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IAIN PROVAN

V. PHILIPS LONG
TREMPER LONGMAN III

UMA HISTORIA
BÍBLICA DE
ISRAEL
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Angélica llacqua CRB-8/7057

Provan,Iain
U ma história bíblica de Israel / Iain Provan, V. Philips Long,
Tremper Longman I I I ; tradução de Mareio Loureiro Redondo. - São
Paulo: Vida Nova, 2016.
496 p.

Bibliografia
ISBN 978-85-275-0643-4
Título original: A biblical history o f Israel

1. Bíblia V.T. - H istória 2, Israel 3. Eventos bíblicos I. Título II.


Long, V. Philips III. Longman,Tremper IV. Redondo, Mareio Loureiro

15-0970 C D D 221.95

índices para catálogo sistemático:

1. Bíblia A.T. - Historiografia


®2003, de Ia in Provan, V. P h ilip s L o n g e T rem p er L o n g m a n I I I
T ítu lo do original: A biblical history o f Israel,
edição publicada pela W e s t m i n s t e r J o h n K n o x P r e s s (Louisville, K entucky, E U A ).

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por


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l . a edição: 2016

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T odas as citações bíblicas sem indicação d a versão foram extraídas da A lm eid a Século 21.
C itações bíblicas com a sigla T A se referem a traduções feitas pelo autor.

G e r ê n c ia e d it o r ia l
F abiano Silveira M edeiros

C o o r d e n a ç ã o e d it o r ia l
V aldem ar K roker

E d iç ã o d e t e x t o
T ia g o A bdalla

R e v is ã o d a t r a d u ç ã o e
prepa ra çã o d e t ex t o

T atian e Souza
M arcos G ra n co n a to

R e v is ã o d e p r o v a s
Sylm ara B eletti

C o o rden açã o d e produ ção


Sérgio Siqueira M o u ra

D ia g r a m a ç ã o
S andra Reis O liveira

C a pa
O M D esigner
Sumário

Prefácio.........................................................................................................................11
Cronologia simplificada dos períodos arqueológicos em Canaã................................13
Reduções (siglas e abreviaturas)................................................................................. 15

P R IM E IR A PA R T E :
H IS T Ó R IA , H IS T O R IO G R A F IA E A B ÍB L IA

C apítulo 1 A h istória bíblica m orreu?.....................................................................21


Análise de um obituário......................................................................... 22
O defunto de fato está m orto?............................................................... 25
Os textos bíblicos e opassado.............................................................25
A arqueologia e opassado...................................................................26
Ideologia epassado..................................................................................... 27
O obituáriofo i precipitado?.............................................................28
Uma longa enfermidade: dois estudos de caso iniciais...................... 29
Soggin e a história de Israel..............................................................30
M iller e Hayes e a história de Israel.................................................36
Um a breve história da historiografia....................................................41
A história da história de Isra el..............................................................48
As tradições patriarcais......................................................................49
As tradições relativas a Moisés/Josué............................................... 52
As tradições de fuízes......................................................................... 53
Conclusão........................................................................................... 59
É possível salvar o paciente?...................................................................61

C apítulo 2 C onhecer e crer: a fé no passad o ..........................................................65


Um reexame da “história científica”......................................................67
A ciência e afilosofia da ciência........................................................ 67
6 U M A H I S T Ó R I A B ÍB L IC A D E ISR A EL

A história como ciência: uma breve história da divergência............ 69


Testemunho, tradição e passado............................................................74
Testemunho e conhecimento...............................................................76
Reconsiderando a história da historiografia ................................... 83

C apítulo 3 C onhecendo a história de Is ra e l..........................................................85


Verificação e falsificação..........................................................................88
Testemunhos antigos e recentes............................................................92
A ideologia e o passado de Israel.........................................................103
A arqueologia e opassado............................................................... 104
Textos extrabíblicos e opassado de Israel.......................................106
Ideologia e historiografia.................................................................113
Ideologia epensamento crítico.........................................................115
A analogia e o passado de Israel..........................................................116
Conclusão................................................................................................ 120

C apítulo 4 N arrativa e história: relatos sobre o passado.................................. 123


O ressurgimento da história narrativa depois de quase morrer.... 125
Análise literária e o estudo da história: casamento feliz ou
divórcio tardio?.............................................................................. 129
Narratividade: realidade ou ilusão?..................................................... 133
A narratividade da vid a ................................................................ 134
A narratividade da historiografia fbíblica) e a questão daficção... 137
Historiografia: arte ou ciência?............................................................ 139
A leitura da historiografia narrativa.................................................... 143
A poesia da narrativa bíblica............................................................... 147
Exemplo: Salomão no texto e no tem po............................................ 151
Resumo e perspectiva............................................................................ 155

C apítulo 5 U m a história bíblica de Israel............................................................ 157

SEG U N D A PARTE:
A H IS T Ó R IA D E IS R A E L ,
D E A B R A Ã O A T É O P E R ÍO D O P E R S A

C apítulo 6 A ntes da conquista da te rra ................................................................ 169


Fontes para o estudo do período patriarcal: o relato de Gênesis.. 170
O relato dos patriarcas........................................................................... 171
S U M Á R IO 7

As narrativas patriarcais como teologia e como história................173


A história dos patriarcas e a história do texto................................... 174
Os patriarcas no ambiente do Antigo O riente Próxim o................. 176

O contexto sociológico dos patriarcas................................................184


Gênesis 14 e a história do período patriarcal.....................................186
A narrativa de José (G n 37— 50)......................................................... 189
Análise literária............................................................................... 190
O propósito teológico da narrativa de José...................................... 191
José no Egito..................................................................................... 192
O nascimento de M oisés.......................................................................195
O chamado de Moisés e as pragas do E g ito......................................197
O Êxodo e a travessia do m ar.............................................................. 200
A data do Ê xo do.................................................................................... 203
A peregrinação no deserto.................................................................... 205
Do Egito ao Monte Sinai............................................................... 205
Do Sinai a Cades-Barneia e depois às planícies de Moabe...........209
Conclusão.................................................................................................211

C apítulo 7 O estabelecim ento na t e r r a ................................................................ 213


Fontes para o estudo do estabelecimento israelita em C a n a ã ......214
O surgimento de Israel em Canaã: um a análise das teorias
propostas pelos estudiosos............................................................214
A teoria da conquista......................................... .............................215
A teoria da infiltração pacífica....................................................... 217
A teoria da revolta (dos camponesesj............................................. 219
Outras teorias endógenas................................................................ 222
Análise dos textos bíblicos (Josué e Juizes)...................................... 228
O livro de Josué................................................................................ 231
O livro de Juizes.............................................................................. 241
Um estudo de Josué eJuizes em conjunto........................................254
Análise dos textos extrabíblicos...........................................................258
A esteia de Merneptá.......................................................................258
As cartas de A m arna.......................................................................260
Análise dos vestígios m ateriais............................................................265
Descobertas arqueológicas de Jericó, Ai, Hazor e L aís.................. 266
Outros sítios arqueológicos importantes........................................ 280
Sítios da região montanhosa na Idade do Ferro 1......................... 286
8 U M A H I S T Ó R I A B ÍB L IC A D E ISR AEL

Integrando as evidências textuais e m ateriais...................................289


Conclusão................................................................................................ 292

C apítulo 8 A M onarquia A n tig a ........................................................................... 295


Fontes para o estudo da M onarquia Antiga em Israel.................... 297
A cronologia da M onarquia A ntiga em Israel..................................304
Introdução à história da monarquia: ISam uel 1— 7 ........................308
Israel exige e obtém seu rei: ISam uel 8— 1 4 ....................................316
A ascensão de Davi e a decadência e a morte de Saul:
ISam uel 15— 3 1 ............................................................................328
D avi fo i mesmo um personagem histórico?................................... 329
Com que precisão o D avi da tradição reflete o D avi real
e histórico ?..............................................................................332
Com que precisão a narrativa bíblica descreve os atos
específicos de D a v it................................................................ 338
O relato bíblico da ascensão de D avi ao poder é
historicamente aceitável?...................................................... 344
O reino de Davi: 2Samuel 1— 1 0 .......................................................347
A questão relacionada à Jerusalém................................................. 348
A questão relacionada ao império................................................... 351
A família e o sucessor de Davi: 2Samuel 11— 2 4 ............................354
Conclusão................................................................................................ 361

C apítulo 9 A M onarquia Posterior: S alom ão.....................................................363


Fontes para o estudo da M onarquia Posterior em Israel................ 363
A cronologia da M onarquia Posterior em Israel.............................. 368
O reinado de Salom ão.......................................................................... 374
Salomão: os anos iniciais.................................................................374
O governo de Salomão sobre Israel................................................ 376
Salomão e o mundo de sua época.....................................................380
Os projetos de construção de Salomão.............................................384
Salomão e a religião de Israel........................................................387

C apítulo 10 A M onarquia Posterior: os reinos d iv id id o s..................................391


A divisão de Israel: de Roboão até O n ri............................................391
O período da dinastia de O n r i........................................................... 399
D e Jeú à queda de Samaria..................................................................407
D a queda de Samaria à rendição de Jerusalém ................................420
SU M Á R IO 9

C apítulo 11 O Exílio e o período p o ste rio r............................................................431


Fontes para o estudo do período exílico.............................................431
A queda de Jerusalém ............................................................................ 432
A extensão da destruição.......................................................................434
O alcance da deportação........................................................................435
Os que permaneceram...................................................................... 438
Examinando a ocorrência do E xílio...............................................440
A queda da Babilônia.............................................................................441
Fontes para o estudo do período pós-exílico.................................... 442
O período pós-exílico inicial................................................................ 443
O decreto de Ciro............................................................................. 443
A identidade e afunção de Sesbazar e Zorobabel..........................445
Os governadorespós-exílicos de Yehud eprovíncias vizinhas.....448
Uma comunidade de cidadãos do Templo?.....................................450
A construção do Templo....................................................................451
Quem foram os “inimigos de Yehud”no período
pós-exílico inicial?.................................................................. 453
O período pós-exílico intermediário: o livro de E s te r.....................455
O período pós-exílico final................................................................... 459
A seqüência dos trabalhos de Esdras e Neemias............................. 460
Esdras e Neemias no contexto da política persa............................. 462
Quemforam os “inimigos de Yehud”no período pós-exílicofinal?.... 464
Transições para operíodo intertestamentãrio.................................466

Conclusão................................................................................................................... 467
índice de passagens bíblicas........................................................................................469
índice remissivo..........................................................................................................481
Prefácio

Q uando você pensa que tudo na história já


aconteceu, descobre que não aconteceu.
D uncan P rovan, ao s 11 a n o s

O balbuciar dos bebês e as declarações de seus irmãos mais velhos têm diversas uti­
lidades. U m a delas é fazer com que os autores não precisem dar longas explicações
sobre a razão de sua obra, para proveito dos que desejariam lê-las. Assim, restringi­
mos aqui nossos comentários a manifestações de agradecimento a todos os que nos
ajudaram a concluir este projeto, em especial a Jason M cKinney e Carrie Giddings,
que realizaram a maior parte do trabalho pesado e da revisão de provas. Para
decepção dos que gostam de aplicar a crítica editorial a obras escritas por mais de
um autor e, portanto, precisam fazer intervalos mais freqüentes para respirar um
pouco de ar puro, acrescentamos apenas a seguinte informação: os capítulos 1-3,
5, 9 e 10 são em grande parte de autoria de Provan; os capítulos 4, 7 e 8 são prin­
cipalmente de Long; e os capítulos 6 e 11 são predominantemente de Longman.
Provan atuou também como editor geral, unindo todas as partes do livro, e Long foi
o responsável pela obra durante o processo de publicação.

Iain Provan
Phil Long
Tremper Longm an III
Cronologia simplificada dos
períodos arqueológicos
em Canaã

Idade do Bronze M édia (BM) 2100-1550


BMI 2100-1900
B M II 1900-1550
Idade do Bronze Recente (BR) 1550-1200
BRI 1550-1400
BR II 1400-1200
Idade do Ferro 1200-332
Ferro I 1200-1000
Ferro II 1000-586
Ferro III 586-332
Reduções
(siglas e abreviaturas)

AB Anchor Bible
ABD The Anchor Bible dictionary. David N. Freedman et al. (orgs.)
AJSL American Journal o f Semitic Languages and Literatures
ANEP The Ancient Near East in pictures.J. B. Pritchard (ed.)
ANET Ancient Near Eastern texts. J. B. Pritchard (ed.)
AOA T A lter O rient und Altes Testament
A SOR American Schools o f O riental Research
A TD an Acta theologica danica
A U SD D S Andrews University Seminary Doctoral Dissertation Series
A U SS Andrews University Seminary Studies
BA Biblical Archaeologist
BARev Biblical Archaeology Review
BASO R Bulletin o f the American Schools o f Oriental Research
Bib Biblica
BibOr Biblica et Orientalia
BibS(N) Biblische Studien (Neukirchen, 1951-)
BJS Brown Judaic Studies
BKAT Biblischer Kommentar: Altes Testament
BN Biblische Notizen
BR Biblical Research
BSem The Biblical Seminar
BTB Biblical Theology Bulletin
B ZA W Beihefte zur Zeitschrift fíir die alttestamentliche W issenschaft
CAH Cambridge Ancient History
CBQ Catholic Biblical Quarterly
CNBB Versão do Conselho Nacional dos Bispos do Brasil
16 U M A H I S T Ó R I A B ÍB L IC A D E ISR A EL

ConB Coniectanea biblica


C onB O T Coniectanea bíblica, O ld Testament
EA Tábuas de Tell el-Amarna
ESHM European Seminar in Historical M ethodology
ETL Ephemerides theologicae lovanienses
FB Forschung zur Bibel
FC I Foundations o f Contem porary Interpretation
FOTL Forms o f the O ld Testam ent Literature
HSM Harvard Semitic M onographs
HTh History and Theory
H T IB S Historie Texts and Interpreters in Biblical Scholarship
HUCA Hebrew Union Gollege Annual
IE J Israel Exploration Journal
JA N E S Journal o f the Ancient Near Eastern Society
JAO S Journal o f the American Oriental Society
JB L Journal o f Biblical Literature
JC S Journal o f Cuneiform Studies
JE T S Journal ofthe Evangelical Theological Society
JJS Journal o f Jewish Studies
JN E S Journal o f Near Eastern Studies
JN SL Journal o f Northwest Semitic Languages
JS O T Journalfor the Study o f the Old Testament
JSO TSup Journal for the Study o f the O ld Testament, Supplement Series
JSS Journal o f Semitic Studies
JTS Journal o f Theological Studies
JT T Journal ofText and Translation
LAI Library o f A ncient Israel
LBI Library o f Biblical Interpretation
NAC N ew American Com mentary
NBD N ew Bible dictionary. I. H . M arshall et al. (orgs.)
NCB New Century Bible
N IB C New International Biblical Com mentary
N ID O T T E N ew International dictionary o f Old Testament theology and exegesis.
W illem VanGemeren (org.)
N IV New International Version
N RSV New Revised Standard Version
OBO Orbis biblicus et orientalis
OBS Oxford Bible Series
R E D U Ç Õ E S (SIGLAS E ABR EVIATURAS) 17

OTG O ld Testam ent Guides


OTL O ld Testam ent Library
OTS Oudtestamentische Studiên
PEQ Palestine Exploration Quarterly
RA Revue d ’assyriologie et d ’archéologie orientale
SBET Scottish Bulletin ofEvangelicallheology
SBib Subsidia Biblica
SBLDS Society o f Biblical Literature Dissertation Series
SBLWAW SBL W ritings from the Ancient W orld
SBT Studies in Biblical Theology
SBTS Sources for Biblical and Theological Study
ScrB Scripture Bulletin
ScrHier Scripta Hierosolymitana
SEÃ Svensk exegetisk ãrsbok
SH A N E Studies in the H istory o f the Ancient Near East
SH C A N E Studies in the History and Culture o f the A ncient Near East
SHJPLI Studies in the H istory o f the Jewish People and the Land o f Israel
M onograph Series
SJOT Scandinavian Journal o f the Old Testament
SM N IA Tel Aviv University Sonia and M arco Nadler Institute o f
Archaeology M onograph Series
ST Studia Theologica
StudP Studia Phoenicia
SWBA The Social W orld o f Biblical Antiquity
TOTC Tyndale O ld Testam ent Commentaries
TRu Iheologische Rundschau
TSTS Toronto Semitic Texts and Studies
TynBul Tyndale Bulletin
TZ Theologische Zeitschrift
U C O IP The University o f Chicago O riental Institute Publications
VT Vetus Testamentum
VTS Supplements to Vetus Testamentum
WTJ Westminster TheologicalJournal
ZAW Zeitschriftfür die alttestamentliche Wissenschaft
ZDM G Zeitschrift der deutschen morgenlàndischen Gesellschaft
P r im e ir a p a r t e

HISTÓRIA,
HISTORIOGRAFIA
E A BÍBLIA
Capítulo 1

A história bíblica morreu?

Chegou a hora de a história da Palestina alcançar a maturidade e rejeitar formal­


mente os objetivos e as restrições da “história bíblica” [...]. E o historiador quem
deve estabelecer os objetivos e não o teólogo.

... a morte da “história bíblica”...

O obituário foi redigido por K. W. W hitelam .1 Ao utilizar a expressão “história


bíblica” ele se refere a um a reconstrução da história da Palestina definida e dom i­
nada pelo interesse nos textos bíblicos e pela explicação deles, em um modelo em
que tais textos constituem a base da pesquisa histórica ou estabelecem os objetivos
dela.2 Pode-se descrever o resultado desse trabalho como “... pouco mais do que
paráfrases do texto bíblico decorrentes de motivações teológicas”.3 É esse tipo de
história bíblica que, segundo W hitelam , está morto. Resta apenas realizar o funeral
e prosseguir.
O anúncio dessa morte é um ponto apropriado para iniciarmos nosso livro, que
deliberadamente inclui a expressão “história bíblica” no título e certamente pretende
estabelecer o texto bíblico como o centro de nosso empreendimento. O obituário
nos leva a tratar de algumas questões importantes antes que possamos, de fato, co­
meçar. Como chegamos ao funeral descrito pelos comentários de W hitelam ? Acaso
era inevitável que tudo terminasse assim? A morte de fato ocorreu ou (lembrando
Oscar W ilde) os relatos do fim da história bíblica têm sido muito exagerados?

l The invention o f ancient Israel: the silencing ofPalestinian history (London: Routledge, 1996), p. 35,69.
2Ibidem , p. 51, 68-9.
3Ibidem , p. 161. W hitelam atribui essa ideia especificamente a G arbini, mas parece que ela está em
clara harm onia com a de W hitelam .
22 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA

Quais são as possibilidades de salvar o paciente? O u, caso isso não ocorra, ele pode
ser ressuscitado? N a busca de respostas a essas perguntas, temos de entender um
pouco como a disciplina da História de Israel se desenvolveu até sua forma atual.
Nosso primeiro capítulo é dedicado a essa tarefa; começaremos pelo fim, com a
discussão e a análise dos argumentos de W hitelam .4

ANÁLISE DE UM OBITUÁRIO

A tese central de W hitelam é que o Antigo Israel elaborado pelos estudiosos da


Bíblia com base, principalmente, nos textos bíblicos não passa de um a invenção que
tem contribuído para silenciar a verdadeira história da Palestina. Ele alega que todos os
textos antigos são “parciais”, no sentido tanto de não apresentarem a história completa
quanto de exporem somente uma perspectiva dessa história (são, assim, “ideologica­
mente influenciados”). Relatos específicos do passado são, de fato, invariavelmente
produzidos por uma pequena elite em qualquer sociedade e, sem dúvida, concorrem
com outros possíveis relatos sobre o mesmo passado, dos quais talvez não tenhamos
evidência alguma no presente. Contudo, todos os historiadores modernos também
são “parciais”, tendo crenças e compromissos que influenciam o modo que escrevem
suas histórias e até mesmo as palavras que utilizam em suas descrições e análises (e.g.,
“Palestina”, “Israel”). W hitelam afirma que, com frequência, por razões teológicas ou
ideológicas, os autores que estão predispostos à influência do texto bíblico ao escrever
suas histórias têm transmitido, nesse processo, a própria visão parcial dos textos como
se ela simplesmente representasse “as coisas como, de fato, foram”. Agindo assim, esses
historiadores tanto distorcem o passado quanto contribuem para a atual situação na
Palestina, pois a condição difícil enfrentada pelos palestinos hoje está intrinsecamente
relacionada à desapropriação da terra e a um passado elaborado por estudiosos bíbli­
cos obcecados pelo “Antigo Israel”. Os historiadores têm distorcido o passado porque
a apresentação feita por eles quase não tem relação alguma com o que de fato ocorreu.
O “Antigo Israel” elaborado por esses historiadores com base em textos bíblicos é uma
entidade imaginária, que só existe em suas mentes e não pode ser comprovada, tendo
sua criação, aliás, associada com a situação política atual.
Por exemplo, o “fato” da existência na Idade do Ferro de um estado grande, po­
deroso, soberano e autônomo fundado por Davi dominou o discurso dos estudiosos
bíblicos ao longo do século passado e coincide com a visão e as aspirações de muitos
líderes do Israel atual, contribuindo para intensificá-las. No entanto, a perspectiva de

4A breve resenha a seguir está baseada na análise m uito mais aprofundada que I. W. Provan faz
em “The end o f (Israels) history? A review article on K. W. W hitelam s The invention o f ancient Israel”,
J S S 42 (1997), p. 283-300.
A H I S T Ó R I A B ÍB L IC A M O R R E U ? 23

W hitelam é que os dados arqueológicos não indicam a existência de um estado israelita


na Idade do Ferro, criado por alguns estudiosos com base nas descrições bíblicas. Ao
mesmo tempo, a erudição recente tem nos ajudado a avaliar melhor as qualidades
literárias dos textos bíblicos, minando a certeza de que esses textos possam ou devam
ser usados na reconstrução histórica. Atualmente o povo de Israel apresentado na
Bíblia é visto mais claramente como o povo de um livro escrito com grande habili­
dade artística e inclinação teológica. D e acordo com W hitelam , praticamente não há
prova alguma de que esse “Israel” tenha existido além da mera ficção literária.5
Assim, no meio acadêmico dos estudos bíblicos, chegamos a um ponto em que
usar textos bíblicos para a elaboração da história israelita só é possível com grande
cautela. Seu valor para o historiador não consiste no que eles têm a dizer sobre o
passado em si, mas “... no que revelam acerca dos interesses ideológicos de seus
autores, se (e apenas se) for possível situá-los no tempo e no espaço”.6 Portanto, não
se deve permitir que os textos bíblicos definam e dominem o direcionamento da
pesquisa. Deve-se permitir que a “história bíblica” descanse em paz em seu túmulo,
enquanto avançamos em direção a um tipo de história totalmente diferente.
A melhor maneira de contextualizar a tese de W hitelam e avaliar sua obra é
observarmos rapidamente duas tendências recentes entre os estudiosos da Bíblia que
predominam no livro dele e que resultaram no debate sobre a história de Israel em
geral.7Em primeiro lugar, o estudo recente da narrativa hebraica, que tende a enfatizar
tanto a arte criativa dos autores bíblicos quanto as datas tardias de seus textos, tem
afetado a confiança de alguns estudiosos na ideia de que o mundo narrado na Bíblia
esteja intimamente relacionado ao mundo “real” do passado. Por esse motivo, quando
se fazem perguntas sobre o passado de Israel, há uma crescente tendência a dar pouca
importância aos textos bíblicos. Existe também uma tendência correspondente em
confiar mais nos dados arqueológicos (que, segundo se afirma, mostram que os textos
bíblicos não têm relação com o passado “real”) e nas teorias antropológicas ou socio­
lógicas. Diferentemente de textos elaborados artisticamente e “com viés ideológico”,
esses outros tipos de dados têm sido apresentados com frequência como elementos
que proporcionam base muito mais segura para se elaborar um quadro “objetivo” do
Antigo Israel, algo bem distinto do que foi produzido até agora.
Em publicações recentes, um a segunda tendência é a de sugerir ou afirmar cla­
ramente que a ideologia prejudicou os estudos acadêmicos sobre a história de Israel
realizados anteriormente. Tem-se estabelecido um contraste entre pessoas que, no

sW hitelam , Invention, p. 23.


6Ibidem , p. 33.
7Veja ainda I. W . Provan, “Ideologies, literary and criticai: Reflections on recent w riting on the
history o f Israel”, JB L 114 (1995), p. 585-606.
24 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA

passado, foram motivadas pela teologia e pelo sentimento, em lugar da erudição crí­
tica, dependendo excessivamente de textos bíblicos para elaborar a história de Israel
e aquelas que, no presente, colocam de lado os textos bíblicos e tentam escrever a
história de forma relativamente objetiva e descritiva. Por exemplo, T. L. Thompson
vê entre os estudiosos do passado uma indiferença ideologicamente determinada
por qualquer história da Palestina que não envolva diretamente a história de Israel
na exegese bíblica...”; ele entende que uma história de Israel academicamente acei­
tável não pode ser produzida por autores que estejam fascinados pelo enredo da
antiga historiografia bíblica.8 Essas duas tendências — a crescente desconsideração
pelos textos bíblicos e a descrição negativa dos estudos acadêmicos anteriores como
ideologicamente comprometidos — talvez sejam os principais aspectos que esta­
belecem a distinção entre a nova forma de escrever a história de Israel9 e a antiga,
que tendia a considerar os textos narrativos fontes de dados essenciais para a histo­
riografia (ainda que esses textos não fossem apenas históricos) e não estava muito
inclinada a introduzir no debate acadêmico questões ideológicas e de motivações.
Nesse contexto, sem dúvida é possível utilizar o livro de W hitelam como exem­
plo perfeito da nova historiografia. Entretanto, o tipo de argumentação que acabamos
de descrever é levado muito mais adiante do que fora feito anteriormente. Seguindo
algumas ideias encontradas em P. R. Davies10 (ou talvez apenas sendo coerente com
tais ideias), W hitelam agora defende não somente que a informação fornecida pelos
textos bíblicos sobre o Antigo Israel é problemática, mas que a própria ideia do Antigo
Israel incutida em nossa mente por esses textos também é. Até mesmo historiadores
mais recentes ainda escrevem histórias de “Israel”, o que, para W hitelam , é um erro.
N a verdade essa abordagem é mais grave do que um erro, pois, ao inventar o Antigo
Israel, os estudiosos ocidentais têm contribuído para que a história da Palestina seja
silenciada. Para outros historiadores recentes, os compromissos ideológicos dos es­
tudiosos são considerados relativamente inofensivos e sem implicações importantes
perceptíveis fora da disciplina de estudos bíblicos, mas W hitelam certamente discorda
desse entendimento. D e modo praticamente deliberado, ele estabelece a ideologia na
esfera da política contemporânea, afirmando que, como disciplina, os estudos bíblicos
têm colaborado para um processo que priva os palestinos de uma terra e de um passado.

'Early history o f the Israelite people fro m the written and archaeological sources, S H A N E 4 (Leiden:
Brill), p. 13,81.
5A lém dos textos de W hitelam e Thompson, podemos m encionar aqui livros como N . P Lem che,
Ancient Israel: a new history o f Israelite society, BSem 5 (Sheffield: JSO T , 1988); G . G arbini, History and
ideology in ancient Israel (New York: Crossroad, 1988); P. R. Davies, In search o f ancient “Israel”, JS O T S
148 (Sheffield: JSO T, 1992); e G . W . A hlstrõm , The history o f ancient Palestinefrom the Paleolithicperiod
to Alexanders conquest, edição de D . V. Edelm an, JS O T S 146 (Sheffield: JSO T, 1993).
“ Davies, Search.
A H I S T Ó R I A B ÍB L IC A M O R R E U ? 25

O DEFUNTO DE FATO ESTÁ MORTO?

A história bíblica morreu de fato ou está apenas dormindo? A primeira vista, os


argumentos de W hitelam e de outros acadêmicos com pensamento semelhante
parecem convincentes, mas ainda é preciso levantar algumas questões importantes.

Os textos bíblicos e o passado

Primeiro devemos refletir sobre a atitude de W hitelam para com os textos bíblicos.
M esmo que relatos do passado sejam invariavelmente produto de um a pequena
elite com uma perspectiva particular, será que esses relatos não podem fornecer
informações sobre o passado que descrevem e também sobre os interesses ideológicos
de seus autores? Presume-se ser o desejo do próprio W hitelam que acreditemos nos
escritos dele (como parte de um a elite intelectual) sobre o passado como capazes de
nos informar tanto sobre os fatos ocorridos quanto sobre sua ideologia — embora
mais adiante retornaremos a essa questão. A verdade é que todos os relatos do pas­
sado podem ser parciais (em todos os sentidos), mas a parcialidade em si não cria
necessariamente um problema. Por outro lado, mudanças de perspectiva na leitura
da narrativa bíblica têm, de fato, suscitado questões em muitas mentes sobre a m a­
neira pela qual as tradições bíblicas podem ou devem ser usadas ao se escrever uma
história de Israel. Com certeza, há muito que criticar no que diz respeito ao método
antigo e aos resultados obtidos quando os textos bíblicos foram usados durante a
investigação histórica. Se agora, porém, os textos não devem mais ser vistos como os
principais dados nessa investigação histórica — como testemunhas do passado que
descrevem, em vez de simples testemunhas da ideologia de seus autores — , é outra
questão. A declaração ou a implicação de que, em parte como resultado do que agora
conhecemos sobre nossos textos, a academia tem sido obrigada, em certa medida, a
aceitar essa conclusão é ponto pacífico em publicações recentes sobre Israel e histó­
ria. Porém, em meio a todas essas declarações e implicações, a pergunta permanece:
reconhecendo-se que a narrativa hebraica é elaborada artisticamente e influenciada
ideologicamente, será que, em relação a outros tipos de dados do passado, isso reduz
de alguma forma seu valor como fonte material para historiógrafos modernos? Por
exemplo, se as tradições bíblicas sobre o período pré-monárquico na forma pela qual
chegaram até nós são de uma época posterior (se isso for demonstrado), por que isso
significaria que elas são inúteis para a compreensão do surgimento ou da origem de
Israel?11 Tais perguntas continuam sem explicações.

nW hitelam relatando as perspectivas existentes em textos acadêmicos recentes, entre os quais


inclui o seu (.Invention, p. 177 e mais explicitamente p. 204-5).
26 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA

A arqueologia e o passado

Segundo, o que dizer da atitude em relação à arqueologia revelada no livro de


W hitelam? Como outros “novos historiadores”, W hitelam dá considerável valor à
evidência arqueológica, ao contrário do que faz com a evidência extraída de textos.
D e fato, um dos elementos fundamentais de seu argumento é que a arqueologia
demonstra a veracidade de certas coisas, o que por sua vez demonstra que o Antigo
Israel dos textos e também dos estudiosos constitui-se em um passado imaginário.
Por exemplo, o que basicamente os dados arqueológicos, associados às novas maneiras
de analisar a narrativa hebraica, têm “mostrado” é que os vários modelos ou teo­
rias modernas sobre o surgimento do Antigo Israel são “... invenções de um antigo
passado imaginário”.12 No entanto, o que é intrigante nesse tipo de afirmação é o
fato de que o próprio W hitelam declara em outro lugar que a arqueologia, à seme­
lhança da literatura, fornece apenas textos parciais — um a parcialidade controlada
(em parte) por pressuposições políticas e teológicas que determinam o plano ou a
interpretação dos projetos arqueológicos. O historiador — por mais amplo que seja
seu trabalho arqueológico — sempre depara com textos parciais, e a ideologia do
próprio investigador influencia a arqueologia.13 Para W hitelam , é importante des­
tacar esses aspectos, pois ele prossegue questionando grande parte da interpretação
existente dos dados procedentes da pesquisa arqueológica e das escavações realizadas
em Israel, em particular as que são apresentadas por acadêmicos israelenses. Ele alega
que essa pesquisa tem contribuído para criar o “passado imaginário” de Israel e resiste
deliberadamente a interpretações de dados arqueológicos que conflitem com a tese
desenvolvida em seu livro: a de que o Antigo Israel é uma entidade “imaginária”.14
Desse modo, o livro de W hitelam apresenta uma atitude bastante ambivalente
em relação aos dados arqueológicos. Quando parecem estar em conflito com as ale­
gações do texto bíblico, afirma-se que eles “mostram” ou contribuem para mostrar
algo verdadeiro. Nesse caso, os dados apresentam sólidos indícios de que a realidade
histórica se parecia com “isso” e não com “aquilo”. Entretanto, quando os dados
arqueológicos parecem ser consistentes com as afirmações do texto bíblico, toda a
ênfase recai em quão pouco esses mesmos dados podem de fato nos informar. Então,
somos lembrados da dimensão ideológica tanto dos dados quanto da interpretação.
Ora, W hitelam precisa escolher entre um e outro. O u os dados arqueológicos ofere­
cem um tipo de descrição do passado palestino relativamente objetiva, de maneira que
eles possam ser comparados com os textos bíblicos ideologicamente comprometidos

12Ibidem , p. 119; compare-se com o comentário sobre G ottw ald próximo ao fim da p. 118.
13Ibidem , p. 181-3.
14Nesse sentido, um exemplo que cham a particularm ente a atenção é a form a pela qual trata a
cham ada Esteia de M erneptá (ibidem, p. 206-10).
A H I S T Ó R I A B ÍB L IC A M O R R E U ? 27

e assim “dem onstrar” que o Antigo Israel da Bíblia e de seus estudiosos é uma
entidade imaginária, ou não. Se W hitelam pretende afirmar que esses dados não ofe­
recem esse tipo de descrição — que “o historiador se defronta com textos parciais em
todos os sentidos do term o”15— então ele tem de explicar por que, para nos informar
sobre um passado “real” em oposição a um passado imaginário, a arqueologia é mais
confiável do que os textos. Deve explicar por que esses “textos parciais” específicos
são preferíveis a outros. Do modo que as coisas se apresentam, pode-se concluir
que W hitelam trabalha com um a metodologia que tem uma fé bastante simplista
na interpretação de dados que coincidem com a narrativa que ele mesmo deseja
contar, ao mesmo tempo que alega um alto grau de ceticismo e suspeita em relação
às interpretações dos dados que conflitam com sua narrativa.

Ideologia e passado

Um a terceira área que requer certa reflexão diz respeito à ideologia do historiador.
W hitelam afirma repetidas vezes que o Antigo Israel dos estudos bíblicos é uma
entidade “inventada” ou “imaginada” e prossegue em sua análise dando a entender
que as histórias escritas hoje sobre Israel dizem mais sobre o contexto e as crenças
de seus autores do que sobre o passado que alegam descrever. O quadro que ele
apresenta é de estudiosos bíblicos que querem acreditar no Antigo Israel — um
desejo que ignora as evidências. Respondendo a essas afirmações, devemos reco­
nhecer que não há dúvida de que as histórias de Israel escritas hoje falam algo sobre
o contexto e as crenças de seus autores. É um fato natural da vida que, em tudo o
que pensam e agem, os seres humanos estão inseparavelmente ligados ao mundo
no qual pensam e agem. Não temos culpa de ser moldados, pelo menos em parte,
por nosso contexto, façamos ou não um esforço consciente para ter alguma noção
desse contexto e de sua influência sobre nós. Nosso pensamento é influenciado pelas
categorias disponíveis. Contudo, não é possível demonstrar que os autores de li­
vros sobre a história de Israel tenham, em geral, sido influenciados pela ideologia,
e não pelos dados — pelo desejo de acreditar, sem levar em conta as evidências.
O próprio W hitelam admite que “... não é fácil estabelecer essas associações entre
os estudiosos da Bíblia e o contexto político em que a pesquisa bíblica se desenvolve
e pelo qual é inevitavelmente influenciada. Em sua maior parte, tais associações
são implícitas em vez de explícitas”.16 A leitura de seu livro deve, de fato, convencer
o leitor de que estabelecer essas associações não é fácil. N a realidade, ao chegar ao
final do livro, o leitor fica imaginando como exatamente a posição de W hitelam

lsIbidem , p. 183.
“ Ibidem , p. 23.
28 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA

sobre a ideologia dos historiadores pode ser coerente. Será que os outros estudiosos
têm um a ideologia que compromete seu trabalho acadêmico, levando-os inevita­
velmente a abandonar a razão e a ignorar as evidências, ao passo que W hitelam ,
livre de qualquer ideologia, consegue compreender pessoas e acontecimentos com
mais clareza? Às vezes essa conclusão parece clara, mas, em outro texto, ele sugere,
com a mesma clareza, que todos são influenciados por alguma ideologia na pesquisa
acadêmica. Então, a posição de W hitelam seria a de que a razão e os dados sempre e
inevitavelmente estão a serviço de um a ideologia e de um conjunto de compromis­
sos? Será que sua objeção não é ao fato de que outros estudiosos simplesmente não
partilham do conjunto particular de compromissos assumidos por ele — eles não o
apoiam na história da Palestina que deseja contar? Novamente, parece que às vezes
essa é a perspectiva de W hitelam . Sendo assim, tudo indica que não estamos mais
falando de história, mas apenas de narrativas acadêmicas. Essa conclusão é um tanto
irônica, considerando a crítica de W hitelam às narrativas bíblicas por sua natureza
lendária, em vez de histórica.
Na verdade, o debate sobre a ideologia dos acadêmicos obscurece a verdadeira
questão, que diz respeito aos dados. H á vasta documentação mostrando que a eru­
dição do passado, embora reconhecesse que a historiografia é mais do que a simples
listagem de indícios, aceitou o fato de que toda historiografia tem de levar as evidên­
cias em conta. N a realidade, a verdadeira discordância em todo esse debate é acerca do
que é considerado evidência. O que ocorre é que W hitelam acredita não ser correto
associar os textos bíblicos com outros dados na pesquisa sobre o antigo Israel. Até
então os estudiosos (e não apenas os estudiosos bíblicos) pensavam em geral de outra
maneira, pelo menos no caso de muitos textos bíblicos. Descrever esse esforço acadê­
mico como se ele não lidasse seriamente com as evidências por causa de um ou outro
tipo de compromisso (“imaginando o passado”) é uma distorção significativa da
realidade, quando de fato a questão é: “Quais evidências devem ser levadas a sério?”.

O obituário foi precipitado?

Com base nessa análise, podemos observar que o argumento de W hitelam a favor
da m orte da história bíblica não é convincente nem coerente. Nessas circunstâncias,
seria um erro seus leitores se arrumarem às pressas para ir ao funeral. Primeiro pre­
cisamos refletir um pouco mais sobre as importantes questões que foram levantadas.
N o entanto, antes de começar, devemos explorar mais a fundo o contexto do atual
debate sobre a história de Israel — o contexto que deu origem às histórias modernas
sobre Israel escritas há mais tempo. É nesse ponto que, antes de emitirmos um ates­
tado de óbito, nossa percepção dessas questões cujas respostas precisam ser buscadas
será apurada e aperfeiçoada.
A H I S T Ó R I A B ÍB L IC A M O R R E U ? 29

UMA LONGA ENFERMIDADE:


DOIS ESTUDOS DE CASO INICIAIS

Em bora tenhamos apresentado W hitelam até aqui como um modelo da nova his­
toriografia e não da antiga, pelo fato de ele praticamente não se im portar com os
textos bíblicos em sua busca da história da Palestina, essa distinção não pretende
dar a impressão de que sempre ou em geral há um abismo separando os antigos
historiadores modernos de Israel dos novos. Ao contrário, boa parte do fundamento
em que os novos historiadores baseiam sua posição foi elaborada muito tempo atrás,
de maneira que as pressuposições e os métodos dominantes da historiografia antiga
conduzem diretamente ao ponto que nos encontramos agora. Como tem ocorrido,
historiadores mais antigos podem muitas vezes ter dependido mais de textos bíblicos
do que muitos de seus sucessores recentes. Entretanto, sua abordagem geral condu­
ziu de forma natural e freqüente às atitudes atacadas por muitos estudiosos de hoje.
Se for preciso anunciar a morte da história bíblica, então uma longa enfermidade
precedeu o seu fim.
O próprio W hitelam chama a atenção para duas obras de história produzidas
na década de 1980 que, segundo seu parecer, já ilustravam a crise de confiança na
disciplina da história bíblica.17 Por causa de sua descrição dos problemas de se
utilizarem os textos bíblicos, tanto J. A. Soggin, de um lado, quanto J. M . M iller e
J. Hayes, de outro18 — mesmo dependendo em grande parte das narrativas bíblicas
para sua produção da história de Israel no período monárquico, — aventuraram-se
em reconstruções históricas dos períodos antigos com grau m enor ou maior de
autodesconfiança. M esm o em relação ao período monárquico, percebe-se que parte
do que escrevem é conjectural. Para W hitelam essa abordagem ilustra com clareza
o problema da história israelita antiga como um a “história de lacunas”, continu­
amente obrigada a abandonar o firme fundamento do qual se pode dizer que o
em preendim ento se inicia com segurança. Abandonam -se, assim, as narrativas
patriarcais, depois, o Exodo e as narrativas da conquista como fontes que podem
servir de base para um a reconstrução significativa da história; logo em seguida
deixam-se de lado o livro de Juizes e as narrativas de Saul. Com Soggin e M iller/
Hayes, encontramos agora os textos sobre a monarquia de Israel sendo examinados
atentam ente e com graus variados de suspeita. Com base nesse ponto de partida,
W hitelam sugere então um abandono geral e rigoroso dos textos bíblicos como
fontes primárias para a história de Israel. Como a análise de ambos os livros revela,

17Ibidem , p. 34-5.
18J. A. Soggin, History o f Israel:from the beginnings to the Bar Kochba revolt, A D 135 (London: SCM ,
1984); J. M . Miller, J. Hayes, A history o f ancient Israel and Judah (Philadelphia: W estm inster, 1986).
30 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA

o progresso é natural. As pressuposições e métodos controladores de ambos os


livros convidam a seguir essa direção.

Soggin e a história de Israel

Após a introdução, a obra de Soggin começa com um capítulo longo e esclarecedor


sobre metodologia, bibliografia e fontes.19 Ele inicia com a afirmação de que, depois
de mais de um século de estudos científicos da crítica histórica, torna-se cada vez
mais difícil escrever um a história de Israel, especialmente a partir de seus primórdios.
Soggin alega que tradições do passado, tanto orais quanto escritas, estão sujeitas à
“contaminação” de vários tipos, quer por acidente, quer devido aos interesses das
pessoas que as transmitiram. Frequentemente, com o objetivo de influenciar gera­
ções posteriores de leitores, mas com pouquíssimo valor para o historiador moderno,
essas tradições também contêm relatos de heróis e heroínas. De acordo com Soggin,
nossas tradições bíblicas sobre as origens de Israel são exatamente assim: tradições
sobre personagens exemplares que foram reunidas, editadas e transmitidas (nessa
seqüência)20 por editores que viveram muitos séculos depois dos acontecimentos.
A perspectiva dos editores finais é principalmente do período exílico e pós-exílico,
e os problemas com que estão preocupados refletem as conseqüências do exílio na
Babilônia e o fim tanto da independência política quanto da dinastia davídica em
Israel. Dessa maneira, o quadro que temos da época mais antiga de Israel é o que
nos é apresentado por autores do período monárquico pré-exílico (porque, com a
formação do Estado israelita, pela primeira vez Israel deparou com o problema de
sua identidade e legitimidade nacionais e começou a refletir sobre seu passado). O
retrato é profundamente influenciado, se não determinado, pela releitura e redação
dos textos de autores dos períodos exílico e pós-exílico. São pessoas interessadas no
exílio e na volta do exílio que nos transmitiram as narrativas que tratavam da migra­
ção da família de Abrão de U r até Harã, e também do Êxodo do Egito, da viagem
pelo deserto, da conquista da terra e do período dos juizes.
Por essa razão, é um a tarefa sempre difícil determ inar a antiguidade das tra­
dições bíblicas específicas, embora Soggin pense que é improvável que editores
posteriores tenham criado textos a partir do nada para atender suas necessidades.
Todavia, mesmo quando as tradições parecem antigas, em geral foram claramente
tiradas do contexto original e inseridas em um novo contexto, o que inevitavel­
m ente tem um efeito significativo em sua interpretação e modifica seu conteúdo.

19Soggin, History, p. 18-40.


20O u seja, elas foram prim eiro reunidas em fontes como J e E do Pentateuco e, mais tarde, em
textos como o próprio Pentateuco.
A H I S T Ó R I A B ÍB L IC A M O R R E U ? 31

Soggin sugere que os editores, com o objetivo de dar suporte às próprias teorias,
tiveram liberdade no exercício de sua capacidade criativa e às vezes agiram de m o­
do caprichoso na escolha e reestruturação do material que lhes chegou às mãos.
Por exemplo, Soggin afirma que, em geral, se aceita que a organização da nar­
rativa dos patriarcas num a seqüência genealógica reflete a obra de editores. Em
nível histórico, é possível que os patriarcas tenham de fato sido contem porâneos
uns dos outros ou até mesmo nem tenham existido. Além do mais, a seqüência
patriarca-êxodo-conquista parece ser um a simplificação que os editores introdu­
ziram, a fim de lidar com os problemas levantados por aspectos mais complexos
das tradições. No livro de Josué, a conquista é descrita com termos extraídos da
liturgia da adoração pública, sendo que a prim eira parte do livro abrange um a
procissão e um a celebração rituais, em vez de tratar de guerra e política. Essa
característica corresponde bem ao contexto de um a releitura pós-exílica do m a­
terial. No contexto de fracasso político da m onarquia (como tam bém teológico
e ético), o povo de Deus é chamado de volta às origens, ao m om ento em que
aceitou com hum ildade e submissão o que Deus lhe oferecia em sua misericórdia.
D e m odo semelhante, o livro de Juizes, com sua descrição de um a liga tribal e sua
ênfase na adoração comum como fator de unidade política e religiosa, tam bém
corresponde a esse contexto posterior (embora, nesse caso, Soggin adm ita que
a descrição tam bém poderia estar relacionada à realidade pré-m onárquica). No
período pós-exílico a m onarquia havia sido substituída por um a ordem hierocrá-
tica, centrada no tem plo de Jerusalém. Por fim, as narrativas sobre o reinado de
Saul transform aram alguém que foi um guerreiro hábil e violento — sem mácula
ou temor, e que term inou seus dias em glória — num herói de tragédia grega,
dom inado por insegurança e ciúme e tam bém vítim a de ataques de hipocondria e
tendências homicidas. Aqui o editor se tornou um artista. A conseqüência é que
qualquer história de Israel que procure tratar do período anterior à m onarquia,
lim itando-se a um a simples paráfrase dos textos bíblicos e à mera complem enta-
ção desses textos com supostos paralelos do antigo O riente Próximo, não apenas
utiliza um m étodo inadequado, mas tam bém oferece um quadro distorcido dos
eventos que certam ente ocorreram. D e m odo acrítico, essa descrição aceita a visão
que Israel tinha de suas origens.
Para Soggin, essa é, portanto, a “proto-história” de Israel. Em que m om ento a
verdadeira história de Israel se inicia? Existe alguma época a partir da qual o m ate­
rial da tradição começa a oferecer relatos confiáveis — informações sobre pessoas
que realmente existiram e fatos que ocorreram, ou que ao menos sejam prováveis,
e sobre eventos importantes nas esferas econômica e política e suas conseqüências?
Como ponto de partida, Soggin escolhe o período da monarquia unida nos reinados
de Davi e Salomão. Ele reconhece que as fontes de informação sobre esse período
32 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BlB LIA

também contêm muitos episódios (especialmente em relação a Davi) que dizem


respeito mais à esfera privada do que à pública e que essas fontes, à semelhança
daquelas da proto-história, foram editadas num a data posterior. Ele admite que
nenhum indício do império de Davi e Salomão aparece em outros textos do antigo
O riente Próximo e que esse período, bem como os anteriores, carece de evidência
externa. Por isso, Soggin considera a possibilidade de que a tradição bíblica, nesse
ponto, também seja pseudo-histórica e fictícia, com o objetivo de glorificar um pas­
sado que na realidade nunca existiu. Contudo, ele crê que isso seja improvável. Nas
narrativas de Davi e Salomão, há muitos detalhes de natureza política, econômica,
administrativa e comercial — inúmeros aspectos ligados à cultura da época. Com
base na informação que essas narrativas nos fornecem sobre política, economia e
administração (e.g., expedições militares com conquistas territoriais, rebeliões locais,
trabalhos de construção, comércio exterior), podemos formar o quadro de uma
nação que, por fim, chega ao colapso econômico e é forçada a tom ar medidas de
emergência para enfrentar essa situação. Por trás da fachada da vida familiar, encon­
tramos informações importantes que, na opinião de Soggin, um historiador pode
usar a fim de elaborar um quadro plausível do reino unido israelita, que é consistente
com o que nossas fontes afirmam sobre o que ocorreu posteriormente: várias formas
de protesto, seguidas pela rebelião aberta e pela secessão do reino do norte com a
morte de Salomão. Se elementos reconhecidamente romantizados estão presen­
tes na tradição, o quadro geral do passado não é de glorificação romantizada. Por
isso, podemos adotar o período da monarquia unida como ponto de referência para
começar um estudo histórico do Antigo Israel.
Ao considerarmos o argumento de Soggin, o primeiro e (no presente contexto)
mais im portante ponto a observar é a fraqueza de sua distinção entre, de um lado, as
fontes relativas à narrativa dos patriarcas-Saul e, de outro, as fontes relativas à nar­
rativa Davi-Salomão. O que basicamente distingue esses dois grupos de tradições?
Certam ente não é o apoio maior dos dados arqueológicos ao segundo conjunto de
fontes nem o fato de que o segundo, em comparação com o primeiro, tenha menos
tradições de personagens exemplares do passado, as quais foram reunidas, editadas
e transmitidas por editores que viveram muitos séculos depois dos acontecimentos.
Entretanto, Soggin sustenta que é possível estabelecer distinção entre os dois gru­
pos. E “improvável” que haja uma pseudo-história no caso das narrativas de Davi
e Salomão porque, em primeiro lugar, elas contêm “elementos negativos” que as
tornam, em geral, qualquer coisa, menos um a glorificação romantizada do passado;
em segundo, é possível detectar suficientes informações importantes por trás da
“fachada” da narrativa, de modo que o historiador possa formar um quadro plausível
do reino unido israelita. Entretanto, diante dessas afirmações, as seguintes respostas
são bastante adequadas.
A H I S T Ó R I A B ÍB L IC A M O R R E U ? 33

Primeira, não parece tão claro que, quando o assunto são elementos “românticos”
e “negativos” (utilizando as categorias de Soggin), a forma presente das tradições
mais antigas da Bíblia tenha menos elementos misturados do que a forma presente
das tradições sobre a monarquia unida. As tentativas de Soggin de descrever as
tradições mais antigas apenas de acordo com a primeira categoria são, na verdade,
nada convincentes. Por exemplo, ele explica Juizes como um livro cujo propósito
foi legitimar a hierocracia pós-exílica, pois Juizes apresenta a liga tribal como
uma alternativa antiga e autêntica para a monarquia. E difícil levar essa hipótese a
sério; até o leitor de Juizes menos atento pode ver que, em sua maior parte, o livro
apresenta um a sociedade israelita que está longe de ser ideal e conclui com uma
descrição de caos social resultante da falta de um rei. Com certeza, a narrativa do
livro de Juizes não oferece ao leitor um a glorificação romantizada do passado. Só
uma leitura bastante falha do texto pode levar a essa conclusão; e o que é válido
para a leitura de Juizes apresentada por Soggin também é válido para sua leitura de
Gênesis-Josué.21 Fazer esse tipo de distinção entre Gênesis-Juízes e Samuel-Reis
exige uma leitura de Gênesis-Juízes altamente seletiva.
Segunda, e com base no ponto anterior, é claramente possível encontrar infor­
mações como as que Soggin procura (e.g., informações sobre expedições militares
com alvos de conquista territorial) por trás da “fachada” do relato de Gênesis-Juízes,
assim como de Samuel-Reis. Portanto, de que modo a presença dessas informações
em Samuel-Reis nos levaria a pensar nesses textos de forma diferente à dos textos
precedentes? Parece que Soggin coloca o peso de seu argumento em parte na quan­
tidade dos detalhes políticos, econômicos, administrativos e comerciais; no entanto,
ele deixa de demonstrar que o fato de passarmos da “proto-história” para a “história”
multiplicou esses detalhes, em vez de apenas mudar a dinâmica da narrativa. Afinal
de contas, agora estamos lendo a história de um Estado com contatos internacio­
nais e não mais um a narrativa sobre um a confederação tribal. Por que a presença
desse tipo de detalhe na história de Davi e Salomão não é, então, simplesmente uma
indicação da forma de arte narrativa que Soggin encontra na narrativa de Saul? Em
parte Soggin também dá bastante importância à afirmação de que o historiador usou
esse tipo de detalhe em Samuel-Reis com o intuito de elaborar um quadro acerca
do reino unido israelita que seja plausível e consistente com o que as fontes bíblicas
dizem ter ocorrido mais tarde. No entanto, não fica claro por que devemos considerar
que, ao incluir esse tipo de detalhe, o objetivo dos autores de histórias mais antigas
seja outro que não nos contar sobre o passado, mesmo que não seja um passado que

21Podemos indicar especificamente sua sugestão de que a prim eira parte do livro de Josué descreve
o passado como um período em que Israel “aceitou com hum ildade e submissão o que D eus lhe ofereceu
em sua misericórdia” (History, p. 30).
34 H I S T Ó R IA , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA

Soggin imagine “plausível”; por outro lado, também não está claro o que exatamente
fica provado com o fato de a reconstrução feita por Soggin ser consistente com o
relato das fontes bíblicas sobre o que ocorreu posteriormente. A certa altura de sua
análise, o próprio Soggin elogia os compiladores e editores das tradições bíblicas
por possuírem “notáveis habilidades artísticas, utilizando pequenas unidades para
criar obras importantes que à primeira vista formam uma unidade coerente [...] uma
obra de arte”.22 Pode-se presumir que um aspecto dessa habilidade artística é que os
escritores apresentam relatos consistentes com outros relatos posteriores. Deve-se
considerar, então, por que Soggin acredita ser especialmente significativo o fato de
que a narrativa sobre o reino unido apresentada por ele com base em alguns textos
bíblicos seja consistente com a narrativa que os autores bíblicos apresentam sobre
os reinos posteriores de Israel e Judá. Se, em Samuel-Reis, a consistência de uma
narrativa com a seguinte é prova de que estamos lidando com história e não com
proto-história, então tal consistência também é prova de que, de igual forma, estamos
lidando com história em pontos mais antigos da tradição. Se, de um lado, coerência
em partes mais antigas da Bíblia indica apenas arte narrativa e não história, Soggin é
inconsistente ao defender que, em Samuel-Reis, a coerência indica história e não arte
narrativa. D e um modo ou de outro, a distinção que ele tenta fazer entre as tradições
bíblicas sobre a monarquia unida e as tradições bíblicas sobre períodos mais antigos
da história israelita não tem base suficiente.
Esta análise mostra como Soggin prepara bem o caminho para escritores mais
recentes como W hitelam . Segundo, W hitelam retrata a história da história de
Israel, ela é do tipo que sempre força os historiadores a abandonar a base firme em
que a tarefa pode ser realizada com segurança. A “base firme” de Soggin está fun­
damentada na monarquia unida. O problema é que as pressuposições e os métodos
controladores com que Soggin trabalha tornam , em últim a instância, sua própria
posição insustentável. É possível, com extrema facilidade, aplicar as próprias pers­
pectivas de Soggin — que o levaram a abandonar o fundamento de Gênesis-Juízes
e início de Samuel antes mesmo de haver iniciado o trabalho — ao fundamento
que ele mesmo escolheu, o restante das narrativas de Samuel-Reis, e destruí-lo. Se,
por conter narrativas de heróis e heroínas transmitidas por editores que viveram
muitos séculos depois dos acontecimentos, as tradições mais antigas da Bíblia não
são um “fundamento firme”, então por que tradições mais recentes são grande­
mente valorizadas? Se as tradições mais antigas são problemáticas porque editores
utilizaram com liberdade ou por capricho suas capacidades criativas na escolha e
reestruturação do material que chegou até eles, então qual exatamente é a razão
de as tradições mais recentes não serem igualmente problemáticas? O u será que,

22History, p. 28.
A H I S T Ó R I A B lB L I C A M O R R E U ? 35

por algum motivo vago, simplesmente “sabemos” que elas não são? Se, no que diz
respeito a tradições mais antigas, a arte narrativa dos editores é um problema sério
para os historiadores, então por que essa arte tam bém não é um problema no caso
das tradições mais recentes? Por fim, como conseqüência de tudo o que é realmente
verdadeiro nas tradições bíblicas, se alguma história de Israel que retrata o período
anterior à monarquia baseada em simples paráfrases dos textos bíblicos está empre­
gando um método inadequado, oferecendo, assim, um quadro distorcido do passado
ao leitor, então por que o mesmo não se aplica a um a história de Israel que adota tal
abordagem para o período que começa com a monarquia?
A verdade é que o ponto de partida escolhido por Soggin para escrever a história
de Israel é bem arbitrário. Não é uma questão de lógica, mas sim de uma escolha
sustentada em declarações sobre a “ingenuidade” das pessoas que pensam de outra
maneira. A seguir, temos mais a dizer sobre o uso desse tipo de declaração como
substituto para o argumento. Em circunstâncias como essa, W hitelam — que nos
lembra da própria inexistência de dados externos sobre o império davídico-salo-
mônico, algo de que o próprio Soggin está consciente — também pode, de modo
bem simplista, destruir o “fundamento firme” de Soggin sugerindo que, para narrar a
verdadeira história de Israel, não se pode confiar nos textos bíblicos de Samuel-Reis
mais do que nos de Gênesis-Juízes. Esse argumento é especialmente válido quando
os estudos sobre a narrativa bíblica no período entre a publicação do livro de Soggin
e o de W hitelam só ampliaram nosso conhecimento quanto à qualidade artística
da literatura bíblica. Nesse contexto, o argumento de W hitelam parece totalmente
aceitável ao sugerir que o comprometimento dos estudiosos modernos com as narra­
tivas davídico-salomônicas como fontes históricas valiosas tem relação, mais do que
com qualquer outra coisa, com o contexto do período colonial europeu e também
com a necessidade deles de crer em um Estado de Israel poderoso, soberano e au­
tônomo na Idade do Ferro. Volta-se contra o próprio Soggin (que parece acreditar
que a única história “verdadeira” é a história de Estados que atuam na esfera pública
— econômica e política — em vez, por exemplo, de pessoas que atuam na esfera
privada e familiar) o juízo que faz de outros estudiosos que dependem demais das
tradições bíblicas sobre o período mais antigo da história de Israel. Para W hitelam ,
um a dependência extrema das tradições bíblicas é justam ente o que levou estudiosos
como Soggin a introduzir, no que diz respeito ao “período monárquico” de Israel,
um m étodo inadequado para examinar o passado, distorcendo-o na busca da nação-
-estado que existia na forma de Israel. Na verdade, não há uma grande distância entre
a perspectiva de Soggin (de que o quadro existente na Bíblia das origens de Israel
é ficção literária) e a concepção ainda mais radical de W hitelam (de que o quadro
apresentado por grande parte da Bíblia hebraica do passado de Israel é ficção literária).
E precisamente isso o que ocorre quando os estudiosos se afastam progressivamente
36 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍ BLIA

do “fundamento firme” do texto bíblico, à medida que cada historiador de Israel


demonstra como o que estudiosos anteriores escreveram se aplica também de forma
clara e devastadora aos textos que eles mesmos aceitaram como ponto de partida.
Portanto, cada estudioso, por sua vez, pode ser acusado de arbitrariedade, pois não há
um ponto lógico em que se apegar a fim de não escorregar no barranco textual; e, aos
poucos, isso conduz à morte de toda história bíblica.

Miller e Hayes e a história de Israel

Os principais elementos que M iller e Hayes adotam na abordagem dos textos


bíblicos e da história estão expostos em seus comentários sobre a narrativa de
Gênesis-Josué.23 No que diz respeito à história, eles observam a crítica de “... certas
perspectivas históricas que foram populares em tempos antigos, mas que não estão
mais em voga e suscitam perguntas sobre a credibilidade do material”.24 M iller e
Hayes se referem ao conceito de um a era dourada revelada nos seguintes itens:

• os primeiros capítulos de Gênesis;


• a cronologia sistemática de toda a narrativa;
• a ideia de que a atividade e o propósito divinos são em toda parte con­
siderados as forças primárias que determ inam a form a e o curso do
processo histórico;
• a pressuposição de que se deve entender a origem dos vários povos do mundo
como simples descendência direta de um único ancestral ou de um a única
linhagem;
• a presença de temas narrativos tradicionais bastante disseminados no mundo
antigo nos textos bíblicos.

O utros aspectos da narrativa de Gênesis-Josué também causam dificuldade:


a improbabilidade de muitos números, a natureza contraditória de boa parte das
informações, o fato de que muito material é de origem folclórica e o fato de que a
forma atual de toda a narrativa é resultado do trabalho de compiladores cujo inte­
resse básico era destacar o significado teológico, não produzir um relato objetivo.
M iller e Hayes afirmam que, desse modo, a narrativa faz com que o historiador
moderno depare com dificuldades reais. No entanto, admitem concomitantemente
que, para se chegar a qualquer conclusão específica sobre as origens e a história mais
remota de Israel e Judá, tal conclusão deve se basear nessa narrativa por causa da

23History, p. 54-79.
24Ibidem , p. 58.
A H I S T Ó R I A BÍB L IC A M O R R E U ? 37

escassez e da natureza das fontes de informação extrabíblicas. Documentos extra­


bíblicos e dados de artefatos descobertos em escavações arqueológicas na Palestina
são úteis para compreender o contexto geral em que Israel e Judá surgiram, mas não
para identificar especificamente sua origem.
O que um “historiador razoavelmente cauteloso”25 deve fazer nessas circunstân­
cias? M iller e Hayes avaliam e rejeitam tanto a opção de pressupor a historicidade
do relato de Gênesis-Josué na form a em que se apresenta — ignorando os pro­
blemas de credibilidade e a ausência de dados extrabíblicos específicos para a
verificação — quanto a de descartar o relato de vez, considerando-o de todo inútil
para o propósito da reconstrução histórica. Eles são a favor de um a abordagem de
conciliação: o desenvolvimento de um a hipótese sobre as origens de Israel e Judá
baseada até certo ponto no m aterial bíblico, mas que ao mesmo tem po não siga
o relato bíblico em cada detalhe, talvez nem mesmo de m odo próximo. Apesar
disso, eles se veem, na realidade, relutantes em elaborar tal hipótese para a história
mais antiga dos israelitas. M iller e Hayes consideram a visão das origens de Israel
apresentada em Gênesis-Josué idealista e em conflito com as implicações histó­
ricas das tradições mais antigas que os compiladores incorporaram em seu relato.
O enredo principal é, de fato, “uma elaboração literária artificial e influenciada
pela teologia”.26 Assim, não é possível dizer quase nada sobre Israel antes de seu
surgim ento na Palestina. Por esse motivo, M iller e Hayes se satisfazem com algu­
mas declarações genéricas sobre vários lugares de onde é possível que os israelitas
tenham vindo e prosseguem rapidam ente de Gênesis-Josué para Juizes, iniciando
a história propriam ente dita com um a descrição das circunstâncias que parecem
haver prevalecido entre as tribos na Palestina pouco antes do estabelecimento da
m onarquia.27 Os autores confiam mais no uso de Juizes para um a reconstrução
histórica, não porque o livro, comparado a Gênesis-Josué, tenha menos acrés­
cimos editoriais no processo de compilação, mas porque é possível separar com
menos dificuldade as tradições mais antigas por trás desses acréscimos, pois os
acontecimentos milagrosos e os eventos extraordinários não são tão predom i­
nantes nessas tradições, as condições socioculturais geralm ente pressupostas estão
em conformidade com o que se conhece das condições existentes na Palestina no
início da Idade do Ferro e, por fim, porque a situação refletida nessas narrativas
oferece um contexto confiável e compreensível para o nascimento da monarquia
israelita descrito em 1 e 2Samuel. Assim, as narrativas que compõem Juizes
podem servir de ponto de partida experimental para lidar com a história israelita

2SIbidem , p. 74.
26Ibidem , p. 78.
27Ibidem , p. 80-119.
38 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA

e judaica — não por oferecerem base para reconstruir uma seqüência histórica
detalhada de pessoas e acontecimentos, mas porque apresentam informações pre­
cisas sobre as circunstâncias gerais sociológicas, políticas e religiosas que existiram
entre as antigas tribos israelitas.
A esta altura podemos parar para analisar a lógica do raciocínio exposto até
aqui. Q ual é a confiabilidade do fundamento em que M iller e Hayes se apoiam para
iniciar sua história de Israel? Eles reconhecem que tanto Gênesis-Josué quanto
Juizes têm em comum a mesma forma de plano editorial geral, que descrevem como
artificial, não convincente e de pouquíssima utilidade para o historiador. Concordam
ainda que em cada caso as narrativas individuais são problemáticas para o historia­
dor. Portanto, qual é a base para se ter mais confiança no material de Juizes do que
no de Gênesis-Josué? M iller e Hayes afirmam que é menos difícil isolar as tradições
mais antigas por trás da “camada editorial” existente no material de Juizes do que
no de Gênesis-Josué, mas, ao que parece, já separaram as tais tradições mais antigas
que os compiladores uniram no relato de Gênesis-Josué. E mais: eles fizeram isso
com bastante habilidade, usando as tradições como prova de que a ideia da origem
de Israel apresentada em Gênesis-Josué é idealista (de que outra forma eles saberiam,
que ela é idealista?). Também sustentam que acontecimentos milagrosos e eventos
extraordinários não são predominantes nas narrativas que compõem Juizes tanto
quanto nas narrativas de Gênesis-Josué, mas ao mesmo tempo argumentam que
essas narrativas de Juizes são lendas folclóricas “... não diferentes das narrativas
patriarcais de Gênesis...”— os detalhes nas narrativas individuais abusam da inge­
nuidade.28 M iller e Hayes são da opinião de que as condições gerais socioculturais
pressupostas nas narrativas de Juizes estão em harmonia com o que se conhece das
condições existentes na Palestina no início da Idade do Ferro; contudo, em nenhum
m om ento demonstram que isso não se aplica às condições gerais socioculturais
pressupostas nas narrativas de Gênesis-Josué. Na verdade, citam alguns dados con­
sistentes com a perspectiva contrária.29 Por fim, defendem que a situação refletida
nas narrativas de Juizes fornece um contexto confiável e compreensível para o sur­
gimento da monarquia israelita como descrito em 1 e 2Samuel. M as M iller e Hayes
não explicam como o fato de a literatura de Juizes nos preparar para a literatura de
1 e 2Samuel pode nos dizer algo sobre a história (uma perspectiva im portante de
seu ceticismo sobre “elaborações literárias”). Também não explicam de que m a­
neira Juizes estabelece um contexto confiável e compreensível para o surgimento
da monarquia israelita, diferentemente de Gênesis-Josué em relação ao contexto do
surgimento de Israel na Palestina. Portanto, se M iller e Hayes acreditam de fato

28Ibidem , p. 87, 90; citação na p. 90.


29Observe-se, e.g., ibidem, p. 65-7.
A H I S T Ó R I A B ÍBL ICA M O R R E U ? 39

que a natureza da literatura de Gênesis-Josué impede o “historiador razoavelmente


cauteloso” de dizer qualquer coisa sobre Israel antes de seu surgimento na Palestina,
também é difícil entender por que eles podem dizer algo sobre o fim do período
pré-monárquico. Eles são totalmente vulneráveis à acusação de que o ponto de par­
tida adotado no uso de tradições bíblicas para escrever história é arbitrário, o que, na
verdade, é a acusação que os “novos historiadores” fazem contra eles.
A situação não m elhora m uito quando se consideram períodos ainda mais
recentes da história israelita. Afirm a-se que 1 e 2Sam uel refletem muitas das
mesmas características literárias de Gênesis-Juízes. Assim, nenhum m aterial de
ISam uel pode ser interpretado literalm ente para a formulação de um a recons­
trução histórica. No entanto, vemos M iller e Hayes “inclinados a presum ir que
muitos desses relatos, talvez a maioria, contenham pelo menos um núcleo de ver­
dade histórica”.30 Porém, não se apresenta justificativa alguma para essa posição,
a qual é prontam ente resguardada com ressalvas a respeito da impossibilidade de
verificação desse “núcleo” e a dificuldade envolvida em sua identificação. M esm o
assim, diante dessas circunstâncias, pode-se afirmar que “é altam ente especula­
tiva qualquer tentativa de explicar as condições históricas tanto da ascensão de
Saul ao poder quanto de seu reino” , o que não impede os autores de continuar
especulando.31 Aliás, isso tam bém não os im pede de elaborar um a narrativa sobre
Saul que corresponde em vários aspectos aos relatos do texto bíblico. N unca fica
claro por que essa abordagem é utilizada na análise de ISam uel e não pode ser
empregada em Gênesis-Josué.
Q uando chegamos à narrativa de Davi, essa dependência do relato de Gênesis-
-Reis é ainda mais perceptível. M uito embora considerem que aqui a maioria das
tradições são lendas folclóricas de círculos judaicos pró-davídicos, M iller e Hayes
pressupõem que “em últim a instância muitas dessas tradições, se não a maioria,
se baseiam em pessoas e acontecimentos históricos reais”.32 M ais um a vez não
fica claro por que essas “lendas folclóricas” podem revelar conteúdo histórico e,
inclusive, por que elas dão origem a um enredo de Miller/Hayes notavelmente seme­
lhante ao enredo bíblico, ao mesmo tem po que as “lendas folclóricas” anteriores
não são capazes de fazer o mesmo. Com o M iller e Hayes, ignorando claramente
qualquer problema perceptível de credibilidade, bem como a inexistência de dados
específicos extrabíblicos de verificação,33 conseguem compor sua história da época

30Ibidem , p. 129.
31O bserve-se a análise m inuciosa em ibidem , p. 132-48.
32Ibidem , p. 159.
33O bserve-se a descrição da natureza do m aterial davídico em ibidem, p. 152-6, e tam bém os
com entários que fazem sobre docum entos extrabíblicos e informações arqueológicas em ibidem,
p. 159-60.
40 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A B ÍBL IA

de Davi baseados em grande parte no relato bíblico de 1 e 2Samuel, enquanto


desconsideram tal abordagem de Gênesis a Josué devido tanto a problemas de
credibilidade observados quanto à inexistência de dados específicos extrabíblicos
de verificação desses textos? É contraditório agir assim; e é natural, portanto, que
historiadores mais recentes tenham ressaltado a questão, exigindo saber por
que as narrativas de Davi devem ser tratadas de forma diferente das que falam
sobre Abraão. Responder que, no caso de Davi, um historiador tem a “pressuposi­
ção” de que as tradições se baseiam em pessoas e acontecimentos históricos reais
não é suficiente — a menos que se queira ser acusado de arbitrariedade e de uso
de um m étodo inconsistente.
Enfim, o que descobrimos é que M iller e Hayes, ao elaborarem sua história
de Israel, usam os textos bíblicos de várias maneiras e mais do que alguns histo­
riadores recentes. Entre M iller e Hayes, de um lado, e W hitelam , de outro, não há
um grande abismo no que se refere a pressuposições e método de controle. Tudo
o que W hitelam faz é instigar M iller e Hayes a serem mais coerentes, indo até
o fim com suas pressuposições e métodos de controle. Se M iller e Hayes alegam
que, no caso de Gênesis-Juízes, a literatura bíblica é de tal natureza que impede
totalmente, ou quase completamente, o historiador de se basear nela para escrever
história, eles não podem alegar que a situação é diferente no caso de Samuel ou
mesmo de Reis. Além disso, quando se trata de Salomão, M iller e Hayes afirmam
que “a apresentação de Salomão em Gênesis-2Reis se caracteriza totalmente pelo
exagero editorial. U m historiador cauteloso talvez se inclinaria a ignorar comple­
tam ente essa apresentação, caso houvesse disponíveis outras fontes de informação
mais convincentes”.34 O historiador cauteloso ressurgiu. Q uando confrontado com
a literatura de Gênesis-Josué, desistiu de dar continuidade devido à cautela, mas, no
caso da narrativa de Salomão, em Reis, lançou todo o cuidado fora. Então, apresen­
tou um relato da história de Salomão utilizando em grande parte a narrativa bíblica.
Nós (e W hitelam ) temos o direito de indagar por quê. O fato de que a Bíblia é a
única fonte de informação que temos é base suficiente para usá-la? Se a resposta
é afirmativa no caso de Salomão, por que também não o é no caso de Abraão? De
modo inverso, se não podemos dizer nada sobre Abraão, será que devemos dizer
algo sobre Salomão? W hitelam pensa que não; aliás, é bem curta a distância entre a
ideia de M iller e Hayes de que “um historiador cauteloso talvez tenda a ignorar...”
o texto sagrado e a sugestão de que o historiador responsável deve ignorar o texto
bíblico, porque apresenta um passado imaginário em vez de real.35

34Ibidem , p. 193.
35Essa é a conclusão de W h itelam em Invention, cap. 4.
A H I S T Ó R I A B ÍB L IC A M O R R E U ? 41

UMA BREVE HISTÓRIA DA HISTORIOGRAFIA

Portanto, é natural que o pensamento de M iller/Hayes e de Soggin resulte na con­


cepção de W hitelam . Entretanto, a enfermidade que precedeu a “m orte” da história
bíblica não foi contraída na década de 80 do século passado. E possível ver sintomas
da doença em obras de história de Israel ainda mais antigas, remontando à origem
da disciplina m oderna de H istória no período pós-iluminista. Se apenas agora o
paciente entrou num a fase crítica de enfermidade, a leitura de sua ficha médica
indica que faz m uito tem po que os problemas começaram. Com o seria preciso
escrever um livro inteiro para descrever essas obras exaustivamente e também todas
as maneiras que elas prenunciam nossos exemplos mais recentes, aqui nos satisfare­
mos com um a discussão daquela que pode ser considerada a tendência principal e
subjacente que deu origem à crise atual. Estamos nos referindo à suspeita generali­
zada em relação à tradição e que tem sido um aspecto proeminente do pensamento
pós-iluminista em geral. Essa suspeita, em graus variados, tem caracterizado a his­
tória da história de Israel ao longo desse período.
O contexto imediato que deve ser brevemente traçado aqui36 é a mudança geral
ocorrida na Idade M oderna, em que o método fundamental do experimento humano
deixou de ser a filosofia e passou a ser a ciência: a instituição de um a abordagem
empírica e crítica de todo conhecimento (não apenas o conhecimento do mundo
natural) sob a influência de pensadores como Bacon e Descartes, que tendia a evitar
qualquer autoridade preestabelecida em sua busca da verdade e submetia toda a
tradição ao critério da razão. Para a historiografia, as conseqüências da popularidade
dessa abordagem foram profundas. Não que em épocas anteriores nunca tivessem
sido feitas perguntas sobre a plausibilidade da tradição — se de fato era possível
considerar que as tradições individuais ou partes de tradições retratavam a verdade
histórica. Por exemplo, embora, especificamente em relação à história de Israel, a
obra do antigo historiador judeu Josefo dependa bastante da tradição bíblica exis­
tente nas Escrituras Hebraicas, ele elucidou essas Escrituras em relação à ciência
e à filosofia de sua época, harmonizando, quando necessário, e às vezes explicando
de forma racional acontecimentos que lhe pareciam extraordinários. D e um modo
mais abrangente, certos aspectos da intelectualidade renascentista foram expressão
de uma profunda consciência da diferença entre o passado e o presente — uma
percepção de que o m undo descrito na tradição não era o mesmo m undo habitado
pelos que a recebem — e tanto de um a postura crítica em relação aos dados literários

36Q uanto a um excelente e completo relato da história da historiografia, veja Historiography:


ancient, M edieval and modem, de E. Breisach (Chicago: University o f Chicago Press, 1983), no qual
grande parte do resum o a seguir está fundamentado.
42 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA

do passado quanto de um tratam ento honesto das evidências arqueológicas como


um a maneira de reconstruir o passado. No entanto, de modo geral, pode-se dizer
que a tradição proporcionou a estrutura aceita para a análise do passado, mesmo
quando elementos dela poderiam ser criticados ou considerados problemáticos. Essa
situação prevaleceu durante todo o período seguinte até o final do século 18 — uma
época em que, de certa forma, não era grande o número dos que consideravam a
história um a fonte de verdade confiável. A inda não havia surgido a ideia de que um
“método científico” poderia descobrir essa verdade na história. A história era a nar­
rativa meramente contingente e particular — uma ideia que o próprio Aristóteles
enunciou e que uma grande variedade de pensadores ao longo dos séculos 16 a
18 também defendia. Por exemplo, os jesuítas que produziram a Ratio studiorum
(1559) não atribuíram em seu currículo papel significativo algum para a história
(em contraste com a lógica e a dialética, que eram consideradas meios de acesso à
verdade). No século 17, o filósofo Descartes — que fundamentou seu pensamento
em axiomas evidentes, obtendo o conhecimento confiável e a certeza por meio do
raciocínio dedutivo e do método matemático — também não atribuiu grande valor
à história, porque os historiadores empregavam a observação e a interpretação, em
vez da lógica e da matemática. Escrevendo no século 18, Lessing (resumindo a
crença geral da época) expressou a opinião de que “as verdades incidentais da his­
tória nunca podem se tornar a prova das verdades necessárias da razão”. Nessa era
científica que surgia com rapidez, quando se reconhecia a importância de se escrever
história, isso era geralmente valorizado como um tipo de arte com vínculos muito
próximos à antiga retórica. O propósito da história era dar prazer ao leitor e, por
meio de exemplos, ensinar princípios morais. As antigas palavras de Dionísio de
Halicarnasso sintetizam a opinião comum naquela época sobre a história: “História
é filosofia ensinada com exemplos”.
Somente no final do século 18 e ao longo do 19 encontramos um a mudança
notória na maneira de conceber a história e a sua produção escrita, à medida que
se sugeria a ideia de que, caso submetido ao tipo apropriado de análise científica
indutiva, o próprio passado poderia revelar verdades sobre a existência humana.
São muitos e complexos os fatores envolvidos nessa mudança geral de perspec­
tiva. D e um lado, para muitas pessoas a tradição em geral, inclusive a tradição
originada da Bíblia, havia sofrido um processo progressivo de enfraquecimento.
Desde a Renascença, a tradição vinha sendo desacreditada pela obra de críticos
textuais humanistas, cujo trabalho tinha grande potencial para destruir a crença
na autoridade de um documento que havia sido oficialmente aceito por séculos;
pelas explorações geográficas, que subverteram perspectivas assumidas por muito
tempo sobre a natureza do mundo; por perspectivas filosóficas, que eram novas ou
se constituíam em novas versões de ideias antigas pré-cristãs com que os estudiosos
A H I S T Ó R I A B ÍBL ICA M O R R E U ? 43

haviam se familiarizado durante o reavivamento renascentista dos estudos clássicos;


e pelo ataque da Reforma à autoridade da igreja e à fé medieval. Por outro lado,
a abordagem científica da realidade já estava começando a desfrutar de prestígio
como forma de chegar á verdade indisputável e atemporal e de entender a existência
humana. Restava apenas ser amplamente adotada a sugestão de que a abordagem
científica da realidade histórica tornaria ainda mais clara a existência hum ana —
uma ideia presente já em pensadores anteriores como Maquiavel.
O catalisador dessa mudança de perspectiva geral foi, sem dúvida, a atividade
intelectual que precedeu e envolveu a Revolução Francesa, representada pelo pensa­
mento de muitos filósofos franceses do Iluminismo que sustentavam que a história
revelava a transformação de uma humanidade racional em potencial em uma hum a­
nidade racional real — uma narrativa de progresso inevitável. A tradição não deveria
mais dirigir as ações do presente nem determinar as esperanças do futuro, em especial
porque ela era vista como algo cuja origem estava nas etapas mais antigas da histó­
ria humana, caracterizadas como períodos de insensatez e superstição. A percepção
era que a própria religião institucional personificava tal superstição. Em vez disso,
expectativas quanto ao futuro deveriam governar tanto a vida no presente quanto a
avaliação do passado. Deus havia criado o universo, colocando em movimento um sis­
tema ordenado de causas e efeitos, e a partir daí o universo prosseguiu sozinho (tanto
no domínio das atividades humanas como no domínio da natureza) em uma regulari­
dade newtoniana. O aumento da racionalidade, cuja ocorrência era inevitável ao longo
do tempo, haveria de conduzir, no tempo devido, ao aumento da felicidade, à medida
que cada um fosse levado a viver de conformidade com princípios conservados na
natureza. Desse modo, a ciência newtoniana forneceu o modelo para o entendimento
não apenas da existência humana presente e futura, mas também da passada.
A perspectiva específica proposta por esses filósofos franceses iluministas não
recebeu de modo algum aceitação geral das pessoas que, em outros lugares, refletiam
sobre a natureza da história. Por exemplo, a historiografia alemã do final do século
18 e início do 19 reagiu a essa cosmovisão francesa e se mostrou bem menos incli­
nada a ver o passado como simples relações de causa-efeito imaginadas pela física
newtoniana. Os alemães estavam mais propensos a crer que era preciso considerar
a própria razão em seu contexto humano completo; que a Natureza não abran­
ge tudo; e que a religião não era apenas um instrum ento conveniente para uma
humanidade ainda não racional, mas um elemento básico da vida humana. Essa
perspectiva preferia ver a história não como a narrativa da racionalidade crescente
ao longo do tempo em direção a um a perfeição cada vez maior, mas sim como uma
série de descontinuidades. O objetivo do historiador era chegar a uma compreensão
intuitiva das forças complexas e entrelaçadas, inacessíveis às simples explicações.
“Historicismo” é frequentemente a expressão usada para se referir a esse método
44 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍ BLIA

da historiografia alemã. N o entanto, apesar de essa reação alemã ser, em muitos


aspectos, oposta ao desdobramento do pensamento francês, ela estava estruturada
em um a resposta de natureza científica, ilustrando a maneira pela qual o modelo
científico passou a dominar a discussão — pelo menos na Europa continental. Um a
das principais críticas alemãs aos filósofos franceses é que eles especulavam sobre o
passado sem a devida consulta às fontes. Nesse aspecto os alemães queriam que seu
trabalho historiográfico estivesse fundamentado em “fatos”, baseando-se em uma
tradição antiga e erudita que herdou elementos: da historiografia humanista italiana
(em sua atitude crítica em relação a textos e tradições não documentados); do traba­
lho sobre a história legal francesa, que destacava a importância de fontes primárias;
e do antiquarianismo (com seu interesse, por exemplo, em indícios materiais do
passado). O estudo árduo das fontes (mediante o uso do m étodo empírico científico
adequado) revelaria, nas famosas palavras de Leopold von Ranke, wie es eigentlich
gewesen — “como as coisas realmente foram”. D urante a maior parte do século 19,
o próprio Ranke esteve à frente de um enorme em preendimento acadêmico a fim
de buscar os fatos e apresentá-los de forma objetiva e científica, supostamente livre de
preconceitos e pressuposições. Aliás, concebia-se a tarefa do historiador exatamente
como a do cientista natural, pelo menos à medida que era vista como o trabalho
de perm itir que os fatos (considerados simplesmente como algo “lá fora”) falassem
por si e, num a etapa posterior, deixar que as pessoas os avaliassem. Agora, ao menos
em primeiro lugar, a historiografia deveria ser compreendida, sem dúvida, como
um em preendimento de interesse meramente teórico em reconstruir o passado sem
qualquer preocupação prática em relação aos propósitos para os quais tal recons­
trução poderia ser usada (seja para a instrução moral, seja para a devoção religiosa,
seja para o entretenimento, seja para divulgação de ideias). No final da década de
1880, essa “história como ciência” já havia substituído a filosofia como a disciplina
a que muitas pessoas cultas na Europa e em outras partes do Ocidente recorriam
como explicação para desvendar os mistérios da vida humana. O distanciamento
dos limites estabelecidos pela tradição rumo a uma liberdade ilimitada de expli­
cações oferecidas conforme o modelo das ciências naturais havia se tornado ainda
mais decisivo. O valor e a autoridade de todos os modelos historiográficos mais
antigos e de todas as histórias baseadas neles haviam sido, na prática, seriamente
questionados. Pelo fato de as obras de história escritas antes do século 19 não terem
sido produzidas com o uso dos devidos métodos científicos, agora tudo tinha de
ser refeito da maneira correta por pessoas que empregavam os métodos adequados.
O próprio Ranke quase chegou a um positivismo científico plenamente desen­
volvido no sentido mais restrito do termo, pois não acreditava que, após descobrir os
fatos por meio de pesquisa crítica, deveria haver um trabalho indutivo que levasse a
conceitos mais gerais e,por conseguinte, mais abstratos — ou seja, a “leis científicas”.
A H I S T Ó R I A B ÍB L IC A M O R R E U ? 45

Ranke era um cristão e um idealista, crendo que um plano e um a vontade divinas


estavam por trás de todos os fenômenos do passado e que as ideias que moldam os
fenômenos e acontecimentos não eram apenas a solução para entender o passado,
mas tam bém proporcionavam uma estrutura moral absoluta e um padrão para ava­
liar o passado. Assim, diferentemente de Augusto Com te (o proponente original do
positivismo como sistema filosófico), não acreditava que a ciência fornece o único
conhecimento válido que podemos ter, substituindo a teologia e a metafísica — ou
seja, que somente os fatos positivos e os fenômenos observáveis são considerados
conhecimento. Entretanto, o método rankeano de abordagem científica do passado,
ao qual podemos corretamente nos referir como uma espécie de “quase positivis­
mo” (à medida que esse m étodo defende a determinação ou verificação de “fatos”
positivos mediante investigação empírica e a elaboração de um quadro objetivo e
científico de “como as coisas foram”),37 logo deu lugar a um a versão mais absoluta
de positivismo em um a era em que inúmeras pessoas tinham deixado de partilhar
da fé cristã de Ranke havia muito tempo e também passaram a duvidar de seu
idealismo. Depois de empregar tão bem a ciência para ridicularizar o passado apre­
sentado acriticamente, a historiografia de tradição alemã do século 19 descobriu
finalmente que essa ciência era um a espada de dois gumes afiada e perigosa; ela
poderia ser usada também de forma decisiva para lidar com a estrutura filosófica
idealista do século 19, a qual foi amplamente aceita e dominou boa parte da histo­
riografia daquele século. Podia-se encarar o próprio idealismo como um a visão ou
um preconceito tradicional — uma daquelas explicações filosóficas que tratam da
ordem do m undo que não pode ser demonstrada indutivamente e que, portanto,
deve ser rejeitada como componente da historiografia pelo indivíduo verdadeira­
mente científico. Ao final do século 19, exatamente essa sugestão havia sido feita
e aceita, quando muitos historiadores começaram a adotar uma posição plenamente
positivista sobre o passado — da mesma forma que estudiosos de outras áreas, que
observaram o imenso prestígio desfrutado pelas ciências e se sentiram compelidos
a alcançar o mesmo sucesso transferindo suas concepções e métodos da investiga­
ção da natureza para a investigação dos fenômenos humanos. Assim, o positivismo

37E m tem pos recentes, na discussão sobre a natureza da ciência, o próprio term o “positivismo”
passou a ser usado de m aneira um tanto imprecisa, referindo-se apenas à m oderna abordagem científica
crítica/em pírica da realidade em geral, quer se façam, quer não, declarações abrangentes sobre a natureza
do conhecim ento válido. Assim, em “H istory and the H ebrew Bible” (in: L. L. Grabbe, org., Can a
“History o f Israel’’ be written? JS O T S 2 4 5 /E S H M l [Sheffield: Sheffield Academic, 1997], p. 37-64)
H . M . Barstad sugere que, no contexto da discussão sobre história, um a definição útil de positivismo
seria “a crença na história científica” (p. 51, nota 35) — um a sugestão com que concordamos por
ressaltar a verdade de que toda história, plenam ente positivista ou não, que declara ser científica tem ,
inevitavelmente, elementos positivistas.
46 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍ BLIA

estritam ente definido pressupõe não apenas que todo conhecim ento deve se
basear em fenômenos diretamente observáveis (i.e., não está simplesmente dedicado
ao empirismo e ã verificação no sentido rankeano), mas tam bém que todos os
esforços científicos devem ter o objetivo de descobrir leis gerais que governam os
fenômenos. Observar, buscar fenômenos regulares, tirar conclusões gerais sobre os
resultados da pesquisa e formular leis devem ser as tarefas de todas as disciplinas
científicas, e só essa abordagem positivista pode produzir conhecimento suficiente­
mente seguro que sirva de guia para reformular a vida humana. Para essa concepção
só as experiências sensoriais têm valor, de modo que toda a estrutura da filosofia
idealista desaba (porque no modelo positivista é impossível “conhecer” deuses, ideias
e coisas do tipo); a estrutura da historiografia idealista, com sua ênfase na pessoa e na
nação em particular, cada um a no respectivo contexto idiossincrático, tam bém cai
por terra. D e modo diferente, a historiografia positivista é firmemente determinista,
concentrando-se em fenômenos ou forças gerais (e, por conseqüência, previsíveis)
presentes na história em vez de naquilo que é único e idiossincrático.
C om esse tipo de historiografia, a falta de interesse pela tradição na busca
do passado se torna plena. N a m elhor das hipóteses, a tradição passa a ser apenas
um a m ina da qual se podem extrair “fatos” determ inados pelo m étodo empírico.
A tarefa do historiador, portanto, é estabelecer a verdadeira relação científica entre
os “fatos” (em oposição à interpretação tradicional deles) e, em seguida, prosseguir
em direção a conclusões e leis gerais que surgem dos fatos (e.g., a abordagem de
H ipólito Taine, que acreditava que por meio desse processo era possível explicar
o passado em sua totalidade). No início do século 20, não estava ainda clara
para alguns intelectuais a ideia de que não era mais tarefa do historiador relatar
esses “fatos” ou tirar conclusões gerais sobre eles. Ao contrário, Em ile D urkheim
defendeu que os historiadores deviam apenas descobrir, depurar e apresentar os
“fatos” ao sociólogo, para que este tirasse conclusões gerais. Em um processo como
esse, dever-se-ia dar prioridade à análise das causas em vez da descrição e da
narração, ao geral em vez do particular e individual, e ao presente diretam ente
observável em vez do passado inobservável.
Seguindo ou não a exata formulação de D urkheim , a historiografia no
m odelo positivista deixa de ser um relato do passado em que pessoas e grupos
desem penham papéis centrais e fundam entais para se tornar um a narrativa sobre
as forças impessoais que moldam tanto o passado quanto o presente. A história
positivista antiga de H . Ruckle prenunciou muitas obras posteriores elaboradas
com a m esma inclinação, destacando de m odo mais geral condições climáticas,
alimento, solo e natureza — em vez àe pessoas — como o que dá form a à civiliza­
ção, e argum entou que os historiadores, caso não queiram ser ignorados, devem
abandonar a historiografia da descrição e das lições morais em favor de um a
A H I S T Ó R I A B ÍB L IC A M O R R E U ? 47

historiografia conforme o padrão das ciências naturais auspiciosas. Em geral,


o século 20 de fato presenciou um a crescente preferência pelas interpretações
sociais e econômicas da história com ênfase em forças coletivas, aspectos quan-
tificáveis e desenvolvimentos repetíveis, a interpretações de natureza política
e orientada pelos acontecim entos, que ressaltam as dimensões particulares e
hum anas (em especial as que tratam de pessoas específicas) da história. Talvez
o mais influente entre os proponentes mais recentes dessas interpretações seja
o grupo francês Annales, com seu interesse na “história total” e sua ênfase nas
estruturas maiores que fornecem o contexto em que os eventos específicos ocor­
rem e em que os seres hum anos pensam e agem. D e acordo com essa perspectiva,
as forças geográficas e demográficas relativamente estáveis da história são o ele­
m ento mais im portante para se entender o passado. Depois delas, pela ordem de
im portância, vêm os desdobram entos econômicos e sociais que envolvem as m as­
sas, a cultura das pessoas comuns e, por fim, os fenômenos políticos. N a prática,
se não tam bém na intenção, a tendência dessa abordagem tem sido negligenciar
a im portância do indivíduo e tam bém dim inuir radicalm ente a im portância do
aspecto político no passado.
Pode se ver a história da historiografia desde o Iluminismo, ao menos o que
expusemos até agora (e temos mais a dizer no capítulo 2), como o relato de uma
disciplina que procura progressivamente desvencilhar-se da dependência da tra­
dição, pois, como resultado do êxito visto nas ciências naturais, ela é obrigada a
justificar sua existência como disciplina acadêmica propriamente dita tornando-se
mais “científica” (quer se entenda “ciência” no sentido empírico-rankeano, quer no
empírico-positivista). A nova abordagem empírica e crítica do conhecimento em
geral foi sendo, em sua totalidade, colocada mais e mais a serviço do conhecimento
histórico em particular. Certam ente, ao final do século 19, o objetivo dos historia­
dores em geral passou a ser reconstruir a história passada “tal como de fato ocorreu”,
em contraste com as afirmações tradicionais sobre o que havia acontecido. Já não se
pressupunha que história e tradição estivessem intim am ente relacionadas. E m vez
disso, passou-se a pressupor que a história estava por trás da tradição e era mais ou
menos distorcida por ela. A ideia, então, não era ouvir a tradição e ser guiado por ela
no que dizia sobre o passado, mas, se possível, ver através da tradição a história que
poderia existir por trás dela (ou, inclusive, deixar de existir). Agora recaía sobre a
tradição o ônus de comprovar sua veracidade, em vez de recair sobre o historiador o
ônus de falsificá-la. A “ciência” da historiografia havia nascido. Sua natureza é bem
exemplificada na seguinte citação de J. Huizinga:

A história adequada para nossa cultura só pode ser a história científica. Na cultura ociden­
tal moderna, a forma de conhecimento de ocorrências neste mundo é crítico-científica.
48 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA

Não podemos abrir mão de exigir o que é indiscutível cientificamente sem causar danos
à consciência de nossa cultura.38

A HISTÓRIA DA HISTÓRIA DE ISRAEL

O desenvolvimento da disciplina da história de Israel no século 19 continuou nos


séculos 20 e 21, sempre de acordo com a matriz que acabamos de descrever. Portanto,
não é de surpreender que, já no século 19, em busca da “certeza científica”, algumas
pessoas estivessem dispostas a, de uma maneira muito semelhante à de W hitelam ,
defender que, para que a história de Israel se tornasse assunto de pesquisa acadêmica,
as tradições encontradas no AT não deveriam ser utilizadas na descoberta de coisa
alguma sobre essa história. W. M . L. de W ette afirmou que o AT, por ser produzido
por autores que tinham a intenção de criar mitos em vez de recontar história, era
totalmente inadequado como fonte histórica. Os que se dedicavam às ciências his­
tóricas deviam aceitar que a natureza da tradição impedia totalmente a reconstrução
da história israelita com base nela. Outros estudiosos estavam, em geral, relutantes
em adotar essa postura radical, e mesmo o próprio de W ette não foi consistente em
mantê-la. Entretanto, o aspecto significativo é que agora havia começado uma busca
sincera pelo “firme fundamento” no qual teria início a elaboração de uma história
moderna de Israel. Nesse ambiente, qualquer uso das tradições bíblicas tinha de ser
justificado na perspectiva do modelo científico adotado. A tradição em si não poderia
servir de ponto de partida necessário. Portanto, em meados do século 19, outro fa­
moso estudioso alemão, H . G. A. Ewald, escreveu de uma forma rankeana típica que
seu objetivo como historiador de Israel era “o conhecimento do que de fato ocorreu —
não o que era apenas relatado e transmitido pela tradição, mas o que era fato real”.39 Se
havia em geral uma concordância de que as tradições bíblicas em sua forma presente
originam-se em uma era bem posterior à maioria dos acontecimentos que elas alegam
descrever, então era responsabilidade das pessoas que aceitavam o novo mode­
lo, com sua ênfase em fontes primárias — e em especial em relatos de testemunhas
oculares, “fatos objetivos” e comprovações externas — , demonstrar como essas tradi­
ções podiam servir, pelo menos em parte, como fontes confiáveis para o historiador.
A natureza dos argumentos, que no final das contas não são nada convincentes, a
favor desse uso parcial de tradições bíblicas levou a historiografia de Israel diretamente

n Geschichte und K ultur (Stuttgart: Rrõner, 1954), p. 13. C itado e traduzido em R. Smend,
“Tradition and history: a complex relation”, in: D . A. K night, org., Tradition and theology in the Old
Testament (Philadelphia: Fortress, 1977), p. 49-68; citação na p. 66.
39B e history o f Israel, tradução para o inglês da 2. ed. (L ondon: L ongm ans, G reen and Co.,
1869), obra em 6 vols. C itação no vol. 1, p. 13. O s volumes em alemão foram publicados pela prim eira
vez em 1843-1855.
A H I S T Ó R I A B ÍB L IC A M O R R E U ? 49

de D e W ette a W hitelam . Como W hitelam observou corretamente, a busca por um


firme fundamento fracassou. Na verdade, a história da história de Israel desde o
século 19 até o presente é, de fato, em grande parte — e não apenas no caso de Soggin
e Miller/Hayes — uma história de pontos de partida indefensáveis e de raciocínio
pouco coerente. Julgando-a com base nos critérios que motivaram o empreendimento
ou que pelo menos o influenciaram bastante, essa história está perdida.

As tradições patriarcais

Como se deve defender, por exemplo, o uso das tradições patriarcais diante de tais
critérios? Mesmo quando se atribuíram às formas literárias dessas tradições datas tão
recuadas quanto os séculos 10 e 11 a.C., muitos estudiosos — especialmente du­
rante a era de estudos bíblicos em que a “hipótese documentária” de Graf-Wellhausen
sobre a composição do Pentateuco teve ampla aceitação e foi reconhecida como ver­
dade evidente — tinham a impressão de que as tradições estavam demasiadamente
distantes de qualquer era patriarcal para nos dar muitas informações de valor. O pró­
prio Ewald, cuja história de Israel em vários volumes precedeu a influente obra de
Wellhausen e que, em geral, demonstrou grande respeito pela relação entre a tradição
do Pentateuco e os fatos históricos, achava que as tradições patriarcais eram de con­
fiabilidade questionável. Ele sustentava que a tradição em geral, embora se originasse
de fatos, preservava apenas uma imagem do que aconteceu. O fato está misturado com
a imaginação e é distorcido pela memória. A tradição é uma entidade flexível que, à
medida que o tempo passa, pode ser modelada por interesses religiosos e etiológicos e
por perspectivas mitológicas. Ela tem grande força inerente, de forma que até mesmo
a substituição da memória pela escrita somente ajuda a controlar o processo em vez de
interrompê-lo. N a fase oral da transmissão, isto é, antes que surja uma tradição histo-
riográfica, não existem controles eficazes, de modo que nem mesmo um esforço sério
por aqueles que transmitem os relatos passando-os adiante sem distorção é capaz de
impedir a reformulação deles. Assim, as tradições patriarcais em particular, agora con­
tidas no que Ewald chamou de “Grande livro das Origens” (Gênesis-Josué) — ao qual
atribuiu a data do período da Monarquia Antiga — , devem ficar sob suspeita, pois
surgiram antes do início da historiografia em Israel (na era mosaica e pouco depois).
Ewald considerou (mas rejeitou) a ideia de que não podemos conhecer nada acerca da
existência e do estabelecimento histórico dos patriarcas em Canaã. Preferiu, porém,
em vez disso, extrair tal história da tradição conforme achava possível.40

40Veja Ewald, History, vol. 1, passim, mas em especial p. 13-45 (sobre a tradição); p. 45-62 (sobre
a escrita e a composição histórica); e p. 288-362 (sobre os patriarcas), observando-se a reflexão sobre o
agnosticismo na p. 305.
50 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍ BLIA

A solução de W. F. A lbright para o problem a que essa form a de entender a


tradição representa para o historiador foi recorrer aos dados arqueológicos a fim
de analisá-la. Para A lbright, os indícios arqueológicos, tanto literários quanto de
artefatos, forneciam material externo à Bíblia que podia ser utilizado para o con­
trole científico da tradição, visto que a arqueologia oferece fatos concretos, em vez
de interpretação ou teoria.41 Entretanto, esse tipo de argumentação se revelou par­
ticularmente sujeito a críticas. Se formos de fato recorrer à arqueologia como meio
de verificar as tradições patriarcais, então, conform e dem onstrado por Thom pson
e outros, a arqueologia não proporciona quase apoio algum. Com o Thom pson
declara: “A arqueologia não apenas não comprovou a historicidade de nem sequer
um só acontecim ento das tradições patriarcais, como tam bém não dem onstrou
que quaisquer tradições sejam prováveis”.42 Se nos dados arqueológicos se busca
um a prova ou até mesmo um aum ento de probabilidade, então a conclusão de
Thom pson é de fato válida. Ficamos assim com tradições relativamente tardias
que não são passíveis de comprovação; algumas pessoas chegam a concluir que
não se podem defender as datas que estudiosos como W ellhausen atribuíram
ao m aterial existente no Pentateuco conhecido como JE. Q uanto mais tardia
a datação da tradição como um todo e quanto mais se debate a possibilidade
de encontrar m aterial mais antigo por trás dessa tradição — e tal alegação fre­
quentem ente é questionada no am biente atual, em que é intenso o interesse pela
expressão artística das narrativas hebraicas como composições integrais — , m enor
a possibilidade de alguém levar a tradição a sério aceitando que ela represente a
realidade histórica.43
Para defender essa posição, seria preciso analisar criticamente toda a aborda­
gem “científica” da historiografia. Seria necessário indagar se a atitude geral para
com a tradição é bem fundam entada — por exemplo, se é mesmo necessário crer
que preocupações religiosas ou interesses etiológicos resultam em um a distorção
inevitável do passado ou que “perspectivas mitológicas” são incompatíveis com a

41E.g., “Dados arqueológicos e de inscrições demonstraram a historicidade [nosso grifo] de inúmeras


passagens e declarações do A T ” (“Archaeology confronts biblical criticism", American Scholar 7 [1938],
p. 176-88, citação na p. 181).
42H e historicity o f the patriarchal narratives, B Z A W 133 (Berlin: D e Gruyter, 1974), p. 328.
43E .g.,J. Van Seters, que concorda com a tese de W ellhausen de que os relatos sobre os patriarcas
não oferecem conhecim ento histórico sobre eles, mas apenas dados acerca do período em que esses
relatos surgiram, acha que esse período é o exílico e não o final do pré-exílico (Abraham in history and
tradition [New Haven: Yale U niversity Press, 1975]). Por outro lado, G arbini afirm a que as narrativas
patriarcais são ficções que nos inform am sobre a ideologia nacional pós-exílica de Israel (History and
ideology, p. 81).
A H I S T Ó R I A B ÍB L IC A M O R R E U ? 51

historiografia.44 Seria preciso, então, investigar o seguinte: se devemos esperar que


a arqueologia “prove” que os acontecimentos das tradições patriarcais são históri­
cos; o que exatamente significa o uso de tal linguagem; e quando tal “prova” não
se concretiza, o que isso significa.43 Por causa do amplo consentim ento entre os
estudiosos do A T sobre como a disciplina deve prosseguir metodologicam ente,
desde o século 19 não tem havido muitas críticas ao fundam ento da história da
história de Israel.46 D iante dessa concordância, certam ente era inevitável que a era
patriarcal não servisse de ponto de partida para a maioria dos livros de história de
Israel que desejassem ser reconhecidos como “críticos”.47

44Tais perguntas foram feitas já no século 19 por estudiosos como R. Kittel (A history o f the Hebrews
[London: W illiam s and Norgate, 1895], 2 vols.), que acreditava que historiadores como W ellhausen
eram negativos demais em sua avaliação das tradições patriarcais e defendia que a saga e a tradição oral
poderiam representar os acontecimentos do passado com precisão.
45Com o G . E. W right relembra, não é clara a m aneira que se espera que funcione o processo de
“comprovação”: “O cético sempre está em vantagem porque a arqueologia só se m anifesta para respon­
der às nossas perguntas e pode-se dizer que não é possível provar tradição alguma” (“W h a t archaeology
can and cannot do”, B A 34 [1971], p. 70-6, citação na p. 75). Ele prossegue sugerindo o seguinte em
relação aos debates sobre se a arqueologia “provou” a veracidade das coisas: “C om respeito a qualquer
história cultural, política e socioeconômica passada, os dois lados da controvérsia empregam de m anei­
ras inadmissíveis, e até mesmo absurdas, o term o prova’” (p. 75).
46Devemos ressaltar que pelo menos a questão do que a arqueologia pode ou não verificar já havia
sido levantada, por exemplo, por M . N o th (e.g., History o f Israel, tradução para o inglês da 2. ed. alemã
[L ondon/N ew York: Black/H arper and Row, 1960], p. 45-6). E ntretanto, visto que, a respeito da tra­
dição, N o th não partilhava da ideia geral que estamos esboçando aqui, suas dúvidas sobre esse assunto
específico não fizeram com que ele fosse um a exceção em iniciar um a história de Israel pelos patriarcas
(veja mais adiante).
47A principal exceção é J. Bright, que, em A history o f Israel (2. ed., Philadelphia: W estm inster,
1972), apresentou um a análise sobre tradição e histó ria em relação aos patriarcas com m uito
m ais variantes do que é com um ocorrer (p. 68-85). Nesse ponto, q uanto à historicidade, o livro
não faz n enhum a suposição contra a tradição e, em bora a arqueologia possa fornecer um pano de
fundo para a leitura da tradição, devido à n atureza do caso, ela é tid a com o incapaz de provar que
os relatos dos patriarcas aconteceram tal com o a B íblia conta. B right, porém , relem bra que, p o r
outro lado, a arqueologia tam bém não contradisse qualquer coisa da tradição. T al defesa da tra d i­
ção vai contra a tendência da historiografia bíblica recente e alguns estudiosos sem pre estiveram
propensos a suspeitar de um “fundam entalism o” secreto presente em alguém que d iz que “repudiar
as tradições ou escolher delas apenas o que atrai por parecer razoável não é um procedim ento
academ icam ente defensável” (p. 74). E n tre tan to , quanto ao “fundam entalism o”, à “ingenuidade”
e à “erudição crítica”, veja m ais adiante. E evidente que a posição de B rig h t certam ente não está
suscetível aos ataques do m étodo positivista, que se baseiam na inexistência de “prova” arqueológica que
favoreça as afirm ações da tradição. Veja ainda sua obra Early Israel in recent history ■writing: a study
in method (S B T 19, L ondon: S C M , 1956).
52 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA

As tradições relativas a Moisés/Josué

Se abandonarmos a era patriarcal como ponto de partida, qual seria a outra opção
que deveríamos tentar utilizar como base? No que diz respeito à verificação externa,
as narrativas que tratam das eras de Moisés e Josué são tão problemáticas quanto as
que abordam a era patriarcal;48 e, de qualquer forma, a não ser que se esteja preparado
para debater com Ewald e argumentar que a tradição bíblica se origina de fontes
escritas que remontam à era mosaica, é improvável (com base nas pressuposições
em geral partilhadas pela erudição aqui analisada) que a tradição tenha muito a nos
dizer sobre esses períodos.
W ellhausen é bem inconsistente nesse exato ponto, o que é intrigante quando
se considera o quanto sua influência é percebida na história da história de Israel
do últim o século e mais recente.49 W ellhausen vai m uito além de Ewald em suas
ideias sobre os patriarcas, sustentando que não se pode usar deforma alguma as
narrativas de Gênesis com objetivo historiográfico. Ele afirma que não chegamos
a conhecim ento histórico algum sobre os patriarcas com essas narrativas, mas
conhecemos apenas o período em que surgiram as narrativas sobre os patriarcas —
o período da monarquia anterior à conquista do Reino do N orte (Israel) pela Assíria
no oitavo século a.C. (no caso da fonte J) e, certamente, mais tarde, o período do
Exílio (no caso da fonte P).so Pode-se pensar que o corolário desse argumento
deveria ser o de que tam bém não chegamos a nenhum conhecimento histórico das
eras de Moisés e Josué, mas só da época em que surgiram os relatos sobre eles, pois
lemos sobre essas eras nas mesmas fontes do Hexateuco. Além do mais, a ideia
geral de W ellhausen sobre a literatura hebraica é que o período antes do final do
nono século a.C. pode ser, em grande parte, descrito como um a era não literária,
ainda que alguma literatura (inclusive história em prosa) tivesse existido antes
dessa época.51 Como, então, ele não defende o agnosticismo em relação à era

4SNão existe, por exemplo, nenhum a confirmação independente do Exodo e, para alguns estu­
diosos, a própria natureza da narrativa que o descreve parece, em princípio, apresentar problemas de
verificação (e.g., G . W . Ahlstròm : “Visto que o texto bíblico se interessa basicamente por ações divinas,
as quais não são verificáveis, é impossível utilizar a narrativa do Êxodo como fonte para reconstrução
da história dos períodos do Bronze Recente e do início do Ferro I ” \ Who were the israelites? W inona
Lake: Eisenbrauns, 1986, p. 46]). D o mesmo m odo, a questão de a arqueologia “provar” ou não que um a
conquista de C anaã tenha ocorrido é assunto de extensos debates ao longo de muitas décadas.
49Prolegomena to the history o f Israel (Atlanta: Scholars Press, 1994) — um a reimpressão da edição
de 1885 que incluiu como apêndice o verbete “Israel”, escrito por W ellhausen para a Encydopaedia
Britannica (9. ed., 1881, vol. 13, p. 396-431).
5<1Prolegomena, p. 318-27, 342, 464-5. C om toda probabilidade, Abraão é exemplo de “um a livre
criação de arte inconsciente” (p. 320), e a tradição patriarcal é “lenda” (p. 335).
51Ibidem , p. 464-5.
A H I S T Ó R I A B ÍB L IC A M O R R E U ? 53

pós-patriarcal, como o faz insistentem ente com a era patriarcaR Procura-se em


vão um argumento convincente.
É evidente que o próprio Wellhausen temia a acusação de inconsistência, pois
buscou se prevenir declarando que, ao contrário da “lenda” dos patriarcas, a tradição
“épica” de Moisés e Josué contém elementos que não podem ser explicados a menos
que haja fatos históricos subjacentes. A fonte dessa tradição deve estar no período
narrado por ela, ao passo que a lenda patriarcal não tem relação alguma com a
época dos patriarcas.S2 M as afirmação não é argumento, e rotular tradições com
conceitos de gêneros diferentes não as torna diferentes. N a verdade, é difícil evitar a
impressão de que a distinção tratada aqui tem muito mais a ver com a necessidade
de W ellhausen de ter um a fonte J histórica com que possa contrastar com uma
fonte P menos histórica ou fictícia (o ponto central das páginas anteriores de sua
obra) do que com qualquer outro motivo. O próprio Wellhausen oferece, assim, um
bom e antigo exemplo do modo pelo qual, sem argumentos convincentes e funda­
mentados, escolhas arbitrárias de pontos de partida da tradição têm caracterizado a
história da história de Israel.S3 Se há a exigência de que alguém justifique o fato de
encontrar, em narrativas patriarcais incluídas em um a fonte monárquica, algo que
não se relacione ao tempo da própria fonte monárquica, então a mesma justificativa
deve ser exigida no caso de narrativas pós-patriarcais encontradas na mesma fonte.
Nesse aspecto, parece que W hitelam é de novo o mais consistente alter ego de um
estudioso mais antigo, pois ele leva à conclusão lógica a questão da primazia do
período em que os relatos surgiram (mesmo que para nossa perspectiva isso seja, em
últim a análise, um tiro pela culatra).

As tradições de Juizes

O utro ponto de partida arbitrário para os livros de história de Israel que bus­
cam um “firme fundamento” na tradição é o livro de Juizes. M artin N oth, embora
(ao contrário de Wellhausen) não negasse a existência dos patriarcas como per­
sonagens históricos, acreditava que a natureza da tradição bíblica nos impede de

52Ibidem , p. 360.
53Tam bém podem os acrescentar que, no que diz respeito à atividade literária, o ponto de partida
adotado por W ellhausen não está bem fundam entado em argumentos. Se a afirmação de W ellhausen é
que “diante da pergunta sobre o motivo de Elias e Eliseu não deixarem nada escrito ao passo que, cem
anos depois deles, Am ós aparece como escritor, é difícil que haja outra resposta exceto a que diz que,
no intervalo entre eles, um período não literário se transform ou em literário” (p. 465), então a resposta
óbvia é que na verdade não sabemos se Elias e Eliseu não deixaram nada escrito, nem se Am ós foi um
autor. Sabemos apenas que não temos um “livro de Elias” nem um “livro de Eliseu”, mas tem os um livro
de Am ós. C om base nesses fatos não podemos deduzir nada sobre a história cultural de Israel.
54 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA

escrever alguma história propriamente dita sobre eles.54 O mesmo se pode dizer das
tradições a respeito de tudo o mais que aconteceu antes da aparição de Israel como
confederação tribal na Palestina. Para o historiador, o problema é que, embora possa
não haver dúvida de que o Pentateuco se propõe a relatar fatos que ocorreram —
e inclui um volume considerável de material relacionado a tradições históricas —
com certeza ele não surgiu (na perspectiva de N oth) como obra histórica nem foi
planejado desde o princípio com esse propósito. O Pentateuco não foi planejado
nem redigido como um a narrativa histórica coerente. Antes, ele é produto de com­
binações sucessivas das tradições orais sagradas. As várias tradições tribais contidas
no Pentateuco ganharam sua forma definitiva unificada pela primeira vez em um
Israel que já estava unificado na Palestina. Essa liga de doze tribos israelitas intro­
duziu pela primeira vez o conceito de “todo o Israel” no que originalmente eram
tradições tribais independentes. Agora todo o povo de Israel lia textos sobre vários
passados independentes como se fosse seu passado unificado. Assim, na forma pre­
sente, as tradições mais antigas personificam, por exemplo, em Jacó/Israel e em seus
doze filhos, a situação histórica existente depois da ocupação da terra. Baseiam-se
em pressuposições que não existiram até que as tribos tivessem se estabelecido. N oth
alegava que uma leitura cuidadosa do livro de Josué revela que antes da época da liga
israelita não havia um Israel unificado. N a verdade, as várias tribos de Israel não se
estabeleceram na terra ao mesmo tempo. U m a vez que a combinação das tradições
independentes mais antigas é apenas um fenômeno secundário, então — refletindo
a perspectiva de uma época posterior — deve-se considerar o plano histórico que o
material apresenta como não confiável. Somente com a ocupação da Palestina é que
temos um “Israel” de fato plenamente unificado e, portanto, só a partir desse ponto
é que a verdadeira história de Israel começa.
Entretanto, as seguintes perguntas devem ser feitas: Como N oth sabe que a
perspectiva de “todo Israel” do livro de Juizes não é anacrônica como a perspectiva
de “todo Israel” de Gênesis ou Exodo? Como ele pode justificar um ponto de par­
tida na tradição de Juizes, se não está disposto a adotar uma tradição anterior como
esse ponto inicial? Ele está consciente desse problema.ss Reconhece a impossibili­
dade de imaginar qualquer período em que a situação real de Israel correspondesse
exatamente ao sistema de doze tribos descrito na tradição, e ele concorda que o
próprio número doze é “suspeito” e “aparentemente artificial”.56 Por essa razão, N oth
considera a possibilidade de que, quanto ao Antigo Israel, haja na noção de uma

34Q uanto a essa questão e à descrição das ideias de N oth apresentadas a seguir, veja esp. N oth,
History, p. 1-7,4 2 -8 4 ,1 2 1 -7 .
s5Ibidem , p. 85-97.
“ Ibidem , p. 86-7.
A H I S T Ó R I A B ÍB L IC A M O R R E U ? 55

entidade de doze tribos um quadro elaborado arbitrariamente que data de um pe­


ríodo posterior. Contudo, N oth é rápido em rejeitar tal possibilidade. Encontramos
no AT, na Grécia e na Itália outras entidades de doze tribos, o que significa que o
sistema tribal israelita não é um fenômeno único do m undo antigo. Portanto, esse
não pode ser um aspecto do quadro de Israel elaborado de modo secundário, em
que um quadro mais abrangente é esquematicamente dividido. O paralelo grego
em particular demonstra para N oth que, no Israel veterotestamentário de doze tri­
bos, encontramos uma associação histórica de tribos israelitas em vez de uma ficção.
O que indica que a natureza dessa associação é a de uma antiga “anfictionia” israelita
(uma sociedade sagrada que tem um santuário específico como centro): “O número
doze fazia parte da instituição e tinha de ser mantido mesmo quando ocorriam m u­
danças no sistema: ele prova que não foi mero resultado da ramificação natural de
um grupo humano nem a invenção de um período posterior, mas sim, um elemento
essencial na organização histórica dessa confederação trib alV 7 E assim que N oth vê
na tradição um fundamento firme sobre o qual pode construir seu edifício histórico.
A posição de N oth é hoje suficientemente conhecida de modo que talvez esse
resumo não cause muita surpresa; no entanto, talvez seja surpreendente o fato de ele
haver adotado essa posição, quando, em geral, não adotou uma atitude positivista na
questão da relação entre dados externos e tradição literária (inclusive bíblica). N oth
insistiu que, na composição da historiografia, a arqueologia deve, em princípio, se
submeter à literatura, visto que ele era um tanto cético acerca do que a arqueolo­
gia era capaz de alcançar sozinha e estava convencido da necessidade de priorizar
o estudo da tradição na investigação de qualquer acontecimento.58 Essas opiniões
são um a crítica àqueles que seguiram A lbright na tentativa de usar a arqueologia
para comprovar a historicidade do período patriarcal. Por isso é irônico que, no diz

37Ibidem , p. 88.
3sE.g., “A história só pode ser descrita com base em tradições literárias que registram aconteci­
mentos e descrevem pessoas e lugares. A té mesmo descobertas arqueológicas só podem ser entendidas e
analisadas no contexto de informação fornecida por fontes literárias” (ibidem, p. 42); “N o que diz respeito
ao antigo O riente, que conhecimento realmente exato e qual conteúdo histórico teríamos, caso possuís­
semos todos os indícios m ateriais, mas não as relíquias literárias no sentido mais amplo da palavra?”
(p. 46-7); “E m gerai não se deve esperar que ela [a arqueologia da Palestina] produza dados positivos
sobre acontecimentos e processos históricos específicos, exceto quando conduz à feliz descoberta de do­
cumentos escritos [...]. Por causa da natureza da arqueologia, só raram ente surgem dados arqueológicos
que provem a veracidade de um acontecimento específico, bem como ele ocorreu conforme narrado nos
registros escritos [...]. O esclarecimento arqueológico da situação geral de qualquer período específico
não nos permite de m odo algum abrir mão do estudo da natureza das tradições preservadas nos registros
que têm sido transm itidos” (p. 48). Para ideias semelhantes, veja ainda R. de Vaux, “O n right and wrong
uses o f archaeology”, in: J. A. Sanders, org., Near Eastern archaeology in the twentieth century (G arden
City: Doubleday, 1970), p. 64-80; e W right, “Archaeology”.
56 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍ BLIA

respeito à anfictionia grega, sua argumentação siga o padrão positivista. Teria sido
melhor se N oth tivesse considerado e aplicado o próprio comentário sobre a arqueo­
logia e o que ela demonstra: “O fato de ser demonstrável que um acontecimento foi
possível não é absolutamente prova de que de fato ocorreu”.S9M esm o que o paralelo
da anfictionia fosse mais convincente do que de fato é, não seria suficiente para o
propósito com o qual N oth o utiliza. Com certeza o fato de que um a confederação
grega existiu não demonstra que a associação tribal específica descrita em Juizes foi
um a realidade histórica e não somente literária, nem que sua natureza foi a de uma
anfictionia. A alegação simplesmente não tem lógica alguma, nem teria sentido
mesmo que se provasse que o paralelo é semítico e não indo-europeu e que o período
em consideração foi mais próximo do livro de Juizes.60 Se há a exigência de se
investigar a tradição, então paralelos sociológicos são tão inadequados para a tarefa
quanto a arqueologia.61 Por si mesmos, os paralelos não provam que a literatura

59History, p. 48. Com p. a ideia sem elhante de W ellhausen: “O que deve ter acontecido é de menos
im portância do que o que de fato aconteceu” (Prolegomena, p. 46).
60A lguns estudiosos têm , aliás, cham ado a atenção para possíveis paralelos do antigo O riente P ró­
ximo (em vez de paralelos gregos) com o tipo de organização tribal que pode estar implícita no livro de
Juizes. Observe-se, e.g., W . W . Hallo, “Biblical history in its N ear Eastern setting: the contextual approach”,
in: V. P. Long, org., Israels past in present research: essays on ancient Israelite historiography, SBTS 7
(W inona Lake: Eisenbrauns, 1999), p. 77-97 (o texto de H allo foi publicado originalm ente em 1980).
“ C ontudo, em defesa de N oth talvez se deva dizer que ele ao menos tentou analisar um a tradição
(por mais mal orientada que essa tentativa possa ter sido) pela qual tinha grande respeito. C om relação
ao período pré-m onárquico, em alguns usos posteriores de “paralelos” sociológicos praticam ente não
se percebe nenhum ponto de contato com a tradição e, com a inexistência de tais pontos de contato,
esses paralelos são passíveis de questionam ento quanto a terem tam bém alguma ligação com a reali­
dade histórica (em contraste com um a ligação apenas com a imaginação fértil erudita). Por exemplo, a
reconstrução de G . M endenhall “do que de fato aconteceu” na criação de Israel (“The H ebrew conquest
o f Palestine” [BA 25, 1962], p. 66-87), com seu foco em um a revolta israelita contra a cultura urbana
cananeia dominante, não passa de um a projeção no passado de m odernos princípios socioeconômicos e
ético-religiosos que não têm praticam ente nenhum a relação séria com a tradição bíblica (veja a crítica
feita por A. J. H auser em J S O T 7 [1978], p. 35-6). E m The tribes o f Yahweh: a sociology o f the reli-
gion o f liberated Israel, 1250-1000 B. C.E (Maryknoll: Orbis, 1979) [edição em português: A s tribos de
lahweh, tradução Anacleto Alvarez (São Paulo: Paulus, 1986)], N . K. G ottw ald apresenta um a teoria
semelhante, desconsiderando, sem motivo algum, noções não sociológicas como a de “povo escolhido”
ju n to com as tradições que empregam essa linguagem. E le se m antém impassível diante do fato de
que no texto bíblico não h á sequer a m enor indicação da ocorrência de um a revolução. E irônico que
mais tarde M endenhall tenha atacado G ottw ald por este projetar na história bíblica o plano de um a
ideologia do século 19. Pode-se ver o m esmo abandono da comprovação pela fantasia em escritos ainda
mais recentes que partilham de um ponto de vista semelhante. Nesse aspecto, embora com frequência
M . Weber, o autor de AncientJudaism (New York: The Free, 1952), seja citado próximo do início da lista de
estudiosos que aplicaram ideias sociológicas à história de Israel (visto que há consenso de que é o pai
do estudo sociológico m oderno sobre a religião), é injusto associá-lo com seus supostos sucessores, pois
A H I S T Ó R I A BÍB L IC A M O R R E U ? 57

afirma o que de fato aconteceu na realidade histórica — neste caso, não provam
que, diferente da expressão “todo Israel” do Pentateuco ou de Josué, a expressão
“todo Israel” do livro de Juizes não é criação de editores hipotéticos, combinando
de forma derivada as tradições tribais originalmente independentes. N a verdade, de
uma forma ou de outra o paralelo é imperfeito. As fontes extrabíblicas mencionadas
por N oth pertenceram ao mundo indo-europeu e não ao semítico (o que ele próprio
reconheceu como um ponto fraco de seu argumento).62 Além do mais, a data dessas
confederações é muito posterior à de seu paralelo hipotético israelita — um fato
devastador para a alegação de N oth de que o sistema tribal israelita, por não ser
um fenômeno único no m undo antigo, não pode ser um aspecto de um quadro
de Israel elaborado de modo secundário; ademais, essas confederações em grande
parte pertencem a uma cultura urbana em vez de rural.63 N a verdade, ao contrá­
rio do que N oth afirmou, o número doze não era uma característica primária da
anfictionia extrabíblica. O número de seus membros podia variar. Por outro lado,
ele estava certo em identificar um santuário central como “o aspecto essencial das
instituições dessas associações tribais”;64 infelizmente, porém, o santuário central é
um aspecto que N oth tem grande dificuldade de encontrar no livro de Juizes.65 Por
isso, mesmo estudiosos que pensam que a comprovação deve ser feita por meio de
paralelos sociológicos consideram, geralmente, essa tentativa de comprovação de
N oth um fracasso.
A posição irônica de Noth, que é positivista em relação à sociologia, ao mesmo
tempo que se recusa a tomar a mesma atitude para com a arqueologia, é certamente
inevitável. Levando-se em conta sua atitude em geral com relação à tradição, a qual
ele partilha com a maioria dos autores que têm escrito sobre a história de Israel nos
últimos 150 anos, de alguma forma ele precisa demonstrar fora da tradição que há
fundamento para se adotar um ponto de partida dentro da tradição. Sem o paralelo
da anfictionia ele não conseguiria demonstrar que seu argumento acerca de Gênesis-
-Josué não se aplica também a Juizes — o fato, porém, é que Juizes apresenta, para

W eber tam bém levou a tradição bíblica a sério. Ele se voltou para a tradição quando procurou socieda­
des que, à semelhança da sociedade protestante europeia, tinham base ético-religiosa para seu sistema
econômico. D escobriu tal base na teologia da aliança que permeava tanto a organização da sociedade
tribal israelita quanto sua religião profética.
62“Ê preciso ter cuidado com a m aneira que se usa esse material, visto que procede de um a região
relativamente rem ota, de um contexto histórico comparável, mas diferente” (History, p. 90-1).
“ Veja, e.g., nas p. 299-308 de “The period o f the Judges and the rise o f the m onarchy”, a excelente
análise de A. D . H . Mayes (in: J. H . Hayes, J. M . Miller, orgs., Israelite andJudaean history (London:
SC M , 1977), p. 285-331.
64History, p. 91.
65Ibidem , p. 91-7.
58 H I S T Ó R IA , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA

o historiador, todos os problemas que são encontrados no Hexateuco, e o ponto de


partida de N oth em Juizes é, na verdade, indefensável. Se ele está certo no que diz
sobre a tradição bíblica mais antiga em geral, então não pode, de repente, passar a
confiar na tradição quando chega ao livro de Juizes. Se, por outro lado, movido pelo
desejo de manter sua posição sobre Juizes, começasse a questionar sua ideia sobre
a tradição em geral, também cairia por terra seu argumento a favor de iniciar sua
elaboração histórica em Juizes, em vez de em algum ponto anterior. A argumentação
confusa encontrada na obra de N oth já deixou claro que não existe praticamente
nenhum fundamento para uma distinção generalizada entre Gênesis-Josué e Juizes.
Se, por exemplo, como N oth afirma, as tradições do Pentateuco se baseiam
em acontecimentos históricos e se, de fato, o Pentateuco procura relatar aconteci­
mentos reais, por que o Pentateuco não é um a obra histórica enquanto a H istória
D euteronom ista o é?66 A resposta não pode estar na intenção de falar sobre o
passado, pois ambas as obras a dem onstram . A resposta deve estar no fato de
que a H istória D euteronom ista foi supostam ente planejada e redigida como uma
narrativa histórica coerente, ao passo que isso não ocorreu com o Pentateuco.
Contudo, não fica claro como esse plano e essa redação deixariam implícito que
a H istória D euteronom ista é defato um a fonte histórica mais confiável do que o
Pentateuco, em especial quando se considera que, na forma existente, a H istória
D euteronom ista (à semelhança do Pentateuco) pertence a um a data bem posterior
ao período que descreve. Não está claro como sabemos que o Pentateuco não foi
planejado nem redigido como um a narrativa histórica coerente. Tampouco está
claro como temos conhecimento (caso isso tenha ocorrido com o Pentateuco) de que
o processo de combinação das tradições durante a transmissão oral necessariamente
as distorceu. Aqui muito se depende da tese de N oth de que a própria tradição
bíblica revela em várias afirmações que as tribos de Israel não se estabeleceram na
terra ao mesmo tem po e que, como conseqüência, “todo Israel” é um a elaboração
enganosa que um a geração posterior introduziu em tradições mais antigas. Essas
revelações são, acima de tudo, como ele “sabe” que a estrutura histórica apresen­
tada pelo material mais antigo não é confiável. N oth, porém, “sabe” isso porque já
“sabe” que, à semelhança do material mais antigo, o mais recente deve ser inter­
pretado na perspectiva da diversidade original e de um a camada editorial que, nas
palavras dele, tem “um a visão demasiadam ente simplista dos eventos” relativos
ao estabelecimento em C anaã.67 Podemos indagar como se obtém esse conheci­
m ento e que sentido faz afirmar que a tradição adota um a ideia simples demais
dos acontecimentos, quando a própria tradição oferece indícios de um a suposta

“ Ibidem , p. 42-3.
67Ibidem , p. 72.
A H I S T Ó R I A B ÍBL ICA M O R R E U ? 59

complexidade subjacente. Será que os autores bíblicos apresentam um a leitura


excessivamente simplista da ocupação da terra por Israel ou, ao contrário, será
que o próprio N oth oferece um a leitura simplista demais da tradição bíblica? Se
ele está fazendo um a leitura equivocada do Pentateuco, então os argumentos que
surgem em decorrência dela — argumentos contra o uso da tradição na produção
de um a história de Israel — não têm base alguma. Por exemplo, o simples fato
(se isso pudesse ser dem onstrado de alguma forma) de que o propósito original
de um a tradição antiga era explicar a origem das coisas — isto é, que o propósito
original era um a etiologia, um a das explicações preferidas nos textos de N oth —
não leva à conclusão lógica de que a explicação oferecida sobre a origem não seja
confiável. E, por si mesma, a combinação derivada de tradições (se foi isso o que
os autores do Hexateuco realizaram) tam bém não implica que o processo dessa
combinação tenha distorcido a realidade histórica.68 Em resumo, pode-se ver por
que historiadores que partilham da suspeita generalizada de N oth acerca da tra­
dição não se dispuseram a se unir a ele e a adotar o “fundam ento firme” em que
ele busca elaborar sua história de Israel. Tam bém fica claro por que abandonaram
progressivamente esse fundam ento à procura de algo melhor.

Conclusão

Podemos, então, prosseguir em nossa descrição das mudanças de perspectiva no


meio acadêmico. Já vimos outro conjunto de fundamentos nos textos sobre Davi
e Salomão se desintegrar com a crítica feita anteriormente por nós a Soggin e a
Miller/Hayes. A medida que, nos estudos acadêmicos recentes, as supostas datas das
tradições bíblicas foram sendo empurradas para a era pós-exílica e sua característica
de narrativa artística foi sendo ressaltada (diminuindo a possibilidade de se fazerem
escavações na tradição e, desse modo, recuperarem-se pedaços da história), também
passou a ser amplamente questionada a possibilidade de quaisquer tradições falarem
sobre o passado. Assim, agora até mesmo a posição distintam ente radical (para a
época) adotada por A. Kuenen em 186969 — de que, ao escrever um a história de

6sE m sua resenha do livro de T. L. Thom pson The origin tradition o f ancient Israel (JS O T S 55,
Sheffield: JS O T , 1987, vol. 1: The literary form ation o f Genesis and Exodus 1— 23), B. O . L ong faz
a seguinte observação convincente sobre esse tipo de pressuposição: “Análises literárias [...] são
explicações teóricas para descontinuidades que observamos em nossa leitura do texto canônico. Não
estou certo de que contribuam m uito — se é que chegam a fazê-lo — para decidir o que [...] pode
ser diretam ente histórico. Essa decisão tem de estar fundam entada em outras bases” (JBL 108 [1989],
p. 327-30; citação na p. 330).
69De godsdienst van Israel tot den ondergang van den joodschen staat (Haarlem: Kruseman, 1869-
1870), vol. 1, p. 3 2 -5 ,2 vols.
60 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA

Israel, é impossível retroceder além do oitavo século a.C. porque só a partir desse
período é que passamos a ter dados externos escritos que nos perm item avaliar a tra­
dição bíblica — ficou ultrapassada. Com o P. R. Davies alega, o simples fato de que
nos livros de Reis encontramos um a narrativa em que alguns pequenos detalhes se
relacionam com textos extrabíblicos não significa que a narrativa específica de Reis
seja necessariamente verdadeira — a ideia de que aqui se pode confiar na tradição,
enquanto não se pode fazer o mesmo em relação à tradição do período anterior™
O próprio Davies defende uma abordagem totalmente não bíblica da história de
Israel, mais à maneira de D e W ette do que de Kuenen.
C ontudo, vemos que até mesmo Davies sente um a nostalgia contínua da
tradição, um a vez que, surpreendentem ente, dá aos livros de Esdras e Neemias
o lugar central em sua reconstrução histórica do período pós-exílico.71 Sua ju s­
tificativa é que, primeiro, ao contrário do Israel da Idade do Ferro, no caso de
Esdras-Neem ias, os dados não bíblicos oferecem “em certa m edida” confirmação
de “alguns” processos básicos descritos nesse ponto da narrativa bíblica; e que,
segundo, desdobram entos subsequentes no surgim ento da sociedade judaica e
de sua religião “dem andam ” processos como o descrito em Esdras-N eem ias.72
A linguagem é um pouco imprecisa, mas parece que aqui (e só aqui) Davies tenta
defender que, um a vez que levamos a tradição bíblica a sério como literatura,
tam bém podem os aceitá-la, com os dados não bíblicos, como um m aterial que
retrata a história. Entretanto, é exatamente esse argum ento que alguns estudiosos
elaboram em favor de outros textos bíblicos — os mesmos estudiosos que, quando
procedem dessa maneira, Davies acusa de criarem um a versão palatável do relato
bíblico em vez de escreverem “história de verdade”.
Portanto, se Davies cai por sua própria espada e se seu “fundam ento firme” na
tradição se revela instável, então o caminho está livre para W hitelam . Se Davies
reluta em ir até o fim e chegar à conclusão lógica da atitude positivista para
com a tradição — pois, como ocorre no caso da história de um período anterior,
sem os textos bíblicos talvez não sejamos mais capazes de escrever um relato
significativo sobre Israel nos períodos persa e helenístico — W hitelam , por sua
vez, não reluta. Davies, em vez de nada dizer, está m uito disposto a se envolver
na arbitrariedade que, como vimos, é endêmica na história da história de Israel.
Ele começa a utilizar a tradição no período que lhe convém. W hitelam , porém,
está disposto a não dizer nada, pelo menos nada que tenha algo a ver com o Israel
da tradição bíblica.

70Search, p. 32-3.
71Ibidem , p. 84-7.
72Ibidem , p. 86.
A H I S T Ó R I A B ÍB L IC A M O R R E U ? 61

É POSSÍVEL SALVAR O PACIENTE?

Com uma compreensão melhor do contexto em que se anunciou a morte da


história bíblica, talvez possamos ver com mais facilidade como esse anúncio
ocorreu. Encontramos claros sintomas de um a doença na “História de Israel” que
já vem se manifestando há algum tempo e que tem profundas causas intelectuais.
Inconsistências e pontos de partida arbitrários caracterizam essa disciplina. Em
determinado momento, o testemunho bíblico do passado de Israel é aceito sem
reservas, sendo considerado um a representação real daquele passado. No instante
seguinte, esse testem unho é rejeitado pelos motivos mais duvidosos, os quais em
alguns casos se resumem praticamente a mero preconceito. Em um momento, parece
que se deve considerar que os dados extrabíblicos proporcionam um “conhecimento”
sobre o passado antigo que é firme como a rocha e diante do qual as afirmações
bíblicas naufragam. No instante seguinte, tais dados são menosprezados e relativi-
zados, e se m antém a versão bíblica dos acontecimentos, não im portando o que as
outras fontes de dados têm a nos dizer. Entre a erudição crítica há a concordância
geral de que a suspeita da tradição deve ser o ponto de partida; de que, no que diz
respeito à história, a tradição não pode receber o benefício da dúvida. Porém, depois
de adotar essa postura baseada no princípio de suspeita da tradição, ninguém con­
segue concordar sobre o ponto em que se deve afastar a suspeita e substituí-la pela
confiança na tradição. No primeiro caso, a postura é adotada em nome da investi­
gação crítica: a busca dos “fatos”. A própria investigação crítica, contudo, levanta
perguntas quanto à existência de alguma base racionalmente defensável para afastar
a suspeita que tem caracteristicamente acompanhado a investigação crítica.
Sem dúvida, tudo isso gerou um desconforto tão profundo que levou um número
enorme de escritores que assumem uma posição crítica específica sobre a história
de Israel a adotar não uma postura defensiva, mas agressiva, cujo objetivo parece ser
evitar questões sobre as credenciais críticas do escritor, sugerindo que na verdade os
outros é que não estão sendo críticos. Por exemplo, ao criticar Ewald, J. H . Hayes
(que aceita que “as Escrituras hebraicas foram e continuam sendo fontes primárias
úteis para reconstruir a história de Israel e Judá”)73 descreve a obra do estudioso do
século 19 mais como um comentário histórico sobre os livros históricos do que uma
história de Israel, pois Ewald “aderiu substancialmente à perspectiva teológica do
texto bíblico ao mesmo tempo que modificou o elemento milagroso”.74 Nunca fica
claro o que exatamente está errado com a abordagem de Ewald. Ao que parece, ele

73“The history o f the study o f Israelite and Judean history”, in: Hayes e Miller, orgs., hraelite and
Judean history. p. 1-69; citação na p. 3.
74Ibidem , p. 61.
62 H I S T Ó R IA , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA

é apenas mais dependente da tradição bíblica do que Hayes gostaria que ele fosse.
Soggin oferece um exemplo ainda mais notável da mesma abordagem. Ao fazer
objeção à concepção de W. W. Hallo de que a história de Israel começa na época
do Êxodo, ele afirma que a posição de Hallo “pode ser entendida no contexto de
um a concepção ingênua da história de Israel, típica de escola dominical, adotada
por um escritor que não é um acadêmico da área bíblica”.75 Soggin afirma que, se
observarmos a proposta de Hallo, sua ingenuidade é visível à luz do que ele (Soggin)
disse anteriormente. Nas páginas precedentes, procura-se em vão algum argumento
que realmente demonstre que a posição adotada por Hallo deve ser considerada
ingênua. Hallo meramente escolhe na tradição um ponto de partida diferente do
ponto de Soggin e, em vez de se dar ao trabalho de debater com Hallo sobre isso,
Soggin adota o caminho mais fácil, o de insultá-lo.
Exemplos desse tipo de discurso são abundantes em obras de história de Israel
que almejam receber o título de “críticas”. N a verdade, pode-se caracterizar toda a his­
tória moderna da história de Israel como uma disciplina em que, na busca por serem
reconhecidos como críticos, os estudiosos — como membros do que foi chamado de
“clube pós-iluminista de erudição histórica”76 — têm aplicado parcialmente uma
metodologia “científica” ao assunto que é objeto de estudo, esperando demonstrar que,
ao rejeitar este ou aquele aspecto da tradição, merecem ser reconhecidos como erudi­
tos. Acusar outros estudiosos de determinado grupo de não serem verdadeiramente
fiéis sempre foi uma maneira eficaz de sugerir comprometimento pessoal com a causa.
Como ocorre nas mudanças decisivas por trás da própria historiografia moderna, é
possível traçar a história dessa tática ao menos até a Revolução Francesa. N o entanto,
assim como os que vivem denunciando também tendem a morrer como denunciados,
da mesma forma os estudiosos que se distinguiram como críticos — isto é, fazendo
acusações — foram no devido momento acusados por outros de não serem suficien­
temente críticos, sendo denominados ingênuos (ou, pior ainda, devotos) no que diz
respeito a alguns aspectos da tradição. Nesse contexto, quando cada um escreve sua
história, sempre é possível dizer que os argumentos contra o material tradicional que
ele escolheu não usar se aplicam de igual modo ao material que de fato utilizou e,
assim, sempre é possível afirmar que outros fatores, além da análise crítica, exerceram
influência demasiada sobre o autor. Portanto, aos poucos, a tradição foi eliminada do
círculo acadêmico, mais por meio da intimidação intelectual do que de argumentos.
Estudiosos são acusados de ingênuos ou até mesmo de fundamentalistas, não porque
dependem da tradição apesar de outros dados, mas simplesmente porque dependem

" / hstory, p. 387, nota 13.


76N . T. W right, em referência ao estudo histórico do N T ( The N ew Testament and thepeople o f God
[London: SPCK , 1992], p. 105).
A H I S T Ó R I A B ÍBL ICA M O R R E U ? 63

de partes da tradição não apreciadas pelo denunciante.77 Argumentos coerentes desa­


parecem no processo; tudo o que resta é guerra ideológica.
Não é de surpreender que os que perceberam com precisão os aspectos da
enfermidade que aflige há tanto tempo a disciplina da história bíblica — tendo por
fim visto o doente em situação de perigo — tenham -na precipitadamente declarado
morta. O espetáculo nada edificante de estudiosos brigando para se dar melhor que
os demais enquanto buscam o santo graal da crítica — muito embora no final cada
um assuma posições indefensáveis da perspectiva das regras aceitas do jogo crítico
— é algo de que muitas pessoas de bem talvez prefiram desviar o olhar, supondo que
a morte virá em breve.
Portanto, é fácil ver como W hitelam chegou a seu atestado de óbito. É igual­
mente claro que qualquer mudança em direção a um a conclusão diferente não
pode apenas envolver o debate travado com W hitelam no início deste capítulo.
A declaração do próprio W hitelam sobre a m orte da história bíblica ocorre no
contexto de um a argumentação que parece ser tão problemática quanto a dos pre-
decessores que acabamos de descrever; no entanto, mostrar que a história bíblica
está viva e passa bem exige mais do que apenas comprovar esse fato. Antes, é
necessário incluir um a análise de todas as questões fundamentais de epistemologia
e de procedimento que apresentamos ao longo deste capítulo em relação ao que
comumente é denominado “método crítico”. Quais conclusões podem realmente
ser tiradas do fato de que nossas tradições bíblicas são entidades elaboradas artis­
ticam ente e influenciadas ideologicamente, talvez muito posteriores ao passado
que evidentemente buscam descrever? Q ual é na realidade o papel que os dados
extrabíblicos, inclusive dados arqueológicos, podem ou devem desempenhar na
reconstrução da história de Israel? Como a relação entre o testem unho bíblico e o
extrabíblico deve ser vista? Q ue papel a ideologia do historiador desempenha ou
deve desempenhar nessa reconstrução e qual deve ser a relação entre a ideologia e
os dados? A historiografia é um a ciência ou um a arte? É preciso tratar de questões
como essas para chegar a alguma conclusão sobre se a história bíblica está viva ou
morta. São perguntas básicas, relacionadas em grande parte à questão fundamental
de como conhecemos os fatos do passado. Entretanto, se nossa análise até aqui
mostrou algo, foi que qualquer tentativa de salvar o paciente com simples curativos,

7íE.g., Soggin, quando alega que “a disciplina crítica de escrever a história de Israel existe há mais
de um século”, m encionando Kuenen e Stade como seus pontos de partida, e quando afirma que, antes
dessa época, “a tendência era aceitar os textos de forma basicamente acrítica, parafraseando-os ou, na
m elhor das hipóteses, criticando-os apenas superficialmente” (History, p. 32), tudo o que ele realmente
parece estar fazendo é usar o título “crítico” como meio de elogiar predecessores cujos pontos de partida
na tradição pertencem à m esma época que ele adota (Stade) ou um pouco depois (Kuenen), m aldizendo
todos os demais.
64 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA

como aplicado às vezes no passado, não resolverá. Devemos nos dedicar a uma
cirurgia profunda para chegar às causas do problema. Por isso, nos capítulos a
seguir tentam os algo que frequentem ente os “estudiosos críticos” — que em geral
têm revelado bastante habilidade em criticar a tradição e uns aos outros — não
estão dem onstrando m uita capacidade de criticar as próprias pressuposições con­
troladoras. Nesse processo refletiremos sobre o que o pensamento crítico de fato é
e o que não é.
Nos capítulos 2 e 3 começaremos com um a nova reflexão sobre epistemologia
focalizando a centralidade da confiança no testemunho de outros para se obter
conhecimento. Nesse ponto, apresenta-se uma justificativa fundamental para o
uso de textos bíblicos como fontes primárias para a história de Israel, no contexto
da discussão sobre a natureza das fontes extrabíblicas de informação. O capítulo
4 oferece um a exploração mais minuciosa da natureza dos textos bíblicos como
narrativa (como arte, história e teologia) e as implicações disso para seu uso como
fontes da história de Israel. A partir daí temos condições de oferecer, no capítulo 5,
uma descrição mais precisa do tipo de história que, em contraste e em comparação
com obras anteriores de história de Israel, estamos (e não estamos) buscando neste
livro. Por fim, estaremos em condição de justificar um a nova tentativa de escrever
um a “história bíblica de Israel” — um projeto que realizamos com a esperança
não apenas de salvar o paciente, mas de restabelecê-lo a um estado de saúde mais
vigoroso do que o que vinha experimentando há algum tempo.
Capítulo 2

Conhecer e crer: a fé no passado

Não existe mais um “Antigo Israel”. Não há mais lugar para ele na história. Temos
certeza absoluta disso. E agora, uma das primeiras conclusões desse novo conheci­
mento é que o “Israel bíblico” foi originalmente um conceito judaico.1

A declaração incisiva e segura de T. L. Thompson sobre o conhecimento oferece um


ponto de partida muito útil para nossa discussão das questões epistemológicas a ser
tratadas neste capítulo e no seguinte. A alegação é que temos um “conhecimento”
considerável de algo real chamado “história” e que esse conhecimento da história sig­
nifica que não podemos mais acreditar na existência do “Antigo Israel”. No registro
histórico, não há “lacunas” em que podemos encaixar o Antigo Israel sobre o qual os
estudiosos (com uma grande dependência do AT) escreveram até o momento. Essa
afirmação é fundamental para alguns textos historiográficos recentes sobre Israel, e
qualquer tentativa nova de escrever uma história bíblica dessa nação tem de recorrer
diretamente a ela. Como, porém, Thompson chegou a esse grau de “conhecimento” de
“história”, podendo fazer tão ousada declaração? Que tipo de “conhecimento” é esse?
Como, enfim, conhecemos o que afirmamos conhecer acerca da realidade passada?
Como estudamos no capítulo 1, quando se responde a essa pergunta na época
m oderna, a tendência geral tem sido m inim izar a im portância do testemunho

T . L. Thompson, “A neo-A lbrightean schoolin history and Biblical scholarship?”,/BZ, 114 (1995),
p. 683-98; citação na p. 697. O artigo é um a resposta a “Ideologies, literary and criticai: reflections on
recent w riting on the history o f Israel”,J B L 114 (1995), p. 585-606, de I. W . Provan. E m “In the stable
w ith the dwarves: testimony, interpretation, faith and the history o f Israel” (in: A. Lemaire; M . S sbo,
orgs., Congress -volume: Oslo 1998, papers o f the 16th Congress o f the International O rganization o f the
Societies for O ld Testam ent Study [Leiden: Brill, 2000], p. 281-319), I. W . Provan apresenta um a res­
posta completa ao artigo de Thompson. Leitores com interesse especial nessa discussão devem ler esse
artigo de Provan, no qual este capítulo e o seguinte se baseiam em parte.
66 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA

existente sobre o passado, o qual chegou até nós por meio de um a série de
portadores hum anos da tradição, e então destacar a im portância da pesquisa
em pírica para se alcançar o conhecim ento. Passamos dos “fatos” que podem os
determ inar para um a hipótese mais am pla sobre o passado, que pode ser elabo­
rada com base nesse fundam ento empírico. O próprio Thom pson exemplifica
tal abordagem da realidade histórica. M as agora é necessário propor um a visão
alternativa para essa questão do “conhecim ento” sobre o passado, dedicando o
restante deste capítulo e todo o capítulo seguinte para analisá-la e defendê-la,
especialm ente no que diz respeito à história de Israel. Nossa visão pode ser
explicada da m aneira a seguir.
Conhecemos o passado, ao menos na medida em que é possível conhecê-
lo, principalmente por meio do testem unho de outras pessoas. O testem unho é
essencial para o acesso ao passado. H á o testem unho dado por pessoas e povos
antigos a respeito do próprio passado, transm itido de forma oral e escrita. H á
tam bém o testem unho de pessoas e povos antigos quanto ao passado de outros
povos, tam bém comunicado de forma oral e escrita. H á ainda pessoas do presente
que testem unham do passado, seja o de seus povos, seja o de outros. Neste último
grupo, encontram -se pessoas contemporâneas, como os arqueólogos, que fazem
certas alegações sobre o que encontraram e o que isso significa para o que já
foi descoberto anteriorm ente. O testemunho nos dá acesso ao passado da mesma
forma que qualquer outra coisa o faz. Por isso, toda historiografia envolve o
testem unho. M esm o que eu realize um a escavação arqueológica na Palestina e
desenterre ali um objeto, ainda assim dependerei totalm ente do testem unho de
outros que viveram antes de mim para entender a im portância e o significado
desse achado — e, então, decidir como devo acrescentar meu testem unho ao deles.
0 testemunho — que podem os chamar tam bém de “narração de histórias” —
é central em nossa tentativa de entender o passado. Por isso, a interpretação é
igualm ente inevitável. Todo testem unho sobre o passado é tam bém interpretação
desse mesmo passado. Os testem unhos têm sua ideologia ou teologia; têm pres­
suposições e ponto de vista; têm estrutura narrativa; e (para que seja interessante
lê-los ou ouvi-los) envolvem arte narrativa com traços de retórica. Não podemos
evitar o testem unho e não podemos evitar a interpretação. Tampouco podemos
evitar a fé. Começamos esta seção falando do “conhecim ento”: como conhecemos
o que alegamos saber sobre o passado? N a verdade, porém, essa pergunta implica
uma concessão à visão do que os historiadores estão fazendo e da qual este capítulo
quer se distanciar. O que é geralmente chamado de conhecimento do passado seria
definido com mais exatidão comoyè' no testemunho, ou seja, nas interpretações que
outras pessoas fizeram do passado. Analisamos os testem unhos coletados e dis­
poníveis; refletimos sobre as várias interpretações propostas; então, decidimos de
C O N H E C E R E CR ER : A FÉ NO P ASSADO 67

maneiras variadas e em diversos graus depositar fé nessas interpretações — deci­


dimos adotar esses testem unhos e interpretações porque os consideramos dignos
de crédito. Se nossa confiança é m uito grande ou se simplesmente não temos
consciência do que estamos de fato fazendo, então tendem os a chamar nossa fé
de “conhecim ento”; mas é perigoso usar esse termo, pois, a verdade é que, com
demasiada facilidade, ele nos leva a nos iludir ou a iludir os outros que nos ouvem
ou leem o que escrevemos. Essa ilusão parece estar no âmago do problem a que
se vê em boa parte dos textos m odernos sobre a história de Israel. Em particular,
é essa ilusão (entre outras coisas) que tem conduzido muitos historiadores de
Israel, com vários colegas de outras especialidades da disciplina de H istória, a dar
o passo errado fazendo diferenciação teórica nítida entre dependência da tradição
e dependência de fatos “demonstrados cientificam ente”.
Em resumo, questionamos a exatidão da descrição da realidade que os histo­
riadores modernos (inclusive historiadores de Israel) comumente propõem quando
afirmam descrever como “conhecem” o que dizem saber sobre o passado. As im ­
plicações do que alegamos ser a nossa descrição mais precisa da realidade a qual
garante que obtenhamos “conhecimento” ao ouvir o testemunho e a interpretação, e
ao escolher em quem acreditar, ficarão claras adiante.

UM REEXAME DA “HISTÓRIA CIENTÍFICA”

E apropriado no início de nossa análise da epistemologia (termo técnico que designa


as bases do conhecimento) e da história refletir um pouco sobre a ciência em si,
visto que o modelo científico tem exercido enorme influência no desenvolvimento
da historiografia desde o Iluminismo. Essa reflexão conduzirá naturalmente a uma
avaliação crítica da ideia de “história científica”.

A ciência e a filosofia da ciência

No capítulo 1, descrevemos a forma que a ciência newtoniana em desenvolvimento


das eras iluminista e pós-iluminista estabeleceu o modelo comum para entender a
existência hum ana não apenas no presente e no futuro, mas também no passado.
C om base na analogia da relação das ciências naturais com o m undo natural, a
historiografia passou a ser amplamente entendida como a tentativa de descobrir
com o que a realidade histórica se parecia. Entretanto, a própria ciência continuou
se desenvolvendo. Então, as gerações anteriores de pensadores que tinham a firme
esperança de que a ciência logo revelaria “a verdadeira ordem das coisas” ficaram
decepcionadas. O que ocorreu foi que, quanto mais os cientistas se aprofundaram
na realidade, menos compreensível ela se tornou; e têm surgido dúvidas referentes a
68 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA

nossa capacidade de um dia descobrir “com o que exatamente a realidade se parece”.


Essas dúvidas surgem em parte devido ao envolvimento inevitável do observador do
m undo natural com o próprio ato de observar.
Com mais clareza do que muitos dos nossos predecessores, compreendemos
como o que é observado no m undo denom inado “real” está inevitavelmente ligado
ao conhecimento, a preconceitos e a ideologias do observador. Tam bém sabemos
de que m aneira o m ito do “observador neutro e impessoal” tem funcionado e
continua sendo utilizado como instrum ento ideológico a serviço de pessoas com
interesses políticos e econômicos. O espectador “objetivo” da física new toniana
clássica tornou-se, assim, o espectador “impossível” da nova física e, como resul­
tado do trabalho de filósofos da ciência,2 os cientistas estão tendo m uito mais
consciência da m aneira pela qual as teorias científicas gerais e abrangentes são
afetadas pelos fatos. Tam bém têm se tornado conscientes de como os próprios
experimentos são, desde o m om ento de sua concepção, modelados pelas teorias
adotadas por quem os conduz. Os filósofos e os sociólogos do conhecim ento sus­
tentam que teorias científicas vêm e vão. Isso ocorre em parte devido ao êxito que
elas têm de prever e controlar o meio, mas tam bém aos interesses a que servem
em um a cultura específica, seja teológica e metafísica, seja sociológica, seja apenas
estética. Tal como acontece com qualquer ser hum ano, os cientistas não conse­
guem se libertar dessa questão de “interesses”. O esforço, acadêmico puram ente
objetivo, na verdade, não existe.
M esm o no que diz respeito ao mundo natural e à investigação hum ana desse
mundo, o modelo científico newtoniano é uma representação inadequada da
realidade. Com o a própria ciência do século 20 sugeriu, vivemos em um mundo
muito menos rígido e bem mais complexo do que se suspeitava anteriormente; um
mundo com muitas estruturas e misterioso, bem distante do simples materialismo.
Para a ciência (como tal) é impossível afirmar quais são os “fatos” sobre este mundo
visto em sua totalidade. Em um nível prático, a ciência pode dizer muito sobre
como as coisas normalmente funcionam no mundo natural, à medida que é possível
demonstrar que ele tem aspectos mecanicistas e previsíveis, possíveis de ser revelados
por experimentos que conduzam a resultados reproduzíveis. Entretanto, mesmo que
a ciência obtenha êxito em demonstrar isso, ela necessariamente deve operar dentro
do contexto mais amplo do que se entende como conhecimento humano válido,
embora seja impossível demonstrar “cientificamente” esse mesmo conhecimento.
A própria crença fundamental da ciência m oderna se enquadra nessa categoria;

2E.g., J. Haberm as, Knowledge and human interests, tradução para o inglês J. J. Shapiro (London:
H einem ann, 1972); M . Hesse, Revolutions and reconstructions in the philosophy o f Science (Brighton:
Harvester, 1980).
C O N H E C E R E CRER : A FÉ N O PASSADO 69

a ideia de que o universo como um todo é racional e inteligível é um a pressuposição,


não uma descoberta científica. Também está claro que a ciência por si mesma é
incapaz de nos dizer de forma adequada o que fazer com suas descobertas. Os fins
para os quais a ciência proporciona os meios devem ser (e sempre são) escolhidos
conforme as crenças e os valores das pessoas que escolhem, o que é uma questão de
religião, ética e política, não de ciência como tal. A ciência não abrange a totalidade
da esfera do conhecimento válido e é incapaz de fazê-lo. Ao contrário, a própria
maneira pela qual as pessoas praticam a ciência e o que fazem com ela depende
de ideias ou crenças provenientes de um a realidade mais ampla do que aquela
abrangida pela ciência.
Se o modelo científico newtoniano é uma representação inadequada da reali­
dade, mesmo no que diz repeito ao m undo natural e à investigação hum ana desse
mundo, então é evidente que devemos voltar a considerar se esse modelo pode ter
aplicação proveitosa na investigação do m undo do passado humano. N a área da his­
tória da historiografia, retomamos aqui o raciocínio iniciado no capítulo anterior;
pois, à medida que exploramos mais profundamente essa história, descobrimos que
nem todo historiador dos séculos 19 e 20 acolheu a ideia “científica” da história
descrita naquele capítulo. Alguns que resistiram à tentação nos ajudarão a adquirir
um a ideia apropriada e clara do assunto.

A história como ciência: uma breve história da divergência

No capítulo anterior identificamos o período da Revolução Francesa como decisivo


para o desenvolvimento da historiografia moderna. Pode-se considerar, em certo
grau, que esse período específico de mudança social e política radical na França, com
repercussões duradouras por toda Europa, foi responsável no século 19 pelo triunfo
da historiografia sobre a filosofia como a disciplina fundamental na interpretação da
realidade humana. A filosofia, conforme configurada até aquele momento, com sua
ênfase em essências estáticas e eternas, não foi capaz de realizar a tarefa elucidativa
em um período de notável mudança e desenvolvimento. Contudo, é im portante
observar que foi também a própria Revolução Francesa e seus desdobramentos que
confirmaram nas mentes de algumas pessoas a loucura de abandonar totalmente a
tradição em favor da razão. F. R. de Chateaubriand sustentou que todas as tentativas
de mudar radical e rapidamente as condições, como ocorreu na Revolução Francesa,
estão fadadas ao fracasso porque se baseiam na ilusão do controle humano sobre
forças desconhecidas, sujeitas apenas à providência divina. “O passado francês ilus­
trou como a verdade, a mudança gradual e a legalidade prevalecem sobre todas as
mudanças repentinas e violentas [...] o cultivo da racionalidade separada da emoção
e da imaginação [...] destruiu uma civilização ao causar a erosão de uma tradição
70 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍ BLIA

muito antiga.”3 Em um a abordagem semelhante, E. Burke defende que um a boa


sociedade é m odelada pela tradição e que tentativas de empregar um raciocínio frá­
gil e a vontade no lugar dessa sabedoria tradicional só podem resultar em anarquia,
a qual é impossível corrigir depois que a tradição é destruída. Esses dois pensadores
apresentam um a ideia mais positiva da tradição do que outros que encontramos
até aqui. Burke e Chateaubriand defendem um a visão não tão segura sobre a abor­
dagem científica que refaz a realidade de novo por meio de um m étodo científico
apropriado. Por isso, os dois constituem um ponto de partida adequado para a
nossa análise, pois relembram que, mesmo em um a era de ciências, não houve
nada histórica ou intelectualmente inevitável na adoção de um a abordagem cien­
tífica completamente abrangente da realidade humana. E im portante m anter essa
observação em mente, visto que a retórica dos historiadores científicos modernos
tem, com frequência, o objetivo de nos levar a esquecer tal fato. Contudo, retom a­
mos a nossa narrativa não a partir da virada do século 18 para o 19, mas da virada
do 19 para o 20. Em especial estamos interessados em três pensadores alemães:
J. G. Droysen, W. D ilthey e W. W indelband.
Droysen, bem consciente do prestígio cada vez maior das ciências naturais
e do desafio que o positivismo representava para a tradição historiográfica rankeana,
foi levado a um a nova reflexão sobre a metodologia da disciplina da história.
O resultado foi não apenas um a rejeição do positivismo, mas também um a crítica
da escola histórica de Ranke. Ele negou a ideia rankeana acerca do trabalho dos
historiadores — ou seja, recuperar os vestígios do passado, em sua maior parte do­
cumentos, avaliá-los criticamente e, por meio da intuição empática, unir as partes
em um todo que reflete uma realidade transcendente. De acordo com essa ideia,
os historiadores m antinham certa distância em relação à vida que se desdobra, re­
criando com pureza metodológica o que era interpretado como realidade passada
objetiva. Droysen tinha um entendim ento oposto: toda obra histórica resulta dos
encontros que o historiador, cuja própria vida foi modelada por elementos do pas­
sado, tem com esse passado. “A partir de tais encontros surge uma recriação criativa
e criticamente controlada do passado, realizada claramente do ponto de vista do
presente.”4 U m a reconstrução que pressupusesse um passado estático, do qual seus
vestígios davam testemunho, não era possível nem pelo método rankeano nem pelo
positivista. Aliás, os positivistas acrescentaram ao erro do objetivismo o equívoco
de transformar todos os aspectos da realidade, inclusive o intelecto e a moralidade,

3E. Breisach, Historiography: ancient, M edieval and modem (Chicago: University o f Chicago Press,
1983), p. 239. O resumo sobre os historiadores “que divergem” do modelo da historiografia m oderna
apresentado a seguir se baseia bastante na obra de Breisach.
4Ib id e m , p. 279.
C O N H E C E R E CR ER : A F É NO P ASSADO 71

em fenômenos naturais. De acordo com Droysen, essas coisas não poderiam ser
inseridas na natureza como se todas pertencessem a um a única esfera da vida.
D ilthey tam bém “rej eitou as tentativas de ver o m undo dos fenômenos humanos
como análogo ao m undo dos átomos e das forças mecânicas, bem como de fazer
separação rigorosa entre sujeito e objeto em toda pesquisa”5 realizada conforme
o modelo cartesiano. N a esfera hum ana, ele encontrou elementos — intenções,
propósitos, finalidades e ações dirigidas por tudo isso — que não existiam na
natureza e tornavam a realidade hum ana complexa demais para ser compreendida
por meio de análise e avaliação que resultassem na descoberta de regularidades e na
formulação de leis. Os historiadores só poderiam compreender essa complexidade
mediante Verstehen (“considerar empaticamente os motivos e as intenções dos
atores no passado”).
W indelband fez distinção semelhante entre dois tipos de análise da realidade:
a análise nomotética, que busca descobertas gerais (e é típica das ciências naturais), e
a análise idiográfica, que tenta compreender o evento individual e único (típico das
ciências humanas). Ele defendeu que a análise idiográfica pode usar a nomotética
como ferramenta útil, mas sem se render a seu objetivo generalizador.
Nesses três pensadores encontramos, de diferentes maneiras, um a insatisfação
com a noção de história científica, relacionada em parte com o falso objetivismo
dessa abordagem do passado e, em parte, com o reducionismo improvável, que
procura explicar toda a realidade como um modelo mecanicista do universo e que
particularm ente não dá espaço algum para o individual e o único. No decorrer das
décadas do século 20, esses pensadores não foram vozes solitárias. B. Croce, por
exemplo, entendia a vida hum ana como um processo constantem ente criativo em
que o historiador participa plenamente, lutando para ser imparcial, embora nunca
seja capaz de ser objetivo. A tarefa do historiador não é fazer a coleção e a avaliação
crítica das fontes como fatos com base nos quais elaborará um a interpretação (como
em Ranke) ou leis gerais (como no positivismo). Sua tarefa, porém, é a incorpo­
ração de um passado vivo ao presente. C. Becker dem onstrou ceticismo quanto à
possibilidade de compreender o passado real, ressaltando que os historiadores só
podem tratar das declarações sobre eventos que não observam, em vez de analisar
os próprios eventos. Nesse sentido, os primeiros filósofos neopositivistas estavam
dispostos a chamar a atenção para o pseudoempirismo de historiadores científicos,
visto que esses filósofos admitiam que só afirmações baseadas na observação direta
tinham a condição de hipótese. Declarações inacessíveis à verificação adequada se
revelaram inconseqüentes, levando alguns a imaginar “se temos bases suficientes
para aceitar alguma afirmação sobre o passado, e até mesmo se há justificativa para

5Ib id em , p. 281.
72 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA

nossa crença de que houve um passado”.6 C. Beard, tendo abandonado a convicção


de que a história deve ser um a ciência no sentido positivista, afirmou de modo
mais otimista que o passado podia ser “compreendido” como um objeto externo,
ainda que “o assunto estudado pela história seja tão influenciado por valores, que os
próprios historiadores não conseguem evitar fazer juízos quando, em seus relatos,
escolhem e organizam os fatos”.7 Ele escreveu sobre o “ato de fé” do historiador ao
determ inar o sentido da história, visto que cada historiador precisa escolher, de um
modo não objetivo e não científico, entre três possibilidades: se a história é sim­
plesmente caótica, se ela se move em um ciclo ou se esse movimento segue em uma
direção linear. Por fim, nesta breve lista de exemplos, o filósofo H . G. Gadam er fez
distinção entre a abordagem convencional do passado, a qual acontece por meio
de fontes e cujo alvo é o conhecimento objetivo, e Verstehen, que envolve aceitação
empática da tradição pelo historiador.
Poderíamos falar de muitos outros pensadores que, embora certamente nem
todos concordem entre si em suas perspectivas gerais, têm ao menos feito ressalvas
à ideia de que a história é um a ciência no sentido antigo desse termo — mesmo
que reconheçamos que o modelo mais antigo de ciência seja adequado para o
estudo do m undo natural. O fato é que vem ocorrendo desde o início do século
20 um debate contínuo entre filósofos e historiadores sobre a natureza da História
como disciplina. No que diz respeito ao modelo empírico-positivista, há uma
insatisfação generalizada, da mesma maneira que há, em particular, uma resistência
à assimilação da história pelas ciências sociais. O foco da defesa da história como
disciplina autônoma tem sido a rejeição das tendências generalizadoras da ciência
e a insistência historicista na importância de compreender as eras separadas e os
momentos do passado em toda a sua singularidade irredutível. Ao mesmo tempo,
tem crescido a percepção de que até mesmo pensar na história como ciência no
sentido rankeano mais restrito já vem acompanhado de problemas, justam ente por
causa das dúvidas sobre a capacidade de o historiador ver as coisas “como de fato
são”. È amplamente aceita a ideia de que na história, se não na ciência, o sujeito
não observa um objeto claramente definido (i.e., a realidade histórica), mas sim um
objeto que é, ao menos em parte, elaborado durante o processo de observação. De
fato, à medida que o século 20 foi chegando ao fim e à medida que nos movemos para
o que muitos chamam de era pós-moderna, a ênfase na elaboração do passado pelo
historiador tem crescido. Atualm ente é grande o número de estudiosos que negam

6A. J. Ayer, Philosophical essays (W estport: G reenw ood Press, 1980), p. 167-90; citação na p. 168.
A análise que segue esse comentário ilustra bem a dificuldade de responder a esses filósofos, caso suas
premissas básicas sejam aceitas.
7Breisach, Historiography, p. 332.
C O N H E C E R E CR ER : A F É N O P ASSADO 73

que esse objeto, o passado, exista para que o historiador o descubra. Afirma-se que
os historiadores elaboram o passado em vez de descobri-lo. Eles narram um a história
do passado. N a verdade, enquanto filósofos de história mais antigos, que favoreciam
o modelo científico, manifestavam preocupação com a forma narrativa de boa parte
da historiografia porque a narrativa continua sendo arte e não ciência, participantes
mais recentes do debate têm caminhado na direção oposta, questionando qualquer
distinção estrita entre história e narrativa.
Podemos, então, dizer com confiança que o m ovimento do século passado em
geral se afastou da noção de que a história é um a ciência e retornou à ideia de que
a história é um a arte. Para sermos bem precisos, e introduzindo nossos com entá­
rios sobre a própria ciência, devemos, na verdade, afirmar que a ideia de tratar a
história como ciência no sentido do século 19 — ideia já questionada por alguns
pensadores no século 19 e no começo do 20 por motivos não relacionados ao que
estava ocorrendo na filosofia da ciência — passou a sofrer pressão cada vez maior
à medida que a natureza da própria ciência foi mais e mais esclarecida. Com o um
grupo de autores recentemente apresentou a questão: “No sentido do século 20,
não há um a história científica e nem mesmo um a ciência científica”.8 Além disso,
um autor já havia escrito anteriorm ente que “até o leitor menos atento da American
Historical Review [Revista Histórica Americana] [...] percebe que o historiador
científico, aquele que apresenta um quadro definitivo do que de fato aconteceu, é
um a espécie em extinção”.9
Foi assim que a esperança de notáveis historiadores e seus sucessores —
a de que, adotando um a abordagem empírica e crítica do conhecimento histórico,
podiam chegar a um a reconstrução puramente objetiva do passado, seja na forma
rankeana seja na positivista — se revelou um sonho impossível. Pela vantagem de
ter um a percepção posterior, vemos que os historiadores tristem ente se iludiram
no ponto em que creram ter alcançado esse resultado. M esm o quando adotavam a
ciência no lugar da filosofia como o m étodo básico do em preendim ento hum ano
e estavam decididos a descobrir “como as coisas de fato foram” em vez de aceitar
narrativas tradicionais sobre como as coisas foram, eram totalm ente incapazes
de evitar a influência da filosofia e da tradição ao articularem a própria visão do
passado. Cada um deles tinha as próprias pressuposições sobre a natureza da rea­
lidade em geral e da realidade histórica em particular — sua narrativa acerca do
mundo do passado, do presente e do futuro. Embora esse relato não se originasse da
própria pesquisa histórica, mesmo assim eles o usavam para lidar com os “fatos”

8J. Appleby; L. H u n t; M . Jacob, Telling the truth about history (New York: N orton, 1994), p. 194.
9C. W atkins Sm ith, Carl Becker: on history and the climate o f opinion (Carbondale: Southern Illinois
University Press, 1956), p. 103.
74 H I S T Ó R IA , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA

do passado em um a tentativa de explicá-los com coerência. Além do mais, ao


determ inar que “fatos” foram esses, tais historiadores dependeram em maior ou
m enor grau das narrativas de outras pessoas sobre o passado, visto que eles próprios
não tinham nenhum acesso independente aos eventos antigos e eram incapazes
de “reproduzi-los” em experimentos. Em outras palavras, não puderam proceder
como os cientistas naturais frequentem ente procedem quando tentam verificar
por si mesmos a veracidade de certas afirmações sobre a realidade. N a verdade, a
filosofia e a tradição formavam a base de toda a historiografia científica do século
19, mesmo que a retórica defendesse o oposto. É im portante compreender que
isso não ocorreu simplesmente por causa de alguma deficiência de ordem prática
em vez de teórica. Ao contrário, isso foi inevitável. A filosofia e a tradição esta­
belecem necessariamente os parâmetros de toda a reflexão que os seres humanos
fazem sobre o mundo.

TESTEMUNHO, TRADIÇÃO E PASSADO

É possível apresentar três respostas para a falência do modelo historiográfico do


século 19. A primeira é a resposta do avestruz intelectual: pôr a cabeça debaixo da
terra, m antê-la imóvel e negar a realidade. A tentação é descrever boa parte dos
textos recentes sobre a história de Israel como textos-avestruzes, pois, em geral,
continuam firmemente considerando que a história científica na forma rankeana
ou, mais recentemente, na forma positivista é a única forma correta de história aca­
dêmica. Contudo, os avestruzes ao menos têm consciência da realidade que negam;
conforme veremos, porém, é possível que muitos historiadores simplesmente não
tenham consciência dos avanços ocorridos na ciência e na história descritos até aqui.
Na verdade, em geral esse tipo de avanço não tem tido impacto no mundo acadêmico
dominado por estudiosos de várias disciplinas, os quais continuam a se apegar à
ideia mecanicista e reducionista do mundo criada pelos êxitos da ciência moderna
em seu início. Talvez somente quando houver um a maior percepção de que a
ciência m oderna e seu subproduto, a tecnologia moderna, são tanto bênçãos como
maldições é que o apego a essa cosmovisão diminuirá. Seja como for, a abordagem
avestruz não atrairá aqueles com interesse genuíno pelo que é verdadeiro.
Podemos descrever a segunda resposta como pós-moderna. Convencidos de
que a história científica é impossível e de que as grandes narrativas que dão sentido
à realidade histórica10 são simples criações da mente humana, os pós-modernistas

10Geralm ente, essas “grandes narrativas” são chamadas de m etanarrativas — descrições abrangen­
tes da realidade que alegam dar sentido a ela e que tornam possível um a explicação coerente de seus
vários aspectos (e.g., a ideia da história como progresso da hum anidade).
C O N H E C E R E CRER : A F É N O PASSADO 75

tendem apenas a negar a existência de determinado passado ou pelo menos negar


que tenhamos qualquer acesso a ele. Portanto, escrever sobre a história é impossível.
Essa resposta pós-m oderna à história científica m odernista representa um a reação
extremada contra ela, enfatizando demasiadamente a subjetividade da historiografia
tanto quanto a modernidade deu ênfase excessiva à sua objetividade.11 Essa resposta
vai contra o senso comum da mesma maneira que, na primeira parte do século
20, ocorria com as teses positivistas sobre a realidade externa, quer histórica quer
presente. Não podem os deixar de acreditar que realm ente existiu um passado,
ainda que (nos termos de tais historiadores) não consigamos justificar nossa crença
e saibamos que falar sobre o passado é um a tarefa mais complexa do que se pen­
sava até agora. Sabemos que podemos em parte elaborar a realidade externa a nós,
seja presente, seja passada; também sabemos que a realidade está “lá fora” e que é
independente de nós. Aliás, falar do passado como uma realidade que nos é externa
é um a necessidade humana. Por esse motivo, a ideia pós-m odernista da história é
uma ideia que, em última instância, é impossível de se m anter com integridade inte­
lectual e moral. Ela é apenas o refugio desesperado e derradeiro dos que perceberam
a impossibilidade da história científica modernista, mas são incapazes de aceitar
as verdadeiras implicações de suas descobertas.
A terceira possível resposta para a falência do modelo historiográfico científico
do século 19 — que é nossa resposta neste livro — abrange essas mesmas implica­
ções, em vez de evitá-las. Os que argumentam a favor dessa resposta interpretam a
crise do modelo científico de historiografia — e inclusive a resposta pós-modernista
derrotista a ela — como um convite a rever algumas questões fundamentais de
epistemologia. Concordamos com análises pós-m odernas que afirmam que a per­
cepção historiográfica do século 19 de que havia um progresso na história era,
em grande parte, ilusória. Não se pode levar a sério a proposta m odernista de que
toda historiografia anterior era decisivamente inválida porque não havia sido pro­
duzida pelos que possuíam métodos científicos apropriados, mas sim por aqueles
que estavam escravizados à filosofia e à tradição — proposta feita pelos próprios
historiadores que estavam e estão igualmente limitados à filosofia e à tradição. Tal
afirmação não passa de retórica empregada na busca da validação da própria ideia
particular do passado.

“ E ntretanto, tanto nesse aspecto como em outros, a resposta pós-m oderna à m odernidade não é
um fenômeno novo. O ceticismo em relação à aquisição de conhecim ento objetivo no m undo m oderno
é tão antigo quanto o pirronismo do século 17 e é encontrado em pensadores ao longo dos séculos seguin­
tes. E ntre os céticos quanto à nossa capacidade de obter conhecim ento histórico e objetivo, pode-se
m encionar T. Lessing, que se opôs à ideia de que a história é um a ciência e defendeu a noção de que a
história é um ato criativo que dá sentido à vida sem sentido: toda historiografia é um m ito criado pelos
que desejam propiciar fé e esperança no futuro.
76 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA

A reação correta diante desse fato não é, porém, o subjetivismo. Alegar que não se
pode obter nenhum conhecimento do passado que j á não esteja em nossa cabeça não é uma
réplica racional para o fracasso da historiografia moderna em elaborar um passado
que é independente da filosofia e da tradição. Em vez de fazer declarações superficiais
que contrapõem de modo simplista a filosofia e a tradição, de um lado, e o “método
científico”, de outro, como diretrizes que levam ao conhecimento histórico, uma res­
posta mais coerente é procurar enunciar uma visão acerca da tarefa historiográfica que
dê o devido lugar à filosofia e à tradição. Isso inevitavelmente envolverá questionar a
racionalidade do princípio da suspeita em relação à tradição e, em última instância
(se não em primeiro lugar), da suspeita em relação à filosofia, que está no âmago do
pensamento iluminista sobre o passado. Assim, depois de esclarecer aspectos básicos
relacionados a questões de ciência e história, voltamos à nossa descrição inicial da
natureza de nosso “conhecimento” do passado.

Testemunho e conhecimento
O sábio au to r da natu reza p la n to u n a m en te h u m a n a u m a propensão a dep en d er do
testem u n h o antes que pudéssem os apresentar u m m otivo p ara fazê-lo. Isso, n a verdade,
estabelece nossos juízos quase in teiram en te sob o p o d er dos que estão em to rn o de nós
no prim eiro período de vida. T rata-se, p orém , de algo necessário ta n to p ara a nossa p re ­
servação q uanto p ara o nosso progresso. Se a constituição da criança fosse tal que ela não
precisasse dar atenção ao testem u n h o ou à autoridade, não há a m en o r som bra de dúvida
de que, p o r falta de conhecim ento, iria literalm ente m orrer. P o r in stin to , eu acreditava
em tu d o o que eles [m eus “pais e educadores”] diziam , m uito antes de te r ideia do que
é u m a m entira ou de p en sar n a possibilidade de ser enganado. M ais tarde, refletindo
sobre isso, descobri que haviam agido com o pessoas justas e honestas, que desejavam
o m eu bem . D escobri que, caso não houvesse acreditado no que m e disseram antes
m esm o que eu pudesse apresentar u m m otivo para m in h a crença, hoje eu seria pouco
m elhor que u m a pessoa defeituosa.12 E , em bora às vezes te n h a havido enganadores que
se aproveitaram dessa m in h a credulidade natural, m esm o assim ela foi in fin itam en te
proveitosa para m im quando se considera to d o aquele período; p o r isso eu a vejo com o
m ais u m a boa dádiva da N a tu re z a .13

Ao tentar compreender com mais precisão do que os “historiadores científicos”


a realidade do processo mediante o qual adquirimos conhecimento do passado,

12E m inglês, o term o traduzido por “pessoa defeituosa” é changeling. Essa palavra é usada em contos
para se referir a um a criança defeituosa que era trazida pelas fadas e colocada no lugar de um a criança
normal. (N. do E.)
13T. Reid, Essays on the intellectual powers o f man, in: R. Beanblossom; K. Lehrer, orgs., Thomas
R eids inquiry and essays (Indianapolis: H ackett, 1983), ensaio 6, cap. 5, p. 281-2.
C O N H E C E R E CR ER : A FÉ NO PASSADO 77

estabelecemos o testemunho no cerne da tarefa. Fazendo assim, conscientemente


nos posicionamos contra uma tradição intelectual que remonta ao menos até Platão
e que com certeza fundamenta a ideia científica existente sobre o m undo analisada
por nós, a qual despreza o testem unho como fonte de conhecimento sobre a rea­
lidade em favor de elementos como a percepção. Ao invés disso, propomos que a
confiança no testemunho é fundamental para conhecer a realidade em geral — tão
fundamental quanto a percepção, a memória, a inferência e assim por diante. Somos
muito dependentes do testemunho não apenas na vida diária (por exemplo, quando
na condição de turistas dependemos de um mapa para nos guiar em um a cidade es­
trangeira), mas tam bém em áreas como o processo jurídico ou a pesquisa científica
(como a situação em que um psicólogo depende do testem unho dos pacientes sobre
a percepção que têm da realidade ou quando, de um modo mais geral, um cientista
depende do testemunho de colegas sobre os resultados a que chegaram em suas pes­
quisas). E m resumo, quando tratamos do que chamamos de conhecimento, somos
intelectualmente dependentes do que os outros nos dizeín. Essa afirmação apenas
descreve a realidade como ela é, quer gostemos, quer não, sendo válida mesmo
sabendo que às vezes o testem unho dos outros não é confiável. E verdade que des­
de o Iluminismo a realidade não tem sido prontam ente percebida dessa maneira, o
que requer alguma explicação. M as há uma explicação facilmente à disposição: isso
ocorre por causa do domínio da ideologia individualista na era moderna, enunciada
pelo próprio Descartes, que ressaltou a centralidade do indivíduo como o sujeito do
conhecimento, dependente apenas da razão e não do conhecimento proporcionado
por elementos como a educação. Com frequência, essa ideologia individualista tem
impedido pensadores modernos de descrever com precisão como adquirem conhe­
cimento ao mesmo tempo que dependem de outros (inclusive de seus educadores)
para fazer o que estão fazendo.
Assim como a confiança no testemunho é fundamental para conhecer a rea­
lidade em geral, de igual m aneira ela é fundam ental para conhecer a realidade
histórica em particular. Nessa área, dependemos basicamente do testem unho de
pessoas que viveram no passado. Com o R. G. Collingwood afirmou (ainda que só
para discordar da declaração) certa vez: “história é [...] a crença em outra pessoa
quando ela diz que se lem bra de algo. Q uem crê é o historiador; a pessoa em
que ele crê é chamada de autoridade do historiador”.14 O próprio Collingwood
tem um a posição firme na tradição da história científica (embora não positivista),
opondo-se tanto à historiografia antiga/medieval quanto à dos séculos 17 e 18
justam ente porque os historiadores mais antigos dependiam com pletam ente do
testem unho — mesmo que fizessem algum juízo na escolha, edição e, às vezes,

u 7he idea o f history (Oxford: O xford University Press, 1970), p. 234-5.


78 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍ BLIA

rejeição do m aterial — e, por esse motivo, não eram propriam ente historiadores
científicos. D e acordo com essa ideia, a história digna do nome (i.e., científica)
não depende de testem unho algum. N a realidade, depender do testem unho
é abandonar a própria autonom ia intelectual como cientista — é abrir mão da
“condição de sua própria autoridade, que envolve fazer afirmações ou agir por
iniciativa própria e não porque tais afirmações e atos são autorizados ou prescritos
por alguém m ais”.
Dificilmente alguém poderia querer um exemplo m elhor de ideologia
individualista. Fica claro que Collingwood pensa, ao menos em parte, que a his­
tória “como ciência” exige que o historiador, de alguma forma, faça tudo sozinho.
A conseqüência inevitável é que; caso sua posição seja levada totalmente a sério, o
historiador “científico” não escreverá história, mas sim uma fantasia que será ape­
nas extensão da própria imaginação especulativa. Pelo fato, porém, de Collingwood
desejar escrever história, percebe-se que ele se distancia o tem po todo do que, ao
que parece, é sua posição teórica sobre o testem unho e depende do testem unho
(ou seja, de um a “autoridade”) para lhe fornecer o material básico para as próprias e
imaginárias reencenações do passado. A situação não poderia ser diferente, mesmo
no caso de um historiador que parece querer que ela fosse. Acontece que a história
é, na verdade,fundamentalmente “a crença em outra pessoa quando ela diz que se
lembra de algo”; ou, para sermos mais precisos, história é a disposição de aceitar
relatos do passado preservados na m emória das pessoas.
É claro que o passado deixou vestígios além dos testemunhos, especialmente
os materiais que o arqueólogo pode examinar: moedas, jarros, restos de moradias
e artefatos semelhantes. No período moderno da historiografia, alguns observado­
res (fascinados pelo prestígio das ciências e ansiosos por fundamentar declarações
históricas em algo mais confiável do que o testemunho) pressupõem que esses ves­
tígios arqueológicos nos oferecem a perspectiva de acesso independente ao passado.
Afinal, aqui estão os dados passíveis de observação direta e nos quais é possível
realizar testes científicos, algo semelhante ao que acontece com os dados disponíveis
para os cientistas naturais.
Ainda assim, em nossa descrição da obtenção do conhecimento histórico, sus­
tentamos que essa pressuposição é falsa. Em si mesmos os vestígios arqueológicos
(quando a expressão não inclui o testemunho escrito) são mudos. Não falam por
si, não têm nenhum a história a contar e nenhum a verdade a comunicar. São os
arqueólogos que falam a respeito deles, testemunhando sobre o que descobriram e
estabelecendo as descobertas em uma estrutura interpretativa que lhes dá sentido
e significado. E óbvio que a origem dessa estrutura interpretativa não está comple­
tamente, nem mesmo principalmente, nos próprios achados, os quais são apenas
fragmentos do passado que, de alguma forma, precisam ser organizados em um todo
C O N H E C E R E CRER: A FÉ N O PASSADO 79

coerente. N a verdade, a estrutura deriva em grande parte do testemunho, seja o de


pessoas do passado distante que escreveram sobre o passado, seja o de outros que
mais recentemente investigaram o passado anterior a eles e dependeram do teste­
m unho vindo do passado distante. E esse testem unho que capacita o arqueólogo até
mesmo a começar a pensar sobre uma escavação inteligente. É esse testem unho que
ajuda na escolha de onde fazer um levantamento ou de onde escavar, que transmite
o sentido das linhas gerais da história que se pode esperar encontrar em determ i­
nado lugar, que possibilita o estabelecimento conjectural de níveis de destruição
relacionados a eventos específicos e já conhecidos e que permite a correlação de
descobertas materiais com certas pessoas citadas nominalmente no passado. O pró­
prio “preenchim ento” do quadro do mundo produzido pela arqueologia é muito
mais geral do que específico. O motivo disso é que vestígios literários são muito
mais úteis quando assuntos históricos específicos estão em questão; vestígios de
artefatos não literários são mais proveitosos para quem está interessado na cultura
material geral e na vida cotidiana.
Toda a tarefa de relacionar descobertas arqueológicas com aspectos espe­
cíficos do passado conforme se encontram descritos em textos é, na verdade,
repleta de dificuldades. É inevitável que surjam diversas interpretações sobre
as descobertas. D eterm inada camada com vestígios de destruição deve ser
associada a esta ou àquela cam panha m ilitar?15 Esse sítio arqueológico é de fato
o sítio da cidade m encionada naquele texto específico?16 D eixando de lado sítios
específicos, os dados reunidos mesmo em levantam entos regionais de ampla
escala representam , na m elhor das hipóteses, um a am ostra bastante seletiva e
estão abertos a vasta gam a de interpretações. Tam bém não faltam interpreta­
ções sobre o que não foi encontrado, porque a inexistência de provas m ateriais
de acontecim entos descritos em um texto não pode ser necessariam ente in ter­
pretada como prova de que esses eventos não ocorreram , mesmo que um sítio

l3Nesse aspecto, um a ótim a ilustração da complexidade dos processos de tom ada de decisão é a
análise feita por Aliaroni sobre a data do estrato II de Berseba; veja Y. Aharoni, “The stratification o f
the site”, in: Y. Aharoni, org., Beer-Sheba I: excavations at Tel Beer Sheba, 1969-1971 seasons (Tel Aviv:
Tel Aviv U niversity Institute o f Archaeology, 1973), p. 4-8; análise específica nas p. 5-7. Sobre o tem a
geral, veja E. Yamauchi, “The current state o f O ld T estam ent historiography”, in: A. R. M illard; J. K.
Hoffm eier; D . W. Baker, orgs. (W inona Lake: Eisenbrauns, 1994), p. 1-36; a análise específica do
assunto se encontra nas p. 32-6.
16A correlação entre sítios arqueológicos e lugares m encionados em textos não é de m odo algum
simples e direta como às vezes parecem dar a entender os que querem veem entem ente “provar” ou
“negar” a veracidade de textos. Por exemplo: Tell ed-duw eir é de fato a antiga cidade de Laquis?
Provavelm ente sim, mas veja G . W . A hlstrõm , “Tell ed-duweir: Lachish or Libnah?”, P E Q 104
(1972), p. 111-22.
80 H I S T Ó R IA , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA

tenh a sido corretamente identificado.17 O arqueólogo interpreta os dados no con­


texto do testem unho, acrescentando suas sugestões ao conjunto de descobertas
— som ando ao relato do passado as concepções pessoais. Com o um a autora
observou m uito bem:

D ad o s extraídos de artefato s arqueológicos só existem em fo rm a lingüística.


E n tre ta n to , p o r serem elem en to s de u m a e stru tu ra ling ü ística, ta m b é m estão sujei­
tos a interp retação . A descrição de achados arqueológicos já é in terp re ta ç ão e, com o
qualquer o u tra fo rm a de expressão verbal, está sujeita à escolha in d iv id u al do m éto d o
n a rr a tiv o , ao c o n c e ito d e e x p lic a ç ã o e ta m b é m ao s is te m a de v a lo re s é tic o s d o
a rq u eó lo g o que faz a descrição.18

Aqui não existe nenhum “conhecimento objetivo” independente do testem u­


nho sobre o passado. Como G. E. W right afirmou corretamente: “a arqueologia,
por lidar com os escombros do passado, nada prova por si mesma”.19 N a verdade,
a compreensão do sentido dos vestígios fragmentários do passado só é possível
quando o testem unho sobre o passado já foi aceito sem reservas; aliás, sugestões
sobre esse “sentido” só desafiam a maioria de nós, que não testemunhamos as desco­
bertas arqueológicas e não estivemos envolvidos no processo de interpretação como
testemunho. Então, qualquer que seja o valor da arqueologia em preencher o quadro
do passado, a história é fundamentalmente a disposição de aceitar relatos do passado
preservados nas lembranças de outras pessoas.
Conform e observamos (e como as palavras do filósofo Thomas Reid citadas
no início desta seção ressaltam), é natural que às vezes o testem unho não mereça

17Por exemplo, os registros egípcios deixam implícito um cerco a M egido que perdurou alguns
meses durante a prim eira cam panha do faraó Tutm ósis III (1479-1425 a.C.) na Palestina. Isso, por sua
vez, sugere que durante o período arqueológico da Idade do Bronze Recente I existiu naquela cidade
um terraço fortificado mais baixo, pois, caso esse terraço não tivesse existido, Tutm ósis teria desfrutado
de acesso direto à cidade alta. C ontudo, os dados arqueológicos em si não perm item supor que o terraço
mais baixo fosse necessariamente fortificado naquela época: as fortificações que sobreviveram são, ao
que parece, de um a data significativamente mais antiga. Veja B. H alp ern ,“C entre and sentry: M egiddos
role in transit, adm inistration and trade”, in: I. Finkelstein et al., orgs., Megiddo III: the 1992-1996
seasons, S M N IA 18 (Tel Aviv: E m ery and Claire Yass Publications in Archaeology, 2000), p. 535-75,
2 vols.; esp. p. 539-42. M esm o assim, H alpern defende a existência de um a fortificação no período do
Bronze Recente I, acima de tudo porque leva a sério o testemunho egípcio sobre o cerco de M egido, sus­
tentando de m odo plausível que a fortificação da Idade do Bronze M édia encontrada no sítio inferior
“perm aneceu em uso até a prim eira parte do século 15” (p. 540).
18C. Scháfer-Lichtenberger, “Sociological and biblical views o f the early State”, in: V. Fritz; P. R.
Davies, orgs., The origins o f the ancient Israelite states, JS O T S 228 (Sheffield: Sheffield Academ ic Press,
1996), p. 78-105; citação nas p. 79-80.
19“W h a t archaeology can and cannot do”, B A 34 (1971), p. 76.
C O N H E C E R E CR ER : A F É NO P ASSADO 81

crédito. M apas podem levar ao lugar errado; pacientes podem deixar de contar
a verdade aos psicólogos; cientistas (inclusive arqueólogos) podem falsificar os
resultados de suas pesquisas ou sim plesmente fazer interpretações equivocadas
dos dados; testem unhas em um julgam ento podem com eter perjúrio; e os que
transm item a tradição podem , com ou sem intenção, distorcer o passado. Fica
claro que, entre as ferram entas que as pessoas usam para a tarefa de com pre­
ender a realidade, o pensam ento crítico deve estar entre as mais im portantes.
Ao insistirm os na inevitabilidade da confiança no testem unho, não estamos de
forma alguma advogando um ayè' cega no testem unho, quer se refira à realida­
de presente, quer se refira à realidade passada. Devido à natureza indefinida
do testem unho, a f é cega estaria longe de ser racional. É claro que algum tipo
de autonom ia em relação ao testem unho, da espécie que Collingwood busca, é
necessária para que a pessoa possa distinguir entre falsidade e verdade. E ntretanto,
assim como a ação autônom a na vida norm al adulta não exige a renúncia da
dependência de outros, da m esm a form a o pensamento autônom o é totalm ente
compatível com um a confiança fundam ental na palavra de outros na busca pelo
conhecim ento. Precisamos apenas entender o pensam ento crítico não como um
esforço para descobrir tudo por nós mesmos desde os prim eiros princípios, mas
como o exercício — deliberado e realizado com a m ente aberta — de avaliar
inteligentem ente o testem unho que recebemos, de modo que realm ente façamos
os juízos que achamos ter condições de fazer sobre a verdade ou falsidade de
um testem unho. Não é necessário fé cega no testem unho nem suspeita radical
em resposta a ele. O que se requer de nós é apenas o que descreveríamos como
“abertura epistem ológica”.
No que diz respeito à realidade da vida cotidiana, um a característica da maioria
de nós é adotar essa abordagem ao testem unho. Não é um a característica pessoal
nem um a questão de princípio suspeitar o tem po todo do testem unho dos outros,
exigindo que cada pessoa, sem exceção, prove o que diz antes que aceitemos sua
veracidade. N a realidade, em geral, consideramos sinal de desequilíbrio emocional
ou m ental o fato de alguém, comc-princípio, viver desconfiando dos testem unhos,
e a maioria das pessoas que está do lado de fora de instituições psiquiátricas não
vive dessa maneira. Sabemos que às vezes a suspeita pode ser justificada. Contudo,
reconhecemos que pessoas saudáveis confiam em geral no testem unho dos outros,
reservando a suspeita para os que dão motivo para isso. Portanto, em nosso dia a
dia, no que diz respeito à compreensão da realidade em geral, a aplicação de um a
“herm enêutica da suspeita” radical em relação ao testem unho não é considerada
mais sensata do que o exercício da fé cega. D a perspectiva de nossa compreensão
da realidade passada em particular, nenhum a dessas duas abordagens deve ser
considerada sensata.
82 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍ BLIA

Ademais, com respeito à realidade presente, quando fazemos juízos sobre o


testemunho, não é comum considerarmos que a adoção de um “m étodo” seja uma
conduta racional a se tomar. Por exemplo, se somos pessoas críticas e inteligentes,
nem sempre (como uma questão de “m étodo”) confiamos em testemunhas oculares
em contraste com testemunhas de segunda mão, e vice-versa. D e modo mais geral,
se cremos no testemunho de um tipo de pessoa e não no de outro — por exemplo, se
somos caucasianos e aceitamos consistentem ente os relatos da realidade feitos por
pessoas de nosso grupo, isto é, pelos caucasianos, ao contrário dos relatos feitos
por pessoas de “fora”, como os asiáticos — então somos considerados preconcei­
tuosos, não inteligentes. Reconhecemos que a realidade é mais complexa do que o
método admite. Por isso, se somos pessoas inteligentes e críticas, não deixamos que
o m étodo nos influencie demais na busca da apreensão da realidade. Em vez disso,
procuramos assegurar que qualquer m étodo que adotemos seja suficientemente
amplo e complexo para levar em conta as sutilezas e as complexidades do m undo
que existe fora de nossas cabeças.
Por que, então, deve-se com um ente acreditar que o “m étodo científico” pode de
alguma forma nos ajudar a distinguir entre os testem unhos do passado de acordo
com sua provável veracidade? A ideia rem onta pelo menos ao próprio Ranke, ao
propor que textos produzidos durante a ocorrência dos acontecim entos merecem
mais atenção do historiador do que os textos escritos depois. Assim, na historio­
grafia científica dá-se prioridade às denominadas fontes primárias em oposição
às fontes secundárias e posteriores. Não temos, porém, nenhum bom motivo para
supor antecipadam ente que as fontes denominadas “prim árias” são mais fidedignas
do que quaisquer outras. A pressuposição está relacionada à crença ingênua de que
testem unhas oculares “contam exatamente o que aconteceu”, ao passo que outras
filtram a realidade m ediante vários fatores que causam distorção. No entanto, assim
como ocorre na arte tam bém acontece na história: um a grande proximidade entre
o artista e a tela não é de m odo algum garantia de um retrato mais “preciso” (visto
que, como diz um provérbio, às vezes o pintor fica perdido entre as árvores e deixa
de ver a form a geral da floresta). D e um lado, como todas as pessoas, as testem unhas
oculares têm um a perspectiva e, no processo de testem unhar, é inevitável que
precisem simplificar, selecionar e interpretar. Por outro, é possível que pessoas
que dão testem unho de segunda mão, quer oral, quer escrito, o façam não apenas
com precisão, mas tam bém com inteligência e, no que diz respeito à m aneira que
o testem unho específico corresponde ao quadro mais amplo, com mais percep­
ção do que a própria testem unha ocular.20 Devemos avaliar caso a caso. M étodos
não nos ajudarão, seja no modelo rankeano, seja — ainda mais absurdamente

20P. R. Ackroyd, “H istorians and prophets”, S E Ã 33 (1968), p. 18-54; referência às p. 20-1.


C O N H E C E R E CR ER : A F É NO P ASSADO 83

— no m odelo dos que usam a teoria m atem ática das probabilidades para ana­
lisar o testem unho em um a tentativa de obter maior certeza científica quanto
à sua veracidade.21

Reconsiderando a história da historiografia

O testemunho — ou “a narração de histórias” — é central em nossa busca pelo co­


nhecimento do passado. Aliás, toda a historiografia é narração, seja antiga, medieval
ou moderna. A historiografia é uma narrativa ideológica que trata do passado e
envolve, entre outras coisas, a seleção de material e sua interpretação por autores
decididos a persuadir a si mesmos ou a seus leitores acerca de certas verdades sobre
o passado. Essa seleção e interpretação sempre são feitas por pessoas com um a cos­
movisão particular — um conjunto específico de pressuposições e crenças que não
tem origem nos fatos da história com os quais estão trabalhando, mas já existem
antes de a narrativa ser iniciada. Toda historiografia é assim, quer pensemos no
antigo grego Tucídides, quer no inglês medieval Beda, quer ainda nos modernos
Gibbon, Macaulay, M ichelet e M arx,22 ou até mesmo em T. L. Thompson, com
quem iniciamos este capítulo. N a verdade, todo conhecimento do passado é mais
precisamente descrito como fé nas interpretações do passado oferecidas por outros,
por meio da qual nos apropriamos em parte ou totalmente dessas interpretações.
Não é apenas no plano das pressuposições sobre a história que precisamos tom ar
“passos de fé” — quer se entenda a história como caótica, cíclica ou como um
movimento linear em direção a um fim estabelecido; quer se explique a história
como simples relações de causa e efeito, e assim por diante. Passos de fé também
são intrínsecos ao próprio processo de “conhecer” dados específicos sobre o passado.

21A abordagem é analisada em C. A. J. Coady Testimony: a philosophical study (Oxford: Clarendon,


1992, p. 199-223). D e várias maneiras, a composição do presente capítulo foi influenciada por esse
excelente estudo filosófico sobre a dependência que o conhecim ento hum ano tem do testem unho;
um estudo atento dessa obra será de grande proveito. Neste contexto, Tradition, de E. Shils (Chicago:
University o f Chicago Press, 1981), é outro estudo digno de menção.
22E m N o t by fa c t alone: essays on the w riting and reading o f history (L ondon: Collins H arvill,
1990), J. Clive apresenta um a análise interessante e esclarecedora desses e de outros historiadores.
O próprio Clive é um historiador que entende com bastante clareza até que ponto a história escrita
é “conhecim ento do passado filtrado pela m ente e pela arte” (cf. o prefácio de sua obra). E m seu livro
The rhetoric o f historical representation: three narrative histories o f the French Revolution (Cam bridge:
C am bridge U niversity Press, 1990), A. Rigney vai além e estabelece sem elhanças e diferenças entre
M ichelet, de um lado, e L am artine e Blanc, de outro. C erca de sessenta anos depois da Revolução
Francesa, cada um escreveu um a história da Revolução; cada um em pregou estratégias particulares
discursivas e narrativas para descrever e dar sentido aos acontecim entos; e, ao fazê-lo, cada um
revelou sua ideologia particular.
84 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA

Afirmamos que, na realidade, isso é exatamente o que ocorre, por mais que os
retóricos tentem nos persuadir do contrário, e essa afirmação nos leva à conclu­
são desta seção e ao fim de nosso resumo da história da historiografia em geral.
Os principais retóricos que temos em mente são os mesmos historiadores científicos
dos séculos 19 e 20 com quem debatemos nestes capítulos iniciais e que têm procu­
rado persuadir a todos nós a adotar uma visão da realidade que, ao ser examinada,
é muito improvável. N o m undo deles, a história da historiografia é uma história
de progresso das trevas para a luz: os gregos lançaram os alicerces da ciência e da
história e acenderam a tocha da liberdade intelectual, mas o barbarismo e a religião
interromperam a marcha gradual da hum anidade rumo à verdade. A Renascença
reacendeu a tocha que se tornou um farol resplandecente no século 19, quando
nasceu a historiografia científica, fornecendo “o m étodo” que, pela primeira vez, nos
capacitou a dizer a verdade sobre o passado.
Em bora estimulante, essa narrativa não tem quase relação alguma com a verdade.
É impossível defender de modo plausível qualquer distinção generalizada desse tipo
entre a historiografia que precede o século 19 e a historiografia existente desde então.
Tal como seus antecessores, os historiadores modernos dependem na realidade de tes­
temunhos, interpretam o passado e têm tanta fé quanto seus antecessores, religiosos
ou não. Ademais, como um grupo, os historiadores antigos, medievais e posterio­
res à Reforma não tinham menos interesse do que os historiadores modernos em
estabelecer a distinção entre verdade e falsidade, como demonstra até mesmo um co­
nhecimento superficial de suas obras.23 O pensamento crítico não se iniciou no século
19, mas estava presente ao longo dos séculos precedentes em uma feliz coexistência
com a fé (religiosa ou não) sobre a natureza do mundo e em meio a muito do que era
d^e fato bárbaro. Desde o século 19 até o presente, o pensamento crítico continua a
coexistir com todo tipo de fé (religiosa ou não) sobre a natureza do mundo e também
em meio a um barbarismo ainda maior. Certamente nem sempre se encontrou esse
pensamento crítico nos períodos mais antigos da historiografia; mas ele também nem
sempre foi visto no período moderno, mesmo (e talvez especialmente) entre aqueles
que alegam empregá-lo. É fácil alguém fazer a alegação de que é um pensador crítico.
A realidade, porém, que se esconde por trás dessa alegação é que com demasiada
frequência ela se revelou apenas uma mistura de fé cega na própria tradição intelectual
do escritor com seu ceticismo seletivo e arbitrário em relação a tudo o mais.

23A o contrário, vemos um interesse real com a exatidão e a veracidade, se lermos autores antigos
como Tácito (Anais 1.1), Cícero (De oratore, 2.Ü.6-9) ou o escritor bíblico Lucas (Lc 1.1-4); autores da
A lta Idade M édia como W ip o ou João de Salisbury (veja E. Breisach, Historiography: ancient, medieval
and modem [Chicago: Chicago University Press, 1983], p. 124-5,144); ou qualquer grupo de historia­
dores desde o século 13 até o 18. N ão é a familiaridade com o passado, mas o preconceito m oderno que
descreve o passado de form a diferente.
Capítulo 3

Conhecendo a história de Israel

E m essência, aquilo a que g eralm ente nos referim os com o co n hecim ento histórico
é apenas u m a form a m ais frágil de conhecim ento do que a que tem os no p resente
em relação a am igos, fam ília, instituições e assim p o r diante. Som os persuadidos
com facilidade e, p o rtan to , facilm ente levados ao erro. P o r o u tro lado, m uitas vezes
estam os certos q u an to a nossos am igos e fam ília (se não form os loucos). A m aioria
de nós vive satisfeito com a in certeza em relação à m an eira que am igos e até m esm o
m otoristas vão se co m p o rtar ou reagir neste ou naquele m om ento, porque tem os de
viver assim. U m grau sem elhante de in certeza está relacionado à form a pela qual
reconstruím os a história. N a m elh o r das hipóteses, é in trig an te p o r que alguns estu ­
diosos se m o stram tão seguros sobre o passado e sobre o p resente h um anos, quando
nos dois casos estam os trata n d o de seres h u m a n o s.1

Ao voltarmos a refletir sobre a história da história de Israel, no contexto histó­


rico e filosófico mais amplo apresentado no capítulo 2 e conforme começamos a
estruturá-la no capítulo 1, devemos entender exatamente que tipo de história de
Israel tem predominado nos últimos duzentos anos, a saber: a história científica.
Os historiadores de Israel, tanto quanto os demais historiadores, têm sentido forte
pressão para conformar seu trabalho ao modelo científico. Aos poucos, eles têm
feito isso, abandonando o testemunho bíblico em favor do “conhecimento” que a in­
vestigação científica produz, até o ponto de afirmações como as de Thompson: “Não
existe mais um A ntigo Israel’ [...]. Sabemos disso com certeza”2 — ou seja, uma

1B. H alpern, “Text and artifact: two monologues?”, in: N . A. Silberman; D . Small, orgs.,
The archaeology o f Israel: constructing the past, interpreting the present, JS O T S 237 (Sheffield: Sheffield
Academ ic Press, 1997), p. 311-41; citação na p. 337.
2Ao mesmo tem po, vários teólogos têm adm itido que a história “real” se encontra em alguma outra
fonte que não o testem unho bíblico, embora baseiem suas teologias no testem unho: observe-se, e.g.,
a concessão que G . von R ad faz ao positivismo em seu Old Testament theology (tradução para o inglês
D. M . G. Stalker [Edinburgh e L ondon: Oliver and Boyd, 1962], vol. 1, p. 105-28,2 vols.).
86 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA

declaração de “certeza”, se é que já houve alguma. Está claro que muitos estudiosos,
que trabalham com o AT e se interessam pela história de Israel, sentem-se profun­
damente desconfortáveis com esse tipo de afirmação radical e prefeririam não ter de
concordar com ela. Contudo, não é tão evidente que consigam fazê-lo com alguma
consistência lógica. Com frequência e em grande medida, eles já adotaram sem
reservas um a abordagem como a de Thompson quanto ao valor relativo do testem u­
nho e quanto à investigação empírica em geral. Por isso, sentem agora a necessidade
de justificar a aceitação — em vez de justificar a rejeição — do testem unho bíblico
em particular. O estudo bíblico moderno foi, de fato, forjado no fogo da cosmovisão
científica do século 19, o que explica a razão de o m ito iluminista, “progresso sem­
pre avante e para cima até que a verdade e a bondade sejam alcançadas”, aparecer
com tanta frequência em seus escritos. Por isso, não é de surpreender que entre os
historiadores modernos de Israel — como também entre os historiadores modernos
em geral — encontremos tanto a tendência de exaltar o período moderno, vendo-o
como um período feliz em que descobrimos, usando as palavras de Ranke, a história
“como realmente foi”, quanto o menosprezo contra a era “pré-crítica” (ou seja, toda
a história humana antes do século 19), considerando-a uma época de ignorância, em
que a verdade completa sobre o passado não podia ser contada e realmente não foi.
O que talvez pareça um pouco mais surpreendente à primeira vista e exija alguma
explicação é o fato de que essa visão do século 19 sobre a tarefa historiográfica conti­
nuou sendo amplamente adotada, no início do século 20, pelos estudiosos bíblicos,
em geral, e historiadores de Israel, em particular. Aliás, precisamos lidar com o fato
notável de que, durante a maior parte do século 20, a disciplina “História de Israel”
prosseguiu com uma óbvia ignorância quanto ao intenso debate que historiadores
em geral travavam sobre a natureza da história, de maneira que o modelo científico
do século 19 foi amplamente considerado o único modelo acadêmico existente viá­
vel, dispensando, assim, qualquer justificativa para adotá-lo. Só em um ambiente de
total isolamento é que o debate recente sobre a história de Israel pôde chegar à forma
que assumiu, como uma reprise de disputas ocorridas décadas antes entre empiristas
rankeanos e positivistas, em que, de forma geral, os participantes parecem não ter
consciência tanto desses debates mais antigos quanto das questões mais amplas que
eles suscitam. Apenas em um ambiente assim, T. L. Thompson, sem qualquer cons­
trangimento ou necessidade de justificar sua posição sobre a epistemologia, pôde
alegar tamanho conhecimento do passado a ponto de dizer que “sabemos” que o
testemunho de Israel sobre seu passado é mera ficção.
Somente a falta de um raciocínio interdisciplinar e integrador poderia produzir
essa situação. Contudo, uma vez que as origens dos estudos bíblicos modernos não
estão apenas no século 19 em geral, mas, particularmente, em uma reação contra
o pensamento integrador do tipo filosófico ou teológico em favor da atenção ao
C O N H E C E N D O A H I S T Ó R I A D E ISR AEL 87

texto bíblico em si, o surgimento desse ambiente de isolamento talvez não seja tão
inesperado. O treinamento especializado limitado e a necessidade de demonstrar
conhecimento profundo e amor pelos detalhes, a fim de progredir na profissão, dei­
xam muitos estudiosos da Bíblia mal preparados para qualquer outra coisa que não
incursões ocasionais no território de outras disciplinas, a fim de encontrar algum
novo “ângulo” na pesquisa dos estudos bíblicos que lhes permita obter um a contri­
buição especial à sua área de atuação. As vezes o despojo intelectual trazido dessas
incursões não é bem entendido no que diz respeito ao contexto intelectual do qual
foi saqueado. O resultado é um a disciplina que às vezes deriva (imprecisamente)
de outras disciplinas e, frequentemente, depende de ideias delas, as quais já estão
ultrapassadas há várias décadas em sua popularidade e plausibilidade geral. Talvez
por esses motivos, a história da história de Israel nos últimos vinte anos tenha visto
a adoção ampla e entusiasmada de um a abordagem positivista da história sem uma
percepção mais clara dos problemas que ela suscita ou do debate que provocou
anteriormente entre historiadores, filósofos e teólogos. No que às vezes pode pare­
cer o vale perdido dos estudos bíblicos, sem contato com o mundo intelectual mais
amplo ao redor, o historiador científico, com seu quadro definido “do que realmente
aconteceu”, parece um a raça longe de ser extinta.
D e qualquer maneira, as próprias reflexões históricas e filosóficas que fizemos
até agora nos permitem adotar uma perspectiva bem diferente da concepção de
Thompson quanto ao que se “conhece” da história de Israel. O conhecimento que
ele professa é, na verdade, fé disfarçada. O que Thompson “conhece”, ele o “conhece”
porque decidiu acreditar em certos testemunhos sobre o passado em vez de outros,
sendo que o mais notável dos “outros” testemunhos é o do AT. Em resumo, da
perspectiva epistemológica, ele favoreceu o testemunho não bíblico. Thompson
mostra-se disposto a acolher o testemunho sobre o passado de Israel de fontes
predominante ou totalmente não bíblicas e, em geral, demonstra um elevado grau
de confiança nessas fontes. Ele é bastante ou totalmente resistente ao testemunho
que a própria Bíblia apresenta sobre o passado de Israel, tendo um elevado grau de
desconfiança em relação a essas fontes. Surge então a pergunta sobre quais são os
fundamentos sustentáveis para se adotar tal atitude. Essa pergunta deve ser res­
pondida por historiadores de Israel que não Thompson, pois somente ele expõe
de modo claro a posição que outros têm freqüente e implicitamente adotado. Na
verdade, um aspecto comum no discurso dos estudos bíblicos é o pressuposto de
que o conhecimento do passado de Israel tem se multiplicado de várias maneiras,
as quais podem ser usadas como padrão para avaliar o testemunho bíblico e chegar
a alguma conclusão sobre ele — ou, inclusive, como um ponto de partida para
elaborar um a história “científica” que seja totalmente independente do testemunho
bíblico. Um a investigação mais aprofundada dessa questão não apenas consolidará
88 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA

nossa compreensão das questões gerais de ciência e história já examinadas, mas


também nos ajudará a formar um a ideia mais clara de como um a história bíblica e
alternativa de Israel deve proceder.
Retornam os, então, a algumas questões já analisadas, agora com o foco especí­
fico na própria história da história de Israel e na maneira pela qual alguns assuntos
surgem nesse contexto específico.
Nossa tese é que “conhecemos” o que alegamos conhecer da história de Israel
quando damos atenção ao testemunho e à interpretação e fazemos escolhas sobre
em quem acreditar. É evidente que na literatura bíblica temos, entre outros tipos
de textos, testemunhos (e interpretações) do passado de Israel na forma narrativa.
Aliás, no mundo antigo essa literatura é única em seu interesse pelo passado:

U n ica entre orientais e gregos, ela se dirige a u m povo que é definido de acordo com seu
passado e que recebeu ordens para m an ter viva sua m em ória [...] u m povo “mais obcecado
pela história do que qualquer outra nação que já existiu” [...] [e que], “en tre os povos
do m undo antigo, é o único que tem o relato de seu início e de seu estado prim itivo
tão claro na m em ória p o p u la r” [...]. L em b re -se quão freq u en tem en te os costum es são
explicados; a origem de nom es antigos e declarações contem porâneas são identificadas;
m onum entos e decretos são determ inados p o r u m a razão concreta e incluídos na h istó ­
ria; pessoas, lugares e genealogias são especificados sem necessidade im ediata; registros
escritos, com o o Livro de Jasar ou os anais dos reis, são claram ente m en cio n ad o s.3

Com certeza, o propósito dessas narrativas não é apenas falar sobre o passado;
pode-se até argumentar que esse não é seu propósito principal. Entretanto, como
é possível deduzir dos próprios textos, fica claro que narrar o passado é um de seus
propósitos. M as ainda que não fosse, esses textos poderiam fazer isso muito bem.
Portanto, em nossa busca para conhecer o passado de Israel, qual é a razão de adotar
como princípio algum tipo de desconfiança em relação às principais seções do AT
ou até mesmo em relação à sua totalidade? Essa desconfiança frequentemente é
muito nítida nos livros de história de Israel produzidos nos últimos duzentos anos.
Quais são os fundamentos sustentáveis para essa posição?

VERIFICAÇÃO E FALSIFICAÇÃO

U m exame das publicações sobre o tema indica que um dos motivos para os estu­
diosos duvidarem do AT é a dificuldade, se não a impossibilidade, de verificar boa

3M . Sternberg, The poetics o f Biblical narrative: ideological titerature and the drama o f reading,
(Bloomington: Indiana University Press), 1985, p. 31. Nesse aspecto, Sternberg se baseia em parte em
H . Butterfield, The origins o f history (N ew York: Basic Books, 1981), p. 80-95.
C O N H E C E N D O A H I S T Ó R I A D E ISR A EL 89

parte da tradição bíblica; sem essa verificação, a implicação ou a afirmação resul­


tante é que não podemos confiar o suficiente no material como fonte para o trabalho
historiográfico. Por isso, M iller e Hayes, para dar só um exemplo, se preocupam com
a ausência geral do que chamam de “dados não bíblicos de controle” relativos aos
relatos de Gênesis-Sam uel e do início de IReis. Eles acreditam que, com a falta
desses dados, não é possível pressupor a confiabilidade histórica da narrativa de
Gênesis-Josué; hesitam im ensamente em usar a narrativa de Samuel para escrever
sobre Saul, pois alegam não ser possível um a verificação externa da veracidade das
partes centrais das narrativas; no caso de Davi, fica claro que tam bém prefeririam
ter o mesmo tipo de verificação externa.4 N a ausência dessa verificação, que consi­
deram tão essencial à tarefa de escrever um a historiografia crítica adequada, o que
se vê é que ou tentam não dizer nada (no caso de G n—-Js) ou apresentam o que, na
prática, são desculpas pelo que defato tentam dizer.5 Soggin, autor de outra obra
de história de Israel que marcou época na década de 1980, tam bém não está dis­
posto a, sem verificação externa, aceitar referências históricas presentes nos relatos
bíblicos.6 D e fato, as duas obras de história são consideradas obras que marcaram
época, em parte justam ente porque, na medida do possível, aplicam o princípio
da verificação.
Se os estudiosos mais recentemente chegaram à conclusão de que o pensa­
m ento de M iller/Hayes e Soggin é deficiente, não foi por acreditarem que tenham
ido longe demais nessa direção, mas, sim, por considerarem que não foram longe
o suficiente. Alega-se que não há evidência externa relativa aos períodos de Davi e
Salomão e, quanto ao período da M onarquia Posterior, a evidência também é bem
mais escassa do que se pensava até agora. U m a vez que ainda estamos empenhados
em verificar evidências referentes ao período pós-exílico, não é de surpreender que
vários estudiosos exijam o que, para eles, é simples coerência na abordagem adotada
para o AT e para a história. Se não é possível considerar fonte primária o material
que abrange Gênesis até as seções de ISam uel devido, ao menos em parte, ao fato
de que a verificação externa não é possível, por que tratar de modo diferente o
restante de ISam uel até 2Reis, além de Esdras-Neemias? Assim, tudo parece fun­
cionar de modo a tornar inevitável que qualquer estudioso verdadeiramente crítico
adote o princípio de suspeitar de todo o A T como obra histórica; de maneira inversa,
os historiadores que aceitam parcial ou totalmente o enredo bíblico ao escrever

4J. M . M iller; J. Hayes, A history o f ancient Israel and Juâah (Philadelphia: W estm inster, 1986),
p. 74,129,159.
^Quanto à natureza fundam ental da verificação conform e a concepção desses autores, cf. M iller;
H ayes,//wforj/,p. 78. Para exemplos do que na prática são pedidos de desculpa, veja, e.g., p. 129,159-60.
6History o f Israel:from the beginnings to the Bar Kochba revolts, A D 135 (London: SC M , 1984). E.g.,
p. 98 sobre as narrativas patriarcais; p. 110 sobre o Exodo.
90 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍ BLIA

seus livros de história de Israel são, nesse aspecto, considerados obscurantista com
motivação religiosa e não estudiosos críticos.
Nossa posição, por outro lado, é que esse ím peto apressado em direção ao
ceticismo é resultado não de ser completamente crítico, mas, sim, insuficientemente
crítico. E verdade que a crítica é amplamente aplicada, mas não em relação à vaca
sagrada que está no âmago da questão: o próprio princípio da verificação. Por que,
afinal, a verificação externa deveria ser um pré-requisito para aceitarmos o valor de
uma tradição no que diz respeito à realidade histórica? Em vez disso, por que os tex­
tos históricos antigos não deveriam receber o benefício da dúvida em relação às suas
afirmações sobre o passado, a menos que existam bons motivos para considerar que
essas afirmações não são confiáveis levando em conta, é claro, seus aspectos literários
e ideológicos? Em suma, por que devemos adotar um princípio de verificação em vez
de um princípio de falsificação? Por que o ônus da “prova” do que tem valor histórico
recai sobre os próprios textos em vez de recair sobre os que questionam o valor de tais
textos e os consideram falsos? Ao contrário do que muitos parecem pressupor, não se
pode aceitar que a verificação seja necessária apenas devido &possibilidade geral de que
um texto não seja de fato confiável como historiografia.7Temos de admitir a possibili­
dade de isso ocorrer em casos específicos, mas é preciso examinar cada caso a fim de se
chegar a uma decisão individual a respeito. Não está claro como a possibilidade geral
conduz logicamente à posição metodológica que acabamos de descrever.
Também não está claro que a noção de verificação ou “prova” que estamos exa­
minando seja coerente sob qualquer condição. D e que modo exatamente se imagina
que a verificação seja possível? Vamos supor que tenhamos um dado arqueológico
consistente com as afirmações de um texto bíblico sobre o passado. Por acaso isso
“comprova” que o texto é historicamente exato? Certam ente, essa relação tem sido
frequentemente defendida ou pressuposta. Entretanto, o dado arqueológico, mes­
mo que seja um texto escrito, continua sendo só mais um testemunho do passado;
o dado não “prova” que o evento ao qual o texto se refere aconteceu. Dados não

7E.g., em “W hose history? W hose Israel? W hose Bible? Biblical histories, ancient and m odem ”
(in: L. L. Grabbe, org., Can a “history o f Israel”be written?, JS O T S 2 4 5 /E S H M 1 [Sheffield: Sheffield
Academ ic Press, 1997], p. 104-22), P. R. Davies afirma que “o uso da narrativa historiográfica bíblica
para a reconstrução crítica dos períodos que descreve (em vez dos períodos em que foi escrita) é
duvidoso e apenas possível quando há dados independentes e apropriados” (p. 105). E ntretanto, em sua
análise anterior não se consegue ver nada que justifique essa conclusão. Aliás, consideramos infundada e
em conflito tanto com a lógica quanto com a experiência sua afirmação de que “o testem unho histórico
de qualquer obra será relevante antes de mais nada para a época em que foi escrito” (p. 104). Para um a
declaração sem elhantem ente infundada, cf. “D efining history and ethnicity in the South L evant”, de
T. L. Thom pson (in: Grabbe, org., History, p. 166-8): “Todos sabemos que o m undo real representado
nas assim chamadas ‘historiografias’ [antigas] é o m undo de seus autores; e elas nunca oferecem algo
m elhor do que isso” (p. 180).
C O N H E C E N D O A H I S T Ó R I A D E ISR A EL 91

escritos são ainda menos precisos e mais ambíguos.8 Quantos testemunhos, então,
são necessários antes que a comprovação final da verdade aconteça? E para quem
essa verificação é conclusiva? Para todos ou só para alguns? O debate recente sobre a
história de Israel evidencia que a resposta é de fato “apenas para alguns”. Dados que
são suficientes para uns são insuficientes para outros, ou até mesmo falsos.9
Isso levanta a questão de até que ponto a verificação está relacionada ao olho
do observador e se a atitude básica para com os textos não é bem mais decisiva na
abordagem da história de Israel do que a descoberta deste ou daquele dado externo.10
Portanto, essa questão nos impele de volta a nossas investigações introdutórias
quanto ao assunto do método, bem como as aprofunda. Qual é a razão exata para se
considerar a verificação externa tão central para a tarefa historiográfica, em especial
quando é tão difícil chegar a um acordo acerca da validade de um dado para a
verificação? A essa pergunta podemos acrescentar outra, que aprofunda ainda mais
a reflexão. Q uanto da história, antiga ou não, “conheceríamos” caso o princípio da
verificação fosse aplicado com consistência a todo testem unho a respeito dela, por
exemplo, ao testem unho dado por Júlio César acerca de sua invasão da Bretanha em
55-54 a.C., evento de que temos conhecimento apenas porque o próprio César nos
contou? A resposta clara é “muito pouco” — que é justam ente a razão pela qual as
pessoas que empregam o princípio da verificação, quer historiadores, em geral, quer
historiadores de Israel, em particular, o fazem apenas de forma seletiva, escolhendo
com muito cuidado os alvos do seu ceticismo rigoroso. Essa ilusão já mencionada
anteriormente — a ilusão de que temos conhecimento sem a mediação da fé — só é

8Acerca da complexidade da tarefa interpretativa com que o arqueólogo se depara, veja F. Brandfon,
“The lim its o f evidence: archaeology and objectivity”, M aarav 4 (1987), p. 5-43.
9U m a boa ilustração da complexidade da ideia de verificação é o debate acadêmico que se seguiu
à descoberta da inscrição de Tel D an. Para um resumo proveitoso do debate, veja F. C. Cryer, “O f
epistemology, N orthw est-Sem itic epigraphy and irony: the ‘B YT D W D /Y íouse o f D avid’ inscription
revisited”,/SO !T 69 (1996), p. 3-17. Para um a avaliação da inscrição, veja K. A. Kitchen, “A possible
m ention o f D avid in the late tenth century B C E , and deity *D O D as D ead as the D odo?”, J S O T 76
(1997), p. 22-44.
“ Nesse aspecto, observe-se o debate que W . G . Dever (“Identity o f early Israel: a rejoinder to
Keith W . W hitelam ”, J S O T 72 [1996], p. 3-24) e K. W . W h itelam (“Prophetic conflict in Israelite
history: taking sides w ith W illiam G . Dever”,J S O T 72 [1996], p. 25-44) travam sobre cultura m aterial
e etnicidade. O debate é predom inantem ente sobre o que os dados arqueológicos revelam de verdade
a respeito dos m oradores da região m ontanhosa central da Palestina durante o final do século 13 e
início do 12. E ntretanto, para as posições definitivas adotadas em cada caso, é decisiva a atitude de
cada estudioso em relação às tradições bíblicas no que se refere à utilidade delas para o historiador
como explicações interpretativas dos dados arqueológicos. Seria de grande contribuição para o debate
acadêmico sobre o que o dado arqueológico específico “sugere” ou “prova”, se os estudiosos fossem capazes
de expressar com mais clareza suas ideias sobre o que tal dado em geral é capaz de “sugerir” ou “provar” e
qual papel sua própria teoria interpretativa desem penha na produção de “sugestão” ou “prova”.
92 H I S T Ó R IA , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA

de fato possível se o ceticismo for dirigido a alguns testemunhos e interpretações do


passado e não a outros. Caso contrário, não resta nenhum “conhecimento” seguro ao
qual se possa recorrer para verificar os dados que são submetidos a “teste”.
Por esse motivo, um método em que a verificação é de im portância central só
poderá (em todos os sentidos) ser parcialmente aplicado. Q uanto mais esse método
for aplicado com consistência, mais ele se tornará inviável, até chegar ao ponto em
que se percebe que não é possível obter conhecimento real algum do que quer que
seja. Um dos aspectos notórios, se não também tragicômicos, de obras recentes sobre
a história de Israel é que vários daqueles que as escreveram parecem imaginar que, como
resultado da pesquisa empírica, houve um avanço no conhecimento que conduziu ao
fim do “Antigo Israel”, quando na verdade houve apenas um avanço na ignorância
como resultado da aplicação pseudoconsistente do princípio de verificação.11
Em resumo, na verdade não existe motivo algum para que qualquer texto — inclu­
sive o AT — que testemunhe do passado seja posto de lado em nossas análises históricas
até que passe por algum “teste de verificação” obscuro. Concordamos com G. E. Wright:

Seres finitos não conseguem o b ter provas concretas que tantos pressupõem ser possível
na conclusão do trab alh o científico ou histórico. P o r natu reza som os seres históricos, e a
am bigüidade sem pre é u m co m p o n en te central da história, quer das hum an id ad es, quer
da ciência social, q u er d a ciência n a tu ra l.12

D e fato, é intrigante que estudiosos bíblicos ainda trabalhem com o princípio


da verificação em mente depois de mais de trinta anos que A. Richardson disse que
“ninguém acredita que seja possível ‘provar’vereditos históricos segundo o modelo
de verificação adotado nas ciências naturais”.13

TESTEMUNHOS ANTIGOS E RECENTES

H á, no entanto, um segundo conjunto de motivos inter-relacionados que tem


levado estudiosos a cada vez mais expressarem dúvidas sobre seções inteiras da

n Portanto, o “conhecedor” T. L. Thompson, citado no início deste capítulo, diz agora o seguinte:
“Talvez seja irônico que esse reconhecim ento de nossa ignorância acerca da história do período em
questão seja o que caracteriza os resultados mais conclusivos da pesquisa histórica desta geração! Aliás,
o reconhecim ento dessa ignorância é a principal característica dos mais im portantes avanços de nossa
área de estudo” (“Historiography o f ancient Palestine and early Jewish historiography: W . G . Dever and
the not so new Biblical archaeology”, in: V. Fritz; P. R. Davies, orgs., The origins o f the ancient Israelite
states, JS O T S 228 (Sheffield: Sheffield Academic Press, 1996), p. 26-43; citação na p. 32).
I2“W h a t archaeology can and cannot do”, BA 34 (1971), p. 76.
1:'History sacred and profane (London: SC M , 1964), p. 251.
C O N H E C E N D O A H I S T Ó R I A D E ISR AEL 93

tradição bíblica. A questão não é apenas que a Bíblia “fracassou” no teste de


verificação, mas tam bém que agora boa parte da literatura bíblica é amplam ente
considerada incapaz, em sua essência, de testemunhar sobre o passado que alega
retratar. Aqui, no que diz respeito ao historiador de Israel, temos de lidar com
um legado de regras acumuladas sobre o tipo de testem unho que realm ente tem
valor e os que não têm tanto valor ou não têm valor algum. Ao que parece, essas
regras foram criadas com o objetivo, por um lado, de tornar mais fácil a vida do
historiador, desobrigando-o de refletir em casos específicos, e, por outro, de re­
duzir a subjetividade que, de outra forma, seria inevitável quando se decide entre
testem unhas do passado. E possível listar a seguir as mais influentes dessas regras,
conform e têm sido adotadas, entendidas e usadas pelos historiadores de Israel
em particular.
A primeira regra é que, em princípio, o testemunho ocular ou outros relatos
da época devem ter preferência sobre relatos posteriores.14 Segunda, deve-se dar
preferência a relatos que não são de natureza muito ideológica ou que não são
absolutamente ideológicos em detrim ento dos que são.15 A terceira e últim a regra
é que relatos em conformidade com nossas preconcepções sobre o que é normal,
possível e assim por diante devem ter preferência aos relatos que não estejam em
conformidade com essas preconcepções.16
E claro que já faz algum tempo que essas regras vêm sendo usadas e aplicadas a
secções menores ou maiores da tradição bíblica. O que mudou em tempos recentes
não foram as regras, mas sim o grau com que o texto bíblico é visto como insatis­
fatório de acordo com essas regras. Estudiosos têm encontrado na Bíblia cada vez
menos tradições do tipo que recebe boa avaliação como fonte de acesso direto ao
passado (por exemplo, testemunhas oculares ou fontes antigas) e mais e mais tradi­
ções cuja avaliação não é tão alta. Portanto, parece que, à medida que as passagens
em que é possível encontrar “história” na Bíblia foram sendo eliminadas, tornou-se
inevitável o desprezo dos historiadores por ela. Além disso, essa inevitabilidade
também tem conduzido à percepção de que os que insistem em encontrar história,

14Assim, e.g., em “From history to interpretation”, in: D. V. Edelm an, org., The fabric ó f history:
text, artifact and Israels past, JS O T S 127 (Sheffield: JSO T , 1991), p. 26-64 (tem a em pauta nas p. 45-7),
E. A . K nauf reconhece que o historiador deve, em primeiro lugar e acima de tudo, dar atenção a fontes
primárias, produzidas no desdobram ento dos acontecimentos, em vez de se concentrar em fontes que
foram feitas depois dos eventos. Ele descreve de form a tendenciosa as últimas fontes afirmando que
o propósito delas era “esclarecer às gerações futuras como se imaginava [grifo nosso] que as coisas
aconteceram” (p. 46).
13E.g., G . W . A hlstrõm em “The role o f archaeological and literary remains in reconstructing
Israels history” (in: Edelm an, org., Fabric, p. 116-41).
16E.g., P. R. Davies, In search o f "ancient Israel", JS O T S 148 (Sheffield: JSO T , 1992), p. 32-6.
94 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA

digamos, nos livros de Samuel estão apenas comprometidos em ser conservadores,


não estudiosos devidamente críticos.
Contudo, mais um a vez a pergunta im portante é: “Q uem está sendo realmente
crítico?”. As regras enunciadas acima não são de modo algum um a expressão da
“verdade” autoevidente. As alegações feitas sobre a capacidade de essas regras (reu­
nidas e classificadas como regras do “método científico”) nos conduzirem a toda a
verdade, ou ao menos nos darem condições de julgar a probabilidade de que algo
ocorreu no passado, são exageradas. A seguir, examinamos cada um a delas, come­
çando nesta seção com a primeira: a “regra” sobre testemunhos antigos e recentes.
No capítulo 2, lidamos com essa questão de modo resumido e geral. Agora
vamos expor com mais detalhes a nossa posição. Assim como as pessoas que relatam
mais tarde os acontecimentos, não há nenhum motivo válido para acreditar que as
testemunhas oculares não sejam também intérpretes dos acontecimentos que viram
nem há motivo algum para, em princípio, supor que seu testem unho seja mais ou
menos fidedigno. Aliás, não existe razão para crer que relatos mais antigos são em
geral mais confiáveis do que os mais recentes. N a verdade, não há absolutamen­
te nenhum a correlação necessária entre o tipo de interação que as “testemunhas”
têm com os acontecimentos e a qualidade do acesso aos acontecimentos que tais
testemunhas proporcionam aos outros. É claro que existe a possibilidade de, no
processo de transmissão de um testemunho específico, as pessoas o terem distorcido,
tornando-o falso. No entanto, também é possível que não tenham distorcido em nada
o testem unho original, mesmo quando o contextualizaram de modo totalmente
novo, talvez extraindo dele um sentido e um a significância nova, acrescentando-lhe
seu testemunho do passado.
Em tempos modernos, a crença comum tem sido oposta: é inevitável que algo
sobre a natureza do que podemos chamar de “correntes de testem unhos”,17 que se
estendem através dos tempos, torne nossas crenças históricas, pelo menos aquelas

17A expressão é de C. A. J. C oady (Testimony: a philosophical study [Oxford: Clarendon, 1992],


p. 201). Deve-se consultar todo o capítulo sobre “o desaparecim ento da história”, que combate o
ceticismo em relação ã transmissão da tradição. O bservem -se tam bém os seguintes estudos relevantes
para a argumentação que apresentamos a seguir, embora não esgotem de m odo algum tudo o que se
pode dizer sobre a possibilidade da preservação de m emórias históricas precisas em textos bíblicos:
W . W . Hallo, “Biblical history in its N ear E astem setting: the contextual approach” (in: V. P. Long,
org., IsraeVs past in present research: essays on ancient Israelite historiography, SBTS 7 [W inona Lake:
Eisenbrauns, 1999], p. 77-97); B. H alpern, “E rasing history: the m inim alist assault on ancient Israel”,
in: Long, org., IsraeVs past, p. 415-26; A. Lem aire, “W riting and w riting m ateriais”, in: A B D , vol. 6,
p. 999-1008 (com um a longa bibliografia após o verbete); A. M illard, “The knowledge o f w riting in
Iron Age Palestine”, TynB ul46 (1995), p. 207-17; K. A. Kitchen, “The patriarchal age: m yth or history”,
B A R ev 21, n. 2 (1995), p. 48-57, 88, 90, 92, 94-5; R. S. H endel, “Finding historical m emories in the
patriarchal narratives”, B A R ev 21, n. 4 (1995), p. 52-9, 70-1.
C O N H E C E N D O A H I S T Ó R I A D E ISR AEL 95

sobre o passado distante, racionalmente incertas. Entretanto, está longe de ser pos­
sível demonstrar a inevitabilidade nessa área, seja em geral, seja no caso de Israel
em particular.
E m sociedades que não adotam a escrita há uma forte institucionalização de
boa parte da tradição oral, com controles rígidos que regem sua transmissão em
relação tanto à frequência e ao contexto de sua repetição quanto às pessoas que têm
permissão para se envolver no processo de repetição. As vezes, em certos limites
prescritos, é permitida a variação na história contada, mas frequentemente não (por
exemplo, quando o relato aborda questões de identidade), e, nesses casos, o narrador
de histórias que comete erros fica sujeito a autorizações. É possível que algumas das
nossas tradições do A T (e.g., G n 12— 50) tenham se originado da transmissão oral,
mas não se pode deduzir com base nisso que essas tradições distorceram inevitavel­
m ente as memórias do passado. D e um modo ou de outro, a civilização da região
mesopotâmica de onde, segundo o AT, Abraão procedeu era um a região em que a
escrita dominava já havia algum tempo. Portanto, a suposição de que nossas tradições
de Gênesis foram transmitidas apenas de forma oral é somente isso: um a suposição.
É igualmente possível que ainda em um a etapa bem antiga fossem transmitidas
em forma tanto escrita quanto oral — permitindo assim a relativa estabilidade da
tradição que a escrita produz, mesmo em meio à relativa flexibilidade que a tradição
oral admite — , ou que a forma escrita predominasse até mesmo no início. A questão
é im portante não porque desejamos reconhecer algum defeito inevitável nas corren­
tes de testemunhos orais, mas simplesmente por causa do fato inegável de que, na
transmissão de testemunhos, registros escritos estabelecem em geral uma proteção
maior contra lapsos de memória e outros equívocos.
O próprio AT certamente sugere que a escrita foi empregada pelos israelitas
a partir da época de Moisés (Ex 17.14) — outra alegação completamente plausí­
vel tendo em vista o fato de que o texto bíblico também informa que Moisés foi
educado na corte egípcia. U m Moisés histórico educado no palácio do faraó deve
ter sido ensinado na tradição dos escribas e possivelmente era bilíngüe. Nada há
de improvável na ideia de que essa pessoa tenha recebido fontes tanto orais como
talvez escritas procedentes de tempos mais remotos e tenha dado forma a elas na
tradição original de Israel como vemos representada no Pentateuco. Também não
há fundam ento para supor que, se isso ocorreu, M oisés necessária e inevitavel­
m ente o fez com o objetivo de enganar.Tampouco existe base para supor que os que
passaram adiante a tradição do Antigo Israel encontrada no Pentateuco a tenham
distorcido, mesmo quando a ampliaram e a tornaram mais precisa. N a verdade, há
um a clara indicação contrária no fato de que uma das ênfases principais da tradição
é que a nação de Israel foi inicialmente um povo escravo no Egito — um dado que,
apesar de não ser nada honroso, determ ina tanto a religião quanto a ética israelitas.
96 H I S T Ó R IA , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA

Não parece que essa tradição seja do tipo que um povo inventa a respeito de si ou
que transm ite sem hesitar, caso seu objetivo seja distorcer sua história.
As descobertas não deixam dúvida de que perto do final do segundo milênio
a.C. e início do primeiro — período em que Israel já havia surgido como entidade
reconhecível na Palestina e a monarquia israelita foi fundada — o alfabetismo era
disseminado na região da Palestina e arredores e a escrita era usada em textos
legais, comerciais, literários e religiosos. D e fato, a escrita já era difundida no
período pré-israelita, “mesmo em cidades relativamente pequenas e isoladas”— um
fato elementar que acaba com os argumentos populares e recentes de que, baseados
no número pequeno da população, não havia alfabetismo na Palestina.18 Os m ate­
riais extrabíblicos remanescentes sugerem que, na verdade, a escrita era praticada
do norte ao sul de Canaã e que, além disso, houve um a mudança após o período
de Am arna em que o acádio deixou de ser a “língua franca” e passou-se a usar as
escritas e os idiomas locais da Palestina. Igualmente, no próprio Israel da Idade do
Ferro, ou seja, em todo o período de 1200 a 587/586 a.C., a escrita foi um fenômeno
muito propagado, não se limitando apenas a centros populacionais maiores.19 Os
dados tam bém não justificam tentativas de limitar o alfabetismo a classes específi­
cas (como sacerdotes, escribas ou administradores). Antes, ao que parece, “muitos
indivíduos [...] eram capazes de escrever na forma alfabética mais simples [...] [e]
faziam-no por vários motivos e com diversos propósitos”.20 Portanto, é inteiramente

18A citação é de R. S. Hess em “Literacy in Iron Age Israel”, in: V. R Long; G. J. W enham; D . W.
Baker, orgs., Windows into Old Testament history: evidence, argument, and the crisis o f "biblicalIsrael’’ (Grand
Rapids: Eerdm ans, 2002), p. 82-102; citação na p. 84. A argumentação de H ess é a base de todo nosso
parágrafo. O ponto de partida de Hess é um artigo recente de I. M . Young publicado em duas partes: “The
question o f Israelite literacy: interpreting the evidence, Parts I— II”, V T 48 (1998), p. 239-53 (primeira
parte), 408-22 (segunda parte). Nesse artigo, Young argumenta, primeiro, que o alfabetismo em massa
não pode ter sido um traço do Israel da Idade do Ferro e, segundo, que ler e escrever deve ter sido uma
habilidade limitada a escribas, sacerdotes e administradores. Hess tam bém observa o papel do livro Scribes
and schools in monarchic Judah: a socio-archaeological approach, de D. W. Jam ieson-Drake (JSO T S 109/
SW BA 9 [Sheffield: Alm ond, 1991]), no reavivamento do interesse pela questão geral do alfabetismo no
Israel Antigo. Jam ieson-D rake defendeu que no Israel da Idade do Ferro a escrita só veio a ser amplamen­
te usada depois do oitavo século a.C., o que se tornou um a ideia popular e errônea entre os estudiosos de
tempos recentes. Aliás, Hess m ostra que “todas as suposições sobre o alfabetismo na Palestina no século 13
e tam bém na Idade do Ferro I (1200-1000 a.C.) têm de ser questionadas e reexaminadas” (p. 85).
19Portanto, os dados extrabíblicos corroboram a impressão causada pelos textos bíblicos, que pres­
supõem sem quaisquer ressalvas que não apenas líderes como Josué eram capazes de ler e escrever
(Js 8.32,34; 24.26; comp. 18.4-9), mas tam bém simples cidadãos como o jovem de Sucote, m encionado
em Juizes 8.14.
20H ess, “Literacy”, p. 95. H ess não está sozinho em sua avaliação positiva do alfabetismo disse­
m inado (e antigo) em Israel. Por exemplo, em The Israelites, B. S. J. Isserlin (N ew York: Thames and
H udson, 1998) resiste à ideia de que o alfabetismo “se limitava essencialmente à classe de escribas”
C O N H E C E N D O A H I S T Ó R I A D E ISR AEL 97

plausível que tradições históricas escritas — bem como tradições orais — tenham
sido produzidas nesse período, logo após os eventos ou mais tarde, e, conforme os
autores bíblicos afirmam (e.g., em IR s 11.41; 14.19,29 etc.), que elas tenham estado
à sua disposição — da mesma forma que as tradições estiveram ao alcance, por
exemplo, dos escribas da corte assíria já nos séculos 12 a 10 a.C. Escribas da corte
israelita são m encionados em 2Samuel 8.17, 20.25 e IR eis 4.3, e bastante m ate­
rial característico de escribas é encontrado ao longo de Samuel e Reis, originado
em parte, sem dúvida, de arquivos palacianos, que eram bem conhecidos no antigo
Oriente Próximo.
Como pessoas que registravam o passado, esses escribas e seus sucessores podem
facilmente ter tido acesso também a bibliotecas de templos, como as encontradas no
Egito na segunda metade do primeiro milênio, que eram usadas para a educação e o
treinamento de escribas e abrigavam uma ampla gama de material. A utilização de
lugares sagrados e especificamente de templos como repositórios de textos é bem
atestada em todo o m undo antigo. Os egípcios, por exemplo, usavam locais sagrados
com essa finalidade já no terceiro milênio a.C., assim como os gregos e os romanos
fizeram posteriormente. O próprio AT reflete essa prática quando descreve, por
exemplo, a colocação dos D ez M andamentos dentro do Tabernáculo (Ex 40.16-33;
D t 10.1-5). M ais tarde, Josefo narra que, em 70 d.C., um a cópia da Lei judaica foi
levada do templo em Jerusalém para Roma.21 Materiais como esses — encontra­
dos em bibliotecas de templos e representando tradições que remontavam a várias

e cita a existência de grafites escritos encontrados em povoados “possivelm ente israelitas” já nos sé­
culos 13 a 11 (p. 2 0 ,2 2 0 -1 ). W . G . D ever defende um alfabetism o funcional em Israel já na Idade do
Ferro I ( What did the biblical writers know and when did they know i t f What archaeology can tell us about
the reality ofancient Israel [G rand Rapids: Eerdm ans, 2001], p. 114) ou pelo menos por volta do décimo
século (idem, p. 143, 202-3, 209, 211), e um a tradição oral dinâm ica antes disso (idem, p. 279-80, em
um a citação em que concorda com as ideias de S. N iditch em Oral world and written word: orality and
literacy in ancient Israel, L A I [London: SPCK, 1997]). E m seu livro Israel in Egypt: the evidencefo r the
authenticity o f the Exodus tradition (Oxford: O xford University Press, 1997), J. K. Hoffm eier argum enta
que “não há motivo algum para negar a capacidade de escrever e registrar informações antes da Idade
do Ferro” (p. 16). O s argumentos mais fortes que A. R. M illard apresenta a favor do alfabetismo nos
prim órdios de Israel aparecem em vários estudos além do mencionado acima. E m ordem cronológica
são: “The question o f Israelite literacy”, Bible R eview 3 (1987), p. 22-31; “Books in the L ate Bronze Age
in the L evant”, in: S. Izreel; I. Singer; R. Zadok, orgs., Past links: studies in the languages and cultures t f
the ancient Near East, Israel O riental Studies X V III (W inona Lake: Eisenbrauns, 1998), p. 171-81. So­
bre os possíveis motivos pelos quais não sobreviveram mais dados extrabíblicos escritos sobre a história
rem ota de Israel, veja tb. as seguintes pesquisas de M illard: “Evidence and argum ent”, Buried History
32 (1996), p. 71-3; “Observations from eponym lists”, in: S. Parpola; R. M . W hiting, orgs,,Assyria 1995
(Helsinki: 1997), p. 207-11.
21Veja R. T. Beckwith, The Old Testament canon o f the N ew Testament Church, and its background in
early fudaism (G rand Rapids: Eerdm ans, 1985), p. 80-6.
98 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A B ÍBL IA

gerações passadas -— perm itiram que Beroso escrevesse sua Babyloniaca (280-270
a.C.), em que tentou persuadir seus mestres gregos acerca da respeitável antigui­
dade e das grandes realizações dos povos mesopotâmicos. Tam bém permitiram que
M aneto escrevesse sua Aegyptiaca (c. 280 a.C.), uma história do antigo Egito. Além
dos arquivos palacianos e das bibliotecas ou dos arquivos dos templos por meio dos
quais os transmissores do passado podem ter tido acesso à tradição e à legislação
israelita mais antigas, é possível ainda que pessoas ou grupos de pessoas também
possuíssem os próprios materiais literários. Outras fontes prováveis de inform a­
ção teriam incluído anais estrangeiros e inscrições de vários tipos, com registros de
informações pessoais (observe-se, por exemplo, 2Sm 18.18; inscrições funerárias
também seriam úteis) ou de vitórias israelitas ou estrangeiras (como no caso da
esteia de M essa ou da inscrição de Tel D an — para mais detalhes, veja ainda a
segunda parte deste livro, que descreve o período monárquico da história de Israel).
Não há, portanto, motivo algum para pensar que os historiadores bíblicos do
período monárquico não pudessem ter tido acesso a fontes de informação escritas
e orais sobre aquele período e sobre períodos mais antigos. Com frequência, eles
afirmam exatamente o contrário, e no corpus pós-Pentateuco há muitas indicações
em textos de Josué— Reis de que devemos levar a sério essas alegações. Por exemplo,
tanto o relato acerca do reinado de Salomão em IReis 2— 11 quanto o da conquista
israelita de Canaã em Josué 1— 12 têm estrutura semelhante à das antigas “ins­
crições de exposição”.22 O utros dados internos tam bém indicam que pelo menos

22Veja, e.g., “The structure o f Joshua 1— 11 and the Annals o f Thutm ose II I ” (in: A . R. M illard;
J. K. Hoffm eier; D . W . Baker, orgs., Faith, tradition, and history: Old Testament historiography in its Near
Eastern context [W inona Lake: Eisenbrauns, 1994], p. 165-79), em que J. K. Hoffm eier dem onstra que
Josué 1— 11 exibe paralelos formais com as descrições de campanhas militares registradas nos anais de
Tutm ósis III. E le escreve: “Am bos fazem narrativas longas para descrever as cam panhas mais im por­
tantes e relatos curtos e concisos para, m ediante o uso de linguagem repetitiva e estereotipada, descrever
ações menos relevantes. E m ambos se atesta tanto um a declaração-resumo quanto referências a saques
(Js 8.27; 11.14)” (p. 176). C om o explicação para as semelhanças, H offm eier propõe que “é possível atri­
buir os paralelos dem onstrados aqui ao fato de os hebreus tom arem emprestada a tradição dos escribas
egípcios de registrar as ações militares em um diário” (p. 176). Diários egípcios “são mais como um
diário de bordo do que um a narrativa corrida e registram relatos do dia a dia, compostos por cláusulas
repetitivas e quase nenhum a variação” (p. 169-70). D e acordo com Hoffmeier, em seções de Josué como
10.28-42 e 11.10-14 é possível detectar o estilo que lem bra um diário ( Tagebuchstit). Esses relatos cur­
tos convencionais contrastam com o tratam ento mais completo dado a outros acontecimentos de Josué
1— 11, como a travessia do Jordão e a captura de Jericó (caps. 1— 6), a vitória final sobre A i (7.1— 8.28),
bem como a aliança estabelecida com os gibeonitas e a defesa deles (9.1— 10.14).
H offm eier observa que, em bora alguns defendam que essa “combinação de relatos longos e breves”
seja “um a idiossincrasia característica do primeiro m ilênio por esse tipo de combinação ser encontrado
em textos militares assírios” (p. 173, referindo-se ao argum ento de J. Van Seter em “Joshuas campaign
o f C anaan and N ear E astern historiography” [SJOT 2 (1990), p. 1-12, em especial a p. 7]), o mesmo
C O N H E C E N D O A H I S T Ó R I A D E ISR A EL 99

parte do material que subjaz os livros de Josué23 e Juizes24 foi composta no início da
monarquia ou mesmo antes. Os livros inteiros de 1 e 2Samuel, com sua ênfase na
legitimação da nova constituição de Israel, na continuidade da liderança política e na
sucessão de Davi, fazem muito mais sentido como narrativa composta no contexto
da época e não em um cenário posterior, como um relato e uma defesa da monarquia

fenôm eno aparece nos anais egípcios, em que o relato da prim eira cam panha do faraó contra M egido
ocupa 110 linhas, enquanto alguns dos outros relatos ocupam apenas dez (p. 171). Além do mais, o
relato que os anais fazem dos acontecimentos em torno da batalha de M egido e o relato que o livro
de Josué apresenta dos acontecimentos referentes à batalha de Jericó revelam estrutura semelhante:
comissionam ento divino, coleta de informações militares, m archa em terreno difícil, estabelecimento
de acampam ento, cerco da cidade e vitória (p. 174). Esses e outros fatores levam HoíFmeier a concluir:
“no m ínimo, as semelhanças ilustram que, quando comparada com um texto m ilitar egípcio, a narrativa
de Josué tem precedente e que, quaisquer que tenham sido os interesses ideológicos que deram form a às
narrativas de Josué, continua sendo possível compará-las com textos do segundo m ilênio que procedem
de outras regiões do O riente Próximo” (p. 173). Ele acredita que “o período do Reino Novo, o período
mais provável para a saída de Israel do E gito e sua entrada em Canaã, é a época mais provável para que
as tradições do uso de diário pelos escribas egípcios fossem adotadas pelos escribas israelitas e, desse
m odo, deixassem sua marca na composição de Josué 1— 11” (p. 179).
23E.g., em Grace in the end: a study o f Deuteronomistu theology (G rand Rapids: Z ondervan, 1993)
J. G . M cConville cham a a atenção para o episódio narrado em Josué 22.9-34 sobre o altar construído
pelas tribos da Transjordânia. Após term inar a distribuição territorial entre as tribos da Cisjordânia
(veja o resumo em 21.43-45), Josué abençoa as duas tribos e meia da Transjordânia e as envia de volta
para sua herança (22.1-8). A ação problem ática do episódio acontece quando, na travessia do Jordão, as
tribos da Transjordânia param para construir um altar im ponente (22.10). Esse gesto “provocou a ira
de seus irmãos israelitas, pois im plicitam ente desafiava a centralidade e a primazia de Siló como local
de adoração para todo o Israel e tam bém afrontava os direitos de Yahweh entre seu povo (v. 16-20).
E inquestionável a natureza ‘deuteronôm ica’das questões aqui tratadas. E ntretanto, o fato de o ‘altar do
S e n h o r ’ estar estabelecido em Siló e não em Jerusalém é difícil de ser harm onizado com um a afirmação
‘deuteronômica’ feita no contexto das reformas josiânicas, que prom overam a adoração em Jerusalém e
pretenderam suprim i-la em todos os demais lugares, em especial no norte. Por esse motivo, não é fácil
evitar a conclusão de que ao menos um núcleo da atual narrativa pertence a um a época que antecede o
período da monarquia, um a época em que se afirmava a centralidade de Siló em Israel (comp. Jz 21.12;
IS m 1— 3)” (p. 100). E ntre as referências bíblicas que apoiam a ideia de que Siló serviu de santuário
central estão Juizes 18.31; Salmos 78.60 e Jeremias 7.12.
24M uitos comentaristas pressupõem que o cativeiro m encionado em Juizes 18.30 seja o cativeiro
assírio do Reino do N orte, ocorrido por volta de 722 a.C. Se essa associação estivesse correta, então seria
possível estabelecer a data como o ter-minus a quo dessa seção de Juizes. M cConville ( Grace in the end,
p. 110) contesta, porém, a interpretação argum entando que nada há no texto que indique essa associa­
ção específica. Ao contrário, a referência no versículo seguinte a “todo o tem po em que o santuário de
D eus esteve em Siló” (18.31) sugere que a m aneira mais natural de entender o “cativeiro da terra” m en­
cionado no v. 30 (ARC) seja identificando-o com a queda de Siló, cujo contexto histórico é o dom ínio
filisteu anterior à época de Saul. Isso indica alguma data posterior a meados do século 11 como terminus
a quo do livro de Juizes (ou ao menos dessa seção do livro).
100 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA

davídica originados de uma época antiga. Aliás, é possível que o relato sobre Saul
tenha a estrutura de uma antiga cerimônia ritual de posse do rei.25 Por fim, o relato
de Salomão do livro de Reis corresponde aos ideais reais assírios dos séculos 11 a 9
a.C., mas não aos ideais comuns posteriormente, sugerindo que o relato teria sido
inicialmente formulado durante aquele período, em um a interação consciente com
os ideais assírios aludidos.
M uitos aspectos incidentais de nossos textos, em especial de Samuel-Reis, tam ­
bém sugerem sua antiguidade. Entre esses aspectos estão as referências espalhadas
a várias divindades não convencionais, os nomes estrangeiros que, frequentemente,
refletem uma fonologia inexistente em textos mais recentes, os muitos topônimos
que são associados aos heróis de Davi e que não aparecem em textos mais recentes,
a pressuposição (em 2Samuel) de uma divisão de assentamentos no Neguebe, que se
harmoniza com a arqueologia do décimo século, mas não com a de séculos posteriores,
e o número muito alto de grafias irregulares de palavras hebraicas em 1 e 2Samuel,
o que contrasta não apenas com o restante de Josué— Reis, mas, de forma muito
mais notória e significativa, com obras pós-exílicas.26 É particularmente significa­
tiva a precisão com que a seqüência de reis assírios é apresentada nos livros de Reis
correspondendo à seqüência que conhecemos com base nos próprios registros assírios.
E m todos esses fatos, encontramos provas abundantes não apenas de que foi
possível a transmissão exata em Israel da tradição do período pré-exílico para o
pós-exílico, período em que essa mesma tradição recebeu sua forma final, mas que

25Veja, e.g., V. P. Long, The reign and rejection ofking Saul: a casefo r literary and theological coherence,
SBLD S 118 (Atlanta: Scholars, 1989), p. 183-90. Para um a análise mais detalhada da m aneira que o
corpus bíblico, embora estritam ente falando, seja único em antiguidade, tem certam ente características
de gêneros literários com paralelos no antigo O riente Próximo que podem ser citados, veja, e.g.,
H . Cazelles, “Biblical and prebiblical historiography”, in: Long, org., IsraeVs past, p. 98-128 (texto
original em francês publicado em 1991); idem , “D ie biblische G eschichtsschreibung im L icht der
altorientalischen G eschichtsschreibung”, in: E. von Schuler, org., X X IIII. Deutscher Orientalistentag
vom 16. Bis 20. September 1985 in Würzburg: Ausgewãhlte Vortráge, Z D M G Supplem ent 7 (Stuttgart:
Franz Steiner Verlag W iesbaden G M B H , 1989), p. 38-49; Hallo, “Biblical history”; A . M alam at,
“D octrines o f causality in H ittite and Biblical historiography: a parallel”, V T 5 (1955), p. 1-12; J. R.
Porter, “O ld Testam ent historiography”, in: G . W . Anderson, org., Tradition and interpretation: essays by
members ofthe Societyfo r Old Testament Study (Oxford: C larendon Press, 1979), p. 125-62; J. H . W alton,
“C ultural background o f the O ld T estam ent”, in: D . S. D ockery et al., orgs., Foundations fo r biblical
interpretation (Nashville: Broadm an & H olm an, 1994), p. 255-73.
260 s dados foram extraídos de um a monografia apresentada por B. H alpern no congresso da
A A R /S B L em São Francisco, Estados U nidos, em 1997, que, pelo que sabemos, ainda não foi publica­
da. N ão é de form a alguma um relato exaustivo, por isso não contém tudo o que se pode dizer a respeito.
Por exemplo, W. G. Dever observa que ISam uel 13.19-21 m enciona a antiga m edida de pesopym , que
parece ter sido usada apenas nos séculos 9 a 7 a.C.: veja H . Shanks, “Is this m an a biblical archaeologist?
B A R interviews W illiam Dever, P art Two”, B A R ev 22, n. 5 [1996], p. 30-7, 74-7; citação nas p. 35-6).
C O N H E C E N D O A H IS T Ó R IA DE ISRAEL 101

isso, de fato, aconteceu. Ao contrário do que alguns têm sustentado, os textos bíbli­
cos simplesmente não aparentam ser mero fruto da imaginação fértil de autores
que viveram muito tem po depois do exílio. Ao contrário, há muitas indicações de
que esses autores tiveram acesso aos próprios materiais e também a tradições escritas
— representadas em Gênesis-Reis — , as quais já tinham uma forma relativamente
fixa e eram imbuídas de autoridade (para eles). Os livros de Crônicas apoiam, de
forma muito clara, essa afirmação, revelando uma notável dependência dos livros de
Samuel-Reis — uma fonte que, aliás, reproduzem com frequência palavra por pala­
vra, ao mesmo tempo que, sem dúvida, inserem em seu relato do passado de Israel
um a vasta gama de outras informações com o objetivo de completar o relato. Não
há dúvida de que ao longo do período pós-exílico ocorreu um processo contínuo
que consistiu em dar forma a Gênesis-Reis, mas isso não significa que Gênesis-Reis
seja básica e essencialmente de autoria tardia. Antes, há muitas boas razões para
acreditar que não seja esse o caso.
N o que diz respeito à natureza de um a “corrente israelita de testem unhos”
concebida dessa forma, não há nada que torne racionalmente incertas as crenças
históricas baseadas nela. Alguém poderia contestar dizendo que não conseguimos
“provar” a existência dessa corrente, já que não temos acesso a todas as supostas
fontes em que os transmissores se basearam ao fazer seu testemunho. Entretanto,
isso eqüivale a pressupor que provas são necessárias como fundamento para a fé
no testemunho, justam ente a tese que questionamos neste capítulo. Estamos mais
interessados no que se constitui a “crença razoável” do que na questão da “prova”;
e é um grande absurdo argumentar que, para que o exercício da fé no testemunho
seja razoável, devemos estar familiarizados com um a corrente de testemunhos que
remonte à época dos eventos e situações passados.27 Tendo em vista os propósitos
desta seção, tudo o que se deve demonstrar aqui é que podemos racionalmente
acreditar que no antigo O riente Próximo, em particular na Palestina, existiram con­
dições que não nos permitem pressupor qualquer separação entre o testemunho
antigo sobre o passado de Israel e as formas mais recentes de tradição mediante
as quais esse testemunho chegou até nós. Entretanto, não temos a obrigação de
apresentar todos os textos intervenientes.
Não seria razoável esperar a apresentação de textos intervenientes nem mesmo
no caso da história medieval e moderna. D a mesma forma, essa apresentação não é

2/Essa ideia absurda, defendida por H um e, é analisada por G. E. M . Anscom be em “H um e and


Julius Caesar” (in: The collectedphilosphical papers o f G. E. M . Anscombe [Oxford: Blackwell, 1981],
vol. 1: From Parmenides to Wittgenstein, p. 86-92). Anscom be lem bra que “a crença na história registrada
é, em sua totalidade, um a crença de que tem havido um a corrente de tradições com relatos e registros que
rem ontam ao conhecim ento da época dos acontecimentos; não é a crença em fatos históricos baseada
em um a inferência que passa pelos elos de tal corrente” (p. 89).
102 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA

uma expectativa razoável no caso do antigo Israel. Com toda probabilidade, muitos
desses textos foram escritos em papiro, o que é possível supor com base no fragmento
do W adi M urabbat (c. 600 a.C.) e nos inúmeros selos de barro que outrora foram
usados para m anter a confidencialidade de textos em papiro encontrados em sítios
arqueológicos israelitas pré-exílicos. Os inúmeros óstracos descobertos eram pro­
vavelmente notas administrativas cuja informação deve ter sido logo transferida
para o papiro — um a prática comprovada na Babilônia, na Assíria e no Egito.
Esse fato é im portante, pois o papiro só sobrevive em ambiente quente e seco. O
próprio fragmento de W adi M urabbat só foi preservado devido a um a desidratação
incomum. Por isso, não surpreende a escassez de descobertas epigráficas do Israel
pré-exílico. Essa escassez também ocorre no caso de Atenas e Esparta, em épocas
anteriores ao sexto século a.C. D a mesma maneira, inscrições em m onumentos não
são fáceis de achar, tanto em áreas rurais, em que não se sabe onde procurar, como
em áreas povoadas, onde muitas construções e reformas foram feitas ao longo dos
séculos e onde os habitantes frequentemente não partilham do mesmo interesse que
os estudiosos modernos têm na preservação de materiais antigos. Nesse aspecto, a
própria história de Israel — constantemente atacado por exércitos, sucessivamente
assimilado por grandes impérios e continuamente repovoado ao longo do tempo
— não ajuda o historiador. Mesmo em outras partes do mundo antigo não encontra­
mos essas inscrições remanescentes, embora seja provável que existiram. Não temos
nenhum a esteia aramaica do território do reino de Damasco, que se situava ao norte
de Israel. Tampouco há qualquer inscrição monum ental da Atenas e da Esparta do
sétimo século, nem do final da era de Herodes, o maior construtor que a Palestina já
viu, ou dos governantes hasmoneus, nem ainda do Império Carolíngio, que existiu
muito mais tarde, ou seja, no oitavo século d.C. Todas essas lacunas demonstram,
entre outras coisas, o absurdo de considerar a inexistência de um tipo específico
de prova como evidência de que um povo conhecido somente por meio de fontes
escritas jamais existiu de fato. No que diz respeito ao mundo antigo, além dessas
fontes escritas, os dados disponíveis são por demais fragmentários e formam uma
base muito insegura para deduções desse tipo.28

28A tolice de fazer essas deduções tem sido ilustrada repetidas vezes à m edida que surgem dados
confirm ando testem unhos até então isolados: veja o que E. Yamauchi diz em “The current State o f O ld
Testam ent historiography” (in: M illard et al., Faith, tradition, and history, p. 26-7). Podem os acrescentar
o seguinte à lista de Yamauchi: no que diz respeito a um a dinastia davídica, até a recente descoberta
da inscrição de Tel D an não havia nenhum a comprovação extrabíblica independente que remontasse
ao nono século a.C. Isso não deveria se constituir em um forte motivo para desacreditar a existência
da dinastia; e é surpreendente que, agora que a inscriçãoyò; encontrada, os que achavam que não havia
um bom motivo para aceitar a dinastia davídica sejam tão resistentes a adm itir que finalm ente têm um
bom motivo para aceitá-la.
C O N H E C E N D O A H I S T Ó R I A D E ISR A EL 103

Assim, concluímos esta seção afirmando novamente que, no que diz respeito à
confiabilidade dos testemunhos, não se pode defender nenhum a distinção simplista
e geral entre testemunhos antigos e recentes. É falso o argumento de que o teste­
munho sobre o passado de Israel, que aparece no fim ou perto do fim da corrente
de testemunhos, é, em princípio, mais suspeito do que aquele que há no começo ou
perto do início dessa corrente. Não há motivo algum para supor que um a versão
mais recente de determinada tradição antiga da Bíblia seja verdadeira, assim como
não há razão para supor que um a versão antiga não seja falsa. É talvez surpreenden­
te o fato de que haja historiadores modernos que sustentem o contrário, visto que a
tendência típica de muitos deles seja defender que suas versões recentes de tradições
mais antigas são verdadeiras — aliás, mais verdadeiras do que as tentativas que as
precederam. O provável motivo para esses historiadores não perceberem tal incon­
sistência é o fato de eles considerarem suas contribuições como “verdade científica”
em vez de novas versões da tradição. Seja como for, no tocante à cronologia, não
há nenhum a “regra” ou “m étodo” que possa de fato ajudar a decidir quais testem u­
nhos do passado merecem crédito. Cada testemunho, inclusive o bíblico, deve ser
considerado em seus próprios termos.

A IDEOLOGIA E O PASSADO DE ISRAEL

Assim, não se pode defender a suspeita ou a dúvida apriorística com base na


distância que se supõe existir entre o início e o fim da corrente de testemunhos
bíblicos. Tampouco deve-se justificá-la sob a alegação de que o testemunho bíblico
é ideologicamente influenciado, ou seja, que contém um a perspectiva específica do
passado de Israel e tem o objetivo de mostrar a validade dela. Não há relato algum
do passado que seja livre de qualquer ideologia, ou seja, não existem relatos em que,
a princípio, se deva confiar mais do que em outros. Também não se deve presumir
que um relato ideológico não possa ser historicamente preciso.
É claro que entre os textos modernos sobre a história de Israel é comum encon­
trar preconceito contra o testemunho bíblico devido à sua orientação ideológica
ou teológica. Como certo escritor observou com exatidão, pelo menos desde o
Iluminismo um pressuposto básico do estudo histórico crítico é que o ceticismo é
a atitude que se deve adotar diante de textos cujo objetivo básico é apresentar uma
mensagem religiosa.29 A série de citações de G. W. Ahlstrõm elencadas a seguir
ilustra essa postura:30

29L. L. Grabbe, “Are historians o f ancient Palestine fellow creatures — or different animais?”, in:
Grabbe, org., History, p. 19-36; citação na p. 21, nota 6.
30“Role”, p. 118,134; idem , History, p. 50.
104 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍ BLIA

U m a vez que os autores d a B íblia eram historiógrafos e usaram padrões estilísticos para
criar u m a literatu ra “dogm ática” — que, com o tal, é tendenciosa — po d e-se questionar
a confiabilidade do que produziram .

A historiografia bíblica não é u m p ro d u to elaborado sobre fatos. E la reflete o enfoque e


a ideologia do n arrad o r em vez de fatos conhecidos.

O s narradores bíblicos não estavam , de fato, interessados n a verdade histórica. Seu


objetivo não era o m esm o do h isto riad o r m oderno — o ideal de “objetividade” ainda não
havia sido inventado.

A nteriorm ente, muitos historiadores de Israel acreditavam que, apesar de tudo,


os “fatos” estavam embutidos na narrativa do AT, dando condições de resgatar ao
menos em parte o testem unho da narrativa, atendendo assim aos propósitos da
historiografia moderna. A tendência geral era examinar o material que, existindo
dentro da narrativa, parecia menos ideológico (e.g., o material cuja forma suge­
ria depender dos anais dos reis) como se realmente fosse menos ideológico. Essa
tendência ainda pode ser vista em textos mais recentes, mas agora a abordagem
mais comum envolve simplesmente classificar toda a narrativa do A T como ideo­
logicamente comprometida, quer ela tenha essa “aparência”, quer não,31 e procurar
a verdade histórica — um a verdade livre de compromissos — em outros lugares.
Depois de concluir que, como literatura religiosa, a Bíblia não pode ser conside­
rada fonte primária, volta-se a atenção para dados arqueológicos não escritos e
para dados textuais extrabíblicos. Consideraremos agora esses dois tipos de dados.
Depois concluiremos esta seção com alguns comentários gerais sobre ideologia e
pensamento crítico.

A arqueologia e o passado

No capítulo 2, observamos que, no período moderno da historiografia, às vezes


é pressuposto que os vestígios arqueológicos oferecem a perspectiva para fun­
dam entar as declarações históricas em algo mais seguro do que o testemunho.
Certam ente esse pressuposto tem dominado muitos textos sobre a história de Israel.
Aliás, a partir do final do século 19, a arqueologia da Palestina está sendo dirigida
pelo desejo de “m ostrar” objetivamente que certas coisas são verdadeiras e outras
não — primeiro, que raças escolhidas são superiores a outras, depois, que a alta

31Q uanto à curiosidade em levar essa “aparente” inocência a sério, observe-se o que H . M . Barstad
escreveu em “H istory and the H ebrew Bible”, in: Grabbe, org., Can a “history o f Israel” be written ?,
p. 45-6, nota 25.
C O N H E C E N D O A H I S T Ó R I A D E ISR AEL 105

crítica alemã estava errada ao denegrir a religião e a sociedade israelitas e ao acabar


com a história mais antiga de Israel, e, finalmente, em tempos mais recentes, que é
possível explicar o surgimento de Israel na Palestina como evolução cultural secular
“normal”. Por exemplo, não é de surpreender que encontremos G. W. Ahsltrõm
(com suas fortes convicções acerca das imperfeições do AT como testem unha sobre
o passado de Israel) insistindo que, caso queiramos chegar o mais perto possível dos
“acontecimentos reais” do passado da Palestina, a arqueologia dessa região deve se
tornar a fonte principal da historiografia.32 Ele faz clara distinção entre dois tipos de
dados (os textuais e os arqueológicos): “Se o significado dos dados arqueológicos são
claros, pode-se dizer que eles oferecem um a história mais neutra do que o material
textual, pois estão livres da Tendenz ou avaliação que facilmente são introduzidas de
forma gradual nos escritos de um autor”.33
Esse tipo de concepção sobre a natureza dos dados arqueológicos tem sido
comum entre historiadores de Israel mesmo quando eles reconhecem, às vezes, que
esses dados podem não estar totalmente corretos ou quando, em alguma parte de
suas mentes, encontram espaço para a ideia oposta, já desenvolvida neste capítulo, de
que os dados arqueológicos não são mais “objetivos” ou “neutros” do que outros tipos
de dados.34 No capítulo 1, vimos como a recente contribuição de K. W. W hitelam
para o debate sobre a história de Israel manifestou um a espécie de pensamento
contraditório: há a aceitação absoluta da objetividade dos dados arqueológicos
quando se acredita que eles conflitam com o testemunho bíblico, ao passo que se
sugere a não objetividade dos dados arqueológicos quando outros estudiosos
afirmam que existe correspondência entre eles e o testemunho bíblico. Esta segunda
ideia sobre os dados está, na verdade, muito mais próxima da realidade do que a
primeira. Com efeito, todos os arqueólogos apresentam relatos do passado que são
tão ideologicamente influenciados quanto qualquer outra narrativa histórica e que,
com certeza, não são um a narração neutra dos fatos. Seria impossível os arqueólogos
acrescentarem de forma não ideológica o próprio testemunho aos demais testemunhos
sobre o passado. Não precisamos bater na mesma tecla, pois já analisamos a questão.
Apenas consideremos a seguir dois comentários que revelam a percepção de que a
não objetividade arqueológica é um fato, opondo-se claramente a muitas afirmações
de historiadores científicos modernos sobre a arqueologia. O primeiro comentário,
em seu contexto, diz respeito à utilidade limitada da arqueologia para quem escreve

^History, p. 28-9, 44.


33Ahlstrõm , “Role”, p. 117.
34Veja, e.g., outros comentários de A hsltrõm , em History, em que ele reconhece os aspectos
criativos e construtivos da arqueologia e nos deixa pensando sobre como é possível encontrar “história
neutra” (p. 22-3, 31).
106 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA

especificamente sobre a história de Israel do décimo século, mas mesmo assim tem
aplicação mais abrangente:

N ão cabe à arqueologia d ecidir em u m debate essencialm ente teórico, cujo desdobra­


m en to até agora te m d em o n strad o apenas que os assim cham ados fatos concretos são
determ inados pelas perspectivas dos d ebatedores.35

O segundo comentário é mais geral:

B ons estudiosos, o u seja, estudiosos h onestos, co ntinuarão a divergir na in terpretação


de vestígios arqueológicos pela sim ples razão de que a arqueologia não é u m a ciência.
E u m a arte. E às vezes não é sequer u m a arte m u ito b o a .36

Textos extrabíblicos e o passado de Israel

Assim como é comum pensar que a arqueologia fornece meios de evitar a ideo­
logia na busca de compreender o passado de Israel, também o é em relação aos
textos extrabíblicos. Além da arqueologia, acredita-se que esses dados propiciam
“conhecimento” da entidade concreta chamada “história”— um “conhecimento” que
indica que não podemos mais acreditar no “Antigo Israel”. Com frequência se con­
sidera que textos antigos, em particular os egípcios, assírios e babilônicos, oferecem
não apenas um a estrutura cronológica abrangente e confiável da história do antigo
Oriente Próximo, mas também uma narrativa básica desse passado, mediante a qual
todo e qualquer testem unho do AT deve ser avaliado. Alega-se que esses textos
são algumas das principais fontes a que podemos recorrer caso queiramos “avaliar”
afirmações específicas do A T — algo dito de modo explícito ou implícito — porque
eles não têm as imperfeições da narrativa do AT no que diz respeito ao aspecto
ideológico e, em particular, ao religioso. Esses textos nos dão acesso ao passado
“como realmente aconteceu”.

35C. Scháfer-Lichtenberger, “Sociological and biblical views o f the early State”, in: Fritz; Davies,
orgs., The origins o f the anáent Israelite states, p. 82; comp. p. 79-82. O bserve-se ainda o que G . N .
Knoppers diz em “The vanishing Solomon: the disappearance o f the U nited M onarchy from recent
histories o f Israel” (JBL 116 [1997], p. 19-44): “C om parar textos literários com dados materiais
é altam ente preocupante, mas se concentrar em vestígios materiais não é garantia de objetividade.
A própria interpretação dos artefatos materiais é um a tarefa profundam ente subjetiva. Assim como
acontece com vestígios literários, o significado dos vestígios materiais não é autoevidente [...]. Novos
dados arqueológicos e epigráficos são bem -vindos, mas a probabilidade de dificultarem a interpretação
de dados antigos é tão grande quanto a esperança de que possam esclarecê-los” (p. 44).
36H . Shanks, “Is this m an a biblical archaeologist? B A R interviews W illiam Dever, Part O n e”,
B A R ev 22, n. 4 (1996), p. 30-9, 62-3; citação na p. 35.
C O N H E C E N D O A H I S T Ó R I A D E ISR A EL 107

Bastam aqui dois exemplos desse tipo de pensamento. No desenvolvimento


de reflexões recentes sobre a produção escrita da história, L. L. Grabbe compara
o A T e outros textos do antigo Oriente Próximo (em sua maioria assírios) com
respeito ao testem unho que dão do final da monarquia israelita.37 Grabbe pressu­
põe claramente que os textos do antigo Oriente Próximo descrevem os fatos como
realmente aconteceram. Assim, ele emprega esses textos para avaliar o material do
A T e, então, conclui que a Bíblia é “razoavelmente precisa quanto à estrutura” dos
eventos, mas os detalhes que fornece são, às vezes, “comprovadamente enganosos
ou totalmente imprecisos, ou ainda completamente inventados”.38 N a mesma obra,
H . N iehr insiste que se deve m anter um a clara distinção entre as fontes primárias e
as secundárias da história de Israel, pois as fontes primárias “não foram submetidas
à censura feita, por exemplo, pelos teólogos deuteronomistas, nem passaram pelo
processo de canonização”. As fontes assírias estão entre as fontes primárias. Niehr
afirma que ficou comprovado recentemente que a confiabilidade dessas fontes é
bem elevada.39
No entanto, não estão claras as bases verdadeiramente defensáveis para essa
prerrogativa epistemológica dos textos extrabíblicos. Esses textos, com certeza, não
proporcionam acesso imediato ao passado “como realmente aconteceu” — nem
sequer dizem como o passado “realmente foi” para os próprios povos que os produ­
ziram, muito menos para os israelitas. A realidade é que temos uma percepção bem
limitada da história desses outros povos, e isso acontece não apenas devido a um
acidente histórico. Ao contrário, no que diz respeito à maneira que apresenta o pas­
sado, a literatura desses povos não é menos seletiva e ideologicamente influenciada
do que o AT. Podemos usar os textos assírios como exemplo básico.40

3/“Creatures”, p. 24-6.
3SPara um a refutação da segunda conclusão de Grabbe, veja V. P. Long, “H ow reliable are biblical
reports? Repeating Lester G rabbes comparative experim ent”, V T 52 (2002), p. 367-84.
39“Some aspects o f working w ith the textual sources”, in: Grabbe, ed., History, p. 156-65; citação
nas p. 157-8.
40Existe um a extensa bibliografia disponível que, de um a m aneira ou de outra, trata da natureza
seletiva e altamente ideológica das composições elaboradas pelos escribas assírios. U m bom lugar para
começar o estudo é a breve análise feita por M . Bretder em The creation o f history in ancient Israel (London:
Roudedge, 1995, p. 94-7) e as referências nas notas de rodapé dessa análise, ou então o capítulo “The
deeds o f ancient M esopotam ian kings”, de M . Liverani (in: J. M . Sasson, org., Civilizations o f the ancient
N earE ast [Peabody: Hendrickson, 1995], vol. 4, p. 2 353-66,4 vols.). A qui é possível apenas m encionar
outras duas das muitas obras existentes: R M . Fales, ed,,Assyrian royalinscriptions: neto horizons in literary,
ideological and historical analysis (Rome: Istituto per L O riente, 1981); e K. L. Younger Jr., Ancient conquest
accounts: a study in ancient Near Eastem and biblical history writing, JS O T S 98 (Sheffield: JS O T Press,
1990), p. 61-124. A disponibilidade desse tipo de recurso é tão grande que ficamos sem compreender
como textos assírios são usados em alguns estudos recentes da história de Israel.
108 H I S T Ó R IA , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA

Não há como negar que as várias inscrições e crônicas assírias escritas a par­
tir do nono século a.C. — especificamente a partir do reinado de Salmaneser III
(858-824 a.C.) — sejam fontes externas importantes para qualquer obra sobre a
história de Israel. Salmaneser e muitos de seus sucessores realizaram campanhas
militares em toda a região entre o Eufrates e o Egito e, por fim, no oitavo século, a
dominaram. Por isso, textos que tiveram origem durante seus reinados são frequente­
mente importantes para o estabelecimento de um contexto mais amplo no qual as
narrativas bíblicas podem ser lidas.41
Contudo, o primeiro aspecto a se observar sobre esses registros é que eles são
desproporcionais, em particular quando tratam das atividades dos reis assírios em
sua fronteira ocidental — e, é claro, Israel estava situado a oeste da Assíria. As
fontes escritas da época do reinado de Salmaneser III são abundantes, mas não se
pode dizer o mesmo das fontes de seus sucessores Shamshi-Adad V (823-811 a.C.),
Adad-Nirari III (810-783 a.C.), Salmaneser IV (782-773 a.C.), Assur-Dan III
(772-755 a.C.) e Assur-Nirari V (754-745 a.C.). A situação melhora de maneira
notória quando chegamos ao reinado de Tiglate-Pileser III (744-727 a.C.), con­
dição que persiste nos reinados seguintes até Assurbanipal (668-630 a.C.). Aqui,
as fontes em geral são numerosas e relevantes, embora haja exceções notáveis. Por
exemplo, não sabemos praticamente nada sobre o reinado de Salmaneser V (736-722
a.C.). Ademais, algumas dessas fontes — quando não se perderam — não estão em
boas condições. Por exemplo, trechos consideráveis dos anais de Tiglate-Pileser III
chegaram até nós em condições sofríveis, ao passo que, no caso de Esar-Hadom
(680-669 a.C.), temos apenas fragmentos dos seus anais. Tudo isso representa certos
desafios mesmo para os que estão absolutamente decididos a escrever um a história
da Assíria. Assim, fica claro que, com base apenas no que as fontes assírias tratam, não
se deve dar demasiado valor ao grau com que podem ajudar a escrever uma história
de Israel. Como A. Kuhrt diz sobre todo o Levante: “...são as fontes reais assírias
que fornecem as informações mais ricas e, da perspectiva cronológica e histórica, os
dados mais úteis sobre os Estados com os quais entraram em contato. M as se deve
reconhecer que essas informações ajudam a formar apenas um quadro bem parcial”.42
Entretanto, o problema que surge na reconstrução da história assíria — à medida que
proporciona um contexto para a história israelita — não reside apenas na despropor-
cionalidade das fontes como um a questão de contingência histórica, mas também em
sua natureza, o que nos leva ao ponto principal desta seção sobre ideologia.

41N o que diz respeito a textos do antigo O riente Próximo em geral, no capítulo “Story, history and
theology” (in: M illard et al., orgs., Faith, tradition and history, p. 37-64) A . R. M illard analisa m uito bem
essa questão usando principalm ente exemplos assírios.
42The ancient Near East c. 3000-330 B. C. (London: Routledge, 1995), vol. 2, p. 459 ,2 vols.
C O N H E C E N D O A H I S T Ó R I A D E ISR AEL 109

As fontes que fornecem a estrutura principal para a reconstrução da história


da Assíria e regiões adjacentes a partir do décimo século têm origem na corte
real assíria. As principais fontes são os “anais reais” mencionados anteriormente —
memórias pessoais de reis que contêm relatos de suas realizações, em especial de
campanhas militares. Q ual é a natureza desses relatos?43
Antes de tudo, são claramente seletivos no que dizem, o que não podia ser
diferente, visto que toda escrita histórica é seletiva.44 Por exemplo, embora os anais
de Sargão II (721-705 a.C.) refiram-se a uma campanha contra Asdode ocorrida
por volta de 713 a.C., não mencionam nesse contexto o envolvimento (ou possí­
vel envolvimento) de Judá, do qual temos conhecimento por uma fonte diferente.
Nesse caso, provavelmente devemos explicar a seletividade apenas como falta de
interesse assírio na minúscula Judá. Entretanto, algo mais significativo é que os
anais de Sargão II afirmam que ele mesmo conquistou Samaria, a capital israe­
lita, por volta de 722 a.C.. Contudo, tanto o A T (2Rs 17.1-6) quanto a Crônica
Babilônica45 indicam que o conquistador foi Salmaneser V. Esse fato levanta pelo
menos a possibilidade de que os escribas de Sargão estavam decididos a embelezar
os registros desse rei, atribuindo-lhe uma vitória que, no sentido estrito, não foi sua.
D e modo análogo, parece que a menção às campanhas de Senaqueribe em Q ue e
T il-G arim m u, ocorridas na primeira década do sétimo século a.C., foi removida
das edições posteriores dos anais daquele rei, talvez porque o próprio rei não as

43Para um a análise breve e proveitosa dessas e outras fontes sobre o Im pério Neoassírio, veja idem,
p. 473-8 ,5 0 1 -5 ,5 4 0 -3 .
44Não apenas os anais assírios são seletivos. O mesmo se aplica à L ista de Reis Assírios, influen­
ciada por vários aspectos; por exemplo, quais eram os reis reconhecidos ou conhecidos pelos autores ou
acerca de quais reis os autores queriam escrever. Vale tam bém para as crônicas limmu, que, de meados
do nono século até o final do oitavo a.C., relacionam epônimos assírios (oficiais que deram seus nomes
para cada um dos anos sucessivos do calendário assírio) com um a breve observação sobre um evento
específico ocorrido naquele ano. U m a ocorrência particular é necessariamente um evento selecionado
dentre muitos; e, aliás, o acontecimento significativo que a crônica associa a determ inado ano nem
sempre aparece nos anais daquele ano. A brevidade dos próprios verbetes gera certos desafios para sua
interpretação, bem como para a dedução sobre a região onde realmente podem ter ocorrido as cam pa­
nhas militares mencionadas com frequência. A correlação entre, de um lado, topônim os textuais assírios
e, de outro, regiões e cidades antigas é repleta de dificuldades. C om o S. Parpola diz em Neo-Assyrian
toponyms (AO AT 6, Neukirchen-Vluyn: N eukirchener Verlag, 1970), “especialmente a localização de
povos e países apresenta dificuldades, pois m uitos povos não ficavam perm anentem ente em um único
lugar [...] e, ao que parece, os próprios antigos nem sempre estavam bem informados sobre as exatas
fronteiras de outros países” (p. xv). Aqui, como em qualquer outra área do em preendim ento histórico,
não estamos lidando com um a ciência exata.
45A Crônica Babilônica é um a fonte im portante para a história do antigo O riente Próximo no
período entre 744 a.C. e 668 a.C., pois oferece um relato ano a ano de acontecimentos políticos que
afetaram a região da Babilônia, com referências úteis para a verificação das alegações de textos assírios.
110 H I S T Ó R IA , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA

houvesse conduzido ou o resultado final de cada um a não tenha sido favorável


(a vitória contra Q ue teve um custo elevado e a vitória contra T il-G arim m u não
trouxe aparentemente vantagem alguma em longo prazo).46
N a verdade, estes últimos exemplos correspondem a um padrão muito maior que
nos ajuda a notar que os anais dos reis assírios são seletivos pelo fato de seus auto­
res terem não apenas demasiado material diante de si, mas também determinados
objetivos, ou seja, os anais são influenciados ideologicamente. Talvez a própria palavra
“anais” contribua para obscurecer a compreensão de alguns estudiosos do A T que
interagiram com esse material em anos recentes, pois, para o leitor moderno, “anais”
tem a conotação de “crônica objetiva”. É claro que “crônicas objetivas” não existem,
mas mesmo que existissem, ainda assim não se poderia considerar esses “anais” com
essa natureza.47 N a verdade, eles são textos basicamente comemorativos, dedicatórias
de construções redigidas originalmente para relatar a devoção do governante a um
deus e com o objetivo de despertar a admiração de pessoas que no futuro fossem

46Para textos relevantes e alguns comentários, veja D . D . Luckenbill, The A n n a h o f Sennacherib,


U C O IP 2 (Chicago: University o f Chicago Press, 1924), p. 14,23-47 (em especial a transição da quinta
para a sexta cam panha, na p. 38), 61-3.
47A té mesmo a crônica limmu, que chamamos de “crônica”, está longe de ser “objetiva” nesse sentido
estrito, pois revela um ponto de vista particular. Por exemplo, a crônica menciona certo Sham shi-Ilu tanto
como epônimo do ano 752 a.C. quanto como portador do im portante cargo administrativo e militar de
turtanu (comandante-chefe). Não sabemos quando ele se tornou turtanu, mas deve ter deixado de ocu­
par essa posição antes de 742 a.C., quando aparece o nome de outro nesse cargo. D e qualquer maneira,
essa é a perspectiva que a crônica tem de Sham shi-Ilu. E provável, porém, que a realidade seja bem mais
complexa. As próprias inscrições em sua residência na província de Til-Barsip descrevem Shamshi-Ilu,
entre outras coisas, como “governador da terra de H a tti” — praticam ente o governante assírio do oeste.
E plausível a identificação que muitos fazem da vitória reivindicada por ele sobre Argishti de U rartu com
as campanhas contra U rartu registradas na crônica do período de 781 a 774 a.C., embora a própria lista
nos leve a pensar que Salmaneser IV foi o verdadeiro responsável por isso. A Esteia de Pazarcik sugere que
é de fato a campanha de Sham shi-Ilu contra Dam asco que aparece na crônica referente a 773 a.C. Neste
caso, temos, então, um im portante personagem “semirrégio”; e o caso de Sham shi-Ilu não é o único exem­
plo de perspectivas aparentemente divergentes nos registros assírios desse tipo. Por exemplo, podemos
tam bém m encionar N ergal-Erish (epônimo de 803 e 775) que, de acordo com a crônica, foi governador
da província de Rasappa, a respeito do qual se sabe que, conforme indicado em várias inscrições, governou
um a região m uito mais ampla e desempenhou papel de destaque em várias campanhas no ocidente.
Esses exemplos levantam questões interessantes sobre a exata relação entre o que os nossos vários
textos afirmam sobre os detentores do poder no Im pério Assírio em determ inado m om ento e as reali­
dades concretas do poder. Somos lem brados da realidade inevitável de que, com o objetivo de persuadir
o leitor acerca de alguma verdade, até mesmo as “crônicas” sempre descrevem o passado seletivamente
e de um ponto de vista particular. Com o K uhrt diz sobre Sham shi-Ilu, principalm ente, “na perspectiva
assíria, ele e seus antecessores eram governadores de províncias, servos do rei assírio; mas, em suas
respectivas áreas de autoridade e no que diz respeito a seus vizinhos, podiam se apresentar [...] como
soberanos locais” (AncientNear East, vol. 2, p. 493).
C O N H E C E N D O A H I S T Ó R I A D E ISR A EL 111

lê-las. Os reis assírios entendiam que atuavam na terra como vice-reis dos deuses.
As tarefas dos reis (isto é, aquelas que mereciam registro) abrangiam governar seus
súditos, estender seu poder até os rincões mais longínquos da terra e, como retribuição
pelo poder e vitórias que os deuses lhes concediam, construir templos e manter o culto
a esses deuses. Os assírios registravam tudo isso em tábuas memoriais, em prismas, em
cilindros de barro, em obeliscos, em esteias, nas paredes de palácios e nos templos. Os
anais em particular eram normalmente reeditados muitas vezes durante um reinado.
A maioria dos textos que sobreviveu é produto de considerável redação, seleção e
combinação de várias fontes pelos escribas desejosos de enaltecer o governante da
melhor maneira possível. Cada nova edição podia envolver não apenas a atualização
dos registros do rei, mas também uma remodelação significativa de todo o relato.
Nessas circunstâncias, uma descrição precisa dos acontecimentos não era necessa­
riamente e nem sempre o motivo principal ou orientador dos escribas reais. Ademais,
é certo que não podemos esperar que essas inscrições fossem “objetivas”, mesmo
quando estejamos razoavelmente seguros de que seu propósito era o de serem preci­
sas. Ao contrário, são obras de arte literária com ênfase política e religiosa. Por isso,
os relatos detalhados de conquistas de outros Estados são estilizados e repetitivos, e,
com frequência, as afirmações de soberania régia são hiperbólicas e tendenciosas. Isso
não significa que não tenham conteúdo factual nem que os escribas necessariamente
tivessem o hábito de falsificar intencionalmente os eventos. M esmo assim, na busca
da glorificação do rei, om item -se fracassos, destacam-se sucessos e fazem-se os
relatos com intenção artística, de forma que um leitor descuidado que não entenda o
gênero e o estilo desses relatos pode ser seriamente induzido ao erro sobre a realidade
histórica a que eles se referem.48 Nas palavras de Kuhrt:

48Por exemplo, diante da versão dos anais de Senaqueribe que aparece na inscrição do prism a do
Instituto O riental da Universidade de Chicago, o leitor inexperiente poderá im aginar que está diante
de um registro objetivo das oito cam panhas m ilitares de Senaqueribe. C ontudo, sabemos de outras
cam panhas não registradas ali, e é questionável se as “oito” cam panhas m encionadas tiveram, de fato,
natureza e im portância sem elhantes. D a perspectiva de Luckenbill, a om itida cam panha contra Q ue
foi um a em preitada m ilitar m uito mais im portante do que a cham ada “quinta” cam panha, de 699 a.C.,
que foi apenas um ataque inicial executado contra alguns povoados, tendo sido registrada porque
“a vaidade do rei exigia que cam panhas régias fossem registradas com expressões grandiloqüentes
gravadas em cilindros ou prism as de dedicação ou nas paredes do palácio que constantem ente era
ampliado em Nínive” (Annals, p. 14; veja acima mais detalhes a respeito). Acerca de outros com entários
sobre as inscrições de Senaqueribe, veja A. L aato, “Assyrian propaganda and the falsification o f history
in the royal inscriptions o f Sennacherib”, V T 45 (1995), p. 198-226. Fica evidente a necessidade de
o leitor ser cauteloso ao passar do texto para o acontecim ento histórico. Senaqueribe não é um caso
isolado. Observe-se, por exemplo, a análise que A. T. O lm stead faz em Assyrian historiography: a source
study (Columbia: University o f M issoury Press, 1916, p. 53-9) acerca das várias m aneiras que as “cam ­
panhas” do reinado de Assurbanipal são tratadas nos registros daquele reinado.
112 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA

E m inscrições dessa natureza, considerações com o veracidade dos fatos, avaliações


equilibradas, precisão h istó ric a e objetividade desem p en h av am u m p ap el de m e n o r
im portância do que façanhas espetaculares, sucesso — em lugar de fracasso — e a atuação
pessoal do rei nesses feitos heroicos: o rei com o centro de to d a ação. O que era apresen­
tad o era a verdade de acordo com a ideologia assíria...49

Os escribas da corte assíria estavam, na realidade, mais interessados na imagem


do rei e em suas atividades como guerreiro do que em simplesmente registrar os
fatos de seu reinado, o que seria o caso se estivessem compondo “anais” ou “inscri­
ções de exposição” nas paredes do palácio. Os artistas que produziram relevos com
narrativas — usados pelos reis assírios na decoração de seus palácios — partilhavam
dos mesmos objetivos. Também se concentravam em guerras, vitórias e obras apre­
sentando seu monarca como mestre em todos os aspectos da vida (se bem que com
a ajuda direta dos deuses).
Portanto, é óbvio que as fontes assírias não oferecem acesso direto aos fatos
brutos da história, à luz dos quais poderíamos então fazer juízos sobre a preci­
são dos textos “seletivos e ideologicamente influenciados” do AT. Aliás, em nosso
esforço para conhecer o passado de Israel não existe, em princípio, base alguma
para conceder qualquer prioridade epistemológica às fontes assírias. Q uando pro­
cedemos assim, o fundamento instável em que nos posicionamos fica evidente em
exemplos bem conhecidos do passado, como é o caso da afirmação de Sargão II de
que conquistou Samaria. Antes, quando os estudiosos dispunham apenas dos anais
de Sargão e da Bíblia, a opinião comum era que Sargão estava apenas “contando
os fatos como realmente aconteceram” e que 2Reis 17 estava simplesmente errado.
A Crônica Babilônica nos oferece hoje material adicional para refletir sobre essa
questão. A história antiga é vasta e complexa, e nosso escasso testem unho a respeito
dela só pode proporcionar vislumbres dessa vastidão e complexidade. Não faz sen­
tido algum considerar absolutamente certa uma parte desse testemunho para, então,
usá-lo como padrão na avaliação de todo o restante. E especialmente estranho que
às vezes se afirme que o testemunho extrabíblico é preferível ao testem unho bíblico
devido à natureza religiosa do último. É claro que a religião tam bém permeia aquele
testemunho, em especial as referências costumeiras ao envolvimento ou intervenção
divina em assuntos militares. A intenção teológica é clara, por exemplo, tanto nas
inscrições de Senaqueribe quanto na literatura bíblica.
Depois de concentrarmos a atenção em textos assírios, devemos agora deixar
claro, de modo mais resumido, que a situação não é diferente no caso de qualquer
outra fonte não bíblica. N o Egito, por exemplo, os faraós tam bém se consideravam

49Ancient Near Eastj p. 475.


C O N H E C E N D O A H I S T Ó R I A D E ISR A EL 113

vice-reis terrenos dos deuses, e não é de surpreender que seus textos apresentem
exatamente os mesmos desafios encontrados nos textos assírios. Acrescente-se
a isso o fato de que a cronologia da história antiga antes do décimo século — o
período em que os historiadores de Israel têm mais interesse no Egito devido à
sua centralidade na história de Israel, antes que este se fixasse na Palestina — é
bem menos segura do que a cronologia do período posterior ao décimo século. Por
isso, questões cronológicas continuam sendo debatidas e causando dificuldades
quando se lê a história de Israel tendo como pano de fundo os textos egípcios
considerados relevantes para ela.50 Entretanto, a ideia central é que, se lidamos
com textos mesopotâmicos, egípcios ou hititas ou mesmo com um a inscrição de
um dos vizinhos mais próximos de Israel, como é o caso da Pedra M oabita —
escrita em linguagem convencional e com certa dose de hipérboles, pelo menos
na afirmação de que “Israel pereceu para sempre” (veja mais detalhes no capítulo
que trata da m onarquia israelita) — então lidamos o tem po todo somente com
textos seletivos e ideologicamente orientados. N a verdade, toda historiografia é
assim: escrita por pessoas que adotam um a cosmovisão geral e um ponto de vista
particular, os quais elas aplicam à realidade tentando organizar seletivamente os
fatos do passado em algum modelo coerente e tendo em vista um fim específico.

Ideologia e historiografia

Resumindo toda esta seção até aqui, não há em nenhum lugar um relato do passado
que não seja de natureza ideológica e que, portanto, possa ser mais confiável que outros.

50O ponto fixo a partir do qual, m ediante retroprojeção, se estabelece a cronologia egípcia é o
saque de Tebas, feito pelo im perador assírio A ssurbanipal na data relativam ente tardia de 664 a.C.
Visto que esse foi tam bém o últim o ano do reinado do faraó T iraca em Tebas, podemos, assim, retro­
ceder a partir dele, fazendo uso da história do E gito escrita por M aneto, conform e parcialm ente
preservada por Josefo, e tam bém dos relatos de H eródoto e D iodoro Sículo (um historiador grego
que viveu na Sicília no prim eiro século a.C. e escreveu um a história parcial do E gito). C om a ajuda,
então, de descobertas arqueológicas (e.g., dados fornecidos por inscrições) é possível fazer correções.
D o m esm o m odo que ocorre com a história do A ntigo Israel, a cronologia do E gito A ntigo depende
bastante de testem unhos, interpretação e fé; e, de um m odo ou de outro, achados arqueológicos suge­
rem na verdade que, para elaborar um a história do E gito, não basta fazer um a soma simples das datas
apresentadas por M aneto, um a vez que deve ter havido algumas dinastias coextensivas no E gito (tal
como na Assíria). O núm ero dessas dinastias coextensivas ainda é incerto. Para um a análise breve e
proveitosa da cronologia egípcia, veja A ncient Near East, de K uhrt, em que o com entário desse autor
sobre o período de nosso interesse aqui (o “Terceiro Período Interm ediário”, 1069-664 a.C.) nos
lem bra quão cuidadosos devemos ser como historiadores de Israel quando usamos fontes egípcias:
“E absolutam ente impossível escrever um a história narrativa [do E gito nesse período], pois é m uito
grande o núm ero de lacunas” (vol. 2, p. 623-6; citação na p. 626).
114 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA

M esm o assim, o acesso real ao passado não está indisponível. Nesta seção,
o propósito de nossa análise foi apenas afastar o m ito de que o testemunho extrabíblico
representa uma classe de dados disponível ao historiador de Israel diferente dos
dados que a Bíblia apresenta — o mito de que é possível usar textos extrabíblicos
para produzir uma entidade concreta denominada “história factual” que pode,
enfim, ser empregada para serem feitos juízos definitivos sobre o testemunho do AT
acerca do passado de Israel. U m a vez que todos os textos que falam do passado são
ideológicos, não é possível priorizar alguns em detrim ento de outros sob a alegação
de que, de alguma maneira, os primeiros são “neutros”. Contudo, nosso objetivo
não foi sugerir que textos ideológicos não possam contar a verdade sobre o passado.
Ao contrário, não devemos supor antecipadamente que qualquer testemunho sobre
o passado, qualquer que seja sua forma ideológica e seu grau de parcialidade, não
fale com honestidade sobre o passado. Essa afirmação é válida quer pensemos
no testemunho do arqueólogo, quer do escriba assírio, quer do autor bíblico. Em
ocasiões específicas talvez achemos necessário crer que determinado testemunho
seja falso, em especial quando estamos diante do que, depois de consideração
cuidadosa, parece um conflito direto de testemunhos. Porém, a mera presença de
ideologia não deve nos levar a essa conclusão. Por exemplo, não devemos supor
antecipadamente que a “censura” empregada pelos teólogos deuteronomistas (como
N iehr o expressa) necessariamente impediu que, nos textos pelos quais se acredita
que os deuteronomistas são responsáveis, surgisse um quadro verdadeiro (ainda que
parcial) do passado. Tampouco devemos pressupor que, apenas pelo fato de que a
narrativa da ascensão de Davi ao poder em ISam uel é pró-davídica no sentido de
tentar eximir Davi de culpa ,“os materiais tradicionais sobre Davi não podem ser
considerados um a tentativa de escrever história como tal” e não nos dão acesso ao
passado real51 — aliás, a narrativa da ascensão de Davi segue um padrão literário
encontrado em outras regiões do antigo O riente Próximo que tenta eximir as pessoas
de culpa. E m si mesmo, o fato de lidarmos com material apologético tanto na forma
quanto no conteúdo não demonstra que a ação do texto afirma é inverídica (por
exemplo, a função central do relato é mostrar que Davi era de fato inocente). Para
que o autor comunique ao público a quem escreve algo significativo sobre o passado,
é inevitável que toda escrita histórica precise usar as formas e convenções literárias
disponíveis a ele e conhecidas de seu público. Contudo, a presença dessas formas e
convenções em um texto específico não impede a intenção de narrar o passado real
nem significa que não exista nenhum a possibilidade de falar com exatidão desse
mesmo passado. U m a análise mais completa do assunto será feita no capítulo 4.

S1N . P. Lem che, Ancient Israel: a new history oflsraelite society, BSem 5 (Sheffield: JSO T, 1988),
p. 52-4.
C O N H E C E N D O A H I S T Ó R I A D E ISR AEL 115

Por enquanto, podemos observar que pouquíssimos estudantes de história antiga


duvidariam que um relato assírio ou babilônico de uma campanha em particular
se relaciona com exatidão com um a campanha histórica real só forque o relato está
escrito em linguagem convencional e estilizada, com habilidade literária e com
a afirmação de que um a divindade interveio em favor dos vencedores. Por isso,
causa espanto que com tanta frequência os estudiosos bíblicos pareçam tentados a
estabelecer um a ligação tão superficial entre forma e conteúdo no caso da literatura
israelita antiga. A literatura ideológica também pode, no todo ou em parte, ser
literatura historicamente exata.

Ideologia e pensamento crítico

Um comentário final sobre a ideologia e o pensamento crítico: conforme visto no


capítulo 2, um a ideia moderna bastante comum é que o pensamento crítico não foi
um aspecto notável da historiografia pré-moderna — se bem que os antigos gre­
gos supostamente estiveram próximos desse ideal. Em relação à história de Israel
em particular, esse preconceito torna a surgir quando se alega, como ocorre
com um ente, que, ao contrário de alguns gregos, nossos autores bíblicos não são his­
toriadores críticos, o que torna problemático o acesso ao passado por meio de seus
textos (ideológicos). No entanto, é bastante questionável “deduzir”, com base nas
alegações que certos gregos antigos fizeram sobre suas intenções críticas e na ausência
de tais alegações em textos hebraicos antigos (assim como em outras tradições literá­
rias do antigo O riente Próximo), que é inevitável a existência de um a diferença real e
substancial entre (alguns) gregos e (todos) os hebreus. Como vimos, no que diz res­
peito ao interesse do autor pela distinção entre a verdade e a falsidade históricas, não
se pode defender qualquer diferença generalizada entre a historiografia que precede
o século 19 e a historiografia a partir daquela época. Pode-se acrescentar a isso que
historiadores gregos como Tucídides e Heródoto certamente tinham uma cosmovi-
são e não descreveram o m undo “como realmente foi”, livres de ideologias. Também
nesses casos, o pensamento crítico coexistiu com a fé. Além disso, o que é muito
curioso sobre a alegação que estamos tratando aqui é a pressuposição de que existe
alguma relação necessária entre as intenções declaradas de um historiador e a utilidade
de seu relato. Pode-se muito bem imaginar um autor cujas intenções de ser crítico
fizeram com quefalhasse em transmitir um testemunho importante do passado real,
assim como se pode imaginar um autor que, sem atitude crítica, mas com êxito, trans­
mitiu esse im portante testemunho. Contudo, nesse aspecto, a imaginação de alguns
que hoje contribuem para o debate sobre a história de Israel é talvez limitada porque
são incapazes de crer na possibilidade de haver um abismo entre, de um lado, sua in­
tenção de ser críticos e, de outro, sua compreensão e transmissão da verdade histórica.
116 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA

A ANALOGIA E O PASSADO DE ISRAEL

Acerca das “regras” da historiografia científica, nossa afirmação final é esta: não há
bons motivos para crer que um testemunho, apenas por não violar nossa percepção
do que é normal e possível, seja nesse aspecto mais provavelmente verdadeiro do
que outro; e tam bém não há bons motivos para crer que um relato que descreve
algo único ou incomum seja, por essa razão, suspeito e não mereça confiança.
Q uando os estudiosos asseveram o contrário, isso ocorre porque abrigam no
fundo da mente o princípio da analogia, como conhecido na famosa formulação de
E.Troeltsch. O argumento deTroeltsch era que os acontecimentos que a crítica pode
reconhecer como de fato ocorridos no passado têm como marca característica da
realidade a conformidade com acontecimentos e condições normais e costumeiros
ou, pelo menos, com atestados com frequência em nossa experiência. Analisamos
cuidadosamente o testemunho do passado em relação à experiência presente, che­
gando a juízos sobre o que é histórico mediante a reflexão sobre nossa “experiência
norm al”. Essa formulação do princípio da analogia é central em boa parte do
em preendimento histórico desde o século 19, pois é evidente que está de acordo
com a abordagem científica da história em geral e com a abordagem positivista em
particular, em suas tendências generalizantes.
Contudo, aqui tam bém cabe um a reflexão crítica. Q uem é o “nós” de Troeltsch?
Q uem é aquele cuja “experiência norm al” deve ser empregada para fazer juízos
sobre “o que realm ente aconteceu” na história? Não pode ser a experiência nor­
mal e individual do próprio historiador — o ser cartesiano que, trabalhando de
dentro para fora, começa com certezas particulares e chega a teorias abrangentes.
H istoriadores aceitam regularm ente a realidade de acontecimentos e práticas que
estão fora do alcance de sua experiência im ediata e são sábios ao proceder assim,
pois sua experiência, que é determ inada por sua época e afetada por sua cultura,
tem limitações drásticas. Talvez devamos, então, ampliar a noção de experiência
norm al e, em vez disso, nos referirmos à “experiência hum ana comum” — esse
grande poço de sabedoria da hum anidade em geral. N a realidade, essa tem sido
um a m udança popular em abordagens m odernas do passado, rem ontando ao
menos até D. Hum e. Com base nisso, o próprio H um e rejeitou relatos de milagres.
Tam bém rejeitou relatos de atos e disposições hum anos que se opõem à uniform i­
dade de motivos e ações hum anos que, na suposição dele, havia sido revelada tanto
pelo estudo da história quanto da sociedade contemporânea.
Um a rápida reflexão, porém, deve nos persuadir da fraqueza de uma mudança
assim. No que diz respeito à hum anidade em geral, como determinamos o que
é de fato normal, costumeiro ou comprovado frequentemente? É de se presumir
que, para sermos verdadeiramente “científicos” em nossa abordagem do assunto,
C O N H E C E N D O A H I S T Ó R I A D E ISR A EL 117

devemos ouvir o testemunho de outras pessoas — na realidade, da imensa maioria


da população do mundo. Observamos brevemente a ironia envolvida na prática de
invocar essa “experiência hum ana comum” como alicerce para escrever história e ao
mesmo tempo declarar firmemente que, como princípio, deve-se evitar a depen­
dência do testemunho! Deixando, porém, a contradição de lado, devemos chamar
a atenção para o problema óbvio: é claro que ouvir o testemunho da maioria da
população do m undo é e sempre foi impossível. O que, então, as pessoas querem
dizer quando se referem à “experiência hum ana comum”? Defato, um a análise mais
aprofundada revela apenas que elas sempre se referem — o que quer que acreditem
que aconteceu — a um a elaboração que, na melhor das hipóteses, depende do teste­
m unho de alguns. Aliás, esses “alguns” são apenas pessoas que, segundo se acredita,
falam a verdade sobre o que dizem ser sua experiência. Q uanto ao testemunho, se
fosse realmente possível conversar com a totalidade da população do mundo sobre
sua experiência, um processo de análise cuidadosa também seria necessário. E óbvio
que a experiência hum ana real (em oposição à elaboração artificial da “experiência
hum ana comum”) é imensa, variada e complexa. Os testemunhos e interpretações
dessa experiência são diversos; exige-se fé daqueles que tentam elaborar qualquer
relato dela, à medida que interagem com os vários testemunhos e interpretações e
escolhem quais devem compor as próprias crenças. Narrar o presente humano não
é menos complexo do que narrar o passado humano — na verdade, a complexidade
é muito maior. Como, então, pode-se recorrer à “experiência hum ana comum” como
um a realidade segura que sirva de parâm etro para avaliar o passado? Essa “expe­
riência” não é de modo algum um a entidade objetiva que se deva exigir para que o
procedimento seja plausível.
Além do mais, mesmo que no meio dessa complexidade conseguíssemos de
alguma m aneira determ inar o que é normal, costumeiro ou frequentem ente ates­
tado, o fato de algo ocorrido no passado não se conformar à “experiência hum ana
comum” deveria nos fazer considerar falsa a afirmação sobre esse acontecimento?
Por exemplo, quando ocorreu a prim eira e histórica aterrissagem de um ser
hum ano na Lua (se formos suficientemente “não científicos” para acreditar que
aconteceu), foi um acontecim ento fora da experiência de qualquer ser humano.
Foi um fato sem paralelos e, aliás, um “milagre” da era tecnológica. Assim, fica
claro que até mesmo a experiência hum ana comum — até onde podemos falar
desse fenômeno — não pode ser o árbitro para decidir o que é possível na his­
tória. Trata-se de um a experiência determ inada pela época em que ocorre — um
retrato instantâneo da realidade conforme experim entada por muitas pessoas em
um único e determ inado m om ento do segmento histórico contínuo. N a verdade,
se o critério da analogia fosse correta e consistentem ente aplicado ao passado,
isso nos levaria a absurdos óbvios, pois seus princípios nos obrigariam a rejeitar o
118 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA

testem unho — em outros aspectos convincentes — de acontecimentos únicos ou


incomuns pelo simples fato de serem únicos ou incomuns. Por exemplo, porque
Q uinto Cúrcio descreveu a coragem de Alexandre, o Grande, simplesmente como
“sobrenatural”, o próprio H um e suspeitou da veracidade dessa descrição. C ontudo,
seus princípios céticos podiam com igual facilidade ser aplicados ao testem unho
disponível, por exemplo, da vida e dos feitos de Napoleão Bonaparte — o que
cria sérias dúvidas sobre a história até mesmo do início do século 19 — para não
dizer sobre a história do m undo antigo, em que Aníbal, de m odo singular (e, aliás,
miraculoso) atravessou os Alpes com seus elefantes. Esse tipo de argumento prova
muitas coisas — a menos, é claro, que se queira mover pouco a pouco na direção
da posição neopositivista que descrevemos anteriorm ente, em que toda história
é suspeita pelo simples motivo de ser história. Isso, porém, seria apenas seguir
gradualm ente no rum o de um absurdo ainda maior.
A realidade é que não se pode dizer o que é “experiência hum ana comum”.
M esm o que alguém fosse capaz de defini-la, não estaria claro por que ela deveria
ser aceita como o critério para avaliar a realidade histórica. N a verdade, recorrer à
“experiência hum ana comum” não é nada mais do que um recurso retórico valioso
para quem prefere adotar um a visão “científica” do universo — um recurso cujo
emprego tem o único objetivo de fazer com que percamos, por assim dizer, o
historiador individual no meio da multidão e fique encoberto o fato de que aquilo
a que o escritor recorre é na realidade somente sua experiência pessoal (e talvez
tam bém a experiência de algumas outras pessoas com quem o historiador parti­
lha um a cosmovisão específica). N a verdade, o princípio da analogia nunca opera
no vácuo. Sempre existe “... um a relação íntim a entre a analogia e seu contexto
ou sistema de crenças prévias”.52 Vemos claramente isso quando passamos, por
exemplo, da filosofia teórica do próprio H um e para sua historiografia prática. Em
sua obra History ofE ngland [H istória da Inglaterra] (1756-1764) ele alegou que
havia escrito um a história imparcial, sem haver sido influenciado pela tradição ou
pelo entusiasmo. Disse que havia apresentado um a interpretação do passado da
Inglaterra que “todos os hom ens racionais” fariam, quando o examinassem com
m entes racionais munidas de verdades já universalmente aceitas — em especial,
a verdade de que ao longo da história existe uniform idade na natureza e na ação
humanas. Vista em retrospecto, porém, a história escrita por H um e ficou muito
longe de ser imparcial. Ela promove um a cosmovisão bem específica, a saber, a do
racionalista do século 18. Recorrer ao que “todos os hom ens racionais” pensam
é, na verdade, recorrer apenas a outros hom ens de concepção racionalista que,

52W . Abraham , D ivine revelation and the limits o f historical criticism (Oxford: O xford University
Press, 1982), p. 105.
C O N H E C E N D O A H I S T Ó R I A D E ISR A EL 119

no todo ou em parte, já partilham da posição filosófica de H um e. Ao postular


a hom ogeneidade básica de toda a realidade, Troeltsch tam bém transform ou a
teoria histórica em um a metafísica explícita de característica positivista — um a
metafísica contrabandeada sob o disfarce de um a compreensão “m oderna” da his­
tória, conforme Pannenberg asseverou corretam ente.53 N unca fica claro por que se
deve adotar essa metafísica.
Portanto, não há nenhum bom motivo para crer que um testemunho seja pro­
vavelmente mais verdadeiro do que outro só porque não viola nossa percepção do
que é normal e possível. Também não há nenhum a boa razão para acreditar que
um relato é suspeito e indigno de crédito porque descreve algo singular e incomum.
Com o o filósofo C. A. J. Coady afirma:

[A] ausência de u m a explicação adequada p ara relatos q u ando não se te m certeza de sua
veracidade é u m a consideração co n trária à sua rejeição, m as é apenas u m a consideração e
pode ser invalidada de várias m aneiras. C o m as circunstâncias in tern as e externas m e n ­
cionadas an terio rm en te [por C oad y em seu capítulo sobre “relatos extraordinários”],
a exigência de u m a explicação é u m com ponente do veredito geral. C onsidero bem
im provável que se consiga estabelecer u m a regra rígida para d eterm in ar o resultado
das avaliações de fatores tão diversos — com o L ocke n o to u , o que se requer não é u m
critério, m as u m ju íz o .54

D e fato, é ju ízo o que se requer: o juízo feito pela pessoa epistem ologica-
m ente aberta, aliás, a pessoa verdadeiram ente empírica, que não aborda o passado
e o presente com um a m ente fechada nem habita em um m undo igualm ente
fechado. E um tanto irônico que, em bora H um e seja bastante lem brado como
em pirista, seus escritos históricos m ostram que ele não estava particularm ente
interessado em descobrir algo sobre a natureza hum ana em registros do passado.
À sem elhança de seus sucessores que dependeram tanto da analogia, ele já sabia
que aquilo que o passado tinha a dizer se conformava ao que as “pessoas racio­
nais” já acreditavam no presente.
Podem os concluir satisfatoriam ente esta seção sobre a analogia com um
resumo geral que se aplica tanto a esta seção do capítulo quanto às precedentes
que tratam de testem unhos antigos e recentes e tam bém de ideologia. “R egras”
acerca de provas não podem prejulgar se testemunhos em particular são merecedores
de crédito. É uma ilusão pensar que podem. Não há meio algum intelectualmente
defensável de, no presente caso, esquivar-se da consideração inevitável de todos os
testemunhos juntos, avaliando-os em seus méritos e em comparação uns com os

'yí Basic questions in theology, tradução para o inglês (Philadelphia: Fortress, 1970), vol. 1, p. 39-50.
SiTestimony, p. 198.
120 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍB L IA

outros, indagando até que ponto é (ou não) provável que cada um tenha um a relação
concreta com os acontecimentos a que se referem. Tudo o que as assim chamadas
“regras” da evidência fazem é fornecer um contexto geral útil — uma sabedoria acu­
mulada que pode ou não ajudar na solução de um problema específico. Em última
análise, não há nenhum substituto para o juízo que cada leitor faz dos testemunhos,
um julgamento que, em cada caso específico, avança rumo a uma solução e chega a
uma concepção firme sobre os testemunhos em que, de modo razoável e inteligente,
pode-se acreditar.

CONCLUSÃO

[A] h istória não p o d e se basear na previsibilidade [...]. In existindo axiom as e teorem as


universais, ela p o d e se basear apenas no teste m u n h o .55

Neste capítulo defendemos basicamente essa ideia — embora, ao contrário do que


a citação acima possa sugerir, recusemos qualquer distinção m uito nítida entre
investigação do m undo natural e investigação do m undo do passado. Nosso
conhecimento do passado depende do testemunho. D iante disso e do fato de que
o principal testemunho que temos do passado de Israel é o testemunho bíblico,
é necessariamente tolice desprezá-lo em qualquer tentativa m oderna de contar a
história de Israel. Deve-se considerar algo perfeitamente racional o ato de tratar
esse testemunho junto com os demais. Contudo, deve-se considerar irracional a
concessão de prerrogativa epistemológica a outros testemunhos, inclusive a ponto
de ignorar totalmente o testemunho bíblico. Talvez encontremos bons motivos para
considerar o que a Bíblia tem a dizer — assim como temos para considerar o que
outras fontes têm a dizer — a fim de questionar de um a maneira ou de outra até
que ponto as declarações refletem a história em determinado momento. Entretanto,
devemos fazer nossos juízos caso a caso, em vez de prejulgar o assunto mediante o
uso de critérios metodológicos falhos, que supostamente nos conduzem a uma “base
firme” para a historiografia, dentro ou fora do testemunho bíblico. Por isso, contra­
pomos a citação anterior à citação a seguir, da qual discordamos profundamente:

Se não tiverm os algum fundam ento positivo para aceitar que u m relato bíblico é histo ri­
cam ente útil, com certeza não podem os adotá-lo com o história. E verdade que o resultado
será que terem os m enos história, mas pelo m enos poderem os afirm ar que conhecem os o

5SB. H alpern, The fir st historiam: the Hebrew Bible and history (San Francisco: H arper and Row,
1988), p. 28.
C O N H E C E N D O A H I S T Ó R I A D E ISR AEL 121

pouco que tem os (qualquer que seja o sentido em que “conheçam os” o passado distante).
N a m in h a opinião, isso é m elhor do que te r mais história, da qual boa parte não conhece­
mos absolutam ente nada, visto que consiste apenas em narrativas não verificáveis.56

Discordamos dessa citação porque história é contar e recontar narrativas não


verificáveis. Conhecer qualquer história além da história em que estamos pessoal­
mente envolvidos exige confiança em testemunhos não verificados e inverificáveis.
O tipo de conhecimento histórico que está além da tradição e do testemunho que
o autor citado procura é um a miragem. Não exigimos “fundamentos positivos” para
levar a sério o testemunho bíblico sobre o passado de Israel. Ao contrário, exi­
gimos fundamentos positivos para não fazê-lo. Somente adotando essa abertura
epistemológica para o testem unho — bíblico ou não — é que podemos evitar a
prática de refazer o passado inteiramente à nossa imagem — só assim podemos
evitar ceder à ilusão de que já “conhecemos” a realidade e ao conseqüente erro de
tentar impor esse “conhecimento” a tudo que o desafia. Apenas assim a história
da história de Israel pode ter a esperança de, no futuro, ser diferente do que foi
no passado — uma rendição lenta àqueles que, sem base sólida, afirmam que o
princípio de suspeitar da tradição deveria ser considerado a condição fundamental
da vida intelectual. Com demasiada frequência, no debate relacionado a essa rendi­
ção, a expressão “história crítica” tem significado “história que não critica a tradição
tanto quanto eu — um historiador verdadeiramente crítico — gostaria”. “História
crítica” não tem, com suficiente frequência, significado apenas “história refletida e
inteligente” — história que envolve o exercício do pensamento crítico tanto sobre
a tradição quanto sobre pressuposições modernas acerca da realidade. O fato é: ou
respeitamos o testemunho do passado e nos apropriamos dele — deixando que nos
desafie mesmo enquanto pensamos seriamente a seu respeito — ou então, devido à
extrema pobreza de nossas limitadas experiências e imaginações, estamos fadados
a criar fantasias individualistas sobre o passado, mesmo quando pensamos que
somente nós temos “objetividade” e que somente nós podemos iniciar a investigação
histórica novamente. Para concluir:

[A] objetividade da historiografia m o d ern a consiste precisam ente na disposição pessoal


para o encontro, no desejo de qu estio n ar as próprias intenções e visões sobre a existência,
i.e., de aprender algo basicam ente novo sobre ela e, assim, experim entar u m a m udança
ou u m a transform ação radical na p ró p ria existência.57

56Davies, “W hose history?”, p. 105.


j. M . Robinson, A nem quest fo r the historical Jesus, SBT 25 (Chicago: Allenson, 1959), p. 77.
O livro oferece, com relação ao N T, numerosas e interessantes reflexões sobre a historiografia e o
m étodo histórico.
Capítulo 4

Narrativa e história:
relatos sobre o passado

Nos três capítulos anteriores, argumentamos basicamente que a declaração da “morte


da história bíblica” é prematura (cap. 1) e que, na verdade, se dependemos de testemu­
nhos para confirmar, ou não, grande parte do que alegamos conhecer sobre o passado,
é tolice desprezar o texto bíblico quando se escreve uma obra sobre história de Israel
(caps. 2 e 3). Tentativas de encontrar uma base mais firme nas disciplinas, suposta­
mente mais científicas, da arqueologia e/ou da teoria social ignoram o fato de que
esses meios de acesso ao passado de Israel não são mais “objetivos”, em sentido algum,
do que o testemunho bíblico, visto que cada um deles envolve uma medida significa­
tiva de interpretação no momento em que os resultados são apresentados ou em que
há uma tentativa de integrá-los em algo que se aproxime de uma “história”.
Neste capítulo, nosso objetivo é investigar mais a fundo e de forma mais po­
sitiva como exatamente a Bíblia dá testemunho do passado — como ela reflete a
história. Um a vez que a maior parte do material bíblico que tem o propósito de
relatar a história de Israel pertence ao gênero narrativo, o foco predominante de
nossa análise será o método narrativo de exposição histórica.1 Visto que tendemos
a compartilhar nossas “histórias pessoais” contando histórias (ou seja, elaborando
narrativas), pode-se supor que a “narrativa” é um modo legítimo de reportagem
histórica que dispensaria qualquer defesa. Entretanto, filósofos analíticos da histó­
ria têm expressado preocupação com a historiografia narrativa. Eles alegam que as
narrativas envolvem arte, e não ciência; portanto, são interpretativas por natureza
e insuficientemente objetivas. Devido a essas preocupações, precisamos examinar
mais profundam ente o debate em torno da “história narrativa”, tom ando como
ponto de partida a situação dessa questão entre os historiadores seculares.

'Isso não significa que negamos o intuito historiográfico de outros gêneros. Considerem -se, e.g.,
os “salmos históricos”, ou as diversas composições poéticas espalhadas ao longo das histórias narrativas
ou, ainda, as cenas e o significado histórico de boa parte do corpus profético.
124 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA

N o presente capítulo, consideraremos prim eiro a posição que a “história nar­


rativa” ocupa na área dos estudos históricos em geral. A qui, observam os que,
depois de um período de declínio em que se preferiram histórias mais estatísti­
cas e quantificadoras, a história narrativa voltou a ser bastante valorizada entre
os historiadores (embora sem rejeitar as conquistas alcançadas pelas abordagens
quantificadoras). Defendem os que essa aceitação renovada das histórias narrativas
põe em dúvida a tendência de alguns estudiosos bíblicos de darem pouca im por­
tância ao valor histórico das narrativas bíblicas simplesmente porque elas têm a
forma de relatos.
Para serem adequadamente utilizadas na reconstrução histórica, é claro que as
narrativas bíblicas devem ser entendidas corretamente, o que significa que devem ser
lidas de maneira apropriada, com o máximo de competência literária possível, por
meio das evidências disponíveis. Em seguida, analisaremos o recente florescimento
dos estudos literários de textos bíblicos e os efeitos que essa tendência pode causar
nos estudos históricos. Ao lermos corretamente as narrativas bíblicas, levando em
conta as convenções e técnicas literárias da Antiguidade, cremos ser possível fazer
melhores reconstruções históricas. Essa abordagem, porém, suscita outras questões.
Q ue tipo de informação podemos esperar extrair das narrativas (bíblicas)? Somente
fatos isolados? O u será que, em si, sua estrutura narrativa transmite algo da reali­
dade passada? Com o devemos lidar com o fato de que as narrativas bíblicas têm,
por exemplo, enredos visíveis e caracterização cuidadosa de personagens? Não seria
precisamente esse o material que compõe a ficção, em vez da história?
A luz dessas questões, investigaremos se a “narratividade” é, em algum sentido,
um a propriedade da realidade em si ou se é apenas imposta aos “fatos” históricos
isolados pelos narradores. Consideraremos o debate sobre o “construcionismo”, que
continua intenso entre os historiadores. È natural que essa discussão resulte em uma
análise dos tipos de contribuição criativa que os historiadores fazem ao escrever suas
obras de história, bem como em um estudo da produção escrita da história tanto
como arte quanto como ciência. Argumentaremos que, embora limitados pelos
“fatos” que podem ser descobertos, os historiadores, em vários aspectos, realmente
julgam e são criativos. Primeiro formulam juízos ao avaliar os dados disponíveis e
ao determinar um a “visão do passado”. Então, eles precisam fazer escolhas criativas
para apresentar essa visão a seu público-alvo. Ê claro que isso significa que os pró­
prios historiadores são centrais para o empreendimento histórico, o que, por sua vez,
demonstra que a personalidade e a competência dos historiadores não são fatores
sem importância: quanto maior sua habilidade e dedicação, maior será o crédito
devido a suas reconstruções.
Depois de analisarmos a historiografia narrativa de todos esses ângulos, reto­
maremos a questão sobre qual a melhor maneira de nos tornarmos bons leitores das
NARRATIV A E H I S T Ó R IA : R E L A T O S S O BR E O PASSADO 125

narrativas bíblicas e, assim, usá-las com responsabilidade na reconstrução histórica.


Finalmente, o capítulo conclui com um estudo de caso específico.

O RESSURGIMENTO DA HISTÓRIA NARRATIVA


DEPOIS DE QUASE MORRER

Para alguns leitores, talvez pareça curioso que a “história narrativa” já tenha sido
atacada. Não há dúvida de que a história do registro histórico, em sua maior parte,
revela que o modo dominante de recordar (ou recontar ou descrever) o passado
tem sido narrativo, com todas as implicações em relação à habilidade literária e ao
objetivo de persuasão. N o passado, a própria escrita da história foi considerada uma
área da literatura ou da retórica.2 Tudo isso, porém, começou a mudar no século 19.
No século 19, com a esperança de estabelecer os estudos históricos sobre bases
mais científicas, muitos historiadores abandonaram o m étodo narrativo da histo­
riografia com sua ênfase em grandes personagens e acontecimentos a fim de se
dedicar a abordagens mais quantificadoras, que não davam atenção a detalhes, e
sim a tendências ambientais e sociais em grande escala. Utilizando a terminologia
técnica, a mudança foi da pesquisa e escrita históricas idiográficas (“descrevendo
o que é particular, distinto, individual”) para as nomotéticas (“legisladoras”).3 N a
explicação de Lawrence Stone,4 o que motivou a mudança foi a percepção de que as
narrativas, por descreverem eventos seqüenciais e darem atenção a agentes pessoais
importantes, eram capazes de responder às perguntas “o quê?” e “como?’, mas não
conseguiam apresentar respostas satisfatórias à pergunta fundamental “por quê?’.
As narrativas podiam descrever o desdobramento dos acontecimentos, mas eram
incapazes de explicar por que a história havia se desenvolvido daquela maneira.
A percepção de que as narrativas eram inadequadas para responder o “por que”
originou-se do fato de que muitos “historiadores daquela época estavam sob a forte
influência tanto da ideologia marxista quanto da metodologia das ciências sociais”
e, por esse motivo, “interessavam-se em sociedades e não em pessoas”.5 Resumindo,
muitos historiadores acreditavam que a verdadeira explicação do processo histórico

2Veja, e.g., L. Gossm an, “H istory and literature: Reproduction or signification”, in: R. H . Canary;
H . Kozicki, orgs., The w riting ó f history: literary form anã historical understanding (M adison: University
ofW isconsin Press, 1978), p. 3-39.
3Veja, e.g., C. B. M cCullagh, justifym g historical descriptions (Cambridge: Cam bridge University
Press, 1984). Nessa obra, M cC ullagh apresenta um resumo da introdução term inológica feita por
W ilhelm W indelband em seu discurso de posse como reitor da Universidade de Estrasburgo, em 1894,
cujo título era “H istória e ciência natural” (p. 129).
4“The revival o f narrative: reflections on a new old history”, Past andpresent 85 (1979), p. 3-24.
5Stone, “Revival”, p. 5.
126 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍ BLIA

estava menos relacionada às ações e aos acontecimentos individuais do que às forças


ambientais e sociais em escala mais ampla. Tentativas otimistas de desenvolver uma
história “científica” assumiram diversas formas,6 mas um aspecto comum a todas era

a crença de que condições m ateriais com o m udanças na relação entre população e alim ento
disponível, alterações nos m eios de produção e conflitos de classe eram as forças propulso­
ras da história. M u ito s, em bora não todos, consideravam os desdobram entos intelectuais,
culturais, religiosos, psicológicos, legais e até m esm o políticos com o m eros epifenôm enos.7

Historiadores da escola francesa dtAnnales, que floresceu da década de 1950 até


meados da década de 1970 (e ainda hoje influencia os estudos bíblicos), acreditavam
que as forças que impulsionavam a mudança histórica podiam ser organizadas hie­
rarquicamente. Conforme explica Stone:

P rim eiro, tan to na seqüência qu an to n a o rdem de im portância, v in h am os fatos eco n ô m i­


cos e dem ográficos; depois, a estru tu ra social e, p o r fim , os desdobram entos intelectuais,
religiosos, culturais e políticos. Pensava-se nesses três níveis com o os andares de um a
casa: cada um se apoia n o de baixo, m as os de cim a não tê m efeito recíproco algum ou
quase n en h u m nos que estão abaixo.8

Basicamente, “só o primeiro nível era o que de fato importava”, de modo que o
assunto estudado pela história passou a ser “as condições materiais das massas, não
a cultura da elite”. O resultado foi um “enorme revisionismo histórico”.9
Como ocorre em tantas áreas da disciplina abrangente dos estudos bíblicos, essas
tendências no estudo da história em geral encontram paralelos (ainda que com atraso
significativo) na pesquisa contemporânea da história do Antigo Israel. O “intenso revi­
sionismo histórico” é visível nos escritos de vários estudiosos — de modo preeminente,
nas universidades de Sheffield e Copenhagen, mas também em outros lugares. Céticos
quanto a histórias narrativas em geral, esses estudiosos não veem quase nenhuma utili­
dade nas narrativas bíblicas em particular, pelo menos no que diz respeito à reconstrução
histórica.10 Um representante dessa abordagem é N. P. Lemche, de Copenhagen, que

6Stone ressalta três dessas tentativas: “o modelo econômico marxista, o modelo ecológico/dem o­
gráfico francês e a m etodologia ‘cliométrica’ norte-am ericana” (ibidem, p. S).
'Ibidem , p. 7.
8Ibidem
9Ibidem , p. 8.
10As vezes, são presumidas datas tardias para muitos (ou todos) livros bíblicos e são supostas refu­
tações de dados bíblicos pela pesquisa arqueológica em um a tentativa de apresentar novas justificativas
para a rejeição dos textos bíblicos; veja, e.g., N . P. Lemche, “O n the problem o f studying Israelite history:
Apropos Abraham M alam ats view o f historical research”, B N 24 (1984), p. 94-124, especificamente na
N ARRATIV A E H I S T Ó R I A : RE L A T O S S O BR E O P ASSADO 127

em uma de suas obras mais recentes declara que não pode haver quase relação alguma
entre “o Israel bíblico” e “o Israel da Idade do Ferro”,11um ponto de vista que P. R. Davies
já havia expressado em 1992.12 Na compreensão de Lemche, “o Israel bíblico” é pouco
mais do que uma entidade literária, enquanto “o Israel da Idade do Ferro” é uma enti­
dade histórica sobre a qual pouco — se houver algo — pode-se aprender com base no
que os textos bíblicos têm a dizer. Dando preferência aos dados de primeiro e segundo
níveis (ou seja, evidências materiais e análises sociológicas) em vez de dados textuais de
terceiro nível oferecidos pelo AT, Lemche se vê, enfim, em uma “situação em que Israel
não é Israel, Jerusalém não é Jerusalém e Davi não é Davi”.13
No entanto, apesar das afirmações revisionistas, é uma questão ainda não defi­
nida se os dados de primeiro e segundo níveis (na forma como estão disponíveis)
m inam de forma tão radical as narrativas bíblicas, com seu foco, basicamente de
terceiro nível, em pessoas e acontecimentos específicos. Para m anter o assunto na
perspectiva adequada, é preciso primeiro lembrar que artefatos arqueológicos não
se apresentam simplesmente como fatos e que objetos escavados não constituem
evidência objetiva. Ao contrário, esses mesmos objetos ou artefatos devem ser
interpretados, que é exatamente o que, conscientes disso ou não, os estudiosos
fazem a partir do m omento em que começam a descrevê-los e analisá-los.14 Além
disso, deve-se ter em mente que raramente, ou mesmo jamais, as interpretações dos
estudiosos estão isentas de interesses mais amplos. A louvável noção de objetividade
acadêmica não significa nem pode significar que um estudioso aborda cada novo
problema com um disco rígido mental recentemente apagado. Todos os estudiosos
realizam seu trabalho como pessoas integrais, com crenças e convicções diversas.
A objetividade nunca é absoluta. Entretanto, a inevitável presença de interesses e
convicções profundos — as crenças prévias — não tem de necessariamente invalidar
o labor acadêmico, contanto que essas crenças sejam reconhecidas e discutidas.15

p. 122; T. L. Thompson, The historiáty o f the patriarchal narratives, B Z A W 133 (Berlin: D e Gruyter,
1974), p. 327-8. Além disso, em “H istoriography o f ancient Palestine and early Jewish historiography:
W . G. D ever and the not so new biblical archaeology”, T. L. Thompson parece querer que acreditemos
que, pelo fato de os textos bíblicos serem elaborados teologicamente, eles possuem um a natureza que
impede qualquer intenção de seus autores de fazer referência a um passado real e assim não perm ite que
tenham os algum acesso a esse passado por meio deles (in: V. Fritz; P. R. Davies, orgs., The origins o f the
ancientIsraelite states, JS O T S 228 [Sheffield: Sheffield Academic Press, 1996], especialmente p. 38-43).
11The Israelites in history and tradition, L A I (Louisville: W estm inster John Knox, 1998), p. 166.
u In search o f “
A ncient Israel", JS O T S 148 (Sheffield: JSOT, 1992).
13Lem che, The Israelites, p. 166.
l4Veja, e.g., Brandfon, “L im its”.
15Veja V. P. Long, “The future o f Israels past: personal reflections”, in: V. P. Long, org., IsraeTs
past in present research: essays on ancient Israelite historiography, SBTS 7 (W inona Lake: Eisenbrauns,
1999), p. 586-7.
128 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍ BLIA

Q uando um estudioso não declara explicitamente quais são seus compromissos


centrais, talvez, ainda assim, seja possível determiná-los. Considere-se, por exemplo,
a seguinte passagem extraída de The Israelites in history and tradition [Os israelitas
na história e na tradição], de Lemche:

T radicionalm ente, acredita-se ser u m a tarefa d igna te n ta r d em o n strar que u m d ete rm i­


nado acontecim ento narrado pelo A T de fato ocorreu e que, p o r esse m otivo, a narrativa
é u m a fonte valiosa. C o n tu d o , é u m a tarefa ig ualm ente d igna te n ta r m o strar que o texto
não traz inform ação algum a sobre o período que valha a p en a analisar.16

Embora, pelo que sabemos, Lemche não trate de suas crenças prévias no livro
que acabamos de citar,17 a última frase na citação aproxima-se de uma declaração do
objetivo com que está comprometido. Ademais, as avaliações às vezes surpreendentes
que Lemche faz dos dados18 confirmam seu compromisso em demonstrar o valor
insignificante do AT, exceto quando é claramente confirmado por dados externos
(um caso em que os textos do AT seriam supérfluos de qualquer maneira).
No capítulo anterior, analisamos a questão da verificação e a da falsificação e
observamos sérios problemas na primeira, tanto na lógica quanto na aplicação. Nossa
preferência é pelo princípio da falsificação, em que textos antigos recebem o benefício
da dúvida, a menos que motivos convincentes para a desconfiança sejam evidentes.
Ironicamente, estudos revisionistas como o de Lemche ignoram a importância
histórica das narrativas bíblicas justamente quando o interesse pela narrativa tem expe­
rimentado um notável ressurgimento entre os historiadores em geral. N a dissertação
de 1979, já mencionada, Stone ressalta várias razões para esse interesse renovado. Não
somente existe uma generalizada “desilusão com o modelo determinista de explicação
histórica e [com a] estrutura hierárquica em três níveis à qual ele deu origem”, mas
também está surgindo, com base em pesquisas concretas, o reconhecimento de que há
um “fluxo extraordinariamente complexo de interações entre” condições ambientais e
materiais, de um lado, e “valores, ideias e costumes”, de outro. Além disso, um declínio

“ Lem che, The Israelites, p. 29.


17C ontraponha-se a isso a descrição bastante honesta que W . G . Dever faz de sua jornada
espiritual no prefácio de seu recente livro What the biblical writers know and when did they know it?
What archaeology can tell us about the reality o f ancient Israel (G rand Rapids: Eerdm ans, 2001, p. ix-x).
lsVeja, e.g., a análise que L em che faz da Esteia de Tel D an (The Israelites, p. 38-43) e sua antiga
afirmação de que a inscrição de Ecrom pode ter sido um a falsificação (ibidem, p. 182, nota 38) etc.
D ever cita outros exemplos de estudiosos que, alegando falsificação, rejeitam dados que lhes são incon­
venientes e então sim plesmente pergunta: “O que se pode dizer quando estudiosos recorrem a medidas
tão desesperadas para negar ou elim inar dados que podem ameaçar suas apreciadas teorias?” (Biblical
writers, p. 208-9).
N ARRATIV A E H I S T Ó R I A : RE LA TO S SOBRE O P ASSADO 129

na lealdade ideológica — por exemplo, ao marxismo — e uma convicção renovada de


que as pessoas “são, potencialmente, agentes causadores de mudança pelo menos tão
im portantes quanto as forças impessoais de produção material e de crescimento
demográfico”, não restando praticam ente razão alguma para continuar recom en­
dando a adoção de uma atitude antinarrativa.19 Em resumo, Stone explica:

A desilusão com o d eterm in ism o m onocausal econôm ico ou dem ográfico e com a
quantificação te m levado os h istoriadores a fazer u m a série de perg u n tas to ta lm en te
novas, m uitas das quais haviam ficado de fora p o r causa d a preocupação com u m a
m eto d o lo g ia específica: estru tu ral, coletiva e estatística. A gora, u m crescente n úm ero
de “novos h isto riad o res” te n ta descobrir o que se passava n a cabeça das pessoas no
passado e com o era viver n aquela época, questões que inevitavelm ente nos reconduzem
ao uso da narrativ a.20

Tendo em vista que já faz algumas décadas que ressurgiu entre os historiadores
o interesse pela história narrativa, é notório o fato de que alguns estudiosos bíblicos
simplesmente rejeitem o AT, considerando-o “basicamente inútil para os propó­
sitos do historiador”, nada mais do que “um livro sagrado que conta histórias”.21
Entretanto, é mais encorajador o fato de que a maioria dos estudiosos bíblicos
interessados na história continua a levar a sério as narrativas bíblicas.22 Para esses
estudiosos, assim como para os historiadores em geral, o ressurgimento do interesse
pela narrativa suscita novamente a questão da relação entre história e literatura,
assunto sobre o qual trataremos agora.

ANÁLISE LITERÁRIA E O ESTUDO DA HISTÓRIA:


CASAMENTO FELIZ OU DIVÓRCIO TARDIO?

O florescimento do interesse pelo estudo literário da Bíblia no últim o quarto do


século 20 é talvez mais impressionante que qualquer outra tendência ocorrida durante
o mesmo período. C ontudo, ainda não se sabe quais serão os efeitos que o entu­
siasmo pelas abordagens literárias causará em longo prazo no estudo histórico da Bíblia.

“ “Revival”, p. 8-9.
20Ibidem , p. 13.
2IVeja J. M . Miller, que faz um a crítica a essa posição reducionista (“Reflections on the study o f
Israelite history”, in: J. H . Charlesw orth; W . R Weaver, orgs., What has archaeology to do w ith fa ith ?
[Philadelphia: T rinity Press International, 1992], p. 72).
22Veja, e.g., H . G . M . W illiam son, “The origins o f Israel: can we safely ignore the Bible?”, in:
S. A hituv; E . D . O ren, orgs., The origin o f early Israel— current debate: biblical, historical and archaeologi-
calperspectives, Beer-Sheva 12 (Jerusalem: B en-G urion University o f the Negeb Press, 1998), p. 141-51.
130 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA

Será que elas evoluirão para leituras a-históricas e puramente literárias que ameaçam
a Bíblia — a despeito de consideráveis evidências internas e externas contrárias — ,
vendo-a como pouco mais do que um romance bem produzido?23 O u será que uma
sensibilidade literária aperfeiçoada conduzirá a percepções mais profundas sobre a
ampla gama do testemunho bíblico, inclusive sobre seu testemunho histórico? É cedo
demais para dizer qual rumo a maioria dos estudiosos bíblicos seguirá — se é que
seguirão algum — mas já está muito claro que existem alguns que preferem separar
o estudo literário do estudo histórico.24 Em 1987, Philip Davies expressou a opinião
de que, no que diz respeito à história de Israel, “o caminho pela frente, se é que existe,
parece estar” não no estudo literário, mas “nos métodos (combinados) das ciências
sociais: sociologia, antropologia e arqueologia”: em outras palavras, nos interesses de
primeiro e segundo níveis analisados anteriormente. No entendimento de Davies, “o
estudo literário está se afastando da história, concentrando-se no que está no texto, não
por trás dele”. “Resta uma tarefa legítima para o historiador , mas “essa tarefa estará
cada vez mais separada da crítica literária”.25
É possível citar com facilidade muitos outros exemplos de estudos bíbli­
cos literários que seguem o caminho a-histórico, que exibem o que John Barton
chama de tendências “contraintuitivas”, como um a “aversão ilógica pela intenção
autoral, pela busca de um significado referencial e pela possibilidade de paráfrase
ou reformulação”.26 Contudo, não está ainda claro que é inevitável ou justificada
a predileção a-histórica nos estudos literários. Ela representa outro exemplo de
estudiosos bíblicos que adotam tendências já ultrapassadas nas áreas não bíblicas
correspondentes. Escrevendo em 1990, Peter Barry observou que justam ente quan­
do “a crítica literária [...] começa a entender [...] algumas preocupações históricas
que talvez tenham sobrecarregado a exegese das Escrituras, os estudos bíblicos estão
testando as muitas abordagens radicais da crítica e da teoria que deram origem à
‘crise’nos estudos literários no início e em meados da década de 1980”.
Q uando escreveu isso, Barry expressou a opinião de que restava ver “se um a
crise semelhante [iria] afetar o cenário exegético na década de 1990”.27 D a perspec­
tiva atual, podemos ver que os estudos bíblicos, na virada do milênio, encontram-se
de fato no que alguns chamam de crise.

23Para um a análise relevante da intenção histórica do AT, veja em especial o cap. 1 do livro de
Y. A m it, History and ideology: an introduction to historiography in the Hebrew Bible (tradução para o inglês
Y. L otan, BSem 60 [Sheffield: Sheffield A cademic, 1999]).
24Veja, e.g., D. M . G unn, “N ew directions in the study o f biblical H ebrew narrative”, J S O T 39
(1987), p. 65-75.
25“The history o f ancient Israel and Judah”, /5 0 T 3 9 (1987), p. 3-4; citação na p. 4.
2(,Reading the Old Testament: method in biblicalstudy (London: Darton, Longman andTodd, 1984), p. 191.
27“Exegesis and literary criticism”, ScrB 20, n. 2 (1990), p. 28-33; citação na p. 33.
NARRATIV A E H I S T Ó R IA : RE LA TO S S O BR E O P A SSADO 131

E ntre as questões centrais que devem ser analisadas estão: “Será que a separa­
ção entre a literatura e a história é mesmo inevitável e já está atrasada ou será que
ainda é possível um casamento feliz? Será que os comentários de Davies, citados
anteriorm ente, apenas ilustram os equívocos que abordagens literárias podem
(mas não precisam) gerar?”.28 C onform e Gale A. Yee observa, abordagens literá­
rias (i.e., “centradas no texto”) podem de fato dar origem a problemas: “separar
um texto de seu autor e de sua história pode resultar em um exame a-histórico
que considera o texto basicamente um objeto estético em si e não um a prática
social ligada intim am ente a um a história em particular”. D iante dos sofisticados
mecanismos literários dos textos bíblicos, é possível perder de vista o fato de que
“os textos bíblicos não foram escritos [apenas] para serem objetos de beleza ou
contemplação estética, mas forças persuasivas que durante sua época formaram
opiniões, em itiram juízos e exerceram mudanças”.29 A maior parte dos textos bí­
blicos não foi composta como literatura “pura” (i.e., a arte pela arte), mas como
literatura “aplicada” (“história, liturgia, leis, pregação e assim por diante”).30 Eles
não são “autotélicos” — usando o term o cunhado por T. S. E liot para designar
um a obra literária que “não tem nenhum a finalidade ou propósito além da própria
existência”.31 Ao contrário, eles frequentem ente instruem , recontam, exortam ou
combinam essas e outras finalidades.
Isso significa que não se pode considerar a literatura e a história como categorias
sem relação entre si ou m utuamente exclusivas.32 “A história pode muito bem sonhar
em se livrar da linguagem comum ou natural e utilizar a linguagem altamente formal
das ciências”,33 mas a realidade, como Hayden W hite ressalta, é que “a história como

2SVeja no cap. 1 de Biblical writers a crítica incisiva de Dever às tendências a-históricas do movi­
m ento “Bíblia como literatura”.
29“Introduction: W h y Judges?”, in: G. A. Yee, org., Judges and method: new approaches in biblical
studies (Minneapolis: Fortress Press, 1995), p. 1-16; citação nas p. 11-2.
30D . Robertson, The Old Testament and the literary critic (Philadelphia: Fortress Press, 1977).
Para um a análise do assunto, veja V. P. Long, The reign and rejection o f king Saul: a casefo r literary and
theological coherence, SBLD S 118 (Atlanta: Scholars, 1989), p. 13-4.
31Conform e relatado em The concise Oxford dictionary o f literary terms, de C. Baldick (O xford/N ew
York: O xford University Press, 1990), p. 19. A hesitução de M arc B retder em falar de narrativa bíblica
como “literatura” talvez tenha origem no fato de que ele define “literatura” de um a perspectiva funcional
e não estrutural, que tende a forçar o conceito na direção de literatura pura, autotélica; citando John
Ellis, B rettler argum enta que “textos literários são aqueles que um a sociedade utiliza de tal form a que
não se considera que o texto tenha relevância específicapara o contexto imediato de sua origem” ( The creation o f
history in ancient Israel [London: Routledge, 1995], p. 16).
32Veja em especial I. W . Provan, “Ideologies, literary and criticai: Reflections on recent w riting on
the history o f Israel”, JB L 114 (1995), p. 585-606.
33Gossm an, “H istory and literature”, p. 39.
132 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA

disciplina está em má condição hoje em dia porque perdeu de vista sua origem na
imaginação literária”.34 Em um texto clássico publicado pela primeira vez em 1951,
Umberto Cassuto defendeu que tanto a historiografia israelita quanto a grega se
desenvolveram a partir de poemas épico-líricos mais antigos, sendo que os israe­
litas precederam os gregos e, dessa maneira, foram os primeiros historiadores de
verdade.35 Embora, à luz de estudos posteriores, aspectos específicos da proposta de
Cassuto pareçam incertos, é correta a noção básica de que a historiografia narrativa
está relacionada com a literatura e ela própria é um tipo de literatura.36
Torna-se então evidente que a compreensão literária é uma condição necessáriapara
a compreensão histórica e que tanto a compreensão literária quanto a histórica são condi­
ções necessárias para a interpretação competente da Bíblia. Com o Robert A lter expressa
com propriedade: “Em toda narrativa bíblica e tam bém em boa parte da poesia
bíblica, a história é a esfera em que a invenção literária e a imaginação religiosa
se unem, pois, com exceção de Jó e possivelmente de Jonas, todas essas narrativas
pretendem ser relatos verdadeiros de fatos que ocorreram no tempo histórico”.37
E m termos claros, boa parte da Bíblia faz afirmações de veracidade histórica, e essas
afirmações jamais serão corretamente compreendidas a menos que se entenda o
próprio modo literário de sua representação. M ais um a vez, Alter é esclarecedor:

Ocupar-se desses elementos de arte literária não é apenas um exercício de “apreciação”


para o leitor, mas uma disciplina de compreensão; o veículo literário foi um meio tão
necessário para os escritores hebreus expressarem seus pensamentos que, se ignorarmos
seus excelentes pronunciamentos como literatura, na melhor das hipóteses teremos uma
compreensão imperfeita do que quiseram dizer.38

Mais adiante neste capítulo, observaremos alguns “elementos de arte literária”


que os narradores e poetas de Israel empregaram em suas representações da história.
Nesta seção, nosso objetivo foi apenas demonstrar que um casamento feliz entre inte­
resses literários e históricos é possível, desejável e necessário. O caminho a-histórico
é um beco sem saída. Quando textos bíblicos fazem afirmações de natureza histórica,

34“The historical text as literary artifact”, in: Canary; Kozicki, orgs., Writing o f history, p. 41-62;
citação na p. 62.
35“The beginning o f historiography am ong the Israelites”, in: U. Cassuto, org., Biblical and Oriental
studies (Jerusalem: The M agnes, 1973) (texto publicado originalm ente em 1951), vol. 1: Bible, p. 7-16.
36Para um a análise mais com pleta da relação entre história e literatura, veja V. P. Long, The art o f
biblical history, M oisés Silva, org., F C I 5 (G rand Rapids: Zondervan, 1994), p. 149-54.
37“Introduction to the O ld T estam ent”, in: R. Alter; E Kermode, orgs., The literary guide to the Bible
(Cambridge: The Belknap Press o f H arvard University, 1987), p. 17.
38Ibidem , p. 21.
NARRATIV A E H I S T Ó R I A : RE LA TO S SO B R E O P ASSADO 133

leituras a-históricas são necessariamente leituras erradas — não importam quais


sejam as opiniões do estudioso acerca da veracidade de tais afirmações.
Portanto, se as narrativas bíblicas fazem alegações de verdade histórica, essa con­
dição nos leva a uma questão ainda mais fundamental, que é muito debatida hoje em
dia entre historiadores e filósofos da história: A própria vida tem forma narrativa? O u
é apenas uma ilusão criada por historiadores à medida que elaboram suas “histórias/
relatos” a partir de acontecimentos basicamente aleatórios e isolados do passado? Em
seu âmago, a questão é se o passado tem algum significado inerente ou se apenas parece
ter sentido por causa da forma narrativa que o historiador dá aos acontecimentos.

NARRATIVIDADE: REALIDADE OU ILUSÃO?

Ê claro que nem toda produção escrita sobre a história é narrativa e, com certeza,
nem toda narrativa é historiografia. E bem possível que R olf G runer esteja certo
ao dizer que “existem duas maneiras principais e distintas de conceber e descrever
um determinado período da realidade: a maneira estático-descritiva ou não nar­
rativa e a dinâmico-descritiva ou narrativa”.39 Seja como for, certamente é preciso
admitir formas não narrativas de informação que podem apropriadamente ser cha­
madas de uma espécie de escrita histórica, ou, ao menos, de material de fonte histórica
(genealogias, análises por amostragem de sociedades específicas em momentos
específicos etc.). No entanto, conforme W illiam Dray insiste: “Persiste ofato de que
um a boa medida do que os historiadores produzem é história narrativa”.40 Portanto,
a questão é se a estrutura narrativa é um aspecto inerente da realidade passada ou
apenas um produto artificial criado pelo historiador.
Exatamente essa questão tem ocupado bastante espaço em debates recentes
sobre a historiografia narrativa. Em um a resenha do livro de Hayden W hite, The
content o f form: narrative discourse and historical representation [O conteúdo da
forma: discurso narrativo e representação histórica],41 W illiam Dray faz uma crítica
à posição de W hite, que descreve como “concepção construcionista exagerada da
narrativa na produção literária da história”.42 D e acordo com Dray, W hite chega
“bem perto de realmente afirmar que em um a narrativa histórica tudo o que vai
além da simples crônica (ou talvez até mesmo além da mera declaração de fatos
distintos) é de alguma forma ‘inventada’ (p. ix) pelo historiador”. Ao ressaltar

39W . H . Dray; R. G . Ely; R. Gruner, “M andelbaum on history as narrative: a discussion”, HTh 8


(1969), p. 275-94; citação na p. 286.
40Ibidem , p. 289.
41B altim ore/London: Johns H opkins University Press, 1987.
42In: HTh 27 (1988), p. 28-7.
134 H I S T Ó R IA , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA

“a natureza supostam ente poética e não fatual do enredo narrativo na história,


parece que W h ite quer descrever a imaginação histórica como algo livre — como
tendo ‘os fatos’ totalmente ao seu dispor”. N a verdade, em nosso entendimento, ao
contrário do que Dray afirma, W hite talvez não seja culpado de construcionismo — a
noção de que os “historiadores podem dar ao passado o enredo que bem quiserem”
— , pois o próprio Dray observa que W hite parece estar consciente “de que talvez
seja absolutamente impossível elaborar qualquer tipo de enredo para determinada
série de eventos”.43 Entretanto, qualquer que seja a posição do próprio W hite, é
preciso questionar a ideia construcionista exagerada (ou, como alguns preferem,
construtivista) — a de que a narratividade é simplesmente imposta pelo historiador,
não sendo inerente aos próprios acontecimentos.
Talvez seja proveitoso fazer um a analogia entre a pintura de quadros, um tipo de
arte de representação visual, e a historiografia, que pode ser adequadamente descrita
como arte de representação verbal.44 Em certo sentido, os pintores são “construcionis-
tas”; fazem escolhas criativas ao compor e reproduzir seu tem a histórico. Contudo,
estão longe de apenas imporem estrutura a um conjunto amorfo de “fatos” isolados
(um olho aqui, um nariz ali). Sua tarefa é observar os contornos e a natureza do
objeto retratado, as relações entre os vários aspectos, e captar esses elementos es­
senciais de seu objeto em um meio de representação visual. É claro que não há dois
retratos exatamente iguais, pois não há dois pintores que vejam o objeto exatamen­
te da mesma maneira ou que façam as mesmas escolhas criativas ao reproduzi-lo.
M esm o assim, boas pinturas do mesmo tema não são totalmente diferentes quanto
aos contornos e às estruturas do objeto, pois são limitadas pelos fatos. Em sua ha­
bilidade de representação, os pintores compõem (i.e., constroem) sua pintura, porém,
não impõem simplesmente a estrutura a seu objeto. Será que o mesmo processo não
ocorre com historiadores narrativos? Evidentemente, em princípio, a resposta é sim.
M as a questão é, de novo, se o próprio passado possui contornos discerníveis, sig­
nificativos — um a qualidade narrativa, se assim se preferir — ou se consiste apenas
em acontecimentos isolados e sem sentido.

A narratividade da vida

É impressionante que até os que são às vezes acusados de tendências constru-


cionistas,45 como Frank Kermode, achem difícil negar que a vida tem um a qualidade

43Ibidem , p. 286-7.
44L o n g ,A r t o f biblical history, esp. p. 106-7.
45E.g., no artigo intitulado “M ixed messages: the heterogeneity o f historical debate”, S. G . Crowell
escreve: “As abordagens lingüísticas de A nkersm it, Lyotard, W h ite e Kerm ode negam — todas elas —
que o passado tenha qualquer estrutura narrativa” (Hth 37 [1998], p. 220-44; citação na p. 237).
NARRATIV A E H I S T Ó R I A : RE LA TO S SOBR E O PASSADO 135

narrativa. Kermode afirma que “é impossível imaginar um cristianismo ou judaísmo


totalmente não narrativo ou mesmo uma vida não narrativa” (grifo nosso).46 Paul
Ricoeur, que escreveu extensamente sobre a narrativa,47 comenta apenas que “uma
vida examinada [...] é um a vida narrada”,48 U m dos mais proeminentes proponentes
atuais da “narratividade da vida” é David Carr,49 que argumenta que “a narrativa não
é apenas um a forma possivelmente bem-sucedida de descrever acontecimentos; sua
estrutura é inerente aos próprios acontecimentos”.50
Antes de prosseguirmos no exame dessa questão, devemos talvez tornar mais
preciso o que queremos dizer com “narrativa”, “narratividade” e “história narrativa”.
E m um a perspicaz resenha intitulada “Narrativity and historical representation”
[Narratividade e representação histórica],51 A nn Rigney observa que os historia­
dores têm diferentes concepções de “narratividade”, dependendo de qual deles se
consulte. Alistamos a seguir exemplos dessa variação:

1. Narrativas podem ser distinguidas de “anais” ou “crônicas”.


2. Narrativas tratam de “processos ou transformações diacrônicas de curto ou
longo prazo”.
3. “(História) narrativa envolve a representação figurada de agentes e eventos
únicos e, como tal, se distingue de relatos quantitativos e estatísticos do
m undo”.
4. “(História) narrativa trata de (experiências de) pessoas, em vez de grupos ou
tendências sociais”.
5. A história narrativa “considera questões políticas em vez de sociais e cul­
turais”, visto que é na esfera política que “são mais freqüentes as mudanças
iniciadas por pessoas ‘livres’”.

46“Introduction to the N ew T estam ent”, in: A lter e Kerm ode, orgs., Literary guide to the Bible,
p. 380.
47P. Ricoeur, Time and narrative (Chicago: University o f Chicago Press, 1984-1988), 3 vols.;
original em francês de 1983-1985. Para um a análise do pensam ento de Ricoeur, veja K. J. Vanhoozer,
Narrative in thephilosophy ofPaul Ricoeur: a study in hermeneutics and theology (Cambridge: Cam bridge
University Press, 1990).
48“Life: a story in search o f a narrator”, in: M . C. Doeser; J. N . Kraay, orgs., Facts and values:
Philosophical reflections fro m Western and non-Western perspectives (D ordrecht/B oston/L ancaster:
M artinus N ijhoff Publishers, 1986), p. 130.
49D . Carr, Time, narrative, and history (Bloomington: Indiana University Press, 1986); Carr,
“Narrative and the real world: an argum ent for continuity”, HTh 25 (1986), p. 117-31.
“ “Narrative”, p. 117.
51In: Poetics today 12 (1991), p. 591-601. A obra resenhada é The content o f theform , de Hayden
W h ite. Rigney conclui seu artigo com um a bibliografia selecionada e proveitosa sobre questões que
dizem respeito à narratividade, à historiografia e à teoria literária.
136 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍ BLIA

6. A função da história narrativa é, diferentemente do discurso analítico,


“contar como e não por que as coisas aconteceram”.
7. “(História) narrativa envolve um modo particular de percepção ou tipo de
explicação que é distinto da explicação nom otética e é próprio das ciências
históricas”.
8. “(História) narrativa se caracteriza por seu apelo retórico e suas qualidades
estéticas”.
9. “A ‘narratividade’ da história [...] é a promessa de um padrão significativo
nela; é a garantia de que o que é representado conterá significado”.
10. “Narrativismo” envolve um reconhecimento do “papel m ediador da lingua­
gem na produção de significado histórico”.52

Algumas dessas tentativas de descrever a essência da narratividade parecem


incompatíveis. Rigney observa, por exemplo, o conflito entre a noção de que
a história narrativa é um modo particular de explicação (n.° 7) e a afirmação de
que ela não conta “'por que as coisas aconteceram” (n.° 6).S3 Algumas parecem ser
injustificavelmente limitadas — por exemplo, a que restringe a história narrativa
a acontecimentos políticos (n.° 5), ou a implicação de que a história narrativa deve
exibir “apelo retórico e qualidades estéticas” (n.° 8). Em sua maioria, porém, essas
descrições são observações compatíveis e, quando reunidas, podem levar a uma
definição funcional de narrativa e de história narrativa. Se um a definição mínima
de “narrativa” for “a representação de um a seqüência de acontecimentos que estão
ligados de modo não aleatório”,54 então um a definição mínim a de “história narrativa”
será “a representação de um a seqüência de acontecimentos do passado que são reais
e que estão ligados de modo não aleatório”.
Um a definição mais ampla, que recorre às dez descrições mencionadas por
Rigney, poderia ser: “história narrativa” implica um a tentativa de expressar por
meio da linguagem (n.os 3, 10) o significado (n.° 9) — ou seja, um a explicação/
compreensão particular (n.° 1) — das relações em um a seqüência selecionada de
acontecimentos reais do passado (n.os 2, 7), com o objetivo de convencer outras
pessoas por meio de vários recursos, inclusive a força retórica e o apelo estético
da apresentação (n.os 3, 8), que a seqüência examinada tem sentido e que esse
sentido foi corretam ente compreendido. Assim, chegamos a um a definição de

“ Ibidem , p. S94-5.
53Ibidem , p. 595. E provável que os que fazem essa afirmação estejam expressando sua crença
(errônea) de que apenas os fatores de primeiro e segundo níveis — i.e., os aspectos ambientais e sociais de
grande escala — são as causas reais de m udança histórica (o “porquê”) e não os atores e ações particulares
do terceiro nível, que apenas explicam como a m udança histórica de fato inevitavelmente aconteceu.
54Ibidem , p. 591.
NARRATIV A E H I S T Ó R IA : RE LA TO S SOBR E O P ASSADO 137

“história narrativa” que não é diferente da definição mais sucinta que Ferdinand
D eist formulou para a “historiografia”: “um a explicação, na forma de um a narra­
tiva centrada e cuidadosa, da relação significativa que há em um a seqüência de
acontecimentos passados”.S5
Resumindo o que estudamos até aqui e desenvolvendo um pouco mais o racio­
cínio: a questão fundamental para nossa presente análise é se a “relação significativa
de um a seqüência de acontecimentos passados” é inerente aos próprios aconteci­
mentos ou é simplesmente imposta a eles pelo historiador. Nossa posição é que,
assim como o m undo físico tem um a estrutura, também a própria vida tem contor­
nos, estrutura e aspectos significativamente relacionados. E assim como a tarefa de
um artista realista é perceber os contornos do objeto e representá-los visualmente,
de igual maneira a tarefa do historiador é identificar os contornos do passado e os
aspectos significativamente relacionados, representando-os verbalmente. Esta con­
clusão não significa que o historiador não faça nenhum a escolha criativa e artística
(literária) nem que todas as representações históricas serão iguais (da mesma forma
que todas as pinturas de determinado objeto não são iguais). Todavia, significa, sim,
que a criatividade do historiador está limitada pelas condições reais do objeto e
que, à medida que focalizam aspectos iguais ou semelhantes do passado, histórias
legítimas terão alguma similaridade entre si.

A narratividade da historiografia (bíblica) e a questão da ficção

Se a própria vida não é um a confusão caótica de acontecimentos isolados, mas é


dotada de um a espécie de estrutura narrativa e de significado, então, um dos prin­
cipais impedimentos para levar a sério o A T como fonte histórica é eliminado.
Não se pode apenas citar a forma predominantemente narrativa de grande parte do
relato bíblico como argumento contra sua historicidade. É verdade que, como Hans
Barstad observa, “a historiografia bíblica é narrativa, centrada em acontecimentos e
pré-analítica” e, portanto, “não nos oferece o tipo de dados empíricos que Braudel,
cientista analítico não orientado pelos eventos nem pela narrativa, usaria”.56 Mas
isso não significa que a Bíblia esteja desqualificada como fonte histórica. Barstad
explica a questão de forma clara:

O fato de que narrativas sobre o passado e narrativas originadas no passado podem re­
presentar a realidade antiga tem se tornado cada vez mais claro não apenas para teóricos

53“Contingency, continuity and integrity in historical understanding: an O ld Testam ent perspec­


tive”, Scriptura 11 (1993), p. 99-115; citação na p. 106.
S6H . M . Barstad, “H istory and the H ebrew Bible”, in: L. L. Grabbe, org., Can a “history o f Israel"be
written? JS O T S 2 4 5 /E S H M 1 (Sheffield: Sheffield Academic, 1997).
138 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA

da história, mas também para estudiosos clássicos. Chegou a hora de historiadores do


antigo Israel/Palestina começarem a pensar da mesma maneira.57

Por enquanto, estamos indo bem e podemos apenas esperar que os “historiadores
do antigo Israel/Palestina” que tendem a desconsiderar textos narrativos, em geral, e
textos bíblicos, em particular, também realizem pesquisas mais amplas nesse campo.
Por mais relevantes que sejam os comentários corretivos de Barstad, sua análise
sobre a ficcionalidade na história narrativa é intrigante. Quase no fim de seu texto,
ele conclui que “a história narrativa não é ficção pura, mas contém um a mistura
de história e ficção”.58 Parece ter em mente que algumas partes de uma narrativa
podem ser históricas no sentido tradicional (correspondendo a alguma realidade
passada ou pelo menos tendo uma relação de coerência com ela), ao passo que
outras são apenas ficcionais (inventadas para causar impressão). Se este fosse o caso,
então, ao menos em princípio, se poderiam dividir os dois grupos. Barstad também
afirma que, correspondente à mistura de história e ficção, existem tipos distintos de
verdade. Ele escreve: “Se ‘verdades’podem ser de tipos diferentes, é im portante per­
ceber que atualmente não podemos mais alegar que a verdade histórica tradicional
é mais ‘valiosa’ ou mais ‘correta’ do que a verdade narrativa”.59
Se nosso entendim ento das ideias de Barstad está correto, então temos algu­
mas reservas baseadas novamente em nossa analogia da pintura. Ninguém diria
precisamente que um a pintura é um a mistura de história e ficção. E m certo sentido,
um quadro é totalmente histórico, visto que seu propósito básico é representar um
objeto histórico. Em termos ideais, cada pincelada no quadro serve a esse propósito.
Entretanto, em outro sentido, um quadro é totalmente um a ficção — ou seja, é
completamente “fabricado”, apenas tinta na tela. N enhum a pincelada ou combina­
ção de pinceladas duplica com exatidão o objeto histórico. Entretanto, o conjunto
de pinceladas retrata ou representa o objeto histórico. Devido ao fato de que um
quadro representa, mas não reproduz, seu objeto, não se pode legitimamente realizar
certos tipos de teste nele e seria também um contrassenso exigir que respondesse
a certas perguntas. Por exemplo, não se pode analisar o D N A de um pedaço de
“pele” arrancado do rosto de alguém retratado em uma pintura, nem faria sentido
culpar a pintura de uma pessoa que não está sorrindo por não revelar nada sobre a
higiene dental da época. No entanto, o fato de que os quadros são inadequados para
certos tipos de testes e investigações científicos não coloca em risco sua condição de
representações históricas exatas — como testemunhos do passado.

S7Ibidem , p. 62-3. Veja ad loc. a bibliografia citada por Barstad em apoio à sua afirmação.
58Ibidem , p. 64.
59Ibidem .
NARRATIV A E H I S T Ó R IA : RE LA TO S SOBRE O PASSADO 139

Aplicando a analogia ao assunto em questão, nosso argumento é que, na con­


dição de representação verbal, uma narrativa bíblica também não reproduz, mas
retrata o passado. Assim como um quadro, a narrativa bíblica, em certo sentido, é
uma fabricação, pois consiste em palavras no papel e não no passado propriamente
dito. Todavia, como a tinta sobre a tela, essas palavras no papel podem representar
com precisão o passado histórico. Além disso, assim como ocorre com os quadros,
não se deveria culpar a narrativa bíblica caso seja inadequada para certos tipos de
testes e investigações científicas. Toda essa análise não faria sentido, não fosse o
fato de que alguns estudiosos bíblicos e até historiadores parecem não perceber a
distinção entre ficcionalidade, no sentido de expressão artística ou de habilidade,
e ficção, no sentido de gênero literário.60 A primeira diz respeito a como se realiza
uma representação; a segunda, a o que é representado. Tanto o retrato quanto a his­
toriografia narrativa envolvem “fabricação” (ou, melhor, “expressão artística”), mas
nenhum dos dois é arte pela arte, o que leva a outra questão: a historiografia é mais
bem entendida como arte ou como ciência?

HISTORIOGRAFIA: ARTE OU CIÊNCIA?

Quando ouvimos o term o “arte”, tendemos a pensar em algo que gera prazer esté­
tico: uma obra literária, uma pintura, uma escultura ou um a peça musical. Q uando
ouvimos a palavra “ciência”, tendemos a pensar em métodos precisos cujo objetivo
é descobrir informações e fatos brutos. Q ual dos dois termos descreve melhor a
historiografia? O interesse básico da historiografia é estético ou informativo? Não
há dúvida de que é o interesse em transm itir informações (sobre o passado) que
distingue a história do romance (até mesmo de um romance histórico, que, em ­
bora contenha informação histórica, seu objetivo principal não é transm itir esse
tipo de informação). Porém, será que a ênfase da historiografia na transmissão de
informações sobre o passado a desqualifica como arte? Refletindo acerca de quão
pouco sabemos sobre “como e quando a maior parte dos textos históricos da Bíblia
eram de fato lidos”, M arc Brettler observa que “é provável que os autores que con­
sideram seus relatos importantes terão o bom senso de apresentá-los de um a forma
agradável, de sorte que serão ouvidos, lembrados e retransmitidos”.61 Em outras
palavras, conforme temos argumentado, historiadores narrativos — o que inclui­
ria os narradores bíblicos — revelam interesse não apenas na informação contida
em seus relatos, mas também no modo pelo qual são retoricamente elaborados.
Entendemos, por exemplo, que não é possível ter plena compreensão histórica das

60Para um a análise, veja Long, A r t o f biblical history, p. 60-3.


61Creation o f history, p. 139.
140 H I S T Ó R IA , H I S T O R I O G R A F I A E A B ÍBL IA

narrativas que descrevem a rejeição de Saul ou a apostasia de Salomão a menos que


prestemos atenção aos aspectos artísticos/retóricos de sua descrição literária.
Ao enfatizar as características artísticas das narrativas bíblicas, que apesar disso
continuam com o firme propósito de representação, não estamos em desacordo com
o que os historiadores fazem em geral. Aliás, os historiadores profissionais frequen­
tem ente citam a “analogia da arte”. Observe-se, por exemplo, a forma que Lawrence
Stone descreve o que considera “um a reconstrução extremamente brilhante de uma
mentalidade desaparecida, a evocação que Peter Brown faz do mundo da antigui­
dade tardia”:

Ele ignora as categorias comuns, claras e analíticas — população, economia, estrutura


social, sistema político, cultura e assim por diante. Em vez disso, Brown elabora o
retrato de uma era à maneira de um artista pós-impressionista, pincelando grosseira­
mente manchas coloridas aqui e ali, as quais, caso a pessoa se distancie o suficiente,
criam uma impressionante visão da realidade, mas que, examinadas de perto, dissol­
vem-se em um borrão sem sentido. A imprecisão intencional, a abordagem ilustrativa,
a justaposição particular de história, literatura, religião e arte, o interesse pelo que
ocorria nas mentes das pessoas — tudo isso é característica de uma maneira nova de
observar a história.62

Esse exemplo pode ser exagerado,63 mas a com paração da historiografia com
a arte não é única. E ntre os filósofos da história, defensores de um a abor­
dagem “pictórica” da representação histórica64 incluem H ayden W h ite

“ “Revival”, p. 17.
63Para Stone, o quadro pintado por Brown é “pós-im pressionista” e, na análise subsequente que faz,
é pontilhista, mas ainda assim ele o considera um a obra histórica. E claro que nem todos os pintores são
pós-im pressionistas e é possível pintar quadros em um a variedade de estilos, desde o altam ente realista
(quase fotográfico) até o totalm ente impressionista. A m pliando a analogia, além de quadros, outros
tipos de representação visual estão disponíveis em nossa era tecnológica: não apenas fotografias, mas
raios X, tomografias e recursos semelhantes. Se a pergunta for qual é o tipo de representação visual mais
acurada, a resposta dependerá m uito do tipo de informação que se busca. Para atender às necessidades
médicas, serão preferíveis os raios X e tomografias; um detetive de polícia possivelmente preferirá um a
fotografia; mas a m elhor m aneira de um a família lem brar-se da aparência e da personalidade de um
ente querido é colocar na parede da sala um retrato bem feito.
64N ão se deve confundir essa “abordagem pictórica” com a “teoria pictórica” da linguagem proposta
inicialm ente por W ittgenstein: “A explicação de W ittgenstein consiste na ideia notável de que um a
sentença é um quadro. E le quer dizer que é literalmente um quadro, não apenas como um quadro em cer­
tos aspectos” (N. M alcolm , “W ittgenstein, L udw ig Josef Johann”, in: P. Edwards, org., The encyclopedia
ofphilosophy [New York: M acm illan, 1967], vol. 8, p. 327-40; citação na p. 330). A filosofia posterior de
W ittgenstein rejeita im plicitam ente sua antiga “teoria pictórica” (ibidem, p. 336).
NAR RATIV A E H I S T Ó R I A : RE L A T O S SOBRE O P ASSADO 141

(já m encionado)65 e F rank A nkersm it.66 C om o dito sucintam ente por H ans
Kellner, A nkersm it apresenta

um desafio filosófico para o modelo literário do discurso histórico. Em contraste com a


textualização dominante em todos os aspectos da representação, Ankersmit apresenta
uma “preferência pelo quadro” que toma o texto, especialmente o texto histórico, uma
forma basicamente imagística [...]. Ankersmit defende que histórias têm a “densidade”
e a “abundância” características de pinturas em oposição a frases.67

Ele não tem intenção alguma de menosprezar o interesse renovado dos historiado­
res pela relação entre história e literatura. Aliás, elogia a importância e a lógica da
investigação dos aspectos literários de textos históricos. Ankersm it apenas crê que a
analogia da pintura proporciona um avanço conceituai adicional. Ele escreve:

Tendo em vista a natureza textual comum na literatura e na história, essa [abordagem


literária da história] é um passo evidente. E, caso a investigação queira focalizar as formas
textuais e retóricas do argumento histórico [...], essa abordagem literária do texto histórico
é certamente valiosa e enriquece nossa compreensão da natureza da pesquisa histórica.
No entanto, a equivalência verificada entre texto e pintura sugere um renversement
des alliances,68 em que não é a literatura, mas, sim, as artes visuais que servem de modelo
ou metáfora para o estudo da história.69

65A lém das obras de W h ite já citadas, seguem alguns exemplos de títulos relevantes, em ordem
cronológica: Metahistory: the historical imagination in nineteenth-century Europe (Baltimore e London:
Johns H opkins University Press, 1973); “Historicism , history, and the figurative im agination”, HTh
14 (197S), p. 48-67; “The fictions o f factual representation”, in: A. Fletcher, org., The literature offact:
selectedpapersfrom the English Institute (New York: C olum bia U niversity Press, 1976), p. 21-44; Tropics
o f discourse: essays in cultural criticism (Baltimore e L ondon: Johns H opkins University Press, 1978); “The
value o f narrativity in the representation o f reality”, CriticaiInquiry 7 (1980), p. 5-27; “The question o f
narrative in contem porary historical theory”, HTh 23 (1984), p. 1-33.
“ Veja, e.g., F. R. A nkersm it, “H istorical representation”, HTh 27 (1988), p. 205-28;
“H istoriography and postm odernism ”, HTh 28 (1989), p. 137-53; “Statem ents, texts and pictures”, in:
F. Ankersm it; H . Kellner, orgs.,yí new philosophy o f history (Chicago: University o f Chicago Press, 1995),
p. 212-40; “H ayden W h ite s appeal to the historians”, HTh 37 (1998), p. 182-93; “D anto on
representation, identity, and indiscernibles”, H Th 37 (1998), p. 44-70.
67“Introduction: describing redescriptions”, in: Ankersm it; Kellner, orgs., A new philosophy o f
history, p. 1-18; citação na p. 8.
68Essa expressão francesa significa literalm ente “reversão de alianças” e pertence ao contexto da
Revolução D iplom ática de 1756, que reform ulou o sistema tradicional de alianças entre as nações eu-
ropeias. A expressão é usada aqui para destacar a nova relação da produção textual com as artes visuais
e não mais com a arte literária. (N. do E.)
69“Statem ents, texts and pictures”, p. 238.
142 H I S T Ó R IA , H I S T O R I O G R A F I A E A B ÍBL IA

Com base em nossa caracterização da historiografia como pintura, evidentemente


consideramos importante a “ênfase do quadro” de Ankersmit. Contudo, permanece­
mos conscientes de certos perigos, sendo que o principal é o tipo de construcionismo
absoluto analisado anteriormente.70 Certos ou errados, tanto W hite quanto Ankersmit
são acusados de permitir que historiadores narrativos tenham “liberdade ‘artística’
irrestrita” na composição de suas histórias.71 Opondo-se à visão construcionista extrema,
Chris Lorenz insiste que “os historiadores não reivindicam apresentar apenas um
relato, mas um relato verdadeiro, e essa reivindicação de veracidade é a característica
que os distingue”.72 Conforme já argumentamos, os historiadores não têm liberdade
para im por a determinado conjunto de “fatos” individuais qualquer estrutura de en­
redo, assim como os pintores não têm liberdade para impor aos traços faciais (“fatos”)
da pessoa retratada a estrutura facial que bem entendem. N a realidade, a capacidade
para organizar os aspectos do modelo em uma relação correta uns com os outros distin­
gue o bom pintor do ruim. D e modo semelhante, a capacidade de estruturar os “fatos”
históricos individuais em uma relação correta uns com os outros distingue um bom
historiador do ruim. Cada pincelada deve ser “precisa”; em outras palavras, tem de
alcançar seu objetivo de representação (uma única pincelada pode ser suficiente para
representar, digamos, um a sobrancelha com bastante precisão). Entretanto, ainda mais
importante, o efeito total da combinação de pinceladas deve atingir “com precisão”
seu objetivo de representação. A diferença entre as pinceladas isoladas e o retrato
completo do qual fazem parte é de grau, não de natureza. Exatamente por isso, nas
palavras de Lorenz, “a diferença entre declarações isoladas e narrativas [históricas]
completas é [...] de grau e não de natureza”P Insistir dessa forma que não apenas
pinceladas ou fatos isolados, mas também retratos e narrativas completos devem ser
fiéis a seu objeto histórico não quer dizer de modo algum que somente um único
retrato ou uma única narrativa podem ser uma representação fiel de um objeto his­
tórico. Depende muito não apenas do ângulo de abordagem, das ênfases escolhidas e
da luz sob a qual o objeto é visto, mas ainda do estilo pessoal do artista/narrador, que
também influencia o produto acabado.
Todo esse foco na elaboração criativa mas com limites ressalta o papel do histo­
riador de obter primeiro um a visão do passado para depois comunicá-lo. Enfatiza,
em outras palavras, a “voz” do historiador — ênfase que tem enfrentado resistência
em alguns grupos. Como observado por Kellner:

70N a seção “Narratividade: realidade ou ilusão”, já observamos as críticas que W illiam D ray
faz a W hite.
71Essa é a acusação de C. Lorenz, “C an histories be true? Narrativism, positivism, and the
‘m etaphorical turrí”, HTh 37 (1998), p. 309-29, citação na p. 323.
72Ibidem , p. 327.
73Ibidem , p. 324-5.
NA R RATIV A E H I S T Ó R IA : RE LA TO S SOBR E O P ASSADO 143

Tradicionalmente, a voz do historiador tem causado desconforto entre aqueles que vis­
lumbram uma visão direta do passado como a utopia do discurso histórico. Para esses
realistas históricos, o ideal seria uma história composta do mundo em que cada história
em particular se combinasse harmoniosamente com o restante em uma imensa totali­
dade constituída de muitos autores, mas formando uma voz única e clara.74

Kellner associa o desconforto com a voz do historiador à “desretoricização do


estudo histórico” e considera que talvez o interesse renovado pelos aspectos literá­
rios da historiografia seja o arauto de “um ressurgimento da voz pessoal”.75 Como
Ankersm it observa, o fato é que “quando fazemos um a pergunta histórica, que­
remos um relato, um comentário sobre o passado, e não um simulacro do próprio
passado”.76 O u seja, queremos alguma explicação sobre a significância do passado,
não apenas um a imagem refletida dele. Se alguém aceita como definição de história
“um discurso que é basicamente retórico”,77 envolvendo “objetos estéticos padroni­
zados que fazem certas alegações sobre o mundo e nossa relação com ele”,78 então
é inevitável o reconhecimento da centralidade da visão e da voz do historiador.
A história realmente existe como objeto do historiador, mas é possível representá-la
fielmente com mais de um único retrato-narrativa feito por mais de um historiador.
A história é um a só, mas as historiografias podem ser muitas.

A LEITURA DA HISTORIOGRAFIA NARRATIVA

“Não temos conversado suficientemente a sério sobre a arte da história”, afirma


David Levin.79 Neste capítulo, tentamos conversar seriamente sobre a narrativa his-
toriográfica bíblica como arte e história, não como uma divisão meio a meio, uma
mistura de fato com ficção, mas como história verdadeira, apresentada habilidosa­
mente. Assim como Levin, discordamos da “suposição [muito comum] de que uma
lei natural determ ina certa oposição entre a boa literatura e a história séria, entre
artifícios literários e precisão fatual”.80 Nossa posição é de que essa suposição não
é mais sensata do que a hipótese de que um a lei natural determ ina certa oposição
entre a boa arte e a descrição séria.

74H . Kellner, “Introduction”, p. 4.


75Ibidem , p. 5.
■ 76“D anto”, p. 67-8.
77Kellner, “Introduction”, p. 2.
7SIbidem , p. 18.
79/« defense o f histórica! literature: essays on American history, autobiography, drama, and jiction
(New York: H ill and W ang, 1967).
“ Ibidem , p. 3.
144 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA

A seguir, tentaremos aperfeiçoar nossa habilidade para interpretar textos antigos,


em especial as narrativas bíblicas, e assim compreender sua importância histórica.
Essa busca exige que levemos os textos a sério em sua integridade. Concordamos
novamente com Levin quando diz que “o interesse supremo [do crítico responsável]
será o valor da obra toda e não apenas a validade de seu conteúdo passível de pará­
frase, isto é, de seu argumento. [O crítico responsável] se dedicará tanto à relação
entre o argumento e a forma quanto à linguagem em que o texto é apresentado”.81
Assim como críticos de pinturas precisam se preocupar com as maneiras que os
meios artísticos servem a fins referenciais, de igual modo os leitores das narrativas
bíblicas devem se preocupar com as maneiras que a arte literária serve à represen­
tação histórica. Portanto, como Levin continua a argumentar: “Um a das primeiras
contribuições que o crítico da história pode fazer é servir de leitor inteligente que
deseja compreender e analisar a estrutura retórica em que a história está escrita”.82
A atenção à expressão artística literária tem importância especial quando se lida
com as narrativas de orientação idiográfica da Bíblia.83 Mais um a vez, os comentá­
rios de Levin sobre a obra dos historiadores em geral são proveitosos:

Em especial, quando se descrevem personagens ou grupos humanos e suas ações, os


historiadores devem tomar várias decisões literárias de extrema importância. Quer essas
decisões sejam feitas intencionalmente, quer não sejam, elas precisam ser examinadas
por toda crítica que almeje compreender a arte da história...84

Levin oferece um a lista com algumas “decisões literárias” que os historiadores


deveriam tomar:

Qual princípio organizador descoberto pelo historiador em seus materiais pode lhe dar
condições de relacionar um episódio em um momento específico com outro?

Quais princípios de forma ele adota para expressar essa percepção?

81Ibidem . C om frequência, os estudiosos bíblicos observam que algo sempre se perde quando um
poem a (e.g., um salmo) é reduzido a um a m era paráfrase de seu conteúdo. Bem poucos estudiosos
questionariam a ideia básica de que o valor e a essência de um poem a bíblico abrangem mais do que
seu conteúdo parafraseável. Contudo, frequentem ente não se percebe o fato de que o mesmo se aplica
às narrativas em prosa.
82Ibidem , p. 23.
“ E m bora não sejam totalm ente irrelevantes para as questões de prim eiro e segundo níveis (no-
m otéticas) que caracterizaram a escola dos Annales e continuam a caracterizar hoje em dia um a parcela
dos estudos do AT, as narrativas bíblicas se ocupam principalm ente de questões de terceiro nível
(idiográficas) envolvendo pessoas e grupos e suas ações distintas.
u Defense, p. 31.
NAR RATIV A E H I S T Ó R IA : RE LA TO S SOBR E O P ASSADO 145

Como ele define “o povo”, ou os grandes grupos de pessoas, e que técnicas emprega para
apresentá-lo(s)?

De que forma, tanto em citações quanto em paráfrases, ele utiliza a linguagem de


suas fontes?

Como seleciona detalhes para a descrição de personagens?

De qual ponto de vista — ou seja, tecnicamente falando, de qual posição — o autor


descreve os acontecimentos?

Como ele apresenta as conjecturas e as distingue do que considera fatos documentados?

Como organiza os acontecimentos de modo que aqueles que considera mais impor­
tantes pareçam de fato ser os mais importantes?

Como o autor passa das evidências particulares para a avaliação geral e que relação
estabelece entre a personagem ou o incidente típico e a realidade mais ampla que tal
personagem ou incidente representam?85

É im portante observar que essa lista de perguntas que os historiadores deveriam


fazer é bem parecida com as listas de perguntas que os analistas literários da Bíblia
devem fazer. E m seu livro recente sobre a arte narrativa na Bíblia,86Jan Fokkelman
apresenta a seguinte lista de dez (grupos de) perguntas elaboradas com o intuito de
facilitar a leitura cuidadosa e adequada das narrativas bíblicas.87

1. Quem é o heróft. Com base em que você chegou a essa conclusão? (Pense em critérios
como presença, iniciativa e quem realiza a missão.)

2. O que constitui a missão? O que o herói procura, ou seja, qual é o objetivo almejado?
O herói tem êxito? Em caso negativo, por que não?

85Ibidem , p. 31-2.
86J. P. Fokkelman, Vertelkunst in de bijbel: Een handleiding bij literair lezen (Zoeterm eer:
Boekencentrum , 1995). A obra está agora disponível em inglês: Reading biblical narrative: an introductory
guide (tradução I. Smit, Louisville: W estm inster John Knox, 1999).
87Q uero agradecer a Peter W illiam s e a meus amigos de longa data Kees e D oris M innaar por
revisarem m inha tradução do holandês. Q uaisquer erros ainda presentes são, é claro, de m inha inteira
responsabilidade. (O leitor talvez queira agora com parar com a tradução de Sm it em ibidem, p. 208-9.)
146 H I S T Ó R IA , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA

3. Quem são os coadjuvantes e os antagonistas? Deve-se considerar pessoas, bem como


fatores, situações ou características. Existem atributos (objetivos) presentes? Qual a con­
tribuição deles? Eles têm valor simbólico?

4. Você percebe a presença do narrador em todo lugar no texto? Isso se aplica, acima de
tudo, a trechos em que ele oferece informação, comentário, explicação ou avaliação basea­
dos em sua perspectiva. Você consegue indicar a forma de discurso do escritor? Em que
aspectos o escritor não é tão diretamente percebido (e.g., por meio de sua estruturação
ou composição)? Ele se permite a liberdade de falar em pontos estratégicos do texto?

5. O narrador se atém à cronologia dos acontecimentos e os organiza? Em caso negativo,


quando ele diverge da seqüência cronológica, por que você acha que ele procede assim?
Explique sua impressão da relação entre o tempo narrativo e o tempo narrado.

6. Em que partes há lacunas no tempo narrado estimado: existem casos de aceleração,


desaceleração, retrospectiva e prospecção? Pressupondo que foi o escritor que os intro­
duziu no momento exato, por que estão situados naquele ponto? Qual é a relação deles
com seu contexto?

7. O enredo é claro ou é até certo ponto ausente na unidade que você está lendo, pois
ela faz parte da narrativa maior? Nesse caso, qual é, então, o macroenredo que controla
a narrativa maior?

8. Onde estão os diálogos? São muitos? São omitidos nas passagens em que você espe­
raria encontrá-los? Que fatores dirigem o enunciador de um discurso, quais são seus
interesses pessoais, quais são o contexto, os desejos e as expectativas? As palavras da
personagem estão de acordo com seus atos? Em caso negativo, por que não? Há no texto
elementos que enfatizam ou sugerem que o escritor aprova ou louva sua personagem?

9. Que escolhas de palavras chamam sua atenção? Quais são outras características de
estilo ou estruturai Leve-as a sério, reflita sobre elas, fazendo perguntas como: de que
maneira isso contribui para o enredo ou para a descrição das personagens?

10. Quais meios foram empregados para delimitar a unidade? (Considere os aspectos
de tempo, espaço, início/fim da ação, aparecimento ou desaparecimento de persona­
gens.) Com base em que sinais você realiza essa delimitação? Tente encontrar ainda
outros sinais ou indicadores que favoreçam outra divisão. Em que medida a divisão que
você vê no texto esclarece o tema ou o conteúdo?88

w Vertelkunst, p. 214-5.
NA R RATIV A E H I S T Ó R IA : RE LA TO S S O BR E O P ASSADO 147

Não nos surpreende que perguntas como essas apareçam em um livro que ensina
a ler a Bíblia como literatura. O que é mais surpreendente é o grau de fatores em
comum entre essas perguntas e aquelas que Levin insiste que os historiadores devem
fazer. Perguntas sobre a perspectiva, a caracterização, o uso de diálogo, a seqüência e
a disposição de acontecimentos e até mesmo o enredo (i.e., a primeira pergunta de
Levin) são o dia a dia de analistas literários, mas podem parecer estranhas para os que
desejam extrair informações históricas de textos. Entretanto, quando se considera a
natureza das narrativas bíblicas, fica evidente quão fundamentais tais perguntas são
para o historiador. Por isso, a seguir, faremos uma breve introdução a alguns recursos e
diretrizes que dizem respeito à poesia bíblica ou à crítica narrativa.89

A POESIA DA NARRATIVA BÍBLICA

As últimas décadas têm testemunhado um aumento significativo do número de


publicações que tratam da poesia da narrativa bíblica. Inúmeras análises extensas
oferecem orientação para estudantes iniciantes e intermediários, das quais a mais
influente talvez seja a de R. Alter;90 e há, ao menos, um a obra mais avançada, escrita
por M . Sternberg.91 Vários artigos também oferecem introduções acessíveis e esti­
mulantes ao funcionamento da narrativa do AT.92 O objetivo de cada um a dessas

89A análise a seguir é, em parte, um a adaptação das p. 105-9 do capítulo “Reading the O ld
T estam ent as literature”, de V. P. L ong (in: C. C. Broyles, org., Interpreting the Old Testament: a guidefor
exegesis [G rand Rapids: Baker, 2001], p. 85-123).
90R. Alter, The art o f biblical narrative (N ew York: Basic Books, 1981). O utras análises bastante
úteis são S. B ar-Efrat, Narrative art in the Bible (tradução para o inglês D. Shefer-Vanson [Sheffield:
A lm ond Press, 1989]); A. Berlin, Poetics and interpretation o f biblical narrative (Sheffield: A lm ond Press,
1983); D . M . G unn; D . N . Fewell, Narrative in the Hebrew Bible, OBS (Oxford: O xford University
Press, 1993); T. Longm an, Literary approaches to biblical interpretation, F C I 3 (G rand Rapids; Z onder-
van, 1987); J. L. Ska, S. J., “Ourfather has told us": introduction to the analysis o f Hebrew narratives, SBib
13 (Rome: E ditrice Pontifico Istituto Biblico, 1990).
n The poetics o f biblical narrative: ideological literature and the drama o f reading (Bloomington:
Indiana University Press, 1985).
92Seguem-se alguns exemplos desses textos: R. Alter, “H ow convention helps us read: the case o f the
Bibles annunciation type-scene”, Prooftexts 3 (1983), p. 115-30; C. E. Arm erding, “Faith and m ethod in
O ld T estam ent study: story exegesis”, in: P. E. Satterthwaite; D . F. W right, orgs,,A pathw ay into theHoly
Scripture (G rand Rapids: Eerm ands, 1994), p. 31-49; R. P. Gordon, “Simplicity o f the highest cunning:
narrative art in the O ld T estam ent”, S B E T 6 (1988), p. 69-80; V. P. Long, “Recent advances in literary
m ethod as applied to biblical narrative”, cap. 1 de Reign and rejection-, R. E. Longacre, “Genesis as soap
opera: some observations about storytelling in the H ebrew Bible”,J T T 7, n. 1 (1995), p. 1-8; S. Prickett,
“The status o f biblical narrative”, Pacifica 2 (1989), p. 26-46; P. E. Satterthwaite, “Narrative criticism:
the theological implications o f narrative techniques”, in: W . VanGemeren, org., The new international
dictionary o f Old Testament theology and exegesis, 5 vols. (G rand Rapids: Zondervan), vol. 1, p. 125-33.
148 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA

obras é levar o leitor a uma compreensão mais profunda do discurso narrativo do A T93
e, desse modo, a um a compreensão mais profunda do significado e da importância
das narrativas bíblicas. Embora, como observado por Alter, existam “elementos de
continuidade ou pelo menos de analogia nos modelos literários de épocas dife­
rentes”, tornarem o-nos melhores leitores de narrativas bíblicas caso adotemos um a
“atitude consciente da perspectiva histórica” em relação às “diferenças permanentes
e interessantes” entre nossos métodos narrativos e os da Bíblia.94
Tentar apresentar aqui um estudo completo da poesia da narrativa bíblica não
teria m uita utilidade, visto que tais abordagens estão facilmente disponíveis nas
obras já citadas e em outros textos. M as pelo menos algumas diretrizes são neces­
sárias para que possamos ler responsavelmente as narrativas bíblicas com o objetivo
de compreender sua importância histórica. É possível descrever as narrativas bíbli­
cas com três adjetivos: cênica, sutil e sucinta.
As narrativas doATsão cênicas — não no sentido de descrições detalhadas do am­
biente físico ou da cena, mas sim, na forma que um palco teatral inclui cenas. Como
ocorre em um palco, as narrativas do a t mostram mais do que contam. É bem raro
o narrador dizer explicitamente ao leitor como essa ou aquela personagem/ação deve
ser avaliada (embora às vezes isso ocorra). Em vez disso, ele mostra ao leitor as perso­
nagens agindo e falando e, com isso, o leitor é levado a participar do relato e desafiado
a tirar suas conclusões avaliadoras. Em outras palavras, o leitor passa a conhecer e a
entender as personagens da narrativa de uma forma bem parecida com a que ocorre
na vida real: observando o que elas fazem e ouvindo o que dizem. A natureza cênica
da narrativa do a t conduz com muita naturalidade a um segundo aspecto dominante.
As narrativas doATsão sutis. Como já sugerido, em geral, os narradores do A T são
relutantes em apresentar de forma direta suas ideias, preferindo fazê-lo com mais
sutileza. Para isso, ao desenvolverem as caracterizações da narrativa e ao chamarem
a atenção do leitor para os aspectos da narrativa que têm poder de persuasão, os
escritores empregam um conjunto de meios mais indiretos. Por exemplo, a m en­
ção de detalhes físicos é rara ou até mesmo aleatória. Se lermos que Esaú tinha
bastante pelo, que Eúde era canhoto, que Eglom era obeso e que Eli era corpu­
lento e sua vista estava enfraquecida, deveríamos antecipar (mas não insistir) que de
alguma maneira esses detalhes ajudam nas caracterizações ou na dinâmica do relato.

93E m What is narrative criticism (M inneapolis: Fortress, 1990), M . A. Powell distingue entre dois
aspectos da narrativa: relato e discurso. “Relato se refere ao conteúdo da narrativa, do que ela trata. U m
relato consiste em elem entos como acontecimentos, personagens e ambientes, e a interação desses ele­
m entos form a o que cham am os de enredo. Discurso se refere à retórica da narrativa, como a história é
contada. E possível com por relatos sobre os mesmos acontecimentos, personagens e ambientes básicos
de form a que produzam efeitos bem diferentes” (p. 23).
94“Convention”, p. 117-8.
NARRATIV A E H I S T Ó R I A : RE LA TO S SOBR E O PASSADO 149

Às vezes, as palavras ou os atos de um a personagem servem como comentários


indiretos das palavras ou atos de outra personagem. Por exemplo, quando Jônatas
faz a observação de que “nada impede o S e n h o r de livrar com muitos ou com
poucos” (IS m 14.6), isso coloca a desculpa dada por Saul no capítulo anterior —
“o exército estava [...] se dispersando” (13.11) — sob um enfoque diferente da pri­
meira leitura. Até mesmo pequenas mudanças no comentário que o narrador faz
acerca dos acontecimentos podem ter implicações mais amplas, não apenas literá­
rias, mas também históricas. Logo após a incumbência dada em IReis 2.1-9 pelo rei
Davi a seu sucessor, Salomão, o narrador registra a morte de Davi (v. 10) e observa
(v. 12) que “o seu reinado [de Salomão] foi firmemente estabelecido” (NVI; expressão
enfatizada pelo hebraico rrí’õã), e isso sem que Salomão tivesse feito algo. Segue-se
um relato em que Salomão elimina Joabe e Simei (v. 13-46), pessoas que seu pai
considerava perigosas, e a história term ina com outro comentário feito pelo narrador
(semelhante, mas não idêntico ao do v. 12): “Assim foi confirmado o reino na mão
de Salomão” (v. 46). Desapareceu o advérbio mc’õd, traduzido por “firmemente” no
v. 12. Acrescentou-se a expressão “na mão de Salomão”, que nesse contexto é mais
bem traduzida por “pela mão de Salomão”. Sem afirmar de imediato, o narrador dá
a entender que os esforços de Salomão em estabelecer seu reino pelas próprias mãos
redundaram em nada ou foram praticamente nulos. Seus primeiros dias como rei
são “um relato bem sórdido de busca pelo poder político”.95 Portanto, não é de se
admirar que, no capítulo seguinte, Salomão confesse sentir-se como alguém “muito
novo” que não sabe “comandar o povo na guerra” (3.7).96 É irônico que não será ape­
nas a notícia da m orte de Davi, mas em especial a de Joabe, que provocará a volta do
edomita Hadade (lR s 11.21), o primeiro adversário suscitado por Javé (lR s 11.14)
quando se torna necessário “castigar” o apóstata Salomão “com açoites aplicados por
hom ens” (2Sm 7.14, N V I).97 Se com frequência essas sutilezas passam despercebi­
das pelos leitores atuais, elas escapam muito mais da leitura dos historiadores, mas
podem se revelar essenciais para um a análise e reconstrução corretas.
As narrativas do A T são sucintas. Talvez em parte devido às limitações para
escrever de m odo cênico ou episódico, os narradores bíblicos tendem a ser eco­
nômicos no exercício de sua arte. Eles alcançam o mais elevado grau de definição
e cor ao usar o m ínim o de pinceladas. Em bora tenham sido escritos, os relatos
bíblicos foram “elaborados para serem ouvidos em um a reunião. E m um a apresen­
tação ‘ao vivo’, o contador de histórias trabalha cada expressão com seu público.

95I. W . Provan, 1 a n d 2 Kings, N IB C (Peabody: H endrickson, 1995), p. 40.


96Veja análise em ibidem, p. 47-8.
97A inda outra ironia é que, para atacar Salomão, H adade foi solto “por um antigo inimigo de Israel
[o faraó], a quem ele [Salomão] havia insensatam ente tratado como amigo, (lR s 3.1)” (ibidem, p. 95).
150 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA

Um a nuance, uma alusão aguarda quase toda palavra”.98 A própria natureza sucinta
das narrativas bíblicas é um convite a prestar bastante atenção aos detalhes, ain­
da mais porque os narradores bíblicos eram mestres em chamar a atenção para
elementos centrais em seus textos. Eles utilizam toda form a de repetição para
grande proveito: palavras e raízes de palavras (i.e., Leitworte), temas, situações
semelhantes (às vezes denominadas “cenas-padrão” ou “situações características”)
e coisas do gênero. Com frequência, o resultado da repetição é ressaltar um tem a
ou a preocupação central em um a narrativa, por exemplo, na repetição da expres­
são “ouvir a voz/ruído” em ISam uel 15. No início do capítulo, Saul é exortado a
“ouvir a voz” (v. 1) do Senhor e destruir todos os amalequitas (pessoas e animais);
mais tarde ele afirma que o fez (v. 13); Samuel responde indagando sobre a “voz”
que está ouvindo das ovelhas e do gado (v. 14); Samuel e Saul discutem se Saul
“deu [ou não] ouvidos à voz” do Senhor (v. 19,20, AR C ); quando Saul tenta jus­
tificar sua falha em não dar ouvidos alegando que poupou os animais apenas
com o intuito de sacrificá-los ao Senhor, Samuel responde que “ouvir [“obedecer”,
A21] a voz” do Senhor é m uito mais im portante do que sacrificar (v. 22); e Saul
admite com relutância que deu “ouvidos à [...] voz”do povo (v. 24). Em bora o leitor
atento, com base no fluxo geral da passagem, possa certamente concluir que a (des)
obediência de Saul é o tem a central, a atenção à estrutura literária da passagem
ressalta e enriquece essa percepção.99
Nossa rápida descrição da natureza cênica, sutil e sucinta das narrativas bíblicas
apenas começa a tocar a superfície. Além desses fatores básicos, os leitores — mesmo
aqueles (ou talvez especialmente aqueles) cujos interesses estão nas questões histó­
ricas — obterão grande proveito se imergirem nas obras mencionadas acima, em
especial as de Alter, Longm an e Sternberg. A questão central é que relatos bíblicos
devem ser primeiro apreciados como narrativas antes de ser usados comofontes históricas
— da mesma forma que não podem ser rejeitados como fontes históricas simples­
mente por terem forma narrativa. Aliás, não apenas as narrativas bíblicas, mas os
textos do Antigo O riente Próximo em geral revelam padrões e estruturas literários.
Nem são apenas as narrativas bíblicas que falam, por exemplo, de envolvimento ou
intervenção divina em assuntos militares. Tais referências são comuns nos relatos
de guerra do Antigo O riente Próximo.100 E isso não leva os estudiosos a concluir

98E. L. Greenstein, “Biblical narratology”, Prooftexts 1 (1981), p. 201-8; citação na p. 202.


"V eja V. P. L ong, “F irst and Second Sam uel” (in: L. Ryken; T. L o n g m a n I II, o r g s A complete
literary guide to the Bible [G ra n d R apids: Z o ndervan, 1993], p. 165-81, em especial as p. 170-2),
em que estão descritos esse e outros exem plos de estilo de palavras-chave e tam bém de jogos
de palavras.
100Veja, e.g., R. K. Gnuse, “H oly history in the H ebrew Scriptures and the ancient world: beyond
the present debate”, B T B 17 (1987), p. 127-36; A . R. M illard, “Israelite and A ram ean history in the
NA R RATIV A E H I S T Ó R IA : RE LA TO S S O BR E O P ASSADO 151

que esses relatos não tenham valor histórico. Por que deveria ser diferente com as
narrativas bíblicas?101

EXEMPLO: SALOMÃO NO TEXTO E NO TEMPO

Falamos bastante sobre a importância de prestar atenção aos aspectos literários e


descritivos da historiografia em geral e às narrativas bíblicas em particular. Ao nos
aproximarmos da conclusão deste capítulo, talvez seja útil apresentar um exemplo
específico, cuja análise trate não apenas do “cuidado na leitura”, mas tam bém de
outras questões mencionadas em capítulos anteriores. Portanto, esse exemplo apre­
senta uma conclusão adequada para os capítulos 1 a 4 e nos prepara para começar a
observar as questões tratadas no capítulo 5.
Em A history ofancient Israel andJudah [Uma história do Israel e Judá antigos],102
obra publicada em 1986, J. M . M iller e J. Hayes fazem uma extensa análise do rei
Salomão na história e na tradição. Em sua perspectiva, o Salomão que encontramos
em Reis é em grande parte o Salomão idealizado na lenda, não o Salomão histórico.
D e fato, segundo eles, os editores de IReis 1— 11 apresentam seu reinado de uma
forma artificial e esquemática — algo dúbio como relato histórico. Esses editores
retratam Salomão no período inicial e mais importante de seu reinado como um go­
vernante que foi fiel a Deus e que alcançou um a “era dourada”, e descrevem o período
posterior como anos de apostasia, durante os quais Salomão experimentou reveses.
A própria cronologia de seu reinado não deve ser interpretada literalmente, pois os
números envolvidos são claramente simbólicos. Se a história deve ser encontrada em
IReis 1— 11, então, conforme sugerido por Miller e Hayes, não se deve procurá-la
nas extensas afirmações e generalizações do texto, mas sim em aspectos dos relatos
sobre a subida de Salomão ao trono e suas atividades cultuais. Encontra-se história
especialmente nos detalhes do texto que conflitam com o quadro de Salomão que os
editores de Reis quiseram transmitir (e.g., o episódio envolvendo Jeroboão de Efraim
em IR s 11.26-40). O relato de Crônicas acerca do reinado de Salomão está ainda
mais distante da história. Crônicas depende bastante de Reis e em grande parte o
reproduz, mas ao mesmo tempo oculta todos os aspectos negativos do reinado de

light o f inscriptions”, TynBul 41 (1990), p. 261-75, em especial as p. 267-9; J. H . W alton, “C ultural


background o f the O ld T estam ent”, in: D . S. D ockery et al., orgs., Foundationsfor biblical interpretation
(Nashville: Broadm an and H olm an, 1994), p. 266-7.
101S. B. Parker argumenta, por exemplo, que nas inscrições régias encontradas em Zinjirli que
contêm essas referências descobrimos relatos que não possuem correspondência m aior nem m enor com
a “história” do que os relatos sobre A sa e Acaz (“Appeals for m ilitary intervention: stories from Zinjirli
and the Bible”, B A 59 [1996], p. 213-24).
102A history o f ancient Israel andJudah (Philadelphia: W estm inster, 1986).
152 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍ BLIA

Salomão encontrados em Reis e desenvolve o papel de Salomão como construtor do


templo e cofimdador do culto em Jerusalém, junto com Davi. Esse relato não oferece
ajuda significativa para a reconstrução de uma era salomônica histórica.
Por isso, de acordo com M iller e Hayes, para o historiador interessado no
Salomão histórico, os livros de Crônicas e Reis não são de muita ajuda (exceto
casualmente e em pequena medida). O Salomão do texto bíblico está, em grande
parte, desassociado do Salomão da história. Contudo, o raciocínio deles é ques­
tionável em vários aspectos. No centro da questão, há um a distinção indefensável
entre os textos contidos em IReis 1— 11 que, conforme afirmam, nos informam
o que os editores de Reis realmente quiseram dizer sobre Salomão e os textos que,
segundo dizem, não dão informação sobre isso (e que, por esse motivo, podem ter
mais utilidade para o historiador do que a parte principal do material). Continua
sendo um mistério qual o exato processo que alguém supostamente tem de seguir
para determ inar a diferença entre os dois tipos de texto, um problema cuja solução
os próprios M iller e Hayes não conseguem apresentar sequer um a sugestão, por
m enor que seja. D e qualquer maneira, por que os editores de Reis incluiriam em
seu relato textos que conflitavam com o quadro geral de Salomão que desejavam
pintar? N a perspectiva de M iller e Hayes, os autores de Crônicas não tiveram tais
escrúpulos; simplesmente omitiram qualquer material ofensivo. Então, os editores
de Reis foram “melhores historiadores” do que os autores de Crônicas, incluindo de
forma deliberada material que reconheciam não ser consistente com a perspectiva
geral deles? M as então, se escolheram intencionalmente o material, será que, ao
concebermos o retrato de Salomão que desejavam que víssemos, não deveríamos
tratar com igual seriedade todo o seu material?
Os próprios M iller e Hayes acreditam que os editores de Reis tinham consciência
do conflito entre “as extensas afirmações sobre a sabedoria, a riqueza e o poder de
Salomão, de um lado, e as poucas informações que parecem destruir essas afirma­
ções, por outro lado...” (p. 196). Os editores lidaram com esse conflito utilizando
exatamente uma apresentação artificial e esquemática do reinado de Salomão, na
qual o reinado é constituído de duas partes bem distintas. Contudo, isso não explica
o fato de que em IReis 1— 10 (antes de chegarmos à decadência de Salomão no
cap. 11) já existe material que, como M iller e Hayes reconhecem, sugere um reinado
salomônico de proporções mais modestas e realistas do que o que eles dizem que
os editores de Reis queriam transmitir. Por que se deveria considerar que todo esse
material não teve realmente a intenção de nos apresentar a visão dos escritores
bíblicos acerca de Salomão? Entretanto, caso se aceite que o material está realmente
nos informando sobre isso, o que então acontece com a apresentação simplista e
esquemática do reinado de Salomão, a qual os editores de Reis supostamente nos
forneceram? Parece que o raciocínio não faz muito sentido. N a verdade, a exegese
NARRATIV A E H I S T Ó R IA : RELA TOS SOBR E O PA SSADO 153

recente sobre IReis 1— 11 mostrou que a mudança existente no centro da apresen­


tação — a divisão comum do reinado de Salomão em dois períodos distintos (bom
Salomão/mau Salomão) — carece de evidência textual. No final, percebeu-se que
essa “divisão” é mais um a elaboração da imaginação de leitores modernos do que a
estrutura que os autores dos textos realmente estabeleceram. Aliás, a divisão revelou
ser fruto de uma leitura descuidada. Um a leitura atenta sugere que os autores de
Reis estão bem longe de tentar idealizar Salomão, mesmo no período inicial de
seu reinado. Já em IReis 1— 4 aparecem sugestões de ambigüidade e inconstância
na vida do rei. E, à medida que seu reinado progride, Salomão é apresentado como
alguém que vai aos poucos se envolvendo em trevas.103 É difícil entender como tal
representação pode ser descrita como “artificial”, embora juízos como esse, é claro,
dependam muito da concepção geral da pessoa acerca da realidade.
Portanto, se o retrato de Salomão feito pelos autores de Reis é bem mais com­
plexo do que se admite, o que permanece das objeções de M iller e Hayes a esse
retrato como relato histórico? Um problema que parece ocupar bastante sua reflexão
é o de paralelos literários. Se algo que se afirma a respeito de Salomão pode ser
encontrado em outro texto antigo (e.g., que o rei se casou com a filha de um faraó),
então essa afirmação deve ser considerada historicamente duvidosa (p. 195). Não
parece haver um a base lógica para essa conclusão. Será que não podem ocorrer
acontecimentos parecidos? Será que acontecimentos que aparecem em literatura de
ficção tam bém não acontecem na realidade histórica nem podem ser registrados em
textos que pretendem abordar essa realidade?
Um a vez mais, ao escreverem sobre as passagens que se concentram nas atividades
cultuais de Salomão (p. 193-4), Miller e Hayes parecem preocupados com o fato de
que essas passagens foram elaboradas muito depois dos dias de Salomão e tratam
de preocupações teológicas da comunidade exílica. A implicação parece ser que um
texto produzido em um período posterior e/ou um texto escrito levando em conta
as necessidades de uma comunidade que existiu mais tarde devem, por natureza, ser
considerados suspeitos em suas declarações sobre o passado. Parece quase não existir
motivo pelo qual alguém deveria aceitar essa sugestão (mesmo que aceite que determi­
nado texto é posterior).Todas as declarações sobre o passado, próximas ou distantes dos
acontecimentos que descrevem, tratam de alguns interesses existentes no momento de
sua composição. Embora sempre seja possível que, ao abordar esses interesses, distor­
çam o passado, não é inevitável que o façam, e com certeza não se pode, apenas com base
na data de composição e no fato de que os textos revelam que seus autores possuem
um “compromisso”, pressupor que houve distorção. Nesse sentido, é importante voltar

103A lém dos com entários que já apresentamos, veja a análise de lR s 1— 11 feita por Provan em
Kings, p. 23-90, em especial seus comentários sobre lR s 3.1-3; 4.26,28; 5.14; 6.38— 7.1.
154 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA

rapidamente a Crônicas — que Miller e Hayes praticamente rejeitam como fonte para
escrever uma história do período de Salomão, pois Crônicas depende de Reis e o m o­
difica “de uma maneira notavelmente tendenciosa” (p. 197). Não está claro por que se
deve rejeitar Crônicas desse modo. Sem dúvida, Crônicas tem uma “tendência”, mas
não se pode passar de um reconhecimento da “tendência” para uma rejeição do livro
como fonte histórica. Se esta fosse a regra, então toda historiografia, do passado e do
presente, também deveria ser rejeitada, pois, conforme argumentamos ao longo dos
capítulos iniciais, nunca se escreveu um relato do passado isento de uma filosofia ou
uma teologia e sem que se procurasse convencer o público-alvo acerca da verdade da
mensagem do texto. Talvez Miller e Hayes pensem que os autores de Crônicas deixa­
ram sua “tendência” distorcer seu relato do passado, tom ando-o basicamente indigno
de confiança. No entanto, essa alegação teria de ser demonstrada no caso específi­
co, em vez de ser pressuposta. Certam ente, quando comparada com a perspectiva
expressa pelos autores de Reis, às vezes Crônicas assume uma perspectiva bem diferente
de certos aspectos da história de Israel. Entretanto, em tais casos, “distorção” seria uma
palavra estranha para se usar, quando está razoavelmente claro que, mesmo quando
apresenta a própria interpretação do passado, Crônicas pressupõe que seu público-alvo
esteja familiarizado com Reis. O u seja, Crônicas tenta claramente fornecer uma leitura
de seu texto base e não uma substituição dele.104
Portanto, o que descobrimos no centro da abordagem de Salomão feita por Miller
e Hayes são várias pressuposições e declarações questionáveis sobre a natureza dos
textos bíblicos e sobre a natureza da história. Nesse sentido, sua análise de Salomão é
bem semelhante à análise dos períodos mais antigos da história de Israel. Em outros
de seus escritos, encontra-se exatamente a mesma ênfase na natureza artificial, esque­
mática e ideologicamente tendenciosa da totalidade da narrativa bíblica e chega-se
exatamente à mesma conclusão quanto à ausência de valor histórico a ser atribuído a
essa apresentação. Revela-se precisamente a mesma confiança (pelo menos em alguns
lugares) na capacidade do estudioso tanto para distinguir entre textos que informam
o que os compiladores dos relatos de fato quiseram dizer e textos que não dão tal
informação quanto para deduzir a história real a partir destes últimos textos. É uma
abordagem da literatura e da história que não suporta um exame sério e cuidadoso —
em especial porque se baseia em uma falta de cuidado e atenção exegéticos. Não é esta
a abordagem que será adotada em nossa obra.

104C £: “o cronista apresenta um a segunda pintura da história m onárquica de Israel e não a apli­
cação de um a nova pintura sobre Samuel-Reis. H oje há um a ampla aceitação de que tanto Crônicas
quanto seu público-alvo estavam bem familiarizados com o m aterial de Sam uel-Reis e que o objetivo
do cronista foi reform ular e suplem entar a história passada, não suprim i-la ou suplantá-la” (Long, A r t
o f biblical history, p. 82).
NARRATIV A E H I S T Ó R I A : RE LA TO S SOBRE O PA SSADO 155

RESUMO E PERSPECTIVA

Neste capítulo, tentamos estabelecer o debate sobre o valor histórico das narra­
tivas bíblicas no contexto mais amplo dos debates sobre histórias narrativas em
geral. Considerando a renovada aceitação de histórias narrativas entre a maioria dos
historiadores, argumentamos que os estudiosos bíblicos não têm justificativa para
rejeitar narrativas bíblicas sob a alegação de que são “essencialmente inúteis para o
propósito do historiador” e de que a Bíblia nada mais é do que “um livro sagrado
que conta histórias”.105 Contudo, para que sejam usadas na reconstrução histórica,
as narrativas bíblicas devem ser lidas corretamente. Assim, em nossa segunda seção,
refletimos sobre os efeitos em potencial — positivos ou negativos — do recen­
te crescimento do interesse em leituras literárias de textos bíblicos. O foco desses
estudos sobre “narratividade” nos levou, na terceira seção, a considerar se a narrati­
vidade é, em algum sentido, um aspecto da vida real ou se é apenas um a estrutura
que contadores de história e artistas narrativos impõem a detalhes amorfos da vida.
Concluindo que há de fato um tipo de narratividade inerente à própria vida que
deve ser reconhecida e, então, descrita por historiadores narrativos, em nossa quarta
seção passamos a um a investigação da natureza da escrita da história como arte
e ciência. Aqui, destacamos o papel central desempenhado pelos próprios histo­
riadores na descrição da história: são eles que devem primeiro obter um a visão do
passado e então planejar formas de apresentar sua visão de maneira a persuadir
outras pessoas de que suas reconstruções são representações adequadas de alguns
aspectos da realidade passada. Em nossa quinta seção, enfatizamos a importância
— até mesmo (ou especialmente) para historiadores — de ler os textos bíblicos com
o mais elevado nível de competência literária possível. Chamamos a atenção para
obras recentes e importantes que podem contribuir para o desenvolvimento dessa
capacidade. Fizemos um a rápida descrição da natureza geral das narrativas bíblicas
e sugerimos perguntas relevantes que qualquer leitor deveria fazer. O propósito
dessa seção foi apenas estimular a reflexão sobre o assunto e indicar aos leitores
material adicional que poderá ajudá-los.
Concluímos o capítulo com um estudo de caso específico (Salomão), que ilus­
trou o tipo de abordagem de texto e história que não será adotado neste livro.
C ertam ente isso gera a pergunta: Q ue tipo de abordagem deveríamos adotar? Por
isso, no próximo capítulo, buscamos reunir todas as ideias da análise que fizemos
até aqui, descrevendo nosso próprio m étodo de trabalho, que servirá de introdução
para a segunda parte deste livro: um relato da história de Israel desde Abraão até
o período persa.

105Veja M iller, “Reflections”, p. 72.


Uma história bíblica de Israel

Nosso primeiro capítulo começou com algumas reflexões sobre um ataque ao tipo
de história da Palestina que tem sido definido e controlado por interesse nos textos
bíblicos e por sua apresentação — um a “história bíblica” que supostamente está pro­
duzindo pouco mais do que paráfrases do texto bíblico resultantes de motivações
teológicas”.1 Os capítulos seguintes buscaram responder a esse ponto de vista e estabe­
lecer o fundamento para a segunda parte deste livro, que certamente coloca os textos
bíblicos no centro de sua pesquisa histórica. Agora chegou o momento de olhar para
os capítulos subsequentes e explicar sua natureza à luz da análise precedente.
Nas páginas a seguir, apresentamos de fato uma história bíblica de Israel. Isso
significa que em nossa apresentação da história de Israel utilizamos bastante a Bíblia
como base. Não porque temos “motivações teológicas” (embora logo retornaremos a
essa questão), mas sim porque consideramos irracional não proceder dessa maneira.
N a Bíblia, vemos um a literatura que é singular em seu interesse pelo passado — uma
literatura que, em especial, fornece o único relato contínuo que existe do Antigo
Israel. Temos todos os motivos para levar a sério o testemunho bíblico sobre esse
passado e, conforme argumentamos até aqui, não há razão alguma para rejeitar tal
testemunho sem considerar suas alegações. Em princípio, não existe à nossa dispo­
sição um a via melhor de acesso ao passado de Israel. Aliás, pessoas que desprezam o
testemunho bíblico a favor de algum outro meio de acesso ao passado de Israel têm
inevitavelmente se encontrado na condição de não ter quase nada a afirmar a respeito,
e o pouco que dizem está mais relacionado às próprias cosmovisões e interesses do
que a algum passado acerca do qual outras pessoas de fato testemunharam. E m nossa
perspectiva, até mesmo um a “paráfrase do texto bíblico” seria provavelmente um guia
mais seguro para o passado real do que o relato substituto apresentado por aqueles
que, em sua tentativa de falar sobre o passado, sistematicamente evitam o texto bíblico
— muito embora, é claro, nem toda “paráfrase” seja exatamente do mesmo gênero

JK. H . W hitelam , The invention o f ancient Israel: the silencing o f Palestinian history (London:
Routledge, 1996), p. 161.
158 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA

nem tenha precisamente a mesma qualidade. Não consideramos, contudo, o método


que adotamos a seguir como uma simples paráfrase do texto. Nós o vemos apenas
como um a tentativa de levar o texto a sério no que diz respeito à sua orientação na
busca do passado sobre o qual fala.
E m segundo lugar, nas páginas a seguir, apresentamos uma história bíblica de
Israel. Todo livro precisa escolher seu tema; e este livro não é uma exceção. Não
decidimos escrever um a história do Antigo O riente Próximo nem mesmo uma
história do antigo M editerrâneo oriental. Tampouco resolvemos escrever uma
história de Israel referente aos períodos que estão fora do escopo do testemunho
bíblico. Essas iniciativas são totalmente dignas, mas nenhum a delas foi escolhida
por nós. Em vez disso, apresentamos um relato da história de Israel que abrange os
períodos explicitamente refletidos nos textos bíblicos — em grande parte porque
nosso interesse é demonstrar que é possível, com inteligência e integridade, escrever
um a história de Israel usando os dados bíblicos. Começamos, portanto, com os
patriarcas (Abraão e seus descendentes), porque é nesse ponto que a Bíblia passa a
falar de Israel propriamente dito, em vez de tratar do m undo em geral. Concluímos
nossas pesquisas no período em que o Império Persa subjugou o Antigo Oriente
Próximo, porque é nessa época que term ina o testemunho explícito sobre Israel
como povo.2 Alguns críticos rejeitarão essa posição alegando ser “conservadora”,
mas tal avaliação é resultado de rotulação simplista e não de uma argumentação
convincente, portanto, não deve ser levada a sério. A verdadeira questão não é se
a posição é conservadora, mas se é intelectualmente defensável. Sem dúvida, nós a
consideramos um a abordagem mais sensata ao assunto em questão do que aquela
que escolhe arbitrariamente um ponto de partida na tradição bíblica sob a alegação
de que esse ponto é um a “base firme”, ou do que aquela que ignora completamente
o testem unho bíblico (veja cap. 1).
E m terceiro lugar, apresentamos um a história bíblica de Israel que leva a sério
a natureza de suas fontes primárias. Para que as narrativas bíblicas sejam usadas na
reconstrução histórica, elas devem ser lidas corretamente. Boa parte dos problemas
ocorridos nos esforços anteriores de escrever um a “história bíblica”— qualquer que
tenha sido o rótulo aplicado a ela (e.g., “conservadora”, “crítica”) — está atrelada
a um a leitura deficiente. Os historiadores devem ler os textos bíblicos, na verdade
todos os textos, com o nível mais alto possível de competência literária (cap. 4).

2Alguém poderá questionar até que ponto, com base em determ inados textos, podem os deduzir
aspectos da história mais recente de Israel. Por exemplo, os capítulos posteriores do livro de D aniel,
possivelmente, têm algo a dizer acerca do período de dom ínio imperial grego sobre o A ntigo O riente
Próximo (e isso se esses capítulos forem considerados tanto profecia quanto relato posterior ao acon­
tecim ento). Decidim os, porém, não nos envolver na desafiadora tarefa de elaborar história com base
nesses textos obscuros e difíceis. E notória a imprecisão da linguagem apocalíptica.
U M A H I S T Ó R I A B ÍB L IC A D E ISR A EL 159

Nos capítulos seguintes, nos esforçamos por demonstrar essa capacidade, buscando
apreciar a natureza, o propósito e o escopo dos textos, enquanto sugerimos como
exatamente eles dão testem unho do passado de que tratam.
Esse terceiro ponto conduz naturalmente ao quarto: apresentamos um a história
bíblica de Israel que leva a sério o testemunho de textos não bíblicos sobre Israel e sobre
o mundo antigo em que Israel viveu. Por razões que explicamos nos capítulos prece­
dentes (em especial, o cap. 3), não levamos esses textos mais a sério do que os textos
bíblicos. Contudo, tam bém não os levamos menos a sério. Por um lado, à medida
que chegamos a conclusões sobre aspectos relacionados à convenção literária no
mundo antigo, os textos antigos proporcionam o contexto em que podemos desen­
volver precisamente a habilidade literária mencionada acima. Por outro, os textos
não bíblicos fornecem informações úteis sobre os povos com quem o Antigo Israel
teve contato e, às vezes, sobre interações específicas que esses mesmos povos tiveram
com os israelitas. Ao fazê-lo, eles não estão isentos de arte nem de ideologia por
parte de seus autores. Por isso, não podem ser considerados, no que diz respeito a
Israel, fontes de informação mais confiáveis do que os textos bíblicos. Contudo, ao
formarmos nossa perspectiva dos contornos do passado, é apropriado e im portante
dar atenção a seu testem unho e tam bém investigar como esse testem unho concorda
ou discorda do testem unho de Israel.
Quinto, apresentamos uma história bíblica de Israel que leva a sério dados arqueo­
lógicos não textuais existentes que podem nos ajudar aformar uma visão sobre a história do
Antigo Israel. Novamente, por motivos analisados nos capítulos anteriores (em especial,
os cap. 2 e 3), não levamos esses dados e suas interpretações mais a sério do que os
textos bíblicos. No entanto, nós os consideramos seriamente, esperando que, se tiver­
mos uma compreensão adequada tanto dos dados arqueológicos quanto dos textos
bíblicos e se eles estiverem testificando verdadeiramente sobre o passado, haverá uma
convergência entre o testemunho bíblico e as interpretações dos dados arqueológicos.3
Antecipamos que, acima de tudo, mais do que nos ajudar com questões específicas, os
dados arqueológicos nos auxiliam a formar o quadro geral do mundo em que o Antigo
Israel viveu. Restos de artefatos não literários são mais úteis para os interessados em
cultura material em geral e na vida cotidiana do que para os interessados em questões
históricas específicas. Para estes, fragmentos literários antigos são muito mais relevantes.

3Para um a defesa recente dessa abordagem, veja a análise que Dever faz de “convergências” entre da­
dos textuais e de artefatos ( What did the biblical writers know and when did they know it? What archaeology
can tell us aboutthe reality o f ancient Israel [G rand Rapids: Eerdmans, 2001], p. 91,106 e passim). N os ca­
pítulos 4 e 5, Dever cita dezenas de exemplos de tais convergências (p. 97-243). Com base nessas conver­
gências ele conclui, entre outras coisas, que “a noção bíblica de um a m onarquia unida — ou pelo menos de
um ‘Estado’antigo — , c. 1020-925 a.C., não é produto da imaginação de escritores bíblicos, mas se baseia
em um a realidade fundamental” (p. 159). E m uito instrutivo esse acúmulo de convergências pertinentes.
160 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍ BLIA

Esse quinto ponto está relacionado com o sexto: apresentamos um a história


bíblica de Israel atenta ao que disciplinas como antropologia e sociologia têm a sugerir
sobre a possível natureza do passado. Escolhemos a palavra “atenta” propositalmente
para indicar tanto um a abertura a essas disciplinas como complemento ao testem u­
nho direto de povos do passado quanto um a resistência em deixar que os objetivos
de muitos estudiosos dessas disciplinas dominem nossos objetivos. Nossa cautela
é resultado da convicção de que, da perspectiva metodológica, devemos distinguir
cuidadosamente entre análise nomotética, que busca obter ideias gerais sobre a
realidade (inclusive a realidade passada), e análise idiográfica, que tenta entender
os aspectos singulares e individuais da realidade (inclusive a realidade passada).
A análise nomotética é típica das ciências naturais e das ciências sociais, que pro­
curam desenvolver métodos semelhantes. No entanto, é apenas uma questão de
lógica o fato de que aquilo que geralmente é o caso na realidade hum ana (à medida
que possa ser demonstrado) nem sempre é necessariamente o caso no presente ou
no passado, e que quaisquer modelos elaborados para explicar a realidade em geral
nunca incluirão todos os dados específicos.4 Ao esclarecer o contexto geral em que
acontecimentos específicos se desenrolam, a análise nomotética pode ser muito útil
para o historiador.5 Tal análise não pode ser considerada preditiva quanto ao que

4Por isso, se é verdade que agora há um amplo reconhecim ento “de que o estudo da história não
deveria se restringir à análise de diferenças, do incom um ou do que é peculiar” (K. W . W hitelam ,
“Recreating the history of Israel”, J S O T 35 [1986], p. 45-70; citação na p. 56), de igual form a tam bém é
verdade que é necessariamente deficiente o método histórico que deixa de analisar “diferenças, do inco­
m um e do peculiar”, junto com tudo o mais. Contudo, esse tipo de “m étodo” encontra defensores entre
historiadores de Israel. Observe-se, por exemplo, a visão de R. B. C oote de que devemos rejeitar “noções
de que a natureza étnica, nacional, religiosa, moral ou social de Israel é singular ou sublime [...] e, em vez
disso, examinar os dados escassos, procurando o que é comum, normal e esperado na história da Palestina”
{Early Israel: a new horizon [Minneapolis: Fortress, 1990], p. viii). Insistimos, em oposição a essa ideia,
que a história não trata de generalidades mais do que de particularidades, embora estejamos interessados
no que se pode dizer sobre generalidades como pano de fundo para a leitura das particularidades.
5Pode ser especialmente útil quando está genuinam ente baseada em dados do passado, ao invés de
ser um a m era especulação relacionada ao presente. E claro que um problem a perm anente na análise n o ­
m otética do passado de Israel é como comprovar, com base nos dados em geral relativamente “escassos”,
conclusões sobre o que é “comum, norm al e esperado na história da Palestina”. Contudo, conclusões
fundam entadas em dados ainda são m uito mais preferíveis a conclusões já contidas em pressuposições
que influenciam o pesquisador — um aspecto que, com demasiada frequência, está presente em traba­
lhos recentes que tratam da história de Israel e que buscam aplicar a abordagem nom otética. À s vezes,
os estudiosos notam o problem a na obra de outros e paradoxalm ente deixam de percebê-lo na própria
obra. E assim que N . P. Lem che, em um a resenha sobre The emergence ofearly Israel in historicalperspective,
de R. B. C oote e K. W . W hitelam (SW BA 5 [Sheffield: A lm ond Press, 1987]; publicada em Bib 69
1988, p . 581-4) , os reprova por não darem atenção às cartas de A m arna e conjectura se isso não ocorre
porque as cartas não dão sustentação à teoria de C oote e W hitelam . L em che observa que “será sempre
U M A H I S T Ó R I A B ÍB L IC A D E ISR A EL 161

deve acontecer em casos específicos, pois pessoas e grupos reagem às circunstân­


cias de m aneira particular e distinta. Portanto, quando empregamos a análise
nom otética neste livro, nós a utilizamos apenas como ferramenta auxiliar, sem nos
rendermos a seu objetivo generalizador.6 Em bora reconheçamos a existência de
forças maiores (como o clima e a geografia, que desempenham papel im portante na
formação da história de qualquer povo), certamente não consideramos que forças
impessoais acima do controle humano impõem maneiras de viver e agir às pessoas
do passado mais do que o fazem às que vivem no presente. Um a das várias conse­
qüências de não aceitar que a análise nom otética determine a análise idiográfica é
que, tendo em vista o objetivo de compreender o que ocorreu no Antigo Israel, o
leitor encontrará neste livro algum destaque para a natureza indicativa de certos
aspectos da cultura e da sociedade não israelitas no mundo antigo. Não afirmamos,
porém, que este ou aquele aspecto da cultura e da sociedade não israelitas confirma
ou não confirma a veracidade de aspectos do testemunho bíblico sobre o passado.
Consideramos que esse tipo de abordagem simplista é um dos aspectos mais inúteis
da história da história de Israel nos tempos m odernos.7
Por fim, apresentamos uma história bíblica de Israel escrita por nós e não por
outros. Isso significa que esta história bíblica de Israel foi escrita por pessoas que
estão particularmente envolvidas no curso da história e têm uma percepção pessoal do
rumo da história e do que ela significa; pessoas com uma cosmovisão própria, com um
conjunto específico de crenças e valores e, de fato, com motivos pessoais para escrevê-la
dessa maneira. Nossa apresentação não poderia ser diferente, mas também deve ser

difícil lim itar as possibilidades de a hum anidade agir contra as pressuposições de um modelo rígido por
seu com portam ento” (p. 583). C ontudo, ele mesmo não vê problem a algum em rejeitar tradições bíblicas
e adotar “um a abordagem sociocultural mais abrangente” da história de Israel (Ancient Israel: a n e w his­
tory oflsraelite society, BSem 5 [Sheffield: JSO T , 1988], p. 7), abordagem esta que depende, entre outras
coisas, da “experiência dos relacionamentos que tem obtido em sociedades camponesas tradicionais e
em sociedades urbanas pré-industriais do Terceiro M undo” (ibidem, p. 101).
6Agim os assim sendo coerentes com nossas análises anteriores sobre até que ponto o conhecim ento
hum ano procede de um testem unho específico e até que ponto procede de modelos com portam entais
genéricos (apresentados, e.g., pela sociologia e pela antropologia), da.generalização dos acontecimentos
(conform e pressuposto pelos que defendem o princípio da analogia) e de em pirism o simples e direto
(como alguns im aginam que é o caso da arqueologia). O leitor deve ler nos capítulos precedentes os
detalhes dessa análise.
7Por exemplo, neste livro, o leitor não encontrará o tipo de argum ento apresentado por I.
Finkelstein em lhe archaeology o f the Israelite settlement (Jerusalem: Israel Exploration Society, 1988),
que considera o fato de não existir nenhum paralelo para a invasão nôm ade de terras habitadas ser
decisivo para resolver a questão sobre se os israelitas foram responsáveis pela destruição, apontada pela
arqueologia, de cidades cananeias da Palestina por volta da época em que se presume que os israelitas
ocuparam a Terra Prom etida (p. 302).
162 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A B ÍBL IA

sincera quanto a isso e examinar, inclusive, suas implicações, especialmente porque


hoje em dia se procura saber muito acerca dos interesses dos autores e como afetam o
que eles têm a dizer — em especial no que diz respeito à história de Israel.
Q uem somos nós? A pergunta é ampla, e supomos que nem todas as possíveis
respostas sejam do interesse dos leitores desta obra. Entretanto, tendo em vista a
maneira pela qual o debate sobre a história de Israel tem se desenvolvido, arris­
camos afirmar que os fatos seguintes são pertinentes. Primeiro, somos estudiosos
do AT, interessados nesse texto em vários níveis, dos quais a história é apenas um
— ainda que importante. Aliás, somos pesquisadores do AT que tam bém vivem
da reflexão e da produção literária sobre ele, bem como de seu ensino a outros.
Segundo, somos estudiosos da história. Não somos historiadores profissionais, mas
cada um de nós estudou história tanto formal quanto informalmente em um nível
talvez pouco comum na diversificada comunidade de estudos bíblicos acadêmicos,
a qual tem muitos interesses que se sobrepõem. História é nossa paixão, e estamos
particularmente interessados em analisá-la com profundidade no contexto de nossa
verdadeira área profissional de pesquisa, o AT.
Terceiro, temos em comum algumas convicções centrais sobre a natureza da
realidade, inclusive sobre a passada, que afetam a maneira como lemos tanto o
AT quanto o passado. A análise feita até aqui já deixou claro algumas delas. Não
acreditamos, por exemplo, que uma suspeita a priori do testem unho sobre a rea­
lidade seja um ponto de partida justo para examinar essa realidade nem que uma
investigação empírica da natureza da realidade consiga por si só levar o estudioso
muito longe na obtenção do conhecimento. Tampouco acreditamos que o pensar e
o viver dos seres humanos neste m undo sejam determinados por forças maiores da
natureza que estão além do seu controle nem que sejam essas forças que impulsio­
nam a história em lugar das crenças e das ações pessoais e coletivas. Também não
acreditamos que o universo seja um sistema fechado em que coisas novas e surpreen­
dentes não acontecem, ou que a melhor maneira de se avaliar a facticidade de um
acontecimento seja verificar se algo parecido ocorreu antes. M uitas pessoas dizem
que acreditam nessas coisas (ou que seus métodos exigem a pressuposição delas),
mas, depois de uma reflexão cuidadosa, nossa convicção é de que isso não é crível.8
A esse gênero de convicções centrais que partilhamos acerca da natureza da reali­
dade, precisamos agora acrescentar convicções de uma classe definitivamente teísta,
aliás cristã e protestante, pois isso tam bém define o que somos. Defender as con­
vicções sobre a realidade já descritas é perfeitamente possível sem adotar tam bém o

sN ão estamos sequer seguros de que os que afirmam crer nisso de fato queiram dizê-lo. N ão h á dú­
vida de que para qualquer ser hum ano parece extremam ente difícil viver de m odo consistente e exitoso
com esse conjunto de pressuposições básicas.
U M A H I S T Ó R I A B ÍB L IC A D E ISR A EL 163

teísmo, do tipo cristão e protestante ou não; várias pessoas já o fizeram. Contudo,


em nosso caso, essas convicções estão associadas a um a cosmovisão teísta e cristã
com um a dimensão protestante.
Somos, portanto, estudiosos do AT interessados na história de Israel e atuando
a partir do contexto cristão teísta; e somos nós que escrevemos este livro, não ou­
tras pessoas com um conjunto diferente de crenças e de convicções básicas. Temos
“motivações teológicas”? Sem dúvida. Nosso interesse na história de Israel está rela­
cionado ao nosso interesse no A T não apenas como literatura, mas também como
parte das Escrituras cristãs e, ao escrevermos sobre a história de Israel, esperamos
produzir um livro que seja não apenas de interesse para os que não partilham de
nossas convicções religiosas, mas também útil para os que partilham das mesmas
crenças. O público que pretendemos atingir é amplo e, com certeza, inclui os cristãos.
Q ue diferença essas convicções teístas e as “motivações teológicas” associadas a
elas fazem na maneira que o livro é escrito? Certamente fazem alguma diferença,
pois não nos esforçamos para disfarçá-las. Não temos nenhum interesse em sermos
teístas metafísicos e ateístas metodológicos ao mesmo tempo. Alguns estudiosos de
fato adotam essa dicotomia. Acreditam que Deus existe (e talvez até adorem a Deus
de alguma maneira), mas aceitam um a concepção de ciência histórica que exclui a
“linguagem religiosa”.9 Não estamos satisfeitos com essa atitude. Achamos que é
muito melhor lutar pelo tipo de coerência buscada por P. R. Davies, cujo ateísmo
metafísico e metodológico o leva a afirmar “que não existe nenhuma ‘história obje­
tiva’”, entendendo que “a crença religiosa pode muito bem determinar certa definição
de ‘história’”,10 ou seja, que existe sempre uma ligação entre o tipo de mundo em que
alguém acredita e o tipo de história que essa pessoa escreve. Visto que Davies, como
um ateu, não partilha da concepção apresentada na Bíblia — de que existe “um ser
único e transcendente que compreende e, de fato, controla toda a história”11 — ele
não consegue encontrar base para crer em uma história objetiva. Aplaudimos esse
esforço em ser consistente. No entanto, nossa posição é a do teísta metafísico e m e­
todológico: alguém que crê que existe um Deus, um “ser santo dotado da autoridade

9Veja, e.g., J. M . Miller, “Reading the Bible historically: the historiarís approach”, in: S. R. Haynes;
S. L. M cKenzie, orgs., To each its own meaning: an introduttion to biblical criticisms and their application
(Louisville: W estm inster/fohn Rnox Press, 1993), p. 11-26, esp. p. 12-3. E m “W hose history? W hose
Israel? W hose Bible? Biblical histories, ancient and m odem ” (in: L. L. Grabbe, org., Can a “history o f
Israel" be written?, JS O T S 2 4 5 /E S H M 1 [Sheffield: Sheffield Academ ic Press, 1997]), P. R. Davies
alega haver um a variedade inversa dessa categoria híbrida (não teístas m etafísicos e teístas m etodo­
lógicos), acusando W . G . Dever e B. H alpern, que, de acordo com Davies, são agnósticos ou ateus, de
assim mesmo defenderem um a “concepção teísta de história” (p. 117, nota 19).
“ Ibidem , p. 116-7.
“ Ibidem , p. 116.
164 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A B ÍBL IA

e do poder do Senhor”, cujos relatos acerca dele são história, e alguém cuja meta-
narrativa pode levar os seres humanos a uma compreensão melhor de si mesmos em
relação ao mundo em que vivem.12 Pessoas com essas convicções não se satisfazem
com as abordagens ateológicas ou antiteológicas da história desenvolvidas desde o
Iluminismo,13 pois se inclinarão a partilhar da concepção dos profetas bíblicos de que
a história é um relacionamento de Deus com seu povo. Aliás, acreditarão que Deus é
central na história e que é impossível entender corretamente o significado da história
se houver desprezo ou negação de Deus. Tais crenças estão determinadas a orientar
de todas as formas a produção de um a obra sobre a história de Israel — embora não
se deva pressupor que sempre o farão exatamente da mesma maneira (retomaremos
em breve essa questão).
Nossas convicções teístas e motivações teológicas fazem de fato alguma diferença
na maneira que o livro foi escrito. Entretanto, não fazem tanta diferença a ponto de
a obra não poder ser lida com proveito ou com interesse por aqueles que as rejeitam
categoricamente ou têm aversão por elas. Ao menos acreditamos assim. U m motivo
para isso é que o que temos a dizer sobre a história de Israel não é determinado por
essas crenças, muito embora esteja ligado a elas. O u seja, não estamos escrevendo
propaganda religiosa, em que o conteúdo do material escrito é totalmente determi­
nado pelas crenças e pelos resultados desejados da execução, com quase nenhuma
atenção aos dados ou ao tipo de raciocínio que tem valor como discurso público. Ao
contrário, estamos escrevendo história; toda história autêntica, ainda que sem dúvida
alguma fale algo sobre o contexto e as crenças de seu autor, está, entretanto, interes­
sada nos dados e no raciocínio, de modo que pessoas com a mente aberta e que não
partilham necessariamente das pressuposições do autor podem lê-la com proveito.
Aliás, se nunca pudéssemos ler livros com proveito a menos que partilhássemos das
pressuposições de seus autores, seriamos beneficiados por um número bem pequeno
de obras. Um segundo motivo é que, tendo em vista o objetivo de falar a um público

12A frase citada aparece no artigo “The value o f narrativity in the representation o f reality”, da autoria
de H . W h ite (CriticaiInquiry 7 [1980], p. 5-27), e deve ser entendida em seu contexto mais amplo: ora,
a capacidade de perceber que um a série de acontecimentos pertence à mesma ordem de significado exige
um princípio metafísico pelo qual a diferença seja transformada em semelhança. E m outras palavras,
exige um “sujeito” comum a todos os referentes das várias frases que registram acontecimentos como tendo
ocorrido. Se tal sujeito existe, ele é o “Senhor” cujos “anos” são considerados manifestações de seu poder
para causar os eventos que neles ocorrem. O sujeito do relato, portanto, não existe no tempo e não poderia
ter a função de sujeito de um a narrativa. Será que a inferência é que, a fim de haver um a narrativa, se faz
necessário algum equivalente para o Senhor existindo no tempo, algum ser sagrado dotado da autoridade
e do poder do Senhor? E m caso afirmativo, qual poderia ser esse equivalente? (p. 19).
13Para um a análise das tendências antiteológicas de algumas abordagens histórico-críticas, veja
a seção com esse título em The art o f biblical history, de V. P. L ong (F C I 5, M oisés Silva, ed. [G rand
Rapids: Z ondervan, 1994], p. 123-35).
U M A H I S T Ó R I A B ÍB L IC A D E ISR AEL 165

amplo, não permitimos que nossas convicções e motivações centrais, teístas e teoló­
gicas ou não, viessem totalmente à tona na maneira pela qual o livro foi escrito. Por
exemplo, com frequência a análise teísta explícita é posta temporariamente neste livro,
na busca do diálogo amistoso — muito embora reconheçamos que, para os teístas,
a exclusão permanente da “linguagem religiosa” é sem sentido e não deveria se tornar
ou permanecer sendo o sine qua non do estudo histórico, a fim de que teístas não se
tornem steíst&s práticos ou metodológicos e corram o risco de se transformar em ateístas
metafísicos ou de, inconscientemente, conduzir outros nessa direção.14
U m bom exemplo de nossa supressão parcial de convicções centrais é que neste
livro é comum nos recusarmos a tirar lições explícitas da história que estamos escre­
vendo. São dois os motivos para agirmos assim. Primeiro, o livro já é suficientemente
longo sem outros acréscimos. Segundo, reconhecemos que, em obras historiográ-
ficas, atualmente está fora de moda incluir exortações e advertências morais junto
com os “fatos”; este livro será lido (ou deixará de ser lido) em dias modernos, por
leitores que desejamos conquistar em vez de aborrecer. Todavia, nossa convicção
certamente não é a de que, ao apresentar uma visão do passado, a historiografia deva
evitar questões sobre a existência presente e sobre a ética. N a verdade, estamos longe
de crer que, ao expressar um a visão do passado, alguma obra de historiografia chegou
a evitar questões sobre a existência presente e a ética — mesmo quando afirmou o
contrário. Visões do passado sempre estão ligadas a visões do presente e do futuro.
Ao fazer as associações — ao adotar um propósito pedagógico para a historiografia
— , a historiografia pré-m oderna foi caracteristicamente mais honesta e direta do
que boa parte da historiografia m oderna.13 Acreditamos que a história realmente

14N unca é sábio atuar m uito tem po com um a perspectiva extremam ente truncada da realidade.
Particularm ente concordamos com H . W . W olff de que é inevitável que cosmovisões “baseadas apenas
em um a parcela da realidade” lim item “a liberdade de pesquisa da totalidade de acontecimentos reais”
(“The understanding o f history in the O ld Testam ent prophets”, in: Long, org., IsraeVspast in present
research: essays on ancient Israelite historiography, SBTS 7 [W inona Lake: Eisenbrauns, 1999], p. 535-51;
citação na p. 548). Veja ainda L ong ,A r t o f biblical history, p. 132-5).
l3H istoriadores m odernos têm , de m odo típico e nada surpreendente, um a visão depreciativa do
aspecto pedagógico da historiografia pré-m oderna. Para eles, o aspecto pedagógico é um a das lam en­
táveis deficiências da historiografia pré-m oderna e requer que se comece a historiografia “científica” a
partir do zero. Observe-se, e.g., o que Soggin pensa sobre a história da Rom a antiga (History o f Israel:
fro m the beginnings to the Bar Kochba revolt, A D 135 [London: SC M , 1984]). Ele dá pouca im portância
a historiadores como Lívio ou Tácito devido à tendência de apresentarem a seus leitores modelos de
com portam ento que podem ser aceitos ou evitados. Por exemplo, Soggin escreve que “defender, como
historiador, que o gesto de M úcio Cévola persuadiu Porsena a voltar para o próprio território não passa
de ingenuidade inata, inata porque é estimulada por lem branças dos tem pos de escola” (p. 20-1). N ossa
perspectiva é que é sim plesm ente errado pensar que a presença de um propósito pedagógico na litera­
tura histórica seja necessariamente problem ática para o historiador.
166 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍ BLIA

nos ensina. A história deve nos ensinar. Nesse ponto concordamos com Voltaire:
“Se você não tem nada a nos dizer além do fato de que veio um bárbaro atrás do
outro nas margens do Oxus ou Iaxartes, que utilidade você tem para o público?”.16
O leitor compreenderá que, para os que creem que o AT é Escritura e também
testem unho do passado de Israel, existe (nesse caso mais do que em outros) um
imperativo ainda maior para se prestar atenção às lições da história. Isso porque, se
o centro da história — entendida tanto como acontecimento quanto como palavra
interpretativa — é o diálogo de Deus com Israel e com o mundo, de acordo com o
testem unho dos escritos do AT e do NT, então há muita coisa em jogo. Entretanto,
deixamos a tarefa de extrair lições da história de Israel para aqueles que escrevem
livros dedicados a esse propósito, como os comentários sobre o texto bíblico. Aqui
não nos ocupamos com essa tarefa. Nosso papel é apenas apresentar uma inter­
pretação do testemunho bíblico sobre o passado de Israel, situado no contexto
mais amplo do passado, o qual pode ser estabelecido com base em outras fontes de
informação, de modo que o leitor compreenderá melhor tanto o testemunho quanto
o passado. Nosso papel é o do historiador da arte, o qual, por meio da interpretação
de um quadro, procura ajudar o público a entender, melhor do que antes, tanto o
passado quanto o quadro.
Será que nossas convicções centrais e nossas motivações teológicas — assim
declaradas — levarão algum leitor a experimentar dificuldades insuperáveis ao ler
este livro, deixando enfim de se beneficiar com ele? Acreditamos que não. Essas
convicções não devem, pelo menos, causar uma dificuldade maior do que causam as
convicções e motivações centrais de qualquer outro autor. Entretanto, o leitor preo­
cupado talvez se anime com o fato de que, de um modo ou de outro, as convicções
e motivações que partilhamos não se expressam exatamente da mesma forma nas
várias partes do livro que cada um de nós escreveu. Somos três autores e não um
só; e nenhum de nós escreveria exatamente da mesma maneira que os demais. Essa
variedade deveria ser de alguma ajuda para a pessoa que se aborreça com um dos
autores em particular.
Assim, com esta introdução, estamos prontos para passar para a segunda parte
do nosso livro: uma história bíblica de Israel de Abraão até o período persa.

“ A citação de C obban é encontrada em A. Richardson (History sacred and profane [London: SCM ,
1964], p. 92-3). O texto original se encontra no verbete “H istorie”, do Dictionnaire philosphique de
Voltaire. Veja ainda o próprio Richardson: “O crime imperdoável na exposição da história das ideias é
estupidez, o fracasso em reconhecer e transm itir o desafio existencial que o passado faz ao presente. Esse
crime pode ser evitado apenas por aqueles que têm um interesse vital na história, um a vez que estão
atentos às questões urgentes da própria época” (p. 256).
S e g u n d a p a r te

A HISTÓRIA DE ISRAEL,
DE ABRAÃO ATÉ O
PERÍODO PERSA
Capítulo 6

Antes da conquista da terra

Em algum momento durante o último quarto do século 13 a.C., o faraó M erneptá


erigiu um a esteia em que comemorava várias vitórias militares alcançadas durante
seu reinado. E m ocasião oportuna, falaremos mais sobre a “Esteia de M erneptá”.
Sua relevância principal para nossos propósitos está no fato de que ela contém a
mais antiga menção a “Israel” fora das páginas da Bíblia.
Israel apareceu no cenário internacional no fim do século 13 como uma entidade
bastante im portante na Palestina, a ponto de ser mencionada por um governante
estrangeiro. Contudo, pelo menos com base nos dados disponíveis, essa não era a
condição de Israel antes do século 13. N a verdade, ao longo do período anterior no
segundo milênio a.C., os israelitas não atraíram nenhum a atenção explícita, e seus
ancestrais nem sequer foram notados pelos que produziram as fontes que chegaram
até nós. Isso não é surpreendente, pois as fontes se concentram no que era im por­
tante para seus autores e para aqueles que os incumbiram da tarefa ou os lideravam.
Essas fontes fornecem, por exemplo, vislumbres das mudanças dos centros de poder
na M esopotâm ia durante os períodos babilônico e assírio antigos (c. 2000-1600
a.C.), falam de grandes reis, como Ham urábi da Babilônia, e proporcionam um a
compreensão significativa da natureza da vida cotidiana nas cidades-estado da­
quela época (em especial, no caso dos arquivos de M ari).1 No entanto, as fontes
não possibilitam sequer um a história política coerente da região nessa época e m ui­
to menos fornecem detalhes adicionais sobre a migração de um a família obscura
que saiu da cidade-estado mesopotâmica de U r rumo a H arã e, depois, à Palestina
(G n 11.31— 12.9). Elas contam a glória dos Reinos Antigo e Novo do Egito
(c. 2686-1069 a.C.), sendo que este último é o período de faraós famosos como
Tutmósis III, A khenaton e Tutancomon.2 Até o que se sabe, porém, as fontes não

'Veja The ancient Near E ast c. 3000-330 B.C. ([London: Roudedge, 1995], 2 vols.), de A. Kuhrt,
para um a boa introdução à história da M esopotâm ia desse período (vol. 1, p. 74-117) e do restante do
segundo milênio em diante (p. 332-81).
2Ibidem , vol. 1, p. 118-224.
170 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O P ER S A

se preocupam em destacar um a dentre as muitas famílias de imigrantes semitas


que chegaram ao Egito naqueles séculos, nem mostram interesse na figura de um
semita (José) que, como outros de sua raça, alcançou um a posição de poder no
Egito (G n 37— 50). A história dessa família não tinha praticamente nenhum a im ­
portância. O segundo milênio a.C. foi um período de renomadas cidades-estado e,
portanto, de grandes potências: o Egito, ao sul, a Babilônia e, depois, a Assíria, ao
leste, os hititas e os hurrianos, ao norte.3 O Antigo O riente Próximo desse período
foi o palco da família dos patriarcas, e os israelitas e seus ancestrais passam por esse
palco rapidamente, apenas como sombras, enquanto se movem de um lugar para
outro e interagem de tempos em tempos com este ou aquele povo que conhecemos
por meio de outras fontes antigas. Os israelitas ainda não eram dignos de menção.
Portanto, dependemos quase que inteiramente da Bíblia para obter informações
sobre eles “antes da conquista da terra”— de modo muito especial, dependemos dos
livros de Gênesis a Deuteronômio, também conhecidos como “Pentateuco”.

FONTES PARA O ESTUDO DO PERÍODO


PATRIARCAL: O RELATO DE GÊNESIS

Israel, em tempos posteriores, reconheceu Abraão como o pai da nação e da fé


israelita. Por esse motivo, lembrava-se dele como seu “patriarca”. Foi Abraão quem
recebeu as promessas de Deus, quem anteviu a dádiva da terra e a descendência
que a povoaria (G n 12.1-3). Aliás, todo o período da história de Israel que abrange
Abraão e seus descendentes imediatos é geralmente chamado de “período patriar­
cal”. Nossa história bíblica de Israel começa com essa era.
A única fonte direta de informação sobre o período em que os patriarcas de
Israel viveram é o livro bíblico de Gênesis, que apresenta narrativas patriarcais oca­
sionais e sucintas sobre Abraão, Isaque e Jacó (G n 11.10— 36.43), antes de serem
sucedidas pelo relato de Gênesis 37— 50,4 que segue mais o estilo de um enredo
novelesco, falando sobre José e funcionando como “ponte” entre a época dos patriar­
cas e a da peregrinação de Israel no Egito, que conduz ao Exodo. Essas narrativas

3Ibidem ,vol. 1, p. 225-82 aborda os hititas; p. 283-331 tratad o s hurrianos (especificamente o reino
hurriano de M itani) e tam bém de outros aspectos da situação na Síria e no Levante durante o segundo
milênio, em especial a dom inação egípcia de cidades-estado na Síria-Palestina por volta de 1550 a 1150
a.C., que fornece o contexto das cartas de A m arna m encionadas a seguir.
4H á um debate sobre a posição de Gênesis 38 (o relato sobre Judá e Tam ar) dentro do relato sobre
José. Contudo, em “The patriarchs in Scripture and history” (in: A. R. M illard; D . J. W isem an, orgs.,
Essays on the patriarchal narratives [W inona Lake: InterVarsity Press, 1983], p. 1-34) J. G oldingay
apresenta argumentos convincentes a favor de que esse texto deva ser considerado parte da história de
José ou, m elhor dizendo, da “história de Jacó”, visto que G n 37— 50 trata dos filhos de Jacó (p. 11-2).
A N T E S DA C O N Q U IS T A DA T E R R A 171

são unidas no livro mediante o uso das “fórmulas toledoth”, um recurso literário
recorrente com frases que começam com a expressão hebraica 'èlleh tôfdôt, que pode
ser traduzida de várias maneiras, inclusive como “estas são as gerações de”, “esta é a
história da família de” e “este é o relato de”. A expressão é sempre seguida pelo nome
de alguém (com exceção da primeira ocorrência, que, em vez do nome de uma pessoa,
é acompanhada por “os céus e a terra” [G n 2.4]), embora a pessoa indicada não
seja necessariamente a personagem principal, mas apenas o marcador do início da
seção, que também termina com a morte da respectiva personagem. Essas fórmulas
dão estrutura ao livro de Gênesis e servem para estabelecê-lo como um prólogo
(1.1-2.3) seguido de vários episódios: as “gerações de” Adão (5.1), Noé (6.9), os
filhos de Noé (10.1), Sem (11.10), Terá (11.27), Ismael (25.12), Isaque (25.19),
Esaú (36.1,9) e Jacó (37.2). A melhor maneira de entender as próprias narrativas
patriarcais é começar com Gênesis 11.10, o “relato” de Sem, ou então com Gênesis
11.27, o “relato” de Terá, pai de Abraão.

O RELATO DOS PATRIARCAS

O relato se refere a uma família que se m uda em busca da promessa de Deus feita
a Abraão, sendo esse o principal tema teológico de Gênesis 11.10— 36.43 e o que
une as várias narrativas:5

E farei de ti uma grande nação, te abençoarei e engrandecerei o teu nome; e tu serás uma
bênção. Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei quem te amaldiçoar; e todas as
famílias da terra serão abençoadas por meio de ti (Gn 12.2,3).

Os deslocamentos históricos dos patriarcas estão intim am ente relacionados às


respectivas reações à promessa divina. N a verdade, o objetivo da estrutura literária
e da escolha de determinadas narrativas é mais do que o simples relato de ações
passadas. Esses fatores são paradigmáticos para o comportamento de gerações pos­
teriores do povo de Deus à medida que reagem às promessas divinas.
As promessas estão condicionadas, primeiro, à saída de Abraão de Ur, na
M esopotâmia, e à sua chegada a Canaã, a Terra Prometida. Ele parte em sua longa
jornada, fazendo um a parada intermediária em Harã, situada ao norte da Terra
Prometida (G n 11.31,32; 12.5). Após a morte de Terá, seu pai, ele deixa H arã e

50 estudo das promessas patriarcais são o centro da obra de C. W esterm ann sobre Gênesis. Cf. dois
de seus livros: Gênesis: a commentary, tradução para o inglês de J. J. Scullian (M inneapolis: Augsburg,
1984-1986); lhepromise to thefathers: studies on thepatriarchal narratives (Philadelphia: Fortress Press,
1980). U m estudo mais acessível do tem a se encontra em D . J. A. Clines, The theme o f the Pentateuch
(JS O T S 10 [Sheffield: JS O T Press, 1978]).
172 A H I S T Ó R I A D E ISR A E L , D E ABRAÃO A T É O P E R Í O D O P ER S A

entra em Canaã. Em um primeiro momento, a narrativa informa que Abraão, Sara


e seu sobrinho, Ló, se mudaram de Siquém para Betei e, depois, para Ai, indo
posteriorm ente para o Neguebe, o que revela um deslocamento do norte para o sul
de Canaã. A cada etapa, ele erige um altar, quase como se estivesse reivindicando a
terra ao Senhor que o enviou para lá.
Os relatos patriarcais seguintes têm, com frequência, o propósito de ilustrar a
fé ou a falta de fé de Abraão quando ele precisa enfrentar alguma ameaça ou crise
relacionada ao cumprimento da promessa. Pouco depois de chegar à terra, uma
fome atinge a região, o que ameaça a fé do patriarca. Ele havia feito uma jornada da
M esopotâm ia até a Terra Prometida por Deus, e agora essa terra não tinha condi­
ções de o sustentar. Ele e sua família descem, então, para o Egito, mas parece que a
confiança de Abraão na proteção divina foi abalada, de modo que ele persuade sua
esposa a m entir sobre o parentesco com ele (G n 12.10-20). M esm o assim, Deus
o livra e ainda o torna mais rico no Egito. Q uando Abraão volta para o Neguebe,
essa prosperidade resulta na necessidade de dividir suas posses territoriais com
o sobrinho Ló. Aqui vemos Abraão como um paradigma de confiança em Deus
(G n 13). Ele não força o cumprimento da promessa, em vez disso, deixa que Ló es­
colha a terra que deseja. Ló escolhe a próspera terra ao redor de Sodoma e Gomorra,
e o leitor já sabe do destino final daquelas cidades (G n 18; 19). Com sua fé serena
no poder divino para cumprir a promessa, Abraão evita a catástrofe.
O próximo capítulo da narrativa patriarcal, Gênesis 14, tem, à primeira vista,
todo o potencial para associar Abraão com a história mais ampla (veja a seguir).
Um a coalizão de quatro reis, liderados por Quedorlaom er de Elão, entra em guerra
com cinco reis, incluindo os de Sodoma e Gomorra. A primeira coalizão sai ven­
cedora e, na seqüência dos acontecimentos, seqüestra Ló. Abraão sai no encalço
dos seqüestradores e os derrota, resgatando Ló. Em um a cena que, posterior­
mente, terá importantes desdobramentos teológicos (veja H b 7), Abraão encontra
Melquisedeque, o enigmático rei de Salém.
A narrativa prossegue com dois relatos em que Abraão tenta forçar o cum­
prim ento das promessas. Nas narrativas patriarcais, a promessa principal é a do
nascimento de um filho. Afinal, nenhum a grande nação pode existir e nenhum a
terra pode ser herdada sem que nasça o primeiro descendente. Abraão se cansa de
esperar pela ação de Deus e, em um primeiro momento, adota o escravo que tra­
balha em sua casa como herdeiro e, depois, tom a Agar como concubina para gerar
um descendente, em conformidade com práticas culturais da época. Em sua graça,
Deus intervém em ambos os casos (G n 15; 17) e garante novamente a Abraão
a intenção de cum prir a promessa de lhe dar um filho, o que se concretiza em
Gênesis 21. Isaque, o filho que Abraão e Sara têm na velhice (demonstrando que
Deus é o responsável por esse nascimento), substitui Ismael — que nasceu por causa
A N T E S DA C O N Q U IS T A DA T E R R A 173

da tentativa de Abraão de ter um descendente por meio do concubinato — como


principal herdeiro. Assim, Isaque se torna o recipiente das promessas. Entretanto,
antes que Abraão deixe de ser o centro da narrativa, ele enfrenta mais uma ameaça
ao cumprimento da promessa, talvez a maior de todas. Deus lhe diz para tom ar
Isaque, o filho da promessa, e sacrificá-lo no M onte M oriá (G n 22). No momento
culminante de sua vida, Abraão demonstra confiança total em Deus. Sem palavra
alguma sua registrada, ele atende de imediato ao pedido e, no último minuto, Deus
substitui a criança por um animal como sacrifício.
A história de Isaque é a mais breve das narrativas patriarcais. Ele é natural­
mente o recipiente das promessas, o que é indicado por meio da repetida expressão
de que Deus esteve com ele e o abençoou (e.g., G n 25.11). Isaque também enfrenta
ameaças ao cumprimento da promessa e, da mesma forma, reage com dúvida (G n 26),
mas a narrativa o apresenta como um personagem fraco, um reflexo opaco do pai.
N a narrativa de Isaque, é a figura de seu filho, Jacó, que a torna dinâmica. Jacó
é um personagem astuto, mas é ele o portador da promessa para a geração seguinte.
Talvez essa narrativa indique que Deus trabalhará por meio das pessoas mais ines­
peradas.6 Jacó precisa viajar de um lugar para outro. Não tem residência fixa em
Canaã e, aliás, term ina a vida no Egito, junto com os doze filhos. O cumprimento
das promessas permanece como uma ocorrência futura.

As narrativas patriarcais como teologia e como história

Sem dúvida, o propósito principal das narrativas patriarcais é teológico: elas


revelam a natureza de D eus e de seu relacionamento com suas criaturas hum a­
nas. Ao mesmo tem po, porém, esses relatos têm o objetivo claro de nos m ostrar
que tal revelação ocorre na história. No material sobre os patriarcas, a teologia
e os acontecimentos concretos estão profundam ente entrelaçados. Expressando
esse conceito de form a diferente, o gênero com que estamos lidando é história
teológica, embora ainda seja história. O adjetivo não enfraquece o substantivo.
É inconcebível que o público-alvo original pensasse que Abraão não fosse um a
pessoa de verdade ou que sua mudança de U r até H arã e daí para a Palestina não
fosse um a jornada real. É inconcebível que o autor de Gênesis quisesse que seu
público-alvo pensasse nessas pessoas e acontecimentos como “irreais”. Por isso, os
estudiosos que, para descrever o gênero das narrativas patriarcais, utilizam termos
como “saga”, “ficção” ou “folclore”7 não estão se referindo tanto ao gênero de fato

6W . Brueggem annn, Genesis, Interpretation (Atlanta: John Knox), 1982, p. 204-87.


7Cf. G . W . Coats, Genesis ■lüith an introduction to narrative literature F O T L 1 (G rand Rapids:
Eerdm ans, 1983), p. 102.
176 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA

assustador o caos de concepções assumidas pelos estudiosos recentemente.18 Mesmo


que o texto de Gênesis tenha se originado de fontes que foram reunidas ao longo do
tempo, tem sido continuamente abalada a confiança irrefletida dos estudiosos mais
antigos de que, por meio da reconstrução dessas fontes, seria possível determinar as
mais antigas e, consequentemente, as tradições “mais históricas”. Soam falsas as afir­
mações de alguns eruditos de que conseguiram determinar com sucesso e precisão as
fontes dos relatos de Gênesis. Não que os leitores de hoje não percebam mais nesses
relatos as lacunas e as transições repentinas que inicialmente levaram os críticos a
pensar que houvesse diferentes fontes. Com certeza, esses fenômenos permanecem
ali. No entanto, agora as perguntas são: Qual é a explicação válida para a existência
desses fenômenos? Acaso são traços da arte literária antiga?19 O u são indicações da
falta de habilidade de um editor posterior em lidar com fontes distintas mais antigas?
Seriam o resultado da perda de alguma indicação ou de um referente (uma “aporia”,
na terminologia do desconstrucionismo)?20 São muitas as explicações possíveis, e
a multiplicação delas contribuiu para destruir a confiança em certas reconstruções
de fontes. É claro que essa afirmação não pretende questionar o fato de que fontes
orais ou escritas foram provavelmente usadas na composição do Pentateuco, muito
embora, exceto em passagens óbvias (comp. N m 21.14; Ex 24.7), não seja possível
percebê-las na forma atual do texto.

OS PATRIARCAS NO AMBIENTE DO
ANTIGO ORIENTE PRÓXIMO

U m a leitura atenta das narrativas patriarcais revela que os relatos em si não oferecem
nenhum a informação que nos permita determ inar um a data para o período que vai
de Abraão até Jacó. Inicialmente, Gênesis 14 nos oferece esperança nesse sentido,
mas infelizmente não podemos associar com segurança os personagens desse relato
com qualquer pessoa conhecida em fontes extrabíblicas (veja a seguir). Entretanto,
parece que passagens fora do livro de Gênesis nos permitem situar os patriarcas em
um período concreto — ao menos se crermos que toda a Bíblia oferece indicadores
precisos, ainda que talvez às vezes aproximados — e sugerem que Abraão nasceu em
meados do século 22 a.C. Os dados são os seguintes: IReis 6.1 afirma que Salomão

18U m excelente panoram a de abordagens recentes da questão de composição pode ser visto em
Abraham in theNegev; a source-criticalinvestigation ofGenesis 20.1— 22.19, de T. D . Alexander ([Carlisle,
Reino U nido: Paternoster, 1997], p. 1-31).
19Veja, e.g., R. Alter, The art o f biblical narrative (New York: Basic Books, 1981).
20Talvez seja preciso considerar todos os três fatores, conform e sugerido por D . Carr, em Reading
thefractures o f Genesis (LouisvUle: W estm inster John Knox Press, 1996).
A N T E S DA C O N Q U IS T A DA T E R R A 177

começou a construção do templo 480 anos depois que os israelitas saíram do Egito.
Esse é o quarto ano do reinado de Salomão e, se aceitarmos as conclusões de E.
R. Thiele, a data seria 966 a.C.21 A interpretação literal dessa passagem estabelece
o Êxodo em meados do século 15. Ademais, Êxodo 12.40 declara que os filhos
de Deus peregrinaram no Egito durante 430 anos.22 Por fim, podemos calcular o
tempo que transcorreu entre o nascimento de Abraão e a descida de Jacó ao Egito,
somando os cem anos de G n 21.5 (a idade de Abraão quando Isaque nasceu), os
sessenta anos de Gênesis 25.26 (a idade de Isaque quando Jacó nasceu) e os 130
anos de Gênesis 47.9 (a idade de Jacó quando chegou ao Egito), obtendo um perío­
do de 290 anos. Assim, começando com 966 a.C., vários estudiosos23 somam os 480
anos de IReis 6.1, os 430 anos da permanência no Egito e os 290 anos do período
patriarcal para chegar à data de 2196 a.C. para o nascimento de Abraão, o que por
sua vez leva à data de 2091 a.C. para a sua chegada à Palestina (cf. G n 12.4).
Essa data aparentemente clara e adequada é, na verdade, incerta, mesmo utili­
zando base bíblica. Primeiro, todos os números parecem redondos demais. É claro,
contudo, que isso exigiria o ajuste de apenas algumas décadas. Segundo, existem
variações textuais no que diz respeito a algumas datas. Por exemplo, na Septuaginta,
os 430 anos de Êxodo 12.40 cobrem não apenas o tempo no Egito, mas também
o período patriarcal.24 Ainda assim, a própria Bíblia parece situar os patriarcas na
Palestina em algum momento entre aproximadamente 2100 e 1500 a.C. — a pri­
meira metade do segundo milênio a.C.
U m a parte im portante do debate moderno, tanto sobre a data dos patriarcas
quanto sobre sua descrição histórica, tem concentrado a atenção na investigação
se os dados provenientes do cenário mais amplo do Antigo O riente Próximo
confirmam a existência dos personagens bíblicos, ou se ao menos oferecem apoio
para seu estabelecimento nessa estrutura de tempo. Todos concordam que não há
nenhum a confirmação explícita extrabíblica para a existência dos patriarcas ou
para os acontecimentos mencionados no texto bíblico. Em vez disso, o debate se
concentra em analisar se as evidências confirmam o retrato bíblico dos patriarcas
na época que lhes é atribuída.

21The mysterious numbers o f the Hebrew kings: a reconstruction o f the chronology o f the kingdoms o f Israel
andJudah, ed. rev. (G rand Rapids: Eerdm ans, 1965), p. 28.
22Parece que a duração aproximada sugerida por Êxodo 12.40 encontra apoio em Gênesis 15.13,
que diz que os descendentes de Abraão perm aneceriam no Egito durante quatrocentos anos.
23Veja, e.g., E. H . M errill, Kingdom ofpriests: a history o f Old Testament Israel (G rand Rapids: Baker,
1987); W . C. Kaiser, / i history o f Israel:from the Bronze Age through the Jewish Wars (Nashville: B roadm an
and H olm an, 1998), p. 55.
24J. B right apresenta essas e outras ambigüidades em A history o f Israel, 2. ed. (Philadelphia:
W estm inster Press, 1972), p. 120-1.
178 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO A T É O P E R Í O D O PER SA

O debate sobre as provas que oferecem essa confirmação tem sido intenso
e ocupado décadas de trabalho dos estudiosos.25 D urante boa parte do tempo, a
discussão se concentrou nas tábuas de Nuzi (e da vizinha Arrapha). As prim ei­
ras tábuas de Nuzi começaram a ser descobertas na década de 1920, e C. J. G add
publicou o primeiro conjunto delas.26 Procediam tanto de um arquivo oficial quanto
de arquivos particulares de pessoas ricas. Em bora especialistas as tenham datado
da segunda metade do século 15, alguns estudiosos bíblicos defenderam que elas
tam bém refletiam costumes mais antigos existentes naquele milênio (veja a seguir o
comentário sobre M ari). Os documentos, em especial os provenientes dos arquivos
particulares, refletiam hábitos sociais relacionados a propriedades, adoção e casa­
mento. Quase de imediato se estabeleceram conexões entre os costumes de Nuzi
(que refletem a sociedade hurriana do século 15) e os costumes patriarcais conforme
relatados em Gênesis. Eichler lista os seguintes exemplos:

...a estipulação no contrato [matrimonial] de que uma mulher estéril deve dar ao marido
uma jovem escrava como esposa, a posição relativa a cada herdeiro e o tratamento prefe­
rencial dispensado ao que é designado primogênito, a associação dos deuses domésticos
com a distribuição das propriedades da família, a venda condicional de filhas nascidas
livres à escravidão e a instituição da servidão-habiru?1

Logo após a descoberta do material de Nuzi, ocorreu a descoberta do material


de M ari (atual Tell Hariri, um sítio arqueológico situado ao norte do Eufrates, nos
limites da M esopotâmia) — cerca de vinte mil tábuas datadas do século 18 a.C.
Os textos de M ari não descrevem costumes sociais e familiares como fazem os de
Nuzi, mas certamente revelam alguns contatos entre as duas regiões. O fato de que
o material de M ari foi datado da prim eira metade do segundo milênio apoiou a
ideia de que as práticas atestadas no material de Nuzi, supostamente semelhantes
aos costumes patriarcais, poderiam refletir legitimamente o período mais antigo.
Durante as primeiras duas décadas após sua descoberta, surgiu uma espécie
de consenso de que os documentos de Nuzi confirmavam com segurança o período
patriarcal como um fato histórico da primeira metade do segundo milênio a.C. A fim de

25Para um a boa visão geral do debate, consulte “Com parative customs and the patriarchal age”, de
M . J. Selman (in: M illard; W isem an, orgs., Essays on the patriarchal narratives, p. 91-140), ou “N uzi and
the Bible: a retrospective”, de B. L. E ichler (in: H . Behrens et al., orgs., D U M U -E 2-D U B -B A -A : studies
in honor ofAke W. Sjoberg [Philadelphia: Samuel N oah Kram er Fund, 1989], p. 107-19).
26“Tablets from Kirkuk” (fW 2 3 [1926]), p. 49-161.
27“N uzi and the Bible”, p. 108-9. Alguns exemplos dos primeiros estudos que estabeleceram
essas ligações incluem “W h a t were the teraphim ?”, de S. Sm ith (JTS 33 [1932], p. 33-6), e “The story
o f Jacob and L aban in the light o f the N uzi tablets”, de M . Burrows (B A SO R 163 [1961], p. 36-54).
A N T E S DA C O N Q U IS T A DA T E R R A 179

determinar com precisão o período das narrativas patriarcais, estudiosos defenderam


a existência de paralelos entre os materiais de Nuzi e M ari e as narrativas bíblicas.
Os argumentos se baseavam em duas pressuposições: 1) os costumes dos hurrianos
eram característicos de seu período e do anterior e não permaneceram muito tempo
depois, 2) os textos hurrianos refletem costumes partilhados com povos, como os
patriarcas, que viviam na Síria-Palestina. Defensores desse ponto de vista incluíam
os nomes bastante influentes de W. F. A lbright,28 C. G ordon29 e E. A. Speiser.30
Limitações de espaço permitem apenas um exemplo do tipo de argumento des­
se grupo de estudiosos. U m caso típico é o argumento de Speiser de que o material
de Nuzi explicava a relação de Sara com Abraão como uma relação de esposa/
irmã.31 Speiser menciona um contrato em que, por quarenta siclos, um homem ven­
deu sua irmã para que fosse irmã de outro homem. Ele indica um segundo contrato
(de casamento) em que, também por quarenta siclos, o mesmo homem vendeu a
mesma irmã para ser esposa do homem que a havia adotado como irmã. Desse
modo, de acordo com Speiser, em Nuzi, essa mesma mulher era tanto irmã quanto
esposa da terceira parte envolvida. Ele achava que esses dados claros recebiam apoio
de outros contratos mais obscuros que envolviam irmãs. Speiser usou esses textos
para entender a relação entre Abraão e Sara. Duas vezes Abraão se protege de um
perigo que anteviu chamando Sara de irmã e não de esposa (G n 12.10-20; 20.1-18).
De acordo com Speiser, a apresentação de Sara como esposa/irmã de Abraão é uma
indicação de que a sociedade patriarcal funcionava segundo os mesmos costumes
atestados em Nuzi e, portanto, situa a narrativa bíblica na primeira metade do se­
gundo milênio. No início, estudiosos de destaque apoiaram esse ponto de vista, e
um a boa ilustração desse otimismo inicial é a afirmação feita por J. Bright, citada
com frequência: “[A] conclusão inevitável é que as narrativas patriarcais refletem
autenticamente os costumes sociais familiares presentes no segundo milênio, em
vez daqueles praticados mais tarde em Israel”.32
A partir da década de 1960 surgiram críticas a essas comparações,33 e J. M .
Weir, em particular, analisou em um artigo devastador o costume esposa/irm ã.34

2S“A bram the Hebrew : a new archaeological interpretation, B A SO R 163 (1961), p. 36-54.
29“Biblical customs and the N uzi tablets”, (B A 3 1940), p. 1-12.
mGenesis, AB (G arden City: Doubleday, 1964).
31“The wife-sister m o tif in the patriarchal narratives”, in: J. J. Finkelstein; M . Greensburg, orgs.,
Oriental and biblicalstudies (Philadelphia: University o f Pennsylvania Press, 1967), p. 62-82.
z:History, 2. ed., p. 79. Edições posteriores são mais cuidadosas em suas afirmações.
33U m a das primeiras foi “A nother look at R acheis theft o f the teraphim ”, de M . Greenberg (JBL
81 [1962], p. 239-48).
34“The alleged H urrian wife-sister m otif in Genesis”, Transactions o f the Glasgow University Orien­
ta l Society 22 (1967/1968), p. 14-25. Veja tb. D. Freedman, “A new approach to the N uzi sisterhood
180 A H I S T Ó R I A D E ISR A E L , D E ABRAÃO A T É O P E R Í O D O PER SA

Eichler afirma que atualm ente temos um a visão m uito mais clara desse costume,
visto que hoje existem onze textos procedentes de N uzi que podem ser analisa­
dos.35 Agora entendem os que a motivação para a adoção de um a m ulher como
irm ã era financeira, tanto para o vendedor quanto para o comprador. Supõe-se
que a família do irmão original precisasse com urgência de dinheiro, então, ele
vendia por determ inado valor a um irmão “adotante” o direito de receber o valor
do dote de um eventual casamento futuro da irmã. O novo “irm ão” seria assim
um investidor que mais tarde arranjaria o casamento da m ulher e receberia o
dote de casamento (presumivelmente de valor mais elevado). Portanto, não há
relação alguma com o texto bíblico. N a verdade, a fim de que a comparação fun­
cionasse, a interpretação do texto bíblico foi distorcida. D e fato, quando Abraão
disse que Sara era sua irmã, ele om itiu a verdade sobre a condição dela, a de que
era sua esposa, para se proteger. Apesar disso, como o próprio Abraão observa, em
certo sentido Sara era realm ente sua irmã, não por meio de compra nem contrato,
mas pelo fato de terem o mesmo pai, em bora de mães diferentes (G n 20.12). N a
realidade, Speiser achava que os editores bíblicos posteriores não entenderam os
costumes, o que explica a razão da dissonância entre o texto e o costume — mas
esse caso, obviamente, é só um exemplo de exposição tendenciosa dos fatos na
defesa de um argumento fraco.
A crítica às comparações entre o comportamento patriarcal e os costumes sociais
em Nuzi atinge o clímax com a obra de Thompson e Van Seters.36 A argumentação
de ambos segue duas linhas de raciocínio: 1) os paralelos não são reais, mas forçados
pela interpretação distorcida dos textos de Nuzi e dos textos bíblicos, 2) em muitos
casos, de qualquer maneira, os costumes não se restringem ao segundo milênio,
mas prosseguem até o primeiro milênio.3' Esses estudiosos deram um a contribuição
importante, alertando os leitores acerca do perigo de fazer comparações falsas, mas
vão longe demais quando dizem que, como conseqüência disso, o material patriarcal
é uma retroprojeção fictícia de um período bem posterior.38

contract",JA N E S 2 (1970), p. 77-85, e S. Greengus, “Sisterhood adoption at N uzi and the ‘wife-sister’
in G enesis”, H U C A 46 (1975), p. 5-31.
35“N uzi and the Bible”, p. 113.
36T. L. Thompson, The historicity o f the patriarchal narratives (B Z A W 133 [Berlin: D e Gruyter,
1974]; J. Van Seters, Abraham in history and tradition (New Haven: Yale University Press, 1975).
37J. Van Seters, “The problem o f childlessness in N ear Eastern law and the patriarchs o f Israel”
(JBL 87 [1968], p. 401-8.
38E m bora concordem nas críticas ao retrato bíblico dos patriarcas, discordam na avaliação do
material. N o entendim ento de Van Seters, o material reflete as condições do fim do período monárquico,
origina-se nos períodos exílico e pós-exílico e data desta época. Thom pson rejeita essa ideia e sustenta
que o texto é produto de um a perspectiva pós-exílica.
A N T E S DA C O N Q U IS T A DA T E R R A 181

É claro que essa afirmação surpreendente só pode ser explicada como falta
de atenção à lógica, pois o fato de certos argumentos a favor da historicidade
dos patriarcas se revelarem fracos não leva logicam ente à conclusão de que é
impossível dizer algo a favor da historicidade deles. No entanto, associada a esse
aspecto, há tam bém um a evidente desatenção ao texto, pois é certo que não se
pode interpretá-lo plausivelmente como a retroprojeção fictícia de um período
m uito posterior. N a verdade, podemos indicar costumes, crenças e ações dos
patriarcas que são não apenas anacrônicos em relação a períodos posteriores, mas
tam bém são às vezes absolutam ente sujeitos à objeção. G. W enham 39 relaciona os
seguintes exemplos:

1. Os patriarcas tiveram relações sexuais/maritais que foram reprovadas no


período posterior. Abraão se casou com sua m eia-irm ã (20.12) e Jacó
com duas irmãs (29.21-30), mas Levítico (18.9,11,18; 20.7) condena
ambas as práticas. Além do mais, Judá e Simeão se casaram com ca-
naneias, e José, com um a egípcia, prática reprovada em Êxodo 34.16 e
D euteronôm io 7.3.
2. Os patriarcas não seguem — e isso certamente com a direção divina —
costumes hereditários posteriores. Tanto Isaque quanto Jacó dão a parte
maior de seus bens como herança a seus filhos mais novos, algo contrário a
Deuteronômio 21.15-17.
3. Os patriarcas se envolvem em práticas religiosas que mais tarde os escritores
bíblicos condenariam. Nas palavras de W enham ,"... os patriarcas seguem, sim,
práticas de adoração que gerações posteriores consideraram incorretas. Eles
erguem colunas, derramam libações sobre elas e plantam árvores (28.18,22;
35.14; 21.33), ao passo que Deuteronômio 12.2,3 condena a adoração ‘debaixo
de toda árvore frondosa’ e recomenda a destruição de colunas e asherim .m
Além disso, os patriarcas não adoram em Jerusalém, mas em lugares como
Siquém, Hebrom, Berseba e Betei, sendo que a última cidade é um caso
particularmente interessante porque, depois de Jeroboão II, ela é considerada
um local religiosamente infame.

Essa lista é apenas um a amostra das sérias incongruências entre o retrato


dos patriarcas em Gênesis e algumas crenças posteriores. Portanto, precisamos
indagar: Q ual a probabilidade de autores que viveram muito tempo depois, escre­
vendo apenas com base na imaginação, pintarem um retrato dos antepassados que

39Genesis 16— 50, W B C (Dallas: W ord, 1994), p. xx-xxv,xxx-xxxv.


40Ibidem , p. xxxiv.
182 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E A BR AÃO A T É O P E R Í O D O PER SA

incluísse essas coisas?41 È bem mais provável que o retrato tenha essa forma porque os
autores de Gênesis receberam uma tradição patriarcal estabelecida, que precisaram
adaptar, quaisquer que tenham sido seus principais objetivos religiosos e sociais, ao
escrever seu relato.
Voltando agora à questão da comparação entre textos bíblicos e extrabíblicos,
é preciso ressaltar que, mesmo depois de a crítica dos paralelos ter realizado seu
necessário e salutar trabalho — alertando os leitores quanto ao erro de fazer falsas
comparações — , ainda assim, existem dados extrabíblicos que se harmonizam com o
retrato bíblico dos patriarcas.42 Por exemplo, no que diz respeito aos documentos de
Nuzi, Selman menciona o período de reflexão mais madura sobre a comparação entre
tais textos e os textos bíblicos, chamando-o de “terceira etapa” do debate intelectual,
que sucede as etapas anteriores de aceitação e crítica. As comparações sustentáveis,
resultado dessa reflexão amadurecida, ainda não “provam” a realidade histórica (nem
mesmo a data recuada) da narrativa patriarcal e, no futuro, poderão receber críticas
convincentes. Contudo, com base no conhecimento de que dispomos no presente, é
certo que essas comparações dão apoio à imagem bíblica do período. Com o Eichler
conclui, “junto com outros documentos cuneiformes, os textos de Nuzi continuarão
ajudando a esclarecer as leis, as instituições e as práticas bíblicas”.43 Existem, ali­
ás, outros dados consistentes com a correspondência do período patriarcal com a
primeira metade do segundo milênio. K. A. Kitchen, por exemplo, menciona que
o preço pago por José como escravo, evento citado em Gênesis 37.28, foi de vinte
siclos, e, com base em outros textos do Antigo Oriente Próximo, mostra que esse era
o preço de mercado de um escravo durante o período babilônico antigo (início do se­
gundo milênio). Ele observa que os preços de escravos em textos bíblicos posteriores
são mais elevados e, assim, argumenta que a narrativa de José reflete as condições da
<

41Sou grato a G raham Davies por um a palestra seguida de um debate, ambos igualm ente estim u­
lantes, sobre esse aspecto do texto das narrativas patriarcais (“Genesis and the early history o f Israel”,
palestra apresentada no Colloquium Biblicum Lovaniense X LV III). Tenho, no entanto, um a forte sus­
peita de que ele não levaria suas conclusões até o mesmo ponto que eu.
42N ão há dúvida de que é preciso prestar bastante atenção ao desenvolvimento de um método
aceitável de comparação. Considerei essa questão em relação a outro tem a de comparação entre os
textos bíblicos e os do A ntigo O riente Próximo (vejaT. L ongm an III, FictionalAkkadian autobiography
([W inona Lake: Eisenbrauns, 1991], p. 23-38).
43“N uzi and the Bible”, p. 119. Veja ainda, como exemplo, o interessante estudo “Patriarchal family
relationships and the N ear E astern law”, de T. Frym er-Kensky (B A 44 [1981], p. 209-14), em que a
autora, ao tratar da adoção de um servo da família por Abraão e do fato de posteriorm ente ele tom ar
A gar como concubina (G n 15; 17), argum enta que esses costumes eram atestados na prim eira metade
do segundo milênio. Isso a leva a concluir que “são os dados cuneiformes que ilum inam e esclarecem o
m aterial patriarcal, indicando sua autenticidade histórica ao dem onstrar que é fiel às tradições e costu­
mes do A ntigo O riente Próximo” (p. 209).
A N T E S DA C O N Q U IS T A DA T E R R A 183

época em que a Bíblia a estabelece. Kitchen, em um texto interessante, desenvolve


esse argumento, entre outros.44
Não queremos sugerir total inexistência de anacronismos nas narrativas patriar­
cais, os quais são indício de que os textos, na forma encontrada hoje, têm origem
em um a época bem posterior ao período que descrevem ou de que, pelo menos,
foram atualizados à medida que o tempo foi passando. Podemos observar, por
exemplo, a referência a “U r dos caldeus” (G n 11.28,31) e a menção à cidade de D ã
(G n 14.14). Em bora U r fosse um a cidade antiga, os caldeus eram um a tribo que
surgiu no primeiro milênio a.C. O mais provável é que a especificação “dos caldeus”
tenha sido acrescentada ao nome da cidade depois da ascensão da dinastia caldeia
a partir de 626 a.C. Q uanto a Dã, a própria tradição bíblica indica que a cidade de
Laís foi renomeada como D ã só depois que a tribo de D ã se m udou para o norte
durante o período dos Juizes (Jz 18.29). Essas atualizações básicas de referências
bíblicas são reconhecidas há muito tempo, até mesmo por estudiosos conservadores,
como um a indicação de anotações acrescentadas mais tarde ao texto.
À luz do conhecimento atual da história do Antigo O riente Próximo, fica mais
difícil explicar as várias referências aos filisteus em nossas narrativas. Fontes his­
tóricas indicam que os filisteus se mudaram para a Palestina no século 12 a.C.,
durante os deslocamentos dos povos do mar, dos quais faziam parte.45 Para alguns,
essas informações tornam suspeita a descrição bíblica do encontro de Abraão
com Abimeleque e Ficol, caracterizados como procedentes da terra dos filisteus
(G n 21.22-34). Porém, talvez esse também seja um sinal de atualização editorial.
Em um a análise sobre a menção aos filisteus no Cântico do Mar, de Exodo 15,
Hoffmeier46 ressalta que Números 13.29 indica que os israelitas sabiam que os

^ “The patriarchal age: M y th or history?” B A R ev 21, n. 2 (1995), p. 48-57, 88, 90, 92, 94-5. M ais
um a vez, esses argumentos não “provam” a veracidade histórica das narrativas patriarcais, mas com cer­
teza são consistentes com sua historicidade. Consideram os que, em geral, as críticas de R. S. H endel a
Kitchen não são convincentes (“Finding historical m emories in the patriarchal narratives”, B A R ev 21,
n. 4 [1995]); o próprio Kitchen lida com essas críticas em “Egyptians and H ebrew s, from Ra’amses to
Jericho” (in: S. A hituv; E. D ., O ren, orgs., The origin o f early Israel — current debate: biblical, historical
and archaeologicalperspectives, Beer-Sheva 12 [Jerusalem: B en-G urion University o f the Negeb Press,
1998], p. 65-134). O próprio H endel apresenta um argum ento interessante sobre a antiguidade das
tradições patriarcais quando cita um a passagem egípcia do décimo século na qual h á referência a Arade
como o “Forte A brão”.
45J. K. Hoffmeier, Israel in Egypt: the evidence fo r the authenticity o f the Exodus tradition (Oxford:
O xford University Press, 1997), p. 33. Ele cita o relevo de M edinet H abu, que relata um a batalha entre
os filisteus e Ramessés III, em 1177 a.C.
46Ibidem , p. 202. Veja o raciocínio parecido apresentado por A lan R. M illard (citando K. A.
Kitchen) em “M ethods o f studying the patriarchal narratives as ancient texts” (in: M illard; W isem an,
orgs., Essays on the patriarchal narratives, p. 35-54; veja p. 44).
184 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA

cananeus ocupavam o litoral sul do Levante, embora Êxodo 13.17 se refira aos
habitantes como filisteus, povo que somente mais tarde veio a ocupar a região.
É claro que outra possibilidade é a de que não há nenhum anacronismo, mas, sim,
que tenha ocorrido uma migração anterior e m enor de imigrantes filisteus, esta­
belecidos no Levante antes da migração maior ocorrida no século 12.47 É verdade
que até o momento não há nenhum dado extrabíblico que dê apoio a essa posição.
No entanto, a história do estudo das narrativas patriarcais demonstra que nem todo
aparente anacronismo é, de fato, anacronismo e, tendo em vista nosso conhecimento
bastante limitado do mundo antigo, devemos ter cautela para não ser dogmáticos
demais ao empregar o termo “anacronismo”. Por exemplo, ainda é comum dizer
que os camelos não foram domesticados antes do século 12 a.C. e que a presença
desses animais nas narrativas patriarcais é um anacronismo (e.g., G n 24.9-14, em
que o servo de Abraão viajou de camelo para a Mesopotâmia). Contudo, hoje temos
indicações de que os camelos foram usados desde tempos mais remotos no antigo
O riente Próximo, o que torna questionável a afirmação de anacronismo.48
E m resumo, muitos argumentos usados no passado para demonstrar que os
costumes patriarcais eram típicos do período do início do segundo milênio foram
adequadamente questionados. No entanto, essa noção está longe de demonstrar
que as narrativas patriarcais conflitam em geral com o quadro oferecido por fontes
do Antigo O riente Próximo acerca do período, mesmo que tenhamos de levar em
conta certo grau de anacronismo na apresentação.

O CONTEXTO SOCIOLÓGICO DOS PATRIARCAS

Como as narrativas bíblicas nos levam a retratar Abraão e seus descendentes imedia­
tos? È claro que o texto não fornece um relato completo da posição que os patriarcas
ocupavam na sociedade, mas há vislumbres que nos permitem fazer conjecturas sobre
o estilo de vida deles. M uitos indícios sugerem um estilo de vida nômade. Os patriar­
cas viviam em tendas (e.g., G n 12.8; 13.3; 31.33) e viajavam de um lugar para outro.
A primeira viagem de Abraão é longa, indo de U r até a terra de Canaã. A referência
à parada temporária em H arã confirma nossa suposição de que Abraão seguiu a rota
tradicional entre esses dois lugares, viajando rio Eufrates acima e, depois, descendo
do norte até Canaã. Essa longa viagem, contudo, foi um acontecimento único e, na
realidade, não nos informa sobre o modo de vida dos patriarcas.

47J. W alton; V. M atthew s, The IV P Bible background commentary: Genesis-Deuteronomy (Downers


Grove: InterVarsity, 1997), p. 48.
48O bserve-se a referência que Speiser (Genesis, p. 179) e M illard (“M ethods”, p. 49-50) fazem a
um a tábua do período babilônico antigo.
A N T E S DA C O N Q U IS T A DA T E R R A 185

Assim que chegou a Canaã, Abraão não permaneceu muito tem po em um


mesmo lugar. Primeiro, instalou-se em Siquém. Depois de Siquém, viajou para
Betei, onde “armou sua tenda” (G n 12.8), então foi para Ai e, por fim, chegou ao
Neguebe. D o Neguebe desceu para o Egito, fugindo da fome. À medida que a nar­
rativa avança, Abraão continua viajando, nunca se estabelecendo em determ inado
lugar por muito tempo. Isaque e Jacó seguem o mesmo padrão. Isso dá a impressão
de que os patriarcas eram nômades que moravam em tendas. Conduziam seus
rebanhos de um lugar para outro, a fim de garantir o m elhor pasto e o melhor
suprimento de água.
N o entanto, descrever os patriarcas como nômades e, então, encerrar a análise
é demasiadamente simplista. O texto bíblico também dá testemunho de que eles se
relacionavam com moradores de áreas estabelecidas. As cidades citadas anteriormente
— Siquém, Betei e Ai — indicam que eles armaram suas tendas nas vizinhanças
de áreas estabelecidas. Eles tam bém interagem com pessoas sedentarizadas que os
tratam com grande respeito. Nas negociações que Abraão faz com Efrom, o heteu,
este chama o patriarca de “príncipe |V /z’] poderoso em nosso meio” (G n 23.6, NVI,
rodapé).49 E m outras passagens, Abraão se relaciona diretamente com o faraó do
Egito (G n 12.10-20) e com o rei filisteu (21.22-34). Y. Muffs descreve o Abraão
de Gênesis 14 como aquele que “atua como um chefe m ilitar que, por meio de um
tratado, é aliado de três destacados líderes locais, possui um exército particular de
mais de trezentos homens e, como bom comandante, está preocupado com a porção
de suas tropas e com a parcela do despojo a que seus aliados têm direito”.50 Essas
referências dão a entender que Abraão era uma pessoa destacada e rica no país que
adotou, um líder tribal de certa importância. É claro que, durante a maior parte
de sua vida, não possuiu nenhum a porção de terra, embora tivesse direitos de uso
de pasto e de água. Era um “estrangeiro residente” (ger) na terra. D e acordo com a
informação de A. H . Konkel, em um artigo recente, o estrangeiro residente “se di­
ferencia do forasteiro pelo fato de haver se estabelecido na terra já há algum tempo,
sendo reconhecido como alguém que ocupa um a posição especial”, descrição bem
apropriada para o quadro que temos dos patriarcas na terra de Canaã.51
O retrato que surge do texto bíblico é análogo a um padrão social atestado nas
tábuas de M ari. Esta era um a cidade importante. Nas áreas ao redor dela, habitavam
algumas tribos (por exemplo, yaminitas e haneus) cujos movimentos de entrada

49D . J. W isem an, “A braham reassessed”, in: M illard; W isem an, orgs., Essays on the patriarchal
narratives, p. 144-9.
50“A braham the noble warrior: patriarchal politics and laws o f war in ancient Israel” (JSS 33
[1982]), p. 81-107; citação na p. 106.
S1“gw r”, N ID O T T E , vol. 1, p. 837.
186 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E A BR AÃO A T É O P E R Í O D O PER SA

e saída da área estabelecida trazem à lembrança de alguns estudiosos o estilo de


vida dos patriarcas.52 Essas tribos não eram constituídas por pesso.as nômades que
invadiam as áreas sedentarizadas; ao contrário, durante a estação da seca, quando
os pastos e a água eram escassos, estabeleciam-se próximo à área sedentarizada e,
durante o período úmido, partiam dali. Os dados dos textos de M ari indicam que as
áreas sedentarizadas tinham interesse na incorporação dessas tribos nômades para,
assim, poder cobrar tributos delas.
E m resumo, não devemos imaginar Abraão e seus descendentes como pessoas
que vagavam sem objetivo pela terra, em disputa constante com habitantes estabe­
lecidos. Ao contrário, era do interesse dos patriarcas m anter boas relações com os
moradores da terra (cf. G n 26). Nas palavras de Cornelius, “o modo de vida da ‘tribo
nômade’é visto como uma simbiose de nomadismo pastoril e agricultura de aldeia”.53

GÊNESIS 14 E A HISTÓRIA DO PERÍODO PATRIARCAL

Gênesis 14 tem atraído muito interesse e motivado vários debates. Isso acontece
em grande parte porque, dentre as narrativas patriarcais, parece que Gênesis 14 é, à
primeira vista, a passagem com mais possibilidade de ter um a associação específica
com a história extrabíblica. Outras passagens descrevem Abraão vagando pela terra,
ocasionalmente entrando em contato com personagens poderosos cujos nomes não
são informados (G n 12.10-20) ou então não tão poderosos a ponto de esperarmos
que fontes extrabíblicas os mencionem (G n 26). Em Gênesis 14, porém, Abraão
estabelece contato com personagens influentes de grandes potências.
O capítulo começa com a descrição de um ataque de quatro reis de fora da terra
de Canaã contra cinco reis — presumivelmente da terra — liderados pelos gover­
nantes de Sodoma e Gomorra. Por vários anos, o chefe da coalizão de quatro reis
havia sujeitado os cinco líderes cananeus.34 Os quatro reis executaram o ataque em
resposta a uma rebelião. Seu objetivo era colocar os vassalos novamente na linha. N a
ocasião, derrotaram outras tribos, algumas das quais com notável reputação como

52W. G. Dever, “Palestine in the second millennium BCE: the archaeological picture”, in: J. H . Hayes;
J. M . Miller, orgs., Israelite anãJudaean history (London: SCM , 1977), p. 70-120; V. H . M atthews, “Pasto-
ralists and patriarchs”, (BA 44 1981), p. 215-8; idem, “The wells o f G erar” (BA 49 1986), p. 118-26; I. C or­
nelius, “Genesis xxvi and M ari: the dispute over water and the socio-economic way o f life o f the patriarchs”,
JN S L 12 (1984), p. 53-61. E m “The background o f the patriarchs: a reply to W illiam Dever and M alcolm
Clark” (JSO T 9 [1978], p. 2-43), T. L. Thompson criticou essa abordagem, mas não de forma convincente.
53“Genesis xxvi and M ari”, p. 56.
S40 texto (G n 14.4) m enciona explicitamente doze anos, mas, devido à sua referência à rebelião no
décimo terceiro ano, é possível que o versículo esteja utilizando um paralelismo num érico do tipo “x, x
+ 1”, de m odo que talvez não se deva interpretar o núm ero literalmente.
A N T E S DA C O N Q U IS T A DA T E R R A 187

guerreiras (os refains, os zuzins, os emins, os horeus, todo o território dos amalequi­
tas e os amorreus). Q uando os cinco reis enfrentaram os outros quatro, os primeiros
foram dispersos e os quatro reis capturaram Ló, que era sobrinho de Abraão e havia
se mudado para as cercanias de Sodoma e Gom orra (G n 13).
Abraão foi logo informado dessa tragédia e partiu para a batalha com 318
homens. Derrotou a coalizão de reis estrangeiros, não apenas resgatando Ló, mas
também recuperando o restante dos despojos que os reis inimigos haviam tomado
da coalizão cananeia. Q uando Abraão voltou, o sacerdote-rei de Salém o encontrou
e o abençoou. Abraão deu o dízimo ao sacerdote-rei. Depois dessa cena, o rei de
Sodoma insiste com Abraão para que fique com os despojos, mas Abraão não aceita,
evitando ter dívida com o rei de Sodoma. A única exceção feita por Abraão é deixar
que seus aliados cananeus (Aner, Escol e M anre) recebam a parte que lhes cabe.
Comentaristas observam problemas nesse relato que suscitam dúvidas quanto à
sua historicidade. Primeiro, alguns questionam se a posição “correta” da passagem é
de fato entre os capítulos 13 e 15 de Gênesis.-- Um exame cuidadoso do contexto mais
amplo mostra, contudo, que o capítulo se encaixa em um a estrutura mais abran­
gente. O centro da narrativa de Abraão são os capítulos 15— 17, cujo foco são as
promessas pactuais. Esses capítulos são emoldurados por dois capítulos em que Ló
desempenha papel im portante (G n 13— 14; 18— 19).
Segundo, alguns comentaristas questionam se o relato realmente “faz parte”
da narrativa de Abraão. Afirmam que, em outras passagens da narrativa, Abraão é
retratado como um simples nômade, vagando de uma cidade para outra, ao passo
que aqui é apresentado como um guerreiro, obtendo vitória sobre uma coalizão
estrangeira relativamente grande. Anteriormente, porém, questionamos essa
descrição de Abraão. Ele não era um simples nômade, mas um líder que dispunha
de riquezas imensas e que também tinha aliados cananeus que lhe davam apoio.
Terceiro, para alguns estudiosos há também tensões dentro do capítulo. Eles
sustentam que existe um a contradição entre Gênesis 14.10, que descreve os reis de
Sodoma e Gom orra caindo em poços de betume, e a passagem, mais adiante no
capítulo, em que o rei de Sodoma insiste que Abraão receba os despojos. Entretanto,
outros estudiosos respondem a i a o mostrando que é possível e mesmo necessário
interpretar a expressão hebraica com o sentido de que os reis se esconderam nos
poços de betum e.56 H á ainda muito debate em torno da aparição repentina de

” O s críticos das fontes, com certa frequência, afirmam que o texto não tem nada em comum com
nenhum a das outras fontes e o consideram um acréscimo. E ntre esses estudiosos, debate-se se a natu­
reza idiossincrática do texto indica que o livro é de um a data recuada ou recente.
S6Veja, e.g., Muffs em “Abraham the noble warrior”, que também mostra que cada elemento de Gênesis
14 possui equivalente exato nos textos que tratam das leis de guerra e das regras de cortesia na recuperação
de despojos, sendo encontrados esporadicamente nos tratados internacionais de Boghazkõy e Ugarite.
188 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E A BR AÃO A T É O P E R Í O D O PER SA

Melquisedeque, rei de Salém (G n 14.18-20), que é sacerdote de El Elyon57 (“Deus


Altíssimo”, que no contexto mais amplo é identificado com Yahweh). Q uem é ele?
Onde fica Salém? Q ual é o propósito dessa pequena subnarrativa? Será que ela de
fato corresponde ao contexto mais amplo do capítulo?58 A maioria das pessoas a
considera um acréscimo ao texto, mas um acréscimo que identifica com precisão o
propósito e a data do capítulo. A posição defendida com maior frequência talvez
seja a de que esse relato reflete a época de Davi, quando ele tentou formar, espe­
cialmente em Jerusalém, um a coalizão de forças políticas e religiosas cananeias e
israelitas.59 E certo que um relato desses seria do interesse de pessoas da época de
Davi. Contudo, se ele reflete autenticamente a época de Davi e não a de Abraão é
outra questão. Não existe base sólida para tal afirmação.
Tendo em vista nosso objetivo, o debate sobre a identidade dos reis mencionados
em Gênesis 14 é o que se revelou mais proeminente e, em últim a análise, o mais
provocador e o mais frustrante ao mesmo tempo.60 A melhor abordagem é analisar
um rei de cada vez. O primeiro é Quedorlaomer, rei de Elão, sobre quem o texto
diz que era o líder da coalizão estrangeira. Sem dúvida, esse rei tem um nome que
soa autenticamente elamita. Q uedor é um primeiro elemento comum em nomes de
reis elamitas, Kudur. No entanto, a segunda parte, que com certeza é um a palavra
genuinamente elamita, não se parece com nada associado a algum rei conhecido
daquele povo.61 O utras referências na Bíblia permitem concluir que o rei seguinte,

57V. H am ilton destaca que esse nom e não corresponde ao nome de nenhum a divindade conhecida
do panteão cananeu (Genesis, 2 vols. N IC O T [G rand Rapids: Eerdm ans, 1990], vol. 1, p. 410).
S8J. G . G am m ie, “L oci o f the M elchizedek tradition o f G enesis 14.18-20” (JBL 90 [1971]),
p. 385-96.
39Rendsburg, “Biblical literature as politics”, p. 55-6. E m “Prologom ena on the approach to his-
torical texts in the H ebrew Bible and the ancient N ear E ast”, J. A. Soggin defende que o texto aponta
para o período persa, quando a região a leste do T igre dominava a M esopotâm ia propriam ente dita
(.E retz Israel24 [1993], p. 212-5).
“ D uas das análises mais interessantes dessas questões são a de M . A stour e a de J. A . Em erton.
E m “Poiitical and cosmic symbolism in Genesis 14 and its Babylonian sources” (in: A. A ltm ann; J. A.
E m erton orgs., Biblicalmotifs: origins andtransformations [Cambridge: H arvard University Press, 1966],
p. 65-112), A stour sustenta que Gênesis 14 foi produto da escola deuteronôm ica do final do século VI
a.C. e reflete a realidade daquele período. Para Astour, os quatro reis representam a Babilônia, a Assíria
(Elasar), o Elão e a terra de H atti, os quatro cantos do mundo. A dem ais, ele acredita que o historiador
deuteronôm ico encontrou afinidade nos textos denom inados Spartoli e foi, desse modo, inspirado por
eles. E m erton apresenta, contudo, um a refutação convincente da tese de Astour, m ostrando que há um a
boa dose de especulação envolvida (“Some false clues in the study o f Genesis xiv”, V T 21 [1971], p.
24-47). E m um segundo artigo ele apresenta um a história redacional bem complexa da passagem, que
ocorre em cinco etapas (“The riddle o f Genesis xiv”, F T 2 1 [1971], p. 403-39).
"T em os de fato um a lista de reis elamitas que vai de 2100 a 1100 a.C. A lbright inicialm en­
te identificou Q uedorlaom er com um rei desconhecido de nom e Kudur-Lagam ar, porém, mais tarde
A N T E S DA C O N Q U IS T A DA T E R R A 189

Anrafel de Sinar, era claramente da Babilônia. Em princípio pensou-se que Anrafel


fosse Hamurábi, mas as diferenças filológicas a serem transpostas são grandes demais,
de modo que essa identificação foi, sem exceção, abandonada. A pesquisa sobre o nome
de Arioque, rei de Elasar, seguiu um caminho semelhante. No início, acreditou-se
que a localização geográfica fosse a cidade de Larsa, mas identificações mais recentes
incluem regiões menos conhecidas como Alsi, no norte da Mesopotâmia, ou Ilansura,
perto de Carquemis. Em um primeiro momento, imaginou-se que Arioque fosse
Arriwuk, o quinto filho de Z im ri-lim de M ari (do início do período babilônico
antigo), mas agora essa associação é considerada improvável. Tidal, o quarto rei da
lista, tem um nome confirmado por quatro reis hititas (Tudhalya). É identificado
como rei de Goim, que significa “nações”. Essa identificação é bem estranha, mas
pode ser semelhante ao nome antigo e bastante comum Um m an-manda, que é um
termo geral como “povo”, usado com referência a citas e cimérios.
Portanto, os nomes parecem autênticos,62 mesmo não sendo possível identificar
com certeza esses reis com nomes mencionados fora da Bíblia. Além disso,
K. Kitchen pode ter razão ao afirmar que o período que precede o período babilônico
antigo, embora não confirme diretamente a existência desse grupo de reis, talvez
seja o único em que tal coalizão teria sido possível.63 Afinal, o período anterior a
H am urábi foi uma época em que a M esopotâmia estava dividida entre vários líderes
menos poderosos. Hamurábi, por causa de sua tendência imperialista, foi quem
sujeitou muitos desses líderes.64Além disso, porém, não há muito mais a dizer. O fato
é que Gênesis 14 não nos oferece um a ligação específica com a história extrabíblica
— pelo menos não com a história extrabíblica que conhecemos atualmente.

A NARRATIVA DE JOSÉ (Gn 37—50)

A tradição posterior do AT relaciona apenas Abraão, Isaque e Jacó como patriarcas


(Ex 2.24; 3.6,15; 4.5), portanto, tecnicamente falando, José não é um deles. Apesar
disso, a narrativa de José tem ligações com o material precedente e subsequente,
sendo o elo entre as narrativas patriarcais e o relato do Exodo. José é filho de Jacó,
que é filho de Isaque, filho de Abraão. A narrativa de José é o relato da continuação

defendeu que Q uedorlaom er é K udur-N ahuti, que teve um a atuação m ilitar bastante agressiva no
A ntigo O riente Próximo, entre 1625 e 1610 a.C.
“ H am ilton tam bém observa que o itinerário dos quatro reis é apresentado com “exatidão geográ­
fica” ( Genesis, vol. 1, p. 402).
63Ancient Orient and Old Testament (Chicago: InterVarsity, 1965), p. 45.
64O bserve-se o artigo recente de O. M argalith, “The riddle o f Genesis 14 and M elchizedek” (Z A W
112 [2000], p. 501-8), que sustenta que o texto é u m para-mythe, correspondendo aos acontecimentos
do século 13 a.C.
190 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA

da promessa. Á semelhança das narrativas patriarcais, Gênesis 37— 50 dem ons­


tra como o cumprimento das promessas pode superar obstáculos — nesse caso,
a ameaça de um a fome que poderia destruir a família da promessa. O relato de
José também antecipa a narrativa do Êxodo, ao explicar como o povo de Deus se
estabeleceu no Egito. O sepultamento de José fornece um elo concreto entre os
dois aspectos, a promessa e a presença de Israel no Egito. Por ocasião de sua morte
(G n 50.22-26), José pediu que seus ossos fossem levados do Egito. Q uando Israel
finalmente deixou o Egito, o texto menciona que Moisés levou os ossos de José
(Êx 13.19). Ademais, o texto inicial de Êxodo (1.1) repete Gênesis 46.8, as duas
passagens listam “os nomes dos filhos de Israel que entraram com Jacó no Egito;
cada um entrou com sua família”.

Análise literária

O início e o fim da narrativa de José são claros. Em 37.1, José se torna o foco prin­
cipal da narrativa, e a seção term ina com o relato de sua morte no final do livro de
Gênesis. Contudo, essa exposição pode ser simples demais. A objeção principal
contra a unidade de Gênesis 37— 50 é Gênesis 38, que não faz menção alguma a
José, mas, ao contrário, concentra-se em seu irmão mais velho, Judá. A estrutura da
parte final de Gênesis, porém, fica mais clara quando notamos em 37.1 a últim a fór­
mula tõledôt no livro. Isso indica que, na verdade, não devemos considerar essa secção
como a narrativa de José, mas sim como o relato acerca dos descendentes de Jacó,
que incluem Judá e José. Entretanto, devido ao notável interesse desses capítulos
em José, mantemos o nome tradicional da unidade e focalizamos esse personagem.
O estilo da narrativa de José indica uma mudança radical em relação ao m a­
terial precedente no livro de Gênesis, o que também explica seu exame à parte.
As narrativas patriarcais são, em grande parte, constituídas de episódios curtos
(G n 24 é uma notável exceção), mas a narrativa de José tem as características de
um enredo novelesco. Coats observa esse detalhe e comenta que “como [...] em um
conto, [a narrativa de José] apresenta um enredo que vai de um ponto de crise até
sua solução”.65 Apesar de a narrativa principal desses capítulos fluir naturalmente, os
críticos ainda procuram isolar diferentes fontes de texto, sendo as de maior destaque
J e E. A presença de nomes duplos usados para designar tribos, personagens e assim
por diante desempenha um papel im portante na elaboração dessas tentativas, mas
existem explicações alternativas para as que são oferecidas pela crítica das fontes.
Conforme destacado por G. W. Coats, “...Um exame mais recente do relato en­
fraquece o argumento a favor de duas fontes, sugerindo que é possível um autor

6SGenesis, p. 2 6 5 -6 .
A N T E S DA C O N Q U IS T A DA T E R R A 191

usar a repetição como técnica narrativa para ênfase, talvez apenas com o propósito
de diversificar”.66 Vejamos, por exemplo, a importante questão dos midianitas e dos
ismaelitas em Gênesis 37. Críticos das fontes separam um a fonte que menciona os
midianitas como o grupo que leva José para o Egito (v. 28,36) de outra fonte que
atribui esse papel aos ismaelitas (v. 25,27,28; 39.1). Em um artigo recente E. Fry
apresentou a explicação alternativa de que “havia o entendim ento de que tanto
‘ismaelitas’ quanto ‘midianitas’ eram termos genéricos que designavam um povo nô­
made que, conforme se acreditava, descendia de Abraão e, por esse motivo, os dois
termos eram considerados um a referência ao mesmo grupo”. Como comprovação, ele
cita Juizes 8.22-24, texto que identifica os midianitas com os ismaelitas.67
Conquanto em relação às narrativas patriarcais o estilo literário tenha mudado,
não identificamos absolutamente nenhum a mudança no gênero literário ou na
intencionalidade histórica. Em bora alguns sustentem que o livro de Gênesis, em
geral, e a narrativa de José, em particular, são contos narrativos, defendemos, ao
contrário, que eles são histórias narrativas.

O propósito teológico da narrativa de José

A vida de José parece estar sob o controle de um a força maior que ele. Inicialmente,
a identidade dessa força não fica clara; poderia até mesmo ser considerada má sorte.
José era impetuoso quando jovem e com certeza não tinha muito tato. Ele provocou
a ira de seus irmãos quando lhes contou os sonhos que prenunciavam sua superio­
ridade sobre eles (G n 37.1-11). Isso os enfureceu tanto que decidiram eles mesmos
se livrar dessa peste. Q uando José foi encontrá-los em D otã, pensaram em matá-lo,
mas então preferiram vendê-lo a comerciantes ismaelitas/midianitas que iam para
o Egito (37.12-36). Parecia que o destino o havia levado para longe do lar de sua
família, para longe da terra da promessa. No Egito, José passou a servir um perso­
nagem poderoso chamado Potifar. O relato sobre José na casa de Potifar (G n 39)
testifica claramente o fato de que ele é o portador da promessa divina. A expressão
“o S e n h o r estava com ele” reverbera ao longo do capítulo; o resultado da presença
do Senhor é a bênção material sobre a casa de Potifar.
N o entanto, em uma leitura superficial do texto, o destino iria aparentemente
interferir de novo na vida de José. A mulher de Potifar o cobiçou e o convidou para
se deitar com ela. José não aceitou, então ela o acusou de estupro, e o jovem foi
lançado na prisão. Contudo, mais uma vez, Deus estava com José (39.21-23) e a
prisão prosperou por causa de sua presença.

“ “Joseph, son o f Jacob”, in: A B D , vol. 3, p. 979.


67“H ow was Joseph taken to Egypt? (Genesis 37.12-36)”, 7heBible Translator 46 (1995), p. 445-8.
192 A H I S T Ó R I A D E ISR A E L , D E A B R AÃO A T É O P E R Í O D O PER SA

O tempo que José ficou na prisão o colocou em contato com dois oficiais egíp­
cios de alta posição: o copeiro e o padeiro reais. Ambos haviam desagradado o faraó
e, por isso, estavam presos. José interpretou o sonho de cada um deles e previu a
soltura dos dois homens, mas enquanto o copeiro obteria o favor do faraó, o pa­
deiro seria executado. Os acontecimentos ocorreram exatamente como José havia
predito, mas o copeiro esqueceu a promessa de interceder em favor de José junto ao
faraó. Novamente, porém, como por puro destino, o próprio faraó teve um sonho
perturbador e o copeiro finalmente se lembrou do hábil intérprete de sonhos que
havia conhecido na prisão. Assim, os acontecimentos fazem com que José chegue
à presença do faraó e o ajude a lidar com uma catástrofe em potencial, alertando-o
e preparando-o para uma terrível fome que haveria de vir.
Por causa dessa fome, os irmãos de José vão ao Egito em busca de alimento.
A família da promessa percebe que sua existência está ameaçada. N o início, José
não está preparado para se revelar aos irmãos, pois, afinal de contas, haviam cons­
pirado para tirar sua vida. Ele os testa, ameaçando Benjamim, seu irmão mais novo,
para ver se agirão de acordo com a natureza dem onstrada no passado, protegendo as
próprias vidas. Q uando Judá se oferece para servir de refém no lugar de Benjamim.
(44.33,34), José não suporta mais e se revela aos irmãos. Depois, intercede junto
ao faraó e traz sua família à terra de Gósen, local situado na região delta do Nilo.
E assim que a família de Deus chega ao Egito.
A narrativa de José é um a peça literária elaborada habilidosamente e com um
tem a teológico sutil. A ausência de um a linguagem teológica explícita ao longo
do relato levou alguns a classificá-lo como literatura sapiencial. O tema, porém, se
torna explícito no final do relato, quando Jacó morre. Nesse momento, os irmãos
se preocupam com a possibilidade de, com a morte do pai, José finalmente se vingar.
D iante do pedido deles por misericórdia, José responde com uma emocionante
declaração sobre a providência divina: “Certam ente planejastes o mal contra mim.
Porém Deus o transformou em bem, para fazer o que se vê neste dia, ou seja, con­
servar muita gente com vida” (50.20). Esse tema da providência divina protegendo
os portadores da promessa explica a escolha dos episódios narrados da vida de José.

José no Egito

A narrativa de José, conforme descrita anteriormente, não está interessada primaria­


mente na história propriamente dita. No entanto, é impossível separar teologia e história
em um relato como esse; o relato em si tem o objetivo de mostrar ao leitor como Deus
pode operar no processo histórico para prevalecer sobre as ações más visando à reali­
zação de seus propósitos redentores. Outro aspecto do escopo da narrativa é encorajar
aqueles cujas vidas parecem estar à mercê do acaso cruel. Embora o foco primário não
A N T E S DA C O N Q U IS T A DA T E R R A 193

esteja na história, a narrativa nos leva à seguinte pergunta: Será que ela corresponde ao
que sabemos sobre o Egito na primeira metade do segundo milênio a.C.? Certamente
podemos esperar que pelo menos reflita alguns costumes e características do Egito
daquela época, mesmo não sendo possível encontrar ligações específicas entre a história
egípcia e a patriarcal. Essa questão tem atraído a atenção tanto de estudiosos bíblicos
como de egiptólogos. É interessante notar, conforme veremos, que a maioria dos espe­
cialistas em Egito (Vergote,68 Kitchen69 e Hoffmeier70) demonstram que há uma forte
nuance egípcia na narrativa, enquanto muitos estudiosos bíblicos negam isso.71
Concordando com Hoffmeier, observamos inicialmente que “até hoje não sur­
giu nenhum a prova direta de que o hebreu José foi um oficial na corte egípcia”.72
Estudiosos que anseiam mostrar a autenticidade da narrativa se satisfazem, portanto,
em apresentar provas indiretas e em lidar com aparentes anomalias. Limites de
espaço impedem uma análise detalhada das provas indiretas aqui, mas concordamos
com a conclusão de Hoffmeier de que elas “tendem a comprovar a autenticidade
do relato. N a realidade, não existe nada de extraordinário ou de inacreditável na
narrativa”.73 Considerem-se alguns exemplos.
Primeiro, como indicado anteriormente, Kitchen faz a interessante observação de
que, com base no conhecimento que temos hoje, o preço pelo qual José foi vendido
como escravo (vinte siclos de prata, cf. G n 37.28) está totalmente de acordo com o
que sè sabe acerca da primeira metade do segundo milênio. Os dados revelam que, por
volta da segunda metade do segundo milênio, o preço de um escravo era de trinta siclos
e chegou a cinqüenta no primeiro milênio.74 Esta questão é um detalhe, mas favorece
uma recordação histórica autêntica, em vez de um texto posterior fictício ou semifictício.
Segundo, os nomes egípcios que aparecem na narrativa (Potifar, Potífera,
Asenate e Zafenate-Paneia) têm sido estudados minuciosamente ao longo dos
anos. As fontes egípcias não confirmam a existência dessas pessoas específicas, o
que, particularmente, não causa surpresa, tendo em vista a natureza dos registros

mJoseph en Egypte: Geneses chap. 37— 50 à la lumière des études égyptologiques recentes (Louvain:
Publications Universitaires, 1959).
69Kitchen tem contribuído com vários estudos para a compreensão do assunto, em particular
“Joseph” (in: N B D , p. 617-20) e “Genesis 12— 50 in the N ear Eastern w orld” (in: R. S. H ess et al., orgs.,
He siuore an oath: biblical themesfrom Genesis 12— 50 [Cambridge: Tyndale House, 1993], p. 77-92).
70Israel in Egypt. N esta seção devo m uito à obra de Hoffmeier.
71E ntretanto, a principal divergência provém de um egiptólogo, D. Redford, em sua obraví study o f
the biblicalstory o f Joseph (V T S 20 [Leiden: Brill, 1970]). Suas interpretações (que tendem a desprezar
a autenticidade histórica da narrativa de José) são contestadas por Kitchen e Hoffmeier, embora eles
reconheçam as contribuições positivas de Redford.
n Israel in E gypt, p. 97.
73Ibidem .
74“Genesis 12— 50 in the N ear Eastern w orld”, p. 79-80.
194 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E A BR AÃO A T É O P E R Í O D O PERSA

arqueológicos que restaram. Contudo, embora exista alguma dificuldade pelo fato de
serem transliterações de nomes egípcios para o hebraico — e não os próprios nomes
em egípcio — , ninguém duvida de que esses nomes sejam autenticamente egípcios.
As datas em que foram usados e as etimologias são objeto de debate, mas Currid,
HofFmeier e outros75 mostram como esses nomes certamente podem ter sido usados
no contexto do segundo milênio em que a Bíblia situa a narrativa de José. Kitchen
vai mais longe, concluindo que “os melhores equivalentes de Zafenate-Paneia e
Asenate são, em sua esmagadora maioria, do Reino M édio (início do segundo milê­
nio a.C.), aparecendo raramente depois; Potifar/Potífera é um a forma modernizada
(presente no final do segundo milênio a.C. em diante) de um nome encontrado do
início do segundo milênio (Didire)”.76
Essas observações conduzem a mais dois comentários. Primeiro, o personagem
que esperaríamos encontrar nas fontes originais é o faraó. No entanto, como é bem
sabido, em Gênesis 37-50, o líder egípcio nunca é mencionado pelo nome. Nosso
conhecimento dos reis egípcios provavelmente permitiria a datação do contexto do re­
lato, caso soubéssemos o nome do faraó da narrativa de José, mas este não é o caso, por
isso, ficamos apenas com um a data incerta. Alguns têm sugerido que não identificar
o faraó está em conformidade com a prática egípcia de não mencionar o nome de um
inimigo e, desse modo, não contribuir para que fique famoso. Outros dizem que, uma
vez que o faraó era considerado um deus, o autor bíblico evitou escrever seu nome.77
A melhor explicação está no fato de que, até por volta do décimo século, era comum
os próprios egípcios não se referirem ao faraó pelo nome, mas apenas chamá-lo de
“faraó”. Conforme observado por Hoffmeier, era exatamente essa a prática

encontrada no AT; no perío d o que abrange G ênesis e Ê xodo até Salom ão e R oboão, o
term o “faraó” ocorre sozinho, ao passo que depois de S h esh o n q (c. 925 a.C .), o título e
o nom e aparecem ju n to s (e.g., faraó N eco, faraó H ofra).
P ortanto, o em prego do term o “faraó” em G ênesis e Ê xodo está de p leno acordo
com a prática egípcia do século 15 até o 10 a .C .78

75í lofFmcier, Israel in Egypf, p. 84-8;J. C urrid, Ancient E gypt and the Old'1'esíament (G rand Rapids:
Baker, 1997), p. 74-82.
76“Genesis 12— 50 in the N ear E astern w orld”, p. 90.
77W alton; M atthew s, Bible background commentary, p. 75.
'8Hoffmeier, Israel in Egypt, p. 87-8. Cf. tb. o que K. Kitchen diz em “Egyptians and Hebrew s,
from Raam ses to Jericho” (in: A hituv; Oren, orgs., Origin o f early Israel, p. 105-6): “... um ou mais
escritores bíblicos podem m uito bem ter conhecido o nom e do rei, mas durante o período ramessida,
na comunicação e documentação do dia a dia (com exceção de trechos que indicavam a data oficial,
algo desnecessário para os escritores bíblicos), as pessoas costum eiram ente se referiam a seu governante
como ‘faraó’ ou ‘faraó, nosso bom senhor, L P H ’ ou algo parecido — nunca pelo nome! [...] M ais um a
vez as práticas egípcia e bíblica m udam juntas com o passar o tem po”.
A N T E S DA C O N Q U IS T A DA T E R R A 195

Um segundo tem a de debate é o papel de José na hierarquia egípcia. Q ual


é a probabilidade de um semita chegar a uma posição de tanta proeminência no
governo egípcio? E provável que essa não fosse um a pergunta em que o autor da
narrativa de José estivesse interessado; o único propósito de seu relato é mostrar
que a vida e a carreira de José estavam sob o controle de Deus e, nessa estrutura
de referência, especulações sobre “probabilidades” seriam irrelevantes. A pergunta
não é coerente nem mesmo em uma estrutura de referência estritamente histórica,
a menos que se creia que somente coisas que são “prováveis” de fato ocorreram.
Seja como for, existem outros textos que mencionam semitas ocupando posição de
destaque no governo egípcio em tempos antigos. Hoffmeier registra o caso de Bay,
que desempenhou um papel im portante após a morte de Seti II, em 1194 a.C., cujo
título era o de “Grande Chanceler de todo o país”.79
M uitos exemplos como esse poderiam ser facilmente apresentados. Especialistas
em materiais egípcios, como Hoffmeier e Kitchen, acrescentam informações sobre o
papel dos mágicos na narrativa, o costume de celebrar o aniversário do faraó, o ritual
da investidura de José em seu cargo e assim por diante. É claro que esse material
contextual não “prova” a exatidão histórica da narrativa de José.80 Contudo, com base
nessas informações, podemos dizer que a narrativa de José corresponde muito bem
ao contexto em que é estabelecida, a saber, o ambiente egípcio do início do segundo
milênio, muito embora ocasionalmente, por meio de comentários anacrônicos, ela
revele, à semelhança das narrativas patriarcais, que foi pelo menos atualizada de
tempos em tempos, à medida que a tradição foi passando de um a geração a outra.81
Em bora a narrativa de José corresponda em termos gerais a um contexto egíp­
cio, é impossível ser dogmático sobre como ela se encaixa de forma específica na
história egípcia tal como a conhecemos. Parte do problema se relaciona à ambigüi­
dade referente à datação do Êxodo, assunto que focalizaremos agora.

O NASCIMENTO DE MOISÉS

A narrativa do Êxodo começa com o relato do nascimento de Moisés, que ocorre


em um a época de opressão egípcia aos israelitas. O serviço que José prestou a um
faraó do passado não é mais lembrado e seus descendentes agora são forçados a
trabalhar em grandes projetos estatais, especificamente a construção das cidades

79Israel in Egypt, p. 94-5.


“ D iscordando das inúmeras afirmações (porém, ingênuas) feitas por Kitchen de que está se
baseando apenas em “fatos”.
slE.g., é possível ver a “terra de Ramessés” (G n 47.11) como um anacronismo que reflete a época
do narrador ou um a época ainda posterior; veja W alton; M atthew s, Bible background commentary, p. 79.
196 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E A BR AÃO A T É O P E R Í O D O PER SA

de Pitom e Ramessés, sob a supervisão de capatazes opressores. Em bora não haja


nenhum indício de que os israelitas tenham estado no Egito nessa época, existem
inúmeras provas da presença de semitas naquele país ao longo da segunda metade
do segundo milênio a.C. A mais notável é a cena retratada na tum ba de Rekhmire,
um alto oficial de Tutmósis III (c. 1479-1425 a.C.), cena essa que mostra traba­
lhadores fazendo tijolos.82 A inscrição que a acompanha descreve os trabalhadores
como prisioneiros de guerra provenientes da Núbia e da Síria-Palestina.83
Em bora, ao que parece, os egípcios tenham visto nos israelitas um a vantajosa
fonte de trabalho, o texto bíblico sugere tam bém que tem eram seu número cada
vez maior e se preocuparam com a possibilidade de, caso um inimigo externo
atacasse, os israelitas se aliassem a eles (Ex 1.10). Por isso, o faraó decidiu limitar
o crescimento da população israelita, exigindo que suas parteiras sacrificassem os
meninos recém-nascidos. Elas, porém, se recusaram a executar as ordens do faraó,
inventando um a desculpa para sua desobediência. O faraó emitiu, então, uma
ordem terrível: “Lançai no rio todos os meninos que nascerem, mas deixai viver
todas as m eninas” (Ex 1.22).
Foi nesse contexto perigoso que nasceu Moisés, o futuro líder de Israel, aliás, tal
contexto explica sua criação incomum. Q uando nasceu, sua mãe o pôs em um cesto
de papiro e colocou o cesto entre os juncos do Nilo. O resultado foi a descoberta do
menino pela filha do faraó, que decidiu criá-lo com a ajuda de uma ama hebreia, a
qual acabou sendo a própria mãe biológica de Moisés. Em bora não seja dito expli­
citamente, esse relato tem o propósito de mostrar que Deus provê as necessidades
e cuida desse menino especial, que será aquele que livrará Israel da opressão. Nesse
aspecto, o relato tem função semelhante à dos relatos dos nascimentos de Isaque,
Jacó e muitos outros — crianças que nascem somente depois de Deus abrir a madre
de suas mães estéreis.
Desde o final do século 19, estudiosos destacam a semelhança entre o relato
do nascimento de Moisés e a Lenda do Nascimento de Sargão,84 o qual, segundo a

82Veja A N E P , p. 35. Divergências entre egiptólogos em relação à interpretação de dados


astronômicos, à duração de alguns reinados e à extensão da sobreposição de dinastias no Egito têm
resultado em esquemas cronológicos conflitantes da história egípcia antiga. Por isso, deve-se considerar
apenas aproximadas as datas de faraós específicos. M esm o se deixarmos de lado teorias cronológicas
radicais que levariam a um avanço substancial de muitas datas, nos diferentes m étodos cronológicos, as
datas dos faraós ainda podem variar entre si de vinte a trinta anos. Veja ainda K.xihit,Ancient Near East,
vol. l ,p . 11-2 e passim.
S3Hoífm eier, Israel in Egypt, p. 112-4.
S4V e]aA N E T , p. 119, e as análises feitas por B. Lewis, em The Sargon legend: a study ofthe Akkadian
text and the tale o f the hero who was exposed at birth (A S O R D issertation Series 4 [Cambridge: A m erican
Schools o f O riental Research, 1980]), e por Longm an, em Fictional Akkadian autobiography.
A N T E S DA C O N Q U IS T A DA T E R R A 197

lenda, nasceu de uma importante sacerdotisa. Ela o colocou em um cesto e pôs o


cesto nas águas do rio, de onde o menino foi tirado por Aqqi, que trabalhava como
carregador de água. Aqqi criou Sargão, que se tornou um grande rei da Mesopotâmia.
Entretanto, é improvável que haja qualquer elo literário entre os relatos: Hoffmeier
mostrou que a linguagem do relato do nascimento de Moisés reflete um contexto
egípcio e não mesopotâmico.85 É claro que os relatos têm um tem a em comum: a
necessidade de o bebê e a mãe natural se separarem para proteção da própria criança.
N o caso da lenda de Sargão, ao que parece, a sacerdotisa presumivelmente não tinha
filhos. E m ambas as culturas, a ideia por trás da história do cesto na água era a entrega
da criança aos cuidados da divindade que controla as águas (no caso de Éxodo, o
próprio Yahweh) — o antigo equivalente cultural da prática moderna de deixar uma
criança indesejada junto à porta de um a casa ou de um hospital.
O nome de Moisés tem gerado algum debate por causa de sua origem ambígua.
Atribui-se ao nome um a origem hebraica, em um a etimologia que o associa ao
verbo hebraico mshh, “tirar”. Em bora seja possível que a princesa egípcia tenha dado
um nome hebraico à criança semita adotada, é mais provável que a raiz do nome seja
um verbo egípcio cujo sentido é o de “dar à luz”, verbo este que está associado a mui­
tos nomes egípcios bastante conhecidos, inclusive Tutmósis e Ramessés. Portanto, o
jogo de palavras no texto bíblico indica uma etimologia popular hebraica associada
a um nome egípcio.

O CHAMADO DE MOISÉS E AS PRAGAS DO EGITO

N o relato bíblico, o episódio seguinte trata de M oisés como hom em adulto


(Êx 3.11-22). As lacunas no texto bíblico deixam o leitor curioso, fazendo perguntas
sem respostas sobre sua criação, educação e suas ligações com as comunidades egíp­
cia e hebraica. Contudo, o fato de ele intervir em uma briga entre um egípcio e um
hebreu a favor deste último indica que, com certeza, ele conhecia sua origem hebreia.
O utro tem a de m uita especulação é a razão de Moisés ter fugido na direção de
M idiã. Esta era um a tribo nômade, o que teria aumentado as chances de ele perm a­
necer escondido.86 A narrativa, porém, logo deixa claro que o “sacerdote de M idiã”,
a quem o texto bíblico alternadamente se refere como Jetro, Reuel ou Hobabe, é um
correligionário de Moisés. É claro que essa informação nos deixa com mais pergun­
tas sem respostas. Tudo o que o texto diz explicitamente é que Moisés não apenas

85Israel m Egypt, p. 138-40.


S6N a condição de tribo nôm ade, M idiã não possuía terra própria e, à prim eira vista, a referência à
“terra de M idiã” é intrigante. C ontudo, pode-se presum ir que a referência seja ao lugar em que essa tribo
peregrinava: o norte da Arábia, a leste do golfo de A qaba (Hoffmeier, Israel in Egypt, p. 143).
198 A H I S T Ó R I A D E ISRAEL, D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA

passou a viver com os midianitas, mas também se casou com a filha do sacerdote,
cujo nome era Zípora.
Frequentemente compara-se a fuga de Moisés do Egito com o conto egípcio de
Sinuhe.87 D e acordo com esse conto, Sinuhe era alguém que ocupava uma posição
elevada, servindo como assistente da princesa Nefru, a esposa do faraó Sesóstris I,
na primeira parte do segundo milênio a.C. Sinuhe caiu no desfavor do faraó e fugiu
para a Síria, passando por Canaã. Além disso, casou-se com a filha mais velha do
líder sírio. Entretanto, um a leitura cuidadosa desse texto indica que as semelhanças
são puramente superficiais. É provável que a cena de um oficial que caiu em desgraça
e, para salvar a vida, fugiu de um rei poderoso como o faraó tenha ocorrido inúmeras
vezes na longa história do Egito. O fato de o refugiado haver sido aceito entre os
asiáticos de Canaã ou da Síria tam bém não é de semelhança notória. Certam ente,
ao contrário do que alguns afirmam, a comparação não nos permite compreender
m elhor o significado ou a origem do relato sobre Moisés.
A fuga de Moisés para M idiã também o conduziu para a região do M onte
Sinai, que desempenharia um papel im portante na narrativa do Êxodo/peregrinação
pelo deserto. O s autores de Êxodo contam que ali Deus chamou Moisés a ir ao
Egito e dali conduzir Israel ao Sinai, a fim de receber a Lei. N a narrativa, em
ambas as ocasiões, uma aparição de Deus na forma de fogo tem papel importante.
O comissionamento de Moisés para a tarefa de resgatar Israel, livrando-o da
escravidão, envolve especificamente um a sarça ardente, ou melhor, um a sarça que
não queima e, por esse motivo, atrai a atenção de Moisés. Q uando ele vai examinar
o estranho fenômeno, Deus lhe fala e o comissiona de uma maneira parecida com
outras narrativas de chamado encontradas na Bíblia. Deus convoca Moisés para uma
tarefa básica; este levanta objeções e Deus lhe dá garantias. O mesmo padrão pode
ser encontrado nas narrativas de comissionamento de Gideão (Jz 6.11-24), Isaías
(Is 6.1-13) e Ezequiel (Ez 1.4— 3.15).88
Moisés continua resistindo ao chamado divino à liderança até que Deus, irado,
concorda em deixar que Arão, irmão de Moisés, atue como seu porta-voz. Com essa
decisão, testemunhamos os primeiros passos rumo à escolha, ocorrida mais tarde,
de Arão e seus descendentes para serem sumos sacerdotes. Em seguida, Moisés
deixa o sogro e, junto com esposa e os filhos, volta ao Egito para confrontar o faraó.
O texto bíblico sugere que, no início, os israelitas receberam Moisés com esperanças.
Quando, porém, o faraó não apenas rejeitou o pedido dele e de Arão para realizarem
uma festa de três dias no deserto (Êx 5.1-5), mas também aumentou a carga de

87Q uanto ao texto, v c ja J N E T , p. 18-22, e W . W . Hallo; K. L. Younger, orgs., The context o f Scripture
(Leiden: Brill, 1997), vol. 1, p. 77-82.
88G . W. Coats, Exodus 1— 18, F O T L IIA (G rand Rapids: Eerdm ans, 1999), p. 39.
A N T E S DA C O N Q U IS T A DA T E R R A 199

trabalho deixando de fornecer a palha para a fabricação de tijolos, eles rapidamente


se voltaram contra seus líderes recém designados.
A essa altura da narrativa o conflito está armado. Em um plano, o conflito
coloca Moisés e Arão contra o faraó e seus mágicos. M as, em outro plano mais
fundamental, o conflito ocorre entre Yahweh e os deuses do Egito. No auge desse
conflito, a últim a praga, Deus anuncia: “Naquela noite passarei pela terra do Egito
e ferirei de morte todos os primogênitos na terra do Egito, tanto dos homens como
dos animais; e executarei juízo sobre todos os deuses do Egito. E u sou o S e n h o r ” .
D e acordo com a teologia egípcia, o próprio faraó é obviamente um deus. A “guerra”
que se segue entre divindades assume a forma de sinais e pragas.
Tentativas têm sido feitas no sentido de entender as pragas como resultado de
fenômenos naturais.89 Por exemplo, atribui-se a transformação do Nilo em sangue à
presença de partículas de terra boiando na água ou a um acúmulo incomum de bac­
térias durante o período de cheia do rio. Como resultado dessa poluição da água, as
rãs fugiram do Nilo. Em determinada época do ano, mosquitos90 não são incomuns
no Egito, mas talvez a praga se refira a um a quantidade enorme e rara desses insetos.
Sugeriu-se que os tumores que afetaram as pessoas e os rebanhos do Egito podem
ter sido causados por um antraz cutâneo transmitido pela picada de moscas que
tinham tido contato com as rãs e os rebanhos mortos em pragas anteriores. E muito
provável que, pelo menos em parte, essas associações de causa e efeito estejam no
centro da catástrofe ecológica que o texto conta haver atingido o Egito na época. Ao
mesmo tempo, porém, esses efeitos não interessam aos autores de Exodo, mesmo que
tenham chegado a considerar essa possibilidade. Eles entendiam a “causa” das pragas
em termos de ação divina direta; quando mencionam “causas” secundárias que con­
duzem a “efeitos”, eles se concentram no sobrenatural e não no natural e “normal”, o
que está em conformidade com a natureza do relato como descrição de uma batalha
entre representantes de divindades, todos reivindicando acesso a um poder divino
extraordinário. Por exemplo, de acordo com os autores bíblicos, a “causa” dos tumores
não foram picadas de moscas. O surgimento de tumores estava relacionado ao ato de
jogar para o alto a cinza de um forno (Ex 9.10). N enhum a leitura do passado que leve
o testemunho bíblico a sério pode reduzir esse testemunho a termos naturalistas, da
mesma forma que não pode também pressupor um abismo permanente separando
o sobrenatural do natural, o qual não deixa espaço algum para a complexidade na
maneira que se deve entender a ação divina na história.
Procura-se associar também pragas específicas a determinadas divindades
egípcias, em vez de apenas considerar as pragas como ataques contra “os deuses”

S9G. H o rt, “The plagues o f E gypt” ( Z A W 69 [1957]), p. 84-103, e [Z A W 7 0 [1958]), p. 48-59.


90D ebate-se a tradução exata da palavra hebraica para essa praga.
2 00 A H I S T Ó R I A D E ISR A E L , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O P ER S A

em geral. D e fato, algumas associações feitas na busca dessa interpretação parecem


plausíveis. O sinal da vara que se transforma em uma serpente e, por fim, devora
as varas-serpentes dos mágicos egípcios pode ser particularmente relevante porque
a serpente era um símbolo im portante do poder egípcio, indicado de forma mais
visível pelo uraeus (o símbolo da serpente) fixado na tiara do faraó. Com certeza,
pode-se entender que fazer o Nilo ficar vermelho como o sangue seja um ataque ao
coração do Egito, pois a fertilidade da terra e o sustento do povo dependiam da cheia
anual daquele rio. Um deus da fertilidade, Hapi, era intim am ente identificado com
o Nilo e com frequência a praga é vista como um ataque a esse deus em particular.
Talvez as mais fortes ligações tenham sido estabelecidas no caso das duas últimas
pragas. É possível que se tivesse em mente A m on-R á, o deus do Sol, quando o sol
se escureceu; a instituição do próprio faraó pode estar sob ataque direto quando
Deus m ata todos os primogênitos, inclusive — pelo que se presume — o príncipe
herdeiro. No entanto, nem todas as pragas parecem fazer um a referência assim tão
clara a um deus e, na verdade, tem-se a impressão de que algumas associações são
de um tipo diferente das mencionadas anteriormente. Por exemplo, é freqüente
associar a praga de rãs a H ekhet, e a praga que atingiu os rebanhos, a Hathor. Mas
H ekhet e H athor não eram deuses de rãs e rebanhos, mas sim deuses com cabeças
de rã e de vaca respectivamente. Neste caso, a associação é bem mais tênue. Por isso,
embora sendo um ataque contra os deuses egípcios que protegiam seu povo, talvez
não se possa ver as pragas como ataques específicos a determinadas divindades.

O ÊXODO E A TRAVESSIA DO MAR

Por fim, o texto narra que o faraó deixou os israelitas saírem do Egito. O termo
“Exodo” vem de um vocábulo grego que significa “saída”, de modo que agora, ao
analisarmos a saída de Israel, nos ocuparemos do Êxodo no sentido estrito. D e
início, os israelitas aparentemente não conseguiram sair do Egito com suficiente
rapidez (Ex 12.31-42). Os egípcios querem tanto que eles vão embora que os
enchem de presentes e, na pressa, os israelitas nem sequer acrescentam fermento
ao pão. Quando partem, Deus não os conduz pela estrada habitual para a Palestina
(Ex 13.17,18), conhecida pelos egípcios como caminho de Hórus. Essa estrada
seguia pelo litoral do mar M editerrâneo e era a rota mais fácil e rápida, mas também
a mais vigiada; de acordo com o texto, Deus estava ajudando os israelitas a evitar
um a batalha precoce. Por isso, Moisés conduziu Israel de Sucote até Etã, e daí até
Pi-Hairote, onde acamparam às margens do mar, no lado oposto de Baal-Zefom.91

91Veja a seguir sobre esses e outros pontos geográficos m encionados no itinerário da viagem de
Israel pelo deserto.
A N T E S DA C O N Q U IS T A DA T E R R A 201

Essa massa de água, cujo nome hebraico é yam süp, é o cenário em que ocorre o
evento culminante do Êxodo.
O que é o yam süp e onde está localizado? Essas perguntas têm incomodado os
historiadores bíblicos há algum tempo. Inicialmente, parece que a Bíblia emprega
yam süp para se referir a diferentes ajuntamentos de água.92 A tradução e identifica­
ção tradicionais de yam süp é o “mar Vermelho”, um a grande porção de água salgada
conhecida, hoje em dia, pelo menos em parte, como golfo de Suez. No entanto,
súp não significa “vermelho”, e parece que essa identificação se baseia na tradução
do term o feita pela Septuaginta. É bem mais provável que essa palavra deva ser
entendida à luz de um cognato egípcio (tw fy) que significa “junco”. Ao fugirem do
exército egípcio, os israelitas atravessaram um “mar de juncos”. E comum a afirma­
ção de que juncos não crescem em água salgada, mas apenas em água doce, o que
tem levado muitos a sustentar que a travessia israelita não poderia ter acontecido no
local que conhecemos como mar Vermelho, mas deve ter ocorrido em um dos lagos
pantanosos entre o M editerrâneo e o mar Vermelho (lagos Amargos, lago Balah,
lago Tim sah ou lago M anzala). Nesse caso, não se pode exigir uma decisão do tipo
“um ou outro”, pois Hoffmeier não apenas provou que “juncos e caniços, denom i­
nados halófitos, resistentes ao sal, vicejam de fato em áreas pantanosas salgadas, mas
também demonstrou que o mar Vermelho e o sul do lago Amargo podem realmente
ter sido contíguos na Antiguidade:

D ad o s geológicos, oceanográficos e arqueológicos sugerem que, no passado, o golfo de


Suez se estendia b em m ais para o n o rte e que o sul do lago A m argo se estendia b em mais
para o sul até u m local em que os dois poderiam realm ente haver se conectado d urante
o segundo m ilênio. E ssa ligação p o d e estar p o r trás do fato de o lago ser cham ado no
hebraico de y a m süp e tam b ém de m ar V erm elho, ao qual estava ligado [...] T en d o
em vista essas observações, é possível que a m assa de água d en o m in ad a y a m süp nas
narrativas do Ê xodo, em N ú m ero s 3 3 .8 -1 0 e em outras passagens do AT, se refira à série
de lagos (em especial os lagos A m argos) ao longo da fro n teira do E g ito com o Sinai,
bem com o nos lim ites setentrionais do m a r V erm elho.93

Além disso, devemos considerar o fato de que a palavra süp também tem o
sentido de “fim”.94 Esse sentido pode ter ecoado na mente dos leitores do passa­
do e indicado que essa travessia significou o fim do Êxodo. D e qualquer maneira,
esse acontecimento notável foi de suprema importância para as gerações israelitas

92Com parem -se, por exemplo, IR eis 9.26 e Jeremias 49.21 (que fazem referência ao que hoje em
dia chamamos de golfo de Aqaba) com Núm eros 33.10,11 (que é associado ao golfo de Suez).
93HofFmeier, Israel in Egypt, p. 209.
94B. F. Batto, “The Reed Sea: requiescat in pace” (JBL 102 [1983]), p. 27-35.
202 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA

posteriores. O livramento inesperado e repentino de Israel por Deus demonstrou o


cuidado especial que ele tinha com seu povo, ao mesmo tempo que também deu segu­
rança aos israelitas, à medida que enfrentavam dificuldades aparentemente insolúveis
(SI 77). Profetas posteriores chegaram a descrever outros atos de redenção divina
como uma repetição do Êxodo (Jr 16.14,15;23.7,8). Os evangelhos, em particular o
de Mateus, também veem Jesus como cumprimento do Êxodo, em que sua vida segue
o padrão geral desse evento, da peregrinação pelo deserto e da conquista final.
Um aspecto intrigante do relato bíblico é a quantidade de israelitas que saí­
ram do Egito por ocasião do Êxodo. Núm eros 1.46 calcula o total de hom ens de
guerra em 603.550. Pressupondo-se que muitos desses hom ens tinham esposas e
filhos, isso implica que um núm ero aproximado de dois milhões de pessoas parti­
ciparam do Êxodo e da peregrinação no deserto. M uitos questionam a viabilidade
logística de um movimento tão grande de pessoas através do deserto. Ademais,
alguns indícios no próprio texto são de que esse núm ero é alto demais. Em um
artigo recente, C. J. H um phreys destacou que o núm ero 603.550, entendido como
o número literal de guerreiros é, na verdade, inconsistente com outros números
que aparecem no texto, sendo que o caso mais gritante é o de Números 3.46, que
dá a entender que havia “273 prim ogênitos israelitas a mais do que o núm ero de
levitas”.95 Hum phreys trabalha com esse número em seu devido contexto e m ostra
que ele indica um número muito menor da população total, algo em torno de cinco
mil hom ens, perfazendo um a contagem final de vinte mil pessoas. Em seguida,
recorda o fato confirmado de que, nesse contexto, a palavra hebraica ’elep (“m il”),
usada em Núm eros 1, tem tam bém outros significados possíveis, como “líder” ou
“tropa”. Limitações de espaço não perm item um a apresentação completa desse
ponto de vista e, em últim a análise, ele pode não estar correto. Essa abordagem,
porém, serve para destacar que, para os relatos censitários,96 podem existir inter­
pretações alternativas àquela que postula um a população total de dois milhões de
israelitas. N a narrativa bíblica é freqüente os registros numéricos terem outros
propósitos que não apenas comunicar um fato literal.

95“The num ber o f people in the Exodus from Egypt: decoding m athem atically the very large
num bers in Num bers 1 and 26”, ( V T 48 [1998]), p. 196-213. Críticas podem ser encontradas em “O n
decoding very large num bers”, de J. M ilgrom (F T 4 9 [1999], p. 131-2), e em “O n the interpretation o f
the census lists by C. J. H um phreys and G . E. M endenhall” ( V T 50 [2000], p. 250-2), de R. H einzerling.
A resposta de H um phreys pode ser encontrada em “The num bers in the exodus from Egypt: a further
appraisal” ( V T 50 [2000], p. 322-8). O debate prossegue enquanto este livro é escrito.
96V isto que N úm eros 1.46 registra apenas quantos hom ens de vinte anos para cima existiam,
a m elhor m aneira de entender o núm ero é como um registro m ilitar e não como um censo geral
da população.
A N T E S DA C O N Q U IS T A DA T E R R A 203

A DATA DO ÊXODO

A narrativa do livro de Êxodo não nos apresenta o nome do faraó da época97 nem
fornece qualquer informação que nos ajude a datar esses acontecimentos. Por
isso, somos forçados a procurar fora de Êxodo alguma ajuda para a datação. Nesse
aspecto, parece que a passagem bíblica mais relevante é IReis 6.1: “Quatrocentos
e oitenta anos depois que os israelitas saíram da terra do Egito, no mês de zive, o
segundo mês, no quarto ano do seu reinado sobre Israel, Salomão começou a edi-
ficar o templo do S e n h o r ” . Geralmente se aceita que o quarto ano de Salomão é
966 a.C., embora seja difícil ser preciso a respeito da data (veja cap. 10). Entretanto,
supondo-se, por enquanto, que ela não esteja muito errada (mesmo que seja impos­
sível ser exato acerca da data), então o acréscimo de 480 anos nos levaria a 1446 a.C.
como data aproximada do Êxodo. Segundo esse ponto de vista, o Êxodo ocorreu em
meados do século 15 a.C .,98 o que parece ter apoio na referência de Juizes 11.26 aos
trezentos anos que a região da Transjordânia, então (na época de Jefté) disputada
pelos amonitas, era controlada pelos israelitas. Ademais, essa datação não enfrenta
problemas com outros detalhes da cronologia bíblica.
Contudo, mesmo entre os que sustentam a ideia de que o livro de Êxodo tem
valor histórico, essa data é questionada. Aliás, K. Kitchen chama o argumento do
parágrafo anterior de “solução do preguiçoso”,99 insistindo que não se deve interpre­
tar o número 480 ao pé da letra, uma vez que, na verdade, é uma espécie de número
simbólico. Segundo ele, esse número representa doze gerações, sendo que cada uma
é simbolicamente representada pelo número de “quarenta anos”. Por isso, é preciso
cuidado na transposição do texto para a cronologia histórica, já que “quarenta anos”
não representam, do ponto de vista histórico, a duração de um a geração, estando
esse ciclo mais próximo de algo em torno de 25 anos. D o ponto de vista histórico,
doze gerações cobririam trezentos anos em vez de 480, o que colocaria o Êxodo no
século 13 a.C. e não no 15. Com umente se acredita que essa data no século 13 se
encaixa melhor com o que as pesquisas arqueológicas feitas na Palestina (como têm
sido geralmente interpretadas) revelam sobre o estabelecimento israelita na terra

97E m Israel in Egypt, H offm eier sugere que essa abordagem está em conform idade com a prática
egípcia de jam ais m encionar o nom e de um inimigo (p. 109-11), ao passo que R. H endel, que acredita
que mais tarde Israel é constituído a partir de várias experiências diferentes de êxodo ao invés de um a
só, afirma que tal abordagem perm ite às pessoas, que ao longo do tem po tiveram diferentes experiências
de opressão egípcia, se identificarem com a tradição (“The exodus in biblical m em ory”,JB L 120 [2001],
p. 607-8). Veja a nota 78.
98Se, por outro lado, seguirmos a cronologia alternativa da Septuaginta, que sugere acrescentarmos
apenas 440 anos à cifra de 966, chegamos a um Êxodo bem no fin a l do século 15 a.C.
mA B D , vol. 2, p. 702.
204 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO A T É O P E R Í O D O PER SA

após o Êxodo do Egito. Também se acredita que a alternativa do século 13 explica


melhor o nome de um a das cidades que os hebreus construíram para o faraó egípcio:
a cidade de Ramessés (Êx 1.11). Está claro que esse nome é o mesmo de vários
faraós, nenhum dos quais governou antes do século 14. O nome quase certamente
relembra o poderoso Ramessés II (c. 1279-1213 a.C.), que, se o Êxodo ocorreu no
século 13, é o mais provável candidato a ser o faraó da época. Hoje em dia a maioria
dos estudiosos identifica a cidade de Ramessés (Pi-Ramessés em egípcio) com a
m oderna Qantir, que atingiu seu apogeu no início do século 13 até o final do século
12 a.C., e não no século 15.
Mais adiante retornaremos à arqueologia do estabelecimento israelita na Palestina.
Aqui basta dizer que não acreditamos que a arqueologia resolva definitivamente o
problema. Quanto à cidade de Ramessés, o significado do texto não é seguro, pois
é possível que um editor tenha atualizado posteriormente o material e o texto não
reflita o nome original da cidade. O próprio Kitchen recorre ao argumento de um
editor posterior para explicar o fato de Gênesis 47.11 se referir anacronicamente a
Gósen como “terra de Ramessés”.100 Ficamos, assim, na incerteza e não há nenhum
dado extrabíblico que nos ajude.101 Embora B. Waltke esteja tratando da conquista da
Palestina, ocorrida mais tarde, sua conclusão sobre a data da conquista tem aplicação
igualmente válida para a data do Êxodo, posto que ambas estão relacionadas: “deve-se
aceitar o veredito de non liquet até que novos dados estabeleçam com segurança a data
do Êxodo. Se esse raciocínio é válido, então ambas as datas são hipóteses aceitáveis e
nenhuma deve ser defendida dogmaticamente”.102
Qualquer que seja a data aceita para o Exodo, as cartas de Amarna, que vários
reis de cidades-estados cananeias enviaram a seus suseranos egípcios (Amenhotep
III e IV, este último mais conhecido como Akhenaton) na primeira metade do
século 14, apresentam um a leitura interessante. No capítulo 7, retornaremos a elas.
Além disso, e caso o Êxodo tenha ocorrido no século 15, também é possível incluir
com proveito algum material extrabíblico em nossa análise de Israel no Egito que
ajudaria a delinear o contexto em que se deve ler o relato bíblico. Fontes egípcias
falam de um período de pelo menos cem anos, no final do que hoje é denominado
Segundo Período Intermediário da história egípcia (c. 1720-1550 a.C.), durante
o qual a maior parte do país foi liderada por governantes semíticos estrangeiros
chamados de “hicsos”.103 Poderíamos associar o tem or dos egípcios aos israelitas,

™ABD, vol. 2, p. 703.


101A esteia de M erneptá confirma apenas que Israel já existia de alguma form a no final do século
13. E la não nos ajuda a descobrir se os israelitas saíram do E gito apenas um pouco antes de ser escrita
ou se isso aconteceu bem antes.
102“T3ie date o f the conquest” ( W T J 52 [1990]), p. 181-200; citação da p. 200.
W3V eja A N E T , p. 230-4.
A N T E S DA C O N Q U IS T A DA T E R R A 205

registrado no livro de Êxodo, ao tem or a esses hicsos que os haviam dominado


no período entre 1648 e 1550 a.C. Talvez o rei que não conheceu José tenha sido
Amósis I (c. 1550-1525), o faraó que derrotou os hicsos, e pode ser que, algum tem ­
po depois, o faraó do Êxodo tenha sido Tutmósis III (c. 1479-1425 a.C.). Porém,
somente novas descobertas arqueológicas ajudarão a esclarecer se essas identifica­
ções são realmente mais do que meras suposições plausíveis.

A PEREGRINAÇÃO NO DESERTO

O livro de Êxodo nos inform a que, para chegarem até o yam súp vindos da cidade
de Ramessés, os israelitas montaram acampamentos temporários em Sucote,104 em
E tã10S e em Pi-H airote, entre M igdol106 e o mar, no lado oposto de Baal-Zefom
(Êx 12.37; 13.20-22; 14.1-9). Depois de atravessar o yam súp, entraram enfim no
deserto (Êx 15.22). O pano de fundo do restante do Pentateuco são as “peregri­
nações” nesse deserto — que é im portante para o relato de Israel, mas difícil de
reconstruir com precisão porque: 1) ao longo de milênios, a geografia da região, em
particular o litoral, lagos e pântanos, sofreu alterações significativas;107 2) os textos
bíblicos raramente apresentam informações claras e diretas.

Do Egito ao Monte Sinai

E m teoria, três rotas possíveis ligavam o Egito à Palestina. N a rota do norte, m en­
cionada anteriormente, havia fortalezas egípcias, tornando provável a luta armada.
Por isso, o melhor seria evitar esse caminho. U m a rota intermediária ia “direto para
o outro lado da região central de rochas calcárias no Sinai”,108 mas nela não havia
suprimento adequado de água. A terceira rota ficava a sudeste e é a que os israelitas
provavelmente seguiram.

104Geralm ente, Sucote é identificado com o lugar conhecido na literatura egípcia como Tjeku. E m
geral, Sucote/Tjeku é associado a Tell el-M askhouta. T jeku era um a área militar, portanto, supomos ser
possível que os israelitas tivessem precisado atravessá-la rapidamente.
105A palavra E tã está associada com um a palavra egípcia cujo significado é “fortaleza”.
106E m bora M igdol seja um a palavra semítica com o sentido de “fortaleza”, o local é cham ado de
“o M igdol de Seti” tam bém em idiom a egípcio. D urante a composição deste livro, escavações m uito
anim adoras estavam em andam ento em Tell el-Borg sob a liderança de Jam es H offm eier (N orth Sinai
Archaeological Project). Esse local foi claramente ocupado entre 1450 e 1200 a.C., e a hipótese de
trabalho de Hoffm eier é que se trata do M igdol bíblico.
107Recentem ente, porém, Stephen O. M oshier, do W h eato n College e do N o rth Sinai
Archaeological Project, realizou um excelente trabalho na reconstrução da geografia da região que se
acredita ter sido o cenário da travessia do m ar e das primeiras peregrinações de Israel.
108Kitchen, “Egyptians and Hebrew s”, p. 65-131, citação na p. 92.
206 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA

Seu primeiro destino foi o M onte Sinai. Para chegar ali, os israelitas acampa­
ram em M ara, Elim, deserto de Sim, Dofca, Alus e Refidim — lugares informados
pela própria narrativa bíblica e tam bém pelo itinerário formal encontrado em
N úm eros 33. M uito se debate quanto à confiabilidade do itinerário exposto nesse
capítulo, o qual revela sinais da influência de interesses literários em sua elabora­
ção.109 Para os que sustentam a curiosa crença de que interesses literários e históricos
são necessariamente incompatíveis, essa forma literária representa um problema.
N o entanto, acreditar que a forma literária destrói a referencialidade histórica é
um a crença estranha, pois dependemos em grande parte da literatura para chegar
ao volume de conhecimento histórico atual. Com certeza, o gênero literário de que
estamos tratando em Números era bem conhecido no m undo antigo. G. I. Davies110
demonstrou que a passagem corresponde perfeitamente ao gênero literário mais
abrangente de “itinerário” que era usado no Antigo O riente Próximo, conforme
descrição feita por W. W. Hallo e outros.111 C. Krahlmakov comenta ainda que,
“ao que parece, essa passagem é um trecho notável e confiável de escrita histórica
antiga”.112 Entretanto, isso não significa que podemos traçar com alguma certeza a
rota precisa que os israelitas seguiram para chegar ao M onte Sinai, pois não sabe­
mos exatamente onde ficavam os locais mencionados no texto, e a arqueologia não
pode nos ajudar nesse ponto.113 Aliás, até mesmo a localização do Sinai é incerta.
As tradições mais antigas114 situavam esse monte em Jebel M usa, na região sudeste
da península do Sinai. M as outros defendem que o Sinai deve ser situado onde é
hoje a Arábia Saudita.
D e acordo com os textos bíblicos, eventos de grande alcance e impacto ocor­
reram no Sinai (Ex 19.1— N m 10.10). Essa m ontanha foi o lugar exato para onde

109O utros itinerários são relatados no Pentateuco e tam bém em Josué 3— 4, e todos têm um padrão
semelhante. Fornecem o vínculo estrutural dessa seção da Bíblia, unindo os diferentes relatos. Veja “The
wilderness itinerary”, de G . W . Coats, CBQ 34 (1972), p. 135-52.
“ ““The wilderness itineraries: a comparative study”, TynBul 25 (1974), p. 46-81.
m “The road to E m ar” (JCS 18 [1964]), p. 57-88.
m “Exodus itinerary confirmed by Egyptian evidence”, B A R ev 20 (1994), p. 54-62, citação na
p. 56. M as os dados egípcios citados por ele se referem diretam ente apenas à últim a etapa da peregri­
nação no deserto. E m “The w andering-traditions from K adesh-Barnea to Canaan: a study in biblical
historiography” (JJS 33 [1982], p. 175-84), Z. Kallai acrescenta que “não só Núm eros 33 é consistente
em sua form a literária, mas tam bém, até o que se pode verificar, a seqüência das paradas é geografica­
m ente correta”, embora prontam ente acrescente que o m esmo não se pode dizer de todas as tradições
de itinerário presentes no Pentateuco (p. 178).
u3Com o Kitchen nos traz à lem brança, “essa é um a região pouquíssim o explorada pela arqueologia
m oderna” (“Egyptians and Hebrew s”, p. 78).
114A tradição mais antiga é a de Eusébio de Cesareia. A sua época já existia em Jebel M usa um
mosteiro construído para celebrar os acontecimentos no Sinai.
A N T E S DA C O N Q U IS T A DA T E R R A 207

Deus havia instruído M oisés a levar Israel. Assim que Israel chegou ali, Deus
estabeleceu um a aliança com o povo, deu-lhe um a Lei para observar e entregou a
Moisés instruções para construir um tabernáculo. Tudo isso serviu para fazer com
que Israel, que agora havia crescido e se multiplicado, se transformasse em uma
comunidade coesa centrada em Yahweh. No entanto, a antiguidade da aliança, da
Lei e do tabernáculo tem sido questionada ao longo dos anos.
E m um a metáfora antiga para a relação de Israel com Deus, a aliança é m en­
cionada pela primeira vez na história de Noé (G n 9) e depois no relato de Abraão
(G n 15; 17).115 Aliás, a aliança mosaica pressupõe a libertação do Egito (Êx 20.2),
que está relacionada às promessas abraâmicas. O Pentateuco contém duas grandes
seções dedicadas à aliança entre Deus e Israel mediada por Moisés. Em Êxodo
19— 24, lemos acerca do estabelecimento dessa aliança no M onte Sinai. Em
Deuteronômio, há uma cerimônia de renovação dessa aliança, ocasião em que, logo
antes de entrar na terra prometida, Israel reafirma seu compromisso de obedecer
Yahweh. Apesar disso, na mente de muitos estudiosos, o conceito de aliança é uma
retroprojeção de ideias tardias na história de Israel e, conforme sustentam, não exis­
tia nenhum a concepção desse tipo na época de Abraão ou de Moisés.
E ntretanto, pesquisas recentes, embora não “provem” que a ideia de aliança
seja um aspecto do pensamento israelita mais remoto, certamente indicam que
não é anacrônico falar de um a aliança na época de Moisés. A comprovação está
na form a de tratados hititas do segundo milênio a.C. A estrutura desses tratados
é muito próxima da estrutura de documentos bíblicos pactuais, em particular do
livro de Deuteronôm io, os quais os autores bíblicos atribuem a esse período inicial
da história de Israel.116 Aliás, são os tratados hititas desse período — e não os
tratados assírios do sétimo século — que m antêm essa relação tão próxima com
os documentos bíblicos, especialmente pelo fato de terem um preâmbulo histórico
norm alm ente inexistente nos tratados assírios, mas encontrado em Êxodo,
Deuteronôm io e Josué 24. Em bora o gênero literário não seja tão fixo a ponto
de podermos afirmar com toda a certeza que a forma de nossos textos bíblicos
corresponde apenas ao segundo milênio, fica claro que o conceito de aliança não é
anacrônico quando identificado nesse período.
O mesmo se pode dizer do conceito de lei. M uito se discute nos últimos duzen­
tos anos sobre a data da Lei israelita ou pelo menos de alguns aspectos dessa Lei. Por
exemplo, a tendência dos defensores de métodos tradicionais de crítica das fontes
tem sido associar boa parte da Lei com a fonte ou o editor do Pentateuco conhecido

I15E provavelmente a estrutura implícita das promessas de Gênesis 12.


116Para detalhes, veja o verbete “b e r if, de J. G . M cConville (in: N ID O T T E , vol. 1, p. 746-55); e The
treaty o f the great king, de M . G . Kline (G rand Rapids: Eerdm ans, 1963).
208 A H I S T Ó R I A D E ISR A EL , D E ABRAÃO A T É O P E R Í O D O PER SA

como “P ” e datá-la no período exílico ou pós-exílico. M esm o depois de reconhecer


que códigos legais mais antigos estão provavelmente inseridos em nossa narrativa
do Pentateuco, há estudiosos relutantes em identificar essas leis no contexto do
segundo milênio.117 No entanto, deixando de lado as questões da data da forma
final da Lei do A T e de até que ponto ela foi atualizada à medida que gerações de
israelitas procuravam segui-la em circunstâncias em transformação, podemos dizer
com certeza que essa lei não é um fenômeno tardio no Antigo O riente Próximo.
N a M esopotâmia, as leis já faziam parte da vida das pessoas no final do terceiro
milênio, conforme descobrimos no código sumério do reinado de U r-N am m u de
U r (c. 2112-2095 a.C.).118 Também encontramos ao longo do tempo códigos legais
semelhantes associados a Lipit-Ishtar de Isin (c. 1934-1924 a.C.), Ham urábi da
Babilônia (c. 1792-1749 a.C.) e assim por diante. A ideia de que, orientado por
seu Deus, o israelita Moisés tenha promulgado um código de leis para seu povo
em algum momento durante a segunda metade do segundo milênio está longe de
ser problemática.
Q uanto ao tabernáculo, “nenhum estudioso crítico aceita que o relato de Exodo
seja uma exposição literal do santuário no deserto [...] em vez disso, o relato do
tabernáculo talvez reflita versões idealizadas dos santuários em tendas que exis­
tiram mais tarde em Siló ou da tenda de Davi”.119 E claro que a questão não é
se a narrativa reflete até certo ponto os interesses de períodos posteriores, mas
se há bons motivos para pensar que ela, mesmo refletindo tais interesses, fornece
uma ideia errada em sua descrição de um tabernáculo dos tempos antigos. Desse
ponto de vista, nada há de essencialmente problemático com a descrição bíblica
do tabernáculo. Kitchen sustenta que a tecnologia usada para fabricar o tabernáculo
era bem conhecida na época de Moisés e, inclusive, que o tabernáculo descrito no
texto bíblico é bem simples em comparação com locais de adoração existentes por
volta dessa época no Antigo Oriente Próximo. Ele apresenta vários exemplos tanto
mesopotâmicos quanto egípcios de estruturas semelhantes à do tabernáculo, que
foram anteriores a Moisés ou contemporâneas a ele.120

117Assim como o próprio W ellhausen, muitos acham que algumas leis foram introduzidas como
coleções separadas. W ellhausen acreditava que o mais antigo código legal foi “o Livro da Aliança”
(Ex 20.22— 23.19), seguido pela legislação deuteronôm ica associada à reform a de Josias no sétimo
século a.C.
118Veja J. J. Finkelstein, “The laws o f U r-N am m u”,/C S 22 (1969), p. 66-82.
119R. W . Klein, “Back to the future: the tabernacle in the b o o k o f Exodus”,I?2/er£50 (1996), p. 264-
-76, citação na p. 264. Alguns estudiosos chegam a questionar se existe mesmo algum objeto concreto
por trás da descrição do tabernáculo.
120Vejadois textos de K. Kitchen: “The tabernacle — a Bronze Age artefact” (Eretz Israel24 [1993],
p. 119*-29*) e “The desert tabernacle: pure fiction o f plausible account?” (B R 16 [2000], p. 14-21).
A N T E S DA C O N Q U IS T A DA T E R R A 209

Do Sinai a Cades-Barneia e depois às planícies de Moabe

O longo relato que vai de Êxodo 19.1 até Números 10.10, situado próximo ao M onte
Sinai, conta, na realidade, um período relativamente curto que terminou no segundo
ano depois do Exodo. Quando Deuteronômio começa, os israelitas já estão nas pla­
nícies de M oabe do outro lado de Jericó, prontos para entrar na Terra Prometida. Em
contraste, um número relativamente pequeno de capítulos do livro cobre um número
bem maior de anos de peregrinação. O texto bíblico diz que o evento de transição
entre os dois períodos ocorreu em Cades-Barneia, no deserto de Parã. A essa altura
da viagem, Moisés enviou à Terra Prometida doze espiões, cada um representando
uma tribo (Nm 13). Quando voltaram, trouxeram uma notícia boa e outra má. A boa
notícia era que a terra que Deus havia lhes dado era belíssima e muito mais produtiva
do que imaginavam. A má era que seus habitantes eram um povo temível, entre eles
os descendentes de Anaque, que fizeram os espiões se sentirem “como gafanhotos”
(Nm 13.33). Isso causa então uma falta de confiança no guerreiro divino que, no
yam süp, havia derrotado forças poderosíssimas. Essa falta de confiança leva à longa
peregrinação no deserto. Somente Josué e Calebe, dois espiões que não vacilaram
na fé, entrariam, finalmente, na terra, depois de toda uma geração (“quarenta anos”,
N m 14.34) haver morrido nesse deserto.121 Conforme destacado por D. Olson, o livro
de Números é inteiramente estruturado em torno do tema da morte da geração que
participou do Exodo e do surgimento de uma segunda geração, uma geração de espe­
rança.122 È a essa nova geração que Moisés dirige seu discurso nas planícies de Moabe.
Números 33.37-49 alista uma série de acampamentos no caminho de Cades-
-Barneia até as planícies de Moabe. Os israelitas pararam primeiro no monte Hor,
onde Arão morreu. Então acamparam sucessivamente em Zalmona, Punom, Obote,
Ije-Abarim, Dibom-Gade, Almom-Diblataim, nos montes de Abarim, perto de Nebo,
e, por fim, nas planícies de Moabe. Alguns estudiosos acreditam que, assim como
Números 21.14-21, essa passagem descreve uma rota direta ao longo da Estrada Real,
a principal estrada que, às margens do deserto, atravessava a Transjordânia de norte a
sul e basicamente ligava Damasco, ao norte, ao golfo de Aqaba, ao sul.123 No entanto,

121Em bora, de acordo com o texto bíblico, a fé de M oisés tam bém não tenha vacilado, ele não
recebeu permissão para entrar na Terra Prom etida por causa de um a ação posterior em que dem onstrou
falta de fé (N m 20.1-13).
m Essa estrutura é vista de form a mais clara nos dois relatos do censo em Núm eros 1 e 26. Veja
D. Olson, The death o f the old and the birth o f the new: the fram ework o f the book o f Numbers and the
Pentateuch (BJS 71 [Chico: Scholars, 1985]).
123Veja The Holman Bible atlas (Nashville: Broadm an and H olm an, 1998), p. 71; J. M . Miller,
“The Israelite journey through (around) M oab and M oabite toponym y” (JBL 108 [1989]), p. 577-95;
e Kallai, “W andering-traditions”.
2 10 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA

outras passagens descrevem que primeiro os israelitas viraram para o sul, em direção ao
yam süp (cf. N m 21.4; D t 2.1), em um desvio para o leste a fim de evitar os edomitas,
que haviam impedido Israel de passar por suas terras usando aquela mesma estrada
(Nm 20.17). É difícil compreender claramente o que aconteceu nesse ponto, e parte do
problema é a incerteza na identificação de muitos lugares mencionados. No entanto,
parece que os israelitas realmente viajaram para o norte seguindo uma rota alternativa, a
leste da Estrada Real, rota denominada “caminho do deserto de Edom” e “caminho do
deserto de Moabe”, situada já no deserto, onde havia poucos povoados e pouca água.124
Depois de evitar dessa forma a guerra com os edomitas e os moabitas, os israe­
litas se depararam com Siom, rei dos amorreus, e Ogue, rei de Basã. Eles infligiram
um a derrota completa a esses dois reis, submetendo parte da região da Transjordânia
ao controle israelita e obtendo acesso à Terra Prometida mediante a travessia do
rio Jordão em um ponto logo acima do M ar M orto. M ais uma guerra pairava no
horizonte, nas “planícies de M oabe” (que, na realidade, nessa época, não faziam parte
do reino moabita, N m 21.26). Números 22— 24 narra as tentativas dos moabitas,
temerosos de um futuro ataque dos israelitas, de se precaverem contratando um
vidente chamado Balaão. O texto diz que Balaão, embora pago para amaldiçoar
Israel, só conseguiu abençoá-lo, mas também dá a entender que ele foi o responsável
por um a estratégia m oabita/m idianita125 diferente, tentando enfraquecer Israel ao
fazer com que suas mulheres seduzissem os homens israelitas (Nm 25; 31.16). Por
fim, essa estratégia levou à guerra com M oabe (Nm 31), depois da qual a terra
tom ada por Israel na Transjordânia foi dada às tribos de Rúben e Gade e à meia
tribo de Manassés, na condição de que atravessassem o Jordão para ajudar a comba­
ter as regiões principais dos cananeus que viviam do outro lado daquele rio.
O único dado extrabíblico relevante dessa últim a etapa da peregrinação no
deserto — e ainda assim um dado indireto — é uma interessante inscrição que
menciona esse mesmo Balaão, o vidente de Números 22— 24. O texto, escrito em
aramaico, foi descoberto em Tell Deir ‘A lia, em 1967, e data do oitavo século a.C.
Devemos, porém, mencionar, também de passagem, os aparentes problemas levanta­
dos pela pesquisa que o arqueólogo N. Glueck realizou na Transjordânia na década

124Veja A B D , vol. 4, p. 48-9.


125A o lermos o relato de Núm eros, vemos que M oabe e M idiã são usados quase como sinôni­
mos. O relato começa com Balaque contratando o profeta Balaão para amaldiçoar Israel, mas ele não
consegue fazê-lo (N m 22— 24). D epois que isso fracassa, ficamos sabendo de um a tram a, no início
bem -sucedida, de atrair Israel à adoração falsa pela sedução de “mulheres m oabitas” (N m 25.1), e mais
tarde lemos sobre um a “m idianita” cham ada C ozbi (N m 25.14,15). Por fim, Núm eros 31 fala que veio
a retribuição contra os m idianitas. E m Numbers (N IC O T [G rand Rapids: Eerdm ans]), T. R. Ashby
sugere que talvez tenham os aqui um “grupo m idianita entre os m oabitas”, sendo que os m idianitas
aliavam-se a vários e diferentes grupos (p. 589).
A N T E S DA C O N Q U IS T A DA T E R R A 211

de 1930, ao menos no que diz respeito à data da incursão israelita ali. O levantamen­
to de Glueck abrangeu o mapeamento de lugares e, então, a realização de um estudo
de superfície para determinar as datas de ocupação. Essa última etapa envolveu ba­
sicamente uma equipe de assistentes e voluntários que colhiam cacos de cerâmica
encontrados na superfície dos sítios arqueológicos e então datavam esses cacos. Essa
datação foi feita com a ajuda de cronologias que levam em conta mudanças de forma,
cor e acabamento de peças de cerâmica e que foram desenvolvidas com base na cerâ­
mica encontrada em vários estratos de escavações anteriores. A conclusão de Glueck
foi que essa região esteve geralmente inabitada entre o final da Idade do Bronze
Antigo IV (perto do final do terceiro milênio a.C.) e a idade do Bronze Recente Ilb
(1300 a.C.). Isso excluiria uma datação do Exodo no século 15. Entretanto, o tipo de
levantamento conduzido por Glueck tem sérios problemas metodológicos, entre eles
o principal é que os investigadores recolheram os cacos ao acaso. E natural, pois, que
se sentissem atraídos por cacos “interessantes” com cores e/ou bordas ou alças, distor­
cendo desse modo os dados. Além disso, tal pesquisa não leva em conta o fato de que
certo tipo de cerâmica pode ter estado em uso em um a época específica em determi­
nada região de Canaã, ao passo que, em outra região, sua utilização pode ter ocorrido
bem depois. Por isso, não causa surpresa o fato de que alguns levantamentos mais re­
centes tenham indicado indícios de ocupação naTransjordânia precisamente durante
a denominada “lacuna” entre o Bronze Antigo IV e o Bronze Recente Ilb. “Em um
trabalho realizado mais tarde, o próprio Glueck encontrou mais vestígios do Bronze
Recente ao norte, e levantamentos e escavações subsequentes não mostram no norte
do Arnom nenhum a lacuna nas idades do Bronze M édio e Bronze Recente”, embora
no sul os “vestígios ainda sejam escassos”.126 Portanto, para resolver mais claramente
a questão da data do Exodo, os dados arqueológicos da Transjordânia não são mais
úteis do que outros já mencionado.

CONCLUSÃO

O Pentateuco termina com Israel nas planícies de M oabe. A obra chega ao


fim com o registro da morte de Moisés em Deuteronômio 34. Contudo, conforme
destacado por D. J. A. Clines,127 o Pentateuco, embora seja uma unidade literária,
antecipa a continuação do relato sobre Israel. Particularmente, a promessa da terra
feita a Abraão (G n 12.1-3) significa que Israel não permanecerá para sempre nas
planícies de M oabe. No próximo capítulo, daremos continuação ao relato iniciado
no Pentateuco.

12bA B D ,v o l.6 ,p . 643.


121The theme o f the Pentateuch (Sheffield: Sheffield A cademic, 1999).
Capítulo 7

O estabelecimento na terra

A origem do Antigo Israel, seu estabelecimento na terra de Canaã e sua transfor­


mação em um reino organizado é um dos capítulos mais estimulantes e ao mesmo
tempo mais controversos da história do Israel antigo.1

Se na visão de alguns estudiosos o perío d o p atriarcal e o E xo d o são “assuntos irrelevantes”2


— perspectiva da qual discordam os to talm en te — o debate sobre o su rgim ento de Israel
em C an aã perm anece bem intenso. D epois de quase “u m século de pesquisas profundas
sobre a origem de Israel, os estudiosos ainda estão divididos, literalm ente, acerca de cada
aspecto do assunto”.3 P o r isso, enq u an to ten tam o s en co n trar u m cam inho nesse terreno
árduo, não devem os esperar que a jo rn a d a seja fácil nem ficar surpresos ao descobrir que
alguns viajantes preferiram rotas b em distintas.

Começamos, como sempre, fazendo um a análise do cenário acadêmico. Para


explicar o surgimento de Israel em Canaã, várias teorias têm sido propostas e, antes
de começar nossa viagem, precisamos formar um a ideia geral da condição do terreno.
Assim que tivermos uma noção das propostas comuns, passaremos para a análise dos
dados disponíveis — tanto textuais quanto materiais. É claro que um a investigação
exaustiva é impossível dentro dos limites desta obra (ou até mesmo dentro do âmbito
de nossas vidas). Por isso, precisamos ser seletivos e instigantes. Apesar dessa
limitação, esperamos que nossa viagem seja frutífera e honesta com o cenário mais
amplo, mesmo que alguns pontos de interesse sejam vislumbrados apenas à distância.

'E . D . O ren, “O pening remarks”, in: S. A hituv; E. D . O ren, orgs., The origin o f early Israel— current
debate: biblical, historical and archaeologicalperspectives, Beer-Sheva 12 (Jerusalem: B en-G urion Univer-
sity o f the H egeb Press, 1998), p. 1.
2C £, e.g., W . G. Dever, “Is there any archaeological evidence for the Exodus?”, in: E. S. Frerichs;
L. H . Lesko, orgs., Exodus, the Egyptian evidence (W inona Lake: Eisenbrauns, 1997), p. 67-86. Para
um a refutação com petente, veja K. A. Kitchen, “Egyptians and Hebrew s, from Ra‘amses to Jericho”
(in: A hituv; O ren, orgs., The origin o f early Israel, p. 65-131).
3O ren, “O pening remarks”, p. 2.
2 14 A H I S T Ó R I A D E ISR A EL , D E A B R AÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA

FONTES PARA O ESTUDO DO ESTABELECIMENTO


ISRAELITA EM CANAÃ

Os dados textuais a serem considerados abrangem tanto textos bíblicos quanto


extrabíblicos. Q uanto ao primeiro grupo, os livros de Josué e Juizes recebem aqui
maior atenção. Textos extrabíblicos dignos de nota incluem a famosa Esteia de
M erneptá e as igualmente famosas Cartas de Amarna. Os dados materiais abarcam
as descobertas das escavações arqueológicas em lugares importantes e também o
resultado de pesquisas de superfície feitas em algumas regiões. Em princípio, nosso
objetivo é investigar esses diferentes tipos de dados m antendo relativa indepen­
dência uns dos outros. N a prática, porém, algum grau de interação é necessário a
fim de preservar o devido foco e legibilidade. Q uando os vários conjuntos de dados
forem analisados, teremos condições de buscar convergências (ou divergências) e
de iniciar a caminhada em direção a um a compreensão sintetizada do surgimento
de Israel e do começo de sua história em Canaã.4 D o ponto de vista metodológico,
identificamo-nos com a abordagem proposta por Z. Kallai, a qual

busca a correlação plausível entre os fatores analisados in d ep en d e n tem en te, os dados


arqueológicos rem anescentes, as circunstâncias históricas que são passíveis de verifi­
cação e a representação literária da historiografia bíblica, levando em conta as práticas
dos escribas que vêm à to n a com o resultado desse exame conjunto. P or esse m otivo,
m esm o que a representação historiográfica te n h a chegado até nós em estruturas form ais
estilizadas, a historiografia com unica processos históricos básicos.5

O SURGIMENTO DE ISRAEL EM CANAÃ: UMA ANÁLISE


DAS TEORIAS PROPOSTAS PELOS ESTUDIOSOS

As divergentes teorias sobre o surgimento de Israel em Canaã estão muito bem


resumidas em inúmeras publicações,6 e, por isso, nossa análise pode ser seletiva.

4Sobre a abordagem geral que busca, à m edida do possível, reexaminar separadamente cada con­
junto de dados antes de propor um a síntese, veja What did the biblical writers know, and when did they
knozo it? What archaeology can teach us about the reality o f Ancient Israel, de W . G . Dever (G rand Rapids:
Eerdm ans, 2001), em especial sua análise do m étodo de “convergência”, no cap. 4 do livro. Veja ainda
“Archaeological data on the Israelite settlement: a review o f two recent works”, tam bém de autoria de
D ever (BASO R 284 [1992], p. 88).
5Z. Kallai, “Biblical historiography and literary history: a program m atic survey”, V T 49 (1999),
p. 338-50, citação na p. 338.
6Praticam ente todos os livros de história de Israel e todos os comentários de Josué contêm algum
exame das teorias dom inantes; para um resumo recente e sucinto exposto em um comentário bíbli­
co, veja Joshua, de D . M . H ow ard Jr. (N A C 5 [Nashville: Broadm an and H olm an, 1998], p. 36-40).
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 215

Ressaltaremos pontos fortes e fracos de cada abordagem enquanto as examinamos,


mas deixaremos a avaliação de questões centrais para depois da análise de todo o
conjunto de dados textuais e materiais.

A teoria da conquista

Tradicionalmente considerada a mais bíblica das várias abordagens, a teoria da con­


quista está intim am ente associada a W. F. A lbright7 e seus discípulos nos Estados
Unidos e a Y. Yadin8 e seus seguidores em Israel. Com o o nome deixa implícito,
essa teoria leva a sério a concepção bíblica comum de que a entrada de Israel em
Canaã envolveu conquista m ilitar (e.g., N m 32.20-22,29; D t 2.5,9,19,24; Js 1.14;
10.40-42; 11.23; 12.7; passim). Um aspecto central da teoria da conquista, con­
forme elaborada por A lbright e outros, foi a tentativa de vincular aos israelitas a
destruição de cidades como Betei, Debir, Eglom, H azor e Laquis, no século 13. Por
exemplo, G. E. W right concluiu sua análise da arqueologia da conquista observando
que “os diversos dados sobre a terrível destruição sofrida no século 13 pelas [cidades
mencionadas anteriormente] certamente sugerem a realização de um a campanha
planejada como a descrita em Josué 10— l l ”.9
E claro que W right estava consciente de que essa conclusão conílitava com a
leitura literal dos dados bíblicos, os quais pareciam indicar que o Êxodo ocorrera
no século 15 e não no 13, e a conquista, quarenta anos depois. Entre as passagens
principais, IReis 6.1 cita o quarto ano do reinado de Salomão como o 480° ano de­
pois que os israelitas saíram do Egito. Se o reinado de Salomão começou por volta

A seguir são listados alguns textos relevantes sobre o assunto: R. Gnuse, “BTB review o f current schol-
arship: Israelite settlem ent o f Canaan: a peaceful internai process — part 2 ”, B T B 21 (1991), p. 109-17;
R. S. Hess, “Early Israel in Canaan: a survey o f recent evidence and interpretation”, PEQ 125 (1993), p.
125-42; B. S. Isserlin, “The Israelite conquest o f Canaan: a comparative review o f the arguments appli-
c sb \e’,P E Q 115 (1983),p. 85-94;J.M .M ille r,“Israelite history”,in: D . A. Knight; G .M .T ucker,orgs.,
The Hebrew Bible and its modem interpreters (Philadelphia: Fortress; Chico: Scholars, 1985), p. 10-2;
B. K. W altke, “The date o f the conquest”, W TJ 52 (1990), p. 181-200; M . W eippert; H . W eippert, “Die
vorgeschichte Israels in neuem L ich t”, T R u 56 (1991), p. 341-90; E. Yamauchi, “The current State of
O ld Testam ent historiography”, in: A. R. M illard; J. K. Hoffm eier; D . W . Baker, orgs., Faith, tradition,
and history: Old Testament historiography in its Near Eastern context (W inona Lake: Eisenbrauns, 1994),
p. 1-36; K. L. Younger Jr., “Early Israel in recent biblical scholarship”, in: D . W . Baker; B. T. Arnold,
orgs., Theface o f Old Testament studies: a survey o f contemporary approaches (G rand Rapids: Baker, 1999),
p. 176-206, veja esp. p. 178-91.
7“The Israelite conquest o f C anaan in the light o f archaeology”, B ASO R 74 (1939), p. 11-23.
8“Is the biblical account o f the Israelite conquest o f C anaan historically reliable?”, B A R ev 8, n. 2
(1982), p. 16-23.
9Biblical archaeology, nova edição revisada (Philadelphia: W estm inster, 1962), p. 84.
216 A H I S T Ó R I A D E ISR A EL , D E A B R AÃO A T É O P E R Í O D O PERSA

de 970 a.C., seu quarto ano teria ocorrido por volta de 966 a.C. e a data bíblica do
Êxodo seria por volta de 1446 a.C. A solução de W right, seguida por muitos desde
então, foi interpretar os 480 anos não no sentido literal, mas como representativos
de doze gerações de quarenta anos. Nesse caso, se de fato a duração aproximada de
uma geração for de vinte ou 25 anos, então o tempo entre o Êxodo e o quarto ano
de Salomão seria de trezentos anos ou menos, estabelecendo a entrada de Israel em
Canaã por volta de 1270 a.C. ou depois.
O utra passagem im portante é Juizes 11.26, em que Jefté contende com seu
adversário amonita declarando haver trezentos anos que o território da Transjordânia
estava sob a posse de Israel. A m elhor estimativa estabelece Jefté no início do
século l l , 10 o que dataria a conquista dos territórios transjordanianos no início
do século 14. E m resposta a isso, W right defendeu que o número redondo “trezen­
tos” é suspeito pelo simples fato de que é próximo dos 319 anos, o número a que se
chega quando se somam os anos de opressão e de livramento registrados no livro de
Juizes antes deJefté.11 Deve-se também observar que é um personagem do relato e não
o narrador oficial quem reivindica os trezentos anos de presença de Israel na terra;
e personagens podem, é claro, errar.
Nem todos os estudiosos aceitam essas explicações de IReis 6.1 e Juizes 11.26.
Ademais, a data do século 13 apresenta outros problemas. Conforme mostrado por
J. J. Bimson, parece que muitos lugares mencionados no relato bíblico da conquista
não estavam ocupados no século 13. Além disso, ao contrário do que se chegou a
imaginar, não é possível estabelecer uma relação tão precisa entre a destruição de
cidades cananeias no século 13 e os invasores israelitas.12 O problema é que essas
destruições estão separadas por intervalos grandes demais para serem resultado de
um a única campanha, mesmo que esta fosse longa.
H oje, a m aioria dos estudiosos considera a teoria da conquista proposta por
A lbright um fracasso, o que não é de surpreender, pois, conforme observado por
L. Younger, “desde o início, a teoria [da conquista] estava condenada devido à sua

10Se iniciarmos com a data estabelecida para a ascensão de Salomão, cerca de 970 a.C., e elabo­
rarm os a cronologia do período anterior, o reinado de Davi iniciaria por volta de 1010, e o de Saul,
por volta de 1030 (com base em um reinado de Saul de cerca de vinte anos — veja o cap. 8, que trata
do início da m onarquia israelita). Samuel veio depois de Eli, e o texto bíblico diz que E li julgou Israel
durante quarenta anos (IS m 4.18; possivelmente, um núm ero arredondado). Portanto, mesmo pressu­
pondo alguma sobreposição entre as lideranças dos juizes (e.g., Sansão), chegamos a um a provável data
para Jefté não posterior ao início do século 11. Veja tb. K. A. Kitchen; T. C. M itchell, “Chronology o f
the O ld T estam ent” (N B D , p. 186-93).
n Biblical archaeology, p. 84.
n Redating the exodus and conquest, JS O T S 5 (Sheffield: JSO T, 1978), cap. 1. Cf. tam bém W . G.
Dever, “Israel, history o f (Archaeology and the ‘conquest’)”, in: A B D , vol. 3, p. S4S-S8, esp. a tabela
da p. 548.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 217

leitura literal e sim plista de Josué”.13Talvez seja mais correto falar de um a leitura
errada e sim plista de Josué, pois a teoria da conquista pressupõe um a enorme
destruição de bens e de povos, ao passo que o livro de Josué não dá a entender
isso. Josué fala de cidades sendo capturadas e de reis sendo m ortos, mas só m en­
ciona três cidades incendiadas: Jericó, Ai e H azor.14 O fato de apenas essas três
serem mencionadas não significa que outras não possam haver sido queimadas,
mas ressalta quão teim osa é a insistência na confirmação arqueológica da destrui­
ção generalizada das cidades. E claro que no caso das três cidades incendiadas é
legítim o buscar algum indício arqueológico. M as insistir em um a destruição em
larga escala em Canaã como prova da conquista israelita é proceder com uma
busca mal orientada, com base em um a leitura equivocada dos textos. Além do
mais, estudos comparados sugerem que invasões e conquistas violentas, até m es­
mo quando bem docum entadas, “nem sempre [podem] ser reconhecíveis com
base em indícios arqueológicos”.15

A teoria da infiltração pacífica

Enquanto a teoria da conquista ganhava apoio nos Estados Unidos e em Israel,


estudiosos europeus pareciam mais atraídos pela denominada “teoria da infiltração
pacífica”, que Albrecht A lt propôs pela primeira vez em uma monografia seminal
apresentada em 1925.16 A ideia central da hipótese de Alt era a de que a entrada

I3“E arly Israel”, p. 179.


“ O incêndio de Jericó é mencionado em Josué 6.24, o de Ai, em 8.28, e o de H azor, em 11.11,13.
13Veja B. S.J. Isserlin em The Israelites (New York: Thames and H udson, 1998, p. 57). Isso foi m uito
bem dem onstrado por Isserlin em um estudo anterior no qual questiona “até que ponto a destruição
de assentam entos pode servir de indicador de conquista”. Depois de examinar três invasões bem
docum entadas — a conquista norm anda da Inglaterra em 1066 d.C ., a conquista ârabe-muçulmana
do Levante no sétim o século d.C. e a ocupação anglo-saxônica da Inglaterra no quinto século d.C. —
Isserlin conclui que em nenhum desses casos utilizados para comparação a destruição de assentam entos
é um aspecto arqueológico significativo, m uito embora referências textuais nos levariam a esperar isso”
(“The Israelite conquest o f Canaan”, p. 87). E m “A m orites and Israelites: Invisible invaders — M odem
expectation and ancient reality” (uma comunicação apresentada na conferência “The Future o f Biblical
Archaeology: Reassessing M ethodologies and A ssum ptions”, realizada em 12-14 de agosto de 2001,
em Deerfield, Illinois), A. R. M illard chega à mesma conclusão, mas com base em um a analogia mais
próxima. Cf. tam bém D. M erling, The book o f Joshua: its theme and role in archaeologual discussions,
A U SD D S 23 (Andrews University Press, 1997), p. 270; E. Yamauchi, “The current State o f O ld
Testam ent historiography”, p. 36.
16“D ie L andnahm e der Israeliten in Palàstina”, Reformationsprogramm der Universitát Leipzig
(1925); tradução em inglês disponível com o título “The setdem ent o f the Israelites in Palestine”,
in: A. A lt, Essays on Old Testament history and religion (Sheffield: Sheffield Academic, reimpr. de 1989),
p. 133-69.
218 A H I S T Ó R I A D E ISR A E L , D E ABRAÃO A T É O P E R Í O D O PER SA

de Israel em Canaã não foi repentina nem agressiva, mas, sim, bem gradual e, em
grande parte, pacífica — pelo menos no início. Os imigrantes eram povos nômades
ou seminômades que foram chegando aos poucos durante um longo período (talvez
de séculos). A teoria básica de A lt foi adotada por M artin N oth, que acrescentou
a ela a ideia de que o Israel primitivo consistia em um a anfictionia de 12 tribos,
a saber, um a federação de tribos unidas pela lealdade a um a divindade comum
(no caso, Yahweh) e a um centro comum de adoração. Para N oth, o relato da “con­
quista” no livro de Josué era em grande parte de natureza etiológica — uma etiologia
é um a história cujo principal objetivo é explicar a existência de certos aspectos pre­
sentes em uma região ou de determinados costumes, nomes ou crenças. Os dados
arqueológicos das destruições do século 13 não tinham quase nenhum a importância
para A lt e Noth; A lt atribuiu a boa parte do período da descoberta arqueológica
uma data mais recuada, e N oth, embora não negasse as destruições, relutou em
atribuí-las à chegada dos israelitas a Canaã.17
A teoria da infiltração pacífica é criticada em vários aspectos, especialmente a
teoria de N o th acerca de uma anfictionia israelita. Por estar baseada em modelos
gregos clássicos, a hipótese da anfictionia pareceu anacrônica e em desarmonia
com o testem unho bíblico de que o Israel primitivo estava unido por vínculos
tanto étnicos quanto religiosos. A teoria da infiltração pacífica tam bém é acusada
de ter uma ideia inadequada de como a comunidade pastoril realmente funciona.18
Defensores mais recentes dela a estão ajustando de m odo a reconhecer a ocor­
rência de relações simbióticas entre populações estabelecidas e nômades que
coexistiam mais ou menos continuam ente na mesma terra.19 Dessa maneira, a
ideia de “pacífica” permanece, mas a “infiltração” é questionada, o que nos leva ao
modelo seguinte.

17E m um sentido mais amplo, parece que N o th aceitou aos poucos a im portância dos dados
arqueológicos em questões de probabilidade histórica; veja R. de Vaux, “The H ebrew patriarchs in
history” (reimpresso em V. P. Long, org., Israels past in present research: essays on ancient Israelite histo-
riography, SBTS 7 [W inona Lake: Eisenbrauns, 1999], p. 470-9, esp. p. 475-7; original em francês de
1962-1963; tradução em inglês de 1972).
18Para um breve resumo das críticas às ideias dos principais proponentes da teoria, veja Younger,
“Early Israel”, p. 180-1.
19Veja, e.g., V. Fritz, “C onquest or settlement? l h e early Iron Age in Palestine”, B A 50 (1987),
p. 84-100. E m bora adote ideias da hipótese da infiltração, na verdade Fritz entende que sua abordagem
é um a alternativa a todas as hipóteses dom inantes — a denom inada hipótese da invasão, a hipótese da
infiltração e a hipótese da revolução (p. 84). Baseando-se especialmente em dados arqueológicos, ele
defende um a “hipótese da simbiose” (p. 98-9). Q uanto aos dados textuais, afirma sem rodeios que “Josué
não tem nenhum valor histórico” (p. 98).
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 219

A teoria da revolta (dos camponeses)

Enquanto, para as duas teorias analisadas até aqui, o “Israel primitivo” entrou em
Canaã vindo de fora (modelos exógenos), as duas seguintes entendem que o “Israel
primitivo” surgiu de populações já existentes dentro da terra de Canaã (modelos
endógenos). A primeira das teorias endógenas é a hipótese da revolta campesina.
Conforme o nome deixa implícito, a hipótese sustenta que o surgimento de Israel
em Canaã não se deu basicamente pela conquista nem pela infiltração pacífica, mas
sim por transformações culturais internas. George Mendenhall apresentou essa teoria
em um artigo de 196220 e, um a década depois, a ampliou, publicando-a em livro.21 Em
seus escritos, M endenhall não nega completamente a ideia da conquista, mas entende
que a maioria dos “conquistadores” era de origem local, ou seja, cananeia:

A conquista hebraica da Palestina ocorreu p orque u m m ovim ento religioso e u m a m o ­


tivação tam bém religiosa suscitaram a solidariedade e n tre u m g rande gru p o de unidades
sociais preexistentes que pôde, enfim , desafiar e d erro tar o conjunto disfuncional de
cidades que dom inavam a to talid ad e da P alestina e da Síria no final da Id ad e do B ronze.

A inda de acordo com essa teoria, os camponeses se cansaram dos suseranos


urbanos de quem não recebiam “praticamente nada a não ser coletores de impostos”
e, por esse motivo, revoltaram-se. O elemento catalisador da revolta foi “um grupo
de cativos, que fornecia mão de obra escrava, que conseguiu escapar de um a situação
insuportável no Egito” e que tinha “estabelecido relacionamento com um a divin­
dade, Yahweh”.22 D e forma bem clara,

a aparição da pequena com unidade religiosa de Israel polarizou a população existente em


toda a terra: alguns se u n ira m a ela; outros, basicam ente os reis [das C id ad es-E stad o s] e
os que os apoiavam , co m b ateram -n a. V isto que os reis foram derrotados e expulsos, isso
se to rnou a fonte da tradição de que todos os cananeus e am orreus foram expulsos ou
m ortos em larga escala, pois os únicos que restaram eram a m aioria d o m in an te em cada
área — agora, os israelitas.23

Para M endenhall, o vínculo que m antinha “Israel” unido não era a etnicidade (laços
consanguíneos), mas “o fator religioso” 24

20“The H ebrew conquest o f Palestine”, B A 25, n. 3 (1962), p. 66-87.


n The tenth generation: the origins o f the biblical tradition (Baltimore; L ondon: Johns H opkins
University Press, 1973).
22“H ebrew conquest”, p. 73-4.
23Ibidem , p. 81.
24Ibidem , p. 85.
220 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E A BR AÃO A T É O P E R Í O D O P ER S A

M endenhall reconheceu que sua teoria não se baseava em “dados suficientes”,


os quais acreditava estarem faltando, mas era, sim, um “‘modelo ideal’ do que deve
ter acontecido [...] inevitavelmente baseado no que, conforme se sabe, aconteceu
em outras épocas e lugares”. Ele achava válido elaborar um “modelo ideal” porque
entendia que a Bíblia simplesmente não fornece o tipo de informação necessária
para a reconstrução histórica. M endenhall evitava, em particular, o viés teológico
dos textos bíblicos:

P ara o h o m em m oderno, essa ênfase bíblica nos “atos de D eu s” parece ser a p ró p ria an ­
títese da história, pois é d en tro do arcabouço de organizações econôm icas, sociológicas
e políticas que hoje em dia ten tam o s en ten d e r a nós m esm os e, p o r conseqüência, o
h o m em antigo.25

Não é de surpreender que a abordagem de M endenhall tenha sido descrita como


“sociológica”, embora ele próprio se incomodasse com essa designação, preferindo
identificar sua hipótese “dentro do arcabouço da história social e especialmente
cultural”.26 A inda mais incômoda para ele foi a interpretação marxista que Norm an
Gottwald impôs à hipótese da revolta no livro The tribes o f Yahweh [As tribos de
Yahweh].27 M endenhall havia antecipado que “propagandistas políticos interes­
sados apenas em ‘processos sociopolíticos’” tentariam se aproveitar de sua teoria,
mas essa afirmação não diminuiu sua consternação com a tentativa de G ottwald de
“im por aos dados históricos antigos o leito de Procusto28 da sociologia marxista do
século 19”. D entre as críticas feitas por M endenhall, a principal foi ao reducionismo
envolvido nesse processo.29
N o entanto, reducionism o é um a acusação à qual o próprio M endenhall não
está im une — tanto em sua rejeição aos dados bíblicos sob a alegação de que,
na prática, não têm “o tipo de inform ação que o historiador m oderno procura”
(certam ente os textos contêm m uito desse tipo de inform ação, mesmo que não
seja seu objetivo principal) quanto em seu pressuposto de que é possível e necessário

25Ibidem , p. 66.
26“A ncient Israels hyphenated history”, in: D . N . Freedman; D . Frank Graf, orgs., Palestine in
transition: the emergeiice o f ancient Israel (Sheffield: A lm ond Press, 1983), p. 91-103; citação na p. 99.
27N . K. G ottw ald, The tribes o f Yahweh: a sociology o f the religion o f liberatedIsrael, 1250— 1000 B. C.
E. (Maryknoll: O rbis Books, 1979) [edição em português: A s tribos de Javé: uma sociologia da religião do
Israel liberto 1250-1050 a.C. (São Paulo: Paulinas, 1986)].
28Procusto era um bandido da A tica (Grécia) que forçava suas vítimas a se deitarem em um a de
duas camas, um a curta e outra longa, estirando-lhes os m em bros ou decepando-lhes as pernas, para que
suas medidas coincidissem exatam ente com as do móvel. O uso da expressão pelo autor citado indica o
reducionismo resultante da imposição da leitura marxista ao texto bíblico. (N. do E.)
29“A ncient Israels hyphenated history”, p. 91.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 221

procurar entender a questão, antes de mais nada e acima de tudo, com base
no que anteriorm ente denom inam os de categorias de “conjunto interm ediário”
(segundo nível), que são as categorias de “organizações econômicas, sociais
e políticas”.30
E ntre outras críticas à hipótese da revolta — em especial na form a desenvolvida
por G ottw ald — incluem -se as quatro seguintes: a aversão nutrida entre o urbano
e o rural, pressuposta pela teoria, não é necessariamente corroborada pela pesquisa
antropológica em que, com frequência, a regra é a simbiose; o nomadismo
necessariamente não implica nem requer o igualitarismo; a sedentarização não
é necessariamente um avanço em relação ao nomadismo; e a retórica “imperialista”
do livro de Josué, tão típica de outros textos do A ntigo O riente Próximo que
relatam conquistas, parece ser contraditória, caso o livro seja o reflexo literário de
um a revolução campesina igualitária.31
Q uanto à questão sobre o que m antinha o Antigo Israel unido — compromisso
religioso ou etnicidade — , parece sem fundamento e desnecessária a insistência de
M endenhall no primeiro aspecto, a ponto de excluir o aspecto étnico. M esm o que
estivesse certo ao afirmar que “foi somente quase mil anos depois de Moisés que a
comunidade religiosa finalmente adotou a ideia de que a etnicidade ou a raça era
o fundamento da comunidade religiosa e a base da identidade de cada um, decisão
ocorrida quando Esdras e Neemias obrigaram os judeus a se divorciarem de esposas
não judias”,32 isso não negaria o quadro bíblico da origem étnica de Israel. Não há
nada inerentemente improvável na noção de que Israel começou como uma família
que, à medida que foi crescendo, tornou-se o núcleo ao qual outras pessoas foram
incorporadas — na época do Êxodo (Êx 12.38), possivelmente antes e certamente
depois. Conforme destacado por R. Hess, “a possibilidade de grupos estrangeiros
haverem se unido a Israel durante a peregrinação e depois de sua entrada na terra
talvez esteja registrada nas referências aos midianitas (Nm 22-25), aos queneus
(Jz 4.11; IS m 15.6), aos gibeonitas (Js 9) e a outros”.33 Nem mesmo a natureza
m ultiétnica que Israel passou a ter deveria nos impedir de perceber o fato de que
o casamento com “estrangeiras” foi repetidamente proibido; em vez disso, deveria
apenas nos lembrar de que o motivo dessas proibições não era racial, mas religioso,
conforme deixam claro passagens como Êxodo 34.15,16:

30Veja o cap. 4 deste livro.


31Sobre todas essas críticas, veja Younger (“E arly Israel”, p. 181-2), que atribui as três prim eiras
a N . P. Lem che, em sua obra Early Israel: anthropological and historical studies on the Israelite society
hefore the monarchy, V T S 37 (Leiden: Brill, 1985). Para um a análise mais profunda, cf. tb. H ess, “Early
Israel”, p. 130-1.
n Tenthgeneration, p. 226.
33“Early Israel”, p. 127.
2 22 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO A T É O P E R Í O D O PERSA

N ão faças aliança com os h ab itan tes da terra, p ara que, q uando se p ro stitu írem seguindo
seus deuses e a eles sacrificarem , tu não sejas convidado p o r eles e não com as do seu
sacrifício. N ão tom es p ara teus filhos m ulheres entre as filhas deles, p ara que, quando
elas se prostituírem com os deuses deles, não levem tam b ém teus filhos a se p ro stitu ir
com esses deuses.

Outras teorias endógenas

Em bora, entre as teorias endógenas, a de M endenhall seja a mais conhecida,


as últimas décadas têm assistido ao surgim ento de um a desnorteante variedade
de outras hipóteses endógenas. Younger oferece um resumo proveitoso dessas
teorias recentes, ressaltando em seu texto de 1999 as obras de Dever, Finkelstein,
Lem che, Coote e W hitelam , Thompson, A hlstrõm , Davies e W hitelam .34 Aqui
podemos ser seletivos, concentrando-nos em W . G. Dever e I. Finkelstein como
dois arqueólogos competentes que escreveram extensamente sobre o assunto
antes de nós e publicaram obras im portantes depois que Younger produziu seu
resumo.35 A existência de profundas diferenças entre os estudiosos analisados
por Younger é óbvia para todos que tenham qualquer familiaridade com as obras
deles — observe-se a incisiva crítica que, em seu livro de 2001 intitulado What
did the biblical writers know and when did they know it? Dever fez à maioria dos
outros nomes da lista — mas todos partilham da ideia de que o Israel primitivo,
não im portando o que cada um queira dizer com essa designação, surgiu,
principalm ente, se não exclusivamente, da sociedade cananeia local.
Dever defende o que se pode chamar de “teoria do colapso”.36 D e acordo
com essa teoria, a origem de “Israel” ou do “proto-Israel” — cuja existência fica
realm ente evidente pela prim eira vez em um a rápida proliferação de aldeias nas
m ontanhas durante a Idade do Ferro I (c. 1200 a.C. em diante) — deve ser procu­
rada no colapso da cultura cananeia da Idade do Bronze Recente, em especial nas
planícies. M otivados por essa desintegração, grupos de cananeus marginalizados
de populações sedentárias e em grande parte rurais utilizaram tecnologias como
socalco de colinas, cisternas caiadas e armazéns de pedra para povoar a região
m ontanhosa central que anteriormente era só esparsamente ocupada. Baseando-se
em pesquisas de superfície cujo pioneiro foi Finkelstein, Dever com enta que, “na
região central do Israel antigo, cerca de trezentas pequenas aldeias agrícolas foram

34“Early Israel”, p. 182-91.


35W . G . Dever, What did the biblical writers know, I. Finkelstein; N . A. Silberman, The Bible
unearthed: archaeologys new vision o f ancient Israel and the origin o f its sacred texts (N ew York: The Free
Press, 2001) [edição em português: A Bíblia não tinha razão (São Paulo: A Girafa, 2003)].
36Younger, “Early Israel”, p. 184.
O ESTABELECIM ENTO NA TERRA 223

criadas no final do século 13 e no século 12”.37 A devoção de Dever às “ origens


locais’da maioria dos primeiros israelitas”38 não o impede de defender que o Israel
prim itivo representa um a entidade étnica. Não apenas os avanços tecnológicos
m encionados anteriorm ente, mas tam bém a inexistência quase total tanto de
ossos de porcos quanto de “templos, santuários ou altares de qualquer espécie
nessas aldeias m ontanhosas da Idade do Ferro I ”39 constituem para Dever um
“conjunto” arqueológico que aponta na direção de um “grupo étnico”. Observando
que “podem os reconhecer os vestígios de fenícios, arameus, moabitas, amonitas e
edom itas”, Dever pergunta: “Por que não os dos israelitas?”.40 A origem local pro­
posta por ele tam bém não impede a possibilidade de que o Israel primitivo tenha
incorporado pessoas de fora da terra de C anaã.41 Em bora argumente que “agora
todo ciclo de relatos ‘Exodo-conquista’ deve ser posto de lado por ser em grande
parte mítico” — um conto “cujo objetivo básico é validar crenças religiosas” —
ele adm ite que

aí p o d e haver algum a verdade h istó ric a co ncreta, visto que, d en tre os g rupos do sul
que sabem os que escreveram boa p a rte da B íblia H eb raica, existe u m que é conhecido
com o “casa (trib o ) de Jo sé ”, da qual m uitos p o d e m te r de fato p ro ced id o do E gito.
Q u a n d o os in teg ra n te s desse g ru p o n arra ra m a h istó ria d a o rig em de Israel, é n atu ra l
que te n h a m pressuposto que falavam em n o m e de “to d o Israel” (com o a B íblia e m ­
prega o term o ), m u ito em b o ra a m aio ria dos ancestrais dos israelitas fosse da p ró p ria
região, isto é, can an eu s.42

Afirmações como essa revelam certa afinidade, reconhecida ou não, com a ideia
de M endenhall sobre a composição do Israel primitivo — isto é, basicamente um
grupo de cananeus aos quais se juntou um contingente bem pequeno de pessoas
recém-chegadas — , quaisquer que sejam as especulações sobre como o processo de
fato ocorreu.

37What did the biblical writers know, p. 110.


38Ibidem , p. 119.
39Ibidem , p. 113.
40Ibidem , p. 116.
41Ibidem , p. 108-24.
42Ibidem ,p. 121. D ever ilustra seu raciocínio citando a tendência de, no D ia de Ação de Graças, os
norte-am ericanos “se identificarem patrioticam ente com os peregrinos [i.e., os prim eiros imigrantes]
que foram para a A m érica no navio M ayflower (como se todos fossem m em bros de D aughters o f the
A m erican Revolution [Filhas da Revolução A m ericana — um a organização fem inina em que apenas
descendentes dos que lutaram diretam ente na Revolução da Independência dos Estados Unidos
podem participar])”.
22 4 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA

À semelhança de Dever, Finkelstein é um autor que escreve prolificamente sobre


a arqueologia do “Israel primitivo”43 e acredita que esse povo surgiu em sua maior parte
na própria Canaã. Ambos creem que o avanço no estudo do Israel primitivo repousa
necessariamente na arqueologia e não no texto bíblico, que consideram comprometido
pela ideologia e cujo estudo está em grande parte esgotado. Para Finkelstein,“o grande
salto adiante’ no estudo do surgimento do Israel primitivo tem sido as vastas pes­
quisas [arqueológicas]”,44 das quais ele mesmo participou como um dos precursores.4S
O ponto de divergência entre Dever e Finkelstein é quanto ao lugar de onde vieram
os cananeus que fundaram e povoaram as aldeias da região montanhosa central na
Idade do Ferro I. Finkelstein rejeita a ideia de que se deva procurar a origem deles
nas planícies de Canaã, sustentando que “estudos recentes demonstram, sem sombra
de dúvida, que a população das regiões baixas jamais chegou próxima a um ‘limite
populacional’ e, portanto, não existia excesso populacional que motivasse a busca de
terras e a expansão de novas fronteiras”.46 Em vez da hipótese que chamamos de “teoria
do colapso”, Finkelstein defende o que podemos denominar “teoria cíclica”, segundo
a qual as populações da região montanhosa central subsistiram durante alguns séculos
principalmente como pastores (criadores de rebanhos) e, durante outros, como “agri­
cultores de arado” (lavradores). Para Finkelstein,

...o surg im en to do Israel p rim itiv o não foi u m a c o n te cim en to sin g u lar n a h istó ria da
P alestina. A o con trário , foi u m a fase específica de processos cíclicos socioeconôm icos
e dem ográficos de lo n g a duração que tiveram início n o q u a rto m ilênio a.C . A onda
de estabelecim en to s nas regiões m o n tan h o sas ao final do segundo m ilên io a.C . [i.e.,
o florescim ento de aldeias n a região m o n ta n h o sa cen tral n a Id ad e do F erro I] não
passou de m ais u m cap ítu lo nas m ud an ças ocorridas ao lo n g o do continuum socioe-
conôm ico típico do O rie n te P róxim o, em que se altern av am o m o d o de subsistência
sedentário e o p asto ril.47

Especificamente, Finkelstein cita indícios de “subsistência de agricultura de arado


(mais gado) nos períodos de expansão dos assentamentos — Idade do Bronze M édia
II-III e Ferro I — e de sociedade de tendência pastoril (mais ovinos/caprinos) nos

43D ois de seus estudos mais recentes são The Bible unearthed, mencionado anteriorm ente e em
coautoria com Silberman, e “The rise o f early Israel: archaeology and long-term history” (in: A hituv;
O ren, orgs., Origin o f early Israel, p. 7-39).
44"The rise o f early Israel”, p. 10.
45Veja, e.g., I. Finkelstein, The archaeology o f the Israelite settlement (Jerusalem: Israel Exploration
Society, 1988); I. Finkelstein; N . N aam an, orgs., From nomadism to monarchy: archaeological and historical
aspects o f early Israel (W ashington: Biblical Archaeology Society, 1994).
46"The rise o f early Israel”, p. 24-5.
47Ibidem , p. 8.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 225

anos de crise — Idades do Bronze Intermediária e Bronze Recente”.48 O que, po­


rém, teria provocado essas flutuações e, em particular, os “anos de crise”? Finkelstein
fala de “transformações políticas, econômicas e sociais” e resiste à noção de que a
migração teria desempenhado papel significativo. Ele argumenta que “a natureza
geral da cultura material dessas regiões revela evidentes aspectos locais sem nenhuma
indicação de que novos grupos vieram de fora em grande escala”.49 Pela mesma
razão, ele reluta em se referir aos que povoaram a região m ontanhosa na Idade do
Ferro I como um grupo étnico distinto. M as isso nos leva a indagar qual é exata­
m ente o material ou outro indício que se espera encontrar e que marque a chegada
de um novo grupo de pessoas, especialmente se: 1) os recém chegados, antes de se
estabelecerem na terra, tivessem vivido principalmente como pastores; 2) fossem
de linhagem semítica ocidental. Hess sustenta que, em termos gerais, “a cultura
material é distintiva de um a região específica (i.e., a região montanhosa) e não ne­
cessariamente de um grupo étnico específico (e.g., israelitas em vez de cananeus)”.50
Desse modo, “não está bem fundamentada a pressuposição de que cada grupo étnico
deva ter uma cultura distintiva e arqueologicamente observável”.51 No início de seu
texto, o próprio Finkelstein declara boa parte dessa mesma ideia:

A té o que posso avaliar, a cultura m aterial de d eterm in ad o grupo de pessoas reflete:


o am biente em que vivem, suas condições socioeconôm icas, a influência de culturas
vizinhas, a influência de culturas anteriores, em casos de m igração, tradições que foram
trazidas do país de origem e, de igual im portância, seu m u n d o cognitivo.52

Com a adoção desses critérios é de se esperar que o Israel primitivo não tenha deixado
quase nenhuma marca arqueológica, exceto talvez no que se refere a suas “tradições” e do
seu “mundo cognitivo”. Mais adiante em seu texto, Finkelstein menciona dados arqueo­
lógicos indicativos de que, nas aldeias da região montanhosa durante a Idade do Ferro I,
“porcos eram, aparentemente, um tabu” e reconhece que esse pode ser de fato um indi­
cador étnico, como Stager havia sugerido alguns anos antes.53 É preciso fazer muito mais
escavações na região montanhosa antes de se tirar conclusões definitivas,54mas o aparente
tabu relacionado aos porcos pode muito bem sugerir tanto “tradições” culinárias cultuais
quanto o “mundo cognitivo” que as sustentava. Voltaremos mais adiante a essa questão.

48Ibidem , p. 26.
49Ibidem , p. 25.
^ E a r ly Israel”, p. 129.
51Ibidem , p. 130.
“ Finkelstein, “The rise o f early Israel”, p. 16.
53L. E. a<ta.gti,Ashkelon discovered (W ashington: Biblical Archaeology Society, 1991), p. 9,19, 31.
34O bservem -se as advertências de cautela que Younger faz em “Early Israel” (p. 196).
2 26 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O P ER S A

Q uando comparados com a descrição bíblica do Israel primitivo, os quadros


pintados por Dever e Finkelstein implicam revisões significativas. Entretanto, é nas
teorias apresentadas por Lemche, Coote, Thompson, Ahlstrõm, Davies e W hitelam
que encontramos um grau muito maior de revisionismo. É necessário falar de teo­
rias (no plural) devido às marcantes diferenças entre as hipóteses desses estudiosos.55
No entanto, um pressuposto com que todos eles tendem a concordar é que, na
m elhor das hipóteses, o valor do material bíblico é insignificante na reconstrução da
natureza do “Israel histórico”. Em bora mais moderadas, as palavras de Finkelstein
são típicas da lógica revisionista:

E m term os teóricos, os estudiosos p o d em utilizar duas ferram entas para decifrar esses
enigm as: texto e arqueologia. E m anos recentes, a im portância da fonte bíblica, que no
passado dom inou a pesquisa sobre o surgim ento do A ntigo Israel, dim inuiu notavelm ente.
A data relativam ente tardia do texto e/o u de sua com pilação — no sétim o século a.C .
e m ais tarde — e seu com prom isso teológico/ideológico/político to rn a m -n o irrelevante
com o testem unh o histórico direto. E claro que, em bora reflita as convicções e os in te ­
resses religiosos de pessoas que viveram séculos depois que os supostos acontecim entos
ocorreram , é possível que alguns rudim entos históricos estejam ocultos no texto.56

Em conformidade com essa desvalorização dos textos bíblicos, P. R. Davies, que


prefere lhes atribuir uma data ainda mais recente, insiste que o “Antigo Israel” é uma
simples invenção da erudição moderna e que o “Israel bíblico” nunca existiu como algo
além de um produto ideológico e literário dos períodos exílico ou pós-exílico. Assim,
o “Antigo Israel” e o “Israel bíblico” em nada se relacionam com o “Israel histórico”.57
O que devemos fazer com tudo isso? Duas observações nos vêm à mente. Primeira,
conforme tentamos demonstrar na primeira parte deste livro, não se deve aceitar sem
questionamento a pressuposição de que os materiais bíblicos não têm quase valor
algum na reconstrução da história de Israel. Isso teria de ser demonstrado, e não
estamos satisfeitos com as razões geralmente apresentadas para desconsiderar o teste­
munho bíblico, a saber, supostas datas tardias, viés teológico e contestação arqueológica.
Nosso ponto de vista é o de que: 1) as datas tardias atribuídas a textos bíblicos, inclusive

5SPara um resumo das ideias de cada um , veja ibidem , p. 187-91.


56“The rise o f early Israel”, p. 9-10.
37Veja In search o f “
A ncient Israel”, JS O T S 148 (Sheffield: JSO T, 1992), em que P. R. Davies faz
distinção entre “três tipos de Israel: um é o literário (o bíblico), outro é o histórico (os habitantes do
planalto do norte da Palestina durante parte da Idade do Ferro) e o terceiro, o “Israel antigo”, é aquele
que os estudiosos elaboraram com base em um a combinação dos dois prim eiros” (p. 11). Os capítulos
2, 3 e 4 do livro de Davies são dedicados respectivamente ao Israel antigo, ao bíblico e ao histórico.
E claro que em certo sentido essa distinção tripartite é correta e útil, mas Davies indubitavelm ente vai
longe demais na distância que estabelece entre os três.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 227

Josué e Juizes, não são fato seguro (e de qualquer maneira não invalidariam necessaria­
mente a possibilidade de um texto transmitir informação histórica);58 2) a perspectiva
teológica não compromete necessariamente a utilidade histórica dos textos, desde que
esse viés seja entendido e analisado (afinal, “toda produção escrita da história [antiga
ou moderna] exige uma análise crítica de nossa leitura”59); 3) com frequência, as conclu­
sões tiradas de descobertas arqueológicas não são de forma alguma óbvias, o que vale
tanto para pesquisas regionais de superfície quanto para escavações de sítios.60 Dessa
forma, continuamos a afirmar a importância vital dos textos bíblicos e a necessidade de
uma compreensão correta de sua natureza e conteúdo gerais.
Segunda, não está totalmente evidente que qualquer um a das teorias básicas
tenha sido justa com o testemunho bíblico — embora cada um a possa, de fato, haver
compreendido algum aspecto dele.61 Por exemplo, é inegável que o retrato bíblico
do surgimento de Israel em Canaã envolve conquista militar, mas, com exceção da
primeira teoria, nenhum a dá muito espaço (se é que chega a dar algum) para esse
aspecto. M esm o a primeira, a “teoria da conquista” de Albright e outros, pressupõe
um tipo de conquista que não tem apoio em uma leitura cuidadosa dos textos bíblicos.
Nossa tarefa é, portanto, voltar aos textos e tentar lê-los corretamente.
Os textos bíblicos mais relevantes para a questão do surgimento de Israel em
Canaã são os livros de Josué e Juizes. E claro que limitações de espaço não permitem
um exame completo dessas duas obras, de modo que nossas leituras serão necessaria­
mente seletivas e sugestivas. Assim que formarmos uma ideia do quadro da história
inicial de Israel em Canaã descrito pelos textos bíblicos, nos concentraremos nos textos
extrabíblicos potencialmente relevantes. Apenas quando obtivermos uma ideia correta
do quadro apresentado pelos textos é que nos voltaremos para os dados materiais.
Conforme observamos anteriormente, da perspectiva metodológica há muito
que se pode falar a favor da análise independente de cada tipo de dado. Por exemplo,
em princípio, nossa leitura dos textos deve ser feita, inicialmente, sem qualquer
referência aos dados materiais e vice-versa. O objetivo é evitar que os resultados
de um a área de investigação influenciem prematuramente os resultados da outra.
Por mais lógica e desejável que seja essa estratégia, executá-la na prática é quase
impossível, exigindo que os estudiosos façam um a compartimentalização imensa de
seu pensamento ou então simplesmente não tenham conhecimento prévio algum

58Veja nossa análise anterior na segunda seção do cap. 3.


59Younger, “E arly Israel”, p. 206.
“ Veja J. M . Miller, “Is it possible to w rite a history o f Israel w ithout relying on the H ebrew
Bible?”,in: D . V .Edelm an, org., Thefabric o f history: text, artifact, and Israels f>ast,JSOTS 127 (Sheffield:
Sheffield Academic, 1991), p. 93-102, esp. a p. 100 (citada em Younger em “Early Israel”, p. 193).
“ Para um a análise perspicaz dessas questões, veja “E arly Israel”, de R. S. H ess, em especial
as p. 138-9.
228 A H I S T Ó R I A D E ISR A E L , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O P ER S A

da área que não está sendo examinada em determinado momento. O melhor que
se pode fazer é tentar evitar conclusões apressadas sobre os dados de um a área com
base no conhecimento prévio de outra.
Sendo assim, por que começar com os dados textuais, bíblicos e extrabíblicos?
Tam bém seria possível começar com os dados arqueológicos, desde que nos
limitássemos a catalogar os dados materiais (talvez form ando juízos conjecturais
sobre o contexto social e a m aneira geral de viver) e resistíssemos com vigor
à tentação de começar a escrever os próprios “relatos” dos acontecimentos e
pessoas específicas. Com o geralm ente se observa, os dados materiais sozinhos
são inadequados para elaborar um relato, exceto talvez para a elaboração de
um relato bem genérico sobre a longue durée.62 O estudo dos dados materiais
é mais apropriado para o estabelecimento de condições gerais e para avaliar a
plausibilidade de relatos narrados nos textos disponíveis. Se nosso interesse é
a história humana e não apenas a história natural ou social geral, os textos se
revelam inestimáveis. Portanto, tendo em vista especialmente nossa consideração
pelo testem unho, é apropriado começarmos com os textos. Eles fornecem um
relato, ou vários relatos, cuja plausibilidade podemos verificar à luz de quaisquer
vestígios materiais conhecidos.

ANÁLISE DOS TEXTOS BÍBLICOS (JOSUÉ EJUÍZES)

Desde o último quarto do século 20, tem havido um florescimento do interesse nos
estudos literários holísticos de muitas partes da Bíblia, sendo esse interesse talvez
mais acentuado na área das narrativas bíblicas. Essa mudança literária está geran­
do percepções novas que se refletem não apenas em comentários recentes sobre
Josué e Juizes, mas tam bém em vários estudos especializados. U m a amostra de
estudos significativos que cobrem tanto Josué quanto Juizes precisaria incluir, em
ordem de publicação, obras de R. Polzin,63 D. M . G unn,64 L. Alonso Schõkel,65 K. L.

62A expressão longue durée designa a abordagem histórica adotada pela Escola Francesa dos Anais,
segundo a qual as estruturas históricas de longa duração recebem prioridade sobre a descrição e a aná­
lise dos eventos. (N. do E.)
a Moses and the Deuteronomist: a literary study o f the Deuteronomistic history (N ew York: Sea-
bury, 1980).
64"Joshua and Judges”, in: R. A lter, F. Kerm ode, orgs., The literary guide to the Bible (Cam bridge: The
Belknap Press o f H arvard University, 1987), p. 102-21 [edição em português: Guia literário da Bíblia
(São Paulo: Unesp, 1997)].
65“Narrative art in Joshua—-Judges— Samuel— Kings”, in: Long, org., IsraeVs past, p. 255-78 (texto
publicado originalm ente em espanhol: “Arte narrativa en Josué—Jueces— Samuel— Reyes”, Estúdios
Bíblicos 48 [1990], p. 145-69).
0 E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 229

Younger Jr.66 e K. R. R. Gros Louis e W. Van Antwerpen Jr.67 Tratando apenas de


Josué existem as obras de H . J. Korevaar,68 N. W inther-N ielson,69 K. L. Younger
Jr.70 e L. D. Hawk.71 Estudos literários importantes de Juizes incluem os de D. W.
Gooding,72 B. G. W ebb,73 L. R. Klein,74M . Brettler,75 D. I. Block,76 R. G. Bowman,77
R. H . 0 ’Connell78 e Y. A m it.79
E m bora alguns defensores da leitura atenta desses textos mencionem inte­
resses literários como desculpa para evitar questões históricas, o fato é que, com
frequência, análises literárias aperfeiçoadas fornecem justam ente a ponte para
avançar no caminho da reconstrução histórica.80 Em 1980, Polzin, um dos pri­
meiros defensores do que frequentem ente é chamado de crítica literária m oderna
da Bíblia, observou que, “depois de mais de um século, a crítica histórica da Bíblia

“ “The configuring o f judicial preliminaries: Judges 1.1— 2.5 and its dependence on the book o f
Joshua”, J S O T 68 (1995), p. 75-92.
67“Joshua and Judges”, in: L. Ryken; T. Longm an III, orgs., A complete literary guide to the Bible
(G rand Rapids: Z ondervan, 1993), p. 137-50.
6S“D e opbouw van h et boekjozua”. Dissertação de Teologia (Leuven: University o f Brussels, 1990).
mA fm clio n a l discourse grammar o f Joshua: a computer-assisted rhetorical structure analysis, C onB O T 40
(Stockholm : Alm qvist & W iksell, 1990); veja tam bém idem, “The miraculous gram m ar o f Joshua 3— 4:
C om puter aided analysis o f the rhetorical and syntactic structure”, in: R. D . Bergen, org., Biblical H e-
brew and discourse linguistics (Dallas: Sum m er Institute o f Linguistics, 1994), p. 300-19.
70Ancient conquest accounts: a study in ancient Near Eastern and biblical history writing, JS O T S 98
(Sheffield: JSO T, 1990).
' !E very promisefulfilled: contestingplots in Joshua (Louisville: W estm inster/John Knox, 1991).
72“The com position o f the book o f Judges ”, Eretz-Israel 16 (1982), p. 70-79.
7>,Ihe book o f the Judges: an integrated reading, JS O T S 46 (Sheffield: JSO T , 1987).
14The triumph ofirony in the book o f Judges, JS O T S 68 (Sheffield: A lm ond Press, 1988).
75“'Ihe book o f Judges: literature as politics ”,JB L 108 (1989), p. 395-418.
76“E cho narrative technique in H ebrew literature: a study in Judges 19”, W T J 52, n. 2 (1990),
p. 325-41; idem , “W ill the real G ideon please stand up? Narrative style and intention in Judges
6— 9”,J E T S , vol. 40, n. 3 (1997), p. 353-66; idem , Judges, R uth, N A C 6 (Nashville: Broadm an and
H olm an, 1999).
77“Narrative criúcism: H um an purpose in conflict w ith divine presence”, in: G. A. Yee, org., Judges
and method: new approaches in biblical studies (M inneapolis: Fortress, 1995), p. 17-44.
1’:The rhetoric o f the book o f Judges, V T S 63 (Leiden: Brill, 1996).
75'lhe book o f Judges: the art o f editing (Leiden: Brill, 1999).
80Cf. J. Barton, “H istorical criticism and literary interpretation: Is there any common ground?”,
in: S. E. Porter; P. Joyce; D. E. O rton, orgs., Crossing the boundaries: essays in biblical interpretation in
honour o f Michael D. Goulder (Leiden: Brill, 1994), p. 3-15; H . H . Klement, “M odern literary-critical
m ethods and the historicity o f the O ld T estam ent”, in: Long, org., IsraeVs past, p. 439-59 (original­
m ente em alemão: “D ie neueren literaturwissenschaftlichen M ethoden und die H istorizitàt des A lten
Testam ents”, in: G . Maier, org., Israel in Geschichte und Gegenwart (W uppertal/G iessen und Basel: R.
Brockhaus V erlag/Brunnen Verlag, 1996], p. 81-101).
230 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA

é de certa forma decepcionante justam ente porque ‘a crítica literária de textos


bíblicos ainda está em sua infância’”.81 Polzin estava incomodado com o fato de
os primeiros estudiosos m odernos, como W ellhausen e N oth, relutarem em dar
a devida atenção aos textos bíblicos, não os tratando como unidades com ple­
tas perceptíveis, e tem ia as conseqüências desse fracasso: “se os melhores e mais
influentes representantes da erudição bíblica m oderna frequentem ente baseiam
seu raciocínio em princípios diacrônicos frágeis e inadequados, então o que ocor­
rerá com obras de qualidade inferior?”.82
Com entando os livros de Josué a 2Reis, Alonso Schõkel defende que “não
conseguiremos entender a natureza ou o valor histórico desses documentos caso
não consideremos as convenções literárias que os narradores empregaram ou sob as
quais realizaram seu trabalho”.83 Mesmo quando nossos interesses estão, em últim a
instância, no valor histórico dos textos antigos, não poderemos discernir correta­
mente esse valor, a menos que os abordemos levando em conta suas normas literárias.
Devemos estar sintonizados com os aspectos-padrão da arte de contar histórias,
como o desenvolvimento do enredo, a caracterização, o uso de palavras-chave e de
temas centrais para o desenvolvimento de assuntos, o controle do narrador sobre o
tempo narrativo (o tempo no relato) e o tempo narrado (o tempo real) e assim por
diante (e.g., os tipos de aspectos gerais da “poesia” narrativa já analisados na pri­
meira parte, no capítulo 4). Além disso, é muito proveitoso aprendermos o máximo
sobre as convenções literárias específicas (ou códigos de transmissão) empregadas
no texto que estamos estudando. Nesse aspecto, um estudo-modelo é a obra de
Younger, Ancient conquest accounts [Relatos antigos de conquistas], em que ele busca
situar o relato de conquista de Josué 9— 12 no contexto mais amplo dos relatos de
conquista assírios, hititas e egípcios do segundo e do primeiro milênios a.C.
O resultado do cuidadoso estudo comparativo feito por Younger é a confirmação
de que, “embora existam diferenças [entre a produção escrita histórica do Antigo
O riente Próximo e a da Bíblia] (e.g., as características das divindades em cada cul­
tura), o relato hebraico da conquista de Canaã em Josué 9— 12 é, em geral, típico de
qualquer relato do Antigo Oriente Próximo”. O “código de transmissão” partilhado
pelas historiografias bíblica e do Antigo O riente Próximo envolve “um a mistura de
aspecto figurado e ideológico dos textos”.84 Deixar de reconhecer essa combinação
pode levar a leituras (errôneas) rígidas e literalistas de textos bíblicos, criando-se
“espantalhos” que, à luz de dados não textuais (e.g., arqueológicos), descobre-se que

slMoses and the Deuteronomist, p. 13.


82Ibidem , p. 14.
83“Narrative art in Joshua—Judges— Samuel— Kings”, p. 257.
84Ancient conquest accounts, p. 265.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 231

não existem. Se, por exemplo, alguém ignorasse a natureza hiperbólica do resumo
da campanha ao sul de Josué encontrado em Josué 10.40 — Josué “não deixou uma
pessoa sequer; mas tudo o que tinha fôlego destruiu totalmente” — então a desco­
berta, seja pela exploração arqueológica, seja pela leitura de outros textos bíblicos
(inclusive outros trechos de Josué!), de que muitos cananeus sobreviveram daria a
impressão de haver aí um a contradição. Contudo, o problema não está no texto, mas
em sua interpretação. É difícil vislumbrar qualquer estudioso sério da Bíblia fazen­
do essa confusão, mas, em m enor escala, erros assim são cometidos com frequência.
Um exemplo seria a afirmação bastante repetida de que Josué e Juizes apresentam
relatos contraditórios sobre o surgimento de Israel em Canaã. Logo trataremos
dessa questão, mas primeiro devemos examinar cada livro separadamente, procu­
rando obter um a visão geral de sua estrutura e mensagem central.

O livro de Josué

Um a das melhores maneiras de obter um a ideia clara do assunto tratado por


uma narrativa em particular é prestar bastante atenção ao modo pelo qual essa
narrativa inicia e termina e à maneira que ela está estruturada em seu todo.

Início efim

O livro de Josué começa com as palavras “depois da morte de Moisés”85 e, então,


passa a narrar a incumbência dada pelo Senhor a Josué, o auxiliar de Moisés, de
liderar o povo na travessia do Jordão e na entrada na terra da promessa. Tanto a
referência a Moisés quanto à Terra Prom etida levam o leitor a se lembrar do relato
do Pentateuco, que remonta não apenas ao Exodo, quando Israel saiu do Egito sob
a liderança de Moisés, mas também à “promessa patriarcal” anunciada, pela pri­
meira vez, a Abraão em Gênesis 12.1-3 (observe-se a referência à terra no v. 7) e, a
partir daí, reiterada a ele e a seus descendentes (a Abraão: G n 15.5-21; 17.4-8;
18.18,19; 22.17,18; a Isaque: G n 26.2-4; a Jacó: G n 28.13-15; 35.11,12; 46.3;
e a Moisés: Ex 3.6-8; 6.2-8). U m aspecto notável da incumbência dada a Josué para
que assuma a liderança e tome a terra é o número de vezes que o livro enfatiza que
é o Senhor, na verdade, quem dará a terra a Israel (Js 1.2,3,6,11,13,15 [duas vezes]).
Josué deve ser “forte e corajoso” (ARA) para aceitar essa tarefa, para não desanimar
e, acima de tudo, para dar ouvidos às instruções divinas (v. 5-9), mas fica claro que a
ênfase recai na iniciativa de Deus em dar a terra a seu povo.

85E im portante observar de passagem que o livro de Juizes começará com as palavras “Depois da
m orte de Josué”.
232 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O P ER S A

Olhando para o fim do livro, o tem a da dádiva divina da terra como cumpri­
m ento da promessa continua dominante. Josué, agora “já [...] velho, de idade muito
avançada” (23.1), convoca “todo o Israel” — com “os anciãos, os chefes, os juizes e
os oficiais” servindo como representantes do povo (23.2) — e lembra quão fiel Deus
havia sido ao dar a terra ao povo: “sabeis no coração e na alma que não falhou uma
só palavra de todas as boas coisas que o S e n h o r , vosso Deus, falou a vosso respeito;
nenhum a delas falhou, mas todas se cumpriram” (23.14). O capítulo 24 prossegue
com a mesma ênfase:

E n tã o eu vos trouxe à terra dos am orreus, que habitavam além do Jordão e que b atalh a­
ram contra vós; m as eu os entreguei [lit. dei] na vossa m ão e vos apropriastes da terra
deles; assim eu os d estruí de diante de vós (v. 8).

E quando atravessastes o Jordão e chegastes a Jericó, os h o m en s de Jericó batalharam


contra vós, com o tam b ém os am orreus, os perizeus, os cananeus, os heteus, os girgaseus,
os heveus e os jebuseus; m as eu os entreguei [lit. dei] na vossa m ão (v. 11).

E eu vos dei u m a terra em que não trabalhastes, e cidades que não edificastes, onde
agora habitais; e comeis de vinhas e de olivais que não plantastes (v. 13).

Assim, o livro de Josué, que começou com repetidas afirmações do compromisso


divino de dar a seu povo a terra que havia prometido tanto tempo antes, term ina
com declarações enfáticas de que agora tudo foi concretizado.
Isso, porém, não é tudo o que ocorre nos capítulos finais do livro. Começando
com a partida das duas tribos e meia cujos territórios designados ficavam a leste
do Jordão (cap. 22), outro tema passa a ter proeminência: o dever do povo de ser
autêntico em seu relacionamento com Deus (a palavra-chave hebraica é ‘bd., tradu­
zida por “servir” ou “adorar”). Logo antes de os homens de Rúben, de Gade e da
meia tribo de Manassés voltarem para sua casa na Transjordânia, Josué lhes deu a
seguinte incumbência:

A penas tende cuidado de guardar com diligência o m an d am en to e a lei que M oisés,


servo do S e n h o r , v o s ordenou: A m ai o S e n h o r , v o s s o D eu s, andai em todos os seus
cam inhos, guardai os seus m an d am en to s, apegai-vos a ele e a ele cultuai de to d o o
coração e de to d a a alm a (22.5).

Esclarecendo o mal-entendido surgido por causa do altar imponente que ergueram


junto ao Jordão (22.10), as duas tribos e meia insistiram em dizer que o altar não era
para sacrifício, mas sim para servir como memorial de que elas também serviam ao
Deus adorado por seus parentes do lado oeste do Jordão (22.26,27).
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 233

A p a rtir desse m om ento, a ênfase sobre quem deve ser adorado recebe destaque
rapidam ente, cujo clímax é nada menos do que dezesseis ocorrências do verbo
“servir” no capítulo 24 (v. 2,14 [três vezes], 15 [quatro vezes], 16,18,19,20,
21,22,24,31). Tendo reunido o povo em Siquém para renovar a aliança (de forma
bastante parecida com a que M oisés, antes de morrer, renovou a aliança com
o povo, conform e narrado no livro de D euteronôm io), Josué expõe a questão
claram ente. O povo deve escolher a quem servirá. Josué lhes dá um a incum bên­
cia: “Agora, tem ei o S e n h o r e cultuai-o com sinceridade e com verdade; jogai
fora os deuses a que vossos pais cultuaram além do Rio e no Egito. C ultuai o
S e n h o r ” ( v . 14). C ontudo, ele não os obrigará: “M as, se vos parece m al cultuar
o S e n h o r , escolhei hoje a quem cultuareis [...]. M as eu e m inha casa cultuare­
mos o S e n h o r ” ( v . 15). O povo responde com firmeza dizendo “Nós tam bém
cultuarem os o S e n h o r . . . ” (v. 18), no entanto, Josué continua preocupado, dei­
xando im plícito que talvez o povo não esteja entendendo todas as implicações
da lealdade exclusiva exigida dos que querem servir ao S e n h o r (“Não podereis
cultuar o S e n h o r , porque ele é D eus santo, é Deus zeloso”, v. 19). Q uando,
assim mesmo, o povo insiste — “Não! A ntes, cultuarem os o S e n h o r ” ( v . 21)
—■Josué diz que eles seriam testem unhas contra si mesmos de que escolheram
servir ao S e n h o r ( v . 22). Por fim, Josué ordena ao povo que comece a agir em
conform idade com o que professaram: “Agora, jogai fora os deuses estrangeiros
que há no meio de vós; e inclinai o coração ao S e n h o r , D eus de Israel” (v. 23).
A resposta do povo, que parece excelente à prim eira vista — “C ultuarem os o
S e n h o r , nosso D eus, e obedecerem os à sua voz” (v. 24) — , soa um pouco pres-
sagiadora quando percebemos que ela om ite a referência a jogar fora os “deuses
estrangeiros”.86 A inda mais pressagiadora é a últim a ocorrência do verbo “servir”
no livro de Josué: “Israel cultuou o S e n h o r todos os dias de Josué e todos os
dias dos anciãos que sobreviveram a Josué e que conheciam toda a obra que o
S e n h o r havia feito em favor de Israel” (v. 31). Sem afirmar de m odo direto,

esse verbo deixa entrever a possibilidade de que a adoração de Israel ao Senhor


talvez tenha lim ites (tem poral e outros). C om essa sugestão, a transição para o
livro de Juizes term ina.
Portanto, o livro de Josué inicia e finaliza destacando o cumprimento, por parte
de Deus, de sua promessa de dar a terra a Israel e a conseqüente responsabilidade
que o povo tinha de servi-lo com fidelidade. Como essa estrutura específica corres­
ponde à estrutura geral do livro?

86Veja R. S. Hess,Joshua: an introduction andcommentary, in: D . J. W isem an, o rg .,T O T C (Downers


Grove: InterVarsity, 1996), p. 307.
234 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E A B R AÃO A T É O P E R Í O D O PER SA

Estrutura

Uma das análises mais completas e perspicazes da estrutura geral do livro de Josué foi
formulada por H . J. Koorevaar em sua tese de doutorado, cujo título em holandês é
“D e opbow van het boek Jozua” [A estrutura do livro de Josué].87 Koorevaar divide o
livro em quatro seções principais, cada uma caracterizada por uma palavra-chave. As
quatro seções são: 1.1— 5.12; 5.13— 12.24; 13.1— 21.45; 22.1— 24.33. As palavras-
-chave são, na ordem em que aparecem, “atravessar” o Jordão, “tom ar” a terra, “dividir”
a terra e “servir” ao Senhor. N o hebraico, as palavras-chave que formam uma parelha
apresentam correspondência no som e na aparência: abar (“atravessar”) se parece com
‘ãbad (“servir”), e lãqah (“tom ar”) se parece com hãlaq (“dividir”).
Cada um a das três primeiras seções principais começa com um a iniciativa
divina. Por ordem de Deus, Israel atravessa o Jordão, toma a terra (começando por
Jericó) e divide os territórios conquistados. E m contraste, a quarta e última seção
não começa com um a iniciativa divina. Em vez disso, em cada um dos três últimos
capítulos, Josué toma a iniciativa, encarregando o povo de servir o Senhor.
As quatro seções principais também têm finais distintos. A seção “atravessando”
[o Jordão]-para-dentro-da-terra termina em 5.1-12 com o restabelecimento do povo
peregrino de Deus na terra da promessa. Seu relacionamento pactuai com Javé é rea­
firmado com a circuncisão dos que haviam nascido no deserto. O ato de os israelitas
serem redimidos da escravidão é indicado pela restauração da celebração da Páscoa.
Nesse momento, acaba o maná que os havia sustentado em sua peregrinação. Israel
chegou! A seção “tomando”-a-terra termina em 11.16— 12.24 com resumos do su­
cesso de Josué na execução de sua missão militar, listando não apenas territórios, mas
também reis conquistados. A seção “dividindo”-a-terra termina em 21.43-45 com
uma confissão retumbante de que Deus foi fiel à sua promessa: “Nenhuma palavra
falhou de todas as boas coisas que o S e n h o r prometera à casa de Israel! Tudo se cum­
priu!” (v. 45). Deus fez a sua parte. Desse modo, na quarta seção, “servindo”-o-Senhor,
a atenção se volta para a questão da resposta do povo ao que Deus fez. Essa seção final
termina em 24.29-33, em que, conforme observado anteriormente, ficamos sabendo
que “Israel cultuou o S e n h o r todos os dias de Josué e todos os dias dos anciãos que
sobreviveram a Josué” (v. 31). E depois? Bem, Juizes conta o que aconteceu.

O enredo (histórico)

Conforme indicado em nosso breve exame do início, do fim e da estrutura básica de


Josué, o livro é profundamente teológico, mas será que isso significa que ele não tem

87C itado anteriorm ente. Veja nota 68.


O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 235

valor algum como fonte histórica? Alguns afirmariam isso, mas a esta altura nossa
posição já deve estar bem clara. Nesta seção, nossa tarefa é acompanhar o enredo da
forma mais simples e breve possível, observando em particular os aspectos do relato
que possam ser testados “com base”.
A ação começa no capítulo 1, com Josué, agora que Moisés morrera, sendo
encarregado de assumir o m anto da liderança. Ao ser comissionado, sua prim eira
providência é m andar espiões para o outro lado do Jordão a fim de fazerem um
reconhecimento da terra, em particular de Jericó. No entanto, a presença dos es­
piões em Jericó é im ediatam ente descoberta e, depois de escaparem por pouco
e passarem algum tempo nas montanhas, voltam com apenas duas informações:
1) a palavra de que “certamente o S e n h o r nos tem entregue nas mãos toda esta
terra” (2.24; o que não é de surpreender em face de todas as promessas feitas no
cap. 1); 2) o fato de que Israel, por meio dos espiões, havia feito um pacto com a
prostituta cananeia Raabe (2.8-21; algo um tanto surpreendente, tendo em vista a
missão de Israel). Em seguida Josué lidera toda a população na travessia do Jordão
(caps. 3— 4), depois que “as águas que desciam pararam e ficaram amontoadas,
muito longe, à altura de Adã, cidade que está junto a Zaretã; e as águas que desciam
ao mar da Arabá, que é o mar Salgado, foram de todo interrom pidas” (3.16). Assim
que chegaram à terra de Canaã, as primeiras ações dos israelitas foram: erigir um
memorial que registrasse a fidelidade de Yahweh em trazê-los à terra (4.19-24) e
renovar seu relacionamento pactuai com Yahweh mediante o restabelecimento da
circuncisão e da Páscoa (cap. 5).
A prim eira ação m ilitar resulta em um a vitória im pressionante sobre
Jericó, no vale do Jordão (cap. 6). Tendo sido posta sob condenação (6.17),
a cidade é incendiada (6.24). Em seguida, os israelitas fazem um ataque inicial­
m ente desastroso contra a cidade de Ai, que é então corrigido após a purificação
do acam pam ento israelita do pecado de Acã (caps. 7— 8). Ai tam bém é incen­
diada (8.28).
A seção final do capítulo 8 descreve um a cerimônia de renovação da aliança nos
montes Ebal e Gerizim, nos arredores de Siquém. Considerando a distância entre
Ai e Siquém (c. 32 km) e a aparente facilidade com que Josué conseguiu entrar na
região sem precisar lutar, comentaristas ponderam se o posicionamento literário
da cerimônia se deve mais a considerações teológicas do que cronológicas. Essa
conclusão é possível, especialmente pelo fato de que a seção é uma “perícope flutuante”,
aparecendo em vários e diferentes lugares na tradição manuscrita.88 Deve-se, con­
tudo, observar que

88Veja R. D . Nelson, Joshua: a commentary, O T L (Louisville: W estm inster John Knox, 1997),
p. 116.
2 36 A H I S T Ó R I A D E ISR A EL , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O PERSA

S iquém tin h a tradicio n alm en te u m valor religioso e pactuai p ara Israel que rem ontava
a A braão. P or exemplo, A braão construiu u m altar ao S e n h o r depois que o S e n h o r
lhe apareceu ali (G n 12.6,7). A li Jacó com prou terras e tam b ém erigiu u m altar (G n
33.18-20) e, p o r fim , a cidade foi o local de residência da fam ília (G n 35.4; 3 7 .1 2 -1 4 ).89

Por isso, não é de surpreender que as instruções dadas por Moisés em Deuteronôm io
27.1-8, que constituem os antecedentes do relato que estamos examinando, focali­
zaram justam ente essa região. E tam bém não é necessariamente surpreendente que
o livro de Josué não faça menção alguma a Siquém sendo tom ada à força; “é possível
que os siquemitas tenham sido amistosos com os israelitas, talvez devido a vínculos
anteriores entre a cidade e Israel”.90 Portanto, na seção final do capítulo 8, Josué
constrói um altar no M onte Ebal seguindo as instruções recebidas de Moisés (v. 30),
oferece sacrifícios ali (v. 31), copia em suas pedras (ou em outras) a “lei de M oisés”
(v. 32)91 e, então, lê “todas as palavras da lei, a bênção e a maldição, conforme tudo o
que está escrito no livro da lei” (v. 34).92
A notícia das primeiras vitórias militares de Israel provoca reações diferentes
entre os cananeus. A maioria começa a se unir para resistir (9.1,2). M as um grupo de
aldeões da região montanhosa, os gibeonitas, decide por um curso de ação diferente e,
convencendo os líderes de Israel de que é de um país distante, consegue ludibriá-los
e os faz estabelecer uma aliança de paz (cap. 9). Preocupado com as primeiras vitórias
de Israel e com a deserção de Gibeão, o rei de Jerusalém se une aos reis de Hebrom,
Jarmute, Laquis e Eglom para dar uma lição nos gibeonitas (cap. 10). Israel é cha­
mado para sair em defesa de seus aliados cananeus(!) e obtém uma vitória esmagadora
contra os cinco reis, que são perseguidos e finalmente mortos. Após a derrota e a
execução dos reis da coalizão, Josué e “todo o Israel” se dirigem rapidamente para
o sul, derrotando pelo menos sete cidades; Maqueda, Libna, Laquis, Gezer, Eglom,
Hebrom e Debir (10.29-39). Nos breves resumos da tomada dessas cidades, dá-se
bastante ênfase a matar as populações à espada e a não deixar nenhum sobrevivente,
mas não há quase nada que dê a entender que as próprias cidades foram destruídas.

89Howard,/oí/5>&«, p. 213.
90Ibidem , p. 213, nota 130, que apresenta um a bibliografia e um a análise mais aprofundada
desse assunto.
91N ão está totalm ente claro em Josué 8 ou em D euteronôm io 27 se as pedras que foram caiadas e
inscritas são as mesmas do altar. E m D euteronôm io 27, M oisés dá instruções para erigir pedras grandes,
caiá-las e escrever nelas (v. 2-4). N o v. 5, ele determ ina a construção de um altar e no v. 6 descreve o tipo
de pedras a serem usadas, o que sugere um segundo conjunto de pedras. N o entanto, no v. 8, M oisés
volta a tratar da ordem de escrever “naquelas pedras” “todas as palavras desta lei”.
92N o v. 34, a expressão apositiva “bênção e maldição” parece delim itar o sentido de “todas as pala­
vras” (cf. Ex 20.1), mas o v. 35 talvez sugira um a leitura mais completa.
O ESTABELECIM ENTO NA TERRA 237

O resultado dessa “cam panha ao sul” é resumido em 10.40-42 em term os h i­


perbólicos característicos dos relatos de conquista do A ntigo O riente Próxim o.93
U m recurso retórico como “ele não deixou um a pessoa sequer; mas tudo o que
tinha fôlego destruiu totalm ente” (v. 40) não deve ser lido de form a rígida e lite-
ralista, como se o objetivo fosse passar frios dados estatísticos. A justaposição que
aparece anteriorm ente em Josué 10.20, de “m ui grande matança, até consum i-
-los” com a m enção de “restantes” que “foram para cidades fortificadas” deve
servir de alerta contra leituras simplistas e literalistas. D e interesse particular é
a afirmação inicial do resumo, que enfatiza o fato de Josué haver “derrotado” ou
“subjugado” (H ifil de nkh) a região inteira. Essa ênfase em derrotar/subjugar o
inimigo como um a ação distinta de ocupar as cidades “tom adas” é reforçada pelo
versículo final do capítulo 10, que descreve Josué e todo o Israel retornando para
seu acam pam ento de base em Gilgal.
O capítulo 11 começa com a formação de outra coalizão, dessa vez ao norte,
cujo centro é Hazor, cidade que, no versículo 10, é denominada “capital de todos
esses reinos”. Em bora um imenso exército seja reunido, formado por “m uita gente,
um a multidão como a areia da praia do m ar” (v. 4; mais um a hipérbole), de novo
Yahweh dá o inimigo nas mãos de Israel (v. 8). Todas as cidades reais e respectivos
reis são conquistados, “aniquilando-as totalm ente”. Em bora essa linguagem talvez
dê aos leitores modernos a impressão de que as próprias cidades foram destruídas e
não apenas seus habitantes, o texto deixa claro que somente H azor foi incendiada
(v. 11-14). Portanto, até aqui o texto menciona explicitamente o incêndio de ape­
nas três cidades: Jericó (6.24), Ai (8.28) e Hazor. Depois de descrever a execução
bem-sucedida da “campanha ao norte”, o capítulo 11 term ina com outro resumo
dos sucessos de Josué, semelhante ao do final do capítulo 10, porém mais longo e
reunindo o resultado de todas as campanhas — no centro, no sul e no norte. Esse
resumo mais detalhado merece um exame cuidadoso, em especial pelo que mostra a
respeito da natureza da historiografia bíblica.
A prim eira parte do resumo (11.16-20) é um a combinação intrigante de
dados gerais e específicos, de história e teologia, de hipérbole e com edim ento.
E m certo sentido, a afirmação de que “Josué tom ou toda a terra” (v. 16) soa
exagerada, porque está claro que ele não tom ou cada cidade (algumas só foram
conquistadas na época de D avi),94 e mesmo algumas regiões inteiras, como a da
planície litorânea, não são m encionadas na descrição seguinte. E m outro senti­
do, porém , a declaração pode ser bastante precisa, sendo um a afirmação de que

93Younger, Ancient conquest accounts, p. 241-7.


94Veja L. E. Stager,“Forging an identity: the emergence o f ancient Israel”, in: M . D. Coogan, org.,
The Oxford history o f the biblical world (New York/Oxford: O xford U niversity Press, 1998), p. 171.
238 A H I S T Ó R I A D E ISR A E L , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA

Josué alcançou um a posição de controle da terra como um todo.95 O versículo


16 prossegue indicando pelo nom e as principais regiões em que Josué foi bem -
-sucedido. A prim eira da lista é a “região m ontanhosa”. À luz do versículo 21,
que faz distinção entre a região m ontanhosa de Israel e a região m ontanhosa de
Judá, e tam bém com base na menção da região m ontanhosa de Israel no final
do versículo 16, é presumível que a prim eira região m ontanhosa m encionada
no versículo 16 se refira aos m ontes do sul que mais tarde iriam pertencer a
Judá. Além das regiões m ontanhosas do sul e do norte, Josué tom ou o Neguebe
(a área deserta ao sul), a terra de G ósen (que ficava entre a região m ontanhosa
e o Neguebe; cf. Js 10.41), os contrafortes ocidentais (a Sefelá, que designa os
contrafortes entre a região m ontanhosa e a planície litorânea) e a A rabá (o vale
de falhas geológicas a leste da região m ontanhosa central). C onform e observado
anteriorm ente, não figura na lista a planície litorânea, a qual, ao que parece,
Josué não conquistou (cf. Js 17.16-18; Jz 1.19). Desse modo, o versículo 16 resu­
me as regiões tom adas na Cisjordânia. Em seguida, o versículo 17 especifica as
fronteiras sul e norte do território tom ado (cf. 12.7).96 O resumo anterior e mais
curto encontrado em 10.40-42 segue o mesmo padrão, prim eiro descrevendo os
territórios conquistados e então suas fronteiras externas.
Semelhante ao sumário do capítulo 10, o do capítulo 11 apresenta a conquista
de forma vivida, mas com limites, sejam geográficos (como acabamos de ver), sejam
temporais, conforme demonstrado, por exemplo, na admissão de 11.18 de que “por
muito tempo Josué esteve em guerra contra todos esses reis”. No hebraico, a ordem
das palavras denota ênfase, colocando “por muito tempo” (yãmim rãbbim) na posição
inicial. Fica claro que a conquista conforme descrita na primeira parte de Josué não
foi de modo algum um a guerra-relâmpago no sentido tradicional.
Os versículos 19 e 20 completam a primeira parte do sumário do capítulo 11
justapondo, sem qualquer dificuldade, um a realidade política (ninguém, com exceção
de Gibeão, buscou a paz com os israelitas) a uma explicação teológica — “Porque
do S e n h o r veio o endurecimento do coração [...] a fim de que fossem destruídos
totalmente [...] como o S e n h o r havia ordenado a M oisés”.
A segunda parte do resumo (v. 21-23) prossegue com uma descrição geral, mas
não sem incluir uma seleção de detalhes sugestivos. É significativo que essa seção
comece olhando para trás e também para frente, antecipando a divisão das terras que
começa no capítulo 13. O detalhe principal é a informação de que “naquele tempo

9SPara um a análise diversificada das diferentes maneiras que palavras como “conquistar” e “con­
quista” são usadas não apenas na Bíblia, mas tam bém em relatos de conquista provenientes do A ntigo
O riente Próximo e de tem pos mais modernos, veja Younger, Ancient conquest accounts, p. 243-4.
96Para um a análise de detalhes, veja Yíess,Joshua, p. 216-7.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 239

Josué veio e exterminou [lit. cortou fora] os anaqueus” (v. 21).97 A pertinência dessa
informação, aparecendo precisamente nesse ponto do desenvolvimento do livro de
Josué, fica clara quando nos lembramos de que foi o tem or de Israel aos anaqueus
— diante de quem os israelitas liderados por Moisés se sentiram como “gafanhotos”
(Nm 13.33) — que os impediu de entrar anteriormente na terra prometida (veja N m
13.27,28,33; 14.1,2 no contexto). Em Josué 11.21, detalhes adicionais informam o
nome de regiões (montanhosas) e de cidades (Hebrom, Debir, Anabe) de onde os
anaqueus foram erradicados. A luz de notas posteriores que afirmam que Calebe
fez com que os anaqueus fossem expulsos de Hebrom (Js 15.13,14) e que Otoniel
tomou D ebir (Js 15.15-17),98 alguns afirmam que existe neste ponto uma discrepân­
cia histórica. È mais provável, porém, que no resumo geral e transicional de Josué
11.21-23, Josué esteja recebendo o crédito dos resultados finais de processos a que ele
deu início. O fato de 11.23 servir de ponte confirma essa possibilidade, passagem que
não apenas atribui a Josué a tomada de “toda esta terra”, mas também a entrega dela
“como herança a Israel, dividindo-a segundo as suas tribos” — embora este último
aspecto somente será descrito na segunda parte do livro de Josué.
A principal função literária não apenas do versículo 23, mas de todo o resumo
de 11.16-23 é proporcionar uma ponte entre o tema da conquista, que domina a
primeira metade do livro,99 e a divisão de territórios e cidades conquistadas, que
domina a segunda metade. A principal mensagem teológica é que Deus, tendo
prometido dar a terra ao povo liderado por Josué, cumpriu a promessa. “ O S e n h o r ,
o Deus de Israel, batalhava por Israel” (10.42), conforme declarado no resumo
anterior no final do capítulo 10, e “nenhum a palavra falhou de todas as boas coisas
que o S e n h o r prometera”, conforme ressaltado no resumo posterior de 21.45.
A principal ideia histórica é que a guerra de conquista havia sido bem-sucedida —
“a terra descansou da guerra” (11.23) — e agora a ocupação pode ter início.
Contudo, antes que a ocupação comece de verdade, é preciso dividir a terra e
distribuí-la às várias tribos. Esse processo começa no capítulo 13, depois da lista de

9/E m outras passagens do AT, os anaqueus são associados aos nefilins (N m 13.33) e aos refains
(D t 2.11) e são apresentados como um a raça de “gigantes” (veja R. S. Hess, “Nephilim ”, in: A B D , vol. 4,
p. 1072-3. U m a referência bíblica intrigante encontra-se no papiro egípcio Anastasi I, do século 13, que
“descreve beduínos em Canaã, ‘alguns dos quais m edem quatro ou cinco côvados do nariz até os pés e
têm rostos ferozes” (veja H ess,Joshua, p. 218, nota 3; em que cita E. W ente, Lettersfrom ancient Egypt,
SBLW AW [Adanta: Scholars, 1990], p. 108). H ess explica que “cinco côvados egípcios seriam 2,7 m”.
9SJuízes 1.9-15 trata basicamente do mesmo assunto de Josué 15.13-19, “atribuindo a Judá,
de form a generalizadora, as ações que Josué 15.13,14 haviam atribuído a Calebe” (Block, Judges, p.
92). N o contexto de Juizes 1, a passagem funciona (junto com Jz 1.8) como um a “retrospectiva” (veja
E. H . M errill, Kingdom ofpriests: a history o f OldTestamentIsrael (G rand Rapids: Baker, 1987), p. 143,4).
"O bserve-se tanto no v. 16 quanto no v. 23 a referência a Josué tom ando a terra toda.
240 A H I S T Ó R I A D E ISR A E L , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA

reis derrotados que aparece no capítulo 12. Se a primeira metade do livro de Josué se
concentrou em Deus dar a terra a Israel, a segunda se concentrará no dever do povo
de ocupar, ou possuir, seus lotes tribais. Pela primeira vez desde o capítulo 1, o verbo
yrsh (possuir, desapossar, ocupar etc.) começa a ocorrer com certa frequência.100
Em vez de examinar cada porção de terra distribuída a cada tribo, faremos
apenas alguns comentários gerais. Primeiro, essas seções que delineiam os terri­
tórios das tribos são bastante honestas quanto aos fracassos ocasionais (talvez até
mesmo progressivos) das tribos de Israel na tentativa de desalojar os inimigos e
ocupar cidades dentro dos respectivos territórios. As tribos a leste do Jordão não
expulsaram (Hifil de yrsh) os gesureus e os maacateus (13.13) nem Judá expulsou
os jebuseus que habitavam em Jerusalém (15.63), tampouco Efraim, os cananeus
de Gezer (16.10). No início, Manassés não teve quase nenhum sucesso em ocupar
as cidades que lhe foram designadas (17.12,13). Q uanto às sete tribos restantes, no
capítulo 18 ficamos sabendo que, embora “a terra [estivesse] sujeita [Nifal de kbsh\
diante deles” (v. I),101 sua herança ainda não havia sido distribuída (Mq) (v. 2) e eles
nem sequer haviam começado a “tom ar posse” (Hifil de yrsh) da terra que Deus lhes
dera (v. 3). Essas notas ressaltam a distinção entre sujeição e ocupação e prenunciam
um a tendência que, conforme veremos, continua e se intensifica no livro de Juizes.
Segundo, devemos ser cautelosos ao examinar a divisão territorial conforme
aparece na lista de Josué 13— 19. Em sua análise esclarecedora sobre os territórios
distribuídos,102 Hess destaca que as listas, originalmente documentos de família,
logo devem ter se tornado documentos administrativos e, nessa condição, é provável
que tenham sofrido atualizações à medida que novas cidades surgiram.103 Por esse

100Das aproximadamente trinta ocorrências em Josué, cinco estão no cap. 1, e 21 nos caps. 13— 24.
Nos demais, o verbo ocorre apenas em 3.10 (duas vezes; em ambas tendo Deus como sujeito), 8.7 (no
contexto da tom ada de Ai) e 12.1 (que faz referência a “terras [que] possuíram além do Jordão, no lado
do nascente do sol”).
10IO verbo aqui traduzido por “sujeitar” ocorre apenas um a vez em Josué. A ntes de Josué, o verbo
ocorre só em Gênesis 1.28, quando se fala de sujeitar a terra (trazendo-a sob controle), e nas instruções
que M oisés dá às duas tribos e meia da Transjordânia, dizendo que devem acom panhar Israel a Canaã
até que a terra seja sujeita.
m2Joshua, p. 229-86. Veja tam bém outro texto de Hess, “A typology o f W est Semitic place name
lists w ith special reference to Joshua 13— 21”, B A 59, n. 3 (1996), p. 160-70.
103Hess, Joshua, p. 248-9. Esse entendim ento pode ajudar a explicar por que o total apresentado em
15.32 parece estar errado (15.32 indica que o total de cidades mais ao sul de Judá era de 29, ao passo
que a contagem das cidades listadas em 15.21-32 parece ser 36). Será que o núm ero m aior poderia
estar atestando o acréscimo de novas cidades à m edida que surgiram, ao passo que o total original
não foi alterado? (Q uanto a outras possibilidades, veja H ow ard, Joshua, p. 341.) Considerando outra
possibilidade, será que alguns nom es poderiam ser apostos (nomes alternativos do mesmo local), como
o possível caso de G edera e G ederotaim em 15.36? Se, neste caso, o segundo nom e for interpretado
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 241

motivo, a melhor maneira de entender quaisquer aspectos monárquicos posteriores


encontrados nas listas não é como uma indicação da origem tardia dessas listas, mas
como demonstração de seu uso contínuo. Além do mais, e seguindo essa mesma
linha de raciocínio, “a origem das próprias divisões e territórios distribuídos não
deve ser associada exclusivamente à data de vestígios arqueológicos encontrados nos
lugares que se pode identificar”.104
Estruturando a descrição da divisão de terras na Cisjordânia, há notas sobre
a outorga de terras pessoais aos dois famosos “espiões fiéis” de Números 13-14.
O judeu Calebe recebe H ebrom (Js 14.6-15), e o efraimita Josué recebe Tim nate-
-Sera (19.49,50). Assim, na descrição da divisão dos territórios, encontramos
informações históricas apresentadas numa forma literária cuidadosamente estrutu­
rada e com um a clara motivação teológica', os espiões fiéis recebem sua recompensa.
Após a divisão das terras entre as tribos, as cidades de refúgio são designadas
(Js 20), como tam bém as cidades da tribo sacerdotal de Levi (cap. 21). O relato
de todas essas divisões é, então, concluído com mais um resumo em louvor a Deus
por dar a Israel a terra, cum prindo as “boas coisas” que havia prom etido a seus
antepassados (21.43-45).
A seção final do livro (caps. 22-24) já foi analisada. Aqui basta apenas reiterar
a mudança de ênfase: da fidelidade do Senhor para a responsabilidade de Israel em
servi-\o fielmente. É apropriado que a assembleia final (cap. 24) ocorra em Siquém,
onde anteriormente (cap. 8) a aliança havia sido renovada, um altar fora construído
e as palavras da Lei tinham sido escritas como lembrança pública dos benefícios e
obrigações pactuais de Israel. Como Israel se sai no cumprimento dessas obrigações
é narrado no livro de Juizes.

O livro de Juizes

Estudos recentes reconhecem cada vez mais o livro de Juizes como “um a unidade
literária em si”.105 Em 1987, em sua “leitura integrada” do livro de Juizes, W ebb
recapitulou teorias histórico-críticas desenvolvidas anteriorm ente por N oth,
Richter, Smend, D ietrich, Veijola, Boling e A uld e chegou à conclusão de que,

como aposto, m antém -se o total de 14 cidades inform ado em 15.36. O utro possível exemplo de um
aposto unido por wazv é “Berseba ou Seba” (19.2, NV I); novamente, o total é correto quando o segundo
nom e é tratado como aposto. As vezes nomes alternativos são explicitamente introduzidos usando-se
o pronom e hebraico hi \ como em 15.49,54,60, mas é possível que nem sempre seja este o caso. Se a
tradução de Josué 16.2 como “Betei, que é L uz” (NVI) estiver correta, esse seria então um exemplo de
justaposição apositiva assindética (cf. tam bém 19.8, Baalate-Ber, Ram á do sul).
104H ess,Joshua, p. 249.
105W ebb, The book ofjudges, p. 28.
242 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO A T É O P E R Í O D O PER SA

“em bora há tempos a unidade redacional da seção central de Juizes tenha sido
reconhecida”, existem bons motivos para estender ao livro todo a ideia de um a
composição unificada. Em The triumph ofirony in the book o f Judges [O triunfo da
ironia no livro de Juizes], Klein adotou um a concepção geral parecida, concluindo
que “o livro de Juizes é um a unidade cuja estrutura — incluindo os recursos de
linguagem que contribuem para sua estruturação — comunica sentido”.106 Assim
como no livro de Josué, tam bém em Juizes descobrimos que prestar atenção a
como o livro inicia e finaliza e como é sua estrutura geral leva à revelação de seu
sentido e significado básicos.

Início efim

Em uma primeira leitura, o livro de Juizes parece caótico — o que, levando-se em


conta o período apresentado no livro, não é uma descrição de todo inadequada.
Contudo, em um a análise mais cuidadosa fica nítida um a estrutura literária coe­
rente. W ebb compara a estrutura do livro de Juizes a uma sinfonia que abrange três
partes: uma abertura que apresenta os temas fundamentais (Jz 1.1-3.6), variações
que desenvolvem esses temas e lhes dão prosseguimento (3.7-16.31) e um epílogo
que caracteriza o todo e conclui a composição (caps. 17-21). Nessa divisão triparti-
te, W ebb concorda com praticamente todos os comentaristas. Em alguns aspectos,
o âmago do livro é a seção central, que traz relatos bem conhecidos de juízes-
-libertadores como Eúde, Débora, Gideão, Jefté e Sansão. No entanto, as seções
inicial e final fornecem orientação e resumos muito importantes, de modo que
devemos considerá-las primeiro.
Assim como o livro de Josué começa com uma referência à morte de Moisés,
o de Juizes inicia com um a referência à morte de Josué — na realidade, duas re­
ferências (1.1 e 2.6-9). O fato de a morte de Josué ser registrada duas vezes em
Juizes 2.6-9 indica que a seqüência cronológica não é a preocupação básica do livro,
impressão confirmada também pelo que parece ser um a “retrospectiva” em 1.8-15.107
Os dois obituários sugerem um a divisão do “prelúdio” em duas partes principais,
em que a primeira (1.1-2.5) se concentra na deterioração sociopolítica que se seguiu
à morte de Josué, e a segunda (2.6-3.6) ressalta a causa e a conseqüência religiosas
dessa deterioração. A primeira parte “trata da maneira que a coexistência substituiu

W6Triumph o f irony, p. 193.


10/Veja, e.g., M errill, Kingdom ofpriests, p. 143-4. Cf. a observação de Polzin de que “o livro de
Juizes, à semelhança do de Josué, faz um a rápida recapitulação do livro anterior, antes de interpretá-lo
com mais profundidade" (Moses and the Deuteronomist, p. 148). Q uanto à tentativa de explicar o ataque
contra Jerusalém (v. 8) como algo que se seguiu à derrota de Bezeque (v. 4-7), veja Block Judges, p. 91-2
(embora Block adm ita que “não está clara a relação cronológica entre os v. 5-7 e o v. 8”).
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 243

a conquista à medida que Israel chegou a um acordo’ com os cananeus”.108 Juizes


1.22-26 relata a primeira concessão aos cananeus no livro de Juizes (e a primeira,
mesmo incluindo o livro de Josué, um a vez que a iniciativa fo i dos israelitas e não
dos cananeus): “M ostra-nos a entrada da cidade, e te pouparemos a vida” (v. 24).109
Depois dessa concessão, que permite que um a família cananeia sobreviva e prospere
à distância, os versículos 27-36 registram os diversos sucessos de outras tribos na
expulsão dos cananeus. Conforme observado por Webb, nessa seção ocorre uma
deterioração sutil das circunstâncias favoráveis a Israel, quando este deixa de ser um
povo que permite que os cananeus vivam em seu meio para ser um povo a quem os
cananeus permitem que viva em seu meio e, por fim, um povo (especificamente os
danitas) que é forçado a viver à distância (v. 34).110 O versículo final do capítulo
delineia a fronteira sul da tribo de Judá e, dessa maneira, a fronteira sul dos territó­
rios divididos (v. Js 15.2,3), mas chama-a de “fronteira dos amorreus” (v. 36)! Fica
claro que as circunstâncias políticas favoráveis estão se deteriorando à medida que
Israel vai perdendo aos poucos o controle dos territórios conquistados.
Os versículos finais da primeira parte introduzem um a explicação religiosa para
as aflições políticas de Israel. Em 2.1-5 o mensageiro de Yahweh sobe de Gilgal
(onde o “opróbrio do Egito” havia sido “removido”— um aparente jogo de palavras
com o nome “Gilgal”) até Boquim, onde, depois de ouvir o que o mensageiro tem
a dizer, o povo chora em voz alta (em um jogo de palavras com o nome “Boquim”,
cujo som é parecido com o da palavra hebraica “chorar”). O que o mensageiro diz
para provocar essa reação? Ele declara que Israel desobedeceu a Yahweh e, por es­
se motivo, de acordo com a advertência já feita em Josué 23.12,13, Yahweh não
expulsará mais os inimigos diante deles. Com o Israel chegou a essa triste situação?
A segunda parte do prelúdio explica.
A segunda parte começa com a morte de Josué ou, mais precisamente, com uma
referência a ele despedindo os israelitas para que tomassem posse dos territórios que
lhes foram distribuídos como herança (Jz 2.6) e uma referência ao sucesso inicial
deles em servir ao Senhor durante a vida de Josué e dos anciãos que sobreviveram
após a m orte dele (v. 7). M as, depois da morte e sepultamento de Josué, aos 110 anos
(Jz 2.8,9 = Js 24.29,30), e o falecimento de toda a geração que o havia conhecido, a
geração seguinte rapidamente se esquece do que Deus havia feito e o abandona para
servir aos “deuses dos povos ao redor” (Jz 2.10-12). A ira de Yahweh se acende, e ele

10SVeja W ebb, Book o f the Judges, p. 115. Nossa análise do livro de Juizes é bastante devedora aos
estudos feitos por W ebb, G ooding e outros, mas, por motivo de concisão, lim itarem os a apresentação de
notas de rodapé aos pontos mais essenciais de contato com esses autores ou a citações diretas.
109O livro de Josué registra concessões feitas a Raabe e aos gibeonitas, mas não por iniciativa
de Israel.
110Veja o quadro feito por W ebb em Book o f the Judges (p. 99).
244 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO A T É O P E R Í O D O P ER S A

entrega o povo nas mãos de seus inimigos (v. 13-15). Porém, não abandona Israel
totalmente, antes levanta “juizes” (libertadores) para resgatá-lo (v. 16). Ainda assim,
a tendência do povo à apostasia ficava novamente visível na primeira oportunidade
(v. 17-19). Porque o povo abandona sua aliança com Deus (v. 20; cf. a advertência
de Josué em Js 24.19), este decide que não mais expulsará o inimigo diante deles
(Jz 2.21). E m vez disso, utiliza a presença do inimigo para testar seu povo (v. 22,23)
e treiná-lo (3.1-4).
E nquanto a prim eira parte do prólogo se concentra na deterioração das
circunstâncias políticas favoráveis a Israel (introduzindo o fracasso religioso de
Israel só no final, em 2.1-5), a segunda parte, como acabamos de ver, se concentra
nos fatores religiosos que contribuíram para isso. Os dois últim os versículos do
prólogo (3.5,6) unem os dois aspectos — Israel viveu no meio dos cananeus e,
daí por diante, casou-se com eles e serviu a seus deuses. Resumindo, em últim a
instância Israel não passa pelo teste nem política nem religiosamente. Os de­
talhes desses fracassos relacionados, porém, ainda precisam ser elaborados nas
“oscilações”que seguem em 3.7— 16.31.111 Ademais, m uito em bora esteja descre­
vendo a falta de fé de Israel, o texto ressalta com sutileza a fidelidade de Yahweh
(primeiro em 2.16: “M as o S e n h o r levantou juizes que os livraram das mãos dos
saqueadores”). Yahweh reage aos repetidos fracassos com repetidos livramentos
que vemos, vez após vez, na seção central do livro, que trata das “oscilações”.
Com o, porém , o livro term ina?
Talvez o primeiro fator que chama a atenção do leitor de Juizes 17— 21 —
seção que constitui o epílogo, ou “coda”, do livro — seja o refrão de que “naquela
época, não havia rei em Israel; cada um fazia o que lhe parecia certo” (17.6 e, com
alguma variação, também em 18.1; 19.1; 21.25). Em um a primeira leitura, esse
refrão serve para preparar o caminho para o estabelecimento de um a monarquia
hum ana em Israel (ISamuel). Assim, conforme observado por Webb, o refrão “serve
tanto para recapitular um a fase distinta da história de Israel quanto para apontar
para a seguinte”.112 Contudo, à luz da afirmação de Gideão em 8.23 de que nem
ele nem seu filho iriam governar Israel, mas “o S e n h o r reinará sobre vós”, é difícil
deixar de perceber a questão mais profunda do fracasso de Israel, durante os dias
sombrios dos juizes, em servir a Deus como rei.

m C onquanto pareça apropriado dividir o prelúdio nas seções descritas anteriorm ente, tam bém
vale observar que elas estão unidas com bastante esmero. Os versículos finais do primeiro m ovim ento
(2.1-5) apresentam um a explicação para o que havia acontecido antes e tam bém antecipam o desenvol­
vim ento do assunto nos versículos que constituem o segundo movimento. E m outras palavras, eles têm
a função de transição. D e m odo parecido, a últim a seção do segundo m ovim ento (2.16— 3.6) serve de
transição entre o que veio antes e o que será mais desenvolvido na seção das “oscilações”.
n2Book o f the Judges, p. 30.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 245

Um segundo aspecto visível para o leitor de Juizes 17— 21 é que as mesmas


questões apresentadas na abertura — isto é, concessões políticas e corrupção religiosa
— tornam a aparecer no epílogo, mas na ordem inversa e de maneira muito mais
intensa. O relato de Juizes 17 fala do ídolo de M ica e do levita viajante que serve a
esse ídolo. O capítulo 18 conta como o levita, depois de deparar com uma oportuni­
dade de emprego melhor, rouba o ídolo e arrisca a sorte, acompanhando os danitas
que estavam migrando para o norte. Os danitas, incapazes de ocupar o território que
lhes fora atribuído ao sul, atacam o povo “despreocupado e tranqüilo” de Laís (v. 27),
uma cidade ao norte, conquistam-na, incendeiam-na e mudam seu nome para Dã.
Esses acontecimentos estão repletos de ironia. Israel devia ter erradicado a degradante
religião dos cananeus, desapossando esse povo cuja iniqüidade havia chegado ao limi­
te máximo (cf. G n 15.16; D t 20.16-18), e ter estabelecido a verdadeira religião javista.
Em vez disso, os danitas atacam e expulsam um povo “despreocupado e tranqüilo”
que vivia fora do território atribuído a eles e instituem sua própria forma de religião
degradante, repleta de ídolos. O choque diante dessa decadência só piora com o fato
de que, pela primeira vez, revela-se o nome do levitafreelance, e ele é ninguém menos
que “Jônatas, filho [ou descendente] de Gérson, neto de Moisés” (18.30).113
A religião se tornou degradante e anárquica durante o período dos juizes.
Q uanto a isso, a primeira parte do “poslúdio” (caps. 17-18) não deixa dúvida. Isso
também se aplica à sociedade e à política, conforme a segunda parte do epílogo
(caps. 19-21) deixa claro. Juizes 19 narra uma história da própria “Sodoma”de Israel
(cp. os acontecimentos de G n 19 com os da aldeia de Gibeá) e de um a época fora
de controle; até mesmo a hospitalidade parece ser desmedida (v. 5-10). E m vão o
leitor procura descobrir os “mocinhos” nesse capítulo perturbador. As tentativas das
tribos israelitas de lidar com os crimes horrendos do capítulo 19 não resultam em
nada mais do que uma guerra civil (cap. 20), um massacre de uma cidade de Israel e
um desrespeito ainda maior contra as mulheres (cap. 21).
Como Israel pôde afundar tanto? As “variações” que integram a seção central do
livro e, aliás, toda sua estrutura fornecem uma resposta.

Estrutura

Uma das tentativas mais perspicazes de identificar e descrever a estrutura geral e


a lógica interna do livro de Juizes aparece em um artigo de 1982, intitulado “The
composition o f the book o f Judges” [A composição do livro de Juizes], de autoria
de D. W. G ooding.114 A semelhança de praticamente todos os comentaristas de

113Para um a análise dessa revelação-surpresa, veja Block, Judges, p. 511-2.


llAEretz-Israel 16 (1982), p. 70-9.
246 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA

Juizes, G ooding reconhece a divisão tripartite do livro em introdução, conteúdo


principal e epílogo. Além disso, ele sustenta que não apenas a introdução e o epí­
logo apresentam seções paralelas em ordem inversa, mas também que o livro inteiro
constitui um quiasmo significativo. É possível apresentar a ideia geral da análise de
Gooding no diagrama a seguir.115

Introdução (1.1—3.6)
A Política: Israel versus cananeus (1.1— 2.5)
B Religião: Israel abandona Yahweh e serve a outros deuses (2.6— 3.6)
Os libertadores-juízes (3.7—16.31)
C Otoniel: sua esposa israelita contribui para seu sucesso (3.7-11; veja o
texto anterior de 1.11-15)
D Eúde\ leva uma mensagem a um rei estrangeiro — mata moabitas
na passagem do Jordão (3.12-31)
E Débora, Baraque: Jael, um a mulher, mata o cananeu Sísera e
põe fim à guerra (4.1— 5.31)
F Gideão\
a. sua postura contra a idolatria (6.1-32)
b. sua luta contra o inimigo (6.33— 7.25)
b.’sua luta contra os próprios compatriotas (8.1-21)
a.’ sua queda na idolatria (8.22-32)
E 'Abimeleqw. “um a mulher” m ata o israelita Abimeleque e põe
fim à guerra (8.33— 10.5)
Xyjefté- envia mensagens a um rei estrangeiro — mata efraimitas
nas passagens do Jordão (10.6— 12.15)
C ’ Sansão: suas mulheres estrangeiras contribuem para sua queda
(13.1— 16.31)
Epílogo (17.1—21.25)
B’Religião: a idolatria é desenfreada; levitas servem em altares idólatras; D ã
conquista Laís e institui a idolatria (17.1— 18.31)
A Política: Israel versus Benjamim (19.1— 21.25)

Esta apresentação resumida da análise bem mais detalhada feita por Gooding
é suficiente para sugerir que uma mente organizadora está por trás do padrão
geral do livro de Juizes. Descobrimos que não apenas o padrão bem conhecido
de pecado-subjugação-súplica-salvação (introduzido com O toniel em Jz 3.7-11 e

u5Com base na análise feita por G ooding e no resumo apresentado por W ebb (Book o f the fudges,
esp. p. 35).
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 24 7

a partir daí repetido com frequência), mas especialmente “um a densa rede de temas
condutores intim am ente ligados [...] unifica o material de 3.7— 16.31 em um plano
mais profundo do que o dos padrões que se repetem na superfície”.116 A importância
da disposição dos elementos vai muito além do mero interesse estético na sime­
tria. Conforme já observado, os temas de concessões políticas e corrupção religiosa
introduzidos na primeira seção do livro retornam no epílogo na forma de anar­
quia política e religiosa. Esses temas interligados de decadência política e religiosa
são reforçados, pelo menos de modo implícito, na estrutura da seção central, em
que Gideão, o juiz intermediário, atua como figura principal. A despeito de um
início mais ou menos positivo (v. os elementos Fa e Fb no diagrama exposto
anteriorm ente), a segunda metade do relato acerca de Gideão m ostra-o não apenas
se voltando contra os próprios compatriotas (Fb'), mas até mesmo fazendo um
colete sacerdotal que contribui para sua queda na idolatria (Fa')- Assim, conforme
observado por W ebb em seu resumo da análise de Gooding, com Gideão aospróprios
juizes se envolvem, mediante suas ações, no padrão geral de decadência”.117A espiral
descendente só piora com Abimeleque, Jefté e Sansão.
E m seu estudo que amplia, refina e em alguns aspectos se distingue do de
Gooding, W ebb ressalta o relato sobre Sansão como “a concretização culminante
de temas principais”,118 fornecendo um reflexo da experiência do próprio Israel:
“A consciência de Sansão de que está separado para Deus e, mesmo assim, sua
desconsideração em relação a esse fato, sua atração fatal por mulheres estrangeiras,
sua teimosia e seu atrevimento — tudo isso é um espelho do comportamento do
próprio Israel. É também o que determina seu destino.”119
Toda a seção central está “entrelaçada” de tal maneira que “o leitor é convidado
a ler cada episódio à luz do que ocorreu antes”.120 O modo que muitos episódios,
em especial os do início do livro, estão organizados em torno do esquema pecado-
-subjugação-súplica-salvação tem levado alguns leitores a supor que o “período dos
juizes” é apresentado apenas como cíclico. M as Webb, assim como G ooding e outros
que vieram antes dele, insiste acertadamente que não são ciclos recorrentes, mas
uma espiral descendente que representa a era descrita no livro de Juizes:

E m sum a, a estru tu ra editorial desses episódios não é u m m olde rígido ao qual, sem
levar em conta o conteúdo, o m aterial narrativo precisa se subm eter. O padrão estrutural
é de tal variedade que reflete a situação m utável de Israel, conform e se vê na sucessão de

116Veja W ebb, Book o f the Judges, p. 177.


u7Ibidem , p. 35.
118Ibidem , p. 179.
119Ibidem , p. 172.
120Ibidem , p. 178.
2 48 A H I S T Ó R I A D E ISR A EL , D E ABRAÃO A T É O P E R Í O D O PERSA

episódios. A m u dança é de deterioração progressiva da condição de Israel em relação a


Y ahweh, a seus inim igos e à pró p ria estabilidade in te rn a .121

O enredo (histórico)

M esmo a nossa breve análise da maneira que o livro de Juizes inicia, finaliza e está
estruturado revela um alto grau de composição literária e propósito didático. Uma
reação comum a esses aspectos do livro é supor que, de alguma maneira, eles redu­
zem o valor histórico dos textos. Por exemplo, em sua análise de Juizes, Finkelstein e
Silberman afirmam claramente que “a teologia e não a história é o elemento básico”
do livro.122 D e modo parecido, M iller e Hayes chegam à conclusão de que, “quando
o objetivo é a reconstrução histórica, dificilmente se pode tom ar o livro de Juizes ao
pé da letra”. Ambos ficam incomodados não apenas com “questões de detalhes que
em cada relato abusam da credulidade”, mas em particular com o “esquema edito­
rial, que é artificial e não convincente”.123
Nossa abordagem reconhece a natureza sistemática e padronizada da descrição
do período dos juizes, mas não a estabelece em oposição ao conteúdo potencial­
mente histórico do quadro pintado. Não deveria nos surpreender o fato de que o
testemunho sobre o passado pode, sem maiores dificuldades, combinar técnica de
composição, objetivo didático e também informação histórica. Para se fazer um
juízo correto da natureza da informação histórica evidentemente é preciso levar em
conta a natureza da apresentação. O livro de Juizes apresenta o retrato de um a era.
Q uando vemos um retrato pintado, instintivamente levamos em conta a seleção
dos detalhes, a simplificação, a coloração, a padronização da composição, alguma
artificialidade no arranjo e assim por diante — mas não pressupomos que esses
aspectos diminuam a imagem histórica. Aliás, nas mãos de um artista competente,
esses aspectos acentuam o objetivo referencial da obra. Nossa abordagem do livro
de Juizes segue essa perspectiva.
Conforme já vimos, existe um padrão teológico dominante no livro. M iller e
Hayes assim o descrevem:

A pressuposição básica desse padrão teológico é a de que a fidelidade a Y ahw eh era o


fato r determ in an te das vicissitudes da h istória israelita antiga. E m b o ra essa ideia ten h a
consistência teológica e apelo hom ilético, a m aioria dos historiadores prefere concordar
que a dinâm ica da h istória é bem m ais com plexa do que esse padrão reconhece.124

121Ibidem , p. 175-6.
n2The Bible uneartheá, p. 120.
123A history o f ancient Israel andJudah (Philadelphia: W estm inster, 1986).
124Ibidem , p. 89.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 249

É claro que a dinâmica da história é bem mais complexa do que essa (ou, nesse
sentido, do que qualquer) peça de historiografia consegue comunicar, da mesma
maneira que a dinâmica do semblante de alguém é bem mais complexa do que
qualquer retrato conseguiria captar. Aliás, conforme M iller e Hayes reconhecem, o
próprio livro de Juizes dá demonstrações dessa complexidade. Em bora as atividades
dos juizes estejam relacionadas de forma geral ao destino de “Israel” como um todo,
“um exame mais cuidadoso revela [...] que os acontecimentos narrados em relatos
específicos estão bem localizados — em geral envolvendo no máximo um ou dois
clãs ou tribos”.125 Parece um procedimento estranho citar a complexidade indicada
pelos textos como prova contra a plausibilidade histórica do quadro maior retratado
pelos próprios textos. Seria possível os escritores desejarem dar um a ideia da dinâ­
mica geral do período — teológica, política e histórica — e ao mesmo tempo não
oferecerem pistas de sua complexidade? Bons retratos se concentram em contornos
básicos, apresentando só detalhes sugestivos o suficiente para estimular a mente do
espectador a preencher o restante.126
Por fim M iller e Hayes chegam à conclusão negativa de que as narrativas do livro
de Juizes não “oferecem nenhum a base para reconstruir qualquer tipo de seqüência
histórica detalhada de pessoas e acontecimentos”, embora cheguem à conclusão
positiva de que “as condições socioculturais gerais pressupostas pelas narrativas
estão em conformidade com o que se sabe das condições existentes na Palestina no
início da Idade do Ferro” e de que “a situação refletida nessas narrativas fornece um
contexto crível e compreensível para o surgimento da monarquia israelita conforme
descrito em 1— 2Samuel”.127
Podemos concordar, sem dificuldade alguma, com as conclusões positivas,
mas o que dizer da declaração de que o livro de Juizes não fornece quase nenhum a
base para um a “seqüência [...] detalhada de pessoas e acontecim entos”? Nossa
resposta depende da ênfase que se dá aos termos “seqüência” e “detalhada”.
E óbvio que não se pode pressupor que o livro de Juizes apresenta um a seqü­
ência cronológica simples, direta e objetiva. Tanto a menção dupla da m orte de
Josué no prólogo quanto a possibilidade de que o epílogo fale de eventos ocor­
ridos em um a data mais recuada, em vez de posterior, no período dos juizes
m ostram que nem sempre existe a preocupação de seguir a ordem cronológica.
Tam bém pode ser que, conforme observado por Bright, “a impressão é a de que a

125Ibidem .
126Veja V. P. Long, The art o f biblical history, M oisés Silva, ed., F C I 5 (G rand Rapids: Zondervan,
1994), p. 71-3 e passim.
12‘History, p. 91.
250 A H I S T Ó R I A D E I S R A E L , D E ABRAÃO A T É O P E R Í O D O P ER S A

ordem em que [os juizes] são apresentados é aproximadamente cronológica”,128


mas parece perigoso ten tar estabelecer um a cronologia com base no conheci­
m ento atual. Pode-se resumir os dados tem porais básicos apresentados pelo livro
de Juizes conforme descritos na tabela 7.1.

Tabela 7 .1. Referências dos períodos em Juizes

Texto Acontecimento Anos

3.8 Opressão de Cuchâ-Risataim da Mesopotâmia 8


3.9-1 1 Paz alcançada por Otoniel (de judá) 40
3.12-14 Opressão de Eglom de Moabe 18
3.30 Paz alcançada por Eúde (de Benjamim) 80
3.31 Sangar liberta Israel dos filisteus ?
4.1-3 Opressão de Jabim, rei de Canaã, que governava em Hazor 20
5.31 Paz alcançada por Débora (de Efraim) e Baraque (de Naftali) 40
6.1 Opressão dos midianitas 7
8.28 Paz alcançada por Gideão (de Manassés) 40
9.22 A monarquia fracassada de Abimeleque 3
10.2 Magistratura de Tolá (de Issacar) 23
10.3 Magistratura de Jair (de Gileade) 22
10.6-9 Opressão dos amonitas (e filisteus, veja a seguir) 18
12.7 Magistratura de Jefté (de Gileade) 6
12.8-10 Magistratura de Ibsã (de Belém de Zebulom? Ou Belém de Judá?) 7
12.1 1 Magistratura de Elom (de Zebulom) 10
12.13-15 Magistratura de Abdom (de Efraim?) 8
13.1 Opressão dos filisteus 40
15.20 Magistratura de Sansão (de Dã) 20
Total de anos simplesmente somados = 410*

* 0 total de 410 anos não inclui a duração da magistratura de Sangar, que não é especificada
em Juizes 3.31.

Interpretando por um instante IR eis 6.1 ao pé da letra — passagem que


assevera que se passaram 480 anos entre o Êxodo do Egito e a edificação do
tem plo de Salomão, ocorrida no quarto ano de seu reinado — fica claro que há
um problema, visto que só o período dos juizes durou 410 anos. Esse cálculo
deixaria apenas setenta anos para todos os acontecim entos que vieram antes e
depois desse período. A contecim entos anteriores devem incluir quarenta anos de
peregrinação no deserto (Nm 14.33; D t 2.7), talvez sete anos para a conquista

12SA history o f Israel, 4 ed. (Louisvüle: W estm inster John Knox, 2000), p. 178.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 251

inicial129 e um número de anos não especificado (Vinte? Trinta? M ais?) até o fale­
cim ento dos anciãos que sobreviveram a Josué (Js 24.31; Jz 2.7). A contecim entos
subsequentes poderiam incluir quarenta anos da liderança de Eli (IS m 4.18),
talvez doze anos da liderança de Samuel antes da unção de Saul,130 um período
de aproximados vinte anos de reinado de Saul, quarenta anos de reinado de Davi
e quatro de Salomão. A soma de todos esses números resulta em 573 anos (mais o
núm ero não especificado de anos dos anciãos que sobreviveram a Josué), um total
que ultrapassa em m uito os 480 anos de IR eis 6.1. E óbvio que sim plesmente
somar os núm eros cria sérios problemas para um Êxodo no século 15, para não
falar de um no século 13.
Será que devemos concluir que os dados bíblicos são simplesmente confusos?
U m exame mais cuidadoso do texto sugere alternativas melhores. Primeiro, os
períodos de paz depois de Otoniel, Eúde, Débora e Gideão são, respectivamente,
quarenta, oitenta, quarenta e quarenta anos, enquanto o período da opressão filis­
teia é de quarenta anos e o da judicatura de Sansão é de vinte. Alguns ou todos
esses números podem ser arredondados, simbólicos ou representativos.131 É possí­
vel interpretar outros números de forma literal (e.g., 8, 18, 7, 3, 23, 22 e números
semelhantes). Com base no conhecimento disponível hoje, parece im prudente ser
dogmático quanto à maneira exata que se deve entender cada número, mas é plau­
sível que haja um a combinação de diferentes tipos de números. Por isso, um a soma
simples talvez seja a abordagem errada.
Segundo, é possível que alguns acontecimentos cuja duração é indicada tenham
sido, de fato, cronologicamente simultâneos ou sobrepostos. Não apenas os atos
específicos de livramento realizados pelos diferentes juizes se concentram tipica­
mente em ameaças regionais envolvendo apenas algumas tribos (mesmo quando
suas atividades são apresentadas como importantes para todo o Israel),132 mas

129Cálculo feito com base na afirmação de Calebe, em Josué 14.7, de que tin h a quarenta anos
de idade quando foi enviado pela prim eira vez para explorar a terra (N m 13.6) e 85 quando recebeu
H ebrom como herança (Js 14.10). Caso tenham se passado 38 anos entre a exploração inicial feita
por Calebe e o início da conquista (cf. D t 2.14), então um cálculo simples indica que devem ter
transcorrido cerca de sete anos entre o início da conquista liderada por Josué e a distribuição dos
territórios conquistados.
130C onquanto a Bíblia não ofereça nenhum a informação de quanto tem po Samuel ocupou seu
cargo entre a m orte de E li e a unção de Saul, Josefo escreve: “Depois da m orte do sumo sacerdote Eli,
ele governou e liderou o povo por apenas doze anos e junto com o rei Saul mais dezoito anos. Esse foi
então o fim de Samuel” (Ant. 6.294). E sta citação de Josefo e as subsequentes foram extraídas de The
Loeb Classical Library (London: H einem ann, 1930-1965).
13IE.g. , representando um a geração, duas gerações, ou um tem po longo, um tem po bem longo, ou
algo semelhante.
132Para um resumo das regiões que sofreram pressão externa, veja a tabela em VAoáí, Judges, p. 62.
252 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO A T É O P E R Í O D O P ER S A

tam bém há nos textos indicações de sobreposição cronológica. U m ótimo exemplo


é Juizes 10.6-8, que diz:

E n tã o os israelitas voltaram a fazer o que era m au aos olhos do S e n h o r . C u ltu aram os


baalins, A starote, os deuses da Síria, de Sidom , de M o ab e, dos am onitas e dos filisteus.
V isto que aban d o n aram o S e n h o r e já não o cultuavam , a ira do S e n h o r se acendeu
contra Israel, e ele os entregou nas mãos dos filisteus e nas mãos dos amonitas, os quais
com eçaram a h u m ilh á-lo s e a oprim i-los naquele m esm o ano. D u ra n te dezoito anos
oprim iram todos os israelitas do lado leste do Jordão, em G ileade, n a terra dos am orreus.

O contexto indica que os dezoito anos do versículo 8b se referem à opressão amonita


(conforme a tabela anterior). A menção dos filisteus no versículo 7 sugere, porém,
que os quarenta anos de opressão filisteia, que só volta a ser mencionada em 13.1,
podem na verdade ter começado por volta da mesma época que a opressão amonita,
o que levaria a um a reorganização de nossa tabela, conforme a tabela 7.2.

Tabela 7.2. Referências revisadas dos períodos em Juizes

Texto Acontecimento Anos Texto Acontecimento Anos

10.6-9 Opressão dos amonitas 18 13.1 Opressão dos filisteus 40


12.7 Magistratura de 6 15.20 Magistratura de
jefté (de Gileade) Sansão (de Dã) 20
12.8-10 Magistratura de 7
Ibsã (de Belém de
Zebulom? Ou Belém
de Judá?)
12.1 1 Magistratura de Elom 10
(de Zebulom)
12.13-15 Magistratura de 8
Abdom (de Efraim?)
Total 49 Total 60

Esse caso específico de sobreposição cronológica pode reduzir o período


dos juizes cerca de 49 anos. Caso a magistratura de Sansão tenha acontecido si­
multaneamente à opressão filisteia, o que parece ser totalmente possível, então a
redução seria de aproximadamente sessenta anos. Ademais, outras sobreposições
cronológicas, tanto no livro de Juizes133 quanto fora dele, podem ter ocorrido.

133Observam os, por exemplo, que não há inform ação sobre os anos de m agistratura de Sangar
(Jz 3.31).
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 253

Por exemplo, é bem possível que os quarenta anos de magistratura de Eli, menciona­
dos em ISamuel 4.18, tenham em maior ou menor extensão se sobrepostos à opressão
filisteia a que Sansão reagiu, o que poderia reduzir o cálculo em mais quarenta anos.
Levando tudo isso em consideração, podemos facilmente ver como é difícil
(talvez impossível) estabelecer um a cronologia precisa do período dos juizes; o
núm ero de variáveis indefinidas é simplesmente grande demais. Essa conclusão não
significa que não se possa confiar no livro de Juizes, apenas que se deve inter­
pretá-lo considerando suas características particulares. Com a grande probabilidade
de algumas sobreposições e a possibilidade de outras, há um intervalo de tempo
bem grande para o período dos juizes, em especial para aqueles que supõem que o
Êxodo ocorreu no século 15. U m Êxodo no século 13 exige um grau bem maior de
sobreposição, mas até isso é possível.
Para ilustrar a ideia básica: mesmo que consideremos somente a sobreposição
das opressões am onita e filisteia indicada em Juizes 10.6-8 e ao menos alguma
sobreposição entre as magistraturas de Sansão e Eli, chegamos a um quadro crono­
lógico hipotético geral como o da Tabela 7.3.

Tabela 7.3. Cronologia provisória do Êxodo até


o início da edificação do templo de Salomão

Acontecimento Anos

Êxodo e peregrinação no deserto 40


Conquista (cf. cálculo anterior) 7
Anciãos que sobreviveram a Josué 1
Período dos juizes e da magistratura de Eli 350
Magistratura de Samuel entre Eli e Saul 12
Reinado de Saul 20
Reinado de Davi 40
Reinado de Salomão até o início da edificação do templo 4
Total d e anos

O objetivo da Tabela 3 não é oferecer um a cronologia definitiva do Êxodo até o


templo de Salomão; muitos números da tabela são bastante conjecturais, e cenários
alternativos são possíveis. A ideia é mostrar que o quadro cronológico geral descrito
no livro de Juizes é plausível, mesmo que nossas interpretações continuem razoa­
velmente imprecisas.134

134Para análises mais detalhadas em que se busca um a precisão relativamente maior, veja Block,
Judges, p. 59-63, e esp. M errill, Kingdom ofpriests, p. 146-51.
254 A H I S T Ó R I A D E ISR A EL , D E A B R AÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA

Resumindo, de acordo com os textos bíblicos, o período dos juizes se caracteriza


por um êxito cada vez m enor na expulsão de populações autóctones em Canaã e
pela “canaanização” gradual do próprio Israel. Em bora as tribos israelitas tenham
experimentado alguns períodos de relativa paz, também houve períodos de pressão
intensa vinda de inimigos tanto de dentro da terra (e.g., Jabim de H azor e seu
general Sísera) quanto de fora (moabitas, amonitas, filisteus etc.). Essas tensões
regionais variadas puseram em evidência líderes hábeis (juizes) que reuniram tropas
de um a ou mais tribos, livraram Israel de seu perigo imediato e, com frequência,
proporcionaram um período de paz.
Depois de analisar separadamente os livros de Josué e Juizes, estamos agora em
condições de considerar como eles se relacionam.

Um estudo de Josué e Juizes em conjunto

As análises anteriores dos livros de Josué e Juizes lidam apenas com um a parte
muito pequena do que poderíamos obter de informação caso houvesse tempo para
análises literárias completas, mas essas revisões são talvez suficientes para estabe­
lecer as trajetórias temáticas gerais dos dois livros. O livro de Josué se concentra
basicamente na fidelidade de Yahweh em dar a terra da promessa a Israel, cum ­
prindo, desse modo, o aspecto da promessa patriarcal em evidência ainda no final do
Pentateuco. O livro de Juizes focaliza a reação imprópria de Israel diante da ordem
dada no final do livro de Josué para que servisse Yahweh com fidelidade e exclusi­
vidade. Ao cumprir a promessa de dar a terra de Canaã a Israel, Yahweh se revelou
absolutamente fiel, mas depois da morte de Josué e de sua geração, os israelitas
fracassaram progressivamente em sua responsabilidade de ocupar os territórios que
haviam recebido. Q uando lidos dessa forma, os livros parecem se complementar e,
de modo geral, estar em seqüência.
Assim mesmo, para muitos estudiosos os dois livros se contradizem. G. W.
Ramsey, por exemplo, só consegue falar de “relatos conflitantes da conquista hebreia
de Canaã”.135 W. G. Dever descreve o livro de Juizes como “outra rsão com alguns
pontos de contato com Josué” e insiste em que não se deve harmonizar os dois
livros, visto que, em sua perspectiva, “as contradições óbvias são grandes demais”.136
D e forma semelhante, A. Ben-Tor e M . T. Rubiato afirmam que o livro de Josué
apresenta um a “conquista rápida de Canaã”, ao passo que Juizes “mostra um quadro
totalmente diferente, em que o estabelecimento na terra é lento, em geral por meio

13:1lhe questfor the historical Israel: reconstructing IsraeVs early history (A tlanta: John Knox, 1982),
p. 101.
LV:What did the biblical writers know, p. 121-2.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 255

de um a infiltração pacífica, em que inúmeras tribos dispersas surgem aos poucos na


região montanhosa, onde coexistem com os cananeus” (Jz 4.1,2,23,24)”.137
Esse pensamento não é novo. Bright também acreditava que “a Bíblia não oferece
um relato único e coerente da conquista”. Para ele, o “relato principal” (i.e., Js 1— 12)
apresenta a conquista como “um esforço conjunto de todo o Israel [...] rápido, san­
grento e completo”, vindo em seguida a distribuição, entre as tribos, da terra cujos
habitantes haviam sido “massacrados” em sua totalidade (Js 13— 21). Ao contrário,
o livro de Juizes pinta um “quadro da ocupação da Palestina que retrata um proces­
so longo, realizado pelos esforços de clãs específicos e concluído parcialmente”.138
A favor de Bright há o fato de que ele resiste ao impulso de escolher um quadro em
detrim ento de outro, defendendo, em vez disso, que, “sem dúvida, ambas as posições
contêm elementos de verdade” e que “os acontecimentos reais que estabeleceram
Israel no solo da Palestina foram com toda segurança muito mais complexos do que
um a apresentação simplista de um ou outro relato sugeriria”.139
Entretanto, será que isso é o melhor que podemos fazer? Será que temos de
concordar com a afirmação de J. R. Spencer de que “o texto bíblico não é uniforme
em sua apresentação”, tornando “difícil passar do texto para um a compreensão
segura da natureza da conquista”?140 O u será que a rejeição de um a abordagem
simplista, a atenção maior dada à distinção entre conquista inicial e ocupação final
e a compreensão mais clara da natureza da historiografia como um a representação
verbal seletiva não conduziriam a um entendim ento mais satisfatório de como
os dois livros, interpretados juntos, podem na realidade produzir uma melhor
compreensão da conquista e da ocupação?
Embora seja bastante disseminada a tendência de ver Josué e Juizes como
apresentações de quadros conflitantes sobre o surgimento de Israel em Canaã,
essa abordagem não é universal. Na história dos estudos acadêmicos não tem faltado
quem faça objeção a esse ponto de vista — notavelmente G. E. W right, em 1946,141
Y. Kaufmann, em 1953,142 e outros. Em tempos recentes, também não faltam no meio

137“Excavating Hazor, Part II: D id the Israelites destroy the Canaanite city?”, BARev 25, n. 3 (1999),
p. 23-39, citação na p. 24. Não está claro se, para Ben-Tor e Rubiato, os quadros de Josué e de Juizes são
m utuam ente exclusivos ou apenas enfatizam aspectos diferentes do surgimento de Israel em Canaã.
lnHistory, p. 129.
139Ibidem , p. 130.
,40“W h ith e r the Bible and archaeology”, in: Proceedings, Eastern GreatLakes and M idw est Biblical
Societies 9 (1989), p. 14.
141“The literary and historical problem o f Joshua 10 and Judges 1”,J N E S 5 (1946), p. 105-14.
u2Ihe biblical account o f the conquest o f Palestine (Jerusalem: M agnes, 1953; reimpr. em 1985 pela
mesma editora com o título de The biblical account o f the conquest o f Canaan e com um prefácio escrito
por M . Greenberg). Acerca dessa obra, Bruce K. W altke afirma que “harm onizou convincentemente as
diferenças entre Josué e Juizes 1” (“The date o f the conquest”, W TJ52, n. 2 [1990], p. 189).
256 A H I S T Ó R I A D E ISR A EL , D E A B R AÃO A T É O P E R Í O D O P ER S A

acadêmico defensores da ideia de que Josué e Juizes se complementam.143 A ideia


básica é que a leitura equivocada das campanhas iniciais de Josué — no centro, no
sul e no norte — , considerando-as “conquistas permanentes”, e a identificação delas
como opostas às “ocupações” mais lentas descritas em Juizes 1 são erros fundamen­
tais.144 Como Kitchen insiste, “a vitória sobre 31 reis sem muita importância (Js 12)
foi uma conquista insignificante, não passando de simples eliminação da liderança”.145
Ademais, conforme vimos, o próprio livro de Josué estabelece uma distinção clara entre
conquistar uma posição de vantagem e dominar a situação ocupando os territórios
conquistados. Em outras palavras, existe uma diferença significativa entre subjugação
e ocupação, que em nenhum outro texto é mais óbvia do que nos versículos iniciais de
Josué 18. O narrador diz que, “depois de conquistar a terra” (v. 1), Israel se reuniu em
Siló, mas essa descrição não impede Josué de perguntar ao povo: “Até quando demo-
rareis a tomardes posse da terra que o S e n h o r , Deus de vossos pais, vos deu?” (v. 3).
A terra lhes havia sido entregue e estava subjugada, mas Israel ainda precisava tomar
posse dela e ocupá-la. Assim, não é apenas o livro de Juizes que entende que a plena
posse e ocupação da terra levariam um longo tempo. Josué 13.1 indica que, na velhice
de Josué, ainda havia grandes áreas a ser possuídas. Mesmo a leste do Jordão, Israel
não havia desapropriado completamente seus adversários (13.13). A oeste do Jordão,
nem Judá (15.63), nem Efraim (16.10) nem Manassés (17.12) tiveram sucesso total
em expulsar os cananeus — e parece improvável que as outras tribos tenham se saído
melhor. Em seu discurso de despedida no capítulo 23, Josué justapõe sem constrangi­
mento algum declarações sobre o sucesso da conquista — Yahweh havia “concedido
a Israel descanso de todos os seus inimigos em redor” (v. 1); “não falhou uma só palavra
de todas as boas coisas que o S e n h o r , vosso Deus, falou a vosso respeito” (v. 14) —
a uma clara admissão de que ainda havia trabalho a ser feito. Nações ainda “restam”
(v. 4,7,12) e precisam ser desapossadas (v. 5). Como ocorreu na conquista inicial,
assim também deve suceder na ocupação final dos territórios conquistados: só haverá
sucesso quando Israel tiver o cuidado de “guardar e cumprir tudo quanto está escrito
no livro da lei de Moisés” (v. 6), apegando-se a Yahweh (v. 8) e se recusando a servir

143Para um a análise perspicaz e recente das questões básicas (com notas bibliográficas úteis), veja
D . R . Ulrich, “D oes the Bible sufficiently describe the conquest?”, Trinity Journal 20, n. 1 (1999), p.
53-68. E m relação à dependência de Juizes 1.1— 2.5 de estruturas e trajetórias já introduzidas em Josué
13— 19, veja K. L. Younger Jr., “The configuring o f judicial prelim inaries”. Sobre o assunto em pauta,
Younger sustenta que essa seção de Juizes deixa explícito o que Josué já havia deixado implícito, a saber,
que na ocupação dos territórios distribuídos, Judá obteve em geral mais sucesso do que outras tribos,
especialmente Dã.
144Veja K. A. Kitchen, The Bible in its world: the Bible and archaeology (Exeter: Paternoster,
1977), p. 90-1.
14SIb id em , p. 90.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 257

aos deuses das nações que restaram (v. 7,16). Agir de outro modo será um a violação
da “aliança do S e n h o r , vosso Deus” (v. 16, ACF) e incidirá nas penalidades da aliança
(v. 15; cf. v. 13). No livro de Juizes, essa possibilidade se torna uma triste realidade.
Quando tudo isso é levado em conta, a contradição muitas vezes citada entre
Josué e Juizes revela um a compreensão descuidada em vários aspectos. Com
propriedade, Younger resume a situação da seguinte forma:

Se os estudiosos tivessem percebido a n atureza hiperbólica do relato de Josué, com pa­


ran d o -o com outros relatos do A n tig o O rie n te Próxim o que falam de co nquista total,
e se tivessem feito distinção u m pouco mais cuidadosa en tre ocupação e subjugação, a
im agem da conquista com o apresentada em Josué se revelaria bem m ais clara e, conse­
quentem ente, não haveria a necessidade de considerar históricas as prim eiras narrativas
de Juizes em d etrim en to das narrativas correspondentes em Josué.146

Portanto, em linhas gerais e interpretando Josué e Juizes juntos, a descrição bíblica


do surgimento de Israel em Canaã é internamente coerente: Israel entrou na terra
e, por meio da conquista militar (mas não restrito a ela), alcançou superioridade
inicial, tendo, porém, êxito bem m enor na consolidação de suas vitórias, não sendo
capaz de ocupar completamente os territórios. Aliás, neste último aspecto, Israel
é descrito como um a nação cujo êxito é cada vez menor. Levando-se em conta as
três forças motrizes das narrativas bíblicas (literária, teológica e histórica), podemos
apresentar o resumo a seguir.
D o ponto de vista literário, o relato é coerente. Isso significa que faz sentido.
Após campanhas iniciais lideradas por Josué e, em grande parte, bem-sucedidas,
seguem-se tentativas com êxito menor de consolidação da vitória mediante a ocupa­
ção dos territórios conquistados.
D o ponto de vista teológico, o relato também é coerente. O livro de Josué começa
destacando a fidelidade de Yahweh em “dar” a terra a Israel e, então, na segunda
metade do livro, passa a focalizar a reação ocasionalmente vacilante de Israel. Esta
última ênfase prossegue no livro de Juizes, em que a infidelidade recorrente do
povo israelita, e até mesmo de seus juízes-libertadores, estabelece um padrão de
decadência progressiva, conduzindo por fim à “canaanização” de Israel.147
D a perspectiva histórica, o quadro geral parece bem plausível, mas a essa altura
permanece ainda não comprovado, visto que a coerência interna, embora seja con­
dição necessária da historicidade, não é condição suficiente.148 Os textos de Josué

146'Ancient conquest accounts, p. 246.


147E nesse sentido que “se reconhece o não cum prim ento da promessa [patriarcal de plena posse da
terra], mas Yahweh é justificado” (W ebb, Book ofthe Judges, p. 122).
148Veja Long, A r t o f biblical history, p. 186-9.
258 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO A T É O P E R Í O D O PER SA

e Juizes realmente parecem afirmar verdades históricas e, para os que pressupõem


a veracidade das alegações bíblicas, essa aparência pode ser suficiente. Porém, para
pessoas que não partilham desse pressuposto ou para as que desejam defendê-lo de
forma mais elaborada, considerar dados extrabíblicos pode ser proveitoso na com­
provação, correção ou rejeição desse veredito. Por esse motivo, voltemo-nos para os
dados extrabíblicos, considerando primeiro os textuais.

ANÁLISE DOS TEXTOS EXTRABÍBLICOS

A esteia de Merneptá

O primeiro texto extrabíblico a ser considerado é a famosa esteia egípcia de


M erneptá, com frequência chamada de “esteia de Israel”, pois, com exceção
da Bíblia, contém a mais antiga menção a Israel. W . M . F. Petrie descobriu a
esteia em 1896 no Vale dos Faraós, em Tebas, e seu conteúdo foi publicado em
1897.149 Em bora a maior parte da inscrição seja um enaltecimento das vitórias de
M erneptá contra os líbios em seu quinto ano de reinado (possivelmente por volta
de 1209/1208 a.C .),1S0 a parte final, que comemora outras vitórias de M erneptá, é
de especial interesse para a história de Israel. Debate-se o sentido exato da linha que
afirma “Israel está em ruínas, sua semente não existe”, mas raramente se questiona
a ocorrência da palavra “Israel”. Antes da referência a Israel, mencionam-se três
cidades cananeias: Asquelom, Gezer e Yanoam. Esses três nomes estão indicados
pelo “determinativo” egípcio próprio para territórios ou cidades-estado estrangeiras
(um determinativo é um sinal colocado ao lado de um nome próprio para indicar
a natureza daquilo que é mencionado).151 Em contraste, o determinativo colocado
junto a “Israel” não indica um território ou um a cidade-estado estrangeira, mas
u m ^O T ou possivelmente um grupo étnico, ideia defendida por Dever.152 Assim, é
possível argumentar que Israel não deveria ser agrupado com as três cidades-estado
precedentes. Um a análise estrutural de toda a parte final pode apoiar essa conclusão.
G. W. Ahlstrõm e D. Edelman apresentaram uma análise interessante da parte
final da Esteia de Merneptá, afirmando que esse trecho está “estruturado em forma de

149Para o texto completo, com introdução e bibliografia, veja A N E T , p. 376-8; veja tam bém A N E P ,
p. 115,148. U m a cópia fragm entária da inscrição tam bém existe no tem plo de Karnak.
150Veja K. Kitchen, “Egyptians and Hebrews, from Ra’amses to Jericho”, in: The origin o f early
Israel— current debate: biblical, historical and archaeological perspectives, S. Aliituv; E. D. O ren, orgs.,
Beer-Sheva 12 (Jerusalem: B en-G urion University o f the Negeb Press, 1998), p. 100.
151Q uanto ã questão específica dos determinativos egípcios dessa esteia, veja Kitchen, “Egyptians
and H ebrew s”, p. 101.
ls2What did the biblical writers know, p. 118.
O ESTABELECIM ENTO NA TERRA 259

anel”, em que não se deve juntar “Israel” às cidades-estado precedentes numa espécie
de seqüência do sul para o norte, a qual colocaria Israel na região da Galileia, mas, em
vez disso, deve-se entendê-lo como um termo paralelo a “Canaã”, que é mencionada
logo antes das três cidades-estado. Com base no paralelo Canaã/Israel, eles sugerem
duas possíveis interpretações: ou Canaã representa “a planície litorânea e as terras
baixas adjacentes”, e Israel, a “região montanhosa”, ou tanto Canaã quanto Israel são
“aproximadamente equivalentes como sinônimos para indicar toda a região”.153
Outros estudiosos, estando de acordo ou não com a análise estrutural de Ahlstrõm
e Edelman, tendem a concordar que se deve situar o Israel de M erneptá “nas regiões
altas e nos vales de Canaã”154 ou, simplesmente, na região montanhosa central da
Palestina.155 Isso, conforme observado por Isserlin, gera duas perguntas: “Durante
quanto tempo os israelitas estiveram no país antes de serem mencionados [na esteia]?
E como chegaram ali?”156 Q uanto à segunda pergunta, utilizando vários argumentos
(inclusive os dados oferecidos pelos relevos das paredes do templo de Karnak, os quais
retratam as batalhas de M erneptá contra os líbios, os povos do mar, as cidades-estado
cananeias [Asquelom é uma das mencionadas] e “Israel”), alguns alegam que o Israel
de M erneptá deve ter surgido de “grupos pastoris de fora da Cisjordânia”.157 Apenas
com base nos dados egípcios, porém, não é possível demonstrar isso conclusivamente.
No que diz respeito à primeira pergunta — por quanto tempo Israel pode ter estado
na terra de Canaã antes de ser mencionado por M erneptá — , os dados arqueológicos
não oferecem nenhuma resposta. No entanto, se Finkelstein estiver correto em sua
análise de que o rápido aumento de aldeias na região montanhosa na Idade do Ferro

l33“M erneptah’s Israel”, J N E S 44, n. 1 (1985), p. 59-61. D a mesma forma, veja D . V. Edelm an,
“W h o or w hat was Israel?”, B A R ev 18, n. 2 (1992), p. 21 ,7 2 -3 . Respondendo à leitura que Edelm an e
A hlstrõm fazem da Esteia de M erneptá, em “A nson F. Rainey”, B A R ev 18, n. 2 (1992), p. 73-4, Rainey
diz preferir a interpretação originalm ente sugerida por F. Yurco, segundo a qual C anaã e K haru são
elementos paralelos. Rainey sustenta que Kharu é um a designação egípcia do território de Canaã,
talvez por causa dos hurrianos (os horeus da Bíblia?) que viviam na região. Rainey trata seriam ente o
determinativo associado ao nom e Israel e crê que a inscrição distingue Israel como um grupo étnico,
embora reconheça que os escribas egípcios daquele período tinham com certeza “alguma liberdade para
representar as várias entidades estrangeiras, em especial os grupos nôm ades” (p. 74).
IS4Kitchen, “Egyptians and H ebrew s”, p. 102.
15jDever, What did the biblical lariters know?, p. 119.
1Silhe Israelites, p. 56.
157Veja “Settlem ent o f C anaan”, de B. H alpern (A B D , vol. 5, p. 1130), em que o autor fundam enta
seu ponto de vista na descrição de Israel como “Shasu” (i.e., “pastores daTransjordânia”).P a ra u m racio­
cínio diferente que chega a conclusões semelhantes, veja A . F. Rainey, “Rainey s challenge”, B A R ev 17,
n. 6 (1991), p. 56-60, 93. Para um a perspectiva contrária, segundo a qual “pelo menos alguns israelitas”
se unem “fora da sociedade cananeia”, veja F. J. Yurco, “Yurcos response”, B A R ev 17, n. 6 (1991), p. 61;
cf. tam bém o estudo pioneiro anterior de Yurco, “3,200-year-old picture o f Israelites found in E gypt”,
B A R ev 16, n. 5 (1990), p. 20-38.
260 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO A T É O P E R Í O D O P ER S A

não indica necessariamente a chegada em massa de uma nova população vinda de


algum outro lugar, mas apenas a sedentarização de povos que viviam como pastores
(e, por esse motivo, deixaram poucos indícios arqueológicos), e se também estiver
certo em vincular a fase pastoril a “anos de crise” (que podem se estender por séculos;
por exemplo, para Finkelstein, toda a Idade do Bronze Recente foi de anos de crise),
então o “Israel” de M erneptá pode haver estado em Canaã durante muito tempo, em
grande parte dele como um povo pastoril.158
A esta altura, a única certeza é que, no último quarto do século 13 a.C., já exis­
tia na Palestina um a entidade suficientemente im portante para merecer a menção
de M erneptá.159 Não é de surpreender que alguns estudiosos tentem minimizar a
relevância desse fato; conforme observado por B. Halpern, “a Esteia de M erneptá
não é convincente para os que estão determinados a negar a existência, nas m onta­
nhas centrais no final do século 13, de um Israel baseado na consangüinidade”.160
M as parece que essa postura se baseia mais em um a tendência do que em dados.
E m termos claros, “não existe nenhum fundamento para negar uma ligação entre o
Israel mencionado por M erneptá e o Israel bíblico, exceto o fato de que essa ligação
é inconveniente para a posição ‘minimalista’”.161

As cartas de Amarna

A descoberta em 1888-1889 das agora famosas cartas de Amarna, que mencionam


os 'apiru (também chamados de habiru ou hapiru), deu início a um caloroso debate
sobre possíveis vínculos com os “hebreus” da época da conquista de Canaã. M ais de
380 tábuas foram descobertas nos arquivos reais em el-Amarna, o lugar da antiga
A khetaten, situada na margem oriental do Nilo, cerca de trezentos quilômetros ao

15sE m “Exodus and conquest: M yth or reality”, Journal, o f the Ancient Chronology Forum 2 (1988),
J. Bimson escreve: “Fritz defende que os assentam entos indicam a sedentarização de seminômades
que haviam entrado na terra m uito antes de 1200 a.C: ‘Sua “migração” para a terra deve, portanto, ter
acontecido no século 14 ou já no 15’[1981, p. 71]”. (Tam bém disponível em http://w w w .nunki.net/isis/
jacf2articlel.htm , acesso em 2003.)
159Tam bém merece menção a possibilidade de “Qazardi, o lider de A ser”, m encionado no papiro
Anastasi I (veja A N E T , p. 475-9, seção xxiii), um a carta satírica datada do final do século 13 a.C, ser
um a referência extrabíblica à tribo de A ser mencionada no A T (para um a análise desse e de outros da­
dos egípcios, veja J. M . M iller, “The Israelite occupation o f Canaan”, in: J. H . Hayes; J. M . M iller, orgs.,
Israelite andJudaean history [London: SC M , 1977], p. 245-52).
160“Text and artifact: Two monologues?”, in: N. A. Silberman; D. Small, orgs., The archaeology o f Israel:
constructing thepast, interpreting thepresmtjJSOTè 237 (Sheffield: Sheffield Academic, 1997), p. 335.
161 J. Bimson, “O ld Testam ent history and sociology”, in: C raig C. Broyles, org., Interpreting the
Old Testament: a guidefor exegesis (G rand Rapids: Baker, 2001), p. 141.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 261

sul do Cairo.162 A maioria das cartas está escrita em acádico (um grupo de línguas
semitas orientais que inclui o babilônio e que, no século 14 a.C., era a língua do
comércio internacional e da diplomacia). As cartas abrangem um período inferior
a trinta anos, desde o final do reinado de Am enhotep III até o terceiro ano de
Tutankhamon, sendo que a maioria foi enviada durante o reinado do “monoteísta”
A m enhotep IV (chamado Akhenaton, c. 1352— 1336 a.C.). No conteúdo, com
exceção de uns 32 textos léxicos/literários e 44 cartas trocadas entre o Egito e outras
potências importantes da época,“mais de trezentas tábuas [...] são correspondências
entre o Egito e reinos vassalos em Canaã e no norte da Síria”.163 Entre as cartas
provenientes de governantes de cidades-estado em Canaã, cerca de dezesseis
mencionam os incômodos ‘apiru e recorrem ao Egito em busca de ajuda.164 Esses
‘apiru “parecem ser mercenários saqueadores que às vezes representavam ameaça
para todos os Estados cananeus e que, em outras oportunidades, apareciam divididos
em lados opostos nas guerras entre essas cidades-estado”.165
Por várias razões, não causa surpresa que, como conseqüência da descoberta das
cartas de Am arna, tenham ocorrido tentativas de relacioná-las aos hebreus bíblicos
que invadiram Canaã. Com o Nadav N a’aman explica em um estudo minucioso
publicado em 1986,166 “a semelhança entre os nomes habiru e hebreu, a proximi­
dade do lugar em que viviam e tam bém a relação cronológica bastante próxima
entre os habiru de A m arna e os israelitas despertaram a imaginação dos estudiosos,
provocando a identificação im ediata entre os dois grupos”.167 Essa empolgação,
contudo, estava fadada a ter vida curta, pois logo ficou evidente que a existência
dos 'apiru era amplamente atestada em textos do Antigo O riente Próximo, além das
cartas de Amarna.168 Na realidade, parece que os ‘apiru, designados frequentemente

162Q uanto à história da descoberta, veja N. N a’aman, “A m arna letters”, A B D , vol. 1, p. 174-81.
A m elhor tradução em inglês das cartas é a de W . L. M oran, The Amarna letters (Baltimore and L ondon:
Johns H opkins U niversity Press, 1992; original em francês publicado em 1987). U m a seleção das cartas
tam bém está disponível em A N E T , p. 483-90.
163N a’aman, “A m arna letters”, p. 174.
164I.e., E A (= El-A m arna) 243, E A 246, E A 254, E A 271, E A 273-274, E A 286-290, E A 298-
-299, E A 305, E A 318 e A O 7096. Para um a relação e um resumo práticos do conteúdo, veja M errill,
Kingdom ofpriests, p. 105.
1''"'Merrill, Kingdom ofpriests, p. 100.
166“H a b iru and Hebrews: the transfer o f a social term to the literary sphere,_/ZVES 45, n. 4 (1986),
p. 271-88.
167Ibidem , p. 271. Para a história dessa tentativa de identificação, veja M . Greenberg, The Hah/piru
(New Haven: A m erican O riental Society: 1955), p. 3-12.
168Para um a lista útil, veja B right, History, 4 ed., p. 94-5. B right conclui que os apiru são “um povo
encontrado por todo o oeste da Ásia do final do terceiro milênio até por volta do século 11” (p. 95).
262 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O PERSA

em acádico com o logograma sumério SA .G A Z ,169 estavam praticamente presen­


tes em todo o Crescente Fértil durante boa parte do segundo milênio.170 Ficou
igualmente claro que o term o ‘apiru não designa intrinsecamente um grupo étnico,
ao contrário, parece indicar povos que não possuíam terra e que com frequência
perturbavam a ordem, tendo sido “arrancados de sua estrutura original política
e social e forçados a se adaptar a um novo am biente”.171 Com base em dados
provenientes de M ari, N aam an elabora um argumento etimológico e contextual
dem onstrando que é possível entender os apiru como “migrantes”: “parece que em
sociedades asiáticas ocidentais do segundo milênio é apenas o ato m igratório que
define a designação ‘habiru’”.172
Tendo se precipitado em um a identificação insustentável dos ‘apiru com os
hebreus, muitos estudiosos simplesmente abandonaram a ideia de que podia haver
qualquer relação entre os hebreus da Bíblia e os apiru das cartas de Amarna. O utros,
contudo,perm aneceram mais cautelosos e abertos. N aam an observa que, depois de
um século de debates, “ainda não se chegou a um consenso no meio acadêmico”.173
E claro que está fora de questão um a identificação pura e simples dos dois termos.
È impossível concluir que todos os 'apiru eram israelitas; a distribuição geográfica
e cronológica é simplesmente grande demais. M as será que, para os adversários
cananeus, os israelitas, conforme descritos nos livros de Josué, Juizes e até mesmo
Samuel, não poderiam ter sido vistos como ‘apiru, não im portando qual a percepção
dos próprios israelitas acerca de si mesmos? N a’aman defende que “na condição
de povo arrancado da terra em que vivia às margens da sociedade, os bandos des­
critos nos livros de Juizes e Samuel são idênticos aos habiru dos textos do Antigo
O riente Próximo”.174 Por isso, pode-se muito bem imaginar que, para os cananeus
ameaçados pelos israelitas, estes fossem vistos como ‘apiru — um a percepção talvez
reforçada pela coincidente semelhança do term o com o gentílico 'ibri, “hebreu”,
vocábulo que talvez derive de Éber, o ancestral de Abraão mencionado em Gênesis
10.21.175 Recentemente, D aniel Flem ing sugeriu que a palavra ‘ibrum, encontrada

I65Para um a análise da etimologia do term o sumério como “assassinato/assassino” e o possível sen­


tido acádico de “ladrão” ou “refugiado de guerra”, veja M errill, Kingdom ofpriests, p. 100.
170N . P. Lem che, “H abiru, H a p iru ”, A B D , vol. 3, p. 7.
171N a’aman, “H a b iru and H ebrew s”, p. 272. Veja tam bém o que A. K uhrt escreve em The ancient
N earE ast c. 3000-330 a.C. ([London: Routledge, 1995], 2 vols.): “E improvável que fossem um grupo
cultural e linguisticam ente coeso. E studos exaustivos de contextos em que o term o aparece sugerem que
era aplicado a um a gam a de pessoas: escravos fugitivos, exilados políticos, salteadores e camponeses sem
terra, i.e., pessoas à m argem da sociedade...” (vol. 1, p. 320).
172“H ab iru and Hebrew s”, p. 275.
173Ibidem , p. 271.
174Ibidem , p. 285.
175Para um a análise da questão, veja M errill, Kingdom ofpriests, p. 101.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 263

em documentos de M ari, que designava pastores que viviam em regiões remotas


e que era particularm ente popular entre o povo tribal Binu Yamina, do sudoeste
da Síria pode oferecer um a etimologia m elhor para o term o bíblico “hebreu”.176
E m bora não seja tão amplamente atestada quanto os apiru, assim mesmo a desig­
nação ‘ibrum era “a categoria social dom inante das comunidades pastoris nômades
que percorriam o sudoeste da Síria durante o período de M ari, provavelmente em
meados do século 18”. Flem ing argumenta que sua hipótese sobre os 'ibrum oferece
um a etimologia melhor para os 'ibri da Bíblia (“a forma substantiva qitl oferece
uma equivalência exata”) e um a correspondência social mais clara com o termo
bíblico “hebreu” do que a origem eberita ou o vínculo com o term o 'apiru. A teoria
de Flem ing parece apoiar a ideia de que os antepassados de Israel foram de fato
tribais e pastores.177
D iante dessas várias possibilidades, talvez o term o “hebreu” seja usado com
vários sentidos nas páginas da Bíblia. N a maioria das vezes, o term o é aplica­
do aos israelitas por aqueles que queriam difam á-los (e.g., a esposa de Potifar
ao se referir depreciativam ente a José quando ele rejeitou seus avanços em
G n 39.14,17; a filha do faraó quando m enciona M oisés em Ex 2.6; e os filisteus
quando se referem aos israelitas em geral em IS m 4.6,9).178 As vezes parece que
até os próprios narradores bíblicos distinguem entre hebreus e israelitas, como
em ISam uel 14.21: “Os hebreus que antes estavam com os filisteus e haviam
subido com eles ao acam pam ento tam bém se ajuntaram aos israelitas que esta­
vam com Saul e Jônatas”.
Chegando a uma conclusão provisória, parece que, assim como a tentativa de
fazer uma identificação simples e direta entre os hebreus e os ‘apiru se baseou em uma
ideia errada, o mesmo ocorre com a negação de qualquer relação possível entre os dois
grupos. Ê claro que a possível natureza da relação depende da época que se atribua à
chegada de Israel em Canaã: no século 15 ou 13. Caso se aceite esta última possibi­
lidade, então os ‘apiru podem, na melhor das hipóteses, ser os precursores de Israel.179
Caso, porém, se aceite a primeira possibilidade, a relação apiru/hebr&us pode ser mais
próxima. De forma clara, é impossível que todo ‘apiru fosse um israelita, mas é bem
provável que, durante o período de conquista, os vizinhos cananeus considerassem
alguns israelitas — “migrantes” perturbadores — como 'apiru. Em outras palavras,

176“Refining the etymology for ‘H ebrew ’: M a ris ‘I B R U M ", palestra não publicada, apresentada em
novembro de 2001 por ocasião da SBL A nnual M eeting, realizada na cidade de Denver. A qui expressa­
mos a Flem ing nosso agradecim ento por nos disponibilizar o texto de sua apresentação.
177Ibidem , p. 8-9.
17sCf. ibidem.
1,9O u deve-se tentar, como fez T. J. M eek, inverter a ordem bíblica e situar a conquista liderada
por Josué antes do Êxodo liderado por M oisés (veja M errill, Kingdom ofpriests, p. 102).
264 A H I S T Ó R I A D E ISR A E L , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA

como um “termo genérico injurioso aplicado a párias sociais [...] é possível que, no
contexto cananeu, [o termo] se refira a israelitas, mesmo que isso não ocorra em ou­
tros lugares”.180 A nova hipótese etimológica de Fleming talvez seja uma explicação
melhor para a designação “hebreu”, uma explicação que se harmoniza com a descrição
bíblica do Israel primitivo como “pastores de regiões rurais remotas”.
Considerações geográficas podem oferecer apoio adicional a essa ideia. De
acordo com Finkelstein, “as únicas entidades políticas da região montanhosa citadas
nas cartas de Am arna do século 14 a.C. (um período de grande decadência na região
montanhosa) são Siquém e Jerusalém”,181 e mesmo a identificação de Siquém tem
sido contestada.182 Isso está bem de acordo com o fato de que, entre os séculos 15
e 12, a presença egípcia na Palestina parece ter sido mais sentida “nas terras baixas,
que eram estratégica e economicamente importantes, do que na região montanhosa,
que tinha menos relevância”.183Também está em harmonia com o quadro bíblico que
situa a maior parte da população israelita durante o período da conquista na região
montanhosa. Em suma, de acordo com Chavalas e Adamthwaite:

O quadro que surge da C an aã de A m a rn a é o de reis de áreas pequenas governando


ju stam en te as cidades que o texto bíblico d iz que os israelitas, sob a liderança de Josué,
não conquistaram . A o m esm o tem po, nesse contexto é possível que os h apiru, que o u ­
tros reis consideravam inim igo com um , fossem identificados com os israelitas. E m b o ra
co ntinuem existindo algum as exceções, com o é o caso de L aquis (L a -k i-su ), precisam os
observar que, p o r causa das várias opressões e ocupações ocorridas d u ran te o período
dos juizes, alguns territó rio s e cidades foram perdidos p ara os inim igos. E m IS am u el
7.14, é dito que os israelitas recuperaram territórios que haviam an terio rm en te perdido
p ara os filisteus. O que se aplicava aos filisteus provavelm ente tam b ém se aplicava aos
conquistadores que os an teced eram .184

Cumulativamente, no que diz respeito aos ‘apiru, a natureza da evidência não apoia
o dogmatismo a favor desta ou daquela posição, mas um cenário possível é que
tanto o Israel de M erneptá quanto os apiru das cartas de Am arna nos oferecem

180M . W . Chavalas; M . R. Adam thw aite, “Archaeological light on the O ld T estam ent”, in Baker;
A rnold, orgs., Theface o f Old Testament studies, p. 59-96; citação na p. 90. E m Kingdom ofpriests, M erril
faz um a defesa convincente de que as cartas de A m arna apresentam o contexto para o período após a
conquista inicial liderada por Josué (p. 102-8).
181“The rise o f early Israel”, p. 31.
182M . R. Adam thw aite, “Lab’aya’s connection w ith Shechem reassessed”, Abr-Nahrain 30 (1992),
p. 1-19, esp. p. 8-12. Veja mais apoio a essa ideia em “Archaeological light”, de Chavalas e A dam thw aite
(p. 90, nota 138).
ls3Isserlin, The Israelites, p. 55.
184“Archaeological lig h t”, p. 90.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 265

indicações de um a presença (pastoril) israelita em Canaã bem antes do floresci­


m ento de aldeias na região montanhosa durante a Idade do Ferro I.18S

ANÁLISE DOS VESTÍGIOS MATERIAIS

A té aqui nosso foco esteve na leitura de textos — bíblicos e extrabíblicos. Agora


nos voltamos para vestígios materiais não textuais que a arqueologia trouxe à luz.
Esses vestígios também exigem um a “leitura” cuidadosa. Se o procedimento nas
seções anteriores foi praticamente equivalente a ouvir testemunhas durante um jul­
gamento (embora com a diferença de que não é possível interrogar diretamente
essas testemunhas e, por isso, é preciso ouvi-las para obter qualquer informação
que possam apresentar quanto às questões em pauta), o procedimento nas seções
seguintes é semelhante à tentativa de, em um julgamento, avaliar a importância
das provas materiais. Raramente pode-se esperar reconstruir o passado apenas com
base em dados materiais não verbais, mas esses dados podem ser muito úteis ao m e­
nos em três aspectos: 1) verificação da possibilidade do testemunho verbal ser real;
2) verificação da plausibilidade de determinada reconstrução teórica; 3) acréscimo
de “carne” ao “esqueleto” de um enredo histórico baseado em testemunhos.
Conforme observamos em nossa análise da teoria da conquista, um a leitura
cuidadosa do livro de Josué descobre que, ao contrário da opinião popular (e às
vezes da acadêmica), é possível que os danos reais causados nas propriedades con­
quistadas tenham sido bem pequenos, de modo que a chegada de Israel pode não
ter deixado nenhum ou quase nenhum vestígio arqueológico. O fato de que Israel
não se envolveu em destruição desnecessária de propriedades é indicado em Josué
24.13, que descreve os israelitas morando em cidades que não haviam construído e
desfrutando de vinhas e olivais que não haviam plantado, uma situação prevista em
Deuteronôm io 6.10-12:

Q u a n d o o S e n h o r , teu D eu s, te estabelecer n a terra que p ro m eteu te dar, em ju ra ­


m en to feito a teus pais, A braão, Isaque e Jacó, com g randes e boas cidades, que não
edificaste, com casas cheias de tu d o o que é b o m , as quais não encheste, e poços que
não cavaste, vinhas e olivais que não plan taste, e q u an d o com eres e te fartares, cuidado
p ara não te esqueceres do S e n h o r , que te tiro u da terra do E g ito , da casa da escravidão.

Portanto, com base na perspectiva do testemunho bíblico, não há motivo algum


para esperar encontrar evidências arqueológicas que confirmem, como resultado de

18SCf. J. J. Bimson, “M erneptahs Israel and recent theories o f Israelite origins”, J S O T 49 (1991),
p. 3-29.
266 A H I S T Ó R I A D E ISR A E L , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA

um a conquista israelita, destruições generalizadas de cidades. Os moradores das


cidades foram propositalmente aniquilados ou expulsos, mas cidades e terras foram,
em sua maioria, deixadas intactas. A esta altura já estamos bem familiarizados com o
fato de que os textos bíblicos mencionam o incêndio de apenas três lugares durante
as campanhas de Josué: Jericó (Js 6.24), Ai (8.28) e H azor (11.13). A essas três pode­
mos acrescentar a cidade de Laís, no extremo norte, que foi conquistada e incendiada
algum tempo depois por danitas que migraram para o norte e que mudaram o nome da
cidade para D ã (Jz 18.27; cf. Js 19.47). Ao menos no caso desses quatro lugares, talvez
haja boas razões para procurar vestígios arqueológicos, mas mesmo assim, devemos ter
em mente a natureza casual da existência e da descoberta de vestígios arqueológicos.
Primeiro examinaremos esses quatro locais, então consideraremos vários outros de
particular relevância para o testemunho de Josué-Juízes. Por fim, focalizaremos os
resultados de pesquisas de superfície realizadas em décadas recentes.

Descobertas arqueológicas de Jericó, Ai, Hazor e Laís

Jericó

D e acordo com os relatos bíblicos, Jericó foi a primeira cidade conquistada após a
entrada de Israel em Canaã e, geralmente, é a primeira a ser mencionada em debates
sobre a “conquista”.186 Aliás, Jericó é frequentemente citada como um “exemplo evi­
dente” de como a arqueologia tem demonstrado que a Bíblia não é historicamente
confiável. O motivo alegado é que supostamente a cidade de Jericó não foi sequer
ocupada durante o período atribuído a Josué, pressupondo-se tanto um a conquista
recuada quanto recente. Isso não quer dizer que, em muitos pontos importantes, a
arqueologia da cidade não esteja associada ao relato bíblico. H á evidência de que
as muralhas da cidade ruíram. Existem vestígios de incêndio, bem como indícios
até mesmo da época do ano em que esse incêndio pode ter acontecido — prova­
velmente na primavera, logo após a colheita, visto que os escavadores recuperaram
uma quantidade significativa de cereal na cidade incendiada. A presença de cereal
tam bém sugere que a cidade caiu rapidamente e não como resultado de um cerco
prolongado, pois, nesse caso, esses suprimentos com certeza teriam se esgotado.

186E. N o o rt observa que, da perspectiva geográfica, um a conquista no sentido leste-oeste no sul


do vale do Jordão não poderia ter ocorrido de outra maneira: “A n Jericho ging w õrdich kein W eg
vorbei” (“Klio und die W elt des A lten Testam ents: U berlegungen zur B enutzung literarischer und fel-
darchàologischer Q uellen bei der D arstellung einer G eschichte Israels”, in: D. R. Daniels et. al., orgs.,
Ernten was man sãt: FestshcriftfürKlaus Koch zuseinem 65. Geburtstag [Neukirchen-Vluyn: Neukirchener
Verlag, 1991], p. 553).
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 267

Se pressupusermos que a destruição da cidade não foi fruto de catástrofe natural,


mas de conquista, então o fato de que, ao invés de ser levado pelos conquistadores,
o cereal foi deixado ali e destruído tam bém é um detalhe sugestivo. D iante disso,
essas descobertas arqueológicas parecem se relacionar com a descrição bíblica dos
acontecimentos e das condições que envolveram a conquista de Jericó.187 A todos
esses dados pode-se acrescentar uma evidência interessante e acidental encontrada
no relato de Josué antes da tom ada de Jericó: a observação em Josué 3.16 de que,
a fim de que os israelitas atravessassem o rio Jordão para entrar em Canaã,

as águas que desciam pararam e ficaram am ontoadas, m uito longe, à altura de A dã,
cidade que está ju n to a Z aretã; e as águas que desciam ao m ar da A rabá, que é o m ar
Salgado, foram de to d o interrom pidas. E n tã o o povo passou b em em frente de Jericó.

Visto que interrupções no fluxo do Jordão na vizinhança de Adã têm sido confir­
madas várias vezes ao longo de séculos de registros históricos geológicos,188 esse
comentário incidental no texto bíblico atesta um conhecimento geográfico/geoló-
gico preciso da área e fornece uma explicação plausível de como pode ter ocorrido a
interrupção mencionada no livro de Josué.
Reunidos, todos esses fatores parecem reforçar a confiança na compatibilidade
dos dados arqueológicos e textuais referentes à queda de Jericó. O problema de
Jericó não se relaciona tanto com as descobertas materiais, mas com as datas atri­
buídas a essas descobertas. Entretanto, a datação das ruínas de Jericó tem mudado
várias vezes durante a história da escavação do sítio. Em tempos modernos, a mais
antiga escavação do sítio arqueológico, feita por um a expedição austro-germânica
dirigida por E rnst Sellin e Carl Watzinger, entre 1907 e 1911, encontrou provas
de um a notável estrutura de muros que eles dataram da Idade do Bronze M édia
(que, de acordo com cronologias-padrão, term inou c. 1550 a.C.). N a década de 30,
o arqueólogo britânico John Garstang retomou as escavações no sítio e encontrou
indícios de muros caídos feitos de tijolos de barro, os quais datou em cerca de 1400
a.C. e associou à conquista liderada por Josué. Não é de surpreender que a afirmação
de Garstang tenha causado bastante agitação. A pedido de Garstang, a arqueóloga
britânica Kathleen Kenyon conduziu, entre 1952 e 1958, as próprias escavações em
Jericó. Ela tam bém encontrou “tijolos vermelhos caídos”, os quais aparentemente

187Para detalhes de todos esses aspectos, veja “D id the Israelites conquest Jericho? A new look at
the archaeological evidence”, de B. G . W ood (B A R ev 16, n. 2 [1990], p. 44-58).
18SW ood cita o geofísico A m os Nur, da Stanford University, que declarou: “H oje o nom e de A dã é
Damiya, o local em que, em 1927, houve deslizam entos de terra que interrom peram o fluxo do Jordão.
Tais interrupções, com duração típica de um ou dois dias, tam bém foram registradas em 1906, 1834,
1546,1267 e 1160 d.C .” (ibidem, p. 54).
2 68 A H I S T Ó R I A D E ISR A E L , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O PERSA

haviam pertencido à complexa estrutura de muros, bem como vestígios de in­


cêndio e outros mais. No entanto, ela atribuiu novamente à cidade destruída a
data da Idade do Bronze M édio, deixando a Jericó da Idade do Bronze Recente
(o período de Josué), na m elhor das hipóteses, com um a ocupação m ínim a e, com
certeza, sem muro algum. Kenyon apresentou um relatório de suas conclusões em
várias publicações populares e a questão permaneceu assim; para muitos, continua
assim até hoje.189
Pergunte à maioria dos arqueólogos e também dos historiadores da Bíblia
envolvidos em seu trabalho se a arqueologia de Jericó inspira confiança nos relatos
bíblicos e verá que a maioria responderá com um simples “não”. Neste caso, porém,
um a resposta simples talvez não seja apropriada. Em 1990, B. G. W ood retomou de
modo efetivo a discussão da questão. M unido de seu conhecimento especializado
em cerâmica da Palestina antiga190 e com acesso aos relatórios finais de escavação
publicados após o falecimento de Kenyon,191W ood fez uma defesa notável em favor
da reconsideração da data dos vestígios de Jericó. O ponto central do raciocínio de
W ood é sua observação de que aparentemente a data da Idade do Bronze M édia
atribuída por Kenyon à destruição de Jericó (estrato IV da cidade) se baseia no
fato de ela não haver encontrado ali um tipo de cerâmica associado ao período do
Bronze Recente.192Argumentos com base no que não foi encontrado nunca chegam
a ser particularmente convincentes, em especial quando se considera que só uma
porcentagem bem pequena da área total da maioria dos sítios arqueológicos é de
fato escavada. Jericó não é exceção. Além do mais, não parece razoável que se es­
pere encontrar o tipo de cerâmica que Kenyon procurava (i.e., cerâmica bicolorida
im portada de Chipre) nas áreas por ela escavadas, pois elas teriam sido as mais
pobres da cidade. Kenyon descreve, aliás, a própria cidade como “um lugar um pouco
atrasado, longe do contato com regiões mais ricas servidas pela estrada litorânea”,193
de modo que é possível que nesse caso não seja significativa a ausência de um tipo
específico de cerâmica im portada que, em outros lugares, serve de indicador da

189Para análise mais aprofundada e literatura pertinente, veja ibidem , esp. p. 47-9.
190W ood escreveu um a tese de doutorado sobre o assunto: “Palestinian pottery o f the L ate Bronze
age: an investigation o f the term inal LB IIB phase” (tese de P h.D ., University o f Toronto, 1985). Um a
versão am pliada de um a das partes da tese de W oods foi publicada com o título The sociology o f pottery in
ancient Palestine: the ceramic industry and the diffmion o f ceramic style in the Bronze and IronAges, JS O T S
103; JS O T /A S O R M onographs 4 (Sheffield: JSO T , 1990).
191 K. M . Kenyon; T. A. H olland, Excavations at Jericho (London: British School o f Archaeology
in Jerusalem, 1981-1983), vols. 3-5.
192“D id the Israelites conquer Jericho”, p. 50.
1,3“Jericho”, in: D . W in to n Thomas, o r g Archaeology and Old Testament study (Oxford: Clarendon
Press, 1967), p. 271.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 269

Idade do Bronze Recente. Todavia, W ood descobriu, em relatórios publicados sobre


a escavação de Garstang, que havia alguma amostra de cerâmica que, a princípio,
parecia do tipo que Kenyon estava procurando.194 Testes subsequentes das amos­
tras de cerâmica bicolorida obtidas por Garstang revelaram que eram de fabricação
local,195 mas ainda assim elas podem atestar familiaridade com o “objeto verdadeiro”
do qual são um a imitação.
Deixando de lado a questão da cerâmica bicolorida importada, W ood insiste
que “o método básico de datação deve ser um a análise minuciosa da cerâmica local',
o que “nunca foi feito”.196 Com sua formação em cerâmica cananeia da Idade do
Bronze Recente, W ood se dedica a essa análise (embora seu estudo detalhado ainda
não tenha sido publicado). N um a tréplica a P. Bienkowski, que procura refutar a
tese de W ood,197 este apresenta um a avaliação sucinta de “um a seleção de formas
do Bronze Recente I encontrada na escavação feita por Kenyon”. Ele ressalta oito
tipos diferentes de cerâmica que se pode hoje — mas não na época de Kenyon —
demonstrar que são característicos do período do Bronze Recente.198
Ao argumento baseado na cerâmica, W ood acrescenta outros que dizem res­
peito à estratigrafia, à evidência de escaravelhos e à datação por radiocarbono.199
Vistos isoladamente, nenhum destes três últimos dados é “suficiente para levar a
um a revisão da data de Kenyon. M as, em conjunto, constituem um a argumentação
muito forte a favor da redução da data proposta por Kenyon”, fazendo com que a
últim a grande destruição de Jericó (estrato IV da cidade) esteja mais em conformi­
dade com a avaliação original de Garstang.200
Depois do impacto inicial, o questionamento feito por W ood não conseguiu
grande aceitação no meio acadêmico, embora muitos observadores reconheçam a força
de sua contestação.201 Ê possível que não tenha tido grande sucesso devido, em parte,

194Veja a análise feita por W ood em “D id the Israelites conquer Jericho”, p. 52.
195Inform ação baseada num a conversa pessoal com W ood.
1,6U m argum ento que W ood apresenta em sua resposta ao artigo de P. Bienkowski, “Jericho was
destroyed in the M iddle Bronze Age, not the Late Bronze A ge”, B A R ev 16, n. 5 (1990), p. 45-6,69; veja
B. G . W o o d ,“D ating Jerichos destruction: Bienkowski is w rong on ali counts”, B A R ev 16, n. 5 (1990),
p. 45-69, citação na p. 47).
I97Veja a nota anterior.
198“D ating Jerichos destruction”, p. 47-8.
I99Veja W ood, “D id the Israelites conquer Jericho”, p. 52-3, e tam bém a análise adicional que ele
faz em “D ating Jerichos destruction”,p. 49.
200“D ating Jerichos destruction”, p. 47.
201E.g., J. K. Hoffmeier, Israel in Egypt: the evidence fo r the authenticity o f the Exodus tradition
(Oxford: O xford Universitv Press, 1997), p. 7; H ow ard, Joshua, p. 178; W altke, “The date o f the
conquest”, p. 192; J. L. Sheler, Is the Bible true? H ow modem debates and discoveries affirm the essence o f the
Scriptures (N ew York: H arperSanFrancisco, 1990), p. 90-1.
2 70 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA

ao adiamento da publicação de seu estudo acadêmico mais detalhado. Entretanto, é


comum os estudiosos receberem hesitantemente teorias novas, em particular quando a
aceitação parece exigir bastante reconsideração e revisão das teorias existentes. Alguns
também podem ter certa reserva em abrir mão de um dos “exemplos evidentes” de que
a arqueologia aparentemente se choca com o quadro bíblico.
A esta altura, conclusões seguras são prematuras, de modo que a melhor
abordagem é permanecer aberto e atento. Não seria sábio supor que cada detalhe
dos argumentos de W ood em favor de um a correspondência entre a arqueologia de
Jericó e a descrição bíblica da conquista da cidade subsistirá a um a análise minuciosa,
mas é um a atitude obscurantista simplesmente ignorar seus argumentos. Ademais,
até que os argumentos de W ood sejam plenamente divulgados e avaliados,202
é irresponsável os estudiosos continuarem citando Jericó como exemplo óbvio de
como a arqueologia demonstra que a Bíblia não é historicamente confiável. Em um
livro lançado no mesmo ano que o estudo de W ood (portanto, ele não considerou
esse estudo), A m ihai M azar resumiu a situação de Jericó da seguinte maneira:

E m Jericó não foram encontradas quaisquer fortificações do período do B ronze Recente;


isso foi interpretado com o prova contra o valor histórico da narrativa do livro de Josué.
N o entanto, as descobertas de Jericó m ostram que ali houve u m a povoação durante a
Idade do B ronze R ecente, em bora a m aior p arte de suas ruínas ten h a sofrido erosão ou
sido rem ovida pela ação hum ana. Talvez, com o acontece em outros sítios arqueológicos,
as enorm es fortificações do período do B ronze M éd io ten h am sido reutilizadas na Idade
do B ronze Recente. A pós haver existido ali u m a povoação no período do B ronze Recente,
durante a Idade do Ferro I houve u m a lacuna na ocupação de Jericó. D essa m aneira, no
caso de Jericó, os dados arqueológicos não podem servir de prova decisiva para negar que,
no que diz respeito à conquista dessa cidade, haja um núcleo histórico no livro de Josué.203

Ai

A maioria dos estudiosos atuais acompanham Albright na identificação da antiga


Ai com a m oderna Khirbet et-Tell — identificação que depende da suposição de
A lbright de que Beitin é o lugar da Betei bíblica. Supondo por um instante que as
duas cidades bíblicas foram identificadas corretamente, no caso de Ai encontramos
um a lacuna de ocupação ainda mais problemática do que aquela que, para muitos
estudiosos, tom a confusa a questão de Jericó:

202Já mencionam os o questionam ento feito por Bienkowski e a resposta de W ood. E m nossa
opinião, os argumentos de W ood são melhores.
203A. M azar, Archaeology o f the land o f the Bible: 10,000-586 B .C .E (N ew York: Doubleday, 1990),
p. 331 [edição em português: Arqueologia na terra da Bíblia 10000-586 a.C. (São Paulo: Paulinas,2003)].
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 271

A i, que em u m consenso razo av elm en te am plo está situ ad a nas ruínas de et-Tell,
localizadas p e rto de B e itin (que m u ito s acred itam ser a cidade que su b stitu iu a B etei
bíblica), apresen to u o u tro p ro b lem a, pois o local esteve deso cu p ad o e n tre ap ro x im a­
d a m en te 2400 a.C . (q u an d o a cidade foi c o n q u istad a n a Id a d e do B ro n ze A n tig a ) e
a fundação da aldeia de cu rta existência no século 12 a .C . A té agora as ten tativ as de
en co n trar u m lu g ar alternativo que m o stre u m registro arqueológico m ais satisfatório
não estão te n d o sucesso.204

Conforme observado por Isserlin, parece que et-Tell não foi ocupada durante o pe­
ríodo aproximado de 2400 e 1200 a.C.205 Sem dúvida isso cria bastante dificuldade
para a narrativa bíblica acerca da captura e destruição de Ai, a menos que haja algo
além do que é sugerido no relato bíblico em uma primeira leitura. Observamos, por
exemplo, que, em um determinado ponto da descrição da batalha, os homens de Betei
se juntam aos de A para lutar contra Israel (Js 8.17). Além dessa menção a Betei, a
descrição não faz nenhuma outra, embora em Josué 12 o rei de Betei esteja com o de
A na lista de reis cananeus vencidos (v. 9,16). W. F. Albright levantou a hipótese de
que a luta tenha sido contra Betei, mas por motivos etiológicos — a saber, explicar
as proeminentes “ruínas” (um dos vários e possíveis sentidos do termo “A i” e também
de “et-Tell”) — a narrativa mudou seu foco para Ai.206 Concordando ou não com a
“forçada” teoria etiológica de Albright207, o fato de o relato mencionar A de passagem
talvez aponte para uma situação mais complexa do que somente o conflito Israel versus
A . A n d a assim, qualquer que seja a data atribuída à conquista liderada por Josué, a
aparente não ocupação de A nesse período cria dificuldades. A guns estudiosos ten­
taram solucionar o problema pressupondo que os procurados vestígios de ocupação
do lugar sofreram erosão durante o longo período em que a cidade permaneceu em
ruínas (cf.Js 8.28, “até o dia de hoje”) ou então meramente continuam soterrados nos
vários hectares que nunca foram escavados no sítio.208 Outros estudiosos pressupõem
que o relato bíblico simplesmente esteja errado. Aliás, para J. A. Callaway o conflito é
tão sério a ponto de ser necessário “uma revisão da avaliação que fazemos da Bíblia”.209

2Mlsserlin, The Israelites, p. 57.


205J. A. Callaway, “A i (Place)”, in: A B D , vol. 1, p. 125-30; os resultados da escavação aparecem em
um diagrama na p. 127.
206“The Kyle M em orial excavation at Bethel”, B A SO R 56 (1936), p. 2-15. Cf. W right, Biblical
archaeology, p. 80-1.
207Veja Hoffmeier, Israel in Egypt, p. 7.
208Para um a planta com indicação das áreas escavadas no sítio arqueológico de et-Tell, veja
Callaway, “A i (Place)”, p. 128.
209“A i (et-Tell): Problem site for biblical archaeologists”, in: L. G. Perdue; L. E. Toombs; G. L.
Johnson orgs .Archaeology anã biblical interpretation: essays in memory ofD . Glenn Rose (Atlanta: John
Knox, 1987), p. 97.
272 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO A T É O P E R Í O D O PER SA

Entretanto, antes que se justifique essa “revisão”, devemos investigar se et-TeU


e Beitin são mesmo a localização correta de Ai e Betei, pois não há um a segurança
muito grande nessas identificações, o que se depreende das expressões cuidadosas
utilizadas por Isserlin e citadas anteriorm ente (“consenso razoavelmente amplo”
e “muitos acreditam que”). A et-Tell de A lbright não é a única et-Tell na Síria-
-Palestina,210 o que enfraquece muito a defesa de A lbright da identificação de Ai
e et-Tell com base apenas no fato de que ambos os nomes parecem significar algo
semelhante a “ruína”. O fato é que nunca foi muito grande a confiança na identi­
ficação dos sítios arqueológicos de Ai e Betei. Por exemplo, por diversos motivos
e com diversas sugestões alternativas, Grintz, Kitchen, Luria, Livingston, Bimson
e outros211 questionam essa identificação. Até o momento, nenhum a das sugestões
alternativas para Ai conquistou muitos seguidores, mas não se pode ignorar a tese
de Livingston de que Betei deve ser identificada com a moderna Bireh e não com
Beitin.212 Se Livingston estiver certo, então está reaberta a busca pela Ai bíblica,
sendo possível considerar outros sítios. Aliás, várias escavações de possíveis sítios
foram ou estão sendo realizadas.213
Considerando os dados disponíveis sobre Ai, surgem, a princípio, várias pos­
sibilidades: pode ter ocorrido um a identificação errada do sítio arqueológico;
se et-Tell é a identificação correta, as descobertas arqueológicas podem não ser
representativas das áreas ainda não escavadas do sítio; pode ter havido até ago­
ra um a leitura errônea dos relatos bíblicos; ou os relatos bíblicos podem estar
simplesmente errados. Essa situação de incerteza está longe de recom endar con­
clusões apressadas. Ao contrário, é um convite à cautela e a um a suspensão do
veredito até que mais dados venham a lume. Refletindo sobre a diversidade de
opiniões vigentes, J. M . M iller faz um a sábia advertência contra a tendência de se
basear demasiadam ente em dados arqueológicos escassos: “O fato de todas essas
ideias tão distintas sobre a origem israelita afirmarem ter o apoio da arqueologia
mostra, em m inha opinião, que os dados arqueológicos sobre esse assunto são
ambíguos ou basicamente neutros”.214 Em termos mais gerais, M iller tam bém

210Veja H ow ard,Joshua, p. 179.


211J. M . G rintz, ‘“A i w hich is beside B eth A verí: a reexamination o f the identity o f A i”, Bib 42
(1961]), p. 201-16; K. A. Kitchen, Ancient Orient and Old Testament (Chicago: InterVarsity Press,
1966), p. 63-4; B. Z. Luria, “The location o f A i [H ebrew ]”, Beth M ikra 35 (1989-1990), p. 197-201;
D. Livingston, “Further consideration on the location o f Bethel at el-Bireh”, PE Q 126 (1994), p. 154-9;
Bimson, “O ld Testam ent history and sociology”, p. 139.
212Para um a bibliografia do debate, veja H ow ard, Joshua, p. 180, nota 40.
213Livingston dirigiu escavações em K hirbet Nisya e, mais recentem ente, W ood tem escavado em
K hirbet el-M aqatir; para um a bibliografia, veja H ow ard, Joshua, p. 180, notas 38 e 39.
214“01d Testam ent history and archaeology”, B A 50 (1987), p. 55-63, citação na p. 60.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 273

lem bra que, embora a arqueologia “seja um a boa fonte para esclarecer a cultura
material do passado, dados de artefatos são fontes bem ineficientes de informação
sobre pessoas e acontecimentos específicos”.215

H azor

Enquanto a correta identificação do sítio da antiga Ai continua sendo um tema em


aberto, hoje a identificação de H azor com Tell el-Qedah, proposta pela primeira vez
em 1875 por J. R. Porter, é considerada praticamente inquestionável.216 Com área
total de aproximadamente 85 hectares (850 mil m 2), compreendendo uma cidade
alta com cerca de 12 hectares e um a cidade baixa com cerca de 73 hectares, é bem
possível que, na sua época, H azor tenha sido a maior cidade da Síria-Palestina,217
o que está em conformidade com a descrição feita na Bíblia de que “H azor havia
sido a capital de todos esses reinos” (Js 11.10) e também com sua freqüente menção
em textos extrabíblicos.218 Estimativas sobre a população do local durante a Idade
do Bronze Recente indicam um número de pelo menos vinte mil pessoas. Portanto,
há um a compatibilidade geral entre os dados arqueológicos e a descrição bíblica
da importância de Hazor. Mas o que dizer dos detalhes? Hazor, junto com Ai e
Jericó, integra a lista de cidades que o texto bíblico afirma explicitamente que Josué
incendiou (Js 11.11,13). Enquanto os outros dois sítios arqueológicos continuam
controversos, o de H azor é um pouco menos problemático, pois não há nenhum a
dúvida de que um grande incêndio a destruiu na Idade do Bronze Recente — na
verdade, ela foi destruída várias vezes por incêndios, inclusive antes desse período,
na Idade do Bronze M édio. Contudo, parece que a destruição derradeira da cidade,
durante o Bronze Recente, foi particularmente impressionante. Nas palavras do
atual diretor de escavações, A m non Ben-Tor:

U m violento incêndio m arcou o fim da H a z o r cananeia. P or todo o sítio u m a espessa


cam ada de cinzas e m adeira parcialm ente queim ada — em alguns lugares com cerca de
90 cm de espessura — confirm a a intensidade das cham as na cidade do n o rte da Galileia.
D en tro dos m uros do palácio de H azo r, o fogo foi especialm ente intenso. A q u an ­
tidade incom um de m adeira usada na construção do prédio e a grande q u an tid ad e de
óleo arm azenado em im ensos p ith o i (jarros de arm azenam ento) espalhados p o r to d o o
palácio form aram um a com binação fatal — criando u m calor extrem o com tem peraturas

215Ibidem , p. 59.
216Veja W . G . Dever, “Q edah, Tell el-”, in: A B D , vol. 5, p. 578-81.
217Ibidem , p. 578-9.
218H azor é mencionada, e.g., nos textos execratórios egípcios do século 19, nas cartas de M ari
(século 18), nas cartas de A m arna (século 14) e assim por diante.
274 A H I S T Ó R I A D E ISR A E L , D E A B R AÃO A T É O P E R Í O D O PER SA

superiores a 1288 °C. Sob esse calor intenso, as paredes de tijolo de barro vitriíicaram , as
placas de basalto trin caram e os utensílios de argila derreteram .
Q u e m quer que te n h a incendiado a cidade tam b ém destru iu d eliberadam ente as
estátuas do palácio. N o m eio das cinzas, en tre as estátuas cananeias com form a hu m an a,
descobrim os a m aior já enco n trad a em Israel. E sculpida n u m bloco de basalto que deve
te r pesado m ais de u m a to nelada, a estátu a de cerca de 90 cm de altura foi desp ed a­
çada em aproxim adam ente cem fragm entos espalhados em u m raio de cerca de 1,8 m .
A cabeça e as m ãos dessa estátua e de várias outras estavam faltando, ten d o sido ap aren ­
tem en te decepadas pelos conquistadores da cidade.
Q u e m m utilo u as estátuas de H azo r? Q u e m incen d io u o palácio? Q u e m d estruiu
essa rica cidade cananeia?219

Q uem , de fato, fez isso? Yigael Yadin, que entre 1955 e 1958 e entre 1968 e
1972 dirigiu a única outra escavação de grande porte no local, estava convencido
de que a destruição colossal que deu fim à H azor do período do Bronze Recente
foi obra de Josué e dos israelitas invasores e, em consonância com sua aceitação de
um a conquista no século 13, ele atribuiu à destruição a data aproximada de 1230
a.C. Para Ben-Tor, atual diretor de escavações, à luz dos dados disponíveis, a datação
feita por Yadin revela “confiança excessiva”; ele se dispõe a afirmar apenas que a
destruição deve ter ocorrido no século 14 ou 13 a.C.220 Prevê, contudo, que estudos
adicionais podem confirmar a data do século 13.
Ben-Tor tam bém tende a atribuir a destruição aos israelitas, em bora manifes­
te um a opinião mais cautelosa do que a de Yadin. As estátuas cananeias e egípcias
mutiladas descobertas em meio aos destroços da destruição final de H azor são
especialmente significativas. Q uem poderia ter sido responsável por essas m u­
tilações e pela destruição final da H azor do Bronze Recente? O raciocínio de
Ben-Tor é o seguinte:

N a época só quatro grupos p o deriam te r d estruído H a z o r: 1) u m dos povos do mar,


com o os filisteus, 2) u m a cidade cananeia rival, 3) os egípcios; 4) os israelitas. C o n fo rm e
observado anterio rm en te, as estátuas m utiladas eram egípcias e cananeias. E m u ito
im provável que saqueadores egípcios e cananeus destruíssem estátuas que representavam
os próprios reis e deuses. A lém disso, q u anto à possibilidade de o u tra cidade cananeia
haver destruído H azor, a B íblia nos diz que esta era “a capital de todos esses reinos”, e
a arqueologia co rro b o ra a afirm ação in d ic an d o que a cidade era sim p lesm en te rica e
p oderosa dem ais p ara ser d errotada p o r u m a cidade cananeia rival de m en o r im p o rtân ­
cia. A ssim , a possibilidade de te r sido os egípcios e os cananeus é descartada.

219“Excavating H azor: part I I ”, p. 22.


220Ibidem , p. 36.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 275

N o que diz respeito aos povos do mar, H a z o r está localizada m u ito n o in te rio r para
ser de algum interesse p ara os com erciantes m arítim os. A dem ais, en tre as centenas de
cacos de recipientes de b arro recuperados em H azor, não existe u m único sequer que
possa ser atribuído à conhecida coleção de recipientes usados pelos povos do mar.
Isso nos deixa som ente com os israelitas.221

Ben-Tor evita mencionar Josué,preferindo citar “o ‘Israel’da Esteia de M erneptá”


como “o candidato mais provável para a destruição violenta da H azor cananeia”.222
Pressupondo um a data no século 13 para a chegada de Israel ao local, talvez
seja razoável associar essa destruição a Josué. M as aqui nos deparamos com uma
dificuldade, ainda que, talvez, não seja insuperável. Ao que parece, com base nos
resultados de escavações feitas até agora, depois da destruição derradeira ocorrida
na Idade do Bronze Recente (século 13?), o local não passou por uma reconstrução
significativa até os dias de Salomão (décimo século). O que fazer então com a afir­
mação de Juizes 4.2,3 de que, antes de ser libertado por Débora e Baraque, Israel
sofreu durante vinte anos nas mãos de “Jabim, rei de Canaã, que reinava em H azor”?
Como essa opressão foi possível se, após a destruição de H azor por Josué e até a
época de Salomão, a cidade não passou por um a reconstrução significativa?
A resposta dos estudiosos diante dessa tensão é variada. Yadin simplesmente põe
Juizes 4— 5 de lado, dizendo que não merece crédito. Aharoni inverte a ordem dos
acontecimentos, posicionando a vitória de Baraque antes da de Josué. Block levanta
a possibilidade de que talvez “pessoas da dinastia de H azor” tenham escapado de
Josué e voltado ao lugar em ruínas, restabelecendo algum nível de controle, embora
de natureza tão curta que não deixou nenhum vestígio arqueológico.223 Hess obser­
va que, ao que parece, depois da principal destruição ocorrida no Bronze Recente
(estrato 13), o nível seguinte de ocupação (estrato 12) chegou a cobrir “todo o sítio
arqueológico”, embora “sem os muros da cidade e sem grandes prédios públicos”.224
Assim, apesar de não haver passado por uma reconstrução e fortificação significativa,
o lugar foi de algum modo reocupado. Além do mais, os textos bíblicos não fazem,
na verdade, qualquer referência a Baraque ter destruído ou incendiado Hazor. Lemos
apenas que Israel foi ficando cada vez mais forte contra Jabim, rei de Canaã, até que
ele foi destruído (Jz 4.24). Como ocorre na lista de Josué 12 que relaciona os reis
das Cidades-Estado derrotados, é possível que no caso de Jabim o texto não indique
a destruição da cidade, mas apenas de seu representante. Assim, a arqueologia de
H azor parece ser razoavelmente compatível com uma conquista no século 13.

221Ibidem , p. 38.
222Ibidem , p. 38-9.
123Judges, p. 189.
22AJoshua, p. 214, nota 1.
2 76 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA

Acaso um a conquista no final do século 15 também seria possível da perspec­


tiva arqueológica? Alguns diriam que sim ou que essa data seria até mesmo melhor.
Bimson, por exemplo, oferece um cuidadoso resumo da situação da arqueologia de
H azor em 1978 e observa que “a partir do final do período do Bronze M édio II C até
o fim da Idade do Bronze Recente, H azor foi destruída nada menos do que quatro
vezes”.22SA única questão é se alguma dessas destruições pode ser atribuída a Josué e
aos israelitas e, em caso positivo, qual delas. Em bora Yadin tenha optado pela última,
Bimson suspeita que “um a suposta data tardia do Êxodo tenha influenciado subje­
tivamente” nessa escolha.226 Conforme sua tentativa mais ampla de aproximar essa
data do final da Idade do Bronze M édio em Canaã,227 Bimson prefere indicar algum
momento no fim do século 15 para a violenta conflagração que destruiu a Hazor
do Bronze M édio II C e creditar essa destruição a Josué.228 Ele observa que, em
1957, o próprio Yadin levantou a possibilidade de a destruição da H azor do Bronze
M édio ter ocorrido nas mãos de Tutmósis III ou Am enhotep II, o que estabeleceria
essa destruição na última metade do século 15.229 N a verdade, um ano depois, Yadin
estabeleceu o fim da cidade do Bronze M édio em aproximadamente 1400 a.C.230
No entanto, logo depois mudou de ideia e adiantou a data para o século 16 por
motivos que Bimson considerou inadequados.231 Bimson faz o seguinte resumo da
própria posição: “A cidade atacada e destruída pelas forças de Josué foi na verdade a
cidade da fase final da Idade do Bronze Média. Depois disso H azor foi reconstruída
(talvez após um período de abandono [...]) e, embora tendo menos importância do
que na Idade do Bronze M édia [...], continuou florescendo até o século 13, quan­
do finalmente caiu diante da pressão israelita que se seguiu à derrota das tropas de
Sísera”.232 Em apoio a essa conclusão, Bimson defende que notas cronológicas em
passagens como Juizes 2.10; 3.8,11,14,30 dão a entender que talvez cinco ou seis
gerações ou um período m enor do que dois séculos se passaram entre a derrota de
H azor infligida por Josué e a batalha liderada por Débora e Baraque. Se a vitória de
Josué ocorreu nas décadas finais do século 15, é de se esperar que a data de Débora

225Redating, p. 188-9.
22(,Ibidem , p. 189.
22/E m bora m ereça séria consideração, a tese de Bimson não alcançou m uitos seguidores que escre­
vam em defesa dessa posição. E possível que estudiosos simpáticos à ideia relutem em receber ataques
verbais, como os que B. H alpern faz em “Radical exodus redating fatally flawed”, B A R ev 13, n. 6 (1987),
p. 56-61.
22%Redating, p. 194.
229“Further light on biblical H azo r”, B A 20 (1957), p. 34-47, citação na p. 44.
230“'Hie third season o f excavating at H azo r”, BA 21 (1958), p. 30-47, citação na p. 31.
231Redating, p. 193.
232Ibidem , p. 200.
O ESTABELECIM ENTO NA TERRA 277

e Baraque tenha sido a segunda metade do século 13, ligando, desse modo, aquela
vitória à destruição da cidade do Bronze M édio e permitindo um a leitura simples e
direta da nota existente em Juizes 4.24, segundo a qual “o poder dos israelitas sobre
Jabim, rei de Canaã, tornou-se cada vez maior, até que eles o destruíram”.233
Nossa análise de H azor poderia se estender um pouco mais, mas já vimos talvez
o suficiente para concluir que é possível defender razoavelmente vários cenários,
embora nenhum deles esteja totalmente resolvido.234 Por exemplo, será que, em uma
primeira análise, a presença de estátuas cananeias e egípcias na H azor do século
13 e sua mutilação aparentemente feita por israelitas não geram problemas para a
concepção de que os israelitas comandados por Josué haviam anteriormente con­
quistado e destruído a cidade? A resposta elementar a tal questionamento é que os
ventos e os compromissos políticos oscilam, especialmente no transcorrer de longos
períodos. Por exemplo, depois de um período cada vez m enor de controle egípcio,
é possível que Seti I (c. 1294-1279 a.C.) tenha conseguido restabelecer a soberania
sobre H azor235 (o que talvez tenha possibilitado um a ótim a oportunidade para
reerguer estátuas egípcias ali).
As peças do quebra-cabeça podem ser encaixadas de várias maneiras e no
momento nenhum a é obviamente a correta. A esta altura o melhor é não ser de­
masiadamente detalhista ou dogmático quanto a qualquer reconstrução específica.
Podemos esperar que outras escavações e interpretações esclareçam de forma mais
completa a potencial relação entre texto e artefato, mas, no presente, tudo o que
podemos dizer é que a arqueologia de H azor não oferece um a confirmação óbvia
do quadro bíblico, tampouco o contradiz.

Laís/D ã

D e acordo com Juizes 18, o povo “despreocupado e tranqüilo” de Laís (v. 7) caiu nas
mãos israelitas não no transcorrer da conquista, mas algum tempo depois, quando
um contingente de danitas se dirigiu rumo ao norte em busca de uma alternativa
para o território que lhes havia sido designado, o qual consideravam difícil de
ocupar. Espremidos entre Efraim, ao norte, e Judá, ao sul, e limitados por Benjamim
a leste e o mar M editerrâneo a oeste (cf. Js 19.40-46), os danitas descobriram que

233Ibidem , p. 199.
234E m tais questões é difícil ser exato. Por exemplo, B. H alpern, que é codiretor da escavação em
M egido, observa que em sítios como M egido e H azor “é possível determ inar apenas aqueles que des­
truíram os últim os estratos; no caso, foram os assírios do final do oitavo século” (D a v id s secret demons:
Messiah, murderer, traitor, king [G rand Rapids: Eerdm ans, 2001], p. 473).
235Veja A. F. Rainey, “H a zo r”, in: G . W . Bromiley, org., The International standard Bible encyclopedia
(G rand Rapids: Eerdm ans, 1982), vol. 2, p. 637.
278 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O P ER S A

não conseguiriam derrotar os amorreus (e talvez os filisteus) na planície (Js 19.47).


Depois de serem confinados à região m ontanhosa (Jz 1.34), enviaram por fim um
grupo de reconhecimento para o norte em busca de melhores pastagens (Jz 18.2).
Os espiões foram acompanhados por seiscentos guerreiros, que conquistaram e
mataram o povo de Laís, incendiaram totalmente a cidade (18.27) e depois a re­
construíram, m udando seu nome para D ã e passando a habitar nela (18.28,29).
Esse é, em resumo, o quadro bíblico de Laís (Dã) no período dos juizes. D e que
maneira esse quadro se harmoniza com os resultados das escavações arqueológicas?
Com o ocorre com vários outros sítios arqueológicos ligados à Bíblia, a identifica­
ção do local foi feita pela primeira vez em 1838 por E. Robinson e, ao contrário
de algumas de suas identificações, não existe nenhum motivo para duvidar dela.
Robinson situou Laís na m oderna Tell el-Qadi, uma identificação que foi corro­
borada por vários achados arqueológicos236 e, o que é mais impressionante, pela
descoberta de uma inscrição em grego e aramaico (provavelmente do século 2 a.C.)
que diz: “Ao deus que está em D ã”.23/ Tell el-Qadi, mais conhecida hoje como Tel
D an, está situada no extremo norte de Israel, ao pé do m onte Herm om , “no norte
da bacia fluvial de Huleh, uma bifurcação im portante que vai da região costeira do
M editerrâneo até Damasco e Síria”,238próxima de fontes perenes que constituem
uma das principais nascentes do rio Jordão. A primeira menção bíblica a Laís está
em Gênesis 14.14, passagem em que é chamada por seu nome posterior, Dã. Fora
da Bíblia, referências a Laís (nas quais com frequência aparece junto com Hazor,
situada mais ao sul) são encontradas nos textos de execração do século 18, em um
dos textos de M ari239 e em um a lista de áreas sob a influência de Tutmósis III.240
A escavação de Tel D an começou em 1966 sob a direção de A. Biran e continua
há mais de trinta anos. Descobertas notáveis têm sido feitas no sítio, um a das quais,
a Inscrição de Tel D an, é mencionada no próximo capítulo. No momento, nosso
interesse está na migração danita e no suposto incêndio de Laís. D e acordo com
Biran, embora em Laís/D ã boa parte da cultura material permaneceu a mesma
durante a transição do Bronze Recente para a Idade do Ferro,

236E m “D an (place)”, A . Biran, que dedicou boa parte de sua vida à escavação de L aís/D ã, oferece
um a descrição sucinta da arqueologia desse sítio (A B D , vol. 2, p. 12-7); cf. tam bém D . W . M anor, “L aish
(Place)”, in: A B D , vol. 4, p. 130-1.
237A . Biran, “To the god w ho is in D an”, in: ibidem , org., Temples and high places in biblical times
(Jerusalem: the Nelson G lueck School o f Biblical Archaeology o f H ebrew U nion College—Jewish
Institute ofR eligion [hebraico], 1981), p. 142-51.
238M anor, “Laish”, p. 130.
23,A . M alam at, “Syro-Palestinian destinations in a M ari T in inventory”, I E J 2 1 (1971), p. 31-8.
240Veja A N E T , p. 242.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 279

...um núm ero relativam ente grande de covas, algum as revestidas com pedras, presente
em todas as áreas escavadas indica a existência de u m novo estilo de vida. A s covas ou
silos lem bram construções sem elhantes às encontradas n a região m ontanhosa de Ju d á e
B enjam im , denom inadas “covas de estabelecim ento” e pertencentes ao período israelita.241

Biran também observa que no início da Idade do Ferro surgem os jarros “de boca
estreita”,242 o que se harmoniza bem com a conquista da cidade pelos israelitas. Há,
porém, vestígios de incêndio? Embora M anor afirme que “no sítio arqueológico não
se encontrou nesse horizonte de transição nenhum indício de destruição generalizada
por fogo”,243 Biran de fato menciona que “existem em um lugar ou outro indícios visí­
veis de incêndio, e em alguns pontos as covas foram construídas sobre uma camada de
seixos estéril”.244Tendo tomado D ã como “exemplo no exame da abordagem sintética
da pesquisa bíblica, histórica e arqueológica”, Biran conclui que, no que diz respeito
à migração danita descrita em Juizes 18, “não há nenhum motivo para duvidar da
historicidade do acontecimento ou da narrativa, ainda que a data dessa migração não
esteja de modo algum determinada”.245 Biran não está sozinho em sua posição de que
existem convergências entre a arqueologia de D ã e o relato bíblico da destruição de
Laís pelos danitas (Jz 18.27). Stager resume a mesma posição da seguinte forma:

E m suas escavações de Tel D a n , A v rah am B iran descobriu recentem ente indícios dessa
destruição [i.e., Jz 18.27], Sobre as ruínas de u m a p róspera cidade da Idade do B ronze
R ecente foi descoberto u m assentam ento consideravelm ente m ais pobre e rústico.
H av ia covas de arm azen am en to e u m a variedade de jarros de boca estreita usados com o
recipientes, m as n en h u m a ou quase n en h u m a cerâm ica filisteia pintada. A s tradições
bíblicas e os dados arqueológicos convergem tão b em que não p ode haver n en h u m a d ú ­
vida de que os danitas p erten ciam à confederação israelita e não à dos povos do m ar.246

Portanto, parece que no caso de Tel D an e da migração danita de Juizes 18


ocorre um dos “ajustes” menos problemáticos entre a arqueologia e a Bíblia. M esmo
aqui, porém, devemos ter o cuidado de não ir longe demais em nossas suposições,

241“D an”, in: Perdue; Toombs; Johnson, orgs., Archaeology and biblical interpretation, p. 101-11,
citação na p. 105.
242Ibidem .
243“Laish”, p. 131.
244“D an”, p. 106.
245Ibidem , p. 101 e 105-6 respectivamente.
246“Forging an identity”, p. 167. O comentário de Stager sobre os povos do m ar revela seu ceticis­
m o a respeito da ideia comum ente sugerida no meio acadêmico de que “os danitas não faziam parte de
Israel, mas, na verdade, eram m em bros de um a confederação de povos do m ar e devem ser identificados
com os danaans de H om ero e os denyen da inscrição de Ramessés I I I ” (ibidem).
280 A H I S T Ó R I A D E ISR A E L , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA

pois, conforme observado sabiamente por Biran, “a pesquisa arqueológica é de tal


natureza que frequentemente novas descobertas exigem considerável revisão das
conclusões anteriores”.247
Antes de encerrarmos o estudo sobre Dã, devemos mencionar outra correspon­
dência proposta por Biran. D e acordo com o relato bíblico, os guerreiros danitas a
caminho de Laís se apropriaram de um ídolo que havia sido feito para um homem
chamado M ica e, em sua jornada para o norte, levaram consigo esse ídolo e também
o sacerdote responsável por ele (Jz 18.17-20). Em 18.30,31, somos informados de
que, depois de conquistarem Laís e lhe mudarem o nome, “os filhos de D ã levantaram
para si aquela imagem de escultura, e Jônatas, filho de Gérson, o filho de Manassés,
ele e seus filhos foram sacerdotes da tribo dos danitas, até ao dia do cativeiro da terra.
Assim pois a imagem de escultura, que fizera Mica, estabeleceram para si, todos os
dias que a casa de Deus esteve em Silo” (ARC). Apesar de uma concepção equivo­
cada comum, o cativeiro mencionado no versículo 30 não tem qualquer relação com
o cativeiro assírio do final do oitavo século.248 Antes, o versículo 31 deixa claro que
a interrupção do sacerdócio em D ã coincidiu com o fim da permanência da casa de
Deus em Siló. Se, conforme a Bíblia e a arqueologia sugerem,249 os filisteus destruí­
ram Siló por volta de meados do século 11, talvez D ã tenha sofrido um a destruição
semelhante na mesma época. O que as descobertas arqueológicas de D ã sugerem?
Biran relata: “Em algum momento em meados do século 11 a.C., a cidade (estrato
V) foi destruída por uma conflagração violenta, o que é datado pelos vestígios de
cerâmica. Não temos condições de dizer quem provocou essa destruição”.250

Outros sítios arqueológicos importantes

Gibeão

Ainda que Gibeão — ao contrário de, por exemplo, Jericó, Ai ou Hazor — não
ocupe um papel tão central nos debates sobre o surgimento de Israel em Canaã,
essa cidade não é irrelevante. N a Bíblia, é mencionada pela primeira vez em Josué 9,
no relato sobre a astúcia gibeonita que levou Israel a estabelecer a primeira aliança

247“D an”, p. 104.


w E m Grace in the end: a study o f Deuteronomistic theology (G rand Rapids: Z ondervan, 1993),
J. G . McConviUe observa que, na verdade, nada existe no texto que indique essa associação específica:
“...a maneira mais natural de entender o cativeiro da terra’ [ARC] mencionado no v. 30 é relacionando-o
com sua queda [i.e., a queda de Siló], pois o contexto histórico desse acontecim ento é o dom ínio filisteu
antes da época de Saul” (p. 110).
249Veja a seguir a nossa análise de Siló.
2S0“D an”, p. 106.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 281

com um a cidade cananeia.251 M uitos estudiosos consideram problemática a refe­


rência a Gibeão na época de Josué porque os “arqueólogos não encontraram em
Gibeão nenhum a ruína que comprove a ocupação na Idade do Bronze Recente,
quando ocorrem as narrativas da conquista”.252 M iller e Hayes listam Gibeão junto
com “Arade (atual Tell Arad), Hesbom (Tell Hisban), Jericó (Tell es-Sultan) [e]
Ai (et-Tell)” na lista das “cidades da conquista” que “não apresentam nenhum ou
quase nenhum indício arqueológico de que estiveram ocupadas durante a Idade do
Bronze Recente”.253
A semelhança da cidade de Ai, analisada anteriormente, há dúvidas quanto à
identificação do sítio arqueológico das cidades bíblicas de Hesbom254 e de Arade255.
M as não se pode dizer o mesmo em relação à identificação de Gibeão com el-Jib. As
quatro temporadas de escavação que J. B. Pritchard realizou nesse local desenterraram
mais de trinta alças de jarro com o nome “Gibeão”gravado em escrita paleohebraica.256
Se, de um lado, a identificação do local não é incerta, por outro, a ausência de ocu­
pação em el-Jib no período do Bronze Recente é problemática. Não é de surpreender
que os estudiosos tenham citado essa evidência (ou, mais precisamente, a falta dela)
como algo que põe em xeque a descrição bíblica. No entanto, antes de irmos longe
demais nessa direção, devemos retornar à descrição que o próprio Pritchard faz do
que ele e sua equipe encontraram e do que não acharam. Por exemplo, ele realmente
descobriu evidências do que descreve como ocupação “cosmopolita” no período do
Bronze Recente, inclusive “uma ampla variedade de artefatos importados de lugares
tão distantes como o Egito, ao sul, e Chipre, a oeste”, além de túmulos do Bronze
Recente com vários objetos, sendo que, em um deles, havia um “escaravelho com o
nome de Am enhotep II, em hieróglifos” e, em outro, um “escaravelho de Tutmósis
III”.257 p ritchard ainda assinala que um registro de campanha militar de Am enhotep

251E bem provável que os gibeonitas e as cidades com as quais estavam associados (veja Js 9.17) não
fossem cananeus nativos, tendo m igrado do norte após o colapso do Im pério H itita (para um resumo
de dados onomásticos e arqueológicos, veja Hess, “E arly Israel”, p. 127). Sobre a possível identificação
dos heveus (a designação dos gibeonitas em Js 9.7) com os hurrianos não semitas, veja D . W . Baker,
“I Iivitcs”,y/BD, vol. 3, p. 233-4. Fora da Bíblia, a prim eira m enção a Gibeão é feita pelo faraó Sheshonq
I {A N ET, p. 242).
252P. M . A rnold, “G ibeon”, in: A B D , vol. 2, p. 1010.
2ílHistory, p. 72.
2!4Veja Chavalas; Adam thw aite, “Archaeological light”, p. 83; cf. Kitchen, “Egyptians and
H ebrew s”, p. 108.
255E.g., Y. Aharoni, The land o f the Bible: a historical geography, tradução para o inglês de A. F.
Rainey, ed. rev. e amp. (Philadelphia: W estm inster, 1979), p. 215-6.
256Para amostras de fotografias e desenhos, veja J. B. Pritchard, Gibeon: Where the sun stood still: the
discovery o f a biblical city (Princeton: Princeton University Press, 1962), p. 73.
257Ibidem , p. 156.
282 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO A T É O P E R Í O D O P E R S A

(Amenófis) II menciona a captura de “36.300 kharu, ou horeus, precisamente o


termo que a versão grega de Josué 9.7 emprega para se referir aos gibeonitas”.258
As observações de Pritchard também podemos acrescentar que Tutmósis III m en­
ciona que se encontrou com hurrianos (“hurru”) em uma coalizão que se reuniu
nas proximidades de Megido.259 Pritchard supôs que o encontro de Josué com os
gibeonitas tenha ocorrido no final do século 13 e, assim, logicamente inferiu que,
“visto que nessa época Gibeão é descrita como ‘um a grande cidade’, caso a tradição
preservada no livro de Josué seja fidedigna, seria de se esperar encontrar muros e casas
dessa cidade”. Ele manifestou sua decepção pelo fato de que “nas quatro temporadas
de escavação não veio a lume nenhum vestígio dessa cidade do fim do período do
Bronze Recente”.260 Contudo, enquanto muitos estudiosos se apegaram a essa ausên­
cia de vestígios como prova de que a descrição bíblica estava errada, Pritchard adotou
uma abordagem bem diferente. Observando, primeiro, que “dois túmulos desse pe­
ríodo ricamente adornados e descobertos, em 1960, a oeste das ruínas arqueológicas
parecem indicar que, em algum lugar das próprias ruínas, houve um assentamento
permanente”, e, depois, que “até o momento escavamos apenas uma fração da área
total”, Pritchard levantou a hipótese de que “as ruínas da ‘grande cidade’ da época de
Josué” poderiam muito bem estar “numa área ainda não escavada”.261

Siló

A história bíblica de Siló começa em Josué 18.1, passagem em que a cidade aparece
como o lugar em que se concluiu a distribuição dos territórios tribais (19.51). Ali, as
cidades de refugio foram designadas, e as cidades levíticas, especificadas (Js 20— 21).
Desse local as duas tribos e meia partem para voltar à sua herança na Transjordânia
(22.9). Ali também os israelitas se reúnem para guerrear, quando ouvem que as tribos
que haviam partido para a Transjordânia construíram um altar junto ao Jordão (22.12).
Siló se tornou o local de uma festa anual (Jz 21.19) e, por fim, a sede do sacerdócio
liderado por Eli (ISm 1.3 e passim), além do lugar em que a arca da aliança ficava
guardada (ISm 4.3; 14.3). De acordo com o Salmo 78 e Jeremias 7, Siló foi o primeiro
santuário central (“a tenda da sua morada [i.e., de Deus] entre os homens” [SI 78.10];
“onde primeiro fiz habitar o meu nome” [Jr 7.12]), mas se presume que foi destruída
ou pelo menos abandonada (Jr 7.14; 26.6,9) depois da batalha de Ebenézer (ISm 4).
Essa breve recapitulação apresenta o quadro bíblico. O que a arqueologia tem a dizer?

2S8Ibidem ; quanto ao texto, veja A N E T , p. 247.


m A N E T , p. 235.
2bQGibeon, p. 157.
261Ibidem , p. 157-8.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 283

A identificação de Siló com Khirbet Seilun, que fica no centro do território


efraimita, entre Siquém, ao norte, e Jerusalém, ao sul, parece segura, sendo que, de
acordo com I. Finkelstein, sua localização foi lembrada “ao longo da história”.262
O sítio foi escavado várias vezes desde a sondagem inicial em 1922.263 As escavações
mais recentes foram realizadas entre 1981 e 1984 sob a direção de I. Finkelstein.
Essas escavações descobriram que, após a destruição da cidade extremamente forti­
ficada do período do Bronze M édio, “a função de Siló na Idade do Bronze Recente
[...] se limitou a um lugar de adoração visitado por pessoas da região montanhosa
vizinha”.264 Para Finkelstein, isso está de acordo com um a crise demográfica geral
que caracterizou as áreas montanhosas de Canaã no período do Bronze Recente;
ele observa que “naquela época só uns trinta locais eram habitados”.265 A julgar
pelos vestígios de cerâmica, parece que a maior parte da atividade religiosa no local
ocorreu no Bronze Recente I, sendo que essa atividade se extinguiu aos poucos e
cessou “bem antes do fim da Idade do Bronze Recente”.266 Próximo ao início da
Idade do Ferro o local foi repovoado e, de acordo com Finkelstein, foi “o mais
destacado candidato a centro sagrado da população da região montanhosa, pois era
um antigo lugar de adoração que estava então abandonado e ficava em um a área
com população cananeia pequena e dispersa e onde havia um a elevada concentração
de territórios ‘israelitas’”.267
D e fato, na Idade do Ferro I, a concentração de localidades ao redor de Siló,
cuja área aproximada era de 12 mil m 2, era duas a três vezes mais densa do que
em outras regiões de Efraim , o que confirma a im portância do lugar. Finkelstein
levanta a possibilidade de que Siló tenha sido “basicamente um têmeno [recinto
sagrado] e não um a aldeia comum”.268 O ponto mais elevado do sítio arqueológico,
que deve ter sido o lugar do santuário, “sofreu m uita erosão e foi destruído pela
ocupação posterior”.269 Por fim, a cidade da Idade do Ferro foi destruída num a
“conflagração violenta”, que Finkelstein sugere que “provavelmente teria sido obra
dos filisteus na esteira da batalha de Ebenézer, em meados do século 11 a.C .”.270
Stager concorda com essa conclusão geral baseada em dados tanto arqueológicos
quanto bíblicos:

262“Seilun, K hirbet”, in: A B D , vol. 5, p. 1069-72, citação na p. 1069.


263Para um a breve história da escavação, veja ibidem , p. 1069.
264“The rise o f early Israel”, p. 23.
265Ibidem .
266Finkelstein, “Seilun”, p. 1071.
267Ibidem , p. 1072.
268Ibidem .
269Ibidem .
270Ibidem .
284 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E A BR AÃO A T É O P E R Í O D O P ER S A

Escavações recentes que Israel F in k elstein fez em Siló confirm aram a interpretação
dada p o r W . F. A lb rig h t aos resultados da expedição dinam arquesa realizada an terio r­
m ente. Siló (estrato V ) floresceu com o u m grande centro efraim ita n a p rim eira m etade
do século 11 a.C . P ara as tribos israelitas, seu tem p lo foi u m im p o rta n te local de p ere­
grinação anual no o utono, d u ran te a festa do vin h o (e do ano novo?). A destruição desse
santuário p o r volta de 1050 a.C . pelos filisteus repercutiu p o r séculos n a m em ória dos
israelitas (SI 78.60-64; J r 7.12).271

O testemunho bíblico e os atuais resultados da pesquisa arqueológica conver­


gem e apoiam a avaliação histórica feita por Stager de que “santuários surgiram
durante o período dos juizes em lugares centrais nas áreas montanhosas, como
Siquém e Siló”.272
Depois de abordar Siló nesta seção, na seguinte, passamos a examinar uma
descoberta interessante feita nas vizinhanças de Siquém. Escavações nesse sítio
revelaram “um santuário com um altar e um a pedra em pé (cf. Js 24.26,27) preser­
vados ao longo da Idade do Bronze Recente e no período dos juizes”. Conforme
observação feita por R. S . Hess, esse local pode fornecer “indícios do santuário
El-B erith (“EZ/deus da aliança”) mencionado em Juizes 9.46”.273 No entanto, a des­
coberta mais interessante (e controversa) é, de longe, a que foi feita no M onte Ebal,
ao lado de Siquém, onde, de acordo com a tradição bíblica, Josué “edificou um altar
ao S e n h o r Deus de Israel” (Js 8.30).

Monte Ebal

Enquanto o suposto local de adoração em Siló, ao que tudo indica, não sobreviveu à
ação do tempo, o lugar de adoração no M onte Ebal pode ter tido um a sorte melhor,
pelo menos de acordo com A. Zertal, que escavou o sítio arqueológico. Em um rela­
to fascinante de exploração e interpretação arqueológicas,274 Zertal descreve como,
no decorrer de um a análise da superfície da região, ele e sua equipe encontraram
ao acaso, no M onte Ebal, uma estrutura cuja identidade não era clara. Foi só na
terceira temporada de escavações que um a resposta começou a surgir. As primeiras
teorias sobre a natureza da estrutura principal, um retângulo de pedras não lavradas
que media cerca de sete metros por nove e chegava a uma altura de aproximada­
mente três metros, incluíam a ideia de que seria uma casa de fazenda ou talvez uma
torre de vigia, mas essas interpretações se deparavam com um problema após outro.

271“Forging an identity”, p. 170.


272Ibidem , p. ISO.
273“Shechem”, in: N ID O T T E , vol. 4, p. 1214.
274“H as Joshuas altar been found on M t. Ebal?”, B A R ev 11, n. 1 (1985), p. 26-43.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 285

Particularmente estranho era o fato de que, com a espessura de um metro e meio,


nas paredes da estrutura não havia nenhum a abertura ou entrada; a instalação era
apenas um retângulo que continha terra, cinzas, cerâmica quebrada do período do
Ferro I e ossos de animais. Um a análise posterior dos ossos revelaria que eram de
“novilhos, carneiros e bodes, além de cervos do campo”, e que esses ossos em sua
maioria haviam sido “queimados em fogo ao ar livre em temperaturas baixas (200 a
600 °C)”.27S Somente quando um arqueólogo visitante sugeriu a Zerval que consi­
derasse a hipótese de o “conteúdo” ser a solução para a interpretação é que surgiu, de
repente, a ideia de que a estrutura poderia ser um altar. Zertal e a equipe começaram
verificando descrições de altares na Bíblia (e.g., Ex 27.8) e na M ishná e ficaram
atônitos ao ver quão bem essas descrições correspondiam não apenas aos aspectos
básicos da estrutura, mas igualmente a seus aspectos particulares. Esses aspectos
incluíam aquilo que parecia ser um a rampa que levava ao alto da estrutura princi­
pal e uma borda estranha que cercava os três lados do “altar”. Zertal se convenceu
(e continua convencido) “sem qualquer sombra de dúvida de que nosso sítio
arqueológico é um centro cultuai”.276
Como se poderia prever, nem todos partilham da certeza de Zertal. Por exemplo,
A. Kempinski defende que a estrutura não é de m odo algum um altar, mas, con­
forme já havia sido sugerido, um a torre de vigia da Idade do Ferro.277 Contudo,
Zertal rapidamente contesta os argumentos de Kempinski278 e, quando se consi­
dera o conjunto de dados em sua totalidade, é difícil rejeitar a conclusão de que o
local se parece mais com uma instalação cultuai do que com qualquer outra coisa
descrita nas teorias alternativas. N a verdade, conforme observado por A. Mazar,
“o caso do M onte Ebal ilustra as dificuldades na interpretação de um a descoberta
arqueológica, em particular em relação às fontes bíblicas”.279 Mas, levando tudo em
conta, é bem possível que a teoria cúltica de Zertal prevaleça. M azar escreve: “Zertal
pode estar errado nos detalhes de sua interpretação, mas é tentador aceitar sua ideia
sobre a natureza basicamente cultuai do local e a possível relação dele com a tra­
dição bíblica”.280 Zertal prontam ente admite que “a certeza ainda nos foge” e que
“como cientistas precisamos dizer que o argumento ainda não foi comprovado”, mas
com certeza ele acredita que seja possível fazer uma defesa sólida de que o local é
um centro de adoração e, inclusive, pode ser associado às “tradições bíblicas sobre

275Ibidem , p. 31.
276Ibidem , p. 35.
277“Joshua’s altar — an Iron A ge I w atchtow er”, B A R ev 12, n. 1 (1986), p. 42,44-9.
278“H ow can Kempinski be so wrong!”, B A R ev 12, n. 1 (1986), p. 4 3 ,4 7 ,4 9 -5 3 .
279Archaeology o f the land o f the Bible, p. 350.
2s0Ibidem . Cf. o otim ism o cauteloso de Isserlin, em The Israelites, p. 242. Para um resumo mais
completo dos dados e do debate, veja Hess, “Early Israel”, p. 135-7.
286 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO A T É O P E R Í O D O PER SA

Josué ter construído um altar no M onte Ebal”281 (em D t 27.1-8, Moisés prescreve
a construção do altar de Ebal, e Js 8.30,31 descreve sua construção, que finalmente
aconteceu). Zertal baseia essa ligação em três itens relacionados: a localização, a
natureza do local e o período.
Entretanto, surge um a pergunta interessante neste ponto. D e acordo com
Zertal, o sítio revela pelo menos dois níveis distintos: o que descrevemos e um
mais antigo. O nível mais antigo consiste em “um círculo feito de pedras naturais
de tamanho médio assentadas sobre leito rochoso e localizadas no exato centro
geométrico da estrutura [posterior]”.282Assim, a instalação maior e mais elaborada —
à qual Zertal, em seu artigo, dedica mais atenção — fica bem em cima da estrutura
anterior, o que parece indicar que a estrutura mais antiga deve ter sido importante
para os construtores da mais recente. N a descrição feita por Zertal, a estrutura mais
antiga e circular media aproximadamente dois metros de diâmetro e estava “cheia de
um material ralo e amarelado que ainda não identificamos. Em cima dessa camada
meio amarela havia uma camada fina de cinzas e ossos de animais”.283 Zertal coloca
os dois níveis no período do Ferro I. Em termos específicos, ele situa o nível mais
antigo na “segunda metade do século 13 a.C. e o mais recente na primeira metade
do século 12”.284 Embora, com base em formas distintas de cerâmica encontradas
no local e em um escaravelho egípcio passível de datação,28S a data da estrutura
posterior e maior possa ser razoavelmente estabelecida, a da estrutura mais antiga
parece menos segura. Hess manifesta a devida cautela quando escreve que “o nível
mais antigo se estende até cerca de 1200 a.C. e o nível mais recente está limitado a
um a data até cerca de 1150 a.C.”286Talvez deva permanecer aberta a questão de por
quanto tempo o nível mais antigo existiu até que a nova estrutura fosse construída
em cima dele.

Sítios da região montanhosa na Idade do Ferro I

Sítios arqueológicos específicos, como os que analisamos, sempre receberam desta­


que em debates sobre o surgimento de Israel em Canaã, mas só nas últimas décadas
as pesquisas regionais de superfície têm recebido maior atenção. Este “grande salto
adiante”,287 que tenta determinar tendências demográficas gerais ao longo de uma

2S1“H as Joshuas altar been found on M t. Ebal?”, p. 43.


2S2Ibidem , p. 31.
283Ibidem , p. 32.
284Ibidem , p. 34.
285Veja ibidem , p. 42.
2mJoshua, p. 174.
287Veja Finkelstein, “The rise o f early Israel”, p. 10.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 28 7

área maior, foi analisado na descrição da teoria de Finkelstein de que o “Israel


primitivo”surgiu de populações cananeias locais. Nas pesquisas de superfície condu­
zidas por Finkelstein, a descoberta mais notável é a rápida proliferação de pequenas
aldeias na região montanhosa, iniciada no período do Ferro I. As perguntas centrais
são: Q uem foi o responsável por essa proliferação? Q uem foram os colonizadores
do período do Ferro I? Finkelstein e outros estudiosos não hesitam em identificá-
-los com os primeiros (ou proto) israelitas, embora, conforme Hoffmeier adverte,
“no momento, os dados são insuficientes para, sem fazer inferências com base no
texto bíblico, demonstrar que os sítios arqueológicos em questão são israelitas”.288
É claro que, conforme observado anteriormente, houve um a aparente rejeição do
consumo de carne de porco, e vale a pena ler a análise completa de Finkelstein sobre
a importância dessa descoberta:

N a Id a d e do F erro I, restos de po rco s aparecem em g ra n d e n ú m ero n a S efelá e na


p lanície lito râ n e a sul — T el M iq n e , T el B a ta sh e A sq u e lo m — e são m u ito com uns
em o u tras áreas baixas, m as não aparecem n o c o n ju n to fau n ístico da região m o n ta ­
n h o sa central. O fato m ais in te re ssa n te é que h á ossos de p o rco da m esm a época em
q u a n tid a d e significativa em H e sb o m , n a T ran sjo rd ân ia. O s co n ju n to s fau n ístico s do
F erro II refletem as m esm as características. A d e sp eito dos fato res com plexos que
p o d em influenciar a d istrib u ição de porcos (H esse e W a p n ish , 1997), parece que esse
d ado significa que a rejeição a porcos já existia n a região m o n ta n h o sa n o F erro I: não
havia porcos em sítios p ro to israe lita s nas áreas m o n ta n h o sa s n o F erro I, ao passo
que eram b em co m u n s em u m sítio p ro to a m o n ita e em nu m ero so s sítios filisteus.
C o n fo rm e p re d ito p o r S tag er h á m u ito s anos (1991: p. 9, 19), tab u s alim en tares,
m ais p recisam en te relacio n ad o s a porcos, surgem com o o ú n ico m eio possível de
lan çar lu z sobre a q u estão das fro n te ira s étn ic as n o p e río d o d o F erro I. E ssa é
talv ez a fe rra m e n ta m ais valiosa p ara o e stu d o da etn ic id ad e de d e te rm in a d o sítio
arqueológico do F erro I.289

Acerca de costumes alimentares como indicativo de “consciência étnica” em


Canaã, B. H alpern oferece o breve comentário a seguir:

A n tes e d u ran te o estabelecim ento dos povos do mar, sítios cananeus revelam nível
baixo — m as ainda assim real — de consum o de carne de porco. P o r outro lado, as
prim eiras cam adas filisteias indicam u m nível b em elevado de consum o de porco.

-'"''Israel in Egypt, p. 32.


289“The rise o f early Israel”, p. 20. As obras a que Finkelstein se refere são: B. Hesse; P. W apnish,
“C an pig remains be used for ethnic diagnosis in the ancient N ear East?”, in: N . A. Silberman; D.
Small, orgs., The archaeology o f Israel: constructing thepast, interpreting the present, JS O T S 237 (Sheffield:
Sheffield Academic, 1997), p. 238-70; e L. E. Stager, Ashkelon discovered.
288 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E A B R A Ã O ATÉ O P E R Í O D O PER SA

M as os sítios israelitas nas áreas m o n tan h o sas revelam u m a ausência quase to tal de
porcos, m ostrand o , além disso, preferência, em geral, p o r carneiros a bodes.290

Tendo em vista as considerações anteriores e também o fato de que não há m o­


tivo algum para duvidar que o Israel posterior descendeu desses moradores da região
montanhosa, parece adequado chamar esses colonizadores do Ferro I de primeiros
israelitas. Mas de onde vieram? Já descrevemos o modelo proposto por Dever, o do
“colapso”, segundo o qual os primeiros israelitas surgiram de grupos cananeus margi­
nalizados dentre as populações que viviam nas áreas baixas e que foram desalojados
com o colapso da cultura cananeia, encontrando “melhores pastos” nas áreas altas.
Também observamos a refutação que Finkelstein faz ao modelo do colapso de Dever
— as populações das áreas baixas nunca chegaram ao “limite populacional” — e sua
preferência pelo modelo “cíclico”, em que os primeiros israelitas não haviam sido ha­
bitantes das áreas baixas, mas, na verdade, eram moradores da região montanhosa que,
durante os “anos da crise” precipitada pela destruição generalizada que levou ao fim da
Idade do Bronze Média, deixaram seus arados para trás e adotaram uma vida pastoril.
Ao menos em um ponto Dever e Finkelstein concordam: o Israel primitivo surgiu de
populações cananeias e não de um grande afluxo de pessoas de fora. Mas esse ponto
de concordância está longe de ser comprovado. Por exemplo, ele deixa sem resposta
por que houve a interrupção do consumo da carne de porco.
Isserlin endossa a ideia de Finkelstein de que as mais de trezentas novas aldeias do
Ferro I situadas na região montanhosa central devem ser associadas aos primeiros israelitas
e concorda que, mais tarde, o Israel monárquico se desenvolveu a partir dessa população,
mas questiona a teoria de Finkelstein quanto à origem desse povo. Isserlin escreve:

[Finkelstein] defende que esses prim eiros habitantes das regiões altas não chegaram ali
com o invasores que conquistaram o local, nem basicam ente com o im igrantes pastoris
vindos do leste, nem ainda com o cam poneses tam bém desalojados vindos do oeste. A ntes,
afirm a que eram em sua m aioria descendentes da população local do período da Idade
do B ronze M édia, a qual, depois da destruição de suas cidades, p or volta de 1550 a.C.,
passou a ser um a com unidade pastoril, m as cerca de três séculos depois voltou a te r um
m odo de vida sedentarizado. Essa parte de sua interpretação continua sem comprovação, e
A . Z ertal, u m de seus colegas israelenses, p o r exemplo, optaria pela im igração proveniente
do vale do Jordão. A té que a origem desses supostos grupos nôm ades pastoris seja arqueolo-
gicam ente identificada, a questão deve necessariam ente perm anecer indefinida.291

290H alpern, D a v id ’s secret demons, p. 457. Veja a nota 59 para um a bibliografia mais completa.
™The Israelites, p. 62. Finkelstein tam bém reconhece que a expansão demográfica na região m on­
tanhosa geralmente ocorreu do leste para o oeste, o que ele associa a fatores “ecológicos e socioeconô-
micos” (“The rise o f early Israel”, p. 27).
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 289

Assim, com base apenas nos dados arqueológicos, sabemos que: 1) no início
da Idade do Ferro, centenas de novas aldeias surgiram repentinamente na região
montanhosa; 2) os habitantes dessas aldeias evitavam o consumo de carne de porco;
3) os novos moradores podiam muito bem ter vindo de algum outro lugar ou (caso
aceitemos os estudos de Finkelstein que apontam para indícios de grande número de
comunidades pastoris na região durante os anos de crise da Idade do Bronze Recente)
poderiam já estar na região há centenas de anos. No comentário sucinto de Hoffmeier,
“as aldeias não nos dizem por quanto tempo antes de se instalarem ali os moradores
teriam sido pastores na região nem se, antes de se estabelecerem em uma vida seden­
tária, teriam vindo do interior de Canaã ou de fora, ou mesmo de ambos”.292

INTEGRANDO AS EVIDÊNCIAS TEXTUAIS E MATERIAIS

Agora que examinamos textos pertinentes, tanto bíblicos quanto extrabíblicos,


e um a amostra representativa de descobertas arqueológicas, podemos tratar da
questão da “harmonização”. Os vários conjuntos de dados são compatíveis? Existem
“convergências” ou há conflitos sérios?
O ponto inicial é um a breve recapitulação do perfil básico do surgimento de
Israel em Canaã, conforme descrito nos livros de Josué e Juizes. Com o defendido
anteriorm ente, não consideramos que esses livros apresentam versões opostas sobre
o surgimento de Israel, mas que se concentram em etapas diferentes: 1) a entrada e
“conquista” da terra por meios que incluíram a conquista militar (descrita no estilo
típico do A ntigo O riente Próximo na prim eira m etade do livro de Josué e em flash-
backs ocasionais nos capítulos iniciais de Juizes); 2) a distribuição, entre os vários
grupos tribais, da terra que “estava sujeita diante deles” (ARA) (descrição feita na
segunda metade do livro de Josué, o qual inclui também referências prolépticas aos
diferentes níveis de sucesso das tribos na ocupação real dos respectivos territórios);
3) a fase de ocupação e “canaanização” gradual de Israel no período que se seguiu à
geração de Josué (fase prevista em vários versículos da segunda metade do livro de
Josué e descrita de forma mais completa no livro de Juizes). Em resumo, o quadro
bíblico é de um a conquista da terra que no início é razoavelmente bem-sucedida
— em que os israelitas invasores obtêm um a posição de vantagem — seguida de
tentativas cada vez mais infrutíferas de controlar e ocupar os territórios “con­
quistados”. D a perspectiva teológica, na fase da conquista, a ênfase recai sobre a
fidelidade de Yahweh em dar a terra a Israel. N a fase da ocupação, a ênfase está na

2nhrael in Egypt, p. 32. Bim son defende que “Israel existia antes da m udança para o novo padrão de
assentam ento que supostam ente deu origem a Israel” (“O ld Testam ent history and sociology”, p. 140;
veja nas notas 66 e 68 um breve resumo do debate gerado pela opinião de Bimson).
290 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O P ER S A

infidelidade de Israel e em seu crescente fracasso em servir fielmente a Yahweh,


desobedecendo à ordem recebida no fim do livro de Josué. Deixando de lado a
perspectiva teológica e nos concentrando apenas no cenário histórico básico, pode­
mos agora avaliar sua plausibilidade à luz dos dados arqueológicos que analisamos.
A Esteia de M erneptá indica que, já no últim o quarto do século 13 a.C.,
“Israel” era um a força a ser enfrentada em Canaã. D urante quanto tem po Israel
estava na terra é um a pergunta ainda sem resposta. Caso seja válida a teoria de
Finkelstein de que houve períodos longos de um a cultura pastoril nos anos de
crise, então é possível que, antes de ser mencionado por M erneptá, Israel tenha
existido e desenvolvido um m odo de vida pastoril em Canaã durante um tempo
bem longo (até mesmo durante séculos).293 Se este for o caso, então seguem-se duas
observações: 1) as florescentes aldeias da região m ontanhosa na Idade do Ferro
indicariam a sedentarização de Israel, não sua chegada inicial ou seu surgimento na
terra; 2) o período de A m arna viria a ser o pano de fundo para a descrição bíblica
da época posterior à subjugação inicial da terra. Já observamos que a maior parte da
correspondência de A m arna procede justam ente dos lugares que Israel não tomou.
Tam bém assinalamos que, embora não se deva identificar os israelitas (“hebreus”)
com os ‘apiru, é bem possível que os adversários cananeus tenham confundido os
dois grupos. E m termos gerais, esse cenário representa um a síntese plausível do
testem unho bíblico e dos dados arqueológicos, em especial no que diz respeito
à fase de ocupação, quando Israel surgiu em Canaã. M as o que dizer da fase de
subjugação, da conquista, sobre a qual a Bíblia fala tanto? A esta altura, as escava­
ções feitas em lugares específicos se tornam importantes.
Observamos que Josué e Juizes fazem menção explícita a quatro locais que
foram incendiados: Jericó, Ai, H azor e Laís (é possível que tenha havido outros
incêndios, mas nesse caso não há como saber quando e onde podem ter ocorrido).
Escavações arqueológicas em Jericó revelaram vestígios de incêndio, muros caídos
e inúmeros outros aspectos bastante consistentes com o relato bíblico. No entanto,
o que permanece confusa é a questão relacionada à data que deve ser atribuída a
esses vestígios materiais; sobre essa matéria, o júri ainda está deliberando.

293N . A. Silberm an (“W h o were the Israelites”, Archaeology 45, n. 42 [1992], p. 22-30) sustenta que
populações anteriorm ente sedentarizadas, as quais mais tarde foram identificadas como israelitas, vive­
ram em C anaã como nômades e pastores durante vários séculos, antes de começarem a se sedentarizar
de novo em aldeias recém fundadas na região m ontanhosa no fim do século 13 (p. 29-30). E m favor
da ideia de que após um a conquista israelita pode ter havido um período de pastoralismo antes de os
lugares serem reocupados, E. Yamauchi observa que “no m undo egeu, depois da destruição de vários
assentam entos micênicos atribuída por tradições gregas aos dóricos, que eram pastores gregos vindos do
norte, tam bém ocorre um a considerável lacuna tem poral até a reocupação de povoados” (“The current
State o f O ld Testam ent historiography”, p. 34).
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 291

Se formos identificá-la com et-Tell, a cidade de Ai não tem quase nada que se
harmonize com o relato bíblico de sua derrota e incêndio, mas esse é um grande
“se”. Talvez, ao contrário do que geralmente se presume, não se deva identificar
Betei, a cidade aliada de Ai, com a m oderna Beitin, mas com Bireh, o que sig­
nificaria tam bém que A i deveria ser identificada com algum outro local (e no
m om ento estão fazendo pesquisas nesse sentido). H azor revela vestígios de vários
incêndios entre o fim da Idade do Bronze M édia e a Idade do Bronze Recente.
O últim o incêndio na Idade do Bronze Recente foi particularm ente destruidor,
e estátuas cananeias e egípcias foram mutiladas, o que levou Ben-Tor, o diretor
de escavações, a especular que os mais prováveis incendiários foram os israelitas
(os da Esteia de M erneptá, segundo acredita). Em Laís (Tel D an), os indícios
de incêndio são irregulares, mas existem evidências claras de que a cidade foi
destruída na transição do Bronze Recente para o Ferro I e reocupada por um povo
cuja cultura material era tipicam ente “israelita”. Biran, diretor de escavações em
Tel D an, bem como vários outros arqueólogos de renome, como Stager, sentem -
-se à vontade para afirmar que existe aí um a clara correspondência com o relato
bíblico da migração danita narrada em Juizes 18.
O utros locais examinados foram Gibeão, Siló e o M onte Ebal. Em bora
alguns considerem Gibeão um problem a, devido à ausência de ruínas no período
do Bronze Recente, Pritchard, que escavou o sítio, acreditava que vestígios de
um a cidade cosm opolita do Bronze Recente estavam presentes e cria que suas
ruínas estivessem na grande área não escavada do local. Siló revela indícios de
haver sido um centro de adoração na região m ontanhosa de Efraim durante o
período do Bronze Recente e de ter sido destruída por volta de meados do século
11 a.C ., o que com bina de form a satisfatória com a descrição bíblica geral. Sem
dúvida alguma, a estrutura singular que Z ertal descobriu no M onte Ebal conti­
nuará gerando debates por algum tem po, mas, sem dúvida, parece possível que
tenha sido um altar, talvez erigido para rem em orar um altar mais antigo erigido
ali por Josué.
O ra, em que ponto nos encontramos? Nosso estudo dos dados arqueológicos
foi necessariamente seletivo, e nossas análises dos locais e desse estudo tam bém
não esgotaram o assunto. O ptam os por dedicar tem po a alguns lugares que, de
acordo com o relato bíblico, são mais im portantes, em vez de tentar realizar um
estudo superficial de todos os locais que poderiam ser m encionados. N o entanto,
no que diz respeito a esses sítios arqueológicos, é provável que o que descobrimos
represente o que descobriríamos caso empreendêssemos um exame mais exaus­
tivo; na verdade não descobrimos nesses locais nada que indique falsidade na
descrição bíblica da história inicial de Israel em Canaã. A m aneira de avaliar
os dados variará, é claro, de pessoa para pessoa. E m nossa opinião, resultante
292 A H I S T Ó R I A D E ISR A E L , D E ABRAÃO A T É O P E R Í O D O P ER S A

das investigações realizadas, o peso das evidências favorece um a confiança maior,


ao invés de menor, no testem unho bíblico.294

CONCLUSÃO

O assunto tratado neste capítulo é de grande im portância e tem implicações de


longo alcance, pois, conforme Finkelstein observou recentem ente, “além da ques­
tão específica do surgim ento do Israel primitivo, esse tem a passou a ser ponto de
debate sobre a historicidade do texto bíblico e do valor da arqueologia na pesquisa
histórica”.295 Nossa investigação começou com um levantamento das teorias aca­
dêmicas comuns acerca do surgimento de Israel em Canaã: conquista, infiltração,
revolta e origem endógena. Passamos, então, a um a leitura dos textos pertinentes,
tanto bíblicos quanto extrabíblicos. Descobrimos que nenhum a das teorias co­
muns é totalm ente justa com o quadro bíblico. A té mesmo o modelo de conquista
proposto por A lbright é responsável por um a leitura seriamente equivocada do
texto bíblico e, por isso, o amplo reconhecim ento de que a teoria dele fracassou
em encontrar comprovação arqueológica nada diz quanto à veracidade histórica
dos textos bíblicos.
Contudo, muito embora nenhum a das teorias comuns faça justiça a toda a gama
de testemunho, cada um a talvez capte algum aspecto do que de fato aconteceu.296
E certo que conquistas e destruição de cidades ocorreram na Canaã da Idade do
Bronze Recente, e talvez seja possível detectar o envolvimento israelita em alguns
desses eventos. Continua, porém, havendo m uita incerteza, em especial na ques­
tão de atribuir datas e identificar os responsáveis (e.g., quando a H azor do Bronze
Recente foi destruída? Q uem a destruiu? Se foram os israelitas, isso foi realizado
sob o comando de Josué ou de Débora e Baraque? Se não ocorreu sob o comando
deles, de quem foi?). E bem possível que em algumas áreas os primeiros israelitas
não tenham enfrentado quase nenhum a resistência (e.g., Siquém, Gibeão) e, desse
modo, conseguiram “se infiltrar” sem entrar em combate. Cananeus despojados de
seus direitos ou descontentes podem ter se revoltado contra seus vizinhos ou, pelo
menos, tê-los traído (e.g., o subterfugio gibeonita) e se unido à “multidão mista”
de Israel. Pode ser que a população das centenas de aldeias da região montanhosa

294Pelo m enos quanto ao livro de Juizes, D ever concorda que, “conquanto a arqueologia m oderna
possa pôr em dúvida a historicidade de Josué, ela fornece um a corroboração impressionante do relato
de Juizes, até em detalhes obscuros” (“Israel, H istory o f ”, in: A B D , vol. 3, p. 555). O veredito menos
favorável que D ever faz do livro de Josué é, em grande parte, resultado de seguir A lbright na leitura
errônea da natureza da conquista descrita no livro.
295“The rise o f early Israel”, p. 7.
296Cf. Hess, “E arly Israel”, p. 139.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 293

que vieram a existir na Idade do Ferro I não fosse formada por pessoas que haviam
acabado de chegar à terra de Canaã, mas pastores que moravam em Canaã já havia
algum tempo. Talvez tenham de fato vivido fora da terra (ausência de consumo de
carne de porco?) e sua chegada teve algum papel na precipitação dos anos de “crise”
da Idade do Bronze Recente.
O caráter provisório destas observações finais reflete o fato de que, em um sen­
tido muito real, a reconstrução histórica “não é definida” pelos dados disponíveis.
Assim como no julgamento em um tribunal é impossível a certeza absoluta sobre
todos os detalhes de determinada reconstrução, é impossível comprovar um a de­
term inada reconstrução — pelo menos um a que agrade a todos. Tudo o que se
deveria desejar é apresentar um a reconstrução razoável que faça total justiça ao
maior conjunto de dados disponíveis. Por mais im portante que sejam as provas
materiais — tanto na história quanto nos tribunais — sem testemunho o passado
continua em grande parte misterioso, exceto talvez no que se refira a aspectos ge­
néricos como “estilos de vida” e coisas semelhantes. A menos que alguém faça um
relato, ficamos à mercê de nossos planos imaginários, que podem facilmente criar
tanto fantasias quanto fatos.
N o caso do Israel primitivo em Canaã, os livros de Josué e Juizes apresentam
o primeiro relato e, aceitando a perspectiva desses livros, ele é o melhor de todos.
Suas narrativas são as mais detalhadas e, em muitos aspectos, as mais interessantes.
Nosso objetivo não é reduzir esse relato a um a paráfrase racionalista, embora não
sejamos contra a paráfrase em si; apenas acreditamos que assistir a um a peça de
teatro é mais interessante do que ver um cartaz que anuncia essa peça. Portanto,
nosso objetivo foi investigar a questão sobre se os historiadores, e não apenas os
teólogos e os críticos literários, devem se interessar por essas obras. Perguntamos se
o testem unho bíblico tem coerência interna e se é consistente com os dados exter­
nos. Reconhecemos, é claro, que pela própria natureza os dados arqueológicos são
parciais e estão em constante mudança. Reconhecemos que sua importância nem
sempre é óbvia e que é necessário a interpretação na “leitura” de vestígios materiais
tanto quanto na leitura de textos. Reconhecemos que problemas espinhosos ainda
permanecem: Ai foi corretamente localizada? A data da destruição de Jericó foi
corretamente determinada? O que é aquela estrutura encontrada no M onte Ebal?
Reconhecemos, por fim, que a maneira pela qual lemos os dados está, em certa
medida, relacionada a questões mais amplas de como vemos o mundo. No fim das
contas, cremos que os dados arqueológicos que conhecemos não invalidam de modo
algum o testem unho bíblico (desde que tanto o texto quanto o artefato sejam lidos
corretamente) e que existem pelo menos algumas “convergências” promissoras.
E m resumo, portanto, não vemos praticamente motivo algum para que uma
tentativa de escrever um a história do surgimento de Israel em Canaã siga um
294 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO A T É O P E R Í O D O PER SA

caminho radicalmente diferente daquele que os textos bíblicos sugerem. É claro que
é possível trabalhar com muitos fatores não tratados nos textos bíblicos, pois esses
textos são seletivos e têm um viés teológico. Por exemplo, ao se pintar um retrato
mais diversificado do período, com certeza é legítimo introduzir fatores de primeiro
e segundo níveis (desde que seja possível determiná-los) — mas não encontramos
nos dados examinados nada que possa invalidar o esboço bíblico básico.
Capítulo 8

A Monarquia Antiga

Os livros de 1 e 2Samuel talvez sejam mais conhecidos por seus enredos cativantes:
o jovem Samuel correndo até Eli para enfim descobrir que é o Senhor quem o está
chamando; Saul saindo em busca de animais extraviados e encontrando um reino;
o jovem Davi derrotando o gigante Golias sem usar espada ou lança, mas lutando
em nome do Senhor dos Exércitos; a revolta de Absalão abatida por seus longos
cabelos presos em um galho de um a árvore; e assim por diante. Para o historiador,
porém, esses livros têm muito mais a oferecer do que enredos que prendem a aten­
ção. Conform e observado por R. R Gordon, “1 e 2Samuel registram um a mudança
estrutural dentro da sociedade israelita, mudança essa que teve as mais profundas
conseqüências políticas e religiosas”.1 Q uando o livro de Samuel2 inicia, o período
dos juizes está chegando ao fim e a sociedade israelita está caminhando para se
tornar um a monarquia. O livro de Juizes term inou com repetidos lembretes de que
naqueles dias não havia rei em Israel e cada um fazia o que bem entendia. N o início
da obra de Samuel, a situação praticamente não mudou — até mesmo os sacerdotes
filhos de Eli parecem fazer o que lhes agrada (2.12-17) — , porém a monarquia já
está no ar. O Cântico de Ana, registrado em ISam uel 2.1-10, faz referência explícita
a um rei que viria, afirmando que o Senhor “dará força ao seu rei e exaltará o poder
do seu ungido” (v. 10). Entretanto, antes de analisar o primeiro rei de Israel, deve­
mos conhecer a figura central que conduziu os primeiros reis ao trono. Os capítulos

*R. P. G ordon, 1 & 2 Samuel, O T G , série editada por R. N . W hybray (Sheffield: JSO T, 1984),
p. 9. D aqui em diante essa obra será indicada p or 1 & 2 Samuel (O T G ) para distingui-la de outra obra
de G ordon: I & I I Samuel: a commentary, L B I (G rand Rapids: Regency Reference Library, Zondervan,
1986), que será indicada sim plesm ente por I & I I Samuel.
2D e acordo com Eusébio e Jerônim o, 1 e 2Sam uel eram originalm ente um único livro. Parece que
a divisão em dois segue a prática da Septuaginta (daqui em diante, LXX). Para um a análise do assunto,
veja B. S. Childs, Introduction o f the Old Testament as Scripture (Philadelphia: Fortress, 1979), p. 266-7.
Q uando o contexto não dá m argem a nenhum a ambigüidade, às vezes nos referiremos a l e 2Samuel
simplesmente como Samuel ou como o livro de Samuel.
296 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E A B R AÃO A T É O P E R Í O D O PER SA

iniciais de ISam uel se concentram no nascimento de Samuel e em seu crescimento


até se tornar um “confirmado (...] profeta do S e n h o r ” , o u seja, um profeta fidedig­
no (3.20). Logo a carreira de Samuel se entrelaça com a de Saul, o primeiro rei de
Israel, e depois ambos acabam envolvidos com Davi, o fundador da primeira e mais
longa dinastia de Israel (que continuou existindo em Judá após a divisão do reino).
Pelo fato de o livro de Samuel organizar seu relato em torno das carreiras entre-
cruzadas de Samuel, Saul e Davi, faremos o mesmo em nossa análise. Como obras
de literatura, os relatos dessas personagens importantes recebem grandes elogios.
Nas palavras de H . G. Richardson, “seria difícil encontrar em alguma outra obra
uma narrativa de qualidade superior”. Em Samuel as narrativas são escritas em uma
“prosa que, devido à combinação de simplicidade e excelência, continua incompa­
rável na literatura mundial”, acrescenta W. R. A rnold.3 O que dizer, porém, de seu
valor histórico? Será que as narrativas de Samuel são mais do que simples enredos
bem escritos? Será que são tam bém histórias bem narradas? Podem ser correta­
mente consideradas historiografia? Têm valor para o historiador e não apenas para
o crítico literário ou o teólogo?
H á pouco tempo, certos estudiosos bíblicos afirmavam que provavelmente
Davi e Salomão nunca existiram. Insistiam que esses reis (e até mesmo toda a ideia
de um a M onarquia Unida em Israel) deviam ser tratados da mesma maneira que
outras personagens bíblicas, como os patriarcas, cuja historicidade a erudição crítica
já tinha, há muito tempo, considerado “assunto do passado”.4 Entretanto, ao mesmo
tempo que eram publicados livros e artigos afirmando que Davi e Salomão jamais
existiram, escavadores do sítio arqueológico bíblico de D ã fizeram uma descoberta
espantosa. E m 1993 descobriram o que afetou primeiro e maior fragmento da agora
famosa inscrição de Tel Dan, que faz menção ao “rei da casa de Davi”, profun­
dam ente a comunidade acadêmica. Ao que tudo indicava, pela primeira vez fora
encontrada um a referência extrabíblica ao mais famoso rei de Israel. N o início, uma
confusão de vozes tentou interpretar a inscrição atribuindo-lhe algum outro sentido
que não o evidente. M as depois de um a enxurrada inicial de publicações, a maioria
das vozes contrárias se calou. Pouco tempo depois da descoberta da assim chamada
inscrição da “casa de Davi”, vários estudiosos apresentaram outras possíveis refe­
rências extrabíblicas a Davi — referências presentes na Inscrição de M essa (Pedra
M oabita), aproximadamente da mesma época da inscrição de Tel D an (meados

3As duas citações foram tiradas de excertos encontrados na coletânea The Hebrew Bible in literary
criticism, organizada por A . Prem inger; E. L. G reenstein (New York: Ungar, 1986, p. 556-7). Cf. tb.
Long, “First and Second Samuel”, in: L. Ryken; T. L ongm an III, orgs., A complete literary guide to the
Bible (G rand Rapids, Z ondervan, 1993), p. 165-81.
4Veja, neste cap., a seção intitulada: “A ascensão de Davi e a decadência e a m orte de Saul”,
p. 328-47.
A M O N A RQ U IA A N T IG A 29 7

do nono século a.C.), e na lista topográfica do faraó egípcio Sheshonq I (final do


décimo século a.C.). Adiante falaremos mais a respeito disso.
Por mais interessantes que sejam esses debates, os textos bíblicos, conforme defen­
demos na primeira parte deste livro, não dependem de verificação externa para seu valor
histórico ser comprovado. D e qualquer maneira, o que quer que seja possível demons­
trar com base nas referências anteriormente mencionadas, fica muito aquém do quadro
completo de Davi apresentado nesses textos. Portanto, embora as descobertas — ar­
queológicas e epigráficas — encorajem os que estão inclinados a considerar os textos
bíblicos seriamente como fontes históricas e levem os que tendem a desconsiderá-los
a pensar melhor, a expectativa de aprender mais sobre a transição de Israel para a m o­
narquia, sobre os primeiros reis e seus descendentes continua a depender em grande
parte do testemunho bíblico. Descobertas arqueológicas também são levadas em conta
nos debates sobre a possibilidade de uma capital davídica em Jerusalém e, inclusive,
de um “império” davídico-salomônico na Síria-Palestina do décimo século. No devido
momento retomaremos todas essas questões.
Contudo, antes de investigar a história propriamente dita, devemos descrever
o quadro oferecido pelas fontes a nós e, então, falar um pouco sobre a cronologia
do período.

FONTES PARA O ESTUDO DA MONARQUIA


ANTIGA EM ISRAEL

O livro de Samuel não é o único texto que descreve o período da M onarquia Unida
em Israel. Além dele, há os dois livros de Crônicas, sendo que o texto de lC rônicas
é aproximadamente paralelo ao material encontrado em Samuel (i.e., Saul e Davi)
e o de 2Crônicas é paralelo aos dados presentes em Reis (i.e., o período que vai
do reinado de Salomão até o Exílio babilônico), acrescentando a informação espe­
rançosa do decreto de Ciro, que antecipa o retorno do exílio. A inda que algumas
pessoas acusem o cronista de plagiar e suprim ir os textos de Samuel-Reis, é mais
apropriado ver Samuel-Reis e Crônicas como histórias sinóticas, como têm sido
denominados. Isso significa que são duas descrições diferentes — ou “quadros”,
para quem assim preferir — (aproximadamente) do mesmo assunto, e é mais pro­
veitoso dois quadros em vez de um só. Cada um apresenta os próprios interesses,
o próprio viés, a própria perspectiva e assim por diante. Não se deve, porém, ver a
obra posterior (1 e 2Cr) como um a pintura que se sobrepõe intencionalm ente à
prim eira (Samuel-Reis). N a realidade, conforme observado com frequência, parece
que Crônicas supõe que seus leitores já estejam familiarizados com Samuel-Reis.
R. Dillard expressa a questão com clareza: “os vários pontos em que [o cronista]
supõe que o leitor esteja familiarizado com o relato de Samuel-Reis mostram que
298 A H I S T Ó R I A D E ISR A EL , D E A B R AÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA

o autor está usando a história deuteronom ista como um padrão de verificação’para


um público bem familiarizado com o relato anterior”.5 Dessa maneira, de acordo
com B. S. Childs:

E u m erro básico de in terpretação in ferir com base nesse m éto d o de seleção [i.e., o
m éto d o do cronista] que o p ro pósito do cronista foi su p rim ir a tradição m ais antiga
ou substituí-la pelo próprio relato. H á duas razões que depõem diretam ente contra essa
suposição. P rim eiro, é freqüente o cronista supor que seus leitores te n h a m conhecim en to
de to d a a tradição, a p o n to de seu relato ser p raticam en te incom preensível se não houver
u m a relação im plícita com os outros (cf. l C r 12.19ss.; 2 C r 3 2.24-33). Segundo, m esm o
quando, na escolha do m aterial, o cronista o m ite u m relato p resente em Sam uel-R eis,
ele frequentem en te faz referências explícitas a ta l relato p o r m eio de fontes. P o r exem ­
plo, o cronista o m ite a referência à eleição divina de Jeroboão (IR s 11), m as sua m enção
explícita à profecia de A ías (2 C r 9.29) elim ina u m a teoria de supressão consciente.6

Portanto, temos dois “quadros” diferentes do período monárquico, servindo a dois


propósitos distintos. A denominada História Deuteronomista, da qual Samuel-Reis
fariam parte, deve ter sido concluída durante o exílio na Babilônia — independen­
temente da história da composição de suas diferentes partes.7 Em sua forma final,
ela responde ao tipo de pergunta que os judeus na Babilônia devem ter feito: “Por
que estamos aqui? As promessas de Deus a nossos antepassados e a Davi falha­
ram?”. A esta última pergunta a História Deuteronomista (H D ) responde com um
retumbante “não”. As promessas divinas não falharam, pois sua promessa de bênção
pela obediência à aliança sempre esteve, afinal, ligada a uma ameaça de castigo pela

s“T h e reign o f Asa (2 Chronicles 14— 16): an example o f the C hroniclers theological m ethod”,
J E T S 23 (1980), p. 207-18; citação na p. 214.
6Introduction to the Old Testament as Scripture, p. 646-7.
7E altam ente questionável im aginar que, como alguns defendem, “os diversos poemas, tradições,
conjuntos literários e livros que constituem o A T ” pudessem ter sido todos compostos no período
exílico ou pós-exílico: “os vários escritos bíblicos podem ter chegado à sua form a final e definitiva no
período pós-exílico, mas parece improvável que o período persa seja testem unhada própria composição
de todos esses livros” (G . N . Knoppers, “T h e historical study o f the monarchy: Developm ents and de-
tours”, in: Baker; A rnold, orgs., Theface o fO ld Testament studies, p. 207-35; citações na p. 212). Acerca
da questão da “form a definitiva”, a teoria de um a H istória D euteronom ista que se estende de D eute­
ronôm io a 2Reis tem prevalecido no meio acadêmico desde M artin N o th , embora atualm ente alguns
prefiram falar de um a “H istória Prim ária”, que compreende Gênesis— 2Reis, distinguindo-a de um a
“H istória Secundária”, que abrange a obra do cronista e Esdras— Neemias. Veja, e.g., D . N. Freedman,
“T h e earliest Bible”, in: M . P. 0 ’C onnor; D . N . Freedm an, orgs., Backgrounds fo r the Bible (W inona
Lake: Eisenbrauns, 1987), p. 29-37; Idem , “T h e nine com m andm ents: the secret progress o f Israels
sins”, Bible R eview 5, n. 6 (1989), p. 28-37, 42; P. J. Kissling, Reliable characters in theprim ary history:
profiles ofMoses, Joshua, Elijah, andElisha, JS O T S 224 (Sheffield: Sheffield Academ ic Press, 1996).
A M O N A RQ U IA A N T IG A 299

desobediência a essa mesma aliança. A longa lista de pecados e fracassos apresentada


em Samuel-Reis é uma explicação mais do que adequada para a queda dos reinos
israelitas — primeiro, a do Reino do Norte (2Rs 17) e, depois, a do Sul (2Rs 25).
Portanto, a resposta à primeira pergunta: “Por que estamos aqui?” é a de que Deus é
tão bom quanto sua palavra — quer isso tenha a ver com bênção, quer com maldição.
O livro de Crônicas se concentra em um conjunto diferente de perguntas. Os
destinatários do livro não são exilados ainda vivendo no cativeiro, mas pessoas que
voltaram ou estão retornando à Terra Prometida, de onde haviam sido levadas. As
perguntas que inquietavam os leitores originais de Crônicas devem ter sido do
seguinte tipo: “Deus ainda está interessado em nós? As alianças ainda estão em
vigor?”.8A essas questões, o cronista responde com um retumbante “sim”. Parece que
o principal propósito do cronista em escrever sua história foi exortar e encorajar os
que estavam regressando. Tendo em vista esse propósito, não é difícil entender por
que o cronista reduziu o relato do rei Saul a um único capítulo (lC r 10), acrescido
de algum material genealógico, não disse nada sobre a oposição de Saul à ascensão
de Davi (um assunto im portante na segunda metade de IS m e nos capítulos ini­
ciais de 2Sm), não fez menção alguma ao adultério e ao assassinato cometidos por
Davi em seu caso com Bate-Seba (2Sm 11— 12), não sentiu a necessidade
de detalhar as catastróficas conseqüências domésticas e políticas dessas ações
(2Sm 13— 20) e não viu motivo algum para lembrar a seus leitores a apostasia de
Salomão (lR s 11). Todos esses acontecimentos deveriam ser de amplo conheci­
m ento do público-alvo do cronista e, por esse motivo, puderam ser seguramente
deixados de lado, não tendo pertinência para o objetivo de encorajar seus ouvintes.
O cronista não se limitou a om itir dados específicos, mas incluiu muitos outros
não encontrados em Samuel-Reis, um material que ressaltava o significado mais
universal das experiências de Israel (e.g., as longas genealogias que remontam a
Adão, com as quais o livro começa), destacava a aliança pessoal do Senhor com Davi
(o que deve ter trazido consolo em uma época em que o trono não existia mais,
mas a linhagem davídica ainda subsistia), assinalava a importância do templo como
o centro da presença de Deus entre seu povo (em um período em que o templo
já estava [sendo] reconstruído) e enfatizava para “todo o Israel” a importância do
regresso do exílio.9
Em resumo, as duas descrições do período monárquico de Israel, uma em Samuel-
-Reis e outra em Crônicas, podem ser tudo, menos idênticas, embora tratem em

8Cf. R. Dillard, “D avids census: perspectives on 2 Samuel 24 and 1 Chronicles 21”, in: W . R.
Godfrey; J. L. Boyd, orgs., Through Christs word: a Festschrift fo r Dr. Philip E. Hughes (PhiUipsburg:
Presbyterian and Reformed, 1985), p. 94-107, esp. p. 99-101.
9Para um a análise mais ampla e detalhada de todas essas questões, veja V. P. Long, The art o f bibli­
cal history, F C I 5, editado por M oisés Silva (G rand Rapids: Z ondervan, 1994), p. 76-86.
300 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E A B R AÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA

grande parte do mesmo assunto. Um a leitura superficial de uma ou de ambas pode


facilmente dar a impressão de que se contradizem, mas uma leitura superficial seria to­
talmente inadequada. Reconhecer os propósitos distintos e os diferentes públicos-alvo
das duas histórias ajuda bastante a explicar as várias diferenças entre ambas. Enquanto
recorremos a essas histórias sinóticas em nossa busca por reconstruir a história da
monarquia unida, é preciso não perder de vista essas questões fundamentais.
No que diz respeito à datação de nossas fontes bíblicas, até agora consideramos
apenas os prováveis períodos de finalização desses conjuntos de textos na forma
que chegaram até nós — a H D no período exílico e Crônicas no período pós-
-exílico. Também é instrutivo considerar quando podem ter surgido os elementos
constitutivos dessas composições mais abrangentes. Por exemplo, recentemente
B. H alpern levantou a questão a respeito da data da chamada Apologia de Davi:
“Será que 2Samuel é antigo, quase até contemporâneo da época dos acontecimentos
descritos?”.10 Sua conclusão é que de fato “2Samuel é antigo, falando bem honesta­
m ente”, pois crê ser “inconcebível o argumento de que Samuel possa ter sido escrito
muito depois da época de Davi”.11 Argumentos parecidos têm sido elaborados para
outras seções do livro de Samuel.12 Portanto, não é universal a tendência que se
observa em alguns círculos de considerar os textos bíblicos bastante tardios e distan­
tes dos acontecimentos que alegam descrever.
O utro assunto que surge quando se consideram os dados textuais sobre a
M onarquia Unida é a questão das divisões de fontes. Por exemplo, para M iller e
Hayes é óbvio que “qualquer tentativa de utilizar o relato de ISam uel para a investi­
gação histórica deve começar com um esforço de separar e avaliar as várias tradições
independentes que foram reunidas para produzir a narrativa na forma que existe
hoje”.13 Eles reconhecem a natureza especulativa de qualquer empreendimento co­
mo esse e admitem que “quaisquer conclusões históricas resultantes serão também
‘especulativas’”, mas isso não os impede de dividir ISam uel e a primeira parte de
2Samuel da seguinte forma bem conhecida:

Os relatos de Samuel e Siló (IS m 1.1— 4.1a)

A narrativa da Arca (IS m 4.1b— 7.2)

mD a v id ’s secret demons: Messiah, murderer, traitor, king (G rand Rapids: Eerdm ans, 2001), p. 75.
n Ibidem , p. 99,101.
12E.g., sobre a “H istória da ascensão de Saul”, veja M . W h ite, “Searching for Saul: w hat we really
know about Israels first king”, B ibleR eview 17, n. 2 (2001), p. 22-9, 52-3.
nA history o f ancient Israel andJudah (Philadelphia: W estm inster, 1986), p. 126.
A M O N A R Q U IA A N T IG A 301

Os relatos de Saul (lS m 9.1— 10.16; 10.26— 11.15; 13.2— 14.46)

A narrativa de Samuel (lS m 7.3— 8.22; 10.17-25; 12; 15)

Os relatos da ascensão de Davi ao poder (lS m 16— 2Sm 5.5)14

D e m odo geral não se pode negar a ideia de que fontes foram usadas na compo­
sição de 1 e 2Samuel. R. R G ordon escreve: “O fato de que 1 e 2Samuel abrangem
várias fontes que foram unidas umas às outras para formar uma narrativa contínua
que culmina com o reinado de Davi é um a conjectura perfeitamente razoável”.15
Aliás, é possível que tal conjectura esteja em consonância com indicações explícitas
desse tipo de atividade composicional e literária nos livros de Reis e Crônicas. Dessa
forma, a tendência entre os estudiosos de identificar, por exemplo, “três narrati­
vas originalmente independentes” nos livros de Samuel — a Narrativa da Arca, a
História da Ascensão de Davi e a Narrativa da Sucessão — não exige necessaria­
mente alguma objeção. U m a divisão tripartite como essa pelo menos “oferece uma
análise acessível da maior parte do material desses livros”,16 não im portando qual
a ideia que se tenha das teorias das fontes e por mais que tal análise requeira um
exame complementar. Gordon, por exemplo, tem consciência de que os livros de
Samuel abrangem bem mais do que as três “narrativas independentes” citadas com
mais frequência: “Além delas, tradições acerca de Siló, do início da monarquia e dos
reinados de Saul e Davi foram incluídas para ajudar a formar a vivida montagem
literária, teológica e histórica que são 1 e 2Samuel”.17
A té aqui tudo bem. Infelizmente, porém, muitas tentativas de adivinhar as
fontes originalmente independentes nos textos bíblicos se dedicam tanto a separar
as várias passagens que não dedicam tempo suficiente para identificar qualquer tipo
de coerência narrativa já existente no texto em sua forma atual. E, logo que se reali­
zam a divisão e a reorganização do texto, causando um a ruptura no fluxo narrativo
original, o entusiasmo com leituras mais atentas dos textos em sua forma atual
diminui, junto com a probabilidade de que os textos recuperem um dia sua condição
de um enredo completo que faça sentido.
O que defendemos é que recorrer às teorias das fontes é proveitoso — se é que
de fato pode ser proveitoso — somente quando o texto na forma atual não oferece
um sentido adequado. Sem dúvida, é justam ente a crença de que os textos que

I4Ibidem , p. 126-8.
151 & 2 Samuel (O T G ), p. 12.
“ Ibidem .
17Ibidem .
302 A H I S T Ó R I A D E I S R A E L , D E ABRAÃO A T É O P E R Í O D O P E R S A

possuímos são até certo ponto incoerentes que tem motivado várias gerações de
estudiosos a resolver criticamente a “confusão” com as fontes. Contudo, por volta
do último quarto do século 20, começaram a haver avanços significativos no meio
acadêmico na análise literária de textos bíblicos, em particular na área da poética
narrativa, e atualmente um número bem grande de estudiosos acredita que muitos
trechos da narrativa bíblica, considerados problemáticos no passado, perm item de
fato leituras m uito mais coerentes do que os estudiosos de gerações anteriores su­
punham .18 Isso, por sua vez, pode conduzir a um a avaliação mais positiva do valor
desses textos como fontes históricas.19 A medida que avançarmos, analisaremos os
assuntos pertinentes em um a abordagem caso a caso. Por enquanto, apenas ressal­
tamos a importância de abordar os textos bíblicos com atenção para sua natureza
literária — ou seja, seu modo cênico, sua organização de recursos, sua reticência e
dissimulação, seu emprego de uma variedade de técnicas literárias bastante sofistica­
das como jogos de palavras e uso de palavras-chave, caracterização por comparação
e contraste, repetições (com variações), estrutura narrativa, analogias e assim por
diante.20 Com frequência a sensibilidade a um ou mais desses aspectos literários
abre as portas para um a apreciação maior da coerência e da unidade composta das
narrativas bíblicas em sua forma atual, o que por sua vez gera uma percepção mais
clara de seu significado histórico em potencial.
Passando dos textos bíblicos para os extrabíblicos, precisamos ter em mente que
também estes são obras literárias e que, nessas condições, devem ser abordados de
um a forma que leve em conta sua natureza literária e ideológica. Por exemplo, com
frequência se supõe que, embora confirmando a existência de “Davi”, a Esteia de Tel
D an (mencionada anteriormente) na verdade contradiz o texto bíblico na questão
de quem m atou os reis de Israel e Judá mencionados na esteia (foi Hazael ou Jeú?).

lsPara um a avaliação teórica da crítica das fontes e da crítica editorial em relação à H D e, em


particular, ao livro de Samuel, veja R. P. G ordon, 1 & 2 Samuel (O T G ), esp. p. 14-20.
19E irônico que um “m aior reconhecim ento da qualidade literária” de narrativas bíblicas nem sem­
pre tenha levado a um m aior reconhecim ento de seu valor como testem unho em questões históricas.
C om o R. P. G ordon observa acerca da denom inada N arrativa da Sucessão, “a descrição vivida de
pessoas e acontecimentos, a qual no passado era explicada como resultado da proximidade do escritor
com o que estava narrando”, hoje é citada por alguns como m era prova de sua “capacidade imaginativa
e descritiva ao escrever” (“In search o f David: the David tradition in recent study”, in: A. R. M illard;
J. K. H offm eier; D . W . Baker, orgs., Faith, tradition, andhistory: Old Testament historiography in its Near
Eastern context [W inona Lake: Eisenbrauns, 1994], p. 285-6).
20E desnecessário reiterar obras escritas por pensadores originais como Alter, Polzin e Sternberg
(essas obras são am plam ente conhecidas e, de qualquer forma, já foram m encionadas neste livro). Para
um a análise de aspectos específicos do estilo narrativo hebraico no que diz respeito aos textos de Sa­
muel, veja V. P. L ong, The reign and rejection o fK in g Saul: a case fo r literary and theological coherence,
SBLD S 118 (Atlanta: Scholars Press, 1989), p. 21-42.
A M O N A R Q U IA A N T IG A 303

Pressupondo que Hazael foi o responsável pela Esteia de Tel D an, Lemaire escreve:

A afirm ação de H a za e l de que m a to u Jorão de Israel e A cazias de Ju d á co n trad iz cla­


ram en te o relato d etalhado do golpe de estado p erpetrad o p o r Jeú (2R s 9.1— 10.28).
Q u e m de fato m ato u os dois reis, H azael ou os p artid ário s de Jeú? Sem en tra r em
detalhes, parece suficientem ente claro que a narrativa p rincipal de 2R eis 9.1— 10.28
está provavelm ente m ais próxim a dos acontecim entos, ao passo que a esteia de D ã pode
te r sido entalhad a vinte ou trin ta anos depois.21

Lem aire prossegue em sua argumentação e cita outro caso (dessa vez em um a
inscrição real assíria) de um a afirmação falsa junto com um relato verdadeiro e
então conclui que “esse texto paralelo nos dá outra indicação de que H azael está
se gabando aqui e de que a esteia de D ã não foi entalhada logo depois de 841,
mas vários anos mais tarde, pelo menos em um período posterior do reinado
de H azael em que dom inava sobre Israel, Judá e a m aior parte da região do
T rans-E ufrates”.22 M as, se H azael está apenas se gabando como os governantes
do A ntigo O riente Próximo geralm ente faziam, será que o emprego do term o
“contradição” é a m elhor m aneira de descrever a diferença entre os relatos bíblico
e extrabíblico? U m a percepção adequada dos gêneros de inscrições régias deve
servir de alerta para não lermos a ostentação de H azael como um a simples decla­
ração do que teria acontecido. É comum pessoas que estão no poder reivindicar
para si as realizações de outros.
Com esse breve exemplo, vemos a importância de abordar não apenas os textos
bíblicos, mas também os extrabíblicos com as expectativas literárias adequadas e
com a percepção correta do gênero que estamos examinando. Além disso, é preciso
ressaltar que há poucos textos extrabíblicos relevantes para o estudo da M onarquia
Unida. Um a conclusão provavelmente correta é que agora esses textos ao menos
confirmam a existência de um Davi que aparentemente fundou um a dinastia (a
“Casa de Davi”), mas além disso não nos dizem quase nada. Q uanto às informações
específicas sobre o período em questão, continuamos dependendo em grande parte
do texto bíblico.
Além dos dados textuais, a arqueologia também pode dar sua contribuição.
A arqueologia de Jerusalém, por exemplo, pode fornecer informações contextuais
úteis para ajudar a detalhar a descrição do reinado de Davi, porém, conforme vere­
mos, a interpretação dos dados materiais coletados é bem controversa.

21“T h e T e l D an stela as a piece o f royal historiography”,/S O T '81 (1998), p. 3-14; citação na p. 10.
22Ibidem , p. 11.
304 A H I S T Ó R I A D E ISR A E L , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O P ER S A

A CRONOLOGIA DA MONARQUIA ANTIGA EM ISRAEL

A cronologia da M onarquia Antiga em Israel não é mais segura do que a de períodos


anteriores. Só no período da M onarquia Dividida é que temos condições de relacio­
nar alguns acontecimentos bíblicos com datas estabelecidas a partir de listas de reis
assírios e babilônios, sendo que no caso destes últimos é possível chegar a datas bem
exatas pelo fato de às vezes serem mencionados eclipses lunares e solares. Duas datas
que podem ser estabelecidas com razoável confiança são 853 a.C. para a batalha de
Qarqar, em que o rei Acabe de Israel esteve envolvido, e 841 a.C. para o pagamento
de tributo por Jeú ao rei assírio Salmaneser III. Com base nessas datas e na informa­
ção cronológica relativa encontrada nas fórmulas régias dos textos bíblicos, podemos
estimar de modo razoável as datas referentes aos reis de Israel e Judá após a divisão do
reino.23 Quanto aos reis da Monarquia Unida, geralmente se aceita que o reinado de
Salomão provavelmente terminou por volta de 930 a.C.24 Caso se atribua a Salomão
um governo de quarenta anos (lR s 11.42), sua ascensão ao trono teria ocorrido por
volta de 970 a.C., os quarenta anos de reinado de Davi (2Sm 5.4) teriam começado
por volta de 1010 a.C. e assim por diante. Com frequência também se supõe que Saul
reinou aproximadamente quarenta anos, mas essa suposição não se baseia em nenhu­
ma informação específica existente no AT, e sim em uma leitura de Atos 13.21. Como
ocorre com o período dos juizes, a primeira impressão é que números como 40 podem
indicar algarismos simbólicos ou paradigmáticos. No caso de Davi, porém, chega-se
a seus quarenta anos de governo mediante a soma de sete anos e meio de reinado em
Hebrom e 33 anos de reinado sobre todo Israel (2Sm 5.5; lR s 2.11; comp. 2Sm 2.11).
Parece, então, que o melhor é supor que o reinado de Davi durou quarenta anos e que
o de Salomão provavelmente durou o mesmo tempo. M as o que dizer do reinado de
Saul? Parece que a fórmula régia de Saul é apresentada em ISamuel 13.1, entretanto,
conforme as traduções a seguir indicam, a interpretação desses versículos não é clara:

Saul tin h a [...] anos q uando com eçou a reinar, e reinou [...] e dois anos sobre Israel
(N R S V ).

Saul subiu ao tro n o e reinou dois anos sobre Israel. (C N B B )

23A questão cronológica recebe tratam ento mais completo em nossa análise da M onarquia Dividida.
24A té m esmo estimativas dessa data variam ligeiram ente de um estudioso para outro: C ogan a
coloca em 928 a.C.; Finegan, em 931; Hayes e H oker, em 926; e T hiele, em 930. Veja M . Coogan,
“C hronology”, m :A B D ,vol. l ,p . 1002-11 (tabela na p. 1110); J. Finegan, Handbook ofbiblicalchronology:
principies o f time reckoning in the ancient world and problems o f chronology in the Bible, ed. rev. (Peabody:
Hendrickson, 1998), tabela na p. 261; J. H . Hayes; P. K. Hooker, A new chronology fo r the kings o f
Israel andfudah and its implicationsfo r biblical history and literature (Atlanta: John Knox, 1988); Thiele,
Mysterious numbers, nova ed. rev. (G rand Rapids: A cadem ic Books, p. 1983), tabela na p. 10.
A M O N A R Q U IA A N T IG A 305

Saul tin h a [trinta] anos de idade quando com eçou a reinar, e rein o u sobre Israel [qua­
renta] e dois anos (N V I).

Poucos versículos de ISam uel deram origem a tantas teorias interpretativas


como esse.25 Das três traduções citadas, a N R SV é a que mais se aproxima do texto
hebraico, embora, é claro, e