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CANAL GOSPEL BOOK


BRASIL
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PROIBIDO
A LINGUAGEM DE DEUS
EUGENE H. PETERSON

A LINGUAGEM DE DEUS

Traduzido por FABIANO M EDEIRO S

MC
mundocristão
São Paulo
C opyright €> 2008 p o r Eugene H. Peterson
Publicado originalm ente p o r Alive C om m unications, Inc., C olorado Springs, EUA

Os texcos das referencias bíblicas foram traduzidos livremente da versão


The Message (MSG), da New Press, salvo indicação específica.

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei na 9.610, de 19/02/1998.


E expressamente proibida a reprodução total ou parcial deste livro, por
quaisquer meios (eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação e outros),
sem prévia autorização, por escrito, da editora.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Peterson, Eugene Η.

A linguagem de Deus / Eugene H. Peterson; traduzido por Fabiano Medeiros.


— São Paulo: Mundo Cristão, 2011. — (Série teologia espiritual)

Título original: Tell It Slant

1. Jesus Cristo - Parábolas 2. Jesus Cristo - Orações I. Título. II. Série.

11-04678 CDD-226.06

índice para catálogo sistemático:


1. Jesus Cristo : Linguagem de Deus : Cristianismo 226.06
Espiritualidade
C a te g o r ia :

Publicado no Brasil com todos os direitos reservados por:


Editora zMundo Cristão
Rua Antônio Carlos Tacconi, 79, São Paulo, SP, Brasil,
CEP 04810-020
Telefone: (1 1 )2 1 2 7 4 1 4 7 ‫־‬
Home page: www.mundocristao.com.br

Ia edição: agosto de 2011


Para meus netos:
Andrew Eugene,
Lindsay Hope,
Sadie Lynn,
Hans Holland,
Aama Grace,
Mary Crates.

Um após o outro, a cada dois anos,


em sucessão contínua, por turnos,
recém-nascidos e depois bebês,
vocês me reapresentaram
os mistérios da linguagem,
os milagres da fala, os milagres da audição,
e as santas conversas que se
desenvolveram entre nós na companhia
do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Sumário

Agradecimentos 9
Introdução 11

Parte 1 I JESUS EM SUAS HISTÓRIAS


CAPÍTULO 1: J e s u s e m S a m a ria — L u c a s 9 :5 1 — 1 9 :2 7 17

CAPÍTULO 2: O p r ó x im o — L u c a s 1 0 :2 5 -3 7 41

CAPÍTULO 3 : O a m ig o — L u c a s 1 1 :1 - 1 3 55

CAPÍTULO 4 : O c o n s t r u t o r d e u m c e le ir o — L u c a s 1 2 :1 3 - 2 1 67

CAPÍTULO 5: E s te r c o — L u c a s 1 3 :6 -9 77

CAPÍTULO 6 : C o n v e rs a in f o rm a l — L u c a s 1 4 :1 -1 4 87

CAPÍTULO 7 : O s irm ã o s p e r d id o s — L u c a s 15 97

CAPÍTULO 8 : O a s t u t o — L u c a s 1 6 :1 -9 111

CAPÍTULO 9 : O h o m e m i n v is ív e l — L u c a s 1 6 :1 9 - 3 1 121

CAPÍTULO 1 0 : A v iú v a — L u c a s 1 8 :1 - 8 135

CAPÍTULO 1 1 : O s p e c a d o r e s — L u c a s 1 8 :9 -1 4 147

CAPÍTULO 1 2 : O m in im a lis ta — L u c a s 1 9 :1 1 -2 7 161

Parte 2 | JESUS EM SUAS ORAÇÕES


CAPÍTULO 1 3 : N a c o m p a n h i a d e J e s u s e n q u a n t o e l e o r a : s e is o r a ç õ e s 175

CAPÍTULO 1 4 : J e s u s o ra c o n o s c o — M a te u s 6 :9 -1 3 183

CAPÍTULO 1 5 : Je s u s o ra e m ação d e g raç as — M a te u s 11: 2 5 - 2 6 215

CAPÍTULO 1 6 : J e s u s o r a n a e x p e c t a ti v a d o f im — J o ã o 1 2 :2 7 - 2 8 223

CAPÍTULO 1 7 : Je s u s o ra p o r n ó s — J o ã o 17 231

CAPÍTULO 1 8 : J e s u s o r a a a g o n ia d o G e t s ê m a n i — M a te u s 2 6 :3 9 - 4 2 251

CAPÍTULO 1 9 : J e s u s o ra n a c ru z : as s e te ú ltim a s p a la v ra s 259


C A P ÍT U L O 20: Orando em nome de Jesus: landes transformadas
em carvalhos 281
A P Ê N C ID E : Escritores que honram o sagrado inerente na linguagem 291

Notas 297
Bibliografia 303
índice de nomes e assuntos 307
Agradecimentos

Tive sorte: aprendí a língua da fé ao mesmo tem po que aprendí a língua in-
glesa. A escola em que aprendí a falar foi minha família - meus pais, minha
irmã, Karen, e meu irmão, Kenneth - , os melhores professores e os colegas
de classe mais afáveis da escola.
Este livro teve seu início nas Palestras J. Henderson, em 1992, no Seminá-
rio Teológico de Pittsburgh. Desenvolveu-se ainda mais nos cursos de Língua,
Escrituras e Oração na Regent College, em Vancouver, BC, de 1993 a 1998.
Foi testado e amadurecido em conversas com pastores, em inúmeros retiros
e conferências.
Uma sucessão de guias espirituais num período de quinze anos, em mi-
nhas andanças pelo país, conferiu às minhas palavras frescor, honestidade e
pessoalidade: Reuben Lance, em Montana, pastor Ian Wilson, em Baltimore,
irmã Constance FitzGerald, carmelita da O .C .D . [Ordem dos Carmelitas
Descalços], em Baltimore, pastor Alan Reynolds, no Canadá. Jonathan Stine
é um amigo fiel que incentiva a reverência nos mínimos detalhes.
Perto do tempo em que eu pensava saber 0 que eu precisava saber e podería
assim partir para outras coisas, meus netos começaram a nascer a intervalos
de mais ou menos dois anos e com regularidade restauravam um senso de
maravilhamento pelo milagre da fala. O livro é dedicado a eles.
Introdução

A língua — dada a nós para glorificar a Deus, para receber a revelação de


Deus, para testemunhar da verdade de Deus, para oferecer louvor a Deus —
está em constante risco. Não raro, a Palavra viva é dissecada em cadáveres
proposicionais, depois classificada em frascos de formol, em espécimes exe-
géticos. Acabamos com um discurso meramente religioso:

Conhecimento da fala, mas não do silêncio;


Conhecimento das palavras, e desconhecimento da Palavra [...]
Onde está a Vida que perdemos ao viver?
Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento?
Onde está o conhecimento que perdemos na informação?1

* * *

Minha preocupação é que usemos o dom da fala dado por Deus em conso-
nância com o D eus que fala. Jesus é a pessoa mais importante com a qual
tem os de lidar nessa questão. Jesus acima de tudo. Jesus, a Palavra que se fez
carne. Jesus, o que “falou, e tudo se fez” (SI 33:9), mesmo “desde a criação
do mundo” (Mt 13:35). Jesus, que conta histórias nas estradas e em torno das
mesas de jantar na Galileia e ao viajar por Samaria. Jesus, que ora no jardim e
na cruz em Jerusalém. Jesus é a palavra de Deus para nós em uma variedade
de ambientes e circunstâncias. Ele participa de conversas conosco na língua
que nos foi dada nos Evangelhos. Essas conversas são continuadas conosco
pelo Espírito Santo exatamente como ele prometeu: "... quando o Espírito
da verdade vier, ele os guiará a toda a verdade [...] receberá do que é meu e
o tornará conhecido a vocês” (Jo 1 6 :1 3 1 4 ‫) ־‬. Ele é também aquele que ora a
seu e nosso Pai: “pois vive sempre para interceder por [nós]” (Hb 7:25).
12 A LINGUAGEM DE DEUS

A linguagem e o modo em que a utilizamos na comunidade cristã são o foco


desta conversa sobre a espiritualidade da linguagem. A língua, no seu todo
— cada vogal, cada consoante — é um presente de Deus. Deus usa a língua
para nos criar e nos dar ordens; nós usamos a linguagem para confessar nossos
pecados e para cantar louvores a Deus. Usamos exatamente a mesma língua
para nos conhecer uns aos outros, para comprar e vender, para escrever cartas
e ler livros. Usamos as mesmas palavras ao falar uns com os outros que usa-
mos quando estamos falando com Deus: os mesmos substantivos e verbos, os
mesmos advérbios e adjetivos, as mesmas conjunções e interjeições, as mesmas
preposições e pronomes. Não há nenhuma “língua do Espírito Santo” usada
para assuntos relacionados a Deus e à salvação e então uma língua secular à
parte para comprar repolhos e carros. “Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia”
e "Passe a batata, por favor” procedem do mesmo tanque de linguagem.
Há muito mais na fala do que usar as palavras certas e pronunciá-las cor-
retamente. Quem somos e como falamos faz toda a diferença. Com certeza
podemos pensar suficientemente em maneiras criativas para usar mal as pala-
vras: podemos blasfemar e amaldiçoar, podemos mentir e enganar, podemos
intimidar e abusar, podemos bisbilhotar e ridicularizar. Ou não. Cada vez que
abrimos a boca, seja em conversas uns com os outros, seja em oração com
nosso Senhor, a verdade e a comunidade cristã entram em risco. E, assim, bem
no topo das prioridades da comunidade cristã em cada geração está a neces-
sidade de diligentemente desenvolvermos uma voz que fale em consonância
com o Deus que fala, de falarmos de tal maneira que a verdade seja dita e a
comunidade seja formada e de orarmos ao Deus e Pai de nosso Senhor Jesus
Cristo, e não a algum bezerro de ouro que tenha sido moldado por um dos
inúmeros descendentes de Arão.
Pregadores e professores ocupam posições de destaque na comunidade
cristã no uso da linguagem. O púlpito e o leitoril fornecem lugares de autori-
dade e influência nos santuários e nas salas de aula que requerem um discurso
cuidadoso, em oração, que honre a Cristo em cada sermão e em cada palestra.
Mas meu interesse aqui recai particularmente nas conversas um tanto afastadas
desses círculos, de improviso e cotidianas, que se dão nas cozinhas e nas salas
de estar, tomando café com um amigo, trocando amenidades num estaciona­
INTRODUÇÃO ‫ו‬3

mento ou tomando parte numa discussão intensa, confidencial, capaz de atar


ou desatar um relacionamento. Quero deter-me nas palavras que escutamos
e falamos à medida que nos envolvemos nas questões comuns do trabalho e
da família, de amigos e vizinhos, fornecendo-lhes uma dignidade equivalente
ao lado da língua que normalmente associamos às chamadas "coisas de Deus".
Em sua maioria, não se trata de uma linguagem de grande destaque, não a
linguagem que usamos quando queremos que as coisas aconteçam ou queremos
dominar um assunto complexo. E uma linguagem usada quando não estamos
tratando uns aos outros em nossos papéis sociais ou nas funções que nos fo-
ram atribuídas. Ela deleita-se nas sutilezas. Ela tem prazer nas ambiguidades.
Consiste em grande parte, usando uma citação de T. S. Eliot, nas “sugestões
seguidas por suposições”. Emily Dickinson fornece o texto de que preciso:

Dizer toda a Verdade, mas sempre de viés...


Pode o sucesso no Rodeio habitar.
Para o nosso enfermo Gozo, assaz brilhante, assaz,
A Verdade bem nos pode alarmar.

Tal qual Relâmpago que à Criança se Explicou,


Apaziguada em tão doce explanar,
Deve a Verdade ofuscar-nos pouco a pouco, ou
A cada um de nós poderá cegar...2

Quero derrubar as cercas que erigimos entre a linguagem que trata com
Deus e a linguagem que trata com as pessoas ao nosso redor. E, no final das
contas, a mesma linguagem. O mesmo Deus a quem nos dirigimos em oração e
a quem proclamamos nos sermões está também profundamente, eternamente
envolvido nos homens e nas mulheres com quem travamos conversas, quer ao
acaso, quer intencionalmente. Mas nem sempre de modo óbvio. Nem sempre
as palavras de D eus são prefaciadas com “assim diz o SENHOR”. E preciso
tem po e atenção para estabelecer conexões entre o dito e não dito, o direto
e o indireto, o expresso francamente e o declarado em rodeios. Há muitas
ocasiões em que a abordagem imperiosa e direta não honra nem ao nosso
Deus, nem ao nosso próximo. Diferentemente dos fatos brutalmente francos,
14 A LINGUAGEM DE DEUS

a verdade, especialmente a verdade pessoal, requer o cultivo sem pressa das


intimidades. O “de viés” e o “pouco a pouco” de Dickinson são formas de
passar por cima de pré-concepções, preconceitos, defesas, estereótipos e o
literalismo dominado pelos fatos, todos os quais impedem a receptividade
relacionai à linguagem do outro: o Outro.
Deus não compartimenta nossa vida em religioso e secular. Por que então
o fazemos? Quero insistir num vínculo de linguagem entre as palavras que
usamos nos estudos bíblicos e as palavras que usamos quando estamos lá fora,
pescando trutas-arco-íris. Quero cultivar um senso da vinculação entre as
orações que oferecemos a Deus e as conversas que temos com as pessoas com
quem falamos e que nos falam. Quero nutrir uma percepção da sacralidade
das palavras, o santo dom da linguagem, não importa se dirigidas verticalmente
ou horizontalmente. Exatamente como Jesus fazia.

* * *

E assim Jesus é o texto que eu uso para cultivar uma linguagem que honra a
santidade inerente nas palavras: enraizada em Deus, incorporada em Cristo,
vivificada no Espírito. A primeira parte da conversa, "Jesus em suas histórias”,
ficará escutando enquanto Jesus fala com pessoas de sua época, percorrendo
campos de trigo, fazendo refeições, navegando em um lago, respondendo a
perguntas, lidando com hostilidades. A segunda parte da conversa, "Jesus em
sua orações”, nos permitirá uma imersão em como Jesus orou ao Pai: orações
na Galileia, orações em Jerusalém, orações no Getsêmani, orações no Gólgota.
Enquanto escutamos Jesus falando e depois participamos com Jesus enquanto
ora, espero que juntos, escritor e leitor, desenvolvamos um discernimento
capaz de rechaçar todas as formas de jargão religioso impessoalizante e assim
adquiramos um gosto pela linguagem sempre pessoal que Deus emprega, com
perícia nessa linguagem, mesmo em nossas conversas e trocas de amenidades,
talvez especialmente nessa troca de amenidades, para criar, salvar e abençoar
a todos nós.
1
Jesus em suas histórias

a>

03
CL
capítulo 1
Jesus em Samaria
Lucas 9:51— 19:27

É uma tremenda ironia que Jesus, cujas palavras criam e formam nossa vida,
jamais tenha escrito uma palavra, pelo menos não uma palavra que jamais
tenha sido preservada. Aquelas palavras que ele escreveu na areia em Jerusa-
lém, usando o dedo como lápis, desapareceram no aguaceiro seguinte. Não
obstante, conhecem os a Jesus com o hom em das palavras. Ele é, afinal de
contas, a Palavra tornada carne.
Mas ele não deixou nada escrito. Ele falou. Jamais teve um editor, jamais
deu uma noite de autógrafos, jamais mergulhou a pena num frasco de tinta.
A linguagem para Jesus resumia-se exclusivamente a sua voz: “falou, e tudo
se fez‫( ״‬SI 33:9).
Mas sem dúvida alguma suas palavras foram, naturalmente, escritas — e
publicadas. Talvez as palavras de nenhuma pessoa foram reproduzidas em
forma impressa em tantos manuscritos e livros impressos quanto as palavras
de Jesus. Ainda assim, é importante manter em m ente essa qualidade oral
original, essa voz viva de Jesus, as palavras faladas que saíram de sua boca
e entraram na vida de homens e mulheres por m eio de ouvidos abertos e
corações cheios de fé. As palavras escritas, por mais importantes que sejam,
são um passo gigantesco para longe da voz que fala. Deve-se fazer um esforço
resoluto para ouvir a voz que fala e para escutá-la, não apenas olhar para ela
e estudar a palavra escrita.1

* * *

A língua é antes de mais nada um meio de revelação, tanto para Deus quanto
para nós. Usando palavras, Deus revela-se a nós. Usando palavras, nós nos
revelamos a Deus e uns aos outros. Por meio da linguagem, todo o ciclo de
falar e escutar, tanto Deus quanto seus homens e mulheres criados pela Palavra
são capazes de revelar vastos interiores antes inacessíveis a nós.
18 A LINGUAGEM DE DEUS

Temos ai algo importante. Importante para nossa reflexão, uma vez que
não é óbvio. E importante para reconsiderarmos continuam ente, urna vez
que nossa vasta industria da comunicação trata a linguagem acima de tudo
como informação ou estímulo, não com o revelação. Muitas vezes, quando
a palavra “D eus” é usada em nossa sociedade, é reduzida a uma informação,
impessoalizada em mera referência ou rebaixada a blasfêmia. George Steiner,
um de nossos autores mais perceptivos dentre os que escreveram sobre a lin-
guagem, sustenta, de forma poderosa, que transmitir informação não passa de
uma função marginal e altamente especializada da linguagem.2 Mas a lingua-
gem que aprendemos na companhia de pais, irmãos e amigos tem sua origem
no Deus revelador. Tudo o que falamos e escutamos ocorre num mundo de
linguagem que é formado e sustentado pelo falar e pelo escutar de Deus. As
palavras que Deus usa para criar, dar nomes, abençoar e ordenar em Gênesis
são as mesmas palavras que ouvimos Jesus usando para criar, dar nomes, curar,
abençoar e ordenar nos Evangelhos. Jesus fala, e ouvimos Deus falar.

O JESUS QUE CONVERSA


A linguagem de Jesus, conforme relatada a nós pelos evangelistas Mateus,
Marcos, Lucas e João, suas testemunhas, é às vezes denominada pregação e,
em outras ocasiões, ensino. Mesmo assim, boa parte do tempo encontramos
Jesus falando de maneiras que não são nem pregação, nem ensino. Nós o en-
contramos falando informalmente num intercâmbio conversacional enquanto
faz suas refeições na casa de alguém ou com amigos, percorrendo campos ou
às margens de um lago, ou respondendo a várias interrupções e perguntas en-
quanto vai a um lugar ou outro. É esse terceiro uso da linguagem, o informal
e espontâneo, que m e interessa neste contexto.

***

A pregação vem em primeiro lugar. É o tipo de linguagem que define, tanto


no significado quanto no tom , aquilo de que Jesus se ocupa. As primeiras
palavras saídas da boca de Jesus, conforme relata Marcos (que foi o primeiro
a escrever um evangelho), foram em forma de pregação: “Jesus foi para a
JESUS EM SAMARIA ‫ו‬9

Galileia, proclamando as boas-novas de Deus. ‘O tem po é chegado’, dizia ele.


Ό Reino de Deus está próximo. Arrependam-se e creiam nas boas-novas!”’
(Me 1:14-15). Ele concluiu seu sermão com um apelo que foi atendido por
quatro pescadores. Estava a caminho.
Pregação é proclamação. A pregação anuncia o que Deus está realizando
aqui e agora, neste mom ento e neste lugar. Também convoca os ouvintes a
corresponder a contento. Pregação é a notícia, as boas notícias, de que Deus
está vivo, presente e agindo: “Talvez você não soubesse, mas o Deus vivo está
aqui, bem aqui nesta rua, neste santuário, nesta vizinhança. E está agindo
agora. Está falando agora — neste exato momento. Se souber o que é bom
para você, desejará engajar-se nisso”.
Todos os escritores do Evangelho dão-nos uma orientação completa sobre
a pregação de Jesus, mas Marcos destaca-se como um primeiro entre iguais:
sua linguagem vigorosa, urgente, consegue com grande destreza manter diante
de nós o aqui, o agora e o pessoal.
A pregação é uma linguagem que nos envolve pessoalmente com a ação
de Deus no presente. Chama atenção na pregação o fato de que ela consegue
transmitir o pessoal e o presente. Não se permite ao ouvinte supor que as
palavras pregadas sejam para qualquer outra pessoa que não ele mesmo. O
ouvinte não pode tentar se safar supondo que as palavras pregadas sejam sobre
algo que aconteceu há muito tem po ou mesmo ontem, ou que sejam sobre
o que acontecerá no futuro, quer próximo, quer distante. A pregação revela
Deus em ação aqui e agora — por mim. Qualquer insipidez que ouvimos de
pregadores e de seus imitadores, podemos ter certeza de que não se originou
em Jesus.
Aquele dia, em que Jesus inaugurou seu ministério público na Galileia
por m eio da pregação, foi o último em uma longa tradição, de mais de mil
anos, de grande pregações que tinham acabado de ser resgatadas pelo primo
de Jesus, João Batista. D epois de Jesus, a tradição continuou em Pedro e
Paulo, em Crisóstomo e Cipriano, em Ambrosio e Agostinho, em Francisco
e Dominique, em Lutero e Calvino, em Wesley e W hitefield, em Edwards e
Finney, em Newman e Spurgeon. A pregação continua a ser a linguagem mais
fundamental para transmitir a revelação de Deus em Cristo Jesus, proferidas
20 A LINGUAGEM DE DEUS

a partir de esquinas e púlpitos por todo o mundo: Deus vivo, em operação e


falando, aqui e agora, a você e a mim.
Jesus também usou a linguagem para ensinar. Ao contrário do ensino com
que estamos habituados em nossas escolas, palestras projetadas para pensar
em nosso lugar, o ensino de Jesus reluzia com aforismos cintilantes. Mais do
que transmitir informação, ele estava remodelando nossas imaginações com
metáforas, de modo que pudéssemos interiorizar a verdade viva e multidimen-
sionada que é Jesus. Todos os evangelistas incluem em seu evangelho o ensino
de Jesus, instruindo-nos detalhadamente sobre o que significa viver neste reino
de Deus. Mas Mateus é o evangelista que nos fornece o maior testemunho
sobre o ensino de Jesus. Ele agrupa os ensinamentos de Jesus em cinco grandes
discursos (talvez numa lembrança dos cinco livros de Moisés?): O Sermão do
Monte (Mt 5— 7), Instruções aos Doze Discípulos (Mt 10), Instruções para a
Comunidade (Mt 18), Advertência contra a Hipocrisia (Mt 23), Ensino sobre
as Últimas Coisas (Mt 24 e 25).
Viver dia a dia neste mundo, no qual Deus está presente e ativo a nosso
favor e para a nossa salvação, implica cultivar uma percepção minuciosa do que
está em jogo em cada aspecto da nossa vida. Muitas vezes dicotomizamos nossa
vida em pública e confidencial, espiritual e secular, retalhando-a em partes
separadas, e depois guardamos cada parte em escaninhos etiquetados de fácil
acesso, para quando sentimos vontade de tratar de cada setor. O ensino reúne
as partes, estabelece conexões, demonstra relações — “liga o pontilhado”, como
dizemos. Assim, Jesus nos ensina, esmiúça os detalhes de tudo aquilo contra o
que estamos posicionados, das decisões e dos discernimentos que precisamos
fazer, dos meios e métodos adequados para vivermos esta vida do reino, na qual
Jesus é rei. O ensino de Jesus, tanto na Galileia e em Jerusalém quanto agora
da forma em que é reproduzido por nossos professores e mestres, geralmente
se dá na companhia de outros, alguns que são irmãos e irmãs em obediência e
outros que acabam se mostrando indiferentes ou mesmo hostis.
Em seu ensino, assim como em sua pregação, Jesus vive a partir de uma
longa tradição: os livros de Moisés, que têm por ápice Deuteronômio, depois
Provérbios e Eclesiastes, e depois o conselho e a sabedoria tecidos na malha
magnífica do cuidado pastoral que encontramos nos profetas e nos sacerdotes
JESUS EM SAMARIA 2‫ו‬

de Israel. Esse ensino também continua na vida da igreja à medida que nossos
pastores e teólogos nos treinam no cultivo de uma obediência inteligente e fiel
enquanto lidamos com política, negocios, assuntos de família, fracassos e
sofrimentos, levando vida íntegra e integrada. O ensino faz ressurgir palavras
mortas para que vivam outra vez. Ocupa um grande espaço na forma em que
usamos a linguagem nesta nossa vida como seguidores de Jesus.
A pregação e o ensino são usos destacados da linguagem entre as pessoas
que falam e testificam, que oram e dão orientação na comunidade cristã.
Norm alm ente separamos homens e mulheres e os treinamos em escolas e
igrejas para serem pregadores e professores. Há muito que aprender. Há muito
de que se resguardar. Precisamos de pregadores e mestres que nos mante-
nham focados em Deus por meio de Cristo e nos alertem para as idolatrias
sedutoras que nos rodeiam. Na maioria dos casos, estamos bem servidos de
pregadores e mestres que compreendem o que está acontecendo no reino,
que não se desviarão facilm ente daquela única coisa “necessária” e que se
aplicam à fidelidade e à renovação de nossa mente. A pregação e o ensino são
bastante bem definidos quanto ao modo e conteúdo e ocorrem em geral em
contextos públicos.
Mas há um terceiro tipo de linguagem da qual todos participamos, inde-
pendentemente de nosso papel na comunidade, quaisquer que sejam nossas
aptidões e capacidades. Já defini essa linguagem acima com o “intercâmbio
conversacional [informal que se dá] enquanto faz suas refeições na casa de
alguém ou com amigos, percorrendo campos ou as margens de um lago ou
respondendo a várias interrupções e perguntas enquanto vai a um lugar ou
outro”. Em qualquer contagem semanal de nosso uso da linguagem, esse tipo
de discurso excede de longe qualquer coisa que falemos ou escutemos que
pudesse ser designada pregação ou ensino. Quando Jesus não estava pregando e
quando não estava ensinando, ele falava com homens e mulheres com os quais
convivia a respeito do que estava acontecendo naquele mom ento — pessoas,
acontecimentos, perguntas, o que quer que fosse — usando as circunstâncias
da vida deles como seu texto. Muito à semelhança de como fazemos. A pre-
gação inicia-se com Deus: A palavra de Deus, a ação de Deus, a presença
de Deus. O ensino amplia o que está sendo proclamado, instruindo-nos nas
22 A LINGUAGEM DE DEUS

implicações do texto, nas verberações da verdade ocorridas no mundo, nas


formas específicas em que a Palavra de D eus modela com detalhe nosso
modo de viver entre o nascimento e a morte. Mas as conversas informais, não
estruturadas, brotam de episódios e encontros de uns com os outros que se
dão no curso normal da vida com nossa família e nos locais de trabalho, em
parques e nas compras de supermercado, em aeroportos à espera de um voo
e andando com amigos de binóculos na mão, divisando pássaros. Muitas das
palavras que Jesus falou são dessa natureza. Não somos, na maioria, pregado-
res ou professores, ou ao menos não somos designados como tais. As palavras
que falamos são com um ente proferidas em contextos do cotidiano, quando
comemos e bebemos, quando compramos ou viajamos, fazendo o que às vezes
minimizamos como "conversa banal”.
Todos os evangelistas atuais mostram Jesus usando esse tipo de linguagem,
mas a revelação mais prolongada de Jesus usando essa linguagem informal e não
estruturada acha-se no evangelho de Lucas. O que Marcos faz pela pregação
e Mateus faz pelo ensino, Lucas faz pelo intercâmbio informal de linguagem
que ocorre nas idas e vindas de nossa linguagem comum.

A NARRATIVA DA VIAGEM, DE LUCAS


No centro do evangelho de Lucas (Lc 9:51— 19:44), há uma inserção de dez
capítulos que põem em destaque exatamente esse tipo de linguagem informal
entre Jesus, seus seguidores e outros homens e mulheres que ele encontra
ao longo do caminho. A seção é emoldurada por referências a uma saída da
Galileia (9:51) e depois a uma chegada a Jerusalém (19:11,28,41). Por causa
dessas referências que servem como uma espécie de moldura, essa passagem
é normalmente designada a Narrativa da Viagem. A maior parte do material
contido nesses dez capítulos é encontrada somente em Lucas.
Nossos três primeiros evangelhos seguem um esboço sem elhante, com
muita similaridade no conteúdo e na disposição. Não exatamente copiam um
ao outro, pois cada evangelista tem uma maneira própria de contar a história,
salientando aspectos que de outra forma ficariam despercebidos. Em linhas
gerais, Marcos se detém nas qualidades pregadas e querigmáticas da linguagem
de Jesus, e Mateus realça as qualidades do ensino, didáticas. Mas Lucas tem
JESUS EM SAMARIA 23

um interesse particular em nos imergir nos aspectos conversacionais da lin-


guagem de Jesus. Por isso Lucas interrompe o enredo apresentado por aqueles
que vieram antes dele na composição dos Evangelhos, Mateus e Marcos, e
interpõe essa longa seção, que se constitui na maior parte de material origi-
nal, no centro de seu evangelho. Os primeiros nove capítulos do evangelho
de Lucas contam a história do ministério galileu de Jesus, seguindo o padrão
estabelecido por Mateus e Marcos. A história galileia assenta os alicerces da
nossa vida em Cristo. Os cinco últimos capítulos contam a história da semana
final do ministério de Jesus em Jerusalém — Jesus rejeitado, crucificado e
ressurreto para uma nova vida — e também seguem Mateus e Marcos. A his-
tória de Jerusalém consuma a nossa vida em Cristo: crucificação, ressurreição.
O que Jesus disse e fez nos primeiros anos na Galileia está vinculado com
o que aconteceu nessa última semana em Jerusalém. A transição entre os
dois lugares é narrada como uma viagem por Samaria, a região que separava
a Galileia de Jerusalém. Se não um território inimigo exatamente, Samaria
era ao menos, sem dúvida, território hostil. Samaritanos e judeus tinham tido
várias centenas de anos de inimizade entre si. Não se gostavam nem confiavam
uns aos outros. Houve casos de violência aqui e ali, e até mesmo encontros
sangrentos. Josefo conta a história de um episódio em que os samaritanos as-
sassinaram alguns peregrinos galileus que estavam atravessando Samaria em sua
trajetória para uma festa em Jerusalém. Guerrilheiros judeus então atacaram
aldeias samaritanas por vingança.3 Deslocar-se da Galileia para Jerusalém era
uma viagem perigosa de aproximadamente 100 a 110 quilômetros — uma
viagem de uns três a cinco dias num jumento ou a pé.
E ao viajar por Samaria, indo da Galileia para Jerusalém, que Jesus separa
um tem po para contar histórias que preparam seus seguidores a trazer o co-
mum da vida a uma percepção consciente e a uma participação nessa vida do
reino. Jesus anuncia a seus discípulos que está indo para Jerusalém para ser
crucificado, e os chama para acompanhá-los. Andando juntos todos aqueles
dias, ele os prepara para a vida que terão após a crucificação e a ressurreição
dele. Alguns acontecimentos bem marcantes estão se aproximando. A vida
deles será mudada de dentro para fora. Mas ao mesmo tem po vão lidar com
as mesmas pessoas, com as mesmas rotinas, com as mesmas tentações, com
24 A LINGUAGEM DE DEUS

a mesma cultura romana, grega e hebraica, com os mesmos filhos e com os


mesmos pais, com a mesma espera às vezes interminável, enfrentando a indife-
rença de tantos em relação a eles, lidando com as hipocrisias enlouquecedoras
dos cheios de justiça própria, com a estupidez da guerra, com os absurdos do
consumo inegável e com as mentiras dos governadores arrogantes. Tudo terá
mudado e, no entanto, nada terá mudado. Jesus os está preparando para viver
num mundo que não conhece nem quer conhecer Jesus. Jesus os está prepa-
rando (a nós também!) para levarem uma vida de crucificação e ressurreição,
com paciência e sem alardes, de forma obediente e sem reconhecimento. Ele
os prepara nessas conversas samaritanas para fazer tudo isso calma e corajosa-
mente num vínculo com a maneira em que Jesus o fez e com a maneira em que
Jesus falou a respeito. Ele deixa claro que logo, quando ele não estiver mais
fisicamente com eles, sem dúvida alguma não estarão sozinhos para realizar a
obra da maneira que julgarem melhor. Como ele a está realizando, o caminho
da cruz, deve continuar. Mas é interessante e significativo que Jesus não usa
a linguagem da crise. Ela fala numa conversa, mal erguendo a voz. Na maior
parte do tempo, ele conta histórias. Alguns de seus seguidores (embora não
todos) jamais esquecerão essas histórias.
Há um tipo de intimidade que se desenvolve naturalmente quando homens
e mulheres andam juntos e conversam, sem prioridades imediatas ou tarefas
atribuídas, a não ser chegarem por fim ao seu destino e usando o tem po que
for necessário para tanto. Mateus e Marcos não desperdiçam nenhum tempo
para nos levar da Galileia a Jerusalém. Lucas nos faz diminuir o ritfno, e usa
todo o tem po necessário. Lucas aproveita a oportunidade de usar essa cena
de uma viagem sossegada e a pé por estradas, para ampliar e desenvolver a
espontaneidade de conversas não estruturadas, enquanto Jesus e seus disci-
pulos viajam da Galileia a Jerusalém — Jesus respondendo a perguntas, Jesus
conversando em torno da mesa da ceia, Jesus falando sobre várias coisas com
seus amigos, Jesus contando histórias. O que Mateus e Marcos buscam cada
um cobrir em dois capítulos, Lucas estende em dez. Ele nos faz mergulhar no
modo em que Jesus usa a linguagem à medida que ele lida com o com um e
o esporádico. Jesus não tem pressa — podendo sempre ser interrompido. E
assim que Jesus usa a linguagem quando não está pregando nem ensinando.
JESUS EM SAMARIA 25

E é assim que usamos a linguagem nos momentos não reservados formalmente


para o que poderiamos chamar conversa “religiosa”.

***

Duas coisas me interessam na Narrativa da Viagem. Primeira, trata do que está


ocorrendo “no m eio” das áreas da vida e do ministério de Jesus, a Galileia e
Jerusalém. Jesus e seus discípulos estão viajando pela região estranha e inóspita
de Samaria. Diferentemente da Galileia e de Jerusalém, Samaria não é a terra
natal de Jesus e seus companheiros. Estão distantes das sinagogas galileias que
eles conheciam tão bem e do templo de Jerusalém que eles tanto amavam.
Eles não conheciam aquele povo e tinham pouca coisa em comum com ele,
nem sinagoga, nem tem plo, nem um acordo a respeito das Escrituras. São
estranhos para essa região e para esse povo.
Há uma analogia aqui do que é experim entado na vida do cristão “entre
os domingos”. A vida de Jesus é normalmente pregada e ensinada na adoração
de domingo. O santuário no domingo é o m om ento e o lugar designados
para dispensarmos atenção ao que significa adorar e para seguir a Jesus na
companhia dos batizados, os homens, as mulheres e as crianças que descobrem
e percebem quem são, não em si mesmos, mas na companhia e na obra do
Pai, do Filho e do Espírito Santo. Trata-se de um mom ento e lugar separados
e protegidos para a oração e uma escuta em espírito de oração, entre homens
e mulheres que estão "do nosso lado”. Sabemos muito bem, embora não em
detalhe, o que esperar. A estrutura, ao menos, e a maioria das pessoas são
previsíveis. Mas entre cada domingo passamos a maior parte do tempo com
pessoas que não estão seguindo a Jesus com o nós, que não compartilham de
nossas pressuposições, opiniões e convicções a respeito de Deus e de seu reino.
As circunstâncias — necessidades familiares, responsabilidades de trabalho,
climas rigorosos, acidentes e frutos derrubados pelo vento — são, ao menos
ao olhar ocasional, completamente seculares. Qualquer coisa pode ser dita;
qualquer coisa pode acontecer. Muitas vezes “qualquer coisa” é dita e de fato
acontece. Pouco desse “qualquer coisa" parece originar-se do texto do sermão
que escutamos no culto de adoração dominical, ou ter alguma relação com
26 A LINGUAGEM DE DEUS

ele. Samaria é a região entre a Galileia e Jerusalém na qual passamos a maior


parte de nosso tem po entre um domingo e outro. Nenhum de nós é capaz de
prever o que nos será dito ou nos acontecerá enquanto lá estivermos.
Alguns de nós tentam restringir nossa identidade cristã ao que ocorre no
domingo. Para preservá-la da contaminação “do mundo”, evitamos o máximo
possível a conversa que ultrapasse as amenidades polidas com os samaritanos.
Outros de nós memorizam expressões dos sermões e do ensino de domingo
e procuram inseri-los em pausas da conversa ou em outras circunstâncias nos
seis dias seguintes. Mas não demora muito para percebermos que essas táticas
são insatisfatórias. Ou, se nós m esm os não o percebemos, os samaritanos
certamente percebem.
A designação “Narrativa da Viagem” não é inteiramente satisfatória porque,
embora os dez capítulos sem dúvida com ecem e terminem com referências à
viagem da Galileia a Jerusalém, não há clareza quanto ao itinerário ou à cro-
nologia da viagem. A viagem em si parece servir como uma espécie de saco de
surpresas com histórias e acontecimentos nos quais vemos Jesus adaptando
e improvisando sua linguagem para se ajustar a cada pessoa e circunstância
dentro das condições que lhe são apresentadas. A Narrativa da Viagem apre-
senta Jesus falando numa linguagem informal, não estruturada, boa parte da
qual não sendo categoricamente “religiosa", no transcurso de acontecimentos
espontâneos e descontraídos ocorridos “no caminho” por Samaria.
O que começamos a perceber é que o que começamos como “Narrativa da
Viagem” desenvolveu-se no relato em uma metáfora, uma metáfora da forma
em que Jesus usa a linguagem entre um domingo e outro, entre as santas si-
nagogas da Galileia e o santo templo em Jerusalém, lugares e momentos em
que se espera uma linguagem sobre Deus e seu reino. Mas Samaria não era
“santa” no mesmo sentido, não era favorável ao Jesus que estava sendo reve-
lado na Galileia e em Jerusalém. Lucas nos apresenta Samaria com o metáfora
do modo em que Jesus usa a linguagem com pessoas que têm muito pouca
ou talvez nenhuma prontidão para escutar a revelação de Deus e não raro são
abertamente hostis. É assim que Jesus usa a linguagem quando ele não está,
como dizemos, na igreja.
JESUS EM SAMARIA 27

A segunda coisa de interesse na Narrativa da Viagem é a frequência com que


Jesus conta histórias, as mini-histórias que denominamos parábolas. Nesses
dez capítulos, Jesus mais conta histórias que qualquer outra coisa. D ez das
histórias nessa seção intermediária do evangelho de Lucas são exclusivas de
Lucas. Todos os evangelistas apresentam Jesus contando histórias — “Não lhes
dizia nada sem usar alguma parábola" (Mc 4:34) — , mas Lucas supera seus
irmãos evangelistas. E é precisamente nessa Narrativa da Viagem que estão
agrupadas as dez parábolas não mencionadas nos outros evangelhos.
Havería alguma razão para isso? Creio que sim. A parábola é uma forma
do discurso com estilo todo próprio. E uma forma de dizer algo que exige a
participação imaginativa do ouvinte. A parábola envolve o ouvinte sem cha-
mar muita atenção, quase sub-repticiamente. Essa história breve, corriqueira,
despretensiosa, é jogada em uma conversa e cai aos nossos pés, exigindo nossa
atenção. A parábola é literalmente “algo lançado para o lado d e” [para , "ao
lado d e”, + bole, “lançado”), diante do que nossa primeira reação é: “O que
isso está fazendo aqui?”. Fazemos perguntas, pensamos, imaginamos. As “Pa-
rábolas aparecem em rápidas e precisas pinceladas. A parábola é frágil; quase
todo o poder reside naquele que a ouve”.4 E então começamos a ver conexões,
relações. A parábola não é usada normalmente para nos contar algo novo, mas
para nos levar a observar algo que nos passou despercebido, embora estivesse
há anos bem diante de nosso olhos. Senão, é usada para nos fazer tratar com
seriedade algo que descartamos como de pouca importância por nunca enten-
der sua razão de ser. Antes de percebermos, estamos envolvidos.
A maioria das parábolas tem outro aspecto significativo. O assunto em geral
não tem um significado religioso evidente. São histórias sobre fazendeiros,
juizes e vítimas, sobre moedas, ovelhas e filhos pródigos, sobre banquetes de
casamento, construção de celeiros e torres e participação em guerras, sobre o
amigo que o desperta no meio da noite para pedir pão, as cortesias da hospita-
lidade, trapaceiros e pedintes, árvores e esterco. As conversas que Jesus teve
enquanto transitava pelas estradas samaritanas eram com pessoas que tinham
uma opinião diferente sobre Deus do que aquilo que Jesus estava revelando,
ou talvez não tivessem uma ideia tão bem formada assim sobre Deus. Essa
era uma região ou hostil, ou neutra. As parábolas foram a linguagem que Jesus
28 A LINGUAGEM DE DEUS

escolheu acima de todas as outras para conversar com essas pessoas, histórias
que não usavam o nome de Deus, histórias que não pareciam ser "religiosas”.
Quando estamos na igreja, ou num momento e num lugar religiosamente defi-
nidos, esperamos ouvir sobre Deus. Mas, fora desses momentos e lugares, não é
o que esperamos. Aliás, não queremos. Se quiséssemos lidar com Deus, iríamos
à casa de Deus. As pessoas que encontramos “na estrada” e “entre um domingo
e outro” esperam lidar com as coisas a sua própria maneira, mantendo Deus
enquanto isso no lugar ao qual ele pertence. Assim, mantenha Jesus no lugar
dele — na Galileia e em Jerusalém. “Aqui é Samaria! Estou completamente
ocupado com os assuntos da família e com meus negócios, com a sociedade e
com a política. Eu estou no controle aqui. Vou fazer tudo do meu jeito.”
Os samaritanos, naquela época e agora, acumularam séculos de uma indi-
ferença bem desenvolvida, se não uma aversão indisfarçada à linguagem de
Deus — pelo menos ao tipo usado por pessoas da sinagoga e da igreja. Eles
têm idéias próprias sobre Deus e sobre como tocar a vida e nada a não ser um
desprezo frio pelas opiniões messiânicas dos de fora. Os samaritanos sabem
se defender muito bem da intromissão de uma linguagem de Deus em seus
assuntos, sobretudo quando procede de lábios judeus (ou cristãos). Assim,
quando Jesus atravessa Samaria, ele limita consideravelmente seu uso de uma
linguagem explícita de Deus. A pregação e o ensino não são eliminados, mas
com certeza são afastados para as margens. Jesus circula em torno das defesas
de seus ouvintes. Ele conta parábolas. A parábola mantém a mensagem a certa
distância, retarda a compreensão, obstrui as reações prejudiciais automáticas,
desmantela os estereótipos. A parábola chega ao ouvinte de modo oblíquo,
“de viés”. O samaritano escuta, sem suspeitar de grandes coisas. E então, sem
aviso, sem que a palavra seja usada: Deus! John Dominic Crossan diz que a
parábola é um terremoto abrindo o chão aos nossos pés.5
E de grande interesse para mim que, durante todos esses vários dias em
que Jesus está andando com seus discípulos, ele escolha as parábolas acima
de qualquer outra linguagem. Sabemos que o fim está próximo: crucificação
e ressurreição. Sabemos que não há muito tem po de sobra até Jesus deixar
seus discípulos, e eles terão de dar continuidade em seu lugar. Cada passo
que eles dão por Samaria em direção a Jerusalém aumenta a urgência. Essa é
JESUS EM SAMARIA 29

a ultima vez que esses samaritanos o verão, o escutarão. Por que cargas d ’água
Jesus está contando histórias despretensiosas sobre trapaceiros e esterco? Por
que não está pregando a palavra clara de Deus, chamando os samaritanos ao
arrependimento, oferecendo a eles o dom da salvação em linguagem direta? A
medida que o fim se aproxima, sua linguagem se torna menos, não mais direta.
À medida que aumentam os riscos, sua linguagem toma-se ainda mais descon-
traída e conversacional do que de costume. Em vez de uma retórica de elevados
decibéis, exigindo uma decisão antes que seja tarde demais, ele mal mencio-
na, quando menciona, o nome de Deus, escolhendo em vez disso falar sobre
próximos e amigos, da perda de uma ovelha e das cortesias da hospitalidade.
Isso me interessa por estar em tamanho contraste com o que tão comu-
mente ocorre entre nós. Quando ficamos mais e mais cientes do que está em
jogo no ato de seguir a Jesus e das urgências que isso implica, especialmente
quando nos encontramos em território samaritano, é comum entre muitos de
nós que nos tornemos mais intensos em nossa linguagem. Por ser muito mais
clara e focada, usamos a linguagem aprendida em sermões e ensinos para dizer
a outras pessoas o que é eternamente importante. Mas a própria intensidade
da linguagem pode muito bem reduzir nossa atenção à pessoa à qual estamos
falando — a qual deixa de ser uma pessoa e passa a ser um caso. Impacientes
para transmitir nossa mensagem, impessoalizamos o que tem os a dizer em
expressões ensaiadas ou em uma fórmula programática sem consideração à
pessoa diante de quem nos encontram os. À medida que a urgência por
falar a palavra de Deus aumenta, diminuem os relacionamentos em que há
também a escuta. Acabamos com uma pilha de ossos de palavras descarnadas
— discurso meramente religioso.

* * *

Os mestres espirituais gostam especialmente da parábola, pois não há nada


mais com um do que as pessoas que querem falar sobre D eus perderem o
interesse nas pessoas com as quais estão falando. A conversa sobre Deus é im-
pessoalizada numa conversa meramente religiosa. A conversa religiosa é usada
para organizar as pessoas em causas que não mais nos envolvem, para cumprir
30 A LINGUAGEM DE DEUS

ordens que já não mais se nos impõem. Quando as palavras de Jesus passam
a ser aquilo que meramente preenche os argumentos, ferramentas verbais de
manipulação, tentativas de controle, a vida se exaure delas e lá elas ficam,
uma pilha de folhas mortas no chão feita com um ancinho. Exatamente nesse
momento, o mestre deixa cair uma parábola na conversa. Tropeçamos nela,
não mais capazes de velejar pelas rotas já conhecidas das palavras. A parábola
impõe atenção, participação, envolvimento.
A Narrativa da Viagem de Lucas é uma imersão na linguagem narrativa e
parabólica característica de Jesus na estrada passando por Samaria enquanto
ele transita da Galileia, onde iniciamos a vida de seguir a Jesus, a Jerusalém,
onde encontraremos nossa maturidade e conclusão, abraçando Jesus na cruz
e abraçados por Jesus na ressurreição. Samaria para nós passa a ser uma orien-
tação no que há de comum, no cotidiano, o lugar onde os hábitos e o caráter
de um seguidor de Jesus são moldados entre pessoas que não têm nenhum
interesse em seguir a Jesus nem o incentivam de modo algum. A Narrativa
da Viagem de Lucas satura nossas imaginações com a forma em que Jesus usa
a linguagem nesse trecho inóspito da estrada entre a proclamação galileia da
presença do reino, onde tivemos nosso com eço no ato de seguir a Jesus, e a
crucificação e a ressurreição em Jerusalém que conclui a história de modo tão
decisivo e dramático.

O ESPÍRITO SANTO EM NOSSAS CONVERSAS


A Narrativa da Viagem de Lucas desenvolve a percepção de que o Espírito
Santo está tão presente em nossas conversas espontâneas e informais quanto
na pregação formal e no ensino intencional. Como nossas conversas espontâ-
neas e informais não são a primeira coisa que nos vem à mente quando nos
focamos nas às vezes chamadas “coisas de D eus”, facilmente perdemos de vista
as implicações da “palavra de D eus” quando não estamos cientes de estarmos
falando com Deus ou sobre ele. Quando estamos num tem plo ouvindo um
sermão sobre João 3:16 ou sentados numa sala de aula fazendo anotações de
uma aula sobre Isaías, é bastante evidente que estamos escutando e proferindo
uma linguagem que Deus usa para revelar a si mesmo e que nós usamos para
JESUS EM SAMARIA 31

participar dessa revelação. Mas e quando estamos contando a alguém sobre


uma notícia que acabamos de ouvir no rádio, ou quando estamos lendo uma
carta recebida de um membro da família naquela manhã, ou quando manifes-
tamos nossas preocupações com um vizinho da nossa rua? Podem essas palavras
também ser revelatórias, ser também maneiras de participar da presença e
da ação de D eus no m om entos e nos lugares claramente sinalizados como
“sagrados”? Será que testemunhamos de Jesus quando não usamos o nome
de Jesus? Será que transmitimos às pessoas confiança em Deus quando não
sabemos que o estamos fazendo? Será que confessam os o pecado quando
não estamos em um confessionário ou de joelhos? Será que louvamos com
uma exclamação ou um gesto, sem perceber que estamos na companhia de
anjos que cantam “Santo, santo, santo”? Certa noite, quando Nicodemos ficou
aturdido pela maneira pouco convencional, não religiosa, em que Jesus estava
falando sobre o reino de Deus, Jesus disse-lhe: “O vento sopra onde quer. Você
o escuta, mas não pode dizer de onde vem nem para onde vai. Assim acontece
com todos os nascidos do Espírito” (Jo 3:8). Nicodem os não tinha nenhuma
ideia do que estava falando. Boa parte da linguagem inspirada pelo Espírito ou
acompanhada pelo Espírito ocorre quando não o sabemos, seja quando sai de
nossos próprios lábios, seja quando vem dos lábios de outras pessoas.
Assim precisamos ser relembrados. Precisamos de orientação. Precisamos
de amigos capazes de ouvir os sussurros do Espírito Santo naquilo que estamos
dizendo — e às vezes nas entrelinhas do que não estamos dizendo. E precisa-
mos ser amigos assim para os nossos amigos. Esses amigos normalmente não
têm nenhum papel atribuído na vida uns dos outros. Geralmente não sabem
que estão fazendo alguma coisa que possa ser chamada “espiritual". Nathaniel
Hawthorne não fazia rodeios em assuntos dessa natureza: “Seus instrumentos
não têm nenhuma consciência de seu propósito; se imaginarem que têm, aí
está um sinal bem seguro de que não são seus instrumentos”.6
Estou interessado em cultivar a natureza fundamentalmente sagrada de
toda linguagem, incluindo-se com certeza absoluta a linguagem informal, es-
pontânea, sem constrangimentos, conversacional, que ocorre quando estamos
sentados numa cadeira de balanço em frente a uma lareira em um dia invernal,
32 A LINGUAGEM DE DEUS

passeando pela praia ou tomando café na hora do jantar — conversações en-


quanto andamos por Samaria. Estou interessado em discernir a voz de Deus
nas conversas que travamos quando não estamos pensando intencionalmente
em “Deus".
Todos nós temos larga experiência nessa linguagem. Mas nem todos esta-
mos habituados a trazer nossa experiência à consciência, dando nome ao que
ouvimos ou dissemos. As vezes percebemos em retrospecto. Encontramos
um amigo na hora das comprar e paramos para conversar por um instante — um
minuto ou dois no máximo. Algumas horas mais tarde percebemos que algo
dito era revelador, uma percepção da graça, uma percepção da beleza, um
senso da presença na qual desenvolvemos uma consciência de que “Deus estava
neste lugar e eu não sabia”. As vezes a palavra ou a frase que desencadeia tudo
aquilo acontece quase de improviso. Às vezes a percepção é ateada por um
tom de voz ou um gesto. Quase nunca intencionalmente. O fato é que quase
todas as palavras são santas e Deus fala a nós e por meio de nós pela própria
natureza da linguagem em si.
O que quero dizer é que o Espírito Santo transmite em nossa linguagem e
por meio dela as palavras da paz, do amor, da graça e da misericórdia de Jesus
quando nem percebemos — pelo menos não na hora em que estão ocorrendo.
E todos nos envolvemos com isso simplesmente em virtude do fato de que
falamos com muitas pessoas diferentes e ouvimos muitas pessoas diferentes,
em muitos ambientes diferentes, na maior parte dos dias da nossa vida. Pres-
tar atenção em Jesus contando histórias na Narrativa da Viagem de Lucas é a
melhor orientação nessa dimensão da linguagem que eu conheço.

***

Há uma disciplina antiga de honrar a atenção cuidadosa que dispensamos a


essa linguagem, linguagem que usamos em discursos pessoais e conversacio-
nais, a linguagem que ocupa seu lugar ao lado da pregação e do ensino como
essencial à formação em comunidade da vida cristã. Essa disciplina recebe a
designação de “orientação espiritual”. Ficará evidente àqueles acostumados
a essa tradição e a sua prática que o que aqui escrevo está profundamente
JESUS EM SAMARIA 33

influenciado por ela. Desde cedo na vida da igreja, ao lado da prática da pre-
gação e do ensino públicos tem havido a prática correspondente da orientação
espiritual. Na orientação espiritual, a linguagem usada na proclamação e no
ensino do evangelho é desenvolvida em conversas pessoais que levam a sério
a unicidade de cada pessoa e as circunstâncias reais em que cada pessoa vive.
Não adiantará amontoar as pessoas em categorias e depois as agrupar em um
de três ou quatro grupos que podem ser tratados eficientemente por meio de
uma fórmula.
A medida que amadurecemos em Cristo, nossa singularidade é acentuada,
não embotada. As orientações generalistas, por mais úteis que possam ser,
não levam em consideração os detalhes que se nos apresentam à medida que
a santidade se enraiza no lugar social e pessoal em que estamos plantados
em particular. Precisamos da atenção sábia de alguém que esteja a par das
coisas, que conheça as sutilezas do pecado e os disfarces da graça. Mais que
tudo, precisamos que nossas orações recebam essa atenção, pois a oração é a
prática por m eio da qual tudo o que somos, tudo em que acreditamos e tudo
o que fazemos é transformado na ação do Espírito que opera sua vontade nos
detalhes da nossa vida cotidiana. A oração consiste na transformação do que
fazemos em nome de Jesus, no que o Espírito Santo faz em nós à medida
que seguimos a Jesus.
A orientação espiritual é uma pessoa, de forma intencional e em espírito de
oração, imergindo-se na vida comum e informal de qualquer cristão comum.
Mas a prática em si não é nem comum, nem informal. A comunidade cristã
tem uma história de reconhecer pessoas sábias, experientes, que podem orien-
tar o restante de nós. “Pai” (abba ) e “m ãe” (amma) são as designações mais
largamente empregadas. As qualificações para realizar esse trabalho não são
formais, mas há um consenso na igreja de que as qualificações são, contudo,
bastante rigorosas. O conhecimento teológico é algo fundamental, e uma longa
experiência na oração é um pré-requisito.
Assim, encontramos uma pessoa tarimbada em discernir a linguagem do
Espírito e pedimos que se encontre conosco de vez em quando ou com certa
regularidade — um orientador espiritual. Muitas vezes essas pessoas, esses
“pais” e “m ães”, são membros de ordens contemplativas em monastérios
34 A LINGUAGEM DE DEUS

ou conventos. Às vezes estão associados a casas de retiro. Vez por outra são
colocados nas congregações. Esses orientadores espirituais mantêm viva uma
longa tradição na igreja de Cristo. Às vezes são pastores e sacerdotes. Às vezes
são leigos. Gozam de certa visibilidade e fornecem a definição para aquilo que
tantas vezes ocorre na obscuridade e nas sombras do discurso mais público da
pregação e do ensino. Por meio de sua presença e às vezes em seus escritos,
chamam nossa atenção para a forma em que a linguagem continua a ser reve-
ladora em nossas conversas mais casuais, mostrando a dignidade dessa maneira
de a linguagem se comportar.
Precisamos de alguns desses homens e mulheres na comunidade, pessoas
que são intencionais em nos fazer prestar atenção às palavras que estamos usan-
do quando não pensamos que estamos dizendo qualquer coisa que importe.
Precisamos de ouvintes alertas para conferir dignidade a esses momentos de
nossa vida em que não tem os consciência de estar participando em nada que
imaginamos poder ser abraçado pelo reino de Deus.7

*#*

Sem diminuir nem marginalizar o papel estratégico desses orientadores espi-


rituais designados, quero ao mesmo tempo ampliar a consciência daquilo de
que eles servem de modelo para as fileiras de leigos que não estão cientes das
maneiras em que o Espírito Santo sopra por meio de nossas conversas mais
casuais e dos clérigos que som ente estão cientes de estarem falando a palavra
de Deus quando pregam ou ensinam. As conversas não convencionais que
ocorrem fora dos ouvidos e dos olhares do público, aliás, ocupam um lugar de
destaque na maneira em que aprendemos a usar a linguagem que transmite o
Espírito e a essa linguagem prestar atenção. Meu interesse é oriundo das tra-
dições bem definidas e necessariamente rigorosas do orientador espiritual, mas
estou tentando algo muito mais simples — talvez algo a respeito da orientação
espiritual como o que aconteceu ao homem que ficou aturdido ao perceber
aos quarenta anos de idade que tinha falado em prosa por toda a sua vida.
Qualquer cristão, e muitos cristãos de fato o fazem, pode escutar e nos
ajudar a escutar as propensões ocultas da nossa linguagem, o que não se profere
JESUS EM SAMARIA 35

nem se ouve, os silêncios que subjazem boa parte da linguagem que usamos
impensadamente. Essas conversas podem cultivar uma sensibilidade aos ca-
minhos do Espírito Santo, estimular uma aceitação da ambiguidade, estender
uma disposição de viver em momentos em que simplesmente não há nenhuma
“orientação” discernível. Com esse escutar, habituamo-nos a viver um mistério
e a não exigir que haja uma nota de rodapé informando e explicando tudo o que
está acontecendo. Certamente há habilidades a ser cultivadas, sobretudo nesta
sociedade americana na qual quase todos falam demais e mal ouvem alguma
coisa. Apenas estou insistindo em afirmar que qualquer um de nós é capaz de
fazer isso simplesmente em virtude de nosso batismo e incorporação no grupo
de homens e mulheres sobre os quais o Espírito sopra, à medida que o Espírito
traz à memória as palavras de Jesus (Jo 14:26) nas conversas de homens e
mulheres que escutam e respondem à Palavra que se fez carne.
Para evitar a presunção e evitar também confundir aquilo que destaca os
homens e as mulheres instruídos e disciplinados que incorporam essa antiga
prática da igreja, não usarei o termo “orientação espiritual” para o tipo de
conversa que estou incentivando à medida que trilhamos nossas várias estradas
samaritanas. Mesmo assim, “quem dera” , para adaptar as palavras de Moisés
com respeito a Eldade e Medade no deserto, “todo o povo do S e n h o r fosse
orientador espiritual” (Nm 11:29).

* * *

Uma conversa não programada no templo em Siló entre o velho e quase cego
sacerdote Eli e o jovem Samuel é um exemplo clássico dessas conversas não
premeditadas. Era noite, e Samuel estava na cama. Ouviu uma voz que chama-
va seu nome: “Samuel! Samuel!”. Eli era a única pessoa no templo além dele,
e assim Samuel naturalmente pressupôs que Eli o estava chamando. Saltou da
cama e correu até Eli: “Estou aqui; o senhor me chamou?”. Eli disse que não o
havia chamado e mandou que voltasse para a cama. Isso se repetiu exatamente
assim três outras vezes. Após a terceira vez, o sacerdote discerniu que era o
Senhor quem chamava Samuel e lhe disse que, caso acontecesse outra vez,
ele devia orar: “Fala, SENHOR, pois o teu servo está ouvindo”. E aconteceu de
36 A LINGUAGEM DE DEUS

novo, pela quarta vez, e Samuel disse, conforme a instrução recebida: “Fala,
SENHOR, pois o teu servo está ouvindo". E nasceu assim um profeta.
Eli, na melhor das hipóteses um pastor incompetente, ainda assim foi capaz
de identificar a voz de Deus naquilo que Samuel supusera fosse a voz de seu
sacerdote, e assim reorientou Samuel para uma vida de oração na qual foi
transformado em profeta de Deus (ISm 3:1-18).
Outra conversa escriturística informal — não pregação, nem ensino — que
nos adverte sobre com o a linguagem-história realiza sua obra de revelação
ocorre indiretamente na carta de Paulo aos Gálatas. Paulo está dando teste-
munho de sua conversão e de sua integração longa (dezessete anos!) e diligente
na comunidade cristã. Em seu relato, ele faz menção de suas conversas com
Pedro (Cefas) em Jerusalém no decurso de uma visita de quinze dias. A palavra
grega que ele usa em referência às conversas é historeo. E a palavra de onde se
origina a nossa “história” de uma nação ou de um povo, mas tinha um sentido
mais informal e pessoal quando Paulo a empregou, algo mais casual, como num
"vaivém de histórias”. Para o acadêmico alemão Friedrich Büchsel, trata-se
de uma “visita com o objetivo de tomar conhecimento".8 Não eram pregação
nem ensino, mas simplesmente o ato de se conhecerem, contando um para o
outro as suas histórias e discernindo nas conversas as maneiras em que Deus
estava preparando e desenvolvendo Paulo para sua vocação como apóstolo aos
gentios na comunidade cristã. Facilmente podemos imaginar Pedro e Paulo
sentados num pátio, conhecendo um ao outro sob uma oliveira, com copos de
chá gelado, trocando histórias. Paulo conta sobre seu encontro com Jesus
na estrada de Damasco seguido dos três dias de cegueira. Pedro por sua vez
relata a confissão que fizera em Cesareia de Filipos quando é repentinamente
interrompido pela repreensão de Jesus: “Para trás de mim, Satanás!”. Paulo
conta como se sentira segurando as túnicas de seus companheiros de perse-
guição enquanto matavam Estêvão por apedrejamento. Pedro agora apresenta
sua noite de ignomínia no pátio de Caifás, quando nega a Jesus. E assim su-
cessivamente, quinze dias de histórias enquanto buscavam conhecer-se um ao
outro como irmãos em Jesus, descobrindo intimidades do Espírito enquanto
abriam o coração vulnerável um para o outro.
Mas o uso mais marcante dessa linguagem é Jesus em suas histórias. As
parábolas de Jesus foram na maior parte não religiosas em seu conteúdo mais
JESUS EM SAMARIA 37

à mostra. Suas parábolas usavam linguagem doméstica da vida diária e eram


normalmente suscitadas por uma circunstância específica. Há nelas uma
qualidade de improviso, de espontaneidade, de falta de premeditação. Jesus
fez largo uso das parábolas. Quando não estava pregando nem ensinando,
falava em parábolas. A forma característica de Jesus usar a linguagem era
contar histórias: “falou muitas coisas por parábolas” (Mt 13:3). Jesus conta
histórias, e nós escutamos Deus contando histórias. E, quase inevitavelmente,
encontramos a nós mesmos dentro das histórias. Jesus em suas histórias é
Jesus usando a linguagem em formas que viemos a reconhecer amplamente
como orientação espiritual.

OS ZEBEDEUS
Um episódio arrebatador prefacia esse longo excurso de contornos narrativos
e conversacionais dentro da Narrativa da Viagem. O episódio apresenta os
irmãos Zebedeus, Tiago e João.
Quando Jesus concluiu que chegara a hora de ir a Jerusalém, teve de
enfrentar uma dificuldade. O caminho até Jerusalém passava por Samaria,
e os samaritanos tinham opiniões negativas um tanto fortes a respeito dos
judeus. Os judeus sentiam o m esmo pelos samaritanos. Vinha de longa data o
preconceito racial e religioso. E assim, quando Jesus enviou antecipadamente
alguns de seus companheiros a Samaria para conseguir acomodações, eles
foram rejeitados. Retornaram a Jesus e relataram que não tinham conseguido
alojamento. Deparou-se-lhes grande hostilidade dentro da aldeia. Não foram
bem-vindos (Lc 9:51-53).
Os irmãos Zebedeus, Tiago e João, sentiram-se ultrajados. Apelidados
“Filhos do Trovão” (Boanerges), esses dois não levavam desaforo para casa.
Os irmãos eram pavio curto. Zangados com a falta de hospitalidade, queriam
que descesse fogo do céu para incinerar os mal-educados samaritanos. Tinham
precedentes bíblicos para essa impetuosidade violenta. Não foi exatamente o
que fizera Elias, o tesbita, fazendo descer fogo do céu oitocentos anos antes,
e exatamente nessa região samaritana (2Rs 1:10-12)? Poucos dias antes, na
transfiguração ocorrida no monte Tabor, os irmãos-trovão tinham visto Jesus
38 A LINGUAGEM DE DEUS

em conversa com Elias. Estavam agora numa missão em região samaritana sob
a autoridade de Elias; por que não usar o velho fogo de Elias para cuidar do
velho problema samaritano?
Jesus disse: “Não façam nada!”. Sua repreensão era peremptória e inego-
ciável. Simplesmente não fazia parte de sua tarefa como discípulos destruir a
oposição. Os seguidores de Cristo não esmagam as pessoas que não estão do
nosso lado, quer física, quer verbalmente.
Há vários anos, eu estava dirigindo num trecho de estrada que conhecia
bem. Cheguei bem a tem po de ver uma escavadora retirar uma casa ao lado
da estrada. A máquina amarela levou mais ou menos uns vinte segundos para
despedaçar a casa em gravetos. Eu observara aquela casa com apreciação
durante os 26 anos em que fui pastor naquela comunidade. A casa pequena
e sempre bem conservada se fazia acompanhar de uma horta grande sempre
bem mantida, na qual se plantava e da qual se cuidava com devoção. Fileiras
bem retinhas de milho, de beterraba e de cenoura. Sempre livre de ervas da-
ninhas. E quando chegava o meio do verão (como naquele dia), ela florescia
com alimentos, prontos para ser colhidos, preparados e comidos. Fazia pouco
tempo, porém, uma empresa de desenvolvimento havia comprado o terreno
para construir um shopping center. Uma casa com sua horta é uma ofensa a um
shopping center. E há uma solução tecnológica simples: a escavadora. A beleza
viva da casa e da horta não tinha nenhum valor monetário na competição com
a feiura e com o concreto do shopping, e assim mandaram a escavadora para
eliminá-la. Lembro-me de ter pensado, no instante em que vi tudo acontecer:
“os Zebedeus estão na ativa outra vez".
Quando o grupo de Jesus, a caminho de Jerusalém para estabelecer defini-
tivamente o reino de Deus, pôs-se contra a ofensiva falta de hospitalidade dos
samaritanos, os irmãos Zebedeus tinham (ou pensavam ter) os meios tecnológi-
eos para tirá-los do caminho — não um trator de lagarta no caso deles, mas uma
tecnologia igualmente eficaz e espiritualmente superior do fogo de Elias.
Um número surpreendente de cristãos, esquecido da repreensão sem res-
salvas de Jesus, continua a ingressar no time dos Zebedeus. Tais cristãos, cheios
de zelo à medida que seguem a Jesus, não tolerarão interferência. Segue-se
a violência. Agem assim em suas família, em suas igreja, entre seus amigos.
JESUS EM SAMARIA 39

No decurso de centenas de anos mataram judeus e muçulmanos, comunistas,


bruxas e hereges, e, mais aqui no nosso caso, nativos americanos. A maior parte
da violência, talvez toda ela, começa na linguagem. Jesus advertiu-nos de que
poderia ser assim: “Você ouviram o que foi dito a seus antepassados: ‘Não
matarás1, e ‘quem matar estará sujeito a julgamento’. Mas eu lhes digo que
qualquer que se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento. Também,
qualquer que disser a seu irmão: ‘Racá’, será levado ao tribunal. E qualquer
que disser: ‘Louco!’, corre o risco de ir para o fogo do inferno” (Mt 5:21-22).
Assim, todos nós, sem exceção, necessitamos de uma instrução completa
na linguagem de Jesus, a maneira em que ele falava com aqueles que o seguiam
e a maneira em que falou com aqueles que encontrou enquanto viajava por
Samaria. A viagem que com eçou com os irmãos Zebedeus decididos a fazer
descer fogo do céu para matar aqueles samaritanos sem-vergonha terminou
alguns dias mais tarde, quando os romanos mataram Jesus por perturbar a paz.
Violência ameaçada no princípio, violência concretizada no fim. Mas, entre
um momento e outro, uma delicada linguagem de sugestão, capaz também de
escutar, uma linguagem que convida a participação, uma linguagem que não
diz muita coisa, mas deixa margem para o mistério. Histórias.

***

Minha intenção nas páginas que se seguem na primeira parte deste livro é
observar, uma a uma, as dez parábolas exclusivas de Lucas, as quais ele situa
na Narrativa da Viagem. Quero recuperar a habilidade de usar as palavras em
histórias assim, essa linguagem de Jesus que é sua marca, a parábola, para uso
em nossas próprias viagens por nossa própria Samaria americana, este país tão
largamente indiferente a Jesus e à linguagem de Jesus.
capítulo 2
O próximo
Lucas 10:25-37

A primeira historia que Jesus conta na estrada que percorre a região de Samaria
apresenta, como seria de esperar, um samaritano. Mas, antes de Lucas contar
a historia, ele apresenta dois episodios ocorridos nessa estrada samaritana que
liga a Galileia a Jerusalém.

***

Um homem diz a Jesus: “Eu te seguirei por onde quer que fores”. Jesus lhe diz
que eles não pernoitarão nos melhores hotéis. Ao que tudo indica, isso jamais
tinha acontecido com aquele homem. Nunca mais ouvimos a seu respeito.
Jesus então diz a um segundo homem: “Siga-me". Esse homem concorda, mas
impõe certas condições. Ele tem algo importante que precisa fazer primeiro.
Jesus dispensa-o. Seguir a Jesus não é algo que adiamos até que façamos pri-
meiro o que queremos fazer. Então um terceiro homem aparece em cena e
se diz pronto para seguir a Jesus — mas ainda não totalmente. Jesus diz, na
realidade: “D eixe para lá. E agora ou nunca”. No final, acaba que o homem
não está pronto coisa nenhuma.
Jesus mal com eçou sua viagem por Samaria em direção a Jerusalém
e já conseguiu três seguidores. Mas eles nem deram dez passos e já caí-
ram fora.
Captamos a mensagem: seguir a Jesus não é algo que acontece a nossa ma-
neira. Seguimos a Jesus da maneira dele. Não tem os aí um lançamento muito
auspicioso para a Narrativa da Viagem. Três seguidores em potencial, e cada
um, um desistente (Lc 9:57-62).
Os três desistentes são substituídos por um grupo que estabelece com eles
um contraste, um grupo caracterizado por uma resposta obediente e imedia-
ta (Lc 10:1-24). Jesus nomeia 72 outros e os envia em 36 duplas como uma
42 A LINGUAGEM OE DEUS

vanguarda para preparar o caminho para ele por Samaria. Há um bom trabalho a
realizar — Jesus fala de uma colheita plena — , e eles estão prontos para começar
o bom trabalho. Mas, por melhor que ele seja, eles não devem ser ingênuos a
respeito das circunstâncias. Não devem esperar boas-vindas de coração aberto.
Jesus adverte sobre “lobos”. Ele recomenda austeridade, sem estratégias mirabo-
lantes: mantenha as coisas simples, diretas, amáveis, pessoais. Deve-se saber que
haverá oposição. N em todos ficarão entusiasmados com esses estrangeiros
que por ali passam com essa sua conversa de “reino de D eus”.
Jesus conclui suas instruções aos 72 com uma reprimenda severamente
formulada para homens e mulheres que rejeitam as boas notícias do reino de
Deus que “está próximo”. Ele expressa alto e bom som uma mensagem incisiva,
condenatoria, de juízo sobre homens e mulheres que rejeitam as boas notícias
do reino de Deus que “está próximo”. A recusa de se arrepender traz consigo
sérias consequências. Mas é significativo que, quando Jesus cita nomes, são ci-
dades galileias, e não samaritanas, que ele cita: Corazim, Betsaida e Cafarnaum.
Essas são as três pequenas cidades pequenas, o “Triângulo Evangélico", nas quais
Jesus passou a maior parte de seus três anos chamando e ensinando discípulos.
Ao usar o nome das cidades galileias de seus seguidores como concentrações
nucleares de impenitentes, Jesus está indiretamente opondo-se a uma classi-
ficação indiscriminada dos samaritanos com o estereótipo de “maus sujeitos”.
"Saibam que haverá hostilidade”, Jesus está dizendo a eles, "mas não pensem
que a ausência de hospitalidade em relação ao Deus que ‘está próximo’ é coisa
de samaritano. Não é em nada diferente do que acontece lá na terra de vocês,
entre suas famílias e vizinhos. Não tratem essas pessoas de má vontade. Elas
não estão mais inclinadas a aceitar ou a rejeitar o testemunho de vocês do que
qualquer dos bons judeus com os quais vocês se criaram”. Jesus não faz pouco
caso da hostilidade prevista. Mas tampouco ele a considera uma afronta pessoal.
E assim eles partem. Quando os primeiros começam a retornar da missão,
uma palavra, “alegres”, caracteriza os relatos. Tudo está funcionando. As obras
de Jesus e as palavras de Jesus executadas e pregadas pelos 72 têm resulta-
dos condizentes com Jesus. Os 72 ficam absolutamente aturdidos com o que
acontece entre os samaritanos — “surpresos pela alegria”. Isso é tudo muito
empolgante. Jesus confirma a empolgação deles: “Eu vi Satanás caindo do céu
O PRÓXIMO 43

como relámpago”, exulta “no Espirito Santo” junto com eles e agradece ao “Pai,
Senhor do céu e da terra” pela colheita. “Exultando” (agalliaõ), o verbo que
dá força às palavras de confirmação de Jesus, transmite uma exuberância que
vemos expressa na dança e nas cambalhotas. E na Samaria de todos os lugares!
Mas ele também insere uma palavra de precaução: "... alegrem-se, não por-
que os espíritos se submetem a vocês, mas porque seus nomes estão escritos
nos céus” (Lc 10:20). Há o perigo de nos tornarmos excessivamente empolga-
dos com o que vemos acontecendo ao nosso redor e negligenciemos o centro,
nossa identidade inscrita no céu, a partir da qual o trabalho se desenvolve. A
alegria está ancorada não no que fazemos, mas em quem somos “nos céus”.
Há uma imensa exuberância em participar na obra e nas palavras de Je-
sus. Mas há também essa única palavra de cautela que deve acompanhar a
alegria sentida.
Esse contraste entre duas respostas a Jesus colocadas lado a lado, os três
desistentes e os exuberantes 72 do batalhão de vanguarda, fornece uma
orientação realista sobre aquilo que podemos contar com o certo enquanto
viajarmos pelo território samaritano: deserções decepcionantes, instruções
claramente articuladas, “lobos”, participação de membros do grupo na obra
de Jesus, grande alegria e otimismo disciplinado.

Bem nesse instante, um estudioso da religião pôs-se de pé com uma per-


gunta para testar Jesus.
— Mestre, o que preciso fazer para obter a vida eterna?
Jesus respondeu:
— O que está escrito na lei de Deus? E como você o interpreta?
Ele disse:
— Que você ame ao Senhor, o seu Deus, com toda a sua paixão, oração,
músculos e inteligência — e que ame seu próximo tão bem quanto ama a
você mesmo.
— Boa resposta! — disse Jesus. — Faça isso, e você viverá.
Procurando um meio de evasão, ele perguntou:
— Mas como você definiría “próximo"?

A resposta de Jesus é a primeira parábola da Narrativa da Viagem.


44 A LINGUAGEM DE DEUS

Jesus respondeu contando uma história. “Havia um homem em viagem de


Jerusalém a Jericó. N o caminho, ele foi atacado por salteadores. Roubaram
sua roupa, espancaram-no e foram embora deixando-o semimorto. Por sorte,
um sacerdote estava a caminho na mesma estrada, mas, quando o viu, virou
o olhar para o outro lado. Depois, apareceu um homem religioso, um levita;
esse também evitou o homem ferido.

"Um samaritano que viajava por aquela estrada aproximou-se. Quando viu a
condição do homem, seu coração se condoeu. Prestou-lhe os primeiros socor-
ros, desinfetando e fazendo curativo em suas feridas. Depois ergueu o homem
colocando-o sobre o jumentinho do samaritano, levou-o a uma pensão e garantiu
que tivesse o conforto necessário. Pela manhã, tomou duas moedas de prata e
deu-as ao dono da pensão, dizendo: ‘Cuida bem dele. Se custar mais, põe na
minha conta — eu pagarei quando voltar’.”
— O que lhe parece? Qual dos três homens tornou-se próximo do homem
atacado pelos salteadores?
— Aquele que o tratou com bondade - respondeu o estudioso da religião.
Jesus disse:
— Vá e faça o mesmo.
Lucas 10:25-37

* * *

A história é suscitada por uma conversa com uma pessoa cujo nome não é ci-
tado, identificada somente pelo trabalho que executa. Trata-se de um jurista,
um nomikos. A lei com a qual se identificava profissionalmente não era a lei
secular, mas a lei de Deus, a lei de Moisés, a Torá. Uma designação mais exata
entre nós seria “professor de religião” ou “estudioso da Bíblia”. O trabalho de
um jurista, defendendo e interpretando a lei de Deus, era um trabalho honrado
e responsável no século I. Na época, como acontece agora, as Escrituras eram
citadas e erroneamente citadas por qualquer pessoa que precisasse contar com
autoridade divina para seu programa. Os juristas, esses estudiosos da Bíblia, eram
responsáveis entre outras coisas por manter suas comunidades de sobreaviso
em relação às possibilidades de insanidade e/ou engano religioso. Muitos são
os líderes religiosos que enganam e seduzem em nome de Deus. Por mais que
sejamos cuidados nesse assunto, jamais será o bastante.
O PRÓXIMO 45

Esse estudioso da Biblia está levando seu trabalho a sério, testando Jesus
em relação à autoridade das Escrituras. Não há razão para supor que haja al-
guma intenção nesse teste — ekpeiradzõ pode simplesmente significar teste
no sentido de “teste de autenticidade”, sem nenhum sentido de armadilha.
A história é contada no contexto de uma multidão de pessoas que estão
seguindo a Jesus, muitas delas talvez por curiosidade. Os 72 que acabaram de
retornar voltaram de uma missão extraordinariamente bem-sucedida em terri-
tório samaritano, uma região que entre judeus tinha a reputação de heresia. Os
homens e as mulheres são ingênuos. E fácil enganar as pessoas (especialmente
os samaritanos?) em nome de Deus. E importante ter pessoas ao redor com
instrução e discernimento, sobretudo em questões de religião e de Bíblia. E
ocorre de, no dia em que os 72 retornam jubilosos, estar lá um estudioso judeu
da Bíblia com a responsabilidade de garantir que a verdade é verdadeira. Por
formação e por hábito, ele se pergunta: "Esse negócio é para valer?”.
O homem está realizando um trabalho importante. Ninguém deseja um
Messias sem comprovação. Os riscos são demasiadamente elevados. Não
queremos arriscar a vida em algo que no fim não passe de uma fraude. Sabe-
mos por experiência que existe uma quantidade incrível de fraudes religiosas
ocorrendo no mundo. Queremos nosso Messias provado e aprovado por dentro
e por fora, examinado e interrogado. Assim, o jurista dá o passo necessário
para “testar Jesus”.
Não era a primeira nem a última vez que Jesus era testado. Lucas conta
que Jesus, logo antes de iniciar seu ministério público, foi provado pelo Diabo
no deserto. O teste era detalhado e rigoroso — e hostil. A prova do Diabo foi
uma tentação sedutora, pois o tentou para que se tornasse um Messias que
agradaria multidões, uma celebridade cheia de glamour. Mas ele passou no
teste. Disse não ao Diabo. Mateus e Marcos precederam Lucas no relato dessa
prova. Jesus também foi provado perto do término de seu ministério público
no jardim do Getsêmani. Essa prova foi ainda mais detalhada e rigorosa que
a primeira, o teste final: “Jesus irá à cruz, sacrificará sua vida pela salvação do
mundo — ou não?”. A prova foi agonizante. Jesus passou no teste. Mateus e
Marcos também relatam essa prova.
46 A LINGUAGEM DE DEUS

Na Última Ceia, Jesus disse algo a seus discípulos que somente Lucas relata:
"Vocês são os que têm permanecido ao meu lado durante as minhas prova-
ções” (Lc 22:28).' "... durante as minhas provações” prende minha atenção:
parece que havia mais testes impostos a Jesus que apenas a prova agonística
do deserto no princípio e a prova agonizante do Getsêmani no fim. Entre esses
outros testes estava este que somente Lucas relata, a prova do estudioso da
Bíblia nos primeiros dias da viagem por Samaria. Enquanto o teste se pro-
cessa, observamos algo significativo a respeito da maneira em que Jesus usa
a linguagem — não proclamando, não interpretando, mas conversando. Um
intercâmbio respeitoso. Nem confrontacional, nem com ares de superioridade.
Uma conversa que convida (e garante) a participação.
Há cinco segmentos nessa conversa.
Primeiro segm ento. O estudioso da Bíblia faz sua pergunta de teste:
"... o que preciso fazer para herdar a vida eterna?”. Talvez essa seja sua
pergunta-padrão para pôr as pessoas à prova, uma pergunta que ele faz a
cada professor de religião que seja desconhecido. Não é uma má pergunta.
Todos queremos viver mais que uma existência meramente animal, e é nesse
“mais” que nosso caráter e nossos valores se mostram. A maneira em que
vivemos esse “mais” diz muita coisa sobre nossa sabedoria, nossas motivações
e quão bons somos.
E denota certo grau de esperteza o fato de que ele formula a pergunta na
primeira pessoa. O estudioso da Bíblia faz sua pergunta parecer um pedido de
conselho. Ele não é nenhum amador nesse assunto. Ele sabe que, se você fingir
estar pedindo conselhos, a pessoa que você está examinando se desarma, deixa
cair as defesas, não se sente ansiosa. Se você interroga uma pessoa acusadora-
mente, vai conseguir muito menos do que se pedir um conselho. Todos achamos
difícil resistir à oferta de um conselho. Uma pergunta, independentemente de
seu conteúdo, em geral nos honra por seu ar de respeito. Qualquer pessoa que
peça informações de qualquer tipo consegue muito mais do que pediu.
Sim, eu creio que esse estudioso da Bíblia já fez isso antes. Ele sabe o que
está fazendo e já aperfeiçoou sua técnica. E talvez até tenha um caderno em
casa cheio das respostas que recebeu diante dessa sua pergunta.
O PRÓXIMO 47

Mas ele não é páreo para Jesus. Jesus responde a sua pergunta fazendo
outra pergunta: “O que é escrito na Lei? [...] Como você a lé?”. (Certa vez
assisti a urna entrevista feita com Elie Wiesel, o romancista judeu e escritor
na área de espiritualidade. O entrevistador disse:
— Observei que vocês, judeus, muitas vezes respondem às perguntas fa-
zendo outra pergunta. Por que agem assim?
A que Wiesel respondeu:
— Por que não?
O foco muda. Deixa de ser um exame objetivo, uma pergunta de múltipla
escolha em que a resposta pode ser marcada no quadradinho correto. Inicia-se
um relacionamento; inicia-se um diálogo. Já não é um interrogador superior
e um interrogado inferior. O diálogo desenvolve uma experiência acadêmica.
Será que o estudioso da Bíblia começou essa conversa simplesmente com a
menor dose de arrogância, ou com uma retidão impessoal e policiadora? Se
foi esse o caso, não é mais o que se vê. O tiro sai pela culatra. A pergunta de
Jesus põe o jogo em pé de igualdade.

* * *

Segundo segmento. O estudioso da Bíblia responde à pergunta de Jesus resu-


mindo a lei de Moisés no estilo clássico: amar a Deus e amar ao próximo —
uma mescla de Deuteronômio e Levítico. Não é como se apresenta no original,
mas é preciso. Jesus dá-lhe uma boa nota: “Você respondeu corretamente!
Faça isso, e viverá”.
O aspecto mais extraordinário desse segmento é que o estudioso e Jesus
invertem as posições. Enquanto põe Jesus à prova, o estudioso da Bíblia
encontra-se não mais administrando o teste, mas pessoalm ente envolvido
no teste. No ato de testar Jesus, ele se vê testado por Jesus. O examinador
passou a ser o examinado. O estudioso da Bíblia que se propôs passar um
teste em Jesus sobre ortodoxia tem sua própria ortodoxia testada. Trata-se de
um exame oral conduzido em público, talvez na estrada ou na praça da vila.
O resultado está reconfortante. Ele passa o teste. Por sinal, ambos passam,
48 A LINGUAGEM DE DEUS

Jesus e o estudioso. Estão agora em pé de igualdade, ambos atestados como


ortodoxos, ambos com petentes para ensinar os caminhos de Deus.

***

Terceiro segmento. O estudioso, em vez de se sentir à vontade na companhia


de Jesus, como seria de esperar — uma vez que ambos agora estão seguros um
da ortodoxia do outro — , faz outra pergunta: “E quem é o meu próximo?”.
Lucas atribui uma motivação à pergunta do estudioso: “querendo justificar-
se". O estudioso está se sentindo inquieto. “Está procurando um m eio de
evasão.” Sentimos a necessidade de nos explicar somente quando sentimos
que não tem os toda a razão. Talvez haja mais na vida que ortodoxia. A auto-
justificação é um dispositivo verbal com o objetivo de restaurar a aparência da
razão sem que se faça nada a respeito da substância. Se sentimos que estamos
sendo criticados por alguém, saltamos com uma defesa ou uma desculpa. A
maioria de nós age m uito dessa forma. Não gostamos que ninguém pense
que somos maus, incompetentes ou estúpidos. Uma das manobras-padrão da
defesa é conquistar a oportunidade da ofensiva para pôr a outra pessoa sob
defesa, tirando a atenção da minha fraqueza ou falha, e deslocar a atenção
para a outra pessoa.
Qual será a fraqueza ou a falha do estudioso com a qual ele quer evitar
lidar, da qual deseja desviar a atenção? Não há nada de errado com seu
conhecim ento ou seus processos de pensamento. Ele conhece detalhada-
m ente a Torá e é capaz de citá-la com exatidão. Não há nada de errado com
sua com petência profissional. Já observamos que ele conduz seu exame de
Jesus com grande destreza. Se ele pensa bem e trabalha bem, o que sobra?
Bem, talvez com o ele é, com o vive, com o ama. Talvez esteja relacionado
a sua indisposição de ser vulnerável num relacionamento capaz de fazê-lo
sofrer (o que sem dúvida é possível em todos os relacionam entos), sem
disposição para tomar parte ativa nas exigências do amor nas quais tudo o
que é característicamente humano é posto à prova. Talvez ele se recuse a
arriscar-se nas incertezas e nas vulnerabilidades de um relacionamento com
homens e mulheres e com Deus, e ainda mais no relacionamento pessoal
O PRÓXIMO 49

mais importante: o amor. Talvez ele queira manter um controle rígido. Talvez
seu coração esteja atrofiado.
O estudioso começa essa conversa com confiança. Ele está no controle. Ele
é o guardião da verdade bíblica. Pretende julgar se Jesus é com petente para
ensinar e conduzir os discípulos. Uma maneira em que o exame podería ter
terminado seria num simples pronunciamento de aprovado ou reprovado. Ou
podería ter-se desenvolvido numa discussão, num debate teológico tendo os
espectadores curiosos como júri.
O que de fato aconteceu não foi, assim creio, previsto pelo estudioso.
Tomado de surpresa nessa posição não habitual para ele de ser o examina-
do, ele tenta recobrar a posição original de estar no controle, fazendo uma
segunda pergunta. Fica incomodado de estar em pé de igualdade com Jesus;
deseja estar no controle em relação a Jesus. Não está acostumado a estar
num relacionamento pessoal de mutualidade. Quer estar impessoalmente
no controle.
E assim tenta recuperar o controle da conversa fazendo uma pergunta que
porá Jesus na defensiva: “E quem é o meu próximo?”. Mesmo enquanto faz
a pergunta, deve estar se parabenizando — "brilhante recuperação”. “Próxi-
mo” é uma categoria sabidamente difícil de definir em termos práticos. Se
0 estudioso tivesse perguntado “E quem é Deus?”, ele e Jesus poderíam ter
trocado algumas citações das Escrituras, e esse seria o fim do assunto. Teria
sido um debate entre iguais. Mas ele deseja recuperar sua posição elevada;
assim, em vez de pedir uma definição do Deus revelado, ele introduz a figura
imprecisa do “próximo”. Definir o próximo teria sido bom para um debate
que usaria o dia inteiro, com os espectadores curiosos aos poucos deixando o
local à medida que a fome os chama para o jantar.
O estudioso da Bíblia é um veterano nas questões de religião. Ele sabe que
uma pessoa pode se esconder sem ser notada por muito tempo, talvez até toda
uma vida, por trás de questões religiosas. Será que fez isso a vida toda — dirigiu
estudos bíblicos, fez perguntas incisivas, defendeu a verdade das Escrituras,
cumpriu as funções religiosas — e nunca foi descoberto?
Mas Jesus o descobre. E é uma parábola que o faz, essa história merecida-
mente famosa que é normalmente chamada "Parábola do Bom Samaritano”.
50 A LINGUAGEM DE DEUS

A história é contada numa estrada samaritana, mas é proferida a um pro-


fissional religioso judeu. E muito provavelmente é ouvida também por outros
judeus que estão acompanhando Jesus da Galileia para Jerusalém. Devia ser
uma senhora multidão — quantos além dos 72 que haviam sido enviados na
missão? Imagino uma considerável congregação de judeus galileus em viagem
pela região hostil de Samaria com Jesus.
A importância do local é realçada por três observações. Primeiro, Jesus conta
sua história a um homem que seus ouvintes judeus considerariam um bom judeu.
Segundo, a história apresenta um homem que no imaginário judeu da época seria
estereotipado como um mau samaritano. Terceiro, a história em si se dá não na
estrada de Samaria, pela qual estavam transitando, mas a muitos quilômetros ao
sul, na estrada que sai de Jerusalém para Jerico, em território judeu. Um bom
estudioso judeu, uma boa estrada judaica e um mau “samaritano”.
Jesus cria a história. Um homem está andando de Jerusalém para Jericó.
Trata-se de uma longa caminhada de 27 quilômetros descendo mil metros
por uma região desértica e erodida até a fértil planície do Jordão. A estrada
se contorce e se enleia por gargantas e arroios marcados com cavernas. E uma
estrada famosa por abrigar bandoleiros. O roubo é algo comum, os assassinatos
não raros.
Jesus não deixa clara a identidade étnica do homem, mas, dado o contex-
to, supomos que seja judeu. Ele é atocaiado por salteadores que levam tudo
o que tem , até sua túnica, o espancam quase até a morte e o deixam para
os abutres terminarem o serviço. Acontece o tem po todo mesmo agora, em
ruas da cidade e em estradas remotas do mundo inteiro. Por sorte, só nesse
m om ento passa um sacerdote. Mas a sorte dura pouco. O sacerdote não
pode se dar ao trabalho. Então passa um levita — outra possibilidade! Mas
a vítima não encontra nas mãos do levita melhores chances do que nas mãos
do sacerdote. O homem é abandonado três vezes — pelos salteadores, pelo
sacerdote e agora pelo levita.
Dada a conversa recém-gravada entre o estudioso da Bíblia e Jesus, não
podemos deixar de supor que o sacerdote e o levita também conheçam aquelas
duas ordens que o estudioso da Bíblia acabou de recitar, e as conhecem tão
bem quanto ele. Os três homens, o sacerdote, o levita e o estudioso da Bíblia,
O PRÓXIMO 51

são colegas de profissão nas questões da Tora. São responsáveis por manter a
lei de Moisés a respeito de Deus e do próximo recordada e em funcionamento
na comunidade judaica.
Exatamente nesse m om ento um samaritano aparece e cuida do judeu
roubado e espancado, e não de qualquer maneira. Ele desinfeta as feridas
do homem, passa óleo nelas, faz os curativos necessários, coloca-o sobre
o jumento, leva-o para urna estalagem e cobre suas despesas de estadia.
Um samaritano, o estereotipo da pessoa má no imaginário judeu, ama seu
“próximo” judeu.
Uma historia simples, contada de forma simples, transitando pela região
de Samaria.

Quarto segmento. Toda a conversa entre Jesus e o estudioso da Biblia gira em


torno de perguntas. Primeiramente a pergunta do estudioso da Bíblia: “Mestre,
0 que preciso fazer para herdar a vida eterna?”. Depois a pergunta de Jesus:
“O que está escrito na Lei? [...] Com o você a lê?”. E agora uma terceira e
última pergunta de Jesus: “Qual destes três você acha que foi o próximo do
homem que caiu nas mãos dos assaltantes?”.
O estudioso da Bíblia, não Jesus, fornece a conclusão à história: “Aquele
que teve misericórdia dele". A história de Jesus não define o próximo. Cria
um próximo.
A história de Jesus põe um ponto final em todas as ocasiões e em todas as
variações da pergunta “E quem é o meu próximo?”. Desde aquele momento até
o presente, a pergunta é: “ Eu serei um próximo?”. Como Heinrich Greeven
afirma: “Não é possível definirmos nosso próximo; tudo o que podemos fazer
é sermos nós mesmos esse próximo”.2

***

Quinto segmento. A palavra principal, a pairar silenciosa mas insistentemente


nessa conversa entre Jesus e o estudioso da Bíblia, é um verbo no imperativo:
52 A LINGUAGEM DE DEUS

“ame”. Essa ordem para amar, embora não repetida, ecoa continuamente pelos
detalhes da conversa.
"Amor” com o substantivo é um assunto vasto e com plexo. Filósofos e
teólogos escrevem milhares e milhares de páginas explorando suas manifes-
tações culturais, suas complexidades emocionais, suas nuanças psicológicas.
Mas surpreendentemente há pouco desse tipo de coisa em nossas Escrituras.
O amor não é um assunto a ser debatido por nossos profetas e sacerdotes,
nossos apóstolos e pastores, nossos poetas que oram e nossos sábios. A palavra
é usada com o substantivo muitas vezes, mas significativamente em nossas
Escrituras é um verbo que ganha vida. Não "Deus é amor”, mas "Deus tanto
amou o m undo...”.
No m om ento em que o substantivo "amor" transforma-se num verbo,
deixa de ser um assunto a ser debatido, compreendido ou examinado. Entra
em nossa vida. E, quando o verbo é proferido no imperativo, ganha vida num
ato de obediência. Entra em ação, faz parte da história e na história revela
sua verdadeira natureza. Usado como verbo na história, logo fica evidente se
a palavra nobre que ecoa a própria glória está sendo usada para enobrecer e
glorificar as almas ou está sendo usada com o uma capa para uma ganância
manipuladora, um poder cínico ou uma cobiça impessoalizante num mundo
esvaziado de próximos.
Jesus fala as palavras finais e definitivas dessa história, ambas verbos no
imperativo: “Vá [...]faça”.
Sem mais perguntas. Sem mais respostas. Chega de papo religioso. Vá
e ame. Bastam os debates impassíveis da interpretação da Escritura, não
mais usando a religião (ou Jesus!) com o m eio de evitar ou dispensar ho-
mens e mulheres de carne e osso que se acham em nossa vida. Algo está
ocorrendo, e fico sabendo que sou participante. Não, o que ouço, aliás, é:
“Seja participante!”.
As histórias fazem isso: criam as circunstâncias imaginativas nas quais
aprendemos por intuição uma ordem imperativa para deixarmos o mundo
desleixado dos debates distantes e impessoais para nos tornar participantes
O PRÓXIMO 53

obedientes na vida, seguidores obedientes de Jesus, próximos de todos que


encontramos a caminho de Jerusalém.

***

Ficamos curiosos. Será que o estudioso da Bíblia se tornou um próximo e “vai


e cumpre” a ordem de amor que conhecia tão bem? Não obtemos resposta
para essa pergunta. Apenas conhecem os nossas próprias respostas e nossas
próprias histórias.
capítulo 3
O amigo
Lucas 11:113‫־‬

A vida é pessoal. Por definição. Todas as partes dela: linguagem, trabalho,


amigos, família, flores e vegetais, rochas e montanhas, Pai, Filho e Espírito
Santo — as obras. Quando qualquer parte da vida é abstraída do particular,
formulada em uma generalização, burocratizada em um projeto, reduzida a
uma causa, mata-se a própria vida, ou ao menos ela é consideravelmente de-
preciada. Quando qualquer um de nós desiste de estar pessoalmente presente
para os nossos filhos, nosso cônjuge ou nosso amigo, a vida se esvai. Deixar de
ser hospitaleiro a um desconhecido obstrui a vida. Deixar de prestar atenção
a uma conversa interrompe o fluxo da vida. A indiferença habitual diante do
esplendor de um com iso em flor desfaz as congruências intricadas e subja-
centes da criação que aprofundam a participação no exuberante, a vida na e
para a glória de Deus.
Jesus é nossa mais importante testemunha da primazia do pessoal: "... eu
vim para que tenham vida, e a tenham plenamente” (Jo 10:10) — não meras
rações de sobrevivência, mas muita fartura, perisson. Jesus é nossa mais im-
portante revelação de que Deus é pessoal, abundantemente pessoal. Quando
lidamos com Deus, não estamos lidando com um princípio espiritual, uma
ideia religiosa, uma causa ética ou um sentimento místico. Estamos lidando
pessoalmente com Jesus, que está lidando pessoalm ente conosco. Tudo o
que sabemos sobre Deus, sabemos por meio de Jesus. E Jesus é totalmente
pessoal — um corpo vivo e uma alma, que com e pão e peixes e bebe água e
vinho. Jesus fala e escuta. Jesus nasce em uma família cujos nomes conhece-
mos, e ele mesmo tem um nome pessoal, um nome que era tão comum em
sua cultura quanto Beto e Maria são comuns na nossa. Jesus chora. Jesus fica
irritado. Jesus toca e é tocado. Jesus sangra quando se corta. Jesus morre.
Jesus está totalm ente à vontade em seu corpo e em sua família, à vontade
conosco em nossa corporalidade e em nossa família. Ele não se abstrai de nada
56 A LINGUAGEM DE DEUS

disso; ele não é isolado em nenhum detalhe. Ele está presente, totalmente,
relacionalmente, intimamente.
O que a revelação bíblica nos conta, uma revelação sintetizada e consumada
em Jesus, é que não podemos nos transformar mais semelhantes a Jesus (mais
agradáveis ou aceitáveis a Deus) tornando-nos menos humanos, menos físicos,
menos emocionais, menos envolvidos com nossa família, menos associados
com pessoas social ou moralmente indesejáveis. Não nos tornamos mais es-
pirituais tornando-nos menos humanos.

***

A primeira história de Jesus na Narrativa da Viagem faz que todos nós sejamos
o próximo da história, fazendo-nos próximos de homens e mulheres que nun-
ca tínhamos a menor ideia de ser próximos. Não tínhamos a menor ideia de
que eram nossos próximos porque usávamos a linguagem para estereotipá-los
em cartazes de caricaturas empalidecidas — “samaritanos”, por exemplo, ou
algum outro termo étnico ou racial, moral ou religioso do descarte. Uma vez
que os tenhamos desumanizado por um simples artifício de linguagem, nem
se nos ocorre amá-los. Será possível amar um pedaço de cartolina? Obedecer à
ordem de Deus de amar nosso próximo fica muito mais administrável quando
excluímos da ordem a maioria das pessoas que não conhecemos ou de quem
não gostamos. A história de Jesus nos reumaniza, repessoaliza, reaproxima a
nós e a todos a quem encontramos. Tendo agora nos transformado em próxi-
mos por causa da história de Jesus, encontramos outro próximo para amar a
cada curva da estrada.
A segunda história da Narrativa da Viagem foca-se em D eus de forma
pessoal. Impessoalizamos as pessoas quando as estereotipam os. Impessoa-
lizamos Deus ao generalizá-lo — Deus como ideia, Deus com o força, Deus
com o dogma. Mas, com o não conseguimos amar uma ideia, uma força ou
um dogma, eficazmente eliminamos o “ame" da ordem bíblica “ame a D eus”
e o substituím os com verbos com o “reconheça”, "respeite", “considere”,
“defenda”, “estude” — todos verbos que exigem, se exigem, pouco relacio-
namento pessoal.
O AMIGO 57

Assim, Lucas, ao compor sua Narrativa da Viagem, reconta uma historia


de Jesus que faz para um Deus impessoalizado o que a historia do samaritano
fez por todos os nossos próximos impessoalizados. Jesus nos imerge numa
forma de linguagem que nos mantém completa e absolutamente pessoais em
nossa forma de abordarnos a Deus, o que significa dizer, em nossas orações.
A oração bem pode ser o único aspecto da nossa linguagem que mais cor-
re 0 risco de perder contato com a simples realidade de nossa humanidade.
Perdemos o contato com nossa humanidade quando privamos Deus de sua
humanidade. As crianças oram em espontânea honestidade. A catástrofe e a
crise muitas vezes nos conduzem para o fundamento da nossa humanidade,
onde nossa linguagem é purificada de toda simulação e falsa piedade, e oramos
a partir de nossas entranhas. Mas à parte da infância e da crise, enquanto es-
tamos na estrada, passando pelo samaritano comum e secular, nossas orações
têm uma forma de se abstrair dos detalhes simples e inconfundíveis que tanto
fazem parte de nossa vida comum e diária. Muitas vezes a oração é praticada
em ambientes protegidos e religiosamente definidos, Galileia e Jerusalém. E
muitíssimas vezes é formulada em clichês de falsa piedade extraídos de várias
igrejas, onde ficam pendentes e à disposição, ou tomados de empréstimo de
livros de oração.
Mas não há nada de clichê nem de emprestado na história de Jesus. Jesus
nos conta essa história para nos tornar imediata e pessoalmente presentes com
nosso D eus da mesma maneira que sua história anterior conseguiu fazer
com nosso próximo.

Um dia ele estava orando em determinado lugar. Quando concluiu, um


de seus discípulos disse: "Mestre, ensina-nos a orar assim como João ensinou
seus discípulos”.
Então ele disse: "Quando vocês orarem, digam:

Pai,
Revele quem você é.
Endireite o mundo.
Mantenha-nos vivos com três refeições principais.
Mantenha-nos perdoados diante de você e perdoando às pessoas.
Mantenha-nos protegidos de nós mesmos e do Diabo”.
58 A LINGUAGEM DE DEUS

Depois ele disse: "Imaginem o que aconteceria se vocês fossem a um amigo


no meio da noite e dissessem:
— Amigo, empreste-me três pães. Um velho amigo de viagem, passando
por aqui, acabou de vir a casa, e eu não tenho nada que lhe possa oferecer.
"O amigo responde da cama:
— Não incomode. A porta está trancada; todos os meus filhos já se deitaram
para dormir; não posso levantar-me para lhe dar coisa alguma.
"Mas permita-me dizer-lhes que, ainda que ele não se levante por ser amigo,
se você fizer pé firme, batendo na sua porta e acordando toda a vizinhança, por
fim ele se levantará e lhe conseguirá tudo de que necessitar.
"Estou querendo dizer o seguinte:

Peçam, e vocês conseguirão;


Busquem, e vocês encontrarão;
Batam, e a porta se abrirá.

“Não negocie com Deus. Seja direto. Peça aquilo de que necessita. Não é
num jogo de gato e rato, de esconde-esconde, que nos encontramos. Se seu
filho pequeno pedir uma porção de peixe, você o assusta com uma serpente viva
em seu prato? Se sua filha pequena lhe pedir um ovo, você a engana, dando-
lhe uma aranha? Por pior que vocês sejam, não pensariam em tal coisa — ao
menos vocês são razoáveis com os próprios filhos. E não acham que o Pai que
os concebeu em amor lhes dará o Espírito Santo quando o pedirem?"
Lucas 11:1-13

* * *

A história é contada no mom ento em que Jesus tinha estado em oração, e


seus discípulos lhe perguntam: "Senhor, ensina-nos a orar” (Lc 11:1). Jesus
responde oferecendo uma breve oração e depois contando uma história.
Essa é a única ocasião nos Evangelhos em que os discípulos pedem que
sejam ensinados, a única vez que os discípulos se dirigem a Jesus com um
verbo no imperativo: “ensina-nos". Jesus ensinava diariamente. Ele ensinava no
campo, na sinagoga e no templo. Os discípulos haviam observado Jesus orar,
por muito tem po, durante os anos na Galileia. Agora pedem: “ensina-nos".
O AMIGO 59

Tiraram os cursos introdutórios sobre como viver no caminho de Jesus e agora


estavam aptos a cursar as disciplinas optativas de um nível mais elevado. E o
que escolhem? Oração. "Ensina-nos a orar”.
Não é significativo? Não pedem que se lhes ensine um melhor compor-
tamento — nenhum pedido aqui de um curso de ética. Não pedem que se
lhes ensine a pensar de modo mais preciso a respeito de Deus — nenhum
pedido aqui de um seminário em teologia. Não pedem um curso de pia-
nejamento estratégico para poderem introduzir o reino. Eles têm andado
com Jesus por mais ou menos três anos, prestando atenção no que ele faz e
escutando o que ele diz. D e algum modo, chegaram a perceber que segui-
-10 não significa imitar o que ele faz, nem repetir o que ele diz. Significa
cultivar um relacionamento com D eus da maneira que eles observam em
Jesus. Querem operar a partir do centro alimentado por um D eus pessoal,
um Deus relacionai, um Deus de amor, com o viram Jesus fazer. Querem
instrução e treinamento nessa ação que parte da fonte, nesse ato profunda-
mente humano e humanizador. Querem fazer bem aquilo que Jesus faz de
melhor: "Ensina-nos a orar".
Jesus responde a eles dando-lhes um breve m odelo de oração, contando
uma simples parábola e depois relacionando a oração e a parábola com alguns
comentários sobre pais e filhos, de modo que a oração e a parábola se ferti-
lizam mutuamente. Os comentários mantêm em movimento nossos fluidos
imaginativos. E depois Jesus recua e deixa que a oração e a parábola façam
seu trabalho em nós.

***

A oração-modelo que Jesus lhes oferece é surpreendentemente, talvez até


insultuosamente, breve. Eles pedem que se lhes ensine a orar. Já examinaram
todas as possibilidades do que poderíam querer de Jesus. Restringiram todas
as opções a este único pedido: ensina-nos a orar. Chegaram ao xis da questão
e estão motivados a se empenhar nessa ação central que subjaz e motiva a
vida de Jesus, dando-lhe forma. Matriculam-se e comparecem. Jesus começa
a ensinar. Ele mal com eçou e já terminou. A oração que ele lhes ensina se
60 A LINGUAGEM DE DEUS

compõe de cerca de 38 palavras. Se feita lenta e meditativamente, dura apenas


22 segundos. E aí acaba. Aula encerrada, turma dispensada.
O que está acontecendo aqui? Pensaram que se haviam matriculado um
seminário de pós-graduação sobre oração e de repente estão de novo nas ruas
sem chegarem sequer a abrir um livro ou anotar uma definição. Se alguns
deles estivessem preparados de lápis em punho, teriam, no melhor dos casos,
uma página das notas.
Mas não há nenhum sentido de surpresa expresso no texto com o o temos
em nossas mãos, nenhum sinal de que os discípulos tenham sentido que com-
praram gato por lebre. Talvez sejam as nossas idéias sobre o ensino que são
deficientes. E especialmente o ensino sobre a oração.
Sem a devida instrução que procede de Jesus, nosso conceito de ensino é
dominado pelas explicações. Quando vamos para a escola, esperamos ter as
coisas definidas, explicadas, e contamos adquirir muita informação que nos
possa ser de utilidade. Aprendemos a ler, aprendemos a contar, e depois somos
testados sobre aquilo que nos ensinam, pedindo-se que repitamos tudo de
novo. Quanto mais complexo o assunto, mais demora aprendê-lo.
Mas isso é, propriamente falando, não instrução, mas escolarização. As
coisas que mais nos importam não são aprendidas dessa maneira, coisas como
andar, por exemplo, e a fala. E amar, e esperar, e acreditar. Para essas tarefas
complexas e maravilhosas precisamos de professores, mas não de escolas, não
de explanações, não de definições. Precisamos estar ao redor das pessoas que
sabem fazê-lo, que estão engajadas na ação e um pouco mais adiantadas
que nós no processo, mas jamais pensaríamos em ir à escola para ser instruídos
nesses assuntos. Seria como ir à escola para aprender a andar de bicicleta, uma
escola em que nunca vimos nem tocamos uma bicicleta.
Frequentar um lugar de adoração é uma boa maneira de aprender a orar;
não participar de uma oficina de oração. Associar-se a uma pessoa que você
sabe que ora é uma boa maneira de aprender a orar (quer você fale, sobre
oração quer não); não ler outro livro sobre oração. A oração exige esses tipos
de instrução e somente pode ser adquirida por esse tipo de ensino, o tipo de
ensino em que Jesus é o mestre. Por ora, examinar com curiosidade e mara-
vilhamento essa sequência de oração/parábola/comentário nas palavras e na
O AMIGO 61

presença de Jesus apresentada por Lucas na Narrativa da Viagem é urna boa


maneira de aprender a orar.

***

A combinação oração/parábola/comentário deixa claro que a oração é um


discurso pessoal. A oração-modelo começa com um substantivo vocativo: “Pai"
— uma forma focada de se dirigir a uma pessoa. E a parábola começa com um
substantivo vocativo: “Amigo” — uma forma focada de se dirigir a uma pessoa.
Esses vocativos insistem numa forma direta e pessoal, não “a quem possa in-
teressar”, não um chamado à oração por meio de um folheto produzido para
um largo público. Os comentários que se seguem utilizam uma conversa entre
filho e pai para realçar as dimensões pessoais da oração. O comentário final
retorna ao Pai que abriu a oração-modelo, mas dessa vez ele é “Pai que está
nos céus”. A primeira palavra na oração é “Pai”, e a última linha da parábola
apresenta o “pai”.
A combinação de oração/parábola, cada uma abrindo com substantivos
vocativos — “Pai!”, “Amigo!” — , dá-nos um treinamento na forma direta e
pessoal de tratamento. O vocativo não é um tratamento generalizante. Ele tem
por alvo uma pessoa específica, a fim de conceder uma mensagem pessoal. A
ênfase que o vocativo faz recair sobre o aspecto pessoal é ampliada pelo uso de
verbos no imperativo. Cada verbo na oração é expresso no imperativo, cinco
deles: Santificado seja, Venha, Dá, perdoa, não deixes. Outros cinco verbos
no imperativo dominam a parábola: empreste-me, Não me incomode, seguidos
de Peçam, busquem, batam. Os imperativos são comandos ou ordens de uma
pessoa para outra. São dirigidos de uma pessoa para outra pessoa e preveem
uma resposta pessoal. Esses imperativos são suplementados pelas referências
ao filho que pede a seu pai uma porção de peixe ou um ovo, um pedido que
implica um verbo originariamente no imperativo.
Os imperativos são verbos que ligam as pessoas de tal maneira que muda
0 modo de ser das coisas. Algo passa a existir que agora não existe. Como
forma de discurso, em vez de descrever o que é ou de supor que algo podería
ou não ser como é, o imperativo toca o futuro de modo que algo novo possa
ocorrer. O imperativo não tem tempo algum para a linguagem impessoal — as
62 A LINGUAGEM DE DEUS

fórmulas mágicas, por exemplo, ou a propaganda tecnológica, ou a manipu-


lação sistemática.
Jesus nos ensina a orar. Usando substantivos no vocativo e verbos no impe-
rativo, ele nos envolve pessoalmente na ação do Deus que age pessoalmente
em nossa vida. Oração é ação. A oração não é uma entrega passiva à maneira
de como as coisas são. Há muitas outras dimensões na oração, com certeza,
e aprenderemos sobre elas já bem cedo.1 Mas é aqui que começamos. E aqui
que Jesus começa.
Jesus aprofunda nosso senso do aspecto pessoal na oração usando os termos
"Pai” e “amigo”. “Pai” e “amigo” são designações que excluem o impessoal.
A dinâmica da oração com o algo pessoal é desenvolvida em detalhes parabó-
licos na história do amigo que procura seu amigo no meio da noite, pedindo
três pães, de modo que possa estender hospitalidade a ainda outro amigo. O
termo “amigo" é usado em referência a cada pessoa na história: o amigo já
na cama a quem se pede pão (v. 5), o amigo que chega faminto no m eio da
noite (v. 6) e o amigo que pede o pão (v. 8). Todos na história são designados
“amigo”. Três amigos.
Nem todos na história se dão bem sim plesm ente porque são amigos. O
amigo na cama renuncia a sua amizade inicialmente para só depois submeter-
-se a suas exigências. Mas tudo o que acontece é entre amigos e tem em si um
cerne de responsividade e relacionamento. Nossa relação com pais e amigos é
essencialmente pessoal. Nenhum de nós é indiferente a pais e amigos. Quanto
a isso, não faz nenhuma diferença se nos tratam bem ou mal. Como quer que
nos tratem, tomamos isso pessoalmente. A maioria de nós gasta a vida inteira
lidando com pais (e mães) e amigos, e essas relações estão entre as mais profun-
das que jamais teremos. Nossa identidade e nosso caráter em desenvolvimento
formam-se em relacionamentos pessoais. Somos biológicos, completamente;
somos psicológicos, com certeza; somos políticos, sim; somos econômicos,
certamente. Mas o fundamento de tudo isso é a dimensão pessoal.
Significa dizer que a oração só pode ser aprendida no vocabulário e na
gramática dos relacionamentos: Pai! Amigo! Jamais pode ser uma questão
de pôr as palavras certas na ordem certa. Jamais pode ser uma questão de
bom comportamento, ou de boa disposição, ou de manipulação habilidosa.
Jamais pode ser uma matéria de adquirir alguma informação sobre D eus
O AMIGO 63

ou de entrar em contato comigo mesmo. É um relacionamento, exclusiva e


interminavelmente pessoal. E assim é imperativo que prestemos atenção a
nossa linguagem, pois o pessoal está em constante risco, e cada vez mais, de
ser eliminado pelas reivindicações arrogantes e blasfemas da tecnologia, a
própria apoteose do impessoal.

***

E aqui está um detalhe que eu considero intrigante: o pão ocupa um lugar de


destaque na oração e na parábola.
A versão de Lucas da oração-modelo de Jesus é uma versão editada daquela
que Mateus nos fornece. A oração de Jesus em Mateus consta na forma de
seis petições:

Pai nosso, que estás nos céus!


Santificado seja o teu nome. (1* petição)
Venha o teu Reino; (2a petição)
seja feita a tua vontade,
assim na terra como no céu. (3a petição)
Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia. (4a petição)
Perdoa as nossas dívidas,
assim como perdoamos aos nossos devedores. (5a petição)
E não nos deixes cair em tentação,
mas livra-nos do mal, (6a petição)
porque teu é o Reino,
o poder e a glória para
sempre. Amém.
Mateus 6:9-13

A versão editada de Lucas tem a seguinte redação:

Pai!
Santificado seja o teu nome. (Ia petição)
Venha o teu Reino. (2a petição)
Dá-nos cada dia o nosso pão cotidiano. (3a petição)
64 A LINGUAGEM DE DEUS

Perdoa-nos os nossos pecados,


pois também perdoamos
a todos os que nos devem. (4a petição)
E não nos deixes cair
em tentação. (5a petição)
Lucas 11:2-4

Lucas encurta a versão de Mateus suprimindo cinco elementos: um prono-


me (“nosso”), duas expressões (“que estás nos céus” e “mas livra-nos do mal”),
a terceira petição (“seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu ”), e a
doxologia (“pois teu é o Reino, o poder e a glória para sempre. A m ém ”.).
A edição de Lucas tem dois efeitos: ajusta o foco e põe o pão no centro.
Agora tem os uma oração de cinco petições. Numa série de cinco, o terceiro
elemento, “Dá-nos cada dia o nosso pão cotidiano”, fica posicionado no cen-
tro e portanto se destaca um pouco em relação aos outros. O ato de centrar o
pão na oração como a terceira das cinco petições corresponde ao realce que
o pão recebe na parábola, tam bém identificado com o número três (“três
pães”). O pão é depois novamente frisado no comentário de Jesus quando
ele fala de um filho que pede a seu pai peixe e ovo, os quais, com o o pão, são
alimentos comuns e básicos.
Não quero afirmar coisas demais nessas observações, mas vá que Lucas
estivesse ensinando sutil mas poderosamente algo absolutamente fundacional
para a nossa compreensão e prática da oração, a saber, que a oração lida com o
que há de mais básico em nossa humanidade. Não é algo que acrescentamos.
Não é um acessório “espiritual” com o qual nos deleitarmos depois que nos
asseguramos de nossa sobrevivência física.
Lucas é um artista. Sua arte está em suas palavras. Seu ensino é cheio de
arte. Não está explicando. Não está liderando uma torcida. Está fazendo o que
Emily Dickinson, que talvez tenha aprendido com Jesus, que era um mestre
das indiretas, recomendou quando escreveu: “fale de viés...”.
Por meio da arte de Lucas e do ensino de Jesus, encontramo-nos imersos
nas circunstâncias diárias em que nossa vida em Cristo é formada e nutrida:
dê-me o pão, em preste-me três pães, passe-me o peixe. Somos pobres. Não
O AMIGO 65

temos aquilo de que necessitamos para viver. Somos dependentes do Pai, do


Amigo, para as coisas mais essenciais.
Se largados à própria sorte, depois de conquistarmos um trabalho com
um bom salário, de adquirirmos um lugar onde viver e tivermos feito os pre-
parativos para um plano de saúde — cuidando dessas e de quaisquer outras
necessidades terrenas — , muito provavelmente seríamos capazes de supor
que chegara a hora de começar a lidar com Deus e assim nos preparar para o
céu. Adotamos as prioridades do céu aprendendo a orar.
Abrimos nossa Bíblia para ver o que Jesus tem a dizer sobre isso. Por acaso,
abrimos em Lucas 1 1 . 0 que encontramos? Jesus confrontando-nos com nossa
pobreza, nossa necessidade daquilo sem o que não conseguimos viver — pão.
Jesus nos mandando pedir pão ao Pai. Jesus contando-nos uma história sobre
nosso Amigo que certamente nos dará pão. Para que servem os amigos, senão
para darem a nós e a nossos amigos o de que precisamos?

***

Perceber e abraçar nossa necessidade básica, nossa pobreza, é pré-requisito


indispensável para o emprego dos imperativos na oração e na parábola. Se o
imperativo for em itido a partir da riqueza, não é nada senão um desejo de
acumular mais, um arrematado consumismo religioso ou espiritual. Ordena-
mos a Deus que nos dê o que queremos, não o de que precisamos, usando a
oração para elevar nosso padrão de vida.
Paulo nos afirma que Jesus Cristo, a revelação de Deus tornado humano,
“abriu mão dos privilégios da deidade e adotou a condição de escravo, tornou-
se humano! Tendo se tornado humano, permaneceu humano. Foi um proces-
so incrivelmente humilhante. Não reivindicou privilégios especiais. Em vez
disso, levou uma vida altruísta, obediente e depois experimentou uma morte
altruísta, obediente — e o pior tipo de morte ainda por cima: a crucificação”
(Fp 2:5-8). Em outras palavras, quando Deus se tornou homem, revelando a
nós nossa própria humanidade, não veio na forma de um super-homem, mas
"experimentou a pobreza da existência humana mais profundamente e mais
excruciantemente que qualquer outro homem jamais seria capaz”.2 Tornou-se
absolutamente pobre e sem nenhum valor: “uma raiz saída de uma terra seca
66 A LINGUAGEM DE DEUS

[...] não tinha qualquer beleza ou majestade [...] desprezado e rejeitado [...]
não o tínhamos em estima" (Is 53:2-3).
Quando Deus se tornou humano em Jesus, mostrou-nos com o nos tornar
seres humanos com pletos diante dele. Reproduzimos o que Jesus fez, ao nos
tornarmos absolutamente necessitados e dependentes do Pai. Somente quando
nos apresentamos esvaziados, nos mostramos empobrecidos diante de Deus,
podemos receber o que somente mãos vazias podem receber. Essa é a pobre-
za de espírito que Jesus abençoa (Mt 5:3). Quando escutamos e seguimos a
Jesus, que viveu em constante dependência do Pai, convencemo-nos de nossa
pobreza como homens e mulheres. Percebemos nossa absoluta carência. Somos
todos pedintes. Pai, dá-nos pão. Amigo, empresta-nos três pães. Ser humanos
significa que somos as mais incompletas e pobres de todas as criaturas. Nossas
necessidades sempre ultrapassam nossas capacidades. Johannes Baptist Metz
escreve sobre a “indigência radical de nossa humanidade" e “a necessidade ou
carência transcendental” no âmago de nossa humanidade.3
Nunca ficamos menos necessitados, menos dependentes quando oramos;
tornamo-nos mais necessitados, mais dependentes — o que significa dizer,
mais humanos. Quando oramos, mergulhamos cada vez mais profundamente
na própria condição humana da qual o pecado nos separa e Cristo nos salva.

* * *

Jesus conclui seu ensino sobre oração com o seguinte: “Se vocês, apesar de
serem maus, sabem dar boas coisas a seus filhos, quanto mais o Pai que está
nos céus dará o Espírito Santo a quem o pedir! ” (Lc 11:13).
Espírito Santo? Pensamos que estávamos pedindo pão para nós mesmos e
para nosso amigo. Pensamos que estávamos pedindo peixe e ovos. E estávamos.
Estamos. Mas, ao introduzir o termo “Espírito Santo” na conversa, Jesus ancora
nossa compreensão das palavras e dos caminhos de Deus nos detalhes de cada
hora e de cada dia. O Espírito Santo é a maneira de Deus estar pessoalmente
conosco em tudo o que escutamos, falamos e fazemos. Deus em todos os
detalhes de nossa vida e da vida de nossos amigos e vizinhos. Deus presente
de maneira pessoal e abrangente.
capítulo 4
0 construtor de um celeiro
Lucas 12:13-21

Uma pergunta teológica de um estudioso da Bíblia a respeito da “vida eterna”


fez Jesus iniciar uma história sobre um homem que ajudou um desconhecido
que encontrou na estrada, o qual havia sido roubado e espancado por ban-
didos, quase chegando à morte. Mais adiante, um pedido de seus discípulos
para que ensinasse sobre oração deu origem a uma história de Jesus, na qual
encontramos um homem que pede pão a um amigo seu para alimentar uma
visita inesperada.
Por que Jesus responde a perguntas sobre o céu e atende a pedidos para que
ensine sobre a oração — preocupações espirituais clássicas — com histórias
sobre um desconhecido ferido e um convidado inesperado e faminto? Seria
porque Jesus observa que boa parte das nossas conversas sobre "as coisas de
Deus” são formas de evitar a presença pessoal de Deus nas pessoa feridas e
famintas que encontramos na estrada para Jerusalém? Seria porque ele sabe
que nossa predileção por debates sobre as questões do céu e da oração são um
desvio para não termos de lidar pessoalmente com nossos familiares e amigos
nos quais Deus está presente? Seria porque Jesus está tentando desmamar-nos
de uma tagarelice em nome de Deus? Aqui tem os outra história que segue
um padrão similar, enquanto Jesus encaminha uma conversa do supostamente
“espiritual" para o aparentemente secular. Uma pessoa não citada pelo nome
destaca-se da multidão e dirige-se a Jesus da seguinte forma: “Mestre, dize a
meu irmão que divida a herança com igo” (Lc 12:13).
O homem, ao que parece, está sendo defraudado por seu irmão em re-
lação a seu direito numa herança e pede que Jesus o ajude a corrigir aquele
erro. Jesus recusa-se a ajudar, negando qualquer autoridade para fazê-lo:
"Homem, quem m e designou juiz ou árbitro entre vocês?”. A pergunta é
obviamente retórica, exigindo uma resposta negativa. Ninguém nomeou
68 A LINGUAGEM DE DEUS

Jesus juiz ou árbitro nas questões de família desse hom em . Mas não po-
demos deixar de pensar: “Mesmo?”. A recusa de Jesus nos assusta por ser
totalm ente estranha, uma vez que sabemos que os rabis eram, e ainda são,
juizes na comunidade judaica.
O pedido do homem não é um despropósito. E o fato de essa história
ocorrer logo depois da oração e da parábola sobre a oração, tudo fica ainda
mais estranho. Aí está um homem fazendo exatamente o que Jesus insistiu
que fizéssemos: “Peçam... busquem... batam ...”. O homem está orando, e
orando exatamente como Jesus lhe ensinou a orar — usando o vocativo pessoal
(“M estre”) e usando um verbo no imperativo para dirigir-se pessoalmente a
Jesus, o que significa dizer, Deus (quer o homem reconhecesse Jesus como
Deus, quer não). Mas a resposta a essa sua oração é uma áspera dispensa. E o
fim da oração como fórmula. O homem está seguindo ao pé da letra o ensino
de Jesus a seus discípulos sobre a oração. Se a oração é uma questão de usar
a gramática correta dirigida à pessoa certa, esse homem certam ente teria
conseguido o que queria.
Jesus acaba de exercer um discernimento espiritual elementar. Ele discer-
niu no pedido de justiça o pecado subjacente da cobiça. Não há nada no texto
que revele que o homem não estava, na realidade, sendo defraudado. Seus
direitos estavam sendo violados. E certamente não é da vontade de Deus que
nenhum de nossos direitos seja pisoteado por ninguém. A justiça é essencial ao
reino de Deus, e frisada com paixão por todos os profetas hebreus de Isaías a
Malaquias, por João Batista ao preparar o caminho para Jesus, e pelo próprio
Jesus. A busca pela justiça e o clamor por justiça têm precedentes bíblicos
notáveis. Assim, não há nada estritamente errado com o pedido do homem.
Ele está pedindo a mesma justiça que Amós, Isaías e Jeremias lhe haviam
ensinado que era fundacional no reino de Deus.
Mas Jesus discerne no pedido não uma paixão por justiça, mas um vírus
de pecado, o pecado da ganância, da cobiça. Não há nada mais comum entre
os que andamos na companhia de homens e mulheres que seguem a Jesus do
que usar o que todos concordam que seja uma boa coisa, até mesmo essencial
ao reino de Deus, para disfarçar nosso pecado. Aqueles de nós que se com-
prometeram a seguir a Jesus e a ser por ele ensinados não chamam a atenção
O CONSTRUTOR DE UM CELEIRO 69

por serem propensos a pecados manifestos. Não queremos pecar. Não nos
colocamos deliberadamente no caminho do mal. Mas nossas boas intenções não
são nenhuma proteção segura das astúcias do Diabo, das seduções do Tentador.
Quase todos os pecados aos quais nos sentimos atraídos vêm com a roupagem
de virtudes. Pensamos estar pedindo ou fazendo algo bíblico, verdadeiro
e direito. E, para falar a verdade, estamos. Assim com o esse homem do meio
da multidão, o qual somente um dia ou dois dias antes havia aprendido a orar,
e agora fazia o que lhe tinham ensinado: Eu quero justiçai
Praticamente toda tentação que sobrevêm aos que estamos compróme-
tidos com Jesus e decidim os sacrificialmente segui-lo se dá na forma de
algo correto, necessário e obviamente bom. O Diabo não gasta seu tempo
tentando-nos a fazer algo que sabemos ser mau. Ele esconde aquilo que é
mau em algo bom e depois nos tenta com aquilo que é bom. Já fom os mais
que advertidos de que o Diabo aparece como anjo de luz. Por que continua-
mos a viver em tamanha ingenuidade? O velho cântico dos acampamentos
acerta na mosca: “O Diabo é um mentiroso e um enganador; se você não se
cuidar, ele o engana, sim, senhor”.
Um dos espantos do mundo é o pecado que se alastra e viceja, sendo aplau-
dido em comunidades e organizações cristãs. A ambição, o orgulho e a avareza
ganham lugar de honra sem que ninguém questione, e depois são “apoiados”
com um versículo fora de contexto e selados com oração.
Jesus não é alguém que atende a orações indiscriminadamente. Já passou
por isso. Aqueles quarenta dias e noites de tentação no deserto não permitiram
nenhuma margem para a ingenuidade nessas questões. Tudo que o Diabo pôs
diante de Jesus foi envolto em roupagem escriturística. Jesus não foi tentado
pelo mal evidente, mas pelo bem aparente. Ele conseguiu ver o que estava por
trás e se manteve firme. E agora ele consegue enxergar o que está por trás da
oração tão correta desse homem — e se mantém firme.
Dizemos mentiras com as mesmas palavras usadas para falar a verdade. As
palavras não somente podem revelar; elas podem ocultar. A linguagem é usada
como meio de revelar, desvendando a realidade; é também usada como meio
de velar, encobrindo a realidade. Por mais que sejamos cuidados, nunca será o
70 A LINGUAGEM DE DEUS

suficiente nessas questões. “Amigo... cuidado!” Será que um clamor por justiça
na realidade não esconde um lamento por uma fatia maior da torta? Será que
uma campanha contra a corrupção política não é abastecida na maior parte
pela ira? Será que uma proposta de evangelismo não mascara uma mesura
idólatra ao Rei Número e Quantidade? E será que uma “declaração de visão"
alinhavada numa reunião de com itê tarde da noite, uma vez examinada à luz
do dia, não acaba se revelando um projeto de inchada ambição?
Será que o pedido desse homem a Jesus numa questão de justiça era na
verdade uma cortina de fumaça obscurecendo algo completamente diferente?
Jesus pensou que fosse. Sua história dissipou a fumaça.

Alguém saiu da multidão e disse:


— Mestre, ordena a meu irmão que me dê uma parte justa da herança da
família.
Ele respondeu:
— Senhor, o que o faz pensar que é da minha conta ser seu juiz ou me-
diador?
Falando ao povo, ele continuou: “Cuidado! Protejam-se contra a menor dose
de ganância. A vida não é definida pelo que vocês têm, mesmo que tenham
muito”.
Então contou-lhes esta história: "A fazenda de certo homem rico produziu
uma colheita extraordinária. Ele então pensou com seus botões: Ό que eu
podería fazer? Meu celeiro não é grande o bastante para essa colheita’. Então
disse: ‘Vou fazer o seguinte: derrubarei meus celeiros e construirei celeiros
mais amplos. Depois então armazenarei neles todo o meu cereal e as minhas
mercadorias, e direi a mim mesmo: "Meu eu, você fez muito bem! Você
chegou lá e agora pode se aposentar. Não se afobe e curta o melhor momento
de sua vida!’”.
“Somente então Deus apareceu e disse: ‘Tolo! Hoje à noite você morre. E
seu celeiro de mercadorias — com quem ficará?’
“É o que ocorre quando você enche seu celeiro do Eu e não de Deus.”
Lucas 12:13-21
0 CONSTRUTOR DE UM CELEIRO 71

A história que Jesus relata desconsidera os “direitos” do homem e espeta


a ganância do homem. Mas a história o faz de forma indireta. Será que o ho-
mem da multidão se reconhecerá na história do construtor do celeiro? Para
que se reconheça, será preciso um exercício de imaginação. Pois parábola não
é explicação. Parábola não é ilustração. Não podemos olhar para uma parábola
como espectador e esperar compreendê-la. A parábola não facilita as coisas;
torna tudo mais difícil ao exigir participação, que se entre na história, nesse
caso assumindo o papel do construtor do celeiro.
Mas no momento em que a parábola não impõe reconhecimento, ela pre-
serva a dignidade. Se o homem que pede a ajuda de Jesus não for fazendeiro,
mas for ao mesmo tem po um feroz literalista, não se reconhecerá na história.
Ele participa da história somente de vontade própria. Deus não impõe a ver-
dade de fora para dentro. A verdade de Deus não é uma invasão estranha,
mas um amável cortejo. Ao contar uma história a partir do material comum
de nossa vida comum — nesse caso a construção de um grande celeiro — ,
Jesus abraça as nossas causas. Construir um celeiro é trabalho normal para
um fazendeiro. Ninguém jamais pensaria nisso como uma falha moral. Nenhum
fazendeiro jamais foi repreendido por seu pastor nem posto na prisão pelo
delegado por construir um celeiro. A história sobre o construtor do celeiro
não explica de forma desdenhosa, nem diagrama de forma paternalista, nem
condena de forma moralista. Ela apenas se põe ali, sentada discretamente em
nossas imaginações — e então a compreensão penetra pouco a pouco. Será
que o homem da multidão ficou por ali tem po suficiente para entendê-la? Ou
será que, como jamais lhe ocorreu construir sempre um celeiro, ele retirou-se
impacientemente e continuou a busca no bairro para contratar um rabi que
assumisse a sua causa?

***

Há vários anos, eu estava conduzindo um seminário sobre a interpretação das


Escrituras em um seminário teológico. Era um seminário de pós-graduação.
Nosso tópico naquele dia eram as parábolas de Jesus. Todos os participantes
eram pastores e sacerdotes experientes. Um dos sacerdotes, Tony Byrnne,
72 A LINGUAGEM DE DEUS

era um missionário jesuíta que estava numa licença sabática depois de vinte
anos de serviços na África. Ao debatermos as parábolas bíblicas, o padre
Tony contou-nos sobre sua experiência com seus africanos, os quais ama-
vam as histórias, amavam parábolas. Sua ordem jesuíta não tinha sacerdotes
suficientes para lidar com todas as conversões que estavam ocorrendo, e ele
foi encarregado de recrutar leigos para realizar o ensino básico e o trabalho
diaconal.
Quando começou o trabalho, sempre que encontrasse homens que fossem
especialmente brilhantes, ele os tirava da vila e os enviava a Roma, ou a Dublin,
ou a Boston, ou a Nova York, para serem instruídos. Depois de alguns anos,
eles retornariam e assumiriam suas tarefas. Mas os aldeães os odiavam e em
nada se relacionavam com eles. Chamavam esses que retomavam os foi-a: “Foi
a Londres, foi a Dublin, foi a Nova York,foi a Boston”. Eles odiavam os foi-a
porque não contavam mais histórias. Davam explicações. Ensinavam doutri-
nas. Davam orientações. Desenhavam diagramas num quadro-negro. Os foi-a
deixaram todas as suas histórias nos cestos de lixo das bibliotecas e das salas
de aula da Europa e dos Estados Unidos. O processo íntimo e dignificante de
contar uma parábola tinha sido negociado por uma salada acadêmica. Assim,
padre Bymne contou-nos, ele desistiu da prática de enviar homens para aquelas
escolas desprovidas de história.

* * *

Não é preciso muito tempo para percebermos que estamos estabelecidos num
mundo de excessivas riquezas. O Criador é incrivelmente generoso. Recebe-
mos aquilo de que precisamos, mas também mais, muito mais. Recebemos
não apenas algumas árvores para nos fazer sombra quando ao sol, mas florestas
inteiras de pinheiros, de faias e de carvalhos. Recebemos não apenas algumas
estrelas, de modo que possamos localizar o norte e navegar com nossos na-
vios, mas céus cheios de imagens e histórias. Recebemos não apenas alguns
pássaros para manter os insetos sob controle, mas uma imensa companhia de
balé de formas e cores e canções fazendo piruetas e dando voltas no ar para
nosso infinito deleite. Annie Dillard exclamara em relação à "exuberância do
O CONSTRUTOR DE UM CELEIRO 73

Criador [...] a paisagem extravagante do mundo, dada, dada com energia e


estilo, dada em boa medida, recalcada, sacudida e transbordante”.1
Essa riqueza é também interior. Deus não nos salva simplesmente, aqui-
nhoando apenas graça o bastante para nos permitir atravessar o limiar do
céu. Ele é generoso. Encontramo-nos no meio de um estilo de vida que tem
como uma de suas palavras características bênção: "fazendo transbordar o
meu cálice”.
Com toda essa riqueza dentro de nós e ao nosso redor, quem precisa de
Deus senão de uma maneira convencional, urna figura beneficente a quem
somos ensinados a agradecer, com o filhos recebendo presentes de seus avós,
para se certificar de que os presentes continuarão vindo?

***

A ganancia é um pecado quase invisível, um minúsculo parasita que faz sua


habitação nos interiores da riqueza. Em culturas anteriores e em tempos an-
tigos, a ganância, embora não confinada aos abastados, parecia encontrar seu
hospedeiro ideal na fartura e na opulência. O mito do rei Midas é a advertência
clássica. Mas nos Estados Unidos, com nosso padrão de vida espantosamente
elevado e de acesso quase ilimitado aos bens de consumo, somos todos vulne-
ráveis. O cristão que aprende a apreciar todos os bens da terra como presentes
de Deus não é menos vulnerável do que a pessoa que supõe que merece tudo
o que tem por causa de seu trabalho árduo. Somos ricos. Temos mais do que
precisamos. No momento em que somos ricos, quer em bens, quer em Deus,
somos propensos à ganância.
Não há com o evitar essa condição de riqueza, quer a concebamos como
uma bênção espiritual de Deus, quer com o os resultados materiais de uma
economia capitalista. E todo o tempo, o vírus da ganância se acha em nossa
corrente sanguínea. As vezes há anticorpos escriturísticos suficientes (manda-
mentos, provérbios, parábolas) para nos proteger da infecção. Mas há outras
ocasiões em que nossas defesas baixam e todo o nosso sistema se exaure.
Desenvolvemos a febre e a coriza da ganância. Não demora muito e já nos
vemos pensando em construir um celeiro maior.
74 A LINGUAGEM DE DEUS

Paramos de pensar ñas riquezas como amor a ser compartilhado e começa-


mos a calculá-la com o poder para ser usado. Reinterpretamos nossa riqueza e
posição como algo de que nos encarregamos, e os outros como os pobres que
devemos organizar, orientar e guiar. Ao agir dessa forma, sentimo-nos bem. Es-
tamos no controle. Não precisamos dos outros. Estamos no controle. Sabemos
mais que os outros, tem os mais experiência. Estamos realizando tantas coisas
boasl Precisamos de um celeiro maior. Para sermos mais eficazes em nosso uso
do que temos, acumulamos mais, ampliamos nossa influência. Ficamos muito
ocupados em fazer o bem, porque quando estamos bem ocupados não tem os
tempo para construir os relacionamentos pessoais de amor que são muito mais
difíceis e exigem tanto de nós. Construir celeiros, algo tão obviamente bom,
não permite que sobre muita energia para o trabalho demorado de amar nosso
próximo, quanto mais a Deus.
Jesus já nos advertiu muito bem. Ainda assim, construir celeiros continua
a ser uma indústria em crescimento entre nós, alguns de nós como servos do
Senhor, outros de nós como escravos de uma economia capitalista, e outros
ainda servindo aos dois senhores. Nossos vizinhos e pastores nos admiram (mas
geralmente não a nossa família). Somos promovidos. E ninguém percebe que
estamos doentes, doentes com o parasita da cobiça. As próprias pessoas que nos
deveríam levar ao médico estão nos fazendo adoecer ainda mais.
Muitos dos expositores que estudam os D ez Mandamentos observaram
um paralelo entre o primeiro e o último mandamento. O primeiro é “Não
terás outros deuses além de m im ”. O último é “Não cobiçarás”. O primeiro
mandamento estabelece nossa vida diante de Deus numa adoração indissolú-
vel, de modo que possamos amá-lo irrestritamente. O último mandamento
protege nossos amigos e próximos de serem impessoalizados em objetos de
ganância, coisas que podem os amar sem os amar. Assim com o a idolatria
resulta na poluição de nosso amor por Deus, também a cobiça resulta numa
poluição de nosso amor uns para com os outros. Se guardamos bem o primeiro
mandamento e bem o último mandamento, todos os mandamentos entre eles
ficam protegidos: ame a Deus, ame seu próximo.
A parábola do construtor do celeiro é uma exposição pormenorizada da
ganância: usar o que temos para conseguir mais em vez de dar mais; usar nossa
0 CONSTRUTOR DE UM CELEIRO 75

posição ou bens com o um meio para obter um poder impessoal em vez de


dar amor. A história é uma pedra no nosso sapato que começa a chamar nossa
atenção no m om ento em que nossa vida de amor por Deus e pelos outros
começa a se transformar numa manipulação de poder sobre as pessoas.
Toda a nossa riqueza é advinda da graça. Jamais advinda do poder, do di-
nheiro, da influência. Mas a nossa riqueza tem como fonte o amor.
Em uma sequência vivida de comentários coloridos, Jesus busca realçar as
implicações da parábola.

"Não fiquem tão ansiosos com o que estará sobre a mesa na hora das refei-
ções ou se as roupas do armário estão na moda. Há muito mais coisas em sua
vida interior do que o alimento que vocês põem no estômago, muito mais na
aparência exterior de vocês do que as roupas que vocês põem sobre o corpo.
Observem os corvos, livres e soltos, não presos a uma descrição de tarefas,
despreocupados sob os cuidados de Deus. E vocês valem muito mais.
“Será que alguém por se preocupar diante do espelho jamais ficou um
centímetro mais alto? Se a preocupação não consegue fazer nem isso, por que
se preocupar? Andem pelos campos e observem as flores silvestres. Elas não
ficam ansiosas com a aparência — mas você já viu cor e desenho tão maravi-
lhosos? [...] Se Deus dá tamanha atenção às flores do campo, a maioria delas
nunca vistas, não acha que ele cuidará de vocês, se orgulhará de vocês, fará
seu melhor por vocês?
“O que estou tentando fazer aqui é levá-los a relaxar, a não se ocuparem
tanto de obter para que assim possam responder às d á d iv a s de Deus. As pessoas
que não conhecem a Deus e como ele trabalha ficam ansiosas com essas coisas,
mas vocês conhecem tanto a Deus quanto sua forma de agir. Encharquem-se da
realidade de Deus, da iniciativa de Deus, das provisões de Deus. Descobrirão
que todas as coisas por que vocês se preocupam diariamente serão atendidas.
Não tenham receio de sair perdendo. Vocês são meus amigos mais queridos!
O Pai quer dar-lhes o próprio reino.
“Sejam generosos. Deem aos pobres. Procurem um banco que não pode
falir, um banco no céu longe de assaltantes, seguro de defraudadores, um
banco com o qual vocês podem contar. E bastante óbvio, não é mesmo? O
lugar onde está o tesouro de vocês é o lugar onde vocês mais desejarão estar e
é onde acabarão sendo encontrados.”
Lucas 12:22-34
76 A LINGUAGEM DE DEUS

A pobreza é o estado em que não tem os suficientemente aquilo de que preci-


samos para viver, para descobrir nossa necessidade urgente de Deus e assim
adquirir energia para aprender a linguagem da oração. A riqueza é a condição
oposta: tem os muito mais do que o suficiente, e no processo de construir um
celeiro capaz de comportar o "mais que suficiente” nossa linguagem é despro-
vida do pessoal e do relacionai e, assim, se enfraquece. Perdemos nosso senso
básico de necessidade, necessidade de Deus, e perdemos tanto o interesse
quanto a fluência na linguagem da oração. Em nossa preocupação com celeiros
maiores, esquecem o-nos de pedir pão para nosso amigo. Mas, quando essa
história penetra em nossa imaginação, fazer planos para construir um grande
celeiro de repente parece como pequenas batatas bonitas comparadas a pedir
três pães para um amigo.
capítulo 5
Esterco
Lucas 13:6-9

Aqui está uma história de Jesus extrem am ente estranha. Lucas a insere
cruamente na Narrativa da Viagem por Samaria. D iferentem ente das his-
tórias do próximo, do amigo e do construtor do celeiro, essa parábola não
tem nenhum acontecim ento que a suscite, nenhum con texto. Surge na
página “segundo a ordem de M elquisedeque [...]. Sem pai, sem mãe, sem
genealogia” (Hb 5:10 e 7:3). Se a predileção que Jesus sente pelas parábolas
é por causa da energia verbal que elas criam para nos envolver em sua vida,
para nos tirar da reserva para participarmos ativamente do jogo, que "jogo”
Jesus está fazendo aqui no qual deseja nos ver engajados? Nenhum contexto
é fornecido para nos guiar na interpretação.
A primeira parábola, a do Próximo, estabelece a todos nós como próximos.
Próximo não é uma definição, mas uma “nova criação”. A vida na companhia
de Jesus não é um grupo de debate, mas um ato de tornar-se. A segunda pará-
bola, a do Amigo, impede que desenvolvamos um vocabulário e uma gramática
especiais para falar com Deus diferentes da linguagem que usamos para falar
uns com os outros. A oração, falar com Deus e escutá-lo, não é mais “espiri-
tual” do que as palavras e o silêncio que empregamos para nos relacionar no
mundo e uns com os outros. O modo de falarmos na companhia de Jesus não
é em nada diferente do modo de falarmos na companhia de nossos amigos.
Em outras palavras, se falamos na companhia de nossos amigos diferentemente
de como falamos na companhia de Jesus, profanamos a linguagem. A terceira
parábola, a do Construtor de um Celeiro, é uma história reveladora — uma
história que nos prende bem no ato de articular preocupações de elevado
interesse moral com uma cobertura para um pecado aviltante. E uma história
que penetra as camuflagens verbais e nos manda parar. Há abundância de
engano na e em torno da companhia de Jesus: esteja bem avisado. Mas e essa
quarta parábola? A história é breve.
78 A LINGUAGEM DE DEUS

“Um homem tinha uma figueira plantada à frente de sua casa. Aproximou-se
dela esperando encontrar figos, mas não havia nenhum. Ele perguntou a seu
jardineiro: Ό que está errado aqui? Faz três anos que venho agora a essa árvore
esperando figos e não encontrei nem um figo. Pode arrancar a figueira! Por que
desperdiçar uma terra boa com ela por mais tempo?’.
"O jardineiro disse: ‘Vamos dar-lhe mais um ano. Vou afofar a terra e cavarei
ao redor para pôr esterco. Talvez produza ano que vem; se não produzir, então
será arrancada’.”
[Lucas 13:6-9, tradução do autor]

* * *

A violência da ordem "Pode arrancar a figueira!” é uma pista para o contexto.


Seguir a Jesus não se presta a navegações tranquilas. Viajar com Jesus por
Samaria a caminho de Jerusalém não é um desfile conduzido por uma fanfarra
e por balizas em movimentos acrobáticos. A suspeita e a hostilidade estão por
toda parte nessa viagem, de modo que talvez não importe onde Lucas inserirá
a história; quase qualquer lugar na viagem serviría como contexto apropriado.
Haverá figueiras sem figos — uma ofensa a qualquer agricultor sério — a cada
trecho da estrada. Mas Lucas a apresenta já no começo, de modo que possa
ficar trabalhando em nossas imaginações por toda a viagem.

# * *

A primeira experiência que Jesus e seus seguidores têm quando começam a


viagem é uma prova da grosseira hostilidade samaritana. Quando tentam en-
contrar um lugar para passar a noite, os samaritanos fazem questão de informar
sem rodeios que eles não são bem-vindos. Os irmãos Zebedeus, os “irmãos-
-trovão”, sentem-se ultrajados e querem matá-los naquele exato momento com
fogo sobrenatural. Jesus os repreende. Mas ficam com um ressábio na boca.
Um dia ou dois depois, Jesus deixa claro para eles que as coisas não vão
melhorar. Não se iludam, Jesus lhes diz, que as pessoas receberão ou a vocês
ou a mim de braços abertos: "Vocês pensam que vim trazer paz à terra? Não,
eu lhes digo. Ao contrário, vim trazer divisão!” (Lc 12:51).
Duas vezes antes de saírem de viagem, Jesus disse a seus seguidores o que
eles deveriam saber que encontrariam: nos dias por vir ele será rejeitado e
ESTERCO 79

morto (Lc 9:22,44). Assim, já estão bem advertidos. Ele lhes diz o mesmo
¡mediatamente antes de chegarem a Jerusalém (18:31-33). E, naturalmente,
como bem sabemos, a oposição e a hostilidade conseguem o que querem:
Jesus é morto.
Jesus enfrenta hostilidade em muitos trechos da estrada. Bem no com eço
da viagem ele é acusado de estar associado ao Diabo: "Mas alguns deles dis-
seram: Έ por Belzebu, o príncipe dos demônios, que ele expulsa demônios’”
(Lc 11:15). A região samaritana não é uma região amigável. Muitas vezes,
diferenças em torno do significado de Deus e da natureza da vida espiritual
irrompem em forma de violência. As guerras religiosas são comuns e singular-
mente sangrentas. O potencial de violência em torno de Jesus fica evidente
desde o primeiro instante. Assim, Lucas certifica-se de que prestemos aten-
ção à resposta que Jesus dá diante da violência (“Pode arrancar a figueira!”)
inserindo na narrativa de Samaria uma História de Esterco sem rodeios, sem
adornos, sem interpretações.

* * *

Jesus não é uma palavra num livro para ser lida e estudada. Não é uma pa-
lavra a ser debatida. Jesus é a “a Palavra [que] tornou-se carne”. Ele é a
Palavra viva, uma voz viva, a Palavra de Deus que assumiu a forma humana e
viveu num país de fato, a Palestina, no tem po real, o século I, e fez refeições
de pão, peixe e vinho com pessoas que tinham nomes (Maria e Marta, Pedro
e André, Tiago e João, para começar). Para poder responder com o se deve a
essa voz, essa Palavra-feita-carne, precisamos escutar e responder em nosso
bairro, enquanto com em os nossos ensopados de peixe com pirão a batatas, e
na companhia de pessoas que nos conhecem e cujos nomes nós conhecemos
(nosso cônjuge e filhos, amigos e companheiros de trabalho, para começar).
Nada que seja generalizado. Nenhum anônimo. Sem palavras descontextua-
fizadas ou silentes.
A comunidade cristã e seus líderes sabem muito bem disso. Sabemos que
sem vigilância podemos facilmente ser erodidos em infidelidade, levados a
traições impensadas, perder esse relacionamento com Jesus e com as pessoas
80 A LINGUAGEM DE DEUS

responsivo, obediente, pessoa a pessoa, manifesto. E assim somos incentivados


a desenvolver uma linguagem de participação, de seguimento, de escuta com
a intenção de obedecer, de ficar de sobreaviso em relação a uma conversa su-
postamente em nome de Deus, meramente religiosa, que seja impessoalizante.
No processo reconhecem os quão significativas são as parábolas de Jesus
em manter nossa linguagem envolvida e participativa — não uma linguagem
sobre, mas uma linguagem com — , fazendo-nos engajar, alertas, em atos de
justiça, de fidelidade e de uma caminhada em humildade com o nosso Deus
(Mq 6:8). As parábolas são defesas verbais básicas contra uma autoconcen-
tração desprendida de tudo o mais.
As parábolas liberam a adrenalina da urgência em nossa corrente sanguí-
nea. Deus está agindo no mundo e em nossa vizinhança. Há tanto para fazer.
Somos convidados a participar da ação. Há um júbilo por estar engajado na
ação, ação de Deus. Mas há outras ocasiões em que é necessário se conter. Há
momentos em que a ordem é para não fazermos nada, e na maioria das vezes
está relacionada a nossa resposta intuitivamente violenta diante da hostilidade.
A hostilidade provoca uma sucessão rápida de pensamentos: “O inimigo de
Deus é meu inimigo. Eu estou do lado de Deus. Vou defender sua causa e sua
honra com todas as armas à mão”. E naturalmente as palavras estão sempre à
mão. E então Jesus intervém e diz: "Não”.
As ordens de Jesus são energizantes: "Arrependa-se e creia... Siga-me...
Vá e faça o mesm o... Quando vocês orarem, digam... Menina, levante-se...
Lancem a rede do lado direito do barco e vocês encontrarão”. Mas às vezes
suas ordens nos detêm em nossa trajetória. E tão importante não fazer aquilo
que Jesus proíbe quanto obedecer ao que nos ordena — Jesus repreendendo
Pedro: "Para trás de m im” e "Guarde a espadai” (Mc 8:33 e Jo 18:11). E nesta
História do Esterco, "Senhor, deixe-a em paz...”.
Através dos últimos mais de vinte séculos, a comunidade cristã chegou a
um consenso amplo a respeito das ordens de Jesus a seus seguidores — não
unânime, com certeza, mas, considerando as circunstâncias, uma prontidão
surpreendente a pelo menos prestar atenção quando ele nos manda amar a
Deus e amar ao nosso próximo. Mesmo que não obedecidas, as ordens não
são dispensadas com o se não tivessem nenhum valor. Mas muitíssimas vezes,
ESTERCO 81

as proibições de Jesus são desconsideradas. Como nessa parábola, “Deixe-a


em paz...”. E algo estranho, talvez, mas, considerando determinado nível de
motivação e maturidade, é mais fácil fazer coisas do que não fazer coisas.
Queremos estar dentro da ação. Não gostamos de ser postos no banco de
reserva. Um sim é mais favorável ao nosso espírito do que um não.
Boa parte do tem po não é a satisfação que ameaça, mas seu oposto, a
impetuosidade. Vemos algo errado, quer no mundo, quer na igreja, e não
perdemos tempo de agir, consertando o errado, confrontando o pecado e a per-
versidade, combatendo o inimigo, e depois saímos vigorosamente recrutando
“soldados cristãos”.
Exatamente nesse mom ento, a História do Esterco, de Jesus, há muito
dormente em nossas imaginações, renasce e cumpre seu dever entre nós. Em
vez de nos motivar à ação, ela nos tira da ação. Acabamos de encontrar algo
que nos ofende, alguma pessoa inútil para nós ou para o reino de Deus, “des-
perdiçando o solo", e perdemos a paciência, e então quer física, quer verbal-
mente, nos livramos dela. “Pode derrubar a figueira! Pode derrubar a figueira!
Pode derrubar a figueira!” Resolvemos os problemas do reino por amputação.
Em várias nações ao longo da história, matar é o método predominante para
tornar o mundo um lugar melhor. É de longe o meio mais fácil, mais rápido e
mais eficiente de limpar o terreno para dar espaço para alguém ou algo mais
promissor. A História do Esterco interrompe nossa missão ruidosa, agressiva,
de resolver problemas. Quase sussurrando, a parábola diz: "Calma lá, não se
apresse. Espere um instante. Dê-m e mais um tempinho. Deixe-m e pôr um
pouco de esterco nessa árvore”. Esterco?

* * *

Esterco não é um reparo rápido. Não apresenta resultados imediatos — vai


demorar muito tem po para ver se fará alguma diferença. Se é atrás de re-
sultados que estamos, derrubar a árvore é o que há: limpamos o terreno e o
preparamos para um novo com eço. Amamos os começos: dar à luz um bebê,
batizar um navio, o primeiro dia num novo emprego, começar uma guerra.
Mas espalhar esterco não traz consigo nenhuma dessas alegrias. Não é um
82 A LINGUAGEM DE DEUS

trabalho que impressione, não é glamouroso, não é um trabalho que prenda


a atenção admirada de ninguém. Esterco é uma solução lenta. Ainda assim,
quando o assunto é fazer algo em relação ao que está errado no mundo, Jesus
é mais bem conhecido por sua predileção pelo minúsculo, pelo invisível, pelo
silencioso, pelo lento — fermento, sal, sementes, luz. E esterco.
Esterco não está bem cotado nos mercados do mundo. E refugo. Lixo. Orga-
nizamos sistemas eficientes e às vezes elaborados para coletá-lo, transportá-lo,
tirá-lo para longe da vista e do olfato. Mas o observador e o sábio sabem que
esses resíduos aparentemente mortos e desprezados estão eivados de vida —
enzimas, inúmeros micro-organismos. E o material da ressurreição.
Há muitas coisas que não devemos fazer, não podemos fazer, para sermos
fiéis a Jesus. Violência está no topo da lista — tomar as coisas nas próprias
mãos, livrar-se do transgressor junto com a transgressão.

A parábola de Jesus contém uma pepita de memória sobre o que havia ocorrido
na história mais de setecentos anos antes, nessa mesma região samaritana pela
qual Jesus estava agora andando quando contou a história. O povo de Deus se
viu diante da invasão do impiedoso conquistador assírio Tiglate-Pileser III, que
se havia proposto criar um imenso império. N o final, tudo se mostrou bem
fácil para ele na Palestina, e assim tomou conta da maioria de suas cidades.
Poucos anos depois, após dois outros reinados (o ano era 721 a.C.), Sargão
II concluiu o trabalho destruindo a capital do Reino do Norte, Samaria, e
arrastando consigo a nata da população, 27.000 ao todo, deportando-os para
várias localidades da alta Mesopotâmia, onde por fim perderam sua identidade.
Jamais tivemos notícias deles outra vez.
Era política dos reis assírios da época substituir a população deportada
por povos conquistados de outras localidades que então se miscigenavam
com quem quer que tivesse sido deixado para trás. Era uma estratégia
brutal e im piedosa projetada para erradicar todos os vestígios do senso
nacional que fosse capaz de nutrir a resistência. No decurso de vários anos
sucessivos, as pessoas deportadas da Babilônia, de Hamate e de outros lu­
ESTERCO 83

gares (2Rs 17:24) foram trazidas para um assentamento em Samaria. Esses


estrangeiros trouxeram consigo os costum es e as religiões de seus países, e,
junto com outros trazidos ainda mais tarde, misturaram-se com a população
sobrevivente de israelitas. Esse é o povo que conhecem os nos dias de Jesus
como samaritanos, um povo miscigenado com um acúmulo de um século
de desumanidade e opróbrio.
Na época da invasão assíria de Samaria, Isaías estava pregando vigorosa-
mente em Jerusalém, instando com o povo de Deus para que não devolvesse
espada com espada. Não devem combater fogo com fogo. Mas recusaram-se
a escutar. “... este povo rejeitou as águas de Siloé, que fluem mansamente”
(Is 8:6). George Adam Smith, o grande pastor e estudioso escocês, sintetizou
a mensagem de Isaías nessa época da historia do povo hebreu da seguinte
maneira: “Não somos guerreiros, senão artistas [...] seguindo o exemplo de
Jesus Cristo, que veio não para condenar [...] mas para edificar a vida até que
se parecesse com a imagem de D eus”. 1
Quando Isaías viu o partido da guerra fazer preparações comprando cavalos
de guerra do Egito, fez a seguinte advertência:

Condenação aos que saem para o Egito


pensando que cavalos lhes podem ajudar,
impressionados pela matemática militar,
admirados com meros números de carros e cavaleiros —
e para o Santo de Israel nem mesmo um relance,
nem uma oração a Deus.
Isaías 31:1

Estavam obcecados com a ideia de adquirir cavalos. Isaías opôs-se com o


seguinte:

Diz o Soberano, o S e n h o r , o Santo de Israel:


No arrependimento e no descanso
está a salvação de vocês,
na quietude e na confiança
está o seu vigor.
Isaías 30:15
84 A LINGUAGEM DE DEUS

"Parem com essa história de abater os assírios. Deixem que eu cuido dos
assírios.” E então o seguinte:

Deus não terminou. Está esperando para ser gracioso com vocês.
Está juntando forças para mostrar-lhes misericórdia.
Deus se dá ao trabalho de ajeitar todas as coisas — todas as coisas.
Os que esperam por ele são os afortunados.
Isaías 30:18

Mas Israel não quis escutar. Não tinha paciência alguma com esterco. A
resposta dele à ameaça assíria foi “Pode derrubar a árvore”. Em sua impaci-
ência, destruiu tanto a si mesmo quanto o testemunho da salvação de Deus.

* * *

Esterco. Os salmos são orações desenvolvidas no solo de nossa vida para mode-
lar nossas imaginações e obediência de modo que vivamos de forma coerente
com a maneira em que Deus trabalha no mundo e em nós, trabalha em um
mundo de violência e antipatia sem se tornar violento. Uma das frases mais
repetidas, repetida por sermos tão impacientes, querendo logo “derrubar a
árvore e partir para a próxima tentativa”, é: “D eem graças ao SENHOR porque
ele é bom; o seu amor dura para sem pre” (SI 106:1; 107:1; 118:1 etc.). Seu
amor nunca cessa.
Esterco. Deus não tem pressa. Repetidas vezes recebemos a ordem de “es-
perar o Senhor”. Mas não é um conselho prontamente acatado por seguidores
de Jesus que foram condicionados por promessas de gratificação imediata,
quer americanos, quer assírios. Eugen Rosenstock-Huessy, um de nossos
grandes profetas isaiânicos da atualidade, o qual teve uma vasta experiência
com a violência nas duas guerras mundiais, escreveu: “A maior tentação do
nosso tem po é a impaciência, em seu significado original pleno: recusa por
esperar, submeter-se, tolerar. Parecemos indispostos a pagar o preço de viver
com nossos companheiros em relacionamentos criativos e profundos”.2 Como
Isaías, ele também foi desconsiderado.
ESTERCO 85

Esterco. Silêncio. Esterco significa readentrar as condições do “Deixe comi-


go, que eu faço o que precisa ser feito”, submetendo-se às energias silenciosas
que transformam a morte em vida, as energias da ressurreição. A linguagem
consiste em partes iguais de discurso e silêncio. A arte da linguagem requer a
destreza de saber calar-se tanto quanto de saber se pronunciar. Muito prejuízo
e muitos mal-entendidos resultam de conversas em que não há uma boa dose
de escuta. Quando escutamos, estamos em silêncio. G osto do comentário de
Saul Bellow: “Quanto mais você mantém a boca fechada, mais frutífero se
torna”.3 O silêncio é o esterco da ressurreição.
Deus é um Deus que age. Constantemente somos chamados a prestar aten-
ção a “suas maravilhas em favor dos homens” (SI 107:31). Mas ele também
é o Deus que espera: “O Senhor não demora em cumprir a sua promessa,
como julgam alguns . Ao contrário, ele é paciente com vocês, não querendo
que ninguém pereça, mas que todos cheguem ao arrependimento" (2Pe 3:9).
Mesmo samaritanos? Mesmo samaritanos. Qualquer um que gaste qualquer
período de tem po andando por Samaría com Jesus sim plesm ente precisa
aprender a se relacionar com essa lentidão, “como alguns julgam”.

A História do Esterco corre solta durante toda a viagem por Samaria — como
acontece nas viagens pelos Estados Unidos. Está pronta para ser usada sempre
que nos vemos diante de animosidades, diante de antagonismos e de indigna-
ções impetuosas e estamos preparados para combater a oposição com violência,
seja verbal, seja física. Mas a história apresenta-se em sua manifestação mais
poderosa e incisiva nas palavras que Jesus proferiu na cruz.
Alguns dias depois que essa história havia penetrado a imaginação do grupo
de homens e mulheres que estavam seguindo a Jesus, Jesus entrou em Jeru-
salém. Antes de a semana terminar, ele estava pendurado na cruz do Gólgota.
Pilatos e Caifas, numa aliança ímpia, concordaram que Jesus tinha de ser
eliminado: ele era uma ameaça à paz precária que o exército romano estava
tentando preservar. Ele era uma ameaça ao negócio altamente rentável que
Caifás e seus adeptos inescrupulosos, os saduceus, controlavam a partir do
86 A LINGUAGEM DE DEUS

templo de Jerusalém. Ele estava “ganhando terreno” necessário para os próprios


fins deles. E assim o mataram. Eliminaram-no e a seu reino da terra. Ou assim
pensaram. Jesus respondeu à violência hostil deles com uma palavra extraída
da História do Esterco, essa parábola que ele havia acabado de contar alguns
dias antes na estrada que percorria Samaria. Pendurado na cruz, as primeiras
palavras de Jesus foram uma oração: “Pai, perdoa-lhes” (Lc 23:34).
Nossas traduções obscurecem a identidade dessa palavra que Jesus orou
na cruz com a palavra anterior de Jesus na história do Esterco e da Figueira.
A ordem do fazendeiro “Pode derrubar a árvore!” é ecoada na Semana Santa:
“Crucifica-ο!”. A oração de Jesus a seu Pai, “Perdoa-lhes”, é uma repetição
ipsis litteris da intervenção do jardineiro: “Vamos dar-lhe mais um ano”.
A palavra grega é aphes. Em alguns contextos significa “Não toque em nada...
Calma... D ê um tempo...". Em outros contextos, relacionada ao pecado e à
culpa, significa “Perdoe... A tenue...”. E a palavra usada na oração que Jesus
ensinou: “Perdoa-nos os nossos pecados...” (Lc 11:4). Aqui os contextos da
parábola e da oração convergem.
A violência pretendida à árvore é desviada pelo “Vamos dar-lhe mais um
ano” do jardineiro. A violência derramada sobre Jesus é contraposta por “Pai,
perdoa-lhes”.4
Para aqueles de nós que têm esterco até o pescoço, ou seja, tem os perdão
até o pescoço, talvez seja importante ressaltar que o perdão que Jesus pediu
para nós em oração não foi precedido por nenhuma confissão ou reconhecí-
mento de erro pela multidão da crucificação ou por qualquer um desde esse
momento. Perdão por preempção. Jesus ora pedindo que sejamos perdoados
antes mesmo de percebermos que precisamos ser perdoados, “pois não sabem
o que estão fazendo”. Sem condições prévias. Estonteante graça.
capítulo 6
Conversa informal
Lucas 14:114‫־‬

Era 1982, o quarto dia de nossa primeira viagem a Israel. Depois que nosso
voo da El Al aterrissou em Lod, tomamos um ônibus para Haifa e passamos
alguns dias no monte Carmelo explorando a região de Elias. Depois tomamos
um ônibus para o kibbutz N o f Ginnosar, na costa do lago da Galileia, onde
planejamos passar uma semana percorrendo as cidades, os montes e os campos
da Galileia. Separamos um dia para nos ambientar e planejamos visitar Nazaré.
Chegamos de ônibus bem cedo na manhã seguinte.
Passamos o dia em Nazaré procurando Jesus. Subimos e descemos as ruas
estreitas, sentimos as fragrâncias do mercado, entramos nas exíguas sinagogas.
E o vimos em toda parte: Jesus, aos oito anos de idade, chutando uma bola de
futebol na rua; o Jesus de três meses de idade em um banco perto de um poço,
sendo amamentado no peito por sua mãe; crianças num pátio comemorando
0 aniversário de Jesus aos seis anos de idade, sentado num trono temporário
com uma coroa sobre sua cabeça, os amigos dançando ao seu redor, cantando
e atirando confetes.
Foi um ótim o dia, cheio das vistas e aromas que enchiam nossa imaginação
com detalhes que Mateus, Marcos, Lucas e João tinham se esquecido de nos
dar. Sentados num banco, aguardamos um ônibus de volta ao kibbutz. Depois
de mais ou menos meia hora, um motorista de táxi que, todo o tem po em
que estávamos lá, passou de um lado para o outro várias vezes, estacionou
perto de nós e perguntou para onde estávamos indo. Nós informamos. Então
ele disse que nos levaria. Agradecemos e dissemos que íamos esperar o ôni-
bus. Estávamos com um orçamento contado. Um táxi parecia um luxo que
não nos podíamos dar. Mas depois de termos ficado sentados lá por mais de
uma hora, com a perspectiva de não chegar ônibus ficando cada vez mais real
para nós, o taxista estacionou perto de nós de novo com sua oferta, e nós
tomamos o táxi.
88 A LINGUAGEM DE DEUS

Tínham os a esperança de no dia seguinte irmos ao vale de Jezreel e


a alguns dos sítios arqueológicos da região. Perguntei ao nosso motorista
com o chegar lá, quais eram os itinerários dos ônibus. Ele disse que nos le-
varia — não havia ônibus para onde queríamos ir. Ele apresentou a situação
com o impossível, exceto para ele. O preço para o dia parecia exorbitante,
mas acabamos concordando. A conversa foi agradável. Seu nome era Sahil,
um palestino nascido e criado em Nazaré. Outro Jesus? Ele disse que nos
buscaria de volta às sete da manhã e traria alimentos para um piquenique à
hora do almoço para nós três.
N o dia seguinte, após percorrer as ruínas de Bete-Seã, eu quis encontrar
Siló, um pouco mais de quarenta quilômetros mais ao sul. Sahil nunca tinha
ouvido falar a respeito, mas certam ente estaria bem sinalizado e imaginei
que conseguiriamos encontrar. Não era bem demarcado, e nunca o encon-
tramos. E então chegou a hora do piquenique com a refeição que Sahil
trouxera. Saímos para um campo aberto e espalhamos no chão o almoço
de pepinos, tom ates e pão sírio. Um beduino puxando um cam elo por uma
corda aproximou-se. Pediu-nos um pouco de alimento. Sahil, sem hesitar,
deu-lhe bem mais da metade do que tínhamos no chão. O homem seguiu
seu caminho com seu almoço grátis e m uito abundante. Perguntei a Sahil
por que ele havia dado o alimento, sem fazer nenhuma pergunta — e em
tão grande quantidade’

— É ordem de Maomé. Se um homem tem fome, você o alimenta.


— E isso é tudo?
— Isso é tudo.

Foi assim que fomos apresentados à hospitalidade do Oriente Médio.

Não me ocorreu naquele dia enquanto estávamos sendo recebidos como hós-
pedes por Sahil para almoçar naquele campo em algum lugar perto de Siló,
sendo testemunhas de sua hospitalidade a um desconhecido, e, aliás, não me
CONVERSA INFORMAL 89

ocorreu até o mom ento de escrever este livro, que aquela era a mesma região
samaritana que tão grosseiramente apedrejara Jesus e seus discípulos quando
ali entraram a caminho de Jerusalém. Em contrapartida, nossa primeira ex-
periência em Samaria foi de hospitalidade.
A falta de hospitalidade samaritana forneceu o episódio de abertura na
Narrativa da Viagem de Samaria que Lucas compôs. Talvez não deveria ser
surpresa para nós descobrir que a hospitalidade é um tema de destaque na
metáfora da Narrativa da Viagem que Lucas usa para nos fazer mergulhar
numa cultura e entre um povo que não compartilham das pressuposições e
das práticas de Jesus.
Jesus ensinava nas sinagogas e ensinava no templo, mas os ambientes de
hospitalidade pareciam ser os locais preferidos de Jesus para tratar das ques-
tões do reino. Todos os evangelistas dão conta de suas conversas informais ao
redor da mesa, mas há mais desses relatos em Lucas, histórias de Jesus em
conversa na hora das refeições. A mesa é foco da hospitalidade em todas as
culturas. Comer e falar andam juntos. Lucas aproveita isso ao máximo.
Às vezes Jesus é o anfitrião: alimentando cinco mil (Lc 9:10-17), hospe-
dando a Ultima Ceia (22:14-23). As vezes ele é o convidado: no jantar na casa
de Levi (5:27-32), em duas refeições com os fariseus (7:36-50 e 14:1-14), na
casa de Maria e Marta (10:38-41), na casa de Zaqueu (19:1-10), na terceira
aparição após a ressurreição (24:36-43). E às vezes, com o acontece na ceia de
Emaús, não dá para saber a diferença entre anfitrião e convidado (24:28-35).
E então há as quatro histórias de hospitalidade que Jesus entreteceu em
suas conversas informais ao redor da mesa. Todas ocorrem na Narrativa da
Viagem por Samaria: participar de uma refeição oferecida ao amigo inesperado
à meia-noite (Lc 11:5-8), a festa dando as boas-vindas ao pródigo (15:11 -32),
0 ensino sobre humildade dado durante uma refeição no sábado (14:1-14),
as desculpas grosseiras declinando o convite para o grande jantar (14:15-24).
As primeiras três histórias são exclusivas de Lucas; a quarta, uma variante de
uma história dada por Mateus em seu evangelho (22:1-10).
90 A LINGUAGEM DE DEUS

No ato simples e diário de sentar-se com outras pessoas em refeições, Jesus


despertou enorme hostilidade. Havia regras ritualísticas rígidas e invioláveis
no mundo em que Jesus vivia. Jesus as transgrediu. Havia fortes proibições
contra comer com pessoas moralmente ofensivas — excluídos como coleto-
res de impostos, prostitutas e pessoas que não mantinham as aparências da
retidão religiosa (“pecadores”). Jesus comia com eles. A medida que as coisas
se desenrolavam, comer com “pecadores" passou a ser uma das facetas mais
características e que mais chamavam a atenção nas atividades regulares de
Jesus. Os fariseus em especial eram ardentes em sua observância dessas regras
e ferozes em criticar a Jesus.
Em uma refeição com alguns desses fariseus, Jesus conta uma história de
hospitalidade que faz o tiro de seus críticos sair pela culatra. Sua história é uma
repreensão pungente contra a falta de hospitalidade daqueles que justamente
deveríam fazer valer as leis da hospitalidade de sua cultura.

* * *

Certa vez, quando Jesus foi participar de uma refeição no sábado com um dos
principais líderes dos fariseus, todos os convidados tinham os olhos fitos nele,
prestando atenção a cada movimento. Bem diante dele havia um homem com
as juntas descomunalmente inchadas. Então Jesus pergunta aos estudiosos da
religião e aos fariseus ali presentes: “É permitido curar no sábado? Sim ou não?”.
Nada responderam. Então ele tomou o homem, curou-o e o enviou para que
seguisse o seu caminho. Então disse: “Existe alguém aqui que, se uma criança
ou animal caísse num poço, não se apressaria para retirá-lo ¡mediatamente, sem
se perguntar se era sábado ou não?”. Ficaram perplexos. Não havia nada que
pudessem dizer diante daquilo. Ele prosseguiu e contou uma história aos convi-
dados em torno da mesa. Tendo observado como cada um havia se acotovelado
para garantir um lugar de honra, ele disse: “Quando alguém o convida a jantar,
não tome o lugar de honra. Alguém mais importante que você pode ser convi-
dado pelo anfitrião. Então ele virá e chamará sua atenção na frente de todos:
'Você está no lugar errado. O lugar da honra pertence a este homem’. Cheio
de vergonha, você terá de se dirigir à última mesa, o único lugar que restou.
CONVERSA INFORMAL 9‫ו‬

“Quando você for convidado a jantar, sente-se no último lugar. Assim,


quando o anfitrião chegar, pode ser que ele chegue a você e diga: ‘Amigo,
venha até a frente’. Isso dará aos convidados do jantar algo sobre o que falar!
O que estou dizendo é o seguinte: se você anda por aí com o nariz empinado,
você acabará com a cara no chão. Mas, se estiver satisfeito em ser simples-
mente você mesmo, você se tornará algo mais do que você mesmo”. Então ele
se voltou ao anfitrião. “Da próxima vez que você der um jantar, não convide
somente seus amigos, seus familiares e vizinhos ricos, o tipo de pessoa que
retornará o favor. Convide algumas pessoas que nunca são convidadas, os
desajustados do lado errado dos trilhos. Você será — e experimentará — uma
bênção. Eles não poderão retornar o favor, mas o favor será retornado — ah,
como será retornado! — na ressurreição do povo de Deus.”
Lucas 14:1-14

* * *

Jesus é convidado a uma refeição no sábado por um líder dos fariseus.


Outros, presumivelmente todos fariseus, à exceção de Jesus, são também
convidados. Podemos facilm ente imaginar que, tendo acabado de adorar
na sinagoga, estão agora se dirigindo a pé para a casa do líder para a ceia de
celebração do sábado. Todos tinham sido chamados para adorar a Deus na
sinagoga. São agora chamados para fazer uma refeição juntos na casa de um
de seus líderes.
A adoração do sábado e a refeição do sábado são um reflexo uma da outra
— momentos de receptividade descontraída, alegre, recebendo o que Deus
generosamente dá na criação e na salvação, e agora compartilhando dessa
fartura uns com os outros na hospitalidade de uma refeição e de uma boa
conversa. Sábado. Um dia para abrir o coração e a boca e deixar tudo entrar.
Somos criaturas necessitadas. Precisamos comer e beber, precisamos de abrigo
e de roupa. E Deus. Nenhum de nós é autossuficiente. Somos mergulhados
neste mundo vasto e intricado, cheio de interdependências, e recebemos,
recebemos, recebemos. Recebemos de peitos generosos, dos vários “Grand
Tetons” da natureza e da graça, da criação e da aliança.
92 A LINGUAGEM DE DEUS

Mas acontece às vezes que, ao encontrar nosso caminho em torno do país


da fé e adquirirmos alguns poucos hábitos de discipulado, o senso de neces-
sidade começa a atrofiar. Conhecemos a trajetória ao redor. Sentimo-nos em
casa. Não somos mais bebês sendo amamentados; somos adultos ajudando,
incumbidos de algumas responsabilidades.
Inconscientes, estamos em território perigoso: somos tão dependentes de
Deus quanto sempre, mas nossos sentimentos de dependência não são expe-
rimentados de forma tão aguda. Agora pertencemos ao grupo, e dia após dia
adquirimos um senso de competência. E possível conservar um apetite cru por
retidão enquanto experimentamos tantas satisfações? Somos como crianças
absortas nas brincadeiras que têm de ser chamadas às refeições e se recusam
a vir à mesa porque “não estamos com fom e”?
Os fariseus que acompanhavam Jesus à refeição do sábado naquele dia não
estão pensando na refeição. Estão absortos em ser fariseus. Não estão com
fome. Foi quebrada a relação simbiótica de receber a vida de Deus na adoração
e compartilhar a vida uns com os outros à mesa.
Eles sabem sobre Jesus, e sabem que ele não é um deles. A reputação dele
chegou antes dele. Quando eles deixam o lugar de adoração, esquecem-se da
adoração. Ocupam-se do que vem em seguida. Precisarão comer uma refeição
com este homem que tem uma reputação de comer com pecadores, pecadores
que ignoram o sábado e jamais vão a uma sinagoga. Talvez Jesus não tenha
a menor ideia de como guardar o sábado corretamente. São obsessivamente
desconfiados. A declaração de Lucas, "prestando atenção a cada m ovimento”,
fervilha com hostilidade. A conversa naquele dia de sábado, enquanto eles
caminham da sinagoga à mesa de jantar, é tudo, menos afável. Não estão deba-
tendo tranquilamente sobre as leituras das Escrituras ou o sermão. Não estão
deleitando-se na liberdade e na largura desse dia de imersão deles próprios na
bondade de Deus, que lhes veio como um presente. Estão observando Jesus
em busca de qualquer infração dos tabus aglomerados em torno da guarda do
sábado que invalidará seus ensinos.
Jesus generosamente lhes dá o que estão buscando. Há um homem sentado
ao lado da estrada “com as juntas descomunalmente inchadas”. O nome que se
dava antigamente a essa enfermidade é hidropisia. Os médicos agora a chamam
CONVERSA INFORMAL 93

edema, a retenção de água nas juntas, tornando os movimentos difíceis e do-


loridos. Jesus pergunta a eles se há problema em curá-lo. Os fariseus sentem
que pode haver na pergunta uma armadilha. Não respondem.
Jesus aceita o silêncio deles como uma permissão. Ele cura o homem e o
faz retomar sua trajetória. Depois então ele desmascara a tolice de seu poli-
ciamento obsessivo do sábado, trazendo-os para o mundo do bom senso: será
que eles não resgatariam uma criança impedindo que se afogasse num poço
no sábado? Ou mesmo um boi? Eles não respondem.
Jesus lhes fez duas perguntas. E lícito curar no sábado? Você salvaria
uma criança de se afogar no sábado? Os fariseus não responderam a nenhu-
ma. Será que eles tam bém têm uma regra contra responder a perguntas
no sábado?

* * *

A cena muda: Jesus e os fariseus agora estão sentados em torno de uma mesa
comendo a refeição do sábado à qual foram convidados por seu anfitrião. Jesus
acabou de ser tratado com uma grosseria inegável na estrada, vindo da sinagoga
para a casa onde estão tendo o jantar. E agora, parece, estão continuando sua
rudeza de sábado uns com os outros. Ninguém está dizendo nada a ninguém.
Mas Jesus observa que as ações dos que estão à mesa, tanto dos anfitriões
quanto dos convidados, falam mais alto que as palavras. Os convidados tinham
se empurrado e esbarrado para chegarem ao lugar de honra à mesa. A refeição
de sábado, sobretudo quando na casa de um dos principais líderes entre os
fariseus, é um lugar onde você pode ser reconhecido com o uma pessoa im-
portante. Quanto mais perto você está do anfitrião, mais importante você é.
Se você conseguir puxar um assento ao lado do anfitrião, você será a conversa
da cidade naquela semana.
Mas o anfitrião não é melhor que seus convidados. Jesus observa que to-
dos os que se assentam ao redor da tabela são "importantes” de uma forma
ou de outra. Talvez é por isso que a competição por ser notado como o mais
importante, ao menos naquele dia, foi tão intensa entre eles. O anfitrião cha-
mou esses convidados em particular porque tem planos de usar esses homens
94 A LINGUAGEM DE DEUS

“importantes”. Os convidados pressupõem que estejam sendo honrados por


serem convidados para a refeição do sábado desse eminente fariseu. Na re-
alidade, o anfitrião os está sobranceiramente pondo sob uma obrigação. Em
sua vaidade em torno do fato de terem sido convidados e em seu ardor por
serem “os mais honoráveis”, não percebem as intenções ocultas do anfitrião.
Ele é um anfitrião que não é um anfitrião.
Jesus é quem dá todo o teor da conversa em torno da mesa aquele dia,
fornece as palavras que se encaixam às ações deles e faz um parábola da oca-
sião. Ele tece o comportamento deles em uma severa acusação de falta de
hospitalidade: é escandalosamente errado usar um lugar de hospitalidade para
se promover à custa do outro; é intoleravelmente errado usar uma ocasião de
hospitalidade para manipular as pessoas. A hospitalidade é um exercício
de humildade: quando somos convidados, estamos prontos a receber. A hos-
pitalidade é um exercício de generosidade: quando somos anfitriões, estamos
prontos a entregar.
Jesus faz um roteiro memorável das ações coletivas dos convidados e do
anfitrião que acabaram de profanar a refeição do sábado e faz uma parábola
daquilo que ocorreu. Os próprios fariseus, anfitriões e convidados, são a pa-
rábola, a Parábola da Hospitalidade do Sábado Profanado.
A prática da hospitalidade do sábado que é só forma e nenhum conteúdo
acabou de ser usada para destruir a hospitalidade do sábado. Será que eles
ouvirão a parábola em que se tornaram? Acontece muitas vezes: a prática da
igreja que é só forma e nenhum conteúdo destrói a igreja; a prática do ca-
sarnento que é só forma e nenhum conteúdo destrói o casamento; a prática
da paternidade ou maternidade que é só forma e nenhum conteúdo destrói
a família.

* * *

Um sábado sem hospitalidade. Falta de hospitalidade para o homem infeliz


com as juntas inchadas. Falta de hospitalidade entre os convidados. Falta de
hospitalidade no anfitrião. Preparar-se e sentar-se para uma refeição é a prática
mais comum e mais afável para se engajar numa abertura, numa generosidade
CONVERSA INFORMAL 95

e numa receptividade. Com o pode ser que tantas vezes se transforme no


oposto — com o esse jantar na casa do fariseu?
E importante, parece-m e, manter a atenção centrada no fato de que o
ambiente dessa história é uma refeição sabática. O sábado é o tempo reser-
vado para não fazermos nada, de modo que possamos receber tudo, para pôr
de lado nossas tentativas ansiosas de nos tornar úteis, para pôr de lado nosso
tenso desassossego, para pôr de lado nosso tédio saciado pela mídia. Sábado
é a ocasião para receber o silêncio e deixá-lo aprofundar-se em gratidão, para
receber o sossego no qual rostos e vozes esquecidos se tornam discretamen-
te presentes, para receber os dias da semana recém -concluída e assimilar
a maravilha e o milagre que ainda ecoam de cada um, para receber a graça
estonteante do nosso Senhor.
Mas esses rigorosos cumpridores do sábado tinham os olhos primeiramente
em Jesus para ver o que ele ia fazer, depois uns nos outros para ver como eles
poderiam tirar vantagem uns dos outros. Estavam traindo o sábado no próprio
ato de "protegê-lo”.
O sábado é um dos grandes presentes que Deus nos deu. Todo dia da cria-
ção é “bom ” — bom para receber tudo o que Deus criou, bom para participar
na obra de Deus, bom para trabalhar no jardim de Deus, bom para nomear
e cuidar aquilo que Deus deu, bom para ser um “ajudador” uns para com os
outros. Mas o sábado se destaca dos primeiros seis dias de cada semana por
ser santo, um dia separado para estar na presença de Deus, para assimilar e
comemorar todos os presentes da criação e da salvação.
O sábado é um dia da semana de fato. Mas é também um sacramento do
tempo estendido a todos os ambientes de hospitalidade — mais comumente
café da manhã, almoço e jantar — , tempos e lugares dados a nós para receber,
assimilar e digerir aquilo de que precisamos para nos manter vivos. Recebemos
tanto. Temos tanto para dar. O que vamos fazer com isso, com esse presente,
com essa fartura? "Erguerei o cálice...” (SI 116:13). A conversa de Jesus à
mesa no jantar dos fariseus estabelece um vínculo entre aquilo que recebe-
mos livremente e em adoração e aquilo que damos livremente e recebemos
em refeições. Sua história faz nos deter: adoração jamais é somente adoração;
refeições jamais são somente refeições. A santidade permeia a hospitalidade.
96 A LINGUAGEM DE DEUS

* * *

As parábolas de Jesus nos mantêm alertas às profanações à espreita na hospi-


talidade do sábado, mas também atentos às possibilidades, escutando sempre
ecos da conversa de Jesus ao redor da mesa — a história que ele talvez faça
de nossas palavras e atos. Nunca sabemos quem aparecerá diante de nós do
outro lado da mesa, um anfitrião como Sahil ou um convidado como o viajante
com o camelo.
Bento, fundador da comunidade monástica do século IV em Monte Cassi-
no, na Itália, insistia em que seus monges sempre recebessem cada convidado
como receberíam a Cristo. A hospitalidade beneditina infiltrou desde essa
época muitas comunidades de fé.
Kathleen Norris conta uma história que se diz teria nascido em um monas-
tério ortodoxo russo. Um monge mais velho diz a um mais jovem: “Finalmente
aprendí a aceitar as pessoas como elas são. O que quer que sejam neste mundo,
uma prostituta, um primeiro-ministro, são todas iguais para mim. Mas às vezes
vejo um desconhecido subindo a estrada em direção a mim e digo: Ah, Jesus
Cristo, é você outra vez?’”.1
capítulo 7
Os irmãos perdidos
Lucas 15

Quando eu contava 25 anos de idade e fazia minha pós em Baltimore, en-


trei no hospital Johns Hopkins para fazer uma cirurgia no joelho. Um velho
ferimento atlético, uma cartilagem rompida no joelho, fazia pouco vinha se
tornando cada vez mais inconveniente e dolorida. Eu adiara cuidar desse
assunto por vários anos, mas agora estava tendo dificuldades de até mesmo
atravessar a rua, e assim aceitei o veredicto: cirurgia. A cirurgia envolvia um
procedimento que hoje é feito muito facilmente e que exige quase nenhum
período de recuperação, mas naqueles anos era preciso fazer uma grande
incisão, e a recuperação era dolorida. O cirurgião executou seu trabalho
com competência, reparou meu joelho e m e deixou com uma forte dor que,
garantiu-me ele, diminuiria.
Fiquei feliz com a perspectiva de andar dali a mais ou menos um mês sem
sentir nenhuma dor. Mas então, quando ainda estava no hospital, contraí uma
infecção por estafilococo que quase me matou. O joelho se curou dentro
do mês prescrito; a infecção se manteve teim osamente por dezoito meses.
Naqueles dezoito meses perdi nove dos meus 72 quilos sob o assalto de uma
série de abscessos por todas as costas que me puseram no tim e de Jó. A cada
três ou quatro dias eu retornava ao hospital para drenar e tratar os abscessos.
Jó, com certeza.
Durante o tratamento da minha infecção, aprendí uma palavra nova com
meu cirurgião: iatrogenia. G ostei muito da palavra e a utilizei a cada possi-
bilidade que encontrei. Iatrogenia refere-se a uma patologia ou enfermidade
contraída no processo do tratamento médico. O médico trata-o por uma doen-
ça, mas o tratamento, ao curá-lo daquela doença, causa outra enfermidade.
latros, “médico" (ou curador); genia, “origem". Assim, iatrogenia: “patologia
ou enfermidade que se origina no processo da cura”. O cirurgião que estava
drenando meus abscessos e me fazendo os curativos ensinou-me a palavra. Essa
98 A LINGUAGEM DE DEUS

palavra “iatrogênico”, pensava eu, tinha certa elegância. Os “furúnculos” eram


inchados e feios em comparação. O prazer de dizer “iatrogenia“ compensava
de certa maneira a dor dos abscessos.
Vinte anos depois de minha experiência com uma doença iatrogênica,
Ivan Illich escreveu um livro sobre a propagação alarmante da iatrogenia nos
Estados Unidos. O livro me caiu nas mãos totalmente por acaso. Fiquei me
perguntando enquanto o lia se eu era uma das poucas pessoas do país que não
tinha precisado consultar o vocábulo no dicionário. Illich descrevia a iatrogenia
como uma epidemia e usou seu livro para substanciar sua acusação mordaz
de que o estabelecimento médico se tornou uma importante ameaça à saúde
dos americanos.1
Nessa época eu era pastor. Tudo o que sobrou daqueles abscessos iatrogê-
nicos foi uma lembrança divertida. Mas ao ler o livro de Illich fiquei ciente
de algo alarmantemente similar na igreja americana que também se qualifica
como epidemia.
A igreja cristã é uma comunidade formada pelo Espírito Santo na qual a
salvação é proclamada e os pecados são perdoados; homens e mulheres são
redefinidos pelo batismo na companhia do Pai, do Filho e do Espírito Santo;
uma vida em Cristo é formada; uma adoração a D eus acontece modelada
pela Eucaristia; e uma vida santa é praticada num mundo de sofrimento, de
injustiça, de guerra, de desespero, de vícios e de pecado, todos ostensivos
ou dissimulados — um mundo em desarmonia com o próximo e com Deus.
Parece algo com pletam ente maravilhoso. E algo maravilhoso — todas essas
pessoas adquirindo um gosto por uma vida nova, Vida Real, "resgatada, curada,
restaurada, perdoada”, e encontrando-se participantes nas santas operações
da Trindade.
Mas para aqueles de nós que estamos envolvidos nisso não demora muito
tempo para perceber que essa nova vida não é uma vida concluída, mas uma
vida em processo. M uitos de nós demoram a aprender. Muitos de nós se
agarram às imaturidades egoístas o máximo que podem, indispostos a crescer.
Outros de nós deslizam de volta a velhos hábitos de desobediência enquanto
procuram atalhos para a santidade. Ainda outros fazem experim entos com
meios nos quais tentam permanecer no controle de sua vida e manipulam Deus
OS IRMÃOS PERDIDOS 99

para fazer por eles o que não podem fazer por si mesmos. Não poucos de nós
ficam tentando encontrar um meio de lidar com Deus sem ter de prestar aten-
ção ao próximo. Quando examinamos bem de perto demoradamente toda a
congregação, vemos que a maioria dos pecados espirituais, morais e emocionais
e as desordens sociais desenfreadas na população em geral continuam a forçar
sua presença, às vezes até mesmo florescendo, entre os eleitos.
Isso é conhecimento comum. Todos os experimentamos. Por isso a confis-
são coletiva de pecado é prática modelar toda vez que os cristãos se reúnem
para adorar. A linguagem é direta e sem espaço para rodeios: "erramos e nos
afastamos de teus caminhos como ovelhas perdidas. [...] Deixamos por fazer
aquelas coisas que deveriamos ter feito; e fizemos aquilo que não deveriamos
ter feito; e não há nenhuma saúde em nós. [...] ó Senhor, tem misericórdia
de nós, infelizes transgressores.2
"Infelizes transgressores” está sujeito a uma boa dose de edições criativas
por parte de nossos contemporâneos, mas uma coisa é certa: é um eufemis-
mo. Variações dessa oração básica de confissão de pecados ocorrem em quase
todas as congregações cristãs, pelo menos até recentemente. Ela nos mantém
honestos. Impede a idealização, a romantização ou a canonização prematura
de nossos companheiros cristãos em santos plásticos. Impede a desilusão
quando descobrimos que o homem e a mulher aos quais damos "a paz” há
anos é um adúltero ou um estelionatário. Cada pecado que se origina fora da
congregação, mais cedo ou mais tarde mostra-se dentro dela.
Mas há uma forma de pecado que floresce nas comunidades religiosas de
maneiras dificilmente possíveis fora dessas comunidades — começa em locais
de adoração. As comunidades religiosas fornecem as circunstâncias para essa
desordem espiritual, esse pecado, muito mais do que o mundo secularizado.
O nome com um para o pecado é justiça própria. Para firmar raízes, exige
0 solo de uma comunidade em que a retidão é honrada e perseguida. Sem
uma comunidade em que se praticam métodos justos, a justiça própria não
seria possível.
Na época em que Illich observava que o estabelecimento médico constituía
uma séria ameaça à saúde física dos americanos, eu estava assumindo meu
100 A LINGUAGEM DE DEUS

trabalho de pastor e observava o que nunca tinha levado a sério — que o esta-
belecimento religioso no qual eu agora tinha responsabilidades constituía uma
séria ameaça à fé cristã na forma de justiça própria. Eu estava percebendo que,
diferentemente dos pecados que uma congregação em adoração normalmente
percebe e dos quais se arrepende, a justiça própria quase nunca é reconhecida
no espelho. As vezes em outra pessoa, jamais em mim.
Esse fenômeno é tão comum, tão prejudicial, tão despercebido boa parte
do tempo, e portanto não observado a não ser nas formas estereotipadas das
charges, que pensei que precisava de um nome especial, “eusebigenia”, para
chamar atenção para ele. Estou cunhando a palavra numa analogia com o termo
médico “iatrogenia”. A palavra grega eusebeia significa "santo”, “reverente”,
“devoto”. Descreve uma pessoa que esteja levando uma vida consagrada, cheia
de fé e obediente diante de nosso Senhor: justo. E também usada em sentido
positivo nas Escrituras.
Mas a questão é a seguinte: essas pessoas caracterizadas por eusebeia têm a
tendência de pecar e de levar outros a pecar de maneiras que os que não têm
eusebeia — as pessoas que não dão a mínima para a justiça, mas estão sempre
em busca de mais dinheiro, mais prazer, melhor sexo e uma aposentadoria
segura, sem sentirem nenhuma vergonha disso e sem acharem que devam
explicações sobre seu estilo de vida — não são tentados. Ou seja, há certos
pecados simplesmente não acessíveis aos não cristãos, as pessoas de fora da fé.
Somente homens e mulheres que se tornam cristãos são capazes de cometer
e têm a oportunidade de cometer alguns pecados, com a justiça própria no
topo da lista. Tanto a capacidade quanto a oportunidade para a justiça própria
se expandem exponencialmente quando nos tornamos cristãos abertamente
professos, vivendo naquilo que todos diziam ser um país cristão.
Mas com o a justiça própria se transformou num clichê desbotado e ra-
ramente perm ite o autorreconhecimento, precisamos de toda a ajuda que
possamos ter para ver como funciona e quão facilmente podemos nos infectar
inadvertidamente. Seguindo o exemplo de Illich e seu diagnóstico da iatrogenia
que está flagelando nosso sistema de saúde, proponho o termo "eusebigenia”
para chamar nossa atenção e fazer soar o alarme a respeito desse pecado social
tantas vezes aprovado na comunidade cristã.
OS IRMÃOS PERDIDOS 101

A melhor proteção contra o pecado da eusebigenia é uma consciência aguda


de nossa condição de perdidos, na qual tão desesperadamente e em todas as
ocasiões precisamos de um Salvador. Mas é uma consciência difícil de manter
quando entramos em nosso local de trabalho com uma roupa nova de algodão
ou de terno e gravata e somos cumprimentados com “Bom dia, pastor”, ou
"Que bom revê-lo, doutor”, ou "Acabei de ler seu livro mais recente, professor
— você de fato conseguiu abarcar tudo nesse volume”. Como cultivamos uma
percepção aguda em nossa imaginação de "Vêm vazias minhas mãos,/ Presas a
tua cruz estão”3 ao mesmo tempo que na outra mão estamos carregando nosso
diploma universitário, ou plano de aula da escola dominical, ou o último trabalho
que nos foi designado de conduzir uma missão ao Zimbábue? Afinal de contas,
somos cristãos, com credenciais como testemunhas escolhidas de Cristo!
O pecado da eusebigenia é difícil de detectar, porque o pecado está sempre
incrustado em palavras e atos que têm toda aparência de ser justos, eusebês —
consagrados, devotos (no hebraico, tzadik). Assim com o a doença chamada
iatrogenia é contraída muitas vezes num local de tratamento, num hospital ou
numa clínica ou consultório médico, o pecado da eusebigenia é muitas vezes
cometido num lugar associado à justiça, a uma igreja, ou estudo bíblico, ou
reunião de oração.

***

Jesus conta uma história, uma de suas melhores, que nos envolve num autorre-
conhecimento de nossa justiça própria, o pecado da eusebigenia que de modo
mais ou menos inocente contraímos na igreja. A história é habilidosamente
construída e desempenha sua função quando nos estarrece com o fato de que
somos, na realidade, perdidos. Conhecer essa história e nela meditar é tanto
cura quanto defesa diante da justiça própria.
Lucas situa a história quase no centro de sua Narrativa da Viagem por
Samaria, destacando sua importância central àqueles de nós que estão seguindo
a Jesus em direção a Jerusalém. Eis a história:

Já nessa época muitos homens e mulheres de reputação duvidosa estavam


andando com Jesus, escutando atentamente. Os fariseus e estudiosos da
102 A LINGUAGEM DE DEUS

religião não estavam contentes com isso, nem um pouco. Eles resmungavam:
"Ele acolhe pecadores e faz as refeições com eles, tratando-os como velhos
amigos”. A murmuração deles deu origem a esta história.
“Suponhamos que um de vocês tivesse cem ovelhas e perdesse uma. Você
não deixaria as 99 no deserto para ir em busca da perdida até encontrá-la? Uma
vez encontrada, pode ter certeza de que a colocaria sobre os ombros, jubilosos,
e ao chegar a casa chamaria seus amigos e vizinhos, dizendo: ‘Comemorem co-
migo! Encontrei minha ovelha perdida!’. Podem estar certos de uma coisa: há
mais alegria no céu pela vida resgatada de um pecador do que por 99 pessoas
boas que não precisam de resgate.
“Ou imaginem uma mulher que tenha dez moedas e perca uma. Não acen-
derá uma lâmpada e não limpará a casa, olhando em cada nicho e cantinho até
que a encontre? E, quando a encontrar, pode estar certo de que chamará os
amigos e vizinhos: ‘Comemorem comigo! Encontrei minha moeda perdida!’.
Podem estar certos de uma coisa: esse é o tipo de festa que os anjos de Deüs
dão toda vez que uma alma perdida se volta para Deus”.
Então ele disse: “Havia um homem certa vez que tinha dois filhos. O mais
novo disse a seu pai: ‘Pai, quero agora mesmo o que ainda estou pra receber’.
“Assim, o pai dividiu a propriedade entre eles. Não demorou muito e o filho
mais jovem fez as malas e partiu para uma terra distante. Lá, sem disciplina e na
dissolução, esbanjou tudo o que tinha. Depois que acabou todo o seu dinheiro,
houve uma severa fome por todo aquele país, e ele começou a se prejudicar.
Ele conseguiu trabalho com um cidadão lá que lhe designou a seus campos para
dar comida aos porcos. Tinha tanta fome que comería as espigas de milho da
comida dos porcos, mas nem isso ele recebia.
“Isso o fez voltar ao juízo. Ele disse: ‘Todos aqueles agricultores que traba-
lham para meu pai sentam-se à mesa para três refeições diárias, e aqui eu estou
morrendo de fome. Vou voltar para o meu pai. E direi a ele: Pai, pequei contra
Deus, pequei contra você; não sou digno de ser chamado seu filho. Pode me
contratar como empregado’. Levantou-se naquela hora e foi para a casa do pai.
“Quando ainda lhe faltava muito para chegar, seu pai o avistou. Com o
coração pulsante, ele correu para fora, abraçou-o e beijou-o. O filho começou
seu discurso: ‘Pai, pequei contra Deus, pequei contra você. Não mereço jamais
de novo ser chamado seu filho’.
Mas o pai nem ouvia. Chamou os servos: ‘Rápido. Tragam uma muda limpa
de roupa e vistam-no. Ponham o anel da família sobre seu dedo e sandálias em
OS IRMÃOS PERDIDOS 103

seus pés. Depois tomem um bezerro bem alimentado com cereais e assem-no.
Vamos festejar! Vamos ter momentos maravilhosos! Meu filho está aqui — dado
por morto e agora vivo! Dado por perdido e agora encontrado!’. E começaram
a passar momentos maravilhosos.
"Todo esse tempo, seu filho mais velho estava lá fora, no campo. Quando
acabou o dia de trabalho, ele chegou de volta. Ao aproximar-se da casa, ouviu
a música e as danças. Chamando um dos servos da casa à parte, perguntou o
que estava acontecendo. Ele disse: ‘Seu irmão voltou para casa. Seu pai mandou
que se fizesse uma festa — com direito a churrasco de novilho! —, porque ele
está de volta a casa, são e salvo’.
“O irmão mais velho saiu amuado e irritado e recusou a entrar e se unir
a eles. Seu pai saiu e tentou falar com ele, mas ele se recusava a escutar. O
filho disse:
“— Veja quantos anos permanecí aqui servindo-o, jamais lhe dando um
momento de dor, mas você alguma vez deu uma festa para mim e para meus
amigos? Então esse seu filho que jogou fora seu dinheiro em prostitutas aparece
e vocês se lançam a festejar!
“Seu pai disse:
"— Filho, você não compreende. Você está comigo o tempo todo, e tudo o
que é meu é seu — mas esse é um momento maravilhoso, e tínhamos de come-
morar. Esse seu irmão estava morto, e está vivo! Esteve perdido, e foi achado!”.
Lucas 15

A história é iluminada por fariseus e estudiosos da Bíblia murmurando


criticamente contra Jesus. As pessoas com quem Jesus está falando naquela
ocasião, nessa viagem por Samaria, são estranhos ao mundo da fé, "coletores
de impostos e pecadores”, pessoas indesejáveis, de má reputação. Os membros
religiosos, fariseus e estudiosos da Bíblia, que viviam reta e responsavelmen-
te, ficam ofendidos. Eles lamentam: “Ele acolhe pecadores, tendo relações
amigáveis com eles nas refeições, tratando-os como velhos amigos”. Os justos
queixam-se de que Jesus está tratando os injustos, a escória samaritana, com
cortesia e hospitalidade. As queixas deles provocam a história.
Não se trata aqui de um episódio isolado, mas um hábito bem documentado
de Jesus, essa conduta afável e acolhedora para com os excluídos, os homens
e mulheres característicamente marginalizados da sociedade, sobretudo da
104 A LINGUAGEM DE DEUS

sociedade religiosa, dos bem comportados. Os verbos na história estão no


tempo presente, comunicando a ideia de que isso é o que Jesus faz o tempo
todo. Ele se relaciona bem com essas pessoas que vivem à margem da respei-
tabilidade, ao menos respeitabilidade moral e religiosa. Não é grande surpresa,
então, que os presentes que vivem de forma responsável e respeitável devam
se sentir provocados e assim murmurem com indignação.
A palavra grega para o que eles estão fazendo é diegongudzon, “murmura-
vam‫( ״‬ARA, ARC, ECA, ACF e BJ), “criticavam" (NVI, AS21 e BLH). Lucas é
o único escritor do Novo Testamento que usa a palavra; ele a emprega de novo
em 19:7, num contexto semelhante para se referir à resposta das pessoas ao
tratamento acolhedor de Jesus a Zaqueu, o rico coletor de impostos de Jericó.
Quando Lucas emprega uma palavra que nenhum de seus colegas evan-
gelistas utiliza, não é má ideia examiná-la de perto. Dos quatro evangelistas,
Lucas é o que emprega o vocabulário mais extenso. E também o que tem
maior familiaridade com a Septuaginta, a tradução grega da Bíblia hebraica, a
tradução-padrão usada pela igreja primitiva. Ele está continuamente fazendo
alusão por suas palavras bem escolhidas àquelas velhas histórias hebraicas
fundacionais. E é o que faz aqui: a palavra "murmurar” é usada pela primeira
vez na Bíblia em Êxodo 15:24 e 16:2.
Nessa passagem de Êxodo, os israelitas foram libertos do Egito e estão
a caminho de Canaã. Depois da exultante travessia do mar Vermelho, eles
entram numa viagem bem difícil pelo deserto. Depois de seis semanas bem
árduas, "toda a comunidade de Israel reclamou [diegongudzen] a Moisés e a
Arão no deserto. Disseram-lhes os israelitas: ‘Quem dera a mão do S e n h o r
nos tivesse matado no Egito! Lá nos sentávamos ao redor das panelas de carne
e comíamos pão à vontade, mas vocês nos trouxeram a este deserto para fazer
morrer de fome toda esta multidão!” (Êx 16:2-3).
Será que Lucas está chamando nossa atenção para a sem elhança dos
contextos aqui? Creio que sim. O povo murmura contra Moisés porque ele
o conduziu por território perigoso, desconhecido e difícil. Não sabem onde
pisam. Não há nenhuma sinalização. Anseiam pela segurança e pela garantia
da escravidão egípcia. As pessoas murmuram contra Jesus porque ele as está
OS IRMÃOS PERDIDOS 105

conduzindo através da região estranha e hostil de Samaria, esse deserto de


heréticos e pecadores de má reputação. Estão ansiando pela segurança e pela
garantia do moralismo.
Estou fazendo uma pressuposição aqui na qual não insistirei, mas é apoiada
pelo contexto: esses fariseus e estudiosos da Bíblia são seguidores de Jesus;
entraram pelo caminho do discipulado; estão a caminho de Jerusalém com
Jesus. E agora estão pensando melhor — não têm certeza de que querem se
associar a essas almas perdidas, essa turba de samaritanos.
Os israelistas murmuraram não por serem maus e perversos, mas por serem
bons e estarem amedrontados. Os fariseus e os estudiosos da Bíblia murmu-
raram não por serem maus, mas por serem bons e estarem amedrontados.
Os murmuradores em ambos os casos são adoradores reverentes e dedicados
a Deus, libertos das superstições pagãs e seguindo a orientação de Deus. Os
dois grupos de murmuradores podem receber o adjetivo eusebeia, santos,
retos. Mas agora algo está ocorrendo que deixa tudo muito confuso. A auto-
-imagem deles, retos, pela qual eles se definem, é de repente apagada. Ficam
desorientados, perdidos. Não gostam de se sentir assim e por isso murmuram,
diegongudzon. Compreensivelmente.
E talvez isso que dá origem à provavelmente mais famosa parábola de
Jesus. Os fariseus e os estudiosos da Bíblia estão murmurando, com Israel
murmurando bem ao fundo e bem distante. No meio desse murmúrio, desse
queixume e dessa reclamação, Jesus lança essa parábola.

***

Quatro mini-histórias (não três, que é a contagem usual) compõem essa pa-
rábola. E são dispostas numa intensificação em espiral.
A primeira história conta cem ovelhas: uma dentre cem se perde. O pastor
sai em busca da ovelha perdida, a encontra, a traz de volta e chama seus amigos
e familiares para se alegrarem com ele.
A segunda história conta dez moedas: uma das dez se perde, e a dona da
casa parte em sua procura, encontra-a e chama os amigos e familiares para se
alegrarem com ela.
106 A LINGUAGEM DE DEUS

A terceira história conta dois filhos: um dos dois se perde, e o pai aguarda
seu retorno. O filho de fato retorna, e o pai dá uma festa de celebração.
Essa terceira história é mais elaborada que as duas primeiras: inclui detalhes
do ato de perder algo (de uma partida), as condições do que se perdeu, os
sentim entos de um relacionamento rompido, a emoção do encontro (e da
chegada a casa). Somos atraídos para a profundidade e para a dor do ato de
perder algo ou alguém. Uma pessoa perdida recebe mais atenção que um
animal perdido ou uma coisa perdida. Mas outra diferença é que o pai não
sai à procura do filho da mesma maneira que o pastor sai em busca da ovelha
e a dona de casa se lança em buscar a moeda. Ele sim plesm ente não sai em
busca do filho, mas ainda assim está aguardando o retorno do filho. O pai o
enxerga bem de longe e corre para saudá-lo e dar-lhe as boas-vindas.
Aparentemente não saímos à procura de um filho (ou pessoa) perdido da
mesma maneira que procuramos um animal ou uma moeda. E necessário algo
mais que uma vigorosa energia. Algo não menos energético, contudo passivo
— energia passiva. Há situações em que nossas passividades tomam o lugar
de nossas atividades.
A espera fornece o mom ento e o espaço para que as pessoas se engajem na
salvação. A espera pede um intervalo, põe-nos na reserva por um tempo, de
modo que não atrapalhemos operações essenciais do reino de Deus que nem
sabemos mesmo que estejam ocorrendo. Não fazer nada implica um m eio de
isolar o meu ego, minha compreensão ainda imatura da maneira em que Deus
trabalha abrangentemente, mas sem forçar seu caminho, sem coerções. O freio
da passividade dá lugar às calmas e invisíveis complexidades características do
Espírito Santo, enquanto ele realiza sua obra em nós, na igreja e neste mundo
pelo qual Cristo morreu. “A renúncia... é uma virtude corrosiva”.4 Não podería
ter sido fácil para o pai não sair em busca de seu filho como o pastor procurou
sua ovelha e a mulher procurou sua moeda. Nem todos os filhos, filhas, amigos
e “não salvos” perdidos podem ser encontrados convocando-se uma equipe
de busca e resgate. E necessário discernimento.5
OS IRMÃOS PERDIDOS 107

A diferente proporção entre os números intensifica a expectativa: urna de cem,


depois uma de dez, depois um de dois. Em cada caso há uma recuperação
bem-sucedida daquilo que era importante, mas foi perdido. Em cada caso, há
um convite à celebração, ao júbilo e à alegria.
Essas histórias simples, sem grande maestria, cumprem seu papel em nós.
Aplaudimos. Podemos todos nos identificar com o drama do dia a dia — um
cão ou um gato perdido, uma nota de dez dólares que não está no lugar que
deveria, uma criança perdida ou fugida. A antecipação aprofunda-se: uma de
cem, uma de dez, um de dois. Pastores, donas de casa, pais. Brindamos junto
com as pessoas das histórias.
Será que os queixosos fariseus e estudiosos da Bíblia estavam aplaudindo?
Claro que estavam. Quem seria capaz de manter a indignação fervilhante
diante de tais histórias? Temos aí pessoas que passaram por toda a vida por
coisas perdidas e reencontradas. Sabem o que significa buscar com afinco o
que se perdeu e depois se verem numa celebração após o reencontro. Toda
vez que acontece, decidem jamais perder algo outra vez. D e agora em diante
vão tomar cuidado. Não serão descuidados com sua vida. Sabem onde está
tudo — especialmente o que se relaciona com Deus — , com um lugar para
tudo e tudo em seu lugar. Os fariseus são pessoas que têm tudo no lugar. E o
que têm bem coeso em primeiro lugar é sua religião. Podem ter perdido coisas
no passado, mas não mais. Cuidam e ficam de olho em tudo. A vida, as coisas,
para eles, estão todas resolvidas. São justos, cheios de justiça própria. São os
estereótipos daqueles que não são perdidos e não perdem coisas.
E assim os fariseus, que vêm murmurando sobre Jesus e suas maneiras
descuidadas, por um momento são apanhados nessas histórias e não estão mur-
murando. A imaginação deles foi presa como participantes em experiências de
perdidos e achados sobre as quais sabem alguma coisa. Os fariseus estão aplau-
dindo o reencontro da ovelha, da moeda, do filho. Quem não aplaudiría?

* * *

Depois, com as defesas da justiça própria em baixa, Jesus desliza para uma
quarta história. Essa é a história de outro filho perdido. Mas esse filho está
108 A LINGUAGEM DE DEUS

três vezes perdido: perdido para seu pai, perdido para seu irmão e perdido
para a comunidade de celebração. Um filho que jamais fez nada que chamasse
a atenção por ser errado, que cumpriu as regras, que trabalhou arduamente
na fazenda. E ainda isto: o pai, que há anos espera o retorno do filho mais
novo, imediatamente sai à procura desse filho mais velho, encontra-o e insiste,
implora com ele para que se una à celebração. O verbo é parakalei. E uma
palavra que expressa um vir ao lado, junto de. Palavras de sutil persuasão, de
convite, de boas-vindas, de incentivo que nos atraem para a comunidade que
canta, festeja e se congratula com o perdido e achado. Esse é o verbo associado
primeiramente com o Espírito Santo, o Paráclito — o Deus que vem ao nosso
lado, atraindo-nos para a comunidade dos perdidos e achados.
Jesus não fornece uma conclusão para essa quarta história. As três primei-
ras histórias são contadas com uma estrutura semelhante e um fim idêntico:
perdido, seguido de busca, seguida de encontrado, seguido de celebração. A
quarta história segue uma estrutura idêntica: perdido, busca, encontrado.
Mas não há nenhum desfecho, nenhuma celebração. Não ficamos sabendo
se o irmão mais velho se deixa ser encontrado e participa da celebração. E a
mesma história do perdido e achado, mas sem um fim. Uma história sem fim
convida o ouvinte ou leitor a fornecer o fim.
Aqui está o meu. No acúmulo constante das histórias de perdidos e acha-
dos, cada história seguinte ajusta o foco: uma de cem , uma de dez, um de
dois — agora chegamos a somente um. Todos os olhares se voltam para esse
um, o irmão perdido que restou. Jesus para de falar. Silêncio.
O que acontece com esse último perdido? Jesus não vai terminar a histó-
ria? O silêncio desenvolve o suspense. O silêncio torna-se incômodo, depois
insuportável e, por fim, sísmico.
Num choque de reconhecimento, um dos murmuradores — um fariseu?
Um estudioso da Bíblia? — capta: "Eu sou o irmão. Esse sou eu! E estou per-
dido muito mais que todos os outros. Eu sou esse. E fui encontrado! O Pai
encontrou-me”.
E depois outro, e outro, e outro, à medida que as placas tectónicas se
deslocam profundamente abaixo de seus pés. Tudo o que sobra da justiça
própria são escombros.
OS IRMÃOS PERDIDOS 109

Um após outro, os murmuradores abandonam seu status de justos, seguro,


autodefinido, aprovado pela multidão, e fazem companhia com o perdido
e achado. Terminam a história de Jesus em um celebração dos amigos, dos
vizinhos e dos anjos. Sem mais murmúrios.
Agora captamos. Jesus contou as primeiras três mini-histórias “de viés”,
a fim de introduzir essa quarta história de uma pessoa perdida que há muito
tempo perdeu seu senso de estar perdida, para superar as autopercepções de
membros de congregações que jamais pensam em si mesmos como perdidos.
Não somos nós os que estão lá fora à procura dos perdidos, ou organizando
coisas de tal maneira que nada nem ninguém se percam?

* * *

A justiça própria em grande parte consiste na negação de nosso estado de per-


didos. E eusebigênica e gera uma multidão de pecados. E difícil reconhecê-la
como pecado porque a embrulhamos num lugar tão respeitável, na companhia
de cristãos assentados em bancos de igreja, cantando hinos e lendo a Bíblia,
trabalhando “em nome de Jesus”. A realidade, exposta pela história-terremoto
de Jesus, é que Jesus está lá fora a nossa procura. Somos tão perdidos quan-
to qualquer ovelha desgarrada, como qualquer moeda que deixamos cair, como
qualquer filho pródigo.
Pois, enquanto nos agarrarmos a qualquer pretensão de termos tudo sob
controle, seremos impedidos de nos aprofundar e de amadurecer na fé cristã.
Pois, enquanto evitarmos o reconhecimento de que estamos perdidos, sere-
mos impedidos de experimentar as maravilhosas profundidades de sermos
encontrados. Pois, enquanto insistirmos em manter as grades morais seguras
nas quais sempre sabemos onde nos posicionamos (e onde todos os outros se
posicionam!), essas poses da autossuficiência, nos privaremos da companhia
da ovelha encontrada, da moeda achada, dos dois irmãos reencontrados e dos
anjos em celebração.
O pecado eusebigênico pode ser impedido. E tão simples quanto difícil:
depositar nossas competências e habilidades diariamente no altar. Readentrar
a cada dia a condição de perdidos na qual nosso Salvador vem a nossa procura
110 A LINGUAGEM DE DEUS

e nos encontra “tal qual estou, sem demorar”, e nos restaura a seu rebanho, a
sua bolsa, a sua família, com todos os anjos do céu regozijantes.
Em toda parte e em todas as ocasiões aprendemos a subm eter-nos às
condições da história de Jesus e ao conselho dos guias sábios no caminho
cristão que nos dizem que não podemos criar justiça pelas nossas atividades
ou nossos m oralism os, mas devem os con tin uam en te readentrar o que
Kierkegaard chamou “o poder preparador do caos”, que João da Cruz cha-
mou “a noite escura da alma”, e um escritor inglês anônimo denominou “a
nuvem do desconhecido”.
capítulo 8
O astuto
Lucas 16:19‫־‬

A historia de Jesus acerca dos irmãos perdidos — o pródigo e seu irmão — está
entre as prediletas de todos os tempos, contada e recontada através de gera-
ções. Em contrapartida, a historia que se segue imediatamente leva o prêmio
de ser a mais desconsiderada — ou, se não desconsiderada simplesmente, de
todo descartada. Sua própria falta de popularidade lhe confere um caráter
diferente que com pele nossa atenção.
Os acadêmicos, embora nem todos, de forma sistemática tiveram proble-
mas com ela. Rudolf Bultmann, a quem muitos consideram o comentarista
por excelência do século 20, declarou ser a parábola incompreensível.1 Mas
ainda que não seja tida por incompreensível, é sem dúvida alguma singular.
Eis a história:

Jesus disse a seus discípulos: “Havia certa vez um homem rico que tinha um
gerente. Ele tomou conhecimento de que seu gerente vinha tirando vantagem
de sua posição contraindo altas dívidas. Então ele o chamou a sua presença e
disse-lhe: Ό que é isso que estou ouvindo sobre você? Você está despedido. E
quero uma auditoria completa de seus livros’.
“O gerente disse para si mesmo: Ό que é que eu vou fazer? Perdi meu
trabalho como gerente. Não sou forte o bastante para um trabalho braçal, e
sou orgulhoso demais para pedir esmolas... Ah, eu tenho um plano. Vou fazer
o seguinte... assim, quando eu estiver no olho da rua, as pessoas me aceitarão
em suas casas’.
“Depois ele começou a pô-lo em prática. Um após o outro, ele chamou as
pessoas que estavam devendo a seu patrão. Ele disse ao primeiro:
“— Quanto você deve ao meu senhor?
“Ele respondeu:
"— Cem vasilhas de azeite de oliva.
“O gerente disse:
“— Aqui, tome sua conta, sente-se aqui — rápido agora — escreva cinquenta.
“Ao seguinte disse:
112 A LINGUAGEM DE DEUS

‫ —״‬E você, o que você deve?


"Este respondeu:
“— Cem sacas de trigo.
“Ele disse:
— Tome sua conta, escreva oitenta.
"Agora, aqui está uma surpresa: o patrão elogiou o gerente desonesto! E
por quê? Porque ele sabia cuidar de si mesmo. As pessoas da rua são mais
espertas nesse assunto que os cidadãos que seguem as leis. Estão em constante
alerta, buscando ângulos, sobrevivendo por sua sabedoria. Quero que vocês
sejam espertos da mesma maneira — mas naquilo que é correto —, usando
cada adversidade para estimulá-los a uma sobrevivência criativa, a concentrar
sua atenção nos fundamentos essenciais, de modo que vocês vivam, realmente
viva, e não simplesmente cheguem perto de ter um bom comportamento,
satisfeitos consigo mesmos.”
Lucas 16:1-9

***

À primeira leitura (ou escuta), as duas histórias parecem vir de mundos dife-
rentes. A história dos irmãos perdidos e seu pai paciente e compassivo toca
em emoções profundas dentro de nós. Um pai com dois filhos, ambos os quais
o tratam muito mal. O filho mais novo, pela traição cruel e insensível; o mais
velho, por sua fria justiça própria, incrustada, rígida, reservada. O pai recebe
os dois com boas-vindas pungentes, compassivas, inclusivas, reconciliadoras.
Amamos essa história. Nunca nos cansamos dela. A pintura que Rembrandt
fez dessa história ainda nos comove. Mas a segunda história não suscita em
nós nada dessa compaixão familiar de arrebatar o coração.
Ainda assim, há semelhantes impressionantes nas duas histórias. Em Lucas
15, o filho lança-se à misericórdia de seu pai. Em Lucas 16, o gerente lança-se
à misericórdia de seu patrão. Tanto o filho quanto o gerente estão em dificul-
dades desesperadoras e não têm nada que conte a seu favor a não ser uma vida
desperdiçada e mal vivida. Um meteu os pés pelas mãos como filho; o outro
meteu os pés pelas mãos como gerente.
Tanto o filho quanto o gerente traem uma confiança. A identidade essencial
de cada um foi desperdiçada, e não têm nada que conte a seu favor. Nem o
O ASTUTO 113

pródigo nem o astuto tem uma desculpa. Nenhuma racionalização, nenhuma


circunstância atenuante, nada.
A palavra diaskorpidzõ (Lc 15:13 e 16:1 — “desperdiçou”, “desperdiçan-
do”) é usada num mom ento fundamental em ambas as histórias. O que quer
que nos prenda nessas histórias, não são as façanhas morais. Não são histórias que
nos impelem às boas obras.
Tanto o filho quanto o gerente experimentam "graça estonteante”. O filho
não é banido da família. O gerente não é lançado na prisão. Não colhem o que
semearam. Não ganham o que merecem. Depois de errar toda uma vida, por
fim acertam. O filho ganha de seu pai uma festa com grande abundância. O
gerente ganha de seu patrão um surpreendente elogio.
E nas duas histórias não há nenhum “fim” propriamente dito. Não somos
informados sobre o que o irmão mais velho faz. Não somos informados sobre
0 que acontece com o gerente. O final faltante clama por um fim, uma reso-
lução. Nós, leitores, ouvintes, somos puxados para participar num mundo de
graça. O que fazemos? Bem, não fazemos nada. Não é o que esperamos por
termos feito o mal contra um pai ou um patrão, e não é o que esperamos de
um mestre religioso. As histórias não nos deixam com um programa para fa-
zermos algo que compense tudo o que fizemos de errado, mas com um convite
para receber tudo daquele que deseja nossa integralidade, nosso bem-estar.

***

Tive a primeira percepção sobre a importância dessa história um dia quando


estava me aproximando do Hospital Johns Hopkins, em Baltimore, à procu-
ra de um estacionamento. Eu era pastor e tinha ido visitar um membro de
minha congregação que acabara de ser operado. Não havia nenhuma garagem
à vista. A rua estava tomada de carros estacionados um ao lado do outro.
Circundei três vezes o hospital e não encontrei nenhum estacionamento que
não estivesse lotado. Lembrei de amigos meus que numa situação dessas
sempre oravam pedindo uma vaga e, então, achei que deveria tentar. Orei
a Deus pedindo um lugar para estacionar. Uns oito metros a minha frente,
saía um carro. Estacionei e tranque! o carro. Que satisfação! Não somente eu
m A LINGUAGEM DE DEUS

havia experimentado um pequeno milagre nas ruas do leste de Baltimore, mas


também tinha agora uma história que eu poderia contar a meus amigos que
me validaria como um orador eficaz.
Depois de mais ou menos uma hora com meu amigo convalescente num
quarto de hospital, desci de elevador e voltei para a rua, relembrando a sur-
preendente provisão de uma vaga para estacionar — minha primeira — e não
vendo a hora, cheio de satisfação, de contar a história para os meus amigos...
para perceber que eu tinha fechado o carro com a chave lá dentro. Fiquei ali,
sem saber o que fazer, olhando a chave dependurada na ignição, dentro do
carro trancado.
Fiquei sem ação, de mãos no bolso, imaginando o que poderia fazer. Na-
quele mesmo instante, um menino afro-americano de mais ou menos dez anos
de idade aproximou-se de mim e disse:
— Algo errado, chefia?
Eu disse:
— Sim. Tranquei o carro com a chave lá dentro.
Ele disse:
— Eu posso ajudá-lo.
Tirou um pedaço de arame do bolso e em trinta segundos ou menos a porta
estava aberta; então ele estendeu a mão e me entregou a chave
Eu disse:
— Ainda bem que eu estava aqui quando você apareceu.
Ele sorriu e disse:
— Isso vale um dólar para o senhor?
Enfiei a mão no bolso para pegar a carteira. Elogiei-o:
— Um dólar? Vale dois dólares!
E entreguei-lhe o dinheiro.
Quando saí com o carro, essa história de Jesus que deixou perplexas e
mesmo escandalizadas tantas gerações de leitores — um gerente desonesto
elogiado por um ato de desonestidade, um astuto elogiado por ser astuto —
brotou de minha imaginação subconsciente. Não era o que eu tinha acabado de
experimentar: esse menino, cheio da esperteza das ruas do centro de Baltimore,
O ASTUTO 115

aos dez anos de idade, já um profissional tarimbado em adentrar veículos


trancados e em pedir o que conseguisse para sua sobrevivência, usando sua
perícia em destravamento de portas para permanecer vivo naquele ambiente
desprovido, e agora sendo elogiado por mim por empregar sua perícia e proeza
questionáveis numa sobrevivência criativa?
E não fui violentamente despertado de meus devaneios falsamente piedosos
em torno de uma oração que produz milagres e uma expectativa, com um to-
que de justiça própria, de ser aplaudido por meus amigos quando percebessem
meus poderes de oração recentemente encontrados? Aquela rua de realidades
urbanas difíceis e imprevistas — “Posso ajudar, chefia?” — ficou lado a lado
com minhas orações e salmos pastorais planejados no quarto de hospital.

***

Poucos anos mais tarde, enquanto lia um livro, minha introspecção na história
de Jesus naquela calçada do Johns Hopkins foi confirmada e aprofundada. O
livro foi escrito por Kenneth Bailey, então catedrático da Near Eastern School
of Theology [Nova Escola Oriental de Teologia], de Beirute. Ele passou toda a
sua vida vocacional no Oriente Médio (Líbano, Egito, Síria, Iraque e Palestina),
não apenas ensinando na sala de aula, mas também mergulhando nas línguas e
nos costumes dos camponeses, cuja forma de vida preserva fortes laços com
0 mundo neotestamentário do século I. A familiaridade de Bailey com essa
cultura campesina nos permite avanços novos e, em alguns casos, inigualáveis
na forma com que recebemos as parábolas de Jesus. Para mim, e para muitos
de meus amigos, ele passou a ser professor por excelência das parábolas de
Jesus. Nosso mais profundo estudioso do Novo Testamento, N. T. Wright,
comentou que Bailey “tem sido com o vista aos cegos” para todos nós que
lemos as parábolas de Jesus.2 Foi o que fez para mim ao reimaginar Lucas 16,
a história do astuto, a qual “elogia um salafrário [e] tem sido uma vergonha
para a igreja pelo menos desde que Juliano, o Apóstata, usou a parábola para
afirmar a inferioridade da fé cristã e de seu fundador”.3
Usando sua compreensão precisa da cultura que serve de base para aque-
le texto, Bailey deslinda as tradições populares e campesinas da cultura e
116 A LINGUAGEM DE DEUS

observa que o gerente é um gerente de aluguéis de propriedade, e os devedores


são fazendeiros que pagam pelo arrendamento em espécie (azeite e trigo são
mencionados). Quando se descobre que o gerente vinha defraudando parte
dos fundos pelos quais era responsável, ele é dem itido no ato. Ele não se
declara inocente. Cala-se e não apresenta nenhuma desculpa. Seu silêncio é
uma admissão de sua culpa. Não tenta encontrar um plano para reconquistar
seu emprego. Dispensa toda a atenção para o que fará em seguida.
Mas nesse silêncio ele percebe algo que é fundamental para compreender
a história: ele é demitido, mas não punido. Não se exige dele que devolva o
que defraudou. Ele não é enviado para a prisão. Aliás, nem repreendido ele
é. Bailey resume a cena: “Esse empregado experim entou dois aspectos da
natureza do seu patrão. Ele é um patrão que espera obediência e age com
juízo em relação ao empregado desobediente. E também um patrão que de-
monstra misericórdia e generosidade fora do comum mesmo para com um
administrador desonesto. O ouvinte/leitor atento da parábola não perdería
nenhum desses fatos”.4
Assim, o que ele fará? Ele precisa de um emprego. Ele examina a possibili-
dade de cavar valas e rejeita a ideia. Examina a possibilidade de pedir esmolas
e rejeita a ideia. Mas quem o empregará? Sua imagem pública está destroçada.
E então ele aparece com um plano. Mas qual é o plano? Ele não nos informa
desse plano — o silêncio ajuda a construir certa tensão como parte de todo
o drama.
Esta é a hipótese de Bailey, uma conjectura que se encaixa tanto à cultura
campesina quanto ao contexto bíblico mais amplo. O plano do gerente “é
arriscar tudo pela qualidade da misericórdia que ele já experimentou de seu
patrão. Se fracassar, certamente irá para a prisão. Se for bem-sucedido, será
um herói na comunidade".5 Nos instantes desse silêncio, toda a sua vida dá
uma guinada. Ele entra num mundo que nunca conheceu e dele participa
— um mundo de graça. Ele viveu, aparentemente com muito sucesso, por
sua sabedoria, pela astúcia de seus cálculos. Mas tem sido um mundo muito
pequeno e muito apertado. Agora ele enxerga outro caminho, muito maior.
E assim que funciona. Ninguém até agora sabe que ele foi demitido. Então ele
chama os devedores um a um. O gerente é um administrador de propriedades
O ASTUTO 117

incumbido de supervisionar os arrendamentos de terra a fazendeiros que pa-


gam em espécie (azeite de oliva, trigo), talvez na época da colheita. Trata-se
de homens de boa posição na comunidade que tiveram associações de longa
data com aquele proprietário. Eles pressupõem que o gerente tenha uma
mensagem importante da parte do proprietário, e o gerente permite que eles
pressuponham isso. Ele está com pressa — “rápido agora — escreva” — ; ele
precisa acabar logo com isso antes que o patrão descubra o que está fazendo.
Se os devedores souberem que há um engano em jogo, talvez não queiram
colaborar — isso significaria faltar com a confiança para com o proprietário,
0 qual não iria querer mais arrendar suas terras para eles. Os devedores pres-
supõem que as modificações na conta sejam legítimas, uma ordem vinda do
proprietário e cumprida pelo gerente, o qual (também supunham eles) tinha
convencido seu patrão: uma gratificação. Os devedores ficam maravilhados
com a gratificação generosa do proprietário, conquistada pelo gerente.
Quando o proprietário percebe o que acontecera, restam-lhe duas esco-
lhas. Pode retornar aos devedores e dizer-lhes que tudo aquilo não passava
de um equívoco, que era um esquema armado pelo gerente que já havia sido
despedido. Naturalmente, isso acabaria irritando os devedores, e o entusiasmo
deles pela generosidade dele se transformaria em murmuração por causa de
sua sovinice. Ou, então, ele pode não dizer nada, aceitar o elogio e deixar o
gerente, por mais velhaco que seja, desfrutar de sua popularidade.
Ele reflete bem . Ele é, afinal de contas, um hom em generoso — não
mandou o gerente para a cadeia. A generosidade é uma virtude altamente
valorizada no Oriente para um nobre. O esquema do gerente é uma espécie
de elogio ambíguo, uma vez que também acaba por criticar seu patrão. Ele
estava passando adiante a generosidade do patrão aos fazendeiros. O gerente
“sabia que o proprietário era generoso e misericordioso. Ele apostou tudo
nesse aspecto da natureza do seu patrão. E venceu. Como o patrão era de
fato generoso e misericordioso, ele escolheu pagar todo o preço pela salvação
de seu gerente”.6
“O astuto” brota como uma metáfora vivida da improbabilidade surpreen-
dente da graça, não diferente do meu amigo de dez anos naquela rua no leste
de Baltimore. Um escritor usa para ela o termo “burlesca”.7 Essa história, que
‫וו‬8 A LINGUAGEM DE DEUS

foi estudada infinitas vezes por homens e mulheres numa busca desesperada
por encontrar aqui alguma lição moral edificante, a fim de salvar Jesus de
elogiar um trapaceiro por ser um trapaceiro bem esperto, transforma-se em
uma história sobre a aceitação da salvação, o tipo de história que se acha bem
no cerne da boa notícia de Jesus.

***

Mais uma coisa: a palavra “prudência“. “E o senhor louvou o administrador


desonesto por ter agido com prudência” (BJ); o gerente “agiu astutamente”
(NVI), "com astúcia” (AS21), “ele sabia cuidar de si m esm o”. A palavra grega
é phronimos; a palavra hebraica, chokmah.
Tanto a palavra grega quanto a hebraica são normalmente traduzidas por
“sábio”. São comuns no Antigo Testamento, sobretudo em Salmos e Provér-
bios, apresentando diante de nós, em metáforas e provérbios inesquecíveis, o
tipo de vida que se desenvolve a partir de toda uma vida de cuidadosa atenção
aos caminhos de Deus. Há um vocabulário equivalente em todas as línguas,
palavras que marcam o que significa viver bem, levar uma boa vida, ter uma
vida moral, a vida espiritual, a vida cristã. Há muitas tradições sapienciais em
todas as religiões e culturas.
Mas essas palavras, por mais comuns e úteis que sejam, tendem também
a carregar um senso de algo pesado. São palavras que nos põem a pensar,
palavras sérias. Chegam em nossa linguagem a partir da experiência profun-
da e da reflexão madura, mas tam bém, não por culpa delas, passam a ser
associadas aos idosos que já passaram por quase tudo na vida e agora são
capazes de aconselhar e advertir o restante de nós sobre com o não destruir
a nossa vida. Outras palavras — palavras com o “agradável”, “educado" e
“bem -com p ortad o” — passam a ser usadas em con textos sem elhantes.
No processo perdem o brilho. “Agradável” com o adjetivo não tem estilo e
energia. A “educado” falta aquele tempero. Uma menina quaere chamada
Prudência é meia-irmã de uma pessoa púdica. Mas, quando essas palavras
perdem seu lugar na vida segundo Jesus e têm que mais ou menos se virar por
conta própria, podem tornar-se enfadonhas. Os romancistas acham sempre
O ASTUTO 119

muito mais difícil tornar uma pessoa boa atraente e interessante do que a
um patife ou a um embusteiro.
A história de Jesus sobre o homem astuto resgata esse conjunto de palavras
de sabedoria que muitas vezes se embotam em um tipo de presunção e de
insípida decência chamando o astuto de prudente. “Prudente” em nossa língua
denota cuidado e cautela, pisar em ovos, não se arriscar muito. A história sobre
0 astuto mostra o comportamento de um homem que escapa por um triz de
uma vida de cálculos em benefício próprio e se descobre desfrutando de uma
generosidade do tamanho do mundo — de Deus. Deus é aquele com quem
agora ele tem de se haver. A ação generosa de Deus define sua vida, não seus
planos obsessivos, sua defraudação e adulteração da contabilidade.
Jesus nos veio salvar a alma. Veio também salvar nossas palavras. A palavra
e as palavras estão bem no cerne da autorrevelação de Deus para nós. Se as
palavras forem prejudicadas pelo uso descuidado ou pernicioso, ou se forem
abandonadas carecendo de reparo, ou se ficarem incrustadas de craca pelas
más companhias, os detalhes afiados da revelação de Jesus ficam embotados.
A linguagem descuidada no serviço de Jesus é a responsável por uma quanti-
dade enorme de danos, em pé de igualdade com a mentira descarada como
impedimento para ouvirmos e respondermos à mensagem da boa notícia de
Deus para nós.
E assim é necessário atenção vigilante e constante para manter nossa lingua-
gem em bom estado de reparo. As palavras desgastam-se. Perdem a textura,
e as cores desvanecem. Precisam ser recondicionadas, reabilitadas, renova-
das. Seja por mau uso, seja por excesso de uso, muitas vezes palavras antes
vigorosas acabam embotadas e insípidas. Nós que usamos a linguagem temos
uma responsabilidade de lhes devolver a agudeza, limpando-as, esfregando o
encardimento das associações indevidas. A maioria de nós presta mais atenção
a manter limpos pratos, facas e garfos que usamos para nossas refeições do
que a manter em bom estado as palavras que usamos para comunicar nosso
amor, nossas promessas, nossos compromissos e nossas lealdades.
No espirituosamente profundo Cartas do inferno, de C. S. Lewis, o chefe
dos demônios, o Morcegão, escreve a seu demônio-aprendiz, o Cupim, que
um dos departamentos mais importantes do inferno é seu braço filológico.
120 A LINGUAGEM DE DEUS

“Nosso pai de baixo” tem uma equipe de hábeis gramáticos que diligente-
mente corroem e depois arruinam as palavras. Eles têm um interesse especial
em trabalhar nas palavras que a comunidade cristã usa em suas conversas e
testemunho. Percebemos em nosso mundo contemporâneo como trabalharam
muito bem em cima de "arrependam-se”, introduzindo figuras caricatas de
homens encurvados carregando cartazes nas esquinas das cidades, e em cima
da palavra "salvar”, espremendo-a numa senha que o põe dentro do céu, e
reduzindo-se “fazer o amor” ao intercurso sexual.
"Prudente” e o conjunto das palavras de sabedoria que a cercam são
também vitais demais para ficarem restritas a um uso secundário. Mas com
certeza precisam ser recondicionadas. Jesus consegue reavivar essas palavras
e fazê-las funcionar outra vez, não nos mandando para um dicionário a fim
de rastrear sua origem etimológica, mas pondo-as numa história na qual não
é possível perder de vista a natureza robusta que irrompe em uma resposta a
Jesus cheia de surpresa.
capítulo 9
O homem invisível
Lucas 16:1931‫־‬

Leitores atentos do grego de Lucas observaram um detalhe, um simples


segmento de frase, que liga as três histórias de Jesus nos capítulos 15 e 16,
a história dos irmãos perdidos, a história do astuto e a história de Lázaro e
do rico. Esse conectivo vincula de modo claro, mas discreto, a segunda e a
terceira histórias com a primeira. O primeiro grupo de histórias sobre itens
“perdidos” no capítulo 15 é apresentada com o parábola: “Então Jesus lhes
contou esta parábola..." (Lc 15:3). Essas histórias são a resposta de Jesus à
murmuração dos escribas pelo fato de ele estender hospitalidade a estrangei-
ros, a pecadores. Mas, depois das parábolas introdutórias da ovelha perdida e
da moeda perdida, cada uma das histórias que se seguem, a do pai e seus filhos,
a do fazendeiro rico e seu gerente astuto e a de Lázaro e o rico, é introduzida
por uma expressão que Lucas, e somente Lucas, usa no Novo Testamento:1
“Um homem tinha dois filhos...” (15:11), “O administrador de um homem
rico...” (16:1) e "Havia um homem rico que se vestia de púrpura” (16:19). A
expressão comum é antrhõpos tis, “um hom em ”.
O que observamos é que, após ter introduzido o grupo das histórias dos
capítulos 15 a 16 com o termo “parábola”, Lucas introduz cada história prin-
cipal com algo como: “E agora outra história do mesmo tipo — um homem...”,
com a implicação de que todas têm por objetivo reforçar umas às outras. Cada
história apresenta personagens centrais que estão perdidas de várias maneiras:
distantes de um pai (os dois filhos, um num esbanjamento tresloucado e o ou-
tro por um desdém frio), o astuto traindo a confiança de seu patrão e o infeliz
pedinte sendo empurrado para as margens extremas das trevas exteriores da
doença e da pobreza.
Então em cada história uma visitação da graça inverte o enredo. O irmão
mais jovem responde como deve, em arrependimento. Não sabemos com o o
irmão mais velho responde, mas sabemos que é generosamente acolhido na
122 A LINGUAGEM DE DEUS

festa e nos vemos na esperança de que ele também se arrependerá e se unirá


aos demais. A resposta do astuto não é explícita, mas a evidência implícita é
que ele muda radicalmente de vida, de uma conspiração contra seu patrão para
uma participação, ao lado de outras pessoas, da generosidade de seu patrão.
O infeliz Lázaro não faz nada ele mesmo, mas se vê alvo de uma ação — ele
é erguido da miséria sub-humana de ter os cães lambendo suas feridas para
uma vida “junto de Abraão”, experimentando aquilo de que há tanto tempo
foi excluído pela autogratificação do rico, que agora enxerga Lázaro como
que pela primeira vez e, embora seja já tarde demais para ele, deseja ver seus
cinco irmãos tendo uma oportunidade de arrependimento. Os cinco irmãos
do homem rico, como o irmão mais velho da primeira história, são deixados,
pelo menos na narrativa, em suspenso. Não sabemos se eles se arrependerão.
Em cada história a ressurreição fica implícita.
Os elem entos comuns em cada história se acumulam: algo ocorreu em
Jesus e em torno dele que inverteu "as coisas como elas são". As condições
do exílio em que as personagens (e Israel) viveram por tanto tem po estão
prestes a terminar; as pessoas se veem diante de uma resposta que devem dar,
a saber, arrepender-se. O comando imperativo “Arrependa-se” fica implícito
durante todo o tem po em que Jesus está contando as histórias, embora não
seja explícito depois dos primeiros usos da expressão nos dias de abertura
da pregação de Jesus (Mt 3:21 e 4:19). Mas a referência ao arrependimento
encontra lugar de destaque na história de Lázaro (Lc 16:30).2
Essas observações libertam a história final, a de Lázaro, de ser uma história
amarrada tempo demais como uma história sobre o pós-vida, o que acontece
quando morremos e nos vem os circunscritos ao fogo do Hades ou ao seio
de Abraão. Conforme sustenta N. T. Wright, numa exegese de ampla e clara
visão, “a parábola não é, como muitas vezes se supõe, uma descrição do pós-
-vida, advertindo as pessoas de que se certifiquem de seu destino eterno [...].
A realidade é incómodamente diferente [...] antes, o que estava acontecendo
ao rico e ao pobre no tempo presente. As boas-vindas de Jesus ao pobre e ao
rejeitado eram um sinal de que o verdadeiro retorno do exílio, a nova era, a
‘ressurreição’, está sendo formado; e, se estamos no alvorecer da nova era,
aqueles que querem pertencer a ela precisam se arrepender”.3
O HOMEM INVISÍVEL 123

Assim, com que novas introspecções essa terceira história de arrependí-


mento, a história de Lázaro, contribui para as que a antecederam?
Talvez, antes de tudo, uma advertência. Os ricos são um alvo fácil em qual-
quer assunto, secular ou espiritual, para a reforma social e a justiça econômica.
Eles oferecem infinitos exemplos para as caricaturas cômicas e escaminhas. A
mesma possibilidade a temos na história de Lázaro, mas, dado o teor das nar-
rativas de Jesus, minha inclinação é me centrar em Lázaro. Ele é a única pessoa
na história, afinal de contas, que tem a honra de ser identificado pelo nome.

***

“Havia certa vez um homem rico, o qual se vestia de forma cara e seguindo
a última moda, desperdiçando seus dias em inegável consumo. Um homem
pobre chamado Lázaro, coberto de feridas, tinha sido despejado em sua porta.
Por toda a vida, ele vivia para conseguir tirar uma refeição das sobras do rico.
Seus melhores amigos eram os cães que vinham lamber suas feridas.
“Então ele morreu, esse pobre homem, e foi levado pelos anjos para o
seio de Abraão. O rico também morreu e foi sepultado. No inferno e no tor-
mento, ele olhou para cima e viu Abraão à distância e Lázaro em seu regaço.
Então clamou:
“— Pai Abraão, misericórdia! Tenha misericórdia! Envie Lázaro para molhar a
ponta do dedo na água para molhar minha língua. Estou agonizando neste fogo.
“Mas Abraão disse:
"— Filho, recorde-se de que em toda a sua vida você teve o que era bom e
Lázaro ficou com a pior parte. Aqui não é assim. Aqui ele é consolado, e você,
atormentado. Além de tudo o mais, em tudo isso há um enorme abismo entre
nós, de modo que ninguém pode ir de nós até você ainda que quisesse, nem
ninguém pode cruzar de onde vocês estão para cá.
“O rico disse:
“— Então permita-me pedir-lhe, Pai: envia-0 à casa de meu pai, onde tenho
cinco irmãos, para que ele possa contar-lhes toda a verdade e adverti-los, para
que não acabem aqui neste lugar de tormento.
“Abraão respondeu:
"— Eles têm Moisés e os Profetas para contar-lhes a verdade. Que eles
os ouçam.
“— Eu sei, pai Abraão — disse ele —, mas não estão escutando. Se alguém
saísse dos mortos e fosse até eles, eles mudariam seus caminhos.
124 A LINGUAGEM DE DEUS

"Abraão respondeu:
"— Se não querem escutar Moisés e os Profetas, não se convencerão por
alguém que ressurge dos mortos”
Lucas 16:19-31

* * *

Lázaro é um homem invisível. O rico é bem visível e por sinal bem audível,
resplandecente em suas roupas da moda, com os sons e os aromas de uma festa
contínua que ele dá em seu lar-troféu — risos, danças e fartura de comida.
Ninguém pode perder a presença do rico naquela vila. Cada aparência, cada
bisbilhotice, cada boato adiciona peso a sua importância. A própria existência
dele confere eminência à comunidade inteira. Seu status de celebridade, mui-
to à semelhança de uma equipe esportiva em época de campeonato, confere
brilho, ainda que de segunda mão, a todos os espectadores comuns, de pouca
importância, tediosos, mas espectadores admirados e invejosos, que pelo
próprio fato de serem comuns são excluídos do círculo mágico desse homem.
E Lázaro é invisível. Ninguém enxerga Lázaro. Em sua invisibilidade, ele
compartilha do destino dos pobres, dos doentes, dos explorados e de todos
os “infelizes da terra”. Cada sociedade encontra sua forma de fechar os
olhos, põe dedos nos ouvidos e pelo uso extravagante de desodorantes e de
caminhões de lixo para se livrar do cheiro da deterioração, da sujeira, do mau
odor e da miséria. Colocamos nossos doentes nos hospitais, nossos idosos em
asilos, nossos pobres em cortiços ou favelas e nosso lixo em aterros sanitários.
Nunca temos total sucesso em mantê-los fora da vista, do olfato e da audição,
mas fazemos o melhor possível. De vez em quando, um romancista ou poeta,
um jornalista ou pregador, faz o melhor possível para esfregar o nosso nariz
em tudo isso. Mas, de modo geral, desviar nosso olhar, silenciando os sons
e higienizando o ambiente, conseguimos bastante bem não enxergar, ouvir,
cheirar ou tocar Lázaro.
Tenho uma boa amiga, Karen, que atuava como jornalista no jornal de nossa
pequena cidade. Vários anos atrás uma exposição dos magníficos tesouros do
rei egípcio da Antiguidade, faraó Tutancâmon, estava numa turné pelos Estados
O HOMEM INVISÍVEL 125

Unidos e veio até o Smithsonian Museum de Washington, D .C ., a apenas


uns oitenta quilômetros de nossa cidade. Ela combinou com os redatores que
faria a cobertura da exposição. Era na época uma grande notícia. Muitos de
nossos vizinhos estavam fazendo a peregrinação para ver os tesouros. Mas ela
também tinha uma agenda particular. Era uma época em que muitos estavam
trabalhando arduamente para assegurar o acesso a edifícios públicos a pes-
soas com necessidades especiais. Carla, uma garota de nossa congregação que
gastaria o resto de sua vida em uma cadeira de rodas, toda semana lembrava
Karen quando adoravam a Deus juntas de com o era importante tomar cuida-
do dessa necessidade básica há muito desconsiderada em nossa terra. Karen
decidiu aliar sua atribuição jornalística a sua paixão cada vez maior por fazer
algo pelas necessidades dos portadores de deficiências. Alugou uma cadeira de
rodas, arranjou um par de muletas e conseguiu que seu marido a conduzisse
de carro até a exposição de Tutancâmon, empurrando-a na cadeira de rodas
pelas salas lotadas da exposição. Queria experimentar, ainda que por umas
horinhas, o que nossa amiga Charla e milhares de outros tinham de enfrentar
em seu dia a dia. Os corredores do museu estavam abarrotados de gente.
Havia longas filas de pessoas esperando lançar um breve olhar em alguns dos
artigos mais espetaculares de joalheria e escultura, os equivalentes do rei Tuta
de "púrpura e linho fino” da parábola do rico. Karen em sua cadeira de rodas
alugada ficou devidamente impressionada por essas peças raras do inegável
consumismo da realeza egípcia, mas o que a deixou absolutamente perplexa
foi que nas cinco horas em que percorreu o museu sentada numa cadeira de
rodas, não uma única vez, nem uma vez, ninguém olhou diretamente para ela
ou falou com ela. Homens e mulheres igualmente desviaram o olhar. Somente
tinham olhos para o que sobrava de ricos mortos. Ela era uma pessoa invisível.
Lázaro numa cadeira de rodas.
Nem Karen nem eu percebemos na ocasião, mas, anos mais tarde, numa
conversa informal, percebemos: a história que Karen escreveu para nosso jornal
local naquela semana era uma recontagem da história do rico e Lázaro, não
uma história sobre o que acontece depois que morremos, mas uma história
que se repete com variações ao nosso redor, a cada dia.
126 A LINGUAGEM DE DEUS

* * *

Alguns anos antes de Jesus contar essa história, clamou em seu sermão inau-
gural: “O Reino de Deus está próximo. Arrependam-se” (Mc 1:15). O longo
exílio de Israel acabou. Ele está reunindo os exilados para participar de uma
nova forma de vida, um novo governo, uma inversão radical “das coisas como
elas são”. Ele está a caminho de Jerusalém, recrutando seguidores ao longo do
caminho para participarem com ele do novo governo, do novo jeito do reino
de fazer as coisas. Está dando as boas-vindas a todos os que têm "ouvidos para
ouvir”, mas está também deixando o mais claro possível que está terminando
a agenda daquilo que Isaías do Exílio mais ou menos quatrocentos anos antes
pregou como boa notícia a sua congregação de exilados:

"O Espírito do Senhor


Está sobre mim,
porque me ungiu
para pregar boas-novas aos pobres...
Lucas 4:18

Jesus também incluiu os cegos, os mudos e os coxos em sua agenda do rei-


no, mas é significativo que ele com ece com os “pobres” — os marginalizados,
os rejeitados, “todos os que desejarem, venham”, sem levar em conta status,
reputação ou qualificação. Jesus assenta os alicerces da inclusividade entre
os "todos os que desejarem” ao dar nome a um inominado, ao tornar visível
aquele a quem ninguém vê, dando uma voz aos que nunca são escutados.
Lázaro, para começar.
A história de Lázaro destrói em mil pedaços os estereótipos dos homens e
das mulheres que imaginamos estarem na vanguarda da liderança da missão do
reino de Jesus. Jesus está à caça de seguidores que participarão com ele no es-
tabelecimento de seu reino, seu novo governo. Seus primeiros recrutas deixam
surpresos e indignados seus observadores. Os ricos, poderosos e influentes de
forma alguma são excluídos — o rico José de Arimateia e o influente rabino
Nicodemos são citados e contados entre os seguidores de Jesus — , mas não há
nenhum indício nas histórias do Evangelho como estão escritas de que Jesus
O HOMEM INVISÍVEL 127

estava buscando “o mais brilhante e o melhor”. Paulo sublinha esse método


de Jesus em sua avaliação nada lisonjeira dos chamados: “Deus escolheu deli-
beradamente homens e mulheres que a cultura negligencia, explora e abusa;
escolheu esses ‘joões-ninguém’" (IC o 1:28).
Isso se contrapõe à estratégia americana amplamente difundida e prati-
camente inquestionável de ter como alvo os homens e as mulheres influentes
e realizados para a obra do reino — homens e mulheres, como dizemos, com
“qualidades comprovadas de liderança” ou ao menos com “potencial de lide-
rança”. De onde tiramos isso? Certamente não foi ao ler as histórias que Jesus
contou e as histórias que foram contadas sobre ele.

***

É característico da linguagem que conta histórias com precisão (e as que


Jesus contou são com certeza exatas) que essas histórias jamais são isoladas
e completas em si mesmas, mas sempre têm uma relação orgânica com uma
história maior, uma meta-história, uma história abrangente que explica tudo
0 que existe. A história é um testem unho verbal da coerência da vida, da
inter-relação do começo, do meio e do fim. Embora a grande história, a meta-
-história não incluía tudo, em princípio nada fica de fora.
Mas nem todas as “histórias” são histórias. As ilustrações e os chistes, por
exemplo, têm uma aparência superficial de história, mas não o são. São os
dentes arreganhados do gato de Cheshire, de Lewis Carroll, a trivialização da
história. E, apesar de os pregadores as usarem com frequência nos sermões
e os jornalistas fazerem uso delas para despertar o interesse das pessoas e as
entreter, são fragmentos da vida, por mais deliciosos que sejam, sem prece-
dência nem consequência, instantâneos sem primeiro ou segundo plano, como
Melquisedeque, “Sem pai, sem mãe, sem genealogia, sem princípio de dias
nem fim de vida...” (Hb 7:3). Arrancada da história complexa da revelação de
Deus, a ilustração ou o gracejo tem data de validade muito curta.
Mas a história, como tal, sempre opera no contexto de uma meta-história,
e ao menos implicitam ente desenvolve reconhecim ento e percepção e, se
estivermos dispostos, participação em uma realidade maior, mais saudável
128 A LINGUAGEM DE DEUS

(santa) e em última análise mais significativa. A historia cativa nossa imagina-


ção, permitindo que captemos mais do que sentimentos imediatos ao redor
— outras vidas, outras circunstâncias, outras possibilidades. Uma vez livres
de nos paralisar na “lama suja” do nosso ego pecaminoso, autocentrado, ensi-
mesmado, nossa imaginação pode ser um catalisador para a fé que o Espírito
usa para criar algo do nada, a certeza das coisas que se esperam, a convicção
das “coisas que não vemos [...] que o universo foi formado pela palavra de
Deus, de modo que aquilo que se vê foi feito do que é visível” (Hb 11:1-3).
Ou, expressando de outra maneira, a fé é "a firme fundação que subjaz a tudo
que faz valer a pena viver. [...] um meio de acessarmos aquilo que não conse-
güimos enxergar. [...] Pela fé, vemos o mundo passar a existir pela palavra de
Deus, aquilo que vemos sendo criado pelo que não vem os” (Hb 11:1-3). No
ato da fé, tornamo-nos participantes dispostos na história como um todo, os
caminhos e a obra de Deus, a história que Jesus denominou “o Reino”. Cada
história sincera contada ao longo do caminho fornece acesso a essa história
que expande e se desenvolve, uma história dos caminhos de Deus em relação
a nós, e dos nossos em relação a Deus. A Bíblia está cheia dessas histórias.
Nossa vida está cheia dessas histórias.

***

Ao contar a história de Lázaro, Jesus usa uma velha lenda egípcia com varían-
tes bem conhecidas na Palestina dos tempos de Jesus. O enredo básico conta
a trajetória do deus Si-Osíris ao submundo, onde observou o destino de um
rico e de um homem comum, destino esse retratado como uma inversão de
sortes, o funeral do rico sem a presença de amigos e o homem comum se-
pultado em grande pompa. Há recontagens dessa história básica na Palestina.
Os ouvintes de Jesus deviam conhecer bem a lenda, na qual Jesus insere os
nomes de Abraão e Lázaro, personalizando a história egípcia para seus ouvintes
judeus e samaritanos.
Jesus também reconta a história de tal maneira que desloca seu sentido do
pós-vida para esta vida atual. E o faz acrescentando um epílogo à velha lenda
que radicalmente muda a intenção. Começamos supondo que estamos escutando
0 HOMEM INVISÍVEL 129

uma história sobre Lázaro. Mas quando a história termina percebemos que
Lázaro era apenas um cenário: essa é uma história sobre os irmãos do rico. Essa
é a conclusão. Simplesmente não tínhamos como prever isso (nem os ouvintes
de Jesus), mas agora captamos: é nessa direção que a história se encaminhou
0 tempo todo. O que vai acontecer aos cinco irmãos?
A história de Jesus tornou o invisível Lázaro visível às próprias pessoas da
multidão que som ente tinham olhos para o rico e seu séquito de aproveita-
dores. Então será que seus ouvintes também se veríam da mesma maneira
nos cinco irmãos? E será que responderíam aos imperativos inaugurais de
Jesus — “Arrependam-se” (M t 3:2) e “Sigam-me” (4:19) — que reverbe-
ram nos interstícios de todas as histórias de Jesus nesta viagem metafórica
por Samaria?
Joachim Jeremias, um de nossos maiores estudiosos das parábolas de Jesus,
é de opinião que um nome melhor para a história de Lázaro seria “Parábola
dos Seis Irmãos".4 Ou, talvez, “Parábola dos Cinco Irmãos”, aproveitando a
ambiguidade em torno do irmão mais velho do pródigo e aplicando-a também
na história de Lázaro. Será que o irmão mais velho se arrependeu e uniu-se à
celebração de ressurreição — ou não? Será que os cinco irmãos se arrependerão
e se unirão à celebração de ressurreição — ou não?
O tema da ressurreição está inequivocamente presente nessa recontagem
subversiva da velha lenda egípcia, transformando-a de uma lição moral e ética
sobre o rico e o pobre e uma especulação sobre o pós-vida em uma percepção
de que a ressurreição está ocorrendo por toda parte ao redor de Jesus. Mas
é necessário um ato de arrependimento para escancarar esses olhos. Se você
somente tiver olhos para o rico, permanecerá cego para Lázaro.
Por se essa a única parábola dos Evangelhos em que alguém é identificado
pelo nome, a história em João da ressurreição do homem que carrega o mesmo
nome, Lázaro, ganha atenção. O pai da igreja primitiva Orígenes é o primeiro de
que temos conhecim ento a propor uma ligação entre as duas histórias. Há
alguma relação entre a lenda desse Lázaro e a do Lázaro amigo de Jesus? Não
há nenhuma resposta definitiva a essa pergunta, mas apenas fazer a pergunta
ajuda a manter a dinâmica do arrependimento diante de nós. Quando o rico
pede a Abraão que Lázaro seja enviado para advertir seus cinco irmãos porque
130 A LINGUAGEM DE DEUS

“Se alguém saísse dos mortos e fosse até eles, eles mudariam seus caminhos”,
Abraão lhe diz: “Se não querem escutar Moisés e os Profetas, não se conven-
cerão por alguém que ressurge dos mortos" (Lc 16:30-31). Aqui estão duas
palavras: “arrepender-se” e "ressurgir” (ressurreição).
A parábola de Lázaro mostra que a ressurreição em si não produzirá arre-
pendimento; a ressurreição do Lázaro de carne e osso é uma confirmação disso.
Pior ainda, não apenas a ressurreição falha em garantir o arrependimento; ela
provocou mais dureza de coração — descrença assassina. A ressurreição de
Lázaro, embora crida por alguns, acabou se mostrando a gota d ’água que pôs
em andamento o plano que acabou desembocando na crucificação de Jesus.
“E daquele dia [dia em que Lázaro ressurgiu] em diante, resolveram tirar-lhe
[de Jesus] a vida” (Jo 11:53).
Tampouco a ressurreição de Jesus mais ou menos dez dias depois resultou
em algo como um avivamento de arrependimento de âmbito nacional.

* * *

“Arrependa-se” acha-se entre os imperativos normais da vida espiritual. Não


é uma palavra difícil de compreender. Mas é uma palavra muitíssimo difícil
de escutar. O arrependimento é algo complexo. A própria ordem em si é di-
reta. E uma velha palavra na vida da fé. Simplesmente significa “voltar-se” ou
"mudar de ideia”. A palavra não carrega ambiguidades. Basta fazer o que ela
manda. Pessoalmente, mas não individualisticamente. Na história bíblica, 0
arrependimento não pode ser afunilado para algo meramente particular, como
sentir-se pesaroso por seus sins e pronto para fazer reparações. O chamado é
para retornar a Deus e aos caminhos de Deus em relação a seu povo. Retornar
à história e a tudo e a todos na história. Diz respeito a entrar numa nova for-
ma de vida, assumindo-se membro do reino de Cristo. Jesus está chamando
homens e mulheres para se juntarem a ele numa forma de vida que abraça a
inclusão no reino. Seguir a Jesus no caminho da cruz fornece a metáfora mais
sucinta. “Você precisa revisar sua vida” (Rilke).
Acrescentar uma prática devocional recomendada a sua vida já ocupada
não fará isso por você. Assumir uma série de resoluções não o fará tampouco.
0 HOMEM INVISÍVEL 131

Sentir pesar e um senso de penitência lá no fundo do coração por toda uma


vida mal vivida é um com eço, mas dificilmente será o suficiente. Os humores
podem ser cultivados. As em oções podem ser facilmente manipuladas. O que
deve ser abandonado em nossa compreensão de arrependimento é a ideia do
"indivíduo solitário do pós-Iluminismo totalm ente dedicado a uma busca por
uma salvação particular”.5
Vários anos atrás, minha mulher e eu estávamos dirigindo nas montanhas
Rochosas, por um parque nacional, numa estrada estreita talhada na encosta da
montanha. Chegamos ao local de um acidente em que um motociclista saltou
longe da estrada para um precipício de centenas de metros. Alguns policiais e
guardas florestais trabalhavam para que o trânsito não parasse, enquanto outros
formavam um com plexo sistema de cordas e roldanas para puxar o que tinha
sobrado da motocicleta e de seu motorista.
Todos, obviamente, estavam curiosos, mas fomos impedidos pelos policiais
e guardas florestais de parar e olhar ao redor. Mas, um pouco depois da cena
do acidente, a estrada fazia uma volta de onde podíamos olhar para trás por
sobre o desfiladeiro e perceber o que tinha ocorrido, perto de 140 metros de
distância. Parei o carro, e saímos com nossos binóculos para tentar ver alguma
coisa. Um policial que estava lá na cena do acidente percebeu onde estávamos
e, usando um megafone, ordenou por sobre o desfiladeiro: “Voltem para o
carro! Não há nada para ver”. Mas eu sabia que havia algo para ver e queria ver.
Não obedecí imediatamente (mas minha esposa, que anda segundo a lei, sim).
Não me pareceu que estivesse quebrando alguma lei só por olhar de binóculo.
Então a ordem se repetiu: "Volte para o carro! Não há nada para ver”. E depois
de novo. Relutantemente, com a insistência de minha mulher, obedecí.
Esse é o fim da história. Continuamos a dirigir, com nossa curiosidade
não satisfeita. Mas a história, como muitas vezes acontece, continua a passar
em minha imaginação. Como pai, pastor e intérprete das Escrituras, tenho
interesse de forma especial pelos imperativos. O imperativo é a maneira mais
breve, mais clara e menos ambígua de formular um verbo. E, para qualquer um
que se importe em viver bem e seja responsável pelo bem-estar dos outros,
os imperativos são um equipamento necessário em nossa linguagem: coma
132 A LINGUAGEM DE DEUS

seu lanche, arrume seu quarto, ame a Deus, ame seu próximo. O imperativo
chama a atenção, facilmente compreendido, não exige explicação. E, pelo
menos a curto prazo, é geralmente eficaz.
A ordem do policial naquela estrada na encosta da montanha naquele dia
fez tudo isso: prendeu minha atenção, me fez entrar no carro e me pôs em
movimento. O que não fez foi tornar-me participante do que estava aconte-
cendo. Nem era a intenção — pretendia o oposto: impedir que eu participasse
do que estava acontecendo. Mas o que me interessa não é o imperativo iso-
lado que prende minha atenção e me põe em movimento, mas como ele se
desenvolve em indicativos e subjuntivos, imperfeitos e perfeitos, toda uma
gama de participações numa frase, na vida.
O que teria acontecido, por exemplo, se aquele policial tivesse enviado um
de seus subordinados até mim para me dizer: “Precisamos de ajuda para retirar
o corpo. Tudo o que você está fazendo ao olhar por esse binóculo é atrapalhar.
Você pode nos ajudar? Precisamos de ajuda com as cordas”.
Não consigo imaginar não fazer isso. Não seria muito, apenas segurar ou
puxar uma corda. E não exigiría nenhuma habilidade. Então eu faria parte da
história, e não seria um mero espectador atrapalhando.

* * *

O que estou tentando mostrar é que, embora os imperativos sejam absoluta-


mente essenciais para prender nossa atenção, e nos levar a fazer ou não alguma
coisa, eles não cumprem seu propósito enquanto não nos inserem na história.
Em geral, a eficácia do imperativo não aumenta pela repetição ou pela am-
pliação. Ele consegue o trabalho que precisa desempenhar quando nos envolve
na história. E no caso do imperativo “Arrependam-se”, passamos a fazer parte
da história do reino de Jesus, com todas as suas complexidades, mistérios e
possibilidades de amor e obediência.
Aprendemos muito com o modo em que Jesus age. Ao seguir por Samaria,
ele não repete simplesmente seu sermão inaugural “Arrependam-se” vez após
vez, e cada vez mais alto, à medida que se aproxima de Jerusalém. Mais do
que tudo, ele nos conta histórias que nos convidam a ser participantes do
O HOMEM INVISÍVEL 133

mundo da ressurreição. Para as pessoas, como tantos samaritanos da época e


tantos americanos hoje, que nem sequer sabem que existe uma história, Jesus,
pacientemente e sem erguer a voz, conta história, após história, após história.
Histórias que nos põem dentro da História.
capítulo 10
A viúva
Lucas 18:18‫־‬

É de grande interesse para mim que, em contraposição às preocupações


de meus contemporâneos, na história bíblica haja tão pouco interesse, se
é que há, na oração com o coisa em si. E certam ente esse interesse não se
acha na história de Jesus. Nenhuma instrução sistemática sobre com o orar,
nenhuma palestra sobre oração, nenhuma especulação sobre a dinâmica
da oração (com o funciona), sem classificações que categorizam os tipos de
oração e suas ocasiões.
Temos homens e mulheres orando por toda parte. Os salmos são nossa
documentação mais abrangente. E Jesus, ocupando a posição central, é nosso
exemplo mais representativo de oração (a segunda parte deste livro retomará
essa afirmação). Mas há muito pouco sobre a oração como tal, como assunto
que possamos isolar, estudar e exercitar. O que tem os simplesmente são pes-
soas em oração, pessoas que oram.
A medida que seguimos nos passos de nossos antepassados que oravam,
não os vemos fazendo uma pausa no caminho para dar um seminário sobre
oração, ou conduzindo experimentos controlados para demonstrar a eficácia
da oração. Eles estão preparando o caminho do Senhor, seguindo “o caminho de
Jesus”. Eles não tiram um tem po de folga para orar. A oração é o que estão
fazendo enquanto estão se preparando, enquanto estão seguindo.
O que significa dizer que não há exposições não históricas da oração — toda
oração está incrustada em pessoas, em lugares e em ocasiões. Não é o tipo de
coisa que pode ser tratado como uma abstração. Aproximar-se da oração sem
0 Deus revelado a quem oramos e sem as condições reais e vividas da pessoa
que ora é algo que simplesmente não encontramos na revelação bíblica.
136 A LINGUAGEM DE DEUS

Duas das histórias de Jesus característicam ente lucanas e relacionadas a


Samaria dizem respeito à oração. A primeira, a história do amigo (Lc 11:1-13),
situa a oração no cenário simples da vida comum: o homem pede pão ao amigo
para um amigo seu que acabou de chegar na hora inoportuna da meia-noite.
Não há nada aqui que chamaríamos de "espiritual”, mas é inegavelmente
pessoal. Estamos lidando aqui com uma conversa entre amigos que presu-
m ivelmente se conhecem pelo nome. São, afinal de contas, vizinhos. Tudo
na história e em seu comentário está enraizado no pessoal: o termo “amigo”
é usado quatro vezes, "filho/filhos”, quatro vezes, e “Pai”, uma vez — todos
termos pessoais, relacionais. A oração é uma linguagem usada relacionalmente
para com a Trindade. A persistência (anaidia ) é uma perseverança ousada,
sem desculpas, pedindo aquilo de que necessitamos. Afinal de contas, o Pai é
nosso amigo, e não um “desconhecido”.
A segunda história é completamente diferente. Aqui não há nenhuma ênfase
no pessoal. A história é sobre uma viúva que faz uma petição a um juiz. Não
dois vizinhos que se relacionam tranquilamente, amigavelmente, um com 0
outro, mas uma relação impessoal em uma corte de justiça em que as relações
são determinadas por uma questão de justiça. Uma viúva sem nome e um juiz
sem rosto.
Mas um fio comum liga as duas histórias. A primeira menciona a “persistência”
do amigo que pede o pão, e a segunda prefacia a história anunciando sua finalidade:
realçar nossa “necessidade de orar sempre e não desanimar”. “Não desanimar”
(mê engkakein) serve de paralelo à “persistência” anterior. A medida que che-
gamos perto do fim dessa viagem metafórica por Samaria, talvez esse aspecto
da oração precise ser grafado em letras garrafais. A oração não é uma opção; é
fundamentalmente necessária. A oração não é um interlúdio falsamente piedoso;
ela necessariamente permeia a vida em todos os momentos e lugares.

* * *

Jesus contou-lhes uma história mostrando que era necessário que orassem cons-
tantemente e sem cessar. Ele disse: “Havia certa vez um juiz em uma cidade que
jamais pensara sobre Deus e não se importava em nada com as pessoas. Uma viúva
naquela cidade vivia atrás dele: ‘Meus direitos estão sendo violados. Proteja-me!’.
A VIUVA 137

"Ele nunca lhe deu conversa. Mas, depois que isso se repetiu inúmeras
vezes, ele disse para si mesmo: 'Não dou a mínima para o que Deus pensa,
muito menos para o que as pessoas pensam. Mas, como essa viúva não para
de me importunar, é melhor eu fazer alguma coisa e garantir que ela receba
justiça — caso contrário, vou acabar destruído pelas suas pancadas’.”
Então o Mestre disse:

“Vocês ouvem o que esse juiz, por mais corrupto que seja, está dizendo?
Então, o que os faz pensar que Deus não vai entrar em cena e não vai garantir
a justiça para seus escolhidos, que continuam a clamar por socorro? Será que
ele não vai defendê-los? Eu lhes asseguro que sim. Ele não arrastará os pés.
Mas quanto desse tipo de fé persistente o Filho do Homem achará na terra
quando retornar?”.
Lucas 18:1-8

***

As viúvas no mundo antigo eram mulheres sem recursos próprios. Quando em


necessidade, tinham de depender da hospitalidade da vila. Essa viúva precisava
de justiça. Alguém havia feito algo errado para ela ou a havia defraudado. Ela não
tinha ninguém que fosse rico, poderoso ou influente o bastante para defendê-la.
Ela tinha, como dizemos, "nada mais que uma oração”. Ela dirigiu-se ao juiz
da vila e pediu ajuda. Havia leis, afinal de contas, que protegiam alguém como
ela, e era responsabilidade dele fazer que essas leis fossem seguidas. O juiz a
desconsiderou da mesma maneira que desconsiderava a Deus. O juiz a tratava
com desdém, assim como a todos na vila ele tratava com desdém. Que juiz!
Mas a viúva recusou-se a parar. Continuou no seu encalço. Batia em sua
porta no meio da noite. Abordava-o nas ruas. Ela o importunava sem trégua.
Ele sentia como se tivesse feridas por todo o rosto e dois olhos roxos (o sentido
literal do verbo hupopiadzõ) por causa das pancadas dela. Por fim, ele cedeu.
Deu-lhe a justiça que ela tanto pedia.
E uma história sobre oração: “deviam orar sempre e nunca desanimar”
(Lc 18:1); é necessário "orar constantemente e sem cessar”.
138 A LINGUAGEM DE DEUS

A maioria das pessoas, talvez todas, uma vez ou outra, oram. E muitas — quem
sabe quantas? — desistem. E por que não deveriam? Se não conseguem o que
pedem, se não recebem o que concebem como “resposta”, por que insistir? O
mais notável na oração não é o fato de que tantos oram, mas que alguns de nós
persistam em oração. Por que insistimos? Por que continuamos a orar quando
temos tão poucas provas de sua eficácia? Todos os que fizeram da oração uma
prática conhecem o sentimento, desalentador às vezes, de que a oração é um
balde furado. Você vai até o rio pegar um balde de água e, quando chega em
casa, a água já se foi, o balde vazio, e tudo o que resta para mostrar o seu
esforço é um rastro de umidade que logo o sol vai secar e fazer desaparecer.
Não admira nem um pouco que Jesus tenha encerrado sua história com 0
aforismo: “Mas quanto desse tipo de fé persistente o Filho do Homem achará
na terra quando retornar?”. O que significa dizer: “Ele encontrará homens e
mulheres que ainda estarão orando, que não terão desistido, que não terão
desanimado?”. Essa “fé ” não é uma abstração generalizada, mas uma forma de
vida que é expressa em oração persistente. A palavra “fé ” no grego é acompa-
nhada de artigo definido, a fé, a vida de fé que abraça e ora todas as práticas
da fé e se mantém com Jesus enquanto ele convida seguidores para entrar no
reino e lhes dá as boas-vindas.
A realidade é que aqueles que se mantêm nessa vida de fé de seguir a Jesus,
orando o que vivem e vivendo o que oram, aprenderam a lidar com aquilo
que nossos sentimentos não instruídos interpretariam como uma ausência de
resposta da parte de Deus, o silêncio de Deus.
Aprendemos por experiência que o silêncio de Deus diante de nossas ora-
ções não se deve a alguma impotência de nossa parte, alguma falha técnica na
maneira em que oramos que pode ser consertada desde que consigamos pôr
as mãos no manual certo de oração. O silêncio de Deus é uma experiência
repetida e com um entre os que oram. Se houver qualquer coisa com o um
livro oficial de oração, esse livro é Salmos. Essas são as orações que nos dão
acesso ao mundo com plexo e intricado da linguagem que nossos antepassados
que oravam usavam para responder à palavra de Deus para eles. E acabamos
por perceber que o silêncio de Deus faz parte disso. As pessoas que oram são
profundamente experimentadas no silêncio de Deus.
A VIÚVA 139

Senhor, por que estás tão longe?


Por que te escondes em tempos de angústia?
Salmos 10:1

Até quando, Senhor?


Para sempre te esquecerás de mim?
Até quando esconderás de mim o teu rosto?
Até quando terei inquietações
e tristeza no coração dia após dia?
Até quando o meu inimigo triunfará sobre mim?
Salmos 13:1-2

Meu Deus! Meu Deus!


Por que me abandonaste?
Por que estás tão longe de salvar-me,
Tão longe dos meus gritos de angústia?
Meu Deus!
Eu clamo de dia, mas não respondes;
De noite, e não recebo alívio!
Salmos 22:1-2

Desperta, Senhor! Por que dormes?


Levanta-te! Não nos rejeites para sempre.
Por que escondes o teu rosto
e esqueces o nosso sofrimento e a nossa aflição?
Salmos 44:23-24

Até quando o adversário irá zombar, ó Deus?


Será que o inimigo blasfemará o teu nome para sempre?
Salmos 74:10
Irá 0 Senhor rejeitar-nos para sempre?
Jamais tornará a mostrar-nos o seu favor?
Desapareceu para sempre 0 seu amor?
Acabou-se a sua promessa?
Esqueceu-se Deus de ser misericordioso?
Em sua ira refreou sua compaixão?
Salmos 77:7-9
140 A LINGUAGEM DE DEUS

Até quando, SENHOR?


Ficarás irado para sempre?
Salmos 79:5

Volta-te, S e n h o r ! Até quando serás assim?


Salmos 90:13

“Por que, por que, por quê?” “Q uanto tem po, quanto tem po, quanto
tempo?”
As pessoas que oram sabem como é não ouvir nada em resposta. As pessoas
que oram não conseguem o que pedem quando pedem. As pessoas que oram
se perguntam muito “Quanto tempo?” e "Por quê?”.
O importante, todavia, é que esses salmistas, nossos mestres da oração de
quem somos aprendizes na oração, continuavam orando apesar do silêncio.
Sabemos que continuavam orando porque tem os as orações deles compila-
das em Salmos para nos fazer mergulhar no mundo da oração. Geração após
geração de judeus e cristãos continua a orar e a cantar esses mesmos salmos,
orando e cantando as perguntas “Por quê?” e “Quanto tempo?", orando e
cantando em meio aos silêncios.
Como aquela viúva que não desanimou. Por que desanimamos?

***

Continuamos porque sabemos quem é D eus com o ele é. Deus revelou-se


em palavras e gestos com o o D eus que cria, o Deus que salva e o D eus que
elege um povo para dar testem unho em palavras e gestos da criação e da
salvação. Deus criou um cosm o e viu que “ficou bom ”. Deus salvou homens
e mulheres perdidos em relação aos caminhos dele e separados de seu amor.
Deus elegeu um povo com o “reino de sacerdotes” (Ex 19:6) para ser “luz
para as nações” (Is 51:4), testemunhas a mostrar e relatar os caminhos de
Deus a toda a terra, dando as boas-vindas a todos os que encontramos para
que se unam ao grupo.
Um Deus bom, um Deus resgatador, um Deus acolhedor. A revelação é
feita em história, após história, após história por mais de dois mil anos. Deus
A VIÚVA ‫ ו‬4‫ו‬

fala conosco, ele envolve-se em nossa vida, ele envolve-nos em sua vida. Isso
tudo ocorre em pessoas citadas pelo nome e em lugares citados pelo nome. E
todo pessoal e local. Nunca chegamos a conhecer toda a história — uma razão
é que é demasiado grande e complexa. Uma vez que é Deus quem revela, há
necessariamente muitos mistérios que nunca compreenderemos. (U m deus
que você pode compreender não é Deus.) Mas são mistérios bons, iluminados,
não mistérios agourentos, manchados pelo mal. Palavras como “amor leal”,
“fidelidade”, “bênção”, “perdão” e “graça” são prodigamente empregadas du-
rante todas as histórias, orações, meditações e reflexões que revelam Deus. As
perguntas não respondidas que fazemos (as perguntas “Por quê?” e "Quanto
tempo?”), junto com qualquer possível silêncio, uma vez vistas de forma in-
tegrada na história que a tudo abrange do Deus bom, salvador, acolhedor, em
vez de diminuir nossa confiança básica, na verdade a expande para além das
margens do que somos capazes de absorver.
O esquete do juiz perverso na história de Jesus é tudo que sabemos que
Deus não é. Como fomos imersos em todos esses séculos de história e canção,
de oração e reflexão, reconhecemos imediatamente que esse juiz é uma paródia
perversa e grotesca do Deus que nos é revelado. O esquete do juiz perverso
nos dá um choque com a nova percepção de tudo o que sabemos que Deus
não é e quem sabemos que Deus é. Até agora, tendo estado em companhia
de Jesus, conhecemos o caráter e a obra do Deus que está conosco, o Deus
com quem nos relacionamos.
E por isso que nos mantemos em oração e não desanimamos. Agimos assim
porque sabemos que Deus é tudo o que o juiz perverso não é. Sabemos que
nem silêncio nem ausência são evidência de desdém ou indiferença.

*#*

E eis outra razão por que nos mantemos orando e não desanimamos. Sabemos
que esse negócio do reino é urgente — nós o ouvimos dos lábios de Jesus. O
reino não é um assunto que de vez em quando entra de novo na pauta do de-
bate. O reino é o que está acontecendo o tem po todo, quer estejamos cientes
dele, quer não. Mas é intenção de Jesus tornar-nos cientes dele. O reino requer
142 A LINGUAGEM DE DEUS

uma total renovação de nossa imaginação, de modo que consigamos enxergar


o que nossos olhos não veem , de modo que sejamos capazes de participar
naquilo que não será relatado no jornal de amanhã.
Enquanto Lucas nos conduz na companhia de Jesus ao longo dessa viagem
metafórica por Samaria, imediatamente anterior à narração da história da
viúva, ele prepara nossa imaginação para compreender o contexto da história.
E o faz introduzindo (em Lc 17:20-37) uma reorientação radical na natureza
do tem po e do espaço, tem po e espaço do reino, de modo que, quando escu-
tamos Jesus contando a história da viúva, reconhecemos que a persistência na
oração é algo muito diferente do que apenas se manter com fibra a despeito de
qualquer coisa. A oração persistente é o único tipo de oração que é congruente
com o que podemos denominar uma compreensão do “reino" da maneira que
Deus trabalha no tem po e no lugar.
Os fariseus dão o salto inicial no ensino perguntando quando virá o reino
de Deus. "Reino de D eus” é o termo que Jesus usava frequentemente como
metáfora da obra abrangente do governo de Deus, do domínio de Deus que
Jesus está não só proclamando, mas fazendo vigorar.1 Os fariseus querem
saber “Quando?”.
Há algum resquício de sarcasmo cético na pergunta? Como se estivessem
dizendo: “Você só fala desse reino de Deus. Estamos começando a ficar um
pouco cansados dessa conversa. Mostre-nos. Quando vamos presenciá-lo? Será
que algum dia vamos vê-lo?”.
A resposta de Jesus é "Agora mesmo. Não é algo que vocês possam ver
da mesma maneira que enxergam um elefante na rua. Está bem aqui. Vocês
estão nele. O reino de Deus está sendo formado bem aqui. Não é uma das
maravilhas do mundo com o as pirâmides que vocês podem visitar indo ao
Egito de camelo. Parem de olhar ao redor e se perguntar ‘Quando?’. Prestem
atenção a quem vocês são e a quem eu sou. Para com eço de conversa, tentem
talvez orar".
Jesus então desenvolve a resposta que deu aos fariseus, ensinando mais
sobre o assunto a seus discípulos. Ele repete o que disse aos fariseus insistindo
em mostrar que o reino de Deus não é um evento da mesma forma que um
jogo do futebol, ao qual você assiste comprando um ingresso e assistindo à
A VIÚVA 143

ação das arquibancadas. Ele emprega linguagem apocalíptica para sacudi-los de


suas maneiras rotineiras de pensar. A linguagem apocalíptica é linguagem da
imaginação. A linguagem apocalíptica é linguagem radical, que prende nossa
atenção. Tipicamente, lida com o catastrófico, com terremotos e eclipses, com
morte e inferno, com dragões e diabos — coisas próprias do fim do mundo.
Também com os anjos, arcanjos e os esplendores celestes. E particularmente
útil para despertar pessoas sonâmbulas em meio a este mundo de maravilhas.
E uma linguagem que nos permite ver o que não pode ser captado com uma
câmera, ouvir o que não pode ser eletronicamente gravado.
A linguagem apocalíptica pode ser compreendida com o uma referência
preditiva a acontecimentos por vir do Juízo Final: condenação, segunda vinda,
hecatombe nuclear, o que quer que seja. Mas a mesmíssima linguagem pode
também ser compreendida metaforicamente como forma de transmitir um sen-
so de urgência. Conhecendo a predileção de Jesus pela metáfora e conhecendo
0 contexto histórico em que ele está trabalhando, é muito mais provável ser
essa a maneira em que Jesus usou as imagens apocalípticas. Ele está treinando
nossa imaginação para que possamos participar adequadamente do grande drama
da salvação que está acontecendo neste exato momento — não acontecimentos
do mundo por vir, mas a presença do reino neste exato momento.
Como ele transmite o senso de urgência absoluta, aquela urgência das crises,
e ainda preserva a obediência fiel de seus seguidores no trabalho e na adoração,
com seus familiares e com os amigos? Como ele faz isso sem que eles se dis-
traiam e agora comecem a especular sobre o futuro ou fiquem paralisados pela
histeria de tão amedrontados que ficaram? O que ele faz é usar a linguagem
apocalíptica, mas metaforicamente. Ele usa imagens de crise de histórias bem
conhecidas como a de Noé e o dilúvio, a de Ló e Sodoma. Isso, essa urgência,
essa circunstanciada reordenação da maneira em que Deus está presente entre
nós salvar, é o que está ocorrendo neste exato momento. Não outro dilúvio, não
outra hecatombe de fogo e enxofre, mas uma forma radical e nova de retratar o
que significa seguir a Jesus e participar com Jesus no estabelecimento do reino.
A linguagem apocalíptica é uma estratégia de linguagem para desvendar a per-
cepção das tremendas energias do bem e do mal que conflitam uma com a outra
debaixo da pele aparentemente benigna do rotineiro e comum. A linguagem
144 A LINGUAGEM DE DEUS

da visão apocalíptica chama a imaginação de oração para participar de forma


vigorosa naquilo que Deus está fazendo neste exato momento.
***

Houve muitos movimentos revolucionários na Palestina dos dias de Jesus.


Líder após líder apareceu com uma estratégia para se livrar da opressão ro-
mana. A linguagem apocalíptica estava no ar, a maioria da qual compreendida
literalmente, e quase toda ela pressupunha violência. Os essênios sediados em
Qumran também usavam a linguagem apocalíptica literalmente — um fim
violento ao atual regime do templo — , mas a violência devia ser empregada
sobrenaturalmente.
Jesus estava anunciando libertação da opressão perversa de Roma e da
corrupção do tem plo. E também estava trabalhando com o repositório co-
mum de palavras e imagens apocalípticas — , mas estava usando essa língua
subversivamente, metaforicamente. Esse reino estava sendo poderosamen-
te formado, mas não por meio da violência sangrenta; antes, por m eio do
sacrifício, do sofrimento; da rejeição — e oração perseverante, persistente.
E uma vida de fé, uma vida de oração que participa aqui e agora em como
D eus endireita o mundo, não à espera de um sinal, não procurando um
evento. Com o essa viúva.
Essa é outra razão por que oramos sempre e não desanimamos. Agimos
assim porque Deus está trabalhando de uma maneira abrangente, em conso-
nância com seu reino, e queremos estar engajados nessa obra.

***

Uma observação final sobre a história de Jesus acerca da viúva. É possível ler a
história como uma ordem para ficar firme independentemente das circunstân-
cias. E alguns de fato a leem dessa maneira: orar porfiadamente por uma cura
específica, para permanecer em um casamento abusivo, orar pelo emprego dos
sonhos. Mas há mais cores na paleta da persistência na oração do que preto
e branco. E importante manter em mente o conselho de Evágrio, o Solitário,
um de nossos primeiros e mais persistentes mestres da oração:
A VIUVA 145

Muitas vezes em minhas orações orei pedindo o que achava que fosse bom, e
persistia em minha petição, estupidamente importunando a vontade de Deus,
e não deixando que ele ordenasse as coisas como sabe ser melhor. Mas, quando
obtinha o que pedia, ficava muito pesaroso de não ter pedido que a vontade
de Deus fosse feita; porque no final as coisas se mostravam diferentes do que
eu tinha imaginado. [...] Não se aflija se não receber imediatamente de Deus o
que pede. Ele deseja dar-lhe algo melhor — fazê-lo perseverar em sua oração.
Pois o que é melhor do que desfrutar do amor de Deus e estar em comunhão
com ele?2

Evágrio distingue entre persistir em "minha petição” e perseverar em


"nossa oração”. “Persistir” e "perseverar” podem ser sinônimos. Mas Evágrio
observa com discernimento que ele tinha usado as mesmas palavras ou palavras
similares com o uma licença de oração para ser radicalmente desobediente.
A história de Jesus a respeito da viúva, uma história sobre "orar sem ces-
sar”, faz a perseverança ser imersa nos caminhos de Deus, que são revelados
em Israel e em Jesus, e nos engaja nas atuais urgências apocalípticas que se
desenvolvem à medida que seguimos a Jesus por meio dos equívocos e das
confusões de Samaria a caminho de Jerusalém. Isolados desses caminhos e
dessas urgências, a oração persistente logo torna-se uma cobertura para nada
mais do que uma voluntariosidade obstinada.
capítulo 11
Os pecadores
Lucas 18:9-14

Se pararmos para pensar por dois minutos, é óbvio que há muito mais no
interior de uma pessoa do que no exterior. A superfície visível de um corpo,
a pele, é minúscula se comparada ao que está no interior e jamais é visto: co-
ração, intestinos, veias e artérias, fígado, pulmões, cérebro, nervos, sangue e
ossos, vesícula biliar e rins, germes e parasitas. Um homem de noventa quilos
sem a pele pesaria pelo menos 89,5 quilos, com a pele sobre a balança não
pesando mais que meio quilo!
E isso naturalmente é só o físico. Há muito mais que não pode ser pesado:
pensamentos e conhecimento, sentimentos e humores, sonhos e visões, pala-
vras e números, orações e canções, fé, amor e esperança, hábitos e lembranças.
A maioria, aliás, de quem e do que somos não pode ser descoberta por meio
de dissecação e exame de nossas vísceras.
E preciso um contador de histórias1 para dar-nos acesso a tudo o que está
acontecendo — no redemoinho dos sons e do silêncio, do visível e do invisí-
vel, mesmo na mais deselegante das mulheres, o mais maçante dos homens.
O mesmo se dá no mundo não pessoal, a maioria do qual está oculto para
nós. Os cientistas têm por ocupação descobrir o que está abaixo e acima:
vastas galáxias no sistema solar, o solo, as rochas e a magma sob a superfície
da terra, as criaturas e as plantas dos oceanos, assim com o o abismo chama
outro abismo. Em vez de usarem a imaginação da interioridade do contador de
histórias, usam dispositivos altamente sofisticados, microscópios e telescópios,
radares e sonares, para dar sentido à história intricada do que está acontecen-
do ao nosso redor, sob e acima de nós — e têm ocorrido há bilhões de anos.
Os contadores de histórias ativam nossa imaginação para vermos e ouvir-
mos o que está sob a superfície da vida e nos envolvem nas muitas dimensões
do que está acontecendo por trás de nós ou virando a esquina. E preciso um
contador de histórias para revelar a beleza que deslumbra como “Em ouro ou
ouropel faísca o seu fulgor" (Gerard Manley Hopkins).2
148 A LINGUAGEM DE DEUS

Toda vez que Jesus conta uma história, o mundo daqueles que escutam se
amplia, a compreensão se aprofunda, a imaginação se energiza. Sem histórias
acabamos com estereótipos — uma terra chata com figuras chatas de cartolina
sem textura nem profundidade, sem interior.

* * *

Os contadores de histórias convidam à participação. Os contadores de histórias


nos fazem perceber como as coisas são, não perceber apenas com o espectado-
res, mas perceber para que nos possamos engajar neste mundo de maravilhas,
pôr os pés para andar por seu solo, colhendo uma maçã/Apple McIntosh de
uma árvore e deliciando-nos com seu sabor adstringente, mergulhando em
um lago na montanha e voltando revigorado pelo batismo, segurando a mão
de uma criança e sentindo a confiança pulsar através daqueles dedos.
Jesus não conta histórias para ilustrar grandes "verdades” sobre Deus e sobre
a salvação, sobre o Diabo e a condenação eterna. Há, naturalmente, verdades
para conhecer e compreender: a verdade sobre Deus, a verdade sobre o certo e
o errado, a verdade sobre o passado. Mas Jesus não parece se importar muito de
nos contar uma verdade abstrata. A intenção dele é nos envolver, os pés na lama
e as mãos na massa de pão, com o Deus vivo que está operando neste mundo.
E por isso que Jesus conta histórias, não para informar, explicar ou definir, mas
para nos fazer participar ativamente dos caminhos e da vontade de Deus nos
lares, nas vizinhanças e nos locais de trabalho onde passamos o tempo.
Nada dispensa Jesus de forma mais grosseira do que tratá-lo com o um
professor de escola dominical que aparece aos domingos para nos ensinar
sobre Deus e com o ficar livres de problemas. Se esse for o papel que atri-
buímos a Jesus, entenderemos muito mal quem ele é e a que veio. Ele está
nos chamando para segui-lo e unir-nos a ele na obra da vida eternal que brota
da salvação e que está sendo formada neste exato momento na estrada para
Jerusalém passando por Samaria.
Aqui está outra de suas histórias, a história dos pecadores.
OS PECADORES 149

Ele contou sua historia seguinte para alguns que estavam satisfeitos consigo
mesmos por causa de seu desempenho moral e olhavam com desdém e de
nariz empinado para as pessoas comuns: “Dois homens foram ao templo orar,
um deles, um fariseu, o outro, um coletor de impostos. O fariseu, cheio de
pose, orava assim: Ό Deus, eu te agradeço que eu não seja como as outras
pessoas — salteadores, trapaceiros, adúlteros, ou, valha-me Deus, como esse
publicano’. Jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de toda a minha renda.
“Nesse ínterim, o coletor de impostos, imerso nas sombras, com o rosto
enterrado nas mãos, sem ousar olhar para cima, disse: ‘Deus, concede a tua
misericórdia. Perdoa-me a mim, um pecador’.”
Jesus comentou: “Esse coletor de impostos, e não o outro, foi para casa
com as contas ajustadas com Deus. Se você andar com seu nariz empinado, vai
acabar com a cara estatelada no chão, mas, se estiver satisfeito de simplesmente
ser você mesmo, você se tornará mais do que é”.
Lucas 18:9-14

***

Jesus situa essa história no lugar da oração. Oração, essa arriscada aventura
universal na intimidade com Deus, tão básica e fácil de começar, mas tão di-
fícil de suster. Oração, esse desejo tantas vezes sufocado ou desviado de levar
uma vida que seja mais que mera aparência. Oração, descontentes de viver
meramente uma vida exterior de descrição de tarefas, de cor de cabelo e tez.
Oração, uma recusa de viver com o um estranho para o meu Deus e para a
minha própria alma. Oração, esse “melhor” que tão facilmente se corrompe
num “pior”, tendo sua rica maturidade interior deteriorada num sambaqui de
clichês falsamente piedosos.
Duas personagens em contraposição, um fariseu e um coletor de impostos,
fornecem a ação da história. Mas o que prende minha atenção no princípio
é o que eles têm em comum: os dois vão à mesma igreja (o templo), os dois
oram quando chegam lá e os dois são pecadores.

* * *

Eu sou pastor. Cinquenta anos atrás recebí uma posição de responsabilidade


em um lugar de oração. A congregação local é a minha esfera primordial de
150 A LINGUAGEM DE DEUS

atuação, um lugar não diferente do tem plo em que Jesus situa sua história.
Talvez seja por isso que minha imaginação pastoral fica retornando a esses dois
homens que estão orando na igreja. E a única história contada por Jesus que
se situa em um lugar de adoração. Todas as suas outras histórias ocorrem em
cenários não religiosos, fazendas, jantares e casamentos, e empregam mais que
tudo um vocabulário não religioso do mundo dos negócios, de não pastores,
o próprio mundo em que os homens e as mulheres para os quais sou pastor
passam a maior parte de seu tempo.
Por isso, interesso-me de forma especial por esses dois homens, os dois
na igreja, os dois orando e os dois pecadores. Sempre volto para eles e reflito
sobre suas semelhanças e diferenças. Elaboro o que sei em um tipo de midrash
pastoral, um engajamento divertido com o texto que presta mais atenção ao
que está nas entrelinhas do que ao que está explicitado nas próprias linhas.
É uma maneira de ler o texto em que tanto se deleitavam os rabinos judeus
da Idade Média.
Já fui pastor de fariseus e de publícanos e ainda me recordo de muitos de
seus nomes. N em sempre é fácil distinguidos uns dos outros. Os fariseus na
maioria dos casos têm uma opinião muito boa sobre si mesmos. São responsá-
veis no trabalho, cuidam de suas família, guardam a maioria dos mandamentos
a maior parte do tem po, conhecem de perto a cultura da vida eclesiástica,
entregam sua oferta semana após semana no culto e geralmente aceitam po-
sições de liderança quando solicitados. Os coletores de impostos não são tão
diferentes na aparência, mas não têm uma opinião muito boa de si mesmos.
Muitos carregam enormes fardos de culpa do passado. Outros são atormen-
tados por pecados secretos, por vícios, por relacionamentos envenenados e
pela desesperança.
Conseguem manter boa parte disso escondida das pessoas, muitas vezes
de sua própria família. Geralmente frequentam a igreja aos trancos e barran-
cos. Alguns deles se saem muito bem no emprego, mas podem carregar uma
confusão de cicatrizes causadas por pais ou parentes, pastores ou sacerdotes
sexualmente, ou espiritualmente, ou emocionalmente abusivos (ou às vezes
as três coisas juntas), e têm muita dificuldade em se sentir à vontade e aceitos
em uma congregação.
OS PECADORES 151

É meu papel incentivá-los, escutá-los, conversar com eles, orar por eles,
pregar para eles e ensinar-lhes, conduzindo tanto fariseus quanto publícanos
a seguirem a Jesus. Ambos aparecem no lugar de oração onde sou pastor.
Ambos são pecadores. Sou pastor para os dois da mesma maneira. E não acho
que seja nada fácil.

***

Não surpreende que esses dois tipos de homens, ambos pecadores, estejam na
mesma igreja. As igrejas carregam a má fama de serem negligentes em solicitar
verificações para identificar pessoas com antecedentes criminais e em instalar
sistemas de segurança para filtrar pessoas que podem usar a igreja como um
disfarce para suas maldades. A consequência é que as igrejas acabam reunin-
do muitas pessoas indesejáveis, homens e mulheres que acabam sendo uma
vergonha para o grupo de pessoas que estão sinceramente tentando adorar a
um Deus santo, servir ao mundo em atos de amor e justiça, arrependimento
e perdão, e seguir a Jesus diariamente em seus lares e trabalho em obediência
sacrificial. Se a igreja tivesse feito essas verificações de segurança em fariseus
e publícanos, nenhum deles terio passado da porta.
O coletor de impostos era bem conhecido naquela sociedade com o um
trapaceiro inescrupuloso. Coletar impostos para o governo romano talvez
fosse o emprego mais explorador e mais lucrativo à disposição de um judeu no
século I, algo como trabalhar como testa de ferro para a Máfia. E o fariseu? Os
fariseus naquela sociedade eram em geral bem respeitados. Levavam a Deus
e sua lei a sério. Estavam claramente do lado de Deus e formavam a espinha
dorsal do ponto de vista moral e espiritual da sociedade. Mas esse fariseu em
particular era um falso fariseu. Ele tomava parte em práticas farisaicas que
desviavam toda a aparência do mal, mas essas práticas eram todas externas a
sua essência. Era comum ouvir dizer que os fariseus, essas pessoas reconhecidas
pelo povo como estando do lado de Deus e do que é certo, às vezes podiam
ser um pouco mais ostentosos do que o necessário e podiam apreciar de uma
maneira um pouco óbvia demais os ornamentos de uma reputação reta, mas a
maioria das pessoas parecia vê-los como superiores ou pelo menos os tolerava.
152 A LINGUAGEM DE DEUS

Os fariseus, rigorosamente falando, não fazem nada que seja inegavelmente


mal, afinal de contas, e fazem muitas coisas boas ao protegerem os padrões
morais da comunidade. Mas também não são de modo especial propagandas
persuasivas de uma vida de onde emanam leite e mel.
Os coletores de impostos estão à vontade num mundo selvagem de dinhei-
ro e competição. E um mundo em que rápido se aprende que não tem com
quem contar, e vale tudo se você conseguir se safar. Outros aprendem a se
acautelar dos coletores de impostos. Não se pode confiar neles. Geralmente
estão envolvidos com coisa que não cheira bem. Vivem em riscos constantes
e sempre têm os olhos atentos para qualquer oportunidade de vantagem.
Constantemente usam de todos os meios para conseguir uma posição entre
os ocupantes romanos, que só estão interessados em usá-los para seus propó-
sitos, e seus companheiros judeus. Como em geral os coletores de impostos
intimidam com ameaças e trapaceiam a seu bel-prazer, seus concidadãos os
odeiam. Mas nem todos são assim. Alguns coletores de impostos são pessoas
surpreendentemente decentes, permitindo que a economia inquieta entre
romanos e judeus se ajuste da melhor maneira possível. Ainda assim, precisam
suportar a vigilância, sobretudo dos fariseus, muitos dos quais cães de guarda
autodesignados sobre o comportamento moral de seus conterrâneos judeus.
N o dia da história, os dois homens foram à igreja orar. E para isso que as
igrejas servem. As pessoas vão à igreja por muitas razões erradas. A razão certa
para ir à igreja é orar. Tanto o fariseu quanto o coletor de impostos entraram
em uma igreja e, ao fazê-lo, uniram-se a uma comunidade de homens e mu-
lheres que estão convencidos de que está no próprio âmago do ser humano
cultivar uma relação atenta em que escutamos o Deus que nos escuta e falamos
com o Deus que fala conosco. Embora haja formas visíveis e palavras audíveis
em jogo na oração, a oração é mais do que tudo um ato interior, o ato mais
interior, por sinal, de que os seres humanos podem participar.
Ninguém sabe dizer apenas pela observação se uma pessoa que usa as for-
mas e as palavras da oração está de fato orando. A maioria de nós não precisa
de muito para perceber isso em nosso próprio caso: com o é fácil “orar” sem
realmente orar, como é fácil construir uma reputação de um homem ou de
OS PECADORES 153

uma mulher que tem um bom relacionamento com Deus sem se incomodar
em prestar atenção a Deus, como é fácil usar o ambiente da igreja e as formas
e palavras da oração para evitar o trabalho árduo de lidar com Deus, com o
povo de Deus, com a criação de Deus. Dada a facilidade para o engano, seria
de admirar que o lugar e a prática da oração seriam o melhor lugar para evi-
tarmos a Deus sem que ninguém percebesse? Assim, não surpreende que o
ambiente mais propício para o cultivo da interioridade seja muitas vezes tão
imperfeito para esse cultivo. Quase ninguém vai à igreja orar com a intenção
de não lidar com Deus, pelo menos no com eço. Mas, quando descobrimos
que podemos obter tão sem esforço todos os benefícios sociais de estar as-
sociados a Deus sem ter de tratar de Deus, quase não espanta que a forma
sem conteúdo (nossa palavra costumeira para isso é “hipocrisia“) seja algo tão
predominante nos lugares de oração.
Ninguém que eu jamais tenha encontrado começou a ir à igreja com a inten-
ção de cultivar a hipocrisia, mas, quando percebemos como é fácil escapar sem
sermos detectados, antes de notarmos, lá estamos nós. Tampouco encontrei
alguém que tenha consciência de sua hipocrisia. Como a pressão arterial elevada,
é “um assassino silencioso", mas nesse caso é a vida interior da fé e da oração,
e não o sistema circulatório, que é prejudicada. Frequentar um lugar religioso
e tomar parte em uma prática religiosa podem trazer-nos muitos problemas
dos quais nem temos consciência. Foi certamente o que aconteceu aos fariseus.
Jesus não usa a palavra “hipocrisia“ ao contar essa história. Ele a emprega
em outros m om entos e lugares para desmascarar as encenações religiosas,
sendo a ocorrência mais famosa a de Mateus 23, mas nesta nossa história aqui
ele nos põe na igreja, entre o fariseu e o coletor de impostos, para vermos
como as coisas funcionam.
A hipocrisia é um pecado diferente de todos os outros por não começar
por uma tentação de fazer algo errado: desonrar os pais, roubar dinheiro ou
a propriedade de alguém, matar, ser infiel a um cônjuge, usar a língua para
blasfemar ou enganar. Há nos pecados mais comuns um aspecto de “fruto
proibido” que os torna atraentes, tentações por algo desejável, insinuações
de algo emocionante, de êxtase, transcendendo a monotonia da mortalidade,
tentações para sermos “como deuses”. A hipocrisia é diferente. A hipocrisia
154 A LINGUAGEM DE DEUS

nasce num lugar de oração e com pessoas que oram. Mas geralm ente há
um longo período de incubação pré-hipocrisia. Começa normalmente com
uma atração genuína por Deus, pela justiça e pela oração. Mas, ao longo do
caminho, descobrimos que não podemos fazê-lo apenas vadiando nas horas
em que não estamos na igreja. Gostaríamos de ser conhecidos como pessoas
de oração, com uma reputação de justos, mas, quando descobrimos que isso
implica mais do que ansiar com o uma corça sedenta por água fresca, o desejo
se dissipa em um desvio em relação à intenção inicial. E necessário muita
atenção. E necessário escutar em silêncio. Nada heroico, para você saber, mas
uma ida ao rio não arrogante, porém ousada e uma espera lá numa espécie de
antecipação receptiva, como o “que aconteça comigo conforme a tua palavra”
de Maria (Lc 1:38).
A hipocrisia não é o fruto de uma “má sem ente”. E a recolocação pregui-
çosa de uma maquiagem religiosa e de uma tagarelice fiada supostamente
relacionada com D eus no lugar de uma vida interior com D eus cheia de
energia. Mesmo aí leva muito tem po para esse germe do desejo começar a ser
completamente suprimido. A hipocrisia cresce aos poucos. Em seus primeiros
estágios de desenvolvimento, é difícil de detectar.
E é por isso que ninguém é consciente de que se tornou um hipócrita.
A linha entre aquele impulso original de fazer parte do que D eus está fa-
zendo e a indolência procrastinadora de não atender a D eus nas condições
de Deus é cruzada sem percebermos. Desviar-nos do bem intentado acaba
em hipocrisia.
Todos os pecados mais comuns são razoavelmente óbvios. Aqueles que os
com etem sabem o que estão fazendo, por mais que se enganem quanto às
motivações. Quando você acorda na cama com o cônjuge de outra pessoa,
você sabe que é adúltero. Quando você puxa um gatilho e mata um homem,
você sabe que é um assassino. Quando você rouba um carro e o dirige por um
deserto onde as flores da primavera fazem sentir sua presença, a beleza do
cenário não limpa a sua consciência de ser um ladrão. Mas nunca fui pastor
de hipócrita que soubesse que era hipócrita, pelo menos nos estágios iniciais.
Os dois hom ens da história de Jesus são pecadores. Não há nenhuma
ambiguidade nessa conclusão. O coletor de impostos é um pecador inegável,
OS PECADORES 155

com um emprego desprezível que explora e chega a empobrecer as pessoas.


A condição de pecador do fariseu não é tão visível assim. Ele é membro de
uma classe social que lhe fornece um papel que o isenta de ser considerado no
mesmo bolo do estereótipo social de “pecadores”, sendo os candidatos mais
evidentes os ladrões, os trapaceiros, os adúlteros e os coletores de impostos
(Lc 18:11), dos quais, todos sabem, o fariseu não faz parte. Ele detém uma
posição respeitável na comunidade. Ao mesmo tempo, talvez não escapasse à
observação de pelo menos alguns daquela igreja o fato de que havia uma grande
pompa religiosa no homem, uma ostentação que punha em questionamento
a sinceridade de suas orações. Mas pompa e oração insincera não são pecados
que carregam a mesma desaprovação social que acompanha um ladrão, um
trapaceiro, um adúltero e um coletor de impostos. Nem mesmo são designados
pecados. Mas o fariseu, ainda assim, é pecador.
O coletor de impostos sabe que é pecador. O fariseu não tem a mínima
ideia de que seja.
Será que a história fornecerá ao fariseu a imaginação necessária para cata-
lisar seu arremedo de oração em oração de verdade?

***

O que facilitaria meu trabalho como pastor seria estereotipar o fariseu e o co-
letor de impostos. Isso simplificaria as coisas consideravelmente. Eu não teria
de lidar com nenhum deles como uma pessoa com uma história. A história de
Jesus é muitas vezes desistoriada e achatada num estereótipo, uma ilustração
moral ou uma exposição doutrinária e teológica. O fariseu é estereotipado
como um hipócrita incorrigível e detestável. O coletor de impostos é estereo-
tipado num romântico "tição tirado do fogo". Ao fariseu é designado o papel
de representante da “religião”, ao coletor de impostos, o de representante
da “espiritualidade”.
Aí estão estereótipos, prontos para ser destruídos: o hipócrita religioso
versus o freelancer espiritual; a religião institucional enrijecida com a goma
da hipocrisia versus a espiritualidade espontânea que conserva companhia
com as aves do céu; a religião envolta em clichês e segura nos braços de
156 A LINGUAGEM DE DEUS

Jesus versus uma espiritualidade que corre com os lobos e arrisca viver
nos desertos.
Mas as coisas são mais com plexas que isso. Os estereótipos são de fácil
compreensão. Opor a espiritualidade e a religião uma à outra é algo tenta-
dor, mas obscurece mais que esclarece. A vida é mais com plexa que isso.
Uma congregação é mais com plexa que isso. Uma vida madura de oração é
mais complexa que isso. O fato é que os dois homens estão em um lugar de
religião formal e institucional. Os dois homens estão lá para fazer a mesma
coisa, para orar. Fariseus e coletores de im postos raramente se mostram
com a definição do preto e do branco. Na vida real, ocorrem em todas os
matizes do sépia e cinza.

***

No final de tudo, descubro que gosto dos fariseus. Quando iniciei meu mi-
nistério com o pastor, minha congregação se compunha na maior parte de
fariseus. Não hipócritas, que fique bem claro, mas fariseus. Queriam acesso
a um lugar de adoração onde pudessem esclarecer o aspecto inconfundível
de sua identidade batismal contra as superficialidades confusas da cultura
americana. Queriam fazer parte de uma congregação onde pudessem nutrir
essa identidade. Eu gostava disso. Gostei de estar na companhia de homens
e mulheres que tinham um apetite pela justiça e se sentiam à vontade em
nutrir esse apetite em sensibilidade e profundidade dentro das fórmulas da
religião estabelecida. Mas, sabendo quão facilmente a hipocrisia viceja nesses
ambientes, também me dediquei com afinco ao trabalho de estimular a atenção
e a receptividade, alertando para qualquer sinal de ativismo intimidador que
tão rapidamente destrói a contemplação, a mania evangélica de ficar ocupado
e assim reduzir a oração a uma forma e a uma fórmula.
D e tem pos em tem pos, um coletor de im postos, geralm ente por de-
sespero, aparecia no meu local de trabalho, minha congregação. A tribo
aumentou com os anos. Acabaram se mostrando a mais forte defesa contra a
hipocrisia que se podia imaginar. A sinceridade e o frescor e, sim, a inocência
OS PECADORES 157

das orações de um coletor de im postos eram um antídoto poderoso para


quaisquer hipocrisias incipientes que poderiam estar se desenvolvendo na
congregação. Suas percepções renovadas da graça eram m uito contagiantes
entre os fariseus.

***

Abigail, de quarenta anos de idade, uma hippie de meia-idade, a qual gastara


boa parte da vida lidando com o vício das drogas e do alcoolismo na vida do es-
poso e dos filhos, encontrou seu lugar um domingo no fundo da igreja. Sempre
nos últimos bancos. E então, quando o último hino estava sendo entoado, ela
sutilmente saía, preservando seu anonimato. Depois de cerca de seis meses,
ela ficou até a bênção apostólica. Quando eu a cumprimentei na porta, ela
disse: “Tenho muita sorte. Nunca tinha ouvido essas histórias. Nunca soube
que houvesse um lugar como este na terra. Tenho tanta sorte”. Foi a primeira
vez que ouvi alguém usar a palavra “sorte” para algo que ocorresse na igreja.
Passaram-se mais três meses para ela divulgar seu nome. E então, bem aos
pouquinhos, com eçou a me contar sua história.
Não era a única. A cada mês mais ou menos aparecia outro coletor de
impostos. E depois outro. E depois outro. Não muitos deles realm ente se
integraram na congregação, jamais se “encaixaram” de fato em nossa cultura
de fariseus. Mas já no com eço percebí com o eram importantes para a saúde
da congregação. Não consigo lembrar-me de jamais ter pregado um sermão
sobre a hipocrisia. Eu não precisava. Os coletores de impostos, sentados no
fundo da igreja, perm anecendo tão escondidos quanto possível, acabavam
sendo os poderosos anticorpos contra as hipocrisias de qualquer natureza.
De uma forma ou de outra transmitiam aquilo que Abigail denom inou
sorte. Esses co letores de im postos salgavam a congregação com sorte,
santa sorte. Logo m uitos do restante de nós estavam se sentindo também
cheios de sorte. Fariseus sortudos. Afortunados por ter esses coletores de
impostos com o testem unhas (geralmente não verbais) do frescor da gra-
ça e das sim plicidades da oração. Afortunados por ter desmascaradas as
158 A LINGUAGEM DE DEUS

autossatisfações pré-hipócritas em nós m esm os antes de se endurecerem


no pecado mortal da hipocrisia.

***

Essa é a terceira história da estrada de Samaria em que Jesus nos convida a


uma vida de oração.
A história do amigo (Lc 11:5-13) usou o ato rotineiro de bater na porta
do vizinho à meia-noite para pedir pão para um convidado inesperado como
um ato análogo da oração. A oração não é uma parte mística ou esotérica da
espiritualidade. Ela é comum, da vida comum. A oração não é uma técnica
que você pode aprender com um perito motivacional sobre como fazer amigos
e influenciar pessoas. É tão simples quanto um ato de amizade. A oração não
é algo para ser usado nas emergências e nas crises, como ressuscitações boca
a boca. E tão comum quanto pedir e receber pão em atos de hospitalidade
diária. O que ocorre em nossas orações a Deus não é tão diferente do que
ocorre todo o tem po nas vizinhanças e nas famílias.
A história da viúva (Lc 18:1-8) ajuda-nos a reimaginar o que tantas vezes
designamos “orações não respondidas” como algo bem diferente. Se pensamos
que o silêncio de Deus diante de nossas orações é uma questão de insensível
indiferença, reconsideremos. Deus é o exato oposto do juiz perverso da his-
tória, oposto em cada detalhe. A oração não é implorar a Deus que faça algo
por nós que ele desconheça, ou implorar a Deus que faça algo por nós que ele
reluta em fazer, ou implorar a Deus que faça algo para o que não tem tempo.
Na oração, persistentemente, fielmente, confiantemente nos apresentamos
diante de Deus, submetendo-nos a sua soberania, confiantes de que ele está
agindo, agora mesmo, em nosso interesse. Somos seus "escolhidos”, e jamais
nos esqueçam os disso. D eus está, agora m esm o — a palavra é “depressa"
(v. 8) — operando sua vontade em sua vida e em suas circunstâncias. Assim,
continue orando. Não desista.
E essa história do fariseu e do coletor de impostos é uma vivida exposição
da tolice pretensiosa de qualquer oração, assim chamada, que não seja pessoal
OS PECADORES 159

e comum, da oração que não esteja encravada nos relacionamentos e na língua


imediatos e pessoais da vida diária.
Cum ulativam ente, as três historias asseguram-nos de que a oração, a
linguagem usada em relação a Deus, linguagem usada para cultivar os vas-
tos interiores que com põem a maior parte de nossa vida, é tão natural em
qualquer estrada samaritana quanto em qualquer tem plo ou igreja em que
nos encontramos.
capítulo 12
O minimalista
Lucas 19:11-27

Nossos antepassados hebreus, encontrando-se no exílio babilónico, pergunta-


ram-se: “Como poderiamos cantar as canções do SENHOR numa terra estran-
geira?” (S I 137:4). Dois mil e quinhentos anos mais tarde, a pergunta é ainda
pungente. Como falamos sobre Deus quando estamos imersos na companhia
de pessoas com uma ideia muito diferente do significado da palavra “D eus”?
Como falamos sobre o modo em que Deus age no mundo quando as pessoas
ao redor de nós não compartilham das mesmas histórias e tradições que nós
em torno do modo em que o mundo funciona? Com o falamos sobre Deus
enquanto convivemos diariamente com homens e mulheres que praticam uma
forma de vida que toma por certo um conjunto com pletam ente diferente
do nosso de m étodos para se tornarem inteiras, completas e para cultivar o
verdadeiro eu?
Como “poderiamos cantar as canções do S e n h o r ”, como poderiamos falar
sobre Jesus nos Estados Unidos?
Lucas acomoda a pergunta do salmo 137 em torno da metáfora geográfica
de Samaria. Em Samaria, Jesus é um desconhecido entre desconhecidos.
Como ele fala com esses homens e mulheres que não compartilham da mes-
ma adoração que ele, da mesma tradição? Como nós conseguiriamos fazê-lo?
A narrativa feita por Lucas da viagem metafórica de Jesus por Samaria está
a ponto de terminar. Jesus entrará em Jerusalém, e dentro de uma semana
será morto. Ele partiu da Galileia em direção a Jerusalém. Ali ele concluirá
sua vida de pregação, ensinando sobre a chegada do reino de Deus “na terra
como no céu ” e recrutando seguidores ao longo do percurso. Precisamos
imaginar um grupo bastante misturado: discípulos galileus comprometidos,
fariseus seriamente religiosos, coletores de impostos corruptos e, por agora,
um número considerável de samaritanos acompanhando a trajetória.
162 A LINGUAGEM DE DEUS

Escutamos Jesus contar dez histórias, as dez histórias da estrada samaritana


exclusivas do evangelho de Lucas, histórias que ele usa para levar seus ouvintes
a uma compreensão do reino de Deus. E característica dessas histórias o fato
de exigirem uma participação imaginativa por parte do ouvinte. Com exceção
de uma história (“Os pecadores”), as histórias se passam em ambientes não
religiosos, com a palavra "Deus” ocorrendo somente de forma tangencial. Essas
histórias não são ilustrações de uma verdade ou de uma moral. São oblíquas.
Chegam ao ouvinte de “viés” deslizando por entre as defesas, os equívocos,
os preconceitos hostis. Lucas tem um interesse especial em atrair os de fora
para a companhia de Jesus e, assim, ele toma essas condições de linguagem
de Samaría — falta de familiaridade com o judaísmo normativo, equívocos,
falta de sociabilidade — e as usa para conseguir a atenção e quem sabe a par-
ticipação das pessoas que não cresceram usando a linguagem e participando
das práticas das sinagogas da Galileia e do templo de Jerusalém.
A última história que Jesus conta nessa caminhada por Samaria não é exclu-
siva de Lucas. E a reformulação de uma história registrada anteriormente por
Mateus (Mt 25:14-30). Mas quero incluir essa história por ser uma transição
essencial da viagem metafórica por Samaria para a entrada em Jerusalém e a
última semana de Jesus ali, que seria a consumação de sua vida em solo palestino.

***

N o mom ento em que teve a atenção de todos, e por estarem chegando perto
de Jerusalém por essa hora, com a expectativa cada vez maior de que o reino de
Deus surgiría a qualquer minuto, ele contou esta história:

“Havia certa vez um homem descendente de uma casa real que precisava
fazer uma longa viagem de volta ao quartel para obter autorização para seu
governo e então retornar. Mas primeiramente ele convocou dez empregados,
deu a cada uma soma em dinheiro e os instruiu: O perem com isso até que
eu retorne’.
“Mas os cidadãos lá o odiavam. Assim, enviaram uma comissão com um
abaixo-assinado em oposição a seu governo: ‘Não queremos que esse homem
governe sobre nós’.
O MINIMALISTA ‫ ו‬63

"Quando ele retornou trazendo a autorização de seu governo, ele chamou


aqueles dez servos a quem dera o dinheiro para descobrir o que haviam feito.
"O primeiro disse:
“— Mestre, dobrei seu dinheiro
“Ele disse:
“— Bom servo! Excelente trabalho! Como você foi fidedigno nesse pequeno
trabalho, vou pô-lo no governo de dez cidades.
“O segundo disse:
“— Mestre, consegui um lucro de cinquenta por cento sobre seu dinheiro.
"Ele disse:
"— Eu o estou pondo como responsável por cinco cidades.
"O empregado seguinte disse:
“— Mestre, aqui está seu dinheiro são e salvo. Eu o mantive escondido no
porão. Para dizer a verdade, eu estava um pouco receoso. Sei que você tem
padrões elevados e odeia a sujeira, e não tolera com alegria os tolos.
"Ele disse:
"— Você está certo em afirmar que eu não tolero os tolos com alegria — e
você agiu como um tolo! Por que você pelo menos não investiu o dinheiro em
ações, para que eu tivesse obtido algum lucro nele?
“Então ele disse aos que estavam ali com ele.
“— Tomem o dinheiro dele e entreguem-no ao servo que dobrou a minha
quantia.
“Eles disseram:
“— Mas mestre, ele já tem o dobro...
"Ele disse:
“— E isso o que quero dizer: arrisque a vida e ganhe mais do que jamais
sonhou. Seja conservador nos seus investimentos e acabará na mão.
“Quanto a esses meus inimigos que fizeram o abaixo-assinado contra o meu
governo, tirem-nos daqui. Não quero ver o rosto deles de novo por aqui”
Lucas 19:11-27

* * *

Lucas preparou-nos bem para essa história, que nos introduz ao caráter “final”
da entrada de Jesus em Jerusalém e à consumação definitiva de sua vida na
crucificação, ressurreição e ascensão.
164 A LINGUAGEM DE DEUS

Para início de conversa, todos os três evangelistas registram Jesus dizendo


a seus discípulos, antes de partirem para Jerusalém, que aquele é, aliás, seu
destino, e que ele lá sofrerá, morrerá e ressuscitará. Lucas situa as duas pri-
meiras predições exatamente antes de partir em viagem por Samaria. Situa
a terceira imediatamente antes da chegada a Jerico, a última parada antes de
Jerusalém. O fim está próximo.
Ele também ressalta a importância de Jerico com o ponto de entrada para
"tomar posse da terra prometida”. Tanto Josué (como o nome "Jesus” é escrito
e pronunciado em hebraico), mil anos antes, quanto Jesus, agora, usam Jerico
para fornecer uma demonstração visível da glória de Deus e da iminência da
salvação (a queda dos muros no caso de Josué, devolver a visão a Bartimeu
no caso de Jesus). E cada um deles resgata uma alma "perdida” em Jerico —
Raabe no caso de Josué e Zaqueu no caso de Jesus.
Lucas certifica-se de que captemos a alusão Raabe/Zaqueu ao introduzir
essa última história samaritana com as palavras “No mom ento em que teve a
atenção de todos (ou, em suas palavras de boas-vindas a Zaqueu, "Hoje é dia
de salvação nesta casa!"), e por estarem chegando perto de Jerusalém [...]
ele contou esta história”.

***

Eis a razão para ele contar a história: "... por estarem chegando perto de
Jerusalém [...] com a expectativa cada vez maior de que o reino de Deus
surgiría a qualquer m inuto”. A história é sobre um homem “descendente de
uma casa real” que fez uma longa viagem para obter autorização para ser rei.
Ele obtém aquilo para o que se desloca de sua cidade, a despeito da delegação
de cidadãos que “o odiavam” e fizeram um abaixo-assinado declarando: “Não
queremos que esse homem governe sobre nós”.
Depois de relatar essa história, Jesus prosseguiu de Jerico a Jerusalém, uma
árdua subida de um quilômetro por 27 quilômetros. O desfile do Domingo de
Ramos deu-se no dia seguinte. Quando Jesus desceu o monte das Oliveiras
em Jerusalém, foi saudado por uma grande multidão que o reconheceu como
rei e clamou, dizendo: “Bendito é o que vem, aquele que é rei em nome de
O MINIMALISTA 165

Deus!” (Le 19:38). Quatro vezes mais naquela semana em Jerusalém, Jesus é
chamado rei, duas vezes no julgamento perante Pilatos (23:2-3) e duas vezes
enquanto estava pendurado na cruz (23:37-38) — cinco vezes ao todo, a pri-
meira vez em aceitação elogiosa, seguida de quatro vezes em rejeição assassina.
De maneira bem definida , eles emitiram seu veredicto: "Não queremos que
esse homem governe sobre nós”.

* *

Essa história não é só isso — ainda nem chegamos ao ponto principal — ,


mas talvez seja útil fazer uma pausa e refletir sobre aquilo que Jesus está nos
preparando para assimilar por meio dessa história: ‘,Não queremos que esse
homem governe sobre nós”. E mesmo? Sim, é isso mesmo.
A última história de Jesus na estrada samaritana — ela será ecoada alguns
dias depois em Jerusalém, quando Jesus contar a história dos lavradores
maus (Lc 20:9-19) — condensa um tema central tecido por toda a histó-
ria bíblica.
O fio dessa tecelagem tem duas dobras: Deus nos quer; nós não quere-
mos Deus.
Deus nos quer. A linguagem de Jesus é proferida em um mundo no qual
Deus nos quer. Somos criados por Deus para Deus. Separamo-nos de Deus,
e Deus está decidido a nos recuperar. Deus nos quer como o amado quer sua
amada. Insistentem ente, inflexivelm ente, D eus busca um relacionamento
restaurado conosco. Deus nos busca. Deus está nos buscando e esteve nos
buscando antes de termos qualquer ideia de buscar a Deus.
Nossa relação com Deus começa com Deus proferindo a primeira palavra.
Antes de sequer nos ocorrer falar com Deus e pensar nele, Deus fala conos-
co. Com o fez com Maria. Deus enviou o anjo Gabriel a Maria, e Gabriel
a saudou com as palavras “Alegre-se, agraciada! O Senhor está com você!”
(Lc 1:28). Maria não tinha nenhuma ideia do que significava aquilo. Ela estava
desconcertada e desnorteada, fazendo o possível para compreender. Como
poderia saber que era Deus que falava com ela e, mais ainda, saber o que
estava sendo dito? Mas ela não precisou esperar muito tempo. O anjo trouxe
166 A LINGUAGEM DE DEUS

mais que um simples cumprimento, e ela descobriu que Deus estava prestes
a conceber sua própria vida nela. Depois de uma pergunta e de uma resposta
de esclarecimento, ela assentiu: “Sou serva do Senhor; que aconteça comigo
conforme a tua palavra” (1:38). Deus nos quer. Ele pretende conceber uma
vida nova, a vida de Deus, em nós.
Ele não fica esperando até que tenhamos percepção de que Deus pode ser
uma boa ideia a considerar. Deus não nos envia para a biblioteca para deseo-
brir o que os homens e as mulheres vêm dizendo sobre Deus e depois espera
para ver a que conclusões chegamos. D eus não organiza eventos de busca
preparados por anjos veteranos para descobrirmos lugares prováveis para ob-
ter um vislumbre ou talvez, se tivermos sorte, uma fotografia de Deus. Não.
“Nosso Deus vend Certamente não ficará calado!” (SI 50.3). Não somos nós
que chegamos a Deus; Deus vem até nós. Não começamos a conversa; Deus
é quem dá início.
Mas — não queremos a Deus. A prova bem documentada é que queremos
ser nossos próprios deuses. As provas vão se empilhando umas sobre as outras
em cada continente e civilização, cada século e cada religião. São irrefutáveis.
As provas são plena e convincentem ente confirmadas em nossas Escrituras e
documentadas em cada uma de nossas vidas. Deus é um rival, não um aliado,
no negócio divino. Queremos ser nossos próprios deuses. A Serpente prometeu
que lograríamos esse tento — “sereis como D eus” (Gn 3:5, AS21 ) — , e nós
acreditamos desde esse momento. No final das contas, mostramos ser muito
bons nessa insistência.
Israel, nosso antepassado com o povo de Deus, conta histórias que não
nos deixam margem para escapar à conclusão. Após a provisão miraculosa de
alimento e água no deserto, os israelitas recém-salvos reuniram-se no monte
Sinai e receberam a aliança de Deus proferida em meio a terremoto, fumaça,
fogo, alarido de trombetas e ribombar de trovões. O povo jamais conseguiría
esquecer-se daquilo: a salvação no mar Vermelho, o maná e as codornizes do
deserto, a água da rocha, a nuvem que o guiava durante o dia e o fogo que 0
conduzia à noite, e tudo isso teve por ápice aquelas palavras de Deus defini-
doras, libertadoras, pessoais. Mas o povo se esqueceu.
O MINIMALISTA 167

Aconteceu da seguinte forma. Deus chamou Moisés para subir de novo o


monte Sinai e receber maiores instruções. O povo viu mais uma vez o monte
flamejar em esplendor. Precisava saber que algo sério estava acontecendo. Mas
Moisés havia se ausentado fazia tempo — quarenta dias e quarenta noites — , e
o povo ficou inquieto. Todos ficaram cansados de esperar. Seu pastor-auxiliar,
Arão, conseguiu-lhes um bezerro de ouro por deus, o qual pudessem manejar e
usar, um deus sem mistério, um deus que estivesse lá quando necessitassem. Eles
amaram a ideia. Adoraram, comeram, beberam e deram uma grande festa.
Criaram um deus e depois se tornaram com o o deus que criaram. A pro-
messa da Serpente acabou se mostrando mentirosa. Tornaram-se “como Deus”,
é verdade, mas o deus “com o” o que se tornaram estava morto.

Os deuses deles são metal e madeira,


feitos à mão numa loja de fundo de quintal:
boca entalhada que não pode falar,
olhos pintados que não podem enxergar,
ouvidos metálicos que não pode ouvir,
nariz modelado que não pode cheirar,
mãos que não podem segurar, pés que não podem andar nem correr,
garganta que nunca emite um som.
Seus criadores se tornaram exatamente como eles,'
tornaram-se exatamente como os deuses em que confiam.
Salmos 115:4-8

E nós continuamos fazendo isso vez após vez. Baal e Aserá e Moloque.
Os deuses de Canaã e de Tiro, do Egito, da Assíria e da Babilônia. Os deuses
da Pérsia, da Grécia e de Roma. Os deuses da Rússia e da China. Os deu-
ses da índia e da África. Os deuses da Inglaterra e da Austrália. E os deuses
da América. Os Estados Unidos lideram o mundo hoje em dia na produção
de bezerros de ouro.
É importante observar que a história que mostra de forma paradigmática
que não queremos a Deus não é sobre pagãos que nunca tinham ouvido falar
do Deus de “Abraão, Isaque e Jacó”. E sobre um povo salvo por Deus, um povo
“nascido de novo”, digamos assim, que foi instruído em toda a revelação de Deus
168 A LINGUAGEM DE DEUS

e se com prom eteu com essa revelação. Todos estavam sendo sinceros quando
disseram: “Faremos fielm ente tudo o que o S enhor ordenou" (Ex 24:7).
Pelo fato de as Escrituras tratarem extensamente do sucesso da Serpente
em desviar o povo de Deus do Deus vivo, é assombrosa a ingênua suposição
de que, bastaria tornarmos Jesus mais atraente, que hom ens e mulheres
acorreríam em grande número para segui-lo. E mais uma ilusão da Serpente
a suposição americana amplamente difundida de que, basta anunciarmos a
mensagem em alta voz e com clareza, e haverá homens e mulheres se entre-
gando no ato.
É uma suposição que usa o vocabulário da verdade de Deus desconectado
da verdade do Deus. E uma espiritualidade dissociada do Espírito Santo. E
informação sobre Jesus sem a participação na vida de Jesus.

* * *

Mas voltemos à história de Jesus a respeito do rei que retornou para governar
sobre as pessoas que "o odiavam”. Antes de o homem partir para se tornar
rei, ele entregou a dez de seus servos uma idêntica soma em dinheiro e lhes
disse: "Operem com isso até que eu retorne — façam bom uso desse dinheiro,
transformem-no em algo". Em outras palavras, eles tinham de dar continuidade
a seus negócios enquanto ele estivesse ausente, continuando a fazer o que ele
mesmo teria feito se estivesse presente, trabalhando em prol dele, tomando
iniciativa e usando o conhecimento e a experiência que haviam acumulado nos
anos em que estiveram associados a ele como empregados para promover seus
interesses. Ele não estaria por perto para lhes dar ordens específicas a cada dia
de trabalho — estava confiando que eles descobririam por conta própria.
A primeira coisa que fez após seu retorno foi reunir os empregados e per-
guntar como as coisas se saíram. O primeiro relatou que havia dobrado o que
o patrão havia deixado com ele. O segundo disse que havia aumentado sua
quantia em cinquenta por cento. O terceiro disse que não tinha feito nada.
A desculpa que apresentou foi esfarrapada: “Para dizer a verdade, eu estava
um pouco receoso. Sei que você tem padrões elevados e odeia a sujeira, e não
tolera com alegria os tolos”.
O MINIMALISTA 169

O patrão — que agora retornara com o rei — , elogiou os dois primeiros


empregados e, com muita veemência, dispensou o terceiro, o minimalista,
que não corre riscos.

***

Essa é a última história que Jesus conta na estrada samaritana. A próxima


coisa que ficamos sabendo é que Jesus e seus seguidores estão em Jerusalém.
E uma entrada majestosa, mas todo o esplendor tem vida curta. A m eio
caminho da parada inaugural (com as pessoas supondo que estão dando as
boas-vindas a seu novo rei), Jesus está chorando por causa da cidade e anun-
ciando que a cidade será brutamente tomada e destruída por seus inimigos,
porque “você não reconheceu a oportunidade que Deus lhe deu” (Lc 19:44).
Antes de concluído o dia, Jesus explode em m eio ao tem plo corrompido
por Caifás, expulsando as pessoas que haviam feito do lugar um mercado
lucrativo, vergonhosamente vendendo religião. Ele cita o profeta Isaías: “A
minha casa será casa de oração” (Lc 19:46; v. Is 56:7) e depois usa as palavras
de Jeremias (Jr 7:11) para mostrar que são culpados do mais grave tipo de
sacrilégio, vendendo “deus” aos povos inocentes, cegar e roubar as pessoas
enquanto fingem salvar-lhes a alma.
E aquele era o fim dos negócios do rei. Antes de terminada a semana, o rei
estava morto, pendurado em uma cruz. Nada de reino de Deus.

4c * *

Resta pouca dúvida, parece-me, de que as multidões que aclamavam a Jesus


como seu novo rei esperavam que as hostes angélicas enchessem as ruas aquele
dia e dessem fim aos romanos para sempre. Não foi o que aconteceu. Entre-
mentes, essa história que Jesus contou subindo de Jerico para Jerusalém ficou
operando na mente e na imaginação de pelo menos alguns dos seguidores de
Jesus. Talvez não estivessem errados sobre o reino e seu rei coisa alguma. Ha-
viam suposto que o rei e seu reino seriam estabelecidos pela violência — como
mais seria possível estabelecer um reino? Talvez Jesus o tem po todo viesse
170 A LINGUAGEM DE DEUS

preparando-os para compreenderem que o reino de Deus simplesmente não


estava presente entre eles daquela maneira. As histórias de Jesus começaram
a fazer sentido. Talvez apenas estivessem errados na compreensão da maneira
em que o reino era formado e da maneira em que seu rei governava.
Esses “talvezes” hesitantes foram, de forma lenta, mas segura, solidificando-
se em uma firme fundação. Três dias após o “fracasso” do reino e de seu rei,
começa a acontecer uma silenciosa revolução, catalisada na ressurreição de
Jesus. O rei estava vivo afinal de contas — , mas não com o eles haviam es-
perado. Foi necessário que se acostumassem. Quanto tem po levou para que
tudo isso fosse assimilado? Não sabemos, mas que foi assimilado, isso foi.
Pedro brandindo sua espada no Getsêmani, cortando a orelha de Maleo e re-
cebendo ordens de Jesus para pôr de lado a espada (Jo 18:10-11), é a última
vez que vemos espadas ou delas ouvimos falar na história do Evangelho. De
agora em diante eram histórias, não espadas, que dariam forma à identidade
dos seguidores de Jesus e forneceríam o conteúdo e a forma do reino do qual
eles eram cidadãos.

***

Essa última história samaritana começou lentamente a formar uma nova identi-
dade entre eles. Naturalmente, “Não queremos que esse homem governe sobre
nós”. Mas ele está governando de qualquer forma. Talvez agora estivessem
prontos para aprender como ele governava e como poderíam participar de seu
reinado como “empregados” a quem se confiou a continuação de seu trabalho:
fazer o que ele fazia; falar o que ele falava; arrepender-se e perdoar; orar e
abençoar; descobrir vizinhos em lugares improváveis; perceber a qualidade
pessoal irredutível em tudo o que está relacionado com Deus; submeter-se às
energias silenciosas (esterco!) que, como as energias da ressurreição, tornam
a morte em vida; perceber os perigos da “oração” que não é oração, como
precisamos nos acautelar de que algo bom, como as riquezas, se transforme
num hospedeiro de algo mau, como a ganância; colher a percepção de nosso
estado de perdidos, “o poder preparador do caos”, as improbabilidades da
graça, as urgências apocalípticas inerentes à oração.
O MINIMALISTA 171

Essa vida do reino de Deus não é uma questão de acordar a cada manhã
com uma lista de tarefas ou com uma agenda a ser resolvida, deixada para nós
pelo Espírito Santo em nosso criado-mudo, enquanto dormimos. Acordamos
já imersos em uma ampla história da criação e da aliança, de Israel e de Jesus,
a história de Jesus e as histórias que Jesus contou. Deixamo-nos ser moldados
por essas histórias formativas e, ao ouvirmos sobretudo as histórias que Jesus
conta, perceber com o ele o faz, com o ele fala, com o ele trata as pessoas, o
caminho de Jesus.
O fim da história de Jesus em Jerusalém — sua crucificação, ressurreição e
ascensão — como acabamos percebendo, não é o fim. Nossa vida com Jesus a
caminho de Jerusalém continua para além de Jerusalém. E ainda continua. As
“somas de dinheiro” — as histórias que Jesus contou, a vida que Jesus viveu —
continuam circulando nas histórias que contamos e nas histórias que vivemos.
O reino está aqui. Estamos inseridos nele. A “quantia” que nos foi deixada
não é algo a ser guardado, protegido e preservado, mas posto em bom uso.
Essa última história samaritana é uma palavra que nos faz refletir: a não
participação não é assunto circunstancial. Por mais que apresentada de forma
temerosa ou mansa, não participação é desobediência. (Ao mesmo tempo,
é igualmente verdade que há m uito espaço para a obediência temerosa e
mansa — não se fazem comentários sobre sete dos empregados. N em to-
dos chamaremos tanta atenção por nossa obediência quanto o primeiro e o
segundo empregados.) A história é impiedosa: o minimalismo interesseiro e
egoísta não é uma opção. Não há não participantes no reino de Jesus. Essa
última história samaritana é uma história de juízo intransigentemente severa.
A descrição do terceiro servo ocupa sete dos dezessete versículos da história.
Mais espaço é dispensado à sentença decretada sobre o que não quis correr
riscos, o cauteloso, não participante, não servo, do que aos outros nove servos,
e mais ainda do que aos requerentes contrários ao governo do rei, que ganham
somente um versículo. Uma recusa tímida de obedecer nos torna passíveis do
mesmo juízo que recai sobre a desobediência desafiadora e descarada. Seguir
obedientemente a Jesus nesse reino de Deus já inaugurado é de fato coisa séria.
Jesus em suas orações

ru
Q_
capítulo 13
Na companhia de Jesus enquanto ele
ora: seis orações

Primeiramente, Jesus em suas histórias, histórias que se desenvolvem a partir


de metáforas. Metáfora e história caracterizam a linguagem de Jesus. As his-
tórias são pessoais e nos tornam participantes do lugar em que vivemos e das
pessoas que o ocupam. As histórias mantêm-nos próximos a um território real,
alertas às vozes ao redor, presentes diante do silêncio. Não há formalidades,
nem abstrações, nem “grandes” verdades. Não é uma linguagem que usamos
para mapear e decifrar o mundo de modo que sempre possamos saber onde
estamos, não uma linguagem que usemos para comandar e controlar o mun-
do e as pessoas que nele habitam. Antes, é uma linguagem que dá margem à
ambiguidade e à presença, uma linguagem que nos põe em uma participação
conversacional uns com os outros neste mundo criado pela linguagem, moldado
pela linguagem, um mundo da Palavra que se fez carne. Para aqueles de nós
que decidiram seguir a Jesus, segue-se o fato de que não apenas escutaremos o
que ele diz e acompanharemos o que ele faz, mas tam bém aprenderemos
a usar a linguagem da forma que ele a usa. Ficaremos de sobreaviso para não
desencarnarmos nossa linguagem, transformando-a em idéias formuladoras,
ou regras resumidoras, ou em mera entrega de informação.
E agora Jesus em suas orações. A oração é a linguagem responsivamente
atenta a Deus. Deixar Jesus em suas histórias para Jesus em suas orações corre
o risco de deixar os usos particulares, coloquiais, locais da linguagem nos quais
estivemos imersos na Narrativa da Viagem por Samaria, para velejarmos no
além azul e selvagem, perdendo-nos em grandes abstrações “espirituais”. Mas
não devemos. E não o faremos se nos mantivermos na companhia de Jesus
em suas orações. As histórias que Jesus conta na estrada entre a Galileia e
Jerusalém faz que a linguagem usada por ele e por seus amigos naquela estrada
se mantenha local e pessoal, imediato às circunstâncias, presente diante das
condições. Sua língua é simplesmente tão local, real e pessoal com o Pai que
176 A LINGUAGEM DE DEUS

está nos céus quanto com seus companheiros à mesa, na hora das refeições,
e quando percorrendo pela estrada.
Preciso insistir em que a linguagem usada por Jesus em suas orações não
é nem mais nem menos ele mesmo, sua alma e corpo, do que aquela usada
em suas histórias. A oração é anêmica se a linguagem se dissipa na névoa,
numa bruma falsamente piedosa de sentim entalism os, diluída em clichês
religiosos. Quando nos mantemos na companhia de Jesus em suas orações,
isso não acontece.
A história e a oração são a linguagem central da nossa humanidade. Decía-
ramos mais verdadeiramente quem somos quando contamos histórias uns aos
outros e oramos a nosso Senhor. A história e a oração são também a linguagem
central da nossa Escritura: D eus nos declara quem ele é, com pletam ente
revelado em Jesus, a Palavra que se fez carne, que realiza “a própria obra que
o Pai me deu para concluir” (Jo 5:36), e o tempo todo escuta atentamente
e responde obedientem ente, com o um filho a seu Pai — em oração. Nossa
Escritura consiste na maior parte de histórias e orações. Entramos da maneira
certa naquela revelação quando escutamos e contamos histórias uns aos outros
e escutamos a Deus e com ele falamos em oração.
E, naturalmente, o silêncio. O silêncio é indispensável. E um elem ento
normalmente negligenciado na linguagem, mas não deveria ser. Não deveria ser
negligenciado ainda mais na linguagem da oração. Não é como se Jesus falasse
a revelação de Deus em suas metáforas e histórias, e agora na oração temos
a nossa oportunidade de nos expressar. O silêncio, que na oração consiste na
maioria dos casos em uma escuta atenta, é inegociável. Escutar, que necessa-
riamente requer o silêncio de nossa parte, faz tão parte da linguagem quanto as
palavras. Os dois-pontos e o ponto e vírgula, a vírgula e o ponto final — todos
os quais insistem no silêncio como parte essencial do discurso — são tão fun-
damentais à linguagem quanto os substantivos e os verbos. Mas muitíssimas
vezes, não damos muito tem po ao silêncio em nossas orações. Contudo, se
não houver silêncio algum, nosso discurso se degenera em balbucios.
NA COMPANHIA DE JESUS ENQUANTO ELE ORA: SEIS ORAÇÕES 177

A oração é nossa primeira linguagem. Qualquer um é capaz de orar. E todos


oram. Oramos até mesmo quando não sabemos que estamos orando. “Ajuda-
·m e” é nossa primeira oração. Não a tem os dentro de nós para sermos nós
mesmos. “Obrigado” é nossa última oração. No final das contas, percebemos
que tudo o que recebemos nos foi dado de presente.
Mas há uma ironia aqui. A oração, o substrato mais natural e autêntico da
linguagem, é também a forma de linguagem mais fácil de falsificar. Descobri-
mos bem cedo que podemos fingir orar, usar as palavras da oração, praticar as
fórmulas da oração, assumir posturas de oração, adquirir uma reputação de
oração e jamais orar. Nossas chamadas “orações” são uma camuflagem para
cobrir uma não vida de oração.
Uma amiga encontra-me no estacionamento e conta seus problemas. Ao
partir, eu digo: “Vou orar por você”. Entro no supermercado com minha lista
de compras. A promessa de orar é empurrada para as margens quando começo
a avaliar o preço do espargo, depois passo a decidir se será filé ou bife de fígado
no jantar e por último troco amenidades com o caixa sobre a partida de ontem
de futebol, na qual nossos dois filhos jogaram. E assim a oração prometida
é deslocada, ou ao menos consideravelmente diluída, pelas urgências do leite
e do suco de laranja.
Felizmente recebemos proteções de fácil acesso contra as falsas orações e
as tagarelices em forma de oração que tomam o lugar da falta de oração. São
orações prontas, fornecidas para que as possamos usar a fim de manter nossas
orações congruentes com as orações de nossos antepassados, orações de outras
pessoas que podemos usar para nos manter em contato com o mundo autên-
tico da oração revelado em nossa Escritura. São orações que podemos usar
para distinguir oração de impostores da oração, fantasia e mágica. São orações
que não dependem de nossa própria iniciativa, orações que não derretem e
desaparecem de acordo com as fases do nosso humor.
Em minha família, temos uma bem desenvolvida “cultura da mesa”. 1 As
refeições são um elem ento significativo na maneira em que vivemos. Boa
parte de nossa vida comum é gasta na preparação de refeições, considerando
o gosto e as circunstâncias daqueles que comerão a refeição, pondo a mesa,
comendo a refeição, limpando tudo após a refeição. Nenhuma refeição é de
178 A LINGUAGEM DE DEUS

maneira alguma com o a outra. Há muitas variáveis: os tipos de alimento que


compõem a refeição, que membros da família estarão presentes, convidados
que esperamos ter conosco. Apreciamos o trabalho. Mas às vezes nos faltam
energia e imaginação. Quando isso acontece, dirigimos por alguns quilômetros
até um restaurante predileto para que alguém mais cozinhe por nós: compre
o alimento e o prepare, ponha a mesa, sirva a refeição, limpe a mesa e lave os
pratos. Uma refeição “pronta”: alguém em quem confiamos a fez por nós. Tudo
o que tem os de fazer é levantar o garfo que foi posto diante de nós, comer a
refeição depositada sobre a mesa e deixar que outros lavem a louça.
Quando somos crianças, todas as nossas refeições são refeições prontas,
dispostas diante de nós, sem que tenhamos de pensar nelas de antemão ou as
preparar. Pouco a pouco, à medida que crescemos, aprendemos a prepará-las
para nós mesmos e para as outras pessoas. Mas ainda é maravilhoso que alguém
nos prepare uma refeição quando estamos cansados ou inapetentes. A analogia
com a oração não é exata, mas é próxima o bastante nesse contexto.
As orações clássicas para cristãos e judeus são os Salmos.2 E, para os cristãos,
as orações prontas incluem as orações de Jesus.
É uma prática com um e difundida na com unidade cristã procurarmos
aprender com as orações que Jesus fez, da forma em que elas constam em
nossa Escritura. Mantemo-nos em companhia conversacional com Jesus en-
quanto ele ora. Acostumamo-nos ao modo em que ele ora para nos tornarmos
tão sinceros em nossas necessidades, tão atentos à presença de Deus, tão
responsivos ao Espírito, tão profusos quanto Jesus em sua participação e na
nossa participação com ele em todas as operações da Trindade.
Uma jovem asiática de minha congregação veio um dia ao meu escritório.
Tinha, disse ela, um presente para mim: meu nome chinês. Ela o mostrou para
mim. Ela tinha escrito meu nome nos extraordinários ideogramas chineses.
"Aqui, escreva você.” Fiz minha tentativa, todo desajeitado. Ela foi paciente.
Após dez minutos mais ou menos, eu tinha feito uma aproximação da escrita
chinesa. "Agora diga.” Ela pronunciou as sílabas lentamente. Eu não conhecia
aqueles sons; não estava acostumado a reproduzir aqueles sons. Mas, ainda com
paciência, ela me conduziu. Dentro de mais dez minutos eu estava reprodu-
zindo os sons corretamente. Mas ela não estava satisfeita. "Muito bom. Você
NA COMPANHIA DE JESUS ENQUANTO ELE ORA: SEIS ORAÇÕES 179

sabe escrever seu nome. Você sabe pronunciar seu nome. Mas não é o bastante.
Você tem que fazer seu nome cantar — em mandarim, as palavras cantam.” Ela
então me deu uma lição de canto. Tentei e tentei, mas nunca consegui muito
bem. Ainda sou um aprendiz. As vezes penso nisso quando estou orando. Estou
dizendo as palavras, mas será que as palavras estão cantando?
A orações de Jesus fornecem um centro exato e constante para desenvolver
uma vida de oração cristã madura. Observamos Jesus em oração e seguimos
fazendo o que ele faz mantendo-nos na companhia dele. Adquirimos um senso
do fato histórico de que Jesus orava e abraçamos um aprendizado contínuo
de como ele orava.
“As v ezes” — sem grande esforço — “uma luz surpreende” (William
Cowper), e percebemos que as orações estão cantando.
Montar uma vida de oração com fragmentos daqui e dali — o clichê “Vou
orar por v o cê”, m om entos de desespero, um arroubo de bem-aventurada
alegria, uma determinação tenaz, mas evanescente de “orar mais”, emoções
falsamente piedosas — nunca significa muita coisa. Estamos em busca de algo
substancial e integral: dito e cantado, oração revelada pelo Pai por meio do
Filho por obra do Espírito Santo.

***

Mas Jesus é mais que um mestre sob quem nos posicionamos como aprendizes:
mesmo agora ele está orando por nós. Essa pode ser a coisa mais importante
a saber: não com o ele orava, embora isso certam ente seja importante, mas
que ele está neste exato momento orando — por nós. Jesus é nosso mestre
na oração; é também nosso companheiro de oração. Ele nos diz “Eu vou orar
por você...” — e ele ora. Sua promessa de orar por nós não se perde nem fica
negligenciada em uma vasta barafunda celeste de petições e intercessões,
confissões e ações de graças, subindo a seu altar em uma nuvem de incenso. E
um desafio a nossa imaginação compreender como isso ocorre, mas sabemos
de fontes seguras que acontece.
A carta aos Hebreus detalha esse sacerdócio intercessor atual e contínuo
do Jesus glorificado. O texto insiste em mostrar que Jesus não apenas ora
180 A LINGUAGEM DE DEUS

por nós uma vez e pronto; ao contrário: “vive sempre para interceder” por
nós (Hb 7:25). Jesus ora. Está orando neste exato momento por nós. Estava
orando por nós ontem. Estará orando por nós hoje à noite enquanto dormir-
mos e amanhã de manhã quando acordarmos. O fato de Jesus orar por nós é
um acontecimento atual.
Você acha que não sabe orar? Sim, há muito que aprender; nesse ínterim,
Jesus está orando por você. Você não sente vontade de orar? Fique tranquilo,
os sentimentos vêm e vão; enquanto isso, Jesus está orando por você. Você
não tem tempo para orar? Jesus não se importa de esperar; nesse meio-tempo,
ele tem todo o tem po para orar por você.

***

Jesus orava. Há dezessete referências nos Evangelhos à vida ativa de oração de


Cristo.3 Assim como Lucas cita o maior número de histórias de Jesus, Lucas
também cita o maior número de orações de Jesus, nove delas:

... retirava-se para lugares solitários, e orava. (Lc 5:16)

Num daqueles dias, Jesus saiu para o monte a fim de orar; e passou a noite
orando a Deus. (6:12)

Certa vez Jesus estava orando em particular, e com ele estavam seus disci-
pulos; então lhes perguntou... (9:18)

Jesus tomou consigo a Pedro, João e Tiago e subiu a um monte para orar.
Enquanto orava... (9:28)

Certo dia Jesus estava orando em determinado lugar. Tendo terminado, um


de seus discípulos lhe disse: “Senhor, ensina-nos a orar...”. (11:1)

“Simão, Simão, Satanás pediu vocês para peneirá-los, como trigo. Mas eu
orei por você, para que a sua fé não desfaleça.” (22:31)

Ele se afastou deles a uma pequena distância, ajoelhou-se e começou a


orar. (22:41)
NA COMPANHIA DE JESUS ENQUANTO ELE ORA: SEIS ORAÇÕES 181

Estando angustiado, ele orou ainda mais intensamente. (22:44)

... tomou o pão, deu graças, partiu-o e o deu a eles. (24:30)

***

Jesus é aquele a quem oramos. É também aquele que ora conosco e por nós.
A oração é a linguagem da Trindade, linguagem intimamente pessoal. Quando
oramos, abraçamos a linguagem de Jesus como nossa linguagem. Nada acontece
nessa vida cristã de forma impessoal, de acordo com uma matriz a ser seguida,
automaticamente e por códigos. Cada palavra é pessoal.
Jesus orava. Q uando vam os com Jesus para a escola da linguagem ,
nós oramos.
Mas tem os de descobrir tudo isso por conta própria. Temos uma cartilha,
essas orações prontas de Jesus. Se somos tímidos, inseguros, podemos fazer
essas orações com a confiança de que estamos orando à maneira do Mestre.
Mantemo-nos na companhia de Jesus e aos poucos aprendemos o que ele está
fazendo e com o o está fazendo.
Aqui estão seis orações prontas que estudaremos nos capítulos seguintes.
Jesus ora conosco: "Pai nosso...” (Mt 6:9-13); Jesus ora em ação de graças:
“Graças de dou, ó Pai...” (Mt 11:25, AS21 ); Jesus ora na expectativa do fim:
"... Pai, glorifica o teu nom e” (Jo 1 2 :2 7 2 8 ‫ ;)־‬Jesus ora por nós: “Pai, chegou a
hora...” (Jo 17:1); Jesus ora “numa tristeza mortal”, na agonia do Getsêmani:
“Meu pai, se for possível, afasta de mim este cálice; contudo, não seja como
eu quero, mas sim como tu queres” (Mt 26:39-42); Jesus ora em sua morte
na cruz: “Meu Deus! Meu Deus! Por que me abandonaste?” (Mt 27:46).
Nossos antepassados, que oravam, perguntam-nos: “Você quer aprender a
orar, se tornar adestrado na oração? Você quer penetrar a revelação de Deus,
tornar-se participante em afirmação na conversa do Pai e do Filho? Começo
por aqui: mantenha-se na companhia de Jesus, a Palavra que se tornou carne,
que realiza “a obra que o Pai me deu para concluir” (Jo 5:36).
capítulo 14
Jesus ora conosco
Mateus 6:913‫־‬

Quase exatamente no centro do conhecido ensino de Jesus, o Sermão do


Monte, ele concentra-se na prática da oração (Mt 6:9-13). O sermão em si é
um mosaico cintilante de metáforas e instruções, advertências e orientações,
aforismos e uma história de encerramento que desfere a tacada final. E uma
obra-prima de imagens e palavras para compreendermos quem somos e o que
estamos fazendo enquanto nos mantemos na companhia de Jesus. Muito do
que Jesus afirma ali transtorna o que pensamos sobre nós mesmos e sobre o
mundo ao redor. Há muito que absorver, reaprender, reimaginar.
A oração acha-se no cerne do ensino presente no Sermão do Monte. Está
situada quase exatamente no centro do Sermão (Mt 6:9-13). É ela que dá
liga ao Sermão e o enche de vida. Uma vida vivida na dimensão do reino do
céu consiste em coisas para fazer e em modos de pensar, mas, se não houver
nenhuma oração no centro, nada tem vida. A oração é o coração que bombeia
sangue em todas as palavras e atos. A oração não é apenas mais uma coisa em
uma lista de elem entos que compõem uma vida vivida na dimensão do reino
do céu, seguindo a Jesus. Oração é o âmago. Se não houver nenhum coração fa-
zendo seu trabalho a partir do centro, por mais precisas que sejam as palavras,
por mais perfeitamente formadas as ações, tudo o que se tem é um cadáver.
Pode ser um cadáver muito encantador. A obra-prima de um embalsamador,
ainda mais quando o embalsamador conhece sua Bíblia, opera maravilhas com
as aparências. Mas morto é morto. “Descanse em pazl”
Isso tudo pode ser bastante óbvio. O que talvez não seja óbvio é que o ato
da oração, que é um presente sem tamanho, está repleto de perigos. E assim,
antes de Jesus se dedicar à prática da oração, ele faz uma advertência: Perigo!
“Não...” (Mt 6:5-8). Três vezes o aviso de perigo é afixado. Não orem para se
mostrar diante de uma platéia, a fim de "serem vistos pelos outros”. Oração
184 A LINGUAGEM DE DEUS

não é teatro. Não orem para tentar influenciar Deus “por m uito falarem”.
Oração não é retórica. Não orem para impressionar homens, mulheres e,
muito menos, Deus.
A oração é o coração da vida vivida na dimensão do reino. Mas tenha isto
em mente: ninguém jamais vê o coração quando está trabalhando. O coração
não é um adesivo de para-choque. Quando oramos com Jesus, não usamos o
coração pendurado no pescoço.
Com as advertências afixadas no lugar certo, Jesus prossegue: “orem assim”.

“Pai nosso, que estás nos céus!”


Muito significativo é o pronome que se segue à palavra "Pai”. Jesus inclui a si
mesmo na oração que ele nos está ensinando a fazer: "... nosso..." — você e
eu. Estamos juntos nisso. Jesus não assume uma posição distanciada, de um
perito, mostrando que essa é a única maneira de orar. Oração não diz respeito
a dispor as palavras na ordem certa. Quando Jesus se inclui conosco, o “nosso"
é como uma punção despretensiosa no balão de ar quente da afetação. Jesus
não está por cima, com ares de superioridade, em relação a seus aprendizes.
Jesus não fala muito sobre oração; ele ora. Jesus não vem dando uma de quem
sabe. Ele ora conosco. E nós oramos com ele.
O “nosso” continua a ser significativo. A oração é sempre algo que acontece
com um “nosso”. Com o “nosso”, Jesus põe-se em nossa companhia. Com o
"nosso”, nós nos colocamos na companhia de Jesus e de todos os que oram.
A oração jamais é solitária. Jamais estamos sós quando oramos. Estamos com
Jesus e todos os que o seguem.

***

Nos avisos de perigo que Jesus afixa antes de começar a orar, ele usa a metá-
fora “Pai” três vezes em relação ao Deus a quem oramos. No sermão como
um todo (Mt 5— 7), Jesus usa o termo "Pai” quinze vezes; em dez dos casos,
o termo é expandido em “Pai [...] que está nos céus” ou "Pai celeste”. “Pai”
é a metáfora preferida de Jesus em relação a Deus.
JESUS ORA CONOSCO 185

Acostum e-se com isto: Pai. O maior e mais implacável inimigo na prática
da oração é a impessoalização, transformando a oração em uma técnica, usando
a oração como um dispositivo.
Usar a metáfora “pai" para Deus é uma estratégia de linguagem para se
proteger da impessoalização sutil e traiçoeira da oração que perpassa a condi-
ção humana. Em nossa cultura saturada pela tecnologia, muitas vezes pedimos
ajuda perguntando: “Como eu oro?”, ou, ainda pior, “Com o posso orar com
eficiência?”. A pergunta distorce o que é fundam entalm ente uma relação
pessoal, transformando-a em uma técnica impessoal. Concebe-se Deus como
uma ideia, ou uma força, ou um poder mais elevado. A oração é reduzida a um
exercício de controle: “Se eu simplesmente conseguir entrar no clima certo,
e disser as palavras certas, na ordem direita, vou conseguir que Deus faça o
que eu quero ou conseguirei aquilo de que preciso”.
Dois dos avisos de perigo que Jesus afixou estão relacionados com o ato de
eliminar o Deus pessoal da prática da oração. Cuidado! Não impessoalize Deus
e todas as pessoas da rua, transformando-os numa platéia sem rosto, nem se
vista com um ato religioso. Cuidado! Não impessoalize Deus, transformando-o
em uma abstração, ao usar as palavras não como linguagem, mas como núme-
ros, “sempre repetindo a mesma coisa", quanto mais, melhor, não importando
0 que signifiquem ou se de fato significam alguma coisa.
N o próprio instante em que eliminamos o pessoal da oração, deixa de existir
oração. O coração para de bater. Chamar a Deus de pai mantém-nos alertas
ao elem ento pessoal na oração.
“Pai” com o metáfora dá nome a uma pessoa, não a um objeto. Pai e filho,
e filha, não são funções. São relações inigualáveis de sangue.

***

Jan e eu estávamos em Frankfurt, no terminal da El Al, nossa companhia


aérea, aguardando nosso voo para Israel. Passageiros de um voo da El Al que
acabava de chegar estavam entrando na área de recepção. Um menininho perto
de nós, talvez de quatro ou cinco anos de idade, deu um salto e atravessou
186 A LINGUAGEM DE DEUS

o grande saguão gritando: “Aba! Aba! Aba!...” e sumiu nos braços abertos e
acolhedores de seu pai.
Era a primeira vez que eu ouvia alguém usar a palavra “Aba” num discurso
real. Já lera a palavra na Bíblia. Eu sabia que na língua-mãe de Jesus, o aramai-
co, era a palavra de afeto usada para o pai, o que seria comum no contexto
familiar. Eu havia lido o relato de Marcos sobre Jesus orando em agonia no
Getsêmani, chamando a Deus “Aba”. Eu havia lido como Paulo, escrevendo
aos cristãos em Roma, usou o fato de que eles usavam “Aba” ao se dirigirem
a Deus como sinal da natureza relacionai de suas orações, “o próprio Espírito
testemunha ao nosso espírito que somos filhos de D eus” (Rm 8:15-16). Eu
havia lido com o Paulo tinha introduzido a palavra ao escrever aos cristãos na
Galácia para lhes ressaltar seu relacionamento pessoal e familiar básico com
Deus com o filhos para com um pai: “D eus enviou o Espírito de seu Filho
ao coração de vocês, e ele clama 'Aba, Pai’” (G1 4:6). Eu havia lido o que 0
estudioso alemão Joachim Jeremias tinha escrito em seu esforço por captar a
viçosa intimidade e o caráter espontaneamente imediato transmitidos quando
a palavra foi usada para se dirigir a Deus. Eu havia ouvido a palavra usada nos
sermões por pastores e explicada nas salas de aula por professores. Eu havia
ouvido a palavra toda a minha vida, mas sempre em um ambiente “religioso".
E agora eu a estava ouvindo nesse terminal de aeroporto, na Alemanha,
impessoalizado e dominado pela tecnologia, proferida por uma criança que
eu não conhecia para se dirigir a um homem que eu desconhecia. A palavra
não me dizia nada sobre o filho ou sobre o pai — mas me dizia tudo o que
precisava saber sobre o relacionamento deles: seu caráter imediato, sua inti-
midade, sua alegria.
A palavra ganhou vida — uma ressurreição. O sentido eu conhecia de
longa data; agora presenciara o sentido vivido, encarnado na cena de um filho
correndo para os braços do pai para se saudarem um ao outro nesse aeroporto
de Frankfurt. Ouvi “pai” não no tratamento formal a uma deidade anônima,
mas nos gritos de reconhecim ento de uma criança. Muitas vezes eu havia
encontrado "pai” em contextos acadêmicos, em torno de mesas cobertas de
dicionários, léxicos e estudos exegéticos. Mas nunca tinha ouvido a palavra
usada no con texto vivo de um filho saudando o pai cheio de felicidade e
JESUS ORA CONOSCO ‫ ו‬87

confiança. Nunca tinha ouvido a palavra cantar. Senti como se tivesse retor-
nado no tempo, agora naquela colina galileia, na companhia de Jesus enquanto
orava com seus seguidores, no jardim com Jesus enquanto ele orava em meio
ao tormento de sua Paixão, adorando com os cristãos gálatas e romanos en-
quanto se viam incluídos nas orações de Jesus todas as vezes que oravam Aba,
“Pai nosso que estás nos céus!”.

#**

Essa oração com põe-se de seis petições breves, de uma só frase cada uma.
Cada verbo é um imperativo, um chamado à ação. A oração não é passiva. A
oração não é resignação. Deus é ativo. Quando Jesus ora, ele entra na ação
de Deus. Quando ora conosco, implicitamente nos convida à ação. Quando
oramos com ele, oferecemo-nos como voluntários na ação.

“Santificado seja o teu nome.”


Deus tem um nome. Ele se revela com um nome: Javé. O nome entra em
nossa história e revela o ser de Deus conosco, continuamente, à medida que
ele chama nossos nomes — Abraão, Moisés, Samuel, Maria, Pedro. Deus não
é anônimo. Deus não é um princípio. Deus tem um nome.
A oração é a linguagem usada para se dirigir a um Deus que se revelou a
Moisés e em Jesus. A oração não é uma mensagem “de destinação geral”. Não
é uma missiva "a quem possa interessar”.
E esse nome é santo. Santidade é a qualidade inigualável de alteridade que
deixa Deus além e à parte de nós — um álter, outro, em relação a nós. Deus
não é como nós. Não somos como Deus. O primeiro pecado, e continua a ser o
pecado mais fundamental, é atrever-se a ser “como D eus” (Gn 3:5). Tentamos
isso rebaixando Deus ao nosso nível, reduzindo-o à nossa imagem. Tentamo-lo
construindo e depois escalando uma torre de Babel que nos eleve ao nível de
Deus. Qualquer uma dessas formas é uma tentativa de eliminar a alteridade,
de nos livrar do Santo. E nenhuma delas funciona.
Se supusermos, seja na cândida inocência, seja na insolência luciferina, que
a oração é uma maneira de trazer Deus para o nosso nível ou de elevar-nos ao
nível de Deus, estamos muito fora da trilha.
188 A LINGUAGEM DE DEUS

* * *

Mencionei o prazer que tive em ouvir “Aba” sendo usado como termo infantil
de afeto por seu pai no terminal de uma companhia aérea em Frankfurt. E
mencionei que o estudioso alemão Joachim Jeremias tinha tentado fornecer
uma nova apreciação da espontaneidade pueril transmitida pelo vocábulo
“Aba”. Joachim Jeremias tentou defender a ideia de que o sentido de “Aba” era
algo próximo a "papai”. Sua hipótese foi acolhida com entusiasmo por muitos.
A informalidade aconchegante do termo viu-se sendo usada em sermões e em
ensinos por toda parte. Era feita sob medida — e sob uma autoridade acadêmica
auspiciosa, o ilustre Joachim Jeremias! — para uma cultura intranquila com
a autoridade, anti-hierárquica e desejosa de se relacionar com todo o mundo
pelo primeiro nome, ou até pelo apelido. E agora com Deus.
Depois o acadêmico de Oxford James Barr deu um banho de água fria no
que discerniu como nada mais que um aconchego sentimentalizante. Demons-
trou persuasivamente que Jeremias estava vergonhosamente equivocado.1
Mas já era tarde demais. Já se haviam perdido as rédeas. O erro, aconchego
tomando o lugar da santidade, continua aparecendo tanto nos escritos acadê-
micos quanto populares.
Há, sem dúvida alguma, uma intimidade e um deleite pueris no uso de “Aba”.
Mas a palavra também continua a carregar um elemento de admiração, respeito
e reverência. Não deixo de ser criança na presença de meu pai. A alteridade não
é minimizada pelo afeto. A intimidade não obstrui a reverência. A intimidade
verdadeira não elimina uma santa admiração: alteridade, Alteridade.
A moda do “Papai” que ainda está arrebatando nossas igrejas é um caso
de intimidade prematura. Não começamos nos sentindo aconchegados com
Deus. Começamos com uma reverência solene: Santo.
Na primeira petição, Jesus dá início com um verbo que nos faz começar
com o pé direito e nos põe numa postura de respeito reverente, uma postura
de admiração — uma admiração afetuosa, com certeza, mas ainda assim admi-
ração. “Tire as sandálias dos pés; pois o lugar em que você está é terra santa”
(Ex 3:5). A primeira petição protege o terceiro mandamento: “Não tomarás
em vão o nome do SENHOR, o teu D eus” (Ex 20:7).
JESUS ORA CONOSCO ‫ ו‬89

* * *

Por vários anos, fiz parte de um grupo em Baltimore chamado Mesa Redonda
Judaico-Cristã. Eramos vinte, reunidos todo mês: dez rabinos ortodoxos e dez
pastores e sacerdotes. Basicamente fazíamos um estudo bíblico alternando a
condução do estudo entre um judeu e um cristão. Os rabinos sempre traziam
uma cópia impressa do texto hebraico que estudaríamos juntos. E sempre to-
mavam as folhas de volta ao final — meticulosamente. Observei que sempre
contavam as folhas para se certificar de que nenhuma estava faltando. Um
dia perguntei ao rabino responsável o que eles faziam com as folhas depois.
Ele disse que as levava para casa e as queimava reverentemente. Informou
que se tratava de uma tradição deles. Não lhes era permitido deixar o nome
santo nas mãos de gentios, para que não fosse usado inadvertidamente, nem
tratado com irreverência ou mesmo de modo blasfemo.
Minha reação imediata foi negativa, embora não tenha dito nada. Não
seria isso excesso de escrúpulos? Mas, à medida que o tem po foi passando,
com ecei a sentir o peso da reverência deles, essa santificação do nome. A
experiência continua em minha lembrança com o uma repreensão implícita
da volubilidade com que o nome é muitas vezes jogado para cá e para lá nos
círculos que frequento. E muitas vezes ainda penetra minha m ente quando
oro “Santificado seja o teu nom e”.

***

A palavra "Deus” encerra bondade, santidade e glória. Mas no uso diário ela
acaba sendo desfigurada pela superstição, muitas vezes sem que se pense a
respeito. As pessoas leem na palavra “D eus” temores, ignorância e blasfêmia.
O nome precisa sempre ser lavado e polido. Quando oramos pedindo que
seja santificado, estamos pedindo que se remova das palavras usadas para
chamar a presença de Deus qualquer mancha de sacrilégio, para purificar das
imagens que enchem nossa mente qualquer sugestão de idolatria, para raspar
0 substantivo e deixá-lo livre da ferrugem e do encardimento até que Jesus e
Cristo digam a verdade clara acerca de Deus.
190 A LINGUAGEM DE DEUS

“Venha o teu R ein o...”


Ao orarmos, percorrendo as seis petições na companhia de Jesus, com Jesus
orando ao nosso lado, descobrimos que a realidade do mundo, a verdadeira
natureza daquilo com que lidamos no dia a dia, está sendo redefinida para
nós. Antes de qualquer coisa, o Santo: o Deus diferente de nós; o Deus que
não podemos usar para nossos fins; o Deus que não podemos aspirar a ser para
que possamos impor nosso governo ao mundo.
E agora o reino: com o o mundo é e como ele opera. Reino é uma metáfora
para um mundo governado por um soberano, um rei. A utilidade disso na
oração é sua capacidade de abranger e encerrar a tudo e a todos: geografia
(montanhas, rios, oceanos, florestas, vulcões, areia do deserto e geleiras pola-
res), clima (chuva e neve, relâmpago e granizo, luz do sol e nuvens), estações
(verão e inverno, primavera e outono), pessoas e povos (raças e línguas, fa-
zendeiros e banqueiros), sistemas políticos (ditaduras, democracias, Estados
socialistas, dinastias), econom ias (com unism o, capitalism o, com ércio de
troca). Simplesmente tudo.
Quando oramos, estamos nos envolvendo deliberadamente em uma rea-
lidade detalhadamente criada por Deus e sob os cuidados dele. As primeiras
palavras dos lábios de Jesus quando lançou seu ministério público foram “O
tempo é chegado [...] o Reino de Deus está próximo” (Mc 1:15). O termo
“reino” tinha um longo histórico de emprego entre os hebreus. Jesus agora
o põe de novo em foco. O que ele disse no texto de seu evangelho inaugural
naquele dia memorável na Palestina do século 1 foi: “Esse reino sobre o qual
vocês têm escutado todos esses séculos está aqui. Escutem-me com cuidado.
Prestem bastante atenção em mim. Unam-se a mim com confiança. Estou
aqui para fazer a obra do reino e quero que se unam a mim nessa obra. Quero
que trabalhem ao meu lado”.
Não muito depois disso, na primeira oração que ele ensinou a seus segui-
dores, ele disse, por sinal: “É a própria obra de Deus que estou fazendo e os
quero participando dela de corpo e alma. Não apenas como espectadores, ou
admiradores, ou torcendo por ela. Quero que essa vida do reino esteja dentro
de vocês — quero que orem comigo para que o reino venha”.
JESUS ORA CONOSCO 191

Quando oramos "Venha o teu Reino...”, interiorizamos o que vem os e


ouvimos Jesus fazer e dizer e disso participamos.
O reino de Deus que Jesus anuncia como presente, aqui e agora, não é uma
fatia religiosa da torta do mundo na qual Deus tem especial interesse e para a
qual recruta a nós, seus seguidores, para dela participar e nos encher, um mundo
que se especializa em oração e adoração, dando testemunho e realizando boas
obras. Não] Ele compreende a tudo e a todos. Não há nenhum outro mundo.
Há elem entos no mundo que estão em rebelião contra o reino. Há partes
do mundo que desconhecem o reino. Não importa. O que Jesus inaugura e
proclama é realidade atual e abrangente. Nada ocorre fora do reino de Deus.
Quando oramos, “Venha o teu Reino...”, identificamo-nos e oferecemo-nos
como participantes neste mundo em que Deus governa em amor e salvação.
Implícito na petição está “Vá o meu reino...”. Deus jamais abdicou de seu
trono. Sob as condições nas quais seu reino é muitas vezes negado, diariamente
desafiado, não raro desconsiderado, oramos: “Venha o teu Reino...”.
Aqueles de nós que crescem sob governos democráticos normalmente se
consideram os mais afortunados por viverem num governo eleito, não imposto,
que melhor atende à condição humana. E pode ser de fato uma boa coisa.
Mas carrega consigo o hábito de pensar que o melhor governo, incluindo-se
o governo de Deus, funciona em bases democráticas. Eis um hábito difícil de
romper. Deus não é um presidente ou primeiro-ministro de uma democracia.
Deus é rei. “O S en h o r reina! [...] O teu trono está firme desde a antiguidade”
(SI 93:1-2). Deus é soberano. Esse é o testemunho garantido e muitas vezes
manifesto nas Escrituras de Gênesis a Apocalipse. Mas não há nenhuma ana-
logia terrena ao trono e ao reinado de Deus. Não é imposto; não é despótico.
Todas as nossas necessidades e anseios, nossas lágrimas e desejos, nossas pe-
tições e louvores são absorvidos pelo reinado de Deus. E uma soberania que
convida nossa participação. Compartilhamos de seu reinado, mas é seu reinado.
Assim, quando oramos “Venha o teu Reino...”, fazendo a petição com Jesus
orando ao nosso lado, estamos ao mesmo tem po afirmando implicitamente o
reinado conforme revelado em Jesus. E deixamos de criticar tudo o que não
podemos compreender ou não aprovamos. Muitas parábolas de Jesus fornecem
introspecções sobre esse reino — e precisamos de toda a ajuda possível. Pois é
192 A LINGUAGEM DE DEUS

um mistério como Deus exerce sua soberania. A soberania de Deus raramente


é óbvia. A obscuridade é um terreno fértil para comentários a contragosto:
“Se eu fosse Deus, não é assim que eu faria". Mas não sou Deus. D eixe Deus
ser Deus.
O reino pelo qual oramos jamais pode ser captado pelo que lem os nos
jornais ou nos livros de história — às vezes mesmo nos livros de teologia. Mas
pode ser discernido por meio das nossas orações. Deus reina a partir dos céus,
realizando sua obra criadora, salvadora, abençoadora por trás dos bastidores e
a partir da cruz. Adquirimos um senso daquilo que traz coesão ao reino e lhe
dá forma, quando escutamos as histórias e fazemos as orações que compõem a
revelação — especialmente as histórias e as orações de Jesus.
Se não escutarmos atentamente as palavras de Jesus em todo o contexto
da história de Israel e de Jesus, a palavra “reino” pode facilm ente nos de-
sencaminhar. Se permitirmos que nossa cultura e política definam a palavra,
pensaremos primordialmente nas definições jornalísticas de poder, influência
e fama. Se ao menos minimamente começarmos a pensar no reino sem levar
em conta o contexto bem documentado de Jesus, facilmente pensaremos que
o reino pelo qual estamos orando está em competição com os reinos tratados
em nossos livros da história e relatados em nossos acontecim entos atuais.
Então não demorará muito para começarmos a pensar em formas de superar
as técnicas de controle que vemos em operação nos negócios e na indústria,
no governo e na guerra, e assim entrar numa com petição com essas formas
dentro das condições por elas impostas. Mas o reino do qual estamos parti-
cipando quando oramos “Venha o teu Reino...” não está em competição com
os reinos dos Estados Unidos, ou da IBM, ou da Honda, ou da Microsoft. Ele
na verdade os subverte.
Jesus foi o mais claro possível sobre o assunto quando esteve em julgamento
perante Pilatos por supostamente liderar uma insurreição contra o Império
Romano. O que ele disse foi: “O meu Reino não é deste mundo. Se fosse, os
meus servos lutariam para impedir que os judeus me prendessem. Mas agora
o meu Reino não é daqui” (Jo 18:36). Jesus não repudia o termo "reino”; ele
o recontextualiza. Jesus não repudia o título “rei”; ele o subverte. E é nesse
contexto, esse contexto de total imersão nas histórias de Jesus e nas orações
de Jesus, que oramos: "Venha o teu Reino...”.
JESUS ORA CONOSCO 193

Precisamos tomar o cuidado de não isolarmos o termo “reino” e o conceito


da soberania do Jesus que nos ensina a orar "Venha o teu Reino...”. Jesus tam-
bém demonstra como o reino de Deus é exercido. E a cruz de Jesus fornece
o foco. Pois esse não é um reino imposto a nós ou a qualquer pessoa. É um
reino que passa a existir à medida que de boa vontade obedecemos e imagi-
nativamente oramos nossa participação no reino. A soberania impaciente de
um ditador não permite a não participação. A soberania de nosso Pai pacien-
tem ente, misericordiosamente, espera uma obediência que adora.
As preposições de Jesus são importantes: seu reino não é deste mundo.
Ele emprega a preposição “d e” duas vezes em sua conversa com Pilatos. Seu
reino não se origina deste nem da ideia deste sobre com o a soberania opera;
não está sujeito aos votos deste mundo. Mas tudo o que sabemos sobre Jesus
por m eio de suas histórias e orações informa-nos que seu reino em tudo,
e friso em tudo, se relaciona com este mundo. A ação do reino e a vida do
reino operam a partir do fundamento do amor de D eus pelo mundo e de
sua salvação do mundo.
Ao orarmos a segunda petição em participação com Jesus, que a ora co-
nosco, não isolaremos o reino pelo qual estamos orando do rei desse reino
que está orando conosco por sua concretização. Na caracterização sucinta de
Paulo sobre o reino como “justiça, paz e alegria no Espírito Santo” (Rm 14:17),
não há nenhum repúdio do mundo como tal, mas uma persistente invasão de
fermento, sal e luz no mundo. Deus reina poderosa e eternamente "Não por
força nem por violência, mas pelo meu [de Deus] Espírito” (Zc 4:6). Cristo
é rei, verdadeira e literalmente — mas numa cruz.
Mantendo-nos em companhia com Jesus (mas somente mantendo-nos em
companhia com Jesus) enquanto oramos “Venha o teu Reino...”, oraremos
ousadamente. Sabemos que estamos envolvidos numa participação detalhada
na salvação do mundo. Essa ousadia não é o mesmo que arrogância. Ela é pu-
rificada por um extremo recato. Não inventamos nossas próprias estratégias
e depois empregamos um espírito autoconfiante para fomentar visões altivas
de um reino que usa espadas, dinheiro, celebridade e glamour para combater
os principados e as potestades segundo o jogo deles.
194 A LINGUAGEM DE DEUS

" ... seja feita a tua vontade..."


A terceira petição é feita dentro de uma história maior de orações que
participam da realização da vontade de Deus. Trinta anos antes de Jesus
nos dar essa petição, Maria foi informada de que ficaria grávida e daria à luz
Jesus. Na ocasião, ela fez uma oração semelhante a essa que aqui Jesus nos
convida a fazer junto com ele. O anjo Gabriel tinha acabado de aparecer a
Maria e dito a ela: "Você ficará grávida e dará à luz um filho, e lhe porá 0
nome de Jesus” (Lc 1:31). Essa é a primeira vez que Jesus é mencionado pelo
nome na história do Evangelho. Maria está com preensivelm ente perplexa.
Gabriel a tranquiliza em sua confusão. Ele amplia o anúncio que faz desse
nascimento situando a concepção dessa criança no amplo contexto do reino
de Deus: “[Jesus] reinará para sempre sobre o povo de Jacó, seu reino jamais
terá fim” (Lc 1:33).
Seja ou não anjo, Gabriel obviamente desconhece os fatos da vida. Maria
fornece as informações necessárias, dizendo que é virgem. Mas Maria des-
conhece os fatos do reino. Gabriel fornece as informações necessárias: “0
Espírito Santo virá sobre você...”. Por mais que esteja certa quanto aos “fatos
da vida”, Maria não insiste. Abre-se para o anúncio do rei e do reino feito por
Gabriel e ora, para todos os efeitos, seja feita a tua vontade: “Sou serva do
Senhor; que aconteça comigo conforme a tua palavra” (Lc 1:38).
A oração de Maria pedindo que a vontade de Deus seja feita é atendida:
Jesus é concebido e nasce. E agora, trinta anos depois de ela orar, Jesus, que
era a vontade de Deus para Maria, faz a mesma oração com seus discípulos.
Três anos mais tarde, Jesus faz a mesma oração no Getsêmani: “não seja
feita a minha vontade, mas a tua” (Lc 22:42). Essa oração também é aten-
dida; a vontade de Deus é feita: Jesus é morto e torna-se o Rei ressurreto
do reino.

***

Estou situando a terceira petição da oração entre a Anunciação e o Getsêmani


para insistir no fato de que a petição está completamente inserida no contexto
da vida de Jesus. A oração "... seja feita a tua vontade...” não pode ser retirada
JESUS ORA CONOSCO 195

do contexto de Jesus, suas historias e suas orações, para depois ser usada como
bem entendemos. Precisamos mantê-la na historia e nas orações, da mesma
forma que precisamos manter a nós mesmos na historia e nas orações.
Todos vivemos com familiares, amigos e vizinhos que fazem muitas pergun-
tas sobre “a vontade de Deus". Não mantenho estatísticas nessas questões, mas
numa vida inteira ousaria dizer que essas perguntas estão no topo da lista das
perguntas mais feitas pelos cristãos. E doloroso ter de dizer isso, mas existe
uma quantidade enorme de insinceridades e de tolices simplesmente, escritas
e proferidas sobre a causa de Cristo. Boa parte delas diz respeito a assuntos
reunidos sob a categoria “vontade de D eus”.
A expressão “vontade de D eus” talvez seja um dos termos mais sombrios
do vocabulário cristão. Vivemos em uma época em que o ar está tomado de
comentários descuidados sobre a vontade de Deus. Infelizmente, muitíssi-
mos desses comentários não têm nem enraizamento bíblico, nem integridade
teológica. O que é estranho, porque a Bíblia não poderia ser mais clara sobre
0 assunto. Ainda assim, normalmente usamos "vontade de D eus” como nada
mais que um clichê desprovido de conteúdo. Em outras ocasiões, isolada da
oração de Jesus, ela transmite um mergulho perplexo num redemoinho de
ansiedades. Para alguns, ela afixa um cartaz dogmático de “Proibida a entrada”,
o qual elimina tanto a reflexão quanto a oração. Para outros ainda, ela rabisca
um enorme ponto de interrogação sobre o passado e o futuro e nos deixa
patinando no “santo agora”, no qual levamos toda a nossa vida de verdade.
Usar a palavra "vontade” em relação a Deus não tem nada de esotérico.
Em nada difere do modo normal em que usamos a palavra entre nós. Vontade
relaciona-se com intenção, com propósito. Sem a vontade, levamos uma vida
cheia de sinuosidades. Também diz respeito a energia. Sem a vontade, levamos
uma vida indiferente.
Quando nos referimos a uma pessoa que vive com “vontade”, normalmente
não a imaginamos levando consigo um plano e somente realizando aquilo que
está especificado no plano, e depois intimidando espectadores ignorantes ou
rebeldes a que se submetam. E, quando falamos de alguém que vive de boa
vontade, não imaginamos alguém que faça somente o que é especificado numa
descrição de tarefas. A palavra não sugere nem um “acompanhar o curso dos
196 A LINGUAGEM DE DEUS

acontecimentos" de modo subserviente, nem uma submissão relutante quando


diante de uma coação.
A objeção que brota da Bíblia e mais específicamente do Evangelho a essa
versão da vontade de Deus como “plano” é que ela impessoaliza o que é funda-
mentalmente um relacionamento — "Pai nosso...” — , transformando-o em algo
frio e sem vida, sem ambiguidades, sem conversas. As versões da oração que
pede a vontade de Deus como “plano” são uma paródia zombeteira da oração.2
O conselho maduro, lúcido e duradouro de nossos melhores pastores e teó-
logos é o seguinte: mantenha a oração de Jesus "... seja feita a tua vontade...”
no contexto da oração conforme ela é historiada nas Escrituras Sagradas. Pare
de especular sobre a “vontade de D eus” e simplesmente cumpra-a — como
fez Maria, como fez Jesus. "Vontade de D eus” jamais é uma questão de con-
jecturas. Ela direciona o holofote para a obediência cheia de fé.

" ... assim na terra como no céu.” (Interlúdio.)


Tudo na vida de oração diz respeito a esta vida “na terra”.3 A oração é a coisa
mais "mundana” que fazemos. As três primeiras petições estão todas relaciona-
das com a forma em que participamos daquilo que Deus já está realizando em
Cristo pelo Espírito Santo. Deus age na criação, na salvação, na bênção — na
terra. Está agindo em nossos lares e locais de trabalho, em nosso governo e
escolas, em nossas prisões e igrejas, nos navios em alto-mar e em automóveis
nas estradas, entre os famintos e pobres, entre os recém-nascidos e os que
estão à beira da morte. Faça sua própria lista. Introduza os nomes que você
tem. E depois os ore.
O céu é o lugar onde tudo começa. O céu é o lugar onde tudo termina.
O céu é a nossa metáfora para aquilo que está além de nós, além de nossa
compreensão, além do que podemos ver, ouvir, provar e tocar, além e fora
do alcance daquilo que podemos controlar. A terra é onde desempenhamos
a nossa parte, o lugar onde o que não vemos e o que vemos se unem e se tor-
nam criação, salvação e santidade. As polaridades da realidade, céu e terra,
fundem-se: "... assim na terra como no céu”.
A revelação mais completa de "... assim na terra como no céu ” é Jesus, as
histórias de Jesus e as orações de Jesus. Todas as histórias e todas as orações
JESUS ORA CONOSCO 197

de Jesus começam no céu, mas ocorrem na terra. Nossas histórias e nossas


orações são nossa participação voluntária e obediente naquilo que nasce no céu
e ocorre na terra. Mas nossas histórias precisam ser vividas e nossas orações
feitas de dentro da história e das orações relacionadas ao que Deus faz no céu
e na terra em Jesus. Na linguagem que aprendemos nas Escrituras e com Jesus,
o céu e a terra são distintos, mas não separados. O céu e a terra são uma uni-
dade orgânica. Nenhuma parede de ferro os separa. Tudo no céu — a beleza,
a bondade, as aleluias, os améns, a santidade, a salvação, o cavalo branco e 24
anciãos, o Cordeiro que foi morto e as bodas, a cidade quadrangular e o rio
da vida — tudo ocorre na terra.
“... assim na terra como no céu ” expressa o aspecto prático fundamental,
o aqui e agora que está presente em cada oração que fazemos. A oração não é
uma fuga do que está ocorrendo ao nosso redor. E uma participação corajosa
em cada detalhe terreno. A oração não é um exercício preparatório que nos
põe em forma para a alegria celeste. Teresa dizia: “todo o percurso em direção
ao céu é céu ”. Então, por que esperar?

“Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia. ”


Dobramos uma esquina. As primeiras três petições tornam-nos participantes
no ser e na ação de Deus. Jesus ora conosco e, ao fazê-lo, nos torna partid-
pantes com ele da obra do céu na terra, companheiros com ele na santificação
do nome de Deus, na vinda do reino de Deus, na execução da vontade de
Deus. D eus está no céu. O céu é onde tudo começa. Jesus começa lá. Na
companhia de Jesus, nós começamos lá. Não estamos acostumados com isso.
Temos um hábito vitalício de começar com “uma lista de necessidades” que
desenvolvemos enquanto sim plesm ente nos ocupamos de atravessar a rua.
De forma indireta, mas categórica, as três petições renunciam às listas de
necessidades: querer ser “como D eus”, querer usar Deus como assistente à
medida que assumimos o controle de “nosso” reino, querer ter acesso aos cha-
mados segredos da oração (os planos) a fim de ir em busca de nossas próprias
vontades, nossa voluntariosidade.
As três petições reorientam nossa vida, nossa imaginação e nossa linguagem
em direção à presença e à ação de Deus. Se nos ativermos a isso o tem po
198 A LINGUAGEM DE DEUS

suficiente, fizermos disso um hábito, de forma lenta mas segura nosso egocen-
trismo congênito será radicalmente reformado num teocentrismo.

***

Agora chegamos a uma mudança significativa de pronomes. As três primeiras


petições estão enraizadas no “teu/tu a” celeste e divino: teu nome, teu reino,
tua vontade. A oração nos envolve naquilo que D eus está realizando. Os
últimos três pronomes deslocam-se para o “nos” terreno e humano: dá-nos,
perdoa-nos, livra-nos. A oração envolve Deus naquilo de que necessitamos
para viver para sua glória.
A oração envolve-nos profunda e responsavelmente em todas as operações
de Deus. A oração também envolve Deus de forma profunda e transformadora
em todos os detalhes da nossa vida.

***

Começamos pelo corpo. Somos criaturas de carne e sangue. Precisamos de


pão para viver. Pão diário. Pão fresco. Comida. Somos almas destinadas à
eternidade, mas essas almas incorporadas com sistemas digestivos. Se não
comemos, não oramos.
Somos seres humanos criados à imagem de Deus, seres espirituais destina-
dos à glória celeste — mas a primeira coisa de que necessitamos para viver essa
existência gloriosa é o pão — não “só de pão”, é verdade, mas pão em primeiro
lugar. Nosso corpo não é uma reflexão tardia, descuidada, no esquema da cria-
ção. Ele completa a criação. E esse corpo, com todas as necessidades associadas
a mantê-lo saudável e em bom estado de conservação, é criado por Deus. Esse
corpo necessita de pão, juntamente com os princípios básicos associados ao
abrigo, ao vestuário e aos banhos, tudo tão típico do corpo. Independentemente
de nossa inteligência, nossa beleza, nossa utilidade, nossa justiça e da preciosi-
dade de nossa alma eterna, precisamos de pão. Não somos anjos.
De tempos em tempos, surgem casos de "angelismo“ em nosso meio. Ocor-
rem em pessoas que tentam ser mais espirituais que Deus ao servir a Deus.
JESUS ORA CONOSCO 199

O corpo, tido com o inferior em relação à alma, é mais ou menos tolerado até
que, como diz o negro spiritual, “voemos para longe daqui”. O angelismo é
uma distorção da vida cristã muito censurada por nossos santos do passado.
“Dá-nos [...] pão” — e Jesus, lembre-se, faz parte desse “nos” — proscreve
o angelismo com o opção para qualquer vida vivida na terra. Não é possível
haver nada mais ligado aos sentidos, mais material ou fundamental do que o
pão — seu aroma fermentado, sua crosta tostada, seu rico sabor.
Orar pedindo pão é o reconhecimento da nossa necessidade. Somos criaturas
interdependentes nessa enorme e intricada maravilha da criação, em que tudo e
todos se relacionam e entram em contato com tudo e com todos. Quando oramos
pedindo pão, fazemos uma declaração seguramente antiamericana de dependên-
cia. Não trazemos em nós mesmos o fato de sermos nós mesmos. Renunciamos
à tola pretensão de bancarmos aqueles que se fazem na vida pelo esforço
próprio. Humildemente, tomamos o nosso lugar “na grande corrente do ser”.

* * *

A oração que pede pão, no entanto, é mais que um reconhecimento da nossa


necessidade. E uma forma de abraçar com gratidão uma criação boa e o nosso
lugar na ordem criada.
Não é incomum que nos irritemos com o fato de necessitarmos das coi-
sas. Ter de pedir ajuda é uma admissão de que não podemos fazer as coisas
sozinhos, de que não estamos no controle. Há algo em nós — poderiamos
chamá-lo o gene de Lucifer em nosso D N A — que preferiría nunca ter de
pedir ajuda.
O consumismo é um narcótico que embota a consciência de estarmos em
necessidade. Ao comprar o que precisamos, assumimos o controle de nossa
vida. Substituímos um senso de necessitar de algo por um senso de posse, e
assim desaparece o nosso senso de precisão.
A tecnologia é um narcótico. Ela impessoaliza as necessidades, transfor-
mando-as em algo que possa ser manejado por uma máquina ou por um dis-
positivo. Substituímos um senso de necessitar de algo pela satisfação de estar
no controle: “Eu administrarei as minhas próprias necessidades, obrigado".
200 A LINGUAGEM DE DEUS

O dinheiro e as máquinas anestesiam nosso senso de necessitar das coi-


sas. Eles nos põem no comando, no controle. Enquanto houver dinheiro e
as máquinas estiverem em bom estado, não tem os de orar. Mas há um alto
preço a pagar. Os narcóticos diminuem a capacidade para os relacionamentos
pessoais. Os narcóticos embotam e por fim matam a capacidade para viver,
sentir, amar, apreciar. E orar.
Quando escolhemos viver sem a plena percepção dos limites impostos pelo
fato de tão basicamente necessitarmos das coisas, falseamos nosso lugar na
intricada e maravilhosa bondade de nossa criação, o que os salmistas come-
moram como a “terra dos vivos”. A recusa em trabalhar dentro dos limites
é uma recusa teimosa e rebelde em receber a vida com o um presente. As
necessidades não são limitações que prejudicam, rebaixam ou enfraquecem
nossa vida. As necessidades preparam-nos para uma vida de receptividade,
para uma prontidão em receber o que só pode ser recebido como presente. As
necessidades abrem a porta para essa vasta complexidade ecológica de troca
entre céu e mar, trevo e abelha, homem e mulher, cavalo e carruagem. As
necessidades não nos reduzem a "meras” criaturas; elas fornecem as circuns-
tâncias em que podemos viver numa relação recíproca com flores-do-campo
e pica-paus, com filhos e filhas, com pais e avós. As limitações inerentes às
necessidades protegem-nos das ilusões de grandeza e das isolações do orgulho
egoísta. As limitações de nosso estado criado são convites para vivermos em
uma dinâmica generosa e receptiva na vida animal que sobeja ao nosso redor.
Os limites não nos limitam de sermos inteiramente humanos. Apenas nos
limitam de sermos Deus.
Um violinista não reclama que seu violino tenha somente quatro cordas.
Um poeta não lança insultos por causa do limite de onze ou catorze versos
no soneto que está escrevendo. Cada limite assim chamado é acesso a um
presente, um presente de amor, um presente de beleza, todos os presentes
ofertados, para serem recebidos de mãos abertas.
Será que queremos viver sem necessidades? Então queremos viver sem
Deus. Nossas necessidades são um convite contínuo a vivermos em uma rea-
lidade de doação e recepção de presentes. “Peçam, e lhes será dado; busquem,
JESUS ORA CONOSCO 20 ‫ו‬

e encontrarão; batam, e a porta lhes será aberta” (Mt 7:7). “A graça de Deus
significa algo como ,Aqui está sua vida’. Você podería nunca ter existido, mas
você existe, porque a festa não estaria completa sem você. Aqui está o mundo.
Coisas bonitas e terríveis acontecerão. Não tenha medo. Eu estou com você.
Nada jamais nos poderá separar. Foi para você que criei o universo”.4 Vivemos
em um mundo cheio da graça. Assim, “Dá-nos...”.

“Perdoa as nossas dívidas, assim como perdoamos aos nossos devedores.”


D eus dá. A vida é um presente. "Porque D eus tanto amou o mundo que
d eu ...” (Jo 3:16). Dar e receber é norma na criação de Deus. O mundo é
assim. Mas não é normativo na comunidade humana. Há muita coisa errada
entre nós.
A graça em que estamos imersos é continuamente obscurecida pelo pe-
cado, o oposto da graça. O pecado é antipresente e antipessoal. O pecado
rompe ou sabota um relacionamento vivo. Em vez de receber, tiramos à força.
Concluímos não gostar do pão que é posto em nosso prato, que é lançado ao
chão para pegarmos à força a cremeira de sorvete de nossa irmã. O mundo da
graça, que requer uma disposição pessoal, aberta de pedir humildemente e
receber gratamente, é deixado de lado em troca de um mundo impessoalizado
de manipulação, violência, eficiência e controle. As palavras são impessoali-
zadas em propagandas. O sexo é impessoalizado em pornografia. A política é
impessoalizada em opressão. O poder é impessoalizado em guerra. É o que
mais fazemos. E assim carecemos de perdão.
Perdoa-nos as nossas dívidas. Perdoa-nos nossa falta de sinceridade com o
próximo. Perdoa-nos por recusar os presentes que nos são dados e por roubar
o que não nos pertence. Perdoa-nos por usar o dom da língua para enganar.
Perdoa-nos por usar o dom da sexualidade para seduzir. Perdoa-nos por usar
o dom da força para abusar e assassinar. Perdoa-nos por usar o dom da abun-
dância para empobrecer o outro. Paulo retoma o tema, repetindo a quinta
petição: “Perdoem como o Senhor lhes perdoou” (Cl 3:13).
202 A LINGUAGEM DE DEUS

“Pecado” é a palavra genérica para o que está errado conosco e com o mundo.
Parece não ter fim a extensão e a criatividade com que a humanidade trata mal
o mundo, a nós mesmos e aos outros. A taxonomía do pecado é impiedosamen-
te deprimente: dividas, mal, perversidade, delito, injustiça, culpa, transgressão,
impiedade, desobediência, rebelião, alienação. Há mais de cinquenta palavras
bíblicas traduzidas por pecado no hebraico bíblico.
Mas desmascarar e classificar o pecado não está no centro da vida vivida
para a glória de Deus. O sensacionalismo não é a obra do evangelho. A caça
às bruxas não é a obra do evangelho. A execração dos proscritos não é a obra
do evangelho. O perdão dos pecados é a obra do evangelho.
Quando nos vemos diante da confusão do pecado, Jesus ora conosco. Não
manda que peguemos um esfregão, um balde e um escovão para que nos possa
mostrar com o esfregar o pecado de nossa vida, da vida de nosso cônjuge e
filhos, da vida de nosso próximo. Ele não nos instrui sobre com o engatar uma
mangueira de poder do Espírito Santo para limpar a corrupção nos corredores
do governo, o sacrilégio em nossas igrejas, a descrença em nossas escolas. Jesus
não se posiciona à distância em relação à bagunça em que nos encontramos. Ele
une-se a nós onde estamos, atolados na lama do pecado (“[se] tornou pecado
por nós”: v. 2Co 5:21). Ele toma seu lugar ao nosso lado e nos convida a orar
com ele: “Perdoa[-nos]...”
Deus não trata do pecado eliminando-o de nossa vida com o se fosse um
micróbio ou camundongos no sótão. Deus não lida com o pecado por ampu-
tação, com o se fosse uma perna em gangrena, deixando-nos aleijados, uma
santidade de muletas. Deus trata do pecado perdoando-nos, e, quando nos
perdoa, há mais de nós, não menos.

* * *

O pecado é uma recusa ou uma falha em estarmos numa relação pessoal com
o D eus vivo e pessoal; e, assim, o perdão do pecado não pode funcionar
com alguma definição de dicionário do pecado, mas som ente em um ato
profundamente pessoal que restaura o relacionamento íntimo. O pecado que
nega o pessoal só pode ser tratado pessoalmente.
JESUS ORA CONOSCO 203

Deus é pessoal, enfaticamente pessoal. A Trindade é a maneira mais abran-


gente e profundamente escriturística que tem os de compreender com o Deus
pode ser Deus Pai, Filho e Espírito Santo. Todas as operações da Trindade são
pessoais. Não há nada, absolutamente nada, que seja abstrato ou impessoal
em Deus, o Deus vivo. E é de sua vontade que não haja um só osso abstrato
ou impessoal no corpo de Cristo, a igreja.
Assim, para que se possa fazer algo em relação ao pecado, não será com
leis e regras, códigos e regulamentos. Deus e cada homem e mulher criados
por Deus na terra são inerentemente pessoais e só podem estar engajados em
relacionamentos pessoais. Somos uma pessoa, uma pessoa criada à imagem de
Deus. O pecado é uma violação da natureza pessoal essencial da vida humana
de uns para com os outros e em relação a Deus. Não pecamos contra um
mandamento; pecamos contra uma pessoa. O pecado não é uma ofensa contra
a justiça; o pecado é uma ofensa contra uma alma vívente. O pecado não é
indecência sexual; o pecado é o aviltamento de um homem, de uma mulher,
de uma criança. O pecado não é uma violação da lei da terra ou das regras de
uma casa; o pecado é a violação de um relacionamento pessoal.
E, assim, Jesus fica ao nosso lado e ora conosco: “Perdoa-nos. Perdoa-nos
as nossas dívidas, perdoa as nossas transgressões, perdoa os nossos pecados”.
Ele também confia que faremos o melhor possível naquilo que ele faz de
melhor: “assim com o perdoamos aos nossos devedores”. Ele pode legitima-
mente, genuinamente, incentivar-nos a perdoar porque ele já montou o palco
estendendo seu perdão em uma escala cósmica.

Quando Jesus ora conosco “Dá-nos [...]o [...] pão...", aos poucos ele nos desa-
costuma da presunção e do hábito de viver de forma independente, indepen-
dentes de Deus, criaturas independentes que não querem ser simplesmente
criaturas, mas assumir o controle da água e do ar, das árvores e da terra, sem
falar de nossos filhos, vizinhos, estudantes e empregados, para fazer com eles
o que nos agrada. Mas não estamos no comando. Não estamos no controle.
Não tem os o que precisamos para permanecer vivos.
204 A LINGUAGEM DE DEUS

Mas Deus, sim. Deus é generoso. Deus dá. A vida é um presente. Nós so-
mos presentes. Aprendemos a orar “Dá-nos...” e, com Jesus orando ao nosso
lado, passamos a experimentar de primeira mão o que significa estar na posição
de quem recebe o que se lhe dá, o que significa viver na terra da graça.
Quando Jesus toma a confusão do pecado e nos ensina a enfrentar aquilo
contra o que nos posicionamos a cada dia, mais uma vez ele se acha trabalhando
para afastar-nos dos velhos hábitos. Será que imaginamos que o que está errado
no mundo é algo por que possamos fazer por conta própria? Não podemos.
Será que pensamos que há maneiras judiciais, educacionais ou psicológicas de
tratar com o pecado? Não há. Assim como no mundo da graça, também na
terra do pecado aprendemos como Deus age e entramos nessa forma de vida
orando, como Jesus ora conosco: “Perdoa o nosso pecado”.
O pecado mata. O pecado mata os relacionamentos. O pecado mata a inti-
midade de alma inerente na criatura criada à imagem de Deus que nós somos.
O pecado é mortal, sintetizado nos “sete pecados mortais”. Parte de nós morre
quando pecamos, não mais em uma relação viva com o Deus vivo, com o cônjuge
vivo, com o filho vivo, com o próximo vivo. Não há remédio capaz de trazer os
mortos à vida. Não há máquina que possa desarmar a morte. Diariamente, vemo-
nos atravessando esse vasto cemitério de pecado daquilo que alguém descreveu
como os “mortos não mortos”. A única maneira de tratar com o pecado é pela
ressurreição. O perdão é ressurreição, vida dentre os mortos.

* * *

A morte e a ressurreição de Jesus formam o ato intricadamente complexo


que concretiza o perdão do pecado. Como isso acontece, é um profundo mis-
tério. O fato de isso acontecer, testemunhado pela nossa Escritura Sagrada e
confirmado por homens e mulheres santos, sábios e lúcidos, em cada lugar
e geração, é uma realidade vivida e diária.
Kurt Vonnegut observou certa vez que, embora a teoria da relatividade
de Einstein pudesse um dia pôr a terra no mapa intergalático, ela sempre vai
perder para a Oração do Senhor, cujo aproveitamento das energias em seu
JESUS ORA CONOSCO 205

direcionamento correto e doador de vida suplanta mesmo a descoberta do


fogo. A frase transformadora do universo que ele tem em m ente é ‘“Perdoa
as nossas dívidas, assim como perdoamos aos nossos devedores’. Não há rela-
cionamentos no cosmo cuja soma resulte em zero. Não há futuro sem perdão.
Mundo sem fim. A m ém ”.5

“E não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal...”


Essa primeira oração de Jesus, que nos é apresentada em nosso primeiro evan-
gelho, essa “Oração do Senhor”, não é uma partitura escrita por um compositor
magistral com a qual saímos e ensaiamos, petição após petição, como escalas
musicais, até que “saibamos tudo de cor”. Oração não é esse tipo de coisa. O
que continua a me impressionar é como essa oração é sociável. Jesus ora conosco;
nós oramos com ele. Jesus não nos ensina sobre oração; ele ora conosco. Não
aprendemos sobre oração; oramos com ele. Não há nada de professoral em
Jesus, e nenhum senso de superioridade. Ele nos trata com imensa dignidade.
Jesus é nosso Senhor, verdadeiro. Mas ele é também nosso amigo. A medida
que nos arriscamos neste mundo desacostumado da oração com Jesus ao nosso
lado, tomamo-nos pessoalmente presentes, submissos e obedientes a Deus, que
é presente em nós e ativo em nós. Jesus ora o que vive, e nós oramos com ele. E,
quando assim agimos, vemo-nos orando e vivendo o que Jesus vive.

* * *

Jesus orou conosco em meio a todas as operações da Trindade: a santificação


do nome, a vinda do reino, o cumprimento da vontade. Orou conosco por
uma vida em graça, recebendo e não arrancando. Orou conosco por uma vida
de perdão, deixando que Deus cuide de nossos pecados, não orgulhosamente
construindo uma vida moral que nos torne autossuficentes.
Agora sabemos que estamos profundamente engajados em tudo o que Deus
é e faz: o santo, o reino e a vontade. Agora sabemos que nossas mãos estão
abertas para receber os presentes da criação, estão prontas para comer da
mesa para onde fomos convidados: “Venha e com a”. Agora sabemos que, com
a cabeça curvada e o coração aberto, somos absolvidos do pecado e ficamos
prontos para passar adiante o perdão a todos que encontramos.
206 A LINGUAGEM DE DEUS

Então, o que falta? O fato é que não sabemos o que falta. Ainda não che-
gamos ao fim. ainda não é o fim ‫( ״‬Me 13:7). Sabemos que ainda não
acabou. Todas as orações que fizemos, com Jesus orando conosco ao nosso
lado, são orações que fazemos a caminho da cruz de Jesus e depois em direção
à ressurreição.
Sabemos que ele concluiu essa viagem à cruz e à ressurreição. Sabemos
que sua morte e ressurreição são realidades presentes em nossa vida: trazendo
“salvação sobre a terra” (SI 74:12). Sabemos que recebemos a dignidade e
o privilégio de as vivermos na prática em nossa vida pessoal. Sabemos que
mesmo agora estamos participando de sua morte e ressurreição (Rm 6:4). E
sabemos que o nosso trecho da viagem ainda não está concluído.
As cinco petições são feitas a partir de uma atividade presente, de Deus
e nossa, das circunstâncias e condições de nosso cotidiano. Mas há mais. A
sexta petição prepara-nos para esse “m ais” — estende-se para o futuro e
prepara-nos para aquilo que ainda não sabemos: tentações imprevistas e ma-
les enganosos. Sabemos que enfrentaremos tentações ao longo de cada etapa
dessa peregrinação, mas não tem os como saber o que serão. E sabemos que
o mal (ou, talvez mais precisamente, o Maligno), "ameaça à porta” (Gn 4:7),
pronto para nos atacar, exatamente como estava pronto para atacar o nosso
Senhor (Hb 4:15), para impedir que cumpramos o nosso chamado. Mas não
tem os com o saber as formas enganosas que ele pode tomar. Precisamos de
ajuda para aqueles momentos e ocasiões em que não estaremos cientes de que
precisamos de ajuda. Oramos em preparação para o que se segue. E não sa-
bemos o que está por vir.
Jesus nos une a ele em uma oração por algo que ainda não assumiu nenhuma
forma identificável e pode facilmente não ser percebido e reconhecido: “E não
nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do m al...”.6 N. T. Wright traduz:
“Não permitas que sejamos levado a Teste, à grande Tribulação; livra-nos do
Mal”.7 Prepara e preserva-nos do que quer que esteja por vir. Depois encon-
traremos as palavras: "Neste mundo vocês terão aflições; contudo, tenham
ânimo! Eu vencí o m undo” (Jo 16:33), assegurando-nos de que podemos
contar com ele para atender à nossa oração.
As tribulações certam ente incluirão testes, tentação e o mal. Por mais
esplêndido que seja o mundo, ele é também perigoso. Perigos sem aparência
JESUS ORA CONOSCO 207

de perigo estão por toda parte. O mal que se traveste de anjo de luz é mais
que comum. Precisamos de ajuda. E precisamos de ajuda mesmo quando não
sabemos que precisamos de ajuda. Especialmente quando não sabemos que
precisamos de ajuda.
Os pecados, as dívidas, as transgressões, com todas as suas manifestações
nos “sete pecados mortais”, pelos quais oramos “Perdoa-nos”, são mais ou
menos de conhecim ento geral. Na maior parte dos casos, sabemos quando
pecamos, pelo menos nos estágios iniciais, antes de as desculpas e as racio-
nalizações embotarem a consciência. E, se não sabemos, nossos pais, filhos e
vizinhos o sabem, e logo nos mostrarão que sabem. Mas a tentação e a prova-
ção, os testes e o mal estão em uma classe diferente. A tentação e o mal quase
sempre aparecem disfarçados como bons e bonitos. Na maior parte dos casos,
eles nos pegam desprevenidos, nos tomando de surpresa.

* * *

Eva no jardim, encantada pela Serpente, é tentada a receber como presente


algo que ela está convencida de ser totalmente bom: quando “viu que a árvore
parecia agradável ao paladar, era atraente aos olhos e, além disso, desejável para
dela se obter discernimento, tomou do seu fruto, com eu-o...”. Depois, então,
ela coroa a bondade com a generosidade: “e o deu a seu marido, que comeu
tam bém” (Gn 3:6). O alimento é algo bom; a beleza faz aflorar o melhor de
nós; a sabedoria guia-nos para vivermos uma vida plena; a vida compartilhada
redobra o prazer. A tentação do jardim está toda relacionada à participação
em um bem ilusório. Na superfície, o homem e a mulher têm boas razões para
supor que estejam participando de algo bom ao comerem daquele fruto.
N o entanto... esse é o ato de abertura em um drama que mergulhou toda
a raça humana na tentação e no mal, sendo encenado com a casa cheia desde
aquele momento. Alguns de nós recebem papéis mais insignificantes, outros,
papéis principais, mas todos fazemos parte da peça.
Jesus no deserto é tentado pelo Diabo a fazer três coisas que só lhe são
possíveis fazer por ser o Filho de Deus: tornar pedras em pão, mostrar seus
poderes milagrosos pulando da parte mais alta do templo sem nem torcer o
208 A LINGUAGEM DE DEUS

tornozelo, governar todos os reinos do mundo. Fazer pão é algo bom, realizar
milagres é algo bom, governar o mundo é algo bom. A tentações do deserto
estão todas relacionadas a fazer o bem (Mt 4:1-11).
Jesus não morde a isca. Ele faz o que o homem e a mulher no jardim não
fazem. Ele se recusa a fazer o aparentemente bom que é posto diante dele.
Essa recusa é um elemento fundamental para libertar do mal os filhos de Adão
e Eva. E nós somos esse filhos.

* * *

O pecado, por qualquer nome que o chamemos, ainda assim é pecado. Mas,
ao separar o pecado da dimensão “tentação e mal” do pecado da dimensão
“dívida e transgressão” e destinando a ele uma petição em particular, Jesus
nos faz perceber uma forma de pecado que não chega a nossa porta com a
etiqueta de "pecado”.
Fica evidenciado — empíricamente comprovado em cada família, escola,
negócio e nação — que todos nós temos uma tendência básica para o pecado às
vezes chamado pecado original, o pecado que nos precede, pecado que está em
nós sem a intenção ou sem mesmo sabermos o que estamos fazendo. Nascemos
em uma vida de “decadência” fundamental. Todos estão envolvidos, ninguém
escapa, "nem um sequer” (SI 14.3). Os danos do pecado são parcialmente
mitigados quando se ensina um comportamento moral que mantém em xeque
alguns dos erros com etidos. Mas não todos. A sociedade fornece mais uma
proteção, com sanções disciplinares, tropas policiais e exércitos que mantêm
as coisas sob controle e protelam a anarquia moral. Mas todas essas coisas, por
mais necessárias que sejam, são impessoais e incapazes de lidar com a separação
relacionai representada pelo pecado. O perdão é o único m eio conhecido de
restaurar o relacionamento, as dimensões pessoais da intimidade com Deus e
de uns para com os outros que se acham no âmago de nossa humanidade.
Ao lado dessa propensão para o pecado que todos experimentamos, há
também uma bondade paradoxal, uma capacidade inata de agir com gene-
rosidade, alegria e cuidado, de adorar e amar, sem nenhum estím ulo de
ameaça, recom pensa ou vantagens. Sorrimos, rimos, servim os e somos
JESUS ORA CONOSCO 209

amáveis espontaneamente, sem sermos ensinados ou treinados. É nesse campo


de bondade, mesmo de inocência, que a tentação lança suas ciladas e o mal
pratica seu engano. Não estamos preparados para isso. Não nos ocorre que
essa capacidade inata para o bem é sujeita à tentação e não raro se desenvolve
em mal. Quem podería ter sonhado que uma simples bondade, que põe em
palavras e atos o que há de melhor dentro de nós, seja corruptível?
Fomos advertidos e recebemos diretrizes para nos proteger dos vários peca-
dos que ferem, destroem e diminuem as pessoas ao nosso redor, que desfigu-
ram a bondade e a beleza do mundo, que blasfemam de Deus, que contribuem
para a desordem geral da humanidade. Mas somos pegos desprevenidos com o
que sentimos lá no fundo, quando o bem sem adulteração se torna em mal. As
tentações que usam o material bruto do bem para o mal podem permanecer
irreconhecíveis por muito tempo, sem percepção, às vezes até que seja tarde
demais e o mal resultante esteja a pleno vapor. “Lírios apodrecidos exalam
muito pior odor que o das ervas daninhas” (Shakespeare).
Temos pouca ou nenhuma imaginação para compreender o mal que se ori-
gina em nosso desejo de fazer o bem, de servir a Deus, de ajudar o próximo,
de fazer do mundo um lugar melhor. As histórias de Eva no jardim e de Jesus
no deserto são ali colocadas estrategicamente para servir de poderoso antídoto
para a nossa ingenuidade. São inesquecíveis.
A história de Eva no jardim mostra que uma pessoa, em um lugar totalmen-
te intacto, atraente e belamente idílico, com tudo que qualquer pessoa podería
querer ou com que qualquer um jamais podería sonhar, pode ser enganada a
ponto de transformar o bem em mal.
A história de Jesus no deserto mostra que uma pessoa perfeitam ente
preparada (nesse caso, o Filho de Deus), plenamente ciente da singularidade
da bênção de Deus em sua vida, de acordo com a vontade de Deus, pronta
para atravessar o limiar da porta e pôr em movimento as palavras e os atos
que conseguirão o trabalho mais glorioso que se possa imaginar, a salvação do
mundo, ainda assim encontra-se em grave risco.
Uma pessoa boa em um lugar bom não é nenhuma garantia de ausência
de tentação.
210 A LINGUAGEM DE DEUS

Uma pessoa boa com uma boa obra não é nenhuma garantia de ausência
de tentação.

***

Sei que simplifiquei demais. Não é como se tanto Eva quanto Jesus estivessem
totalmente despreparados para a tentação que usou o bem como isca para o pe-
cado. Eva tinha a ordem relacionada à Arvore do Bem e do Mal profundamente
gravada em sua alma e, junto com Adão, tinha uma vida bem desenvolvida de
companheirismo com Deus em todas aquelas tardes no jardim. E Jesus tinha
o ensino dos profetas e os cânticos dos salmistas — quase dois mil anos de
relatos em torno da história da salvação — vivos e operantes em sua vida.
Ainda assim, não podemos subestimar com que frequência a energia da
bondade experimentada é usada para servir de com bustível à tentação de
pecar. Não podemos subestimar a frequência com que uma vida boa é per-
vertida em mal.
Fui pastor por quase toda a minha vida adulta. Entre minhas tarefas está
ter de lidar diariamente com pecadores de toda sorte. Também com muitos
santos, que, na maioria, não sabem que são santos. O que percebo é que as
dívidas e as transgressões que têm seu início em nossa propensão inata para
o pecado, aqueles pecados para os quais pedimos perdão na quinta petição,
são muito mais facilmente discernidos e tratados do que as tentações e o mal
que têm seu início em nosso desejo e capacidade para o bem e em relação aos
quais pedimos libertação na sexta petição.
Já não me surpreendo que o grande mal encontre sua formação em lu-
gares para onde as pessoas afluem com o objetivo de adorar a Deus, lugares
em que, no entanto, são seduzidas pelos prazeres de bancar Deus. Já não me
surpreendo de reconhecer o grande mal em lugares de poder, nos negócios e
no governo, por exemplo, onde as pessoas têm acesso a enormes recursos para
fazer o bem, lugares em que, no entanto, são seduzidas a usar o poder e ser
poderosas elas mesmas. Já não me surpreendo de encontrar o grande mal em
famílias e casamentos, onde as oportunidades de intimidade e de afeição são
as mais acessíveis, e descobrir que essas oportunidades foram desperdiçadas,
JESUS ORA CONOSCO 211

sendo transformadas em seduções para a manipulação impessoalizada e para


o controle. Muito mais males lançam suas raízes em lugares em que a bon-
dade sobeja do que nas favelas ou cortiços desesperadores e no submundo
do crime. Por que isso nos deveria surpreender? Teve seu início, afinal de
contas, no Éden.

* * *

Os pecados da quinta petição, pelos quais pedimos perdão, são muito mais
fáceis de perceber, e é muito mais fácil assumir a responsabilidade por eles
do que as tentações da sexta petição — a tentação que seduziu Eva, as tentações
que Jesus rejeitou — tentações cuidadosamente arquitetadas para iludir-nos,
fazendo-nos usar o bem para realizar o mal.
E assim, por causa do alto grau de periculosidade presente nessas tentações,
Jesus nos dá esta petição de prevenção: "Sê nosso companheiro e guia nesse
trajeto perigoso, de modo que, quando nos virmos diante de uma tentação que
não pareça tentação, uma tentação de auréola e asas angelicais, não sejamos
seduzidos como Eva foi e que tenhamos o discernimento que Jesus teve: Έ
não nos deixes cair em tentação’.
“Sabemos que é grande o risco. Sabemos que todos somos vulneráveis aos
estratagemas do Diabo, as astutas meias verdades da Serpente, as peneiras
de Satanás. Precisamos de uma imaginação preparada, bem versada nos ardis
do Maligno. Onde estamos, já não dá pé. Salva-nos, ajuda-nos, resgata-nos:
‘... livra-nos do mal’.”
Várias são as maneiras de pedir que Deus faça por nós o que não somos ca-
pazes de fazer por nós mesmos, e essas formas de expressão permeiam nossas
Escrituras. A libertação é a coisa mais fundamental no país da salvação.
Nunca sabemos quando ou de que maneira enfrentaremos a tentação, sere-
mos provados ou nos veremos enredados pelo mal. Jesus sublinha a urgência
do preparo para aquilo que está por vir ao redigir a sexta petição em forma
de duplo imperativo: “E não nos deixes [...] livra-nos...”.
212 A LINGUAGEM DE DEUS

Charles Williams refere-se à Oração do Senhor como um “augusto ritual de


intercessão”.8 Sim: “augusto ritual”, sem sombra de dúvida. Ela permeia a
imaginação cristã em torno da oração. “A memória mais curta é capaz de retê-
-la, e a vida mais ocupada pode expressá-la” (Alexander W hyte).

" ... porque teu é o Reino, o poder e a glória para sempre. Amém.”
E isso. Oração sucinta e ousada. Com Jesus ao nosso lado, orando conosco,
sabemos onde estamos. Estamos prontos para seguir a Jesus. Sem titubeios e
oscilações. Sem arrastar os pés, não sabendo ao certo o que fazer em seguida.
Sem conversa fiada nervosa, como um convidado que não sabe dizer adeus e sair.
Damos um passo para trás e confiamos que Deus fará com nossas orações
o que quer que escolher, como e quando quiser. A partida, usando as palavras
já conhecidas de Davi em 1Crônicas,9 põe-nos de fora da oração em si, em um
tipo de santo distanciamento. Todas as nossas intenções, nossa experiência,
nossa energia estão agora na oração. Tudo agora está nas mãos do nosso Pai.
Julian Green escreveu em seu diário: "todas as orações são atendidas, mais
cedo ou mais tarde, mas precisamos chegar aos cinquenta anos de idade para
descobrir isso, com a perspectiva necessária. A juventude não tem conhecí-
mento dessas coisas”.10

***

Fui visitar uma mulher em seus quarenta e poucos anos. Era viúva havia já
vários anos, os filhos crescidos e sentindo-se incompleta. Ninguém precisava
dela; ela não precisava de emprego. Por alguns meses ele adorava, mas um
tanto irregularmente, nos cultos da congregação à qual eu servia como pastor.
Eu estava sentado em sua sala de estar, escutando essa ladainha familiar dos
meandros de uma vida em meia-idade, com minha alma à deriva. A conver-
sa, como a vida dela, não parecia rumar para lugar algum. Não parecia haver
nenhum lugar como ponto de apoio para minha intervenção.
Ela tinha no colo um bordado, esticado em um bastidor. Então, com apenas
um frágil tom de vibração na voz, ela disse:
JESUS ORA CONOSCO 213

— Sabe do que preciso? Preciso de algo que dê tensão e forma a minha


vida. Preciso de um bastidor para a minha alma. Sou um pedaço de tecido sem
firmeza — não é possível fazer um bom bordado num pedaço de tecido
sem firmeza.
Era o ponto de apoio de que eu precisava. Eu disse:
— Eu tenho o bastidor para você. A Oração do Senhor é exatamente esse
tipo de dispositivo para a sua alma: uma estrutura na qual estender sua alma
com tensão e atenção na presença de Deus.
Passamos a hora seguinte ou um pouco mais falando sobre oração e juntos
saboreamos a estrutura simples, prática e acessível para a oração que vem
sendo usada como moldura para pessoas como ela e eu — e você — há dois
mil anos.
capítulo 15
Jesus ora em ação de graças
Mateus 11:25-26

Mateus coloca a oração de ação de graças de Jesus no contexto da incom-


preensão de João Batista e da rejeição dos aldeães. Mal-entendido e rejeição
não parecem material promissor para gerar ação de graças. Mas, em Jesus, é
o que acontece. Eis a oração:

“Agradeço, Pai, Senhor dos céus e da terra, porque escondeste essas coisas dos
sábios e inteligentes e as revelaste a bebês; sim, Pai, pois essa foi sua graciosa
vontade”.

Aí está uma oração que muito me agrada: do nada, espontânea, exuberante.


As circunstâncias em que brota a ação de graças, como um poço artesiano, na
história de Jesus não são as melhores, aliás pouco propícias à ação de graças.
Essas condições difíceis consistem em um mal-entendido por parte da pessoa
mais profundamente envolvida em lançar Jesus em seu caminho como Messias,
e depois, para piorar o mal-entendido, uma rejeição por parte das pessoas nas
aldeias em que Jesus passou a maior parte do com eço de seu ministério, os ho-
mens e as mulheres que tinham visto Jesus em ação e o tinham ouvido falar.

***

Aqui está o mal-entendido: Jesus tinha acabado de ser abordado pelos discípu-
los de João, que lhe perguntaram: “És tu aquele que haveria de vir ou devemos
esperar algum outro?” (Mt 11:3). João está aprisionado em Maquero, uma
prisão de segurança máxima, tão famigerada na Palestina do século I quanto
Sing Sing é entre nós hoje. Foi construída por Herodes, o Grande. Seu filho,
Herodes Antipas, colocou João lá pelo crime “político” de trazer à baila o
adultério dele com Herodias, a esposa de seu irmão Filipe. A poderosa voz
216 A LINGUAGEM DE DEUS

profética de João já não se ouve na terra. Em breve será silenciada para sempre
em uma repulsiva festa de aniversário, na qual, em vez de um bolo com velas,
a cabeça de João será servida em um prato, ainda pingando sangue.
João foi a voz isaiânica que apresentou Jesus ao povo da Palestina como
o Messias havia muito estava sendo aguardado. Sua pregação preparou o ca-
minho para Jesus ser recebido como “aquele que há de vir”, inaugurando 0
reino dos céus.
Enquanto João preparava "o caminho do Senhor", ele prendeu a atenção
de todo o país. No dia em que batizou Jesus, sua pregação foi confirmada nos
céus pela descida da pomba, um símbolo do Espírito Santo, e imediatamente
ratificada pela voz que veio dos céus: “Este é o meu filho amado, em quem
me agrado" (Mt 3:17).
Com isso, estava encerrada a obra de João. Sua “voz do que clama no
deserto”, baseada em Isaías, apresenta Jesus à nação. Depois, então, ele se
afasta para a margem para não se pôr no caminho do Caminho: “É necessário
que ele cresça e que eu diminua” (Jo 3:30; v. Jo 3:27-36). Jesus move-se para
o centro: a “margem" para João acaba sendo a prisão em Maquero. João está
feliz em “diminuir”, mas, compreensivelmente, está à espera de notícias que
falem de Jesus e seu “crescim ento”. Ao que tudo indica, não havia muitos
relatos. Jesus não está em todas as manchetes. Inquieto, querendo saber 0
que está acontecendo, João envia seus discípulos para pedir uma prestação
de contas de Jesus. “És tu aquele que havería de vir ou devem os esperar
algum outro?” (Mt 11:3). Será que João sentia, com o muitos sentem hoje,
que o Messias Jesus não era suficientemente messiânico? O Messias chegou,
o reino dos céus está próximo: por que está demorando tanto? Nada parece
ter mudado: João está na prisão, e Herodes continua vivendo com a mesma
arrogância dissoluta de sempre.
Jesus tranquiliza os discípulos de João: “Sim, eu sou o Messias. Sim, estou
realizando a obra messiânica conforme definida no texto de Isaías que João
pregou. Mas talvez não muito da forma que João está esperando”.
João e Jesus eram diferentes na forma de desempenhar seu trabalho. João
pregava às trovoadas, para o encanto das massas; Jesus contava histórias durante
JESUS ORA EM AÇÃO DE GRAÇAS 217

refeições e com amigos na estrada. João era uma figura pública confrontando
em praça pública o pecado flagrante de Herodes Antipas; Jesus trabalhou na
maior parte do tem po sem ser percebido, nas pequenas aldeias da Galileia.
João era um asceta na dieta e no vestuário; Jesus apreciava um copo de vinho,
mesmo às vezes em companhia de intrusos mal-afamados. E compreensível
que João quisesse saber o que exatamente estava acontecendo. É compreensí-
vel que João estivesse ofendido com a forma em que Jesus conduzia sua obra
messiânica. Onde está o “crescimento” que João havia esperado? Onde estão
as grandes multidões, os dramáticos confrontos com os poderes dissolutos
em atuação na época?
Jesus tranquiliza João em sua perplexidade: “Sim, João, estou fazendo
exatamente aquilo que você profetizou tão bem a meu respeito. Mas deixe-
-me fazê-lo do meu jeito. Você se lembra destas palavras do rolo de Isaías que
você conhece tão bem: '... os meus pensamentos não são os pensamentos de
vocês, nem os seus caminhos são os meus caminhos...’? (Is 55:8). Permita-me
abençoá-lo em sua cela prisional assim com o você me abençoou em ‘meus
caminhos’ enquanto eu executo o trabalho messiânico no qual você me lan-
çou — 'feliz é aquele que não se escandaliza por minha causa”’ (Mt 11:6).'

***

E as pessoas nas aldeias com quem Jesus conviveu? Elas basicamente o des-
prezaram. Se a incompreensão de João Batista foi uma decepção para Jesus,
a indiferença das pessoas foi mais como uma bofetada na cara.
A maior parte do começo do reino dos céus de Jesus, o trabalho messiânico,
foi feita em três pequenas aldeias — Betsaida e Cafarnaum, na costa norte do
mar da Galileia, e Corazim, no interior, numa distância de aproximadamente
uma hora a pé dali. Essas aldeias formam o que às vezes chamamos de “Triângulo
Evangélico”. A maioria dos “milagres” de Jesus aconteceu nessas vilas (Mt 11:20):
cura de um cego, de um paralítico, do filho moribundo de um centurião romano
e de um endemoninhado, entre outros. A maior parte dos discípulos de Jesus
vinha dessas aldeias. Betsaida era a cidade natal de Filipe e André. Foi também
onde Jesus alimentou os cinco mil. Pedro e a mulher residiam em Cafarnaum,
218 A LINGUAGEM DE DEUS

bem como o irmão de Pedro, André. Jesus começou em Nazaré e residiu em


Cafarnaum, ensinou na sinagoga dessa aldeia e a usou como sede inicial do tra-
balho de seu reino dos céus até ser crucificado, em Jerusalém.
Todas essas aldeias estavam localizadas bem próximamente umas em relação
às outras. Eram todas aldeias pequenas, vilas em que praticamente todos eram
conhecidos e reconhecidos. Ninguém é anônimo em uma pequena cidade.
Jesus não seria um desconhecido de ninguém. Todos conheciam as histórias
de suas curas. Muitos o ouviram pregar e ensinar.
Muitos — talvez a maioria — o desprezaram. Não lhe deram ouvidos. Dis-
pensaram Jesus como se não tivesse nada a dizer à vida deles. Jesus compara
as três pequenas aldeias com as três grandes cidades, prósperas e infamemente
perversas, dos tempos antigos: Tiro, Sidom e Sodoma. "Vocês achavam que
aqueles viveiros pagãos da maldade eram perversos? Vocês são piores. Vocês
acham que, só porque não vivem na sordidez sexual, na imoralidade ímpia
e na imundície, estão acima do restante do mundo? Vocês estão a ponto de
cair no inferno, com o que numa gangorra. A indiferença voluntariosa para
com Deus é a pior coisa. A recusa empedernida de se arrepender, para então
persistir obstinadamente em uma vida de autogratificação, de amor-próprio,
resulta em uma vida destinada à condenação. Deus está presente entre vocês,
e vocês estão dizendo com a vida de vocês que não se interessam."
Existem males que não parecem males. O mal que corria solto nas aldeias
do Triângulo Evangélico não era algo flagrante. Não era descarado e arrogante
como o mal que andava com arrogância pelos corredores da Casa de Herodes,
que grassava irrefreado em Roma. O pecado descarado não floresce nas pe-
quenas aldeias.
Ao confrontar seus vizinhos, de nenhum jeito Jesus está dando a entender
que fossem maus em um sentido flagrantemente imoral ou criminoso. A
censura de Jesus é uma forma de desmascarar a indiferença ativa deles em
relação a Deus, a recusa deles em deixar os ciclos de sua convencionalidade
e rotinas. Estão mergulhados em uma banalidade sem cor, um mal discreto
que não está presente nas manchetes, mas é de consequências m uito mais
devastadoras que as de Sodoma, Tiro e Sidom. Eles reconhecem Deus como
JESUS ORA EM AÇÃO DE GRAÇAS 219

Deus, mas deliberadamente o desprezam. Jesus generosamente lhes oferece


uma vida de participação no reino dos céus, e eles dão de ombros.

A pessoa que mais compreendia a Jesus o entendeu mal — entendeu mal o fato
de Jesus não o tirar da prisão, entendeu mal o fato de Jesus evitar exercer seu
carisma com as massas, com o se isso fosse sinal de uma não messianidade. As
pessoas que melhor conheciam a Jesus em seu dia a dia não o conheciam —
não abraçaram sua presença entre eles com o salvador e curador, amigo de
pecadores e pão do mundo.
Essas eram as circunstâncias em que Jesus estava imerso no dia em que ele
extravasou com esta exuberante ação de graças:

"Agradeço, Pai, Senhor dos céus e da terra, porque escondeste essas coisas dos
sábios e inteligentes e as revelaste a bebês...".

* * *

A razão por que aprecio tanto essa oração de ação de graças é que não há nada
nas "circunstâncias" que a explique. As circunstâncias — a incompreensão de
João acerca dos m étodos messiânicos de Jesus e a indiferença teimosa dos
aldeães para com sua presença messiânica — são deprimentes. Seria de supor
que aquelas circunstâncias levariam Jesus a reavaliar seriamente a forma em que
tem desempenhado seu chamado messiânico. Se João não compreendeu e seus
vizinhos não compreenderam, talvez devesse tentar algo diferente.
Então, como se explica a ação de graças? Somente, a meu ver, percebendo
que a incompreensão de João e a indiferença dos aldeães — circunstâncias
que punham em xeque a eficácia de Jesus — não são nada mais do que uma
crosta ressecada na superfície do reino. Sob esse solo duro, pesadamente tra-
fegado, o reino dos céus está tomando forma à maneira de Deus. Jesus sabe
que D eus escolhe operar sua graciosa vontade com aqueles que são com o
crianças, os simples, aqueles que não adquiriram o hábito de pensar que são
220 A LINGUAGEM DE DEUS

“como deuses” e assim não necessitam de Deus, aqueles que não permitiram
que a familiaridade desatenta com o culto da sinagoga os anestesiasse e assim
os fizesse supor que eles sabem exatamente como Deus trabalha.
“Sábios” e “prudentes”, como quer uma tradução, são irônicos na oração.
Eu sugeriría “intelectualm ente refinados e sabichões”, para captar o tom em
que Jesus profere as palavras. Jesus não se deixa abater pelo fato de que 0
homem que mais sabe sobre o Messias do que qualquer outra pessoa e atraiu
grandes multidões por sua pregação agora incompreenda o que está aconte-
cendo. Jesus não se deixa prostrar pelo fato de que todos esses bons aldeães,
com os olhos vendados e os ouvidos agravados pelas autogratificações de uma
religião enfatuada, não vejam nem ouçam a Deus agindo bem diante deles.
A incompreensão e a indiferença estão, como os pobres, “sempre conosco”.
Não são indicadores confiáveis da presença do reino. Os peritos em opinião
pública, que amam informar o mundo sobre a condição estatística de Deus, não
têm nenhuma credibilidade profética em matéria de reino. Jesus não expõe
a cada dois anos sua estratégia messiânica para um plebiscito.
E, portanto, as condições que tantas vezes induzem tantos de nós a esfregar
as mãos e a ranger os dentes são relativizadas pela oração de ação de graças
de Jesus. Energias ocultas do reino movimentam-se bem abaixo da superfície
por todo o lado ao nosso redor. Imensos rios subterrâneos de oração — fé,
obediência e louvor, intercessão, perdão e salvação, santidade e graça — fluem
livremente no subsolo. E, em quase cada fenda e recesso da terra, escondidos
nas sombras, desprezados pela multidão, estão os “bebês”. Esses são as "crian-
ças e recém-nascidos” que Deus sempre usou como baluarte “para silenciar o
inimigo que busca vingança” (SI 8:2).
Jesus não deixa de considerar a seriedade das “circunstâncias”. Ele na
verdade as leva muito a sério. Ele enfrenta e repreende. Ele desmascara a
pretensão e chora sobre corações empedernidos. Mas ele não se desespera. Ele
não critica o Pai por sua forma de agir. Ele não dilui sua santa determinação
com algo menos que santo.
E assim — ação de graças. Não apenas pelas flores-do-campo e pelas borbo-
letas, pelo brilho da lua sobre um cobertor de neve, pela desenvoltura atlética
e pelo som das sinfonias. A ação de graças é certamente adequada diante de
JESUS ORA EM AÇÃO DE GRAÇAS 221

tudo o que testemunha da bondade, da verdade e da beleza, de modo que


não admira quando ela é expressa em circunstâncias assim favoráveis. Mas a
ação de graças de Jesus nos surpreende. O gêiser de agradecimento de Jesus
é mel tirado da rocha (D t 32:13 e SI 81:16).
capítulo 16
Jesus ora na expectativa do fim
João 12:27-28

Quase exatamente no centro da história de Jesus conforme relatada por João,


há uma breve oração de cinco palavras: “Pai, glorifica o teu nom e” (Jo 12:28).
Nos primeiros onze capítulos, João nos fez mergulhar na ação de Jesus: “a Pa-
lavra que se tornou carne”, o Jesus vivo. Jesus percorre a Galileia e Jerusalém,
encontrando homens e mulheres, citados pelo nome ou anônimos, chamando
discípulos, conversando com pessoas, curando os coxos, ressuscitando os
mortos, alimentando os famintos, dando vista aos cegos, proferindo longos
discursos sobre o reino de D eus que ele está fazendo nascer. João ancora
Jesus na história real, em cidades reais, falando a língua de cidadãos comuns,
comendo com eles. João quer que levemos a sério a ideia do "tornou-se car-
n e”. Toda a vida, a vida humana, é sacramental, receptáculo e revelação do
santo: a Palavra. Jesus é humano, muito humano, profundamente humano,
enfaticamente humano: “tornou-se carne”.
Um a das características literárias da linguagem de Jesus é seu uso de
metáforas para revelar quem ele é, as famosas declarações iniciadas por "Eu
sou...”. D e destaque entre essas metáforas estão as sete declarações Eu sou
de Jesus que João reúne:

"Eu sou o pão da vida.” (6:35)


“Eu sou a luz do mundo." (8:12)
“Eu sou a porta das ovelhas.” (10:7)
"Eu sou o bom pastor.” (10:11,14)
“Eu sou a ressurreição e a vida.” (11:25)
“Eu sou a videira verdadeira.” (15:1)
“Eu sou o caminho, a verdade e a vida." (14:6)

Todas essas metáforas utilizam palavras que são conhecidas em nosso uso
cotidiano com um para conferir imediação concreta à vida do Espírito em
224 A LINGUAGEM DE DEUS

Jesus. As metáforas devem ser levadas a sério, e não reduzidas a um “signifi-


cado” ou a uma “verdade”. Elas mantêm nossos pés no chão, ligados a tudo
ao redor, orando a partir de nossa humanidade comum. Maxine Kumin, poeta
altamente perspicaz, escreve: “A metáfora não é menor que a vida. Ela serve
de intermediária entre verdades extraordinárias. Ela salta de um sentimento
instintivo, possibilitando uma imagem utilizável. Assim, em certo sentido, a
metáfora é mais verdadeira que o fato em si”.1
Os dez últimos capítulos do evangelho de João levam-nos detalhe por detalhe
para dentro da história da morte de Jesus. A última semana de vida de Jesus é
a história de sua morte. Ela se inicia com Jesus jantando na casa de seus amigos
Lázaro, Marta e Maria, jantar em que Maria unge os pés de Jesus com perfu-
me, uma unção que Jesus interpreta como “para o dia do meu sepultamento”
(Jo 12:7). No dia seguinte, a entrada no Domingo de Ramos em Jerusalém
coloca Jesus em lugar de destaque na festa da Páscoa judaica. A multidão de
pessoas cantando hosana pensava estar participando na coroação de seu rei. De
fato parecia exatamente como seu profeta Zacarias havia profetizado (Zc 9:9).
Não foi a primeira vez que Jesus foi identificado como rei. Natanael, de-
pois de uma breve conversa em seu primeiro encontro com Jesus, exclamou:
“Mestre, tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel!” (Jo 1:49). Algum tempo
depois, Jesus alimentou cinco mil com pão e peixe. As pessoas perceberam
que tinham acabado de ser servidas com uma refeição miraculosa e decidiram
tornar Jesus rei ali naquela hora. Mas Jesus escapou dessa tentativa saindo de
fininho e recolhendo-se sozinho em uma montanha (6:1 5).
E, depois, em sua entrada no Domingo de Ramos, Jesus é aclamado “Rei
de Israel” (Jo 12:13). “Rei” é precipitado demais. Jesus precisa reorientar
completamente as expectativas deles. Os discípulos têm ouvido falar de rei
e de Messias desde que começaram a seguir a Jesus. E algo que agora ganha
ainda mais força. Parece que vai acontecer. E melhor agora do que depois.
Ele dá um banho de água fria em toda essa história entusiasmada demais
sobre ele como rei começando a falar de sua morte (Jo 12:23-36). Ele é seu
Rei, sim; ele é seu Messias, com certeza. Mas não com o estão pensando. Em
pouquíssimo tempo, eles o ouvirão, moribundo, proferir seu discurso inaugural
como rei em cima de uma cruz.
JESUS ORA NA EXPECTATIVA DO FIM 225

Jesús tem sua obra traçada diante dele. Ele separa seus discípulos e tem
uma longa e demorada conversa com eles (Jo 13— 17). Começa lavando os
pés deles. Depois disso percorre, vez após vez, após vez, de que maneira ele
é rei e Messias e de que maneiras eles o experimentarão e servirão como rei e
Messias. Sem pressa e com paciência, ele revisa completamente as expecta-
tivas deles. Ele os está preparando para a morte que ele sofrerá. Depois, ele
resume a conversa toda em uma oração de encerramento.
N o dia seguinte, ele é crucificado.

***

As orações de Jesus jamais podem ser isoladas da vida de Jesus. A oração não
é um assunto em separado. A oração não é a atividade de um especialista. Em
uma orquestra sinfônica, alguns tocam o clarinete, alguns, o oboé, outros, o
violino e ainda outros, o trombone. Mas na vida cristã não é assim: não temos
alguns que visitam os enfermos, alguns que entoam hinos, alguns que leem a
Escritura, alguns que contribuem financeiramente e alguns que oram. Na vida
cristã, não escolhemos aspectos, obtemos um pouco de instrução e treinamen-
to e depois nos especializamos no que gostamos ou naquilo que nos achamos
bons (ou evitamos por acreditar que não nos faltem as aptidões).
A oração não é algo que retiramos da teia da revelação e da encarnação e
depois adotamos para sermos “guerreiros de oração”. É mais algo semelhante
à respiração: para vivermos, todos precisamos orar. Embora haja doenças re-
lacionadas à respiração, não há excelências. Não destacamos pessoas de quem
dizemos: “Ela (ou ele) é uma grande respiradora”.
A oração está entretecida na malha da vida. A oração está entretecida na
malha da vida de Jesus. Observar Jesus em oração é como observar tudo o mais
que ele faz. Nenhuma de suas orações e nada de sua vida de oração podem
ser tirados de contexto e estudados separadamente.
226 A LINGUAGEM DE DEUS

A ligação entre as duas partes da narrativa de João, a vida de Jesus e a morte


de Jesus, é a oração de Jesus: “Pai, glorifica o teu nom e”.
“Glória", além de seus verbos correspondentes, é uma das grande palavras
da Escritura, daquelas que atravessam a linha do horizonte. Mas o dicionário
é de pouquíssimo valor para nos dar um senso da energia compactada que
irradia de suas sílabas. Precisamos de toda a história de Jesus conforme nos foi
relatada por nossos quatro evangelistas magistrais. E depois precisamos dessa
história confirmada e enriquecida de detalhes de toda a história da criação e
da aliança, registrada na Torá e nos profetas, em Salmos e em Provérbios, nas
epístolas e no Apocalipse. Não podemos compreender a glória aos pedaços;
precisamos da história do começo ao fim, do nascimento à morte e para além.
Foi com meu pastor que obtive uma percepção das muitas dimensões
contidas em “glória”, quando eu tinha cerca de dez anos de idade. Ele o trans-
mitiu em sua voz, ou talvez eu devesse escrever sua Voz. Ele era galês. Sua voz
retumbava do púlpito num timbre e numa tonalidade completamente galeses
por todo o templo. Quando o pastor Jones proferia a palavra, ele começava
baixinho e sussurrante, como os tubos de cinco metros do órgão. Depois ga-
nhava volume e ressonância até encher o templo, com o som nos enchendo
não som ente os ouvidos, mas o coração. A maioria das pessoas articula a pa-
lavra em duas sílabas: “gló-ria”. No pastor Jones era um "gló-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ria”
multissilábico, em uma escala ascendente de decibéis e tons.
Eu gostava muito de ouvir a palavra e ainda gosto. Paul Jones, trovejando
a palavra na vida de sua congregação, tornava-a verdadeiramente joanina.
Levou anos até que eu aprendesse o significado dicionarizado da palavra e
mais anos ainda até que aprendesse o lugar fundamental que ela ocupava
nas línguas bíblicas, mas eu sabia seu significado: significava que algo mag-
nífico estava acontecendo, estava se formando, algo relacionado a Deus e
a nós, naquela congregação, no exato m om ento em que ouvíamos o pastor
Jones proferir a palavra, algo transformador, vivificante e maravilhoso. E
uma palavra que confere grandeza a todos os fragmentos e pedaços de nossa
vida, conferindo-lhe a integralidade e a com pletude da vida de Jesus. Uma
palavra de ressurreição.
JESUS ORA NA EXPECTATIVA DO FIM 227

Mal importava qual fosse o assunto do sermão em nossa pequena igreja,


em nossa pequena cidade do estado de Montana, praticamente não havia um
domingo em que glória não irrompesse. Se vinha dentro, se vinha fora do
contexto, eu nunca sabia: sermões que retratavam as chamas do inferno, ser-
mões que apresentavam a esperança do céu, sermões sobre arrependimento,
sermões sobre amor — glória. Glória era metade exclamação, metade teste-
munho. Sempre que ocorresse em uma frase, havia uma erupção explosiva
de beleza e vitalidade.

***

Mas, por mais maravilhosa e exata que fosse minha aprendizagem sobre gló-
ria, praticamente não tinha raízes em minha vida. E o que procuro são raízes:
raízes quando saio para adorar e para trabalhar, raízes quando leio o jornal e
falo com os amigos, raízes quando voto nas eleições e compro pneus para o
meu carro, raízes quando contraio câncer, passo por uma cirurgia e entro em
convalescência, raízes à medida que acumulo aniversários e outras celebrações
anuais, raízes enquanto escrevo cartas e leio livros.
O enraizamento que procuro é descrito nas linhas imediatamente anteriores
à oração “Pai, glorifica o teu nome". Aqui estão as linhas: “Chegou a hora de
ser glorificado o Filho do homem. Digo-lhes verdadeiramente que, se o grão
de trigo não cair na terra e não morrer, continuará ele só. Mas se morrer, dará
muito fruto” (Jo 12:23-24). G osto como Maxine Kumin o expressou: "Para
baixo, eu lanço raízes, e para cima, eu lanço as folhas”.2 E isso que eu procuro.
Jesus sabe que sua morte é iminente. Ao assimilar suas palavras, percebo
que as raízes da glória acham-se na morte e no sepultamento. Isso vai exigir
algum reaprendizado. Parece que glória implica mais do que ouvi nos trovões
que vinham do púlpito do pastor Jones. Parece que vou ter de deixar o que
eu esperava encontrar e adentrar o mistério.
Mas, com o acontece com todos os mistérios do evangelho, não se trata
de um mistério total. Recebemos palpites e sugestões. Todos os jardineiros
sabem alguma coisa disso. As flores e as hortaliças que crescem tão maravi-
lhosamente em seus jardins e hortas são a consequência de sementes que eles
plantaram no solo.
228 A LINGUAGEM DE DEUS

É glória que eu procuro. N o final das contas, demoro a aprender. Gloria


não é simplesmente mais do que aquilo que já tenho, ou a perfeição do que
já vejo. Será que entendo que a vida cristã é minha vida biológica, moral e
intelectual elevada alguns graus acima do comum? Será que creio que a oração
é um tipo de mecanismo, como um macaco de carro, que uso para m e levantar
a um plano superior no qual eu tenha melhor acesso a Deus?
A linguagem de Jesus me diz algo muito diferente: eu me torno menos. Em
vez de agarrar com mais força o que valorizo, eu abro mão. “Bem-aventurados
os pobres em espírito” (Mt 5:3) é uma das maneiras em que Jesus declarou
isso ."... quem quiser salvar a sua vida, a perderá, mas quem perder a sua vida
por minha causa, a encontrará” (Mt 16:25) é ainda outra maneira.

* * *

Bem aos poucos, percorrendo essas imagens e metáforas vez após vez, começo
a compreender. Preciso desaprender muita coisa. Mas não estou sozinho nisso.
Tenho amigos com os quais estou desaprendendo e reaprendendo. E aqui está
algo maravilhoso que começa a entrar em foco: não precisamos esperar morrer
para morrer. Não precisamos esperar até depois do nosso funeral para parti-
cipar da glória. Como Teresa, uma das santas mais irreverentes e audaciosas,
costumava dizer: “A paga começa nesta vida”.

Ajuda-me a ser paciente em meu lento aprendizado observar que também não
era exatamente uma moleza para Jesus. Ele introduz sua breve oração não em
prontidão, mas com resistência: “Agora meu coração está perturbado, e o que
direi? Pai, salva-me desta hora?” (Jo 12:27).
Não foi fácil para Jesus redefinir glória de modo que ela também incluísse
perda, rejeição e morte. Saber que ao menos ocorreu a Jesus não orar por esse
tipo de glória, mas orar pedindo que fosse salvo dela, me dá algum espaço
para respirar em minhas orações. Ele considerou orar “Pai, salva-me desta
hora...”. Mas, no frigir dos ovos, ele não faz a oração. Nem bem considerou a
JESUS ORA NA EXPECTATIVA DO FIM 229

possibilidade, rejeitou‫־‬a. Orar pedindo para ser salvo seria rejeitar sua iden-
tidade básica, sua vida como presente para os outros, sua vida sacrificada em
amor, para que todos pudessem viver salvos. Seria uma oração que violaria a
própria natureza da oração.
A oração que Jesus não fez é tão importante quanto a oração que ele fez. O
fato de que Jesus, que “como nós, passou por todo tipo de tentação” (Hb 4:15),
não orou “Pai, salva-me desta hora” torna possível também para mim que não
faça essa mesma oração e assim rejeite a oração eu-em-primeiro-lugar, rejeite a
oração interesseira, recuse usar a oração como forma de evitar a Deus.
Primeiro o “não" e somente depois o "sim”.
“Salva-me desta hora?” Não.
“Pai, glorifica o teu nom e”? Sim.

* * *

Talvez leve toda uma vida para aprender a orar assim de coração puro. Mas,
à medida que oramos, fica cada vez mais claro que precisamos deixar Jesus
redefinir diariamente a palavra “glória”; caso contrário, simplesmente não a
compreenderemos.
Os gregos não compreenderam. João nos informa que havia alguns gregos
em Jerusalém no dia em que Jesus fez essa oração. Queriam ver a Jesus.
Eram turistas na Cidade Santa, tendo viajado até aquele lugar para vê-lo.
Tinham ouvido falar de Jesus, tinham ouvido sobre glória e queriam ver com
os próprios olhos. Com as câmeras em fácil acesso, guias de viagem em mãos,
aproximaram-se de André e de Filipe e tentaram contratá-los com o guias
turísticos (Jo 12:20-22).
Quando André e Filipe disseram isso a Jesus, ele, na verdade, não os levou
em consideração. Em vez de posar para uma fotografia para os gregos, ele falou
sobre sua morte. A glória que Jesus vinha revelando em palavras e gestos por
toda a sua vida agora será exibida plenamente: “Chegou a hora de ser glorifi-
cado o Filho do hom em ” (Jo 12:23). “Hora” significa hora de morrer: é hora
de o Filho do homem morrer para que o Filho do homem seja glorificado.
230 A LINGUAGEM DE DEUS

André e Filipe precisam ir dizer aos gregos que voltem para casa e tirem
fotos do Partenon. Jesus com certeza os decepcionará. A glória com a qual
Jesus é glorificado não é inspiradora. Não é algo que alguém queira imitar.
Não é algo que chame a atenção. Não é glamourosa. Não é o tipo de glória em
destaque em revistas de papel brilhante e em cartazes de agências de viagem,
anunciando sol e areia nas ilhas gregas. Não é algo para fotografar.

***

Oramos na companhia de Jesus para aprender isso, para reaprender o signifi-


cado das palavras que foram corrompidas pela nossa cultura e aviltadas pelo
nosso pecado. Jesus é o dicionário no qual consultamos o significado das pa-
lavras. Procuramos “glória” e o que encontramos? Obscuridade, rejeição, vida
sacrificial, morte obediente. E em meio a tudo isso, por dentro e ao redor, a
presença esplendorosa de Deus ilumina por detrás aquilo que o mundo ignora
e despreza — aquilo que nós tantas vezes ignoramos e desprezamos. A vida e
a morte de Jesus ganham foco nessa oração e iluminam a vida — toda a vida
— , de modo tão convincente que caímos de joelhos e dizemos: “Glória — esse
é o tipo de vida que eu quero. Pai, glorifica o teu nom e”.

***

Essa é a única oração de Jesus em que ouvimos o Pai falar. O impressionante é


que Jesus e o Pai estão, como dizemos, “em sintonia”. Jesus ora, pedindo que
o nome do Pai seja glorificado; o Pai responde a Jesus: “Eu já o glorifiquei e 0
glorificarei novamente” (Jo 12:28). Os três tempos verbais são cobertos pela
oração. Glória no passado, glória no presente, glória no futuro. A expectativa
da glória termina como participação na glória.
capítulo 17
Jesus ora por nós
João 17

Eu rogo por eles [...]


Minha oração não é apenas por eles. Rogo também por aqueles
que crerão em mim, por meio da mensagem deles... (Jo 17:9,20)

Jesus tem apenas algumas horas para viver. Em breve será um cadáver pen-
dendo de uma cruz. Acabou de cear com seus discípulos em Jerusalém, no
final das contas sua última ceia com eles. Após a ceia, Jesus lava os pés de seus
discípulos com uma bacia de água e enxuga seus pés com uma toalha. Pedro
protesta. Acha que seu Senhor está se rebaixando com aquele ato.
Alguns dias antes Jesus e seus discípulos tinham ceado na vila de Betânia, a
pouco mais de três quilômetros a leste de Jerusalém. Esse jantar aconteceu na
casa das irmãs Maria e Marta e de seu irmão, Lázaro. Marta serviu a refeição.
Houve um lava-pés. Nessa ceia foi Maria quem lavou os pés de Jesus, mas com
um perfume caro — mais com o um ungüento do que uma simples lavagem.
E usou o cabelo, não uma toalha, para lhe secar os pés. Judas Iscariotes pro-
testou contra esse lava-pés, exatamente como Pedro protestaria uma semana
mais tarde, mas por motivos diferentes. Judas fez alegações atinentes à justiça
social — o dinheiro deveria ter sido utilizado para os pobres. Jesus defendeu
a extravagância de Maria (Jo 12:1-8).
Os dois lava-pés são preparações para coroações. O lava-pés de Betânia
prepara para o jubiloso grito de "Hosana! Hosana!” da multidão da Páscoa
judaica enquanto aguarda ansiosa a coroação de Jesus, o "Rei de Israel”. O
lava-pés de Jerusalém prepara para a exigência "Crucifica-o! Crucifica-o!” por
parte dos inimigos de Jesus, incitados pelos sacerdotes, os quais penduraram
Jesus em uma cruz com a inscrição "Rei dos Judeus”. Diante dos dois lava-pés
há protestos: o primeiro por parte de Judas, uma vez que ele entende muito
bem como pode transformar aquele perfume em dinheiro rápido; o segundo
232 A LINGUAGEM DE DEUS

por parte de Pedro, porque ele totalm ente deixa de compreender em que
sentido Jesus é Senhor.
Jesus está perto do fim de seu ministério público. O melhor e o pior de
seus discípulos ainda não entenderam nada: para Judas, Jesus é uma maneira
de obter algo para si próprio; para Pedro, Jesus é uma forma de se relacionar
com algo maior que ele próprio. Os dois estão errados. Certamente “obtém-
-se” um bocado de coisas quando se segue a Jesus. Ele dá, e dá, e dá. Nós
ganhamos, e ganhamos, e ganhamos. Mas não é um tipo de “ganhar” como
Judas ou Pedro imaginam.

# * *

Jesus tem sua obra traçada para ele. Os mais próximos dele continuam a
interpretá-lo mal com as melhores (Pedro) e com as piores (Judas) das inten-
ções. Jesus não entra em pânico. Ele não ergue a voz. Ele não os censura por
serem tão obtusos. Ele escolhe passar suas últimas horas com eles em uma
conversa demorada e um tanto sinuosa que se encerra com uma longa oração,
a oração mais longa de Jesus que tem os registrada.

A CONVERSA
A conversa (Jo 13— 16) é vagarosa e repetitiva. Deus não pode se apressar nos
corações humanos. Uma vida de amor e de obediência não pode entrar apres-
sadamente nos corações humanos. Embora seus discípulos ainda não o saibam,
Jesus sabe que sua vida está numa crise e que a crise está prestes a irromper.
Mas seu tom é tranquilizador, íntimo. Em toda a conversa, os discípulos fazem
sete perguntas e intercalam um comentário que traem sua falta de compreen-
são. Não se trata de uma conversa que serve de modelo para uma comunicação
lúcida. Mas é uma conversa-modelo para revelar a mente de Cristo e fornecer
percepções sobre a dificuldade de “entender as coisas” — entender como
funciona o rodeio inerente na revelação e as espontâneas intimidades do amor.
Pedro faz a primeira pergunta. Ela é provocada pelo fato de Jesus lavar os
pés de seus discípulos, com uma bacia de água e uma toalha. Quando Jesus
se aproxima de Pedro, este protesta com uma daquelas perguntas que não
JESUS ORA POR NÓS 233

exigem resposta: “Senhor, vais lavar os meus pés?". Claro que Jesus não vai
lavar os pés dele. Jesus é Senhor; Pedro é seu discípulo. Quando o Senhor lava
os pés de um discípulo, tudo fica de ponta-cabeça. Mas agora isso também?
Será que Pedro, como líder, sempre constando em primeiro lugar nas listagens
dos discípulos, já está ciente de sua primazia? E será que sua posição já come-
ça a subir à cabeça? Se Jesus lavar seus pés, isso não minará a deferência e o
respeito que lhe são devidos por parte dos outros discípulos? Jesus de joelhos
aos pés de Pedro inverte drasticamente quaisquer pretensões por parte dos
seguidores de Jesus, quanto mais de Pedro, dos privilégios da liderança. Jesus
não leva em conta a pergunta de Pedro (Jo 13:3-20).
Jesus lhes informa que um dentre eles o trairá. Ficam aturdidos. Traição?
Impossível! Quem poderia ser? O discípulo “amado”, presumivelmente João,
está sentado ao lado de Jesus. Ele faz a pergunta seguinte: “Senhor, quem é?”.
Sem citar pelo nome, Jesus sinaliza Judas, mas ninguém capta o significado
do sinal. Naquele ambiente de intimidade, a traição não é algo concebível —
Satanás entrando em um dentre eles enquanto estão na própria presença de
Jesus? Dificilmente (Jo 13:21-30).
Jesus então lhes diz que estará com eles “apenas mais um pouco”. Pedro
pergunta: “Senhor, para onde vais?”. Mas Jesus não dá uma resposta direta.
Ele sabe que Pedro não tinha os recursos para compreender. Portanto, ele
responde por via indireta (Jo 13:31-38).
Agora chega a vez de Tomé. Jesus diz a seus amigos que preparará um lugar
para eles “na casa de meu Pai” e que eles já sabem o caminho. Tomé pensa que
Jesus deve estar falando do caminho para uma cidade ou outra, como Betânia
ou Jerico, e então pergunta: "Como então podemos saber o caminho [se você
não diz para que cidade está se dirigindo]?”. A resposta de Jesus “Eu sou o
caminho..." é enigmática. Eles vão levar anos para assimilá-la (Jo 14:1-7).
Filipe é o quinto a falar. Não é uma pergunta dessa vez, mas uma solicita-
ção. Ele está confuso pela forma em que Jesus utiliza o termo “Pai" e pede
a Jesus que lhes mostre “o Pai”. Jesus responde a sua pergunta em forma de
pedido com outra pergunta: “Como você pode dizer: ‘Mostra-nos o Pai’?”. Ao
que tudo indica, mesmo depois de todo esse tempo, Filipe não tem nenhuma
ideia de que Jesus está falando de Deus. Mas Jesus é paciente. De novo ele
repisa o básico (Jo 14:8-14).
234 A LINGUAGEM DE DEUS

Jesus apresenta a pessoa do Espírito Santo e o que podem esperar dele.


Judas (não o Iscariotes — Judas Iscariotes deixou a sala antes de essa conversa
se aprofundar) pede um esclarecimento. Trata-se agora da sexta pergunta.
Tudo está ficando meio confuso. Ele pergunta: “Senhor, mas por que te reve-
larás a nós e não ao mundo?". A resposta de Jesus é outra não resposta. Pelo
menos é como soa no primeiro momento. Mas os discípulos estão sendo prepa-
rados para ouvir as palavras de Jesus de uma maneira interior, mais profunda.
Ele manda que Judas, na realidade, fique tranquilo, sem grandes ansiedades.
Haverá tem po mais que suficiente para assimilarem e compreenderem. 0
Espírito Santo “lhes ensinará todas as coisas e lhes fará lembrar tudo o que
eu lhes disse” (Jo 14:15-31).
Quando Jesus novamente diz “Mais um pouco e já não me verão; um pouco
mais, e me verão de novo”, alguns de seus discípulos (nenhum deles é citado
pelo nome dessa vez) ficam novamente confusos. "O que ele quer dizer com
isso: ‘Mais um pouco...’ [...] Não entendem os o que ele está dizendo”. E a
mesma pergunta que Pedro tinha feito anteriormente sem obter uma resposta
satisfatória. Tampouco dessa vez Jesus responde à pergunta, mas os tranquiliza,
mostrando que ele os está levando a sério, se não a suas perguntas: "Naquele
dia vocês não me perguntarão mais nada”. Sem mais perguntas. Mas, em vez de
fazerem perguntas, eles pedirão: “Eu lhes asseguro que meu Pai lhes dará tudo 0
que pedirem em meu nome. Até agora vocês não pediram nada em meu nome.
Peçam e receberão, para que a alegria de vocês seja completa”(Jo 16:16-24).
“Até agora vocês não pediram nada em meu nom e.” Mesmo? Mas é tudo
o que eles vêm fazendo: pedindo. Como? Eles querem informações e pedem
essas informações na forma de perguntas. Querem fatos e os pedem. Querem
tudo esclarecido em detalhes e pedem esses esclarecimentos. Jesus não lhes
dá o que pedem; em vez disso, ele usa as perguntas deles para conduzi-los por
terrenos inexplorados, para levá-los a uma confiança e a um relacionamento que
eles ainda não sabem como pedir. Acham que precisam saber quem, e quando,
e onde. Jesus está sugerindo e sinalizando intimidade e Espírito.
Ele está bem adiantado no que está fazendo e ainda não está fazendo; ele
não está sendo nem um pouco tímido com eles: “Tenho ainda muito que lhes
dizer, mas vocês não o podem suportar agora". Não estão prontos agora, mas
JESUS ORA POR NÓS 235

estarão. Há sofrimento, tristeza e desilusão à frente. Ao longo do caminho,


vocês desenvolverão olhos e ouvidos para assimilar aquilo para o que vocês
estão neste m om ento cegos e surdos. Você estão obcecados com fatos; vo-
cês adquirirão um paladar para a verdade: "... quando o Espírito da verdade
vier, ele os guiará a toda a verdade” (Jo 1 6 :1 2 1 3 ‫) ־‬.
As últimas palavras dos discípulos nessa conversa são um tanto constrangedo-
ras para aqueles de nós que têm esses homens na mais alta conta. Eles pensam
que sabem tanto, mas entendem tão pouco: “Agora estás falando claramente,
e não por figuras! Agora podemos perceber que sabes todas as coisas e nem
precisas que te façam perguntas”. Sem mais perguntas? Jesus lhes diz que não
tenham tanta certeza. Eles acham que finalmente entenderam tudo, mas não:
“vocês serão espalhados cada um para a sua casa. Vocês me deixarão sozinho”.
Eles têm um longo caminho a percorrer, mas estão no caminho (Jo 16:25-30).

***

Tudo bem fazer perguntas. Mas sessões de perguntas e respostas talvez não
sejam a melhor maneira de travar uma conversação no estilo de Jesus. As per-
guntas podem servir para dissipar as diferenças ou as tensões emocionais. Mas
é inútil se preocupar com as perguntas, como um cão com seu osso. Raramente
sabemos o bastante para fazer as perguntas certas. Na companhia de Jesus,
aprendemos a não insistir em respostas a nossas perguntas — aprendemos a
deixar Jesus conduzir a conversa para onde quiser.
Jesus deseja conduzir a conversa em oração. Em certo sentido, a conver-
sação continua, mas Jesus já não está falando a seus discípulos. Está falando
com seu Pai (e Pai dos discípulos); está falando com Deus.
E hora de orar. Os discípulos ainda estão no recinto, mas não mais fazendo
perguntas e comentários; estão ouvindo Jesus falar com o Pai. Como seguidores
de Jesus, sem dúvida alguma estamos incluídos como participantes que ouvem.

A ORAÇÃO
Atravessamos o limiar de João 17 e nos encontramos em um recinto de es-
cuta silenciosa. E o mesmo ambiente. Tudo é igual, mas nada é igual. A bacia
236 A LINGUAGEM DE DEUS

e a toalha estão na mesa, onde Jesus as deixou. Judas ainda está ausente. Os
onze discípulos que seguem a Jesus, o ouvem e falam com ele são os mesmos
onze. Jesus é o mesmo e sempre esteve com eles, sendo aquele a quem eles
seguem e ouvem. E aqueles de nós que, através dos séculos, passaram a crer
em Jesus por meio do testemunho desses onze e agora estão lendo este texto
são os mesmos.
Mas Jesus já não está falando conosco. Jesus está falando com o Pai. Jesus
está orando. Ele ora por muito tempo. Isso é terra santa. Vemo-nos envoltos em
uma escuta santa. Estamos em um lugar de oração, em uma presença de oração.
Nossos lábios são silenciados. Não damos uma palavra: sossega, minha alma.
Não estamos habituados a isso. Não temos o hábito de ficar calados. Fa-
Íamos demais. Falamos sobre Jesus e sobre Deus. Falamos com Jesus e com
Deus. Testemunhamos, aconselhamos, pregamos e ensinamos, fofocamos e
debatemos, cantamos e oramos. Mas estamos agora na sala em que se encontra
João Dezessete, na presença de Jesus, que está em oração — orando, como
logo descobriremos, por nós. Sim, por nós.
Ser alvo de oração é também um elemento da vida de oração — uma grande
parte, mas em geral muito subestimada. Quando é Jesus que está orando por
nós, ser alvo da oração pode muito bem representar a maior parte da oração.
Lembramos onde estamos: estamos na Reunião de Oração de João De-
zessete. Jesus está orando. Temos o evangelho de João aberto diante de nós.
Os onze estão em silêncio, mas não passivos. Estão sendo alvo de oração.
Nós também estamos em silêncio, mas não passivos. Estamos ouvindo ativa-
mente. Queremos fazer parte daquilo que Jesus quer para nós, assim como
estivem os organicamente vinculados à conversa. Desejamos estar presentes
em espírito de oração diante da Presença que ora. Não tem os nada a dizer.
Jesus, a Palavra que se tornou carne, está falando ao Pai. Ele está nos in-
cluindo em sua oração.
Na Reunião de Oração de João Dezessete, dissipa-se qualquer culpa que
ainda carreguemos por termos sido infiéis em oração. Desaparece qualquer
senso de impotência que nos persiga quanto à oração. Esvaem-se toda timidez
por se sentir deslocado e todo encolhimento temeroso. O mundo da oração
expande-se exponencialmente. Não mais nos preocupamos com o que sabemos
JESUS ORA POR NÓS 237

ou deixamos de saber, fazendo perguntas, procurando respostas. Somos apenas


nós mesmos, livres no amplo espaço da presença de Jesus, que está orando.
Estamos na presença de Jesus, que ora por nós. “Deixamo-nos prender por essa
verdade primordial, a saber, que toda a massa compacta dos seres criados, toda
a essência e todo o mundo cotidiano com o qual estamos tão familiarizados
navegam como um navio sobre as profundezas insondáveis de um elem ento
totalm ente diferente, o único que é absoluto e determinante, o amor sem
fronteiras do Pai”.1

* * *

Jesus ora. O texto diz: “Depois de dizer isso, Jesus olhou para o céu e orou:
‘Pai, chegou a hora. Glorifica o teu Filho, para que o teu Filho te glorifi-
que‫( ״‬Jo 17:1).
A oração de Jesus está em harmonia com a conversa imediatamente anterior
de Jesus. Jesus não vira a página, seja no tom, seja no conteúdo, quando parte
da conversa para a oração. Ele fala do mesmo jeito com o Pai que fala com os
amigos, do mesmo jeito com os amigos que ele fala com o Pai.
A conversa com eçou com as palavras “havia chegado o tem po” (Jo 13: 1).
Jesus a termina com a mesma expressão: "Aproxima-se a hora, e já chegou”
(16:32). Agora já sabemos o que significa essa frase: "É hora de morrer”.
A morte de Jesus, sua “hora", define o contexto da conversa; continua
servindo de contexto para a oração. Mas a glória fornece a ação. Morte e glória
não parecem ser aliados naturais. Mas em Jesus elas são.

* * *

Os leitores do evangelho de João já conhecem bem “glória” e “glorifica”. Na


primeira página do evangelho de João, ele selecionou “glória" como a única
palavra que caracterizaria a revelação de Jesus como Filho de Deus e Messias:
"Vimos a sua glória, glória como a do Unigénito vindo do Pai” (Jo 1:14). “Gló-
ria”, junto com seus correspondentes verbais, é usada catorze vezes à medida
que a história se desenrola na primeira metade do evangelho (caps. 1— 11),
238 A LINGUAGEM DE DEUS

concluindo com a declaração de Jesus a Marta, logo antes de ressuscitar Lázaro:


“Não lhe falei que, se você cresse, veria a glória de Deus?" (11:40).
Imediatamente após a triunfante Parada de Hosanas, aproximando-se a
Semana da Páscoa, acelera-se o vocabulário em torno de “glória” e “glorifica”.
As palavras serão usadas outras dezenove vezes à medida que se narra a história
dos cinco dias seguintes, a paixão e a morte de Jesus.
Jesus utilizou o verbo-âncora “glorifica” em sua breve oração em João 12,
na expectativa de sua crucificação: “Glorifica o teu nom e”. Essa oração, esse
verbo, marca o início de uma transição, da história da vida de Jesus, sua vida
que revela a Deus, é eterna (3:16) e abundante (10:10), narrada nos capítulos
1 a 11, para a história da morte de Jesus, sua morte voluntariamente sacrificial,
que opera a salvação, narrada nos capítulos 12a 19.
Quando lemos a história, a pena de João, de modo firme, mas discreto,
remodela nossa imaginação ponto a ponto na oração de Jesus, para que sejamos
capazes de reconhecer a glória de uma forma interior e cada vez mais profunda.
Se deixarmos que essa oração de Jesus tom e conta de nós, reconheceremos
glória na morte de Jesus. A medida que Jesus anda e fala nas estradas em meio
aos campos e nas ruas da cidade, nas serras galileias e nos átrios do templo em
Jerusalém, nossa imaginação aos poucos se expande para assimilar novas dimen-
sões de glória, uma glória não restrita ao esplendor do templo de Salomão e aos
camelos da rainha de Sabá, carregados de especiarias e ouro. Glória não é apenas
o que ofusca a visão, é também o que ilumina o coração que crê. Glória cresce
para dentro. Abrange uma realidade revelada que opera de modo invisível de
baixo para cima, transmitindo vida das profundezas, onde as sementes germinam
e as árvores lançam raízes e os mananciais emergem silenciosamente de aquíferos
entranhados nas profundas rochas. Ela alcança o interior mais profundo onde os
vulcões vão buscar fogo e lava para a formação de montanhas.
Jesus desenvolve essas dimensões interiores de glória, à medida que faz sua
oração de João 17: “Glorifica o teu Filho, para que o teu Filho te glorifique”.
Isso é glória que não parece glória, glória que, ao que tudo indica, é irreco-
nhecível como glória — não brilho, mas noite, não celebridade, mas zombaria.
Poucas horas depois de Jesus fazer essa oração, a oração é respondida: Jesus
é morto e sepultado.
JESUS ORA POR NÓS 239

O substantivo “gloria” (três vezes) e o verbo "glorificar" (sete vezes) domi-


nam a oração. A oração reúne esses antônimos aparentemente autoneutralizan-
tes, gloria e morte, tornando-os elementos polares do mesmo acontecimento.
No ato de morrer, Deus glorifica a Jesus. No ato de morrer, o Filho glorifica o
Pai. Jesus ora pedindo glória. Glória acontece. Glória como morte e morte como
glória não é uma verdade fácil ou confortável de assimilar. Mas para aqueles de
nós que seguem a Jesus, é absolutamente central para primeiro compreender e
depois participar da glória que é nossa salvação e a salvação do mundo.

* * *

O fato de aparecerem lado a lado morte e glória, glória e morte, na conversa


e na oração, é algo impressionante, mas muito impressionante. As realidades
são entrelaçadas de maneiras que parecem muito naturais, como se sempre
fizessem parte uma da outra, o que, aliás, é verdade — “antes da criação do
mundo” (Jo 17:24). Não há nenhum linguagem argumentativa aqui, nada didá-
tico. E, certamente, nenhuma tentativa de suscitar as mais profundas emoções.
Discernimos a verdade nessa linguagem; detectamos urgências. Mas não há
nenhuma manipulação. E uma linguagem pessoal, uma linguagem relacionai,
o que Martin Buber tão excelentem ente explorou como a linguagem “Eu-Tu”.
Trata-se de algo importante. Não há nada tão destrutivo para o evangelho
de Jesus Cristo quanto o uso de linguagem que descarte a forma com que
Jesus fala e ora e, no lugar, faça uso da retórica das habilidades de vendedor,
sempre com um sorriso nos lábios, ou da retórica das críticas e injúrias des-
trutivas. Se, em nome de Jesus, a verdade for eviscerada em fatos, a salvação
impessoalizada em uma estratégia ou o amor abstraído num slogan ou num
princípio, o evangelho é então blasfemado.

* * *

A linguagem da oração, num elo com a conversa, é permeada pelo pessoal.


Jesus dirige-se a Deus como Pai, metáfora que insiste na relação pessoal, por
seis vezes, e por 43 vezes também usa pronomes de segunda pessoa (“tu ”, “ti” e
240 A LINGUAGEM DE DEUS

"teu/tua[s]”). Jesus refere-se a si próprio por nome (Jesus Cristo) uma vez, pela
metáfora pessoal Filho, uma vez e por pronomes de primeira pessoa (“eu”, “me”,
“mim”, “meu/minha[s]”), 57 vezes. A oração é linguagem pessoal usada entre
pessoas. Jesus não é uma "verdade” abstraída do pessoal imediato e particular.
Com plem entando esses nomes e pronomes pessoais, há 45 referências
(“eles”, “estes”, “deles”, “os”, “lhes”, "aqueles”) aos onze discípulos que estão
na sala com Jesus, enquanto ele ora por eles. Alguns desses pronomes atra-
vessam os séculos e incluem a nós, os que ainda iríamos nos tornar discípulos.
Jesus reúne a eles e a nós em sua oração, nesse ato abrangente de intercessão.
Nós somos também alvo da oração. Ao ouvirmos ativamente na presença do
Jesus que ora, participamos da oração.
O uso intimamente pessoal da linguagem representado na oração é mais re-
alçado ainda pelo uso dezenove vezes da preposição “em ”, participativa e envoi-
vente. Oração não é uma operação de distanciamento. Oração não é um exercício
religioso que "põe as coisas em perspectiva” ou “coloca as pessoas em seu lugar”.
Ela é envolvente. Jesus envolve-se na obra do Pai. Jesus envolve-se na vida de
seus discípulos. Jesus envolve-nos naquilo em que Deus está envolvido.
No contexto, com o sofrimento e a morte de Jesus com apenas algumas ho-
ras por acontecer, a oração e o sofrimento compõem o material da intercessão.
“Gostaria de saber se vocês percebem um fato grande e profundo? Que as almas
— todas as almas humanas — são profundamente interligadas? Que, quero dizer,
não podemos apenas orar uns pelos outros, mas sofrer uns pelos outros.”2
A oração de Jesus não diz respeito a idéias ou projetos; é um envolvimento
pessoal em todas as operações da Trindade. Graças à oração de Jesus, estamos
envolvidos em tudo o que o Pai faz, o Filho diz e o Espírito encarna em nós. A
longa conversa que Jesus e seus discípulos acabaram de travar é agora aliada
às intimidades da oração, nas quais eles se veem participantes na relação do
Pai, do Filho e do Espírito Santo.

* * *

Jesus ora muitas coisas a nosso favor. Podemos imaginar que essas intersecções
incluem praticamente tudo o que diz respeito a nos formar e nos curar, nossa
JESUS ORA POR NÓS 241

salvação e nossa santificação, nosso corpo e nossa alma. Na oração de João


Dezessete, ele ora ao Pai para que nos dê a vida eterna (v. 2 3 ‫ ;)־‬ele ora para
que tenhamos a plenitude da sua “alegria” em nós (v. 13); ora para que o Pai
nos mantenha em segurança, protegendo-nos do Maligno (v. 6-15); ora para
que o Pai nos santifique na verdade (v. 17-19).
Há uma intercessão final claramente mencionada: Jesus ora para que
sejamos incluídos, como o próprio Jesus é incluído, em todas as operações
da Trindade — que sejamos participantes plenos de tudo o que Deus é, diz
e faz, de todas as maneiras em que Deus é, diz e faz. Quando consideramos
tudo o que isso significa, tanto no aspecto abrangente quanto íntimo, isso não
é nada menos que surpreendente — participantes da divindade, íntimos com
Deus. Mas é o que Jesus pretende. Ele garante que entendamos que isso não
é nenhum adendo improvisado, casual, de última hora, mais um elem ento a
acrescentar à oração. Essa intercessão final é profundamente inclusiva, abran-
gente. Ele garante que prestemos total atenção a ela, repetindo-a seis vezes:

“Pai santo, protege-os [...] para que sejam um, assim como somos
um .” (v. 11)
“Rogo [...] para que todos sejam um ...” (v. 20-21)
"... para que todos sejam um, Pai, como tu estás em mim e eu em
ti...” (v. 21)
"... para que eles sejam um, assim como nós somos um...” (v. 22)
"... eu neles e tu em mim. Que eles sejam levados à plena unida-
d e...” (v. 23)
"... a fim de que o amor que tens por mim esteja neles, e eu neles este-
ja.” (v. 26)

A linguagem pessoal e participativa caracteriza a oração como um todo.


Mas aqui as seis repetições — para que eles sejam um, assim como nós somos
um — , com suas variantes, conferem um realce a essa intercessão. Não perca
isto: Pai, Filho e cada um de nós, pela oração e pela cruz de Jesus e pela obra
do Espírito Santo, são feitos um. Assim como glória e morte postas lado a
lado na vida de Jesus catalisam a ressurreição, aqui também a intimidade e a
242 A LINGUAGEM DE DEUS

inclusividade são integradas pela oração de Jesus na comunidade dos seguido-


res de Jesus que em breve será formada pelo Espírito Santo: a igreja.

* * *

O realce que João confere a essa oração à medida que ele nos aproxima das
páginas finais da história de Jesus e a probabilidade de que Jesus continue a
fazer essa oração à medida que intercede por nós (“vive sempre para inter-
ceder por eles” — Hb 7:25) requerem que deliberadamente tom em os nosso
espaço na Reunião de Oração de João Dezessete, entrando e nos submetendo
à oração que Jesus continua a fazer por todos nós que seguimos a Jesus, para
que sejamos um assim como Jesus é um com o Pai.

* * *

Uma grande dificuldade de deixar essa oração penetrar o coração é que não
parece ter feito m uita diferença depois de vinte séculos, e certam ente
não parece exercer hoje um grande impacto sobre os cristãos. A igreja cristã
é famosa em todo o mundo por ser contenciosa e mesquinha, por usar as
palavras de Moisés e de Jesus como armas para excluir e condenar. Uma das
marcas identificadoras que Jesus deu a seus discípulos é “se vocês se amarem
uns aos outros” (Jo 13:35). Mas não muitos séculos se passaram, e os de fora
já estavam dizendo: "Vejam como eles vilipendiam uns aos outros’”. Matamos
com verbos e substantivos, espadas e rifles, com “cristãos” marchando sob a
bandeira da cruz de Cristo.
Dado o acúmulo dos massacres através dos séculos — igrejas destruídas, famí-
lias destruídas, almas destruídas — , é difícil permanecer na Reunião de Oração de
João Dezessete junto com os onze, silenciosamente submetendo-nos à oração
que Jesus faz ao Pai "para que eles sejam um, assim como nós somos um ”.

* * *

É compreensível que muitos vasculhem esse registro histórico e decidam dei-


xar a sala em que Jesus está orando, tentando assim resolver o assunto com as
JESUS ORA POR NOS 243

próprias mãos. Muitos cristãos, impacientes com o que eles consideram a ineficácia
da oração de Jesus, tentam resolver o problema pela imposição da unidade, uma
unidade por coerção — ou seja, autoridade impessoalizada em instituição. O estilo
é hierárquico. Os métodos são burocráticos. Qualquer pessoa ou congregação que
se recuse a se conformar é excluída: anatematizada, excomungada ou evitada. A
unidade é preservada, impondo-se uma definição institucional.
Outros cristãos, também impacientes com a oração de Jesus, resolvem o
problema pelo cisma. Reduzem a escala da unidade àquilo que possa ser admi-
nistrado, reunindo homens e mulheres que pensem igual e tenham o mesmo
temperamento. Em geral um líder forte e carismático se apresenta para definir
os parâmetros reduzidos da chamada unidade. Se pessoas ou grupos descobrem
que já não se encaixam no estilo comportamental, teológico ou de adoração que
define a unidade, outro cisma é sempre uma opção — simplesmente se divi-
dem com outras pessoas que pensam igual e têm o m esmo espírito. A unidade
é preservada pela preferência pessoal.
A urgência repetitiva com a qual Jesus ora para que sejamos um, assim
como ele é um com o Pai, realça os atos deliberados de cisma como atos de
insurreição, uma erupção de voluntariedade violenta na própria presença
daquele que está intercedendo pela nossa unidade relacionai uns para com os
outros, de acordo com a unidade da Trindade. A frequência dessa violência
perpetrada ao corpo de Cristo, uma violência justificada por racionalizações
infindáveis, não é nada menos que assombrosa. Desafiando Jesus na causa de
Jesus. Um tremendo escândalo.
O que salva é que esse desafio não impede que as orações de Jesus cum-
pram seu papel — lentamente, num crescendo, maravilhosamente. Mas isso
não significa que o escândalo de desafiar Jesus em nome de Jesus seja menos
escandaloso. O escândalo é muitas vezes jactanciosamente alardeado como
necessário para preservar a igreja. Mas, qualquer que seja o idioma utilizado,
quaisquer que sejam os slogans colocados nas faixas e nos cartazes, fica bem
claro que os cismáticos em algum mom ento deixaram a Reunião de Oração
de João Dezessete.
Crescí sendo ensinado a odiar os católicos. Mais tarde na vida, adquiri uma
aversão esnobe pelos cismáticos, com certo ar de superioridade. O tem po
244 A LINGUAGEM DE DEUS

todo eu estava violentando o povo de Deus. Demorou um tem po — leva um


tempo para a maioria de nós — para me submeter à oração de Jesus e me
encontrar sendo formado na unidade que Jesus está constantemente fazendo
acontecer. Agora encontro irmãos e irmãs em Cristo, muitos deles, por todo
o espectro da igreja e das igrejas.
Onde quer que nos encontremos ao longo desse espectro, desde uma uni-
dade abrangente imposta de cima até fragmentos de unidade mantidos pelo
cisma, é importante saber que existem muitos, muitos seguidores de Jesus
robustos, maduros e obedientes ao longo do espectro, desde o papa no Vatica-
no até um grupo de pessoas nos montes Apalaches que pegam em serpentes.
Se permanecermos na sala com Jesus enquanto ele ora por nós, adquiri-
remos uma prontidão para abraçar todos os batizados como irmãos e irmãs.
Será algo que virá lentamente, mas a oração de Jesus nos tocará. Não mais
definiremos outros cristãos como concorrentes ou rivais. Jesus não avalia ou
classifica seus seguidores à medida que ora. Ele não apresenta planos para
resolver as controvérsias que ele sabe que surgirão. Ele está orando para que
tenhamos um agradável companheirismo. Quanto mais permanecermos na
presença de Jesus, que está em oração, mais compreenderemos que nossos
impulsos em direção ao cisma e ao sectarismo, nossas rivalidades e denúncias,
não têm nenhum lugar na sala enquanto Jesus está orando por nós “para que
sejamos um ”.
Quando Pedro descobriu um homem de fé na cidade secularizada de Cesa-
reía, na figura improvável de um soldado romano, Cornélio, ele disse: “Agora
percebo verdadeiramente que Deus não trata as pessoas com parcialidade...”
(At 10:34). Será permissível acrescentar à frase de Pedro “ou as igrejas”?
Creio que sim.

A TRINDADE
Existe outra maneira, m uito mais satisfatória, de com preender e avaliar a
oração de Jesus do que dispensá-la impacientemente com o ineficaz, o item
principal da nossa lista de “orações sem resposta”, e, depois, resolver tudo
com as próprias mãos. E com o os cristãos aprenderam a compreender como
Trindade o U m em Muitos, a Unidade casada com a Particularidade.
JESUS ORA POR NÓS 245

O “um ” que Jesus ora a nosso favor é aquele que é a Trindade. Esse "um” é
verdadeiramente um, mas é um "um” que reúne todas as particularidades em
uma unidade relacionai. Tudo contribui para o ser de tudo o mais, permitindo
que tudo seja o que é caracteristicamente. Cada coisa está relacionada a todas
as demais coisas. Cada pessoa está relacionada a todas as outras pessoas. Nada
é forçado. Não há nada de matemático nesse assunto. Todos estão, quer sai-
bam, quer não, envolvidos, seja em submissão, seja em resistência, em todas
as operações do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
O santo batismo é o sacramento que proclama a representação desse fun-
damento trinitário que é básico a toda a existência. Somos batizados em nome
do Pai, do Filho e do Espírito. Tornamo-nos nós mesmos quando adentramos
as águas do batismo, com nossa identidade particular confirmada e esclarecida
em um nome pessoal e em um relacionamento pessoal com todas as formas,
todas as modalidades em que Deus é Deus. Não somos autônomos. Não somos
nós mesmos por nós mesmos.
O pecado é um ato isolado. Ele nos separa relacionalmente de Deus, da
criação de Deus e da comunidade de Deus. Restabelecer a com plexidade
das relações em que som os criados não é algo possível por ordem ou por
decreto. Uma intimidade pessoal e relacionai não pode ser obtida impesso-
almente. Damos às intimidades sexuais forçadas o nome de estupro, sem
dúvida uma das mais violentas degradações do ser humano. D eus não toma
parte em estupros.
Há uma conversa em um romance de Charles Williams em que as perso-
nagens debatem sobre por que Deus não cuida melhor das coisas santas e por
que jamais cabe fazer para Deus o que ele não parece fazer para si próprio.
Eis as palavras que são proferidas: "Deus somente dá, e ele tem somente a si
para dar, e ele, mesmo ele, pode dar som ente naquelas condições que são ele
m esm o”.3 Deus não pode operar de maneiras que não estejam em harmonia
com ele mesmo. Deus é pessoal e livre. E, assim, o que quer que aconteça em
oração é pessoal, dado livremente e recebido livremente. A oração não é uma
técnica sobrenatural de coerção. A oração não amontoa pecadores e santos
em pilhas separadas de anonimías, uma pilha destinada à condenação, outra
246 A LINGUAGEM DE DEUS

destinada à salvação. A oração leva absolutamente a sério cada pessoa e coisa


em particular, e tudo o que é próprio dessa pessoa e coisa, ao mesmo tempo
que lhes preserva a absoluta liberdade. Não nos podemos tornar um uns com
os outros ou com Deus sem liberdade.
E é por isso que demora tanto para que esses homens e mulheres pelos
quais Jesus está orando (a saber, nós) se tornem “um, assim com o somos
um ”; é por isso que não se pode forçar nem apressar nada. Por isso é que,
não importa quantos sejam moldados pelas orações de Jesus nessa unidade
trinitaria, a Unidade em si é sempre um processo, enquanto novos seguidores
entram no processo modelador em que não há nenhum atalho. Não se per-
mitem eficiências de linha de montagem. Os automóveis podem ser feitos
dessa maneira, mas não os santos. A obra de santificação (outra palavra para
esse tornar-se "um, assim com o somos um ”) jamais é um produto acabado
que qualquer congregação possa testar e, se lhe agradar, então se inscrever. A
Unidade não é um modelo a ser copiado; é uma relação trinitária — Pai, Filho
e Espírito — de reciprocidade, na qual entramos.
A Trindade é abrangente e intrincada, fundindo o Um e os Muitos. Com-
preender e participar em todas as operações do Deus trinitário requer toda uma
vida de adoração sacrificial (desacostumando-nos de nós mesmos) e de submis-
são paciente às orações pacientes de Jesus para que todos sejam um. A igreja,
que fornece visibilidade por meio da vida de homens e mulheres em especial,
em locais específicos, em momentos específicos, não é uma ideia. Tampouco
é um ideal. E uma realidade histórica existente no tempo. Está em constante
formação. Como uma partitura, leva tempo para se tornar o que é. Todas as
notas precisam ser reproduzidas por todos os instrumentos designados a tocá-
-las antes de ser o que é. Se nos recusarmos voluntariosamente a fazer parte
da orquestra, se insistirmos em que todos tenham de tocar a mesma nota
indefinidamente ou se encontrarmos uma única melodia ou acorde da música
de que mais gostemos e executarmos somente isso, provavelmente os resultados
em nada se parecerão com o que agradaria o compositor ou o maestro da música.
Ser igreja é algo intricadamente com plexo e exigente, mas não mais di-
fícil do que qualquer outra coisa que valha a pena ser. A igreja é a reunião
JESUS ORA POR NÓS 247

grande, saudável, trinitária onde deixamos Deus ser Deus da forma em que
ele deseja ser D eus e deixamos que Jesus ore por nós para participarmos
da unidade dinâmica revelada entre Pai, Filho e Espírito, ou seja, precisa-
m ente, gloria. A igreja é a arena principal em que aprendemos que gloria
não consiste no que fazemos para Deus, mas no que D eus faz por nós. £
o campo de poda onde nos subm etem os à morte e ao morrer, a morte de
Jesus na cruz e nossa morte diária. Necessariam ente envolve recusar-se a
controlar as pessoas ao redor e recusar-se a forçá-las, seja por intimidação
paternal, seja por força militar, seja por manipulação política, a agir do nosso
modo. E necessariamente implica recusar-se a dissipar a vida em uma série
de performances de uma só noite com pessoas glamourosas ou em causas de
elevar a adrenalina, satisfazendo nossas ambições e entregando-nos a nossos
caprichos “em nome de Jesus”.

* * *

Uma das mais antigas perguntas metafísicas está relacionada com a natureza
fundamental da realidade, uma questão com a qual lidam os cristãos que
passam algum tem po na Reunião de Oração de João D ezessete. A vida na
com unidade de Jesus é uma ou muitas, singularidade ou multiplicidade?
Os gregos refletiram detidamente sobre isso. Parmênidas defendia o "uma”.
Heráclito defendia as “muitas”. Os cristãos, muito influenciados pela conversa
e pela oração de Jesus, desde o início começaram a reformular o debate do
ponto de vista da Trindade: “Tão logo eu concebo o Um , sou iluminado pelo
esplendor dos Três: tão logo eu os distingo, sou levado de volta para o U m ”
(Gregorio de Nazianzo).4

* * *

Vale ressaltar, creio eu, que Jesus assume total responsabilidade por nossa
unidade: "que sejam um, assim com o somos um ”. Ele ora. E significativo que
a intenção de Jesus de que eles “sejam um ” é expressa em oração ao Pai, e
248 A LINGUAGEM DE DEUS

não em uma ordem ou exortação aos discípulos "para serem um ”. Ser uma
comunidade de fé em Cristo é um negócio complexo. Não tem os nem o co-
nhecimento, nem a competência para fazê-lo acontecer.
Ao nos submetermos a Jesus enquanto ele ora pela nossa unidade, também
nos submetemos a como ele escolhe realizá-la, o caminho da glória, glória que
abraça o sofrimento e a morte. Esse é o caminho, o único caminho, que nos
permite a liberdade e a dignidade da participação. A unidade pela qual Jesus
ora é articulada exclusivamente na linguagem do relacionamento pessoal e
da participação voluntária. Uma unidade imposta não faz parte da oração de
Jesus. Uma redução cismática não faz parte da oração de Jesus. Todos nós
hoje que somos batizados e chamados cristãos somos alvo da oração de Jesus
para que experim entem os maturidade na companhia da “igreja una, santa,
católica e apostólica”.

Seis páginas depois (na minha versão da Bíblia) e cerca de quarenta dias
depois na história conforme é narrada (Lucas tendo retomado de onde João
parou), encontramos esses mesm os discípulos ainda em Jerusalém e ainda
orando. Entrementes, a crucificação, a ressurreição e a ascensão de Jesus foram
concretizadas. Mas os discípulos em oração não sabem o que virá depois. A
mãe e os irmãos de Jesus se uniram aos onze, ainda orando em harmonia com
a Reunião de Oração de João Dezessete. A reunião de oração aumenta em
número — 120 são computados em um dos momentos. Continuam a orar à
medida que cuidam da questão de substituir Judas Iscariotes. Enquanto oram,
oferecem Matías com o substituto para unir-se a eles com o “testemunha de
sua ressurreição” (At 1:22).
Estão ainda em oração — agora já se passaram cinquenta dias desde a Res-
surreição e dez desde a Ascensão. E a festa de Pentecoste. E então acontece.
O Espírito Santo prometido está entre eles, como Jesus lhes garantiu antes
em sua conversa. E a oração de Jesus por eles para que "sejam um ” recebe
confirmação, visivelmente nas chamas de fogo, audivelmente nas línguas — um
JESUS ORA POR NÓS 249

fogo, dezesseis línguas. A unidade é obtida mesmo enquanto a particularidade


é preservada.
A Reunião de Oração de Atos Dois são as primicias das raízes formadas
pelas orações de Jesus no solo da Reunião de Oração de João D ezessete,
cinquenta dias antes. Essas raízes, raízes intercessoras, continuam a enviar
rebentos de integralidade trinitária, atraindo pessoas e nações a seu abraço.
capítulo 18 Jesus ora a agonia do Getsêmani
Mateus 26:39-42

Meu Pai, se for possível, afasta de mim este cálice; contudo, não
seja como eu quero [...]
Meu Pai, se não for possível afastar de mim este cálice sem que
eu o beba, faça-se a tua vontade.

Poucas horas antes de Jesus estar pendurado na cruz em agonia, ele se acha
também em agonia, orando no Getsêmani. As duas agonias são a mesma Ago-
nia. A agonia recebe um nome: “este cálice”. O cálice contém um líquido que
é bebido. A propriedade particular do cálice é que o seguramos nas mãos, o
colocamos nos lábios, o viramos para dentro da boca e engolimos o conteú-
do. Ele requer um espírito coordenado e disposto, que aceita e que recebe.
Requer levar o conteúdo por todo o nosso sistema digestivo, distribuindo-o
pelos músculos e ossos como um todo, glóbulos vermelhos e gânglios nervo-
sos. O cálice é um recipiente de onde podemos extrair algo que não seja nós
mesmos para o interior de nossa vida, de modo que ele se torna nós mesmos,
entrando em nosso viver.
O cálice que Jesus segura nas mãos no Getsêmani naquela noite é a von-
tade de Deus — a vontade de Deus de salvar o mundo em um ato final de
amor sacrificial. O cálice que Jesus bebe é uma morte sacrificial em que Jesus
livremente toma o pecado e o mal a si mesmo, absorve-os em sua alma e ex-
trai deles a salvação — bebe-os como que de um cálice. O nome de Jesus é,
traduzido para o inglês, “Javé salva”. A medida que Jesus bebe o cálice, ele se
transforma no nome que ele carrega.
Naturalmente, isso se trata de um mistério simplesmente insondável. É
um mistério inexplicado, mas não é um mistério obscuro. Ele tem muitas
testemunhas: poetas e agricultores, cantores e pais que dão testemunho de
que a disposição de morrer é um ato de aceitar e abraçar a vida.
252 A LINGUAGEM DE DEUS

Antes de sua última semana, Jesus passou a maior parte de seus anos nas
pequenas cidades e estradas pelo interior da Galileia. Foi um tem po para co-
nhecer o entorno. Havia tem po suficiente para as conversas, oportunidades de
fazer perguntas e escutar o ensino de Jesus. As pessoas podiam observar Jesus
enquanto ele entrava em suas vizinhanças e curava os doentes, quebrava os
tabus que mantinham leprosos, samaritanos e gentios à distância e mantinham
as mulheres no seu devido lugar. Em uma atmosfera religiosa estagnada com 0
mau hálito do moralismo cheio de picuinhas, Jesus era uma brisa fresca. Sob
a ocupação romana que era brutal e opressiva, Jesus não se deixou minimizar,
nem intimidar.
Ele andou entre as pessoas com uma graça sem ostentações que permite
às pessoas saberem que há outra maneira de viver, uma maneira de viver li-
vremente, totalmente vivo. Espalhou-se a notícia. As pessoas falaram. Termos
como “Filho de D eus”, “Filho do hom em ” e “Messias” foram mencionados.
As pessoas se viram tornando-se vivas na presença de Jesus de maneiras ines-
peradas. Muitos se convenceram de que Deus estava fazendo algo em Jesus
sem precedentes e, assim, se tornaram seguidores. Comprometeram-se com
o caminho da vida que o próprio Jesus estava vivendo.
Quando isso já havia acontecido por aproximadamente três anos, chegou-se
a algo como que uma massa crítica. O reconhecimento ganha foco. Pedro foi
o primeiro a articular: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt 16.16) —
Deus pessoalmente presente e operante entre eles, Vida Eterna, Vida Real,
Salvação do Mundo, Cristo.
Então Jesus fez algo estranho: começou a falar de morte, sua própria morte
e a morte de todos os que o seguiam. Partiu da Galileia para Jerusalém. Tinha
havido peregrinações anteriores a Jerusalém, mas tinham sido, precisamente,
romarias — eles sempre regressavam para casa, na Galileia. Agora, Jesus tinha
começado a falar de Jerusalém como seu destino e morte. Por três anos na
presença de Jesus eles tinham sido imersos numa conversa de vida. O tema
agora mudou radicalmente: morte.
Será que Jesus conseguirá preservar seus seguidores à medida que muda o
tema de vida para morte? Será que os quatro evangelistas conseguirão prender
JESUS ORA A AGONIA DO GETSÊMANI 253

nossa atenção e garantir nossa lealdade à medida que mudam de assunto, de


vida para morte?

* * *

Temos uma transcrição de apenas seis das muitas orações que Jesus ofereceu
ao Pai por toda a vida. As duas primeiras são feitas na Galileia, enquanto ele
aproxima seus seguidores de sua vida abundante. As quatro restantes são feitas
em Jerusalém na última semana de sua vida à medida que aguarda sua morte
de salvação. A oração do Getsêmani é a terceiro neste quarteto de orações
da Paixão.
Todos os quatros escritos do Evangelho nos fazem imergir nos detalhes
dos últim os dias de Jesus, sua rejeição, sofrim ento e morte. Essas quatro
orações finais são uma forte defesa contra as persistentes ilusões satânicas
que nos seduzem com as promessas de que, se apenas seguirmos a vida de
Jesus, estaremos livres de problemas, isentos de dor, imunes ao tédio, sem
ansiedades. As quatro orações certificam-se de que tenhamos amplo acesso a
orações que envolvem todo o nosso ser — nossas emoções, nossa compreensão,
nossa imaginação — a percepção de que seguir a Jesus significa segui-lo passo
a passo através do vale da sombra da morte e da cruz.

* * *

No Getsêmani, Jesus sabe que ele logo experimentará uma morte violenta.
Ele também sabe que não precisa passar por isso. Tem a liberdade de aceitar
ou recusar essa morte. Sua morte não é algo imprescindível, um destino im-
pessoal. Não é a anankê invocada pelos gregos, nem o destino dos romanos,
nem o karma que os budistas usam para dar sentido ao cosmo. Jesus sabe e
nos permite saber que sua morte é um ato voluntário de obediência.
Jesus ora enquanto se encaminha para sua morte e para além dela. Ao
orar, a morte adquire uma dimensão não imaginada: não mais um beco sem
saída, mas um arauto da ressurreição, não mais um termo, mas um começo:
“É no fim que com eçam os” (T. S. Eliot). Ao fazermos as orações de paixão
254 A LINGUAGEM DE DEUS

de Jesus, suas “orações de morte”, descobrimos que a morte também muda


o significado para nós.
A primeira oração desse quarteto de orações da Paixão, "Pai, glorifica o
teu nome!" (Jo 12.28), é feita na expectativa dessa morte. A oração “Pai,
chegou a hora” (Jo 17.1) prepara-nos para essa morte. A oração final, feita
no mom ento da cruz, quando Jesus experimenta a morte, começa com “Meu
Deus! Meu Deus! Por que me abandonaste?” (Mt 27.46), ora a morte em si.
Nessa terceira oração, “Pai, se queres, afasta de mim este cálice...” (Lc 22.42),
ele está entrando nos estertores da morte em si e nos inclui em sua agonia.

♦ ♦ ♦

A oração do Getsêmani acha-se circundada pela Ceia de um lado, na qual os


discípulos com em e bebem sacramentalmente corpo e o sangue de Jesus,
e de outro lado a cruz, na qual eles veriam esse corpo dilacerado e esse san-
gue derramado.
O cenário é um jardim chamado Getsêmani, que significa “Prensa do Oleo”.
Ficava situado no sopé do monte das Oliveiras, onde havia pomares de olivei-
ras. A prensa do óleo estava ali localizada para produzir o azeite de oliva, um
dos produtos mais importantes da cultura alimentar do Oriente Médio. Jesus
e seus discípulos “muitas vezes se reunira[m]” (Jo 18.2) ali. Era um pequeno
caminho para fora da trilha já batida, a estrada de Betânia no topo do monte,
o lar de Maria, Marta e Lázaro, amigos de Jesus, descendo pelo vale de Cedrom
e, depois, entrando em Jerusalém. O “muitas vezes reunira[m]” leva a crer que
fosse um lugar que Jesus e seus discípulos achavam conveniente e agradável
para oração quando vinham em peregrinações a Jerusalém por conta de dias
festivos. As orações feitas na prensa do óleo uniam o que Jesus dissera na Ceia
com o que Jesus realizou na cruz.
O mom ento exato é a noite de quinta-feira da Semana Santa. Depois que
Jesus e seus discípulos participaram da Ultima Ceia em Jerusalém, entoaram
um hino e foram até o Getsêmani a pé para orar. Judas, que conhecia bem o
local, tendo orado muitas vezes ali com Jesus, em um ato de traição conduziu
os soldados para lá, para encontrarem e prenderem a Jesus. Dois julgamentos
JESUS ORA A AGONIA DO GETSEMANI 255

penais seguiram um após 0 outro, um começando no meio da noite, na casa de


Caifás, o sumo sacerdote, e o segundo, no alvorecer do dia, diante de Pilatos,
o governador romano. A aliança ímpia da religião com a política cooperou para
dar Jesus como culpado. Foi sentenciado à morte. Algumas horas mais tarde,
ele era um cadáver, pendurado numa cruz.
A primeira oração de Jesus que tem os registrada, a Oração do Senhor,
a oração que Jesus usou para nos ensinar os rudimentos da oração, contém
dois conjuntos de imperativos, com três imperativos em cada conjunto. No
primeiro conjunto, aprendemos a orar participando na presença e na obra de
Deus. No segundo conjunto, aprendemos a orar pedindo aquilo que preci-
samos da parte de Deus para que possamos participar confiante e fielmente
dessa presença. Em cada conjunto de três imperativos, podemos discernir
uma progressão de intensidade. A terceira petição em cada conjunto libera as
energias acumuladas nas duas petições anteriores e as envia para o caminho
que devem percorrer.
Em sua oração no Getsêmani, a oração final antes de ele ser pregado na cruz
para morrer, Jesus seleciona a terceira petição de cada conjunto de três impe-
rativos da Oração do Senhor. A agonia do Getsêmani preenche e completa o
que Jesus introduziu para nós lá naqueles primeiros dias na Galileia, à medida que
nos ensinava a orar. Do primeiro conjunto, ele escolhe o imperativo dirigido
ao Pai, “seja feita a tua vontade”. Do segundo conjunto, ele seleciona a palavra
"tentação" e a insere num imperativo dirigido a nós.

"... faça-se a tua vontade..."


A intenção de Deus para com Jesus, a maneira de Deus efetuar a salvação, a
maneira de Deus nos libertar do Maligno. Essa é a petição que resume e con-
clui os três primeiros imperativos incisivos, que orientam em relação a Deus
e definem a realidade, imperativos da Oração do Senhor que assentam uma
fundação sólida para uma vida de obediência e fé que nos mantém despertos,
alertas e presentes no caminho de Jesus: Santificado seja o teu nome... Venha
o teu Reino... seja feita a tua vontade. Cada imperativo que sucede o anterior
acumula energia e aumenta em intensidade, assim como uma mola é enrolada
256 A LINGUAGEM DE DEUS

ao máximo e depois é disparada por algum gatilho. As palavras de gatilho são:


assim na terra como no céu.
Com isso, os três imperativos fundem-se em uma obediência que conduz
Jesus voluntariamente à morte que mudará tudo em ressurreição.

“Vigiem e orem para que não caiam em tentação...”


E um m om ento de crise. Os desafios nunca foram tão elevados quanto na
reunião de oração do Getsêmani. O que Jesus está enfrentando, nós também
enfrentamos: “Vigiem e orem para que não caiam em tentação” (Mt 26.41).
Jesus retoma “tentação” da terceira petição do segundo conjunto de três
imperativos da Oração do Senhor: Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia...
Perdoa as nossas dívidas... E não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos
do mal. Esses são os imperativos em que pedimos o que precisamos fazer para
sermos participantes obedientes na santificação do nome de Deus, na chegada
do reino de Deus e no cumprimento da vontade de Deus. Essa petição por
ajuda em momentos de provação, de tentação e de libertação do mal é tam-
bém a terceira de uma série de crescente intensidade. Retirada da Oração do
Senhor e situada na oração do Getsêmani, a petição articula a preocupação
de Jesus de que estejamos despertos e obedientes a essa vida de salvação,
que aceitemos a provação e nos submetamos aos testes, que digamos não à
tentação de desertar e abandonar a dimensão de Jerusalém de nossa vocação,
que nos recusemos a voltar as costas para a cruz e a nos voltar para o mundo
da Galileia, mais conhecido e menos exigente, e assim nos acomodar em uma
vida religiosa convencional de ensinar a verdade sobre Jesus e de realizar boas
obras imitando a Jesus.

* * *

Jesus fez essa oração na companhia de seus discípulos. Ele queria que eles
orassem com ele e por ele. Estavam juntos no jardim para orar juntos. Mas
não foi o que fizeram. Ele levou os três, Pedro, Tiago e João, para um lugar à
parte, junto com ele, e disse-lhes: “A minha alma está profundamente triste,
numa tristeza mortal. Fiquem aqui e vigiem comigo” (Mt 26.38). Então ele foi
JESUS ORA A AGONIA DO GETSÊMANI 257

e fez sua oração agonizante no Getsêmani: “Meu Pai, se for possível, afasta de
mim este cálice; contudo, não seja com o eu quero, mas sim como tu queres”.
Voltou a seus discípulos e os encontrou dormindo. Repreendeu-os: “Vocês não
puderam vigiar comigo nem por uma hora? [...] Vigiem e orem para que não
caiam em tentação. O espírito está pronto, mas a carne é fraca”(Mt 26.40-41).
Essa cena é repetida duas vezes mais. Três vezes Jesus pede que seus discípulos
orem com ele. Três vezes eles dormem e o abandonam.
E então acaba a reunião de oração. Jesus está preparado para tudo o
que está enfrentando noite adentro e pela manhã. Está preparado para os
dois julgamentos, disposto a morrer, preparado para a cruz. Os discípulos
não estão preparados. Naquela hora, “todos os discípulos o abandonaram”
(Mt 26:56).

* * *

Lucas acrescenta este detalhe à cena do Getsêmani: “Estando angustiado, ele


orou ainda mais intensamente; e o seu suor era com o gotas de sangue que
caíam no chão" (Lc 22.44). A agonia da cruz não teria sido possível sem a
agonia dessa oração. A oração realiza dentro de nós, dentro de nosso espírito,
hem no interior de nossa alma, o que mais tarde é vivido nas circunstâncias
e nas condições de nossa obediência. Uma determinação inabalável não será
o bastante. Uma determinação implacável não será o bastante. Uma vida
exemplar não será o bastante.
Cada coisa e cada pessoa têm um interior. A oração vai por baixo da su-
perfície e penetra no xis da questão. Ao contrário da ação simples, a oração
não está sujeita a uma avaliação ou verificação imediata. Se somos viciados
em “resultados”, logo perderemos o interesse pela oração. Quando oramos,
participamos voluntariamente no que Deus está realizando, sem saber preci-
sámente o que Deus está fazendo, como o está fazendo ou quando saberemos
o que está acontecendo — se é que vamos.
258 A LINGUAGEM DE DEUS

Pelas orações que Jesus fez aquela noite, formou-se um elem ento essencial na-
quilo que aconteceu na cruz no dia seguinte — como traz o C redo niceno, "para
nós [...] e para a nossa salvação”. Ação sem oração reduz-se a algo meramente
exterior. Uma vida sem oração pode resultar em ações eficazes e conquistar
obras magníficas, mas, se não houver nenhuma interioridade desenvolvida, a
ação jamais penetrará a profundidade e a complexidade dos relacionamen-
tos, onde a substância da criação é formada, onde a salvação é operada, onde
homens e mulheres se acham presentes e à vontade com os caminhos de
Deus — Pai, Filho e Espírito Santo — à medida que seu nome é santificado,
à medida que ele dá forma a seu reino e à medida que sua vontade é realizada.
capítulo 19
Jesus ora na cruz:
as sete últimas palavras

Cristo em sua agonia até os confins do mundo.


C harles P éguy

A morte é o ato definidor ("razão") da vida de Jesus: “eu vim exatamente


para isto: para esta hora” (Jo 12:27). Todo o processo demorou três horas
— do meio-dia às três horas da tarde de uma sexta-feira, fora de Jerusalém.
Quando Jesus estava morrendo, ele orou. Fez sete orações de uma só frase.
Nenhum dos escritores dos Evangelhos relatam todas as sete: Mateus e Marcos
apresentam uma (Mt 27:46; Mc 15:33); Lucas, outras três (Lc 23:34,43,46);
João escreve as três últimas (Jo 1 9 :2 6 2 8 ,3 0 ‫)־‬.
As sete "palavras da cruz” foram muitas vezes lidas ou cantadas em várias
liturgias com o objetivo de apresentar uma sequência cronológica. Optei por
apresentá-las na ordem em que aparecem em nossos quatro evangelhos canô-
nicos, não em um encadeamento aleatório, mas presentes umas em relação
às outras, com o que simultaneamente, em uma espécie de mosaico ou cola-
gem. Cada oração se apresenta por si só, mas nenhuma é isolada em relação à
outra. As sete frases desenvolvem, conforme são proferidas em oração, uma
coerência interior. Em vez de uma lista sequencial, as sete se tornam uma só
em ritmo e harmonia.
A comunidade de oração da igreja tem orado essas últimas palavras de
nosso Salvador moribundo para exercitar a presença de Jesus. Mergulhamos
a alma nesse mistério, nessas “profundezas” (SI 130) em que a nossa salvação
é forjada. Queremos que nossa morte seja congruente com sua morte — con-
gruente com sua vida sacrificial, uma oferta voluntária de tudo o que somos
e um testemunho da ressurreição.
260 A LINGUAGEM DE DEUS

A morte de Jesus é uma morte real. É fato histórico. Nada na vida de Jesus é
tão meticulosamente documentado quanto seu morrer e sua morte: “morto
e sepultado”, como traz nosso Credo apostólico, uma morte em cada detalhe
tão física como cada morte nossa há de ser. Seu coração parou, sua respiração
parou, seu cérebro parou. Houve uma queda brusca na temperatura do corpo.
Morto. Mas havia mais, muito mais na morte de Jesus do que a cessação dos
sinais vitais. A salvação foi alcançada. Um acontecimento divino foi encenado
com a morte de Jesus. Sua morte, sacrificial e voluntária, foi uma oferta pelos
pecados do mundo que dão em morte, uma morte que conquistou a morte.
Foi a morte da morte.
Esse é um grande mistério, o maior mistério do cosmo, do céu e da terra,
e, estritam ente falando, insondável. Não que algumas de nossas melhores
mentes ainda não tenham tentado. Não são inúteis seus pensamentos e suas
orações. Elas fizeram descobertas e tiveram lampejos das operações profundas
e eternas da Trindade que nos impedem de sermos com pletos estranhos em
relação a esse mistério da salvação em que nossa vida é radical e abrangen-
tem ente recriada — "resgatados, curados, restaurados, perdoados”, como
cantamos com tanta força e vigor. Mas, no fim de todas as coisas, percebemos
que nunca iremos muito além da “periferia de seus caminhos” no que se refere
à compreensão das operações interiores da cruz e de nossa salvação.
Esse mistério dá forma à maneira em que os cristãos vivem e morrem,
creem e amam, perdoam e são perdoados. E um mistério em que habitamos,
não apenas um mistério diante do qual nos apresentamos e fazemos perguntas
por curiosidade.

* * *

A morte de Jesus na cruz pode ser entendida e explicada de forma suficien-


tem ente fácil em um nível físico e histórico. Mas não a salvação que Jesus
realizou na cruz. E é essa salvação conquistada, não a autópsia feita por um
médico legista, que nos traz repetidas vezes de volta à cruz. Revisitar a morte
de Jesus é diferente das visitas que fazemos a um cem itério com flores na
mão, preservando a lembrança da pessoa amada que morreu e agora recebe
JESUS ORA NA CRUZ: AS SETE ÚLTIMAS PALAVRAS 261

nossa atenção postuma. Não estamos na cruz para relembrar ou prestar ho-
menagem. Achamo-nos aquí para sondar o significado de nosso morrer diário
na companhia de Jesus, que morre por nós.
Paulo nos dá o vocabulário para isso, orando nosso morrer diário como par-
ticipação nessas dimensões eternas da morte de Jesus. Quando Paulo escreve
"Fui crucificado com Cristo” (G1 2:19), ele penetra as dimensões da salvação
presentes na morte de Jesus com o ele as experim entou. Quando escreve
“Todos os dias enfrento a m orte...” (IC o 15:31), está dando testemunho da
oferta sacrificial de sua vida que ele faz todos os dias, à medida que segue o
caminho de Jesus em direção à cruz. Quando escreve a seus irmãos e irmãs,
os cristãos, “vocês morreram, e agora sua vida está escondida com Cristo em
D eus” (Cl 3:3), ele os está aproximando de uma participação nas operações
de salvação da morte de Jesus. Quando ele escreve em uma cela prisional, ele
mesmo condenado a uma execução romana, dizendo que Jesus “foi obediente
até a morte — e morte de cruz”, ele convida seus leitores: "Seja a atitude de
vocês a mesma de Cristo Jesus” (Fp 2:5-8).

***

Os cristãos morrem duas vezes. A primeira morte é quando partimos para


seguir a Jesus, negamos a nós mesmos, tomamos nossa cruz e escolhem os
viver crendo e obedecendo, em sua companhia, sacrificialmente, não isolados
em nossa soberba. Oramos na companhia de Jesus à medida que ele ora sua
morte. Ao agirmos assim, nossa morte inclui-se em sua morte. E um modo
de oração que nos leva a abraçar e aceitar a morte que morremos enquanto
somos batizados em Cristo e nos tornamos testemunhas da ressurreição em
que nós, havendo morrido, ressuscitamos com Cristo (Rm 6:5-11).
Antes de Jesus orar sua morte na cruz, ele nos ordenou que morréssemos
m esm o enquanto ele m esm o morria: “Se alguém quiser acompanhar-me,
negue-se a si mesmo, tom e a sua cruz e siga-me” (Mt 16:24). O que significa
dizer: "... siga-me para minha morte na cruz”.
A morte é um elem ento não negociável presente no ato de sermos huma-
nos. É também não negociável no ato de sermos seguidos de Jesus. Uma das
262 A LINGUAGEM DE DEUS

formas de absorver o que isso implica (não a única forma, mas certamente urna
forma boa demais para não ser mencionada) é orar essas sete frases simples
na companhia de Jesus enquanto ele as profere em sua morte.

***

Mas caveat orator, cuide-se aquele que ora. Meditar e orar com Jesus enquanto
ele morre na cruz não é um convite à morbidez. Houve vezes na comunidade de
Cristo que os cristãos tentaram experimentar e se apropriar do sofrimento
de Jesus na cruz entregando-se a práticas de mortificação: jejuns extremados,
privação deliberada do sono, vestindo camisas de pelo com o penitência e
autoflagelo (urna “disciplina” medieval). Existe uma história de que gosto
m uito, sobre um monge que se impôs a disciplina de não sorrir — como
poderia pensar em sorrir quando Jesus estava sofrendo? U m sacrilégio! Um
colega monge, exasperado, disse-lhe: “Isso mesmo, seja infeliz. Mas que seja
som ente você. Não queira também a infelicidade de todos os que estão ao
seu redor”.
Por mais asceticamente heroicas que essas práticas possam parecer, há algo
de suspeitosamente arrogante em jogo, a presunção de que nossa dor autoim-
posta, nossas privações e sofrimentos podem acrescentar ou contribuir ao que
Jesus realizou na cruz, aquele que “sofreu pelos pecados uma vez por todas, 0
justo pelos injustos” (lP e 3:18), fazendo um “sacrifício suficiente, completo
e perfeito pelos pecados de todo o m undo”.1

***

Começamos todas as nossas orações, e ainda com maior ênfase essas orações
da cruz, no túm ulo vazio, o lugar da ressurreição. Com eçam os na ressur-
reição. A morte de Jesus (e a nossa) não pode ser entendida nem podemos
participar dela sem a ressurreição. Cruz e ressurreição são os polos norte e
sul, as polaridades do verdadeiro evangelho, de um mundo de salvação úni-
co e indiviso. Retire qualquer um dos polos, e você esvazia a salvação. Não
estaríamos fazendo essas orações na cruz de Jesus se não houvesse nenhuma
JESUS ORA NA CRUZ: AS SETE ÚLTIMAS PALAVRAS 263

ressurreição a partir do túmulo de Jesus. Esse sofrimento e essa morte são as


substâncias da expiação. A cruz é absorvida e transformada em ressurreição. A
ressurreição compreende a crucifixão — não é um adendo a ela. A morbidez
(uma obsessão neurótica com o sofrimento) e o masoquismo (o sofrimento
autoim posto) não encontram espaço na obra da expiação salvífica. Nossa
abordagem fundamental diante da cruz é a gratidão.
O fato, histórico ou teológico, é que não estaríamos fazendo essa oração a
partir da cruz se não houvesse nenhuma ressurreição. A agonia de Jesus na cruz
é o início da ressurreição. Citando Mateus 27:51-52, Hans Urs von Balthasar
fala ousadamente: “A divisão da terra abre o inferno, e as sepulturas revolvidas
liberam seus corpos para a ressurreição”.2
As sete orações de Jesus na cruz são metáforas, mas não menos reais pelo
fato de serem metáforas, que podemos orar com ele em nosso dia a dia.

1. ‘“Eloí, Eloí, lamá sabactâni’ [ . . . ] 'Meu Deus!


Meu Deus! Por que me abandonaste?”’ (Mt 2 7 :4 6 ; Mc 1 5 :3 4 )
A morta desamarra nossa âncora. E a despedida final. E também o último
fator incompreensível. Já não pertenço. Não mais me encaixo. E não recebo
nenhuma explicação. Essas minimortes metafóricas à medida que seguimos
a Jesus em nosso caminho em direção à cruz enchem-nos de expectativas e
preparam-nos naquilo por que muitos cristãos têm o hábito de orar: “uma boa
m orte”. Essas minimortes (e algumas delas não são tão “mini”), becos sem
saída, rejeições, perplexidades, desdéns, abandonos, perguntas sem resposta,
entradas erradas — cada “m orte” por sua vez é uma sombra de morte. Mor-
remos dez mil mortes antes de sermos enterrados.
A fé em Deus não é uma fuga da realidade. A fé em Deus é um mergulho
na realidade em todas as suas dimensões, e não menos importante entre essas
realidades está a morte. Há muito que dizer sobre o consolo e a força que
brotam de crer em Jesus e segui-lo à medida que ele nos revela Deus: “Bendito
seja o Senhor [...] que cada dia suporta as nossas cargas”(Sl 68:19); “a tua vara
e o teu cajado me protegem” (SI 23:4); “Consolem, consolem o meu povo,
diz o Deus de vocês” (Is 40:1); "Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor
Jesus Cristo, Pai das misericórdias e Deus de toda consolação, que nos consola
264 A LINGUAGEM DE DEUS

em todas as nossas tribulações, para que, com a consolação que recebemos de


Deus, possamos consolar os que estão passando por tribulações" (2Co 1:3-4);
“Não se turbe o seu coração, nem tenham m edo” (Jo 14:27).
Mas há tam bém isto: quando seguimos a Jesus no caminho da cruz (é
o único a nossa disposição!), também nos encontramos em circunstâncias
que sim plesm ente abominamos, lidando com pessoas pelas quais sentimos
repulsa, descobrindo em nós mesm os coisas vergonhosas e constrangedoras.
Procuramos desvio, um atalho. Q uerem os mudar de assunto. Queremos
achar uma rota alternativa para a salvação, passando de largo pelos meandros
do morrer e da morte. Mas nem m esm o para Dorothy, na estrada de tijolos
amarelos, a coisa foi fácil, tampouco seus companheiros facilitaram as coisas.
A forma de Jesus lidar com o pecado, com o mal e com a morte ( “o
último inimigo”) — tudo isso está errado no mundo e junto com o mundo
— é andar no m eio dela e bem ali operar a salvação. E ele nos quer consigo
enquanto o realiza.
Não é fácil. Ninguém (pelo menos entre os nossos antepassados na fé) disse
que seria fácil. Não foi fácil para Jesus.
A primeira oração feita na cruz revela o pior que chega a nós em uma vida
de crença em Deus: a experiência de absoluto abandono por Deus. A morte,
não com o encerramento, uma chegada satisfatória aos portais do céu, uma
saudação de “bem-vindo ao lar” por parte de Deus. Não: morte com o nada,
nihil, noite.
Ninguém está isento. Nem Jesus está isento. Especialmente Jesus.

***

Uma das surpresas inevitáveis entre os cristãos que seguem a Jesus no caminho
da salvação é o grande número de pessoas, vivas ou mortas, que experimentam
o abandono e gritam em seu desespero, seja um abandono por parte de Deus,
de um cônjuge, de um filho ou de um amigo, perguntando-se "Por quê?”.
Ouvimos o grito de abandono de Jesus ser repetido, ecoando nos corredores
dos séculos, ricocheteando nas paredes de nossas igrejas e casas.
JESUS ORA NA CRUZ: AS SETE ÚLTIMAS PALAVRAS 265

E por mais tempo que escutemos, com toda a atenção, nunca recebemos
uma resposta para o “Por qué?”.
Ajuda encontrar-nos na companhia de Jesus à medida que ele ora seu “Por
quê?"? Creio que sim.
Ajuda encontrar Jesus em nossa companhia enquanto oramos nosso "Por
quê?”? Creio que sim.
Ajuda perceber que, à medida que Jesus ora seu senso de ter sido aban-
donado por Deus, está fazendo uma oração que aprendeu quando criança? É
a primeira linha do salmo 22. E um salmo que expressa doloroso isolamento,
arraso emocional, dor física. E também um salmo que termina em uma con-
gregação: a “grande assembléia” (v. 25) de homens e mulheres entre os quais
ele pode testemunhar que Deus “não escondeu dele o rosto, mas ouviu o seu
grito de socorro” (v. 24). Ajuda saber que esse salmo termina diferente de
com o começou? Creio que sim.
E ajuda observar que essa é a primeira oração de uma só frase da cruz —
mas não a última? Jesus continua orando. Fragmentos de oração rasgados da
inocência da infância, lascas quebradas de oração de vidas dilaceradas têm
uma forma de se unir novamente na companhia de Jesus. Jesus não acabou
de orar. E tampouco nós.

2. “Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que estão fa ze n d o ” (Lc 23:34)


Vale lembrar a identidade do “lhes” e do “eles” — essas pessoas que estão
matando Jesus. Sabemos alguns de seus nomes: Caifás, o sumo sacerdote que
preside no julgamento religioso em que é apresentada a acusação de blasfêmia;
Pôncio Pilatos, o governador romano que preside no julgamento político em
que é apresentada a acusação de sedição; Judas, que traiu Jesus “nas mãos
de pecadores” (Mt 26:45); os onze discípulos, que no mom ento em que ele
é preso “o abandonaram e fugiram” (Mt 26:56); Pedro, que contribuiu para
a covardia de todos eles com sua negação de Jesus no pátio do sumo sacer-
dote; o jovem que escapou de se envolver na detenção de Jesus, deixando
suas roupas nas mãos dos soldados e fugindo nu, com o um coelho acuado.
E talvez também Barrabás, que foi absolvido em lugar de Jesus. Embora não
tivesse passado talvez de um figurante inocente. D e outros não sabemos os
266 A LINGUAGEM DE DEUS

nomes: os soldados escarnecedores que insultaram a Jesus enquanto morria,


intensificando ainda mais a zombaria ao oferecerem vinagre para lhe matar a
sede; o criminoso na cruz vizinha, a ridicularizá-lo.
Eles não sabiam o que estavam fazendo? Se fossem todos chamados a juízo,
em uma sala de audiência, os citados e os sem nome, qualquer um deles teria
necessitado de um advogado muito esperto para provar sua inocência.
Jesus, em juízo, sob falsas acusações. O tribunal religioso e o tribunal se-
cular, cooperando para sua condenação e sentença de morte. Observadores
e amigos sem elhantem ente dispersam-se com o ratos de um navio que está
afundando. E o que Jesus faz? Ele os absolve da culpa por não saberem o que
estão fazendo. Ele ora ao Pai pedindo que lhes perdoe.

Para aqueles de nós que escolherem fazer essa oração de Jesus, isso é real-
mente algo que nos faz parar para pensar. Não tem os o dever de insistir que
a justiça seja feita? Não somos responsáveis por garantir que as leis da terra
sejam cumpridas? Não é nossa obrigação certificar-nos de que a imoralidade
e o crime sejam erradicados da sociedade e da nação por todos os meios
necessários — pela lei, pela força, pelo encarceramento, pela guerra, pela
execução, pela pregação?
E, aproximando a pergunta a um nível pessoal, familiar, do dia a dia, das
redondezas, quando pecam contra nós, será que nos prostramos e aceitamos?
Será que cultivamos uma imagem de capacho e passivamente deixamos que
pessoas perversas e intimidadoras, rudes e coniventes, sejam pais, sejam
cônjuges, empregadores ou vizinhos, filhos ou amigos, tirem proveito de
nós, nos violem, nos defraudem e, em seguida, respondam com um pacífico
“Pai, perdoa-lhes”?
Essas questões em geral não exigem resposta, pois pretendem suscitar a
resposta “Claro que não! Tenho meus direitos! Ninguém vai fazer gato e sa-
pato de mim assim”. Como tais, as perguntas eliminam eficazmente o perdão
de nossas prioridades pessoais, pelo menos quando os nossos interesses estão
em jogo. Se conseguirem fazer isso, eliminar a oração de perdão de Jesus,
são perguntas insinuadas em nossa vida pelo Diabo.
JESUS ORA NA CRUZ: AS SETE ÚLTIMAS PALAVRAS 267

A justiça é um assunto complexo. O mundo da lei e dos tribunais, determi-


nando culpa e inocência, impedindo o comportamento criminoso e protegendo
os fracos e os desafortunados, sempre foi uma coluna de fundação de todos os
sistemas políticos e sociais, incluindo os judaicos e cristãos. Existe muita, mas
muita sabedoria acumulada, coletada em todo o mundo e em cada século, sob
o rótulo de “justiça”. Não poderiamos funcionar sem isso. Homens e mulheres
que administram a justiça são essenciais para a nossa segurança e sanidade.
Os profetas e os apóstolos bíblicos falam algumas das palavras mais fortes e
persuasivas sobre o assunto.
Mesmo assim, a justiça não é a última palavra. Em toda essa questão de
delitos e contravenções, em todos os assuntos ligados ao pecado, em tudo o
que diz respeito ao que há de errado com o mundo e conosco, o que há de
errado com nossos inimigos e nossos amigos, o perdão é a última palavra.
Não tenho nenhum interesse em eliminar a tensão entre a justiça e o
perdão, tirando a justiça de sobre a mesa. Dadas as sutilezas do pecado e
a persistência do mal, logo estaríamos vivendo na anarquia moral e no caos
político se não houvesse leis em prol da justiça. Mas meu interesse é reintro-
duzir em nossa vida a prioridade desse perdão orado por Jesus. Em assuntos
relacionados ao pecado, à injustiça e ao mal, a última oração de Jesus não é
por justiça, mas por perdão. O ato de perdoar não elimina as preocupações da
justiça, mas sem dúvida introduz uma dimensão pessoal nessas preocupações
que dá testemunho do evangelho.
Fazer a oração de perdão de Jesus treina o nosso espírito na compaixão,
não na vingança; na compreensão, não na irritação; na aceitação de um irmão
pecador ou irmã pecadora, não na rejeição de um ser alheio, não importando se
homem ou mulher. Também abre espaço para a possibilidade de que eles “não
sabem o que estão fazendo”. Mais específicamente, que não sabem estarem
machucando ou ofendendo uma imagem de Deus, que não sabem estarem
defraudando ou mutilando “a alguns dos meus menores irmãos” (Mt 25:40).
Vivemos em um mundo fervilhante de pecado e inundado de violência.
Diariamente lemos e vemos as notícias nos meios de comunicação. Também
lhe fazemos frente, ainda que sem ser relatado nos registros policiais, muitas
vezes por dia, em nossas casas, locais de trabalho e vizinhança. O que defendo,
268 A LINGUAGEM DE DEUS

como consequência de fazer a oração que Jesus fez na cruz, é que o perdão
deve passar a ser nossa primeira resposta a cada pessoa que nos avilta, nos
fere e nos tira a vida. Certamente haverá questões de justiça com as quais
a sociedade deverá lidar ao longo do caminho, e talvez seja importante que
nos envolvamos. Há juizes e advogados de acusação, policiais e jurados, e
entre eles muitos de nós que buscam e defendem a causa da justiça, que são
contados entre eles. Mas quem mais se acha ali para dizer “Pai, perdoa-lhes”
senão os cristãos que sabem fazer essa oração com Jesus? Por mais importante
que seja a justiça — e é importante — , o perdão é mais importante. O cristão
em oração, assim com o Jesus se acha em oração, não é em primeiro lugar um
agente impessoal da justiça, mas um transmissor pessoal do perdão e uma
testemunha da ressurreição.
Tal perdão não se trata de brando sentimentalismo. Ele é o evangelho sem
concessões. Tal perdão não é um dar de ombros do ponto de vista moral. E
uma chama violenta do amor da ressurreição alimentada nos fornos da cruz.
Supondo que o criminoso crucificado ao lado de Jesus estivesse recebendo
uma sentença de morte justa (foi o que ele disse), a sentença não foi revogada
na oração de Jesus. O criminoso morreu por seu crime. Mas o perdão superou
a justiça. E o que sempre acontece.3

3. “Então ele |um dos criminosos condenados que foram crucificados ao


lado de Jesus] disse: ‘Jesus, lem bra-te de m im quando entrares no teu
Reino’. Jesus lhe respondeu: ‘Eu lhe garanto: hoje você estará comigo
no p a ra íso ”’ (Lc 23:42-43)
O fragmento seguinte do mosaico de oração da cruz é uma resposta à oração
de um criminoso. E a resposta de Jesus ao seu vizinho de crucificação, um
criminoso que tinha acabado de ouvir Jesus perdoar todos aqueles responsáveis
pela condenação e pela sentença de morte de Jesus. A oração do criminoso
é “lem bra-te...”. A resposta de Jesus a sua oração é um "Eu lhe garanto...”
imediato, sem ressalvas nem reservas. E um “hoje".
JESUS ORA NA CRUZ: AS SETE ÚLTIMAS PALAVRAS 269

A vida após a morte é uma preocupação perene da raça humana: “O que vem
depois? Existe algo além? E, se existe, o que é? — passear pelas ruas douradas
de Jerusalém... fogo e enxofre no inferno... penitências no purgatório... uma
vida sombria ao dispor e a serviço de médiuns e ‘canalizadores’... transmigrar
em uma vaca ou girafa?”
Mas, no século 21, menos pessoas parecem fazer essa pergunta. Em minha
experiência com o pastor americano há mais de cinquenta anos, essa é uma
das perguntas menos formuladas a mim. E a frequência da pergunta é cada
vez menor. Vivemos em uma era — pelo menos no abastado Ocidente — em
que os extravagantes confortos do consumismo e as surpreendentes proezas
tecnológicas constantemente contribuem para uma sensação de que a morte
pode ser adiada — entre alguns, talvez, até mesmo com ilusões de imortali-
dade. Se pudermos adiá-la por uma quantidade suficiente de tempo, talvez,
quem sabe, não aconteça.
Fui um crente e participante ativo na fé cristã por toda a minha vida cons-
ciente e, para ser bem sincero, estou entendiado com a maioria das conversas,
se não com todas, sobre “céu e inferno” que acabo escutando. Parecem reunir
fantasias da infância e egoísmos da adolescência, projeções daquilo que ima-
ginamos capaz de garantir uma eternidade de autogratificação para nós e uma
merecida paga para aqueles vermes que tornaram a vida, diferentemente do
que esperávamos, impossível de viver.
A resposta de Jesus a seu vizinho no Gólgota concentra-se nas preocupações
da “vida após a morte" e as simplifica.
Frederick Buechner, romancista que m uito aprecio, escreve em suas
memórias sobre uma conversa que teve com a mãe. Ela pergunta se ele de
fato acredita que "alguma coisa aconteça após a m orte”. Por seu surda, a
resposta dele é um “SIM!” retumbante! Numa carta em que ele desenvolve
essa resposta, o filho testemunha à mãe que sua fé baseia-se em “um palpite”:
“Se as vítimas e os vitimizadores, os sábios e os tolos, os de bom coração e
os cruéis, todos acabam igualmente na sepultura, e esse é o fim deles, en-
tão a vida seria com o uma comédia negra”. Ele prossegue, contando à mãe
que a vida “parece um mistério. Parece que, no seu âmago mais íntimo,
existiría ‘Santidade’”.3
270 A LINGUAGEM DE DEUS

Concordo plenamente, quando coloco isso ao lado do fragmento oração


respondida de Jesus ao criminoso na cruz. Jesus promete a seu companheiro
“hoje” no paraíso, isto é, no céu. E nem mais uma palavra. Nenhuma espe-
culação. Sem conjecturas sobre o que está em jogo a não ser o próprio Jesus.
Não é o suficiente? Uma afirmação clara e inequívoca (“eu lhe garanto" —
equivalente a um retumbante SIM!) e a bendita segurança: “com igo”.
Acho significativo que seja um criminoso crucificado o primeiro a reco-
nhecer que o Jesus da cruz é seu Salvador e, sem qualificações morais ou de
justiça, ele é salvo. E bem na hora de sua oração, "lembra-te”, sua salvação é
consumada — “hoje”.4
Há mais coisas para compreendermos sobre a vida após a morte, mas o
que mais precisamos saber além disto: que algo acontece depois que morremos
e que Jesus estará lá?5 A eternidade não é um futuro perpétuo, mas uma
presença perpétua.

4. “Pai, nas tuas m ãos entrego o m eu espírito’’ (Lc 23.46)


Em uma sexta-feira, fora de Jerusalém, soldados romanos erigiram uma cruz no
cume do monte Gólgota, o “monte Caveira”. Ninguém tinha ideia na época de
que aquilo marcaria uma importante intersecção entre o céu e o inferno. Mas,
entre o meio-dia e as três horas da tarde, na sexta-feira, aquele foi o local de
um acidente cósm ico, cujos efeitos continuam a ressoar pelo mundo depois
de dois mil anos. Quando os destroços foram retirados, ficou claro que algo
completamente inesperado e involuntário havia acontecido, pelo menos para
os homens e mulheres que tinham de lidar com isso. Era nada menos que a
joeira do inferno e a salvação do mundo.
Nessa intersecção do Gólgota, sinalizada por aquela cruz romana, os ódios e
os receios de todos os anos colidiram com a carne e o sangue, com o espírito e
a alma de Jesus. Fragmentos do mal desprendidos, aleatórios, flutuantes — os
gritos histéricos da multidão "Crucifica-o! Crucifica-ο!”, a hipocrisia odiosa
de Caifás, o cinismo presunçoso de Pilatos, a brutalidade dos soldados escar-
necedores, a traição calculada de Judas — foram todos trazidos para o vértice
do centro do monte, em forma de cruz, onde Jesus, seu corpo devastado por
pregos, espinhos e sede, orou.
JESUS ORA NA CRUZ: AS SETE ÚLTIMAS PALAVRAS 271

Uma das orações, uma oração de uma só frase como as outras, foi diferente
de todas as outras que ele fez na cruz. Foi uma oração, ao que tudo indica,
com pletamente fora do contexto daquela cruz, uma oração com uma simpli-
cidade infantil: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”. Era uma oração
de confiança inquestionável, do tipo que associamos às orações que muitos de
nós fizeram na infância na hora de dormir:

Deito agora para adormecer,


oro ao Senhor me venha proteger;
se eu morrer antes de acordar,
venha o Senhor ao céu me levar.

Confiança sem cálculos. Uma prontidão sem perguntas de deixar tudo nas
mãos do Pai. Uma oração que brota de um profundo senso de bem-estar, de
segurança, de tanquilidade, de proteção, com as mãos da bênção a tocar-nos
e uma voz reconfortante de afeição envolvendo-nos em um sono sem sonhos
na companhia de santos anjos.
Mas as circunstâncias em que Jesus fez essa oração de criança eram tudo,
menos estáveis e seguras. Jesus nu, pendurado naquela cruz, foi exposto a
agressões e ignomínias, maldições e zombarias. Todos os detalhes que podemos
imaginar estivessem presentes na oração “Pai, nas tuas mãos entrego o meu
espírito” são inimagináveis na carnificina sangrenta que é o Gólgota.
Mas, para fazermos essa oração na companhia de Jesus, precisamos imaginá-
la. Se não agirmos assim, diluiremos a oração de Jesus em uma oração de
resignação sem fé — um desistir final e uma rendição final àquilo sobre o que
nada mais podemos fazer, um “atirar a toalha”.
Jesus não estava desistindo; estava entrando — entrando na obra da sal-
vação, em que tudo o que experimentamos estava sendo posto a serviço da
salvação. E certamente não estava orando no abraço físico e emocional de uma
criança que entra no conforto de um sono relaxante.
Paulo escreveu para os cristãos de Corinto dizendo que ele mesmo estava
trazendo “sempre em nosso corpo [isto é, seu corpo] o morrer de Jesus, para
que a vida de Jesus também seja revelada em nosso corpo” (2Co 4:10). Uma
das maneiras em que os cristãos fazem o que Paulo fez é fazer as orações que
272 A LINGUAGEM DE DEUS

Jesus fez na cruz, no contexto da cruz. Essa quarta oração no mosaico de


orações de Jesus feitas na cruz é particularmente difícil de manter em seu
contexto de crucificação e ainda assim de proferi-la. Um relaxamento infantil
nos braços de Jesus quando tudo vai bem e estamos rodeados por aqueles que
amamos e em quem confiamos, sim. Mas uma entrega deliberada e confiante
nas mãos do Pai quando fomos pegos de tocaia em uma intersecção do Gólgota
e nossa vida foi destruída? Por mais linda que seja a oração de Jesus, não sai
espontaneamente de nossos lábios em tais circunstâncias.
Na primeira das orações de Jesus, a Oração do Senhor, Jesus ensinou-nos
a orar com ele: “livra-nos do mal”. Nessa oração do mosaico final de orações,
encontramo-nos, à medida que morremos diariamente com Jesus, entregando-
-nos aos cuidados do Pai na densidade do mal. Ambas as orações são orações
de Jesus. Se queremos permanecer na companhia de Jesus, não podemos
escolher isso ou aquilo. Q uerem os ser fluentes na linguagem de ambas as
orações: “livra-nos” e “entrego o meu espírito”.
Isso é difícil, mas não impossível. Muitos de nossos antepassados espirituais
por muito tem po nos aconselharam a cultivar um "espírito de criança”. Eles
nos dizem que é essencial não deixarmos que nossas circunstâncias emocionais
ou físicas ditem o idioma de nossas orações. Dizem que Jesus tanto em sua
vida quanto em seu morrer é o contexto primordial em que vivemos. Dizem
que o Espírito Santo é o nosso professor na oração. D izem que devemos
alimentar uma simplicidade infantil que confia na providência e na graça de
Deus naquilo que está realmente presente a nós. Foi o que Jesus disse: “a não
ser que vocês se convertam e se tornem com o crianças, jamais entrarão no
Reino dos céus” (Mt 18:3) e "escondeste estas coisas dos sábios e cultos, e as
revelaste aos pequeninos” (Mt 11:25).
Um de nossos antepassados na oração mais sábios e mais apaixonados foi
um sacerdote francês, o padre Jean-Pierre de Caussade. Sua expressão "aban-
dono à providência divina” equivale à oração de Jesus “nas tuas mãos entrego
o meu espírito”. Ele desenvolve as im plicações vividas de com prom isso/
abandono por todo o espectro da experiência humana em seu breve e intenso
livro Abandonment to divine providence [Abandono à providência divina]. Ele
escreve sobre o "sacramento do mom ento presente”. Uma frase-chave em
JESUS ORA NA CRUZ: AS SETE ÚLTIMAS PALAVRAS 273

Caussade é: “Se nos entregamos a Deus, existe apenas uma regra para nós:
o dever do mom ento presente”. Seus escritos, apoiados por uma “multidão
de testemunhas", faz que nossa imaginação se desacostume de querer Deus
com o queremos que seja para querê-lo como ele é, revelado em Jesus no aqui
e agora, orando: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espirito”.6
Não é uma oração que reservamos para a hora de dormir, uma oração de
entrega relutante na hora de nos entregarmos aos fantasmas. Oramos quando
saímos da cama todas as manhãs, vivos mais um dia, prontos para começar a
pintar a casa, dar urna aula no jardim de infância, remover cirurgicamente uma
mama cancerosa, fazer um cheque para a mensalidade da faculdade, plantar
um campo de cevada: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”.

5. “A í está o seu filho ' f ...| A í está a sua m ãe”' (Jo 19:26-27)
Jesus ora na cruz. Toda vez que ele abre a boca, revela outro detalhe daquilo
que está em jogo na realização da grandiosa e sagrada obra da salvação que
destrói os portões do inferno e escancara as portas do céu: o grito de abandono
que é o epitáfio da morte de Deus; a absolvição sem reservas, emitida pelo
Salvador, daqueles que o estão matando; a promessa do céu a um criminoso; a
oferta de Jesus de si mesmo como sacrifício para realizar o caminho da salvação
para o mundo que Deus ama. E com mais ainda para vir.
As orações que se reúnem naquela cruz definem nossa vida.
Fornecem um testemunho definitivo da maneira em que Deus traz o bem
do mal, pondo em funcionamento o mistério impenetrável que reverte “per-
didos” em “achados”. Introduzem a palavra “evangelho” em nossa língua, de
maneira tão abrangente que ninguém precisa estar confinado a viver ou morrer
sem esperança.
Em quase todos os aspectos, é demais para assimilar. Não é diferente da
experiência que muitos de nós tiveram diante da cena de um acidente noturno
de automóvel, quando há morte e grande sofrimento. A escuridão é quebrada
pelos fachos de luz dos faróis, o som agudo e estridente da sirene, soluções e
lágrimas de dor, com paramédicos puxando corpos dos destroços, tudo contra
um pano de fundo confuso de uma multidão anônima e confusa. É surreal.
A crise desorienta. A súbita realidade da morte e do sofrimento nos obriga a
274 A LINGUAGEM DE DEUS

lidar com o que mantemos nas margens de nossa vida, das quais somos isolados
pelas rotinas das refeições e do trabalho, dos compromissos e do sono. Tudo
parece irreal. Um sonho — ou um pesadelo.
Não é diferente daquilo que enfrentamos na cruz de Jesus, só que em grau
mais agudo. As ações que percebemos e as palavras que ouvimos nas três ho-
ras são tão carregadas de significado que ficamos assoberbados. Não estamos
acostumados a viver na crise. Há muito para assimilar. Poetas e romancistas,
teólogos e músicos refletem, sondam e oram essa morte indefinidamente e
encontram camada após camada de sentido. O acontecimento da morte, que
a filosofia e a Escritura nos apresentam com o definitivo para dar sentido à
vida, é experimentado com o algo menos que real. Detalhes — detalhes do
lar e hábitos domésticos — parecem mais substanciais.

***

Quatro soldados estão apostando ao pé da cruz de Jesus. Acabaram de concluir


a tarefa a eles designada de crucificá-lo. Agora estão lançando os dados para
ver quem fica com as roupas de Jesus. Jesus olha para além deles e vê quatro
mulheres sofrendo em profunda tristeza — sua mãe, sua tia, Maria, mulher de
Clopas, e Maria Madalena — com João, “o discípulo amado de Jesus”, por perto
delas. Os soldados estão ocupados em obter algo por nada, sem perceberem a
vida eterna que está ali pendurada. As mulheres estão presentes por puro amor,
quietas e em reverência, conferindo dignidade a essa morte desoladora.
Mas agora ouvimos uma palavra muito diferente na cruz, uma palavra que
coloca nossos pés de volta ao terreno firme e familiar do comum: “A í está o
seu filho’ [...] A í está a sua mãe’”.
As palavras são um alívio de certa forma. Jesus nos retorna ao nosso entorno
familiar: o lar e as relações familiares. Se a oração de Jesus na cruz puder ser
ouvida, por assim dizer, no solo da casa, o perigo de estarmos ano após ano
diante da cruz com o espectadores é consideravelmente diminuído.
Com essas palavras, Jesus fez sua mãe e seus discípulos mutuamente par-
ticipantes em tudo o que está envolvido em sua morte: abandono, perdão,
a esperança do céu, expiação, sacrifício, dor, salvação. E, nem precisa dizer, a
JESUS ORA NA CRUZ: AS SETE ÚLTIMAS PALAVRAS 275

ressurreição. Esses não são mais elementos primordiais de debate ou de estudo


bíblico. Não são mais material privilegiado para fazer arte e música de grande
estilo. Todas as palavras e ações de Jesus, a partir desse mom ento, entram
na arena da domesticidade diária a ser desenvolvida e praticada exatamente
ali: “Mãe, aqui está seu filho. João, aqui está sua mãe. De agora em diante, à
medida que falarem e servirem, respeitem e amem um ao outro, pois vocês
estão fazendo isso para m im ”.
Se perdemos essas palavras, ‘“Aí está o seu filho’ [...] A í está a sua mãe”’,
arriscamos nos afastar da cruz com nada mais substancial que uma emoção
poderosa que pode ser renovada sob as condições corretas, ou uma verdade
sagrada que podemos carregar como um talismã. Mas, se escutamos, realmente
escutamos, ouviremos algo com o “Olhe bem para aquele(a) que está a seu
lado. Conheça-o, conheça-a, com o eu, Jesus, conheço e sou conhecido por
eles, com o uma mãe conhece o filho, como um filho conhece a mãe”.
W. H. Auden, em seu poema “Nones”, uma meditação em forma de oração
sobre Jesus ao morrer na cruz, escreveu,

... s e u sig n ific a d o


a g u a rd a n o ssa v id a .7

6. “Tenho se d e ‫( ״‬Jo 19:28)


Essa oração de uma só palavra (em grego, dipso) é singular no mosaico de
fragmentos de orações da cruz. E a única oração em que Jesus expressa ago-
nia física. Pense a respeito: sete orações feitas nessas três horas sobre a cruz
e apenas uma delas por dor física. Há mais na morte do que o que acontece
com o corpo. Existe o senso de abandono, existe o perdão, existe a esperança
do céu, existe a responsabilidade das pessoas que ficam para trás, existe um
senso de consumação (o último fragmento de oração). E existe dor: o corpo
sendo desligado, os pulmões falhando, o coração falhando, os rins falhando.
Na morte de Jesus, essa partida de seu corpo foi experimentada numa sede
excruciante: “Tenho sed e”.
Não é provável, dada a ampla variedade de detalhes específicos que os qua-
tro escritores do Evangelho nos fornecem, que crentes e seguidores de Jesus
276 A LINGUAGEM DE DEUS

deixem de perceber as feridas e o sofrimento, a alienação e a dor concentradas


no corpo de Jesus nessas três horas de sua morte. Em geral, os cristãos não
se distanciam dela. Continuamos em contato com o corpo de dores de Jesus
suspenso na cruz. Meditamos e jejuamos, oramos e cantamos hinos, saímos
em peregrinações e agarramos crucifixos.
Dificilmente podemos evitar enfrentar e lidar com o fato simples e irre-
futável de que Jesus tinha um corpo e de que ele simplesmente habitou esse
corpo até que o último vestígio de vida foi drenado dele. “Tenho sed e” é o
testemunho sagrado de que não havia nenhuma "fonte de água a jorrar para a
vida eterna” (Jo 4:14) que lhe tivesse sobrado.
Apesar desses dados históricos inflexíveis e indiscutíveis — Jesus em sua
oração, ao morrer, pedindo água, água m esm o, sem metáforas — , há um
número espantoso de pessoas que de algum modo ainda conseguem pensar
em Jesus e tratá-lo independentem ente de seu corpo: Jesus com o presença
espiritual, Jesus com o dogma teológico, Jesus com o exem plo moral, Jesus
como “poder mais elevado”, Jesus como verdade poética.8
Nada no corpo de Jesus foi excluído de seu ato de sacrifício expiatório
na cruz. E nada em nosso corpo, m esm o a dor, fica de fora. Paulo expres-
sou isso tão bem: “Tome sua vida cotidiana, com um — seu dormir, comer,
trabalhar e andar pela vida — e deposite tudo isso diante de D eus como
oferta” (Rm 12:1).
Outro aspecto da oração “Tenho sede” de Jesus no mosaico concluído pre-
cisa ser mencionado. Se algumas pessoas eliminam, ou pelo menos minimizam,
a dor da morte de Jesus da oração em uma tentativa piedosa de torná-lo mais
"espiritual” do que ele realmente é, há outros que isolam a dor física dos
outros seis elem entos de sua oração na cruz e a destacam em detrimento de
tudo o mais. O sofrimento físico e a morte de Jesus tomam conta e dominam.
Relacionamentos (com Deus, com o criminoso, com a mãe de Jesus, com o
discípulo de Jesus), o ato definitivo do perdão, a esperança do céu, o veredicto
final são empurrados para as sombras à medida que o holofote se concentra
em cada detalhe do corpo crucificado.
O efeito de isolar o sofrimento de Jesus de todos os relacionamentos, pre-
sentes e eternos, que estão presentes no mosaico de orações de Jesus tem o
JESUS ORA NA CRUZ: AS SETE ÚLTIMAS PALAVRAS 277

efeito de desumanizar e impessoalizar a dor de Jesus. Torna-se urna coisa, um


objeto para ser recebido com dó ou admirado, ou uma verdade a ser pregada
e ensinada. E uma forma de pornografia espiritual. A pornografia sexual é o
sexo sem relacionamento, a intimidade da sexualidade reduzida e aviltada em
um objeto para ser contemplado ou usado. A pornografia espiritual é oração
e fé sem relacionamento, intimidade com Jesus reduzida e aviltada em uma
ideia ou uma causa para ser defendida e usada.9
Nossos escritores do Evangelho não fazem isso. Tampouco Paulo quando
desenvolve nossa participação obediente e em oração no morrer e na morte
de Jesus. Todas as partes da oração de Jesus na cruz estão incorporadas na
história magnífica que inclui todas as operações da Trindade.

7. “Está consum ado1


. ” (Jo 19:30)
A história de G ênesis a respeito da primeira semana da criação encerra-se
com o seguinte: Deus, tendo feito a criação por meio do poder de sua palavra,
descansa de sua obra de criação e abençoa o dia. O verbo "concluir" é usado
duas vezes: "... foram concluídos os céus e terra [...] Deus já havia concluído
a obra que realizara, e nesse dia descansou...” (Gn 2:1-2). Uma boa criação,
completa — não restando nada para fazer.
Em um paralelo deliberado com as páginas de abertura de Gênesis, João
em seu evangelho apresenta Jesus realizando a salvação por m eio do poder
de sua palavra. Ao contar a história da última semana de vida de Jesus, a
conclusão da obra de salvação, ele conclui com o emprego duplo do verbo de
Gênesis, “concluir": "... sabendo então que tudo estava concluído [...]. Tendo-o
[o vinagre] provado, Jesus disse: “Está consumadoV (Jo 19:28,30). Uma boa
salvação, completa — não restando nada para fazer.
Uma boa nota para finalizar. E a nota em que Jesus terminou sua oração na
cruz. Não é diferente do enfático “A m ém ” de confirmação que normalmente
usamos para encerrar nossas orações. Sem algo assim, a oração se exaure,
como um convidado que parte e não parece sair da porta, mas vai ficando em
meio a um turbilhão interminável de pós-escritos, adendos e notas de rodapé.
Essa sétima e última peça das orações que Jesus fez na cruz é um "Está
consumado” definitivo e sem ressalvas. (Como o sexto fragmento de oração
278 A LINGUAGEM DE DEUS

que o precede, é também uma única palavra em grego, tetelestai.) “Está con-
sumado” é uma oração de síntese. Mas o verbo grego não significa concluir no
sentido de “este é o fim” ou “isso é tudo o que há”, como diriamos de uma
corrida que acabou ou de um livro que acabamos de ler. Transmite um senso
de completude, uma integralidade consumada.
O mesmo verbo é usado na oração de Jesus em João 17:4, quando ele orou
ao Pai: “Eu te glorifiquei na terra, completando a obra que me deste para fa-
zer”. Não significa que a vida de Jesus simplesmente chegou ao fim, mas que
tudo o que Jesus veio fazer agora está com pleto, com todos os arremates,
sem que nada tivesse ficado pendente. Obtem os um senso do cumprimento
abrangente que Paulo transmitiu à congregação de Roma: “Sabemos que
Deus age em todas as coisas para o bem daqueles que o amam” (Rm 8:28).
E será que haveria um eco do “Está consumado” de Jesus no “Está feitol” de
Apocalipse 16:17, proferido a partir do trono de Deus e do Cordeiro, quando
a última taça da ira de Deus é derramada pelo sétim o anjo? Decreto de Deus,
concluído “na terra como no céu ”.

* * *

Na longa reflexão presente na carta aos Hebreus sobre a conclusão “uma


vez por todas” (Hb 9:26) da obra de salvação, as muitas dim ensões da sal-
vação agora catalisadas na morte de Jesus, lem os que “quando este sacer-
dote acabou de oferecer, para sempre, um único sacrifício pelos pecados,
assentou-se..." (Hb 10:12).
Ao lermos as entrelinhas de Hebreus, percebemos que havia cristãos ao
redor que honraram a centralidade do Jesus crucificado em sua vida, mas não
estavam satisfeitos em deixar as coisas assim. Jesus sentou. Mas não eles. Eles
tinham coisas importantes a fazer. Tornaram-se uma congregação de ocupados
religiosos. O que Jesus fez foi central, é claro, mas continuaram achando coisas
que arredondariam a salvação de uma forma mais satisfatória — anjos, por
exemplo, e Moisés, e mais e mais sacerdotes para ajudar a Jesus. Qualquer
quantidade possível de “suplem entos” religiosos, eles tomaram para si para
suprir a carência.
JESUS ORA NA CRUZ: AS SETE ÚLTIMAS PALAVRAS 279

Isso ainda acontece muito. Nós “obtem os religião”. Logo nos tornamos
impacientemente convencidos e decidimos aperfeiçoar tudo com nosso valor
de dois centavos. Fazemos os acréscimos; complementamos; adornamos. Mas,
em vez de melhorar a pureza e a simplicidade de Jesus, diluímos a pureza,
estorvamos a simplicidade. Tornamo-nos irrequietamente religiosos, ou an-
siosamente religiosos. Atrapalhamos as coisas.
Nenhuma congregação cristã está livre de cristãos “Jesus+ ...”. No texto de
Hebreus, é Jesus+anjos, Jesus+ Moisés, Jesus-I-sacerdócio. Através dos sécu-
los, esses acréscimos a Jesus têm proliferado: Jesus+política, Jesus+ educação,
Jesus+ negócios ou até mesmo Jesus+Buda. Não que política, educação, negó-
cios e Buda não requeiram atenção. Mas não são a ação que Jesus introduziu
em nossa vida na cruz por meio da oração.
“Está consumado” exclui os acréscimos. O foco da oração torna-se claro e
nítido novamente: a ação de salvação de Deus completada em Jesus. Somos
libertos para o ato de fé obediente, a única ação humana em que não fica-
mos atrapalhando no caminho, mas ficamos a caminho.
Raymond Brown, sempre magistral em seu estudo sobre Jesus na cruz,
oferece uma revelação intrigante que aprofunda o senso de completude, mas
ao mesmo tem po reúne nossas orações em um fim substancial. Ele observa
que quando Jesus concluiu sua oração “curvou a cabeça e entregou o espírito"
(Jo 19:30). Brown é de opinião que é pelo menos plausível que Jesus tenha
entregue o Espírito (Santo) àqueles que estavam ao pé da cruz, em especial
a sua mãe e ao discípulo amado.10 O que poderia ser mais adequado? Dessa
forma esses homens e mulheres poderíam não só ver e ouvir a conclusão dos
trabalhos de salvação de Jesus, mas também encontrar-se incluídos e partici-
pantes nele. Como continuamos a fazer até hoje.
capítulo 20
Orando em nome de Jesus:
landes transformadas em carvalhos

Quando eu era jovem e vulnerável a todo “vento de doutrina” que soprava


em nosso vale em Montana e faziam bater as janelas de nossa pequena con-
gregação, um pregador itinerante com a reputação de um “guerreiro de ora-
ção”, um perito reconhecido em todas as formas de oração, captou a minha
atenção de adolescente. Um de seus dogmatismos era que todas as orações
tinham de ser concluídas com a frase “em nome de Jesus”. "Em nome de
Jesus” era uma espécie de imprimatur que validava tudo o que o precedesse,
independentem ente do conteúdo. Sem o endereço correto, quem sabe onde
a oração poderia acabar? A frase era uma defesa para que o Diabo ou um de
seus anjos não espancassem Jesus e não usassem minha oração para o mal e
para a condenação da minha alma. O pregador resgatou-me das ambiguidades
turbulentas da adolescência e deu-m e uma estrutura claramente definida,
preto no branco, na qual eu poderia encaixar todas as minhas orações. Ele
advertiu que por mais que se tomasse cuidado nessas questões nunca seria
suficiente. E eu tom ei todo o cuidado.
Levei alguns meses para reconhecer a tolice de sua ignorância dogmática-
mente formulada. Mas, por mais tola que fosse, acabou me fazendo bem —
ativou minha imaginação para pensar sobre a importância e as consequências
de orar “em nome de Jesus”. Acabou me enviando para as ocorrências de “em
nom e” no evangelho de João e em todo o contexto conversacional com seus
discípulos, quando Jesus falou com eles em sua última noite juntos. Cinco
vezes ele usou a frase: "farei o que vocês pedirem em meu nome..." (Jo 14:13);
“O que vocês pedirem em meu nome, eu farei” (14:14); "que o Pai lhes conceda
o que pedirem em meu nome” (15:16); “meu Pai lhes dará tudo o que pedirem
em meu nome"( 16:23); “Nesse dia, vocês pedirão em meu nome” (16:26). Será
que Jesus estava nos dando uma "Abre-te, sésam o” que nos garantiría tudo
o que quiséssemos? Dificilmente. Ele estava nos convidando para sua vida
inteira, uma vida de íntimo relacionamento em que suas palavras "se tomaram
282 A LINGUAGEM DE DEUS

carne” — não de modo geral, mas de um modo local, presente e particular,


em todas as várias circunstâncias que compõem a vida cotidiana.
Não demorou muito, com a ajuda de meus pais e amigos, para compreender
que “em nome de Jesus” era não uma fórmula verbal, como um encantamen-
to, com o poder de fazer as coisas acontecerem simplesmente por proferir as
palavras certas e na ordem certa. “N om e” é uma entrada em todo o mundo
habitado por e concretizado em uma pessoa com um nome, em um lugar
com um nome. O nome não é uma senha impessoal, intercambiável com um
número de identidade, mas uma lembrança pessoal, reunindo relacionamen-
tos e ancestrais, trabalho e palavras, geografia e alma — todos os interiores
e exteriores da vida de uma pessoa fundidos em um nome, com o se acha no
hino tantas vezes entoado:

Dobram-se os joelhos ao nome de Jesus,


toda língua o confessa Rei da glória e luz;
é o prazer do Pai que o chamemos de Senhor,
que desde o princípio era a Palavra de poder.1

Depois de mais ou menos um ano, eu havia escapado da armadilha da cer-


teza que eu acolhera tão avidamente a princípio (“a armadilha foi quebrada, e
nós escapamos" — SI 124:7) e entrei, por meio do nome de Jesus, na ampla
e abrangente companhia de Jesus: a Palavra que se tornou carne, com Jesus
contando histórias ricas de associações com as gerações de histórias legadas
de seus antepassados Moisés, Elias e Daniel, Jesus orando numa vinculação
com os salmos exuberantes e impregnados de dor de Davi e com o magnífico
Magnificat de sua mãe.

* * *

As primeiras duas páginas de nossas Escrituras nos fazem mergulhar em uma


brava demonstração de linguagem em operação — Deus usando a linguagem
para criar tudo o que há. Mas nem bem acabamos de ler a história do cosmo
formado pela Palavra gloriosa, viramos a página e encontramos a linguagem
sendo usada para corromper o que acabou de ser criado.
ORANDO EM NOME DE JESUS: LANDES TRANSFORMADAS EM CARVALHOS 283

Somos pegos de surpresa. As coisas estão indo tão bem. Deus cria: tudo
o que ele faz é bom, bom, bom, bom, bom, bom — e, em seguida, um sétimo
e retumbante muito bom. Deus planta um jardim com árvores deliciosas e
o entrega ao homem e à mulher com o uma casa para eles morarem. Há um
bom trabalho a realizar. Há animais maravilhosos para desfrutar. Um grande
rio flui do jardim e água a terra inteira. O homem e a mulher são o toque
coroador. Um mundo de beleza, intimidade e inocência, feito de palavras.
E então algo dá errado, desastrosamente errado. Como alguma coisa po-
deria dar errado quando tudo está tão certo? Mas dá. A catástrofe é acionada
em uma conversa entre a Serpente e uma mulher ainda sem nome. Uma
troca de palavras, muitas das mesmas palavras que acabaram de ser usadas na
construção gloriosa do mundo e de tudo o que nele existe. O pecado e o mal
chegam nas asas das palavras, e a criação é profanada. Não em oções fora de
controle, não genitais insubordinados, não uma arrogância intimidadora, não
tiros de canhões e bombas explodindo no ar, mas palavras. Palavras sagradas
agora profanadas, e a santa criação criada pela palavra agora desolada. A con-
fusão geral em que agora nos encontramos origina-se em um uso abusivo da
linguagem. O homem e a mulher usam folhas de figueira para cobrir a perda
da inocência e da intimidade com aventais paliativos.
Duas frases emolduram a conversa que conta a história. Primeira: “O ho-
mem e a mulher viviam nus, e não sentiam vergonha” (Gn 2:25). Em seguida,
sete versículos depois: “Os olhos dos dois se abriram, e perceberam que esta-
vam nus; então juntaram folhas de figueira para cobrir-se” (3:7).
O homem e a mulher começaram tão bem. Foram projetados pelo próprio
Deus e receberam o fôlego de vida dele. Estavam em um bom lugar com um
bom trabalho a realizar — poetas trabalhando com palavras, jardineiros tra-
balhando com solo e plantas — , todas as suas necessidades atendidas, abertos
e íntimos um com o outro, abertos e íntimos com Deus. Despertavam a cada
manhã para um mundo de beleza e abundância em que tinham dignidade,
propósito e utilidade.
"... nus, e não sentiam vergonha”: completamente à vontade, totalmente em
casa, sem nada a esconder, nada a temer, abertos um para o outro, abertos para
os animais, para o clima e para a terra, abertos para Deus. E então, após uma
284 A LINGUAGEM DE DEUS

breve conversa com a Serpente, nós os encontramos desesperadamente cosendo


folhas de figueira para cobrir o que não pode ser coberto. As folhas de figueira
assinalam uma catástrofe da linguagem. As palavras não são mais um meio de
intimidade, de revelação. São palavras de folha de figueira. O homem e a mu-
lher que as proferem não mais estão abertos um para o outro, livres no jardim,
perdidos em encantamento, impressionados com o que lhes foi dado. Não mais
abertos para Deus. Quando se pergunta ao homem a respeito, ele diz: “fiquei
com medo, porque estava nu; por isso me escondí” (Gn 3:10). A linguagem de
folha de figueira lida com Deus, mas de uma forma que sutilmente evita Deus
(“a serpente era o mais astuto de todos os animais selvagens...” — Gn 3:1).
As folhas de figueira cobrem o que está ali para ser revelado. As palavras de
folha de figueira parecem tão inofensivas — têm seu início, afinal, em um lugar
sagrado: o santo jardim do Éden. Continuam a florescer em santuários e em
capelas por todo o mundo. A devastação é generalizada.
Dada a glória e a ubiquidade da linguagem em tudo o que está ligado à vida,
a vida em seu sentido mais inclusivo — a vida de Deus, a vida do homem e da
mulher, a vida de animais, árvores e oceanos — , é mais do que desalentador
descobrir que a linguagem tão facilmente e com tamanha frequência é usada
para adulterar, para contaminar e para baratear a vida e o Deus da vida.

* * *

A linguagem é sagrada. Todas as palavras são sagradas. Mas, quando são arran-
cadas da história que Deus cria e, em seguida, usadas independentem ente de
Deus, a linguagem é profanada: as palavras tornam-se não pessoais, as palavras
tornam-se não relacionais. Não demora muito e a criação sagrada é profanada.
As palavras usadas pela Serpente e pela mulher têm a semântica denotativa
do dicionário. Mas, sem a sintaxe da história de Deus, são folhas de figueira,
sem conexão, sem um relacionamento expresso com o Senhor da linguagem,
com a Palavra que se tornou carne, com o Espírito que nos dá a possibilidade
de “declarar as maravilhas de Deus em nossa própria língua” (At 2:11).
ORANDO EM NOME DE JESUS: LANDES TRANSFORMADAS EM CARVALHOS 285

As seis orações que fazemos com Jesus à maneira dele, essas “orações esta-
belecidas”, dão-me uma ideia do mundo em que Jesus orava, o vasto mundo
de intimidade e de confiança criado por conversas com Jesus à medida que
ele ora conosco e por nós. Fazer essas seis orações também nos oferece um
treinamento de aprendiz sobre a vida de oração, impede o egocentrismo que
tem a atenção mais sobre nós mesmos (estou fazendo isso da forma certa?) e
diminui o constrangimento (o que as pessoas vão pensar de mim?). Oferecem
um lugar discreto, mas seguro na companhia da nuvem de testemunhas que
oram e com Jesus à medida que ele ora.
Existe um preconceito comum entre muitos cristãos americanos contra
as orações de repetição, as orações repetidas, orações “de livros” — mesmo
quando são tiradas diretamente do “livro de Jesus”. Isso é um erro. A espon-
taneidade oferece uma espécie de prazer e de senso de santidade, as repe-
tições, outra, igualmente agradável e santa. Não precisamos escolher entre
uma e outra. Não devemos escolher entre uma e outra. São as polaridades da
oração. As repetições das orações de nosso Senhor (e de Davi) dão-nos um
fundamento firme para a espontaneidade, os voos, as explorações, as medita-
ções, os suspiros e os grunhidos que entram na oração feita "continuamente”
(ITs 5:17) que Paulo nos incentiva a fazer.

* * *

É da natureza da oração oferecer um caminho de aceitação da Palavra de Deus


que é encarnada em Jesus, a Palavra de Deus escrita em nossas Escrituras
Sagradas, a Palavra de Deus presente pelo Espírito Santo. É uma forma de
linguagem congruente com a linguagem em que escutamos a Palavra, a rece-
bemos e respondemos a ela.
Aprendemos a linguagem da oração mergulhando na linguagem que Deus
usa para revelar a si mesmo a nós, o mundo de linguagem de Jesus. Oramos
no contexto de Jesus em oração. Nossas orações já não são moldadas pela
nossa cultura. Somos bem avisados contra a linguagem religiosa da Serpente.
Nossas orações são resgatadas de serem condicionadas pela nossa psique.
286 A LINGUAGEM DE DEUS

Adquirimos uma linguagem de oração suficiente para ouvir e falar no grande


mundo da Trindade, revelado em Jesus pelo Pai mediante o Espírito Santo. A
oração é uma fala pessoal, uma fala de Pai e Filho, uma fala de Deus e filha.
E a linguagem posta a serviço do relacionamento. E conversa. Deus ouve-nos;
nós escutamos a Deus. Deus fala conosco; falamos com Deus. Seria demais
afirmar que é uma conversa entre iguais, mas ao menos ambas as partes estão
falando a mesma linguagem, uma linguagem de revelação, uma linguagem
profundam ente relacionai, não uma linguagem informativa, não uma lín-
gua manipuladora.
Pai: oração não é um ato alheio, um elem ento de fora. Estamos oran-
do dentro da família. Estamos orando a partir de nossa afinidade natural
com Deus.
Filho: não estamos orando no escuro, tateando e adivinhando. O Filho re-
vela o Pai. Não sabemos tudo, mas sabemos algo. Conhecemos a Deus como
Salvador, Doador, Amante, Aquele que escuta.
Espírito Santo: não estamos orando “por conta própria”. A oração não é
reunir nossas energias espirituais para fazer uma declaração ou lançar uma
causa. Embora a oração envolva nossas palavras, nossas m editações, nossas
ações, há m uito mais na oração do que nós. Acima de tudo está o Espírito
Santo dando a conhecer D eus e iniciando em nós respostas de louvor, de
petição e de obediência: “o Espírito nos ajuda em nossa fraqueza, pois não
sabemos como orar, mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos
inexprimíveis” (Rm 8:26).

* * *

A oração renuncia à linguagem que manipula a Deus (o caminho da magia). A


oração rejeita a linguagem que reduz Deus sob meu controle (o caminho dos
ídolos). A oração se resguarda da linguagem que impessoaliza Deus em uma
ideia, força ou sentimento (o caminho da introspecção falsamente piedosa).
A oração acautela-se da influência dos tecnólogos espirituais com a alardeada
perícia de saber usar a oração para “fazer as coisas acontecerem”, uma tec-
nologia que obriga Deus ou outras pessoas a garantir que nossa vontade seja
ORANDO EM NOME DE JESUS: LANDES TRANSFORMADAS EM CARVALHOS 287

feita. A oração é alerta a tendências dentro de nós mesmos que particulari-


zam a oração e nos isolam da companhia da comunhão dos santos. E a oração
certamente não é uma cobertura espiritual para tirar umas férias do mundo
e de seus problemas e responsabilidades.
A oração é uma forma de linguagem praticada na presença de Deus, em que
nos tornamos mais do que nós mesmos, ao mesmo tempo que permanecemos
nós mesmos. Na prática da oração, Deus honra nossa liberdade, Deus nos dá
dignidade. Hans Urs von Balthasar fala de nossa vida como “uma declaração
sustentada de oração [...]. O homem só precisa saber, em certa medida, o que
ele realmente é, para irromper espontaneamente em oração”.2
Na maioria dos casos, não nos tornamos fluentes na linguagem da oração
por conta própria, ou por ler um livro, ou por nos inscrever em um curso.
Tornamo-nos fluentes em oração ao permanecermos na companhia de Jesus.
Aprendermos a orar “em nome de Jesus".

* * *

Quero eliminar aquele bilingüismo com o qual crescemos ou adquirimos ao


longo do caminho do crescimento: uma linguagem para falar sobre Deus e
sobre as coisas de Deus, a salvação e Jesus, cantar hinos e ir à igreja; outra
linguagem em que nos tornamos proficientes quando vamos à escola, obte-
mos um emprego, jogamos bola, saímos para dançar e compramos batatas e
jeans. Uma linguagem para a religião e outra para tudo o mais, cada uma com
seu vocabulário próprio e com seu tom de voz. Quero derrubar os muros de
divisão que separam as questões em torno de Deus e da oração das questões
em torno da obtenção de alimentos e dos meios de subsistência.
Estou interessado em recuperar a linguagem comum da Bíblia, linguagem
não dividida em dialetos distintos, um para o trabalho e os assuntos domésti-
cos, outro para os nossos estereótipos “espirituais” — um dialeto para a rua,
outro para a igreja.
Quero derrubar as cercas que mantêm a oração confinada a ambientes
religiosos e a assuntos religiosos. Quero ampliar o campo da oração — expo-
nencialmente se puder — para que absorva a criação inteira e toda a história,
288 A LINGUAGEM DE DEUS

toda a nossa vida intencionalmente reunida diante de Deus, sem deixar nada
nem ninguém de fora. Quero que as minhas orações e as orações de meus
amigos ricocheteiem das encostas rochosas das montanhas, ressoem pelos
corredores de shopping centers, retumbem nas profundezas do oceano, águem
desertos áridos, tenham com o fincar o pé em pântanos fétidos, encontrem
poetas à medida que eles rebuscam a palavra exata, misturem sua fragrância
com flores do campo em prados alpinos, cantem com as gavias nos lagos cana-
denses. Continuarei, naturalmente, a orar nos santuários, e no meu quarto, e
na hora de dormir. Mas quero muito mais. Quero participar em orações que
não soem como orações. Orações que, no ato de orar, não sejam identificadas
como orações. Orações sem cessar.
Não quero dizer que todas as nossas palavras e silêncios são, em si mesmos,
oração, mas simplesmente que podem ser.
Jesus, igualmente à vontade no céu e na terra, igualmente à vontade na “casa
de seu Pai” e na casa de José e de Maria, usava a mesma linguagem — pessoal,
metafórica, particular, relacionai, local — onde quer que estivesse, fosse na
sinagoga ou nas ruas, e com quem quer que conversasse, fosse um samaritano
ou Deus. Ele não rebaixava o santo no secular; ele infundia o secular com o
santo. Ao nos mantermos em companhia de Jesus em questões de linguagem,
a linguagem em si torna-se sacramental. Não cultivamos uma linguagem de
iniciados para discursos sobre coisas e idéias predefinidas com o "espirituais”.
Não permitimos que o mundo descrente sugue a transcendência das palavras e
as reduza a palha. Deixamos que Jesus molde nosso discurso e nossas orações,
falando e orando a linguagem comum da tribo, alertas a cada palavra imbuída
de revelação, cada frase fragranté de graça. Praticamos uma escuta e um orar
que está vigiando Jesus, vendo-o falar e orar, sem querer perder nem mesmo
um sussurro ou sílaba da Palavra que se tornou carne.
Quando Moisés recebeu instruções de Deus para construir uma estrutura
de culto, o tabernáculo do deserto, o centro foi designado o lugar “Santíssimo”
ou “Santo dos Santos”, o local em que se dava a ação focada entre Deus e os
homens. Era protegido do voyeurismo espiritual curioso e do sacrilégio pagão,
fosse inadvertidamente, fosse de propósito, por uma cortina ou véu finamente
tecidos. Ninguém tinha a permissão de entrar no Santo dos Santos, exceto o
ORANDO EM NOME DE JESUS: LANDES TRANSFORMADAS EM CARVALHOS 289

sumo sacerdote, e ainda assim som ente uma vez por ano. O santo e o profano
eram estritamente separados.
A presença santa de Deus foi protegida da profanação, seja por uma curio-
sidade sem oração, seja por uma idolatria blasfema. Deus não pode ser usado.
O tabernáculo, um santuário portátil no deserto, e o templo em Jerusalém que
mais tarde o substituiu treinaram o povo de Deus por quase dois mil anos na
reverência diante do Sagrado no tabernáculo e no templo, urna santa reverência
que se tornou “temor do Senhor” na vida fora do local sagrado. O povo de
Deus sempre necessita de uma formação completa em santidade. Nós, todos
pecadores, temos o hábito profundamente arraigado de querer usar Deus para
os nossos propósitos, de reduzir Deus a um objeto que possamos controlar. Não
podemos. O véu que protege o Santo dos Santos nos diz que não podemos.
Os séculos de treinamento de adoração quanto à inviolabilidade da santi-
dade de Deus estão profundamente enraizados em nossa compreensão desse
Santo densamente velado que se acha no centro do lugar de culto. O véu o
protegia de olhos e mãos indiscretos. E assim o choque não é nada menos
que sísmico quando se ouve que a primeira coisa que aconteceu quando Jesus
morreu na cruz foi que “o véu do santuário rasgou-se em duas partes, de alto
a baixo‫( ״‬Mt 27:51; Mc 15: 38; Lc 23:45).
O que aconteceu? O Lugar Santo é agora Todo Lugar. O Santo de Deus é
contemporâneo conosco. Seu tempo é nosso tempo. Já não há separação entre
o lá e o aqui, o então e o agora, o sagrado e o secular. A carta aos Hebreus dá
muita importância a isso, ajudando-nos a ver que a morte de Jesus na cruz
abriu “um novo e vivo caminho” pelo qual podemos levar uma vida integrada
(v. Hb, esp. 9 e 10).
Paulo também usa essa imagem, mas de uma forma ligeiramente diferente,
quando fala da morte de Jesus como tendo destruído “a barreira, o muro de
inimizade” entre judeus (os religiosos de dentro) e os gentios (os religiosos
de fora), unindo-nos como um só povo (Ef 2:14).
O lá e o aqui fundidos, o então e o agora fundidos, o sagrado e o secular
fundidos, nós e eles fundidos. O véu rasgado em dois. As paredes derrubadas.
As divisões destruídas.
E a linguagem? Sim, a linguagem. Toda linguagem está disponível para dar
testemunho do Santo, do nome do Santo, onde quer que e quando quer que,
290 A LINGUAGEM DE DEUS

assim como Jesus usou e usa a linguagem. As orações de Jesus são a base das
nossas orações e estão a elas vinculadas.

* * *

Ludwig Wittgenstein, um de nossos filósofos mais precisos da linguagem, conta


como se deparou com a frase “Todo um mundo se contém nessas palavras”.
Ocorreu-lhe que estaria errada. Ele fez o seguinte comentário: “Essas palavras?
Como pode tudo estar contido nelas? — Tudo se acha numa ligação estreita
com elas. As palavras são com o uma lande da qual cresce o carvalho’’.3
Quando li suas palavras, pareciam condizentes com aquilo que acontece
quando oramos “em nome de Jesus”. A orações de Jesus não contêm todas
as orações. São landes a partir das quais uma vida de oração cresce em nós,
tomando-se carvalhos de profundas raízes e que também se estendem até o céu.
apêndice
Escritores que honram o sagrado
inerente na linguagem

Não é pouca coisa que a comunidade cristã tenha homens e mulheres que
prestem a máxima e constante atenção ao uso das palavras. O sacrilégio na
linguagem é uma epidemia em nossa cultura. Vivemos em uma terra devas-
tada da perspectiva da linguagem. O cuidado com as palavras é um trabalho
cristão urgente. Nossa tarefa é clara: mantê-las pessoais, preservar seu lugar na
criação/história da salvação, conservar uma congruência entre nossas conver-
sas e nossas orações. A melhor maneira de fazermos isso é mantendo-nos em
companhia de Jesus em suas histórias e em suas orações. Também considero
útil manter conversas com homens e mulheres que sabem fazer isso bem.
Alguns deles escrevem livros. Quando escrevem bem, leio seus livros. Aqui
estão sete escritores que muito aprecio.

N . T. W r ig h t , The Ne w Testament and the People o f God [O Novo


Testamento e o povo de D eus]; Jesus and the Victory o f God [Jesus e a
vitória de D eus]; The Resurrection o f the Son o f God [A ressurreição do
Filho de Deus]
Melhor que qualquer outra pessoa que eu conheça em minha geração, Norman
Wright, com imensa paciência, destinou uma atenção diligente às palavras de
Jesus, às ações de Jesus, à história que envolve o mundo todo na qual Jesus é
o centro. Wright é um historiador. Ele leva o lugar a sério. Ele leva o tempo
a sério. Ele levas as palavras a sério. E ele escreve a sério, de forma precisa,
e bem.
Há 150 anos, muitos homens e mulheres bem-intencionados (e alguns não
tão bem-intencionados) têm se ocupado em desenredar Jesus de suas raízes
históricas para apresentar suas palavras, suas idéias, seu exemplo em uma tra-
vessa livre de limitações históricas, não mais presas ao dia a dia. Ficamos assim
livres para inseri-los onde nos encontrarmos e como quer que permita nossa
292 A LINGUAGEM DE DEUS

imaginação. Mas se deixados assim, por conta própria, tem os a tendência de


nos desviarmos em devaneios piedosos ou não tão piedosos. Wright não deixa
que isso aconteça. Ele nos dá a textura e o sabor de Jesus vivendo em solo
real, num tem po real, o Jesus que se tornou nossa salvação em solo real e em
tempo real. Os três volumes que recomendo são imensos, mas imensamente
agradáveis de ler. Planeje passar um ano lendo cada um deles. Eles são bons
nesse nível mesmo.

Eugen R o s e n s t o c k - H uessy , Speech and Reality | Linguagem e realidade|


A linguagem tem origem em uma voz viva. Em sua forma mais pura, ela é
falada e ouvida, não escrita e lida. Boca e ouvidos, não caneta e tinta, são os
pré-requisitos da linguagem. Depois de muitos anos de escola e de vivência
em uma cultura que tem a capacidade de ler e escrever como fato assentado,
temos a tendência de pensar que os livros, os jornais e as bibliotecas têm o
monopólio da linguagem, sobretudo a linguagem levada a sério. Rosenstock-
-Huessy recupera para nós o que é tão facilmente obscurecido: a linguagem
é basicamente discurso expresso oralmente, não palavras escritas. A lingua-
gem é inerentemente reveladora e relacionai, um intercâmbio falado de uma
realidade vivida entre pessoas chamadas pelo nome, não uma transferência
impessoal de idéias ou fatos que pode acontecer de maneira mais cômoda e
precisa por meio de um livro. São gigantescas as implicações que brotam do
"pensamento sobre o discurso” desse alemão que emigrou da Europa para os
Estados Unidos, esse judeu que se converteu ao cristianismo.

William S ta ffo rd , Stories that Could Be True: New and Collected Poems
[Histórias que poderíam ser verdadeiras: poemas novos e compilados]
Stafford é um poeta que usa as palavras com uma reverência incomum. Ele
é um pacifista, um cristão que passou os quatro anos da Segunda Guerra
Mundial em campos de refugiados, no Arkansas e na Califórnia, para pessoas
que por questões de consciência recusavam-se a tomar parte ativa na guerra.
A forma em que ele usava as palavras acabou fazendo de mim um pacifista.
Mas minha conversão iniciou-se não com suas opiniões sobre a violência e a
guerra, mas com a forma em que ele usava as palavras na construção de seus
ESCRITORES QUE HONRAM O SAGRADO INERENTE NA LINGUAGEM 293

poemas. Com o este: que a presença seja com o fumaça [...] não se agarre
àquilo a que não se pode agarrar”. Seus poemas m e dão uma percepção do
âmago sagrado inerente nas palavras e uma sensação de que seria melhor
confiar neles — não usá-los para levar as pessoas a fazerem alguma coisa, mas
revelar o que está ali diante de nós, a vida criada pelas palavras que todos
tem os em comum.

Francisco DE S ales e Jeane DE C ha n ta !., Letters o f Spiritual Direction


[Cartas de orientação espiritual]
Ao escrever e ler cartas, geralmente mergulhamos em uma linguagem pessoal e
reveladora: as palavras e as frases são usadas para nos dirigir a um destinatário
com um endereço ou caixa postal, sendo o assunto imediato e particular. As
cartas podem ser impessoais, mas na maioria dos casos não o são. As cartas
podem estar cheias de abstrações, mas na maioria dos casos não estão. Quan-
do as cartas são trocadas entre pessoas que se preocupam profundamente
com Deus e com a alma, pessoas honestas que confiam umas nas outras, com
muita probabilidade presenciaremos uma conversa que confere dignidade
à linguagem, uma conversa congruente com o Senhor da linguagem. Nos
anos da Contrarreforma, na França, Francisco de Sales, um bispo, e Jane
de Chantal, uma viúva que se tornou a superiora de uma comunidade de
mulheres, trocavam cartas exatamente assim.

F lan n ery O ’C o n n o r , The H abit o f Being [O h á b ito d e ser]


Aqui temos cartas de uma escritora da Geórgia que escrevia contos e romances
à semelhança de parábolas que ganharam a reputação de chocar imaginações
espiritualmente enfatuadas, fazendo-as reconhecer a presença e os caminhos
de Deus em seus próprios becos e quintais. Essas cartas, compiladas e publi-
cadas após sua morte precoce, em 1964, nos trazem percepções agudamente
articuladas sobre a razão por que ela escrevia como escrevia, suas convicções
sobre a natureza da linguagem e seu enraizamento e orientação específicamente
cristãos. Ela é uma das mestras americanas no uso de linguagem “oblíqua”, de
viés, para penetrar as defesas blasés com a verdade de Deus.
294 A LINGUAGEM DE DEUS

The Message in the Bottle: How Queer Man Is,


W alker P ercy ,
How Queer Language Is, and What One Has to Do with the Other
[A m e n sa g e m na g a rra fa : c o m o o h o m em é e s tra n h o , co m o a lin g u ag em
é e s tra n h a e q u e relaç ão u m te m com o o u tro |
Percy com eçou com o médico, mas desistiu e passou a melhor parte de sua
vida de trabalho escrevendo seis romances. Escritos num período de 26 anos
que atravessaram a última metade do século XIX, os romances diagnosticam a
desesperada pobreza espiritual da vida americana. Ele também ergueu alguns
cartazes despretensiosos pelo caminho para todos os que estivessem interes-
sados em saber o que os cristãos tinham a dizer a respeito. Ele é o Kierkegaard
dos Estados Unidos, usando a linguagem da parábola e do rodeio para penetrar
estereótipos culturais com a Verdade.
Esse livro é uma coleção de ensaios sobre a linguagem que ele usa nos
romances: as formas em que a linguagem funciona e as formas em que ela
não funciona; as formas em que a linguagem nos envolve levando-nos a viver
a verdade e as formas em que a linguagem nos seduz para vivermos mentiras.
Aprendemos que a linguagem traz em si muito mais do que somos capazes de
perceber. Quando lutamos com a luta que ele mesmo trava com a linguagem,
compreendemos por que ele decidiu deixar a cura de corpos para os médicos
e se entregou à cura de almas com seus escritos. Fez uma boa escolha.

R eynolds P r ic e , A Palpable God (U m D e u s palpável]


Reynolds Price é um escritor que estudou sua arte de escrever romances mer-
gulhando na linguagem da Bíblia. Veio a convencer-se de que a necessidade
humana de contar e ouvir histórias só é menos importante que a necessidade
de alimento, mesmo antes do amor e do abrigo. “O som da história é o som
dominante da nossa vida” (p. 3). Ele ancora essa necessidade básica de nossa
vida nas formas que as histórias bíblicas assumem quando chegam a nós. Por
meio de repetidas releituras de suas reflexões (e de seus romances), adquiri
um forte senso tanto da singularidade quanto da inevitabilidade da história.
Vim a perceber que todas as tentativas de reduzir a história a uma explicação,
ou a uma definição, ou a um resumo diluem a linguagem em que Deus se
ESCRITORES QUE HONRAM O SAGRADO INERENTE NA LINGUAGEM 295

revela a nós e a linguagem pela qual nós podemos nos revelar a Deus e uns aos
outros. “Confie na história”, parece ser o que Price deseja comunicar. “Abra
espaço para a história em sua vida.” Especialmente a história que Jesus conta.
Notas

Introdução
1 Excerto da segunda parte de "Choruses from The Rock”’ ["Coros de ‘A Rocha”’].
2 The complete poems, p. 506.

Capítulo 1
1 Desenvolvo consideravelmente esse "esforço resoluto” em Maravilhosa Bíblia: a arte de ler
a Bíblia com 0 espírito.
2 George STEINER, Depois de Babel: questões de linguagem e tradução.
3 Joachim J eremias, Jerusalem in the time o f Jesus, p. 353.
4 Jean S ulivan, M orning light, p. 64.
5 The dark interval: towards a theology o f story, p. 57.
6 Citado por David Dark, em: The Gospel according to America, p. 52.
7 De longe, a melhor exposição a servir de fundação para essa prática acha-se em Spiritual
direction [Orientação espiritual], de Martin Thornton. Thornton era anglicano e escreve com
base nessa tradição. Mas o que ele escreve pode facilmente ser traduzido em qualquer tradição
em que estejamos inseridos. Uma instrução básica bem detalhada sobre o desenvolvimento
inicial da prática acha-se à disposição em Spiritual direction in the early C hristian East [A
orientação espiritual no Oriente cristão primitivo], de Irenee Hausherr.
8 Gerhard Kittel (org.), Theological dictionary o f the N ew Testament, v. 3, p. 396.

Capítulo 2
1 "Provação”, "prova” e “tentação” originam-se todas da mesma palavra no grego de Lucas:
peirasmos. A tradução dependerá do contexto.
2 Gerhard Friedrich (org.), Theological dictionary of the N ew Testament, v. 6, p. 317.

Capítulo 3
1 A “Segunda parte” deste livro, “Jesus em suas orações", examinará algumas dessas muitas
outras dimensões da oração.
2 Johannes Baptist M etz, Poverty of Spirit, p. 18.
3 Idem, p. 28, 30.

Capítulo 4
1 Pilgrim at Tinker Creek, p. 146.

Capítulo 5
1 Citado por Brevard C hilds, em: The struggle to understand Isaiah as Christian Scripture,
p. 287.
298 A LINGUAGEM DE DEUS

2 The Christian future, p. 19.


3 It all adds up, p. 310.
4 Devo esse insight a uma observação feita por William WlLUMON em Thank God it’s Friday, p. 7.

Capítulo 6
1 Dakota, p. 91.

Capítulo 7
1 M edical nemesis.
2 A oração completa: "Pai todo-poderoso e misericordioso; erramos e nos afastamos de teus
caminhos como ovelhas perdidas. Seguimos em demasia os expedientes e os desejos de nosso
coração. Transgredimos tua santa lei. Deixamos por fazer aquelas coisas que deveriamos ter
feito; e fizemos aquilo que não deveriamos ter feito; e não há nenhuma saúde em nós. Mas tu,
ó Senhor, tem misericórdia de nós, infelizes transgressores. Poupa aqueles, ó Deus, que confes-
sam suas falhas. Restaura os penitentes; de acordo com as tuas promessas feitas à humanidade
em Cristo Jesus, nosso Senhor. E concede, ó Pai misericordioso, para causa dele, que vivamos
daqui em diante uma vida santa, reta e equilibrada. Para a glória do teu santo nome. Amém".
Livro de oração comum da Igreja Episcopal dos EUA.
3 Primeiros versos da terceira estrofe original do hino Rocha eterna, de Augustus Toplady.
Tradução de Fabiani Medeiros. (N. do T.)
4 Emily D ickinson, "Renunciation — is a piercing Virtue”, em: The complete poems, p. 365.
[Esse poema foi traduzido para o português por Aíla de Oliveira Gomes. Encontra-se em Emily
Dickinson: uma centena de poemas (São Paulo: T. A. Queiroz/Edusp, 1985. Notas e comentá-
rios.). Trata-se de uma compilação de 129 poemas completos, dos quais três, traduzidos em
prosa, constam da introdução junto com alguns fragmentos.]
5 Discernimentos importantes sobre a “divinização de nossas atividades” e sobre a "divinização
de nossas passividades" são oferecidos por Teilhard de C hardin [The Divine milieu).

Capítulo 8
1 The history of the synoptic tradition, citado por Kenneth E. Bailey, Poet and peasant e Through
peasant eyes, p. 86. [O primeiro dos títulos de Bailey foi publicado no Brasil em 1995 por
Edições Vida Nova, sob o título A s parábolas de Lucas].
2 Jesus and the victory o f God, p. 129.
3 Kenneth E. Bailey, Poet and peasant, p. 86.
4 Idem, p. 98.
5 Idem.
6 Kenneth E. Bailey, Poet and peasant, p. 102.
7 Dan O tto V ia J r., The parables, p. 160.

Capítulo 9
1 Veja, de Joel G reen, The Gospel o f Luke, p. 587, e de Joseph A. Fitzmyer, S.J., The Gospel
according to Luke (x-xx t), p. 886.
NOTAS 299

2 Há nove ocorrências de “arrepender-se" (com suas variantes) em Lucas, mas nenhuma no


imperativo e todas na seção da Narrativa da Viagem a Samaria em que Jesus está contando
essas histórias (Lc 10:13; 11:32; 13:3,5; 15:7,10; 16:30; 17:3-4), sublinhando a centralidade
temática de arrependimento enquanto Jesus está recrutando seguidores para participar com
ele a caminho de Jerusalém e na obra do reino.
3 Jesus and the victory o f God, p. 255.
4 The parables of Jesus, p. 186.
5 Jesus and the victory o f God, p. 257.

Capítulo 10
1 Lucas usa o termo “reino de Deus” 51 vezes, 27 das quais nessa seção sobre a viagem por
Samaria.
2 The Philokalia. p. 60. [Publicado no Brasil pela Paulus: Pequena Filocalia: o livro clássico da
Igreja oriental (Coleção “Oração dos Pobres”).]

Capítulo 11
1 Estou usando o termo “contador de histórias" aqui como forma de representar todos os
escritores e artistas — poetas e escultores, pintores e músicos, tecelões e dançarinos — que
sondam os interstícios da vida.
2 Fragmento do poema God's grandeur, traduzido para o português por Augusto de Campos:
“A grandeza de Deus: A grandeza de Deus o mundo inteiro a admira./ Em ouro ou ouropel
faísca o seu fulgor;/ Grandiosa em cada grão, cada limo em óleo amor —/ Tecido. Mas por
que não temem sua ira?/ Gerações vêm e vão; tudo o que gera, gira/ E gora em mercancía;
em barro, em borra de labor;/ E ao homem mancha o suor, o sujo, a sujeição; sem cor/ O solo
agora é; nem mais, solado, o pé o sentira./ E ainda assim a natureza não se curva;/ Um límpido
frescor do ser das coisas vaza;/ E quando a última luz o torvo Oeste turva/ Ah, a aurora, ao fim
da fimbria oriental, abrasa —/ Porque o Espírito Santo sobre a curva/ Terra com alma ardente
abre ah! a asa alva”. (N. do T.)

Capítulo 13
1 A expressão é de Albert Borgmann. Ele a emprega com grande efeito ao nos apresentar
um modo de recuperarmos uma comunidade pessoal no solo improdutivo e impessoalizado da
tecnologia. Veja sua obra Technology and the character o f contemporary life.
2 Em Answering God: the Psalms as tools fo r prayer [Respondendo a Deus: os Salmos como
ferramentas para a oração], escreví detalhadamente sobre como os Salmos oferecem instrução
e disciplina nos caminhos da oração bíblica.
3 James G. S. S. T homson, The praying Christ, p. 35.

Capítulo 14
1 Abba isn't ‘Daddy’”, em: Journal o f Theological Studies, 1988, p. 28-47.
2 Dois excelentes autores contemporâneos que eficazmente se opõem à versão da vontade de Deus
como plano e recuperam a versão original, presente na Bíblia e no Evangelho, são Jerry S1TTSER, The
will of God as a way of life e Bruce W a ltk e , Finding the will of God: a pagan notion?.
300 A LINGUAGEM DE DEUS

3 George H erbert, The country parson, the Temple, p. 284.


4 Frederick BuECHNER, Wishful thinking: a theological A B C , p. 34.
5 Citado por David D ark, The Gospel according to America, p. 121.
6 As palavras gregas usadas na sexta petição contêm vários matizes de significado: provação,
tentação, prova, tribulação, mal, Maligno. Eu as usei todas, tentando mostrar de alguma maneira
as variações de ênfase que ocorrem à medida que oramos a petição.
7 The Lord and his prayer, p. 68.
8 M any dimensions , p . 2 1 6 .
9 As palavras propriamente ditas são: "Teus, 6 SENHOR, são a grandeza, o poder, a glória, a
majestade e o esplendor, pois tudo o que há nos céus e na terra é teu. Teu, SENHOR, é o reino”
(lC r 29:11).
10D iary 1928-1957, p. 262.

Capítulo 15
1 F. Dale Bruner traduz esse versículo da seguinte maneira: “Deus o abençoe, João, se você
não abandonar tudo porque eu sou diferente” (The Christbook, M atthew 1-12, p. 413).

Capítulo 16
1 To make a prairie, p. 117.
2 Idem, p. 7.

Capítulo 17
1 Hans Urs von Balthasar, Prayer, p. 36.
2 Friedrich VON H Ü G EL, Letters from baron Friedrich to a niece, p . 2 5 .
3 War in heaven, p. 251.
4 Citado por Colin E. G unton, The One, the Three and the many, p. 149.

Capítulo 19
1 Extraído da O rder for the celebration of the Lord's Supper ["Ordem para a celebração da ceia
do Senhor”] (The Book o f Common Worship, p. 162).
2 Hans Urs von Balthasar, Prayer, p. 243.
3 The eyes o f the heart, p. 14-6.
4 Veja os comentários exegéticos de Joel G reen em The Gospel o f Luke, p. 823.
5 Busquei reunir o vasto testemunho de João sobre o céu em meu livro Trovão inverso: o livro
do Apocalipse e a oração imaginativa, p. 168-185 do original inglês.
6 Uma declaração é particularmente oportuna no contexto das orações da cruz: "Neste estado
de autoabandono, nesse trajeto de uma fé simples, tudo o que acontece a nossa alma e corpo,
tudo o que ocorre em todos os assuntos da vida, tem o aspecto de morte. Isso não nos deve
surpreender. O que esperamos? E natural a essa circunstância”. (Jean-Pierre DE CAUSSADE,
Abandonment to divine providence, p. 95.)
7 The shield o f Achilles, p. 75.
8 Temos aqui um equívoco (ou, o que é mais traiçoeiro ainda, um falso ensino) sobre Jesus
que tem enfeitiçado a comunidade de Jesus desde o começo e não mostra nenhum sinal de
NOTAS 301

desaparecimento: a saber, que o corpo de Jesus não era "realmente” Jesus, mas apenas uma
forma que ele usou e da qual escapou quando na cruz. Essa negação da realidade do corpo de
Jesus e de sua morte continua surgindo século após século e recebe o nome de "gnosticismo”.
A mentira gnóstica é uma epidemia em nosso mundo pós-moderno.
9 O filme de Mel Gibson A Paixão de Cristo foi um exemplo inegável disso no cenário ame-
ricano em 2004.
10 "... ao ir para o Pai, Jesus dá seu espírito para aqueles que estão próximos ao pé da cruz.
Em João 7:3739‫־‬, Jesus prometeu que, quando ele fosse exaltado, aqueles que criam nele iam
receber o Espírito. O que seria mais apropriado do que o fato de que aqueles crentes que não
partiram quando Jesus foi preso, mas se reuniram perto da cruz, fossem os primeiros a recebê-
-lo?" (Raymond E. Brown, The death o f the Messiah, p. 1082).

Capítulo 20
1 Letra de Caroline Maria Noel (1870). The Hymnbook. p. 143.
2 Prayer, p. 36.
3 Culture and Value, p. 52. Grifo do autor.
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índice de nomes e assuntos

A e a expressão certo homem (anthro-


pos), 119; e a palavra prudência e as
Abba, 33 palavras de sabedoria, 119; e a pará-
amigo, parábola do, 55, 61-62, 65-66; bola do homem invisível, 121; e a pa-
ambiente/circunstâncias, 57, 64; e a rábola dos irmãos perdidos, 111-112;
oração aprendida no relacionamento e a visitação da graça, 117; texto/his-
pessoal, 56, 59; e a oração/linguagem tória, 111-115
de oração (ensinando a orar a um Auden, W. H 300 ,275 ‫״‬
Deus pessoal), 57; e a oração/lin-
guagem de oração (ensinando a orar
B
a um Deus Pessoal, 63; e a oração- Bailey, Kenneth, 115
modelo (Oração do Senhor), 59, 61, Bailey, Kenneth E., 298, 303
63; e a oração pessoal, 61, 135, 152; Balthasar, Hans Urs von, 263
e a oração pessoal, 62; e a parábola da Barrabás, 265
viúva, 136; e o Deus pessoal, 57, 59; Barr, James, 188, 299, 303
e o ensino, 60; e o pão, 55, 62-63; batismo, sacramento do, 98, 148, 245
história do esterco, 80-81,85; os ter- Bellow, Saul, 85, 303
mos Pai e amigo, 61-62; substantivos beneditina, hospitalidade, 96
Borgmann, Albert, 299
vocativos, 61; texto/história, 55, 57,
Brown, Raymond, 279
62; verbos no imperativo, 52
Bruner, F. Dale, 300
angelismo, 198-199
Buber, Martin, 239
apocalíptica, linguagem, 143-144 Buechner, Frederick, 269, 300
arrependimento: o imperativo inaugural Bultmann, Rudolf, 111, 303
de Jesus (para se arrepender), 122, Byrnne, Tony, 71
129-131; e a parábola do homem in-
visível (Lázaro e o rico), 129-130; e a c
ressurreição, 122, 130
Caifás, 36, 85, 169, 255, 265, 270
assírios, reis, 82 C a r ta s do in fern o (Lewis), 119
astuto, a parábola do, 111, 115; a histó- Caussade, Jean-Pierre de, 272
ria inacabada/o fim que está faltando, céu: e a oração do Senhor, 204-205; a
113; a palavra prudência e as palavras oração e a vida no reino dos céus,
de sabedoria, 119; Bailey reimagina 216-218
a, 115-116; como uma parábola des- Chantal, Jeane de, 293
considerada e incompreendida, 111; confissão coletiva de pecado, 99
308 A LINGUAGEM DE DEUS

construtor de um celeiro, parábola do, Dillard, Annie, 72, 304


27, 67, 71, 74; ambiente/contexto, discípulos de Jesus: sendo preparados
67, 71, 77; e a história do esterco, para a morte de Jesus, 236; a Última
77; e o pecado da cobiça/ganância, Ceia e o lava-pés, 46, 225, 231-233;
73-74, 76; e os comentários de Jesus e a oração do Getsémani, 251, 253;
sobre as implicações da, 75; texto/ e a Oração do Senhor (a oração-mo-
história, 70-71 delo), 59, 61; e as orações de Jesus,
contador de história. V. tb. parábolas de 58, 236, 240, 248; sendo preparados
Jesus, 147 para viver após a crucificação e após
conversa à mesa, 89-96; as refeições do a ressurreição, 23
sábado e os fariseus, 89-96; e a hos- dívidas, 63, 111, 201-203, 205, 207,
pitalidade/falta de hospitalidade, 89- 210, 256
90, 94; testo/história, 89-90
Cowper, William, 179 E
C redo apostólico, 260
Elias, o Tesbita, 38, 87, 282
criação de Deus, 11,55, 77, 91,95,140, Eliot, T. S., 13, 253
153, 171, 196, 198-201, 226, 239, ensino de Jesus, 18, 20-21; e a comu-
245, 258, 277, 283-284, 287 nidade cristã contemporânea, 21; e
criação em Gênesis, a história da: e a a grande tradição do ensino, 21; e
chegada do pecado e do mal, 277; as as nossas idéias sobre o ensino, 60;
palavras de Jesus proferidas na cruz ensinando-nos a orar, 68, 183, 252;
(“Está consumado”), 277; o verbo e o evangelho de Mateus (os cinco
“concluir", 277 grandes discursos), 20, 23
Crossan, John Dominic, 28, 303 escuta: e o Espírito Santo, 25; e a ora-
crus, as orações de Jesus feitas na, 254- ção, 176; e a participação nas parábo-
255, 257-258; agonia física de Jesus las, 71; e as conversas espontâneas e
(“Tenho sede”), 275-276; a oração casuais, 30, 31; pregação e o ouvinte,
da criança (entregando o espírito a 17-18
Deus), 271; a oração de perdão ("Pai Espírito Santo: e os amigos/amizade,
perdoa-lhes), 265; a oração de per- 18, 31; a Reunião de Oração de João
dão ("Pai, perdoa-lhes"), 266, 268; Dezessete, 236; e a escuta, 30-31; e
correspondente à história da criação, a Narrativa da Viagem, de Lucas (as
em Gênesis (“Está consumado”), histórias de Jesus), 22-23, 30, 39; e
277-279; "Por que me abandonas- a natureza fundamentalmente santa
te?”, 254, 263; resposta à oração do de toda linguagem, 31-32; e a oração,
criminoso (“lembra-te”), 268, 270, 66, 272; e a prática da “orientação
273 espiritual", 33-35; em nossas conver-
D sas espontâneas e casuais, 30, 34
essênios, 144
Dark, David, 297, 300 esterco, história do, 79, 80-81, 86; a
desobediência, 98, 171, 202 resposta de Jesus à violência (“Pode
Dez Mandamentos, 74 derrubar!”), 81, 84; contexto (hosti-
d ia sk o rp id zõ , 113 lidade samaritana), 85-86; e a oração
Dickinson, Emily, 304 de Jesus na cruz (“Pai, perdoa-lhes”),
ÍNDICE DE NOMES E ASSUNTOS 309

86; em contraste com outras parábo- Herodes Antipas, 215, 217


las, 81, 86; tsxto/história, 79 Herodes, o Grande, 215
E u sebeia e o pecado da eusebigenia, 101 hipocrisia, 20, 153-157
Evágrio, o Solitário, 144 homem invisível, parábola do (Lázaro
e o rico), 121, 124-125; arrepen-
F dimento, 121; e a parábola de João
fariseus: a hostilidade de Jesus desperta- sobre a ressurreição de Lázaro, 129;
da entre os, 89-90; a parábola dos pe- e a visitação da graça, 121; elo com
cadores (o falso fariseu), 151; como a história dos Irmãos Perdidos/histó-
“murmuradores”, 105, 108-109; e a ria do tratante, 129; e os imperativos
conversa à mesa, 91; e a hipocrisia, inaugurais de Jesus, 129, 130-132; e
156; e a parábola dos irmãos perdi- os imperativos unaugurais de Jesus,
dos, 101, 103, 105, 107; e as refei- 131; e os pobres/enfermos como in-
ções do Sábado, 90-92; e o pecado visíveis, 126; frase "certo homem”
da justiça própria, 107-109; e o reino (a n trh õ p o s ), 121; Lázaro como ho-
de Deus, 142 mem invisível/rico como visível, 124,
Fitzmyer, S. J., Joseph A., 298, 304 126, 129; ordem para se arrepender,
122,126, 130, 131; recontando o an-
G tigo conto popular egípcio, 128-129;
ganância, pecado da: hoje em dia, 68; e a tema da ressurreição, 129-130; tema
parábola do construtor de um celei- do arrependimento, 122; testo/his-
ro, 70,-71, 74; e o amor ao próximo, tória, 122; texto/história, 123
74 Hopkins, Gerard Manley, 147
George Smith, Adam, 83 hospitalidade: beneditinas, 96; a Narra-
Getsêmani, a oração do, 14, 181, 194, tiva da Viagem, de Lucas, e as três
251, 253-256; ambiente/hora, 254; histórias da hospitalidade, 89; e a hu-
"seja feita a tua vontade”, 251 mildade, 94; e o Sábado, 89, 94; pa-
glória: e a morte, 227; a oração de Je- rábola da conversa à mesa, 89, 95-96
sus na expectativa do fim ("glorifica
o teu nome”), 229, 230; raízes na
I
morte e no sepultamento, 227; rede- ia tro g en ia (enfermidade), 97-98, 100-
finindo, 228 101
gnosticismo, 301 Illich, Ivan, 98, 304
Green, Joel, 304 imperativos de Jesus, 129; chamado aos
Green, Julian, 212 pobres, 126; inaugurais, 126; Oração
Greeven, Heinrich, 51 do Senhor, 255-256; para o arrepen-
grego, 121, 138, 278, 297 dimento, 129, 130, 132
Gunton, Colin E., 300, 304 irmãos perdidos, a parábola dos, 97,
111-112; a expressão "certo homem”
(a n trh õ p o s ), 121; a história inacaba-
Hausherr, Irenee, 297 da/final que está faltando, 113; e a
Hawthorne, Nathaniel, 31 energia passiva/espera, 106; e a pará-
Heráclito, 247 bola do astuto, 111; e a parábola do
Herbert, George, 299 homem invisível, 121; e a visitação da
310 A LINGUAGEM DE DEUS

graça, 121; e o pecado da justiça pró- Josefo, 23


pria, 99-101; e os “murmuradores”, Judas, 231-234, 236, 248, 254, 265, 270
105, 108-109; os fariseus e os peritos justiça e perdão, 267
da Bíblia, 103, 105, 107-108; quatro justiça própria, pecado da, 99-101, 109;
mini-histórias, 105, 109; tema de e a parábola dos Irmãos Perdidos, 97,
estar perdido e ser encontrado, 106, 99, 100-101, 107-109; os fariseus e
108; texto/história, 101-102; verbos os peritos da Bíblia, 105, 107-108; os
no tempo presente, 104 fariseus, os peritos da Bíblia, 103
Isaías, 30, 68, 83-84, 126, 169, 216, 217
K
J Kierkegaard, Soren, 110, 294
Jeremias, Joachim, 129, 186, 188, 297 Kittel, Gerhard, 297, 304
Jerico, 50, 104, 164, 169, 233 Kumin, Maxine, 224, 227
Jerusalém, a última semana de Jesus em:
última história antes da (parábola do L
minimista), 161-165, 169, 171; a en- Lázaro, ressurreição de, 121 V tb. ho-
trada no Domingo de Ramos, 164, mem invisível, parábola do (Lázaro e
224; e a apresentação do "fim dos o rico)
tempos”, 164, 171; e a história do es- Lewis, C. S., 119
terco, 85-86; e as orações da Paixão, linguagem: apocalíptica, 143, 144; a na-
253 V. tb. morte de Jesus; evangelho tureza fundamentalmente santa da,
de João, 224, 226; evangelho de Lu- 32; a revelação, 19; atenção vigilan-
cas, 22; Jesus identificado como rei, te à, 119; como dádiva de Deus, 17;
164-165, 169, 224; o desfile inaugu- como sagrada, 284-285; descobrindo
ral, 169 a linguagem comum da Bíblia, 287; a
Jesus, caminho de, 59, 135, 171, 255, "orientação espiritual” e a atenção à,
261 34; e a história da criação em Gêne-
João Batista: batismo de Jesus, 216; a sis, 277; e a informação, 18; e a pre-
oração de ação de graças de Jesus é gação de Jesus, 18-21, 277; e a reve-
mal compreendida, 215, 217; e a tra- lação, 22, 26; e Jesus como a Palavra
dição da grande pregação, 19 que se tornou carne, 79; e o ensino
João da Cruz, 110 de Jesus, 18, 20-21; e os samarita-
João, evangelho de: as declarações "Eu nos, 28-29, 39; escritores que horam
sou”, 223; a Reunião de Oração de o sagrado inerente na, 291-294 V. tb.
João Dezessete (a conversa), 232, parábolas de Jesus; oração; orações
234-235; a Reunião de Oração de de Jesus; informal e conversacional,
João Dezessete (a oração da Ultima 18, 21-22, 26, 29, 31, 33, 36, 281;
Ceia), 236, 241-243, 247-249; e a maus usos da, 119, 283
ressurreição de Lázaro, 129; história linguagem da oração: como conversa
da morte de Jesus em Jerusalém (en- com Deus, 286; a oração-modelo,
trada no Domingo de Ramos), 224; 59, 61; aprendendo a orar, 57-61,65,
história da última semana da vida de 229, 287; as oracnoes estabelecidas,
Jesus (paralelo com Gênesis), 277; 175; as orações estabelecidas, 175-
ocorrências de em nome, 281-282 178, 181, 285; como a primeira lin-
ÍNDICE DE NOMES E ASSUNTOS 311

guagem, 177; como ato interior, 152, 136; nas palavras/na linguagem, 286
234; como linguagem pessoal, 76, Marcos: evangelho de: e o sermão inau-
239; e a escuta, 175; e a hipocrisia, gural de Jesus e o chamado ao arre-
153, 155,157-158; e a hora do reino, pendimento, 126; a Narrativa da Via-
141; e a impessoalização de Deus, gem, de Lucas, em comparação com
62-63, 196, 286; e a liberdade, 246; o, 23; e a pregação de Jesus, 18
e a morte de Deus (orando com Je- Maria, Anunciação de, 194
sus na cruz), 254; e a morte de Jesus Mateus, evangelho de: o ensino de Je-
(orando com Jesus na cruz), 254; e a sus (os cinco grandes discursos), 20;
oração de criança de Jesus, 271-272; a Narrativa da Viagem, de Lucas, em
e a oração de Jesus por perdão, 266, comparação com o, 23; e a oração-
268; e a orientação espiritual, 37; e a -modelo de Lucas, 61, 63; e a prática
Palavra de Deus, 282-285; e a pará- da oração, 183; Sermão do Monte,
bola da viúva, 135, 143; e a parábola 20, 183
do amigo, 55, 61; e a parábola dos metáforas: as declarações "Eu sou" do
pecadores, 147, 148, 150-151, 154; evangelho de João, 223; e a oração
e a pessoa em particular, 240; e a de Jesus, 175, 223, 263; entendí-
vida de fé, 138; e a vida no reino dos mento das, 223; o termo "Pai”, 62,
céus, 183; em nome de Jesus, 281- 184, 233; Samada e os samaritanos,
282, 287, 290; e o Deus pessoal, 55- 28, 161
56, 59; e o Espírito Santo, 66, 285; meta-história, 127
e o perigo, 183; e o reino de Deus, Metz, Johannes Baptist, 66, 297, 305
142-144, 190-191, 193-194, 197; minimalista, parábola do, 161-169; a
e o silêncio de Deus, 138; e os sal- alusão Raabe/Zaqueu, 164; a questão
mos, 84, 135, 138, 140, 178; falsa/ do salmo 137 (como falamos sobre
ausente, 177; lugares da, 149, 151, Deus?), 161; como última história
153-154; muito pouco na história antes de Jesus entrar em Jerusalém,
162-165, 169; e a nao-participaç-
bíblica sobre a, 195; oração-modelo,
nao/desobediência, 171; e o reino
63; persistente, 136-138, 144, 145;
de Deus, 162, 164, 169; tema cen-
razões por que continuamos orando
trai (Deus nos quer, não queremos
e não desanimamos, 136-138, 141,
Deus), 165; texto/história, 162, 164
144; silêncio e a linguagem da ora-
morte de Jesus: e a resposta à oração do
ção, 176
criminoso (“lembra-te”), 268, 270;
Lucas, evangelho de: em comparação
como morte sacrificial, 273; cor-
com Mateus e Marcos, 23; e a última
responde à história da criação, em
semana de Jesus em Jerusalém, 23,
Gênesis ("Está consumado”), 277-
162; material original, 23; referên-
279; e a agonia física de Jesus (“Te-
cias a Jesus na oração, 180; vocabu-
nho sede”), 275, 276; e a conclusão
lário, 104 V. tb. Narrativa da Viagem, da obra de salvação, 277; e a glória
de Lucas (histórias de Jesus) ("glorifica o teu nome”), 226-227; e
a intersecção do Gólgota, 270-271; e
M
a oração de criança, 271; e a oração
mal: no Triângulo Evangélico, 218; a pa- de perdão, 266, 268; e as sete "últi-
rábola da viúva e do juiz perverso, mas palavras da cruz”, 259-279; ora-
312 A LINGUAGEM DE DEUS

ção de “por que me abandonaste?”, "em nome” no evangelho de João,


263; orações feitas na expectativa da, 281-282
223, 263; orando com Jesus na cruz, Norris, Kathleen, 96
262; preparando os discípulos para a,
223; tornando outros participantes O
na, 274 obediência, 20, 84, 116, 132, 143, 151,
“murmurar” (diegongudzon ), 104 171, 193, 196, 220, 232, 253, 255-
257, 286
N
oração de ação de graças de Jesus, 181,
Nanzianzo, Gregorio de, 247 215, 219; a incompreensão de João
Narrativa da Viagem, de Lucas (histórias Batista, 219-220; a indiferença do
de Jesus), 22, 26-27, 30, 32, 37, 39, povo à mensagem de Jesus, 219-220
161; a história do esterco, 77-86; a oração de criança (“Pai, nas tuas mãos
viúva, 135-145; características da entrego o meu espírito”), 271
história, 162; conversa à mesa, 89, Oração do Senhor, 58-59, 204-205,
94-96; e a hostilidade samaritana, 212-213; as primeiras três petições,
78-80; e a linguagem de Jesus com 198; como oração-modelo dada aos
os não crentes, 26, 162; e a prática discípulos, 59, 61, 63; conjunto de
da “orientação espiritual”, 32-35, 37; seis petições, 187, 190, 196-198;
e as áreas “entre" a vida e o ministé- desmascarando e identificando nos-
rio de Jesus, 19, 23, 25; e as cidades sos pecados pelo nome, 202; e nos-
galileias (o "Triângulo Evangélico”), sa condição de necessitados, 191;
30; e o Espírito Santo em nossas e “nosso pão cotidiano”, 197-198;
conversas, 30-36; e Samaria/samari- ensinando-nos a orar/linguagem da
taños, 23, 25-26, 30, 42, 78-79; e o oração, 57-58, 62, 176, 180; e o céu,
incidente com os Zebedeus, 37-39, 187, 197; e o nome de Deus (“san-
78 V tb. nomes de histórias individu- tificado seja o teu nome”), 187-189;
ais; parábolas de Jesus; e os seguido- e os perigos de impessoalizar Deus,
res de Jesus, 41-42, 126; linguagem 185; imperativos da, 255-256; mu-
conversacional e informal, 18, 21-22, dança de pronomes, 198; "não nos
26; o Amigo, 55-66; o astuto, 111- deixe cair em tentação”, 205-206,
120; o construtor de um celeiro, 67- 211, 256; o termo/metáfora “Pai”,
75; o homem invisível (Lázaro e o 184-185; “Pai nosso que estás nos
rico), 129-130; o material original de céus”, 184, 187; "perdoa as nossas
Lucas, 23; o minimalista, 161-171; dívidas”, 201, 205; "seja feita a tua
o próximo, 41-52; os irmãos perdi- vontade” (a vontade de Deus), 194,
dos, 97-101; os pecadores, 147-158; 196; "venha o teu reino" (o reino de
tema de hospitalidade/quatro histó- Deus), 190-193
rias de hospitalidade, 89 orações de Jesus: e a expectativa do fim/
Nicodemos, 31, 126 sua morte, 223-230, 252-253; a ago-
nomes, 282; a oração de Jesus na expec- nia física de Jesus (“Tenho sede”),
tativa do fim ("glorifica o teu nome”), 275-276; a indiferença das pessoas
223, 226; e a Oração do Senhor e o diante da mensagem de Jesus, 217; a
nome de Deus, 197; ocorrências de linguagem de oração, 181, 239, 272;
ÍNDICE DE NOMES E ASSUNTOS 313

a oração de ação de graças, 215, 219- P


220; a oração de criança, 265, 271;
a oração do Getsêmani/a agonia do Pai: e a oração de criança de Jesus, 271;
Getsêmani, 186, 251-257; a oração como termo/metáfora, 62, 175-176,
do perdão (“Pai, perdoa-lhes”), 265, 223; e a oração de perdão de Jesus
266, 268; a Oração do Senhor (Jesus (“Pai, perdoa-lhes”), 86, 265-266,
ora conosco), 184, 187, 193, 197, 268; e a Oração do Senhor, 212-213;
202-206, 212; a Reunião de Oração e as orações de Jesus, 61, 176, 181,
de João Dezessete (Última Ceia), 226, 266, 271, 278
236, 242-243, 247-248; as orações pão, 12, 27, 55, 62-66, 76, 79, 88, 104,
da Paixão, 253; as seis orações clás- 136, 148, 181, 197-199, 201, 203,
207, 219, 223-224, 256
sicas estabelecidas, 175, 181, 285;
parábolas de Jesus, 27-28, 36-37; como
as sete últimas palavras da cruz 259-
ato de contar histórias para ilustrar
279; e a conversa antes da oração
grandes verdades, 147-148; como
da Última Ceia, 231, 254; e a glória
exemplo de conversa não premedita-
(“glorifica o teu nome”), 226-227,
da, 36; como exemplos de conversa
229-230; e a impaciência/oposição
não premeditada, 35; como lingua-
dos cristãos, 243; e a indiferença
gem da preferência de Jesus, 28-29;
das pessoas diante da mensagem de
definição, 27, 77, 80; e a ação de
Jesus, 218-219; e a metáfora, 175-
Deus, 80; e a participação do ouvin-
176, 223-224; e a Trindade, 244, te, 71; e as características da histó-
246-247; e a vida de Jesus, 225-226; ria, 27, 148; e as meta-histórias, 127;
ensinando-nos a orar, 57-59, 62, 66, e o discurso meramente religioso,
180; e o céu, 196-197; e o pecado 29; o assunto (sem significado reli-
(nossas tentações para o), 229, 255; gioso aparente), 27 V. tb. nomes de
e os discípulos, 46, 49, 223, 231- histórias individuais, 27
233, 235, 254; orações intercessoras p a ra k a le i, 108
por nós, 179-181, 231, 236, 242, Paulo: sobre a morte de Jesus como algo
244, 246-247; orando com Jesus na que uniu as pessoas divididas, 289; as
cruz, 262; orando em nome de Jesus, lições extraídas das orações de Jesus
281-290; o termo/metáfora "Pai”, na cruz, 272; linguagem conversacio-
61, 184-185, 233, 263; “Por que me nal e informal, 46; sobre as dimen-
abandonaste?”, 263; referências nos sões eternas da morte de Jesus, 261;
Evangelho à vida de oração de Jesus, sobre fazer as orações de Jesus feitas
180; resposta de Jesus à oração do na cruz, 262; sobre o reino de Deus,
criminoso ("lembra-te"), 268, 270; 190; sobre os primeiros seguidores
"seja feita a tua vontade”, 194, 196, de Jesus, 126
255; “venha o teu reino”, 190193‫־‬ pecado: confissões públicas de, 99;
orientação espiritual, 32-33; definição, desmascarando e identificado pelo
33; e a atenção à linguagem, 33, 37; e nome, 202-203, 208; e a justiça
a oração, 33; encontrando um orien- própria, 100-101; e a oração de Je-
tador espiritual, 34; e o Espírito San- sus por perdão feita na cruz, 265; e
to em nossas conversas, 35 a Oração do Senhor, 202, 204-205;
Orígenes, 129 e o isolamento/separação em relação
a Deus, 245; eusebigenia, 100-101, e a vida no reino dos céus, 183; e o
105, 109; nossas tentações para o, fariseus, 142; e os outros reinos, 192;
209-211 o tempo do reino, 141; Paulo sobre
perdão do, 202, 203, 204, 205, 265 o, 193
pecadores, parábolas dos, 147; ambiente ressurreição: participação na ressur-
(o lugar da oração), 149, 151, 154; reição de Jesus, 268; e a oração no
e a oração, 149, 153, 155-159; e o túmulo vazio, 262; e o arrependí-
pecado da hipocrisia, 153-154, 156- mento, 122, 130
157; os dois pecadores (o fariseu e revelação de Deus, 11, 17-19, 22, 26,
o falso cobrador de impostos, 149- 31, 36, 55-56, 65, 119, 127, 135,
151, 154; texto/história, 148 140
perdão: a Oração do Senhor e o perdão Rilke, Rainer Maria, 130
dos pecados, 201-202, 204; a ora- Rosenstock-Huessy, Eugen, 84, 292
ção da cruz (“Pai, perdoa-lhes”), 86,
265-266, 268
s
pobreza: em espirito, 65-66; e as rique- Sábado, 89-96; as refeições de Sábado,
zas, 76 89, 92, 95; e a hospitalidade/falta de
pregação de Jesus, 18-22, 28, 30, 32-33, hospitalidade, 91, 94-96; e o ensino
266; características definidoras, 18; e de Jesus sobre a humildade/hospita-
a comunidade cristã contemporânea, lidade, 89, 94; e os fariseus, 91-92,
21; e a grande tradição da pregação, 94
32; e a Narrativa de Viagem, de Lu- sabedoria, palavras de, 119-120
cas, 23; e o evangelho de Marcos, 18, Sales, Francisco de, 293
22; e o ouvinte, 19 salmos: como orações clássicas estabe-
Price, Reynolds, 294, 295, 305 lecidas, 178; a questão do salmo 137
próximo, parábola do, 41, 77; ambiente (como falamos sobre Deus?), 161; e
e público, 45, 47; a questão do peri- o amor leal de Deus, 84; orações e o
to examinador (definindo próximo), silêncio de Deus, 138, 140
48-49, 51; cinco segmentos da con- salvação: a consumação da obra de sal-
versa, 46-47, 51; conselho sobre her- vação de Jesus, 271, 273, 277-278;
dar a vida eterna, 46, 51; e a história como mistério, 251
do esterco, 77; e a lei de Deus (amor Samaria e os samaritanos: hostilidade
ao próximo), 43, 47, 51; inversão de prevista de, 42, 78-79; a parábo-
posição (Jesus e o examinador), 47; o la do próximo (o bom samaritano),
bom samaritano/próximo, 42; texto/ 49; como metáfora para não crentes,
história, 44-45, 49, 50-51 26, 161; como pessoas indiferentes
“prudencia”, 118 à linguagem de Deus, 28; contexto
para a história do esterco, 77-78, 86;
R e a Narrativa de Viagem, de Lucas,
Reino de Deus: e a sabedoria de Deus, 25-26, 30, 39, 77-78, 89; historia
191-192; e a linguagem apocalíptica de, 22, 78-79, 85; invasão assíria de,
de Jesus, 143; e a oração, 141-142, 82-83; metáfora geográfica de, 161;
144, 184, 190, 194, 197; e a pará- relacionamento entre judeus e, 23,
bola da viúva, 142; e a parábola do 28, 37
minimalista, 161-162; e as parábolas, Santo dos Santos, 288-289
191; e as preposições de Jesus, 193; Sargão II, 82
seguidores de Jesus: primeiros recrutas, u
126; a alegria exuberante dos, 43,
72; as instruções de Jesus aos, 42, Última Ceia, 46, 232-240; a oração,
72, 80; e a Narrativa da Viagem, de 235-242; conversas, 232, 234-235,
Lucas, 41, 131-132 V. tb. discípulos 239-240, 247; lava-pés, 231-233
de Jesus; e os imperativos inaugurais
de Jesus, 129, 131-132; os três se-
guidores de Jesus em sua jornada, 41 violência: e a oração de perdão feita por
S ep tu a g in ta , 104 Jesus na cruz, 266-267; a resposta de
silêncio: e a linguagem da oração, 175- Jesus à (“Pode cortar!”), 78-79; e a
176; a oração e o silêncio de Deus, linguagem, 39
138 viúva, parábola da, 135-142; a história
Si-Osíris, lenda egípcia de, e a viagem ao do juiz mau, 136-137; e a oração,
submundo, 128 136-138, 140-142, 144; e a parábo-
Sittser, Jerry, 305 la do amigo, 136; e a persistência na
sorte, 9, 44, 50, 65, 157 oração, 136, 142, 144; e as viúvas
Stafford, William, 292 no mundo antigo, 137; e o reino de
Deus, 142; texto/história, 136
Steiner, George, 18, 297
von Balthasar, Hans Urs, 303
τ Vonnegut, Kurt, 204

Teilhard de Chardin, 298, 303 w


tentação de Jesus (o Diabo no deserto),
45, 69, 207 Waltke, Bruce, 306
Thomson, James G. S. S., 306 Whyte, Alexander, 212
Thornton, Martin, 297, 306 Wiesel, Elie, 47
Williams, Charles, 212, 245
Tiglate-Pileser III, 82
Wittgenstein, Ludwig, 290, 301
Triángulo Evangélico: o mal no, 218; a
indiferença das pessoas diante da z
mensagem de Jesus, 217-220; e a
Narrativa da Viagem, de Lucas, 30 Zebedeus: repreensão de Jesus aos, 37-39,
Trindade: e a oração de Jesus por nós, 78; e a narrativa do Evangelho de Lu-
205, 240-241; e o pessoal, 203; o sa- cas, 22, 27, 162; e as diferenças e pre-
cramento do batismo, 245 conceitos samaritanos/judeus, 37, 78
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Diagramação: Triall Composição Editorial Ltda


Revisão: Josemar de Souza Pinto
Fonte: Revival 565 BT
Gráfica: Imprensa da Fé
Papel: Lux Cream 70 g/m 2 (miolo)
C artão 250 g/m 2 (capa)

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