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SERMÕES DO ANO

DE AVIVAMENTO

Pregados no Surrey Music Hall, Londres

1859

C. H. Spurgeon

PUBLICAÇÕES EVANGÉLICAS SELECIONADAS


Caixa Postal 1287
01059-970 - São Paulo, SP
Título original:
Revival Year Sermons

E d ito ra:
The Banner of Truth Trust

P rim eira edição em inglês:


1959

T rad u to r:
Edgard Leitão

Capa:
Ailton Qjiveifa Lones

Revisão:
Antonio Poccinelli

P ru .ie ^ a edição em portuguêí

M . RIGUES
NOTA BIOGRÁFICA SOBRE SPURGEON
Charles Haddon Spurgeon, filho de um pastor calvinista
independente, nasceu em Kelvedon, Essex, na Inglaterra em
1834. Seus grandes dons como pregador não tardaram em
manifestar-se. Com a idade de apenas 16 anos já encontramos o
jovem Spurgeon pregando em diferentes congregações
independentes. Um ano mais tarde o vemos à frente de uma
humilde obra batista próximo de Cambridge. A partir de então a
fama do jovem pregador se estendeu por toda a Inglaterra,
alcançando inclusive a populosa cidade de Londres.
Em abril de 1854, antes de completar os 20 anos, ele
aceitou o pastorado da Igreja de New Park Street. Esta congre­
gação estava numa fase de decadência, reunindo não mais de
200 pessoas num santuário com capacidade para 1.200. Em
menos de um ano o templo se encheu totalmente e em fevereiro
de 1855, tornou-se uma urgente necessidade a ampliação do
antigo edifício.
Toda a Londres se deu conta do novo pregador a ponto
de os jornais anunciarem que “desde os tempos de Wesley e
Whitefield não havia existido um interesse religoso tão profun­
do”. Em 1861 foi inaugurado o famoso Tabernáculo, com
capacidade para mais de 9.000 pessoas. Neste lugar, e por mais
de 30 anos, Spurgeon deu poderoso testemunho da verdade
evangélica. As conversões foram incontáveis, e tanto na Ingla­
terra como na América seus sermões impressos se tornaram um
meio maravilhoso de bênção para milhões de almas. Além de
seus esforços como pregador, Spurgeon fundou um colégio para
a formação teológica de pastores, um orfanato e uma sociedade
de colportores.
O ministério de Spurgeon começou subitamente e
concluiu de maneira semelhante. Terminou sua gloriosa carreira
em 1892, quando contava com 58 anos de idade. A notícia da
sua morte ocupou a primeira página dos jornais ingleses e
europeus, e com ele morria “o último dos puritanos”.
O poder do ministério de Spurgeon residia em sua
teologia. Ele redescobriu o que a Igreja por muito tempo havia
esquecido - o poder evangélico das chamadas doutrinas calvi-
nistas. Seu ministério constituiu um poderoso testemunho da
única verdade salvadora.

“A antiga verdade que Calvino, Agostinho e o apóstolo


Paulo pregaram é a verdade que eu também devo pregar hoje;
do contrário deixaria de ser fiel à minha consciência e ao meu
Deus. Não posso remodelar a verdade; desconheço tal coisa
como lapidar uma doutrina bíblica. O evangelho de John Knox
é o meu evangelho. Aquilo que trovejou por toda a Escócia
precisa trovejar novamente por toda a Inglaterra. ”
“Uma inércia espiritual é nossa inimiga; uma tempes­
tade talvez seja nossa amiga. A controvérsia talvez provoque
pensamento, e por meio dele talvez venha a mudança espiritual
necessária. ”
- C . H. Spurgeon
ÍNDICE

Introdução ....................................................................... 9

1 A história dos poderosos feitos de D eus....................... 21


“Ouvimos, ó Deus, com os nossos próprios ouvidos:
nossos pais nos tem contato o que outrora fizeste em
seus dias ”
-S a l. 44:1

2 O sangue do concerto eterno.......................................... 44


“O sangue do concerto eterno”
-H e b . 13:20

3 A necessidade da obra do Espírito Santo..................... 63


“Eporei dentro de vós o meu Espírito”
- Ex. 36:27

4 Predestinação e cham ada............................................... 83


“E aos que predestinou, a estes também chamou ”
- Rom. 8:30

5 Um sermão de despedida................................................ 102


“Portanto, no dia de hoje, vos protesto que estou
limpo do sangue de todos; porque nunca deixei de
anunciar-vos todo o conselho de Deus”
-A t. 20:26-27
INTRODUÇÃO

O ano de 1859 foi de pouco significado político para


fazê-lo permanentemente memorável. A agonia da guerra da
Criméia e os efeitos causados pelo Motim da índia, já haviam
passado. A Guerra Civil Americana, com suas repercussões
sobre o comércio inglês, ainda não havia começado. No outro
lado do Canal da Mancha, os conflitos entre a França e a Áustria
se desenvolviam sobre a península italiana sem interferência
inglesa. Com normalidade rotineira, a rainha Vitória cumpria
seus vinte e dois anos de reinado, e em Westminster, pela
segunda vez, Lord Palmerston tomava posse do cargo de
primeiro-ministro, função que desempenharia sem aconteci­
mento algum de importância. Sem dúvida, nos anais da Igreja
Cristã, este ano se destaca como um verdadeiro ano de graça.
Desde então a Inglaterra não conheceu outro ano como este, e é
por isso que os notáveis episódios do período merecem um
registro duradouro.
Numa terça-feira à noite, exatamente no dia 4 de janeiro
de 1859, Charles Haddon Spurgeon, que na época contava com
24 anos de idade, dirigia a palavra a uma grande multidão
reunida no Exeter Hall, sob os auspícios da Associação Cristã de
Moços. O tema do seu discurso versou sobre a propagação da fé
e no decorrer do mesmo, Spurgeon destacou a necessidade de
um avivamento. “Devemos confessar que nesta hora não
gozamos da presença do Espírito Santo na medida que a
desejaríamos. Oh, que resultados se produziriam nos que se
congregam aqui nesta noite, e sobre todas as assembléias dos
santos, se o Espírito de Deus descesse! Não buscamos

9
exaltações extraordinárias - as quais são as falsas acompanhan­
tes de todo avivamento genuíno - mas realmente aspiramos que
o Espírito Santo seja derramado sobre nós. O Espírito está
soprando sobre nossas igrejas com Seu alento afável, porém não
é mais que um sopro suave. Oh, se viesse como um vento
impetuoso que arrebatasse tudo após si! Esta é a necessidade
destes tempos - a grande falta em nossa nação. Oh, que nos
venha como uma bênção do Altíssimo!” Este desejo se cumpriu.
Na primavera do ano de 1859, deflagrado pela notícia do aviva­
mento que iniciara na América no inverno de 1857-58, se iniciou
um grande despertamento na Irlanda do Norte e no País de
Gales. No princípio do verão já se havia propagado desde a
Irlanda até à Escócia, e no final do ano Spurgeon podia escrever:
“Os dias de refrigério pela presença do Senhor, finalmente se
deixam sentir em nossa nação”.
Dentre todos os pregadores daquele ano de graça, o
Senhor Se serviu de maneira extraordinária de C. H. Spurgeon; e
embora Londres não chegasse a ser o centro de cenas de
avivamento, tais como as que se presenciavam noutros lugares,
contudo não existia em toda a nação uma voz mais influente que
a do jovem pastor da capela de New Park Street. Cinco anos
antes, com apenas 19 anos, Spurgeon deixara uma humilde obra
batista em Waterbeach, perto de Cambridge, para aceitar o
pastorado desta igreja londrinense. A igreja se encontrava em
avançado estado de decadência. Não mais que 200 pessoas se
reuniam num edifício com capacidade para 1.200. Entretanto,
num período de doze meses, o templo se encheu totalmente. Em
fevereiro de 1855, a ampliação da antiga estrutura tornou-se uma
urgente necessidade e a congregação decidiu realizar as reuniões

Spurgeon pregou em N ew Park Street pela primeira vez em dezembro


de 1853; foi-lhe oferecido o pastorado em abril de 1854. Permaneceu nessa
congregação até a morte.

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em Exeter Hall (capaz de congregar mais de 2.500 pessoas) até
maio, data em que seriam concluídas as reformas. No entanto, a
ampliação da capela de New Park Street tornou-se insuficiente,
pois toda a Londres se dera conta do novo pregador, e inclusive
os jornais anunciavam que “desde os tempos de Wesley e
Whitefield não havia existido um interesse religioso tão
profundo”. Em junho de 1856, a congregação se viu obrigada a
voltar de novo ao Exeter Hall para os cultos da noite, e se
destinou uma verba especial para construir um novo edifício.
Em novembro a congregação outra vez teve que transferir-se, e
durante três anos a igreja de New Park Street se reuniu no Surrey
Gardens Music Hall. Domingo após domingo, durante todo este
tempo, Spurgeon pregou o evangelho a uma audiência que
oscilava entre 5.000 e 9.000 pessoas. Além disso, durante a
semana geralmente pregava cerca de dez vezes. Ao chegar o
ano de 1859, já havia pregado na Escócia, Irlanda e a maior
parte da Inglaterra. Recusou repetidos convites para ir à
América, mas tanto ali como em outras partes do mundo seus
sermões encontravam elevado número de leitores.
Era, pois, evidente que muito antes de 1859 o poder do
Espírito Santo já se havia manifestado eficazmente no minis­
tério de Spurgeon. No final desse ano de avivamento e no
prólogo do 59 volume do New Park Street Pulpit, Spurgeon
escrevia: “Em meio destas novas mostras do amor divino, é
bastante agradável visitar os lugares que por muito tempo têm
sido favorecidos, não somente com desejados frutos, porém com
alegria e gozo indizível. E este é o caso com a igreja na qual
foram proferidos estes sermões. Seu “arco” permanece com
firmeza... Por seis anos o orvalho não cessou de descer, nem a
chuva deixou de cair.” E acrescenta: “Atualmente o número de
convertidos é mais numeroso que em tempos passados, e o zelo
da igreja cresce extraordinariamente”. De maneira indiscutível,
inclusive para seu ministério, o ano de 1859 foi extraordinário.

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Talvez alguns fatos deste ano memorável merecem
destaque. No dia l 9 de março, Spurgeon pregou a uma nume­
rosa afluência de ouvintes no Tabernáculo de Whitefield. Em 10
de julho, em vista de ter perecido um homem em Clapham
Common, vítima de um raio, Spurgeon falou nesse lugar a mais
de 10.000 pessoas. A reunião foi ao ar livre e o tema do seu
sermão foi: “Estejam também prontos”. Dois dias depois, noutra
reunião ao ar livre, Spurgeon pregou a outra multidão em
Rowland’s Castle, num vale próximo a Havant. Nesse lugar as
próprias montanhas recolhiam o som de sua voz, enquanto as
multidões, em suspenso, podiam ouvir a comovedora exortação,
repetida ao longe através do eco: "v in d e , v in d e , v in d e , v in d e !"
No dia 20 do mesmo mês, Spurgeon pregou no País de Gales
pela primeira vez, novamente ao ar livre, a uma multidão de
9.000 a 10.000 pessoas. Os habitantes de Castleton, aldeia
situada entre Newport e Cardiff, onde se realizou a reunião,
tiveram motivos de sobra para recordar tal acontecimento até o
dia de suas mortes.
Estas reuniões ao ar livre efetuadas em distritos rurais
constituíram uma faceta distintiva do ministério de Spurgeon
naquele ano. Quase no final do ano, em outubro de 1859, ainda
encontramos Spurgeon pregando ao ar livre a uma congregação
de 4.000 pessoas em Carlton, Bedfordshire.
O ano de 1859 foi também o último em que Spurgeon
pregou no Surrey Gardens Music Hall. Por algum tempo os
proprietários do mesmo não se atreveram a abrir o auditório e
suas dependências aos domingos para diversões públicas, pois
haviam sido advertidos por Spurgeon de que, se o fizessem, a
congregação deixaria de usar o edifício e com isso os proprie­
tários se privariam de um aluguel muito respeitável. Mais tarde,
porém, confiando obter maior lucro, abriram o lugar para
diversões, forçando assim a Spurgeon a cumprir sua palavra. Na
ocasião em que teve de deixar o Music Hall, Spurgeon pregou o

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sermão de despedida que aparece neste livro. Depois disso, os
empresários do edifício se arruinaram completamente, não
apenas moral como também financeiramente, e em junho de
1861 o Hall foi destruído por um incêndio. Anos mais tarde,
alguém escreveu as seguintes impressões das últimas reuniões
no Music Hall: “Jamais esquecerei aquele sermão de 17 de julho
de 1859: “A história dos poderosos feitos de Deus.” Como
Spurgeon se empolgou na pregação daquela manhã! Havia
muito calor, e ele constantemente enxugava o suor da sua fronte,
mas esse desconforto em nada afetou seu discurso; as palavras
fluíam como uma torrente de sagrada eloquência...Eu estava
também presente no último culto que se celebrou no Music Hall,
a 11 de dezembro de 1859. Densa era a neblina naquele dia, não
obstante o local estava tão repleto quanto podia ser. Eu ocupava
um dos assentos da frente na segunda galeria, de modo que
desfrutava de uma vista esplêndida de toda a multidão. Num
fervoroso sermão, Spurgeon apresentou todo o conselho de
Deus. Sempre há uma nota triste naquilo que põe fim a algo; e
assim, enquanto abandonava o lugar, me dei conta de que uma
das experiências mais felizes da minha juventude pertencia já ao
passado. E assim foi, também, em minha opinião, como
terminou uma das mais românticas cenas da maravilhosa vida do
Sr. Spurgeon”.
Os sermões incluídos neste livro foram todos pregados
no Surrey Music Hall e são típicos dos muitos ali proferidos.
Neles se encontrará a razão que explica o extraordinário êxito
que em todo o tempo acompanhou o ministério de Spurgeon. O
que seria que reunia e sustentava uma congregação de 8.000
pessoas? Propaganda? Cultos vistosos? Acompanhamentos
musicais? Conselheiros organizados? Não! Spurgeon não
dependia de nenhuma destas coisas. “Ora, era o mesmo
evangelho que se prega hoje em dia por toda a parte”, talvez diga
alguém. Certamente, o que ele pregava era o evangelho, todavia

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no evangelismo que tão profusamente se apresenta hoje em dia,
encontraríamos o mesmo evangelho de Spurgeon? Que o leitor
destes sermões - com toda a seriedade - responda por si mesmo
a essa pergunta.
O poder do ministério de Spurgeon residia em sua teo­
logia. Ele descobriu novamente o que a Igreja há tempo havia
esquecido - o poder evangélico das chamadas doutrinas
“calvinistas”. No sermão que pregou no lançamento da pedra
fundamental do Tabernáculo Metropolitano (15 de agosto de
1859) ele declarou: "Nós cremos nos cinco pontos que comu-
mente se chamam calvinistas; os reputamos como cinco grandes
luzes que irradiam da cruz de Cristo.” Na inauguração do
Tabernáculo em 1861, o tema dos diferentes sermões foi
precisamente sobre estes cinco pontos: eleição, depravação total,
redenção particular, chamada eficaz e perseverança final dos
santos. Longe de considerá-las como um estorvo para seu
evangelismo, Spurgeon reputava essas verdades como a força
impulsora que move o ministério evangélico. “A eleição - e me
refiro aqui a todo o conjunto de verdades que se agrupam em
torno dela, como se esta fora um sol central - não somente tem
um poder salvador, mas exerce também um poder que comunica
gosto e qualidade a todas as demais doutrinas. O evangelismo
mais puro brota desta verdade. . . Esta doutrina, que à primeira
vista parece como se condenara todo o esforço à indolência e
fizera sentar o homem em morbidez e desespero, é
verdadeiramente nada menos que a trombeta de Deus para des­
pertar os mortos. E visto que ela honra a Deus, Deus a honrará.”
Além disso, Spurgeon percebeu uma conexão vital entra
a proclamação destas verdades e o irrompimento de aviva-
mentos. "Na história da Igreja, excetuando uns poucos casos,
não encontrarão nenhum avivamento que não tenha sido
produzido por uma fé ortodoxa. Não foi assim com a grande
obra produzida por Agostinho, ao despertar subitamente a Igreja

14
do sono funesto e mortal dentro do qual o pelagianismo a
colocara? Que foi a Reforma, senão um despertar das mentes
humanas para estas verdades antigas? Mesmo que luteranos
modernistas de hoje tenham abandonado suas doutrinas antigas,
e ainda que alguns deles não estejam de acordo comigo, de todos
os modos devo dizer que Lutero e Calvino não mantiveram
argumento algum concernente à predestinação. Seus pontos de
vista eram idênticos, e a obra de Lutero sobre O Cativeiro da
Vontade é tão enfática com respeito à livre graça de Deus como
se fosse um escrito de Calvino. Escutem esse grande trovejador
quando exclama nesse livro: “Que o leitor cristão saiba que Deus
não prevê nada de maneira contingente, porém que, pelo
contrário, Ele prevê, propõe e atua de acordo com Sua eterna e
imutável vontade. Ela é o baque de trovão que rompe e vence o
livre-arbítrio.”
Acaso precisaria mencionar-lhes nomes mais célebres
que os de Huss, Jerônimo de Praga, Farei, Knox, Wicliffe,
Wishart e Bradford? Todos estes sustentaram os mesmos pontos
de vista, e em sua época um avivamento arminiano não só teria
sido inconcebível, como também impossível de sonhar. E no
tocante a um avivamento mais recente, sob João Wesley, e no
qual os metodistas wesleyanos contribuíram tão extensamente,
parece ser, à primeira vista, que este avivamento constituiu uma
exceção ao que foi afirmado até aqui; no entanto, permitam-me
afirmar que o poder doutrinal do metodismo wesleyano reside
em seu calvinismo.A maioria dos metodistas reprovou
totalmente as doutrinas do pelagianismo. Defendeu a doutrina
da depravação total do homem, a necessidade de uma

* O arminianismo foi oficialmente condenado no Sínodo de Dort


(1618-1619), mas é importante notar que, na atualidade, este sistema
doutrinário tão contrário aos ensinamentos bíblicos, se transformou na
teologia oficial de um grande setor do protestantismo. Nota do tradutor.

15
intervenção direta do Espírito Santo na salvação, e que o
primeiro passo na conversão provém, não do homem, e sim de
Deus. Essas pessoas negaram ser pelagianas. Acaso o
metodista não sustenta, com a mesma firmeza que nós, que o
homem é salvo unicamente pela operação do Espírito Santo?
Não é certo, porventura, que muitos dos sermões de João Wesley
estão saturados daquela grande verdade, ou seja, que o Espírito
Santo é necessário para a regeneração? Sejam quais forem os
seus erros, o certo é que ele continuamente pregou a absoluta
necessidade do novo nascimento através da atuação do Espírito
Santo. E, também, há outros pontos em que estamos de acordo
com Wesley, como por exemplo, no que diz respeito à
incapacidade humana. Não importa como alguns nos ridicu­
larizem, quando dizemos que o homem por si só não pode se
arrepender nem crer; contudo^ os antigos manuais arminianos
afirmavam a mesma coisa. E verdade que eles afirmam que
Deus dá graça a todo homem; no entanto não debatem o fato de
que, à parte daquela graça, não há capacidade no homem para
fazer algo de valor quanto à sua própria salvação.
E voltando agora nossa atenção aos avivamentos do
continente americano, descobrimos quão falsa é a acusação de
que as doutrinas calvinistas são contrárias a todo avivamento.
Recordem o abalo espiritual produzido pela pregação de
Jonathan Edwards e também por muitos outros pregadores
americanos. Ou, se preferem, voltem a atenção para a Escócia:
que diremos de M ’Cheyne? E daqueles famosos calvinistas tais
como Livingstone, Chalmers, Wardlaw, Haldane, Erskine e
muitos outros? Todos esses servos de Deus sustentaram e
proclamaram sem vacilação alguma as grandes verdades do
calvinismo, e com que resultado? Deus aprovou a mensagem
deles e multidões foram salvas. E sem que agora trate de
engrandecer-me de meu trabalho para o Senhor, me atrevo a
dizer que nunca pude observar que a pregação destas doutrinas

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por minha parte puseram esta igreja a dormir; antes, pelo con­
trário, seus membros, além de amar e sustentar estas verdades,
agonizam pelas almas dos homens. As 1.600 ou mais pessoas
que batizei, ao confessarem sua fé, constituem testemunho vivo
de que estas antigas verdades não perderam seu poder para
promover avivamentos religiosos.*
Para explicar a falta de poder nos sermões de alguns
pregadores que pareciam não afetar alma alguma, Spurgeon
dizia: “A razão está, creio, em que eles não sabem o que na
realidade é o evangelho', têm medo do verdadeiro evangelho
calvinista, e por conseguinte o Senhor não reconhece seu minis­
tério”. Falando da influência destas doutrinas sobre sua própria
igreja, Spurgeon escreveu: “Entre os muitos candidatos para o
batismo e para a membresia desta igreja, havia um grande
número de jovens e também de pessoas de mais idade. Eu me
deleitava em ouvir-lhes expressar tão claramente, não só as
grandes verdades da justificação pela fé, mas também ao darem
clara evidência de haver sido instruídos nas doutrinas
relacionadas com o pacto da graça. Creio que uma das razões
pelas quais esta igreja tem sido tão distintamente abençoada por
Deus, é porque a maioria daqueles que se agregaram a nossas
fileiras está bem fundamentada na antiga fé dos puritanos e

O avivamento de 1859 foi uma ilustração do vínculo entre as


doutrinas calvinistas e os avivamentos. Outros líderes envolvidos no
avivamento, tais com o Brownlow North (cujo pregação foi tão influente
na Escócia e na Irlanda), reconheceram isto: “N ão deixa de ser digna de
observação que a vasta maioria dos servos de Deus, honrados por Ele para
produzir avivamentos em escala nacional, desde o inglês W ycliffe e o
boêm io Huss até os da atualidade, tem sido agostiniano ou calvinista em
seus pontos de vista teológicos. O ensino de Brownlow North foi
decididamente calvinista. D e fato, era tão calvinista que é de se admirar
que obteve tanta popularidade”. (R ecords and R ecollections o f Brownlow
North (1810-75), por K. Moody-Stuart, p. 258.)

17
portanto não se afastou de nós.” Exortando a seus companheiros
de ministério, Spurgeon afirmava: “Irmãos, na proporção em que
um ministro é fiel, dependerá a bênção de Deus. Podem esperar
que o Espírito Santo ponha o Seu selo de aprovação a uma
mentira? Podem esperar que Ele abençoe aquilo que não
revelou ou confirme com sinais o que não é verdadeiro? Cada
vez estou mais convencido de que se desejamos ter Deus ao
nosso lado, devemos guardar a Sua verdade”.
Qualquer erro referente às doutrinas mencionadas ante­
riormente, Spurgeon o considerava como um atentado à própria
essência do evangelho. O arminianismo - o erro que sustenta
que Cristo morreu para a salvação de todos e de que o homem
tem de decidir-se por Cristo antes de que Deus possa convertê-
-lo - foi severamente condenado por Spurgeon: “A heresia de
Roma não é outra senão a de acrescentar algo aos perfeitos
méritos de Cristo, o acréscimo das obras da carne para ajudar a
nossa justiça. Não seria essa também a heresia do arminianismo
ao acrescentar algo à obra do Redentor? Minha opinião é que
não é possível pregar a Cristo crucificado, a menos que não
preguemos também o que hoje em dia se chama calvinismo. O
nome calvinismo é só apelativo; o calvinismo é o evangelho e
nada mais. Não podemos dizer que pregamos o evangelho se
não pregamos a justificação pela fé, sem as obras. Tampouco
podemos dizer que pregamos o evangelho se não pregamos a
soberania de Deus na dispensação da Sua graça e muito menos
se não destacamos o amor eletivo, invariável, eterno e imutável
do Senhor. Ainda mais, não podemos dizer que pregamos o
evangelho a menos que o baseemos na redenção especial e
particular do povo eleito, povo que Cristo resgatou ao morrer na
cruz. Acima de tudo, não podemos aceitar um evangelho que
permita aos santos cairem da graça uma vez que foram
chamados. Tal evangelho eu detesto”.

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No ano de 1859, Spurgeon também pregou em Brighton.
Depois desta visita, os jornais locais anunciaram que ele havia
abandonado as doutrinas calvinistas. Como resultado desta falsa
afirmação, Spurgeon enviou as seguintes linhas ao Brighton
Examiner: “A afirmação segundo a qual abjurei a doutrina
calvinista é - desde o princípio até ao fim - pura invenção e
somente podia ser idealizada com propósitos maliciosos. Minha
posição doutrinária é a mesma de antes, e espero que até ao dia
de minha morte permanecerei fiel à mesma verdade sublime”.
Após revisar seus primeiros sermões para serem publicados,
declarou: “Regozijo-me no fato de que não tive necessidade de
mudar nenhuma das doutrinas que preguei nos primeiros dias do
meu ministério. Com respeito a estas verdades, minha posição é
a mesma que quando o Senhor as revelou para mim pela
primeira vez”.
Spurgeon faleceu em 1892. Viveu o suficiente para
observar ao seu redor um terrível declínio das doutrinas funda­
mentais do evangelho. Perto do fim da sua vida ele foi
considerado “o último dos puritanos” e parecia como se fora o
único que se mantinha firme pela verdade. “Sentimos -
declarava ele - como se um processo de endurecimento estivesse
agindo nas massas. A situação agora não é a mesma como no
princípio do meu ministério. E a que se deve isso? Qual a razão
desse desagrado pelos cultos simples do santuário? Creio que a
resposta, em grande parte, aponta a uma direção que pouco se
suspeita. Tem havido uma crescente tendência para o
sensualismo. Não condeno a ninguém, mas confesso que me
sinto profundamente entristecido ao ver algumas das invenções
empregadas na obra missionária moderna.”
Em 1892 o fluxo do pensamento popular nas igrejas era
muito diferente do de 1859. A teologia de 1892 veio a ser -
como predissera Spurgeon - a teologia da primeira metade do
século vinte. “O que está ocorrendo agora afetará os próximos

19
séculos. Da minha parte estou completamente disposto a ser
devorado pelos cães nos próximos cinqüenta anos; mas as gera­
ções de um futuro mais distante me darão a razão.” Cem anos
já se passaram desde o último grande avivamento nacional.
Certamente chegou o momento de submetermos a um exame os
frutos das mudanças teológicas registradas desde então. Eles
teriam contribuído realmente para um crescimento maior de
avivamentos? Acaso eles aumentaram o poder da santidade?
Porventura trouxeram convicção do pecado ao mundo? Eles
estariam enchendo as igrejas com ouvintes sequiosos? Ao ler
estes sermões e ver-nos confrontados com a mudança teológica
de hoje em dia, perguntemo-nos: essa mudança tem contribuído
para o bem ou para o mal? As idéias modernas sobre o evange­
lho e os métodos evangelísticos recentes têm enriquecido ou
empobrecido a Igreja? Se o evangelho pregado por Spurgeon
era o evangelho genuíno, então atualmente em quantos lugares
se anuncia com poder o puro evangelho? Que o centenário do
avivamento de 1859 faça com que muitos crentes considerem
tais questões e busquem um despertamento semelhante ao que
ocorreu há cem anos na Inglaterra.

março de 1959 OS EDITORES

20
1

A HISTÓRIA DOS PODEROSOS


FEITOS DE DEUS*

“Ouvimos, ó Deus, com os nossos próprios ouvidos: nossos


pais nos tem contado o que outrora fizeste em seus dias”
-S a l. 44:1.

Talvez não haja histórias que permaneçam por tanto


tempo gravadas em nossa memória como as que ouvimos da
boca de nossos pais, em nossa infância. É triste lembrar que
muitas delas eram inúteis e vãs, de modo que desde crianças
nossas mentes tenham sido influenciadas por fábulas e narrativas
estranhas, todas manchadas de falsidade. Entre os primeiros
cristãos e crentes do passado, os contos infantis eram muito
diferentes dos da atualidade, e as histórias com as quais
entretinham os filhos eram de classe bem distinta das que nos
fascinavam nos dias de nossa infância. Sem dúvida Abraão teria
falado às crianças a respeito do dilúvio e de que maneira as
águas chegaram a cobrir a terra, de modo que apenas Noé foi
salvo pela arca. Os antigos israelitas, quando habitavam a Terra
Prometida, teriam contado a seus filhos o milagre realizado por
Deus no Mar Vermelho, e falado das pragas lançadas sobre o

D om ingo de manhã, 17 de julho de 1859.

21
Egito quando o Senhor libertou o Seu povo do cativeiro.
Sabemos que entre os primeiros cristãos, os pais costumavam
relatar a seus filhos tudo concernente à vida de Jesus, o que os
apóstolos fizeram e narrativas semelhantes. Também foram
essas as histórias que deleitaram a infância dos nossos
antepassados, os puritanos. Sentados ao redor da lareira e em
frente daqueles mosaicos holandeses, com desenhos antigos da
vida de Cristo, as mães instruiam os seus filhos acerca de Jesus e
lhes falavam de como Ele andou sobre as águas, da
multiplicação dos pães, da Sua maravilhosa transfiguração e
principalmente sobre a Sua crucificação. Oh, quanto desejaria
que essas histórias fossem repetidas e que as narrações feitas na
nossa infância versassem outra vez sobre a vida de Cristo!
Deveríamos convencer-nos de que, finalmente, não pode haver
nada mais interessante do que aquilo que é verdadeiro, e que
coisa nenhuma pode produzir uma impressão mais viva na mente
do que as histórias contidas no Livro Sagrado. Nada pode
influenciar mais profundamente o coração de uma criança como
as obras maravilhosas que Deus realizou nos tempos antigos.
Parece que o salmista que escreveu esta ode tão poética havia
ouvido dos lábios do seu pai, o qual, por sua vez, aprendera da
tradição familiar, a descrição das maravilhosas obras de Deus; e
mais tarde o doce cantor de Israel a contou a seus filhos, e assim,
de geração em geração, se louvaria a Deus pelos Seus poderosos
feitos.
Nesta manhã pretendo recordar-lhes algumas das coisas
maravilhosas que Deus fez nos tempos antigos. Meu propósito e
objetivo será estimular suas mentes a se voltarem para tais
coisas, de modo que, recordando-se do que Deus fez, vocês
possam ser levados a olhar para frente com olhos de expecta­
tiva, esperançosos de que Ele estenda novamente Seu braço
santo e Sua mão poderosa, para repetir aquelas grandes obras das
épocas passadas.

22
Primeiro lhes falarei das histórias maravilhosas que
nossos pais relataram e que temos ouvido referentes aos tempos
antigos. Em segundo lugar mencionarei algumas dificuldades
quanto a nossa compreensão dessas antigas histórias. Por
último, extrairei certas conclusões naturais destas obras
maravilhosas que temos ouvido que o Senhor efetuou em tempos
passados.

I. Iniciarei, pois, com AS HISTÓRIAS


MARAVILHOSAS QUE TEMOS OUVIDO REFERENTES
AOS ANTIGOS FEITOS DO SENHOR.
Temos ouvido que Deus, por vezes, tem realizado feitos
poderosos. O curso comum da vida no mundo tem sido alterado
com prodígios, diante dos quais, os homens ficaram grande­
mente maravilhados. Nem sempre Deus tem permitido que Sua
Igreja suba aos cumes da vitória em intervalos curtos, contudo
em certas ocasiões tem derribado de um só golpe os inimigos do
Seu povo e ordenado aos Seus filhos que avancem sobre os
corpos prostrados dos adversários. Voltem-se então para os
relatos antigos e lembrem-se como Deus agiu. Porventura não
se lembram do que Ele fez no Mar Vermelho, de que maneira
Ele feriu a cavalaria dos egípcios, sepultando-a, junto com a
carruagem e os cavalos de Faraó, nas profundezas do Mar
Vermelho? Não ouviram falar de que modo Deus derrotou
Ogue, rei de Basã, e a Sion, rei dos amorreus, porque eles se
opuseram ao avanço do Seu povo? Não aprenderam como Ele
provou que a Sua misericórdia é eterna quando destruiu esses
grandes reis e derrubou os poderosos dos seus tronos? Não
leram também como Deus feriu os cananeus e os lançou fora da
sua terra para a entregar aos filhos de Israel por herança
perpétua? Não ouviram que quando os exércitos de Jabin mar­
charam contra eles, as próprias estrelas desde as suas órbitas
pelejaram contra Sísera? “A torrente de Quisom os arrastou, a

23
antiga torrente, e nem um se salvou.” Não ouviram, também,
como Deus pela mão de Davi feriu os filisteus, e como pelo
poder de Sua destra os filhos de Amon foram desbaratados? Não
ouviram como Midiã foi entregue à confusão e como as miríades
da Arábia foram dispersas por Asa no dia de sua fé? Acaso não
ouviram, também como o Senhor enviou um ataque sobre os
exércitos de Senaqueribe, de modo que pela manhã todos eles
eram homens mortos? Proclamem - proclamem estas
maravilhas de Deus! Falem sobre elas nas ruas! Transmitam
esses feitos a seus filhos e jamais os deixem ficar no
esquecimento. A destra do Senhor tem operado coisas maravi­
lhosas e Seu nome é conhecido em toda a terra.
Entretanto, as maravilhas que de modo mais direto se
relacionam conosco são as da era cristã; certamente não pode­
mos relegá-las a segundo plano com respeito às maravilhas do
Antigo Testamento. Nunca leram como Deus obteve para Si
mesmo grande renome no dia de Pentecoste? Voltem-se para o
livro dos relatos das maravilhas de Deus e leiam-no. Pedro, o
pescador, levantou-se e pregou em nome do Senhor, seu Deus.
Afluiu uma grande multidão e o Espírito Santo desceu sobre ela.
E, que ocorreu? Umas três mil pessoas foram compungidas de
coração e creram no Senhor Jesus Cristo. Porventura não
sabem como os doze apóstolos junto com os discípulos foram a
todas as partes anunciando a Palavra e como caíram os ídolos de
seus tronos como resultado de sua pregação? As portas de
muitas cidades se abriam e os mensageiros de Cristo percorriam
as suas ruas pregando a mensagem da salvação. Na realidade, os
discípulos no início foram perseguidos por toda parte e como
perdizes foram perseguidos nos campos; mas, não sabem que
mesmo nessas circunstâncias o Senhor obteve para Si a vitória, e
que cem anos depois de haver Cristo ter sido cravado na cruz, o
evangelho já havia sido pregado em todas as nações, e até as
ilhas mais remotas haviam sido alcançadas pela pregação? Já se

24
esqueceram, de como em todos os rios, milhares e milhares de
gentios eram batizados ao mesmo tempo? Que área existe na
Europa que nunca tenha ouvido a mensagem sublime do
evangelho? Que cidade há em nosso país que não possa
testemunhar como a verdade de Deus tem triunfado e como os
pagãos, abandonando seus falsos deuses, dobraram os joelhos
diante de Jesus Cristo, o Crucificado? A maneira como o
evangelho foi propagado nos primeiros séculos, é, realmente, um
milagre que jamais poderá ser eclipsado. O que quer que Deus
tenha realizado no Mar Vermelho, Ele realizou ainda mais
durante os primeiros cem anos que se seguiram a vinda de Cristo
ao mundo. Parecia como se um fogo do céu houvesse corrido
pelo chão e que nada pudesse resistir à sua força. A
relampejante seta da verdade fez em pedaços o pináculo do
templo idólatra e o nome do Senhor Jesus Cristo era adorado
desde o levantar do sol até o seu ocaso. Isso é uma das coisas
que temos ouvido dos tempos antigos!
Acaso vocês nunca ouviram das coisas poderosas que
Deus efetuou através de pregadores durante os séculos desde
aquela época? Nunca lhes foi relatado o caso de Crisóstomo, o
pregador apelidado “boca de ouro”? Sempre que ele pregava,
uma grande e bem atenta multidão se comprimia no templo para
escutá-lo. Crisóstomo, de pé e levantando mãos santas, com
majestade incomparável, lhes falava a palavra de Deus em
verdade e justiça. As pessoas o ouviam e inclusive se curvavam
para a frente, para captar cada palavra; de vez em quando
rompiam o silêncio com seus aplausos e com o ruído dos pés;
logo o silêncio voltava e ficavam cativados pelas palavras do
grande pregador, até que outra vez, levados pelo entusiasmo,
punham-se em pé e aplaudiam, gritando de alegria. Em seus dias
as conversões foram inumeráveis e o nome de Deus foi
altamente glorificado na salvação de muitos pecadores.

25
Porventura não lhes contaram seus pais as maravilhas
operadas mais tarde naqueles tempos de superstição e densas
trevas, quando o romanismo, entronizado, estendia sua vara de
ferro sobre as nações, fechava as janelas do céu, apagava as
próprias estrelas de Deus e fazia com que a escuridão cobrisse o
povo? Não ouviram como Martinho Lutero se levantou para
anunciar o evangelho da graça de Deus, como as nações treme­
ram, e o mundo reviveu ao escutar de novo a voz de Deus? Não
ouviram a respeito de Zwínglio, entre os suíços, e Calvino, na
cidade de Genebra, e dos poderosos feitos que Deus efetuou por
meio deles? E como britânicos, já se esqueceram dos grandes
pregadores da verdade - cessaram de vibrar seus ouvidos ao
ouvirem a maravilhosa história dos pregadores enviados por
Wicliffe a cada cidadezinha e aldeia da Inglaterra, para pro­
clamar o evangelho de Deus? Não nos informa a história que
esses homens foram como tochas de fogo no meio de palhas
secas; que suas vozes se assemelhavam ao rugir de leões e seus
ministérios como o ataque de leõesinhos? Eles empurraram a
nação para a frente e com respeito aos inimigos, clamavam:
“Destruam-nos”. Ninguém podia resisti-los, porquanto o Senhor
os revestira de poder.
Aproximando-nos de tempos mais recentes, estou certo
de que nossos pais nos relataram as coisas maravilhosas que
Deus operou nos dias de Wesley e Whitefield. Naqueles dias
todas as igrejas estavam adormecidas. A falta de religião era a
regra do dia. As próprias ruas pareciam estar cheias de iniqüi­
dade e as sarjetas estavam repletas da perversidade do pecado.
Levantaram-se, então, Whitefield e Wesley, homens cujos
corações o Senhor havia tocado e que se atreveram a anunciar o
evangelho da graça de Deus. De repente, como num momento,
ouviu-se o tatalar de asas e a Igreja interrogou: “Quem são estes
que voam como uma nuvem, e como pombas às suas janelas?”
Elas vêm! Elas vêm! São incontáveis como os pássaros do céu,

26
e seu ímpeto é como vento forte a que não pode resistir-se. Em
poucos anos, como fruto da pregação destes dois homens, toda a
Inglaterra foi permeada pela verdade evangélica. A Palavra de
Deus era conhecida em cada cidade, e raramente encontrava-se
uma aldeia na qual os metodistas não tivessem penetrado.
Naqueles dias dos transportes vagarosos, quando o cristianismo
parecia ter comprado os vagões nos quais os nossos pais
viajaram - onde a vida comercial se movia a vapor e muitas
vezes a religião rastejava seu ventre sobre a terra - ficamos
atônitos diante de tais histórias, e nós as vemos como
maravilhas. Apesar disso, creiamos nelas, pois foram parte
substancial da história. E as maravilhas que Deus operou em
tempos passados, pela Sua graça Ele ainda fará outra vez.
“Aquele que é poderoso tem feito grandes coisas e santo é o seu
nome.”
Há uma característica especial nestas obras que Deus
efetuou nos tempos antigos, para a qual gostaria de chamar a sua
atenção: é que elas despertam nosso interesse e nossa admiração
pelo fato de que foram efetuadas de maneira repentina. Os
velhotes de nossas igrejas crêem que as coisas devem
desenvolver-se paulatina e gradativamente; que se deve avançar
passo a passo. A ação concentrada e o labor progressivo - dizem
- nos levarão finalmente ao êxito. Mas a maravilha é que todos
os feitos de Deus aconteceram subitamente. Quando Pedro se
levantou para pregar, não levou seis semanas para que fossem
convertidos os três mil. A conversão deles foi instantânea e o seu
batismo ocorreu no mesmo dia. Naquela mesma hora eles se
voltaram para Deus e chegaram a ser discípulos tão verdadeiros
de Cristo como se a conversão resultasse de um processo de
setenta anos. Assim foi também nos dias de Martinho Lutero: o
grande reformador não precisou de séculos para superar as
densas trevas de Roma. Deus acendeu a vela e a luz brilhou
num instante. Ele age de modo repentino. Se alguém pudesse

27
ter estado em Wurtemburg e ter perguntado: “Pode o papado
estremecer, pode o Vaticano ser abalado?” a resposta teria sido:
“Não, será preciso pelo menos mil anos para que isso aconteça.
O papado, a grande serpente, tem se enrolado nas nações e
apertado-as tão rapidamente em sua espiral, que elas não podem
ser libertadas a não ser por um longo processo”. Contudo, “não
é assim”, disse Deus. Ele feriu o dragão violentamente, e as
nações foram libertas; Ele partiu os portões de bronze, quebrou
em pedaços as barras de ferro e o povo foi liberto na mesma
hora. A liberdade não veio ao longo dos anos, e sim num
instante. “O povo que andava em trevas viu uma grande luz; aos
que moravam em terra de sombra de morte a luz resplandeceu
sobre eles.” O mesmo ocorreu nos dias de Whitefield. A censura
que pesava sobre uma igreja adormecida não foi trabalho de
eras; aconteceu imediatamente. Vocês nunca ouviram a respeito
do grande avivamento sob o ministério de Whitefield?
Tomemos, por exemplo, o que sucedeu em Cambuslang.
Enquanto pregava no pátio de uma igreja, pois nenhum edifício
podia comportar a multidão, o poder de Deus veio sobre as
pessoas, e uma após outra caía por terra como se tivesse sido
golpeado. Estima-se que uma multidão de não menos de três mil
indivíduos chorava em uníssono sob a convicção do pecado.
Whitefield prosseguia com a mensagem: ora suas palavras
faziam tremer como Boanerges, ora eram suaves como tons
consoladores de um Barnabé. Não há linguagem capaz de
descrever as grandes maravilhas operadas por Deus através
daquele sermão memorável. Nem ainda o sermão de Pedro no
dia de Pentecoste se assemelhou a ele.
Assim tem sido em todos os avivamentos; a obra de
Deus tem sido feita repentinamente. Como o rebombar do
trovão, Ele desce do alto; não de maneira lenta, porém majesto­
samente tem cavalgado sobre os querubins e voado sobre as asas
do vento impetuoso. Repentina tem sido a Sua obra, as pessoas

28
mal podiam crer que ela fosse verdadeira - foi realizada em
tempo tão breve. Considerem o grande avivamento que está
ocorrendo em Belfast e arredores. Depois de tê-lo acompanhado
cuidadosamente e após ter falado com um querido irmão que
morou naquela região, e que merece a minha confiança, estou
convencido, apesar do que os inimigos possam dizer, que se
trata de uma genuína obra da graça e que o Senhor está operando
maravilhas ali. Um amigo que veio me visitar ontem informou
que os homens mais sórdidos e vis, assim como as mulheres
mais depravadas de Belfast, têm sido alcançados por esta
extraordinária epilepsia - como diz o mundo - mas que sabemos
ser a influência poderosa do Espírito. Homens costumeiramente
bêbados de repente sentiram um grande impulso que os obrigou
a orar. Eles resistiram, voltaram à bebida, a fim de se livrarem
daquilo; mas mesmo no meio de suas blasfêmias e tentativas de
apagar o Espírito, Deus os fez dobrar os joelhos e se viram
obrigados a pedir misericórdia com gritos desesperados, e a
agonizar em oração. Então, depois de certo tempo, o maligno
parece ter saído deles; e, com a mente sossegada, santa e feliz,
eles fizeram profissão de sua fé em Cristo e têm andado em Seu
temor e amor.
Católicos romanos têm sido convertidos. Pensei que
fosse algo extraordinário; contudo eles têm sido convertidos
muito freqüentemente mesmo em Ballymena e em Belfast. De
fato, foi-me dito que os padres estão agora vendendo pequenas
garrafas de água benta para que o povo a beba, a fim de serem
imunizados contra este contágio irremediável do Espírito Santo.
Dizem que esta água benta possui tal eficácia que aqueles que
não freqüentaram nenhuma das reuniões muito provavelmente
estarão livres da ação do Espírito Santo - assim dizem-lhes os
padres. Todavia, se eles comparecerem às reuniões, até mesmo
esta água benta não poderá imunizá-los - tornam-se passíveis de
cair como presas da influência divina. Creio que eles são

29
passíveis desta influência, tanto com tal água benta como sem
ela.
Tudo isso tem acontecido de maneira súbita, e embora
possamos encontrar algum elemento de excitamento natural,
estou persuadido de que, em essência, é um avivamento verda­
deiro e espiritual, uma obra que permanecerá. Há um pouco de
espuma na superfície, mas existe uma corrente de água profunda
que não pode ser resistida e que arrasta e leva consigo tudo que
encontra. Pelo menos há algo que desperta nosso interesse ao
saber que na pequena cidade de Ballymena, nos dias de feira, os
donos de bares costumavam ganhar mais de cem libras
diariamente, pela venda de uísque, mas agora todos os
taverneiros juntos não ganham nem uma libra. Homens que
outrora eram beberrões, agora se reúnem para orar; depois de
ouvir um sermão, o povo esperará para ouvir outro e nalgumas
ocasiões para escutar um terceiro sermão, até que o pregador se
vê obrigado a dizer: “Agora vocês precisam se retirar; estou
esgotado”. Ao sair do templo, se espalham pelas ruas e pelas
casas em pequenos grupos, para suplicar que Deus continue Sua
obra poderosa e a fim de que os pecadores sejam convertidos.
“Nós não podemos crer”, talvez digam alguns de vocês.
Provavelmente não podem, porém alguns de nós podemos,
porque o temos ouvido com os nossos ouvidos e nossos pais nos
contaram as grandes obras que Deus fez em seus dias, de modo
que estamos dispostos a crer que hoje em dia Ele pode realizar
feitos semelhantes.
Devo destacar agora que em todas estas velhas histórias,
há uma característica bastante evidente. Sempre que Deus reali­
zou um feito poderoso, Ele o fez por meio de um instrumento
bem insignificante. Quando matou Golias, foi através do
pequeno Davi, que não passava de um jovem ruivo. Não
guardem a espada de Golias - sempre pensei que fosse um erro
de Davi - guardem, não a espada de Golias, e sim a pedra, e

30
entesourem a funda da armadura de Deus para sempre. Quando
Deus quis matar Sísera, foi uma mulher que teve de fazer isso
com um martelo e uma estaca. Deus tem executado Seus feitos
mais poderosos por meio dos instrumentos mais insignificantes:
este é um dos fatos mais verdadeiros com respeito a todos os
feitos de Deus - Pedro, o pescador, no Pentecoste; Lutero, o
humilde monge na Reforma; Whitefield, o atendente da antiga
hospedaria Bell de Gloucester na época do avivamento do século
passado - e assim deve ser até o fim. Deus não atua por
intermédio dos cavalos e da carruagem de Faraó, mas sim pela
vara de Moisés; Suas maravilhas não são feitas com o furacão
nem com a tempestade; Ele as realiza por meio de uma pequena
e calma voz, para que a glória possa ser Sua e a honra seja
absolutamente Sua. Acaso isso não abre espaço para que eu e
vocês sejamos encorajados? Por que não podemos ser usados
para realizar algum feito poderoso para Deus aqui?
Além disso, temos notado que, em todas estas narrativas
dos poderosos feitos de Deus no passado, onde quer que tenha
realizado algo de grandioso, Ele Se serviu de alguém que
possuía grande fé. Neste momento acredito firmemente que, se
Deus o quisesse, todas as pessoas neste auditório seriam
convertidas num só instante. Se fosse do Seu agrado pôr em
ação a operação do Seu Espírito, nem mesmo o coração mais
endurecido poderia resisti-la. Deus tem misericórdia de quem
Ele quer. Agirá conforme Lhe apraz; ninguém pode reter a Sua
mão. “Bem,” dirá alguém, “mas eu não espero ver grandes
coisas”. Então, meu caro amigo, você não ficará desapontado,
porque não irá vê-las; todavia aqueles que esperam grandes
coisas, as verão. Homens de grande fé realizam grandes coisas.
Foi a fé de Elias que pôs fim aos sacerdotes de Baal. Se ele
tivesse o pequeno coração que alguns de vocês têm, os
sacerdotes de Baal ainda teriam continuado a governar o povo e
jamais teriam sido destruídos pela espada. Foi sua fé que

31
impulsionou Elias a dizer: “Se o Senhor é Deus, segui-o; se
Baal, segui-o”. E mais tarde: “Escolham para si um dos
bezerros, e o dividam em pedaços, e o ponham sobre a lenha,
porém não lhe metam fogo. Invocai o nome do vosso deus e eu
invocarei o nome do Senhor”. Foi a sua nobre fé que fê-lo dizer:
“Tomem os profetas de Baal; que nenhum deles escape”; assim
ele os levou ao ribeiro de Quisom, e ali os matou - um
holocausto ao Senhor. A razão pela qual o nome de Deus foi tão
magnificado foi porque a fé que Elias possuía em Deus era
muito poderosa e heróica.
Quando o papa enviou sua bula de excomunhão a Lutero,
este a queimou. No meio de uma multidão, e sustentando nas
mãos o documento a ponto de ser devorado pelas chamas, Lutero
exclamou: “Olhem, isto é a bula do papa.” Que importância
tinha para ele todos os papas que já estavam dentro ou fora do
inferno? Quando Lutero tinha que ir a Worms a fim de
comparecer diante da Dieta, os seus seguidodres lhe disseram:
“Não vá; sua vida corre perigo.” “Ora”, replicou Lutero, “Ainda
que houvesse tantos diabos em Worms como telhas nos telhados
das casas, ainda assim não temeria; eu irei à Dieta”. E se dirigiu
a Worms, confiando no Senhor seu Deus. O mesmo aconteceu
com Whitefield; ele cria e esperava que Deus realizasse grandes
coisas. Cada vez que subia ao púlpito estava convencido de que
Ele abençoaria o povo, e assim Deus o fez. Uma pequena fé só
fará pequenas coisas, mas uma fé robusta será grandemente
recompensada. Ó Senhor, nossos pais nos tem contado que
sempre que exibiram uma grande fé, Tu os honraste realizando
grandes obras.
Não os deterei mais neste ponto, exceto para fazer uma
observação. Todos os poderosos feitos de Deus têm sido o
resultado de muita oração, junto com uma grande fé. Já ouviram
como iniciou o grande avivamento americano? Certo homem,
desconhecido e ignorado, propôs no coração orar para que Deus

32
abençoasse o seu país. Depois de orar intensamente e de fazer a
pergunta que estremece a alma: “Senhor, que queres que eu
faça? Senhor, que queres que eu fa ça T , alugou um casa e pôs
um anúncio de que se realizaria uma reunião de oração numa
determinada hora do dia. À hora indicada ele não encontrou
ninguém na casa; novamente se pôs a orar e por meia hora orou
sozinho. No fim dessa meia hora chegou uma pessoa e em
seguida outras duas, e penso que a reunião terminou com seis
pessoas. Na outra semana, cerca de cinqüenta pessoas se
reuniram para orar; afinal, quando eram mais de cem as pessoas
que partcipavam das reuniões, resolveu-se iniciar outras reuniões
de oração. Semanas mais tarde era quase impossível encontrar
uma rua em Nova Iorque onde não houvesse reuniões de oração.
Os comerciantes reservavam tempo para orar no meio do dia.
Reuniões de oração chegaram a ser realizadas diariamente por
uma hora. Comunicavam os pedidos e os assuntos de oração e de
maneira simples as pessoas as apresentavam ao Senhor, e as
respostas vieram. Muitos eram os corações alegres que se
levantavam para testificar que a oração feita na semana anterior
já havia sido respondida. Foi então, quando todos se dedicavam
ardentemente à oração, que o Espírito de Deus desceu sobre eles
de maneira repentina. Menciona-se o caso de certo pregador
numa pequena povoação, que dentro duma semana viu como o
Senhor havia usado sua pregação para conversão de centenas de
almas. O avivamento se estendeu aos estados do Norte e pode
afirmar-se que chegou a ser generalizado. Calcula-se que em
menos de três meses, mais de duzentas e cinqüenta mil pessoas
foram convertidas ao Senhor.
Os mesmos efeitos foram produzidos em Ballymena e
Belfast através de meios semelhantes. Um crente fez o propósito
de orar e orou. Mais tarde organizou uma reunião de oração
periódica. Dia após dia se congregava um grupo de irmãos para
suplicar um avivamento, e assim o fizeram até que o fogo

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celestial desceu e o avivamento se tornou uma realidade.
Pecadores foram convertidos, não em pequeno número, mas às
centenas e milhares, de modo que o nome do Senhor era
intensamente glorificado pelo progresso do Seu evangelho.
Amados, apenas me limito a apresentar-lhes fatos. Façam cada
um de vocês suà própria estimativa dos mesmos.

II. De acordo com a divisão apresentada de início, ago


devo mencionar ALGUMAS DESVANTAGENS MUITAS
VEZES ALEGADAS COM RESPEITO A TAIS
HISTÓRIAS ANTIGAS.
Ao ouvir das maravilhas que Deus tem operado, uma das
coisas que as pessoas dizem é esta: “Ora, isso aconteceu há
muito tempo atrás”. Elas imaginam que desde então os tempos
mudaram. Alguém diz: “Posso acreditar em qualquer coisa
sobre a Reforma; por maiores que sejam os relatos, posso
admiti-los”. “O mesmo faria em relação a Whitefield e Wesley”,
diz outro, “tudo aquilo é absolutamente verdadeiro, ambos
trabalharam vigorosa e eficientemente, mas isso ocorreu há
muitos anos atrás. Naqueles tempos as coisas eram diferentes de
como são agora”. Está certo que os tempos mudaram, mas isso
que tem a ver? Pensei que foi Deus quem fez tudo aquilo.
Acaso Deus mudou? Não é Ele um Deus imutável, o mesmo
ontem, hoje e para sempre? Isso não seria uma prova para
demonstrar que o que Deus realizou numa ocasião, Ele pode
fazer numa outra? Certamente que sim; e ainda iria mais além,
porquanto me atreveria a afirmar que o que Ele já fez uma vez
constitui uma previsão do que Ele Se propõe a fazer novamente.
Os poderosos feitos que operou em tempos passados se repetirão
outra vez, e o cântico do Senhor será entoado novamente em
Sião, e o Seu nome será glorificado. Outros entre vocês
afirmam: “Bem, mas considero estas coisas como prodígios,
como milagres. E, portanto, não podemos esperar que ocorram

34
todos os dias”. Esta é precisamente a razão pela qual não
acontecem. Se houvéssemos aprendido a esperá-las, sem dúvida
as obteríamos, porém nós as arquivamos e separamos de nossa
religião moderada e as relegamos como meras curiosidades da
história bíblica. Imaginamos que tais coisas, ainda que
verdaderias, sejam prodígios da Providência e não podemos
imaginar que elas ocorram na área da Sua obra costumeira.
Rogo-lhes, meus amigos, que se desprendam de tal pensamento
e o afastem de suas mentes.
Tudo que Deus tem feito para converter os pecadores
deve ser considerado como um precedente, pois “não se enco­
lheu a mão do Senhor para salvar, nem está agravado o seu
ouvido para não ouvir”. Se nos sentimos limitados de alguma
íorma, não é por causa dEle, é por causa de nós mesmos.
Tomemos esta culpa sobre nós mesmos e com verdaderiro
anseio supliquemos que Deus nos conceda a fé de nossos ante­
passados, a fim de que desfrutemos ricamente de Sua graça
como nos tempos de outrora.
Há ainda outra desvantagem referente àquelas histórias
antigas. E é a de que não as temos visto. Por mais que lhes fale
sobre avivamentos vocês não chegarão a crer tão firmemente
neles como fariam se ocorresse um entre vocês. Se o vissem
com os próprios olhos, então se convenceriam do poder do
mesmo. Se tivessem vivido nos tempos de Whitefield ou ouvido
a pregação de Grimshaw, vocês creriam totalmente. Por mais
quente que fosse o tempo e apesar de ter de viajar a cavalo,
(irimshaw costumava pregar, no mínimo, vinte e quatro vezes
por semana. Era um verdadeiro pregador. Parecia como se o
próprio céu descesse à terra para escutá-lo. Falava com ardor
extraordinário, com todo o fogo que jamais pudesse aquecer um
peito mortal, e o povo tremendo ante o que ouvia, exclamava:
" (’crtamente esta é a voz de Deus”. O mesmo pode ser dito a
respeito de Whitefield. Enquanto ele pregava, as pessoas se

35
retorciam de um lado para outro, da mesma maneira que o trigo
no campo se move ao impulso do vento. De tal modo se
manifestava a energia de Deus, que mesmo o mais endurecido
dos corações tinha de confessar: “Nunca escutei algo
semelhante; tem que haver algo nisso”. Porventura vocês não
reconhecem que estes fatos são reais? Eles se levantam ante os
seus olhos com todo o seu brilho? Então creio que as histórias
que chegam hoje aos seus ouvidos devem produzir um
verdadeiro e transformador efeito em suas próprias vidas.

III. Em terceiro lugar, tratarei de CERTA


INFERÊNCIAS DECORRENTES DAS ANTIGAS
HISTÓRIAS DOS PODEROSOS FEITOS DE DEUS.
Como desejaria poder falar com o mesmo ardor
demonstrado por alguns desses homens cujos nomes mencionei!
Orem por mim, para que o Espírito de Deus repouse sobre mim,
para que eu possa pleitear com vocês por alguns minutos, com
toda minha força, procurando exortá-los e animá-los, a fim de
que também entre nós ocorra um avivamento. Meus queridos
amigos, o primeiro efeito que a leitura da história dos poderosos
feitos de Deus deveria produzir em nós é o de gratidão e louvor.
Existiria algo atualmente que nos impulsione a cantar? Se não
há, então louvemos ao Senhor pelas maravilhas operadas nos
tempos passados. Se não podemos elevar ao nosso Amado um
cântico pelo que Ele está fazendo em nosso meio, retiremos as
harpas dos salgueiros e entoemos uma canção antiga e
bendigamos o santo nome pelas maravilhas operadas na Igreja
do passado. Exaltemos o Seu nome pelas maravilhas realizadas
no Egito e em todas as terras por onde conduziu o Seu povo, e
das quais o libertou com mão poderosa e braço estendido.
Quando assim começarmos a louvar a Deus pelas maravilhas
que Ele tem realizado, creio que posso me aventurar a imprimir
nas suas mentes outra grande tarefa. Desejaria que o que Deus

36
tem feito os movesse a orar para pedir-Lhe que realize de novo
esses sinais e maravilhas entre nós. O irmãos, como se alegraria
o meu coração em saber que existe entre alguns de vocês o
desejo de regressar aos seus lares para orar por um avivamento.
Oxalá houvesse homens com uma fé tão grande e um amor tão
ardente que seriam movidos a cair sobre os joelhos para rogar
com súplicas incessantes para que o Senhor Se manifestasse
entre nós e realizasse aqui as mesmas maravilhas que operou nos
tempos antigos! } Lembrem-se dé que muitas das pessoas aqui
reunidas deveriam ser objeto de nossa compaixão. Olhando ao
meu redor, posso ver algumas pessoas cujas vidas conheço mais
ou menos, contudo quantos há que ainda não são convertidos!
Há aqui muitos que têm tremido - e eles mesmos sabem que o
têm feito - pois se sentem atingidos por temores; estão
arriscando seu destino e havendo resolvido ser suicidas de suas
próprias almas, tem depreciado a graça que um dia parecia estar
operando em seus corações. Deram as costas às portas do céu e
agora estão correndo em direção às portas do inferno. Não
estenderão vocês as mãos a Deus para que Ele os detenha em sua
carreira louca? Se nesta congregação houvesse apenas um
incrédulo e eu pudesse assinalá-lo publicamente e dizer: “Ali
está sentado uma pessoa que nunca experimentou o amor de
Deus nem jamais foi movida ao arrependimento,” estou seguro
de que todos vocês lhe dirigiriam um olhar ansioso. Creio que
dentre os milhares de cristãos aqui reunidos, nem um só deixaria
de orar por essa alma não convertida. Todavia, meus irmãos,
não é somente uma alma que está em perigo do fogo do inferno;
aqui há centenas e milhares de nossos semelhantes nessa
condição.
Deveria lhes dar outra razão que justifique a necessidade
da oração? Até agora parece ser que todos os meios empregados
têm sido sem resultado algum. Deus me é testemunha de
quantas vezes deste púlpito Lhe supliquei que me usasse como

37
instrumento de salvação dos homens. Tenho lhes pregado
sempre do fundo de meu coração. Nunca lhes pude dizer mais
do que lhes tenho dito, e espero que a intimidade do meu quarto
um dia testifique do fato de que não termina meu afeto e amor
pelas almas ao concluir a pregação. Meu coração intercede por
aqueles que nunca foram afetados pela Palavra de Deus e pelos
que, depois de atingidos, tratam de apagar o Espírito de Deus.
Meus queridos ouvintes, tenho feito tudo o que posso. Vocês
não virão para ajudar o Senhor a lutar contra o poderoso
inimigo? Talvez suas orações possam fazer o que a minha
pregação não consegue. Ei-los aqui; eu os encomendo aos seus
cuidados. São homens e mulheres cujos corações recusam-se a
derreter, cujos joelhos obstinados não querem se dobrar;
entrego-lhes a vocês e peço que orem por eles. Apresentem-nos,
de joelhos, a Deus em oração. Esposa, nunca deixe de orar pelo
seu esposo incrédulo. Esposo, jamais interrompa as súplicas até
ver a sua esposa convertida. Pais e mães, vocês não têm filhos
não convertidos? Não os têm trazido aqui domingo após
domingo, e eles permanecem como sempre foram? Já os têm
enviado de uma igreja a outra, e eles ainda continuam na mesma.
A ira de Deus permanece sobre eles. Têm de morrer; e vocês
sabem que, se morressem agora, as chamas do inferno os
devorariam. Vocês ainda deixarão de orar por eles? Que
corações duros e almas embrutecidas têm vocês se, professando
conhecer a Cristo, não oram por aqueles que nasceram do seu
próprio sangue.
Não sabemos o que Deus faria por nós se de nossa parte
suplicássemos a Sua bênção. Temos sido testemunhas de como
o Exeter Hall, a Catedral de São Paulo e a Abadia de
Westminster ficam lotados inteiramente, contudo não temos
visto resultado algum desses enormes ajuntamentos. Será que
nós temos tentado pregar sem antes tentar orar? Acaso não
parece que a igreja tem estendido a mão da pregação, e não a da

38
oração? Ó amados amigos, agonizemos em oração, e neste
grande auditório se escutará os suspiros e gemidos dos peniten­
tes e os cânticos dos convertidos. Então esta grande multidão
não entrará e sairá deste recinto de forma rotineira, porém aban­
donará o local louvando a Deus e dizendo: “Foi bem estar alí.
Não é outro lugar senão a casa de Deus e a porta do céu!” Isso
deve impulsionar-nos à oração. Outra dedução que deve­
ríamos tirar dessas histórias que ouvimos, é a de que deveriam
corrigir qualquer sentimento de suficiência própria que possa
ter-se introduzido em nossos corações traiçoeiros. Quem sabe se
nós, como igreja, não temos confiado em demasia em nossos
números ou em qualquer outra coisa. Podemos ter pensado:
“Certamente o Senhor há de abençoar-nos através deste minis­
tério”. Pois bem, que as histórias que os nossos pais nos têm
contado façam-nos recordar, tanto a vocês como a mim, que não
é por muitos nem por poucos que o Senhor salva. Pelo contrá­
rio, é que não somos nós que fazemos a obra, e sim o Senhor que
a faz totalmente. Quem sabe, um pregador desconhecido, cujo
nome jamais se ouviu - até um estrangeiro naturalizado -
comece a pregar nesta cidade de Londres com um poder maior
do que o jamais experimentado pelos bispos e ministros locais.
Eu lhe daria as boas-vindas e pediria que Deus o acompanhasse.
Não importa o local de procedência; só desejo que o Senhor o
envie e que se realize a obra. Contudo, pode ser que Deus
pretenda usar este servo que lhes fala para seu bem e sua conver­
são. Nesse caso, meu gozo transbordaria até o limite. Mas não
ponham confiança no instrumento. Saibam: quanto mais os
homens riram e zombaram de nós, tanto mais Deus nos
abençoou. Atualmente não é um descrédito assistir às reuniões
do Music Hall. Não nos deprezam tanto agora como a princípio,
porém duvido que desfrutamos agora tantas bênçãos como
outrora. Estaríamos dispostos a sofrer, como escravos, e a
passar outras humilhações, tendo todos os jornais contra nós,

39
com todos os homens vaiando-nos e insultando-nos, se assim
Deus o quiser, se, com isso, Ele apenas nos enviasse uma
bênção. Mas abandonemos a idéia de que o nosso arco e a nossa
espada possam conduzir-nos à vitória. Nunca poderemos expe­
rimentar um avivamento, a não ser que creiamos que o Senhor, e
somente o Senhor, é quem pode realizá-lo.
Tendo feito essa declaração, tratarei agora de estimular-
-lhes a confiança de que, ainda hoje, podemos ter um
avivamento e de que as grandes obras que Deus efetuou nos
tempos antigos podem repetir-se. Por que razão não pode ser
convertido cada um dos meus ouvintes? Encontra-se o Espírito
de Deus limitado? Por que não deveria o mais simples ministro
chegar a ser o meio de salvação de milhares de almas?
Encolheu-se o braço de Deus? Meus queridos irmãos, quando
os concito a orar para que Deus torne o ministério deste seu
servo como espada de dois gumes para a salvação dos pecadores,
não requeiro de vocês uma tarefa árdua, muito menos um algo
impossível. Somente temos que pedir para receber. Antes que
clamemos, Deus responderá; e enquanto estamos falando, Ele
ouvirá. Só Deus sabe os frutos que resultariam deste sermão se
fosse do Seu agrado abençoá-lo. Doravante talvez orarão mais;
talvez daqui em diante o Senhor abençoe mais este ministério.
Quem sabe se a partir desta hora outros púlpitos irradiarão mais
vida e vigor. Deste momento em diante a Palavra de Deus talvez
irrompa com tanta força que alcance uma vitória assombrosa e
sem precedentes.
Apenas lutem em oração, reúnam-se em suas casas e
individualmente em seus quartos, instem a tempo e fora de
tempo; agonizem pelas almas. E assim notarão que o que ouvi­
ram será logo esquecido pelo que verão; o que os outros
contaram será como nada em comparação com o que ouvirão
com os ouvidos e verão com os próprios olhos.

40
Ó vocês, para quem tudo isso parece uma fábula oca, que
não amam a Deus, nem O servem, rogo-lhes que parem e
pensem por alguns momentos. Ó, Espírito de Deus, desça sobre
Seu servo e torne poderosas as suas palavras. Deus tem
contendido com alguns de vocês, de modo que têm experimen­
tado períodos de convicção. No entanto, agora estão tentando
adotar uma atitude ímpia e dizendo consigo mesmos: “Não
existe inferno, não há nada depois da morte”.
Isso não é verdade. Vocês sabem que há um inferno e
que nem mesmo as gargalhadas dos que desejam destruir suas
almas podem fazer com que acreditem o contrário. Não pre­
tendo discutir com vocês agora, pois suas consciências
testemunham que Deus os castigará por seus pecados. Podem
ter certeza que jamais terão felicidade enquanto tentarem
neutralizar o Espírito de Deus. Estão longe da senda da
felicidade por resistirem os pensamentos que os levariam a
Cristo. Rogo-lhes que retirem suas mãos do braço de Deus; não
resistam mais ao Seu Espírito. Dobrem os joelhos, apeguem-se
a Cristo e creiam nEle. Isso há de acontecer. O Espírito Santo
será vitorioso sobre vocês. Espero que, em resposta às muitas
orações, Deus ainda queira salvá-los. Rendam-se agora, tendo
em mente que se conseguirem apagar o Espírito, esse triunfo
será o desastre mais terrível que lhes pode ocorrer. Se o Espírito
os abandonar, vocês estarão perdidos para sempre. Talvez seja
este o último aviso que lhes será dado. A convicção que vocês
agora estão tentando abafar, talvez seja a última. Quem sabe, o
anjo já pode estar a ponto de pôr o selo e o lacre sobre seu
destino, dizendo: “Abandone-os. Eles preferem os vícios e a
concupiscência; que se cumpra, pois, seus desejos - que no fogo
do inferno recebam o salário do pecado”. Ouso dizer com
Pedro: pecadores, creiam no Senhor Jesus; arrependam-se e
sejam convertidos. Eu os exorto, em nome de Deus, a que se
arrependam e escapem da condenação. Mais algum tempo e

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saberão o que significa a perdição, caso não se arrependam.
Apressem-se a vir a Cristo enquanto o azeite arde na lâmpada e
ainda se prega a misericórdia. A graça ainda está sendo
proclamada; aceitem a Cristo, não O rejeitem por mais tempo,
venham a Ele agora. As portas da misericórdia estão abertas de
par em par; venham agora, pecadores, para que seus pecados
lhes sejam perdoados.
Quando os soldados da antiga Roma atacavam uma
cidade, muitas vezes costumavam pôr uma bandeira branca no
alto da porta central da muralha, e se a guarnição se rendia
enquanto estava hasteada a bandeira branca, era-lhe poupada a
vida. Depois içavam uma bandeira negra e todos os que não
tinham aproveitado da oportunidade oferecida, pereciam sob a
espada inimiga. A bandeira branca está levantada hoje; talvez
amanhã a bandeira negra seja hasteada sobre o mastro da lei, e
então não haverá esperança de arrependimento ou salvação, nem
nesta vida nem na vida vindoura.
Um conquistador oriental, ao chegar às portas da cidade
que tencionava conquistar, acendia um braseiro de carvão e
colocando-o sobre um mastro bem alto, fazia soar a trombeta
com a condição de que todos aqueles que se rendessem enquanto
permanecesse o fogo, desfrutariam de sua clemência, mas ao
consumir-se o último tição, com seu exército acometeria com
ímpeto e não deixaria pedra sobre pedra. Tanto homens, como
mulheres e crianças, teriam morte cruel. De modo semelhante,
os trovões de Deus hoje os concitam a escutar o aviso divino.
Ainda permanecem a luz, a lâmpada e o braseiro aceso. Com o
correr dos anos o fogo vai se consumindo; no entanto ainda resta
um pouco de carvão. Neste instante, porém, o vento da morte
está tentando extinguir a última brasa viva. Ó pecador,
arrependa-se enquanto dura a chama do braseiro! Faça-o agora,
pois ao extinguir-se o último tição, de nada lhe aproveitará o
arrependimento. Uma vez no tormento, seu gemido eterno não

42
poderá comover o coração de Deus; seus gemidos e suas
lágrimas amargas não farão com que Ele tenha compaixão de
você. “Se ouvirdes hoje a Sua voz, não endureçais o coração
como na provocação”. Ó, apegue-se a Cristo hoje! “Beijai o
Filho para que não se ire e pereçais no caminho, quando se
acender em breve o seu furor. Bem-aventurados todos os que
nele confiam”.

43
2

O SANGUE DO CONCERTO
ETERNO*

“O sangue do concerto eterno” - Heb. 13:20.

Todas as relações que Deus tem mantido com o homem


têm o caráter de concerto. Agradou-Lhe dispor as coisas de tal
maneira, que todas as Suas relações com Suas criaturas deviam
verificar-se através de um pacto; e não sendo desse modo tam­
pouco podemos relacionar-nos com Ele. No Éden, Adão estava
sob um pacto com Deus, e Deus em aliança com ele. Mas Adão
logo rompeu aquele pacto. Todavia existe um concerto com
todo o seu terrível poder, e digo terrível porque tem sido des­
respeitado por parte do homem, e portanto Deus cumprirá as
solenes ameaças e sanções contidas nele. É o pacto das obras.
Por meio dele, Deus Se relacionou com Moisés, e através dele
Deus Se relaciona com toda a raça humana tal como estava
representada no primeiro Adão. Depois, nos tratos que Deus
teve com Noé, também foram em forma de aliança. Mais tarde
com Abraão, Lhe aprouve relacionar-Se mediante um pacto.
Abraão o manteve e o guardou, sendo o pacto renovado a muitos
da sua descendência depois dele. Inclusive com Davi, homem
segundo o Seu coração, Deus Se relacionou através de um pacto.

* D om ingo de manhã, 2 de outubro de 1859.

44
Mesmo nesta época Se relaciona conosco mediante um concerto.
Quando em Seu furor vier a condenar, ferirá com um pacto, isto
é, com a espada do pacto do Sinai; quando, entretanto, vem no
esplendor da Sua graça para salvar, Ele o faz mediante um pacto,
isto é, o pacto de Sião, que é o que foi feito com o Senhor Jesus
Cristo, representante e cabeça do Seu povo. E notem bem, que
sempre que desejemos estabelecer estreitas e íntimas relações
com Deus, elas devem verificar-se, mesmo de nossa parte, na
forma de um concerto. Após a conversão, fazemos com Deus
uma aliança de gratidão; movidos pelo que Ele realizou por nós,
nos aproximamos e nos entregamos completamente a Ele.
Pomos nosso selo a este pacto quando através do batismo nos
unimos à Sua Igreja, e todas as vezes que participamos da Ceia
do Senhor renovamos o voto do nosso concerto e temos
comunhão pessoal com Deus. Não posso orar a Deus a não ser
através do pacto da graça; e não me torno Seu filho a menos que
não tenha sido comprado mediante o pacto de Cristo - através do
qual tenho-me entregue a Ele, e dedicado tudo que sou e possuo.
Posto que o pacto é a única escada que se estende da
terra ao céu, e o único caminho pelo qual Deus mantém comu­
nhão conosco, e mediante o qual podemos relacionar-nos com
Hle, é extremamente importante que saibamos distinguir entre
aliança e aliança. Seria lamentável manter algum erro ou dúvida
referente ao que significa e não significa o pacto da graça.
Portanto, nesta ocasião desejo falar-lhes, da maneira mais
simples possível, do valor e do significado do concerto
mencionado em nosso texto bíblico. Tratarei de fazê-lo com
franqueza e clareza. Inicialmente lhes falarei do concerto da
graça', a seguir, do seu caráter eterno; por último, da relação
(/ue o sangue tem com respeito ao mesmo - “O sangue do con­
certo eterno”.

45
I. Considerando, primeiramente, O CONCERTO
mencionado em nosso texto, destacaremos o seu caráter
específico, o que não será coisa fácil. Aqui não se fala do pacto
das obras, pois se o fosse, não seria chamado eterno. O pacto
das obras de modo algum possuiu um caráter eterno. Não era
eterno, uma vez que foi feito no jardim do Éden. Teve princípio;
não foi observado e constantemente foi violado. Aquele pacto
logo terminou e deixou de ser; portanto, não foi eterno em
nenhum sentido. O pacto das obras não pode levar um título
eterno; mas o concerto do nosso texto, por tratar-se de uma
aliança eterna, não pode de modo algum identificar-se com o
pacto das obras. O pacto que Deus fez primeiramente com a
raça humana incluía as seguintes promessas e condições: se o
homem fosse obediente, viveria e seria feliz; porém se
desobedecesse, pereceria. “No dia em que deixar de obedecer-
-me, certamente morrerá”. Esse pacto foi feito com todos nós na
pessoa do nosso representante, o primeiro Adão. Se Adão
houvesse observado o pacto, nós agora estaríamos isentos do
pecado. Mas Adão não o guardou, e com sua queda todos nós
também caímos. Como consequência de haver caído em Adão,
cada um dos seus descendentes se tomou filho da ira, herdeiro
do pecado e está inclinado a toda maldade e sujeito a toda
miséria. Esse pacto foi abolido com respeito aos filhos de Deus;
a vinda de uma nova e melhor aliança o eclipsou e o aboliu com
sua glória resplandecente.
Devo acrescentar que o concerto mencionado em nosso
texto não é o pacto de gratidão que se faz entre um filho de Deus
e o seu Salvador. Tal pacto existe e deve ocupar um lugar
próprio na vida de cada cristão. Espero que todos nós que
conhecemos o Salvador tenhamos exclamado em nossos
corações:
“Está feita! A grande transação está feita;
Pertenço ao meu Senhor e Ele me pertence a mim”

46
Já entregamos tudo a Ele. Não há que confundir este
pacto com o concerto que encontramos em nosso texto, pois o do
nosso versículo é eterno, enquanto que o nosso pacto pessoal foi
escrito há poucos anos. E mesmo esse teria sido depreciado por
nós nos primeiros anos da nossa vida, devido a nossa
incredulidade.
Tendo assim demonstrado negativamente o que este
concerto não é, estudemo-lo agora positivamente e vejamos em
que consiste. E aqui me será preciso fazer algumas sub-
-divisões. Primeiro, para entender o que seja um concerto,
temos de saber quais são as partes contratantes; a seguir, quais as
estipulações ou condições do contrato; e por último, qual o seu
conteúdo. E se desejamos aprofundar ainda mais sobre o tema,
teremos de compreender algo sobre os motivos que moveram as
partes contratantes para estabelecer um pacto entre si.
1. Observemos, pois, inicialmente, as ilustres partes
contratantes entre as quais se fez este concerto da graça. Foi
firmado antes da fundação do mundo entre Deus o Pai e Deus o
Filho; ou, expressando-o numa linguagem ainda mais bíblica, foi
feito entre as três pessoas divinas da adorável Trindade. Este
pacto não foi diretamente entre Deus e o homem; o homem
nesse tempo não existia; Cristo aparece neste concerto como
representante do homem. E é neste sentido que pode declarar-se
ter sido uma aliança entre Deus e o homem, mas nunca como um
pacto entre Deus e qualquer homem pessoal ou individual. Foi
uma aliança entre Deus e Cristo; e através de Cristo, de maneira
indireta, com toda a linhagem humana que foi comprada pelo
Seu sangue. Cristo amou a esta linhagem desde antes da
fundação do mundo. É um pensamento nobre e glorioso - o
mesmo lirismo da doutrina calvinista, a qual nós ensinamos -
que antes que a estrela matutina conhecesse seu lugar, antes que
do nada Deus criasse o universo, antes que a asa do anjo agitasse
os virgens espaços etéreos, e antes que um solitário cântico

47
perturbasse o silêncio no qual Deus reinava supremamente, Ele
já havia entrado em conselho conSigo mesmo, com Seu Filho e
com Seu Espírito, e havia determinado, proposto e predestinado
a salvação de Seu povo. Além disso, havia disposto neste
concerto a maneira e os meios e todas as coisas que deviam
operar conjuntamente para levar a efeito o propósito e o decreto.
Minha alma se transporta até ao passado, com as asas da
imaginação e da fé, e contempla no profundo dos mistérios
daquele conselho eterno, e através dos olhos da fé contempla o
Pai comprometendo-Se com o Filho e o Filho comprometendo-
Se com o Pai, enquanto o Espírito Se compromete com ambos, e
desta maneira, aquele convênio divino, que por muito tempo
estaria escondido na obscuridade, foi completado e ultimado.
Esta era a aliança que nos últimos tempos tem sido lida à luz do
céu e que veio a ser o gozo e a esperança e a glória de todos os
santos.
2. Quais foram as estipulações deste concerto? Pode
riam apresentar-se da seguinte maneira. Deus já havia previsto
que o homem, depois da criação, romperia o pacto das obras,
que apesar das delícias do paraíso, o homem julgaria estas
condições demasiadamente severas e chegaria a rebelar-se,
contribuindo para a sua própria ruína.
Deus também havia previsto que Seus eleitos, a quem
havia escolhido do resto da humanidade, cairiam pelo pecado de
Adão, já que eles, tanto quanto os outros mortais, estavam
representados no primeiro homem. Por conseguinte o concerto
devia ter como meta a restauração do povo escolhido. Agora
facilmente poderemos entender as condições do concerto.
Por parte do Pai assim se expressaria a aliança (e devo
confessar que não posso expressá-la na gloriosa linguagem
celestial; infelizmente me vejo obrigado a fazê-lo na que é
própria do mortal): “Eu, Jeová, o Altíssimo, dou ao Meu
unigénito e amado Filho, um povo que será mais numeroso que

48
as estrelas. Este povo será por Ele lavado do pecado, pre­
servado, guardado e guiado, e por último será apresentado por
Ele diante do Meu trono, sem mancha nem ruga, ou coisa seme­
lhante. Eu solenemente Me comprometo, e juro por Mim
mesmo, pois não posso jurar por ninguém superior, que estes,
que agora dou a Cristo, serão para sempre objetos do Meu amor
eterno. A eles perdoarei pelos méritos do Seu sangue; lhes darei
uma justiça perfeita; os adotarei, tornando-os Meus filhos e
Minhas filhas, e através de Cristo reinarão eternamente
coMigo”.
O Espírito Santo, outro dos ilustres contratantes do
concerto, faria semelhante declaração: “Pela presente Me com­
prometo a vivificar, no seu devido tempo, a todos aqueles que o
Pai tem dado ao Filho. Mostrar-lhes-ei a necessidade que têm de
redenção; removerei deles toda a esperança vã e destruirei seus
refúgios de mentiras. Eu os levarei ao sangue derramado e lhes
concederei fé para que este sangue lhes seja aplicado. Operarei
neles todas as graças; manterei a sua fé viva; os purificarei e
apartarei deles toda a depravação, para que possam ser
apresentados sem mancha e sem mácula”. Esta é uma das partes
do pacto que até hoje tem sido cumprida e rigorosamente
observada.
Em referência à outra parte do concerto, assumida e
prometida por Cristo, poderia ser expressa assim: “Meu Pai, de
Minha parte comprometo-Me que na plenitude dos tempos
assumirei a natureza humana. Tomarei sobre Mim a forma e a
natureza da raça decaída. Viverei no seu miserável mundo e
cumprirei perfeitamente a lei para Meu povo. Conseguirei uma
justiça irrepreensível que será aceita pelas demandas da Tua
justa e santa Lei. A seu devido tempo tomarei sobre Mim os
pecados do Meu povo. Tu reivindicarás de Mim suas culpas;
sofrerei o castigo de sua paz, e pelas Minhas chagas serão cura­
dos. Meu Pai, faço pacto e promessa de obediência até à morte,

49
e morte de cruz. Engrandecerei Tua Lei e a farei digna de toda a
honra. Sofrerei por tudo que deveriam sofrer. Padecerei a
maldição da Lei e toda a Tua ira se descarregará sobre Mim.
Depois ressuscitarei; subirei aos céus e, sentado à Tua destra,
farei intercessão por eles, a fim de que nenhum dos que Me deste
jamais seja perdido. No último dia trarei todo o rebanho do que
Tu, pelo Meu sangue, Me constituíste o Pastor”.
Desta maneira, mais ou menos, se espressariam os con­
tratantes divinos do concerto. Creio que agora já podemos ter
uma idéia bastante clara de como se formou a aliança, e de que
maneira ainda perdura. Apresentei, tão resumidamente quanto
possível, as suas condições. Desejaria que observassem de
modo especial que uma parte do pacto se cumpriu com toda a
exatidão: Deus o Filho já pagou pelas dívidas de todos os Seus
eleitos. Por nós e por nossa redenção sofreu toda a ira divina.
No que se refere a Cristo nada resta a cumprir-se, a não ser que
Ele continue intercedendo pelos remidos até conduzi-los
jubilosamente à glória.
No que concerne ao Pai, Sua parte no pacto se tem
cumprido para com incontáveis multidões. Deus o Pai e Deus o
Espírito Santo não têm retrocedido no cumprimento dos Seus
respectivos contratos divinos. Serão levados a bom termo tão
completa e perfeitamente como o de Cristo. Quanto ao que
havia prometido realizar, Cristo pode agora afirmar: “Está
consumado”; porém o mesmo poderão dizer as outras gloriosas
partes contratantes do pacto. Todos aqueles pelos quais Cristo
morreu receberão a justificação, o perdão e a adoção. O Espírito
Santo os vivificará a todos, lhes outorgará fé e os levará à glória;
de modo que cada um deles, sem estorvo nem impedimento, será
aceito no Amado naquele dia quando serão contados os
redimidos, e Jesus Cristo será glorificado.
3. E agora, havendo visto quais eram as ilustres parte
contratantes do concerto e os seus termos e condições,

50
consideraremos quais foram os seus objetivos. Fez-se esta
aliança para cada homem da raça adâmica? Certamente que não;
com os nossos próprios olhos podemos ver que não foi feita para
todo homem. Contemplo as grandes multidões que perecem e
que expressamente continuam em seus caminhos de perdição;
vejo-as, dia a dia, rejeitando a oferta que por meio do evangelho
se lhes faz de Cristo e as vejo pisando sob os pés o sangue do
Filho do homem. Observo-as desafiando o Espírito Santo que
trata de operar em seus corações; vejo estas multidões que vão
de mal a pior, até que finalmente perecem em seus pecados.
Portanto, não tenho a loucura de crer que tais pessoas tenham
alguma parte na aliança da graça. Os que morrem impenitentes,
os que desprezam ao Salvador, claramente provam que não têm
porção nem parte no sagrado pacto da graça divina, pois não
sendo assim haveria nelas certas notas e evidências que nos
demonstrariam o contrário. Se estivessem incluídas no pacto,
veríamos que em determinado tempo de suas vidas tais pessoas
passariam por uma experiência de arrependimento e chegariam a
ser salvas. O concerto - vamos diretamente ao assunto, não
importa quão ofensiva seja a doutrina - o concerto só se rela­
ciona com os eleitos e com ninguém mais. Você se ofende com
isso? Pois ofenda-se ainda mais. Que disse Cristo? “Rogo por
eles; não rogo pelo mundo, senão pelos que me deste, porque são
teus”. Se Cristo orou pelos Seus escolhidos e por ninguém mais,
por que alguns se enchem de ira quando a Palavra de Deus os
ensina que a provisão do concerto é somente para os eleitos, e
para que eles recebam a vida eterna? Todos quantos crerão,
todos quantos confiarão em Cristo, todos quantos perseverarão
até ao fim, todos quantos encontrarão o descanso eterno, e só
esses e ninguém mais, são os que estão incluídos no pacto da
graça divina.
4. Além disso temos de falar a respeito dos motivos do
concerto. E a primeira pergunta que vem aos nossos lábios é:

51
por que foi feito o concerto? Deus não estava sob compulsão ou
obrigação de nenhum tipo. Quando se estabeleceu o concerto
não existia ainda a criatura para poder de alguma forma
influenciar o Criador. O motivo pelo qual se fez o concerto, não
o podemos encontrar em nenhuma outra parte a não ser em Deus
mesmo, pois naquele instante se podia dizer literalmente a
respeito de Deus: “Eu sou e não há ninguém além de mim”. Por
que, pois, estabeleceu o concerto? A esta pergunta, respondo:
Ele o fez motivado por Sua absoluta soberania. Mas por que
certos homens foram os objetos do mesmo e outros não?
Respondo: a graça soberana guiou a pena que escreveu seus
nomes. Não foi por méritos humanos, nem porque Deus havia
previsto algo em nós que O motivou a escolher uns e deixar
outros a continuarem em seus pecados. Nada havia neles; foi,
sim, a graça e a soberania que juntas produziram a eleição
divina. Se vocês, irmãos e irmãs, têm a sã esperança de
pertencer ao pacto da graça, com razão podem entoar aquele
cântico:

“Que havia em mim que merecesse estima


ou desse ao meu Criador agrado?
Aconteceu assim, ó Pai, preciso cantar
porque assim agradou aos Teus olhos”.

“Ele terá misericórdia de quem tiver misericórdia”, pois


“não é do que quer, nem do que corre, senão de Deus que tem
misericórdia”. Sua soberania elegeu; Sua graça distinguiu; e Sua
imutabilidade decretou. Fora do motivo do Seu amor e da Sua
soberania divina, não houve outra razão que determinasse a
eleição dos indivíduos. Sem a menor dúvida, a grandiosa
intenção de Deus, ao fazer o concerto eterno, não foi outra senão
a da Sua própria glória. Qualquer outro motivo inferior a esse
não corresponderia à Sua dignidade. Deus tem que encontrar

52
Seus motivos em Si mesmo; para Seus propósitos, Ele não tem
que consultar a traças ou a vermes. ELE é o grande “EU SOU” .

“Não Se senta em trono instável,


nem tem de pedir permissão para ser. ”

Ele faz o que quer com os exércitos celestes. Quem pode


resistir Sua mão e perguntar: “Que fazes?” Perguntará o barro
ao oleiro o motivo pelo qual ele o transformou em vaso?
Poderá a coisa antes de ser criada ditar ao Criador? Não, deixem
que Deus seja Deus e que o homem se retraia para seu nada
natural, e se Deus Se compraz em exaltá-lo, que não se orgulhe
pensando que Ele encontrou nele algum motivo. Ele encontra os
Seus motivos em Si mesmo. Deus é auto-suficiente; Ele não
depende de nada fora de Si mesmo. Que o Espírito Santo nos
guie nesta sublime verdade que expus no meu primeiro ponto
sobre o concerto eterno.

II. Mas agora, prosseguindo, devemos notar O


CARÁTER ETERNO DO CONCERTO. Em nosso versículo
ele é chamado eterno. E com esta designação podemos dar-nos
conta imediata da sua antigüidade. De todas as coisas, o pacto
da graça é a mais antiga. Às vezes é motivo de grande gozo para
mim pensar que o pacto da graça é mais antigo que o pacto das
obras. Este último teve um princípio, enquanto o da graça não
teve princípio; e bendito seja o Senhor que o pacto das obras
teve o seu fim, enquanto o da graça permanecerá firme mesmo
depois que céus e terra tenham passado. A antigüidade do pacto
da graça requer uma reconhecida atenção de nossa parte. A
verdade do mesmo eleva a mente. Não posso pensar em
nenhuma outra doutrina mais sublime que esta. Ela se constitui
a verdadeira alma e essência de toda a poesia, e ao recolher-me
para meditar sobre ela, devo confessar que às vezes meu espírito

53
tem sido arrebatado em puro deleite. Pode conceber que antes
de todas as coisas Deus já havia pensado em você? De que antes
que houvesse as montanhas, Ele já havia pensado em você,
pobre e insignificante verme? Antes que as esplêndidas
constelações começassem a brilhar, antes de que o centro do
universo se houvesse fixado, e planetas colossais e mundos
diversos iniciassem a girar, Deus já havia determinado o centro
do Seu pacto e ordenado o número daquelas estrelas,
subordinadas ao pacto, a que girassem em torno daquele bendito
centro e dele recebesse a luz. Certamente, quando alguém pensa
neste universo sem limites e voa (com os astrônomos) por estas
regiões sem fim, habitadas por incontável número de estrelas,
acaso não pareceria realmente maravilhoso que Deus tenha dado
preferência ao pobre e insignificante mortal antes que a todo o
universo? Isto não nos pode tornar orgulhosos, pois se trata de
uma verdade divina, mas deve encher-nos de gozo. Ó crente,
você se considera como o próprio nada, porém Deus tem outro
conceito a seu respeito. Os homens o depreciam, todavia antes
de criar qualquer coisa Deus Se lembrou de você. O pacto de
amor que realizou em seu benefício com Seu Filho é mais antigo
que a época mais remota; e se você retrocedesse até antes que se
iniciasse o tempo e anterior às rochas que agora levam o selo da
antigüidade começassem a sedimentar-se, Ele já o amava, Ele já
o havia escolhido e feito um pacto visando ao seu bem. Lembre-
-se bem destas coisas antigas dos cumes eternos.
Ainda mais: é um concerto eterno em face da sua
firmeza. Nada pode ser eterno se não permanece. O homem
pode erigir suas estruturas e julgar que permanecerão para
sempre, entretanto a torre de Babel foi destruída e as próprias
pirâmides egípcias revelam sinais de ruína. Nada que o homem
faz é eterno, nem possui garantia contra a destruição. Mas com
respeito ao pacto da graça, com razão Davi afirmou: “É firme e
em todas as coisas tem sido ordenado.” Foi

54
“Firmado, selado e ratificado,
e em tudo bem ordenado ”.

Desde o princípio até o final não há nem um “se” nem


um “mas”. Os que creem no livre-arbítrio do homem, detestam
o futuro enfático ou “farei” do Senhor, e preferem em seu lugar
os “se” e os “mas” no pacto da graça; porém não há um “se”
nem um “mas” nele. “Eu farei”, diz o Senhor, e em conse­
quência os eleitos farão. Jeová o promete e o Filho o cumpre.
As promessas do pacto são firmes e verdadeiras. O EU SOU
lhes dá um caráter determinante e inquebrantável. “Havendo-o
dito, não o fará? Ou havendo-o prometido, não o cumprirá?” É
um pacto firme. Certas vezes tenho dito que se um homem,
estando para construir uma ponte ou uma casa, me deixasse
colocar uma pedra ou um ladrilho lá onde quisesse, garanto-
-lhes que sua casa viria a cair. Se o construtor de uma ponte me
permitisse colocar apenas uma pedra, eu escolheria a pedra
principal, e sobre ela ele poderia edificar quanto quisesse, mas
lhes asseguro que logo desabaria. Ora, o pacto defendido pelos
arminianos não pode manter-se de pé, porque alguns dos seus
ladrilhos os faz depender da vontade humana (e deste modo o
ponho da maneira mais suave, já que bem poderia ter dito:
“porque todos os seus ladrilhos os subordina à vontade huma-
na”- e isso estaria mais próximo do alvo!). De acordo com os
arminianos, a salvação depende, em última instância, da vontade
da criatura. Se esta não quer, não há influência nem poder que
consiga modificar essa vontade. Conforme os ensinos
arminianos não há promessa alguma que possa modificar a
vontade humana. De maneira que a questão depende do homem;
e Deus - o poderoso Construtor - mesmo que ponha pedra sobre
pedra e o faça sólido como o universo, em última instância pode
ser derrotado pela criatura. Fora com tal blasfêmia! Toda a

55
estrutura, desde o início até o fim, está nas mãos de Deus. Os
termos e condições do pacto se tornaram os selos e garantia do
mesmo, visto que o Senhor Jesus os cumpriu. E tudo será
cumprido em todos os seus detalhes, quer o homem queira, quer
não. Não é um pacto da criatura, e sim um pacto do Criador.
Não é o pacto do homem, é um pacto do Todo-poderoso, e Ele o
realizará e o levará a termo, apesar da vontade humana. Nisto
consiste a glória da graça, em que o homem rejeita a salvação e é
inimigo de Deus, e apesar de tudo Deus o redime. No pacto
Deus diz: “Será salvo”, enquanto o homem resiste: “Não serei
salvo”; mas o “será” de Deus conquista o “não serei”do homem.
A graça todo-poderosa cavalga vitoriosamente sobre o livre-
arbítrio, e o leva cativo, em glorioso cativeiro, o poder do amor e
da graça irresistível que tudo conquista. E um pacto firme e
portanto merece o título de eterno.
Igualmente, não apenas é firme, também é imutável. Se
não fosse imutável não poderia ser eterno. Tudo que muda é
perecível. Podemos estar seguros de que qualquer coisa que
possa incluir a palavra “mudança”, tarde ou cedo morrerá e será
considerado como algo inútil. Contudo, no pacto todas as coisas
são imutáveis. Tudo que Deus determinou há de acontecer, e
nenhuma palavra, nenhuma linha ou nenhuma frase podem ser
alteradas. O que o Espírito prometeu se realizará, e o que Deus,
o Filho, Se comprometeu a fazer já se cumpriu e se consumará
no dia da Sua volta. Se pudéssemos crer que as sagradas linhas
pudessem chegar a apagar-se, que o pacto pudesse ser anulado,
borrado ou manchado - aí então seria desesperadora a nossa
situação. Tenho ouvido alguns pregadores dizerem que quando
o cristão vive santamente, ele permanece no concerto, mas
quando peca é desligado dele. Ao arrepender-se, novamente se
põe no pacto, porém se volta a cair, outra vez seu nome é
riscado; e assim entra e sai da porta do concerto da mesma
maneira que entra e sai de casa. Entra por uma porta e sai por

56
outra. Nalgumas ocasiões é filho de Deus; noutras é filho do
diabo; às vezes é herdeiro do céu, e noutras é herdeiro do
inferno. Conheço um homem que chegou ao extremo de afirmar
que embora uma pessoa tenha perseverado sessenta anos na
graça, se no último ano da sua vida cair em pecado e morrer, tal
pessoa seria condenada eternamente e toda a fé e todo o amor
demonstrados nos anos anteriores seriam em vão. Apresso-me
em dizer que essa noção que tais pessoas têm de Deus é nada
menos que a noção que possuo a respeito do diabo. Não poderia
crer em tal Deus nem prostrar-me diante dEle. Um Deus que
ama hoje e amanhã odeia; um Deus que faz uma promessa e de
antemão sabe que esta promessa não se cumprirá no homem; um
Deus que perdoa e castiga, que justifica e mais tarde condena, é
um Deus que não posso suportar. Não é o Deus das Escrituras,
disso estou certo, porque Ele é imutável, justo, santo e
verdadeiro. É um Deus que “havendo amado aos seus, os amará
até o fim”. Um Deus que cumprirá e guardará as promessas que
tem dado aos Seus filhos, de modo que qualquer alma que foi
objeto de Sua graça, continuará para sempre nessa graça, até que
um dia, sem falta, entrará na glória.
E para concluir este ponto, devo acrescentar que o con­
certo é eterno porque nunca terminará. Cumprir-se-á, mas
permanecerá firme. Quando Cristo tiver completado tudo e
conduzido cada crente ao céu; quando o Pai tiver reunido a todo
o Seu povo, então verdadeiramente o pacto terá chegado a uma
consumação, porém não a uma conclusão, porque nele está
determinado que os herdeiros da graça para sempre serão bem-
-aventurados, e enquanto durar este “para sempre”, o pacto
demandará a felicidade, a segurança e a glorificação de toda
alma que foi o objeto do mesmo.

III. Havendo, pois, estudado o caráter eterno do


concerto, concluirei fazendo referência ao seu aspecto mais doce

57
e precioso, a relação que existe entre o sangue e o pacto: O
SANGUE DO CONCERTO ETERNO. O sangue de Cristo
mantém quatro relações distintas com o pacto. Com respeito a
Cristo, Seu sangue precioso derramado no Getsêmane e no
Gólgota significa o cumprimento do pacto. Por Seu sangue o
pecado foi apagado; com Sua agonia, a justiça foi satisfeita; com
Sua morte a lei foi honrada. Foi precisamente com Seu sangue
precioso, com toda a sua eficácia mediadora e com todo o seu
poder purificador, que Cristo cumpriu tudo quanto havia Se
comprometido efetuar a favor do Seu povo. Ó crente, contemple
o sangue de Cristo e recorde que essa foi a parte da aliança que
Ele realizou! Nada falta para ser cumprido; Jesus o realizou
totalmente; nada existe que o livre-arbítrio possa contribuir;
Cristo já cumpriu todas as demandas de Deus. As contas da
parte devedora do pacto foram saldadas graças ao sangue de
Cristo, e agora Deus está comprometido, por Sua própria e
solene promessa, a mostrar graça e misericórida a todos aqueles
que Cristo redimiu com o Seu sangue.
Noutro aspecto, o sangue significa, para Deus o Pai, o
compromisso do concerto. Quando vejo Cristo morrendo na
cruz, vejo Deus - cujo essência é verdadeira liberdade - com­
prometido desde então, por Sua própria promessa, a levar a
termo tudo o que fora estipulado. Porventura não nos promete o
pacto um novo coração e um espírito reto dentro de nós? Pois
deve cumprir-se, porquanto Jesus morreu, e Sua morte veio a ser
como o selo do pacto. Acaso não diz também: “Derramarei água
pura sobre eles e serão limpos; de todas as suas iniqüidades os
purificarei”? Então igualmente isto deve cumprir-se, pois Cristo
levou à perfeita consumação Sua parte no concerto. Portanto
agora não podemos falar do pacto como algo duvidoso, visto
que, graças a Cristo, tornou-se nosso próprio direito diante de
Deus. E ao achegar-nos humildemente sobre os nossos joelhos
reivindicando o pacto, nosso Pai celestial não nos negará as

58
promessas contidas nele, porém de cada uma delas fará um
“sim” e um “amém” através do sangue de Jesus Cristo.
A terceira relação que o sangue de Cristo mantém com o
pacto nos aponta como seu objeto. Não é só referente a Cristo o
cumprimento do concerto e com respeito ao Pai um com­
promisso solene, o mesmo constitui, também, uma evidência
com relação a nós. E sobre este particular, amados no Senhor,
permitam-me extravasar o meu afeto para com todos, pois o
tema me faz arder o coração por cada um. Vocês confiam
completamente no sangue de Cristo? O sangue - o precioso
sangue de Cristo - purificou suas consciências? Vocês experi­
mentaram o perdão dos seus pecados mediante o sangue de
Jesus? Gloriam-se em Seu sacrifício e é Sua cruz seu único
refúgio e sua única esperança? Se é assim, então estão no pacto.
Algumas pessoas querem saber se foram eleitas. Mas não
podemos dar-lhes segurança, a menos que nos respondam a estas
perguntas: “Crêem? Está sua fé fundamentada no sangue
precioso?” Se assim é, estão no pacto. E se você, pobre pecador,
não tem nada em que confiar e se mantém distante, dizendo:
“Não me atrevo a vir; tenho medo; não estou no pacto”, ainda
Cristo o convida a chegar-se: “Venha a M/m”, Ele apela. Se não
pode vir ao Pai do pacto, aproxime-se do seu Fiador. “Venha a
Mim e achará descanso.” Uma vez vindo a Ele e recebido o Seu
sangue, então jamais duvide que o seu nome esteja no livro
carmezim da eleição. Pode agora ler seu nome nos caracteres do
sangue de Cristo? Então um dia o lerá nas letras douradas da
eleição do Pai. Aquele que crê é um eleito. O sangue é o
símbolo, o sinal, a garantia, a segurança e o selo do concerto da
graça para você. Ele pode ser considerado um telescópio através
do qual cada um consegue ver as distâncias espirituais. Com seu
olho natural ninguém pode ver sua eleição, mas através do
sangue de Cristo pode enxergá-la com nítida clareza. Ponha sua
confiança no sangue, pobre pecador, e chegará a descobrir que o

59
sangue do pacto eterno constitui uma prova de que você é um
herdeiro do céu.
Finalmente, devemos dizer que o sangue constitui a
glória das três relações já mencionadas. O sangue para o Filho
significa o cumprimento, para o Pai significa uma promessa
solene, e para o pecador é uma evidência; todavia para os três,
Pai, Filho e pecador, o sangue vem a ser a glória comum e a
unfania suprema. Nele o Pai tem contentamento; o Filho, com
gozo, contempla o que foi adquirido com agonias; e nele o
pecador deve sempre encontrar seu consolo e seu cântico eterno
- “Jesus, Teu sangue e Tua justiça para sempre constituirão
minha glória e minha canção”.
E agora, amados ouvintes, para encerrar, tenho uma
pergunta a dirigir-lhes: teriam vocês a esperança de estar no
pacto? Teriam posto sua confiança no sangue? Em vista do que
tenho apresentado nesta manhã, talvez alguns cheguem a pensar
que o horizonte do evangelho é muito restrito; devem notar que
o evangelho é anunciado a todos sem restrição de espécie
alguma. O decreto da eleição é limitado, porém as boas novas
abrangem o mundo todo. A ordem que recebi de Deus é a de
proclamar as boas novas a toda criatura debaixo do céu. A
aplicação eficaz do evangelho está restringida aos eleitos de
Deus, e conseqüentemente pertence à vontade secreta de Deus,
porém não é assim com a mensagem; esta deve ser anunciada a
todas as nações. Vocês têm ouvido o evangelho em muitas
ocasiões da sua vida e conhecem o seu tema central: “Esta é uma
palavra fiel e digna de toda a aceitação, que Cristo Jesus veio ao
mundo, para salvar os pecadores...” Crêem nisso? Que o
Espírito Santo faça que esta seja, mais ou menos, sua confissão:
“Sou um pecador e confio em que Cristo morreu por mim;
ponho minha confiança nos méritos do Seu sangue e, haja o que
houver, minha atitude perante Deus será esta:

60
“Nada em minhas mãos conduzo,
só me apego à Tua cruz”-

Quem ouvir a mensagem da salvação e a receber em seu


coração evidencia ser um dos que estão no concerto. Por que,
então, o espanta a doutrina da eleição? Se alguém escolheu a
Cristo, tenha por certo que Ele antes o escolheu. Se com os
olhos cheios de lágrimas dirige seu olhar a Cristo, então saiba
que Ele, muito antes, já havia contemplado você. Se do seu
coração brotar amor por Cristo, não esqueça que o Seu coração o
ama com um amor que jamais o poderá igualar. Se você agora
está clamando: “Senhor, Tu serás o guia da minha juventude”,
eu lhe contarei um segredo: Ele tem sido o seu guia, levando-o a
que você agora seja um pecador ansioso em buscá-10 e Ele o
dirigirá e o conduzirá às mansões seguras da glória. Talvez você
seja um orgulhoso e altivo arminiano, que diga: “Quando eu
quiser me arrependerei e crerei. Tenho tanto direito como
qualquer outro de ser salvo, pois, afinal de contas, cumpro com
minhas obrigações tão bem como os demais, e sem dúvida
receberei a minha recompensa”. Pois bem, se você é um
daqueles que reclamam uma reconcilição universal, e crê que se
pode receber a salvação por própria opção da vontade humana,
então reclame-a, e você será desapontado em sua reclamação!
Você descobrirá que Deus não terá relacionamento algum com
quem assumir tal posição, mas dirá: “Aparte-se de Mim, porque
não o conheci. O que não vem a Mim através do Filho, não
posso de modo algum aceitá-lo”. Creio que o homem que não
está disposto a submeter-se ao amor eletivo e à graça soberana
de Deus, tem firme razão para duvidar se em verdade é cristão,
porque o espírito que se rebela contra isso é o espírito do diabo,
o espírito daquele que não foi humilhado nem regenerado. Que
o Senhor faça desaparecer a inimizade do seu coração às Suas
sublimes verdades, para que possam aceitá-las e ser

61
reconciliados com Ele pelo sangue do Seu Filho, cujo sangue é o
vínculo e o selo do concerto eterno.

62
3

A NECESSIDADE DA OBRA
DO ESPÍRITO SANTO*

“Eporei dentro de vós o meu Espírito” - Ez. 36:27.

Os milagres de Cristo são notáveis pelo fato de que


nenhum deles foi desnecessário. Os pretensos milagres de
Maomé e os de outras religiões, mesmo se fossem autênticos,
teriam sido evidências de loucura. Imaginemos que São
Dionísio andou com a cabeça na mão depois que essa lhe foi
cortada; que sentido prático haveria nisso? Quanto a fazer
benefício à humanidade, melhor que ficasse no túmulo. Entre­
tanto, os milagres de Cristo nunca foram desnecessários. Não
são monstruosidades de poder; é certo que são manifestações de
poder, mas todos eles tiveram um fim prático, e o mesmo pode
ser afirmado a respeito das promessas de Deus. Não há nem
uma só promessa nas Escrituras que possa ser considerada um
mero desatino. Da mesma maneira que todo milagre foi
necessário, absolutamente necessário, assim ocorre com cada
promessa da Palavra de Deus. Por conseguinte, do versículo que
temos lido, deduzirei o argumento - e creio de modo
convincente - de que se Deus, no pacto feito com Seu povo,

* D om ingo de manhã, 8 de maio de 1859.

63
prometeu pôr Seu Espírito dentre dele, então deve ser
absolutamente necessário para nossa salvação que cada um de
nós receba o Espírito de Deus. Isso constituirá o tema para a
meditação desta manhã. Não espero torná-lo interessante, a não
ser para aqueles que ansiosamente buscam o caminho da
salvação.
Começaremos, então estabelecendo a proposição de que
a obra do Espírito Santo é absolutamente necessária para que
possamos ser salvos.

I. Tratando de provar isso, inicialmente farei notar qu


tal necessidade se manifesta claramente quando RECORDA­
MOS O QUE O HOMEM É POR NATUREZA. Algumas
pessoas dizem que o homem, por si mesmo, pode alcançar a
salvação; que ao ouvir o evangelho, está em seu poder recebê-
-lo e por ele experimentar uma mudança salvadora. A isso
replicamos: tais pessoas não sabem o que o homem é por
natureza; doutro modo não se aventurariam a fazer tais
declarações. As Escrituras Sagradas afirmam que por natureza o
homem está morto em delitos e pecados. Não nos diz que está
doente, fraco ou que se tenha tornado duro e insensível, mas
assevera que o homem está completamente morto. Tudo o que a
palavra “morto” significa com referência ao corpo, o mesmo
indica, do ponto de vista espiritual, com respeito à alma humana.
Quando o corpo está morto, não tem poder; de si mesmo é
incapaz de fazer algo; quando a alma humana está morta, no
sentido espiritual, essa alma - se é que a comparação tem algum
significado - está completamente desprovida de poder, e incapaz
de fazer algo por si mesma ou para si mesma. Quando
presenciarem os mortos ressuscitarem-se de suas tumbas,
quando as virem soltando seus sudários, abrindo as tampas de
seus ataúdes, e andando por nossas ruas vivendo e respirando - e
tudo isso como resultado de seu prórpio poder - então talvez

64
possam crer que as almas que estão mortas em pecados podem
voltar para Deus, transformar sua natureza, e tornar-se elas
mesmas herdeiras do céu, embora antes fossem herdeiras do
inferno. Contudo, não antes disso!
O teor do evangelho gira em torno do fato de que o
homem está morto em seus pecados, e que a vida eterna é um
dom de Deus, e se colocaria contra a totalidade deste teor básico
do evangelho quem defendesse que o homem pode conhecer e
amar a Cristo sem a atuação do Espírito Santo. O Espírito Santo
encontra os homens tão desprovidos de vida espiritual, como
aqueles ossos secos na visão de Ezequiel; o Espírito tem de
juntar cada osso com seu osso, até reconstituir o esqueleto, e
depois, vindo dos quatro cantos, precisa soprar sobre esses ossos
mortos a fim de que recebam vida. A não ser pelo Espírito de
Deus, as almas dos homens teriam de permanecer no vale de
ossos secos, mortas, e mortas para sempre.
Mas as Escrituras não dizem apenas que o homem está
morto em pecado; afirmam algo pior que isso: que ele, por
natureza, é absoluta e totalmente contrário a tudo que seja bom e
reto. “Portanto a intenção da carne é inimizade contra Deus,
pois não é sujeita à lei de Deus, nem em verdade o pode ser”
Rom. 8:7. Folheemos as páginas da Bíblia e continuamente é
repetido que a vontade do homem é contrária às coisas de Deus.
Que disse Cristo naquele texto tão freqüentemente citado pelos
arminianos para negar a doutrina que tão claramente afirma?
Que disse Ele aos que imaginavam ser possível ao homem vir a
Ele sem a influência divina? Primeiramente afirmou: “Ninguém
pode vir a mim, se o Pai que me enviou não o trouxer”.
Entretanto, disse algo ainda mais enfático: “E não quereis vir a
mim para terdes vida”. O homem não quer vir. Aqui se
encontra a coisa fatal; não é apenas que o homem se encontra
sem forças para fazer o bem, e sim que é suficientemente
poderoso para fazer o mal, de modo que a sua vontade está

65
perversamente disposta a ir contra tudo que é reto. Vá,
arminiano, e diga a seus ouvintes que eles podem vir a Cristo, se
assim o desejam, mas saiba que o seu Redentor o observa face a
face e lhe diz que você está proferindo uma mentira! Os homens
não querem vir. Nunca virão por si mesmos. Ninguém pode
induzi-los a vir, nem mesmo forçá-los a vir com todas as suas
ameaças, nem seduzi-los com todos os seus convites. Eles não
querem vir a Cristo para terem vida. Até que o Espírito os traga,
não quererão vir, nem poderão vir.
E é pelo fato de que a natureza humana é hostil ao
Espírito de Deus, que o homem odeia a graça, despreza a
maneira pela qual se oferece esta graça, e é contrário à sua
natureza orgulhosa o humilhar-se para receber a salvação pelos
méritos de outro. Daí, pois, surge a necessidade de que o
Espírito opere diretamente no homem para mudar a sua vontade,
corrigir as inclinações do seu coração, e depois de colocá-lo no
caminho certo, dar-lhe forças para andar nele. Oh, se todos
estudassem o homem e chegassem a compreendê-lo, não
poderiam deixar de ser zelosos nesta doutrina da necessidade da
obra do Espírito Santo! Com razão um grande escritor observou
que jamais conheceu um homem que sustentasse algum erro
teológico, que ao mesmo tempo não mantivesse alguma doutrina
que atenuasse a depravação humana. O arminiano diz que é
verdade que o ser humano está espiritualmente caído, todavia
acrescenta que ele ainda possui o poder da vontade e essa
vontade é livre; ele pode levantar-se. Atenua-se dessa forma o
caráter desesperador da queda do homem. Por outro lado, o
antinomiano afirma que o homem não é responsável, pois nada
pode fazer; por conseguinte não está obrigado a fazer nada. Não
é sua obrigação crer, nem é sua obrigação arrepender-se. Vemos
aqui que ele também atenua a condição pecaminosa do homem e
lhe faltam idéias corretas a respeito da Queda. Entretanto, uma
vez mantida a posição verdadeira, ou seja, a de que o ser

66
humano não só está completamente caído, perdido e condenado,
e sim também de que é culpado e por si mesmo impotente, então
necessariamente você adotará a posição doutrinária correta em
todos os demais pontos do grande evangelho do Senhor Jesus.
Desde que se creia o que as Escrituras ensinam sobre o homem -
posto que se aceite que o seu coração é depravado, seus afetos
corrompidos, seu entendimento obscurecido e sua vontade
pervertida, então você terá de sustentar que, se uma pessoa assim
tão miserável há de ser salva, essa salvação deverá ser efetuada
pelo Espírito de Deus, e por Ele somente.

II. A seguir vou apresentar-lhes outra prova. A salvação


tem de ser a obra do Espírito Santo em nós, porque, OS MEIOS
USADOS NA SALVAÇÃO POR SI MESMOS SÃO
INSUFICIENTES PARA REALIZÁ-LA. Quais são os meios
da salvação? Em primeiro lugar, e de maneira destacadíssima,
está a pregação da Palavra de Deus. Mais almas têm sido leva­
das a Cristo através da pregação do que por qualquer outra meio,
pois ela é o instrumento principal de Deus. A pregação é a
espada do Espírito, viva e eficaz, a ponto de dividir alma e
espírito, juntas e medulas. O testemunho das Escrituras é que
“aprouve a Deus salvar aos que crêem pela loucura da prega­
ção” . Mas, o que existe na pregação que a torna o meio eficaz
da salvação de almas? Eu lhes poderia indicar diversas igrejas e
capelas, nas quais poderiam entrar e dizer: “Eis aqui um pastor
com conhecimentos verdadeiramente profundos, homem capaz
de instruir e iluminar o intelecto”. Sentam-se nos bancos e
dizem: “Bem, se Deus tenciona realizar uma grande obra,
utilizará um homem tão instruído como este”. Por acaso, per­
gunto, vocês conhecem homens instruídos que de maneira
marcante têm sido feitos instrumentos para levar almas a Cristo?
Dêem uma volta pelas igrejas; observem-nas e depois
respondam à pergunta. Vocês conhecem homens famosos - em

67
erudição e sabedoria - que chegaram a ser guias espirituais em
nosso Israel? Não seria verdade que salta à vista que os nossos
pregadores modernos, tão eloqüentes e instruídos, são justa­
mente os homens mais inúteis da criação quando se trata de
ganhar almas para Cristo? Onde se convertem mais almas? Ora,
no lugar em torno do qual se descobre a mofa, a zombaria e o
desdém do mundo. Os pecadores são convertidos pela pregação
daquele cuja eloqüência é rude e simples, e sem acréscimos de
vanglória; daquele que precisa cair de joelhos para confessar sua
torpeza, e quando o mundo fala mal dele, sente como se na
verdade o merece, porquanto nada mais é que um vaso de barro,
dentro do qual Deus se compraz em pôr o Seu tesouro. Atrevo-
me a acrescentar que, através dos séculos, os pastores mais
depreciados têm sido os mais úteis; mesmo no presente
poderíamos encontrar pobres pregadores metodistas primitivos,
que mal podem falar uma linguagem correta, e que têm sido os
pais de mais almas e têm trazido mais troféus a Cristo do que
qualquer bispo em sua cátedra. É porque Deus Se agradou de
dar poder ao bronco e ao débil, mas nunca àqueles que, ao
conseguir algo, o pudessem atribuir à excelência do poder de sua
sabedoria ou de sua eloqüência. À semelhança do apóstolo
Paulo, a obrigação de todo pastor é gloriar-se em suas fraquezas.
O mundo exclama: “Fora com sua eloqüência! É áspera, rude e
excêntrica”. Sim, é precisamente assim, porém estamos
contentes, porque o Senhor a abençoa. É muito melhor que haja
imperfeições nela, pois desse modo se verá claramente que a
obra da conversão não é do homem nem pelo homem, e sim que
é a ação de Deus, e de Deus somente. Conta-se que uma vez um
homem, extremamente curioso, desejou ver a espada com a qual
um famoso guerreiro havia enfrentado batalhas arriscadas;
lançando um olhar ao longo da folha, disse: “Bem, nada vejo de
extraordinário nesta espada”. “Não”, respondeu o guerreiro,
“mas você não observou o braço daquele que a maneja”. Da

68
mesma maneira, quando se escuta um pastor que Deus tem
abençoado, algumas pessoas são propensas a dizer: “Não vejo
nada nele”. Não, é certo, porém vocês não consideraram o
braço eterno que efetua a colheita com a espada do Espírito. Se
tivessem visto a queixada de jumento nas mãos de Sansão,
teriam dito: “Que coisa! Tão grande número de vencidos com
isso? Impossível! Tragam uma faca afiada, preparem o aço de
Damasco!” Não; pois a Deus pertence toda a glória, portanto
não com arma afiada, e sim com a simples queixada Sansão há
de alcançar a vitória. Assim acontece com os ministros;
comumente Deus abençoa os mais frágeis para realizar o maior
benefício. Daí não se deduziria, então, que tem de ser a obra do
Espírito? Porque, se não há nada no instrumento mesmo para
obtê-lo, não seria a atuação do Espírito quando o fato se realiza?
Permitam-me fazer a seguinte colocação. Sob o ministério da
pregação, as almas mortas recebem vida, pecadores se arrepen­
dem, os piores são feitos santos, e os que vêm com o propósito
de rejeitar, são obrigados a crer. Agora, pergunto: quem opera
tudo isso? Se alguém diz que é o pastor quem o faz, então terei
que recusar totalmente essa opinião, porque nada há no ministro
que Deus tem abençoado que indique tal coisa. Tem de ser o
Espírito atuando no homem através do ministério da pregação,
doutra maneira tais resultados nunca poderiam ocorrer. Haveria
mais esperanças de ressuscitar os mortos sussurrando-lhes aos
ouvidos, do que salvar as almas através da pregação - a não ser
pela agência do Espírito. Consta que em certa ocasião
Melancthon, sem o Espírito de Deus, pôs-se a pregar confiante
em converter às pessoas; mas, finalmente compreendeu que o
velho Adão era demasiado forte para o jovem Melancthon, e
teve de retirar-se e suplicar a ajuda do Espírito Santo, pois, sem
Ele, nem uma alma seria salva. Afirmo, portanto, que o fato de
que a pregação do evangelho é abençoada, prova que é a atuação
de um poder sobrenatural, posto que nada há no pregador.

69
Outros meios, contudo, além da pregação, são usados
para abençoar as almas dos homens. Vejam, por exemplo, as
ordenanças do Batismo e da Ceia do Senhor. Ambas constituem
ricos meios de graça. Mas permitam-me interrogar: existe algo
no mero batismo que possa abençoar a alguém ou possuir a mais
leve semente de bênção para a alma? E com respeito ao pão e ao
vinho que se tomam na Ceia do Senhor, pode-se de algum modo
conceber que haja algo de extraordinário neles? No entanto, não
há dúvida de que a graça de Deus acompanha ambas as
ordenanças para confirmar a fé dos que as recebem, e inclusive,
nalguns casos, para a conversão dos que presenciam a
celebração. Então, deve haver algo que ultrapasse o externo da
celebração; deve haver, realmente, o Espírito de Deus dando
testemunho através da água, testificando mediante o pão e o
vinho; doutro modo, nenhuma destas coisas poderia chegar a ser
meio de graça para as nossas almas. Não poderia edificar, nem
ajudar-nos para a comunhão com Cristo; não poderiam
promover convicção de pecado nos pecadores, nem firmar os
santos. Deve haver, portanto, à luz de todos esses fatos, uma
influência misteriosa, invisível e do alto, a influência do Espírito
de Deus.

III. Recordarei, em terceiro lugar, que a absoluta


necessidade da obra do Espírito Santo se patenteia uma vez mais
ao considerarmos que TUDO O QUE DEUS O PAI FAZ E
DEUS O FILHO EFETUA NÃO TEM VALOR PARA NÓS
A MENOS QUE O ESPÍRITO SANTO NOS REVELE
ESTAS COISAS EM NOSSAS ALMAS. Cremos, inicial­
mente, que Deus o Pai elegeu o Seu povo; desde antes da
fundação do mundo o escolheu para Si mesmo. Mas, que
significado tem esta doutrina para qualquer homem até que o
Espírito faça morada nele? Como posso chegar a saber, efetiva­
mente, se Deus me escolheu antes da fundação do mundo?

70
Como me é possível sabê-lo? Posso, acaso, escalar os céus e ler
a lista dos eleitos? É possível para mim abrir caminho através
das espessas névoas que escondem a eternidade e abrir os sete
selos do livro e ler ali o meu nome? Ah, não! A eleição é uma
carta muda para minha consciência até que o Espírito me chame
das trevas à luz maravilhosa. Então, através de minha chamada,
me convenço da minha eleição, e sabendo que fui chamado por
Deus, me asseguro de que também fui escolhido por Deus desde
antes da fundação do mundo. Para um filho de Deus, esta
doutrina da eleição é preciosa. No entanto que é que a torna
preciosa? Nada, a não ser a influência do Espírito. Até que o
Espírito nos abra os olhos para ler e nos comunique o místico
segredo, nenhum coração pode certificar-se da sua eleição.
Jamais algum anjo poderia revelar ao homem os arcanos da
eleição; é o Espírito quem o revela. Ele, através das Suas
operações divinas, dá testemunho ao nosso espírito de que
somos nascidos de cima; e então nos habilita a ler com clareza o
título a nós outorgado para ocupar as mansões das alturas.
Considere novamente o concerto da graça. Sabemos que
antes da criação foi feito um pacto entre o Pai e o Filho, e nessa
transação todos os eleitos foram dados ao Filho, ao Senhor Jesus
Cristo; mas, de que nos serve ou aproveita o mencionado pacto
enquanto o Espírito não nos outorgue os seus benefícios? O
pacto se assemelha a uma árvore sublime carregada de frutos; se
o Espírito não a sacode para cairem os frutos no local em que
estamos, de que modo poderiam beneficiar-nos? Aproximem-se
de um pecador e digam-lhe que há uma aliança da graça; que
proveito ele alcançaria disso? “Ah! - diria - talvez eu não esteja
incluído nela; talvez meu nome não apareça nela ou eu não tenha
sido eleito em Cristo.” Mas deixem que o Espírito penetre em
seu coração pela fé e pelo amor que está em Cristo Jesus, e esse
homem verá a aliança, firme e ordenado em todas as coisas, e,

71
como Davi, ele exclamará: “És toda a minha a salvação e todo o
meu desejo”.
Notemos outra vez a redenção operada por Cristo.
Sabemos que Ele tomou o lugar do Seu povo, e que todos os que
um dia aparecerão no céu, estarão ali como resultado de um ato
da justiça e da graça, pois seria um ato de injustiça da parte de
Deus castigar os eleitos, já que Cristo sofreu o castigo que eles
mereciam, quando morreu na cruz no lugar deles. Cremos que
por haver Cristo pago todas as suas dívidas, eles têm direito à
sua liberdade em Cristo, e que, também, por haverem sido
revestidos com a justiça de Cristo, têm tanto direito à vida eterna
como se houvessem sido sempre santos. Todavia, de que me
aproveita isso até que o Espírito tome as coisas de Cristo e as
manifeste a mim? Que valor possui o sangue de Cristo para
qualquer mortal, enquanto não tiver recebido o Espírito da
graça? Mais de mil vezes vocês ouviram pregar sobre o sangue
de Cristo, mas permaneceram no mesmo; não tinha significado
algum para vocês o fato de que Cristo morreu. Vocês sabiam
que Ele estava expiando pecados que não eram dEle; mas
consideravam tudo como um conto, talvez como uma historieta
inútil. Entretanto, quando o Espírito de Deus os levou à cruz e
lhes abriu os olhos a fim de que pudessem contemplar a Cristo
crucificado, então, por certo, havia algo no sangue! Quando o
Espírito molhou o hissopo no sangue e aplicou esse sangue aos
seus espíritos, então seus corações se encheram de gozo e paz ao
crerem, algo que nunca antes haviam experimentado. O Espírito
Santo precisa habitar em cada coração, doutro modo a morte de
Cristo nada significa para vocês.
Cristo não lhe traz nenhum benefício salvador, pessoal e
duradouro, a não ser que o Espírito de Deus o tenha batizado na
fonte cheia do sangue do Salvador e o tenha lavado nela da
cabeça aos pés.

72
Simplesmente menciono estas poucas bênçãos, entre as
muitas, da aliança eterna. Das muitas bênçãos da aliança eu
menciono apenas essas, para provar que de nenhuma delas
podemos tirar proveito se o Espírito Santo não as derramar sobre
nós. Aí estão penduradas no prego todas as bênçãos - no prego
Cristo Jesus; todavia, nós somos baixos de estatura e não
podemos alcançá-las. O Espírito de Deus as apanha e no-las
outorga; assim se tornam nossas. São como o maná celestial,
longe do nosso alcance; porém o Espírito de Deus abre as janelas
do céu, abaixa o pão, o coloca nos nossos lábios e nos capacita a
comer. O sangue è a justiça de Cristo são como vinho guardado
na adega, mas não podemos penetrar aí. O Espírito Santo
mergulha a nossa vasilha nesse vinho precioso, e então bebemos.
Entretanto, sem o Espírito morreremos e pereceremos como se o
Pai nunca nos tivesse eleito e como se o Filho nunca nos tivesse
comprado com o Seu sangue. O Espírito é absolutamente
indispensável. Sem Ele, nem as obras do Pai, nem as do Filho,
nos valeriam coisa alguma.

IV. Isso nos conduz à outra consideração. A EXPE­


RIÊNCIA DO CRISTÃO VERDADEIRO É UMA
REALIDADE; MAS NUNCA PODE SER CONHECIDA
OU SENTIDA SEM O ESPÍRITO SANTO. Qual é a
experiência do cristão? Apresentarei uma simples descrição de
algumas das suas facetas. Suponhamos que se encontra entre
nós nesta manhã um dos homens de melhor reputação de
Londres. Nunca se entregou ao vício nem jamais foi desonesto;
seu conceito é de um comerciante de perfeita integridade. Para
seu grande assombro, é informado que é um pecador perdido e
condenado, de igual modo ao ladrão que morreu na cruz por seus
crimes. Vocês acham que este homem o crerá? Suponhamos,
então, que ele creia pelo simples fato de lê-lo na Bíblia. Pensam
que chegará a senti-lo? Eu sei que dirão: “Impossível!” Alguém

73
talvez agora mesmo esteja dizendo: “Bem, se esse fosse o meu
caso, jamais o sentiria”. Podem imaginar aquele honesto e
íntegro comerciante clamando: “Ó Deus, seja propício a mim,
pecador”? Podem imaginá-lo ajoelhado junto com a prostituta e
o blasfemo, sentindo em seu próprio coração que é tão culpado
quanto eles, de modo que deve recorrer à mesma súplica:
“Senhor, salve-me, ou pereço”? Não podem concebê-lo, não é
mesmo? É contrário à nossa natureza imaginar que um homem
tão respeitável como ao que nos referimos tenha de considerar-se
a si mesmo com o pior dos pecadores. Entretanto, precisa ser
assim antes que ele possa alcançar a salvação! É imprescindível
que tenha essa experiência antes de poder entrar no céu. Agora
pergunto: quem pode conduzi-lo a tal experiência, a não ser o
Espírito de Deus? Eu sei perfeitamente bem; nossa natureza
orgulhosa não se submeterá a tal plano. Todos somos
aristocratas em nossa própria justiça; não nos agrada inclinar-nos
e descer ao nível dos pecadores comuns. E se o fazemos, é
porque o Espírito nos quebranta até ao pó. Por minha própria
experiência sei que se antes da minha conversão alguém me
dissesse que um dia eu suplicaria a Deus por misericórdia,
confessando ao mesmo tempo ser o pior dos piores, teria rido
abertamente na sua face; teria respondido: “Como pode ser isso?
Não pratiquei nada particularmente mau; nunca fiz mal a
ninguém”. Mas mesmo agora sei que posso ocupar o nível mais
baixo, e ao entrar no céu me sentirei ditoso em poder sentar-me
entre os piores pecadores e louvar aquele amor todo-poderoso
que me salvou da minha condição de perdido.
Como se opera essa humilhação no íntimo? Através da
graça. Contraria nossa própria maneira de ser que um homem
honesto e íntegro, na opinião do mundo, possa chegar a
experimentar sua condição de pecador perdido. Há de ser, na
verdade, a obra do Espírito Santo; doutro modo isso jamais
ocorreria. Pois bem, depois de um pecador ser conduzido a essa

74
condição, vocês poderiam imaginá-lo sentindo remorsos de
consciência e crendo que sua conduta passada merece a ira de
Deus? Sua primeira reação será: “De agora em diante viverei
melhor do que tenho vivido”. E acrescentará: “A partir deste
momento me esforçarei para imitar o ermitão; torturarei o meu
corpo, farei penitência e me negarei a mim mesmo; agindo
assim, observando as cerimônias externas da religião, junto com
um caráter moral elevado, certamente poderei apagar qualquer
falha e mancha do passado”. Podemos conceber que alguém que
pensa dessa maneira possa crer que o único modo de entrar no
céu é através da justiça de outro? “Através da justiça de outro?”
dirá, “eu não quero ser recompensado por aquilo que outro
homem fez; não, eu não. Se hei de ir ao céu, será pelo meu
próprio risco e graças ao que eu faça. Digam-me o que tenho de
fazer e o farei! Sentir-me-ei orgulhoso em fazê-lo, por mais
humilhante que seja, contanto que com isso possa ganhar o amor
e a estima de Deus!” Ora, vocês podem conceber que tal homem
chegue jamais a experimentar no íntimo da sua alma que nada
pode fazer para merecer o amor e o favor de Deus, e que se ele
pretende ir ao céu, então deve ser unicamente mediante o que
Cristo fez? Do mesmo modo que o viciado entra lá pelos
méritos de Cristo, da mesma forma é que esse homem tão moral
terá de entrar, nada tendo por cobertura, a não ser a perfeita
justiça de Cristo. E afirmamos que isso é tão contrário à
natureza humana, tão diametralmente oposto a todos os instintos
da nossa humanidade caída, que nada, a não ser o Espírito de
Deus, pode despojar-nos de toda a justiça própria e de todo
esforço humano, compelindo-nos a descansar simples e
totalmente em Jesus Cristo, o Salvador.
Essas duas experiências que descrevemos seriam sufici­
entes para demonstrar que a atuação do Espírito Santo é
essencial para tomar uma pessoa numa cristã; porém descreverei
agora essa pessoa após a conversão. Vêm as dificuldades como

75
se fossem tempestades, mas ela as enfrenta, dizendo: “Eu sei que
todas as coisas contribuem para o meu bem”. Morrem os filhos;
a companheira da vida é levada à sepultura, todavia ele diz: “O
Senhor deu, o Senhor tomou; bendito seja o nome do Senhor”.
A fazenda declina, a colheita se perde, as perspectivas do
negócio são sombrias; tudo parece acabar-se e inclusive ele
mesmo é deixado em pobreza, porém ele exclama: “Ainda que a
figueira não floresça e na vinha não haja frutos; o produto da
oliveira minta e os campos não produzam mantimento; as
ovelhas sejam arrebatadas do aprisco e no curral não haja gado,
eu me alegrarei no Senhor e exultarei no Deus da minha
salvação”. Mais tarde vocês o verão no leito, enfermo, mas
ainda assim ele diz: “Foi-me bom ter sido afligido, porque
andava errado; mas agora guardo a tua Palavra”. Quando por
fim se aproxima o obscuro desenlace, o ouvirão exclamar:
“Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei
mal algum; porque tu estarás comigo”. Agora pergunto: o que é
que faz esse homem demonstrar tal serenidade espiritual em
meio a todas estas provas e dificuldades pessoais, a não ser o
bendito Espírito Santo? Ó vocês que duvidam da influência do
Espírito, tentem produzir sem Ele coisa semelhante; tentem viver
e morrer como os cristãos, se forem capazes de mostrar a mesma
calma resignação, o mesmo gozo sereno, a mesma firme
confiança de que as coisas adversas, sem dúvida redundarão para
o seu bem, então talvez nos encontremos numa posição que nos
faça abandonar nossa afirmação - contudo só quando fizerem
isso. As elevadas e nobres experiências de um cristão em
período de prova e aflição demonstram que são a obra do
Espírito Santo.
Mas considerem também o cristão no meio da prosperi­
dade. É rico. Deus lhe tem concedido tudo o que seu coração
desejava na terra. Observem o que ele diz: “Em nada valorizo
estas coisas, exceto como dons de Deus; não estou apegado a

76
elas; e apesar desta casa e de todas estas comodidades, estou
pronto a deixá-las e estar com Cristo, que é incomparavelmente
melhor. Na verdade nada me falta na terra, no entanto creio que
o morrer para mim seria lucro, mesmo que tivesse de deixar
todas estas coisas”. Debilmente se liga às coisas da terra; não as
sustém com firmeza, mas as considera como pó, como algo que
passará. Pouco prazer encontra nelas, por isso pode afirmar:

“Não tenho aqui cidade permanente;


aquela que busco, não pode ser vista aqui”.

Observem esse homem. Tem ampla liberdade para


lançar-se aos prazeres mundanos, porém ele bebe de uma fonte
mais elevada. Suas alegrias brotam de mananciais invisíveis;
seus momentos mais felizes se constituem daqueles em que,
isolado das coisas apetecíveis deste mundo, ele se aproxima de
Deus como pobre e culpado pecador, e através de Cristo pode
entrar em comunhão com Ele e achegar-se confiadamente ao
trono da graça celestial. Considerem: que impede a tal cristão -
gozando de todas essas bênçãos - de colocar o coração nas
coisas deste mundo? É maravilhoso, na verdade, que um
homem que possua ouro, prata, rebanhos e gado, não faça deles
o seu deus, antes, pelo contrário, testifique:

“Nada existe nos âmbitos desta terra espaçosa


para satisfazer meu grande desejo;
O gozo sem fronteiras e a alegria pura
é de meus pensamentos nobres a aspiração contínua ”

As coisas da terra não constituem meu tesouro; meu


tesouro está no céu, e no céu somente. A que se deve toda esta
serenidade espiritual e aspiração nobre? Não a uma simples
virtude moral. Nenhuma doutrina estóica produzirá algo

77
semelhante. Não. Tem que ser a atuação do Espírito, e dEle
somente, o que pode levar um homem a viver no céu, não
obstante a tentação de viver na terra. Não me admira que um
homem pobre suspire pelo céu, pois não possui nada na terra.
Quando existe espinho no ninho, não admira que a ave busque as
alturas, pois não há descanso para ela lá embaixo. Quando
alguém se sente ferido e vencido pelas dificuldades, não é de
admirar que exclame:

“Jerusalém, meu lar feliz,


Teu nome é sempre doce para mim!
O quando no final do meu penar,
poderei em gozo epaz em ti habitar?”

Mas a grande maravilha é que, embora seja bem macio o


ninho do cristão e esteja beneficiado com o melhor desta vida,
ninguém o impedirá de afirmar:

“A Jesus, a coroa de minha esperança,


minh ’alma anseia ansiosamente voar,
O, leva-me, querubim, lá para cima
e conduze-me até o Seu próprio trono! ”

V. Agora, finalmente, direi que as ações, AS BOA


AÇÕES DA VIDA CRISTÃ NÃO PODEM REALIZAR-SE
SEM O ESPÍRITO; daí mais uma vez a necessidade do
Espírito de Deus. O primeiro ato na vida do cristão é o arre­
pendimento. Vocês tentaram alguma vez se arrependerem?
Caso afirmativo, então sabem que instar com alguém que se
arrependa sem contar com a promessa do Espírito para ajudá-
-lo, é exigir o impossível. Mais facilmente poderia uma rocha
chorar ou um deserto florescer, do que um pecador arrepender-se
pela própria iniciativa. Se Deus oferecesse o céu à criatura

78
humana, simplesmente na base que ela se arrependesse do
pecado, o céu seria tão impossível de conseguir como o é pelas
boas obras, uma vez que o homem, por si mesmo, não é capaz de
arrepender-se nem de cumprir perfeitamente a Lei de Deus, pois
o arrependimento inclui nada menos que o mesmo princípio de
perfeita obediência à lei divina. Inclino-me a crer que no
arrependimento se encontra basicamente toda a lei, embora de
maneira condensada, e se o homem por si mesmo pode
arrepender-se, então não há necessidade de um Salvador; ele
poderia entrar no céu escalando as íngremes encostas do Sinai.
Ao arrependimento segue a fé. Talvez pensem que a fé
seja algo simples; mas se a alguém fosse dado experimentar a
carga do pecado, então não consideraria a fé como algo fácil.
Alguém estando no lodo profundo, onde não existe nada sólido,
não lhe seria fácil pôr os pés sobre uma rocha, sobretudo quando
parece que não há nenhuma rocha aí. Acredito que a fé seja uma
das coisas mais fáceis do mundo quando não há nada para ser
crido, porém quando surge uma oportunidade para usar minha
fé, então descubro que não tenho poder suficiente para exercitá-
-la. Enquanto falava com um camponês, ele usou esta figura:
“No meio do inverno algumas vezes penso que bem poderia
ceifar; e no princípio da primavera penso: como gostaria de
colher! Sinto que estou pronto para fazê-lo; no entanto, quando
o tempo da colheita vem, e a época de colher se aproxima, me
acho como não tendo energias para fazê-lo”. Assim é quando
não há dificuldades. Não as poderiam colher todas de uma vez?
Quando não têm trabalhos a realizar, não seriam capazes de
efetuá-los? Mas quando surgem as dificuldades e há trabalho a
realizar, vocês descobrem quão difícil é fazê-lo. Muitos cristãos
são como aquele veado que, falando consigo mesmo, dizia: “Por
que tenho de fugir dos cachorros? Com um par de chifres
afiados e patas tão ágeis como possuo, poderia causar dano a
esses atrevidos. Por que não permaneço firme aqui e lhes ensino

79
o que posso fazer com meus chifres? Por numerosos que sejam,
sou capaz de mantê-los à distância”. Entretanto, no instante em
que os cães ladraram, o veado saiu em disparada. Algo
semelhante ocorre conosco. “Que se levante o pecado”,
dizemos, “e logo o arrancaremos e o destruiremos; que cheguem
as dificuldades e prontamente as superaremos.” Todavia,
quando o pecado e as dificuldades vêm, reconhecemos a nossa
fraqueza. Temos então de recorrer à ajuda do Espírito,
porquanto sem Ele nada podemos fazer. Por outro lado,
auxiliados por Ele, tudo nos é possível.
Em todas as ações da vida do cristão, quer no ato de
consagrar-se a Cristo, seja na oração diária, na submissão
constante, na proclamação do evangelho, na ajuda aos necessi­
tados ou ao confortar os deprimidos, em todas estas coisas o
cristão descobre suas fraquezas e sua falta de poder, a não ser
que seja revestido do Espírito de Deus. Indo visitar a enfermos
com o desejo de confortá-los, muitas vezes senti que não me saía
dos lábios nenhuma palavra que valesse a pena ser ouvida. Eu
me senti numa grande agonia. Ansiava confortar o pobre e
desconsolado irmão doente, porém nada podia fazer; saía da casa
quase desejando que nunca tivesse ido visitar uma pessoa
enferma em toda a minha vida. De tal maneira me convenci da
minha própria insuficiência. Algo semelhante ocorre ao prega­
dor. Prepara um sermão, estuda-o, e ao pregá-lo faz dele uma
confusão terrível. E então exclama: “Oxalá nunca tivesse
pregado!” Tudo isso é para demonstrar que nem no pregar, nem
no confortar, alguém pode fazer bem, a menos que o Espírito
opere em nós tanto o querer como o efetuar, conforme a Sua
vontade. Além disso, tudo o que fazemos sem o Espírito é
inaceitável a Deus; e qualquer coisa que realizemos sob a Sua
influência, mesmo que a depreciemos, não será depreciada por
Deus, pois Ele jamais deprecia Sua própria obra, e o Espírito não
pode contemplar o que Ele realiza em nós de outra maneira

80
senão com complacência e deleite. Se o Espírito me ajuda a
gemer, então Deus tem que aceitar aquele que geme. Se você
pudesse fazer a melhor oração possível, mas sem o Espírito,
Deus a rejeitaria; todavia se sua oração fosse pobre, entrecortada
e débil, originada no Espírito, Deus a contemplaria como fez
com as obras da criação e diria: “É muito boa”, e a aceitaria.
E agora concluirei fazendo a pergunta: querido ouvinte,
você possui o Espírito de Deus? Você tem alguma forma de
religião, atrevo-me a afirmar. Mas, que tipo? E uma religião
feita por você mesmo? O que você é, deve a si mesmo? Então,
se é assim, mesmo neste momento é um homem perdido. Se não
tem ido além do que andou por si mesmo, está longe do caminho
que conduz ao céu; seu rosto está voltado para um caminho
errado. Contudo, se recebeu algo que nem carne nem sangue
puderam revelar, se tem sido conduzido àquilo a que antes
aborrecia e a amar aquilo que outrora depreciava, e a depreciar
aquilo no qual seu coração e orgulho se apegavam, então, amigo,
isso é atuação do Espírito e portanto, regozije-se, pois onde o
Espírito começa uma boa obra Ele a aperfeiçoará até ao fim. E
pode certificar-se quando a obra é do Espírito pelo seguinte: tem
sido levado a Cristo e a renunciar o seu próprio eu? Já
desprendeu-se de toda a emoção, obra, desejo e oração que
constituiam o fundamento de sua confiança e esperança? Já foi
impulsionado a confiar na suficiente obra de Cristo? Se
aconteceu assim, você aprendeu algo que a natureza humana
jamais pode ensinar; é algo demasiadamente alto para ser
escalado pela força humana. E a atuação do Espírito de Deus, e
Ele nunca abondona aquilo que uma vez iniciou; você irá de
força em força e um dia estará entre aquela multidão lavada no
sangue, e finalmente completo em Cristo e aceito no Amado.
Mas se você não possui o Espírito não é dEle. Que o Espírito o
conduza agora ao seu quarto, para chorar, para arrepender-se,
para contemplar a Cristo, e que possa receber agora a vida

81
divina, a qual nem o tempo nem a eternidade poderão destruir.
Que o Senhor nosso Deus escute esta súplica e nos despeça com
a Sua bênção, em nome de Jesus. Amém.

82
4

PREDESTINAÇÃO E CHAMADA*

“E aos que predestinou, a estes também chamou ”


- Rom. 8:30.

O grande livro dos decretos de Deus está firmemente


fechado para a curiosidade humana. O néscio gostaria de ser
sábio; gostaria de abrir os seus sete selos e desvendar os misté­
rios da eternidade. Mas isso é impossível. Não chegou ainda o
tempo para o livro ser aberto, e mesmo quando chegar, os selos
não serão desatados por mão mortal, porém será dito: “Aqui está
o leão da tribo de Judá, a raiz de Davi, que venceu para abrir o
livro e desatar os seus sete selos”.

“Quem esquadrinhará, ó Pai Eterno,


os arcanos de Tua vontade secreta?
Ninguém senão o Cordeiro tomará o livro dos decretos,
e seus selos, bem atados, até o último abrirá. ”

Ele, e só Ele, desenrolará o sagrado registro para lê-lo a


todas as pessoas do mundo. Como, então, poderei saber se fui
predestinado por Deus para a vida eterna ou não? Esta pergunta
se relaciona com os meus interesses eternos. Acaso estou entre

* D om ingo de manhã, 6 de março de 1859.

83
o desgraçado número de pessoas que será deixado a viver em
pecado e deste modo colher o fruto da sua iniqüidade? Ou
pertenço à numerosa companhia de homens e mulheres que, não
obstante haver pecado, serão lavados no sangue de Cristo e com
vestes brancas andarão um dia nas ruas douradas do paraíso?
Até que estas perguntas me sejam respondidas, meu coração não
poderá descansar, porquanto elas são a causa de uma ansiedade
intensa. Meu destino eterno me preocupa infinitamente mais do
que os assuntos desta vida. Digam-me, se o sabem, profetas e
advinhos: meu nome está escrito no Livro da Vida? Sou um
daqueles ordenados para a vida eterna? Ou serei deixado a
seguir minhas próprias inclinações e paixões e desse modo
destruir minha própria alma? Ó homem, há uma resposta à sua
pergunta. O livro não pode ser aberto, mas Deus publicou
muitas de suas páginas. Não divulgou a página na qual os
nomes dos redimidos estão escritos; porém a página do decreto
sagrado onde é descrito o caráter dos eleitos está inserida em
Sua Palavra e ser-lhe-á proclamada hoje. Quem tem ouvidos
ouça o que o Espírito diz. Amado ouvinte: não o conheço pelo
seu nome, nem a Palavra de Deus o distingue nominalmente,
mas através do seu caráter pode ler o seu nome; se está
participando do chamado que é mencionado neste texto, então
pode concluir, sem sombra de dúvida, que está entre os
predestinados: “Aos que predestinou, a estes também chamou”.
E se tem sido chamado, segue-se como inferência natural que
também foi predestinado.
Entretanto, ao considerar este tão solene tema, permitam-
-me frisar que na Palavra de Deus são mencionadas duas classes
de chamado. Fala-se, primeiramente, de um chamado geral, que
sinceramaente se dá no evangelho a todos os que o ouvem. O
servo de Deus tem a obrigação de convidar a todas as almas, sem
distinção alguma, a aceitar a Cristo: “Ide por todo o mundo e
pregai o evangelho a toda a criatura” (Mar. 16:15). A trombeta

84
do evangelho soa fortemente nos ouvidos de cada pessoa de
nossas congregações: “Ó vós todos que tendes sêde, vinde às
águas; e os que não tendes dinheiro, vinde, comprai e comei.
Vinde, comprai, sem dinheiro e sem preço, vinho e leite”
(Is.55:1); “A vós outros, ó homens, clamo; e a minha voz se
dirige aos filhos dos homens” (Prov. 8:4). Este chamado é
sincero da parte de Deus; mas o homem por natureza é tão
contrário a Deus, que o apelo nunca resulta eficaz, pois
despreza-o, dá-lhe as costas e prossegue seu caminho sem
preocupar-se com ele. Todavia lembrem-se que embora o
chamado seja rejeitado, o homem não tem nenhuma desculpa
para fazê-lo; o chamado universal tem em si tal autoridade, que a
criatura humana que não o atende não terá escusa no dia do
juizo. Quando alguém é ordenado a arrepender-se e crer,
quando é exortado a fugir da ira vindoura, se ele menosprezar a
exortação e rejeitar o mandamento, terá que sofrer as
conseqüências disso. Aparece na Epístola aos Hebreus um
solene aviso: “Como escaparemos nós se rejeitarmos uma tão
grande salvação?” Mas repito: este chamado universal é
desprezado pelo homem; é um chamado, porém não vem
acompanhado com a força e a energia do Espírito Santo para
torná-lo um chamado invencível; e em conseqüência, as almas
perecem, mesmo depois do chamado universal do evangelho ter
soado em seus ouvidos. Os sinos da casa do Senhor soam cada
dia; os pecadores os ouvem, porém pondo os dedos nos ouvidos
continuam seu caminho, uns para seus campos, outros para seus
negócios. Embora sejam convidados para a festa (Luc. 14:16-
18), não querem vir, e não vindo, se tornam sujeitos à ira de
Deus, que afirma a respeito deles: “Nenhum daqueles homens
que foram chamados, provará do meu banquete” (Luc. 14:24).
O chamado de nosso texto é de natureza distinta; não é um
chamado universal, e sim especial, particular, pessoal,
diferenciador, eficaz e invencível. Este chamado é dirigido aos

85
predestinados, e a eles somente; eles pela graça ouvem o
chamado, o obedecem e o recebem. São aqueles que agora
podem dizer: “Leva-nos após Ti e correremos”.
Nesta ocasião, ao pregar sobre este chamado, dividirei o
sermão em três breves partes: primeiramente darei ilustrações
deste chamado', a seguir, passaremos a examinar se realmente
fomos chamados', por último, meditaremos nas gratas
conseqüências do chamado. Ilustração, exame, consolação.

I. ILUSTRAÇÕES DESTE CHAMADO. Para


ilustrar a chamada eficaz da graça estendida aos predestinados,
devo mencionar, inicialmente, o caso de Lázaro. Podem ver
aquela pedra posta à boca do túmulo? É absolutamente neces­
sário que feche bem o sepulcro, pois dentro dele está um corpo
já em estado de decomposição. A irmã do morto está junto ao
sepulcro e diz: “Senhor, já cheira mal, porque já é de quatro
dias”. Tal objeção é natural; Marta tem razão. No entanto, ao
lado de Marta observamos um homem que, apesar de sua
aparência humilde, é o próprio Deus. Ele ordena: “Tirem a
pedra,” e é obedecido; agora clama: “Lázaro, venha para fora!”.
A ordem é dirigida a uma massa de podridão, a um corpo já
morto há quatro dias, e sobre o qual os vermes já haviam cele­
brado um banquete. Todavia, por estranho que pareça, daquela
tumba sai um homem vivo; aquela massa de podridão fora
vivificada de novo, e “aquele que estivera morto saiu, tendo os
pés e as mãos ligados com ataduras, e o rosto envolto num
lenço”. “Desatai-o e deixai-o ir”, acrescenta o Redentor; e
quando isso é feito, vemos Lázaro andando com a liberdade
peculiar da vida.
A chamada eficaz da graça é precisamente algo seme­
lhante. O pecador está morto em pecado; não apenas está em
pecado, mas também está morto em pecado, sem poder algum
para obter por si mesmo a vida da graça. Ainda mais, não

86
apenas está morto, está também corrompido; suas más inclina­
ções o tornam asqueroso como vermes, fazendo com que um
detestável mal cheiro alcance os átrios da justiça. Deus o detesta
e a justiça clama: “Sepultem-no fora da minha vista! Lancem-no
ao fogo, deixem que se consuma!” A graça e a misericórdia
soberanas se achegam a essa massa inconsciente de pecado, e
clamam, quer seja através de um pregador ou diretamente, sem
agente humano, pelo Espírito de Deus: “Venha!” E aquele
homem vive. Acaso ele contribuiu com algo para sua nova
vida? Certamente que não; a vida lhe foi dada exclusivamente
por Deus. Ele estava morto, absolutamente morto, putrefato em
seu pecado; veio-lhe a vida ao receber o chamado e, em
obediência a esse apêlo, o pecador saiu da tumba de perdição e
começou a desfrutar a nova vida, aquela vida eterna que Cristo
concede a Suas ovelhas.
“Mas”, perguntará alguém, “que palavras usa Jesus para
chamar um pecador da morte?” O Senhor pode usar qualquer
palavra. Não faz muito que veio a este local um homem que
vivia sem Deus e sem Cristo, e a simples leitura do hino “Jesus,
amante de minha alma” foi o meio usado para dar-lhe vida. Ele
considerou consigo mesmo: “Jesus me ama? Então eu devo
amá-lO!”, e naquele mesmo instante recebeu a vida espiritual.
As palavras de Cristo são distintas em diferentes casos. Espero
que enquanto estou pregando nesta manhã, Ele esteja falando
através de mim, e que alguma palavra que saia dos meus lábios,
improvisada e sem intenção, possa ser enviada por Deus a algum
coração morto e perdido, como mensagem de vida, a fim de que
alguém que até agora tenha andado em pecado, passe a viver
para Cristo e em justiça. Este é o primeiro exemplo que
apresento para dar-lhes a entender o que seja o chamado eficaz.
Tal chamado vivifica o pecador, morto em suas transgressões, e
o habilita a obedecer à ordem de Deus.

87
Pois bem, consideremos agora uma segunda fase do
mesmo. Podem observar o fato de que, embora morto em seus
pecados, o pecador possui bastante capacidade para opor-se a
tudo que concerne a Deus. Não tem forças para obedecer, porém
é suficientemente poderoso para resistir ao chamado da graça
divina. Isto pode ser ilustrado com o exemplo de Saulo de
Tarso: este orgulhoso fariseu detestava o Senhor Jesus Cristo;
prendeu todo seguidor de Jesus que lhe caiu nas mãos, e arrastou
homens e mulheres para a prisão; com a mesma ambição com
que o avarento persegue o ouro, Saulo perseguiu a vida dos
discípulos de Jesus, e por não poder fazer mais presos em
Jerusalém, conseguiu cartas do sumo sacerdote a fim de
continuar sua sangrenta missão em Damasco. Encontrem-no na
estrada! Enviem o apóstolo Pedro para que lhe diga: “Saulo, por
que se opõe a Cristo? Chegará o dia em que se tornará seu
discípulo”. Saulo se voltaria para ele e com riso desdenhoso lhe
responderia: “Retire-se, pescador! Vá embora! Eu, discípulo
daquele impostor, Jesus de Nazaré! Olhe, esta é a minha
confissão de fé: arrastarei seus irmãos e irmãs para a prisão, os
castigarei por todas as sinagogas e os forçarei a blasfemar.
Assim os perseguirei até à morte, porquanto meu alento é como
ameaças e morte contra eles, e meu coração é como fogo de
encontro a Cristo”. Tal cena não ocorreu, porém poderia ter
acontecido, pois não há dúvida que esta teria sido a resposta de
Saulo. No entanto, Cristo determinou chamar tal homem. Que
empresa mais arriscada! Quem pode deter Saulo - este homem
indomável que se lançara a uma carreira insensata? Mas acon­
teceu que, aproximando-se de Damasco, subitamente o cercou
um resplendor de luz do céu, e caindo em terra ouviu uma voz
que lhe dizia: “Saulo, Saulo, por que me persegues? Dura coisa
te é recalcitrar contra os aguilhões”. Saulo, com os olhos cheios
de lágrimas e mais tarde cobertos de escamas, pergunta: “Quem
és, Senhor?” E do alto a voz responde: “Sou Jesus, a quem
persegues”. Não transcorreram muitos minutos sem que ele
reconhecesse o pecado de haver perseguido a Cristo e não
passaram muitas horas para alcançar a certeza de haver sido
perdoado. Dias mais tarde, o ex-perseguidor se levanta a pregar
com eloqüência veemente a mesma causa que havia pisoteado.
Vejam, portanto, o que a chamada eficaz consegue realizar. Se
neste momento, através da pregação do evangelho, Deus
decretasse chamar o homem de coração mais duro e miserável,
tal homem não poderia fazer outra coisa senão obedecer.
Quando Deus chama, o homem pode resistir, porém não pode
resistir vitoriosamente. O pecador cairá por terra, se Deus o
chama; nada há que possa sustentá-lo quando Deus decreta que
ele caia. E observem: todo homem que foi salvo, o foi graças a
um chamado poderoso a que ele não pôde resistir. Embora o
resistisse por algum tempo, ainda assim não conseguiu superá-
-lo. Ele tem que ceder; tem que render-se quando Deus fala. Se
Deus ordena: “Haja luz”, as trevas mais impenetráveis dão lugar
à luz. Se determina: “Que haja graça”, o pior pecado cede e o
coração do pecador mais endurecido se derrete ante o fogo da
chamada eficaz.
Dessa maneira, portanto, ilustrei a chamada eficaz em
dois aspectos: pela condição do homem em seu pecado e pelo
poderio que vence à resistência que o homem possa oferecer. E
agora outro caso. A soberania da chamada eficaz pode ser
ilustrada na história de Zaqueu. Cristo entra em Jericó para
pregar. Nessa cidade morava um publicano, homem avarento,
extremamente ambicioso, e que com avidez e rapina oprimia às
pessoas. Cristo tinha vindo para chamar alguém, pois estava
determinado que teria de pousar em uma casa. Vocês podiam
imaginar que a pessoa a quem Cristo Se propôs chamar seria o
pior homem da cidade, Zaqueu, o opressor? Ele revelou grande
curiosidade para ver a Jesus, mas não podia por causa da
multidão, sendo ele de pequena estatura; de modo que subiu

89
numa figueira, e achando-se seguro no meio da espessa folha­
gem, se pôs a esperar com grande expectativa àquele homem
maravilhoso que havia transtornado o mundo. Ele pouco
imaginava que chegaria a lhe “transtornar” também. Enquanto
falava e pregava às pessoas, o Salvador Se aproximou daquela
árvore e, levantando a vista, o viu e lhe disse: “Zaqueu, desce
depressa, porque hoje me convém pousar em tua casa”. Então
ele desceu rapidamente, hospedou ao Salvador em seu lar, e
demonstrando que havia sido chamado, não apenas de palavra
mas pela graça salvadora, declarou: “Senhor, eis que dou a
metade de meus bens aos pobres; e se em alguma coisa defraudei
a alguém, pagarei quadruplicado”. E Jesus declarou: “Hoje veio
a salvação a esta casa”. Agora interroguemos: por que Jesus
chamou Zaqueul Simplesmente porque o chamado de Deus se
estende a pecadores indignos. Nada existe no homem que o faça
merecedor desta chamada - nem mesmo no melhor dos homens.
Deus tem misericórdia de quem quer ter misericórdia, e o Seu
chamado humilha e quebranta mesmo os piores dos pecadores.
Eles não podem fazer outra coisa senão cair da árvore do seu
pecado e prostrar-se penitentes aos pés do Senhor Jesus.
E agora, para ilustrar os efeitos deste chamado, eu
desejaria recordar-lhes que em Abraão temos outro exemplo
notável da chamada eficaz. “E Jeová disse a Abraão: “Sai da tua
terra e da tua parentela, e da casa de teu pai, e vai à terra que te
mostrarei”. E, “pela fé, Abraão, sendo chamado, obedeceu para
ir ao lugar que havia de receber por herança; e saiu sem saber
para onde ia.” Ah, pobre Abraão, como diria o mundo! Que
tribulações não lhe causou este chamado! Ele era suficiente­
mente feliz no seio do lar paterno, porém quando a idolatria
marcou aquele lar, Deus chamou unicamente a Abraão, dizendo:
“Deixa a tua terra, Abraão”, e ele abandonou Ur dos Caldeus,
ignorando para onde se dirigia. Quando a chamada eficaz separa
um homem, ele se verá obrigado a sair fora do arraial e levar o

90
vitupério de Cristo. Deve abandonar seus amigos mais íntimos e
deixar os antigos conhecidos; precisa abandonar aqueles amigos
entre os quais costumava beber e blasfemar, e com os quais se
deleitava nos prazeres. Precisa separar-se de todos eles para
seguir ao Cordeiro onde quer que Ele vá. Que prova para a fé de
Abraão ter que abandonar tudo aquilo que lhe era tão querido e
sair sem saber para onde ia! No entanto, Deus tinha para ele
uma terra próspera e estava disposto a abençoá-lo em grande
medida. Ó homem, se você foi chamado, se realmente recebeu a
chamda, sairá e marchará sozinho. Talvez alguns dos que se
intitulam seguidores de Deus o abandonem e você tenha de sair
sem nenhum amigo; talvez a própria esposa o repila e você
chegue a ser um estrangeiro em terra estranha, um solitário
peregrino à semelhança dos seus antepassados. Ora, se na
verdade existe uma chamda eficaz, e a sua salvação é o resultato
dela, então que importa que tenha de ir ao céu sozinho? Melhor
ser um peregrino solitário a caminho da glória, que um dos
milhares que se apertam no caminho para o inferno.
Acrescento ainda outra ilustração. Quando a chamada
eficaz é dirigida a alguém, talvez a princípio ele não saiba que se
trata de uma chamada eficaz. Lembrem o caso de Samuel, que
ao receber o chamado do Senhor, se levantou e se dirigiu a Eli,
dizendo: “Eis-me aqui; para que me chamaste?” Eli respondeu:
“Não te chamei; volta a deitar-te”. E ele voltou e se deitou. Pela
segunda vez o Senhor tomou a chamar: “Samuel, Samuel”.
Novamente se levantou Samuel e se dirigiu a Eli, dizendo: “Eis-
-me. Para que me chamaste?” E então foi Eli, e não Samuel, que
compreendeu primeiro que o Senhor havia chamado o menino.
E quando Samuel o soube, respondeu: “Fala, Senhor, porque teu
servo ouve”. Quando uma obra da graça se inicia nalgum
coração, nem sempre se vê claramente que é a atuação de Deus.
Por intermédio de um pregador alguém pode haver recebido uma
forte impressão, e pode estar mais preocupado com esta

91
impressão do que com o seu autor, e desse modo pode refletir:
“Não sei como, mas fui chamado; Eli, o pregador, me chamou”.
E talvez se dirija a Eli a fim de perguntar-lhe o que deseja.
“Estou certo,” diz, “que o pregador me conhece, pois se dirigiu
diretamente a mim como se conhecesse a minha vida”. E vai ao
encontro de Eli, e somente mais tarde, talvez, é que conclui que
Eli nada tinha a ver com aquela impressão, porém que havia sido
o Senhor quem o chamara. Citando meu próprio caso, eu diria
que o Senhor operava em meu coração por alguns anos, antes
que eu o reconhecesse. Estava ciente de que algo ocorria no
meu íntimo, e que orava e chorava, e suspirava por misericórdia;
mas não entendia de que tudo isso era operação do Senhor.
Inclusive cheguei a julgar que era minha própria ação. Mais
tarde, porém, ao conhecer a Cristo como meu único Salvador,
convenci-me de que o Senhor me havia chamado muito antes,
pois que todas essas experiências não eram fruto da minha
própria natureza, e sim o resultado de uma obra da graça.
Creio que posso garantir aos principiantes na vida cristã
que, desde que o seu chamado seja verdadeiro, podem descansar
seguros de que também é divino. Se é um chamado que se
ajusta às características que apontarei na segunda parte do
sermão, mesmo que julguem que a mão de Deus não está nele,
descansem seguros, pois é de origem divina; nossa natureza não
é capaz de produzir uma chamada eficaz. Se se trata de um
chamado pelo qual alguém foi libertado do pecado e conduzido a
Cristo, foi livre da morte e transplantado para a vida, resgatado
do jugo da servidão e posto em liberdade, então ainda que não
possa perceber a mão de Deus nele, não duvide: Sua destra
originou este chamado.

II. Até aqui tenho ilustrado a chamada eficaz. Agora


proponho que nos EXAMINEMOS A NÓS MESMOS à luz de
algumas características do chamado celestial que vou mencionar

92
a seguir. Se abrirem a Bíblia em 2 Tim. 1:9, encontrarão: “Que
nos salvou e chamou com uma santa vocação”. Aqui
encontramos, portanto, a primeira prova pela qual podemos
examinar nosso chamado - muitos são os chamados, mas poucos
os escolhidos - e isso porque há várias classes de chamado;
porém o chamado verdadeiro, e somente ele, corresponde à
descrição deste texto. É um “chamado santo, não conforme às
nossas obras, mas segundo o seu propósito e graça, a qual nos é
dada em Cristo Jesus antes dos tempos dos séculos”. Este
chamado elimina toda confiança em nossas obras, e nos leva a
confiar unicamente em Cristo para nossa salvação. Além disso,
nos purifica de nossas obras mortas para que possamos servir ao
Deus vivo e verdadeiro. Se alguém anda em pecado, então não
foi chamado; se continua vivendo da mesma maneira que antes
da sua pretendida conversão, então não se trata de conversão
real; o bêbado que receber o chamado, abandonará o vício.
Vivendo na prática do pecado os homens podem receber o
chamado, mas depois de recebê-lo já não continuarão mais no
pecado. Saul foi ungido rei enquanto estava buscando as
jumentas do pai, e muitos foram chamados enquanto buscavam
satisfazer seu próprio desejo, porém abandonaram as jumentas e
os desejos logo que foram chamados. À luz desses fatos cada
um pode saber se realmente foi chamado por Deus ou não. Se
continua em pecado, se anda conforme este mundo e de acordo
com o espírito que opera nos filhos da desobediência, então
ainda está morto em seus delitos e pecados. “Como é santo
aquele que vos chamou, sede vós também santos.” Acaso você
pode dizer: “Senhor, sabes todas as coisas, sabes que desejo
guardar todos os Teus mandamentos e andar santamente diante
de Ti”? Sei que minha obediência não pode salvar, no entanto
anseio obedecer-Te. Nada há que me doa tanto como o pecar;
por isso desejo abandoná-lo e ver-me livre dele. Ajuda-me,
Senhor, a ser santo. Este seria o clamor do seu coração? Seria

93
esta a atitude da sua vida perante Deus e a Sua Palavra? Então,
amado ouvinte, tenho motivos para crer que você foi chamado
por Deus, pois é um chamado santo aquele com o qual Deus
chama o Seu povo.
Outro versículo. Em Fil. 3:13-14 lemos estas palavras:
“Esquecendo-me das coisas que atrás ficam, e avançando para as
que estão diante de mim, prossigo para o alvo, pelo prêmio da
soberana vocação de Deus em Cristo Jesus”. Seria, na verdade,
o seu chamado um chamado soberano? Já ergueu o seu coração
e o pôs em coisas celestiais? Elevou suas esperanças, de modo
que não espera coisas terrenas, mas as celestiais? Elevou seus
gostos de modo que não são mais gostos baixos, fazendo com
que agora você prefere as coisas que são de Deus? Levantou
seus desejos ao ponto de que já não suspira pelas coisas terrenas,
e sim pelas que são invisíveis e eternas? Elevou o nível da sua
vida, de modo que agora emprega a vida em oração a Deus, em
louvor e gratidão, e já não o satisfazem os ideais baixos e pobres
que adotava nos dias de sua ignorância? Recorde-se, no caso de
ter sido realmente chamado, que seu chamado é um chamado
soberano, que veio do alto, eleva o seu coração e o levanta para
as coisas de Deus, da eternidade, do céu e da santidade.
Em Hebreus 3:1 lemos estas palavras: “Irmãos santos,
participantes da vocação celestial”. Aqui achamos outra prova.
Um chamado celestial significa algo que veio do céu. Foi
chamado por Deus? Ou chamado pelo homem? Pode agora
descobrir em seu chamado a mão de Deus e a voz de Deus? Se
foi apenas o homem quem o chamou, então você não recebeu o
verdadeiro chamado. Seu chamado veio de Deus? E um
chamado que o encaminha ao céu, do mesmo modo que veio do
céu? Pode dizer de todo o coração que nunca descansará
satisfeito até q u e .. .

94
“Chegue a contemplar Seu rosto,
e por fim, já livre do pecado,
das eternas águas da Sua graça
possa beber o prazer infindável”?

Ó homem, a menos que você seja um estrangeiro nesta


terra e que o seu lar esteja no céu, você não foi chamado com
uma vocação celestial, pois aqueles que o têm recebido
manifestam que buscam “uma cidade com fundamento, da qual
o artífice e construtor é Deus”, e se consideram como estrangei­
ros e peregrinos na terra.
Desejo lembrar-lhes um versículo das Escrituras que
pode contribuir muito para sua edificação e também ajudá-los
neste exame pessoal. Aqueles que foram chamados são homens
que, antes de sua chamada, gemiam no pecado. Que diz Cristo?
“Eu não vim chamar os justos, mas sim, os pecadores ao
arrependimento.” E porque se refere a mim, embora eu seja
incapaz de mencionar as profundidades de minha condição
pecadora, com plena convicção posso afirmar que me sinto
pecador, que aborreço minha condição pecaminosa, que detesto
minha iniqüidade e que por causa das minhas transgressões
mereço a ira divina. Sendo este o meu caso, tenho esperança de
encontrar-me entre a multidão daqueles que Deus chamou e
predestinou. Ele não veio para chamar justos, e sim pecadores
ao arrependimento. Assim sendo, posso dizer sem demora ao
que confia na justiça própria, que ele não possui evidência
alguma de haver sido eleito. Eu lhe digo - não! Cristo nunca
chama os justos, e se você não foi chamado, isso confirma que
não faz parte do número dos eleitos e portanto você e sua justiça
própria devem ser sujeitos à ira de Deus e à perdição eterna.
Somente o pecador a quem Deus tem despertado de sua
condição pecaminosa pode estar seguro de que foi chamado, e

95
mesmo ele, à medida que cresce na graça, deve buscar os selos
distintivos do chamado santo e celestial em Cristo Jesus.
Como outro teste - restringindo-nos estreitamente às
Escrituras, porque quando se trata do estado de cada um de nós
diante de Deus, nada há tão revelador quanto a Sua santa Palavra
- recordarei que na Primeira Epístola de Pedro, capítulo 2 e
versículo 9 nos é dito que Deus nos chamou das trevas para a
Sua maravilhosa luz. Foi este o seu chamado? Você andava nas
trevas, em relação a Cristo, quando a luz maravilhosa lhe
manifestou um Redentor admirável e poderoso para salvá-lo?
Responda, alma, pode sinceramente dizer que sua vida passada
era tenebrosa, porém seu estado presente é luz no Senhor?
“Noutro tempo éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor; andai
como filhos da luz.” O homem que não vê trevas, ignorância e
pecado em sua vida anterior, e que agora não pode dizer que
sabe mais do que sabia, e que não goza de vez em quando da luz
do conhecimento e do resplendor de Deus, tal homem, afirmo,
não foi chamado.
Ainda mais. Encontramos outro texto sobre o chamado
no versículo 13 do capítulo 5 de Gálatas: “Porque vós, irmãos,
fostes chamados à liberdade”. À luz deste texto, devo interrogar
novamente: foram quebradas as cadeias do meu pecado e sou,
graças ao Senhor, um homem livre? Foram soltas as algemas da
justiça e eu posto em liberdade por Aquele que é o grande
resgatador de almas? O escravo não foi chamado. É o homem
livre, o qual foi retirado do Egito, que apresenta evidências de
ter recebido o chamado divino e ser agora precioso ao coração
do Altíssimo.
Um outro precioso texto para examinar nosso chamado
se encontra em I Coríntios 1:9, onde lemos: “Fiel é Deus, pelo
qual fostes chamados para a comunhão de seu Filho Jesus Cristo
nosso Senhor”. Estaria eu experimentando comunhão com
Cristo? Acaso comunico-me com Ele? Sofro com Ele e para

96
Elel Identifico-me com Ele em Seus objetivos e propósitos?
Amo o que Ele ama e aborreço o que Ele aborrece? Posso levar
Seu vitupério e carregar a cruz? Ando em Seus passos e sirvo à
Sua causa? E minha maior esperança a de que um dia verei o
Seu reino e me sentarei em Seu trono para reinar com Ele? Se
assim é, então fui alcançado pela chamada eficaz, que é uma
obra da graça de Deus, e um sinal seguro da minha
predestinação.
Antes de terminar este ponto, permitam-me que lhes diga
que é possível ao homem saber se Deus o chamou ou não, e que
pode sabê-lo sem nunhuma dúvida. Pode sabê-lo tão certamente
como se o lesse com os seus próprios olhos; ainda mais do que
isso, pois, se eu ler uma coisa com os meus olhos eles podem
enganar-me, e o testemunho dos sentidos às vezes pode ser falso;
entretanto, o testemunho do Espírito é verdadeiro. Possuimos o
testemunho do Espírito dentro de nós, testificando com o nosso
espírito que somos nascidos de Deus. É possível chegar a ter
uma certeza infalível da nossa salvação. Tal convicção ungiria a
cabaça do crente com óleo novo e o vestiria com vestes de
louvor, e, além disso, poria cânticos angelicais na sua boca.
Feliz, bem feliz o homem que desfruta da plena certeza de sua
participação no pacto da graça, do sangue reconciliador e das
glórias celestes! Neste dia e neste lugar poderemos encontrar
pessoas com tal certeza de participação, às quais digo:
“Regozijai-vos sempre no Senhor, e outra vez digo: regozijai-
-vos”.
Oh, quanto alguns de vocês dariam para obter esta
certeza! Certifiquem-se de que se ansiosamente o desejam
alcancar, podem alcançá-la. Se os seus corações anseiam ler
claramente o título de eleitos, logo poderão fazê-lo. Nunca
ocorreu o caso de um homem desejoso de ter Cristo em seu
coração, com um desejo vivo e ardente, que não chegasse, cedo
ou tarde, a encontrá-10. Se você possui o desejo, é porque Deus

97
lho deu. Se você anseia, chora e clama por Cristo, ainda isso é
dom provindo dEle. Louvado seja Seu nome. Por pequena que
seja a medida da graça que tenha recebido, louve-0 por ela e
rogue que lhe seja concedida graça maior. Ele lhe concedeu
esperança, peça-Lhe fé; e quando lhe der fé, peça-Lhe certeza; e
quando alcançar certeza, peça-Lhe certeza completa; e quando
receber certeza completa, peça-Lhe gozo; e quando obtiver gozo,
peça-Lhe glória, e no Seu aprazado tempo certamente tudo lhe
será concedido.

III. Concluirei agora descrevendo a CONSOLAÇÃO


que flui deste chamado. Oh, sim, torrentes de consolo fluem do
chamado que tenho recebido! Primeiramente, afirmo que se fui
chamado, fui também predestinado, e disso não há dúvida. O
grande esquema de salvação se assemelha àquelas correntes que
vemos nos ancoradouros. De um lado do rio há uma corrente
presa a uma argola e se estende à outra argola da margem oposta
do rio, porém a maior parte da corrente está debaixo dágua e não
pode ser vista; somente se vê à medida que o barco avança e a
corrente é levantada pela força que move a embarcação. Se
posso dizer que fui chamado, então sou como essa embarcação
no meio do rio. Posso ver a parte que está presa à argola do
chamado, mas - bendito seja o Senhor! - que está unida também
com a argola da margem oposta a qual se chama eleição, e sei
que a última parte igualmente está ligada à da glorificação final.
De meu chamado, necessariamente se infere a minha eleição, e
não posso duvidar disso. Deus nunca engana ninguém
chamando-o com Sua graça eficaz, como se tivesse escrito seu
nome no Livro da Vida do Cordeiro. Oh, quão preciosa é a
doutrina da eleição quando alguém pode ver-se eleito! Uma das
razões pelas quais muitos se rebelam contra esta doutrina é
porque temem que não sejam eleitos. Não conheco nenhum
homem que tenha boas razões para considerar-se salvo pela

98
graça de Deus e que ao mesmo tempo se oponha à doutrina da
eleição. Alguns a depreciam da mesma maneira que os ladrões
odeiam as fechaduras de segurança; por não conseguirem levar o
tesouro, odeiam aquele que o protege. A eleição guarda os
preciosos tesouros do pacto para os filhos de Deus, para os
penitentes - os pecadores que buscam a salvação. Mas aqueles
que não se arrependem nem crêem, nem andam pelos caminhos
de Deus, continuamente murmuram e se rebelam contra Deus
por lhes haver vedado os tesouros da Sua graça. Quando o
homem chega a crer que o tesouro lhe pertence, ah, então,
quanto mais sólido for o cadeado e mais segura a fechadura,
melhor. Quão doce é crer que nossos nomes estavam no coração
do Senhor e gravados nas mãos de Jesus muito antes que o
mundo existisse! Não seria este motivo suficiente para fazer-nos
transbordar de gozo e encher-nos de alegria?

“Escolhidos de Deus antes que iniciasse o tempo. ”

Venham, pois, os caluniadores! Digam tanto mal quanto


queiram! Venha o mundo com todos os seus dardos! Desçam as
catadupas de prova e cubram-nos as avalanches de aflição, se
assim foi determinado! Que importa tudo isso, se Deus
inscreveu nossos nomes no Livro da Vida? Firme como a rocha
permanecerei ainda que a própria terra cambaleie e os elementos
se desfaçam. Que consolo, então, ser chamado, pois o chamado
revela a minha predestinação. Maravilhemo-nos, pois, da graça
soberana que nos alcançou, e recordemos as palavras do
apóstolo: “...vede, irmãos, a vossa vocação, que não são muitos
sábios segundo a carne, nem muitos os poderosos, nem muitos
os nobres que são chamados; mas Deus escolheu as coisas
loucas deste mundo, para confundir as sábias; e Deus escolheu
as coisas fracas deste mundo para confundir as fortes. E Deus
escolheu as coisas vis deste mundo e as desprezíveis, e as que

99
não são, para aniquilar as que são, para que nenhuma carne se
glorie perante ele. Mas vós sois dele, em Jesus Cristo, o qual
para nós foi feito por Deus sabedoria, e justificação, e
santificação e redenção; para que, como está escrito: aquele que
se gloria, glorie-se no Senhor”.
Uma segunda consolação que pode extrair-se desta
doutrina do chamado é que, se uma pessoa foi chamada, certa­
mente será salva. Para provar isso citarei as próprias palavras
das Escrituras: “Porque os dons e a vocação de Deus são sem
arrependimento” (Rom. 11:29). O Senhor jamais Se arrepende
do que dá, nem de ter feito o chamado. E isso é comprovado por
outra passagem da mesma Epístola citada: “Aos que pre­
destinou, a estes também glorificou”. Crente, você talvez seja
pobre ou esteja enfermo; talvez seja ignorado ou mesmo
depreciado. Não importa: reflita no seu íntimo e considere o
chamado que recebeu e as conseqüências que resultam dele. Tão
certo como hoje é um filho chamado por Deus, um dia terminará
sua pobreza e alcançará as riquezas da mais alta felicidade.
Espere um pouco; breve uma coroa cingirá sua cabeça cansada;
suas mãos, endurecidas pelo trabalho, colherão as palmas da
vitória. Cesse o pranto, pois em breve Deus enxugará suas
lágrimas para sempre. Abandone esse suspiro. Por que suspirar,
quando o cântico celeste está a ponto de chegar a seus lábios?
As portas do céu lhe estão abertas de par em par. Ainda breves
horas devem passar, mais algumas ondas o devem envolver, e
depois, já seguro para sempre, alcançará as douradas praias da
glória. Náo diga: “Eu serei perdido; serei condenado”.
Impossível!
“Aos que uma vez amou, jamais os abandona;
Ele os ama com amor eterno. ”

Se Ele o chamou, nada poderá separá-lo de Seu amor. O


lobo da fome não poderá destruir o vínculo de Seu amor; o fogo

100
da perseguição não conseguirá fundir o elo, nem o martelo do
inferno poderá romper a cadeia do amor; o tempo não poderá
devorá-lo com ferrugem, nem a eternidade dissolvê-lo com todas
as suas eras. Descanse! Está seguro! A voz que o chamou, o
chamará outra vez da terra para o céu, e da escuridão da morte a
uma imortalidade resplandecente e indescritível. Descanse
confiado; o coração que o chamou pulsa com um infinito amor
que jamais acaba, para com os seus eleitos; as muitas águas e as
longas distâncias jamais poderão apagar este amor eterno.
Sossegue-se; descanse em paz; erga os olhos de esperança e
entoe um cântico com apaixonada antecipação. Breve se
ajuntará aos glorificados, com os quais está a sua parte. Aguarde
aqui; é apenas uma preparação para sua herança e, concluída a
mesma, as asas dos anjos o arrebatarão até às alturas do monte
da paz, do gozo e da bem-aventurança, onde repousará para
sempre.

“Longe deste mundo de dor e de pecado,


por Deus eternamente acompanhado. ”

Examinem-se, portanto, se foram chamados. E que o


amor de Cristo seja com todos. Amém.

101
5

UM SERMÃO DE DESPEDIDA*

“Portanto, no dia de hoje, vos protesto que estou limpo do


sangue de todos; porque nunca deixei de anunciar-vos todo o
conselho de Deus” - At. 20:26-27.

Por ocasião de separar-se de seus amigos efésios que


tinham vindo a Mileto a fim de despedir-se dele, Paulo não
esperou deles cumprimentos por seu labor, nem solicitou elogios
por sua fervente eloqüência, conhecimento profundo ou
capacidade de pensamento. Sobejamente reconhecia que,
mesmo que pudesse merecer parabéns por tudo isso, ainda assim
poderia figurar como um reprovado. Por isso Paulo requeria um
testemunho que fosse válido no tribunal celeste e de valor na
hora da morte. Daí sua solene declaração: “Portanto, no dia de
hoje, vos protesto que estou limpo do sangue de todos; porque
nunca deixei de anunciar-vos todo o conselho de Deus”. Estas
palavras do apóstolo não continham egoísmo algum; ele havia
pregado a verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade, tal
e como lhe foi ensinada pelo Espírito Santo, e a tinha recebido
no seu coração. Oh, se todos os ministros de Cristo pudessem
honestamente lançar o mesmo desafio!

* D om ingo de manhã , 11 de dezembro de 1859.

102
Nesta manhã, com a ajuda do Espírito de Deus, me
proponho fazer duas coisas. Primeiramente falarei sobre a
solene declaração do apóstolo ao despedir-se; em seguida, em
poucas e solenes palavras, lhes darei minha mensagem de
despedida pessoal.
I. Inicialmente, pois, consideraremos AS PALAVRAS
DO APÓSTOLO AO DESPEDIR-SE: “Portanto, no dia de
hoje, vos protesto que estou limpo do sangue de todos; porque
nunca deixei de anunciar-vos todo o conselho de Deus”. O que
aqui primeiro nos chama a atenção é a afirmativa do apóstolo
com respeito às doutrinas que havia pregado. Havia anunciado
TODO o conselho de Deus. E por isso devemos entender que ele
havia proclamado aos efésios todo o evangelho. Não havia
desenvolvido uma única doutrina, e excluído as demais, porém
que em todo o momento se esforçou por apresentar todas as
verdades do evangelho de acordo com a analogia da fé. Ele não
tentou engrandecer desproporcionadamente uma verdade e
diminuir outra até à insignificância; mas ele se esforçou em
combiná-las conjuntamente, como as cores do arco-íris, e formar
assim um todo harmônico e sublime. Como homem inspirado
por Deus, seus escritos são isentos de erro. Mas como simples
homem, jamais reivindicou para si infalibilidade; antes, pelo
contrário, como qualquer outro indivíduo, Paulo também tinha
de confessar seus pecados e lamentar-se de muitas faltas perante
Deus. Talvez em mais de uma ocasião, ao pregar a Palavra, não
a apresentou com a clareza que desejava. Talvez também em
mais de uma ocasião lhe faltou o zelo desejado para fazê-lo. No
entanto, pelo menos, Paulo podia reclamar para si que jamais
havia escondido voluntariamente a mínima parte da verdade tal
como está em Jesus.
Agora devemos estudar a declaração do apóstolo em
relação com a pregação atual. Se na verdade nos anima o desejo
de apresentar todo o conselho de Deus, devemos, primeiramente,

103
pregar as doutrinas do evangelho. Precisamos apresentar
aquela grandiosa doutrina do amor do Pai para com o Seu povo,
ainda antes da fundação do mundo, e ao mesmo tempo,
proclamar com voz de trombeta Sua eleição soberana, os
propósitos do Seu pacto referentes àqueles incluídos nele, e as
promessas por Ele promulgadas. Ainda mais, o verdadeiro
evangelista não deve deixar nunca de apresentar toda a beleza
que irradia da Pessoa de Cristo, a glória e perfeição da Sua obra,
e sobretudo a eficácia do Seu sangue. Seja o que for que
omitirmos nalguma ocasião, essas verdades precisam ser
proclamadas energicamente vez após vez. Mensagem sem
Cristo não é evangelho, e a idéia moderna de pregar A v e r d a d e
em vez de Cristo, é um perverso estratagema do diabo. Entre­
tanto, ainda não concluímos, pois do mesmo modo que há três
Pessoas na Deidade, nós, em nosso ministério, devemos ter
cuidado para que as três recebam a honra que Lhes é devida.
Portanto, a obra do Espírito Santo na regeneração, na santifica­
ção e perseverança dos santos, deve ser exaltada em nossos
púlpitos. Sem o poder dEle o nosso ministério seria uma carta
morta, e não podemos esperar que Ele o manifeste a não ser que
O honremos todos os dias.
No que temos afirmado até aqui todos estamos de
acordo, por conseguinte me referirei a outros pontos doutrinários
sobre os quais há divergência; por isso merecem estudo mais
diligente, porquanto habitualmente se corre o perigo de ocultá-
-los. Inicialmente, pois, direi que o pastor que não proclama a
doutrina da predestinação, com toda a sua solenidade e certeza,
como uma das verdades reveladas por Deus, não prega todo o
conselho de Deus. Da mesma forma, a doutrina da eleição. E a
obrigação do ministro, iniciando por este manancial de origem,
assinalar todas as correntes doutrinárias que se derivam dela - a
da chamada eficaz, a da justificação pela fé, e a da perseverança
segura e firme do crente, etc.

104
Precisa, além disso, o ministro de Deus, deleitar-se na
proclamação daquele glorioso pacto no qual estão inseridas
todas estas coisas; coisas que são garantidas para todos os esco­
lhidos, comprados com o sangue de Cristo. Atualmente existe a
tendência de empurrar toda a verdade doutrinária para a sombra.
Muitos são os pregadores que se ofendem com a austera verdade
dos pactuários e que os puritanos testificaram no meio de uma
geração licenciosa. Dizem-nos que os tempos mudaram; que
devemos modificar as assim chamadas velhas doutrinas
calvinistas e adaptá-las aos tempos modernos. Tais doutrinas,
eles afirmam, devem ser diluídas, já que o homem alcançou tal
nível intelectual que é absolutamente necessário recortar as
arestas de nossa religião, suprimir os aspectos mais polêmicos, e
desse modo, de um quadrado, fazer um círculo. Qualquer um
que procede assim, conforme julgo, deixa de declarar todo o
conselho de Deus. Com referência a todas essas doutrinas, o fiel
ministro deve ser claro, simples e direto. Não deve haver
nenhuma dúvida quanto à sua crença nessas doutrinas. Ele deve
pregar de tal modo que os ouvintes possam saber imediatamente
se lhes anuncia um plano de salvação arminiano ou um plano de
salvação segundo o pacto da graça ou, noutras palavras, se lhes
proclama salvação pelas obras ou salvação através do poder e da
graça de Deus.
Mas, irmãos, alguém pode pregar essas doutrinas em
toda a sua plenitude e ainda assim não declarar todo o conselho
de Deus. Existe um elemento de atividade e luta na vida do
cristão; aquele que é discípulo fiel terá que enfrentar uma
batalha. Pregar apenas doutrina não basta; devemos pregar
também o dever. Devemos insistir fielmente e com firmeza na
vida prática. Enquanto não pregar nada mais que doutrina, o
ministro se encontrará com certa gente de intelecto pervertido
que o admirará, porém logo que começar a dar ênfase à respon­
sabilidade humana, a dizer que se um pecador se perde é por

105
culpa própria, e que se perecer no inferno é também por culpa
própria - então imediatamente clamarão: “Inconsistência! Como
podem ser harmonizadas essas duas coisas?” Inclusive surgirão
bons cristãos que não podem suportar toda a verdade, e portanto
se oporão ao servo de Deus que não se contenta com fragmentos,
aquele que honestamente apresenta todo o evangelho de Cristo.
Essa é uma das provas que o ministro fiel tem que sofrer. Com
toda a solenidade afirmo que não é fiel a Deus, nem tampouco à
sua consciência, aquele que simplesmente prega a soberania de
Deus e deixa de insistir sobre a doutrina da responsabilidade
humana. E creio firmemente que todo homem que termina no
inferno somente terá de culpar a si mesmo. A cada um que
entrar pela porta chamejante ser-lhe-á dito: “Você não quis”.
“Não escutou nenhum dos Meus avisos. Foi convidado à ceia,
mas não veio. Eu o chamei, porém recusou; estendi Minha mão,
e não fez caso. Então agora zombarei das suas calamidades e
Me rirei dos seus temores.” O apóstolo se atreveu a enfrentar a
opinião pública e pregou, por um lado, a responsabilidade
humana e, por outro, a soberania de Deus. Quando prego sobre
a soberania divina, gostaria de possuir asas de águia para poder
transportar-me às alturas desta doutrina. Deus tem absoluto e
ilimitado poder sobre o homem para fazer dele o que deseja, do
mesmo modo que o oleiro determina o que executará com o
barro. Que não discuta a criatura com o Criador, pois Deus não
tem obrigação de justificar Suas ações a ninguém. Mas ao
pregar sobre o homem, e ao referir-me à sua responsabilidade,
me esforço para dar toda a ênfase possível sobre o tema.
Confesso que sou, se alguém quiser chamar-me, homem de
doutrina vulgar, uma vez que como fiel mensageiro de Cristo
devo usar Suas próprias palavras e dizer: “Quem não crê já está
condenado, porquanto não crê no nome do Filho unigénito de
Deus”. Não vejo como possa ser apresentado todo o conselho

106
de Deus, a menos que esses dois pontos, aparentemente
contraditórios, sejam salientados e claramente expostos.
Para pregar todo o conselho de Deus, é necessário
declarar a promessa de salvação em toda a sua espontaneidade,
segurança e riqueza. Se o conteúdo do versículo bíblico se
refere a essa promessa, de modo algum o ministro de Deus deve
temer pregar sobre ele. Se se trata de uma promessa
incondicional, o servo de Deus deveria fazer dessa incondicio-
nalidade um dos traços mais proeminentes da sua mensagem.
Seja o que for que o Senhor tenha prometido ao Seu povo, o
ministro deve pregá-lo irrestritamente. Se em vez de uma
promessa, o conteúdo do texto bíblico se referir a um mandato
ou a uma ordem, o ministro não deve hesitar, deve proclamá-lo
com todas as forças e com idêntica confiança que o faria com a
promessa. O servo de Deus deve exortar e repreender com toda
a mansidão. Deve sempre sustentar que a parte preceptiva do
evangelho é tão valiosa como a que se refere à promessa - cujo
valor é inestimável. Ele precisa insistir com firmeza que os
crentes “pelos frutos serão conhecidos” e “se a árvore não der
bons frutos, será cortada e lançada ao fogo”.
Constantemente devemos insistir numa vida de santi­
dade, tanto como numa vida feliz. Para anunciar todo o
conselho de Deus - isto é, para reunir-se dez mil coisas em uma
só - creio ser necessário que o pregador, após ter encontrado o
seu texto, pregue sobre ele com toda a fidelidade e integridade.
Há muitos pregadores que tomam um versículo e o cortam em
pedaços! Primeiramente o torcem, depois o saturam de noções
vazias e por fim o oferecem como alimento espiritual a mentes
de baixo nível intelectual. Todo aquele que não permite que a
Palavra de Deus fale por si mesma, na sua linguagem pura e
simples, não prega todo o conselho de Deus. Se num dia deparar
com um versículo como este: “Assim que não é do que quer,
nem do que corre, mas de Deus que tem misericórdia”, o

107
pregador fiel o desenvolverá e apresentará em toda a sua ampli­
tude. E se no dia seguinte, o Espírito Santo puser em seu
coração o texto: “E não quereis vir a mim para terdes vida” ou
aquele apelo que insiste: “Quem quiser, tome de graça da água
da vida”, o fiel pregador o desenvolverá tão integralmente como
o primeiro. Não fugirá da verdade. Ele ousará contemplá-la de
frente e então a apresentará do púlpito, dizendo: “Fala, Palavra
de Deus, e que somente tu sejas ouvida! Não permitas, Senhor,
que eu perverta ou interprete falsamente Tua própria verdade
enviada do céu”. Requer-se simples honestidade à Palavra de
Deus por parte daquele que trata de anunciar todo o Seu
conselho.
Isso, no entanto, ainda não é tudo. Para anunciar todo o
conselho de Deus, o pregador deve assinalar, de maneira bem
particular, os terríveis pecados da hora presente. O verdadeiro
pregador não condena o pecado de maneira geral, porém
distingue separadamente os pecados; não atira a esmo, e sim
coloca a flecha na corda do arco para que o Espírito Santo a
dispare à consciência do indivíduo. O servo que é fiel ao Senhor
não contempla a congregação como um aglomerado de pessoas,
mas como um conjunto distinto de indivíduos, e portanto se
esforça para ajustar o seu discurso às suas consciências, de modo
que percebam que está falando diretamente a eles, como
indivíduos. Comenta-se de Rowland Hill que seus sermões eram
tão pessoais que mesmo uma pessoa sentada à distância, numa
janela ou nalguma outra parte, não deixaria de dizer: “Esse
homem está falando comigo”. E o verdadeiro pregador sempre
fala de maneira que os seus ouvintes sintam que há algo
proveitoso para eles - uma reprovação, uma exortação ou uma
orientação. Se houver algum vício que deve ser abandonado,
algum erro que deve ser evitado, ou algum dever para ser
cumprido, e no entanto nada disso foi mencionado no púlpito,
então o pregador tem falhado em anunciar todo o conselho de

108
Deus. Havendo predominância de certo pecado numa
comunidade, ou pior ainda, numa congregação, se o ministro não
se atrever a condená-lo por temer ofender a alguém, podemos
dizer que o tal não terá sido fiel à sua vocação, nem sincero
diante de Deus. Não há maneira melhor de descrever-lhes o
homem que anuncia todo o conselho de Deus, do que conduzir-
-lhes às Epístolas do apóstolo Paulo. Nelas encontrarão doutrina
e preceito, experiência e prática. Ele nos fala de corrupção
interna e de tentações externas. Toda a vida espiritual está
exposta e as orientações que precisamos são dadas. Nelas
encontraremos palavras que caem como chuva e refrescam como
orvalho, mas também frases que batem como trovões e
resplandecem como relâmpagos. Nelas observarão o apóstolo,
agora com o cajado na mão e guiando gentilmente o rebanho aos
verdes pastos; mais tarde vê-lo-ão com a espada desembainhada
combatendo aos inimigos de Israel. Quem desejar ser fiel, e
pregar todo o conselho de Deus, tem que imitar ao apóstolo
Paulo e pregar como ele escreveu.
Existiria algo capaz de tentar o servo de Deus, de modo a
que se afaste da direção certa e seja induzido a não pregar todo o
conselho de Deus? Irmãos meus, vocês pouco compreendem
qual seja a posição do ministro, se nalguma ocasião não sentiram
a grande responsibilidade que pesa sobre ele. Identifiquem-se
apenas com um aspecto da verdade e serão elogiados até às
alturas. Limitem-se a um calvinismo que lhes permita usar
apenas metade da Bíblia, de modo a perder de vista a
responsabilidade humana, e encontrarão pessoas que os
aplaudirão e gritarão: “Aleluia!” Sobre as costas eles lhes levan­
tarão para um trono e chegarão a ser nada menos que príncipes
no Israel deles. Por outro lado, comecem a pregar mera
moralidade, prática sem doutrina, e verão que serão conduzidos
nos ombros de outros homens; todavia, se pregarem todo o
conselho de Deus, ambos os grupos se lançarão sobre o

109
pregador. Uns o acusarão de arminianismo exagerado, enquanto
outros o taxarão de hipercalvinista. Ora um homem não gosta de
estar entre dois fogos. Existe sempre a inclinação de satisfazer a
um ou a outro grupo, ou seja, para aumentar o número de
adeptos, a fim de conseguir um grupo de ferrenhos seguidores.
Pobres de nós, se nos deixarmos influenciar por seus gritos!
Logo abandonaríamos o caminho estreito, a senda da justiça,
verdade e retidão. Há tantos ministros sob a influência de
pessoas ricas! Habitualmente o pregador pensa: “Mas...que dirá
o Sr. Fulano, editor de tal jornal, no seu artigo da próxima
segunda-feira?” “Que dirá a Senhora Tal, na próxima vez que
encontrá-la?” Se todas estas coisas acrescentam um pouco de
peso à balança, e se o pregador não permanece firme pelo poder
do Espírito Santo, tudo isso fará com que se afaste um pouco do
caminho estreito, no qual só pode permanecer se ele declarar
todo o conselho de Deus. Certamente aquele que adota a
opinião da gente contrária, receberá honras; enquanto o pregador
que permanece sob o puro estandarte da verdade, talvez
encontrando-se só e lutando contra toda a maldade, tanto no
mundo como na igreja, será objeto de vergonha e desonra.
Portanto, não era um vulgar testemunho que o apóstolo
reivindicava para si ao afirmar que não havia deixado de
anunciar todo o conselho de Deus.
Mesmo que exista a tentação de não pregar todo o
conselho de Deus, ainda assim o verdadeiro servo de Cristo
sente-se impulsionado a proclamar toda a verdade, porque ela, e
somente ela, pode satisfazer às necessidades do homem.
Quantas maldades não são vistas neste mundo como resultado de
um evangelho distorcido e feito em pedaços pelos moldes
humanos! Que prejuízo tão terrível se tem causado a muitas
almas por pessoas que têm pregado apenas uma parte e não a
totalidade do conselho de Deus! Meu coração sangra ao refletir
sobre famílias onde a doutrina antinomiana já está

110
predominando. Eu poderia contar muitas histórias tristes de
famílias mortas em pecado, cujas consciências são cauterizadas,
devido à pregação fatal que ouvem. Já vi convicções suprimidas
e desejos sufocados pelo sistema destruidor que retira ombridade
do homem e o torna tão irresponsável como um bovino. Não
posso imaginar um instrumento mais útil nas mãos de satanás
para arruinar as almas dos homens, do que o ministro que diz aos
pecadores que não precisam se arrepender dos seus pecados nem
de crer em Cristo. Esse homem é tão arrogante que se chama
um ministro do evangelho - mesmo quando ensina que Deus
odeia certos homens infinita e imutavelmente, por nenhuma
outra razão do que a de que Ele simplesmente decide assim
fazer. Oh irmãos, que o Senhor os livre da sedução do
encantador e os conserve sempre surdos à voz do erro.
Inclusive em famílias cristãs, quantos males não tem
ocasionado um evangelho falsificado! Tenho visto o recém-
-convertido andando em humildade diante de Deus, vivendo
cheio de gozo as primeiras fases da vida cristã. Mas logo o
maligno se introduziu na sua vida disfarçado como manto da
verdade. Com o dedo da cegueira parcial lhe tocou os olhos e
agora ele pode ver apenas uma doutrina. Pode ver a soberania,
porém não a responsabilidade. O pastor, que por um tempo, foi
amado, agora é aborrecido; por um tempo foi considerado como
fiel na pregação do evangelho, todavia agora veio a ser como o
lixo. E qual foi o resultado final? Nada menos que tudo o que é
contrário ao bom e à benignidade. O fanatismo tomou o lugar
do amor; a amargura fez morada onde antes existia um caráter
nobre. Eu poderia apresentar-lhes inúmeros exemplos para
provar que onde se insistiu demasiadamente numa doutrina
particular, o resultado foi excessivo fanatismo e rancor. E
quando alguém chega a cair no fanatismo, facilmente sucumbirá
a outros pecados para os quais satanás o arrastará. É necessário,

111
pois, que se pregue todo o evangelho; doutro modo, inclusive os
espíritos dos cristãos serão danificados e mutilados.
Tenho conhecido homens que eram diligentes na obra de
Cristo e que trabalhavam com afinco para ganhar almas, mas de
repente se identificaram com uma só doutrina, e não com a
verdade total, e acabaram caindo em apatia espiritual. Por outro
lado, quando as pessoas tomam apenas o lado prático da verdade
e negligenciam o aspecto doutrinário, então com freqüência
caem no legalismo; falam como se a salvação dependesse das
obras e chegam quase a esquecer a graça pela qual foram
chamadas. São semelhantes aos gálatas; têm sido fascinados
pelo que ouviram. O crente só pode conservar-se puro em
doutrina e simples e humilde em caráter, se está sob a influência
de uma pregação que abrange toda a verdade como está no
Senhor Jesus. E com referência à salvação de pecadores,
queridos ouvintes, não podemos esperar que Deus abençoe
nossos esforços para a conversão de almas, a menos que
preguemos a totalidade do evangelho. Se eu pregar sempre
sobre um só aspecto da verdade e excluir todos os outros, de
modo algum poderei esperar a bênção do meu Mestre. Contudo,
se eu pregar como Deus quer que pregue, então Ele abençoará a
mensagem e porá na pregação o selo do Seu testemunho vivo.
Se penso que posso melhorar o evangelho ou torná-lo mais
consistente, que posso revesti-lo de modo a aparecer mais
atraente, então logo perceberei que o Mestre me abandonou e
que a palavra "Icabod" foi escrita nas paredes do santuário.
Quantas pessoas são mantidas na escravidão porque
negligenciam os convites do evangelho. Elas anseiam pela
salvação. Sobem à casa do Senhor anelando ser salvas, mas só
ali encontram a predestinação. Por outro lado, quantas multi­
dões são aprisionadas nas trevas por meio da pregação do dever.
É fazer! Fazer! Fazer! Nada senão fazer! E as pobres almas

112
saem da igreja dizendo: “Que valor tem isso? Não posso fazer
nada. Oxalá alguém me mostrasse o caminho da salvação”.
A respeito do apóstolo Paulo, verdadeiramente podemos
afirmar que nenhum pecador que o ouviu deixou de receber o
consolo que flui da cruz de Cristo; nem tampouco algum santo
foi turbado em espírito por lhe ter sido negado o pão do céu, ou
por haver ele omitido aspectos preciosos da verdade. De
maneira alguma, sob a pregação de Paulo, o cristão prático
chegou a ser tão prático que caiu no legalismo, nem o cristão
imerso só em doutrina chegou a abandonar por completo o
aspecto prático. Sua pregação possuía tal consistência e riqueza
espiritual, que aqueles que o ouviram, sendo abençoados pelo
Espírito Santo, tornaram-se cristãos em espírito e vida, refletindo
em tudo a imagem do seu Mestre.
Não creio que posso expor mais demoradamente este
versículo. Nestes dois últimos dias me tenho sentido tão doente
que os pensamentos que esperava apresentar-lhes de forma mais
clara, têm saído dos lábios desordenadamente.

II. Agora devo deixar o apóstolo Paulo, a fim de que eu


possa dirigir-lhes UMAS FERVOROSAS, SINCERAS E
AFETUOSAS PALAVRAS DE DESPEDIDA. “Portanto, eu
vos protesto no dia de hoje que estou limpo do sangue de todos,
porque jamais deixei de anunciar-vos todo o conselho de Deus.”
Nada desejo dizer que seja de recomendação ou de exaltação
própria; não quero testificar da minha própria fidelidade, porém
apelo a todos vocês e por isso lhes protesto no dia de hoje, que
não deixei de lhes anunciar todo o conselho de Deus. Com
grande debilidade subi muitas vezes a este púlpito, e em muitas
outras ocasiões desci dele com profunda tristeza, por não haver
pregado com o ardor que desejei. Devo confessar os meus
muitos erros e omissões, especialmente certa carência de fervor
ao orar por suas almas. Não obstante, nesta manhã minha

113
consciência me absolve duma acusação, e estou seguro de que
também todos me absolverão - a de não ter deixado de anunciar
todo o conselho de Deus. Se nalguma coisa tenho errado, foi um
erro de juízo; mas naquilo que se refere à verdade, posso dizer
que nem o temor à opinião pública, ou particular, me fez
abandonar aquilo que mantenho ser a verdade do meu Senhor e
Mestre. Eu lhes preguei as coisas preciosas do evangelho.
Esforcei-me, tanto quanto possível, a proclamar-lhes a graça do
Senhor em toda a sua plenitude. Conheço por experiência o
grande valor dessa doutrina; e que o Senhor faça que eu nunca
pregue nenhuma outra. Se não formos salvos pela graça, jamais
poderemos ser salvos. Se desde o princípio até o final a obra da
graça não dependesse de Deus, nem um de nós poderia aparecer
diante dEle com plena aceitação. Proclamo esta doutrina da
graça, não por escolha própria, mas por ser uma absoluta
necessidade, pois se esta doutrina não for verdadeira, então
somos todos perdidos; nossa fé é vã, nossa pregação é inútil,
ainda estamos em nossos pecados e neles permaneceremos até o
fim.
Por outro lado, posso acrescentar que não tenho deixado
de exortar, de convidar e de implorar. Tenho convidado o
pecador a vir a Cristo. Pediram-me que não o fizesse, porém
não pude obedecer. Com as entranhas a suspirar por pecadores
que perecem, não podia concluir as mensagens sem antes
suplicar: “Vem a Jesus, pecador, vem”. Às vezes com lágrimas
nos olhos me sentia movido a apelar aos pecadores para irem a
Jesus. Sem este elemento de convite, não posso de forma
alguma pregar doutrina. Se alguém não recorre a Cristo, não
será por falta de chamada, nem porque eu não tenha chorado por
seus pecados nem me tenha esforçado pelas almas dos homens.
A única coisa que devo pedir-lhes é esta: testifiquem, dêem
testemunho de que neste aspecto estou limpo do sangue de
todos, porque tenho anunciado tudo o que sei sobre o conselho

114
de Deus. Há algum pecado que eu não tenha censurado? Retive
em segrado alguma das doutrinas nas quais creio? Existe alguma
parte da Palavra de Deus, seja doutrinária ou prática, que
conscientemente lhes tenha escondido? Longe estou de ser
perfeito, e novamente, com lágrimas, devo confessar minha
inutilidade; não tenho servido a Deus como devia, nem
demonstrado pelo rebanho o fervor que desejaria. Agora que
meu pastorado neste lugar terminou, desejaria iniciar de novo
para assim poder ajoelhar-me perante todos e rogar-lhes que
atentem para as coisas que se relacionam com a sua paz. Mas
aqui outra vez repito, que embora quanto ao ardor e ao zelo me
considero culpado, em troca, em relação à verdade e à
sinceridade posso apelar ao tribunal de Deus, aos anjos eleitos e
a todos vocês, de que não tenho falhado em anunciar todo o
conselho de Deus.
Se alguém o deseja, é fácil não pregar sobre uma
doutrina polêmica; basta não mencionar os textos que a ensinam.
Uma doutrina polêmica, você imagina, poderia perturbar o seu
ensino anterior. Tal atitude pode ser mantida com êxito por
algum tempo; talvez decorram anos antes que a congregação
perceba isso. Entretanto, se há uma coisa que tenho tentado
fazer, é a seguinte: tenho tentado apresentar-lhes alguma verdade
que anteriormente eu havia descuidado; e se até esta data tenho
omitido a menção de alguma verdade, minha oração será que
daqui por diante tal verdade ocupe preeminência em minha
pregação, e desta maneira possa ser vista e entendida por todos.
No momento só lhes peço que neste dia de despedida sejam
testemunhas de minha pergunta, e se caio num pouco de
egoísmo, ou chego a “ser néscio em gloriar-me”, não é por amor
à vanglória, e sim por motivo mais elevado que lhes dirijo a
pergunta. Talvez sobrevirão tristes provas a muitos. Dentro de
pouco tempo talvez alguns estejam freqüentando lugares onde o
evangelho não é pregado. Outros talvez adotem um evangelho

115
falso. Apenas uma coisa lhes solicito: sejam testemunhas de que
não o foi por minha culpa, testifiquem que tenho sido fiel e
jamais deixei de anunciar-lhes todo o conselho de Deus. Em
pouco tempo, alguns que até aqui têm freqüentado este lugar de
culto, ao ver que seu pastor se retirou, talvez não vão a nenhum
outro local. Talvez se tornem indiferentes. Quem sabe se no
próximo domingo permaneçam em casa ociosos e dissipando o
dia. Mas tenho algo a perguntar-lhes antes que tomem a
resolução de não assistir à casa de Deus outra vez: são
testemunhas de que tenho sido fiel? Pode ser que alguns
“tenham corrido bem” enquanto estiveram sob a pregação da
Palavra, porém de agora em diante talvez o abandonem
totalmente; quem sabe se retornarão plenamente ao mundo, aos
vícios, às blasfêmias ou algo parecido. Deus não permita tal
coisa! Todavia lhes rogo que, se de novo se afundarem no
pecado, pelo menos façam o seguinte em favor de quem não
desejou outra coisa senão a sua salvação: digam dele que foi
sincero com todos e que jamais deixou de lhes anunciar todo o
conselho de Deus. Oh, meus amados! Talvez dentro de muito
pouco tempo alguns de vocês se encontrem no leito de morte.
Quando o pulso se tornar fraco e os terrores da horrível morte o
rodearem, se ainda não for convertido, eu lhe suplico que,
mesmo nesses momentos acrescente algo à sua última vontade,
ao seu testamento - a exclusão deste pobre ministro, que hoje
está à sua frente, de toda participação nessa desesperada loucura
que o levou ao descuido da sua própria alma. Porventura não o
chamei em altas vozes para que se arrependa? Não o exortei a
que o fizesse antes que a morte o surpreendesse? Não o
aconselhei a fugir da ira vindoura e a refugiar-se na Rocha da
Salvação? Ao atravessar o rio da perdição, ó pecador, não me
culpe de homicida, pois no seu caso posso dizer: “Lavo as mãos
na inocência; sou limpo do seu sangue”.

116
Aproxima-se o momento quando todos nós nos reuni­
remos outra vez. Esta grande assembléia se verá absorvida por
outra muito maior, semelhante a uma gota dágua que se perde no
oceano. Naquele dia terei de comparecer diante do tribunal de
Deus. No caso de eu não lhe ter avisado, ali serei acusado de
sentinela infiel e seu sangue será requerido de minhas mãos; se
não lhe tiver pregado a Cristo e apelado a que busque refúgio
nEle, então, ainda que pereça, sua alma me será requerida.
Ainda que tenha rido de mim e rejeitado a minha mensagem;
mesmo que menospreze a Cristo e aborreça a Seu evangelho;
ainda que se afunde na condenação, todavia lhe rogo que me
absolva do seu sangue. Eu vejo alguns aqui presentes que só me
ouvem ocasionalmente, e no entanto posso dizer que eles têm
sido o assunto das minhas orações, como também das minhas
lágrimas, quando eu os vejo continuando nas suas iniqüidades.
Bem, solicito de vocês só uma coisa e, como pessoas honestas,
não me podem negá-la. Se vocês querem os seus pecados, se
querem ser perdidos, se não querem vir a Cristo, pelo menos, no
meio dos trovões do dia do juízo, quando eu estarei diante do
tribunal de Deus, absolvam-me de haver destruído as suas almas.
E que mais posso dizer? Como posso pleitear com
vocês? Tivesse eu língua de anjo e o coração do Salvador,
talvez então pudesse fazê-lo; mas não sou capaz de fazer mais do
que tantas vezes tenho feito. No nome de Deus lhes rogo que
recorram a Cristo para refúgio. Se o que até aqui lhes tenho dito
não foi suficiente, que Deus faça com que o seja agora. Venha,
pecador culpado, apresse-se em vir Aquele cujos braços estão
estendidos para receber a toda alma que com arrependimento e
fé se achega a Ele. Um pouco mais de tempo e este pregador
estará em seu leito de morte. Mais uns poucos dias de reuniões
solenes, mais uns poucos sermões, mais algumas reuniões de
oração, e já me verei no meu quarto rodeado de amigos, pela
última vez. Aquele que pregou a grandes multidões, agora

117
precisa de consolo. Aquele que confortou a muitos na hora da
morte, agora ele mesmo atravessa o rio. Meus amigos, acaso
verei alguns de vocês junto a meu leito de morte a me acusar de
não ter sido fiel? Acaso os meus olhos serão perseguidos por
visões de homens aos quais tenho entretido e divertido, mas em
cujos corações jamais lancei a semente da verdade? Estando eu
em meu leito de morte, ocorrerá que numa visão horrorosa
desfilarão ante os meus olhos as grandes multidões que perante
minha face se congregaram, que um após outro dos que me
escutaram me amaldiçoarão por haver sido infiel? Que Deus
não o permita! Espero que todos me façam este favor: ao jazer
no meu leito de morte, testifiquem de que sou limpo do sangue
de todos e que jamais recusei de anunciar-lhes todo o conselho
de Deus. Vejo-me naquele grande dia do juízo como
prisioneiro em pé perante o tribunal. Que farei diante de uma
acusação como a seguinte: “Você teve muitos ouvintes, milhares
se agregaram para ouvir as palavras dos seus lábios; todavia,
você os iludiu, você os enganou, propositadamente você
defraudou essas pessoas”. Trovões, tais como nunca se ouviu
antes, passarão por cima da minha cabeça, e relâmpagos mais
terríveis do que já cairam sobre o diabo rasgarão este coração, se
eu tiver sido infiel a vocês. Uma vez que tenha pregado às
multidões, a minha posição será a mais terrível no universo todo,
se eu for achado infiel. Oh, que Deus tire da minha cabeça o
pior dos males - a infidelidade! E agora, neste momento, faço o
meu último apelo: “Rogamo-vos, pois, da parte de Cristo, que
vos reconcilieis com Deus”. Entretanto, se não quiserem fazer
isso, peço-lhes este único favor - e acho que não mo negarão -
culpem-se a si mesmos pela sua ruína, pois estou livre do sangue
de todos os homens, porquanto não deixei de anunciar-lhes todo
o conselho de Deus.
Isso é o bastante quanto ao testemunho que peço de
vocês. Agora me dirijo a vocês com uma petição. A todos que

118
aqui se acham presentes desejo pedir-lhes um favor. Se em algo
encontraram proveito, se em algo obtiveram consolo, se de
algum modo as pregações que aqui escutaram serviram para
conduzi-los a Cristo, rogo-lhes nesta ocasião, que talvez seja a
última, que me apresentem em oração diante do trono de Deus.
Graças às orações dos crentes nós pregadores vivemos. Os
ministros devem mais do que podem imaginar às orações das
suas respectivas congregações. Amo a minha congregação,
entre outras coisas, pelas incessantes orações que fazem por
mim. Nunca houve um ministro pelo qual se orasse tanto como
acontece comigo. E é por isso que peço a todos quantos, por
razão de distância e por outras causas, se separaram de nós, a
que continuem apresentando-me em seus pensamentos diante de
Deus, e a que gravem meu nome em seus corações tantas vezes
quantas se acheguem ao trono da graça. Pouco é o que lhes
peço; simplesmente que supliquem: “Senhor, ajuda a Teu servo
a ganhar almas para Cristo”. Roguem que o Senhor o faça mais
útil do que tem sido até agora; se nalguma coisa está
equivocado, ensine-lhe o que é verdadeiro. Se não tem confor­
tado suas almas, peçam que possa fazê-lo no futuro; mas se tem
sido honesto com vocês, orem para que o seu Mestre o guarde
nos caminhos da santidade. E o que solicito para mim, o peço
para todos quantos pregam a verdade do nosso Senhor Jesus
Cristo. Irmãos, orem por nós. Desejamos trabalhar em seu
favor como servos que um dia terão de dar contas. Ah, não é
uma tarefa insignificante o ser ministro quando se deseja ser fiel
ao chamado. A alguém que pensava ser o ministério coisa fácil,
Baxter disse: “Desejaria, senhor, que ocupasse o meu lugar e que
se certificasse”. Se agonizar em oração com Deus e inquietar-se
pelas almas humanas, é tarefa fácil; se sofrer em silêncio toda
espécie de abusos, e experimentar desprezo e calúnias, constitue
um trabalho ameno, então façam vocês, porque eu de boa
vontade cederia o meu lugar. Peço que orem por todos os

119
ministros de Cristo, para que recebam ajuda, sustento e apoio e a
fim de que não lhes faltem as forças em todas as tarefas a
desempenhar.
Havendo-lhes, portanto, dirigido esta petição com refe­
rência a mim mesmo, e talvez nisso me possa culpar de certo
egoísmo, ainda me resta fazer um apelo a determinado setor de
meus ouvintes. Não posso afastar da mente o fato de que ainda
há muitos que depois de ter ouvido inúmeras vezes a Palavra de
Deus aqui, ainda não tenham entregado seus corações a Cristo.
Alegro-me de vê-los neste recinto, mesmo que seja pela última
vez. E é movido pelo pensamento de que não voltem mais a
dirigir-se aos sagrados átrios da casa de Deus, e nem tampouco a
ouvir a Sua Palavra outra vez, nem aos insistentes convites e
solenes advertências contidas nela, que nesta ocasião lhes dirijo
uma súplica. Notem: não é apenas um pedido, e sim uma
súplica. E esta é de tal natureza, que se tivesse de suplicar pela
minha própria vida, não o faria com mais força e insistência
como ao dirigir-lhes este apelo. Pobre pecador, pare por uns
momentos e raciocine. Você tem ouvido o evangelho, mas não
se beneficiou dele; quando estiver às portas da morte, que pen­
sará das muitas oportunidades de salvação que rejeitou? Que
dirá ao ser lançado no inferno e estas palavras forem repetidas
aos seus ouvidos: “Ouviu o evangelho, porém o rejeitou”? Que
dirá quando, rindo diante de sua face, os demônios lhe dirão:
“Nos nunca rejeitamos a Cristo nem depreciamos Sua Palavra”?
Que dirá quando o empurrarem para um inferno mais profundo
ainda do que eles jamais sofreram? Imploro-lhe que se detenha
e pense sobre isso. Valeria a pena viver nos prazeres deste
mundo? Acaso não é este mundo lugar árido e sem brilho? Oh,
que o Senhor lhe revele o mal que reside no pecado! Você está
nos seus pecados, e ainda não foi perdoado. E enquanto
perdurar esta situação, não poderá ser feliz aqui nem na vida vin­
doura. Minha súplica é que se recolha ao seu lar, reconheça-se

120
culpado e faça uma plena confissão a Deus dos seus pecados.
Peça que Ele lhe manifeste Sua misericórdia por amor de Jesus -
e Ele não a negará. Sim, Ele o atenderá e lhe concederá o que
pedir; removerá os seus pecados, o receberá e o tornará Seu
filho. E então não somente será mais feliz nesta vida, como
também no mundo vindouro. Rogo-lhes, homens e mulheres
cristãos, que implorem a operação do Espírito Santo, que Ele
conduza a muitos dos que estão reunidos aqui a uma confissão
sincera, a uma oração verdadeira, e a uma fé humilde. Que Ele
faça com que muitos que nunca se arrependeram antes, voltem-
se para Cristo agora. Ó pecador, a vida é breve e a morte se
avizinha. Seus pecados são muitos, e se o julgamento possui pés
de chumbo, possui também mão firme e pesada. Volte, eu lhe
imploro, volte! Oh, que o Espírito Santo mude o rumo de sua
vida! Diante dos seus olhos o Senhor Jesus está sendo
levantado. Volte-se para Ele, eu lhe rogo, e contemple as feridas
que padeceu em seu lugar. Olhe para Ele e viverá. Confie nEle
e será salvo, porque todo aquele que crê no Filho do homem tem
vida eterna, e não verá a condenação nem a ira de Deus descerá
sobre ele.
E que agora o Espírito de Deus nos outorgue Sua bênção
permanente: a vida eterna, por amor de Jesus. Amém.

Observação: Ao iniciar a reunião, Spurgeon afirmou:


“O culto desta manhã terá muito o caráter de uma reunião de
despedida e também de um sermão de despedida. Ainda que
muito me doa ter de separar-me de tantos de vocês, cujos rostos
tenho visto inúmeras vezes entre a multidão dos meus ouvintes,
sem dúvida, por amor a Cristo e à verdade, nos vemos obrigados
a nos retirarmos deste lugar (Surrey Gardens Music Hall), e no
próximo domingo pela manhã esperamos estar louvando a Deus

121
em Exeter Hall. Em duas ocasiões, como os nossos amigos bem
sabem, nos foi proposto abrir esta casa à noite para realizar
diversões mundanas, entretanto conseguimos impedi-lo ao
declararmos aos proprietários do prédio que se assim o fizessem,
deixaríamos o lugar. Mas nesta última tentativa deles nossa
palavra não bastou. Compreendem, portanto, que eu seria um
covarde perante a verdade e incongruente com as minhas
próprias afirmações, se me submetesse às suas demandas. Em
fazê-lo, meu nome deixaria de ser Spurgeon. Não posso ceder,
nem jamais cederei em nada sobre o qual sei que estou certo.
Em defesa do santo dia do Senhor, devemos dizer com Jesus:
“Levantai-vos e vamo-nos daqui”.

122
O INÍCIO DO DESPERTAMENTO
NA IRLANDA*

Em novembro de 1856, um jovem irlandês, o Sr. James


McQuilkin, foi levado a conhecer o Senhor. Logo após sua
conversão ele viu a propaganda dos primeiros dois volumes das
minhas Narrativas. Ele teve um grande desejo de lê-las, tanto
que procurou-as e as adquiriu por volta de janeiro de 1857.
Deus o abençoou grandemente em sua alma, especialmente ao
mostrar-lhe o que poderia ser obtido através da oração. Ele disse
a si mesmo o seguinte: “Veja só o que Sr. Müller consegue
simplesmente por meio de oração! Por conseguinte, eu também
posso obter bênção mediante a oração”.
Ele se pôs a orar para que o Senhor lhe desse um
companheiro espiritual, alguém que conhecesse o Senhor. Logo
após ele se tornou conhecido de um jovem crente. Os dois
começaram uma reunião de oração numa das escolas na paróquia
de Connor. Tendo sua oração respondida ao obter um
companheiro espiritual, o Sr. James McQuilkin pediu que o
Senhor o levasse a conhecer mais dos Seus servos. Logo em
seguido, o Senhor deu-lhe mais dois jovens, anteriormente
crentes, tanto quanto ele podia julgar.
No outono de 1857, o Sr. James McQuilkin declarou a
estes três jovens, dados a ele em resposta à oração com fé, que
bênção ele tinha alcançado por meio das minhas Narrativas,

* Extraído das N arrativas dos P rocedim entos do Senhor com G eorge


M ü ller (vol. I I I ).

123
como elas o levaram a ver o poder da oração com fé; e ele
propôs que eles deveriam se encontrar para orar, buscando a
bênção do Senhor sobre suas várias atividades na Escola
Dominical, nas reuniões de oração e na pregação do evangelho.
Com base nisso, no outono de 1857, estes quatro jovens
reuniam-se para orar numa pequena escola perto da cidadezinha
de Kells, na paróquia de Connor, todas as noites de sexta-feira.
Por esta época, a grande e poderosa atuação do Espírito,
em 1857, nos Estados Unidos, tornara-se conhecida, e o Sr.
James McQuilkin disse a si mesmo: “Por que não podemos ter
tal obra abençoada aqui, vendo que Deus fizera tais grandes
coisas pelo Sr. Miiller, apenas em resposta à oração?” Em
primeiro de janeiro de 1858, o Senhor lhes concedeu a primeira
resposta notável à oração através da conversão de um trabalha­
dor de uma fazenda. Ele se ajuntou aos outros, e eis que havia
cinco pessoas que se entregavam à oração. Pouco tempo depois,
outro jovem, com cerca de 20 anos, foi convertido; agora eram
seis. Isto muito encorajou os outros três que a princípio também
eram acrescentados ao grupo; contudo apenas os crentes eram
admitidos a tais reuniões de comunhão, em que liam, oravam e
ofereciam mutuamente poucos pensamentos das Escrituras.
Estas reuniões de oração e outros para a pregação do
evangelho foram realizadas na paróquia de Connor, Co. Antrim,
Irlanda do Norte. Até esta ocasião, quase tudo estava
acontecendo em silêncio, embora muitas almas estivessem sendo
convertidas. Não aconteceram prostrações físicas como
posteriormente. Por volta do natal de 1858, um jovem de
Ahoghill, que viera morar em Connor e que foi convertido por
meio deste pequeno grupo de crentes, foi ver seus amigos em
Ahoghill e falou-lhes sobre suas próprias almas e sobre a obra de
Deus em Connor. Seus amigos quiseram ver alguns destes
convertidos.

124
Conseqüentemente, o Sr. James McQuilkin, com dois
dos primeiros que se reuniram para orar, foram até lá em 2 de
fevereiro de 1859 e realizaram um culto em Ahoghill, numa das
igrejas presbiterianas. Alguns creram, outros zombaram e outros
ainda pensaram que havia muita presunção nestes jovens
convertidos. Apesar disso, muitos quiseram um outro culto. Este
foi realizado pelos mesmos três jovens em 16 de fevereiro de
1859, e nessa ocasião o Espírito de Deus começou a operar, e a
operar poderosamente. Almas foram convertidas, e daí em
diante as conversões se multiplicaram rapidamente. Alguns
destes convertidos foram para outros lugares e levaram o fogo
espiritual com eles, por assim dizer. O trabalho abençoado do
Espírito de Deus espalhou-se por vários lugares.
Tal foi o início da poderosa obra do Espírito Santo que
levou à conversão centenas de milhares. Alguns dos meus
leitores se lembrarão como, em 1859, este fogo espalhou-se pela
Inglaterra, pelo País do Gales e Escócia. Lembrarão também
como o continente europeu participou um pouco desta obra
poderosa do Espírito Santo, e que este fogo levou milhares a
entregarem-se à obra de evangelização. Recordarão como até o
ano de 1874, não apenas os efeitos desta obra abençoada
(iniciada na Irlanda) se fizeram sentir, como também ela ainda
prossegue, de modo geral, na Europa continental.
É quase desnecessário acrescentar que, em grau algum, a
honra é devida aos instrumentos, mas somente ao Espírito Santo;
mesmo assim, estes fatos estão registrados para que possa ser
visto o prazer que Deus tem em responder de modo gracioso a
oração com fé de Seus filhos.

125
Charles Haddon Spurgeon, filho de um pastor calvi-
nista independente, nasceu em Kelvedon, Essex, na Inglater­
ra em 1834. Seus grandes dons como pregador não tardaram
em manifestar-se. Com a idade de apenas 16 anos já encon­
tramos o jovem Spurgeon pregando em diferentes congre­
gações independentes. Toda a Londres se deu conta do novo
pregador a ponto de os jornais anunciarem que "desde os
tempos de Wesley e Whitefield não havia existido um inte­
resse religioso tão profundo".
Por mais de 30 anos Spurgeon deu poderoso tes­
temunho da verdade evangélica. As conversões foram incon­
táveis, e tanto na Inglaterra como na América seus sermões
impressos se tornaram um meio maravilhoso de bênção para
milhões de almas. A sua gloriosa carreira terminou em 1892,
quando contava com 58 anos de idade. A notícia da sua
morte ocupou a primeira página dos jornais ingleses e euro­
peus, e com ele morria "o último dos puritanos".
O poder do ministério de Spurgeon residia em sua
teologia. Ele redescobriu o que a Igreja por muito tempo ha­
via esquecido - o poder evangélico das chamadas doutrinas
calvinistas. Seu ministério constitui um poderoso testemunho
da única verdade salvadora.


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