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CURITIBA
2010
NATALINO DAS NEVES
CURITIBA
2010
AGRADECIMENTOS
Depois de Deus, minha família: minha esposa Claudneia Gomes das Neves,
meu filho Natalino das Neves Junior e minha filha Nataly Gomes das Neves.
Um especial agradecimento aos meus pais: meu pai, Bevenute das Neves (in
memorian), que me ensinou o respeito e consideração aos demais seres humanos e
à minha mãe, Maria Francisca Dantas das Neves, que mesmo não alfabetizada
sempre me incentivou para estudar e buscar novos conhecimentos.
Sou grato ao meu orientador: Prof. Dr. Luiz Alexandre Solano Rossi, pela
orientação, amizade, paciência em me conduzir na elaboração desta dissertação e
por ter acreditado que eu seria capaz de concluí-la.
“Gosto de ser gente por que, inacabado, sei que sou um ser condicionado,
mas consciente do inacabamento, sei que posso ir mais além dele”.
Paulo Freire
RESUMO
INTRODUÇÃO
Deus - IEAD) e pedagógica (Paulo Freire), visando uma reflexão sobre o papel da
educação na formação social e teológica do ser humano.
O Livro de Jó, cujo personagem principal leva o nome do livro, vive situações
de tristeza e sofrimentos ao perder seus bens, família e saúde. Essa situação o
conduz à solidão, medo e falta de perspectivas, chegando ao limite de tolerância de
um ser humano. O maior sofrimento é causado pelo desconhecimento do motivo de
sua dor, isso o leva a questionar sua situação e os conceitos até então aceitos por
ele. Tais conceitos eram propagados e mantidos por meio de uma ideologia
legitimada pela própria religião vigente, representada pelos “amigos” de Jó, que o
visitam no momento de dor e aflição. No entanto, em seus discursos defendem o
sistema de dominação e a religião em vigor.
oprime e controla, por meio de uma educação que serve como instrumento de
domesticação, chamada por Freire de educação bancária, e o segundo grupo
representada pela maioria oprimida e alienada.
PROBLEMA DE PESQUISA
Desde a antiguidade, tanto nos registros seculares como nos textos bíblicos e
teológicos, fica evidenciado o papel da educação na formação dos povos,
influenciando ou sendo influenciada pelo meio, servindo como instrumento de
manutenção das práticas existentes ou para implementação de novas práticas, em
benefício dos interesses daqueles que detinham o poder.
OBJETIVO GERAL
1
Para mais detalhes sobre a CPAD, ver seção 5.2.1 desta dissertação.
18
OBJETIVOS ESPECÍFICOS
JUSTIFICATIVA
DELIMITAÇÃO DA PESQUISA
ORGANIZAÇÃO DO ESTUDO
1 O LIVRO DE JÓ
Esse livro é uma obra especial dentre as literaturas sapienciais de Israel, pois
apresenta uma busca da sabedoria de vida, a partir de um questionamento da
ideologia predominante que possibilitava ao leitor o entendimento do modo sábio de
se viver livre da dominação e em comunhão divina, isento de culpa e
constrangimento espiritual.
Vários autores, como exemplo Rossi (2005, p. 9-12), Storniolo (200, p. 7-9),
Terrien (1994, p. 8-9) e Gradl e Stendebach (2001, p.111), afirmam que o livro
contém de um lado uma parte textual em prosa (Jó 1-2; 42.7-17), que serve como
moldura do livro, e do outro lado a parte textual em forma de poesia (Jó 3.1 a 42.6),
como parte central do livro, sendo os capítulos 28 e 32 a 37, além de Jó 42.12-17,
acréscimos posteriores.
Storniolo (2008, p. 19-53) divide o livro como se fosse uma peça teatral, em
atos e monólogo. Apresenta uma proposta de estruturação para o Livro de Jó,
conforme abaixo (2008, p. 10-11):
• Prólogo (1-2)
• Monólogo de Jó (29-31)
• Epílogo (42,7-17)
dissertação dará ênfase à parte poética e central do livro que descreve os discursos
de Jó e seus “amigos”, representantes da Teologia Sapiencial da época.
Rossi (2005, p. 12, 24) o assemelha a um quadro, pelo fato de estar inserido
em uma moldura. Entretanto, os dois autores têm a mesma visão, um livro bíblico
que expressa o confronto do homem com o Deus da religião vigente. Rossi (2005,
p.10) afirma que “estamos diante de um dos mais extraordinários e impressionantes
testemunhos da fé do Antigo Testamento”.
Rossi (2005, p. 12, 22) afirma que Jó era proverbial entre os judeus exilados.
Para Terrien (1994, p. 7) era um tipo lendário que passava por um modelo de
piedade. Portanto, esta antiga lenda é utilizada para fazer parte da moldura do livro
em forma de prosa (Jó 1-2; 42.7-11). Shreiner (2004, p. 345) afirma que não é
possível definir se o texto antigo foi total ou parcialmente absorvido pelo autor do
livro.
Segundo Frei Beto (2010), "nossa visão do mundo interfere em nossa visão
de Deus, assim como o modo de concebermos Deus influi na visão que temos da
vida e do mundo". Por trás de todo texto, quer seja teológico ou não, existe
determinado contexto histórico que precisa ser compreendido para uma correta
interpretação da mensagem que o autor busca transmitir.
Rossi (2005, p.13-14; 2008, p. 24) discorda desta afirmação e coloca a data
da escrita do livro por volta dos anos 450 a 350 a.C., período de dominação do
império persa. Ternay (2001, p. 14) também concorda com essa opinião e situa a
composição do livro na primeira parte do século V a. C., enquanto que Terrien (1994,
p. 27) afirma que o autor não poderia ter vivido antes do século VI a. C.
Esta vasta literatura era produzida pelos chamados sábios que, antes do
exílio da Babilônia, eram ligados à corte de Jerusalém, e depois do exílio ao
templo e sinagogas. Os sábios formavam uma classe educada que vivia de
serviços prestados aos reis da época. Eram profissionais, sabiam ler e
escrever, inclusive em vários idiomas. A sua função mais importante era
aconselhar os reis. Os sábios tinham que defender o rei, não ofendê-lo e
nem provocar sua ira. Na época, a literatura sapiencial, ajudava na
orientação dos jovens sobre atitudes, deveres e conhecimentos úteis.
dos impérios dominadores anteriores que aceitavam uma parte dos produtos da
agricultura e rebanhos como forma de pagamento. Emerge nesse período a
cunhagem da moeda e sua acentuada utilização na economia .
Rossi (2009, p. 116) afirma que “no início e durante grande parte do período
persa, Judá foi o mais pobre, o menos populoso e o mais isolado dos territórios ao
redor”. Judá estava na categoria da satrapia “além do rio”, obrigada a pagar tributo,
além de fornecer ao Império taxas fixas de cereais, animais, armas, recursos
humanos e alimentação para tropas do exército persa. O povo tinha certa liberdade
religiosa, mas era subjugado com pesados tributos e taxas para manter o poder
central do império persa (ROSSI, 2009, p. 114-116).
A segunda exploração que a comunidade judaica sofria se dava por meio dos
ricos comerciantes ligados às famílias dos chefes dos sacerdotes que controlavam o
templo e eram responsáveis por arrecadar os impostos, estipulados em ouro e que
deviam ser pagos em moeda. Os camponeses eram obrigados utilizar esse sistema
de câmbio para transformar seus produtos em moeda para pagamento dos impostos
(ROSSI, 2005, p. 14-15; 2008, p. 25-37).
Esse sistema de dominação tinha que ser sustentado por uma ideologia que
evitasse a revolta dos explorados e oprimidos. Segundo Tünnermann (2001, P. 27-
30), a tolerância religiosa e cultural dos persas favorecia a aproximação e a
cumplicidade dos líderes e religiosos das nações subjugadas, cúmplices da
exploração que levou um significativo número de pessoas da população à pobreza,
miséria e escravidão.
Rossi (2008, p.36), afirma também que “[...] o império persa sugava a vida do
povo”, e como os líderes do dogma da retribuição participavam do sistema, eram
além de cúmplices, executores dessa política de morte. Portanto, sustentavam uma
teologia que era contra a vida, em nome de Deus.
31
Ainda de acordo com Rossi (2009, p. 118), pelo controle do templo, os sumos
sacerdotes e familiares se tornavam cada vez mais poderosos e dominadores. Eram
os executores das diretrizes ditadas pelo império persa, mantendo uma parte dos
produtos arrecadados no próprio templo e a outra parte era vendida para pagamento
de tributo aos persas.
Por outro lado, segundo Rossi (2009, p. 119), a cobrança injusta de tributos
não era o principal problema dos camponeses, e sim o tipo de relação comercial
com o rico, que emprestava dinheiro ao pobre com juros exorbitantes, levando-o à
situação de miserabilidade e fome: “o papel do tributo foi só o de revelar e acelerar o
que já existia no contexto específico das relações de classe da sociedade judaica”.
Segundo Tünnermann (2001, p. 142), “[...] A menção das mulheres não deve
ser considerada uma simples casualidade, especialmente porque na obra de
Esdras-Neemias elas estão em segundo plano”. Para entender a indignação das
mulheres, numa sociedade na qual elas não tinham voz, é necessário analisar o
ocorrido durante a construção do muro de Jerusalém, em que os homens haviam
sido convocados para o trabalho e as mulheres ficaram sozinhas e na miséria, sem
comida e com os filhos e filhas sendo penhorados pelas dívidas.
De acordo com Rossi (2005, p. 15), esta personagem não entra no texto sem
uma pretensão do autor, mas sim para representar uma parcela do grupo que sofria
opressão e dominação pelo Império Persa e dos líderes religiosos de Israel: “[...] Os
40 capítulos que compõem o núcleo do livro se apresentam como um eco do
protesto das mulheres em Neemias 5,1-5. E a mulher de Jó é apresentada pelo texto
como um contra discurso”.
Não obstante todo esse sofrimento, Tünnermann (2001, p. 142) afirma que
provavelmente as filhas empenhoradas pelas dívidas, originadas pelo sistema
injusto de cobrança de tributos do império persa, eram abusadas sexualmente e
humilhadas pelos poderosos. As mulheres judias não podiam ficar caladas diante de
tal situação.
Para Rossi (2005, p.17), essa atitude era considerada uma afronta contra
Deus: “[...] Protestar contra a injustiça era não confiar na justiça de Deus. Pior, era
não aceitar o plano de Deus e, portanto, amaldiçoá-lo”.
Rossi (2005, p. 9-12) adverte que deve ficar bem clara a distinção entre os
discursos de Jó e de seus amigos, identificando a motivação de cada um dos
discursos para entender a que se propõem seus autores.
A seguir a ênfase será dada nos discursos dos três “amigos”: Elifaz, Bildade e
Zofar e nas respostas de Jó.
Elifaz inicia a série de discursos dos “amigos” de Jó. Apresenta uma teoria
sobre o pecado e sofrimento para justificar a situação de Jó, com objetivo de
convencê-lo de que era culpado pelo seu próprio sofrimento. Para isso, acusa-o de
desanimado (Jó 4.2-11), impaciente (Jó 4.12-5.7) e aconselha-o a arrepender-se
(5.8-27).
37
Reflita agora: Qual foi o inocente que chegou a perecer? Onde os íntegros
sofreram destruição? Pelo que tenho observado, quem cultiva o mal e
semeia maldade, isso também colherá. Pelo sopro de Deus são destruídos;
pelo vento de sua ira eles perecem (BIBLIA DO MINISTRO, 2002, p. 402).
comenta que Elifaz não obtém êxito nesta prática com intenção de convencer Jó de
sua culpabilidade e submissão ao sofrimento como correção do pecado encoberto.
estava lhe concedendo para voltar a ser abençoado, oportunidade que sua família
não teve. Seu conselho, portanto, era para que Jó praticasse a religião interesseira,
sendo repetitivo em relação ao discurso de Elifaz (Storniolo, 2008, p.22).
Rossi (2005, p. 81) também comenta sobre essa ideia antecipada de um tipo
de morte e ressurreição, ainda que não fosse a crença da época. Entretanto a
situação do pobre e doente, que não podia se contentar com uma vida curta de
pobreza e doença, leva a criar novas possibilidades. Por isso, o autor de Jó defende
uma relação de amor entre Deus e o homem sem interrupção, uma nova esperança
além do aqui agora.
Segundo Storniolo (2008, p.24), até esse momento são apresentados três
desafios para o personagem de Jó: “Ou o inocente não é inocente, ou os filhos dele
são errados, ou ele próprio esconde um grande crime”. Resta a ele alguns
questionamentos, como exemplo: a quem recorrer? Se o pobre e o sofredor são
culpados da injustiça a que estão submetidos e o “deus do dogma” concorda com
isso, o que resta a não ser a morte?
Não foi somente a situação política, econômica e social que foi alterada
substancialmente, mas também os temas e práticas teológicas. Essas práticas
teológicas da religião vigente são identificadas nos discursos dos “amigos” de Jó,
enquanto que a busca de respostas para a situação de dor e sofrimento do povo de
Judá, camponeses que perderam seus bens, honra, filhos e filhas, não encontradas
na teologia sapiencial, é identificada nos discursos do personagem de Jó.
Jó não é mais o mesmo. Ele aprende a questionar o que lhe fora ensinado por
tanto tempo e tem uma nova experiência, começa a perceber que a liberdade de
pensamento é possível, bem como o contato com Deus sem barganha. Jó não
aceita mais essa educação que coloca Deus como um opressor e que não se
importa com o pobre e oprimido, passa a questionar o ensinamento recebido e
demonstra a sua inquietação. O Jó paciente, que aceita tudo mansamente, já não
existe. Ele passa a ser um inquiridor da teologia dominante e parte para a busca de
uma nova compreensão da realidade.
Rossi (2005, p. 111) comenta que Jó muda de estratégia e não aborda sobre
a sabedoria dos ancestrais, mas reporta a experiência dos viajantes, conforme
descrito em Jó 21.29. Ele descreve a felicidade do injusto, que tem família feliz, não
sofre, vive e morre em paz (Jó 21.7-13), e chega ao ápice do ultraje da educação
religiosa dominante quando afirma que tudo isso acontece exatamente porque o
injusto recusa Deus e seu projeto (Jó 21.14-16) e ninguém o julga. Complementa
afirmando que a morte iguala a todos: justos e injustos (Jó. 21.22-26). Isto
demonstra que a prédica é uma, mas que a prática é totalmente diferente do que é
ensinado.
44
Rossi (2005, p. 203) faz uma reflexão, um balanço de tudo o que ocorreu para
saber o que realmente serviu de aprendizado para Jó além do que ele já sabia, e
chega a seguinte conclusão: “a busca de uma justiça completa em um mundo onde
nem tudo é justificável é um puro erro. É, pois, deste erro que Jó se arrepende”.
Jó não é mais o mesmo. Agora ele aprendeu a questionar o que lhe fora
ensinado por tanto tempo e tem uma nova experiência, começa a sentir sua
liberdade de pensamento desabrochar. O oprimido está consciente da possibilidade
de sua emancipação.
2
Apresentado no texto como um dos anjos de Deus.
45
Paulo Freire, para identificar algumas práticas educacionais, cria uma nova
terminologia - educação bancária. Define essas práticas como essencialmente
narradoras e dissertadoras, onde o primeiro personagem, o educador, é o sujeito da
ação e exerce a função de narrar os conceitos preestabelecidos e dissertativos; o
segundo, objeto da ação, com a função de mero ouvinte passivo, apenas recebe os
depósitos dos conceitos para guarda e arquivo, chamado educando (FREIRE, 2005,
p. 65-66).
46
como simples recipiente, melhor será avaliado. Portanto, não há criatividade, não há
transformação, não há saber (FREIRE, 2005, p. 67-68).
O saber está nas mãos dos que se julgam e se promovem sábios e, por uma
dádiva, concedem seus saberes aos que julgam nada saber, recipientes vazios,
prontos para serem preenchidos. Os educandos, durante o processo de depósito e
arquivamento do conteúdo, são levados a reconhecerem sua ignorância e
dependência do sistema, e quanto mais se aprofundam nesta forma de educação,
menos consciência crítica terão e mais imersos no mundo da opressão estarão,
contribuindo assim para a manutenção do sistema de dominação.
Para Brittes e Amaral (2009, p. 3-4), o discurso não pode ser concebido fora
do sujeito ou do contexto histórico-social em que está inserido. Afirma que esta
concepção demonstra que “o professor não é a fonte absoluta do significado e do
sentido, uma vez que ele existe socialmente e é interpelado por aspectos do meio no
qual está inserido”.
interesses do grupo dominante. Este impõe sua autoridade por meio de ideologias
que acarretam na desumanização dos seres humanos.
A educação bancária produz uma falsa visão do ser humano como expectador
e não como recriador do mundo, como corpo consciente, mas com uma consciência
passiva aberta para enchimento permanente por uma realidade imposta com o
objetivo de transformá-lo em seu conteúdo bancário, tornando-o cada vez mais
passivo e adaptado ao mundo regido pelos opressores (FREIRE, 2005, p.75).
pensar e agir como sujeitos de sua própria ação, sentem-se incapazes de usar sua
consciência criativa e sofrem. Isto, segundo Freire (2005, p. 75), os conduzem à
submissão a pessoas ou grupos de manifestações populistas, com os quais se
identificam, produzindo líderes carismáticos que os representam nas suas atitudes
de poder e rebeldia, entre outros. O resultado possível é uma resposta do grupo
dominante com mais opressão em nome da paz e do restabelecimento da ordem.
do educando, não tem por objetivo ingênuo de que o grupo dominante mude suas
atitudes e, assim, causar uma revolução por meio dele. Mas busca alertar aqueles
que realmente desejam a humanização, que este conceito de educação não serve
para libertação tão almejada, sendo, portanto, necessário o rompimento com essa
filosofia de educação dominadora.
Freire (2005, p. 77) defende que a verdadeira liberdade “não é uma coisa que
se deposita nos homens. Não é uma palavra a mais, oca, mistificante. È práxis, que
implica a ação e a reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo” (grifo do
autor).
3
Moacir Gadotti, amigo e companheiro de trabalho de Freire, reconhecido autor e educador
brasileiro e um dos cinco diretores fundadores do Instituto Paulo Freire (Torres, 2003, p. 209).
52
Para Freire (1996, p. 49), “[...] ensinar vai além da transferência de saberes” e
suas obras demonstram o quanto a ética é importante para a transformação da
sociedade em um mundo melhor e mais justo para se viver. Ética que faz muita falta
na sociedade de consumo e valorização excessiva do ter em detrimento do ser,
como a atual. Os conceitos educacionais de Paulo Freire têm como base valores
éticos, defendem a dignidade e autonomia do ser humano, dentro de um contexto de
mudanças da realidade atual. Freire (1996, p. 14) sugere que o educador supere o
“cinismo de uma ideologia fatalista”.
Portanto, não há outra saída para uma sociedade mais justa a não ser por
uma educação emancipadora. Para tanto, é necessário desenvolver a consciência
crítica sobre a situação de opressão, superando o medo de mudar, na conquista da
independência emocional e do convencimento das massas. Afinal, o ser humano
não se liberta sozinho, mas na coletividade e a partir da sua própria experiência de
vida.
“Um tal Mr. Giddy”, diz Niebuhr, que foi posteriormente presidente da
sociedade real, fez objeções (refere-se ao projeto de lei que se apresentou
ao Parlamento britânico em 1807, criando escolas subvencionadas) que se
podiam ter apresentado em qualquer outro país: ‘Por especial que pudesse
ser em teoria o projeto de dar educação às classes trabalhadoras dos
pobres, seria prejudicial para sua moral e sua felicidade; ensinaria a
desprezar sua missão na vida, em lugar de fazer deles bons servos para a
agricultura e outros empregos; em lugar de ensinar-lhes subordinação os
faria rebeldes e refratários, como se pôs em evidência nos condados
manufatureiros, habilitá-los-ia a cristandade; torná-lo-ia insolentes para com
seus superiores e, em poucos anos, se faria necessário à legislatura dirigir
contra eles o braço forte do poder (FREIRE, 2005, p. 150).
Esse pensamento perfez o caminho no fio da história. É certo que hoje não se
usaria uma fala tão cínica e aberta, mas a sutileza não pode esconder a opressão de
quem realmente quer ver.
Para o êxito nesta ação faz-se necessário que os dominados reconheçam sua
“inferioridade” e, automaticamente, a “superioridade” do grupo dominante. Esse
reconhecimento provoca o desejo pelo modus dominanti, que resulta no “medo da
liberdade4” quando de uma possível emersão, conforme mencionado no início deste
capítulo.
4
Quando isso acontece, para aliviar a consciência, usam explicações mágicas ou para uma visão
falsa de Deus para transferir suas responsabilidades. Isso estimulado pela ideologia dominante
(FREIRE, p. 187).
55
Este modelo se replica nas instituições como família, escola, igrejas, entre
outras. E contribui para que as massas populares não alcancem uma criticidade da
realidade opressora, mantendo-se alienadas, o que dificulta a formação de uma
verdadeira liderança revolucionária.
Na educação bancária, os temas geradores são encobertos pelas situações-
limite, freando o ser humano para não transcendê-las e alcançar o inédito viável
(FREIRE, 2005, p. 106). Segundo Vasconcelos e Brito (2006, p. 179), para Paulo
Freire as situações-limite são:
[...] barreiras que o ser humano encontra em sua caminhada, diante das
quais pode assumir várias atitudes, como se submeter a elas, ou então, vê-
las como obstáculos que devem ser vencidos. Diante dessas barreiras,
pode unir a esperança com a prática e agir para que a situação se modifique
ou simplesmente se deixar levar pela desesperança. Para enfrentar as
situações-limites são necessários, atos-limites‟ [...] a fim de se romper com
as situações-limites. Estes atos-limites são necessários para que se possa
atingir o “inédito-viável”, ou seja, algo novo, tantas vezes sonhado e que,
através da práxis, pode se tornar realidade.
escrever sua história com palavras que lhe eram desconhecidas, mas que
pertencem à realidade em que se está inserido.
Segundo Freire (1997, p. 46), o ser humano deve “assumir-se como ser social
e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de
sonhos, capaz de ter raiva porque é capaz de amar. Assumir-se como sujeito porque
capaz de reconhecer-se como objeto”.
O ser humano distingue-se dos demais seres vivos, pela compreensão que
possui de si como ser inacabado, que necessita de educação. De outra forma esta
não existiria, pois a humanização acontece por meio do processo dinâmico da
educação que conduz à conscientização para libertação (FREIRE, 1979, p. 28).
Freire (2005, p. 26-29) afirma que a radicalização, por ser crítica, é a única
que pode transformar a realidade de opressão em libertação. Quem não teme o
confronto é o único que pode realizar a libertação dos seres humanos e estar
comprometido com ela.
A educação libertadora para obter êxito e ser completa precisa ser realizada
em dois momentos distintos:
Schipani (1988, p. 14) afirma que Freire usa a utopia de forma positiva,
quando possibilita a transformação de uma da realidade de opressão a partir de uma
visão realista e esperançosa de um futuro possível. Nesse processo, a educação é
vista como uma prática revolucionária, em um contexto de compromisso com a
opressão, para uma mudança radical em busca da liberdade e justiça.
Segundo Schipani (1988, p. 24), a realidade social não pode ser abordada de
forma simplista e a resistência do sistema de dominação subestimada. A
sensibilização e unificação das forças em luta pelos oprimidos, em um grande
movimento para libertação, são coerentes com o curso da história e com o avanço
do reino de Deus. Ele afirma que, infelizmente, esta posição favorece o surgimento
de messiânicos e padrões educacionais autoritários que podem frustrar de forma
62
Essa conscientização gerada, segundo Schipani (1988, p.26), deve ser vista
como um fomento criativo. Para ele, a consciência da natureza inconclusa é gerada
pela unidade criativa intrínseca dos seres humanos. A autêntica educação tem o
papel de desenvolver, por meio do fomento de uma consciência crítica para a
autoafirmação, as pessoas, as comunidades e a transformação da sociedade.
Espírito Santo (2005, p. 22), por meio da distinção objetiva de dois termos -
“palavras geradoras” e “temas geradores” - utilizados em duas das principais obras
de Paulo Freire, destaca a evolução do seu método de alfabetização para uma teoria
do conhecimento capaz de mudar a realidade das pessoas:
Freire expõe seu método de forma bem detalhada no seu livro Educação
como prática da liberdade. Na obra Pedagogia do Oprimido, manifesta uma
evolução do método inicial que a princípio se ocupava apenas da
alfabetização (palavras geradoras), agora trabalha também com a pós-
alfabetização (temas geradores). Na sua primeira obra Freire lamenta a
interrupção de seu programa de alfabetização elaborado no Governo
Goulart, que segundo ele, se não tivesse sido interrompido, as equipes de
pesquisa teriam partido para o “levantamento temático do homem
brasileiro”. Vemos assim, que Freire estava consciente desde o início, que
não tinha construído apenas um método de alfabetização, mas uma teoria
do conhecimento.
Freire aposta numa ação educativa coletiva para gerar nos oprimidos
condições de uma vida melhor, fundamentada no respeito e na dignidade da pessoa
humana. A consciência da inconclusão da vida humana e a busca infinita de sua
realização, como tarefa que norteia a existência de todo ser humano, tendo o
conhecimento como condição única para a liberdade dos homens, e a não
imposição nem submissão entre o educador e o educando, por isso, a importância
do diálogo para uma educação libertadora e igualitária (SCHIPANI, 1988, p.10-12).
67
Espírito Santo (2005, p. 10) afirma que a “a atividade pastoral e/ou qualquer
outra ação que queira ser libertadora, deve ser essencialmente pedagógica”, sendo
a práxis pastoral, um lugar de encontro entre a teologia e pedagogia. Defende a
afirmação de Paulo Freire de que a ação libertadora necessita ser essencialmente
pedagógica, pois a teologia tem o que aprender com a pedagogia e a pedagogia o
que aprender com a teologia, bem como com as demais ciências humanas e sociais.
Schipani (1988, p.31) afirma que Freire também recebeu influência de alguns
pensadores religiosos, além de um forte componente humanista marxista 5 que
reforçou o humanismo radical de Freire. Por isso, neste capítulo será demonstrada a
relação dialógica entre a teologia e a pedagogia e, em especial, com a concepção
educacional freireana, com vistas à comprovação de que o diálogo entre a teologia e
a pedagogia é perfeitamente aplicável.
Portanto, para que haja sucesso no diálogo entre teologia e pedagogia deve-
5
O humanismo marxista é uma linha interpretativa de textos de Marx, geralmente oposta ao
materialismo dialético de Engels e de outras linhas de interpretação que entendem o marxismo
como ciência da economia e da história. É baseado nos manuscritos da juventude de Marx, onde
ele crítica o idealismo Hegeliano que coloca o ser humano como um ser espiritual, uma
autoconsciência. Para Marx o ser humano é antes de tudo um ser natural, assim como já havia
dito Feuerbach, mas, diferentemente deste, Marx considera que o ser humano, diferente de todos
os outros seres naturais, possui uma característica que lhe é particular, a consciência, que se
manifesta como saber (WIKIPÉDIA, HUMANISMO, 2010).
69
Ahlert (2010, p. 1-2) elaborou um estudo sobre a formação docente que vem
ao encontro do objetivo desta pesquisa, pois propõe o diálogo da pedagogia e
teologia, tendo como tema a esperança com base nos conceitos de Paulo Freire e
Jürgen Moltmann. Ele afirma que diante dos desafios da educação para o século
XXI, dentre os de questões subjetivas, uma questão fundamental que deve ser
tratada é a esperança.
A TdL nasce num momento histórico bem favorável, marcado pela irradiação
de uma consciência libertadora muito ampla. Eram tempos de descoberta
real e exigente do mundo do outro, sobretudo dos mais pobres e
marginalizados. Acompanhando as experiências históricas inovadoras
estava uma reflexão teórica singular, que apontava com vigor os limites do
desenvolvimentismo que marcou o clima de otimismo da década de 50
(TEIXEIRA, 2010, p. 2).
6
O movimento desenvolvimentista, de caráter nacionalista, ocorreu no Brasil no inicio da década de
1950, e foi fundamentado no processo de substituição de importações e teve efeitos significativos
sobre a economia do estado e na matriz produtiva. Maiores detalhes na seção 4.3 desta
dissertação.
73
Para Libânio (1985, p. 54) a teologia tem como missão construir um mundo
mais humano, sendo que “o papel da fé está em motivar o cristão para
comprometer-se mais seriamente com esse mundo, com a tarefa da justiça e do
amor, com o bem dos semelhantes”. Com a Teologia da Libertação os cristãos
saíram da teoria para a prática do social, indo ao encontro da realidade de opressão,
exclusão e sofrimento que viviam os semelhantes, num processo de busca pela
humanização.
Floristán (2002, p. 185-188) reforça essa ideia ao afirmar que, à luz da bíblia,
é necessária uma reflexão crítica sobre a prática da fé, pois esta tem como objeto
histórico a libertação do oprimido de sistemas injustos para a criação de uma
sociedade mais humana e justa, fundamentada no reino de Deus. A essência da fé é
a prática da esperança e amor ao próximo, afirma que o verdadeiro cristão pratica o
amor nas relações sociais mediante ações práticas que valorizem a humanização.
Segundo Paiva (1986, p. 9), todo trabalho intelectual pode ser esclarecido por
meio da história de vida do autor. Por isso nesta seção será descrita, de forma
resumida, parte da vida e obras do educador Paulo Freire.
[...] Paulo era nosso amigo, um homem maravilhoso e espiritual que inspirou
toda uma geração de educadores críticos. Foi um pedagogo que alargou as
nossas percepções do mundo, alimentou os nossos desejos, aclarou a
nossa consciência das causas e consequências do sofrimento humano e
iluminou a necessidade de desenvolver uma pedagogia ética e utópica para
a mudança social. A sua morte deixou-nos as memórias dos seus gestos
vivos, da sua voz apaixonada, da sua face de barba branca parecendo a de
um profeta, bem como a herança dos seus maravilhosos livros socráticos
(TORRES7, 2003, p. 210-211).
Em 1944 casou-se, aos 23 anos de idade, com Elza. Tiveram cinco filhos e
Freire afirma ter prosseguido o diálogo que aprendera com seus pais. A partir do
casamento, começa a preocupar-se e envolver-se mais ativamente com os
7
Carlos Alberto Torres é diretor do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade da
Califórnia Los Angeles – UCLA. Ele tem publicado cerca de 40 livros e centena e meia de artigos
de pesquisa.
75
resultou em “um dos seus mais populares livros, Cartas à Guiné-Bissau – Registro
de uma experiência em processo” (TORRES, 2003, p. 211).
Torres (1997, p. 40) comenta que Freire recebeu inúmeros diplomas de doutor
honoris causa, condecorações e prêmios por seu trabalho, incluindo o Prêmio da
Paz da Unesco em 1987. Em 1985 recebe o prêmio Educação Cristã nos Estados
Unidos junto com sua esposa Elza, que veio a falecer no ano seguinte, em 1986.
Dois anos depois, em 1988, casa-se com sua orientanda do programa de mestrado
da PUC-SP, a pernambucana Ana Maria Araújo.
Em 1989, após a vitória do Partido dos Trabalhadores (do qual era membro
desde 1979) nas eleições municipais de 1988, foi nomeado secretário da Educação
da cidade de São Paulo, por suas características de pedagogo socialista e um dos
criadores da educação popular na América Latina que, “também inspirou o
desenvolvimento da Teologia da Libertação” (TORRES, 2003, p. 211-212). Em 1991,
foi fundado em São Paulo o Instituto Paulo Freire com intuito de disseminar as ideias
do educador.
cidade de São Paulo foi possível implementar o que havia proposto em sua tese
“uma educação organicamente ligada à contextura histórico-social”.
Souza (2001, p. 67) apresenta uma relação do legado que Paulo Freire
deixou após sua trajetória como educador:
Este legado de Paulo Freire está registrado em suas obras. A Wikipédia traz
uma relação de suas obras:
às editoras da obra para que “superem” sua linguagem e afirma que “mudar a
linguagem faz parte do processo de mudar o mundo. A relação entre linguagem-
pensamento-mundo é uma relação dialética, processual, contraditória” (FREIRE,
1998, p. 68).
Para Paiva (1986, p. 9), a pedagogia de Paulo Freire, para ser entendida, não
pode ser desvinculada do movimento de ideias ocorrido durante a década de 1950,
em especial a ideologia do nacionalismo-desenvolvimentista, que fora desenvolvida
e divulgada por um núcleo de intelectuais agrupados institucionalmente no Instituto
Superior de Estudos Brasileiros - ISEB . Cruz8 (2010, p. 10) afirma que:
8
Doutora em Educação, PUC/S. Paulo. Pesquisadora e colaboradora junto ao Grupo de Estudos e
Pesquisas, História, Sociedade e Educação no Brasil - Histedbr/Unicamp/UFS.
80
outra, amacia com outra, convida com a outra, é esse negócio que a gente
sabe. Agora, o trabalho do Movimento de Cultura Popular, de modo geral, e
também na universidade, onde eu dirigia o Serviço de Extensão Cultural,
que assumia essa alfabetização, nos moldes em que falei, tudo isso, no
fundo, era eminentemente político. É interessante observar isso para que os
prováveis leitores deste livro nosso saibam que, se para eles, hoje, é
absolutamente óbvio que a educação tem uma natureza política, essa
obviedade não era tão óbvia na minha geração. Serve, também, para
chamar a atenção dos jovens que estão fazendo as suas dissertações e que
querem analisar o quadro d vinte anos atrás com os instrumentos de que
dispões hoje (FREIRE e BETTO, 1986, p. 17).
Segundo Paiva (1986, p. 12), as críticas do método por onde deixou seu
rastro (Chile, Peru, México, Tanzânia, Guiné-Bissau) auxiliaram Freire na revisão de
suas ideias e atuação pedagógica. A vasta experiência de Paulo Freire em educação
lhe proporcionou condições para elaborar uma síntese inovadora das mais
importantes correntes do pensamento filosófico de sua época que, somada ao dom
83
[...] Por um lado, ele podia ser identificado com a variante pedagógica da
crítica da cultura que apresenta o fantasma da massificação em oposição ao
ideal de construção de personalidades autônomas; por outro, ele tocava
leve em temas e questões que deram à Escola de Frankfurt a sua feição
característica. Assim, ele se ocupa da manipulação em grande escala
possibilitada pela sociedade industrial, partilha do ceticismo em relação às
formas de socialismo existentes, preocupa-se com as manifestações de
autoritarismo em nome de uma posição pedagógica não-autoritária, aborda
(à sua maneira) os problemas de comunicação interclasses, resultantes de
processos de socialização específicos de acordo com cada classe social e
traduzidos na sua linguagem, nos seus valores, etc., ao mesmo temo que –
através da apresentação de um método de educação política – responde de
forma positiva, otimista, ao pessimismo, à dialética negativa frankfurtiana.
Para Ahlert (2010, p. 4), o diálogo que tem como sustentação o referencial da
85
Espírito Santo (2005, p. 10), ciente desta convergência, faz uma leitura
teológica da obra mais conhecida de Paulo Freire, a Pedagogia dos Oprimidos,
demonstrando que a teologia e a ação pedagógica libertadora são, totalmente,
compatíveis entre si.
A questão da escolha dos conteúdos tem muito a ver com o objetivo a ser
alcançado, tanto para a educação secular como para a educação teológica.
Segundo Espírito Santo (2005, p. 15), essa questão foi para Freire e continua sendo
para educadores progressistas, um grande desafio. Paulo Freire (1977, p. 53) afirma
que “o problema fundamental, de natureza política é tocado por tintas ideológicas, é
saber quem escolhe os conteúdos, a favor de quem e de que estará o seu ensino,
contra quem, a favor de que, contra o que.”
Schipani (1988, p. 22) não faz somente elogios para Freire. Afirma que para
manter coerência no objetivo declarado de promover a verdadeira libertação, no que
se refere à educação religiosa, a abordagem de Freire precisa de algumas correções
de rumo, pois em alguns pontos ela tende a se tornar passiva.
Além disso, lamenta a ausência de uma postura crítica em relação aos fundamentos
filosóficos da conscientização na abordagem educacional de Paulo Freire. Segundo
Schipani, embora a estrutura hermenêutica de Freire teoricamente fomente uma
dinâmica do processo de conscientização, que supõe a problematização, a reflexão
crítica e a interpretação, há uma assimilação não crítica do marxismo a partir da
pedagogia do oprimido. Isso, ainda de acordo com Schipani, pode conduzir ao
sectarismo reacionário e fatalista, conforme o próprio conceito da educação
bancária.
conceito, a libertação somente pode ser alcançada por um caminho histórico, onde o
oprimido descobre/reconhece sua totalidade presente, vinda do passado e define
sua exterioridade vinda do futuro. A hipótese fundamentada é a de que a cultura
helênica preconiza a dominação e a cultura semítica a libertação. (DAL´PUPO,
2005, p. 36-43).
Com base neste contexto, é possível perceber o que estava por trás dos
discursos de Jó e seus “amigos”.
93
Segundo Foucault (2008, p. XVI), aqueles que detêm o poder e buscam a sua
manutenção pelo interesse de dominar e oprimir, agem de forma a diminuir a
“capacidade de revolta, de resistência, de luta, de insurreição contra as ordens do
poder, neutralização dos efeitos de contra poder”. Isso torna o ser humano sem
reação, dócil e facilmente “domesticado”, dentro dos moldes previamente definidos.
Para Foucault (2008, p. XXII), aquele que detém o saber exerce o domínio
sobre o que não tem. Afirma que “todo saber assegura o exercício de um poder”,
entretanto quem o exerce reporta-se a uma autoridade que delega o poder, “[...] todo
agente do poder vai ser um agente de constituição de saber, devendo enviar aos
que lhe delegaram um poder, um determinado saber correlativo do poder que
exerce”.
Por isso, a teologia oficial não podia dar respostas à situação de Jó, pois não
havia sido instituída para esse fim e, como afirma Freire, cedo ou tarde o oprimido
irá se rebelar contra a educação bancária. Exatamente o que ocorreu com Jó
quando foi em busca de respostas. Segundo Rossi (2005, p. 64), o problema básico
de Jó era que sua sentença já estava consumada, o Deus da teologia da tradição
sapiencial já havia dado o veredicto em relação a ele.
Essa teologia não podia ser relevante para a sociedade dos dias de Jó, como
também nos dias atuais. Rossi (2008, p. 89) questiona se uma teologia que apregoa
que a prosperidade e o sucesso pessoal ou coletivo é comprovação do “sinal
irrefutável da presença de Deus” seria relevante para a igreja atual.
A partir dos conceitos de Paulo Freire, é possível identificar nos discursos dos
“amigos” de Jó a prática de uma educação bancária, em que é imposto sobre Jó
(que representa ¾ da população de camponeses judeus) um conteúdo
predeterminado, que favorecia a ideologia dominante e opressora do império persa e
dos líderes religiosos judeus. Uma educação necrófila que sugava a vida dos
camponeses e não permitia questionamentos, impondo-lhes um hospedeiro
opressor para impedir a sua conscientização, emancipação e libertação.
Paulo Freire analisa a situação de opressão dos seus dias e busca uma
resposta para a transformação dessa realidade. Vê na educação a possibilidade de
ter seu sonho realizado, uma educação libertadora tanto para opressores como para
97
oprimidos. Algo semelhante acontece com o autor do Livro de Jó que, por meio do
personagem principal de seu livro, apresenta alguém que se conscientiza de sua
situação e não vê na educação sapiencial resposta para os problemas de sua
comunidade. Então, passa a questionar e buscar a transformação de sua realidade,
mudando assim, as práticas educacionais e teológicas.
Para que a Educação seja uma prática para a liberdade, com foco no diálogo
e na valorização do ser humano, faz-se necessário que seja exercida dentro de um
contexto de conscientização. Uma forma de educação que surge no contexto latino-
americano, que reintroduz o tema do sofrimento do inocente e na sua proposta
busca superar ou diminuir a dor dos oprimidos, é a Teologia da Libertação. Apesar
de suas contradições, tem o mérito de trazer para a discussão o tema do sofrimento
imposto por uma ideologia dominante (GRENZER, 2005, p. 10-11).
98
Ora, com isso, o indivíduo não poderia interpretar a Palavra de Deus a partir
de sua realidade. Se a educação teológica deve abordar a educação integral do
indivíduo, então a sua realidade deve ser levada em consideração, e a interpretação
a partir dessa realidade não desmerece a Palavra de Deus, pois o importante é que
esta possa ser aplicada à sua realidade e transformá-la à luz daquela. Esta pesquisa
99
busca demonstrar que esse diálogo é possível sem desmerecer nem a Teologia,
nem a Pedagogia e as ciências que se relacionam com as áreas de humanas.
Schipani (1989) alerta para o cuidado que se deve ter com o risco de reduzir o
evangelho a uma ideologia revolucionária, das armadilhas de uma interpretação
simplista da evolução histórica, explicações particulares de luta e mudança social
(limitações do marxismo), entre outros.
Esta atitude coincide com a educação libertadora propagada por Freire, que é
caracterizada por um processo de reconstrução do ser humano a partir de sua
história (experiência de vida), que gera uma consciência crítica da opressão, cria
uma lacuna que força a busca constante por novos conhecimentos, firma esperança
de transformação da realidade por meio de um trabalho de conscientização e
politização, e capaz de gerar uma nova prática que construa condições sociais mais
igualitárias e inclusivas.
Esta leitura pode mudar a vida de qualquer leitor que coloque os “óculos” de
Paulo Freire e analise o Livro de Jó, que passe da teoria para a prática, em busca de
uma vida livre e em comunhão com Deus.
A convenção nacional é dirigida por uma Mesa Diretora, eleita a cada dois
anos numa Assembleia Geral. Para várias áreas de atividades da Assembleia de
Deus a CGADB tem um conselho ou uma comissão. Desta forma, existem o
Conselho Administrativo da Casa Publicadora (CPAD), o Conselho de Educação e
Cultura Religiosa, o Conselho de Doutrinas, o Conselho Fiscal, o Conselho de
Missões, a Secretaria Nacional de Missões (SENAMI), e a Escola de Missões das
Assembleias de Deus (EMAD).
Segundo a CPAD (A fé que realiza o futuro, 2010), “[...] Nos últimos dez anos
a tiragem de revistas de Escola Dominical passou de 1 (um) milhão para mais de 2,2
milhões trimestrais”. Isto significa que a cada três meses mais de dois milhões de
alunos das EBDs da denominação participam das aulas dominicais sobre temas
escolhidos pela equipe pedagógica da CPAD.
Como pode ser percebido na citação acima, além de não aceitar que o livro
possui parte no gênero literário de poema, atribui essa afirmação para todos os
cristãos, com isso generaliza tanto católicos quanto protestantes e evangélicos.
[...] Que doença era aquela? Alguém sugere a elefantíase – uma hipertrofia
da pele e do tecido subcutâneo, obstruindo a circulação linfática devido a
forte infecção. A enfermidade, que evolui de forma crônica, atinge
principalmente as pernas e a genitália externa. […] Eis porque seus amigos
tiveram dificuldades em reconhecê-lo (Jó 2.12) - (LIÇÕES BÍBLICAS, p. 23).
[...] Não sabemos o que se passava naquelas festas que, segundo o texto
bíblico, durava um certo turno de dias (Jó 1.5). Mas Jó estava ciente de que
seus filhos corriam sério perigo. Pois, ao invés de adorarem a Deus,
ajuntavam-se certamente para festejar os deuses e ídolos da gente pagã
que os rodeava (LIÇÕES BÍBLICAS, p. 14).
[...] Se os filhos assim procediam, como não lhe andava a esposa? Ele
mesmo chegou a descrevê-la como “qualquer doida” (Jó 2.10). Chegara ela,
de fato, a converte-se ao Senhor, ou acostumara-se a usufruir os bens
divinos como se não passassem estes de coisas banais? Talvez o seu amor
pelo marido não fosse tão intenso e verdadeiro. Pois na hora da provação
sugeriu-lhe, inclusive, a eutanásia: “Amaldiçoa a Deus e morre” (Jó 2.10).
Embora não lhe menosprezemos as angustias, somos levados a concluir
que ela jamais experimentara um encontro real e marcante com o Senhor
(LIÇÕES BÍBLICAS, p. 14-15).
[...] Jó é um dos livros da Bíblia que mais nos mostra como age o Diabo nas
regiões celestes. Embora expulso de lá (Ez 28.16), apresenta-se ele,
quando em quando, diante do Senhor, a fim de acusar os santos (LIÇÕES
BÍBLICAS, p. 43).
107
Comenta-se que, a exemplo de Elifaz, muitas pessoas nos dias atuais não
aceitam o sofrimento do justo, atribuindo como causa de todo sofrimento alguma
108
falha ou pecado. Todavia, afirma que tudo o que acontece está sob o controle de
Deus e, dessa forma, tudo deve ser aceito como vontade de Deus, sem
questionamentos. Na “orientação didática” é sugerido ao professor que seja
abordado e analisado com o aluno da EBD a estratégia que Elifaz utiliza para
“convencer Jó de que era culpado pelo seu próprio sofrimento”. (LIÇÕES BÍBLICAS,
2003, p. 57-58)
Com relação ao discurso de Bildade, que o homem justo não tinha que se
preocupar, pois o futuro promissor lhe era garantido, enquanto que aos ímpios
estava reservado a “calamidade absoluta”, são atribuídos dois graves defeitos: o
primeiro é a falta de simpatia que Jó, vítima de várias calamidades tanto ansiava, o
segundo por estar “totalmente enredado nas malhas da tradição”. (LIÇÕES
109
Questiona-se que esperança poderia o discurso de Zofar dar a Jó, sendo que
supunha que a pequenez do ser humano o distanciava de grandeza de um Deus
Todo-Poderoso e inalcançável (LIÇÕES BÍBLICAS, 2003, p. 73).
5. METODOLOGIA E PROCEDIMENTOS
Para Gil (2009, p. 17), pesquisa pode ser definida como “procedimento
racional e sistemático que tem como objetivo proporcionar respostas aos problemas
que são propostos”. O ato de pesquisar, segundo Oliveira (2002, p. 118) significa
“planejar cuidadosamente uma investigação de acordo com as normas da
Metodologia Científica, tanto em termos de forma como de conteúdo”.
Segundo Franco (2008, p. 20), para decifrar as mensagens, outro fator que
deve ser considerado são os componentes ideológicos presentes nos discursos que,
socialmente construídos, devem ser descontruídos por meio de um processo
trabalhoso e dialético.
Para Minayo (2003, p. 74), a análise de conteúdo visa verificar hipóteses e/ou
o que está por trás dos conteúdos externalizados. Puglisi e Franco (2005, p. 24)
reforçam essa afirmação:
Bardin (1977, p. 31) afirma que análise de conteúdo possui maior utilidade
para o estudo dentro das ciências humanas. Justifica-se assim, a escolha desta
técnica para esta dissertação, que analisa o que está sendo dito a respeito da
118
L e it u r a " f lu t u a n t e " o u s u p e r f ic ia l.
A e s c o lh a d o s d o c u m e n t o s (r e g r a d e e x a u s t iv id a d e , r e g r a d e r e p r e s e n t a t iv id a d e e h o m o g e n e id a d e ).
1 P ré - a n á lise
A f o r m a ç ã o d e h ip ó t e s e s (u m a a f ir m a ç ã o p r o v is ó r ia ).
A r e f e r ê n c ia a o s ín d ic e s e e la b o r a ç ã o d e in d ic a d o r e s .
U n id a d e s d e r e g is t r o : a p a la v r a , o t e m a , o p e r s o n a g e m e o it e m .
U n id a d e s d e c o n t e x t o : p a n o d e f u n d o e c o n t e x t o (in f o r m a n t e s , e s p e c if ic id a d e s s o c ia is ,
o r ig e m f a m ilia r , e n t r e o u t r o s ).
E xp lo ra ç ã o C o d if ic a ç ã o R e g r a s d e q u a n t if ic a ç ã o (p a r a p e s q u is a q u a n t it a t iv a ).
2
d e m a te ria l C a t e g o r ia is c r ia d a s a p r io r i (p r é - d e t e r m in a d a s e m f u n ç ã o d e u m a b u s c a d e r e s p o s t a
e s p e c íf ic a d o in v e s t ig a d o r ).
C a t e g o r ia s n ã o d e f in id a s a p r io r i (e m e r g e m d a f a la , d o d is c u r s o , d o c o n t e ú d o d a s
C a t e g o r iz a ç ã o r e s p o s t a s ).
T ra ta m e n to
P r o d u ç ã o d e in f e r ê n c ia s : p r o p ic ia a p a s s a g e m d a d e s c r iç ã o à in t e r p r e t a ç ã o .
3 dos
I n t e r p r e t a ç ã o : ir a lé m d o m a t e r ia l, b u s c a n d o c o n s t r u ir o c o n h e c im e n t o - r e la c io n a m - s e à s e s t r u t u r a s
re su lta d o s
s e m â n t ic a s c o m a s e s t r u t u r a s s o c io ló g ic a s - n e c e s s á r io h a v e r b o a b a s e t e ó r ic a .
5.4.1 A pré-análise
Nesta etapa, segundo Bardin (1977, p. 96), “[...] pouco a pouco, a leitura vai
se tornando mais precisa, em função das hipóteses emergentes, da projeção de
teorias adaptadas sobre o material e da possível aplicação de técnicas utilizadas
com materiais análogos”.
sempre são formuladas hipóteses na pré-análise, pois a análise pode ser realizada
sem hipóteses pré-concebidas, sem que isso signifique deixar de utilizar técnicas
adequadas e sistemáticas de pesquisa.
Unidade de
Unidade de
registro Categoria Subcategoria Indicadores
contexto
(tema)
“Jó lendário”
Império persa
Presença ou
Líderes religiosos ausência de
fraudulentos referência a um
Contextualização Camponeses\menos ambiente de
favorecidos sob opressão por
opressão dominação
ideológica
Dominação
Exploração
Educação libertadora
Conscientização
Transformação
Presença ou
Libertação ausência de
práticas
Discursos de Jó Emancipação
educacionais e
Teologia da libertação teológicas
libertadoras
Humanização
Esperança
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo geral foi atingido por meio da identificação das convergências entre
as práticas teológicas presentes no Livro de Jó e a concepção pedagógica de Paulo
Freire (educação bancária e educação libertadora), e a comparação das análises de
conteúdo sob a perspectiva freireana e evangélica pentecostal da IEAD.
O livro de Jó que contém uma parte textual em prosa, que serve como
moldura do livro com um conteúdo de textos antigos, e outra parte textual em forma
de poesia que pertencia à época da escrita do livro, definida como o período entre
os anos V e IV antes de Cristo, durante o império persa.
mudança. Ficou evidenciado que a influência dos ensinos recebidos são barreiras
que foram vencidas gradativamente pelo personagem principal do Livro.
A análise da revista “Lições Bíblicas”, que tratou como tema o Livro de Jó,
demonstrou que foi desconsiderado o gênero literário do livro (prosa e poesia); o
personagem foi apresentado como literal e único em todo o livro e os teólogos, que
não concordam com a historicidade e literalidade de todo livro, são denominados
como liberais que submetem as escrituras a uma crítica científica e humanista.
Acrescentam também que tais teólogos subestimam os milagres e profecias e
divindades de Jesus. Atribui essa a todos os cristãos, generalizando tanto católicos
quanto protestantes e evangélicos.
Com relação aos discursos dos amigos de Jó, apesar de não ser considerada
a ideologia dominante por detrás das falas, a interpretação permite a visualização da
propagação da prática da teologia do relacionamento mercantil com Deus. Ficou
evidenciado que a prática educacional da IEAD combate o mercantilismo religioso e
a imposição de culpa do pecado por meio do sofrimento, defendendo a possibilidade
de sofrimento do justo. Todavia, percebe-se uma passividade com relação ao
sofrimento e às situações de calamidade, uma acentuada “espiritualização” dos
fatos, inclusive com a defesa do sofrimento como necessário para o crescimento
espiritual.
Dos resultados desta pesquisa emergem temas para trabalhos futuros como
continuidade do presente estudo, como exemplo podem ser citados:
REFERÊNCIAS
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Hagnos, 2006.
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FREIRE, Paulo. Educação e Mudança. 17° ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
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FREITAG, Bárbara. Quadro Teórico, in: Escola, Estado e Sociedade. 4. ed. São
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GADOTTI, Moacir. História das Ideias Pedagógicas. São Paulo: Ática, 1994.
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MINAYO, M.C. de S. (Org..). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 22ª. ed.
Rio de Janeiro: Vozes, 2003.
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TERRIEN, Samuel. Jó: grande comentário bíblico. São Paulo: Paulus, 1994.
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