para “escravo” ou “servo [doulos,
diakonos, h ypêretésf, e, no caso de Moisés, conote uma forma mais nobre de
serviço, permanece o fato de que therapõn ainda denota um servo.
O papel subordinado de Moisés é expresso como dando testem unho
do que havería de ser d ito no futuro. O testem unho na NVI traduz uma
frase preposicional que significa propósito {eis m a rtyrio n , “para testemunho”
[JFA, ACF, ARA, ARC, ARIB, NAA]). O serviço fiel de Moisés a Deus deu
testemunho das ações futuras de Deus em Cristo. Moisés preferiu “por causa
de Cristo, [...] a desonra” aos tesouros do Egito, “porque contemplava a sua
recompensa” (1 1.26). Então, o que havería de ser d ito n o futuro {tõn lalethê-
som enõn) não pode ser outra coisa senão o fato de que Deus “falou [e la lê se n f
por intermédio do Filho nestes últimos dias (1.2a): a salvação “primeiramente
anunciada \laleisthai\ pelo Senhor” (2 3 b ) . Mais tarde, isso será associado à
pregação da mensagem do evangelho (4.2,6) e ao descanso prometido “falado
porteriormente” {elalei m eta ta u ta [4.8]) por Deus.

146
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

A declaração contrastante sobre Cristo em 3.6^ é mais sucinta no texto em


grego do que na NVI. M as Cristo é seguido imediatamente de filho sobre a
casa de Deus. O pregador usa elipse, na qual a frase é fiel é omitida, mas implí­
cita. Isso aguça os dois contrastes com Moisés que seguem a omissão.
O título C risto aparece pela primeira de doze vezes em Hebreus. Aqui
provavelmente não há conotações messiânicas explícitas; é simplesmente um
nome próprio. O holofote, em qualquer caso, é direcionado a Cristo como um
Filho. Isso está em contraste marcante, primeiro, com o papel de Moisés como
servo. Em segundo lugar, enquanto Moisés serviu fielmente na casa de Deus,
e Cristo governa como Filho sobre a casa de Deus. A preposição epi (sobre)
é empregada aqui como um marcador de poder, autoridade ou controle de al­
guém sobre algo (BDAG, p. 365), como em 10.21. Portanto, para traduzir a
preposição para que se diga que Cristo está “encarregado da” (GW, NLT; ou
“tem domínio sobre” [TYNDALE]) casa de Deus está bem no alvo.

Filhos vs. escravos nos tempos bíblicos

O s le ito re s a n tig o s t e r ia m im e d ia t a m e n t e c o m p r e e n d id o o c o n t r a s t e
d r a m á t ic o e n tre filh o s e e s c r a v o s . O p a p e l e o s ta tu s d o s e s c r a v o s v a r ia ­
v a m n o m u n d o a n tig o . P o r e x e m p lo , h a v ia u m a g r a n d e d if e r e n ç a e n tre
e s c r a v o s q u e t r a b a lh a v a m e m m in a s n o s p o s to s a v a n ç a d o s d o Im p é rio
R o m a n o e e s c r a v o s q u e s e r v ia m na c a s a im p e ria l. N o e n ta n to , e m t o d a s
a s c a s a s , o s filh o s n a s c id o s liv re s s e m p r e t in h a m u m a p o s iç ã o s u p e r io r
a o s e s c r a v o s , m e s m o q u e e s t e s t iv e s s e m c o n q u is ta d o s u a lib e r d a d e . O s
e s c r a v o s lib e r to s n u n c a p o d e r ía m liv ra r-s e d a m a r c a d a e s c r a v id ã o , s e n d o
c h a m a d o s d e lib e r to s , n ã o d e h o m e n s liv re s.
O c o n t r a s t e fo i o b s e r v a d o p o r Je su s: "O e s c r a v o n ã o te m lu g a r p e r­
m a n e n t e na f a m ília , m a s o f ilh o p e r te n c e a e la p a ra s e m p r e . P o rta n to ,
se o F ilh o o s lib e r ta r, v o c ê s d e fa to s e r ã o liv r e s " (Jo 8 .3 5 ,3 6 ). O c o n t r a s t e
t a m b é m o p e r a na p a rá b o la d e Je s u s s o b re o s la v r a d o r e s e m M a r c o s 12.
D e p o is d e e n v ia r s e r v o s p a ra r e c o lh e r s u a p a rte d a c o lh e it a d a v id e ir a
s e m s u c e s s o , o p r o p r ie t á r io f in a lm e n t e e n v io u s e u f ilh o a m a d o , d iz e n d o :
"A m e u filh o re s p e it a r ã o " (M c 1 2 .6 ).
G á la t a s d e p e n d e m u ito d a d is t in ç ã o e n tre o f ilh o n a s c id o liv re e o s e s ­
c r a v o s (G l 4 .1 -7 ,2 1 -3 1 ) . A a d o ç ã o c o m o filh o s é u m d o s m a io r e s b e n e fíc io s
d a s a lv a ç ã o (R m 4.5; 8 .1 5 ,2 3 ; E f 1.5). D a m e s m a fo rm a , a f ilia ç ã o d e j e s u s
e a p a r t ic ip a ç ã o d o s c r e n t e s na fa m ília e h e ra n ç a d iv in a s ã o t e m a s fo r t e s
e m H e b re u s (v e ja B o y d , 2 0 1 2 ).

147
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

ü 6 b Aqui, o propósito da comparação entre Moisés e Jesus e as imagens da


“casa” nos versículos 1-6 finalmente se torna claro. Mais uma vez, a exposição
bíblica e o argumento retórico sustentam o encorajamento pastoral. Com as
palavras e esta casa som os nós (lit., cuja casa \oikos\ somos), o povo de Deus
se revela como a “casa” de Deus (BKJ).
A participação contínua na família de Deus é condicional: Se é que nos
apegam os. O verbo traduzido como apegam os (katechõ ) ocorre novamente
em exortações em 3.14 e 10.23, assim como o verbo similar krateõ, “apegar-se
firmemente” (4.14; veja 6.18). Esse tipo de condição, expressada novamen­
te em 3.14, prepara o cenário para as advertências contra a apostasia que se
seguem imediatamente (veja especialmente 3.12; 4.1,11). Tal advertência apa­
receu anteriormente em 2.1 -4 e ocorrerá de forma repetida (6.1-11; 10.19-39;
12.15,16,25-29).
A condição de perseverar complementa a ordem em 3.1 de que eles fixem
suas mentes em Jesus como o Apóstolo e Sumo Sacerdote de sua confissão.
Jesus tem maior honra do que todos os mensageiros anteriores de Deus (in­
cluindo Moisés). E Seus irmãos e irmãs compartilham dessa honra. Uma vez
que Jesus não se envergonhou de chamá-los de irmãos (2.14), libertou-os do
medo escravizador da morte (2.15) e expiou seus pecados (que, uma vez, acen­
deram a ira de Deus, 2.17), é justo que eles agora se mantenham firmes em seus
plenos direitos como filhos de Deus.
Isso requer manter a nossa coragem. A palavra coragem (parrêsia ) é mais
bem traduzida como confiança (NVI, ACF, ARC, ARIB, BKJ, JFA, TB) ou
ousadia [ARA, NAA]. A palavra grega transmite o sentimento interior de
confiança e a ousadia exterior de falar livremente. Todo cidadão nascido li-
vare tina o direito de falar livremente na assembléia pública. Em Hebreus, tal
ousadia se aplica aos filhos de Deus em sua aproximação a Deus em adoração e
oração (4.16; 10.19), porque suas consciências foram purificadas da contami­
nação do pecado (9.14; 10.22). A ousadia também é necessária no contexto de
serem tratados de forma vergonhosa pela comunidade mais ampla ao seu redor
por causa de sua confissão de fé, para que recebam a recompensa prometida
(10.32-35; veja Koester, 2001, p. 247-248).
Eles também devem manter sua exultaçáo (kauchêm a [ARA, NAA; NVI,
gloriam os) ou “orgulho” (NAB, NET, NRSV; “glória” [ACF, ARIB, JFA]).
Isso pertence firmemente ao contexto das culturas de honra e vergonha. O au­
tor não se refere à arrogância vazia e pecaminosa, mas ao orgulho legítimo que
os crentes devem ter por serem membros da família de Deus.

148
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

A base desse orgulho justificável é a esperança da qual n os gloriam os.


Este é (lit.) o orgulho da esperança (to kauchêm a tês elpidos ) ou o orgulho ba­
seado na esperança. O conteúdo da esperança dos crentes é o seu “chamado
celestial” (-» 3.1). Isso envolve o privilégio de entrar na presença de Deus agora
(6.18,19; 7.19; 10.19-23) e, no futuro, realizar o fim de nossa esperança, que é
a salvação final, a herança eterna prometida (6.11; veja 6.9,12; 9.15).
A fidelidade do Filho resultou em glória e salvação para o povo de Deus.
Isso deve ser alcançado pela determinação ousada e fiel dos próprios ouvintes,
em vez de medo e vergonha diante da adversidade (“retroceder” na incre­
dulidade [10.37-39]). O pregador enfatiza a importância da perseverança e
obediência fiéis nas advertências seguintes (3.7—4.11), mas especialmente na
conclusão de seu sermão (10.19— 13.25).

A PARTIR DO TEXTO

A comparação de Hebreus entre Moisés e Jesus apoia uma ordem em 3.1


e uma condição em 3.6. A ordem e a condição são, por sua vez, tão aplicá­
veis aos cristãos hoje como eram ao público original. A ordem explica como
permanecer fiel ao nosso chamado santo e celestial. A chave para o senso de
pertencimento do cristão à família de Deus — a “casa” de Deus — é manter
Jesus fixo em nossas mentes.
Isso não é manter uma ideia de Jesus como Apóstolo e Sumo Sacerdote.
É concentrar-se na pessoa de Jesus, nosso revelador e intermediário com Deus
Pai. Jesus condescendeu em “participar” em nossa fragilidade humana (2.14),
para que pudéssemos “participar” de Sua glória celestial (3.1; veja 3.14). Jesus,
o Filho e “herdeiro de todas as coisas” (1.2), dignou-se a chamar-nos de “ir­
mãos” e irmãs (2.11) e “filhos” de Deus (2.13). E Ele tem sido fiel como nosso
Salvador e vencedor para livrar-nos do escravizador “medo da morte” (2.15).
Por intermédio de Jesus, o Apóstolo, Deus nos falou única e definitivamente
(1.2a). Como nosso “misericordioso e fiel sumo sacerdote”, Jesus morreu para
expiar nossos pecados e nos tornar santos (2.10,17).
A dimensão pessoal de nossa confissão é exibida não apenas na qualida­
de de fidelidade de Jesus e em Seu status de Filho obediente de Deus, mas na
obrigação imposta aos que fazem parte da família de Deus. A condição em
3.6 é real, porque a reivindicação divina de honra se aplica a cada membro da
família de Deus. A insistência dos reformadores de que não temos uma con­
dição verdadeira aqui, mas apenas uma descrição da vida cristã autêntica (ex.:

149
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Stedman, 1992, p. 50), perde o ponto do desafio do pregador. Ele não reco­
nhece a obrigação intensamente pessoal que incumbe aos crentes. Se alguém
fosse admitido como filho adotivo na casa do imperador, então agir de manei­
ra desesperada, temerosa e fraca diante da oposição ou da crítica expressaria
deslealdade e traria desonra para toda a família. Seria, portanto, uma afronta
pessoal ao próprio imperador e podería ser motivo legítimo para ser deserdado
como membro da família.
Assim também o pregador descreve a atitude e o comportamento honro­
sos para os membros da família divina. Como alguém pode ser um membro
da família de Deus e reivindicar Jesus, o Senhor universal (veja 2.8), como seu
irmão, mas agir com covardia e desespero quando testado? Ainda mais à luz
do próprio exemplo de fidelidade de Jesus. Expresso positivamente, como os
membros da família de Deus podem ser outra coisa senão esperançosos, cora­
josos e orgulhosos de sua associação com Cristo, o Senhor? Qualquer coisa a
menos seria um grave insulto à honra de Deus e à do Filho de Deus.
Considerando que Jesus é o Filho de Deus por natureza, os crentes são
filhos de Deus por meio da graça divina e da adoção (Agostinho, Na fé e no
credo 4.6, em Heen e Krey, 2005, p. 44). Nenhum de nós tem o direito ineren­
te de fazer parte da família de Deus, especialmente em nosso estado distante,
contaminado e não redimido. Deus comprou nossa herança pela morte de Seu
Filho fiel. O pregador aos Hebreus não conhece nenhuma doutrina de eleição
incondicional que assegure nossa salvação eterna. A salvação final, portanto,
requer fidelidade ao chamado gracioso de Deus. Não há garantia de que os ver­
dadeiros cristãos responderão natural e inexoravelmente com lealdade a Deus.
Assim, tal doutrina tornaria desnecessárias a condição em 3.6 e as advertências
em Hebreus.
Os leitores modernos devem entender o que era uma segunda natureza
para uma leitura antiga do desafio do pregador: é impensável e desastroso res­
ponder à graça de Deus de uma forma que envergonharia a casa de Deus. É o
mesmo que apostasia, rejeição total de nossa herança. Mesmo se Deus fosse
misericordiosamente reter Seu julgamento sobre a apostasia, respostas vergo­
nhosas e não confiáveis à graça de Deus claramente tornam alguém merecedor
do julgamento divino (veja 3.16-19; 6.7,8; 10.26-31,35-39). Mais tarde, Esaú
será apresentado como um exemplo de alguém cujo comportamento imoral
foi a ocasião de sua perda irrevogável da bênção e herança de Deus (12.16,17).
Mas aqui, em 3.6, a ênfase é positiva: “E esta casa somos nós, se é que nos ape­
gamos firmemente à confiança e à esperança da qual nos gloriamos”.

150
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

2. Entrar no descanso de Deus: advertência e promessa


(3.7-4.13)

a. O p e rig o d e d e s a fia r a v o z d e D e u s (3.7-19)

POR TRÁS DO TEXTO

Hebreus 3.7—4.13 é um m idrash homilético estendido do Salmo 95.7-11


(LXX). Está ancorado no texto bíblico (citado em Hb 3.7-11) por meio da
repetição de versículos-chave (3.15; 4.3,5,7) e vocabulário ao longo de todo o
texto.
Hebreus 3.7-19, entretanto, é a primeira de duas partes claramente defini­
das (a segunda está em 4.1-11, seguida por uma conclusão de todo o m idrash
em 4.12,13). Começa com a citação do Salmo 95 em Hebreus 3.7-11, seguida
por uma advertência contra a incredulidade em 3.12-19. A advertência é mar­
cada por um inclusio — uma seção que começa e termina com o mesmo ponto:
3.12 “Cuidado \blepete\, irmãos, para que nenhum de vocês tenha um
coração perverso” e de incredulidade \apistia s\.
3.19 “Vemos \blepom en\, assim, que foi por causa da incredulidade
[apistian ] que não puderam entrar.”
A palavra “incredulidade” é importante. Ela serve não apenas como um
marcador de limite para essa subunidade, mas também como um indicador de
seu tema. Isso é ressaltado pelo uso do substantivo apistia apenas nesses dois
versículos em Hebreus. Também cria um contraste marcante com a fidelidade
de Cristo em 3.1-6 (“fiéis \pistos\ ” [3.2,5,6]).

M idrash

O s u b s t a n t iv o h e b r a ic o m id r a s h é d e r iv a d o d o v e r b o d a ra sh , "p ro c u ­
ra r [p o r u m a re s p o s ta ] " . A s s im , m id r a s h s ig n ific a " in q u é r it o " , " e x a m e " ou
" c o m e n t á r io " . O te rm o , e n tã o , p o d e re fe rir-s e a u m m é t o d o d e p e s q u is a r
a s E s c r it u r a s ou à fo rm a re s u lt a n t e d e ta l e s tu d o . M id r a s h te m s u a s ra íz e s
no p ró p rio A T e é b e m a t e s t a d o n o NT, e m Q u m ra n , e m F ílo n e a b u n d a n ­
t e m e n t e na lit e r a t u r a r a b ín ic a (v e ja E v a n s , 2 0 0 6 , p. 3 8 1 ).
O m id r a s h r a b ín ic o d is p õ e d e q u a tro c a r a c t e r ís t ic a s p r in c ip a is : (1)
te m s e u p o n to d e p a rtid a n a s E s c ritu ra s ; (2) é c a r a c t e r is t ic a m e n t e h o ­
m ilé tic o ; (3) é c u id a d o s a m e n t e a t e n t o a o te x to ; (4) é u m a a d a p t a ç ã o a o

151
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

p re s e n te . E n tre e s te s , a a d a p ta ç ã o ou " a t u a liz a ç ã o " d a s E s c r it u r a s p a ra a


s it u a ç ã o c o n t e m p o r â n e a e "o a p e g o e c o n s t a n te re fe r ê n c ia à s E s c r it u r a s "
sã o e ssenciais. E s s e s d o is t r a ç o s s ã o "a p ró p ria a lm a d o p r o c e s s o m id rá s h i-
c o " (B lo c h , 1 9 5 7 , p. 1 2 6 5 -1 2 6 6 ) .
M id r a s h n ã o é u m m é to d o ú n ic o e d ire to . E n v o lv e m u ita s t é c n ic a s
in t e r p r e ta t iv a s q u e e n c o n t r a m o s e m H e b re u s . E s ta s in c lu e m o a r g u m e n to
d e m e n o r p a ra m a io r (q a l w a h o m e r ; p o r e x e m p lo , 2 .2 ,3 a ) e a n a lo g ia v e r ­
b a l (-» 4.3 Ó -5 a n o ta ç ã o c o m p le m e n ta r : "A n a lo g ia v e r b a l" ) .
H e b re u s 3 .7 .4 :1 3 é u m m id r a s h n o S a lm o 9 5 .7 -1 1 . O a u to r c o m p a r a
e s s e s a lm o c o m o u tro s t e x t o s d o AT, c o m o N ú m e ro s 1 4 e G ê n e s is 2 .2 . E le
t a m b é m d e s ta c a t e r m o s - c h a v e n o s a lm o p a ra t r a n s m it ir s u a m e n s a g e m :
" h o je " , " d ia " , " o u v ir" , " e n d u r e c e r " , " c o r a ç õ e s " , " r e b e liã o " , " d e c la r a d o s o b
ju r a m e n t o " , " r a iv a " , " e n t r a r " , " d e s c a n s o " (G. G u th r ie , 2 0 0 2 , p. 24).

Esse método de exegese, no estilo midráshico clássico, serve à exortação do


pregador ao seu público contemporâneo. Ele chama atenção para as escrituras
relevantes como a palavra viva, ativa e penetrante de Deus (4.12). Seu objetivo
é impedir que qualquer um deles siga o padrão de desobediência exibido na
geração do deserto de Israel (4.6,11).
A citação do Salmo 95.7-11 seria familiar aos ouvintes judeus por causa de
seu uso litúrgico frequente. O salmo era empregado no preâmbulo dos servi­
ços da sinagoga nas noites de sexta-feira e nas manhãs de sábado (Lane, 1991,
p. 85). A primeira parte (SI 95.1-7c) é um chamado comovente à adoração. A
segunda parte (SI 95.7c/-1 1), citada em Hebreus, é um apelo para não imitar o
exemplo da geração rebelde e de coração duro do deserto.
O texto hebraico do salmo refere-se aos locais de Massá e Meribá, onde
os israelitas brigaram por falta de água (Ex 17.1-7; Nm 20.1-13). Esses nomes
de lugares estão obscurecidos na LXX (-» No texto em Hb 3.8). Isso permite
que o pregador limite sua leitura do texto de acordo com outro conjunto de
alusões no salmo. O salmo alude ao incidente em Cades-Barneia em Núme­
ros 14, quando os israelitas se recusaram a entrar na terra prometida. Eles não
deram atenção à voz de Deus (Nm 14.22; veja SI 95.7d). Eles testaram Deus,
embora tivessem visto as obras milagrosas de Deus (Nm 14.22; veja SI 95.9).
E eles sofreram sob a ira de Deus por quarenta anos (Nm 14.34 LXX; veja SI
95.10) , o que Deus jurou que lhes aconteceria (Nm 14.21-23,28-30,35; veja SI
95.11) . O pregador parece ter essa cena em mente ao interpretar o Salmo 95.
Ele introduz mais ecos de Números 14 em sua série final de perguntas retóricas
(-> Hb 3.16-18).

152
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

Dessa forma, o propósito das exortações em nossa passagem, baseadas no


registro bíblico da incredulidade de Israel, é advertir os leitores contra seguir
o exemplo negativo da geração do deserto. Na mesma linha, depois de relatar
uma descrição multifacetada das falhas de Israel em 1 Coríntios 10.6-10, Pau­
lo escreveu enfaticamente: “Essas coisas aconteceram a eles como exemplos e
foram escritas como advertência para nós, sobre quem tem chegado o fim dos
tempos” (1 Co 10.11).
As advertências em Hebreus 3.6-19 são o outro lado da moeda de 3.1-6.
Lá, o pregador encorajou os leitores a “apegarem-se” à esperança (3.6) como
pessoas que “participam” no chamado celestial e confessar a Cristo como seu
Apóstolo e fiel Sumo Sacerdote (3.1). Hebreus 3.14 retoma os termos-chave
desses versículos quando recorda aos leitores que eles são “parceiros” (NRSV)
com Cristo (metochoi [veja 3.1]) desde que “mantenham” seu compromisso
(katechõ [veja 3.6]). Em 3.7-9, o contrário de manter a confissão é “desviar-se
do Deus vivo” em incredulidade (3.12,19).

NO TEXTO

β 7a O pregador introduz uma citação do Salmo 95.7-11 com as palavras:


Assim, com o diz o Espírito Santo. A citação parecería uma intrusão abrupta
se não fosse pela palavra inicial assim (dio). Essa conjunção inferencial liga as
palavras de advertência seguintes com as exortações anteriores para se concen­
trar em Jesus e manter a confiança e a esperança (3.1,6; veja 3.14). A fórmula
introdutória com o diz o Espírito Santo está em conformidade com o padrão
do pregador de citar as Escrituras como discurso divino (-» 1.5-14 anotação
complementar: “Citando as Escrituras em Hebreus”). O uso do verbo no tem­
po presente diz (legei) aponta para essa escritura como mais do que um registro
escrito das palavras de Deus no passado, mas a palavra “viva e ativa” de Deus
no presente (4.12,13).
■ 7 b -8 A citação do Salmo 95.7-11 começa com o apelo: H oje, se ouvi­
rem a sua voz, não endureçam o coração. Essas palavras solenes funcionarão
como um refrão em 3.15 e 4.7. A palavra hoje (sêmeron) — juntamente à sua
palavra cognata “dia [ f e r a ] ”; talvez sugerida pelo salmo em 3.8: tem po [lit.,
dia] de provação — ressoará como um carrilhão durante toda a exposição do
pregador. Isso atingirá uma nota ameaçadora de urgência (sêmeron [3.13,15];
hêmera [3.13]) ou um sinal de boas-vindas da promessa de Deus para o fim dos
tempos (sêmeron [4.7]; hêmera [4.4,7,8]).

153
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Corações endurecidos

A e x p re ssã o "e n d u re c e r o co ra çã o " ( s k lê r y n e in t ê n k a r d ia n ) , re p e tid a


t r ê s v e z e s e m H e b re u s (3 .8 ,1 5 ; 4 .7 ), t e m s u a o rig e m no AT. D e d e z e s s e te
o c o r r ê n c ia s na L X X , tr e z e a p o n t a m p a ra o e n d u r e c im e n t o d o c o r a ç ã o d e
F a ra ó (Ê x 4 .2 1 ; 7 .3 ,2 2 ; 8 .1 5 ; 9 .1 2 ,3 5 ; 1 0 .1 ,2 0 ,2 7 ; 1 1 .1 0 ; 1 4 .4 ,8 ,1 7 ), d u a s
p a ra o e n d u r e c im e n t o d o c o r a ç ã o d e o u tro s re is (D t 2 .3 0 ; 2 C r 3 6 .1 3 ; v e ja
1 Ed. 1 .4 6 ), e d u a s p a ra o e n d u r e c im e n t o d o c o r a ç ã o d o p o v o d e D e u s (SI
9 5 .8 ; Is 6 3 .1 7 ).
E x p r e s s õ e s c o g n a ta s o c o rr e m m e ia d ú z ia d e v e z e s na LX X : "o d u ro
de c o ra çã o [h o s k lé r o s tê n k a r d ia n ]" (Pv 1 7 .2 0 ), o a d je tiv o e m " c o r a ç ã o
d u ro [s k l ê r o k a r d io s ]" (P v 1 7 .2 0 ; E z 3 .7 ) e o s u b s t a n t iv o e m " d u re z a d e
c o r a ç ã o [s k l ê r o k a r d ia ]" (D t 1 0 .1 6 ; Jr 4 .4 ). N a s d u a s ú lt im a s p a s s a g e n s ,
a p a la v r a g r e g a t r a d u z a fr a s e h e b r a ic a : "O p r e p ú c io d o v o s s o c o ra ç ã o "
(A C F). S e m e lh a n t e a s e r d u ro d e c o r a ç ã o é s e r d e " d u ra c e r v iz ” (v e ja Ê x
3 3 .3 ,5 [A CF]; 3 4 .9 ; D t 9 .6 ,1 3 ; P v 2 9 .1 ; v e ja A t 7 .5 1 ) o u t e r u m " c o r a ç ã o d e
p e d r a " (E z 1 1 .1 9 ; 3 6 .2 6 ).
A lé m d e H e b re u s , n o NT, a d u r e z a d o c o r a ç ã o é m e n c io n a d a p r in ­
c ip a lm e n t e n o s E v a n g e lh o s . O te r m o s k lê r o k a r d ia ( " d u r e z a d e c o ra ç ã o "
[NVI, A C F , A R C , A R A , A R IB , N A A , KJA, JFA, ESKJ]) o c o rr e t r ê s v e z e s (M t 19.8;
M c 10 .5 ; 1 6 .1 4 ). O m e s m o c o n c e ito , e n v o lv e n d o c o g n a to s d o v e r b o p õ ro õ

( " e n d u re c e r , p e t r if ic a r " ) e m v e z d e s k lê r y n õ , o c o rr e p r in c ip a lm e n t e no
E v a n g e lh o d e M a r c o s (3.5; 6 .5 2 ; 8 .1 7 ; Jo 1 2 .4 0 ), b e m c o m o u m a v e z e m
E fé s io s (4 .1 8 ).
O e n d u r e c im e n t o d o c o r a ç ã o re fe r e -s e a u m a "fa lta d e re c e p t iv id a d e
p e r s is t e n t e " à v o n t a d e d e D e u s ( B e h m , 1 9 6 5 , p. 6 1 4 ). E m a lg u n s c a s o s ,
t a lv e z , e s te ja r e la c io n a d o à in s e n s ib ilid a d e o u f a lt a d e c o m p a ix ã o (M t
19 .8 ; M c 3.5; 1 0 .5 ). M a is f r e q u e n t e m e n t e é u m a re s is t ê n c ia o b s t in a d a a
D e u s. E n v o lv e u m a re c u s a e m o u v ir a v o z d e D e u s e r e b e liã o c o n tra a v o n ­
t a d e d iv in a (Ê x 7 .2 2 ; 8 .1 9 ; 9 .1 2 ; SI 9 5 .8 ; E z 3.7; H b 3 .8 ,1 5 ; 4 .7 ). Isso le v a
a o a m o r t e c im e n t o d a s s e n s ib ilid a d e s e s p ir it u a is d a p e s s o a , t o rn a n d o im ­
p o s s ív e l p e r c e b e r o u e n t e n d e r a v e r d a d e (M c 6 .5 2 ; 8 .1 7 ,1 8 ,2 1 ; Jo 1 2 .4 0 ).
D e a c o r d o c o m E fé s io s 4 .1 8 , a d u r e z a d e c o r a ç ã o e x p lic a a ig n o r â n c ia
s o b re a v e r d a d e d o e v a n g e lh o e n tre o s g e n tio s . E le s e s t ã o " o b s c u r e c id o s
n o e n t e n d im e n t o e s e p a r a d o s d a v id a d e D e u s " e, " t e n d o p e r d id o to d a
a s e n s ib ilid a d e " , m a n t id o s c a t iv o s d e p a ix õ e s c a ó t ic a s e in s a c iá v e is (Ef
4 .1 9 ; v e ja F ílo n , L e is E s p . 1 .3 0 5 ). U m " c o r a ç ã o d e p e d r a " e s tá a s s o c ia d o
à id o la t r ia e a im p u r e z a s e é c o n t r a s t a d o c o m u m " c o r a ç ã o d e c a r n e "
q u e o b e d e c e p e r fe it a m e n t e a o s m a n d a m e n t o s d e D e u s (E z 3 6 .2 5 -2 7 ; v e ja
Jr 3 2 .3 9 ,4 0 ) . O s d e c o r a ç ã o d u ro t a m b é m p o d e m s e r c o n t r a s t a d o s c o m
a q u e le s q u e t e m e m a o S e n h o r (P v 2 8 .1 4 ; v e ja H b 4 .1 [KJV, N A S B ]).

154
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

O s d e c o r a ç ã o d u ro e s t ã o " s e m p r e s e d e s v ia n d o " (H b 3 .1 0 ; Is 6 3 .1 7 ) e
d e s c r e n t e s d a P a la v ra d e D e u s (M c 1 6 .1 4 ; v e ja H b 3 .1 2 ,1 9 ). P r o v a v e lm e n ­
te a m e lh o r d e s c r iç ã o d a d u r e z a d e c o r a ç ã o e s te ja e m H e b re u s 3 .1 2 : t e r
" c o r a ç ã o p e r v e r s o e in c ré d u lo , q u e s e a fa s t e d o D e u s v iv o " . P e r m a n e c e r
n e s s a c o n d iç ã o é u m a p r o p o s ta a r r is c a d a (v e ja P v 2 8 :1 4 ; S ir 3 :2 6 -2 7 ). Isso
é ilu s tr a d o p e lo d e s a s tr e e m C a d e s - B a rn e ia , r e c o rd a d o e m H e b re u s 3 .1 6 -
18 (v e ja t a m b é m Sir. 1 6 .1 0 ; 4 6 .8 ). D a í a re p e tid a a d v e r t ê n c ia e m H e b re u s
3 e 4: " S e h o je , v o c ê s o u v ir e m a s u a v o z , n ã o e n d u r e ç a m o c o r a ç ã o " !

Com a declaração, com o na rebelião, durante o tem po de provação no


deserto, Hebreus segue o texto da LXX, que traduz em vez de reproduzir os
nomes descritivos de lugares encontrados no texto Hebraico. Afinal, Meri-
bá significa “disputa” (Êx 17.7; Nm 20.13; veja D t 33.8) ou rebelião (SI 95.8
LXX); e Massá, testar/tentar (Êx 17.7; D t 6.16; 33.8; Sl 95.8 LXX). A resul­
tante falta de precisão geográfica permite ao pregador refletir de forma mais
geral sobre a rebelião da geração do deserto, culminando em sua desobediência
em Cades-Barneia e exclusão da terra prometida (Nm 14).
71 9-10 O deserto é onde seus antepassados m e tentaram , p on d o-m e à
prova. Hebreus 3.9,1CD modifica o texto do Salmo 95.9,10^ de duas maneiras
significativas.
Primeira, o texto da LXX “tentaram, pondo-me à prova \epeirasan...
edokimasan]” é reformulado como tentado por provas (epeirasan... en doki-
masia; veja NASB). Isso transmite mais fortemente como os filhos de Israel
estavam colocando Deus à prova no deserto (veja Êx 17.2,7; Nm 14.22; Dt
6.16; Sl 78.18,41; 95.9; 106.14; 1 Co 10.9).
Segunda, a adição de que é p or isso ou assim (dio) em 3.10 altera o foco do
período de quarenta anos. O Salmo 95.10 identifica os quarenta anos como um
período em que Deus estava irado contra aquela geração. Mas, aqui, Hebreus
concentra-se mais nos quarenta anos como um período em que Israel testou
o Senhor, mesmo tendo visto o que Ele fiz (lit., visto minhas obras). Assim,
enquanto o Salmo 95.10 fala de quarenta anos de ira de Deus, Hebreus enfati­
za a resposta irada de Deus aos quarenta anos de provocação de Israel: Por isso
fiquei irado contra aquela geração. Em 3.17, porém, Hebreus volta à ênfase
do texto do salmo: “Contra quem Deus esteve irado por quarenta anos?”
Deus verbalizou (e disse) a fonte profunda e permanente de sua rebelião:
Os seus corações estão sempre se desviando. Isso significa que, no âmago
de seu ser, eles eram bastante suscetíveis a serem enganados ou iludidos. Eles

155
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

foram muito facilmente desviados da vontade revelada de Deus para eles. Isso
ocorreu porque eles não reconheceram os m eus cam inhos. (O emparelha-
mento de ignorância e desvio ocorre em 5.2; contraste as promessas da nova
aliança em 8.10,11; 10.16.) Por não seguirem as instruções de Deus, eles foram
deixados vagando no deserto, uma parábola apropriada da condição espiritual
interior dos israelitas, descrita anteriormente como dureza de coração (3.8).
H 11 O julgamento divino sobre a rebelião de Israel é pronunciado. Deus so­
lenemente declarou: Jurei (ACF, ARA, ARC, ARIB, BKJ, JFA, KJA, NAA;
[“declarei sob juramento” NIV]) na m inha ira. Quase se pode ouvir a exas­
peração: Jamais entrarão no m eu descanso. As palavras precisas do salmista
são: Se eles entrarem, no meu descanso, correspondendo exatamente a uma
expressão idiomática hebraica que expressa negação enfática. Isso é aposiopesis,
uma figura de linguagem em que a consequência da condição declarada é silen­
ciada devido à intensa emoção. A informação que faltava seria: “Que isso ou
aquilo aconteça comigo, se...” (veja Gn 14.23; Nm 14.30; 1 Sm 14.45).
O juramento de Deus efetivamente impediu aquela geração de ter o Seu
descanso, que no AT se referia à terra prometida (veja Êx 33.14; Dt 12.10;
25.19; Js 1.13,15; 21.44; 22.4; 23.1). A compreensão de Hebreus desse des­
canso como uma realidade divina e transcendente — a pátria celestial — se
tornará aparente em 4.1-11. O final da citação do salmo (SI 95.11 em Flb 3.11)
lembra os repetidos juramentos divinos em Cades-Barneia, proibindo a entra­
da dos desobedientes na terra (Nm 14.20-23,27-30,35; veja 32.10; Dt 1.34;
2.14). Essa cena dramática é um exemplo gráfico do julgamento de Deus em
Hebreus 3.16-18.
■ 12 Um midrash homilético na citação do salmo anterior abrange 3.12—
4.11. Os versículos 12-15 consistem em uma frase bem elaborada que exorta
os ouvintes a cuidarem do bem-estar espiritual uns dos outros. Eles devem
apegar-se coletivamente ao seu compromisso como parceiros de Cristo. Nos
versículos 12-15, o pregador adverte sobre a causa da falta de compromisso.
Nos versículos 16-18, ele fornece um exemplo das consequências da rebelião.
O pregador começa chamando a atenção de seu público: C uidado (blepe-
te\ “vede” [ACF]; “tende muito cuidado” [KJA]). Como em 3.1, ele dirige-se
a eles como irmãos. Também exorta a comunidade a preocupar-se com cada
pessoa entre si, para que não haja ninguém que copie o mau exemplo da gera­
ção do deserto. Há uma concentração de pronomes indefinidos em 3.12—4.11
(formas de tis, “alguém, qualquer um, certo”), que se referem a membros indi­
viduais da comunidade: nenhum (3.12,13; 4.1), “alguns” (4.6), “um” (4.11;
veja também 10.25; 12.15,16).

156
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

A família de Deus precisa certificar-se, para que nenhum de vocês tenha


um coração perverso e incrédulo, que se afaste do D eus vivo. Essa é uma
explicação/aplicação notavelmente concisa da advertência contra o endureci­
mento do coração (SI 95.8 em Hb 3.8).
Primeiro, o coração endurecido épecaminoso (ponêra). Enquanto a maio­
ria das outras versões traduzem isso com precisão como “perverso” (ARA,
ARIB, JFA, KJA, NVI, NVT, TB) ou “maligno/mau” (ACF, ARC, BKJ,
NAA), a traz perverso, o que chama a atenção para a conexão com o “engano
do pecado” em 3.13 (-»).
Segundo, é um coração incrédulo (apistia). Essa é a palavra operativa nessa
passagem, encontrada em Hebreus apenas em 3.12 e 19. Embora não apareça
no salmo, ela capta corretamente a avaliação de Deus sobre os filhos de Israel
em Cades-Barneia: “Até quando”, o Senhor disse, “este povo me tratará com
pouco-caso? Até quando se recusará a crer em mim, apesar de todos os sinais
que realizei entre eles?” (Nm 14.11). A deles não era meramente uma incre­
dulidade passiva ou falta de fé. Era uma descrença ou desconfiança ativamente
rebelde e desafiadora. Questionaram a fidelidade e a providência de Deus.
Terceiro, o resultado (que; “conduzindo você a” [ESV]) de ter um coração
tão mau e desconfiado é que ele se afasta do D eus vivo. Isso também significa
mais do que apenas uma “queda” (NASB; veja ESV, RSV). E a ação deliberada
de desviar (NVT), abandonar (VC) ou afastar-se de Deus (ARA, KJA, NAA).
A expressão “afastar-se de \apostênai a p o f (geralmente com “Senhor” [kynou]
ou “Deus” \theou\) ocorre frequentemente na LXX para referir-se à apostasia,
deserção ou revolta. A frase o D eus vivo acrescenta o sabor do AT à linguagem
do pregador (veja especialmente Nm 14.21,28). Também lorma uma ligação
com a conclusão do midrash em Hebreus 4.12,13, que começa com uma des­
crição da palavra de Deus como “viva” (4.12).
11 1 3 A exortação continua com ecos claros da citação do salmo em 2>.7b,8:
Todos os dias {kath’hekastên hêmeran) || durante o tem po [lit., dia; kata tên
hêmeran\ (3.8); hoje (sêmeron [também em 3.7/;]); endurecido (sklérynthê) ||
“endurecer [sklêrynête]” (3.8). O comando é para eles encorajem \parakaleite\
uns aos outros to d o s os dias. Eles devem engajar-se mutuamente na mesma
atividade em que o pregador está engajado em todo o seu sermão, que ele cha­
ma de “palavra de exortação [logos têsparaklêseos\” (13.22). No contexto atual,
a nuance precisa do imperativo parakaleite pode muito bem ser refletida na
NLT: “Vocês devem admoestar uns aos outros todos os dias” (veja Osborne,
2007a, p. 99-100).

157
HEBRHUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Um jogo de palavras reforça o comando. Eles devem admoestar ipa-


rakaleite, um composto dckaleõ, “chamar”) uns aos outros tod os os dias (kath
hekastcn hémeran; lit., de acordo com cada dia-, isto é, “todo dia” [NRSV])
enquanto for chamado \kaleitai\ hoje (.sêmeron). A palavra hoje, devidamente
contextualizada na NVI, será descompactada em 4.6-11 em termos da era final.
Durante “estes últimos dias” (b>1.2) temos uma última janela de oportunidade
para entrar no descanso divino.
A responsabilidade mútua consistente é necessária para minimizar o perigo
de apostasia para qualquer membro da comunidade: D e m od o que nenhum
de vocês seja endurecido. O instrumento de endurecimento é o engano do
pecado. A engano (apatê) do pecado também podería conotar sedução (“a
sedução do pecado” [NJB]). Isso pode envolver a personificação do pecado
como um poder sinistro que atrai os humanos para sua destruição. Portanto,
devemos resistir à sua tentação (veja 12.4).
Particularmente, esse pode ser o pecado (hê hamartia) de apostasia (t
12.1,4). Ele pode infiltrar-se na comunidade por meio de qualquer membro.
Como uma “raiz amarga”, contamina os outros (12.15) e sutilmente torna im­
possível ouvir a voz de Deus. Eventualmente, os indivíduos podem tornar-se
tão insensíveis que “se afastam” (2.1), “caem” (6.6) ou descobrem que “ficaram
aquém” da graça divina (4.1; veja 12.15). O pecado daapostasiaé tão perigoso
porque, de acordo com Hebreus, não apenas seu início é sutil, mas suas con­
sequências são terríveis e irreversíveis (veja 3.11,16-19; 4.5; 6.4-8; 10.26-31;
12.15-17).
M 14 O pregador agora muda dos imperativos da segunda pessoa em 3.12,13
(mas veja também 3.1: “fixem os seus pensamentos”) para a primeira pessoa do
plural (“nós”). A segunda pessoa dominou seu discurso direto até agora (veja
24,3,5,8,9; 3.6). Esse versículo remonta a 3.1 e 6. É um lembrete do status de
seus ouvintes como parceiros de Cristo (“que participam \metochoi\ no cha­
mado celestial” [3.1]). E reafirma a condição para manter esse status (-> 3.6):
Passamos a ser participantes \metochoi\ de C risto, desde que, de fato, nos
apeguem os (eanper... kataschõmen).
Passam os (gegonamen), ou melhor, nos tornamos, está no tempo perfei­
to. Isso indica que a parceria com Cristo é uma realidade que foi iniciada no
passado — talvez no batismo, mas, em todo caso, quando eles se tornaram par­
ticipantes (:metochoi) no Espírito Santo (6.4) — e continua no presente.
A condição para permanecer como parceiros de Cristo é intensificada pelo
uso de terminologia técnica empresarial. O verbo participar da NVI traduz
um substantivo que pode significar parceiros. Apegar (katechein) foi usado em
158
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON H EB REUS

contextos comerciais para manter ou reter a posse de propriedade. Firmemen­


te (bebaios [NVI, ACF]) é frequentemente aplicado à validade ou garantia de
um acordo legal ou contrato (veja 2.2), e até o fim (mechri telous) tem a ver
com até a data de sua rescisão (veja BDAG, p. 1041).

Parceiros de Cristo

S o m e n t e o c o n t e x to p o d e d e t e r m in a r s e m e to c h o i s ã o " c o m p a n h e ir o s "
c o m u n s (A C F , NVI; v e ja H b 1.9), ou a s s o c ia d o s , ou " p a r c e ir o s " (C E B , G N T ,
G W , LEB , N A B , N E T , N R S V ) n o s e n t id o le g a l fo rm a l (c o m o a q u i e m 3 .1 4 ).
N o s p a p ir o s a n tig o s , o te r m o é c o m u m e n t e u s a d o p a ra p a r c e ir o s d e n e ­
g ó c io s , c o m o a g r ic u lt o r e s , p e s c a d o r e s e e s p e c ia lm e n t e c o b r a d o r e s d e
im p o s to s (v e ja Lc 5.7). O s in ô n im o k o in õ n o i (lit., " p a r t ic ip a n t e s " ) t a m ­
b é m fo i u s a d o p a ra t a is " p a r c e ir o s " (v e ja L c 5 .1 0 ; v e ja M M , p. 4 0 6 ; S p ic q ,
1 9 9 4 a ).
D e a c o r d o c o m H e b re u s , o s p a rc e iro s d e C r is t o tê m p a r t ic ip a ç ã o n a s
r e a lid a d e s e s p ir it u a is d a e ra v in d o u r a . S o m o s " p a r t ic ip a n t e s [ m e t o c h o i] "

(A C F, A C R , A R IB , N A A , NVI, JFA, KJA, T B ) d o c h a m a d o c e le s t ia l (3 .1 ) e d o


E s p ír ito S a n to (6.4). N ó s " p a r t ilh a m o s e m t u d o q u e p e r te n c e a C r is to "
(3 .1 4 NLT). Isso p o r q u e E le " p a r tic ip o u [m e te s c h e n ]" na m o r t a lid a d e d e
c a r n e e s a n g u e d e q u e t o d o s n ó s " p a r t ic ip a m o s [ k e k o in õ n é k e n ] " e que­
bro u o p o d e r d a m o rte p o r m e io d e S u a p ró p r ia m o rte (2 .1 4 ). U m a v e z q u e
C r is to n o s f e z S e u s irm ã o s (2 .1 1 ,1 2 ,1 7 ; 3 .1 ) e m e m b r o s d a c a s a d e D e u s
(3.6), n ã o e s t a m o s is e n t o s d a s d if ic u ld a d e s d a d is c ip lin a d e q u e t o d o s
o s filh o s " p a r t ic ip a m [ m e t o c h o i] " (1 2 .8 N R S V ). C o n tu d o , ta l d is c ip lin a é
n e c e s s á r ia s e q u is e r m o s " p a r t ic ip a r [ m e t a la b e in ] " na s a n t id a d e d e D e u s
(1 2 .1 0 ). E d e v e m o s m a n t e r fir m e n o s s o c o m p r o m is s o c o m a p a rc e ria " a té
o f im " (3 .1 4 ) s e q u is e r m o s f in a lm e n t e r e c e b e r "a p r o m e s s a d a h e ra n ç a
e t e r n a " (9.1 5).

Os comentaristas têm se esforçado para entender a que é que os ouvintes


devem apegar-se. A NVI traduz tên archén tês hypostaseõs como a confiança
que tivem os nos princípio (compare “o princípio de nossa confiança” [BKJ]).
Isso traça um paralelo com a condição em 3.6.
Não há precedente antigo para traduzir hypostasis como confiança (CEB,
ACF, ACR, ARA, ARIB, BKJ, JFA, NVT, TB) ou “garantia” (NASB; veja
Lane, 1991, p. 82, n. q). O termo hypostasis refere-se “àquilo que está sob”,
portanto, “base”. Isso pode aplicar-se a qualquer coisa, desde um depósito

159
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

comercial até um ser essencial (para este último, o- 1.3a). Assim, “realidade”
(HCSB, NAB; “substância” [TYNDALE]) é uma tradução possível. Presumi­
velmente, essa seria a realidade da participação dos crentes na herança do Filho.
No entanto, hypostasis também é usada como termo técnico para uma
obrigação comercial, como a expectativa de aluguel devido ou de compromisso
com os termos de um empreendimento comercial (veja BDAG, p. 1040-1041).
O agrupamento de outros termos de negócios (-» anteriormente e anotação
complementar: “Parceiros de Cristo”) inclina a escala em favor de interpretar
tên archên tês hypostaseõs como compromisso inicial (compare “convicção ori­
ginal” [NIV11]). Isso está de acordo com a advertência em 3.12 para evitar uma
disposição má e infiel “que se afasta” de Deus, bem como as exortações para
manter nossa confissão (4.14; 10.23; veja 3.1,6).
A condição para a parceria contínua com Cristo é manter firm em ente
nosso compromisso desde o seu “princípio \archê}” (ACF. ARIB, ARA, ARC,
BKJ, NVI) até o fim (,telos; veja 6.11; para o jogo de palavras aqui, 5.9 anota­
ção complementar: “Brincando com começos e fins”).
1 5 Esse versículo serve como conclusão para as exortações em 3.12-14 e
uma transição para as perguntas finais em 3.16-18. Por isso é que se diz intro­
duz uma porção repetida do salmo (SI 95.7-11 em Hb 3.7^,8) que foi o foco
das advertências do pregador contra a apostasia. A citação duplicada apresenta,
por sua vez, dois termos (ouvir e rebelião) que serão retomados na pergunta
de abertura em 3.16.
UI 1 6 Em 3.16-18, o pregador usa uma técnica retórica (lat. subiectio; gr. hypo-
phora/anthypophora-, Rhet. Her. 4.23.33-24.34) em que um orador coloca uma
série de perguntas retóricas. Estas fornecem um movimento vigoroso e for­
ça cumulativa ao argumento. Aqui há três conjuntos de perguntas e respostas
(dois pares de perguntas retóricas em 3.16,17; uma pergunta retórica de duas
partes em 3.18).
O movimento no questionamento segue o da citação do salmo: da rebe­
lião (3.8a || 3.16^) à ira de Deus (3.10a || 3.17a) ao juramento divino (3.11 ||
3.18a). As respostas às perguntas são elaboradas a partir dos trágicos aconteci­
mentos em Cades registrados em Números 14. Os personagens envolvidos eram
aqueles que saíram do Egito com Moisés (Hb 3.16b || Nm 14.2,3,13,19,22;
veja 26.4). Seu pecado (veja Nm 14.18,19,34,40) incorreu no julgamento di­
vino, com seus cadáveres caindo no deserto (Hb ?>A7b || Nm 14.29,32). Esse
foi o resultado do juramento de Deus para impedi-los de entrar no descanso
de Deus (SI 95.11; ou seja, a terra, Nm 14.30) e enviá-los para peregrinar no
deserto (Nm 14.33) por causa de sua desobediência (Nm 14.43).
160
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

A primeira pergunta em Hebreus 3.16λ ecoa dois termos-chave da repe­


tida citação do Salmo 95 em Hebreus 3.15: Quem foram os que ouviram
[,akousantes\ e se rebelaram \parepikranan\ ? A importância da resposta com fé
ao que se ouve será crucial para a segunda metade do midrasb do pregador (veja
4.2,3,7). N ão foram todos os que M oisés tirou do Egito? (3.16^). De fato,
aqueles rebeldes eram “todos os israelitas” (Nm 14.2) que desejavam retornar
ao Egito (Nm 14.3,4).
H 1 7 Contra quem Deus esteve irado durante quarenta anos? Aqui o pre­
gador segue mais diretamente o Salmo 95.10, que fala de quarenta anos de ira
sobre aquela geração, em vez de sua própria reorganização em Hebreus 3.9 (-»).
Números 14.33,34 (LXX) e 32.13 também falam claramente de quarenta anos
sob a ira feroz de Deus.
N ão foi contra que pecaram , cujos corpos caíram no deserto? Deus
nivelou Seu julgamento sobre aqueles que pecaram . O registro da rebelião em
Cades relata como indivíduos responsáveis com vinte anos ou mais sofreriam
por seus pecados, um ano para cada um dos quarenta dias gastos explorando
a terra (Nm 14.28-35). Seus filhos (Calebe e Josué) viveríam para ver a terra
prometida, mas suas carcaças (kõla, cadáveres insepultos [BDAG, p. 579], um
sinal de grande desonra) cairíam no deserto (Nm 14.29,32,33).
K 1 8 A pergunta final preocupante é: E a quem jurou que nunca haveríam
de entrar no seu descanso ? Não foi àqueles que foram desobedientes ? Tan­
to o Salmo 95.11 quanto Números 14.21-23,28-30 registram o juramento de
Deus de impedir que aquela geração perversa entrasse na terra. O Salmo 95 não
se refere explicitamente àqueles que foram desobedientes {tois apeithêsasin),
mas, em Números 14.43 LXX, os rebeldes são claramente tratados como aque­
les que “se afastaram do Senhor em desobediência [,apestraphête apeithountes
kyriõ]”. Deuteronômio 1.26,27 e 9.23 (LXX) também caracteriza o incidente
em Cades-Barneia como um ato de desobediência.
O antigo e importante manuscrito JB1'1tem a expressão “aos incrédulos
\apistêsasin]” em vez de àqueles que foram desobedientes (3.18). A varian­
te textual provavelmente não é original. Mas é interessante à luz da mudança
de referência para “incredulidade” no versículo seguinte. Etimologicamente, a
transição da desobediência para a infidelidade é mais fácil em grego do que em
português. Como Attridge observa, “‘desobediência’ (apeitheia) é, de fato, não
ser persuadido, um fracasso em chegar à ‘fé’ (pistis)” (1989, p. 121).
H 1 9 Ao concluir a primeira parte do midrasb no Salmo 95.7d-11, o pregador
observa (vemos) por que a geração do deserto não foi capaz de entrar na terra

161
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

prometida: Por causa da incredulidade (apistia). O início da exposição do


pregador advertiu contra um “coração perverso e incrédulo {apistia]” (3.12).
Assim, as terríveis consequências para a apostasia em 3.16-18 devem permane­
cer como um lembrete sóbrio para os hebreus manterem o seu compromisso
com a esperança em Cristo. A promessa de entrar no descanso de Deus será en­
fatizada na segunda metade do midrash (4.1,3,5,6,10,11). Mas a salvação final
é reservada para aqueles que creem (4.2,3) e não seguem o padrão de desobedi­
ência deixado pelos filhos de Israel (4.6,11).

A PARTIR DO TEXTO

A primeira parte de Hebreus ( l . l —4.13) enfatiza, do começo ao fim, a


importância de dar ouvidos à Palavra de Deus. De repente, o chamado se inten­
sifica nos capítulos 3 e 4. O pregador chama seu público para ouvir, acreditar
e manter sua fidelidade a Cristo, ou arriscar as consequências por não fazê-lo.
O que impressiona os ouvidos modernos, e é bastante desanimador, é o
apelo ao medo (desenvolvido em 4.1,11). Hebreus usa a lição objetiva dos israe­
litas rebeldes, a quem Deus jurou que não entraria na terra prometida e cujos
cadáveres caíram no deserto.
Um professor meu na faculdade ampliou o terror dessa lição apontando
para as palavras de ira de Deus contra a geração do deserto que “me tentaram
estas dez vezes” (Nm 14.22 ACF). Ele explicou: “Quando eles tentaram Deus
pela primeira vez, eles não perceberam que tinham apenas nove vezes restan­
tes. Quando o tentaram pela segunda vez, eles não perceberam que restavam
apenas oito vezes...”.
Vivemos em uma época em que as pessoas parecem desejar limites cada
vez maiores para seu mau comportamento e menos (se houver) consequências
para elas. Isso foi traduzido em algumas formas populares de cristianismo. A
mensagem da Bíblia é, muitas vezes, reduzida a nada mais do que graça e amor.
Pouco é dito sobre os horrores do pecado e da morte dos quais precisamos de
libertação, ou sobre Deus, não apenas como amoroso e perdoador, mas tam­
bém como santo e justo.
Hebreus contesta isso com uma visão de Deus que C. S. Lewis ecoa em O
Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa. As crianças expressam medo de conhecer
Aslan, perguntando se ele é “seguro”. “Seguro?” O Sr. Beaver responde: “Qupm
falou em segurança? Claro que ele não está seguro. Mas ele é bom. Ele é o rei,
eu lhe digo”.

162
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

Há muitas coisas, incluindo leões, que devem encher-nos apropriadamen­


te de medo. Quem, por exemplo, seria tão imprudente a ponto de afirmar que
não há motivo para temer tocar no “terceiro trilho” de um metrô ? Da mesma
forma, em Hebreus, um temor saudável de Deus é importante para suas exor­
tações: “Terrível coisa é cair nas mãos do Deus vivo” (10.31); “Deus é fogo
consumidor” (12.29).
Ironicamente, o medo do julgamento divino sobre a incredulidade e a de­
sobediência, ou a perspectiva de perder a experiência de participar do descanso
de Deus (veja 4.1,11), deveria motivar-nos a agarrar a confiança e a esperança
que temos por meio de nossa parceria com Cristo (3.1,6,14; 4.16). E impor­
tante esclarecer que Hebreus não promove um medo servil — como o medo
da morte, da qual os crentes foram libertos (2.15). Muito pelo contrário, ele
promove um compromisso corajoso com Deus. Como Aristóteles sabiamente
ensinou, a coragem não é uma completa ausência de medo. Pelo contrário, é a
resistência a perigos assustadores precisamente porque se teme algo pior. Por
exemplo, um homem corajoso enfrentará a morte em batalha, porque teme
algo pior: a perda de sua honra {Et. Nic. 3.6.3,8).
É necessário fazer mais duas observações. Primeira, a parceria com Cristo,
que inclui nossa participação em Sua santidade (2.11), é o que nos dá a con­
fiança para entrar diante do trono de um Deus maravilhoso e santo (4.16). O
pregador terá muito mais a dizer sobre os benefícios do ministério sumo sacer­
dotal de Cristo nos capítulos subsequentes.
Segunda, a resposta apropriada ao perigo potencial de perder o descan­
so de Deus por causa da incredulidade não é simplesmente querer “salvar a
própria pele”. Em vez disso, devemos ter uma preocupação terrível uns pelos
outros (veja 3.12,13; 4.1,11). O crente não está sozinho nessa peregrinação
em direção ao descanso final de Deus. Inclusive, não há substituto para enco­
rajamento mútuo, confissão de pecado e prestação de contas a outros crentes.
Seja nas pequenas reuniões da igreja doméstica da Igreja Primitiva (veja 10.25;
Banks, 1994, p. 26-36), seja nas reuniões de classe de Wesley ou nos pequenos
grupos de estudos bíblicos de hoje, a preocupação próxima e profunda pelos
outros sempre foi um meio indispensável para construir uma fé forte e perse­
verante entre os cristãos.
Hebreus fornece um corretivo necessário para abordagens egocêntricas da
“experiência” cristã. A abordagem de Hebreus para o cuidado pastoral é um
modelo de “vvamos” avançar em direção à maturidade, como continuaremos a
ver no capítulo 4.

163
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

b. A d v e rtê n c ia p a ra n ã o fic a r a q u é m do d e s c a n s o p ro m e tid o


(4.1-13)

POR TRÁS DO TEXTO

Hebreus 4.1-13 completa o sermão em miniatura no Salmo 95.7-11 em


Hebreus 3.7—4.13. A primeira metade acentuou a infidelidade da geração do
deserto, que a impediu de entrar na terra prometida (3.7-19). A segunda meta­
de (4.1-11) baseia-se nas terríveis consequências (esp. 3.16-18) daquele antigo
exemplo de desobediência. O midrash termina em 4.12,13 com uma ode à pa­
lavra de Deus como uma espada do julgamento divino.
Hebreus 4.1-11 é uma unidade bem organizada, composta por duas
subunidades. O conjunto é marcado por um inclusio de advertências comple­
mentares. Assim, a unidade repete o mesmo ponto no início e no fim:
• Portanto, [...] cuidemos [Phobéthõmen oun\ para que nenhum
[mêpote ... tis] de vocês [...]_fique aquém (hysterêkenai) (4.1).
• Façamos, portanto, todos os esforços \Spoudasõmen oun\ [...] para
que ninguém fin a m ê ... tis] caia (pese) (4.11).
Compare a advertência semelhante em 3.12 (“Cuidado, [...] para que ne­
nhum \mêpote estai hen tini\ de vocês [...] se afaste”).
As duas subunidades (4.1-5,6-11) são demarcadas por referências à pre­
sente oportunidade de entrada no descanso de Deus. A abertura para cada uma
incorpora expressões semelhantes:
• Portanto [oun\ uma vez que a promessa de entrar \eiselthein eis] em
seu descanso ainda permanece \kataleipomenês\, tomemos cuidado
para que nenhum [tis] de vocês tenha ficado aquém dela. Pois tam ­
bém nosfoi pregado o evangelho [euêngelismenoi'] [...] (4 .1 ,2 a:).
• “Portanto \oun\ desde que” [NIV11] “resta [apoleipetai\ entrarem
[eiselthein eis] alguns [tinas] naquele descanso, e aqueles a quem an­
teriormente as boas novas foram pregadas [euangelisthentes] não
entraram, por causa de sua desobediência” (4.6).
Podemos catalogar e comentar as expressões mais importantes ou corres­
pondentes:
• O descanso prometido “permanece [kataleipomenês]” (4.1) ou “resta
Dapoleipetai]” (4.6); um verbo que reaparece estrategicamente na infe­
rência sumária de 4.9.
• A entrada no descanso é denotada pela expressão idêntica (eiselthein
eis, “entrar”) em 4.1 e 4.6 e, mais uma vez, na admoestação final (4.11).

164
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

(Referências semelhantes para entrar no descanso pontuam o midrash:


3.18,19; 4.3 [duas vezes], 5,6,10. O aoristo infinitivo eiselthein ocorre
também em 3.19; -» 4.6,7 anotação complementar: “Encadeamento”).
• A promessa de descanso é denominada como o evangelho pregado em
4.2 e 6, as únicas ocorrências de euangelizõ (“pregar o evangelho”) em
Hebreus.
Um dos objetivos do pregador em 4.1-11 é manter a esperança de que
a promessa de entrar no descanso de Deus permaneça aberta. No entanto, a
oportunidade só pode ser aproveitada por aqueles que são fiéis a Deus (4.1-3).
A segunda subunidade (4.6-11) é marcada por um inclusio. As únicas duas
ocorrências em Hebreus do substantivo usado para “desobediência [apeitheia]”
podem ser encontradas em 4.6 e 11. Isso retoma a nota sobre desobediência
em 3.18 (o verbo apeitheõ; veja 11.31). A mesma técnica de enquadramento é
usada em 3.12,19, onde as duas únicas ocorrências da palavra “incredulidade
[apistia] ” aparecem em Hebreus. Essas palavras de alerta do pregador destacam
o perigo da infidelidade e da desobediência por arruinar as perspectivas de en­
trar no descanso.
Hebreus 4.12,13 forma a pedra angular, não apenas para o midrash no Sal­
mo 95 em 3.7—4.13, mas para todo o sermão até esse ponto (Pfitzner, 1997, p.
83; -> No Texto sobre 4.12). Também é marcado por um inclusio que abrange
dois usos diferentes da mesma palavra {logos: “palavra” [4.12^]; “prestar con­
tas” [4.13£]). A responsabilidade pela “mensagem [logos]” (2.2) foi o principal
impulso da conclusão do exordium em 2.1-4. Agora está novamente na conclu­
são desse “segundo exordium”.
O foco aqui, porém, está no poder da palavra de Deus para penetrar, dis­
cernir e expor os pensamentos mais íntimos do coração. Essa ode à palavra de
Deus é a contrapartida da citação do Salmo 95.7-11 em Hebreus 3.7-11 (Attri-
dge, 1989, p. 133). A palavra de Deus nas Escrituras brilhou como uma espada
naquele refrão de escrutínio: “Hoje, se vocês ouvirem a sua voz, não endureçam
o coração” (3.7,15; 4.7; veja 3.13).
“Descanso” é o tema de destaque em 4.1-11. O substantivo katapausis
(“descanso”, “lugar de descanso”) ocorre oito vezes (3.11,18; 4.1,3 [duas vezes],
5,10,11), o verbo katapauõ (“parar”, “descanso”) três vezes (4.4,8,10; BDAG,p.
523-24), e os raros sabbatismos (“descanso sabático”) uma vez (4.9). O tema é
introduzido na primeira parte do midrash (3.11,18), mas é explicado mais de­
talhadamente na segunda (4.1-11). O pregador tem duas mensagens principais
sobre esse descanso. Elas se relacionam, portanto, com a natureza e o tempo do
descanso.

165
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Descanso sabático e mundo vindouro


H e b re u s n ã o fo i o p r im e ir o n e m o ú lt im o a v e r a im a g e m b íb lic a
d o d e s c a n s o s a b á t ic o c o m s ig n ific a d o e s c a t o ló g ic o . E s c r it o r e s ju d e u s e
c r is tã o s n o p e r ío d o in t e r t e s t a m e n tá r io f a la v a m d o " d e s c a n s o ” na e ra v in ­
d o u ra : "E o s s a n t o s s e re fr e s c a r ã o n o É d e n ; o s ju s t o s s e re g o z ija rã o na
N o v a J e r u s a lé m " (T. D ã 5 .1 2 ); "É p a ra v ó s q u e o p a ra ís o se a b re , [...] a e ra
v in d o u r a e s tá p r e p a r a d a , [...] u m a c id a d e é c o n s t ru íd a , o d e s c a n s o é d e ­
s ig n a d o " (4 E d . 8 .5 2 ; v e ja 2 B a r. 7 3 .1 ; T. L e v i 1 8 .9 ). U m te x t o e x p lic a q u e
"o d e s c a n s o n o s é t im o d ia é u m s ím b o lo d a r e s s u r r e iç ã o d a e ra v in d o u r a " ,
p o is "n o s é t im o d ia o S e n h o r d e s c a n s o u d e t o d a s a s s u a s o b r a s " (V.A.E.
5 1 .2 ; v e ja 2 E n . 4 2 .3 ).
A id e ia d o S h a b a t c o m o u m a " im a g e m d o m u n d o v in d o u r o " (G n R a b .
1 7 .1 2 a ) c o n tin u o u e n tre o s ra b in o s ju d e u s . O c â n t ic o d o S h a b a t , S a lm o 92 ,
re c e b e u a d e s c r iç ã o : " E s t e s a lm o é t a m b é m p a ra o S h a b a t p o r v ir, p a ra o
d e s c a n s o d a v id a e t e r n a " (T a m id 7.4), o u "o d ia d o S h a b a t , é o d ia q u e é
in t e ir a m e n t e d e d e s c a n s o [...]; m a s o s ju s t o s p e r m a n e c e m s e n t a d o s c o m
s u a s c o ro a s e m s u a s c a b e ç a s e s e d e le it a m n o e s p le n d o r d a S h e k in a h "
C A b o t 1). D e a c o r d o c o m o u tra t r a d iç ã o , D e u s c rio u s e t e e ra s: s e is p a ra a s
id a s e v in d a s (d e p e s s o a s ) , m a s a p e n a s a s é t im a " é in t e ir a m e n t e S h a b a t
e d e s c a n s o na v id a e t e r n a " (P ir q e R . E l. 1 9 .9 d: u m a v is ã o s e m e lh a n t e é
re fle tid a na o b ra c ris tã p r im it iv a , B a r n . 1 5 .4 ,5 ).
H e b re u s p a re c e p e r t e n c e r a e s s a c o rr e n t e d e in t e r p r e ta ç ã o q u e v ê
o d e s c a n s o d o S h a b a t c o m o u m a re a lid a d e e s c a t o ló g ic a . P a ra m a is in ­
f o r m a ç õ e s s o b re a s o r ig e n s ju d a ic a s e c r is tã s r e fe r e n te s a o " d e s c a n s o " ,
v e ja A ttrid g e , 1 9 8 9 , p. 1 2 6 -1 2 8 ; S p ic q , 1 9 5 3 , 2 .9 5 -1 0 4 ; -> 4.3 Ó -5 a n o ta ç ã o
c o m p le m e n ta r : " D e s t in o e te r n o d a g e r a ç ã o d o ê x o d o " .

Primeiro, no que diz respeito ao tempo, o pregador defende a proposição


de que a promessa de entrada no descanso é uma oportunidade presente. A
proposição de que o descanso “permanece” é apresentada em 4.1, reiterada
em 4.6, então declarada como conclusão em 4.9. Em 4.3*2 ele afirma que os
crentes “entram” (tempo presente) no descanso. O pregador emprega um ar­
gumento cronológico, apontando para o fato de que as obras de Deus foram
“terminadas desde a criação do mundo” (4.3c), e Ele descansou “no sétimo dia”
(4.4). O descanso criacional de Deus permanece aberto mesmo agora, visto
que “muito tempo depois” Deus designou “um determinado dia, [...] hoje”
(4.7). A conquista de Canaã por Josué não podería ter cumprido a promessa

166
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

divina de descanso; caso contrário, Deus não teria falado “posteriormente”


sobre outro “dia” (4.8). “Assim, ainda resta um descanso sabático para o povo
de Deus” (4.9).
Segundo, a natureza do descanso é mais claramente definida. A promes­
sa de descanso é um anúncio de boas novas (4.2,6), que devem ser atendidas
(4.2,7c). Ela deve ser recebida com fé (4.3), e não com desconfiança (4.2) e
desobediência (4.6,11). O descanso é identificado como o descanso do próprio
Deus “no sétimo dia”, quando “Deus descansou de toda a obra que realizara”
(AAb). E por isso que é chamado de “descanso sabático” (4.9). Quando os cren­
tes entram nesse descanso, como Deus descansou, eles também descansam de
seu trabalho (4.10).
De acordo com uma antiga leitura patrística de 3.7—4.11, há três “des­
canso” em Hebreus. Primeiro, o Shabat, no qual Deus descansou das obras
da criação. Segundo, Canaã, a Terra Prometida. Finalmente, há “um terceiro
e mais perfeito descanso”, o Reino dos éus (Fócio, Fragmentos da Epístola aos
Hebreus 4.3-11). Pais da Igreja, como Crisóstomo, Teodoreto e Efrém, o Sírio,
também sustentavam essa visão (veja Heen e Krey, 2005, p. 60-61). Foram se­
guidos, por exemplo, por Bengel (1887, 4:378-379), Wesley (s.d., 570-571) e
Whedon (1880, p. 6667). William Fane expressa sucintamente esta linha de
interpretação: “A teologia do descanso desenvolvida em 4.1-11 leva em conta o
padrão de arquétipo (descanso primordial de Deus, v. 4), o tipo (o assentamen­
to da terra sob Josué, v. 8) e o antítipo (a celebração do Shabat da consumação,
v. 9)” (1991, p. 104).
Essa interpretação está sujeita a algumas modificações importantes. Pri­
meira, o autor de Hebreus destaca o caráter escatológico do descanso. Na época
do NT, o descanso de Deus tornou-se associado com a Jerusalém celestial e
o santuário celestial, ou mais geralmente com o mundo vindouro. Hebreus
abraça essa compreensão escatológica. E instrutivo que a imagem do descanso
esteja confinada exclusivamente ao midrash em 3.7—4.13. Em outros lugares
em Hebreus, a mesma promessa de salvação é expressa em figuras que enfati­
zam suas dimensões futuras e transcendentes.

Descanso e salvação em Hebreus


" D e s c a n s o ” c o r r e la c io n a - s e c o m o u t r a s im a g e n s d e s a lv a ç ã o d e s c r i­
ta s c o m o fu tu r a s ( " p o r v ir " ) ou t r a n s c e n d e n t e s ( " c e le s t ia l" ) e m H e b re u s .
E x is te m re a lid a d e s fu tu ra s , c o m o "o m u n d o q u e há d e v ir " (2 .5 ), p o d e r e s
d a e ra v in d o u r a (6.5 ), c o is a s b o a s p o r v ir (1 0 .1 ) e a c id a d e p o r v ir (1 3 .1 4 ).

167
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

S e u c a r á t e r t r a n s c e n d e n t e é e x p r e s s o e m r e fe r ê n c ia s a c h a m a d o c e le s t ia l
(3.1 ), " d o m c e le s t ia l" (6.4 ), s a n t u á r io c e le s t ia l (8.5 ), " c o is a s q u e e s t ã o n o s
c é u s ” (9 .2 3 ), p á tria c e le s t ia l (1 1 .1 6 ), e " J e ru s a lé m c e le s t ia l” (1 2 .2 2 ).
O d e s c a n s o p o d e s e r c o m p a r a d o c o m "a p r o m e s s a d a h e ra n ç a e te r­
n a " (9.1 5; v e ja 6 .1 2 ; 1 0 .3 6 ) o u s a lv a ç ã o (1 .1 4 ; v e ja 9 .2 8 ). É u m a e n tra d a
na g ló r ia (2 .1 0 ) o u n o " s a n t u á r io in te rio r, p o r t r á s d o v é u " (6 .1 9 ), o n d e
Je s u s já e n tro u c o m o n o s s o p r e c u r s o r (6 .2 0 ) e c a m p e ã o (2 .9 ,1 0 ; 1 2 .2 ).
O d e s c a n s o s e c u m p r e no re in o in a b a lá v e l (1 2 .2 8 ), a q u e la " c id a d e p e r­
m a n e n t e " (1 3 .1 4 ) c o m fu n d a m e n t o s s ó lid o s , c u jo " a r q u ite t o e e d if ic a d o r
é D e u s " (1 1 .1 0 ). O d e s c a n s o , p o rta n to , é u m a d a s m u ita s im a g e n s q u e
m o s t ra m o c a r á t e r m u ltif a c e t a d o d e n o s s a e s p e r a n ç a e s c a t o ló g ic a (ve ja
L in c o ln , 2 0 0 6 , p. 95; d e S ilv a , 2 0 0 0 a , p .1 6 3 ).

Uma segunda modificação relacionada diz respeito à ligação entre o des­


canso prometido do Salmo 95 e o descanso do Shabat de Deus em Gênesis
2.2. O texto de Gênesis estabelece o próprio descanso de Deus como o arqué­
tipo do descanso prometido falado por intermédio de Davi. No entanto, não
é provável que o estabelecimento de Israel em Canaã seja um tipo de descanso
escatológico em Hebreus.
O pregador se concentra no fracasso da geração do deserto em entrar no
descanso de Deus (3.11,16-19; 4.2,3,5,6). De fato, ele identifica-a expressa­
mente como um “exemplo de desobediência” (4.11). Além disso, ele considera
a conquista sob Josué como não proporcionando descanso (4.8). Ele não apon­
ta para nenhum aspecto da provisão de descanso de Deus após a conquista. Ele
nem mesmo menciona o santuário no monte Sião como o lugar de descanso
de Deus (Dt 33.12 LXX; SI 132.8,13,14), depois de Deus ter dado ao povo
descanso de todos os seus inimigos (1 Rs 8.56). Tal referência teria tido im­
plicações tipológicas consideráveis, como o tabernáculo faz mais tarde (veja
Hb 8.2,5; 9.1,24; 10.1). Mas esse tipo de desenvolvimento tipológico apenas
diminuiría o forte contraste que está por trás da advertência nessa passagem.
O pregador quer que os ouvintes evitem o antigo padrão de rebelião e, em vez
disso, avancem pela fé para entrar no descanso de Deus.

NO TEXTO

1 1 Por meio do uso de uma partícula inferencial (oun, visto que), essa adver­
tência está ligada ao exemplo de advertência anterior (3.12-19, esp. v. 16-19).
De maneira retórica clássica, o pregador emprega um argumento de pathos: ele

168
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

apela à forte emoção humana para persuadir seus leitores (Johnson, 2006, p.
124). Aqui essa emoção é o medo, evocado pela primeira palavra desse versí­
culo (phobêthõmen). Traduções como v a m o s to m a r c u id a d o (“vamos cuidar”
[NRSV]) ou “devemos ter cuidado” (NVT; “em guarda” [NAB]) são muito
fracas. Temamos (ACF, ARA, ARC, ARIB, BKJ, JFA, KJA, TB; veja NLT)
e “tenhamos cuidado” (NAA) estão no alvo. As consequências da apostasia da
geração do deserto devem servir de advertência. Como Calvino observa (1976,
p. 45), Paulo emite uma advertência semelhante sobre um “endurecimento”
mais recente em Israel (veja Rm 11.25); “Porém, foram cortados devido à in­
credulidade, [...] não se orgulhe, mas tema” (Rm 11.20).
O verbo phobêthõmen (temamos) é “mais enérgico” do que blepete (“cuide
disso”) em FFebreus 3.12. O uso da primeira pessoa do plural (va m o s) ressalta
a solidariedade de todos os fiéis em tal temor (veja 3.13; Spicq, 1953, 2.79).
Todos os crentes são libertos do medo da morte (2.15) ou dos poderes hu­
manos (11.23,27; 13.6), mas não do temor do Senhor. Flebreus invoca um
senso apropriado de medo diante daquele “a quem havemos de prestar contas”
(4.13), particularmente em passagens exortatórias (ex.: 10.27,31; 12.21; sobre
o tema do medo, veja Gray, 2003; Koester, 2001, p. 90).
Os cristãos devem ter uma preocupação acentuada por cada membro da
Igreja. Isso é semelhante à diretriz de Paulo para que “ponham em ação a sal­
vação de vocês [isto é, da comunidade] com temor e tremor” (Fp 2.12). Eles
devem trabalhar para impedir q u a lq u e r u m d e vocês (tis ex hymõn-, algum) de
participar da experiência fatídica daquela geração desobediente que não che­
gou além do limite da terra prometida.

"Vamos..."
Q u a n d o o s a u to r e s g r e g o s q u e r ia m e x o r t a r o s le it o re s a ju n ta re m -
-se a e le s e m s u a d e c is ã o d e e m p r e e n d e r u m c u rs o d e a ç ã o , e le s p o d ia m
e m p r e g a r u m a fo rm a g r a m a t ic a l c o n h e c id a c o m o s u b ju n tiv o e x o rta tiv o .
É e s s e n c ia lm e n t e e q u iv a le n t e a u m im p e ra tiv o , m a s na p r im e ir a p e s s o a
d o p lu ra l (W a lla c e , 1 9 9 6 , p. 4 6 4 ). N o r m a lm e n t e a f ó r m u la " v a m o s ..." é
u s a d a p a ra t r a d u z ir t a is e x o r t a ç õ e s p a ra o p o r tu g u ê s . É u m a e x p r e s s ã o
f a v o r it a e m H e b re u s , o c o rr e n d o c o m m a is fr e q u ê n c ia n e s s a c a r ta d o q u e
e m q u a lq u e r o u tro liv ro d o N T ( d o z e v e z e s ).
C o m o u m d is p o s it iv o re tó ric o , é a lt a m e n t e e fic a z . E le p e r m it e q u e
o o r a d o r e m it a u m c o m a n d o v ig o r o s o s e m " r e b a ix a r " o p ú b lic o . A s s im , o
p r e g a d o r e x p r e s s a s o lid a r ie d a d e a o s s e u s le ito re s , c o m o a lg u é m q u e e s tá
ju n to d e le s s o b a a u to r id a d e d a P a la v ra d e D e u s.

169
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Subjuntivos exortativos em Hebreus

V a m o s... H e b re u s
te m a m o s (i.e., " m e d o " ) 4.1
" e s fo rc e m o -n o s po r e n tra r n e sse d e s c a n so ” 4 .1 1
" a p e g u e m o - n o s c o m to d a a fir m e z a à fé q u e 4 .1 4
p r o fe s s a m o s ”
" a p r o x im e m o - n o s d o tro n o d a g r a ç a c o m t o d a a 4 .1 6
c o n fia n ç a "
" a v a n c e m o s p a ra a m a t u r id a d e " 6.1
" a p r o x im e m o - n o s d e D e u s " 1 0 .2 2
" a p e g u e m o - n o s c o m fir m e z a à e s p e r a n ç a q u e 1 0 .2 3
p r o fe s s a m o s "
" c o n s id e r e m o - n o s u n s a o s o u tro s p a ra 1 0 .2 4
in c e n t iv a r - n o s a o a m o r e à s b o a s o b r a s "
" c o r r a m o s c o m p e r s e v e r a n ç a a c o rr id a q u e n o s é 12 .1
p r o p o s ta "
" s e j a m o s a g r a d e c id o s " 1 2 .2 8
" s a ia m o s a té e le , fo ra d o a c a m p a m e n t o , 1 3 .1 3
s u p o r t a n d o a d e s o n ra q u e e le s u p o rto u "
" o f e r e ç a m o s c o n t in u a m e n t e a D e u s u m s a c r if íc io 1 3 .1 5
d e lo u v o r "

A presente oportunidade de entrarmos no descanso é identificada como


uma promessa. Há mais ocorrências da palavra prom essa (epangelia) em He­
breus do que em qualquer outro livro do N T (quatorze vezes; compare com
Gálatas, dez vezes; Morris, 1981, p. 39). O caráter esperançoso da entrada no
descanso está de acordo com a maneira como o autor fala em outros lugares
da natureza da esperança cristã. Como verdadeiros descendentes de Abraão
(6.13,15; veja 2.16), os crentes são herdeiros da promessa (6.12,17). A pro­
messa é uma “herança eterna” (9.15), não concretizada na vida dos antigos fiéis
(7.6; 11.9,13,17,33,39), mas recebida por todos os crentes na vinda de Cristo
(10.36,37; veja 9.28; 11.40).
A promessa ainda está d e p é (kataleipomenês; nos foi deixada). O verbo
kataleipõ significa “deixar para trás, deixar remanescente” (Günther e Krienke,
1979, p. 247) ou “remanescente” (BDAG, p. 521). O mesmo verbo é encon­
trado, com o mesmo sentido, em Romanos 11.4: “Foi deixado e reservado para

170
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

nós” (Bengel, 1877, 4:378). O verbo cognato apoleipõ (“permanecer”) é co­


locado estrategicamente em 4.6 e 9 para enfatizar o ponto de que a porta da
oportunidade permanece aberta. A forma composta diferente aqui, em 4.1,
(/kataleipomenés) pode ter sido escolhida para produzir assonância (rima de
palavra) com katapausin (descanso), e um jogo de palavras com hysterêkenai
(falhado): a promessa é deixada de lado (kataleipomenés), por isso temamos
que ninguém seja deixado para trás (hysterêkenai).
A última parte desse versículo (pense que tenha falhado) deu origem a
interpretações conflitantes. O debate envolve o significado de duas palavras
gregas (dokeõ e hystereo) e se resume a duas principais opções interpretativas.
(1) E uma reafirmação destinada a dissipar a noção equivocada de alguém
que “perdeu o barco”. O verbo dokeõ seria traduzido como “pensar, supor” e
hystereõ, “chegar tarde demais, ser deixado para trás” (Spicq, 1953, 2:80; Spicq,
1994d, 428, n.18). Isso se reflete na NJB: “Nenhum de vocês deve pensar que
ele chegou tarde demais” (veja GW).
É difícil conciliar essa visão com o contexto, no qual soam fortes adver­
tências sobre o perigo de ser repetida a apostasia fatal da geração do deserto.
Observe particularmente as admoestações paralelas em 3.12 e 4.11 (veja tam­
bém 3.6). A própria frase em 4.1 fala contra essa interpretação. Seria de esperar
“portanto, não temamos... \mê oun phobêthõmen\\ em vez da exortação ao
medo que encontramos aqui (Lünemann, 1890, p. 477; veja Attridge, 1989,
p. 124). O autor não está acalmando os nervos ou apenas corrigindo equívo­
cos sobre o momento do descanso, mas causando preocupação e exortando ao
progresso para entrar nele.
(2) E um aviso contra as terríveis consequências de não entrar. Hysterêke­
nai é traduzido na maioria das traduções como tenha falhado, “ter falhado”
(ARA, ARIB, JFA, NYT, TB; veja KJA) ou “deixou de alcançá-la” (NAA;
veja NAB). Mesmo as traduções “ter chegado tarde demais” (Lane, 1991, p. 93
n. e) ou “ter perdido/a oportunidade/sua chance” (ACF, ARC, HCSB, NEB,
REB) são possíveis sob essa visão, desde que a ideia de culpabilidade pessoal
seja mantida (Lane, 1979, p. 954).
Permanece difícil determinar como dokeõ deve ser traduzido:
(a) Como um eufemismo para moderar ou suavizar uma declaração de ou­
tra forma dura: “parecer ter falhado”, em vez de “ter falhado” (BDAG, p. 255;
Ecumênio como citado em Westcott, 1909, p. 94).
(b) Como uma sugestão sobre “a mera aparência ou suspeita de fracasso”
(Westcott, 1909, p. 94; Bengel, 1877, 4:378). Se a tradução “parece” (ACF,
ARA, ARIB, KJA) indica (a) ou (b), é impossível dizer.

171
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

(c) Como um veredito judicial: ser considerado (NEB) ou “ser julgado”


(RSV) como tendo falhado (veja Attridge, 1989, p. 124; Isaacs, 2002, p. 62).
(d) Como o equivalente a uma declaração direta (Clarke, 1977, 3:708-
709; HCSB e REB). Clarke cita o jurista romano Ulpiano do terceiro século
d.C.: “A palavra dokein é usada pelos antigos para expressar nem sempre o que
é duvidoso, mas, muitas vezes, o que é verdadeiro e certo” (1977, 3:419).
A frase estar aquém disso é uma tradução adequada. No entanto, um
olhar mais atento sobre hystereõ é necessário para apoiar não apenas a com­
preensão forense de dokeõ (opção [c]), mas também o impulso escatológico
mais amplo desse versículo.
Poucos comentaristas falam sobre a rara ocorrência do infinitivo per­
feito hysterêkenai {ter falh ado {estar aqu ém ] ). De acordo com Westcott, o
tempo verbal indica mais do que uma derrota presente (Rm 3.23) ou pas­
sada (aoristo; 2 Co 12.11), “mas um fracasso perm anente” (1909, p. 94).
É mais provável que o tempo perfeito tenha um sentido proléptico ou fu­
turista. Assim, ele transmite uma ação como uma ação passada completa,
embora seja futuro em relação ao momento da fala (veja Wallace, 1996, p.
581; para um uso semelhante, veja H b 9.8).
Isso é facilitado pela identificação da entrada no descanso como uma
prom essa, bem como pela “orientação futurista ’ da frase: Cuidemos para
que nenhum de vocês seja encontrado (sobre a orientação do tempo futu­
ro do modo subjuntivo, veja Hewett, 1986, p. 163). Além disso, o verbo
hystereõ aparece novamente em um contexto escatológico em 12.15 (Wil-
ckens, 1972, 8:596). Lünemann conclui: “O infinitivo perfeito caracteriza
aquilo que, com o alvorecer da Parousia, tornou-se um fato historicamente
completo e definitivo” (1890,p. 475). Da mesma forma, W hedon detecta o
sentido proléptico aqui. Ele afirma que o fracasso terá ocorrido após “o fim”
(3.14; veja 6.8,11) e no dia do julgamento (10.25; W hedon, 1880, 5:67).
1 2 0 pregador fornece uma justificativa (pois [gar]) para a advertência no
versículo 1. Ambas as metades se espelham nos versículos 1 e 2. A primeira
metade, pois as boas novas foram pregadas também a nós, corrobora a pro­
messa no versículo 1a. A segunda metade do versículo 2 explica o precedente
bíblico para o potencial fracasso no versículo 1b (Lünemann, 1890, p. 478).
A semelhança fonética entre o evangelho pregado (euéngelismenoi) e a
“promessa \epangelias]” (4.1) é provavelmente intencional (Attridge, 1989,
p. 124-25). Há uma unidade entre as “boas novas proclamadas” (NIV11) aos
antigos filhos de Israel e o evangelho pregado a nós “nestes últimos dias” (veja
1.2). A continuidade entre a mensagem no Antigo e no Novo Testamento é
172
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

mais proeminente aqui do que na comparação semelhante de 2.2,3 (veja Lane,


1991, p. 98). Em Gálatas 3.8, Paulo é mais cuidadoso ao notar que Deus “pré-
-evangelizou” Abraão. Mas aqui as associações cristãs abertas de euêngelismenoi
são reforçadas pela referência à m ensagem [...] que eles ouviram (ho logos tés
akoês). Paulo usa a mesma expressão em 1 Tessalonicenses 2.13 da Palavra de
Deus que é ouvida e recebida com fé (veja Rm 10.16,17; G1 3.2,5). Ouvir a Pa­
lavra de Deus é crucial tanto nesse midrash no Salmo 95 (Hb 3.7,15,16; 4.2,7)
como em outros pontos-chave em Hebreus (2.1,3; 5.11; 12.19,25).
A proclamação das boas novas de nada lhes valeu porque a geração do
êxodo não respondeu com fé. A importância do “benéfico” ou do “útil” era
comum no mundo helenístico. Foi uma das questões fundamentais na argu­
mentação retórica (Hermógenes, Prog. 11; veja Thompson, 2008, p. 72) e na
filosofia moral (Epiteto, Diatr. 1.4.16; 3.24.51). Foi importante também para
os escritores da sabedoria judaica (SS 5.8; 6.25; Sir. 5.8; 34.23,25,26; 38.21),
Fílon, Int.Al. 3.86; Querubins 121; Migração 55; Posteridade 86; e pontua em
mais lugares) e outros escritores do N T (Rm 2.25; 1 Co 13.3; 14.6; 15.32; G1
5.2; Hb 13.9; Tg 2.14,16; veja Johnson, 2006, p. 125). Dado o destino horrível
dos rebeldes em Hebreus 3.16-18, dizer que eles não se beneficiaram da pro­
messa de Deus é certamente um eufemismo (litotes).
A associação de fé e oitiva é clara, mas a maneira exata pela qual eles estão
conectados não é. Uma confusão de leituras variantes aparece em A.2d nos ma­
nuscritos gregos. Os estudiosos selecionam isso entre duas leituras principais.
A primeira é refletida em pois os que a ouviram não a combinaram [synkeke-
rasmenos\ comf é (veja também KJV, NASB, REB, RSV). A segunda é seguida
pela maioria das outras traduções em português, como a da NAA: “Porque não
foram unidos \synkekerasmenous\ por meio da fé com aqueles que a ouviram”.
Na primeira leitura, o particípio singular grego synkekerasmenos (combi­
nar) está gramaticalmente ligado à m ensagem (ho logos) na oração anterior
(pois). Na segunda leitura, o particípio plural “unidos” (NAA; synkekerasme-
nous) está gramaticalmente ligado a eles (ekeinous) na oração anterior. Esta
última é amplamente considerada a leitura mais provável. Está representada
em testemunhos textuais primitivos e diversos. Como seu significado não é
apreendido tão diretamente como outras leituras, explica a variedade de “cor­
reções” na história textual (veja Metzger, 1994, p. 595).
A palavra para combinar (synkekerasmenous) era usada para a mistura de
tintas, têmpera de metais e figurativamente para a união de amigos, união mo­
ral e espiritual, ou a implicação de uma pessoa em uma conspiração (Jewett,
1981, p. 63; Ellingworth, 1993, p. 243). Se a segunda leitura (discutida antes)

173
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

for aceita, ela tem a vantagem de implicar a união do semelhante (pessoas com
pessoas) em vez do diferente (a mensagem de Deus com pessoas; então Ellin-
gworth, 1993, p. 243).
Contudo, isso levanta a dificuldade de ter de distinguir entre eles (ekei-
nous\ observe também eles, kakeinoi) e os que a ouviram (tois akousasin)
— uma distinção não refletida na NVI. O pregador pode estar contrastando
aqueles que não se beneficiaram da mensagem que ouviram com “aqueles que
realmente ouviram” (Koester, 2001, p. 270; compare ESV, NAB, NJB, NLT,
NRSV; “obedeciam” [NIV11]; ou “ouviu na fé” [HCSB, NET]). Os verda­
deiros ouvintes foram identificados como Josué e Calebe, os únicos dois que
estavam dispostos a entrar na terra prometida (Nm 14.26-30; assim, Crisós­
tomo, 1996, p. 395; Lane, 1991, p. 98). Mas Hebreus não parece ter algum
interesse pelo exemplo positivo de Josué e Calebe. Em 3.16 “os que ouviram
e se rebelaram” são “todos os que Moisés tirou do Egito”. Hebreus 4.8 nega a
conquista de Josué como uma provisão de descanso divino.
Pode-se argumentar que os que a ouviram são os cristãos que estão lendo
Hebreus (tenha em mente traduções como a NRSV e a NVT: “Eles não foram
unidos pela fé com aqueles que ouviram" [ênfase adicionada]). De acordo com
essa interpretação, uma comparação sustentada está sendo feita entre os dois
grupos que foram “evangelizados”. Na primeira metade do versículo, há nós
(cristãos), no presente, e eles (filhos rebeldes de Israel) no passado. Na segunda
metade (em ordem inversa, formando um quiasma), encontramos eles que ou­
viram sem benefício (filhos rebeldes de Israel) e “aqueles que ouviram” (NRSV,
NVT; ou seja, nós, cristãos). Então o versículo seguinte (4.3) faz a inferência:
“Pois \gar\ nós, os que cremos, é que entramos naquele descanso”. Attridge
sugere que uma comparação tão ousada explica as muitas variantes na tradição
textual. Além disso, 11.40 traz o ponto semelhante de que Deus previu os fiéis
do AT como não sendo aperfeiçoados à parte de “nós” (Attridge, 1989, p. 126).
■ 3 a Agora, ou melhor, p o is (gar), impulsiona a comparação iniciada no ver­
sículo 2. A geração do deserto não recebeu o descanso prometido porque “eles
não compartilhavam a fé” daqueles que ouviram (4.2 N IV 11; veja 3.12,19). Mas
nós, os que crem os, estamos prontos para alcançar a promessa que eles per­
deram. N ós, crentes, é que entram os naquele descanso no qual eles jamais
entrarão. A fé como o fator operante — para evitar a destruição e alcançar a
salvação — mais uma vez encontrará ênfase em 10.38,39 (veja 10.22; deSilva,
2000a, p. 164-165). O particípio hoipisteusantes (nós, os que crem os) está no
passado (aoristo), talvez para significar nossa convicção inicial ou conversão
(veja 3.14; D. Guthrie, 1983, p. 112).
174
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

O presente do verbo eiserchometha (nós [...] entram os) tem sido fun­
damental para o debate sobre o tempo de entrada no descanso. Alguns
comentaristas consideram o tempo presente como futurista: “Vamos entrar
no descanso” (Ellingworth, 1993, p. 246; Koester, 2001, p. 270). Outros
pensam que o tempo verbal deve ser tomado como um “verdadeiro presente”,
enfatizando que os crentes já estão desfrutando do descanso prometido (Lane,
1991, p. 99; Lincoln, 1982, p. 215; Westcott, 1909, p. 96). Outros ainda estão
conscientes, e com razão, de que um “verdadeiro presente” não indica que já
entramos no descanso, mas que estamos no processo de entrar nele (deSilva,
2000a, p. 155-156; veja Johnson, 2006, p. 123; Montefiore, 1964, p. 83; GW).
Hebreus mantém a mesma tensão entre o “agora” e “ainda não”, o realizado
e o futuro, que é encontrado em todo o N T (-» 2.5 anotação complementar:
“Escatologia em Hebreus”; 4.1-13 Por trás do texto, anotação complementar:
“Descanso e salvação em Hebreus”). O tempo presente (nós [...] entram os)
situa os crentes bem no meio dessa tensão. E uma referência ao “processo
complexo no qual os crentes’... estão agora engajados, embora esse processo
certamente tenha uma consumação escatológica” (Attridge, 1989, p. 126, veja
também p. 128; Isaacs, 2002, p. 62-63). Crucial para entender a tensão é re­
conhecer o ponto de comparação entre os dois grupos nessa passagem (veja
deSilva, 2000a, p. 156). Os filhos de Israel estavam prestes a entrar no descanso;
assim também são os crentes presentes. Os primeiros não entraram por causa
de sua incredulidade; os últimos, como crentes, são instados a entrar enquanto
o “dia” da oportunidade — “hoje” (4.7) — ainda não passou (veja 3.13; 4.11).
8 3 b -5 O pregador apoia a proposição de que a promessa de descanso ain­
da permanece. Ele argumenta com base em duas passagens das Escrituras (SI
95.11 e Gn 2.2). Tais passagens são selecionadas devido à sua correspondência
verbal.

Analogia verbal

O p r im e ir o c o n ju n t o p a d r ã o d e s e t e " r e g r a s " in t e r p r e t a t iv a s ra b ín i-
c a s (m id d o t ) é a t r ib u íd o a H ille l, o V e lh o ( in íc io d o p r im e ir o s é c u lo d .C .).
E s s a s r e g r a s fo r a m p o s t e r io r m e n t e e x p a n d id a s p a ra t re z e , p o r Is h m a e l
b e n E lis h a (fl. c a . 1 1 0 - 1 3 0 d .C .), e p a ra t r in t a e d o is , p o r E lie z e r b e n Jo s e
h a - G a lil ( f l. c a . 1 3 0 - 1 6 0 d .C .). U m a d a s m a is u t iliz a d a s fo i a s e g u n d a
re g ra d e H ille l, a n a lo g ia v e r b a l ou g e ze ra h shaw ah (lit., " le is s e m e lh a n ­
t e s " , " v e r e d it o s s e m e lh a n t e s " ) . O p r in c íp io é q u e , s e a m e s m a r e d a ç ã o

175
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

o c o r r e e m d u a s p a s s a g e n s , a p lic a m - s e a s m e s m a s c o n s id e r a ç õ e s e m
a m b o s o s c a s o s (s o b re a s re g ra s d e H ille l, v e ja E v a n s , 2 0 0 6 , p. 3 8 1 -3 8 2 ;
L o n g e n e c k e r, 1 9 7 5 , p. 3 3 -3 8 ).
E s s e p r in c íp io é u s a d o e m A to s 1 3 .3 4 ,3 5 , e m q u e d u a s p a s s a g e n s
q u e c o n t ê m a m e s m a p a la v r a " s a n t o " (Is 5 5 .3 ; SI 1 6 .1 0 ) s ã o m u tu a m e n t e
in t e r p r e ta d a s c o m o p r o m e s s a s b íb lic a s s o b re a r e s s u r re iç ã o d e Je su s. Em
H e b re u s 4.3Ò -5 , o S a lm o 9 5 .1 1 e G ê n e s is 2.2 s ã o re u n id o s p o rq u e s ã o
a s d u a s ú n ic a s p a s s a g e n s d o A T (na L X X ) q u e f a la m d o " d e s c a n s o " d e
D e u s. N o S a lm o 9 5 .1 1 , D e u s re fe re -s e a o S e u " d e s c a n s o [ k a t a p a u s in ] "

(4 . 3 b , 5). G ê n e s is 2 .2 re la ta q u e D e u s " d e s c a n s o u [k a t e p ausen ]" n o s é t i­


m o d ia (H b 4.4). A p r o x im id a d e d a p a la v r a o b r a s e m a m b a s a s p a s s a g e n s
(SI 9 5 .9 [ACF]; G n 2 .2) f o r t a le c e a c o n e x ã o in t e r p r e ta t iv a . A s s im , H e b re u s
in fe re q u e o d e s c a n s o m e n c io n a d o n o S a lm o 9 5 .1 1 n ã o é o u tro s e n ã o o
d e s c a n s o d iv in o d e G ê n e s is 2 .2 , q u a n d o D e u s " d e s c a n s o u d e t o d o o se u
t r a b a lh o " [NVT].

O fluxo da lógica na interpretação bíblica do pregador é complicado pelo


fato de que ele parece estar fazendo dois pontos ao mesmo tempo. Primei­
ro, do contraste entre Salmo 95.11 (exclusão do descanso divino) e Gênesis
2.2 (estabelecimento do descanso divino), ele tira a inferência: a promessa de
descanso permanece em vigor para os crentes, mesmo que os filhos de Israel a
tenham perdido. A proposição de que o descanso de Deus “ainda permanece”
ou “permanece” forma a espinha dorsal do argumento em 4.1-11 (veja 4.1,6,9).
A entrada ou exclusão do descanso é governada, por assim dizer, pelos coe­
ficientes de crença ou incredulidade. Segundo, a comparação dos dois textos
bíblicos revela que meu descanso no Salmo 95.11 é definido com autoridade
em Gênesis 2.2.
O primeiro movimento interpretativo (contraste) é lançado em 4.3b.
A fórmula de citação, conform e D eus [lit., ele\ disse, serve como ponto de
apoio entre dois opostos (observe a Tyndale “como contrariamente [= contra­
riamente] ele disse [= disse] para o outro”). Que os crentes estão entrando no
descanso (4.3a) é contrastado com a exclusão da geração do deserto no Salmo
95.11: A ssim jurei na m inha ira: “Jamais entrarão no m eu descanso” (Hb
4.3c). Esse é um argumento oposto, como Calvino observa (1976, p. 47): “É a
incredulidade que nos exclui; portanto, o caminho está aberto à fé” (Sobre o
tópico retórica do “possível” aplicado aos opostos ou contrários, veja Aristóte­
les, Rhet. 2.19.14; deSilva, 2000a, p. 166 n. 67.)

176
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

O segundo movimento interpretative (comparação) começa em A3c-d. O


juramento solene de Deus aos rebeldes do deserto (4.3c) não pode estar restrito
a uma recusa de entrada na terra de Canaã. Deus fala de Seu próprio descanso,
meu descanso, em Salmo 95.11. O descanso de Deus não pode ser limita­
do ao período do êxodo, porque data do início dos tempos: Em bora as suas
obras estivessem concluídas desde a criação do m undo (Hb 4.3c/). Em bora
(kaitoi) indica uma correção forte e notável (Smyth, 1984, p. 654 §2893). O
descanso de Deus foi estabelecido quando Ele completou Suas obras ( tõn er-
gõn) de criação. A frase desde a fundação do mundo (apo katabolês kosmou)
conota que o descanso divino tem uma qualidade duradoura e eterna, funda­
mentada na própria natureza de Deus e no propósito divino para a história da
salvação (Mt 13.35; 25.34; Lc 11.50; Hb 9.26; Ap 13.8; 17.8; Hauck, 1965,
p. 620). Assim, a promessa de descanso não se esgotou quando a geração do
deserto foi excluída dela.
O argumento é corroborado (observe o p o is \gar\) por duas citações das
Escrituras, começando com Gênesis 2.2. A referência indefinida, em certo lu ­
gar ele falou (4.4a), assemelha-se à de -> 2.6a. Aqui provavelmente significa
uma passagem bem conhecida, especialmente porque Gênesis 2.2 estava no
início de um rolo de Gênesis no Pentateuco (pentateuchos refere-se ao trabalho
de '‘cinco rolos” de Moisés, a Torá) ou na primeira folha da forma de códice
posterior de toda a Bíblia.
A primazia da instância original era um princípio comum, usado pelo pró­
prio Jesus (Mt 19.3-12 esp. v. 4 e 8 || Mc 10.1-12). O próprio descanso original
de Deus na fundação do mundo permanece como o arquétipo do descanso re­
servado aos fiéis na era vindoura (Pfitzner, 1997, p. 81). E “a própria realidade
da qual as boas novas são dadas” (Attridge, 1989, p. 130).
Deus falou nestas palavras {portanto, houtõs), no texto das Escrituras
(Gn 2.2), no sétim o dia. A introdução da citação destaca uma das duas ca­
racterísticas dessa escritura (ou seja, o sétim o dia) que será significativa mais
tarde. N o sétim o dia (AAb) antecipa a identificação do descanso divino como
um “descanso sabático” em 4.9. Que D eu s descansou de toda a obra que rea­
lizara será essencial para a definição do descanso do crente em 4.10.
O pregador já citou todo o Salmo 95.11 em Hebreus 4.3. Aqui ele repete
(de novo, na passagem citada há p ou co) apenas as palavras do juramento
divino: Jamais entrarão n o m eu descanso (4.5). Dessa forma, ele traz diante
dos olhos do leitor, ou dos ouvidos do ouvinte, a confirmação de seu argumen­
to por meio de uma comparação lado a lado dos dois textos das Escrituras (Gn
2.2 e SI 95.11).

177
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Destino eterno da geração do êxodo

O s ra b in o s ju d e u s d o p r im e ir o e s e g u n d o s é c u lo s le v a n t a r a m u m a
q u e s tã o p r e o c u p a n t e s o b re o S a lm o 9 5 .1 1 . Q u a n d o D e u s ju ro u e m S u a
ira, " ja m a is e n t r a r ã o n o m e u d e s c a n s o " , E le e s t a v a d e c la r a n d o q u e a g e ­
ra ç ã o d o d e s e r t o n ã o t e r ia p a rte n o m u n d o v in d o u r o ?
O ra b in o A q ib a c o m p a r o u o S a lm o 9 5 .1 1 c o m N ú m e ro s 1 4 .3 5 e c o n ­
c lu iu q u e n ã o . O ra b in o E lie z e r b e n H y r c a n u s r e s p o n d e u q u e a ê n fa s e "e u
ju re i na m in h a ira " e ra c ru c ia l, p o r q u e D e u s m u d o u d e id e ia m a is ta rd e ,
d e p o is d e S u a ira t e r d im in u íd o (b . Sanh. 110b; t. S a n h . 1 3 .1 0 ; y. Sanh.

1 0 .2 9 c ). O u tra t r a d iç ã o a t r ib u iu a p o s iç ã o d e lin h a d u ra a E lié z e r , c o m o


ra b in o Y e h o s h u a s e o p o n d o a e le . Y e h o s h u a s u s t e n to u q u e o ju r a m e n t o d e
D e u s s e a p lic a v a a p e n a s a o s e s p ia s e a o s v e r d a d e ir a m e n t e ím p io s d a q u e ­
la g e r a ç ã o ( A b o t 36; v e ja H o fiu s , 1 9 7 0 , p. 44 ).
C o m o o a u to r d e H e b re u s a v a lia e s s a q u e s tã o ? D e p e n d e d a in t e r p r e ­
t a ç ã o d e H e b re u s d o " d e s c a n s o ” n o S a lm o 9 5 .1 1 . O d e s c a n s o é a te rra d e
C a n a ã , v is t a c o m o u m tip o d e d e s c a n s o e te r n o e c e le s t ia l na e ra q u e há
d e v ir? E n tã o a p u n iç ã o d e s s e s r e b e ld e s fo i m e r a m e n te te m p o r a l: s e u s c a ­
d á v e r e s c a ír a m n o d e s e r t o (H b 3 .1 7 ), m a s e le s a in d a t e r ã o u m a h e ra n ç a
na e ra v in d o u r a ( a s s im G le a s o n , 2 0 0 7 a , p 3 2 5 -3 2 7 ) . O d e s c a n s o n o S a lm o
9 5 .1 1 é id ê n t ic o a o d e s c a n s o e te r n o m e n c io n a d o e m G ê n e s is 2 .2 ? E n tã o
e le s fo ra m e x c lu íd o s d a p á tria c e le s t ia l/ c id a d e e te r n a , na q u a l s o m e n t e o s
f ié is a o lo n g o d a h is tó r ia e n t r a r ã o (H b 1 1 .1 -4 0 ; 1 2 .1 8 -2 9 ; c o rr e t a m e n t e ,
C o c k e r ill, 2 0 0 7 , p. 2 6 7 -2 7 2 ) .

Estes são os dois únicos textos do AT em que Deus fala de Seu próprio
descanso: meu descanso (katapausin mou) no Salmo 95.11 (Hb 3.11; 4.3,5)
e Deus descansou (katepausen ho theos) em Gênesis 2.2 (Hb 4.4; mas veja
também Gn 2.3). Eles são candidatos perfeitos para a interpretação da analo­
gia verbal {gezerah shawah). Ao comparar os dois textos, fica claro que ambos
devem estar falando do mesmo descanso: o descanso divino no sétimo dia. Ao
compará-los, fica claro que, embora alguns tenham perdido a promessa por
causa da incredulidade, o descanso de Deus foi estabelecido desde a fundação
do mundo. Portanto, a promessa de descanso tem validade contínua hoje.
fíf 6 -7 Os versículos 6-7 formam uma longa frase em grego. O versículo 6
resume o argumento até agora e faz a transição para mais um passo na exegese
do Salmo 95 em Hebreus 4.7. As palavras iniciais por isso, desde (epei oun\
NIV 11) marcam as funções de transição e causais do versículo 6 (a NVI deixa

178
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

epei [desde] sem tradução e empurra por isso [oun] para o início do v. 7). Dois
pontos resumem o argumento anterior:
Primeiro, resta [apoleipetai\ entrarem [eiselthein eis] alguns [tinas] na­
quele descanso repete a proposição apresentada no início (observe a redação
semelhante em 4.1: “permanece [kataleipomenês (N V T )]”, “entrarmos [eisel­
thein eis]” e “algum [mêpote... tis]”).
Em segundo lugar, aqueles a quem anteriorm ente as boas novas [euan-
gelisthentes] foram pregadas não entraram reafirma o ponto referido em 4.2
(-» euêngelismenoi). Que eles não entraram por causa da desobediência lem­
bra a observação sobre a falta de fé daquela geração em A.2b (veja 3.12,19).
Mas agora o pregador muda para um tom ligeiramente diferente em 4.6 e 11
(desobediência, apeitheia), antecipado em 3.18 (-> anotação complementar a
seguir: “Encadeamento”).

Encadeamento

H e b re u s u s a u m a t é c n ic a re tó ric a d ifu n d id a p a ra u n ir a s d u a s p a rte s


d o m id r a s h e m 3 .1 2 — 4 .1 1 . L u c ia n o d e s c r e v e u a t é c n ic a c o m o e n c a d e a ­
m e n to d e d u a s u n id a d e s d e te x t o (H is t ó r ia 5 5 ). Q u in t ilia n o c o m p a r o u - a a
d u a s p e s s o a s d e m ã o s d a d a s (In s t. 9 .4 .1 2 9 ).
O p a d r ã o d e e n c a d e a m e n t o p o d e s e r re p r e s e n t a d o c o m o A -b /a -B . E m
H e b re u s 3 .1 2 — 4 .1 1 , o p r im e ir o e lo d a c o rr e n t e é 3 . 1 2 - 1 9 (= A ). E le é c la ­
ra m e n te d e fin id o p e lo in c lu s io , u s a n d o a p a la v r a " in c r e d u lid a d e " ( a p is t ia )
e m 3 .1 2 e 19. A a n t e c ip a ç ã o ou c o n e x ã o (= b) c o m o s e g u n d o e lo e s tá
no v e r s íc u lo 18. Lá é d ito q u e a g e r a ç ã o d o d e s e r t o fo i in c a p a z " d e e n t r a r
[ e is e lt h e in , a o ris t o in fin itiv o ] " . Isso p o r q u e e le s " d e s o b e d e c e r a m [ a p e i-
t h e õ ] " . A c o n e x ã o (= a) c o m o p r im e ir o e lo da c o rr e n t e é e n c o n t r a d a e m
4.2: " E le s n ã o [ m ê ] c o m p a r tilh a r a m a fé [ p is t is ] " (N V I11). O s e g u n d o e lo d a
c o rr e n te (= B) é 4 .1 -1 1 . E n fa tiz a a o p o r t u n id a d e c o n t ín u a ( k a t a le ip õ [4.1];
a n a le ip õ , " r e s t a " [4 .6 ,9 ]) d e e n t r a r ( e is e lt h e in [4 .1 ,6 ,1 1 ]) n o d e s c a n s o d e
D e u s. Isso é c o n t r a s t a d o c o m a n ã o e n t r a d a d a g e r a ç ã o d o d e s e r t o d e v id o
à s u a " d e s o b e d iê n c ia [ a p e it h e ia ] " , u m in c lu s io e m 4 .6 ,1 1 .
E s t ilis t ic a m e n te , e s s e m é to d o d e s o b r e p o s iç ã o ou e n c a d e a m e n t o d e
m a t e r ia is d á c o e s ã o e c la r e z a a o m id r a s h . T a m b é m a ju d a a p a s s a r s u a ­
v e m e n t e d a p r im e ir a m e t a d e p a ra a s e g u n d a m e t a d e d a e x p o s iç ã o d o
S a lm o 95. E s s e tip o d e e s t ilo flu id o é e x a t a m e n t e o q u e fo i r e c o m e n d a d o
p e lo s p r o fe s s o r e s d e re tó ric a . T e o lo g ic a m e n te , a t é c n ic a e n c a d e ia o p e r i­
g o d a in c r e d u lid a d e e d a d e s o b e d iê n c ia , a p o ia n d o a s fo r t e s a d v e r t ê n c ia s
d o p r e g a d o r c o n tra s e r a p a n h a d o n e la s e s u a s c o n s e q u ê n c ia s fa ta is .

179
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

P a ra u m e s t u d o m a is a p ro fu n d a d o d a s t r a n s iç õ e s d e e n c a d e a m e n t o ,
v e ja L o n g e n e c k e r, 2 0 0 5 .

Por isso, desde que (N IV 11) a entrada para o descanso de Deus permane­
ceu aberta, e os israelitas rebeldes não aproveitaram a oportunidade de entrar
(4.6). Assim, o pregador faz outra inferência do Salmo 95 em Hebreus 4.7. Ele
completou um argumento cronológico de Gênesis 2.2 (“a criação do mundo”
[Hb 4.3]; “o sétimo dia” [4.4]) desenhado em contraste com o final do salmo
(SI 95.11). Agora, em Hebreus 4.7, ele ordena outro argumento cronológico
por meio de uma comparação de Gênesis 2.2 com o início de sua citação do
salmo (Sl 95.7,8).
D eus estabelece outra vez um determ inado dia no salmo (Hb 4.7). O
ato de apontar para o dia pode ter sido sugerido pelo aparecimento da palavra
no Salmo 95.8b (-> Hb 3.7b,8). Mais a propósito é a conexão com Gênesis
2.2. O descanso de Deus foi estabelecido “no sétimo dia” (Hb 4.4 [ênfase
acrescentada]). Ainda, outra vez, Deus “designa” (ESV; estabelece) um dia,
hoje (.sêmeron). Essa declaração ocorreu por m eio de Davi no Salmo 95. Isso, é
claro, foi m uito tem po depois do que o estabelecimento do descanso de Deus
na fundação do mundo (Hb 4.3c).
Uma citação repetida do Salmo 95.7,8 é notada por com o que fora dito
antes. Isso se refere à citação de impulso em Hebreus 3.15 e à citação inicial em
3.7,8. Após os argumentos na segunda metade do midrash e essa citação repe­
tida do salmo, agora está claro que, no Salmo 95.7,8, Deus está renovando Sua
oferta de descanso “nestes últimos dias” (Hb 1.2λ). A oportunidade é agora,
mas deve ser aproveitada antes que o “Dia” final se aproxime (10.25). E por
isso que o pregador exortou seus leitores em 3.13 a exortarem uns aos outros
“diariamente \kath ’hekastén hêmeran]” (“todos os dias” [NRSV]), “enquanto
for chamado hoje”, para que o coração de ninguém seja endurecido. A urgência
escatológica é transmitida no refrão do salmo: Se hoje vocês ouvirem a sua
voz, não endureçam o coração.
B 8 O pregador estabelece uma inferência cronológica de apoio (porque
[gar\). Observe suas referências a p osteriorm ente {meta tauta hêmeras-, lit.,
depois desses dias-, compare m uito tem po dep ois em 4.7) e outro dia {allês\
lit., outro; a palavra “dia” está implícita). Ele deve estar ciente da caracteriza­
ção do AT do estabelecimento de Israel em Canaã como o cumprimento do
juramento de Deus para dar descanso ao povo (veja D t 25.19; 31.7; Js 1.13,15;

180
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

21.43; 22.4). Entretanto, se Josué lhes tivesse dado descanso [ou seja, o des­
canso divino de Gn 2.2], D eu s não teria falado posteriorm ente a respeito
de outro dia (ou seja, o “hoje” de Sl 95.7d). Observe que Hebreus se refere a
Josué, e não a “Jesus” (KJV; os dois nomes têm a mesma forma em grego: Iê-
sous). O descanso sob Josué envolveu a cessação das hostilidades com as nações
circunvizinhas (Js 11.23; 21.44; 22.4; 23.1). Não é o descanso escatológico
que permanece aberto “hoje”, nem a participação no descanso da criação do
próprio Deus.
H 9 Esse versículo conclui os argumentos na segunda metade do midrash.
A declaração começa com ara (assim; “consequentemente” [NET]). Que o
descanso de Deus ainda “permanece \kataleipomenês-, N V T ]” (4.1) ou resta
(.apoleipetai) (4.6,9) agora foi estrategicamente reiterado no início, no meio e
na conclusão dos argumentos em 4.1 -11.
Contudo, em vez dos termos para “descanso” utilizados em 3.7—4.11 (ka-
tapauõ, katapausis), aqui encontramos a rara expressão descanso sabático. A
palavra sabbatismos ocorre nesse versículo pela primeira vez na literatura grega
sobrevivente. A noção de que Hebreus cunhou a palavra é improvável, uma vez
que sua única outra ocorrência na literatura não bíblica provavelmente indica
conhecimento independente do termo do judaísmo (Plutarco, Mor. 166a).
A palavra sabbatismos está relacionada com o verbo sabbatizõ (“guardar
o sábado”) da mesma forma que baptismos (“batismo”) está relacionado com
baptizõ (“batizar”; Johnson, 2006, p. 129). Denota não apenas o descanso sa­
bático, mas também a “observância do Shabat” ou a “celebração do Shabat”. A
guarda do Shabat envolvia não apenas descanso do trabalho, mas também lou­
vor e agradecimento ao Senhor (veja 2 Mac. 8.27; Jub. 50.8; L.A.B. 11.8; veja
Attridge, 1989, p. 130-131; Lane, 1991, p. 101-102; Koester, 2001, p. 272). O
uso do termo provavelmente foi sugerido por dois aspectos: primeiro, a refe­
rência ao “sétimo dia” em Gênesis 2.2; e segundo, a bem conhecida justificação
teológica para a observância do sábado no próprio descanso de Deus da obra
da criação (Ex 20.11; 31.17), como confirma o versículo seguinte (4.10).
Os argumentos anteriores de 4.1-8 demonstram amplamente o caráter es­
catológico desse descanso. O descanso sabático pertence à era vindoura, que
já amanheceu na revelação de Deus no Filho (veja 1.2a\ 2.5; 9.26), mas foi es­
tabelecido na criação do mundo, com o descanso primordial de Deus (Gn 2.2).
Isso se encaixa bem com as concepções judaicas e cristãs do descanso sabático
antes e depois de Hebreus (-» Hb 4.1-13 Por trás do texto, anotação comple­
mentar: “Descanso sabático e mundo vindouro”).

181
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

91 10 Uma clara alusão tanto a Gênesis 2.2 como ao Salmo 95.7,8 expli­
ca o significado de “descanso sabático” em 4.9 (observe o p ois [gar]). Duas
questões-chave são importantes para a interpretação deste versículo: (1) O mo­
mento da entrada no descanso; e (2) a natureza do descanso.
Mas primeiro deve-se notar que há alguns que tomam “aquele que entrou”
(ACF) como Cristo (Wiley, 1984, p. 134-136; deSilva, 2000a, p. 168; Attrid-
ge, 1989, p. 131-132 — os dois últimos apenas provisoriamente; veja a crítica
de Ellingworth [1993, p. 255-257]). A objeção mais séria a essa interpretação
é que, se “Jesus” fosse realmente o assunto da primeira parte desse versículo, o
autor podería ter tornado isso explícito.
Com relação ao momento, o tempo pretérito (aoristo) “entrou” (ARA,
ACF, ACR, ARIB, JFA, TB; ho eiselthõn, aquele que entra) é frequentemente
considerado um indicador de que os cristãos já experimentam o descanso divi­
no, pelo menos em algum sentido (veja D. Guthrie, 1983, p. 115-116; Hagner,
1990, p. 72). Mas, como Bengel afirma (1877, 4:381), “o povo de Deus ainda
não descansou: portanto, eles ainda não entraram”. Isso está de acordo com o
enfoque escatológico dos argumentos anteriores, bem como com as exortações
para temer falhar (4.1), ficar aquém e esforçar-se para entrar no descanso de
Deus (no versículo seguinte, 4.11). E melhor, então, tomar o particípio aoristo
ho eiselthõn como proléptico ou futurista. Isso “envolve uma ‘transferência re­
tórica’ de um evento futuro como se fosse passado” (Wallace, 1996, p. 564; veja
Zerwick, 1983, p. 84-85, §257).
Quanto à natureza do descanso, o pregador faz uma última inferência exe-
gética por meio de analogia verbal. Ele explica entrar no descanso de D eus
[lit., seu] do Salmo 95.11 por meio da frase [...] suas obras [...] descanso[«]
em Gênesis 2.2 (-» Hb 4.3b-5 anotação complementar: “Analogia verbal”). Ele
correlaciona qualquer um que, ao entrar no descanso de Deus, descansará das
suas obras, com o descanso de Deus de Suas próprias obras de criação (com o
D eus descansou das suas).
Perguntas cercam o que significa para o crente descansar das suas obras.
Como o texto lê literalmente obras (pl.), muitos concluíram apressadamente
que “nada podería ser mais paulino” (Taylor, 1967, p. 55; veja Jewett, 1981,
p. 64; e, surpreendentemente, Wright, 2004, p. 37). Clarke ainda oferece o
glossário “obras da lei” (1977, 3:711). Mas interpretar o descanso como uma
cessação do esforço próprio ou das “obras de justiça” (Carter, 1966, p. 66; Sted-
man, 1992, p. 58-59; Turner, 1975, p. 84) é totalmente estranho, não apenas
ao contexto imediato, mas também ao todo de Hebreus. Sendo assim, Hebreus
nunca coloca fé contra obras de justiça (Flagner, 1990, p. 72; Hagner, 2002,

182
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

p. 74-75). De fato, fé e obediência se sobrepõem no pensamento de Hebreus


(veja 6.9-11; e em Paulo, por exemplo, Rm 1.5; 16.26), assim como increduli­
dade e desobediência.
Várias traduções vertem o plural “obras [ergõn]” como obra (sg.; GW,
NJB), sem dúvida, para deter tal má interpretação. As “obras” não são mais
definidas como “mortas” (6.1; 9.14) ou “boas” (10.24; veja 6.10; 13.21; Ellin-
gworth, 1993, p. 257). Nem são especificamente identificadas com provações,
tentações ou perseguições (sobre “obra” em Hebreus, veja Wray, 1998, p. 78-
79). A analogia com o próprio descanso de Deus é simples e completa em si
mesma (Pfitzner, 1997, p. 82). O descanso está sendo contrastado com “traba­
lhos” (NVT, NTL, NRSV).
A labuta e o esforço desta vida presente, o esforço de correr a corrida pro­
posta (12.1) e a busca de paz e santidade (12.14) alcançarão seu objetivo na
cidade celestial (11.10,16; 12.22; 13.14; veja Bruce, 1990, p. 110). Somente
lá, no Reino inabalável de Deus (12.28), haverá descanso perfeito (veja Ap
7.16,17; 14.13; e Crisóstomo, 1996, p. 396, que aponta para Is 35.10).
M 1 1 Ambas as partes da exposição do Salmo 95 começaram com uma
exortação (Hb 3.12,13; 4.1). Agora terminam com uma. As admoestações cor­
respondentes em 4.1 e 4.11 formam um inclusio em torno da segunda parte
do midrash (-> Por trás do texto para 4.1-13). Tanto 4.1 quanto 4.11 começam
com um subjuntivo exortativo, vamos... (-> anotação complementar 4.1: “Va­
mos...”) e portanto (oun).
Com seu costumeiro prazer em trocadilhos, o pregador segue sua descri­
ção do descanso do trabalho com um apelo para que esforcemo-nos (KJV:
“Trabalhemos [...] para entrar nesse descanso”). O verbo spoudazõ transmite
a ideia de engajamento motivado (veja Johnson, 2006, p. 131; Ellingworth,
1993, p. 258). Com verbos de movimento, pode ter o sentido de “apressar”
ou “acelerar” (2Tm 4.9,21; Tt 3.12; e aqui; assim Taylor, 1967, p. 57), porém
apenas raramente no N T (2 Tm 4.9, como nos papiros [Spicq 1994b, 276 n.
2], mas não em Tito 3.12 ou em outro lugar [278 η. 11]). Pode ser contrastado
com o verbo paizõ (“brincar como uma criança, desporto”) para indicar um
esforço sério (veja Harder, 1971,7:560). O substantivo cognato spoudê (“pron­
tidão” [Hb 6.11]) é o oposto de anesis (“relaxamento, recreação”, LSJ, p. 135;
Spicq, 1953, 2:84).
O uso de spoudazõ em Siraque 11.11 é esclarecedor. Lá, ele é agrupado
com dois outros termos para labutar (kopiaõ e poneõ) e é contrastado com dois
vocábulos que são importantes no presente contexto de Hebreus: ficar aquém
{hystereõ-, veja Hb 4.1) e ser lento (nõthros [Sir. 11.12]; veja Hb 5.11; 6.12).

183
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Devemos esforçar-nos para entrar nesse descanso, o descanso divino


perdido pelos israelitas sob Moisés. A mesma interação entre a preocupação
e o esforço da comunidade (nós) e o destino de qualquer indivíduo entre eles
(qualquer um, tis-, ninguém) ocorre tanto aqui como em 3.12,13 e 4.1.
Precisamos avançar juntos para o descanso de Deus, certificando-nos
de que ninguém venha a cair. A consequência a evitar é equivalente a não
entrar no descanso (4.1). A palavra cair ecoa o destino horrível e vergonho­
so da geração do deserto em 3.17: seus corpos “caíram” no deserto (duas de
apenas três ocorrências do verbo piptõ em Hebreus: 3.17; 4.11; 11.30 ). Esse
eco é amplificado pela referência ao exemplo de desobediência. O perigo
da desobediência é uma grande preocupação na segunda parte do midrash
(substantivo apeitheia-, apenas duas vezes no inclusio: 4.6,11). Ele está ligado
à primeira metade por meio do verbo cognato “desobedecer \apeitheõ\ ” em
3.18 (duas vezes em Hebreus, apenas da geração do deserto, veja 11.31; -» 4.6,7
anotação complementar: “Encadeamento”).
B 1 2 Os versículos 12 e 13 trazem a primeira parte de Hebreus ( 1.1 —4.13) a
uma conclusão eloquente. Eles compreendem uma frase elaborada, delimitada
por dois usos diferentes da palavra logos (-> Por trás do texto em 4.1-13; -» 4.13).
Eles também funcionam como destaque para o midrash que começou em 3.7.
Isso é confirmado por conexões significativas para o midrash:
• A palavra de D eus tem a sua contrapartida na citação do Salmo 95 em
Hebreus 3.7-11 (Attridge, 1989, p. 133). Deus fala claramente nessa
escritura (?>.7a,9b, 11; veja 4.3,5,7), e o pregador reitera a necessidade
de ouvir a voz de Deus em ambas as metades do midrash (3.15; 4.7).
• A palavra de Deus como viva tem a sua contraparte no “Deus vivo”
de 3.12.
• A palavra (logos) de julgamento em 4.12 é chamada de “palavra de
ouvir” (lit.) em 4.2 (ho logos Lês akouês-, ou seja, a palavra que deve ser
ouvida). Como Wesley observa (s.d., 571), essa palavra está “armada
com ameaças” em 4.3. A imagem da palavra de Deus como uma “es­
pada de dois gumes” apenas aguça o medo e a urgência das exortações
em 4.1 e 4.11.
• Mais importante ainda, as advertências contra um “coração perverso e
incrédulo” (3.12) e o endurecimento do “coração \kardia]” (3.8,13,15;
4.7) são combinados pelo poder da palavra para penetrar e julgar o co­
ração (4.12).
Hebreus 4.12 inclui várias imagens que descrevem o poder vital, penetran­
te e de discernimento da palavra de Deus. A palavra de Deus é viva. Expõe essa

184
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

qualidade do “Deus vivo” de quem ela fala (3.12; 9.14; 10.31; 12.22). Portanto,
é a tiv a (energês), ou melhor, “poderosa” (BKJ, NVT; Johnson, 2006, p. 133;
compare “poderosa em ação” de Tyndale) ou eficaz (ACF, ARA,ARC,ARIB,
NAA, NVI, JFA, KJA; Lane, 1991, p. 103; “eficaz”, Calvino, 1976, p. 52). A
palavra não deixará de cumprir o propósito de Deus (Is 55.11).
A palavra de Deus é personificada como mais afiada que qualquer espa­
da de dois gumes. Da mesma forma, em Sabedoria de Salomão 18.14-16, a
palavra todo-poderosa carrega uma espada afiada e mortífera. Uma espada de
dois gumes é aquela que tem d u a s bocas (distomos). A imagem da “boca da
espada” era muito antiga, como atestam as escavações arqueológicas na região
do norte da Síria ao noroeste do Irã. Espadas e machados de guerra descober­
tos ali, datados do segundo e terceiro milênios a.C., têm punhos esculpidos
em forma de leão, de cuja boca sai a lâmina (Berman, 2002, p. 299-300, com
figuras na p. 303). Uma espada é como uma boca que pode lacerar a carne. A
imagem da espada de duas bocas referia-se ao poder da fala (Jz 3.16; Sl 149.6;
Pv 5.4; Sir. 21.3; Hb 4.12; Ap 1.16; 2.12; veja Berman, 2002, p. 301-302).
FFá intérpretes, antigos e modernos, que pensam que o logos nessa pas­
sagem é o Verbo encarnado (veja Koester, 2001, p. 273). Mas a maioria dos
comentaristas concorda com Bengel, que contrapõe essa visão com brevidade
característica (1877, p. 382): “Pois Cristo, a Palavra hipostática, não é dito ser
uma espada, mas ter uma espada [...]; nem é chamado kritikos, judicial, mas
kritês,Juiz ’ (veja Ap 1.16; 2.12,16; 19.15,21; At 10.42; 2 Tm 4.8).
É difícil determinar se a palavra de Deus penetra ao ponto de dividir
“alma de espírito, juntas de medulas” (NRSV), ou se divide cada uma dessas
coisas, “a divisão da alma e do espírito, das juntas e medulas” (ACR). E possível
que alma e espírito, juntas e medulas reflitam a psicologia e fisiologia plato-
nistas (Johnson, 2006, p. 134; Proulx e Schõkel, 1973, p. 336-337; -> anotação
complementar a seguir: “Pensadores antigos dissecam a alma”). A divisão da
alma do espírito indicaria então a separação da alma superior, líder (espírito,
a alma racional) na cabeça da alma inferior no peito. Mais provavelmente, Ele-
breus está apontando simplesmente para a divisão do nosso eu interior em suas
partes componentes mais fundamentais.

Pensadores antigos dissecam a alma

O filó s o fo H e r á c lito , d o s e x t o s é c u lo , e n t e d ia d o c o m a s in t e r m in á v e is
p e r g u n ta s s o b re a a lm a e m s u a é p o c a , d e c la r o u : " N u n c a e x p lo r a r á os

185
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

c o n fin s d a a lm a , n ã o im p o rta q u a n t o s c a m in h o s p e r c o r rá s " (T e rtu lia n o ,


An. 2.6; D io g . L a e rt. 9.7). A e s p e c u la ç ã o s o b re a a lm a in c lu ía q u e s tõ e s
s o b re s u a o rig e m , n a tu r e z a , r e la ç ã o c o m o u t r a s s u b s t â n c ia s ou f a c u ld a ­
d e s ( e s p írito , c o rp o , m e n te , e m o ç õ e s e tc.) e d e s tin o (ou se ja , s e é im o rta l
o u n ã o ). L o g o , a p e n a s d u a s q u e s tõ e s s o b re a a lm a s ã o r e le v a n t e s p a ra
H e b re u s 4 .1 2 .
P rim e ira , h a v ia m u ita s p e r s p e c t iv a s s o b re a n a tu r e z a d a a lm a . P la tã o
a firm o u q u e e x is t e m “ tr ê s t ip o s d e a lm a " { T im . 8 9 e ): a ra c io n a l ( im o r­
ta l, e a lo ja d a na c a b e ç a ) , e a irr a c io n a l ( m o rta l), q u e é d iv id id a e m d u a s
p a rte s , a e m o c io n a l ( a lo ja d a n o p e ito ) e a a p e tit iv a (no a b d ô m e n ; v e ja
T im . 6 9 d - 7 2 d ,8 7 a ) . A r is t ó t e le s a c r e d ita v a q u e " a lm a " é a p e n a s a fo rm a d o
c o rp o , e q u e e s p ír it o é o v e íc u lo im e d ia t o p o r m e io d o q u a l u m a c ria tu r a
fu n c io n a .
O s e s t o ic o s a c r e d ita v a m q u e t a n t o o c o rp o q u a n t o a a lm a s ã o f ís ic o s
(em o p o s iç ã o à id e ia d e P la tã o d e u m a a lm a in c o rp ó re a ) . O s e s to ic o s ,
c o m o C r is ip o , a c r e d ita v a m q u e a a lm a é o e s p ír it o q u e e s tá a t iv o e m to d o
o c o rp o . E le s d iv id ir a m a a lm a e m o ito p a rte s : o s c in c o s e n t id o s ( e s t e n d e n ­
d o - s e a o s r e s p e c t iv o s ó r g ã o s d o s s e n tid o s ) , a fa la , a f a c u ld a d e in t e le c t u a l
(m e n te ) e a f a c u ld a d e g e r a d o r a (s e m in a l, e s t e n d e n d o - s e a o s te s tíc u lo s ;
v e ja D io g . L a e r t . 7 .1 1 0 ). O s e p ic u r e u s a c r e d it a v a m q u e a a lm a é c o m p o s ­
ta d e á t o m o s q u e s e d is s o lv e m e s e d is s ip a m c o m a m o rte .
S e g u n d a , h o u v e d e b a t e s s o b re o n d e re s id ia a f a c u ld a d e d o m in a n te
d a a lm a . O s p la t o n is t a s a c r e d it a v a m q u e a a lm a ra c io n a l g o v e rn a o c o rp o
p o r m e io d e u m s is t e m a d e " m e d u la " c o m s e d e na c a b e ç a ( m e d u la c e r e ­
b ra l), flu in d o m e d ia n t e a e s p in h a d o r s a l ( m e d u la e s p in h a l) , d e p o is p a ra o
re s to d o s o s s o s , b e m c o m o p a ra fo ra d a b a s e d a c o lu n a v e r t e b r a l p a ra o s
ó r g ã o s g e n it a is ( m e d u la s e m in a l; v e ja T im . 7 3 d - 7 5 a ,9 0 b - c ). A r is t o t é lic o s
e e s t o ic o s g e r a lm e n t e v ia m o c e n tr o g o v e r n a n t e d a a lm a r e s id in d o no
c o ra ç ã o . M é d ic o s c o m o G a le n o ( s e g u n d o s é c u lo d.C .), a p r o v e it a n d o os
a v a n ç o s d a n e u r o c iê n c ia , lo c a liz a r a m n o c é r e b r o o c e n tr o d e c o m a n d o
d a a lm a . T e rtu lia n o , e s c r e v e n d o na m e s m a é p o c a , a n a lis o u g r a n d e p a rte
do d e b a te em S o b re a a lm a . E le m a n t e v e a m e s m a p o s iç ã o b íb lic a q u e
E le b re u s: a p a rte d o m in a n te d a a lm a é o c o ra ç ã o . P a ra u m e s t u d o m a is
a p ro fu n d a d o , v e ja A n n a s , 1 9 9 2 ; B e n n e t, 2 0 0 7 ; d e Lacy. 1 9 8 4 .

Juntas (harmõn) não é a palavra usual para articulações ósseas, mas para
qualquer tipo de conexão ou união. A palavra para m edulas (myelõn) apare­
ce em algumas versões no singular. Para os platonistas, a morte é provocada
pela dissolução dos laços invisíveis que mantêm unida a estrutura elementar
da medula. Quando isso acontece, “a raiz da medula” (ou seja, o cérebro; Ti-

186
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

meu, o Lócrio 3.100) não está mais ancorada ao corpo por meio da medula
espinhal (Platão, Tim. 73d), e a alma voa para longe ( Tim. 8 ld; veja Timeu, o
Lócrio 3.102). É claro que Hebreus pode estar, metaforicamente, referindo-se
ao modo como a palavra de Deus pode penetrar no centro de nossa estrutura
humana, juntas e m edulas.
Independentemente da concepção de psicologia e fisiologia humanas que
está por trás desse versículo, é claro que a espada da palavra de Deus executa
julgamento no núcleo vital mais profundo da pessoa humana. Aqui a divisão
de componentes na pessoa humana não é para análise filosófica, mas para cum­
prir a sentença divina.
A execução do julgamento divino atinge o centro da vida intelectual,
emocional e moral humana: o coração. A palavra de Deus julga ou discerne
[veja ACF, ARA, ARC, ARIB, BKJ, JFA, TB] os pensam entos \enthymêseõn\
[...] do coração, que pode ter a conotação emocional de “desejos” (NET) ou
“emoções” (NJB). Também julga intenções (ennoiõn) ou, mais precisamente,
“pensamentos” (NAB, NET, NJB) — isto é, a atividade racional de formular
conceitos ou idéias na mente (Spicq, 1953, 2:89; Proulx e Schõkel, 1973, p.
337). Nenhuma incredulidade, engano do pecado ou endurecimento do cora­
ção (3.12,13) pode escapar do escrutínio crítico da palavra de Deus.
B 1 3 O pregador expressa enfaticamente a transparência de toda a criação
diante de Deus por meio de uma dupla negativa: N ada, em toda a criação
(ouk... ktisis·, lit., "não há criatura” [ACF, ARA, ARC, ARIB, BKJ, NAA, KJA,
TB]; “nenhuma coisa criada” [NJB]), está ocu lto (aphanés; lit., “não seja ma­
nifesta” [BKJ, TB]; “invisível” [TYNDALE]). Isso é contrastado com uma
referência a tu d o sendo d escoberto [lit., “nu”, gymna] e exposto.
A expressão exposto tem sido objeto de várias interpretações. O particí-
pio grego tetrachêlismena é uma forma do verbo trachêlizein, que, por sua vez,
tem uma gama de significados relacionados ao pescoço (compare nossa palavra
“traqueia”; Johnson, 2006, p. 135). Formas do verbo aparecem no contexto
de luta livre, em que um oponente é colocado em uma chave de braço (Fílon,
Sonhos 2.34; Recompensas 29). No contexto do sacrifício, a palavra é usada para
dobrar o pescoço de um animal para expô-lo à lâmina sacrificial (Teofrasto,
Car. 27.5). Crisóstomo a entende como a imagem de uma vítima sendo cortada
para revelar todas as suas partes internas (1996, p. 398). As imagens sacrificiais
se encaixam melhor no interesse mais amplo de Fdebreus no ministério sacer­
dotal, bem como na referência imediata a uma espada (Attridge, 1989, p. 136).
Também é possível que estejamos lidando com uma metáfora morta, já que

187
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

o antigo lexicógrafo Hesíquio definiu tetrachélismena simplesmente como pe-


phanerõmena (“revelado” ou “manifestado”; BDAG, p. 1014).
No versículo 13, o foco mudou da palavra de Deus para o próprio Deus.
Nenhuma criatura está escondida aos seus o lh o s (enõpion autou). Tudo está
descoberto e vulnerável diante de seus o lh o s {tois ofialmois autou). A palavra
logos, que apareceu no início desta seção conclusiva (4.12), reaparece aqui no
final, mas em um sentido diferente. Deus é descrito como aquele a quem ha­
vem os de prestar contas {logos·, veja 13.17). Esse jogo de palavras resume a
mensagem da conclusão: a “palavra [logos]” de Deus (4.12) exige uma “presta­
ção de contas [logos] humana” (4.13) (Koester, 2001, p. 275).

A PARTIR DO TEXTO

O enfoque de Hebreus 3.7—4.13 é claramente exortar-nos a entrar no


descanso de Deus. Uma testemunha disso é a pura repetição de linguagem
como “entrar” (onze vezes), “descansar” (oito vezes; e “descanso sabático”, uma
vez), e “permanece” (ou “ainda permanece”, três vezes). Mas o que exatamente
significa entrar no descanso de Deus e quando isso ocorre ?
O tema do descanso divino tem capturado a imaginação dos teólogos
ao longo dos séculos. O tema forma um inclusio nas Confissões de Agostinho
(1.1.1; 13.36.51-53), que também contém seu ditado mais famoso: “Fizeste-
-nos para Ti, e nosso coração está inquieto até que descanse em Ti”. Uma forte
tradição de interpretação entre os Pais da Igreja considerava o descanso divino
como o descanso final que os crentes desfrutam na vida após a morte ou após o
julgamento final — isto é, no Reino dos céus (veja Oden, 2001b, p. 464; Heen
e Krey, 2005, p. 60-61).
Há também interpretações do descanso divino como um estado espiritual
no qual os crentes podem entrar mesmo agora, ainda que de uma forma li­
mitada à nossa vida desse lado da glória. Tem sido descrito entre os Pais da
Igreja oriental como uma experiência sobrenatural de paz e revelação divina
(veja Isaac de Nínive em Heen e Krey, 2005, p. 60). Os protestantes identifica­
ram-no como justificação pela fé, à parte das obras (Stedman, 1992, p. 58-59).
Calvino se referiu a ele como aquele aspecto da santificação envolvendo “mor­
tificação da carne” ou autorrenúncia (Calvino, 1976, p. 48-49; veja também o
Catecismo de Heidelberg, resposta 103, em Kistemaker, 1984, p. 111).
Possivelmente, a herança interpretativa mais rica concernente a esse tema
provém do Metodismo e do movimento de santidade do século 19. Em Uma
coleção de hinos para o uso de pessoas chamadas metodistas, encontramos muitos

188
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

lugares onde o tema do “descanso” de Hebreus é interpretado como entrada


presente em “A Canaã do teu perfeito amor” (Hino 380, quinta estrofe), “O
sábado do teu amor” (Hino 391, quarta estrofe), ou “A terra do descanso do
pecado inato, / A terra da perfeita santidade” (Hino 396, sexta estrofe; em Hil-
debrandt e Beckerlegge, p. 1989). A referência mais conhecida está em “Amor
divino, Amor que tudo supera”, de Charles Wesley: “Vamos todos em Ti her­
dar, / Vamos encontrar esse segundo descanso”.
Igualar a entrada no descanso divino com uma segunda obra da graça (san­
tificação completa) era tão difundido no movimento de santidade do século
19 que dificilmente requeria documentação. Figuras tão diversas como Daniel
Steele (1909, p 209-242), Charles Finney (1980 e 1984) e Andrew Murray
(1993, p. 163-178) expuseram uma teologia de santidade do descanso. Um
escritor de santidade, Isaac See, escreveu um tratado sobre a inteira santificação
intitulado O resto daf é (1871). Essa tradição interpretativa foi continuada por
escritores do século 20 como H. O rton Wiley (1984, p. 121-140), Richard S.
Taylor (1967, p. 51-55), W. T. Purkiser (1974, p. 40-43), Milton S. Agnew
(1975, p. 23-31), George Allen Turner (1975, p. 79-86, 215-217), entre mui­
tos outros.
Na virada do século, muitos escritores de santidade estavam menos firmes
nessa interpretação, como ilustrado pela disposição de H. Ray Dunning de
identificar “o descanso da fé”, em Hebreus 4, com justificação pela fé, inteira
santificação e esperança futura (2001, p. 39-40). O importante estudo de Way­
ne McCown (1981, p. 63-66) minou seriamente a interpretação alegórica da
santidade em Hebreus 3.7—4.13, ao mesmo tempo em que mostrou a impor­
tância da santificação nesses capítulos e em Hebreus.
Qualquer tentativa de equiparar o descanso divino em Hebreus com um
estágio particular na ordem da salvação (ordo saiutis), ou com uma “experiên­
cia” espiritual particular, está fadada ao fracasso. Colocaremos nossa atenção
na interpretação do movimento de santidade, principalmente por ser mais
desenvolvido que outros. No entanto, apesar de suas falhas, sua ênfase na san­
tificação está ligada a um tema relacionado que é abundantemente evidente
em Hebreus. Quatro blocos de construção dessa interpretação precisam ser
examinados.
Primeiro, é baseado em uma interpretação alegórica das experiências de
Israel sob Moisés e Josué, que não tem base em Hebreus 3.7—4.13. A alego­
ria segue assim: o êxodo (= conversão, justificação pela fé), peregrinações no
deserto (= luta contra o pecado, carnalidade) e, finalmente, a conquista de
Canaã (= experiência da inteira santificação, o “descanso da fé”, vitória sobre

189
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

o pecado). Como vimos, o autor de Hebreus não tem o menor interesse em


desenvolver uma correlação tipológica positiva entre o descanso de Canaã e
o descanso divino. De fato, ele se esforça para equiparar o descanso no Salmo
95 com o descanso sabático de Deus em Gênesis 2.2, não o estabelecimento
de Israel em Canaã. Ele enfatiza ofracasso da geração do deserto em entrar no
descanso divino, bem como ofracasso de Josué em fornecer o descanso divino
disponível nos últimos dias. A geração do deserto serve principalmente como
um “exemplo de desobediência” que os leitores farão bem em não imitar.
Segundo, uma interpretação defeituosa dos tempos verbais gregos é uti­
lizada na tentativa de demonstrar que a entrada no descanso ocorre agora
(tempo presente eiserchometha, “nós [...] entramos” [4.3]), e que a entrada é
instantânea, não gradual (infinitivo aoristo eiselthein, “entrar” [4.1,6,11]; veja
Taylor, 1967, p. 51-52). Como vimos, a verdadeira importância do tempo pre­
sente em 4.3 não pode ser que os crentesjá tenham entrado no descanso divino
pela fé, mas que eles estão no processo de entrar. A obediência fiel é o caminho
para continuar a peregrinação à nossa pátria celeste; a desobediência infiel é o
caminho certo para não atingir esse objetivo. O tempo aoristo em 4.1,6 e 11
não pode referir-se a uma obra instantânea da graça no coração, embora essa
ideia possa ser construída sobre outras passagens nas Escrituras. Sendo assim,
a complexa questão do abuso do aoristo grego na exegese da santidade já foi
habilmente discutida, mais notavelmente por Maddox (1981), e não precisa
ser ensaiada aqui.
Terceiro, tomar a “obra” (lit., “obras”) em 4.10 como “obras de justiça”
ou “obras da lei”, como vimos, é estranho tanto ao contexto imediato como
ao contexto pleno de Hebreus. Pode-se acrescentar que faz uma comparação
muito estranha para correlacionar o descanso de nossos próprios esforços para
sermos justos (obras que se tornam más) com o descanso de Deus das obras da
criação (que são repetidamente chamadas de “boas” em Gn 1). A comparação
torna-se consideravelmente mais complicada se “aquele que entra no descanso
de Deus” em 4.10 é Cristo. Então a obra consumada de Cristo na cruz, a morte
para nossa “vida própria” e o descanso de Deus estão sendo correlacionados
(veja Wiley, 1984, p. 134-138). Hebreus é distorcido ao lê-lo por meio do pris­
ma da teologia de Paulo.
Quarto, já mostramos o enfoque escatológico do conceito de descanso
de Hebreus (-» 4.1-13 Por trás do texto, anotação complementar: “Descanso
sabático e mundo vindouro”). Tem havido uma tendência entre alguns exposi­
tores de santidade de minimizar o caráter escatológico do descanso. Turner diz
explicitamente que Hebreus “elevou-se muito acima dos conceitos do apoca-
190
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

lipticismo judaico [por exemplo, 4Ed. 8.52] enfatizando a natureza espiritual


desse relacionamento” (1975, p. 85). Taylor (1967, p. 55) apresenta uma inter­
pretação espiritualizada de sabbatismos (“descanso sabático”) como um “estado
sabático da alma”, um descanso tranquilo em Deus que envolve “autocrucifica­
ção, [...] entrega total a Deus”.
Contudo, é difícil escapar da urgência escatológica que está por trás da
oportunidade presente (“Hoje”; veja 3.13; 4.7) para entrar no descanso de
Deus, e o perigo de não entrar. Alguns sustentam a obtenção presente do des­
canso da fé (isto é, cessando de nossas próprias obras de justiça) em tensão
com o cumprimento final do descanso prometido (ex.: Clarke, 1977, 3:711).
Poucos estão dispostos a mantê-los em conjunto: uma experiência particular
de inteira santificação (a partir de um entendimento de santidade do século
19) como condição para a entrada no descanso escatológico. Quanto a isso,
W. B. Godbey seguiu essa interpretação de santidade até sua conclusão lógica,
conforme declarado em seu trabalho provocativamente intitulado Santidade
oulnfernol (1893, p. 12-13).
Se nossa leitura for fiel a Hebreus 3.7—4.13, então nenhum dos blocos de
construção referidos sustenta uma interpretação desses capítulos que aponte
para uma experiência específica e pessoal de entrar atualmente no descanso. O
descanso divino não pode ser equiparado a uma etapa ou experiência particular
relacionada à salvação ou santificação, mas permanece como um símbolo do
ponto final em “todo o processo soteriológico” (Attridge, 1989, p. 128; veja
McCown, 1981, p. 66; -> 4.1-13 Por trás do texto, anotação complementar:
“Descanso e salvação em Hebreus”). Esforçar-se para entrar no descanso agora,
enquanto ainda é “hoje”, é uma metáfora para uma parceria contínua com Cris­
to e um compromisso firme “até o fim” (3.14). O reverso é apostasia e fracasso
potencial de entrar no descanso de Deus (3.12; 4.1,11).
Devemos apressar-nos em acrescentar que a santidade é uma prepara­
ção essencial para entrar no descanso de Deus. Esses capítulos apresentam
claramente o principal obstáculo para entrar nesse descanso: um coração en­
durecido. Esse é um “coração perverso e incrédulo que se afasta do Deus vivo”
(3.12; veja 3.19); sendo “endurecido pelo engano do pecado” (3.13 ARA,
NAA, TB); e tendo uma desobediência rebelde (3.18; 4.6,11).
No capítulo seguinte, o pregador confronta a abordagem descuidada da
fé de seus ouvintes, que impediu seu crescimento espiritual e obscureceu sua
clareza moral (5.11-14). Mas como a preparação para entrar no descanso de
Deus pode ser descrita de forma mais positiva? Como a promessa de descanso
no futuro está conectada com a vida de fé, obediência e santidade agora?

191
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A realidade escatológica do descanso de Deus e a necessária santificação


dos crentes são reunidas em Hebreus por meio do ensino posterior do prega­
dor sobre a entrada de Cristo no santuário celestial (Pfitzner, 1997, p. 82-83).
A qualificação dos crentes para entrar no descanso de Deus é descrita por meio
de imagens de adoração e ministério sacerdotal. E instrutivo que o pregador
nunca mais utilize a ação de “entrar [eiserchomai]” em relação aos próprios
crentes, além da metáfora da entrada no descanso nos capítulos 3 e 4. (He­
breus 10.19,20 não diz que entramos no lugar santíssimo, mas que Cristo nos
deu o privilégio de acesso ousado à presença de Deus.) Somente Cristo, “nosso
precursor”, realmente “entrou” no santuário celestial “em nosso favor” (6.20
N IV 11; veja 9.12, 24 [“por nós”]). O fato de os crentes terem de “adentrar no
santuário interior” é “uma esperança como âncora da alma”, isto é, a garantia de
nossa eventual entrada (6.19). Caso contrário, o pregador fala consistentemen­
te do privilégio cristão de adoração como uma “aproximação” diante de Deus
(proserchomai; veja4.l6; 7.25; 10.22; 12.18,22).
Nossa abordagem atual e futura entrada na realidade do Reino inabalável
de Deus só é possível por meio da santificação. O sacrifício de Cristo definiti­
vamente tira os pecados (9.28; 10.12), santifica (9.13; 10.10,14,29; 13.12; veja
2.11) e purifica a consciência culpada (9.14; 10.22). O ministério sumo sacer­
dotal de Cristo é baseado em uma aliança melhor. A Nova Aliança garante uma
nova obediência entre o povo de Deus (o antídoto para um coração rebelde;
veja 8.10; 10.16) e uma total obliteração dos pecados da memória de Deus
(10.17,18). Uma santificação mais abrangente não pode ser imaginada. A san­
tidade é indispensável para ter um público diante de um Deus santo (12.14),
ou aproximar-se de Deus em adoração “com um coração sincero e com plena
convicção de fé” (10.22).
A santificação necessária é realizada por meio da morte de Jesus. A eficácia
do ministério sumo sacerdotal de Cristo estará na frente e no centro de toda
a parte principal do argumento do pregador em 7.1 — 10.18. A santificação é
parte de uma vida contínua de fidelidade a Deus (veja Hb 11). Isso é trabalha­
do em grande luta, por meio do processo divino de disciplina para os filhos de
Deus (12.4-13), e é crucial para receber a herança prometida (12.14-17).

192
II. SUMO SACERDÓCIO SUPERIOR DEJESUS:
HEBREUS 4.14-10.18
Estes capítulos são fundamentais para a mensagem de Hebreus:
• 4.14—5.10 introduz o assunto do ministério sumo sacerdotal de Cris­
to.
• 5.11—6.20 prepara os leitores para serem mais receptivos ao ensino
aprofundado a seguir.
• 7.1 — 10.18 oferece uma série de argumentos que demonstram a su­
perioridade do ofício de Sumo Sacerdote de Cristo, Nova Aliança,
santuário celestial e sacrifício de uma vez por todas.

A. A s qu alificaçõ es do grand e Sum o Sacerd ote


( 4 . 14 - 5 . 10 )

POR TRÁS DO TEXTO

Hebreus 4.14—5.10 marca uma grande transição para o argumento


principal da homília. Os versículos iniciais (4.14-16) incluem, primeiro, uma
reafirmação da proposição para toda a homília (veja 2.17,18; Bengel 1877,
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

4:383). Em segundo lugar, eles repetem exortações anteriores para permanecer­


mos comprometidos com nossa confissão (homologias·. “a fé que professamos”
[4.14]; veja 3.1,14) e manter nossa ousadia (parrêsias: “confiança”) diante de
Deus (4.16; veja 3.6). As mesmas notas soam em uma passagem de transição
paralela (10.19-23), que forma um inclusio com 4.14-16.

"Suportes" de 4.14-16 e 10.19-23


O p r e g a d o r e n q u a d r a a p a rte c e n t r a l d e s u a h o m ília (p r o b a t io ou s e ­
ç õ e s a r g u m e n t a t iv a s p r in c ip a is e m 4 . 1 4 — 1 0 .1 8 ) c o m u m im p r e s s io n a n t e
c o n ju n to d e " s u p o r te s d e liv r o s " e m 4 .1 4 - 1 6 e 1 0 .1 9 -2 3 . A t a b e la a s e g u ir
m o s tra o s m u ito s p a r a le lo s e n tre e s s a s d u a s p a s s a g e n s , q u e d if ic ilm e n t e
p o d e m s e r a c id e n t a is ( G u th rie , 1 9 9 8 , p. 3 4 1 ; d e S ilv a , 2 0 0 0 a , p. 18 0).

Hebreus 4.14-16 Hebreus 10.19-23


" p o rta n to , v is t o q u e t e m o s " p o rta n to , [...] t e m o s
[ E c h o n t e s o u n ] " (v. 14) [E c h o n t e s o u n ] " (v. 19)

"u m g ra n d e s u m o s a c e rd o te "u m g ra n d e sa c e rd o te
[ a r c h ie r e a m e g a n ] " (v. 14) [ h ie r a m e g a n ] " (v. 21)

"J e s u s " (v. 14) "J e s u s " (v. 19)


"o F ilh o d e D e u s " (v. 14) "so b re a ca sa d e D e u s"
(v. 21; v e ja 3.6)
" a p e g u e m o -n o s co m to d a a " a p e g u e m o - n o s c o m fir m e z a
fir m e z a à fé q u e p r o fe s s a m o s à e s p e r a n ç a q u e p r o fe s s a m o s
[k r a t õ m e n t ê s h o m o l o g i a s ]" [ k a t e c h õ m e n t é n h o m o lo g ia n ] "
(v. 14) (v. 23)
" A p ro x im e m o - n o s " a p r o x im e m o - n o s
[p r o s e r c h õ m e t h a ] " (v. 16) [ p r o s e r c h õ m e t h a ] (v. 22 )

" d o t ro n o d a g r a ç a c o m t o d a a " t e m o s p le n a c o n fia n ç a


c o n fia n ç a [ m e t a p a r r ê s ia s ] " [ p a r r ê s ia n ] p a ra e n t r a r n o S a n to
(v. 16) d o s S a n to s " (v. 19)

A primeira parte de Hebreus centrou-se em Jesus como o Filho (1.2,5,8;


2.6; 3.6). O pregador explicitamente nomeou Jesus como Sumo Sacerdote ape­
nas duas vezes (2.17; 3.1). Ele forneceu algumas descrições gerais do ministério
sumo sacerdotal do Filho (purificação ou expiação dos pecados [1.3; 2.17];
santificar ou tornar as pessoas santas [2.11; veja 3.1]). Agora, em 4.14—5.10,
ele começa a mergulhar mais profundamente em “Jesus, o Filho de Deus”, como

194
NOVO COiMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

o “grande sumo sacerdote” (4.14). Jesus como o Sumo Sacerdote exaltado é


“o ponto principal” (8.1 ARIB, JFA, TB) dos argumentos centrais do sermão
(especialmente 7.1 — 10.18). Portanto, não é coincidência que 4.14—5.10 con­
tenha cinco referências ao “sumo sacerdote [archiereus]” (4.14,15; 5.1,5,10) no
espaço de treze versículos. Dos quatorze usos da palavra na seção central (e de­
zessete usos ao todo; veja 2.17; 3.1; 13.11), as nove ocorrências restantes estão
espalhadas por quatro capítulos (6.20; 7.26,27,28; 8.1,3; 9.7,11,25).
Hebreus 4.14-16 reativa o tema do sumo sacerdócio mencionado ante­
riormente e será desenvolvido nos capítulos seguintes. Mas também prepara
mais imediatamente para 5.1-10. A unidade (4.14—5.10) consiste em três
parágrafos: o primeiro (4.14-16) estabelece a comparação (synkrisis) dos sa­
cerdotes levíticos e Cristo, que será expandida nos dois parágrafos seguintes
(5.1-4,5-10). Hebreus 4.14-16, por sua vez, está encerrado em duas exortações
(“apeguemo-nos com toda a firmeza” [4.14]; e “aproximemo-nos” [4.16]).
Como é o caso em Hebreus, as realidades cristológicas apoiam e energizam o
encorajamento pastoral.
O pregador apresenta dois aspectos do sacerdócio de Cristo em 4.14-16
que sustentam suas exortações. Ele então amplia esses dois aspectos nos dois
parágrafos seguintes. Na verdade, cada um dos dois parágrafos (5.1-4 e 5.5-10)
é cuidadosamente construído em torno desses aspectos:
Primeiro, em 4.14, “portanto, visto que temos um grande sumo sacerdote
que adentrou os céus” aponta para a designação por Deus do Filho como Sumo
Sacerdote (veja 1.3,5,13; 2.9; 7.26; 8.1; 9.24). A primeira qualificação do sumo
sacerdócio genuíno — ou seja, a designação divina — fornece a estrutura para
cada um dos dois parágrafos seguintes (5.1a,4; 5.5,6,10).
Segundo, 4.15,16 declara a solidariedade de um sumo sacerdote com
aqueles a quem ele ministra e sua provisão de acesso aos benefícios divinos. Isso
corresponde ao material que forma o núcleo de cada um dos dois parágrafos
seguintes (v. l£-3 em 5.1-4 e v. 7-9 em 5.5-10).
A maneira de apresentar essas duas qualificações para o sumo sacerdócio
revela diferenças fundamentais entre Cristo como Sumo Sacerdote e os sumos
sacerdotes levíticos. Com relação à primeira qualificação, todos os sumos sa­
cerdotes devem ser nomeados ou chamados por Deus (5.1^,4). Mas somente
Cristo “adentrou os céus” (4.14). Isso significa que somente Ele foi glorificado
por Deus como Sumo Sacerdote (5.5a; veja 2.9). Sumos sacerdotes comuns
“devem ser chamados por Deus, como de fato o foi Arão” (5.4), mas Cristo foi
exaltado como Sumo Sacerdote para sempre “segundo a ordem de Melquise-

195
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

deque” — uma frase que enquadra 5.5-10 (v. 6 e 10) e antecipa a primeira série
de argumentos na seção central (cap. 7).
A segunda qualificação é também aplicada aos sumos sacerdotes comuns e
a Cristo de maneiras contrastantes. O contraste é antecipado em 4.15,16· Há
três questões importantes: (1) solidariedade com a condição humana daqueles
a quem o sumo sacerdote ministra; (2) a relação do sumo sacerdote com o pe­
cado; e (3) os benefícios do ministério do sumo sacerdote.
Primeiro, a questão da solidariedade é prevista em 4.15a. A dupla negativa,
“não temos um sumo sacerdote que não possa \mêdynamenon\ compadecer-se
das nossas fraquezas”, sugere um contraste entre Cristo e os sacerdotes leví-
ticos, que é ampliado nos dois parágrafos seguintes. A capacidade de Cristo
de simpatizar-se com a fraqueza humana não é diminuída por Sua exaltação
celestial. Pelo contrário, Sua identificação com a humanidade (em contraste
com os sumos sacerdotes levíticos) é, ao mesmo tempo, mais profunda e total­
mente triunfante sobre a fraqueza humana. Notavelmente, Hebreus não chega
a atribuir fraqueza diretamente a Cristo — facilitado pela dupla declaração
negativa em 4.15 e provavelmente para evitar associar Cristo com a falha moral
inerente à humanidade caída. Paradoxalmente, os sumos sacerdotes comuns
não são capazes de simpatizar de forma plena com aqueles que representam,
precisamente porque não podem transcender a fraqueza humana para fornecer
ajuda real. Eles são “assediados pela fraqueza” (5.2 ESV, NAB, NASB, REB;
veja 7.28).
Sendo assim, esse paradoxo se desdobra por meio da linguagem de habili­
dade (dynamai) e emoção (cognatos de pathos, “paixão”) encontrada em cada
um dos três parágrafos. Cristo é capaz de compadecer-se (dynamenon sympa-
thêsai) com nossas fraquezas porque Ele foi testado de todas as maneiras como
nós (4.15). O sumo sacerdote comum só é capaz de moderar suas emoções
(metriopathein dynamenos') em relação a outros que têm as mesmas fraque­
zas das quais ele mesmo não consegue livrar-se (-> sympatheõ e metriopatheõ
em 4.15 e 5.2). Cristo entrou mais profundamente na experiência humana na
medida em que passou pelo horror da morte. Sua compaixão não foi apenas
um sentimento de companheirismo, mas também uma participação real no
sofrimento humano. Ele “sofreu” a morte (epathen [5.8]; veja 2.9,10,18; 9.26).
Contudo, Ele o fez com a mais completa devoção a Deus, “àquele que o podia
salvar [ton dynamenon sõzein\ da morte” (5.7). A identificação com a mortali­
dade humana e a vitória divina sobre ela são o que o qualifica como o supremo
Sumo Sacerdote (veja 2.14-18).

196
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

A segunda questão diz respeito à relação dos sumos sacerdotes com o pe­
cado. A relação de Cristo com o pecado é expressa de forma sucinta: chõris
hamartias, “sem pecado” (4.15). Nessa passagem, nenhuma menção é feita à
morte expiatória de Cristo pelo pecado (veja 1.3; 2.17; 9.28; 10.12,18; 13.11).
Em vez disso, é feito um contraste entre os sumos sacerdotes levíticos que
“apresentam ofertas e sacrifícios pelos pecados” (5. \ b) e Cristo, que “oferece
orações e súplicas” (5.7). Uma deficiência crítica dos sumos sacerdotes comuns
é sua obrigação de oferecer sacrifícios pelos pecados, não apenas pelo povo, mas
por si mesmos (5.3). Em contraste, Jesus ofereceu toda a Sua vida em devoção
a Deus (5.7). Seu sofrimento envolvia obediência (5.8), o que torna possível
uma nova obediência entre Seu povo (5.9).
Finalmente, os benefícios do ministério do sumo sacerdote são observa­
dos em 4.16. A abordagem confiante diante de Deus por parte de todos os
adoradores era impensável sob a antiga aliança. Nenhum benefício duradouro
é mencionado em relação aos sumos sacerdotes comuns em 5.1-4. Somente o
sumo sacerdote podia entrar no lugar santíssimo, e apenas uma vez por ano,
no Dia da Expiação (9.7,25). Mais tarde, o pregador argumentará que os sa­
crifícios levíticos oferecidos dia após dia, ano após ano (9.25; 10.2,11), nunca
poderíam expiar definitivamente os pecados, ao contrário do sacrifício de uma
vez por todas de Cristo (9.12,26,28; 10.10). A “fraqueza” dos sumos sacerdo­
tes comuns resultou na contínua ineficácia de seus sacrifícios, mas Cristo foi
“aperfeiçoado” quando se ofereceu como sacrifício definitivo (5.2,3,7-9; veja
7.27,28).
Essa passagem não aborda sobre a ineficácia dos sacrifícios sob a antiga
aliança. O argumento mais completo esboçado em nosso parágrafo anterior
(e desenvolvido posteriormente) está implícito no fato de que a fraqueza do
sumo sacerdote levítico o obrigou a oferecer sacrifícios por seus próprios peca­
dos, bem como pelos do povo (5.3; veja 7.27; 9.7). Os benefícios do ministério
de Cristo são claramente superiores. O sumo sacerdócio de Cristo fornece
aos adoradores acesso ininterrupto à graça divina (observe o tempo presente,
“aproximemo-nos”) para ajuda oportuna (4.16) e “salvação eterna” (5.9).

NO TEXTO

1. 0 grande Sumo Sacerdote (4.14-16)


■ 14 Portanto, visto vez que tem os (-» 10.19 e 12.1). A palavra grega para
sumo sacerdote (archiereus) é rara no AT (Lv 4.3; Js 22.13; 24.33), embora

197
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

seja abundante na literatura intertestamentária (esp. nos livros dos Macabeus)


e nos livros históricos do NT. O AT hebraico usa a expressão “grande sacerdo­
te” {kohen gadol· “sumo sacerdote”), ou hiereus megas na LXX, encontrada uma
vez em Hebreus (10.21; veja Lv 21.10; Nm 35.25,28; Ne 3.1,20; Ag 1.1,12,14;
2.4; Zc 3.8; 6.11).
A expressão grande sum o sacerdote (archierea megan) transmite a exce­
lência ou magnificência do ofício de Cristo (Lane, 1991, p. 103). Esse título
é incomum. Aplica-se ao sumo sacerdote Asmoneu, Simão (1 Mac. 13.42;
14.27), ao Logos em Fílon (Sonhos 1.214,219; 2.183; \e)zAbraão 235) eaCris-
to somente aqui em Hebreus.
Que Cristo adentrou os céus expressa Sua exaltação como Sumo Sacer­
dote. Hebreus descreve a exaltação do Filho à direita de Deus no céu como
uma instauração real (1.3; 8.1; veja 1.13; 10.12; 12.2). Mais tarde, a passagem
pelos céus incorporará a imagem espacial do sumo sacerdote movendo-se pelo
lugar santo e entrando “atrás do véu” no lugar santíssimo (veja 6.19,20; 8.1,2;
9.8,11,24; 10.20).
De acordo com a cosmologia de Hebreus, Jesus passou pelos céus transitó­
rios, criados (1.10-12; 12.26), para o santuário permanente e verdadeiro, para
o “próprio céu, [...] diante de Deus” (9.24; vejadeSilva, 2000a, p. 181; Koester,
2001, p. 282). O caráter celestial do ministério sumo sacerdotal de Cristo é
essencial para Hebreus. Se Jesus ainda estivesse na terra, Ele nem mesmo seria
um sacerdote (8.4). Sua perfeição cultuai e moral é aumentada pelo fato de que
Ele é “exaltado acima dos céus” (7.26; veja T. Levi 3.4).

"Os céus" na cosmologia antiga e em Hebreus

A c o s m o lo g ia g r e c o - r o m a n a a n tig a p r e v ia u m u n iv e r s o g e o c ê n t r ic o
n o q u a l a T erra é c e r c a d a p o r s e t e e s f e r a s c e le s t e s , a lé m d a s q u a is há um
re in o d e e s t r e la s f ix a s (M a rtin , 1 9 8 7 , p. 7-9). O c é le b r e " S o n h o d e C ip iã o " ,
d e C íc e r o , n a rra u m a a s c e n s ã o p o r m e io d a s e s f e r a s a o " c é u " (S o b re a

R e p ú b lic a 6 .1 5 ,1 6 ,2 0 ,2 4 ; "o s c é u s " [pi.] p o d e re fe rir-s e a p e n a s a o re in o


m a is e x te rn o [6 .1 7 ] ou à s s e t e e s fe r a s c e le s t e s [6 .2 2 ,2 5 ]). T o d o o re in o
c e le s t ia l q u e c ir c u n d a a te rra c o m p r e e n d e o " t e m p lo " ou " t e m p lo s " d e
D e u s (6 .1 5 ,1 7 ).
O s t e x t o s ju d a ic o s a p o c a líp t ic o s e ra b ín ic o s , m u ita s v e z e s , e s p e lh a m
e s s e e s q u e m a c lá s s ic o p o r m e io d e r e fe r ê n c ia s a o s s e t e c é u s (3 E n . 1 — 2;
1 7 .1 -3 ; 1 8 .1 ,2 ; P. Ed. A 1 9 -2 1 ; A s . Is. 6 .1 3 ; 7.8; b. H ag. 1 2 b; M a s s e k e t

198
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

H e k a l o t 4; v e ja A le x a n d e r , 1 9 8 3 , p. 2 3 9 ). M a s t a m b é m há n u m e r a ç õ e s
d ife r e n t e s d o s c é u s : d o is (b . H a g . 12 b ), tr ê s (1 E n . 1 4 .8 -2 5 ; T. L e v i 2 .7 -1 0 ;
M id r. T e h ilim 1 1 4 .2 ), c in c o (3 B a r. 1 1 .1 ), o ito (b. H a g . 1 3 a ), ou d e z (2 E n .
2 0 .3 ; 22 ). U m a t r a d iç ã o re g is tra q u e 9 5 5 c é u s fo ra m c r ia d o s a c im a d o s é ­
tim o c é u (3 E n . A 4 8 .1 ; M a s s e k e t H e k a l o t 7). E m q u a lq u e r c a s o , o c é u m a is
a lto é a lo c a liz a ç ã o d o t ro n o d e D e u s (2 E n . j la . 4 ; 2 0 .3 ; 4 E d . 8 .2 0 ,2 1 ; P.
E d . A 21; v e ja A p 4 .1 -1 0 ), t a b e r n á c u lo / te m p lo (2 B a r. 4 .5 ,6 ; O r. S ib . 5 .4 2 0 -
4 2 4 ; v e ja A p 7 .1 5 ; 1 1 .1 9 ; 1 5 .5 -8 ), ou o s a n to d o s s a n t o s (T L e v i 3.4).
H e b re u s n ã o te m in t e r e s s e e m d e s c r e v e r c u id a d o s a m e n t e a a s c e n ­
s ã o d e Je s u s p e lo s c é u s (v e ja A s . Is. 9 .1 3 -1 8 ; 1 1 .2 2 -3 3 ; B ru c e , 1 9 9 0 , p.
11 5; K o e s te r, 2 0 0 1 , p. 28 2 ); n e m fo r n e c e u m e s q u e m a c e le s t ia l d e t a lh a ­
do. N o e n ta n to , é p o s s ív e l d is c e r n ir tr ê s d is t in ç õ e s a r e s p e it o d o s " c é u s "
e m H e b re u s . (O a u to r p o d e c o m p a r t ilh a r a id e ia d e P a u lo d e trê s c é u s e m
2 C o 1 2 .2 -4 ; o b s e r v e o p a r a le lo e x t r a b íb lic o e m L u c ia n o , Icar. 1.)
P rim e iro , há o s c é u s t e m p o r á r io s q u e fa z e m p a rte d a s " c o is a s c r ia ­
d a s ” (1 2 .2 7 ; v e ja 1 .1 0 ). E le s s e r ã o " a b a la d o s " (1 2 .2 6 ) ou " p e r e c e r ã o " ,
p o is p o d e m d e s g a s t a r - s e o u s e r t r o c a d o s " c o m o v e s t im e n t a s " (1 .1 1 ,1 2 ).
S e g u n d o , há “ a c id a d e d o D e u s v iv o " , "a J e r u s a lé m c e le s t ia l" (1 2 .2 2 ;
v e ja 1 1 .1 0 ,1 6 ). É u m a " c id a d e p e r m a n e n t e " (1 3 .1 4 ) n o R e in o in a b a lá v e l
d e D e u s (1 2 .2 8 ). A q u i e s tá lo c a liz a d o o v e r d a d e ir o e c e le s t ia l " t a b e r n á c u lo
[s k ê n é ]" (8 .2 ,5 ; v e ja 9 .2 3 ). Q u a n d o Je s u s " a d e n t r o u o s c é u s [ d ie lé ly t h o t a
t o u s o u r a n o u s ] " (4.1 4; v e ja 8 .1 ), E le v e io " c o m o [ d ia ] " o " m a io r e m a is
p e r fe ito t a b e r n á c u lo [ s k ê n é ] , is to é, [...] n ã o p e r te n c e n t e a e s ta c r ia ç ã o
[ k t is is ] " (9 .1 1 ).
T e rce iro , Je su s, c o m o S u m o S a c e rd o te , e n tro u " p o r tr á s d o v é u "
(6 .1 9 ,2 0 ; v e ja 9.3; 1 0 .2 0 ) n o S a n to d o s S a n to s (ta h a g ia [9.1 2; v e ja 9 .2 5 ;
1 0 .1 9 ]). D e s s a fo rm a , " e le e n tro u [no] p ró p rio c é u [e/s a u t o n t o n o u r a -
n o n ] " na p r e s e n ç a d e D e u s (9 .2 4 ).
A s s im , J e s u s a v a n ç o u p o r m e io d o s c é u s d a p r e s e n t e c r ia ç ã o { k tis is ) ,
m e d ia n t e a t e n d a c e le s t ia l { s k ê n é ) , e n o S a n to d o s S a n to s {ta h a g ia ) . E le
fo i " e x a lt a d o a c im a d o s c é u s " (7 .2 6 ), n o " p r ó p r io c é u " (9 .2 4 ), "à d e s tr a
d a [d iv in a ] M a je s t a d e " (1.3; 8.1). (Para u m e s t u d o m a is a p ro fu n d a d o , v e ja
d e S ilv a 1 9 9 7 , p. 4 4 0 ; T ra u b e v o n R a d , 1 9 6 7 , p. 5 2 7 ,5 3 5 .)

Hebreus tem chamado predominantemente Jesus de “Filho” até agora


(1.2,5,8; 2.6,10; 3.6). O título mais completo Filho de D eus ocorre aqui pela
primeira vez. Será repetido em 6.6, 7.3 e 10.29. Todo o título, Jesus, o Filho
de Deus, é colocado enfaticamente no final da cláusula de abertura (-» 2.9 ano­
tação complementar: “Uso do nome ‘Jesus’ em Hebreus”).

199
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A majestade e a autoridade do Filho sobre o mundo vindouro (2.5; veja


1.2,3,6-8,13; 2.8,9) apareceram pela última vez em 3.1-6. Lá, o pregador cha­
mou atenção para Jesus como “o apóstolo e sumo sacerdote da nossa confissão
\homologias\' (3.1 ACF) e “o Filho sobre a casa de Deus” (3.6; veja 10.21).
Ele se dirigiu a seu público como parceiros em um “chamado celestial” (3.1) e
enfatizou a importância de seu compromisso contínuo (“esperança [kataschõ-
men]”) (3.6; veja 3.14). Da mesma forma, em 4.14, a ascendência do Filho “que
subiu ao mais alto céu” (NJB) é motivo para exortar; A peguem o-nos com fir­
meza à fé que professam os (kmtõmen tês homologias, confissão” [ARA]; veja
10.23; 3.6,14). O fio condutor da “palavra de exortação” de Flebreus (13.22)
aparece em repetidos encorajamentos e advertências para manter o compro­
misso com o ministério maior e a salvação em Cristo.
15 A palavra p o is introduz a negação de uma falsa inferência que podería
ser extraída do versículo 14 (Zerwicke Grosvenor, 1981, p. 662; Lane, 1991, p.
107, n.a). Pode-se inferir que a exaltação celestial de Jesus o torna distante e in­
tocável pelas provações e lutas que a comunidade está vivenciando. O pregador
usa uma dupla negativa para contrariar isso; N ão tem os um sum o sacerdote
que não possa \mê dynamenon\ com padecer-se. Observe o contraste delibe­
rado com o versículo anterior: “Temos um grande sumo sacerdote” (4.14), mas
não tem os um sum o sacerdote. Hebreus evita associar diretamente Jesus com
nossas fraquezas. “Fraqueza [astheneia]” não precisa implicar deficiência moral
(veja 11.34), mas o faz consistentemente em Hebreus com respeito aos sumos
sacerdotes levíticos. A fraqueza deles (5.2; 7.28) explica por que precisam de
expiação regular por seus próprios pecados (5.3; 7.27).
Jesus é capaz com padecer-se de nossas fraquezas. A palavra simpatizar
(encontrada em muitas traduções) pode ser enganosa. A palavra está frequen­
temente ligada à prática de expressar as nossas condolências por alguém que
perdeu um ente querido ou experimentou algum outro infortúnio. A palavra
grega sympatheõ pode até incluir, mas envolve mais do que se relacionar emo­
cional ou psicologicamente com os problemas de outra pessoa (“sentimento”
[NJB]; “tocado com o sentimento” [BKJ]; “compreender” [NTLH]). Jesus
participou existencialmente do sofrimento humano, como mostrado na próxi­
ma cláusula e em 5.7,8. Uma vez que “esteve lá” (como poderiamos dizer), Ele
pôde realmente “ter empada” (NIV11) ou “ter compaixão” (TYNDALE, se­
guindo o “tenha pena” de Lutero). O contexto, bem como o uso de sympatheõ
em outros lugares (ex.: “sofreu junto com” [10.34 N IV 11]), aponta para uma
identificação com a situação dos outros que busca fazer mais do que apenas

200
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

“sentir sua dor”, mas para trazer-lhes apoio e assistência ativos (4 Mac. 4.25;
13.23; T. Sim. 3.6; T. Benj. 4.4; veja Lane, 1991, p. 108, n.c, 114).
Jesus é capaz de identificar-se com a luta humana contra o pecado por­
que Ele mesmo foi tentado ou “testado” (ACF, ARA, ACR; “posto à prova”
[NJB]). O particípio pepeirasmenon é causai, como a NLT traduz: “Pois ele
enfrentou todos os mesmos testes” (grifo nosso). O particípio também está
no tempo perfeito. Isso indica que Jesus, tendo triunfado sobre a tentação, é
“tentado e testado” (Zerwick e Grosvenor, 1981, p. 662). O pregador descreve
o caráter do teste de Jesus em três frases nítidas, unidas por preposições gre­
gas, começando com consoantes duras e guturais (Koester, 2001, p. 283): Por
todo tip o \katapanta], com o nós \kath ' homoiotêta\ — porém , sem pecado
(ichõris hamartias).
Jesus é qualificado de maneira singular para representar-nos porque par­
ticipou das profundezas da experiência humana. A declaração do pregador
sobre a aplicabilidade universal (por to d o tip o) e semelhança (com o nós) do
teste de Jesus não pretende convidar a comparações com todos os estudos de
caso possíveis em tentação. O ponto não é que Jesus possa identificar-se com
qualquer situação particular e distinta (compare com 1 Co 10.13). O foco está
mais no teste que Jesus suportou — o sofrimento da morte — cuja natureza
e intensidade são aplicáveis a todos, sem exceção. A mortalidade é o fato mais
básico e inevitável da existência humana. A obediência de Jesus foi forjada no
crisol do sofrimento (5.8; veja 2.18). Ele “sofreu a morte por todos” (2.9,10).

Repetindo a proposição
H e b re u s 4 .1 4 - 1 6 re p e te c la r a m e n t e o s p o n t o s - c h a v e fe it o s na p r o p o ­
s iç ã o p a ra t o d o o s e r m ã o e n c o n t r a d o e m 2 .1 7 ,1 8 :

2.17,18 4.14-16
Je s u s " t e v e q u e s e t o r n a r s e m e ­ Je su s, c o m o n ó s [k a t h ’ h o m o io t e -
lh a n te a [ h o m o iõ t h é n a i] " n ó s " e m ta ] , p a sso u p o r to d o tip o [ k a t a
t o d o s o s a s p e c to s [ k a t a p a n t a ] " p a n t a ] d e te n ta ç ã o (v. 15)
(v. 17)
E le " s o fr e u [p e p o n t h e n ] q u a n d o E le p ô d e (d y n a m e n o n ) c o m p a ­
t e n ta d o [ p e ir a s t h e is ] " , e n t ã o " e le d e c e r-se [s y m p a t h é s a i ] (v. 15 ) e
é c a p a z d e s o c o r r e r [ d y n a t a i. . . f o r n e c e r " a ju d a [b o é t h e i a n ]" (v.
b o é t h ê s a i ] a q u e le s q u e t a m b é m 16) p o r q u e E le fo i " t e n t a d o
e s t ã o s e n d o t e n ta d o s " (v. 18) [p e p e i r a s m e n o n ]" (v. 15)

201
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

E le s e to rn o u u m " s u m o s a c e r d o t e U m " g ra n d e s u m o s a c e r d o t e " (v.


m is e r ic o r d io s o e f ie l" (v. 17) 1 4 ,1 5 ) fie l a D e u s (sem pecad o
[v. 15]) e m is e r ic o r d io s o p a ra
c o n o sc o (p o d e m o s "re c e b e rm o s
m is e r ic ó r d ia e e n c o n t r a r m o s
g r a ç a " d ia n t e d e D e u s [v. 16])

A resistência de Jesus à prova é especialmente relevante para os leitores,


pois eles experimentaram sofrimento no passado (10.32-4) e ainda se iden­
tificam com outros que sofrem (13.3). A morte de Jesus na cruz é o exemplo
singular de perseverança fiel para cumprir a vontade de Deus, pois Ele ofereceu
Seu próprio corpo em sacrifício pelos pecados (10.9,10; veja 7.27; 9.14,25,26).
Ele não vacilou em Sua fidelidade a Deus (2.13^,17; 3.2,6; 12.2), apesar da
vergonha da cruz (12.2) e da feroz oposição dos pecadores (12.3). Ele foi ten­
tado a cair e desistir de Sua missão, mas não o fez (Thompson, 2008, p. 113).
Ele correu o curso que lhe fora proposto, até a linha de chegada — da cruz ao
trono (12.2). Ele se tornou nosso “precursor” no lugar santíssimo (6.20 ACF).
Ele sofreu o teste final, porém , sem pecado.
Portanto, Ele está totalmente equipado para ajudar-nos a combater “um
coração perverso e incrédulo que se afaste do Deus vivo” (3.12) ou rejeitar “o
pecado que tão facilmente nos envolve” (12.1), para que possamos perseverar
na fé (10.19-25,36-39). Seu exemplo é mais do que adequado para a luta dos
leitores contra o pecado, pois eles “ainda não resistiram a ponto de derramar
o próprio sangue”, como Ele fez (12.4). Nosso grande sumo sacerdote, que é
completamente “separado dos pecadores” e “exaltado acima dos céus”, temm
os recursos ilimitados de santidade para salvar completamente Seu povo do
pecado (7.25,26).
16 A exortação de abertura foi “apeguemo-nos com toda a firmeza” à nos­
sa confissão (4.14). O versículo 16 encerra esse parágrafo (4.14-16) com uma
exortação correspondente. Compromisso e perseverança são impossíveis sem a
ajuda da misericórdia e da força da graça sustentadora de Deus.
Os crentes se valem da capacitação divina dentro do contexto da adora­
ção corporativa. A proxim em o-nos então ou “acheguemo-nos” (ARA, BKJ)
refere-se a uma ação associada ao culto do templo na LXX. Sacerdotes (Lv
9.7,8; 21.17-24; 22.3; Nm 16.40; 18.3,4) e pessoas (Êx 16.9; Lv 9.5; Nm 18.4)
se aproximavam do santuário para adoração (Thompson, 2008, p. 105). Em
Hebreus, esse verbo é usado para aproximar-se de Deus em adoração (4.16;

202
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

7.25; 10.1,22; 12.18,22; veja 11.6). Aqui está no tempo presente, destacado o
acesso contínuo: A proxim em o-nos repetidamente do trono da graça (Lane,
1991,p. 115).
Tal acesso íntimo, imediato e contínuo a Deus por intermédio de Jesus
nunca foi possível antes, nem mesmo para sumos sacerdotes sob a antiga alian­
ça (veja 9.7,8). As primeiras palavras bíblicas de Jesus citadas em Hebreus
(2.12) mostram Jesus conduzindo Seus irmãos e irmãs em louvor a Deus “na
assembléia” (OL, VC; compare “reunir-nos” [10.25]). Os crentes podem
aproximar-se — por intermédio de Jesus (7.25; 13.15) — diante do trono
da graça. O sacrifício de Cristo de si mesmo por nossos pecados proporciona
acesso diante de Deus no lugar santíssimo (10.19,22; veja 9.12) e participação
na adoração celestial (12.22-24,28).
A sede da “majestade divina” (8.1 BSC,VC; veja 1.3; 12.2) e governo justo
(1.8), de onde procede o julgamento de Deus contra o pecado (4.12,13; 6.2;
9.27; 10.27,30; 12.23; 13.4), é para os crentes o trono da graça. A morte sa­
crificial de Cristo para remover (9.26,28; 10.4,11) ou purgar (1.3; 9.14,22,23;
10.2,22) pecados e santificar Seu povo (2.11; 10.10,14,29; 13.12) foi iniciada
“pela graça de Deus” (2.9).
Em vez de desviarmo-nos ou nos afastarmo-nos do Deus vivo (3.12;
10.38,39), por intermédio de Cristo, podemos aproximar-nos de Deus com
confiança. “Ousadia \parrêsia\’ (HCSB, NRSV) era o privilégio cívico de to ­
dos os cidadãos nascidos livres de falar abertamente em assembléia pública. No
judaísmo helenístico, esse direito era apropriado dentro do contexto religioso
de pessoas justas que se dirigiam a Deus em oração (Josefo, Ant. 2.52; 5.38;
Fílon, Herdeiro 5, 91-92; Attridge, 1989, p. 142; Lane, 1991, p. 115-116; veja
Ef 3.12; l j o 5.14,15).
Essa confiança permite que os crentes recebam m isericórdia e encontrem
graça. A terna m isericórdia de Deus (Hb 2.17) e a graça fortalecedora (13.9)
são estendidas a nós em nosso m om en to da necessidade. A frase final diz lite­
ralmente “auxílio oportuno” (VC; veja REB). O auxílio divino está disponível
“sempre que precisamos de ajuda” (NTLH). Hebreus 2.18 aponta o momento
certo para Jesus “ajudar”: quando somos “tentados”, porque Ele também “so­
freu quando foi tentado” (Attridge, 1989, p. 142).

2. Qualificações dos sumo sacerdotes ordinários (5.1-4)


O parágrafo que abrange esses versículos sobre os sumos sacerdotes levíti-
cos é, na verdade, uma longa sentença em grego (na sentença periódica, -» No
203
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

texto para 1.1-4). Ele é fechado por referências semelhantes ao sumo sacerdó­
cio como uma vocação divina:
• T odo sum o sacerdote é escolh id o \lambanomenos\ dentre os h o ­
m ens e designado [...] em questões relacionadas com D eus (5.1).
• N inguém tom a \lambanei\ esta honra para si; ele [...] [é] chamado
por D eu s (5.4).
1 1 O pregador começa com praticamente uma definição de dicionário de
sum o sacerdote (Hagner, 1990, p. 79). T odo sum o sacerdote é escolh id o ou
designado por Deus como intermediário entre Deus e os seres humanos. Um
sumo sacerdote é escolhido dentre os hom ens para que possa representar os
homens (para representá-los; compare com 5.3). Ele representa as pessoas em
questões relacionadas com D eus, uma frase usada em 2.17 do serviço de um
sacerdote ao oferecer sacrifícios diante de Deus.
Uma cláusula de propósito define a função de um sumo sacerdote: Apre­
sentar ofertas e sacrifícios p elos pecados. O verbo apresentar {prospherõ;
[oferecer, ARA]) é frequentemente usado na LXX e no N T em contextos de
sacrifício. A estrutura gramatical dos pares de ofertas e sacrifícios (dõra te kai
thysias, “tanto dons como sacrifícios” [ARA, BKJ, TB]) pode indicar dois ti­
pos diferentes de ofertas. O fertas podem ser oferendas de farinha ou cereais,
enquanto sacrifícios são oferendas de sangue (ex.: D. Guthrie, 1983, p. 125;
Lane, 1991, p. 116; Wiley, 1984, p. 155). Fílon fornece uma explicação me­
lhor quando distingue entre os “sacrifícios” de Caim e os “presentes” de Abel
em Gênesis 4.4,5. Um sacrifício é quando alguém mata um animal, derrama
0 sangue ao redor do altar e leva a carne para casa. Um presente é oferecido
integralmente a quem o recebe (QG 1.62).
A mesma frase (ofertas e sacrifícios) ocorre mais duas vezes (Hb 8.3; 9.9)
como uma expressão abrangente para os deveres sacrificais do sumo sacerdote.
Se uma distinção é pretendida entre ofertas e sacrifícios em Hebreus, pode
ser uma distinção sem diferença. Hebreus 11.4 usa os dois termos de forma
intercambiável. Ao discutir o ministério sacrificial do sacerdócio levítico, o pre­
gador quase exclusivamente tem em mente as ofertas pelo pecado apresentadas
diariamente (7.27; 10.11) ou no Dia da Expiação (9.25; 10.1,3). Quaisquer
que fossem as ofertas e sacrifícios, eles eram oferecidos pelos pecados.
1 2 No versículo 2a, uma qualidade positiva de sumos sacerdotes comuns
é apresentada, mas é fortemente contrabalançada pela consideração de sua
fraqueza nos versículos 2b e 3. Um sumo sacerdote comum é capaz de lidar
gentilmente com as pessoas que representa. Embora essa seja uma qualidade
positiva, há um contraste entre lidar gentilmente aqui e “simpatizar” em 4.15.
204
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

Simpatizar {sympatheo) envolve compartilhar o sofrimento de alguém. Lidar


gentilmente (metriopatheõ) geralmente denota (ex.: em Fílon, Josefo e Plutar-
co) uma moderação das emoções, especialmente a raiva. W. M. Macgregor o
definiu como “o meio-termo entre explosões de raiva e indulgência preguiçosa”
(Barclay, 1976, p. 46). O sumo sacerdote deve “refrear suas emoções” (Koester,
2001, p. 286) para que, por um lado, ele não descarregue sua ira sobre os peca­
dores ou, por outro, encha-se de piedade por suas falhas.
Esse controle emocional é direcionado aos que não têm conhecim ento
e se desviam . Os dois termos (con h ecim en to e desviam ) são regidos pelo
mesmo artigo definido em grego, formando uma hendíadis: “aqueles que ig­
norantemente se desviam” (Attridge, 1989, p. 144). Os termos não denotam,
respectivamente, pecados cometidos na ignorância e nos pecados cometidos
“com arrogância” (ao contrário de Thompson, 2008, p. 106). Tampouco há
uma ligação com o uso desses termos em 3.10 (ao contrário de Koester, 2001,
p. 286). Não há nada que sugira que a ignorância e a desobediência da geração
do deserto foram tudo menos intencionais: o endurecimento de seus próprios
corações (Johnson, 2006, p. 143). O entendimento de Hebreus sobre o pe­
cado está de acordo com os regulamentos de sacrifício do AT que permitem
que ofertas pelo pecado cubram ofensas não intencionais (Lv 4.2,13,22,27;
5.15,18; Nm 15.22-29; veja Hb 9.7), mas não pecados deliberados ou “arro­
gantes” (Êx 21.14; Nm 15.30,31; D t 17.12; veja Hb 6.4-8; 10.26-31; 12.17;
Attridge, 1989, 144; Bruce, 1990, p. 120-121).
A capacidade do sumo sacerdote de modular suas emoções se deve ao seu
próprio envolvimento na fraqueza humana universal: V isto que ele próprio
está sujeito à fraqueza. A fraqueza é uma parte inevitável e pervasiva da vida
do sumo sacerdote. O verboperikeimai (está sujeito) é usado para estar cerca­
do (ex.: por uma nuvem [12.1]), ter algo pendurado ao redor do pescoço (uma
pedra de moinho [Mc 9.42; Lc 17.2]), usar roupas ou joias (.Ep.Jer. 1.24,57),
ou ser acorrentado (4 Mac. 12.2; At 28.20). O verbo também pode ser usado
no sentido de “estar totalmente coberto com” (Heródoto, Hist. 1.171; Josefo,
Ant. 3.129; Johnson, 2006, p. 143). De acordo com Josefo, o sumo sacerdote
está “vestido” com as vestes sagradas, significando sua gloriosa e venerável po­
sição de autoridade (G.J. 4.164; veja Sir. 45.6-13). De acordo com Hebreus, o
sumo sacerdote está “vestido de fraqueza” (Koester, 2001, p. 286-287; “cercado
de enfermidades” [TB]).
1 3 0 pregador acentua, não o benefício psicológico da fraqueza de um sumo
sacerdote (v. 2a), mas suas limitações em sua função sacrificial. Por essa “fra­

205
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

queza” (v. 2), ele precisa oferecer sacrifícios por seus próprios pecados, bem
com o pelos pecados do povo. Ele precisa ou “é obrigado \opheileí\” (ESV,
LEB, NASB, NET; veja 2.17) a fazê-lo por causa de sua enfermidade inerente,
bem como por necessidade legal (7.27,28).
O texto grego correlaciona estreitamente os pecados do sumo sacerdote e
do povo por meio da repetição da preposição por /assim {pert), bem como por
meio da construção correlativa (lit.): assim como para o povo [peri tou laou\,
assim tam bém para si mesmo [peri autou\, para oferecer sacrifícios pelos p e ­
cados (peri hamartiõn). Assim, o pregador expressa enfaticamente que tanto o
sumo sacerdote quanto o povo são igualmente suscetíveis à contaminação do
pecado. Que os sumos sacerdotes comuns não podem transcender as deficiên­
cias daqueles a quem ministram será explorado mais tarde como uma distinção
fundamental entre seu sumo sacerdócio e o de Cristo sem pecado (7.26; veja
4.15). Eles devem oferecer sacrifícios, mesmo por seus próprios pecados, repe­
tidamente; Cristo oferece a si mesmo, sem mácula, de uma vez por todas, para
remover os pecados (7.27,28; 9.7, 12; 10.10-12).
B 4 Esse parágrafo termina onde começou (5.1), com uma afirmação da de­
signação divina do sumo sacerdote levítico. N in gu ém tom a esta honra para si
m esm o. O termo honra {time) era comumente utilizado para um cargo ou po­
sição de autoridade (veja, Attridge, 1989, p. 144-145). Josefo frequentemente
refere-se ao cargo de sumo sacerdote como uma honra. De fato, é “a mais alta
de todas as honras” {G.J. 4.149; veja 4.164; Koester, 2001, p. 287).
Nenhum homem tom a {lambaneí) essa posição estimada para si mesmo,
pois todo sumo sacerdote “é escolhido \lambanomenos\’ (5.1) por Deus. Mas
[alia] deve ser cham ado por D eu s, com o de fato o foi Arão. A ordenação
divina de A rão e a sucessão hereditária de seu ofício são fatos inquestionáveis
sobre o sumo sacerdócio no AT (Êx 28.1; Lv 8.1; Nm 3.10; 17.1-11; 18.1-8;
veja Sir. 45.6,7a; Josefo, Ant. 3.188,190; 20.224; Hb 7.6,16).

3. Qualificações do sumo sacerdote como Melquisedeque


(5.5-10)
Como o parágrafo anterior, essa é uma frase longa (porém ainda mais
complexa). Os principais verbos em grego nos ajudam a desvendar suas prin­
cipais ênfases: Cristo não glorificou a si mesmo (v. 5 ACF); ele aprendeu [...]
p or m eio daquilo que sofreu (v. 8 ênfase adicionada); e tornou-se a fonte de
eterna salvação (v. 9 ênfase adicionada).

206
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

Esse parágrafo também está estruturado como o anterior. Declarações con­


cernentes à designação de Cristo como Sumo Sacerdote por Deus enquadram a
discussão (5.5,6,10). Notável é a repetição da frase segundo a ordem de M el-
quisedeque (5.6,10), que antecipa a primeira grande seção argumentativa da
homília no capítulo 7. O núcleo do parágrafo (5.7-9) apresenta a solidariedade
de Cristo com Seu povo e Sua perfeição com o fonte de eterna salvação. “Per­
feição” (ou “maturidade”) — seja de Cristo como Sumo Sacerdote (7.11,19,28;
veja 9.11) seja de adoradores (5.14; 6.1; 10.1,14) — é um tema importante na
seção central do sermão, e além (11.40; 12.2,23).
A discussão nesse e no parágrafo anterior pode ser distinguida pelo uso
de tempos verbais. O primeiro parágrafo (relativo aos sumos sacerdotes do
AT [5.1-4]) emprega consistentemente verbos no tempo presente. O segundo
(relativo a Cristo [5.5-10]) usa verbos no passado, mas com exceções compreen­
síveis (“àquele que o podia salvar” [v. 7]; “para todos os que lhe obedecem” [v.
9]). A discussão sobre Cristo é apresentada claramente do ponto de vista de
Sua posição atual e exaltada (veja 4.14), olhando para trás, para Sua “vida na
terra” (5.7), quando o Seu sofrimento o aperfeiçoou como Sumo Sacerdote,
li 5-6 0 versículo 5a é articulado ao versículo 4 por meio de uma compara­
ção deliberada entre os sacerdotes levíticos e Cristo:
5 .4 5 .5 a
" N in g u é m t o m a e s ta h o n ra [timén] Da m esm a fo rm a [houtõs],
p a ra si m e s m o [heautõ]", C risto
"m as (alia)] [...] [é] c h a m a d o por não to m o u para si a g lória
D e u s ", (heauton edoxasen) [...],
"co m o [kathõsper] d e fa to o fo i m as [all ] D eu s d isse -lh e [...].
A rã o ".

O autor já usou a linguagem de “glória e honra” (->2.7,9) em conexão com


a exaltação de Jesus. Aqui ele diz que, assim como os sumos sacerdotes levíticos
não tomam a “honra do ofício de sumo sacerdote (5.4), nem Cristo
tom ou [...] a glória [edoxasen\ de se tornar sum o sacerdote (5.5a).
A nomeação de Cristo como Sumo Sacerdote é expressa de forma mais
completa e vigorosa do que as declarações nos versículos 1 e 4, considerando a
vocação divina dos sumos sacerdotes levíticos. O pregador introduz as declara­
ções do próprio Deus a partir dos Salmos. Mas D eu s lhe disse é literalmente
“aquele que lhe disse \ho lalêsas]” (ACF). A primeira forma verbal em Hebreus
é o mesmo particípio (lalêsas) em 1.1, que (junto a elalésen em 1.2) concentrou
a atenção dos ouvintes em Deus, que “falou” (Attridge, 1989, p. 145). A reve­

207
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

lação divina nas Escrituras foi apresentada em uma cadeia de citações bíblicas
em 1.5-13, começando com o Salmo 2.7 (Hb 1.5a) e terminando com Salmo
110.1 (Hb 1.13). Agora, o Deus que falou é citado novamente, a partir do Sal­
mo 2.7 (Hb 5.5b) e do Salmo 110.4 (Hb 5.6b).
As duas citações dos salmos reúnem as ênfases gêmeas da cristologia de He-
breus: Jesus como Filho de Deus e Sumo Sacerdote. Embora conceitualmente
presentes anteriormente (1.2,3; 2.6,11; 3.1,6), os dois títulos são emparelhados
explicitamente pela primeira vez no presente contexto (4.14; 5.5,6; veja 7.1-3;
7.26—8.1; 10.29). O Salmo 2.7 é a declaração de Deus sobre Jesus como o
Filho: Tu és m eu Filho; eu hoje te gerei (Hb 5.5b). Esse é um texto messiâ­
nico (-» 1.5) que, de acordo com sua função régia no antigo Israel, constitui a
coroação divina de Cristo como o herdeiro real do trono de Deus (daí, 1.3,13;
8 . 1; 10 . 12 ; 12 . 2 ).
O salmo 110.4, ao contrário do primeiro versículo do mesmo salmo citado
em Hebreus 1.13 (veja Mt 22.44; Mc 12.36; Lc 20.42; At 2.34), não era uma
ocorrência comum na formulação cristológica inicial. Mas o Salmo 110.1,4 é,
sem dúvida, a raiz principal da cristologia de Hebreus (-> Hb 1.13 anotação
complementar: “Salmo 110 em Hebreus”). A citação do Salmo 110.4 antecipa
a comparação única entre Cristo e Melquisedeque, que o autor reserva até o
capítulo 7 (veja 5.10,11; 6.20).
Tu és sacerdote para sempre estabelece o sacerdócio de Cristo em perpe-
tuidade, um tema crucial para o argumento do pregador (7.3,16,17,21,24,28).
A frase segundo a ordem de M elquisedeque atua como um inclusio para esse
parágrafo (5.6£,10).
A frase segundo a ordem de podería apontar para uma “sucessão ou or­
dem fixa” de sacerdotes (veja Lc 1.8; T. Naf. 2.8; Johnson, 2006, p. 144-145).
Isso é improvável por dois motivos. Em primeiro lugar, Melquisedeque não
é o exemplo do sacerdócio final de Cristo, mas vice-versa. Em 7.3, é Melqui­
sedeque que foi feito “semelhante ao Filho de Deus”, e não o contrário. Em
segundo, a natureza perpétua do sacerdócio de Cristo exclui qualquer linha de
sucessores (uma distinção crítica com o sacerdócio levítico [7.23,24]). Em vez
disso, segundo a ordem de transmite a ideia de similaridade ou semelhança:
“Exatamente como Melquisedeque” (BDAG, p. 989; compare “à semelhança
de Melquisedeque” [7.15 ACF]; veja Ellingworth 1993, p. 283-284; Isaacs,
2002, p. 75).
§§ 7 Esse versículo continua a frase periódica que começou em -» 5.5. A NYI
dividiu essa frase para facilitar a leitura. A discussão volta-se para a identifica­

208
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

ção de Jesus com o sofrimento humano, qualificando-o como Sumo Sacerdote.


O pregador introduz uma cláusula relativa que se estende até o fim da passa­
gem em 5.10.
Durante os seus dias de vida na terra lê-se (lit.) “o qual, nos dias da sua
carne” (ACF). O pronome relativo “o qual [hos]” tem como antecedente “você
\sy\” nas duas citações anteriores do salmo (v. 5b,6b), mas finalmente “Cristo”
no versículo 5a. Ele é o sujeito de dois verbos principais, que não aparecerão
até os versículos 8 e 9 (“aprendeu” e “tornou-se”). As frases que acompanham
as cláusulas participiais nos versículos 7-10 descrevem as circunstâncias con­
comitantes que cercam a qualificação de Cristo como Sumo Sacerdote (“ele
aprendeu a obedecer” [v. 8]) e Sua mediação do favor divino (“tornou-se a fon­
te da eterna salvação” [v. 9]; de Silva, 2000a, p. 191).
“Nos dias de sua carne” (ACF, ARA, ARC, ARIB, BKJ, JFA, NAA),
como o “pouco tempo” em 2.7,9 (NIVmg), denota o período entre a preexis­
tência do Filho e Sua exaltação (Thompson, 2008, p. 109,115). E, em termos
joaninos, quando “o Verbo se fez carne” (Jo 1.14 [ARA]; Hughes, 1977, p.
182). O pregador não está fazendo um ponto ontológico (isto é, sobre o ser de
Cristo), mas histórico. Ele não está dizendo que Cristo uma vez compartilhou
a vida corpórea humana, mas não o faz mais. Isso seria fatal para o argumento
de que Jesus mesmo agora tem a capacidade de “compadecer-se de nossas fra­
quezas” (4.15; veja Bruce, 1990, p. 126), e podería diminuir o significado vital
de Sua oferta de sacrifício (“a si mesmo” [7.27; 9.14,25,26]; “seu próprio san­
gue” [9.12,25; 10.19; 12.24; 13.12]; Sua “carne” ou Seu “corpo” [10.5,10,20]).
A NVI, durante os seus dias da vida na terra (veja KJA, GW, HCSB,
NCV, NET, NJB, NLT), reflete fielmente a mudança de foco para o tempo
histórico da humilhação de Jesus, visto do ponto de vista atual de Cristo como
o Sumo Sacerdote exaltado. Compare o comentário de Ecumênio de que a
frase “nos dias de sua carne” se refere aos “dias em que o Senhor estava visivel­
mente na terra” (Heen e Krey, 2005, p. 71; Ellingworth, 1993, p. 287).

Contextos literário e histórico de Hebreus 5.7-10

U m t e m a - c h a v e na in t e r p r e ta ç ã o d e 5 .7 -1 0 é a q u e s tã o d e id e n t i­
f ic a r s u a fo n te lit e rá r ia ou h is tó r ic a . Q u a tro p r o p o s t a s p r in c ip a is fo ra m
a p re s e n ta d a s : u m a fo n te g n ó s tic a , u m h in o c r is tã o p r im itiv o , t e x t o s d o AT
( g e r a lm e n t e d o s S a lm o s ) ou a t r a d iç ã o e v a n g é lic a . A s d u a s p r im e ir a s o p ­
ç õ e s o b t iv e r a m p o u c o a p o io e n tre o s c o m e n t a r is t a s . S e n d o a s s im , n ã o há

209
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

c o n s e n s o a re s p e ito d o g ra u e m q u e H e b re u s s e a p ro p ria d o m a t e r ia l d o
A T o u d o e v a n g e lh o (v e ja A t t r id g e , 1 9 8 9 , p. 1 4 7 -1 4 8 ; E llin g w o rth , 1 9 9 3 ,
p. 2 8 4 -2 8 5 ).
A m a io r ia d o s c o m e n t a r is t a s ( m e s m o e n tre o s a n tig o s ; v e ja H e e n e
K re y , 2 0 0 5 , p. 7 2 -7 4 ) t e n to u d a r s e n t id o a e s s a p a s s a g e m c o n tra o p a n o
d e fu n d o d o s re la to s s in ó tic o s d a a g o n ia d e C r is to n o G e t s ê m a n i (ex.:
L ü n e m a n n , 1 8 9 0 , p. 5 0 8 ; H u g h e s , 1 9 7 7 , p. 1 8 2; K is te m a k e r, 1 9 8 4 ). No
e n ta n to , há m u ito s e r e c o n h e c e q u e a lin g u a g e m d e H e b re u s é d ifíc il d e
c o n c ilia r c o m o s re la to s s in ó tic o s . C r is ó s to m o , p o r e x e m p lo , o b s e rv o u q u e
o s E v a n g e lh o s , e m p a rte a lg u m a , fa la m d e J e s u s o ra n d o c o m " a lto s c la ­
m o re s e lá g r im a s " ( H e e n e K re y , 2 0 0 5 , p. 72 ). I n te rp re ta ç õ e s e s t r a n h a s
s u r g ir a m d a s t e n t a t iv a s d e h a r m o n iz a r e s s a p a s s a g e m c o m a s n a r r a t iv a s
d o G e t s ê m a n i (ex.: a v is ã o d e H a rn a c k , -» 5.7). E s ta s g e r a lm e n t e s e re la ­
c io n a m c o m a fo r m a c o m o a o r a ç ã o d e Je s u s p o r lib e r ta ç ã o (M c 1 4 .3 6 ||)
fo i " o u v id a " (H b 5.7; v e ja B ru c e , 1 9 9 0 , p. 1 2 7 -1 3 0 ; H a g n e r, 1 9 9 0 , p. 84).
P o rta n to , m u ito s in t é r p r e te s a fir m a m q u e e s s a p a s s a g e m é u m a "r e m in is -
c ê n c ia h is tó r ic a " (D. G u th r ie , 1 9 8 3 , p. 1 2 8 ) b a s e a d a na t r a d iç ã o o ra l s o b re
a o r a ç ã o d e J e s u s n o G e t s ê m a n i, d e s a s s o c ia d a d o s E v a n g e lh o s c a n ô n ic o s
( H a g n e r, 1 9 9 0 , p. 81; H a g n e r, 2 0 0 2 , p. 84; Jo h n s o n , 2 0 0 6 , p. 14 5; W h e -
d o n , 1 8 8 0 , 5:73 ; v e ja A t t r id g e , 1 9 8 9 , p. 1 4 9 , n. 1 4 7 ).
V á rio s c o m e n t a r is t a s r e c e n t e s p r e fe re m in t e r p r e ta r e s s a p a s s a g e m
e m a s s o c ia ç ã o c o m a s v o z e s d o s ju s t o s s o fr e d o re s e n c o n t r a d o s n o s S a l­
m o s (v e ja A t t r id g e , 1 9 8 9 , p. 14 9 ; Is a a cs , 2 0 0 2 , p. 7 6 -7 7 ; K o e s te r, 2 0 0 1 , p.
1 0 7 -1 0 8 ; L a n e , 1 9 9 1 , p. 1 2 0; T h o m p s o n , 2 0 0 8 , p. 1 1 0 -1 1 1 ). M a s n ã o há
a c o r d o s o b re q u a l s a lm o fo rm a o p a n o d e fu n d o . S a lm o s 22; 3 1 .2 3 ; 3 9 .1 3 ;
1 1 6 , o u u m re tra to c o m p o s t o d o S a lté rio , fo ra m p r o p o s to s c o m o fo n te d e
in s p ir a ç ã o d e H e b re u s .
T a lv e z n ã o se ja n e c e s s á r io e s c o lh e r e n tre u m a o rig e m na t r a d iç ã o d o
G e t s ê m a n i o u n o s S a lm o s . G . G u th r ie s u g e re q u e e s s a p a s s a g e m p o d e s e r
m a is b e m e n t e n d id a c o m o u m a " r e fle x ã o s o b re a e x p e r iê n c ia d e J e s u s no
G e t s ê m a n i [...] à lu z d a a p r o p r ia ç ã o c r is tã p r im it iv a d o m a t e r ia l d o s a lm o
d o ju s t o s o fr e d o r " ( 1 9 9 8 , p. 1 9 0 ). A fin a l, é o p a d r ã o d e H e b re u s a r t ic u la r
o s ig n ific a d o d e J e s u s p o r m e io d e u m a c o n s id e r a ç ã o ta n t o d o k e r ig m a

c r is tã o c o m o d a v o z d iv in a n a s E s c r it u r a s d o AT.

Por meio de vocabulário semelhante (ofereceu) e uma construção grama­


tical idêntica {te kai, “ambos [...] e”) é feita uma comparação entre a oferta de
Cristo e ados sumos sacerdotes comuns (5.1 e 7). A palavra “oferta” (formas de
prosphero), em 5.1 (e 5.3), é usada para sumos sacerdotes apresentando “tanto

210
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

ofertas como sacrifícios” pelos pecados. Essa nuance sacrificial é provavelmen­


te mantida aqui, em 5.7. Mas o que Cristo ofereceu (prosenenkas, uma forma
de prospherõ) foram orações e súplicas (deêseis te kai hiketêrias).
Oração e sacrifício estavam vinculados à adoração judaica (2 Sm 24.25; SI
141.2; Pv 15.8; Is 56.7) e à adoração greco-romana (Cole, 1988, p. 889-890;
Jameson, 1988, p. 963-964; observe a expressão padrão “orações e sacrifícios”,
por exemplo, Píndaro, O i 6.78; Newman, 2009, p. 587). As orações da co­
munidade de Qumran eram vistas como uma alternativa aos sacrifícios diários
existentes no templo (CD 11:21; 1QS 9:5,26; Newman, 2009, p. 586). A
adoração cristã era frequentemente descrita em linguagem cultuai (At 10.4;
Rm 12.1; Ef 5.2; 1 Pe 2.5; Ap 8.3), como está em Hebreus (12.28; 13.15,16).
Assim, a mudança de foco dos sacrifícios levíticos para as orações de Jesus en­
fatiza a solidariedade de nosso grande Sumo Sacerdote com os adoradores.
Mais importante, concentra a atenção na disposição divina e piedosa de Jesus,
em contraste com a fraqueza moral dos sumos sacerdotes sob a antiga aliança
(5.2,3).
As duas palavras orações e súplicas não ocorrem juntas em nenhum outro
lugar no NT, e apenas uma vez no AT (Jó 41.3 LXX; veja também Sir. 36.16).
Mas há muitos exemplos extrabíblicos dos dois termos empregados em conjun­
to, ambos na literatura culta (Isócrates, Paz, 138; Políbio, Hist. 2.6.1; 3.112.8;
Fílon, Qiierubim 47; Embaixada 276; veja Büchsel, 1965, p. 296; Attridge,
1989, p. 150) e nos papiros (MM, 302). A palavra geral para orações (deêseis) é
comum (usada cerca de cem vezes em toda a Bíblia Grega). A palavra súplicas
{hiketêrias) não ocorre em nenhum outro lugar no N T e apenas duas vezes na
LXX (Jó 41.3; 2 Mac. 9.18; embora seus cognatos apareçam vinte vezes na
LXX). É uma palavra mais colorida, sugestiva dos protocolos para as ações e
comportamento de alguém como suplicante (vejaNaiden, 2007; Gould, 2003,
p. 22-77). Três deles merecem destaque:
Primeiro, o enorme léxico bizantino, o Suda, define hiketêria como “um
ramo de oliveira, enrolado em uma coroa de flores” e “o que aqueles que im­
ploram [deomenoi\ trazem como algum tipo de oferenda ou seguram em suas
mãos” (Whitehead, 2011; Whitehead, 2013a). Isso se refere ao costume grego
de suplicantes segurando um ramo de oliveira (símbolo clássico da paz) en­
trelaçado com lã (macia e tecida pelas mulheres, simbolizando a passividade).
Como as tiras de lã eram usadas pelos sacerdotes, sua utilização exalava um ar
de santidade. Os suplicantes, assim, transmitiam suas intenções não ameaçado­
ras e apelavam para o favor divino (Naiden, 2007, p. 56).

211
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Segundo, esse era apenas um gesto possível de súplica (mencionado fre­


quentemente por Lívio; veja Clarke, 1977, p. 718), que poderia ser combinado
ou substituído por outros, de acordo com a cultura de cada um. Contudo, o as­
pecto essencial da súplica era a expressão de auto-humilhação, submissão e até
servilismo. Era uma entrega da honra de alguém. O Suda define um “suplicante
[hiketês] ” como “aquele que suplica e implora [deomenos] de maneira servil a
respeito de qualquer coisa” (Whitehead, 2013b). Vestir roupas de luto evocava
tal postura na cultura grega, combinada entre os hebreus pelo uso de pano de
saco (Naiden, 2007, p. 59-60,68,69).
Altas lamentações e lágrimas eram típicas nas súplicas fervorosas e humil­
des da oração judaica (SI 6.6-9; 22.24; 30.11; 56.8; 116.8; Lm 2.18,19; lQ H a
5:12). A alta voz e lágrim as de Jesus não teriam sido uma expressão inesperada
de súplica judaica e encontram paralelos eloquentes do período dos macabeus
(2 Mac. 11.6; 3 Mac. 1.16; 5.7,25; veja deSilva, 2000a, p. 190-191). Westcott
(1909, p. 128) cita um ditado rabínico a respeito de três tipos de oração: “A
oração é feita em silêncio: chorar em alta voz; mas as lágrimas superam todas
as coisas”.
Terceiro, é desnecessário dizer que a súplica é ocasionada pela angústia por
uma calamidade, esperada ou já em andamento. As orações de Jesus àquele
que o p o d ia salvar da m orte estão de acordo com os pedidos costumeiros
(ou louvor) nos Salmos, para que Deus resgate os justos da morte (Sl 9.13;
33.19; 56.13; 72.13; veja Is 25.8; Os 13.14) ou do Seol, o reino dos mortos
(Sl 16.10; 18.4-6; 30.3; 31.17; 49.15; 86.13; 116.3,4; veja Jonas 2.2). Observe
especialmente o Salmo 116.8: “Pois tu me livraste da morte, os meus olhos, das
lágrimas e os meus pés, de tropeçar”.
E supersutil sugerir que a frase àquele que o p o d ia salvar da m orte é ape­
nas um circunlóquio para Deus (Lane, 1991, p. 120; Thompson, 2008, p. 110).
Em vez disso, expressa o conteúdo da súplica de Jesus. Jesus orou a Deus, que
poderia salvá-lo da morte. Da mesma forma, é desnecessário limitar a expressão
da m orte a uma referência ao reino da morte (Attridge, 1989, p. 15), con­
cluindo, assim, que a petição de Jesus era realmente apenas uma oração pela
ressurreição (vej Hb 11.19; Gray, 2003, p. 191-195).
Como Jesus poderia realmente participar “de todos os aspectos” em nossa
humanidade de carne e osso (2.17) e, ‘‘em favor de todos, experimentar a mor­
te” (2.9), sem também experimentar o recuo e o medo da morte que têm sido
a sorte comum da humanidade (2.15)? De que outra forma Ele poderia “ter
sofrido” (2.9,10; 5.8) quando foi “tentado” (2.18)? Dado o caráter tradicional

212
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

das orações de libertação da morte, não foi uma oração injusta, mas humana,
como atestam os relatos sinóticos (Mt 26.39,42; Mc 14.36; Lc 22.42). No en­
tanto, o foco do pregador não é tanto no conteúdo das orações, mas, sim, na
agonia envolvida em Jesus ao oferecê-las a Deus. O tempo de Jesus na terra
o preparou para relacionar-se emocionalmente com todos os que sofrem por
causa de sua escolha de uma vida de fé e obediência a Deus.
As orações e petições de Jesus não eram demandas desesperadas, mas pe­
didos de ajuda oferecidos em completa confiança em Deus (2.13^) e rendição
à vontade de Deus (10.5-10). Encontramos isso na oração de Jesus no Get-
sêmani: “Não seja feita a minha vontade, mas a tua” (Lc 22.42 11Mt 26.42; Mc
14.36; vejajo 12.27; 14.31).
Jesus sendo ouvido, isto é, suas orações foram respondidas (veja Sl 6.9;
18.6; 28.6; 31.22; 40.1; 66.19,20; 116.1; lRs 9.3; 2 Rs 19.20; Lc 1.13; At
10.31; 1 Jo 5.14,15). Porque Jesus claramente morreu, os estudiosos têm lu­
tado com a aparente contradição entre o clamor de Jesus por libertação e a
afirmação de que Ele fo i ouvido. Adolf von Harnack ofereceu a conjectura
injustificada de que há uma corrupção textual aqui, sugerindo que a palavra
“não” seja inserida antes de ser ouvido (veja Ellingworth, 1993, p. 289; Gray,
2003, p. 189-190).
A aparente discrepância se dissolve quando reconhecemos a perspectiva
retrospectiva e de longo alcance de Hebreus. Naturalmente, a oferta de ora­
ção de Jesus foi aceita por Deus, embora a decisão de Jesus de fazer a vontade
de Deus tenha resultado em Sua própria morte. Sua morte quebrou o poder
daquele “que tem o poder da morte” (Hb 2.14). Ele ressuscitou dos mortos
(13.20). Porque Ele suportou a cruz, Ele recebeu alegria e exaltação à destra de
Deus (12.2; veja 1.3,13) como o grande Sumo Sacerdote (4.14; 5.5,6,10; 6.20;
7.26; 8.1).
Jesus foi ouvido por causa da sua reverente subm issão. A palavra eu-
labeia denota lidar com o transcendente ou divino com extrema cautela ou
respeito — daí, “reverência, temor de Deus” (BDAG, p. 407; “temor piedoso”
[NKJV, RSV; veja KJV]; “reverência” [ARIB, JFA, NAA, TB]). A conotação
adicional de “humilde submissão” (NEB) ou “devoção” (Balz, 1991^, p. 79;
Mundle, 1979, p. 91; NVT, CEB, GW, NET; “piedade” [ARA, VC]) pode ser
reforçada pela declaração do próximo versículo sobre a obediência de Cristo
(5.8). A NVI combina corretamente tanto temor piedoso quanto submissão
humilde em sua tradução reverente subm issão (também KJA). Jesus exibiu a
mesma disposição de “reverência” que Seu povo deveria ter em sua adoração a
Deus (12.28).

213
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

W 8 Em bora sendo um F ilho estabelece um contraste com a seguinte afirma­


ção : Ele aprendeu a obedecer por m eio daquilo que sofreu. Em bora sendo
F ilho (NAB, N IV 11, NJB) captura melhor o pensamento da cláusula de aber­
tura. O pregador não está falando de qualquer filho, mas do “Filho de Deus”
(VC). Esse é o Filho que é a própria imagem de Deus, por meio de quem Deus
fez o universo, e cuja palavra poderosa domina todas as coisas (1.2,3). Com
exceção de 2.10,14-18 (que antecipam apresente passagem), FFebreus, até esse
ponto, referiu-se ao Filho em termos de Seu status exaltado (1.2,5,8; 3.6; 4.14;
5.5; Johnson, 2006, p. 147).
O autor adorna os pontos culminantes desse parágrafo em 5.8,9 com vá­
rios jogos de palavras. O primeiro está aqui no versículo 8. A expressão ele
aprendeu \emathen\ [...] daquilo que sofreu (epathen) é um exemplo depare-
chesis, “um ornamento que consiste em palavras semelhantes com significados
diferentes ecoando o mesmo som” (Hermógenes, Inv. 4.8; Kennedy, 2005, p.
173). Esse trocadilho, em particular, era um lugar-comum no mundo antigo
(ex.: Esquilo, Ag. 177; Heródoto, Hist. 1.207; Esopo, Fab. 134.1-3; 223.2,3;
Fílon, Sonhos 2.107). Era um “jingle linguístico” (Barclay, 1976, p. 48), aproxi­
madamente análogo ao “nada se consegue sem trabalho”.
O que Jesus aprendeu foi a obedecer. A afirmação é impressionante e pode,
a princípio, parecer teologicamente espinhosa. Não há nenhuma inferência de
que Jesus alguma vez tenha sido desobediente. Em vez disso, Jesus demons­
trou Sua fidelidade a Deus passando no teste do sofrimento (2.18; 4.15). Ele
suportou a vergonha e a desgraça da cruz (12.2; 13.12,13; veja 6.6) em vez de
tomar para si a glória do sumo sacerdócio (5.5). Jesus teve de experimentar a
vulnerabilidade da existência humana em face da morte, e sair vitorioso, para
que Seu equipamento emocional e Sua autoridade moral como “sumo sacerdo­
te misericordioso e fiel” (2.17) fossem comprovados.
Um jogo de palavras parece existir entre “ele foi ouvido \eisakoustheis\\
no versículo 7, e obedecer (hypakoên). O último é uma forma composta (com
hypo como prefixo) da palavra para “ouvir [akoê]” (veja 4.2; 5.11). Obediência
(hypakoê) é quando “se ouvem e se seguem as instruções” (BDAG, p. 1028).
Jesus é o principal exemplo de obediência fiel (3.2,6; veja 12.2). Em contraste,
a geração do deserto é um “exemplo de desobediência” (4.11; veja 3.18; 4.2,6).
Jesus, porém, atendeu à vontade de Deus (10.7,9), e, portanto, Deus ouviu
Suas orações angustiadas.
B 9 Outro jogo de palavras está entre os favoritos do pregador. Jesus, uma vez
aperfeiçoado, tornou-se a fonte da salvação eterna.

214
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

Brincando com começos e fins


H e b re u s g o s ta d e u s a r jo g o s d e p a la v r a s e n v o lv e n d o t e r m o s r e la c io ­
n a d o s a c o m e ç o s (e sp . c o g n a to s d e a r c h é ) e fin s ou o b je tiv o s ( c o g n a to s
d e t e lo s ) .

Começo Fim Hebreus


Je su s, " a u t o r [ a r c h é g o n ] t o r n a r " p e r fe it o [ t e le iõ s a i] 2 .1 0
d a s a lv a ç ã o " m e d ia n t e o s o f r im e n t o "
" a p e g u e m o s ” à c o n v ic ç ã o " a t é o fim [ m e r c h i t e lo u s ] " 3 .1 4
" q u e t iv e m o s n o p r in c íp io
[ té n a r c h é n ]

Je s u s to rn o u -se a fo n te t e n d o s id o a p e rfe iç o a d o 5.9


[ a it io s ] d e e te rn a [ t e le iõ t h e is ]
sa lv a çã o
" d e ix e m o s o s e n s in o s e le ­ " a v a n c e m o s p a ra a 6.1
m e n t a r e s [lit., 'o c o m e ç o ', m a t u r id a d e [ t e le io t é t a ] ”
t é s a r c h e s ] a re s p e ito d e
C r is to "
M e lq u is e d e q u e " s e m p r in ­ " n e m fim [te/os] d e v id a " 7.3
c íp io [ a r c h é n ] d e d ia s "
"Jesu s, o a u to r [ a r c h é g o n ] " "e c o n s u m a d o r [ t e le iõ t é n ] 12 .2
d a fé "

O vocábulo “perfeição” é usado na LXX com respeito à ordenação de sa­


cerdotes levíticos por meio de sacrifícios de consagração ou “perfeição” (Ex
29.22,26,27,31,34; Lv 7.37; 8.22,26,28,29,31,33). Esse uso também pode re-
fletir-se a Hebreus 7.11 (Vanhoye, 1996, p. 330-331). A expressão uma vez
aperfeiçoado remete ao papel educativo do sofrimento em 5.8. A consagra­
ção de Jesus ao cargo de Sumo Sacerdote envolvia Sua excelência moral sendo
provada mediante o sofrimento. A provação da crucificação é o que o equipou
totalmente e o qualificou como Sumo Sacerdote.
Primeiro, psicologicamente, Ele tem a capacidade superior de compa­
decer-se de nossas fraquezas (4.15), porque sofreu (2.18; 5.8). Em segundo
lugar, moralmente, Ele tem plenamente a virtude da santidade (7.26). Ao con­
trário dos sumos sacerdotes comuns, “que são fracos” (que também tiveram
de oferecer sacrifícios por seus próprios pecados [veja 5.2; 7.27]), o Filho foi

215
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

“aperfeiçoado” para sempre (7.28; veja 7.18,19 para um contraste adicional


entre o “fraco” e o “perfeito”). Terceiro, Ele, portanto, tornou-se a fonte de
eterna salvação. Isso é equivalente à Sua perfeição como “autor da salvação
deles” (2.10). Ele tem “o poder de uma vida indestrutível” que venceu a morte
(7.16; veja 2.14,15). Ele pode “salvar definitivamente aqueles que, por meio
dele, aproximam-se de Deus” porque Sua intercessão sacerdotal por eles é infa­
lível (7.25; observe também a salvação escatológica em 9.28).
A consagração de Jesus por meio dapaideia ou treino do sofrimento tam­
bém o qualificou como modelo de perfeição dos que nele creem. Ele “aprendeu
a obediência na escola do sofrimento” (NEB), para que pudesse trazer salvação
para tod o s os que lhe obedecem [bypakouousin\. Essa referência à obediên­
cia dos crentes prepara para a passagem seguinte (5.11—6.12). Essa passagem
começa apontando para os leitores como “tardios para ouvir [akoais]” (5.11
[ARA]; BDAG, p. 683). A perseverança de Cristo validou Sua experiência
com “o ensino da justiça” e Sua capacidade de discernimento moral. Essas são
qualidades que faltam nos bebês, mas possuídas pelos “maduros” (lit., “per­
feitos”; -» 5.13,14). Assim, os crentes devem concentrar sua atenção em Jesus
como o exemplo supremo de perseverança fiel (12.2,3; veja 3.1).
IS 10 Esse versículo repete o pronunciamento divino de Jesus como Sumo
Sacerdote, já citado do Salmo 110.4 em Hebreus 5.6. Jesus fo i designado por
D eus sum o sacerdote, segundo a ordem de M elquisedeque (-> 5.6). A pa­
lavra designado frosagoreutheis) carrega a nuance de emitir uma “atribuição
formal e solene de um título honorífico” (Lane, 1991, p. 110, n. z). Esse sentido
é bem captado na NJB: Jesus “foi aclamado por Deus com o título de sumo
sacerdote da ordem de Melquisedeque”. O sacerdócio de Cristo semelhante a
Melquisedeque será explorado minuciosamente em 7.1-28.

A PARTIR DO TEXTO

Hebreus 4.14—5.10 é uma passagem de transição entre as partes intro­


dutórias do sermão em 1.1—4.13 e as seções centrais argumentativas que se
seguem. Hebreus 4.14-16 recapitula a proposição encontrada em 2.17,18 e
prepara uma ampliação preliminar de seus temas em 5.1-10 (-» Por trás do texto
antes). O pregador emprega poderosamente tanto a reflexão cristológica como
o encorajamento pastoral. Ele destaca as qualificações de Cristo (Seu chamado
divino e Sua excelência moral) e os benefícios superiores de Seu ofício de Sumo
Sacerdote (acesso à graça divina, ajuda oportuna e salvação eterna).

216
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

Há uma constante no meio do movimento de Cristo desde Seu status


eterno como Filho de Deus até a humilhação de Sua encarnação e a Sua
exaltação à destra de Deus: Sua completa fidelidade a Deus. Nas palavras
dessa passagem, Cristo foi testado “em todos os aspectos” como nós, “p o ­
rém, sem pecado” (4.15); essa é Sua “reverente submissão” no crisol do
sofrimento (5.7). A inocência de Cristo, ou o que os teólogos chamam de
Sua impecabilidade, é fundamental para o testemunho cristão sobre Jesus.
Nos Evangelhos, Jesus prevaleceu sobre cada ataque satânico, espe­
cialmente em Sua tentação (Mt 4.1-11; Mc 1.12,13; Lc 4.1-13) e durante
Sua paixão (compare Lc 4.13 com Lc 22.3,28,31,40,46; Jo 13.2,27). Nos
escritos de João, Jesus é consistentemente caracterizado como verdadeiro,
justo e livre da culpa do pecado (Jo 7.18; 8.46; 14.30; 1 Jo 2.29; 3.5,7). Os
apóstolos o declaram como “o Justo” (At 3.14; 7.52; 1 Jo 2.1), um título do
Servo Sofredor (Is 53.11). Pedro extrai isso do mesmo retrato profético do
Servo, citando Isaías 53.9: “Ele não cometeu pecado, e nenhum engano foi
encontrado em sua boca” (1 Pe 2.22). Jesus era “nosso cordeiro pascal” (1
Co 5.7), “um cordeiro sem mancha e sem defeito” (1 Pe 1.19). A eficácia da
oferta de Cristo pelo pecado depende de sua própria inocência, como Paulo
escreveu: “Deus tornou pecado por nós aquele que não tinha pecado, para
que nele nos tornássemos justiça de Deus” (2 Co 5.21).
Hebreus não se propõe a provar a impecabilidade de Cristo. Essa ver­
dade, sem dúvida, já era uma parte essencial de “tão grande salvação” (Hb
2.3). Estava implícita na confissão cristã (3.1; 4.14; 10.23) e explícita no
testemunho cristão que a cercava (como mostrado no parágrafo anterior).
Hebreus segue as testemunhas apostólicas, que falam a uma só voz ao di­
zer que a exaltação de Cristo o vindica como “o Santo e o Justo” (veja At
3.14,15; 5.30,31; 10.38-42; 13.27-39; Rm 6.7-10; Fp 2.6-11). O ponto de
exclamação para o caráter santo de Cristo como nosso “grande sumo sacer­
dote” é Sua exaltação “por meio” e “acima dos céus” (Hb 4.14; 7.26).
Nenhum outro livro do NT, como Hebreus, desenvolve a realidade da
pureza moral de Cristo dentro da matriz dos requisitos cultuais, psicológi­
cos e morais para Seu ofício de Sumo Sacerdote. Hebreus articula a dupla
verdade, quase paradoxal, sobre a encarnação de Cristo — centenas de anos
antes da Definição de Calcedônia (451 d.C.). (De fato, Calcedônia repetiu
a formulação de Hebreus sobre a identidade de Cristo com a humanidade:
“Semelhante a nós em todos os aspectos, sem pecado” [Bettenson, 1963,
p. 26].) Por um lado, Jesus experimentou intensamente as profundezas da

217
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

tentação compartilhada por toda a humanidade. “Ele entrou no campo gra-


vitacional da tentação genuína”, como diz Thomas Oden (2001a, p. 244).
No entanto, por outro lado, Jesus era “sem pecado” (4.15). Ele não vacilou
em Sua fidelidade e obediência (3.2,6; 5.8). Ele não se intimidou em Sua re­
solução de fazer a vontade de Deus (10.7,9) e em Sua “reverente submissão”
diante de Deus (5.7). Essa realidade de dupla face das qualidades humanas
e divinas de Cristo é expressa de forma compacta na frase “sumo sacerdote
misericordioso e fiel” (2.17).
Hebreus não afrouxa a tensão entre esses dois fatos. Sem dúvida, isso é
reforçado em 5.8: “Embora sendo filho, ele aprendeu a obedecer por meio
daquilo que sofreu”. O eterno Filho de Deus condescendeu em juntar-se
à luta de carne e sangue da humanidade com o pecado e a morte. Alguns
estudiosos sugeriram que Jesus deve ter aprendido a obediência por meio
de um processo de tentativa e erro. Ele deve ter experimentado pelo menos
algumas pequenas falhas morais, trabalhando em direção ao Seu ato final
de obediência na cruz. Caso contrário, eles raciocinam, como Ele podería
ter se identificado plenamente com a condição humana (Buchanan, 1972,
p. 130; Williamson, 1974-1975, p. 4-8)? Mas essa leitura não é fiel nem a
Eíebreus nem ao testemunho cristão mais amplo. Três pontos precisam ser
considerados.
Primeiro, Hebreus não está preocupado com a dificuldade imaginada
de Cristo em ter a “vantagem injusta” de ser o Filho de Deus. Deus chamou o
Filho para ser Sumo Sacerdote (5.5) precisamente por causa da desvantagem
sem esperança na antiga ordem de sacerdotes, que eram moralmente fracos
demais para trazer qualquer salvação real e duradoura (5.2,3; 7.27,28). C.
S. Lewis ilustrou a irracionalidade da objeção de que o sofrimento obedien­
te de Jesus era fácil demais para Ele. É como uma criança se opondo a um
adulto que a ensine a escrever, porque “é fácil para os adultos”. E como um
homem que está afogando-se, protestando que a pessoa que o está salvando
tem a vantagem injusta de manter um pé na praia (Lewis, 1978, p. 61).
Segundo, não devemos cair em um equívoco comum sobre a natureza
humana. A humanidade autêntica não deve ser avaliada por nossa atual con­
dição decaída. A verdadeira humanidade é a vida humana vivida à imagem
de Deus. Desse ângulo, Hebreus certamente entende a vida terrena de Jesus
não como sobre-humana, mas verdadeiramente humana. A vitória de Jesus
sobre o pecado e a morte, coroada de glória e honra, e a herança de todas
as coisas cumprem o destino tencionado à humanidade. A semelhança de

218
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

Jesus com a humanidade exclui o pecado (4.15; veja Rm 8.3; Crisóstomo,


1996, p. 400), porque o pecado é a própria força debilitante e desumani-
zante que Ele veio destruir. Sua salvação da humanidade consiste em “levar
muitos filhos à glória” (2.10), isto é, restaurar a humanidade ao seu destino
divino.
Terceiro, é importante observar o papel apropriado da tentação. Ele não
cria excelência moral, mas a prova. Os Pais da Igreja (sem dúvida, seguindo
o precedente bíblico, por exemplo, 1 Pe 1.6,7) compararam a tentação ao
teste de metais. Logo, se é realmente ouro que está sendo testado, então
não há possibilidade real de que o teste revele algo além de ouro genuíno
(Oden, 2001a, p. 245). No entanto, o teste não é menos árduo.
Contudo, na esfera da ação moral humana, não se pode descartar o re­
forço moral como o efeito cumulativo de múltiplos testes. Isso foi verdade
até mesmo para Jesus, embora Ele nunca tenha pecado (veja Lc 2.52). Para
mudar a metáfora para o treinamento atlético (veja 5.14; 10.32; 12.11), a
tentação fornece o exercício necessário para “a musculatura moral”, sem a
qual ela se atrofiaria (Oden, 2001a, p. 248). A cada prova, culminando no
sofrimento da cruz, a perseverança de Jesus era fortalecida.
Jesus “aprendeu a obedecer” (5.8) porque a obediência não pode ser
exercida em abstrato. Deve ser flexionada, desafiada, exercida em novas
situações (Koester, 2001, p. 299). Ele correu a corrida com perseverança,
chegando ao seu glorioso fim. Sua resistência à cruz o estabeleceu como um
exemplo realista (não inalcançável ou sobre-humano) para nossa própria
luta com o pecado, uma vez que não resistimos (como ele, ou pelo menos
“ainda não”) até a morte (12.1-4). Devemos prosseguir em direção à ma­
turidade moral que Ele modelou. Essa é a exortação-chave a ser vista na
próxima passagem.

B. P reparação para o ensin o ava n çad o sobre o


sum o sacerdócio de C risto (5.11— 6.20)

POR TRÁS DO TEXTO

Hebreus 5.11—6.20 é outra digressão (sobre digressões, -> introdução a


3.1-—4.13; Koester, 2001, p. 306-307). O pregador já se esforçou muito para
assegurar a atenção de seus leitores no exordium (1.1—2.4) e na digressão de

219
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

3.1—4.13. Ele também acaba de lançar, em 4.14—5.10, a introdução às princi­


pais seções argumentativas do sermão, que decorrerá de 7.1 a 10.18. Por isso, é
impressionante que os principais argumentos sejam “interrompidos” por outra
digressão em 5.11—6.20.
Essa digressão está claramente demarcada. Segue-se imediatamente à pri­
meira referência explícita a Jesus como “sumo sacerdote segundo a ordem de
Melquisedeque” (5.10; veja 5.6). A digressão refere-se a esse tópico principal
em 5.11 (“temos muito a dizer sobre isso”) e então retorna a ele em 6.20, com
a repetida referência a Jesus como “sumo sacerdote para sempre, na ordem de
Melquisedeque.” Assim, essa passagem está estrategicamente colocada para
preparar o público para a parte mais crucial e difícil da homília.

Imagens culturais

O p r e g a d o r e x tra i d e m u ita s f a c e t a s d a a n tig a v id a H e le n ís t ic a e H e ­


b r a ic a p a ra a m p lif ic a r s u a re p ro v a ç ã o , a d v e r t ê n c ia e e n c o r a ja m e n to c o m
v iv a c id a d e e p o d e r. A m a io r c o n c e n t r a ç ã o d e im a g e n s c u lt u r a is ric a s e s tá
e m H b 5 .1 1 — 6 .2 0 .

A g r ic u lt u r a te r r a q u e p r o d u z b o a s 6 .7 ,8 ; 1 2 .1 1
c o lh e it a s ou e s p in h o s e
c a rd o s ; c o lh e it a
A t le t is m o t r e in a m e n t o 5 .1 4 ; 6 .2 0 ; 1 0 .3 2 ;
(g eg ym nasm ena ); Je su s, 1 2 .1 - 4 ,1 2 ,1 3
o " p r e c u r s o r " (A C F); "u m
g ra n d e c o n cu rso ";
c o r r e n d o u m a c o rr id a
C o n s tr u ç ã o c o n s t r u in d o u m a c a s a ; 3.4; 6.1
" s e m la n ç a r n o v a m e n te o
fu n d a m e n to "
N e g ó c io s / c o m é r c io " p a r c e ir o s " (N R S V ); 3 .1 4 ; 6.6; 1 0 .3 4 ;
"b e n s"; "re c o m p e n sa d o r 1 1 .6 ,2 6 ; 1 3 .1 7
[m is t h a p o d o t é s ]" (KJV;
lit., " p a g a d o r d e s a lá rio ");
"re c o m p e n sa "; "d a r um a
c o n ta " ; " n ã o s e r ia ú til"
(A C F)

220
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

Educação le ite v s. a lim e n t o s s ó li­ 5 .1 1 -1 4 ; 1 2 .5 -1 1


d o s; in fa n til v s. m a d u ro ;
" d is c ip lin a [ p a id e ia ] "

L e is d is c u s s ã o d e ju r a m e n t o s 6 .1 3 -1 7 ; -* 6 .1 3 -
2 0 a n o ta ç ã o
c o m p le m e n t a r
"Ja rg ã o ju r íd ic o e m
H e b re u s "
M e d ic in a lu x a ç ã o / c ic a t r iz a ç ã o d e 1 2 .1 3
u m a a r t ic u la ç ã o
N avegação n a v io s e m o p o rto ; e s p e ­ 2.1; 6 .1 9
ra n ç a c o m o u m a â n c o r a
T e m p lo / s a c e r d o te "o s a n t u á r io in t e r io r 6 .1 9 ,2 0 ;
p o r t r á s d o v é u " ; Je su s, c a p . 7 — 10
o " s u m o s a c e r d o te " ;
t a b e r n á c u lo , s a c e r d ó c io e
s a c r if íc io s

O pregador “conscientemente reflete sobre seu empreendimento retórico”


(Attridge, 1989, p. 156). Descobrimos por que ele atrasa um pouco mais e por
que deve colocar ainda mais seu público no estado de espírito adequado para
ouvir seus argumentos. Em 5.11, ele revela que seu assunto é “difícil de explicar”.
Isso lembra a referência de Quintiliano a um dos cinco tipos de causas nos dis­
cursos, “o obscuro” ou “difícil de seguir” (Inst. 4.1.40). Para esse tipo de causa,
o falante deve “tornar [o ouvinte] pronto para receber instrução” {Inst. 4.1.41).
Sem dúvida, o pregador está prestes a embarcar em uma série de argumen­
tos e exegese bíblica marcada por extraordinária criatividade e sofisticação. Mas
não é sobretudo a sutileza de seus argumentos que tornará sua tarefa difícil. É
a tendência de seu público de ser “lento para aprender” (lit., “tardio em ou­
vir” [5.11 ARA, ARIB, BKJ, JFA, TB]). Essa preocupação foi levantada pela
primeira vez na advertência inicial (“é preciso que prestemos maior atenção”
[2.1]), repetida na advertência extraída do mau exemplo da geração do deserto
(3.8,15; 4.2,7), e vai crescendo na advertência final do sermão (12.25).
A preocupação pastoral com seus ouvintes é evidente nos cinco parágra­
fos que compõem 5.11—6.20. Os primeiros quatro parágrafos (5.11—6.12)
destinam-se a enfrentar o perigo da apatia espiritual. Eles estão incluídos em
referências à lentidão dos ouvintes (5.11; 6.12). O quinto parágrafo (6.13-20)
cria uma transição suave para a seguinte discussão de Melquisedeque (7.1-10).

221
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

(1) Repreensão (5.11-14). O primeiro parágrafo emprega uma ironia mor­


daz para ajudar os leitores a recuperarem seus rumos morais e espirituais. Eles
devem ser adultos maduros que possam digerir o alimento sólido da verdade
avançada sobre Cristo e que tenham um caráter moral altamente treinado. To­
davia, estão agindo como bebês que continuam a beber o leite dos “princípios
elementares” (v. 12) e que são moralmente subdesenvolvidos.
(2) Exortação (6.1-3). Essa passagem é um convite para que os ouvintes
“avancem para a maturidade” (v. l). O autor os encoraja a ir além dos ensina­
mentos fundamentais. Ele está determinado a ajudá-los a fazer o mesmo com a
ajuda da providência divina.
(3) Advertência (6.4-8). Esse é a advertência mais severa sobre apostasia
até esse ponto. É uma das passagens mais controversas e assustadoras das Escri­
turas, pois afirma que a apostasia final é irreversível.
(4) Garantia (6.9-12). O pregador está confiante de que a comunidade
tem um histórico espiritual promissor, demonstrado por meio de seus atos pas­
sados e presentes de serviço amoroso pelo amor de Deus. Ele deseja que cada
um deles redobre o seu empenho para estar plenamente seguro na esperança.
Ele os exorta a imitar vigorosamente os que herdaram as promessas de Deus
por meio da perseverança fiel.
(5) Encorajamento poderoso (6.13-20). A digressão termina com o exem­
plo da confirmação de Deus de Sua promessa a Abraão com um juramento e a
paciência de Abraão em receber a promessa. O caráter imutável e incontestável
da promessa e juramento de Deus proporciona o forte encorajamento para os
crentes se agarrarem à sua esperança. A transição para os principais argumen­
tos do sermão é efetuada por meio da comparação de nossa esperança com uma
âncora que está firmemente presa na própria presença de Deus, onde Jesus já
apareceu diante de nós como nosso “sumo sacerdote para sempre, segundo a
ordem de Melquisedeque” (6.19,20).

NO TEXTO

1. Repreensão em relação ao desenvolvimento espiritual


interrompido (5.11-14)1

1 1 O pregador reprova seus leitores por sua desatenção. Temos muito que
dizer é uma observação convencional usada por escritores antigos para chamar

222
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

atenção para a importância do que estão dizendo (veja Lane, 1991, p. 299;
Johnson, 2006, p. 154). No final, ele não terá tempo para transmitir tudo o
que tem a dizer (veja 11.32), pois sua “palavra de exortação” teve de ser escrita
“resumidamente” (13.22 ARA).
A expressão quanto a isso é gramaticalmente ambígua. Se for masculino,
isso se refere a Melquisedeque, mencionado em 5.10 (Peshitta; REB; Calvino,
1976, p. 67; Whedon, 1880, 5:74; Bruce, 1990, p. 133), ou a “Cristo”, o assun­
to da longa sentença em 5.5-10 (Johnson, 2006, p. 154). Mas, se o pronome
for neutro, a frase refere-se à “concepção total” de Cristo como um sumo sa­
cerdote como Melquisedeque (Lünemann, 1890, p. 513-514; por exemplo, “a
esse respeito” [NET]; “sobre este assunto” [NJB]; veja Attridge, 1989, p. 156;
Lane, 1991, p. 135; Ellingworth, 1993, p. 299; Koester, 2001, p. 300).
O assunto que será abordado em 7.1 — 10.18 é difícil de explicar; ou “é
difícil deixar claro” (NIV1'). O adjetivo dysermêneutos foi utilizado para assun­
tos difíceis de descrever, como sonhos (Artemidoro, Onir. 3.66), cores exóticas
(Diodoro Sículo, Bib. 2.52.5), a beleza inexprimível das idéias arquetípicas
perceptíveis apenas pela mente (Fílon, Sonhos 1.188), a criação do mundo e o
descanso divino (Orígenes, Cels. 5.59; veja BDAG, p. 265; Koester, 2001, p.
300). Essa escolha de palavras pode ter sido calculada para preparar os ouvin­
tes originais (e leitores modernos) para o ensino elevado e complexo na seção
central do sermão. Mas a maior dificuldade não era o assunto, mas a falta de
resposta dos leitores; Porque vocês se tornaram lentos para aprender.
A expressão (lit.) “preguiços em ouvir \nõthroi... tais akoais]” (NAA, OL,
LEB, NAB, NET) era usada por escritores antigos para a falta de alerta mental
(veja Attridge, 1989, n. 25). Fílon escreve sobre pessoas cujas mentes estão tão
distraídas que um falante deve dirigir-se a elas não como seres humanos, mas
como “estátuas sem vida que têm ouvidos, mas nenhuma audição (akoai\ nes­
ses ouvidos” (Herdeiro 12; veja Koester, 2001, p. 300-301).
Dados o contexto e a repetição do termo nõthroi em 6.12, o problema
era mais profundo do que a acuidade mental deficiente. Ser “duro de ouvir”
(BDAG, p. 683) não pode ser separado do perigo de um coração endurecido
(veja 3.7,15; 4.7). O público já foi advertido a evitar repetir o exemplo da gera­
ção do deserto. A “mensagem que eles ouviram” não os beneficiou, porque eles
não compartilharam a fé “por aqueles que a ouviram” (4.2).
Em notável contraste, em 5.7-9, Jesus “foi ouvido por causa de Sua reveren­
te submissão”. Ele aprendeu a “obedecer \hypakoên\” por meio do sofrimento.
Consequentemente, foi aperfeiçoado como “a fonte de eterna salvação para
todos os que lhe obedecem” (tois hypakouousin, “aqueles que atendem a Ele”).

223
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Essas ilustrações negativas e positivas envolvendo a audição evidenciam


uma preocupação pastoral pelas pessoas que estão caindo na apatia espiritual.
Sua negligência culposa (G. Guthrie, 1998, p. 201-202), ou pior, sua resistência
espiritual (Lane, 1991, p. 155), é bem capturada nas traduções: “Vocês ficaram
com preguiça de ouvir” (NAA) ou “vocês nem tentam entender” (NIV11).
1 1 2 De fato introduz uma descrição da condição espiritual dos leitores. Nos
versículos 12-14, o pregador emprega metáforas educacionais comuns entre
autores antigos, especialmente filósofos populares.

Educação no mundo helenístico

A p a id e ia h e le n ís t ic a ( e d u c a ç ã o , d is c ip lin a ) d iz ia re s p e ito à in s tru ç ã o ,


a o t r e in a m e n t o e a o a m a d u r e c im e n t o d e in d iv íd u o s p a ra s e to rn a re m
s e r e s h u m a n o s c u lto s e c iv iliz a d o s . D u ra n te s é c u lo s , o s a u to r e s g r e g o s
r e p e t ira m o ju lg a m e n t o d e P la tã o d e q u e a e d u c a ç ã o " e s t á e m p r im e ir o
lu g a r e n tre a s m e lh o r e s d á d iv a s q u e s ã o d a d a s a o s m e lh o r e s h o m e n s "
(Leg . 1 .6 4 4 b ).
N o p e r ío d o h e le n ís t ic o , a e d u c a ç ã o fo rm a l c o n s is tia e m tr ê s e ta p a s .
P rim e ira , a e d u c a ç ã o p r im á ria d o s m e n in o s c o m e ç a v a p o r v o lta d o s s e te
a n o s e t e r m in a v a p o r v o lt a d o s q u a to rz e . N ã o h a v ia d is t in ç õ e s d e g ra u .
Q u a lq u e r a lu n o q u e t iv e s s e d o m in a d o o c u r r íc u lo p o d e r ía a v a n ç a r p a ra o
e n s in o m é d io . O e n s in o e ra c o n d u z id o p o r u m g r a m m a t is t è s , q u e e n s in a ­
v a le itu ra , e s c r it a e a r it m é t ic a s im p le s . A m ú s ic a e a g in á s t ic a t a m b é m
e ra m p a rte in t e g r a n t e d a e d u c a ç ã o . M é to d o s t e d io s o s d e in s tr u ç ã o fo ra m
u s a d o s , c o m o d ita d o , re p e t iç ã o e r e c ita ç ã o , t r a b a lh a n d o d o s im p le s ao
c o m p le x o ( a lfa b e to , s íla b a s , p a la v r a s , d e c la r a ç õ e s c u r t a s e, fin a lm e n t e ,
b r e v e s p a s s a g e n s lite rá r ia s ) . A fo r m a ç ã o é t ic a e ra u m o b je tiv o im p o r t a n ­
te. Isso in c lu ía a in t ro d u ç ã o d e m á x im a s c o m u n s , c o m o " a s le t r a s s ã o o
c o m e ç o d a s a b e d o r ia " .
O e n s in o s e c u n d á r io e s t e n d ia - s e d o s q u a t o r z e a o s d e z o it o a n o s . O s
a lu n o s e ra m e n s in a d o s p o r u m g r a m m a t ik o s , q u e os a p re s e n ta v a ao s
c lá s s ic o s d u r a d o u r o s d a lit e r a t u r a g re g a . L e itu r a s e ra m c e n t r a d a s n o s
g r a n d e s p o e t a s e d r a m a t u r g o s ( e s p e c ia lm e n t e H o m e ro e E u ríp e d e s ). A
a b o r d a g e m e n v o lv ia o e x a m e c u id a d o s o d o s te x to s , b e m c o m o a c r ít ic a
lit e r á r ia c o m o o b je tiv o d e e x t r a ir liç õ e s d e m o ra l. A lé m d o fo c o c o m u m
e m e s t u d o s lite rá r io s , o c u r r íc u lo b á s ic o v a r ia v a d e a c o r d o c o m o lu g a r e
a é p o c a . Id e a lm e n te , o s t e m a s p a d r ã o e ra m g r a m á t ic a , re tó ric a , d ia lé tic a ,
m ú s ic a , g e o m e t r ia , a r it m é t ic a e a s tro n o m ia . E s s e c u rr íc u lo , c h a m a d o d e
e n k y k lio s p a id e ia , " e d u c a ç ã o g e r a l" , fo i o p r e c u r s o r d a s s e t e a r te s lib e r a is

224
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

d a Id a d e M é d ia . A e d u c a ç ã o g e ra l fo i c o n s id e r a d a a b a s e p a ra a e d u c a ç ã o
s u p e r io r e m " q u e s t õ e s m a is d if íc e is " (E p ite to , D ia t r . 1 .2 6 .3 ).
O e n s in o s u p e r io r e n tre o s g r e g o s in c lu ía filo s o fia , h is tó r ia e re tó ric a .
A f ilo s o fia a b r a n g ia u m c u r r íc u lo a m p lo s o b a s r u b r ic a s d e ló g ic a , fís ic a
e é t ic a (Lo n g , 1 9 7 4 , p. 1 1 8 -1 2 1 ). O e n s in o s u p e r io r e ra g e r a lm e n t e re ­
a liz a d o n o s g r a n d e s c e n t r o s d e e n s in o . A t e n a s , P é rg a m o e R o d e s e ra m
fa m o s a s p e la filo s o f ia e p e la re tó ric a ; C o s , P é rg a m o e É fe so , p e la m e d i­
c in a ; e A le x a n d r ia , p e la g a m a d e e s t u d o s a v a n ç a d o s . C o m o o s r o m a n o s
c o n s id e r a v a m a h is tó r ia m a is b á s ic a e a filo s o f ia s u s p e it a , e le s r e s tr in g ia m
o s e s t u d o s s u p e r io r e s à re tó ric a . (Para u m e s t u d o m a is a p ro fu n d a d o , v e ja
M a rro u , 1 9 6 4 , p. 1 3 7 -2 9 5 ; D e w a ld , 1 9 8 8 , p. 1 0 9 7 -1 1 0 2 ; W o o te n , 1 9 8 8 , p.
1 1 0 9 -1 1 2 0 ; B e c k e T h o m a s , 1 9 9 6 ; T h o m p s o n , 2 0 0 8 , p. 1 2 1 .)

Evidentemente, a comunidade cristã a quem o pregador se dirigiu já existia


há algum tempo (veja 10.32-34). Isso os torna responsáveis por seu desenvolvi­
mento espiritual interrompido: Em bora a esta altura já devessem ser m estres,
vocês precisam de alguém que lhes ensine novam ente. A repreensão do pre­
gador é propositalmente carregada de ironia ou hipérbole (veja Attridge, 1989,
p. 157-158; Lane, 1991, p. 136; deSilva, 2000a, p. 211). Mais tarde, ele admite
que seus leitores — se Deus quiser — são capazes de ir além dos “ensinamentos
elementares” (6.1-3) e expressa um prognóstico mais esperançoso em relação à
salvação deles (6.9-12).
No mundo antigo, os m estres estavam na mesma classe honrosa que outras
figuras de autoridade, como pais, governantes e professores (Koester, 2001, p.
301,308). Portanto, seria vergonhoso para os ouvintes estarem em uma posição
em que deveríam ser m estres, mas precisavam de alguém para ensiná-los.
Em termos de maturidade espiritual, eles não entraram plenamente nas reali­
dades da Nova Aliança, em que o conhecimento de Deus já não mais requeria
instrução de mestres humanos (veja 8.11, citando Jr 31.34; 1 Ts 4.9; 1 Jo 2.20).
A reprovação é intensificada pela identificação da profundidade de sua
regressão. Eles precisam ser instruídos mais uma vez nos elementos mais rudi­
mentares da verdade divina. O s p rincípios elem entares da palavra de D eus
em grego é (lit.): Os elementos do princípio dos oráculos de Deus.
Ta stoicheia (os elementos) referia-se aos elementos fundamentais ou
menores partes constituintes da linguagem (letras do alfabeto), da música
(tons individuais), da metafísica (os quatro elementos: terra, ar, fogo e água),
da astrologia (corpos celestes) ou de qualquer ciência ou arte (veja Delling,

225
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

1971; Plümacher, 1993a; BDAG, p. 946). Aqui, a referência é aos “princípios


básicos” (BKJ; “conceitos mais básicos” [NVT]) ou p rincípios elementares
dos “oráculos de Deus” (ARA, ARIB, NAA).
Oráculos eram as declarações proféticas de seres divinos. Nos contextos
judaico e cristão, “oráculos” referiam-se às declarações de Deus encontradas
nas Escrituras (Dt 33.9,10; At 7.38; Rm 3.2; veja 1 Pe 4.11). Aqui a referência
é à palavra de D eus (ACF, ARC, NVT), a “enunciados” (NAB, NET; “decla­
rações” [NJB]) ou “revelação” (HCSB), provavelmente como encontrado nas
Escrituras e entendido dentro do contexto de Deus falando por intermédio do
Filho (1.1,2a).
O pregador destaca quão básico era esse currículo, ao qual eles estavam
retornando: O s p rincípios elem entares do início da palavra de D eus. “Eles
estavam no começo do começo!” (Johnson, 2006, p. 155). Eles precisavam en­
saiar “os primeiros princípios” (KJV; veja Tyndale) — “o ABC dos oráculos de
Deus” (REB).
A intensidade retórica é reforçada pela palavrinha palin, novam ente.
Duas vezes mais essa palavra aparecerá nos dois parágrafos seguintes: primeiro,
na exortação para não lançar “novamente” o fundamento dos ensinos cristãos
elementares (6.1); e, segundo, na advertência sobre a impossibilidade de “de
novo” restaurar um apóstata ao arrependimento (6.6). Um curso de retrocesso
espiritual não pode ser mantido indefinidamente, não sem se colocar em peri­
go de chegar ao ponto sem retorno — a apostasia final.
Estão precisando de leite, e não de alim ento sólido. O leite é uma ima­
gem dos estudos básicos na educação grega; alim ento sólid o relaciona-se a
estudos mais avançados. Os próximos dois versículos descompactam o signifi­
cado dessas imagens.
B 1 3 Há um truísmo em: Q uem se alim enta de leite ainda é criança. Da
mesma forma, Paulo repreendeu os coríntios por não estarem prontos para a
comida sólida, mas apenas para o leite, pois eram “como crianças em Cristo” (1
Co 3.1,2). Paulo ligou imaturidade espiritual com deficiência moral (ser “mun­
dano” [1 Co 3.1,3]). Assim também aqui, uma criança não tem experiência
n o ensino da justiça.

Imagens antigas do progresso educacional


O a v a n ç o d o le ite p a ra a a lim e n t a ç ã o s ó lid a e d a in fâ n c ia p a ra a
id a d e a d u lt a e ra m im a g e n s c o m u n s d e p r o g r e s s o na e d u c a ç ã o . E p ite to

226
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

d e fin e s e r c r ia n ç a e m t e r m o s d e " ig n o r â n c ia ” e " fa lta d e in s tr u ç ã o " (D i a t r .


2 .1 .1 6 ). M e s m o u m a d u lt o p o d e p a r e c e r u m a c ria n ç a , " p o r q u e s e r c r ia n ç a
n ã o é s e r m u s ic a l n a s c o is a s m u s ic a is , s e r ile tra d o n a s c o is a s lite rá r ia s ,
s e r ile tra d o na v id a " (3 .1 9 .6 ). U s a n d o u m a lin g u a g e m s e m e lh a n t e a H e-
b re u s, E p ite to re p re e n d e s e u s a lu n o s : " V o c ê s n ã o e s t ã o d is p o s t o s , n e s ta
d a ta ta r d ia , c o m o c r ia n ç a s , a s e r e m d e s m a m a d o s e a p a r t ic ip a r d e a li­
m e n t o s m a is s ó lid o s " (2 .1 6 .3 9 ; v e ja 3 .2 4 ,9 ).
F ílo n , p o r su a v e z , c o n t r a s t a o le ite c o m a lim e n t o s s ó lid o s e a in fâ n c ia
c o m a id a d e a d u lta (E s t. P r e l. 19; A g r ic u lt u r a 9; M ig r a ç ã o 29; v e ja S o n h o s
2.9). C o m o H e b re u s ( 5 .1 3 ,1 4 ), e le c o n t r a s t a a c r ia n ç a c o m a p e s s o a a d u l­
ta (S o b r ie d a d e 9) e o in e x p e r ie n t e c o m o p e r fe ito (A g r i c u l t u r a 1 6 0 ). E le
c o r r e la c io n a c o m id a d e b e b ê ou le ite c o m o s ra m o s d a e d u c a ç ã o g e r a l (ta
e n k y k iia -, -* 5 :1 2 a n o ta ç ã o c o m p le m e n ta r : " E d u c a ç ã o n o m u n d o h e le n ís -
t ic o ” ). Isso é p r e p a r a t ó r io p a ra o a lim e n t o p e r fe ito e s ó lid o d o v e r d a d e ir o
c o n h e c im e n t o n a s v ir t u d e s (E s t. P r e l. 19; A g r ic u lt u r a 9; S o b r ie d a d e 9; S a ­
c r if íc io s 43; H e r d e ir o 2 7 4 ), ou, e m u m a p a la v r a , filo s o f ia ( E m b r ia g u e z 51;
P e s s o a B o a 16 0).

A expressão não tem exp eriên cia (apeiros) é usada para jovens ou
iniciantes que não têm conhecimento ou habilidade por falta de estudo,
experiência ou prática (LSJ, 184; BDAG, p. 100; veja SS 13.18; Fílon,
Agricultura 160; Josefo, Ant. 7.336; 8.374). Eles são (lit.) ‘‘não testados”
(compare Jesus, que foi testado [2.18; 4.15]). Nessa passagem, é melhor
traduzir a palavra como não qualificado (ESV, NRSV; “inábil” [KJV];
“inexperiente” [ARA, ARIB, BKJ, JFA, NAA, TB; veja GW, NAB]; “inex-
perto” [TYNDALE]). Um uso paralelo ao que encontramos aqui está em
Números 14.23 LXX, que se refere aos “jovens inexperientes” que “não co­
nhecem bem nem mal”.
A interpretação da frase n o en sin o da ju stiça é muito debatida (veja
Ellingworth, 1993, p. 306-307). E pouco provável que indique a incapa­
cidade de uma criança para a fala correta e articulada (Delitzsch e Weiss,
observado em Hughes, 1977, p. 191). E é duvidoso que a frase seja uma
cifra para a doutrina da justificação pela fé — que Cristo é nossa justiça,
em oposição à justiça própria ou das obras (Clarke, 1977, 3:722; Hughes,
1977, p. 191; Wiley, 1984, p. 176). Isso impõe claramente uma interpreta­
ção da teologia de Paulo em Hebreus; e é inadequado para o impulso ético
do presente contexto (veja 5.14; 6.10).

227
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A palavra en sin o {logos) pode significar “palavra” (ACF, ARA, ARC,


ARIB, BKJ, JFA, NAA, TB), “mensagem” (HCSB, N E T) ou “doutrina”
(VC) — como em outras partes de Fíebreus (2.2; 4.2; 6.1; 13.7,17,22).
Também pode ter o sentido ativo de “falar” (Attridge, 1989, p. 160), tal­
vez paralelo a “oráculos \logiõn\” (“palavra de Deus”) no versículo 12. No
entanto, existem três fatores que apoiam a visão de que o que se pretende é
raciocinar sobre justiça:
Primeiro, o autor está preocupado com a proficiência, a habilidade ou
a perícia, o que favorece a tomada de logos como uma atividade (Koester,
2001, p. 302).
Segundo, a ju stiça (dikaiosynê) deve ser tomada no sentido comum ao
discurso moral Fielenístico (Platão, Resp. 433a; Aristóteles, Pol. 1291a).
Essa é a virtude de determinar o que é ação apropriada ou correta (Johnson,
2006, p. 156).
Terceiro, ambas as idéias anteriores são combinadas no versículo se­
guinte (5.14), que fala de adquirir um senso de discernimento moral por
meio de treinamento e hábito. “Justiça” também tem um significado éti­
co em 12.11,14, envolvendo comportamento pacífico e santo. Lá, assim
como aqui, é o produto da educação ou do treinamento (“disciplina”
[12.5 ,7,8,11]; veja gegymnasmena, “treinado” [5.14; 12.11]; então João
Crisóstomo, 1996, p. 406).
■ 1 4 Em contraste {de, mas) com a dieta láctea do lactente, o alim ento só ­
lid o é para os adultos. O alim ento só lid o que o pregador pretende servir a
seus ouvintes é a instrução sobre o ministério sumo sacerdotal de Cristo. Isso
fornece a preparação cultuai, moral e espiritual definitiva dos adoradores para
comparecerem diante de Deus (especialmente por meio da purificação de suas
consciências [9.9,14; 10.2,22]).
Os adultos {teleiõn;), vistos a partir da perspectiva do desenvolvimen­
to humano global, são aqueles que são maduros ou atingiram a idade adulta
(veja KJA). No contexto da educação, os adultos são aqueles que concluíram o
curso de educação e estão preparados para destacar-se em virtude (Fílon, Int.
AL 3.244; Sacrifícios 7; Agricultura 18; Sobriedade 9; Est. Prel. 19, 154; veja
Embriaguez 33,51; Herdeiro 274). É intrigante como certos comentaristas não
admitem nenhuma conotação ética para teleiõn nessa passagem (Ellingwor-
th, 1993, p. 308; France, 2006, p. 80). Entretanto, o desenvolvimento moral
é fundamental para a presente discussão. Além disso, a perfeição de Cristo na
perícope precedente definitivamente tem um componente ético (“aprendeu a

228
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

obedecer” [5.8,9]) e se opõe à fraqueza moral dos sumos sacerdotes comuns


(veja 5.2,3; 7.28).
Os adultos são descritos por meio de imagens atléticas. Tal imaginário
não está deslocado, pois, na cultura elenística, “exercício nu” [gegymnasme-
na·. exercício constante) fornecia o treinamento necessário para o corpo que
complementava o treinamento da mente (Fílon, Est. Prel. 27; Sonhos 1.250;
Pessoa Boa 111). Essa metáfora atlética também foi usada para treinamento
intelectual, retórico ou ético (Fílon, Sacrifícios 85; Gigantes 60; Sobriedade 65;
Migração 199; Est. Prel. 17, 180;Fuga 125; Nomes 81, 84-85; Moisés 1.48; Leis
Esp. 4.101; Virtudes 18; Isócrates, Nic. 10; Dem. 21; Epiteto, Diatr. 2.18.26-
27; veja 1 Tm 4.7; 2 Pe 2.14; Hb 12.11).
São as “faculdades” (ARA, ARIB, NAA) ou “poderes de discernimento”
(ESV) que devem ser treinados. A aisthêtêria grega é mais específica do que
exercício constante. A palavra podería referir-se aos “sentidos” físicos (ACF,
ARC) ou “percepções” (NET, REB), como visão (Fílon, Sobriedade 155) ou
paladar (Galeno, De diagnoscendis pulsibus 3.135). Por extensão, podería ser
usada para percepção mental ou espiritual (daí, “mentes” [GW, NJB]; Plutarco
chama a mente de um aisthêtêrion da alma \Suave viv. 114]; veja fffuaest. conv.
4.5; 4 Mac. 2.22; Delling 1964).
As sensibilidades morais terão sido rigorosamente treinadas por causa do
hábito (veja Wesley, s.d., 573; Wiley, 1984, p. 177). A frase dia tên hexin não
significa exercício constante ou “prática” (como há em muitas traduções; veja
Koester, 2001, p. 303). O termo hexis não se refere ao processo de treinamento,
mas à proficiência, à maestria, ao caráter ou ao hábito resultante da prática
(Attridge, 1989, p. 161; Johnson, 2006, p. 157; Thompson, 2008, p. 121-122).
Um “estado de maturidade” (BDAG, p. 350) é tido por aqueles cujos sentidos
morais foram devidamente disciplinados.
O objetivo de tal disciplina é equipar as pessoas com a habilidade de
discernir tanto o bem quanto o mal. O discernimento moral é uma caracte­
rística geral da maturidade no AT (Nm 14.23; Dt 1.39; Is 7.15,16). Na filosofia
helenística, o propósito da ética era “lidar com a distinção das coisas boas, más
e indiferentes” (Sexto Empírico, Pir. 3.168; veja Epiteto, Diatr. 2.24.19). Em­
bora Hebreus não use a palavra, ela está essencialmente descrevendo uma das
quatro virtudes mais apreciadas no mundo antigo: sabedoria (phronêsis; veja
Fílon, Leis Esp. 1.63; 6.10 anotação complementar: “Virtudes”). Sabedoria
é “inteligência capaz, por certo método judicioso, de distinguir o bem e o mal”
[Rhet. Píer. 3.2.3; veja Aristóteles, Rhet. 1.9.13; Fílon, Criação 154, compare
73; Herança 314; Pessoa Boa 60). A clareza moral é de particular importân­

229
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

cia para uma comunidade aparentemente vacilante em seu compromisso com


Cristo (deSilva, 2000a, p. 213). Em Hebreus, o discernimento é mais do que
“inteligência moral”; estende-se nas boas obras e também no serviço amoro­
so que fluem do conhecimento da vontade de Deus (6.10,11; 10.24,32-36;
13.21).

2. Exortação para prosseguir para a maturidade (6.1-3)


l a O pregador deixa de dirigir-se a seus leitores na segunda pessoa (5.11,12)
para exortá-los na primeira pessoa do plural: D eixem os. Como a comunidade
já deve estar madura, o pregador conclui (dio, portanto) que eles não precisam
ensaiar o ABC da fé, mas devem avançar para a maturidade.
Avancem os não é uma exortação a abandonar o essencial da fé, mas a
“progredir além” deles (NET; veja CEB, NIV"). O s ensinos elementares
sobre Cristo (ton tis arches Christou logon) são paralelos aos “princípios elemen­
tares da palavra de Deus” (ta stoicheia tés archês tõn logiõn tou theou [5.12]). A
lista de ensinamentos seguinte não parece ser distintamente cristã. Talvez seja
reflexo de uma forma retrógrada de judaísmo na qual alguns ouvintes caíram
(Bruce 1990, p. 139; Elagner, 1990, p. 87). Independentemente da desconti-
nuidade que Hebreus prevê entre a revelação divina nas eras passadas e nestes
últimos dias, ele não concebe o judaísmo e o cristianismo como duas religiões
separadas — um ponto de vista apenas possível décadas depois da “separação
dos caminhos” (Isaacs, 2002, p. 84).
Embora desprovidos de qualquer cristologia explícita, os ensinamentos
são sobre Cristo e lormam o início (tes arches) ou fundam ento (themelion)
da mensagem cristã. Apesar de os itens da lista serem predominantemente de
caráter judaico, a instrução cristã autêntica teria relacionado todos os tópicos
a Cristo como “os rudimentos do cristianismo” (REB; veja Pfitzner, 1997, p.
96). O pregador pode ter em mente o evangelho primitivo “primeiro [archêrt]
anunciado pelo Senhor” e depois confirmado pelos apóstolos (2.3). Talvez,
como Bengel sugere, “o evangelismo cristão do Antigo Testamento” esteja em
vista (1877, 4:394). Esses versículos, portanto, podem proporcionar-nos um
raro vislumbre da eangelização dentro de uma das primeiras comunidades do
“judaísmo messiânico” (France, 2006, p. 82; veja Attridge, 1989, p. 163; Ellin-
gworth, 1993, p. 313).
O encorajamento para a m aturidade será facilitado pelo “alimento sóli­
do” oferecido nos ensinamentos de 7.1 — 10.18. O conceito de maturidade

230
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

(,teleiotêta) remete à discussão de “maduro” em 5.14. Mas também aponta para


a “perfeição” (ACF, ARC, ARIB, JFA; “conclusão” [NJB]) atingível para os
adoradores somente por meio da morte sacrificial de Cristo (ex.: 7.19; 9-9;
10.1,14).
O pregador está ciente de que seu ensino por si só não produzirá desen­
volvimento espiritual. O verbo continuar está na voz passiva e traduzido de
acordo apenas na TN IV e NIV 11: “Vamos [...] ser levados para a maturidade”.
A determinação da parte deles (ex.: 3.6,14; 4.11,14; 10.23) é necessária, mas
insuficiente. A força da graça divina (4.16; 13.9) e da providência (6.3) irá le­
vá-los à maturidade espiritual (veja Turner, 1975, p. 102).
V l b - 2 A ironia de precisar de alguém para ensinar-lhes as verdades elemen­
tares da palavra de Deus novam ente (5.12) correlaciona-se com sem lançar
novam ente o fundam ento. A metáfora do fundam ento era comumente usada
para instrução elementar (deSilva, 2000a, p. 216). Para os hebreus, ensaiar os
fundamentos da fé está fora de questão. Existem apenas duas opções: avançar
ou retroceder; apostasia ou maturidade espiritual. O perigo da apostasia é que
torna impossível para o apóstata ser restaurado novamente ao arrependimento
(6.6; novamente [palin\ é enfático em 5.12; 6.1,6).
O fundam ento tem seis pedras, apresentadas em três pares. As seis abran­
gem toda a extensão da peregrinação cristã, desde o arrependimento no início
até o julgamento eterno no final (Koester, 2001, p. 311).
O primeiro par é o arrependim ento de atos que conduzem à m orte, da
fé em D eus. Estes são os dois aspectos da conversão: arrepender-se do pecado
e a conversão a Deus com fé. Esse duplo movimento é encontrado na primeira
pregação dos apóstolos (At 3.19; 20.21; 26.20). O arrependimento é funda­
mentado na ideia do AT de “voltar” (sub) da injustiça (Jr 18.11; Ez 18.21;
Zc 1.4) e para Deus (2 Cr 15.4; Is 55.7; veja Gowan, 2009, p. 764). Foi um
aspecto fundamental da proclamação do Reino por João Batista (Mt 3.2,8,11;
Mc 1.4; Lc 3.3,8; At 13.24; 19.4), por Jesus (Mt 4.17; Mc 1.15; Lc 5.32) e pela
Igreja primitiva (Lc 24.47; At 2.38; 11.18; 17.30). Cada uma das referências
ao arrependimento em Hebreus (6.1,6; 12.17) implica uma volta definitiva e
única para Deus.
O arrependimento de atos que conduzem à m orte (lit., “obras mortas”
[ACF, ARA, ARC, ARIB, BKJ, JFA, KJA, NAA, TB]) é visto por alguns
como um afastamento da confiança nas boas obras judaicas que são ineficazes
(“morta”) para alcançar a justiça diante de Deus (D. Guthrie, 1983, p. 138).
Uma visão semelhante é que as obras mortas são “rituais inúteis” (NIVmg) do
judaísmo, como as observâncias sob o sacerdócio levítico (Jewett, 1981, p.

231
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

95-96; Lane, 1991, p. 140; France, 2006, p. 86). Contudo, em Hebreus, as pro­
visões e os rituais sob a antiga aliança são “fracos e inúteis” (7.18; veja 10.3,4).
Eles estão obsoletos, envelhecendo e logo desaparecerão (8.13). Porém, eles
devem ser descartados porque não são benéficos (13.9), não se arrependem
porque são pecaminosos ou mortíferos em si mesmos.
Outros veem “obras mortas” como uma referência à idolatria, uma vez
que são colocadas em oposição à fé e à adoração a Deus (6.1; 9.14; veja deSil-
va, 2000a, p. 216; Thompson, 2008, p. 133). Mas a única outra ocorrência da
frase “obras mortas” (9.14 [ACF, AR, ARC, ARIB, BKJ, JFA, NAA, NVT,
TB]) não pode ser uma referência a obras da Lei ou atos cúlticos (seja judaico
ou pagão). Paralelamente à purificação da consciência das “obras mortas” está
a purificação da consciência dos “pecados” (10.2). Além disso, a expressão se
encaixa bem dentro da doutrina judaico-cristã “Dois Caminhos” (veja Bruce,
1990, p. 140; Ellingworth, 1993, p. 314). O caminho que leva à morte envol­
ve pecados ou atos que conduzem à m orte. O caminho que conduz à vida é
marcado por “boas obras” (10.24 [ACF, ARA, ACr, ARIB, BKJ, JFA, KJA,
NAA, NVT, TB]; veja 13.21), que evidenciam a diligência e a perseverança em
herdar as promessas de Deus (6.9-12; 10.24,25,32-34).
O apelo cristão para que as pessoas tenham fé em D eus dificilmente preci­
sa de documentação (mas veja At 14.15; 17.24; 26.20; 1 Ts 1.9). Em Hebreus,
avançar para a maturidade exige uma compreensão mais profunda da fé, perse­
guida longamente no capítulo 11. A fé em Deus é mais do que uma confissão
inicial (ex.: a crença de que Deus existe), mas uma completa confiança na fideli­
dade de Deus para cumprir as Suas promessas (confiando que Ele “recompensa
aqueles que o buscam” [11.6]).
O segundo par é a instrução a respeito de batism os e im posição de mãos.
A palavra batism os é totalmente intrigante para os comentaristas, tanto anti­
gos como modernos, por duas razões. Primeira, a palavra não é o substantivo
usual para “batismo” corrente no N T e nos escritos cristãos primitivos (bap­
tismo.), mas uma palavra que mais geralmente designa lavagem ou purificação
(.baptismos; apenas uma vez usada indiscutivelmente para o batismo cristão em
Cl 2.12). Segunda, como em sua única outra ocorrência em Hebreus (9.10), a
palavra aparece no plural (baptismõn). Em 9.10, ela certamente denota “lava­
gens cerimoniais”.
Essa expressão incomum levou a muita especulação (pesquisada em H u­
ghes, 1977, p. 199-202; Ellingworth, 1993, p. 315). Os Pais da Igreja sugeriram
que o plural se refere ao batismo de muitas pessoas (Teodoreto), batismo repe­
tido (Crisóstomo; para Atanásio, especificamente de seitas heréticas), imersão
232
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

tripla (Tertuliano) ou batismos de água, sangue e desejo (Agostinho). Uma


visão sacramental de “batismos” (começando talvez com Grócio), distingue
entre um batismo externo com água e um batismo interno com o Espírito (de-
Silva [2000a, p. 218] sustenta uma variação disso, com base em 10.22).
Temos de admitir que não pode haver nenhuma certeza sobre esse assunto.
É possível que o pregador tenha em mente vários “ritos de purificação” (NIV1')
ou “maneiras rituais de se lavar com água” (CEB) conhecidos dentro de um
ambiente judaico-cristão, como o batismo de prosélitos de gentios ou o batis­
mo de João. Estes poderíam ser considerados como preparatórios para o rito
culminante de iniciação no batismo cristão (Hughes, 1977, p. 202; Attridge,
1989, p. 164; Hagner, 1990, p. 87; Ellingworth, 1993, p. 315). Somente na
idade primitiva da Igreja, durante a transição dos discípulos de João Batista
para o pleno conhecimento e fé em Cristo, os repetidos batismos foram consi­
derados aceitáveis. Aliás, de acordo com os Atos dos Apóstolos, aqueles que já
haviam sido batizados com o batismo de João precisavam também ser batiza­
dos em nome do Senhor Jesus para serem iniciados plenamente na fé cristã (At
19.4,5; veja 18.25).
A im posição de m ãos era um ato sagrado usado com o propósito de
abençoar, curar e comissionar ou ordenar (Koester, 2001, p. 305). Se o rito do
batismo cristão está incluído no item anterior (batism os), então a im posição
de m ãos aqui provavelmente se refere ao ato acompanhante de transmitir o
Espírito Santo àqueles que foram batizados (At 8.17,18; 19,6). Os ritos duais
de batismo e confirmação continuaram na Igreja (ex.: Tertuliano, Bat. 8; Ci-
priano, Ep. 74.5).
O par final, da ressurreição dos m ortos e do juízo eterno, fazia parte
da base apocalíptica para a fé farisaica e cristã primitiva, mas foram rejeitados
pelos saduceus (At 4.1,2; 23.8; Josefo, G.J. 2.163-65; Ant. 18.14-16; veja At­
tridge, 1989, p. 165, n. 129). Para Paulo, a crença na ressurreição dos m ortos
era fundamental para a crença na ressurreição de Jesus, e não vice-versa (At
23.6; 26.8; 1 Co 15.13,15,16). Hebreus raramente menciona a ressurreição
(11.19,35). O pregador assume que Cristo ressuscitou, mencionando-o ex­
plicitamente apenas uma vez (13.20; veja Lane, 1998; para abordagens sobre
ressurreição no AT, judaísmo intertestamental e cristianismo primitivo, veja
Wright, 2003; Anderson, 2006).
A expectativa do julgamento final era uma doutrina fundamental da fé
apocalíptica entre judeus e cristãos (Dn 7.26,27; 4 Ed. 7.33-44; Mt 25.31-46;
At 17.31; 2 Tm 4.1,8; 1 Pe 4.5; 2 Pe 2.9; 3.7; Ap 20.11-15). A frase juízo eter­
no ocorre apenas uma vez em toda a Bíblia. As poucas ocorrências em textos

233
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

apocalípticos (lE n . 91.15,16; 104.5; 4Q212 4,23-26) sugerem que aexpressão


é escolhida porque o juízo eterno marca o fim desta era e o início da era eterna
(veja 4Ed. 7.113; Ap 20.11—21.4).
Isso está de acordo com outras referências ao juízo em Hebreus. Está na
conclusão da vida mortal (Hb 9.27), quando Deus julgará todas as pessoas
(10.25,27,30; 12.23; 13.4). Para além do juízo está a salvação para os cren­
tes (9.28) e a realização do Reino inabalável de Deus (12.25-29). Os efeitos
eternos do juízo divino se encaixam perfeitamente com as muitas bênçãos da
era vindoura que também têm uma qualidade eterna (salvação [5.9]; redenção
[9.12]; o Espírito [9.14]; herança [9.15]; aliança [13.20]).
3 O pregador está determinado a ajudar a completar a educação espiritual
de seus ouvintes. A ssim farem os remete às ações incentivadas no versículo 1.
Também pode aludir à difícil tarefa mencionada em 5.11 (Lane, 1991, p. 140),
que o pregador começará a empreender em 7.1.
O pregador está confiante de que seu público levará a sério suas advertên­
cias e encorajamento (6.9-12). Mas a condição, se D eus o perm itir, indica que
a capacitação e a avaliação final para o progresso espiritual vêm de Deus. Nosso
destino depende decisivamente da bênção e da justiça de Deus (6.7,10). A dis­
ciplina que nos conduz à maturidade, produzindo justiça e santidade, vem, em
última análise, da mão paterna de Deus (12.7-17). E somente Deus pode deter­
minar se um indivíduo ficou aquém de Sua graça e bênção (12.15,17; veja 4.1)
e entrou na situação “impossível” de apostasia abordada no próximo parágrafo
(6.4-8; veja 2.1-3^; 10.26-30; 12.15-17).

3. Advertência sobre apostasia irreversível (6.4-8)


Esse parágrafo muda de pessoal (“você”, “nós”) para endereçamento im­
pessoal (é [...]). Ele contém duas partes, cada uma sinalizada por para (gar, não
traduzido): uma advertência severa (6.4-6) seguida por uma ilustração de apoio
(6.7,8; veja Johnson, 2006, p. 160). Empregando um tópico retórico comum,
referente ao “impossível” (Aristóteles, Rhet. 2.19), essa passagem apresenta um
argumento contrário. O autor exortou seus leitores a “avançarem para a matu­
ridade” (6.1-3). Agora ele mostra o que aconteceria se eles tomassem o curso de
ação oposto (deSilva, 2000a, 215, p. 19-20).
Ü 4 a A abertura porque é impossível [ACF; ausente na NVI] começa um
pensamento que não é concluído até a frase infinitiva no versículo 6, “sejam
reconduzidos [anakainizein\ ao arrependimento”. A conjunção inferencial

234
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

gar [para, não traduzida na NVI) liga essa discussão da apostasia final com
a nota sobre a indispensável providência de Deus no versículo anterior (“se
Deus permitir”). Somente Deus pode determinar se um indivíduo não pode
ser renovado ao arrependimento ou se ele está condenado a ser amaldiçoado
(veja v. 6b,8).
Muitos expositores tentam aliviar a severidade dessa advertência (veja
Hughes, 1977, p. 212-214; Attridge, 1989, p. 167; Koester, 2001, p. 312). Al­
guns oferecem a tradução inadmissível, “difícil” (Nicholas de Lyra, Erasmo).
Outros postulam uma impossibilidade para os humanos, mas não para Deus
(ex.: Ambrósio, Aquino); traçam uma distinção entre impossibilidade absoluta
(ex.: matemática) e relativa (ou moral) (Whedon, 1880, 5:78-79); ou aplicam
a impossibilidade do segundo batismo (Ambrósio; Crisóstomo [1996, p. 410];
Teodoreto [Heen e Krey, 2005, p. 84]). Contudo, esse im possível é enfático e
inequívoco. Não pode ser qualificado, assim como outros exemplos do impos­
sível em Hebreus, como a impossibilidade “de Deus mentir” (6.18; veja 10.4;
11.6). Não há como escapar da terrível conclusão de que, para os hebreus, a
apostasia final é irreversível.
Uma descrição daqueles que entraram nessa situação impossível prosse­
gue com uma série de cinco particípios (no tempo aoristo) nos versículos 4-6a.
A série começa com a frase aqueles que uma vez [tous hapax), que modifi­
ca todas as cláusulas de particípio subsequentes (aqueles que um a vez foram
ilum inados, provaram [...], “experimentaram” [...], “provaram [...] caíram”
[ênfase acrescentada; NIV 11 para a cláusula final]). Esse uma vez se opõe ao
“de novo” no versículo 6 (e em 5.12 e 6.1). Assim, o pregador acentua o caráter
excepcional, definitivo e privilegiado da experiência da graça de Deus nestes
últimos dias. Virar as costas para isso, ou retroceder propositadamente, seria
indescritivelmente desprezível (veja v. 6). Isso colocaria a pessoa na posição
insustentável de tentar novamente receber o próprio favor divino que havia
rejeitado e desonrado (deSilva, 2000a, p. 225).
A queles que [...] foram ilum inados fornece a ideia principal da série. O
particípio phõtisthentas ocorre novamente em 10.32 (“foram iluminados”).
Aí há uma clara referência à conversão ou iniciação dos ouvintes à fé cristã.
Em outra parte do NT, a mesma metáfora descreve a dissipação da ignorância
(trevas) por meio do conhecimento (luz) de Deus no Evangelho (veja Jo 1.9;
At 26.18; 2 Co 4.6; Ef 1.18; 3.9; 2 Tm 1.10; 1 Pe 2.9; 1 Jo 1.5). A metáfora é
paralela à afirmação de que os leitores “receberam o conhecimento da verdade”
(Hb 10.26).

235
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Iluminação e batismo
Já e m J u s tin o M á rtir, " ilu m in a r " s ig n ific a v a " b a t iz a r " . P a is g r e g o s s u b ­
s e q u e n t e s in t e r p r e ta r a m a ilu m in a ç ã o e m H e b re u s 6 .4 c o m o " b a t is m o "
o u " la v a g e m " (ex.: T e o d o re to e T e o fila to ; D o d s, 1 9 6 0 , p. 2 9 6 ). O S iría c o
P e s h itta t r a d u z iu a e x p r e s s ã o " ilu m in a d o s " c o m o " a q u e le s q u e u m a v e z
d e s c e r a m p a ra o b a t is m o " (L a n e , 1 9 9 1 , p. 1 4 1 ). S e o a u to r d e H e b re u s
a s s o c io u a ilu m in a ç ã o c o m o b a t is m o (n ã o im p ro v á v e l, m a s n ã o c o n fir­
m a d o ), e le p o d e t e r s id o o p r im e ir o a fa z ê - lo e n tre o s p r im e ir o s e s c r it o r e s
c r is tã o s (v e ja B ru c e , 1 9 9 0 , p. 14 5; Jo h n s o n , 2 0 0 6 , p. 1 6 2 ).

4 b -5 Seguem-se duas declarações coordenadas. Eles descrevem ainda a ex­


periência do iluminado por meio da metáfora dominante de degustação (duas
vezes nos versículos 4 e 5). A primeira declaração une aqueles que provaram
o dom celestial [...] participantes no Espírito Santo (v. 4). A palavra pro­
varam não denota nada menos do que conversão real, como afirma Calvino
(1976, p. 76). Assim como Jesus provou a morte em 2.9, aqui a metáfora repre­
senta aqueles que realmente “experimentaram” algo (GW, NIV, NLT).
O dom celestial é uma imagem bem geral para especificar a santa ceia,
seguindo a metáfora anterior (possível) para o batismo (veja Bruce, 1990, p.
146). Em outras partes do NT, a palavra dom (dõrea) é usada para o dom da
graça de Deus em Cristo (Ran 5.15,17; 2 Co 9.15; Ef 3.7), o dom do Espírito
Santo (At 2.38; 8.20; 10.45; 11.17) ou a dádiva da água viva (= vida eterna [Jo
4.10; veja Jo 4.14; Ap 21.6; 22.17]).
Aqui, o dom abrange o favor divino e a salvação disponível por meio do
Filho no acesso à presença divina agora (Elb 4.16; 10.19-22), mas recebido
na íntegra na volta de Cristo (9.28). Essa é a “promessa da herança eterna”
(9.15; veja 1.14; 6.12; 10.36). Nossa experiência de salvação é genuína, mas
parcial (observe o genitivo tês dõreas tes epouraniou, “provaram do dom celes­
tial” [BKJ, NASB, ênfase adicionada]). Tanto a fonte de nosso chamado para
a salvação (3.1; veja 9.15) quanto sua plena realização nos aguardam em nossa
pátria celestial (veja 10.34; 11.16; 12.22,28; 13.14).
A cláusula tornaram -se participantes do Espírito Santo contém a lin­
guagem da participação (“tornaram-se participantes de” [NAA; veja ARA,
NVT, TB]; “receberam uma parte de” [NJB]). Tal terminologia foi usada
anteriormente para “participantes no chamado celestial” dos crentes (3.1) e

236
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

parceria com Cristo (3.14). Os crentes compartilham do poder vital e do dis­


cernimento do mesmo Espírito Santo que fala nas Escrituras (9.8; 10.15). Ele
foi o meio gracioso de nossa redenção em Cristo (9.14; 10.29) e é dinamica­
mente ativo por meio de dons espirituais (2.4).
A segunda afirmação (v. 5) repete a metáfora do gosto. A cláusula experi­
mentaram a bondade da palavra de D eus provavelmente se relaciona a uma
resposta favorável à revelação de Deus, encontrada nas Escrituras do AT e to­
talmente divulgada no evangelho (veja 4.2,6; Hughes, 1977, p. 210; France,
2006, p. 83). A frase poderes da era que há de vir nos lembra de que a nossa
experiência atual do poder divino é apenas uma antecipação do “mundo que
há de vir” (2.5).
■ 6 A série de imagens nos versículos 4 e 5 constrói uma imagem composta
da magnitude da salvação (veja Hughes, 1977, p. 212; Johnson, 2006, p. 13).
É uma experiência real e pessoal de revelação, presença e poder divinos. O pri­
meiro particípio abre a descrição com a ideia de iluminação espiritual (“foram
iluminados”). Os próximos três particípios gregos (“provaram”, “tornaram-se
participantes”, “experimentaram”) desenvolvem o pensamento com figuras que
enfatizam a experiência e a participação.
O particípio final da série cria uma mudança abrupta e chocante (v. 6a): E
caíram. A tradução condicional, se eles caírem. (BKJ; veja KJ V, RS V, T YND A-
LE), remonta à versão de Beza (Clarke, 1977, 3:725). A leitura do particípio
como condicional (se) é baseada no dogma, e não na gramática (Wallace, 1996,
p. 633). Esse erro foi corrigido na maioria das traduções (incluindo a N IV 11:
“e que caiu”).
O autor não está apresentando um caso puramente hipotético ou “espan­
toso” (ex.; contra Wuest, 2004, p. 11-18; veja Bruce, 1990, p. 147-148). Ele está
alertando seus leitores para evitar uma eventualidade real e possível. Embora
ainda não tenham abandonado sua fé, é importante fazer essa advertência en­
quanto ainda há esperança. Sua única opção é avançar até a maturidade (6.1).
Sua presente apatia e lentidão coloca-os em grave perigo, porque “ficarparado
gera apostasia” (Whedon, 1880, 5:78).
O verbo parapiptõ (cair) é usado apenas uma vez no NT. Na LXX, é
usado para agir infielmente (Ez 14.13; 15.8; 18.24; 20.27; 22.4) ou quebrar
a palavra de alguém (Et 6.10). Nos papiros, muitas vezes, é usado para per­
der algo, mas também é usado para quebrar os termos de um contrato (MM,
488-489). Um significado associado a acordos ou compromissos contratuais
(“deixar de cumprir um compromisso” [BDAG, p. 770]) se encaixa bem com

237
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

a linguagem comercial de parceria em Hebreus 6.4 (“participantes no Espírito


Santo”; -> 3.14, “Parceiros com Cristo”). O pregador está referindo-se àqueles
que “caíram na apostasia” (VC) ou “desertaram [Cristo]” (GW). Dessa forma,
ele frequentemente adverte contra tal deslealdade (veja 2.2,3; 4.1; 10.38,39;
12.15,17), que flui de um “coração perverso e incrédulo, que se afasta [aposte-
nai\ do Deus vivo” (3.12).
A impossibilidade introduzida em 6Aa é finalmente descrita no versículo
6b. Para aqueles que repudiaram com tanto desprezo o favor divino que outro-
ra desfrutavam, é im possível que sejam reconduzidos ao arrependim ento.
As bênçãos de salvação de Deus têm um caráter de uma vez por todas (“uma
vez [hapax]” [v. 4a\). Elas não podem ser casualmente repetidas. A palavrapa-
lin (novamente, não na NVI) está enfaticamente no início dessa cláusula. Esse
indicador de repetição é reforçado pelo infinitivo anakainizein, que significa
“renovar” (ACF, ARA, ARC, ARIB, BKJ, JFA,TB, VC) ou “restaurar” (ESV;
ser trazido de volta). Apóstatas não podem ser restaurados novamente ao ar­
rependim ento (-> 6.1^). A impossibilidade dessa repetição é paralela às opções
inaceitáveis de “lançar novamente \palin] o fundamento do arrependimento”
(6.\b) e serem ensinados “novamente \palin\ os princípios elementares da pa­
lavra de Deus” (5.12).
Arrependimento renovado não é uma impossibilidade porque Deus é in­
capaz de restaurar um desertor de volta à fé. Nem é impossível simplesmente
porque o coração do apóstata se endureceu além da recuperação (por mais ver­
dadeiro que isso seja; veja 3.7,12-15; 4.7). A impossibilidade se deve ao juízo de
Deus. Exemplos históricos do AT ilustram os resultados da rejeição desafiado­
ra das promessas de Deus. No caso da geração do deserto, Deus jurou: “Jamais
entrarão no meu descanso” (3.11; 4.3,5). No caso de Esaú, que vendeu seus
direitos de herança, ele foi rejeitado e não teve chance de “arrependimento”
(BKJ), mesmo que em lágrimas buscasse ser reintegrado (12.17; veja Koester,
2001, p. 312-313).

Sem segundo arrependimento ou


sem segundo batismo?

H e b re u s 6 .4 -8 te m s id o u m a fo n te d e p r e o c u p a ç ã o e c o n t ro v é r s ia . E m
p a r t ic u la r , s u a p o s tu ra rig o ro s a s o b re a im p o s s ib ilid a d e d e o s a p ó s t a t a s
s e r e m r e n o v a d o s a o a r r e p e n d im e n t o é u m a d a s m a io r e s d if ic u ld a d e s n a s
E s c ritu ra s . O c r is tã o d o in íc io d o s e g u n d o s é c u lo , o P a s to r d e H e rm a s ,

238
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HF.BREUS

e s t a v a p r e o c u p a d o c o m o e n s in o d e q u e n e n h u m a r r e p e n d im e n t o e s t a ­
v a d is p o n ív e l p a ra p e c a d o s p ó s - b a tis m a is . M a s u m m e n s a g e ir o c e le s t ia l
re v e lo u a e le q u e o S e n h o r, e m S u a m is e r ic ó r d ia p a ra c o m a fr a q u e z a
h u m a n a e c o n s c iê n c ia d a s a r t im a n h a s d o d ia b o , o fe r e c e u m a — m a s a p e ­
n a s u m a — o p o r t u n id a d e d e a r r e p e n d im e n t o d o s p e c a d o s a p ó s o b a t is m o
(H e rm . M an d . 4 .3 .1 -7 ). C le m e n t e d e A le x a n d r ia s e g u iu e s s a v is ã o { S tro m .

2 .1 3 ; 4 .2 0 ). M u ito s c r is tã o s p r im it iv o s t a m b é m a c r e d it a v a m q u e o m a r tír io
e ra u m m e io d e e lim in a r t o d o s o s p e c a d o s p ó s - b a tis m a is .
N o in íc io d o te r c e ir o s é c u lo , T e rtu lia n o a s s u m iu u m a p o s iç ã o m o n -
t a n is t a lin h a -d u ra c o n t r a a q u e le " 'P a s t o r ' d e a d ú lt e r o s " . E le in s is tiu q u e
n e n h u m s e g u n d o a r r e p e n d im e n t o e ra p e r m it id o p o r p e c a d o s g r a v e s c o ­
m e t id o s a p ó s o b a tis m o , c o m o a d u lt é r io ou a p o s t a s ia (P u d . 20 ). A p ó s a
p e r s e g u iç ã o d e c ia n a d e 2 4 9 - 2 5 0 d .C ., o s n o v a c ia n o s e m p r e g a r a m H e b re u s
6 .4 -8 p a ra a f ir m a r q u e a q u e le s q u e h a v ia m n e g a d o s u a fé s o b p e r s e g u i­
ç ã o n ã o p o d e r ía m s e r re s ta u r a d o s à c o m u n h ã o na Igreja. C ip r ia n o (m .
2 5 8 ) se o p ô s t a n t o a o s m o n ta n is ta s c o m o a o s n o v a c ia n o s a o a f ir m a r q u e
a q u e le s q u e h a v ia m d e c a íd o p o d e r ía m r e c e b e r a r r e p e n d im e n t o , p e r d ã o e
r e in t e g r a ç ã o (E p . 51 ). E s s a s c o n t r o v é r s ia s s o b re E le b re u s 6 .4 -8 c o n t r ib u ­
íra m p a ra a d if ic u ld a d e d o O c id e n t e e m a c e it a r H e b re u s c o m o p a rte d o
c â n o n d o NT.
A p a r t ir d o q u a rto s é c u lo , u m a in t e r p r e ta ç ã o p a d r ã o d e 6 .4 -8 p e r­
d u r a r ia p e lo s p r ó x im o s m i! a n o s t a n t o n o O r ie n t e c o m o n o O c id e n te .
A m b r ó s io (d. 3 9 7 ) a firm o u q u e H e b re u s n ã o im p e d e q u e o s c a íd o s s e ­
ja m re s ta u r a d o s a o a r r e p e n d im e n t o . E m v e z d is s o , re je ita a p o s s ib ilid a d e
d e u m s e g u n d o b a tis m o . A m b r ó s io a r g u m e n t o u q u e o b a t is m o é u m a
p a r t ic ip a ç ã o na m o rte d e C ris to , d e m o d o q u e o r e b a t is m o e q u iv a le r ía a
r e c r u c ific a r o F ilh o d e D e u s. E le a r g u m e n t o u a in d a q u e , e m b o ra o a r r e p e n ­
d im e n t o d o s p e c a d o s p ó s - b a tis m a is p o s s a p a r e c e r im p o s s ív e l d o p o n to d e
v is t a h u m a n o , n ã o é im p o s s ív e l p a ra D e u s (P aen . 2.2). A s p r in c ip a is lin h a s
d e s s a v is ã o fo ra m c o m p a r t ilh a d a s p o r Jo ã o C r is ó s to m o , T e o d o re to , E fré m ,
o S írio , F ó c io e m u ito s o u tro s . (P ara m a is d e ta lh e s , v e ja H e e n e K re y , 2 0 0 5 ,
p. 8 3 -8 7 ; H u g h e s , 1 9 7 7 , p. 2 1 3 -2 1 5 ; A t t r id g e , 1 9 8 9 , p. 1 6 8 -1 6 9 ; K o e ste r,
2 0 0 1 , p. 2 0 -2 5 .)

Após a série de cinco particípios de tempo passado (aoristo), dois parti-


cípios de tempo presente são usados para transmitir a razão (porque) para a
situação do apóstata. O tempo presente expressa a indignidade duradoura cau­
sada por tal traição. Tendo sido parceiros de Cristo, eles se classificaram entre
os pecadores que se opuseram a Ele (12.3).

239
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Seu crime é tão hediondo que pode ser descrito como crucificar de novo
(,anastaurountas) o Filho de D eus. O verbo anastauroõ era amplamente usa­
do simplesmente para significar “crucificar” com o prefixo ana- sugerindo o
movimento ascendente de içar uma vítima na cruz. No entanto, os tradutores
antigos e os Pais gregos entenderam unanimemente que o prefixo significava
“novamente” (veja BDAG, p. 72; Kuhn, 1990, p. 92; Ellingworth, 1993, p.
324), portanto, “recrucificar” (HCSB, NAB).
Essa pode ser uma ação que é para sua própria perda (tomando heautois
como um dativo de desvantagem). Mas crucificar “para si mesmos” (NAA; veja
BKJ, NJB) podería estender a metáfora violenta para significar uma ruptura
decisiva de seu relacionamento com o Filho de D eus. Uma expressão análoga
está no repúdio de Paulo ao mundo: “O mundo está crucificado para mim, e
eu, para o mundo” (G1 6.14; veja Koester, 2001, p. 315).
O segundo particípio, paradeigmatizontas (sujeitando-o à desonra
pública), complementa a ação da crucificação. O verbo foi usado para puni­
ções públicas destinadas a fazer de criminosos um exemplo (BDAG, p. 761;
Koester, 2001, p. 315). Os romanos utilizavam a cruz como instrumento não
apenas de dor excruciante, mas também de terrível desgraça (veja 12.2). Des-
tinava-se a impedir que outros cometessem o crime que estava sendo punido.
O apóstata, em vez de identificar-se com a vergonha de Cristo (13.13), está
“sujeitando-o ao desprezo” (ESV, EíCSB, NAB, NET, NRSV). Ele assumiu
a mesma postura zombeteira de um antigo grafiteiro em Roma, que rabiscou
uma foto de um homem levantando a mão em oração para uma figura com
cabeça de burro em uma cruz, com a inscrição abaixo: “Alexamenos adora a
deus” (vemos Decker, 2007).
S I 7 - 8 A conjunção inferencialgar {mas) introduz um exemplo da agricultu­
ra. Ilustra a impossibilidade de restauração da apostasia discutida nos versículos
anteriores (4-6). O versículo 7 apresenta o lado positivo desse exemplo; o ver­
sículo 8, o negativo.
A terra que absorve a chuva, que cai frequentem ente é paralela aos
favores divinos listados nos versículos 4 e 5. Por meio do uso da rima, o prega­
dor conecta a provisão de chuva de Deus com a generosidade que a terra deve
suportar. Terra que encharca de chuva \hyeton\ [...] dá colheita proveitosa
[eutheton] àqueles que a cultivam. Como na parábola do semeador de Jesus,
a semente que cai em boa terra produz uma colheita abundante (Mt 13.8; Mc
4.8; Lc 8.8). Beber na chuva, como provar a bondade da palavra de Deus (v.
5a), deve transformar os dons contínuos de Deus (chuva, que cai frequente­
m ente) em uma colheita de benefícios para os outros.

240
NOVO COMENTÁRIO BÍBI.ICO BEACON HEBREUS

O serviço de amar e compartilhar da comunidade é a fecundidade prodi­


galizada aos outros e o[s] “sacrifício[s] de louvor” a Deus (veja 6.10; 10.32-34;
13.15,16). Isso agrada a Deus (13.16,21) e recebe a bênção de Deus. Na cláu­
sula recebe a bênção de D eus, encontramos a linguagem da participação
(metalambanei, recebe; “partilhar ou participar de algo, ter uma participação”
[BDAG, p. 639]). O mesmo verbo em 12.10 diz respeito à “participação” dos
crentes na santidade de Deus. Mas também é uma reminiscência da linguagem
usada anteriormente de participação em realidades celestiais (3.1,4; 6.4; Attri-
dge, 1989, p. 173).
A bênção de Deus será importante em 6.13-20, onde Abraão é o princi­
pal exemplo de alguém que recebeu a bênção prometida de Deus (6.14,15). O
substantivo ocorre novamente na referência à perda da bênção divina por Esaú
(12.17). A bênção de Deus é provavelmente “uma tão salvação grande”, que os
crentes herdarão (2.3; veja 1.14, mas especialmente 6.9).
Mas a terra que produz espinhos e ervas daninhas (v. 8) alude à maldição
de Deus sobre terra após a desobediência original de Adão e Eva, de modo que
produz “espinhos e ervas daninhas” (Gn 3.18). Aqui a terra, que recebeu am­
plas chuvas do céu, surpreendentemente se revelou inútil. O adjetivo adokimos
denota um julgamento negativo. A terra improdutiva é “rejeitada” (BKJ, TB).
O mesmo adjetivo é usado por Paulo em 1 Coríntios 9.25-27 sobre a rigorosa
disciplina exigida para receber uma coroa eterna em vez de ser “ficar reprova­
do” (1 Co 9.27).
A terra que consumiu os recursos divinos para frutificação, mas é estéril,
não se qualifica para a bênção de Deus. Pelo contrário, logo será am aldiçoada.
A frase é literalmente “perto” (ACF, ARA, ARC, ARIB, NA AJFA , TB, NJB;
veja BKJ, TYNDALE) ou “próximo” (NASB) de ser amaldiçoado. A maldi­
ção divina está ameaçadoramente próxima (“a um passo da maldição” [BSEP];
“uma maldição paira sobre ela” [REB]). Isso lembra a imagem usada por João
Batista a respeito daqueles que não produzem o fruto do arrependimento: “O
machado já está posto à raiz das árvores, e toda árvore que não der bom fruto
será cortada e lançada no o fogo” (Mt 3.10).
Seu fim é ser queimada. A imagem do fogo em conexão com o juízo es-
catológico é comum no N T (Mt 3.10; 5.22; 7.19; 13.40,42,50; 18.8,9; 25.41;
Mc 9.22,43,48; Jo 15.6; 1 Co 3.13,15; 2 Ts 1.7,8; 2 Pe 3.7; Jd 7; Ap 19.20;
20.14,15; 21.8). Em Hebreus, o juízo de fogo de Deus é reservado para Seus
inimigos (10.27), incluindo apóstatas (veja 10.26-31). Recusar Aquele que fala
(12.25) é perigoso, porque “Deus é um fogo consumidor” (12.29).

241
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

4. Palavras de segurança (6.9-12)

.· 9 Tendo falado francamente sobre o perigo da apostasia, o pregador ago­


ra tranquiliza seus ouvintes. O padrão retórico de discurso franco seguido de
elogios foi útil para orientar os ouvintes para longe do erro sem derrubá-los
(veja Rhet. Her. 4.37.49-50; Crisóstomo, 1996, p. 414-415; deSilva, 2000a,
p. 244-445). M esm o falando dessa forma, ou seja, sobre a condenação que
aguarda aqueles que dão as costas à graça de Deus (v. 4-8), estam os convictos
(“estamos convencidos” [KJA, GW, HCSB, LEB, NASB, NET, REB]) de que
tal “pior cenário” (France, 2006, p. 82) ainda não se aplica à comunidade que
está sendo abordada.
A mudança positiva é marcada pelo retorno do nós autoral (veja 5.11;
6.1,3), depois de falar mais impessoalmente em 6.4-8.0 autor também se dirige
à comunidade como amigos queridos (am ados), mas apenas aqui no sermão.
A raridade dessa forma de discurso pode apontar para sua seleção como parte
da estratégia retórica desse parágrafo (ou seja, para amenizar o golpe da severa
advertência anterior). No entanto, não está em desacordo com o termo fami­
liar “irmãos” usado em outros lugares (3.1,12; 10.19; 13.22) e é característico
do estilo homilético (Attridge, 1989, p. 174). Ambas as formas de tratamento
denotam terna preocupação pastoral, não apenas o uso inteligente da retórica.
O pregador está convencido de que coisas m elhores se aplicam a vocês. As
coisas m elhores [ta kreissona) pertencem à fecundidade e bênção do versículo
7, em oposição à infrutífera e maldição do versículo 8. O conceito de “melhor”
ou “superior” é de importância fundamental para o autor (-» 1.4, “Coisas ‘su­
periores’ em Hebreus”). As coisas melhores são descritas mais adiante como
coisas próprias da salvação (echomena sõterias), ou seja, envolvem ou “têm a
ver com a salvação” (NIV11; nesse idioma grego comum, veja Attridge, 1989, p.
174, n. 98; LSJ, p. 750). A salvação é a libertação final do pecado e seus efeitos
associados de contaminação, alienação de Deus e morte (veja esp. 2.5-18). Em
Hebreus, a salvação está consistentemente ligada ao ministério de Cristo (veja
2.3,10; 5.9; 7.25; 9.28).
■ 10 A declaração D eu s não é injusto é um exemplo de eufemismo (John­
son, 2006, p. 165). E uma maneira enfática de dizer: “Deus é justo”. O vínculo
entre esse pensamento e o próximo é muito mais estreito do que algumas tra­
duções sugerem (D eu s não é injusto; ele não esquecerá [NVI, NVT; veja
VC]). “Pois Deus não é injusto para se esquecer” captura mais fielmente a frase
grega (ACF, ARC, ARIB, JFA, KJA, NAA).

242
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

Deus está atento e justamente disposto a duas coisas: ao seu trabalho e ao


seu amor. Em 10.24, o pregador exortará seus leitores a promoverem “amor e
boas obras” [ACF, ARA, ARC, BKJ, JFA, NVT, TB] dentro da igreja. Estas
são a antítese de “atos que conduzem à morte” (6.1; 9.14). Assim, o autor iden­
tifica seus ouvintes com o campo frutífero e abençoado (6.7), em ve do campo
estéril que será amaldiçoado (6.8).

Virtudes
E m H e b re u s 6 .9 -1 2 e 1 0 .1 9 -2 5 , e n c o n t r a m o s a s tr ê s v irtu d e s : a m o r
(6.1 0; 1 0 .2 4 ), e s p e r a n ç a (6.1 1; 1 0 .2 3 ) e fé (6.1 2; 1 0 .2 2 ). E s ta s s ã o m a is
f a m ilia r e s p a ra n ó s p o r m e io d e s e u a g r u p a m e n to e m P a u lo (1 C o 1 3 .1 3 ;
v e ja G l 5 .5,6; Cl 1 .4,5; 1 Ts 1.3; 5.8). O s t e ó lo g o s a s c h a m a m d e v ir t u d e s
" t e o lo g a is " . S e u p a p e l na v id a d e g r a ç a e s u a s in te r- re la ç õ e s fo ra m c u i­
d a d o s a m e n te e s t u d a d o s p e lo s e s c o lá s t ic o s , p r in c ip a lm e n t e p o r T o m á s d e
A q u in o .
U m c o n ju n to a d ic io n a l d e q u a tro p e r fe iç õ e s m o r a is fo i t r a n s p o r t a d o
p a ra a te o lo g ia c ris tã d e P la tã o , A r is t ó t e le s e e s to ic o s : s a b e d o r ia (-» 5 .1 4 ),
m o d e ra ç ã o , ju s t iç a e c o ra g e m . O s g ig a n t e s d a te o lo g ia m o ra l c ris tã —
A m b ró s io , A g o s t in h o e T o m á s d e A q u in o — d is t in g u ir a m e s s a s v ir t u d e s
" c a r d e a is " o u " n a t u r a is " d a s v ir t u d e s " t e o lo g a is " . T o m á s d e A q u in o c o r r e ­
la c io n o u a s v ir t u d e s c a r d e a is c o m v á r ia s f a c u ld a d e s h u m a n a s ( s a b e d o ria
c o m in te le c to ; ju s t iç a c o m v o n ta d e ; e m o d e r a ç ã o e c o r a g e m c o m d u a s
p a ix õ e s d o a p e tit e s e n s ív e l, lu x ú r ia e m e d o , re s p e c t iv a m e n te ) .
Ju n ta s , a s v ir t u d e s t e o lo g a is e c a r d e a is c o m p õ e m a s " S e t e V irt u d e s " .
E s s a s s ã o c o lo c a d a s e m c o n t r a s t e c o m o s " S e t e P e c a d o s C a p it a is " (o rg u ­
lho, c o b iç a , lu x ú r ia , in v e ja , g u la , ra iv a e p re g u iç a ) . P a ra u m e s t u d o m a is
a p ro fu n d a d o , v e ja R ic k a b y , 1 9 0 8 ; C r o s s e L iv in g s to n e , 1 9 9 7 a e 1 9 9 7 b ;
F itz g e ra ld , 1 9 9 2 .

O amor deles é definido como algo que eles dem onstraram . O verbo en-
deiknymi (“mostrar, demonstrar”, BDAG, p. 331) é utilizado nos papiros de
produção de prova legal (Ellingworth, 1993, p. 331; MM, 211). O amor não é
simplesmente um pensamento ou sentimento, mas é provado de maneiras con­
cretas (compare 1 Jo 3.18). Também é realizado para o Seu nome (eis to onoma
autou-, ele). Isso pode significar que o amor demonstrado aos outros é “feito
por amor ao seu nome” (REB) ou “por amor dele [isto é, de Deus]” (NRSV).
Ou pode significar que o amor deles é direcionado ao próprio Deus (Koester,

243
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

2001, p. 317). Não precisamos escolher entre os dois, porque (como atesta 1Jo
4.20,21) um implica o outro.
O trabalho e o amor exibidos dentro da comunidade consistem no serviço
ao seu povo (lit., “os santos” [por exemplo, ACF, ARA, ARC, ARIB, NAA],
ou seja, “o povo santo de Deus” [NJB; veja GW ]). As palavras traduzidas
ajudaram e continuam a ajudar e são formas de diakoneõ, que denota serviço
humilde ou servil (ex.: servir às mesas em At 6.1,2; veja L&N, 35.19). Atos
passados de serviço incluíam ficar lado a lado com aqueles que sofreram abu­
so, perda de propriedade ou prisão (10.32-34). Atos atuais de serviço incluem
amor contínuo uns pelos outros, hospitalidade em relação a estranhos, cuidar
dos presos (13.1-3), em suma, não deixar de fazer o bem e compartilhar com
os outros (13.16).
■ 1 1 A convicção profunda no versículo anterior é combinada aqui com
“profundo desejo” (NTLH). Q uerem os traduz um verbo que transmite um
desejo muito forte (“nós queremos apaixonadamente” [NET]; “desejamos
sinceramente” [NAB]). Mais uma vez o pregador expressa sua preocupação
por cada indivíduo da comunidade (cada um de vocês [veja 3.12,13; 4.1,11;
12.15,16]). Havia pelo menos alguns entre eles cujo compromisso estava en­
fraquecendo e cuja eventual apostasia podería ter um efeito de envenenamento
sobre os crentes ao seu redor (12.15).
O desejo é que cada pessoa m ostre essa m esm a prontidão. O verbo en-
deiknymi {mostrar), usado no versículo anterior (v 10), é repetido aqui. Eles
devem demonstrar essa m esm a prontidão em amar a Deus por meio do servi­
ço amoroso aos outros. A palavra prontidão (spoudên) é um cognato do verbo
traduzido como “fazer todo esforço” em -» 4.11. Em 4.11, eles foram exortados
a estarem desejosos para entrar no descanso de Deus no fim dos tempos. Aqui,
da mesma forma, o desejo é que eles permaneçam diligentes até o fim. Manten­
do-se firmes em seu compromisso com Cristo “até o fim” (veja 3.14) garantirá
que eles não atinjam o “fim” final (6.8) daqueles que não estão “produzindo
fruto de justiça e paz” (12.11).
Uma frase preposicional, para que tenham a plena certeza da esperança,
explicita o objetivo da diligência dos ouvintes. Isso é difícil de interpretar por­
que o substantivo plêropboria (lit., “plenitude”) podería ter dois significados
nesse contexto.
Primeiro, podería conotar plenitude ou completude no sentido de
“cumprimento” da esperança (NAB, net; “último cumprimento” [NJB]) ou
“realização final” (HCSB; veja NRSV; “completamente realizada” [OL];

244
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

Lane, 1991, p. 130; Johnson, 2006, p. 167). Mas essa nota escatológica pode
criar uma repetição desnecessária da frase até o fim.
Segundo, podería conotar “completa certeza” (ACF, ARA, ACR, ARIB;
“plena certeza” [NAA, N V T), “certeza absoluta” (BDAG, p. 827), ou tornar
sua esperança certa (NRSV e NLT combinam os sentidos de garantia e reali­
zação). A palavra tem o mesmo sentido de certeza na expressão “plena certeza
de fé” (10.22, sua única outra ocorrência em Hebreus; veja também Cl 2.2; 1
Ts 1.5). Essa ideia se encaixa com outras exortações para nos apegarmos fir­
memente à nossa esperança (Hb 3.6; 10.23), confissão (4.14; 10.23; veja 3.1)
ou compromisso (3.14). Uma ajuda contextual mais próxima é a metáfora em
6.19, que ilustra a frase “plena certeza da esperança”. A esperança é retratada ali
como “uma âncora para a alma, firme e segura”.
Ml 1 2 No texto grego, de m o d o que vocês não se to m em negligentes não
começa uma nova frase. Continuando o pensamento do versículo 11, é uma
cláusula de propósito que comunica a perseverança que o pregador deseja pro­
mover: “Para que você não se tornem preguiçosos” (NAA).
N egligen tes (nõthroi) contrasta com “diligentes” no versículo 11. A pa­
lavra aparece apenas aqui e em 5.11, formando uma estrutura deliberada em
torno dos primeiros quatro parágrafos dessa seção (5.11-6.18). O efeito é enfa­
tizar novamente o risco de cair na apatia espiritual. Não há discrepância entre
as declarações em 5.11 e 6.12. Como Bengel explica, eles “tornaram-se tardios
em ouvir \nõthroi gegonate tais akoais]” (5.11 ARA, ARIB); mas “ele agora
os adverte, para não se tornarem preguiçosos \nothroi genêsthe\ absolutamente”
(6.12; Bengel, 1877, 4:400). Uma tendência a não prestar atenção cuidadosa
(veja 2.1) pode levar a tornar-se totalmente “frouxo” (REB), em vez de engajar-
-se firmemente nos compromissos e nas práticas vitais da fé cristã.
Em vez de serem preguiçosos espirituais, os ouvintes devem ser “imitado­
res” (mimêtai; ACF, ARA, ARC, ARIB, JFA, NAA; im item ) daqueles que
são modelos de fé inabalável. O impulso para a imitação reaparece explicita­
mente em 13.7, onde a fé dos líderes da comunidade é o que eles devem “imitar
\mimeisthe\ ”. O AT contém exemplos de desobediência a evitar (4.11) e nume­
rosos exemplos de fidelidade a seguir (3.5; 11.1-39). Mas Cristo é o exemplo
supremo de fé (3.2; 10.5-10; 12.1-3).
Fé e paciência, ou melhor, “fé e perseverança” (NVT, BSEP) podem muito
bem ser uma hendíadis, traduzida como “perseverança fiel” ou “fé perseveran­
te” (Attridge, 1989, p. 176). A segunda palavra (makrothymias) significa mais
do que paciência passiva, longanimidade ou tolerância. Conotaperseverança,

245
HF.BRF.US NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

“persistência” (OL), ou “firmeza” (BDAG, p. 612; de acordo com o uso secu­


lar, Hollander, p. 1991). Mais tarde, em Hebreus, será substituída pela palavra
mais comum para “perseverança \hypomoné]” (10.36; 12.1]).
A ideia de imitar aqueles q u e, p o r m e io da fé e da p aciên cia, rece­
b em a herança p ro m etid a prepara o caminho para o exemplo de Abraão
em 6.13-15. A fidelidade e a firmeza de Abraão são destacadas nas recon­
tagens judaicas de sua história (veja Jub. 17.17,18; 19.3,4,8). Os últimos
três termos em Hebreus 6.12 — paciência (makrothymias), h erdar ( klêro-
nomountõn) e o que f o i pro m etid o (tas epangelias-, v 4.1) — antecipam o
conteúdo do próximo parágrafo (6.13-20). Repetem-se a perseverança pa­
ciente de Abraão (6.15), apromessa de Deus (613,15,17) e os herdeiros da
promessa (6.14) — mas também a esperança segura que justifica todas essas
coisas (6.18,19; veja 6.11).

5. Encorajamento poderoso baseado na confiabilidade de


Deus (6.13-20)
Esse quinto e último parágrafo em 5.11—6.20 serve como uma tran­
sição para os principais argumentos do sermão, que começam em 7.1. Os
temas mencionados no parágrafo anterior são repetidos (perseverança, he­
rança da promessa e esperança; -> 6.11,12). O tema da confiabilidade de
Deus, expresso no juramento de Deus (6.13,17), é parte integrante do ar­
gumento concernente à superioridade do sacerdócio de Cristo no capítulo
7. A nomeação de Jesus como Sumo Sacerdote, que ministra no “santuá­
rio interior” (6.19,20), é garantida pelo juramento divino no Salmo 110.4,
mencionado em Hebreus 6.20b. No capítulo 7, esse mesmo juramento
(7.17,21) garante que Deus introduziu “uma esperança superior” (7.19),
“aliança superior” (7.22; veja 8.1-13; 9.15; 10.16; 12.24; 13.20) e salvação
completa por intermédio do Filho, que foi designado para um sacerdócio
permanente (7.28; veja 7.24,25).

Jargão jurídico em Hebreus

U m a v e z q u e u m a d a s p r in c ip a is a p lic a ç õ e s d a re tó ric a a n tig a e ra


p a ra a c u s a ç ã o e d e fe s a n o s t r ib u n a is , q u a lq u e r p e s s o a c o m t r e in a m e n t o
r e tó ric o e s t a r ia n a tu r a lm e n t e f a m ilia r iz a d a c o m a a r g u m e n t a ç ã o ju ríd ic a .

246
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

Q u in t ilia n o re c o m e n d a o u s o d e v á r io s t ip o s d e a r g u m e n t o s ju r íd ic o s (I n s t .
5 .1 1 .3 2 -3 5 ). H e b re u s , m a is d o q u e q u a lq u e r o u tro liv ro d o NT, e m p r e g a
t e r m o s le g a is e c o m p a r a ç õ e s p a ra e fe it o p e r s u a s iv o . A t e r m in o lo g ia ju r í­
d ic a é a m p la m e n t e u s a d a e m H e b re u s , c o m o d e m o n s t r a a t a b e la a s e g u ir
(v e ja L a n e , 1 9 9 1 , p. 14 9 ; T h o m p s o n , 2 0 0 8 , p. 1 3 9 ).

Termo Significado legal Hebreus


a t h e t é s is " d e ix o u de la d o "; te rm o 7 .1 8 ; 9 .2 6
t é c n ic o p a ra a n u la ç ã o ou
re v o g a ç ã o de d e c re to ou
c a n c e la m e n t o d e d ív id a
a m e ta th e to s " im u t á v e l" , " ir r e v o g á v e l" ; 6 .1 7 ,1 8
u s a d o e m t e s t a m e n t o s ou
c o n tra to s de e s t ip u la ç õ e s
q u e n ã o p o d e m s e r re s c in ­
d id o s ou a n u la d o s
a n a ir e õ " a b a r c o m " , " a b o lir " (o A T 1 0 .9
s is t e m a d e s a c rifíc io )
a n t iio g ia " d is p u t a le g a l" 6 .1 6
a p a ra b a to s a p a r e c e n a s f ó r m u la s le g a is 7 .2 4
p a ra d e s ig n a r d is p o s iç õ e s
que são " in v io lá v e is " " in ­
q u e b r á v e is " ou " im u t á v e is " ,
is to é, " p e r m a n e n t e s "
b e b a io õ , " f ir m e " , " v á lid o " , "g a ra n ­ 2 .2,3; 3 .1 4 ; 6 .1 6 ,1 9 ;
b e b a io s , tid o "; e is b e b a iõ s in ( " p a ra 9 .1 7 ; 1 3 .9
b e b a iõ s is c o n fir m a ç ã o " [6 .1 6 E S V j)
é um a e xp re ssã o t é c n ic a
usada p a ra d e n o ta r um a
g a r a n t ia le g a l
d ia t h é k é " ú lt im a v o n ta d e e te s ta ­ 9 .1 6 ,1 7
m e n to "
engyos " g a r a n t ia ” ; te r m o le g a l 7 .2 2
usado p a ra um d e p ó s it o
d e s e g u ra n ç a , g a r a n t ia ou
f ia d o r e m um a tr a n s a ç ã o
c o m e r c ia l
e n d e ik n y m i/ "fa ç o [...] c la ro " , " d e m o n s ­ 6 .1 0 ,1 1 /6 .1 7
e p id e ik n y m i tra r", "p ro v a r"; usado nos
p a p ir o s d e p r o d u ç ã o d e p ro ­
v a le g a l

247
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

is c h y õ lit.: " s e ja fo rte " ; u s a d o no 9 .1 7


s e n t id o le g a l de "e n tra r
e m v ig o r " o u e s t a r " e m v i­
g o r " (C E B , E S V , H C S B , LEB ,
N A S B , NIV, NKJV, N R S V )
h is t ê m i " e s t a b e le c e r " a v o n t a d e d e 1 0 .9
D e u s (vs. a b o lir o s is t e m a
s a c r if ic ia l d o AT)
k a ir o u "o t e m p o d a n o v a o rd e m " 9 .1 0
d io r t h õ s e õ s (KJA); re fe r in d o - s e à fo rç a
e p ik e im e n a d o u lt r a p a s s a d o s is t e m a d e
le is, a té q u e e s t a s s e ja m ,
p o rta n to , r e v o g a d a s e s u b s ­
t it u íd a s
k a t a [+ g e n it iv o u s a d o p a ra s ig n if ic a r a c o i­ 6 .1 3 ,1 6
s u b s ta n tiv o ] sa ou p e s s o a q u e g a ra n t e
u m ju r a m e n t o , c o m o ju r a r
" p o r " a lg u é m m a io r
m e c h r i t e lo u s " a t é o fim " ; u s a d o d o p o n to 3 .1 4
d e re s c is ã o p a ra u m a c o r d o
c o n tra tu a l
m e s it e u õ / " m e d ia r " / " m e d ia d o r " ; 6 .1 7 /8 .6 ; 9 .1 5 ;1 2 .2 4
m e s it é s m e s it e u õ t e m o s e n t id o t é c ­
n ic o d e " d a r u m a g a r a n t ia "
(6 .1 7 )
om nym i " ju r a r " , " f a z e r u m ju r a m e n ­ 3 .1 1 ,1 8 ; 4.3; 6 .1 3 ,1 6 ;
to " 7 .2 1
o rk o s " ju r a m e n t o " 6 .1 6 ,1 7
o r k õ m o s ia " ju r a m e n t o " , re fe r in d o - s e 7 .2 0 ,2 1 ,2 8
a o p r o c e s s o d e f a z e r u m ju ­
ra m e n to : " ju r a m e n t o "
s y n e p im a r t y r e õ "te ste m u n h a r", " fo r n e c e r 2 .4
t e s t e m u n h o c o r r o b o r a t iv o "
p h e re s th a i "ser tra z id o " ; usado fre ­ 9 .1 6
q u e n te m e n te em re g is tro
o fic ia l ou e s t a b e le c im e n t o
de um e v e n to le g a lm e n t e
e x ig id o ( c o m o a m o rte d o
t e s t a d o r p a ra a execução
de su a ú lt im a v o n ta d e e
t e s t a m e n to )

248
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

h y p o s t a s is um a o b r ig a ç ã o c o m e rc ia l, 3 .1 4 ; 1 1 .1
com o a e x p e c t a t iv a de
a lu g u e l d e v id o ou c o m p r o ­
m is s o com os te rm o s de
um e m p r e e n d im e n t o co­
m e rc ia l; um a g a r a n t ia de
p r o p r ie d a d e , e s c rit u r a

O pregador retorna ao modo de exposição bíblica em 6.13-20. Ele não se


engajou nesse método de forma sustentada desde 3.7—4.13. Seu texto é o ju­
ramento de Deus a Abraão em Gênesis 22.17 (veja Hb 6.14). Esse midrash em
miniatura se divide em três partes.
• Os versículos 13-15 mostram o juramento de Deus a Abraão, junta­
mente à perseverança do patriarca em receber a promessa.
• Nos versículos 16 e 17, a função de prestar juramento entre os seres
humanos é usada para ilustrar a motivação de Deus para jurar: para
demonstrar a natureza imutável da vontade divina.
• Nos versículos 18-20, a confiabilidade de Deus é a base para a apli­
cação pastoral. O propósito de Deus (“para que \hina\” [v. 18]) para
confirmar Sua promessa a Abraão com um juramento era fornecer
poderoso encorajamento e segurança para os crentes atuais. De fato,
nossa esperança escatológica é fixada como uma âncora na própria pre­
sença de Deus, na qual Jesus serve como nosso eterno Sumo Sacerdote
(v. 19,20).
1 3 - 1 5 A conjunção inferencialgar {para, não traduzida na NVI) conecta
Abraão àqueles mencionados em 6.12. Abraão é o exemplo de sinal daqueles
que pela fé e perseverança herdam as promessas (France, 2006, p. 87). Topica-
mente, a história de fé duradoura de Abraão agora vem à tona com a frascpara
Abraão, no início desse parágrafo. No entanto, gramaticalmente, D eus é o su­
jeito da frase de abertura. Deus (,theos) é mencionado três vezes (v. 13,17,18)
como o assunto de ações-chave nessa passagem (promessa, juramento, propósi­
to e incapacidade de mentir; Fanning, 2007, p. 193-194). O foco teológico na
fidelidade sólida e incontestável de Deus serve como base para a perseverança
de Abraão (v. 15; veja 11.11), assim como também dá aos crentes presentes
forte encorajamento para se apegarem à esperança (6.18).
O pregador se apropria de um texto bíblico da cena indiscutivelmente mais
importante da vida de Abraão: o teste para oferecer seu filho Isaque. Chamado

249
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

dcAkedah (“ligação” de Isaque) na tradição rabínica, essa foi a expressão supre­


ma da fé de Abraão (-> 11.17-19). Na conclusão do teste, o Senhor reafirmou
sua prom essa a Abraão (Gn 22.15-18; vejaGn 12.2; 13.16; 15.5). Que Abraão
“perseverou” (Hb 6.15 [BSEP]; “suportou pacientemente” [KJV]; depois de
esperar pacientem ente, makrothymêsas·, veja 6.12) pode ser uma alusão à cus­
tosa obediência de Abraão em não reter seu filho (Gn 22.16,18).
E foi assim que, por causa da confirmação de Deus de Suas promessas
após o teste, Abraão alcançou a prom essa (Hb 6.15). Hebreus distingue en­
tre os santos do AT que recebem as promessas de Deus (6.12,15; 11.17,33) e
aqueles que não recebem o cumprimento completo das promessas à parte dos
santos da era do N T (11.13,39,40; veja Hagner, 1990, p. 97; Koester, 2001, p.
326). Abraão obteve a promessa — Isaque — “o penhor de todas as promessas”
(Wesley, s.d., p. 575). “Figuradamente”, ele recebeu Isaque de volta “dentre os
mortos” (11.19). Assim, ele antecipou o cumprimento final das promessas de
Deus na ressurreição e no mundo vindouro.
Em 6.13, há uma alusão à declaração de Deus: “Jurou pleo meu nome” (Gn
22.16): Por não haver ninguém m aior p or quem jurar, jurou por si m esm o
(Hb 6.13). Deus é aquele “por causa de quem e por meio de quem tudo existe”
(2.10). A majestade divina, compartilhada por Jesus, o Sumo Sacerdote, alcan­
ça “acima dos céus” (4.14; 7.26; veja 1.3; 8.1). Não há autoridade superior pela
qual Deus possa fazer um juramento. Portanto, Deus jura por si mesmo (veja
Êx 32.13; Is 45.23; Jr 22.5; 49.13; 51.14; Am 6.8; Lc 1.73). Isso significa que
a palavra da promessa de Deus está ligada à firmeza de Sua própria natureza e
propósito (veja Hb 6.17,18; Lane, 1991, p. 151).

Fílon e Hebreus sobre Deus jurando por si


F ílo n t ra t a lo n g a m e n t e o a s s u n to d o ju r a m e n t o a o lo n g o d e s e u s e s ­
c rito s . H e b re u s , p o r s u a v e z , n ã o e n tra e m d e t a lh e s s o b re o p r o b le m a d e
D e u s ju r a r p o r si m e s m o , m a s p a re c e c o m p a r t ilh a r a lg u m a s d a s m e s m a s
c o n c lu s õ e s d e F ílo n .
D e s d e o s p r im e ir o s t e m p o s , o s g r e g o s in v o c a v a m o s n o m e s d o s d e u ­
s e s p a ra f a z e r ju r a m e n t o s (X e n o fo n te , Anab. 6 .6 .1 7 ). N a Id a d e C lá s s ic a ,
o s ju r a m e n t o s s e t o r n a r a m t ã o e x c e s s iv a m e n t e u s a d o s e b a n a liz a d o s
q u e fo ra m f e it a s t e n t a t iv a s e n tre in t e le c t u a is e p o lít ic o s p a ra b a n i-lo s . No
p e r ío d o h e le n ís t ic o , o s e s t o ic o s a r g u m e n t a v a m c o n tra o ju ra m e n to , e F í­
lo n p a re c e t e r s e g u id o e s s a t r a d iç ã o f ilo s ó fic a . D a m e s m a fo rm a , Je s u s
(M t 5 .3 4 ,3 5 ,3 7 ) , T ia g o (Tg 5 .1 2 ) e o s p a c t u a n t e s e m Q u m ra n (Josefo, G .J .

2 .1 3 5 ; D D 1 5 .1 -6 ) d e f e n d ia m e v it a r o ju ra m e n to . E le s s u g e r ir a m q u e a

250
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

p r á tic a a p e n a s p e d ia a q u e s tã o d a v e r a c id a d e d e a lg u é m (L in k , 1 9 7 9 , p.
73 9 ; T h is e lto n , 2 0 0 9 , p, 3 1 1 ).
D e a c o r d o c o m Fílo n , o m e lh o r c u rs o d e a ç ã o é n ã o ju ra r; a s e g u n d a
m e lh o r c o is a é m a n t e r o ju ra m e n to . Isso p o r q u e o ju r a m e n t o , p o r su a
p ró p ria n a tu r e z a , s u s c ita a s u s p e it a d e q u e a q u e le q u e e s tá ju r a n d o n ã o
é t o t a lm e n t e c o n fiá v e l (D e c á lo g o 8 4 ). J u r a m e n to s c o n v id a m D e u s p a ra
d a r t e s t e m u n h o e m u m a s s u n to q u e e s tá s u je ito à d ú v id a (I n t . A l. 3 .2 0 5 ;
S a c r i f í c i o s 91; P l a n t a r 82; D e c á lo g o 86; L e is E s p . 2 .1 0 ; S o n h o s 1 .1 2 ). Ju ­
ra m e n t o s s ã o f e it o s p o r a q u e le s q u e q u e r e m t e r c r é d it o p o r q u e o s o u tro s
n ã o a c r e d ita m n e le s ( S a c r if íc io s 93 ). M a s "a p a la v r a d o h o m e m b o m " ,
d iz F ílo n , " d e v e s e r u m ju r a m e n t o , firm e , in a b a lá v e l, t o t a lm e n t e liv re d e
fa ls id a d e , fir m e m e n t e p la n t a d o na v e r d a d e " (L e is E s p . 2.2). "P o is o q u e é
m e lh o r d o q u e p r a t ic a r u m a v e r a c id a d e a o lo n g o d a v id a e t e r D e u s c o m o
n o s s a t e s t e m u n h a d is s o ? " ( L e is E s p . 2 .1 0 ).
Isso le v a n ta d if ic u ld a d e s s o b re D e u s ju r a r p o r si m e s m o e m u m t e x to
c o m o G ê n e s is 2 2 .1 6 ,1 7 , re fe r id o t a n t o p o r H e b re u s (6 .1 3 ,1 4 ) c o m o p o r
F ílo n (Int. A l. 3 .2 0 3 ). P o d e -s e o b je ta r q u e o ju r a m e n t o d e D e u s é in c o n ­
s is t e n te c o m S e u c a r á t e r f ie l (Int. A l. 3 .2 0 4 ), q u e n ã o c o n t é m n e n h u m
t ra ç o d e in c e r t e z a o u d ú v id a ( S a c r if íc io s 9 1 ), ou q u e é u m a b s u r d o (Int. A l.
3 .2 0 5 ). F ílo n re s p o n d e a e s s a s o b je ç õ e s d e t r ê s m o d o s .
P rim e iro , o ju r a m e n t o d e D e u s n ã o p õ e e m d ú v id a S u a c o n f ia b ilid a ­
de. D e u s é o ú n ic o s e r fie l, c u ja c a d a p a la v r a é u m ju r a m e n t o s a n t ís s im o
e s a g r a d o (Int. A l. 3 .2 0 4 ; v e ja S a c r i f í c i o s 93 ). T o d a s a s p a la v r a s d e D e u s,
c o m o o s ju r a m e n t o s , s ã o p r o v a s d e S e u p o d e r, p o r q u e t u d o o q u e E le d iz
c e r t a m e n t e a c o n t e c e r á (Int. A l. 3 .2 0 4 ). H e b re u s c o n c o r d a q u e o s p r o p ó ­
s ito s d e D e u s s ã o im u tá v e is , e “ é im p o s s ív e l q u e D e u s m in ta " (6 .1 7 ,1 8 ).
S e g u n d o , c o m o H e b re u s (6 .1 3 ), F ílo n d iz q u e D e u s n ã o p o d e s e r c u l­
p a d o p o r ju r a r p o r si m e s m o , p o is n ã o há n a d a m a io r p e lo q u a l E le ju rar.
D e u s é a m e lh o r d e t o d a s a s c o is a s (Int. A l. 3 .2 0 3 ). N a d a é m e lh o r d o q u e
a C a u s a d e t o d a s a s c o is a s ( S a c r if íc io s 9 2 ). D e u s é p a ra si m e s m o tu d o
q u e é m a is h o n ro s o (Int. A l. 3 .2 0 5 ). P o rta n to , D e u s n ã o s e to rn a c rív e l ao
d e c la r a r u m ju r a m e n t o , m a s a té m e s m o o ju r a m e n t o é c o n fir m a d o p o r
D e u s, q u e é a su a p ró p ria c o n fir m a ç ã o e t e s t e m u n h o in fa lív e l ( S a c r if íc io s
93; Int. A l. 3 .2 0 8 ).
T e rce iro , D e u s n ã o fa z u m ju r a m e n t o p o r si m e s m o , m a s p a ra a c o m o ­
d a r a f r a q u e z a h u m a n a ( S a c r if íc io s 9 4 ). O ju r a m e n t o d e D e u s a A b r a ã o
fo i c o n c e b id o c o m o u m a p r o m e s s a (p i s t i s ) e m t ro c a d a fé (p i s t i s ) d e
A b r a ã o , p a ra q u e a m e n te d o p a t ria rc a p u d e s s e s e r m a is fir m e e in a b a lá ­
v e l (A b r a ã o , 2 7 3 ). D a m e s m a fo rm a , e m H e b re u s , D e u s f a z u m ju r a m e n t o
a fim d e d e m o n s t r a r S e u p r o p ó s ito fie l d e fo rm a c o n v in c e n t e e fo r n e c e r
fo rt e e n c o r a ja m e n to p a ra o s h e rd e ir o s d a s p r o m e s s a s d e D e u s (6 .1 7 ,1 8 ).

251
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

O juramento de Gênesis 22.17 é citado em Hebreus 6.14: Esteja de que o


abençoarei e farei seus descendentes num erosos. O foco está na promessa de
Deus de multiplicar os descendentes de Abraão (Gn 22A7a; veja Hb 11.12).
Nenhuma menção é feita à terra prometida (Gn 22A7b). Na teologia de He­
breus, a última promessa diz respeito ao nosso lar celestial na era por vir. Essa
promessa não se cumprirá para todo o povo de Deus até o fim (Hb 11.10,13-
16; 12.22; 13.14; veja 3.14; 6.11; 9.28; 10.25).
» 1 6 - 1 7 A explicação da função do juramento, no versículo 16, contém
duas partes.
Primeira, os hom ens juram p or alguém superior a si m esm os (v. 16^).
Tanto no contexto grego como no judaico, juramentos eram feitos em nome
de Deus para invocar um testemunho mais elevado da veracidade de alguém. O
juramento também funcionava como uma automaldição que invocava sanções
divinas se o juramento não fosse mantido (Schneider, 1967, p. 458-459; Thi-
selton, 2009, p. 310; veja 2 Sm 3.17; 2 Rs 6.31; Rhet. Alex. 17.1432a).
Segunda, o juram ento confirm a o que foi d ito, p on d o fim a toda d is­
cussão (v. 16b). Juramentos são desnecessários quando a honestidade e a
integridade de alguém são suficientes (veja Mt 5.33-37; Tg 5.12). Um jura­
mento é projetado para invocar Deus para testemunhar sobre um assunto que
é incerto ou duvidoso. “Assuntos que estão em dúvida são decididos por um
juramento, coisas inseguras tornadas seguras, garantia dada ao que faltava” (Fí-
lon, Sonhos 1.12; citado em Ivoester, 2001, p. 326-327).
Hebreus não reflete sobre o aparente “absurdo” de Deus jurando por si
mesmo, como Fílon fez (Int. Al. 3.205). No entanto, Hebreus 6.17 pode indi­
car uma consciência da dificuldade e tira uma conclusão semelhante à de Fílon
sobre a intenção divina de fazer isso (^ 6.13-15 anotação complementar: “Fí­
lon e Hebreus sobre Deus jurando por si). O propósito resoluto de Deus é
enfatizado: Q uerendo m ostrar de form a bem clara a natureza im utável do
seu p rop ósito (v. 17^). A constância do Filho já foi colocada contra a natureza
mutável dos seres angélicos (1.7-12). Deus não é como os seres humanos, que
mentem ou mudam de ideiapor inconstância (Nm 23.19; ISm 15.29). Deus
“não muda como sombras inconstantes” (Tg 1.17).
Portanto, Deus jurou por si mesmo, não porque Sua veracidade estivesse
em dúvida, mas porque Ele queria apresentar uma demonstração convincente
de Sua resolução. A expressão m ostrar de form a bem clara inclui um cog-
nato do verbo endeiknymi (“mostrar”) usado duas vezes em Hebreus 6.10,11.
O verbo é usado nos papiros em contextos legais onde a prova ou verificação
é exigida (MM, 237; veja At 18.28). Deus queria demonstrar Seu propósito
252
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

“mais abundantemente \perissoteron\” (BKJ) ou “mais convincentemente”


(ESV, RSV).
A confirmação de Deus de Sua promessa é destinada aos herdeiros da
promessa. Esses são todo o povo de Deus ao longo da história (ou seja, “des­
cendentes de Abraão” [2.16]), começando com “os antigos” (11.2; veja 6.12;
11.7-9), abrangendo todos “aqueles que hão de herdar a salvação” (1.14; veja
9.15). No versículo seguinte (6.18), fica claro que o pregador inclui a si mesmo
e seus leitores (“nós”) entre aqueles a quem Deus confirm ou Sua promessa
com juram ento (v. 17b).
O verbo confirm ou é usado no contexto jurídico da mediação. Um me­
diador “interveio” (BSEP) ou “interpôs” (ACF, ARA, ARC, ARIB, JFA, TB,
VC) para resolver uma disputa entre duas partes. Por extensão, o mediador
“garantiu” (CEB, ESV, FfCSB, LEB, NRSV) o acordo. Deus age como o fiador
dos juramentos humanos (Josefo, Ant. 4.133). Nessa passagem, Deus certifica
Sua própria promessa por meio de um juramento. A linguagem da mediação é
importante em Hebreus, especialmente porque se aplica a Jesus como a “garan­
tia” (7.22) e o “mediador” da Nova Aliança (8.6; 9.15; 12.24).
IS 18-20 O propósito (hina, para que) para a demonstração de Deus de Sua
fidelidade é agora aplicado pelo pregador a si mesmo e seus ouvintes (nós). As
duas coisas im utáveis nas quais é im possível que D eus m inta são a promessa
e juramento falados nos versículos 13 e 17. A palavra im possível é a mesma
que se encontra em -» 6.4. A própria natureza de Deus torna impossível para
Ele ser falso ou quebrar a fé (veja Nm 23.19; 1 Sm 15.29; SI 89.34; Is 31.2).
Deus é o “único ser fiel”, além daqueles que são queridos por Deus (como Moi­
sés em Nm 12.7; Fílon, Int. Al. 3.204).
Os cristãos são descritos como nós, que n os refugiam os. O verbo kata-
pheugõ conota tanto “fugir para encontrar refúgio” (veja Gn 19.20; Êx 21.13;
Lv 26.25; Nm 35.25,26 LXX) como ir para uma das cidades de refúgio (Dt
4.42; 19.5; Js 20.9). No papiro, é uma palavra técnica para suplicantes que es­
tão “fugindo” ou “recorrendo” a alguém para escapar do perigo (MM, 334;
BDAG, p. 529). Os crentes são fugitivos dos perigos e incertezas do mundo so­
bre eles (veja Fib 11.34). Como os patriarcas, eles são “estrangeiros e peregrinos
na terra” (11.13; veja 11.9); são refugiados em busca de residência permanente
e salvação eterna na melhor pátria celestial (11.16; veja 11.10; 12.22; 13.14).
Duas realizações (indicadas pelo verbo echõ, “ter”) são possíveis com base
na promessa e juramento divinos:
A primeira (em 6.18) é que “nós [...] possamos ter forte encorajamento”
(ESV, H C SB , RSV; sejam os firm em ente encorajados). “Forte encoraja­

253
11EBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

mento [ischyran paraklêsin]” é uma boa descrição para todo o sermão, que o
pregador descreve como uma “palavra de exortação” (-» 13.22). O poderoso
encorajamento é que os ouvintes devem tom ar p osse da esperança a nós p ro­
posta. Exortações para manter a esperança (3.6), o compromisso com Cristo
(3.14) ou a nossa confissão (4.14; 10.23) são proeminentes em Hebreus. Por
causa da demonstração de Deus de Sua fidelidade incontestável, a esperança
é proposta a (“oferecido a” [BSEP]) ou “colocada diante” de nós (tés prokei-
menés [BKJ, ESV, HCSB, KJV, LEB, NASB, NET, NIV11, NRSV, REB]).
Paradoxalmente, a esperança é algo ao nosso alcance, pois se baseia na pro­
messa e juramento irrevogáveis de Deus. No entanto, também aponta para um
cumprimento futuro que “está diante de nós” (NAB, NLT).
A segunda conquista é uma extensão da primeira. Temos esta esperança
com o âncora da alma (v. 19). Essa é a primeira de três metáforas diferentes
misturadas nos versículos 19,20:
• náutico (esperança como âncora);
• cultuai (santuário interno do tabernáculo);
• atlético/militar (precursor).
A palavra âncora é usada metaforicamente apenas aqui, em toda a Bíblia
(literalmente apenas em At 27.29,30,40). A metáfora foi difundida entre as
populações marítimas ao redor do Mar Mediterrâneo (veja Lane, 1991, p. 153;
Koester, 2001, p. 329). Na filosofia helenística, era um símbolo de estabilidade
com a verdade (Fílon, Herdeiro, p. 95,305; Decálogo 67), a virtude (Fílon, So­
nhos 1.124; 2.225; Pitágoras em Estobeu, Flor. 1.29), a ousadia (Plutarco, Mor.
815d) ou a esperança (Epiteto, Diatr. fragmento 30; Heliodoro, Aeth. 7.25.4).
A esperança da salvação é uma âncora da alma. Isso indica a vida interior
e os pensamentos que formam o núcleo de todo o ser (assim, “uma âncora para
nossas vidas” [BSEP, GNT, GW, REB]). Não precisamos incomodar-nos com
a turbulência, o perigo e a incerteza ao nosso redor. Nossas vidas podem ser es­
tabilizadas ao olharmos para a esperança que está à frente (veja Hb 11.10,14,26;
13.14) e fixando os nossos pensamentos no nosso chamado celestial em Jesus
(veja 3.1; 12.2).
A esperança cristã, como uma âncora, é firme e segura. Essa era uma ex­
pressão padrão usada para descrever qualquer coisa que fosse estável e confiável
(veja Attridge, 1989, p. 183, n. 72; Koester, 2001, p. 329). Fílon usa essa ex­
pressão (Herdeiro, p. 314; Est. Prel., p. 141; Confusão, p. 106; Querubins, p.
103), bem como uma semelhante (“inabalável e seguro”, Virtudes, p. 216; Re­
compensas, p. 30, 169; Herdeiro, p. 95). O adjetivo segura (bebaian) descreve

254
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

apropriadamente essa esperança, dada a discussão anterior do juramento di­


vino que “confirma [bebaiõsin]” as promessas de Deus (6.16). A promessa e o
juramento de Deus são “duas coisas imutáveis” fundamentadas no propósito
“imutável” de Deus (6.17,18).
A âncora da esperança, em vez de ser lançada nas profundezas do mar, foi
içada para o céu (Whedon, 1880, 5:85). Essa imagem, estranha, mas podero­
sa, deve-se à mistura de metáforas náuticas e cultuais. A esperança, como uma
âncora, adentra o santuário interior, por trás do véu. Essa é uma referência
à disposição do tabernáculo no AT, no qual uma cortina dividia o santuário
principal da câmara mais íntima — o lugar santíssimo (Lv 16.2,12,15; veja Êx
26.31-35; Lv 21.23; 24.3; Hb 9.3). Em 7.19, o pregador fala da “esperança
superior” disponibilizada por meio do ministério sumo sacerdotal de Cristo,
“pela qual nos aproximamos de Deus”. A âncora da esperança entra com con­
fiança onde a misericórdia flui e se agarra ao trono da graça de Deus (4.16).
O verbo adentra (eiserchomenên), que já conectou uma metáfora náutica
com uma cultuai (6.19£), é usado no versículo 2C)a para ligá-lo a uma terceira
metáfora (Johnson, 2006, p. 172). O santuário interior é onde Jesus, que foi
antes de nós, entrou. A tradução que nos precedeu obscurece as conotações
atléticas ou militares de “precursor [prodromes]” (a maioria das traduções, in­
cluindo a N IV 11). No atletismo, este era um corredor que assumiu a liderança
e venceu a corrida com folga (Pólux, Onom. 3.30.148; Lane, 1991, p. 154).
No contexto militar, os precursores podem ser uma guarda avançada (muitas
vezes a cavalo, veja LSJ, p. 1475) ou batedores (SS 12.8; Políbio, Hist. 12.20.7).
Metaforicamente, o termo pode ser usado para qualquer coisa que seja um pre­
cursor, como uvas maduras precoces (Nm 13.20) ou figos (Is 28.4).
Prodromos (“pioneiro”, “precursor”) é um título tradicional para João Ba­
tista na Ortodoxia Oriental, remontando aos Pais antenicenos (veja PGL, p.
144). O título é uma abreviação do papel de João Batista de preparar o cami­
nho para Jesus. Em Hebreus, o título funciona como archêgos em 2.10, que
designa Jesus como o “autor” da salvação que abre o caminho que conduz à
presença divina (veja 12.2). Nossa esperança entra no santuário interior por­
que Jesus, nosso “precursor”, já entrou lá por nós.
Em 6.20b o fim da digressão que começou em 5.11 é sinalizado por uma
paráfrase do Salmo 110.4: Tornando-se sumo sacerdote para sempre, se­
gundo a ordem de Melquisedeque. Isso completa a transição para a discussão
do sacerdócio de Jesus como Melquisedeque no capítulo 7. Essa transição foi
antecipada pela alusão ao Salmo 110.4 em Hebreus 5.10 e pela citação direta
dele em 5.6.

255
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Interpretar as Escrituras com os escritos em Hebreus

H e b re u s o lh a p a ra o s p r in c ip a is t e x t o s d a s E s c r it u r a s ( e s p e c ia lm e n t e
d o s S a lm o s ) c o m o u m a le n te in t e r p r e ta t iv a p o r m e io d a q u a l lê o u tra s
e s c rit u r a s . A q u i e s t ã o a lg u n s e x e m p lo s :
• O S a lm o 1 1 0 .1 e m H e b re u s 1 .1 3 é c ita d o c o m o a d e c la r a ç ã o d iv i­
na d a e x a lt a ç ã o d o Filho. C o m o is s o fo i p o s s ív e l, e m c o n e x ã o c o m
a e n c a r n a ç ã o e o s o f r im e n t o d e C ris to , é e x p lic a d o à lu z d o S a lm o
8 .4 -6 e m H e b re u s 2 .5 -1 8 .
• E m 3 .7 — 4 .1 3 , S a lm o 9 5 .7 - 1 1 é o t e x t o - c h a v e (H b 3 .7 -1 1 ) q u e
o rie n ta a le itu ra d o p r e g a d o r d o s t e x t o s d e N ú m e ro s 1 4 e m H e ­
b re u s 3 (e sp . 3 .1 6 -1 8 ) e G ê n e s is 2.2 e m H e b re u s 4.
• O S a lm o 1 1 0 .4 é c ita d o e m H e b re u s 5 .6 e p a r a fr a s e a d o e m 5 .1 0 e
6 .2 0 e m p r e p a r a ç ã o p a ra u m a in t e r p r e ta ç ã o d e G ê n e s is 1 4 .1 7 -2 0
e m H e b re u s 7. O s a lm o a firm a a c a r a c t e r ís t ic a d is t in t iv a d o s a ­
c e r d ó c io d o Filho, q u e s e a s s e m e lh a a M e lq u is e d e q u e : d u r a " p a r a
s e m p r e " e, p o rta n to , é s u p e r io r a t o d o o s a c e r d ó c io le v ític o .
• A N o v a A lia n ç a e m J e r e m ia s 3 1 .3 1 - 3 4 (H b 8 .8 -1 2 ) e s tá c o r r e la c io ­
n a d a c o m s e u c u m p r im e n t o na o fe r ta o b e d ie n t e d e C r is t o d o S e u
p ró p rio c o rp o d e a c o r d o c o m o S a lm o 4 0 .6 -8 (H b 1 0 .5 -7 ). E s s e s
d o is t e x t o s s ã o in t e r p r e ta d o s m u tu a m e n t e e m 1 0 .8 -1 8 , ju n t a ­
m e n t e a u m a a lu s ã o a o S a lm o 1 1 0 .1 e m H e b re u s 1 0 .1 2 ,1 3 . O
s a c r if íc io " d e u m a v e z p o r t o d a s " d e C r is t o p e lo s p e c a d o s e fe tu a
o p e r d ã o e a s a n t id a d e p r o m e t id o s na N o v a A lia n ç a .
• A ê n fa s e e m v iv e r " p o r f é " e m H a b a c u q u e 2 .4 (H b 1 0 .3 8 ) s u g e re
a e x p r e s s ã o o p e r a t iv a p a ra o e n s a io d e to d a a h is tó r ia b íb lic a d o s
f ié is d e D e u s n o c a p ít u lo 11 ( " p e la f é " o c o rr e n d o d e z o it o v e z e s ).

No texto grego de 6.20b, a frase eis ton aiõna (para sempre) é colocada na
posição final enfática (como é a palavra Jesus no v. 20a). A perpetuidade do
sacerdócio de Cristo será de importância singular para o argumento do prega­
dor no próximo capítulo, empregando essa mesma frase tirada do Salmo 110.4
(Hb 7.17,21,24,28; veja 7.3).

A PARTIR DO TEXTO

“Os cristãos podem perder sua salvação?” Muitos estudantes da Palavra


de Deus vão direto para Hebreus 6 em suas Bíblias em busca de uma respos-

256
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

ta para essa pergunta. Os cristãos dos primeiros séculos da Igreja fizeram essa
pergunta em relação a outra pergunta: é possível um segundo arrependimen­
to ou um segundo batismo? (a>anotação complementar 6.6, “Sem segundo
arrependimento ou sem segundo batismo?”) Especialmente desde a Refor­
ma, a advertência em 6.4-8 tem sido interpretada em relação à sua coerência
doutrinária, tanto com outros textos bíblicos relativos à apostasia, como com
sistemas de doutrina sobre salvação (ou seja, calvinismo e arminianismo).
Hebreus 6.4-8 pode assemelhar-se a outros textos que têm relação com
o ensino bíblico sobre a apostasia. Já em Orígenes (d. 254), essa passagem foi
correlacionada com a advertência de Jesus sobre o pecado imperdoável (Mt
12.31,32 || Mc 3.28-30 || Lc 16.10), Sua declaração sobre discípulos que
colocam a mão no arado, mas depois voltam atrás (Lc 9.62), e a recordação te­
nebrosa sobre a esposa de Ló (Lc 17.32; veja Koester, 2001, p. 20-21). Outros
viram uma relação com o texto enigmático em 1 João 5.16,17 referente a “um
pecado que leva à morte”. Não está claro, no entanto, se Mateus 12.31,32 (||)
ou 1 João 5.16,17 são diretamente relevantes para o perigo de apostasia previs­
to em Hebreus (veja deSilva, 2000a, p. 234-236).
Defensores de sistemas doutrinários referentes à salvação, como calvinis-
tas e arminianos, também lutam com esse texto. Os calvinistas apontam para
outros textos que fornecem garantias aos crentes de que sua salvação é segura
(ex.: Jo 10.27-29; Rm 8.29,30). As advertências em Hebreus 6.4-8 e 10.26-31
parecem ir contra tais passagens. Três abordagens principais para 6.4-8 foram,
portanto, propostas.
(1) A primeira abordagem vê a passagem como forma de descrever aqueles
que têm uma profissão de fé cristã, mas não são crentes genuínos. Eles apenas
“provaram” (como em “amostraram”) os benefícios da salvação sem adotá-los
seriamente. Intérpretes mais recentes chamam essa visão de “o incrédulo fe-
nomenológico”. Os “fenômenos” externos (como em 6.4,5) dão apenas uma
aparência de conversão, mas sem qualquer fé ou compromisso verdadeiros (G.
Guthrie, 1998, p. 230-231; Fanning, 2007, p. 217-218). Essa visão está aberta
a várias críticas:
• Nenhuma leitura justa e direta podería plausivelmente interpretar as
descrições da salvação em 6.4,5 como principalmente aplicáveis a fal­
sos professantes da fé.
• Essa visão não pode explicar coerentemente de onde é que esses falsos
professantes “caem”. Dito de outra forma: como alguém, então, po­
dería conceber uma renovação do arrependimento para aqueles que

257
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

nunca se arrependeram verdadeiramente em primeiro lugar (Wiley,


1984, p. 197)?
• Se aqueles que são réprobos podem ter uma experiência superficial
da graça de Deus, que imita a dos verdadeiros crentes (como Calvi-
no afirma [1976, p. 76]), é impossível saber quem se beneficiaria com
essa advertência. Os crentes autênticos não teriam nada com que se
preocupar de qualquer maneira (pois eles têm a certeza da salvação).
Sendo assim, os falsos crentes não seriam desalojados de seu estado de
autoengano.
(2) Uma segunda abordagem é sugerir que os apóstatas estarão sujeitos a
julgamento ou castigo, mas sem perda da salvação. Uma versão curiosa desse
ponto de vista propõe um cenário histórico específico de cristãos judeus em
Jerusalém que estavam caindo em uma forma não cristã de judaísmo. Eles esta­
vam expondo-se ao julgamento temporal de Deus sobre a nação de Israel por
meio da destruição de Jerusalém e do templo por Roma em 70 d.C. (Gleason,
2007b). Contudo, não há nada em 6.4-8 ou 10.26-31 que indique nada menos
do que a perda das bênçãos eternas e celestiais. De fato, as “coisas melhores”
associadas à “salvação” em 6.9 contrastam com a imagem do campo estéril em
6.8, que tem uma maldição pairando sobre ele e cujo fim é uma destruição em
chamas (veja 10.27,39; 12.29; Mt 13.30,42,50; Jo 15.6).
(3) Uma terceira sugestão é que a apostasia prevista é apenas hipotética. Já
pusemos em questão a tradução do particípioparapesontas como condicional:
“se caírem” (-> Hb 6.6). Essa visão podería ser defensável se o pregador tivesse
emitido apenas uma vez uma advertência sobre a apostasia. A repetição e a se­
veridade crescente das advertências falam contra identificá-las como exercícios
puramente acadêmicos ou retóricos (veja 2.1-4; 3.6,14; 4.12,13; 10.26-31,39;
12.25-29).
Arminianos (seja da variedade clássica ou wesleyana) não têm dificuldade
com o ensino de que a salvação eterna é condicional. Baseia-se na fidelidade e
no compromisso contínuos. Assim, os crentes devem evitar os perigos de re­
troceder e, finalmente, da apostasia (veja Osborne, 2007a; Cockerill, 2007).
Mas 6.4-8 apresenta a problemática afirmação de que é “impossível” para aque­
les que se desviaram “serem trazidos de volta ao arrependimento”. Attridge
(1989, p. 172) declara o problema: “Ao adotar essa postura, nosso autor li­
mita injustificadamente a misericórdia graciosa de Deus, e a posição posterior
da Igreja sobre a possibilidade de arrependimento e reconciliação parece estar
mais solidamente fundamentada na mensagem do evangelho”. Em jogo, então,

258
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

na interpretação dessa passagem, não está meramente a legitimidade de uma


doutrina particular da soteriologia, mas a fidelidade de Hebreus ao “evangelho
da graça de Deus” (At 20.24).
Uma tentativa interessante de remover a gravidade da advertência é ler os
particípios do tempo presente (v> Hb 6.6) como temporais em vez de causais.
Assim, a impossibilidade de arrependimento renovado existe apenas “enquan­
to”, “durante o tempo” ou “desde que” alguém está crucificando e zombando
do Filho de Deus (Carter, 1966, p. 85; Purkiser, 1974, p. 53-54; Elliot, 1977).
Mas isso é evidente (“um truísmo”; Bruce, 1990, p. 149). Esse texto não está
comunicando meramente um conjunto condicional de circunstâncias conco­
mitantes, pois isso prejudicaria outros casos em Hebreus onde os apóstatas não
recebem uma segunda chance de arrependimento (2.1-3a; 3.11; 4.3; 10.26-31;
e esp. 12.16,17).
Nas últimas décadas, surgiu um consenso acadêmico entre os comenta­
ristas de Hebreus de que o pregador realmente está alertando os verdadeiros
crentes sobre o perigo da apostasia (veja Osborne, 2007b, p. 220-221). Todas
as controvérsias em torno dessa passagem não foram resolvidas a contento de
todos. Mas uma percepção mais profunda resultou de uma atenção mais cui­
dadosa ao antigo contexto social em que 6.4-8 funciona e da compreensão de
como a advertência se encaixa na visão do pregador sobre apostasia e salvação,
bem como sua estratégia retórica e preocupações pastorais específicas.
O contexto social em que a graça operava no mundo greco-romano era o
sistema de patronato. Sendo assim, tanto os doadores de “graças” (patronos/
benfeitores) quanto seus beneficiários (clientes) deveríam comportar-se de
acordo com um conjunto de obrigações sociais. Esperava-se que os patronos
esbanjassem favores aos menos afortunados. Esperava-se também que os clien­
tes que recebiam esses benefícios respondessem com gratidão e lealdade ao seu
patrono. Deixar de expressar gratidão era uma grande ofensa, e o ingrato corria
o risco de ser excluído de receber benefícios futuros. (Sobre patrocínio e reci­
procidade no mundo greco-romano, veja deSilva, 2000b, p. 95-156; deSilva,
2001, p. 5-37.)
Para resolver o problema de 6.4-8, deSilva (2000a, 240-44; 2000b, p. 149-
56) enfatiza como os dois conjuntos de expectativas (um para patronos, outro
para clientes) não deveríam sobrepor-se ou afetar uns aos outros. Benfeitores,
por definição, concedem presentes livremente. Eles não estão fazendo investi­
mentos para os quais antecipam um retorno lucrativo. Eles não estão fazendo
empréstimos, pelo que tomariam medidas legais se não fossem reembolsados.

259
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Inclusive, tampouco os mecenas devem abster-se de dar novamente a um clien­


te que foi ingrato.
Entretanto, os clientes estão sujeitos a uma pressão social mais ampla e ao
desdém quando são ingratos. Os clientes devem manter um espírito de lealdade
e gratidão para com seu patrono e não podem presumir que serão concedidos
outros favores se não o fizerem. DeSilva conclui que Hebreus apresenta a mes­
ma tensão entre roteiros sociais para patronos e clientes, mas concentra-se nas
obrigações impostas aos clientes, e não aos patronos. Por conseguinte, os avisos
visam exortar os leitores a evitarem a desonra e o dano que resultam de res­
ponder ingratamente às bênçãos de Deus. Mas eles não fazem uma declaração
teológica sobre as limitações do favor divino.
Isso é verdade até certo ponto. Contudo, o contexto social do patronato
não é a bala de prata para resolver o problema das passagens de advertência em
Hebreus (veja Cockerill, 2007, p. 290-291). Devemos levar em consideração
a diferença entre os benfeitores humanos e divinos em sua busca de punição
justa contra os ingratos. O filósofo estoico Sêneca aconselhou os benfeitores a
não processar clientes ingratos, até porque isso seria contraditório à natureza
do favorecimento. No entanto, mais precisamente, é impossível encontrar um
juiz humano que pudesse discernir motivos, proferir uma decisão justa sobre
o que constitui ingratidão ou determinar uma penalidade apropriada (Ben.
3.7.7—3.8.4). Os ingratos devem temer os deuses, “as testemunhas de toda in­
gratidão” {Ben. 3.17.3).
Nos contextos judaico e cristão, Deus conhece perfeitamente os nossos
motivos ocultos (veja Hb 4.12,13), o único com direito de julgar (10.30,31) e
punir com justiça os ingratos (SS 16.29— 17.1; Fílon, Imutável 48, 74; Josefo,
Ant. 2.312; 6.305; 4. Ed. 8.59-61).
E importante ressaltar que a ofensa que cria a situação “impossível” de He­
breus 6.4-8 vai muito além da ingratidão. Mais do que esquecer os benefícios
de Deus, é um repúdio deliberado, ativo e público deles. Em uma palavra, é
apostasia.
Se a justa punição de Deus se aplicasse àqueles sob a antiga aliança que
quebraram as leis de Deus (2.2) ou desafiaram a fidelidade de Deus (3.16-
18), quão mais severo será o julgamento de Deus sobre aqueles que rejeitam
decisivamente a expressão mais completa da graça divina? Ninguém pode legi­
timamente alegar que tal julgamento constitui uma limitação ao favor divino.
A apostasia final é escandalosa precisamente porque é um pecado contra o ato
de maior alcance da graça de Deus — na cruz de Cristo (6.6; veja 2.9; 10.29;
12.2; 2 Pe 2.1).
260
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

John Wesley sobre a restauração da apostasia

U m a c it a ç ã o is o la d a d e Jo h n W e s le y p o d e r ía d a r a fa ls a im p re s s ã o
(da q u a l G le a s o n [2 0 0 7 a , 3 2 3 ] é v ít im a ) d e q u e W e s le y re je ito u a v is ã o
d e q u e a s a d v e r t ê n c ia s e m H e b re u s 6 .4 -8 e 1 0 .2 6 -3 1 f a la m d e a p o s t a s ia
irr e v e rs ív e l:

S e fo r p e r g u n ta d o : " A lg u m v e r d a d e ir o a p ó s t a t a e n c o n t r a m is e r ic ó r d ia
d e D e u s ? S e rá q u e o s q u e 'n a u f r a g a r a m na fé e na b o a c o n s c iê n c ia '
re c u p e r a m o q u e p e r d e r a m ? V o c ê s a b e , v o c ê já v iu a lg u m e x e m p lo d e
p e s s o a s q u e e n c o n t r a r a m r e d e n ç ã o no s a n g u e d e Je su s, m a s d e p o is
c a ír a m e, a in d a a s s im , fo ra m r e s ta u r a d a s ? 'R e n o v a d a s n o v a m e n te
p a ra a r r e p e n d im e n t o '? " . S im , r e a lm e n t e . E n ã o u m , ou a p e n a s ce m ;
m a s , e s to u c o n v e n c id o , v á r io s m ilh a r e s . (W e s le y , 1 9 8 6 , p. 2 2 4 )

N e s s e s e n tid o , u m a le itu ra c u id a d o s a d e t o d o o s e r m ã o " U m c h a m a ­


d o a o s d e s v ia d o s " re v e la :
P rim e iro , W e s le y p re g o u c o m a g u d a s e n s ib ilid a d e p a s to r a l a o o b s t á ­
c u lo d o d e s e s p e r o p a ra a re s ta u r a ç ã o d o a p ó s ta ta . E le v iu a n e c e s s id a d e
d a " p le n a c e r t e z a d a e s p e r a n ç a " (6 .1 1 KJA) p a ra p e r s e v e r a r na v id a d e fé.
S e g u n d o , e le v ia a s s e v e r a s a d v e r t ê n c ia s e m H e b re u s 6 e 1 0 c o m o
o b s t á c u lo s d e s n e c e s s á r io s à s e g u r a n ç a q u a n d o n ã o in t e r p r e ta d a s e m su a
d e v id a luz. C o m e fe ito , d iz e m re s p e ito " a o e s t a d o d e s e s p e r a d o e irr e c u ­
p e r á v e l d o s a p ó s t a t a s d e lib e r a d o s " ( 1 9 8 6 , p. 2 2 0 ).
W e s le y u so u o s t e r m o s " r e t r o c e s s o " e " a p o s t a s ia " q u a s e d e fo rm a
in t e r c a m b iá v e l. C o n tu d o , e le f e z u m a d is t in ç ã o e n tre d o is t ip o s d e a p o s ­
ta s ia . P o r u m la d o , há a p o s t a s ia n o s e n t id o m a is a m p lo (" e m m a io r ou
m e n o r g r a u ” [ 1 9 8 6 , p, 2 2 4 ]), p a ra a q u a l d e v e m o s s e m p r e t e r e s p e r a n ç a
d e re s ta u ra ç ã o . P o r o u tro , há a a p o s t a s ia re s trita e e s p e c ífic a e m H e b re u s .
E m H e b re u s , a a p o s t a s ia é o a to p ú b lic o e d e c la r a t iv o d e re je iç ã o d e Je s u s
c o m o u m im p o sto r. É c o n s id e r a r S u a m o rte c o m o p u n iç ã o ju s ta p o r S e u s
c r im e s — tr a t a n d o " c o m o p ro fa n o o s a n g u e d a a lia n ç a " ( 1 0 .2 9 A C F).
W e s le y a c r e d ita v a q u e e s s a s p a s s a g e n s s e a p lic a v a m a m u ito s p a ra
q u e m " te ria s id o m e lh o r q u e n ã o t iv e s s e m c o n h e c id o o c a m in h o d a ju s ­
t iç a " (1 9 8 6 , p. 22 4 ; v e ja 2 Pe 2 .2 1 ); m a s n ã o p a ra o s e u p ú b lic o . "A g o ra ,
q u a l d e v o c ê s 'c a iu ' a s s im ? " , e le p e rg u n to u . " Q u a l d e v o c ê s ‘ c r u c ific o u
d e n o v o o F ilh o d e D e u s ’ ? N e n h u m ; n e n h u m d e v o c ê s a s s im 'o e x p ô s à
v e r g o n h a '." E le e s t a v a c o n v e n c id o d e q u e n e n h u m d e le s ja m a is " r e n u n ­
c io u fo r m a lm e n t e " a o s a c r if íc io d e C r is to p e lo s p e c a d o s . "P o r m u ito m a u
q u e s e ja is , e s t r e m e c e is c o m o p e n s a m e n to ; p o rta n to , e s s e s a c r if íc io a in d a
p e r m a n e c e e m v ó s . V e n h a , e n tã o , d e ita fo ra t e u s m e d o s d e s n e c e s s á r io s !
'V e n h a c o m o u s a d ia a o tro n o d a g r a ç a .’ O c a m in h o a in d a e s tá a b e rto .

261
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

E n c o n t r a r e is n o v a m e n te 'm is e r ic ó r d ia e g r a ç a p a ra a ju d a r e m t e m p o d e
n e c e s s id a d e '" ( 1 9 8 6 , p. 2 2 1 -2 2 2 ).

Outro fator significativo é a concepção escatológica de salvação de He-


breus (o 2.5 anotação complementar: “Escatologia em Hebreus”; 4.1-13 Por
trás do texto, anotação complementar: “Descanso e salvação em Hebreus”).
Em Hebreus, “a salvação é mais uma conquista futura do que uma realidade
presente, embora seja, evidentemente, ambas” (Osborne, 2007c, p. 388).
A orientação futura da salvação torna razoável concluir que, em certo
sentido, é impossível “perder a salvação”. Isso ocorre porque não se pode
perder o que ainda não se possui ou herdou totalmente. Seria mais correto
dizer que é possível perder os benefícios atualmente experimentados da gra­
ça de Deus, que são apenas um antegozo das futuras realidades da salvação
(ex.: “provaram [...] os poderes da era que há de vir” [6.5]; veja McKnight,
1992, p. 58).
No entanto, é evidente que rejeitar totalmente os benefícios atualmen­
te experimentados resulta na perda das futuras realidades eternas. Como
Ben W itherington gosta de dizer sobre a doutrina da salvação de Paulo,
assim também ele diz de Hebreus: “Ninguém está eternamente seguro até
que esteja seguro na eternidade” (W itherington, 2005, p. 87; 2009, p. 434).
Assim, Hebreus combina os temas da salvação como peregrinação, pro­
messa, esperança e herança com exortações para manter um compromisso
presente e contínuo, que é crucial para a obtenção final da salvação eterna
(6.10,11,18; veja 3.6,14; 10.23).
Contudo, Hebreus não está pregando um tipo de “insegurança eter­
na”. Em vez disso, está promovendo o que o grande pregador e estudioso
do século 20 W. T. Purkiser chamou de “segurança interna”. A estratégia
retórica do pregador visa promover o progresso e o crescimento espiritual
genuíno entre seus ouvintes. Ele quer que eles tenham a firme coragem para
superar todos os obstáculos ao amor, à esperança e à fé. O antídoto para a
espiritualidade infantil em direção à apostasia não é a falsa esperança, mas o
verdadeiro desenvolvimento espiritual e moral em direção à fé madura e ao
sólido compromisso cristão.
Assim, do lado negativo, ele os envergonha por sua atual falta de desen­
volvimento moral (5.11-14), exorta-os a avançar em direção à maturidade
espiritual (6.1-3) e adverte-os severamente sobre as consequências da apos­

262
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

tasia (6.4-8). Do lado positivo, ele compartilha sua confiança de que a


salvação está no futuro deles e deseja sinceramente que cada um deles se
mostre diligente em fortalecer sua esperança (6.9-12). Por fim, ele apon­
ta para o poderoso encorajamento no propósito inalterável e incontestável
de Deus, que alcançou o seu ápice no ministério sumo sacerdotal de Jesus
(6.13-20). Nossa esperança horizontal ou futura (“a esperança colocada
diante de nós” [6.18 BKJ]) está inextricavelmente ligada à nossa esperança
vertical ou presente, ancorada na própria presença de Deus no santuário
celestial (6.19).
Deve-se também considerar o cenário pastoral de Hebreus para colocar
em perspectiva a severa advertência de 6.4-8. Os pastores e professores da
Bíblia de hoje também devem ter em mente a condição espiritual de seu
público ao lidar com o tema da apostasia.
Alguns crentes são atormentados por dúvidas e medos e têm o coração
dilacerado por condenações desnecessárias. Eles precisam ter certeza de que
“Deus é maior do que [os seus] corações” (1 Jo 3.19,20), que “debaixo es­
tão os braços eternos” (D t 33.27) e que nada pode “separá-los” do amor de
Deus” (Rm 8.39; veja v. 28-39) ou “arrancá-los da mão [do Pai]” (Jo 10.28;
veja v. 27-29).
Outros, como no caso dos destinatários da Carta aos Hebreus, precisam
ser despertados do sono espiritual. O pregador está preocupado com o fato
de que sua atitude desatenta (5.11) e despreocupada (6.12) esteja colocan­
do-os em risco. Então eles precisam ser “puxados para cima” (France, 2006,
p. 84-85). Em tais casos, é necessário soar o alarme, “colocar o temor de
Deus neles” (veja 4.1), para que não “se desviem” (2.1 [ACF]), não “caiam”
(6.6 [BKJ]), nem “fracassem” (12.15 BKJ) quanto à graça de Deus. Isso se­
ria particularmente verdadeiro se os leitores estivessem contemplando um
abandono de sua confissão de Cristo para voltar a uma fé judaica não cristã
(-> Introdução, F. Propósito). Parece ter havido pelo menos uma minoria
deles que estava “jogando a toalha” (veja 6.11). Seu distanciamento e indife­
rença eram evidentes por sua habitual ausência das reuniões da comunidade
(10.25). O pregador admoesta-os aguardar-se contra “um coração perverso
e incrédulo que se afaste do Deus vivo” (3.12).
Portanto, todos devem apoiar e encorajar uns aos outros a imitar aque­
les que perseveraram na fé, como Abraão. A preguiça espiritual de alguns
é sinistra, pois pode infectar outros ao seu redor. O pregador tenta evitar
que qualquer um deles seja “endurecido pelo engano do pecado” (3.13).

263
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Isso porque podería brotar como uma “raiz de amargura”, contaminando


toda a comunidade (12.15). Quando olhamos para as fortes advertências
do pregador a partir dessa perspectiva, podemos ver por que as tentativas de
as amenizar são equivocadas. Tanto as advertências severas quanto o enco­
rajamento poderoso são críticos, porque os riscos são muito altos.

C. O Sum o Sacerd ote com o M elquisedeque:


o Filho ape rfe iço a d o para sem pre (7.1-28)

POR TRÁS DO TEXTO

Após a digressão em 5.11—6.20, finalmente chegamos aos principais


argumentos do sermão, para os quais o pregador preparou seus ouvintes em
4.14—5.10. A primeira série de argumentos (7.1-28) está diretamente relacio­
nada com o que o pregador disse ter “muito que dizer”, mas é difícil “explicar”
(5.11).
O tema do Filho como eterno sumo sacerdote foi anunciado por meio das
citações do Salmo 2.7 e 110.4 em Hebreus 5.5,6, e na repetição de frases-chave
do Salmo 110.4 (“segundo a ordem de Melquisedeque” em Hb 5.10; 6.20; e
“para sempre” em 6.20). Essas frases, e suas variações, são essenciais para os ar­
gumentos do capítulo 7. De fato, a semelhança entre Melquisedeque e o Filho
(7.3,15), sugerida pela frase “segundo a ordem de Melquisedeque” (7.11,17),
encontra-se precisamente no fato de possuírem um sacerdócio que permanece
“para sempre” (7.17,21,24,28).
Hebreus 7 é mais um midrash homilético (-> 3.7-19 Por trás do texto ano­
tação complementar: “Midrash”). Ele incorpora pelo menos quatro diferentes
estratégias interpretativas judaicas: analogia verbal, tipologia, argumento do
silêncio e argumento do menor para o maior.
Primeira, a base para toda a exposição é uma análise das duas únicas pas­
sagens do AT que mencionam “Melquisedeque” (Gn 14.17-20 e SI 110.4). O
pregador empregou antes o princípio rabínico de “analogia verbal” antes (-»
4.3b-5 anotação complementar: “Analogia verbal”).
Segunda, o pregador usa a tipologia para estabelecer as comparações entre
Melquisedeque e o Filho de Deus. Isso fica evidente imediatamente no uso de
Melquisedeque, Abraão e Levi em Hebreus 7.1-10. Eles não são apenas figuras
históricas, mas também representativas.

264
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

• Abraão, é claro, é o “patriarca” do povo de Deus (7.4).


• Levi está à frente do sacerdócio levítico (7.5,9; veja 7.11).
• Melquisedeque, tendo sido feito “semelhante ao Filho de Deus” em
sua descrição bíblica e ação sacerdotal, é um tipo do sacerdócio eterno
de Jesus (7.3,8).
Em 7.11-28, o pregador vê o oráculo do Salmo 110.4 chegando ao seu
cumprimento escatológico na pessoa histórica de Jesus por meio de Sua morte,
ressurreição e exaltação.
Terceira, particularmente em Hebreus 7.3, o pregador (como Fílon e a
tradição rabínica posterior) emprega uma hermenêutica do silêncio: “O que
não está na Torá não está no mundo” (veja Fílon, Int.Al. 2.55; 3.79; Abr. 31;
Str-B 3:694-695; Lane, 1991, p. 159). Essa técnica interpretativa indica que
o pregador não está especulando sobre a natureza de Melquisedeque como
personagem angelical ou poder divino. Em vez disso, ele aponta simplesmen­
te para o silêncio das Escrituras como significativo. Esse silêncio permite que
Melquisedeque sirva como um tipo do Filho de Deus de acordo com a apre­
sentação bíblica da história.
Quarta, um argumento do menor para o maior é explícito na comparação
entre Abraão e Melquisedeque (7.4,7). Também está implícito na comparação
entre o sacerdócio levítico e Jesus (7.11,15,16,18-24,27,28). O fluxo do argu­
mento prossegue em três fases:
A primeira (7.1-10) enfoca o encontro de Abraão com Melquisedeque em
Gênesis 14.17-20: Melquisedeque “encontrou Abraão” (Hb 7.1,10). O prega­
dor destaca o contexto histórico de Gênesis (Hb 7.1,2λ). Ele então descreve a
realeza e o sacerdócio de Melquisedeque (7.2b,3), antes de oferecer uma expo­
sição de seu encontro (7.4-10). Duas ações são essenciais para a comparação do
menor para o maior de Abraão (e do sacerdócio levítico) com Melquisedeque:
• Melquisedeque “abençoou” Abraão (7.1,6,7).
• Abraão deu um “décimo” a Melquisedeque (a terminologia “décimo”
ocorre sete vezes: 7.2,4,5,6,8,9 [duas vezes]).
A segunda fase (7.11-19) muda o foco para o Salmo 110.4, especialmente
a frase “na ordem de Melquisedeque” (Hb 7.11,17; veja o v. 15). O pregador
contrasta a regulamentação legal da sucessão hereditária do sacerdócio levítico
com a inelegibilidade genealógica de “nosso Senhor” para o sacerdócio levíti­
co. Mas ele insiste na superioridade de Cristo como sacerdote eterno “segundo
a ordem de Melquisedeque”. O antigo sacerdócio baseava-se em um regula­
mento relativo à ancestralidade. Mas o novo sacerdote mantém seu ofício para

265
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

sempre, “segundo o poder de uma vida indestrutível” (7.16). Os limites dessa


passagem são marcados por um inclusio que destaca o tema da ineficácia do
sacerdócio levítico em alcançar a “perfeição” (7.11,19).
A terceira e última fase (7.20-28) concentra-se na frase “para sempre” do
Salmo 110.4 (vejaHb 7.21,24,28). Essa passagem inclui uma citação mais com­
pleta do texto do salmo para apontar que Deus estabeleceu o sumo sacerdócio
de Jesus com um juramento (7.21). A importância do juramento de Deus é
enfatizada, novamente, por meio de um inclusio (“juramento” [7.20,21,28]).
No capítulo 7, o pregador iniciou os argumentos formais do discurso. Mas
ele não pode resistir a fazer referências a como o argumento sobre o sacerdó­
cio de Cristo é pastoralmente relevante para seu público. Ele faz isso em 7.19,
mudando para a primeira pessoa do plural (“sendo introduzida uma esperança
superior, pela qual nos aproximamos de Deus” [grifo nosso]). Ele declara que
Jesus é o “fiador de uma melhor aliança” (7.22 TB) e é capaz de salvar com­
pletamente “aqueles que, por meio dele, aproximam-se de Deus” (7.25). Ele
conclui o capítulo com um resumo de como Cristo é o Sumo Sacerdote que
“realmente supre as nossas necessidades” (7.26 [NIV11]). Sua pureza cultuai e
moral qualifica Seu autossacrifício como singularmente eficaz (7.26-28).
O versículo final resume vários temas contrastantes que têm operado nesse
capítulo (-» 7.28). Um inclusio final identifica o foco do capítulo 7: “o Filho”,
mencionado no início do capítulo (7.3), é “o Filho, perfeito para sempre”
(7.28). A confissão da Igreja sobre o Filho (3.1; 4.14; 10.23) é o verdadeiro
ponto de partida para toda reflexão cristológica (Pfitzner, 1997, p. 106).

NO TEXTO

1. A grandeza do sacerdócio de Melquisedeque (7.1-10)


l - 2 a O novo tópico desse capítulo é introduzido com outra elegante frase
periódica (-» No texto para 1.1-4). O pregador cita livremente Gênesis 14.17-
20 em Hebreus 7.1,2a, estabelecendo apenas aquelas frases que são relevantes
para sua exposição:
• O versículo \a-b destaca os pontos-chave do contexto histórico a res­
peito de M elquisedeque.
• Os versículos \c-2a declaram as duas principais ações associadas ao
encontro do rei-sacerdote com Abraão: a bênção de Melquisedeque e
o dízimo de Abraão.

266
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

Que Melquisedeque era rei de Salém e sacerdote do D eus A ltíssim o


vem de Gênesis 14.18. O pregador o identifica como um rei-sacerdote. A qua­
lidade perfeita da realeza de Melquisedeque será explorada por meio do estudo
etimológico em 7.2b-c. O silêncio do registro a respeito de sua ascendência,
origens e morte será usado para apontar a qualidade duradoura e semelhante
ao Filho de seu sacerdócio em 7.3.
A tradição antiga associa Salém à cidade de Jerusalém (lQ apG en 22.13;
Josefo, G. J. 6.438; Ant. 1.180). Poucos leitores saberíam de outras tradições
que o identificaram com Siquém ou Salim, perto de Enom (Jo 3.23; Jerônimo,
Epist. 73.7; veja Koester, 2001, p. 341). Se o pregador conhecia tais tradições,
não fez nada com elas.
E ainda menos provável que os hebreus soubessem que D eus A ltíssim o
(heb.El-Elyon [Gn 14.18 M T]) era a designação para o deus supremo do anti­
go panteão cananeu. Praticamente todos os judeus e cristãos usaram-na como
um dos títulos para o Deus da Aliança de Israel, Yahweh (Gn 14.18,19,20,22;
Nm 24.16; SI 107.11; veja Sl 57.2; 78.56). O título acentuava Sua transcendên­
cia divina (Fílon, Int. Al. 3.82; Mc 5.7; Lc 1.32,35,76; At 7.48; 16.17; 7 Ciem.
59.3; veja Lane, 1991, p. 164; Koester, 2001, p. 341).
Encontrou-se com Abraão quando este voltava, depois de derrotar os
reis. Isso cita vagamente Gênesis 14.17. O encontro entre Melquisedeque e
Abraão é central nessa seção, conforme indicado pelo inclusio:
• E ncontrou-se com [ho synantêsas\ Abraão (Hb 7Ab).
• “Melquisedeque encontrou \synêntêsen\ Abraão” (7.10).
O cenário histórico do encontro é mencionado apenas de passagem: D e ­
pois de derrotar os reis. O pregador presume que seus ouvintes se lembram
da história de Gênesis 14.1-16. Quatro reis da Mesopotamia invadiram Ca-
naã para impedir uma rebelião de vários reis vassalos. Vitoriosos na batalha,
os quatro confiscaram propriedades e alimentos de Sodoma e Gomorra. Eles
também apreenderam um dos moradores de Sodoma: o sobrinho de Abraão,
Ló. Abraão perseguiu os reis e resgatou Ló e seus bens em uma emboscada
noturna. Ao retornar, Abraão encontrou Melquisedeque no Vale do Rei (Gn
14.17-20).
A única ação sacerdotal de Melquisedeque aparece em Gênesis 14.19.
Eíebreus afirma sucintamente em 7.1c: Ele abençoou Abraão. Elebreus não
menciona o conteúdo da bênção de Melquisedeque (Gn 14.19^,20^). Tam­
bém passa por cima da oferta de pão e vinho de Melquisedeque ao patriarca
a (Gn 14.18). Alguns Pais da Igreja viram isso como tipos do corpo e do san­

267
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

gue de Cristo e os elementos da santa ceia (ex.: Clemente, Cipriano, Eusébio,


Ambrósio, Epifânio e o Venerável Beda; veja Hughes, 1977, p. 240-241; Bru­
ce, 1990, p. 158. n. 11; Heen e Krey, 2005, p. 95-98,102,115). Mas o foco
tipológico de Hebreus está em outro lugar — na eternidade do sacerdócio de
Melquisedeque, sugerida por sua aparição nas Escrituras.
A resposta de Abraão é livremente citada em Gênesis 14.20: Abraão lhe
deu um décim o de tudo (Hb 7.2a). Aqui, substitui a palavra deu em Gênesis
na LXX (edõken; mas veja Hb 7.4) por um verbo mais bem traduzido como
“repartido [emerisen]” (TB). A ação e a reação (a bênção de Melquisedeque e
o dízimo de Abraão) formam os temas em torno dos quais gira a exposição em
7.4-10.
2 b - c A identificação de Melquisedeque como rei e como sacerdote em
7 .1 á é o assunto de 7.2,3. A natureza ideal de sua realeza é descrita por meio
de uma análise etimológica de seu nome e título político no versículo 2b-c.
Os antigos eram fascinados pelos significados dos nomes. Atribuíam um ar
de mistério e profundo significado a termos estrangeiros ou esotéricos. Uma
vez que as Escrituras revelam tão pouco sobre Melquisedeque, a “tradução
\hermêneuomenosX (ESV, NASB, RSV; significa [NAA, OL]) ou “interpre­
tação” (ACF, ARA, ARIB, BKF, TB) de seu nome e título oferece uma visão
adicional de sua pessoa:
Em prim eiro lugar, o nome de Melquisedeque significa “rei de justiça”.
A mesma etimologia para Melquisedeque aparece tanto em fontes gregas (Fí-
lon, Int. Al. 3.79; Josefo, Ant. 1.180; G. J 6.10.1) quanto em fontes hebraicas
{Tg. Ps.J. Gn 14.18). A administração da justiça (veja Hb 11.33), fundamental
para a antiga ideologia real (Thompson, 2008, p. 152), foi cumprida sem para­
lelo no governo do Filho (-» 1.8,9).
Em segundo, “rei de Salém ” significa “rei da paz”. Essa tradução tam­
bém não é exclusiva de Hebreus (veja Fílon, Int.Al. 3.79; compare o Sl 76.2
no TM e na LXX). Justiça e paz caracterizam a era messiânica das esperanças
proféticas judaicas (Is 9.5-7; 32.17; Jr 23.5,6; Dn 9.24; Mq 5.5; Zc 9.10). O
Testamento deJudá declarou que o Messias seria uma “estrela de Jacó em paz” e
o “sol da justiça” {T. Jud. 24.1; Thompson, 2008, p. 152). Não podemos dizer
se o pregador tem tais associações messiânicas em mente, pois ele não as perse­
gue. Ele pode ter fornecido essas etimologias apenas para preencher o retrato
biográfico de Melquisedeque (Lane, 1991, p. 164). Em todo caso, talvez sir­
vam simplesmente para transmitir a excelência moral de Melquisedeque como
a do Filho de Deus em 7.26.

268
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

M 3 0 pregador agora se volta para as qualificações sacerdotais de Melquise-


deque. Elas são menciondas usando vários dispositivos retóricos: orações de
tamanho aproximadamente igual (isócolo), ausência de conjunções (assínde-
to), aliteração, rima (assonância) e quiasma (veja Attridge, 1989, p. 189). Nesse
ponto, os dois únicos textos do AT relacionados a Melquisedeque convergem.
O pregador interpreta o silêncio de Gênesis 14.17-20 em relação às origens
e morte de Melquisedeque à luz do testemunho de um sacerdócio perpétuo
“segundo a ordem de Melquisedeque” no Salmo 110.4.
A primeira cláusula apresenta um conjunto de descritores, um staccato,
que relaciona a falta de linhagem registrada de Melquisedeque: Sem pai [apa-
tõr\, sem m ãe \amêtõr\ e sem genealogia (agenealogêtos). As duas primeiras
descrições estão abertas à interpretação. Alguns na Antiguidade viam aqueles
sem pai ou mãe como filhos ilegítimos ou órfãos. Mas eles também aplicavam
essa linguagem às divindades. O Deus de Israel, por exemplo, é “sem pai, sem
mãe, não gerado” (Apoc. Ab. 17.10; veja Koester, 2001, p. 342). Mas Hebreus
não lançaria Melquisedeque sob uma luz tão negativa, nem o colocaria como
uma figura divina rivalizando com o Filho.
A chave encontra-se na terceira descrição: Sem genealogia. O próprio au­
tor pode ter cunhado esse termo. Isso se refere à ausência de qualquer linhagem
registrada. No contexto do seguinte argumento (esp. 7.6), enfatiza a ausência
de uma genealogia sacerdotal (levítica) (Lane, 1991, p. 158, s. d.). A antiga
Peshita Siríaca traduz interpretativamente a primeira cláusula no versículo 3:
“Nem seu pai nem sua mãe são registrados nas genealogias” (compare com a
NVT).
A segunda cláusula forma um quiasma puro em grego (mete archên hê-
merõn mete zõés teles') e emprega um dos jogos de palavras característicos do
autor: Sem princípio de dias nem fim de vida (-» 5.9 anotação complemen­
tar: “Brincando com começos e fins”). O silêncio da narrativa bíblica sobre o
nascimento e a morte de Melquisedeque diz muito.
A terceira cláusula revela que as descrições anteriores mostram que ele foi
feito sem elhante ao Filho de D eus. Tanto a natureza quanto a direção da
comparação são significativas. A natureza da comparação é encontrada, pri­
meiro, no particípio passivo aphõmoiõmenos, “feito semelhante” (BKJ; veja
TB). A implicação do passivo divino é que é Deus quem, por meio do relato
bíblico, molda Melquisedeque como uma espécie de espelho no qual pode­
mos ver o reflexo do Filho de Deus (Spicq 1953, 2:189). Em segundo lugar, a
comparação — como fica evidente na próxima cláusula e nos argumentos em
7.4-10 — é limitada ao seu sacerdócio mencionado no Salmo 110.4.

269
HEBRJEUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A direção da comparação é crucial. O Filho de Deus não se parece com


Melquisedeque; Melquisedeque se assemelha ao Filho de Deus. Portanto, Mel-
quisedeque não pode ser igual ao Filho de Deus. Tampouco é uma cristofania
— uma aparição do Cristo pré-encarnado. Melquisedeque e Jesus são seme­
lhantes, não idênticos (veja Crisóstomo, 1996, p. 424; Epifânio em Heen e
Krey, 2005, p. 100; Koester, 2001, p. 349).
A cláusula final limita o retrato à semelhança sacerdotal de Melquisedeque
com o Filho: Ele perm anece sacerdote para sempre. O verbo perm anece
(rnenei) aparece novamente em Hcbreus 7.24. Lá o pregador conclui que Cris­
to tem um sacerdócio permanente, porque Ele “vive \menein]” para sempre.
A redação restante dessa cláusula é formada após o Salmo 110.4. A frase final
(eis to dienekes, para sempre) é uma variação estilística deliberada da fraseolo­
gia do salmo. A expressão não ocorre em nenhum outro lugar na LXX ou no
NT, e raramente em outro lugar (ex.: T. Jó 33.7). Ela denota ações contínuas
(“sem interrupção”) ou duradouras (“sempre”; veja BDAG, p. 245; MM, p.
161). Possivelmente, o pregador hesitou em aplicar a linguagem precisa do sal­
mo (eis ton aiõna) a Melquisedeque para evitar sugerir que ele era eterno. Ele
repetidamente aplica essa linguagem apenas ao Filho (Hb 7.17,21,24,28; veja
eis to dienekes em 10.1,12,14).
4 Os versículos 4-10 compreendem uma exposição do encontro entre
Melquisedeque e Abraão registrado em Gênesis 14.17-20. A exclamação de
abertura afirma sua essência argumentativa: C onsiderem a grandeza desse
hom em . A exposição visa mostrar a grandeza de Melquisedeque em relação
a Abraão, bem como a superioridade de seu sacerdócio em relação aos des­
cendentes de Levi. O argumento do pregador é metódico: duas declarações,
envolvendo as duas ações principais do encontro (o dízimo de Abraão [7.4];
a bênção de Melquisedeque [7.7]), introduzem contrastes entre os sacerdotes
levíticos e Melquisedeque (7.5,6 e 7.8). Sendo assim, a conclusão (7.9,10) for­
ça o argumento ao seu limite — de fato, como o pregador percebeu, quase ao
ponto do absurdo.
O próprio Abraão reconheceu a grandeza de Melquisedeque. Até o m es­
m o o patriarca Abraão lhe deu o dízim o dos despojos! Duas expressões
adornam a paráfrase de Hebreus de Gênesis 14.20. Em primeiro lugar, Abraão
não ficou sozinho, mas agiu como o patriarca que representava toda a nação de
Israel. As palavras patriarca (patriarchies [Hb 7.4]) e “antepassado [patros\” (v.
10) formam um inclusio em torno de 7.4-10. Em segundo, a palavra despojos
(.akrothiniõn; lit., “topo do monte”) é um termo clássico comum usado em rela­

270
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

tos históricos de guerra grega (Ellingworth, 1993, p. 361). Denota também os


itens mais valiosos obtidos em batalha. O costume de dedicar um décimo dos
despojos a uma divindade, aliás, é atestado entre gregos e romanos (Koester,
2001, p. 343-344).
S! 5 -6 A oferta espontânea, mesmo reflexiva de Abraão de um décimo dos
despojos a Melquisedeque, é surpreendente à luz dos regulamentos legais para
o dízimo em Israel. A lei requer dos sacerdotes dentre os descendentes de
Levi que recebam o dízim o do povo. Hebreus parece estar ciente, não apenas
da legislação mosaica, mas também da prática contemporânea. A lei mosaica
estipulava que um dízimo anual fosse alocado aos levitas como sua herança
(Nm 18.21,23,24; veja Ne 10.37), e um décimo desse dízimo era reservado
aos sacerdotes (Nm 18.26); veja Ne 10.38). No primeiro século, os sacerdotes
eram exclusivamente encarregados de coletar dízimos (Isaacs, 2002, p. 93-94).
As referências de Hebreus à lei {ton nomon) e a “um mandamento [en-
tolên]” (a maioria das traduções; requer) antecipam referências posteriores
à sua força fraca e passageira (lei: 7.12,16,19,28; veja 10.1; mandamento:
7.16,19). O s descendentes de Levi coletam dízimos de seus compatriotas ape­
nas por meio dessa garantia legal, não por causa de qualquer linhagem melhor.
Eles recebem o décimo do povo, isto é, dos seus irm ãos israelitas. Para além
dessa autorização legal, os levitas não são diferentes de seus compatriotas. Eles
coletam dízimos, em bora estes sejam descendentes de Abraão.
O direito legal levítico de recolher dízimos (7.5) contrasta com a superio­
ridade inata de Melquisedeque que o autoriza a fazê-lo (7.6). A superioridade
de Melquisedeque é enfatizada de dois modos:
Primeiro, este hom em [...] não pertencia à linhagem de Levi. A expres­
são “este homem que não tem a sua genealogia” (RSV) corresponde a “sem
genealogia” em 7.3. Melquisedeque estava inteiramente fora da linhagem sa­
cerdotal israelita. Ele não coletava dízimos de seus iguais — como os levitas
faziam —, mas daqueles inferiores a ele. Ele não coletava por ordem legal, mas
por direito divino. Ele não tinha linhagem sacerdotal e autorização mosaica,
mas recebeu os d ízim os de Abraão. Isso implica que Abraão instintivamente
reconheceu a preeminência e a designação divina de Melquisedeque como “sa­
cerdote do Deus Altíssimo” (7.1). Melquisedeque era uma antecipação, como
sombra, do sacerdócio superior de Jesus, que também foi estabelecido à parte
da descendência levítica (7.13,14).
Segundo, a grandeza de Abraão apenas dilata a grandeza de Melquisede­
que. Melquisedeque abençoou aquele que tinha as promessas. As promessas

271
HEBREWS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

de Abraão incluíam Isaque, cujo nascimento antecipou o cumprimento da pro­


messa de Deus de que Abraão seria o patriarca de uma grande nação (6.12-15).
Elas também incluíam a terra prometida (11.9), que era um símbolo da pátria
melhor, a futura cidade de Deus (11.13-16; veja 12.22; 13.14). Abraão tem um
lugar de destaque na gênese da história salvadora de Deus para a humanidade.
No entanto, ele agiu em deferência a Melquisedeque como seu superior!
H 7 - 8 Uma declaração inicial sobre a grandeza de Melquisedeque (7.4) pre­
cedeu o primeiro contraste em 7.5,6. Outra declaração de sua grandeza (7.7) se
articula com o segundo contraste entre os sacerdotes levíticos e Melquisedeque
em 7.8.
O pregador argumenta: Sem dúvida algum a, o inferior é abençoado
pelo superior. Os estudiosos, muitas vezes, questionam a validade dessa afir­
mação como uma máxima geral, uma vez que há exceções à regra no AT (ex.:
servos abençoando um rei [2 Sm 14.22; 1 Rs 1.47; 8.66]). Um estudioso afir­
ma que é “pouco evidente” (Attridge 1989, 186); outro que é “uma espécie de
argumento falacioso” (deSilva, 2000a, p. 267; veja Koester, 2001, p. 344-345).
Mas tais críticas perdem o foco.
Como máxima, o argumento faz todo o sentido no mundo greco-romano
intensamente hierárquico. Dentro do contexto do patronato, é, de fato, “in­
discutível” (VC; veja OL, NVT): pessoas superiores concedem benefícios ou
bênçãos àqueles que são seus inferiores em honra, riqueza e status. A verdade
tem particular força dentro do contexto atual, uma vez que o sacerdote que
abençoa Abraão é um agente do Deus Altíssimo (Whedon, 1880, 5:88; Ben-
gel, 1877, p. 404).
O segundo contraste volta ao tópico do dízimo. N o prim eiro caso, quem
recebe o dízim o são hom ens m ortais (Hb 7.8). A vulnerabilidade dos sacer­
dotes levíticos à “morte” é contrastada com o sacerdócio eterno de Jesus em
7.23,24. Mas, no outro caso, o dízimo é recolhido por aquele que é declarado
vivo. Essa conclusão é retirada da leitura do pregador de Gênesis 14.17-20, que
é silenciosa sobre o “fim da vida” de Melquisedeque (Elb 7.3).
Essa interpretação de Gênesis é sugerida pelo testemunho de uma escri­
tura posterior nos Salmos, bem como seu cumprimento em Jesus. O pregador
emprega o mesmo verbo declara/afirma em 7.17 para introduzir a citação
de Salmo 110.4. O salmo atesta a vida imortal e ressurreta de Jesus. Aqui, a
imagem bíblica do sacerdócio duradouro de Melquisedeque é uma verdade
narrativa, uma imagem de seu arquétipo no “poder de uma vida indestrutível”
de Cristo (Elb 7.16).

272
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

Misterioso Melquisedeque

Po r c a u s a d o re g is tro e s p a r s o s o b re e le n o A T ( s o m e n t e e m G n 1 4 .1 7 -
2 0 e SI 1 1 0 .4 ), m is t é rio e e s p e c u la ç ã o c e r c a r a m M e lq u is e d e q u e . F ílo n
a p e la p a ra u m a a n á lis e e t im o ló g ic a s e m e lh a n t e à e n c o n t r a d a e m H e-
b re u s 7.1. E le id e n t ific a M e lq u is e d e q u e c o m o u m rei ju s to , e n ã o c o m o
u m t ir a n o q u e c o m a n d a v a o s o f r im e n t o v io le n t o e a g u e rra . E le tin h a u m a
m e n te re a l, p ilo ta d a p e la ra z ã o c o rre ta , o g u ia p a ra a p a z (In t. A l. 2 .7 9 -8 1 ).
M e lq u is e d e q u e re c e b e u u m " s a c e r d ó c io a u to in s t r u íd o e a u to d id a ta " , e n ­
v o lv e n d o a fu n ç ã o a d e q u a d a d e s u a s f a c u ld a d e s d e r a c io c ín io (C o n g r . 99 )
e u m a c o m p r e e n s ã o e x c e p c io n a lm e n t e s u b lim e d e D e u s (In t. A l. 2 .8 2 ).
A n a rra tiv a h is tó r ic a d e J o s e fo s e g u e d e p e r to o re la to d e G ê n e s is (A n t.

1 8 0 -1 8 2 ), a c r e s c e n t a n d o a p e n a s p e d a c in h o s d e t r a d iç ã o e x t r a b íb lic a ou
in fe r ê n c ia h is tó r ic a . N o t a v e lm e n te , M e lq u is e d e q u e fo i "o p r im e ir o s a c e r ­
d o te d e D e u s " , o p r im e ir o a d e s ig n a r S a lé m c o m o a c id a d e d e J e ru s a lé m ,
e o p r im e ir o a c o n s t r u ir u m t e m p lo lá (G .J . 6 .4 3 8 ).
O u tra fo n te a n tig a o fe r e c e u m a in t e r p r e ta ç ã o d e c id id a m e n t e m a is
e s p e c u la t iv a e e s c a t o ló g ic a . Um fra g m e n to dos M a n u s c r it o s do M ar
M o rto , M e lq u is e d e q u e ( llQ M e lc h ) , a p r e s e n t a M e lq u is e d e q u e c o m o o li­
b e r ta d o r d e Isra el n o s ú lt im o s d ia s . S e n d o a s s im , e le p r o c la m a r á u m a
s é r ie d e p e r ío d o s d e J u b ile u , c u lm in a n d o e m u m g r a n d e D ia d e E x p ia ç ã o
p a ra o s ju s to s . E n tã o e le fa r á o ju lg a m e n t o fin a l s o b re B e lia l (o d ia b o ) e
s e u s e s p ír it o s m a lig n o s e lib e r ta rá a q u e le s q u e e s t a v a m c a t iv o s s o b se u
p o d e r. M e lq u is e d e q u e é u m " s e r d iv in o " , t e n d o f u n ç õ e s re a is, s a c e r d o t a is
e e s c a t o ló g ic a s . A s s im , e le s e a s s e m e lh a , s e n ã o f o r id ê n tic o , a o a rc a n jo
M ig u e l d e s c r ito e m o u tra s p a rte s d o s M a n u s c r it o s d o M a r M o rto (H u g h e s ,
1 9 7 7 , p. 2 3 8 ).
T e x to s g n ó s t ic o s d o q u a rto s é c u lo r e tra ta m d e fo rm a s e m e lh a n t e M e l­
q u is e d e q u e c o m o u m c o n q u is t a d o r d e p o d e r e s s o b re n a tu r a is . N o e n ta n to ,
e le s o id e n t ific a m c o m o a " im a g e m d o v e r d a d e ir o S u m o S a c e r d o te d o
D e u s A lt ís s im o " , J e s u s C r is t o (N H C IX ,1 M e lc h iz e d e k - , v e ja P is t is S o p h ia

1 .2 5 -2 6 ).
H e b re u s n ã o m o s tra e v id ê n c ia d e in t e r a ç ã o c o m e s p e c u la ç õ e s s o b re
M e lq u is e d e q u e c o m o u m a fig u r a a n g e lic a l ou c e le s t ia l. S u a v is ã o é f u n d a ­
m e n ta d a na e x e g e s e m id r á s h ic a d o s t e x t o s b íb lic o s (v e ja C o c k e r ill, 2 0 0 8 ).
A le itu ra t ip o ló g ic a d is t in t a d e H e b re u s e s t a v a a b e rta a in t e r p r e ta ­
ç õ e s e rr ô n e a s n o s p r im e ir o s s é c u lo s c ris tã o s . Isso a té g e ro u m u ita s id é ia s
h e ré tic a s . M e lq u is e d e q u e fo i id e n t if ic a d o d e v á r ia s m a n e ir a s c o m o u m
p o d e r s o b re n a tu r a l, s e r a n g é lic o , m a n if e s t a ç ã o d o E s p ír ito S a n to , D e u s
Pai ou o C r is to p r é -e n c a r n a d o . A o fin a l d o p r im e ir o s é c u lo , ju d e u s e s a m a -

273
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

r ita n o s p r o c u ra r a m n e u t r a liz a r a in t e r p r e ta ç ã o c r is tã d e M e lq u is e d e q u e
c o m o u m tip o d e C r is to , p r o p o n d o q u e e le e ra re a lm e n t e o f ilh o d e N oé,
S e m . R a b in o s p o s t e r io r e s a f ir m a r a m q u e o s a c e r d ó c io d e M e lq u is e d e q u e
e ra re a lm e n t e le v ític o , e a o m is s ã o d e s e u re g is tro g e n e a ló g ic o e s c o n d ia o
fa to s ó r d id o d e q u e s u a m ã e e ra u m a p ro s titu ta , e s e u p a i, d e s c o n h e c id o
( H u g h e s , 1 9 7 7 , p. 2 4 5 ).
U m g u ia m a is s e g u ro p a ra a e x e g e s e t ip o ló g ic a d e H e b re u s , ju n t a ­
m e n te a r e fu t a ç õ e s d e in t e r p r e ta ç õ e s e rrô n e a s , p o d e s e r e n c o n t r a d o
e n tre o s P a is d a Igreja d o q u a r t o e q u in to s é c u lo s , a s s o c ia d o s à e s c o la d e
A n t io q u ia . E p ifâ n io d e S a la m in a , e m s e u P a n a r io n , s u b m e t e u u m a s é r ie d e
e rro s s o b re M e lq u is e d e q u e a u m a ló g ic a a fia d a e a t e n ç ã o c u id a d o s a a o s
t e x t o s b íb lic o s . P o r e x e m p lo , e le re b a te u a v is ã o d e q u e M e lq u is e d e q u e
é D e u s Pai, a p o n t a n d o p a ra a im p o s s ib ilid a d e d e e le s e r D e u s A lt ís s im o
e " s a c e r d o t e d o D e u s A lt ís s im o " s im u lt a n e a m e n t e . D a m e s m a fo rm a , e le
n ã o p o d e r ía t e r s id o o F ilh o d e D e u s , m a s " s e a s s e m e lh a r " a si m e s m o (-»
7.3; H e e n e K re y , 2 0 0 5 , p. 1 0 0 -1 0 1 ).
Jo ã o C r is ó s to m o e T e o d o re to d e C y r t r a n s m it e m s u a c o m p r e e n s ã o
d a tip o lo g ia d e H e b re u s c o m c la r e z a in c o m p a r á v e l e r a c io c ín io p e rs u a -
s iv o (H e e n e K re y , 2 0 0 5 , p. 1 0 2 ,1 1 1 - 1 1 3 ) . C a r a c t e r ís t ic a s c o m o fa lta d e
g e n e a lo g ia , s e m e lh a n ç a c o m o F ilh o d e D e u s e s a c e r d ó c io p e r m a n e n t e
s ã o a p lic a d a s a M e lq u is e d e q u e c o m o u m tip o d e C ris to . C o m o u m a fig u ra
h is tó r ic a , e le n ã o tin h a lit e r a lm e n t e t o d a s a s q u a lid a d e s q u e p e r te n c e m
a C r is t o — c o m o n e m o p r in c íp io d o s d ia s n e m o fim d a v id a . A s p ro ­
p r ie d a d e s d o s a c e r d ó c io e te r n o p e r te n c e m , p o r n a tu r e z a e na re a lid a d e ,
a p e n a s a o a r q u é tip o , C ris to . M e lq u is e d e q u e c o m p a r tilh a d e s s a s q u a lid a ­
d e s , n ã o c o m o s e r h u m a n o , m a s a p e n a s na m e d id a e m q u e a s E s c ritu ra s
r e p r e s e n t a m s u a s q u a lific a ç õ e s p a ra o s a c e r d ó c io c o m o tip o , im a g e m ou
s e m e lh a n ç a d o F ilh o d e D e u s.

St 9-1 0 A conclusão dessa seção (7.4-10) leva o argumento genealógico qua­


se ao ponto de ruptura. A fórmula p od e-se até dizer foi usada para indicar
declarações que eram exageradas (“por assim dizer” [KJA]; Attridge 1989, p.
197) ou verdadeiras apenas “em certo sentido” (HCSB). O pregador reconhe­
ce o tênue, e até divertido, desvio de seu argumento final (Koester, 2001, p.
345,352).
Levi, que recebe os d ízim os, entregou-os p or m eio de Abraão. Como
assim? P ois, quando M elquisedeque se encontrou com Abraão, Levi ainda
estava no corpo de seu antepassado. Em 7.5, todos os israelitas teriam des­

274
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON H EB RE US

cendido de Abraão — literalmente, eles “saíram dos lombos de Abraão” (BKJ;


veja TB). Aqui, em 7.10, diz-se que Levi estava “ainda nos lombos” de Abraão
(ACF, ACR, ARIB, BKJ, JFA, TB; veja VC, NAA). Esse uso de “lombos” é
distintamente bíblico, passando do idioma hebraico para o grego. O idioma é
usado para sugerir a procriação humana como parte do cumprimento das pro­
messas divinas (Gn 35.11; 2 Cr 6.9; veja At 2.30).
O ar de autoridade das Escrituras dá credibilidade a uma inferência que, de
outra forma, parecería completamente inverossímel: que, em virtude da heredi­
tariedade, Levi participava da ação do dízimo realizada por seu bisavô, Abraão.
Mas a inferioridade e a deficiência do sacerdócio levítico não dependem defi­
nitivamente desse argumento, mas da aparência escatológica da realidade para
a qual Melquisedeque apontou. O pregador se volta para isso na próxima fase
de seu argumento.

2. A imperfeição do sacerdócio levítico (7.11-19)


Hebreus 7.11-28 muda o foco da narrativa em Gênesis 14 para o orácu­
lo divino do Salmo 110.4. Cada metade da série de argumentos é ancorada
por uma citação do texto do salmo (v. 17 em Hb 7.11-19; v. 21 em Fdb 7.20-
28). Cada uma também chama atenção para a fraseologia do Salmo 110.4,
apropriada ao enfoque argumentativo naquela metade: segundo a ordem de
M elquisedeque (Hb 7.11,15,17) e para sempre (v. 21,24,28). Todo 7.11-28
c cercado por um inclusio que emprega a terminologia da perfeição (7.11,28).
A primeira metade (7.11-19) é marcada por um inclusio relacionado.
Cada “suporte literário” inclui uma negação, bem como uma referência à lei
(7.11,19): o antigo sacerdócio, com seus regulamentos legais, não pode atingir
a perfeição. Assim, essa metade incorpora uma terminologia legal ou quase le­
gal (todos cognatos de tithêmi). O pregador expressa como as leis reguladoras
da sucessão sacerdotal foram estabelecidas (nomotheteõ [v. 11]), mas sujeitas
à alteração (metatithêmi e metathesis [v. 12]) e à revogação (athetêsis [v. 18];
Johnson, 2006, p. 184). A necessidade de um novo sacerdócio tornou-se ine­
quivocamente “clara” (v. 14,15) por meio da aparição escatológica de Jesus (v.
11,14,15).
1 1 - 1 2 A cláusula de abertura, se fosse possível alcançar a perfeição por
m eio do sacerdócio levítico, é uma condição contrária ao fato. O sacerdócio
levítico, aliás, não podería, dc fato, atingir a perfeição por causa de duas defi­
ciências:

275
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

• O antigo sacerdócio, com seus regulamentos legais falhos, era impo­


tente para vencer a mortalidade humana (7.8,16,23).
• Os sacerdotes levíticos eram propensos ao pecado. Assim, não pode­
ríam atingir as perfeições moral e cultuai para oferecer sacrifícios que
trazem salvação abrangente e acesso ininterrupto à presença divina
(7.19,25,26-28).
O sacerdócio levítico e a lei mosaica eram parte integrante do sistema
religioso sob a antiga aliança. O sacerdócio, no entanto, foi fundamental para
todo o arranjo. Assim, entre parênteses, o pregador afirma: Pois em sua vigên­
cia o povo recebeu a lei. A lei não é mais válida ou eficaz do que o sacerdócio
sobre o qual se baseia. Sacerdotes que são mortais (7.8,16,23) e moralmente
fracos (7.27,28) obedecem aos regulamentos sacerdotais que são igualmente
“fracos e inúteis” (7.18).
A aparência escatológica de outro sacerdote expõe as deficiências do sa­
cerdócio levítico. Se o antigo sacerdócio havia cumprido plenamente seus
propósitos divinamente designados, por que haveria ainda necessidade de se
levantar outro sacerdote de acordo com a declaração divina do Salmo 110.4?
O termo traduzido por outro (heteron) pode sugerir não apenas outro sacer­
dote, mas um “tipo diferente de” sacerdote (GNT, NJB; veja GW, NLT, REB).
Esse novo sacerdote é segundo a ordem de M elquisedeque e não de Arão.
As diferenças entre os dois sacerdócios, já estabelecidas na exposição de
Hebreus de Gênesis 14.17-20 (veja Hb 7.4-9, esp. v. 5,6,8), são desdobradas na
seguinte discussão:
• Primeiro, o sacerdote segundo a ordem de M elquisedeque não
compartilha a linhagem dos sacerdotes da ordem de Arão (7.13,14).
• Segundo, o novo sacerdócio não se baseia em um regulamento relativo
à sucessão sacerdotal, porque o novo sacerdote é um “sacerdote para
sempre” (7.15-17).
Antes de explicar essas diferenças, o pregador realça novamente seu pon­
to corolário sobre a inadequação da lei mosaica. Pois quando há mudança
de sacerdócio, é necessário que haja m udança de lei (7.12). É necessário
é traduzido de ex anangkés, “de necessidade” (TB, NASB). Isso indica um
axioma. Se o sacerdócio é alterado (metatithemenês), então a lei — legalmente
fundada (nenomothetêtai) no sacerdócio (7.11) — deve, por necessidade lógi­
ca, também sofrer alteração (metathesis). O versículo 18 reforçará este ponto:
o regulamento legal relativo à sucessão sacerdotal não é apenas alterado, mas
também abolido (atetesis; observe o uso repetido de cognatos tithêmí).

276
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

B 1 3-14 A primeira diferença entre o antigo e o novo sacerdócio diz respei­


to à regulamentação legal relativa à sucessão sacerdotal hereditária. A forma
como o pregador se expressa no versículo 13 tem uma qualidade lírica: A quele
de quem [eph ’ hon\ se dizem estas coisas no Salmo 110.4 pertencia [me-
teschêken\ a outra tribo, da qual \aph hês\ ninguém jam ais havia servido
[proseschêken\ diante do altar.
Jesus é um “tipo diferente de sacerdote” (-» Hb 7.11 GNT, NCV, NJB)
porque Ele é de outra tribo. O AT registra tanto Davi como Salomão envolvi­
dos em atividades sacerdotais (2 Sm 6.13-19; 24.25; 1 Rs 3.4; 8.62-64), e conta
os filhos de Davi entre os sacerdotes (2 Sm 8.18). O autor de Hebreus não
poderia ignorar esses casos. Mas ele não apela a eles para argumentar a partir
de precedentes para as prerrogativas sacerdotais de Jesus (contraste com Mc
2.23-28). Essas “exceções provam a regra”. Em termos de vocação vitalícia, ape­
nas os israelitas da tribo de Levi tinham autorização legal para cumprir o papel
sacerdotal. A expressão havia servido diante do altar é uma forma figurativa
de dizer (por metonímia) que o principal dever dos sacerdotes é “apresentar
ofertas e sacrifícios” (Hb 5.1; veja 8.3,4; 9.9).
O versículo 14 declara o que é evidente (ARA, NAA) ou “óbvio” (John­
son, 2006, p. 188) para todos os familiarizados com a tradição cristã sobre a
linhagem terrena de Jesus: Pois é evidente que o n osso Senhor descende de
Judá (veja Mt 1.2,3; 2.6; Lc 3.33; At 2.29-36; 13.22,23; Rm 1,3; 2 Tm 2.8; Ap
5.5; 22.16). A referência a nosso Senhor tem um tom confessional (Rm 10.9;
1 Co 12.3; Fp 2.11; veja Hb 2.3; 13.20).
O exercício do senhorio é apropriado para a realeza, e a realeza está associa­
da à tribo de Judá (Gn 49.10; Ap 5.5). Ao dizer que Jesus descende ou “surgiu
\anatetalken\” (KJV) de Judá, o pregador pode estar explorando as profecias
do AT de uma estrela “surgindo” de Jacó (Nm 24.17 LXX; veja Is 61.1; Lc
1.78; Ap 2.28) ou o “surgimento” de um Ramo justo da linhagem de Davi (Jr
23.5; Zc3.8; 6.12 LXX; veja Is 11.1; Jr 33.15; Mt 4.16; Lc 1.78; Ap 22.16).
Sendo da tribo de Judá da qual M oisés nada fala quanto a sacerdócio,
Jesus é completamente desqualificado para servir ao sacerdócio levítico. Mas
Ele não precisa ser, pois Ele o transcende. Sua aparição marca o tão esperado
cumprimento da profecia messiânica “nestes últimos dias” (Hb 1.2a). Seu nas­
cimento, aliás, não foi como o de mais um levita em uma longa linhagem de
sacerdotes.
1115-17 O pregador liga a segunda diferença entre o antigo e o novo sacerdó­
cio à primeira (a linhagem diferente de Jesus, de Judá). Ele usa uma referência

277
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

ainda mais enfática ao que é óbvio: O que acabam os de dizer fica ainda mais
claro. Podemos traduzir assim: E é ainda mais abundantemente claro (kai
perissoteron eti katadêlon estin). Mas o que se torna tão óbvio quando aparece
outro sacerdote sem elhante a M elquisedeque? E provável que a “mudança”
legal (7.12) ou abolição (7.18) dos antigos regulamentos sacerdotais necessá­
rios pelo aparecimento do sacerdócio superior de Cristo (Attridge, 1989, p.
201-202; Johnson, 2006, p. 188; veja Ellingworth, 1993, p. 377-378, para um
tratamento técnico desta questão).
A segunda diferença vai muito além da questão da linhagem. Ao enfatizar
a semelhança com Melquisedeque [kata tên homoiotêta Melchisedk, “à seme­
lhança de Melquisedeque” [NAA; veja KJA, ACF]; como M elquisedeque;
compare com 4.15), Hebreus interpreta o texto de Salmo 110.4 {kata tên taxin
Melchisedek, “na ordem de Melquisedeque”). A expressão e o argumento re­
sultante ecoam a declaração em Hebreus 7.3 de que Melquisedeque foi feito
“semelhante ao Filho de Deus” no sentido de que “ele permanece sacerdote
para sempre”.
O uso do verbo anistêmi, tanto em 7.1 1 (“vir”) como aqui (aparece), suge­
re mais do que o sentido de “chegar à cena da história” (veja Ex 1.8; Dt 18.15;
At 7.18). O verbo descreve a ressurreição de Jesus em outras partes do N T (Mt
17.9; 20.19; Lc 18.33; At 17.3; 1 Ts 4.14). A seguinte declaração sobre a vida
indestrutível de Jesus (Hb 7.16) provoca esse sentido atraente aqui (Johnson,
2006, p. 186-187; Koester, 2001, p. 335).
O versículo 16 contrasta ainda mais o sacerdócio de Cristo com o dos le-
vitas. A lguém que se to m o u sacerdote à semelhança de Melquisedeque não
por regras relativas à linhagem . A frase regras relativas à linhagem (lit., “lei
de um mandamento carnal [isto é, carne]” [BKJ]) denota uma exigência le­
gal relativa à descendência física. O adjetivo carne denota a natureza limitada,
corruptível e mortal dos seres humanos caídos. O regulamento legal para a
sucessão hereditária baseia-se na mortalidade da linha sacerdotal.
Isso contrasta com o sacerdócio de Jesus, que tem sua base no poder de
um a vida indestrutível. Essa pode ser uma das três únicas referências à ressur­
reição de Jesus em Eíebreus (-» 5.7 e 13.20). No NT, a ressurreição dos mortos
está associada ao p od er (Rm 1.4; 1 Co 6.14; 15.43; 2 Co 13.4; Fp 3.10; Cl 2.12;
Ap 20.6; veja Hagner, 1990, p. 112) e ávida (Lc 24.5,23; Jo 5.25; 11.25,26; At
1.3; 3.15; Rm 6.4; 8.11; Ap 20.5). Talvez, como em Efésios 1.19,20, o poder
divino seja visto não apenas em ressuscitar Jesus dentre os mortos, mas também
em exaltá-lo à destra de Deus (veja Hb 1.3,13; 8.1; 10.12; 12.2; 13.20).

278
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

Diferentes fundações, diferentes sacerdócios


O s d if e r e n t e s f u n d a m e n t o s p a ra o a n tig o e o n o v o s a c e r d ó c io sã o
a p r e s e n t a d o s e m d u a s f r a s e s c o m p a c t a s e m 7 .1 6 (K o e s te r, 2 0 0 1 , p. 36 1):

S a c e r d ó c io l e v ít ic o S a c e r d ó c io d e J es u s
le i poder
c a rn e in d e s t r u t í v e l
m a n d a m e n to s v id a

Consequentemente, enquanto Melquisedeque vive apenas de forma figu-


rativa(7.8), Jesus “vive” eternamente na realidade (veja 7.25). Isso é afirmado
(“testifica” [ARA, KJA]; o 7.8) pela Escritura no Salmo 110.4: Tu és sacerdo­
te para sem pre, segundo a ordem de M elquisedeque (Hb 7.17).
1 8 - 1 9 A primeira metade do argumento em 7.11-28 termina nos versícu­
los 18,19 com outro contraste:
• A ordenança legal imperfeita e passageira do sacerdócio levítico (ob­
serve o inclusio com o v. 11, empregando o vocabulário de “perfeição”).
versus
• Sua substituição por uma esperança superior.
Ao mudar brevemente para a primeira pessoa do plural (nós), o pregador
extrai uma implicação pastoral significativa de sua argumentação em sentido
técnico e legal.
O testemunho anterior do sacerdócio eterno de Jesus garante um movi­
mento além da ideia de apenas uma “mudança” no sacerdócio do AT (7.12). A
ordenança anterior [“mandamento” (CEB, ESV, HCSB, KJV, LEB, NAB,
NASB, NJB, NRSV); veja 7.5,16] é revogada. A palavra athetêsis (deixar de
lado) fica em primeiro lugar na frase para dar ênfase. Nos papiros, serve como
um termo técnico legal para a anulação (OL, BKJ; veja KJA, TYNDALE)
— “ab-rogado” (ACF, ARC, ARIB) ou cancelado (NVT) — de um decreto
legal, ou o cancelamento de uma dívida (veja MM, 12; Lane, 1991, p. 185). O
pregador oferece duas explicações inter-relacionadas para isso:
Primeira, a regulamentação anterior era fraca e inútil (asthenes kai
anopheles; observe a aliteração e a rima). O mandamento era fraco porque tra­
tava do regulamento ordenança “da carne” da sucessão sacerdotal (-» 7.16a).
Proverbialmente, a carne é inerentemente fraca (veja Mt 26.41; Mc 14.38; Jo

279
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

6.63; Rm 8.3; G1 4.9; Attridge, 1989, p. 203). A fraqueza da mortalidade dos


sacerdotes é complementada por sua fraqueza ou suscetibilidade ao pecado
(Hb 5.2,3; 7.27,28). Além disso, o mandamento era inútil porque não podia
efetuar uma transformação interior nem nos sacerdotes nem no povo. Pode­
ría efetuar apenas uma limpeza externa ou cultuai da “carne” (9.9,10,13; veja
Lane, 1991, p. 185).
Segunda, a lei não havia aperfeiçoado coisa algum a (7.19^). Assim como
o antigo sacerdócio não podia atingir a “perfeição” (7.11), também a lei era
impotente para realizá-la. A lei não conseguiu superar as limitações inerentes
ao sacerdócio levítico (morte e pecado). O restante do versículo 19 sugere que
essas fraquezas afetaram os adoradores comuns também. A lei era impotente
para sustentar um acordo em que o povo sempre tivesse uma aproximação con­
sistente e próxima de Deus e acesso aos benefícios salvíficos da presença divina.
Deixar de lado o mandamento anterior abriu caminho para a introdução
de uma esperança superior. O tema da esperança tem sido proeminente até
esse ponto em Hebreus, particularmente nas exortações para apoderar-se da
esperança (3.6; 6.11; veja 10.23). O pregador dirigiu-se a uma comunidade que
experimentava incerteza e instabilidade em sua fé, provocada pelo sofrimento
e pela alienação em seu ambiente social. Eles precisavam de esperança como
refúgio (6.18) e “âncora” (6.19) firmemente segura na presença de Deus, onde
Jesus já havia entrado como “nosso precursor” (6.20 ACF). A esperança supe­
rior ou melhor, então, não pode ser separada de Jesus. Ele sozinho fornece os
meios pelos quais n os aproxim am os de D eus (7.19; veja 7.25).
Várias características dessta conclusão indicam sua relevância pastoral
para o público;
• Ao dizer que essa esperança superior é introduzida (epeisagõgê), o pre­
gador implica que ela substitui o mandamento anterior (proagousês)
(veja Lane, 1991, p. 185; Ellingworth, 1993, p. 382). Isso foi impor­
tante para uma comunidade tentada a abandonar sua confissão cristã e
retornar a uma forma não cristã de fé judaica.
• Além do uso passageiro do pronome “nosso” em 7.14, o aparecimento
da primeira pessoa do plural nós marca um discurso direto aos leitores,
não ouvido desde 6.20.
• Aproximar-se \engizomen\ de Deus e “chegar perto/achegar-se” de
Deus (proserchomai; 4.16; 7.25; 10.1,22; 11.6; 12.18,22) são expres­
sões de culto para chegar diante de Deus em adoração com orações
por ajuda divina e salvação.

280
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

3. 0 sacerdócio permanente e perfeito do Filho (7.20-28)


Hebreus 7.20-28 apresenta o outro lado da primeira metade (7.11-19)
dessa subunidade (7.11-28; ->7.11-19). Mais uma vez, o tema é indicado por
meio de um inclusio envolvendo o juram ento divino (7.20,28). Em contraste
com o sacerdócio levítico, o do Filho é estabelecido pelo juramento imutável
de Deus (7.20,21) e, portanto, é permanente e duradouro (7.23,24). Ao con­
trário da imperfeição da antiga ordem sacerdotal (7.11,19), o novo sacerdote
foi constituído perfeito para sempre (7.28).
β 2 0-22 Hebreus 7.11-19 ressalta a verdade profética do Salmo 110.4 con­
cernente a Jesus como o sacerdote “semelhante à Melquisedeque”. Mas Hebreus
7.20-28 destaca a perpetuidade de Seu sacerdócio. O pregador confirma isso
apelando para o mesmo oráculo divino; Tu és sacerdote para sempre (v. 21).
Como podemos ter certeza de que a “esperança superior” em Jesus terá po­
der de permanência, que transcenderá as limitações do sacerdócio levítico? Em
vista disso, a resposta baseia-se no argumento em 6.13-20 (e 3.11). A base da
nossa esperança está no juramento de Deus. O pregador sublinha a importân­
cia do juramento de Deus em 7.20-28 por meio da frequência da terminologia
pertinente: “juramento \horkõmosia\” (quatro vezes nos v. 20,21,28) e “jurar
\omnyõY (v. 21).
Os versículos 20-22 compreendem uma longa sentença correlativa, encer­
rando um contraste explicativo. Essa frase grega complexa requer uma medida
de paráfrase em português (notáveis exceções literais são: KJV, NAB, NASB).
O quadro correlativo está nos versículos 20^ e 22: “E na medida em que isso
aconteceu não sem prestar juramento [...] nesse mesmo grau, Jesus [também]
se tornou a garantia de uma aliança [ainda] melhor” (NAB).
O contraste anexo explica que outros se tom aram sacerdotes sem qual­
quer juram ento (v. 2fòb\ mas Jesus se torn ou sacerdote com juramento,
como evidenciado pelo Salmo 110.4 (Hb 7.21). O efeito geral da construção é
um argumento do menor para o maior. Isso, contudo, demonstra a inferiorida­
de do sacerdócio levítico em relação ao sacerdócio de Jesus (veja Bruce, 1990,
p. 171, n. 68).
As palavras do juramento no Salmo 110.4 não são a principal preocupação
do pregador. É ação de Deus e a intenção resoluta em oferecer esta promessa
solene:
• A palavra traduzida como juram ento (orkõmosia) refere-se ao ato de
prestar juramento (BDAG, p. 723; Ellingworth, 1993, p. 383). O “ju­
ramento” de Deus (NAB) está em vista.

281
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

• O juramento do juramento ocorreu por meio do falar de Deus: Q uan­


do D eus lhe disse (“aquele que lhe disse” [ACF]).
• O pregador cita a introdução ao juramento no Salmo 110.4: O Se­
nhor jurou e não se arrependerá. Isso acentua “a natureza imutável
do propósito [de Deus]” (Hb 6.17) ao designar um novo sacerdote.
Portanto, a palavra inquebrantável de Deus e o Seu caráter irrepreensível
garantem o juramento (veja 6.18): Tu és sacerdote para sempre.
A conclusão em 7.22 é uma surpresa (Attridge, 1989, p. 208). Seria de
esperar que a afirmação juramentada de Deus a respeito de Jesus como um
sacerdote eterno produzisse a inferência de que Ele, portanto, tem um sacer­
dócio superior. Contudo, Hebreus amplia o horizonte para abranger todo o
arranjo que Deus estabeleceu para restaurar Seu relacionamento com os seres
humanos: U m a aliança superior. Isso soa como um tema que será explicado
detalhadamente nos capítulos seguintes (8.6,8,9,10; 9.4,15,16,17,20; 10.16;
veja também 10.29; 12.24; 13.20). Essa aliança superior substitui o requisito
fraco e inútil do sacerdócio levítico (7.18).
Nossa esperança (7.19; veja 6.19,20) e o juramento de Deus se concen­
tram em Jesus. Mais uma vez, o pregador adia o nome de Jesus até o final da
cláusula no versículo 22 para enfatizar (-> 2.9 anotação complementar: “Uso
do nome ‘Jesus’ em Hebreus”). Jesus é a garantia da aliança superior. A palavra
traduzida como garantia é um termo jurídico comercial usado em contratos
para designar garantias ou alguma garantia material para o pagamento de uma
dívida ou cumprimento de uma promessa (MM, 179; Lane, 1991, p. 188). Às
vezes, refere-se a um cossignatário que assumirá a responsabilidade se o signa­
tário principal não cumprir as obrigações de um contrato. Tal “fiador” (NIV11,
ARA) corre um risco significativo: ele oferece sua própria vida, por assim dizer,
por outro (veja Sir. 29.15,16).
Jesus é o “mediador” que estabeleceu a nova aliança, particularmente por
meio de Sua morte sacrificial (Hb 8.6; 9.15; 12.24). Sua morte é a garantia de
que Deus está cumprindo Suas promessas escatológicas. Foi “pelo sangue da
aliança eterna” que Deus trouxe Jesus de volta dos mortos (13.20) e o exaltou
como sacerdote para sempre.
I I 2 3 -2 5 Outra antítese entre o antigo e o novo sacerdócio aparece nos versí­
culos 23 e 24. Uma conclusão sobre a salvação abrangente alcançada por Jesus
segue no versículo 25.
Dois contrastes são apresentados de maneira quiástica:
A Ora, daqueles sacerdotes tem havido m uitos,

282
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

B porque a m orte os im pede de continuar em seu ofício;


B’ m as, visto que vive para sem pre,
A’Jesus tem um sacerdócio perm anente.
O primeiro contraste é entre os m u itos e o único (ou seja, Jesus). Joseto
relatou que oitenta e três sumos sacerdotes serviram desde Arão até a destrui­
ção do templo em 70 d.C. (Ant. 20.227). A superioridade lógica da unidade em
relação à multiplicidade reflete os pressupostos da filosofia platônica e de Fílon
(veja Attridge, 1989, p. 210). Tal argumento já estava implícito no início do
sermão (1.1,2a). Ele retornará na oposição entre os muitos sacrifícios ineficazes
e o sacrifício de uma vez por todas de Jesus (7.27; 10.1-4,11-14).
O segundo contraste explica o primeiro. Havia muitos sacerdotes levíti-
cos, porque a m orte os im pede de continuar em seu o fício (paramenein).
Mas há apenas um sumo sacerdote “como Melquisedeque”, visto que Jesus
vive [menein, “permanece” (ACF, ARIB, ARC, BKJ; compare 7.3)] para sem ­
pre. Assim, Jesus tem um sacerdócio permanente. O adjetivo grego traduzido
como perm anente aparece em fórmulas legais para designar disposições que
são “invioláveis”, “inquebráveis”, “imutáveis” — ou declaradas positivamente,
permanentes ou “absolutas” (MM, 53; BDAG, p. 97; Johnson, 2006, p. 193).
Como nas conclusões de contrastes anteriores (veja 7.19,22), o pregador
encerra com as implicações pastorais do sacerdócio superior de Jesus (v. 25).
Que o sacerdócio de Jesus seja permanente implica que Ele é capaz de salvar
definitivam ente (eis to panteles). Isso pode referir-se qualitativamente ao esco­
po abrangente da salvação que Ele fornece — completamente (TB; veja ACF,
ARIB, JFA). Ou pode referir-se temporalmente aos efeitos perpétuos — “para
todo o sempre” (NRSV)? “para sempre” (NASB, NIVmg); “sempre” (GW,
HCSB, NAB; veja G N T e NLT). Talvez a ambiguidade da frase seja delibera­
da, de modo a abranger ambos os significados (Hughes, 1977, p. 269; Attridge,
1989, p. 210). A expressão pitoresca “ao extremo” (KJV, ESV) transmite ade­
quadamente tal excesso de significado no grego.
Nesse sentido, a salvação tem principalmente uma dimensão escatológica
em Hebreus. Isto:
• é uma herança do mundo que há de vir (1.14; veja 9.15);
• envolve entrar na glória (2.10);
• chega ao cumprimento final na segunda vinda (9.28).
No entanto, a salvação também tem uma dimensão presente (-> 2.5 ano­
tação complementar: “Escatologia em Hebreus”). Começa no presente para
aqueles que, por m eio dele [de Jesus], chegam a ou aproxim am -se de Deus.

283
HEBRF.US NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

O privilégio de aproximar-se de Deus em adoração (veja 10.1) é um benefício


em si mesmo, resultante de um relacionamento restaurado com Deus e “plena
convicção de fé” em suas promessas (10.22; veja 11.6). Os adoradores também
desfrutam de acesso à graça e misericórdia divinas para obter ajuda e força em
sua peregrinação espiritual (4.16; 13.9).
A obra salvadora de Jesus — “agora e sempre” (GNT) — inclui sua in-
tercessão contínua. A constância de Sua ajuda é possível porque Ele vive (->
7.8; veja também 7.3,24). A “vida indestrutível” de Jesus (7.16) e o “sacerdócio
permanente” (7.24) permitem que Ele interceda pelos crentes (7.25; “pleitear
por eles” [REB]). A morte, ressurreição e exaltação de Cristo à mão direita de
Deus tornaram possível Seu ministério de intercessão. Sua morte expiatória e
Sua posição exaltada fazem dele o advogado supremo do povo de Deus contra
todas as acusações feitas contra eles (veja Rm 8.33,34; 1 Jo 2.1). Seu autossa-
crifício e retorno a Deus como “um grande sacerdote sobre a casa de Deus”
proporcionam aos adoradores um acesso inigualável (“um novo e vivo cami­
nho”) à presença de Deus (Hb 10.19-22; veja 4.14-16).

Sacerdócios antigo e novo

P o nto de co m paração S a c e r d ó c io l e v it ic o C r is t o ,
nosso sum o sacerdote

N om eação P o r D e u s (5.1), P o r D e u s (5 .5 ,6 ),
m a s p o r m e io d o a p a r e c e n d o c o m o um
n a s c im e n t o s e g u n d o s a c e r d o t e s e m e lh a n t e
a o rd e m d e A rã o a M e lq u is e d e q u e
(5.4; 7 .1 1 ). (7 .1 5 ,1 6 ).
B ase da n o m ea çã o R e g u la m e n t a ç ã o le g a l " 0 p o d e r d e u m a v id a
s o b re a n c e s t r a lid a d e in d e s tr u t ív e l" (7 .1 6 )
n a tu r a l (7 .1 6 ), q u e foi e s o b o ju r a m e n t o
p o s ta d e la d o c o m o d ir e to d e D e u s
" fra c a e in ú til" (7 .1 8 ). ( 7 .2 0 -2 2 ,2 8 ).
N ú m e ro e M a n d a to M u ito s [...] s a c e r ­ S ó Je s u s p e r m a n e c e
d o te s , p o is a m o rte s a c e r d o t e p a ra
im p e d e q u e c a d a u m s e m p r e ; E le te m
d e le s c o n t in u e em um sa ce rd ó cio
seu o fício (7.2 3). p e rm a n e n te (7.2 4).

284
NOVO COiMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

S e rv iç o " A p r e s e n t a r o fe r t a s O fe r e c e u - s e e m
e s a c r if íc io s p e lo s o b e d iê n c ia à v o n t a d e
pecad o s" de Deus
(5.1; 8 .3 ,4 ; 9.9). (5 .7 -1 0 ; 1 0 .5 -1 0 ).
D is p o s iç ã o m o ra l "F ra co s", te n d o de C a p a z d e id e n tific a r-
o f e r e c e r s a c r if íc io s se co m a fra q u e z a
p e lo s s e u s p ró p rio s hum ana, m as é
p e c a d o s a n te s d e c o m p le t a m e n t e
f a z e r s a c r if íc io s e m sem p e cad o e
n o m e d e o u tro s s a n to (2.1 8; 4 .1 5 ;
(5 .2 ,3 ; 7 .2 7 ,2 8 ). 7 .2 6 ) e " c o n s t it u íd o
p e r fe ito " p o r m e io da
o b e d iê n c ia .
T ip o d e o fe rta (s ) S a c r ifíc io s d e a n im a is , O fe r e c e u - s e (7.2 7;
c o m o to u r o s e c a b r a s 9 .1 4 ,2 5 ,2 6 ) , ou
(9 .1 2 ,1 3 ; 1 0 .4 ) e se ja , S e u c o rp o
o fe r t a s d e c o m id a (1 0 .5 ,1 0 ,2 0 ) e s a n g u e
e b e b id a ; t a m b é m (9 .1 2 ,1 4 ; 1 0 .1 9 ,2 9 ;
a d m in is t r a r la v a g e n s 1 2 .2 4 ; 1 3 .1 2 ,2 0 )
c e r im o n ia is . q u a n d o s u p o rto u a
c ru z (1 2.2; v e ja 6.6).
F re q u ê n c ia " R e g u la r m e n t e " "U m a v e z p o r to d a s "
(9.6 ), " d ia a p ó s d ia " (7.2 7; 9 .1 2 ,2 6 ,2 8 ;
(7.2 7; 1 0 .1 1 ) e "a n o 1 0 .1 0 ).
a p ó s a n o " (1 0 .1 b ;
e s p e c ia lm e n t e n o D ia
da E x p ia ç ã o a n u a l
[9.2 5]).
E fic á c ia L im p e z a " e x t e r n a " Rem oveu
t e m p o r á r ia ; "fo ra m d e f in it iv a m e n t e o s
im p o s t a s a té a n o v a p e c a d o s (9 .2 6 ,2 8 )
o r d e m ” (9 .1 0 ,1 3 ); n ã o e to rn o u os
p o d e e fe t iv a m e n t e a d o r a d o r e s " p e r fe it o s
r e m o v e r p e c a d o s ou p a ra s e m p r e "
p u r ific a r a c o n s c iê n c ia (1 0 .1 4 ), p u r g a n d o
(1 0 .4 ,1 1 ), p o rta n to , c o m p le t a m e n t e s u a s
n ã o p o d e to r n a r c o n s c iê n c ia s d a c u lp a
o s a d o ra d o r e s dos pecados
" p e r fe it o s " (9.1 4; 1 0 .2 2 ).
(7 .1 1 ,1 9 ; 9.9; 1 0 .1 ,2 ).

285
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Lugar " U m s a n t u á r io q u e é " 0 m a io r e m a is


c ó p ia e s o m b r a ” d o p e r fe ito t a b e r n á c u lo "
c e le s t ia l (8.5); um (9 .1 1 ), "o v e r d a d e ir o
t a b e r n á c u lo te rre n o , t a b e r n á c u lo q u e o
fe ito p e lo h o m e m S e n h o r e r ig iu " (8.2);
(9 .1 ,1 1 ,2 4 ). n ã o fe ito p e lo h o m e m ,
n ã o fa z p a rte d e s s a
c ria ç ã o , e id e n t if i­
c a d o c o m o p ró p rio
c é u (9.2 4; v e ja 8.1,5;
9 .2 3 ).
P a cto U m m a r c o le g a l Je s u s g a ra n tiu a
q u e fo i a n u la d o " s u p e r io r " (7 .2 2 ),
( 7 .1 1 ,1 2 ,1 8 ); u m a " n o v a " a lia n ç a
a lia n ç a q u e e ra (8 .8 ,1 3 ; 9 .1 5 ; 1 2 .2 4 ).
d e fe itu o s a , o b s o le ta P ro fe tiz a d a n o AT
e "a p o n to d e (8 .8 -1 3 ; 1 0 .1 5 -1 7 ),
d e s a p a r e c e r " (8.8, "se n d o b asead a
13). E m v ig o r "a té em p ro m e ssa s
o te m p o da nova s u p e r io r e s " (8.6 ) e
o r d e m " (9.1 0). no s a c r if íc io s u p e r io r
d e C r is t o (9.1 5,
23; 1 2 .2 4 ). É u m a
" a lia n ç a e te r n a "
(1 3 .2 0 ).
R e s u lta d o s : a d o r a ç ã o A c e s s o lim ita d o a A cesso ousado à
D e u s ( s o m e n te p e lo p re se n ça de D eus por
su m o sa c e rd o te m e io d o " n o v o e v iv o
u m a v e z p o r ano) c a m in h o " d o s a c r ifíc io
e n q u a n t o o p r im e ir o d e C r is to (1 0 .1 9 ,2 0 ;
t a b e r n á c u lo e s t iv e s s e v e ja 4 .1 6 ; 9 .1 4 ;
d e pé (9 .7 ,8 ). 1 3 .1 0 ).
R e s u lta d o s : s a lv a ç ã o A p e n a s so m b ra s e C o m p le t a , " s a lv a ç ã o
in d ic a d o r e s p a ra e t e r n a " (5.9; 7 .2 5 a ),
" b e n e f íc io s q u e h ã o " r e d e n ç ã o " (9 .1 2 )
d e v ir " (1 0.1; v e ja e " h e r a n ç a " (9.1 5).
8.5; 9 .2 3 ), fo r n e c e n d o C r is t o " v iv e s e m p r e
a p e n a s lim p e z a p a ra in t e r c e d e r " p o r
c e r im o n ia l t e m p o r á r ia n ó s (7 .2 5 b ) e g a ra n te
(v e ja E fic á c ia na a a lia n ç a (8.6; 9.15 ;
p á g in a a n te rio r). 1 2 .2 4 ). E le tra rá a
s a lv a ç ã o fin a l e m S u a
s e g u n d a v in d a (9.28;
1 0 .3 7 -3 9 ).

286
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

■ 2 6 Hebreus 7.26-28 é um parágrafo cuidadosamente construído que conclui


os argumentos do capítulo 7 e serve como uma transição para os argumentos
subsequentes (veja Ellingworth, 1993, p. 383). Emprega um inclusio relacio­
nando lei e perfeição (v. 11,12,28) e outro envolvendo juramento (v. 20,21,28).
Assim, os versículos 26-28 concluem tanto 7.11-28 como sua segunda metade
nos versículos 20-28. Esses versículos também servem como contrapartida à
introdução de Melquisedeque em 7.1-3. Estilisticamente, tanto os versículos
1-3 como os versículos 26 e 27 são sentenças periódicas. Os versículos 3 e 26
empregam muitos dos mesmos dispositivos retóricos (isócolo, assíndeto, alite-
ração, assonância e quiasma; ->v. 3; veja Attridge, 1989, p. 212).
A primeira palavra no texto grego do versículo 26, “tal” (toioutos),
aponta tanto para trás como para frente. E uma forma intensiva do pro­
nome demonstrativo “este \houtos\’ usado para Melquisedeque em 7.1 e 4.
“Tal sumo sacerdote” [um su m o sacerd ote c o m o este], cujas qualidades
foram descritas em 7.1-25, é descrito nos versículos 26-28. Em 8.1 o prega­
dor identifica Jesus com a mesma expressão, “tal sumo sacerdote”, forjando,
assim, uma ligação entre os capítulos 7 e 8.
O caráter eterno e permanente do sacerdócio de Jesus dom inou os ar­
gumentos anteriores. Aqui, o pregador reafirma Sua excelência moral (veja
4.14— 5.10). Jesus é o Sumo Sacerdote que “atende à nossa necessidade”
[que p recisávam os] . Hebreus afirmou corajosamente em 2.10 que “con­
vinha” que Deus aperfeiçoasse o Filho “mediante o sofrimento”. Agora ele
declara que tal sumo sacerdote era “adequado para nós” (NASB, N ET). O u
seja, Ele é “adequado à nossa necessidade” (REB) de santificação. O prega­
dor demonstra a perfeição moral de Jesus por meio de uma lista de cinco
itens (v. 26) e depois por meio de outro contraste entre Jesus e os sacerdotes
levíticos (v. 27,28).
Primeiro, nosso Sumo Sacerdote é san to (hosios). Esse termo não per­
tence à família mais comum de palavras do N T para santidade (cognatos de
hagios, ocorrendo vinte e oito vezes em Hebreus). A palavra hosios aparece
apenas aqui, em Hebreus. Embora possa transmitir associações meramente
de culto, tem um significado religioso mais amplo na LXX. Lá, ela descre­
ve aqueles cujo relacionamento com Deus e com os outros é caracterizado
pela fidelidade à aliança (Sl 12.1; 18.25; 30.4; 32.6; 37.28; 50.5; 79.1,2;
132.9,16; 149.1,2; veja Lane, 1991, p. 191; Balz, 1991c). Em Atos, Jesus
como o “santo” aponta para as profecias bíblicas sobre o cumprimento de
Deus de Suas promessas da aliança por meio da ressurreição do Messias (At

287
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

2.27; 13.34,35). O termo em Hebreus 7.26 retoma o tema da submissão


reverente e obediência de Jesus a Deus (em 5.7,8). Jesus não é meramente
santo em termos de uma consagração cultuai externa ao sumo sacerdócio.
Ele é santo em Sua disposição interior para agradar a Deus e fazer a Sua von­
tade (veja 10.5-10). Ele é “devoto”, “piedoso”, “agradável a Deus” (BDAG,
p. 728).
Segundo, Ele é incu lp ável (akakos). Essa é predominantemente uma
qualidade moral. Descreve alguém que é “inocente” (ACF, ARC, ARIB,
BKJ, BSEP, JFA, TB, VC) ou que está inteiramente livre de engano, malí­
cia ou duplicidade. Crisóstomo aponta para a profecia messiânica em Isaías
53.9 para ilustrar: “Nem houve qualquer mentira em sua boca” (Eleen e
Krey, 2005, p. 118; veja 1 Pe 2.22).
Terceiro, Ele é p u ro (amiantos) ou “incorrupto” (CEB). Esse termo
pode referir-se à pureza cultuai (“imaculado” [2 Mac. 14.36; 15.34]). Mas
mais frequentemente tem um sentido religioso ou moral mais amplo (veja
SS 3.13; 4.2; 8.20; H b 13.4; Tg 1.27; 1 Ciem. 29.1).
Quarto, Ele é separado d o s p ecad ores. Há uma divisão sobre a im­
portância dessa frase. Ela podería ser uma explicação adicional da pureza
moral de Jesus, pertencente aos três adjetivos anteriores (assim Crisóstomo
1996, p. 430; Hughes 1977, p. 274). Pode também se referir à localização
e status de Jesus na presença de Deus. Nesse caso, pertence à frase seguinte
(assim Attridge, 1989, p. 213; Lane, 1991, p. 192; Ellingworth, 1993, p.
394; Johnson, 2006, p. 195). Mas talvez essa seja uma falsa dicotomia (veja
Koester, 2001, p. 367). Os sentidos qualitativos e locais da santidade de
Jesus são inseparáveis.
Essa descrição de Jesus intensifica o impulso moral dos adjetivos ante­
riores, pois Ele é “não apenas livre do pecado, mas também separado dos
pecadores” (Bengel, 1877, 4:409). A semelhança linguística com 4.15 é
impressionante: Jesus “passou por todo tipo de tentação [...] sem pecado
\chõris h amar t i a s ] Ele é separado d o s p eca d o res (kechõrismenos apo tõn
hamartõlõn). Sua exaltação o coloca permanentemente além da fronteira
entre a impureza e a pureza cultuai. Consequentemente, Seu sumo sacerdó­
cio está envolvido na santidade de Deus, para sempre sem ser ameaçado por
qualquer corrupção ou contaminação da humanidade pecadora.
Quinto, e finalmente, Ele é exaltado acima dos céus. Essa é uma afirma­
ção cristológica fundamental que Hebreus faz sobre Jesus como Filho de Deus
e Sumo Sacerdote: Ele é exaltado à destra de Deus (1.3,13; 8.1; 10.12; 12.2;

288
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

veja 4.14). Isso prepara para um argumento-chave que Hebreus fará para a
superioridade do sacerdócio de Cristo. Jesus tem a distinção de realizar Seu
ministério de sumo sacerdote no santuário celestial, não em um tabernáculo
terrestre construído humanamente (veja 8.1,2,5,6; 9.23,24; 10.1).
B 2 7 A excelência moral de Jesus torna Seu sacrifício sumo sacerdotal insupe­
rável. Isso é expresso por meio de três contrastes:
Primeiro, o sacrifício que Ele ofereceu é superior. A o contrário de outros
sum os sacerdotes, ele não tem necessidade de oferecer sacrifícios de ani­
mais. Mais tarde, o pregador afirmará com ousadia: “É impossível que o sangue
de touros e bodes tire pecados” (10.4). Mas o Filho a si m esm o se ofereceu
como um sacrifício sem mácula a Deus (veja 9.14,25,26). Jesus não é apenas
o sacerdote perfeito oferecendo o sacrifício, mas também a vítima sacrificial
perfeita. Outras testemunhas do N T (G1 1.4; 2.20; Ef 5.2,25; 1 Tm 2.6; Tt
2.14; 1 Pe 2.24) da mesma forma enfatizam que Jesus se entregou a si m esm o
como sacrifício.
Segundo, por causa de Sua pureza moral, Jesus não precisa ser um dos
objetos de expiação. Em contraste com os outros sumos sacerdotes, não era
necessário que Ele sacrificasse prim eiro por seus próprios pecados e, depois,
pelos pecados do povo. Os sumos sacerdotes levíticos, devido à sua fraqueza
moral (5.2,3; 7.28), tinham de priorizar a expiação de seus próprios pecados
antes que pudessem oferecer sacrifícios pelos outros. Não é assim com Cristo.
Terceiro, portanto, o sacrifício de Jesus foi singular e definitivo. Os sumos
sacerdotes levíticos tinham de oferecer sacrifícios dia após dia, mas o sacrifício
de Jesus de si mesmo foi eficaz de um a vez por todas (efapax). Isso anuncia um
tema proeminente nos capítulos 9 e 10: o sacrifício final e irrepetível de Jesus
pelos pecados (bapax: 9.7,26,28; 10.2; ephapax·. 7.27; 9.12; 10.10).
H 2 8 Outro conjunto de três contrastes completa os argumentos do capítulo 7:
• A regulamentação legal do sumo sacerdócio levítico (a Lei) é coloca­
da em oposição ao juram ento confiável de Deus. Que o juramento
de Deus veio dep ois da Lei indica a prerrogativa divina de decretar
mudanças fundamentais na forma como Ele se relaciona com a hu­
manidade, estabelecendo uma “aliança superior” (7.22; veja Koester,
2001, p. 373).
• O antigo sacerdócio era composto por homens mortais, enquanto o
novo Sumo Sacerdote é o exaltado Filho de Deus.
• Como meros humanos, que são mortais e sempre sujeitos ao fracasso
moral, os sumos sacerdotes levíticos têm fraquezas, mas o Filho foi
constituído perfeito para sempre.

289
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Essas três antíteses resumem os pontos principais do argumento em 7.11-


27 (Lane. 1991, p. 194). A primeira resume os versículos 11-19. A segunda
assume a antítese nos versículos 20-25 entre a mortalidade e impermanência
do antigo sacerdócio e a permanência do novo sacerdócio “porque Jesus vive
para sempre” (v. 23,24). A terceira baseia-se na excelência moral de Jesus, dis­
cutida apenas nos versículos 26 e 27.
Com a frase perfeito para sempre, o tema da perfeição do Filho chega
ao fim. Desse ponto em diante, o pregador se concentrará na perfeição dos
adoradores (9.9; 10.1,14; 11.40; 12.23) ou na fé (12.2). O particípio foi aper­
feiçoado (teteleiõmenon ) é colocado no final da frase para dar ênfase. O tempo
do particípio em grego (o tempo perfeito) transmite uma ação passada que tem
uma força ou impacto contínuo. Isso é intensificado pela frase para sempre
(eis ton aiõna) do Salmo 110.4, usada pela última vez em Hebreus (mas veja
a variação dela em 13.8,21; a frase equivalente eis to diênekes em 7.3 se repe­
te em 10.1,12,14). A perfeição de Jesus consistiu em aprender a obediência
por meio do sofrimento e da morte (2.10; 5.8,9; veja 10.5-10). Deus garantiu
essa perfeição por toda a eternidade quando exaltou Jesus à Sua mão direita,
designando-o como “sumo sacerdote para sempre, segundo a ordem de Mel-
quisedeque” (5.6,10; 6.20; 7.17).

A PARTIR DO TEXTO

Com demasiada frequência, as coisas na vida que são de tremenda impor­


tância para nós (ou pelo menos pensamos que são) não são fáceis de entender
completamente. Muitas das coisas que nos dão segurança, liberdade de movi­
mento, conveniência ou até diversão são complicadas demais para a maioria
de nós explicar. Basta ler a documentação do seu computador, automóvel ou
sistema elétrico em sua casa. Ou tente ler as apólices de um seguro de saúde,
seguro de vida ou plano de aposentadoria. No entanto, todos nós podemos
compreender os benefícios que isso traz para nossas vidas.
O capítulo 7 de Hebreus está repleto de interpretações complexas e ima­
ginativas das Escrituras à luz da morte, ressurreição e exaltação de Cristo.
Argumentos detalhados envolvendo comparações entre o sacerdócio levítico e
o Filho requerem atenção cuidadosa para entendê-los. No entanto, o claro im­
pacto do sacerdócio eterno de Cristo nunca está longe da mente do pregador.
Embora extensas exortações aos leitores não sejam retomadas até 10.19-35, ele
não pode postergar chamar atenção para algumas das implicações do eterno
sumo sacerdócio de Cristo.
290
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

Primeiro, Jesus é “nosso Senhor” (7.14). Em outras partes do NT, a confis­


são de Jesus como Senhor ocorre em conexão com Sua ressurreição dos mortos
(ex.: At 2.36; 4.33; Rm 10.9; Fp 2.11). Apenas mais uma vez em Hebreus ocor­
re tal confissão personalizada, na bênção de 13.20,21, onde “nosso Senhor
Jesus” é “o grande Pastor das ovelhas” que Deus trouxe de volta dos mortos.
Nosso Senhor é um Sumo Sacerdote como Melquisedeque precisamente por­
que, ao contrário dos sacerdotes levíticos, Ele derrotou a morte (veja 2.14).
Seu sacerdócio reina supremo porque tem sua base no “poder de uma vida in­
destrutível” (7.16). Que outra força no mundo, agora ou no futuro, podería
comandar nossa lealdade e compromisso como o Senhor ressurreto?
Segundo, nosso grande Sumo Sacerdote introduziu “uma esperança su­
perior” (7.19) e garantiu “uma aliança superior” (7.22). Essas são bênçãos
escatológicas firmemente estabelecidas pelo próprio Deus por meio de um ju­
ramento (7.20,28). Elas são encenadas por meio da morte e exaltação de Jesus
e consistem em proximidade e relacionamento com Deus sem precedentes.
Cristo proporciona-nos acesso ininterrupto ao próprio céu. Nós “nos aproxi­
mamos de Deus” (7.19) ou “aproximamo-nos de Deus por intermédio dele”
(7.25). Não importa quão longe de Deus estávamos — ou sentíamos —, fomos
“aproximados mediante o sangue de Cristo” (Ef 2.13). O Filho de Deus, que é
inigualável entre a humanidade em Sua santidade — “separado dos pecadores”
—, “se ofereceu” por nossos pecados (Eíb 7.26,27), para que nós, pobres pe­
cadores, possamos ser purificados por nossa confiança em “aproximar-nos” do
“trono da graça” de Deus (4.16). Novamente, nas palavras de Paulo, por inter­
médio de Cristo, “obtivemos acesso pela fé a essa graça na qual agora estamos
firmes” (Rm 5.2).
Terceiro, em nosso eterno Sumo Sacerdote temos uma salvação abrangen­
te e sem fim. “Portanto, ele é capaz de salvar definitivamente aqueles que, por
meio dele, aproximam-se de Deus” (Eíb 7.25). Eu tive um professor univer­
sitário que disse uma vez (aludindo à KJV, “ele também é capaz de salvá-los
ao máximo”) que Cristo é capaz de salvar-nos “da sarjeta ao extremo”. Não
importa quanto nos afastamos do nosso Criador, não importa quão baixo te­
nhamos caído em nossa rebelião, Deus pode elevar-nos a “lugares celestiais em
Cristo Jesus” (Ef 2.6 ACF, ARA, ACR, BKJ, KJA). Nosso Sumo Sacerdote
está diante do tribunal do julgamento de Deus em nosso favor e advoga de for­
ma persuasiva por nossa salvação (1 Jo 2.1). Como “o Cordeiro que foi morto
desde a fundação do mundo” (Ap 13.8 BKJ; veja Ap 5.6,9,12), Ele agora “vive
sempre para interceder” por nós (7.25 KJV). Nenhum comentário melhor so­

291
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

bre a intercessão de Cristo pode ser feito do que na segunda e terceira estrofes
do hino de Charles Wesley, “Levanta-te, minha alma, levanta-te”:
Ele vive sempre acima
Para por mim interceder;
Seu amor redentor,
Seu precioso sangue a suplicar.
Seu sangue expiou por toda a nossa raça,
Seu sangue expiou por toda a nossa raça,
E asperge agora o trono da graça.
Cincoferidas sangrentas Ele carrega,
Recebidas no Calvário.
Elas derramam orações eficazes;
Elas imploramforte?nentepor mim.
“Perdoe-o, óperdoe”, elas clamam,
“Perdoe-o, ó perdoe", elas clamam,
“Nem deixe aquele pecador resgatado morrer!”

D. O m inistério su p erio r do sum o sacerdócio do


Filho (8 .1 -1 0 .1 8 )

POR TRÁS DO TEXTO

Tendo fornecido demonstração bíblica e argumentos em apoio ao ofí­


cio do sumo sacerdócio de Cristo (7.1-28; veja também 4.14—5.10; 6.20),
o pregador agora volta sua atenção para as funções superiores desse ofício
(8.1 — 10.18). Ele avança além dos argumentos baseados no Salmo 110.4, que
estabelece o Filho como Sumo Sacerdote como Melquisedeque, nunca mais
mencionando ou aludindo a esse texto.
Em vez disso, o Salmo 110.1 torna-se o subtexto para a série final de argu­
mentos na seção central. Esse importante texto foi citado pela primeira vez no
exordium (Hb 1.13; aludido em 1.3, e talvez em 4.14 e 7.26; ->1.13 anotação
complementar: “Salmo 110 em Hebreus”). A série final de argumentos é am­
parada por claras alusões ao Salmo 110.1 em Hebreus 8.1r e 10.12^,13. Essas
referências afirmam a dignidade celestial e a finalidade do ministério sumo
sacerdotal do Filho. Elas nos lembram da exposição do pregador do texto com­
plementar, Salmo 8.4-6, em Hebreus 2.5-18. Lá, ele descreveu o movimento da

292
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

encarnação, do sofrimento à glória exaltada, como a base para o serviço sumo


sacerdotal do Filho.
Outro texto (Jr 31.31-34) desempenha um papel equivalente, senão maior,
nessa longa série de argumentos. Também enquadra Hebreus 8.1 — 10.18. E a
citação mais longa e contínua do AT no NT. Como tal, ocupa quase metade
do capítulo 8 (8.8A12; 131 de 274 palavras em grego). Então, os trechos de
Jeremias 31.33 e 34 reaparecem em Hebreus 10.16 e 17. Esse texto atesta o
propósito de Deus de promulgar uma nova aliança na era final; e anuncia as
“promessas superiores” dessa aliança (8.6).
Como o capítulo 7, Hebreus 8.1 — 10.18 constrói argumentos para a su­
perioridade do ministério sumo sacerdotal do Filho. Faz isso por meio de uma
série de contrastes entre o ministério do Filho e o dos sacerdotes levíticos sob a
antiga aliança. O capítulo 8 prepara o cenário para as três fases do argumento
nos capítulos 9— 10, introduzindo três elementos do ministério superior do
Filho:
• santuário (8.1,2,5);
• pacto (8.6-13);
• sacrifício (8.3,4).
Então, primeiro, 9.1-14 contrasta o santuário terrestre com o “tabernáculo
maior e mais perfeito” de Cristo, bem como os sacrifícios sob cada ministério,
ineficazes e eficazes respectivamente.
Segundo, 9.15-28 compara a antiga e a nova aliança, ambas requerendo
sacrifícios sangrentos para sua inauguração.
Terceiro, 10.T18 leva a discussão a um clímax ao contrastar os repetidos e
ineficazes sacrifícios de animais sob a Lei com o sacrifício de uma vez por todas
de Cristo. A Nova Aliança põe em prática a nova obediência prometida e o
perdão decisivo. (Para uma análise detalhada da estrutura dos capítulos 8— 10,
veja Westfall, 2005, p. 188-230.)

NO TEXTO

1. Introdução ao ministério superior de Cristo (8.1-13)


I 1 -2 Hebreus 8.1,2 encabeça a transição (8.1-13) para a série final de argu­
mentos na seção central da homília. Os versículos 1-6 introduzem os temas
dominantes para os capítulos 9— 10. Um inclusio em 8.2 e 6 marca o tópi­
co central: ministério superior de Jesus (leitourgos, “ministro” [v. 2 TB; quem

293
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

serve]; leitourgia, “ministério” [v. 6]). Esse ministério é superior no que diz
respeito a Seu santuário celestial (v. 1,2,5), sacrifício (v. 3,4) e nova aliança (v.
6). Então, os versículos 7-10 apresentam o oráculo de Jeremias 31.31-34 para
demonstrar que a antiga aliança, defeituosa e obsoleta, exigia o estabelecimen­
to da Nova Aliança.
O m ais im portante do que estam os tratando introduz a principal afir­
mação da homília. Os oradores usavam o termo kephalaion para referir-se ao
“ponto principal” (ARIB, JFA, TB; “ponto central” [BSEP]) ou a uma sinopse
(“soma” [KJV]; “medula” [TYNDALE]) de seu argumento principal (BDAG,
p. 541; Thompson, 2008, p. 172; veja Quintiliano, Inst. 3.10.27).
O pregador expressa, de forma concisa, tanto o impulso exortativo como o
expositivo de seu sermão. Tem os um sum o sacerdote com ligações a partir de
7.26-28. Lá, ele falou de nossa “necessidade” de “tal \toioutos]”sumo sacerdote.
Aqui ele diz: “A questão é que temos o tipo de [toiouton, tal\ sumo sacerdote
que tenho descrito” (Westfall, 2005, p. 195; veja Ellingworth, 1993, p. 393).
Que Jesus é o nosso Sumo Sacerdote é a proposição essencial de todo o sermão
(2.17,18). Isso é fundamental para as exortações do pregador para um com­
promisso cristão mais profundo e esperança inabalável, que encerram as seções
argumentativas centrais do sermão (-> 4.14-16 e 10.19-25; veja também 3.1,6;
6.19,20).
Que o Filho se assentou à direita do trono da M ajestade nos céus é a
confissão cristã fundamental em Hebreus (3.1; 4.14; 10.23; veja 12.2; 13.15).
A frase lembra 1.3. No entanto, a origem da alegação pertence à tradição cristã
mais antiga (vejaMc 12.36 ||; 14.62 ||; 16.19; At 2.34; Rrn 8.34; 1 Co 15.25; Ef
1.20; Cl 3.1). A convicção, em última análise, surge do texto bíblico do Salmo
110.1 (citado em Hb 1.13; -> 1.13 anotação complementar: “Salmo 110 em
Hebreus”).
A representação da entronização do Filho (à direita do trono) lembra os
leitores da sujeição de Deus de todas as coisas a Ele no mundo que há de vir
(2.5-9; veja 10.12,13; 12.2). Majestade Q 1.3) é um circunlóquio para “Deus”.
A expressão nos céus repete um pensamento-chave expresso anteriormente em
4.14 e 7.26. Será crucial para os argumentos restantes do pregador. O minis­
tério e santuário do sumo sacerdócio de Cristo são celestiais, e não terrenos.
Portanto, seu serviço é superior ao do culto levítico (veja 8.4,5; 9.11; 9.23,24).
A expansão desse pensamento começa imediatamente em 8.2. O Filho ser­
ve, ou melhor, é um ministro (Íeitourgos; ocorrendo na maioria das traduções)
em um santuário divinamente construído. O uso secular de íeitourgos (e seus
cognatos) pertencia a qualquer tipo de serviço público, mas na LXX é restrito
294
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

ao serviço do templo de sacerdotes e levitas (Balz, 1991b; Thompson, 2008, p.


172) . Assim, Lane traduz, “sacerdote ministrante” (1991, p. 200, s.d.).
O Filho é um ministro no santuário. O plural neutro tõn hagiõn {de coisas
sagradas [veja TYNDALE]; “no lugar santíssimo” [NTLH]) pode referir-se
geralmente aos recintos sagrados e objetos do verdadeiro tabernáculo (Bucha­
nan, 1972, p. 133). Alguns estudiosos (ex.: Hughes, 1977, p. 281-282; Lane,
199L p· 200-201, n.e.) interpretam a expressão “do santuário e do verdadeiro
tabernáculo” (ARC) como um hendíade: N o santuário, no verdadeiro taber­
náculo. No entanto, santuário pode referir-se mais especificamente ao lugar
santíssimo dentro do tabernáculo (como em 9.3,12,24,25; 10.19; 13.11). A
referência anterior do pregador a Jesus entrando “no santuário interior por trás
do véu” em 6.19 apoia essa leitura (Attridge, 1989, p. 217; Thompson, 2008, p.
173) . Outros estudiosos são evasivos sobre se Hebreus faz uma distinção entre
o santuário interno e a tenda como um todo (France, 2006, p. 106; Johnson,
2006, p. 199).
O verdadeiro tabernáculo não está sendo contrastado com um falso, mas
um que é apenas um exemplo ou uma mera sombra do verdadeiro (veja 8.5).
Que o tabernáculo celestial seja exclusivamente de origem divina, que o S e­
nhor erigiu, e não o hom em , reforça esse ponto. O pregador repete isso em
9.11 e 24. Seus argumentos estão de acordo com outras críticas do N T aos tem­
plos terrenos feitos por mãos humanas (At 7.48-50; 17.24,25; deSilva, 2000a,
p. 281, n. 36). Os santuários humanos são transitórios e nunca totalmente dig­
nos da presença divina. O verdadeiro tabernáculo pertence à mesma ordem
que o descanso prometido (cap. 4), a pátria celestial e a cidade duradoura “cujo
arquiteto e edificador é Deus” (11.10,16; 13.14), e o Reino inabalável (12.28;
Bruce, 1990, p. 182).
f ll 3 - 4 O pregador agora compara e contrasta o ministério do sumo sacerdó­
cio do Filho com o dos sumos sacerdotes comuns. Todo sum o sacerdote é
constituíd o para apresentar ofertas e sacrifícios repete a definição em 5.1.
Oferecer ofertas e sacrifícios pelos pecados é a função primária de um sumo
sacerdote (9.9), e por isso era necessário que o Filho tam bém tivesse algo a
oferecer. Se Cristo vai agir como um Sumo Sacerdote, então, por necessidade
lógica, deve fazer uma oferta de sacrifício (veja outros apelos à necessidade ló­
gica em 7.12,27; 9.16,23).
A referência indescritível à oferta de algo de Cristo é intrigante, especial­
mente considerando quão proeminente o sacrifício será nos capítulos 9— 10.
No entanto, uma descrição mais completa talvez fosse supérflua para os objeti­
vos retóricos aqui. A mais breve referência à oferta de Cristo é suficiente para

295
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

concentrar-nos na introdução dos temas do santuário e da aliança. A natureza


e a eficácia do sacrifício de Cristo serão totalmente desenvolvidas e entrelaça­
das com esses temas nos capítulos 9— 10.
O versículo 3 recorda os leitores da definição da função do sumo sacerdote
em 5.1-3, bem como as ofertas reverentes e obedientes do Filho de “orações e
súplicas” em 5.7,8 (um “laço coeso”; então, Westfall, 2005, p. 194). Além disso,
apenas momentos antes, em 7.27, o pregador havia contrastado os sacrifícios le-
víticos com o sacrifício de “si mesmo” de uma vez por todas. Como parte de um
padrão discernível, 8.3 refere-se aos sacrifícios repetidos sob a antiga aliança no
tempo presente (prospherein, oferta-, veja 7.27; 8.4; 9.7,9,25; 10.1,2,8,11). Mas
ele consistentemente se refere ao sacrifício decisivo de Cristo no tempo aoristo
(prosenenkê, “tinha [algo] a oferecer” [REB]; veja 7.27; 9.14,28; 10.12; assim
Vanhoye, 1959, seguido por Lane, 1991, p. 201 n.f; Koester, 2001, p. 377).
O foco em 8.4 não está no sacrifício de Cristo em si, mas no local de Seu
serviço sacerdotal. É um argumento contrário: Se ele estivesse na terra, nem
seria sum o sacerdote. Nosso grande Sumo Sacerdote não está mais na terra
(veja 5.7), mas ministra no verdadeiro santuário celestial (8.1,2). Conforme já
observado em 7.13,14, Sua linhagem humana da tribo de Judá o teria desquali­
ficado para ser um sacerdote levítico, quanto mais um sumo sacerdote.
Além disso, já existem aqueles que apresentam as ofertas prescritas
pela lei. A menção de ofertas sendo oferecidas “segundo a lei” (ACF, ARA,
ARC, ARIB, NAA; veja TB) lembra a discussão sobre a ineficácia da lei (->
7.16,19,28). Ele também antecipa a descrição da lei, com seus regulamentos
para sacrifícios, como uma mera sombra do sacrifício da Nova Aliança de Cris­
to (-> 10.1-18).
5 O status inferior do santuário terrestre é declarado e apoiado pelas Escri­
turas. Os sacerdotes levíticos servem num santuário que é cópia e sombra
daquele está nos céus. A palavra hipodeigma não significa cópia, embora seja
traduzida como tal em muitas versões (ex.: CEB, ESV, GNT, HCSB, NAB,
NASB, NCV, NKJV, NLT). Ao contrário de Attridge (1989, p. 219), ela nun­
ca é usada nesse sentido na LXX, nem em nenhum outro lugar da literatura
grega (veja Flurst, 1990, p. 13-14). O sentido usual não é uma cópia, mas algo
a ser copiado, portanto, “esboço”, “símbolo” (BDAG, p. 1037), “esboço” (LEB,
NET, NRSV), “padrão” (GW ), “exemplo” (KJV; veja TYNDALE), ou “mo­
delo” (NJB).
O termo som bra {skia) é usado na filosofia platônica. Segundo o plato-
nismo, os fenômenos terrenos (percebidos pelos sentidos físicos) são sombras,
imagens ou imitações das próprias realidades (as formas ou ideais, inteligí­
296
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

veis à mente). É discutível se Hebreus se apropria das categorias platônicas de


pensamento e, em caso afirmativo, até que ponto (veja Hurst, 1990). A única
outra ocorrência de som bra em Hebreus (10.1) sugere que ele está mais pre­
ocupado com a relação horizontal, escatológica entre sombra e realidade, do
que com a relação vertical, metafísica (observe a perspectiva escatológica em
9.8,10,11,15,26). A tenda terrena é apenas um “símbolo nublado” (8.5 REB)
do santuário celestial em que Cristo entrou no “tempo da nova ordem” (9.10).
No entanto, existe uma disparidade metafísica entre o santuário terrestre e
“as coisas celestiais” (ESV, HCSB, KJV, LEB, NASB). O tabernáculo constru­
ído por Moisés era derivado e secundário. A admoestação do Senhor a Moisés
em Êxodo 25.40 sustenta isso: Tenha o cuidado de fazer tu d o segundo o
m odelo [typos] que lhe foi mostrado no monte. O m od elo ou projeto divino
foi usado para construir um tabernáculo terrestre que era apenas uma “cópia
[antitypes]” (9.24) ou prenuncio do santuário eterno e celestial.
H 6 Esse versículo é a pedra angular do capítulo 8. Primeiro, ele encerra a
apresentação dos temas dominantes em 8.1-6 para os capítulos 9 e 10. A men­
ção do ministério superior de Jesus (leitourgias) completa um inclusio com 8.2
(ministro, leitourgos). Além disso, enquanto o versículo 1 continha ecos do
prólogo (1.3), o mesmo acontece com 8.6 (1.4). Em segundo lugar, introduz
formalmente a melhor aliança (dada a garantia bíblica em 8.7-13). Terceiro,
a proeminência desse versículo é sinalizada por uma repetição tripla de termi­
nologia, designando o ministério de Cristo como superior (diaphorõteras) e a
Nova Aliança com Suas promessas fundamentais como superior ou melhor
(,kreittonos, duas vezes).
Mas agora provavelmente soa uma nota de cumprimento escatológico
(veja 1.1,2a:; Koester, 2001, p. 378; compare 9.10,11,15,26). Isso é reforça­
do por uma semelhança adicional com o prólogo. Assim como o Filho é tão
superior aos anjos quanto o nome superior que Ele herdou (1.4), assim Seu m i­
nistério sumo sacerdotal é tão superior ao da antiga aliança, e a nova aliança
em que Ele é mediador também se torna superior.
Em 7.22, a designação de Jesus como o “fiador” (NIVU, ARA) de uma
“aliança superior” antecipou Seu papel como m ediador aqui. Em Hebreus,
m ediador é um termo técnico sempre associado à aliança (veja 9.15; 12.24).
A mediação de Cristo envolve tanto Sua vida terrena como Seu ministério
celestial. Sua morte foi o sacrifício da aliança que promulgou um novo rela­
cionamento divino-humano. Por esse meio, Ele decisivamente resgatou e
purificou os adoradores do pecado (-> 9.15-22). Como o sumo sacerdote trans­
cendente e eterno, Ele é a garantia de Deus de Suas promessas da aliança (6.17;

297
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

7.22). Jesus assegura a salvação completa e eterna (7.25a·, 9.15,28) e intercede


efetivamente pelo povo de Deus (7.25b; 12.24).

Mediador

M e d ia d o r (mesités) e ra o in t e r m e d iá r io q u e p o d ia c u m p r ir u m a ou
m a is fu n ç õ e s . E m q u e s tõ e s le g a is , u m m e d ia d o r p o d e s e r v ir c o m o á r b itr o
o u n e g o c ia d o r im p a r c ia l e m u m a d is p u ta , o u c o m o t e s t e m u n h a e f ia d o r
d e u m c o n t r a t o (v e ja 7 .2 2 ). E m u m c o n t e x to s o c ia l, o m e d ia d o r e ra um
c o r r e t o r q u e p o d e r ía u n ir d u a s p a rte s d e s ig u a is : a n g a r ia r o u tro c lie n t e fie l
p a ra u m p a tro n o e g a r a n t ir o s b e n e fíc io s n e c e s s á r io s d o p a tro n o p a ra o
c lie n te . E m u m c o n t e x to re lig io s o , o m e d ia d o r e ra u m in t e r c e s s o r ou a d ­
v o g a d o q u e re p r e s e n t a v a o s a d o r a d o r e s d ia n t e d e D e u s (B D A G , p. 63 4 ;
M M , p. 3 9 9; S á n g e r, 1 9 9 1 ).

A aliança superior de Jesus está baseada em prom essas superiores. O ver­


bo basear convida a uma comparação com 7.11. A lei mosaica foi estabelecida
(nenomothetêtai) com base em um sacerdócio levítico imperfeito (7.11); mas a
nova aliança é baseada (nenomothetêtai) em prom essas superiores.
As prom essas superiores são paralelas ao juramento divino cumprido no
sacerdócio de Cristo (6.18-20; 7.20-28) e a “esperança superior” introduzida
por Ele (7.19; veja 6.18; 10.23). Certamente essas promessas incluem “a he­
rança eterna prometida” (9.15); a entrada no descanso divino (4.1,3,6,9,11);
a melhor pátria celestial (11.16); a Jerusalém celestial (12.22); e o Reino ina­
balável (12.28; Hagner, 1990, p. 121). Mais imediatamente, o pregador pode
ter em mente as promessas proféticas da nova aliança catalogadas na citação
bíblica que segue em 8.8b-12. Mais tarde, ele destacará as promessas de nova
obediência e perdão conclusivo nesse texto (veja 10.16,17).
■ 7-13 A segunda metade da introdução no capítulo 8 desempenha um pa­
pel de apoio. Os versículos 7,8^ e 13 articulam o propósito principal de citar a
profecia de Jeremias 31.31-34 em Hebreus 8.8b-12: demonstrar a necessidade
de uma nova aliança.
A introdução à citação bíblica identifica tanto a própria primeira aliança
(8.7) quanto o povo que a recebeu (8.8a) como falhas. O versículo 7 empre­
ga o tipo de argumento cronológico e avaliativo típico de Hebreus (1.1,2a;
4.8; 7.11,17,18; 10.9; 12.26; Koester, 2001, p. 389; Thompson, 2008, p. 175-
176): Pois se aquela prim eira aliança fosse perfeita, não seria necessário

298
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

procurar lugar para outra. A prim eira aliança não foi “impecável \amemp-
tos\” (a maioria das traduções). Isso exigia outra ou uma segunda aliança. Mas
D eus também achou o povo em falta (memphomenos [8.8λ ]). O pregador
apoia essa dupla avaliação negativa com uma citação de Jeremias 31.31,32 em
Hebreus 8.8L·,9.
Estão chegando os dias provavelmente tem um significado escatológico
para os hebreus. Eles são “estes últimos dias” (1.2), ou seja, a era evangélica
chamada “hoje” (3.15), quando ainda há uma oportunidade de salvação antes
do “dia” final (10.25; Thompson, 2008, p. 170).
O próprio Senhor declara que na era final fará uma nova aliança. Esse
anúncio implica que a primeira aliaúça era defeituosa. Mas a nova não será
com o a aliança que fe z com seus antepassados (v. 9) durante o êxodo. Par­
ticularmente, não deixará de garantir compromisso e obediência duradouros
entre as pessoas. V isto que os israelitas não perm aneceram fiéis à Sua alian­
ça com eles, Ele se afastou deles. O drama trágico da rebelião da geração do
deserto e o abandono deles por Deus no deserto serviram de advertência ante­
riormente em Hebreus (3.7—4.13).
O pregador apresenta positivamente a nova aliança em 8.10-12 citan­
do Jeremias 31.33,34. Ele enumera quatro benefícios (“promessas superiores”
[8.6]). Dois deles receberão sua atenção mais tarde, em 10.16,17. Por enquan­
to, ele não faz comentários sobre as quatro bênçãos da Nova Aliança listadas na
profecia de Jeremias, mas certamente endossou cada uma delas.
Primeiro, porei m inhas leis em suas m entes e as escreverei em seus co ­
rações (8.10). Isso envolve mais do que a internalização da vontade de Deus.
Implica uma transformação da pessoa interior em direção à obediência ou con­
formidade com a vontade de Deus (veja esp. Koester, 2001, p. 386-387). Isso
é facilitado pela purificação da consciência por meio da auto-oferta de Cristo
(9.14; 10.22; contraste 9.9; 10.2).
Segundo, serei o D eus deles, e eles serão m eu povo. A ação de Deus
no Filho foi projetada para trazer “muitos filhos à glória” (2.10). Jesus veio
para resgatar (2.15) e reunir uma comunidade de adoração de irmãos e irmãs
(2.12,13) que “se aproximam de Deus” (7.19; 10.22; 12.22-24). Ele age como o
Filho fiel e sumo sacerdote sobre a família divina (3.1,2,6; 10.21). O sacrifício
expiatório de Cristo pelo “povo” (13.12; veja 2.17) e a disciplina de Deus sobre
Seus filhos (12.4-17) visam criar um povo santo (2.11; 12.11,14).
Terceiro, a profecia promete conhecimento sem precedentes do Senhor
(todos eles m e conhecerão [8.11]). Hebreus fala da inauguração na fé cristã

299
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

como sido “iluminada” (6.4; 10.32) ou por meio do recebimento do “conheci­


mento da verdade” (10.26).
Quarto, perdoarei sua m aldade e não m e lembrarei m ais de seus p e­
cados (8.12). O sacrifício de uma vez por todas de Cristo realiza esse perdão
definitivo dos pecados. Isso será crucial para os argumentos nos capítulos 9 e
10 sobre a superioridade do ministério sumo sacerdotal de Cristo (9.12,26-28;
10. 10 ).
Hebreus 8.13 leva a avaliação negativa da primeira aliança nos versículos
7 e 8λ ao seu fim lógico. Deus, cham ando “nova” essa aliança no oráculo de
Jeremias, tornou antiquada a primeira. Literalmente, Deus “tornou velha”
(ACR; veja ACF). Isso significa que Deus revogou a antiga aliança (veja TYN-
DALE). Isso é como o estabelecimento Deus do sacerdócio eterno do Filho,
que tornou necessário “pôr de lado” o regulamento fraco e inútil do antigo
sacerdócio (7.18; veja 10.9).
A conclusão lógica é que o que se torna antiquado e envelhecido está
p on to de desaparecer (lit.: “prestes a desaparecer” [NAA]; comparar 6.8).
Não é simplesmente que o antigo está perto de “acabar” (ACF, ARC). Deus
pronuncia a inevitável dissolução ou destruição da primeira aliança (Johnson,
2006, p. 109-110; Koester, 2001, p. 388).

2. O tabernáculo superior e mais perfeito (9.1-14)

M I O versículo 1 estabelece a agenda para a discussão em 9.1-14. Dois com­


ponentes dos arranjos de culto da prim eira aliança são destacados: regras
para a adoração e um tabernáculo terreno. O pregador aborda esses tópicos
na ordem inversa. Ele discute o arranjo do tabernáculo do deserto em 9.1-5
(observe o verbo kataskeuazõ nos v. 2 [“foi levantado”] e 6 [“estando prepara­
do”]). Então Ele atende ao Seu ministério sacerdotal em 9.6-10. Em 9.11-14,
ele compara o santuário e o serviço sacerdotal da antiga aliança (9.1-10) ao
ministério superior de Cristo.
Regras ou “ordenanças” (KJA, TB) para a adoração eram característi­
cos da antiga aliança (compare 7.5,16,18). Esse termo (dikaiõmata [9.1,10])
encerra a discussão do tabernáculo e as ações de culto sob a antiga aliança (9.1-
10; ou seja, outro inclusio). A adoração (latreia) envolvia vários ritos e ofertas
de sacrifício administrados por sacerdotes (8.5; 9.9). Estes foram concebidos
para preparar as pessoas (ex.: por meio da purificação cerimonial) para se apro­
ximarem do santuário para adoração (9.14; 10.2; 12.28). A adoração é uma

300
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

preocupação-chave nos três parágrafos seguintes: no início de 9.1-5; no início


e no fim de 9.6-10 (v. 6 [latreias, “ministério”] e 9 \latreuonta, “adorador”]); e
no final de 9.11-14 (v. 14 \latreuein, “servir”]). A adoração sob a nova aliança
é superior à da antiga porque proporciona uma preparação completa, e não
apenas externa, dos adoradores (compare 9.9,10 com 9.14).
Sob a antiga aliança, os sacerdotes ministravam em um tabernáculo terre­
no (ou seja, o tabernáculo construído por Moisés [8.5]). Era apenas um modelo
ou sombra do “celestial” (8.5 ACF, ARC, ARIB, BKJ, JFA, NAA, NVT, VC)
e tabernáculo “verdadeiro” (8.2; 9.24). Este último é “o maior e mais perfeito
tabernáculo” (9.11). E melhor porque “não é feito por mãos humanas” (9.11
KJA), mas “que o Senhor erigiu” (8.2).
% 2 -5 O tema desses versículos é anunciado em 9.2a: um tabernáculo foi es­
tabelecido. O pregador cataloga o arranjo do santuário em ordem quiástica
(Lane, 1991, p. 220):
A Arranjo da primeira câmara (9.2b).
B Nome da primeira câmara: “Lugar Santo” (9.2c).
B’ Nome da segunda câmara: “Santo dos Santos” (9.3).
A’ Arranjo da segunda câmara (9.4,5).
A A parte da frente continha três itens (9.2b):
• O candelabro ou menorá de sete braços feito de ouro puro (Ex 25.31-
40:37.17-24; 40.4,24).
• Uma m esa feita de madeira de acácia, revestida de ouro (Ex 25.23-30).
• O pães da Presença repousavam sobre a mesa. Eram chamados assim
porque pães frescos deveríam ser mantidos continuamente diante do
Senhor (Êx 25.30; 39.36; 40.23). Os doze pães — um sinal da aliança
de Deus com as doze tribos de Israel — deveríam ser reabastecidos
a cada sábado por um seleto grupo de levitas (lC r 9.32). Apenas os
sacerdotes levíticos podiam comer esse pão (Lv 24.5-9), com apenas
uma exceção histórica — Davi e seus homens em tempo de guerra (1
Sm 21.4-6; veja Mc 2.23-28 ||).
Essa primeira câmara foi cham ada Santo dos Santos (9.2 c). Por trás do
segundo véu, a cortina que divide as duas câmaras do tabernáculo, havia apar­
te chamada Santo dos Santos ou “Lugar Santíssimo” (9.3 NVT, OL, NTLH).
O segundo véu era importante para nosso autor, porque o sumo sacerdote
tinha de passar por ele no Dia da Expiação para fazer expiação pelo povo no
recinto sagrado do lugar santíssimo (Lv 16.1-34). Ele falou anteriormente de
um véu metafórico por meio da qual Jesus entrou no “santuário interior” ce­

301
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

lestial (6.19). Ele se referirá a esse véu novamente em conexão com o sacrifício
de Jesus (10.20).
O inventário do lugar santíssimo nos versículos 4 e 5 não é isento de di­
ficuldades. Um problema perene é Hebreus localizar o altar de ouro para o
incenso no santuário interno em vez do lugar santo. É duvidoso que o prega­
dor esteja referindo-se a um “incensário de ouro” (BKJ; “queimador de incenso
de ouro” [GW]). Esse foi um implemento relativamente incidental em com­
paração com os outros móveis, e mais provavelmente feito de latão, e não de
ouro. A sugestão de Attridge é atraente (1989, p. 234), de que as referências
no Pentateuco à localização do altar estão abertas à interpretação (Êx 30.6;
37.25-28; 40.5,26). Mas é, afinal, pouco convincente, porque os regulamentos
para o Dia da Expiação claramente colocam o altar de incenso fora do Santo
dos Santos (Lv 16.18). Contemporâneos do autor de Hebreus confirmam essa
localização (Fílon, Moisés 2.94-95, 101-104; Herdeiro 226; Josefo, G. J. 5.216-
18; Ant. 3.139-147; Lc 1.8-11; Lane, 1991, p. 220). É possível que Hebreus
siga uma tradição alternativa quanto à colocação do altar (como em 1 Rs 6.22
MT; 2 Mac. 2.4-8; e 2 Bar. 6.7). Mas mesmo essas passagens não localizam
positivamente o altar no santuário interno (e qualquer menção ao altar ou sua
localização está ausente de 1 Rs 6.22 LXX; Ellingworth, 1993, p. 426).
Talvez Hebreus não possa ser culpado por localizar o altar de incenso no
lugar santíssimo. Queimar incenso no altar era de vital importância para o que
acontecia no Santo dos Santos no Dia da Expiação (para que o sumo sacerdote
“não morra” [Lv 16.13; veja Nm 16.40]). Depois que o sumo sacerdote asper-
gia sangue na tampa da expiação (Lv 16.14,15), ele também aspergia nas pontas
do altar (Lv 16.18,19). Embora o altar de incenso não estivesse localizado no
lugar santíssimo, estava intimamente associado a ele no Dia da Expiação (assim
Hughes, 1977, p. 312-314; Hagner, 1990, p. 128; France, 2006, p. 112-113).
O mobiliário central do santuário interno era a arca da aliança, totalm en ­
te revestida de ouro. Na LXX, era chamada de “a arca do testemunho” (Êx
25.10), pois continha “os testemunhos” que Deus deu a Moisés (Êx 25.16,21;
40.20). Em Êxodo, eram as tábuas da aliança que Deus instituiu no monte
Sinai (Êx 31.18; 32.15; 34.29; veja Dt 10.5).
Apenas Hebreus lista o vaso de ouro con ten d o o m aná e a vara de Arão
que brotou como conteúdo adicional dentro da arca. De acordo com o AT,
esses itens foram colocados “diante do Senhor” (Êx 16.33) ou “diante do Tes­
temunho” (Êx 16.34; Nm 17.10 [ACF]), não na arca. Quando o templo de
Salomão foi mobiliado, a arca não continha nada além das duas tábuas de pe­
dra (1 Rs 8.9; 2Cr 5.10). Talvez Hebreus tenha considerado lógico que todos
302
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

esses sinais da aliança de Deus (tábuas da aliança), a provisão (vaso de ouro


contend o maná) e o sacerdócio escolhido sobre o antigo Israel (a vara de
Arão) teriam sido depositados na arca da aliança, particularmente quando o
tabernáculo era preparado para o transporte.
Acim a da arca estavam os querubins da Glória. Os querubins eram
imagens de criaturas celestes aladas, provavelmente com aparência de esfinge
ou grifo (Harrison, 1996). Dois deles foram feitos de ouro puro e posicionados
acima da arca da aliança, um de frente para o outro, com suas asas cobrindo a
tam pada arca (vejaÊx 25.18-22; 37.7-9). A maiusculização de G lória da NVI
reflete com precisão a função dos querubins como defensores e guardiões do
trono de Deus (veja 1 Sm 4.4; 2 Sm 6.2; 2 Rs 19.15; SI 80.1; 99.1; Is 37.16; Ez
9.3; 10.1-20).
A tam pa da arca era uma placa de ouro puro que funcionava como cober­
tura para a arca (Ex 25.17; 26.34; 31.7). Hebreus lista-a enfaticamente no final
da cláusula em 9.5b. Era chamada de tam pa da arca (“propiciatório” [ACF,
ARA, ARC, ARIB, BKJ, JFA, KJA, NAA, OL, TB, VC]) uma vez que era o
local onde a reconciliação ou expiação (heb. kappõret; gr. hilastêrion) era reali­
zada por meio de sangue aspergido no Dia da Expiação (Lv 16.13-15). A única
outra ocorrência do termo no N T está na referência de Paulo ao “sacrifício de
expiação \hilastêrion\” de Cristo em Romanos 3.25.
O comentário que encerra a descrição do tabernáculo parecería uma li­
nha descartável, se não fosse tão tentadora: A respeito dessas coisas não cabe
agora falar detalhadam ente (9.5c). Podemos apenas imaginar quais insights
tipológicos o pregador podería ter oferecido em relação a esses objetos sagra­
dos (veja France, 2006, p. 113, para algumas especulações sóbrias). Temos um
vislumbre de seu pensamento em 9.9 sobre o tabernáculo como “uma ilustra­
ção para os nossos dias”.
6 - 7 Estando tudo assim preparado \kateskeuasmenõn\ juntamente ao
texto em 9.2 (“foi levantado [kateskeuasthè\ um tabernáculo”) formam um
suporte em torno da discussão anterior do santuário terrestre (9.2-5). O versí­
culo 6 começa uma longa frase (9.6-10), destacando as principais “regras para
a adoração” (9.1). Os versículos 6 c 7 contrastam os ministérios sacerdotal e
sumo sacerdotal em cada uma das duas câmaras do tabernáculo. Então os ver­
sículos 8-10 detalham a importância divina desses contrastes, em termos do
acesso limitado à presença de Deus e á ineficácia dos sacrifícios do AT para a
preparação dos adoradores.
O pregador apresenta quatro antíteses nos versículos 6 e 7:

303
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

9.6 9.7
E s p a ç o e x t e r io r (= L u g a r Santo) E s p a ç o in t e r io r (= S a n to dos
Santos)
S a c e rd o te s (pl.) S o m e n te o su m o s a ce rd o te
En trav a m re g u la rm e n te E n trav a [...] a p e n a s um a vez
po r ano
E x e rce r o seu m in isté rio N unca sem a p re s e n ta r o s a n ­
g u e [...] q u e o fe re cia [...] p elos
pecados

Os sacerdotes comuns tinham acesso aberto ao espaço externo do taber-


náculo. Eles entravam lá regularm ente [dia pantos·, “continuamente” [ARA,
ARIB, JFA, NAA, TB, VC]; “repetidamente” [HCSB]). O objetivo de sua
entrada frequente era exercer o seu m inistério (tas latreias epitelountes). Esta
última frase é completamente cultuai. O substantivo latreia denotava serviço
cultuai ou adoração (BDAG, p. 587; Lane, 1991, p. 222), e o verbo epiteleõ
era amplamente usado em conexão com o desempenho de deveres religio­
sos, como atos rituais ou ofertas de sacrifício (BDAG, p. 383; MM, p. 247;
Johnson, 2006, p. 222). Os deveres sacerdotais incluíam ofertas e sacrifícios
regulares (diários, sábados, mensais ou em festivais anuais; veja Lv 1—7; Nm
28—29), mantendo as lâmpadas e o fogo do altar acesos (Êx 27.20,21; Lv
6.12,13; 24.1-4) e substituindo o pão da Presença a cada sábado (Lv 24.5-9).
Todas as suas funções estavam relacionadas com o ato de “cuidar do santuário
e do altar” (Nm 18.5).
O acesso ao espaço interno foi severamente restringido. Som ente o sumo
sacerdote podia entrar ali, apenas um a vez por ano. A ocasião é claramente o
rito anual de Yom Kippur/Dia da Expiação. O pregador ignora as prescrições
detalhadas em Levítico 16.1-34. Mas suas referências posteriores ao “sangue
de bodes e touros” (9.13; 10.4) sugerem que ele estava familiarizado com os
rituais do Yom Kippur.
Em vista disso, ele está interessado no componente essencial (sangue)
e no propósito central do Dia da Expiação (expiação dos pecados). O sumo
sacerdote entrava no lugar santíssimo uma vez por ano, nunca sem apresen­
tar o sangue (ou chõris baimatos). Hebreus reconhece o sangue como o meio
indispensável para a expiação — “nem [...] sem sangue” (9.18), e não “sem der­
ramamento de sangue” (9.22).
O sumo sacerdote sacrificava um novilho que ele oferecia por si m esm o
como oferta pelo pecado. Aspergia o sangue do touro sobre tampa de expia-

304
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

ção na frente dela, expiando seu próprio pecado e os pecados de sua casa (Lv
16.6,14). Então ele sacrificava um bode como oferta pelo pecado pelo povo.
Hebreus especifica que isso era p elos pecados que o povo havia com etido
por ignorância.
O âmbito da expiação de acordo com Levítico 16.16,21 (“todos os seus
pecados”) parece abranger até mesmo os pecados deliberados. Mas Hebreus
corretamente discerne a expiação como limitada a pecados não intencionais
(veja Lv 4.1—5.19; Nm 15.22-29). Aqueles que pecaram desafiadoramente es­
tavam sujeitos à pena de morte (Êx 21.14; Nm 35.20,21,30,31; D t 17.12) ou
ao seu equivalente — exclusão do povo de Deus (Nm 15.30,31). Yom Kippur
não podería beneficiá-los. Hebreus mantém a posição rigorosa de que os pe­
cados rebeldes ou arbitrários são imperdoáveis (Hb 6.4-8; 10.26-31; 12.17; -»
5.2). Isso não ocorre simplesmente porque tais pecados são deliberados e com
pleno conhecimento (veja 10.26), mas porque eles desafiam a própria aliança e
tratam suas promessas e bênçãos com desprezo.
B 8-10 A disposição do tabernáculo terrestre e os regulamentos para o ser­
viço sacerdotal em suas câmaras não eram fins em si mesmos. Sua inadequação
era em si reveladora, apontando para uma perfeição futura. O Espírito Santo
estava m ostrando, com isso, o acesso limitado à presença de Deus sob a antiga
aliança (v. 6,7), e ainda não havia sid o m anifestado o cam inho para o Santo
dos Santos (v. 8). Caracteristicamente, Hebreus atribui a revelação bíblica ao
Espírito Santo (veja 3.7; 10.15) e emprega um argumento da cronologia (veja
1.1,2*; 4.8; 7.11,17,18; 8.7; 10.9).
Enquanto ainda perm anecia o prim eiro tabernáculo funcionou como
uma ilustração ou “parábola” {parabolê; ARA, ARIB, JFA, NAA, TB) para
os nossos dias (v. 9). O nossos dias é o “hoje” em que os leitores vivem (3.13;
4.7), “nestes últimos dias” (1.2*) ou “o fim dos tempos” (9.26) inaugurado pela
vinda de Cristo. Uma vez que Cristo iniciou Seu ministério de Sumo Sacerdote
no verdadeiro tabernáculo celestial (8.1,2; 9.11,23-25), Ele abriu “um novo e
vivo caminho” para o santuário interior (10.19,20; 6.19,20), tornando, as­
sim, extinto o tabernáculo antigo e temporário.
A ilustração é elaborada no versículo 9 com respeito à inadequação das
ações levíticas de culto. A apresentação de ofertas e sacrifícios compreende a
definição essencial de Hebreus da função sacerdotal (-> 5.1; 8.3). O valor dos
regulamentos para o culto era severamente limitado. Isso é afirmado na negati­
va em 9.9 e na afirmativa no versículo 10.
Negativamente, as ofertas sob a antiga aliança não podiam dar ao adora­
dor uma consciência perfeitam ente limpa. Surpreendentemente, a maioria

305
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

das versões não conseguiram transmitir com sucesso o grego aqui. Algumas
versões (GW, NLT, NIV) efetivamente obscurecem o reaparecimento do im­
portante tema da “perfeição” . A tradução “quanto à consciência, não podem
aperfeiçoar aquele que faz o serviço” (ACF, ARA, ACR, ARIB; veja JFA, TB)
é uma ligeira melhoria. Da mesma forma, alguns comentários enfatizam insu­
ficientemente a exatidão da frase (ex.: Attridge, 1989, p. 242).
A expressão grega mostra claramente que não é a consciência que é
aperfeiçoada, mas o adorador. Com efeito, significativamente, esse versículo
define como Fdebreus concebe a perfeição dos adoradores, notada em outros
lugares sem qualificação (7.11,19; 10.1,14; 11.40; 12.23). O culto do AT não
podia “aperfeiçoar o adorador \teleiõsai ton latreuonta\ em consciência [kata
syneidésinX (NAB; veja KJV, NASB, NJB, TYNDALE). A REB expressa o
pensamento com mais clareza: “Não pode dar ao adorador uma consciência
limpa e, assim, levá-lo à perfeição”.

Consciência

A c o n s c iê n c ia é a f a c u ld a d e d a c o n s c iê n c ia m o ra l n o s s e r e s h u m a n o s .
N ã o só e s tá c ie n t e d o c a r á t e r d e n o s s o s p e n s a m e n t o s e a ç õ e s (b o n s ou
m a u s , h o n r o s o s o u d e s o n ro s o s ) , c o m o t a m b é m p r o n u n c ia ju íz o s o b re e le s
( a c u s a n d o o u d e fe n d e n d o ; v e ja R m 2 .1 5 ). E m H e b re u s , a to s p e c a m in o s o s
c o n t a m in a m a c o n s c iê n c ia ( c o m p a re c o m 1 C o 8 .7 ), d e m o d o q u e e la
p r e c is a s e r p u r ific a d a (H b 9 .1 4 ; 1 0 .2 ,2 2 ). U m a c o n s c iê n c ia c o n t a m in a d a
é " m a lig n a " o u " m á " ( 1 0 .2 2 A R A e A C F ), p o rta n to , " c u lp a d a ” (NVI). U m a
c o n s c iê n c ia lim p a é " b o a " ( 1 3 .1 8 BKJ, T B ), isto é, " lim p a " (NVI).
U m a m a lig n a c o n s c iê n c ia d e s q u a lif ic a e d e b ilit a a p e s s o a d e t e r liv re
a c e s s o à p r e s e n ç a d e D e u s . A v e r g o n h a e a t im id e z a s s o c ia d a s a u m a
c o n s c iê n c ia c u lp a d a s ã o a s a n t ít e s e s d a o u s a d ia e s e g u r a n ç a n e c e s s á r ia s
p a ra q u e o s a d o r a d o r e s s e a p r o x im e m d o t ro n o d a g r a ç a (4.1 6; 1 0 .1 9 ;
v e ja 3.6; 6 .1 1 ; 1 0 .2 2 ,3 5 ; c o n t r a s t e c o m 1 0 .3 7 -3 9 ).

Afirmativamente, a preparação para o culto sob a antiga aliança eram ape­


nas prescrições que tratavam de com ida e bebida e várias cerim ônias de
purificação (9.10). Tendo falado do papel dos sacerdotes em oferecer sacri­
fícios pelos pecados, o pregador volta a atenção para a responsabilidade dos
adoradores em cumprir as muitas leis de pureza. A referência à com ida, à b e­
bida e a várias cerim ônias de purificação é um conjunto para uma série de

306
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON H KBRHUS

regras de pureza (sobre comida e bebida, veja Let. Aris. 128,142,158,162; 1


Mac. 1.63; Josefo,Ant. 4.137; em ritos de limpeza, veja Lv 15; Nm 19; Mc 7.4;
Jo 11.55; veja Koester, 2001, p. 399).
Essas observâncias eram duplamente limitadas. Primeiro, no que diz res­
peito à sua eficácia, eles eram meras prescrições (veja REB; observe o inclusio
com 9.1, “regras para adoração”). Mais precisamente, eram “ordenanças da
carne \dikaiõmata sarkos]” (ARA, ARIB, BKJ, JFA, NAA, TB) ou “a carne”
(NAB). Eles afetaram a “vida exterior” (NJB), e não a vida interior do cora­
ção (-» 4.12). Hebreus não vê valor no consumo de alimentos cerimonialmente
puros. O que importa é o fortalecimento do coração pela graça (13.9; similar­
mente Jesus em Mc 7.18-23).
Em segundo lugar, tais regras eram temporárias. Elas se aplicaram, ou
melhor, foram “impostas [epikeimena]” (ACF, ARA, ARC, ARIB, BKJ, JFA,
KJA, NAA, TB), até o tem po da nova ordem (veja KJA). Essa tradução cap­
ta bem a importância escatológica da frase grega, embora a expressão tenha
se originado na esfera jurídica. O termo diorthõsis (nova ordem ) referia-se à
correção ou “reforma” (ARA, ARIB, BKJ, JFA, NAA, TB) de um código le­
gal pela abolição e substituição de estatutos desatualizados (Attridge, 1989, p.
243; Koester, 2001, p. 400). Já nos deparamos com esse procedimento legal em
Hebreus (7.12,18,22; 8.6,7,13; veja 10.9).
O tem po da nova ordem foi inaugurado pela ação sacerdotal de Cristo.
Portanto, é eficaz para os nossos dias (9.9). Mas esses dois selos de tempo não
são estritamente idênticos (veja Koester, 2001, p. 398; Ellingworth, 1993, p.
444). Tal como em outras partes do NT, Hebreus prevê uma tensão entre o
já e o ainda não em escatologia (-» 2.5 anotação complementar: “Escatologia
em Hebreus”). Muitos benefícios da era vindoura já estão sendo desfrutados
(3.1,14; 6.5; 9.11; 10.26; veja Rm 13.11; 1 Co 10.11; Gl 1.4), e a antiga or­
dem foi legalmente invalidada (veja Gl 3.23-25; 4.1-7). Mas a velha ordem não
desapareceu completamente (Hb 8.13; veja 13.10). Sua dissolução não esta­
rá completa até a segunda vinda de Cristo (9.28; 10.25; 12.25-27; veja 1 Co
.7.31; l j o 2.8,17).
■ 11-12 Alonga sentença grega em Hebreus 9.11,12 começa uma série de
contrastes que se estendem até o versículo 14:
• Novos e velhos sacerdotes.
• Os sacrifícios sangrentos sob as duas alianças, ou seja, a auto-oferta de
Cristo versus os sacrifícios de animais.
• O Espírito em oposição à carne.

307
HEBRF.US NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

• A profunda eficácia do sacrifício de Cristo (limpeza da consciência)


em contraste com os regulamentos meramente externos para a pureza.
• A realização do que apenas foi simbolizado pela velha ordem (Ellin-
gworth, 1993, p. 445).
De acordo com o entendimento de Hebreus sobre a revisão legal em 7.12,
a nova ordem não foi iniciada por meio do estabelecimento de um novo código
legal. Veio com o aparecimento de um novo sumo sacerdote. Q uando Cristo
veio não emprega o verbo habitual do N T para “vinda”. Em vez disso, o autor
usa um verbo que em outro lugar denota a chegada de alguém a um destino
(ex.: Gn 14.13; Êx 2.17; 2 Mac. 5.25; Lc 7.20; At 9.26; veja Koester, 2001, p.
407). A designação de Cristo como sum o sacerdote bem como o contexto
imediato (veja 9.12) indicam Sua chegada ao santuário celestial interior (veja
4.14; 6.19,20; 7.26; 8.1; 9.25; contraste 10.5).
O uso de paraginomai (a 9.11) em vez de erchomai (trinta e seis vezes em
Hebreus) transmite um significado adequado. Além disso, faz um jogo de pa­
lavras com b en efícios agora presentes. Cristo veio (paragenomenos) como o
sum o sacerdote dos b en efícios que têm vindo {genomenõn). A predileção dos
hebreus por jogos de palavras reforça a provável originalidade dc genomanõn,
em oposição à leitura alternativa mellontõn (“está por vir” [NIVmg]). A última
leitura é provavelmente uma assimilação do texto em 10.1 (vejaMetzger, 1994,
p. 598).
A expressão b en efícios evoca uma aplicação ampla, talvez englobando
todas as coisas que são “superiores” como resultado do sacerdócio de Cristo
(-» 1.4 anotação complementar: “Coisas superiores’ em Hebreus”). Elas cer­
tamente incluem todos os privilégios da nova ordem atualmente disponíveis
para aqueles que são “participantes de Cristo” (3.14) e “no Espírito Santo”
(6.4). Estes incluem a experiência da bondade da palavra de Deus e “os poderes
da era que há de vir” (6.5; veja 2.3,4) e acesso ousado à presença de Deus (4.16;
10.19-22). Mais apropriado a esse contexto, os b en efícios envolvem ministé­
rio e aliança superiores (S.6a-b). Os cristãos desfrutam de perdão e purificação
sem igual dos pecados por meio do sacrifício superior de Cristo (9.14,23; veja
10.10,12,14,18). Eles são os beneficiários de promessas superiores (8.6c): para
uma herança eterna (6.12; 9.15; 10.36), para a salvação (1.14; 2.3; 5.9; 9.28)
ou para a redenção (9.12).
A localização do ministério sumo sacerdotal de Cristo também é superior
à do antigo tabernáculo (veja 8.2,5; 9.1,24). Ele passou pelo m aior e mais per­
feito tabernáculo (9:11) para entrar n o Santo dos Santos (9.12). A mesma
frase m aior e m ais perfeito (meizonos kai teleioteras) é usada ocasionalmente
308
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

por Fílon para descrever algo muito mais adequado (Nomes 128; Leis Esp.
2.128). Essa expressão permite ao pregador utilizar mais uma vez a linguagem
da perfeição. O tabernáculo celestial cumpre mais perfeitamente sua função
como o verdadeiro e mais sagrado espaço onde Deus é adorado (veja 9.23,24).
O santuário terrestre meramente prefigurava ou se assemelhava ao celestial
(8.5; 9.9). O antigo tabernáculo foi comissionado por Deus. Mas foi estabe­
lecido por mãos humanas (8.2,5). O maior e mais perfeito tabernáculo é “o
artigo genuíno”, não uma réplica feita à mão (9.11; veja 8.2; 9.24). Jesus, as­
sim como outras testemunhas do N T (Mc 14.58; Jo 2.19-22; At 7.48; 17.24),
reconheceu a verdade profética: Deus não habita realmente em um templo
construído pelo homem, mas no céu mais elevado (Is 66.1,2; veja 1 Rs 8.27; 2
Cr 2.5,6; 6.18; Bruce, 1990, p. 212).
Hebreus identifica (isto é) a qualidade permanente e transcendente do
tabernáculo celestial: N ão pertencente a esta criação. Pertence a uma ordem
diferente do santuário terrestre: o Reino permanente e inabalável (deSilva,
2000a, p. 304-305). Possivelmente, Hebreus traça os movimentos de nosso
grande Sumo Sacerdote com uma cosmologia em mente. Cristo passou por um
homólogo celestial para a primeira câmara do antigo tabernáculo (o m aior e
m ais perfeito tabernáculo = passando “pelos céus” [Hb 4.14]), então entrou
no Santo dos Santos (= “o santuário interior” [6.19] ou acima “no próprio
céu” [7.26; 9.24]; anotação complementar em 4.14: “O s Céus' na cosmo­
logia antiga e em Hebreus”; Attridge, 1989, p. 247-248; Lane, 1991, p. 238).
Ainda assim, a linguagem de Hebreus pode simplesmente ser altamente meta­
fórica (Schenck, 2007).
Assim como o tabernáculo celestial é superior (compare 9.11 com os v.
1-5), assim também é a oferta de sacrifício de Cristo (compare o v. 12 com os
v. 6-10). Ele entrou não p or m eio do sangue de b od es e novilhos. Esse era o
meio anual de acesso para os sumos sacerdotes levíticos no Dia da Expiação (Lv
16.3,5-11,15,16,18,19; -» Hb 9.6,7).
Cristo entrou no Santo dos Santos, não com o sangue de vítimas brutas e
involuntárias de sacrifício, mas p elo seu próprio sangue. O pregador não atri­
buiu quaisquer qualidades mágicas ao sangue da aliança que o torna eficaz para
a limpeza (-» 9.16-22). O que é eficaz é a morte da vítima sacrificial, a entrega
de sua vida, vida em lugar de vida — “pois a vida da carne está no sangue” (Lv
17.11,14).
A frase pelo seu próprio sangue é uma sinédoque (uma figura de lin­
guagem em que a parte representa o todo). A morte de Cristo foi uma oferta
voluntária e obediente. O fluido hemático em si não era a preocupação do

309
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

pregador. Não foi apenas o “próprio sangue” de Cristo (veja Hb 9.25; 10.19;
12.24; 13.12) que Ele ofereceu. Ele entregou Sua “carne”/ “corpo” (10.5,10,20).
Ele deu “a si mesmo” (7.27; 9.14,25,26), Sua própria vida, para tornar possível
nossa eterna redenção (9.12).
Considerando que os sumos sacerdotes comuns tinham de oferecer ofer­
tas pelo pecado uma vez por ano (veja v. 7), Cristo se ofereceu uma vez por
todas (efapax; ->7.27). Seu sacrifício foi conclusivo, não exigindo repetição ou
renovação, tendo obtido a redenção eterna. A menção da redenção (,lytrõsin)
antecipa a referência à morte de Cristo como um “resgate para [as pessoas] [...]
\apolytrõsin\” dos pecados (->9.15; 11.35). A linguagem de resgate se aplica aos
meios de liberação de dívida, prisão ou escravidão (Kertelge, 1991).
Mesmo que o vocabulário de resgate não ocorresse em 2.5-18, conceitual-
mente já estava presente. A morte de Cristo liberta os herdeiros da promessa de
Deus do medo da morte (2.9,14-16). É verdade que a ênfase aqui no capítulo
9 é sobre a redenção dos pecados; mas também, ali (2.11,17), a obra santifica-
dora e expiatória de Jesus estava intimamente ligada ao Seu ato de libertação.
Tão definitiva é essa redenção que pode ser qualificada como eterna. Isso
corresponde às referências do pregador à “eterna salvação” (5.9; veja 2.10; 9.28)
ou “herança eterna” (9.15).
I 1 3 - 1 4 Esses versículos concluem 9.1-14 com um conjunto final de an­
títeses paralelas. O contraste no versículo 12 é estendido por meio de uma
comparação de menor para maior (qal wahomer) dos sacrifícios levíticos e au-
to-oferta de Cristo (v. 13,14). Tal como a conclusão de 9.1-10 nos versículos
9,10,o pregador avalia a eficácia limitada das ordenanças da antiga aliança para
a adoração aqui, nos versículos 13 e 14. Ele se baseia nessa conclusão para con­
solidar o argumento da superioridade e eficácia da auto-oferta de Cristo.
O sangue de bodes e touros mais uma vez alude ao Dia da Expiação
(10.3,4; -> 9.6,7), embora uma referência mais geral aos sacrifícios possa estar
em vista (Nm 7.15,16,87; 2 Cr 29.21,33; 30.24; Ed 6.17; 8.35; SI 50.13; 66.15;
Is 1.11; Lane, 1991, p. 239). Combinar uma alusão ao Yom Kippur com as cin­
zas de uma novilha é incomum. Os dois nunca são explicitamente associados
no AT (veja Nm 19.1-22). No entanto, Hebreus parece ver uma sequência de
ligações importantes entre eles:
Primeiro, ambos são ofertas pelo pecado (Lv 16.6,9,11,15,25; e Nm 19.9).
Segundo, ambos envolvem aspersão: sangue aspergido em ambos os ritos
(Lv 16.14,15,19; Nm 19.4); água aspergida de purificação preparada com as
cinzas da novilha vermelha (Nm 19.13,18,19,20,21).

310
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

Terceiro, ambos fornecem apenas limpeza superficial, aplicando-se apenas


sobre os que estão cerim onialm ente im puros. Isso é mantido nas referências
de Hebreus ao Dia da Expiação (9.9,10; 10.1-4) e aos sacrifícios levíticos em
geral (10.11,18). Com relação às cinzas da novilha vermelha, o rito destina­
va-se a purificar as pessoas que se tornaram cerim onialm ente impuras pelo
contato com cadáveres (Nm 19.1 T21). Assim, esse ritual era parte integrante
de todas as provisões de limpeza sob a antiga aliança. Isso significa que podiam
santificar as pessoas de form a que se tornassem exteriorm ente puras. Como
em -> 9.10, a purificação só podería ter como efeito “purgar a carne \sarkos\ ”
(Lane, 1991, p. 239; veja ESV, HCSB, KJV, NAB, NASB, NRSV).
Quarto, ambos os rituais eram realizados pelo sumo sacerdote. No caso
das cinzas da novilha vermelha, isso encontra maior apoio na prática tradicio­
nal (veja Koester, 2001, p. 410) do que nas prescrições bíblicas (Nm 19.1-4).
Quinto, Hebreus parece formular conexões entre o ritual da novilha ver­
melha e o sacrifício da aliança discutido mais adiante (-> Hb 9.18-22). Ambos
são ritos de purificação, envolvendo componentes semelhantes (compare Nm
19.6 com Hb 9.19) e a aspersão de sangue e água (-» segundo item anterior;
9.19-21; Thompson, 2008, p. 187).
O sacrifício de Cristo é superior em todos os níveis (quanto m ais, então)
aos da antiga aliança (v. 14). Seu sacrifício envolveu não o sangue de animais
sem sentido, mas o sangue de C risto (-> 9.12, “pelo seu próprio sangue”). Que
Cristo voluntária e obedientemente se ofereceu a si mesmo diferencia Seu
sacrifício. Seu sacrifício é espiritual e moralmente superior tanto em sua execu­
ção como em seus efeitos.
Cristo realizou Sua auto-oferta por meio da suprema capacitação es­
piritual: p elo Espírito eterno. A interpretação dessa frase é difícil. Alguns
estudiosos interpretaram isso como uma referência ao próprio espírito eter­
no de Cristo (Whedon, 1880, 5:103; Hughes, 1977, p. 358-359; Isaacs, 2002,
p. 114) ou uma referência geral ao modo eterno e espiritual de Seu sacrifício
(Johnson, 2006, p. 236). Mas é preferível ver isso como uma referência à obra
do Espírito Santo permitindo o sacrifício obediente de Cristo (veja Hagner,
1990, p. 137; Ellingworth, 1993, p. 457; Lane, 1991, p. 240; Koester, 2001, p.
410-11). Assim, é análogo à visão de Paulo de que a ressurreição de Cristo foi
efetuada pelo Espírito (Rm 1.4; 8.11; lTm 3.16).
Que Cristo se ofereceu de form a im aculada a D eus nos lembra de Sua
excelência moral. O termo im aculada (amõmos) tem ressonância tanto sacri­
ficial quanto moral (Nm 6.14; 19.2; 1 Pe 1.19; BDAG, p. 56). Hebreus nunca
descreve a irrepreensibilidade de Cristo em termos de qualquer falta de defei­

311
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

to físico ou externo, mas espiritual e moralmente: Sua disposição reverente e


obediente (5.7,8; 10.5-10) e santidade (4.15; 7.26-28; Attridge, 1989, p. 251;
Johnson, 2006, p. 238). Isso é precisamente o que qualifica o sacrifício de Cris­
to como exclusivamente aceitável a D eus (-» 10.5-10).
Os efeitos espirituais e morais do sacrifício de Cristo são insuperáveis. Em
vez de efetuar apenas a purificação carnal ou externa (9.10,13), a obra sacrifi­
cial de Cristo penetra no centro moral dos seres humanos. O que os sacrifícios
levíticos não puderam realizar, o de Cristo faz: purifica nossa consciência (-»
9.8-10 anotação complementar: “Consciência”). A contaminação que Ele ex­
purga não nos torna apenas cerimonialmente limpos. Ele nos purifica de atos
que levam à m orte, ou seja, pecados (-» 6.1). Considerando que os sacrifícios
levíticos não poderíam aperfeiçoar os adoradores (-> 9.9), o sacrifício de Cristo
nos prepara completamente de m o d o que sirvam os ao D eus vivo.
O modo de discurso é argumentative nos capítulos 7— 10. Mas, na con­
clusão desta subunidade, o pregador mais uma vez não pode resistir — seja
autorreflexivamente ou por design — colorir seu argumento com um tom pas­
toral (como no cap. 7; ->7.14,15,26). Ele atrai seu público como beneficiários.
A auto-oferta de Cristo purifica nossa consciência, para que nós estejamos
devidamente dispostos a adorar a Deus (Thompson, 2008, p. 187).

3. A morte sacrificial de Cristo inaugurou a nova aliança


(9.15-28)
11 15 A subunidade anterior (9.1-14) tratou a superioridade do ministério de
Cristo em termos de Seu tabernáculo superior e sacrifício eficaz, como 8.1-5
previa. Em 9.15-28, o pregador discute a superioridade do ministério de Cristo
em conexão com a inauguração de um a nova aliança (-» 8.6-11). Cristo é o
m ediador de um a nova aliança (-» 8.6; -» 7.22 em “fiador” [NIV11]). O prega­
dor demonstra longamente a necessidade da morte de Cristo para estabelecer a
nova aliança e efetuar Suas “promessas superiores” (8.6). O presente versículo
orienta a discussão nos parágrafos seguintes (9.16-22 e 23-28).
Primeiro, o ponto central da discussão é que Cristo morreu. Mais pre­
cisamente, o pregador enfatiza que “houve uma morte” (NTLH, NAA; veja
HCSB, NAB, NASB). Em 9.16-22 e 23-28, o pregador argumentará que uma
morte sacrificial era o meio “necessário” (9.16,23) para inaugurar a aliança e
consagrar o santuário celestial para o ministério sumo sacerdotal de Cristo.
Segundo, Hebreus descreve a morte de Cristo como um resgate (apoly-
trõsis) ou “redenção” (BKJ, NASB; v 9.12, “eterna redenção”). O sacrifício

312
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

de Cristo proporciona uma libertação decisiva pelas transgressões com eti­


das sob a prim eira aliança. O sacrifício de Cristo alcança o que os sacrifícios
sob a antiga aliança não puderam (9.13,14; 10.1-4). Embora tenha sido feita a
provisão para a aplicação de sangue como agente de purificação e fundamento
para o “perdão” (9.22), somente o sacrifício final de Cristo podería realmente
“eliminar” ou “tirar” pecados (9.26,28; veja 10.4,11).
Terceiro, o propósito (por essa razão) do sacrifício redentor de Cristo
é para que os que são cham ados recebam a prom essa da herança eterna
(-> 8.6, “promessas superiores”). O ponto será reafirmado no final dessa subu-
nidade com a referência a Cristo trazendo “salvação” para aqueles que estão
esperando Sua segunda vinda (9.28).
ü 1 6 - 1 7 Uma máxima no versículo 16 anuncia o tópico do primeiro pará­
grafo (9.16-22): a necessidade de uma morte para o estabelecimento de uma
aliança. No entanto, o autor subitamente muda sua referência de “aliança” para
um testam ento. Como a NYI aponta em uma nota de rodapé, a mesma pa­
lavra para “aliança [,diathêkê]” (veja 7.22; 8.6,8-10; 9.15,20; 10.16,29; 12.24;
13.20) é usada para significar vontade cm 9.16,17. O jogo de palavras pode ter
sido sugerido pela ideia de “herança” mencionada no versículo 15.
O pregador não está confundindo a ideia da aliança judaica (diathêkê na
LXX) com o uso greco-romano da mesma palavra para a disposição legal de
uma última vontade e testamento. Nem está incutindo um conceito no outro,
como alguns comentaristas sugerem (ex.: Lane, [1991, p. 244] insiste que a
palavra deve significar “aliança” em toda parte; veja Attridge, 1989, p. 255-
256; Bruce, 1990, p. 221-223; e Ellingworth, 1993, p. 462-463, para o debate
sobre esse assunto). Ele parece estar jogando conscientemente os dois usos, um
e outro, para fins de ilustração.
N o caso de um testam ento fornece uma analogia jurídica adequada. E
necessário comprovar a m orte de quem o fez (ou seja, o testador) para que
um testamento seja promulgado. O verbo traduzido como comprovar (pheres-
thai·, lit., “ser trazido [em/fora]”) foi usado em um sentido técnico-legal para a
apresentação de registro público ou prova de óbito (Whiter, 1993; L&N 70.8).
A razão (pois) para esse princípio é declarada tanto positiva como nega­
tivamente no versículo 17. Positivamente, um testam ento só é válido [“entra
em vigor” (V C )] no caso de m orte. Negativamente, nunca vigora enquanto
está vivo aquele que o fez (-» 6.13-20 anotação complementar: “Jargão jurídi­
co em Hebreus”). A força retórica desse argumento existe na medida em que
ele exige o consentimento universal, até os dias de hoje.

313
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Si 18-22 O que é verdade para uma vontade (v. 16,17) também se aplica a
uma aliança (v. 18). Por isso, nem a prim eira aliança foi sancionada sem san­
gue. O sangue simboliza vividamente a morte. O derramamento e a aspersão
de sangue em sacrifício consagrava os adoradores ritualmente e os purificava
dos pecados (v. 22,25,26). A morte sacrificial era necessária para sancionar,
isto é, “inaugurar [,enkainizõ]” (VC) a prim eira aliança.
A cerimônia inaugural da primeira aliança está registrada em Êxodo
24. Isso serve de base para a descrição em Hebreus 9.19-21. Mas Hebreus a
complementa com detalhes de outros rituais e eventos do AT. A água, a lã
verm elha e os ram os de h issop o eram usados no ritual da novilha vermelha
(Nm 19.6,18) e na limpeza de doenças da pele (Lv 14.4-7,51,52). O hissopo
pode ter sido usado para aplicar o sangue dos cordeiros da Páscoa nos batentes
das portas dos hebreus (Êx 12.22; veja Lv 4.4; Nm 19.18; Lane, 1991, p. 244).
Êxodo não faz menção de aspergir o próprio livro com sangue (Hb 9.19).
Tampouco Moisés podería ter aspergido o tabernáculo com sangue (9.21),
visto que ainda não havia sido construído; e, uma vez construído, foi dedicado,
não com sangue, mas com óleo de unção (Êx 40.9,16; Lv 8.11). Ao condensar
rituais e eventos, a maioria envolvendo a aspersão de sangue, Hebreus oferece
um comentário sobre todo o sistema sacrificial sob a antiga aliança (Thomp­
son, 2008, p. 191).
Hebreus (9.20) destaca apropriadamente a importância do sangue sacrifi­
cial para inaugurar a aliança citando Êxodo 24.8: Este é o sangue da aliança
que D eus ordenou que vocês obedeçam . O âmbito abrangente da dedica­
ção da aliança é enfatizado por toda parte: to d o s [pasês] os m andam entos (v.
19a); a to d o [panti] o povo (v. 19a); aspergiu o próprio livro e to d o \panta \
o povo (v. 19r); aspergiu [...] o tabernáculo e to d o s \panta] os utensílios das
suas cerim ônias (v. 21).
Essa ênfase leva naturalmente à conclusão no versículo 22: D e fato, segun­
do a Lei, quase todas \panta\ as coisas são purificadas com sangue. Hebreus
observa corretamente que quase (schedon; “praticamente” [NJB]) tudo foi pu­
rificado com sangue. Claramente a Lei autorizava rituais de purificação com
outros agentes purificadores (ex.: água em Lv 14.4; 15.11,13,16-18).
No entanto, o princípio geral permanece: Sem derram am ento de san­
gue não há perdão. Gregos e romanos, assim como judeus, acreditavam que o
sangue possuía um poder misterioso que efetuava a pureza cultuai (veja Koes-
ter, 2001, p. 420). Mas a compreensão dos hebreus concernente à capacidade
do sangue sacrificial de purificar pecados (9.7,13; veja 13.11) e afastar o mal

314
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

(11.28; veja Bõcher, 1990) está em dívida com o meio cultural judaico e com
o sistema cultuai do AT em particular. O “texto base” do sacrifício de sangue,
Levítico 17.11 (deSilva, 2000a, p. 311), chega mais perto de explicar como o
sangue expia os pecados: “Pois a vida da carne está no sangue”, então “é o san­
gue que faz propiciação pela vida”. Tirar a vida de uma vítima sacrificial libera
essa vida em benefício daquele que faz o sacrifício, de alguma forma efetuando
a expiação. Nova vida surge da morte.
Quer Hebreus tenha cunhado ou não a rara frase derram am ento de san­
gue (haimatekchysia), ela provavelmente foi abstraída da violenta expressão
“derramar sangue \ekchysis haimatos]” (veja 1 Rs 18.28 LXX; Sir. 27.15). A
imagem do sangue fluindo livremente transmite a tomada da vida; retrata a
morte sacrificial. O perdão resultante pode indicar a purificação do pecado,
uma vez que está emparelhado com a purificação nesse mesmo versículo (9.22;
veja 9.14; 10.2). No entanto, aphesis (perdão; também em 10.18) pode indicar
liberação ou libertação (ex.: Is 61.1 LXX; Lc4.18). A sobreposição com a mor­
te de Cristo como um “resgate [apolytrõsis]” (9.15) dos pecados dificilmente
pode ser acidental.
O princípio da expiação do AT se mantém, embora o pregador afirme que
os sacrifícios levíticos nunca poderíam ser realmente eficazes (veja 9.9,13,14;
10.4). A indispensabilidade da morte sacrificial, argumentada nesse parágrafo
(9-15-22), forma o pressuposto para o argumento do próximo parágrafo (9.23-
28): Cristo se ofereceu como o sacrifício definitivo.
B 2 3 -2 4 O versículo 23 tira uma conclusão do argumento anterior. Era
necessário paralelo ao “é necessário” no versículo 16. Sacrifícios foram neces­
sários para inaugurar a antiga aliança e consagrar todas as pessoas e objetos
(livro, tabernáculo, utensílios) associados a ela (-» 9.18-21). Assim foi também
com a nova aliança. O argumento vai do menor para o maior (qal wahomer).
Por um lado (homens), as cópias das coisas que estão nos céus precisavam
ser purificadas com esses sacrifícios (ou seja, sacrifícios da aliança, como “o
sangue de bezerros” em 9.19). Por outro lado {de, m as), as próprias coisas
celestiais precisavam ser purificadas com sacrifícios superiores. Isso levanta
duas questões difíceis:
Primeira, por que o pregador se refere a sacrifícios superiores (pl.), espe­
cialmente quando ele já caracterizou o sacrifício de Cristo como “uma vez por
todas” (7.27; 9.12)? Apenas levanta a questão para explicar que o plural é ge­
nérico e impreciso (Attridge, 1989, p. 261; Hagner, 1990, p. 146; Ellingworth,
1993, p. 476) ou simplesmente que ele corresponde gramaticalmente a esses

315
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

sacrifícios na cláusula anterior (Lane, 1991, p. 247; veja Johnson, 2006, p.


243). Em vez disso, o autor explora a simetria inerente entre a noção de sacri­
fícios (pl.), necessária para santuários terrestres e celestiais, para criar suspense
em seu argumento. A singularidade do sacrifício da nova aliança não é imedia­
tamente evidente por si mesma. Precisa ser demonstrada. Assim, o pregador se
esforçará para fazê-lo no argumento seguinte (9.25-28).
Segunda, a pergunta mais desconcertante é: por que era necessário que as
coisas celestiais fossem purificadas ? Consideramos quatro propostas principais
(para outras, veja Hughes, 1977, p. 379-382; Ellingworth, 1993, p. 477):
(1) A purificação refere-se à expulsão de Satanás do céu (Lc 10.18; Jo
12.31; Ap 12.7-9) ou à conquista das forças espirituais do mal nas regiões
celestiais (Ef 6.12). Essa visão, voltando a Tomás de Aquino, é estranha ao con­
texto atual.
(2) A purificação dos céus é puramente cerimonial (Spicq, 1953, 2:266-
267; Lünemann, 1890,p. 623; Ellingworth, 1993, p. 477). É uma “inauguração”
ou “consagração” da Nova Aliança. Não implica a remoção de qualquer conta­
minação ou impureza anterior. Essa visão simplesmente deixa de lado a noção
de purificação ao rotulá-la novamente como “inauguração” (definindo o verbo
“purificar [katharizõ\’ aqui pelo verbo “inaugurar [enkainizõ]” em 9.18). Tal
“jeitinho” não serve. A primeira aliança foi inaugurada precisamente por meio
do sangue do sacrifício, que proporcionou a purificação (9.22).
(3) As coisas celestiais são metafóricas (Bruce, 1990, p. 228-229; Attrid-
ge, 1989, p. 262; Thompson, 2008, p. 192). “As realidades celestiais ou ideais
purificadas pelo sacrifício de Cristo não são outras senão as consciências dos
membros da nova aliança” (Attridge, 1989, p. 262). Essa visão é atraente por­
que leva em consideração uma ideia importante apresentada anteriormente no
capítulo (9.9, 14; veja 10.2,22). Mas essas referências são demasiadamente re­
motas para serem aplicáveis aqui. Além disso, as referências espaciais são muito
pronunciadas (as próprias coisas celestiais [9.23]; o próprio céu [9.24]; Koes-
ter, 2001, p. 421), e o pensamento do pregador é muito sutil para ser reduzido
a um conceito espiritual ou psicológico.
(4) O próprio santuário celestial foi contaminado pelo pecado humano
e exigia purificação. Essa visão não deve ser desprezada com desdém como
“fantástica” (Moffatt, 1924, p. 132) ou “absurda” (Spicq, 1953, 2:266-267).
As instruções para o Yom Kippur prescrevem explicitamente expiação para o
lugar santíssimo, “por causa das impurezas e rebeliões dos israelitas” (Lv 16.16;
veja Lv 16.18; 20.3; 21.23; Nm 19.20). Os pecados do povo são a causa da con­
taminação no tabernáculo. Isso está de acordo com a descrição da cerimônia
316
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

inaugural em Hebreus 9.18-22. Ali o sangue do sacrifício foi empregado não


apenas para o perdão dos pecados do povo, mas para purificar o tabernáculo e
todos os seus utensílios (Lane, 1991, p. 247; G. Guthrie, 1998, p. 315).
A extensão em que a contaminação do pecado atua como uma barreira
entre Deus e Seu povo — até o mais alto dos céus — ocorre na mesma medida
do sacrifício de Cristo, que purifica de forma abrangente dos efeitos do peca­
do. Pois C risto não entrou em um santuário feito p elos hom ens (v. 24). A
preeminência do sumo sacerdócio de Cristo está associada ao Seu ministério
no santuário celestial. Que Cristo não entrou em um santuário feito por h o ­
m ens, uma sim ples representação do verdadeiro se assemelha à descrição do
santuário celestial em 8.2 (“o verdadeiro tabernáculo que o Senhor erigiu, e
não o homem”). Isso contrasta com a cópia terrena (veja 8.5) e “o maior e mais
perfeito tabernáculo, não feito pelo homem” (-» 9.11).
A exaltação de Cristo em “os céus” (4.14), “acima dos céus” (7.26) ou (lit.)
“nos céus” (8.1) agora chega ao clímax com a declaração de que ele entrou no
próprio céu. Isso é, sem dúvida, equivalente a Ele entrar “no santuário interior
por trás do véu” (6.19), isto é, o Santo dos santos (9.8; 10.19,20).
A descrição do ministério celestial de Cristo é extremamente compacta:
A gora se apresentar diante de D eus em nosso favor [hyper hémõn\. O verbo
apresentar (emphanizõ) pode sugerir Sua aparição em uma capacidade oficial
e representativa (veja MM, p. 208). A descrição parece uma versão abreviada
da definição da função do sumo sacerdote em 5.1: “Todo sumo sacerdote é
escolhido dentre os homens e designado para representá-los [hyper anthrõpõn\
em questões relacionadas com Deus e apresentar ofertas e sacrifícios pelos pe­
cados” (-» 8.3).
Cristo entrou no santuário interior “por nós [hyper hêmõn\” (6.20; “em
nosso lugar”) — nunca “por si mesmo [hyper heauton]” (9.7), como os antigos
sumos sacerdotes. Ele “vive sempre para interceder por eles [hyper autõn\" que,
“por meio dele, aproximam-se de Deus” (7.25). Ele não nos representa mera­
mente “em questões relacionadas com Deus [ta pros ton theon\” (2.17; 5.1);
Ele aparece por nós diante da face de D eus [tõ prosõpõ tou theou), isto é, na
presença de Deus. Cristo é o mediador direto entre Deus e Seu povo, como
nenhum outro sacerdote podería.
25 -2 6 O ministério sumo sacerdotal de Cristo é diferente do de outros
sumos sacerdotes, porque Ele serve no santuário celestial. De fato, “se ele es­
tivesse na terra, nem seria sacerdote”, pois já existem sacerdotes que oferecem
sacrifícios de acordo com a Lei (8.4). O que Cristo ofereceu foi a si mesmo.

317
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Mas Ele não entrou no céu para se oferecer de novo, mas para se oferecer re­
petidas vezes (9.25). O advérbio pollakis, repetidas vezes, recebe prioridade
enfática em sua oração.
Isso é diferente do fato de que somente o sum o sacerdote sob a antiga
aliança entrava no Santo dos Santos to d o s os anos no Dia da Expiação com
sangue alheio (ou seja, o sangue de animais sacrificados [9.7,12,13; 10.4]). A
implicação é que Cristo ofereceu “seu próprio sangue” (9.12; 13.12). Ele mes­
mo ofereceu Sua própria vida (7.27; 9.7,14,25,26). O pregador desvendará o
significado da auto-oferta de Cristo em 10.1-10.
O argumento de Hebreus assume a simetria entre os sacrifícios da antiga
aliança e os “sacrifícios superiores” (observe o pl.) da Nova Aliança (-» 9.23).
Mas como o “algo a oferecer” de Cristo (8.3) é Ele mesmo, múltiplos sacrifícios
sob a nova aliança levam a um absurdo. Se não fosse assim, C risto precisaria
sofrer m uitas vezes, desde o com eço do m undo (9.26a). O verbo sofrer (pa-
thein) é usado na tradição cristã da morte dolorosa de Jesus na cruz (Mt 16.21;
17.12; Mc 8.31; 9.12; Lc 9.22; 17.25; 22.15; 24.26,46; At 1.3; 3.18; 17.3; Hb
2.18 [veja 2.9,10]; 5.8; 13.12; 1 Pe 2.21,23; 3.17; 4.1).
O absurdo supõe:
• O Filho de Deus existia antes da “fundação do mundo” (ACF; o co ­
m eço do m undo; veja 1.2; 4.3).
• Os seres humanos pecaram desde o início dos tempos (Gn 3.1-24; Rm
5.12; veja 2 Bar. 23.4; 54.15; 4 Ed. 3.21,26; Koester, 2001, p. 422).
• O pecado continuou inabalável, exigindo expiação regular — como os
sacrifícios anuais do Yom Kippur (7.27; 9.7,25; 10.1).
O fundamento mais simples para refutar esse absurdo é o fato empírico
de que os seres humanos não morrem repetidamente. No entanto, isso é rebai­
xado para uma ilustração em 9.27. A refutação primária é teológica ou, mais
especificamente, escatológica: Cristo apareceu uma vez por todas no fim
dos tem pos (v. 26b). O verbo apareceu (pephanerõtai) conota a finalidade e a
conclusão da revelação ou manifestação escatológica (“manifestado” [TB]). E
encontrado em hinos cristológicos para marcar a aparição do Filho na encar­
nação (l Tm 3.16; 1 Pe 1.20; 1 Jo 1.2; veja 1 Pe 5.4). Dois marcos de tempo
qualificam essa aparência:
• Primeiro, um a vez por todas (bapax), como sua antítese repetidas ve­
zes (pollakis [9.25,26^]), é colocado enfaticamente na cláusula.
• Segundo, n o fim dos tem pos (que contrasta com desde a com eço do
m undo) traz à tona o caráter escatológico da aparição de Cristo.

318
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

Tal linguagem escatológica explícita não ocorreu desde a abertura da


homilia (“nestes últimos dias” [1.2a\; mas veja 1.6; 2.5; 4.3; 6.5). A frase fim
dos tem pos (synteleia tõn aiõnõn) denota a era final do mundo (“a culmina­
ção das eras” [NIV11]; “a consumação dos séculos” [ACF, ARC, ARIB, JFA,
TB]; “o clímax da história” [REB]). É usada em contextos apocalípticos (ex.:
T. Benj. 11.2; T Levi 10.2; T. Jó 4.6) e é uma expressão favorita em Mateus
(13.39,40,49; 24.3; 28.20; veja BDAG, p. 974-975).
A manifestação de Cristo de um a vez por todas é supremamente reali­
zada m ediante o sacrifício de si m esm o. O propósito da vinda de Cristo era
aniquilar o pecado (veja 9.28a). Hebreus recorre à terminologia legal para
falar da abolição (“abolir” [REB]) ou anulação do pecado (athetêsis; MM, p.
12; Attridge, 1989, p. 203; Koester, 2001, p. 422; veja 7.18; 10.28; -> 6.13-
20 anotação complementar: “Jargão jurídico em Hebreus”). De acordo com
as tradições apocalípticas judaicas e cristãs, a vinda do Messias traria um fim
ao pecado (S.S. 17.36; T Levi 18.9; i En. 62.2; 69-27). O texto em 1 João 3.5
e 8 se assemelha muito a essas tradições, e Flebreus, à afirmação de que Cristo
“apareceu [ephanerõthé\’ para “tirar os pecados” e “destruir a obra do diabo”.
27-28 Um fato de senso comum ilustra a qualidade definitiva do sacri­
fício de Cristo; O hom em está destinado a m orrer um a só vez e depois
disso enfrentar o juízo (v. 27). Era quase universalmente reconhecido, tan­
to no mundo judaico-cristão quanto no greco-romano, que os seres humanos
morrem apenas uma vez (hapax). Sim, uma minoria de pagãos se apegou à
doutrina da reencarnação (ou metempsychosis) — principalmente em dívida
com o pensamento pitagórico e platônico. Mas a maioria dos antigos comparti­
lhava o veredito de Homero: “Os homens morrem uma vez” (hapax thnêskous
anthrõpoi, Od. 12.22). A ideia de um juízo final além da morte também era
amplamente difundida, embora certas elites intelectuais satirizassem essa pers­
pectiva assustadora (a paródia clássica é os Funerais, de Luciano).
Deve-se ter em mente que o pregador está encerrando seu argumento em
9-15-28. O ponto principal dessa subunidade é a necessidade de uma morte
para inaugurar uma aliança. O sangue de bezerros foi usado para iniciar a pri­
meira aliança (v. 16-22). Mas, desde que Cristo ofereceu Sua vida humana, e os
humanos são designados a morrer apenas uma vez, então Cristo foi oferecido
em sacrifício um a única vez (hapax [v. 28]) para estabelecer a Nova Aliança.
Ecoando o pensamento do versículo 26b, o propósito de Sua morte era
tirar os pecados de m uitos. A palavra m uitos (simplesmente jnuitaspessoas
[pollõn\ em grego) não limita de forma alguma o alcance da expiação. A for­
mulação distintiva deve-se ao idioma semítico na fórmula do Servo Sofredor

319
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

em Isaías 53.12, que teve um efeito profundo na formulação das primeiras de­
clarações cristãs sobre a morte de Cristo (Mt 26.28; Mc 10.45; veja 1 Pe 2.24;
Attridge, 1989, p. 266; Lane, 1991, p. 250; Johnson, 2006, p. 45).
O N T reconhece um duplo padrão de movimento na vocação do Messias:
do sofrimento à glória (Lc 24.26; Hb 2.9; 1 Pe 5.1). Seus seguidores também
são atraídos para esse padrão (Rm 8.17,18; Ef 3.13; 1 Pe 4.13; 5.10). O padrão
é discernível aqui também. Na primeira vinda, C risto foi oferecido em sa­
crifício, mas aparecerá segunda vez. A palavra aparecer (opbthêsetai) difere
dos dois verbos anteriores nos versículos 24 e 26, também traduzidos como
“aparecer” na NVI. Usado nas aparições pós-ressurreição de Cristo (õpbtbê [Lc
24.34; At 13.31; 1 Co 15.5,6, 7,8]) , esse verbo está em casa em cenários apoca­
lípticos (veja lTm 3.16; Ap 11.19; 12.1,3). Aqui está o único uso do N T desse
verbo no futuro passivo. Denota o aparecimento de Cristo em Sua segunda
vinda (os paralelos mais próximos são Mt 24.30; 26.64; Mc 13.26; 14.62; Lc
21.27; Hb 12.14; 1 Jo 3.2; Ap 1.7; 22.4).
O segundo aparecimento de Cristo é “não tratar dos nossos pecados”
(NVT, OL GNT, GW, NRSV, REB; veja NLT) ou não para tirar o pecado
(HCSB, NET; veja NAB). O grego simplesmente lê chõris hamartias: “sem
pecado” (ARIB, BKJ,TB); “sem referência ao pecado” [NASB]) ou ‘aparte do
pecado” (NKJV). Sua morte sacrificial já cancelou efetivamente o pecado (Hb
9.26b,2%a) e purificou decisivamente sua contaminação (9.14,23; 10.4,22).
Então, necessariamente, a segunda vinda de Cristo não exigirá nenhum ato de
expiação pelo pecado.
O propósito da segunda aparição de Cristo será trazer salvação aos que
0 aguardam. Esse é o último uso do termo salvação em seu sentido pleno e es-
catológico em Hebreus (veja 1.14; 2.3,10; 5.9; 6.9; a referência em 11.7 é para
a salvação da família de Noé do dilúvio). Cristo “pode salvar definitivamente
aqueles que, por intermédio dele, aproximam-se Deus” (7.25). Ele trará salva­
ção aos que o aguardam. Hebreus não está sozinho em caracterizar os crentes
como aqueles que esperam com expectativa “a bem-aventurada esperança, a
gloriosa aparição de nosso grande Deus e Salvador Jesus Cristo” (Tt 2.13; veja
1 Co 1.7; Fp 3.20; Jd 21; veja também Mc 15.43; Lc 23.51; Rm 8.19,23,25).
Com esse movimento duplo envolvendo as duas aparições de Cristo, o fim
dessa subunidade (Hb 9.15-28) reflete conceitualmente seu início. Em Sua pri­
meira vinda, Cristo foi sacrificado para tirar os pecados de m uitos (v. 28a),
pois Ele “morreu como resgate pelas transgressões cometidas sob a primeira
aliança” (v. 15f). Em Sua segunda vinda, Ele vai trazer salvação (v. 28b), isto é,
“a promessa da herança eterna” disponível sob a Nova Aliança (v. l^a-b).
320
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

4. A oferta obediente de Cristo aperfeiçoa os adoradores


para sempre (10.1-18)
A subunidade em 10.1-18 constitui a conclusão, não apenas para a unida­
de argumentativa em 8.1 — 10.18, mas também para todo o argumento (logos)
da seção central que é “difícil de explicar” (5.11). No capítulo 7, o pregador en­
fatizou que o sistema levítico promulgado por meio da lei mosaica não podería
atingir a “perfeição” (7.11,19). Isso está em contraste com o juramento divino,
que designou o Filho “perfeito para sempre” (7.28). Tendo demonstrado a su­
premacia do sacerdócio, santuário e sacrifício de Cristo nos capítulos 7—9,
o pregador agora demonstrará por que o sacrifício de nosso Sumo Sacerdote
foi decisivo, enquanto o sistema sacrificial sob a Lei não foi. A auto-oferta de
Cristo proporciona perfeição (10.1,14) porque era uma oferta em obediência
voluntária à vontade de Deus.
S 1-4 Como o primeiro dos quatro parágrafos nessa subunidade (10.1-
4,5-10,11-14,15-18), os versículos 1-4 nos dão o ponto de partida. Eles se
concentram na incapacidade da Lei de fornecer expiação pelos pecados. Assim
como o tabernáculo terrestre construído por Moisés era apenas “uma cópia e
sombra” do santuário celestial (8.5; veja 9.11,23), assim também a Lei traz
apenas um a som bra d os b en efícios que hão de vir (v. \a ; compare Cl 2.17).
O pregador afirma que a Lei é apenas uma som bra \skia\ — não a realidade
dos m esm os, ou melhor, não a própria imagem/forma [eikona\ das reali­
dades. Ele pode ter em mente a figura de uma estátua (eikõn) e sua sombra
(Wiley, 1984, p. 281). No entanto, os comentaristas patrísticos discerniram
outra metáfora do mundo da arte. Um skia era um esboço ou desenho. Somen­
te quando o artista terminava de pintar, todas as cores eram chamadas de eikõn
(veja Crisóstomo em Heen e Krey, 2005, p. 149; Ellingworth 1993, 490-491).
Portanto, “a lei tem sombra dos bens futuros, e não a imagem real das coisas”
(v. 1 ARA).
Os ben efícios que hão vir (tõn mellõn agathõn), e não a realidade dos
m esm os (tõnpragmatõn), não são estritamente idênticos aos “benefícios agora
presentes” em Hebreus 9.11. De fato, o autor reconhece os benefícios da era
vindoura (2.5) já desfrutados pelos crentes (veja 3.1,14; 6.5). O principal deles
nesse contexto é a remoção definitiva do pecado por Cristo (9.26, 28a-b). Mas
aqui os benefícios que estão por vir apontam para a salvação que Cristo trará
em Sua segunda vinda (9.28c). Isso inclui a plena participação dos crentes no
descanso divino (4.1-10) no Reino inabalável (12.22-28; veja Attridge, 1989,
p. 269; Koester, 2001, p. 430).

321
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

O restante do parágrafo revela as implicações da declaração inicial (10.1 a).


Nesse caso, a incapacidade da Lei é expressa por meio de um inclusio nos ver­
sículos 1be 3,4:
• nunca consegue (oudepote dynata [v. 1b)) 11 im possível (adynaton [v.
4]); .......................
• ano após ano 11anual (kat ’eniauton [v. lb e 3]);
• os m esm os sacrifícios (v. 1b) 11 o sangue de touros e b od es (v. 4;
Lane, 1991, p. 261).
Ao empilhar uma frase sobre a outra no versículo lb, o autor enfatiza a
futilidade dos sacrifícios sob a Lei. São os m esm os sacrifícios, oferecidos ano
após ano, repetidos interminavelmente. O pregador mais uma vez visualiza os
sacrifícios anuais no Dia da Expiação (veja 9.7,25).
O que a Lei nunca consegue fazer por meio desses sacrifícios é aperfei­
çoar \teleiõsaí\ os que se aproximam para adorar (v. lb). Essa afirmação, em
combinação com o versículo 2b, reitera o pensamento de -» 9.9. A perfeição que
esses sacrifícios não podem alcançar é com respeito à consciência. Eles não po­
dem purgar a consciência culpada da contaminação do pecado. Portanto, eles
não podem preparar os adoradores para se aproximarem de um Deus santo.
O autor insiste com uma pergunta retórica no versículo 2: Se pudes­
se fazê-lo, não deixariam de ser oferecidos? Não havería necessidade de
sacrifícios repetidos, p o is os adoradores, ten d o sido purificados uma vez
por todas. Uma das expressões mais significativas em Hebreus, uma vez por
todas (bapax), juntamente ao particípio perfeitoforam purificados (kekatha-
rismenous), indica uma purificação decisiva e final dos pecados.
Se tal sacrifício tivesse sido oferecido sob a Lei, não m ais se sentiríam
culpados de seus pecados. Hebreus se refere à “consciência [syneidêsis] ”
(BKJ; veja ARA), aquela faculdade moral carregada com uma “consciência”
(ACF, ACR, ARIBJFA, NAA, NYT, OL, TB, VC; BDAG, p. 967; “sentido”
[REB]; ou “conscientização” [NJB]) dos pecados. Isso explica a paráfrase da
NVI: Sentir- se culpado (-> 9.8-10 anotação complementar: “Consciência”).
Na verdade, em vez de efetivamente apagar o sentimento coletivo de culpa
de Israel, os sacrifícios oferecidos no Yom Kippur são uma recordação anual
dos pecados (v. 3). Judeus observadores concordaram que os sacrifícios do
Yom Kippur serviram como uma lembrança dos pecados do povo, para que
pudessem ser expiados (Lv 16.16,19,30,33,34; veja Fílon, Leis Esp. 2.196).
Alguns comentaristas pensam que Hebreus ecoa uma reflexão homilética
judaica em Números 5.15,18 (veja Fílon, Plantar, p. 108; Attridge, 1989, p.
272; deSilva, 2000a, p. 318; Koester, 2001, p. 432). Sacrifícios são aceitáveis
322
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

a Deus apenas em proporção à virtude dos adoradores. Os ímpios não podem


subornar a Deus; quando os sacrifícios são oferecidos com impiedade “não é
uma remissão, mas um lembrete de pecados passados que eles realizam” (Fílon,
Moisés 2.107; veja Leis Esp. 1.215).
No entanto, a razão pela qual Hebreus relega esses sacrifícios a nada mais
do que uma lembrança perpétua dos pecados está mais próxima. E sugerido
por sua antítese na Nova Aliança. Por causa do sacrifício final de Cristo, Deus
promete: “De seus pecados e iniquidades não me lembrarei mais” (Hb 10.17).
Além disso, a posição de Hebreus é mais radical e abrangente do que a crítica
ao culto do templo feita pelos profetas (ex.: 1 Sm 15.22; Is 1.11-13; Jr 7.21-23;
Os 6.6; Am 5.21-25; veja Sl 40.6-8; 50.7-15; 51.16-19; 69.31). A ineficácia
dos sacrifícios do AT não se deve meramente a uma deficiência de atitude ou
virtude por parte dos adoradores. Eles são ineficazes, ponto final.
O axioma em Hebreus 10.4 coloca um ponto de exclamação no argumen­
to: Pois é im possível que o sangue de touros e b od es tire pecados. Isso não
está em conflito com 9.22. Ali, a purificação e o perdão dos pecados aparecem
como uma provisão distinta sob a primeira aliança. Hebreus já estabeleceu o
ponto de que os sacrifícios levíticos não efetuam realmente a necessária purifi­
cação interior da consciência, mas apenas uma purificação superficial e externa
(veja 9.9,10,13,14). No próximo parágrafo (10.5-10), o pregador explicará por
que os sacrifícios sangrentos de bestas brutas não podem proporcionar profun­
da e duradoura purificação dos pecados.
S I 5-7 A expressão forte p or isso (dio) transita para uma exposição do sacri­
fício todo-suficiente de Cristo. Os versículos 5-10 são um breve midrash no
Salmo 40.6-8. O salmo é citado em Hebreus 10.5-7, seguido por um comentá­
rio sucinto sobre ele nos versículos 8-10.
Hebreus discerne a voz de Cristo no texto do salmo. O pregador consisten­
temente ouve Deus falando nas Escrituras (-» 1.5-14 anotação complementar:
“Citando as Escrituras em Hebreus”). Essa é a segunda de apenas duas pas­
sagens em Hebreus em que Cristo é o orador nas Escrituras (-» 2.12,13). O
nome Cristo não aparece em grego, mas está implícito; Ele não é explicitamen­
te nomeado até 10.10. Talvez, tanto em 2.12,13 como em 10.5-7, parecesse
óbvio que Cristo seja o orador por causa da maneira como Ele se dirige a Deus
(France, 2006, p. 128). Mas aqui há outras pistas para a identidade do falante:
Primeira, a declaração que veio (v. 7; veja v. 9) sugere que foi Cristo quem
disse essas palavras quando veio ao m undo (v. 5a). Na tradição judaica, a frase
veio ao m undo significava nascer (Str-B, 2:358; veja Koester, 2001, p. 432).
Aqui se refere à encarnação do Filho, quando Ele foi “feito um pouco menor

323
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

do que os anjos” (2.7,9). A frase ocorre frequentemente em relação à encarna­


ção de Cristo no Evangelho de João (1.9; 6.14; 9.39; 12.46; 16.28; 18.37; veja
1 Tm 1.15;2Jo 1.7) e como um título messiânico (Jo 11.27; veja Jo 4.25; 6.14).
Segunda, a referência à encarnação é ainda mais significativa na declara­
ção: Um corpo m e preparaste (Hb 10.5c). É evidente que o pregador está
seguindo a LXX, em vez de palavras sem sentido do hebraico: “Os meus ou­
vidos abriste” (SI 40.6 ACF). Qualquer expressão parece transmitir a ideia de
pronta obediência. Mas o TM provavelmente se refere a “ouvidos receptivos”
(SI 40.6 REB), enquanto a LXX se refere à disponibilidade do corpo — isto é,
de todo o ser — para cumprir a vontade de Deus (Bruce, 1990, p. 241-242; veja
Rm 12.1,2). Para Hebreus, a encarnação de Cristo foi crucial para a conclusão
de Sua missão salvadora (2.14,17), pois é por meio do sacrifício voluntário de
Seu corpo (sõma) que os crentes são santificados (10.10).
Terceira, a declaração do orador, aqui estou [...]; vim para fazer a tua
vontade (v. 7) — repetida no comentário do pregador a seguir (v. 9a) —, é
uma reminiscência da descrição anterior do Filho em 5.7-9: “Nos dias de sua
carne’’ (ACF), o Filho ofereceu orações em “reverente submissão” e “aprendeu
a obedecer” por meio do sofrimento.
8-10 O comentário do pregador repete frases-chave do texto do salmo
citado anteriormente (10.5-7) nos versículos 8 e 9a. Com isso, ele tira duas
conclusões nos versículos 9b e 10. O pregador, assim, esculpe o texto bíblico
para aprimorar seus pontos.
Ao citar mais uma vez a primeira metade do texto do salmo (v. 8), ele repete
a lista de quatro tipos de ofertas de sacrifício — sacrifícios, ofertas, holocaus-
tos e ofertas p elo pecado —, colocando todos os itens no plural (compare
com os v. 5,6). Isso provavelmente enfatiza a pluralidade de sacrifícios levíticos
em contraste com o sacrifício único de Cristo (7.27; 9.25-28; 10.1,3,11,12).
Ele também reúne as frases sobre a desaprovação de Deus: aqueles sacrifícios
que não quiseste, nem deles te agradaste (compare com os v. 5,6). Os quatro
tipos de sacrifícios provavelmente representam todo o sistema sacrificial sob a
antiga aliança (Bruce, 1990, p. 240-241; Hagner, 1990, p. 157). A concessão
entre parênteses — os quais eram feitos conform e a Lei — confirma isso.
Também forma uma ligação com as declarações anteriores sobre a inadequação
e a inferioridade da Lei para com “os benefícios que hão de vir” (v. 1-4). O
pregador omite a afirmação “mas um corpo você preparou para mim” (veja v.
5c). Ele reserva a referência ao sacrifício de Cristo de Seu corpo para o clímax
do parágrafo no versículo 10.

324
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

A repetição do pregador da segunda metade do texto do salmo (v. 9a) re­


tém apenas a linguagem essencial da obediência: A qui estou , vim para fazer a
tua vontade (compare com o v. 7). De acordo com outras testemunhas do NT,
a vida de obediência de Jesus foi consumada em Sua morte (Mt 26.39,42; Mc
14.36; Lc 22.42; Jo 4.34; 5.30; 6.38-40; 8.29; 12.27; 19.30; G11.4).
Ao dividir a passagem do salmo em dois e tomar as duas partes em sequên­
cia cronológica (prim eiro ele disse: [...] então acrescentou [Hb 10.%a$a\),
Hebreus emprega uma manobra interpretativa usada antes (2.6-9; 4.8; 7.11,15;
8.6; 9.8,9). O método, aliás, tem um sabor legal, como encontramos na revo­
gação da primeira aliança e sua substituição por outra (veja 8.7,13; Thompson,
2008, p. 196).
A primeira conclusão interpretativa em 10.9^ usa o vocabulário jurídico.
Ele cancela \anairei\ o prim eiro se refere à anulação ou abolição do sistema
sacrificial sob a lei mosaica. Para estabelecer [stêsê\ o segundo refere-se à con­
firmação legal ou validação do propósito de Deus por meio da morte de Cristo
(Lane, 1991, p. 264-265; Pfitzner, 1997, p. 137; Koester, 2001, p. 434; John­
son, 2006, p. 252; -> 6.13-20, “Jargão jurídico em Hebreus”). O grego afirma
esse truísmo legal em um quiasma rigidamente construído (abolir/primeiro/
segundo/estabelecer).
A segunda conclusão em 10.10 revela o resultado da execução da vontade
de Deus por Cristo com respeito aos crentes. O pregador se apropria de ter-
mos-chave do Salmo 40.6-8: vontade (thelêma), oferta (prosphora) e corpo
(sõma). A frase p elo cum prim ento dessa vontade refere-se ao propósito de
Deus mencionado no salmo, ao qual a vida e a morte terrenas de Cristo fo­
ram conformadas. Os sacrifícios de animais sem sentido não podiam cumprir a
vontade de Deus, como fez a entrega voluntária de Cristo de “si mesmo” (7.27;
9.7,14,25,26) por meio do sacrifício (lit., oferta) de Seu corpo.
O resultado da auto-oferta de Cristo é que fom os santificados. As sensi­
bilidades pastorais do autor são evidentes mais uma vez em sua afirmação de
que nós (7.19,26; 8.1; 9.14) fomos santificados. A forma gramatical de fom os
santificados (particípio perifrástico perfeito, hêgiasmenoi esmen) expressa a
determinação da santificação, resultando em um estado duradouro de santi­
dade: “somos santificados” (BKJ). É uma santidade final e duradoura que o
sangue de touros e bodes nunca podería obter (9.13,14; 10.1-4).
A santificação dos crentes é o objeto da vontade de Deus (1 Ts 4.3). Não
pode ser separada de ser purificado do pecado (Hb 1.3; 9.14; 10.2,22; 13.12)
e ter acesso contínuo à presença de Deus (4.16; 9.8; 10.19). É, portanto, si­
nônimo da salvação em si (Hughes, 1977, p. 395). Deus é a fonte da santidade

325
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

(-> 2.11), e partilhar da santidade de Deus é a condição para viver na presença


divina (12.9,10,14). Cristo é o agente por meio de cuja morte sacrificial a ex-
piação do pecado é realizada. Ele efetua nossa santidade; Ele nos leva à glória;
Ele assegura nossa salvação final (2.8^-11,17; 5.9; 7.25; 9.28).
O título completo Jesus C risto ocorre aqui pela primeira vez em Hebreus.
Aparecerá mais duas vezes em ambientes confessionais (13.8,21). O nome Je­
sus, associado à Sua humanidade necessária (veja 2.14,17; 5.7), é combinado
com Cristo, significando Seu chamado messiânico. Em outros lugares, o título
C risto está ligado à filiação divina de Jesus (3.6,14) e ao cargo de sumo sacer­
dote (5.5; 9.11,14,24,28). O título completo abrange a vocação de sofrimento
e glória do Messias, visto em referências ao “sangue de Cristo” (9.14), ao Seu
sacrifício de uma vez por todas (9.26,28a) e à Sua segunda vinda (9.28b; Hahn,
1993). Como tal, o sacrifício feito por Jesus, o Messias, no ápice dos séculos,
é final e permanentemente eficaz. Portanto, Ele se ofereceu de uma vez por
todas (ephapax).
■ 1 1 - 1 4 0 terceiro parágrafo (v. 11-14) desta subunidade é, em muitos as­
pectos, uma contrapartida do primeiro (v. 1-4; Lane, 1991, p. 266; Westfall,
2005, p. 222):

10.1-4 10.11-14
" a n o a p ó s a n o [...] dia a p ó s dia [k a t h ’ h ê m e r a n ]
[ k a t ’ e n ia u t o n ] " (v. 1) (v. 11)
"o s m e s m o s s a c r if íc io s o s a c e r d o t e le v ít ic o o fe re c e os
[ t a is t í s i a s ]" (v. 1) m esm o s sa crifício s
[ a u t o ... t ís ia s ] (v. 11)

e ra m " r e p e t id o s in t e r m in a v e lm e n - 0 ú n ico sa crifício d e C r is t o (v.


te [e/s p a r a d iê n e k e s ] " (v .1) 1 2 ,1 4 ) o fe r e c id o p ara se m p re
[ e is to d iê n e k e s ] (v. 12)
q u e " n u n c a c o n s e g u e [...] a p e r­ a p e rfe iço o u para se m p re
f e iç o a r [ o u d e p o t e d y n a t a i. . . [ t e t e le iõ k e n e is t o d iê n e k e s ] a q u e ­
t e le iõ s a i] " (v. 1) le s q u e s ã o s a n t ific a d o s (v. 14)
" im p o s s ív e l" p a ra e le s " t ir a r o fe r e c id o p e lo s p e c a d o s
p e c a d o s [ a p h a ir e in h a m a r t i a s ]" [ p e r i h a m a r t iõ n ]
(v. 4) (v. 12)

Os versículos 11-14 apresentam antíteses entre os sacerdotes levíticos e


Cristo (compare 7.11,20,21,23,24,27,28; 8.3,4). Elebreus emprega um p o r um
lado (men [v. 11]) — e,p o r outro lado (de [v. 12]), estrutura para apresentar
contrastes que são caracteristicamente precisos (Ellingworth, 1993, p. 506).

326
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

Contrastes precisos

10.11 10.12
to d o s a ce rd o te e s te s a c e rd o te (i.e. C ris to )

p o r u m la d o (m en) p o r o u t r o la d o (de)

f ic a e m p é a sse n to u -se
o fe re c e os m esm o s sa crifício s a ca b o u d e o fe re c e r (v e ja v. 14)
re p e tid a m e n te p ara se m p re (= p a ra s e m p r e
[v. 14])
q u e nunca p o d em re m o v e r p e lo s p e c a d o s
pecados

Os contrastes giram em torno das posturas dos respectivos ministros. (O b­


serve, de passagem, que a linguagem do “ministério” \leitourgõn, exerce os seus
deveres religiosos (v. 11)] ressurge desde o início da seção [8.2,6; mas veja
1.7,14; 9.21].) Todo sacerdote levítico fica de pé — uma postura de atividade.
De pé era a posição que os sacerdotes tomavam para cumprir suas responsabili­
dades de culto (1 Rs 8.11; 2 Cr 30.16; 35.10; Ne 12.44; Jr 28.5; Ez44.15 LXX;
vejajosefo, Ant. 13.372). Para Hebreus, isso era um exercício contínuo de fu­
tilidade. Os muitos sacrifícios que eles ofereciam nunca poderíam remover
\perielein\ pecados (v. 11), isto é, eles eram incapazes de remover totalmente a
contaminação ou culpa dos pecados (veja 10.1,2; Lane, 1991, p. 266).
Em contraste, a finalidade do ato sacrificial de Cristo é significada pelo
fato de que Ele assentou-se (v. 12). N o Oriente, sentar-se pode indicar es­
tar desocupado (Hughes, 1977, p. 400). Mas, nessa situação, sinalizava que
Cristo havia cumprido Sua tarefa (veja Ap 3.21). A alusão ao Salmo 110.1
transmite a postura de estar sentado em conexão com o exercício de um
cargo ou posição de autoridade. Esse salmo — um texto-chave para toda a
homilia (-> 1.13 anotação complementar: “Salmo 110 em Hebreus”) — foi
mencionado pela primeira vez em Hebreus 1.3. Ali se diz que o Filho se
assentou “depois de ter realizado a purificação dos pecados”. A paráfrase
anterior de reverência para Deus, M ajestade (1.3; 8.1), é abandonada. As
duas alusões finais ao Salmo 110.1 em Hebreus afirmam diretamente que
Cristo estava sentado à direita de D eus (10.12; veja 12.2).
A fraseologia do Salmo 110.1 não só ajuda a levar essa seção (Hb
8.1 — 10.18) ao clímax, dado o inclusio de alusões em 8.1 e 10.12,13, mas

327
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

também traz o principal ponto argumentativo de todo o círculo comple­


to da homília. Tanto o exordium. (1.1—2.4) quanto a declaração dos fatos
(2.5-18) afirmavam que o Filho atualmente reina supremo sobre o mundo
vindouro. Tudo foi colocado “debaixo de seus pés” (2.8a-, veja 1.13), embo­
ra não pareça que tudo está sujeito a Ele (2.8b). É o sofrimento da morte de
Cristo, por meio do qual Ele derrotou o governante da morte (2.9,14), que
o aperfeiçoou como o sumo sacerdote real sobre o povo de Deus (2.17; veja
4.14,15; 5.5-8; 10.19-21). Sua subjugação de todas as coisas foi realizada
decisivamente por meio de Sua morte sacrificial.
Tudo que resta é que Ele espere que o s seus in im ig o s sejam co lo ca d o s
co m o estrad o d o s seus p és (v. 13). Flebreus não especifica quem são esses
in im ig o s, mas simplesmente emprega a designação de Salmo 110.1 (como
na citação em H b 1.13). Certamente entre eles estão o arqui-inimigo de
Cristo, “o diabo” (2.14), os pecadores que se opõem a Ele na terra (12.3) e
os apóstatas que perecerão em Sua segunda vinda (10.27,37-39). A espera
de Cristo (ekdechomenos) por Sua vitória final coincide com os crentes “es­
perando [apekdechomenois]” (-> 9.28) por sua salvação final.
A ligação entre a vitória de Cristo e a dos crentes fica clara no clímax
desse parágrafo (10.14). O ú n ico sacrifício de Cristo (lit., oferta) sela Sua
obra salvadora como permanente e eterna (veja 5.9; 9.12,15). Ele aper­
fe iç o o u para sem pre corresponde à purificação e à santificação decisiva
observada em 10.2 e 10. A p e r fe iç o o u (teteleiõken), “tendo sido purifica­
dos \kekatharismenous\” (v. 2), e “fomos santificados [hêgiasmenoi]” (v. 10)
estão todos no tempo perfeito, apontando para os efeitos conclusivos e du­
radouros das ações. A frase adverbial eis a diênekes (para sem pre) reforça
esse sentido no versículo 14.
Isso é colocado em contraste com o que a Lei não podería realizar de
acordo com o versículo 1. Os mesmos sacrifícios repetidos “infinitamente
\eis to diênekes]” nunca poderíam “aperfeiçoar [teleiõsai]” (-> 10.1). Os sa­
crifícios perpétuos e ineficazes foram substituídos pelo único sacrifício que
é eficaz para sempre {eis to diênekes), oferecido pelo Sumo Sacerdote que
ocupa Seu cargo “para sempre [eis to diênekes]” (7.3).
Os beneficiários dessa perfeição são o s que estã o sen d o santificados.
Há pouco consenso sobre como tomar o particípio presente {tous hagiazo-
menous). Três opções são possíveis:
( 1 ) 0 tempo presente pode ser iterativo, referindo-se àqueles que estão
sendo santificados de tempos em tempos (Wiley, 1984, p. 290). E difícil ver

328
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

como isso se encaixa na ênfase sobre purificação/santidade definitiva nesse


contexto.
(2) Podería indicar ação contínua e, portanto, um processo contínuo
de santificação (ARA, ARIB, JFA, KJA, NAA, N V T; Attridge, 1989, p.
281; Pfitzner, 1997, p. 139; Ellingworth, 1993, p. 511; France, 2006, p.
131). Fíebreus 12.4-17 certamente apresenta a santificação como mais do
que um dom. É o resultado da disciplina divina (12.10) e da busca comuni­
tária e individual da santidade (12.14). No entanto, esses não são os pontos
apresentados em 10.1-18. A ênfase, ao contrário, está na finalidade do sacri­
fício de Cristo e na eficácia duradoura de seus resultados (em contraste com
a incapacidade da Lei em aperfeiçoar alguém). Assim, uma terceira opção é
mais provável.
(3) O particípio presente é atemporal, indicando que crentes foram tra­
zidos para uma condição duradoura ou estado de santidade (Bruce, 1990,
p. 247; Lane, 1991, p. 267-268; “aqueles que são santificados” [ACF, ACR,
BKF; possivelmente TB, VC, HCSB, KJV, NASB, NJB, NRSV, REB]).
Tal leitura está em consonância, não em conflito, com o particípio perfeito
no versículo 10 (->). Cristo, por meio de Seu sacrifício, é “aquele que faz [...]
santo” (2.11). Os crentes são “os que são santificados [hoi hagiazomenoi]”
(2.11). Portanto, nesse caso, eles são os “santos [os] [hagioi]” de Deus (3.1;
6.10; 13.24 NAB).
O status santo dos crentes se mantém em perpetuidade, mas não in­
condicionalmente. A dispendiosa compra da santificação pelo sangue da
aliança (10.29) representa um grande perigo para aqueles que pecam fla­
grantemente contra ela (10.26-31). Assim, tendo sido consagrados a Deus
e qualificados para aproximar-se do santuário interior em adoração, os cren­
tes devem render-se à atuação ética da santidade divina de Deus em suas
vidas (12.4-17). De fato, nos versículos seguintes (v. 15-18), a nova aliança
é apresentada como a solução para a necessidade da humanidade de liberta­
ção definitiva do pecado e obediência sustentada à vontade de Deus.
S 15-18 O parágrafo conclusivo finaliza os argumentos nos capítulos 8— 10.
Termina a seção de maneira semelhante à forma como começou, com uma ci­
tação de Jeremias 31 (Hb 8.8-12; 10.16,17). Aqui a citação é seletivamente
extraída por suas pepitas importantes, as “promessas superiores” (8.6) mais re­
levantes para a presente discussão. As partes repetidas (Jr 31.33,34) destacam o
estabelecimento de uma nova aliança, que permite uma obediência duradoura
a Deus (Llb 10.16) e libertação permanente dos pecados (v. 17).

329
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Esses versículos também encerram 10.1-18 de várias maneiras. Primeiro,


as citações de Jeremias 31 introduzem o testemunho divino em apoio à afir­
mação de que o sacrifício de Cristo é absolutamente eficaz: O Espírito Santo
tam bém nos testifica a este respeito (Hb 10.15).
Em segundo lugar, o parágrafo define melhor a perfeição e santidade al­
cançadas pelo sacrifício de Cristo (veja v. 1,10,14; França, 2006, p. 132) Essas
são promessas da Nova Aliança, promulgadas pela auto-oferta de Cristo.
Terceiro, e não sem relação com o segundo ponto, as promessas da Nova
Aliança são sutilmente contrastadas com a fraqueza e a inutilidade das leis. Por
um lado, a lei \nomos\ traz apenas uma sombra dos benefícios que hão vir, e
não a realidade deles em si mesmos (v. 1). É impotente sair do ciclo do pecado
ou oferecer uma purificação definitiva para que Deus possa banir permanen­
temente a culpa das pessoas de sua mente (v. 1-4). A Nova Aliança, de outro
modo, oferece a promessa de Deus: Porei m inhas leis \nomous\ em seus co ­
rações e as escreverei em suas m entes (v. 16). Em outras palavras, Deus provê
uma motivação profunda e interior para as pessoas se conformarem totalmente
à Sua vontade. Isso se correlaciona com as referências do pregador à perfeição
dos adoradores, consistindo na purificação da consciência do pecado (9.9,14;
10.2,22), superior à provisão da antiga aliança de apenas pureza cultuai externa
(9.10,13).
A santificação de uma vez por todas alcançada por meio da morte de Cristo
(veja 10.10,14) suporta outra promessa divina: D o s seus pecados e iniquida-
des não m e lembrarei mais (v. 17). O pregador acrescenta a expressão atos
sem lei (anomiõn) à citação de Jeremias. Isso alude novamente à incapacidade
da Lei de lidar decisivamente com o pecado. O sistema sacrificial da Lei apenas
aumentava a memória dos pecados ano após ano (v. 3). Mas Cristo “morreu
como resgate pelas transgressões cometidas sob a primeira aliança” (9.15).
Porque os próprios pecados e atos contra a lei (10.17) foram totalmente remo­
vidos, qualquer lembrança deles também é removida dos bancos de memória
eterna da mente de Deus!
A conclusão no versículo 18 é a antítese aos sacrifícios múltiplos e inefi­
cazes nos termos da Lei observada nos versículos 1-4 (veja v. 11). O nde essas
coisas — pecados e atos contra a lei — foram perdoadas, não há mais neces­
sidade de sacrifício p elo pecado. Esse breve comentário sobre a passagem de
Jeremias 31 complementa os comentários anteriores em Fiebreus 8.7 e 13. A
Nova Aliança torna a antiga obsoleta e pronta para desaparecer. O sacrifício
final de Cristo supera os sacrifícios levíticos ineficazes.

330
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

O único sacrifício de Cristo foi a provisão todo-suficiente para “uma eli­


minação decisiva [apbesis]”dos pecados (Lane, 1991, p. 254). Essa é um modo
mais forte de expressar “remissão” (ACF, ARA, ARC, ARIB, BKJ, JFA,NAA,
TB, VC) ou “perdão” de pecados (CEB, ESV, FiCSB, NAB, NASB, NET,
NRSV; perdoadas [KJA]; compare 9.22). O próprio objetivo da vinda de
Cristo era abolir o pecado (-» 9.26). Repetidamente, no contexto anterior,
lemos sobre os pecados sendo tirados (anenengkein [9.28]; aphairein [10.4];
perielein [10.11]). Uma vez que isso foi realizado de forma conclusiva, não
há necessidade de sacrifício p elo pecado. O sistema sacrificial ultrapassado
não tem mais um objetivo para atingir. Foi cumprido na auto-oferta de Cristo.
Portanto, os sacrifícios levíticos, como os pecados que eles não podiam “tirar”,
podem eles mesmos ser “anulados \anairei]” (v. 9).

A PARTIR DO TEXTO

Os argumentos da seção central de Hebreus são “difíceis de explicar”


(5.11) tanto para os leitores antigos como para os modernos, mas por razões
diferentes. O público original foi prejudicado por uma condição espiritual que
os tornou pouco inclinados a “ouvir” o que o pregador estava dizendo. Leitores
modernos, mesmo que de coração aberto, abordam o texto de um cenário cul­
tural muito estranho. Isso torna difícil para eles “ouvir” com total apreciação e
compreensão.
As pessoas que vivem no mundo industrializado moderno geralmente não
sabem quase nada sobre sacrifício. E mais provável que apliquemos a palavra
“sacrifício” a jogos de xadrez ou beisebol do que ao ritual de matar um animal.
A maioria de nós acharia uma visita a um matadouro muito desagradável. Pre­
ferimos não pensar que uma vaca teve de morrer para dar-nos o hambúrguer
que compramos em embalagens plásticas nos supermercados. Não podemos
compreender como alguém imaginou que um animal abatido pudesse tornar
objetos ou pessoas sagradas. Poucos reconhecem que a palavra “sacrifício” é de­
rivada de duas palavras latinas que significam “tornar santo”. Para a maioria de
nós, todo o cenário de templo, sacerdote e sacrifícios sangrentos evocam mais
repulsa do que temor. Lemos sobre essas coisas com uma curiosidade estranha,
em vez de um ar de sacralidade.
Ironicamente, FFebreus contribuiu para o sentimento ocidental de que os
sacrifícios de animais são irrelevantes para a vida religiosa. Mas fez isso, não
repudiando a ideia de sacrifício, mas argumentando que o sistema sacrificial
sob a primeira aliança atingiu seu telos — seu fim apropriado — no sacrifício

331
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

final de Cristo. Seu sacrifício, ao contrário dos animais, foi totalmente eficaz
porque foi o ato sem precedentes de completa obediência à vontade de Deus
(5.7,8; 10.5-10). Hebreus ainda enfatiza a importância de Cristo em oferecer
Seu próprio corpo (10.10) e sangue (9.12,14,25; 10.19; 13.12). Mas Seu sacri­
fício tem um profundo significado espiritual porque foi Sua oferta voluntária
de “si mesmo” em nosso favor (7.27; 9.14,25,26).
As pessoas no mundo ocidental contemporâneo provavelmente recuam
ainda mais ao pensar em sacrifício humano em nosso favor. A ideia parece
primitiva e absolutamente bárbara. Talvez, sem o conhecimento do autor de
Hebreus, isso seja para os modernos sua variante do escândalo da cruz de Paulo
(1 Co 1.23; G1 5.11). Mas as pessoas modernas experimentam uma barreira
maior à mensagem de Hebreus. Em meio à discussão do melhor sacrifício,
aliança e tabernáculo maior e mais perfeito de Cristo, o benefício superior da
obra expiatória de Cristo encontra uma desconexão ainda mais fundamental
com os leitores de hoje.
Mesmo o objeto da morte de Cristo, como Hebreus o apresenta, confunde
as pessoas hoje. O resultado do sacrifício de Cristo, não alcançável por sacrifícios
anteriores, é uma consciência purificada. Assim, os adoradores são aperfeiçoa­
dos ou qualificados para comparecer diante de Deus (9.9,14; 10.2,22). Mas as
pessoas modernas têm maneiras curiosas de lidar com a consciência. Em alguns
lugares, a consciência é definida, não em termos de um sentimento de culpa
individual, mas de uma forma coletiva (ou seja, “consciência social”). Outros
procuram métodos terapêuticos para tratar a consciência culpada, incluindo
medicamentos — legais ou não. O “pecado” foi reembalado sob eufemismos
psicológicos para ajudar as pessoas em seus esforços para se libertarem da
responsabilidade por seus próprios problemas e ações — uma tendência ob­
servada décadas atrás no livro de Karl Menninger apropriadamente intitulado,
Whatever Became o f Sin ?
Como podemos recuperar o valor da mensagem de Hebreus para hoje?
Em primeiro lugar, deve-se enfatizar que, para os hebreus, o pecado e seus
efeitos sobre a consciência humana têm não apenas implicações morais, mas
também religiosas e cultuais. O pecado “contamina” a consciência, tornando
os adoradores inaptos ao culto. Isso os incapacita emocionalmente de per­
manecer confiantes diante de um Deus santo. A consciência acusadora não é
simplesmente uma questão de “sentir-se mal” por coisas que fizemos. Expõe-
-nos ao juízo perscrutador de Deus (4.12,13).
Em segundo lugar, apesar dos esforços para renomear ou ignorar as di­
mensões morais de nossa personalidade, o poder da consciência permanece.
332
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

É claro que a consciência de uma pessoa pode estar tão “cauterizada” que não
é mais um barômetro moral sensível (veja 1 Tm 4.2). Mas, se tivermos uma
consciência ativa, não podemos negar seus impulsos mais do que a realidade de
nossos cinco sentidos.
Recentemente, ouvi um secretário de faculdade aposentado relatar como
em várias ocasiões ele recebeu cartas de graduados atormentados por uma
consciência culpada. Por terem colado em um exame ou trabalho — muitas
vezes, muitas décadas antes —, eles estavam solicitando que seus diplomas uni­
versitários fossem revogados. Isso, eles esperavam, aliviaria seu sentimento de
culpa. O escrivão teve o prazer de ser um agente de redenção, concedendo-lhes
a absolvição por causa de sua admissão honesta.
Em um exemplo mais recente, a famosa atriz Keira Knightley declarou
seu desejo de ser católica. “Parece muito melhor do que viver com culpa”, disse
ela. “É absolutamente extraordinário. Se eu não fosse ateia, podería me safar
de qualquer coisa. Você apenas pediria perdão e então seria perdoado” (Cath-
NewsUSA, 2012). Hebreus certamente rejeitaria sua noção de perdão como
um meio de “escapar de qualquer coisa”. Tirando isso, ambas as histórias ilus­
tram a força de uma consciência acusadora. A mera passagem do tempo não
pode trazer alívio de seu tormento.
Os argumentos da seção central de Hebreus culminam na promessa da
Nova Aliança da eliminação decisiva dos pecados. O sacrifício final de Cristo
proporciona-nos uma libertação subjetiva de nosso sentimento de culpa (10.2).
Contudo, mais importante é o fundamento objetivo para a expulsão de nossos
pecados da memória de Deus por Ele mesmo (10.17). As promessas de perdão
do AT se concretizam sob a Nova Aliança. Deus pode realmente apagar nossos
pecados (Is 43.25). Ele pode removê-los de nós, “como o oriente está longe do
ocidente” (SI 103.12). Ele pode lançá-los no mar do esquecimento (veja Mq
7.19). Assim, o escritor de hinos Horatio Spafford poderia exclamar: “Tudo
bem com minha alma”:
Meu pecado — ófelicidade deste pensamento glorioso!
Meu pecado — não em parte, mas no todo —
Está pregado em Sua cruz, e eu não o carrego mais!
Louvai ao Senhor, louvai ao Senhor, ó minha alma!

333
III. CHAMADO A FE PERSEVERANTE E ADORAÇAO
ACEITÁVEL: HEBREUS 10.19-13.25

O pregador concluiu agora os principais argumentos de seu sermão.


Resta a ele apenas levar sua “palavra de exortação” a uma conclusão empol­
gante. A seção final (10.19— 13.25) traz as marcas da peroratio ou conclusão
(Backhaus, 1996, p. 61-63). Na retórica antiga, a peroratio tinha uma dupla
função: primeira, resumir os argumentos do discurso; segunda, mover o pú­
blico emocionalmente em direção à decisão ou ação correta (Lausberg, 1998,
§§431-442). A conclusão é a última oportunidade que o orador tem de marcar
seus pontos e fazer um apelo final aos seus ouvintes.
Não surpreendentemente, Hebreus não dedica muito espaço para resu­
mir argumentos. Os manuais de retórica aconselham manter a recapitulação
ou resumo breves (Rbet. Alex. 1444b; Rhet. Her. 2.30.47; Quintiliano, Inst.
6.1.2), e a retórica deliberativa normalmente não precisa de um (Cícero, Part.
Or. 17.59). Seguindo os argumentos da seção central, Hebreus acha suficiente
simplesmente lembrar os ouvintes dos pontos-chave do sacrifício da aliança de
Cristo e Seu status exaltado (10.19,20; 12.2,3,24; 13.11-13,20).
A abertura em 10.19-25 estabelece a agenda para a conclusão do sermão.
O sumo sacerdócio de Cristo e a inauguração do acesso sem precedentes à
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

presença divina servem como base para um chamado à adoração e fidelidade


duradoura. O “aproximemo-nos [proserchõmetha]” de 10.22 (veja 4.16) alcan­
çará um clímax retórico em 12.18-29 com o contraste dramático entre Sinai e
Sião (“vocês não chegaram [proselêlytha). Mas vocês chegaram \proselélytha\”
[12.18,22]). A adoração implica o compromisso com Cristo e a solidariedade
com a comunidade dos fiéis (passado e presente; veja 10.25,32-34; 11.40—
12.1; 12.23; 13.1-3,7,17). O fruto de uma vida fiel sob a Nova Aliança é a
prática ativa de boas ações. Esses pontos formam um inclusio na conclusão: no
resumo/invocação (10.19-25) e na bênção final (13.20,21; veja 13.1-6,15,16).
A fé perseverante e o bem-fazer são cruciais para agradar a Deus e receber a
promessa da salvação (10.38,39; 11.6; 12.28; 13.16,21; veja 6.9-12).
Uma marca registrada das conclusões retóricas é o apelo às emoções {pa­
thos). Quintiliano disse que é na peroratio que “podemos dar total rédea solta
às nossas emoções” (Inst. 4.1.28; veja 2.5.8; 6.1.9). O objetivo é persuadir os
ouvintes para o curso de ação correto. As “emoções principais” utilizadas para
mobilizar as pessoas são o medo e a esperança (Lausberg, 1998, §§229, p. 437).
Apropriadamente, essas emoções são grandes na peroratio de Hebreus. Aqui
encontramos as advertências mais assustadoras da homília (10.26-31; 12.15-
17,25-29), exibindo o juízo de fogo de Deus (10.27,30,31; 12.29). A esperança
também é proeminente, recorrente na herança ou recompensa valiosa pela
perseverança fiel em face do sofrimento (10.19-23,32-39; 11.1 — 12.3; 12.18-
24; 13.5,6,13; Backhaus, 1996, p. 62-63). Um fio relacionado e entrelaçado
na conclusão é a esperança do crente por um lar permanente (10.34; 12.27;
13.14) e celestial (11.10,16): o Reino inabalável (12.28).
O discurso do pregador a seus leitores é mais direto e apontado na conclu­
são. Apenas duas vezes antes ele se dirigiu a eles como “irmãos” (3.1,12; veja
2.11,12,17); agora essa forma de discurso flanqueia a conclusão (10.19; 13.22).
Ele fala com eles na segunda pessoa (“você”, “seu”) com maior frequência do
que antes (mais de cinquenta vezes em 10.19— 13.25, de oitenta ocorrências
totais; veja Westfall, 2005, p. 242). Retomada da declaração de fatos (2.5-18)
é a descrição dos leitores como “filhos” de Deus (12.5-8; veja 2.10) e “filhos”
(12.8; veja 2.13,14). Ele demonstra um conhecimento íntimo da situação de
seus leitores (10.32-39) e — como é apropriado em uma peroratio (Aristóte­
les, Rhet. 3.19.1; Quintiliano, Inst. 6.2.8-19) — elogia sua própria integridade
pessoal (13.18). De acordo com a função de uma conclusão para persuadir/
dissuadir os leitores sobre decisões ou ações vantajosas/desvantajosas, 10.19—
13.25 contém a maior concentração de imperativos (vinte e duas de trinta

336
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

vezes), proibitivos (seis de dez) e subjuntivos exortativos (sete de doze; ->4.1


anotação complementar: “Vamos...”).
Finalmente, uma característica típica das conclusões é o uso de “lugares-
-comuns” (loci communes') em que certos vícios são denunciados e/ou virtudes
elogiadas (Quintiliano, Inst. 2.4.22; 5.10.20). Em Hebreus, encontramos tó ­
picos dignos de denúncia, como sacrilégio (10.29), imoralidade sexual (12.16;
13.4) e ganância (13.5). Tópicos dignos de louvor incluem preocupação mútua
(10.24,25,32-34; 13.1,3), disciplina (12.5-11), hospitalidade (13.2), casamen­
to (13.4), adoração aceitável (12.28; 13.15,16,21) e, acima de tudo, fidelidade
(11.1 — 12.13). Assim, os leitores são direcionados para longe daqueles com­
portamentos que merecem desprezo e julgamento, e para aqueles que levam à
honra e à salvação.
A conclusão tem duas divisões:
A. Exortações para perseverar na fé (10.19— 12.13).
B. Exortações para oferecer adoração aceitável (12.14— 13.25).

A. Exortações para p e rse v e ra r na fé


( 10 . 19 — 12 . 13 )

1. Confiança e perseverança na fé (10.19-39)

POR TRÁS DO TEXTO

O estilo fluido de Hebreus é um sinal da notável habilidade retórica do


autor. As transições quase perfeitas frustraram as tentativas dos estudiosos de
definir onde uma divisão começa e outra termina. Isso não é mais verdadeiro
do que em 10.19-39. Há um consenso de que ocorre aqui uma transição entre
seções principais. Mas os comentaristas discordam sobre onde termina a seção
central da homília. E no versículo 18, 25, 31, 34, 35 ou 39? Há quatro motivos
para reconhecer 10.19-39 como uma unidade coesa formando uma transição
entre a segunda e a terceira divisão principal de Hebreus:
Primeiro, a unidade é marcada por um inclusio verbal com a palavra “con­
fiança \parrêsia\" (10.19,35). Essa repetição cria um vínculo com as exortações
anteriores para chegar a Deus (3.6) ou aproximar-se dele com “confiança”

337
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

(4.16) — as únicas outras ocorrências de parrêsia em Hebreus. Um inclusio


envolvendo “fé \pislis\” (10.22 e 10.38,39), juntamente à repetição do vocabu­
lário “perseverança” (hypomenõ [10.32]; bypomoné [10.36]), introduz o tema
dominante de fé perseverante, que se estende até 12.13. Observe a recorrência
posterior de “fé” (vinte e seis vezes no cap. l i e em 12.2) e “perseverança” /
“perseverar” (12.1 / 12.2,3,7). Além disso, pode-se comparar o “aproximar-se”
em “plena certeza de fé” no início da unidade (10.22) com ter “fé” (NRSV) em
vez de “recuar” em seu fim (10.38,39).
Em segundo lugar, a unidade é composta de quatro parágrafos (como na
NVI: 10.19-25,26-31,32-34,35-39), dispostos em duas metades. A primei­
ra metade é dominada por apelos feitos na primeira pessoa do plural (“nós”,
“vamos”; mas veja os v. 25 e 29); a segunda, pela segunda pessoa (“você”). A
primeira pessoa retorna no versículo 39. A primeira metade contém mui­
tas alusões à seção central, especialmente sua linguagem cultuai (“Santo dos
Santos”, “sangue de Jesus”, “aberto” [= inaugurar], “o véu”, “grande sacerdote”,
“aproximar-se”, “aspergir”, “purificar”, “consciência”, “sacrifício pelos pecados”,
“sangue da aliança”). A segunda metade, com suas referências ao sofrimento
passado da comunidade e à necessidade presente de perseverança, prepara os
seguintes exemplos e exortações à fé perseverante (11.1 — 12.3).
Terceiro, os quatro parágrafos são pontuados por uma nota de julgamento/
recompensa divina no final de cada parágrafo (v. 25,30,34,37-39; veja também
v. 35-36). A primeira metade contém uma advertência sobre o retribuição vin­
gativa de Deus (antapodõsõ [10.30]) dos apóstatas; a segunda metade, uma
promessa de recompensa (misthapodosian [10.35]) para aqueles que perseve-
rarem. É importante ressaltar que as citações bíblicas no final de cada metade
apoiam a urgência escatológica da unidade (Dt 32.35,36 em Hb 10.30; Hc
2.3,4 em Hb 10.37,38). O texto de Habacuque 2.3,4 serve como plataforma de
lançamento bíblica para os exemplos de fé seguintes (11.1 -40).
Quarto, a integridade e a função de transição de 10.19-39 são evidentes por
meio da comparação com material anterior. O primeiro parágrafo (10.19-25)
contém paralelos próximos a 4.14-16 Q 4.14-16 Por trás do texto, anotação
complementar: “‘Suportes’ de 4.14-16 e 10.19-23”). Todo o texto em 10.19-39
se assemelha ao conteúdo e movimento encontrados em 5.11—6.12:
• Lembrete aos leitores de seu status privilegiado e necessidade de agir
de acordo (5.11—6.3 || 10.19-25).
• Advertência terrível a respeito da apostasia irreversível e do inevitável
juízo divino (6.4-8 || 10.26-31).

338
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

• Garantia de salvação baseada em um histórico de conduta exemplar


(6.9-12 || 10.32-34).
• Encorajamento a perseverar para receber a promessa segura de Deus
(6.13-20|| 10.35-39; veja Lane, 1991, 279-280, p. 282).
Tanto 4.14—6.20 quanto 10.19-39 são passagens de transição. A primeira
proporciona uma transição do midrash no Salmo 95 para os argumentos relati­
vos a sacerdócio, santuário e sacrifício da aliança de Cristo em 7.1 — 10.18. Este
último transita na direção oposta, dos argumentos centrais para as exortações,
que ocupam a conclusão do sermão (Attridge, 1989, p. 283).

NO TEXTO

a. In vo caçã o à a d o ra ç ã o e à vida fie l (10.19-25)

O parágrafo de abertura para a conclusão de Hebreus é outra frase lon­


ga em grego (-» 1.1-4 sobre frase periódica; veja 2.2-4; 5.1-4,5-10; 7.1-3,
26-27; 12.1,2).
Os versículos 19-21 do capítulo 10 resumem sucintamente os argu­
mentos em 7.1-10.18. Sendo assim, o resultado dos argumentos centrais
é a concretização de dois benefícios por Cristo: (1) autorização para nosso
acesso confiante à presença divina; e (2) sua liderança sumo sacerdotal so­
bre o povo de Deus.
Os versículos 22-25 apresentam três exortações que resumem as manei­
ras pelas quais os leitores devem responder a esses benefícios. O pregador faz
um chamado para a adoração verdadeira (“aproximemo-nos [...]” [v. 22]),
compromisso firme (“apeguemo-nos [...]” [v. 23]) e preocupação mútua (“con-
sideremo-nos [...]” [v. 24,25]).
■ 19 Portanto, [...] tem os começa a conclusão. Uma expressão idêntica
abriu a segunda seção principal do sermão (4.14; veja 12.1; para mais paralelos
[4.14-16 || 10.19-25; 5.11—6.20 || 10.19-39] -» Por trás do texto em páginas
anteriores). O discurso aos irm ãos ocorre aqui e no final de todo o sermão
(13.22; também em 3.1,12). Isso dá um tom pastoral ao caráter predominan­
temente exortatório da conclusão. O verbo tem os (echontes) tem dois objetos,
expressando os dois principais benefícios da morte e exaltação de Cristo:
confiança na presença de Deus (10.19) e o ofício de Cristo como “grande sa­
cerdote” (v. 21).

339
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

O primeiro benefício é a confiança {parrêsia; -> 3.6 b [“coragem”] e 4.16).


Aqui, em 10.19,35, é mais do que um sentimento subjetivo de “confiança”
(CEB, ESV, NAB, NASB95, NJB, NRSV; veja GW) ou “ousadia” (HCSB,
KJV; veja NLT). E um privilégio objetivo ou “autorização” (Lane, 1991, p.
283) para entrar no Santo dos Santos. Sob a antiga aliança, apenas o sumo
sacerdote desfrutava desse privilégio, e era apenas uma vez por ano (9.7). A
ênfase aqui não está no ato de entrar, mas no direito sem precedentes de ter
acesso (eisodos) (veja NAB; BDAG, p. 294; Clarke, 1977, 3:755; Ellingworth,
1993, p. 517).
Todos os adoradores desfrutam do privilégio de acesso à presença de Deus
pelo sangue de Jesus. Cristo entrou no Santo dos Santos “pelo seu próprio san­
gue”, não o sangue inútil de bodes e novilhos (-> 9.12,25). A auto-oferta de
Cristo foi o sacrifício definitivo para:
• A inauguração da Nova Aliança (9.15-22).
• A purificação do santuário celestial (9.23-25).
• A perfeição dos adoradores por meio da purificação da consciência
(9.14; veja 9.9; 10.2,22).
ü 20 A “entrada no santuário [interno]” (v. 19 NAB), Cristo nos abriu.
Abriu (enekainisen) é a mesma palavra utilizada para a primeira aliança, sendo
“sancionada” por meio de sangue sacrificial (9.18). O verbo sugere estabelecer
algo recentemente — isto é, “ratificar”, “consagrar” ou “inaugurar” (BDAG, p.
272; vejaBKJ, TB).
A entrada (eisodon [v. 19]) é descrita como um novo e vivo caminho (bo-
don). O caminho é novo porque não foi revelado sob a antiga aliança, mas no
“tempo da nova ordem” (9.8,10). Desse modo, o novo caminho substitui as
formas antigas e ineficazes de aproximar-se de Deus (Pfitzner, 1997, p. 141;
veja 7.11,18,19; 8.7,13; 10.1-4). O caminho é viver, com Deus (10.31; 12.22)
e a palavra de Deus (4.12). E o caminho para a salvação completa, pois Cristo
“vive sempre” para interceder por nós diante de Deus (7.25; veja 7.16; compare
com Jo 14.6).
O caminho passa p or m eio do véu. O pregador emprega as imagens espa­
ciais do tabernáculo. Ali um véu separava o lugar santo do Santo dos Santos
(9.3). De acordo com 6.19,20, Jesus entrou como nosso precursor por trás do
véu no santuário interno. Em outro lugar, Hebreus descreve Jesus como pas­
sando “pelos céus” (4.14), “acima dos céus” (7.26) ou entrando no “próprio
céu” (9.24; veja 8.1). As imagens, sejam cultuais ou celestiais, indicam que
Cristo abriu um caminho para a própria presença de Deus.

340
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

A frase isto é, d o seu corpo (lit. carne) apresenta um dos problemas inter-
pretativos mais difíceis em Hebreus. Alguns comentaristas se opõem à equação
do corpo de Cristo com o véu, como se fosse um véu ou obstáculo à visão de
Deus. Eles afirmam que o corpo está conectado, não com o véu, mas com o
cam inho (Westcott, 1909, p. 322; Spicq, 1952, 2:316; então VC: “o caminho
do seu próprio corpo”). Mas isso não se encaixa com a forma como o autor de
Hebreus usa a expressão isto é. Como um sinal de igual, ele une as duas partes
de uma equação (2.14; 7.5; 9.11; 11.16; 13.15).
O paralelismo em 10.19,20 ajuda a abrir o significado dessa passagem
difícil (veja Lane, 1991, p. 284; Koester, 2001, p. 443-444; Thompson, 2008,
p. 203):

10.19 10.20
" e n t r a r ” (i.e., e n tra d a ) um n o vo e v iv o ca m in h o
"o S a n to d o s S a n to s " p o r m eio d o v é u , isto é
" p e lo s a n g u e d e Je s u s " [p o r m e io ] d o seu co rp o
(lit. " c a r n e " )

Nos versículos 19 e 20, o autor repete os mesmos fatos básicos relativos


ao acesso à presença de Deus alcançada por Cristo. O meio dessa conquista
é a morte sacrificial de Cristo, denotada primeiro em termos de Seu sangue
e depois em termos de Sua carne (sarkos). Em Hebreus, o termo carne é apli­
cado a Jesus com respeito à Sua humanidade mortal, daí Seu sofrimento e
morte (2.14; 5.7). A mortalidade de Jesus foi crucial para “levar muitos filhos
à glória” (2.10), livrá-los do “temor da morte” (2.14-15) e assegurar a “eterna
salvação” (5.9). O deslizamento do movimento espacial (por m eio do véu)
para os meios (“através de sua carne” [ACF, ARA, ARC, ARIB, JFA, NAA,
TB]) ocorreu anteriormente (“adentrou o maior e mais perfeito tabernáculo
[...] pelo seu próprio sangue” [9.11,12]). Jesus inaugurou o caminho para Deus
por meio da oferta de Seu próprio sangue (10.19) e corpo (10.20).
Assim, a expressão enigmática p o r m eio do véu, isto é, por meio do seu
corpo é uma forma sucinta de dizer que o acesso à presença de Deus se deu por
meio da morte corporal de Cristo. A oferta de Cristo de Seu próprio “corpo”
(10.5,10), em obediência à vontade de Deus, é a maneira pela qual o pecado foi
removido e os adoradores, purificados, para se aproximarem de Deus. Em vista
disso, o caminho para o Santo dos santos, que permaneceu não revelado sob a
antiga aliança (9.8), foi agora amplamente aberto por meio da morte sacrificial
de Jesus Cristo.

341
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Rasgando o véu do templo


A lg u n s e s t u d io s o s p e n s a m q u e a c o m p a r a ç ã o d o v é u c o m a c a r n e
d e C r is t o (H b 1 0 .2 0 ) s u g e re a f a m ilia r id a d e d o n o s s o a u to r c o m a t r a d i­
ç ã o n o s E v a n g e lh o s S in ó t ic o s s o b re r a s g a r d o v é u d o t e m p lo (M c 1 5 .3 8
|| M t 2 7 .5 1 || Lc 2 3 .4 5 ; e n tã o , B ru c e , 1 9 9 0 , p. 2 5 1 ; H a g n e r, 1 9 9 0 , p. 16 4;
F ra n ç a , 2 0 0 6 , p. 1 3 5 ). T a lv e z H e b re u s e s te ja in t e r p r e ta n d o a q u e la c e n a
d r a m á t ic a , no m o m e n t o d a m o rte d e Je s u s , q u a n d o o v é u s e ra s g o u e m
d o is . W e s le y e x p lic a : "A s s im c o m o a o r a s g a r o v é u no t e m p lo , o S a n to
d o s S a n to s to rn o u - s e v is ív e l e a c e s s ív e l; a s s im ta m b é m , a o f e r ir o c o rp o
d e C r is to , o D e u s d o c é u s e m a n ife s to u , e o c a m in h o p a ra o c é u s e a b r iu "
(s.d., p. 5 8 4 ).
N ã o há c o m o s a b e r s e e s s a c e n a e s t a v a na m e n te d o a u to r d e H e ­
b re u s . M a s n ã o s e r ia e x a g e r o im a g in a r q u e e le a p ro v a ria a s s o c ia r o e v e n t o
c o m s u a in t e r p r e ta ç ã o t ip o ló g ic a d a d is p o s iç ã o d o t a b e r n á c u lo . A c o rtin a
in te rn a d o t a b e r n á c u lo lim ita v a s e v e r a m e n t e o a c e s s o a o lu g a r s a n t ís s i­
m o (9.7). C o m iss o , o E s p ír ito S a n to e s t a v a d e m o n s t r a n d o q u e o c a m in h o
p a ra o s a n t u á r io in te rn o a in d a n ã o h a v ia s id o re v e la d o (9.8 ), e q u e o s
s a c r if íc io s d e a n im a is e ra m in c a p a z e s d e p r e p a r a r o s a d o r a d o r e s p a ra o
p le n o a c e s s o à p r e s e n ç a d iv in a (9 .9 ,1 0 ).
E n tã o , d e p o is q u e C r is t o d e u S e u ú lt im o s u s p ir o na c ru z , e o v é u d o
t e m p lo fo i ra s g a d o d e a lto a b a ix o , is s o n ã o e ra u m s in a l d e q u e "o t e m p o
d a n o v a o r d e m " h a v ia c o m e ç a d o (9 .1 0 )? Q u e C r is t o tin h a in a u g u r a d o "u m
n o v o e v iv o c a m in h o " p a ra o p ró p r io c é u — " p o r m e io d o v é u , is to é, d o
s e u c o rp o " (1 0 .2 0 )?

■ 21 O segundo benefício é a designação de Cristo como Sumo Sacerdote.


O lembrete tem os, p o is, um grande sacerdote é paralelo a “temos um grande
sumo sacerdote” em 4.14 (-» 4.14—5.10 Por trás do texto, anotação comple­
mentar: “‘Suportes’ de 4.14-16 e 10.19-23”). O título de grande sacerdote é
sinônimo de “sumo sacerdote” (-» 4.14). A exaltação de Cristo como Sumo
Sacerdote foi identificada como “o mais importante do que estamos tratando”
(8.1). O pregador descreveu a obra sumo sacerdotal de Cristo como Sua au­
to-oferta definitiva pelos pecados e Sua contínua intercessão celestial por Seu
povo (7.1 — 10.18).
A posição de Cristo como grande sacerdote sobre a casa de D eus indica
Sua liderança sobre o povo de Deus. Deus usou Moisés para selar Sua aliança
com Israel por meio do sangue de animais (9.16-22). Agora Deus selou a alian­

342
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

ça eterna com o sangue de Cristo e designou o Filho como “o grande Pastor


das ovelhas” (13.20). “Moisés foi fiel como servo na casa de Deus” (3.5). Jesus,
nosso “apóstolo e sumo sacerdote” (3.1), é “fiel como [o Filho] sobre a casa de
Deus” (3.6).
A casa de D eus abrange toda a história do “povo” de Deus (2.17; 4.9;
8.10; 10.30; 11.25; 13.12). É contínua com o antigo povo de Deus (“a casa
de Israel e [...] a casa de Judá” [8.8; veja v. 10]), começando com o patriarca
Abraão (7.4; veja 2.16). Inclui todos os “antepassados” (1.1; veja 8.9) e “anti­
gos” que foram elogiados por sua fé (11.2; veja 11.1-40). A casa de Deus agora
consiste em todos os que mantêm seu compromisso com Cristo (3.6; veja 3.14)
e aguardam Sua segunda aparição para trazer-lhes a salvação (9.28).
H 2 2 Três exortações em 10.22-25 descrevem as respostas apropriadas aos be­
nefícios divinos disponíveis por meio do ministério sumo sacerdotal de Cristo.
A primeira decorre naturalmente do privilégio de acesso ousado à presença de
Deus: aproxim em o-nos (proserchõmetha). O mesmo verbo ocorreu na exor­
tação paralela em 4.16. Ele transmite vividamente a ação do sacerdote e das
pessoas que se aproximam do santuário para adoração (-» 4.16). Embora usado
absolutamente aqui, a NVI acrescenta, apropriadamente, aproxim em o-nos
de D eus (como em 7.19,25; 11.6). Em 12.18-28, o pregador mostra o que é
ao mesmo tempo o destino final de nossa peregrinação cristã e o lugar onde já
nos aproximamos em adoração com nossos corações: a cidade celestial do Deus
vivo (-> 12.18,22). Cristo “pode salvar completamente os que por ele se chegam
a Deus” (7.25 TB).
Podemos aproximar-nos de Deus com confiança, com um coração sin ­
cero [alèthinês\ . Esse é um coração que é “verdadeiro” (ACF, ARA, ACR,
ARIB, BKJ), em oposição ao que é rebelde (ou seja, endurecido [3.8,13; 4.7]) e
“sempre se desviando” (3.10). Ê um coração que pode sobreviver ao escrutínio
penetrante de Deus (4.12) — em oposição ao “coração perverso e incrédulo
que se afastado Deus vivo” (3.12) e cai sob o juízo divino (3.15-19; 10.26,27).
O coração sincero tem o “conhecimento da verdade [alêtbeias]” (10.26);
permanece fiel a Deus, realizando Sua vontade com perseverança e fidelida­
de (10.35,36,39). O coração infiel “retrocede” e está condenado à destruição
(10.38,39). O verdadeiro coração se aproxima do “verdadeiro \alêthinês\ ta-
bernáculo” (8.2; veja 9.24) e se aproxima de Deus por intermédio de Cristo em
antecipação da salvação completa (7.25; 9.28).
Não é coincidência que o pregador mencione o coração duas vezes aqui.
Ele apontou para o anúncio do Senhor de uma Nova Aliança por meio do pro-

343
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

feta Jeremias (8.7-13; 10.15-18). A antiga aliança era defeituosa porque o povo
nunca estava suficientemente preparado para permanecer fiel à aliança (8.9;
veja 8.7,8). A nova e eterna aliança está fundamentada em promessas superio­
res (8.6). O pregador destacou duas delas: a transformação interior do coração
e da mente para uma nova obediência (8.10; 10.16) e o perdão definitivo dos
pecados (8.12; 10.17).
Devemos aproximar-nos de Deus em plena convicção de fé. Frases se­
melhantes em 6.11 acentuavam a certeza da esperança. A ênfase na certeza da
fé aqui está de acordo com a nota dominante de fidelidade que se segue no
capítulo 11, culminando em 12.2. Plena convicção (plérophoria) indica um
estado de certeza completa (BDAG, p. 827; ^ 6.11). A definição de fé em a
11.1 reforça isso. A frase desajeitada plena convicção de fé é traduzida mais
efetivamente como “confiança absoluta” (NAB), “fé forte/certa” (GW /GNT,
NCV; veja TB) ou “totalmente confiante” (NLT) em Deus.
Duas frases participiais em grego completam a primeira exortação em
10.22A Elas indicam a purificação abrangente dos adoradores para sua apro­
ximação a Deus: interiormente (corações) e exteriormente (corpos). Os
particípios aspergidos e lavados estão no tempo perfeito, para indicar puri­
ficação decisiva e duradoura (compare os particípios perfeitos anteriores para
purificação e santificação [-» 10.2,10] e o verbo no tempo perfeito “aperfeiçoa­
do” [-» 10.14]).
Em Fdebreus, aspersão (9.13,19,21; 10.22; 12.24) sempre se refere à purifi­
cação ritual com sangue. Embora o pregador não mencione o sangue de Cristo
aqui, ele certamente o implica como meio de purificação decisiva (9.14; 10.29;
12.24; 13.12; -» 10.4-7). Hebreus 9.14 declara explicitamente que “o sangue de
Cristo [...] purificará” a consciência (-» 9.9, 14 e 10.2, e 9.8-10 anotação com­
plementar: “Consciência”). Assim, ten d o os corações aspergidos para nos
purificar de um a consciência culpada [lit., má] refere-se à profunda purifi­
cação e perdão dos pecados proporcionados pelo sacrifício final da aliança de
Cristo (7.27; 9.12,15,26,28; 10.2,10,18).
Tendo os nossos corpos lavados com água pura emprega uma linguagem
técnica para purificação ritual (Lane, 1991, p. 287). A referência é provavel­
mente ao batismo cristão. Alguns comentaristas curiosamente resistem a essa
conclusão, insistindo que ambas as cláusulas no versículo 22b são metafóricas
(Whedon, 1880, 5:113; Taylor, 1967, p. 125). Embora a purificação dos c o ­
rações seja obviamente metafórica, a lavagem dos corpos certamente não é.
Nosso autor não denigre as lavagens rituais em si. Elas foram prescritas para

344
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HF.BREUS

adoração no tabernáculo sob a antiga aliança. De lato, “batismos” ou “ritos


de purificação” (NIV11) são fundamentais para a fé cristã (6.1,2). No entanto,
as lavagens cerimoniais são de eficácia limitada, proporcionando apenas lim­
peza externa (9.10,13), e não uma purificação profunda e invasiva do coração
(9.9,14; 10.1-4,11-12).

Sinal externo, graça interna

H e b re u s 1 0 .2 2 b c o n c o r d a c o m o u tro s t e x t o s d o N T q u e r e tra ta m t a n ­
to u m a la v a g e m fís ic a d o c o rp o c o m á g u a c o m o u m a re n o v a ç ã o e s p ir it u a l
d a p e s s o a in t e r io r (E f 5 .2 6 ; T t 3.5). N a lin g u a g e m d a t e o lo g ia s a c r a m e n t a l,
t e m o s o s in a l e x t e r io r (a á g u a d o b a tis m o ) e a g r a ç a in t e r io r ( lim p e z a d o
c o r a ç ã o o u re g e n e ra ç ã o ) . I n tim a m e n te p a r a le lo a H e b re u s 1 0 .2 2 e s tá 1
P e d ro 3 .2 1 , q u e d e s c r e v e o b a t is m o c o m o "a r e m o ç ã o d a s u je ira d o c o rp o "
(sin a l e x te rn o ) e "o p e n h o r d e u m a b o a c o n s c iê n c ia p a ra c o m D e u s " ( g ra ­
ç a in te rn a ). O p ro fe ta E z e q u ie l p re v iu o t e m p o e m q u e D e u s p u r ific a r ia e
t r a n s f o r m a r ia S e u p o v o d e fo rm a a b r a n g e n t e , t a n t o p o r d e n tro c o m o p o r
fo ra ; " A s p e rg ire i á g u a p u ra s o b re v o c ê s [...]. D a re i a v o c ê s u m c o r a ç ã o
n o v o " (E z 3 6 .2 5 ,2 6 ) .

Ü 2 3 A segunda exortação, apeguem o-nos \katechomen\ com firmeza à espe­


rança que professam os \tên homologian tês elpidos, à confissão da esperança\ ,
é formalmente paralela a “mantenhamo-nos firmes \kratõmen\ à confissão [tês
homologias]” (4.14 HCSB). A confissão (homologia; a maioria das traduções)
é uma “declaração” ativa de reconhecimento (GW) da fidelidade de alguém
(BDAG, p. 709). O conteúdo objetivo da confissão é Jesus como nosso Sumo
Sacerdote (->3.1 e 4.14). Anexada ao sacerdócio de Cristo, estabelecido por ju­
ramento divino, está a introdução de “uma esperança superior” (7.19). Assim,
a confissão da esperança é inseparável da confissão de Cristo como Filho e
Sumo Sacerdote “sobre a casa de Deus” (3.1,6; 10.21). Cristo, nosso Sumo Sa­
cerdote, é o precursor que ancorou nossa “esperança [...] no santuário interior
por trás do véu” (6.19,20).
Em outros lugares, Hebreus exorta seus leitores a apegarem-se (-> 6.18)
à confiança (3.6; veja 10.19,35), à esperança (3.6; 6.18; veja 6.1 1; 11.1) e ao
nosso compromisso original (3.14). Esses termos se sobrepõem em significa­
do com fé (10.22,38,39) e perseverança (10.32,38). Juntos, eles reforçam o

345
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

principal objetivo exortatório do sermão: instar os leitores a manter um sólido


compromisso com Cristo (Ellingworth, 1993, p. 524).
Portanto, eles devem manter inabalável a sua confissão de esperança. O
adjetivo aklinês significa literalmente “inflexível”, “firme” e “imóvel” (LSJ, p.
51). Importante, com firm eza modifica a confissão em vez da esperança (Lü-
nemann, 1890, p. 649; deSilva, 2000a, p. 340; Thompson, 2008, p. 205). A
esperança é uma fonte de forte encorajamento em que podemos apegar-nos
(618), pois está fundamentada na promessa e no juramento decorrentes do
propósito imutável de Deus (6.13-18). A esperança é como “uma âncora [...]
firme e segura”, presa dentro do “santuário interior” (6.19). A “esperança supe­
rior” introduzida pelo sacerdócio de Cristo (7.19) é apoiada pelo juramento de
Deus (veja 7.17,20-22,28). Desse modo, é nossa confissão dessa esperança que
precisa ser estabilizada ou mantida “sem vacilar” (ARA, NAA, NVT, BSEP;
vejaBKJ).
Que o Deus (veja 6.13; 11.11) que p rom eteu é fiel serve como base
{para) para essa exortação. Os capítulos 6 e 7 fazem parte do pano de fun­
do para essa afirmação. A “promessa” de Deus é “confirmada com juramento”
(6.17). O juramento de Deus está por trás da “promessa” de entrar no descanso
divino (4.1-11, especialmente os v. 3,5). O juramento de Deus a respeito de
nosso grande Sumo Sacerdote faz do próprio Jesus “a garantia de uma aliança
superior” (7.22), “baseada em promessas superiores” (8.6). O que éprometido
— o objeto de nossa esperança — é nossa “herança eterna” (9.15; veja 10.36;
11.13,39) no Reino inabalável de Deus (12.26-28).
11 2 4 - 2 5 A terceira exortação, con sid erem o-n os uns aos outros para in ­
centivar-nos ao am or e às boas obras, assemelha-se ao elogio do pregador ao
“trabalho” e o “amor” dos leitores em 6.10,11. C on sid erem o-nos (katanoõmen)
exorta os leitores a direcionarem sua atenção (NAA, NVT, VC) um para o ou­
tro (compare “cuidado com isso \blepete\ [...]” [3.12]; episkopountes [12.15]).
Katanoeõ ocorre apenas mais uma vez, direcionando nossa atenção para Jesus
(3.1; compare com 12.2,3). Considerar Jesus e outras pessoas compreende os
dois focos principais da vida cristã (Koester, 2001, p. 445). Essa terceira exor­
tação, podemos notar de passagem, completa a tríade teológica de fé (10.22),
esperança (v. 23) e amor (v. 24), também encontrada em 6.9-12 (-» 6.10 anota­
ção complementar: “Virtudes”).
O propósito da preocupação mútua deve ser incentivar-nos ao amor e
às boas obras. A frase grega emprega uma palavra particularmente forte, cujo
teor é sugerido em traduções como estimular (BKJ) ou “provocar” (KJV,

346
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

NRSV; Lutero usa Reizen, “irritação”). O substantivo paroxysmos bem como


seu verbo cognato paroxynõ (“aguçar”) são tipicamente usados em sentido ne­
gativo, indicando irritação, exasperação, provocação ou ira (LSJ, 1342-1343;
BDAG, p. 780). A única outra ocorrência do substantivo no N T refere-se ao
“agudo desacordo” de Paulo e Barnabé (At 15.39; veja também Dt 29.17 e Jr
39.37 LXX).
O verbo raramente se refere à estimulação em direção a objetivos ou ações
positivas (veja Attridge, 1989, p. 290, n. 79; Koeste,r 2001, p. 445). Às vezes,
é emparelhado com parakaleõ (encorajar) como um sinônimo livre (Políbio,
Hist. 3.116.3; Apiano, Hisp. 8.40; Plutarco, Sol. 30.4; compare com Hb 10.24
e 25). A frase provocação ao am or e às boas obras é cativante. Exige encoraja­
mento mútuo (v. 25^), que é desafiador, confrontador, em vez de reconfortante
(France, 2006, p. 137).
É necessário haver séria preocupação e motivação para combater o mal-estar
que se instalou entre os leitores. Em todo caso, a proibição de não deixem os de
reunir-nos (v. 25^) revela o primeiro indicador tangível de apostasia na igreja
doméstica. A ação é mais do que negligência (“negligenciar” [NLT; veja ESV,
NRSV]) ou distanciamento (“ficar longe” [NAB, NCV, REB; veja HCSB];
“ausentar-se” [NJB]). É um “abandonar” (BKJ, JFA, KJA, TB) ou “renunciar”
(NET) da comunidade que a deixa vulnerável (“deixando na mão” [Johnson
2006, p. 261]).
Infelizmente, o autor não nos diz as razões da deserção. As especulações
incluem perseguição (10.32-34; 12.4; 13.3), ensinamentos e práticas contro­
versas (13.9), desilusão com o atraso da Parousia (9.28; 10.25^,36-39) ou um
complexo de questões. Talvez o próprio autor não conhecesse as causas preci­
sas (Attridge, 1989, p. 290-291; Introdução: E Objetivo). O problema está
restrito a apenas alguns membros por enquanto, mas é crônico (segundo o
costum e de alguns). O pregador está preocupado com o destino dos poucos
que estão fugindo (2.1; 3.12,13; 4.1,11), bem como os efeitos corruptores que
podem ter sobre muitos (12.15).
A urgência de atender (10.24) a esse problema é ainda m ais crítica a
q u an d o v o cês veem que se aproxim a o D ia (v. 25). A mudança repentina
para a segunda pessoa (vocês) ressalta a insistência do pregador. A referên­
cia escatológica ao D ia e à sua aproximação iminente (“se aproximando”
[ARIB, JFA, NAB, NASB, NET, NJB, NLT, RSV]) levanta o terror do
juízo iminente. A ameaça de julgamento é ainda mais enfática no parágrafo
seguinte.

347
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

"O dia"
E m H e b re u s 1 0 .2 5 , "o D ia " (c o m o e m 1 C o 3 .1 3 ; 2 Ts 2;3; 2 T m
1 .1 2 ,1 8 ; 4 .8 ) é u m a a b r e v ia ç ã o p a ra "o D ia d o S e n h o r" . O s a n tig o s is r a e li­
t a s a n te c ip a r a m u m a lib e r ta ç ã o fu tu ra na q u a l D e u s o s lib e r ta ria , ju lg a r ia
s e u s in im ig o s e o s e s t a b e le c e r ía s o b re a s n a ç õ e s . N o e n ta n to , o s p r o fe ta s
d o A T a le r ta r a m o p o v o re b e ld e d e Isra e l. O D ia d o S e n h o r n ã o s e rá u m
t e m p o d e g r a n d e re g o z ijo . J u n to a t o d a s a s o u tra s n a ç õ e s , Isra el t a m b é m
s e r á ju lg a d o p o r s e u s p e c a d o s (A m 5 .1 8 -2 0 ; Jl 1.15 ; 2 .3 1 ; S f 1 .7 -1 8 ; Z c
14 .1 ). " S e rá d ia d e tre v a s , n ã o d e lu z " (A m 5 :18 ).
N o NT, o D ia d o S e n h o r m a n t é m s e u c a r á t e r d e d u p la f a c e c o m o u m
t e m p o d e lib e r ta ç ã o e c o n d e n a ç ã o . Je s u s id e n t ific a - o c o m a v in d a d o Filho
d o H o m e m c o m o Ju iz (M t 1 6 .2 7 ; 2 5 .1 3 ,3 1 ; M c 1 3 .2 6 ; 1 4 .6 2 ; Lc 1 7 .3 0 ).
P a u lo o c h a m a d e "o d ia d e n o s s o S e n h o r Je s u s C r is t o " (1 C o 1.8), "o d ia
d o S e n h o r " (1 C o 5.5; 2 Ts 2.2), "o d ia d o S e n h o r J e s u s " (2 C o 1 .1 4 ) ou "o
d ia d e C r is t o [Je su s]" (Fp 1 .6 ,1 0 ; 2 .1 6 ).
E m H e b re u s , a g ru p a r - s e e m t o rn o d o " D ia " é a e x p e c t a t iv a d a v in d a
d e C r is t o c o m r e c o m p e n s a (1 0 .3 5 ,3 6 ) e ju íz o (4.1 3; 6.2; 9 .2 7 ; 1 0 .2 7 ,3 0 ,3 1 ;
1 2 .2 3 ; 1 3 .4 ), c o m d e s tr u iç ã o ( 1 0 .2 7 ,3 9 a ) e s a lv a ç ã o (7 .2 5 ; 9 .2 8 ; 1 0 .3 9 b ) .

b. Expectativa terrível de juízo para os apóstatas (10.26-31)

O pregador agora oferece o tipo de admoestação adequada para provocar


e encorajar seu público a fortalecer seu compromisso com Deus e uns com os
outros. Como é habitual em conclusões retóricas, o autor desenvolve um po­
deroso apelo emocional (-» 10.19— 13.25). E um exemplo clássico de deinõsis
(lit., “fazer temer, terrível”). Essa é a eloquência retórica destinada a fazer sentir
a força do caso que está sendo feito, o impacto emocional de “coisas injustas,
cruéis ou odiosas” (Quintiliano, Inst. 6.2.24; veja Thompson, 2008, p. 124).
O medo (10.27,31) do juízo de Deus (10.27,30) enquadra explicitamente
o parágrafo. O argumento do parágrafo prossegue em três partes. Primeira, o
pregador articula as terríveis consequências da rejeição desafiadora do sacrifí­
cio de Cristo (10.26,27). Segunda, ele atrai os leitores para o cálculo lógico e
emocional da justiça divina com um argumento do menor para o maior (“Quão
mais severo castigo julgam vocês [...]?” [10.29]). Terceira, ele oferece suporte
bíblico para a execução inevitável do juízo divino (10.30), seguido por uma
declaração final de quão temível é esse juízo (10.31).

348
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

H 2 6 -2 7 Para {gar; não traduzido na NVI) vincula a presente advertência à


descrição da apostasia no versículo 25. Se continuarm os a pecar deliberada-
m ente, então, implica o abandono da comunidade cristã. Isso inclui a rejeição
de seu privilégio de aproximar-se de Deus por meio do sangue de Jesus, sua
confissão de esperança e sua preocupação mútua, encorajamento e participação
no amor e no bem (10.19-25). O pecado da apostasia é deliberado, persistente
e com pleno conhecimento.
Primeiro, o termo deliberadam ente (ARA, KJA, NVT, OL; “volunta­
riamente” [ACF, ACR, ARIB, BKJ, JFA, TB, VC]) alude à distinção entre
pecados não intencionais e intencionais em Números 1.22-31. Sob a antiga
aliança, os pecados cometidos intencionalmente ou “desafiadoramente” resul-
tavam em expulsão da comunidade e culpa não aliviada (Nm 15.30,31; -> 5.2).
Segundo, o infinitivo no tempo presente continuarm os a pecar (hamar-
tanontõn) transmite o sentido de pecado contínuo ou persistente (“persistir no
pecado” [NRSV, REB]).
Terceiro, dep ois que recebem os o con h ecim en to da verdade implica
uma rejeição informada da verdade. Chegar ao con h ecim ento da verdade é
uma expressão padrão para conversão nas Epístolas Pastorais (1 Tm 2.7; 4.3;
2 Tm 2.25; 3.7). “Conhecer a verdade” também é significativo nos escritos de
João (Jo 8.32; 17.3; l j o 2.21;2Jo 1). O esclarecimento é um motivo conjunto
(FFb 6.4; 10.32). A forma intensiva para o con h ecim ento (epignõsin, “pleno
conhecimento”; Lane, 1991, p. 292) bem como a inclusão do pregador de si
mesmo em sua recepção (recebem os) excluem qualquer sugestão de que ape­
nas falsos professores de fé estão em vista (France, 2006, p. 139). A apostasia é
um perigo que todos os crentes fariam bem em evitar.
A consequência da apostasia é declarada, primeiro, em uma negação: Já
não resta sacrifício p elos pecados (v. 26b). Isso reformula a declaração em
10.18 (Lane, 1991, p. 292-293). A provisão de perdão conclusivo por meio
da auto-oferta de Cristo “cancela” (10.9) o sistema “fraco e inútil” (7.18) de
sacrifícios levíticos. Assim, “não há mais necessidade de sacrifício pelo pecado”
(10.18). O sacrifício definitivo de Cristo, uma vez repudiado sumariamente,
não resta sacrifício disponível para expiar os pecados.
A primeira vinda de Cristo foi com o propósito expresso de libertar (9.15)
e “aniquilar o(s) pecado(s)” (9.26,28; 10.4,11). Visto que Cristo realizou isso
com finalidade, Sua segunda aparição não pode e não incluirá qualquer ex-
piação pelos pecados (9.28). A única coisa que resta para aqueles que pecam
contra o sacrifício de uma vez por todas de Cristo é uma terrível expectativa
de juízo e de fogo intenso que consum irá os in im igos de D eus (10.27).

349
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Essa segunda maneira de descrever a consequência final da apostasia é


diametralmente oposta ao destino dos fiéis. Os últimos estão “aguardando
[,apekdechomenoisX que Cristo traga a salvação (9.28). Os desertores da fé fi­
cam com nada além de uma assustadora expectativa (ekdochê) do juízo divino.
O próprio Cristo “espera [ekdecbomenos\ ” o juízo final, quando Seus inimigos
serão feitos escabelo de seus pés (10.13).
O aspecto intenso {phoberos [v. 27,31]) do juízo de Deus (kriseõs [v. 27];
“julgar \krinei\” [v. 30]) enquadra esse parágrafo. “Juízo eterno” é um princípio
básico da fé cristã (6.2). É uma realidade escatológica (9.27; 10.23), especial­
mente desagradável para aqueles cujo estilo de vida está em flagrante violação
do padrão de santidade de Deus (13.4; veja 12.14). A referência ao fogo inten­
so que consum irá os in im igos de Deus se assemelha a oráculos proféticos que
advertem sobre a ira ardente no Dia do Senhor (Is 26.11; 66.15; Sf 1.18; 3.8;
Ez 38.19). Mais tarde, em uma alusão a Deuteronômio 4.24, Hebreus apontará
que “Deus é um fogo consumidor” (12.29).
■ 2 8 - 2 9 Mais uma vez, a forma de argumento é legal, lançada em uma com­
paração do menor para o maior (veja 2.6-9; 4.8; 7.11,15; 8.6; 9.8,9; 10.8-10). A
parte “menor” do argumento (v. 28) diz respeito ao justo veredito pronunciado
sobre aqueles que repudiaram as reivindicações legais da antiga aliança: Quem
rejeitava a lei de M oisés não se refere simplesmente àqueles que violaram a
Lei (veja NRSV). Refere-se a ações empreendidas para revogá-la ou anulá-la
(.athetêsas, “pôr de lado” [ESV, NASB]; Koester, 2001, p. 452). Isso é traição ou
quebra de fé (veja Políbio, Hist. 9.36.10; Is 1.2; Mc 6.26; 1 Tm 5.12; Johnson,
2006, p. 263). Somente Deus, que estabeleceu a Lei por intermédio de Moisés,
tem a prerrogativa de anulá-la, como fez por meio do sacrifício de Seu Filho
(Hb 7.18; 10.9; veja 8.7,8,13).
A sentença de morte (m orria [...] p elo dep oim ento de duas ou três
testem unhas) alude à punição prescrita para os idólatras em Deuteronômio
17.2-7. Que a sentença fosse executada sem m isericórdia ecoa a determinação
“não mostre piedade”, exigida para as ofensas mais flagrantes (a frase do AT é,
literalmente, “seu olho não o poupará” [D t7.l6; 13.9; 19.13,21]; Bruce, 1990,
p. 262; Ellingworth, 1993, p. 537). Nesse caso, a geração do deserto experi­
mentou uma sentença de morte bastante implacável por “afastar-se do Deus
vivo” (Hb 3.12,16-19).
A parte “maior” do argumento torna-se ainda mais potente pela formula­
ção interrogativa do pregador. Ele convida seus leitores a tirarem por si mesmos
a conclusão inevitável sobre aqueles que viram as costas para a nova aliança:

350
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

Q uão m ais severo castigo, julgam vocês [...] ? (10.29; observe a mudança da
primeira pessoa [“nós” (v. 26)] para a segunda [vocês]). Ele apresenta uma série
de três ações tão desprezíveis que aqueles que as cometem merecem um castigo
pior que a morte. Cada ação demonstra o caráter consciente, persistente e de­
liberado da apostasia final (-» v. 26). A primeira retrata graficamente o repúdio
do apóstata ao próprio Filho de Deus; a segunda e a terceira articulam o fla­
grante desrespeito pelas graciosas provisões da Nova Aliança.
Primeira, o apóstata é aquele que p iso u aos pés o F ilho de D eus. Não há
metáfora mais vivida para mostrar desprezo do que “pisar sob os pés” (Sl 7.5;
56.2 LXX; Is 10.6; 26.6; Dn 8.10; Mq 7.10; Mt 5.13; 7.6; para usos do grego
clássico, veja Koester, 2001, p. 452-453; Johnson, 2006, p. 264). A traição in-
sidiosa de Jesus é descrita como Judas “levantando o calcanhar” contra Ele (Jo
13.18, citando Sl 41.9).
Essa é a quarta ocorrência do título completo Filho de D eus. Duas instân­
cias têm uma qualidade confessional (4.14; 7.3). As outras duas se aplicam aos
apóstatas que desprezam a confissão de Jesus como Filho de Deus (6.6; 10.29).
Quão irônico e fútil é os rebeldes pisarem aos pés o Filho de D eus! Deus já
colocou tudo “debaixo dos pés [do Filho]” (2.8). O Filho é “superior aos anjos”
(1.4-14; 2.5-7) e a Moisés (3.1-6). Ele está sentado à direita de Deus, esperan­
do que Seus inimigos sejam feitos “estrado para [Seus] pés” (1.13; 10.13). Os
rebeldes se tornam Seus inimigos.
Segunda, o apóstata é aquele que profanou o sangue da aliança p elo qual
ele foi santificado. O sangue da aliança originalmente se referia ao sangue
animal usado para selar a primeira aliança de Deus com Israel (Ex 24.8, cita­
do em Hb 9.20). Agora, porém, foi o sangue de Cristo que inaugurou a nova
aliança (9.15-18; 12.24; 13.20; veja Mt 26.28). O sangue de Cristo é o meio
de santificação completa (santificado \bêgêsamenos\ ele; veja 13.12; compare
com 9.13; 10.10,14) ou purificação dos pecados (9.14,22; 10.2,22). No en­
tanto, o que é totalmente santo, torna santo e abre uma entrada na presença
absolutamente santa de Deus os apóstatas consideram “comum” ou “profano
\koinon]”. Eles declaram, com efeito, “que não esperam mais benefício do san­
gue de Cristo do que de uma vaca ou de uma ovelha” (Clarke, 1977, 3:758).
Terceira, o apóstata é aquele que insultou o Espírito da graça. A tradução
“ultrajou o Espírito da graça” erra o alvo (ESV, NRSV). O verbo enybrizõ (uma
forma intensiva de hybrizõ) denota agir a partir de hybris (“hubris”) — isto é,
arrogância, insolência, audácia. Manifesta-se no comportamento que degra­
da, insulta ou maltrata violentamente o outro. Aristóteles classificou “insulto”

351
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

como um dos três tipos de desprezo (junto a desdém e maldade). O insulto


consiste em “causar injúria ou aborrecimento pelo qual o sofredor é deson­
rado”. O insulto é concebido não para obter qualquer vantagem legítima ou
reparar qualquer erro, mas apenas para desonrar alguém pelo puro prazer de
exibir sua superioridade (Rhet . 2.2.5).
O ato de arrogância é ainda mais flagrante nesse caso porque seu objeto
é o Espírito da graça. Spicq afirma que não há contraste mais marcante do
que aquele entre hybris (insulto) e charts (graça; 1953, 2:325). O Espírito da
graça ou “o Espírito Santo que traz a misericórdia de Deus para nós” (NLT)
não é outro senão “o Espírito eterno” por meio de quem Cristo “se ofereceu”
por nossos pecados (9.14). Qualquer um que tenha respondido aos benefícios
divinos com tal desonra, desgraça e ingratidão cometeu um ato supremo de im­
piedade. Os antigos reconheciam amplamente que tal pessoa estava destinada
à ruína e merecia ser punida (veja deSilva, 2000a, p. 349-351; Koester, 2001,
P- 453).
3 0 - 3 1 O parágrafo fecha com a mesma nota com que começou: a nature­
za terrível do juízo divino (-» 10.27). O pregador oferece prova bíblica de que
Deus defenderá Sua própria honra e santidade contra o sacrilégio e desrespeito
dos apóstatas descritos no versículo 29.
A m im pertence a vingança; eu retribuirei é uma adaptação de Deutero-
nômio 32.35. A citação próxima não está de acordo com o texto hebraico nem
com a LXX. Paulo usa exatamente o mesmo fraseado (Rm 12.19), espelhado
também nos Targuns (paráfrases aramaicas do AT hebraico). Isso sugere que
o pregador seguiu a paráfrase oral em uso corrente nas sinagogas da Diáspora
(Hagner, 1990, p. 172; Lane, 1991, p. 295; Koester, 2001, p. 453).
O Senhor julgará o seu povo, como a citação anterior, vem do cântico de
Moisés (Dt 32.36). O ditado é repetido no Salmo 135.14 LXX e nas Od. Sal.
2.36, indicando que ele também sobreviveu na memória oral. Hebreus usa as
mesmas palavras da LXX, mas sua aplicação é bem diferente da função usual
do ditado. O cântico de Moisés celebra a defesa de Deus de Sua própria honra
e Sua fidelidade em proteger e reivindicar Israel. Em uma reviravolta curiosa,
Hebreus usa o oráculo para lembrar aos leitores que Deus voltará Seu juízo
sobre Seu povo. O juízo será direcionado àqueles que deram as costas a Deus,
violaram e profanaram propositalmente a nova aliança e cortaram seus laços
com seu povo.
Possivelmente, a declaração mais ameaçadora nas Escrituras conclui esse
parágrafo: Terrível coisa é cair nas m ãos do D eus vivo (Hb 10.31). A ex-

352
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

pressão idiomática cair nas m ãos de significa estar sob o poder ou controle
de alguém, muitas vezes com repercussões negativas (Jz 15.18; 2 Sm 21.9; Lc
10.36; veja Sir. 8.1; Sus. 1.23). Para os justos, é preferível cair nas mãos de Deus
do que nas mãos de seus adversários (2 Sm 24.14; 1 Cr 21.13; Sir. 2.18). Não é
assim para os inimigos jurados de Deus, como declara o cântico de Moisés (Dt
32.39; veja 2 Cr 32.14,15; Is 43.13; 2 Mac. 6.26). O D eus vivo, que dá vida a
todas as coisas criadas, também pode tirá-las (Dt 32.39; 1 Sm 2.6; 2 Rs 5.7).
Esse pensamento terrível deve servir como uma advertência para aqueles que
estão “se afastando do Deus vivo” (Hb 3.12) e do Seu povo.

c. L o u v o r p e la p e rs e v e ra n ç a p a ss a d a (10.32-34)

Encontramos o mesmo padrão retórico de discurso franco (10.26-31) se­


guido de louvor (10.32-34) que consta no capítulo 6 (6.4-8,9-12; -> 6.9). João
Crisóstomo, sendo ele próprio um orador experiente, reconheceu a técnica.
Ele comparou isso a um médico que, depois de fazer uma incisão profunda,
emprega remédios suaves e calmantes para aliviar a dor (1996, p. 461).
O objetivo da declaração de abertura do parágrafo é chamar a comunidade
a lembrar sua própria resistência passada de uma “grande luta” de sofrimentos
(10.32). O pregador então estrutura esses sofrimentos de maneira quiástica (v.
33,34; Bengel, 1877,4:439):
10.33 “expostos a insultos e tribu- “fizeram-se solidários com os que
lações” assim foram tratados”

10.34 “se compadeceram dos que “aceitaram alegremente o confisco


estavam na prisão” dos próprios bens”

O parágrafo conclui com a justificativa para sua resistência diante do sofri­


mento: a esperança de “bens superiores e permanentes” (10.34b).
ü 3 2 Lem brem -se dos prim eiros dias é um apelo à memória (gr. anamnesis).
Essa é uma estratégia retórica destinada a motivar o público e garantir sua boa
vontade, elogiando a “coragem, sabedoria, humanidade e nobreza dos juízos
passados que proferiram” (Rhet. Her. 1.5.8). Seu efeito pretendido é dispor fa­
voravelmente o público em relação ao orador (esperado na peroratio de um
discurso [Aristóteles, Rbet. 3.19.1]). A recordação do histórico de ações hon­
rosas e corajosas dos leitores deve reforçar sua resolução de não cair em padrões
de comportamento vergonhosos e covardes (deSilva, 2000a, p. 355-357).

353
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Os prim eiros dias a serem recordados ocorreram depois de terem re­


cebido a luz. A imagem de ter “sido iluminado” apareceu anteriormente (-»
6.4a e anotação complementar: “Iluminação e batismo”). O período de tempo
foi talvez em algum ponto logo após eles terem “recebido o conhecimento da
verdade” (10.26) ou terem passado a “ser participantes de Cristo” (3.14). Os
maus-tratos sofridos pela comunidade provavelmente se devem à sua recém-
-descoberta confissão de fé em Cristo.
Durante o início da vida da comunidade [vocês] suportaram [hype-
meinate\ m uita luta e m uito sofrim ento. A maioria das versões mostra que
demonstraram grande resistência diante do sofrimento. A perseverança
(makrothymia e makrothymeõ-, -> 6.12,15) era um traço de caráter de Abraão
que os leitores eram instados a imitar (-» “paciência” em 6.12). O ressurgimento
do vocabulário de resistência (mas com hypomenõ e hypomonê) ocorre apenas
aqui e no início do capítulo 12. O recital de pessoas de fé exemplares ao lon­
go da história (11.1-40) é enquadrado por apelos para a resistência presente
(10.36; 12.1,7), com base no exemplo da própria resistência passada da comu­
nidade ao sofrimento (10.32) e da resistência de Jesus à cruz (12.2,3).
A resistência era um tema comum de coragem, uma das quatro virtudes
gregas cardeais (-» 6.10 anotação complementar: “Virtudes”). Como observou
Aristóteles, “a coragem suporta as coisas horríveis por causa do que é nobre”
{Et. Nic. 1115b 12; deSilva, 2000a, p. 366, n. 74). Os filósofos cínicos e es-
toicos consideravam a resistência uma parte integrante do cultivo de todas as
virtudes. Tanto judeus quanto gregos frequentemente ilustravam a resistência
às dificuldades ou aos sofrimentos com imagens atléticas (Croy, 1998, p. 63-
65,174; Thompson, 2008, p. 217-219).
Hebreus se apropria de temas e imagens populares da filosofia moral para
descrever as lutas da comunidade. O pregador lembra-lhes que eles enfren­
taram m uita luta {polên athlesin [NAB, NIV]; “grande/grande luta” [ESV,
HCSB, NRSV/NKJV]; “grande/difícil conflito” [NASB/NET]). Umaatlêsis
é uma competição atlética (BDAG, p. 24), que pode incluir corrida, boxe, luta
livre, salto, arremesso, entre outros eventos. É prematuro identificar a disputa
aqui como uma “luta por prêmios” (France, 2006, p. 143; “grande combate”
[BKJ]). Quando a terminologia de “resistência” e as imagens atléticas ressur­
gem no capítulo 12, o pregador descreve a luta como uma corrida (12.1) e
talvez uma luta de boxe/luta (12.4). A grande luta aconteceu diante do sofri­
m ento, ou melhor, consistiu em sofrimentos (Johnson, 2006, p. 268).
B 3 3 O pregador cataloga os sofrimentos anteriores da comunidade em duas
categorias. Primeira, houve sofrimentos diretos em toda a comunidade supor­
354
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

tados em plena vista do público. Segunda, houve dificuldades que não afetaram
diretamente a todos na comunidade, mas foram suportadas da mesma forma
pela comunidade como um todo. As duas categorias aparecem duas vezes em
10.33,34, em ordem quiástica (-» introdução a 10.32-34).
Algum as vezes, esse grupo primitivo de cristãos sofria insultos e tribu-
lações. Insultos (oneidismois) provavelmente significa “abuso” verbal (NAA,
NVT, NAB, NET, NRSV, REB; portanto, “opróbio” [ARA, ESV, KJV,
NASB]; “ridículo” [NLT]; “provocações” [E1CSB]), tenderam a desgraçar a
comunidade (BDAG, p. 710; “humilhações” [KJA, VC]; “vergonha” [TYN-
DALE]). Levar “desgraça \oneidismos\ ” é uma forma pela qual os crentes se
identificam com o sofrimento de Cristo (11.26; 13.13). Perseguição (thlipse-
siri) é um termo genérico para “tribulações” (ACF, ARA, ARC, ARIB, JFA,
KJA) ou “aflições” (BKJ, ESV, EíCSB, KJV, NAB, NET). Aqui provavelmente
conota “violência” física (NVT; veja Johnson, 2006, p. 269), mas é difícil dizer
se isso significava ser “espancado” (NVT) ou “atormentado” (REB).
Qualquer que seja os abusos físico e verbal, eles foram infligidos para ma­
ximizar o impacto da vergonha e da desgraça aos olhos do público. A expressão
grega traduzida como expostos (theatrizomenoi') é um cognato da palavra para
“teatro [theatron\ ’ (veja 1 Co 4.9). O verbo ativo significa “ser ou representar
no palco”; no passivo, “trazer ao palco”. Geralmente tem o sentido negativo de
“tornar-se um espetáculo público” (ACF, ACR; ARIB veja JFA) ou “exposto à
vergonha” (LSJ, 787; BDAG, p. 446).
Em outras ocasiões, quando a comunidade não sofria ataques frontais
da sociedade ao seu redor, ela se solidarizava com os que assim foram trata­
dos. A expressão fizeram -se solidários significa “companheiros \koinõnoi\”
ARIB, CEB, ESV, NRSV) ou “participantes” (ACF, ARC). Isso sugere que
eles compartilharam o fardo da vergonha com seus irmãos e irmãs sofredores,
como se fosse deles. O Filho também “participou” da humilhação da existência
humana por meio de Sua encarnação (Eíb 2.14). O s que assim foram tratados
poderíam ter sido certos membros da comunidade escolhidos para maus-tratos
(talvez líderes da igreja [13.7]) ou membros de igrejas vizinhas (-> 13.23-24).
B 3 4 As duas categorias de sofrimento listadas em -> 10.33 são repetidas no
versículo 34, mas em ordem inversa e com maior especificidade. Um exemplo
concreto de solidariedade com outros que estavam sofrendo (v. 33b) é quando
a comunidade se compadeceu [simpatizou; N IV ] dos que estavam na prisão.
A tradução simpatizava é, na melhor das hipóteses, ambígua e, na pior das
hipóteses, potencialmente enganosa Q 4.15). “Teve compaixão” (ESV, KJV,

355
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

NRSV) corretamente sugere mais do que sentimentos de simpatia, mas prestar


ajuda e assistência ativa. Melhor ainda é a NIV 11, “sofreu junto a” (da mesma
forma NVT, GW, NAB, NET, NJB, NLT, REB). A prisão de companheiros
crentes ainda estava acontecendo quando Hebreus foi escrito (13.3,23). A
exortação em -> 13.3 é um comentário sobre o sofrimento compartilhado men­
cionado aqui. A comunidade deve cuidar e identificar-se intimamente com os
prisioneiros, como se estivessem acorrentados ao lado deles.

Prisão no mundo romano antigo


O e p ít e to " e s p e r o q u e v o c ê a p o d r e ç a na p r is ã o " e ra m u ito m a is p r o ­
v á v e l d e to rn a r-s e r e a lid a d e n a s p r is õ e s a n tig a s d o q u e n a s d o s p a ís e s
c iv iliz a d o s m o d e rn o s . E fo i a s s im , a p e s a r d o fa to d e q u e a a n tig a c u s tó d ia
r o m a n a n e m s e q u e r e ra o f ic ia lm e n t e r e c o n h e c id a c o m o u m a fo rm a d e
p u n iç ã o — e m b o ra p u d e s s e s e r u s a d a c o m o ta l. A s p u n iç õ e s re a is in c lu í­
a m m u lta s , e x e c u ç ã o o u (u m d e s tin o m u ita s v e z e s c o n s id e r a d o p io r q u e
a m o rte ) e x ílio .
A s c o n d iç õ e s e ra m t e r r ív e is n a s p r is õ e s a n tig a s . G e r a lm e n t e e s t a v a m
lo ta d a s a lé m d a c a p a c id a d e , d e s p r o v id a s d e lu z n a tu ra l e m a l v e n t ila ­
d o s . O s p r is io n e ir o s d e f in h a v a m n o a r n o c iv o e n o c a lo r s u fo c a n te , e se
e s f o la v a m e m c o r r e n t e s o u c e p o s b e m a ju s t a d o s e p e s a d o s . A in s ô n ia
p r e v a le c ia , p o is e ra p r e c is o d e it a r n o c h ã o s e n ã o fo s s e fo r n e c id o u m t a ­
p e te . N a s n o ite s fria s , o s p r is io n e ir o s t in h a m s o r te s e t iv e s s e m u m a c a p a
e x te rn a p a ra u s a r c o m o c o b e rto r.
F a lta v a m h ig ie n e p e s s o a l e a lim e n t a ç ã o a d e q u a d a s . O s p r is io n e ir o s
n ã o p o d ia m f a z e r a b a rb a ou c o r t a r o c a b e lo , p o is a s f a c a s d e b a rb e iro
e ra m p r o ib id a s . A p e n a s o s p o u c o s p r iv ile g ia d o s t in h a m p e r m is s ã o p a ra
t r o c a r d e ro u p a e v is it a r o s b a n h o s p ú b lic o s . A m a io r ia d o s p r is io n e ir o s
tin h a p r o b le m a s d e s a ú d e , t o r n a v a - s e ir r e c o n h e c ív e l na a p a r ê n c ia fís ic a e
tin h a ro u p a s d e s g a s t a d a s . A s q u a n t id a d e s d iá r ia s d e c o m id a e á g u a m a l
e ra m s u fic ie n t e s p a ra a s u b s is t ê n c ia e p o d ia m s e r re tid a s c o m o m e io d e
t o rtu r a o u e x e c u ç ã o . S e m a m ig o s ou e n t e s q u e r id o s d o la d o d e fo ra p a ra
f o r n e c e r c o m id a , b e b id a e o u tro s o b je to s p e s s o a is p e r m itid o s , a e x is t ê n ­
c ia na p r is ã o e ra in s u p o rt á v e l, s e n ã o im p o s s ív e l.
O e n c a r c e r a m e n t o e ra u m a fo n te d e v a s t a d o r a d e d e s o n ra e v e r g o ­
n h a . O s p r is io n e ir o s e ra m , p o r d e fin iç ã o , d e s v ia n t e s s o c ia is ; a s s im , a té
m e s m o s e u s a m ig o s e a s s o c ia d o s m a is p r ó x im o s e ra m p r e s s io n a d o s a
a b a n d o n á - lo s . N o c a s o d o s p r e s o s p o lít ic o s ( c a te g o ria e m q u e o s c r is tã o s
s e e n q u a d r a v a m ) , o s v is it a n t e s q u e lh e s d e r a m a p o io e a ju d a p o d ia m c a ir
s o b s u s p e it a o fic ia l. E s s e s fa t o s s o b re a v id a na p r is ã o la n ç a m m u ita lu z

356
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

s o b re o q u e s ig n ific a v a p a ra o s p r im e ir o s c r is t ã o s s o fr e r ju n to a o s p re s o s .
(P ara u m e s t u d o m a is a p ro fu n d a d o , v e ja R a p s k e , 1 9 9 4 .)

Não apenas os membros da comunidade sofreram ataques à sua honra, a


suas associações e suas próprias pessoas, mas também a perda de seus bens. A cei­
taram alegrem ente o confisco dos próprios bens é um “oxímoro elegante”
(Bengel, 1877, 4:440), dada a justaposição de aceitar (ou tornar “bem-vindo”,
prosedexasthe; Johnson, 2006, p. 271) o confisco. Infelizmente, a palavra gre­
ga harpagê não é específica o suficiente para indicar se a “apreensão” (NASB,
REB) de propriedade foi resultado de ação legal oficial (confisco [CEB,
HCSB, NAB, NET, N IV 11]) ou violência de turba (“pilhagem” [ESV, NKJV,
NRSV]; “roubo” [ACF]). O fato de esses crentes acolherem alegrem ente essa
injustiça está em conformidade com o padrão cristão autêntico para aceitar o
sofrimento (Mt 5.11,12; Lc 6.22,23; At 5.41; Rm 5.3; 2 Co 7.4; 11.21-30; Tg
1.2; 1 Pe 1.6; 4.13). Jesus modelou isso suportando o sofrimento da cruz “pelo
gozo que lhe foi proposto” (Hb 12.2).
A razão pela qual a comunidade aceitou com alegria a perda de seus bens
terrenos foi o conhecimento de uma esperança muito maior. Pois sabiam que
possuíam bens superiores e perm anentes. O pregador enfatiza esse ponto
usando as palavras propriedade (NAB, NASB, NIV; ta hyparchonta, “posses­
sões” [CEB, GW, HCSB, NRSV, REB]) e bens (ACF, BKJ, JFA, KJA, NAA,
TB; hê hyparxis, “possessão” [ESV, GW, HCSB, LEB, NAB, NASB, NKJV,
REB]). Estes eram frequentemente usados de forma intercambiável para pos­
ses, pertences ou bens pessoais (LSJ, 1853-1854; Ellingworth, 1993, p. 550).
No entanto, este último também foi usado no sentido filosófico de “substân­
cia” (KJV; veja TYNDALE), “existência” ou “realidade” (LSJ, 1853; BDAG,
1029). Fílon usa uniformemente a palavra dessa forma, especialmente em
relação à existência de Deus (ex.: Criação 170; Pior 160, 168-169; Imutáveí
55,62). Hebreus pode estar explorando as implicações filosóficas do último
termo. Nesse caso, o pregador contrasta as posses temporais com a realidade
superior (kreittona, melhor) e perm anente (menousan, “duradoura” [GW,
LEB]) que elas têm na eternidade.
Isso antecipa o contraste entre a remoção das coisas que são abaladas, com
as coisas inabaláveis que “permanecerão [meiné]” (12.27). Não temos agora
uma cidade “permanente \menousan]”, mas esperamos que tal cidade venha
(13.14; veja 11.10,16). Isso também prepara para um tema recorrente no capí­

357
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

tulo 11. Fundamental para a vida de fé é a resistência à perda e ao sofrimento


presente, com a garantia (11.1) de que a verdadeira pátria, a realidade invisível
e eterna de Deus, está no futuro ( 11.10,13-16,26).

d. E x o rta ç ã o p a ra p e rs e v e ra r na fé (10.35-39)

O louvor pela perseverança no passado (10.32-34) se transforma em


exortação para a fé permanente no presente (10.35-39). Esse novo parágrafo
efetivamente completa a transição dos argumentos centrais (7.1 — 10.18) para
o seguinte material exortativo (11.1 — 13.25). “Confiança [parrêsia]” ocorre
aqui pela última vez no sermão em um inclusio (10.19,35) que marca toda a
seção de transição (10.19-39).
A fé aparece com pouca frequência no início do sermão (4.2,3; 6.1,12;
10.22). Agora se torna o tema principal que dominará 11.1 — 12.3. O pregador
inicia esse tópico citando e comentando brevemente o texto bíblico de Haba-
cuque 2.3ú,4 em Hebreus 10.37,8.
3 5 - 3 6 Que o novo parágrafo abre o versículo 35 (NVI), em vez de o
versículo 36 (N IV 11), é suportado por dois recursos. Em primeiro, a partícu­
la inferencial por isso (oun) sinaliza uma mudança de palavras de louvor (v.
32-34) para palavras de encorajamento, com base no excelente desempenho
anterior do público (v. 35,36). Em segundo, os versículos 35 e 36 formam um
dístico com duas sentenças paralelas:
10.35 10.36
Por isso, não abram m ão da con- Vocês precisam perseverar, [...]
fiança [...];
quando tiverem feito a vontade
ela será ricam ente recom pensada. de D eus, recebam o que ele pro­
m eteu.

Por isso, não abram m ão da confiança exorta os leitores a não abando­


nar a confiança anunciada como uma posse cristã singular no -> v. 19. Será
ricam ente recom pensada (misthapodosian) repete o pensamento de “bens
superiores e permanentes” aguardando os crentes (v. 34), mas acentua a justiça
de Deus em resposta à sua perseverança e compromisso (Koester, 2001, p. 461;
veja 6.10). “Recompensa [misthapodosian]” (NAA), em 2.2, tem o sentido ne­
gativo de “punição”. Mas, em 11.26, tem o sentido positivo de Moisés ansiando
por sua “recompensa”. Em 11.6, Deus é o “galardoador [misthapodotês]” (ACF,
ARA, ARC, ARIB, BKJ, JFA) daqueles que o buscam diligentemente.

358
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

Vocês precisam perseverar (v. 36a) reafirma a exortação no versículo 35a


em linguagem que põe entre colchetes o capítulo 1 1 .0 vocabulário de “perse­
verança [hypomenõ e hypomonê]” aparece apenas em 10.32,36 e 12.1,2,3,7 [...]
de m od o que, quando tiverem feito [poiêsantes] a vontade \thelêma\ de D eus
evoca o clímax dos argumentos centrais do sermão em 10.1-18. Ali o propósito
da vinda de Cristo era “fazer \poiêsaí\” a vontade de Deus (thelêma [10.7,9]); e
a realização dessa vontade foi a santificação do povo de Deus (10.10). De acor­
do com 13.20,21, Deus, por intermédio de Cristo e Seu sacrifício da aliança,
capacita os crentes “ao fazer a sua vontade \poiêsai to thelêma autou]” (GNT).
Recebam o que ele p rom eteu é a realização do objetivo final para o qual todos
os fiéis ao longo da história têm pressionado (11.9,11,13,17,33,39; veja 4.1;
6.12; 9.15).
S 3 7 -3 9 Aalternância de ameaça (10.25,26-31) e encorajamento (10.32-34)
está concentrada nos versículos finais desse capítulo. O pregador apresenta ou­
tro conjunto de razões (pois [gar\) por que a comunidade deve “perseverar” (v.
36), em uma citação bíblica composta. A citação fornece mais suporte bíblico
para a urgência escatológica, pontuando a seção de transição (10.25,27,30-
31,34,35,36). “O Dia” está aproximando-se rapidamente (10.25) porque
Cristo virá em breve (10.37). A citação também introduz o tema de viver pela
fé (v. 38a), ilustrado detalhadamente no capítulo 11.
A linha introdutória, em breve, m uito em breve, vem de Isaías 26.20. Seu
contexto original explica a ressonância distintamente escatológica da frase: a
promessa da ressurreição (Is 26.19), a graciosa oportunidade dada ao povo de
Deus para esconder-se da ira divina (26.20,21) e os temas mais amplos do jus­
to juízo e salvação (26.1-18). A frase se encaixa perfeitamente com a citação
seguinte de Habacuque 2.3^,4 (Hb 10.37^,38). Reforça a promessa de que
A quele que vem virá, e não dem orará (v. 37b).
O autor adapta o texto de Habacuque de várias maneiras para conquistar
seus pontos. Talvez possamos desculpar sua escultura e reorganização do texto.
Ao contrário de sua prática normal, ele não a apresenta formalmente como
uma citação bíblica (-» 1.5-14 anotação complementar: “Citando as Escrituras
em Hebreus”). (Para uma discussão técnica das questões complicadas sobre a
forma de Habacuque 2.3^,4 em TM, LXX, Qumran, autores cristãos primiti­
vos e Hebreus, veja Ellingworth, 1993, p. 553-556.). Entre as mudanças que o
pregador faz em sua citação de Habacuque 2.3^,4 estão estes detalhes:
Primeiro, ele consolida a interpretação messiânica da passagem (já presen­
te na LXX) adicionando o à palavra para vem: ho erchomenos: A quele que vem

359
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

ou “o que vem” (ACF, ARC, VC). Isso não deixa dúvidas de que a profecia em
Habacuque diz respeito à segunda vinda de Cristo.
Segundo, ele transpõe as duas cláusulas em Habacuque 2.4 (LXX) e adi­
ciona uma adversativa e (kai, “mas” [GW, KJV, NJB, NLT]) entre elas. Assim,
em Hebreus, o sujeito da frase se retroceder não é o libertador vindouro (como
na LXX), mas é o m eu justo (ou seja, a pessoa de fé). A inversão estabelece
dois cursos de ação contrastantes para os crentes: viver pela fé ou retroceder.
Terceiro, ele altera a LXX anexando o m eu ao justo em vez da fé. Isso (jun­
tamente à inversão das cláusulas referidas antes) identifica inequivocamente o
justo como o crente. Também muda o foco da fidelidade de Deus (como na
LXX) para o imperativo para o povo justo de Deus viver pela fé. Hebreus
abraça a certeza encontrada na fidelidade de Deus (Hb 6.13-20; -» 10.23). Mas
aqui a ênfase está na responsabilidade do povo de Deus de viver de acordo com
a fidelidade divina — pela fé.
Um pouco de comentário midráshico no versículo 39 pega dois termos-
-chave de Habacuque 2.4 (Hb 10.38), em ordem inversa, criando um quiasma
(Bengel, 1877, 4:441):
10.38 Mas o m eu justo viverá pela fé (ek E, se retroceder \hypos-
pisteõs). teilêtai\, não m e agradarei
dele.
X
10.39 N ó s, porém , não som os dos que mas dos que creem e são
retrocedem \hypostolês\ e são des- salvos \pisteõs\.
truídos,

O autor também detecta aliteração no texto de Habacuque (v. 38):pisteõs


(fé), hyposteilêtai (retroceder), psychê {eu). Assim, expande-o em seu breve
comentário (v. 39): hypostolê (retroceder), apõleian {destruição), pisteõs (fé),
peripoiêsin psychés {preservação da vida [Attridge, 1989, p. 304]). Esses flo­
reios retóricos finalizam a transição para o capítulo 11. De uma forma atraente,
o versículo 39 apresenta os dois caminhos que os leitores podem seguir, junta­
mente a suas respectivas consequências.
O pregador estabelece um tom pastoral encorajador em sua aplicação do
texto de Habacuque (v. 39). Ele faz isso utilizando a primeira pessoa do plural
nós {hêmeis-, costumeiro nas seções exortatórias de Hebreus; veja 2.1-4; 3.1,6;
4.1-3,14-16; 6.1; 10.19-25; 12.1). Dar garantias após uma forte advertência
sobre o juízo divino é um método eficaz de exortação que ele já utilizou antes
(-»6.9 e 10.32-34).

360
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

Com efeito, nosso autor convida seu público a reconhecer com ele que
não som os dos que retrocedem e são destruídos. R etroceder (hypostolês)
é ser tímido (BDAG, p. 1041). É o oposto de ter “confiança” (10.19,35), mas
também joga foneticamente com outro antônimo, perseverança (hypomonês
[10.36] ). A coragem é necessária, porque fugir do povo de Deus (10.25) e
abandonar a confissão (10.23) inevitavelmente leva à destruição (apõleian).
Isso está relacionado com o “juízo eterno” (6.2), descrito como a terrível e
ardente execução da justiça divina (6.8; 10.27,30,31; 12.26-29). É cair sob a
maldição de Deus (6.8) e desagrado (10.38), em vez de fazer o que agrada a
Deus, alinhando suas ações com Sua vontade (10.36; 13.21).
Os leitores devem incluir-se entre aqueles que acreditam (pisteõs) ou “os
que têm fé” (ARA, N A A , N V T , OL, TB, V C ). A fé se opõe a retroceder. A
falta de fé caracterizou a apostasia da geração do deserto (3.12,19; 4.2) e levou
à sua destruição (3.16-18; 4.11). Os leitores devem, antes, seguir o exemplo
daqueles que pela fé e perseverança herdam a promessa de Deus (6.12; 10.36).
A fé aqui é mais do que um consentimento mental à verdade ou uma mera
profissão de fé. Implica aproximar-se de Deus em “confiança absoluta” (10.22
NAB) e “confiança” (10.19,35). Significa manter a confissão de esperança
(10.23) e comprometer-se com a comunidade cristã e suas práticas vitais de
amor e boas obras (10.24,25). Talfidelidade envolve coragem e “perseverança”
(10.32.36) . No capítulo 11, há uma longa lista de pessoas que modelam isso.
O resultado da fidelidade é que somos salvos. A expressão é literalmente
“preservar a alma” (NAA). Na literatura clássica, isso se referia a salvar a vida
da morte (Isócrates, Fil. 7; Xenofonte, Cyr. 4.4.10). No NT, refere-se a alcan­
çar a vida eterna (Lc 17.33; compare “receber salvação \peripoiésin sõterias]”
[1 Ts 5.9]; Koester, 2001, p. 463; Thompson, 2008, p. 223). Desde o início, o
pregador advertiu sua audiência a não ignorar “tão grande salvação” (2.3; veja
1.14) ou o grande Sumo Sacerdote que a obteve (2.10; 5.9; 9.28). Agora, como
antes, embora ele deva adverti-los sobre as terríveis consequências da apostasia,
ele está convencido “de coisas melhores” no caso deles — “coisas próprias da
salvação” (6.9).

2. Exemplos dignos de fé (11.1-40)

POR TRÁS DO TEXTO

Hebreus 11 tem sido chamado de o capítulo da fé, o hall da fama da fé, o


salão da fé e até mesmo a Abadia de Westminster da Bíblia. Uma joia retórica,

361
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

é indiscutivelmente a passagem mais identificável e acessível em Hebreus. Seu


poder de persuasão é tão efetivo hoje como quando foi escrito pela primeira
vez, apesar do fato de muitas joias oratórias estarem escondidas no texto grego
por trás de nossas versões em inglês e português (algumas das quais descobrire­
mos; -ENo texto, a seguir).
Um recurso retórico é demasiado proeminente para passar despercebido a
qualquer um: a repetição da expressão “pela fé” (pistei) para martelar o tema do
capítulo. Tal repetição no início de sucessivas orações ou sentenças, conhecida
como anáfora, é empregada dezoito vezes em 11.3-31. Hebreus também usa
as frases complementares “pela fé [kata pistin] ” (v. 7,13) e “pela fé [dia (tês)
pisteõs (por meio de, NAA)]” (v. 33,39) duas vezes cada. Esta última marca o
parágrafo final (11.32-40). O substantivo “fé [pistis]” aparece mais duas vezes
(v. 1,6), e o verbo “crer [pisteusai]”, uma vez (v. 6) — notavelmente, todos os
três em declarações de definição. Isso leva o inventário do vocabulário da “fé”
em Hebreus 11 para vinte e cinco ocorrências.
O autor compôs uma lista de figuras do passado cujas vidas ele considera
dignas de emulação. Exemplos ou listas de exemplos eram comuns entre os
oradores greco-romanos (veja Cosby, 1988, esp. p. 93-105). Seu propósito não
era argumentativo, mas de apoio e ilustrativo do argumento anterior.
Listas de exemplos eram comuns em escritos judaico-helenísticos do pe­
ríodo intertestamentário. Hebreus 11, como Siraque 44-50, é uma longa lista
de exemplos que começa na criação e é atualizada até hoje. Compartilha com
Sabedoria de Salomão 10— 11 e Fílon (Recompensas 10-11) a repetição de
um tema dominante (“sabedoria” e “esperança”, respectivamente). Hebreus 11
tem em comum com as listas em 4 Macabeus um enfoque em como os anti­
gos suportaram grande luta ou sofrimento (4 Mac. 16.16-23; 18.11-19; veja
Thompson, 2008, p. 227). Apesar dos paralelos, poucas listas de exemplos têm
a composição retórica diversificada e sofisticada que encontramos em Hebreus
11 (Cosby, 1988, p. 17-24; veja deSilva [2000a, p. 377-379] sobre a lista de
exemplos de Sêneca em Ben. 3.36.2—3.38.3).
A mensagem de Hebreus 11 não deve ser dissociada de seu contexto circun­
dante. O tema da “fé” é introduzido em 10.35-39 com a citação de Habacuque
2.3,4 e encontra a sua fonte e perfeição em Cristo (Hb 12.2). De fato, 10.35-
39 e 12.1-3 propositadamente enquadram o capítulo 11, particularmente por
meio do uso do vocabulário de “perseverança” (10.32,36; 12.1,2,3,7). Hebreus
11 ilustra o tipo de fé perseverante que o pregador exorta seus leitores a imitar.
No entanto, Hebreus 11 tem uma integridade composicional própria. Isso
levou os estudiosos a especular que o autor usou uma lista de exemplos existen­
362
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

te ou sermão da sinagoga, que ele adaptou ao seu propósito. Evidentemente, é


possível que o autor tenha desenvolvido antes uma peça sermônica indepen­
dente, que ele incorporou à presente homilia (veja Attridge, 1989, p. 306-307;
Lane, 1991, p. 322-323). Tal adivinhação é infrutífera. Motivos de assinatura,
vocabulário e ornamentação retórica aparecem em abundância em Hebreus
11, como em outras partes do sermão. O capítulo está fortemente integrado
ao sermão como um todo (veja Cosby, 1988, p. 85-91). Assim, existe um caso
prima facie para o capítulo como a própria composição única do autor.
O capítulo é encerrado dentro de um inclusio complexo. Inclui referências
à “fé” (v. 1-7 || v. 39), elogio aos antigos (v. 2,4,5 || v. 39) e o que não é visto
(ioulmêdepõ blepomenõn [v. 1,7; compare v. 3,5]) vs. o que Deus providenciou
(v. 40; lit., “viu de antemão \problepsamenou\”). A estrutura das subunidades
individuais dentro do capítulo é, muitas vezes, difícil de discernir, mas o re­
sumo a seguir captura as principais linhas de organização. Outros padrões de
organização serão observados nos comentários No Texto que se seguem.
A lista de exemplos começa com uma definição funcional de fé (v. 1), jun­
tamente a uma nota explicativa sobre a atribuição de honra aos antigos que
viviam pela fé (v. 2). Em seguida, uma grande parte é dedicada a três grandes
épocas da história bíblica, pontilhada com anáfora (“pela fé \pistei]”): da cria­
ção ao dilúvio (v. 3-7); a permanência de Abraão em Canaã para a expectativa
de José do êxodo do Egito (v. 8-22); e desde a educação de Moisés até a con­
quista de Canaã (v. 23-31). O restante do recital começa com uma nomeação
rápida de heróis no versículo 32 (quatro figuras do período dos Juizes; o maior
rei de Israel, Davi; e Samuel e os profetas). Isso é seguido por descrições rápidas
dos famosos feitos e sofrimentos de personagens bíblicos (e extrabíblicos) sem
nome (v. 33-38).
Um comentário final afirma a importância dos heróis da fé anteriores (v.
39,40). Os antigos foram aclamados, precisamente porque perseveraram na
fé que nunca atingiu seu objetivo apropriado — pelo menos ainda não. Deus
planejou para toda a comunidade de fé, passada e presente, experimentar o
cumprimento escatológico das promessas de Deus.

NO TEXTO

a. Da cria ç ã o ao d ilú v io (11.1-7)

Esse parágrafo abre com uma definição de fé e uma nota explicativa


sobre o elogio dos antigos por sua fé (v. 1,2). Os exemplos de fé prosseguem

363
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

nos versículos 3-7 desde a criação até a salvação da família de Noé por meio
do dilúvio. O parágrafo se mantém unido pela repetição da ideia de elogio
(nos v. 2,4,5), que será reprisada apenas no final da lista de exemplos (v. 39).
E limitado por aliteração (com p no v. 1; com k no v. 7) e pelas frases seme­
lhantes que não vemos (v. 1) e coisas que ain d a n ão se viam (v-7).
S I1 A fé foi trazida à tona em 10.38-39 por meio de citações e breves comen­
tários sobre Habacuque 23b,A- Em Hebreus 11.1, o pregador define essa fé.
Ele continua a empregar aliteração comp iniciado em 10.38,39 (-» 10.37-39).
Ele também usa homoioptõton (“inflexão semelhante”) em que as terminações
das palavras têm um som semelhante (sobre essa figura de linguagem, veja
Quintiliano, Inst. 9.3.78-79; Rhet. Her. 4.20.28; veja Cosby, 1988, p. 82; ->
anotação complementar 1.3: “Cristologia em Rima”). Observe essas duas fi­
guras de linguagem: O ra, a fé [pistis] é a certeza [hypostasis] daquilo que
esperam os [elpizomenõn\ e a prova \prãçmatõm ] das coisas que não vemos
(iou blepomenõn).
Como era costume dos antigos filósofos e retóricos, o autor apresenta uma
definição concisa antes de elaborar seu assunto (Thompson, 2008, p. 229; veja
Quintiliano, Inst. 7.3.1-35). Ele não pretende ser abrangente. É uma definição
funcional, chamando atenção para os aspectos da fé que o pregador deseja cele­
brar nos exemplos a seguir. A definição foi provavelmente clara para os falantes
de grego que a ouviram pela primeira vez. Mas a frase flexível e ricamente or­
namentada criou problemas para comentaristas posteriores, cuja língua nativa
não é o grego koiné. Em particular, as palavras gregas por trás de ter certeza e
certeza geraram um debate considerável.
O substantivo hypostasis (ter certeza de) é o mais difícil de traduzir, pois
tem uma gama tão ampla de significados possíveis. Etimologicamente, a pala­
vra se refere a “aquilo que está sob”. Esse sentido parece primário para os seus
muitos usos: base, fundação, suporte, garantia, posse, existência, depósito,
penhor (Hollander, 1993; LSJ, 1895; LSJ rev. supp., p. 303; BDAG, p. 1040-
1041; veja Hughes, 1977, p. 439-440, e Johnson, 2006, p. 277-278, para uma
revisão das opções interpretativas).
A prática difundida de traduzir a palavra no sentido subjetivo — ter cer­
teza de (ARA, KJA, NAA, N TLH , OL; “garantia” [ESV, NASB, NRSY]; ou
“confiança” [NIV11; veja NLT]) — complica a interpretação. Erasmo primeiro
defendeu essa visão (seguido por Melâncton e Lutero no século 16). Isso inspi­
rou a tradução “certa confiança” em certas versões (ex.: Tyndale, Coverdale e a
Grande Bíblia; Attridge, 1989, p. 308; Bruce 1990, 277 n. 6). Vários comen­

364
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

taristas recentes sustentam essa visão (Bruce, 1990, p. 277; Pfitzner, 1997, p.
155; G. Guthrie, 1998, p. 374; Koester, 2001, p. 472; Witherington, 2007, p.
298-300).
Fortes razões contextuais apoiam essa tradução. Há a proximidade de
“confiança” (10.19,35) e “plena convicção de fé” (10.22) no contexto anterior.
Seu oposto, “retroceder [hyposteilêtai, bypostolês]”, em 10.38,39, também pode
ser colocado de forma lúdica em contraste com hypostasis, “certeza”, em 11.1.
Mas o calcanhar de Aquiles dessa interpretação é que a hypostasis não é usada
em nenhum lugar no sentido subjetivo ou psicológico de confiança ou segu­
rança (BDAG, p. 1041). No entanto, não se pode ignorar aqueles casos em que
a palavra pode significar “firmeza” ou “perseverança” (veja Koester, 2001, p.
472; Delitzsch, 1872, 2:210).
Os Pais gregos universalmente tomaram a palavra no sentido objetivo e
filosófico de “essência” ou “substância”. Assim, hypostasis é “realidade” em opo­
sição ao que é meramente aparente. É “aquilo que dá existência verdadeira” a
um objeto (Westcott, 1909, p. 352-353; veja Crisóstomo, 1996, p. 463; Heen
e Krey, 2005, p. 176). Isso se reflete nas traduções “substância” (BKJ; “dá subs­
tância” [REB]) ou “realidade” (NVT, CEB, HCSB). Essa visão foi adotada por
vários comentaristas modernos (veja Attridge, 1989, p. 309-310; Lane, 1991,
p. 328-329; Cosby, 1988, p. 34). Uma variação vê a hypostasis como a “realiza­
ção” da fé das coisas esperadas (NAB; Thompson, 2008, p. 230).
O problema com essa visão é que ela introduz uma explicação filosófica
que fica emaranhada em confusão e contradição. Dizer que o Filho é a marca
exata do “ser” de Deus ou “essência [hypostaseõs\ ” (1.3) claramente utiliza o
significado filosófico da palavra e faz todo o sentido. Mas afirmar, no sentido
filosófico, que a fé é a “substância” ou “realidade [hypostasis]” de nossa esperan­
ça nega categoricamente o ponto que o autor está fazendo (Johnson, 2006, p.
277). O capítulo inteiro reforça o ponto de que a fé reivindica a promessa de
Deus e aguarda sua realização. Mas os fiéis ainda não alcançaram a realidade da
cidade prometida por Deus e da pátria celestial. Eles só o antecipam de longe.
A analogia de Crisóstomo da ressurreição como agora não substancial (hypos­
tasis), mas que a esperança a torna substancial em nossa alma, não esclarece
a interpretação filosófica de 11.1 (1996, p. 463). Ele ilustra quão abstrata e
incoerente é essa visão.
Outros termos-chave nos versículos 1 e 2 — prova [eLenchos] (NVI) e “fo­
ram atestados [emartyrêthêsan]” (NAB) — sugerem que nosso autor está se
movendo em uma esfera jurídica, em vez de filosófica. Instâncias em papiros
gregos antigos atestam o uso legal de hypostasis como uma “garantia de proprie­

365
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

dade/direito” ou “título de propriedade” (MM, p. 659-660; BDAG, p. 1041;


Spicq, 1994c, p. 423). Vários estudiosos adotam essa visão (Spicq 1953, 2:336-
38; Koester, 1972, p. 579-580; Hughes, 1977, p. 439-440; deSilva, 2000a, p.
383). Outros consideram essa interpretação atraente, mas rejeitam-na por cau­
sa de uma suposta falta de evidência para esse significado no contexto (Bruce,
1990, p. 277; G. Guthrie, 1998, p. 374; Witherington, 2007, p. 299, n. 609).
Contudo, há amplo suporte contextual para compreender a hypostasis
como uma “garantia” (NJB). Devemos notar, em primeiro lugar, que a palavra
foi usada anteriormente em um sentido relacionado, embora não idêntico, den­
tro de um contexto repleto de terminologia técnica jurídica relativa a negócios
(-» 3.14; deSilva, 2000a, p. 385). Propriedade, herança e receber a promessa ou
recompensa de Deus são conceitos que cercam e dão forma à definição contida
em 11.1.
É assim no contexto anterior. David Worley argumenta que devemos ler
11.1 à luz da perda de propriedade da comunidade no passado (Worley, 1981,
p. 87-92, citado em deSilva, 2000a, p. 383). Eles sofreram perdas, sabendo que
têm “bens superiores e permanentes” (10.34). Manter sua confiança e perseve-
rar em fazer a vontade de Deus eventualmente resultará em grande recompensa
e no recebimento da promessa de Deus (10.35-36). Finalmente, “preservação”
ou “salvação” (peripoiêsin) em 10.39 refere-se à obtenção, à aquisição ou à posse
de algo (LSJ, p. 1384).
A conotação legal comercial da fé como uma “garantia” ou “título de pro­
priedade” encontra mais apoio ao longo do capítulo 11. A fé estabelece um
como “herdeiro” (v. 7,8,9) das promessas de Deus (v. 11,13,17,33,39). Consi­
dera a “recompensa” de Deus como mais preciosa do que os tesouros terrenos
(v. 26; veja v. 6). Espera desfrutar plenamente da pátria melhor celestial (v. 15-
16a), a cidade que Deus criou para os fiéis (v. 10,16b).
Se essa interpretação estiver correta, a fé é o certificado de propriedade,
o título de propriedade que reivindica as realidades futuras que esperamos.
Coordenada com isso está outra expressão legal em 11.1b: fé é a “evidência”
objetiva (BKJ, OL) ou “prova” (ACF, ARC, ARIB, JFA, KJA, NVI, TB) das
coisas que não vem os. Tal como acontece com a hypostasis, o termo eíenchos
não tem um significado subjetivo. Assim, traduções como certeza, “convenci­
do” (NET; veja GW, REB), “convicção” (ARA, NAA, ESV, NASB, NRSV)
ou “garantia” (NIV11) são injustificadas. (Sobre a evidência insignificante para
uma interpretação subjetiva, veja Koester, 2001, p. 473.)
Do ponto de vista forense, eíenchos é uma evidência irrefutável da verdade
de algo — “provar, comprovar” (BDAG, p. 315). No que diz respeito à natu­
366
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

reza real das coisas, ou o que se alega ser o caso, é uma prova necessária (ex.:
pessoas vivas precisam de alimentos). No que diz respeito às alegações do opo­
nente, é uma refutação baseada no que é impossível por natureza (ex.: que um
menino roubou uma quantia de dinheiro maior do que ele podería carregar;
assim, Rbet. Alex. I431a7-21; veja deSilva, 2000a, p. 384). O autor de He-
breus frequentemente argumenta com base na necessidade (,ananké [7.12,27;
8.3; 9.16,23]; dei [9.26]) ou na impossibilidade (adynaton [6.4,18; 10.4]). Em
11.6, o autor apresenta uma prova sobre a fé que incorpora tanto a impossibi­
lidade como a necessidade.
Hebreus faz uma afirmação ousada sobre a fé — uma que soava tão absurda
no mundo antigo como hoje. A fé {pistis) era um estado de espírito atribuído
aos incultos que não eram treinados na argumentação racional e nas regras da
evidência (Lane, 1991, p. 316). No entanto, Hebreus fala da fé como garantia
e prova! Garante a posse daquilo que esperam os, ou seja, realidades futuras
ainda não realizadas (na esperança -> 6.11; 7.19; 10.23). E a evidência de reali­
dades invisíveis e transcendentes que não vem os.
O que confere à fé uma qualidade tão absoluta de segurança jurídica é a na­
tureza do próprio Deus. A promessa de Deus, confirmada por Seu juramento,
expressa claramente seu propósito imutável (6.13-20). Ela “pôe fim a toda dis­
cussão” (6.16). A fé é a resposta necessária às promessas divinas, porque aquele
que as fez é totalmente confiável (10.23; 11.11; veja 2.17; 3.2,5,6).
1 2 A definição em 11.1 estabelece a qualidade da fé voltada para o futuro.
O versículo 2 completa a introdução da lista de exemplos apontando para os
antigos cujas vidas de fé receberam a aprovação de Deus. Ela, ou seja, a fé
expectante definida no versículo 1, é aquilo pelo que eles receberam bom tes­
tem unho {emartyrêthêsan). Até esse ponto em Hebreus, o verbo martyreõ tem
sido usado para indicar o testemunho de Deus (ou do Espírito Santo) nas Es­
crituras (7.8,17; 10.15; veja também 2.4,6). A forma passiva em 11.2,4,5 e 39 é
uma “passiva teológica”, implicando que Deus é aquele que deu testemunho às
pessoas de fé no passado.
Enquanto martyreõ e seus cognatos têm um caráter distintamente legal,
também eram usados para fazer declarações públicas de reconhecimento ou
elogios. Benfeitores ou conselhos municipais empregavam esse vocabulário
para conferir honra a indivíduos considerados dignos de elogios. Seu testemu­
nho favorável foi oficialmente comemorado em inscrições (deSilva, 2000a, p.
385). Quão maior é o testemunho de Deus aos fiéis do passado, inscrito na
Sagrada Escritura?

367
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

1 3 A lista de exemplos não começa com um dos dignos fiéis, como o versículo
2 nos levaria a esperar. Começa apropriadamente no início com a criação (Gn
1.1). A natureza do caso não permite observação humana direta ou resposta
aos atos criativos de Deus. Assim, o autor dirige sua atenção para a presente
comunidade de fé — nós (veja Hb 10.39). Ele se dirigirá à comunidade cristã
novamente em seus comentários finais (11.40), tornando óbvia a motivação
pastoral por trás da revisão histórica nesse capítulo.
Pela fé indica a maneira como os crentes sabem o que não pode ser visto
com os olhos naturais. Entendemos (no o u m en ) exprime a função cognitiva da
fé. Dada a escolha da terminologia (que tem a ver com a “mente [ n o u s \j, bem
como o argumento racional anterior para Deus como Criador (3.4), fica claro
que a fé não ignora o intelecto humano. A fé é um meio válido de obter co­
nhecimento sobre a atividade divina. Hebreus articula o cerne de uma verdade
teológica posteriormente expandida por Agostinho e Anselmo: “Fé buscando
entendimento” (Koester, 2001, p. 480, n. 377).
Que o universo foi form ado é (lit.) que as eras foram arranjadas (“os
mundos foram colocados em ordem” [NET]). As eras é um “grande plural”
insinuando que todas as coisas no céu e na terra, visíveis e invisíveis, estão avan­
çando de acordo com os objetivos divinos (Bengel, 1877, 4:447; -> 1.2c). Que
eles foram “ordenados” (NAB) ou “preparados” (NASB) indica mais do que
sua criação. Seu arranjo denota o governo e a providência soberana de Deus
sobre todas as dimensões de tempo e espaço. Pela palavra de Deus (a maioria
das versões em inglês e português). De acordo com \3 b , o Filho sustenta todas
as coisas “por sua palavra poderosa”.
A afirmação de que o que se vê não foi feito do que é visível evoca a
segunda metade da definição de fé em -> 11.1. Essa não é uma formulação da
doutrina da criação ex nihilo (“do nada”) — verdade como essa é. Em vez disso,
reitera um axioma subjacente ao mundo do pensamento de Hebreus: o invi­
sível reino transcendente é superior à criação visível (-> 8.2; 9.11,24). O reino
invisível antecede a criação do universo visível (11.3). O transcendente é per­
manente, mas Deus vai abalar e remover o mundo temporal das “coisas criadas”
(12.26-28; deSilva, 2000a, p. 387).
O ponto desse versículo não é metafísico, mas religioso. A manei­
ra como nos relacionamos com Deus e Seus propósitos é pela fé. Esse tema
será repetido ao longo desse capítulo. Mas, enquanto a fé, no versículo 3, é
o meio de discernimento na grande ação criativa de Deus no passado, a fé
dos antigos foi consistentemente direcionada para um futuro invisível (v.
7,10,16,20,22,26,27,35).

368
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

18 4 Notavelmente, o primeiro par, Adão e Eva, não aparecem nessa lista de


exemplos — nem mesmo como exemplos de descrença. Infelizmente, eles não
fizeram nada digno de elogio, mas apenas de condenação, então eles são excluí­
dos (Clarke, 1977, 3:762; contraste SS 10.1,2). A primeira pessoa de fé listada
é Abel, o filho justo de Adão e Eva.
O versículo 4 de Hebreus 11 alude às ações que levaram ao assassinato de
Abel por seu irmão Caim registrado em Gênesis A.2b-12: Pela fé Abel ofe­
receu a Deus um sacrifício superior ao de Caim. O midrash do pregador é
desenvolvido olhando para este episódio por meio das lentes de Habacuque
2.4 (Hb 10.38) e da declaração explicativa em 11.2. Por essa razão, o que tor­
nou a oferta de Abel superior à de Caim foi que Abel a ofereceu pela fé (pistei).
Também pela fé Abel foi aprovado como homem justo. O AT nunca descreve
Abel como dikaios (justo), embora seja atribuído a ele na tradição posterior
(Mt 23.35; 1 Jo 3.12; Josefo, Ant. 1.53; vejaJub. 4.31). Em Hebreus, o oráculo
em Habacuque 2.4, “mas o meu justo viverá pela fé”, sugere que as ações de
Abel foram guiadas por sua fé e caráter justo.
Ele foi reconhecido [...] quando Deus aprovou as suas ofertas. Isso está
de acordo com o elogio de Deus aos antigos por sua fé (11.2). Ainda mais um
elemento de Habacuque 2.4 (“o meu justo viverá pela fé” [ênfase adicionada])
é confirmado na vida, ou melhor, na morte de Abel. Em bora esteja morto,
por meio da fé ainda fala provavelmente alude ao sangue de Abel clamando
a Deus desde a terra (Gn 4.10; compare Hb 12.24). Já que Abel está falando
no sentido postmortem, ele deve estar vivo em algum sentido (talvez como um
dos “espíritos dos justos” [12.23]; veja 4 Mac. 7.18,19; 16.25; Lc 20.38; Attri-
dge, 1989, p. 317; deSilva, 2000a, p. 388-389; Johnson, 2006, p. 281). Fílon
lê Gênesis 4.10 de uma forma surpreendentemente semelhante (vendo Abel
como uma alegoria da alma humana). Ele interpreta o clamor de Abel signi­
ficando que, paradoxalmente, ele está morto e vivo. “Ele está morto, de fato,
tendo sido morto pela mente tola, mas ele vive de acordo com a vida feliz que
há em Deus” (Pior 48).
I 5 A avaliação de Enoque depende do registro bíblico (Gn 5.24 LXX). Mas
nosso autor certamente conhecia outras tradições sobre a transladação de Enoque
para o céu. Portanto, ele repete três vezes: Enoque foi arrebatado (metetetbê),
Deus o havia arrebatado ('metethêken) e antes de ser arrebatado (metatheseõs).
O pregador também faz três acréscimos interpretativos ao texto bíblico:
• Primeiro, ele afirma que a remoção de Enoque aconteceu pela fé.
• Segundo, ele acrescenta que não experimentou a morte para explicar
o que Gênesis quis dizer com ser arrebatado.

369
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

• Terceiro, o pregador afirma que tinha agradado a Deus por causa de


sua fé, como os outros antigos (Hb 11.2).
As Escrituras não afirmam explicitamente que Enoque agiu com fé ou que
Deus o elogiou. O pregador não se contenta em deixar o assunto implícito.
Ele aproveita o comentário bíblico de que Enoque tinha agradado a Deus, a
interpretação da LXX do texto hebraico “andou com Deus” (Gn 5.22,24). Em
Hebreus 11.6, o autor argumentará que agradar a Deus é o mesmo que viver
pela fé.
■ 6 Hebreus argumenta frequentemente com base na necessidade ou impossi­
bilidade (-> 11.1). Aqui o pregador apresenta uma verdadeira “prova [elenchos\ ”
incorporando os dois tipos de argumento:
Primeiro, a impossibilidade: Sem fé é impossível agradar a Deus. O pre­
gador infere que, uma vez que Enoque “agradou a Deus” (v. 5), ele deve ter sido
“arrebatado” por causa de sua fé exemplar.
O segundo argumento, da necessidade (precisa, dei), apresenta dois prin­
cípios fundamentais da fé: a crença na existência de Deus e na justiça. Isso se
aplica à q u e le s que o buscam [tonproserchomenon\. Essa é a expressão padrão
de Hebreus para alguém que “se chega” (TB, VC) ou “se aproxima” (ACF,
ARA, ARC, ARIB, BKJ, JFA, KJA, NAA, NVT, OL) de Deus em adoração
(4.16; 7.25; 10.1,22; 12.18,22). Crer que Deus existe ecoa fórmulas de credo
desenvolvidas nas sinagogas helenísticas-judaicas (veja Lane, 1991, p. 338). “Fé
em Deus” (6.1) é fundamental para o ensino cristão. Assim é a crença na justiça
divina (“juízo eterno” [6.2]), aqui relacionada positivamente: que [Ele] re­
com pensa [misthpodotês\ aqueles que sinceramente o buscam (veja 2.2; 11.26;
-> 10.35). Estes concordam com a natureza da fé como garantia do “que espera­
mos” e aprova do “que não vemos” (l 1.1; Thompson, 2008, p. 233).
1 7 0 início da entrada sobre Noé ecoa claramente a definição de fé em 11.1:
Deus advertiu N oé [...] a respeito de coisas que ainda não se viam. Noé aten­
deu ao aviso profético (BDAG, p. 1089), assim como Moisés fez na construção
do tabernáculo (8.5). Noé construiu uma arca para salvar sua família. Ele o
fez com santo temor. Isso acentua a obediência reverente de Noé (-» 5.7).
Por meio da fé ele condenou o mundo. A tradição popular o chamava
de “pregador da justiça” (2 Pe 2.5) ou arrependimento (1 Ciem. 7.5; Or. Sib.
1.125-130). Talvez, simplesmente por suas ações, ele “colocou o mundo intei­
ro no erro” (REB). Noé foi amplamente considerado um homem “justo” (Gn
6.9; 7.1; Ez 14.14,20; Sir. 44.17; Josefo, Ant. 1,99; frequentemente em Fílon,
por exemplo, Int. Al. 3,77; Abraão 27,31). Mas a afirmação de Hebreus de que

370
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

ele tornou-se herdeiro da justiça que é segundo a fé depende de Habacuque


2.4 (-> Hb 10.38). Apesar de seu “toque paulino”, a frase deve ser interpretada
à luz de 10.36-39 e dos atos ousados do patriarca observados em 11.7. O autor
se refere aqui à ação justa nascida da fé confiante e perseverante na revelação
de Deus sobre o futuro (Attridge, 1989, p. 319-320; deSilva, 2000a, p. 392).
O primeiro parágrafo da lista de exemplos (v. 1-7) — desde a criação do
mundo até sua destruição pelo dilúvio — termina como começou, com alite-
ração (-> 11.1). Somente aqui envolve o som k repetido em palavras: avisado
(içhrêmatistheis), construiu (kateskeuasen). arca (kibõton), fam ília (oikou),
condenou (katekrinen). mundo (kosmon), por meio da fé (kata pistin), ju s­
tiça (dikaiosynês) e herdeiro (klêronomos). A última palavra (herdeiro) é
uma palavra-chave que liga à próxima subunidade. Lá o pregador apresentará
Abraão, Isaque e Jacó em termos de “herança” e como “herdeiros” da promessa
de Deus (11.8,9).

b. De Abraão a José (11.8-22)

Hebreus já apresentou Abraão como um exemplo de fé (6.13-18). Portan­


to, não é surpresa que a lista no capítulo 11 dedique mais espaço a Abraão do
que a qualquer outra figura do AT. É notável, contudo, que, entre os detalhes
selecionados para ilustrar a vida do patriarca “pela fé” (11.8,9,11,17), não haja
menção de um texto do AT que afirme explicitamente que Abraão “creu” em
Deus (Gn 15.6). Esse texto é crucial para outras discussões do N T sobre a na­
tureza da fé de Abraão (Rm 4.3,9,22; G1 3.6; Tg 2.23). Por isso, é ainda mais
notável por sua ausência aqui. Essa subunidade tem três parágrafos:
• Hebreus 11.8-12 resume as duas promessas de Deus a Abraão; terra (v.
8-10) e descendentes (v. 11,12).
• Os versículos 13-16 retomam a primeira dessas promessas, argumen­
tando que não era Canaã, mas a cidade celestial de Deus que Abraão e
seus descendentes anteciparam.
• Os versículos 17-22 retomam a promessa de descendentes, ilustrando
como a fé nas promessas e bênçãos de Deus repetidamente o levaram a
olhar além do perigo da morte.
H 8-10 A partir do ciclo de Abraão em Gênesis 12—22, o pregador resume o
chamado de Abraão e a permanência subsequente na terra prometida. Abraão
empreendeu dois conjuntos de ações pela fé. Primeiro, ele foi obediente ao
chamado de Deus (Hb 11.8). Segundo, ele e seus descendentes imediatos vi­

371
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

veram na terra da promessa como nômades (v. 9). O versículo 10 fornece o


raciocínio por trás da fé implícita de Abraão.
Q uando chamado, Abraão obedeceu e dirigiu-se. A obediência rara­
mente é atribuída a Abraão em termos explícitos no AT (Gn 22.18; 26.5). Mas
é central para a compreensão da fidelidade de Hebreus. A geração do deserto
revelou sua incredulidade por sua desobediência (Hb 3.18; 4.6,11). O Filho
exemplificou a fidelidade pelo sofrimento, por meio do qual Ele “aprendeu
a obediência” (5.8). O pregador chama seus ouvintes a obedecerem ao Filho
(5.9). Abraão se firmou, portanto, em sua obediência. Três vezes o texto men­
ciona sua partida:
• quando cham ado (exelthein );
• Abraão obedeceu e dirigiu-se (exêlthen );
• em bora não soubesse para onde estava indo (erchetai ).
A orientação futura da fé (-» 11.1) é óbvia na obediência de Abraão ao
chamado de Deus a um lugar que mais tarde recebería como herança
{klêronomian). Aprendemos no versículo 10, no entanto, que esse lugar não
é idêntico à terra prom etida em que ele vivería sua vida mortal. Os descen­
dentes de Abraão, Isaque e jacó , eram coerdeiros [synklêronomõn\ da mesma
promessa. Tanto as expectativas judaicas quanto as cristãs viam a herança do
crente como celestial (2 E n . 9.1; 10.6; 55.2; 1 Pe 1.4; Ap 21.7; vejaHb 11.16).
Abraão não criou raízes na terra de Canaã. Peregrinou [...] como se es­
tivesse em terra estranha. A natureza transitória da existência de Abraão em
Canaã é indicada por ele viver em tendas, em vez de construir casas, plantar
colheitas ou vinhas, e alavancar ainda mais sua riqueza e poder.
A primeira vista, parece paradoxal que Abraão, Isaque e Jacó morassem
na terra da promessa como estranhos. Por que Abraão continuou a viver como
um “arameu errante” (Dt 26.5)? Por que aquele que recebería o mundo inteiro
como herança (Rm 4.13) sequer possuiu um lote de três côvados de comprimen­
to (Teodoreto de Cyr em Heen e Krey, 2005, p. 187)? Hebreus 11.10 fornece
a razão: Pois ele esperava a cidade que tem alicerces. “Sua expectativa” im­
plicava esperar (BKJ, TB, NCV; veja NKJY). O mesmo verbo (ekdecbom ai )
descreve a espera de Cristo pela derrota de Seus inimigos (10.13). Um cognato
descreve os crentes esperando a segunda vinda de Cristo (9.28).
Ao dizer que Abraão estava esperando a cidade, Hebreus baseia-se nas
expectativas apocalípticas da nova Jerusalém. De acordo com uma obra apo­
calíptica judaica, Deus mostrou a Abraão essa transcendente cidade celestial
(2 Bar. 4.4). Outra afirma que tem “enormes fundações” (4 E d. 10.27; veja
Ap 21.14,19). Essa compreensão da Jerusalém celestial estende logicamente

372
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

a afirmação do AT de que Deus lançou os fundamentos da cidade terrena de


Jerusalém (SI 48.8; 87.1,5; Is 14.32 LXX). Outros autores do N T afirmam que
a cidadania dos crentes está no céu (Fp 3.20), na “Jerusalém de cima” (G14.26)
que descerá do céu (Ap 21.2,10-14,19,20).
A estabilidade e a permanência dos alicerces da cidade contrastam dire­
tamente com as tendas dos patriarcas, que significam uma vida transitória e
nômade. A cidade que tem alicerces corresponde aos “bens superiores e per­
manentes” que os leitores esperam (10.34). E a “cidade permanente” ainda por
vir (13.14), que o pregador descreve em 12.22-24. O que torna a cidade bem
estabelecida e inabalável (veja 12.28) é que seu arquiteto e edificador é Deus.
Pertence ao mesmo Reino, “não pertencente a esta criação”, cujo maior e mais
perfeito tabernáculo não foi feito por mãos humanas (9.11,24).
I 1 1 - 1 2 Estudantes da Bíblia que gostam de comparar traduções vão
notar que existe uma grande diferença entre as traduções de 11.11 na NVI
e N IV 11. Na NVI, o sujeito da sentença é Abraão — uma palavra que nem
aparece no texto grego, mas pode estar implícita. Na N IV 11, o sujeito da frase
é Sara. As questões envolvidas são altamente técnicas (veja Greenlee, 1990;
Hagner, 2002, p. 148), e comentaristas e tradutores estão divididos (Abraão:
GW, NAB, NET, NRSV; Bruce, 1990, p. 294-296; Ellingworth, 1993, p. 586-
589; Hagner, 1990, p. 192; Lane, 1991, p. 353-354; Sara: ESV, HCSB, KJV,
NASB, NJB,REB; Chrysostom, 1996, p. 471; Hughes, 1977, p. 471-472;
France, 2006, p. 153; Johnson, 2006, p. 291-292).
Gramaticalmente, Sara faz mais sentido como sujeito da frase. O princi­
pal obstáculo para essa interpretação é a expressão katabolê spermatos. E uma
expressão técnica para “semeadura”, aplicável apenas ao papel masculino na re­
produção (BDAG, p. 515). Isso justifica a NVI: Poder gerar um filho. No
entanto, a afirmação completa é que Sara (lit.) recebeu poder para semear. Isso
apoia o que está na NIV 11: “Foi habilitada para ter filhos”. Sarah recebeu poder,
embora fosse estéril e já tivesse em idade avançada para ter filhos. Abraão, é
claro, depositou a semente (France, 2006, p. 153; Johnson, 2006, p. 292).
Independentemente de quem é o foco dessa frase (Sara ou Abraão), o
ponto permanece inalterado. Deus permitiu que esse casal idoso se tornasse
pais porque confiaram em Sua fidelidade. Hebreus passa por cima de exemplos
de sua descrença na promessa de Deus (ex.: o riso cínico de Sara em Gênesis
18.10-15). Que uma mulher estéril concebeu um filho aos noventa é prova
suficiente de que ela finalmente considerou fiel aquele que lhe havia feito
a promessa. Isso lembra a razão pela qual os ouvintes do pregador deveríam
manter sua confissão (Hb 10.23). A declaração tem uma ressonância de credo

373
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

(veja 1 Co 10.13; 2 Co 1.18; 1 Ts 5.24; 2 Ts 3.3; 2 Tm 2.13; 1 Jo 1.9; Ap 1.5;


Pfitzner, 1997, p. 160).
Hebreus 11.12 conclui o resumo a respeito de Abraão em 11.8-12: Assim,
daquele homem [...] originaram-se descendentes. O comentário parentético
de que Abraão estava já sem vitalidade não expressa a hipérbole com suficiente
nitidez. O texto grego lê e morto nisso (deSilva, 2000a, p. 398). Paulo faz um
ponto semelhante sobre a morte do corpo de Abraão e do ventre de Sara (Rm
4.19). Que Deus concedeu descendência a alguém que estava morto (repro­
dutivamente falando) introduz um tema repetido em 11.17-20. O objeto da
verdadeira fé é Aquele que é capaz de vencer a morte (2.14,15; 5.7; 7.16,25).
O grande número da posteridade de Abraão, tão numerosos como as
estrelas do céu e tão incontáveis como a areia da praia, é um pastiche de
linguagem descritiva de vários textos (especialmente Gn 22.17; Ex 32.13; e Sl.
Aza. 13). Observe o contraste intencional entre o homem já sem vitalidade e
seus numerosos e até incontáveis descendentes.
H 13 Tendo resumido as duas promessas de Deus a Abraão nos versículos
8-12 (terra e descendência), o pregador agora expande a primeira delas nos
versículos 13-16. O ritmo da anáfora (“pela fé [pistei] ”) é quebrado com esses
versos. O versículo 13 abre com uma expressão comparável, K a ta p istin , pela
fé. O autor sublinha que todos estes que creram em Deus morreram sem re­
ceber o que foi prometido. A conclusão da passagem (até o v. 22) esclarece que
todas essas pessoas eram Abraão e seus descendentes, pelo menos até José (note
a repetida menção da morte nos v. 19,21,22).
Suas ações revelam não apenas os que morreram sem receber o que tinha
sido prom etido, mas os que não esperavam receber.
Primeiro, eles viram e saudaram as promessas de longe. A imagem é de
alguém saudando sua terra ou cidade natal de longe (Pista, 1991, p. 356). A
ideia de saudar (bem-vindo) envolvia abraçar algo ou alguém tão caro a si
mesmo (“abraçando” [BKJ, ACF, ARC]) ou como fonte de grande satisfação
ou alegria (“alegraram” [NAA]). Jesus expressou um pensamento similar em
João 8.56: “Abraão, pai de vocês, regozijou-se porque veria o meu dia; ele o viu
e alegrou-se” (Bengel, 1877, 4:449; veja também Mt 13,16,17; Lc 10.24).
Segundo, eles reconheceram que eram estrangeiros e peregrinos na ter­
ra. O conteúdo de sua confissão (homologêsantes, “eles confessaram” [ACF,
ARA, ACR, ARIB, BKJ, NAA, TB]; admitiram) é uma reminiscência da
declaração de Abraão em Gênesis 23.4: “Sou apenas um estrangeiro entre vo­
cês” (veja Gn 24.37). Eles reconheceram que eram estrangeiros (x e n o i ) ou

374
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

“forasteiros” (HCSB, NLT). Eles também eram peregrinos (parepidêmoí),


“refugiados” (NTLH, ESV, NASB, RSV), “residentes temporários” (HCSB,
LEB) ou “nômades” (NJB, NLT; compare “peregrinos” [KJV]). A magnitude
do status estrangeiro dos patriarcas (e dos leitores) está no fato de que eles eram
estrangeiros não apenas em um determinado país, mas na terra.

Estrangeiros e peregrinos

E s t r a n g e ir o s e ra m p r iv a d o s d e d ir e ito s n a s s o c ie d a d e s a n tig a s . E le s
e s t a v a m s e m ru m o e à d e r iv a na te rra e m q u e m o r a v a m t e m p o r a r ia ­
m e n te . R e le g a d o s a u m s ta tu s in fe rio r, e le s t in h a m u m a p o s iç ã o a p e n a s
lig e ir a m e n t e s u p e r io r à d o s in im ig o s . S e m o s p r iv ilé g io s d e c id a d a n ia ou
c o n e x õ e s s o c ia is , e le s e ra m v u ln e r á v e is a a b u s o s , in s u lto s , p e r d a d e p ro ­
p r ie d a d e e, e m c a s o s e x tre m o s , a té m e s m o à m o rte (v e ja d e S ilv a , 2 0 0 0 a ,
p. 3 9 4 -3 9 5 ; W ith e rin g to n , 2 0 0 7 , p. 1 0 -1 2 ).
O p ú b lic o d o p r e g a d o r p o d e r ía id e n t ific a r- s e c o m a s it u a ç ã o d o s p a ­
tria rc a s . E le s t a m b é m e x p e r im e n t a r a m a lie n a ç ã o (H b 6 .1 8 ) e h u m ilh a ç ã o
d e s e u s v iz in h o s ( 1 0 .3 2 -3 4 ). F o ra m t r a t a d o s c o m o e s tra n g e iro s e p e re ­
g rin o s na terra.

ü 1 4 - 1 6 Os versículos 14-16 tiram uma conclusão dos fatos anteriores. He-


breus usa o que Quintiliano considerava o entimema mais eficaz: uma razão
unida a uma proposição diferente ou contrária (Inst. 5.14.4; veja Rhet. Her.
4.30.41). A razão está no versículo 14: O s que assim falam m ostram que
estão buscando uma pátria. A proposição contrária (v. 15) é afirmada em con­
traste com o estado real das coisas (v. 16^). Isso é seguido por uma conclusão
no versículo 16b.
Não é realmente um paradoxo que os patriarcas vivessem como estran­
geiros e peregrinos na “terra prometida” (11.9). Como eles escolheram não se
estabelecer permanentemente em Canaã, é lógico que eles estavam realmente
buscando uma pátria. O autor refere-se à sua “pátria” (NVT, OL, TB, CEB,
ESV, HCSB, LEB, NAB, NET, NJB, NKJV, NLT, NRSV; “pátria” [BDAG,
p. 788]). Isso evocava fortes sentimentos de pertencimento, apego e lealdade.
Homero disse: “Nada é mais doce do que a terra natal” (Od. 9.34). Ulisses va­
lorizou o retorno à sua terra natal acima da imortalidade (Cícero, Leg. 2.1 §3;
Koester, 2001, p. 490).

375
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Essa razão é apoiada por um argumento contrário ao fato no versículo 15:


Se estivessem pensando naquela de onde saíram, teriam a oportunidade
de voltar. A terra natal de Abraão era Ur dos Caldeus, no sul da Mesopotamia,
depois Harã, no norte da Mesopotamia. Em obediência ao chamado de Deus,
os patriarcas saíram (-» 11.8) desses lugares (Gn 12.4,5; 15.7). Como nunca
tentaram estabelecer-se neles, é evidente que esses lugares não eram sua verda­
deira pátria.
Em vez disso, esperavam eles uma pátria melhor (Elb 11.16^). O objeto
de seu desejo intenso (oregontai; veja Attridge, 1989, p. 332) era uma pátria
melhor do que qualquer outra. Melhor (kreittonos) é um termo favorito em
Hebreus, associado às provisões e bênçãos superiores da nova aliança (-» 1.4
anotação complementar: “Coisas ‘superiores’ em Hebreus”). O autor explica
(isto é; entre vírgulas na NVI) que a pátria é celestial. Ao fazê-lo, ele ecoa um
sentimento popular entre os filósofos greco-romanos e os primeiros cristãos:
sua verdadeira cidadania está na cidade de Deus ou no céu (veja Attridge, 1989,
p. 330; deSilva, 2000a, p. 401-402; -> 11.10, “a cidade que tem alicerces”).
A expectativa, o desejo e a lealdade dos patriarcas por sua pátria celestial
não podem ser separados de sua devoção a Deus. A cidade que eles buscavam
é “a cidade que tem alicerces, cujo arquiteto e edificador é Deus” (11.10), em
suma, “a cidade do Deus vivo” (12.22). Por essa razão (dio), o pregador con­
clui no versículo \ 6b: Deus não se envergonha de ser chamado o Deus deles.
Isso pode muito bem ser uma alusão à fórmula da aliança que nomeia Deus
como “o Deus de Abraão, Isaque e Jacó” (veja Ex 3.6,15,16; 4.5; Mt 22.32;
Mc 12.26; Lc 20.37; At 3.13; 7.32). Pois preparou-lhes uma cidade ilustra
como Deus recompensa grandemente aqueles que perseveram na fé (veja Hb
10.35,36; 11.6,26; Johnson, 2006, p. 293).
8 1 7 - 1 9 O versículo 17 retoma o anafórico pela fé (pistei), utilizado com
pouca interrupção até o versículo 32. O tópico de Abraão e seus descenden­
tes, introduzido nos versículos 11 e 12, é retomado nos versículos 17-22. Um
subtema que mantém esse parágrafo unido é a repetida menção de como a fé
olha além da morte para o cumprimento da promessa e da bênção de Deus (v.
19,21,22).
Os versículos 17-19 trazem à tona o episódio de Gênesis 22.1-19, conhe­
cido na tradição rabínica como Akedah ou “ligação” de Isaque. O texto em
Hebreus, como o judaísmo, considera a oferta de Isaque a suprema demons­
tração da fé de Abraão (Jub. 17.15-18; 18.16; Sir. 44.20; 1 Mac. 2.52; 'Abot
5.3). Q uando D eus o pôs à prova [peirazomenos\ é significativo em Hebreus.

376
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

Ele é ofuscado pela prova de Jesus por meio do sofrimento, o que lhe permitiu
identificar-se com a experiência de prova dos leitores (2.18; 4.15).
A descrição concisa em 11.17 captura claramente o drama do momento
em que Abraão pegou a faca do sacrifício. Duas formas do verboprospherõ con­
tam a história. O tempo perfeito (ofereceu [...] como sacrifício) indica que,
em termos da resolução de Abraão, o sacrifício foi feito (compare com Fílon,
Abraão 177). Além disso, o tempo imperfeito (a ponto de sacrificar) retrata
Abraão no processo de oferecer seu filho (Westcott, 1909, p. 367; Hughes,
1977, p. 482).
A fidelidade de Abraão em oferecer Isaque é aguçada por três fatos sobre­
postos, indicando como esse teste de obediência exigia que o patriarca agisse
paradoxalmente em conflito com as promessas divinas.
• Primeiro, Abraão é aquele que havia recebido as prom essas (v. 17),
isto é, “aquele que assumiu a responsabilidade” das promessas (MM,
32; Lane, 1991, p. 361; compare 7.6).
• Segundo, Abraão ofereceu seu único filho (monogenê). Isaque era
“único” (NAA, NVT, OL, VC), não apenas como o verdadeiro filho
de Abraão por sua esposa, Sara, mas como o único filho da promessa
(BDAG, p. 658; Fitzmyer, 1991).
• Terceiro, o próprio Deus fez a promessa, que Hebreus cita literalmen­
te de Gênesis 21.12 LXX: Por meio de Isaque a sua descendência
será considerada (v. 18).
Hebreus não vê a obediência de Abraão como um simples “salto de fé”
(Kierkegaard). O versículo 19 explica o raciocínio por trás da disposição de
Abraão de cometer um ato tão impensável: Abraão levou em conta que Deus
pode ressuscitar os m ortos. Esse era um princípio de fé para judeus e cristãos
(Dt 32.39; 1 Sm 2.6; Rm 4.17), articulado de forma famosa na segunda das
Dezoito Bênçãos; “Bendito és tu, Senhor, que fazes os mortos viverem” (Koes-
ter, 2001, p. 491). Essa confissão foi comumente integrada em recontagens de
Akedah, um detalhe com o qual os hebreus podem estar familiarizados (Lane,
1991, p. 363).
Abraão recebeu Isaque de volta dentre os mortos. Mas ele fez isso figu-
radamente (ARA, BKJ, KJA, NAA). Parece haver um significado tipológico
na frase en parabolê (“como uma ilustração” [HCSB]; “como um símbolo”
[NAB]; “como um tipo” [NASB]; “em um prenúncio” [Lane, 1991, p. 362]).
Há um significado tipológico no único outro exemplo da palavra parabolê em
Hebreus (9.9). Lá se refere simbolicamente à função limitada do tabernácu-

377
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

lo do deserto, que seria transcendido no final dos tempos (-» 9.26). Aqui, em
11.19, a preservação de Isaque prefigura “a ressurreição dos mortos” (6.2) ou “a
ressurreição superior” (11.35) antecipada pelos fiéis.
20-22 Essa parte da lista de exemplos, relacionada aos descendentes de
Abraão, toca apenas os personagens principais da segunda metade de Gênesis:
Isaque (v. 20), Jacó (v. 21) e José (v. 22). Ele destaca as ações empreendidas por
cada um deles ao enfrentar a morte.
O versículo 20 alude claramente à bênção de Isaque no leito de morte a
seus dois filhos em Gênesis 27 (veja Gn 27 A \b). Não há vestígios da intriga ou
do pathos da cena. A decisão fatal de Esaú só mais tarde servirá de advertência
em Hebreus 12.16,17. Nesse caso, o foco aqui está no fato de que Isaque aben­
çoou Jacó e Esaú.
O conteúdo das bênçãos em Gênesis (27.27-29,39,40) era certamente
com respeito ao futuro deles. O texto grego de Hebreus 11.20, no entan­
to, indica que a bênção de Isaque — pronunciada pela fé — era muito mais
abrangente (11.1). Isaque falou “até mesmo em relação às coisas por vir” (kai
peri mellontõn, NASB). Isaque foi um dos patriarcas que viu e acolheu de longe
uma pátria melhor (v. 13-16^). Ele antecipou “a cidade que há de vir” (13.14;
veja 11.10, 16b) e todas as bênçãos no “mundo que há de vir” (2.5; compare
com “a era que há de vir” em 6.5 e “os benefícios que hão de vir” em 10.1).
O versículo 21 volta-se para a cena em que Jacó [...] abençoou cada um
dos filhos de Jo sé (Gn 48.8-20). Nada é dito de Jacó favorecer o irmão mais
novo, Efraim, em detrimento do primogênito, Manassés. Mais importante é o
momento da bênção, à beira da morte, e a maneira de seu pronunciamento.
Embora Jacó estivesse prestes a expirar sem desfrutar o cumprimento das pro­
messas de Deus, pela fé ele transmitiu a promessa de bênção de Deus a seus
netos. Até o fim, ele adorou a Deus e demonstrou total confiança nele (citando
Gn 47.31; para a conexão de fé e adoração, veja Hb 4.14,16; 10.22; 11.6).
Tal como acontece com Isaque e Jacó, o versículo 22 se concentra nas ações
de morte de José, no fim da vida. Muitos incidentes na vida de José ilustram
sua confiança na providência divina. Mas a cena final em Gênesis (50.22-26)
acentua o aspecto prospectivo de seus últimos atos. Hebreus os descreve como
feitos pela fé, resumindo as duas principais ações de José: Primeiro, ele fez
menção do êxodo dos israelitas do Egito. Segundo, sua fé era tal garantia e
prova das promessas de Deus (veja 11.1) que ele deu instruções para enterrar
seus ossos na “terra prometida” (11.9). Isso demonstra sua fé de que Deus liber­
taria os israelitas do Egito (Gn 50.25; Êx 13.19; Js 24.32).

378
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

c. De Moisés a Raabe (11.23-31)

Hebreus 11.8-22 dedicou a maior parte de seu espaço para celebrar a fé


de Abraão e Sara (v. 8-12,17-19), seguido por três instantâneos de seus des­
cendentes imediatos (v. 20-22). Embora não tenha um interlúdio explicativo
(como nos v. 13-16), 11.23-31 segue um padrão semelhante.
• Os versículos 23-28 apresentam uma biografia sucinta da fé de Moisés.
• Os versículos 29-31 relatam a sequência da fé de Moisés em três breves
descrições de eventos-chave relacionados ao êxodo do Egito e à con­
quista de Canaã.
Estruturalmente, a passagem tem dois parágrafos. O primeiro parágrafo
(v. 23-28) é marcado por um inclusio que destaca a falta de medo com base
em ver algo (v. 23,27). O núcleo do parágrafo (v. 24-26) enfatiza a escolha de
solidariedade de Moisés com o povo de Deus e o Messias vindouro. Ele aceitou
maus-tratos e desgraça e renunciou aos privilégios e riquezas egípcios, prefe­
rindo a recompensa futura de Deus. O versículo 28 transita para o próximo
parágrafo com um toque retórico (aliteração e homoioptõton-, -» 11.1,28). Sua
referência à Páscoa introduz o tema do segundo parágrafo (v. 29-31): a salva­
ção dos crentes e a destruição dos incrédulos (veja Koester, 2001, p. 507).
H 2 3 Logicamente, pela fé está associado aos pais d e M o isé s (veja CEV, GNT,
GW, NCY, NET, REB). Mas gramaticalmente a fé está ligada a M oisés (veja
ESV, EICSB, KJV, NASB, NJB; Attridge, 1989, p. 339). O versículo 23 con­
densa o relato em Êxodo 1.1—2.10, mas é particularmente grato a Êxodo 2.2.
O TM menciona apenas a mãe de Moisés escondendo-o. Mas Hebreus deduz
da LXX (“eles o esconderam”) que recém-nascido, foi escondido durante
três meses por seus pais. A motivação para seu desafio ao faraó foi dupla.
Primeira, eles reconheceram a aparência principesca de Moisés: Estes
viram que ele não era uma criança comum. A NVI não era uma criança co­
mum captura bem o significado da única palavra grega (,asteion) que Hebreus
reproduz de Êxodo 2.2 (LXX; usado mais uma vez no NT, também de Moisés
[At 7.20]). A palavra pode ser traduzida como “belo” (a maioria das versões cm
inglês) ou “bonito” (BDAG, p. 145; “delicado” [NJB, REB]). Conota a boa
educação e o refinamento da cidade, em oposição aos modos rústicos e modes­
tos do campo (BDAG, p. 145; LSJ, 260). Desde o nascimento, Moisés tinha a
aparência de alguém marcado por Deus com favor e destino especiais, mesmo
tendo nascido de escravos. Fílon correlaciona a beleza externa de Moisés com o
nascimento nobre. Ele considera isso o motivo do desafio de seus pais ao faraó

379
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

(Moisés 1.9, 18). Josefo credita a beleza de Moisés pela facilidade de sua adoção
na casa real do Egito {Ant. 2.224-225, p. 231-232).

Moisés: bonito e de alta classe desde o nascimento


O s ig n ific a d o d o s a t r ib u t o s f ís ic o s d e M o is é s é u m d e t a lh e p e r d id o
p e lo s le ito re s m o d e rn o s . N o s s o s id e a is d e lib e r d a d e e ig u a ld a d e e s tã o
m u ito d is t a n t e s d a q u e le s d a s s o c ie d a d e s a n tig a s . E le s g e r a lm e n t e c o n s i­
d e r a v a m a p o s iç ã o d a p e s s o a na v id a c o m o f ix a d e s d e o n a s c im e n to . O s
a n tig o s c o r r e la c io n a v a m a b e le z a fís ic a c o m a b o a e d u c a ç ã o (v e ja P la tã o ,
R esp. 1 0 .6 1 8 a -b ; A r is t ó t e le s , E t . n ic . 1 .8 .1 6 ; P o l. 3 .1 2 8 2 b ; 4 .1 2 9 5 b ; D io g .

L a e rt. 3 .1 .8 8 ). E ss a c o n c e p ç ã o p o p u la r n ã o é e x p r e s s a c o m m a is fo rç a d o
q u e p o r u m ric o n o b re , D io n ís io , n o a n tig o ro m a n c e g r e g o d e C h a rito n ,
d e n o m in a d o C a llir r h o e (c. 5 0 d.C .): "É im p o s s ív e l q u e u m a p e s s o a n ã o
n a s c id a liv re se ja b o n ita . V o c ê n ã o a p re n d e u c o m o s p o e ta s q u e a s p e s s o ­
a s b o n it a s s ã o filh o s d o s d e u s e s e, m u ito p r o v a v e lm e n t e , filh o s d o s n o b re s
n a s c id o s " (2 .1 .5 ).
O a n tig o p ú b lic o d e H e b re u s te r ia c o m p r e e n d id o im e d ia t a m e n t e o
s ig n ific a d o d a b e le z a n a tu r a l d e M o is é s . E le fo i d e s tin a d o p o r D e u s p a ra
u m p a p e l d e t r e m e n d o p r iv ilé g io e r e s p o n s a b ilid a d e . N o e n ta n to , t a m ­
b é m d e s ta c a o fa to d e q u e M o is é s , q u e p a re c ia b e m - e d u c a d o , na v e r d a d e ,
n a s c e u d e n ô m a d e s d e c la s s e b a ix a q u e e ra m e s c r a v o s d o fa ra ó . M o is é s
m a is t a r d e d e ix a r ia d e la d o s u a s p r e r r o g a t iv a s re a is p a ra ju n ta r- s e a o se u
p ró p rio p o v o m is e r á v e l e o p r im id o , a q u e m D e u s o c h a m o u p a ra lid e ra r,
d e s a f ia n d o a m a io r s u p e r p o t ê n c ia d e s u a é p o c a , o E g ito .

Segunda, eles foram motivados pela coragem: N ão temeram o decreto do


rei. Isso se refere à ordem de Faraó de matar toda criança hebraica do sexo mas­
culino (Ex 1.15,16,22). Êxodo não menciona o destemor dos pais de Moisés.
Isso implica fortemente que as parteiras hebreias eram corajosas (Êx 1.17,21).
Portanto, não seria exagero deduzir o mesmo sobre os pais de Moisés (Attrid-
ge, 1989, p. 339-340; Lane, 1991, p. 370).
ü 2 4 O tópico de Elebreus 11.24-26, a renúncia de Moisés de seus privilégios
reais egípcios, é introduzido no versículo 24: Pela fé M oisés [...] recusou ser
chamado filho da filha do faraó. Os versículos 25 e 26 detalharão as alter­
nativas envolvidas nessa decisão e o critério que Moisés utilizou para tomá-la.
A frase já adulto é retirada diretamente de Êxodo 2.11 LXX. O pregador
pode estar ciente da tradição exegética que interpretou Êxodo 2.11 — “foi ao

380
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

lugar onde estavam os seus irmãos hebreus e descobriu como era pesado o tra­
balho que realizavam” — como seu rompimento com a corte egípcia (Lane,
1991, p. 370-371, seguindo D ’Angelo, 1979, p. 36,42-53).
O fato de ele ser cham ado filho da filha de Faraó pode indicar que Moi­
sés foi formalmente adotado na casa real (veja Josefo, Ant. 2.232; Fílon, Moisés
I . 19,32-33; Jub. 47.9). Hebreus não especifica o ato pelo qual Moisés recusou
sua associação com Faraó. Certamente não era o conto fantasioso de Josefo
de Moisés como uma criança pisando em sua coroa {Ant. 2.233). Talvez faça
alusão ao assassinato de Moisés de um capataz egípcio abusivo (Ex 2.11-14;
uma adição em alguns MSS torna isso explícito; veja Metzger, 1994, p. 603).
Tendo em vista Hebreus 11.25,26, uma referência geral à decisão de Moisés de
fazer causa comum com seu próprio povo escravizado é igualmente provável
(Whedon, 1880,5:126).
β 2 5 - 2 6 O elegante quiasma grego nos versículos 25-26^: pode ser represen­
tado de forma justa por meio de um ligeiro rearranjo da NVI:

II.25 Preferindo ser maltratado com o a desfrutar os prazeres do peca-


povo de Deus do durante algum tempo.

11.26 Considerou a desonra riqueza porque contemplava a sua re­


maior que os tesouros do Egito, compensa.

As opções de Moisés e seus valores relativos são assim expostos. Estudiosos


tentam traçar a origem do pensamento de Hebreus nesses versículos. Em parti­
cular, por am or de C risto [...] desonra tem sido associado ao Salmo 89.51,52
LXX (Lane, 1991, p. 373; Ellingworth, 1993, p. 614) ou ao Salmo 68.8,10
(deSilva, 2000a, p. 411). No entanto, o cuidadoso arranjo e a escolha de pa­
lavras sugerem uma leitura distinta da vida de Moisés por meio de um prisma
pastoral. Hebreus vê paralelos entre a fé escolhida necessária para Moisés, Je­
sus, o Messias, e agora também para a comunidade a que se dirige.
A preferência de Moisés de ser m altratado com o povo de D eus é uma
reminiscência da participação da comunidade no sofrimento dos irmãos cren­
tes (-» Hb 10.34; veja 4.15). A solidariedade com o povo sofredor de Deus
é pesada contra o gozo dos prazeres do pecado durante algum tem po. Os
leitores foram advertidos sobre a atração do pecado (-> 3.13) e serão chamados
a livrar-se “do pecado que envolve” (12.1; veja 12.4).
Que Moisés suportou a desonra \oneidismois\ por amor de C risto se
compara com a exposição passada da comunidade a “insulto [oneidismois\ e tri-

381
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

bulações” (10.33). A resistência de Cristo ao sofrimento e à vergonha (12.2,3)


é o que Moisés olhou no futuro e compartilhou (assim, “dando testemunho do
que havería de ser dito no futuro” [3.5]). É também o que a comunidade deve
olhar para trás e imitar. Cristo é o padrão de fidelidade para o passado, presen­
te e futuro (veja 13.8) — o “pioneiro e consumador da fé” (12.2 N IV 11). Em
13.13, o pregador exorta seu público a “sair até ele [...] suportando a desonra
\ton oneidismon\ que ele suportou”.
Moisés considerou sua participação na desgraça de Cristo como riqueza
m aior do que os tesouros do Egito. A escolha de Moisés de maus-tratos aci­
ma de prazeres pecaminosos, e da desgraça de Cristo sobre vastas riquezas, não
faz sentido à parte da fé. O versículo 2Gb explica o motivo de sua preferência:
Porque contem plava a sua recom pensa. O raciocínio de Moisés é semelhante
ao oferecido à comunidade em 10.35. Sua espera (veja 11.1) na expectativa da
recompensa de Deus (veja 11.6) está de acordo com a descrição de Hebreus
sobre a dinâmica da fé.
2 7 Os leitores há muito se perguntam onde esse versículo se encaixa na
cronologia da vida de Moisés. Quando foi que pela fé ele saiu o Egito? Várias
visualizações são possíveis:
Primeira, pode referir-se à sua ida inicial para Midiã. Isso é improvável,
pois, naquela ocasião, Moisés estava com medo (Êx 2.14), enquanto Hebreus
diz que ele partiu não tem endo a ira do rei (observe a inclusão com o v. 23).
Segunda, podería referir-se ao próprio êxodo. Naquela ocasião, Moisés
exortou o povo a não ter medo, e eles marcharam triunfantes (Êx 14.8,13). No
entanto, o êxodo ocorreu depois, não antes, da celebração da Páscoa mencio­
nada no versículo seguinte (Hb 11.28).
Terceira, o versículo 27 poderia ser simplesmente uma declaração geral so­
bre a coragem de Moisés, não ligada a nenhum evento em particular (deSilva,
2000a, p. 412; Koester, 2001, p. 503-504). Talvez Hebreus se refira a toda a
série de ações ousadas que Moisés tomou antes do êxodo, como suas repetidas
aparições diante do faraó para pressionar a ordem de Deus: “Deixe meu povo
ir!” (Êx 7.16; 8.1,20; 9.1,13; 10.3,7).
Moisés perseverou por uma razão: Porque via aquele que é invisível. A
palavra invisível é usada como um dos títulos de Deus (Cl 1.15; 1 Tm 1.17)
ou atributos (Rm 1.20; Fílon, Moisés 1.158; 2.65). Moisés não apenas manteve
“sua recompensa” à vista (Hb 11.26), mas também o próprio “galardoador”
(v. 6 BKJ). Moisés é, portanto, um exemplo para os leitores de Hebreus. Eles
também devem “fixar os olhos em Jesus” (12.2; veja 3.1), “a marca exata do [...]
ser de Deus” (1.3 NRSV).
382
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

B 2 8 O pregador transita da vida de Moisés para o registro do povo de Deus


em eventos subsequentes (v. 29-31). Começa com Moisés (ele) e termina com
os filhos m ais velhos dos israelitas (lit., seus primogênitos). Como um floreio
retórico, a dicção incorpora aliteração (comp) e homoioptõton como anterior­
mente (-» 11.1). O contraste implícito entre a destruição dos incrédulos e a
salvação do povo de Deus é o tema dos versículos 29-31 (compare com 10.39).
Pela fé, Moisés celebrou a Páscoa e, assim, instituiu o ritual que os judeus
ainda realizam anualmente para celebrar a libertação milagrosa de Deus dos
israelitas do Egito. Hebreus não faz uma pausa para traçar nenhuma conexão
tipológica com o sacrifício de Cristo como nosso “cordeiro pascal” (1 Co 5.7;
veja 1 Pe 1.19).
A aspersão de sangue refere-se à aplicação do sangue do cordeiro pascal
no topo e nas laterais do batente da porta (Êx 12.7,22). Esse ato de fé, em
conexão com a primeira celebração da Páscoa, foi uma resposta à promessa de
Deus (Êx 12.13,23). Deus enviou o destruidor, ou o “anjo destruidor” (1 Co
10.10), que causou a morte dos “primogênitos” do Egito. Quando via o sangue
nos batentes das portas dos israelitas, ele “passava por cima” de suas casas, para
não tocar nos primogênitos de Israel.
* 2 9 - 3 1 Três contrastes resumem rapidamente os eventos do êxodo de Israel
do Egito e a conquista de Canaã. A salvação contrastante do povo de Deus e
a destruição de seus inimigos proporciona uma unidade temática para esses
versículos.
O texto em Hebreus 11.29 relata a milagrosa divisão do mar Vermelho
quando os israelitas foram perseguidos pelo exército do faraó (Êx 14.1-31).
Obediente à ordem de Deus de “seguir em frente” (Êx 14.15) e confiante na
libertação de Deus, pela fé o povo atravessou o mar Verm elho com o em ter­
ra seca. Sua fé contrasta com a dos egípcios, que, quando tentaram fazer o
mesmo, morreram afogados.
Igualmente milagroso é como caíram os m uros de Jerico (Hb 11.30). A
cláusula depois de serem rodeados durante sete dias indica, de forma clara,
como esse evento ocorreu pela fé. Simplesmente marchando ao redor da cida­
de, em obediência às ordens de Deus, os muros da cidade caíram sem um único
aríete (Js 5.13—6.27).
Notavelmente, Hebreus não menciona Josué, o sucessor de Moisés e o
líder escolhido de Deus para a conquista. Isso pode ser deliberado, dada a ob­
servação negativa anterior de que Josué não havia dado descanso aos israelitas
(Hb 4.8). A colonização em Canaã não foi o cumprimento final da promessa
de Deus. Os patriarcas procuravam uma pátria celestial (11.10,14-16).

383
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A preservação de Raabe no versículo 31 é mencionada no relato da queda


de Jerico (Js 6.17,23,25). A razão declarada para sua libertação da destruição é,
como no registro do AT (Js 6.17,25), por ter acolh id o os espiões. Sua fé pode
ter consistido em confiar no juramento de proteção dado a ela pelos espiões
que ela escondeu (Js 2.20; 6.23).
A menção de Raabe na conclusão da maior parte da lista de exemplos (Hb
11.3-31) dá um golpe persuasivo. Ela era uma não israelita, uma mulher (-> v.
11) e uma prostituta, nada menos que isso! No entanto, ela está entre aqueles
que acreditaram e foram salvos, em vez de ser m orta com os que haviam sido
desobedien tes (-> 10.39). Crisóstomo (1996, p. 488) expressa uma possível
implicação para os leitores: “Seria vergonhoso se você parecesse mais infiel do
que uma prostituta. No entanto, ela [apenas] ouviu o que os homens relataram
e imediatamente acreditou”.

d. M u ito s m a is fiéis: do triunfo ao so frim e n to (11.32-40)

Como o pregador está escrevendo para os destinatários “bem brevemente”


(13.22 N IV11), ele não tem espaço para contar na íntegra a história restante dos
fiéis. Portanto, ele emprega uma série de técnicas retóricas para dar aos leitores
uma noção, em pequeno compasso (11.33-38), do alcance e da magnitude des­
sa história. Estes incluem orações curtas e fortes de comprimento quase igual
(,isocoíon), encadeadas sem quaisquer conjunções (assíndeton), com verbos su­
cessivos cujas sílabas iniciais e finais combinam entre si no som (Cosby, 1988,
p. 57-73). Tanto o conteúdo quanto a forma são projetados para dar uma im­
pressão precisa do grande número de heróis da fé adicionais e da extensão de
seus triunfos e sofrimentos.
A repetição de “pela fé [pisteiY nos versículos 3-31 chegou ao fim. No
entanto, essa subunidade é enquadrada pela frase semelhante “pela fé \dia
pisteõs]” nos versículos 33 e 39. A passagem começa com uma breve lista de
nomes dignos de fé (v. 32) e termina com um resumo final para todo o capítulo
(v. 39,40). O material intermediário (v. 33-38) divide-se em duas partes. Passa
de vitórias militares e libertações milagrosas (v. 33-35a) para contos de tortura,
execução e rejeição (v. 35^-38). A dobradiça entre as duas metades é a antítese
no versículo 35 entre mulheres que receberam de volta seus mortos por meio
da ressurreição e outras que sofreram tortura na esperança de “uma ressurreição
superior”.
SÉ 3 2 A pergunta retórica Q ue mais direi? e a afirmação que não tenho tem ­
p o para falar introduzem um recurso retórico conhecido como paraleipsis.

384
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

Isso ocorre quando um falante menciona as mesmas coisas que ele diz estar
ignorando (Rhet. Her. 4.27.37). O pregador escolhe apenas listar mais pessoas
e experiências que exemplificam a fé, sem elaborá-las ad nauseam. Essa técni­
ca bem conhecida permitiu que os falantes mostrassem seu domínio de um
assunto, sem serem tediosos (Isócrates, Archid. 47; Crisóstomo, 1996, p. 488;
Koester, 2001, p. 516).
Os seis indivíduos nomeados no versículo 32 não estão em ordem crono­
lógica estrita. A lista menciona quatro heróis do período de juizes de Israel:
G ideão, Baraque, Sansão e Jefté (veja 1 Sm 12.11 LXX). Davi é a maior e
única figura representativa da trágica história da monarquia. Samuel, nome­
ado por último, era o chefe dos profetas de Israel (veja 1 Sm 19.20; At 3.24).
B 3 3 -3 4 As experiências contadas em Hebreus 11.33-38 aludem a figuras e
eventos da história bíblica e extrabíblica. Eles relatam realizações e sofrimentos
que surgiram pela fé. Alguns são bastante gerais, aplicáveis a várias épocas e
pessoas; outros apontam indubitavelmente para heróis particulares da fé. No
quarto século d.C., os intérpretes tentavam identificar cada alusão com espe­
cificidade (Crisóstomo, 1996, p. 488-489,491-492; Efrém, o Sírio, em Heen
e Krey, 2005, p. 204-205; Lane, 1991, p. 385). As nove cláusulas curtas nos
versículos 33 e 34 são organizadas em três trios:
O primeiro destaca conquistas militares e políticas. C onquistaram rei­
nos, praticaram a justiça e alcançaram o cum prim ento das prom essas se
aplica a todas as figuras mencionadas no versículo 32 e a muitas outras no AT,
mas especialmente a Samuel e Davi (veja 1 Sm 12.3-5,23; 2 Sm 8.1-3,15; 1 Cr
18.14 LXX; veja Lane, 1991, p. 385-386).
Alcançaram o cum prim ento das prom essas (lit., promessas obtidas)
tem a ver com vencer inimigos, adquirir territórios e desfrutar de outras bên­
çãos temporais que Deus havia prometido. Distingue-se da “promessa”, que os
antigos não alcançaram (Hb 11.39).
O segundo trio é dedicado àqueles que escaparam da morte certa. Fecha­
ram a boca de leões inequivocamente se refere a Daniel na cova dos leões (Dn
6.1-28). Apagaram o p od er do fogo fala da libertação de três jovens hebreus
da fornalha ardente (Dn 3.1-30). Escaparam do fio da espada podería apli­
car-se a muitos dos profetas, como Elias, Eliseu e Jeremias.
O terceiro trio retorna à vitória marcial. D a fraqueza tiraram força pa­
rece imediatamente aplicável a Sansão. Tendo sido enfraquecido e humilhado
pelos filisteus, ele recebeu uma última oportunidade de desferir um golpe forte
e mortal em seus inimigos (Jz 16.20-31). As duas cláusulas finais, tornaram-se
p oderosos na batalha e puseram em fuga exércitos estrangeiros, têm uma

385
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

ampla aplicação na história de Israel (novamente para todos aqueles listados


em Hb 11.32), incluindo a Revolta dos Macabeus contra “estrangeiros” (veja 1
Mac. 1.38; 2.7; 4.12,26).
I 3 5 Esse versículo forma a dobradiça entre as façanhas notáveis da fé nos
versículos 33-34 e a resistência do sofrimento pelos fiéis nos versículos 36-38.
Apresenta uma antítese girando em torno da ressurreição.
Por um lado, houve m ulheres que, pela ressurreição, tiveram de volta
seus m ortos. Isso é verdade para duas mulheres no AT: a viúva de Sarepta, cujo
filho foi levantado por Elias (1 Rs 17.22-23); e a mulher sunamita, cujo filho
foi levantado por Eliseu (2 Rs 4.32-37).
Por outro lado, outros foram torturados e recusaram a ser libertos,
para poderem alcançar um a ressurreição superior. Essa é uma clara alusão
aos mártires macabeus. Certo Eleazar assim como uma mãe e seus sete filhos
recusaram-se resolutamente a renegar sua fé para poupar suas vidas. Em vez
disso, eles suportaram formas assustadoras de tortura e morte, na esperança da
ressurreição (2 Mac. 6.18—7.42, especialmente 7.9,14,29,36).
Ressurreição superior supera infinitamente os milagres de ressurreição
de Hebreus 11.35a. Isso se refere à ressurreição final, quando os crentes serão
ressuscitados para a vida eterna. Ela compartilha “o poder de uma vida indes­
trutível” (7.16), que Deus efetuou na ressurreição de Jesus (13.20).
3 6 - 3 8 A lista se completa com referências aos fiéis que, em vez de ex­
perimentar realizações e bênçãos notáveis, foram atormentados, presos,
brutalmente executados e ostracizados pelo mundo.
O utros enfrentaram zom baria e açoites (v. 36), como os profetas (2 Cr
36.16) — Jeremias, em particular (Jr 20.2,7,8). Zom barias e açoites juntos
foram suportados pelos mártires macabeus (2 Mac. 7.1,7,10; 4 Mac. 6.3,6;
9.12). Outros ainda, como os profetas Jeremias (Jr 37.15,16,18-20), Hanani
(2Cr 16.7-10) e Micaías (1 Rs 22.26,27), foram acorrentados e colocados
na prisão. Alguns na comunidade de leitores sofreram o mesmo destino (Hb
10.34; 13.3).
Eles foram apedrejados (v. 37) indica o método de escolha para matar os
profetas, como Jesus lembrou Seus oponentes (Mt 23.37; Lc 13.34). O único
profeta cujo apedrejamento é registrado no AT é Zacarias, filho de Joiada, o
sacerdote (2 Cr 24.20,21; veja Mt 23.35; Lc 11.51). O primeiro mártir cris­
tão, Estêvão, foi apedrejado até a morte (At 7.58,59). Segundo uma tradição
amplamente transmitida entre judeus e cristãos, o profeta Isaías foi serrado em
dois. Muitos profetas também foram m ortos ao fio da espada (1 Rs 19.10,14;
Jr 2.30; 26.20-23).

386
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

Mesmo quando os profetas não foram mortos, eles viviam à margem da


sociedade. Eles andaram errantes com as roupas mais incivilizadas, p ele de
ovelhas e de cabras. Elias usava uma roupa peluda (2Rs 1.8), que se tornou
uma marca registrada dos profetas (Zc 13.4; Mt 7.15; compare o traje de pelo
de camelo de João Batista [Mc 1.6 par.]). N ecessitados, afligidos e m altra­
tados é um resumo preciso dos ministérios de Elias e Eliseu (1 Rs 17.2-16;
19.1-19; 2 Rs 1.3-15; 2.23; 4.1,2,8-12,38-43; 8.1,2).
Hebreus interpõe um juízo de valor em Hebreus 11.38^: O m undo não
era digno deles. Por mais desprezados, abusados e empobrecidos que fossem,
os fiéis eram muito mais preciosos do que aqueles que os rejeitavam. “Eles eram
bons demais para este mundo” (NLT). O sistema de valores do Reino de Deus
não é baseado no do mundo. O caminho para maior honra e glória não é por
meio da riqueza e poder, mas por meio da humildade e do sofrimento em obe­
diência a Deus — como supremamente exemplificado por Jesus (2.7,9; 3.3;
5.4,5; 12.2).
Eles vagaram pelos desertos e m ontes, pelas cavernas e grutas. Isso é
uma reminiscência de quantos fiéis de Deus buscaram refúgio e esconderijos
longe de seus perseguidores (1 Rs 19.1-3,9; Sl 107.4; 1 Mac. 5.27; 6.11; 10.6).
Um exemplo notável é do tempo de Elias, quando Jezabel estava matando os
profetas do Senhor. Obadias escondeu cem profetas em cavernas e os supriu
com comida e água (1 Rs 18.4,13).
üf 3 9 -4 0 Esses versículos constituem o resumo conclusivo, não apenas para
a última subunidade, mas para todo o “capítulo da fé”. A frase por m eio da fé,
também em Elebreus 11.33, reaparece aqui para encerrar os versículos 32-40.
Outro inclusio liga os versículos 39 e 40 à abertura do capítulo. Primeiro, o
verbo receberam [...] testem unho aparece também nos versículos 2,4 e 5. Em
segundo lugar, 11.1 definiu a fé, em parte, como prova de “que não vemos [ou
blepomenõnY (veja v. 3,7). Agora Hebreus afirma que D eus havia planejado
ou “previsto [problepsamenou]” (NAA, RSV) algo melhor. Bengel observa as­
tutamente: Deus “provê (prevê) o que a fé ainda não vê” (1877, 4:459).
O resultado final é que to d o s estes [houtoi pantes] receberam b o m
testem u n h o por Deus (-> 11.2), mas n en h u m deles receb eu o que havia
sid o p ro m etid o . Isso lembra o resumo do pregador sobre Abraão e seus
herdeiros imediatos em 11.13: “Todos esses [houtoipantes\ [...] morreram”
sem receber as promessas de Deus. Também forma um contraste marcante
com o encorajamento do pregador aos leitores em 10.36: “Vocês precisam
perseverar, de modo que [...] recebam o que ele prometeu” (Ellingworth,

387
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

1993, p. 634). Tal contraste é parte integrante da conclusão. E stes [...]


n en h u m d eles recebeu a promessa. Isso porque Deus fez planos melhores
para nós, para que os antigos pudessem finalmente ser aperfeiçoados, mas
não sem nós.
O algo m elh o r que Deus previu envolve, no contexto imediato, as
“bens superiores e permanentes”, a melhor pátria e a “ressurreição superior”
(10.34; 11.16,35). Mas a ênfase aqui está no privilégio do público de peri-
tencer à era da realização. A isso o autor chama variadamente de “últimos
dias” (1.2), “fim dos tempos” (9.26), ou “tempo da nova ordem” (9.10),
quando “o Dia” está se aproximando rapidamente (10.25). A nova era co­
meçou com a oferta de Cristo de si mesmo como sacrifício definitivo pelos
pecados. Ele assim inaugurou a “aliança superior” (7.22), baseada em “pro­
messas superiores” (8.6). Ele também introduziu uma “esperança superior”
(7.19), que será cumprida na segunda vinda de Cristo (9.28). Isso explica
por que somente c o n o sc o os antigos seriam, a p erfeiçoad os.
Ser ap erfeiço a d o (teleiõthõsin), em seus casos mais recentes, signifi­
cou a purificação decisiva do pecado por meio do sacrifício de Cristo que
“aperfeiçoa” os adoradores em relação à sua consciência (9.9; 10.2,14). Em
suma, o foco tem sido a preparação profunda e interior do coração para
aproximar-se de Deus na adoração (10.19, 22). Agora, a perfeição é vista
como o cumprimento final — alcançar o telos ou objetivo — das promessas
divinas em sua totalidade. O “perfeito” vem somente quando todo o povo
de Deus realmente entra no descanso prometido (4.1,3,6,9-11), pátria ce­
lestial (11.16), “cidade perm anente” (13.14; veja 11.10,16; 12.22) ou reino
inabalável (12.28; veja Lane, 1991, p. 393-394; deSilva, 2000a, p. 423-424).
Por esse meio, no entanto, o pregador encoraja seu público a permane­
cer fiel até o fim. Ele ampliará isso no próximo capítulo (12.1-13). Todos
os fiéis dignos sob a antiga aliança realizaram e sofreram muito, sem se­
rem aperfeiçoados. Quanto mais, então, os crentes atuais — “sobre quem
tem chegado o fim dos tempos” (1 Co 10.11; compare 9.26-28) — deverão
avançar para a perfeição (H b 6.1)? Os antigos estão contando conosco para
terminar a corrida. Como Orígenes escreve: “Pois eles não têm prazer per­
feito enquanto choram por nossos erros e choram por nossos pecados [...].
Você vê, portanto, que Abraão ainda está esperando para obter as coisas
perfeitas. Isaque espera, e Jacó e todos os profetas esperam por nós, para
que possam alcançar a perfeita bem-aventurança conosco” (Heen e Krey,
2005, p. 207).

388
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

3. Treinamento para uma fé permanente (12.1-13)

POR TRÁS DO TEXTO

Essa passagem conclui a exortação para que os leitores perseverem na fé


(10.19— 12.13). Ela a completa de cinco maneiras inter-relacionadas:
Primeira, é emoldurada por duas declarações conclusivas, usando “portan­
to” (12.1,12).
A conclusão em 12.1 está diretamente ligada às testemunhas fiéis listadas
no capítulo 11. A expressão “já que temos” (NASB) também lembra a abertura
da peroratio da homília em 10.19 (cf. 4.14). Como veremos, 12.1-13 pega vá­
rios pontos de 10.19-39.
A conclusão em 12.12,13 reforça as exortações primárias de 12.1-13:
• “Corramos com perseverança” (v. 1).
• Não ceda à exaustão e à fadiga (v. 3).
• “Suportar dificuldades” por causa da disciplina (v. 7).
Segunda, a passagem expande a exortação para perseverar em 10.36. A lin­
guagem da perseverança de 10.32,36 ressurge em 12.1,2,3,7.
Terceira, o incentivo para perseverar emprega a imagem de uma compe­
tição atlética, introduzida em 10.32. Uma corrida a pé é a metáfora atlética
dominante em 12.1,12,13 (Croy, 1998, p. 58). A luta descrita em -» 12.4 pode
aludir ao violento evento esportivo, o pancrácio.
Quarta, o impedimento ao progresso dos leitores, “pecado”, é reiterado em
12.1 e 4. Isso lembra as exortações em 10.19-39, que advertem contra o pecado
deliberado da apostasia (10.26-31). A ocasião para tal pecado é a tentação de
desistir sob a pressão do sofrimento (-» 10.35,39 e 12.3-4,12,13). A comuni­
dade já havia suportado a perseguição corajosamente (10.31-34). Agora eles
devem fazê-lo novamente (10.35,36; 12.4). Deixando de lado os emaranhados
do pecado, eles devem suportar o treinamento que produzirá justiça (12.11).
Quinta, o padrão para a perseverança dos leitores não é simplesmente
sua própria perseverança passada, ou os modelos de fidelidade entre o povo
de Deus (cap. 11). Assim como a fonte da “plena certeza da fé” e do acesso
confiante à presença de Deus é a morte expiatória do grande Sumo Sacerdote
(10.19-22), também ' o autor e consumador” da fé é Jesus. Eles devem ter “os
olhos fitos em Jesus” como o exemplo supremo de como a perseverança por
meio do sofrimento leva à glória final (12.2).
Hebreus 12.1-13 começa e termina com exortações lançadas de uma forma
apropriada para corredores em uma corrida (12.1-3,12,13). O material inter­

389
HEBRF.US NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

mediário em 12.4-11 habilmente desliza para um tema intimamente ligado


às imagens atléticas na cultura greco-romana: disciplina (paid eia ). Esse tema
domina 12.4-11, como indicado pela concentração de terminologia relevante
(aqui e em nenhum outro lugar em Hebreus: paideia [12.5,7,8,11]; p a ideuõ
[“disciplinas” (12.6,7,10)]); paideutês [“instrutor, professor” (BDAG, p. 749;
12.9)]).
Paideia tinha amplo significado em seu antigo contexto social. Referia-
-se ao processo de formação ou educação de jovens para tornarem-se cidadãos
responsáveis na sociedade helenística. O termo podería referir-se, também, ao
resultado de tal treinamento: cultura (Johnson, 2006, p. 319; -> 5.12 anotação
complementar: “Educação no mundo helenístico”). O processo incluía tan­
to treinamento mental como físico, como no ginásio. A ideia mais ampla de
p a id eia ou educação e a metáfora mais restrita de treinamento atlético [gegym -
nasm enois ) estão conectadas em Hebreus 12.11.
Hebreus já usou imagens de educação e treinamento atlético para comu­
nicar a importância de atingir a maturidade moral (5.11—6.1). Esses temas
agora ressurgem, mas com uma ênfase mais acentuada em sua conexão com a
luta atual da comunidade para manter a fidelidade a Deus.
Por meio da introdução de Provérbios 3.11 em Hebreus 12.5,6, o pregador
reorienta a perspectiva de seus leitores sobre seu sofrimento. A perseguição é
reimaginada como um campo de treinamento para os desenvolvimentos moral
e espiritual. Conceitos do provérbio (“filho \huios)” e “disciplina[s] [paid eia ;
pa id eu õ ]' ’) são empregados para mostrar como as dificuldades devem ser vistas:
como a educação amorosa e paternal do Senhor para com Seus filhos (observe
a repetição de “filho[s]” [v. 5,6,7,8] e “pai[s]” [v. 7,9]). O objetivo dessa dis­
ciplina é a sua participação na vida, santidade e justiça de Deus (v. 9-11). O
verdadeiro fim da pa id eia é a vida virtuosa (->5.13,14; ->5.13 anotação comple­
mentar: “Imagens antigas do progresso educacional”).
Não importa quão difícil seja sua luta, o público é encorajado a não ficar
cansado, desanimado ou incapacitado por suas circunstâncias (v. 3,12,13). Em
vez disso, eles devem suportar suas dificuldades como treinamento de desem­
penho, para que estejam aptos a correr a corrida que lhes foi apresentada.

NO TEXTO

B 1 Com um enfático portanto (toigaroun), o pregador mais uma vez se dirige


diretamente a seus leitores (nós, vamos). Suas exortações estão vinculadas à lis­
ta de exemplos anteriores. Os dignos do capítulo 11 são imaginados como tão

390
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

grande nuvem de testem unhas enchendo um anfiteatro ou estádio. A figu­


ra clássica de uma nuvem denota uma grande “hoste” ou “multidão” (BDAG,
670; NTLH).
Os fiéis do AT são testem unhas (m a rty ro n ) ou espectadores em cuja cor­
rida os ouvintes estão correndo. Mas eles são mais do que espectadores. Eles
próprios receberam “testemunho \m a rtyrêth en tes\ ” (11.39; veja 11.2,4,5) de
Deus. Seus testemunhos de triunfo e tragédia na fé fornecem uma estrutura in-
terpretativa para a própria luta dos ouvintes (Westcott, 1909, p. 393). A chave
para seu testemunho é a promessa de Deus de que a perfeição na pátria celestial
não será cumprida para os antigos sem “nós” (11.40).
Isso apoia a exortação principal em 12.1,2: C orram os com perseverança
a corrida que nos é proposta. (Sobre perseverança em discussões de virtude
moral, usando imagens atléticas, -a 10.32.) Perseverar até o fim estabelece o
lugar de honra dos ouvintes entre os fiéis do passado. A desistência os expõe à
humilhação e à vergonha (deSilva, 2000a, p. 428-429). Os ouvintes são respon­
sáveis perante a multidão de testemunhas que os rodeiam (perikeim en o n ) e a
Deus, quc propôs {prokeim enon ) a corrida para eles. O pregador aponta duas
coisas que seu público deve livrar-se para ter uma corrida bem-sucedida:
Primeira, eles devem descartar tudo o que os atrapalha, (lit.) “todo peso”
(BKJ, NAA, NVT). Isso pode referir-se ao “excesso de gordura corporal”
(Croy, 1998, p. 63). Mas o mais provável é que a imagem seja da prática co­
mum de corredores tirando suas roupas para reduzir a resistência ao vento. Em
outras partes do NT, o verbo livrem o-nos envolve deixar de lado comporta­
mentos imorais como se fossem roupas (Rm 13.12; Ef4.22,25; Cl 3.8; Tg 1.21;
1 Pe 2.1; Johnson, 2006, p. 316).
Segunda, eles devem livrar-se do pecado que facilmente os envolve. O
adjetivo facilmente emaranhado significa “facilmente cercado”, provavelmente
por circunstâncias difíceis ou angustiantes (MM, 264; Koester, 2001, p. 522).
Um contraste é estabelecido entre uma multidão ao redor que nos anima e o
pecado que se aproxima de nós e “nos faz tropeçar” (CEB).
Alguns estudiosos insistem que a referência é ao pecado em geral (Croy,
1998, p. 171-172; Lane, 1991, p. 409: “pecado em si”, não apostasia). Contu­
do, o sermão enfocou o pecado como um agente enganoso e endurecedor, que
promove a incredulidade e a apostasia (3.12,13; veja 11.25). Duas advertências
contra a apostasia estão próximas: no início dessa unidade (10.26-31) e no iní­
cio da próxima (12.14-17).
Um dos principais pontos do sermão é alertar os leitores contra o desvio
(2.1), a lentidão (5.11; 6.12), a falta do descanso divino (4.1)/graça (12.15;

391
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

veja 6.6), e retroceder para a destruição (10:39). Os leitores devem revitali­


zar sua diligência (4.11; 6.11), progredir em direção à maturidade espiritual
(6.1) e fortalecer a sua confiança (3.6; 4.16; 10.19,35), fé e perseverança (veja
Hughes, 1977, p. 520-521; Hagner, 1990, p. 211-212; Johnson, 2006, p. 316-
317; Thompson, 2008, p. 247-248). Livrar-se do impedimento do pecado — a
“tendência crônica à incredulidade, que constantemente os expõe à apostasia”
(Taylor, 1967, p. 155) — encaixa-se bem nessa mensagem abrangente.
■ 2 Embora os fiéis de antigamente forneçam apoio moral e motivação, eles
não devem ser o “foco” (GW) do olhar do corredor. Tendo os olh os fitos
[.aphorõntes\ em Jesus. O verbo utilizado aqui significa “desviar o olhar de
todos os outros para um” (Croy, 1998, p. 174), direcionando a atenção sem
distração (BDAG, p. 158). Devemos olhar para Jesus, o modelo supremo de
fé persistente, em busca de inspiração para “correr com perseverança”. Isso é
consistente com a ênfase de Hebreus em Jesus como central para a reflexão e
confissão dos leitores (veja 2.9; 3.1; 4.14; 6.19,20; 10.19-23; 12.3,24; 13.8).
As descrições seguintes de Jesus relacionam os elementos vitais da con­
fissão cristã em conexão com Seu sofrimento e Sua exaltação. Jesus é o autor
[archêgon\ e consum ador \teleiõtên\ da nossa fé (-» anotação complemen­
tar em 5.9: “Brincando com começos e fins”). Ele é “o campeão que inicia e
aperfeiçoa” a fé (NLT; Lane, 1991, p. 411; 2.10 anotação complementar:
“Jesus, o campeão”). Jesus não é apenas um dos muitos exemplos de fé. Seu so­
frimento obediente e Sua subsequente exaltação fazem dele a verdadeira fonte
e culminação da fé. Significativamente, o texto não se refere à nossa fé, mas
simplesmente à fé (ACF, ARA, ARC, KJA, NAA, TB). Jesus é o progenitor
da própria fé. Ele é o modelo da fé, que a traz à sua plena realização e expressão.
O pregador aplica a Jesus a mesma metáfora de competição atlética que
ele aplicou aos leitores no versículo 1 (veja 10.32). A correlação destaca os ele­
mentos da resposta de Cristo ao sofrimento que os leitores devem imitar. A
motivação por trás da perseverança de Jesus foi pela alegria que lhe fora pro­
posta \prokeimenês\. Ele estava olhando além da disputa em si (-> v. 1) para o
prêmio que aguardava o vencedor.
Muitos textos referem-se a prêmios propostos àqueles que competem
em competições atléticas, batalhas ou à busca pela virtude (Koester, 2001, p.
524). Da mesma forma, Moisés preferiu os maus-tratos e a desgraça “porque
contemplava a sua recompensa” (11.26). No passado, os leitores recebiam “ale­
gremente” o confisco de suas propriedades porque sabiam que tinham “bens
superiores e permanentes” esperando por eles (10.34). Para Jesus, a alegria que

392
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

lhe fora proposta era a Sua exaltação, mencionada no final de 12.2. Isso é se­
melhante à “esperança posta diante de nós \prokeimenês\” (6.18 NVT).
Suportou a cruz é uma descrição distinta, embora adequada, da crucifi­
cação de Jesus. Essa é a única referência em Hebreus ao instrumento da morte
de Jesus: a cruz. Em outro lugar, Hebreus descreve a morte de Jesus em termos
de sofrimento (2.9,10,18; 5.8; 9.26; 13.12). A menção da crucificação acentua
a morte de Jesus como vergonhosa. A cruz era “a árvore da vergonha” (Cí­
cero, Rab. Perd. 4 §13), sob a lei judaica exposta a uma maldição divina (Dt
21.22,23; Koester, 2001, p. 524). Jesus suportou o sofrimento da cruz, porém
mais importante foi Sua atitude de desprezar a vergonha. Ele mostrou mais do
que bravura diante do terror e da humilhação (contra Lane, 1991, p. 414). A
morte de Jesus na cruz foi Seu ato final de obediência à vontade de Deus (5.8;
10.5-10), apesar da estimativa cultural disso como um sinal de total desgraça
(deSilva, 2000a, p. 433-434).
A inversão da vergonha ocorreu após a morte de Jesus, quando Ele assen-
tou-se à direita do trono de D eus. Essa é a alusão final de Hebreus ao Salmo
110.1, o texto-chave que apoia a confissão central de Jesus como nosso sumo
sacerdote exaltado (-> Hb 4.14; 7.26; 8.1; 9.24; 10.12,19-21). Anteriormente,
o pregador simplesmente observou que Cristo “assentou-se \ekathisen\” (1.3;
8.1; 10.12). Agora ele enfatiza a finalidade e a permanência de Seu triunfo
usando o tempo perfeito (kekathiken). Ele “tomou seu assento” (NRSV) e per­
manece sentado (“está sentado” [ARA, NAA, NVT, VC]).
■ 3 - 4 Esses versículos formam uma transição para a discussão da disciplina
divina nos versículos 5-11. Eles mudam para dirigir-se aos ouvintes na segunda
pessoa do plural (vocês).
O versículo 3 explica o objetivo do pregador ao apontar para a luta de
Cristo. Pensem bem naquele que suportou tal oposição, tal “hostilidade”
(NVT, BSEP), dos pecadores. A nota da perseverança de Jesus é repetida a
partir do versículo 2 e expressada enfaticamente no tempo perfeito (suportou
[,bypomemenékota]), para encorajar a perseverança dos leitores (10.36; 12.1,7).
Para que vocês não se cansem nem se desanim em continua a metáfora atlé­
tica. O pregador não quer que seus leitores entrem em colapso e exaustão antes
de alcançar a linha de chegada (Lane, 1991, p. 417). A expressão nem se desa­
nim em antecipa a injunção bíblica: “não desanime”, no versículo 5.
O versículo 4 contrasta a extensão da luta dos leitores com aquela em que
Cristo prevaleceu. Jesus suportou a hostilidade (antilogian) dos pecadores
(,tõn hamartõlõn)·, eles estão engajados em uma luta [antagõnizomenoi\ con ­
tra o pecado (tên hamartian). Novamente, o pecado não é uma variedade de

393
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

vícios, mas a tentação de cometer apostasia (10.26; h> 12.1; Hagner, 1990, p.
215; Witheringon, 2007, p. 329-330; Thompson, 2008, p. 253). Jesus supor­
tou até a morte, mas vocês ainda não resistiram \antikatestête\ até o ponto
de derramar [...] sangue.
O vocabulário antagônico (prefixado com anti-) sustenta a metáfora
atlética, mas, talvez, referindo-se a esportes mais violentos como o boxe ou o
pancrácio. Este último foi um evento de artes marciais na antiga Olimpíada
que combinava luta livre e kickboxing (Koester, 2001, p. 525). Mas a menção
de derramamento de sangue só pode sugerir a morte violenta de Jesus por
crucificação (Croy, 1998, p. 194).
Os ouvintes devem julgar seus sofrimentos passados e presentes em pro­
porção ao sofrimento de Cristo. Eles podem ter perdido reputações, liberdade
e posses — mas não suas vidas (10.32-34; 13.3). O exemplo de Jesus os enver­
gonha por sua inclinação a desistir da luta. Seu sacrifício final deve motivá-los a
suportar provações proporcionalmente menos severas (deSilva, 2000a, p. 446;
Johnson, 2006, p. 319). Talvez com a pequena expressão ainda não (oupõ) o
pregador esteja insinuando que eles também podem ser chamados a dar tudo
de si em devoção a Cristo.
■ 5 - 6 O tema novo, mas relacionado com a educação divina (paideia), é in­
troduzido citando Provérbios 3.11,12. E difícil determinar se a introdução à
citação é feita sob forma de uma declaração declarativa (vocês se esqueceram
[...]) ou uma pergunta (“Acaso vocês se esqueceram [...]? [NVT]). A propensão
do autor para o estilo retórico favorece o último (Lane, 1991, p. 420; Johnson,
2006, p. 320). Seja como for, as palavras são uma reprimenda leve (contraste
10.32). A citação é caracterizada como aquela palavra de ânim o ou simples­
mente exortação (têsparaklêseõs), que se assemelha à identificação do pregador
de seu sermão (“palavra de exortação” [13.22]).
Que se dirige aos ouvintes com o a filhos é essencial para a mensagem de
toda a passagem (12.5-11). O provérbio começa e termina com uma referência
ao filho (v. 5,6). As palavras “pai[s]” (v. 7,9) e filhos (v. 7,8) são repetidas na
discussão que se segue. A identidade dos ouvintes como filhos foi importante
no início do sermão. Deus, por intermédio de Seu Filho, está “levando muitos
filhos à glória” (2.10), e “Jesus não se envergonha de chamá-los irmãos’’ (2.11).
Eles são membros da família de Deus (3.6; 10.21). Agora o pregador cita um
provérbio para lembrá-los de que a competição que estão enfrentando é uma
forma de disciplina ou treinamento do Senhor {paideia). E uma demonstra­
ção de seu status como filhos (sobre filiação em Hebreus, veja Boyd, 2012).

394
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

A primeira metade da citação (Pv 3.11 em Hb 12.5) orienta cada ouvinte


(m eu filho) a responder adequadamente à disciplina divina (-> Por trás do
texto anteriormente). Em um extremo, não d esp reze/ minimize (oligõrei). Em
outro, nem se m agoe com a sua repreensão. A última advertência é particu­
larmente adequada para uma comunidade que precisa de encorajamento: não
desista de sua luta (veja v. 3,12,13).
A segunda metade da citação (Pv 3.12 em Hb 12.6) fornece a justificativa
para a instrução de Deus: Pois o Senhor d isciplina a quem ama. Isso está
em paralelismo sinônimo e castiga to d o aquele a quem aceita com o filho. O
pregador amplia seu ponto nos versículos seguintes: se você está entre os filhos
de Deus, passará por um treinamento moral divino.
Um tanto chocante para os leitores contemporâneos é o verbo punir
(mastigoi; lit., “açoita” [TB; veja BKJ]; suavizado como castiga na NVI.
Não teria sido em tempos pré-modernos. O castigo corporal era um método
comum e aceitável de correção entre os antigos (veja Pv 10.13; 13.24; 14.3;
22.15; 23.13,4; 26.3; 29.15). Ainda assim, a discussão a seguir (Hb 12.7-11)
não se expande, muito menos menciona a linguagem punitiva e afiada no
provérbio (disciplina, castiga). Hebreus considera a instrução do Pai como
decididamente educativa, vivificante e benéfica, não punitiva — mesmo que
seja “dolorosa” (v. ll;vejaCroy, 1998, p. 196-199; Koester, 2001, p. 526-527).
A disciplina prevista aqui é calculada para alastar os ouvintes do pecado, não
para puni-los por isso. Disciplina é para os filhos; a punição é para os apóstatas
no juízo final (6.8; 10.26-31,39).
■ 7 - 8 A discussão em 12.7-11, motivada pelo provérbio citado nos versículos
5,6, prossegue em três etapas: a primeira (v. 7,8) estabelece a inevitabilidade ou
necessidade de disciplina para os verdadeiros filhos. A segunda (v. 9,10) apre­
senta uma comparação do menor para o maior das disciplinas humana e divina
e seus respectivos propósitos. A terceira (v. 11) assegura aos ouvintes que o
doloroso processo de disciplina produzirá os benefícios pretendidos por Deus.
Muitas traduções traduzem o dito de abertura no versículo 7 como uma
ordem: Suportem \hypom enete ] as dificuldades, recebendo-as com o disci­
plina (veja KJA). Isso faz pouco sentido, uma vez que a disciplina de Deus torna
essa resistência necessária. A perseverança não convida ap a id eia divina; a disci­
plina exige resistência (Johnson, 2006, p. 320). A NJB traduz corretamente a
declaração como uma máxima: “A perseverança faz parte do seu treinamento”
(vejaNASB). O resultado, no versículo 7 b, é que D eus os trata com o filhos. A
linha de pensamento é clara na NLT: “Conforme você suporta esta disciplina
divina, lembre-se de que Deus está tratando você como seu próprio filho.

395
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A lógica dessas declarações é desdobrada e aplicada nos versículos 7c e 8.


Uma pergunta retórica articula um antigo truísmo sobre a disciplina: Pois,
qual o filho que não é d isciplinado p or seu pai? A resposta, claro, é: “Ne­
nhum”. A noção é repetida no comentário entre vírgulas no versículo 8: E a
disciplina é para tod os os filhos.
A aplicação aos leitores é apontada. O pregador se dirige a eles diretamen­
te na segunda pessoa: Se vocês não são disciplinados [...], então vocês não
são filhos legítim os, mas sim ilegítim os. No mundo greco-romano, cabia ao
pai supervisionar a educação dos filhos. Filhos ilegítimos (“bastardos” [BKJ])
foram deixados fora da proteção do pai, da orientação parental e da linha de
herança (Koester, 2001, p. 528; Johnson, 2006, p. 321). Assim, o pregador res­
salta com ousadia que a disciplina na comunidade é um sinal seguro de que eles
são membros legítimos da família de Deus.
Ü 9-10 Nesses versículos, encontramos duas comparações do menor para o
maior (qal wahomer) das disciplinas humana e divina. A primeira (v. 9) tra­
ça um contraste entre pais hum anos [“terrenos” (NVT, OL, VC); “naturais”
(HCSB); “segundo a carne” (ACF, ARA, ACR, ARIB, BKJ, TB)] e o Pai, não
facilmente aparente nas traduções contemporâneas. A BKJ preserva o contras­
te entre “pais segundo a carne [sarkos]” e “o Pai dos espíritos [pneumatõn]”.
Em Hebreus, seja com respeito à encarnação do Filho (2.14; 5.7; 10.20) ou
aos regulamentos “carnais” sob a antiga aliança, “carne [sarx]” conota o que é
fraco, humano, temporal, mortal (7.16; 9.10,13; veja 7.18 [“fraco e inútil”]).
“Espírito [pneuma]” está associado ao que é celestial, eterno, poderoso e vital
(4.12; 6.4; 9.14).
A lém disso, tínham os pais hum anos. Eles nos disciplinavam , agindo
como “instrutores” ou “professores \paideutas\’ (BDAG, p. 749) que davam
orientação e correção (Koester, 2001, p. 528-529). Por mais frágeis e imperfei­
tos que fossem, e equivocados em muitas de suas medidas corretivas, contudo,
nós os respeitávam os. Q uanto mais, então, devem os subm eter-nos ao Pai
dos espíritos? Os pais humanos impõem respeito; somente Deus ordena sub­
missão absoluta (Croy, 1998, p. 202-203). Podemos submeter-nos a nossos
pais terrenos por mera conformidade externa com suas instruções. Mas o Pai
de nossos espíritos torna possível a obediência sincera (veja 10.16).
A expressão o Pai d os espíritos pode originar-se na frase “o Pai dos espí­
ritos e de toda a carne” (Nm 16.22 LXX). Títulos semelhantes, como “Senhor
dos Espíritos”, aparecem em escritos intertestamentários judaicos para designar
Deus como soberano sobre tudo na ordem criada, incluindo o reino exalta­

396
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

do dos seres espirituais (veja Attridge, 1989, p. 362-363; Lane, 1991, p. 424).
Hebreus parece incluir seres humanos entre esses espíritos, como a adição da
NVI “nossos espíritos” implica. Isso encontra apoio na referência posterior a
“espíritos dos justos aperfeiçoados” (12.23).
A questão não é se vamos ou não subm eter-nos (hypotagêsometha) a
Deus. Deus já “sujeitou” tudo sob os pés do Filho (2.5,8 — as outras quatro
ocorrências do verbo hypotassõ em Hebreus; veja também 10.13). A questão
diz respeito a como vamos subm eter-nos a Deus e viver. Isso chega ao cerne do
que o pregador tem conduzido até agora naperoratio. A submissão ao treina­
mento divino requer fé confiante e persistente.
Habacuque 2.3,4 (“mas o meu justo viverá pela fé [...]” [10.37,38]) foi um
texto-chave citado em preparação para os exemplos de fé (cap. 11) e a exorta­
ção aos leitores para perseverarem na fé (12.1-13). Do texto de Habacuque,
o pregador deduziu dois cursos de ação possíveis: recuar para a destruição ou
ter fé que leva à preservação da vida (10.39). Este último é comparável ao que
encontramos aqui: subm eter-nos e vivermos.
A segunda comparação (v. 10) é uma extensão da primeira. Eles (nossos
pais) e mas ele (mas D eus) têm como seus respectivos antecedentes os pais
hum anos e o Pai dos espíritos (v. 9). A disciplina que vem de nossos pais
terrenos tem limitações naturais. É conduzida durante um período restrito de
tempo (por curto p eríodo) com julgamento humano limitado e imperfeito
(segundo lhes parecia m elhor). Em contraste, a paideia de Deus é exercida
para o nosso bem {epi para sympheron). Essa frase é coerente com o objetivo
da instrução ética estoica: buscar o que é objetivamente benéfico ou lucrativo,
um conceito semelhante ao “bem” {to agathon; Croy, 1998, p. 204; veja Koes-
ter, 2001, p. 529).
No entanto, Hebreus vai muito além dos ideais éticos helenísticos. O de­
sígnio da disciplina divina é que participem os da sua santidade. Isso implica
mais do que a posse de virtude moral, embora essa não possa ser excluída (veja
v. 11). E a participação na vida santa de Deus, a “bem-aventurança eterna” de
Deus (Spicq, 1953, 2:396; veja 2 Pe 1.4, observado por Bengel, 1877, 4:464).
A partilha da santidade divina é contrastada com a limitação temporal da ins­
trução humana (por curto período). Ela transcende qualquer obtenção de
retidão moral nesta vida. Ela compartilha as realidades celestiais da era vindou­
ra, em boa medida agora (veja 3.1,4; 6.4), mas em plenitude na segunda vinda
de Cristo (9.28). E o acesso ao Santo dos santos (10.19; veja 6.20), a entrada no
descanso divino (4.1,3,6,9,11) e a habitação na “cidade do Deus vivo” (12.22;

397
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

veja 11.10,16; 13.14). O objetivo da disciplina do Pai é modelado segundo a


perfeição do Filho: “Santo, inculpável, puro, separado dos pecadores, exaltado
acima dos céus’’ (7.26).
1 1 O último ponto relativo à paideia divina ecoa outro truísmo antigo:
a disciplina dolorosa agora traz benefícios duradouros mais tarde. Nenhum a
disciplina parece ser m otivo de alegria [“agradável” (NVT, OL); “alegre”
(NASB, NET, NKJV; compare 10.34; 12.2)] no m om ento, mas sim de tris­
teza. Mais tarde, porém , produz fruto \karpon\ de justiça e paz. Esse tipo
de sabedoria proverbial era comum entre judeus (Pv 23.13,14; Sab 3.5; Fílon,
Congr. 160, 175; QG 3,25) e gregos (Aristóteles, Pol. 8.4.4; Sêneca,Ep. 78.14;
veja Attridge, 1989, p. 364; Cray, 1998, p. 206, n. 182; compare também Hb
5.8-10). Aristóteles teria dito: “As raízes da educação [paideias] são amargas,
mas o fruto \karpon\ é doce” (Diog. Laert. 5.1.18).
O produto da disciplina de Deus, um fruto de justiça e paz, é mais exata­
mente “o fruto pacífico da justiça” (ACF, ARA, ARC, ARIB, BKJ, JFA, NAA,
TB; “colheita pacífica do viver correto” [NLT]). Justiça e paz são sinais de
que a era messiânica e o Reino de Deus chegaram (SI 85.10; Is 9.6,7; 11.3-9;
32.17; Rm 14.17). Em Hebreus, a justiça está associada ao Filho exaltado (1.9)
e àqueles que têm vidas fiéis a Deus (10.38; 11.4,7,33). Em 7.2, justiça e paz
são características do sacerdócio real de Melquisedeque/Cristo. Implicações
messiânicas, no entanto, estão ausentes em 12.11.
Hebreus tem em mente o amadurecimento da vida ética pela disciplina di­
vina. Primeiro,fruto pacífico designa um estado de espírito calmo e repousante,
resultante da justiça. Esse resultado contrasta com o desagrado e a tristeza que
acompanham o processo de educação em si (v. 11a\ para o contraste entre paz
e dor ou problemas, veja Pv 10.10; Tb 10.12; 13.13,14; Jo 16.33). Em Hebreus
12.14, a paz se referirá a relações harmoniosas com os outros, de acordo com
os ditames éticos de “santidade”.
Em segundo lugar, o cultivo da justiça em um contexto educacional se
assemelha a uma passagem anterior. Os maduros são hábeis em justiça (5.13)
e possuem sabedoria “para discernir tanto o bem quanto o mal” (5.14). Lá,
como aqui, a maturidade moral resulta do treinamento. A justiça se desenvolve
naqueles que por ela foram exercitados (ou seja,paideia, disciplina no versí­
culo 11a). O verbo exercitados [gegymnasmenois) implica exercícios atléticos,
uma metáfora apropriada ao treinamento ético (-> 5.14). Isso efetivamente liga
a discussão da paideia (12.5-11) às imagens atléticas anteriores e também pos­
teriores (v. 1-4,12,13).

398
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

Sêneca e Hebreus sobre sofrimento


e disciplina divina

A a n á lis e d e H e b re u s s o b re a lu ta d a c o m u n id a d e e m 1 2 .1 -1 3 in c lu i
m u ito s c o n c e it o s , im a g e n s e lin g u a g e m q u e s e a s s e m e lh a m a o e n s in o
é t ic o e s to ic o . U m a c o n c e n t r a ç ã o d e s te s e x is t e e n tre H e b re u s e N a P r o v i­

d ê n c ia , e s c r it o p e lo filó s o fo e s t o ic o d o p r im e ir o s é c u lo S ê n e c a (v e ja C ra y ,
1 9 9 8 , p. 2 0 5 ).

P a id e ia divina Sêneca, Hebreus


N a P r o v id ê n c ia
S o fre r d if ic u ld a d e s é o 1.6; 2 .6 1 2 .9
t r e in a m e n t o p a te r n a l
d e D e u s p a ra S e u s
v e r d a d e ir o s filh o s .
0 am or de Deus 2.6; 4 .7 1 2 .6 ,1 1
a sse g u ra q u e m e sm o
o s o fr im e n t o s e v e r o é
p a ra o b e m .
0 o b je tiv o d iv in o d e 2 .6 -1 0 : 4 .5 ,6 1 2 .1 0 ,1 1
s u p o r t a r o s o fr im e n t o
é o n o s s o p ro g r e s s o
e m v irtu d e .
A re s is t ê n c ia e x ig id a 2 .2 -4 ,7 -9 1 2 .1 -3 ,1 1
na a d v e r s id a d e é
co m p arável a um a
c o m p e t iç ã o a tlé tic a .
U m a lis ta d e g r a n d e s 3 .4 -1 4 1 1 .1 — 1 2 .3
e x e m p lo s a s e r e m
c o n s id e r a d o s .

M a is im p r e s s io n a n t e e m s u a s e m e lh a n ç a c o m H e b re u s 1 2 .6 ,7 é a
d e c la r a ç ã o d e S ê n e c a : "A q u e le s , p o is , a q u e m D e u s a p ro v a , a q u e m a m a ,
e le e n d u r e c e , re v is a e tr e in a " ( N a P r o v id ê n c ia 4.7).
A p e s a r d e t o d a s a s s e m e lh a n ç a s , a m e n s a g e m d e H e b re u s s o b re o s
o b je tiv o s e d u c a t iv o s d o s o fr im e n t o é s e p a r a d a d o e s t o ic is m o d e , p e lo m e ­
n o s, d u a s m a n e ir a s p r in c ip a is :
P rim e ira , H e b re u s a p o n ta p a ra Je s u s c o m o o e x e m p lo s u p re m o d e
p e r s e v e r a n ç a p o r m e io d o s o f r im e n t o (1 2 .2 -4 ). A in s p ir a ç ã o p a ra p e r s e v e -
ra r v e m , f in a lm e n t e , n ã o d e u m re la to frio e ra c io n a l d e c o m o D e u s u tiliz a

399
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

o s o f r im e n t o p a ra o b e m s u p re m o , m a s d e o lh a r p a ra Je s u s c o m o o " a u t o r
e c o n s u m a d o r d e [...] f é " (1 2 .2 ).
S e g u n d a , o o b je tiv o d a p a id e ia d iv in a n ã o é s im p le s m e n t e p r o d u z ir
p e s s o a s s á b ia s , im p e r t u r b á v e is p e la s c ir c u n s t â n c ia s e a u to s s u fic ie n t e s . A
d is c ip lin a d e D e u s v a i a lé m d o c u ltiv o d a v irtu d e , p a ra p r e p a r a r filh o s q u e
p o s s a m c o m p a r t ilh a r a p ró p ria v id a , a s a n t id a d e e a b e m - a v e n t u r a n ç a d o
p ró p rio D e u s (-> 1 2 .1 0 ).

H 1 2 - 1 3 A primeira metade daperoratio (10.19— 12.13) agora conclui (dio,


portanto) com uma exortação final para perseverança e fidelidade. A ordem
fortaleçam as m ãos enfraquecidas e os joelh os vacilantes funciona de forma
alusiva em vários níveis. Geralmente, m ãos enfraquecidas e joelh os vacilan­
tes retratam vividamente a exaustão física (Sir. 25.23; veja 2 Sm 4.1; Sf 3.16;
Sir. 2.12; S.S. 8.5). Particularmente, a fraseologia ecoa as palavras de apoio di­
tas aos exilados judeus em Isaías 35.3, para animar sua esperança de restauração
em sua terra natal. Esse encorajamento se aplica aos leitores de Hebreus, que
estão prestes a alcançar o objetivo de sua peregrinação, a cidade permanente
(12.18-24; 13.14). Assim, o pregador reprisa engenhosamente suas exortações
anteriores para perseverar e não se cansar (12.1,3; veja 10.36), enquanto retor­
na às imagens apropriadas para correr uma corrida (veja 12.1,2).
A injunção façam cam inhos retos para os seus pés evoca a imagem de
uma corrida. A citação de Provérbios 4.26 também fornece uma metáfora
hebraica comum para a vida ética. Caminhos tortuosos representam o que é
perverso ou mau (Pv 2.15; 5.6; 10.9). Caminhos retos ou planos representam
conduta justa (Pv 2.13; 3.6; 4.11). Fílon frequentemente emprega essa metáfo­
ra (ex.: Posteridade 102; Gigantes 64; Imutável 182; Agricultura 101, 177; Leis
Esp. 3.48; 4.167). Notavelmente, ele se refere à estrada reta ou plana como o
“caminho da virtude” (Moisés 2.138), que leva à justiça ou santidade {LeisEsp.
4.62; Virtudes 51).
Bons corredores preferem um caminho reto, em vez de um tortuoso ou
irregular, para que não tropecem ou se machuquem (Fílon, Agricultura 115,
177; Migração 133; Herm. Mand. 1.2-4). Hebreus adverte os leitores a cor­
rerem por caminhos retos e lisos, para que o m anco não seja incapacitado,
mas antes seja curado. O verbo incapacitar era um termo médico para o
deslocamento de uma articulação (como em um tornozelo torcido ou enfor­
ce [BDAG, p. 311]; “desarticulado” [ESV, NASB, NET, NRSV]; “deslocado”
[HCSB, LEB, NAB]). Os corredores não devem correr em terreno acidenta­

400
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

do, para que “o membro lesionado não seja mutilado” (NJB) ou “ferido mais
gravemente” (CEB; veja GW).
A metáfora da “medicina esportiva” sugere que o fracasso em seguir o ca­
minho da virtude tem efeitos debilitantes. Pode prejudicar irreparavelmente
as chances de perseverança até o fim. Esse pensamento abre o caminho para a
advertência climática contra a apostasia na seção seguinte (12.14-29).

A PARTIR DO TEXTO

Hebreus é dirigido a uma igreja doméstica de seguidores de Cristo


que já foram fervorosos em seu compromisso com Cristo, independente­
mente do custo do discipulado. A primeira metade da peroratio do sermão
(10.19— 12.13) dirige a atenção para sua situação precisa. No passado,
eles enfrentaram insultos e injúrias públicas com coragem. Eles aceitaram
a pilhagem de suas posses com um sorriso. Toda a comunidade ajudou a
compartilhar o fardo do sofrimento e uniu-se àqueles que foram presos por
causa de sua fé. Mas uma nova onda de dificuldades fez com que muitos
ficassem paralisados pelo medo e imobilizados pelo desânimo. Muitos de­
les tinham praticamente perdido a esperança. Alguns começaram a cortar
seus laços com a comunhão cristã, optando por não participar das reuniões
regulares de adoração da igreja.
Todo seguidor de Jesus passou ou passará em algum momento da vida
por um vale escuro de sofrimento e desespero. São João da Cruz caracteri­
zou toda a jornada de nossa vida espiritual como a Noite Escura da Alma.
Hebreus foi escrito para pessoas que vivendaram os naufrágios da vida. Al­
guns são catastróficos, como a perda de um ente querido, do emprego ou da
saúde. Outros podem parecer menos severos, mas podem representar uma
ameaça contínua à nossa sanidade. O estresse do excesso de trabalho ou o
esgotamento emocional de lidar com relacionamentos pessoais difíceis, por
exemplo, podem ser fontes de frustração e depressão.
Grandes ou pequenas, as dificuldades da vida podem levar-nos a senti­
mentos de desamparo e desânimo. Podemos “cansar-nos e desanimar-nos”
(12.3). Podemos sentir como se nossos braços estivessem se arrastando no
chão e nossos joelhos vacilando (12.12). Um impulso natural é simplesmen­
te desistir quando as coisas ficam difíceis. Cegos pela dor, nossos corações
descem em uma escuridão de dúvida e autoengano. Deus está realmente
presente? Alguém se importa comigo? Será que vale a pena continuar?

401
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

O pregador estava profundamente ciente da psicologia do trauma. Ele


sabia que as pessoas em sofrimento, muitas vezes, não percebem quão pe­
rigosa sua situação realmente é. Embora desistir de si mesmo e dos outros
possa parecer o curso de ação mais razoável à altura, na verdade, é o con­
selho da insanidade moral. Colocado nos termos espirituais de Elebreus,
o engano do pecado endurece nossos corações, tornando-nos pouco re­
ceptivos à verdade e irracionais em nosso pensamento. Ele nos convida,
então, a afastar-nos do Deus vivo e das próprias pessoas que podem dar­
mos o encorajamento que sustenta a vida de que precisamos (veja 3.12,13;
10.23-25). A existência crônica nesse estado pode levar-nos a uma rejeição
indescritível e que altera a vida da única fonte de integridade (10.26-31). O
pecado pode emaranhar nossos pés e fazer-nos tropeçar (12.1). Se não nos
curarmos dos ferimentos que sofremos, podemos ficar irreparavelmente da­
nificados (12.13). Hebreus 10.19— 12.13 fornece uma série de remédios
para o coração fraco:
( 1 ) 0 primeiro vem por meio de uma forte reafirmação de nossa con­
fiança e esperança. A confiança não é apenas um sentimento subjetivo de
coragem ou ousadia, mas o privilégio objetivo que todos os crentes têm por
intermédio de Jesus Cristo. E o direito de acesso a um Deus santo (10.19),
sabendo que o sangue aspergido de Jesus purificou totalmente nossa cons­
ciência da culpa (10.22). A confiança que temos não é autoconfiança, mas
um senso de confiança absoluta na obra de Cristo em nosso favor. Difi­
cilmente se pode colocar isso melhor do que o escritor de hinos Horatio
Spafford (“Está tudo bem com minha alma”): “Embora Satanás deva esbo­
fetear, embora as provações venham / Deixe esta bem-aventurada segurança
controlar / Que Cristo considerou meu estado desamparado / e derramou
Seu próprio sangue por m inha alma”.
Portanto, depois de lembrar-nos da confiança que agora temos (10.19),
o pregador nos encoraja a “aproximar-nos” de Deus (10.22), “apegar-nos
inabalavelmente à esperança” de nossa confissão (10.23) e engajar-nos nas
práticas cristãs de amor, boas obras e companheirismo que nos capacitarão
a continuar (10.24,25). Não devemos perder esta última etapa. Todos pre­
cisamos fixar-nos em um ambiente de comunhão cristã autêntica. Lá nossos
pecados e nossas falhas podem ser confrontados (veja 3.12,13). Nosso ser­
viço de amor e generosidade abnegada pode ser estimulado (10.24; veja
6.10). Nosso compromisso com Cristo “até o fim” (3.14), ou à luz do “dia
que se aproxima”, pode ser fortalecido por outros que compartilham de nos­

402
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

sa confissão de fé (10.25). O encorajamento mútuo que experimentamos


nos ajudará a manter a “plena certeza de esperança” e a “plena certeza de fé”
(6.11 ARA; 10.22).
Confiança e esperança contínuas são garantidas por duas razões: pri­
meira, aquele “que prometeu” — Deus — “é fiel” (10.23). Esse é um fato
inquestionável em Hebreus (veja 11.11), baseado na natureza e no propó­
sito imutável de Deus, que torna “impossível que Deus minta” (6.17,18).
Segunda, é conveniente que não joguemos fora nossa confiança, em vista
da promessa segura de Deus: uma rica recompensa, completa com “bens
superiores e permanentes” (10.34; veja v. 34-36).
(2) Como a paralisia do medo e da dúvida representa uma ameaça, a
solução é uma f é forte e persistente. O pregador não nos ordena simples­
mente: “Acredite! Persevere!” — pelo menos, não em tantas palavras (veja
10.35,36; 12.12,13). Em vez disso, ele nos assegura de que estamos entre
aqueles que têm fé, que eventualmente alcançarão a salvação, e não entre
“aqueles que retrocedem e são destruídos” (10.39). Então ele enumera três
itens para estimular nossa fé e determinação:
Primeiro, ele define o que é a fé. Para Hebreus, a fé não é uma facada
no escuro ou um salto para o desconhecido. M uito pelo contrário, é uma
maneira de ver a realidade no futuro (ou passado, -> 11.3) como Deus faz.
A fé é como um título de propriedade, uma garantia, assegurando as bên­
çãos futuras que esperamos; é a prova de coisas que ainda não podemos ver
com nossos olhos físicos (-> 11.1). Especificamente, Hebreus fala de um país
celestial, a cidade de Deus, que um dia habitaremos. A fé anseia por essa
realidade, moldando todas as nossas decisões e planos, com a expectativa
de morar lá.
O que a fé vê não é simplesmente uma morada final. O que é “m elhor”
sobre esse lugar é que Deus é o “arquiteto e edificador” (11.10). Deus pre­
parou essa cidade para nós, porque Ele quer receber-nos lá como Seu povo
(11.16). O objetivo final da fé não é mercenário. Não é uma crença e ação
correta na expectativa de receber de Deus riquezas incalculáveis. A fé se
esforça para “agradar a Deus”, vivendo de tal maneira que afirme Sua exis­
tência como um Deus santo e justo. A pessoa de fé “busca fervorosamente”
a Deus como aquele que distribui recompensas e punições justas (11.6; veja
2.2; 10.35). Moisés, com certeza, pesou os tesouros do Egito contra “sua
recompensa” no futuro. Mas ele suportou a desgraça por Cristo, “porque
viu aquele que é invisível” (11.26,27).

403
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Segundo, Hebreus faz mais do que definir o que é a fé e nos exorta a vi­
ver por ela: ele nos mostra como as pessoas viveram pela fé no passado. Um
fio vai da resistência passada da comunidade ao sofrimento (10.32-39) até
os heróis bíblicos do passado que viveram pela fé sem nunca receber a pro­
messa de Deus (11.1-39). Ele se estende até a atual “corrida” que devemos
correr, com os homens e as mulheres fiéis da antiguidade como uma multi­
dão de testemunhas (12.1), e Jesus, “o autor e consumador” da fé, como o
principal exemplo de perseverança fiel. A fidelidade dos que se foram antes
funciona como motivação para segui-los e não decepcioná-los desistindo
antes de chegar à meta.
Terceiro, ele explica os meios pelos quais nossa perseverança é testada
e fortalecida (a disciplina de Deus) e o fim para o qual ela é direcionada
(a santidade de Deus). Isso é visto no remédio final para aqueles que estão
desanimados e cansados na luta para manter seu compromisso com Cristo.
(3) Hebreus nos convida a interpretar nossas lutas à luz do grande quadro
de Deus para nossas vidas. Nossa resistência ao sofrimento tem o propósito de
educação/treinamento divino.
Antes de prosseguirmos, devemos fazer uma ressalva importante. He­
breus não é nem deve ser considerada uma solução para o problema do mal.
Essa questão perene deve ser deixada para outros tomos dedicados ao discurso
filosófico-teológico avançado. O escopo da discussão de Hebreus pertence es­
tritamente ao sofrimento e aos desafios que as pessoas de fé enfrentam em sua
determinação de manter a confissão cristã.
Quando passamos por dificuldades por causa de nossa fé em Cristo, de­
vemos percebê-las como parte do plano maior de Deus para formar-nos um
povo santo. Hebreus 12.5-29 lembra outras exortações do N T para avaliar as
provações e tentações da fé à luz da glória final a ser revelada (Rm 8.18-39)
ou como oportunidades para a formação do caráter (Tg 1.2-4), comparada a
refinar ouro pelo fogo (1 Pe 1.6,7). A noção de suportar o sofrimento como
disciplina parental de Deus é algo exclusivo de Hebreus (veja 1 Co 11.32; 2
Co 6.9), mas a imagem atlética associada não é (1 Co 9.24-27; Fp 3.12-14; veja
Pfitzner, 1967).
Hebreus apresenta três pontos principais sobre a obra da disciplina divina
em nossas vidas:
Primeiro, devemos ver a resistência ao sofrimento como uma parte neces­
sária de nosso treinamento espiritual como filhos de Deus (Hb 12.7,8). O que
seria surpreendente é se nunca encontrássemos nenhuma dificuldade ou dor.

404
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

De fato, a presença de sofrimento — não qualquer sofrimento, mas o tipo de


sofrimento associado à nossa devoção a Cristo — prova que somos filhos que­
ridos de Deus.
Segundo, a disciplina de Deus é infinitamente melhor do que a dos pais
terrenos (12.9,10). Nossos pais naturais nos disciplinam por um tempo relati­
vamente curto. A maioria deles faz o melhor que pode com seu conhecimento
e julgamento limitados. Mas a disciplina de nosso Pai celestial é para toda a
vida e projetada para preparar-nos para viver na eternidade. Podemos confiar
que Deus usará até mesmo o castigo mais doloroso para nosso bem final.
Terceiro, embora a disciplina seja desagradável, ela resulta em felicidade,
paz e santidade extraordinárias. Não precisamos treinar para uma marato­
na para entender isso. Mesmo quem se arrastou para a academia várias vezes
por semana pode entender a dificuldade de um regime de treinamento. Mas a
alegria e a sensação de bem-estar que se seguem à exaustão do exercício físico
intenso são verdadeiramente satisfatórias.
O pregador fala de vários resultados positivos do treinamento espiritual
de Deus. Simplificando, viveremos (12.9). Em outras palavras, experimenta­
remos a salvação. Teremos, portanto, a vida eterna com Deus, desfrutando do
mesmo “poder de uma vida indestrutível” que Cristo tem (7.16). Ganharemos,
assim, aquela “ressurreição superior” (l 1.35; veja Fp 3.10,11). Mais importan­
te, o resultado final será a participação na própria santidade de Deus: a eterna
bem-aventurança, a felicidade e a bondade de Deus (Hb 12.10). O pregador
fala do árduo programa de disciplina espiritual de Deus, colhendo um “fruto
de justiça e paz” (12.11).
Fica claro que, a partir de uma discussão paralela em 5.11-14 (e, mais tarde,
em Hebreus: por exemplo, 12.14-17; 13.1-6,15,16,20,21), o tipo de maturida-
des espiritual e moral que Deus tem em mente não está reservado para “o doce
tchau e tchau”. Nenhum de nós pode alegar ser “espíritos dos justos aperfeiçoa­
dos” até que entremos na cidade eterna (12.23 N IV 11). Mas podemos ser justos
pela fé agora (veja 11.4,7). Deus, assim, fornece o treinamento intensivo para
nos dar uma perícia em raciocínio moral: para nos tornar sábios, discernindo
o bem do mal (veja comentário em 5.13,14); para nos tornar bons, para que
nossas ações estejam alinhadas com “a vontade de Deus” (10.36) e agradem a
Deus (11.5,6; veja 13.21).
Devemos enfatizar que a santidade não é uma conquista humana, embora
exija o compromisso de acreditar, submeter-se e perseverar sob a disciplina de
Deus. Nem qualquer variedade de sofrimento ou infortúnio tem o dinamis­

405
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

mo inerente para construir nosso caráter moral. Deus é a fonte suprema de


santidade (2.11), e somente Deus, em Sua infinita sabedoria, pode utilizar as
dificuldades e tragédias da vida como instrumentos de santificação. Para He-
breus, isso significa que a providência divina visa moldar homens e mulheres
de acordo com sua natureza e destino dados por Deus. Deus concebeu o ser
humano para comungar com Ele e outras pessoas, e fazê-lo de maneira a ofere­
cer adoração aceitável a Ele. A morte de Cristo na cruz e a disciplina paternal
de Deus finalmente tornam esse destino uma realidade.

B. Exortações para o fe re ce r um a adoração


aceitável (12.14— 13.25)
O final da peroratio de Hebreus mostra claramente o objetivo tanto do
sacrifício da aliança de Cristo como do firme compromisso e fé persistente dos
leitores. O ponto final é a abordagem do povo de Deus para oferecer adoração
aceitável na presença divina.
A unidade de 12.14— 13.25 é indicada por um inclusio, usando uma pa­
lavra sugerida em 12.11: “paz” (12.14; 13.20; Lane, 1991, p. 432). A unidade
também apresenta vocabulário e conceitos significativos:
• “graça”/ “obrigado \charis\” (12.15,28; 13.9,25);
• o “sangue” da aliança de Jesus (12.24; 13.12,20);
• o destino da peregrinação dos crentes (12.22,28; 13.14);
• atos de adoração que são “agradáveis” ou “aceitáveis” a Deus (12.28;
13.16,21).
Duas seções esclarecem como a adoração autêntica da comunidade se
liga ao sacrifício de Cristo e aos verdadeiros compromissos cristãos, e não
aos sacrifícios e aos regulamentos cultuais da antiga aliança. A primeira
(12.14-29) está contida nas advertências finais do sermão contra a aposta­
sia (12.14-17,25-29). Ele contrasta o encontro tangível e aterrorizante com
Deus no monte Sinai (12.18-21) com a cena alegre e celestial no monte
Sião (12.22-24).
A segunda (13.1-25) apresenta uma variedade de exortações práticas
destinadas a capacitar a comunidade a manter sua unidade, sua santidade e
sua identidade cristã distintas. Cada uma dessas duas seções enfatiza a ado­
ração que agrada a Deus (12.28; 13.15,16,21), em resposta ao recebimento
do Reino eterno de Deus (12.28; 13.13,14), baseado no sacrifício da alian­
ça de Cristo (12.24; 1312,20).

406
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

1. Receba o Reino inabalável com gratidão e adoração


(12.14-29)

POR TRÁS DO TEXTO

Chegamos ao cume do discurso retórico e pastoral de Hebreus. Essa seção


traz ao clímax as principais preocupações e os motivos teológicos do sermão:
• O pregador tem frequentemente lembrado seus ouvintes da esperança
ou promessa de herança que eles receberão (1.14; 4.1; 6.12,17; 8.6;
9.15; 10.23,36; veja 11.8,9,11,13,39). Receber a herança, a bênção
pertencente ao “primogênito” (12.16,17,23), é agora descrita como
nossa aproximação à “Jerusalém celestial” (v. 22). E a nossa recepção
de um Reino inabalável (v. 28).
• A abordagem em si (“chegaram” [v. 18,22]) completa as exortações
para “aproximar-se de” ou “chegar-se a” Deus que precedem e seguem
a seção argumentativa central do sermão (4.16; 10.22; veja 7.25; 11.6).
• O pregador exorta a comunidade a vigiar qualquer um entre eles em
perigo de perder a graça de Deus (12.15; veja 2.1-4; 3.12-15; 4.1,11;
10.24,25). Uma última vez ele adverte que a apostasia é irreversível
(12.16,17; veja 3.12,16—4.2; 6.4-8; 10.26-31) e enfrentará o terrível e
ardente julgamento de Deus (12.29; veja 6.8; 10.27,39).
• O contraste entre Sinai e Sião reitera temas da seção central do sermão.
A antiga e a nova aliança são contrastadas em relação à natureza do
santuário (tangível, ou seja, terreno [12.18] vs. celestial [v. 22]; com­
pare 8.5; 9.1 com 8.2; 9.11; 9.23-25), seus mediadores (12.21 e 24;
compare 3.2,3,5; 9:19 com 7.22; 8.6; 9.15) e a aspersão de sangue (12.
24; compare 9.13,19,21 com 10.22). O sacrifício superior de Cris­
to prepara plenamente as pessoas para a adoração (12.28; veja 9.14;
10.2). Embora existissem barreiras para aproximar-se de Deus sob a
antiga aliança (12.18-21; veja 9.1-10; 10.1-3,11), os membros da nova
aliança desfrutam de acesso irrestrito à presença divina (12.22-24; veja
4.15,16; 9.11-14; 10.10,12-14,19-22; veja Lane, 1991, p. 448).
• Um tema que reverbera por meio do sermão sobe para um crescendo.
Deus falou, particularmente por intermédio de Seu Filho, nestes últi­
mos dias (1.1,2,2), e devemos ouvir a Sua voz para sermos salvos (2.1-4;
3.7—4.14; 5.11-14; 8.8-13; 10.36-39). Agora o pregador amplifica a
urgência de responder adequadamente ao Deus que fala, pois a voz
divina causará um abalo sobrenatural e celestial final (12.15-27).

407
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Hebreus 12.14-29 é unificado pelo tema da herança (v. 17), ou pelo que o
“primogênito” recebe por direito (v. 16,23): a cidade de Deus, o Reino inabalá­
vel (v. 22,28). De importância primordial, no entanto, é como devemos receber
a herança. Santidade e gratidão resumem a disposição adequada.
Dada a relativa raridade do vocabulário “graça” em Hebreus (oito vezes), é
notável que a abertura da passagem advirta contra a falta da “graça [charitos]”
de Deus (v. 15), enquanto seu fechamento nos encoraja a “sermos gratos” (lit.,
“tenha graça [echõmen charin]”·, v. 28). A resposta apropriada ao favor divino
é a gratidão. A santidade deve acompanhar a ação de graças, uma vez que a
primeira é necessária para entrar na presença de Deus (v. 14), e a segunda, para
oferecer adoração aceitável a Deus (v. 28).
Um vestígio da metáfora atlética de uma corrida a pé permanece da pas­
sagem anterior (12.1-4,12,13; observe os verbos “perseguir” e “ficar aquém”
[v. 14,15 HCSB]). As transições de imagens para a pureza cultuai e moral são
necessárias para uma adoração aceitável. Essas idéias são evidentes em cada um
dos três segmentos da passagem:
Primeiro, nos versículos 14-17, o pregador adverte contra qualquer um
que perturbe a paz e a santidade da comunidade. Ele descreve o perigo de uma
“raiz amarga” que pode “contaminar muitos” (v. 15). Ele aponta para Esaú
como exemplo de alguém cujas ações imorais e profanas o desqualificaram da
herança do primogênito (v. 16,17).
Segundo, os versículos 18-24 descrevem, de forma climática, a aproxima­
ção do santuário celestial. O verbo proserchomai (“venha para” [v. 18,22]) na
LXX e Hebreus refere-se a sacerdotes e pessoas que se aproximam do santuário
para adoração (-> 4.16). A visão de Hebreus do monte Sião e da Jerusalém ce­
lestial evoca imagens apocalípticas judaicas do céu como o santuário de Deus
(Son, 2005, p. 91-92; -> 12.22^ anotação complementar: "Sião e a Jerusalém
celestial: imagens do templo de Deus").
O pregador contrasta o tumulto e o terror no monte Sinai (v. 18-21) com a
reunião festiva de anjos e santos no monte Sião (v. 22-24). Sob a antiga aliança,
a presença de Deus era totalmente assustadora e inacessível. A Nova Alian­
ça estabeleceu um acesso ousado ao trono de Deus. Cristo como mediador e
sacrifício decisivo pelos pecados fornece a pureza necessária e permissão para
aparecer livremente diante de Deus (v. 24; veja 4.14-16; 10.19-22).
Terceiro, o pregador adverte os leitores a não recusarem aquele que fala,
Deus. Eles devem ter em mente o julgamento escatológico que abalará não
apenas a terra (como no Sinai), mas também o céu (12.25-27). Aqueles que
atendem à voz de Deus participarão da realidade permanente do Reino de
408
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

Deus, que “não pode ser abalado”. Assim, Hebreus exorta-nos a ser gratos e
“adorar a Deus de modo aceitável com reverência e temor” (v. 28). A “adora­
ção”, nesse caso, está associada a serviços prestados a Deus em um ambiente
religioso ou cultuai.
Hebreus 13 será dedicado a fornecer instruções (parenese) sobre como os
destinatários podem manter seu caráter como adoradores santos.

NO TEXTO

a. B u sq u e a p a z e a s a n tid a d e (12.14-17)

A metáfora de correr em busca da virtude e o perigo de não comple­


tar a corada devido a uma lesão (v. 12,13) são agora explicados em termos
de viver em paz e santidade ética. Esse breve parágrafo continua a metáfo­
ra corrente em seu início (“perseguir” [v. 14 HCSB]; “ficar aquém” [v. 15
HCSB]), mas muda para imagens relacionadas à pureza e heranças moral e
cultuai. Embora o parágrafo esteja intimamente ligado à seção anterior, ele
abre novos caminhos em preparação para a aproximação climática da Jeru­
salém celestial (v. 18-24) e alerta contra a recusa da voz de Deus (v. 25-29).
A estrutura do parágrafo revela a preocupação pastoral do autor com
seu público. Os versículos 14-16 compreendem uma frase em grego.
• O versículo 14 começa com uma ordem para buscar a paz e a santida­
de.
• Os versículos 15 e 16 esclarecem essa admoestação com um chamado
à vigilância contra três perigos.
• O versículo 17 ilustra as advertências contra a apostasia, apelando a
Esaú como exemplo de advertência.
1 1 4 A exortação esforcem -se para viver em paz com tod os era comum
(“busque a paz com perseverança” [SI 34.14; 1 Pe 3.11; veja Rm 12.18; 14.19;
2 Tm 2.22]). Provérbios 4.25-27 (-> 12.13) pode ter sugerido o pensamento;
“[Deus] guiará seus passos em paz” (Pv4.27 LXX; Koester, 2001, p. 531). Para
“perseguir” ou “correr atrás da \diõkete\' (BDAG, p. 254; esforcem -se) paz
estende a metáfora da corrida de Hebreus 12.1-3,12,13.
Um segundo objeto de busca é a santidade. A justaposição de paz e san­
tidade é natural, dada a referência anterior à “justiça e paz” como fruto da
disciplina divina (v. 11). Deus, de cuja santidade os verdadeiros filhos compar­
tilharão (v. 10), não é outro senão “o Deus da paz” (13.20). Paz e pureza estão
ligadas em outras partes do N T (Mt 5.8,9; 1 Ts 5.23).

409
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A santidade aqui não é um atributo ou estado essencial, como Deus pos­


sui (como é “santidade \hagiotêtos\” em Hb 12.10; contra Lane, 1991, p. 450).
A forma do substantivo no versículo 14 (hagiasmos) indica a ação de santificar
ou tornar santo, enfatizando a conduta moralmente pura (Procksch, 1964, p.
113-14; BDAG, p. 10). Pretende-se “santidade prática” (Bruce, 1990, p. 348-
349): “viver uma vida santa” (NLT).
Deve-se ter em mente que essa realização prática da santidade na vida é
baseada na santificação radical do eu interior (a consciência [9-9, 14; 10.2,22])
por meio da morte sacrificial de Cristo (veja 10.10,14,29). A busca da santida­
de é realizada no contexto da formação moral, sob a disciplina providencial do
Pai (12.5-11). O pregador define as dimensões morais precisas da santidade até
certo ponto nos versículos 15 e 16 e mais completamente em 13.1-21.
Agora aprendemos por que correr a corrida com perseverança é tão im­
portante e por que a paideia ética de Deus é indispensável: Sem santidade
ninguém verá o Senhor. Ver o Senhor dentro da tradição profética do AT
era ver Deus entronizado em majestade celestial (l Rs 22.19; 2 Cr 18.18; Is
6.1) ou em pé no santuário (Am 9.1). A visão última de Deus é uma esperança
escatológica. E uma bênção reservada aos “puros de coração” (Mt 5.8); um tão
esperado conhecimento “face a face” de Deus (1 Co 13.12; Ap 22.4). É uma
visão transformadora que completará a obra de Deus de conformar homens
e mulheres à semelhança divina (1 Jo 3.2). Então os crentes compartilharão
plenamente da própria santidade de Deus (Hb 12.10) e da felicidade perfeita.
Isso é o que os teólogos chamam de Visão Beatífica.
H 1 5 - 1 6 A preocupação pastoral pela paz, santidade e salvação final da comu­
nidade se desdobra em um apelo à vigilância. Eles devem ajudar cada membro
a evitar três perigos (cada um marcado por ninguém , mê tis). O particípio
traduzido como cuide que (episkopountes) comunica a ideia de supervisão e
cuidado pastoral (BDAG, p. 379; MM, 244; “cuidar uns dos outros” [NLT];
compare o papel dos líderes que “cuidam de você” [13.17^]). O autor já ex­
pressou repetidamente preocupação de que ninguém deve deixar de receber o
descanso da salvação prometido por Deus (3.12,13; 4.1,11).
O primeiro perigo é abrangente: C uidem uns dos outros para que n in ­
guém \mê tis\ se exclua [bysterõn;] da graça de D eus. “Excluir” ou “ficar
aquém” (LEB, NKJV; veja HCSB, N IV 11) da graça de Deus implica fracas­
so pessoal em terminar a corrida. O pregador também advertiu contra ficar
aquém (hystereõ) de entrar no descanso de Deus (4.1; compare com 4.11).
A advertência é contra a apostasia — “afastar-se” dos benefícios graciosos de
Deus (6.4-6). E recuar em vez de perseverar na fé (10.37-39). Apostasia é a

410
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

rejeição final das bênçãos da nova aliança (10.26-31), perdendo, assim, a graça
de Deus (veja 12.15 REB).
O segundo perigo combina as preocupações com a santidade e a paz: Q ue
ninguém \métis\ como uma raiz de amargura brote e cause perturbação,
contam inando a m uitos (veja NVT, KJA). O pregador cita livremente Deu-
teronômio 29.18. Isso emprega a imagem de uma planta nociva para descrever
alguém que se afasta do Senhor para servir aos ídolos. Os apóstatas perturbam
a paz e a estabilidade da Igreja (cause perturbação). Eles contaminam a comu­
nidade com sua incredulidade e pecado (contam inando a m uitos). A noção
de contaminação cultuai e moral (miainõ) antecipa o perigo final em Hebreus
12.16. Contrasta com a excelência moral de nosso grande Sumo Sacerdote
(7.26, “puro/imaculado \amiantos\”) e a pureza do “leito conjugal” (13.4).
A terceira advertência reduz as ameaças moral e religiosa: N ão haja n e­
nhum im oral ou profano. Pornos refere-se a alguém que é sexualmente
im oral (OL, CEB, ESV, LEB; “comete pecado sexual” [GW]) ou um “lor-
nicador” (KJV; BDAG, p. 855). O autor literalmente se refere àqueles que se
envolvem em atividade sexual extraconjugal. No entanto, é possível que He­
breus empregue o símbolo comum do AT de prostituição para a infidelidade
ou idolatria da aliança (ex.: Nm 14.33; Dt 31.16; Jr 2.20; 5.7; Os 1.2; uma
imagem vividamente explorada em Ap 17, esp. v. 5; veja Attridge, 1989, p. 369;
Johnson, 2006, p. 324). Lane, seguindo essa leitura metafórica, traduz pornos
como “apóstata” (1991, p. 455). Os significados literais e metafóricos não são
mutuamente exclusivos, embora o literal seja mais provável aqui à luz de 13.4
(onde o “sexualmente imoral” [porno] é condenado ao lado do “adúltero”).
A pessoa sexualmente im oral é emparelhada com os ímpios (bebêlos). Os
ímpios referem-se àqueles que são profanos (ACF, ARA, ACR, ARIB, BKJ,
JFA, KJA, NAA, NVT, TB), “seculares” ou “irreligiosos”. Eles estão comple­
tamente alheios às exigências de santidade de Deus (Johnson, 2006, p. 324).
Ateísmo é um antônimo para “santo [hagios] ”, paralelo à antítese de limpo e
impuro (Hauck, 1964, p. 604).
Esaú é o protótipo de todos os que são tão movidos por suas paixões que
perdem a realidade celestial em favor de prazeres transitórios e terrenos. Os
leitores devem evitar ser com o Esaú, que por um a única refeição vendeu os
seus direitos de herança com o filho mais velho (prototokia, direito de pri-
mogenitura). O senso de proporção e valor de Esaú era tão distorcido que ele
trocou a porção dobrada da herança devida ao filho primogênito por uma úni­
ca refeição (Thompson, 2008, p. 266).

411
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Isso é exatamente o oposto dos patriarcas fiéis, que arriscavam a alienação


ou negavam a si mesmos os prazeres temporários do pecado para herdar uma
recompensa eterna (11.8-10,13,25,26). Os leitores devem identificar-se espe­
cialmente com Cristo, o Primogênito (1.6), que não buscou alívio da dor e da
vergonha da cruz em vista da “alegria que lhe estava proposta” (12.2). Caso
contrário, eles correm o risco de perder sua membresia entre “a igreja dos pri­
mogênitos” (12.23; Attridge, 1989, p. 369).

Esaú, o imoral na tradição judaica

N o AT, E s a ú e s e u s d e s c e n d e n t e s s ã o o b je to s d e c o n d e n a ç ã o p ro ­
f é t ic a (Jr 4 9 .8 ,1 0 ; O b 6 ,8 ,1 8 ,1 9 ,2 1 ; Ml 1 .2 ,3 ). A b a s e p a ra e s s a c o n tín u a
r e p r o v a ç ã o é o re la to d e E s a ú tr o c a n d o s u a p r im o g e n itu r a p o r u m p ra to
d e g u is a d o (G n 2 5 .2 7 -3 4 ). A t r a d iç ã o ju d a ic a p o s t e r io r e x p a n d iu o re tra to
b íb lic o d e E s a ú c o m o u m c a ç a d o r h a b ilid o s o e a lg u é m q u e " d e s p r e z o u
s e u d ir e ito d e p r im o g e n itu r a " p r e fe rin d o s a t is f a z e r a s e u p ró p rio a p e tit e
(G n 2 5 .3 4 ). C o n s id e r a v a E s a ú u m d e s v ia n t e s e x u a l, a s s a s s in o , a te u e u m
p a tife e m t o d o s o s s e n tid o s .
A lit e r a t u r a ju d a ic a h a g á d ic a in te rp r e ta o c a s a m e n t o d e E s a ú c o m
m u lh e r e s h it it a s (G n 2 6 .3 4 ,3 5 ) c o m o u m e x e m p lo d e im o r a lid a d e s e x u a l
(v e ja J u b . 2 5 .1 ). E s a ú fo i c u lp a d o d e c o m p o r t a m e n t o h o m o s s e x u a l (G n .
R a b . 6 3 .9 e m G n 2 5 .2 7 ) e d e e s tu p r o d e u m a m u lh e r p r o m e tid a (Gn. R a b .
6 3 .1 2 e m G n 2 5 .2 9 ). C o m o c a ç a d o r, e le n ã o a p e n a s p e r s e g u ia a c a ç a ,
m a s t a m b é m o s h o m e n s . E le a s s a s s in o u o rei N in ro d (T g . P s.), e m G n
2 5 .2 7 ) e c a u s o u a m o rte d e s e u a v ô , A b r a ã o , p o r s u a s a ç õ e s v e r g o n h o s a s
(P e s i q . R a b . 12).
O e n s o p a d o d e le n t ilh a s e ra a r e fe iç ã o t r a d ic io n a l p a ra o s e n lu ta d o s ,
s o b re a q u a l e ra m d it a s p a la v r a s d e c o n fo rto . J a c ó p re p a ro u e s s e p ra to
p a ra s e u p a i, Is a q u e , p a ra la m e n t a r a m o rte d e A b r a ã o (T g . Ps.J. e m G n
2 5 .2 9 ; P ir q e R . E l. 35 ). E s a ú n ã o a p e n a s t ro c o u s e u d ir e ito d e p r im o g e n i­
tu ra p o r e la , m a s t a m b é m fe z d is c u r s o s b la s f e m o s (G n . R a b . 43; P e s a h .
2 2 b ). E le n e g o u a im o r t a lid a d e , a r e s s u r re iç ã o e D e u s (T g . P s.-J. e m G n
2 5 :2 9 ). A s s im , a t r a d iç ã o ju d a ic a c la s s if ic o u - o e n tre o s tr ê s g r a n d e s a te u s
(T a n h ., T o le d o t h 24; S a n h . 1 0 1 b ; v e ja B u h l, H irs c h e S c h e c h te r, 1 9 2 5 ).
F ílo n c a r a c t e r iz o u a tro c a d e E s a ú p o r s e u d ir e ito d e p r im o g e n itu r a
c o m o u m e x e m p lo d e a t e n d e r à s p a ix õ e s d e a lg u é m e m v e z d e b u s c a r a
v irtu d e . E s a ú s e e n t r e g o u " s e m re s tr iç õ e s a o s p r a z e r e s d a b a rr ig a e d a s
p a r t e s in fe r io r e s " ( V ir t u d e s 2 0 8 ; v e ja S o b r ie d a d e 2 6 ) e a o s e u " d e s e jo d e
p e r s e g u ir o m a l" ( S a c r if íc io s 12 0 ; v e ja 8 1 ). E s a ú " s e e x e rc ito u n a s c o is a s
m a is v is " ( M ig r a ç ã o 1 5 3 ). E le e ra m a is s u b s e r v ie n t e à s s u a s p a ix õ e s cor-

412
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

p o r a is d o q u e à ra z ã o (In t. A l. 3.2; 3 .1 9 1 ) e e x ib ia u m a " s e lv a g e r ia q u e n ã o


c o n h e c e d is c ip lin a " (Q G 4 .2 4 2 ; v e ja T h o m p s o n , 2 0 0 8 , p. 2 5 9 -2 6 0 ).
A d e s c r iç ã o d e H e b re u s d e E s a ú c o m o s e x u a lm e n t e im o ra l e ím p io
(1 2 .1 6 ) e s tá d e a c o r d o c o m e s s a s t r a d iç õ e s ju d a ic a s , e m b o r a n ã o e s te ja
c la ro c o m o e la s s e d e s e n v o lv e r a m ou a té q u e p o n to o te x t o e m H e b re u s
a s c o n h e c ia .

B 1 7 O resultado da loucura de Esaú serve como um aviso diretamente


aplicável aos leitores. O verbo traduzido com o vocês sabem (iste) pode ser
interpretado como um imperativo, saiba disso. Em ambos os casos, o apelo ao
conhecimento dos leitores implica que a história de Esaú deve desencorajá-los
a imitar seu curso de ação.
A maneira de Hebreus descrever a resposta de Deus ao ato ingrato e des­
prezível de Esaú é retoricamente forte. Esaú “vendeu [apedeto]” (v. 16) seu
direito de primogenitura. Posteriorm ente, quando quis herdar a bênção, foi
rejeitado (apedokimasthé). Uma vez herdeiro da bênção divina, ele a repudiou
e caiu sob a “maldição irrevogável” de Deus (Lane, 1991, p. 457; veja 6.7,8).
A rejeição de Esaú foi completa e permanente. Em português, não teve
com o alterar a sua decisão é tão ambígua quanto a tradução literal “não achou
espaço para arrependimento” (BKJ, TN). O significado não é exatamente que
“ele não podería mudar o que havia feito” (NIV11; veja GW, NJB), por mais
verdadeiro que fosse. O idioma grego “encontrar um lugar” refere-se a uma
circunstância favorável para fazer algo, uma oportunidade ou chance (BDAG,
p. 1012; Attridge, 1989, p. 370; veja At 25.16). Portanto, “ele não achou lugar
de arrependimento” (ACF, ARA, ARC, ARIB, NAA TB; veja BKJ).
A cláusula, e m b o r a s [autén\ buscasse [...] com lágrimas ressalta a natu­
reza irreversível da apostasia de Esaú. Gênesis 27.34-41 indica que Esaú buscou
e recebeu uma bênção secundária de seu pai. No entanto, gramaticalmente é
possível que uma mudança de mentalidade (metanoias, arrependimento') seja
o que estava fora de alcance. Essa palavra está mais próxima do pronome isso
do que bênção, que ocorre no início do versículo. Além disso, as expressões
não encontraram \heuron\ lugar para arrependimento e o buscaram \ekzê-
têsas\ com lágrimas são paralelas. Essa leitura se encaixa no entendimento de
Hebreus de que a apostasia final é irreversível (Hb 2.1-4; 6.4-8; 10.26-31) —
que “é impossível que sejam reconduzidos ao arrependimento” (6.4,6; Attridge,
1989, p. 370).

413
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

b. Montanha do terror e montanha da celebração (12.18-24)

O clímax retórico de Hebreus contrasta a antiga e a Nova Aliança por


meio de descrições vividas de duas cenas nas montanhas:
A primeira é no monte Sinai. Na ocasião, os israelitas se prepararam para
ouvir a sinopse de suas obrigações da aliança, os Dez Mandamentos (Ex 19—
20; Dt 4—5). Ao destacar detalhes dessa cena, Hebreus demonstra como, sob
a antiga aliança, os adoradores estavam distantes da presença de Deus e pouco
inclinados a ouvir a voz de Deus, uma vez que estavam totalmente dominados
pelo medo.
A segunda está no monte Sião, repleta de anjos e santos reunidos em torno
de Deus, o Juiz, e Jesus, o mediador da Nova Aliança. A cena celestial irradia
com celebração, pertencimento à família e perfeição justa. A voz ouvida ali é a
do sangue aspergido de Jesus, “que fala melhor” (Hb 12.24). A apelativa visão
escatológica da cidade de Deus prepara a admoestação final para não recusar
Aquele que fala do céu (v. 25-29).
O contraste entre esses dois locais de culto evoca emoções adequadas ao
propósito retórico de Hebreus. O monte Sinai é um lugar de terror e distan­
ciamento de Deus. O monte Sião, por sua vez, é um lugar de inclusão e júbilo
na presença divina. O pregador claramente quer repelir seus ouvintes de voltar
aos arranjos temporais e tangíveis para adoração sob a antiga aliança. Em vez
disso, ele quer que eles permaneçam comprometidos em sua peregrinação à
Jerusalém celestial.
1 8 - 2 1 O pregador começa dizendo que os leitores não chegaram (“apro­
ximou-se” [BSEP]; “aproximou-se de” [OL]; no verbo proserchomai -> 4.16;
10.22). Eles não se aproximaram do que se p od ia tocar. Nos manuscritos
melhores e mais antigos, a palavra m onte não aparece aqui (incluindo a impor­
tante testemunha 'JE'6). Contudo, que a cena em vista está em uma montanha
é certo a partir do versículo 20; e embora o monte Sinai não seja especificado,
é fortemente indicado pelos ecos textuais de Êxodo 19—20 e Deuteronômio
4—5 nesses versículos.
Ao se referir mais geralmente ao que se p o d ia tocar ou “palpável” (NAA),
em contraste com a cena celestial em Hebreus 12.22-24, o pregador repete uma
distinção familiar entre o terreno e o celestial. É semelhante ao contraste entre
o “tabernáculo terrestre” inferior sob a antiga aliança (9.1; veja 8.5; 9.8) e o
“verdadeiro” (8.2) e “maior e mais perfeito tabernáculo” sob o novo, que “não
pertencente a esta criação” (9.11; veja 10.23-25).

414
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

O pregador pinta a cena com detalhes de Êxodo (19.12,16,19; 20.18) e


Deuteronômio (4.11,12; 5.5,22-27; 18.16). O encontro dos israelitas com
Deus no Sinai incluiu uma montanha que estava em chamas (Hb 12.18; um
detalhe criando um inclusio com v. 29). A montanha estava ameaçadoramente
envolta em trevas, escuridão e tem pestade. A palavra poética trevas foi in­
serida entre os descritores bíblicos para efeito retórico adicional: escuridão
(gnophõ) e trevas (zophõ) rima no original. O povo se assustou com um soar
da trom beta e ao som de palavras (v. 19a).
O povo recuou da voz de Deus: Rogaram que nada m ais lhes fosse dito
(v. 19b). A razão para sua recusa em ouvir mais foi: Pois não p odiam suportar
o que lhes estava sendo ordenado (v. 20a) concernente ao limite da santida­
de ao redor da montanha (Êx 19.12,13): A té um anim al, se tocar no m onte,
deve ser apedrejado (Hb 12.20b). Mesmo a invasão acidental de uma criatura
sem sentido seria recebida com morte certa! O efeito foi distanciar o povo de
Deus, em vez de atraí-lo à Sua presença.
O espetáculo ou “visão” (v. 21 BKJ) da teofania (phantazomenon; BDAG,
p. 1049) era tão terrível que até M oisés, o mediador da antiga aliança, estava
com medo. Moisés teve medo quando Deus falou com ele da sarça ardente (Êx
3.6; At 7.32) e, de acordo com a tradição rabínica posterior, na entrega da Lei
(b. Shabb. 88b; Koester, 2001, p. 543-544). Nesse ponto, Hebreus pode estar
comparando a cena dos Dez Mandamentos com outra que ocorreu no sopé do
monte Sinai (compare a fusão de rituais de sacrifício, -» Hb 9.13,14,18-22). A
confissão exata de Moisés, estou apavorado \entromos] e trêm ulo (ekphobos)
(12.21), nunca aparece no AT. No entanto, quando a ira de Deus irrompeu
contra os israelitas por fazerem o bezerro de ouro, Moisés disse: “Tenho medo
[iekphobos] porque vocês provocaram a fúria e a ira do Senhor para destruí-lo”
(Dt 9.19 LXX).
ü 2 2 a A cena terrena de terror em Hebreus 12.18-21 (“vocês não chegaram
a” [v. 18]) é contrastada com uma majestosa cena celestial nos versículos 22-24
(mas vocês chegaram a [v. 22]). O importante verbo chegaram (prosercho-
maí) ocorre pela última vez em Hebreus. Conota a abordagem da presença de
Deus para a adoração (-> 4.16; 10.22).
Oito expressões (cada uma separada por e [kai]) descrevem a meta para a
qual os crentes estão avançando (12.22-24). Duas expressões no versículo 22a
identificam a localização. Mais seis descrevem os habitantes da cidade celestial,
culminando com Jesus e Seu sangue aspergido (v. 22b-24).
O lugar ao qual vocês chegaram se chama, primeiro, m onte Sião. Desde
o estabelecimento da monarquia davídica, Sião era o monte santo de Deus e

415
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

a Sua habitação terrena (Jl 2.1; 4.17,21; SI 9.11; 65.1; 76.2; 87.1-3,5,6; 99.2).
Esta era a cidade do Senhor (SI 48.2; Is 60.14), o local do santuário de Deus
(Sl 20.2). No período pós-exílico, Sião tornou-se o ponto de encontro para a
salvação de Deus (2 Rs 19.31; Is 24.23; 35.10; 52.1,8; 59.20; 62.1; Zc 1.14-16;
2.10; 8.3; 9.9) para o qual todas as nações fluirão (Is 2.2-4; 18.7; Sl 102.22,23;
Balz, 1993^).
No período intertestamentário, Sião tornou-se a contrapartida do Sinai (e
às vezes, do Éden,Jub. 8.19; T. Dan 5.12). A teofania em Sião “na nova cria­
ção” (Jub. 1.28; 4.26; 8.19) eclipsaria a manifestação divina no Sinai. O Sinai
era um lugar terreno; Sião, um lugar transcendente e celestial (veja G14.24-27;
Attridge, 1989, p. 374). Importante para Hebreus é o papel de Sião dentro de
um complexo de imagens apocalípticas sobre a nova Jerusalém, o paraíso e o
templo celestial de Deus.
Assim, Sião em Hebreus não é a montanha terrena na Palestina, mas a
Jerusalém celestial, a cidade do D eu s vivo (a NVI inverte a ordem das duas
frases em grego). Esse é o “lugar” da herança dos patriarcas (11.8), a pátria ce­
lestial (11.16), o Reino inabalável (12.28) e a “cidade permanente [...] que há
de vir” (13.14).

Sião e a Jerusalém celestial:


imagens do templo de Deus
A id e ia d e u m a J e ru s a lé m c e le s t ia l r e v e la d a n o fim d o s t e m p o s foi
d ifu n d id a n o p e r ío d o d o S e g u n d o T e m p lo . É p r e v a le n t e na lit e r a t u r a a p o ­
c a líp t ic a , c o m o A p o c a lip s e n o N T e v á r io s liv ro s d o A T P s e u d e p íg r a fo s . E m
4 E s d ra s , a J e ru s a lé m c e le s t ia l é re fe r id a c o m o "a c id a d e ” (8.5 2; 1 0 .2 7 )
o u " S iã o " (1 0 .4 4 ; 1 3 .3 6 ). E m 2 B a ru q u e , é e q u ip a r a d a a o " P a ra ís o " (4.6;
5 9 .4 ,8 ).
A n o v a J e ru s a lé m o u S iã o é u m a r e a lid a d e tr a n s c e n d e n t e , m a n if e s ­
t a d a n o f in a l (4 Ed, 1 3 .3 6 ; 2 B a r. 4.3; v e ja G l 4 .2 6 ; A p . E l. 1.10 ; Ju b . 1.29 ).
Em 2 Enoque, é a " J e r u s a lé m m a is a lt a " n o " c é u m a is a lto " e é a " h e r a n ç a
e t e r n a " d e E n o q u e (5 5 .2 ). A im a g e m d o m o n te S iã o c o m o u m re in o c e le s ­
tia l e m 4 E sd ra s 2 .4 2 - 4 8 é s e m e lh a n t e à d e s c r iç ã o d o R e in o v in d o u r o d e
D e u s e m H e b re u s 1 2 .2 2 - 2 4 e A p o c a lip s e 1 9 .1 -8 (v e ja A p 1 4 .1 ).
U m t e m p lo c e le s t ia l é f r e q u e n t e m e n t e a s s o c ia d o à n o v a J e ru s a lé m
(A p 2 1 .2 2 é u m a e x c e ç ã o d is tin ta ; m a s v e ja A p 1 1 .1 9 ). E m m u ito s c a s o s ,
u m t e m p lo in te iro a p a r e c e n o c é u (1 E n . 1 4 .1 0 -2 0 ; T. L e v i 3 .4 -1 0 ; 5.1; 2
B a r. 4.5; S S 9.8). E m o u t r o s c a s o s , o p ró p rio c é u é o s a n t u á r io in t e r io r d o
t e m p lo d e D e u s , c o m a te rra c o m o e s c a b e lo d e D e u s (1 R s 8 .2 2 -5 3 ; Is

416
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

6 6 ,1 ; 1 C r 2 8 .2 ; Lm 2.1; Jo s e fo , A n t. 3 .1 2 3 , 1 8 0 -1 8 1 ; F ílo n , M o is é s 2 .8 8 ;
L e is E s p . 1 .66 ). E m 2 B a ru q u e , "a s e m e lh a n ç a d o t a b e m á c u lo ” n o p a ra ís o
(4.6) t a m b é m é c h a m a d a d e "a s e m e lh a n ç a d e S iã o " , q u e d e v e r ia s e r f e i­
ta "à s e m e lh a n ç a d o s a n t u á r io a t u a l" (5 9 .6 ; c o m p a r e H b 8 .2 ,5 ; 9 .1 1 ,2 4 ).
Toda a p a ra fe r n á lia d o t a b e m á c u lo fo i m o s t r a d a a A d ã o , a A b r a ã o e a M o i­
s é s n o m o n te S in a i (2 Sar. 4 .3 -6 ). O s a n jo s re s g a t a r a m e s s e s ite n s , a n te s
d a d e s tr u iç ã o d a J e ru s a lé m te rre n a e d e s e u t e m p lo , e o s p r e s e r v a r a m a té
o m o m e n t o e m q u e S iã o s e rá re s ta u r a d a p a ra s e m p r e (2 B a r. 6 .7 -9 ; 8 0 .2 ).
H e b re u s p a re c e e s t a r e m c o n t a t o c o m e s s a s t r a d iç õ e s re la tiv a s à J e ­
r u s a lé m c e le s t ia l o u S iã o c o m o a m o ra d a d e D e u s — s e u s a n to t e m p lo e
s a la d o tro n o . A m b a s a s m e t á fo r a s c u lt u a is e re a is s ã o u s a d a s e m H e b re u s
s o b re a a p r o x im a ç ã o d o F ilh o d e D e u s (1 .3 ,1 3 ; 4 .1 4 ; 8.1; 9 .2 4 ; 1 0 .1 2 ;
12 .2 ) e o p o v o d e D e u s (4.1 6; 7 .2 5 ; 1 0 .1 ,2 2 ) na p r e s e n ç a d iv in a . A s s im ,
c h e g a r a S iã o é u m a im a g e m p o d e r o s a d e n o s s a e n t r a d a fin a l no " v e r d a ­
d e ir o t a b e m á c u lo " d e D e u s (8.1 ). É q u a n d o f in a lm e n t e re c e b e r e m o s a "a
p r o m e s s a d a h e r a n ç a " no R e in o d e D e u s (9 .1 5 ; 1 2 .2 8 ). (P ara u m e s tu d o
m a is a p ro fu n d a d o d o s im b o lis m o d o t e m p lo r e la c io n a d o à J e ru s a lé m e
S iã o c e le s t ia is , v e ja S o n , 2 0 0 5 , p. 5 2 - 5 6 ,1 8 9 - 1 9 7 .)

H 2 2 b - 2 3 Cinco expressões nos versículos 22-24 descrevem os habitantes


de Sião, com uma sexta personificando o sangue aspergido de Jesus.
Primeiro, vocês [...] chegaram aos m ilhares de m ilhares de anjos em
alegre reunião (v. 22b). As visões apocalípticas nunca são completas sem a
presença de miríades ou incontáveis anjos ao redor do trono celestial (Dn
7.10; Ap 5.11; 1 En. 71.8-9; 2 En. 40.3; 3 En. B 22.4-6). Essa multidão está
em alegre reunião. A palavra panêgyrei, encontrada apenas uma vez no NT, é
completamente clássica. Denota uma reunião de toda a população para eventos
de culto ou festivais (Seeseman, 1967). Os aspectos religiosos incluíam pro­
cissões, orações e sacrifícios (Ap 4—5 é um exemplo do N T de uma reunião
festiva). Banquetes, diversões e folia sem controle também marcavam essas
ocasiões em seus ambientes pagãos (veja as descrições desaprovadoras de Fílon
cm Querubins 91-92-, Embaixada 12-14). Em Hebreus, o termo transmite uma
nota de deleite, celebração e adoração, não muito diferente da celebração do
shabat (sabbatismos) associada à entrada no descanso divino (Hb 4.9; Lane,
1991, p. 467).
Segundo, chegamos à igreja dos prim ogênitos, cujos nom es estão escri­
tos no céu (v. 23a). A igreja ou assembléia (ekklèsia) é toda a coleção do povo
de Deus. E “toda a Igreja” (NJB), composta de santos do AT e do NT. Eles

417
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

são chamados de prim ogên itos (prototokõn) para indicar sua parte legítima
nas promessas divinas de herança e salvação (veja 1.14; 6.12,17; 9.15; 11.7-9;
contraste 12.16,17).
O fato de seus nom es estarem escritos no céu os autoriza como cidadãos
da Jerusalém celestial. As cidades antigas continham registros de cidadãos im­
portantes que eram membros da assembléia, o corpo governante (veja Koester,
2001, p. 545,550-551; veja Phil 3.20). Os apocalípticos judaicos muitas vezes
incorporavam a imagem análoga do justo sendo registrado nos livros celestiais,
particularmente no contexto do juízo final de Deus (ex.: o Livro da Vida, Ap
3.5; 13.8; 17.8; 20.12,15,27; vejaÊx 32.32,33; Sl 69.28; Dn 12.1; Lc 10.20; Fp
4.3; Jub. 2.20; 30,22; 1 En. 47,3,4; 104.1; 108.3; Herm. Vis. 1.3.2; Sim. 2.9).
Assim, a terceira descrição dos habitantes da cidade se encaixa neste pon­
to: A D eu s, o juiz de to d o s os hom ens (Hb 12.23Q. Deus (ou a palavra de
Deus [4.12]) é frequentemente descrito como um juiz em Hebreus, especial­
mente no sentido de aplicar justiça aos ímpios (10.27,30; 13.4; veja 6.8). O
juízo final ou eterno é um princípio fundamental da fé cristã (6.2; 9.27). Aqui
a ênfase pode estar em Deus dando Sua justa recompensa aos justos (10.35;
11.6,26; veja Mt 5.12; 6.1; Lc 6.23), embora o pensamento da rejeição ou des­
truição judicial dos ímpios não esteja longe (Hb 12.17,25-27,29).
Quarto, há os espíritos dos justos aperfeiçoados (v. 23c). Espíritos [ou
almas] dos justos é uma frase comum na literatura apocalíptica judaica para
pessoas justas que morreram (Jub. 23.30-31; 1 En. 22.9; 41.8; 102.4; 2 Bar.
30.2; 3 Bar. 10.5; 4 Ed. 4.35; 7.99; Herm. Mand. 11.1.15; veja Or. Aza. 1.64;
Fílon, Moisés 1.279; BDAG, p. 832; Lane, 1991, p. 470). Ao dizer que os es­
píritos dos justos são aperfeiçoados [teteleiõmenõn), o pregador se refere aos
fiéis sob ambas as alianças que alcançaram o destino final e a herança para o
povo de Deus.
Esse uso final da linguagem da perfeição em Hebreus é o ápice de usos
anteriores referentes tanto à perfeição do Filho de Deus como daqueles que
o consideram seu grande Sumo Sacerdote. A perfeição do Filho foi o resulta­
do de Sua obediência e sofrimento (2.10; 5.8,9). Consistia em ser qualificado
como o Sumo Sacerdote eterno que alcançou a salvação eterna para os cren­
tes (5.9; 7,28; veja 7.24,25; 9.15,24-28). Somente o sacrifício definitivo de si
mesmo do Filho alcançou a perfeição necessária (9.9; 10.1,14), a purificação
decisiva (9.14; 10.2,22) exigida para que homens e mulheres se aproximassem
da santa presença de Deus. A auto-oferta de Cristo realiza o que os sacrifícios
levíticos nunca poderíam (7.11,19,28; 9.9; 10.1).

418
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

É por isso que os santos da Antiguidade não poderíam ser aperfeiçoados


sem nós (11.40). Eles precisavam ser aperfeiçoados por Aquele que foi aperfei­
çoado para trazer “muitos filhos à glória” (2.10). Cristo foi o primeiro a entrar
no santuário interior como nosso “precursor” (6.20 BKJ). Ele é o “autor e con-
sumador da fé” (12.2 ACF).
■ 2 4 A visão de Sião atinge seu ápice em duas descrições finais. Chegamos à
pessoa — Jesus — que tornou possível nosso acesso à Jerusalém celestial, e ao
meio — seu sangue aspergido — pelo qual Ele abriu “um novo e vivo cami­
nho” (10.20,22).
Esse versículo lembra os argumentos centrais de Hebreus (7.1 — 10.18),
que buscavam estabelecer a superioridade de sacerdócio, sacrifício, aliança
e santuário celestial de Cristo (Attridge, 1989, p. 376-377). Cristo é desig­
nado pelo mesmo título usado em 9.15: O m ed ia d o r de um a nova aliança
(-» 8.6). Como é seu costume, o pregador reserva o nome de Jesus para o
final da cláusula. É uma pena que nenhuma tradução preserve o suspense
retórico da ordem das palavras gregas: E p a ra o m ediador de um a nova
aliança — Jesus (-» 2.9 anotação complementar: “Uso do nome ‘Jesus’ em
Hebreus”). O nome Jesus sugere a necessidade de o Filho participar da
existência mortal da humanidade caída (2.9,10,14-18; 5.7-10; 10.5-10).
Porque Ele não pecou (4.15; 7.26), Ele realiza o ministério perfeito como
Sumo Sacerdote da Nova Aliança.
O sangue asp ergid o alude ao sacrifício perfeito de Cristo que inau­
gurou a Nova Aliança e proporcionou purgação decisiva tanto para o
santuário celestial como para os adoradores (-» 9.15-28; 10.1-18). Na seção
central, o sangue aspergido de Cristo foi colocado em contraste com a as-
persão ineficaz do sangue de animais sacrificados (9.13,19,21; 10.22). Aqui
o pregador contrasta o derramamento primordial do sangue de Abel — a
primeira vítima de assassinato desde a criação do m undo — com o sacrifício
de Cristo de uma vez por todas “no fim dos tempos” (9.26).
Hebreus está ciente do relato bíblico do sangue de Abel clamando da
terra (Gn 4.10; veja H b 11.4). Como o primeiro de uma longa linhagem de
mártires (Mt 23.35; Lc 11.15; Ign. Ef. 12.1), o sangue do justo Abel clama
por vingança (veja 2 Mac. 8.3; Or. Sib. 3.310-13; Ap 6.10). Mas o sangue
aspergido de Cristo fala m elh o r d o q u e o san gu e d e A b el. A paráfrase
expansiva da NLT captura o pensamento: “Fala de perdão em vez de clamar
por vingança como o sangue de Abel”. Em vez de provocar a ira de Deus
contra o pecado, o sangue de Cristo desvia a ira de Deus (Hb 2.17 N IV 11R)

419
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

removendo decisivamente o pecado e sua contaminação (7.27; 9.26,28;


veja 10.4,11).
De fato, o próprio propósito da vinda de Cristo foi oferecer a si mes­
mo como sacrifício definitivo pelos pecados no fim dos tempos (9.26-28;
10.5-14). Assim, a antiga promessa da aliança de Deus, falada por intermé­
dio do profeta Jeremias, podería ser cumprida (31.34): “Dos seus pecados e
iniquidades não me lembrarei mais” (Hb 8.12; 10.17). Não é coincidência
que a abertura do sermão relatasse em um sopro que Deus “falou-nos por
meio do Filho” (1.2a) e, em outro, que “depois de [o Filho] ter realizado a
purificação dos pecados, ele se assentou à direita da Majestade nas alturas”
(1.3d). Certamente, isso resume a melhor palavra, “o ponto” de todo o ser­
mão (8.1,2). E essa mensagem de salvação que Fíebreus tem repetidamente
chamado seus ouvintes a prestar atenção (2.1-4; 3.7,15:4.2,7) eofaránova-
mente, de forma climática, no próximo parágrafo.

c. O u ça a v o z c e le s tia l (12.25-29)

O texto em Hebreus 12.25-29 conclui a advertência final da homília,


que começou em 12.14. O pregador recapitula magistralmente as adver­
tências anteriores (esp. 2.1-4; 3.7—4.13; 10.26-31), enquanto, ao mesmo
tempo, desenvolve suas admoestações finais de forma a completar o clímax
retórico de 12.14-29.
1125 A fórmula de abertura C uidado! (blepete) é semelhante à fórmula (“Veja
[episkopountes] ”) no aviso do versículo 15 contra a apostasia. A mesma fórmula
está na segunda advertência do sermão (3.7—4.13), que também adverte (ble­
pete [3.14]) para não se afastar do Deus vivo.
C uidado! N ão rejeitem aquele que fala retoma o tema de prestar atenção
à palavra de Deus, que dominou 1.1—4.13 (1.1,2a\ 2.1-4; 3.7,15; 4.7,12,13;
veja também 5.11). A advertência lembra especialmente 2.1-4 (veja Bateman,
2007b, p. 28-43). Hebreus 2.2,3 faz uma comparação análoga do menor para
o maior entre a punição por negligência da lei mosaica e de “tão grande sal­
vação”. Se os que se recusaram a ouvir aquele que os advertia na terra não
escaparam \exephygo\ veja ekpheusometha em 2.3] nos lembra novamente do
destino mortal da geração desobediente do deserto (-> 3.16-19). No entanto,
ao repetir o verboparaiteomai {recusar), de 12.20 (“implorou”), e “voz” (v. 26),
do versículo 19, o pregador claramente constrói o argumento do menor para o
maior na comparação precedente Sinai-Sião (v. 18-21,22-24).

420
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

Que Deus os advertiu na terra refere-se à cena assustadora no Sinai (com­


pare sua descrição como um monte que pode ser “tocado” [v. 18]). Devido às
notas de celebração e expiação do pecado relacionadas com Sião (v. 22-24), po­
de-se esperar uma oferta de favor divino nesse momento. Entretanto, como nas
advertências anteriores, está em questão a consequência da rejeição decisiva da
graça divina. Assim, mais uma vez, o pregador reforça sua advertência contra a
apostasia final. É importante notar que, no meio dos habitantes da Jerusalém
celestial, vemos “Deus, o juiz de todos” (v. 23b). Assim, há o argumento do
menor para o maior (qal wahomer)·. Se não havia escapatória do julgamento
divino para aqueles que rejeitaram a voz de Deus na terra, quanto m ais [lit.,
muito menos\ n ó s, se nos desviarm os daquele que nos adverte dos céus ?
* 2 6 - 2 7 O contraste vertical também é interpretado cronologicamente en­
tre o Sinai terreno (outrora) e o Sião celestial (agora Deus promete que, no
futuro, abalará; Lane, 1991, p. 478). Essa interpretação vem da visão dos em­
blemas das duas alianças de Deus (Sinai e Sião) por meio das lentes proféticas
de Ageu 2.6.
O tremor no monte Sinai (Ex 19.18) foi mais tarde ampliado para ser
um abalo de toda a terra (SI 68.8; veja Jz 5.4; SI 77.18; 114.7), como aqui;
A quele cuja voz outrora abalou a terra. Hebreus se apropria da profecia de
Ageu como uma previsão do terremoto do fim dos tempos que os profetas as­
sociaram com o Dia do Senhor (Is 13.1-22; Jl 2.1-11; ^ Hb 10.25 e anotação
complementar: “O dia”). Nas tradições judaicas posteriores, isso foi visto como
um verdadeiro abalo cósmico (2 Bar. 32.1,2; 59.3; 4 Ed. 6.11-17; 10.25-28;
Or.Sib. 3.675-681).
Agora prom ete: “A inda uma vez abalarei não apenas a terra, mas tam ­
bém o céu” (Hb 12.26b, citando Ag 2.6; veja também Ag 2.21). Hebreus
acrescenta as frases não apenas e mas tam bém ao texto da LXX e inverte a
ordem original de “o céu e a terra” para acentuar o alcance cósmico desse abalo.
A ideia de sacudir é crucial para Hebreus 12.26-28, com o aparecimento não
apenas do verbo abalarei (seisõ) da profecia de Ageu, mas também de quatro
ocorrências de palavras com a raiz -saleu-, sacudir.
O versículo 27 fornece um comentário conciso sobre o oráculo de Ageu.
O pregador assume que o abalo anterior foi no Sinai. Em Ageu, o abalo futu­
ro coincide com a conquista divina de todas as nações e o preenchimento da
casa de Deus (isto é, templo) “de glória”, de modo que Sua glória excede a da
casa anterior (Ag 2.7-8). Hebreus já associou tais eventos com a glorificação de
Jesus como Sumo Sacerdote da casa de Deus (1.3; 2.7,9; 3.1-6; 5.5; 10.21). A

421
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

sujeição de todas as coisas debaixo de Seus pés no mundo que há de vir (1.13;
2.6-8; 10.13) ocorre no “maior e mais perfeito tabernáculo” (9.11; veja 8.1,2;
9.24,25).
A frase ainda um a vez, (lit.) ainda uma vez por todas (eti hapax), é para
Hebreus a chave para interpretar o oráculo de Ageu (deSilva, 2000a, p. 470-
471). E uma profecia não apenas de algum terremoto futuro, mas do abalo
de uma vez por todas no juízo final. As palavras ainda de uma vez por todas
indicam [dêloi, uma expressão exegética, veja 9.8; Attridge, 1989, p. 380] a
rem oção do que p od e ser abalado. Hebreus usou remover (metátese), junto a
seu verbo relacionado (metatithêmi), referente à “mudança” na Lei e no sacer­
dócio levítico (7.12) e a Enoque ser “tirado” da terra (11.5).
O pregador contrasta a rem oção do que pode ser abalado com o que per­
m anecerá (meiné) e não pode ser abalado. Ele também comparou o sacerdócio
mutável sob a antiga aliança com o sacerdócio de Cristo que “permanece” para
sempre (7.3,24). O que p o d e ser abalado é equiparado (isto é) às coisas cria­
das. O santuário eterno e celestial contrasta com o santuário terrestre que é
“pertencente a esta criação” (9.11). O santuário terrestre, “feito por homens”
(9.11,24 CEB, GNT, GW ), podia ser “tocado” (12.18). A remoção desse san­
tuário presente e transitório marcará o momento em que a nova ordem será
totalmente estabelecida (9.8-10).
No entanto, Hebreus prevê um abalo e dissolução de toda a ordem cria­
da, restando apenas o Reino eterno. Ele introduziu esse entendimento em
uma cadeia de citações bíblicas no capítulo 1. Salmos 45.6,7 (em Hb 1.8,9) e
102.25-27 (em Hb 1.10-12) apontam para a permanência do Reino do filho.
Seu trono durará para sempre (1.8). Ele “permanecerá” (1.11) / “permanecerá
o mesmo” (1.12); mas a terra e os céus serão gastos, enrolados ou mudados
como uma roupa (1.11,12).
Essa visão da realidade sustenta os objetivos exortatórios de toda a ho­
mília. A fé e a esperança dos leitores devem ser direcionadas para o que não
p od e ser abalado e perm aneça. Eles devem manter a esperança, porque é uma
âncora “firme e segura” no santuário interior do verdadeiro santuário (6.19).
Sua verdadeira esperança não pode ser encontrada na antiga aliança com seu
sacerdócio e sacrifícios, que estão passando (8.7,13; veja 7.18). A nova aliança
oferece “promessas superiores” (8.6) por meio do estabelecimento do sacerdó­
cio de Cristo que “permanece” para sempre (7.3,24).
Assim, os leitores devem olhar para Jesus (2.9; 3.1; 12.2) em meio às suas
dificuldades. Eles devem perseverar na fé, em vez de “retroceder” para a des­

422
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

truição (10.39), enquanto avançam em direção à herança eterna de Deus: os


“bens superiores e permanente [menousan]” (10.34), “a cidade permanente
[menousan]” (13.14).
■ 2 8 - 2 9 Esses versículos tuncionam como a conclusão (portanto) dessa
seção (12.14-29). Mas eles também se preparam para as exortações mais de­
talhadas no capítulo 13 sobre como levar uma vida de gratidão e adoração
agradável a Deus. Portanto, já que estam os recebendo um R eino inabalável
resume bem o que tem sido descrito como nossa aproximação à cidade de Deus
(v. 22-24) ou “o que não pode ser abalado” (v. 27). O termo R eino é pouco
frequente em Hebreus (1.8 e 12.28). Mas o motivo da autoridade real é pro­
eminente, principalmente nas alusões e nas citações do Salmo 110.1 (em Hb
1.3,13; 8.1; 10.12; 12.2).
Tanto conceitualmente como em termos de fraseado, recebendo um R ei­
no \basileian... paralambanontes\ inabalável é uma reminiscência da profecia
em Daniel 7 (Attridge, 1989, p. 382). Lá o Filho do Homem recebe domínio
eterno em um Reino que nunca será destruído (Dn 7.13,14). O povo santo de
Deus também “receberá o reino e o possuirão para sempre” (Dn 7.18 LXX;
veja Dn 7.27).
O gerúndio recebendo denota a aceitação de uma concessão divina, não
uma posse ou realização humana (Lane, 1991, p. 484). O fato de estar no tem­
po presente indica que os crentes já estão no processo de receber o dom de
Deus. A plena realização dessa herança eterna (Hb 9.15) e a salvação ocorrerão
no “fim” (3.14; 6.11) quando Cristo retornar (9.28; 10.37).
Sejam os agradecidos, (lit.) “tenhamos graça \echõmen charin\\ é uma
contrapartida à admoestação em 12.15: “Cuidem para que ninguém se exclua
da graça [charitos] de Deus”. Lá, “graça” é um presente imperdível concedido
pelo divino Patrono. O ímpio e imoral Esaú é um exemplo de alguém que
impensadamente trocou a herança graciosa de Deus (v. 16). Aqui, a graça é a
resposta adequada de “gratidão” (CEB, NAB, NASB, NJB) aos dons de Deus.
Em Hebreus, como no mundo greco-romano mais amplo, a ingratidão ou
rejeição de benefícios é um insulto imperdoável (veja 6.4-10; 10.26-31; veja
deSilva, 2000a, p. 473).
A gratidão é a atitude apropriada “pela qual” (ACF, ARA, ARA, ARC,
ARIB, BKJ, NAA, TB; e assim) podemos adorar [latreuõmen\ a D eus de
m od o aceitável, com reverência e temor. As associações de culto de adora­
ção são frequentes em Hebreus (8.5; 9.1,6,9,14; 10.2; 13.10). O sacrifício de
Cristo purifica e aperfeiçoa a consciência “de modo que sirvamos \latreuein\ ao
Deus vivo” (9.14; veja 9.9; 10.2). Isso possibilita uma convocação primária do

423
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

sermão: “Aproximemo-nos de Deus” (4.16; 10.22; veja 7.25; 12.22). O Cristo


exaltado é o objeto da adoração angélica (1.6), bem como o líder da adoração
para o povo de Deus (2.12,13). O caráter da adoração verdadeira como “agra­
dar” a Deus estava integralmente ligado à fé em -> 11.5,6. A importância da
adoração que agrada a Deus ressoará em 13.16,21.
A própria obediência de Jesus e “reverente submissão” (eulabeias) durante
Sua vida terrena (5.7) fornecem o padrão para nossa própria adoração com re­
verência [eulabeias\ e tem or. O temor piedoso não é incompatível com nossa
ousada abordagem diante de Deus (3.6; 4.16; 10.19,35). E, de fato, um impe­
dimento emocional eficaz para ignorar a promessa de Deus (4.1) e tornar-se
um objeto de desagrado e julgamento divino (10.27,31). O temor de Deus nos
capacita a não temer os seres humanos que procuram desviar nossa lealdade de
Deus (11.23,26; 13.6).
A adequação do medo na presença divina se deve à natureza impressio­
nante do próprio Deus: Pois o n osso “D eus é fogo consum idor” (12.29).
Hebreus reformula uma linha de Deuteronômio 4.24 (veja também Dt 9.3 e
Ex 24.17), que fundamenta uma advertência contra o esquecimento da aliança
e o regresso aos ídolos (Dt 4.23; -> Hb 10.26-31, esp. 10.27). A menção do
fogo forma um inclusio com a descrição do monte Sinai como “em chamas”
(12.18) e amplifica a advertência em 12.25. No Sinai, até mesmo o mediador
da antiga aliança, Moisés, ficou paralisado de medo. Em Sião, as pessoas po­
dem permanecer corajosamente na presença impressionante de “Deus, juiz de
todos” (12.23) por causa do mediador da Nova Aliança, Jesus, e Seu “sangue
aspergido” (12.24).
Elebreus 12.28,29 envolve a estratégia retórica do pregador ao longo do
sermão (deSilva, 2000a, p. 477). Ele exorta veementemente seus ouvintes a
manterem seu compromisso. A vantagem da lealdade é apresentada em sua
obrigação de responder com gratidão à ação salvadora de Deus e à herança
prometida em Cristo. A desvantagem da apostasia é revelada no justo juízo e na
destruição para aqueles que insolentemente rejeitam a graça de Deus.

2. Instruções para a adoração como estilo de vida


(13.1-25)

POR TRÁS DO TEXTO

De certa forma, Hebreus 13 se destaca do restante da obra. Enquanto os


capítulos anteriores são lidos como um discurso ou sermão, esse capítulo final
424
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

é como o encerramento de uma carta escrita pelo apóstolo Paulo. Os versículos


1-6 contêm uma série de imperativos que lembram as instruções morais en­
contradas nas últimas partes das cartas de Paulo. Os versículos 18-25 contêm
características padrão de fechamentos de carta usados pelos primeiros cristãos:
• Pedido de oração (v. 18,19).
• Bênção (v. 20,21 a) terminando com uma doxologia (v. 7.1b).
• Comentários sobre a composição (v. 22).
• Notícias pessoais e planos de viagem (v. 23).
• Saudações (v. 24).
• Desejo de despedida (v. 25; para uma comparação tabular com outras
cartas do N T e do cristianismo primitivo, veja Attridge, 1989, p. 404-
405).
O clímax retórico em 12.18-29, seguido por uma súbita mudança de gê­
nero e tom em 13.1, leva alguns estudiosos a identificar o capítulo 13 como
uma adição editorial ao sermão. Alguns veem o capítulo 13 como um final em
forma de carta adicionado pelo próprio autor (Feine, Behm e Kümmel, 1966,
p. 278-279) ou por um cristão primitivo que queria criar a impressão de que o
trabalho era de Paulo (Buchanan, 1972, p. 242-245). A menção de Timóteo
no versículo 23 pode reforçar a última visão. Mas a maioria dos estudiosos re­
conhece o capítulo 13 como parte integrante da composição original (veja a
defesa clássica de Filson [1967]).
FFebreus 13 não é um apêndice ou reflexão tardia, mas uma parte inten­
cional da comunicação do autor aos seus leitores. O fechamento semelhante a
uma carta é projetado para fazer a composição como um todo funcionar como
um sermão de longa distância, entregue na forma escrita, e não pessoalmente,
e enviado como uma carta. Isso é indicado no versículo 22, parte em que o
pregador fala de seu trabalho como uma “palavra de exortação”, enviada como
uma carta (epesteila).
O capítulo 13 funciona como o movimento final naperoratio ou conclu­
são iniciada em 10.19. O capítulo está ligado de forma estrutural, estilística
e temática ao que aconteceu antes. O capítulo completa o chamado à paz e à
santidade iniciado em 12.14 (Isaacs, 2002, p. 154). Os versículos 1-6 do capí­
tulo 13 fornecem instruções concretas sobre a obrigação da comunidade de
mostrar amor e boas obras (veja 6.10; 10.24) e manter sua pureza, sua coesão
e sua completa confiança em Deus. A bênção e a doxologia em 13.20,21 se
dirigem a Deus como “o Deus da paz”, que equipará a comunidade para fazer
a vontade de Deus.

425
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Dois temas relacionados percorrem a última metade daperoratio (12.14—


13.25): “graça” (charis) e adoração que é “aceitável” (ou “agradável \euarest-]”).
O pregador já exortou seu público a não perder a “graça” por meio de uma
vida profana (12.14-17). O Reino de Deus deve ser recebido com “graças \cha-
ris\”, para que possamos adorar a Deus “aceitavelmente \euarestõs\” (12.28).
No capítulo 13, o pregador enfatiza a “graça” divina como a fonte primária de
força da comunidade, em vez de alimentos cerimoniais (v. 9). Ele termina seu
trabalho com a bênção: “A graça esteja com todos vocês” (v. 25). A resposta
adequada à graça de Deus (como em 12.28) é uma vida santa, expressa por
meio do amor e boas ações (veja v. 1-6,15,16) e descrita como uma adoração
que “agrada [euaresteitai; euareston\” a Deus (v. 16, 21).
O capítulo 13 prossegue em três partes. Na primeira, os versículos 1-6
fornecem instruções morais específicas que colocam a carne nas observa­
ções anteriores, mais gerais sobre a manutenção da solidariedade, santidade e
compromisso como membros da família de Deus (veja 2.10-18; 3.1,6,14; 10.
24,25,32-35; 12.14-17).
Na segunda, 13.7-19 emite um apelo final para identificar-se com Cris­
to e Seu sacrifício. Isso lembra os argumentos centrais em 7.1 — 10.18 sobre
sacerdócio, santuário e sacrifício. Mas os argumentos ali eram emoldurados
por exortações para “aproximar-se” de Deus na adoração (4.16; 10.22). Aqui
a exortação é “sair a ele [isto é, Cristo] fora do acampamento, suportando a
desonra que ele suportou” (13.13). A verdadeira adoração é um produto do
discipulado genuíno, ou seja, uma identificação ousada com a morte vergonho­
sa de Cristo. Esta seção é marcada por referências ao passado (v. 7), liderança
presente (“seus líderes” [v. 17]) e seu exemplar “modo de vida” (v. 7 e 18).
Terceira, Hebreus termina com uma bênção e observações finais (v. 20-25).

NO TEXTO

a. E x o rta ç õ e s ao amor, à p u re z a e à c o n fia n ç a (13.1-6)

H 1 A exortação inicial, seja co n sta n te o am or fraternal, promove uma


virtude cristã fundamental: o amor. O encorajamento do am or fraterno é
tradicional na instrução moral apostólica (Rm 12.10; 1 Ts 4.9; 1 Pe 1.22;
2 Pe 1.7). Fora dos círculos cristãos, a Philadelphia denotava simplesmente
a devoção e afeição entre irmãos ou irmãs naturais. Os cristãos aplicaram
figurativamente o termo às relações familiares existentes entre os membros
do povo de Deus. Em Romanos 12.9,10 e 2 Pedro 1.7, ele é uma expressão

426
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

particular de agapê (Plümacher, 1993^). Esse é o tipo de “am or” cristão que
Hebreus já recomendou (6.10; 10.24) àqueles identificados como “irmãos”
de Jesus (2.11,12,17; veja 3.1,12; 10.19; 13.22,23) ou a casa/família de
Deus (3.6; 10.21).
A cobrança para ser c o n sta n te o am or fraternal é mais do que simples­
mente um pedaço de parênese cristã tradicional. Adapta-se à situação dos
destinatários. O pregador já os instruiu a “incentivar uns aos outros ao amor
e às boas obras” (10.24; veja 6.10-11) e evitar deixar de encontrar-se para
o encorajamento mútuo (10.25). Ele os exortou a viver em paz e santidade
(12.14) e os advertiu sobre qualquer um que pudesse contaminar e romper
sua comunhão (12.15).
Um jogo de palavras característico dá a essa injunção um significado
ainda mais profundo dentro de seu contexto. “Que o amor fraterno con­
tinue \menetõ]” (BKJ, HCSB, KJV) expressa o amor mútuo como uma
qualidade da vida cristã que deve perdurar. A linguagem ecoa isso sobre o
Reino inabalável, a saber, que ele “permanecerá [meinê]” (12.27). Os “bens
superiores e permanentes \menousan\" (10.34) e a “cidade permanente
\menousanY (13.14) são realidades futuras esperadas. Contudo, o Reino
eterno já se manifesta entre irmãos e irmãs “participantes do chamado ce­
lestial” e reforçam mutuamente seu compromisso com Jesus (3.1,6,12-14;
4.14; 10.19-25,34-36; Attridge, 1989, p. 385-386).
■ 2 A súplica não se esqueçam da hospitalidade estende o amor cristão além
da afeição mútua entre os crentes. O amor fraternal (v. 1) deve florescer na
“hospitalidade aos estranhos \philoxenias]” (TB, ESV, NASB, NLT, NRSV;
entreter estranhos). A hospitalidade era uma obrigação sagrada no mundo an­
tigo. Envolvia receber estranhos ou viajantes como convidados e oferecer-lhes
provisões e proteção. A confiança na hospitalidade era vital para o trabalho
missionário cristão primitivo (ex.: Lc 10.1-16; 3 Jo 5-8; Arterbury, 2007).
O pregador oferece uma justificativa para mostrar hospitalidade: Foi
praticando-a que, sem o saber, alguns acolheram anjos. Isso alude à hospi­
talidade de Abraão e Sara a três visitantes que se revelaram mensageiros divinos
(Gn 18.1-15). Aqui está um precedente bíblico para o reconhecimento genera­
lizado da hospitalidade como um dever religioso. Bondade para com estranhos
é uma demonstração de devoção a Deus. As implicações incluem não apenas a
possibilidade de contato involuntário com emissários divinos, mas também o
reconhecimento de Deus e a justa recompensa pelo amor e boas obras de Seu
povo (veja 6.10-12).

427
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Hospitalidade no mundo antigo

N a A n t ig u id a d e , a h o s p it a lid a d e e ra u m a o b r ig a ç ã o s a g r a d a na q u a l
D e u s o u a s p e s s o a s d iv in a s e ra m v is t a s c o m o in t im a m e n t e e n v o lv id a s .
N a t r a d iç ã o ju d a ic o - c r is t ã , A b r a ã o fo i o p a i d a h o s p it a lid a d e . O " m a r s e m
lim ite s " d e h o s p it a lid a d e d o p a t ria rc a (T. Ab. A 17:7; v e ja 1 .1 ,2 ,5 ; 4 .6 ) e ra
" c é le b r e e g lo r io s o " (F ílo n , A b r. 16 7 ; v e ja 1 C ie m . 1 0 .7 ). E s s a s e s t im a t iv a s
d e p e n d ia m d o fa m o s o re la to d a g e n e r o s id a d e d e A b r a ã o p a ra c o m trê s
e s tra n h o s , q u e e ra m re a lm e n t e a n jo s d e D e u s (G n 1 8 .1 -1 5 ). O e x e m p lo
d e h o s p it a lid a d e d e A b r a ã o fo i d ig n o d e im ita ç ã o (T. A b . A 2 0 .1 5 ; T. J a c .

7 .2 2 -2 5 ).
O s le it o re s p a g ã o s s e id e n t if ic a r ia m f a c ilm e n t e c o m a s a n ç ã o d iv i­
na d a h o s p it a lid a d e . " E s t r a n h o s e m e n d ig o s v ê m d e Z e u s " (H o m e ro , O d.

6 .2 0 7 -2 0 8 ) ; e H e r m e s e ra o g u a r d iã o e e x e c u t o r d a h o s p it a lid a d e ( A n to ­
n in u s L ib e ra lis , M e ta m . 21 ). A e x ig ê n c ia d e h o s p it a lid a d e fo i re fo rç a d a
p e la c re n ç a d e q u e o s d e u s e s p o d e r ía m a p a r e c e r d is fa r ç a d o s d e e s t r a n h o s
(H in o H o m é r ic o a D e m é te r 1 1 1 -1 1 2 ; O d. 1 7 .4 8 5 -4 8 7 ). A m a is c o n h e c id a
é a e n c a n t a d o r a h is tó r ia d e F ile m o n e B a u c is na F rig ia. O c a s a l d e id o s o s
re c e b e u d o is v ia ja n t e s ( Z e u s e H e r m e s d is fa rç a d o s ) , e, p o r s u a p ie d a d e ,
fo i c o n c e d id o o d e s e jo d e m o rre r e m ju n to s ( O v íd io , M e ta m . 8 .6 2 6 ; c o m ­
p a re c o m A t 1 4 .1 1 ,1 2 , e m q u e B a rn a b é e P a u lo fo ra m c o n fu n d id o s c o m
Z e u s e H e rm e s ).
O m a n d a t o d e H e b re u s p a ra m o s t r a r h o s p it a lid a d e — " a lg u n s a c o ­
lh e ra m a n jo s d e s p r e v e n id o s " (1 3 .2 E S V , KJV, R E B , R S V ) — n ã o p a re c e r ía
n a d a f a n t á s t ic o p a ra a s p e s s o a s d o m u n d o a n tig o ( K o e n ig , 1 9 9 2 ).

f í 3 Não só se deve “não esquecer” de entreter estranhos (13.2), mas deve-se


lembrar-se dos que estão na prisão [...] e d os que estão sendo maltratados.
A exortação lembra a conduta exemplar do passado da comunidade, quando
se tornaram “parceiros” dos perseguidos (10.33 NRSV) e “sofreram junto” a
presos (10.34 NIV 11)·
Como nos dias anteriores, também agora os leitores devem ter preocupa­
ção e solidariedade com aqueles que estão sofrendo — e tão direta e vividamente
quanto possível. Lem brem -se (mimnêskesthe) significa ter cuidado e preocupa­
ção (BDAG, p. 652). Eles devem preocupar-se com os presos com o se fossem
aprisionados com eles (-> 10.34 e anotação complementar: “Prisão no mundo
romano antigo”). A intensidade da comunhão com os prisioneiros é expressa
em um jogo de palavras estreito: tón desmiõn hõs syndedemeni, “os que estão

428
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

presos, como presos com eles” (KJV). Alguns cristãos primitivos permanece­
ram voluntariamente na prisão com outros crentes presos (Luciano, Peregr. 12;
Tox. 32).
O pregador exorta seu público a identificar-se com os maltratados como
se fossem eles m esm os que o estivessem sofrendo. A linguagem é novamen­
te apontada: “Como se vocês mesmos estivessem no corpo [deles]” (Attridge,
1989, p. 386; Koester, 2001, p. 558). O fraseado quase idêntico de Fílon, [Leis
Esp. 3.161; Johnson, 2006, p. 341) esclarece o uso aqui em 13.3: “Como se
você sentisse a dor deles em seus próprios corpos” (NLT). Compartilhar o so­
frimento de outros crentes (2 Co 1.6,7; 2 Tm 1.8; 1 Pe 5.9; Ap 1.9; veja Hb
10.25) e participar dos sofrimentos de Cristo (At 5.41; Rm 8.17; 2 Co 1.5; Fp
3.10; 1 Pe 4.13; veja Hb 10.26) são temas comuns do NT.
B 4 Uma quarta exortação volta aos temas articulados à frente da segunda
metade da peroratio. Em 12.14-17, o pregador exortou seus ouvintes a buscar
paz e santidade. Lá, como aqui, ele aborda a santidade em geral e a ética sexual
em particular, em termos de pureza cultuai, status honroso diante de Deus e
juízo divino.
O pregador enfatiza a santidade do casamento em um par de cláusulas sem
verbo (13.4a-b), que podem ser interpretadas como afirmações declarativas
(“o casamento seja honroso entre todos, e a cama sem mácula” [BKJ]) ou co­
mandos (com um imperativo implícito, deve ou “deixe... ser”; Bengel, 1877,
4:493). Em ambos os casos, a justificação conclusiva, invocando a justiça divina
(v. 4c), estabelece a pureza sexual como uma obrigação moral.
O casam ento deve ser honrado por to d o s que identificam o casamento
como “uma propriedade honrosa” (como diz o Livro de Oração Comum). Isso
não foi escrito para opor-se a um ideal ascético de santidade que proibia o ca­
samento (ao contrário de Hagner, 1990, p. 235; veja Attridge, 1989, p. 387).
Em vez disso, destinava-se a evitar o abuso ou desrespeito do casamento por
parte dos im orais (v 4c). O casamento é “honroso” e deve ser valorizado como
precioso (timios; BDAG, p. 1005-1006).
Assim, a expressão paralela o leito conjugal [deve ser\ conservado puro
refere-se à pureza da união sexual dentro do contexto do casamento. Koitê
[cama) é um eufemismo comum para relações sexuais (veja Rm 9.10; 13.13).
C onservado puro ou “imaculado” (a maioria das traduções; amiantos) é um
termo adequado à pureza do templo. Mas tem um sentido religioso ou moral
mais amplo (-» 7.26 de Jesus; BDAG, p. 54). Seu antônimo cognato “defile
[miainõ]” é usado em 12.15 concernente a comportamento imoral que conta­
mina a comunidade.
429
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Judeus e cristãos viam o sexo extraconjugal como uma fonte de contamina­


ção (Gn 49.4; SS 14.24; T Rub. 1.6; T. Levi 7.3; 9.9; 14.6; Sl. Sal. 2.13; Josefo,
Ant. 2.55). Até os poetas romanos afirmavam que “nossa época profanou o
leito conjugal” por meio da infidelidade conjugal (Horácio, Carm. 3.6.17-32;
veja Juvenal, Sat. 2.29).
Fontes judaicas, começando com o Código de Santidade (veja Lv 18), for­
neceram extensos catálogos de desvios sexuais (Ps.Phoc. 175-206; Josefo, Ag.
Ap. 2.199-203; Koester, 2001, p. 558). Hebreus, no entanto, menciona apenas
os comportamentos sexuais ilícitos dos im orais e dos adúlteros (a ordem gre­
ga é invertida na NVI). Im orais (pornous; “fornicadores”, TB, NASB, NKJV,
NRSV) indicam pessoas envolvidas em qualquer tipo de vício sexual — não
apenas aquelas que contratam prostitutas (“devassos” [JFA]). Em coordenação
com o versículo 4a (o casam ento deve ser honrado por tod os), a referência
é a qualquer atividade sexual fora dos laços do casamento. Distingue-se dos
adúlteros (moicbous): pessoas casadas que são infiéis aos seus cônjuges (Plüma-
cher 1991). Isso se coordena com o versículo 4b (que o leito conjugal deve ser
conservado puro).
Embora a ética sexual fosse um ponto de discussão padrão para os moralis­
tas greco-romanos, judeus e cristãos, não é apenas um elemento de inventário
aqui. O exemplo de advertência de Esaú como sexualmente im oral e não re­
ligioso em 12.15 indica que 13.4 é mais do que uma referência passageira. Os
primeiros cristãos lutaram continuamente contra a frouxidão moral popular
em relação às práticas sexuais (veja At 15.20,29; 21.25; 1 Co 5.1-12; 6.12-20;
7.2; 2 Co 12.21; G1 5.19; Ef 5.3; Cl 3.5). O panteão grego dos deuses, com to­
das as suas intrigas sexuais, implicitamente tolerava a imoralidade (Josefo, CA.
2.244-46); e as penalidades civis para o adultério eram, muitas vezes, brandas
{Ag. Ap. 2.276).
Para judeus e cristãos, a impropriedade sexual não era simplesmente uma
questão moral ou legal, mas religiosa. Assim, Flebreus processa contra o pe­
cado sexual no mais alto tribunal de apelação: D eu s julgará. Paulo também
lembra suas igrejas de que o castigo divino aguarda o sexualmente imoral (ex.:
1 Ts 4.6; Cl 3.5,6), e os pecados sexuais excluem as pessoas do Reino de Deus
(1 Co 6.9; G1 5.19-21; Ef 5.5). Os adúlteros podem tentar esconder seus negó­
cios de outras pessoas, mas não podem escondê-los de Deus (Jó 24.15; Sl. Sal.
4:5-6; Fílon, LeisEsp. 3.52).
■ 5 - 6 A última série de cinco exortações morais (13.1-6) contrasta delibera-
damente com as duas primeiras, usando palavras com a raizphil- (“amor”). Os
versículos 1 e 2 encorajaram o amor mútuo na família cristã (Philadelphia) e o
430
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

amor aos estranhos {philoxenia). O versículo 5 lembra os leitores do que eles


não devem amar: eles devem conservar-se livres do amor ao dinheiro (aphi-
largyros, lit., não amar a prata).
Advertências contra a imoralidade sexual (v. 4) e a ganância (v. 5a) foram,
muitas vezes, acopladas por moralistas judeus, cristãos e greco-romanos (veja
Attridge, 1989, p. 387; Koester, 2001, p. 559). Um possível precedente bíbli­
co é a justaposição dos mandamentos sete e oito, contra o adultério e o roubo,
no Decálogo (Lane, 1991, p. 518). Os filósofos morais greco-romanos compre­
endiam a ligação vital entre o vício sexual e a ganância, enraizada em desejos
desordenados. Eles também concordaram com o truísmo do NT: “O amor ao
dinheiro é a raiz de todos os males” (1 Tm 6.10; veja Johnson, 2006, p. 341-343).
O pregador exorta à liberdade da ganância, não apenas como uma ação,
mas como uma disposição ou modo de vida profundamente arraigado {tro­
pos, suas vidas-, “estilo de vida” [LEB]). A alternativa ao amor ao dinheiro é
contentar-se com o que você tem. Esse era um lugar-comum da filosofia moral
helenística, especialmente o estoicismo (Attridge, 1989, p. 388; Koester, 2001,
p. 559). Paulo também abraçou o princípio do contentamento (Fp 4.11; 1 Tm
6.8), mas não como um fim em si mesmo. Ele não defendeu o ideal estoico de
autossuficiência, mas a dependência radical da suficiência da graça de Deus (2
Co 12.9) e capacitação por intermédio de Cristo (Fp 4.12).
Raciocínio semelhante figura na garantia bíblica dada em Hebreus 13.5b,6,
complementando a ênfase anterior em suportar as dificuldades presentes em
vista da recompensa futura (10.32-39; 11.8-10,13-16,25,26). Hebreus cita
duas passagens da Escritura: a primeira, uma promessa divina; a segunda, uma
resposta do povo de Deus.
A primeira citação fornece os motivos divinos para o contentamento, p o r­
que Deus mesmo disse (v. 5b). A fonte da citação é difícil de identificar. É
conceitualmente semelhante a Josué 1.5 e Gênesis 28.15 LXX. E mais como
Deuteronômio 31.6 LXX, mas a afirmação está na terceira pessoa (veja tam­
bém D t 31.8; 1 Cr 28.20). Uma combinação perfeita de letras ocorre em Fílon
{Confusão 166): Nunca o deixarei; nunca o abandonarei. O acordo entre
Fílon e Hebreus pode apontar para uma paráfrase familiar de Deuteronômio
31.6, originária da pregação ou liturgia da sinagoga helenística em Alexandria
(Lane, 1991, p. 519). De qualquer forma, como é costume em hebraico, o texto
bíblico é citado como uma palavra direta de Deus que tem relevância contem­
porânea para os leitores (veja Anderson, 2011, p. 407-409). Eles não precisam
ser consumidos pela ansiedade sobre o dinheiro por causa da presença fiel de
Deus entre eles.

431
HEBREUS NOVO COiMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A segunda citação em Hebreus 13.6 é apresentada como a resposta da co­


munidade à promessa divina: P odem os, p o is \hõste\, dizer com confiança.
Apropriadamente, a citação é dos Salmos e, em particular, o último dos salmos
Hallel, o qual é exclusivamente associado à Páscoa (Lane, 1991, p. 520; veja,
por exemplo, Mt 21.9,15,42; 23.39). Essa é uma citação exata do Salmo 118.6
LXX: O Senhor é o m eu ajudador; não tem erei. O que m e podem fazer os
hom ens?
A nota de confiança (tharrountas) lembra as exortações anteriores à ou­
sadia (parrêsia; Hb 3.6; 4.16; 10.19,35). A confiança no auxílio divino (o
Senhor é o m eu ajudador) serve de base para dissipar o medo (não temerei).
O sermão argumentou que a ajuda de Deus (2.16; 4.16) vem a nós por meio
do ministério sumo sacerdotal de Jesus. Ele nos livra do medo da morte (2.15).
O terror aguarda aqueles que rejeitam a Nova Aliança (10.27,31,38,39; 12.18-
21). Mas a firme confiança no Deus que é um fogo consumidor (12.29) produz
coragem diante da oposição e da perseguição humana (11.23,27; 12.1 -4).

b. Apelo final para compromisso e adoração (13.7-19)

Essa seção completa formalmente os objetivos exortatórios do sermão.


É um apelo final para que os leitores se comprometam totalmente a seguir a
Cristo como seu Sumo Sacerdote e ofereçam adoração que seja agradável a
Deus. O núcleo da passagem (v. 10-13) é uma reminiscência da seção central
(7.1 — 10.18) com seu foco na superioridade da morte sacrificial de Cristo. A
convocação anterior para “aproximar-se” ou “achegar-se” a Deus em adoração
(4.16; 10.22) toma a forma de um apelo para seguir a Cristo: “Saiamos até ele,
fora do acampamento” (13.13).
Essa seção também remete a temas significativos ao longo do sermão:
• A palavra de Deus (13.7; 1.1,2λ; 4.2,12).
• A imitação de exemplos de fé (13.7; 6.12; 11.1 — 12.4).
• A eternidade do ministério de Cristo (13.8; 7.11-28).
• A santificação do povo de Deus por meio do sofrimento/sangue de
Jesus (13.12; 2.11; 10.10,14,29).
• A busca pela futura cidade permanente (13.14; 11.10,16; 12.22).
• O oferecimento da adoração, para que seja aceitável a Deus (13.16;
12.28; veja 13.21), especialmente fazendo o bem e compartilhando
com os outros (6.10,11; 10.24,25,32-34).
• A consciência limpa (13.18; 9.9,14; 10.2,22).

432
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON H EB REUS

Portanto, essa é uma conclusão adequada para a peroratio do sermão, ini­


ciada em 10.19.
A mensagem é redigida em referências à atenção aos “líderes” da comuni­
dade, tanto do passado como do presente (v. 7 e 17); para emular seu “modo
de vida” (v. 7 [anastrophês], 18 [anastrephesthaí\)\ e à “palavra [logon]” (v. 7)
que os seus líderes falaram, bem como ao fato de eles terem de prestar “conta
[logon]” (v. 17) daqueles sob seus cuidados.
B 7 Lem bre-se dos seus líderes vincula essa seção às exortações anteriores,
que incluíam lembretes para não “esquecer” a hospitalidade (v. 2; veja também
v. 16) e “lembrar-se” daqueles que se encontram na prisão (v. 4). À luz dos ver­
sículos 17 e 24, os líderes (hêgoumenõn) são distinguidos dentro do povo de
Deus como indivíduos que têm autoridade e responsabilidade em relação ao
bem-estar espiritual da comunidade (1 Ciem. \.2>-,proêgoumenoi, 1 Ciem. 21.6;
Herm. Vis. 2.2.6; 3.9.7).
O fato de que lhes falaram palavra de D eu s provavelmente os marca
como os pastores fundadores da(s) igreja(s) a que os leitores pertencem. Pode
referir-se a figuras apostólicas, que ouviram a mensagem de salvação do Se­
nhor e a confirmaram “para nós” (2.3). Intérpretes antigos os viam como os
primeiros mártires da igreja, incluindo o protomártir Estêvão, Tiago, irmão
de João, e Tiago, o Justo (veja Heen e Krey, 2005, p. 231). Isso é possível, pois
o resultado \ekbasin] da vida que tiveram pode muito bem ser uma alusão às
suas mortes (veja Sab 2.17; BDAG, p. 299). No entanto, Hebreus em nenhum
lugar apresenta o martírio como uma realidade na experiência passada da co­
munidade (veja 10.32-34); e 12.4 pode descartá-lo.
O pregador exorta seus leitores a engajarem-se em três ações: primeira, eles
devem lembrar-se de seus líderes, que lhes falaram a palavra de D eus. Isso re­
pete o tema importante do sermão de ouvir a palavra de Deus (-» 2.1-4; 3.7,15;
4.2,7,12; 5.11,12; 12.25,26; Thompson, 2008, p. 280).
Segunda ação, eles devem observar (anatheõrountes) as consequências da
vida de seus líderes. Linguagem semelhante os encorajou a “considerar” uns
aos outros (10.24) e Jesus (12.3). O foco de consideração aqui é o resultado
da vida que seus líderes tiveram, ou seja, “como eles sofreram, como morreram
e como encontraram um lugar na cidade do Deus vivo” (Johnson, 2006, p.
345-46). Talvez o autor tenha em mente a existência deles como “espíritos dos
justos aperfeiçoados” (12.23).
Terceira, os leitores devem im itar \mimeisthe] sua fé. Os antigos líderes
da comunidade fazem parte da mesma trajetória de fé exemplar encontrada em
11.1 — 12.4. O antídoto para o lento progresso espiritual dos leitores é preci­

433
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

samente “imitar \mimêtai]” aqueles que pela fé e paciência herdam o que foi
prometido” (-» 6.12). Paulo também pediu a imitação de outros que estão imi­
tando fielmente a Cristo (1 Co 4.6; 11.1; 1 Ts 1.6; 2.14; veja Ef 5.1).
U 8 A aclamação Jesus C risto é o m esm o, ontem , e hoje e para sempre tem
um toque litúrgico. De fato, em Hebreus, o título completo Jesus C risto é usa­
do principalmente em contextos confessionais (-» 10.10; 13.21). Essa afirmação
está em consonância com a confissão de Jesus como apóstolo, sumo sacerdote
e Filho de Deus à qual os leitores devem “apegar-se com toda a firmeza” (3.1;
4.14; 10.23; veja 3.14). Ela envolve de Cristo:
• no sofrimento fiel e decisivo no passado, ontem (2.9; 5.8; 9.26; duran­
te os dias da vida de Jesus na terra” [5.7]);
• nos fundamentos para a oferta do descanso divino hoje (3.7,13,15;
4.7; veja 4.1,2);
• na salvação completa para sempre (veja 5.9; 7.24; 9.14,15).
Isso confessa novamente a constância eterna do Filho (1.8-12; “você per­
manece o mesmo” [1.12]), fidelidade (2.17; 3.2,5) e a permanência de Seu
sacerdócio para sempre (5.6; 6.20; 7.3,17,21,24,28).
Essa confissão da eterna confiabilidade de Cristo pode ter tido uma função
litúrgica fora de Hebreus. Mas desempenha um papel crucial em seu contexto
atual. Olhando para trás, Jesus C risto é o m esm o que o fundamento para o
ensino e o exemplo da liderança do passado (v. 7). Cristo é a fonte da mensa­
gem que eles falaram (1.3; 2.3). Sua submissão reverente e autossacrifício foi o
padrão para Seu modo de vida (2.9,10; 5.7,8; 10.5-10). Ele é “o autor e consu-
mador” da “fé” dos líderes (12.2), que os leitores devem imitar.
Olhando para o futuro, a confiabilidade de Cristo apoia as seguintes
exortações para não se deixar levar por “ensinos estranhos” (13.9), mas para
seguir a Cristo, identificando-se com Seu sofrimento e Sua vergonha (v. 13).
Os versículos seguintes mostram a mensagem fundamental do sermão: a morte
sacrificial de Jesus e o sacerdócio eterno são a base para a verdadeira adoração
e esperança duradoura.
■ 9 A admoestação não se deixem levar pelos diversos ensinos estranhos
contrasta com a conhecida e verdadeira “palavra de Deus” falada por líderes
do passado (v. 7) e a confiabilidade de Cristo (v. 8). A continuidade e a cons­
tância do evangelho devem ser preferidas à variabilidade (diversos) e à falta
de confiabilidade (estranhos; veja 1.10-12; 7.23,24; deSilva, 2000a, p. 95-96).
Deixar-se levar (parapheresthe) sugere instabilidade, como a deriva (2.1) ou a
queda (4.1,11; 6.6; 12.15) advertida anteriormente.

434
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

De outro modo, é bom que nossos corações sejam fortalecidos pela graça.
O uso repetido do sermão dos cognatos para “estabelecido” (BKJ) ou fortale­
cido (bebaiousthai; veja 2.2,3; 3.14; 6.16,19; 9.17; Thompson, 2008, p. 281)
nos lembra da necessidade da comunidade de estabilidade e segurança em sua
esperança e fé (6.11,19; 10.22). A força pode ser encontrada na graça de Deus,
a força motriz por trás da morte salvadora de Cristo (2.9) e um dos benefícios
de Seu ministério sumo sacerdotal (4.16).
O núcleo interior da vida e da personalidade de uma pessoa, o coração,
precisa ser fortalecido (da mesma forma, a esperança é uma “âncora da alma,
firme e segura” [6.19]). O coração é a sede dos “desejos e pensamentos” mais
íntimos (4.12 TB). Mas também pode ser o centro de incredulidade, desobedi­
ência e rebelião (3.8,10,12,15; 4.7). Quando purificada de uma má consciência
(10.22) e transformada pelo Senhor (8.10; 10.16), a vida interior do coração
pode tornar-se verdadeira e estabilizada em “plena convicção de fé” (10.22).
A graça do ministério de Cristo é a verdadeira fonte de força espiritu­
al, não [...] alim entos cerim oniais. A NVI acrescenta corretamente a palavra
cerim oniais, embora o vocábulo seja simplesmente alim entos ( brõmasin;
compare “refeições rituais” [NET]). Alguns comentaristas pensam que essa é
uma referência geral à comida, abrangendo diversos ensinos estranhos, não
apenas práticas judaicas (Koester, 2001, p. 560-561). No entanto, o pregador
resumiu os “ofertas e sacrifícios” (9.9) sob a antiga aliança como “apenas pres­
crições que tratavam de comida e bebida e de várias cerimônias de purificação”
(9.10). A referência aqui, então, é para “regras” (NVT, GW, NLT, REB) ou
“regulamentos” (NRSY) sobre comida, ou seja, “leis dietéticas” judaicas (Jo­
hnson, 2006, p. 347).
Isso é confirmado pela expressão aqueles que andam ou “observam”
(NRSV, TNIV; veja REB) tais regras. “Andar” é uma metáfora bíblica comum
para conduta ética e apropriada como um rótulo para decisões legais rabínicas
sobre como viver, conhecidas como halachah (do hebraico halach, “andar”;
veja Attridge, 1989, p. 394; Lane, 1991, p. 535; Johnson, 2006, p. 347).
De uma perspectiva da Nova Aliança, a continuação, ou o restabelecimen­
to de tais regulamentos, é, de fato, estranha (.xenais) ao ensino genuíno sobre
como ser aperfeiçoado como adoradores (France, 2006, p. 187). Outros escri­
tores do N T assumem uma posição semelhante (veja Cl 2.16,22; 1 Tm 4.1-4).
No início do segundo século, Inácio forneceu um paralelo, se não uma alusão,
à nossa passagem: ele contrastou viver de acordo com o judaísmo com receber
a graça (Ign. Magn. 7.2-8.1; Lane, 1991, p. 536; Pfitzner, 1997, p. 196).

435
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BlBLICO BEACON

As leis alimentares halachic não têm valor (“nenhum benefício” [NIV11])


para aqueles que as observam. Isso porque eles não afetam as profundezas do
problema do pecado no coração humano, mas são apenas “ordenanças exte­
riores impostas até o tempo da nova ordem” (9.10). Elas estão associadas ao
regulamento para o sacerdócio levítico, que foi posto de lado como “fraco e
inútil” (7.18). Tais regras pertencem à antiga aliança, que está obsoleta e de­
saparecendo (8.7,13), e à lei mosaica, que apresenta apenas uma “sombra” da
realidade em Cristo (8.5; 10.1; veja Cl 2.17).
lü 10 Tem os um altar que soa como outras confissões em Hebreus, inclusive
a declaração do ponto central: “Temos um sumo sacerdote” (8.1; veja 4.14;
10.19-21; veja também 6.19; 12.1). O altar, por metonímia, aponta para o
ministério sumo sacerdotal de Cristo. Especificamente, à luz da seguinte com­
paração entre a morte de Cristo e o ritual do Dia da Expiação de Levítico 16.27
(Hb 13.11-13), o sacrifício expiatório de Cristo está em vista.
É improvável que o autor esteja contrastando um altar no santuário
celestial com aquele no tabernáculo terrestre (contra Filson, 1967, p. 48-49;
Thompson, 2008, p. 282). Nenhum altar é mencionado anteriormente em
conjunto com o santuário celestial (veja 8.5; 9.1-10,23-24). Os sacrifícios em
13.15,16, oferecidos “por Jesus”, são espirituais e não requerem um altar literal.
Eles são respostas de louvor ao sacrifício de Cristo, que foi em si um evento
histórico na terra (v. 12; veja Pfitzner, 1997, p. 198). Tampouco o altar é um
símbolo da Santa Ceia. Uma referência às refeições eucarísticas pode tornar a
denúncia do pregador de “alimentos cerimoniais” (v. 9) autodestrutivos (assim
Lane, 1991, p. 538-539; Koester, 2001, p. 569; Isaacs, 2002, p. 158).
O pregador argumentou no capítulo 7 que o sumo sacerdócio de Cristo
é uma mudança radical em relação ao sacerdócio levítico (veja 7.11-17). O sa­
cerdócio de Cristo é muito superior em sua base (“vida indestrutível” [7.16];
juramento de Deus [7.20-22,28]), permanência (7.3,23,24,28) e em seus re­
sultados (“esperança superior” [7.19]; “aliança superior” [7.22]; salvação
completa [7.25]). Portanto, não é surpresa que não têm direito de com er os
que m inistram no tabernáculo (13.10) no altar de Cristo. Eles são inelegíveis
para fazê-lo.
Cognatos de hoi latreuontes (os que m inistram ) são utilizados para os
sacerdotes que servem no tabernáculo terrestre (8.4,5; 9.6; veja 9.1), mas tam­
bém para os adoradores que eles representam (9.9; 10.2). O s que m inistram
no tabernáculo, que não têm o direito de participar dos benefícios do sacrifício
de Cristo (com er no altar), são paralelos a “aqueles que observam” (NRSV,
TN IV ) os regulamentos inúteis relativos aos alimentos rituais (13.9). Assim,
436
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

o pregador tira uma conclusão de seu argumento de que o sistema de sacrifício


e os regulamentos para a adoração sob a antiga aliança foram deixados de lado
(7.18; 10.9). A “graça” de Deus (2.9; 13.9), decretada por meio do sofrimen­
to de Cristo (13.11-13), é a base para a verdadeira “adoração \latreuõmen\”
(12.28) e os sacrifícios que agradam a Deus (13.16).
11-12 Esses versículos fornecem a justificação {gar,para\ não traduzido na
NVI) para a afirmação no versículo 10. Consiste em uma última interpretação
midráshica das Escrituras (->3.7-19 Por trás do texto, anotação complementar:
“Midrash”). A ação final do ritual do Dia da Expiação está correlacionada com
o evento histórico da crucificação de Cristo.
O versículo 11 é uma paráfrase de Levítico 16.27. Os anim ais são o touro
e o bode que foram abatidos como oferta p elo pecado no Yom Kippur (veja
Hb 9.12; 10.4). O sum o sacerdote leva sangue sacrificial até o Santo dos
Santos, isto é, até a câmara mais interna da tenda sagrada (veja 9.3,8,12,25). A
última etapa do ritual é crucial para a comparação que se segue com a morte
de Cristo.
Os corpos dos animais sacrificados — o que Levítico 16.27 enumera
como suas peles, carne e esterco — são queim ados fora do acampamento.
Simbolicamente, as carcaças carregam o pecado do sumo sacerdote e do povo
e, portanto, devem ser incineradas fora do acam pam ento para remover a con­
taminação do meio deles (veja a ideia a fim de colocar em quarentena pessoas
ou coisas contaminadas fora do acam pam ento [Lv 13.46; 14.3; Nm 5.3,4;
12.15; 31.19; Dt 23.10,12]). Levítico 16.28 exige que apessoaque queimou os
corpos lave suas roupas e se banhe antes de retornar ao acampamento.
Hebreus 13.12 sugere que a ação final do ritual do Yom Kippur é um tipo
de morte de Cristo. A ssim (“é por isso” [GW ]) indica que o sacrifício de Cris­
to seguiu o padrão bíblico do Dia da Expiação. Que Jesus tam bém sofreu fora
das portas da cidade é um detalhe histórico sobre a crucificação de Cristo
(veja Jo 19.17). Também está de acordo com a exigência legal de execuções
fora do acam pam ento (Lv 24.14,23; Nm 15.35,36).
Os regulamentos rabínicos verificam que os muros de Jerusalém corres­
pondiam aos limites sagrados do antigo acampamento no deserto. No Dia da
Expiação, as carcaças do touro e do bode eram, de fato, queimadas fora dos
portões de Jerusalém (b. Yoma 65ab; veja Lane, 1991, p. 542). Portanto, a
morte de Cristo fora das portas da cidade se correlaciona com a queimada dos
animais sacrificados fora do acam pam ento em Yom Kippur.
O sofrimento de Jesus, no entanto, realmente cumpriu o propósito do Dia
da Expiação para santificar o povo (veja Hb 2.11; 9.13,14; 10.10,14,29). O

437
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

sangue de bodes e touros nunca foi capaz de purificar as pessoas de seus pe­
cados (9.13,14; 10.4). Mas Cristo, nosso grande Sumo Sacerdote, efetuou a
santificação decisiva por m eio de seu próprio sangue (veja 9.12,25).
H 1 3 - 1 4 0 pregador aplica essa interpretação midráshica do ritual do Dia da
Expiação (v. 11,12) para os leitores emitindo um chamado ousado ao discipu-
lado (v. 13): P ortanto, saiam os até ele, fora do acam pam ento, suportando
a desonra que ele suportou. Exortações anteriores se concentraram em exor­
tar os ouvintes a “se aproximar” ou “achegar-se” à presença divina na adoração
(4.16; 10.22) ou a entrar no descanso divino (4.11). Agora, em coerência com
a tipologia do Yom Kippur, a direção do movimento é invertida: Saiam os
[exerchõmetha] até ele, fora do cam po (Attridge, 1989, p. 398). Essa convoca­
ção para identificar-se com Cristo se alinha com as exortações anteriores para
que os leitores fixem seus olhos em Jesus como Sumo Sacerdote e considerem
Sua resistência à vergonha e ao solrimento (3.1; 12.2-4; veja 2.9,10). É a versão
de Hebreus do chamado de Cristo ao discipulado: “Se alguém quiser acompa-
nhar-me, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mc 8.34).
S u p o rta n d o a d eso n ra \oneidismois\ que ele su p o rto u é algo que a
comunidade já fez no passado, quando perseverou em sua fé apesar de in­
sultos (oneidismois) e perseguição (10.33). Moisés foi um precursor dessa fé
cristã, quando “ele considerou a desgraça [oneidismon\ por causa de Cristo”
como maior do que os tesouros do Egito (11.26). O próprio Jesus, o autor
e consumador da fé, “suportou a cruz, desprezando a sua vergonha” (12.2).
A motivação para o compromisso com Cristo e a identificação com
sua reprovação é dada em 13.14: P o is \gar\ n ão te m o s aqui um a cidade
p erm an en te \menousan\, m as b u sca m o s a que há d e vir. Essa é a mes­
ma razão repetidamente enfatizada ao longo da peroratio. A comunidade
suportou em seus primeiros dias porque sabia que tinha “bens superiores
e permanentes \menousan]” (10.34). Sua confiança ainda tem uma gran­
de recompensa (10.35), e eles devem perseverar para receber o que Deus
prometeu (10.36). Abraão viveu em fidelidade a Deus em uma terra estran­
geira, porque ele ansiava pela cid ad e construída por Deus (11.10), a pátria
celestial (11.16). Moisés suportou sofrimento e vergonha “porque esperava
a sua recompensa” (11.26). Jesus suportou a cruz “pela alegria que lhe estava
proposta” — Sua exaltação à destra de Deus (12.2).
O público está aproximando-se da Jerusalém celestial, “a cidade do
Deus vivo” (12.22) que há de vir (veja 2.5). Eles estão recebendo um rei­
no inabalável que “permanecerá \meinê]” (12.27,28). Essas verdades devem

438
NOVO COMENTÁRIO BÍBI.ICO BEACON HEBREUS

fortalecer sua determinação e compromisso com Cristo. Esse não é um pon­


to controverso. Mas há outras implicações para os versículos anteriores?
A visão tradicional é que o “altar” que os crentes têm (13.10) simboliza
a morte sacrificial de Jesus (v. 12) e é superior a todas as armadilhas de culto
da antiga aliança: sacrifícios (v. 11), sacerdócio e tabernáculo (v. 10,11),
leis alimentares (v. 9). Assim, os leitores estão sendo chamados a separar-se
da segurança e da santidade ostensiva que lhes foi concedida sob a anti­
ga aliança, uma vez que foi substituída. Seu compromisso com Cristo fora
d o acam p am en to implica abandonar qualquer apego à ordem temporal e
terrena centrada em Jerusalém, mesmo que isso signifique abraçar o sofri­
mento, a vergonha e o ostracismo.
Eles devem sair figurativamente da cidade de Jerusalém, o centro do
antigo judaísmo. A Jerusalém terrena perdeu seu significado redentor, por­
que o sofrimento de Jesus “fora das portas da cidade” é agora o verdadeiro
meio de santificação. Jerusalém também perdeu seu significado escatológi-
co, uma vez que a verdadeira esperança de salvação e santidade está na pátria
eterna e celestial prometida sob a nova aliança (Lane, 1991, p. 547-548;
veja D. Guthrie, 1983, p. 272-275; Bruce, 1990, p. 381; Hagner, 1990, p.
242-243; Pfitzner, 1997, p. 200; Isaacs, 2002, p. 159-160).
Alternativas à perspectiva tradicional têm sido propostas por pelo me­
nos duas razões. Primeira, a noção de que o autor está de volta a uma forma
pré-cristã de judaísmo não é explicitamente declarada em Hebreus. Adver­
tências contra afastamento ou desvios da confissão cristã (ex.: 2.1; 3.12;
6.4-6; 10.35,39) bem como o fraseado aqui (ex.: fora d o acam pam ento
ou cidade) são, no entanto, altamente sugestivos, mas não definitivos (veja
Lincoln, 2006, p. 57).
A segunda razão, a qual, muitas vezes, não é declarada, envolve a preo­
cupação com as conotações potencialmente antissemitas da rejeição dos
hebreus ao culto mosaico (e, portanto, judeus e judaísmo). Essa segunda
razão, no entanto, não leva em consideração o debate intrajudaico presumi­
do não apenas pelos hebreus, mas também pelos escritores do N T em geral.
As interpretações alternativas não têm o mesmo poder explicativo que
a visão tradicional:
(1) Uma abordagem encontra um paralelo com a interpretação alegóri­
ca de Fílon. Elebreus está incitando os leitores a abandonar o culto judaico,
que é um símbolo do mundo tangível da percepção sensorial e das paixões
corporais (“objetos caros ao corpo”, Fílon, Int. Al. 2.54-55; 3.46; Pior 160).

439
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Em vez disso, eles devem agarrar-se à realidade e à segurança do mundo


ideal, celestial, e à verdadeira virtude que ele inculca (Thompson, 1982, p.
141-151; Thompson, 2008, p. 283). Mas essa visão lê muito pensamento
platônico/filônico em Hebreus. Ela enfatiza o dualismo, em vez da escato-
logia de 13.14 (a cidade [...] que há de vir), e minimiza, assim, a invocação
terrena e concreta ao sofrimento e à reprovação no versículo 13 (veja Pfitz-
ner, 1997, p. 199).
(2) A abordagem de Helm ut Koester (1962, p. 301) vê nossa passagem
como um chamado para os leitores repudiarem a esfera sagrada ou cultuai
como um lugar de segurança. Os crentes são chamados à vida no mundo
secular e imundo. Mas o versículo 12 contradiz claramente essa leitura: o
sacrifício de Jesus santifica o povo de Deus, separando-os do que é impuro
(veja Koester, 2001, p. 571).
(3) Outros ainda querem ver o acam p am en to como um símbolo mais
generalizado de qualquer meio cultuai tradicional para estabelecer santida­
de e segurança (ou seja, não uma referência estritamente judaica; Attridge,
1989, p. 399). O u pode indicar muitas facetas da renúncia ao refúgio e con­
forto da vida urbana (Koester, 2001, p. 571).
Todas essas alternativas, no entanto, não explicam totalmente a “descri­
ção densa” em Hebreus (para emprestar a famosa frase de Clifford Geertz).
Hebreus emprega incansavelmente linguagem e imagens da lei e do culto
mosaico. O pregador faz referências específicas a regulamentos alimentares,
tabernáculo, sacerdócio e sacrifícios de animais. Ele se esforça muito para
demonstrar a todos eles a superioridade do sacrifício de Cristo e o ministé­
rio sumo sacerdotal para todos eles. E difícil ver como suas advertências e
exortações, então, somam-se apenas a uma preocupação geral para que seus
leitores não cedam à pressão da sociedade ou cedam às paixões terrenas.
Embora a tentação de voltar ao judaísmo (talvez para evitar a perseguição)
não seja claramente explicitada em Hebreus, essa leitura tradicional faz o
melhor sentido de sua mensagem (-» Introdução: E Propósito).
H 1 5 - 1 6 O apelo ao compromisso (v. 13) é apropriadamente seguido por
um convite para envolver-se na verdadeira adoração. A frase por m eio de Jesus
(lit.,por meio dele) lembra a afirmação do pregador de que o sacrifício passado
de Jesus e a presente intercessão do sumo sacerdote são a base para o acesso a
Deus (veja 4.15,16; 7.19,25; 10.19-22; Pfitzner, 1997, p. 200). A morte de
Jesus é o cumprimento por excelência do Dia da Expiação (v. 10-12). Assim, a
adoração verdadeira não é mais conduzida pelo sacerdócio levítico no santu­

440
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

ário terrestre (9.1). Ela ocorre na “casa” ou família de Deus, liderada por Jesus
(veja 2.11-13; 3.6; 10.19-22). Não envolve mais sacrifícios de animais, lavagens
cerimoniais ou a observância das leis alimentares (9.9,10; 13.9).
O fereçam os [...] um sacrifício de louvor (v. 15,16) retoma a linguagem
do sacrifício da seção central (-» 7.27; 8.3; 9.9,23,28). Esse sacrifício com os
quais D eus se agrada são de dois tipos:
O primeiro são os atos de adoração que oferecem os continuam ente a
Deus. A expressão sacrifício de louvor denotava, muitas vezes, não só uma
categoria de sacrifício literal (uma oferta de ação de graças, veja Lv 7.12,13,15;
2 Cr 29.31; 33.16; Jr 17.26), mas também foi usada figurativamente para um
coração grato (Sl 50.14,23; Hagner, 1990, p. 243). O último uso é notado aqui
por uma adição explicativa, introduzida com isto é (um traço [—] em algumas
versões). O fruto de lábios de Oseias 14.2 indica louvor a Deus em resposta ao
perdão dos pecados. Confessar Seu nome na linguagem bíblica (especialmen­
te em Salmos) era oferecer louvor/agradecimento a Deus (deSilva, 2000a, p.
505). Confessar a Cristo em Hebreus é sacrificial no sentido de que isso requer
a perseverança no sofrimento (3.1,6; 4.4; 10.23; 11.13; veja 10.32-39; 12.1-4).
O segundo tipo de sacrifício genuíno envolve amor e bondade dirigidos
aos outros. N ão se esqueçam de fazer o bem e de repartir com os outros são
detalhados de maneiras mais particulares em 13.1-6 (“não se esqueça” [v. 2];
“lembre-se” [v. 3]) e 6.10-11 (a comunidade deve permanecer diligente em suas
demonstrações de amor passadas).
A linguagem cultuai, notas de ação de graças e raciocínio (pois de tais
sacrifícios D eus se agrada \euaresteitai]) marcam esses versículos como uma
reformulação da exortação em 12.28: “Sejamos agradecidos e, assim, adoremos
a Deus de modo aceitável [euarestõs].
1 17 Essa seção (v. 7-19) começou com um lembrete sobre os líderes anterio­
res da comunidade (v. 7). Ela termina com o encargo de cooperar e apoiar seus
líderes atuais — incluindo o autor (v. 17-19).
O bedeçam [peithesthe\ aos seus líderes pode significar “ter confiança
em” (NIV11) ou “confiar” (CEB) em seus líderes. No entanto, esse imperativo
é acompanhado por uma clara injunção à obediência: Subm etam -se à autori­
dade deles.
A comunidade deve entregar-se aos seus líderes porque eles cuidam de
vocês (lit., de suas almas). Os líderes são guardiões do bem-estar espiritual
da comunidade. O verbo vigiar (agrypnousin; “incansável em seus cuidados”
[REB]) nunca é usado para líderes em outras partes do NT, mas para todos os
crentes que permanecem alertas e prontos para a vinda de Cristo (Mc 13.33;
441
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Lc 21.36; implícito em Ef 6.18; veja Thompson, 2008, p. 284). Um sabor es-


catológico está implícito no lembrete de que os líderes devem prestar contas
no juízo final. O próprio pregador está praticando seu encargo de ser fiel no
sermão que chamamos de Hebreus. Ele está alertando e encorajando seus ou­
vintes a estarem prontos para “o Dia que se aproxima” (10.25).
Os líderes do passado foram determinantes na gênese da crença da comu­
nidade, uma vez que “falaram a palavra [logon] de Deus” para eles (13.7). Os
líderes atuais, com o quem se deve prestar contas {logon), precisam evitar que
cada um deles fique aquém da salvação. O trocadilho idêntico em -> 4.12,13
emprega a palavra logos no início e no final da passagem com os mesmos dois
sentidos diferentes.
A prestação de contas que os líderes devem fazer pode dizer respeito às
suas próprias ações, indicando responsabilidade por sua liderança (“como
pessoas que serão responsabilizadas por você” [CEB]; “darão contas de seu tra­
balho” [KJA, NET; veja GNT, NL]). Ou podería dizer respeito às ações das
pessoas sob sua responsabilidade, indicando a responsabilidade da comunida­
de (“porque eles devem prestar contas delas [i.e., almas]” [BKJ]; veja Pfitzner,
1997, p. 202). Na verdade, todos devem prestar contas diante de Deus (4.13);
mas a segunda opção é mais provável aqui à luz de 13.17c, 18.
A cláusula de propósito a seguir, para que eles possam fazer isso, é am­
bígua. A NVI cria uma nova frase, acrescentando O bedeçam -lhes como
retomada da exortação inicial. Essa (touto) tarefa que os líderes fazem (poiõsin;
o trabalho) pode referir-se ao seu cuidado (Bengel, 1877, p. 499). Mas po­
dería o cuidado dos líderes ser conduzido como um p eso (“gemendo” [ACF,
ARA, ARC, ARIB, NAA, TB]), enquanto eles afirmam ter uma consciência
limpa e viver honrosamente (v. 18)?
Mais provavelmente, isso se refira a prestar contas dos líderes (correta­
mente, Koester, 2001, p. 572). A conduta dos leitores — e não dos líderes — é
uma preocupação aqui. É preferível que o relato dos líderes sobre isso seja feito
com alegria em vez de “com suspiros” (NRSV). O Pastor de Hermas também
instruiu seu público a viver pacificamente uns com os outros, “para que eu tam­
bém, estando alegre diante de vosso Pai, possa prestar contas de todos vós a
vosso Senhor” {Herm. Vis. 3.9.10). O particípio stenazontes (“suspiro, gemido”
[BDAG, 942]; p eso) transmite não murmuração ou reclamação (GW, NET;
veja Tg 5.9), mas a “tristeza” dos líderes (NAB, NLT), desagrado ou decepção
com aqueles sob seus cuidados (Balz, 1993b).
A cláusula final em Hebreus 13.17 segue naturalmente essa interpretação:
Pois isso não seria proveitoso para vocês. Isso estende a metáfora contá­

442
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

bil (prestar contas) na expressão nenhuma vantagem (ou “não lucrativa”


[HCSB, KJV, LEB, NASB]. Alysitelês era um termo técnico comercial usado
no sentido de não cobrir despesas [BDAG, p. 48]). Esse é outro exemplo de
eufemismo (-> 4.2; 6.10). Um acerto de contas insatisfatório diante de Deus
não seria simplesmente inútil; seria devastador (veja 3.16-19; 6.7,8). Essa pode
ser uma advertência final, embora velada, para os membros da comunidade que
não estão atendendo às advertências de seus líderes (veja, por exemplo, 10.25;
12.15,16; deSilva, 2000a, p. 510).
1 18-19 Quando o autor chega ao fim de sua obra, ele solicita oração de seus
leitores (como Paulo em Ef 6.19; Cl 4.3; 1 Ts 5.25; 2 Ts 3.1). Orem [proseu-
chesthe, continue orando] por nós é um pedido em nome do próprio autor e
dos colegas que estavam com ele (veja Hb 13.24^). O autor parece incluir-se
entre os líderes da comunidade (v. 17, 24). Começando no versículo 19, o au­
tor dirige-se a seus leitores repetidamente na primeira pessoa (eu·, veja v. 22,23;
anteriormente apenas em 11.32).
A razão (pois [gar] — omitido na NVI) para o pedido é inesperada e um
tanto difícil de seguir: Estam os certos de que tem os consciência lim pa, e
desejam os viver de maneira honrosa em tudo. Por que o motivo das orações
dos leitores seria a pureza de coração e o caráter nobre de seus líderes ?
Talvez o autor esteja indiretamente pedindo força espiritual. Com efeito:
“Por favor, orem por nós, porque estamos fazendo o melhor que podemos para
sermos santos”. Mas a maneira de expressão é muito forte para ser suavizada
assim. Os líderes estão certos (peithometha) — “confiantes” (ACF) ou “con­
vencidos” (HCSB, LEB; Sand 1993) — de que suas consciências são puras.
Como resultado, eles estão “certamente determinados [thelontes\ ase compor­
tar com honra em tudo o que fazemos” (NJB). O desejo da NVI não é forte o
suficiente (vejajohnson, 2006, p. 53; O ’Brien, 2010, p. 531). A menção de uma
consciência lim pa nos lembra de sua limpeza definitiva por meio do sacrifício
de Cristo (-» 9.9,14; 10.2; -» 9.8-10 anotação complementar: “Consciência”).
Mas, aqui, uma boa consciência \kalên\ está relacionada à determinação de
viver de maneira honrosa (kalõs... anastrephesthai), exibindo, dessa forma, o
mesmo “modo de vida \anastrophês\” (v. 7) que os veneráveis líderes da igreja
do passado tiveram.
Outra sugestão é que esse autor está adotando uma postura defensiva
(Chrysostom, 1996, p. 520; Hughes, 1977, p. 587-588; Lane, 1991, p. 556;
Hagner, 2002, p. 173; France, 2006, p. 192). Ele pode ter antecipado ressenti­
mentos entre alguns leitores em resposta à sua palavra difícil (5.11). Ou talvez

443
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

houvesse problemas interpessoais em segundo plano (desconhecidos para


nós), causando uma ruptura e exigindo que o relacionamento do autor com
os leitores fosse restituído (13.19). Em todo caso, segundo a especulação, o
pregador sentiu a necessidade de defender a pureza de suas intenções contra
os detratores.
Comparações podem ser feitas com os apelos de Paulo à sua consciência
limpa (esp. 2 Co 1.11,12). Mas Paulo o faz em contextos onde sua autoridade
apostólica está indubitavelmente sob ataque, como na correspondência co-
ríntia. Nenhuma tal oposição é visível em Hebreus. Mesmo se alguém inferir
tensão entre o pregador e aqueles que promovem “ensinamentos estranhos”
(Lane, 1991, p. 554-555), isso ainda não esclarece a conexão com um pedido
de oração. Além disso, se a situação retórica exige criticamente a defesa da in­
tegridade de alguém para ser ouvido, isso é mais bem abordado logo no início
de um discurso (At 23.1; 24.6) ou carta (1 Co 4.4; 2 Co 1.12; também G1
1.10—2.10), não perto do fim. Em Hebreus, não há nenhum traço de apologé-
tica pessoal em nenhum lugar, muito menos na introdução ou exordium, onde
seria de se esperar.
Uma explicação mais adequada é coerente com o propósito de estabe­
lecer o próprio ethos (caráter moral) na peroratio de um discurso: forjar um
vínculo emocional (pathos) com os ouvintes (Quintiliano, Inst. 6.2.13-19; veja
Thompson, 2008, p. 285). Um orador deve elogiar sua bondade para despertar
a afeição do público, especialmente quando há uma conexão íntima com eles,
ou como acompanhamento de uma admoestação {Inst. 6.2.14). Ambos são
aplicáveis em Hebreus (observe a advertência anterior em 13.17). O pregador
está promovendo o tipo de vínculo com os líderes atuais que existia com os
líderes do passado tão dignos de memória (v. 7). As orações dos leitores, então,
devem ser motivadas pela admiração, pelo afeto e pela identificação com a no­
breza de caráter de seus líderes.
O conteúdo do pedido de oração, dado no versículo 19, confirma essa in­
terpretação: Particularm ente recom endo-lhes que orem para que eu lhes
seja restituído em breve. A mudança para a primeira pessoa {eu), o fervor
(perissoterõs, particularmente; “mais e mais” [TB]) e a urgência do pedido
{tachion, logo; “depressa” [ACF, ARIB]) exalam um sentimento de amor e
saudade de amigos (veja Quintiliano, Inst. 6.2.17). O verbo restituído não
significa curar um relacionamento rompido, mas voltar para casa, a fim de se
reunir com os amigos depois de um tempo de ausência (veja Let. Aris. 318;
Eup. 2.10).

444
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

c. B ê n ç ã o e p o s fá c io (13.20-25)

Hebreus conclui com uma bênção (v. 20,21), apelo final para ser ouvido (v.
22), então um breve relato de viagem (v. 23), saudações (v. 24) e bênção (v. 25).
B 2 0 - 2 1 Tendo pedido as orações de seus ouvintes (v. 18,19), o autor agora
ora por eles. O triunfo passado de Deus em Jesus Cristo (v. 20) é invocado
como o penhor para a capacitação divina para ter uma vida agradável no pre­
sente (v 21). A oração pulsa com os principais temas do sermão:
• A exaltação de Cristo como líder sobre o povo de Deus.
• A morte sacrificial de Cristo que inaugurou a nova aliança.
• A perfeição resultante dos crentes como adoradores.
O D eus da paz [...] os aperfeiçoe é o coração da bênção, encerrando com
uma doxologia, a quem seja a glória para to d o o sempre, e a fórmula litúrgica
judaico-cristã padrão, amém.
A invocação de Deus como o D eus da paz é rara na literatura judaica. Mas
Paulo usou muitas vezes como uma fórmula em bênçãos (Rm 15.33; 16.20; Fp
4.9; 1 Ts 5.23; veja Attridge, 1989, p. 405). O título divino é um componente
apropriado daperoratio (Hb 10.19— 13.25). Um inclusio pode ser pretendido
com 12.14, onde os leitores foram exortados a buscar a paz e a santidade. A
disciplina de Deus Pai cultiva a santidade e produz uma colheita de justiça e
paz (12.10,11). O compromisso com a integridade moral e a harmonia comu­
nitária são as principais ênfases em 12.14-17 e 13.1-19. Mas, em última análise,
o D eus da paz capacita os crentes a cumprir Sua vontade (13.20-21).
Embora Deus seja o sujeito dos verbos principais (restituir , aperfeiçoar
e operar), a oração é cristocêntrica. Cristo é o meio (por intermédio de Jesus
Cristo) pelo qual Deus realiza Seus propósitos. Cristo é mencionado nada me­
nos que três vezes — como nosso Senhor Jesus, o grande Pastor das ovelhas,
o grande Pastor das ovelhas.
Deus é Aquele que trouxe de volta dentre os m ortos o Senhor Jesus. Essa
é a referência mais explícita à ressurreição de Jesus em Hebreus (veja 5.7; 7.16).
No entanto, o pregador varia do fraseado usual para a ressurreição (veja 6.2;
11.35; e possivelmente 7.11,15). Em vez de uma forma de “levantar” (egeirõ
ou anistêmí), Hebreus trouxe de volta (anagõn; “criado” [HCSB, LEB, NAB,
NASB, NKJV, NLT]). Assim, Hebreus mantém sua ênfase na exaltação de
Cristo (1.3,13; 7.26; 8.1; 10.12), não apenas em Sua libertação da morte.
A expressão trouxe de volta dentre os m ortos [...] grande Pastor das
ovelhas ecoa Isaías 63.11-14 LXX (Lane, 1991, p. 561). Ali Moisés é o “pastor
das ovelhas”, a quem o Senhor tirou do Egito, junto ao povo de Israel, no êxo­

445
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

do. Um novo êxodo foi efetuado por meio da exaltação de Cristo, uma vez que
implicou “levar muitos filhos à glória” (Hb 2.10). O título grande Pastor das
ovelhas é uma reminiscência da referência anterior de Hebreus a Jesus como
“grande sacerdote da casa de Deus” (10.21; veja 4.14).
A essência do argumento da seção central (7.1 — 10.18) está contida na
frase p elo sangue da aliança eterna. Um resumo comparável aparece em
12.24: “Jesus, o mediador de uma nova aliança” e “o sangue aspergido”. O san­
gue sacrificial foi indispensável na inauguração da primeira aliança. E a oferta
de uma vez por todas do sangue de Cristo estabeleceu a nova aliança (9.15-
28); daí a expressão sangue da aliança (9.20; 10.29; veja Mc 14.24 ||; 1 Co
11.25). Pela Sua morte sacrificial (sangue), Cristo foi qualificado/aperfeiçoa­
do como o líder sobre o povo de Deus. Esse é o ponto de Deus trazer de volta
dentre os m ortos [...] o grande Pastor das ovelhas (veja Hb 2.9,10,17,18;
5.7,8; 7.27,28; 10.12,13,19-22).
Somente aqui, Hebreus chama a Nova Aliança de aliança eterna, ecoan­
do a promessa de Deus por intermédio dos profetas (Is 55.3; 61.8; Jr 32.40;
50.5; Ez 16.60; 37.26). A designação é apropriada, uma vez que essa “aliança
superior” é garantida pelo sacerdócio permanente de Cristo (Hb 7.22,24; veja
5.6; 6.20; 7.16,17,21,28). Está estabelecida em “promessas superiores” (8.6).
O principal delas é a santificação definitiva por meio do sacrifício de uma vez
por todas de Cristo (10.10-18). Ele fornece uma “esperança superior” (7.19):
salvação eterna, redenção e herança (5.9; 9.12,15).
A petição em 13.21 reitera o principal enfoque da segunda metade dape-
roratio (12.14— 13.25): a adoração autêntica é uma resposta à graça de Deus.
O pedido que Deus os aperfeiçoe \katartisaí\ refere-se à provisão/preparação
divina dos leitores com to d o o bem para que nada lhes falte para fazerem {eis
to poiesai) a vontade de Deus {to thelêma). Está implícito nisso o amadureci­
mento ou perfeição de seu caráter moral (“tornar você perfeito” [BSEP, KJV,
REB]; “fazer você completo” [NKJV, NRSV]; Ellingworth [1993, p. 730] de­
tecta um aspecto da teleiõsis [“perfeição”] tema). A encarnação de Cristo é o
padrão para essa perfeição: Deus “preparou” (katarisõ) um corpo para Jesus,
que veio “para fazer a vontade [de Deus]” {toupoiesai to thelêma; 10.5,7,9).
A cláusula participativa a seguir descreve ainda a ação anterior como Deus
operando \poiõn\ em n ós o que lhe é agradável. A menção do que lhe é agra­
dável completa o tema da adoração aceitável (12.28) e sacrifícios agradáveis
(“fazer o bem” [13.16]) que constituem a resposta apropriada ao dom gracioso
da cidadania de Deus no Reino inabalável (veja 12.28; 13.14).

446
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

■ 22 0 pregador exorta [s] {parakalõ, p eço-lh es) seu público a prestar aten­
ção à sua palavra de exortação it ou logon tês paraklêseõs). Suportem ou tolerem
(.anechesthe) é uma forma educada de pedir aos ouvintes que “prestem atenção”
(NVT) ou “escutem com paciência” (GNT, GW; veja BKJ; BDAG, p. 78).
Isso está de acordo com os repetidos avisos para prestar atenção (2.1,3; 3.7,15;
4;7; 5.11; 12.25; Thompson, 2008, p. 286).
A palavra de exortação é uma descrição adequada de Hebreus. A frase
em Atos 13.15 designa uma homilia/sermão que Paulo faz em uma sinagoga.
Hebreus se encaixa bem nessa identificação. Está repleta de exposições das Es­
crituras destinadas a alertar os leitores sobre as consequências da desobediência
e fornecer “forte encorajamento” (6.18 ESV, HCSB, NASB) para confiar nas
promessas de Deus.
N a verdade o que eu lhes escrevi é p ou co não identifica o gênero da obra,
mas o modo de sua entrega: Eu te instruípor meio de carta (epesteila; BDAG,
p. 381). O pregador deu sua palavra de exortação por carta porque ele não
poderia falar com eles, em breve, em pessoa.
Era uma convenção retórica afirmar que o trabalho de alguém não era
pesado em extensão (veja 1 Pe 5.12). Em dois casos, Hebreus se abstém propo­
sitalmente de aprofundar-se em pormenores para evitar ser cansativo (Hb 9.5;
11.32). Hebreus não é de forma alguma curta em comparação à maioria das
letras antigas (mesmo a mais curta no NT, 3 João, é maior do que a norma; veja
At 15.23-29). Com quase 5.000 palavras, Hebreus é comparável às cartas mais
longas de Paulo (ex.: Romanos [mais de 7.000]; 2 Coríntios [quase 4.500];
veja Just, 2005). PseudoBarnabé, no entanto, afirma estar enviando uma “carta
breve” {Barn. 1.5), mas é o dobro da extensão de Hebreus (Lane, 1991, p. 569).
Hebreus, no entanto, pode razoavelmente alegar: “Porque de fato escrevi
para você muito brevemente” (NIV11). Está entre as obras antigas mais curtas
(10.000 palavras ou menos). Como discurso escrito, tem entre um terço ou um
quarto da duração dos discursos mais longos de Demóstenes (Burridge, 2004,
p. 114-115). O texto poderia facilmente ter sido ouvido em uma sessão — qua­
renta e cinco a cinquenta minutos (Koester, 2001, p. 175). A relativa brevidade
ou extensão dos discursos, em qualquer caso, foi julgada não pelo tipo de dis­
curso, mas pelo escopo do assunto em consideração (Quintiliano, Inst. 3.8.67).
ü 2 3 Um breve aviso sobre planos de viagem é comum nos fechamentos de
cartas antigas. Os planos do autor estão um pouco ligados aos movimentos de
nosso irm ão T im óteo. Esse é provavelmente o mesmo Timóteo que foi o co­
laborador mais confiável e amado de Paulo (veja 1 Co 4.17; Fp 2.19-23); mas

447
HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

não podemos ter certeza. Hebreus informa aos leitores (quero que saibam)
que Timóteo fo i p o sto em liberdade (“da prisão” [NLT]; menos provável:
“partiu” ou foi “expulso” [BDAG, p. 117-118; Isaacs, 2002, p. 164]). Essa é a
única indicação no N T de que Timóteo foi preso.

O que aconteceu com Timóteo?


O liv ro d e A to s e a s c a r ta s d e P a u lo n o s fo r n e c e m m u ita s in fo r m a ­
ç õ e s s o b re o " filh o " e s p ir it u a l d e P a u lo , T im ó te o . M a s o q u e a c o n t e c e u
c o m T im ó t e o d e p o is d a m o rte d e P a u lo ? H e b re u s p o d e s e r o ú n ic o e s c r it o
d o N T q u e n o s d á a lg u m a in fo rm a ç ã o : T im ó t e o fo i lib e r to d a p ris ã o . N ã o
s a b e m o s o n d e o c o rre u e s s e a p r is io n a m e n t o , m a s É fe s o é u m a s u p o s iç ã o
p la u s ív e l. P a u lo c o m is s io n o u T im ó t e o p a ra s e r m in is tro e m É fe s o (1 T m
1.3), e a t r a d iç ã o d a Igreja o n o m e ia c o m o o p r im e ir o b is p o n a q u e la c id a ­
d e , b e m c o m o "o a n jo d a Igreja e m É fe s o " (A p 2.1).
A h is tó r ia d a Igreja re la ta p o u c o s o b re T im ó t e o a lé m d o q u e e s tá no
NT. E le e ra s o lt e ir o e p e r m a n e c e u b is p o d e É fe s o a té o s o it e n ta a n o s . S e ­
g u n d o a t r a d iç ã o , p o r v o lt a d e 8 0 d .C ., o b is p o s e o p ô s a u m f e s t iv a l d a
d e u s a Á r t e m is e m É fe so . O s a d o r a d o r e s p a g ã o s o e s p a n c a r a m , a r r a s t a ­
ra m -n o p e la s ru a s e o a p e d r e ja r a m a té a m o rte (A h e rn e , 1 9 1 2 ).

O autor está ansioso para se reunir com a comunidade (Hb 13.19). Mas
ele espera que Timóteo seja capaz de ser seu companheiro de viagem até lá: Se
ele chegar lo g o , irei para vê-los com ele. Ele dá a entender que, se Timóteo
não vier a tempo, lamentavelmente terá que partir sem Timóteo. (Só podemos
supor se os horários de envio ou restrições sazonais nas viagens foram fatores.)
8 2 4 - 2 5 Elebreus chega ao fim com saudações e uma bênção final. Existem
duas diferentes saudações. A primeira é um pedido para que a comunidade
envie saudações em nome do autor (v. 24λ). A segunda inclui saudações do
autor à comunidade em nome dos companheiros que estão com ele (v. 2Ab). As
saudações, juntamente à bênção final (v. 25), são abrangentes, como indicado
pela repetição tripla da palavra to d o s nos versículos 24 e 25.
O pedido no versículo 24^ para saudar to d o s os seus líderes e tod os os
santos (lit., “todo o povo de Deus” [KJV, NAB]) pode sugerir que o sermão
anterior foi dirigido a uma determinada comunidade ou igreja doméstica.
Esse grupo menor está agora sendo solicitado a transmitir saudações a uma
rede de igrejas e seus respectivos líderes (Lane, 1991, p. 569). Ou as saudações

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NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

abrangentes podem implicar que o trabalho foi planejado para ser lido em uma
reunião maior de igrejas domésticas e que as saudações seriam postas em práti­
ca nessa leitura pública (deSilva, 2000a, p. 515).
A última sugestão pode ser menos provável, uma vez que o direito romano
proibia grandes associações (Lindars, 1991, p. 18). No entanto, tais saudações
foram projetadas para promover a boa vontade e a solidariedade entre tod os
os santos e fortalecer ainda mais a posição e a influência de tod os os líderes
nas igrejas (veja v. 17,18).
A segunda saudação (v. 24b) é suscetível a duas interpretações diferentes.
A primeira, os da Itália que enviam saudações podem insinuar que o autor
está escrevendo da Itália. Essa é uma interpretação antiga, refletida em vários
manuscritos com notas explicativas seguindo o versículo 25. Eles identificam
a Itália ou Roma como o local de composição (ex.: o Codex Alexandrinus do
quinto século; Brown, 1997, p. 699, n. 42; Isaacs, 2002, p. 9).
Uma segunda interpretação é difundida por muitos intérpretes modernos:
o autor está escrevendo de algum lugar fora da Itália. Seria supérfluo para o
autor mencionar os da Itália se ele estivesse na Itália no momento em que
escrevia. Além disso, é uma referência muito ampla dentro da Itália, mas apro­
priadamente estreita fora. Isso não é certo, uma vez que a afirmação é ambígua,
designando ou residência (“povo santo de Deus na Itália” [NJB]) ou extração
(“nossos amigos italianos” [REB]). Mas faz um pouco mais de sentido que al­
guns de seus companheiros da Itália, que estavam com ele em algum lugar fora
da Itália, quisessem enviar saudações a seus amigos cristãos em casa, talvez em
Roma ou nos arredores.
A bênção final, a graça [charts] seja com to d o s vocês (v. 25), é comum nas
cartas de Paulo (2 Co 13.14; Ef 6.24; 2 Ts 3.18; Tt 3.15; veja G1 6.18; Fp 4.23;
Cl 4.18; lTm 4.22; Fm 25). Embora essas palavras sejam convencionais, elas
encerram adequadamente a mensagem do pregador. A humilhação e a morte
de Cristo originaram-se na graça de Deus (2.9), e a graça é um dos benefícios
do ministério sumo sacerdotal de Cristo (4.16). A graça não deve ser rejeitada
(10.29; 12.15). E a fonte vital de nossa força espiritual (13.9) e nossa indispen­
sável resposta de gratidão (charts) a Deus em adoração (12.28).

A PARTIR DO TEXTO

Na segunda metade daperoratio (12.14— 13.25) o pregador faz seus ape­


los e diretrizes finais aos leitores. Ao lermos essa última parte de Hebreus,
podemos sentir-nos muito distantes da situação da pequena igreja doméstica

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HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

que esse sermão abordou pela primeira vez. Poucos leitores no conforto do
Ocidente sentem a sombra ameaçadora da perseguição. Menos são tentados
a abandonar a fé cristã pela atração ao culto sacrificial e às leis alimentares da
aliança mosaica. No entanto, há quatro pontos (entre outros) da conclusão do
pregador que são igualmente aplicáveis aos seguidores de Jesus hoje.
(1) Hebreus nos exorta a permanecer comprometidos com Jesus Cristo. Em­
bora possamos não estar preocupados com uma perseguição oficial contra os
cristãos, há muitos casos e ambientes em nossa sociedade onde proclamar a
fé em Cristo pode ser intimidante (ex.: um campus universitário secular nos
Estados Unidos).
Na medida em que ainda devemos ter coragem e convicção para seguir a
Cristo, não somos tão diferentes desses primeiros cristãos romanos. Como o
grande pregador Dennis Kinlaw observou em um sermão no Asbury College
alguns anos atrás, até mesmo o apóstolo Pedro negou o Senhor em resposta à
“curvatura do lábio” de uma serva. Se formos honestos conosco mesmos, mui­
tos de nós podem fazer o mesmo em uma situação semelhante.
Eíebreus nos desafia a examinar nosso compromisso e confiança em Cris­
to. O pregador nos adverte sobre o perigo de perder a graça de Deus devido a
outras paixões ou preocupações que, francamente, são mais urgentes para nós
(12.15-17). Ele nos ordena a não recusar a voz que nos adverte do céu. A voz
alta ameaça abalar o mundo temporal que, muitas vezes, podemos considerar
como permanente (12.25-27). Mas, se ouvirmos com mais atenção, ouviremos
“uma palavra que fala melhor do que o sangue de Abel” (12.24). E a voz do gra­
cioso mediador da Nova Aliança, Jesus Cristo, suplicando “em alta voz e com
lágrimas àquele que podia salvar da morte” (5.7). Nós finalmente o ouvimos
dizer: “Aqui estou; vim para fazer a tua vontade” (10.9; veja v. 7).
Vemos Seu corpo quebrado abrindo um caminho novo e vivo para nós
na presença de Deus, e o sangue aspergido de Seu sacrifício que purifica nos­
sa consciência da culpa dos pecados. Em resposta, Hebreus nos chama para
o mesmo tipo de discipulado de carregar a cruz que Jesus ordenou aos Seus
discípulos (Mc 8.34 ]|). “Portanto saiamos até ele, fora do acampamento, su­
portando a desonra que ele suportou” (Hb 13.13). Graças a Deus, é a mesma
graça que levou Cristo à cruz que pode fortalecer nossos corações em devoção
a ele (13.9).
(2) Hebreus nos chama a viver nossas vidas em ação de graças e adoração
a Deus. Somos orientados a fazer isso em resposta ao dom de Deus de Seu
Reino eterno e inabalável (12.28). O que não é imediatamente aparente em
português, como em grego, é que nossa resposta deve ser energizada por “graça
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NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

[charis] ”. Os povos antigos entendiam isso instintivamente. A graça dada por


alguém, depois recebida por outro, automaticamente garantia uma expressão
de graça (gratidão ou agradecimento) em troca do destinatário. Deixar de agra­
decer era mais do que uma gafe social. Era uma violação de uma obrigação
sagrada — uma quebra de confiança pública. Vestígios dessa dinâmica social
ainda operam em nosso mundo moderno, como refletido em uma antiga ex­
pressão ainda em uso hoje: “Retribua o favor”.
Os cristãos modernos preferem enfatizar nossa ação de graças e adoração
a Deus como uma resposta gratuita, não uma obrigação. Mas, e se alguém visse
nossa terrível necessidade financeira e decidisse dar-nos uma casa luxuosa para
morar e um emprego bem remunerado em sua empresa, sem restrições? Não
nos sentiriamos obrigados a dar algum sinal de gratidão em troca, pelo menos
nos esforçando para ser seu funcionário mais leal? Não cantaríamos louvores
ao nosso benfeitor? Não nos sentiriamos responsáveis pela manutenção da
casa, não querendo desonrar o presente que recebemos, a pessoa que nos deu,
ou nós mesmos como beneficiários privilegiados? É claro que devemos respon­
der dessa maneira, se formos devidamente agradecidos.
Em Elebreus, a geração do deserto (3.7-19) e Esaú (12.16,17) são exem­
plos de pessoas que desdenhosamente desprezaram a bênção de Deus. Como
resultado, viram-se completamente excluídas da herança de Deus. Quanto
mais, então, o dom da cidadania na cidade do Deus vivo nos obriga a responder
com gratidão e adoração? O pregador não quer que cometamos o mesmo erro
de ingratidão ultrajante.
Nossa resposta esperada é descrita em Hebreus por meio da terminolo­
gia de adoração associada aos sacrifícios de culto no AT. Precisamos “adorar a
Deus de modo aceitável” (12.28), oferecendo continuamente “um sacrifício de
louvor” (13.15). Devemos exercer generosidade para com os outros e, assim,
apresentar sacrifícios com os quais “Deus se agrada” (13.16). Hebreus nos lem­
bra de que Deus nos equipa para fazer a Sua vontade, e opera em nós “o que lhe
agrada” (13.21; veja Fp 2.13). Foi bem dito que os cristãos devem oferecer toda
a sua vida como uma liturgia — um serviço de adoração — a Deus. Pensando
bem, foi o apóstolo Paulo quem primeiro disse isso (Rm 12.1).
(3) Hebreus nos exorta a fazer todo esforço para sermos santos. Esse coman­
do encabeça a segunda metade da conclusão (Hb 12.14). Compromisso com
Cristo e vidas de adoração e gratidão devem caracterizar a vida santa. Mas 13.1-
6 lista uma série de aplicações práticas e específicas da santidade em nossa vida
cotidiana. Impressionante é a preponderância de termos relacionados ao amor.

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HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Esses versículos ilustram o que J. Kenneth Grider quis dizer com o ditado: “O
amor é santidade com seu macacão”.
Hebreus nos diz claramente quem e o que devemos amar e o que não de­
vemos amar. Devemos amar nossos irmãos na fé como nossos irmãos e irmãs
(jPhiladelphia, “amor de irmãos”). O pregador falou repetidamente sobre o
cuidado e a preocupação que os crentes devem ter uns pelos outros, nem sem­
pre usando a linguagem explícita do amor (-» 6.10; 10.24; 3.12,13; 12.15,16).
Devemos especialmente dar conforto e apoio aos sofredores e maltratados
(10.33,34; 13.3).
Devemos amar os estranhos (philoxenia·, 13.2). Os protocolos de hospita­
lidade tornaram-se consideravelmente mais fracos ou inexistentes em muitos
ambientes ocidentais modernos (-» 13.2 e anotação complementar: “Hospi­
talidade no mundo antigo”). Portanto, os cristãos de hoje precisam ser muito
mais intencionais em nossa bondade e generosidade para com as pessoas que
podemos ser tentados a considerar como “outras”. Com razão, temos medo
de ser roubados ou explorados. Não é improvável que a hospitalidade que os
hebreus tinham em mente fosse dirigida a “estranhos” que eram seguidores
de Cristo, muitas vezes envolvidos na obra do ministério cristão. Mesmo que
reduzíssemos o escopo do “amor aos estranhos” dessa maneira, ainda poderia­
mos avançar para assumir riscos apropriados ao amor e à doação abnegada que
fluem da fé cristã autêntica.
Duas exortações adicionais são especialmente aplicáveis hoje. Primeira, o
pregador defende vigorosamente a pureza sexual e a santidade do casamento
(13.4). Como podemos amar verdadeiramente outros crentes ou estranhos se
não podemos nem manter fidelidade com aquele a quem prometemos amor ao
longo da vida?
O antigo cenário cultural em que os leitores originais de Hebreus viviam
era tão permissivo quanto o nosso (-> 13.4). Não devemos imaginar que as
tentações sexuais sejam mais difíceis ou predominantes hoje — mesmo com
a atração onipresente da pornografia na internet. Mesmo um estudo superfi­
cial dos antigos costumes sexuais greco-romanos ou as imagens sexualmente
explícitas das estátuas ou afrescos nas cidades antigas (ex.: Pompeia) devem
desiludir-nos da noção de que, hoje em dia, a sedução é muito pior (veja tam­
bém Pv 5). E, se a ameaça de Hebreus do juízo de Deus não for suficiente para
nos impedir de atividades sexualmente imorais, há mais opções terapêuticas do
que nunca para pessoas que estão lutando contra o vício sexual ou a disfunção
relacionai.

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NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON HEBREUS

Segunda, o pregador nos diz especificamente o que não amar: dinheiro


(,aphilargyros; -> 13.5). Essa advertência é particularmente apropriada em nosso
mundo baseado no mercantilismo, materialismo e consumo conspícuo. É tão
fácil para nós ficarmos presos aos valores predominantes de nosso tempo, in­
cluindo a aquisição de mais e mais “coisas”: a próxima nova moda, o mais novo
smartphone, o último gadget. Grande parte de nossa participação na economia
é necessária, se não inocente. Mas devemos sempre verificar as motivações mais
profundas do nosso coração em relação ao dinheiro.
Hebreus adverte contra a dependência do dinheiro que esmaga nossa con­
fiança em Deus (13.5-6). É paralelo ao ensino do próprio Jesus, cuja parábola
do semeador relata como o evangelho pode ser sufocado pelos espinhos das
preocupações da vida, riqueza e desejo de coisas (Mc 4.18-19 ||): “Você não
pode servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6.24; Lc 16.13). O que importa não é o
que está em nossas contas bancárias, mas Deus, que “nos aperfeiçoe em todo
o bem para fazermos a vontade dele” e “opere em nós o que lhe é agradável,
mediante Jesus Cristo” (Hb 13.21).
(4) Hebreus insiste que honremos nossos líderes espirituais e prestemos aten­
ção em suas pregações e conselhos. E apropriado que o hábil teólogo pastoral por
trás da “palavra de exortação” que chamamos de Hebreus tenha algo a dizer so­
bre a qualidade da liderança pastoral. Hebreus estabelece um alto padrão para
a maturidade espiritual, caráter moral e responsabilidade de “pastor” esperados
dos líderes pastorais. Eles devem pregar a pura palavra de Deus, não ensina­
mentos estranhos (13.7,9). Eles devem ter uma fé genuína e um estilo de vida
digno de ser imitado (13.7). De fato, eles devem incorporar a excelência moral
de 13.18: “Estamos certos de que temos uma consciência limpa, e desejamos
viver de maneira honrosa em tudo”.
Que diferença faria em nossa própria vida espiritual e em nosso relacio­
namento com nossos líderes espirituais se levássemos a sério a perspectiva de
Hebreus sobre esses assuntos? Devemos ter grandes expectativas quanto à ap­
tidão espiritual e moral de nossos líderes. Mas devemos igualmente reconhecer
que eles receberam supervisão sobre nosso bem-estar espiritual. Se nossa inter­
pretação de 13.17 estiver correta, a ênfase está na responsabilidade dos líderes
de manter nossos pés no fogo. Eles um dia prestarão contas, não apenas por sua
própria fidelidade no ministério (ex.: 1 Co 3.10-15; 9.24-27), mas por nossa
fidelidade sob seus cuidados.
Se olharmos para as responsabilidades de nossos pastores como se esti­
véssemos no lugar deles, será mais fácil ver por que é muito mais alegre para
eles e vantajoso para nós quando fazemos o possível para seguir sua liderança

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HEBREUS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

e colocar em prática verdades da palavra de Deus que eles pregam. E se esta­


mos convencidos da pureza de suas intenções (Hb 13.18) e ligados a eles com
grande afeição (13.19,23), devemos ser motivados a orar por eles, para que seu
ministério seja ainda mais eficaz. Um líder espiritual não podería ter maior
alegria do que, um dia, estar diante de Deus para prestar contas e ser capaz de
“apresentar todo homem perfeito em Cristo” (Cl 1.28). Mas essa alegria perfei­
ta não pode acontecer sem nossa cooperação (veja Fp 2.1,2,12).
Será que os leitores originais de Hebreus saíram de sua letargia e pararam
de arrastar seus pés espirituais? Eu gostaria de pensar que eles se juntaram às
fileiras daquela nuvem de testemunhas mencionada em Hebreus 12.1. O pre­
gador parece estar esperançoso quanto à sua salvação futura (6.9-12; 10.39).
Algum dia, tenho certeza de que muitos de nós procurarão o autor atual­
mente desconhecido de Hebreus em glória. Queremos saber sua identidade,
mas não apenas por curiosidade. Qupremos agradecer-lhe por se importar o
suficiente com uma pequena igreja doméstica em dificuldades, à qual ele dedi­
cou tanto tempo, energia e habilidade para escrever essa “palavra de exortação”.
E nos curvaremos em adoração diante do trono da graça, para agradecer a Deus
por inspirar as sérias advertências e o poderoso encorajamento nesse livro de
que tanto precisávamos.

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