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JO H N FO XE

O LIVRO DO S M ÁRTIRES

Tradução

Alm iro Pisetta


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Foxe, John, 1516-1587


O livro dos mártires /John Foxe; traduzido por Almiro Pizetta. – São
Paulo: Mundo Cristão, 2003.
T ítulo original: Foxe’s Book of Martyrs.
ISBN 85-7325-309-6

1. Foxe, John, 1516-1587 2. Mártires cristãos 3. Mártires cristãos -


Inglaterra - História 4. Perseguição - História 5. Perseguição - Inglater-
ra - História I. T ítulo.

03-1574 CDD–272.092

Índice para catálogo sistemático:


1. Mártires cristãos: História: Cristianismo 272.092

Tradução e prefácio, copyright © 2003 pela Associação Religiosa


Editora Mundo Cristão.

Publicação original da obra em latim: 1559


Primeira edição em língua inglesa: 1563
Preparação e organização do texto em inglês para esta edição: W. Grinton Berry

Título original em ingles: Foxe’s Book of Martyrs


Supervisão editorial e artística: Mark L. Carpenter
Gerência de produção editorial: Sidney Alan Leite, Renato Soares Fleischner
Preparação de texto: Vicente Gesualdi
Revisão: Luciana Abud
Litogravuras e ilustração da capa: Marcelo Moscheta
Capa: Douglas Lucas

A 1ª edição brasileira foi publicada em maio de 2003, com uma tiragem de


3.000 exemplares.

Apoio e colaboração: Tyndale House Publishers

Publicado no Brasil com a devida autorização e com todos os direitos reservados


pela:
Associação Religiosa Editora Mundo Cristão
Rua Antonio Carlos Tacconi, 79 – CEP 04810-020 – São Paulo-SP – Brasil
Telefone: (11) 5668-1700 – Home page: www.mundocristao.com.br

Editora associada a: Associação Brasileira de Direitos Reprográficos


Associação Brasileira de Editores Cristãos
Câmara Brasileira do Livro
Evangelical Christian Publishers Association

10 9 8 7 6 5 4 3 2 1 03 04 05 06 07 08 09 10 11
SUMÁRIO

Prefácio • 7

A P ERSEGU IÇÃO AO S P RIM EIRO S C RISTÃO S • 13

A H ISTÓ RIA D E C O N STAN TIN O , O G RAN D E • 43

JO H N W ICKLIFF, A ESTRELA M ATU TIN A D A R EFO RM A • 53

U M LÍD ER D O S LO LARD O S : AS T RIBU LAÇÕ ES E P ERSEGU IÇÕ ES


D O V ALO RO SÍSSIM O E D IGN ÍSSIM O M ÁRTIR D E C RISTO ,

S IR JO H N O LD CASTLE, C AVALEIRO , LO RD E C O BH AM • 71

A H ISTÓ RIA D O M ESTRE JO H N H U SS • 87

A H ISTÓ RIA D A V ID A D O V ERD AD EIRO S ERVO E M ÁRTIR


D E D EU S , W ILLIAM T YN D ALE • 123

A H ISTÓ RIA D O D R . M ARTIN H O LU TERO CO M A


D ESCRIÇÃO D E S UA V ID A E D O U TRIN A • 139

H ISTÓ RIA, V ID A E M ARTÍRIO D E M ESTRE JO H N H O O PER ,


BISPO D E W O RCESTER E G LO U CESTER • 167

U M P ASTO R P ARO Q U IAL F IEL: A H ISTÓ RIA D O


D R . R O W LAN D T AYLO R , D E H AD LEY • 189

O S M ÁRTIRES DA ESCÓ CIA • 209

V ID A, ATO S E F EITO S D O M ESTRE H U GO LATIM ER , F AM O SO


P REGAD O R E M ÁRTIR D E C RISTO E D O EVAN GELH O • 231

A H ISTÓ RIA D O BISPO R ID LEY • 247


JU LGAM EN TO , C O N D EN AÇÃO E M ARTÍRIO
D E R ID LEY E LATIM ER • 261

AS F O GU EIRAS D E S M ITH FIELD : R ELATO SO BRE ALGU N S


M ÁRTIRES Q U E CO M A V ID A S ELARAM S EU T ESTEM U N H O
PELA F É P RO STESTAN TE • 275

V ID A, C ARÁTER E H ISTÓ RIA D O V EN ERÁVEL P ASTO R E P RELAD O


T H O M AS C RAN M ER , ARCEBISPO D E C AN TU ÁRIA • 307

AN ED O TAS E F RASES F AM O SAS DE O U TRO S M ÁRTIRES • 337


PREFÁCIO

O U SO M O D ERN O D A palavra mártir exige que in iciem os a apre-


sen tação desta obra com um a defin ição clara. O ptam os pela acepção
m ais com um articulada n o D icionário H ouaiss (2001): o m ártir é um a
“pessoa submetida à pena de morte pela recusa de renunciar à fé cristã
ou a qualquer de seus princípios”. Ou seja, no sentido mais tradicion al,
n ão se trata de um assassin o-suicida que m ata pessoas alheias com o
in tuito de vin gar-se ou defen der um a idéia. Pelo con trário: o verda-
deiro m ártir é sem pre vítima de agressão e violên cia. O m ártir cristão
é aquele que prefere m orrer a ren egar seu Sen hor e sua fé.
Acreditam os que um estudo sobre a postura dos m ártires cristãos
de todas as épocas pode n os levar ao cern e da fé. En ten dem os que o
m artírio em si n ão legitim a a fé n em justifica doutrin as por si só. N ão
é o ato de sacrificar-se em n om e de um a con vicção que tran sform a
esta con vicção em verdade. Porém , quan do com partilham os desta
con vicção, o que observam os n o m ártir n os leva n aturalm en te a um a
reflexão a respeito da n atureza da n ossa própria fé.
O Livro dos M ártires é um clássico sem paralelo que recon ta as
vidas, os sofrim en tos e as m ortes triun fan tes dos m ártires cristãos da
O LIVRO DOS M ÁRTIRES

história. In ician do-se com a história do prim eiro m ártir – o próprio


Jesus Cristo – este relato histórico excepcion al traça os cam in hos da
perseguição religiosa. Expõe os casos de m ártires fam osos com o John
W ycliffe, John H uss, W illiam Tyn dale, Thom as Cran m er e m uitos
outros.
O autor, John Foxe (1516-1587), n asceu n a In glaterra e estudou
n a U n iversidade de O xford. Torn ou-se professor dessa in stituição e
un iu-se aos reform adores in gleses. Q uan do a católica rom an a M ar y
Tudor assum iu o rein ado do país, orden ou a perseguição dos protes-
tan tes reform adores. John Foxe con seguiu escapar e fugiu para a Ale-
m an h a. D uran t e seu exílio n a Alem an h a e n a Suíça, com eçou a
com pilar in form ações sobre m artírio e perseguição dos cristãos. A
prim eira edição desse livro foi publicada em 1559, em latim . Após a
en tron ização da protestan te rain ha Elizabeth, Foxe voltou à In glater-
ra. A tradução in glesa foi editada em 1563, sob o título T he Actes and
M onuments of T hese Latter and Perilous D ayes. N o en tan to, a obra tor-
n ou-se con hecida popularm en te por O Livro dos M ártires, título que
con sagrou-se ao lon go da história.
N ão satisfeito apen as com as den ún cias do livro origin al, o autor
acrescen tou ao m an uscrito outros relatos e n arrativas ao lon go de sua
vida, e su p er vision ou a ed ição d e várias ed ições exp an d id as. H oje
h á várias versões d a obra, algu m as com relat os acrescen t ad os p or
ed it ores após a m orte de Foxe. A m en sagem d’O Livro dos M ártires
m oldou a con sciên cia religiosa e política da In glaterra duran te vários
séculos.
A presen te edição deste livro é um a tradução da versão em in glês,
revista e reestruturada por W. Grin ton Berr y. A tradução – prim orosa
– foi em preen dida por Alm iro Pisetta, ex-professor de poesia in glesa e
n orte-am erican a n a FFLCH /U SP. En ten dem os que o tradutor con se-
guiu destrin char a sin taxe labirín tica de Foxe, produzin do um texto
in teligível ao leitor brasileiro sem ferir as in ten ções do autor. O que é
m ais adm irável é que a oportun a sim plificação da prosa de Foxe n ão
soa an acrôn ica, pois o tradutor teve o cuidado de m an ter traços da
form alidade típica dos textos da época.

8
P REFÁCIO

Para esta edição, encomendamos 16 gravuras do jovem artista plás-


tico brasileiro M arcelo M oscheta. Comentando a sua opção ilustrativa,
o artista escreveu:

Som os pessoas do presen te século e, com o tal, lerem os este


livro com a m en te deste século, procuran do ser tocados pelo
exemplo deixado por aqueles grandes homens de D eus. N esse
sen tido, m eu desejo foi fazer um a obra atual, con tem porâ-
n ea, represen tativa do que vivem os n estes últim os dias.
A an atom ia m e traz a sen sação de estar en tran do n a carn e
de alguém , sen t in do suas dores, ouvin do cada bat im en t o
cardíaco. Todo o sofrim en to destes hom en s de D eus foi n a
carn e; toda a dor, todo o fogo que ardeu, queim ou a carn e
som en te. A proposta de fazer este en saio optan do por gra-
vura em m etal n ão foi à toa. As prim eiras edições deste livro
foram assim ilustradas, com cen as literais e realistas. N esse
contexto, acredito con tribuir para a m em ória desta obra tam -
bém . Além disso, a gravura em m etal possui um processo
interessante. Assim como as estampas que representa, a chapa
de cobre (m etal n obre) é cortada, lim ada e lixada várias ve-
zes. Ela passa pelo fogo e pela corrosão de ácidos e mordentes.
Sofre a ação de pon tas e in strum en tos cortan tes até estar
preparada para a im pressão fin al.
Con sidero a técn ica do lavis (as áreas de m an cha), que
m uitas vezes rem ete-m e a um a radiografia, a parte “espiri-
tual” destas estam pas, com o se pudéssem os en xergar o espí-
rito deixan do o corpo e todo o sofrim en to para trás.

N ossa in ten ção ao lan çar esta n ova edição d’O Livro dos M ártires é
provocar, em cada leitor, um a reflexão sobre a exten são e a profun di-
dade da fé cristã.

– M ark L. Carpen ter


Editora M undo Cristão

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A PERSEGUIÇÃO AO S
PRIMEIRO S C RISTÃO S

CRISTO, N O SSO SEN H O R, n o evan gelho de S. M ateus, ao ouvir a


con fissão de Sim ão Pedro, que, an tes de todos os outros, abertam en te
O recon heceu com o sen do o Filho de D eus, e pelo fato de perceber a
m ão secreta de Seu Pai, cham ou-o (n um a alusão ao n om e dele) de
pedra, sobre a qual Ele con struiria a Sua Igreja tão forte que as portas
do in fern o n ão prevaleceriam con tra ela. N essas palavras há três pon -
tos dign os de n ota: prim eiro, que Cristo teria um a Igreja n este m un -
do. Segun do, que essa Igreja seria fortem en te com batida, n ão apen as
pelo m un do, m as tam bém pelas forças e poderes suprem os de todo o
in fern o. E, terceiro, que essa Igreja, apesar de todo o esforço do de-
m ôn io e de toda a sua m alícia, con tin uaria.
A profecia de Cristo n ós a vem os adm iravelm en te realizada, de tal
m odo que todo o percurso da Igreja até os dias de hoje pode parecer
sim plesm en te a sua con cretização. Prim eiro, n em é preciso dizer que
Cristo estabeleceu um a Igreja. Segun do, que exércitos de prín cipes,
reis, m on arcas, govern adores e dirigen tes deste m un do, jun tam en te
com seus súditos, pública e privadam en te, com toda força e astúcia,
voltaram -se con tra essa Igreja! E, terceiro, com o essa Igreja, apesar de
O LIVRO DOS M ÁRTIRES

tudo isso, sem pre resistiu e preservou o que é seu! As torm en tas e
tem pestades por ela superadas form am um quadro adm irável. A fim
de apresen tar esses fatos de m odo m ais eviden te, eu preparei este
livro de história, com o objetivo de, prim eiro, pôr em evidên cia as
m aravilhosas obras de D eus n a Sua Igreja para a Sua glória; e, segun -
do, para que, m edian te a con tin uação dos an ais da Igreja publicados
de tem pos em tem pos, m ais con hecim en to e experiên cia possam de-
les resultar, em proveito do leitor e da edificação da fé cristã.
N o in ício da pregação de Cristo e da chegada do evan gelho, quem
sen ão os fariseus e escribas daquele povo que detin ha a Sua lei deve-
ria tê-lo recon hecido e recebido? N o en tan to, quem O perseguiu e
rejeitou m ais do que justam en te eles? Q ual foi a con seqüên cia? Eles,
recusan do Cristo com o seu Rei e escolhen do serem súditos de César,
pelo próprio César foram com o tem po destruídos.
O m esm o exem plo do irado castigo de D eus deve ser igualm en te
visto n os próprios rom an os. Pois quan do Tibério César, ao tom ar co-
n hecim en to, por cartas de Pôn cio Pilatos, dos feitos de Cristo, dos
Seus m ilagres, ressurreição e ascen são ao céu, e de com o Ele foi rece-
bido com o D eus por m uitos, ten den do o próprio im perador para essa
cren ça, acon selhou-se ele sobre o caso com todo o sen ado de Rom a e
propôs que Cristo fosse adorado com o D eus; os sen adores, n ão con -
cordan do com a proposta, recusaram -n a porque, con trarian do a lei
dos rom an os, Ele foi con sagrado (disseram eles) com o D eus an tes
que o sen ado de Rom a O t ivesse aprovado por decreto. Assim os
vaidosos sen adores (satisfeitos sob o rein ado do im perador e n ão sa-
tisfeitos sob o m an so Rei de glória, Filho de D eus) foram atorm en ta-
dos e apan hados em arm adilhas pela sua in justa recusa, exatam en te
do m odo que eles escolheram . Pois com o preferiram o im perador e
rejeitaram Cristo, assim a justa perm issão de D eus atiçou con tra eles
os seus im peradores de tal sorte que os próprios sen adores foram
quase todos destruídos e toda a cidade foi afligida do m odo m ais
horrível pelo espaço de quase trezen tos an os.
Em prim eiro lugar, o m esm o Tibério, que, duran te gran de parte
do seu rein ado foi um prín cipe discreto e tolerável, torn ou-se depois

14
A P ERSEGU IÇÃO AO S P RIM EIRO S C RISTÃO S

um tiran o severo e cruel, que n ão favoreceu n em m esm o a própria


m ãe, n em poupou os seus sobrin hos ou os prín cipes da cidade que
eram seus con selheiros pessoais, preservan do a vida de apen as dois
ou três de vin te que eram . Suetôn io relata que Tibério era tão duro
por n atureza e tão tiran o que n um ún ico dia ele registrou o n om e de
vin t e pessoas que deveriam ser con duzidas ao local da execução.
D uran te o seu rein ado, por justo castigo de D eus, Pilatos, sob o qual
Cristo fora crucificado, foi preso e en viado para Rom a, deposto, de-
pois ban ido da cidade para Vien n e, em D auphin y, on de acabou se
m atan do. Agripa, o velho, tam bém foi atirado n a prisão por Tibério,
m as em seguida foi-lhe restituída a liberdade.
D epois da m orte de Tibério, sucederam -se Calígula, Cláudio N ero
e D om ício N ero. Esses três foram igualm en te flagelos do sen ado e do
povo de Rom a. O prim eiro orden ou que ele m esm o fosse adorado
com o deus, que se erigissem tem plos em seu n om e. Costum ava sen -
tar-se n o tem plo en tre os deuses, exigin do que im agen s dele fossem
expostas em todos os tem plos, in clusive n o de Jerusalém . Tal fato
causou gran de con fusão en tre os judeus, e en tão a abom in ação da
desolação de que se fala n o evan gelho com eçou a se estabelecer n o
lugar san to. A crueldade do seu caráter, ou en tão o seu descon ten ta-
m en to com os rom an os, foi tal que ele desejava que todo o povo de
Rom a tivesse apen as um pescoço, para que ele, a seu bel prazer, pu-
desse dest ruí-lo colet ivam en t e. Por esse m esm o Calígula, H erodes
An tipas, que assassin ou João Batista e con den ou Cristo, foi con den a-
do ao exílio perpétuo on de m orreu m iseravelm en te. Tam bém Caifás,
que com m alícia in terrogou Cristo, foi n a m esm a época rem ovido da
sala do sum o sacerdote, e Jôn atas tom ou o seu lugar.
A ferocidade descon trolada de Calígula n ão cessou, n ão foi extir-
pada pelas m ãos do tribun o e de outros cavalheiros que o assassin a-
ram n o qu art o an o d o seu rein ad o. D ep ois d e su a m ort e foram
en con trados n o seu gabin ete dois livrin hos, um in titulado a Espada, o
outro, o Punhal. N eles estavam escritos os n om es dos sen adores e
n obres de Rom a que ele preten dia levar à m orte. Além disso, foi en -
contrado um cofre no qual estavam guardados diversos tipos de ven n o

15
O LIVRO DOS M ÁRTIRES

den tro de vidros e frascos, com a fin alidade de destruir um espan toso
n úm ero de pessoas. M ais tarde esses ven en os, ao serem jogados ao
m ar, causaram um a gran de m ortan dade de peixes.
M as aquilo que Calígula havia apen as con cebido, isso m esm o pu-
seram em prática os outros dois im peradores que o sucederam ; isto é,
Cláudio N ero, que reinou durante treze anos com muita crueldade; mas
especialm ente o terceiro desses N eros, o cham ado D om ício N ero, que,
suceden do a Cláudio, rein ou catorze an os com tal furor e tiran ia que
assassinou a maioria dos senadores e destruiu toda a ordem da cavalaria
de Roma. Tão prodigioso monstro da natureza era ele (mais parecendo
um an im al, ou m elhor, um dem ôn io do que um hom em ), que dava a
impressão de ter nascido para a destruição da humanidade. Tal era a sua
lamentável crueldade que o fez matar a própria mãe, o cunhado, a irmã,
sua m ulher e seus m estres, Sên eca e Lucan o. Além disso, orden ou que
Rom a fosse in cen diada em doze pon tos, e assim a cidade ardeu du-
rante seis dias e sete noites, enquanto ele, para ter o exemplo de como
queim ara Tróia, can tava versos de H om ero. Para livrar-se da in fâm ia
desse feito, pôs a culpa n os hom en s cristãos e os fez perseguir.
E assim con tin uou esse lastim oso im perador até que fin alm en te o
sen ado, proclam an do-o in im igo público dos seres hum an os, o con de-
n ou a ser arrastado pela cidade e depois flagelado até a m orte. Te-
m en do essa pun ição, ele, escapan do das m ãos dos seus in im igos, fugiu
n o m eio da n oite para um a herdade de um de seus servos, n o in terior,
on de foi forçado a m atar-se, queixan do-se de que n ão lhe sobrara
n em um am igo e n em um in im igo disposto a fazer aquilo por ele.
O s judeus, n o an o seten ta, cerca de quaren ta an os depois da pai-
xão de Cristo, foram destruídos por Tito e por seu pai Vespasian o
(que sucedeu N ero n o im pério) n um total de um m ilhão e cem m il,
sem con tar aqueles que Vespasian o m atou ao subjugar a região da
Galiléia. D ezessete m il foram ven didos e en viados para o Egito e ou-
tras provín cias com o vis escravos; dois m il Tito trouxe con sigo para a
celebração do seu triun fo. D estes, m uitos ele en tregou para que fos-
sem devorados por an im ais selvagen s, os restan tes foram assassin a-
dos de outras form as cruéis ao extrem o.

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A P ERSEGU IÇÃO AO S P RIM EIRO S C RISTÃO S

Com o apresen tei a justiça de D eus para com esses perseguidores


rom an os, assim expon ho agora as suas perseguições realizadas con tra
o povo e os servos de Cristo, den tro do espaço de trezen tos an os.
Essas perseguições são geralm en te con sideradas dez n o total, além
das prim eiras que foram provocadas pelos judeus, em Jerusalém e
outros lugares, con tra os apóstolos. D epois do m artírio de Estêvão,
quem padeceu em seguida foi Tiago, o san to apóstolo de Cristo e
irm ão de João. “Q uan do esse Tiago,” diz Clem en te, “foi trazido para
o ban co dos réus, quem o trouxe e foi a causa da sua aflição, ven do
que ele seria con den ado e sofreria a m orte, sen tiu-se tão com ovido
em seu coração e con sciên cia que, a cam in ho da execução, con fessou
que ele tam bém era cristão. E assim foram con duzidos jun tos. D u-
ran te o cam in ho pediu a Tiago que perdoasse o que ele fizera. D epois
de pon derar o caso por um in stan te con sigo m esm o, Tiago voltou-se
para ele e disse: — Q ue a paz esteja con tigo, irm ão — e beijou-o. O s
dois foram decapitados jun tos, em 36, d.C.
Tomé pregou aos pártios, medos e persas, e também aos carmânios,
hircân ios, báctrios e m ágios. Padeceu em Calam in a, um a cidade da
Ín dia, sen do m orto por um a flechada. Sim ão, irm ão de Judas e de
Tiago, o jovem (que eram filhos de M aria Clopas e de Alfeu), foi
bispo de Jerusalém depois de Tiago e foi crucificado n um a cidade do
Egito n o tem po do im perador Trajan o. Sim ão, o apóstolo, cham ado
Can an eu e Zelotes, pregou n a M auritân ia, n a África e n a Bretan ha:
ele tam bém foi crucificado.
M arcos, o evan gelista e prim eiro bispo de Alexan dria, pregou o
evan gelho n o Egito e lá, am arrado e arrastado para a fogueira, foi
queim ado e depois sepultado n um lugar cham ado ‘Bucolus’, sob o
im perador Trajan o. D iz-se de Bartolom eu que tam bém pregou aos
in dian os e que traduziu o evan gelho de S. M ateus para a lín gua deles.
Por fim , em Albin ópolis, cidade da gran de Arm ên ia, após várias per-
seguições, foi abatido a bordoadas e depois crucificado. Em seguida,
após ser esfolado, foi decapitado.
Sobre An dré, o apóstolo e irm ão de Pedro, assim escreve Jerôn im o:
“An dré pregou n o an o oiten ta de n osso Sen hor Jesus Cristo aos cítios

17
O LIVRO DOS M ÁRTIRES

e sógdios, aos sacas e n um a cidade cham ada Sebastópolis, agora habi-


tada pelos etíopes. Foi sepultado em Patras, cidade da Acaia, depois
de crucificado por Egéias, o govern ador dos edessen os. Bern ardo e
Ciprian o m en cion am a con fissão e m artírio do aben çoado apóstolo.
Basean do-n os em parte n o que dizem eles e em parte n o que dizem
outros escritores, in ferim os o seguin te: quan do An dré, por m eio de
sua diligen te pregação con vertera m uitos à fé em Cristo, o govern a-
dor Egéias, saben do disso, dirigiu-se a Patras, n o in tuito de forçar
todos os que acreditavam que Cristo era D eus, com plen o con sen ti-
m en to do sen ado, a oferecer sacrifícios aos ídolos e prestar-lhes hon -
ras divinas. André, achando no início que era bom resistir aos perversos
con selhos e atos de Egéias, foi ter com ele e dirigiu-lhe a palavra n o
seguin te sen tido: “que con vin ha a quem era juiz de hom en s, prim eiro
con hecer o seu Juiz que m ora n o céu e depois de con hecê-lo, adorá-lo.
E assim , n a adoração do D eus verdadeiro, afastar a sua m en te dos
deuses falsos e ídolos cegos.” Essas palavras disse An dré ao procôn sul.
M as Egéias, m uito aborrecido com tal atitude, quis saber dele se
era o m esm o An dré que derrubara o tem plo dos deuses e persuadira
cidadãos a abraçarem a supersticiosa seita que os rom an os recen te-
m en te haviam m an dado abolir e rejeitar. An dré afirm ou com fran -
queza que os prín cipes dos rom an os n ão en ten diam a verdade e que
o Filho de D eus, vin do do céu para este m un do, por am or dos ho-
m en s, havia en sin ado e m ostrado com o aqueles ídolos, que eles tan to
hon ravam com o deuses, além de n ão serem deuses, eram crudelíssim os
demônios, in im igos da hum an idade, que en sin avam ao povo apen as
aquilo que ofen de a D eus. E D eus, sen do ofen dido, afasta-se e n ão
lhes dá aten ção. Assim , pelo serviço perverso do dem ôn io, eles m er-
gulham n a m aldade, e depois de sua m orte n ada deles sobra, exceto
as suas m aldades.
M as o procôn sul atacou-o e orden ou que An dré n un ca m ais en si-
n asse e pregasse essas coisas; caso con trário, deveria ser am arrado à
cruz im ediatam en te.
An dré, perm an ecen do firm e e constante em suas convicções, res-
pondeu assim sobre o castigo com que fora ameaçado: “Q ue ele n ão
teria pregado a hon ra e glória da cruz, se tem esse a m orte n a cruz.”

18
A P ERSEGU IÇÃO AO S P RIM EIRO S C RISTÃO S

D epois disso, foi pronunciada a sentença de condenação: André deveria


ser crucificado, por ensinar e promover uma nova seita e por abolir a
religião dos seus deuses. Ao dirigir-se ao lugar do m artírio e ao ver ao
longe a cruz já preparada, André não mudou nem de semblante nem de
cor, seu sangue não se retraiu, a voz não hesitou, o corpo não desfale-
ceu, a m en te n ão se perturbou, o en ten dim en to n ão lhe faltou, com o
sói acon tecer com os hom en s. Sua voz, porém , falou extravasan do a
abun dân cia do seu coração, e um a arden te caridade m ostrou-se n as
suas palavras com o cen telhas de fogo. D isse ele: “Ó cruz, extrem a-
m en te bem -vin da e tão lon gam en te esperada! D e boa von tade, cheio
de alegria e desejo, eu ven ho a ti, discípulo que sou daquele que pen -
deu de ti: pois sem pre fui teu am an te e sem pre desejei te abraçar.”
M ateus, tam bém cham ado Levi, prim eiro publican o tran sform a-
do em apóstolo, escreveu o seu evan gelho en dereçado aos judeus n a
lín gua hebraica. D epois de con verter à fé a Etiópia e todo o Egito,
H ircan o, o rei deles, m an dou alguém tran spassá-lo com um a lan ça.
Filipe, o san to apóstolo, depois de m uito ter trabalhado en tre n a-
ções bárbaras pregan do-lhes a palavra da salvação, n o fim padeceu
em H ierápolis, cidade da Frígia, on de foi crucificado e apedrejado até
a m orte. Lá m esm o foi sepultado, jun tam en te com suas filhas.1
Sobre Tiago, o irm ão do Sen hor, lem os o seguin te:
Tiago assum iu o govern o da Igreja com os apóstolos, destacan do-
se en tre todos os hom en s, desde o tem po de n osso Sen hor, com o
alguém justo e perfeito. N ão tom ava vin ho n em bebida alcoólica e
n ão com ia alim en to algum de origem an im al.
A n avalha n un ca lhe tocou a cabeça. A ele som en te era perm itido
en trar n o recin to sagrado do tem plo, pois n ão se vestia com roupas de
lã, m as apen as de lin ho. Costum ava en trar a sós e lá, cain do de joe-
lhos, pedia perdão para o povo. Assim , pelo fato de se ajoelhar com
tan ta freqüên cia para adorar a D eus e im plorar perdão para o povo,
seus joelhos perderam o sen tido do tato e ficaram en torpecidos e
ásperos com o os de um cam elo. Ele foi, pela excelên cia de sua vida
justa, cham ado de “o Justo” e “a salvaguarda do povo.”

1
É preciso en ten der que os relatos dos m artírios dos apóstolos provêm sobretudo
da tradição.

19
O LIVRO DOS M ÁRTIRES

Por isso, quan do m uitos dos seus hom en s im portan tes passaram a
crer, houve um tum ulto provocado pelos judeus, escribas e fariseus,
os quais diziam : “C orre-se o p erigo d e qu e t od o o p ovo ven h a a
con siderar Jesus com o o Cristo”. Reun iram -se, portan to, en tre si e
disseram a Tiago: “N ós te im ploram os para refrear o povo, pois as
pessoas crêem em Jesus com o se ele fosse Cristo. N ós te rogam os para
persuadir a todos os que vieram para a festa da Páscoa a pen sarem
corretam en te sobre Jesus. Pois todos prestam ouvidos a ti e todo o
povo atesta que tu és justo e que n ão aceitas a pessoa de qualquer
hom em . Portan to, persuade o povo para que n in guém seja en gan ado
a respeito de Jesus, pois todo o povo e até n ós m esm os estam os dis-
postos a obedecer-te. Por isso, fica de pé sobre o pin áculo do tem plo,
para que possas ser visto n o alto e tuas palavras possam ser ouvidas
por todos, pois todas as tribos e m uitos gen tios se reun iram para a
Páscoa”.
E assim os referidos escribas e fariseus puseram Tiago sobre as
am eias do tem plo e dirigin do-se a ele gritavam : — Tu, hom em justo,
a quem todos n ós devem os obedecer, este povo está se perden do se-
guin do Jesus que foi crucificado.
E ele em voz alta respon deu: — Por que m e pergun tais sobre Je-
sus, o Filho do H om em ? Ele está sen tado à m ão direita do Altíssim o
e virá sobre as n uven s do céu.
O uvin do isso m uitos se persuadiram e glorificavam a D eus pelo
testem un ho de Tiago dizen do: — H osan a ao Filho de D avi.
En tão os escribas e fariseus diziam un s aos outros: — Agim os m al
ao provocar esse testem un ho de Jesus. Vam os subir até ele e atirá-lo
para baixo, para que outros, tom ados de m edo, ven ham a n egar a fé.
— E puseram -se a gritar dizen do: — Ei, cuidado! Esse hom em tam -
bém foi seduzido. — Por isso, subiram ao pin áculo do tem plo a fim
de atirá-lo lá do alto. Todavia, ele n ão m orreu com a queda, m as,
viran do-se, pôs-se de joelhos dizen do: — Ó Sen hor D eus, Pai, eu te
suplico para perdoá-los, porque n ão sabem o que fazem . — E eles
disseram un s aos outros: — Vam os apedrejar Tiago, o hom em justo.

20
A P ERSEGU IÇÃO AO S P RIM EIRO S C RISTÃO S

— E o con duziram para castigá-lo com pedras. M as en quan to o ape-


drejavam , um sacerdote lhes disse: — Parem ! Q ue estais fazen do? O
hom em justo orou por vós. — E um dos circun stan tes, um pisoador,
apan hou o in strum en to que se usava para bater e apertar o pan o e
com ele golpeou o hom em justo n a cabeça, e assim term in ou o seu
testem un ho. Sepultaram -n o n aquele m esm o lugar. Ele foi um a verda-
deira testem un ha de Cristo para os judeus e os gen tios.
Tratem os agora das perseguições m ovidas pelos rom an os con tra
os cristãos n a era prim itiva da Igreja, pelo espaço de trezen tos an os.
N esse período causa adm iração ver escritos os n úm eros in críveis de
cristãos in ocen tes que foram torturados e m ortos. Em bora a n atureza
dos castigos fosse variada, a atitude con stan te de todos esses m ártires
sem pre foi a m esm a. Além disso, apesar da in ten sidade dos n um ero-
sos e variados suplícios e tam bém da igual crueldade dos algozes, tão
elevado foi o n úm ero desses persisten tes san tos torturados que, com o
diz Jerôn im o: “N ão há dia duran te o an o in teiro ao qual n ão se possa
atribuir o n úm ero de cin co m il m ártires, com exceção apen as do pri-
m eiro dia de jan eiro”.
A prim eira das dez perseguições foi desen cadeada por N ero por
volta do an o 64 do Sen hor. A tirân ica fúria desse im perador foi cruel
con tra os cristãos, “a pon to de — con form e registra Eusébio — en -
cher cidades de cadáveres hum an os, m ostran do velhos jazen do ao
lado de joven s e corpos de m ulheres aban don ados n us n o m eio da
rua sem respeito algum por seu sexo.” M uitos houve en tre os cristãos
daqueles dias que, ven do as obscen as abom in ações e a in tolerável
crueldade de N ero, julgaram que ele era o an ticristo.
N essa perseguição, en tre m uitos outros san tos, o aben çoado após-
tolo Pedro foi con den ado à m orte e, segun do algun s relatos escritos,
foi crucificado em Rom a; m uito em bora algun s outros, e n ão sem
m otivo, duvidem disso. H egessipo diz que N ero procurava fatos con -
tra Pedro para con den á-lo à m orte. Q uan do o povo percebeu isso,
rogaram a Pedro, com m uita in sistên cia, para que ele fugisse da cida-
de. Pedro n o fim foi persuadido pelos im portun os pedidos e prepa-
rou-se para a fuga. Porém , ao chegar ao portão da cidade, viu o Sen hor

21
O LIVRO DOS M ÁRTIRES

Jesus Cristo vin do ao seu en con tro, a quem Pedro, adoran do, disse: —
Sen hor, para on de vais tu? — Ao que Ele respon deu dizen do: — Es-
tou voltan do para ser crucificado. — Assim Pedro, perceben do que
com essas palavras o Sen hor se referia ao m artírio do qual ele estava
fugin do, voltou para a cidade. Jerôn im o diz que ele foi crucificado,
com a cabeça para baixo e os pés para o alto a pedido dele m esm o
porque era — disse ele — in dign o de ser crucificado do m esm o m odo
e jeito com o o fora o Sen hor.
Paulo, o apóstolo, que antes se chamava Saulo, depois da sua grande
luta e trabalhos in dizíveis n a prom oção do evan gelho, padeceu tam -
bém duran te essa prim eira perseguição de N ero. Abdias declara que,
para a sua execução, N ero en viou dois de seus escudeiros, Ferega e
Partêm io, para lhe com un icar a n otícia de sua m orte. Eles, quan do
chegaram e o viram en sin an do ao povo, pediram -lhe que orasse por
eles a fim de que pudessem vir a crer. Paulo lhes disse que em breve
eles passariam a crer e seriam batizados sobre o seu sepulcro. D epois
disso, os soldados se aproxim aram e o con duziram para fora da cida-
de até o lugar da execução, on de ele, após fazer as suas orações, en tre-
gou o pescoço à espada.
A prim eira perseguição cessou duran te o rein ado de Vespasian o
que perm itiu algum descan so aos pobres cristãos. D epois dele, logo
veio a segun da perseguição desen cadeada pelo im perador D om ician o,
irm ão de Tito. Agin do n o in ício de form a bran da e m oderada, ele em
seguida com eteu um ultraje tão gran de em seu in suportável orgulho
que orden ou a adoração de si m esm o com o deus e m an dou que em
sua hon ra im agen s de ouro e prata fossem erigidas n o capitólio.
N essa perseguição, João, o apóstolo e evan gelista, foi exilado por
D om ician o para a ilha de Patm os. D epois que o im perador m orreu
assassin ado e o sen ado revogou as suas leis, João foi posto em liberda-
de e n o an o 97 veio para Éfeso, on de perm an eceu até o rein ado de
Trajan o. Ali dirigiu as igrejas da Ásia e escreveu o seu evan gelho. E
assim viveu ele até o an o 68 depois da paixão de n osso Sen hor, quan -
do a sua idade era de aproxim adam en te cem an os.

22
A P ERSEGU IÇÃO AO S P RIM EIRO S C RISTÃO S

Clem en te de Alexan dria acrescen ta um a certa história relativa ao


san to apóstolo, que m erece ser lem brada por aqueles que têm prazer
n as coisas hon estas e proveitosas. A história é a seguin te: Q uan do
João voltou para Éfeso proceden te da ilha de Patm os, solicitaram -lhe
que visitasse os lugares n as redon dezas. Q uan do, ao fazê-lo, chegara a
um a certa cidade e havia con fortado os irm ãos, viu um jovem de
corpo robusto, belo sem blan te e espírito arden te. Fixan do sério o re-
cém -in dicado bispo, disse João: — Eu, da m an eira m ais solen e, en tre-
go este hom em em tuas m ãos, aqui n a presen ça de Cristo e da Igreja.
Q uan do o bispo havia recebido de João essa respon sabilidade e
havia prom etido agir com fidelidade e diligên cia em relação a ela,
João n ovam en te dirigiu-lhe a palavra e lhe con fiou a respon sabilidade
com o an tes fizera. Feito isso, João voltou para Éfeso. O bispo, rece-
ben do o jovem en tregue aos seus cuidados, trouxe-o para casa, cui-
d ou d ele, alim en t ou -o e fin alm en t e o bat izou . D epois d isso, ele
gradat ivam en t e relaxou su a at en ção e vigilân cia sob re o jovem ,
con fiando que já lhe dera as melhores salvaguardas possíveis ao marcá-
lo com o selo do Sen hor.
O jovem tin ha en tão m ais liberdade, e acon teceu que algun s de
seus velhos am igos e con hecidos, que eram ociosos, dissolutos e en -
durecidos n a m aldade, passaram a fazer-lhe com pan hia. In icialm en te
o con vidaram para sun tuosos e libertin os ban quetes; depois o con -
ven ceram a sair com eles pela n oite para furtar e roubar; em seguida,
eles o ten taram a com eter m aiores m ales e m aldades. Assim , com o
tem po veio o costum e e pouco a pouco o jovem se torn ou m ais habi-
lidoso e, sen do m uito in teligen te e de in trépida coragem , com o um
cavalo bravio ou in dom ado, aban don an do o cam in ho reto e corren do
solto e sem peias, foi levado de cabeça para as profun dezas da desor-
dem e do ultraje. E assim , esquecen do-se por com pleto da salutar
doutrin a da salvação que an tes apren dera a pon to de rejeitá-la, foi
tão lon ge n o cam in ho da perdição que para ele avan çar m uito m ais
n ão era m otivo de an siedade. D esse m odo, jun tan do-se a um ban do
de com pan heiros e colegas ladrões, ele assum iu o papel de cabeça e

23
O LIVRO DOS M ÁRTIRES

capitão en tre os colegas, n a perpetração de todos os tipos de assassí-


n ios e felon ias.
Acon teceu que João foi n ovam en te solicitado a visitar aquela re-
gião. Veio e, ao en con trar-se com o bispo a quem n os referim os an tes,
cobrou dele que prestasse con tas do com prom isso assum ido n a pre-
sen ça de Cristo e da con gregação que estivera presen te n a ocasião. O
bispo, algo surpreso com as palavras de João, supon do que se referis-
sem a algum din heiro posto sob sua custódia e que ele n ão recebera
(m as m esm o assim n ão ousava descon fiar de João n em con trariar-lhe
as palavras), n ão sabia o que respon der. En tão João, perceben do a sua
perplexidade, expressan do o que queria dizer de m odo m ais claro,
explicou: — O jovem e a alm a do n osso irm ão posta sob a sua custó-
dia, eu os exijo. — En tão o bispo, lam en tan do e choran do em altos
brados, disse: — Ele m orreu. — E João in dagou: — Com o, qual foi a
causa da m orte? — D isse o outro: — Ele m orreu para D eus, pois se
torn ou um hom em m au e desregrado e acabou com o um ladrão. Ago-
ra freqüen ta a m on tan ha em vez da Igreja, n a com pan hia de m alfei-
tores e ladrões iguais a ele.
N esse pon to o apóstolo rasgou suas vestes e, lam en tan do m uito,
disse: — Q ue belo guardião da alm a de seu irm ão deixei aqui! Arran -
je-m e um cavalo e arrum e um guia que m e acom pan he. — Feito isso,
providen ciados o cavalo e o hom em , ele saiu às pressas da Igreja.
Chegan do ao lugar in dicado, foi preso por ladrões que estavam à es-
preita. M as ele, sem ten tar fugir ou resistir, disse: — Vim até aqui
com um a fin alidade. Levem -m e — disse ele — ao seu capitão. Assim
que se cum priu o seu pedido, o capitão, arm ado até os den tes, com e-
çou a exam iná-lo de m odo im piedoso. Logo em seguida, ao recon hecê-
lo, foi tom ado de con fusão e vergon ha e em preen deu um a fuga. M as
o velho o seguiu com o pôde e, esquecen do-se da idade, gritava: —
M eu filho, por que foges de teu pai? U m hom em arm ado fugin do de
um hom em despojado, um jovem fugin do de um velho? Tem piedade
de m im , m eu filho, e n ão ten has m edo, pois ain da resta esperan ça de
salvação. Eu respon derei a Cristo por ti. Eu m orrerei por ti, se for

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A P ERSEGU IÇÃO AO S P RIM EIRO S C RISTÃO S

preciso. Com o Cristo m orreu por n ós, eu darei a m in ha vida por ti.
Acredita-m e, foi Cristo que m e en viou.
O capitão, ouvin do tais palavras, prim eiro, com o se estivesse con -
fuso, ficou estático, e com isso a sua coragem se abateu. D epois jogou
as arm as ao chão e aos poucos com eçou a trem er, sim , e depois cho-
rou am argam en te. Em seguida, aproxim an do-se do velho, abraçou-o
e falou com ele choran do (da m elhor m an eira que pôde), sen do n ova-
m en te batizado n o ato com lágrim as. M as escon dia a m ão direita que
estava en coberta.
Em seguida o apóstolo, depois de prom eter que obteria o perdão
de n osso Salvador, orou, cain do de joelhos, e beijou-lhe a m ão direita
assassin a (que por vergon ha ele an t es n ão ousava m ost rar), agora
purificada pelo arrepen dim en to, e o trouxe de volta para a Igreja. E
quan do havia rogado por ele com oração con tín ua e jejun s diários, e
o havia fortalecido e con firm ado a sua m en te com m uitas m áxim as,
João o deixou n ovam en te restaurado para a Igreja. U m gran de exem -
plo de sin cera pen itên cia, prova de regen eração e um troféu da futura
ressurreição.
As causas de tan ta perseguição aos Cristãos por parte dos im pera-
dores rom an os foram prin cipalm en te estas: o m edo e o ódio.
Prim eiro, o m edo, porque os im peradores e o sen ado, por ign orân -
cia cega, descon hecen do a n atureza do rein o de Cristo, tem iam e des-
confiavam que ele pudesse subverter o seu im pério. Por isso, buscaram
todos os m eios possíveis, com o a m orte e todos os tipos de tortura,
para extirpar totalm en te o n om e e a m em ória dos cristãos.
Em segun do lugar, o ódio, em parte porque este m un do, por sua
própria con dição n atural, sem pre odiou e tratou com m aldade o povo
de D eus, desde o seu prin cípio. Em parte porque os cristãos, ten do
um a n atureza e um a religião con trárias às dos im peradores, servin do
apen as ao D eus vivo e verdadeiro, desprezavam os seus falsos deuses,
falavam con tra adorações idólatras e m uitas vezes detiveram o poder
de Satan ás que agia n os seus ídolos. Por isso, Satan ás, o prín cipe
deste m un do, in stigou os prín cipes rom an os e os idólatras cegos a
n utrir con tra eles um ódio e despeito cada vez m aiores. Q ualquer

25
O LIVRO DOS M ÁRTIRES

desgraça qu e acom et esse a cid ad e ou as p rovín cias d e Rom a, fosse


carestia, peste, terrem oto, guerras, assom bros, desequilíbrios do tem -
po, ou fosse qu alqu er ou t ro m al p ossível, t u d o era im p u t ad o aos
crist ãos.
O s tiran os e órgãos de Satan ás n ão se con ten tavam apen as com a
m orte para tirar a vida do corpo. O s tipos de m orte eram tão diversi-
ficados quan to terríveis. Tudo o que a crueldade da in ven ção do ho-
m em pudesse con ceber para castigar o corpo hum an o era posto em
prática contra os cristãos – açoites e flagelos, estiramentos, dilacerações,
apedrejam en tos, lâm in as de ferro em brasa aplicadas aos seus corpos,
profun das m asm orras, rodas de tortura, estran gulam en tos n as pri-
sões, os den tes de an im ais selvagen s, grelhas, patíbulos e forcas, os
arrem essos sobre os chifres de touros. Além disso, quan do eram m or-
tos por esses m eios, os seus corpos eram am on toados e jun to a eles
deixavam cães para guardá-los, a fim de que n in guém pudesse vir dar-
lhes sepultura, e súplica n en hum a con seguia que eles fossem en tre-
gues para serem sepultados.
E con tudo, apesar de todas essas con tín uas perseguições e casti-
gos horríveis, a Igreja crescia a cada dia, profun dam en te en raizada n a
doutrin a dos apóstolos e dos hom en s apostólicos e abun dan tem en te
regada pelo san gue de san tos.
N a terceira perseguição, Plín io II, hom em erudito e fam oso, to-
m ado de com paixão dian te do lam en tável m assacre de cristãos, escre-
veu ao im p erad or Trajan o at est an d o qu e m u it os m ilh ares eram
diariam en te m ortos, sem que n en hum deles fizesse coisa algum a que
fosse con trária às leis rom an as e m erecesse perseguição. “Todo o rela-
to de seu crim e ou erro (com o se queira den om in ar) con sistia apen as
n isto: eles tin ham o hábito de reun ir-se n um determ in ado dia an tes
do am an h ecer e jun t os repet ir um a form a est abelecida de oração
dirigida a Cristo com o D eus, e de assum ir a obrigação — n ão real-
m en te de com eter m aldades, m as pelo con trário — de n un ca com eter
furtos, roubos ou adultério, n un ca desm en tir a palavra dada, n un ca
defraudar n in guém . D epois disso habit ualm en t e se dispersavam e
voltavam a reun ir-se para partilhar de um a leve refeição em com um .”

26
A P ERSEGU IÇÃO AO S P RIM EIRO S C RISTÃO S

N essa terceira perseguição padeceu o aben çoado m ártir In ácio,


que é lem brado com n otória reverên cia en tre m uitos. In ácio foi esco-
lhido para o bispado de An tioquia suceden do im ediatam en te a Pedro.
D izem algun s que ele, ten do sido en viado da Síria para Rom a por
professar a fé em Cristo, foi atirado às feras selvagen s para ser devora-
do. D ele tam bém se diz que quan do passou pela Ásia, estan do sob a
m ais rigorosa custódia de seus guardas, ele fortaleceu e con firm ou as
igrejas por todas as cidades ao lon go do cam in ho, tan to com suas
exortações com o por sua pregação da palavra de D eus. Assim , ao che-
gar a Esm irn a, escreveu à igreja de Rom a exortan do os cristãos a n ão
lan çar m ão de m eio algum a fim de livrá-lo do m artírio, evitan do de
privá-lo daquilo que ele m ais alm ejava e esperava. “Agora com eço a
ser um discípulo. N ão m e in teresso por n ada do que é visível ou in vi-
sível, para que possa apen as con quistar Cristo. Q ue sobreven ham a
fogueira e a cruz, que ven ham as feras selvagen s, que ven ham a que-
bra de ossos e a dilaceração dos m em bros, que ven ha a trituração do
corpo in teiro, que assim seja. Q uero apen as con quistar Cristo Jesus!”
E m esm o quan do ele foi con den ado a ser atirado às feras, tão arden te
era o seu desejo que, ao ouvir o rugido dos leões, disse: — Eu sou o
trigo de Cristo: serei triturado pelos den tes de an im ais selvagen s para
poder ser con siderado pão puro.
D epois da m orte do discreto e bran do prín cipe An ton in o Pio, veio
seu filho M arco Aurélio, por volta do an o 161 de n osso Sen hor, ho-
m em de n atureza m ais dura e severa. Em bora fosse dign o de louvor
tan to pelo estudo da filosofia quan to pelo govern o civil, con tudo foi
rígido e feroz com os cristãos. Por ele foi desen cadeada a quarta per-
seguição.
D uran te o rein ado de M arco Aurélio um gran de n úm ero dos que
professavam a fé em Cristo sofreu crudelíssim os torm en tos e casti-
gos. En tre eles estava Policarpo, o dign o bispo de Esm irn a. Sobre o
seu fim e m artírio julguei que seria útil legar para a história aquilo
que Eusébio declara ter sido extraído de um a certa carta escrita pelos
m em bros da sua própria igreja (de Policarpo) para todos os irm ãos
espalhados pelo m un do.

27
O LIVRO DOS M ÁRTIRES

Três dias an tes de ser preso, en quan to estava oran do à n oite, ele
adorm eceu e viu n um son ho o seu travesseiro in cen diar-se e logo con -
sum ir-se n o fogo. Acordan do em seguida, im ediatam en te relatou a
visão aos circun stan tes e profetizou que ele seria queim ado vivo por
am or de Cristo. Q uan do as pessoas que an davam à sua procura fe-
charam -lhe o cerco, ele foi in duzido, por am or dos irm ãos, a retirar-se
para outra aldeia. Para lá, porém , logo foram os perseguidores em seu
en calço. E ten do apan hado dois rapazes que m oravam n a vizin han ça,
açoitaram um deles até que este os con duziu ao retiro de Policarpo.
O s perseguidores, ten do chegado tarde da n oite, descobriram que ele
já fora para a cam a n o alto da casa. D ali, se quisesse, ele poderia ter
fugido para o in terior de outra casa. M as recusou-se, dizen do: “Seja
feita a von tade do Sen hor”.
Ao saber que os perseguidores haviam chegado, desceu e dirigiu-
lhes a palavra com sem blan te alegre e agradável, de m odo que eles,
que n un ca o haviam visto, ficaram m aravilhados con tem plan do a sua
ven erável idade e gravidade e perguntavam-se por que deveriam se pre-
ocupar tanto com a captura de um homem tão velho. Ele imediatamen-
te orden ou que um a m esa fosse posta, exortou-os a com er com apetite
e pediu que lhe con cedessem um a hora para orar sem ser m olestado.
Tão repleto estava ele da graça de D eus que os circun stan tes ficaram
assom brados ao ouvir-lhe as orações e m uitos lam en taram que um
hom em tão ven erável e piedoso devesse ser levado à m orte.
D epois de term in ar as orações, n as quais fez m en ção de todas as
pessoas com quem en trara em con tacto n a vida, pequen as e gran des,
n obres e com un s, e de toda a Igreja católica dissem in ada pelo m un do,
chegada a hora de partir, eles o puseram sobre um jum en to e o trou-
xeram para a cidade. Lá Policarpo en con trou-se com o iren arca H ero-
des e seu pai N icetes, que, fazen do-o subir para a sua carruagem ,
puseram -se a exortá-lo dizen do: — Q ue m al há em dizer “Sen hor
César” e em oferecer sacrifícios e assim salvar a própria vida? — D e
in ício ele ficou em silên cio. Porém , ao ser forçado a falar, disse: —
N ão agirei de acordo com os seus con selhos. — Q uan do perceberam
que ele n ão se deixava con ven cer, dirigiram -lhe palavras grosseiras e

28
A P ERSEGU IÇÃO AO S P RIM EIRO S C RISTÃO S

logo o em purraram para fora da carruagem de m odo que ao descer


ele m achucou a can ela. Todavia, im perturbável com o se n ada estives-
se sofren do, foi em fren te exultan te, escoltado pelos guardas, até o
estádio. Lá, em m eio a um ruído tão forte que poucos con seguiam
ouvir alguma coisa, uma voz veio do céu dizendo: — Sê forte, Policarpo,
e com porta-te com o um hom em . — N in guém viu quem falou, m as
m uitos ouviram a voz. Q uan do ele foi trazido ao tribun al, houve um
grande tumulto no instante em que a multidão percebeu que Policarpo
estava preso. O procôn sul pergun tou-lhe se ele era Policarpo. Ao ou-
vir a con firm ação, ele o acon selhou a n egar a Cristo, dizen do-lhe: —
O lhe para si m esm o e ten ha pen a de sua idade avan çada. — E acres-
cen tou m uitas outras frases que eles costum am dizer, tais com o “Jure
pela fortun a de César”, “Arrepen da-se” e “D iga: ‘Abaixo os ateus’”.
En tão Policarpo, com aspecto grave, con tem plan do toda a m ulti-
dão n o estádio e acen an do-lhe com a m ão, em itiu um profun do sus-
piro e, erguen do os olhos para o céu, disse: — Rem ovam -se os ateus.
En tão o procôn sul in sistiu com ele dizen do: — Jure, e eu o porei
em liberdade; ren egue a Cristo.
Respon deu Policarpo: — H á oiten ta e seis an os eu O sirvo, e Ele
n un ca m e faltou. Com o en tão blasfem arei m eu Rei, que m e salvou?
O procôn sul n ovam en te in sistiu: — Jure pela fortun a de César.
Respon deu Policarpo: — U m a vez que sem pre em vão o sen hor se
esforça para m e fazer jurar pela fortun a de César, com o o sen hor diz,
fingindo ign orar o m eu verdadeiro caráter, ouça-m e declarar com fran -
queza o que sou. Eu sou um cristão, e se deseja apren der a doutrin a
cristã, m arque um dia, e en tão poderá m e ouvir.
O uvin do isso, disse o procôn sul: — Ten ho feras selvagen s. Se n ão
se arrepen der, eu o en tregarei a elas.
— M an de trazê-las — replicou Policarpo — pois para n ós o arre-
pen dim en to é um a atitude ruim quan do sign ifica m udar do m elhor
para o pior, m as é um a atitude boa quan do sign ifica um a m udan ça
do m al para o bem .
— Se n ão se arrep en d er, d om arei você com fogo — d isse o
procôn sul — um a vez que despreza as feras selvagen s.

29
O LIVRO DOS M ÁRTIRES

En tão disse Policarpo: — O sen hor m e am eaça com um fogo que


queim a duran te um a hora e logo se apaga. M as o fogo do julgam en to
futuro e do castigo etern o reservado para os ím pios, esse o sen hor
ign ora. M as por que está se delon gan do? Faça tudo o que lhe agradar.
O procôn sul m an dou o arauto proclam ar três vezes n o m eio do
estádio: “Policarpo con fessou que é cristão.” M al essas palavras fo-
ram proferidas, toda a m ultidão, tan to gen tios quan to judeus que
m oravam em Esm irn a, com fúria violen ta se pôs a gritar: — Este é o
doutor da Ásia, o pai dos cristãos e o destruidor dos n ossos deuses,
que en sin ou m uitos a n ão oferecer sacrifícios e a n ão adorar. — A esta
alt ura pediam ao asiarca Filipe para que solt asse um leão con t ra
Policarpo. M as ele recusou-se, alegan do que havia en cerrado o seu
espetáculo. En tão puseram -se a gritar em un ísson o que ele deveria ser
queim ado vivo. Pois sua visão precisava se cum prir — a visão que ele
tivera quan do estava oran do e viu o seu travesseiro in cen diar-se. O
povo im ediatam en te apan hou len ha e outros m ateriais secos n as ofi-
cin as e n os ban hos. N esse serviço os judeus (com sua costum eira
m aldade) sen tiram -se particularm en te dispostos a ajudar.
Q uan do quiseram am arrá-lo n a fogueira, disse Policarpo: — D ei-
xem-me como estou. N ão é preciso prender-me com pregos, pois aquele
que m e dá forças para suportar o fogo tam bém m e fará perm an ecer
n a fogueira sem eu querer fugir. — Assim ele foi am arrado m as n ão
pregado. D isse ele en tão: — Ó Pai, eu te ben digo por m e teres con si-
derado dign o de receber o m eu prêm io en tre os m ártires.
Assim que ele proferiu a palavra “Am ém ”, os oficiais acen deram o
fogo. A ch am a, form an do um a espécie de arco sem elh an t e à vela
en fun ada de um barco, en volveu feito um m uro o corpo do m ártir
que estava n o m eio do fogo n ão com o carn e queim an do m as sim
com o ouro e prat a sen do purificados n a forn alh a. Recebem os em
n ossas n arin as um arom a sem elhan te ao que se evola do in cen so ou
de algun s outros perfum es preciosos. Fin alm en te, o povo m aldoso, ao
perceber que o seu corpo n ão poderia ser con sum ido pelo fogo, m an -
dou que o carrasco se aproxim asse e n ele en terrasse a espada. Ime-
diatam en te, um a quan tidade tão gran de de san gue jorrou que o fogo

30
A P ERSEGU IÇÃO AO S P RIM EIRO S C RISTÃO S

se extin guiu. M as o in vejoso, m align o e despeitado in im igo do justo


procurou um jeito de n os im pedir de recolher o pobre corpo. D e fato,
algum as pessoas sugeriram a N icetes para procurar o procôn sul e pe-
dir-lhe que n ão en tregasse o corpo aos cristãos: — Para evitar — dis-
seram eles — que, aban don an do o crucificado, eles passem a adorar a
ele. — Isso disseram depois de ouvir as sugestões e argum en tos dos
judeus, que tam bém n os vigiaram quan do queríam os retirar o corpo
da fogueira. O cen turião, perceben do a m alevolên cia dos judeus, fez
colocar o corpo n o m eio do fogo e queim á-lo. Recolhem os em seguida
os seus ossos — m ais preciosos que ouro e jóias — e os depositam os
n um lugar adequado.
D uran te a m esm a perseguição padeceram os gloriosos e m ui con s-
tan tes m ártires de Lyon e Vien n e, duas cidades da Fran ça, dan do um
retum ban te testem un ho e, para todos os cristãos, um espetáculo ou
exem plo sin gular de fortaleza em Cristo n osso Salvador. A história
deles é assim con tada pelas suas próprias igrejas on de padeceram :
Em pregou-se toda a fúria da m ultidão, do govern ador e dos solda-
dos con tra o diácon o San to de Vien n e e M aturo, n a verdade um re-
cém -con vertido m as tam bém um m agn ân im o lutador em questões
espirituais; con tra Átalo de Pérgam o, um hom em que sem pre fora
um pilar e suporte da n ossa igreja; e fin alm en te con tra Blan din a, n a
qual Cristo m ostrou que aquilo que parece feio e desprezível en tre os
hom en s é m uito hon roso aos olhos de D eus, graças ao am or ao Seu
n om e dem on strado com verdadeira en ergia e n ão com sim ulações
afetadas e alardeadas. Pois, em bora n o n osso grupo todos tem essem
e, en tre os dem ais, a sua patroa n este m un do (ela própria um in te-
gran te do n obre exército de m ártires) tivesse m uito m edo de que ela
n ão fosse capaz de testem un har um a boa con fissão, dada a fraqueza
do seu corpo, Blan din a revestiu-se de tam an ha força que os seus tor-
turadores, revezan do-se da m an hã até a n oite, sen tiram -se realm en te
exten uados e con fessaram -se ven cidos e exauridos com todo o seu
aparato de torturas. Estavam abism ados ao vê-la ain da respiran do
quan do o seu corpo jazia dilacerado e aberto. A aben çoada m ulher
recuperou n ovo vigor n o at o da con fissão e provou um a eviden te

31
O LIVRO DOS M ÁRTIRES

an ulação de todas as dores ao dizer: — Sou cristã, e en tre n ós n ão se


com ete n en hum m al.
San to suportou de m odo sobre-hum an o as m ais bárbaras hum i-
lhações. O s ím pios esperavam extorquir dele algo in jurioso con tra o
evan gelho m edian te o prolon gam en to e a in ten sidade dos seus sofri-
m en tos. M as ele resistiu com tal firm eza que n ão lhes revelou o seu
n om e n em o da sua n ação ou estado e n ão perm itiu que soubessem se
era um hom em livre ou um escravo. A cada pergun ta respon dia: —
Eu sou cristão. — Isso, con fessou repetidas vezes, era para ele seu
n om e, país, fam ília, tudo.
O s fiéis avan çavam com passo firm e en quan to iam sen do con du-
zidos ao suplício. Seus sem blan tes brilhavam com m uita graça e gló-
ria. O s grilh ões eram seu s m ais belos orn am en t os. Eles m esm os
pareciam n oivas en feitadas em suas belas vestes, respiran do a fra-
grân cia de Cristo. Eram subm etidos à m orte de várias m an eiras: ou,
em outras palavras, teciam um a grin alda de flores e perfum es diver-
sos e a apresen tavam ao Pai.
M aturo, San to, Blan din a e Átalo foram atirados com o alim en to
às feras selvagen s n o an fiteatro, servin do de espetáculo grosseiro para
os desum an os gen tios. Foram expostos a todas as barbaridades que a
m ultidão en san decida exigia aos gritos, sobretudo à cadeira de ferro
in can descen te sobre a qual os seus corpos foram assados, em itin do
um cheiro repugn an te. Após perm an ecerem vivos por um lon go tem -
po n essa con dição, acabaram aos poucos expiran do.
Blan din a, pen durada n um poste, foi exposta com o alim en to aos
an im ais selvagen s. Pôde ser vista suspen sa n a form a de um a cruz,
en tretida n um a súplica arden te. A visão in spirou seus colegas de com -
bate com m uito en tusiasm o. Com os próprios olhos corporais con -
tem plavam n a pessoa de sua irm ã a figura daquele que por eles foi
crucificado. N en hum a das feras n aquela ocasião a tocou. Ela foi reti-
rada do poste e jogada n ovam en te n a m asm orra. Por m ais fraca e
desprezível que pudesse parecer, todavia, quan do vestida de Cristo, o
poderoso e in ven cível cam peão, ela ven ceu o in im igo n um a série de
batalhas e foi coroada com a im ortalidade.

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A P ERSEGU IÇÃO AO S P RIM EIRO S C RISTÃO S

Átalo tam bém foi exigido com veem ên cia pela m ultidão, por ser
en tre n ós um a pessoa de m uita fam a. Avan çou com toda a boa dispo-
sição e seren idade de um a boa con sciên cia. Cristão experien te, estava
sem pre pron to e atuan te para dar testem un ho da verdade. Foi con du-
zido ao redor do an fiteatro, en quan to um a tabuleta era carregada
dian te dele com a in scrição: “Este é Átalo, o cristão”. A fúria do povo
o teria despachado de im ediato. M as o govern ador, en ten den do que
se tratava de um rom an o, que poderia in vocar o privilégio da sua
cidadan ia, escreveu ao im perador e aguardou in struções. César expe-
diu orden s para que os con fessores de Cristo fossem levados à m orte:
os cidadãos rom an os tin ham o privilégio de m orrer por degolação; os
dem ais seriam expostos às feras selvagen s.
N essa ocasião o n osso Reden tor foi en altecido n a pessoa daqueles
que haviam apostatado. Eles foram interrogados à parte, como pessoas
que logo seriam dispen sadas. M as, para surpresa dos gen tios, con fes-
saram a Cristo e foram se som ar à lista dos m ártires.
A aben çoada Blan din a foi executada depois de todos os outros.
Q ual m ãe gen erosa que havia exortado os seus filhos, a quem n a fren -
te en viara vitoriosos ao Rei, recapitulan do toda a série de torturas,
apressou-se a prová-las ela m esm a, jubilosa e triun fan te em seu êxito,
como se fosse alguém convidado a um banquete nupcial e não alguém a
ser exposto às feras. D epois de ter suportado os açoites, a dilaceração
das feras e a cadeira de ferro, ela foi presa n um a rede e atirada a um
touro. D epois de ser jogada para o alto por algum tem po pelo an im al,
m ostran do-se m uito superior aos seus sofrim en tos pela in fluên cia da
esperan ça, pela visão con scien te dos objetos de sua fé e pela sua asso-
ciação com Cristo, ela fin alm en te en tregou o seu espírito.
Vejam os agora a história daquele extrem am en te con stan te e cora-
joso m ártir de Cristo, São Louren ço, cujas palavras e obras m erecem
perm an ecer frescas e verdes n os corações cristãos com o as folhas de
um verdejan te loureiro. Esta corsa seden ta, an sian do pela água da
vida, desejoso de con quistá-la passan do pela porta estreita da dura
m orte, quan do em certa ocasião viu o seu vigilan te pastor Sixto, bis-
po de Rom a, sen do con duzido por perigosos tiran os com o um cordei-

33
O LIVRO DOS M ÁRTIRES

ro in defeso para a sua m orte, gritou expon do sua voz e um coração


in ven cível, dizen do: — Ó querido pai, para on de estás in do sem a
com pan hia do teu filho? Q ue crim e com eti que ofen deu a tua pater-
n idade? Acaso m ostrei-m e desn aturado? Verifica agora, doce pai, se
tu escolheste um m in istro fiel ou n ão. N egas-lhe a con san güin idade?
— Essas palavras proferiu Louren ço en tre lágrim as, n ão para que o
seu m estre sofresse, m as porque talvez n ão lhe fosse dado provar do
cálice da m orte que ele arden tem en te queria beber.
Sixto en tão form ulou a seguin te resposta para o seu filho: — N ão
estou te aban don an do, m eu filho. Eu te garan to que um a batalha
m ais dura te resta. Sou um velho frágil e debilitado. Por isso, corro
um a prova m ais leve e fácil. M as tu és vigoroso e jovem e com m ais
vigor, sim , com m ais glória, triun farás sobre este tiran o. O tem po se
aproxim a. Pára de lam en tar. D aqui a três dias m e seguirás. Por que
desejas participar com igo da m in ha paixão? Eu deixo para ti toda a
m in ha heran ça.
Aproxim em o-n os da fogueira do m árt ir Louren ço para que os
n ossos corações n ela se aqueçam . O im piedoso tiran o, en ten den do
que ele não era apenas um ministro dos sacramentos mas também um
distribuidor das riquezas da igreja, prom eteu a si m esm o um a dupla
recom pen sa com a apreen são de um a ún ica alm a. Prim eiro, com o
an cin ho da avareza jun taria para si próprio o tesouro dos cristãos
pobres; depois, com o cruel garfo da tiran ia de tal form a os arrem es-
saria para o alto e os con fun diria até deixá-los can sados da sua profis-
são. Com rosto en furecido e sem blan te cruel, o lobo voraz in dagou
on de Louren ço havia guardado as posses da igreja. Este, pedin do um
prazo de três dias, prom eteu declarar on de seria possível en con trar o
tesouro. N esse ín terim , fez reun ir um bom n úm ero de cristãos po-
bres. Assim , quan do chegou o dia da sua resposta, o perseguidor ter-
m in an tem en te exigiu que cum prisse o prom etido. En tão o corajoso
Louren ço, esten den do os braços sobre os pobres, disse: — Estes são o
precioso tesouro da igreja. Estes são de fato o tesouro n os quais a fé
em Cristo rein a, n os quais Jesus Cristo tem a sua m an são. Q ue jóias
m ais preciosas pode ter Cristo do que aqueles em quem Ele prom eteu

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A P ERSEGU IÇÃO AO S P RIM EIRO S C RISTÃO S

habitar? Pois assim está escrito: “Tive fom e, e m e destes de com er;
tive sede, e m e destes de beber; era forasteiro, e m e hospedastes.” E
n ovam en te está escrito: “Vede, o que vós fizestes ao m en or destes
pequen in os, foi a m im que o fizestes.” Q ue riqueza m aior pode ter
Cristo, o n osso M estre, do que as pessoas pobres, n as quais Ele gosta
de ser visto?
Ah, lín gua n en hum a saberia expressar a fúria e loucura do co-
ração do tiran o! Ele bufou e estrilou, m ugiu e tugiu, com o alguém
que perdeu o juízo: os olhos se lhe in can desceram com o fogo; a boca
espum ava com o a de um javali; m ostrava os den tes feito um cachor-
ro. Podia-se dizer que já n ão era um hom em racion al, m as sim um
leão a rugir.
— Acen dam a fogueira! — gritou ele. — N ão econ om izem len ha.
Este vilão ludibriou o im perador? Fora com ele, fora com ele! Casti-
guem -n o com açoites, façam -n o pular com pauladas. O traidor quis
brin car com o im perador? Belisquem -n o com ten azes in can descen tes,
apertem -n o en tre lâm in as em brasa, tragam as corren tes m ais fortes
com espetos can den tes e a cam a com grade de ferro: pon ham -n a so-
bre o fogo. Am arrem o rebelde, m ãos e pés. Q uan do a cam a estiver
em brasa, joguem -n o em cim a dela: que seja assado, grelhado, virado
e atirado para o alto. Q ue cada um de vós, ó carrascos, cum pra o seu
papel, sob pen a da n ossa gran de irritação.
M al a ordem fora dada e já era plen am en te cum prida. D epois de
m uitos tratam en tos cruéis, o m an so cordeiro foi deitado, n ão digo
sobre a sua cam a de ferro in can descen te, m as sim sobre um m acio
leito de plum as. Tão poderosam en te operou D eus n o seu m ártir, tão
m ilagrosam en te tem perou o Seu elem en to, o fogo, que Louren ço n ão
se deitou sobre um a cam a de dor que m ata, m as sobre um colchão
que recon forta.
Alban o foi o prim eiro m ártir da In glaterra a padecer a m orte pelo
n om e de Cristo. Foi n o tem po de D ioclecian o e M axim ian o. O s im pe-
radores haviam expedido suas cartas decretan do que os cristãos fos-
sem perseguidos com todo rigor. Alban o, que n a época era um in fiel,
recebeu em sua casa um certo clérigo que estava fugin do das m ãos

35
O LIVRO DOS M ÁRTIRES

dos perseguidores. D epois de vê-lo sem cessar, dia e n oite, perseve-


ran te em sua vigília e oração, de repen te, pela gran de m isericórdia de
D eus, Alban o passou a im itar-lhe o exem plo de fé e de vida virtuosa.
D epois disso, pouco a pouco, sen do ele in struído pela salutar exorta-
ção do clérigo e aban don an do a cegueira da idolatria, acabou por
torn ar-se um perfeito cristão.
E depois que o clérigo ficou n a sua casa por um certo tem po,
in form aram ao m alvado prín cipe que esse bom hom em e con fessor
de Cristo (que ain da n ão fora con den ado à m orte) estava hospedado
n a casa de Alban o ou m uito próxim o dela. Ao saber disso, o prín cipe
im ediatam en te in cum biu os soldados de fazerem a in vestigação m ais
cuidadosa possível da questão. Assim que eles chegaram à casa, Albano,
vestin do-se com a in dum en tária do seu hóspede e m estre, en tregou-
se n o lugar dele aos soldados, que o am arraram e o trouxeram imedia-
tam en te ao juiz.
Acon teceu que, n a hora em que trouxeram Alban o, o juiz foi en -
con trado jun to aos altares oferecen do sacrifícios aos dem ôn ios. As-
sim que o viu, ele de im ediato foi tom ado de m uita raiva, por ter
Alban o ousado, de livre e espon tân ea von tade, pôr a vida em risco
en tregan do-se aos soldados com o prision eiro para proteger o hóspede
a quem dera abrigo. Por isso, m an dou que o trouxessem e o pusessem
dian te das im agen s dos dem ôn ios a quem estava adoran do, dizen do:
— Pelo fato de teres preferido esconder e ocultar um rebelde a entregá-
lo n as m ãos dos oficiais a fim de que ele (n a qualidade de desrespeita-
dor dos n ossos deuses) fosse cast igado pela sua blasfêm ia, hás de
receber o m esm o castigo que ele receberia, se eu perceber em ti o
m ín im o sin al de revolta con tra a n ossa form a de adoração. — M as o
aben çoado Alban o, que por in iciativa própria havia revelado aos per-
seguidores que era cristão, n ão se in tim idou an te as am eaças do prín -
cipe. Arm ado com a couraça espiritual, abertam en te declarou que
n ão obedeceria às orden s recebidas.
D isse en tão o juiz: — D e que fam ília ou paren tesco és tu? —
Respon deu Alban o: — Q ue im portân cia tem para o sen hor saber de

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A P ERSEGU IÇÃO AO S P RIM EIRO S C RISTÃO S

que fam ília sou? Se quiser ouvir a verdade sobre a m in ha religião,


quero in form á-lo de que sou cristão e a essa vocação m e dedico ple-
n am en te. — D isse en tão o juiz: — Gostaria de saber o teu n om e e
trata de dizê-lo sem m ais delon gas. — Respon deu Alban o: — M eus
pais m e deram o n om e de Alban o, e eu adoro o D eus vivo e verdadei-
ro, Criador de todo este m un do. — D isse en tão o juiz, cheio de raiva:
— Se quiseres desfrutar a felicidade de um a vida lon ga, oferece sacri-
fícios aos deuses, já n este m om en to. — Replicou Alban o: — Estes
sacrifícios que o sen hor oferece aos dem ôn ios n ão lhes servem de
n ada e n ão realizam os desejos e orações dos que apresen tam as súpli-
cas. — O juiz, ao ouvir essas palavras, ficou zan gado ao extrem o e
orden ou que os algozes açoitassem o san to con fessor de D eus, ten -
tan do derrotar com chibatadas a con stân cia do seu coração, con tra a
qual ele n ada con seguira com palavras. Alban o foi cruelm en te casti-
gado, m as tudo suportou com paciên cia, ou m elhor, até com alegria,
pelo am or do Sen hor. D epois, quan do o juiz se deu con ta de que com
torturas ele n ão seria dobrado n em dem ovido da religião cristã, orde-
n ou que fosse decapitado.
D eixem os agora a In glaterra para voltar a outros países on de a
perseguição grassava com m aior veem ên cia.
O im piedoso Galério com o seu gran de prefeito Asclepíades in va-
diu a cidade de An tioquia n o in tuito de, pela força das arm as, fazer
todos os cristãos ren un ciar radicalm en te à sua pura religião. N aquele
dia os cristãos en con travam -se reun idos, e um certo Rom an o foi cor-
ren do an un ciar-lhes que os lobos estavam por perto queren do devo-
rar o reban ho cristão. — M as n ão ten ham m edo — disse ele — n em
deixem que esse im in en te perigo os perturbe, m eus irm ãos. — Acon -
teceu en tão que, pela gran de graça de D eus atuan do em Rom an o,
velhos e m atron as, pais e m ães, m an cebos e don zelas, m ostraram to-
dos a m esm a von tade e decisão, estan do m ais do que dispostos a
derram ar o próprio san gue em defesa da fé que professavam .
Chegou ao prefeito a n otícia de que um pelotão de soldados ar-
m ados n ão con seguiu arran car o báculo da fé das m ãos da con grega-

37
O LIVRO DOS M ÁRTIRES

ção de cristãos, e tudo porque Rom an o os in stigou com tal veem ên cia
que eles n ão hesitaram em oferecer a própria gargan ta, desejan do
m orrer gloriosam en te pelo n om e de Cristo. — En con trem o rebelde
— disse o prefeito — tragam -n o à m in ha presen ça para que ele res-
pon da por toda a seita. — Ele foi apreen dido e, am arrado com o um a
ovelha con duzida ao m atadouro, foi apresen tado ao im perador, que,
fixan do-o com sem blan te irado, disse: — Com o! És tu o autor da
revolta? És tu a causa de tan tos perderem a própria vida? Juro pelos
deuses que tu hás de pagar caro por isso. Prim eiro, n a tua carn e sofre-
rás as dores para as quais an im aste o coração dos teus colegas.
Respon deu Rom an o: — A tua sen ten ça, ó prefeito, eu a recebo
com alegria. N ão m e recuso a ser sacrificado pelos m eus irm ãos, por
m ais cruéis que sejam os m eios que tu possas in ven tar. N o que se
refere ao fato de que os teus soldados foram repelidos pela con grega-
ção cristã, isso apen as acon teceu porque era in adm issível que idóla-
tras e adoradores de dem ôn ios en trassem n a casa de D eus e poluíssem
o lugar da verdadeira oração.
En tão Asclepíades, absolutam en te furioso com essa in trépida res-
posta, orden ou que Alban o fosse am arrado com os braços presos ao
corpo e depois eviscerado. O s próprios carrascos, que tin ham um co-
ração m ais piedoso que o do prefeito, in tercederam : — N ão pode ser,
sen hor. Este hom em é de um a fam ília n obre. É ilegal subm eter um
n obre a m orte tão ign óbil. — Respon deu o prefeito: — Q ue seja en tão
flagelado com açoites com pon tas de chum bo. — Em vez de lágrim as,
suspiros e gem idos, ouviu-se a voz de Alban o can tan do salm os du-
ran te todo o tem po da flagelação, pedin do aos algozes que n ão o
poupassem pela sua n obreza. — N ão é o san gue dos m eus progen ito-
res — dizia ele — m as sim a profissão de fé cristã que m e faz n obre.
— As salutares palavras do m ártir eram com o óleo para o fogo da
fúria do prefeito. Q uan to m ais o m ártir falava, m ais en louquecido ele
ficava, a pon to de orden ar que as ilhargas do m ártir fossem perfura-
das a faca até aparecer o bran co dos ossos.
Q uan do Rom an o pela segun da vez pregou o D eus viven te, o Se-
n hor Jesus Cristo, Seu Filho bem -am ado, e a vida etern a por m eio da

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A P ERSEGU IÇÃO AO S P RIM EIRO S C RISTÃO S

fé n o Seu san gu e, Asclep íad es ord en ou aos car rascos q u e lh e


esm urrassem a boca at é que seus den tes fossem arran cados e sua
pron ún cia acabasse tam bém afetada. A ordem foi cum prida: ele foi
esm urrado, suas sobran celhas foram rasgadas a un ha e suas faces per-
furadas a faca; a pele da barba foi pouco a pouco arran cada; fin al-
m en te, seu belo rosto estava todo deform ado. D isse o dócil m ártir: —
Eu lhe agradeço, ó prefeito, por ter aberto em m im m uitas bocas, com
as quais posso pregar a Cristo, m eu Sen hor e Salvador. Veja, cada
ferida que eu ten ho é um a boca louvan do e can tan do a D eus.
O prefeit o, assom brado com essa sin gular con stân cia, orden ou
que suspen dessem as torturas. Am eaçou o n obre m ártir com o fogo
cruel, in sultou-o e blasfem ou a D eus dizen do: — O teu Cristo cruci-
ficado n ão é m ais que um D eus de on tem . O s deuses dos gen tios são
de extrem a an tigüidade.
N esse pon to Rom an o, aproveitan do a ocasião, fez um lon go dis-
curso sobre a etern idade de Cristo, sua n atureza hum an a, e sobre a
sua m orte e expiação pela hum an idade. Em seguida , disse ele: — D ê-
m e, ó prefeito, um a crian ça de apen as sete an os, idade isen ta de m a-
lícia de outros vícios com os quais a idade m ais m adura geralm en te
está in fectada, e o sen hor ouvirá o que ela tem a dizer. — Seu pedido
foi aceito.
D en tre a m ultidão cham ou-se um m en in in ho que foi colocado
dian te do m ártir. — D ize-m e, filhin ho — disse ele — se tu achas que
há razão para que adorem os a um só Cristo, e em Cristo a um só Pai,
ou en tão para que adorem os a m uitos deuses.
Ao que o m en in in ho respon deu: — Certam en te Aquele que os
hom en s afirm am ser D eus (seja o que for), deve ser um só; e o que lhe
é próprio é ún ico. Porque Cristo é ún ico, Cristo é n ecessariam en te o
verdadeiro D eus, pois n ós crian ças n ão podem os acreditar que exis-
tam m uitos deuses.
A essa altura o prefeito, tom ado de puro espan to, disse: — Tu,
jovem vilão e traidor, on de e de quem apren deste essa lição?
— D e m in ha m ãe — disse a crian ça. — Com seu leite suguei a
lição de que devo crer em Cristo. Cham ou-se a m ãe, e ela de bom

39
O LIVRO DOS M ÁRTIRES

grado se apresen tou. O prefeito orden ou que a crian ça fosse pen dura-
da e açoitada. O s con doídos espectadores desse ato im piedoso n ão
con seguiam con trolar as lágrim as. Apen as a m ãe, exultan te e feliz, a
tudo assistia com as faces secas. N a verdade, ela repreen deu o seu
doce filhin ho por im plorar um gole de água fria. D isse-lhe para ter
sede da taça da qual outrora beberam os in fan tes de Belém , deixan do
de lado o leite e as papin has de suas m ães. Ela o en corajou a lem brar-
se do pequen o Isaque que, ven do a espada com a qual seria abatido e
o altar sobre o qual seria queim ado em sacrifício, de boa m en te apre-
sen tou o ten ro pescoço ao golpe da espada do seu pai. En quan to era
dado esse con selho, o san guin ário algoz arran cou o couro do alto da
cabeça do m en in o, com cabelo e tudo. Gritou en tão a m ãe: — Agüen -
ta, filhin ho! Logo tu verás Aquele que te en feitará a cabeça n ua com
um a coroa de glória etern a. — A m ãe con sola, a crian ça sen te-se con -
solada; a m ãe an im a, o m en in in ho sen te-se an im ado e recebe os açoi-
tes com um sorriso n o rosto.
O prefeito, perceben do que a crian ça era in ven cível e sen tin do-se
derrotado, m an dou o aben çoado m en in in ho para a fétida m asm orra
e deu orden s para que as torturas de Rom an o, prin cipal autor destas
m aldades, fossem repetidas e in ten sificadas.
Assim , Rom an o foi trazido outra vez para n ovos açoites, deven do
os castigos ser ren ovados e aplicados sobre as suas velhas feridas. O
tiran o já n ão agüen tava m ais; era n ecessário apressar a sen ten ça de
m orte. — É pen oso para ti — disse ele — con tin uar vivo por tan to
tem po? N ão ten has dúvida de que um a flam ejan te fogueira será em
breve preparada. N ela tu e aquele m en in o, teu com pan heiro de rebe-
lião, sereis con sum idos e tran sform ados em cin za. — Rom an o e o
m en in in ho foram con duzidos para a execução. Ao chegarem ao local
escolhido, os carrascos arran caram o filho da sua m ãe, que o tom ara
n os braços. A m ãe, lim itan do-se a beijá-lo en tregou a crian cin ha. —
Adeus! — disse ela — Adeus, m eu doce filhin ho. Q uan do tiveres en -
trado n o rein o de Cristo, lá n o teu aben çoado estado lem bra-te da tua
m ãe. — E en quan t o o carrasco aplicava a espada ao pescoço da
crian cin ha, ela can tou assim :

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A P ERSEGU IÇÃO AO S P RIM EIRO S C RISTÃO S

Todo louvor do coração e da voz


N ós te ren dem os Sen hor.
N este dia em que a m orte deste san to
Recebes com m uito am or.

Ten do sido cortada a cabeça do in ocen te, a m ãe a en volveu em


seu vestido e a segurou n o colo. D o lado oposto, um a gran de fogueira
foi acesa n a qual Rom an o foi atirado. N o m esm o in stan te desabou
um a gran de tem pestade. Fin alm en te o prefeito, sen tin do-se con fuso
dian te da força e coragem do m ártir, deu orden s rigorosas para que
ele fosse recon duzido à prisão, on de deveria ser estran gulado.

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