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A LINGUAGEM DE DEUS
MC
mundocristão
São Paulo
C opyright €> 2008 p o r Eugene H. Peterson
Publicado originalm ente p o r Alive C om m unications, Inc., C olorado Springs, EUA
Peterson, Eugene Η.
11-04678 CDD-226.06
Agradecimentos 9
Introdução 11
CAPÍTULO 2: O p r ó x im o — L u c a s 1 0 :2 5 -3 7 41
CAPÍTULO 3 : O a m ig o — L u c a s 1 1 :1 - 1 3 55
CAPÍTULO 4 : O c o n s t r u t o r d e u m c e le ir o — L u c a s 1 2 :1 3 - 2 1 67
CAPÍTULO 5: E s te r c o — L u c a s 1 3 :6 -9 77
CAPÍTULO 6 : C o n v e rs a in f o rm a l — L u c a s 1 4 :1 -1 4 87
CAPÍTULO 7 : O s irm ã o s p e r d id o s — L u c a s 15 97
CAPÍTULO 8 : O a s t u t o — L u c a s 1 6 :1 -9 111
CAPÍTULO 9 : O h o m e m i n v is ív e l — L u c a s 1 6 :1 9 - 3 1 121
CAPÍTULO 1 0 : A v iú v a — L u c a s 1 8 :1 - 8 135
CAPÍTULO 1 1 : O s p e c a d o r e s — L u c a s 1 8 :9 -1 4 147
CAPÍTULO 1 4 : J e s u s o ra c o n o s c o — M a te u s 6 :9 -1 3 183
CAPÍTULO 1 6 : J e s u s o r a n a e x p e c t a ti v a d o f im — J o ã o 1 2 :2 7 - 2 8 223
CAPÍTULO 1 7 : Je s u s o ra p o r n ó s — J o ã o 17 231
CAPÍTULO 1 8 : J e s u s o r a a a g o n ia d o G e t s ê m a n i — M a te u s 2 6 :3 9 - 4 2 251
Notas 297
Bibliografia 303
índice de nomes e assuntos 307
Agradecimentos
Tive sorte: aprendí a língua da fé ao mesmo tem po que aprendí a língua in-
glesa. A escola em que aprendí a falar foi minha família - meus pais, minha
irmã, Karen, e meu irmão, Kenneth - , os melhores professores e os colegas
de classe mais afáveis da escola.
Este livro teve seu início nas Palestras J. Henderson, em 1992, no Seminá-
rio Teológico de Pittsburgh. Desenvolveu-se ainda mais nos cursos de Língua,
Escrituras e Oração na Regent College, em Vancouver, BC, de 1993 a 1998.
Foi testado e amadurecido em conversas com pastores, em inúmeros retiros
e conferências.
Uma sucessão de guias espirituais num período de quinze anos, em mi-
nhas andanças pelo país, conferiu às minhas palavras frescor, honestidade e
pessoalidade: Reuben Lance, em Montana, pastor Ian Wilson, em Baltimore,
irmã Constance FitzGerald, carmelita da O .C .D . [Ordem dos Carmelitas
Descalços], em Baltimore, pastor Alan Reynolds, no Canadá. Jonathan Stine
é um amigo fiel que incentiva a reverência nos mínimos detalhes.
Perto do tempo em que eu pensava saber 0 que eu precisava saber e podería
assim partir para outras coisas, meus netos começaram a nascer a intervalos
de mais ou menos dois anos e com regularidade restauravam um senso de
maravilhamento pelo milagre da fala. O livro é dedicado a eles.
Introdução
* * *
Minha preocupação é que usemos o dom da fala dado por Deus em conso-
nância com o D eus que fala. Jesus é a pessoa mais importante com a qual
tem os de lidar nessa questão. Jesus acima de tudo. Jesus, a Palavra que se fez
carne. Jesus, o que “falou, e tudo se fez” (SI 33:9), mesmo “desde a criação
do mundo” (Mt 13:35). Jesus, que conta histórias nas estradas e em torno das
mesas de jantar na Galileia e ao viajar por Samaria. Jesus, que ora no jardim e
na cruz em Jerusalém. Jesus é a palavra de Deus para nós em uma variedade
de ambientes e circunstâncias. Ele participa de conversas conosco na língua
que nos foi dada nos Evangelhos. Essas conversas são continuadas conosco
pelo Espírito Santo exatamente como ele prometeu: "... quando o Espírito
da verdade vier, ele os guiará a toda a verdade [...] receberá do que é meu e
o tornará conhecido a vocês” (Jo 1 6 :1 3 1 4 ) ־. Ele é também aquele que ora a
seu e nosso Pai: “pois vive sempre para interceder por [nós]” (Hb 7:25).
12 A LINGUAGEM DE DEUS
Quero derrubar as cercas que erigimos entre a linguagem que trata com
Deus e a linguagem que trata com as pessoas ao nosso redor. E, no final das
contas, a mesma linguagem. O mesmo Deus a quem nos dirigimos em oração e
a quem proclamamos nos sermões está também profundamente, eternamente
envolvido nos homens e nas mulheres com quem travamos conversas, quer ao
acaso, quer intencionalmente. Mas nem sempre de modo óbvio. Nem sempre
as palavras de D eus são prefaciadas com “assim diz o SENHOR”. E preciso
tem po e atenção para estabelecer conexões entre o dito e não dito, o direto
e o indireto, o expresso francamente e o declarado em rodeios. Há muitas
ocasiões em que a abordagem imperiosa e direta não honra nem ao nosso
Deus, nem ao nosso próximo. Diferentemente dos fatos brutalmente francos,
14 A LINGUAGEM DE DEUS
* * *
E assim Jesus é o texto que eu uso para cultivar uma linguagem que honra a
santidade inerente nas palavras: enraizada em Deus, incorporada em Cristo,
vivificada no Espírito. A primeira parte da conversa, "Jesus em suas histórias”,
ficará escutando enquanto Jesus fala com pessoas de sua época, percorrendo
campos de trigo, fazendo refeições, navegando em um lago, respondendo a
perguntas, lidando com hostilidades. A segunda parte da conversa, "Jesus em
sua orações”, nos permitirá uma imersão em como Jesus orou ao Pai: orações
na Galileia, orações em Jerusalém, orações no Getsêmani, orações no Gólgota.
Enquanto escutamos Jesus falando e depois participamos com Jesus enquanto
ora, espero que juntos, escritor e leitor, desenvolvamos um discernimento
capaz de rechaçar todas as formas de jargão religioso impessoalizante e assim
adquiramos um gosto pela linguagem sempre pessoal que Deus emprega, com
perícia nessa linguagem, mesmo em nossas conversas e trocas de amenidades,
talvez especialmente nessa troca de amenidades, para criar, salvar e abençoar
a todos nós.
1
Jesus em suas histórias
a>
03
CL
capítulo 1
Jesus em Samaria
Lucas 9:51— 19:27
É uma tremenda ironia que Jesus, cujas palavras criam e formam nossa vida,
jamais tenha escrito uma palavra, pelo menos não uma palavra que jamais
tenha sido preservada. Aquelas palavras que ele escreveu na areia em Jerusa-
lém, usando o dedo como lápis, desapareceram no aguaceiro seguinte. Não
obstante, conhecem os a Jesus com o hom em das palavras. Ele é, afinal de
contas, a Palavra tornada carne.
Mas ele não deixou nada escrito. Ele falou. Jamais teve um editor, jamais
deu uma noite de autógrafos, jamais mergulhou a pena num frasco de tinta.
A linguagem para Jesus resumia-se exclusivamente a sua voz: “falou, e tudo
se fez( ״SI 33:9).
Mas sem dúvida alguma suas palavras foram, naturalmente, escritas — e
publicadas. Talvez as palavras de nenhuma pessoa foram reproduzidas em
forma impressa em tantos manuscritos e livros impressos quanto as palavras
de Jesus. Ainda assim, é importante manter em m ente essa qualidade oral
original, essa voz viva de Jesus, as palavras faladas que saíram de sua boca
e entraram na vida de homens e mulheres por m eio de ouvidos abertos e
corações cheios de fé. As palavras escritas, por mais importantes que sejam,
são um passo gigantesco para longe da voz que fala. Deve-se fazer um esforço
resoluto para ouvir a voz que fala e para escutá-la, não apenas olhar para ela
e estudar a palavra escrita.1
* * *
A língua é antes de mais nada um meio de revelação, tanto para Deus quanto
para nós. Usando palavras, Deus revela-se a nós. Usando palavras, nós nos
revelamos a Deus e uns aos outros. Por meio da linguagem, todo o ciclo de
falar e escutar, tanto Deus quanto seus homens e mulheres criados pela Palavra
são capazes de revelar vastos interiores antes inacessíveis a nós.
18 A LINGUAGEM DE DEUS
Temos ai algo importante. Importante para nossa reflexão, uma vez que
não é óbvio. E importante para reconsiderarmos continuam ente, urna vez
que nossa vasta industria da comunicação trata a linguagem acima de tudo
como informação ou estímulo, não com o revelação. Muitas vezes, quando
a palavra “D eus” é usada em nossa sociedade, é reduzida a uma informação,
impessoalizada em mera referência ou rebaixada a blasfêmia. George Steiner,
um de nossos autores mais perceptivos dentre os que escreveram sobre a lin-
guagem, sustenta, de forma poderosa, que transmitir informação não passa de
uma função marginal e altamente especializada da linguagem.2 Mas a lingua-
gem que aprendemos na companhia de pais, irmãos e amigos tem sua origem
no Deus revelador. Tudo o que falamos e escutamos ocorre num mundo de
linguagem que é formado e sustentado pelo falar e pelo escutar de Deus. As
palavras que Deus usa para criar, dar nomes, abençoar e ordenar em Gênesis
são as mesmas palavras que ouvimos Jesus usando para criar, dar nomes, curar,
abençoar e ordenar nos Evangelhos. Jesus fala, e ouvimos Deus falar.
***
de Israel. Esse ensino também continua na vida da igreja à medida que nossos
pastores e teólogos nos treinam no cultivo de uma obediência inteligente e fiel
enquanto lidamos com política, negocios, assuntos de família, fracassos e
sofrimentos, levando vida íntegra e integrada. O ensino faz ressurgir palavras
mortas para que vivam outra vez. Ocupa um grande espaço na forma em que
usamos a linguagem nesta nossa vida como seguidores de Jesus.
A pregação e o ensino são usos destacados da linguagem entre as pessoas
que falam e testificam, que oram e dão orientação na comunidade cristã.
Norm alm ente separamos homens e mulheres e os treinamos em escolas e
igrejas para serem pregadores e professores. Há muito que aprender. Há muito
de que se resguardar. Precisamos de pregadores e mestres que nos mante-
nham focados em Deus por meio de Cristo e nos alertem para as idolatrias
sedutoras que nos rodeiam. Na maioria dos casos, estamos bem servidos de
pregadores e mestres que compreendem o que está acontecendo no reino,
que não se desviarão facilm ente daquela única coisa “necessária” e que se
aplicam à fidelidade e à renovação de nossa mente. A pregação e o ensino são
bastante bem definidos quanto ao modo e conteúdo e ocorrem em geral em
contextos públicos.
Mas há um terceiro tipo de linguagem da qual todos participamos, inde-
pendentemente de nosso papel na comunidade, quaisquer que sejam nossas
aptidões e capacidades. Já defini essa linguagem acima com o “intercâmbio
conversacional [informal que se dá] enquanto faz suas refeições na casa de
alguém ou com amigos, percorrendo campos ou as margens de um lago ou
respondendo a várias interrupções e perguntas enquanto vai a um lugar ou
outro”. Em qualquer contagem semanal de nosso uso da linguagem, esse tipo
de discurso excede de longe qualquer coisa que falemos ou escutemos que
pudesse ser designada pregação ou ensino. Quando Jesus não estava pregando e
quando não estava ensinando, ele falava com homens e mulheres com os quais
convivia a respeito do que estava acontecendo naquele mom ento — pessoas,
acontecimentos, perguntas, o que quer que fosse — usando as circunstâncias
da vida deles como seu texto. Muito à semelhança de como fazemos. A pre-
gação inicia-se com Deus: A palavra de Deus, a ação de Deus, a presença
de Deus. O ensino amplia o que está sendo proclamado, instruindo-nos nas
22 A LINGUAGEM DE DEUS
***
escolheu acima de todas as outras para conversar com essas pessoas, histórias
que não usavam o nome de Deus, histórias que não pareciam ser "religiosas”.
Quando estamos na igreja, ou num momento e num lugar religiosamente defi-
nidos, esperamos ouvir sobre Deus. Mas, fora desses momentos e lugares, não é
o que esperamos. Aliás, não queremos. Se quiséssemos lidar com Deus, iríamos
à casa de Deus. As pessoas que encontramos “na estrada” e “entre um domingo
e outro” esperam lidar com as coisas a sua própria maneira, mantendo Deus
enquanto isso no lugar ao qual ele pertence. Assim, mantenha Jesus no lugar
dele — na Galileia e em Jerusalém. “Aqui é Samaria! Estou completamente
ocupado com os assuntos da família e com meus negócios, com a sociedade e
com a política. Eu estou no controle aqui. Vou fazer tudo do meu jeito.”
Os samaritanos, naquela época e agora, acumularam séculos de uma indi-
ferença bem desenvolvida, se não uma aversão indisfarçada à linguagem de
Deus — pelo menos ao tipo usado por pessoas da sinagoga e da igreja. Eles
têm idéias próprias sobre Deus e sobre como tocar a vida e nada a não ser um
desprezo frio pelas opiniões messiânicas dos de fora. Os samaritanos sabem
se defender muito bem da intromissão de uma linguagem de Deus em seus
assuntos, sobretudo quando procede de lábios judeus (ou cristãos). Assim,
quando Jesus atravessa Samaria, ele limita consideravelmente seu uso de uma
linguagem explícita de Deus. A pregação e o ensino não são eliminados, mas
com certeza são afastados para as margens. Jesus circula em torno das defesas
de seus ouvintes. Ele conta parábolas. A parábola mantém a mensagem a certa
distância, retarda a compreensão, obstrui as reações prejudiciais automáticas,
desmantela os estereótipos. A parábola chega ao ouvinte de modo oblíquo,
“de viés”. O samaritano escuta, sem suspeitar de grandes coisas. E então, sem
aviso, sem que a palavra seja usada: Deus! John Dominic Crossan diz que a
parábola é um terremoto abrindo o chão aos nossos pés.5
E de grande interesse para mim que, durante todos esses vários dias em
que Jesus está andando com seus discípulos, ele escolha as parábolas acima
de qualquer outra linguagem. Sabemos que o fim está próximo: crucificação
e ressurreição. Sabemos que não há muito tem po de sobra até Jesus deixar
seus discípulos, e eles terão de dar continuidade em seu lugar. Cada passo
que eles dão por Samaria em direção a Jerusalém aumenta a urgência. Essa é
JESUS EM SAMARIA 29
a ultima vez que esses samaritanos o verão, o escutarão. Por que cargas d ’água
Jesus está contando histórias despretensiosas sobre trapaceiros e esterco? Por
que não está pregando a palavra clara de Deus, chamando os samaritanos ao
arrependimento, oferecendo a eles o dom da salvação em linguagem direta? A
medida que o fim se aproxima, sua linguagem se torna menos, não mais direta.
À medida que aumentam os riscos, sua linguagem toma-se ainda mais descon-
traída e conversacional do que de costume. Em vez de uma retórica de elevados
decibéis, exigindo uma decisão antes que seja tarde demais, ele mal mencio-
na, quando menciona, o nome de Deus, escolhendo em vez disso falar sobre
próximos e amigos, da perda de uma ovelha e das cortesias da hospitalidade.
Isso me interessa por estar em tamanho contraste com o que tão comu-
mente ocorre entre nós. Quando ficamos mais e mais cientes do que está em
jogo no ato de seguir a Jesus e das urgências que isso implica, especialmente
quando nos encontramos em território samaritano, é comum entre muitos de
nós que nos tornemos mais intensos em nossa linguagem. Por ser muito mais
clara e focada, usamos a linguagem aprendida em sermões e ensinos para dizer
a outras pessoas o que é eternamente importante. Mas a própria intensidade
da linguagem pode muito bem reduzir nossa atenção à pessoa à qual estamos
falando — a qual deixa de ser uma pessoa e passa a ser um caso. Impacientes
para transmitir nossa mensagem, impessoalizamos o que tem os a dizer em
expressões ensaiadas ou em uma fórmula programática sem consideração à
pessoa diante de quem nos encontram os. À medida que a urgência por
falar a palavra de Deus aumenta, diminuem os relacionamentos em que há
também a escuta. Acabamos com uma pilha de ossos de palavras descarnadas
— discurso meramente religioso.
* * *
ordens que já não mais se nos impõem. Quando as palavras de Jesus passam
a ser aquilo que meramente preenche os argumentos, ferramentas verbais de
manipulação, tentativas de controle, a vida se exaure delas e lá elas ficam,
uma pilha de folhas mortas no chão feita com um ancinho. Exatamente nesse
momento, o mestre deixa cair uma parábola na conversa. Tropeçamos nela,
não mais capazes de velejar pelas rotas já conhecidas das palavras. A parábola
impõe atenção, participação, envolvimento.
A Narrativa da Viagem de Lucas é uma imersão na linguagem narrativa e
parabólica característica de Jesus na estrada passando por Samaria enquanto
ele transita da Galileia, onde iniciamos a vida de seguir a Jesus, a Jerusalém,
onde encontraremos nossa maturidade e conclusão, abraçando Jesus na cruz
e abraçados por Jesus na ressurreição. Samaria para nós passa a ser uma orien-
tação no que há de comum, no cotidiano, o lugar onde os hábitos e o caráter
de um seguidor de Jesus são moldados entre pessoas que não têm nenhum
interesse em seguir a Jesus nem o incentivam de modo algum. A Narrativa
da Viagem de Lucas satura nossas imaginações com a forma em que Jesus usa
a linguagem nesse trecho inóspito da estrada entre a proclamação galileia da
presença do reino, onde tivemos nosso com eço no ato de seguir a Jesus, e a
crucificação e a ressurreição em Jerusalém que conclui a história de modo tão
decisivo e dramático.
***
influenciado por ela. Desde cedo na vida da igreja, ao lado da prática da pre-
gação e do ensino públicos tem havido a prática correspondente da orientação
espiritual. Na orientação espiritual, a linguagem usada na proclamação e no
ensino do evangelho é desenvolvida em conversas pessoais que levam a sério
a unicidade de cada pessoa e as circunstâncias reais em que cada pessoa vive.
Não adiantará amontoar as pessoas em categorias e depois as agrupar em um
de três ou quatro grupos que podem ser tratados eficientemente por meio de
uma fórmula.
A medida que amadurecemos em Cristo, nossa singularidade é acentuada,
não embotada. As orientações generalistas, por mais úteis que possam ser,
não levam em consideração os detalhes que se nos apresentam à medida que
a santidade se enraiza no lugar social e pessoal em que estamos plantados
em particular. Precisamos da atenção sábia de alguém que esteja a par das
coisas, que conheça as sutilezas do pecado e os disfarces da graça. Mais que
tudo, precisamos que nossas orações recebam essa atenção, pois a oração é a
prática por m eio da qual tudo o que somos, tudo em que acreditamos e tudo
o que fazemos é transformado na ação do Espírito que opera sua vontade nos
detalhes da nossa vida cotidiana. A oração consiste na transformação do que
fazemos em nome de Jesus, no que o Espírito Santo faz em nós à medida
que seguimos a Jesus.
A orientação espiritual é uma pessoa, de forma intencional e em espírito de
oração, imergindo-se na vida comum e informal de qualquer cristão comum.
Mas a prática em si não é nem comum, nem informal. A comunidade cristã
tem uma história de reconhecer pessoas sábias, experientes, que podem orien-
tar o restante de nós. “Pai” (abba ) e “m ãe” (amma) são as designações mais
largamente empregadas. As qualificações para realizar esse trabalho não são
formais, mas há um consenso na igreja de que as qualificações são, contudo,
bastante rigorosas. O conhecimento teológico é algo fundamental, e uma longa
experiência na oração é um pré-requisito.
Assim, encontramos uma pessoa tarimbada em discernir a linguagem do
Espírito e pedimos que se encontre conosco de vez em quando ou com certa
regularidade — um orientador espiritual. Muitas vezes essas pessoas, esses
“pais” e “m ães”, são membros de ordens contemplativas em monastérios
34 A LINGUAGEM DE DEUS
ou conventos. Às vezes estão associados a casas de retiro. Vez por outra são
colocados nas congregações. Esses orientadores espirituais mantêm viva uma
longa tradição na igreja de Cristo. Às vezes são pastores e sacerdotes. Às vezes
são leigos. Gozam de certa visibilidade e fornecem a definição para aquilo que
tantas vezes ocorre na obscuridade e nas sombras do discurso mais público da
pregação e do ensino. Por meio de sua presença e às vezes em seus escritos,
chamam nossa atenção para a forma em que a linguagem continua a ser reve-
ladora em nossas conversas mais casuais, mostrando a dignidade dessa maneira
de a linguagem se comportar.
Precisamos de alguns desses homens e mulheres na comunidade, pessoas
que são intencionais em nos fazer prestar atenção às palavras que estamos usan-
do quando não pensamos que estamos dizendo qualquer coisa que importe.
Precisamos de ouvintes alertas para conferir dignidade a esses momentos de
nossa vida em que não tem os consciência de estar participando em nada que
imaginamos poder ser abraçado pelo reino de Deus.7
*#*
nem se ouve, os silêncios que subjazem boa parte da linguagem que usamos
impensadamente. Essas conversas podem cultivar uma sensibilidade aos ca-
minhos do Espírito Santo, estimular uma aceitação da ambiguidade, estender
uma disposição de viver em momentos em que simplesmente não há nenhuma
“orientação” discernível. Com esse escutar, habituamo-nos a viver um mistério
e a não exigir que haja uma nota de rodapé informando e explicando tudo o que
está acontecendo. Certamente há habilidades a ser cultivadas, sobretudo nesta
sociedade americana na qual quase todos falam demais e mal ouvem alguma
coisa. Apenas estou insistindo em afirmar que qualquer um de nós é capaz de
fazer isso simplesmente em virtude de nosso batismo e incorporação no grupo
de homens e mulheres sobre os quais o Espírito sopra, à medida que o Espírito
traz à memória as palavras de Jesus (Jo 14:26) nas conversas de homens e
mulheres que escutam e respondem à Palavra que se fez carne.
Para evitar a presunção e evitar também confundir aquilo que destaca os
homens e as mulheres instruídos e disciplinados que incorporam essa antiga
prática da igreja, não usarei o termo “orientação espiritual” para o tipo de
conversa que estou incentivando à medida que trilhamos nossas várias estradas
samaritanas. Mesmo assim, “quem dera” , para adaptar as palavras de Moisés
com respeito a Eldade e Medade no deserto, “todo o povo do S e n h o r fosse
orientador espiritual” (Nm 11:29).
* * *
Uma conversa não programada no templo em Siló entre o velho e quase cego
sacerdote Eli e o jovem Samuel é um exemplo clássico dessas conversas não
premeditadas. Era noite, e Samuel estava na cama. Ouviu uma voz que chama-
va seu nome: “Samuel! Samuel!”. Eli era a única pessoa no templo além dele,
e assim Samuel naturalmente pressupôs que Eli o estava chamando. Saltou da
cama e correu até Eli: “Estou aqui; o senhor me chamou?”. Eli disse que não o
havia chamado e mandou que voltasse para a cama. Isso se repetiu exatamente
assim três outras vezes. Após a terceira vez, o sacerdote discerniu que era o
Senhor quem chamava Samuel e lhe disse que, caso acontecesse outra vez,
ele devia orar: “Fala, SENHOR, pois o teu servo está ouvindo”. E aconteceu de
36 A LINGUAGEM DE DEUS
novo, pela quarta vez, e Samuel disse, conforme a instrução recebida: “Fala,
SENHOR, pois o teu servo está ouvindo". E nasceu assim um profeta.
Eli, na melhor das hipóteses um pastor incompetente, ainda assim foi capaz
de identificar a voz de Deus naquilo que Samuel supusera fosse a voz de seu
sacerdote, e assim reorientou Samuel para uma vida de oração na qual foi
transformado em profeta de Deus (ISm 3:1-18).
Outra conversa escriturística informal — não pregação, nem ensino — que
nos adverte sobre com o a linguagem-história realiza sua obra de revelação
ocorre indiretamente na carta de Paulo aos Gálatas. Paulo está dando teste-
munho de sua conversão e de sua integração longa (dezessete anos!) e diligente
na comunidade cristã. Em seu relato, ele faz menção de suas conversas com
Pedro (Cefas) em Jerusalém no decurso de uma visita de quinze dias. A palavra
grega que ele usa em referência às conversas é historeo. E a palavra de onde se
origina a nossa “história” de uma nação ou de um povo, mas tinha um sentido
mais informal e pessoal quando Paulo a empregou, algo mais casual, como num
"vaivém de histórias”. Para o acadêmico alemão Friedrich Büchsel, trata-se
de uma “visita com o objetivo de tomar conhecimento".8 Não eram pregação
nem ensino, mas simplesmente o ato de se conhecerem, contando um para o
outro as suas histórias e discernindo nas conversas as maneiras em que Deus
estava preparando e desenvolvendo Paulo para sua vocação como apóstolo aos
gentios na comunidade cristã. Facilmente podemos imaginar Pedro e Paulo
sentados num pátio, conhecendo um ao outro sob uma oliveira, com copos de
chá gelado, trocando histórias. Paulo conta sobre seu encontro com Jesus
na estrada de Damasco seguido dos três dias de cegueira. Pedro por sua vez
relata a confissão que fizera em Cesareia de Filipos quando é repentinamente
interrompido pela repreensão de Jesus: “Para trás de mim, Satanás!”. Paulo
conta como se sentira segurando as túnicas de seus companheiros de perse-
guição enquanto matavam Estêvão por apedrejamento. Pedro agora apresenta
sua noite de ignomínia no pátio de Caifás, quando nega a Jesus. E assim su-
cessivamente, quinze dias de histórias enquanto buscavam conhecer-se um ao
outro como irmãos em Jesus, descobrindo intimidades do Espírito enquanto
abriam o coração vulnerável um para o outro.
Mas o uso mais marcante dessa linguagem é Jesus em suas histórias. As
parábolas de Jesus foram na maior parte não religiosas em seu conteúdo mais
JESUS EM SAMARIA 37
OS ZEBEDEUS
Um episódio arrebatador prefacia esse longo excurso de contornos narrativos
e conversacionais dentro da Narrativa da Viagem. O episódio apresenta os
irmãos Zebedeus, Tiago e João.
Quando Jesus concluiu que chegara a hora de ir a Jerusalém, teve de
enfrentar uma dificuldade. O caminho até Jerusalém passava por Samaria,
e os samaritanos tinham opiniões negativas um tanto fortes a respeito dos
judeus. Os judeus sentiam o m esmo pelos samaritanos. Vinha de longa data o
preconceito racial e religioso. E assim, quando Jesus enviou antecipadamente
alguns de seus companheiros a Samaria para conseguir acomodações, eles
foram rejeitados. Retornaram a Jesus e relataram que não tinham conseguido
alojamento. Deparou-se-lhes grande hostilidade dentro da aldeia. Não foram
bem-vindos (Lc 9:51-53).
Os irmãos Zebedeus, Tiago e João, sentiram-se ultrajados. Apelidados
“Filhos do Trovão” (Boanerges), esses dois não levavam desaforo para casa.
Os irmãos eram pavio curto. Zangados com a falta de hospitalidade, queriam
que descesse fogo do céu para incinerar os mal-educados samaritanos. Tinham
precedentes bíblicos para essa impetuosidade violenta. Não foi exatamente o
que fizera Elias, o tesbita, fazendo descer fogo do céu oitocentos anos antes,
e exatamente nessa região samaritana (2Rs 1:10-12)? Poucos dias antes, na
transfiguração ocorrida no monte Tabor, os irmãos-trovão tinham visto Jesus
38 A LINGUAGEM DE DEUS
em conversa com Elias. Estavam agora numa missão em região samaritana sob
a autoridade de Elias; por que não usar o velho fogo de Elias para cuidar do
velho problema samaritano?
Jesus disse: “Não façam nada!”. Sua repreensão era peremptória e inego-
ciável. Simplesmente não fazia parte de sua tarefa como discípulos destruir a
oposição. Os seguidores de Cristo não esmagam as pessoas que não estão do
nosso lado, quer física, quer verbalmente.
Há vários anos, eu estava dirigindo num trecho de estrada que conhecia
bem. Cheguei bem a tem po de ver uma escavadora retirar uma casa ao lado
da estrada. A máquina amarela levou mais ou menos uns vinte segundos para
despedaçar a casa em gravetos. Eu observara aquela casa com apreciação
durante os 26 anos em que fui pastor naquela comunidade. A casa pequena
e sempre bem conservada se fazia acompanhar de uma horta grande sempre
bem mantida, na qual se plantava e da qual se cuidava com devoção. Fileiras
bem retinhas de milho, de beterraba e de cenoura. Sempre livre de ervas da-
ninhas. E quando chegava o meio do verão (como naquele dia), ela florescia
com alimentos, prontos para ser colhidos, preparados e comidos. Fazia pouco
tempo, porém, uma empresa de desenvolvimento havia comprado o terreno
para construir um shopping center. Uma casa com sua horta é uma ofensa a um
shopping center. E há uma solução tecnológica simples: a escavadora. A beleza
viva da casa e da horta não tinha nenhum valor monetário na competição com
a feiura e com o concreto do shopping, e assim mandaram a escavadora para
eliminá-la. Lembro-me de ter pensado, no instante em que vi tudo acontecer:
“os Zebedeus estão na ativa outra vez".
Quando o grupo de Jesus, a caminho de Jerusalém para estabelecer defini-
tivamente o reino de Deus, pôs-se contra a ofensiva falta de hospitalidade dos
samaritanos, os irmãos Zebedeus tinham (ou pensavam ter) os meios tecnológi-
eos para tirá-los do caminho — não um trator de lagarta no caso deles, mas uma
tecnologia igualmente eficaz e espiritualmente superior do fogo de Elias.
Um número surpreendente de cristãos, esquecido da repreensão sem res-
salvas de Jesus, continua a ingressar no time dos Zebedeus. Tais cristãos, cheios
de zelo à medida que seguem a Jesus, não tolerarão interferência. Segue-se
a violência. Agem assim em suas família, em suas igreja, entre seus amigos.
JESUS EM SAMARIA 39
***
Minha intenção nas páginas que se seguem na primeira parte deste livro é
observar, uma a uma, as dez parábolas exclusivas de Lucas, as quais ele situa
na Narrativa da Viagem. Quero recuperar a habilidade de usar as palavras em
histórias assim, essa linguagem de Jesus que é sua marca, a parábola, para uso
em nossas próprias viagens por nossa própria Samaria americana, este país tão
largamente indiferente a Jesus e à linguagem de Jesus.
capítulo 2
O próximo
Lucas 10:25-37
A primeira historia que Jesus conta na estrada que percorre a região de Samaria
apresenta, como seria de esperar, um samaritano. Mas, antes de Lucas contar
a historia, ele apresenta dois episodios ocorridos nessa estrada samaritana que
liga a Galileia a Jerusalém.
***
Um homem diz a Jesus: “Eu te seguirei por onde quer que fores”. Jesus lhe diz
que eles não pernoitarão nos melhores hotéis. Ao que tudo indica, isso jamais
tinha acontecido com aquele homem. Nunca mais ouvimos a seu respeito.
Jesus então diz a um segundo homem: “Siga-me". Esse homem concorda, mas
impõe certas condições. Ele tem algo importante que precisa fazer primeiro.
Jesus dispensa-o. Seguir a Jesus não é algo que adiamos até que façamos pri-
meiro o que queremos fazer. Então um terceiro homem aparece em cena e
se diz pronto para seguir a Jesus — mas ainda não totalmente. Jesus diz, na
realidade: “D eixe para lá. E agora ou nunca”. No final, acaba que o homem
não está pronto coisa nenhuma.
Jesus mal com eçou sua viagem por Samaria em direção a Jerusalém
e já conseguiu três seguidores. Mas eles nem deram dez passos e já caí-
ram fora.
Captamos a mensagem: seguir a Jesus não é algo que acontece a nossa ma-
neira. Seguimos a Jesus da maneira dele. Não tem os aí um lançamento muito
auspicioso para a Narrativa da Viagem. Três seguidores em potencial, e cada
um, um desistente (Lc 9:57-62).
Os três desistentes são substituídos por um grupo que estabelece com eles
um contraste, um grupo caracterizado por uma resposta obediente e imedia-
ta (Lc 10:1-24). Jesus nomeia 72 outros e os envia em 36 duplas como uma
42 A LINGUAGEM OE DEUS
vanguarda para preparar o caminho para ele por Samaria. Há um bom trabalho a
realizar — Jesus fala de uma colheita plena — , e eles estão prontos para começar
o bom trabalho. Mas, por melhor que ele seja, eles não devem ser ingênuos a
respeito das circunstâncias. Não devem esperar boas-vindas de coração aberto.
Jesus adverte sobre “lobos”. Ele recomenda austeridade, sem estratégias mirabo-
lantes: mantenha as coisas simples, diretas, amáveis, pessoais. Deve-se saber que
haverá oposição. N em todos ficarão entusiasmados com esses estrangeiros
que por ali passam com essa sua conversa de “reino de D eus”.
Jesus conclui suas instruções aos 72 com uma reprimenda severamente
formulada para homens e mulheres que rejeitam as boas notícias do reino de
Deus que “está próximo”. Ele expressa alto e bom som uma mensagem incisiva,
condenatoria, de juízo sobre homens e mulheres que rejeitam as boas notícias
do reino de Deus que “está próximo”. A recusa de se arrepender traz consigo
sérias consequências. Mas é significativo que, quando Jesus cita nomes, são ci-
dades galileias, e não samaritanas, que ele cita: Corazim, Betsaida e Cafarnaum.
Essas são as três pequenas cidades pequenas, o “Triângulo Evangélico", nas quais
Jesus passou a maior parte de seus três anos chamando e ensinando discípulos.
Ao usar o nome das cidades galileias de seus seguidores como concentrações
nucleares de impenitentes, Jesus está indiretamente opondo-se a uma classi-
ficação indiscriminada dos samaritanos com o estereótipo de “maus sujeitos”.
"Saibam que haverá hostilidade”, Jesus está dizendo a eles, "mas não pensem
que a ausência de hospitalidade em relação ao Deus que ‘está próximo’ é coisa
de samaritano. Não é em nada diferente do que acontece lá na terra de vocês,
entre suas famílias e vizinhos. Não tratem essas pessoas de má vontade. Elas
não estão mais inclinadas a aceitar ou a rejeitar o testemunho de vocês do que
qualquer dos bons judeus com os quais vocês se criaram”. Jesus não faz pouco
caso da hostilidade prevista. Mas tampouco ele a considera uma afronta pessoal.
E assim eles partem. Quando os primeiros começam a retornar da missão,
uma palavra, “alegres”, caracteriza os relatos. Tudo está funcionando. As obras
de Jesus e as palavras de Jesus executadas e pregadas pelos 72 têm resulta-
dos condizentes com Jesus. Os 72 ficam absolutamente aturdidos com o que
acontece entre os samaritanos — “surpresos pela alegria”. Isso é tudo muito
empolgante. Jesus confirma a empolgação deles: “Eu vi Satanás caindo do céu
O PRÓXIMO 43
como relámpago”, exulta “no Espirito Santo” junto com eles e agradece ao “Pai,
Senhor do céu e da terra” pela colheita. “Exultando” (agalliaõ), o verbo que
dá força às palavras de confirmação de Jesus, transmite uma exuberância que
vemos expressa na dança e nas cambalhotas. E na Samaria de todos os lugares!
Mas ele também insere uma palavra de precaução: "... alegrem-se, não por-
que os espíritos se submetem a vocês, mas porque seus nomes estão escritos
nos céus” (Lc 10:20). Há o perigo de nos tornarmos excessivamente empolga-
dos com o que vemos acontecendo ao nosso redor e negligenciemos o centro,
nossa identidade inscrita no céu, a partir da qual o trabalho se desenvolve. A
alegria está ancorada não no que fazemos, mas em quem somos “nos céus”.
Há uma imensa exuberância em participar na obra e nas palavras de Je-
sus. Mas há também essa única palavra de cautela que deve acompanhar a
alegria sentida.
Esse contraste entre duas respostas a Jesus colocadas lado a lado, os três
desistentes e os exuberantes 72 do batalhão de vanguarda, fornece uma
orientação realista sobre aquilo que podemos contar com o certo enquanto
viajarmos pelo território samaritano: deserções decepcionantes, instruções
claramente articuladas, “lobos”, participação de membros do grupo na obra
de Jesus, grande alegria e otimismo disciplinado.
"Um samaritano que viajava por aquela estrada aproximou-se. Quando viu a
condição do homem, seu coração se condoeu. Prestou-lhe os primeiros socor-
ros, desinfetando e fazendo curativo em suas feridas. Depois ergueu o homem
colocando-o sobre o jumentinho do samaritano, levou-o a uma pensão e garantiu
que tivesse o conforto necessário. Pela manhã, tomou duas moedas de prata e
deu-as ao dono da pensão, dizendo: ‘Cuida bem dele. Se custar mais, põe na
minha conta — eu pagarei quando voltar’.”
— O que lhe parece? Qual dos três homens tornou-se próximo do homem
atacado pelos salteadores?
— Aquele que o tratou com bondade - respondeu o estudioso da religião.
Jesus disse:
— Vá e faça o mesmo.
Lucas 10:25-37
* * *
A história é suscitada por uma conversa com uma pessoa cujo nome não é ci-
tado, identificada somente pelo trabalho que executa. Trata-se de um jurista,
um nomikos. A lei com a qual se identificava profissionalmente não era a lei
secular, mas a lei de Deus, a lei de Moisés, a Torá. Uma designação mais exata
entre nós seria “professor de religião” ou “estudioso da Bíblia”. O trabalho de
um jurista, defendendo e interpretando a lei de Deus, era um trabalho honrado
e responsável no século I. Na época, como acontece agora, as Escrituras eram
citadas e erroneamente citadas por qualquer pessoa que precisasse contar com
autoridade divina para seu programa. Os juristas, esses estudiosos da Bíblia, eram
responsáveis entre outras coisas por manter suas comunidades de sobreaviso
em relação às possibilidades de insanidade e/ou engano religioso. Muitos são
os líderes religiosos que enganam e seduzem em nome de Deus. Por mais que
sejamos cuidados nesse assunto, jamais será o bastante.
O PRÓXIMO 45
Esse estudioso da Biblia está levando seu trabalho a sério, testando Jesus
em relação à autoridade das Escrituras. Não há razão para supor que haja al-
guma intenção nesse teste — ekpeiradzõ pode simplesmente significar teste
no sentido de “teste de autenticidade”, sem nenhum sentido de armadilha.
A história é contada no contexto de uma multidão de pessoas que estão
seguindo a Jesus, muitas delas talvez por curiosidade. Os 72 que acabaram de
retornar voltaram de uma missão extraordinariamente bem-sucedida em terri-
tório samaritano, uma região que entre judeus tinha a reputação de heresia. Os
homens e as mulheres são ingênuos. E fácil enganar as pessoas (especialmente
os samaritanos?) em nome de Deus. E importante ter pessoas ao redor com
instrução e discernimento, sobretudo em questões de religião e de Bíblia. E
ocorre de, no dia em que os 72 retornam jubilosos, estar lá um estudioso judeu
da Bíblia com a responsabilidade de garantir que a verdade é verdadeira. Por
formação e por hábito, ele se pergunta: "Esse negócio é para valer?”.
O homem está realizando um trabalho importante. Ninguém deseja um
Messias sem comprovação. Os riscos são demasiadamente elevados. Não
queremos arriscar a vida em algo que no fim não passe de uma fraude. Sabe-
mos por experiência que existe uma quantidade incrível de fraudes religiosas
ocorrendo no mundo. Queremos nosso Messias provado e aprovado por dentro
e por fora, examinado e interrogado. Assim, o jurista dá o passo necessário
para “testar Jesus”.
Não era a primeira nem a última vez que Jesus era testado. Lucas conta
que Jesus, logo antes de iniciar seu ministério público, foi provado pelo Diabo
no deserto. O teste era detalhado e rigoroso — e hostil. A prova do Diabo foi
uma tentação sedutora, pois o tentou para que se tornasse um Messias que
agradaria multidões, uma celebridade cheia de glamour. Mas ele passou no
teste. Disse não ao Diabo. Mateus e Marcos precederam Lucas no relato dessa
prova. Jesus também foi provado perto do término de seu ministério público
no jardim do Getsêmani. Essa prova foi ainda mais detalhada e rigorosa que
a primeira, o teste final: “Jesus irá à cruz, sacrificará sua vida pela salvação do
mundo — ou não?”. A prova foi agonizante. Jesus passou no teste. Mateus e
Marcos também relatam essa prova.
46 A LINGUAGEM DE DEUS
Na Última Ceia, Jesus disse algo a seus discípulos que somente Lucas relata:
"Vocês são os que têm permanecido ao meu lado durante as minhas prova-
ções” (Lc 22:28).' "... durante as minhas provações” prende minha atenção:
parece que havia mais testes impostos a Jesus que apenas a prova agonística
do deserto no princípio e a prova agonizante do Getsêmani no fim. Entre esses
outros testes estava este que somente Lucas relata, a prova do estudioso da
Bíblia nos primeiros dias da viagem por Samaria. Enquanto o teste se pro-
cessa, observamos algo significativo a respeito da maneira em que Jesus usa
a linguagem — não proclamando, não interpretando, mas conversando. Um
intercâmbio respeitoso. Nem confrontacional, nem com ares de superioridade.
Uma conversa que convida (e garante) a participação.
Há cinco segmentos nessa conversa.
Primeiro segm ento. O estudioso da Bíblia faz sua pergunta de teste:
"... o que preciso fazer para herdar a vida eterna?”. Talvez essa seja sua
pergunta-padrão para pôr as pessoas à prova, uma pergunta que ele faz a
cada professor de religião que seja desconhecido. Não é uma má pergunta.
Todos queremos viver mais que uma existência meramente animal, e é nesse
“mais” que nosso caráter e nossos valores se mostram. A maneira em que
vivemos esse “mais” diz muita coisa sobre nossa sabedoria, nossas motivações
e quão bons somos.
E denota certo grau de esperteza o fato de que ele formula a pergunta na
primeira pessoa. O estudioso da Bíblia faz sua pergunta parecer um pedido de
conselho. Ele não é nenhum amador nesse assunto. Ele sabe que, se você fingir
estar pedindo conselhos, a pessoa que você está examinando se desarma, deixa
cair as defesas, não se sente ansiosa. Se você interroga uma pessoa acusadora-
mente, vai conseguir muito menos do que se pedir um conselho. Todos achamos
difícil resistir à oferta de um conselho. Uma pergunta, independentemente de
seu conteúdo, em geral nos honra por seu ar de respeito. Qualquer pessoa que
peça informações de qualquer tipo consegue muito mais do que pediu.
Sim, eu creio que esse estudioso da Bíblia já fez isso antes. Ele sabe o que
está fazendo e já aperfeiçoou sua técnica. E talvez até tenha um caderno em
casa cheio das respostas que recebeu diante dessa sua pergunta.
O PRÓXIMO 47
Mas ele não é páreo para Jesus. Jesus responde a sua pergunta fazendo
outra pergunta: “O que é escrito na Lei? [...] Como você a lé?”. (Certa vez
assisti a urna entrevista feita com Elie Wiesel, o romancista judeu e escritor
na área de espiritualidade. O entrevistador disse:
— Observei que vocês, judeus, muitas vezes respondem às perguntas fa-
zendo outra pergunta. Por que agem assim?
A que Wiesel respondeu:
— Por que não?
O foco muda. Deixa de ser um exame objetivo, uma pergunta de múltipla
escolha em que a resposta pode ser marcada no quadradinho correto. Inicia-se
um relacionamento; inicia-se um diálogo. Já não é um interrogador superior
e um interrogado inferior. O diálogo desenvolve uma experiência acadêmica.
Será que o estudioso da Bíblia começou essa conversa simplesmente com a
menor dose de arrogância, ou com uma retidão impessoal e policiadora? Se
foi esse o caso, não é mais o que se vê. O tiro sai pela culatra. A pergunta de
Jesus põe o jogo em pé de igualdade.
* * *
***
mais importante: o amor. Talvez ele queira manter um controle rígido. Talvez
seu coração esteja atrofiado.
O estudioso começa essa conversa com confiança. Ele está no controle. Ele
é o guardião da verdade bíblica. Pretende julgar se Jesus é com petente para
ensinar e conduzir os discípulos. Uma maneira em que o exame podería ter
terminado seria num simples pronunciamento de aprovado ou reprovado. Ou
podería ter-se desenvolvido numa discussão, num debate teológico tendo os
espectadores curiosos como júri.
O que de fato aconteceu não foi, assim creio, previsto pelo estudioso.
Tomado de surpresa nessa posição não habitual para ele de ser o examina-
do, ele tenta recobrar a posição original de estar no controle, fazendo uma
segunda pergunta. Fica incomodado de estar em pé de igualdade com Jesus;
deseja estar no controle em relação a Jesus. Não está acostumado a estar
num relacionamento pessoal de mutualidade. Quer estar impessoalmente
no controle.
E assim tenta recuperar o controle da conversa fazendo uma pergunta que
porá Jesus na defensiva: “E quem é o meu próximo?”. Mesmo enquanto faz
a pergunta, deve estar se parabenizando — "brilhante recuperação”. “Próxi-
mo” é uma categoria sabidamente difícil de definir em termos práticos. Se
0 estudioso tivesse perguntado “E quem é Deus?”, ele e Jesus poderíam ter
trocado algumas citações das Escrituras, e esse seria o fim do assunto. Teria
sido um debate entre iguais. Mas ele deseja recuperar sua posição elevada;
assim, em vez de pedir uma definição do Deus revelado, ele introduz a figura
imprecisa do “próximo”. Definir o próximo teria sido bom para um debate
que usaria o dia inteiro, com os espectadores curiosos aos poucos deixando o
local à medida que a fome os chama para o jantar.
O estudioso da Bíblia é um veterano nas questões de religião. Ele sabe que
uma pessoa pode se esconder sem ser notada por muito tempo, talvez até toda
uma vida, por trás de questões religiosas. Será que fez isso a vida toda — dirigiu
estudos bíblicos, fez perguntas incisivas, defendeu a verdade das Escrituras,
cumpriu as funções religiosas — e nunca foi descoberto?
Mas Jesus o descobre. E é uma parábola que o faz, essa história merecida-
mente famosa que é normalmente chamada "Parábola do Bom Samaritano”.
50 A LINGUAGEM DE DEUS
são colegas de profissão nas questões da Tora. São responsáveis por manter a
lei de Moisés a respeito de Deus e do próximo recordada e em funcionamento
na comunidade judaica.
Exatamente nesse m om ento um samaritano aparece e cuida do judeu
roubado e espancado, e não de qualquer maneira. Ele desinfeta as feridas
do homem, passa óleo nelas, faz os curativos necessários, coloca-o sobre
o jumento, leva-o para urna estalagem e cobre suas despesas de estadia.
Um samaritano, o estereotipo da pessoa má no imaginário judeu, ama seu
“próximo” judeu.
Uma historia simples, contada de forma simples, transitando pela região
de Samaria.
***
“ame”. Essa ordem para amar, embora não repetida, ecoa continuamente pelos
detalhes da conversa.
"Amor” com o substantivo é um assunto vasto e com plexo. Filósofos e
teólogos escrevem milhares e milhares de páginas explorando suas manifes-
tações culturais, suas complexidades emocionais, suas nuanças psicológicas.
Mas surpreendentemente há pouco desse tipo de coisa em nossas Escrituras.
O amor não é um assunto a ser debatido por nossos profetas e sacerdotes,
nossos apóstolos e pastores, nossos poetas que oram e nossos sábios. A palavra
é usada com o substantivo muitas vezes, mas significativamente em nossas
Escrituras é um verbo que ganha vida. Não "Deus é amor”, mas "Deus tanto
amou o m undo...”.
No m om ento em que o substantivo "amor" transforma-se num verbo,
deixa de ser um assunto a ser debatido, compreendido ou examinado. Entra
em nossa vida. E, quando o verbo é proferido no imperativo, ganha vida num
ato de obediência. Entra em ação, faz parte da história e na história revela
sua verdadeira natureza. Usado como verbo na história, logo fica evidente se
a palavra nobre que ecoa a própria glória está sendo usada para enobrecer e
glorificar as almas ou está sendo usada com o uma capa para uma ganância
manipuladora, um poder cínico ou uma cobiça impessoalizante num mundo
esvaziado de próximos.
Jesus fala as palavras finais e definitivas dessa história, ambas verbos no
imperativo: “Vá [...]faça”.
Sem mais perguntas. Sem mais respostas. Chega de papo religioso. Vá
e ame. Bastam os debates impassíveis da interpretação da Escritura, não
mais usando a religião (ou Jesus!) com o m eio de evitar ou dispensar ho-
mens e mulheres de carne e osso que se acham em nossa vida. Algo está
ocorrendo, e fico sabendo que sou participante. Não, o que ouço, aliás, é:
“Seja participante!”.
As histórias fazem isso: criam as circunstâncias imaginativas nas quais
aprendemos por intuição uma ordem imperativa para deixarmos o mundo
desleixado dos debates distantes e impessoais para nos tornar participantes
O PRÓXIMO 53
***
disso; ele não é isolado em nenhum detalhe. Ele está presente, totalmente,
relacionalmente, intimamente.
O que a revelação bíblica nos conta, uma revelação sintetizada e consumada
em Jesus, é que não podemos nos transformar mais semelhantes a Jesus (mais
agradáveis ou aceitáveis a Deus) tornando-nos menos humanos, menos físicos,
menos emocionais, menos envolvidos com nossa família, menos associados
com pessoas social ou moralmente indesejáveis. Não nos tornamos mais es-
pirituais tornando-nos menos humanos.
***
A primeira história de Jesus na Narrativa da Viagem faz que todos nós sejamos
o próximo da história, fazendo-nos próximos de homens e mulheres que nun-
ca tínhamos a menor ideia de ser próximos. Não tínhamos a menor ideia de
que eram nossos próximos porque usávamos a linguagem para estereotipá-los
em cartazes de caricaturas empalidecidas — “samaritanos”, por exemplo, ou
algum outro termo étnico ou racial, moral ou religioso do descarte. Uma vez
que os tenhamos desumanizado por um simples artifício de linguagem, nem
se nos ocorre amá-los. Será possível amar um pedaço de cartolina? Obedecer à
ordem de Deus de amar nosso próximo fica muito mais administrável quando
excluímos da ordem a maioria das pessoas que não conhecemos ou de quem
não gostamos. A história de Jesus nos reumaniza, repessoaliza, reaproxima a
nós e a todos a quem encontramos. Tendo agora nos transformado em próxi-
mos por causa da história de Jesus, encontramos outro próximo para amar a
cada curva da estrada.
A segunda história da Narrativa da Viagem foca-se em D eus de forma
pessoal. Impessoalizamos as pessoas quando as estereotipam os. Impessoa-
lizamos Deus ao generalizá-lo — Deus como ideia, Deus com o força, Deus
com o dogma. Mas, com o não conseguimos amar uma ideia, uma força ou
um dogma, eficazmente eliminamos o “ame" da ordem bíblica “ame a D eus”
e o substituím os com verbos com o “reconheça”, "respeite", “considere”,
“defenda”, “estude” — todos verbos que exigem, se exigem, pouco relacio-
namento pessoal.
O AMIGO 57
Pai,
Revele quem você é.
Endireite o mundo.
Mantenha-nos vivos com três refeições principais.
Mantenha-nos perdoados diante de você e perdoando às pessoas.
Mantenha-nos protegidos de nós mesmos e do Diabo”.
58 A LINGUAGEM DE DEUS
“Não negocie com Deus. Seja direto. Peça aquilo de que necessita. Não é
num jogo de gato e rato, de esconde-esconde, que nos encontramos. Se seu
filho pequeno pedir uma porção de peixe, você o assusta com uma serpente viva
em seu prato? Se sua filha pequena lhe pedir um ovo, você a engana, dando-
lhe uma aranha? Por pior que vocês sejam, não pensariam em tal coisa — ao
menos vocês são razoáveis com os próprios filhos. E não acham que o Pai que
os concebeu em amor lhes dará o Espírito Santo quando o pedirem?"
Lucas 11:1-13
* * *
***
***
***
Pai!
Santificado seja o teu nome. (Ia petição)
Venha o teu Reino. (2a petição)
Dá-nos cada dia o nosso pão cotidiano. (3a petição)
64 A LINGUAGEM DE DEUS
***
[...] não tinha qualquer beleza ou majestade [...] desprezado e rejeitado [...]
não o tínhamos em estima" (Is 53:2-3).
Quando Deus se tornou humano em Jesus, mostrou-nos com o nos tornar
seres humanos com pletos diante dele. Reproduzimos o que Jesus fez, ao nos
tornarmos absolutamente necessitados e dependentes do Pai. Somente quando
nos apresentamos esvaziados, nos mostramos empobrecidos diante de Deus,
podemos receber o que somente mãos vazias podem receber. Essa é a pobre-
za de espírito que Jesus abençoa (Mt 5:3). Quando escutamos e seguimos a
Jesus, que viveu em constante dependência do Pai, convencemo-nos de nossa
pobreza como homens e mulheres. Percebemos nossa absoluta carência. Somos
todos pedintes. Pai, dá-nos pão. Amigo, empresta-nos três pães. Ser humanos
significa que somos as mais incompletas e pobres de todas as criaturas. Nossas
necessidades sempre ultrapassam nossas capacidades. Johannes Baptist Metz
escreve sobre a “indigência radical de nossa humanidade" e “a necessidade ou
carência transcendental” no âmago de nossa humanidade.3
Nunca ficamos menos necessitados, menos dependentes quando oramos;
tornamo-nos mais necessitados, mais dependentes — o que significa dizer,
mais humanos. Quando oramos, mergulhamos cada vez mais profundamente
na própria condição humana da qual o pecado nos separa e Cristo nos salva.
* * *
Jesus conclui seu ensino sobre oração com o seguinte: “Se vocês, apesar de
serem maus, sabem dar boas coisas a seus filhos, quanto mais o Pai que está
nos céus dará o Espírito Santo a quem o pedir! ” (Lc 11:13).
Espírito Santo? Pensamos que estávamos pedindo pão para nós mesmos e
para nosso amigo. Pensamos que estávamos pedindo peixe e ovos. E estávamos.
Estamos. Mas, ao introduzir o termo “Espírito Santo” na conversa, Jesus ancora
nossa compreensão das palavras e dos caminhos de Deus nos detalhes de cada
hora e de cada dia. O Espírito Santo é a maneira de Deus estar pessoalmente
conosco em tudo o que escutamos, falamos e fazemos. Deus em todos os
detalhes de nossa vida e da vida de nossos amigos e vizinhos. Deus presente
de maneira pessoal e abrangente.
capítulo 4
0 construtor de um celeiro
Lucas 12:13-21
Jesus juiz ou árbitro nas questões de família desse hom em . Mas não po-
demos deixar de pensar: “Mesmo?”. A recusa de Jesus nos assusta por ser
totalm ente estranha, uma vez que sabemos que os rabis eram, e ainda são,
juizes na comunidade judaica.
O pedido do homem não é um despropósito. E o fato de essa história
ocorrer logo depois da oração e da parábola sobre a oração, tudo fica ainda
mais estranho. Aí está um homem fazendo exatamente o que Jesus insistiu
que fizéssemos: “Peçam... busquem... batam ...”. O homem está orando, e
orando exatamente como Jesus lhe ensinou a orar — usando o vocativo pessoal
(“M estre”) e usando um verbo no imperativo para dirigir-se pessoalmente a
Jesus, o que significa dizer, Deus (quer o homem reconhecesse Jesus como
Deus, quer não). Mas a resposta a essa sua oração é uma áspera dispensa. E o
fim da oração como fórmula. O homem está seguindo ao pé da letra o ensino
de Jesus a seus discípulos sobre a oração. Se a oração é uma questão de usar
a gramática correta dirigida à pessoa certa, esse homem certam ente teria
conseguido o que queria.
Jesus acaba de exercer um discernimento espiritual elementar. Ele discer-
niu no pedido de justiça o pecado subjacente da cobiça. Não há nada no texto
que revele que o homem não estava, na realidade, sendo defraudado. Seus
direitos estavam sendo violados. E certamente não é da vontade de Deus que
nenhum de nossos direitos seja pisoteado por ninguém. A justiça é essencial ao
reino de Deus, e frisada com paixão por todos os profetas hebreus de Isaías a
Malaquias, por João Batista ao preparar o caminho para Jesus, e pelo próprio
Jesus. A busca pela justiça e o clamor por justiça têm precedentes bíblicos
notáveis. Assim, não há nada estritamente errado com o pedido do homem.
Ele está pedindo a mesma justiça que Amós, Isaías e Jeremias lhe haviam
ensinado que era fundacional no reino de Deus.
Mas Jesus discerne no pedido não uma paixão por justiça, mas um vírus
de pecado, o pecado da ganância, da cobiça. Não há nada mais comum entre
os que andamos na companhia de homens e mulheres que seguem a Jesus do
que usar o que todos concordam que seja uma boa coisa, até mesmo essencial
ao reino de Deus, para disfarçar nosso pecado. Aqueles de nós que se com-
prometeram a seguir a Jesus e a ser por ele ensinados não chamam a atenção
O CONSTRUTOR DE UM CELEIRO 69
por serem propensos a pecados manifestos. Não queremos pecar. Não nos
colocamos deliberadamente no caminho do mal. Mas nossas boas intenções não
são nenhuma proteção segura das astúcias do Diabo, das seduções do Tentador.
Quase todos os pecados aos quais nos sentimos atraídos vêm com a roupagem
de virtudes. Pensamos estar pedindo ou fazendo algo bíblico, verdadeiro
e direito. E, para falar a verdade, estamos. Assim com o esse homem do meio
da multidão, o qual somente um dia ou dois dias antes havia aprendido a orar,
e agora fazia o que lhe tinham ensinado: Eu quero justiçai
Praticamente toda tentação que sobrevêm aos que estamos compróme-
tidos com Jesus e decidim os sacrificialmente segui-lo se dá na forma de
algo correto, necessário e obviamente bom. O Diabo não gasta seu tempo
tentando-nos a fazer algo que sabemos ser mau. Ele esconde aquilo que é
mau em algo bom e depois nos tenta com aquilo que é bom. Já fom os mais
que advertidos de que o Diabo aparece como anjo de luz. Por que continua-
mos a viver em tamanha ingenuidade? O velho cântico dos acampamentos
acerta na mosca: “O Diabo é um mentiroso e um enganador; se você não se
cuidar, ele o engana, sim, senhor”.
Um dos espantos do mundo é o pecado que se alastra e viceja, sendo aplau-
dido em comunidades e organizações cristãs. A ambição, o orgulho e a avareza
ganham lugar de honra sem que ninguém questione, e depois são “apoiados”
com um versículo fora de contexto e selados com oração.
Jesus não é alguém que atende a orações indiscriminadamente. Já passou
por isso. Aqueles quarenta dias e noites de tentação no deserto não permitiram
nenhuma margem para a ingenuidade nessas questões. Tudo que o Diabo pôs
diante de Jesus foi envolto em roupagem escriturística. Jesus não foi tentado
pelo mal evidente, mas pelo bem aparente. Ele conseguiu ver o que estava por
trás e se manteve firme. E agora ele consegue enxergar o que está por trás da
oração tão correta desse homem — e se mantém firme.
Dizemos mentiras com as mesmas palavras usadas para falar a verdade. As
palavras não somente podem revelar; elas podem ocultar. A linguagem é usada
como meio de revelar, desvendando a realidade; é também usada como meio
de velar, encobrindo a realidade. Por mais que sejamos cuidados, nunca será o
70 A LINGUAGEM DE DEUS
suficiente nessas questões. “Amigo... cuidado!” Será que um clamor por justiça
na realidade não esconde um lamento por uma fatia maior da torta? Será que
uma campanha contra a corrupção política não é abastecida na maior parte
pela ira? Será que uma proposta de evangelismo não mascara uma mesura
idólatra ao Rei Número e Quantidade? E será que uma “declaração de visão"
alinhavada numa reunião de com itê tarde da noite, uma vez examinada à luz
do dia, não acaba se revelando um projeto de inchada ambição?
Será que o pedido desse homem a Jesus numa questão de justiça era na
verdade uma cortina de fumaça obscurecendo algo completamente diferente?
Jesus pensou que fosse. Sua história dissipou a fumaça.
***
era um missionário jesuíta que estava numa licença sabática depois de vinte
anos de serviços na África. Ao debatermos as parábolas bíblicas, o padre
Tony contou-nos sobre sua experiência com seus africanos, os quais ama-
vam as histórias, amavam parábolas. Sua ordem jesuíta não tinha sacerdotes
suficientes para lidar com todas as conversões que estavam ocorrendo, e ele
foi encarregado de recrutar leigos para realizar o ensino básico e o trabalho
diaconal.
Quando começou o trabalho, sempre que encontrasse homens que fossem
especialmente brilhantes, ele os tirava da vila e os enviava a Roma, ou a Dublin,
ou a Boston, ou a Nova York, para serem instruídos. Depois de alguns anos,
eles retornariam e assumiriam suas tarefas. Mas os aldeães os odiavam e em
nada se relacionavam com eles. Chamavam esses que retomavam os foi-a: “Foi
a Londres, foi a Dublin, foi a Nova York,foi a Boston”. Eles odiavam os foi-a
porque não contavam mais histórias. Davam explicações. Ensinavam doutri-
nas. Davam orientações. Desenhavam diagramas num quadro-negro. Os foi-a
deixaram todas as suas histórias nos cestos de lixo das bibliotecas e das salas
de aula da Europa e dos Estados Unidos. O processo íntimo e dignificante de
contar uma parábola tinha sido negociado por uma salada acadêmica. Assim,
padre Bymne contou-nos, ele desistiu da prática de enviar homens para aquelas
escolas desprovidas de história.
* * *
Não é preciso muito tempo para percebermos que estamos estabelecidos num
mundo de excessivas riquezas. O Criador é incrivelmente generoso. Recebe-
mos aquilo de que precisamos, mas também mais, muito mais. Recebemos
não apenas algumas árvores para nos fazer sombra quando ao sol, mas florestas
inteiras de pinheiros, de faias e de carvalhos. Recebemos não apenas algumas
estrelas, de modo que possamos localizar o norte e navegar com nossos na-
vios, mas céus cheios de imagens e histórias. Recebemos não apenas alguns
pássaros para manter os insetos sob controle, mas uma imensa companhia de
balé de formas e cores e canções fazendo piruetas e dando voltas no ar para
nosso infinito deleite. Annie Dillard exclamara em relação à "exuberância do
O CONSTRUTOR DE UM CELEIRO 73
***
"Não fiquem tão ansiosos com o que estará sobre a mesa na hora das refei-
ções ou se as roupas do armário estão na moda. Há muito mais coisas em sua
vida interior do que o alimento que vocês põem no estômago, muito mais na
aparência exterior de vocês do que as roupas que vocês põem sobre o corpo.
Observem os corvos, livres e soltos, não presos a uma descrição de tarefas,
despreocupados sob os cuidados de Deus. E vocês valem muito mais.
“Será que alguém por se preocupar diante do espelho jamais ficou um
centímetro mais alto? Se a preocupação não consegue fazer nem isso, por que
se preocupar? Andem pelos campos e observem as flores silvestres. Elas não
ficam ansiosas com a aparência — mas você já viu cor e desenho tão maravi-
lhosos? [...] Se Deus dá tamanha atenção às flores do campo, a maioria delas
nunca vistas, não acha que ele cuidará de vocês, se orgulhará de vocês, fará
seu melhor por vocês?
“O que estou tentando fazer aqui é levá-los a relaxar, a não se ocuparem
tanto de obter para que assim possam responder às d á d iv a s de Deus. As pessoas
que não conhecem a Deus e como ele trabalha ficam ansiosas com essas coisas,
mas vocês conhecem tanto a Deus quanto sua forma de agir. Encharquem-se da
realidade de Deus, da iniciativa de Deus, das provisões de Deus. Descobrirão
que todas as coisas por que vocês se preocupam diariamente serão atendidas.
Não tenham receio de sair perdendo. Vocês são meus amigos mais queridos!
O Pai quer dar-lhes o próprio reino.
“Sejam generosos. Deem aos pobres. Procurem um banco que não pode
falir, um banco no céu longe de assaltantes, seguro de defraudadores, um
banco com o qual vocês podem contar. E bastante óbvio, não é mesmo? O
lugar onde está o tesouro de vocês é o lugar onde vocês mais desejarão estar e
é onde acabarão sendo encontrados.”
Lucas 12:22-34
76 A LINGUAGEM DE DEUS
Aqui está uma história de Jesus extrem am ente estranha. Lucas a insere
cruamente na Narrativa da Viagem por Samaria. D iferentem ente das his-
tórias do próximo, do amigo e do construtor do celeiro, essa parábola não
tem nenhum acontecim ento que a suscite, nenhum con texto. Surge na
página “segundo a ordem de M elquisedeque [...]. Sem pai, sem mãe, sem
genealogia” (Hb 5:10 e 7:3). Se a predileção que Jesus sente pelas parábolas
é por causa da energia verbal que elas criam para nos envolver em sua vida,
para nos tirar da reserva para participarmos ativamente do jogo, que "jogo”
Jesus está fazendo aqui no qual deseja nos ver engajados? Nenhum contexto
é fornecido para nos guiar na interpretação.
A primeira parábola, a do Próximo, estabelece a todos nós como próximos.
Próximo não é uma definição, mas uma “nova criação”. A vida na companhia
de Jesus não é um grupo de debate, mas um ato de tornar-se. A segunda pará-
bola, a do Amigo, impede que desenvolvamos um vocabulário e uma gramática
especiais para falar com Deus diferentes da linguagem que usamos para falar
uns com os outros. A oração, falar com Deus e escutá-lo, não é mais “espiri-
tual” do que as palavras e o silêncio que empregamos para nos relacionar no
mundo e uns com os outros. O modo de falarmos na companhia de Jesus não
é em nada diferente do modo de falarmos na companhia de nossos amigos.
Em outras palavras, se falamos na companhia de nossos amigos diferentemente
de como falamos na companhia de Jesus, profanamos a linguagem. A terceira
parábola, a do Construtor de um Celeiro, é uma história reveladora — uma
história que nos prende bem no ato de articular preocupações de elevado
interesse moral com uma cobertura para um pecado aviltante. E uma história
que penetra as camuflagens verbais e nos manda parar. Há abundância de
engano na e em torno da companhia de Jesus: esteja bem avisado. Mas e essa
quarta parábola? A história é breve.
78 A LINGUAGEM DE DEUS
“Um homem tinha uma figueira plantada à frente de sua casa. Aproximou-se
dela esperando encontrar figos, mas não havia nenhum. Ele perguntou a seu
jardineiro: Ό que está errado aqui? Faz três anos que venho agora a essa árvore
esperando figos e não encontrei nem um figo. Pode arrancar a figueira! Por que
desperdiçar uma terra boa com ela por mais tempo?’.
"O jardineiro disse: ‘Vamos dar-lhe mais um ano. Vou afofar a terra e cavarei
ao redor para pôr esterco. Talvez produza ano que vem; se não produzir, então
será arrancada’.”
[Lucas 13:6-9, tradução do autor]
* * *
# * *
morto (Lc 9:22,44). Assim, já estão bem advertidos. Ele lhes diz o mesmo
¡mediatamente antes de chegarem a Jerusalém (18:31-33). E, naturalmente,
como bem sabemos, a oposição e a hostilidade conseguem o que querem:
Jesus é morto.
Jesus enfrenta hostilidade em muitos trechos da estrada. Bem no com eço
da viagem ele é acusado de estar associado ao Diabo: "Mas alguns deles dis-
seram: Έ por Belzebu, o príncipe dos demônios, que ele expulsa demônios’”
(Lc 11:15). A região samaritana não é uma região amigável. Muitas vezes,
diferenças em torno do significado de Deus e da natureza da vida espiritual
irrompem em forma de violência. As guerras religiosas são comuns e singular-
mente sangrentas. O potencial de violência em torno de Jesus fica evidente
desde o primeiro instante. Assim, Lucas certifica-se de que prestemos aten-
ção à resposta que Jesus dá diante da violência (“Pode arrancar a figueira!”)
inserindo na narrativa de Samaria uma História de Esterco sem rodeios, sem
adornos, sem interpretações.
* * *
Jesus não é uma palavra num livro para ser lida e estudada. Não é uma pa-
lavra a ser debatida. Jesus é a “a Palavra [que] tornou-se carne”. Ele é a
Palavra viva, uma voz viva, a Palavra de Deus que assumiu a forma humana e
viveu num país de fato, a Palestina, no tem po real, o século I, e fez refeições
de pão, peixe e vinho com pessoas que tinham nomes (Maria e Marta, Pedro
e André, Tiago e João, para começar). Para poder responder com o se deve a
essa voz, essa Palavra-feita-carne, precisamos escutar e responder em nosso
bairro, enquanto com em os nossos ensopados de peixe com pirão a batatas, e
na companhia de pessoas que nos conhecem e cujos nomes nós conhecemos
(nosso cônjuge e filhos, amigos e companheiros de trabalho, para começar).
Nada que seja generalizado. Nenhum anônimo. Sem palavras descontextua-
fizadas ou silentes.
A comunidade cristã e seus líderes sabem muito bem disso. Sabemos que
sem vigilância podemos facilmente ser erodidos em infidelidade, levados a
traições impensadas, perder esse relacionamento com Jesus e com as pessoas
80 A LINGUAGEM DE DEUS
* * *
A parábola de Jesus contém uma pepita de memória sobre o que havia ocorrido
na história mais de setecentos anos antes, nessa mesma região samaritana pela
qual Jesus estava agora andando quando contou a história. O povo de Deus se
viu diante da invasão do impiedoso conquistador assírio Tiglate-Pileser III, que
se havia proposto criar um imenso império. N o final, tudo se mostrou bem
fácil para ele na Palestina, e assim tomou conta da maioria de suas cidades.
Poucos anos depois, após dois outros reinados (o ano era 721 a.C.), Sargão
II concluiu o trabalho destruindo a capital do Reino do Norte, Samaria, e
arrastando consigo a nata da população, 27.000 ao todo, deportando-os para
várias localidades da alta Mesopotâmia, onde por fim perderam sua identidade.
Jamais tivemos notícias deles outra vez.
Era política dos reis assírios da época substituir a população deportada
por povos conquistados de outras localidades que então se miscigenavam
com quem quer que tivesse sido deixado para trás. Era uma estratégia
brutal e im piedosa projetada para erradicar todos os vestígios do senso
nacional que fosse capaz de nutrir a resistência. No decurso de vários anos
sucessivos, as pessoas deportadas da Babilônia, de Hamate e de outros lu
ESTERCO 83
"Parem com essa história de abater os assírios. Deixem que eu cuido dos
assírios.” E então o seguinte:
Deus não terminou. Está esperando para ser gracioso com vocês.
Está juntando forças para mostrar-lhes misericórdia.
Deus se dá ao trabalho de ajeitar todas as coisas — todas as coisas.
Os que esperam por ele são os afortunados.
Isaías 30:18
Mas Israel não quis escutar. Não tinha paciência alguma com esterco. A
resposta dele à ameaça assíria foi “Pode derrubar a árvore”. Em sua impaci-
ência, destruiu tanto a si mesmo quanto o testemunho da salvação de Deus.
* * *
Esterco. Os salmos são orações desenvolvidas no solo de nossa vida para mode-
lar nossas imaginações e obediência de modo que vivamos de forma coerente
com a maneira em que Deus trabalha no mundo e em nós, trabalha em um
mundo de violência e antipatia sem se tornar violento. Uma das frases mais
repetidas, repetida por sermos tão impacientes, querendo logo “derrubar a
árvore e partir para a próxima tentativa”, é: “D eem graças ao SENHOR porque
ele é bom; o seu amor dura para sem pre” (SI 106:1; 107:1; 118:1 etc.). Seu
amor nunca cessa.
Esterco. Deus não tem pressa. Repetidas vezes recebemos a ordem de “es-
perar o Senhor”. Mas não é um conselho prontamente acatado por seguidores
de Jesus que foram condicionados por promessas de gratificação imediata,
quer americanos, quer assírios. Eugen Rosenstock-Huessy, um de nossos
grandes profetas isaiânicos da atualidade, o qual teve uma vasta experiência
com a violência nas duas guerras mundiais, escreveu: “A maior tentação do
nosso tem po é a impaciência, em seu significado original pleno: recusa por
esperar, submeter-se, tolerar. Parecemos indispostos a pagar o preço de viver
com nossos companheiros em relacionamentos criativos e profundos”.2 Como
Isaías, ele também foi desconsiderado.
ESTERCO 85
A História do Esterco corre solta durante toda a viagem por Samaria — como
acontece nas viagens pelos Estados Unidos. Está pronta para ser usada sempre
que nos vemos diante de animosidades, diante de antagonismos e de indigna-
ções impetuosas e estamos preparados para combater a oposição com violência,
seja verbal, seja física. Mas a história apresenta-se em sua manifestação mais
poderosa e incisiva nas palavras que Jesus proferiu na cruz.
Alguns dias depois que essa história havia penetrado a imaginação do grupo
de homens e mulheres que estavam seguindo a Jesus, Jesus entrou em Jeru-
salém. Antes de a semana terminar, ele estava pendurado na cruz do Gólgota.
Pilatos e Caifas, numa aliança ímpia, concordaram que Jesus tinha de ser
eliminado: ele era uma ameaça à paz precária que o exército romano estava
tentando preservar. Ele era uma ameaça ao negócio altamente rentável que
Caifás e seus adeptos inescrupulosos, os saduceus, controlavam a partir do
86 A LINGUAGEM DE DEUS
Era 1982, o quarto dia de nossa primeira viagem a Israel. Depois que nosso
voo da El Al aterrissou em Lod, tomamos um ônibus para Haifa e passamos
alguns dias no monte Carmelo explorando a região de Elias. Depois tomamos
um ônibus para o kibbutz N o f Ginnosar, na costa do lago da Galileia, onde
planejamos passar uma semana percorrendo as cidades, os montes e os campos
da Galileia. Separamos um dia para nos ambientar e planejamos visitar Nazaré.
Chegamos de ônibus bem cedo na manhã seguinte.
Passamos o dia em Nazaré procurando Jesus. Subimos e descemos as ruas
estreitas, sentimos as fragrâncias do mercado, entramos nas exíguas sinagogas.
E o vimos em toda parte: Jesus, aos oito anos de idade, chutando uma bola de
futebol na rua; o Jesus de três meses de idade em um banco perto de um poço,
sendo amamentado no peito por sua mãe; crianças num pátio comemorando
0 aniversário de Jesus aos seis anos de idade, sentado num trono temporário
com uma coroa sobre sua cabeça, os amigos dançando ao seu redor, cantando
e atirando confetes.
Foi um ótim o dia, cheio das vistas e aromas que enchiam nossa imaginação
com detalhes que Mateus, Marcos, Lucas e João tinham se esquecido de nos
dar. Sentados num banco, aguardamos um ônibus de volta ao kibbutz. Depois
de mais ou menos meia hora, um motorista de táxi que, todo o tem po em
que estávamos lá, passou de um lado para o outro várias vezes, estacionou
perto de nós e perguntou para onde estávamos indo. Nós informamos. Então
ele disse que nos levaria. Agradecemos e dissemos que íamos esperar o ôni-
bus. Estávamos com um orçamento contado. Um táxi parecia um luxo que
não nos podíamos dar. Mas depois de termos ficado sentados lá por mais de
uma hora, com a perspectiva de não chegar ônibus ficando cada vez mais real
para nós, o taxista estacionou perto de nós de novo com sua oferta, e nós
tomamos o táxi.
88 A LINGUAGEM DE DEUS
Não me ocorreu naquele dia enquanto estávamos sendo recebidos como hós-
pedes por Sahil para almoçar naquele campo em algum lugar perto de Siló,
sendo testemunhas de sua hospitalidade a um desconhecido, e, aliás, não me
CONVERSA INFORMAL 89
ocorreu até o mom ento de escrever este livro, que aquela era a mesma região
samaritana que tão grosseiramente apedrejara Jesus e seus discípulos quando
ali entraram a caminho de Jerusalém. Em contrapartida, nossa primeira ex-
periência em Samaria foi de hospitalidade.
A falta de hospitalidade samaritana forneceu o episódio de abertura na
Narrativa da Viagem de Samaria que Lucas compôs. Talvez não deveria ser
surpresa para nós descobrir que a hospitalidade é um tema de destaque na
metáfora da Narrativa da Viagem que Lucas usa para nos fazer mergulhar
numa cultura e entre um povo que não compartilham das pressuposições e
das práticas de Jesus.
Jesus ensinava nas sinagogas e ensinava no templo, mas os ambientes de
hospitalidade pareciam ser os locais preferidos de Jesus para tratar das ques-
tões do reino. Todos os evangelistas dão conta de suas conversas informais ao
redor da mesa, mas há mais desses relatos em Lucas, histórias de Jesus em
conversa na hora das refeições. A mesa é foco da hospitalidade em todas as
culturas. Comer e falar andam juntos. Lucas aproveita isso ao máximo.
Às vezes Jesus é o anfitrião: alimentando cinco mil (Lc 9:10-17), hospe-
dando a Ultima Ceia (22:14-23). As vezes ele é o convidado: no jantar na casa
de Levi (5:27-32), em duas refeições com os fariseus (7:36-50 e 14:1-14), na
casa de Maria e Marta (10:38-41), na casa de Zaqueu (19:1-10), na terceira
aparição após a ressurreição (24:36-43). E às vezes, com o acontece na ceia de
Emaús, não dá para saber a diferença entre anfitrião e convidado (24:28-35).
E então há as quatro histórias de hospitalidade que Jesus entreteceu em
suas conversas informais ao redor da mesa. Todas ocorrem na Narrativa da
Viagem por Samaria: participar de uma refeição oferecida ao amigo inesperado
à meia-noite (Lc 11:5-8), a festa dando as boas-vindas ao pródigo (15:11 -32),
0 ensino sobre humildade dado durante uma refeição no sábado (14:1-14),
as desculpas grosseiras declinando o convite para o grande jantar (14:15-24).
As primeiras três histórias são exclusivas de Lucas; a quarta, uma variante de
uma história dada por Mateus em seu evangelho (22:1-10).
90 A LINGUAGEM DE DEUS
* * *
Certa vez, quando Jesus foi participar de uma refeição no sábado com um dos
principais líderes dos fariseus, todos os convidados tinham os olhos fitos nele,
prestando atenção a cada movimento. Bem diante dele havia um homem com
as juntas descomunalmente inchadas. Então Jesus pergunta aos estudiosos da
religião e aos fariseus ali presentes: “É permitido curar no sábado? Sim ou não?”.
Nada responderam. Então ele tomou o homem, curou-o e o enviou para que
seguisse o seu caminho. Então disse: “Existe alguém aqui que, se uma criança
ou animal caísse num poço, não se apressaria para retirá-lo ¡mediatamente, sem
se perguntar se era sábado ou não?”. Ficaram perplexos. Não havia nada que
pudessem dizer diante daquilo. Ele prosseguiu e contou uma história aos convi-
dados em torno da mesa. Tendo observado como cada um havia se acotovelado
para garantir um lugar de honra, ele disse: “Quando alguém o convida a jantar,
não tome o lugar de honra. Alguém mais importante que você pode ser convi-
dado pelo anfitrião. Então ele virá e chamará sua atenção na frente de todos:
'Você está no lugar errado. O lugar da honra pertence a este homem’. Cheio
de vergonha, você terá de se dirigir à última mesa, o único lugar que restou.
CONVERSA INFORMAL 9ו
* * *
* * *
A cena muda: Jesus e os fariseus agora estão sentados em torno de uma mesa
comendo a refeição do sábado à qual foram convidados por seu anfitrião. Jesus
acabou de ser tratado com uma grosseria inegável na estrada, vindo da sinagoga
para a casa onde estão tendo o jantar. E agora, parece, estão continuando sua
rudeza de sábado uns com os outros. Ninguém está dizendo nada a ninguém.
Mas Jesus observa que as ações dos que estão à mesa, tanto dos anfitriões
quanto dos convidados, falam mais alto que as palavras. Os convidados tinham
se empurrado e esbarrado para chegarem ao lugar de honra à mesa. A refeição
de sábado, sobretudo quando na casa de um dos principais líderes entre os
fariseus, é um lugar onde você pode ser reconhecido com o uma pessoa im-
portante. Quanto mais perto você está do anfitrião, mais importante você é.
Se você conseguir puxar um assento ao lado do anfitrião, você será a conversa
da cidade naquela semana.
Mas o anfitrião não é melhor que seus convidados. Jesus observa que to-
dos os que se assentam ao redor da tabela são "importantes” de uma forma
ou de outra. Talvez é por isso que a competição por ser notado como o mais
importante, ao menos naquele dia, foi tão intensa entre eles. O anfitrião cha-
mou esses convidados em particular porque tem planos de usar esses homens
94 A LINGUAGEM DE DEUS
* * *
* * *
para fazer por eles o que não podem fazer por si mesmos. Não poucos de nós
ficam tentando encontrar um meio de lidar com Deus sem ter de prestar aten-
ção ao próximo. Quando examinamos bem de perto demoradamente toda a
congregação, vemos que a maioria dos pecados espirituais, morais e emocionais
e as desordens sociais desenfreadas na população em geral continuam a forçar
sua presença, às vezes até mesmo florescendo, entre os eleitos.
Isso é conhecimento comum. Todos os experimentamos. Por isso a confis-
são coletiva de pecado é prática modelar toda vez que os cristãos se reúnem
para adorar. A linguagem é direta e sem espaço para rodeios: "erramos e nos
afastamos de teus caminhos como ovelhas perdidas. [...] Deixamos por fazer
aquelas coisas que deveriamos ter feito; e fizemos aquilo que não deveriamos
ter feito; e não há nenhuma saúde em nós. [...] ó Senhor, tem misericórdia
de nós, infelizes transgressores.2
"Infelizes transgressores” está sujeito a uma boa dose de edições criativas
por parte de nossos contemporâneos, mas uma coisa é certa: é um eufemis-
mo. Variações dessa oração básica de confissão de pecados ocorrem em quase
todas as congregações cristãs, pelo menos até recentemente. Ela nos mantém
honestos. Impede a idealização, a romantização ou a canonização prematura
de nossos companheiros cristãos em santos plásticos. Impede a desilusão
quando descobrimos que o homem e a mulher aos quais damos "a paz” há
anos é um adúltero ou um estelionatário. Cada pecado que se origina fora da
congregação, mais cedo ou mais tarde mostra-se dentro dela.
Mas há uma forma de pecado que floresce nas comunidades religiosas de
maneiras dificilmente possíveis fora dessas comunidades — começa em locais
de adoração. As comunidades religiosas fornecem as circunstâncias para essa
desordem espiritual, esse pecado, muito mais do que o mundo secularizado.
O nome com um para o pecado é justiça própria. Para firmar raízes, exige
0 solo de uma comunidade em que a retidão é honrada e perseguida. Sem
uma comunidade em que se praticam métodos justos, a justiça própria não
seria possível.
Na época em que Illich observava que o estabelecimento médico constituía
uma séria ameaça à saúde física dos americanos, eu estava assumindo meu
100 A LINGUAGEM DE DEUS
trabalho de pastor e observava o que nunca tinha levado a sério — que o esta-
belecimento religioso no qual eu agora tinha responsabilidades constituía uma
séria ameaça à fé cristã na forma de justiça própria. Eu estava percebendo que,
diferentemente dos pecados que uma congregação em adoração normalmente
percebe e dos quais se arrepende, a justiça própria quase nunca é reconhecida
no espelho. As vezes em outra pessoa, jamais em mim.
Esse fenômeno é tão comum, tão prejudicial, tão despercebido boa parte
do tempo, e portanto não observado a não ser nas formas estereotipadas das
charges, que pensei que precisava de um nome especial, “eusebigenia”, para
chamar atenção para ele. Estou cunhando a palavra numa analogia com o termo
médico “iatrogenia”. A palavra grega eusebeia significa "santo”, “reverente”,
“devoto”. Descreve uma pessoa que esteja levando uma vida consagrada, cheia
de fé e obediente diante de nosso Senhor: justo. E também usada em sentido
positivo nas Escrituras.
Mas a questão é a seguinte: essas pessoas caracterizadas por eusebeia têm a
tendência de pecar e de levar outros a pecar de maneiras que os que não têm
eusebeia — as pessoas que não dão a mínima para a justiça, mas estão sempre
em busca de mais dinheiro, mais prazer, melhor sexo e uma aposentadoria
segura, sem sentirem nenhuma vergonha disso e sem acharem que devam
explicações sobre seu estilo de vida — não são tentados. Ou seja, há certos
pecados simplesmente não acessíveis aos não cristãos, as pessoas de fora da fé.
Somente homens e mulheres que se tornam cristãos são capazes de cometer
e têm a oportunidade de cometer alguns pecados, com a justiça própria no
topo da lista. Tanto a capacidade quanto a oportunidade para a justiça própria
se expandem exponencialmente quando nos tornamos cristãos abertamente
professos, vivendo naquilo que todos diziam ser um país cristão.
Mas com o a justiça própria se transformou num clichê desbotado e ra-
ramente perm ite o autorreconhecimento, precisamos de toda a ajuda que
possamos ter para ver como funciona e quão facilmente podemos nos infectar
inadvertidamente. Seguindo o exemplo de Illich e seu diagnóstico da iatrogenia
que está flagelando nosso sistema de saúde, proponho o termo "eusebigenia”
para chamar nossa atenção e fazer soar o alarme a respeito desse pecado social
tantas vezes aprovado na comunidade cristã.
OS IRMÃOS PERDIDOS 101
***
Jesus conta uma história, uma de suas melhores, que nos envolve num autorre-
conhecimento de nossa justiça própria, o pecado da eusebigenia que de modo
mais ou menos inocente contraímos na igreja. A história é habilidosamente
construída e desempenha sua função quando nos estarrece com o fato de que
somos, na realidade, perdidos. Conhecer essa história e nela meditar é tanto
cura quanto defesa diante da justiça própria.
Lucas situa a história quase no centro de sua Narrativa da Viagem por
Samaria, destacando sua importância central àqueles de nós que estão seguindo
a Jesus em direção a Jerusalém. Eis a história:
religião não estavam contentes com isso, nem um pouco. Eles resmungavam:
"Ele acolhe pecadores e faz as refeições com eles, tratando-os como velhos
amigos”. A murmuração deles deu origem a esta história.
“Suponhamos que um de vocês tivesse cem ovelhas e perdesse uma. Você
não deixaria as 99 no deserto para ir em busca da perdida até encontrá-la? Uma
vez encontrada, pode ter certeza de que a colocaria sobre os ombros, jubilosos,
e ao chegar a casa chamaria seus amigos e vizinhos, dizendo: ‘Comemorem co-
migo! Encontrei minha ovelha perdida!’. Podem estar certos de uma coisa: há
mais alegria no céu pela vida resgatada de um pecador do que por 99 pessoas
boas que não precisam de resgate.
“Ou imaginem uma mulher que tenha dez moedas e perca uma. Não acen-
derá uma lâmpada e não limpará a casa, olhando em cada nicho e cantinho até
que a encontre? E, quando a encontrar, pode estar certo de que chamará os
amigos e vizinhos: ‘Comemorem comigo! Encontrei minha moeda perdida!’.
Podem estar certos de uma coisa: esse é o tipo de festa que os anjos de Deüs
dão toda vez que uma alma perdida se volta para Deus”.
Então ele disse: “Havia um homem certa vez que tinha dois filhos. O mais
novo disse a seu pai: ‘Pai, quero agora mesmo o que ainda estou pra receber’.
“Assim, o pai dividiu a propriedade entre eles. Não demorou muito e o filho
mais jovem fez as malas e partiu para uma terra distante. Lá, sem disciplina e na
dissolução, esbanjou tudo o que tinha. Depois que acabou todo o seu dinheiro,
houve uma severa fome por todo aquele país, e ele começou a se prejudicar.
Ele conseguiu trabalho com um cidadão lá que lhe designou a seus campos para
dar comida aos porcos. Tinha tanta fome que comería as espigas de milho da
comida dos porcos, mas nem isso ele recebia.
“Isso o fez voltar ao juízo. Ele disse: ‘Todos aqueles agricultores que traba-
lham para meu pai sentam-se à mesa para três refeições diárias, e aqui eu estou
morrendo de fome. Vou voltar para o meu pai. E direi a ele: Pai, pequei contra
Deus, pequei contra você; não sou digno de ser chamado seu filho. Pode me
contratar como empregado’. Levantou-se naquela hora e foi para a casa do pai.
“Quando ainda lhe faltava muito para chegar, seu pai o avistou. Com o
coração pulsante, ele correu para fora, abraçou-o e beijou-o. O filho começou
seu discurso: ‘Pai, pequei contra Deus, pequei contra você. Não mereço jamais
de novo ser chamado seu filho’.
Mas o pai nem ouvia. Chamou os servos: ‘Rápido. Tragam uma muda limpa
de roupa e vistam-no. Ponham o anel da família sobre seu dedo e sandálias em
OS IRMÃOS PERDIDOS 103
seus pés. Depois tomem um bezerro bem alimentado com cereais e assem-no.
Vamos festejar! Vamos ter momentos maravilhosos! Meu filho está aqui — dado
por morto e agora vivo! Dado por perdido e agora encontrado!’. E começaram
a passar momentos maravilhosos.
"Todo esse tempo, seu filho mais velho estava lá fora, no campo. Quando
acabou o dia de trabalho, ele chegou de volta. Ao aproximar-se da casa, ouviu
a música e as danças. Chamando um dos servos da casa à parte, perguntou o
que estava acontecendo. Ele disse: ‘Seu irmão voltou para casa. Seu pai mandou
que se fizesse uma festa — com direito a churrasco de novilho! —, porque ele
está de volta a casa, são e salvo’.
“O irmão mais velho saiu amuado e irritado e recusou a entrar e se unir
a eles. Seu pai saiu e tentou falar com ele, mas ele se recusava a escutar. O
filho disse:
“— Veja quantos anos permanecí aqui servindo-o, jamais lhe dando um
momento de dor, mas você alguma vez deu uma festa para mim e para meus
amigos? Então esse seu filho que jogou fora seu dinheiro em prostitutas aparece
e vocês se lançam a festejar!
“Seu pai disse:
"— Filho, você não compreende. Você está comigo o tempo todo, e tudo o
que é meu é seu — mas esse é um momento maravilhoso, e tínhamos de come-
morar. Esse seu irmão estava morto, e está vivo! Esteve perdido, e foi achado!”.
Lucas 15
***
Quatro mini-histórias (não três, que é a contagem usual) compõem essa pa-
rábola. E são dispostas numa intensificação em espiral.
A primeira história conta cem ovelhas: uma dentre cem se perde. O pastor
sai em busca da ovelha perdida, a encontra, a traz de volta e chama seus amigos
e familiares para se alegrarem com ele.
A segunda história conta dez moedas: uma das dez se perde, e a dona da
casa parte em sua procura, encontra-a e chama os amigos e familiares para se
alegrarem com ela.
106 A LINGUAGEM DE DEUS
A terceira história conta dois filhos: um dos dois se perde, e o pai aguarda
seu retorno. O filho de fato retorna, e o pai dá uma festa de celebração.
Essa terceira história é mais elaborada que as duas primeiras: inclui detalhes
do ato de perder algo (de uma partida), as condições do que se perdeu, os
sentim entos de um relacionamento rompido, a emoção do encontro (e da
chegada a casa). Somos atraídos para a profundidade e para a dor do ato de
perder algo ou alguém. Uma pessoa perdida recebe mais atenção que um
animal perdido ou uma coisa perdida. Mas outra diferença é que o pai não
sai à procura do filho da mesma maneira que o pastor sai em busca da ovelha
e a dona de casa se lança em buscar a moeda. Ele sim plesm ente não sai em
busca do filho, mas ainda assim está aguardando o retorno do filho. O pai o
enxerga bem de longe e corre para saudá-lo e dar-lhe as boas-vindas.
Aparentemente não saímos à procura de um filho (ou pessoa) perdido da
mesma maneira que procuramos um animal ou uma moeda. E necessário algo
mais que uma vigorosa energia. Algo não menos energético, contudo passivo
— energia passiva. Há situações em que nossas passividades tomam o lugar
de nossas atividades.
A espera fornece o mom ento e o espaço para que as pessoas se engajem na
salvação. A espera pede um intervalo, põe-nos na reserva por um tempo, de
modo que não atrapalhemos operações essenciais do reino de Deus que nem
sabemos mesmo que estejam ocorrendo. Não fazer nada implica um m eio de
isolar o meu ego, minha compreensão ainda imatura da maneira em que Deus
trabalha abrangentemente, mas sem forçar seu caminho, sem coerções. O freio
da passividade dá lugar às calmas e invisíveis complexidades características do
Espírito Santo, enquanto ele realiza sua obra em nós, na igreja e neste mundo
pelo qual Cristo morreu. “A renúncia... é uma virtude corrosiva”.4 Não podería
ter sido fácil para o pai não sair em busca de seu filho como o pastor procurou
sua ovelha e a mulher procurou sua moeda. Nem todos os filhos, filhas, amigos
e “não salvos” perdidos podem ser encontrados convocando-se uma equipe
de busca e resgate. E necessário discernimento.5
OS IRMÃOS PERDIDOS 107
* * *
Depois, com as defesas da justiça própria em baixa, Jesus desliza para uma
quarta história. Essa é a história de outro filho perdido. Mas esse filho está
108 A LINGUAGEM DE DEUS
três vezes perdido: perdido para seu pai, perdido para seu irmão e perdido
para a comunidade de celebração. Um filho que jamais fez nada que chamasse
a atenção por ser errado, que cumpriu as regras, que trabalhou arduamente
na fazenda. E ainda isto: o pai, que há anos espera o retorno do filho mais
novo, imediatamente sai à procura desse filho mais velho, encontra-o e insiste,
implora com ele para que se una à celebração. O verbo é parakalei. E uma
palavra que expressa um vir ao lado, junto de. Palavras de sutil persuasão, de
convite, de boas-vindas, de incentivo que nos atraem para a comunidade que
canta, festeja e se congratula com o perdido e achado. Esse é o verbo associado
primeiramente com o Espírito Santo, o Paráclito — o Deus que vem ao nosso
lado, atraindo-nos para a comunidade dos perdidos e achados.
Jesus não fornece uma conclusão para essa quarta história. As três primei-
ras histórias são contadas com uma estrutura semelhante e um fim idêntico:
perdido, seguido de busca, seguida de encontrado, seguido de celebração. A
quarta história segue uma estrutura idêntica: perdido, busca, encontrado.
Mas não há nenhum desfecho, nenhuma celebração. Não ficamos sabendo
se o irmão mais velho se deixa ser encontrado e participa da celebração. E a
mesma história do perdido e achado, mas sem um fim. Uma história sem fim
convida o ouvinte ou leitor a fornecer o fim.
Aqui está o meu. No acúmulo constante das histórias de perdidos e acha-
dos, cada história seguinte ajusta o foco: uma de cem , uma de dez, um de
dois — agora chegamos a somente um. Todos os olhares se voltam para esse
um, o irmão perdido que restou. Jesus para de falar. Silêncio.
O que acontece com esse último perdido? Jesus não vai terminar a histó-
ria? O silêncio desenvolve o suspense. O silêncio torna-se incômodo, depois
insuportável e, por fim, sísmico.
Num choque de reconhecimento, um dos murmuradores — um fariseu?
Um estudioso da Bíblia? — capta: "Eu sou o irmão. Esse sou eu! E estou per-
dido muito mais que todos os outros. Eu sou esse. E fui encontrado! O Pai
encontrou-me”.
E depois outro, e outro, e outro, à medida que as placas tectónicas se
deslocam profundamente abaixo de seus pés. Tudo o que sobra da justiça
própria são escombros.
OS IRMÃOS PERDIDOS 109
* * *
e nos encontra “tal qual estou, sem demorar”, e nos restaura a seu rebanho, a
sua bolsa, a sua família, com todos os anjos do céu regozijantes.
Em toda parte e em todas as ocasiões aprendemos a subm eter-nos às
condições da história de Jesus e ao conselho dos guias sábios no caminho
cristão que nos dizem que não podemos criar justiça pelas nossas atividades
ou nossos m oralism os, mas devem os con tin uam en te readentrar o que
Kierkegaard chamou “o poder preparador do caos”, que João da Cruz cha-
mou “a noite escura da alma”, e um escritor inglês anônimo denominou “a
nuvem do desconhecido”.
capítulo 8
O astuto
Lucas 16:19־
A historia de Jesus acerca dos irmãos perdidos — o pródigo e seu irmão — está
entre as prediletas de todos os tempos, contada e recontada através de gera-
ções. Em contrapartida, a historia que se segue imediatamente leva o prêmio
de ser a mais desconsiderada — ou, se não desconsiderada simplesmente, de
todo descartada. Sua própria falta de popularidade lhe confere um caráter
diferente que com pele nossa atenção.
Os acadêmicos, embora nem todos, de forma sistemática tiveram proble-
mas com ela. Rudolf Bultmann, a quem muitos consideram o comentarista
por excelência do século 20, declarou ser a parábola incompreensível.1 Mas
ainda que não seja tida por incompreensível, é sem dúvida alguma singular.
Eis a história:
Jesus disse a seus discípulos: “Havia certa vez um homem rico que tinha um
gerente. Ele tomou conhecimento de que seu gerente vinha tirando vantagem
de sua posição contraindo altas dívidas. Então ele o chamou a sua presença e
disse-lhe: Ό que é isso que estou ouvindo sobre você? Você está despedido. E
quero uma auditoria completa de seus livros’.
“O gerente disse para si mesmo: Ό que é que eu vou fazer? Perdi meu
trabalho como gerente. Não sou forte o bastante para um trabalho braçal, e
sou orgulhoso demais para pedir esmolas... Ah, eu tenho um plano. Vou fazer
o seguinte... assim, quando eu estiver no olho da rua, as pessoas me aceitarão
em suas casas’.
“Depois ele começou a pô-lo em prática. Um após o outro, ele chamou as
pessoas que estavam devendo a seu patrão. Ele disse ao primeiro:
“— Quanto você deve ao meu senhor?
“Ele respondeu:
"— Cem vasilhas de azeite de oliva.
“O gerente disse:
“— Aqui, tome sua conta, sente-se aqui — rápido agora — escreva cinquenta.
“Ao seguinte disse:
112 A LINGUAGEM DE DEUS
***
À primeira leitura (ou escuta), as duas histórias parecem vir de mundos dife-
rentes. A história dos irmãos perdidos e seu pai paciente e compassivo toca
em emoções profundas dentro de nós. Um pai com dois filhos, ambos os quais
o tratam muito mal. O filho mais novo, pela traição cruel e insensível; o mais
velho, por sua fria justiça própria, incrustada, rígida, reservada. O pai recebe
os dois com boas-vindas pungentes, compassivas, inclusivas, reconciliadoras.
Amamos essa história. Nunca nos cansamos dela. A pintura que Rembrandt
fez dessa história ainda nos comove. Mas a segunda história não suscita em
nós nada dessa compaixão familiar de arrebatar o coração.
Ainda assim, há semelhantes impressionantes nas duas histórias. Em Lucas
15, o filho lança-se à misericórdia de seu pai. Em Lucas 16, o gerente lança-se
à misericórdia de seu patrão. Tanto o filho quanto o gerente estão em dificul-
dades desesperadoras e não têm nada que conte a seu favor a não ser uma vida
desperdiçada e mal vivida. Um meteu os pés pelas mãos como filho; o outro
meteu os pés pelas mãos como gerente.
Tanto o filho quanto o gerente traem uma confiança. A identidade essencial
de cada um foi desperdiçada, e não têm nada que conte a seu favor. Nem o
O ASTUTO 113
***
***
Poucos anos mais tarde, enquanto lia um livro, minha introspecção na história
de Jesus naquela calçada do Johns Hopkins foi confirmada e aprofundada. O
livro foi escrito por Kenneth Bailey, então catedrático da Near Eastern School
of Theology [Nova Escola Oriental de Teologia], de Beirute. Ele passou toda a
sua vida vocacional no Oriente Médio (Líbano, Egito, Síria, Iraque e Palestina),
não apenas ensinando na sala de aula, mas também mergulhando nas línguas e
nos costumes dos camponeses, cuja forma de vida preserva fortes laços com
0 mundo neotestamentário do século I. A familiaridade de Bailey com essa
cultura campesina nos permite avanços novos e, em alguns casos, inigualáveis
na forma com que recebemos as parábolas de Jesus. Para mim, e para muitos
de meus amigos, ele passou a ser professor por excelência das parábolas de
Jesus. Nosso mais profundo estudioso do Novo Testamento, N. T. Wright,
comentou que Bailey “tem sido com o vista aos cegos” para todos nós que
lemos as parábolas de Jesus.2 Foi o que fez para mim ao reimaginar Lucas 16,
a história do astuto, a qual “elogia um salafrário [e] tem sido uma vergonha
para a igreja pelo menos desde que Juliano, o Apóstata, usou a parábola para
afirmar a inferioridade da fé cristã e de seu fundador”.3
Usando sua compreensão precisa da cultura que serve de base para aque-
le texto, Bailey deslinda as tradições populares e campesinas da cultura e
116 A LINGUAGEM DE DEUS
foi estudada infinitas vezes por homens e mulheres numa busca desesperada
por encontrar aqui alguma lição moral edificante, a fim de salvar Jesus de
elogiar um trapaceiro por ser um trapaceiro bem esperto, transforma-se em
uma história sobre a aceitação da salvação, o tipo de história que se acha bem
no cerne da boa notícia de Jesus.
***
muito mais difícil tornar uma pessoa boa atraente e interessante do que a
um patife ou a um embusteiro.
A história de Jesus sobre o homem astuto resgata esse conjunto de palavras
de sabedoria que muitas vezes se embotam em um tipo de presunção e de
insípida decência chamando o astuto de prudente. “Prudente” em nossa língua
denota cuidado e cautela, pisar em ovos, não se arriscar muito. A história sobre
0 astuto mostra o comportamento de um homem que escapa por um triz de
uma vida de cálculos em benefício próprio e se descobre desfrutando de uma
generosidade do tamanho do mundo — de Deus. Deus é aquele com quem
agora ele tem de se haver. A ação generosa de Deus define sua vida, não seus
planos obsessivos, sua defraudação e adulteração da contabilidade.
Jesus nos veio salvar a alma. Veio também salvar nossas palavras. A palavra
e as palavras estão bem no cerne da autorrevelação de Deus para nós. Se as
palavras forem prejudicadas pelo uso descuidado ou pernicioso, ou se forem
abandonadas carecendo de reparo, ou se ficarem incrustadas de craca pelas
más companhias, os detalhes afiados da revelação de Jesus ficam embotados.
A linguagem descuidada no serviço de Jesus é a responsável por uma quanti-
dade enorme de danos, em pé de igualdade com a mentira descarada como
impedimento para ouvirmos e respondermos à mensagem da boa notícia de
Deus para nós.
E assim é necessário atenção vigilante e constante para manter nossa lingua-
gem em bom estado de reparo. As palavras desgastam-se. Perdem a textura,
e as cores desvanecem. Precisam ser recondicionadas, reabilitadas, renova-
das. Seja por mau uso, seja por excesso de uso, muitas vezes palavras antes
vigorosas acabam embotadas e insípidas. Nós que usamos a linguagem temos
uma responsabilidade de lhes devolver a agudeza, limpando-as, esfregando o
encardimento das associações indevidas. A maioria de nós presta mais atenção
a manter limpos pratos, facas e garfos que usamos para nossas refeições do
que a manter em bom estado as palavras que usamos para comunicar nosso
amor, nossas promessas, nossos compromissos e nossas lealdades.
No espirituosamente profundo Cartas do inferno, de C. S. Lewis, o chefe
dos demônios, o Morcegão, escreve a seu demônio-aprendiz, o Cupim, que
um dos departamentos mais importantes do inferno é seu braço filológico.
120 A LINGUAGEM DE DEUS
“Nosso pai de baixo” tem uma equipe de hábeis gramáticos que diligente-
mente corroem e depois arruinam as palavras. Eles têm um interesse especial
em trabalhar nas palavras que a comunidade cristã usa em suas conversas e
testemunho. Percebemos em nosso mundo contemporâneo como trabalharam
muito bem em cima de "arrependam-se”, introduzindo figuras caricatas de
homens encurvados carregando cartazes nas esquinas das cidades, e em cima
da palavra "salvar”, espremendo-a numa senha que o põe dentro do céu, e
reduzindo-se “fazer o amor” ao intercurso sexual.
"Prudente” e o conjunto das palavras de sabedoria que a cercam são
também vitais demais para ficarem restritas a um uso secundário. Mas com
certeza precisam ser recondicionadas. Jesus consegue reavivar essas palavras
e fazê-las funcionar outra vez, não nos mandando para um dicionário a fim
de rastrear sua origem etimológica, mas pondo-as numa história na qual não
é possível perder de vista a natureza robusta que irrompe em uma resposta a
Jesus cheia de surpresa.
capítulo 9
O homem invisível
Lucas 16:1931־
***
“Havia certa vez um homem rico, o qual se vestia de forma cara e seguindo
a última moda, desperdiçando seus dias em inegável consumo. Um homem
pobre chamado Lázaro, coberto de feridas, tinha sido despejado em sua porta.
Por toda a vida, ele vivia para conseguir tirar uma refeição das sobras do rico.
Seus melhores amigos eram os cães que vinham lamber suas feridas.
“Então ele morreu, esse pobre homem, e foi levado pelos anjos para o
seio de Abraão. O rico também morreu e foi sepultado. No inferno e no tor-
mento, ele olhou para cima e viu Abraão à distância e Lázaro em seu regaço.
Então clamou:
“— Pai Abraão, misericórdia! Tenha misericórdia! Envie Lázaro para molhar a
ponta do dedo na água para molhar minha língua. Estou agonizando neste fogo.
“Mas Abraão disse:
"— Filho, recorde-se de que em toda a sua vida você teve o que era bom e
Lázaro ficou com a pior parte. Aqui não é assim. Aqui ele é consolado, e você,
atormentado. Além de tudo o mais, em tudo isso há um enorme abismo entre
nós, de modo que ninguém pode ir de nós até você ainda que quisesse, nem
ninguém pode cruzar de onde vocês estão para cá.
“O rico disse:
“— Então permita-me pedir-lhe, Pai: envia-0 à casa de meu pai, onde tenho
cinco irmãos, para que ele possa contar-lhes toda a verdade e adverti-los, para
que não acabem aqui neste lugar de tormento.
“Abraão respondeu:
"— Eles têm Moisés e os Profetas para contar-lhes a verdade. Que eles
os ouçam.
“— Eu sei, pai Abraão — disse ele —, mas não estão escutando. Se alguém
saísse dos mortos e fosse até eles, eles mudariam seus caminhos.
124 A LINGUAGEM DE DEUS
"Abraão respondeu:
"— Se não querem escutar Moisés e os Profetas, não se convencerão por
alguém que ressurge dos mortos”
Lucas 16:19-31
* * *
Lázaro é um homem invisível. O rico é bem visível e por sinal bem audível,
resplandecente em suas roupas da moda, com os sons e os aromas de uma festa
contínua que ele dá em seu lar-troféu — risos, danças e fartura de comida.
Ninguém pode perder a presença do rico naquela vila. Cada aparência, cada
bisbilhotice, cada boato adiciona peso a sua importância. A própria existência
dele confere eminência à comunidade inteira. Seu status de celebridade, mui-
to à semelhança de uma equipe esportiva em época de campeonato, confere
brilho, ainda que de segunda mão, a todos os espectadores comuns, de pouca
importância, tediosos, mas espectadores admirados e invejosos, que pelo
próprio fato de serem comuns são excluídos do círculo mágico desse homem.
E Lázaro é invisível. Ninguém enxerga Lázaro. Em sua invisibilidade, ele
compartilha do destino dos pobres, dos doentes, dos explorados e de todos
os “infelizes da terra”. Cada sociedade encontra sua forma de fechar os
olhos, põe dedos nos ouvidos e pelo uso extravagante de desodorantes e de
caminhões de lixo para se livrar do cheiro da deterioração, da sujeira, do mau
odor e da miséria. Colocamos nossos doentes nos hospitais, nossos idosos em
asilos, nossos pobres em cortiços ou favelas e nosso lixo em aterros sanitários.
Nunca temos total sucesso em mantê-los fora da vista, do olfato e da audição,
mas fazemos o melhor possível. De vez em quando, um romancista ou poeta,
um jornalista ou pregador, faz o melhor possível para esfregar o nosso nariz
em tudo isso. Mas, de modo geral, desviar nosso olhar, silenciando os sons
e higienizando o ambiente, conseguimos bastante bem não enxergar, ouvir,
cheirar ou tocar Lázaro.
Tenho uma boa amiga, Karen, que atuava como jornalista no jornal de nossa
pequena cidade. Vários anos atrás uma exposição dos magníficos tesouros do
rei egípcio da Antiguidade, faraó Tutancâmon, estava numa turné pelos Estados
O HOMEM INVISÍVEL 125
* * *
Alguns anos antes de Jesus contar essa história, clamou em seu sermão inau-
gural: “O Reino de Deus está próximo. Arrependam-se” (Mc 1:15). O longo
exílio de Israel acabou. Ele está reunindo os exilados para participar de uma
nova forma de vida, um novo governo, uma inversão radical “das coisas como
elas são”. Ele está a caminho de Jerusalém, recrutando seguidores ao longo do
caminho para participarem com ele do novo governo, do novo jeito do reino
de fazer as coisas. Está dando as boas-vindas a todos os que têm "ouvidos para
ouvir”, mas está também deixando o mais claro possível que está terminando
a agenda daquilo que Isaías do Exílio mais ou menos quatrocentos anos antes
pregou como boa notícia a sua congregação de exilados:
***
***
Ao contar a história de Lázaro, Jesus usa uma velha lenda egípcia com varían-
tes bem conhecidas na Palestina dos tempos de Jesus. O enredo básico conta
a trajetória do deus Si-Osíris ao submundo, onde observou o destino de um
rico e de um homem comum, destino esse retratado como uma inversão de
sortes, o funeral do rico sem a presença de amigos e o homem comum se-
pultado em grande pompa. Há recontagens dessa história básica na Palestina.
Os ouvintes de Jesus deviam conhecer bem a lenda, na qual Jesus insere os
nomes de Abraão e Lázaro, personalizando a história egípcia para seus ouvintes
judeus e samaritanos.
Jesus também reconta a história de tal maneira que desloca seu sentido do
pós-vida para esta vida atual. E o faz acrescentando um epílogo à velha lenda
que radicalmente muda a intenção. Começamos supondo que estamos escutando
0 HOMEM INVISÍVEL 129
uma história sobre Lázaro. Mas quando a história termina percebemos que
Lázaro era apenas um cenário: essa é uma história sobre os irmãos do rico. Essa
é a conclusão. Simplesmente não tínhamos como prever isso (nem os ouvintes
de Jesus), mas agora captamos: é nessa direção que a história se encaminhou
0 tempo todo. O que vai acontecer aos cinco irmãos?
A história de Jesus tornou o invisível Lázaro visível às próprias pessoas da
multidão que som ente tinham olhos para o rico e seu séquito de aproveita-
dores. Então será que seus ouvintes também se veríam da mesma maneira
nos cinco irmãos? E será que responderíam aos imperativos inaugurais de
Jesus — “Arrependam-se” (M t 3:2) e “Sigam-me” (4:19) — que reverbe-
ram nos interstícios de todas as histórias de Jesus nesta viagem metafórica
por Samaria?
Joachim Jeremias, um de nossos maiores estudiosos das parábolas de Jesus,
é de opinião que um nome melhor para a história de Lázaro seria “Parábola
dos Seis Irmãos".4 Ou, talvez, “Parábola dos Cinco Irmãos”, aproveitando a
ambiguidade em torno do irmão mais velho do pródigo e aplicando-a também
na história de Lázaro. Será que o irmão mais velho se arrependeu e uniu-se à
celebração de ressurreição — ou não? Será que os cinco irmãos se arrependerão
e se unirão à celebração de ressurreição — ou não?
O tema da ressurreição está inequivocamente presente nessa recontagem
subversiva da velha lenda egípcia, transformando-a de uma lição moral e ética
sobre o rico e o pobre e uma especulação sobre o pós-vida em uma percepção
de que a ressurreição está ocorrendo por toda parte ao redor de Jesus. Mas
é necessário um ato de arrependimento para escancarar esses olhos. Se você
somente tiver olhos para o rico, permanecerá cego para Lázaro.
Por se essa a única parábola dos Evangelhos em que alguém é identificado
pelo nome, a história em João da ressurreição do homem que carrega o mesmo
nome, Lázaro, ganha atenção. O pai da igreja primitiva Orígenes é o primeiro de
que temos conhecim ento a propor uma ligação entre as duas histórias. Há
alguma relação entre a lenda desse Lázaro e a do Lázaro amigo de Jesus? Não
há nenhuma resposta definitiva a essa pergunta, mas apenas fazer a pergunta
ajuda a manter a dinâmica do arrependimento diante de nós. Quando o rico
pede a Abraão que Lázaro seja enviado para advertir seus cinco irmãos porque
130 A LINGUAGEM DE DEUS
“Se alguém saísse dos mortos e fosse até eles, eles mudariam seus caminhos”,
Abraão lhe diz: “Se não querem escutar Moisés e os Profetas, não se conven-
cerão por alguém que ressurge dos mortos" (Lc 16:30-31). Aqui estão duas
palavras: “arrepender-se” e "ressurgir” (ressurreição).
A parábola de Lázaro mostra que a ressurreição em si não produzirá arre-
pendimento; a ressurreição do Lázaro de carne e osso é uma confirmação disso.
Pior ainda, não apenas a ressurreição falha em garantir o arrependimento; ela
provocou mais dureza de coração — descrença assassina. A ressurreição de
Lázaro, embora crida por alguns, acabou se mostrando a gota d ’água que pôs
em andamento o plano que acabou desembocando na crucificação de Jesus.
“E daquele dia [dia em que Lázaro ressurgiu] em diante, resolveram tirar-lhe
[de Jesus] a vida” (Jo 11:53).
Tampouco a ressurreição de Jesus mais ou menos dez dias depois resultou
em algo como um avivamento de arrependimento de âmbito nacional.
* * *
seu lanche, arrume seu quarto, ame a Deus, ame seu próximo. O imperativo
chama a atenção, facilmente compreendido, não exige explicação. E, pelo
menos a curto prazo, é geralmente eficaz.
A ordem do policial naquela estrada na encosta da montanha naquele dia
fez tudo isso: prendeu minha atenção, me fez entrar no carro e me pôs em
movimento. O que não fez foi tornar-me participante do que estava aconte-
cendo. Nem era a intenção — pretendia o oposto: impedir que eu participasse
do que estava acontecendo. Mas o que me interessa não é o imperativo iso-
lado que prende minha atenção e me põe em movimento, mas como ele se
desenvolve em indicativos e subjuntivos, imperfeitos e perfeitos, toda uma
gama de participações numa frase, na vida.
O que teria acontecido, por exemplo, se aquele policial tivesse enviado um
de seus subordinados até mim para me dizer: “Precisamos de ajuda para retirar
o corpo. Tudo o que você está fazendo ao olhar por esse binóculo é atrapalhar.
Você pode nos ajudar? Precisamos de ajuda com as cordas”.
Não consigo imaginar não fazer isso. Não seria muito, apenas segurar ou
puxar uma corda. E não exigiría nenhuma habilidade. Então eu faria parte da
história, e não seria um mero espectador atrapalhando.
* * *
* * *
Jesus contou-lhes uma história mostrando que era necessário que orassem cons-
tantemente e sem cessar. Ele disse: “Havia certa vez um juiz em uma cidade que
jamais pensara sobre Deus e não se importava em nada com as pessoas. Uma viúva
naquela cidade vivia atrás dele: ‘Meus direitos estão sendo violados. Proteja-me!’.
A VIUVA 137
"Ele nunca lhe deu conversa. Mas, depois que isso se repetiu inúmeras
vezes, ele disse para si mesmo: 'Não dou a mínima para o que Deus pensa,
muito menos para o que as pessoas pensam. Mas, como essa viúva não para
de me importunar, é melhor eu fazer alguma coisa e garantir que ela receba
justiça — caso contrário, vou acabar destruído pelas suas pancadas’.”
Então o Mestre disse:
“Vocês ouvem o que esse juiz, por mais corrupto que seja, está dizendo?
Então, o que os faz pensar que Deus não vai entrar em cena e não vai garantir
a justiça para seus escolhidos, que continuam a clamar por socorro? Será que
ele não vai defendê-los? Eu lhes asseguro que sim. Ele não arrastará os pés.
Mas quanto desse tipo de fé persistente o Filho do Homem achará na terra
quando retornar?”.
Lucas 18:1-8
***
A maioria das pessoas, talvez todas, uma vez ou outra, oram. E muitas — quem
sabe quantas? — desistem. E por que não deveriam? Se não conseguem o que
pedem, se não recebem o que concebem como “resposta”, por que insistir? O
mais notável na oração não é o fato de que tantos oram, mas que alguns de nós
persistam em oração. Por que insistimos? Por que continuamos a orar quando
temos tão poucas provas de sua eficácia? Todos os que fizeram da oração uma
prática conhecem o sentimento, desalentador às vezes, de que a oração é um
balde furado. Você vai até o rio pegar um balde de água e, quando chega em
casa, a água já se foi, o balde vazio, e tudo o que resta para mostrar o seu
esforço é um rastro de umidade que logo o sol vai secar e fazer desaparecer.
Não admira nem um pouco que Jesus tenha encerrado sua história com 0
aforismo: “Mas quanto desse tipo de fé persistente o Filho do Homem achará
na terra quando retornar?”. O que significa dizer: “Ele encontrará homens e
mulheres que ainda estarão orando, que não terão desistido, que não terão
desanimado?”. Essa “fé ” não é uma abstração generalizada, mas uma forma de
vida que é expressa em oração persistente. A palavra “fé ” no grego é acompa-
nhada de artigo definido, a fé, a vida de fé que abraça e ora todas as práticas
da fé e se mantém com Jesus enquanto ele convida seguidores para entrar no
reino e lhes dá as boas-vindas.
A realidade é que aqueles que se mantêm nessa vida de fé de seguir a Jesus,
orando o que vivem e vivendo o que oram, aprenderam a lidar com aquilo
que nossos sentimentos não instruídos interpretariam como uma ausência de
resposta da parte de Deus, o silêncio de Deus.
Aprendemos por experiência que o silêncio de Deus diante de nossas ora-
ções não se deve a alguma impotência de nossa parte, alguma falha técnica na
maneira em que oramos que pode ser consertada desde que consigamos pôr
as mãos no manual certo de oração. O silêncio de Deus é uma experiência
repetida e com um entre os que oram. Se houver qualquer coisa com o um
livro oficial de oração, esse livro é Salmos. Essas são as orações que nos dão
acesso ao mundo com plexo e intricado da linguagem que nossos antepassados
que oravam usavam para responder à palavra de Deus para eles. E acabamos
por perceber que o silêncio de Deus faz parte disso. As pessoas que oram são
profundamente experimentadas no silêncio de Deus.
A VIÚVA 139
“Por que, por que, por quê?” “Q uanto tem po, quanto tem po, quanto
tempo?”
As pessoas que oram sabem como é não ouvir nada em resposta. As pessoas
que oram não conseguem o que pedem quando pedem. As pessoas que oram
se perguntam muito “Quanto tempo?” e "Por quê?”.
O importante, todavia, é que esses salmistas, nossos mestres da oração de
quem somos aprendizes na oração, continuavam orando apesar do silêncio.
Sabemos que continuavam orando porque tem os as orações deles compila-
das em Salmos para nos fazer mergulhar no mundo da oração. Geração após
geração de judeus e cristãos continua a orar e a cantar esses mesmos salmos,
orando e cantando as perguntas “Por quê?” e “Quanto tempo?", orando e
cantando em meio aos silêncios.
Como aquela viúva que não desanimou. Por que desanimamos?
***
fala conosco, ele envolve-se em nossa vida, ele envolve-nos em sua vida. Isso
tudo ocorre em pessoas citadas pelo nome e em lugares citados pelo nome. E
todo pessoal e local. Nunca chegamos a conhecer toda a história — uma razão
é que é demasiado grande e complexa. Uma vez que é Deus quem revela, há
necessariamente muitos mistérios que nunca compreenderemos. (U m deus
que você pode compreender não é Deus.) Mas são mistérios bons, iluminados,
não mistérios agourentos, manchados pelo mal. Palavras como “amor leal”,
“fidelidade”, “bênção”, “perdão” e “graça” são prodigamente empregadas du-
rante todas as histórias, orações, meditações e reflexões que revelam Deus. As
perguntas não respondidas que fazemos (as perguntas “Por quê?” e "Quanto
tempo?”), junto com qualquer possível silêncio, uma vez vistas de forma in-
tegrada na história que a tudo abrange do Deus bom, salvador, acolhedor, em
vez de diminuir nossa confiança básica, na verdade a expande para além das
margens do que somos capazes de absorver.
O esquete do juiz perverso na história de Jesus é tudo que sabemos que
Deus não é. Como fomos imersos em todos esses séculos de história e canção,
de oração e reflexão, reconhecemos imediatamente que esse juiz é uma paródia
perversa e grotesca do Deus que nos é revelado. O esquete do juiz perverso
nos dá um choque com a nova percepção de tudo o que sabemos que Deus
não é e quem sabemos que Deus é. Até agora, tendo estado em companhia
de Jesus, conhecemos o caráter e a obra do Deus que está conosco, o Deus
com quem nos relacionamos.
E por isso que nos mantemos em oração e não desanimamos. Agimos assim
porque sabemos que Deus é tudo o que o juiz perverso não é. Sabemos que
nem silêncio nem ausência são evidência de desdém ou indiferença.
*#*
E eis outra razão por que nos mantemos orando e não desanimamos. Sabemos
que esse negócio do reino é urgente — nós o ouvimos dos lábios de Jesus. O
reino não é um assunto que de vez em quando entra de novo na pauta do de-
bate. O reino é o que está acontecendo o tem po todo, quer estejamos cientes
dele, quer não. Mas é intenção de Jesus tornar-nos cientes dele. O reino requer
142 A LINGUAGEM DE DEUS
***
Uma observação final sobre a história de Jesus acerca da viúva. É possível ler a
história como uma ordem para ficar firme independentemente das circunstân-
cias. E alguns de fato a leem dessa maneira: orar porfiadamente por uma cura
específica, para permanecer em um casamento abusivo, orar pelo emprego dos
sonhos. Mas há mais cores na paleta da persistência na oração do que preto
e branco. E importante manter em mente o conselho de Evágrio, o Solitário,
um de nossos primeiros e mais persistentes mestres da oração:
A VIUVA 145
Muitas vezes em minhas orações orei pedindo o que achava que fosse bom, e
persistia em minha petição, estupidamente importunando a vontade de Deus,
e não deixando que ele ordenasse as coisas como sabe ser melhor. Mas, quando
obtinha o que pedia, ficava muito pesaroso de não ter pedido que a vontade
de Deus fosse feita; porque no final as coisas se mostravam diferentes do que
eu tinha imaginado. [...] Não se aflija se não receber imediatamente de Deus o
que pede. Ele deseja dar-lhe algo melhor — fazê-lo perseverar em sua oração.
Pois o que é melhor do que desfrutar do amor de Deus e estar em comunhão
com ele?2
Se pararmos para pensar por dois minutos, é óbvio que há muito mais no
interior de uma pessoa do que no exterior. A superfície visível de um corpo,
a pele, é minúscula se comparada ao que está no interior e jamais é visto: co-
ração, intestinos, veias e artérias, fígado, pulmões, cérebro, nervos, sangue e
ossos, vesícula biliar e rins, germes e parasitas. Um homem de noventa quilos
sem a pele pesaria pelo menos 89,5 quilos, com a pele sobre a balança não
pesando mais que meio quilo!
E isso naturalmente é só o físico. Há muito mais que não pode ser pesado:
pensamentos e conhecimento, sentimentos e humores, sonhos e visões, pala-
vras e números, orações e canções, fé, amor e esperança, hábitos e lembranças.
A maioria, aliás, de quem e do que somos não pode ser descoberta por meio
de dissecação e exame de nossas vísceras.
E preciso um contador de histórias1 para dar-nos acesso a tudo o que está
acontecendo — no redemoinho dos sons e do silêncio, do visível e do invisí-
vel, mesmo na mais deselegante das mulheres, o mais maçante dos homens.
O mesmo se dá no mundo não pessoal, a maioria do qual está oculto para
nós. Os cientistas têm por ocupação descobrir o que está abaixo e acima:
vastas galáxias no sistema solar, o solo, as rochas e a magma sob a superfície
da terra, as criaturas e as plantas dos oceanos, assim com o o abismo chama
outro abismo. Em vez de usarem a imaginação da interioridade do contador de
histórias, usam dispositivos altamente sofisticados, microscópios e telescópios,
radares e sonares, para dar sentido à história intricada do que está acontecen-
do ao nosso redor, sob e acima de nós — e têm ocorrido há bilhões de anos.
Os contadores de histórias ativam nossa imaginação para vermos e ouvir-
mos o que está sob a superfície da vida e nos envolvem nas muitas dimensões
do que está acontecendo por trás de nós ou virando a esquina. E preciso um
contador de histórias para revelar a beleza que deslumbra como “Em ouro ou
ouropel faísca o seu fulgor" (Gerard Manley Hopkins).2
148 A LINGUAGEM DE DEUS
Toda vez que Jesus conta uma história, o mundo daqueles que escutam se
amplia, a compreensão se aprofunda, a imaginação se energiza. Sem histórias
acabamos com estereótipos — uma terra chata com figuras chatas de cartolina
sem textura nem profundidade, sem interior.
* * *
Ele contou sua historia seguinte para alguns que estavam satisfeitos consigo
mesmos por causa de seu desempenho moral e olhavam com desdém e de
nariz empinado para as pessoas comuns: “Dois homens foram ao templo orar,
um deles, um fariseu, o outro, um coletor de impostos. O fariseu, cheio de
pose, orava assim: Ό Deus, eu te agradeço que eu não seja como as outras
pessoas — salteadores, trapaceiros, adúlteros, ou, valha-me Deus, como esse
publicano’. Jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de toda a minha renda.
“Nesse ínterim, o coletor de impostos, imerso nas sombras, com o rosto
enterrado nas mãos, sem ousar olhar para cima, disse: ‘Deus, concede a tua
misericórdia. Perdoa-me a mim, um pecador’.”
Jesus comentou: “Esse coletor de impostos, e não o outro, foi para casa
com as contas ajustadas com Deus. Se você andar com seu nariz empinado, vai
acabar com a cara estatelada no chão, mas, se estiver satisfeito de simplesmente
ser você mesmo, você se tornará mais do que é”.
Lucas 18:9-14
***
Jesus situa essa história no lugar da oração. Oração, essa arriscada aventura
universal na intimidade com Deus, tão básica e fácil de começar, mas tão di-
fícil de suster. Oração, esse desejo tantas vezes sufocado ou desviado de levar
uma vida que seja mais que mera aparência. Oração, descontentes de viver
meramente uma vida exterior de descrição de tarefas, de cor de cabelo e tez.
Oração, uma recusa de viver com o um estranho para o meu Deus e para a
minha própria alma. Oração, esse “melhor” que tão facilmente se corrompe
num “pior”, tendo sua rica maturidade interior deteriorada num sambaqui de
clichês falsamente piedosos.
Duas personagens em contraposição, um fariseu e um coletor de impostos,
fornecem a ação da história. Mas o que prende minha atenção no princípio
é o que eles têm em comum: os dois vão à mesma igreja (o templo), os dois
oram quando chegam lá e os dois são pecadores.
* * *
atuação, um lugar não diferente do tem plo em que Jesus situa sua história.
Talvez seja por isso que minha imaginação pastoral fica retornando a esses dois
homens que estão orando na igreja. E a única história contada por Jesus que
se situa em um lugar de adoração. Todas as suas outras histórias ocorrem em
cenários não religiosos, fazendas, jantares e casamentos, e empregam mais que
tudo um vocabulário não religioso do mundo dos negócios, de não pastores,
o próprio mundo em que os homens e as mulheres para os quais sou pastor
passam a maior parte de seu tempo.
Por isso, interesso-me de forma especial por esses dois homens, os dois
na igreja, os dois orando e os dois pecadores. Sempre volto para eles e reflito
sobre suas semelhanças e diferenças. Elaboro o que sei em um tipo de midrash
pastoral, um engajamento divertido com o texto que presta mais atenção ao
que está nas entrelinhas do que ao que está explicitado nas próprias linhas.
É uma maneira de ler o texto em que tanto se deleitavam os rabinos judeus
da Idade Média.
Já fui pastor de fariseus e de publícanos e ainda me recordo de muitos de
seus nomes. N em sempre é fácil distinguidos uns dos outros. Os fariseus na
maioria dos casos têm uma opinião muito boa sobre si mesmos. São responsá-
veis no trabalho, cuidam de suas família, guardam a maioria dos mandamentos
a maior parte do tem po, conhecem de perto a cultura da vida eclesiástica,
entregam sua oferta semana após semana no culto e geralmente aceitam po-
sições de liderança quando solicitados. Os coletores de impostos não são tão
diferentes na aparência, mas não têm uma opinião muito boa de si mesmos.
Muitos carregam enormes fardos de culpa do passado. Outros são atormen-
tados por pecados secretos, por vícios, por relacionamentos envenenados e
pela desesperança.
Conseguem manter boa parte disso escondida das pessoas, muitas vezes
de sua própria família. Geralmente frequentam a igreja aos trancos e barran-
cos. Alguns deles se saem muito bem no emprego, mas podem carregar uma
confusão de cicatrizes causadas por pais ou parentes, pastores ou sacerdotes
sexualmente, ou espiritualmente, ou emocionalmente abusivos (ou às vezes
as três coisas juntas), e têm muita dificuldade em se sentir à vontade e aceitos
em uma congregação.
OS PECADORES 151
É meu papel incentivá-los, escutá-los, conversar com eles, orar por eles,
pregar para eles e ensinar-lhes, conduzindo tanto fariseus quanto publícanos
a seguirem a Jesus. Ambos aparecem no lugar de oração onde sou pastor.
Ambos são pecadores. Sou pastor para os dois da mesma maneira. E não acho
que seja nada fácil.
***
Não surpreende que esses dois tipos de homens, ambos pecadores, estejam na
mesma igreja. As igrejas carregam a má fama de serem negligentes em solicitar
verificações para identificar pessoas com antecedentes criminais e em instalar
sistemas de segurança para filtrar pessoas que podem usar a igreja como um
disfarce para suas maldades. A consequência é que as igrejas acabam reunin-
do muitas pessoas indesejáveis, homens e mulheres que acabam sendo uma
vergonha para o grupo de pessoas que estão sinceramente tentando adorar a
um Deus santo, servir ao mundo em atos de amor e justiça, arrependimento
e perdão, e seguir a Jesus diariamente em seus lares e trabalho em obediência
sacrificial. Se a igreja tivesse feito essas verificações de segurança em fariseus
e publícanos, nenhum deles terio passado da porta.
O coletor de impostos era bem conhecido naquela sociedade com o um
trapaceiro inescrupuloso. Coletar impostos para o governo romano talvez
fosse o emprego mais explorador e mais lucrativo à disposição de um judeu no
século I, algo como trabalhar como testa de ferro para a Máfia. E o fariseu? Os
fariseus naquela sociedade eram em geral bem respeitados. Levavam a Deus
e sua lei a sério. Estavam claramente do lado de Deus e formavam a espinha
dorsal do ponto de vista moral e espiritual da sociedade. Mas esse fariseu em
particular era um falso fariseu. Ele tomava parte em práticas farisaicas que
desviavam toda a aparência do mal, mas essas práticas eram todas externas a
sua essência. Era comum ouvir dizer que os fariseus, essas pessoas reconhecidas
pelo povo como estando do lado de Deus e do que é certo, às vezes podiam
ser um pouco mais ostentosos do que o necessário e podiam apreciar de uma
maneira um pouco óbvia demais os ornamentos de uma reputação reta, mas a
maioria das pessoas parecia vê-los como superiores ou pelo menos os tolerava.
152 A LINGUAGEM DE DEUS
uma mulher que tem um bom relacionamento com Deus sem se incomodar
em prestar atenção a Deus, como é fácil usar o ambiente da igreja e as formas
e palavras da oração para evitar o trabalho árduo de lidar com Deus, com o
povo de Deus, com a criação de Deus. Dada a facilidade para o engano, seria
de admirar que o lugar e a prática da oração seriam o melhor lugar para evi-
tarmos a Deus sem que ninguém percebesse? Assim, não surpreende que o
ambiente mais propício para o cultivo da interioridade seja muitas vezes tão
imperfeito para esse cultivo. Quase ninguém vai à igreja orar com a intenção
de não lidar com Deus, pelo menos no com eço. Mas, quando descobrimos
que podemos obter tão sem esforço todos os benefícios sociais de estar as-
sociados a Deus sem ter de tratar de Deus, quase não espanta que a forma
sem conteúdo (nossa palavra costumeira para isso é “hipocrisia“) seja algo tão
predominante nos lugares de oração.
Ninguém que eu jamais tenha encontrado começou a ir à igreja com a inten-
ção de cultivar a hipocrisia, mas, quando percebemos como é fácil escapar sem
sermos detectados, antes de notarmos, lá estamos nós. Tampouco encontrei
alguém que tenha consciência de sua hipocrisia. Como a pressão arterial elevada,
é “um assassino silencioso", mas nesse caso é a vida interior da fé e da oração,
e não o sistema circulatório, que é prejudicada. Frequentar um lugar religioso
e tomar parte em uma prática religiosa podem trazer-nos muitos problemas
dos quais nem temos consciência. Foi certamente o que aconteceu aos fariseus.
Jesus não usa a palavra “hipocrisia“ ao contar essa história. Ele a emprega
em outros m om entos e lugares para desmascarar as encenações religiosas,
sendo a ocorrência mais famosa a de Mateus 23, mas nesta nossa história aqui
ele nos põe na igreja, entre o fariseu e o coletor de impostos, para vermos
como as coisas funcionam.
A hipocrisia é um pecado diferente de todos os outros por não começar
por uma tentação de fazer algo errado: desonrar os pais, roubar dinheiro ou
a propriedade de alguém, matar, ser infiel a um cônjuge, usar a língua para
blasfemar ou enganar. Há nos pecados mais comuns um aspecto de “fruto
proibido” que os torna atraentes, tentações por algo desejável, insinuações
de algo emocionante, de êxtase, transcendendo a monotonia da mortalidade,
tentações para sermos “como deuses”. A hipocrisia é diferente. A hipocrisia
154 A LINGUAGEM DE DEUS
nasce num lugar de oração e com pessoas que oram. Mas geralm ente há
um longo período de incubação pré-hipocrisia. Começa normalmente com
uma atração genuína por Deus, pela justiça e pela oração. Mas, ao longo do
caminho, descobrimos que não podemos fazê-lo apenas vadiando nas horas
em que não estamos na igreja. Gostaríamos de ser conhecidos como pessoas
de oração, com uma reputação de justos, mas, quando descobrimos que isso
implica mais do que ansiar com o uma corça sedenta por água fresca, o desejo
se dissipa em um desvio em relação à intenção inicial. E necessário muita
atenção. E necessário escutar em silêncio. Nada heroico, para você saber, mas
uma ida ao rio não arrogante, porém ousada e uma espera lá numa espécie de
antecipação receptiva, como o “que aconteça comigo conforme a tua palavra”
de Maria (Lc 1:38).
A hipocrisia não é o fruto de uma “má sem ente”. E a recolocação pregui-
çosa de uma maquiagem religiosa e de uma tagarelice fiada supostamente
relacionada com D eus no lugar de uma vida interior com D eus cheia de
energia. Mesmo aí leva muito tem po para esse germe do desejo começar a ser
completamente suprimido. A hipocrisia cresce aos poucos. Em seus primeiros
estágios de desenvolvimento, é difícil de detectar.
E é por isso que ninguém é consciente de que se tornou um hipócrita.
A linha entre aquele impulso original de fazer parte do que D eus está fa-
zendo e a indolência procrastinadora de não atender a D eus nas condições
de Deus é cruzada sem percebermos. Desviar-nos do bem intentado acaba
em hipocrisia.
Todos os pecados mais comuns são razoavelmente óbvios. Aqueles que os
com etem sabem o que estão fazendo, por mais que se enganem quanto às
motivações. Quando você acorda na cama com o cônjuge de outra pessoa,
você sabe que é adúltero. Quando você puxa um gatilho e mata um homem,
você sabe que é um assassino. Quando você rouba um carro e o dirige por um
deserto onde as flores da primavera fazem sentir sua presença, a beleza do
cenário não limpa a sua consciência de ser um ladrão. Mas nunca fui pastor
de hipócrita que soubesse que era hipócrita, pelo menos nos estágios iniciais.
Os dois hom ens da história de Jesus são pecadores. Não há nenhuma
ambiguidade nessa conclusão. O coletor de impostos é um pecador inegável,
OS PECADORES 155
***
O que facilitaria meu trabalho como pastor seria estereotipar o fariseu e o co-
letor de impostos. Isso simplificaria as coisas consideravelmente. Eu não teria
de lidar com nenhum deles como uma pessoa com uma história. A história de
Jesus é muitas vezes desistoriada e achatada num estereótipo, uma ilustração
moral ou uma exposição doutrinária e teológica. O fariseu é estereotipado
como um hipócrita incorrigível e detestável. O coletor de impostos é estereo-
tipado num romântico "tição tirado do fogo". Ao fariseu é designado o papel
de representante da “religião”, ao coletor de impostos, o de representante
da “espiritualidade”.
Aí estão estereótipos, prontos para ser destruídos: o hipócrita religioso
versus o freelancer espiritual; a religião institucional enrijecida com a goma
da hipocrisia versus a espiritualidade espontânea que conserva companhia
com as aves do céu; a religião envolta em clichês e segura nos braços de
156 A LINGUAGEM DE DEUS
Jesus versus uma espiritualidade que corre com os lobos e arrisca viver
nos desertos.
Mas as coisas são mais com plexas que isso. Os estereótipos são de fácil
compreensão. Opor a espiritualidade e a religião uma à outra é algo tenta-
dor, mas obscurece mais que esclarece. A vida é mais com plexa que isso.
Uma congregação é mais com plexa que isso. Uma vida madura de oração é
mais complexa que isso. O fato é que os dois homens estão em um lugar de
religião formal e institucional. Os dois homens estão lá para fazer a mesma
coisa, para orar. Fariseus e coletores de im postos raramente se mostram
com a definição do preto e do branco. Na vida real, ocorrem em todas os
matizes do sépia e cinza.
***
No final de tudo, descubro que gosto dos fariseus. Quando iniciei meu mi-
nistério com o pastor, minha congregação se compunha na maior parte de
fariseus. Não hipócritas, que fique bem claro, mas fariseus. Queriam acesso
a um lugar de adoração onde pudessem esclarecer o aspecto inconfundível
de sua identidade batismal contra as superficialidades confusas da cultura
americana. Queriam fazer parte de uma congregação onde pudessem nutrir
essa identidade. Eu gostava disso. Gostei de estar na companhia de homens
e mulheres que tinham um apetite pela justiça e se sentiam à vontade em
nutrir esse apetite em sensibilidade e profundidade dentro das fórmulas da
religião estabelecida. Mas, sabendo quão facilmente a hipocrisia viceja nesses
ambientes, também me dediquei com afinco ao trabalho de estimular a atenção
e a receptividade, alertando para qualquer sinal de ativismo intimidador que
tão rapidamente destrói a contemplação, a mania evangélica de ficar ocupado
e assim reduzir a oração a uma forma e a uma fórmula.
D e tem pos em tem pos, um coletor de im postos, geralm ente por de-
sespero, aparecia no meu local de trabalho, minha congregação. A tribo
aumentou com os anos. Acabaram se mostrando a mais forte defesa contra a
hipocrisia que se podia imaginar. A sinceridade e o frescor e, sim, a inocência
OS PECADORES 157
***
***
***
N o mom ento em que teve a atenção de todos, e por estarem chegando perto
de Jerusalém por essa hora, com a expectativa cada vez maior de que o reino de
Deus surgiría a qualquer minuto, ele contou esta história:
“Havia certa vez um homem descendente de uma casa real que precisava
fazer uma longa viagem de volta ao quartel para obter autorização para seu
governo e então retornar. Mas primeiramente ele convocou dez empregados,
deu a cada uma soma em dinheiro e os instruiu: O perem com isso até que
eu retorne’.
“Mas os cidadãos lá o odiavam. Assim, enviaram uma comissão com um
abaixo-assinado em oposição a seu governo: ‘Não queremos que esse homem
governe sobre nós’.
O MINIMALISTA ו63
* * *
Lucas preparou-nos bem para essa história, que nos introduz ao caráter “final”
da entrada de Jesus em Jerusalém e à consumação definitiva de sua vida na
crucificação, ressurreição e ascensão.
164 A LINGUAGEM DE DEUS
***
Eis a razão para ele contar a história: "... por estarem chegando perto de
Jerusalém [...] com a expectativa cada vez maior de que o reino de Deus
surgiría a qualquer m inuto”. A história é sobre um homem “descendente de
uma casa real” que fez uma longa viagem para obter autorização para ser rei.
Ele obtém aquilo para o que se desloca de sua cidade, a despeito da delegação
de cidadãos que “o odiavam” e fizeram um abaixo-assinado declarando: “Não
queremos que esse homem governe sobre nós”.
Depois de relatar essa história, Jesus prosseguiu de Jerico a Jerusalém, uma
árdua subida de um quilômetro por 27 quilômetros. O desfile do Domingo de
Ramos deu-se no dia seguinte. Quando Jesus desceu o monte das Oliveiras
em Jerusalém, foi saudado por uma grande multidão que o reconheceu como
rei e clamou, dizendo: “Bendito é o que vem, aquele que é rei em nome de
O MINIMALISTA 165
Deus!” (Le 19:38). Quatro vezes mais naquela semana em Jerusalém, Jesus é
chamado rei, duas vezes no julgamento perante Pilatos (23:2-3) e duas vezes
enquanto estava pendurado na cruz (23:37-38) — cinco vezes ao todo, a pri-
meira vez em aceitação elogiosa, seguida de quatro vezes em rejeição assassina.
De maneira bem definida , eles emitiram seu veredicto: "Não queremos que
esse homem governe sobre nós”.
* *
mais que um simples cumprimento, e ela descobriu que Deus estava prestes
a conceber sua própria vida nela. Depois de uma pergunta e de uma resposta
de esclarecimento, ela assentiu: “Sou serva do Senhor; que aconteça comigo
conforme a tua palavra” (1:38). Deus nos quer. Ele pretende conceber uma
vida nova, a vida de Deus, em nós.
Ele não fica esperando até que tenhamos percepção de que Deus pode ser
uma boa ideia a considerar. Deus não nos envia para a biblioteca para deseo-
brir o que os homens e as mulheres vêm dizendo sobre Deus e depois espera
para ver a que conclusões chegamos. D eus não organiza eventos de busca
preparados por anjos veteranos para descobrirmos lugares prováveis para ob-
ter um vislumbre ou talvez, se tivermos sorte, uma fotografia de Deus. Não.
“Nosso Deus vend Certamente não ficará calado!” (SI 50.3). Não somos nós
que chegamos a Deus; Deus vem até nós. Não começamos a conversa; Deus
é quem dá início.
Mas — não queremos a Deus. A prova bem documentada é que queremos
ser nossos próprios deuses. As provas vão se empilhando umas sobre as outras
em cada continente e civilização, cada século e cada religião. São irrefutáveis.
As provas são plena e convincentem ente confirmadas em nossas Escrituras e
documentadas em cada uma de nossas vidas. Deus é um rival, não um aliado,
no negócio divino. Queremos ser nossos próprios deuses. A Serpente prometeu
que lograríamos esse tento — “sereis como D eus” (Gn 3:5, AS21 ) — , e nós
acreditamos desde esse momento. No final das contas, mostramos ser muito
bons nessa insistência.
Israel, nosso antepassado com o povo de Deus, conta histórias que não
nos deixam margem para escapar à conclusão. Após a provisão miraculosa de
alimento e água no deserto, os israelitas recém-salvos reuniram-se no monte
Sinai e receberam a aliança de Deus proferida em meio a terremoto, fumaça,
fogo, alarido de trombetas e ribombar de trovões. O povo jamais conseguiría
esquecer-se daquilo: a salvação no mar Vermelho, o maná e as codornizes do
deserto, a água da rocha, a nuvem que o guiava durante o dia e o fogo que 0
conduzia à noite, e tudo isso teve por ápice aquelas palavras de Deus defini-
doras, libertadoras, pessoais. Mas o povo se esqueceu.
O MINIMALISTA 167
E nós continuamos fazendo isso vez após vez. Baal e Aserá e Moloque.
Os deuses de Canaã e de Tiro, do Egito, da Assíria e da Babilônia. Os deuses
da Pérsia, da Grécia e de Roma. Os deuses da Rússia e da China. Os deu-
ses da índia e da África. Os deuses da Inglaterra e da Austrália. E os deuses
da América. Os Estados Unidos lideram o mundo hoje em dia na produção
de bezerros de ouro.
É importante observar que a história que mostra de forma paradigmática
que não queremos a Deus não é sobre pagãos que nunca tinham ouvido falar
do Deus de “Abraão, Isaque e Jacó”. E sobre um povo salvo por Deus, um povo
“nascido de novo”, digamos assim, que foi instruído em toda a revelação de Deus
168 A LINGUAGEM DE DEUS
e se com prom eteu com essa revelação. Todos estavam sendo sinceros quando
disseram: “Faremos fielm ente tudo o que o S enhor ordenou" (Ex 24:7).
Pelo fato de as Escrituras tratarem extensamente do sucesso da Serpente
em desviar o povo de Deus do Deus vivo, é assombrosa a ingênua suposição
de que, bastaria tornarmos Jesus mais atraente, que hom ens e mulheres
acorreríam em grande número para segui-lo. E mais uma ilusão da Serpente
a suposição americana amplamente difundida de que, basta anunciarmos a
mensagem em alta voz e com clareza, e haverá homens e mulheres se entre-
gando no ato.
É uma suposição que usa o vocabulário da verdade de Deus desconectado
da verdade do Deus. E uma espiritualidade dissociada do Espírito Santo. E
informação sobre Jesus sem a participação na vida de Jesus.
* * *
Mas voltemos à história de Jesus a respeito do rei que retornou para governar
sobre as pessoas que "o odiavam”. Antes de o homem partir para se tornar
rei, ele entregou a dez de seus servos uma idêntica soma em dinheiro e lhes
disse: "Operem com isso até que eu retorne — façam bom uso desse dinheiro,
transformem-no em algo". Em outras palavras, eles tinham de dar continuidade
a seus negócios enquanto ele estivesse ausente, continuando a fazer o que ele
mesmo teria feito se estivesse presente, trabalhando em prol dele, tomando
iniciativa e usando o conhecimento e a experiência que haviam acumulado nos
anos em que estiveram associados a ele como empregados para promover seus
interesses. Ele não estaria por perto para lhes dar ordens específicas a cada dia
de trabalho — estava confiando que eles descobririam por conta própria.
A primeira coisa que fez após seu retorno foi reunir os empregados e per-
guntar como as coisas se saíram. O primeiro relatou que havia dobrado o que
o patrão havia deixado com ele. O segundo disse que havia aumentado sua
quantia em cinquenta por cento. O terceiro disse que não tinha feito nada.
A desculpa que apresentou foi esfarrapada: “Para dizer a verdade, eu estava
um pouco receoso. Sei que você tem padrões elevados e odeia a sujeira, e não
tolera com alegria os tolos”.
O MINIMALISTA 169
***
4c * *
***
Essa última história samaritana começou lentamente a formar uma nova identi-
dade entre eles. Naturalmente, “Não queremos que esse homem governe sobre
nós”. Mas ele está governando de qualquer forma. Talvez agora estivessem
prontos para aprender como ele governava e como poderíam participar de seu
reinado como “empregados” a quem se confiou a continuação de seu trabalho:
fazer o que ele fazia; falar o que ele falava; arrepender-se e perdoar; orar e
abençoar; descobrir vizinhos em lugares improváveis; perceber a qualidade
pessoal irredutível em tudo o que está relacionado com Deus; submeter-se às
energias silenciosas (esterco!) que, como as energias da ressurreição, tornam
a morte em vida; perceber os perigos da “oração” que não é oração, como
precisamos nos acautelar de que algo bom, como as riquezas, se transforme
num hospedeiro de algo mau, como a ganância; colher a percepção de nosso
estado de perdidos, “o poder preparador do caos”, as improbabilidades da
graça, as urgências apocalípticas inerentes à oração.
O MINIMALISTA 171
Essa vida do reino de Deus não é uma questão de acordar a cada manhã
com uma lista de tarefas ou com uma agenda a ser resolvida, deixada para nós
pelo Espírito Santo em nosso criado-mudo, enquanto dormimos. Acordamos
já imersos em uma ampla história da criação e da aliança, de Israel e de Jesus,
a história de Jesus e as histórias que Jesus contou. Deixamo-nos ser moldados
por essas histórias formativas e, ao ouvirmos sobretudo as histórias que Jesus
conta, perceber com o ele o faz, com o ele fala, com o ele trata as pessoas, o
caminho de Jesus.
O fim da história de Jesus em Jerusalém — sua crucificação, ressurreição e
ascensão — como acabamos percebendo, não é o fim. Nossa vida com Jesus a
caminho de Jerusalém continua para além de Jerusalém. E ainda continua. As
“somas de dinheiro” — as histórias que Jesus contou, a vida que Jesus viveu —
continuam circulando nas histórias que contamos e nas histórias que vivemos.
O reino está aqui. Estamos inseridos nele. A “quantia” que nos foi deixada
não é algo a ser guardado, protegido e preservado, mas posto em bom uso.
Essa última história samaritana é uma palavra que nos faz refletir: a não
participação não é assunto circunstancial. Por mais que apresentada de forma
temerosa ou mansa, não participação é desobediência. (Ao mesmo tempo,
é igualmente verdade que há m uito espaço para a obediência temerosa e
mansa — não se fazem comentários sobre sete dos empregados. N em to-
dos chamaremos tanta atenção por nossa obediência quanto o primeiro e o
segundo empregados.) A história é impiedosa: o minimalismo interesseiro e
egoísta não é uma opção. Não há não participantes no reino de Jesus. Essa
última história samaritana é uma história de juízo intransigentemente severa.
A descrição do terceiro servo ocupa sete dos dezessete versículos da história.
Mais espaço é dispensado à sentença decretada sobre o que não quis correr
riscos, o cauteloso, não participante, não servo, do que aos outros nove servos,
e mais ainda do que aos requerentes contrários ao governo do rei, que ganham
somente um versículo. Uma recusa tímida de obedecer nos torna passíveis do
mesmo juízo que recai sobre a desobediência desafiadora e descarada. Seguir
obedientemente a Jesus nesse reino de Deus já inaugurado é de fato coisa séria.
Jesus em suas orações
ru
Q_
capítulo 13
Na companhia de Jesus enquanto ele
ora: seis orações
está nos céus quanto com seus companheiros à mesa, na hora das refeições,
e quando percorrendo pela estrada.
Preciso insistir em que a linguagem usada por Jesus em suas orações não
é nem mais nem menos ele mesmo, sua alma e corpo, do que aquela usada
em suas histórias. A oração é anêmica se a linguagem se dissipa na névoa,
numa bruma falsamente piedosa de sentim entalism os, diluída em clichês
religiosos. Quando nos mantemos na companhia de Jesus em suas orações,
isso não acontece.
A história e a oração são a linguagem central da nossa humanidade. Decía-
ramos mais verdadeiramente quem somos quando contamos histórias uns aos
outros e oramos a nosso Senhor. A história e a oração são também a linguagem
central da nossa Escritura: D eus nos declara quem ele é, com pletam ente
revelado em Jesus, a Palavra que se fez carne, que realiza “a própria obra que
o Pai me deu para concluir” (Jo 5:36), e o tempo todo escuta atentamente
e responde obedientem ente, com o um filho a seu Pai — em oração. Nossa
Escritura consiste na maior parte de histórias e orações. Entramos da maneira
certa naquela revelação quando escutamos e contamos histórias uns aos outros
e escutamos a Deus e com ele falamos em oração.
E, naturalmente, o silêncio. O silêncio é indispensável. E um elem ento
normalmente negligenciado na linguagem, mas não deveria ser. Não deveria ser
negligenciado ainda mais na linguagem da oração. Não é como se Jesus falasse
a revelação de Deus em suas metáforas e histórias, e agora na oração temos
a nossa oportunidade de nos expressar. O silêncio, que na oração consiste na
maioria dos casos em uma escuta atenta, é inegociável. Escutar, que necessa-
riamente requer o silêncio de nossa parte, faz tão parte da linguagem quanto as
palavras. Os dois-pontos e o ponto e vírgula, a vírgula e o ponto final — todos
os quais insistem no silêncio como parte essencial do discurso — são tão fun-
damentais à linguagem quanto os substantivos e os verbos. Mas muitíssimas
vezes, não damos muito tem po ao silêncio em nossas orações. Contudo, se
não houver silêncio algum, nosso discurso se degenera em balbucios.
NA COMPANHIA DE JESUS ENQUANTO ELE ORA: SEIS ORAÇÕES 177
sabe escrever seu nome. Você sabe pronunciar seu nome. Mas não é o bastante.
Você tem que fazer seu nome cantar — em mandarim, as palavras cantam.” Ela
então me deu uma lição de canto. Tentei e tentei, mas nunca consegui muito
bem. Ainda sou um aprendiz. As vezes penso nisso quando estou orando. Estou
dizendo as palavras, mas será que as palavras estão cantando?
A orações de Jesus fornecem um centro exato e constante para desenvolver
uma vida de oração cristã madura. Observamos Jesus em oração e seguimos
fazendo o que ele faz mantendo-nos na companhia dele. Adquirimos um senso
do fato histórico de que Jesus orava e abraçamos um aprendizado contínuo
de como ele orava.
“As v ezes” — sem grande esforço — “uma luz surpreende” (William
Cowper), e percebemos que as orações estão cantando.
Montar uma vida de oração com fragmentos daqui e dali — o clichê “Vou
orar por v o cê”, m om entos de desespero, um arroubo de bem-aventurada
alegria, uma determinação tenaz, mas evanescente de “orar mais”, emoções
falsamente piedosas — nunca significa muita coisa. Estamos em busca de algo
substancial e integral: dito e cantado, oração revelada pelo Pai por meio do
Filho por obra do Espírito Santo.
***
Mas Jesus é mais que um mestre sob quem nos posicionamos como aprendizes:
mesmo agora ele está orando por nós. Essa pode ser a coisa mais importante
a saber: não com o ele orava, embora isso certam ente seja importante, mas
que ele está neste exato momento orando — por nós. Jesus é nosso mestre
na oração; é também nosso companheiro de oração. Ele nos diz “Eu vou orar
por você...” — e ele ora. Sua promessa de orar por nós não se perde nem fica
negligenciada em uma vasta barafunda celeste de petições e intercessões,
confissões e ações de graças, subindo a seu altar em uma nuvem de incenso. E
um desafio a nossa imaginação compreender como isso ocorre, mas sabemos
de fontes seguras que acontece.
A carta aos Hebreus detalha esse sacerdócio intercessor atual e contínuo
do Jesus glorificado. O texto insiste em mostrar que Jesus não apenas ora
180 A LINGUAGEM DE DEUS
por nós uma vez e pronto; ao contrário: “vive sempre para interceder” por
nós (Hb 7:25). Jesus ora. Está orando neste exato momento por nós. Estava
orando por nós ontem. Estará orando por nós hoje à noite enquanto dormir-
mos e amanhã de manhã quando acordarmos. O fato de Jesus orar por nós é
um acontecimento atual.
Você acha que não sabe orar? Sim, há muito que aprender; nesse ínterim,
Jesus está orando por você. Você não sente vontade de orar? Fique tranquilo,
os sentimentos vêm e vão; enquanto isso, Jesus está orando por você. Você
não tem tempo para orar? Jesus não se importa de esperar; nesse meio-tempo,
ele tem todo o tem po para orar por você.
***
Num daqueles dias, Jesus saiu para o monte a fim de orar; e passou a noite
orando a Deus. (6:12)
Certa vez Jesus estava orando em particular, e com ele estavam seus disci-
pulos; então lhes perguntou... (9:18)
Jesus tomou consigo a Pedro, João e Tiago e subiu a um monte para orar.
Enquanto orava... (9:28)
“Simão, Simão, Satanás pediu vocês para peneirá-los, como trigo. Mas eu
orei por você, para que a sua fé não desfaleça.” (22:31)
***
Jesus é aquele a quem oramos. É também aquele que ora conosco e por nós.
A oração é a linguagem da Trindade, linguagem intimamente pessoal. Quando
oramos, abraçamos a linguagem de Jesus como nossa linguagem. Nada acontece
nessa vida cristã de forma impessoal, de acordo com uma matriz a ser seguida,
automaticamente e por códigos. Cada palavra é pessoal.
Jesus orava. Q uando vam os com Jesus para a escola da linguagem ,
nós oramos.
Mas tem os de descobrir tudo isso por conta própria. Temos uma cartilha,
essas orações prontas de Jesus. Se somos tímidos, inseguros, podemos fazer
essas orações com a confiança de que estamos orando à maneira do Mestre.
Mantemo-nos na companhia de Jesus e aos poucos aprendemos o que ele está
fazendo e com o o está fazendo.
Aqui estão seis orações prontas que estudaremos nos capítulos seguintes.
Jesus ora conosco: "Pai nosso...” (Mt 6:9-13); Jesus ora em ação de graças:
“Graças de dou, ó Pai...” (Mt 11:25, AS21 ); Jesus ora na expectativa do fim:
"... Pai, glorifica o teu nom e” (Jo 1 2 :2 7 2 8 ;)־Jesus ora por nós: “Pai, chegou a
hora...” (Jo 17:1); Jesus ora “numa tristeza mortal”, na agonia do Getsêmani:
“Meu pai, se for possível, afasta de mim este cálice; contudo, não seja como
eu quero, mas sim como tu queres” (Mt 26:39-42); Jesus ora em sua morte
na cruz: “Meu Deus! Meu Deus! Por que me abandonaste?” (Mt 27:46).
Nossos antepassados, que oravam, perguntam-nos: “Você quer aprender a
orar, se tornar adestrado na oração? Você quer penetrar a revelação de Deus,
tornar-se participante em afirmação na conversa do Pai e do Filho? Começo
por aqui: mantenha-se na companhia de Jesus, a Palavra que se tornou carne,
que realiza “a obra que o Pai me deu para concluir” (Jo 5:36).
capítulo 14
Jesus ora conosco
Mateus 6:913־
não é teatro. Não orem para tentar influenciar Deus “por m uito falarem”.
Oração não é retórica. Não orem para impressionar homens, mulheres e,
muito menos, Deus.
A oração é o coração da vida vivida na dimensão do reino. Mas tenha isto
em mente: ninguém jamais vê o coração quando está trabalhando. O coração
não é um adesivo de para-choque. Quando oramos com Jesus, não usamos o
coração pendurado no pescoço.
Com as advertências afixadas no lugar certo, Jesus prossegue: “orem assim”.
***
Nos avisos de perigo que Jesus afixa antes de começar a orar, ele usa a metá-
fora “Pai” três vezes em relação ao Deus a quem oramos. No sermão como
um todo (Mt 5— 7), Jesus usa o termo "Pai” quinze vezes; em dez dos casos,
o termo é expandido em “Pai [...] que está nos céus” ou "Pai celeste”. “Pai”
é a metáfora preferida de Jesus em relação a Deus.
JESUS ORA CONOSCO 185
Acostum e-se com isto: Pai. O maior e mais implacável inimigo na prática
da oração é a impessoalização, transformando a oração em uma técnica, usando
a oração como um dispositivo.
Usar a metáfora “pai" para Deus é uma estratégia de linguagem para se
proteger da impessoalização sutil e traiçoeira da oração que perpassa a condi-
ção humana. Em nossa cultura saturada pela tecnologia, muitas vezes pedimos
ajuda perguntando: “Como eu oro?”, ou, ainda pior, “Com o posso orar com
eficiência?”. A pergunta distorce o que é fundam entalm ente uma relação
pessoal, transformando-a em uma técnica impessoal. Concebe-se Deus como
uma ideia, ou uma força, ou um poder mais elevado. A oração é reduzida a um
exercício de controle: “Se eu simplesmente conseguir entrar no clima certo,
e disser as palavras certas, na ordem direita, vou conseguir que Deus faça o
que eu quero ou conseguirei aquilo de que preciso”.
Dois dos avisos de perigo que Jesus afixou estão relacionados com o ato de
eliminar o Deus pessoal da prática da oração. Cuidado! Não impessoalize Deus
e todas as pessoas da rua, transformando-os numa platéia sem rosto, nem se
vista com um ato religioso. Cuidado! Não impessoalize Deus, transformando-o
em uma abstração, ao usar as palavras não como linguagem, mas como núme-
ros, “sempre repetindo a mesma coisa", quanto mais, melhor, não importando
0 que signifiquem ou se de fato significam alguma coisa.
N o próprio instante em que eliminamos o pessoal da oração, deixa de existir
oração. O coração para de bater. Chamar a Deus de pai mantém-nos alertas
ao elem ento pessoal na oração.
“Pai” com o metáfora dá nome a uma pessoa, não a um objeto. Pai e filho,
e filha, não são funções. São relações inigualáveis de sangue.
***
o grande saguão gritando: “Aba! Aba! Aba!...” e sumiu nos braços abertos e
acolhedores de seu pai.
Era a primeira vez que eu ouvia alguém usar a palavra “Aba” num discurso
real. Já lera a palavra na Bíblia. Eu sabia que na língua-mãe de Jesus, o aramai-
co, era a palavra de afeto usada para o pai, o que seria comum no contexto
familiar. Eu havia lido o relato de Marcos sobre Jesus orando em agonia no
Getsêmani, chamando a Deus “Aba”. Eu havia lido como Paulo, escrevendo
aos cristãos em Roma, usou o fato de que eles usavam “Aba” ao se dirigirem
a Deus como sinal da natureza relacionai de suas orações, “o próprio Espírito
testemunha ao nosso espírito que somos filhos de D eus” (Rm 8:15-16). Eu
havia lido com o Paulo tinha introduzido a palavra ao escrever aos cristãos na
Galácia para lhes ressaltar seu relacionamento pessoal e familiar básico com
Deus com o filhos para com um pai: “D eus enviou o Espírito de seu Filho
ao coração de vocês, e ele clama 'Aba, Pai’” (G1 4:6). Eu havia lido o que 0
estudioso alemão Joachim Jeremias tinha escrito em seu esforço por captar a
viçosa intimidade e o caráter espontaneamente imediato transmitidos quando
a palavra foi usada para se dirigir a Deus. Eu havia ouvido a palavra usada nos
sermões por pastores e explicada nas salas de aula por professores. Eu havia
ouvido a palavra toda a minha vida, mas sempre em um ambiente “religioso".
E agora eu a estava ouvindo nesse terminal de aeroporto, na Alemanha,
impessoalizado e dominado pela tecnologia, proferida por uma criança que
eu não conhecia para se dirigir a um homem que eu desconhecia. A palavra
não me dizia nada sobre o filho ou sobre o pai — mas me dizia tudo o que
precisava saber sobre o relacionamento deles: seu caráter imediato, sua inti-
midade, sua alegria.
A palavra ganhou vida — uma ressurreição. O sentido eu conhecia de
longa data; agora presenciara o sentido vivido, encarnado na cena de um filho
correndo para os braços do pai para se saudarem um ao outro nesse aeroporto
de Frankfurt. Ouvi “pai” não no tratamento formal a uma deidade anônima,
mas nos gritos de reconhecim ento de uma criança. Muitas vezes eu havia
encontrado "pai” em contextos acadêmicos, em torno de mesas cobertas de
dicionários, léxicos e estudos exegéticos. Mas nunca tinha ouvido a palavra
usada no con texto vivo de um filho saudando o pai cheio de felicidade e
JESUS ORA CONOSCO ו87
confiança. Nunca tinha ouvido a palavra cantar. Senti como se tivesse retor-
nado no tempo, agora naquela colina galileia, na companhia de Jesus enquanto
orava com seus seguidores, no jardim com Jesus enquanto ele orava em meio
ao tormento de sua Paixão, adorando com os cristãos gálatas e romanos en-
quanto se viam incluídos nas orações de Jesus todas as vezes que oravam Aba,
“Pai nosso que estás nos céus!”.
#**
Essa oração com põe-se de seis petições breves, de uma só frase cada uma.
Cada verbo é um imperativo, um chamado à ação. A oração não é passiva. A
oração não é resignação. Deus é ativo. Quando Jesus ora, ele entra na ação
de Deus. Quando ora conosco, implicitamente nos convida à ação. Quando
oramos com ele, oferecemo-nos como voluntários na ação.
* * *
Mencionei o prazer que tive em ouvir “Aba” sendo usado como termo infantil
de afeto por seu pai no terminal de uma companhia aérea em Frankfurt. E
mencionei que o estudioso alemão Joachim Jeremias tinha tentado fornecer
uma nova apreciação da espontaneidade pueril transmitida pelo vocábulo
“Aba”. Joachim Jeremias tentou defender a ideia de que o sentido de “Aba” era
algo próximo a "papai”. Sua hipótese foi acolhida com entusiasmo por muitos.
A informalidade aconchegante do termo viu-se sendo usada em sermões e em
ensinos por toda parte. Era feita sob medida — e sob uma autoridade acadêmica
auspiciosa, o ilustre Joachim Jeremias! — para uma cultura intranquila com
a autoridade, anti-hierárquica e desejosa de se relacionar com todo o mundo
pelo primeiro nome, ou até pelo apelido. E agora com Deus.
Depois o acadêmico de Oxford James Barr deu um banho de água fria no
que discerniu como nada mais que um aconchego sentimentalizante. Demons-
trou persuasivamente que Jeremias estava vergonhosamente equivocado.1
Mas já era tarde demais. Já se haviam perdido as rédeas. O erro, aconchego
tomando o lugar da santidade, continua aparecendo tanto nos escritos acadê-
micos quanto populares.
Há, sem dúvida alguma, uma intimidade e um deleite pueris no uso de “Aba”.
Mas a palavra também continua a carregar um elemento de admiração, respeito
e reverência. Não deixo de ser criança na presença de meu pai. A alteridade não
é minimizada pelo afeto. A intimidade não obstrui a reverência. A intimidade
verdadeira não elimina uma santa admiração: alteridade, Alteridade.
A moda do “Papai” que ainda está arrebatando nossas igrejas é um caso
de intimidade prematura. Não começamos nos sentindo aconchegados com
Deus. Começamos com uma reverência solene: Santo.
Na primeira petição, Jesus dá início com um verbo que nos faz começar
com o pé direito e nos põe numa postura de respeito reverente, uma postura
de admiração — uma admiração afetuosa, com certeza, mas ainda assim admi-
ração. “Tire as sandálias dos pés; pois o lugar em que você está é terra santa”
(Ex 3:5). A primeira petição protege o terceiro mandamento: “Não tomarás
em vão o nome do SENHOR, o teu D eus” (Ex 20:7).
JESUS ORA CONOSCO ו89
* * *
Por vários anos, fiz parte de um grupo em Baltimore chamado Mesa Redonda
Judaico-Cristã. Eramos vinte, reunidos todo mês: dez rabinos ortodoxos e dez
pastores e sacerdotes. Basicamente fazíamos um estudo bíblico alternando a
condução do estudo entre um judeu e um cristão. Os rabinos sempre traziam
uma cópia impressa do texto hebraico que estudaríamos juntos. E sempre to-
mavam as folhas de volta ao final — meticulosamente. Observei que sempre
contavam as folhas para se certificar de que nenhuma estava faltando. Um
dia perguntei ao rabino responsável o que eles faziam com as folhas depois.
Ele disse que as levava para casa e as queimava reverentemente. Informou
que se tratava de uma tradição deles. Não lhes era permitido deixar o nome
santo nas mãos de gentios, para que não fosse usado inadvertidamente, nem
tratado com irreverência ou mesmo de modo blasfemo.
Minha reação imediata foi negativa, embora não tenha dito nada. Não
seria isso excesso de escrúpulos? Mas, à medida que o tem po foi passando,
com ecei a sentir o peso da reverência deles, essa santificação do nome. A
experiência continua em minha lembrança com o uma repreensão implícita
da volubilidade com que o nome é muitas vezes jogado para cá e para lá nos
círculos que frequento. E muitas vezes ainda penetra minha m ente quando
oro “Santificado seja o teu nom e”.
***
A palavra "Deus” encerra bondade, santidade e glória. Mas no uso diário ela
acaba sendo desfigurada pela superstição, muitas vezes sem que se pense a
respeito. As pessoas leem na palavra “D eus” temores, ignorância e blasfêmia.
O nome precisa sempre ser lavado e polido. Quando oramos pedindo que
seja santificado, estamos pedindo que se remova das palavras usadas para
chamar a presença de Deus qualquer mancha de sacrilégio, para purificar das
imagens que enchem nossa mente qualquer sugestão de idolatria, para raspar
0 substantivo e deixá-lo livre da ferrugem e do encardimento até que Jesus e
Cristo digam a verdade clara acerca de Deus.
190 A LINGUAGEM DE DEUS
***
do contexto de Jesus, suas historias e suas orações, para depois ser usada como
bem entendemos. Precisamos mantê-la na historia e nas orações, da mesma
forma que precisamos manter a nós mesmos na historia e nas orações.
Todos vivemos com familiares, amigos e vizinhos que fazem muitas pergun-
tas sobre “a vontade de Deus". Não mantenho estatísticas nessas questões, mas
numa vida inteira ousaria dizer que essas perguntas estão no topo da lista das
perguntas mais feitas pelos cristãos. E doloroso ter de dizer isso, mas existe
uma quantidade enorme de insinceridades e de tolices simplesmente, escritas
e proferidas sobre a causa de Cristo. Boa parte delas diz respeito a assuntos
reunidos sob a categoria “vontade de D eus”.
A expressão “vontade de D eus” talvez seja um dos termos mais sombrios
do vocabulário cristão. Vivemos em uma época em que o ar está tomado de
comentários descuidados sobre a vontade de Deus. Infelizmente, muitíssi-
mos desses comentários não têm nem enraizamento bíblico, nem integridade
teológica. O que é estranho, porque a Bíblia não poderia ser mais clara sobre
0 assunto. Ainda assim, normalmente usamos "vontade de D eus” como nada
mais que um clichê desprovido de conteúdo. Em outras ocasiões, isolada da
oração de Jesus, ela transmite um mergulho perplexo num redemoinho de
ansiedades. Para alguns, ela afixa um cartaz dogmático de “Proibida a entrada”,
o qual elimina tanto a reflexão quanto a oração. Para outros ainda, ela rabisca
um enorme ponto de interrogação sobre o passado e o futuro e nos deixa
patinando no “santo agora”, no qual levamos toda a nossa vida de verdade.
Usar a palavra "vontade” em relação a Deus não tem nada de esotérico.
Em nada difere do modo normal em que usamos a palavra entre nós. Vontade
relaciona-se com intenção, com propósito. Sem a vontade, levamos uma vida
cheia de sinuosidades. Também diz respeito a energia. Sem a vontade, levamos
uma vida indiferente.
Quando nos referimos a uma pessoa que vive com “vontade”, normalmente
não a imaginamos levando consigo um plano e somente realizando aquilo que
está especificado no plano, e depois intimidando espectadores ignorantes ou
rebeldes a que se submetam. E, quando falamos de alguém que vive de boa
vontade, não imaginamos alguém que faça somente o que é especificado numa
descrição de tarefas. A palavra não sugere nem um “acompanhar o curso dos
196 A LINGUAGEM DE DEUS
suficiente, fizermos disso um hábito, de forma lenta mas segura nosso egocen-
trismo congênito será radicalmente reformado num teocentrismo.
***
***
O corpo, tido com o inferior em relação à alma, é mais ou menos tolerado até
que, como diz o negro spiritual, “voemos para longe daqui”. O angelismo é
uma distorção da vida cristã muito censurada por nossos santos do passado.
“Dá-nos [...] pão” — e Jesus, lembre-se, faz parte desse “nos” — proscreve
o angelismo com o opção para qualquer vida vivida na terra. Não é possível
haver nada mais ligado aos sentidos, mais material ou fundamental do que o
pão — seu aroma fermentado, sua crosta tostada, seu rico sabor.
Orar pedindo pão é o reconhecimento da nossa necessidade. Somos criaturas
interdependentes nessa enorme e intricada maravilha da criação, em que tudo e
todos se relacionam e entram em contato com tudo e com todos. Quando oramos
pedindo pão, fazemos uma declaração seguramente antiamericana de dependên-
cia. Não trazemos em nós mesmos o fato de sermos nós mesmos. Renunciamos
à tola pretensão de bancarmos aqueles que se fazem na vida pelo esforço
próprio. Humildemente, tomamos o nosso lugar “na grande corrente do ser”.
* * *
e encontrarão; batam, e a porta lhes será aberta” (Mt 7:7). “A graça de Deus
significa algo como ,Aqui está sua vida’. Você podería nunca ter existido, mas
você existe, porque a festa não estaria completa sem você. Aqui está o mundo.
Coisas bonitas e terríveis acontecerão. Não tenha medo. Eu estou com você.
Nada jamais nos poderá separar. Foi para você que criei o universo”.4 Vivemos
em um mundo cheio da graça. Assim, “Dá-nos...”.
“Pecado” é a palavra genérica para o que está errado conosco e com o mundo.
Parece não ter fim a extensão e a criatividade com que a humanidade trata mal
o mundo, a nós mesmos e aos outros. A taxonomía do pecado é impiedosamen-
te deprimente: dividas, mal, perversidade, delito, injustiça, culpa, transgressão,
impiedade, desobediência, rebelião, alienação. Há mais de cinquenta palavras
bíblicas traduzidas por pecado no hebraico bíblico.
Mas desmascarar e classificar o pecado não está no centro da vida vivida
para a glória de Deus. O sensacionalismo não é a obra do evangelho. A caça
às bruxas não é a obra do evangelho. A execração dos proscritos não é a obra
do evangelho. O perdão dos pecados é a obra do evangelho.
Quando nos vemos diante da confusão do pecado, Jesus ora conosco. Não
manda que peguemos um esfregão, um balde e um escovão para que nos possa
mostrar com o esfregar o pecado de nossa vida, da vida de nosso cônjuge e
filhos, da vida de nosso próximo. Ele não nos instrui sobre com o engatar uma
mangueira de poder do Espírito Santo para limpar a corrupção nos corredores
do governo, o sacrilégio em nossas igrejas, a descrença em nossas escolas. Jesus
não se posiciona à distância em relação à bagunça em que nos encontramos. Ele
une-se a nós onde estamos, atolados na lama do pecado (“[se] tornou pecado
por nós”: v. 2Co 5:21). Ele toma seu lugar ao nosso lado e nos convida a orar
com ele: “Perdoa[-nos]...”
Deus não trata do pecado eliminando-o de nossa vida com o se fosse um
micróbio ou camundongos no sótão. Deus não lida com o pecado por ampu-
tação, com o se fosse uma perna em gangrena, deixando-nos aleijados, uma
santidade de muletas. Deus trata do pecado perdoando-nos, e, quando nos
perdoa, há mais de nós, não menos.
* * *
O pecado é uma recusa ou uma falha em estarmos numa relação pessoal com
o D eus vivo e pessoal; e, assim, o perdão do pecado não pode funcionar
com alguma definição de dicionário do pecado, mas som ente em um ato
profundamente pessoal que restaura o relacionamento íntimo. O pecado que
nega o pessoal só pode ser tratado pessoalmente.
JESUS ORA CONOSCO 203
Quando Jesus ora conosco “Dá-nos [...]o [...] pão...", aos poucos ele nos desa-
costuma da presunção e do hábito de viver de forma independente, indepen-
dentes de Deus, criaturas independentes que não querem ser simplesmente
criaturas, mas assumir o controle da água e do ar, das árvores e da terra, sem
falar de nossos filhos, vizinhos, estudantes e empregados, para fazer com eles
o que nos agrada. Mas não estamos no comando. Não estamos no controle.
Não tem os o que precisamos para permanecer vivos.
204 A LINGUAGEM DE DEUS
Mas Deus, sim. Deus é generoso. Deus dá. A vida é um presente. Nós so-
mos presentes. Aprendemos a orar “Dá-nos...” e, com Jesus orando ao nosso
lado, passamos a experimentar de primeira mão o que significa estar na posição
de quem recebe o que se lhe dá, o que significa viver na terra da graça.
Quando Jesus toma a confusão do pecado e nos ensina a enfrentar aquilo
contra o que nos posicionamos a cada dia, mais uma vez ele se acha trabalhando
para afastar-nos dos velhos hábitos. Será que imaginamos que o que está errado
no mundo é algo por que possamos fazer por conta própria? Não podemos.
Será que pensamos que há maneiras judiciais, educacionais ou psicológicas de
tratar com o pecado? Não há. Assim como no mundo da graça, também na
terra do pecado aprendemos como Deus age e entramos nessa forma de vida
orando, como Jesus ora conosco: “Perdoa o nosso pecado”.
O pecado mata. O pecado mata os relacionamentos. O pecado mata a inti-
midade de alma inerente na criatura criada à imagem de Deus que nós somos.
O pecado é mortal, sintetizado nos “sete pecados mortais”. Parte de nós morre
quando pecamos, não mais em uma relação viva com o Deus vivo, com o cônjuge
vivo, com o filho vivo, com o próximo vivo. Não há remédio capaz de trazer os
mortos à vida. Não há máquina que possa desarmar a morte. Diariamente, vemo-
nos atravessando esse vasto cemitério de pecado daquilo que alguém descreveu
como os “mortos não mortos”. A única maneira de tratar com o pecado é pela
ressurreição. O perdão é ressurreição, vida dentre os mortos.
* * *
* * *
Então, o que falta? O fato é que não sabemos o que falta. Ainda não che-
gamos ao fim. ainda não é o fim ( ״Me 13:7). Sabemos que ainda não
acabou. Todas as orações que fizemos, com Jesus orando conosco ao nosso
lado, são orações que fazemos a caminho da cruz de Jesus e depois em direção
à ressurreição.
Sabemos que ele concluiu essa viagem à cruz e à ressurreição. Sabemos
que sua morte e ressurreição são realidades presentes em nossa vida: trazendo
“salvação sobre a terra” (SI 74:12). Sabemos que recebemos a dignidade e
o privilégio de as vivermos na prática em nossa vida pessoal. Sabemos que
mesmo agora estamos participando de sua morte e ressurreição (Rm 6:4). E
sabemos que o nosso trecho da viagem ainda não está concluído.
As cinco petições são feitas a partir de uma atividade presente, de Deus
e nossa, das circunstâncias e condições de nosso cotidiano. Mas há mais. A
sexta petição prepara-nos para esse “m ais” — estende-se para o futuro e
prepara-nos para aquilo que ainda não sabemos: tentações imprevistas e ma-
les enganosos. Sabemos que enfrentaremos tentações ao longo de cada etapa
dessa peregrinação, mas não tem os como saber o que serão. E sabemos que
o mal (ou, talvez mais precisamente, o Maligno), "ameaça à porta” (Gn 4:7),
pronto para nos atacar, exatamente como estava pronto para atacar o nosso
Senhor (Hb 4:15), para impedir que cumpramos o nosso chamado. Mas não
tem os com o saber as formas enganosas que ele pode tomar. Precisamos de
ajuda para aqueles momentos e ocasiões em que não estaremos cientes de que
precisamos de ajuda. Oramos em preparação para o que se segue. E não sa-
bemos o que está por vir.
Jesus nos une a ele em uma oração por algo que ainda não assumiu nenhuma
forma identificável e pode facilmente não ser percebido e reconhecido: “E não
nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do m al...”.6 N. T. Wright traduz:
“Não permitas que sejamos levado a Teste, à grande Tribulação; livra-nos do
Mal”.7 Prepara e preserva-nos do que quer que esteja por vir. Depois encon-
traremos as palavras: "Neste mundo vocês terão aflições; contudo, tenham
ânimo! Eu vencí o m undo” (Jo 16:33), assegurando-nos de que podemos
contar com ele para atender à nossa oração.
As tribulações certam ente incluirão testes, tentação e o mal. Por mais
esplêndido que seja o mundo, ele é também perigoso. Perigos sem aparência
JESUS ORA CONOSCO 207
de perigo estão por toda parte. O mal que se traveste de anjo de luz é mais
que comum. Precisamos de ajuda. E precisamos de ajuda mesmo quando não
sabemos que precisamos de ajuda. Especialmente quando não sabemos que
precisamos de ajuda.
Os pecados, as dívidas, as transgressões, com todas as suas manifestações
nos “sete pecados mortais”, pelos quais oramos “Perdoa-nos”, são mais ou
menos de conhecim ento geral. Na maior parte dos casos, sabemos quando
pecamos, pelo menos nos estágios iniciais, antes de as desculpas e as racio-
nalizações embotarem a consciência. E, se não sabemos, nossos pais, filhos e
vizinhos o sabem, e logo nos mostrarão que sabem. Mas a tentação e a prova-
ção, os testes e o mal estão em uma classe diferente. A tentação e o mal quase
sempre aparecem disfarçados como bons e bonitos. Na maior parte dos casos,
eles nos pegam desprevenidos, nos tomando de surpresa.
* * *
tornozelo, governar todos os reinos do mundo. Fazer pão é algo bom, realizar
milagres é algo bom, governar o mundo é algo bom. A tentações do deserto
estão todas relacionadas a fazer o bem (Mt 4:1-11).
Jesus não morde a isca. Ele faz o que o homem e a mulher no jardim não
fazem. Ele se recusa a fazer o aparentemente bom que é posto diante dele.
Essa recusa é um elemento fundamental para libertar do mal os filhos de Adão
e Eva. E nós somos esse filhos.
* * *
O pecado, por qualquer nome que o chamemos, ainda assim é pecado. Mas,
ao separar o pecado da dimensão “tentação e mal” do pecado da dimensão
“dívida e transgressão” e destinando a ele uma petição em particular, Jesus
nos faz perceber uma forma de pecado que não chega a nossa porta com a
etiqueta de "pecado”.
Fica evidenciado — empíricamente comprovado em cada família, escola,
negócio e nação — que todos nós temos uma tendência básica para o pecado às
vezes chamado pecado original, o pecado que nos precede, pecado que está em
nós sem a intenção ou sem mesmo sabermos o que estamos fazendo. Nascemos
em uma vida de “decadência” fundamental. Todos estão envolvidos, ninguém
escapa, "nem um sequer” (SI 14.3). Os danos do pecado são parcialmente
mitigados quando se ensina um comportamento moral que mantém em xeque
alguns dos erros com etidos. Mas não todos. A sociedade fornece mais uma
proteção, com sanções disciplinares, tropas policiais e exércitos que mantêm
as coisas sob controle e protelam a anarquia moral. Mas todas essas coisas, por
mais necessárias que sejam, são impessoais e incapazes de lidar com a separação
relacionai representada pelo pecado. O perdão é o único m eio conhecido de
restaurar o relacionamento, as dimensões pessoais da intimidade com Deus e
de uns para com os outros que se acham no âmago de nossa humanidade.
Ao lado dessa propensão para o pecado que todos experimentamos, há
também uma bondade paradoxal, uma capacidade inata de agir com gene-
rosidade, alegria e cuidado, de adorar e amar, sem nenhum estím ulo de
ameaça, recom pensa ou vantagens. Sorrimos, rimos, servim os e somos
JESUS ORA CONOSCO 209
Uma pessoa boa com uma boa obra não é nenhuma garantia de ausência
de tentação.
***
Sei que simplifiquei demais. Não é como se tanto Eva quanto Jesus estivessem
totalmente despreparados para a tentação que usou o bem como isca para o pe-
cado. Eva tinha a ordem relacionada à Arvore do Bem e do Mal profundamente
gravada em sua alma e, junto com Adão, tinha uma vida bem desenvolvida de
companheirismo com Deus em todas aquelas tardes no jardim. E Jesus tinha
o ensino dos profetas e os cânticos dos salmistas — quase dois mil anos de
relatos em torno da história da salvação — vivos e operantes em sua vida.
Ainda assim, não podemos subestimar com que frequência a energia da
bondade experimentada é usada para servir de com bustível à tentação de
pecar. Não podemos subestimar a frequência com que uma vida boa é per-
vertida em mal.
Fui pastor por quase toda a minha vida adulta. Entre minhas tarefas está
ter de lidar diariamente com pecadores de toda sorte. Também com muitos
santos, que, na maioria, não sabem que são santos. O que percebo é que as
dívidas e as transgressões que têm seu início em nossa propensão inata para
o pecado, aqueles pecados para os quais pedimos perdão na quinta petição,
são muito mais facilmente discernidos e tratados do que as tentações e o mal
que têm seu início em nosso desejo e capacidade para o bem e em relação aos
quais pedimos libertação na sexta petição.
Já não me surpreendo que o grande mal encontre sua formação em lu-
gares para onde as pessoas afluem com o objetivo de adorar a Deus, lugares
em que, no entanto, são seduzidas pelos prazeres de bancar Deus. Já não me
surpreendo de reconhecer o grande mal em lugares de poder, nos negócios e
no governo, por exemplo, onde as pessoas têm acesso a enormes recursos para
fazer o bem, lugares em que, no entanto, são seduzidas a usar o poder e ser
poderosas elas mesmas. Já não me surpreendo de encontrar o grande mal em
famílias e casamentos, onde as oportunidades de intimidade e de afeição são
as mais acessíveis, e descobrir que essas oportunidades foram desperdiçadas,
JESUS ORA CONOSCO 211
* * *
Os pecados da quinta petição, pelos quais pedimos perdão, são muito mais
fáceis de perceber, e é muito mais fácil assumir a responsabilidade por eles
do que as tentações da sexta petição — a tentação que seduziu Eva, as tentações
que Jesus rejeitou — tentações cuidadosamente arquitetadas para iludir-nos,
fazendo-nos usar o bem para realizar o mal.
E assim, por causa do alto grau de periculosidade presente nessas tentações,
Jesus nos dá esta petição de prevenção: "Sê nosso companheiro e guia nesse
trajeto perigoso, de modo que, quando nos virmos diante de uma tentação que
não pareça tentação, uma tentação de auréola e asas angelicais, não sejamos
seduzidos como Eva foi e que tenhamos o discernimento que Jesus teve: Έ
não nos deixes cair em tentação’.
“Sabemos que é grande o risco. Sabemos que todos somos vulneráveis aos
estratagemas do Diabo, as astutas meias verdades da Serpente, as peneiras
de Satanás. Precisamos de uma imaginação preparada, bem versada nos ardis
do Maligno. Onde estamos, já não dá pé. Salva-nos, ajuda-nos, resgata-nos:
‘... livra-nos do mal’.”
Várias são as maneiras de pedir que Deus faça por nós o que não somos ca-
pazes de fazer por nós mesmos, e essas formas de expressão permeiam nossas
Escrituras. A libertação é a coisa mais fundamental no país da salvação.
Nunca sabemos quando ou de que maneira enfrentaremos a tentação, sere-
mos provados ou nos veremos enredados pelo mal. Jesus sublinha a urgência
do preparo para aquilo que está por vir ao redigir a sexta petição em forma
de duplo imperativo: “E não nos deixes [...] livra-nos...”.
212 A LINGUAGEM DE DEUS
" ... porque teu é o Reino, o poder e a glória para sempre. Amém.”
E isso. Oração sucinta e ousada. Com Jesus ao nosso lado, orando conosco,
sabemos onde estamos. Estamos prontos para seguir a Jesus. Sem titubeios e
oscilações. Sem arrastar os pés, não sabendo ao certo o que fazer em seguida.
Sem conversa fiada nervosa, como um convidado que não sabe dizer adeus e sair.
Damos um passo para trás e confiamos que Deus fará com nossas orações
o que quer que escolher, como e quando quiser. A partida, usando as palavras
já conhecidas de Davi em 1Crônicas,9 põe-nos de fora da oração em si, em um
tipo de santo distanciamento. Todas as nossas intenções, nossa experiência,
nossa energia estão agora na oração. Tudo agora está nas mãos do nosso Pai.
Julian Green escreveu em seu diário: "todas as orações são atendidas, mais
cedo ou mais tarde, mas precisamos chegar aos cinquenta anos de idade para
descobrir isso, com a perspectiva necessária. A juventude não tem conhecí-
mento dessas coisas”.10
***
Fui visitar uma mulher em seus quarenta e poucos anos. Era viúva havia já
vários anos, os filhos crescidos e sentindo-se incompleta. Ninguém precisava
dela; ela não precisava de emprego. Por alguns meses ele adorava, mas um
tanto irregularmente, nos cultos da congregação à qual eu servia como pastor.
Eu estava sentado em sua sala de estar, escutando essa ladainha familiar dos
meandros de uma vida em meia-idade, com minha alma à deriva. A conver-
sa, como a vida dela, não parecia rumar para lugar algum. Não parecia haver
nenhum lugar como ponto de apoio para minha intervenção.
Ela tinha no colo um bordado, esticado em um bastidor. Então, com apenas
um frágil tom de vibração na voz, ela disse:
JESUS ORA CONOSCO 213
“Agradeço, Pai, Senhor dos céus e da terra, porque escondeste essas coisas dos
sábios e inteligentes e as revelaste a bebês; sim, Pai, pois essa foi sua graciosa
vontade”.
***
Aqui está o mal-entendido: Jesus tinha acabado de ser abordado pelos discípu-
los de João, que lhe perguntaram: “És tu aquele que haveria de vir ou devemos
esperar algum outro?” (Mt 11:3). João está aprisionado em Maquero, uma
prisão de segurança máxima, tão famigerada na Palestina do século I quanto
Sing Sing é entre nós hoje. Foi construída por Herodes, o Grande. Seu filho,
Herodes Antipas, colocou João lá pelo crime “político” de trazer à baila o
adultério dele com Herodias, a esposa de seu irmão Filipe. A poderosa voz
216 A LINGUAGEM DE DEUS
profética de João já não se ouve na terra. Em breve será silenciada para sempre
em uma repulsiva festa de aniversário, na qual, em vez de um bolo com velas,
a cabeça de João será servida em um prato, ainda pingando sangue.
João foi a voz isaiânica que apresentou Jesus ao povo da Palestina como
o Messias havia muito estava sendo aguardado. Sua pregação preparou o ca-
minho para Jesus ser recebido como “aquele que há de vir”, inaugurando 0
reino dos céus.
Enquanto João preparava "o caminho do Senhor", ele prendeu a atenção
de todo o país. No dia em que batizou Jesus, sua pregação foi confirmada nos
céus pela descida da pomba, um símbolo do Espírito Santo, e imediatamente
ratificada pela voz que veio dos céus: “Este é o meu filho amado, em quem
me agrado" (Mt 3:17).
Com isso, estava encerrada a obra de João. Sua “voz do que clama no
deserto”, baseada em Isaías, apresenta Jesus à nação. Depois, então, ele se
afasta para a margem para não se pôr no caminho do Caminho: “É necessário
que ele cresça e que eu diminua” (Jo 3:30; v. Jo 3:27-36). Jesus move-se para
o centro: a “margem" para João acaba sendo a prisão em Maquero. João está
feliz em “diminuir”, mas, compreensivelmente, está à espera de notícias que
falem de Jesus e seu “crescim ento”. Ao que tudo indica, não havia muitos
relatos. Jesus não está em todas as manchetes. Inquieto, querendo saber 0
que está acontecendo, João envia seus discípulos para pedir uma prestação
de contas de Jesus. “És tu aquele que havería de vir ou devem os esperar
algum outro?” (Mt 11:3). Será que João sentia, com o muitos sentem hoje,
que o Messias Jesus não era suficientemente messiânico? O Messias chegou,
o reino dos céus está próximo: por que está demorando tanto? Nada parece
ter mudado: João está na prisão, e Herodes continua vivendo com a mesma
arrogância dissoluta de sempre.
Jesus tranquiliza os discípulos de João: “Sim, eu sou o Messias. Sim, estou
realizando a obra messiânica conforme definida no texto de Isaías que João
pregou. Mas talvez não muito da forma que João está esperando”.
João e Jesus eram diferentes na forma de desempenhar seu trabalho. João
pregava às trovoadas, para o encanto das massas; Jesus contava histórias durante
JESUS ORA EM AÇÃO DE GRAÇAS 217
refeições e com amigos na estrada. João era uma figura pública confrontando
em praça pública o pecado flagrante de Herodes Antipas; Jesus trabalhou na
maior parte do tem po sem ser percebido, nas pequenas aldeias da Galileia.
João era um asceta na dieta e no vestuário; Jesus apreciava um copo de vinho,
mesmo às vezes em companhia de intrusos mal-afamados. E compreensível
que João quisesse saber o que exatamente estava acontecendo. É compreensí-
vel que João estivesse ofendido com a forma em que Jesus conduzia sua obra
messiânica. Onde está o “crescimento” que João havia esperado? Onde estão
as grandes multidões, os dramáticos confrontos com os poderes dissolutos
em atuação na época?
Jesus tranquiliza João em sua perplexidade: “Sim, João, estou fazendo
exatamente aquilo que você profetizou tão bem a meu respeito. Mas deixe-
-me fazê-lo do meu jeito. Você se lembra destas palavras do rolo de Isaías que
você conhece tão bem: '... os meus pensamentos não são os pensamentos de
vocês, nem os seus caminhos são os meus caminhos...’? (Is 55:8). Permita-me
abençoá-lo em sua cela prisional assim com o você me abençoou em ‘meus
caminhos’ enquanto eu executo o trabalho messiânico no qual você me lan-
çou — 'feliz é aquele que não se escandaliza por minha causa”’ (Mt 11:6).'
***
E as pessoas nas aldeias com quem Jesus conviveu? Elas basicamente o des-
prezaram. Se a incompreensão de João Batista foi uma decepção para Jesus,
a indiferença das pessoas foi mais como uma bofetada na cara.
A maior parte do começo do reino dos céus de Jesus, o trabalho messiânico,
foi feita em três pequenas aldeias — Betsaida e Cafarnaum, na costa norte do
mar da Galileia, e Corazim, no interior, numa distância de aproximadamente
uma hora a pé dali. Essas aldeias formam o que às vezes chamamos de “Triângulo
Evangélico”. A maioria dos “milagres” de Jesus aconteceu nessas vilas (Mt 11:20):
cura de um cego, de um paralítico, do filho moribundo de um centurião romano
e de um endemoninhado, entre outros. A maior parte dos discípulos de Jesus
vinha dessas aldeias. Betsaida era a cidade natal de Filipe e André. Foi também
onde Jesus alimentou os cinco mil. Pedro e a mulher residiam em Cafarnaum,
218 A LINGUAGEM DE DEUS
A pessoa que mais compreendia a Jesus o entendeu mal — entendeu mal o fato
de Jesus não o tirar da prisão, entendeu mal o fato de Jesus evitar exercer seu
carisma com as massas, com o se isso fosse sinal de uma não messianidade. As
pessoas que melhor conheciam a Jesus em seu dia a dia não o conheciam —
não abraçaram sua presença entre eles com o salvador e curador, amigo de
pecadores e pão do mundo.
Essas eram as circunstâncias em que Jesus estava imerso no dia em que ele
extravasou com esta exuberante ação de graças:
"Agradeço, Pai, Senhor dos céus e da terra, porque escondeste essas coisas dos
sábios e inteligentes e as revelaste a bebês...".
* * *
A razão por que aprecio tanto essa oração de ação de graças é que não há nada
nas "circunstâncias" que a explique. As circunstâncias — a incompreensão de
João acerca dos m étodos messiânicos de Jesus e a indiferença teimosa dos
aldeães para com sua presença messiânica — são deprimentes. Seria de supor
que aquelas circunstâncias levariam Jesus a reavaliar seriamente a forma em que
tem desempenhado seu chamado messiânico. Se João não compreendeu e seus
vizinhos não compreenderam, talvez devesse tentar algo diferente.
Então, como se explica a ação de graças? Somente, a meu ver, percebendo
que a incompreensão de João e a indiferença dos aldeães — circunstâncias
que punham em xeque a eficácia de Jesus — não são nada mais do que uma
crosta ressecada na superfície do reino. Sob esse solo duro, pesadamente tra-
fegado, o reino dos céus está tomando forma à maneira de Deus. Jesus sabe
que D eus escolhe operar sua graciosa vontade com aqueles que são com o
crianças, os simples, aqueles que não adquiriram o hábito de pensar que são
220 A LINGUAGEM DE DEUS
“como deuses” e assim não necessitam de Deus, aqueles que não permitiram
que a familiaridade desatenta com o culto da sinagoga os anestesiasse e assim
os fizesse supor que eles sabem exatamente como Deus trabalha.
“Sábios” e “prudentes”, como quer uma tradução, são irônicos na oração.
Eu sugeriría “intelectualm ente refinados e sabichões”, para captar o tom em
que Jesus profere as palavras. Jesus não se deixa abater pelo fato de que 0
homem que mais sabe sobre o Messias do que qualquer outra pessoa e atraiu
grandes multidões por sua pregação agora incompreenda o que está aconte-
cendo. Jesus não se deixa prostrar pelo fato de que todos esses bons aldeães,
com os olhos vendados e os ouvidos agravados pelas autogratificações de uma
religião enfatuada, não vejam nem ouçam a Deus agindo bem diante deles.
A incompreensão e a indiferença estão, como os pobres, “sempre conosco”.
Não são indicadores confiáveis da presença do reino. Os peritos em opinião
pública, que amam informar o mundo sobre a condição estatística de Deus, não
têm nenhuma credibilidade profética em matéria de reino. Jesus não expõe
a cada dois anos sua estratégia messiânica para um plebiscito.
E, portanto, as condições que tantas vezes induzem tantos de nós a esfregar
as mãos e a ranger os dentes são relativizadas pela oração de ação de graças
de Jesus. Energias ocultas do reino movimentam-se bem abaixo da superfície
por todo o lado ao nosso redor. Imensos rios subterrâneos de oração — fé,
obediência e louvor, intercessão, perdão e salvação, santidade e graça — fluem
livremente no subsolo. E, em quase cada fenda e recesso da terra, escondidos
nas sombras, desprezados pela multidão, estão os “bebês”. Esses são as "crian-
ças e recém-nascidos” que Deus sempre usou como baluarte “para silenciar o
inimigo que busca vingança” (SI 8:2).
Jesus não deixa de considerar a seriedade das “circunstâncias”. Ele na
verdade as leva muito a sério. Ele enfrenta e repreende. Ele desmascara a
pretensão e chora sobre corações empedernidos. Mas ele não se desespera. Ele
não critica o Pai por sua forma de agir. Ele não dilui sua santa determinação
com algo menos que santo.
E assim — ação de graças. Não apenas pelas flores-do-campo e pelas borbo-
letas, pelo brilho da lua sobre um cobertor de neve, pela desenvoltura atlética
e pelo som das sinfonias. A ação de graças é certamente adequada diante de
JESUS ORA EM AÇÃO DE GRAÇAS 221
Todas essas metáforas utilizam palavras que são conhecidas em nosso uso
cotidiano com um para conferir imediação concreta à vida do Espírito em
224 A LINGUAGEM DE DEUS
Jesús tem sua obra traçada diante dele. Ele separa seus discípulos e tem
uma longa e demorada conversa com eles (Jo 13— 17). Começa lavando os
pés deles. Depois disso percorre, vez após vez, após vez, de que maneira ele
é rei e Messias e de que maneiras eles o experimentarão e servirão como rei e
Messias. Sem pressa e com paciência, ele revisa completamente as expecta-
tivas deles. Ele os está preparando para a morte que ele sofrerá. Depois, ele
resume a conversa toda em uma oração de encerramento.
N o dia seguinte, ele é crucificado.
***
As orações de Jesus jamais podem ser isoladas da vida de Jesus. A oração não
é um assunto em separado. A oração não é a atividade de um especialista. Em
uma orquestra sinfônica, alguns tocam o clarinete, alguns, o oboé, outros, o
violino e ainda outros, o trombone. Mas na vida cristã não é assim: não temos
alguns que visitam os enfermos, alguns que entoam hinos, alguns que leem a
Escritura, alguns que contribuem financeiramente e alguns que oram. Na vida
cristã, não escolhemos aspectos, obtemos um pouco de instrução e treinamen-
to e depois nos especializamos no que gostamos ou naquilo que nos achamos
bons (ou evitamos por acreditar que não nos faltem as aptidões).
A oração não é algo que retiramos da teia da revelação e da encarnação e
depois adotamos para sermos “guerreiros de oração”. É mais algo semelhante
à respiração: para vivermos, todos precisamos orar. Embora haja doenças re-
lacionadas à respiração, não há excelências. Não destacamos pessoas de quem
dizemos: “Ela (ou ele) é uma grande respiradora”.
A oração está entretecida na malha da vida. A oração está entretecida na
malha da vida de Jesus. Observar Jesus em oração é como observar tudo o mais
que ele faz. Nenhuma de suas orações e nada de sua vida de oração podem
ser tirados de contexto e estudados separadamente.
226 A LINGUAGEM DE DEUS
***
Mas, por mais maravilhosa e exata que fosse minha aprendizagem sobre gló-
ria, praticamente não tinha raízes em minha vida. E o que procuro são raízes:
raízes quando saio para adorar e para trabalhar, raízes quando leio o jornal e
falo com os amigos, raízes quando voto nas eleições e compro pneus para o
meu carro, raízes quando contraio câncer, passo por uma cirurgia e entro em
convalescência, raízes à medida que acumulo aniversários e outras celebrações
anuais, raízes enquanto escrevo cartas e leio livros.
O enraizamento que procuro é descrito nas linhas imediatamente anteriores
à oração “Pai, glorifica o teu nome". Aqui estão as linhas: “Chegou a hora de
ser glorificado o Filho do homem. Digo-lhes verdadeiramente que, se o grão
de trigo não cair na terra e não morrer, continuará ele só. Mas se morrer, dará
muito fruto” (Jo 12:23-24). G osto como Maxine Kumin o expressou: "Para
baixo, eu lanço raízes, e para cima, eu lanço as folhas”.2 E isso que eu procuro.
Jesus sabe que sua morte é iminente. Ao assimilar suas palavras, percebo
que as raízes da glória acham-se na morte e no sepultamento. Isso vai exigir
algum reaprendizado. Parece que glória implica mais do que ouvi nos trovões
que vinham do púlpito do pastor Jones. Parece que vou ter de deixar o que
eu esperava encontrar e adentrar o mistério.
Mas, com o acontece com todos os mistérios do evangelho, não se trata
de um mistério total. Recebemos palpites e sugestões. Todos os jardineiros
sabem alguma coisa disso. As flores e as hortaliças que crescem tão maravi-
lhosamente em seus jardins e hortas são a consequência de sementes que eles
plantaram no solo.
228 A LINGUAGEM DE DEUS
* * *
Bem aos poucos, percorrendo essas imagens e metáforas vez após vez, começo
a compreender. Preciso desaprender muita coisa. Mas não estou sozinho nisso.
Tenho amigos com os quais estou desaprendendo e reaprendendo. E aqui está
algo maravilhoso que começa a entrar em foco: não precisamos esperar morrer
para morrer. Não precisamos esperar até depois do nosso funeral para parti-
cipar da glória. Como Teresa, uma das santas mais irreverentes e audaciosas,
costumava dizer: “A paga começa nesta vida”.
Ajuda-me a ser paciente em meu lento aprendizado observar que também não
era exatamente uma moleza para Jesus. Ele introduz sua breve oração não em
prontidão, mas com resistência: “Agora meu coração está perturbado, e o que
direi? Pai, salva-me desta hora?” (Jo 12:27).
Não foi fácil para Jesus redefinir glória de modo que ela também incluísse
perda, rejeição e morte. Saber que ao menos ocorreu a Jesus não orar por esse
tipo de glória, mas orar pedindo que fosse salvo dela, me dá algum espaço
para respirar em minhas orações. Ele considerou orar “Pai, salva-me desta
hora...”. Mas, no frigir dos ovos, ele não faz a oração. Nem bem considerou a
JESUS ORA NA EXPECTATIVA DO FIM 229
possibilidade, rejeitou־a. Orar pedindo para ser salvo seria rejeitar sua iden-
tidade básica, sua vida como presente para os outros, sua vida sacrificada em
amor, para que todos pudessem viver salvos. Seria uma oração que violaria a
própria natureza da oração.
A oração que Jesus não fez é tão importante quanto a oração que ele fez. O
fato de que Jesus, que “como nós, passou por todo tipo de tentação” (Hb 4:15),
não orou “Pai, salva-me desta hora” torna possível também para mim que não
faça essa mesma oração e assim rejeite a oração eu-em-primeiro-lugar, rejeite a
oração interesseira, recuse usar a oração como forma de evitar a Deus.
Primeiro o “não" e somente depois o "sim”.
“Salva-me desta hora?” Não.
“Pai, glorifica o teu nom e”? Sim.
* * *
Talvez leve toda uma vida para aprender a orar assim de coração puro. Mas,
à medida que oramos, fica cada vez mais claro que precisamos deixar Jesus
redefinir diariamente a palavra “glória”; caso contrário, simplesmente não a
compreenderemos.
Os gregos não compreenderam. João nos informa que havia alguns gregos
em Jerusalém no dia em que Jesus fez essa oração. Queriam ver a Jesus.
Eram turistas na Cidade Santa, tendo viajado até aquele lugar para vê-lo.
Tinham ouvido falar de Jesus, tinham ouvido sobre glória e queriam ver com
os próprios olhos. Com as câmeras em fácil acesso, guias de viagem em mãos,
aproximaram-se de André e de Filipe e tentaram contratá-los com o guias
turísticos (Jo 12:20-22).
Quando André e Filipe disseram isso a Jesus, ele, na verdade, não os levou
em consideração. Em vez de posar para uma fotografia para os gregos, ele falou
sobre sua morte. A glória que Jesus vinha revelando em palavras e gestos por
toda a sua vida agora será exibida plenamente: “Chegou a hora de ser glorifi-
cado o Filho do hom em ” (Jo 12:23). “Hora” significa hora de morrer: é hora
de o Filho do homem morrer para que o Filho do homem seja glorificado.
230 A LINGUAGEM DE DEUS
André e Filipe precisam ir dizer aos gregos que voltem para casa e tirem
fotos do Partenon. Jesus com certeza os decepcionará. A glória com a qual
Jesus é glorificado não é inspiradora. Não é algo que alguém queira imitar.
Não é algo que chame a atenção. Não é glamourosa. Não é o tipo de glória em
destaque em revistas de papel brilhante e em cartazes de agências de viagem,
anunciando sol e areia nas ilhas gregas. Não é algo para fotografar.
***
***
Jesus tem apenas algumas horas para viver. Em breve será um cadáver pen-
dendo de uma cruz. Acabou de cear com seus discípulos em Jerusalém, no
final das contas sua última ceia com eles. Após a ceia, Jesus lava os pés de seus
discípulos com uma bacia de água e enxuga seus pés com uma toalha. Pedro
protesta. Acha que seu Senhor está se rebaixando com aquele ato.
Alguns dias antes Jesus e seus discípulos tinham ceado na vila de Betânia, a
pouco mais de três quilômetros a leste de Jerusalém. Esse jantar aconteceu na
casa das irmãs Maria e Marta e de seu irmão, Lázaro. Marta serviu a refeição.
Houve um lava-pés. Nessa ceia foi Maria quem lavou os pés de Jesus, mas com
um perfume caro — mais com o um ungüento do que uma simples lavagem.
E usou o cabelo, não uma toalha, para lhe secar os pés. Judas Iscariotes pro-
testou contra esse lava-pés, exatamente como Pedro protestaria uma semana
mais tarde, mas por motivos diferentes. Judas fez alegações atinentes à justiça
social — o dinheiro deveria ter sido utilizado para os pobres. Jesus defendeu
a extravagância de Maria (Jo 12:1-8).
Os dois lava-pés são preparações para coroações. O lava-pés de Betânia
prepara para o jubiloso grito de "Hosana! Hosana!” da multidão da Páscoa
judaica enquanto aguarda ansiosa a coroação de Jesus, o "Rei de Israel”. O
lava-pés de Jerusalém prepara para a exigência "Crucifica-o! Crucifica-o!” por
parte dos inimigos de Jesus, incitados pelos sacerdotes, os quais penduraram
Jesus em uma cruz com a inscrição "Rei dos Judeus”. Diante dos dois lava-pés
há protestos: o primeiro por parte de Judas, uma vez que ele entende muito
bem como pode transformar aquele perfume em dinheiro rápido; o segundo
232 A LINGUAGEM DE DEUS
por parte de Pedro, porque ele totalm ente deixa de compreender em que
sentido Jesus é Senhor.
Jesus está perto do fim de seu ministério público. O melhor e o pior de
seus discípulos ainda não entenderam nada: para Judas, Jesus é uma maneira
de obter algo para si próprio; para Pedro, Jesus é uma forma de se relacionar
com algo maior que ele próprio. Os dois estão errados. Certamente “obtém-
-se” um bocado de coisas quando se segue a Jesus. Ele dá, e dá, e dá. Nós
ganhamos, e ganhamos, e ganhamos. Mas não é um tipo de “ganhar” como
Judas ou Pedro imaginam.
# * *
Jesus tem sua obra traçada para ele. Os mais próximos dele continuam a
interpretá-lo mal com as melhores (Pedro) e com as piores (Judas) das inten-
ções. Jesus não entra em pânico. Ele não ergue a voz. Ele não os censura por
serem tão obtusos. Ele escolhe passar suas últimas horas com eles em uma
conversa demorada e um tanto sinuosa que se encerra com uma longa oração,
a oração mais longa de Jesus que tem os registrada.
A CONVERSA
A conversa (Jo 13— 16) é vagarosa e repetitiva. Deus não pode se apressar nos
corações humanos. Uma vida de amor e de obediência não pode entrar apres-
sadamente nos corações humanos. Embora seus discípulos ainda não o saibam,
Jesus sabe que sua vida está numa crise e que a crise está prestes a irromper.
Mas seu tom é tranquilizador, íntimo. Em toda a conversa, os discípulos fazem
sete perguntas e intercalam um comentário que traem sua falta de compreen-
são. Não se trata de uma conversa que serve de modelo para uma comunicação
lúcida. Mas é uma conversa-modelo para revelar a mente de Cristo e fornecer
percepções sobre a dificuldade de “entender as coisas” — entender como
funciona o rodeio inerente na revelação e as espontâneas intimidades do amor.
Pedro faz a primeira pergunta. Ela é provocada pelo fato de Jesus lavar os
pés de seus discípulos, com uma bacia de água e uma toalha. Quando Jesus
se aproxima de Pedro, este protesta com uma daquelas perguntas que não
JESUS ORA POR NÓS 233
exigem resposta: “Senhor, vais lavar os meus pés?". Claro que Jesus não vai
lavar os pés dele. Jesus é Senhor; Pedro é seu discípulo. Quando o Senhor lava
os pés de um discípulo, tudo fica de ponta-cabeça. Mas agora isso também?
Será que Pedro, como líder, sempre constando em primeiro lugar nas listagens
dos discípulos, já está ciente de sua primazia? E será que sua posição já come-
ça a subir à cabeça? Se Jesus lavar seus pés, isso não minará a deferência e o
respeito que lhe são devidos por parte dos outros discípulos? Jesus de joelhos
aos pés de Pedro inverte drasticamente quaisquer pretensões por parte dos
seguidores de Jesus, quanto mais de Pedro, dos privilégios da liderança. Jesus
não leva em conta a pergunta de Pedro (Jo 13:3-20).
Jesus lhes informa que um dentre eles o trairá. Ficam aturdidos. Traição?
Impossível! Quem poderia ser? O discípulo “amado”, presumivelmente João,
está sentado ao lado de Jesus. Ele faz a pergunta seguinte: “Senhor, quem é?”.
Sem citar pelo nome, Jesus sinaliza Judas, mas ninguém capta o significado
do sinal. Naquele ambiente de intimidade, a traição não é algo concebível —
Satanás entrando em um dentre eles enquanto estão na própria presença de
Jesus? Dificilmente (Jo 13:21-30).
Jesus então lhes diz que estará com eles “apenas mais um pouco”. Pedro
pergunta: “Senhor, para onde vais?”. Mas Jesus não dá uma resposta direta.
Ele sabe que Pedro não tinha os recursos para compreender. Portanto, ele
responde por via indireta (Jo 13:31-38).
Agora chega a vez de Tomé. Jesus diz a seus amigos que preparará um lugar
para eles “na casa de meu Pai” e que eles já sabem o caminho. Tomé pensa que
Jesus deve estar falando do caminho para uma cidade ou outra, como Betânia
ou Jerico, e então pergunta: "Como então podemos saber o caminho [se você
não diz para que cidade está se dirigindo]?”. A resposta de Jesus “Eu sou o
caminho..." é enigmática. Eles vão levar anos para assimilá-la (Jo 14:1-7).
Filipe é o quinto a falar. Não é uma pergunta dessa vez, mas uma solicita-
ção. Ele está confuso pela forma em que Jesus utiliza o termo “Pai" e pede
a Jesus que lhes mostre “o Pai”. Jesus responde a sua pergunta em forma de
pedido com outra pergunta: “Como você pode dizer: ‘Mostra-nos o Pai’?”. Ao
que tudo indica, mesmo depois de todo esse tempo, Filipe não tem nenhuma
ideia de que Jesus está falando de Deus. Mas Jesus é paciente. De novo ele
repisa o básico (Jo 14:8-14).
234 A LINGUAGEM DE DEUS
***
Tudo bem fazer perguntas. Mas sessões de perguntas e respostas talvez não
sejam a melhor maneira de travar uma conversação no estilo de Jesus. As per-
guntas podem servir para dissipar as diferenças ou as tensões emocionais. Mas
é inútil se preocupar com as perguntas, como um cão com seu osso. Raramente
sabemos o bastante para fazer as perguntas certas. Na companhia de Jesus,
aprendemos a não insistir em respostas a nossas perguntas — aprendemos a
deixar Jesus conduzir a conversa para onde quiser.
Jesus deseja conduzir a conversa em oração. Em certo sentido, a conver-
sação continua, mas Jesus já não está falando a seus discípulos. Está falando
com seu Pai (e Pai dos discípulos); está falando com Deus.
E hora de orar. Os discípulos ainda estão no recinto, mas não mais fazendo
perguntas e comentários; estão ouvindo Jesus falar com o Pai. Como seguidores
de Jesus, sem dúvida alguma estamos incluídos como participantes que ouvem.
A ORAÇÃO
Atravessamos o limiar de João 17 e nos encontramos em um recinto de es-
cuta silenciosa. E o mesmo ambiente. Tudo é igual, mas nada é igual. A bacia
236 A LINGUAGEM DE DEUS
e a toalha estão na mesa, onde Jesus as deixou. Judas ainda está ausente. Os
onze discípulos que seguem a Jesus, o ouvem e falam com ele são os mesmos
onze. Jesus é o mesmo e sempre esteve com eles, sendo aquele a quem eles
seguem e ouvem. E aqueles de nós que, através dos séculos, passaram a crer
em Jesus por meio do testemunho desses onze e agora estão lendo este texto
são os mesmos.
Mas Jesus já não está falando conosco. Jesus está falando com o Pai. Jesus
está orando. Ele ora por muito tempo. Isso é terra santa. Vemo-nos envoltos em
uma escuta santa. Estamos em um lugar de oração, em uma presença de oração.
Nossos lábios são silenciados. Não damos uma palavra: sossega, minha alma.
Não estamos habituados a isso. Não temos o hábito de ficar calados. Fa-
Íamos demais. Falamos sobre Jesus e sobre Deus. Falamos com Jesus e com
Deus. Testemunhamos, aconselhamos, pregamos e ensinamos, fofocamos e
debatemos, cantamos e oramos. Mas estamos agora na sala em que se encontra
João Dezessete, na presença de Jesus, que está em oração — orando, como
logo descobriremos, por nós. Sim, por nós.
Ser alvo de oração é também um elemento da vida de oração — uma grande
parte, mas em geral muito subestimada. Quando é Jesus que está orando por
nós, ser alvo da oração pode muito bem representar a maior parte da oração.
Lembramos onde estamos: estamos na Reunião de Oração de João De-
zessete. Jesus está orando. Temos o evangelho de João aberto diante de nós.
Os onze estão em silêncio, mas não passivos. Estão sendo alvo de oração.
Nós também estamos em silêncio, mas não passivos. Estamos ouvindo ativa-
mente. Queremos fazer parte daquilo que Jesus quer para nós, assim como
estivem os organicamente vinculados à conversa. Desejamos estar presentes
em espírito de oração diante da Presença que ora. Não tem os nada a dizer.
Jesus, a Palavra que se tornou carne, está falando ao Pai. Ele está nos in-
cluindo em sua oração.
Na Reunião de Oração de João Dezessete, dissipa-se qualquer culpa que
ainda carreguemos por termos sido infiéis em oração. Desaparece qualquer
senso de impotência que nos persiga quanto à oração. Esvaem-se toda timidez
por se sentir deslocado e todo encolhimento temeroso. O mundo da oração
expande-se exponencialmente. Não mais nos preocupamos com o que sabemos
JESUS ORA POR NÓS 237
* * *
Jesus ora. O texto diz: “Depois de dizer isso, Jesus olhou para o céu e orou:
‘Pai, chegou a hora. Glorifica o teu Filho, para que o teu Filho te glorifi-
que( ״Jo 17:1).
A oração de Jesus está em harmonia com a conversa imediatamente anterior
de Jesus. Jesus não vira a página, seja no tom, seja no conteúdo, quando parte
da conversa para a oração. Ele fala do mesmo jeito com o Pai que fala com os
amigos, do mesmo jeito com os amigos que ele fala com o Pai.
A conversa com eçou com as palavras “havia chegado o tem po” (Jo 13: 1).
Jesus a termina com a mesma expressão: "Aproxima-se a hora, e já chegou”
(16:32). Agora já sabemos o que significa essa frase: "É hora de morrer”.
A morte de Jesus, sua “hora", define o contexto da conversa; continua
servindo de contexto para a oração. Mas a glória fornece a ação. Morte e glória
não parecem ser aliados naturais. Mas em Jesus elas são.
* * *
* * *
* * *
"teu/tua[s]”). Jesus refere-se a si próprio por nome (Jesus Cristo) uma vez, pela
metáfora pessoal Filho, uma vez e por pronomes de primeira pessoa (“eu”, “me”,
“mim”, “meu/minha[s]”), 57 vezes. A oração é linguagem pessoal usada entre
pessoas. Jesus não é uma "verdade” abstraída do pessoal imediato e particular.
Com plem entando esses nomes e pronomes pessoais, há 45 referências
(“eles”, “estes”, “deles”, “os”, “lhes”, "aqueles”) aos onze discípulos que estão
na sala com Jesus, enquanto ele ora por eles. Alguns desses pronomes atra-
vessam os séculos e incluem a nós, os que ainda iríamos nos tornar discípulos.
Jesus reúne a eles e a nós em sua oração, nesse ato abrangente de intercessão.
Nós somos também alvo da oração. Ao ouvirmos ativamente na presença do
Jesus que ora, participamos da oração.
O uso intimamente pessoal da linguagem representado na oração é mais re-
alçado ainda pelo uso dezenove vezes da preposição “em ”, participativa e envoi-
vente. Oração não é uma operação de distanciamento. Oração não é um exercício
religioso que "põe as coisas em perspectiva” ou “coloca as pessoas em seu lugar”.
Ela é envolvente. Jesus envolve-se na obra do Pai. Jesus envolve-se na vida de
seus discípulos. Jesus envolve-nos naquilo em que Deus está envolvido.
No contexto, com o sofrimento e a morte de Jesus com apenas algumas ho-
ras por acontecer, a oração e o sofrimento compõem o material da intercessão.
“Gostaria de saber se vocês percebem um fato grande e profundo? Que as almas
— todas as almas humanas — são profundamente interligadas? Que, quero dizer,
não podemos apenas orar uns pelos outros, mas sofrer uns pelos outros.”2
A oração de Jesus não diz respeito a idéias ou projetos; é um envolvimento
pessoal em todas as operações da Trindade. Graças à oração de Jesus, estamos
envolvidos em tudo o que o Pai faz, o Filho diz e o Espírito encarna em nós. A
longa conversa que Jesus e seus discípulos acabaram de travar é agora aliada
às intimidades da oração, nas quais eles se veem participantes na relação do
Pai, do Filho e do Espírito Santo.
* * *
Jesus ora muitas coisas a nosso favor. Podemos imaginar que essas intersecções
incluem praticamente tudo o que diz respeito a nos formar e nos curar, nossa
JESUS ORA POR NÓS 241
“Pai santo, protege-os [...] para que sejam um, assim como somos
um .” (v. 11)
“Rogo [...] para que todos sejam um ...” (v. 20-21)
"... para que todos sejam um, Pai, como tu estás em mim e eu em
ti...” (v. 21)
"... para que eles sejam um, assim como nós somos um...” (v. 22)
"... eu neles e tu em mim. Que eles sejam levados à plena unida-
d e...” (v. 23)
"... a fim de que o amor que tens por mim esteja neles, e eu neles este-
ja.” (v. 26)
* * *
O realce que João confere a essa oração à medida que ele nos aproxima das
páginas finais da história de Jesus e a probabilidade de que Jesus continue a
fazer essa oração à medida que intercede por nós (“vive sempre para inter-
ceder por eles” — Hb 7:25) requerem que deliberadamente tom em os nosso
espaço na Reunião de Oração de João Dezessete, entrando e nos submetendo
à oração que Jesus continua a fazer por todos nós que seguimos a Jesus, para
que sejamos um assim como Jesus é um com o Pai.
* * *
Uma grande dificuldade de deixar essa oração penetrar o coração é que não
parece ter feito m uita diferença depois de vinte séculos, e certam ente
não parece exercer hoje um grande impacto sobre os cristãos. A igreja cristã
é famosa em todo o mundo por ser contenciosa e mesquinha, por usar as
palavras de Moisés e de Jesus como armas para excluir e condenar. Uma das
marcas identificadoras que Jesus deu a seus discípulos é “se vocês se amarem
uns aos outros” (Jo 13:35). Mas não muitos séculos se passaram, e os de fora
já estavam dizendo: "Vejam como eles vilipendiam uns aos outros’”. Matamos
com verbos e substantivos, espadas e rifles, com “cristãos” marchando sob a
bandeira da cruz de Cristo.
Dado o acúmulo dos massacres através dos séculos — igrejas destruídas, famí-
lias destruídas, almas destruídas — , é difícil permanecer na Reunião de Oração de
João Dezessete junto com os onze, silenciosamente submetendo-nos à oração
que Jesus faz ao Pai "para que eles sejam um, assim como nós somos um ”.
* * *
próprias mãos. Muitos cristãos, impacientes com o que eles consideram a ineficácia
da oração de Jesus, tentam resolver o problema pela imposição da unidade, uma
unidade por coerção — ou seja, autoridade impessoalizada em instituição. O estilo
é hierárquico. Os métodos são burocráticos. Qualquer pessoa ou congregação que
se recuse a se conformar é excluída: anatematizada, excomungada ou evitada. A
unidade é preservada, impondo-se uma definição institucional.
Outros cristãos, também impacientes com a oração de Jesus, resolvem o
problema pelo cisma. Reduzem a escala da unidade àquilo que possa ser admi-
nistrado, reunindo homens e mulheres que pensem igual e tenham o mesmo
temperamento. Em geral um líder forte e carismático se apresenta para definir
os parâmetros reduzidos da chamada unidade. Se pessoas ou grupos descobrem
que já não se encaixam no estilo comportamental, teológico ou de adoração que
define a unidade, outro cisma é sempre uma opção — simplesmente se divi-
dem com outras pessoas que pensam igual e têm o m esmo espírito. A unidade
é preservada pela preferência pessoal.
A urgência repetitiva com a qual Jesus ora para que sejamos um, assim
como ele é um com o Pai, realça os atos deliberados de cisma como atos de
insurreição, uma erupção de voluntariedade violenta na própria presença
daquele que está intercedendo pela nossa unidade relacionai uns para com os
outros, de acordo com a unidade da Trindade. A frequência dessa violência
perpetrada ao corpo de Cristo, uma violência justificada por racionalizações
infindáveis, não é nada menos que assombrosa. Desafiando Jesus na causa de
Jesus. Um tremendo escândalo.
O que salva é que esse desafio não impede que as orações de Jesus cum-
pram seu papel — lentamente, num crescendo, maravilhosamente. Mas isso
não significa que o escândalo de desafiar Jesus em nome de Jesus seja menos
escandaloso. O escândalo é muitas vezes jactanciosamente alardeado como
necessário para preservar a igreja. Mas, qualquer que seja o idioma utilizado,
quaisquer que sejam os slogans colocados nas faixas e nos cartazes, fica bem
claro que os cismáticos em algum mom ento deixaram a Reunião de Oração
de João Dezessete.
Crescí sendo ensinado a odiar os católicos. Mais tarde na vida, adquiri uma
aversão esnobe pelos cismáticos, com certo ar de superioridade. O tem po
244 A LINGUAGEM DE DEUS
A TRINDADE
Existe outra maneira, m uito mais satisfatória, de com preender e avaliar a
oração de Jesus do que dispensá-la impacientemente com o ineficaz, o item
principal da nossa lista de “orações sem resposta”, e, depois, resolver tudo
com as próprias mãos. E com o os cristãos aprenderam a compreender como
Trindade o U m em Muitos, a Unidade casada com a Particularidade.
JESUS ORA POR NÓS 245
O “um ” que Jesus ora a nosso favor é aquele que é a Trindade. Esse "um” é
verdadeiramente um, mas é um "um” que reúne todas as particularidades em
uma unidade relacionai. Tudo contribui para o ser de tudo o mais, permitindo
que tudo seja o que é caracteristicamente. Cada coisa está relacionada a todas
as demais coisas. Cada pessoa está relacionada a todas as outras pessoas. Nada
é forçado. Não há nada de matemático nesse assunto. Todos estão, quer sai-
bam, quer não, envolvidos, seja em submissão, seja em resistência, em todas
as operações do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
O santo batismo é o sacramento que proclama a representação desse fun-
damento trinitário que é básico a toda a existência. Somos batizados em nome
do Pai, do Filho e do Espírito. Tornamo-nos nós mesmos quando adentramos
as águas do batismo, com nossa identidade particular confirmada e esclarecida
em um nome pessoal e em um relacionamento pessoal com todas as formas,
todas as modalidades em que Deus é Deus. Não somos autônomos. Não somos
nós mesmos por nós mesmos.
O pecado é um ato isolado. Ele nos separa relacionalmente de Deus, da
criação de Deus e da comunidade de Deus. Restabelecer a com plexidade
das relações em que som os criados não é algo possível por ordem ou por
decreto. Uma intimidade pessoal e relacionai não pode ser obtida impesso-
almente. Damos às intimidades sexuais forçadas o nome de estupro, sem
dúvida uma das mais violentas degradações do ser humano. D eus não toma
parte em estupros.
Há uma conversa em um romance de Charles Williams em que as perso-
nagens debatem sobre por que Deus não cuida melhor das coisas santas e por
que jamais cabe fazer para Deus o que ele não parece fazer para si próprio.
Eis as palavras que são proferidas: "Deus somente dá, e ele tem somente a si
para dar, e ele, mesmo ele, pode dar som ente naquelas condições que são ele
m esm o”.3 Deus não pode operar de maneiras que não estejam em harmonia
com ele mesmo. Deus é pessoal e livre. E, assim, o que quer que aconteça em
oração é pessoal, dado livremente e recebido livremente. A oração não é uma
técnica sobrenatural de coerção. A oração não amontoa pecadores e santos
em pilhas separadas de anonimías, uma pilha destinada à condenação, outra
246 A LINGUAGEM DE DEUS
grande, saudável, trinitária onde deixamos Deus ser Deus da forma em que
ele deseja ser D eus e deixamos que Jesus ore por nós para participarmos
da unidade dinâmica revelada entre Pai, Filho e Espírito, ou seja, precisa-
m ente, gloria. A igreja é a arena principal em que aprendemos que gloria
não consiste no que fazemos para Deus, mas no que D eus faz por nós. £
o campo de poda onde nos subm etem os à morte e ao morrer, a morte de
Jesus na cruz e nossa morte diária. Necessariam ente envolve recusar-se a
controlar as pessoas ao redor e recusar-se a forçá-las, seja por intimidação
paternal, seja por força militar, seja por manipulação política, a agir do nosso
modo. E necessariamente implica recusar-se a dissipar a vida em uma série
de performances de uma só noite com pessoas glamourosas ou em causas de
elevar a adrenalina, satisfazendo nossas ambições e entregando-nos a nossos
caprichos “em nome de Jesus”.
* * *
Uma das mais antigas perguntas metafísicas está relacionada com a natureza
fundamental da realidade, uma questão com a qual lidam os cristãos que
passam algum tem po na Reunião de Oração de João D ezessete. A vida na
com unidade de Jesus é uma ou muitas, singularidade ou multiplicidade?
Os gregos refletiram detidamente sobre isso. Parmênidas defendia o "uma”.
Heráclito defendia as “muitas”. Os cristãos, muito influenciados pela conversa
e pela oração de Jesus, desde o início começaram a reformular o debate do
ponto de vista da Trindade: “Tão logo eu concebo o Um , sou iluminado pelo
esplendor dos Três: tão logo eu os distingo, sou levado de volta para o U m ”
(Gregorio de Nazianzo).4
* * *
Vale ressaltar, creio eu, que Jesus assume total responsabilidade por nossa
unidade: "que sejam um, assim com o somos um ”. Ele ora. E significativo que
a intenção de Jesus de que eles “sejam um ” é expressa em oração ao Pai, e
248 A LINGUAGEM DE DEUS
não em uma ordem ou exortação aos discípulos "para serem um ”. Ser uma
comunidade de fé em Cristo é um negócio complexo. Não tem os nem o co-
nhecimento, nem a competência para fazê-lo acontecer.
Ao nos submetermos a Jesus enquanto ele ora pela nossa unidade, também
nos submetemos a como ele escolhe realizá-la, o caminho da glória, glória que
abraça o sofrimento e a morte. Esse é o caminho, o único caminho, que nos
permite a liberdade e a dignidade da participação. A unidade pela qual Jesus
ora é articulada exclusivamente na linguagem do relacionamento pessoal e
da participação voluntária. Uma unidade imposta não faz parte da oração de
Jesus. Uma redução cismática não faz parte da oração de Jesus. Todos nós
hoje que somos batizados e chamados cristãos somos alvo da oração de Jesus
para que experim entem os maturidade na companhia da “igreja una, santa,
católica e apostólica”.
Seis páginas depois (na minha versão da Bíblia) e cerca de quarenta dias
depois na história conforme é narrada (Lucas tendo retomado de onde João
parou), encontramos esses mesm os discípulos ainda em Jerusalém e ainda
orando. Entrementes, a crucificação, a ressurreição e a ascensão de Jesus foram
concretizadas. Mas os discípulos em oração não sabem o que virá depois. A
mãe e os irmãos de Jesus se uniram aos onze, ainda orando em harmonia com
a Reunião de Oração de João Dezessete. A reunião de oração aumenta em
número — 120 são computados em um dos momentos. Continuam a orar à
medida que cuidam da questão de substituir Judas Iscariotes. Enquanto oram,
oferecem Matías com o substituto para unir-se a eles com o “testemunha de
sua ressurreição” (At 1:22).
Estão ainda em oração — agora já se passaram cinquenta dias desde a Res-
surreição e dez desde a Ascensão. E a festa de Pentecoste. E então acontece.
O Espírito Santo prometido está entre eles, como Jesus lhes garantiu antes
em sua conversa. E a oração de Jesus por eles para que "sejam um ” recebe
confirmação, visivelmente nas chamas de fogo, audivelmente nas línguas — um
JESUS ORA POR NÓS 249
Meu Pai, se for possível, afasta de mim este cálice; contudo, não
seja como eu quero [...]
Meu Pai, se não for possível afastar de mim este cálice sem que
eu o beba, faça-se a tua vontade.
Poucas horas antes de Jesus estar pendurado na cruz em agonia, ele se acha
também em agonia, orando no Getsêmani. As duas agonias são a mesma Ago-
nia. A agonia recebe um nome: “este cálice”. O cálice contém um líquido que
é bebido. A propriedade particular do cálice é que o seguramos nas mãos, o
colocamos nos lábios, o viramos para dentro da boca e engolimos o conteú-
do. Ele requer um espírito coordenado e disposto, que aceita e que recebe.
Requer levar o conteúdo por todo o nosso sistema digestivo, distribuindo-o
pelos músculos e ossos como um todo, glóbulos vermelhos e gânglios nervo-
sos. O cálice é um recipiente de onde podemos extrair algo que não seja nós
mesmos para o interior de nossa vida, de modo que ele se torna nós mesmos,
entrando em nosso viver.
O cálice que Jesus segura nas mãos no Getsêmani naquela noite é a von-
tade de Deus — a vontade de Deus de salvar o mundo em um ato final de
amor sacrificial. O cálice que Jesus bebe é uma morte sacrificial em que Jesus
livremente toma o pecado e o mal a si mesmo, absorve-os em sua alma e ex-
trai deles a salvação — bebe-os como que de um cálice. O nome de Jesus é,
traduzido para o inglês, “Javé salva”. A medida que Jesus bebe o cálice, ele se
transforma no nome que ele carrega.
Naturalmente, isso se trata de um mistério simplesmente insondável. É
um mistério inexplicado, mas não é um mistério obscuro. Ele tem muitas
testemunhas: poetas e agricultores, cantores e pais que dão testemunho de
que a disposição de morrer é um ato de aceitar e abraçar a vida.
252 A LINGUAGEM DE DEUS
Antes de sua última semana, Jesus passou a maior parte de seus anos nas
pequenas cidades e estradas pelo interior da Galileia. Foi um tem po para co-
nhecer o entorno. Havia tem po suficiente para as conversas, oportunidades de
fazer perguntas e escutar o ensino de Jesus. As pessoas podiam observar Jesus
enquanto ele entrava em suas vizinhanças e curava os doentes, quebrava os
tabus que mantinham leprosos, samaritanos e gentios à distância e mantinham
as mulheres no seu devido lugar. Em uma atmosfera religiosa estagnada com 0
mau hálito do moralismo cheio de picuinhas, Jesus era uma brisa fresca. Sob
a ocupação romana que era brutal e opressiva, Jesus não se deixou minimizar,
nem intimidar.
Ele andou entre as pessoas com uma graça sem ostentações que permite
às pessoas saberem que há outra maneira de viver, uma maneira de viver li-
vremente, totalmente vivo. Espalhou-se a notícia. As pessoas falaram. Termos
como “Filho de D eus”, “Filho do hom em ” e “Messias” foram mencionados.
As pessoas se viram tornando-se vivas na presença de Jesus de maneiras ines-
peradas. Muitos se convenceram de que Deus estava fazendo algo em Jesus
sem precedentes e, assim, se tornaram seguidores. Comprometeram-se com
o caminho da vida que o próprio Jesus estava vivendo.
Quando isso já havia acontecido por aproximadamente três anos, chegou-se
a algo como que uma massa crítica. O reconhecimento ganha foco. Pedro foi
o primeiro a articular: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt 16.16) —
Deus pessoalmente presente e operante entre eles, Vida Eterna, Vida Real,
Salvação do Mundo, Cristo.
Então Jesus fez algo estranho: começou a falar de morte, sua própria morte
e a morte de todos os que o seguiam. Partiu da Galileia para Jerusalém. Tinha
havido peregrinações anteriores a Jerusalém, mas tinham sido, precisamente,
romarias — eles sempre regressavam para casa, na Galileia. Agora, Jesus tinha
começado a falar de Jerusalém como seu destino e morte. Por três anos na
presença de Jesus eles tinham sido imersos numa conversa de vida. O tema
agora mudou radicalmente: morte.
Será que Jesus conseguirá preservar seus seguidores à medida que muda o
tema de vida para morte? Será que os quatro evangelistas conseguirão prender
JESUS ORA A AGONIA DO GETSÊMANI 253
* * *
Temos uma transcrição de apenas seis das muitas orações que Jesus ofereceu
ao Pai por toda a vida. As duas primeiras são feitas na Galileia, enquanto ele
aproxima seus seguidores de sua vida abundante. As quatro restantes são feitas
em Jerusalém na última semana de sua vida à medida que aguarda sua morte
de salvação. A oração do Getsêmani é a terceiro neste quarteto de orações
da Paixão.
Todos os quatros escritos do Evangelho nos fazem imergir nos detalhes
dos últim os dias de Jesus, sua rejeição, sofrim ento e morte. Essas quatro
orações finais são uma forte defesa contra as persistentes ilusões satânicas
que nos seduzem com as promessas de que, se apenas seguirmos a vida de
Jesus, estaremos livres de problemas, isentos de dor, imunes ao tédio, sem
ansiedades. As quatro orações certificam-se de que tenhamos amplo acesso a
orações que envolvem todo o nosso ser — nossas emoções, nossa compreensão,
nossa imaginação — a percepção de que seguir a Jesus significa segui-lo passo
a passo através do vale da sombra da morte e da cruz.
* * *
No Getsêmani, Jesus sabe que ele logo experimentará uma morte violenta.
Ele também sabe que não precisa passar por isso. Tem a liberdade de aceitar
ou recusar essa morte. Sua morte não é algo imprescindível, um destino im-
pessoal. Não é a anankê invocada pelos gregos, nem o destino dos romanos,
nem o karma que os budistas usam para dar sentido ao cosmo. Jesus sabe e
nos permite saber que sua morte é um ato voluntário de obediência.
Jesus ora enquanto se encaminha para sua morte e para além dela. Ao
orar, a morte adquire uma dimensão não imaginada: não mais um beco sem
saída, mas um arauto da ressurreição, não mais um termo, mas um começo:
“É no fim que com eçam os” (T. S. Eliot). Ao fazermos as orações de paixão
254 A LINGUAGEM DE DEUS
♦ ♦ ♦
* * *
Jesus fez essa oração na companhia de seus discípulos. Ele queria que eles
orassem com ele e por ele. Estavam juntos no jardim para orar juntos. Mas
não foi o que fizeram. Ele levou os três, Pedro, Tiago e João, para um lugar à
parte, junto com ele, e disse-lhes: “A minha alma está profundamente triste,
numa tristeza mortal. Fiquem aqui e vigiem comigo” (Mt 26.38). Então ele foi
JESUS ORA A AGONIA DO GETSÊMANI 257
e fez sua oração agonizante no Getsêmani: “Meu Pai, se for possível, afasta de
mim este cálice; contudo, não seja com o eu quero, mas sim como tu queres”.
Voltou a seus discípulos e os encontrou dormindo. Repreendeu-os: “Vocês não
puderam vigiar comigo nem por uma hora? [...] Vigiem e orem para que não
caiam em tentação. O espírito está pronto, mas a carne é fraca”(Mt 26.40-41).
Essa cena é repetida duas vezes mais. Três vezes Jesus pede que seus discípulos
orem com ele. Três vezes eles dormem e o abandonam.
E então acaba a reunião de oração. Jesus está preparado para tudo o
que está enfrentando noite adentro e pela manhã. Está preparado para os
dois julgamentos, disposto a morrer, preparado para a cruz. Os discípulos
não estão preparados. Naquela hora, “todos os discípulos o abandonaram”
(Mt 26:56).
* * *
Pelas orações que Jesus fez aquela noite, formou-se um elem ento essencial na-
quilo que aconteceu na cruz no dia seguinte — como traz o C redo niceno, "para
nós [...] e para a nossa salvação”. Ação sem oração reduz-se a algo meramente
exterior. Uma vida sem oração pode resultar em ações eficazes e conquistar
obras magníficas, mas, se não houver nenhuma interioridade desenvolvida, a
ação jamais penetrará a profundidade e a complexidade dos relacionamen-
tos, onde a substância da criação é formada, onde a salvação é operada, onde
homens e mulheres se acham presentes e à vontade com os caminhos de
Deus — Pai, Filho e Espírito Santo — à medida que seu nome é santificado,
à medida que ele dá forma a seu reino e à medida que sua vontade é realizada.
capítulo 19
Jesus ora na cruz:
as sete últimas palavras
A morte de Jesus é uma morte real. É fato histórico. Nada na vida de Jesus é
tão meticulosamente documentado quanto seu morrer e sua morte: “morto
e sepultado”, como traz nosso Credo apostólico, uma morte em cada detalhe
tão física como cada morte nossa há de ser. Seu coração parou, sua respiração
parou, seu cérebro parou. Houve uma queda brusca na temperatura do corpo.
Morto. Mas havia mais, muito mais na morte de Jesus do que a cessação dos
sinais vitais. A salvação foi alcançada. Um acontecimento divino foi encenado
com a morte de Jesus. Sua morte, sacrificial e voluntária, foi uma oferta pelos
pecados do mundo que dão em morte, uma morte que conquistou a morte.
Foi a morte da morte.
Esse é um grande mistério, o maior mistério do cosmo, do céu e da terra,
e, estritam ente falando, insondável. Não que algumas de nossas melhores
mentes ainda não tenham tentado. Não são inúteis seus pensamentos e suas
orações. Elas fizeram descobertas e tiveram lampejos das operações profundas
e eternas da Trindade que nos impedem de sermos com pletos estranhos em
relação a esse mistério da salvação em que nossa vida é radical e abrangen-
tem ente recriada — "resgatados, curados, restaurados, perdoados”, como
cantamos com tanta força e vigor. Mas, no fim de todas as coisas, percebemos
que nunca iremos muito além da “periferia de seus caminhos” no que se refere
à compreensão das operações interiores da cruz e de nossa salvação.
Esse mistério dá forma à maneira em que os cristãos vivem e morrem,
creem e amam, perdoam e são perdoados. E um mistério em que habitamos,
não apenas um mistério diante do qual nos apresentamos e fazemos perguntas
por curiosidade.
* * *
nossa atenção postuma. Não estamos na cruz para relembrar ou prestar ho-
menagem. Achamo-nos aquí para sondar o significado de nosso morrer diário
na companhia de Jesus, que morre por nós.
Paulo nos dá o vocabulário para isso, orando nosso morrer diário como par-
ticipação nessas dimensões eternas da morte de Jesus. Quando Paulo escreve
"Fui crucificado com Cristo” (G1 2:19), ele penetra as dimensões da salvação
presentes na morte de Jesus com o ele as experim entou. Quando escreve
“Todos os dias enfrento a m orte...” (IC o 15:31), está dando testemunho da
oferta sacrificial de sua vida que ele faz todos os dias, à medida que segue o
caminho de Jesus em direção à cruz. Quando escreve a seus irmãos e irmãs,
os cristãos, “vocês morreram, e agora sua vida está escondida com Cristo em
D eus” (Cl 3:3), ele os está aproximando de uma participação nas operações
de salvação da morte de Jesus. Quando ele escreve em uma cela prisional, ele
mesmo condenado a uma execução romana, dizendo que Jesus “foi obediente
até a morte — e morte de cruz”, ele convida seus leitores: "Seja a atitude de
vocês a mesma de Cristo Jesus” (Fp 2:5-8).
***
formas de absorver o que isso implica (não a única forma, mas certamente urna
forma boa demais para não ser mencionada) é orar essas sete frases simples
na companhia de Jesus enquanto ele as profere em sua morte.
***
Mas caveat orator, cuide-se aquele que ora. Meditar e orar com Jesus enquanto
ele morre na cruz não é um convite à morbidez. Houve vezes na comunidade de
Cristo que os cristãos tentaram experimentar e se apropriar do sofrimento
de Jesus na cruz entregando-se a práticas de mortificação: jejuns extremados,
privação deliberada do sono, vestindo camisas de pelo com o penitência e
autoflagelo (urna “disciplina” medieval). Existe uma história de que gosto
m uito, sobre um monge que se impôs a disciplina de não sorrir — como
poderia pensar em sorrir quando Jesus estava sofrendo? U m sacrilégio! Um
colega monge, exasperado, disse-lhe: “Isso mesmo, seja infeliz. Mas que seja
som ente você. Não queira também a infelicidade de todos os que estão ao
seu redor”.
Por mais asceticamente heroicas que essas práticas possam parecer, há algo
de suspeitosamente arrogante em jogo, a presunção de que nossa dor autoim-
posta, nossas privações e sofrimentos podem acrescentar ou contribuir ao que
Jesus realizou na cruz, aquele que “sofreu pelos pecados uma vez por todas, 0
justo pelos injustos” (lP e 3:18), fazendo um “sacrifício suficiente, completo
e perfeito pelos pecados de todo o m undo”.1
***
Começamos todas as nossas orações, e ainda com maior ênfase essas orações
da cruz, no túm ulo vazio, o lugar da ressurreição. Com eçam os na ressur-
reição. A morte de Jesus (e a nossa) não pode ser entendida nem podemos
participar dela sem a ressurreição. Cruz e ressurreição são os polos norte e
sul, as polaridades do verdadeiro evangelho, de um mundo de salvação úni-
co e indiviso. Retire qualquer um dos polos, e você esvazia a salvação. Não
estaríamos fazendo essas orações na cruz de Jesus se não houvesse nenhuma
JESUS ORA NA CRUZ: AS SETE ÚLTIMAS PALAVRAS 263
***
Uma das surpresas inevitáveis entre os cristãos que seguem a Jesus no caminho
da salvação é o grande número de pessoas, vivas ou mortas, que experimentam
o abandono e gritam em seu desespero, seja um abandono por parte de Deus,
de um cônjuge, de um filho ou de um amigo, perguntando-se "Por quê?”.
Ouvimos o grito de abandono de Jesus ser repetido, ecoando nos corredores
dos séculos, ricocheteando nas paredes de nossas igrejas e casas.
JESUS ORA NA CRUZ: AS SETE ÚLTIMAS PALAVRAS 265
E por mais tempo que escutemos, com toda a atenção, nunca recebemos
uma resposta para o “Por qué?”.
Ajuda encontrar-nos na companhia de Jesus à medida que ele ora seu “Por
quê?"? Creio que sim.
Ajuda encontrar Jesus em nossa companhia enquanto oramos nosso "Por
quê?”? Creio que sim.
Ajuda perceber que, à medida que Jesus ora seu senso de ter sido aban-
donado por Deus, está fazendo uma oração que aprendeu quando criança? É
a primeira linha do salmo 22. E um salmo que expressa doloroso isolamento,
arraso emocional, dor física. E também um salmo que termina em uma con-
gregação: a “grande assembléia” (v. 25) de homens e mulheres entre os quais
ele pode testemunhar que Deus “não escondeu dele o rosto, mas ouviu o seu
grito de socorro” (v. 24). Ajuda saber que esse salmo termina diferente de
com o começou? Creio que sim.
E ajuda observar que essa é a primeira oração de uma só frase da cruz —
mas não a última? Jesus continua orando. Fragmentos de oração rasgados da
inocência da infância, lascas quebradas de oração de vidas dilaceradas têm
uma forma de se unir novamente na companhia de Jesus. Jesus não acabou
de orar. E tampouco nós.
Para aqueles de nós que escolherem fazer essa oração de Jesus, isso é real-
mente algo que nos faz parar para pensar. Não tem os o dever de insistir que
a justiça seja feita? Não somos responsáveis por garantir que as leis da terra
sejam cumpridas? Não é nossa obrigação certificar-nos de que a imoralidade
e o crime sejam erradicados da sociedade e da nação por todos os meios
necessários — pela lei, pela força, pelo encarceramento, pela guerra, pela
execução, pela pregação?
E, aproximando a pergunta a um nível pessoal, familiar, do dia a dia, das
redondezas, quando pecam contra nós, será que nos prostramos e aceitamos?
Será que cultivamos uma imagem de capacho e passivamente deixamos que
pessoas perversas e intimidadoras, rudes e coniventes, sejam pais, sejam
cônjuges, empregadores ou vizinhos, filhos ou amigos, tirem proveito de
nós, nos violem, nos defraudem e, em seguida, respondam com um pacífico
“Pai, perdoa-lhes”?
Essas questões em geral não exigem resposta, pois pretendem suscitar a
resposta “Claro que não! Tenho meus direitos! Ninguém vai fazer gato e sa-
pato de mim assim”. Como tais, as perguntas eliminam eficazmente o perdão
de nossas prioridades pessoais, pelo menos quando os nossos interesses estão
em jogo. Se conseguirem fazer isso, eliminar a oração de perdão de Jesus,
são perguntas insinuadas em nossa vida pelo Diabo.
JESUS ORA NA CRUZ: AS SETE ÚLTIMAS PALAVRAS 267
como consequência de fazer a oração que Jesus fez na cruz, é que o perdão
deve passar a ser nossa primeira resposta a cada pessoa que nos avilta, nos
fere e nos tira a vida. Certamente haverá questões de justiça com as quais
a sociedade deverá lidar ao longo do caminho, e talvez seja importante que
nos envolvamos. Há juizes e advogados de acusação, policiais e jurados, e
entre eles muitos de nós que buscam e defendem a causa da justiça, que são
contados entre eles. Mas quem mais se acha ali para dizer “Pai, perdoa-lhes”
senão os cristãos que sabem fazer essa oração com Jesus? Por mais importante
que seja a justiça — e é importante — , o perdão é mais importante. O cristão
em oração, assim com o Jesus se acha em oração, não é em primeiro lugar um
agente impessoal da justiça, mas um transmissor pessoal do perdão e uma
testemunha da ressurreição.
Tal perdão não se trata de brando sentimentalismo. Ele é o evangelho sem
concessões. Tal perdão não é um dar de ombros do ponto de vista moral. E
uma chama violenta do amor da ressurreição alimentada nos fornos da cruz.
Supondo que o criminoso crucificado ao lado de Jesus estivesse recebendo
uma sentença de morte justa (foi o que ele disse), a sentença não foi revogada
na oração de Jesus. O criminoso morreu por seu crime. Mas o perdão superou
a justiça. E o que sempre acontece.3
A vida após a morte é uma preocupação perene da raça humana: “O que vem
depois? Existe algo além? E, se existe, o que é? — passear pelas ruas douradas
de Jerusalém... fogo e enxofre no inferno... penitências no purgatório... uma
vida sombria ao dispor e a serviço de médiuns e ‘canalizadores’... transmigrar
em uma vaca ou girafa?”
Mas, no século 21, menos pessoas parecem fazer essa pergunta. Em minha
experiência com o pastor americano há mais de cinquenta anos, essa é uma
das perguntas menos formuladas a mim. E a frequência da pergunta é cada
vez menor. Vivemos em uma era — pelo menos no abastado Ocidente — em
que os extravagantes confortos do consumismo e as surpreendentes proezas
tecnológicas constantemente contribuem para uma sensação de que a morte
pode ser adiada — entre alguns, talvez, até mesmo com ilusões de imortali-
dade. Se pudermos adiá-la por uma quantidade suficiente de tempo, talvez,
quem sabe, não aconteça.
Fui um crente e participante ativo na fé cristã por toda a minha vida cons-
ciente e, para ser bem sincero, estou entendiado com a maioria das conversas,
se não com todas, sobre “céu e inferno” que acabo escutando. Parecem reunir
fantasias da infância e egoísmos da adolescência, projeções daquilo que ima-
ginamos capaz de garantir uma eternidade de autogratificação para nós e uma
merecida paga para aqueles vermes que tornaram a vida, diferentemente do
que esperávamos, impossível de viver.
A resposta de Jesus a seu vizinho no Gólgota concentra-se nas preocupações
da “vida após a morte" e as simplifica.
Frederick Buechner, romancista que m uito aprecio, escreve em suas
memórias sobre uma conversa que teve com a mãe. Ela pergunta se ele de
fato acredita que "alguma coisa aconteça após a m orte”. Por seu surda, a
resposta dele é um “SIM!” retumbante! Numa carta em que ele desenvolve
essa resposta, o filho testemunha à mãe que sua fé baseia-se em “um palpite”:
“Se as vítimas e os vitimizadores, os sábios e os tolos, os de bom coração e
os cruéis, todos acabam igualmente na sepultura, e esse é o fim deles, en-
tão a vida seria com o uma comédia negra”. Ele prossegue, contando à mãe
que a vida “parece um mistério. Parece que, no seu âmago mais íntimo,
existiría ‘Santidade’”.3
270 A LINGUAGEM DE DEUS
Uma das orações, uma oração de uma só frase como as outras, foi diferente
de todas as outras que ele fez na cruz. Foi uma oração, ao que tudo indica,
com pletamente fora do contexto daquela cruz, uma oração com uma simpli-
cidade infantil: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”. Era uma oração
de confiança inquestionável, do tipo que associamos às orações que muitos de
nós fizeram na infância na hora de dormir:
Confiança sem cálculos. Uma prontidão sem perguntas de deixar tudo nas
mãos do Pai. Uma oração que brota de um profundo senso de bem-estar, de
segurança, de tanquilidade, de proteção, com as mãos da bênção a tocar-nos
e uma voz reconfortante de afeição envolvendo-nos em um sono sem sonhos
na companhia de santos anjos.
Mas as circunstâncias em que Jesus fez essa oração de criança eram tudo,
menos estáveis e seguras. Jesus nu, pendurado naquela cruz, foi exposto a
agressões e ignomínias, maldições e zombarias. Todos os detalhes que podemos
imaginar estivessem presentes na oração “Pai, nas tuas mãos entrego o meu
espírito” são inimagináveis na carnificina sangrenta que é o Gólgota.
Mas, para fazermos essa oração na companhia de Jesus, precisamos imaginá-
la. Se não agirmos assim, diluiremos a oração de Jesus em uma oração de
resignação sem fé — um desistir final e uma rendição final àquilo sobre o que
nada mais podemos fazer, um “atirar a toalha”.
Jesus não estava desistindo; estava entrando — entrando na obra da sal-
vação, em que tudo o que experimentamos estava sendo posto a serviço da
salvação. E certamente não estava orando no abraço físico e emocional de uma
criança que entra no conforto de um sono relaxante.
Paulo escreveu para os cristãos de Corinto dizendo que ele mesmo estava
trazendo “sempre em nosso corpo [isto é, seu corpo] o morrer de Jesus, para
que a vida de Jesus também seja revelada em nosso corpo” (2Co 4:10). Uma
das maneiras em que os cristãos fazem o que Paulo fez é fazer as orações que
272 A LINGUAGEM DE DEUS
Caussade é: “Se nos entregamos a Deus, existe apenas uma regra para nós:
o dever do mom ento presente”. Seus escritos, apoiados por uma “multidão
de testemunhas", faz que nossa imaginação se desacostume de querer Deus
com o queremos que seja para querê-lo como ele é, revelado em Jesus no aqui
e agora, orando: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espirito”.6
Não é uma oração que reservamos para a hora de dormir, uma oração de
entrega relutante na hora de nos entregarmos aos fantasmas. Oramos quando
saímos da cama todas as manhãs, vivos mais um dia, prontos para começar a
pintar a casa, dar urna aula no jardim de infância, remover cirurgicamente uma
mama cancerosa, fazer um cheque para a mensalidade da faculdade, plantar
um campo de cevada: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”.
5. “A í está o seu filho ' f ...| A í está a sua m ãe”' (Jo 19:26-27)
Jesus ora na cruz. Toda vez que ele abre a boca, revela outro detalhe daquilo
que está em jogo na realização da grandiosa e sagrada obra da salvação que
destrói os portões do inferno e escancara as portas do céu: o grito de abandono
que é o epitáfio da morte de Deus; a absolvição sem reservas, emitida pelo
Salvador, daqueles que o estão matando; a promessa do céu a um criminoso; a
oferta de Jesus de si mesmo como sacrifício para realizar o caminho da salvação
para o mundo que Deus ama. E com mais ainda para vir.
As orações que se reúnem naquela cruz definem nossa vida.
Fornecem um testemunho definitivo da maneira em que Deus traz o bem
do mal, pondo em funcionamento o mistério impenetrável que reverte “per-
didos” em “achados”. Introduzem a palavra “evangelho” em nossa língua, de
maneira tão abrangente que ninguém precisa estar confinado a viver ou morrer
sem esperança.
Em quase todos os aspectos, é demais para assimilar. Não é diferente da
experiência que muitos de nós tiveram diante da cena de um acidente noturno
de automóvel, quando há morte e grande sofrimento. A escuridão é quebrada
pelos fachos de luz dos faróis, o som agudo e estridente da sirene, soluções e
lágrimas de dor, com paramédicos puxando corpos dos destroços, tudo contra
um pano de fundo confuso de uma multidão anônima e confusa. É surreal.
A crise desorienta. A súbita realidade da morte e do sofrimento nos obriga a
274 A LINGUAGEM DE DEUS
lidar com o que mantemos nas margens de nossa vida, das quais somos isolados
pelas rotinas das refeições e do trabalho, dos compromissos e do sono. Tudo
parece irreal. Um sonho — ou um pesadelo.
Não é diferente daquilo que enfrentamos na cruz de Jesus, só que em grau
mais agudo. As ações que percebemos e as palavras que ouvimos nas três ho-
ras são tão carregadas de significado que ficamos assoberbados. Não estamos
acostumados a viver na crise. Há muito para assimilar. Poetas e romancistas,
teólogos e músicos refletem, sondam e oram essa morte indefinidamente e
encontram camada após camada de sentido. O acontecimento da morte, que
a filosofia e a Escritura nos apresentam com o definitivo para dar sentido à
vida, é experimentado com o algo menos que real. Detalhes — detalhes do
lar e hábitos domésticos — parecem mais substanciais.
***
que o precede, é também uma única palavra em grego, tetelestai.) “Está con-
sumado” é uma oração de síntese. Mas o verbo grego não significa concluir no
sentido de “este é o fim” ou “isso é tudo o que há”, como diriamos de uma
corrida que acabou ou de um livro que acabamos de ler. Transmite um senso
de completude, uma integralidade consumada.
O mesmo verbo é usado na oração de Jesus em João 17:4, quando ele orou
ao Pai: “Eu te glorifiquei na terra, completando a obra que me deste para fa-
zer”. Não significa que a vida de Jesus simplesmente chegou ao fim, mas que
tudo o que Jesus veio fazer agora está com pleto, com todos os arremates,
sem que nada tivesse ficado pendente. Obtem os um senso do cumprimento
abrangente que Paulo transmitiu à congregação de Roma: “Sabemos que
Deus age em todas as coisas para o bem daqueles que o amam” (Rm 8:28).
E será que haveria um eco do “Está consumado” de Jesus no “Está feitol” de
Apocalipse 16:17, proferido a partir do trono de Deus e do Cordeiro, quando
a última taça da ira de Deus é derramada pelo sétim o anjo? Decreto de Deus,
concluído “na terra como no céu ”.
* * *
Isso ainda acontece muito. Nós “obtem os religião”. Logo nos tornamos
impacientemente convencidos e decidimos aperfeiçoar tudo com nosso valor
de dois centavos. Fazemos os acréscimos; complementamos; adornamos. Mas,
em vez de melhorar a pureza e a simplicidade de Jesus, diluímos a pureza,
estorvamos a simplicidade. Tornamo-nos irrequietamente religiosos, ou an-
siosamente religiosos. Atrapalhamos as coisas.
Nenhuma congregação cristã está livre de cristãos “Jesus+ ...”. No texto de
Hebreus, é Jesus+anjos, Jesus+ Moisés, Jesus-I-sacerdócio. Através dos sécu-
los, esses acréscimos a Jesus têm proliferado: Jesus+política, Jesus+ educação,
Jesus+ negócios ou até mesmo Jesus+Buda. Não que política, educação, negó-
cios e Buda não requeiram atenção. Mas não são a ação que Jesus introduziu
em nossa vida na cruz por meio da oração.
“Está consumado” exclui os acréscimos. O foco da oração torna-se claro e
nítido novamente: a ação de salvação de Deus completada em Jesus. Somos
libertos para o ato de fé obediente, a única ação humana em que não fica-
mos atrapalhando no caminho, mas ficamos a caminho.
Raymond Brown, sempre magistral em seu estudo sobre Jesus na cruz,
oferece uma revelação intrigante que aprofunda o senso de completude, mas
ao mesmo tem po reúne nossas orações em um fim substancial. Ele observa
que quando Jesus concluiu sua oração “curvou a cabeça e entregou o espírito"
(Jo 19:30). Brown é de opinião que é pelo menos plausível que Jesus tenha
entregue o Espírito (Santo) àqueles que estavam ao pé da cruz, em especial
a sua mãe e ao discípulo amado.10 O que poderia ser mais adequado? Dessa
forma esses homens e mulheres poderíam não só ver e ouvir a conclusão dos
trabalhos de salvação de Jesus, mas também encontrar-se incluídos e partici-
pantes nele. Como continuamos a fazer até hoje.
capítulo 20
Orando em nome de Jesus:
landes transformadas em carvalhos
* * *
Somos pegos de surpresa. As coisas estão indo tão bem. Deus cria: tudo
o que ele faz é bom, bom, bom, bom, bom, bom — e, em seguida, um sétimo
e retumbante muito bom. Deus planta um jardim com árvores deliciosas e
o entrega ao homem e à mulher com o uma casa para eles morarem. Há um
bom trabalho a realizar. Há animais maravilhosos para desfrutar. Um grande
rio flui do jardim e água a terra inteira. O homem e a mulher são o toque
coroador. Um mundo de beleza, intimidade e inocência, feito de palavras.
E então algo dá errado, desastrosamente errado. Como alguma coisa po-
deria dar errado quando tudo está tão certo? Mas dá. A catástrofe é acionada
em uma conversa entre a Serpente e uma mulher ainda sem nome. Uma
troca de palavras, muitas das mesmas palavras que acabaram de ser usadas na
construção gloriosa do mundo e de tudo o que nele existe. O pecado e o mal
chegam nas asas das palavras, e a criação é profanada. Não em oções fora de
controle, não genitais insubordinados, não uma arrogância intimidadora, não
tiros de canhões e bombas explodindo no ar, mas palavras. Palavras sagradas
agora profanadas, e a santa criação criada pela palavra agora desolada. A con-
fusão geral em que agora nos encontramos origina-se em um uso abusivo da
linguagem. O homem e a mulher usam folhas de figueira para cobrir a perda
da inocência e da intimidade com aventais paliativos.
Duas frases emolduram a conversa que conta a história. Primeira: “O ho-
mem e a mulher viviam nus, e não sentiam vergonha” (Gn 2:25). Em seguida,
sete versículos depois: “Os olhos dos dois se abriram, e perceberam que esta-
vam nus; então juntaram folhas de figueira para cobrir-se” (3:7).
O homem e a mulher começaram tão bem. Foram projetados pelo próprio
Deus e receberam o fôlego de vida dele. Estavam em um bom lugar com um
bom trabalho a realizar — poetas trabalhando com palavras, jardineiros tra-
balhando com solo e plantas — , todas as suas necessidades atendidas, abertos
e íntimos um com o outro, abertos e íntimos com Deus. Despertavam a cada
manhã para um mundo de beleza e abundância em que tinham dignidade,
propósito e utilidade.
"... nus, e não sentiam vergonha”: completamente à vontade, totalmente em
casa, sem nada a esconder, nada a temer, abertos um para o outro, abertos para
os animais, para o clima e para a terra, abertos para Deus. E então, após uma
284 A LINGUAGEM DE DEUS
* * *
A linguagem é sagrada. Todas as palavras são sagradas. Mas, quando são arran-
cadas da história que Deus cria e, em seguida, usadas independentem ente de
Deus, a linguagem é profanada: as palavras tornam-se não pessoais, as palavras
tornam-se não relacionais. Não demora muito e a criação sagrada é profanada.
As palavras usadas pela Serpente e pela mulher têm a semântica denotativa
do dicionário. Mas, sem a sintaxe da história de Deus, são folhas de figueira,
sem conexão, sem um relacionamento expresso com o Senhor da linguagem,
com a Palavra que se tornou carne, com o Espírito que nos dá a possibilidade
de “declarar as maravilhas de Deus em nossa própria língua” (At 2:11).
ORANDO EM NOME DE JESUS: LANDES TRANSFORMADAS EM CARVALHOS 285
As seis orações que fazemos com Jesus à maneira dele, essas “orações esta-
belecidas”, dão-me uma ideia do mundo em que Jesus orava, o vasto mundo
de intimidade e de confiança criado por conversas com Jesus à medida que
ele ora conosco e por nós. Fazer essas seis orações também nos oferece um
treinamento de aprendiz sobre a vida de oração, impede o egocentrismo que
tem a atenção mais sobre nós mesmos (estou fazendo isso da forma certa?) e
diminui o constrangimento (o que as pessoas vão pensar de mim?). Oferecem
um lugar discreto, mas seguro na companhia da nuvem de testemunhas que
oram e com Jesus à medida que ele ora.
Existe um preconceito comum entre muitos cristãos americanos contra
as orações de repetição, as orações repetidas, orações “de livros” — mesmo
quando são tiradas diretamente do “livro de Jesus”. Isso é um erro. A espon-
taneidade oferece uma espécie de prazer e de senso de santidade, as repe-
tições, outra, igualmente agradável e santa. Não precisamos escolher entre
uma e outra. Não devemos escolher entre uma e outra. São as polaridades da
oração. As repetições das orações de nosso Senhor (e de Davi) dão-nos um
fundamento firme para a espontaneidade, os voos, as explorações, as medita-
ções, os suspiros e os grunhidos que entram na oração feita "continuamente”
(ITs 5:17) que Paulo nos incentiva a fazer.
* * *
* * *
* * *
toda a nossa vida intencionalmente reunida diante de Deus, sem deixar nada
nem ninguém de fora. Quero que as minhas orações e as orações de meus
amigos ricocheteiem das encostas rochosas das montanhas, ressoem pelos
corredores de shopping centers, retumbem nas profundezas do oceano, águem
desertos áridos, tenham com o fincar o pé em pântanos fétidos, encontrem
poetas à medida que eles rebuscam a palavra exata, misturem sua fragrância
com flores do campo em prados alpinos, cantem com as gavias nos lagos cana-
denses. Continuarei, naturalmente, a orar nos santuários, e no meu quarto, e
na hora de dormir. Mas quero muito mais. Quero participar em orações que
não soem como orações. Orações que, no ato de orar, não sejam identificadas
como orações. Orações sem cessar.
Não quero dizer que todas as nossas palavras e silêncios são, em si mesmos,
oração, mas simplesmente que podem ser.
Jesus, igualmente à vontade no céu e na terra, igualmente à vontade na “casa
de seu Pai” e na casa de José e de Maria, usava a mesma linguagem — pessoal,
metafórica, particular, relacionai, local — onde quer que estivesse, fosse na
sinagoga ou nas ruas, e com quem quer que conversasse, fosse um samaritano
ou Deus. Ele não rebaixava o santo no secular; ele infundia o secular com o
santo. Ao nos mantermos em companhia de Jesus em questões de linguagem,
a linguagem em si torna-se sacramental. Não cultivamos uma linguagem de
iniciados para discursos sobre coisas e idéias predefinidas com o "espirituais”.
Não permitimos que o mundo descrente sugue a transcendência das palavras e
as reduza a palha. Deixamos que Jesus molde nosso discurso e nossas orações,
falando e orando a linguagem comum da tribo, alertas a cada palavra imbuída
de revelação, cada frase fragranté de graça. Praticamos uma escuta e um orar
que está vigiando Jesus, vendo-o falar e orar, sem querer perder nem mesmo
um sussurro ou sílaba da Palavra que se tornou carne.
Quando Moisés recebeu instruções de Deus para construir uma estrutura
de culto, o tabernáculo do deserto, o centro foi designado o lugar “Santíssimo”
ou “Santo dos Santos”, o local em que se dava a ação focada entre Deus e os
homens. Era protegido do voyeurismo espiritual curioso e do sacrilégio pagão,
fosse inadvertidamente, fosse de propósito, por uma cortina ou véu finamente
tecidos. Ninguém tinha a permissão de entrar no Santo dos Santos, exceto o
ORANDO EM NOME DE JESUS: LANDES TRANSFORMADAS EM CARVALHOS 289
sumo sacerdote, e ainda assim som ente uma vez por ano. O santo e o profano
eram estritamente separados.
A presença santa de Deus foi protegida da profanação, seja por uma curio-
sidade sem oração, seja por uma idolatria blasfema. Deus não pode ser usado.
O tabernáculo, um santuário portátil no deserto, e o templo em Jerusalém que
mais tarde o substituiu treinaram o povo de Deus por quase dois mil anos na
reverência diante do Sagrado no tabernáculo e no templo, urna santa reverência
que se tornou “temor do Senhor” na vida fora do local sagrado. O povo de
Deus sempre necessita de uma formação completa em santidade. Nós, todos
pecadores, temos o hábito profundamente arraigado de querer usar Deus para
os nossos propósitos, de reduzir Deus a um objeto que possamos controlar. Não
podemos. O véu que protege o Santo dos Santos nos diz que não podemos.
Os séculos de treinamento de adoração quanto à inviolabilidade da santi-
dade de Deus estão profundamente enraizados em nossa compreensão desse
Santo densamente velado que se acha no centro do lugar de culto. O véu o
protegia de olhos e mãos indiscretos. E assim o choque não é nada menos
que sísmico quando se ouve que a primeira coisa que aconteceu quando Jesus
morreu na cruz foi que “o véu do santuário rasgou-se em duas partes, de alto
a baixo( ״Mt 27:51; Mc 15: 38; Lc 23:45).
O que aconteceu? O Lugar Santo é agora Todo Lugar. O Santo de Deus é
contemporâneo conosco. Seu tempo é nosso tempo. Já não há separação entre
o lá e o aqui, o então e o agora, o sagrado e o secular. A carta aos Hebreus dá
muita importância a isso, ajudando-nos a ver que a morte de Jesus na cruz
abriu “um novo e vivo caminho” pelo qual podemos levar uma vida integrada
(v. Hb, esp. 9 e 10).
Paulo também usa essa imagem, mas de uma forma ligeiramente diferente,
quando fala da morte de Jesus como tendo destruído “a barreira, o muro de
inimizade” entre judeus (os religiosos de dentro) e os gentios (os religiosos
de fora), unindo-nos como um só povo (Ef 2:14).
O lá e o aqui fundidos, o então e o agora fundidos, o sagrado e o secular
fundidos, nós e eles fundidos. O véu rasgado em dois. As paredes derrubadas.
As divisões destruídas.
E a linguagem? Sim, a linguagem. Toda linguagem está disponível para dar
testemunho do Santo, do nome do Santo, onde quer que e quando quer que,
290 A LINGUAGEM DE DEUS
assim como Jesus usou e usa a linguagem. As orações de Jesus são a base das
nossas orações e estão a elas vinculadas.
* * *
Não é pouca coisa que a comunidade cristã tenha homens e mulheres que
prestem a máxima e constante atenção ao uso das palavras. O sacrilégio na
linguagem é uma epidemia em nossa cultura. Vivemos em uma terra devas-
tada da perspectiva da linguagem. O cuidado com as palavras é um trabalho
cristão urgente. Nossa tarefa é clara: mantê-las pessoais, preservar seu lugar na
criação/história da salvação, conservar uma congruência entre nossas conver-
sas e nossas orações. A melhor maneira de fazermos isso é mantendo-nos em
companhia de Jesus em suas histórias e em suas orações. Também considero
útil manter conversas com homens e mulheres que sabem fazer isso bem.
Alguns deles escrevem livros. Quando escrevem bem, leio seus livros. Aqui
estão sete escritores que muito aprecio.
William S ta ffo rd , Stories that Could Be True: New and Collected Poems
[Histórias que poderíam ser verdadeiras: poemas novos e compilados]
Stafford é um poeta que usa as palavras com uma reverência incomum. Ele
é um pacifista, um cristão que passou os quatro anos da Segunda Guerra
Mundial em campos de refugiados, no Arkansas e na Califórnia, para pessoas
que por questões de consciência recusavam-se a tomar parte ativa na guerra.
A forma em que ele usava as palavras acabou fazendo de mim um pacifista.
Mas minha conversão iniciou-se não com suas opiniões sobre a violência e a
guerra, mas com a forma em que ele usava as palavras na construção de seus
ESCRITORES QUE HONRAM O SAGRADO INERENTE NA LINGUAGEM 293
poemas. Com o este: que a presença seja com o fumaça [...] não se agarre
àquilo a que não se pode agarrar”. Seus poemas m e dão uma percepção do
âmago sagrado inerente nas palavras e uma sensação de que seria melhor
confiar neles — não usá-los para levar as pessoas a fazerem alguma coisa, mas
revelar o que está ali diante de nós, a vida criada pelas palavras que todos
tem os em comum.
revela a nós e a linguagem pela qual nós podemos nos revelar a Deus e uns aos
outros. “Confie na história”, parece ser o que Price deseja comunicar. “Abra
espaço para a história em sua vida.” Especialmente a história que Jesus conta.
Notas
Introdução
1 Excerto da segunda parte de "Choruses from The Rock”’ ["Coros de ‘A Rocha”’].
2 The complete poems, p. 506.
Capítulo 1
1 Desenvolvo consideravelmente esse "esforço resoluto” em Maravilhosa Bíblia: a arte de ler
a Bíblia com 0 espírito.
2 George STEINER, Depois de Babel: questões de linguagem e tradução.
3 Joachim J eremias, Jerusalem in the time o f Jesus, p. 353.
4 Jean S ulivan, M orning light, p. 64.
5 The dark interval: towards a theology o f story, p. 57.
6 Citado por David Dark, em: The Gospel according to America, p. 52.
7 De longe, a melhor exposição a servir de fundação para essa prática acha-se em Spiritual
direction [Orientação espiritual], de Martin Thornton. Thornton era anglicano e escreve com
base nessa tradição. Mas o que ele escreve pode facilmente ser traduzido em qualquer tradição
em que estejamos inseridos. Uma instrução básica bem detalhada sobre o desenvolvimento
inicial da prática acha-se à disposição em Spiritual direction in the early C hristian East [A
orientação espiritual no Oriente cristão primitivo], de Irenee Hausherr.
8 Gerhard Kittel (org.), Theological dictionary o f the N ew Testament, v. 3, p. 396.
Capítulo 2
1 "Provação”, "prova” e “tentação” originam-se todas da mesma palavra no grego de Lucas:
peirasmos. A tradução dependerá do contexto.
2 Gerhard Friedrich (org.), Theological dictionary of the N ew Testament, v. 6, p. 317.
Capítulo 3
1 A “Segunda parte” deste livro, “Jesus em suas orações", examinará algumas dessas muitas
outras dimensões da oração.
2 Johannes Baptist M etz, Poverty of Spirit, p. 18.
3 Idem, p. 28, 30.
Capítulo 4
1 Pilgrim at Tinker Creek, p. 146.
Capítulo 5
1 Citado por Brevard C hilds, em: The struggle to understand Isaiah as Christian Scripture,
p. 287.
298 A LINGUAGEM DE DEUS
Capítulo 6
1 Dakota, p. 91.
Capítulo 7
1 M edical nemesis.
2 A oração completa: "Pai todo-poderoso e misericordioso; erramos e nos afastamos de teus
caminhos como ovelhas perdidas. Seguimos em demasia os expedientes e os desejos de nosso
coração. Transgredimos tua santa lei. Deixamos por fazer aquelas coisas que deveriamos ter
feito; e fizemos aquilo que não deveriamos ter feito; e não há nenhuma saúde em nós. Mas tu,
ó Senhor, tem misericórdia de nós, infelizes transgressores. Poupa aqueles, ó Deus, que confes-
sam suas falhas. Restaura os penitentes; de acordo com as tuas promessas feitas à humanidade
em Cristo Jesus, nosso Senhor. E concede, ó Pai misericordioso, para causa dele, que vivamos
daqui em diante uma vida santa, reta e equilibrada. Para a glória do teu santo nome. Amém".
Livro de oração comum da Igreja Episcopal dos EUA.
3 Primeiros versos da terceira estrofe original do hino Rocha eterna, de Augustus Toplady.
Tradução de Fabiani Medeiros. (N. do T.)
4 Emily D ickinson, "Renunciation — is a piercing Virtue”, em: The complete poems, p. 365.
[Esse poema foi traduzido para o português por Aíla de Oliveira Gomes. Encontra-se em Emily
Dickinson: uma centena de poemas (São Paulo: T. A. Queiroz/Edusp, 1985. Notas e comentá-
rios.). Trata-se de uma compilação de 129 poemas completos, dos quais três, traduzidos em
prosa, constam da introdução junto com alguns fragmentos.]
5 Discernimentos importantes sobre a “divinização de nossas atividades” e sobre a "divinização
de nossas passividades" são oferecidos por Teilhard de C hardin [The Divine milieu).
Capítulo 8
1 The history of the synoptic tradition, citado por Kenneth E. Bailey, Poet and peasant e Through
peasant eyes, p. 86. [O primeiro dos títulos de Bailey foi publicado no Brasil em 1995 por
Edições Vida Nova, sob o título A s parábolas de Lucas].
2 Jesus and the victory o f God, p. 129.
3 Kenneth E. Bailey, Poet and peasant, p. 86.
4 Idem, p. 98.
5 Idem.
6 Kenneth E. Bailey, Poet and peasant, p. 102.
7 Dan O tto V ia J r., The parables, p. 160.
Capítulo 9
1 Veja, de Joel G reen, The Gospel o f Luke, p. 587, e de Joseph A. Fitzmyer, S.J., The Gospel
according to Luke (x-xx t), p. 886.
NOTAS 299
Capítulo 10
1 Lucas usa o termo “reino de Deus” 51 vezes, 27 das quais nessa seção sobre a viagem por
Samaria.
2 The Philokalia. p. 60. [Publicado no Brasil pela Paulus: Pequena Filocalia: o livro clássico da
Igreja oriental (Coleção “Oração dos Pobres”).]
Capítulo 11
1 Estou usando o termo “contador de histórias" aqui como forma de representar todos os
escritores e artistas — poetas e escultores, pintores e músicos, tecelões e dançarinos — que
sondam os interstícios da vida.
2 Fragmento do poema God's grandeur, traduzido para o português por Augusto de Campos:
“A grandeza de Deus: A grandeza de Deus o mundo inteiro a admira./ Em ouro ou ouropel
faísca o seu fulgor;/ Grandiosa em cada grão, cada limo em óleo amor —/ Tecido. Mas por
que não temem sua ira?/ Gerações vêm e vão; tudo o que gera, gira/ E gora em mercancía;
em barro, em borra de labor;/ E ao homem mancha o suor, o sujo, a sujeição; sem cor/ O solo
agora é; nem mais, solado, o pé o sentira./ E ainda assim a natureza não se curva;/ Um límpido
frescor do ser das coisas vaza;/ E quando a última luz o torvo Oeste turva/ Ah, a aurora, ao fim
da fimbria oriental, abrasa —/ Porque o Espírito Santo sobre a curva/ Terra com alma ardente
abre ah! a asa alva”. (N. do T.)
Capítulo 13
1 A expressão é de Albert Borgmann. Ele a emprega com grande efeito ao nos apresentar
um modo de recuperarmos uma comunidade pessoal no solo improdutivo e impessoalizado da
tecnologia. Veja sua obra Technology and the character o f contemporary life.
2 Em Answering God: the Psalms as tools fo r prayer [Respondendo a Deus: os Salmos como
ferramentas para a oração], escreví detalhadamente sobre como os Salmos oferecem instrução
e disciplina nos caminhos da oração bíblica.
3 James G. S. S. T homson, The praying Christ, p. 35.
Capítulo 14
1 Abba isn't ‘Daddy’”, em: Journal o f Theological Studies, 1988, p. 28-47.
2 Dois excelentes autores contemporâneos que eficazmente se opõem à versão da vontade de Deus
como plano e recuperam a versão original, presente na Bíblia e no Evangelho, são Jerry S1TTSER, The
will of God as a way of life e Bruce W a ltk e , Finding the will of God: a pagan notion?.
300 A LINGUAGEM DE DEUS
Capítulo 15
1 F. Dale Bruner traduz esse versículo da seguinte maneira: “Deus o abençoe, João, se você
não abandonar tudo porque eu sou diferente” (The Christbook, M atthew 1-12, p. 413).
Capítulo 16
1 To make a prairie, p. 117.
2 Idem, p. 7.
Capítulo 17
1 Hans Urs von Balthasar, Prayer, p. 36.
2 Friedrich VON H Ü G EL, Letters from baron Friedrich to a niece, p . 2 5 .
3 War in heaven, p. 251.
4 Citado por Colin E. G unton, The One, the Three and the many, p. 149.
Capítulo 19
1 Extraído da O rder for the celebration of the Lord's Supper ["Ordem para a celebração da ceia
do Senhor”] (The Book o f Common Worship, p. 162).
2 Hans Urs von Balthasar, Prayer, p. 243.
3 The eyes o f the heart, p. 14-6.
4 Veja os comentários exegéticos de Joel G reen em The Gospel o f Luke, p. 823.
5 Busquei reunir o vasto testemunho de João sobre o céu em meu livro Trovão inverso: o livro
do Apocalipse e a oração imaginativa, p. 168-185 do original inglês.
6 Uma declaração é particularmente oportuna no contexto das orações da cruz: "Neste estado
de autoabandono, nesse trajeto de uma fé simples, tudo o que acontece a nossa alma e corpo,
tudo o que ocorre em todos os assuntos da vida, tem o aspecto de morte. Isso não nos deve
surpreender. O que esperamos? E natural a essa circunstância”. (Jean-Pierre DE CAUSSADE,
Abandonment to divine providence, p. 95.)
7 The shield o f Achilles, p. 75.
8 Temos aqui um equívoco (ou, o que é mais traiçoeiro ainda, um falso ensino) sobre Jesus
que tem enfeitiçado a comunidade de Jesus desde o começo e não mostra nenhum sinal de
NOTAS 301
desaparecimento: a saber, que o corpo de Jesus não era "realmente” Jesus, mas apenas uma
forma que ele usou e da qual escapou quando na cruz. Essa negação da realidade do corpo de
Jesus e de sua morte continua surgindo século após século e recebe o nome de "gnosticismo”.
A mentira gnóstica é uma epidemia em nosso mundo pós-moderno.
9 O filme de Mel Gibson A Paixão de Cristo foi um exemplo inegável disso no cenário ame-
ricano em 2004.
10 "... ao ir para o Pai, Jesus dá seu espírito para aqueles que estão próximos ao pé da cruz.
Em João 7:3739־, Jesus prometeu que, quando ele fosse exaltado, aqueles que criam nele iam
receber o Espírito. O que seria mais apropriado do que o fato de que aqueles crentes que não
partiram quando Jesus foi preso, mas se reuniram perto da cruz, fossem os primeiros a recebê-
-lo?" (Raymond E. Brown, The death o f the Messiah, p. 1082).
Capítulo 20
1 Letra de Caroline Maria Noel (1870). The Hymnbook. p. 143.
2 Prayer, p. 36.
3 Culture and Value, p. 52. Grifo do autor.
Bibliografia
111.: A r g u s C o m m u n i c a t i o n s , 1 9 7 5 .
guagem, 177; como ato interior, 152, 136; nas palavras/na linguagem, 286
234; como linguagem pessoal, 76, Marcos: evangelho de: e o sermão inau-
239; e a escuta, 175; e a hipocrisia, gural de Jesus e o chamado ao arre-
153, 155,157-158; e a hora do reino, pendimento, 126; a Narrativa da Via-
141; e a impessoalização de Deus, gem, de Lucas, em comparação com
62-63, 196, 286; e a liberdade, 246; o, 23; e a pregação de Jesus, 18
e a morte de Deus (orando com Je- Maria, Anunciação de, 194
sus na cruz), 254; e a morte de Jesus Mateus, evangelho de: o ensino de Je-
(orando com Jesus na cruz), 254; e a sus (os cinco grandes discursos), 20;
oração de criança de Jesus, 271-272; a Narrativa da Viagem, de Lucas, em
e a oração de Jesus por perdão, 266, comparação com o, 23; e a oração-
268; e a orientação espiritual, 37; e a -modelo de Lucas, 61, 63; e a prática
Palavra de Deus, 282-285; e a pará- da oração, 183; Sermão do Monte,
bola da viúva, 135, 143; e a parábola 20, 183
do amigo, 55, 61; e a parábola dos metáforas: as declarações "Eu sou" do
pecadores, 147, 148, 150-151, 154; evangelho de João, 223; e a oração
e a pessoa em particular, 240; e a de Jesus, 175, 223, 263; entendí-
vida de fé, 138; e a vida no reino dos mento das, 223; o termo "Pai”, 62,
céus, 183; em nome de Jesus, 281- 184, 233; Samada e os samaritanos,
282, 287, 290; e o Deus pessoal, 55- 28, 161
56, 59; e o Espírito Santo, 66, 285; meta-história, 127
e o perigo, 183; e o reino de Deus, Metz, Johannes Baptist, 66, 297, 305
142-144, 190-191, 193-194, 197; minimalista, parábola do, 161-169; a
e o silêncio de Deus, 138; e os sal- alusão Raabe/Zaqueu, 164; a questão
mos, 84, 135, 138, 140, 178; falsa/ do salmo 137 (como falamos sobre
ausente, 177; lugares da, 149, 151, Deus?), 161; como última história
153-154; muito pouco na história antes de Jesus entrar em Jerusalém,
162-165, 169; e a nao-participaç-
bíblica sobre a, 195; oração-modelo,
nao/desobediência, 171; e o reino
63; persistente, 136-138, 144, 145;
de Deus, 162, 164, 169; tema cen-
razões por que continuamos orando
trai (Deus nos quer, não queremos
e não desanimamos, 136-138, 141,
Deus), 165; texto/história, 162, 164
144; silêncio e a linguagem da ora-
morte de Jesus: e a resposta à oração do
ção, 176
criminoso (“lembra-te”), 268, 270;
Lucas, evangelho de: em comparação
como morte sacrificial, 273; cor-
com Mateus e Marcos, 23; e a última
responde à história da criação, em
semana de Jesus em Jerusalém, 23,
Gênesis ("Está consumado”), 277-
162; material original, 23; referên-
279; e a agonia física de Jesus (“Te-
cias a Jesus na oração, 180; vocabu-
nho sede”), 275, 276; e a conclusão
lário, 104 V. tb. Narrativa da Viagem, da obra de salvação, 277; e a glória
de Lucas (histórias de Jesus) ("glorifica o teu nome”), 226-227; e
a intersecção do Gólgota, 270-271; e
M
a oração de criança, 271; e a oração
mal: no Triângulo Evangélico, 218; a pa- de perdão, 266, 268; e as sete "últi-
rábola da viúva e do juiz perverso, mas palavras da cruz”, 259-279; ora-
312 A LINGUAGEM DE DEUS