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POSSESSÃO DEMONÍACA
UM ESTUDO À LUZ DE MARCOS 9.14-29
CANOAS
2021
1
POSSESSÃO DEMONÍACA
UM ESTUDO À LUZ DE MARCOS 9.14-29
CANOAS
2021
2
POSSESSÃO DEMONÍACA
UM ESTUDO À LUZ DE MARCOS 9.14-29
____________________________________________ __________
PROF. Dr. Gerson Luis Linden Conceito
ORIENTADOR
3
AGRADECIMENTOS
(in memorian)
5
(Romanos 8.38-39)
6
RESUMO
ABSTRACT
The topic of the present coursework is demonic possession. The subject is part of both
the Bible and popular imagination. This research seeks to investigate the
biblical/theological foundation of demonic possession and its consequences, as well
as evaluating the subject of possession from a theological perspective, in its most
different aspects and characteristics, as well as its perception in contemporaneity. This
research will have a qualitative approach and its objectives will be exploratory in
nature. For data collection, bibliographic research and biblical exegesis will be used as
a technical investigation procedure. As a result of the survey, the question that seeks
to be answered will be what the biblical/theological view of demonic possession is. The
research aims at a general introduction to demonic possession, approaching the theme
from different angles.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................. 9
1 ESTUDO EXEGÉTICO DE MARCOS 9.14-29 ................................ 10
1.1 TEXTO ............................................................................................ 10
1.2 ANÁLISE DO TEXTO ...................................................................... 12
1.3 CONSIDERAÇÕES EXEGÉTICAS FINAIS ..................................... 20
1.4 EXORCISMO DE LUTERO ............................................................. 22
2 O DIABO E SUAS AÇÕES ............................................................. 25
2.1 PADRE GABRIELE AMORTH ......................................................... 25
2.1.1 Quem é Satanás?............................................................................ 25
2.1.2 As ações do diabo ........................................................................... 26
2.1.2.1 A via ordinária da ação diabólica: tentação e pecado ..................... 26
2.1.2.2 A ação extraordinária do Diabo ....................................................... 27
3 VISÃO TEOLÓGICA LUTERANA SOBRE POSSESSÃO
DEMONÍACA .................................................................................. 32
3.1 MARTINHO LUTERO ...................................................................... 32
3.2 BENJAMIN T. G. MAYES ................................................................ 33
3.3 C.F.W. WALTHER ........................................................................... 35
3.4 FRANZ PIEPER .............................................................................. 37
3.5 JEFFREY A. GIBBS ........................................................................ 38
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................ 41
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................... 43
9
INTRODUÇÃO
1.1 TEXTO
O texto a ser trabalhado é Mc 9.14-29, que relata sobre um menino que estava
possuído por um demônio e seu pai pede para que Jesus o ajude. Abaixo, o texto no
original seguido pela tradução literal.
14 Καὶ ἐλθόντες πρὸς τοὺς μαθητὰς εἶδον ὄχλον πολὺν περὶ αὐτοὺς καὶ
γραμματεῖς συνζητοῦντας πρὸς αὐτούς.
14 E quando eles se aproximaram dos demais discípulos, viram grande multidão
ao redor deles e escribas discutindo com eles.
17καὶ ἀπεκρίθη αὐτῷ εἷς ἐκ τοῦ ὄχλου Διδάσκαλε, ἤνεγκα τὸν υἱόν μου πρὸς σέ,
ἔχοντα πνεῦμα ἄλαλον·
17 E respondeu a ele um da multidão: - Mestre, eu trouxe o meu filho para ti,
tendo ele um espírito mudo.
18 καὶ ὅπου ἐὰν αὐτὸν καταλάβῃ, ῥήσσει αὐτόν, καὶ ἀφρίζει καὶ τρίζει τοὺς
ὀδόντας καὶ ξηραίνεται· καὶ εἶπα τοῖς μαθηταῖς σου ἵνα αὐτὸ ἐκβάλωσιν, καὶ οὐκ
ἴσχυσαν.
18 e este espírito sempre se apossa dele, o joga no chão, e ele espuma e range
os dentes e vai definhando. Pedi aos teus discípulos que o expulsassem, mas
eles não puderam.
19 ὁ δὲ ἀποκριθεὶς αὐτοῖς λέγει Ὦ γενεὰ ἄπιστος, ἕως πότε πρὸς ὑμᾶς ἔσομαι;
ἕως πότε ἀνέξομαι ὑμῶν; φέρετε αὐτὸν πρός με.
11
19 E Jesus respondeu: - Ó geração sem fé, até quando estarei convosco? Até
quando vos suportarei? Trazei-o a mim.
20 καὶ ἤνεγκαν αὐτὸν πρὸς αὐτόν. καὶ ἰδὼν αὐτὸν τὸ πνεῦμα εὐθὺς
συνεσπάραξεν αὐτόν, καὶ πεσὼν ἐπὶ τῆς γῆς ἐκυλίετο ἀφρίζων.
20 E o trouxeram a ele. Quando ele viu Jesus, o espírito logo convulsionou o
menino, e caindo sobre o chão rolava espumando.
21 καὶ ἐπηρώτησεν τὸν πατέρα αὐτοῦ Πόσος χρόνος ἐστὶν ὡς τοῦτο γέγονεν
αὐτῷ; ὁ δὲ εἶπεν Ἐκ παιδιόθεν·
21 Jesus perguntou ao pai do menino: - Quanto tempo é que isto tem acontecido
a ele? E ele disse: - Desde a infância;
22 καὶ πολλάκις καὶ εἰς πῦρ αὐτὸν ἔβαλεν καὶ εἰς ὕδατα ἵνα ἀπολέσῃ αὐτόν· ἀλλ’
εἴ τι δύνῃ, βοήθησον ἡμῖν σπλαγχνισθεὶς ἐφ’ ἡμᾶς.
22 e muitas vezes o tem lançado no fogo e na água, para o matar. Mas, se algo
tu podes fazer, nos ajude, tenha compaixão de nós.
24 εὐθὺς κράξας ὁ πατὴρ τοῦ παιδίου ἔλεγεν Πιστεύω· βοήθει μου τῇ ἀπιστίᾳ.
24 Imediatamente, clamando, o pai do menino passou a dizer: - Eu creio! Ajude-
me na minha falta de fé!
26 καὶ κράξας καὶ πολλὰ σπαράξας ἐξῆλθεν· καὶ ἐγένετο ὡσεὶ νεκρὸς, ὥστε τοὺς
πολλοὺς λέγειν ὅτι ἀπέθανεν.
26 E ele, gritando e agitando-o muito, saiu, deixando-o como se estivesse morto,
a ponto de muitos dizerem: - Morreu.
12
28 καὶ εἰσελθόντος αὐτοῦ εἰς οἶκον οἱ μαθηταὶ αὐτοῦ κατ’ ἰδίαν ἐπηρώτων αὐτόν
Ὅτι ἡμεῖς οὐκ ἠδυνήθημεν ἐκβαλεῖν αὐτό;
28 Quando Jesus entrou em casa, seus discípulos lhe perguntaram a sós: Por
que nós não pudemos expulsá-lo?
Omanson chama atenção para a leitura das formas verbais no singular, a saber,
ἐλθὼν e εἶδεν, que dá destaque a Jesus, enquanto o plural requer que se faça uma
distinção entre “eles” (Jesus, Pedro, Tiago e João, que retornavam do monte da
13
em um momento crítico. Para Lane (1974, p. 330), Marcos deseja enfatizar que a
própria pessoa de Jesus provoca espanto e não algo particular do evento em si.
Ὦ γενεὰ ἄπιστος, pode ser traduzido como geração incrédula ou geração sem
fé. Mas afinal de contas, a quem Jesus estava se dirigindo ao proferir estas palavras?
É muito interessante a análise textual de Voelz, onde primeiro ele destaca a
importância do uso do tempo presente do indicativo em λέγει, chamando a atenção do
povo. Mas quem seria a geração incrédula? Os discípulos, por sua falta de habilidade
para exorcizar? A multidão, por ver Jesus, essencialmente, como um fazedor de
milagres? As duas coisas, por não verem Jesus como Yahweh vindo visitar o seu
povo? Seriam os contemporâneos de Jesus, por sua incompreensão geral sobre ele?
De acordo com Voelz, todos estes estão em vista, mas com um foco principal nos
discípulos. (VOELZ, 2019, p. 666)
Lenski enfoca o sentimento profundo expresso em palavras por Jesus. Onde
através das palavras, Jesus expressa todo o seu desapontamento. Apesar de
“geração” se referir a todo povo do tempo de Jesus, o grande ponto é o fracasso dos
nove discípulos. O Senhor Jesus repreende seus discípulos pela falta de fé. É sua
falta de fé que os impediu de expulsar o espírito maligno. Essa repreensão é seguida
por uma ação imediata, quando Jesus diz: “Traga-o a mim!”. O comando é para os
discípulos que tentaram curar o menino e falharam. (LENSKI, 1964, p. 377-378)
V.20-22: 20E o trouxeram a ele. Quando ele viu Jesus, o espírito logo
convulsionou o menino, e caindo sobre o chão rolava espumando. 21
Jesus perguntou ao pai do menino: - Quanto tempo é que isto tem
acontecido a ele? E ele disse: - Desde a infância; 22 e muitas vezes o tem
lançado no fogo e na água, para o matar. Mas, se algo tu podes fazer, nos
ajude, tenha compaixão de nós.
demais casos de possessões retratados nos Evangelhos e suas causas nas pessoas.
(LENSKI, 1964, p. 379)
No versículo 21, pode-se entender a pergunta de Jesus não se referindo a um
diagnóstico ou algo assim, mas como manifestação de cuidado, compaixão e
preocupação com o menino. Jesus o vê como uma ovelha sem pastor. No versículo
seguinte, o pai do menino relata as dificuldades enfrentadas com seu filho, como
incidentes que poderiam ter tirado a vida do menino. Lenski relata que o objetivo de
Jesus é alcançado, quando o pai clama pela ajuda de Jesus. Nesse ponto, o pai está
pedindo mais do que pediu aos discípulos. Ele está pedindo pela ajuda divina e isso
requer fé em Jesus como ajudador divino. É necessário lembrar a decepção que
aquele pai passou quando os nove discípulos de Jesus não conseguiram realizar
nada. O homem apela para a compaixão de Jesus e nesse pedido, ele inclui toda sua
família. (LENSKI, 1964, p. 380)
a sua angústia por ser solicitado a manifestar uma fé radical. Entretanto, a descrença
é a forma da existência humana. Sua confissão é ambivalente, pois por mais que
estivesse ansioso de ver seu filho libertado, ele também faz um pedido sincero de
ajuda. Ele sabe que naquele ponto, sua fé é fraca e está prestes a falhar. Embora sua
fé seja fraca e imperfeita, ele confia em Jesus e no seu poder de libertar o seu filho.
(LENSKI, 1964, p. 381-382)
ressurreição neste Evangelho, após Jesus ressuscitar a filha de Jairo (Mc 5:35-43).
Essa possibilidade não deve ser descartada, especialmente porque em ambos os
casos os espectadores têm a impressão de que a morte realmente ocorreu. Além
disso, o vocabulário de morte e ressurreição desses versos é impressionante: "morto
... morreu ... ressuscitado ... ressuscitou" (νεκρὸς, ἀπέθανεν, ἤγειρεν, ἀνέστη) (Mc
9.26-27). Os dois verbos usados no versículo 27, ἤγειρεν, ἀνέστη também são usados
para denotar ressurreição. Se for este o caso, então uma ressurreição ocorreria em
ambas as metades deste Evangelho, com a segunda, que segue um exorcismo e
ocorre diretamente após a transfiguração, fornecendo uma demonstração vívida de
que "o reino e governo de Deus já veio em poder". Mesmo que esta interpretação não
seja adotada, no entanto, a linguagem forte observada acima confirma a declaração
final da paixão e ressurreição de 8:31, que a missão de Cristo como o Filho do Homem
termina com a ressurreição, e confirma o que é visto na transfiguração (9:2-8), a saber,
que o triunfo final finalmente ocorrerá. (VOELZ, 2019, p. 673)
eles devem fazer em relação aos espíritos imundos? A resposta está em 9:22-24 e no
exemplo do pai do menino possuído pelo espírito imundo. O pai do menino se volta
para fora de si mesmo e se orienta para o Divino - para Jesus, que é Deus. Nesse
ponto, nota-se que os discípulos tentaram operar por conta própria enquanto Jesus
estava no monte da transfiguração, assim como Arão, quando fez o bezerro de ouro
enquanto Moisés estava no Monte Sinai falando com o Senhor, e é por isso que eles
são incapazes de libertar o menino dessa escravidão, pois confiaram no seu próprio
poder e não no poder de Deus. (VOELZ, 2019, p. 673-674)
Tradução própria:
Certa vez, durante a vida do Dr. Martinho Lutero, uma jovem foi trazida a
Wittenberg, que muitas vezes era atormentada pelo diabo. E uma carta foi escrita ao
Dr. Lutero para que ele salvasse e resgatasse esta jovem. Dr. Lutero, perguntou a ela
naquele momento se ela poderia dizer sua fé [o credo]. Ela respondeu: “Sim”. Ela não
conseguiu chegar ao segundo artigo, pois começou a convulsionar. Então o Dr. Lutero
falou: “Eu lhe conheço bem, demônio. Você realmente gostaria que alguém
organizasse uma grande cerimônia e o celebrasse muito. Você não encontrará nada
disso comigo”. Então Lutero mandou trazê-la para seu sermão na igreja no dia
seguinte e depois fosse levada para a sacristia, e ele disse aos outros servos da igreja
para irem à sacristia também. No outro dia, após o sermão, levaram a jovem para a
sacristia. Então, Lutero disse aos servos da Igreja, estudantes e futuros pregadores
da Palavra que observassem e na mesma situação, não fizessem nada diferente.
que não suporta orações e desprezo, mas deseja uma cerimônia. Portanto,
ninguém deve fazer uma cerimônia a ele, mas deve desprezá-lo o máximo
possível”.
3. Dr. Lutero disse mais: “Aquele que quer expulsar o diabo, deve fazê-lo
através da oração, de uma maneira que não prescreva ao Senhor Cristo
nenhuma regra, nem meio ou maneira, nem tempo, lugar ou modo que Ele
deve expulsar o diabo, pois isso é tentar Deus. Mas nós persistimos na
oração tanto, batemos e chamamos à porta por tanto tempo, até que Deus
ouça a nossa oração como Ele mesmo diz: ‘pedi e dar-se-vos-á, buscai e
achareis, batei e abrir-se-vos-á’ (Mt.7).
4. O Dr. Lutero impôs as mãos sobre a virgem, assim como alguém coloca
as mãos sobre aqueles que estão sendo ordenados e consagrados à
pregação. E ele ordenou aos servos para que fizessem o mesmo, e
comandou que dissessem depois dele: a) O Credo dos Apóstolos; b) O Pai
Nosso; c) Depois o Dr. Lutero disse estas palavras: Jo 14, “’Em verdade,
em verdade vos digo, tudo aquilo que pedires ao meu Pai em meu Nome,
isto Ele vos dará. Até agora não pedistes nada em meu nome. Pedi e
recebereis, e vossa alegria será completa’”. Depois disso, Lutero pediu para
que Deus, em seu poder, resgatasse e salvasse aquela pobre jovem do
espírito maligno, em nome de Cristo, a fim de que fosse louvado, honrado e
glorificado. Após esta oração e advertência, ele se afastou da moça e a
empurrou com o pé e zombou de Satanás, dizendo: “Seu demônio
orgulhoso, querias que eu fizesse uma cerimônia para ti, mas não
experimentarás isso. Faça o que quiseres, eu não desistirei”. Após este
procedimento, eles levaram a jovem no dia seguinte para casa. E depois
eles escreveram e relataram várias vezes ao Dr. Lutero e outros que o
espírito maligno depois disso não mais atormentou e convulsionou a garota
como antes.
Conforme foi visto na exegese de Marcos 9.14-29, pode-se notar que a atitude
de Lutero e a forma como ele aborda a jovem possessa confere com o ensino de
Jesus aos discípulos. O poder é de Jesus Cristo, ele é o exorcista, e isto deve ficar
claro para todos que são chamados a exorcizar em nome de Jesus Cristo.
24
espírito, não possui corpo e para apresentar-se ao homem, precisa assumir uma
forma visível conforme o seu objetivo. A este ponto, já fica claro e se responde àquela
clássica pergunta sobre a existência de um diabo com chifres, cabeça de bode, cauda,
casco, unhas e asas de morcego, conforme as representações literárias e populares.
(AMORTH, 2013, p. 9)
De acordo com Amorth, o diabo, assim como a raiz de seu nome, significa
“aquele que divide”, “acusador”, “caluniador”. Tendo Satanás se afastado de Deus,
também tende a querer afastar as outras criaturas do caminho da salvação e acabem
por sofrer a mesma punição que ele. O esforço do diabo está em agir para que toda a
criação se rebele contra o seu Criador. Segundo Amorth, podemos dividir as ações do
diabo em duas vias: a via ordinária e a via extraordinária. (AMORTH, 2013, p. 10)
Amorth diz que a missão do diabo é explicada claramente por Pedro: “O vosso
inimigo, o Diabo, é como um leão rugindo em torno, procurando a quem devorar” (1
Pedro 5.8). A palavra “devorar” pode ser interpretada como “causar dano”, “levar à
perdição”. Em outras palavras, a missão do diabo é conduzir os seres humanos pelo
caminho da perdição do pecado. O caminho principal, a via mestra pela qual ele age,
é a tentação. Segundo Amorth:
Não deve surpreender a minha afirmação de que a via ordinária faz mais
vítimas do que a via extraordinária, sobre a qual falaremos adiante. Por meio
da primeira, todos somos vítimas; por meio da via extraordinária, somente
algumas pessoas, além disso, muitas vezes sem culpa própria e, portanto,
sem responsabilidade moral. A tentação nos assalta todo santo dia. Até Jesus
aceitou sujeitar-se a ela durante os quarenta dias que passou no deserto,
após ter sido batizado no Jordão (cf. Mateus 4,1ss), e também depois disso.
Tenta-nos Satanás agindo em nossa esfera natural, isto é, ora levando em
conta nossas feridas interiores e a fraquezas de cada um, ora por meio das
ocasiões próximas de pecado que se apresentam a todos. (AMORTH, 2016,
p. 95)
1) A possessão diabólica
Amorth afirma que também existem possessões múltiplas, onde vários espíritos
demoníacos atuam na mesma pessoa. Temos um exemplo disto no relato de Marcos,
quando Jesus se depara com um endemoninhado possuído por uma legião de
demônios (Marcos 5.1-20). Esse termo “legião”, lembra a organização militar romana
e sugere uma realidade nessas possessões múltiplas: espíritos demoníacos
organizados hierarquicamente, como uma legião militar. Sim, os demônios possuem
uma organização interna: existem os chefes, subchefes e os soldados. Cada um
dotado de um poder específico. O exorcismo só pode ser declarado como eficaz após
ser expulso o chefe daquela possessão múltipla, o líder supremo da legião, aquele
que os próprios demônios temem. (AMORTH, 2016, p. 105)
Porém, não vamos ir muito mais longe, pois não é o objetivo da pesquisa e
estaríamos indo para a área de estudo da demonologia.
2) A vexação diabólica
3) A obsessão diabólica
4) Infestação diabólica
Diante de uma resposta negativa, é útil saber — embora muitas vezes seja
difícil fazê-lo concretamente — se, nessa mesma casa, em épocas passadas,
foram realizadas sessões espíritas, rituais de magia, reuniões de seita
satânica ou maçônica ou coisas similares. Também, neste caso, são úteis a
bênção da casa e a bênção dos objetos, e os exorcismos localizados, ainda
que geralmente sejam muito longos, difíceis e complicados de realizar. Nos
casos mais graves, cabe-me aconselhar às pessoas envolvidas que se
mudem da casa. Às vezes, nas novas moradias nenhum destes fenômenos
se manifesta. Em outros casos, porém, as vexações continuam. (AMORTH,
2016, p. 111-112)
32
Lutero acredita que os seres humanos vivem suas vidas entre Deus e o diabo.
O pensamento de Lutero é dualista na medida em que, na questão da salvação, ele
afirma que quem não está sob o poder do Espírito Santo está sob o poder do diabo.
O diabo tenta os seres humanos a pecar e coloca pensamentos malignos em suas
mentes, mesmo assumindo-os. Ele está por trás da heresia e do falso ensino. O diabo
também trabalha em tudo o que contradiz a vontade de Deus para sua criação e,
portanto, pode ser visto em melancolia, doença e morte. Mas esse “dualismo” de
Lutero é, no entanto, bem limitado. Em última análise, todas as experiências, sejam
elas boas ou ruins, vêm da mão de Deus. No final de tudo, Satanás serve aos
propósitos de Deus, sendo o inimigo, mas também o instrumento da obra de Deus.
Deus o mantém em seu serviço e o usa em seu trabalho. Pode-se dizer que o diabo
é o “diabo de Deus”. Enquanto Satanás tem como propósito destruir e trazer
sofrimento, o propósito de Deus é sempre salvar. Mas como podemos “lutar” contra
8 Para algumas pessoas, o termo "guerra espiritual" soa muito militarista. O termo, é claro, tem uma
longa tradição na igreja e não pode ser abandonado, já que grande parte dos textos do NT usa a
linguagem da guerra e da batalha. A batalha espiritual que todos os cristãos são chamados a se
envolver contra os poderes das trevas é claramente descrito por Paulo em Efésios 6:10-20.
9 Disponível em: <https://www.lca.org.au/departments/commissions/cticr/>
33
O período da ortodoxia luterana foi uma era que começa em 1580 e vai até o
início do iluminismo. Um de seus maiores marcos é a composição do Livro de
Concórdia. O artigo “Possessão Demoníaca e Exorcismo na Ortodoxia Luterana,”12
de Benjamin T. G. Mayes, traz traduções de textos desse período. Com o objetivo de
que sejam utilizados como recursos para a reflexão contemporânea sobre o
diagnóstico adequado e o cuidado pastoral em casos suspeitos de possessões
demoníacas, com base na teologia pastoral luterana clássica.
Primeiramente, Mayes traz uma definição de possessão demoníaca dada por
Johann Ludwig Hartmann13:
10 Ver Althaus, 161-168, esp. p 165, por sua exposição da compreensão de Lutero sobre o diabo e
nossa posição entre Deus e Satanás.
12 Todos os textos que forem citados nesta parte, seja de forma direta ou indireta, estão originalmente
em inglês. Todas as traduções são próprias.
13 Johann Ludwig Hartmann (nascido em 3 de fevereiro de 1640, na cidade de Rothenburg ob der
Tauber, faleceu em 18 de julho de 1680) foi um teólogo luterano alemão e escritor popular.
34
Em geral, a possessão satânica nada mais é do que uma ação do diabo pela
qual, com a permissão de Deus, os homens são impelidos a pecar e ele ocupa
seus corpos para que percam a salvação eterna. Assim, a possessão corporal
é uma ação pela qual o diabo, com permissão divina, possui tanto homens
crentes quanto não-crentes. Habitando assim seus corpos não apenas de
acordo com o seu agir, mas também de acordo com a sua essência,
atormentando-os, seja para a punição ou para a disciplina e provação dos
homens, e para a glória da justiça divina, misericórdia, poder e sabedoria.
(HARTMANN apud. MAYES, 2017, p. 331)
maio de 1627 em Wittenberg) foi um teólogo luterano alemão que lecionou na Universidade de
Wittenberg.
35
Walther traz uma lista de sintomas para identificar uma possessão demoníaca
genuína, a lista de sintomas de Quenstedt16. Ele ainda afirma que esses sinais ou
sintomas, não ocorrem ao mesmo tempo. Em um mais, em outro menos. Por isso é
importante a análise da situação para não taxar uma pessoa simplesmente doente
como endemoniada e possessa. (WALTHER, 2011, p. 157).
Walther ensina para seus alunos que somente Deus tem o poder de expulsar o
diabo. O homem não é capaz de fazer tal façanha. Ele cita Lutero, que diz:
Então, o que Walther recomenda para cristãos que foram possuídos? Segundo
Bennett, os teólogos luteranos em geral aceitaram a possibilidade da possessão
demoníaca de cristãos por espíritos malignos. Como por exemplo, Walther, Baier,
Quenstedt, Balduin, e Fecht, mas não deve se limitar exclusivamente a eles. Para o
cristão que sofre possessão demoníaca, Walther recomenda os escritos de Balduin e
Fecht, ambos que propõem que receba da Ceia do Senhor e a Absolvição dos
pecados durante as "horas lúcidas" entre os ataques. Walther enfatiza que onde Jesus
está, o diabo foge. Na Ceia do Senhor, Jesus prometeu estar presente na forma única
de seu corpo e sangue para o perdão de todos os pecados. Onde o pecado é
perdoado, Satanás não tem poder e é esvaziado de seu poder e da esperança de
vitória. (BENNETT, 2013, p. 189)
Para Bennett, pode-se concluir o pensamento de Walther com dois pontos
importantes: Primeiro, ele reconhece que a possessão demoníaca continua a ocorrer
ainda hoje. Em segundo lugar, ele aponta que o mundo moderno onde vivemos não
aceita essa verdade. (BENNETT, 2013, p. 190)
Franz Pieper foi um pastor e teólogo luterano. Foi também presidente da Igreja
Luterana - Sínodo de Missouri. O trabalho de sua vida foi Christliche Dogmatik. Ambos
os seminários atuais da Lutheran Church - Missouri Synod (LCMS), continuam a usar
este trabalho como base do conteúdo sistemático. No capítulo que trata da
Angelologia, Pieper descreve a atividade diabólica. (BENNETT, 2013, p. 190-191)
Durante a criação, os demônios foram criados como sendo anjos bons, mas no
decorrer dos seis dias da criação, houve a sua queda. Pieper enfatiza que esses anjos
não podem ser remidos, pois o lago do fogo eterno já está reservado a Satanás e os
seus anjos. (Mt 25.41) Não se sabe o momento exato da queda dos anjos. Porém,
sabe-se que ocorreu em algum momento após os seis dias da criação; uma vez que
o homem caiu por consequência da tentação do diabo. (PIEPER, 1950, p. 505)
As Escituras relatam as atividades desses anjos maus com o objetivo de
informar e alertar os cristãos. Pieper coloca em termos sistemáticos alguns pontos
que merecem destaque. A obsessio spiritualis17, que consiste em um estado no qual
todos aqueles que não creem que o sangue de Cristo nos lava de todos os pecados
estão com as almas cativas pelo diabo. O status incredulitatis18 onde a incredulidade
de todas as nações pagãs e pessoas descrentes, é uma obra de Satanás e deve ser
vista como resultado da obsessio spiritualis. Por conta disso, essas pessoas não
creem no Evangelho e inclusive, não acreditam no poder diabólico. (PIEPER, 1950,
p.509)
17 Possessão espiritual.
18 Estado de incredulidade.
38
Também os filhos de Deus podem ser afligidos por este tipo de possessão;
através dela o diabo, sob a autorização de Deus, possui uma pessoa,
pessoalmente entrando em seu corpo e privando o indivíduo do uso de sua
razão e vontade, tornando-se assim, instrumento involuntário de Satanás. A
personalidade humana não funciona mais; o diabo em pessoa se torna o
sujeito ativo. O endemoniado não é mais responsável por suas ações.
(PIEPER, 1950, p. 510)
19
Entendido como livre de ser coagido.
39
Pois de fato, as Escrituras não prometem que Satanás e seus demônios seriam
incapazes de possuir e assediar as pessoas, mesmo nos tempos atuais. No entanto,
Gibbs pontua que embora a realidade dos espíritos malignos seja aparente em todo o
AT e NT, os relatos de possessão demoníaca estão concentrados principalmente nos
Evangelhos. Pode-se observar, que de fato, existem poucos relatos que poderíamos
chamar de possessão demoníaca no Antigo Testamento. Em contraste a isso, há uma
ênfase muito grande na atividade demoníaca nos Evangelhos, onde Jesus traz a
mensagem da salvação e a promessa futura do reino de Deus. Cautelosamente
sugere-se que o diabo colocou intensamente as suas forças durante o tempo em que
o Filho de Deus estava trazendo o reino de Deus para perto. Repelindo assim a todas
as investidas satânicas, com sua morte e ressurreição, fazendo com que as hordas
diabólicas batessem em retirada. No entanto, a Bíblia não declara que coisas como
opressão ou possessão sejam impossíveis nos dias de hoje, principalmente em locais
onde o Evangelho não foi amplamente proclamado. Porém, agora vivemos na
confiança da vitória de Cristo sobre o diabo. (GIBBS, apud. BENNETT, 2013, p. 201-
202)
Até aqui, as conclusões de Gibbs foram de acordo com todos os outros
argumentos de teólogos e pastores luteranos apresentados neste trabalho. Porém,
Gibbs discorda de todos eles ao dizer que não há a possibilidade de possessão de
cristãos batizados:
O que fica claro em outras partes do Novo Testamento é que todos os crentes
batizados em Cristo receberam o Espírito de Deus e são filhos preciosos de
Deus, com Cristo vivendo dentro deles (Rm 8: 12-17; 1 Co 12: 3; Gl 2:20; 4:
4-7; Cl 1:27; 1 Jo 4: 4). Portanto, nenhum cristão jamais poderia ser habitado
ou possuído por demônios, ou necessitar de algum exorcismo, como vemos
especialmente nos Evangelhos Sinóticos, incluindo Mt 8: 28-32. Os filhos de
Deus certamente estarão sujeitos às tentações e ataques de Satanás. No
entanto, não precisamos temer a possessão demoníaca. Pois somos os
seguidores de Jesus, que vive dentro de nós e cuja autoridade é
incomparavelmente maior do que qualquer força demoníaca (1 Jo 4: 4).
(GIBBS, 2006, p. 453)
que se reúnem diante do altar do Senhor são cristãos verdadeiros. Alguns se reúnem
por outras razões. Essas pessoas parecem ser cristãs em suas maneiras de vida, mas
internamente permanecem entre os incrédulos; poderiam esses ser aqueles que estão
sujeitos à possessão demoníaca, embora sejam batizados. Porém, assim como é
impossível saber a fé de alguém, também é impossível responder sem dúvida se os
verdadeiros cristãos podem ser possuídos. (BENNETT, 2013, p. 203)
Os autores luteranos analisados afirmam a realidade de Satanás, demônios e
possessão diabólica. Embora em muitos casos o modernismo e o racionalismo
tenham enfraquecido essa verdade, ele permaneceu sendo um ensinamento luterano
confessional. Desde a formação da Igreja Luterana - Sínodo de Missouri, tanto
Walther como Pieper continuaram a advertir aqueles que rejeitaram as ações de
Satanás e a possessão diabólica como superstições ou histórias de faz de conta.
Teólogos exegéticos modernos, como Lenski e Gibbs, continuam a alertar sobre ação
diabólica através de seus comentários bíblicos. (BENNETT, 2013, p. 203)
Por isso fica o alerta: Satanás está ativo e a possessão diabólica continua a ser
um problema pastoral que a Igreja deve enfrentar na vida de seu povo. Como diz
Pedro: “Sejam sóbrios e vigilantes. O inimigo de vocês, o diabo, anda em derredor,
como leão que ruge procurando alguém para devorar”. (1 Pedro 5:8)
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMORTH, Gabriele. Exorcistas e Psiquiatras. São Paulo: Palavra & Prece, 2008
AMORTH, Gabriele. Vade Retro Satanás!. São Paulo: Canção Nova, 2013
LANE, William. The New International Commentary on the New Testament: The
Gospel of Mark. Grand Rapids: W. B. Erdmans, 1974. 678p.