V. PHILIPS LONG
TREMPER LONGMAN III
UMA HISTORIA
BÍBLICA DE
ISRAEL
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Angélica llacqua CRB-8/7057
Provan,Iain
U ma história bíblica de Israel / Iain Provan, V. Philips Long,
Tremper Longman I I I ; tradução de Mareio Loureiro Redondo. - São
Paulo: Vida Nova, 2016.
496 p.
Bibliografia
ISBN 978-85-275-0643-4
Título original: A biblical history o f Israel
15-0970 C D D 221.95
l . a edição: 2016
T odas as citações bíblicas sem indicação d a versão foram extraídas da A lm eid a Século 21.
C itações bíblicas com a sigla T A se referem a traduções feitas pelo autor.
G e r ê n c ia e d it o r ia l
F abiano Silveira M edeiros
C o o r d e n a ç ã o e d it o r ia l
V aldem ar K roker
E d iç ã o d e t e x t o
T ia g o A bdalla
R e v is ã o d a t r a d u ç ã o e
prepa ra çã o d e t ex t o
T atian e Souza
M arcos G ra n co n a to
R e v is ã o d e p r o v a s
Sylm ara B eletti
D ia g r a m a ç ã o
S andra Reis O liveira
C a pa
O M D esigner
Sumário
Prefácio.........................................................................................................................11
Cronologia simplificada dos períodos arqueológicos em Canaã................................13
Reduções (siglas e abreviaturas)................................................................................. 15
P R IM E IR A PA R T E :
H IS T Ó R IA , H IS T O R IO G R A F IA E A B ÍB L IA
SEG U N D A PARTE:
A H IS T Ó R IA D E IS R A E L ,
D E A B R A Ã O A T É O P E R ÍO D O P E R S A
Conclusão................................................................................................................... 467
índice de passagens bíblicas........................................................................................469
índice remissivo..........................................................................................................481
Prefácio
O balbuciar dos bebês e as declarações de seus irmãos mais velhos têm diversas uti
lidades. U m a delas é fazer com que os autores não precisem dar longas explicações
sobre a razão de sua obra, para proveito dos que desejariam lê-las. Assim, restringi
mos aqui nossos comentários a manifestações de agradecimento a todos os que nos
ajudaram a concluir este projeto, em especial a Jason M cKinney e Carrie Giddings,
que realizaram a maior parte do trabalho pesado e da revisão de provas. Para
decepção dos que gostam de aplicar a crítica editorial a obras escritas por mais de
um autor e, portanto, precisam fazer intervalos mais freqüentes para respirar um
pouco de ar puro, acrescentamos apenas a seguinte informação: os capítulos 1-3,
5, 9 e 10 são em grande parte de autoria de Provan; os capítulos 4, 7 e 8 são prin
cipalmente de Long; e os capítulos 6 e 11 são predominantemente de Longman.
Provan atuou também como editor geral, unindo todas as partes do livro, e Long foi
o responsável pela obra durante o processo de publicação.
Iain Provan
Phil Long
Tremper Longm an III
Cronologia simplificada dos
períodos arqueológicos
em Canaã
AB Anchor Bible
ABD The Anchor Bible dictionary. David N. Freedman et al. (orgs.)
AJSL American Journal o f Semitic Languages and Literatures
ANEP The Ancient Near East in pictures.J. B. Pritchard (ed.)
ANET Ancient Near Eastern texts. J. B. Pritchard (ed.)
AOA T A lter O rient und Altes Testament
A SOR American Schools o f O riental Research
A TD an Acta theologica danica
A U SD D S Andrews University Seminary Doctoral Dissertation Series
A U SS Andrews University Seminary Studies
BA Biblical Archaeologist
BARev Biblical Archaeology Review
BASO R Bulletin o f the American Schools o f Oriental Research
Bib Biblica
BibOr Biblica et Orientalia
BibS(N) Biblische Studien (Neukirchen, 1951-)
BJS Brown Judaic Studies
BKAT Biblischer Kommentar: Altes Testament
BN Biblische Notizen
BR Biblical Research
BSem The Biblical Seminar
BTB Biblical Theology Bulletin
B ZA W Beihefte zur Zeitschrift fíir die alttestamentliche W issenschaft
CAH Cambridge Ancient History
CBQ Catholic Biblical Quarterly
CNBB Versão do Conselho Nacional dos Bispos do Brasil
16 U M A H I S T Ó R I A B ÍB L IC A D E ISR A EL
HISTÓRIA,
HISTORIOGRAFIA
E A BÍBLIA
Capítulo 1
l The invention o f ancient Israel: the silencing ofPalestinian history (London: Routledge, 1996), p. 35,69.
2Ibidem , p. 51, 68-9.
3Ibidem , p. 161. W hitelam atribui essa ideia especificamente a G arbini, mas parece que ela está em
clara harm onia com a de W hitelam .
22 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA
Quais são as possibilidades de salvar o paciente? O u, caso isso não ocorra, ele pode
ser ressuscitado? N a busca de respostas a essas perguntas, temos de entender um
pouco como a disciplina da História de Israel se desenvolveu até sua forma atual.
Nosso primeiro capítulo é dedicado a essa tarefa; começaremos pelo fim, com a
discussão e a análise dos argumentos de W hitelam .4
ANÁLISE DE UM OBITUÁRIO
4A breve resenha a seguir está baseada na análise m uito mais aprofundada que I. W. Provan faz
em “The end o f (Israels) history? A review article on K. W. W hitelam s The invention o f ancient Israel”,
J S S 42 (1997), p. 283-300.
A H I S T Ó R I A B ÍB L IC A M O R R E U ? 23
passado, foram motivadas pela teologia e pelo sentimento, em lugar da erudição crí
tica, dependendo excessivamente de textos bíblicos para elaborar a história de Israel
e aquelas que, no presente, colocam de lado os textos bíblicos e tentam escrever a
história de forma relativamente objetiva e descritiva. Por exemplo, T. L. Thompson
vê entre os estudiosos do passado uma indiferença ideologicamente determinada
por qualquer história da Palestina que não envolva diretamente a história de Israel
na exegese bíblica...”; ele entende que uma história de Israel academicamente acei
tável não pode ser produzida por autores que estejam fascinados pelo enredo da
antiga historiografia bíblica.8 Essas duas tendências — a crescente desconsideração
pelos textos bíblicos e a descrição negativa dos estudos acadêmicos anteriores como
ideologicamente comprometidos — talvez sejam os principais aspectos que esta
belecem a distinção entre a nova forma de escrever a história de Israel9 e a antiga,
que tendia a considerar os textos narrativos fontes de dados essenciais para a histo
riografia (ainda que esses textos não fossem apenas históricos) e não estava muito
inclinada a introduzir no debate acadêmico questões ideológicas e de motivações.
Nesse contexto, sem dúvida é possível utilizar o livro de W hitelam como exem
plo perfeito da nova historiografia. Entretanto, o tipo de argumentação que acabamos
de descrever é levado muito mais adiante do que fora feito anteriormente. Seguindo
algumas ideias encontradas em P. R. Davies10 (ou talvez apenas sendo coerente com
tais ideias), W hitelam agora defende não somente que a informação fornecida pelos
textos bíblicos sobre o Antigo Israel é problemática, mas que a própria ideia do Antigo
Israel incutida em nossa mente por esses textos também é. Até mesmo historiadores
mais recentes ainda escrevem histórias de “Israel”, o que, para W hitelam , é um erro.
N a verdade essa abordagem é mais grave do que um erro, pois, ao inventar o Antigo
Israel, os estudiosos ocidentais têm contribuído para que a história da Palestina seja
silenciada. Para outros historiadores recentes, os compromissos ideológicos dos es
tudiosos são considerados relativamente inofensivos e sem implicações importantes
perceptíveis fora da disciplina de estudos bíblicos, mas W hitelam certamente discorda
desse entendimento. D e modo praticamente deliberado, ele estabelece a ideologia na
esfera da política contemporânea, afirmando que, como disciplina, os estudos bíblicos
têm colaborado para um processo que priva os palestinos de uma terra e de um passado.
'Early history o f the Israelite people fro m the written and archaeological sources, S H A N E 4 (Leiden:
Brill), p. 13,81.
5A lém dos textos de W hitelam e Thompson, podemos m encionar aqui livros como N . P Lem che,
Ancient Israel: a new history o f Israelite society, BSem 5 (Sheffield: JSO T , 1988); G . G arbini, History and
ideology in ancient Israel (New York: Crossroad, 1988); P. R. Davies, In search o f ancient “Israel”, JS O T S
148 (Sheffield: JSO T, 1992); e G . W . A hlstrõm , The history o f ancient Palestinefrom the Paleolithicperiod
to Alexanders conquest, edição de D . V. Edelm an, JS O T S 146 (Sheffield: JSO T, 1993).
“ Davies, Search.
A H I S T Ó R I A B ÍB L IC A M O R R E U ? 25
Primeiro devemos refletir sobre a atitude de W hitelam para com os textos bíblicos.
M esmo que relatos do passado sejam invariavelmente produto de um a pequena
elite com uma perspectiva particular, será que esses relatos não podem fornecer
informações sobre o passado que descrevem e também sobre os interesses ideológicos
de seus autores? Presume-se ser o desejo do próprio W hitelam que acreditemos nos
escritos dele (como parte de um a elite intelectual) sobre o passado como capazes de
nos informar tanto sobre os fatos ocorridos quanto sobre sua ideologia — embora
mais adiante retornaremos a essa questão. A verdade é que todos os relatos do pas
sado podem ser parciais (em todos os sentidos), mas a parcialidade em si não cria
necessariamente um problema. Por outro lado, mudanças de perspectiva na leitura
da narrativa bíblica têm, de fato, suscitado questões em muitas mentes sobre a m a
neira pela qual as tradições bíblicas podem ou devem ser usadas ao se escrever uma
história de Israel. Com certeza, há muito que criticar no que diz respeito ao método
antigo e aos resultados obtidos quando os textos bíblicos foram usados durante a
investigação histórica. Se agora, porém, os textos não devem mais ser vistos como os
principais dados nessa investigação histórica — como testemunhas do passado que
descrevem, em vez de simples testemunhas da ideologia de seus autores — , é outra
questão. A declaração ou a implicação de que, em parte como resultado do que agora
conhecemos sobre nossos textos, a academia tem sido obrigada, em certa medida, a
aceitar essa conclusão é ponto pacífico em publicações recentes sobre Israel e histó
ria. Porém, em meio a todas essas declarações e implicações, a pergunta permanece:
reconhecendo-se que a narrativa hebraica é elaborada artisticamente e influenciada
ideologicamente, será que, em relação a outros tipos de dados do passado, isso reduz
de alguma forma seu valor como fonte material para historiógrafos modernos? Por
exemplo, se as tradições bíblicas sobre o período pré-monárquico na forma pela qual
chegaram até nós são de uma época posterior (se isso for demonstrado), por que isso
significaria que elas são inúteis para a compreensão do surgimento ou da origem de
Israel?11 Tais perguntas continuam sem explicações.
A arqueologia e o passado
12Ibidem , p. 119; compare-se com o comentário sobre G ottw ald próximo ao fim da p. 118.
13Ibidem , p. 181-3.
14Nesse sentido, um exemplo que cham a particularm ente a atenção é a form a pela qual trata a
cham ada Esteia de M erneptá (ibidem, p. 206-10).
A H I S T Ó R I A B ÍB L IC A M O R R E U ? 27
e assim “dem onstrar” que o Antigo Israel da Bíblia e de seus estudiosos é uma
entidade imaginária, ou não. Se W hitelam pretende afirmar que esses dados não ofe
recem esse tipo de descrição — que “o historiador se defronta com textos parciais em
todos os sentidos do term o”15— então ele tem de explicar por que, para nos informar
sobre um passado “real” em oposição a um passado imaginário, a arqueologia é mais
confiável do que os textos. Deve explicar por que esses “textos parciais” específicos
são preferíveis a outros. Do modo que as coisas se apresentam, pode-se concluir
que W hitelam trabalha com um a metodologia que tem uma fé bastante simplista
na interpretação de dados que coincidem com a narrativa que ele mesmo deseja
contar, ao mesmo tempo que alega um alto grau de ceticismo e suspeita em relação
às interpretações dos dados que conflitam com sua narrativa.
Ideologia e passado
Um a terceira área que requer certa reflexão diz respeito à ideologia do historiador.
W hitelam afirma repetidas vezes que o Antigo Israel dos estudos bíblicos é uma
entidade “inventada” ou “imaginada” e prossegue em sua análise dando a entender
que as histórias escritas hoje sobre Israel dizem mais sobre o contexto e as crenças
de seus autores do que sobre o passado que alegam descrever. O quadro que ele
apresenta é de estudiosos bíblicos que querem acreditar no Antigo Israel — um
desejo que ignora as evidências. Respondendo a essas afirmações, devemos reco
nhecer que não há dúvida de que as histórias de Israel escritas hoje falam algo sobre
o contexto e as crenças de seus autores. É um fato natural da vida que, em tudo o
que pensam e agem, os seres humanos estão inseparavelmente ligados ao mundo
no qual pensam e agem. Não temos culpa de ser moldados, pelo menos em parte,
por nosso contexto, façamos ou não um esforço consciente para ter alguma noção
desse contexto e de sua influência sobre nós. Nosso pensamento é influenciado pelas
categorias disponíveis. Contudo, não é possível demonstrar que os autores de li
vros sobre a história de Israel tenham, em geral, sido influenciados pela ideologia,
e não pelos dados — pelo desejo de acreditar, sem levar em conta as evidências.
O próprio W hitelam admite que “... não é fácil estabelecer essas associações entre
os estudiosos da Bíblia e o contexto político em que a pesquisa bíblica se desenvolve
e pelo qual é inevitavelmente influenciada. Em sua maior parte, tais associações
são implícitas em vez de explícitas”.16 A leitura de seu livro deve, de fato, convencer
o leitor de que estabelecer essas associações não é fácil. N a realidade, ao chegar ao
final do livro, o leitor fica imaginando como exatamente a posição de W hitelam
lsIbidem , p. 183.
“ Ibidem , p. 23.
28 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA
sobre a ideologia dos historiadores pode ser coerente. Será que os outros estudiosos
têm um a ideologia que compromete seu trabalho acadêmico, levando-os inevita
velmente a abandonar a razão e a ignorar as evidências, ao passo que W hitelam ,
livre de qualquer ideologia, consegue compreender pessoas e acontecimentos com
mais clareza? Às vezes essa conclusão parece clara, mas, em outro texto, ele sugere,
com a mesma clareza, que todos são influenciados por alguma ideologia na pesquisa
acadêmica. Então, a posição de W hitelam seria a de que a razão e os dados sempre e
inevitavelmente estão a serviço de um a ideologia e de um conjunto de compromis
sos? Será que sua objeção não é ao fato de que outros estudiosos simplesmente não
partilham do conjunto particular de compromissos assumidos por ele — eles não o
apoiam na história da Palestina que deseja contar? Novamente, parece que às vezes
essa é a perspectiva de W hitelam . Sendo assim, tudo indica que não estamos mais
falando de história, mas apenas de narrativas acadêmicas. Essa conclusão é um tanto
irônica, considerando a crítica de W hitelam às narrativas bíblicas por sua natureza
lendária, em vez de histórica.
Na verdade, o debate sobre a ideologia dos acadêmicos obscurece a verdadeira
questão, que diz respeito aos dados. H á vasta documentação mostrando que a eru
dição do passado, embora reconhecesse que a historiografia é mais do que a simples
listagem de indícios, aceitou o fato de que toda historiografia tem de levar as evidên
cias em conta. N a realidade, a verdadeira discordância em todo esse debate é acerca do
que é considerado evidência. O que ocorre é que W hitelam acredita não ser correto
associar os textos bíblicos com outros dados na pesquisa sobre o antigo Israel. Até
então os estudiosos (e não apenas os estudiosos bíblicos) pensavam em geral de outra
maneira, pelo menos no caso de muitos textos bíblicos. Descrever esse esforço acadê
mico como se ele não lidasse seriamente com as evidências por causa de um ou outro
tipo de compromisso (“imaginando o passado”) é uma distorção significativa da
realidade, quando de fato a questão é: “Quais evidências devem ser levadas a sério?”.
Com base nessa análise, podemos observar que o argumento de W hitelam a favor
da m orte da história bíblica não é convincente nem coerente. Nessas circunstâncias,
seria um erro seus leitores se arrumarem às pressas para ir ao funeral. Primeiro pre
cisamos refletir um pouco mais sobre as importantes questões que foram levantadas.
N o entanto, antes de começar, devemos explorar mais a fundo o contexto do atual
debate sobre a história de Israel — o contexto que deu origem às histórias modernas
sobre Israel escritas há mais tempo. É nesse ponto que, antes de emitirmos um ates
tado de óbito, nossa percepção dessas questões cujas respostas precisam ser buscadas
será apurada e aperfeiçoada.
A H I S T Ó R I A B ÍB L IC A M O R R E U ? 29
Em bora tenhamos apresentado W hitelam até aqui como um modelo da nova his
toriografia e não da antiga, pelo fato de ele praticamente não se im portar com os
textos bíblicos em sua busca da história da Palestina, essa distinção não pretende
dar a impressão de que sempre ou em geral há um abismo separando os antigos
historiadores modernos de Israel dos novos. Ao contrário, boa parte do fundamento
em que os novos historiadores baseiam sua posição foi elaborada muito tempo atrás,
de maneira que as pressuposições e os métodos dominantes da historiografia antiga
conduzem diretamente ao ponto que nos encontramos agora. Como tem ocorrido,
historiadores mais antigos podem muitas vezes ter dependido mais de textos bíblicos
do que muitos de seus sucessores recentes. Entretanto, sua abordagem geral condu
ziu de forma natural e freqüente às atitudes atacadas por muitos estudiosos de hoje.
Se for preciso anunciar a morte da história bíblica, então uma longa enfermidade
precedeu o seu fim.
O próprio W hitelam chama a atenção para duas obras de história produzidas
na década de 1980 que, segundo seu parecer, já ilustravam a crise de confiança na
disciplina da história bíblica.17 Por causa de sua descrição dos problemas de se
utilizarem os textos bíblicos, tanto J. A. Soggin, de um lado, quanto J. M . M iller e
J. Hayes, de outro18 — mesmo dependendo em grande parte das narrativas bíblicas
para sua produção da história de Israel no período monárquico, — aventuraram-se
em reconstruções históricas dos períodos antigos com grau m enor ou maior de
autodesconfiança. M esm o em relação ao período monárquico, percebe-se que parte
do que escrevem é conjectural. Para W hitelam essa abordagem ilustra com clareza
o problema da história israelita antiga como um a “história de lacunas”, continu
amente obrigada a abandonar o firme fundamento do qual se pode dizer que o
em preendim ento se inicia com segurança. Abandonam -se, assim, as narrativas
patriarcais, depois, o Exodo e as narrativas da conquista como fontes que podem
servir de base para um a reconstrução significativa da história; logo em seguida
deixam-se de lado o livro de Juizes e as narrativas de Saul. Com Soggin e M iller/
Hayes, encontramos agora os textos sobre a monarquia de Israel sendo examinados
atentam ente e com graus variados de suspeita. Com base nesse ponto de partida,
W hitelam sugere então um abandono geral e rigoroso dos textos bíblicos como
fontes primárias para a história de Israel. Como a análise de ambos os livros revela,
17Ibidem , p. 34-5.
18J. A. Soggin, History o f Israel:from the beginnings to the Bar Kochba revolt, A D 135 (London: SCM ,
1984); J. M . Miller, J. Hayes, A history o f ancient Israel and Judah (Philadelphia: W estm inster, 1986).
30 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA
Soggin sugere que os editores, com o objetivo de dar suporte às próprias teorias,
tiveram liberdade no exercício de sua capacidade criativa e às vezes agiram de m o
do caprichoso na escolha e reestruturação do material que lhes chegou às mãos.
Por exemplo, Soggin afirma que, em geral, se aceita que a organização da nar
rativa dos patriarcas num a seqüência genealógica reflete a obra de editores. Em
nível histórico, é possível que os patriarcas tenham de fato sido contem porâneos
uns dos outros ou até mesmo nem tenham existido. Além do mais, a seqüência
patriarca-êxodo-conquista parece ser um a simplificação que os editores introdu
ziram, a fim de lidar com os problemas levantados por aspectos mais complexos
das tradições. No livro de Josué, a conquista é descrita com termos extraídos da
liturgia da adoração pública, sendo que a prim eira parte do livro abrange um a
procissão e um a celebração rituais, em vez de tratar de guerra e política. Essa
característica corresponde bem ao contexto de um a releitura pós-exílica do m a
terial. No contexto de fracasso político da m onarquia (como tam bém teológico
e ético), o povo de Deus é chamado de volta às origens, ao m om ento em que
aceitou com hum ildade e submissão o que Deus lhe oferecia em sua misericórdia.
D e m odo semelhante, o livro de Juizes, com sua descrição de um a liga tribal e sua
ênfase na adoração comum como fator de unidade política e religiosa, tam bém
corresponde a esse contexto posterior (embora, nesse caso, Soggin adm ita que
a descrição tam bém poderia estar relacionada à realidade pré-m onárquica). No
período pós-exílico a m onarquia havia sido substituída por um a ordem hierocrá-
tica, centrada no tem plo de Jerusalém. Por fim, as narrativas sobre o reinado de
Saul transform aram alguém que foi um guerreiro hábil e violento — sem mácula
ou temor, e que term inou seus dias em glória — num herói de tragédia grega,
dom inado por insegurança e ciúme e tam bém vítim a de ataques de hipocondria e
tendências homicidas. Aqui o editor se tornou um artista. A conseqüência é que
qualquer história de Israel que procure tratar do período anterior à m onarquia,
lim itando-se a um a simples paráfrase dos textos bíblicos e à mera complem enta-
ção desses textos com supostos paralelos do antigo O riente Próximo, não apenas
utiliza um m étodo inadequado, mas tam bém oferece um quadro distorcido dos
eventos que certam ente ocorreram. D e m odo acrítico, essa descrição aceita a visão
que Israel tinha de suas origens.
Para Soggin, essa é, portanto, a “proto-história” de Israel. Em que m om ento a
verdadeira história de Israel se inicia? Existe alguma época a partir da qual o m ate
rial da tradição começa a oferecer relatos confiáveis — informações sobre pessoas
que realmente existiram e fatos que ocorreram, ou que ao menos sejam prováveis,
e sobre eventos importantes nas esferas econômica e política e suas conseqüências?
Como ponto de partida, Soggin escolhe o período da monarquia unida nos reinados
de Davi e Salomão. Ele reconhece que as fontes de informação sobre esse período
32 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BlB LIA
Primeira, não parece tão claro que, quando o assunto são elementos “românticos”
e “negativos” (utilizando as categorias de Soggin), a forma presente das tradições
mais antigas da Bíblia tenha menos elementos misturados do que a forma presente
das tradições sobre a monarquia unida. As tentativas de Soggin de descrever as
tradições mais antigas apenas de acordo com a primeira categoria são, na verdade,
nada convincentes. Por exemplo, ele explica Juizes como um livro cujo propósito
foi legitimar a hierocracia pós-exílica, pois Juizes apresenta a liga tribal como
uma alternativa antiga e autêntica para a monarquia. E difícil levar essa hipótese a
sério; até o leitor de Juizes menos atento pode ver que, em sua maior parte, o livro
apresenta um a sociedade israelita que está longe de ser ideal e conclui com uma
descrição de caos social resultante da falta de um rei. Com certeza, a narrativa do
livro de Juizes não oferece ao leitor um a glorificação romantizada do passado. Só
uma leitura bastante falha do texto pode levar a essa conclusão; e o que é válido
para a leitura de Juizes apresentada por Soggin também é válido para sua leitura de
Gênesis-Josué.21 Fazer esse tipo de distinção entre Gênesis-Juízes e Samuel-Reis
exige uma leitura de Gênesis-Juízes altamente seletiva.
Segunda, e com base no ponto anterior, é claramente possível encontrar infor
mações como as que Soggin procura (e.g., informações sobre expedições militares
com alvos de conquista territorial) por trás da “fachada” do relato de Gênesis-Juízes,
assim como de Samuel-Reis. Portanto, de que modo a presença dessas informações
em Samuel-Reis nos levaria a pensar nesses textos de forma diferente à dos textos
precedentes? Parece que Soggin coloca o peso de seu argumento em parte na quan
tidade dos detalhes políticos, econômicos, administrativos e comerciais; no entanto,
ele deixa de demonstrar que o fato de passarmos da “proto-história” para a “história”
multiplicou esses detalhes, em vez de apenas mudar a dinâmica da narrativa. Afinal
de contas, agora estamos lendo a história de um Estado com contatos internacio
nais e não mais um a narrativa sobre um a confederação tribal. Por que a presença
desse tipo de detalhe na história de Davi e Salomão não é, então, simplesmente uma
indicação da forma de arte narrativa que Soggin encontra na narrativa de Saul? Em
parte Soggin também dá bastante importância à afirmação de que o historiador usou
esse tipo de detalhe em Samuel-Reis com o intuito de elaborar um quadro acerca
do reino unido israelita que seja plausível e consistente com o que as fontes bíblicas
dizem ter ocorrido mais tarde. No entanto, não fica claro por que devemos considerar
que, ao incluir esse tipo de detalhe, o objetivo dos autores de histórias mais antigas
seja outro que não nos contar sobre o passado, mesmo que não seja um passado que
21Podemos indicar especificamente sua sugestão de que a prim eira parte do livro de Josué descreve
o passado como um período em que Israel “aceitou com hum ildade e submissão o que D eus lhe ofereceu
em sua misericórdia” (History, p. 30).
34 H I S T Ó R IA , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA
Soggin imagine “plausível”; por outro lado, também não está claro o que exatamente
fica provado com o fato de a reconstrução feita por Soggin ser consistente com o
relato das fontes bíblicas sobre o que ocorreu posteriormente. A certa altura de sua
análise, o próprio Soggin elogia os compiladores e editores das tradições bíblicas
por possuírem “notáveis habilidades artísticas, utilizando pequenas unidades para
criar obras importantes que à primeira vista formam uma unidade coerente [...] uma
obra de arte”.22 Pode-se presumir que um aspecto dessa habilidade artística é que os
escritores apresentam relatos consistentes com outros relatos posteriores. Deve-se
considerar, então, por que Soggin acredita ser especialmente significativo o fato de
que a narrativa sobre o reino unido apresentada por ele com base em alguns textos
bíblicos seja consistente com a narrativa que os autores bíblicos apresentam sobre
os reinos posteriores de Israel e Judá. Se, em Samuel-Reis, a consistência de uma
narrativa com a seguinte é prova de que estamos lidando com história e não com
proto-história, então tal consistência também é prova de que, de igual forma, estamos
lidando com história em pontos mais antigos da tradição. Se, de um lado, coerência
em partes mais antigas da Bíblia indica apenas arte narrativa e não história, Soggin é
inconsistente ao defender que, em Samuel-Reis, a coerência indica história e não arte
narrativa. D e um modo ou de outro, a distinção que ele tenta fazer entre as tradições
bíblicas sobre a monarquia unida e as tradições bíblicas sobre períodos mais antigos
da história israelita não tem base suficiente.
Esta análise mostra como Soggin prepara bem o caminho para escritores mais
recentes como W hitelam . Segundo, W hitelam retrata a história da história de
Israel, ela é do tipo que sempre força os historiadores a abandonar a base firme em
que a tarefa pode ser realizada com segurança. A “base firme” de Soggin está fun
damentada na monarquia unida. O problema é que as pressuposições e os métodos
controladores com que Soggin trabalha tornam , em últim a instância, sua própria
posição insustentável. É possível, com extrema facilidade, aplicar as próprias pers
pectivas de Soggin — que o levaram a abandonar o fundamento de Gênesis-Juízes
e início de Samuel antes mesmo de haver iniciado o trabalho — ao fundamento
que ele mesmo escolheu, o restante das narrativas de Samuel-Reis, e destruí-lo. Se,
por conter narrativas de heróis e heroínas transmitidas por editores que viveram
muitos séculos depois dos acontecimentos, as tradições mais antigas da Bíblia não
são um “fundamento firme”, então por que tradições mais recentes são grande
mente valorizadas? Se as tradições mais antigas são problemáticas porque editores
utilizaram com liberdade ou por capricho suas capacidades criativas na escolha e
reestruturação do material que chegou até eles, então qual exatamente é a razão
de as tradições mais recentes não serem igualmente problemáticas? O u será que,
22History, p. 28.
A H I S T Ó R I A B lB L I C A M O R R E U ? 35
por algum motivo vago, simplesmente “sabemos” que elas não são? Se, no que diz
respeito a tradições mais antigas, a arte narrativa dos editores é um problema sério
para os historiadores, então por que essa arte tam bém não é um problema no caso
das tradições mais recentes? Por fim, como conseqüência de tudo o que é realmente
verdadeiro nas tradições bíblicas, se alguma história de Israel que retrata o período
anterior à monarquia baseada em simples paráfrases dos textos bíblicos está empre
gando um método inadequado, oferecendo, assim, um quadro distorcido do passado
ao leitor, então por que o mesmo não se aplica a um a história de Israel que adota tal
abordagem para o período que começa com a monarquia?
A verdade é que o ponto de partida escolhido por Soggin para escrever a história
de Israel é bem arbitrário. Não é uma questão de lógica, mas sim de uma escolha
sustentada em declarações sobre a “ingenuidade” das pessoas que pensam de outra
maneira. A seguir, temos mais a dizer sobre o uso desse tipo de declaração como
substituto para o argumento. Em circunstâncias como essa, W hitelam — que nos
lembra da própria inexistência de dados externos sobre o império davídico-salo-
mônico, algo de que o próprio Soggin está consciente — também pode, de modo
bem simplista, destruir o “fundamento firme” de Soggin sugerindo que, para narrar a
verdadeira história de Israel, não se pode confiar nos textos bíblicos de Samuel-Reis
mais do que nos de Gênesis-Juízes. Esse argumento é especialmente válido quando
os estudos sobre a narrativa bíblica no período entre a publicação do livro de Soggin
e o de W hitelam só ampliaram nosso conhecimento quanto à qualidade artística
da literatura bíblica. Nesse contexto, o argumento de W hitelam parece totalmente
aceitável ao sugerir que o comprometimento dos estudiosos modernos com as narra
tivas davídico-salomônicas como fontes históricas valiosas tem relação, mais do que
com qualquer outra coisa, com o contexto do período colonial europeu e também
com a necessidade deles de crer em um Estado de Israel poderoso, soberano e au
tônomo na Idade do Ferro. Volta-se contra o próprio Soggin (que parece acreditar
que a única história “verdadeira” é a história de Estados que atuam na esfera pública
— econômica e política — em vez, por exemplo, de pessoas que atuam na esfera
privada e familiar) o juízo que faz de outros estudiosos que dependem demais das
tradições bíblicas sobre o período mais antigo da história de Israel. Para W hitelam ,
um a dependência extrema das tradições bíblicas é justam ente o que levou estudiosos
como Soggin a introduzir, no que diz respeito ao “período monárquico” de Israel,
um m étodo inadequado para examinar o passado, distorcendo-o na busca da nação-
-estado que existia na forma de Israel. Na verdade, não há uma grande distância entre
a perspectiva de Soggin (de que o quadro existente na Bíblia das origens de Israel
é ficção literária) e a concepção ainda mais radical de W hitelam (de que o quadro
apresentado por grande parte da Bíblia hebraica do passado de Israel é ficção literária).
E precisamente isso o que ocorre quando os estudiosos se afastam progressivamente
36 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍ BLIA
23History, p. 54-79.
24Ibidem , p. 58.
A H I S T Ó R I A BÍB L IC A M O R R E U ? 37
2SIbidem , p. 74.
26Ibidem , p. 78.
27Ibidem , p. 80-119.
38 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA
e judaica — não por oferecerem base para reconstruir uma seqüência histórica
detalhada de pessoas e acontecimentos, mas porque apresentam informações pre
cisas sobre as circunstâncias gerais sociológicas, políticas e religiosas que existiram
entre as antigas tribos israelitas.
A esta altura podemos parar para analisar a lógica do raciocínio exposto até
aqui. Q ual é a confiabilidade do fundamento em que M iller e Hayes se apoiam para
iniciar sua história de Israel? Eles reconhecem que tanto Gênesis-Josué quanto
Juizes têm em comum a mesma forma de plano editorial geral, que descrevem como
artificial, não convincente e de pouquíssima utilidade para o historiador. Concordam
ainda que em cada caso as narrativas individuais são problemáticas para o historia
dor. Portanto, qual é a base para se ter mais confiança no material de Juizes do que
no de Gênesis-Josué? M iller e Hayes afirmam que é menos difícil isolar as tradições
mais antigas por trás da “camada editorial” existente no material de Juizes do que
no de Gênesis-Josué, mas, ao que parece, já separaram as tais tradições mais antigas
que os compiladores uniram no relato de Gênesis-Josué. E mais: eles fizeram isso
com bastante habilidade, usando as tradições como prova de que a ideia da origem
de Israel apresentada em Gênesis-Josué é idealista (de que outra forma eles saberiam,
que ela é idealista?). Também sustentam que acontecimentos milagrosos e eventos
extraordinários não são predominantes nas narrativas que compõem Juizes tanto
quanto nas narrativas de Gênesis-Josué, mas ao mesmo tempo argumentam que
essas narrativas de Juizes são lendas folclóricas “... não diferentes das narrativas
patriarcais de Gênesis...”— os detalhes nas narrativas individuais abusam da inge
nuidade.28 M iller e Hayes são da opinião de que as condições gerais socioculturais
pressupostas nas narrativas de Juizes estão em harmonia com o que se conhece das
condições existentes na Palestina no início da Idade do Ferro; contudo, em nenhum
m om ento demonstram que isso não se aplica às condições gerais socioculturais
pressupostas nas narrativas de Gênesis-Josué. Na verdade, citam alguns dados con
sistentes com a perspectiva contrária.29 Por fim, defendem que a situação refletida
nas narrativas de Juizes fornece um contexto confiável e compreensível para o sur
gimento da monarquia israelita como descrito em 1 e 2Samuel. M as M iller e Hayes
não explicam como o fato de a literatura de Juizes nos preparar para a literatura de
1 e 2Samuel pode nos dizer algo sobre a história (uma perspectiva im portante de
seu ceticismo sobre “elaborações literárias”). Também não explicam de que m a
neira Juizes estabelece um contexto confiável e compreensível para o surgimento
da monarquia israelita, diferentemente de Gênesis-Josué em relação ao contexto do
surgimento de Israel na Palestina. Portanto, se M iller e Hayes acreditam de fato
30Ibidem , p. 129.
31O bserve-se a análise m inuciosa em ibidem , p. 132-48.
32Ibidem , p. 159.
33O bserve-se a descrição da natureza do m aterial davídico em ibidem, p. 152-6, e tam bém os
com entários que fazem sobre docum entos extrabíblicos e informações arqueológicas em ibidem,
p. 159-60.
40 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A B ÍBL IA
34Ibidem , p. 193.
35Essa é a conclusão de W h itelam em Invention, cap. 4.
A H I S T Ó R I A B ÍB L IC A M O R R E U ? 41
37E m tem pos recentes, na discussão sobre a natureza da ciência, o próprio term o “positivismo”
passou a ser usado de m aneira um tanto imprecisa, referindo-se apenas à m oderna abordagem científica
crítica/em pírica da realidade em geral, quer se façam, quer não, declarações abrangentes sobre a natureza
do conhecim ento válido. Assim, em “H istory and the H ebrew Bible” (in: L. L. Grabbe, org., Can a
“History o f Israel’’ be written? JS O T S 2 4 5 /E S H M l [Sheffield: Sheffield Academic, 1997], p. 37-64)
H . M . Barstad sugere que, no contexto da discussão sobre história, um a definição útil de positivismo
seria “a crença na história científica” (p. 51, nota 35) — um a sugestão com que concordamos por
ressaltar a verdade de que toda história, plenam ente positivista ou não, que declara ser científica tem ,
inevitavelmente, elementos positivistas.
46 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍ BLIA
estritam ente definido pressupõe não apenas que todo conhecim ento deve se
basear em fenômenos diretamente observáveis (i.e., não está simplesmente dedicado
ao empirismo e ã verificação no sentido rankeano), mas tam bém que todos os
esforços científicos devem ter o objetivo de descobrir leis gerais que governam os
fenômenos. Observar, buscar fenômenos regulares, tirar conclusões gerais sobre os
resultados da pesquisa e formular leis devem ser as tarefas de todas as disciplinas
científicas, e só essa abordagem positivista pode produzir conhecimento suficiente
mente seguro que sirva de guia para reformular a vida humana. Para essa concepção
só as experiências sensoriais têm valor, de modo que toda a estrutura da filosofia
idealista desaba (porque no modelo positivista é impossível “conhecer” deuses, ideias
e coisas do tipo); a estrutura da historiografia idealista, com sua ênfase na pessoa e na
nação em particular, cada um a no respectivo contexto idiossincrático, tam bém cai
por terra. D e modo diferente, a historiografia positivista é firmemente determinista,
concentrando-se em fenômenos ou forças gerais (e, por conseqüência, previsíveis)
presentes na história em vez de naquilo que é único e idiossincrático.
C om esse tipo de historiografia, a falta de interesse pela tradição na busca
do passado se torna plena. N a m elhor das hipóteses, a tradição passa a ser apenas
um a m ina da qual se podem extrair “fatos” determ inados pelo m étodo empírico.
A tarefa do historiador, portanto, é estabelecer a verdadeira relação científica entre
os “fatos” (em oposição à interpretação tradicional deles) e, em seguida, prosseguir
em direção a conclusões e leis gerais que surgem dos fatos (e.g., a abordagem de
H ipólito Taine, que acreditava que por meio desse processo era possível explicar
o passado em sua totalidade). No início do século 20, não estava ainda clara
para alguns intelectuais a ideia de que não era mais tarefa do historiador relatar
esses “fatos” ou tirar conclusões gerais sobre eles. Ao contrário, Em ile D urkheim
defendeu que os historiadores deviam apenas descobrir, depurar e apresentar os
“fatos” ao sociólogo, para que este tirasse conclusões gerais. Em um processo como
esse, dever-se-ia dar prioridade à análise das causas em vez da descrição e da
narração, ao geral em vez do particular e individual, e ao presente diretam ente
observável em vez do passado inobservável.
Seguindo ou não a exata formulação de D urkheim , a historiografia no
m odelo positivista deixa de ser um relato do passado em que pessoas e grupos
desem penham papéis centrais e fundam entais para se tornar um a narrativa sobre
as forças impessoais que moldam tanto o passado quanto o presente. A história
positivista antiga de H . Ruckle prenunciou muitas obras posteriores elaboradas
com a m esma inclinação, destacando de m odo mais geral condições climáticas,
alimento, solo e natureza — em vez àe pessoas — como o que dá form a à civiliza
ção, e argum entou que os historiadores, caso não queiram ser ignorados, devem
abandonar a historiografia da descrição e das lições morais em favor de um a
A H I S T Ó R I A B ÍB L IC A M O R R E U ? 47
A história adequada para nossa cultura só pode ser a história científica. Na cultura ociden
tal moderna, a forma de conhecimento de ocorrências neste mundo é crítico-científica.
48 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA
Não podemos abrir mão de exigir o que é indiscutível cientificamente sem causar danos
à consciência de nossa cultura.38
n Geschichte und K ultur (Stuttgart: Rrõner, 1954), p. 13. C itado e traduzido em R. Smend,
“Tradition and history: a complex relation”, in: D . A. K night, org., Tradition and theology in the Old
Testament (Philadelphia: Fortress, 1977), p. 49-68; citação na p. 66.
39B e history o f Israel, tradução para o inglês da 2. ed. (L ondon: L ongm ans, G reen and Co.,
1869), obra em 6 vols. C itação no vol. 1, p. 13. O s volumes em alemão foram publicados pela prim eira
vez em 1843-1855.
A H I S T Ó R I A B ÍB L IC A M O R R E U ? 49
As tradições patriarcais
Como se deve defender, por exemplo, o uso das tradições patriarcais diante de tais
critérios? Mesmo quando se atribuíram às formas literárias dessas tradições datas tão
recuadas quanto os séculos 10 e 11 a.C., muitos estudiosos — especialmente du
rante a era de estudos bíblicos em que a “hipótese documentária” de Graf-Wellhausen
sobre a composição do Pentateuco teve ampla aceitação e foi reconhecida como ver
dade evidente — tinham a impressão de que as tradições estavam demasiadamente
distantes de qualquer era patriarcal para nos dar muitas informações de valor. O pró
prio Ewald, cuja história de Israel em vários volumes precedeu a influente obra de
Wellhausen e que, em geral, demonstrou grande respeito pela relação entre a tradição
do Pentateuco e os fatos históricos, achava que as tradições patriarcais eram de con
fiabilidade questionável. Ele sustentava que a tradição em geral, embora se originasse
de fatos, preservava apenas uma imagem do que aconteceu. O fato está misturado com
a imaginação e é distorcido pela memória. A tradição é uma entidade flexível que, à
medida que o tempo passa, pode ser modelada por interesses religiosos e etiológicos e
por perspectivas mitológicas. Ela tem grande força inerente, de forma que até mesmo
a substituição da memória pela escrita somente ajuda a controlar o processo em vez de
interrompê-lo. N a fase oral da transmissão, isto é, antes que surja uma tradição histo-
riográfica, não existem controles eficazes, de modo que nem mesmo um esforço sério
por aqueles que transmitem os relatos passando-os adiante sem distorção é capaz de
impedir a reformulação deles. Assim, as tradições patriarcais em particular, agora con
tidas no que Ewald chamou de “Grande livro das Origens” (Gênesis-Josué) — ao qual
atribuiu a data do período da Monarquia Antiga — , devem ficar sob suspeita, pois
surgiram antes do início da historiografia em Israel (na era mosaica e pouco depois).
Ewald considerou (mas rejeitou) a ideia de que não podemos conhecer nada acerca da
existência e do estabelecimento histórico dos patriarcas em Canaã. Preferiu, porém,
em vez disso, extrair tal história da tradição conforme achava possível.40
40Veja Ewald, History, vol. 1, passim, mas em especial p. 13-45 (sobre a tradição); p. 45-62 (sobre
a escrita e a composição histórica); e p. 288-362 (sobre os patriarcas), observando-se a reflexão sobre o
agnosticismo na p. 305.
50 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍ BLIA
44Tais perguntas foram feitas já no século 19 por estudiosos como R. Kittel (A history o f the Hebrews
[London: W illiam s and Norgate, 1895], 2 vols.), que acreditava que historiadores como W ellhausen
eram negativos demais em sua avaliação das tradições patriarcais e defendia que a saga e a tradição oral
poderiam representar os acontecimentos do passado com precisão.
45Com o G . E. W right relembra, não é clara a m aneira que se espera que funcione o processo de
“comprovação”: “O cético sempre está em vantagem porque a arqueologia só se m anifesta para respon
der às nossas perguntas e pode-se dizer que não é possível provar tradição alguma” (“W h a t archaeology
can and cannot do”, B A 34 [1971], p. 70-6, citação na p. 75). Ele prossegue sugerindo o seguinte em
relação aos debates sobre se a arqueologia “provou” a veracidade das coisas: “C om respeito a qualquer
história cultural, política e socioeconômica passada, os dois lados da controvérsia empregam de m anei
ras inadmissíveis, e até mesmo absurdas, o term o prova’” (p. 75).
46Devemos ressaltar que pelo menos a questão do que a arqueologia pode ou não verificar já havia
sido levantada, por exemplo, por M . N o th (e.g., History o f Israel, tradução para o inglês da 2. ed. alemã
[L ondon/N ew York: Black/H arper and Row, 1960], p. 45-6). E ntretanto, visto que, a respeito da tra
dição, N o th não partilhava da ideia geral que estamos esboçando aqui, suas dúvidas sobre esse assunto
específico não fizeram com que ele fosse um a exceção em iniciar um a história de Israel pelos patriarcas
(veja mais adiante).
47A principal exceção é J. Bright, que, em A history o f Israel (2. ed., Philadelphia: W estm inster,
1972), apresentou um a análise sobre tradição e histó ria em relação aos patriarcas com m uito
m ais variantes do que é com um ocorrer (p. 68-85). Nesse ponto, q uanto à historicidade, o livro
não faz n enhum a suposição contra a tradição e, em bora a arqueologia possa fornecer um pano de
fundo para a leitura da tradição, devido à n atureza do caso, ela é tid a com o incapaz de provar que
os relatos dos patriarcas aconteceram tal com o a B íblia conta. B right, porém , relem bra que, p o r
outro lado, a arqueologia tam bém não contradisse qualquer coisa da tradição. T al defesa da tra d i
ção vai contra a tendência da historiografia bíblica recente e alguns estudiosos sem pre estiveram
propensos a suspeitar de um “fundam entalism o” secreto presente em alguém que d iz que “repudiar
as tradições ou escolher delas apenas o que atrai por parecer razoável não é um procedim ento
academ icam ente defensável” (p. 74). E n tre tan to , quanto ao “fundam entalism o”, à “ingenuidade”
e à “erudição crítica”, veja m ais adiante. E evidente que a posição de B rig h t certam ente não está
suscetível aos ataques do m étodo positivista, que se baseiam na inexistência de “prova” arqueológica que
favoreça as afirm ações da tradição. Veja ainda sua obra Early Israel in recent history ■writing: a study
in method (S B T 19, L ondon: S C M , 1956).
52 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA
Se abandonarmos a era patriarcal como ponto de partida, qual seria a outra opção
que deveríamos tentar utilizar como base? No que diz respeito à verificação externa,
as narrativas que tratam das eras de Moisés e Josué são tão problemáticas quanto as
que abordam a era patriarcal;48 e, de qualquer forma, a não ser que se esteja preparado
para debater com Ewald e argumentar que a tradição bíblica se origina de fontes
escritas que remontam à era mosaica, é improvável (com base nas pressuposições
em geral partilhadas pela erudição aqui analisada) que a tradição tenha muito a nos
dizer sobre esses períodos.
W ellhausen é bem inconsistente nesse exato ponto, o que é intrigante quando
se considera o quanto sua influência é percebida na história da história de Israel
do últim o século e mais recente.49 W ellhausen vai m uito além de Ewald em suas
ideias sobre os patriarcas, sustentando que não se pode usar deforma alguma as
narrativas de Gênesis com objetivo historiográfico. Ele afirma que não chegamos
a conhecim ento histórico algum sobre os patriarcas com essas narrativas, mas
conhecemos apenas o período em que surgiram as narrativas sobre os patriarcas —
o período da monarquia anterior à conquista do Reino do N orte (Israel) pela Assíria
no oitavo século a.C. (no caso da fonte J) e, certamente, mais tarde, o período do
Exílio (no caso da fonte P).so Pode-se pensar que o corolário desse argumento
deveria ser o de que tam bém não chegamos a nenhum conhecimento histórico das
eras de Moisés e Josué, mas só da época em que surgiram os relatos sobre eles, pois
lemos sobre essas eras nas mesmas fontes do Hexateuco. Além do mais, a ideia
geral de W ellhausen sobre a literatura hebraica é que o período antes do final do
nono século a.C. pode ser, em grande parte, descrito como um a era não literária,
ainda que alguma literatura (inclusive história em prosa) tivesse existido antes
dessa época.51 Como, então, ele não defende o agnosticismo em relação à era
4SNão existe, por exemplo, nenhum a confirmação independente do Exodo e, para alguns estu
diosos, a própria natureza da narrativa que o descreve parece, em princípio, apresentar problemas de
verificação (e.g., G . W . Ahlstròm : “Visto que o texto bíblico se interessa basicamente por ações divinas,
as quais não são verificáveis, é impossível utilizar a narrativa do Êxodo como fonte para reconstrução
da história dos períodos do Bronze Recente e do início do Ferro I ” \ Who were the israelites? W inona
Lake: Eisenbrauns, 1986, p. 46]). D o mesmo m odo, a questão de a arqueologia “provar” ou não que um a
conquista de C anaã tenha ocorrido é assunto de extensos debates ao longo de muitas décadas.
49Prolegomena to the history o f Israel (Atlanta: Scholars Press, 1994) — um a reimpressão da edição
de 1885 que incluiu como apêndice o verbete “Israel”, escrito por W ellhausen para a Encydopaedia
Britannica (9. ed., 1881, vol. 13, p. 396-431).
5<1Prolegomena, p. 318-27, 342, 464-5. C om toda probabilidade, Abraão é exemplo de “um a livre
criação de arte inconsciente” (p. 320), e a tradição patriarcal é “lenda” (p. 335).
51Ibidem , p. 464-5.
A H I S T Ó R I A B ÍB L IC A M O R R E U ? 53
As tradições de Juizes
O utro ponto de partida arbitrário para os livros de história de Israel que bus
cam um “firme fundamento” na tradição é o livro de Juizes. M artin N oth, embora
(ao contrário de Wellhausen) não negasse a existência dos patriarcas como per
sonagens históricos, acreditava que a natureza da tradição bíblica nos impede de
52Ibidem , p. 360.
53Tam bém podem os acrescentar que, no que diz respeito à atividade literária, o ponto de partida
adotado por W ellhausen não está bem fundam entado em argumentos. Se a afirmação de W ellhausen é
que “diante da pergunta sobre o motivo de Elias e Eliseu não deixarem nada escrito ao passo que, cem
anos depois deles, Am ós aparece como escritor, é difícil que haja outra resposta exceto a que diz que,
no intervalo entre eles, um período não literário se transform ou em literário” (p. 465), então a resposta
óbvia é que na verdade não sabemos se Elias e Eliseu não deixaram nada escrito, nem se Am ós foi um
autor. Sabemos apenas que não temos um “livro de Elias” nem um “livro de Eliseu”, mas tem os um livro
de Am ós. C om base nesses fatos não podemos deduzir nada sobre a história cultural de Israel.
54 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA
escrever alguma história propriamente dita sobre eles.54 O mesmo se pode dizer das
tradições a respeito de tudo o mais que aconteceu antes da aparição de Israel como
confederação tribal na Palestina. Para o historiador, o problema é que, embora possa
não haver dúvida de que o Pentateuco se propõe a relatar fatos que ocorreram —
e inclui um volume considerável de material relacionado a tradições históricas —
com certeza ele não surgiu (na perspectiva de N oth) como obra histórica nem foi
planejado desde o princípio com esse propósito. O Pentateuco não foi planejado
nem redigido como um a narrativa histórica coerente. Antes, ele é produto de com
binações sucessivas das tradições orais sagradas. As várias tradições tribais contidas
no Pentateuco ganharam sua forma definitiva unificada pela primeira vez em um
Israel que já estava unificado na Palestina. Essa liga de doze tribos israelitas intro
duziu pela primeira vez o conceito de “todo o Israel” no que originalmente eram
tradições tribais independentes. Agora todo o povo de Israel lia textos sobre vários
passados independentes como se fosse seu passado unificado. Assim, na forma pre
sente, as tradições mais antigas personificam, por exemplo, em Jacó/Israel e em seus
doze filhos, a situação histórica existente depois da ocupação da terra. Baseiam-se
em pressuposições que não existiram até que as tribos tivessem se estabelecido. N oth
alegava que uma leitura cuidadosa do livro de Josué revela que antes da época da liga
israelita não havia um Israel unificado. N a verdade, as várias tribos de Israel não se
estabeleceram na terra ao mesmo tempo. U m a vez que a combinação das tradições
independentes mais antigas é apenas um fenômeno secundário, então — refletindo
a perspectiva de uma época posterior — deve-se considerar o plano histórico que o
material apresenta como não confiável. Somente com a ocupação da Palestina é que
temos um “Israel” de fato plenamente unificado e, portanto, só a partir desse ponto
é que a verdadeira história de Israel começa.
Entretanto, as seguintes perguntas devem ser feitas: Como N oth sabe que a
perspectiva de “todo Israel” do livro de Juizes não é anacrônica como a perspectiva
de “todo Israel” de Gênesis ou Exodo? Como ele pode justificar um ponto de par
tida na tradição de Juizes, se não está disposto a adotar uma tradição anterior como
esse ponto inicial? Ele está consciente desse problema.ss Reconhece a impossibili
dade de imaginar qualquer período em que a situação real de Israel correspondesse
exatamente ao sistema de doze tribos descrito na tradição, e ele concorda que o
próprio número doze é “suspeito” e “aparentemente artificial”.56 Por essa razão, N oth
considera a possibilidade de que, quanto ao Antigo Israel, haja na noção de uma
34Q uanto a essa questão e à descrição das ideias de N oth apresentadas a seguir, veja esp. N oth,
History, p. 1-7,4 2 -8 4 ,1 2 1 -7 .
s5Ibidem , p. 85-97.
“ Ibidem , p. 86-7.
A H I S T Ó R I A B ÍB L IC A M O R R E U ? 55
37Ibidem , p. 88.
3sE.g., “A história só pode ser descrita com base em tradições literárias que registram aconteci
mentos e descrevem pessoas e lugares. A té mesmo descobertas arqueológicas só podem ser entendidas e
analisadas no contexto de informação fornecida por fontes literárias” (ibidem, p. 42); “N o que diz respeito
ao antigo O riente, que conhecimento realmente exato e qual conteúdo histórico teríamos, caso possuís
semos todos os indícios m ateriais, mas não as relíquias literárias no sentido mais amplo da palavra?”
(p. 46-7); “E m gerai não se deve esperar que ela [a arqueologia da Palestina] produza dados positivos
sobre acontecimentos e processos históricos específicos, exceto quando conduz à feliz descoberta de do
cumentos escritos [...]. Por causa da natureza da arqueologia, só raram ente surgem dados arqueológicos
que provem a veracidade de um acontecimento específico, bem como ele ocorreu conforme narrado nos
registros escritos [...]. O esclarecimento arqueológico da situação geral de qualquer período específico
não nos permite de m odo algum abrir mão do estudo da natureza das tradições preservadas nos registros
que têm sido transm itidos” (p. 48). Para ideias semelhantes, veja ainda R. de Vaux, “O n right and wrong
uses o f archaeology”, in: J. A. Sanders, org., Near Eastern archaeology in the twentieth century (G arden
City: Doubleday, 1970), p. 64-80; e W right, “Archaeology”.
56 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍ BLIA
respeito à anfictionia grega, sua argumentação siga o padrão positivista. Teria sido
melhor se N oth tivesse considerado e aplicado o próprio comentário sobre a arqueo
logia e o que ela demonstra: “O fato de ser demonstrável que um acontecimento foi
possível não é absolutamente prova de que de fato ocorreu”.S9M esm o que o paralelo
da anfictionia fosse mais convincente do que de fato é, não seria suficiente para o
propósito com o qual N oth o utiliza. Com certeza o fato de que um a confederação
grega existiu não demonstra que a associação tribal específica descrita em Juizes foi
um a realidade histórica e não somente literária, nem que sua natureza foi a de uma
anfictionia. A alegação simplesmente não tem lógica alguma, nem teria sentido
mesmo que se provasse que o paralelo é semítico e não indo-europeu e que o período
em consideração foi mais próximo do livro de Juizes.60 Se há a exigência de se
investigar a tradição, então paralelos sociológicos são tão inadequados para a tarefa
quanto a arqueologia.61 Por si mesmos, os paralelos não provam que a literatura
59History, p. 48. Com p. a ideia sem elhante de W ellhausen: “O que deve ter acontecido é de menos
im portância do que o que de fato aconteceu” (Prolegomena, p. 46).
60A lguns estudiosos têm , aliás, cham ado a atenção para possíveis paralelos do antigo O riente P ró
ximo (em vez de paralelos gregos) com o tipo de organização tribal que pode estar implícita no livro de
Juizes. Observe-se, e.g., W . W . Hallo, “Biblical history in its N ear Eastern setting: the contextual approach”,
in: V. P. Long, org., Israels past in present research: essays on ancient Israelite historiography, SBTS 7
(W inona Lake: Eisenbrauns, 1999), p. 77-97 (o texto de H allo foi publicado originalm ente em 1980).
“ C ontudo, em defesa de N oth talvez se deva dizer que ele ao menos tentou analisar um a tradição
(por mais mal orientada que essa tentativa possa ter sido) pela qual tinha grande respeito. C om relação
ao período pré-m onárquico, em alguns usos posteriores de “paralelos” sociológicos praticam ente não
se percebe nenhum ponto de contato com a tradição e, com a inexistência de tais pontos de contato,
esses paralelos são passíveis de questionam ento quanto a terem tam bém alguma ligação com a reali
dade histórica (em contraste com um a ligação apenas com a imaginação fértil erudita). Por exemplo, a
reconstrução de G . M endenhall “do que de fato aconteceu” na criação de Israel (“The H ebrew conquest
o f Palestine” [BA 25, 1962], p. 66-87), com seu foco em um a revolta israelita contra a cultura urbana
cananeia dominante, não passa de um a projeção no passado de m odernos princípios socioeconômicos e
ético-religiosos que não têm praticam ente nenhum a relação séria com a tradição bíblica (veja a crítica
feita por A. J. H auser em J S O T 7 [1978], p. 35-6). E m The tribes o f Yahweh: a sociology o f the reli-
gion o f liberated Israel, 1250-1000 B. C.E (Maryknoll: Orbis, 1979) [edição em português: A s tribos de
lahweh, tradução Anacleto Alvarez (São Paulo: Paulus, 1986)], N . K. G ottw ald apresenta um a teoria
semelhante, desconsiderando, sem motivo algum, noções não sociológicas como a de “povo escolhido”
ju n to com as tradições que empregam essa linguagem. E le se m antém impassível diante do fato de
que no texto bíblico não h á sequer a m enor indicação da ocorrência de um a revolução. E irônico que
mais tarde M endenhall tenha atacado G ottw ald por este projetar na história bíblica o plano de um a
ideologia do século 19. Pode-se ver o m esmo abandono da comprovação pela fantasia em escritos ainda
mais recentes que partilham de um ponto de vista semelhante. Nesse aspecto, embora com frequência
M . Weber, o autor de AncientJudaism (New York: The Free, 1952), seja citado próximo do início da lista de
estudiosos que aplicaram ideias sociológicas à história de Israel (visto que há consenso de que é o pai
do estudo sociológico m oderno sobre a religião), é injusto associá-lo com seus supostos sucessores, pois
A H I S T Ó R I A BÍB L IC A M O R R E U ? 57
afirma o que de fato aconteceu na realidade histórica — neste caso, não provam
que, diferente da expressão “todo Israel” do Pentateuco ou de Josué, a expressão
“todo Israel” do livro de Juizes não é criação de editores hipotéticos, combinando
de forma derivada as tradições tribais originalmente independentes. N a verdade, de
uma forma ou de outra o paralelo é imperfeito. As fontes extrabíblicas mencionadas
por N oth pertenceram ao mundo indo-europeu e não ao semítico (o que ele próprio
reconheceu como um ponto fraco de seu argumento).62 Além do mais, a data dessas
confederações é muito posterior à de seu paralelo hipotético israelita — um fato
devastador para a alegação de N oth de que o sistema tribal israelita, por não ser
um fenômeno único no m undo antigo, não pode ser um aspecto de um quadro
de Israel elaborado de modo secundário; ademais, essas confederações em grande
parte pertencem a uma cultura urbana em vez de rural.63 N a verdade, ao contrá
rio do que N oth afirmou, o número doze não era uma característica primária da
anfictionia extrabíblica. O número de seus membros podia variar. Por outro lado,
ele estava certo em identificar um santuário central como “o aspecto essencial das
instituições dessas associações tribais”;64 infelizmente, porém, o santuário central é
um aspecto que N oth tem grande dificuldade de encontrar no livro de Juizes.65 Por
isso, mesmo estudiosos que pensam que a comprovação deve ser feita por meio de
paralelos sociológicos consideram, geralmente, essa tentativa de comprovação de
N oth um fracasso.
A posição irônica de Noth, que é positivista em relação à sociologia, ao mesmo
tempo que se recusa a tomar a mesma atitude para com a arqueologia, é certamente
inevitável. Levando-se em conta sua atitude em geral com relação à tradição, a qual
ele partilha com a maioria dos autores que têm escrito sobre a história de Israel nos
últimos 150 anos, de alguma forma ele precisa demonstrar fora da tradição que há
fundamento para se adotar um ponto de partida dentro da tradição. Sem o paralelo
da anfictionia ele não conseguiria demonstrar que seu argumento acerca de Gênesis-
-Josué não se aplica também a Juizes — o fato, porém, é que Juizes apresenta, para
W eber tam bém levou a tradição bíblica a sério. Ele se voltou para a tradição quando procurou socieda
des que, à semelhança da sociedade protestante europeia, tinham base ético-religiosa para seu sistema
econômico. D escobriu tal base na teologia da aliança que permeava tanto a organização da sociedade
tribal israelita quanto sua religião profética.
62“Ê preciso ter cuidado com a m aneira que se usa esse material, visto que procede de um a região
relativamente rem ota, de um contexto histórico comparável, mas diferente” (History, p. 90-1).
“ Veja, e.g., nas p. 299-308 de “The period o f the Judges and the rise o f the m onarchy”, a excelente
análise de A. D . H . Mayes (in: J. H . Hayes, J. M . Miller, orgs., Israelite andJudaean history (London:
SC M , 1977), p. 285-331.
64History, p. 91.
65Ibidem , p. 91-7.
58 H I S T Ó R IA , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA
“ Ibidem , p. 42-3.
67Ibidem , p. 72.
A H I S T Ó R I A B ÍBL ICA M O R R E U ? 59
Conclusão
6sE m sua resenha do livro de T. L. Thom pson The origin tradition o f ancient Israel (JS O T S 55,
Sheffield: JS O T , 1987, vol. 1: The literary form ation o f Genesis and Exodus 1— 23), B. O . L ong faz
a seguinte observação convincente sobre esse tipo de pressuposição: “Análises literárias [...] são
explicações teóricas para descontinuidades que observamos em nossa leitura do texto canônico. Não
estou certo de que contribuam m uito — se é que chegam a fazê-lo — para decidir o que [...] pode
ser diretam ente histórico. Essa decisão tem de estar fundam entada em outras bases” (JBL 108 [1989],
p. 327-30; citação na p. 330).
69De godsdienst van Israel tot den ondergang van den joodschen staat (Haarlem: Kruseman, 1869-
1870), vol. 1, p. 3 2 -5 ,2 vols.
60 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA
Israel, é impossível retroceder além do oitavo século a.C. porque só a partir desse
período é que passamos a ter dados externos escritos que nos perm item avaliar a tra
dição bíblica — ficou ultrapassada. Com o P. R. Davies alega, o simples fato de que
nos livros de Reis encontramos um a narrativa em que alguns pequenos detalhes se
relacionam com textos extrabíblicos não significa que a narrativa específica de Reis
seja necessariamente verdadeira — a ideia de que aqui se pode confiar na tradição,
enquanto não se pode fazer o mesmo em relação à tradição do período anterior™
O próprio Davies defende uma abordagem totalmente não bíblica da história de
Israel, mais à maneira de D e W ette do que de Kuenen.
C ontudo, vemos que até mesmo Davies sente um a nostalgia contínua da
tradição, um a vez que, surpreendentem ente, dá aos livros de Esdras e Neemias
o lugar central em sua reconstrução histórica do período pós-exílico.71 Sua ju s
tificativa é que, primeiro, ao contrário do Israel da Idade do Ferro, no caso de
Esdras-Neem ias, os dados não bíblicos oferecem “em certa m edida” confirmação
de “alguns” processos básicos descritos nesse ponto da narrativa bíblica; e que,
segundo, desdobram entos subsequentes no surgim ento da sociedade judaica e
de sua religião “dem andam ” processos como o descrito em Esdras-N eem ias.72
A linguagem é um pouco imprecisa, mas parece que aqui (e só aqui) Davies tenta
defender que, um a vez que levamos a tradição bíblica a sério como literatura,
tam bém podem os aceitá-la, com os dados não bíblicos, como um m aterial que
retrata a história. Entretanto, é exatamente esse argum ento que alguns estudiosos
elaboram em favor de outros textos bíblicos — os mesmos estudiosos que, quando
procedem dessa maneira, Davies acusa de criarem um a versão palatável do relato
bíblico em vez de escreverem “história de verdade”.
Portanto, se Davies cai por sua própria espada e se seu “fundam ento firme” na
tradição se revela instável, então o caminho está livre para W hitelam . Se Davies
reluta em ir até o fim e chegar à conclusão lógica da atitude positivista para
com a tradição — pois, como ocorre no caso da história de um período anterior,
sem os textos bíblicos talvez não sejamos mais capazes de escrever um relato
significativo sobre Israel nos períodos persa e helenístico — W hitelam , por sua
vez, não reluta. Davies, em vez de nada dizer, está m uito disposto a se envolver
na arbitrariedade que, como vimos, é endêmica na história da história de Israel.
Ele começa a utilizar a tradição no período que lhe convém. W hitelam , porém,
está disposto a não dizer nada, pelo menos nada que tenha algo a ver com o Israel
da tradição bíblica.
70Search, p. 32-3.
71Ibidem , p. 84-7.
72Ibidem , p. 86.
A H I S T Ó R I A B ÍB L IC A M O R R E U ? 61
73“The history o f the study o f Israelite and Judean history”, in: Hayes e Miller, orgs., hraelite and
Judean history. p. 1-69; citação na p. 3.
74Ibidem , p. 61.
62 H I S T Ó R IA , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA
é apenas mais dependente da tradição bíblica do que Hayes gostaria que ele fosse.
Soggin oferece um exemplo ainda mais notável da mesma abordagem. Ao fazer
objeção à concepção de W. W. Hallo de que a história de Israel começa na época
do Êxodo, ele afirma que a posição de Hallo “pode ser entendida no contexto de
um a concepção ingênua da história de Israel, típica de escola dominical, adotada
por um escritor que não é um acadêmico da área bíblica”.75 Soggin afirma que, se
observarmos a proposta de Hallo, sua ingenuidade é visível à luz do que ele (Soggin)
disse anteriormente. Nas páginas precedentes, procura-se em vão algum argumento
que realmente demonstre que a posição adotada por Hallo deve ser considerada
ingênua. Hallo meramente escolhe na tradição um ponto de partida diferente do
ponto de Soggin e, em vez de se dar ao trabalho de debater com Hallo sobre isso,
Soggin adota o caminho mais fácil, o de insultá-lo.
Exemplos desse tipo de discurso são abundantes em obras de história de Israel
que almejam receber o título de “críticas”. N a verdade, pode-se caracterizar toda a his
tória moderna da história de Israel como uma disciplina em que, na busca por serem
reconhecidos como críticos, os estudiosos — como membros do que foi chamado de
“clube pós-iluminista de erudição histórica”76 — têm aplicado parcialmente uma
metodologia “científica” ao assunto que é objeto de estudo, esperando demonstrar que,
ao rejeitar este ou aquele aspecto da tradição, merecem ser reconhecidos como erudi
tos. Acusar outros estudiosos de determinado grupo de não serem verdadeiramente
fiéis sempre foi uma maneira eficaz de sugerir comprometimento pessoal com a causa.
Como ocorre nas mudanças decisivas por trás da própria historiografia moderna, é
possível traçar a história dessa tática ao menos até a Revolução Francesa. N o entanto,
assim como os que vivem denunciando também tendem a morrer como denunciados,
da mesma forma os estudiosos que se distinguiram como críticos — isto é, fazendo
acusações — foram no devido momento acusados por outros de não serem suficien
temente críticos, sendo denominados ingênuos (ou, pior ainda, devotos) no que diz
respeito a alguns aspectos da tradição. Nesse contexto, quando cada um escreve sua
história, sempre é possível dizer que os argumentos contra o material tradicional que
ele escolheu não usar se aplicam de igual modo ao material que de fato utilizou e,
assim, sempre é possível afirmar que outros fatores, além da análise crítica, exerceram
influência demasiada sobre o autor. Portanto, aos poucos, a tradição foi eliminada do
círculo acadêmico, mais por meio da intimidação intelectual do que de argumentos.
Estudiosos são acusados de ingênuos ou até mesmo de fundamentalistas, não porque
dependem da tradição apesar de outros dados, mas simplesmente porque dependem
7íE.g., Soggin, quando alega que “a disciplina crítica de escrever a história de Israel existe há mais
de um século”, m encionando Kuenen e Stade como seus pontos de partida, e quando afirma que, antes
dessa época, “a tendência era aceitar os textos de forma basicamente acrítica, parafraseando-os ou, na
m elhor das hipóteses, criticando-os apenas superficialmente” (History, p. 32), tudo o que ele realmente
parece estar fazendo é usar o título “crítico” como meio de elogiar predecessores cujos pontos de partida
na tradição pertencem à m esma época que ele adota (Stade) ou um pouco depois (Kuenen), m aldizendo
todos os demais.
64 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA
como aplicado às vezes no passado, não resolverá. Devemos nos dedicar a uma
cirurgia profunda para chegar às causas do problema. Por isso, nos capítulos a
seguir tentam os algo que frequentem ente os “estudiosos críticos” — que em geral
têm revelado bastante habilidade em criticar a tradição e uns aos outros — não
estão dem onstrando m uita capacidade de criticar as próprias pressuposições con
troladoras. Nesse processo refletiremos sobre o que o pensamento crítico de fato é
e o que não é.
Nos capítulos 2 e 3 começaremos com um a nova reflexão sobre epistemologia
focalizando a centralidade da confiança no testemunho de outros para se obter
conhecimento. Nesse ponto, apresenta-se uma justificativa fundamental para o
uso de textos bíblicos como fontes primárias para a história de Israel, no contexto
da discussão sobre a natureza das fontes extrabíblicas de informação. O capítulo
4 oferece um a exploração mais minuciosa da natureza dos textos bíblicos como
narrativa (como arte, história e teologia) e as implicações disso para seu uso como
fontes da história de Israel. A partir daí temos condições de oferecer, no capítulo 5,
uma descrição mais precisa do tipo de história que, em contraste e em comparação
com obras anteriores de história de Israel, estamos (e não estamos) buscando neste
livro. Por fim, estaremos em condição de justificar um a nova tentativa de escrever
um a “história bíblica de Israel” — um projeto que realizamos com a esperança
não apenas de salvar o paciente, mas de restabelecê-lo a um estado de saúde mais
vigoroso do que o que vinha experimentando há algum tempo.
Capítulo 2
Não existe mais um “Antigo Israel”. Não há mais lugar para ele na história. Temos
certeza absoluta disso. E agora, uma das primeiras conclusões desse novo conheci
mento é que o “Israel bíblico” foi originalmente um conceito judaico.1
T . L. Thompson, “A neo-A lbrightean schoolin history and Biblical scholarship?”,/BZ, 114 (1995),
p. 683-98; citação na p. 697. O artigo é um a resposta a “Ideologies, literary and criticai: reflections on
recent w riting on the history o f Israel”,J B L 114 (1995), p. 585-606, de I. W . Provan. E m “In the stable
w ith the dwarves: testimony, interpretation, faith and the history o f Israel” (in: A. Lemaire; M . S sbo,
orgs., Congress -volume: Oslo 1998, papers o f the 16th Congress o f the International O rganization o f the
Societies for O ld Testam ent Study [Leiden: Brill, 2000], p. 281-319), I. W . Provan apresenta um a res
posta completa ao artigo de Thompson. Leitores com interesse especial nessa discussão devem ler esse
artigo de Provan, no qual este capítulo e o seguinte se baseiam em parte.
66 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA
existente sobre o passado, o qual chegou até nós por meio de um a série de
portadores hum anos da tradição, e então destacar a im portância da pesquisa
em pírica para se alcançar o conhecim ento. Passamos dos “fatos” que podem os
determ inar para um a hipótese mais am pla sobre o passado, que pode ser elabo
rada com base nesse fundam ento empírico. O próprio Thom pson exemplifica
tal abordagem da realidade histórica. M as agora é necessário propor um a visão
alternativa para essa questão do “conhecim ento” sobre o passado, dedicando o
restante deste capítulo e todo o capítulo seguinte para analisá-la e defendê-la,
especialm ente no que diz respeito à história de Israel. Nossa visão pode ser
explicada da m aneira a seguir.
Conhecemos o passado, ao menos na medida em que é possível conhecê-
lo, principalmente por meio do testem unho de outras pessoas. O testem unho é
essencial para o acesso ao passado. H á o testem unho dado por pessoas e povos
antigos a respeito do próprio passado, transm itido de forma oral e escrita. H á
tam bém o testem unho de pessoas e povos antigos quanto ao passado de outros
povos, tam bém comunicado de forma oral e escrita. H á ainda pessoas do presente
que testem unham do passado, seja o de seus povos, seja o de outros. Neste último
grupo, encontram -se pessoas contemporâneas, como os arqueólogos, que fazem
certas alegações sobre o que encontraram e o que isso significa para o que já
foi descoberto anteriorm ente. O testemunho nos dá acesso ao passado da mesma
forma que qualquer outra coisa o faz. Por isso, toda historiografia envolve o
testem unho. M esm o que eu realize um a escavação arqueológica na Palestina e
desenterre ali um objeto, ainda assim dependerei totalm ente do testem unho de
outros que viveram antes de mim para entender a im portância e o significado
desse achado — e, então, decidir como devo acrescentar meu testem unho ao deles.
0 testemunho — que podem os chamar tam bém de “narração de histórias” —
é central em nossa tentativa de entender o passado. Por isso, a interpretação é
igualm ente inevitável. Todo testem unho sobre o passado é tam bém interpretação
desse mesmo passado. Os testem unhos têm sua ideologia ou teologia; têm pres
suposições e ponto de vista; têm estrutura narrativa; e (para que seja interessante
lê-los ou ouvi-los) envolvem arte narrativa com traços de retórica. Não podemos
evitar o testem unho e não podemos evitar a interpretação. Tampouco podemos
evitar a fé. Começamos esta seção falando do “conhecim ento”: como conhecemos
o que alegamos saber sobre o passado? N a verdade, porém, essa pergunta implica
uma concessão à visão do que os historiadores estão fazendo e da qual este capítulo
quer se distanciar. O que é geralmente chamado de conhecimento do passado seria
definido com mais exatidão comoyè' no testemunho, ou seja, nas interpretações que
outras pessoas fizeram do passado. Analisamos os testem unhos coletados e dis
poníveis; refletimos sobre as várias interpretações propostas; então, decidimos de
C O N H E C E R E CR ER : A FÉ NO P ASSADO 67
2E.g., J. Haberm as, Knowledge and human interests, tradução para o inglês J. J. Shapiro (London:
H einem ann, 1972); M . Hesse, Revolutions and reconstructions in the philosophy o f Science (Brighton:
Harvester, 1980).
C O N H E C E R E CRER : A FÉ N O PASSADO 69
3E. Breisach, Historiography: ancient, M edieval and modem (Chicago: University o f Chicago Press,
1983), p. 239. O resumo sobre os historiadores “que divergem” do modelo da historiografia m oderna
apresentado a seguir se baseia bastante na obra de Breisach.
4Ib id e m , p. 279.
C O N H E C E R E CR ER : A F É NO P ASSADO 71
em fenômenos naturais. De acordo com Droysen, essas coisas não poderiam ser
inseridas na natureza como se todas pertencessem a um a única esfera da vida.
D ilthey tam bém “rej eitou as tentativas de ver o m undo dos fenômenos humanos
como análogo ao m undo dos átomos e das forças mecânicas, bem como de fazer
separação rigorosa entre sujeito e objeto em toda pesquisa”5 realizada conforme
o modelo cartesiano. N a esfera hum ana, ele encontrou elementos — intenções,
propósitos, finalidades e ações dirigidas por tudo isso — que não existiam na
natureza e tornavam a realidade hum ana complexa demais para ser compreendida
por meio de análise e avaliação que resultassem na descoberta de regularidades e na
formulação de leis. Os historiadores só poderiam compreender essa complexidade
mediante Verstehen (“considerar empaticamente os motivos e as intenções dos
atores no passado”).
W indelband fez distinção semelhante entre dois tipos de análise da realidade:
a análise nomotética, que busca descobertas gerais (e é típica das ciências naturais), e
a análise idiográfica, que tenta compreender o evento individual e único (típico das
ciências humanas). Ele defendeu que a análise idiográfica pode usar a nomotética
como ferramenta útil, mas sem se render a seu objetivo generalizador.
Nesses três pensadores encontramos, de diferentes maneiras, um a insatisfação
com a noção de história científica, relacionada em parte com o falso objetivismo
dessa abordagem do passado e, em parte, com o reducionismo improvável, que
procura explicar toda a realidade como um modelo mecanicista do universo e que
particularm ente não dá espaço algum para o individual e o único. No decorrer das
décadas do século 20, esses pensadores não foram vozes solitárias. B. Croce, por
exemplo, entendia a vida hum ana como um processo constantem ente criativo em
que o historiador participa plenamente, lutando para ser imparcial, embora nunca
seja capaz de ser objetivo. A tarefa do historiador não é fazer a coleção e a avaliação
crítica das fontes como fatos com base nos quais elaborará um a interpretação (como
em Ranke) ou leis gerais (como no positivismo). Sua tarefa, porém, é a incorpo
ração de um passado vivo ao presente. C. Becker dem onstrou ceticismo quanto à
possibilidade de compreender o passado real, ressaltando que os historiadores só
podem tratar das declarações sobre eventos que não observam, em vez de analisar
os próprios eventos. Nesse sentido, os primeiros filósofos neopositivistas estavam
dispostos a chamar a atenção para o pseudoempirismo de historiadores científicos,
visto que esses filósofos admitiam que só afirmações baseadas na observação direta
tinham a condição de hipótese. Declarações inacessíveis à verificação adequada se
revelaram inconseqüentes, levando alguns a imaginar “se temos bases suficientes
para aceitar alguma afirmação sobre o passado, e até mesmo se há justificativa para
5Ib id em , p. 281.
72 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA
6A. J. Ayer, Philosophical essays (W estport: G reenw ood Press, 1980), p. 167-90; citação na p. 168.
A análise que segue esse comentário ilustra bem a dificuldade de responder a esses filósofos, caso suas
premissas básicas sejam aceitas.
7Breisach, Historiography, p. 332.
C O N H E C E R E CR ER : A F É N O P ASSADO 73
que esse objeto, o passado, exista para que o historiador o descubra. Afirma-se que
os historiadores elaboram o passado em vez de descobri-lo. Eles narram um a história
do passado. N a verdade, enquanto filósofos de história mais antigos, que favoreciam
o modelo científico, manifestavam preocupação com a forma narrativa de boa parte
da historiografia porque a narrativa continua sendo arte e não ciência, participantes
mais recentes do debate têm caminhado na direção oposta, questionando qualquer
distinção estrita entre história e narrativa.
Podemos, então, dizer com confiança que o m ovimento do século passado em
geral se afastou da noção de que a história é um a ciência e retornou à ideia de que
a história é um a arte. Para sermos bem precisos, e introduzindo nossos com entá
rios sobre a própria ciência, devemos, na verdade, afirmar que a ideia de tratar a
história como ciência no sentido do século 19 — ideia já questionada por alguns
pensadores no século 19 e no começo do 20 por motivos não relacionados ao que
estava ocorrendo na filosofia da ciência — passou a sofrer pressão cada vez maior
à medida que a natureza da própria ciência foi mais e mais esclarecida. Com o um
grupo de autores recentemente apresentou a questão: “No sentido do século 20,
não há um a história científica e nem mesmo um a ciência científica”.8 Além disso,
um autor já havia escrito anteriorm ente que “até o leitor menos atento da American
Historical Review [Revista Histórica Americana] [...] percebe que o historiador
científico, aquele que apresenta um quadro definitivo do que de fato aconteceu, é
um a espécie em extinção”.9
Foi assim que a esperança de notáveis historiadores e seus sucessores —
a de que, adotando um a abordagem empírica e crítica do conhecimento histórico,
podiam chegar a um a reconstrução puramente objetiva do passado, seja na forma
rankeana seja na positivista — se revelou um sonho impossível. Pela vantagem de
ter um a percepção posterior, vemos que os historiadores tristem ente se iludiram
no ponto em que creram ter alcançado esse resultado. M esm o quando adotavam a
ciência no lugar da filosofia como o m étodo básico do em preendim ento hum ano
e estavam decididos a descobrir “como as coisas de fato foram” em vez de aceitar
narrativas tradicionais sobre como as coisas foram, eram totalm ente incapazes
de evitar a influência da filosofia e da tradição ao articularem a própria visão do
passado. Cada um deles tinha as próprias pressuposições sobre a natureza da rea
lidade em geral e da realidade histórica em particular — sua narrativa acerca do
mundo do passado, do presente e do futuro. Embora esse relato não se originasse da
própria pesquisa histórica, mesmo assim eles o usavam para lidar com os “fatos”
8J. Appleby; L. H u n t; M . Jacob, Telling the truth about history (New York: N orton, 1994), p. 194.
9C. W atkins Sm ith, Carl Becker: on history and the climate o f opinion (Carbondale: Southern Illinois
University Press, 1956), p. 103.
74 H I S T Ó R IA , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA
10Geralm ente, essas “grandes narrativas” são chamadas de m etanarrativas — descrições abrangen
tes da realidade que alegam dar sentido a ela e que tornam possível um a explicação coerente de seus
vários aspectos (e.g., a ideia da história como progresso da hum anidade).
C O N H E C E R E CRER : A F É N O PASSADO 75
“ E ntretanto, tanto nesse aspecto como em outros, a resposta pós-m oderna à m odernidade não é
um fenômeno novo. O ceticismo em relação à aquisição de conhecim ento objetivo no m undo m oderno
é tão antigo quanto o pirronismo do século 17 e é encontrado em pensadores ao longo dos séculos seguin
tes. E ntre os céticos quanto à nossa capacidade de obter conhecim ento histórico e objetivo, pode-se
m encionar T. Lessing, que se opôs à ideia de que a história é um a ciência e defendeu a noção de que a
história é um ato criativo que dá sentido à vida sem sentido: toda historiografia é um m ito criado pelos
que desejam propiciar fé e esperança no futuro.
76 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA
A reação correta diante desse fato não é, porém, o subjetivismo. Alegar que não se
pode obter nenhum conhecimento do passado que j á não esteja em nossa cabeça não é uma
réplica racional para o fracasso da historiografia moderna em elaborar um passado
que é independente da filosofia e da tradição. Em vez de fazer declarações superficiais
que contrapõem de modo simplista a filosofia e a tradição, de um lado, e o “método
científico”, de outro, como diretrizes que levam ao conhecimento histórico, uma res
posta mais coerente é procurar enunciar uma visão acerca da tarefa historiográfica que
dê o devido lugar à filosofia e à tradição. Isso inevitavelmente envolverá questionar a
racionalidade do princípio da suspeita em relação à tradição e, em última instância
(se não em primeiro lugar), da suspeita em relação à filosofia, que está no âmago do
pensamento iluminista sobre o passado. Assim, depois de esclarecer aspectos básicos
relacionados a questões de ciência e história, voltamos à nossa descrição inicial da
natureza de nosso “conhecimento” do passado.
Testemunho e conhecimento
O sábio au to r da natu reza p la n to u n a m en te h u m a n a u m a propensão a dep en d er do
testem u n h o antes que pudéssem os apresentar u m m otivo p ara fazê-lo. Isso, n a verdade,
estabelece nossos juízos quase in teiram en te sob o p o d er dos que estão em to rn o de nós
no prim eiro período de vida. T rata-se, p orém , de algo necessário ta n to p ara a nossa p re
servação q uanto p ara o nosso progresso. Se a constituição da criança fosse tal que ela não
precisasse dar atenção ao testem u n h o ou à autoridade, não há a m en o r som bra de dúvida
de que, p o r falta de conhecim ento, iria literalm ente m orrer. P o r in stin to , eu acreditava
em tu d o o que eles [m eus “pais e educadores”] diziam , m uito antes de te r ideia do que
é u m a m entira ou de p en sar n a possibilidade de ser enganado. M ais tarde, refletindo
sobre isso, descobri que haviam agido com o pessoas justas e honestas, que desejavam
o m eu bem . D escobri que, caso não houvesse acreditado no que m e disseram antes
m esm o que eu pudesse apresentar u m m otivo para m in h a crença, hoje eu seria pouco
m elhor que u m a pessoa defeituosa.12 E , em bora às vezes te n h a havido enganadores que
se aproveitaram dessa m in h a credulidade natural, m esm o assim ela foi in fin itam en te
proveitosa para m im quando se considera to d o aquele período; p o r isso eu a vejo com o
m ais u m a boa dádiva da N a tu re z a .13
12E m inglês, o term o traduzido por “pessoa defeituosa” é changeling. Essa palavra é usada em contos
para se referir a um a criança defeituosa que era trazida pelas fadas e colocada no lugar de um a criança
normal. (N. do E.)
13T. Reid, Essays on the intellectual powers o f man, in: R. Beanblossom; K. Lehrer, orgs., Thomas
R eids inquiry and essays (Indianapolis: H ackett, 1983), ensaio 6, cap. 5, p. 281-2.
C O N H E C E R E CR ER : A FÉ NO PASSADO 77
rejeição do m aterial — e, por esse motivo, não eram propriam ente historiadores
científicos. D e acordo com essa ideia, a história digna do nome (i.e., científica)
não depende de testem unho algum. N a realidade, depender do testem unho
é abandonar a própria autonom ia intelectual como cientista — é abrir mão da
“condição de sua própria autoridade, que envolve fazer afirmações ou agir por
iniciativa própria e não porque tais afirmações e atos são autorizados ou prescritos
por alguém m ais”.
Dificilmente alguém poderia querer um exemplo m elhor de ideologia
individualista. Fica claro que Collingwood pensa, ao menos em parte, que a his
tória “como ciência” exige que o historiador, de alguma forma, faça tudo sozinho.
A conseqüência inevitável é que; caso sua posição seja levada totalmente a sério, o
historiador “científico” não escreverá história, mas sim uma fantasia que será ape
nas extensão da própria imaginação especulativa. Pelo fato, porém, de Collingwood
desejar escrever história, percebe-se que ele se distancia o tem po todo do que, ao
que parece, é sua posição teórica sobre o testem unho e depende do testem unho
(ou seja, de um a “autoridade”) para lhe fornecer o material básico para as próprias e
imaginárias reencenações do passado. A situação não poderia ser diferente, mesmo
no caso de um historiador que parece querer que ela fosse. Acontece que a história
é, na verdade,fundamentalmente “a crença em outra pessoa quando ela diz que se
lembra de algo”; ou, para sermos mais precisos, história é a disposição de aceitar
relatos do passado preservados na m emória das pessoas.
É claro que o passado deixou vestígios além dos testemunhos, especialmente
os materiais que o arqueólogo pode examinar: moedas, jarros, restos de moradias
e artefatos semelhantes. No período moderno da historiografia, alguns observado
res (fascinados pelo prestígio das ciências e ansiosos por fundamentar declarações
históricas em algo mais confiável do que o testemunho) pressupõem que esses ves
tígios arqueológicos nos oferecem a perspectiva de acesso independente ao passado.
Afinal, aqui estão os dados passíveis de observação direta e nos quais é possível
realizar testes científicos, algo semelhante ao que acontece com os dados disponíveis
para os cientistas naturais.
Ainda assim, em nossa descrição da obtenção do conhecimento histórico, sus
tentamos que essa pressuposição é falsa. Em si mesmos os vestígios arqueológicos
(quando a expressão não inclui o testemunho escrito) são mudos. Não falam por
si, não têm nenhum a história a contar e nenhum a verdade a comunicar. São os
arqueólogos que falam a respeito deles, testemunhando sobre o que descobriram e
estabelecendo as descobertas em uma estrutura interpretativa que lhes dá sentido
e significado. E óbvio que a origem dessa estrutura interpretativa não está comple
tamente, nem mesmo principalmente, nos próprios achados, os quais são apenas
fragmentos do passado que, de alguma forma, precisam ser organizados em um todo
C O N H E C E R E CRER: A FÉ N O PASSADO 79
l3Nesse aspecto, um a ótim a ilustração da complexidade dos processos de tom ada de decisão é a
análise feita por Aliaroni sobre a data do estrato II de Berseba; veja Y. Aharoni, “The stratification o f
the site”, in: Y. Aharoni, org., Beer-Sheba I: excavations at Tel Beer Sheba, 1969-1971 seasons (Tel Aviv:
Tel Aviv U niversity Institute o f Archaeology, 1973), p. 4-8; análise específica nas p. 5-7. Sobre o tem a
geral, veja E. Yamauchi, “The current state o f O ld T estam ent historiography”, in: A. R. M illard; J. K.
Hoffm eier; D . W. Baker, orgs. (W inona Lake: Eisenbrauns, 1994), p. 1-36; a análise específica do
assunto se encontra nas p. 32-6.
16A correlação entre sítios arqueológicos e lugares m encionados em textos não é de m odo algum
simples e direta como às vezes parecem dar a entender os que querem veem entem ente “provar” ou
“negar” a veracidade de textos. Por exemplo: Tell ed-duw eir é de fato a antiga cidade de Laquis?
Provavelm ente sim, mas veja G . W . A hlstrõm , “Tell ed-duweir: Lachish or Libnah?”, P E Q 104
(1972), p. 111-22.
80 H I S T Ó R IA , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA
17Por exemplo, os registros egípcios deixam implícito um cerco a M egido que perdurou alguns
meses durante a prim eira cam panha do faraó Tutm ósis III (1479-1425 a.C.) na Palestina. Isso, por sua
vez, sugere que durante o período arqueológico da Idade do Bronze Recente I existiu naquela cidade
um terraço fortificado mais baixo, pois, caso esse terraço não tivesse existido, Tutm ósis teria desfrutado
de acesso direto à cidade alta. C ontudo, os dados arqueológicos em si não perm item supor que o terraço
mais baixo fosse necessariamente fortificado naquela época: as fortificações que sobreviveram são, ao
que parece, de um a data significativamente mais antiga. Veja B. H alp ern ,“C entre and sentry: M egiddos
role in transit, adm inistration and trade”, in: I. Finkelstein et al., orgs., Megiddo III: the 1992-1996
seasons, S M N IA 18 (Tel Aviv: E m ery and Claire Yass Publications in Archaeology, 2000), p. 535-75,
2 vols.; esp. p. 539-42. M esm o assim, H alpern defende a existência de um a fortificação no período do
Bronze Recente I, acima de tudo porque leva a sério o testemunho egípcio sobre o cerco de M egido, sus
tentando de m odo plausível que a fortificação da Idade do Bronze M édia encontrada no sítio inferior
“perm aneceu em uso até a prim eira parte do século 15” (p. 540).
18C. Scháfer-Lichtenberger, “Sociological and biblical views o f the early State”, in: V. Fritz; P. R.
Davies, orgs., The origins o f the ancient Israelite states, JS O T S 228 (Sheffield: Sheffield Academ ic Press,
1996), p. 78-105; citação nas p. 79-80.
19“W h a t archaeology can and cannot do”, B A 34 (1971), p. 76.
C O N H E C E R E CR ER : A F É NO P ASSADO 81
crédito. M apas podem levar ao lugar errado; pacientes podem deixar de contar
a verdade aos psicólogos; cientistas (inclusive arqueólogos) podem falsificar os
resultados de suas pesquisas ou sim plesmente fazer interpretações equivocadas
dos dados; testem unhas em um julgam ento podem com eter perjúrio; e os que
transm item a tradição podem , com ou sem intenção, distorcer o passado. Fica
claro que, entre as ferram entas que as pessoas usam para a tarefa de com pre
ender a realidade, o pensam ento crítico deve estar entre as mais im portantes.
Ao insistirm os na inevitabilidade da confiança no testem unho, não estamos de
forma alguma advogando um ayè' cega no testem unho, quer se refira à realida
de presente, quer se refira à realidade passada. Devido à natureza indefinida
do testem unho, a f é cega estaria longe de ser racional. É claro que algum tipo
de autonom ia em relação ao testem unho, da espécie que Collingwood busca, é
necessária para que a pessoa possa distinguir entre falsidade e verdade. E ntretanto,
assim como a ação autônom a na vida norm al adulta não exige a renúncia da
dependência de outros, da m esm a form a o pensamento autônom o é totalm ente
compatível com um a confiança fundam ental na palavra de outros na busca pelo
conhecim ento. Precisamos apenas entender o pensam ento crítico não como um
esforço para descobrir tudo por nós mesmos desde os prim eiros princípios, mas
como o exercício — deliberado e realizado com a m ente aberta — de avaliar
inteligentem ente o testem unho que recebemos, de modo que realm ente façamos
os juízos que achamos ter condições de fazer sobre a verdade ou falsidade de
um testem unho. Não é necessário fé cega no testem unho nem suspeita radical
em resposta a ele. O que se requer de nós é apenas o que descreveríamos como
“abertura epistem ológica”.
No que diz respeito à realidade da vida cotidiana, um a característica da maioria
de nós é adotar essa abordagem ao testem unho. Não é um a característica pessoal
nem um a questão de princípio suspeitar o tem po todo do testem unho dos outros,
exigindo que cada pessoa, sem exceção, prove o que diz antes que aceitemos sua
veracidade. N a realidade, em geral, consideramos sinal de desequilíbrio emocional
ou m ental o fato de alguém, comc-princípio, viver desconfiando dos testem unhos,
e a maioria das pessoas que está do lado de fora de instituições psiquiátricas não
vive dessa maneira. Sabemos que às vezes a suspeita pode ser justificada. Contudo,
reconhecemos que pessoas saudáveis confiam em geral no testem unho dos outros,
reservando a suspeita para os que dão motivo para isso. Portanto, em nosso dia a
dia, no que diz respeito à compreensão da realidade em geral, a aplicação de um a
“herm enêutica da suspeita” radical em relação ao testem unho não é considerada
mais sensata do que o exercício da fé cega. D a perspectiva de nossa compreensão
da realidade passada em particular, nenhum a dessas duas abordagens deve ser
considerada sensata.
82 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍ BLIA
— no m odelo dos que usam a teoria m atem ática das probabilidades para ana
lisar o testem unho em um a tentativa de obter maior certeza científica quanto
à sua veracidade.21
Afirmamos que, na realidade, isso é exatamente o que ocorre, por mais que os
retóricos tentem nos persuadir do contrário, e essa afirmação nos leva à conclu
são desta seção e ao fim de nosso resumo da história da historiografia em geral.
Os principais retóricos que temos em mente são os mesmos historiadores científicos
dos séculos 19 e 20 com quem debatemos nestes capítulos iniciais e que têm procu
rado persuadir a todos nós a adotar uma visão da realidade que, ao ser examinada,
é muito improvável. N o m undo deles, a história da historiografia é uma história
de progresso das trevas para a luz: os gregos lançaram os alicerces da ciência e da
história e acenderam a tocha da liberdade intelectual, mas o barbarismo e a religião
interromperam a marcha gradual da hum anidade rumo à verdade. A Renascença
reacendeu a tocha que se tornou um farol resplandecente no século 19, quando
nasceu a historiografia científica, fornecendo “o m étodo” que, pela primeira vez, nos
capacitou a dizer a verdade sobre o passado.
Em bora estimulante, essa narrativa não tem quase relação alguma com a verdade.
É impossível defender de modo plausível qualquer distinção generalizada desse tipo
entre a historiografia que precede o século 19 e a historiografia existente desde então.
Tal como seus antecessores, os historiadores modernos dependem na realidade de tes
temunhos, interpretam o passado e têm tanta fé quanto seus antecessores, religiosos
ou não. Ademais, como um grupo, os historiadores antigos, medievais e posterio
res à Reforma não tinham menos interesse do que os historiadores modernos em
estabelecer a distinção entre verdade e falsidade, como demonstra até mesmo um co
nhecimento superficial de suas obras.23 O pensamento crítico não se iniciou no século
19, mas estava presente ao longo dos séculos precedentes em uma feliz coexistência
com a fé (religiosa ou não) sobre a natureza do mundo e em meio a muito do que era
d^e fato bárbaro. Desde o século 19 até o presente, o pensamento crítico continua a
coexistir com todo tipo de fé (religiosa ou não) sobre a natureza do mundo e também
em meio a um barbarismo ainda maior. Certamente nem sempre se encontrou esse
pensamento crítico nos períodos mais antigos da historiografia; mas ele também nem
sempre foi visto no período moderno, mesmo (e talvez especialmente) entre aqueles
que alegam empregá-lo. É fácil alguém fazer a alegação de que é um pensador crítico.
A realidade, porém, que se esconde por trás dessa alegação é que com demasiada
frequência ela se revelou apenas uma mistura de fé cega na própria tradição intelectual
do escritor com seu ceticismo seletivo e arbitrário em relação a tudo o mais.
23A o contrário, vemos um interesse real com a exatidão e a veracidade, se lermos autores antigos
como Tácito (Anais 1.1), Cícero (De oratore, 2.Ü.6-9) ou o escritor bíblico Lucas (Lc 1.1-4); autores da
A lta Idade M édia como W ip o ou João de Salisbury (veja E. Breisach, Historiography: ancient, medieval
and modem [Chicago: Chicago University Press, 1983], p. 124-5,144); ou qualquer grupo de historia
dores desde o século 13 até o 18. N ão é a familiaridade com o passado, mas o preconceito m oderno que
descreve o passado de form a diferente.
Capítulo 3
E m essência, aquilo a que g eralm ente nos referim os com o co n hecim ento histórico
é apenas u m a form a m ais frágil de conhecim ento do que a que tem os no p resente
em relação a am igos, fam ília, instituições e assim p o r diante. Som os persuadidos
com facilidade e, p o rtan to , facilm ente levados ao erro. P o r o u tro lado, m uitas vezes
estam os certos q u an to a nossos am igos e fam ília (se não form os loucos). A m aioria
de nós vive satisfeito com a in certeza em relação à m an eira que am igos e até m esm o
m otoristas vão se co m p o rtar ou reagir neste ou naquele m om ento, porque tem os de
viver assim. U m grau sem elhante de in certeza está relacionado à form a pela qual
reconstruím os a história. N a m elh o r das hipóteses, é in trig an te p o r que alguns estu
diosos se m o stram tão seguros sobre o passado e sobre o p resente h um anos, quando
nos dois casos estam os trata n d o de seres h u m a n o s.1
1B. H alpern, “Text and artifact: two monologues?”, in: N . A. Silberman; D . Small, orgs.,
The archaeology o f Israel: constructing the past, interpreting the present, JS O T S 237 (Sheffield: Sheffield
Academ ic Press, 1997), p. 311-41; citação na p. 337.
2Ao mesmo tem po, vários teólogos têm adm itido que a história “real” se encontra em alguma outra
fonte que não o testem unho bíblico, embora baseiem suas teologias no testem unho: observe-se, e.g.,
a concessão que G . von R ad faz ao positivismo em seu Old Testament theology (tradução para o inglês
D. M . G. Stalker [Edinburgh e L ondon: Oliver and Boyd, 1962], vol. 1, p. 105-28,2 vols.).
86 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA
declaração de “certeza”, se é que já houve alguma. Está claro que muitos estudiosos,
que trabalham com o AT e se interessam pela história de Israel, sentem-se profun
damente desconfortáveis com esse tipo de afirmação radical e prefeririam não ter de
concordar com ela. Contudo, não é tão evidente que consigam fazê-lo com alguma
consistência lógica. Com frequência e em grande medida, eles já adotaram sem
reservas um a abordagem como a de Thompson quanto ao valor relativo do testem u
nho e quanto à investigação empírica em geral. Por isso, sentem agora a necessidade
de justificar a aceitação — em vez de justificar a rejeição — do testem unho bíblico
em particular. O estudo bíblico moderno foi, de fato, forjado no fogo da cosmovisão
científica do século 19, o que explica a razão de o m ito iluminista, “progresso sem
pre avante e para cima até que a verdade e a bondade sejam alcançadas”, aparecer
com tanta frequência em seus escritos. Por isso, não é de surpreender que entre os
historiadores modernos de Israel — como também entre os historiadores modernos
em geral — encontremos tanto a tendência de exaltar o período moderno, vendo-o
como um período feliz em que descobrimos, usando as palavras de Ranke, a história
“como realmente foi”, quanto o menosprezo contra a era “pré-crítica” (ou seja, toda
a história humana antes do século 19), considerando-a uma época de ignorância, em
que a verdade completa sobre o passado não podia ser contada e realmente não foi.
O que talvez pareça um pouco mais surpreendente à primeira vista e exija alguma
explicação é o fato de que essa visão do século 19 sobre a tarefa historiográfica conti
nuou sendo amplamente adotada, no início do século 20, pelos estudiosos bíblicos,
em geral, e historiadores de Israel, em particular. Aliás, precisamos lidar com o fato
notável de que, durante a maior parte do século 20, a disciplina “História de Israel”
prosseguiu com uma óbvia ignorância quanto ao intenso debate que historiadores
em geral travavam sobre a natureza da história, de maneira que o modelo científico
do século 19 foi amplamente considerado o único modelo acadêmico existente viá
vel, dispensando, assim, qualquer justificativa para adotá-lo. Só em um ambiente de
total isolamento é que o debate recente sobre a história de Israel pôde chegar à forma
que assumiu, como uma reprise de disputas ocorridas décadas antes entre empiristas
rankeanos e positivistas, em que, de forma geral, os participantes parecem não ter
consciência tanto desses debates mais antigos quanto das questões mais amplas que
eles suscitam. Apenas em um ambiente assim, T. L. Thompson, sem qualquer cons
trangimento ou necessidade de justificar sua posição sobre a epistemologia, pôde
alegar tamanho conhecimento do passado a ponto de dizer que “sabemos” que o
testemunho de Israel sobre seu passado é mera ficção.
Somente a falta de um raciocínio interdisciplinar e integrador poderia produzir
essa situação. Contudo, uma vez que as origens dos estudos bíblicos modernos não
estão apenas no século 19 em geral, mas, particularmente, em uma reação contra
o pensamento integrador do tipo filosófico ou teológico em favor da atenção ao
C O N H E C E N D O A H I S T Ó R I A D E ISR AEL 87
texto bíblico em si, o surgimento desse ambiente de isolamento talvez não seja tão
inesperado. O treinamento especializado limitado e a necessidade de demonstrar
conhecimento profundo e amor pelos detalhes, a fim de progredir na profissão, dei
xam muitos estudiosos da Bíblia mal preparados para qualquer outra coisa que não
incursões ocasionais no território de outras disciplinas, a fim de encontrar algum
novo “ângulo” na pesquisa dos estudos bíblicos que lhes permita obter um a contri
buição especial à sua área de atuação. As vezes o despojo intelectual trazido dessas
incursões não é bem entendido no que diz respeito ao contexto intelectual do qual
foi saqueado. O resultado é um a disciplina que às vezes deriva (imprecisamente)
de outras disciplinas e, frequentemente, depende de ideias delas, as quais já estão
ultrapassadas há várias décadas em sua popularidade e plausibilidade geral. Talvez
por esses motivos, a história da história de Israel nos últimos vinte anos tenha visto
a adoção ampla e entusiasmada de um a abordagem positivista da história sem uma
percepção mais clara dos problemas que ela suscita ou do debate que provocou
anteriormente entre historiadores, filósofos e teólogos. No que às vezes pode pare
cer o vale perdido dos estudos bíblicos, sem contato com o mundo intelectual mais
amplo ao redor, o historiador científico, com seu quadro definido “do que realmente
aconteceu”, parece um a raça longe de ser extinta.
D e qualquer maneira, as próprias reflexões históricas e filosóficas que fizemos
até agora nos permitem adotar uma perspectiva bem diferente da concepção de
Thompson quanto ao que se “conhece” da história de Israel. O conhecimento que
ele professa é, na verdade, fé disfarçada. O que Thompson “conhece”, ele o “conhece”
porque decidiu acreditar em certos testemunhos sobre o passado em vez de outros,
sendo que o mais notável dos “outros” testemunhos é o do AT. Em resumo, da
perspectiva epistemológica, ele favoreceu o testemunho não bíblico. Thompson
mostra-se disposto a acolher o testemunho sobre o passado de Israel de fontes
predominante ou totalmente não bíblicas e, em geral, demonstra um elevado grau
de confiança nessas fontes. Ele é bastante ou totalmente resistente ao testemunho
que a própria Bíblia apresenta sobre o passado de Israel, tendo um elevado grau de
desconfiança em relação a essas fontes. Surge então a pergunta sobre quais são os
fundamentos sustentáveis para se adotar tal atitude. Essa pergunta deve ser res
pondida por historiadores de Israel que não Thompson, pois somente ele expõe
de modo claro a posição que outros têm freqüente e implicitamente adotado. Na
verdade, um aspecto comum no discurso dos estudos bíblicos é o pressuposto de
que o conhecimento do passado de Israel tem se multiplicado de várias maneiras,
as quais podem ser usadas como padrão para avaliar o testemunho bíblico e chegar
a alguma conclusão sobre ele — ou, inclusive, como um ponto de partida para
elaborar um a história “científica” que seja totalmente independente do testemunho
bíblico. Um a investigação mais aprofundada dessa questão não apenas consolidará
88 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA
U n ica entre orientais e gregos, ela se dirige a u m povo que é definido de acordo com seu
passado e que recebeu ordens para m an ter viva sua m em ória [...] u m povo “mais obcecado
pela história do que qualquer outra nação que já existiu” [...] [e que], “en tre os povos
do m undo antigo, é o único que tem o relato de seu início e de seu estado prim itivo
tão claro na m em ória p o p u la r” [...]. L em b re -se quão freq u en tem en te os costum es são
explicados; a origem de nom es antigos e declarações contem porâneas são identificadas;
m onum entos e decretos são determ inados p o r u m a razão concreta e incluídos na h istó
ria; pessoas, lugares e genealogias são especificados sem necessidade im ediata; registros
escritos, com o o Livro de Jasar ou os anais dos reis, são claram ente m en cio n ad o s.3
Com certeza, o propósito dessas narrativas não é apenas falar sobre o passado;
pode-se até argumentar que esse não é seu propósito principal. Entretanto, como
é possível deduzir dos próprios textos, fica claro que narrar o passado é um de seus
propósitos. M as ainda que não fosse, esses textos poderiam fazer isso muito bem.
Portanto, em nossa busca para conhecer o passado de Israel, qual é a razão de adotar
como princípio algum tipo de desconfiança em relação às principais seções do AT
ou até mesmo em relação à sua totalidade? Essa desconfiança frequentemente é
muito nítida nos livros de história de Israel produzidos nos últimos duzentos anos.
Quais são os fundamentos sustentáveis para essa posição?
VERIFICAÇÃO E FALSIFICAÇÃO
U m exame das publicações sobre o tema indica que um dos motivos para os estu
diosos duvidarem do AT é a dificuldade, se não a impossibilidade, de verificar boa
3M . Sternberg, The poetics o f Biblical narrative: ideological titerature and the drama o f reading,
(Bloomington: Indiana University Press), 1985, p. 31. Nesse aspecto, Sternberg se baseia em parte em
H . Butterfield, The origins o f history (N ew York: Basic Books, 1981), p. 80-95.
C O N H E C E N D O A H I S T Ó R I A D E ISR A EL 89
4J. M . M iller; J. Hayes, A history o f ancient Israel and Juâah (Philadelphia: W estm inster, 1986),
p. 74,129,159.
^Quanto à natureza fundam ental da verificação conform e a concepção desses autores, cf. M iller;
H ayes,//wforj/,p. 78. Para exemplos do que na prática são pedidos de desculpa, veja, e.g., p. 129,159-60.
6History o f Israel:from the beginnings to the Bar Kochba revolts, A D 135 (London: SC M , 1984). E.g.,
p. 98 sobre as narrativas patriarcais; p. 110 sobre o Exodo.
90 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍ BLIA
seus livros de história de Israel são, nesse aspecto, considerados obscurantista com
motivação religiosa e não estudiosos críticos.
Nossa posição, por outro lado, é que esse ím peto apressado em direção ao
ceticismo é resultado não de ser completamente crítico, mas, sim, insuficientemente
crítico. E verdade que a crítica é amplamente aplicada, mas não em relação à vaca
sagrada que está no âmago da questão: o próprio princípio da verificação. Por que,
afinal, a verificação externa deveria ser um pré-requisito para aceitarmos o valor de
uma tradição no que diz respeito à realidade histórica? Em vez disso, por que os tex
tos históricos antigos não deveriam receber o benefício da dúvida em relação às suas
afirmações sobre o passado, a menos que existam bons motivos para considerar que
essas afirmações não são confiáveis levando em conta, é claro, seus aspectos literários
e ideológicos? Em suma, por que devemos adotar um princípio de verificação em vez
de um princípio de falsificação? Por que o ônus da “prova” do que tem valor histórico
recai sobre os próprios textos em vez de recair sobre os que questionam o valor de tais
textos e os consideram falsos? Ao contrário do que muitos parecem pressupor, não se
pode aceitar que a verificação seja necessária apenas devido &possibilidade geral de que
um texto não seja de fato confiável como historiografia.7Temos de admitir a possibili
dade de isso ocorrer em casos específicos, mas é preciso examinar cada caso a fim de se
chegar a uma decisão individual a respeito. Não está claro como a possibilidade geral
conduz logicamente à posição metodológica que acabamos de descrever.
Também não está claro que a noção de verificação ou “prova” que estamos exa
minando seja coerente sob qualquer condição. D e que modo exatamente se imagina
que a verificação seja possível? Vamos supor que tenhamos um dado arqueológico
consistente com as afirmações de um texto bíblico sobre o passado. Por acaso isso
“comprova” que o texto é historicamente exato? Certam ente, essa relação tem sido
frequentemente defendida ou pressuposta. Entretanto, o dado arqueológico, mes
mo que seja um texto escrito, continua sendo só mais um testemunho do passado;
o dado não “prova” que o evento ao qual o texto se refere aconteceu. Dados não
7E.g., em “W hose history? W hose Israel? W hose Bible? Biblical histories, ancient and m odem ”
(in: L. L. Grabbe, org., Can a “history o f Israel”be written?, JS O T S 2 4 5 /E S H M 1 [Sheffield: Sheffield
Academ ic Press, 1997], p. 104-22), P. R. Davies afirma que “o uso da narrativa historiográfica bíblica
para a reconstrução crítica dos períodos que descreve (em vez dos períodos em que foi escrita) é
duvidoso e apenas possível quando há dados independentes e apropriados” (p. 105). E ntretanto, em sua
análise anterior não se consegue ver nada que justifique essa conclusão. Aliás, consideramos infundada e
em conflito tanto com a lógica quanto com a experiência sua afirmação de que “o testem unho histórico
de qualquer obra será relevante antes de mais nada para a época em que foi escrito” (p. 104). Para um a
declaração sem elhantem ente infundada, cf. “D efining history and ethnicity in the South L evant”, de
T. L. Thom pson (in: Grabbe, org., History, p. 166-8): “Todos sabemos que o m undo real representado
nas assim chamadas ‘historiografias’ [antigas] é o m undo de seus autores; e elas nunca oferecem algo
m elhor do que isso” (p. 180).
C O N H E C E N D O A H I S T Ó R I A D E ISR A EL 91
escritos são ainda menos precisos e mais ambíguos.8 Quantos testemunhos, então,
são necessários antes que a comprovação final da verdade aconteça? E para quem
essa verificação é conclusiva? Para todos ou só para alguns? O debate recente sobre a
história de Israel evidencia que a resposta é de fato “apenas para alguns”. Dados que
são suficientes para uns são insuficientes para outros, ou até mesmo falsos.9
Isso levanta a questão de até que ponto a verificação está relacionada ao olho
do observador e se a atitude básica para com os textos não é bem mais decisiva na
abordagem da história de Israel do que a descoberta deste ou daquele dado externo.10
Portanto, essa questão nos impele de volta a nossas investigações introdutórias
quanto ao assunto do método, bem como as aprofunda. Qual é a razão exata para se
considerar a verificação externa tão central para a tarefa historiográfica, em especial
quando é tão difícil chegar a um acordo acerca da validade de um dado para a
verificação? A essa pergunta podemos acrescentar outra, que aprofunda ainda mais
a reflexão. Q uanto da história, antiga ou não, “conheceríamos” caso o princípio da
verificação fosse aplicado com consistência a todo testem unho a respeito dela, por
exemplo, ao testem unho dado por Júlio César acerca de sua invasão da Bretanha em
55-54 a.C., evento de que temos conhecimento apenas porque o próprio César nos
contou? A resposta clara é “muito pouco” — que é justam ente a razão pela qual as
pessoas que empregam o princípio da verificação, quer historiadores, em geral, quer
historiadores de Israel, em particular, o fazem apenas de forma seletiva, escolhendo
com muito cuidado os alvos do seu ceticismo rigoroso. Essa ilusão já mencionada
anteriormente — a ilusão de que temos conhecimento sem a mediação da fé — só é
8Acerca da complexidade da tarefa interpretativa com que o arqueólogo se depara, veja F. Brandfon,
“The lim its o f evidence: archaeology and objectivity”, M aarav 4 (1987), p. 5-43.
9U m a boa ilustração da complexidade da ideia de verificação é o debate acadêmico que se seguiu
à descoberta da inscrição de Tel D an. Para um resumo proveitoso do debate, veja F. C. Cryer, “O f
epistemology, N orthw est-Sem itic epigraphy and irony: the ‘B YT D W D /Y íouse o f D avid’ inscription
revisited”,/SO !T 69 (1996), p. 3-17. Para um a avaliação da inscrição, veja K. A. Kitchen, “A possible
m ention o f D avid in the late tenth century B C E , and deity *D O D as D ead as the D odo?”, J S O T 76
(1997), p. 22-44.
“ Nesse aspecto, observe-se o debate que W . G . Dever (“Identity o f early Israel: a rejoinder to
Keith W . W hitelam ”, J S O T 72 [1996], p. 3-24) e K. W . W h itelam (“Prophetic conflict in Israelite
history: taking sides w ith W illiam G . Dever”,J S O T 72 [1996], p. 25-44) travam sobre cultura m aterial
e etnicidade. O debate é predom inantem ente sobre o que os dados arqueológicos revelam de verdade
a respeito dos m oradores da região m ontanhosa central da Palestina durante o final do século 13 e
início do 12. E ntretanto, para as posições definitivas adotadas em cada caso, é decisiva a atitude de
cada estudioso em relação às tradições bíblicas no que se refere à utilidade delas para o historiador
como explicações interpretativas dos dados arqueológicos. Seria de grande contribuição para o debate
acadêmico sobre o que o dado arqueológico específico “sugere” ou “prova”, se os estudiosos fossem capazes
de expressar com mais clareza suas ideias sobre o que tal dado em geral é capaz de “sugerir” ou “provar” e
qual papel sua própria teoria interpretativa desem penha na produção de “sugestão” ou “prova”.
92 H I S T Ó R IA , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA
Seres finitos não conseguem o b ter provas concretas que tantos pressupõem ser possível
na conclusão do trab alh o científico ou histórico. P o r natu reza som os seres históricos, e a
am bigüidade sem pre é u m co m p o n en te central da história, quer das hum an id ad es, quer
da ciência social, q u er d a ciência n a tu ra l.12
n Portanto, o “conhecedor” T. L. Thompson, citado no início deste capítulo, diz agora o seguinte:
“Talvez seja irônico que esse reconhecim ento de nossa ignorância acerca da história do período em
questão seja o que caracteriza os resultados mais conclusivos da pesquisa histórica desta geração! Aliás,
o reconhecim ento dessa ignorância é a principal característica dos mais im portantes avanços de nossa
área de estudo” (“Historiography o f ancient Palestine and early Jewish historiography: W . G . Dever and
the not so new Biblical archaeology”, in: V. Fritz; P. R. Davies, orgs., The origins o f the ancient Israelite
states, JS O T S 228 (Sheffield: Sheffield Academic Press, 1996), p. 26-43; citação na p. 32).
I2“W h a t archaeology can and cannot do”, BA 34 (1971), p. 76.
1:'History sacred and profane (London: SC M , 1964), p. 251.
C O N H E C E N D O A H I S T Ó R I A D E ISR AEL 93
14Assim, e.g., em “From history to interpretation”, in: D. V. Edelm an, org., The fabric ó f history:
text, artifact and Israels past, JS O T S 127 (Sheffield: JSO T , 1991), p. 26-64 (tem a em pauta nas p. 45-7),
E. A . K nauf reconhece que o historiador deve, em primeiro lugar e acima de tudo, dar atenção a fontes
primárias, produzidas no desdobram ento dos acontecimentos, em vez de se concentrar em fontes que
foram feitas depois dos eventos. Ele descreve de form a tendenciosa as últimas fontes afirmando que
o propósito delas era “esclarecer às gerações futuras como se imaginava [grifo nosso] que as coisas
aconteceram” (p. 46).
13E.g., G . W . A hlstrõm em “The role o f archaeological and literary remains in reconstructing
Israels history” (in: Edelm an, org., Fabric, p. 116-41).
16E.g., P. R. Davies, In search o f "ancient Israel", JS O T S 148 (Sheffield: JSO T , 1992), p. 32-6.
94 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA
sobre o passado distante, racionalmente incertas. Entretanto, está longe de ser pos
sível demonstrar a inevitabilidade nessa área, seja em geral, seja no caso de Israel
em particular.
E m sociedades que não adotam a escrita há uma forte institucionalização de
boa parte da tradição oral, com controles rígidos que regem sua transmissão em
relação tanto à frequência e ao contexto de sua repetição quanto às pessoas que têm
permissão para se envolver no processo de repetição. As vezes, em certos limites
prescritos, é permitida a variação na história contada, mas frequentemente não (por
exemplo, quando o relato aborda questões de identidade), e, nesses casos, o narrador
de histórias que comete erros fica sujeito a autorizações. É possível que algumas das
nossas tradições do A T (e.g., G n 12— 50) tenham se originado da transmissão oral,
mas não se pode deduzir com base nisso que essas tradições distorceram inevitavel
m ente as memórias do passado. D e um modo ou de outro, a civilização da região
mesopotâmica de onde, segundo o AT, Abraão procedeu era um a região em que a
escrita dominava já havia algum tempo. Portanto, a suposição de que nossas tradições
de Gênesis foram transmitidas apenas de forma oral é somente isso: um a suposição.
É igualmente possível que ainda em um a etapa bem antiga fossem transmitidas
em forma tanto escrita quanto oral — permitindo assim a relativa estabilidade da
tradição que a escrita produz, mesmo em meio à relativa flexibilidade que a tradição
oral admite — , ou que a forma escrita predominasse até mesmo no início. A questão
é im portante não porque desejamos reconhecer algum defeito inevitável nas corren
tes de testemunhos orais, mas simplesmente por causa do fato inegável de que, na
transmissão de testemunhos, registros escritos estabelecem em geral uma proteção
maior contra lapsos de memória e outros equívocos.
O próprio AT certamente sugere que a escrita foi empregada pelos israelitas
a partir da época de Moisés (Ex 17.14) — outra alegação completamente plausí
vel tendo em vista o fato de que o texto bíblico também informa que Moisés foi
educado na corte egípcia. U m Moisés histórico educado no palácio do faraó deve
ter sido ensinado na tradição dos escribas e possivelmente era bilíngüe. Nada há
de improvável na ideia de que essa pessoa tenha recebido fontes tanto orais como
talvez escritas procedentes de tempos mais remotos e tenha dado forma a elas na
tradição original de Israel como vemos representada no Pentateuco. Também não
há fundam ento para supor que, se isso ocorreu, M oisés necessária e inevitavel
m ente o fez com o objetivo de enganar.Tampouco existe base para supor que os que
passaram adiante a tradição do Antigo Israel encontrada no Pentateuco a tenham
distorcido, mesmo quando a ampliaram e a tornaram mais precisa. N a verdade, há
um a clara indicação contrária no fato de que uma das ênfases principais da tradição
é que a nação de Israel foi inicialmente um povo escravo no Egito — um dado que,
apesar de não ser nada honroso, determ ina tanto a religião quanto a ética israelitas.
96 H I S T Ó R IA , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA
Não parece que essa tradição seja do tipo que um povo inventa a respeito de si ou
que transm ite sem hesitar, caso seu objetivo seja distorcer sua história.
As descobertas não deixam dúvida de que perto do final do segundo milênio
a.C. e início do primeiro — período em que Israel já havia surgido como entidade
reconhecível na Palestina e a monarquia israelita foi fundada — o alfabetismo era
disseminado na região da Palestina e arredores e a escrita era usada em textos
legais, comerciais, literários e religiosos. D e fato, a escrita já era difundida no
período pré-israelita, “mesmo em cidades relativamente pequenas e isoladas”— um
fato elementar que acaba com os argumentos populares e recentes de que, baseados
no número pequeno da população, não havia alfabetismo na Palestina.18 Os m ate
riais extrabíblicos remanescentes sugerem que, na verdade, a escrita era praticada
do norte ao sul de Canaã e que, além disso, houve um a mudança após o período
de Am arna em que o acádio deixou de ser a “língua franca” e passou-se a usar as
escritas e os idiomas locais da Palestina. Igualmente, no próprio Israel da Idade do
Ferro, ou seja, em todo o período de 1200 a 587/586 a.C., a escrita foi um fenômeno
muito propagado, não se limitando apenas a centros populacionais maiores.19 Os
dados tam bém não justificam tentativas de limitar o alfabetismo a classes específi
cas (como sacerdotes, escribas ou administradores). Antes, ao que parece, “muitos
indivíduos [...] eram capazes de escrever na forma alfabética mais simples [...] [e]
faziam-no por vários motivos e com diversos propósitos”.20 Portanto, é inteiramente
18A citação é de R. S. Hess em “Literacy in Iron Age Israel”, in: V. R Long; G. J. W enham; D . W.
Baker, orgs., Windows into Old Testament history: evidence, argument, and the crisis o f "biblicalIsrael’’ (Grand
Rapids: Eerdm ans, 2002), p. 82-102; citação na p. 84. A argumentação de H ess é a base de todo nosso
parágrafo. O ponto de partida de Hess é um artigo recente de I. M . Young publicado em duas partes: “The
question o f Israelite literacy: interpreting the evidence, Parts I— II”, V T 48 (1998), p. 239-53 (primeira
parte), 408-22 (segunda parte). Nesse artigo, Young argumenta, primeiro, que o alfabetismo em massa
não pode ter sido um traço do Israel da Idade do Ferro e, segundo, que ler e escrever deve ter sido uma
habilidade limitada a escribas, sacerdotes e administradores. Hess tam bém observa o papel do livro Scribes
and schools in monarchic Judah: a socio-archaeological approach, de D. W. Jam ieson-Drake (JSO T S 109/
SW BA 9 [Sheffield: Alm ond, 1991]), no reavivamento do interesse pela questão geral do alfabetismo no
Israel Antigo. Jam ieson-D rake defendeu que no Israel da Idade do Ferro a escrita só veio a ser amplamen
te usada depois do oitavo século a.C., o que se tornou um a ideia popular e errônea entre os estudiosos de
tempos recentes. Aliás, Hess m ostra que “todas as suposições sobre o alfabetismo na Palestina no século 13
e tam bém na Idade do Ferro I (1200-1000 a.C.) têm de ser questionadas e reexaminadas” (p. 85).
19Portanto, os dados extrabíblicos corroboram a impressão causada pelos textos bíblicos, que pres
supõem sem quaisquer ressalvas que não apenas líderes como Josué eram capazes de ler e escrever
(Js 8.32,34; 24.26; comp. 18.4-9), mas tam bém simples cidadãos como o jovem de Sucote, m encionado
em Juizes 8.14.
20H ess, “Literacy”, p. 95. H ess não está sozinho em sua avaliação positiva do alfabetismo disse
m inado (e antigo) em Israel. Por exemplo, em The Israelites, B. S. J. Isserlin (N ew York: Thames and
H udson, 1998) resiste à ideia de que o alfabetismo “se limitava essencialmente à classe de escribas”
C O N H E C E N D O A H I S T Ó R I A D E ISR AEL 97
plausível que tradições históricas escritas — bem como tradições orais — tenham
sido produzidas nesse período, logo após os eventos ou mais tarde, e, conforme os
autores bíblicos afirmam (e.g., em IR s 11.41; 14.19,29 etc.), que elas tenham estado
à sua disposição — da mesma forma que as tradições estiveram ao alcance, por
exemplo, dos escribas da corte assíria já nos séculos 12 a 10 a.C. Escribas da corte
israelita são m encionados em 2Samuel 8.17, 20.25 e IR eis 4.3, e bastante m ate
rial característico de escribas é encontrado ao longo de Samuel e Reis, originado
em parte, sem dúvida, de arquivos palacianos, que eram bem conhecidos no antigo
Oriente Próximo.
Como pessoas que registravam o passado, esses escribas e seus sucessores podem
facilmente ter tido acesso também a bibliotecas de templos, como as encontradas no
Egito na segunda metade do primeiro milênio, que eram usadas para a educação e o
treinamento de escribas e abrigavam uma ampla gama de material. A utilização de
lugares sagrados e especificamente de templos como repositórios de textos é bem
atestada em todo o m undo antigo. Os egípcios, por exemplo, usavam locais sagrados
com essa finalidade já no terceiro milênio a.C., assim como os gregos e os romanos
fizeram posteriormente. O próprio AT reflete essa prática quando descreve, por
exemplo, a colocação dos D ez M andamentos dentro do Tabernáculo (Ex 40.16-33;
D t 10.1-5). M ais tarde, Josefo narra que, em 70 d.C., um a cópia da Lei judaica foi
levada do templo em Jerusalém para Roma.21 Materiais como esses — encontra
dos em bibliotecas de templos e representando tradições que remontavam a várias
e cita a existência de grafites escritos encontrados em povoados “possivelm ente israelitas” já nos sé
culos 13 a 11 (p. 2 0 ,2 2 0 -1 ). W . G . D ever defende um alfabetism o funcional em Israel já na Idade do
Ferro I ( What did the biblical writers know and when did they know i t f What archaeology can tell us about
the reality ofancient Israel [G rand Rapids: Eerdm ans, 2001], p. 114) ou pelo menos por volta do décimo
século (idem, p. 143, 202-3, 209, 211), e um a tradição oral dinâm ica antes disso (idem, p. 279-80, em
um a citação em que concorda com as ideias de S. N iditch em Oral world and written word: orality and
literacy in ancient Israel, L A I [London: SPCK, 1997]). E m seu livro Israel in Egypt: the evidencefo r the
authenticity o f the Exodus tradition (Oxford: O xford University Press, 1997), J. K. Hoffm eier argum enta
que “não há motivo algum para negar a capacidade de escrever e registrar informações antes da Idade
do Ferro” (p. 16). O s argumentos mais fortes que A. R. M illard apresenta a favor do alfabetismo nos
prim órdios de Israel aparecem em vários estudos além do mencionado acima. E m ordem cronológica
são: “The question o f Israelite literacy”, Bible R eview 3 (1987), p. 22-31; “Books in the L ate Bronze Age
in the L evant”, in: S. Izreel; I. Singer; R. Zadok, orgs., Past links: studies in the languages and cultures t f
the ancient Near East, Israel O riental Studies X V III (W inona Lake: Eisenbrauns, 1998), p. 171-81. So
bre os possíveis motivos pelos quais não sobreviveram mais dados extrabíblicos escritos sobre a história
rem ota de Israel, veja tb. as seguintes pesquisas de M illard: “Evidence and argum ent”, Buried History
32 (1996), p. 71-3; “Observations from eponym lists”, in: S. Parpola; R. M . W hiting, orgs,,Assyria 1995
(Helsinki: 1997), p. 207-11.
21Veja R. T. Beckwith, The Old Testament canon o f the N ew Testament Church, and its background in
early fudaism (G rand Rapids: Eerdm ans, 1985), p. 80-6.
98 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A B ÍBL IA
gerações passadas -— perm itiram que Beroso escrevesse sua Babyloniaca (280-270
a.C.), em que tentou persuadir seus mestres gregos acerca da respeitável antigui
dade e das grandes realizações dos povos mesopotâmicos. Tam bém permitiram que
M aneto escrevesse sua Aegyptiaca (c. 280 a.C.), uma história do antigo Egito. Além
dos arquivos palacianos e das bibliotecas ou dos arquivos dos templos por meio dos
quais os transmissores do passado podem ter tido acesso à tradição e à legislação
israelita mais antigas, é possível ainda que pessoas ou grupos de pessoas também
possuíssem os próprios materiais literários. Outras fontes prováveis de inform a
ção teriam incluído anais estrangeiros e inscrições de vários tipos, com registros de
informações pessoais (observe-se, por exemplo, 2Sm 18.18; inscrições funerárias
também seriam úteis) ou de vitórias israelitas ou estrangeiras (como no caso da
esteia de M essa ou da inscrição de Tel D an — para mais detalhes, veja ainda a
segunda parte deste livro, que descreve o período monárquico da história de Israel).
Não há, portanto, motivo algum para pensar que os historiadores bíblicos do
período monárquico não pudessem ter tido acesso a fontes de informação escritas
e orais sobre aquele período e sobre períodos mais antigos. Com frequência, eles
afirmam exatamente o contrário, e no corpus pós-Pentateuco há muitas indicações
em textos de Josué— Reis de que devemos levar a sério essas alegações. Por exemplo,
tanto o relato acerca do reinado de Salomão em IReis 2— 11 quanto o da conquista
israelita de Canaã em Josué 1— 12 têm estrutura semelhante à das antigas “ins
crições de exposição”.22 O utros dados internos tam bém indicam que pelo menos
22Veja, e.g., “The structure o f Joshua 1— 11 and the Annals o f Thutm ose II I ” (in: A . R. M illard;
J. K. Hoffm eier; D . W . Baker, orgs., Faith, tradition, and history: Old Testament historiography in its Near
Eastern context [W inona Lake: Eisenbrauns, 1994], p. 165-79), em que J. K. Hoffm eier dem onstra que
Josué 1— 11 exibe paralelos formais com as descrições de campanhas militares registradas nos anais de
Tutm ósis III. E le escreve: “Am bos fazem narrativas longas para descrever as cam panhas mais im por
tantes e relatos curtos e concisos para, m ediante o uso de linguagem repetitiva e estereotipada, descrever
ações menos relevantes. E m ambos se atesta tanto um a declaração-resumo quanto referências a saques
(Js 8.27; 11.14)” (p. 176). C om o explicação para as semelhanças, H offm eier propõe que “é possível atri
buir os paralelos dem onstrados aqui ao fato de os hebreus tom arem emprestada a tradição dos escribas
egípcios de registrar as ações militares em um diário” (p. 176). Diários egípcios “são mais como um
diário de bordo do que um a narrativa corrida e registram relatos do dia a dia, compostos por cláusulas
repetitivas e quase nenhum a variação” (p. 169-70). D e acordo com Hoffmeier, em seções de Josué como
10.28-42 e 11.10-14 é possível detectar o estilo que lem bra um diário ( Tagebuchstit). Esses relatos cur
tos convencionais contrastam com o tratam ento mais completo dado a outros acontecimentos de Josué
1— 11, como a travessia do Jordão e a captura de Jericó (caps. 1— 6), a vitória final sobre A i (7.1— 8.28),
bem como a aliança estabelecida com os gibeonitas e a defesa deles (9.1— 10.14).
H offm eier observa que, em bora alguns defendam que essa “combinação de relatos longos e breves”
seja “um a idiossincrasia característica do primeiro m ilênio por esse tipo de combinação ser encontrado
em textos militares assírios” (p. 173, referindo-se ao argum ento de J. Van Seter em “Joshuas campaign
o f C anaan and N ear E astern historiography” [SJOT 2 (1990), p. 1-12, em especial a p. 7]), o mesmo
C O N H E C E N D O A H I S T Ó R I A D E ISR A EL 99
parte do material que subjaz os livros de Josué23 e Juizes24 foi composta no início da
monarquia ou mesmo antes. Os livros inteiros de 1 e 2Samuel, com sua ênfase na
legitimação da nova constituição de Israel, na continuidade da liderança política e na
sucessão de Davi, fazem muito mais sentido como narrativa composta no contexto
da época e não em um cenário posterior, como um relato e uma defesa da monarquia
fenôm eno aparece nos anais egípcios, em que o relato da prim eira cam panha do faraó contra M egido
ocupa 110 linhas, enquanto alguns dos outros relatos ocupam apenas dez (p. 171). Além do mais, o
relato que os anais fazem dos acontecimentos em torno da batalha de M egido e o relato que o livro
de Josué apresenta dos acontecimentos referentes à batalha de Jericó revelam estrutura semelhante:
comissionam ento divino, coleta de informações militares, m archa em terreno difícil, estabelecimento
de acampam ento, cerco da cidade e vitória (p. 174). Esses e outros fatores levam HoíFmeier a concluir:
“no m ínimo, as semelhanças ilustram que, quando comparada com um texto m ilitar egípcio, a narrativa
de Josué tem precedente e que, quaisquer que tenham sido os interesses ideológicos que deram form a às
narrativas de Josué, continua sendo possível compará-las com textos do segundo m ilênio que procedem
de outras regiões do O riente Próximo” (p. 173). Ele acredita que “o período do Reino Novo, o período
mais provável para a saída de Israel do E gito e sua entrada em Canaã, é a época mais provável para que
as tradições do uso de diário pelos escribas egípcios fossem adotadas pelos escribas israelitas e, desse
m odo, deixassem sua marca na composição de Josué 1— 11” (p. 179).
23E.g., em Grace in the end: a study o f Deuteronomistu theology (G rand Rapids: Z ondervan, 1993)
J. G . M cConville cham a a atenção para o episódio narrado em Josué 22.9-34 sobre o altar construído
pelas tribos da Transjordânia. Após term inar a distribuição territorial entre as tribos da Cisjordânia
(veja o resumo em 21.43-45), Josué abençoa as duas tribos e meia da Transjordânia e as envia de volta
para sua herança (22.1-8). A ação problem ática do episódio acontece quando, na travessia do Jordão, as
tribos da Transjordânia param para construir um altar im ponente (22.10). Esse gesto “provocou a ira
de seus irmãos israelitas, pois im plicitam ente desafiava a centralidade e a primazia de Siló como local
de adoração para todo o Israel e tam bém afrontava os direitos de Yahweh entre seu povo (v. 16-20).
E inquestionável a natureza ‘deuteronôm ica’das questões aqui tratadas. E ntretanto, o fato de o ‘altar do
S e n h o r ’ estar estabelecido em Siló e não em Jerusalém é difícil de ser harm onizado com um a afirmação
‘deuteronômica’ feita no contexto das reformas josiânicas, que prom overam a adoração em Jerusalém e
pretenderam suprim i-la em todos os demais lugares, em especial no norte. Por esse motivo, não é fácil
evitar a conclusão de que ao menos um núcleo da atual narrativa pertence a um a época que antecede o
período da monarquia, um a época em que se afirmava a centralidade de Siló em Israel (comp. Jz 21.12;
IS m 1— 3)” (p. 100). E ntre as referências bíblicas que apoiam a ideia de que Siló serviu de santuário
central estão Juizes 18.31; Salmos 78.60 e Jeremias 7.12.
24M uitos comentaristas pressupõem que o cativeiro m encionado em Juizes 18.30 seja o cativeiro
assírio do Reino do N orte, ocorrido por volta de 722 a.C. Se essa associação estivesse correta, então seria
possível estabelecer a data como o ter-minus a quo dessa seção de Juizes. M cConville ( Grace in the end,
p. 110) contesta, porém, a interpretação argum entando que nada há no texto que indique essa associa
ção específica. Ao contrário, a referência no versículo seguinte a “todo o tem po em que o santuário de
D eus esteve em Siló” (18.31) sugere que a m aneira mais natural de entender o “cativeiro da terra” m en
cionado no v. 30 (ARC) seja identificando-o com a queda de Siló, cujo contexto histórico é o dom ínio
filisteu anterior à época de Saul. Isso indica alguma data posterior a meados do século 11 como terminus
a quo do livro de Juizes (ou ao menos dessa seção do livro).
100 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA
davídica originados de uma época antiga. Aliás, é possível que o relato sobre Saul
tenha a estrutura de uma antiga cerimônia ritual de posse do rei.25 Por fim, o relato
de Salomão do livro de Reis corresponde aos ideais reais assírios dos séculos 11 a 9
a.C., mas não aos ideais comuns posteriormente, sugerindo que o relato teria sido
inicialmente formulado durante aquele período, em um a interação consciente com
os ideais assírios aludidos.
M uitos aspectos incidentais de nossos textos, em especial de Samuel-Reis, tam
bém sugerem sua antiguidade. Entre esses aspectos estão as referências espalhadas
a várias divindades não convencionais, os nomes estrangeiros que, frequentemente,
refletem uma fonologia inexistente em textos mais recentes, os muitos topônimos
que são associados aos heróis de Davi e que não aparecem em textos mais recentes,
a pressuposição (em 2Samuel) de uma divisão de assentamentos no Neguebe, que se
harmoniza com a arqueologia do décimo século, mas não com a de séculos posteriores,
e o número muito alto de grafias irregulares de palavras hebraicas em 1 e 2Samuel,
o que contrasta não apenas com o restante de Josué— Reis, mas, de forma muito
mais notória e significativa, com obras pós-exílicas.26 É particularmente significa
tiva a precisão com que a seqüência de reis assírios é apresentada nos livros de Reis
correspondendo à seqüência que conhecemos com base nos próprios registros assírios.
E m todos esses fatos, encontramos provas abundantes não apenas de que foi
possível a transmissão exata em Israel da tradição do período pré-exílico para o
pós-exílico, período em que essa mesma tradição recebeu sua forma final, mas que
25Veja, e.g., V. P. Long, The reign and rejection ofking Saul: a casefo r literary and theological coherence,
SBLD S 118 (Atlanta: Scholars, 1989), p. 183-90. Para um a análise mais detalhada da m aneira que o
corpus bíblico, embora estritam ente falando, seja único em antiguidade, tem certam ente características
de gêneros literários com paralelos no antigo O riente Próximo que podem ser citados, veja, e.g.,
H . Cazelles, “Biblical and prebiblical historiography”, in: Long, org., IsraeVs past, p. 98-128 (texto
original em francês publicado em 1991); idem , “D ie biblische G eschichtsschreibung im L icht der
altorientalischen G eschichtsschreibung”, in: E. von Schuler, org., X X IIII. Deutscher Orientalistentag
vom 16. Bis 20. September 1985 in Würzburg: Ausgewãhlte Vortráge, Z D M G Supplem ent 7 (Stuttgart:
Franz Steiner Verlag W iesbaden G M B H , 1989), p. 38-49; Hallo, “Biblical history”; A . M alam at,
“D octrines o f causality in H ittite and Biblical historiography: a parallel”, V T 5 (1955), p. 1-12; J. R.
Porter, “O ld Testam ent historiography”, in: G . W . Anderson, org., Tradition and interpretation: essays by
members ofthe Societyfo r Old Testament Study (Oxford: C larendon Press, 1979), p. 125-62; J. H . W alton,
“C ultural background o f the O ld T estam ent”, in: D . S. D ockery et al., orgs., Foundations fo r biblical
interpretation (Nashville: Broadm an & H olm an, 1994), p. 255-73.
260 s dados foram extraídos de um a monografia apresentada por B. H alpern no congresso da
A A R /S B L em São Francisco, Estados U nidos, em 1997, que, pelo que sabemos, ainda não foi publica
da. N ão é de form a alguma um relato exaustivo, por isso não contém tudo o que se pode dizer a respeito.
Por exemplo, W. G. Dever observa que ISam uel 13.19-21 m enciona a antiga m edida de pesopym , que
parece ter sido usada apenas nos séculos 9 a 7 a.C.: veja H . Shanks, “Is this m an a biblical archaeologist?
B A R interviews W illiam Dever, P art Two”, B A R ev 22, n. 5 [1996], p. 30-7, 74-7; citação nas p. 35-6).
C O N H E C E N D O A H IS T Ó R IA DE ISRAEL 101
isso, de fato, aconteceu. Ao contrário do que alguns têm sustentado, os textos bíbli
cos simplesmente não aparentam ser mero fruto da imaginação fértil de autores
que viveram muito tem po depois do exílio. Ao contrário, há muitas indicações de
que esses autores tiveram acesso aos próprios materiais e também a tradições escritas
— representadas em Gênesis-Reis — , as quais já tinham uma forma relativamente
fixa e eram imbuídas de autoridade (para eles). Os livros de Crônicas apoiam, de
forma muito clara, essa afirmação, revelando uma notável dependência dos livros de
Samuel-Reis — uma fonte que, aliás, reproduzem com frequência palavra por pala
vra, ao mesmo tempo que, sem dúvida, inserem em seu relato do passado de Israel
um a vasta gama de outras informações com o objetivo de completar o relato. Não
há dúvida de que ao longo do período pós-exílico ocorreu um processo contínuo
que consistiu em dar forma a Gênesis-Reis, mas isso não significa que Gênesis-Reis
seja básica e essencialmente de autoria tardia. Antes, há muitas boas razões para
acreditar que não seja esse o caso.
N o que diz respeito à natureza de um a “corrente israelita de testem unhos”
concebida dessa forma, não há nada que torne racionalmente incertas as crenças
históricas baseadas nela. Alguém poderia contestar dizendo que não conseguimos
“provar” a existência dessa corrente, já que não temos acesso a todas as supostas
fontes em que os transmissores se basearam ao fazer seu testemunho. Entretanto,
isso eqüivale a pressupor que provas são necessárias como fundamento para a fé
no testemunho, justam ente a tese que questionamos neste capítulo. Estamos mais
interessados no que se constitui a “crença razoável” do que na questão da “prova”;
e é um grande absurdo argumentar que, para que o exercício da fé no testemunho
seja razoável, devemos estar familiarizados com um a corrente de testemunhos que
remonte à época dos eventos e situações passados.27 Tendo em vista os propósitos
desta seção, tudo o que se deve demonstrar aqui é que podemos racionalmente
acreditar que no antigo O riente Próximo, em particular na Palestina, existiram con
dições que não nos permitem pressupor qualquer separação entre o testemunho
antigo sobre o passado de Israel e as formas mais recentes de tradição mediante
as quais esse testemunho chegou até nós. Entretanto, não temos a obrigação de
apresentar todos os textos intervenientes.
Não seria razoável esperar a apresentação de textos intervenientes nem mesmo
no caso da história medieval e moderna. D a mesma forma, essa apresentação não é
uma expectativa razoável no caso do antigo Israel. Com toda probabilidade, muitos
desses textos foram escritos em papiro, o que é possível supor com base no fragmento
do W adi M urabbat (c. 600 a.C.) e nos inúmeros selos de barro que outrora foram
usados para m anter a confidencialidade de textos em papiro encontrados em sítios
arqueológicos israelitas pré-exílicos. Os inúmeros óstracos descobertos eram pro
vavelmente notas administrativas cuja informação deve ter sido logo transferida
para o papiro — um a prática comprovada na Babilônia, na Assíria e no Egito.
Esse fato é im portante, pois o papiro só sobrevive em ambiente quente e seco. O
próprio fragmento de W adi M urabbat só foi preservado devido a um a desidratação
incomum. Por isso, não surpreende a escassez de descobertas epigráficas do Israel
pré-exílico. Essa escassez também ocorre no caso de Atenas e Esparta, em épocas
anteriores ao sexto século a.C. D a mesma maneira, inscrições em m onumentos não
são fáceis de achar, tanto em áreas rurais, em que não se sabe onde procurar, como
em áreas povoadas, onde muitas construções e reformas foram feitas ao longo dos
séculos e onde os habitantes frequentemente não partilham do mesmo interesse que
os estudiosos modernos têm na preservação de materiais antigos. Nesse aspecto, a
própria história de Israel — constantemente atacado por exércitos, sucessivamente
assimilado por grandes impérios e continuamente repovoado ao longo do tempo
— não ajuda o historiador. Mesmo em outras partes do mundo antigo não encontra
mos essas inscrições remanescentes, embora seja provável que existiram. Não temos
nenhum a esteia aramaica do território do reino de Damasco, que se situava ao norte
de Israel. Tampouco há qualquer inscrição monum ental da Atenas e da Esparta do
sétimo século, nem do final da era de Herodes, o maior construtor que a Palestina já
viu, ou dos governantes hasmoneus, nem ainda do Império Carolíngio, que existiu
muito mais tarde, ou seja, no oitavo século d.C. Todas essas lacunas demonstram,
entre outras coisas, o absurdo de considerar a inexistência de um tipo específico
de prova como evidência de que um povo conhecido somente por meio de fontes
escritas jamais existiu de fato. No que diz respeito ao mundo antigo, além dessas
fontes escritas, os dados disponíveis são por demais fragmentários e formam uma
base muito insegura para deduções desse tipo.28
28A tolice de fazer essas deduções tem sido ilustrada repetidas vezes à m edida que surgem dados
confirm ando testem unhos até então isolados: veja o que E. Yamauchi diz em “The current State o f O ld
Testam ent historiography” (in: M illard et al., Faith, tradition, and history, p. 26-7). Podem os acrescentar
o seguinte à lista de Yamauchi: no que diz respeito a um a dinastia davídica, até a recente descoberta
da inscrição de Tel D an não havia nenhum a comprovação extrabíblica independente que remontasse
ao nono século a.C. Isso não deveria se constituir em um forte motivo para desacreditar a existência
da dinastia; e é surpreendente que, agora que a inscriçãoyò; encontrada, os que achavam que não havia
um bom motivo para aceitar a dinastia davídica sejam tão resistentes a adm itir que finalm ente têm um
bom motivo para aceitá-la.
C O N H E C E N D O A H I S T Ó R I A D E ISR A EL 103
Assim, concluímos esta seção afirmando novamente que, no que diz respeito à
confiabilidade dos testemunhos, não se pode defender nenhum a distinção simplista
e geral entre testemunhos antigos e recentes. É falso o argumento de que o teste
munho sobre o passado de Israel, que aparece no fim ou perto do fim da corrente
de testemunhos, é, em princípio, mais suspeito do que aquele que há no começo ou
perto do início dessa corrente. Não há motivo algum para supor que um a versão
mais recente de determinada tradição antiga da Bíblia seja verdadeira, assim como
não há razão para supor que um a versão antiga não seja falsa. É talvez surpreenden
te o fato de que haja historiadores modernos que sustentem o contrário, visto que a
tendência típica de muitos deles seja defender que suas versões recentes de tradições
mais antigas são verdadeiras — aliás, mais verdadeiras do que as tentativas que as
precederam. O provável motivo para esses historiadores não perceberem tal incon
sistência é o fato de eles considerarem suas contribuições como “verdade científica”
em vez de novas versões da tradição. Seja como for, no tocante à cronologia, não
há nenhum a “regra” ou “m étodo” que possa de fato ajudar a decidir quais testem u
nhos do passado merecem crédito. Cada testemunho, inclusive o bíblico, deve ser
considerado em seus próprios termos.
29L. L. Grabbe, “Are historians o f ancient Palestine fellow creatures — or different animais?”, in:
Grabbe, org., History, p. 19-36; citação na p. 21, nota 6.
30“Role”, p. 118,134; idem , History, p. 50.
104 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍ BLIA
U m a vez que os autores d a B íblia eram historiógrafos e usaram padrões estilísticos para
criar u m a literatu ra “dogm ática” — que, com o tal, é tendenciosa — po d e-se questionar
a confiabilidade do que produziram .
A arqueologia e o passado
31Q uanto à curiosidade em levar essa “aparente” inocência a sério, observe-se o que H . M . Barstad
escreveu em “H istory and the H ebrew Bible”, in: Grabbe, org., Can a “history o f Israel” be written ?,
p. 45-6, nota 25.
C O N H E C E N D O A H I S T Ó R I A D E ISR AEL 105
especificamente sobre a história de Israel do décimo século, mas mesmo assim tem
aplicação mais abrangente:
Assim como é comum pensar que a arqueologia fornece meios de evitar a ideo
logia na busca de compreender o passado de Israel, também o é em relação aos
textos extrabíblicos. Além da arqueologia, acredita-se que esses dados propiciam
“conhecimento” da entidade concreta chamada “história”— um “conhecimento” que
indica que não podemos mais acreditar no “Antigo Israel”. Com frequência se con
sidera que textos antigos, em particular os egípcios, assírios e babilônicos, oferecem
não apenas um a estrutura cronológica abrangente e confiável da história do antigo
Oriente Próximo, mas também uma narrativa básica desse passado, mediante a qual
todo e qualquer testem unho do AT deve ser avaliado. Alega-se que esses textos
são algumas das principais fontes a que podemos recorrer caso queiramos “avaliar”
afirmações específicas do A T — algo dito de modo explícito ou implícito — porque
eles não têm as imperfeições da narrativa do AT no que diz respeito ao aspecto
ideológico e, em particular, ao religioso. Esses textos nos dão acesso ao passado
“como realmente aconteceu”.
35C. Scháfer-Lichtenberger, “Sociological and biblical views o f the early State”, in: Fritz; Davies,
orgs., The origins o f the anáent Israelite states, p. 82; comp. p. 79-82. O bserve-se ainda o que G . N .
Knoppers diz em “The vanishing Solomon: the disappearance o f the U nited M onarchy from recent
histories o f Israel” (JBL 116 [1997], p. 19-44): “C om parar textos literários com dados materiais
é altam ente preocupante, mas se concentrar em vestígios materiais não é garantia de objetividade.
A própria interpretação dos artefatos materiais é um a tarefa profundam ente subjetiva. Assim como
acontece com vestígios literários, o significado dos vestígios materiais não é autoevidente [...]. Novos
dados arqueológicos e epigráficos são bem -vindos, mas a probabilidade de dificultarem a interpretação
de dados antigos é tão grande quanto a esperança de que possam esclarecê-los” (p. 44).
36H . Shanks, “Is this m an a biblical archaeologist? B A R interviews W illiam Dever, Part O n e”,
B A R ev 22, n. 4 (1996), p. 30-9, 62-3; citação na p. 35.
C O N H E C E N D O A H I S T Ó R I A D E ISR A EL 107
3/“Creatures”, p. 24-6.
3SPara um a refutação da segunda conclusão de Grabbe, veja V. P. Long, “H ow reliable are biblical
reports? Repeating Lester G rabbes comparative experim ent”, V T 52 (2002), p. 367-84.
39“Some aspects o f working w ith the textual sources”, in: Grabbe, ed., History, p. 156-65; citação
nas p. 157-8.
40Existe um a extensa bibliografia disponível que, de um a m aneira ou de outra, trata da natureza
seletiva e altamente ideológica das composições elaboradas pelos escribas assírios. U m bom lugar para
começar o estudo é a breve análise feita por M . Bretder em The creation o f history in ancient Israel (London:
Roudedge, 1995, p. 94-7) e as referências nas notas de rodapé dessa análise, ou então o capítulo “The
deeds o f ancient M esopotam ian kings”, de M . Liverani (in: J. M . Sasson, org., Civilizations o f the ancient
N earE ast [Peabody: Hendrickson, 1995], vol. 4, p. 2 353-66,4 vols.). A qui é possível apenas m encionar
outras duas das muitas obras existentes: R M . Fales, ed,,Assyrian royalinscriptions: neto horizons in literary,
ideological and historical analysis (Rome: Istituto per L O riente, 1981); e K. L. Younger Jr., Ancient conquest
accounts: a study in ancient Near Eastem and biblical history writing, JS O T S 98 (Sheffield: JS O T Press,
1990), p. 61-124. A disponibilidade desse tipo de recurso é tão grande que ficamos sem compreender
como textos assírios são usados em alguns estudos recentes da história de Israel.
108 H I S T Ó R IA , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA
Não há como negar que as várias inscrições e crônicas assírias escritas a par
tir do nono século a.C. — especificamente a partir do reinado de Salmaneser III
(858-824 a.C.) — sejam fontes externas importantes para qualquer obra sobre a
história de Israel. Salmaneser e muitos de seus sucessores realizaram campanhas
militares em toda a região entre o Eufrates e o Egito e, por fim, no oitavo século, a
dominaram. Por isso, textos que tiveram origem durante seus reinados são frequente
mente importantes para o estabelecimento de um contexto mais amplo no qual as
narrativas bíblicas podem ser lidas.41
Contudo, o primeiro aspecto a se observar sobre esses registros é que eles são
desproporcionais, em particular quando tratam das atividades dos reis assírios em
sua fronteira ocidental — e, é claro, Israel estava situado a oeste da Assíria. As
fontes escritas da época do reinado de Salmaneser III são abundantes, mas não se
pode dizer o mesmo das fontes de seus sucessores Shamshi-Adad V (823-811 a.C.),
Adad-Nirari III (810-783 a.C.), Salmaneser IV (782-773 a.C.), Assur-Dan III
(772-755 a.C.) e Assur-Nirari V (754-745 a.C.). A situação melhora de maneira
notória quando chegamos ao reinado de Tiglate-Pileser III (744-727 a.C.), con
dição que persiste nos reinados seguintes até Assurbanipal (668-630 a.C.). Aqui,
as fontes em geral são numerosas e relevantes, embora haja exceções notáveis. Por
exemplo, não sabemos praticamente nada sobre o reinado de Salmaneser V (736-722
a.C.). Ademais, algumas dessas fontes — quando não se perderam — não estão em
boas condições. Por exemplo, trechos consideráveis dos anais de Tiglate-Pileser III
chegaram até nós em condições sofríveis, ao passo que, no caso de Esar-Hadom
(680-669 a.C.), temos apenas fragmentos dos seus anais. Tudo isso representa certos
desafios mesmo para os que estão absolutamente decididos a escrever um a história
da Assíria. Assim, fica claro que, com base apenas no que as fontes assírias tratam, não
se deve dar demasiado valor ao grau com que podem ajudar a escrever uma história
de Israel. Como A. Kuhrt diz sobre todo o Levante: “...são as fontes reais assírias
que fornecem as informações mais ricas e, da perspectiva cronológica e histórica, os
dados mais úteis sobre os Estados com os quais entraram em contato. M as se deve
reconhecer que essas informações ajudam a formar apenas um quadro bem parcial”.42
Entretanto, o problema que surge na reconstrução da história assíria — à medida que
proporciona um contexto para a história israelita — não reside apenas na despropor-
cionalidade das fontes como um a questão de contingência histórica, mas também em
sua natureza, o que nos leva ao ponto principal desta seção sobre ideologia.
41N o que diz respeito a textos do antigo O riente Próximo em geral, no capítulo “Story, history and
theology” (in: M illard et al., orgs., Faith, tradition and history, p. 37-64) A . R. M illard analisa m uito bem
essa questão usando principalm ente exemplos assírios.
42The ancient Near East c. 3000-330 B. C. (London: Routledge, 1995), vol. 2, p. 459 ,2 vols.
C O N H E C E N D O A H I S T Ó R I A D E ISR AEL 109
43Para um a análise breve e proveitosa dessas e outras fontes sobre o Im pério Neoassírio, veja idem,
p. 473-8 ,5 0 1 -5 ,5 4 0 -3 .
44Não apenas os anais assírios são seletivos. O mesmo se aplica à L ista de Reis Assírios, influen
ciada por vários aspectos; por exemplo, quais eram os reis reconhecidos ou conhecidos pelos autores ou
acerca de quais reis os autores queriam escrever. Vale tam bém para as crônicas limmu, que, de meados
do nono século até o final do oitavo a.C., relacionam epônimos assírios (oficiais que deram seus nomes
para cada um dos anos sucessivos do calendário assírio) com um a breve observação sobre um evento
específico ocorrido naquele ano. U m a ocorrência particular é necessariamente um evento selecionado
dentre muitos; e, aliás, o acontecimento significativo que a crônica associa a determ inado ano nem
sempre aparece nos anais daquele ano. A brevidade dos próprios verbetes gera certos desafios para sua
interpretação, bem como para a dedução sobre a região onde realmente podem ter ocorrido as cam pa
nhas militares mencionadas com frequência. A correlação entre, de um lado, topônim os textuais assírios
e, de outro, regiões e cidades antigas é repleta de dificuldades. C om o S. Parpola diz em Neo-Assyrian
toponyms (AO AT 6, Neukirchen-Vluyn: N eukirchener Verlag, 1970), “especialmente a localização de
povos e países apresenta dificuldades, pois m uitos povos não ficavam perm anentem ente em um único
lugar [...] e, ao que parece, os próprios antigos nem sempre estavam bem informados sobre as exatas
fronteiras de outros países” (p. xv). Aqui, como em qualquer outra área do em preendim ento histórico,
não estamos lidando com um a ciência exata.
45A Crônica Babilônica é um a fonte im portante para a história do antigo O riente Próximo no
período entre 744 a.C. e 668 a.C., pois oferece um relato ano a ano de acontecimentos políticos que
afetaram a região da Babilônia, com referências úteis para a verificação das alegações de textos assírios.
110 H I S T Ó R IA , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA
lê-las. Os reis assírios entendiam que atuavam na terra como vice-reis dos deuses.
As tarefas dos reis (isto é, aquelas que mereciam registro) abrangiam governar seus
súditos, estender seu poder até os rincões mais longínquos da terra e, como retribuição
pelo poder e vitórias que os deuses lhes concediam, construir templos e manter o culto
a esses deuses. Os assírios registravam tudo isso em tábuas memoriais, em prismas, em
cilindros de barro, em obeliscos, em esteias, nas paredes de palácios e nos templos. Os
anais em particular eram normalmente reeditados muitas vezes durante um reinado.
A maioria dos textos que sobreviveu é produto de considerável redação, seleção e
combinação de várias fontes pelos escribas desejosos de enaltecer o governante da
melhor maneira possível. Cada nova edição podia envolver não apenas a atualização
dos registros do rei, mas também uma remodelação significativa de todo o relato.
Nessas circunstâncias, uma descrição precisa dos acontecimentos não era necessa
riamente e nem sempre o motivo principal ou orientador dos escribas reais. Ademais,
é certo que não podemos esperar que essas inscrições fossem “objetivas”, mesmo
quando estejamos razoavelmente seguros de que seu propósito era o de serem preci
sas. Ao contrário, são obras de arte literária com ênfase política e religiosa. Por isso,
os relatos detalhados de conquistas de outros Estados são estilizados e repetitivos, e,
com frequência, as afirmações de soberania régia são hiperbólicas e tendenciosas. Isso
não significa que não tenham conteúdo factual nem que os escribas necessariamente
tivessem o hábito de falsificar intencionalmente os eventos. M esmo assim, na busca
da glorificação do rei, om item -se fracassos, destacam-se sucessos e fazem-se os
relatos com intenção artística, de forma que um leitor descuidado que não entenda o
gênero e o estilo desses relatos pode ser seriamente induzido ao erro sobre a realidade
histórica a que eles se referem.48 Nas palavras de Kuhrt:
48Por exemplo, diante da versão dos anais de Senaqueribe que aparece na inscrição do prism a do
Instituto O riental da Universidade de Chicago, o leitor inexperiente poderá im aginar que está diante
de um registro objetivo das oito cam panhas m ilitares de Senaqueribe. C ontudo, sabemos de outras
cam panhas não registradas ali, e é questionável se as “oito” cam panhas m encionadas tiveram, de fato,
natureza e im portância sem elhantes. D a perspectiva de Luckenbill, a om itida cam panha contra Q ue
foi um a em preitada m ilitar m uito mais im portante do que a cham ada “quinta” cam panha, de 699 a.C.,
que foi apenas um ataque inicial executado contra alguns povoados, tendo sido registrada porque
“a vaidade do rei exigia que cam panhas régias fossem registradas com expressões grandiloqüentes
gravadas em cilindros ou prism as de dedicação ou nas paredes do palácio que constantem ente era
ampliado em Nínive” (Annals, p. 14; veja acima mais detalhes a respeito). Acerca de outros com entários
sobre as inscrições de Senaqueribe, veja A. L aato, “Assyrian propaganda and the falsification o f history
in the royal inscriptions o f Sennacherib”, V T 45 (1995), p. 198-226. Fica evidente a necessidade de
o leitor ser cauteloso ao passar do texto para o acontecim ento histórico. Senaqueribe não é um caso
isolado. Observe-se, por exemplo, a análise que A. T. O lm stead faz em Assyrian historiography: a source
study (Columbia: University o f M issoury Press, 1916, p. 53-9) acerca das várias m aneiras que as “cam
panhas” do reinado de Assurbanipal são tratadas nos registros daquele reinado.
112 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA
vice-reis terrenos dos deuses, e não é de surpreender que seus textos apresentem
exatamente os mesmos desafios encontrados nos textos assírios. Acrescente-se
a isso o fato de que a cronologia da história antiga antes do décimo século — o
período em que os historiadores de Israel têm mais interesse no Egito devido à
sua centralidade na história de Israel, antes que este se fixasse na Palestina — é
bem menos segura do que a cronologia do período posterior ao décimo século. Por
isso, questões cronológicas continuam sendo debatidas e causando dificuldades
quando se lê a história de Israel tendo como pano de fundo os textos egípcios
considerados relevantes para ela.50 Entretanto, a ideia central é que, se lidamos
com textos mesopotâmicos, egípcios ou hititas ou mesmo com um a inscrição de
um dos vizinhos mais próximos de Israel, como é o caso da Pedra M oabita —
escrita em linguagem convencional e com certa dose de hipérboles, pelo menos
na afirmação de que “Israel pereceu para sempre” (veja mais detalhes no capítulo
que trata da m onarquia israelita) — então lidamos o tem po todo somente com
textos seletivos e ideologicamente orientados. N a verdade, toda historiografia é
assim: escrita por pessoas que adotam um a cosmovisão geral e um ponto de vista
particular, os quais elas aplicam à realidade tentando organizar seletivamente os
fatos do passado em algum modelo coerente e tendo em vista um fim específico.
Ideologia e historiografia
Resumindo toda esta seção até aqui, não há em nenhum lugar um relato do passado
que não seja de natureza ideológica e que, portanto, possa ser mais confiável que outros.
50O ponto fixo a partir do qual, m ediante retroprojeção, se estabelece a cronologia egípcia é o
saque de Tebas, feito pelo im perador assírio A ssurbanipal na data relativam ente tardia de 664 a.C.
Visto que esse foi tam bém o últim o ano do reinado do faraó T iraca em Tebas, podemos, assim, retro
ceder a partir dele, fazendo uso da história do E gito escrita por M aneto, conform e parcialm ente
preservada por Josefo, e tam bém dos relatos de H eródoto e D iodoro Sículo (um historiador grego
que viveu na Sicília no prim eiro século a.C. e escreveu um a história parcial do E gito). C om a ajuda,
então, de descobertas arqueológicas (e.g., dados fornecidos por inscrições) é possível fazer correções.
D o m esm o m odo que ocorre com a história do A ntigo Israel, a cronologia do E gito A ntigo depende
bastante de testem unhos, interpretação e fé; e, de um m odo ou de outro, achados arqueológicos suge
rem na verdade que, para elaborar um a história do E gito, não basta fazer um a soma simples das datas
apresentadas por M aneto, um a vez que deve ter havido algumas dinastias coextensivas no E gito (tal
como na Assíria). O núm ero dessas dinastias coextensivas ainda é incerto. Para um a análise breve e
proveitosa da cronologia egípcia, veja A ncient Near East, de K uhrt, em que o com entário desse autor
sobre o período de nosso interesse aqui (o “Terceiro Período Interm ediário”, 1069-664 a.C.) nos
lem bra quão cuidadosos devemos ser como historiadores de Israel quando usamos fontes egípcias:
“E absolutam ente impossível escrever um a história narrativa [do E gito nesse período], pois é m uito
grande o núm ero de lacunas” (vol. 2, p. 623-6; citação na p. 626).
114 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA
M esm o assim, o acesso real ao passado não está indisponível. Nesta seção,
o propósito de nossa análise foi apenas afastar o m ito de que o testemunho extrabíblico
representa uma classe de dados disponível ao historiador de Israel diferente dos
dados que a Bíblia apresenta — o mito de que é possível usar textos extrabíblicos
para produzir uma entidade concreta denominada “história factual” que pode,
enfim, ser empregada para serem feitos juízos definitivos sobre o testemunho do AT
acerca do passado de Israel. U m a vez que todos os textos que falam do passado são
ideológicos, não é possível priorizar alguns em detrim ento de outros sob a alegação
de que, de alguma maneira, os primeiros são “neutros”. Contudo, nosso objetivo
não foi sugerir que textos ideológicos não possam contar a verdade sobre o passado.
Ao contrário, não devemos supor antecipadamente que qualquer testemunho sobre
o passado, qualquer que seja sua forma ideológica e seu grau de parcialidade, não
fale com honestidade sobre o passado. Essa afirmação é válida quer pensemos
no testemunho do arqueólogo, quer do escriba assírio, quer do autor bíblico. Em
ocasiões específicas talvez achemos necessário crer que determinado testemunho
seja falso, em especial quando estamos diante do que, depois de consideração
cuidadosa, parece um conflito direto de testemunhos. Porém, a mera presença de
ideologia não deve nos levar a essa conclusão. Por exemplo, não devemos supor
antecipadamente que a “censura” empregada pelos teólogos deuteronomistas (como
N iehr o expressa) necessariamente impediu que, nos textos pelos quais se acredita
que os deuteronomistas são responsáveis, surgisse um quadro verdadeiro (ainda que
parcial) do passado. Tampouco devemos pressupor que, apenas pelo fato de que a
narrativa da ascensão de Davi ao poder em ISam uel é pró-davídica no sentido de
tentar eximir Davi de culpa ,“os materiais tradicionais sobre Davi não podem ser
considerados um a tentativa de escrever história como tal” e não nos dão acesso ao
passado real51 — aliás, a narrativa da ascensão de Davi segue um padrão literário
encontrado em outras regiões do antigo O riente Próximo que tenta eximir as pessoas
de culpa. E m si mesmo, o fato de lidarmos com material apologético tanto na forma
quanto no conteúdo não demonstra que a ação do texto afirma é inverídica (por
exemplo, a função central do relato é mostrar que Davi era de fato inocente). Para
que o autor comunique ao público a quem escreve algo significativo sobre o passado,
é inevitável que toda escrita histórica precise usar as formas e convenções literárias
disponíveis a ele e conhecidas de seu público. Contudo, a presença dessas formas e
convenções em um texto específico não impede a intenção de narrar o passado real
nem significa que não exista nenhum a possibilidade de falar com exatidão desse
mesmo passado. U m a análise mais completa do assunto será feita no capítulo 4.
S1N . P. Lem che, Ancient Israel: a new history oflsraelite society, BSem 5 (Sheffield: JSO T, 1988),
p. 52-4.
C O N H E C E N D O A H I S T Ó R I A D E ISR AEL 115
Acerca das “regras” da historiografia científica, nossa afirmação final é esta: não há
bons motivos para crer que um testemunho, apenas por não violar nossa percepção
do que é normal e possível, seja nesse aspecto mais provavelmente verdadeiro do
que outro; e tam bém não há bons motivos para crer que um relato que descreve
algo único ou incomum seja, por essa razão, suspeito e não mereça confiança.
Q uando os estudiosos asseveram o contrário, isso ocorre porque abrigam no
fundo da mente o princípio da analogia, como conhecido na famosa formulação de
E.Troeltsch. O argumento deTroeltsch era que os acontecimentos que a crítica pode
reconhecer como de fato ocorridos no passado têm como marca característica da
realidade a conformidade com acontecimentos e condições normais e costumeiros
ou, pelo menos, com atestados com frequência em nossa experiência. Analisamos
cuidadosamente o testemunho do passado em relação à experiência presente, che
gando a juízos sobre o que é histórico mediante a reflexão sobre nossa “experiência
norm al”. Essa formulação do princípio da analogia é central em boa parte do
em preendimento histórico desde o século 19, pois é evidente que está de acordo
com a abordagem científica da história em geral e com a abordagem positivista em
particular, em suas tendências generalizantes.
Contudo, aqui tam bém cabe um a reflexão crítica. Q uem é o “nós” de Troeltsch?
Q uem é aquele cuja “experiência norm al” deve ser empregada para fazer juízos
sobre “o que realm ente aconteceu” na história? Não pode ser a experiência nor
mal e individual do próprio historiador — o ser cartesiano que, trabalhando de
dentro para fora, começa com certezas particulares e chega a teorias abrangentes.
H istoriadores aceitam regularm ente a realidade de acontecimentos e práticas que
estão fora do alcance de sua experiência im ediata e são sábios ao proceder assim,
pois sua experiência, que é determ inada por sua época e afetada por sua cultura,
tem limitações drásticas. Talvez devamos, então, ampliar a noção de experiência
norm al e, em vez disso, nos referirmos à “experiência hum ana comum” — esse
grande poço de sabedoria da hum anidade em geral. N a realidade, essa tem sido
um a m udança popular em abordagens m odernas do passado, rem ontando ao
menos até D. Hum e. Com base nisso, o próprio H um e rejeitou relatos de milagres.
Tam bém rejeitou relatos de atos e disposições hum anos que se opõem à uniform i
dade de motivos e ações hum anos que, na suposição dele, havia sido revelada tanto
pelo estudo da história quanto da sociedade contemporânea.
Um a rápida reflexão, porém, deve nos persuadir da fraqueza de uma mudança
assim. No que diz respeito à hum anidade em geral, como determinamos o que
é de fato normal, costumeiro ou comprovado frequentemente? É de se presumir
que, para sermos verdadeiramente “científicos” em nossa abordagem do assunto,
C O N H E C E N D O A H I S T Ó R I A D E ISR A EL 117
52W . Abraham , D ivine revelation and the limits o f historical criticism (Oxford: O xford University
Press, 1982), p. 105.
C O N H E C E N D O A H I S T Ó R I A D E ISR A EL 119
[A] ausência de u m a explicação adequada p ara relatos q u ando não se te m certeza de sua
veracidade é u m a consideração co n trária à sua rejeição, m as é apenas u m a consideração e
pode ser invalidada de várias m aneiras. C o m as circunstâncias in tern as e externas m e n
cionadas an terio rm en te [por C oad y em seu capítulo sobre “relatos extraordinários”],
a exigência de u m a explicação é u m com ponente do veredito geral. C onsidero bem
im provável que se consiga estabelecer u m a regra rígida para d eterm in ar o resultado
das avaliações de fatores tão diversos — com o L ocke n o to u , o que se requer não é u m
critério, m as u m ju íz o .54
D e fato, é ju ízo o que se requer: o juízo feito pela pessoa epistem ologica-
m ente aberta, aliás, a pessoa verdadeiram ente empírica, que não aborda o passado
e o presente com um a m ente fechada nem habita em um m undo igualm ente
fechado. E um tanto irônico que, em bora H um e seja bastante lem brado como
em pirista, seus escritos históricos m ostram que ele não estava particularm ente
interessado em descobrir algo sobre a natureza hum ana em registros do passado.
À sem elhança de seus sucessores que dependeram tanto da analogia, ele já sabia
que aquilo que o passado tinha a dizer se conformava ao que as “pessoas racio
nais” já acreditavam no presente.
Podem os concluir satisfatoriam ente esta seção sobre a analogia com um
resumo geral que se aplica tanto a esta seção do capítulo quanto às precedentes
que tratam de testem unhos antigos e recentes e tam bém de ideologia. “R egras”
acerca de provas não podem prejulgar se testemunhos em particular são merecedores
de crédito. É uma ilusão pensar que podem. Não há meio algum intelectualmente
defensável de, no presente caso, esquivar-se da consideração inevitável de todos os
testemunhos juntos, avaliando-os em seus méritos e em comparação uns com os
'yí Basic questions in theology, tradução para o inglês (Philadelphia: Fortress, 1970), vol. 1, p. 39-50.
SiTestimony, p. 198.
120 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍB L IA
outros, indagando até que ponto é (ou não) provável que cada um tenha um a relação
concreta com os acontecimentos a que se referem. Tudo o que as assim chamadas
“regras” da evidência fazem é fornecer um contexto geral útil — uma sabedoria acu
mulada que pode ou não ajudar na solução de um problema específico. Em última
análise, não há nenhum substituto para o juízo que cada leitor faz dos testemunhos,
um julgamento que, em cada caso específico, avança rumo a uma solução e chega a
uma concepção firme sobre os testemunhos em que, de modo razoável e inteligente,
pode-se acreditar.
CONCLUSÃO
Se não tiverm os algum fundam ento positivo para aceitar que u m relato bíblico é histo ri
cam ente útil, com certeza não podem os adotá-lo com o história. E verdade que o resultado
será que terem os m enos história, mas pelo m enos poderem os afirm ar que conhecem os o
5SB. H alpern, The fir st historiam: the Hebrew Bible and history (San Francisco: H arper and Row,
1988), p. 28.
C O N H E C E N D O A H I S T Ó R I A D E ISR AEL 121
pouco que tem os (qualquer que seja o sentido em que “conheçam os” o passado distante).
N a m in h a opinião, isso é m elhor do que te r mais história, da qual boa parte não conhece
mos absolutam ente nada, visto que consiste apenas em narrativas não verificáveis.56
Narrativa e história:
relatos sobre o passado
'Isso não significa que negamos o intuito historiográfico de outros gêneros. Considerem -se, e.g.,
os “salmos históricos”, ou as diversas composições poéticas espalhadas ao longo das histórias narrativas
ou, ainda, as cenas e o significado histórico de boa parte do corpus profético.
124 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBLIA
Para alguns leitores, talvez pareça curioso que a “história narrativa” já tenha sido
atacada. Não há dúvida de que a história do registro histórico, em sua maior parte,
revela que o modo dominante de recordar (ou recontar ou descrever) o passado
tem sido narrativo, com todas as implicações em relação à habilidade literária e ao
objetivo de persuasão. N o passado, a própria escrita da história foi considerada uma
área da literatura ou da retórica.2 Tudo isso, porém, começou a mudar no século 19.
No século 19, com a esperança de estabelecer os estudos históricos sobre bases
mais científicas, muitos historiadores abandonaram o m étodo narrativo da histo
riografia com sua ênfase em grandes personagens e acontecimentos a fim de se
dedicar a abordagens mais quantificadoras, que não davam atenção a detalhes, e
sim a tendências ambientais e sociais em grande escala. Utilizando a terminologia
técnica, a mudança foi da pesquisa e escrita históricas idiográficas (“descrevendo
o que é particular, distinto, individual”) para as nomotéticas (“legisladoras”).3 N a
explicação de Lawrence Stone,4 o que motivou a mudança foi a percepção de que as
narrativas, por descreverem eventos seqüenciais e darem atenção a agentes pessoais
importantes, eram capazes de responder às perguntas “o quê?” e “como?’, mas não
conseguiam apresentar respostas satisfatórias à pergunta fundamental “por quê?’.
As narrativas podiam descrever o desdobramento dos acontecimentos, mas eram
incapazes de explicar por que a história havia se desenvolvido daquela maneira.
A percepção de que as narrativas eram inadequadas para responder o “por que”
originou-se do fato de que muitos “historiadores daquela época estavam sob a forte
influência tanto da ideologia marxista quanto da metodologia das ciências sociais”
e, por esse motivo, “interessavam-se em sociedades e não em pessoas”.5 Resumindo,
muitos historiadores acreditavam que a verdadeira explicação do processo histórico
2Veja, e.g., L. Gossm an, “H istory and literature: Reproduction or signification”, in: R. H . Canary;
H . Kozicki, orgs., The w riting ó f history: literary form anã historical understanding (M adison: University
ofW isconsin Press, 1978), p. 3-39.
3Veja, e.g., C. B. M cCullagh, justifym g historical descriptions (Cambridge: Cam bridge University
Press, 1984). Nessa obra, M cC ullagh apresenta um resumo da introdução term inológica feita por
W ilhelm W indelband em seu discurso de posse como reitor da Universidade de Estrasburgo, em 1894,
cujo título era “H istória e ciência natural” (p. 129).
4“The revival o f narrative: reflections on a new old history”, Past andpresent 85 (1979), p. 3-24.
5Stone, “Revival”, p. 5.
126 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍ BLIA
a crença de que condições m ateriais com o m udanças na relação entre população e alim ento
disponível, alterações nos m eios de produção e conflitos de classe eram as forças propulso
ras da história. M u ito s, em bora não todos, consideravam os desdobram entos intelectuais,
culturais, religiosos, psicológicos, legais e até m esm o políticos com o m eros epifenôm enos.7
Basicamente, “só o primeiro nível era o que de fato importava”, de modo que o
assunto estudado pela história passou a ser “as condições materiais das massas, não
a cultura da elite”. O resultado foi um “enorme revisionismo histórico”.9
Como ocorre em tantas áreas da disciplina abrangente dos estudos bíblicos, essas
tendências no estudo da história em geral encontram paralelos (ainda que com atraso
significativo) na pesquisa contemporânea da história do Antigo Israel. O “intenso revi
sionismo histórico” é visível nos escritos de vários estudiosos — de modo preeminente,
nas universidades de Sheffield e Copenhagen, mas também em outros lugares. Céticos
quanto a histórias narrativas em geral, esses estudiosos não veem quase nenhuma utili
dade nas narrativas bíblicas em particular, pelo menos no que diz respeito à reconstrução
histórica.10 Um representante dessa abordagem é N. P. Lemche, de Copenhagen, que
6Stone ressalta três dessas tentativas: “o modelo econômico marxista, o modelo ecológico/dem o
gráfico francês e a m etodologia ‘cliométrica’ norte-am ericana” (ibidem, p. S).
'Ibidem , p. 7.
8Ibidem
9Ibidem , p. 8.
10As vezes, são presumidas datas tardias para muitos (ou todos) livros bíblicos e são supostas refu
tações de dados bíblicos pela pesquisa arqueológica em um a tentativa de apresentar novas justificativas
para a rejeição dos textos bíblicos; veja, e.g., N . P. Lemche, “O n the problem o f studying Israelite history:
Apropos Abraham M alam ats view o f historical research”, B N 24 (1984), p. 94-124, especificamente na
N ARRATIV A E H I S T Ó R I A : RE L A T O S S O BR E O P ASSADO 127
em uma de suas obras mais recentes declara que não pode haver quase relação alguma
entre “o Israel bíblico” e “o Israel da Idade do Ferro”,11um ponto de vista que P. R. Davies
já havia expressado em 1992.12 Na compreensão de Lemche, “o Israel bíblico” é pouco
mais do que uma entidade literária, enquanto “o Israel da Idade do Ferro” é uma enti
dade histórica sobre a qual pouco — se houver algo — pode-se aprender com base no
que os textos bíblicos têm a dizer. Dando preferência aos dados de primeiro e segundo
níveis (ou seja, evidências materiais e análises sociológicas) em vez de dados textuais de
terceiro nível oferecidos pelo AT, Lemche se vê, enfim, em uma “situação em que Israel
não é Israel, Jerusalém não é Jerusalém e Davi não é Davi”.13
No entanto, apesar das afirmações revisionistas, é uma questão ainda não defi
nida se os dados de primeiro e segundo níveis (na forma como estão disponíveis)
m inam de forma tão radical as narrativas bíblicas, com seu foco, basicamente de
terceiro nível, em pessoas e acontecimentos específicos. Para m anter o assunto na
perspectiva adequada, é preciso primeiro lembrar que artefatos arqueológicos não
se apresentam simplesmente como fatos e que objetos escavados não constituem
evidência objetiva. Ao contrário, esses mesmos objetos ou artefatos devem ser
interpretados, que é exatamente o que, conscientes disso ou não, os estudiosos
fazem a partir do m omento em que começam a descrevê-los e analisá-los.14 Além
disso, deve-se ter em mente que raramente, ou mesmo jamais, as interpretações dos
estudiosos estão isentas de interesses mais amplos. A louvável noção de objetividade
acadêmica não significa nem pode significar que um estudioso aborda cada novo
problema com um disco rígido mental recentemente apagado. Todos os estudiosos
realizam seu trabalho como pessoas integrais, com crenças e convicções diversas.
A objetividade nunca é absoluta. Entretanto, a inevitável presença de interesses e
convicções profundos — as crenças prévias — não tem de necessariamente invalidar
o labor acadêmico, contanto que essas crenças sejam reconhecidas e discutidas.15
p. 122; T. L. Thompson, The historiáty o f the patriarchal narratives, B Z A W 133 (Berlin: D e Gruyter,
1974), p. 327-8. Além disso, em “H istoriography o f ancient Palestine and early Jewish historiography:
W . G. D ever and the not so new biblical archaeology”, T. L. Thompson parece querer que acreditemos
que, pelo fato de os textos bíblicos serem elaborados teologicamente, eles possuem um a natureza que
impede qualquer intenção de seus autores de fazer referência a um passado real e assim não perm ite que
tenham os algum acesso a esse passado por meio deles (in: V. Fritz; P. R. Davies, orgs., The origins o f the
ancientIsraelite states, JS O T S 228 [Sheffield: Sheffield Academic Press, 1996], especialmente p. 38-43).
11The Israelites in history and tradition, L A I (Louisville: W estm inster John Knox, 1998), p. 166.
u In search o f “
A ncient Israel", JS O T S 148 (Sheffield: JSOT, 1992).
13Lem che, The Israelites, p. 166.
l4Veja, e.g., Brandfon, “L im its”.
15Veja V. P. Long, “The future o f Israels past: personal reflections”, in: V. P. Long, org., IsraeTs
past in present research: essays on ancient Israelite historiography, SBTS 7 (W inona Lake: Eisenbrauns,
1999), p. 586-7.
128 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍ BLIA
Embora, pelo que sabemos, Lemche não trate de suas crenças prévias no livro
que acabamos de citar,17 a última frase na citação aproxima-se de uma declaração do
objetivo com que está comprometido. Ademais, as avaliações às vezes surpreendentes
que Lemche faz dos dados18 confirmam seu compromisso em demonstrar o valor
insignificante do AT, exceto quando é claramente confirmado por dados externos
(um caso em que os textos do AT seriam supérfluos de qualquer maneira).
No capítulo anterior, analisamos a questão da verificação e a da falsificação e
observamos sérios problemas na primeira, tanto na lógica quanto na aplicação. Nossa
preferência é pelo princípio da falsificação, em que textos antigos recebem o benefício
da dúvida, a menos que motivos convincentes para a desconfiança sejam evidentes.
Ironicamente, estudos revisionistas como o de Lemche ignoram a importância
histórica das narrativas bíblicas justamente quando o interesse pela narrativa tem expe
rimentado um notável ressurgimento entre os historiadores em geral. N a dissertação
de 1979, já mencionada, Stone ressalta várias razões para esse interesse renovado. Não
somente existe uma generalizada “desilusão com o modelo determinista de explicação
histórica e [com a] estrutura hierárquica em três níveis à qual ele deu origem”, mas
também está surgindo, com base em pesquisas concretas, o reconhecimento de que há
um “fluxo extraordinariamente complexo de interações entre” condições ambientais e
materiais, de um lado, e “valores, ideias e costumes”, de outro. Além disso, um declínio
A desilusão com o d eterm in ism o m onocausal econôm ico ou dem ográfico e com a
quantificação te m levado os h istoriadores a fazer u m a série de perg u n tas to ta lm en te
novas, m uitas das quais haviam ficado de fora p o r causa d a preocupação com u m a
m eto d o lo g ia específica: estru tu ral, coletiva e estatística. A gora, u m crescente n úm ero
de “novos h isto riad o res” te n ta descobrir o que se passava n a cabeça das pessoas no
passado e com o era viver n aquela época, questões que inevitavelm ente nos reconduzem
ao uso da narrativ a.20
Tendo em vista que já faz algumas décadas que ressurgiu entre os historiadores
o interesse pela história narrativa, é notório o fato de que alguns estudiosos bíblicos
simplesmente rejeitem o AT, considerando-o “basicamente inútil para os propó
sitos do historiador”, nada mais do que “um livro sagrado que conta histórias”.21
Entretanto, é mais encorajador o fato de que a maioria dos estudiosos bíblicos
interessados na história continua a levar a sério as narrativas bíblicas.22 Para esses
estudiosos, assim como para os historiadores em geral, o ressurgimento do interesse
pela narrativa suscita novamente a questão da relação entre história e literatura,
assunto sobre o qual trataremos agora.
“ “Revival”, p. 8-9.
20Ibidem , p. 13.
2IVeja J. M . Miller, que faz um a crítica a essa posição reducionista (“Reflections on the study o f
Israelite history”, in: J. H . Charlesw orth; W . R Weaver, orgs., What has archaeology to do w ith fa ith ?
[Philadelphia: T rinity Press International, 1992], p. 72).
22Veja, e.g., H . G . M . W illiam son, “The origins o f Israel: can we safely ignore the Bible?”, in:
S. A hituv; E . D . O ren, orgs., The origin o f early Israel— current debate: biblical, historical and archaeologi-
calperspectives, Beer-Sheva 12 (Jerusalem: B en-G urion University o f the Negeb Press, 1998), p. 141-51.
130 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA
Será que elas evoluirão para leituras a-históricas e puramente literárias que ameaçam
a Bíblia — a despeito de consideráveis evidências internas e externas contrárias — ,
vendo-a como pouco mais do que um romance bem produzido?23 O u será que uma
sensibilidade literária aperfeiçoada conduzirá a percepções mais profundas sobre a
ampla gama do testemunho bíblico, inclusive sobre seu testemunho histórico? É cedo
demais para dizer qual rumo a maioria dos estudiosos bíblicos seguirá — se é que
seguirão algum — mas já está muito claro que existem alguns que preferem separar
o estudo literário do estudo histórico.24 Em 1987, Philip Davies expressou a opinião
de que, no que diz respeito à história de Israel, “o caminho pela frente, se é que existe,
parece estar” não no estudo literário, mas “nos métodos (combinados) das ciências
sociais: sociologia, antropologia e arqueologia”: em outras palavras, nos interesses de
primeiro e segundo níveis analisados anteriormente. No entendimento de Davies, “o
estudo literário está se afastando da história, concentrando-se no que está no texto, não
por trás dele”. “Resta uma tarefa legítima para o historiador , mas “essa tarefa estará
cada vez mais separada da crítica literária”.25
É possível citar com facilidade muitos outros exemplos de estudos bíbli
cos literários que seguem o caminho a-histórico, que exibem o que John Barton
chama de tendências “contraintuitivas”, como um a “aversão ilógica pela intenção
autoral, pela busca de um significado referencial e pela possibilidade de paráfrase
ou reformulação”.26 Contudo, não está ainda claro que é inevitável ou justificada
a predileção a-histórica nos estudos literários. Ela representa outro exemplo de
estudiosos bíblicos que adotam tendências já ultrapassadas nas áreas não bíblicas
correspondentes. Escrevendo em 1990, Peter Barry observou que justam ente quan
do “a crítica literária [...] começa a entender [...] algumas preocupações históricas
que talvez tenham sobrecarregado a exegese das Escrituras, os estudos bíblicos estão
testando as muitas abordagens radicais da crítica e da teoria que deram origem à
‘crise’nos estudos literários no início e em meados da década de 1980”.
Q uando escreveu isso, Barry expressou a opinião de que restava ver “se um a
crise semelhante [iria] afetar o cenário exegético na década de 1990”.27 D a perspec
tiva atual, podemos ver que os estudos bíblicos, na virada do milênio, encontram-se
de fato no que alguns chamam de crise.
23Para um a análise relevante da intenção histórica do AT, veja em especial o cap. 1 do livro de
Y. A m it, History and ideology: an introduction to historiography in the Hebrew Bible (tradução para o inglês
Y. L otan, BSem 60 [Sheffield: Sheffield A cademic, 1999]).
24Veja, e.g., D. M . G unn, “N ew directions in the study o f biblical H ebrew narrative”, J S O T 39
(1987), p. 65-75.
25“The history o f ancient Israel and Judah”, /5 0 T 3 9 (1987), p. 3-4; citação na p. 4.
2(,Reading the Old Testament: method in biblicalstudy (London: Darton, Longman andTodd, 1984), p. 191.
27“Exegesis and literary criticism”, ScrB 20, n. 2 (1990), p. 28-33; citação na p. 33.
NARRATIV A E H I S T Ó R IA : RE LA TO S S O BR E O P A SSADO 131
E ntre as questões centrais que devem ser analisadas estão: “Será que a separa
ção entre a literatura e a história é mesmo inevitável e já está atrasada ou será que
ainda é possível um casamento feliz? Será que os comentários de Davies, citados
anteriorm ente, apenas ilustram os equívocos que abordagens literárias podem
(mas não precisam) gerar?”.28 C onform e Gale A. Yee observa, abordagens literá
rias (i.e., “centradas no texto”) podem de fato dar origem a problemas: “separar
um texto de seu autor e de sua história pode resultar em um exame a-histórico
que considera o texto basicamente um objeto estético em si e não um a prática
social ligada intim am ente a um a história em particular”. D iante dos sofisticados
mecanismos literários dos textos bíblicos, é possível perder de vista o fato de que
“os textos bíblicos não foram escritos [apenas] para serem objetos de beleza ou
contemplação estética, mas forças persuasivas que durante sua época formaram
opiniões, em itiram juízos e exerceram mudanças”.29 A maior parte dos textos bí
blicos não foi composta como literatura “pura” (i.e., a arte pela arte), mas como
literatura “aplicada” (“história, liturgia, leis, pregação e assim por diante”).30 Eles
não são “autotélicos” — usando o term o cunhado por T. S. E liot para designar
um a obra literária que “não tem nenhum a finalidade ou propósito além da própria
existência”.31 Ao contrário, eles frequentem ente instruem , recontam, exortam ou
combinam essas e outras finalidades.
Isso significa que não se pode considerar a literatura e a história como categorias
sem relação entre si ou m utuamente exclusivas.32 “A história pode muito bem sonhar
em se livrar da linguagem comum ou natural e utilizar a linguagem altamente formal
das ciências”,33 mas a realidade, como Hayden W hite ressalta, é que “a história como
2SVeja no cap. 1 de Biblical writers a crítica incisiva de Dever às tendências a-históricas do movi
m ento “Bíblia como literatura”.
29“Introduction: W h y Judges?”, in: G. A. Yee, org., Judges and method: new approaches in biblical
studies (Minneapolis: Fortress Press, 1995), p. 1-16; citação nas p. 11-2.
30D . Robertson, The Old Testament and the literary critic (Philadelphia: Fortress Press, 1977).
Para um a análise do assunto, veja V. P. Long, The reign and rejection o f king Saul: a casefo r literary and
theological coherence, SBLD S 118 (Atlanta: Scholars, 1989), p. 13-4.
31Conform e relatado em The concise Oxford dictionary o f literary terms, de C. Baldick (O xford/N ew
York: O xford University Press, 1990), p. 19. A hesitução de M arc B retder em falar de narrativa bíblica
como “literatura” talvez tenha origem no fato de que ele define “literatura” de um a perspectiva funcional
e não estrutural, que tende a forçar o conceito na direção de literatura pura, autotélica; citando John
Ellis, B rettler argum enta que “textos literários são aqueles que um a sociedade utiliza de tal form a que
não se considera que o texto tenha relevância específicapara o contexto imediato de sua origem” ( The creation o f
history in ancient Israel [London: Routledge, 1995], p. 16).
32Veja em especial I. W . Provan, “Ideologies, literary and criticai: Reflections on recent w riting on
the history o f Israel”, JB L 114 (1995), p. 585-606.
33Gossm an, “H istory and literature”, p. 39.
132 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA
disciplina está em má condição hoje em dia porque perdeu de vista sua origem na
imaginação literária”.34 Em um texto clássico publicado pela primeira vez em 1951,
Umberto Cassuto defendeu que tanto a historiografia israelita quanto a grega se
desenvolveram a partir de poemas épico-líricos mais antigos, sendo que os israe
litas precederam os gregos e, dessa maneira, foram os primeiros historiadores de
verdade.35 Embora, à luz de estudos posteriores, aspectos específicos da proposta de
Cassuto pareçam incertos, é correta a noção básica de que a historiografia narrativa
está relacionada com a literatura e ela própria é um tipo de literatura.36
Torna-se então evidente que a compreensão literária é uma condição necessáriapara
a compreensão histórica e que tanto a compreensão literária quanto a histórica são condi
ções necessárias para a interpretação competente da Bíblia. Com o Robert A lter expressa
com propriedade: “Em toda narrativa bíblica e tam bém em boa parte da poesia
bíblica, a história é a esfera em que a invenção literária e a imaginação religiosa
se unem, pois, com exceção de Jó e possivelmente de Jonas, todas essas narrativas
pretendem ser relatos verdadeiros de fatos que ocorreram no tempo histórico”.37
E m termos claros, boa parte da Bíblia faz afirmações de veracidade histórica, e essas
afirmações jamais serão corretamente compreendidas a menos que se entenda o
próprio modo literário de sua representação. M ais um a vez, Alter é esclarecedor:
34“The historical text as literary artifact”, in: Canary; Kozicki, orgs., Writing o f history, p. 41-62;
citação na p. 62.
35“The beginning o f historiography am ong the Israelites”, in: U. Cassuto, org., Biblical and Oriental
studies (Jerusalem: The M agnes, 1973) (texto publicado originalm ente em 1951), vol. 1: Bible, p. 7-16.
36Para um a análise mais com pleta da relação entre história e literatura, veja V. P. Long, The art o f
biblical history, M oisés Silva, org., F C I 5 (G rand Rapids: Zondervan, 1994), p. 149-54.
37“Introduction to the O ld T estam ent”, in: R. Alter; E Kermode, orgs., The literary guide to the Bible
(Cambridge: The Belknap Press o f H arvard University, 1987), p. 17.
38Ibidem , p. 21.
NARRATIV A E H I S T Ó R I A : RE LA TO S SO B R E O P ASSADO 133
Ê claro que nem toda produção escrita sobre a história é narrativa e, com certeza,
nem toda narrativa é historiografia. E bem possível que R olf G runer esteja certo
ao dizer que “existem duas maneiras principais e distintas de conceber e descrever
um determinado período da realidade: a maneira estático-descritiva ou não nar
rativa e a dinâmico-descritiva ou narrativa”.39 Seja como for, certamente é preciso
admitir formas não narrativas de informação que podem apropriadamente ser cha
madas de uma espécie de escrita histórica, ou, ao menos, de material de fonte histórica
(genealogias, análises por amostragem de sociedades específicas em momentos
específicos etc.). No entanto, conforme W illiam Dray insiste: “Persiste ofato de que
um a boa medida do que os historiadores produzem é história narrativa”.40 Portanto,
a questão é se a estrutura narrativa é um aspecto inerente da realidade passada ou
apenas um produto artificial criado pelo historiador.
Exatamente essa questão tem ocupado bastante espaço em debates recentes
sobre a historiografia narrativa. Em um a resenha do livro de Hayden W hite, The
content o f form: narrative discourse and historical representation [O conteúdo da
forma: discurso narrativo e representação histórica],41 W illiam Dray faz uma crítica
à posição de W hite, que descreve como “concepção construcionista exagerada da
narrativa na produção literária da história”.42 D e acordo com Dray, W hite chega
“bem perto de realmente afirmar que em um a narrativa histórica tudo o que vai
além da simples crônica (ou talvez até mesmo além da mera declaração de fatos
distintos) é de alguma forma ‘inventada’ (p. ix) pelo historiador”. Ao ressaltar
A narratividade da vida
43Ibidem , p. 286-7.
44L o n g ,A r t o f biblical history, esp. p. 106-7.
45E.g., no artigo intitulado “M ixed messages: the heterogeneity o f historical debate”, S. G . Crowell
escreve: “As abordagens lingüísticas de A nkersm it, Lyotard, W h ite e Kerm ode negam — todas elas —
que o passado tenha qualquer estrutura narrativa” (Hth 37 [1998], p. 220-44; citação na p. 237).
NARRATIV A E H I S T Ó R I A : RE LA TO S SOBR E O PASSADO 135
46“Introduction to the N ew T estam ent”, in: A lter e Kerm ode, orgs., Literary guide to the Bible,
p. 380.
47P. Ricoeur, Time and narrative (Chicago: University o f Chicago Press, 1984-1988), 3 vols.;
original em francês de 1983-1985. Para um a análise do pensam ento de Ricoeur, veja K. J. Vanhoozer,
Narrative in thephilosophy ofPaul Ricoeur: a study in hermeneutics and theology (Cambridge: Cam bridge
University Press, 1990).
48“Life: a story in search o f a narrator”, in: M . C. Doeser; J. N . Kraay, orgs., Facts and values:
Philosophical reflections fro m Western and non-Western perspectives (D ordrecht/B oston/L ancaster:
M artinus N ijhoff Publishers, 1986), p. 130.
49D . Carr, Time, narrative, and history (Bloomington: Indiana University Press, 1986); Carr,
“Narrative and the real world: an argum ent for continuity”, HTh 25 (1986), p. 117-31.
“ “Narrative”, p. 117.
51In: Poetics today 12 (1991), p. 591-601. A obra resenhada é The content o f theform , de Hayden
W h ite. Rigney conclui seu artigo com um a bibliografia selecionada e proveitosa sobre questões que
dizem respeito à narratividade, à historiografia e à teoria literária.
136 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍ BLIA
“ Ibidem , p. S94-5.
53Ibidem , p. 595. E provável que os que fazem essa afirmação estejam expressando sua crença
(errônea) de que apenas os fatores de primeiro e segundo níveis — i.e., os aspectos ambientais e sociais de
grande escala — são as causas reais de m udança histórica (o “porquê”) e não os atores e ações particulares
do terceiro nível, que apenas explicam como a m udança histórica de fato inevitavelmente aconteceu.
54Ibidem , p. 591.
NARRATIV A E H I S T Ó R IA : RE LA TO S SOBR E O P ASSADO 137
“história narrativa” que não é diferente da definição mais sucinta que Ferdinand
D eist formulou para a “historiografia”: “um a explicação, na forma de um a narra
tiva centrada e cuidadosa, da relação significativa que há em um a seqüência de
acontecimentos passados”.S5
Resumindo o que estudamos até aqui e desenvolvendo um pouco mais o racio
cínio: a questão fundamental para nossa presente análise é se a “relação significativa
de um a seqüência de acontecimentos passados” é inerente aos próprios aconteci
mentos ou é simplesmente imposta a eles pelo historiador. Nossa posição é que,
assim como o m undo físico tem um a estrutura, também a própria vida tem contor
nos, estrutura e aspectos significativamente relacionados. E assim como a tarefa de
um artista realista é perceber os contornos do objeto e representá-los visualmente,
de igual maneira a tarefa do historiador é identificar os contornos do passado e os
aspectos significativamente relacionados, representando-os verbalmente. Esta con
clusão não significa que o historiador não faça nenhum a escolha criativa e artística
(literária) nem que todas as representações históricas serão iguais (da mesma forma
que todas as pinturas de determinado objeto não são iguais). Todavia, significa, sim,
que a criatividade do historiador está limitada pelas condições reais do objeto e
que, à medida que focalizam aspectos iguais ou semelhantes do passado, histórias
legítimas terão alguma similaridade entre si.
O fato de que narrativas sobre o passado e narrativas originadas no passado podem re
presentar a realidade antiga tem se tornado cada vez mais claro não apenas para teóricos
Por enquanto, estamos indo bem e podemos apenas esperar que os “historiadores
do antigo Israel/Palestina” que tendem a desconsiderar textos narrativos, em geral, e
textos bíblicos, em particular, também realizem pesquisas mais amplas nesse campo.
Por mais relevantes que sejam os comentários corretivos de Barstad, sua análise
sobre a ficcionalidade na história narrativa é intrigante. Quase no fim de seu texto,
ele conclui que “a história narrativa não é ficção pura, mas contém um a mistura
de história e ficção”.58 Parece ter em mente que algumas partes de uma narrativa
podem ser históricas no sentido tradicional (correspondendo a alguma realidade
passada ou pelo menos tendo uma relação de coerência com ela), ao passo que
outras são apenas ficcionais (inventadas para causar impressão). Se este fosse o caso,
então, ao menos em princípio, se poderiam dividir os dois grupos. Barstad também
afirma que, correspondente à mistura de história e ficção, existem tipos distintos de
verdade. Ele escreve: “Se ‘verdades’podem ser de tipos diferentes, é im portante per
ceber que atualmente não podemos mais alegar que a verdade histórica tradicional
é mais ‘valiosa’ ou mais ‘correta’ do que a verdade narrativa”.59
Se nosso entendim ento das ideias de Barstad está correto, então temos algu
mas reservas baseadas novamente em nossa analogia da pintura. Ninguém diria
precisamente que um a pintura é um a mistura de história e ficção. E m certo sentido,
um quadro é totalmente histórico, visto que seu propósito básico é representar um
objeto histórico. Em termos ideais, cada pincelada no quadro serve a esse propósito.
Entretanto, em outro sentido, um quadro é totalmente um a ficção — ou seja, é
completamente “fabricado”, apenas tinta na tela. N enhum a pincelada ou combina
ção de pinceladas duplica com exatidão o objeto histórico. Entretanto, o conjunto
de pinceladas retrata ou representa o objeto histórico. Devido ao fato de que um
quadro representa, mas não reproduz, seu objeto, não se pode legitimamente realizar
certos tipos de teste nele e seria também um contrassenso exigir que respondesse
a certas perguntas. Por exemplo, não se pode analisar o D N A de um pedaço de
“pele” arrancado do rosto de alguém retratado em uma pintura, nem faria sentido
culpar a pintura de uma pessoa que não está sorrindo por não revelar nada sobre a
higiene dental da época. No entanto, o fato de que os quadros são inadequados para
certos tipos de testes e investigações científicos não coloca em risco sua condição de
representações históricas exatas — como testemunhos do passado.
S7Ibidem , p. 62-3. Veja ad loc. a bibliografia citada por Barstad em apoio à sua afirmação.
58Ibidem , p. 64.
59Ibidem .
NARRATIV A E H I S T Ó R IA : RE LA TO S SOBRE O PASSADO 139
Quando ouvimos o term o “arte”, tendemos a pensar em algo que gera prazer esté
tico: uma obra literária, uma pintura, uma escultura ou um a peça musical. Q uando
ouvimos a palavra “ciência”, tendemos a pensar em métodos precisos cujo objetivo
é descobrir informações e fatos brutos. Q ual dos dois termos descreve melhor a
historiografia? O interesse básico da historiografia é estético ou informativo? Não
há dúvida de que é o interesse em transm itir informações (sobre o passado) que
distingue a história do romance (até mesmo de um romance histórico, que, em
bora contenha informação histórica, seu objetivo principal não é transm itir esse
tipo de informação). Porém, será que a ênfase da historiografia na transmissão de
informações sobre o passado a desqualifica como arte? Refletindo acerca de quão
pouco sabemos sobre “como e quando a maior parte dos textos históricos da Bíblia
eram de fato lidos”, M arc Brettler observa que “é provável que os autores que con
sideram seus relatos importantes terão o bom senso de apresentá-los de um a forma
agradável, de sorte que serão ouvidos, lembrados e retransmitidos”.61 Em outras
palavras, conforme temos argumentado, historiadores narrativos — o que inclui
ria os narradores bíblicos — revelam interesse não apenas na informação contida
em seus relatos, mas também no modo pelo qual são retoricamente elaborados.
Entendemos, por exemplo, que não é possível ter plena compreensão histórica das
Esse exemplo pode ser exagerado,63 mas a com paração da historiografia com
a arte não é única. E ntre os filósofos da história, defensores de um a abor
dagem “pictórica” da representação histórica64 incluem H ayden W h ite
“ “Revival”, p. 17.
63Para Stone, o quadro pintado por Brown é “pós-im pressionista” e, na análise subsequente que faz,
é pontilhista, mas ainda assim ele o considera um a obra histórica. E claro que nem todos os pintores são
pós-im pressionistas e é possível pintar quadros em um a variedade de estilos, desde o altam ente realista
(quase fotográfico) até o totalm ente impressionista. A m pliando a analogia, além de quadros, outros
tipos de representação visual estão disponíveis em nossa era tecnológica: não apenas fotografias, mas
raios X, tomografias e recursos semelhantes. Se a pergunta for qual é o tipo de representação visual mais
acurada, a resposta dependerá m uito do tipo de informação que se busca. Para atender às necessidades
médicas, serão preferíveis os raios X e tomografias; um detetive de polícia possivelmente preferirá um a
fotografia; mas a m elhor m aneira de um a família lem brar-se da aparência e da personalidade de um
ente querido é colocar na parede da sala um retrato bem feito.
64N ão se deve confundir essa “abordagem pictórica” com a “teoria pictórica” da linguagem proposta
inicialm ente por W ittgenstein: “A explicação de W ittgenstein consiste na ideia notável de que um a
sentença é um quadro. E le quer dizer que é literalmente um quadro, não apenas como um quadro em cer
tos aspectos” (N. M alcolm , “W ittgenstein, L udw ig Josef Johann”, in: P. Edwards, org., The encyclopedia
ofphilosophy [New York: M acm illan, 1967], vol. 8, p. 327-40; citação na p. 330). A filosofia posterior de
W ittgenstein rejeita im plicitam ente sua antiga “teoria pictórica” (ibidem, p. 336).
NAR RATIV A E H I S T Ó R I A : RE L A T O S SOBRE O P ASSADO 141
(já m encionado)65 e F rank A nkersm it.66 C om o dito sucintam ente por H ans
Kellner, A nkersm it apresenta
Ele não tem intenção alguma de menosprezar o interesse renovado dos historiado
res pela relação entre história e literatura. Aliás, elogia a importância e a lógica da
investigação dos aspectos literários de textos históricos. Ankersm it apenas crê que a
analogia da pintura proporciona um avanço conceituai adicional. Ele escreve:
65A lém das obras de W h ite já citadas, seguem alguns exemplos de títulos relevantes, em ordem
cronológica: Metahistory: the historical imagination in nineteenth-century Europe (Baltimore e London:
Johns H opkins University Press, 1973); “Historicism , history, and the figurative im agination”, HTh
14 (197S), p. 48-67; “The fictions o f factual representation”, in: A. Fletcher, org., The literature offact:
selectedpapersfrom the English Institute (New York: C olum bia U niversity Press, 1976), p. 21-44; Tropics
o f discourse: essays in cultural criticism (Baltimore e L ondon: Johns H opkins University Press, 1978); “The
value o f narrativity in the representation o f reality”, CriticaiInquiry 7 (1980), p. 5-27; “The question o f
narrative in contem porary historical theory”, HTh 23 (1984), p. 1-33.
“ Veja, e.g., F. R. A nkersm it, “H istorical representation”, HTh 27 (1988), p. 205-28;
“H istoriography and postm odernism ”, HTh 28 (1989), p. 137-53; “Statem ents, texts and pictures”, in:
F. Ankersm it; H . Kellner, orgs.,yí new philosophy o f history (Chicago: University o f Chicago Press, 1995),
p. 212-40; “H ayden W h ite s appeal to the historians”, HTh 37 (1998), p. 182-93; “D anto on
representation, identity, and indiscernibles”, H Th 37 (1998), p. 44-70.
67“Introduction: describing redescriptions”, in: Ankersm it; Kellner, orgs., A new philosophy o f
history, p. 1-18; citação na p. 8.
68Essa expressão francesa significa literalm ente “reversão de alianças” e pertence ao contexto da
Revolução D iplom ática de 1756, que reform ulou o sistema tradicional de alianças entre as nações eu-
ropeias. A expressão é usada aqui para destacar a nova relação da produção textual com as artes visuais
e não mais com a arte literária. (N. do E.)
69“Statem ents, texts and pictures”, p. 238.
142 H I S T Ó R IA , H I S T O R I O G R A F I A E A B ÍBL IA
70N a seção “Narratividade: realidade ou ilusão”, já observamos as críticas que W illiam D ray
faz a W hite.
71Essa é a acusação de C. Lorenz, “C an histories be true? Narrativism, positivism, and the
‘m etaphorical turrí”, HTh 37 (1998), p. 309-29, citação na p. 323.
72Ibidem , p. 327.
73Ibidem , p. 324-5.
NA R RATIV A E H I S T Ó R IA : RE LA TO S SOBR E O P ASSADO 143
Tradicionalmente, a voz do historiador tem causado desconforto entre aqueles que vis
lumbram uma visão direta do passado como a utopia do discurso histórico. Para esses
realistas históricos, o ideal seria uma história composta do mundo em que cada história
em particular se combinasse harmoniosamente com o restante em uma imensa totali
dade constituída de muitos autores, mas formando uma voz única e clara.74
Qual princípio organizador descoberto pelo historiador em seus materiais pode lhe dar
condições de relacionar um episódio em um momento específico com outro?
81Ibidem . C om frequência, os estudiosos bíblicos observam que algo sempre se perde quando um
poem a (e.g., um salmo) é reduzido a um a m era paráfrase de seu conteúdo. Bem poucos estudiosos
questionariam a ideia básica de que o valor e a essência de um poem a bíblico abrangem mais do que
seu conteúdo parafraseável. Contudo, frequentem ente não se percebe o fato de que o mesmo se aplica
às narrativas em prosa.
82Ibidem , p. 23.
“ E m bora não sejam totalm ente irrelevantes para as questões de prim eiro e segundo níveis (no-
m otéticas) que caracterizaram a escola dos Annales e continuam a caracterizar hoje em dia um a parcela
dos estudos do AT, as narrativas bíblicas se ocupam principalm ente de questões de terceiro nível
(idiográficas) envolvendo pessoas e grupos e suas ações distintas.
u Defense, p. 31.
NAR RATIV A E H I S T Ó R IA : RE LA TO S SOBR E O P ASSADO 145
Como ele define “o povo”, ou os grandes grupos de pessoas, e que técnicas emprega para
apresentá-lo(s)?
Como organiza os acontecimentos de modo que aqueles que considera mais impor
tantes pareçam de fato ser os mais importantes?
Como o autor passa das evidências particulares para a avaliação geral e que relação
estabelece entre a personagem ou o incidente típico e a realidade mais ampla que tal
personagem ou incidente representam?85
1. Quem é o heróft. Com base em que você chegou a essa conclusão? (Pense em critérios
como presença, iniciativa e quem realiza a missão.)
2. O que constitui a missão? O que o herói procura, ou seja, qual é o objetivo almejado?
O herói tem êxito? Em caso negativo, por que não?
85Ibidem , p. 31-2.
86J. P. Fokkelman, Vertelkunst in de bijbel: Een handleiding bij literair lezen (Zoeterm eer:
Boekencentrum , 1995). A obra está agora disponível em inglês: Reading biblical narrative: an introductory
guide (tradução I. Smit, Louisville: W estm inster John Knox, 1999).
87Q uero agradecer a Peter W illiam s e a meus amigos de longa data Kees e D oris M innaar por
revisarem m inha tradução do holandês. Q uaisquer erros ainda presentes são, é claro, de m inha inteira
responsabilidade. (O leitor talvez queira agora com parar com a tradução de Sm it em ibidem, p. 208-9.)
146 H I S T Ó R IA , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA
4. Você percebe a presença do narrador em todo lugar no texto? Isso se aplica, acima de
tudo, a trechos em que ele oferece informação, comentário, explicação ou avaliação basea
dos em sua perspectiva. Você consegue indicar a forma de discurso do escritor? Em que
aspectos o escritor não é tão diretamente percebido (e.g., por meio de sua estruturação
ou composição)? Ele se permite a liberdade de falar em pontos estratégicos do texto?
7. O enredo é claro ou é até certo ponto ausente na unidade que você está lendo, pois
ela faz parte da narrativa maior? Nesse caso, qual é, então, o macroenredo que controla
a narrativa maior?
8. Onde estão os diálogos? São muitos? São omitidos nas passagens em que você espe
raria encontrá-los? Que fatores dirigem o enunciador de um discurso, quais são seus
interesses pessoais, quais são o contexto, os desejos e as expectativas? As palavras da
personagem estão de acordo com seus atos? Em caso negativo, por que não? Há no texto
elementos que enfatizam ou sugerem que o escritor aprova ou louva sua personagem?
9. Que escolhas de palavras chamam sua atenção? Quais são outras características de
estilo ou estruturai Leve-as a sério, reflita sobre elas, fazendo perguntas como: de que
maneira isso contribui para o enredo ou para a descrição das personagens?
10. Quais meios foram empregados para delimitar a unidade? (Considere os aspectos
de tempo, espaço, início/fim da ação, aparecimento ou desaparecimento de persona
gens.) Com base em que sinais você realiza essa delimitação? Tente encontrar ainda
outros sinais ou indicadores que favoreçam outra divisão. Em que medida a divisão que
você vê no texto esclarece o tema ou o conteúdo?88
w Vertelkunst, p. 214-5.
NA R RATIV A E H I S T Ó R IA : RE LA TO S S O BR E O P ASSADO 147
Não nos surpreende que perguntas como essas apareçam em um livro que ensina
a ler a Bíblia como literatura. O que é mais surpreendente é o grau de fatores em
comum entre essas perguntas e aquelas que Levin insiste que os historiadores devem
fazer. Perguntas sobre a perspectiva, a caracterização, o uso de diálogo, a seqüência e
a disposição de acontecimentos e até mesmo o enredo (i.e., a primeira pergunta de
Levin) são o dia a dia de analistas literários, mas podem parecer estranhas para os que
desejam extrair informações históricas de textos. Entretanto, quando se considera a
natureza das narrativas bíblicas, fica evidente quão fundamentais tais perguntas são
para o historiador. Por isso, a seguir, faremos uma breve introdução a alguns recursos e
diretrizes que dizem respeito à poesia bíblica ou à crítica narrativa.89
89A análise a seguir é, em parte, um a adaptação das p. 105-9 do capítulo “Reading the O ld
T estam ent as literature”, de V. P. L ong (in: C. C. Broyles, org., Interpreting the Old Testament: a guidefor
exegesis [G rand Rapids: Baker, 2001], p. 85-123).
90R. Alter, The art o f biblical narrative (N ew York: Basic Books, 1981). O utras análises bastante
úteis são S. B ar-Efrat, Narrative art in the Bible (tradução para o inglês D. Shefer-Vanson [Sheffield:
A lm ond Press, 1989]); A. Berlin, Poetics and interpretation o f biblical narrative (Sheffield: A lm ond Press,
1983); D . M . G unn; D . N . Fewell, Narrative in the Hebrew Bible, OBS (Oxford: O xford University
Press, 1993); T. Longm an, Literary approaches to biblical interpretation, F C I 3 (G rand Rapids; Z onder-
van, 1987); J. L. Ska, S. J., “Ourfather has told us": introduction to the analysis o f Hebrew narratives, SBib
13 (Rome: E ditrice Pontifico Istituto Biblico, 1990).
n The poetics o f biblical narrative: ideological literature and the drama o f reading (Bloomington:
Indiana University Press, 1985).
92Seguem-se alguns exemplos desses textos: R. Alter, “H ow convention helps us read: the case o f the
Bibles annunciation type-scene”, Prooftexts 3 (1983), p. 115-30; C. E. Arm erding, “Faith and m ethod in
O ld T estam ent study: story exegesis”, in: P. E. Satterthwaite; D . F. W right, orgs,,A pathw ay into theHoly
Scripture (G rand Rapids: Eerm ands, 1994), p. 31-49; R. P. Gordon, “Simplicity o f the highest cunning:
narrative art in the O ld T estam ent”, S B E T 6 (1988), p. 69-80; V. P. Long, “Recent advances in literary
m ethod as applied to biblical narrative”, cap. 1 de Reign and rejection-, R. E. Longacre, “Genesis as soap
opera: some observations about storytelling in the H ebrew Bible”,J T T 7, n. 1 (1995), p. 1-8; S. Prickett,
“The status o f biblical narrative”, Pacifica 2 (1989), p. 26-46; P. E. Satterthwaite, “Narrative criticism:
the theological implications o f narrative techniques”, in: W . VanGemeren, org., The new international
dictionary o f Old Testament theology and exegesis, 5 vols. (G rand Rapids: Zondervan), vol. 1, p. 125-33.
148 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA
obras é levar o leitor a uma compreensão mais profunda do discurso narrativo do A T93
e, desse modo, a um a compreensão mais profunda do significado e da importância
das narrativas bíblicas. Embora, como observado por Alter, existam “elementos de
continuidade ou pelo menos de analogia nos modelos literários de épocas dife
rentes”, tornarem o-nos melhores leitores de narrativas bíblicas caso adotemos um a
“atitude consciente da perspectiva histórica” em relação às “diferenças permanentes
e interessantes” entre nossos métodos narrativos e os da Bíblia.94
Tentar apresentar aqui um estudo completo da poesia da narrativa bíblica não
teria m uita utilidade, visto que tais abordagens estão facilmente disponíveis nas
obras já citadas e em outros textos. M as pelo menos algumas diretrizes são neces
sárias para que possamos ler responsavelmente as narrativas bíblicas com o objetivo
de compreender sua importância histórica. É possível descrever as narrativas bíbli
cas com três adjetivos: cênica, sutil e sucinta.
As narrativas doATsão cênicas — não no sentido de descrições detalhadas do am
biente físico ou da cena, mas sim, na forma que um palco teatral inclui cenas. Como
ocorre em um palco, as narrativas do a t mostram mais do que contam. É bem raro
o narrador dizer explicitamente ao leitor como essa ou aquela personagem/ação deve
ser avaliada (embora às vezes isso ocorra). Em vez disso, ele mostra ao leitor as perso
nagens agindo e falando e, com isso, o leitor é levado a participar do relato e desafiado
a tirar suas conclusões avaliadoras. Em outras palavras, o leitor passa a conhecer e a
entender as personagens da narrativa de uma forma bem parecida com a que ocorre
na vida real: observando o que elas fazem e ouvindo o que dizem. A natureza cênica
da narrativa do a t conduz com muita naturalidade a um segundo aspecto dominante.
As narrativas doATsão sutis. Como já sugerido, em geral, os narradores do A T são
relutantes em apresentar de forma direta suas ideias, preferindo fazê-lo com mais
sutileza. Para isso, ao desenvolverem as caracterizações da narrativa e ao chamarem
a atenção do leitor para os aspectos da narrativa que têm poder de persuasão, os
escritores empregam um conjunto de meios mais indiretos. Por exemplo, a m en
ção de detalhes físicos é rara ou até mesmo aleatória. Se lermos que Esaú tinha
bastante pelo, que Eúde era canhoto, que Eglom era obeso e que Eli era corpu
lento e sua vista estava enfraquecida, deveríamos antecipar (mas não insistir) que de
alguma maneira esses detalhes ajudam nas caracterizações ou na dinâmica do relato.
93E m What is narrative criticism (M inneapolis: Fortress, 1990), M . A. Powell distingue entre dois
aspectos da narrativa: relato e discurso. “Relato se refere ao conteúdo da narrativa, do que ela trata. U m
relato consiste em elem entos como acontecimentos, personagens e ambientes, e a interação desses ele
m entos form a o que cham am os de enredo. Discurso se refere à retórica da narrativa, como a história é
contada. E possível com por relatos sobre os mesmos acontecimentos, personagens e ambientes básicos
de form a que produzam efeitos bem diferentes” (p. 23).
94“Convention”, p. 117-8.
NARRATIV A E H I S T Ó R I A : RE LA TO S SOBR E O PASSADO 149
Um a nuance, uma alusão aguarda quase toda palavra”.98 A própria natureza sucinta
das narrativas bíblicas é um convite a prestar bastante atenção aos detalhes, ain
da mais porque os narradores bíblicos eram mestres em chamar a atenção para
elementos centrais em seus textos. Eles utilizam toda form a de repetição para
grande proveito: palavras e raízes de palavras (i.e., Leitworte), temas, situações
semelhantes (às vezes denominadas “cenas-padrão” ou “situações características”)
e coisas do gênero. Com frequência, o resultado da repetição é ressaltar um tem a
ou a preocupação central em um a narrativa, por exemplo, na repetição da expres
são “ouvir a voz/ruído” em ISam uel 15. No início do capítulo, Saul é exortado a
“ouvir a voz” (v. 1) do Senhor e destruir todos os amalequitas (pessoas e animais);
mais tarde ele afirma que o fez (v. 13); Samuel responde indagando sobre a “voz”
que está ouvindo das ovelhas e do gado (v. 14); Samuel e Saul discutem se Saul
“deu [ou não] ouvidos à voz” do Senhor (v. 19,20, AR C ); quando Saul tenta jus
tificar sua falha em não dar ouvidos alegando que poupou os animais apenas
com o intuito de sacrificá-los ao Senhor, Samuel responde que “ouvir [“obedecer”,
A21] a voz” do Senhor é m uito mais im portante do que sacrificar (v. 22); e Saul
admite com relutância que deu “ouvidos à [...] voz”do povo (v. 24). Em bora o leitor
atento, com base no fluxo geral da passagem, possa certamente concluir que a (des)
obediência de Saul é o tem a central, a atenção à estrutura literária da passagem
ressalta e enriquece essa percepção.99
Nossa rápida descrição da natureza cênica, sutil e sucinta das narrativas bíblicas
apenas começa a tocar a superfície. Além desses fatores básicos, os leitores — mesmo
aqueles (ou talvez especialmente aqueles) cujos interesses estão nas questões histó
ricas — obterão grande proveito se imergirem nas obras mencionadas acima, em
especial as de Alter, Longm an e Sternberg. A questão central é que relatos bíblicos
devem ser primeiro apreciados como narrativas antes de ser usados comofontes históricas
— da mesma forma que não podem ser rejeitados como fontes históricas simples
mente por terem forma narrativa. Aliás, não apenas as narrativas bíblicas, mas os
textos do Antigo O riente Próximo em geral revelam padrões e estruturas literários.
Nem são apenas as narrativas bíblicas que falam, por exemplo, de envolvimento ou
intervenção divina em assuntos militares. Tais referências são comuns nos relatos
de guerra do Antigo O riente Próximo.100 E isso não leva os estudiosos a concluir
que esses relatos não tenham valor histórico. Por que deveria ser diferente com as
narrativas bíblicas?101
103A lém dos com entários que já apresentamos, veja a análise de lR s 1— 11 feita por Provan em
Kings, p. 23-90, em especial seus comentários sobre lR s 3.1-3; 4.26,28; 5.14; 6.38— 7.1.
154 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA
rapidamente a Crônicas — que Miller e Hayes praticamente rejeitam como fonte para
escrever uma história do período de Salomão, pois Crônicas depende de Reis e o m o
difica “de uma maneira notavelmente tendenciosa” (p. 197). Não está claro por que se
deve rejeitar Crônicas desse modo. Sem dúvida, Crônicas tem uma “tendência”, mas
não se pode passar de um reconhecimento da “tendência” para uma rejeição do livro
como fonte histórica. Se esta fosse a regra, então toda historiografia, do passado e do
presente, também deveria ser rejeitada, pois, conforme argumentamos ao longo dos
capítulos iniciais, nunca se escreveu um relato do passado isento de uma filosofia ou
uma teologia e sem que se procurasse convencer o público-alvo acerca da verdade da
mensagem do texto. Talvez Miller e Hayes pensem que os autores de Crônicas deixa
ram sua “tendência” distorcer seu relato do passado, tom ando-o basicamente indigno
de confiança. No entanto, essa alegação teria de ser demonstrada no caso específi
co, em vez de ser pressuposta. Certam ente, quando comparada com a perspectiva
expressa pelos autores de Reis, às vezes Crônicas assume uma perspectiva bem diferente
de certos aspectos da história de Israel. Entretanto, em tais casos, “distorção” seria uma
palavra estranha para se usar, quando está razoavelmente claro que, mesmo quando
apresenta a própria interpretação do passado, Crônicas pressupõe que seu público-alvo
esteja familiarizado com Reis. O u seja, Crônicas tenta claramente fornecer uma leitura
de seu texto base e não uma substituição dele.104
Portanto, o que descobrimos no centro da abordagem de Salomão feita por Miller
e Hayes são várias pressuposições e declarações questionáveis sobre a natureza dos
textos bíblicos e sobre a natureza da história. Nesse sentido, sua análise de Salomão é
bem semelhante à análise dos períodos mais antigos da história de Israel. Em outros
de seus escritos, encontra-se exatamente a mesma ênfase na natureza artificial, esque
mática e ideologicamente tendenciosa da totalidade da narrativa bíblica e chega-se
exatamente à mesma conclusão quanto à ausência de valor histórico a ser atribuído a
essa apresentação. Revela-se precisamente a mesma confiança (pelo menos em alguns
lugares) na capacidade do estudioso tanto para distinguir entre textos que informam
o que os compiladores dos relatos de fato quiseram dizer e textos que não dão tal
informação quanto para deduzir a história real a partir destes últimos textos. É uma
abordagem da literatura e da história que não suporta um exame sério e cuidadoso —
em especial porque se baseia em uma falta de cuidado e atenção exegéticos. Não é esta
a abordagem que será adotada em nossa obra.
104C £: “o cronista apresenta um a segunda pintura da história m onárquica de Israel e não a apli
cação de um a nova pintura sobre Samuel-Reis. H oje há um a ampla aceitação de que tanto Crônicas
quanto seu público-alvo estavam bem familiarizados com o m aterial de Sam uel-Reis e que o objetivo
do cronista foi reform ular e suplem entar a história passada, não suprim i-la ou suplantá-la” (Long, A r t
o f biblical history, p. 82).
NARRATIV A E H I S T Ó R I A : RE LA TO S SOBRE O PA SSADO 155
RESUMO E PERSPECTIVA
Neste capítulo, tentamos estabelecer o debate sobre o valor histórico das narra
tivas bíblicas no contexto mais amplo dos debates sobre histórias narrativas em
geral. Considerando a renovada aceitação de histórias narrativas entre a maioria dos
historiadores, argumentamos que os estudiosos bíblicos não têm justificativa para
rejeitar narrativas bíblicas sob a alegação de que são “essencialmente inúteis para o
propósito do historiador” e de que a Bíblia nada mais é do que “um livro sagrado
que conta histórias”.105 Contudo, para que sejam usadas na reconstrução histórica,
as narrativas bíblicas devem ser lidas corretamente. Assim, em nossa segunda seção,
refletimos sobre os efeitos em potencial — positivos ou negativos — do recen
te crescimento do interesse em leituras literárias de textos bíblicos. O foco desses
estudos sobre “narratividade” nos levou, na terceira seção, a considerar se a narrati
vidade é, em algum sentido, um aspecto da vida real ou se é apenas um a estrutura
que contadores de história e artistas narrativos impõem a detalhes amorfos da vida.
Concluindo que há de fato um tipo de narratividade inerente à própria vida que
deve ser reconhecida e, então, descrita por historiadores narrativos, em nossa quarta
seção passamos a um a investigação da natureza da escrita da história como arte
e ciência. Aqui, destacamos o papel central desempenhado pelos próprios histo
riadores na descrição da história: são eles que devem primeiro obter um a visão do
passado e então planejar formas de apresentar sua visão de maneira a persuadir
outras pessoas de que suas reconstruções são representações adequadas de alguns
aspectos da realidade passada. Em nossa quinta seção, enfatizamos a importância
— até mesmo (ou especialmente) para historiadores — de ler os textos bíblicos com
o mais elevado nível de competência literária possível. Chamamos a atenção para
obras recentes e importantes que podem contribuir para o desenvolvimento dessa
capacidade. Fizemos um a rápida descrição da natureza geral das narrativas bíblicas
e sugerimos perguntas relevantes que qualquer leitor deveria fazer. O propósito
dessa seção foi apenas estimular a reflexão sobre o assunto e indicar aos leitores
material adicional que poderá ajudá-los.
Concluímos o capítulo com um estudo de caso específico (Salomão), que ilus
trou o tipo de abordagem de texto e história que não será adotado neste livro.
C ertam ente isso gera a pergunta: Q ue tipo de abordagem deveríamos adotar? Por
isso, no próximo capítulo, buscamos reunir todas as ideias da análise que fizemos
até aqui, descrevendo nosso próprio m étodo de trabalho, que servirá de introdução
para a segunda parte deste livro: um relato da história de Israel desde Abraão até
o período persa.
Nosso primeiro capítulo começou com algumas reflexões sobre um ataque ao tipo
de história da Palestina que tem sido definido e controlado por interesse nos textos
bíblicos e por sua apresentação — um a “história bíblica” que supostamente está pro
duzindo pouco mais do que paráfrases do texto bíblico resultantes de motivações
teológicas”.1 Os capítulos seguintes buscaram responder a esse ponto de vista e estabe
lecer o fundamento para a segunda parte deste livro, que certamente coloca os textos
bíblicos no centro de sua pesquisa histórica. Agora chegou o momento de olhar para
os capítulos subsequentes e explicar sua natureza à luz da análise precedente.
Nas páginas a seguir, apresentamos de fato uma história bíblica de Israel. Isso
significa que em nossa apresentação da história de Israel utilizamos bastante a Bíblia
como base. Não porque temos “motivações teológicas” (embora logo retornaremos a
essa questão), mas sim porque consideramos irracional não proceder dessa maneira.
N a Bíblia, vemos um a literatura que é singular em seu interesse pelo passado — uma
literatura que, em especial, fornece o único relato contínuo que existe do Antigo
Israel. Temos todos os motivos para levar a sério o testemunho bíblico sobre esse
passado e, conforme argumentamos até aqui, não há razão alguma para rejeitar tal
testemunho sem considerar suas alegações. Em princípio, não existe à nossa dispo
sição um a via melhor de acesso ao passado de Israel. Aliás, pessoas que desprezam o
testemunho bíblico a favor de algum outro meio de acesso ao passado de Israel têm
inevitavelmente se encontrado na condição de não ter quase nada a afirmar a respeito,
e o pouco que dizem está mais relacionado às próprias cosmovisões e interesses do
que a algum passado acerca do qual outras pessoas de fato testemunharam. E m nossa
perspectiva, até mesmo um a “paráfrase do texto bíblico” seria provavelmente um guia
mais seguro para o passado real do que o relato substituto apresentado por aqueles
que, em sua tentativa de falar sobre o passado, sistematicamente evitam o texto bíblico
— muito embora, é claro, nem toda “paráfrase” seja exatamente do mesmo gênero
JK. H . W hitelam , The invention o f ancient Israel: the silencing o f Palestinian history (London:
Routledge, 1996), p. 161.
158 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍBL IA
2Alguém poderá questionar até que ponto, com base em determ inados textos, podem os deduzir
aspectos da história mais recente de Israel. Por exemplo, os capítulos posteriores do livro de D aniel,
possivelmente, têm algo a dizer acerca do período de dom ínio imperial grego sobre o A ntigo O riente
Próximo (e isso se esses capítulos forem considerados tanto profecia quanto relato posterior ao acon
tecim ento). Decidim os, porém, não nos envolver na desafiadora tarefa de elaborar história com base
nesses textos obscuros e difíceis. E notória a imprecisão da linguagem apocalíptica.
U M A H I S T Ó R I A B ÍB L IC A D E ISR A EL 159
Nos capítulos seguintes, nos esforçamos por demonstrar essa capacidade, buscando
apreciar a natureza, o propósito e o escopo dos textos, enquanto sugerimos como
exatamente eles dão testem unho do passado de que tratam.
Esse terceiro ponto conduz naturalmente ao quarto: apresentamos um a história
bíblica de Israel que leva a sério o testemunho de textos não bíblicos sobre Israel e sobre
o mundo antigo em que Israel viveu. Por razões que explicamos nos capítulos prece
dentes (em especial, o cap. 3), não levamos esses textos mais a sério do que os textos
bíblicos. Contudo, tam bém não os levamos menos a sério. Por um lado, à medida
que chegamos a conclusões sobre aspectos relacionados à convenção literária no
mundo antigo, os textos antigos proporcionam o contexto em que podemos desen
volver precisamente a habilidade literária mencionada acima. Por outro, os textos
não bíblicos fornecem informações úteis sobre os povos com quem o Antigo Israel
teve contato e, às vezes, sobre interações específicas que esses mesmos povos tiveram
com os israelitas. Ao fazê-lo, eles não estão isentos de arte nem de ideologia por
parte de seus autores. Por isso, não podem ser considerados, no que diz respeito a
Israel, fontes de informação mais confiáveis do que os textos bíblicos. Contudo, ao
formarmos nossa perspectiva dos contornos do passado, é apropriado e im portante
dar atenção a seu testem unho e tam bém investigar como esse testem unho concorda
ou discorda do testem unho de Israel.
Quinto, apresentamos uma história bíblica de Israel que leva a sério dados arqueo
lógicos não textuais existentes que podem nos ajudar aformar uma visão sobre a história do
Antigo Israel. Novamente, por motivos analisados nos capítulos anteriores (em especial,
os cap. 2 e 3), não levamos esses dados e suas interpretações mais a sério do que os
textos bíblicos. No entanto, nós os consideramos seriamente, esperando que, se tiver
mos uma compreensão adequada tanto dos dados arqueológicos quanto dos textos
bíblicos e se eles estiverem testificando verdadeiramente sobre o passado, haverá uma
convergência entre o testemunho bíblico e as interpretações dos dados arqueológicos.3
Antecipamos que, acima de tudo, mais do que nos ajudar com questões específicas, os
dados arqueológicos nos auxiliam a formar o quadro geral do mundo em que o Antigo
Israel viveu. Restos de artefatos não literários são mais úteis para os interessados em
cultura material em geral e na vida cotidiana do que para os interessados em questões
históricas específicas. Para estes, fragmentos literários antigos são muito mais relevantes.
3Para um a defesa recente dessa abordagem, veja a análise que Dever faz de “convergências” entre da
dos textuais e de artefatos ( What did the biblical writers know and when did they know it? What archaeology
can tell us aboutthe reality o f ancient Israel [G rand Rapids: Eerdmans, 2001], p. 91,106 e passim). N os ca
pítulos 4 e 5, Dever cita dezenas de exemplos de tais convergências (p. 97-243). Com base nessas conver
gências ele conclui, entre outras coisas, que “a noção bíblica de um a m onarquia unida — ou pelo menos de
um ‘Estado’antigo — , c. 1020-925 a.C., não é produto da imaginação de escritores bíblicos, mas se baseia
em um a realidade fundamental” (p. 159). E m uito instrutivo esse acúmulo de convergências pertinentes.
160 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍ BLIA
4Por isso, se é verdade que agora há um amplo reconhecim ento “de que o estudo da história não
deveria se restringir à análise de diferenças, do incom um ou do que é peculiar” (K. W . W hitelam ,
“Recreating the history of Israel”, J S O T 35 [1986], p. 45-70; citação na p. 56), de igual form a tam bém é
verdade que é necessariamente deficiente o método histórico que deixa de analisar “diferenças, do inco
m um e do peculiar”, junto com tudo o mais. Contudo, esse tipo de “m étodo” encontra defensores entre
historiadores de Israel. Observe-se, por exemplo, a visão de R. B. C oote de que devemos rejeitar “noções
de que a natureza étnica, nacional, religiosa, moral ou social de Israel é singular ou sublime [...] e, em vez
disso, examinar os dados escassos, procurando o que é comum, normal e esperado na história da Palestina”
{Early Israel: a new horizon [Minneapolis: Fortress, 1990], p. viii). Insistimos, em oposição a essa ideia,
que a história não trata de generalidades mais do que de particularidades, embora estejamos interessados
no que se pode dizer sobre generalidades como pano de fundo para a leitura das particularidades.
5Pode ser especialmente útil quando está genuinam ente baseada em dados do passado, ao invés de
ser um a m era especulação relacionada ao presente. E claro que um problem a perm anente na análise n o
m otética do passado de Israel é como comprovar, com base nos dados em geral relativamente “escassos”,
conclusões sobre o que é “comum, norm al e esperado na história da Palestina”. Contudo, conclusões
fundam entadas em dados ainda são m uito mais preferíveis a conclusões já contidas em pressuposições
que influenciam o pesquisador — um aspecto que, com demasiada frequência, está presente em traba
lhos recentes que tratam da história de Israel e que buscam aplicar a abordagem nom otética. À s vezes,
os estudiosos notam o problem a na obra de outros e paradoxalm ente deixam de percebê-lo na própria
obra. E assim que N . P. Lem che, em um a resenha sobre The emergence ofearly Israel in historicalperspective,
de R. B. C oote e K. W . W hitelam (SW BA 5 [Sheffield: A lm ond Press, 1987]; publicada em Bib 69
1988, p . 581-4) , os reprova por não darem atenção às cartas de A m arna e conjectura se isso não ocorre
porque as cartas não dão sustentação à teoria de C oote e W hitelam . L em che observa que “será sempre
U M A H I S T Ó R I A B ÍB L IC A D E ISR A EL 161
difícil lim itar as possibilidades de a hum anidade agir contra as pressuposições de um modelo rígido por
seu com portam ento” (p. 583). C ontudo, ele mesmo não vê problem a algum em rejeitar tradições bíblicas
e adotar “um a abordagem sociocultural mais abrangente” da história de Israel (Ancient Israel: a n e w his
tory oflsraelite society, BSem 5 [Sheffield: JSO T , 1988], p. 7), abordagem esta que depende, entre outras
coisas, da “experiência dos relacionamentos que tem obtido em sociedades camponesas tradicionais e
em sociedades urbanas pré-industriais do Terceiro M undo” (ibidem, p. 101).
6Agim os assim sendo coerentes com nossas análises anteriores sobre até que ponto o conhecim ento
hum ano procede de um testem unho específico e até que ponto procede de modelos com portam entais
genéricos (apresentados, e.g., pela sociologia e pela antropologia), da.generalização dos acontecimentos
(conform e pressuposto pelos que defendem o princípio da analogia) e de em pirism o simples e direto
(como alguns im aginam que é o caso da arqueologia). O leitor deve ler nos capítulos precedentes os
detalhes dessa análise.
7Por exemplo, neste livro, o leitor não encontrará o tipo de argum ento apresentado por I.
Finkelstein em lhe archaeology o f the Israelite settlement (Jerusalem: Israel Exploration Society, 1988),
que considera o fato de não existir nenhum paralelo para a invasão nôm ade de terras habitadas ser
decisivo para resolver a questão sobre se os israelitas foram responsáveis pela destruição, apontada pela
arqueologia, de cidades cananeias da Palestina por volta da época em que se presume que os israelitas
ocuparam a Terra Prom etida (p. 302).
162 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A B ÍBL IA
sN ão estamos sequer seguros de que os que afirmam crer nisso de fato queiram dizê-lo. N ão h á dú
vida de que para qualquer ser hum ano parece extremam ente difícil viver de m odo consistente e exitoso
com esse conjunto de pressuposições básicas.
U M A H I S T Ó R I A B ÍB L IC A D E ISR A EL 163
9Veja, e.g., J. M . Miller, “Reading the Bible historically: the historiarís approach”, in: S. R. Haynes;
S. L. M cKenzie, orgs., To each its own meaning: an introduttion to biblical criticisms and their application
(Louisville: W estm inster/fohn Rnox Press, 1993), p. 11-26, esp. p. 12-3. E m “W hose history? W hose
Israel? W hose Bible? Biblical histories, ancient and m odem ” (in: L. L. Grabbe, org., Can a “history o f
Israel" be written?, JS O T S 2 4 5 /E S H M 1 [Sheffield: Sheffield Academ ic Press, 1997]), P. R. Davies
alega haver um a variedade inversa dessa categoria híbrida (não teístas m etafísicos e teístas m etodo
lógicos), acusando W . G . Dever e B. H alpern, que, de acordo com Davies, são agnósticos ou ateus, de
assim mesmo defenderem um a “concepção teísta de história” (p. 117, nota 19).
“ Ibidem , p. 116-7.
“ Ibidem , p. 116.
164 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A B ÍBL IA
e do poder do Senhor”, cujos relatos acerca dele são história, e alguém cuja meta-
narrativa pode levar os seres humanos a uma compreensão melhor de si mesmos em
relação ao mundo em que vivem.12 Pessoas com essas convicções não se satisfazem
com as abordagens ateológicas ou antiteológicas da história desenvolvidas desde o
Iluminismo,13 pois se inclinarão a partilhar da concepção dos profetas bíblicos de que
a história é um relacionamento de Deus com seu povo. Aliás, acreditarão que Deus é
central na história e que é impossível entender corretamente o significado da história
se houver desprezo ou negação de Deus. Tais crenças estão determinadas a orientar
de todas as formas a produção de um a obra sobre a história de Israel — embora não
se deva pressupor que sempre o farão exatamente da mesma maneira (retomaremos
em breve essa questão).
Nossas convicções teístas e motivações teológicas fazem de fato alguma diferença
na maneira que o livro foi escrito. Entretanto, não fazem tanta diferença a ponto de
a obra não poder ser lida com proveito ou com interesse por aqueles que as rejeitam
categoricamente ou têm aversão por elas. Ao menos acreditamos assim. U m motivo
para isso é que o que temos a dizer sobre a história de Israel não é determinado por
essas crenças, muito embora esteja ligado a elas. O u seja, não estamos escrevendo
propaganda religiosa, em que o conteúdo do material escrito é totalmente determi
nado pelas crenças e pelos resultados desejados da execução, com quase nenhuma
atenção aos dados ou ao tipo de raciocínio que tem valor como discurso público. Ao
contrário, estamos escrevendo história; toda história autêntica, ainda que sem dúvida
alguma fale algo sobre o contexto e as crenças de seu autor, está, entretanto, interes
sada nos dados e no raciocínio, de modo que pessoas com a mente aberta e que não
partilham necessariamente das pressuposições do autor podem lê-la com proveito.
Aliás, se nunca pudéssemos ler livros com proveito a menos que partilhássemos das
pressuposições de seus autores, seriamos beneficiados por um número bem pequeno
de obras. Um segundo motivo é que, tendo em vista o objetivo de falar a um público
12A frase citada aparece no artigo “The value o f narrativity in the representation o f reality”, da autoria
de H . W h ite (CriticaiInquiry 7 [1980], p. 5-27), e deve ser entendida em seu contexto mais amplo: ora,
a capacidade de perceber que um a série de acontecimentos pertence à mesma ordem de significado exige
um princípio metafísico pelo qual a diferença seja transformada em semelhança. E m outras palavras,
exige um “sujeito” comum a todos os referentes das várias frases que registram acontecimentos como tendo
ocorrido. Se tal sujeito existe, ele é o “Senhor” cujos “anos” são considerados manifestações de seu poder
para causar os eventos que neles ocorrem. O sujeito do relato, portanto, não existe no tempo e não poderia
ter a função de sujeito de um a narrativa. Será que a inferência é que, a fim de haver um a narrativa, se faz
necessário algum equivalente para o Senhor existindo no tempo, algum ser sagrado dotado da autoridade
e do poder do Senhor? E m caso afirmativo, qual poderia ser esse equivalente? (p. 19).
13Para um a análise das tendências antiteológicas de algumas abordagens histórico-críticas, veja
a seção com esse título em The art o f biblical history, de V. P. L ong (F C I 5, M oisés Silva, ed. [G rand
Rapids: Z ondervan, 1994], p. 123-35).
U M A H I S T Ó R I A B ÍB L IC A D E ISR AEL 165
amplo, não permitimos que nossas convicções e motivações centrais, teístas e teoló
gicas ou não, viessem totalmente à tona na maneira pela qual o livro foi escrito. Por
exemplo, com frequência a análise teísta explícita é posta temporariamente neste livro,
na busca do diálogo amistoso — muito embora reconheçamos que, para os teístas,
a exclusão permanente da “linguagem religiosa” é sem sentido e não deveria se tornar
ou permanecer sendo o sine qua non do estudo histórico, a fim de que teístas não se
tornem steíst&s práticos ou metodológicos e corram o risco de se transformar em ateístas
metafísicos ou de, inconscientemente, conduzir outros nessa direção.14
U m bom exemplo de nossa supressão parcial de convicções centrais é que neste
livro é comum nos recusarmos a tirar lições explícitas da história que estamos escre
vendo. São dois os motivos para agirmos assim. Primeiro, o livro já é suficientemente
longo sem outros acréscimos. Segundo, reconhecemos que, em obras historiográ-
ficas, atualmente está fora de moda incluir exortações e advertências morais junto
com os “fatos”; este livro será lido (ou deixará de ser lido) em dias modernos, por
leitores que desejamos conquistar em vez de aborrecer. Todavia, nossa convicção
certamente não é a de que, ao apresentar uma visão do passado, a historiografia deva
evitar questões sobre a existência presente e sobre a ética. N a verdade, estamos longe
de crer que, ao expressar um a visão do passado, alguma obra de historiografia chegou
a evitar questões sobre a existência presente e a ética — mesmo quando afirmou o
contrário. Visões do passado sempre estão ligadas a visões do presente e do futuro.
Ao fazer as associações — ao adotar um propósito pedagógico para a historiografia
— , a historiografia pré-m oderna foi caracteristicamente mais honesta e direta do
que boa parte da historiografia m oderna.13 Acreditamos que a história realmente
14N unca é sábio atuar m uito tem po com um a perspectiva extremam ente truncada da realidade.
Particularm ente concordamos com H . W . W olff de que é inevitável que cosmovisões “baseadas apenas
em um a parcela da realidade” lim item “a liberdade de pesquisa da totalidade de acontecimentos reais”
(“The understanding o f history in the O ld Testam ent prophets”, in: Long, org., IsraeVspast in present
research: essays on ancient Israelite historiography, SBTS 7 [W inona Lake: Eisenbrauns, 1999], p. 535-51;
citação na p. 548). Veja ainda L ong ,A r t o f biblical history, p. 132-5).
l3H istoriadores m odernos têm , de m odo típico e nada surpreendente, um a visão depreciativa do
aspecto pedagógico da historiografia pré-m oderna. Para eles, o aspecto pedagógico é um a das lam en
táveis deficiências da historiografia pré-m oderna e requer que se comece a historiografia “científica” a
partir do zero. Observe-se, e.g., o que Soggin pensa sobre a história da Rom a antiga (History o f Israel:
fro m the beginnings to the Bar Kochba revolt, A D 135 [London: SC M , 1984]). Ele dá pouca im portância
a historiadores como Lívio ou Tácito devido à tendência de apresentarem a seus leitores modelos de
com portam ento que podem ser aceitos ou evitados. Por exemplo, Soggin escreve que “defender, como
historiador, que o gesto de M úcio Cévola persuadiu Porsena a voltar para o próprio território não passa
de ingenuidade inata, inata porque é estimulada por lem branças dos tem pos de escola” (p. 20-1). N ossa
perspectiva é que é sim plesm ente errado pensar que a presença de um propósito pedagógico na litera
tura histórica seja necessariamente problem ática para o historiador.
166 H I S T Ó R I A , H I S T O R I O G R A F I A E A BÍ BLIA
nos ensina. A história deve nos ensinar. Nesse ponto concordamos com Voltaire:
“Se você não tem nada a nos dizer além do fato de que veio um bárbaro atrás do
outro nas margens do Oxus ou Iaxartes, que utilidade você tem para o público?”.16
O leitor compreenderá que, para os que creem que o AT é Escritura e também
testem unho do passado de Israel, existe (nesse caso mais do que em outros) um
imperativo ainda maior para se prestar atenção às lições da história. Isso porque, se
o centro da história — entendida tanto como acontecimento quanto como palavra
interpretativa — é o diálogo de Deus com Israel e com o mundo, de acordo com o
testem unho dos escritos do AT e do NT, então há muita coisa em jogo. Entretanto,
deixamos a tarefa de extrair lições da história de Israel para aqueles que escrevem
livros dedicados a esse propósito, como os comentários sobre o texto bíblico. Aqui
não nos ocupamos com essa tarefa. Nosso papel é apenas apresentar uma inter
pretação do testemunho bíblico sobre o passado de Israel, situado no contexto
mais amplo do passado, o qual pode ser estabelecido com base em outras fontes de
informação, de modo que o leitor compreenderá melhor tanto o testemunho quanto
o passado. Nosso papel é o do historiador da arte, o qual, por meio da interpretação
de um quadro, procura ajudar o público a entender, melhor do que antes, tanto o
passado quanto o quadro.
Será que nossas convicções centrais e nossas motivações teológicas — assim
declaradas — levarão algum leitor a experimentar dificuldades insuperáveis ao ler
este livro, deixando enfim de se beneficiar com ele? Acreditamos que não. Essas
convicções não devem, pelo menos, causar uma dificuldade maior do que causam as
convicções e motivações centrais de qualquer outro autor. Entretanto, o leitor preo
cupado talvez se anime com o fato de que, de um modo ou de outro, as convicções
e motivações que partilhamos não se expressam exatamente da mesma forma nas
várias partes do livro que cada um de nós escreveu. Somos três autores e não um
só; e nenhum de nós escreveria exatamente da mesma maneira que os demais. Essa
variedade deveria ser de alguma ajuda para a pessoa que se aborreça com um dos
autores em particular.
Assim, com esta introdução, estamos prontos para passar para a segunda parte
do nosso livro: uma história bíblica de Israel de Abraão até o período persa.
“ A citação de C obban é encontrada em A. Richardson (History sacred and profane [London: SCM ,
1964], p. 92-3). O texto original se encontra no verbete “H istorie”, do Dictionnaire philosphique de
Voltaire. Veja ainda o próprio Richardson: “O crime imperdoável na exposição da história das ideias é
estupidez, o fracasso em reconhecer e transm itir o desafio existencial que o passado faz ao presente. Esse
crime pode ser evitado apenas por aqueles que têm um interesse vital na história, um a vez que estão
atentos às questões urgentes da própria época” (p. 256).
S e g u n d a p a r te
A HISTÓRIA DE ISRAEL,
DE ABRAÃO ATÉ O
PERÍODO PERSA
Capítulo 6
'Veja The ancient Near E ast c. 3000-330 B.C. ([London: Roudedge, 1995], 2 vols.), de A. Kuhrt,
para um a boa introdução à história da M esopotâm ia desse período (vol. 1, p. 74-117) e do restante do
segundo milênio em diante (p. 332-81).
2Ibidem , vol. 1, p. 118-224.
170 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O P ER S A
3Ibidem ,vol. 1, p. 225-82 aborda os hititas; p. 283-331 tratad o s hurrianos (especificamente o reino
hurriano de M itani) e tam bém de outros aspectos da situação na Síria e no Levante durante o segundo
milênio, em especial a dom inação egípcia de cidades-estado na Síria-Palestina por volta de 1550 a 1150
a.C., que fornece o contexto das cartas de A m arna m encionadas a seguir.
4H á um debate sobre a posição de Gênesis 38 (o relato sobre Judá e Tam ar) dentro do relato sobre
José. Contudo, em “The patriarchs in Scripture and history” (in: A. R. M illard; D . J. W isem an, orgs.,
Essays on the patriarchal narratives [W inona Lake: InterVarsity Press, 1983], p. 1-34) J. G oldingay
apresenta argumentos convincentes a favor de que esse texto deva ser considerado parte da história de
José ou, m elhor dizendo, da “história de Jacó”, visto que G n 37— 50 trata dos filhos de Jacó (p. 11-2).
A N T E S DA C O N Q U IS T A DA T E R R A 171
são unidas no livro mediante o uso das “fórmulas toledoth”, um recurso literário
recorrente com frases que começam com a expressão hebraica 'èlleh tôfdôt, que pode
ser traduzida de várias maneiras, inclusive como “estas são as gerações de”, “esta é a
história da família de” e “este é o relato de”. A expressão é sempre seguida pelo nome
de alguém (com exceção da primeira ocorrência, que, em vez do nome de uma pessoa,
é acompanhada por “os céus e a terra” [G n 2.4]), embora a pessoa indicada não
seja necessariamente a personagem principal, mas apenas o marcador do início da
seção, que também termina com a morte da respectiva personagem. Essas fórmulas
dão estrutura ao livro de Gênesis e servem para estabelecê-lo como um prólogo
(1.1-2.3) seguido de vários episódios: as “gerações de” Adão (5.1), Noé (6.9), os
filhos de Noé (10.1), Sem (11.10), Terá (11.27), Ismael (25.12), Isaque (25.19),
Esaú (36.1,9) e Jacó (37.2). A melhor maneira de entender as próprias narrativas
patriarcais é começar com Gênesis 11.10, o “relato” de Sem, ou então com Gênesis
11.27, o “relato” de Terá, pai de Abraão.
O relato se refere a uma família que se m uda em busca da promessa de Deus feita
a Abraão, sendo esse o principal tema teológico de Gênesis 11.10— 36.43 e o que
une as várias narrativas:5
E farei de ti uma grande nação, te abençoarei e engrandecerei o teu nome; e tu serás uma
bênção. Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei quem te amaldiçoar; e todas as
famílias da terra serão abençoadas por meio de ti (Gn 12.2,3).
50 estudo das promessas patriarcais são o centro da obra de C. W esterm ann sobre Gênesis. Cf. dois
de seus livros: Gênesis: a commentary, tradução para o inglês de J. J. Scullian (M inneapolis: Augsburg,
1984-1986); lhepromise to thefathers: studies on thepatriarchal narratives (Philadelphia: Fortress Press,
1980). U m estudo mais acessível do tem a se encontra em D . J. A. Clines, The theme o f the Pentateuch
(JS O T S 10 [Sheffield: JS O T Press, 1978]).
172 A H I S T Ó R I A D E ISR A E L , D E ABRAÃO A T É O P E R Í O D O P ER S A
OS PATRIARCAS NO AMBIENTE DO
ANTIGO ORIENTE PRÓXIMO
U m a leitura atenta das narrativas patriarcais revela que os relatos em si não oferecem
nenhum a informação que nos permita determ inar um a data para o período que vai
de Abraão até Jacó. Inicialmente, Gênesis 14 nos oferece esperança nesse sentido,
mas infelizmente não podemos associar com segurança os personagens desse relato
com qualquer pessoa conhecida em fontes extrabíblicas (veja a seguir). Entretanto,
parece que passagens fora do livro de Gênesis nos permitem situar os patriarcas em
um período concreto — ao menos se crermos que toda a Bíblia oferece indicadores
precisos, ainda que talvez às vezes aproximados — e sugerem que Abraão nasceu em
meados do século 22 a.C. Os dados são os seguintes: IReis 6.1 afirma que Salomão
18U m excelente panoram a de abordagens recentes da questão de composição pode ser visto em
Abraham in theNegev; a source-criticalinvestigation ofGenesis 20.1— 22.19, de T. D . Alexander ([Carlisle,
Reino U nido: Paternoster, 1997], p. 1-31).
19Veja, e.g., R. Alter, The art o f biblical narrative (New York: Basic Books, 1981).
20Talvez seja preciso considerar todos os três fatores, conform e sugerido por D . Carr, em Reading
thefractures o f Genesis (LouisvUle: W estm inster John Knox Press, 1996).
A N T E S DA C O N Q U IS T A DA T E R R A 177
começou a construção do templo 480 anos depois que os israelitas saíram do Egito.
Esse é o quarto ano do reinado de Salomão e, se aceitarmos as conclusões de E.
R. Thiele, a data seria 966 a.C.21 A interpretação literal dessa passagem estabelece
o Êxodo em meados do século 15. Ademais, Êxodo 12.40 declara que os filhos
de Deus peregrinaram no Egito durante 430 anos.22 Por fim, podemos calcular o
tempo que transcorreu entre o nascimento de Abraão e a descida de Jacó ao Egito,
somando os cem anos de G n 21.5 (a idade de Abraão quando Isaque nasceu), os
sessenta anos de Gênesis 25.26 (a idade de Isaque quando Jacó nasceu) e os 130
anos de Gênesis 47.9 (a idade de Jacó quando chegou ao Egito), obtendo um perío
do de 290 anos. Assim, começando com 966 a.C., vários estudiosos23 somam os 480
anos de IReis 6.1, os 430 anos da permanência no Egito e os 290 anos do período
patriarcal para chegar à data de 2196 a.C. para o nascimento de Abraão, o que por
sua vez leva à data de 2091 a.C. para a sua chegada à Palestina (cf. G n 12.4).
Essa data aparentemente clara e adequada é, na verdade, incerta, mesmo utili
zando base bíblica. Primeiro, todos os números parecem redondos demais. É claro,
contudo, que isso exigiria o ajuste de apenas algumas décadas. Segundo, existem
variações textuais no que diz respeito a algumas datas. Por exemplo, na Septuaginta,
os 430 anos de Êxodo 12.40 cobrem não apenas o tempo no Egito, mas também
o período patriarcal.24 Ainda assim, a própria Bíblia parece situar os patriarcas na
Palestina em algum momento entre aproximadamente 2100 e 1500 a.C. — a pri
meira metade do segundo milênio a.C.
U m a parte im portante do debate moderno, tanto sobre a data dos patriarcas
quanto sobre sua descrição histórica, tem concentrado a atenção na investigação
se os dados provenientes do cenário mais amplo do Antigo O riente Próximo
confirmam a existência dos personagens bíblicos, ou se ao menos oferecem apoio
para seu estabelecimento nessa estrutura de tempo. Todos concordam que não há
nenhum a confirmação explícita extrabíblica para a existência dos patriarcas ou
para os acontecimentos mencionados no texto bíblico. Em vez disso, o debate se
concentra em analisar se as evidências confirmam o retrato bíblico dos patriarcas
na época que lhes é atribuída.
21The mysterious numbers o f the Hebrew kings: a reconstruction o f the chronology o f the kingdoms o f Israel
andJudah, ed. rev. (G rand Rapids: Eerdm ans, 1965), p. 28.
22Parece que a duração aproximada sugerida por Êxodo 12.40 encontra apoio em Gênesis 15.13,
que diz que os descendentes de Abraão perm aneceriam no Egito durante quatrocentos anos.
23Veja, e.g., E. H . M errill, Kingdom ofpriests: a history o f Old Testament Israel (G rand Rapids: Baker,
1987); W . C. Kaiser, / i history o f Israel:from the Bronze Age through the Jewish Wars (Nashville: B roadm an
and H olm an, 1998), p. 55.
24J. B right apresenta essas e outras ambigüidades em A history o f Israel, 2. ed. (Philadelphia:
W estm inster Press, 1972), p. 120-1.
178 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO A T É O P E R Í O D O PER SA
O debate sobre as provas que oferecem essa confirmação tem sido intenso
e ocupado décadas de trabalho dos estudiosos.25 D urante boa parte do tempo, a
discussão se concentrou nas tábuas de Nuzi (e da vizinha Arrapha). As prim ei
ras tábuas de Nuzi começaram a ser descobertas na década de 1920, e C. J. G add
publicou o primeiro conjunto delas.26 Procediam tanto de um arquivo oficial quanto
de arquivos particulares de pessoas ricas. Em bora especialistas as tenham datado
da segunda metade do século 15, alguns estudiosos bíblicos defenderam que elas
tam bém refletiam costumes mais antigos existentes naquele milênio (veja a seguir o
comentário sobre M ari). Os documentos, em especial os provenientes dos arquivos
particulares, refletiam hábitos sociais relacionados a propriedades, adoção e casa
mento. Quase de imediato se estabeleceram conexões entre os costumes de Nuzi
(que refletem a sociedade hurriana do século 15) e os costumes patriarcais conforme
relatados em Gênesis. Eichler lista os seguintes exemplos:
...a estipulação no contrato [matrimonial] de que uma mulher estéril deve dar ao marido
uma jovem escrava como esposa, a posição relativa a cada herdeiro e o tratamento prefe
rencial dispensado ao que é designado primogênito, a associação dos deuses domésticos
com a distribuição das propriedades da família, a venda condicional de filhas nascidas
livres à escravidão e a instituição da servidão-habiru?1
25Para um a boa visão geral do debate, consulte “Com parative customs and the patriarchal age”, de
M . J. Selman (in: M illard; W isem an, orgs., Essays on the patriarchal narratives, p. 91-140), ou “N uzi and
the Bible: a retrospective”, de B. L. E ichler (in: H . Behrens et al., orgs., D U M U -E 2-D U B -B A -A : studies
in honor ofAke W. Sjoberg [Philadelphia: Samuel N oah Kram er Fund, 1989], p. 107-19).
26“Tablets from Kirkuk” (fW 2 3 [1926]), p. 49-161.
27“N uzi and the Bible”, p. 108-9. Alguns exemplos dos primeiros estudos que estabeleceram
essas ligações incluem “W h a t were the teraphim ?”, de S. Sm ith (JTS 33 [1932], p. 33-6), e “The story
o f Jacob and L aban in the light o f the N uzi tablets”, de M . Burrows (B A SO R 163 [1961], p. 36-54).
A N T E S DA C O N Q U IS T A DA T E R R A 179
2S“A bram the Hebrew : a new archaeological interpretation, B A SO R 163 (1961), p. 36-54.
29“Biblical customs and the N uzi tablets”, (B A 3 1940), p. 1-12.
mGenesis, AB (G arden City: Doubleday, 1964).
31“The wife-sister m o tif in the patriarchal narratives”, in: J. J. Finkelstein; M . Greensburg, orgs.,
Oriental and biblicalstudies (Philadelphia: University o f Pennsylvania Press, 1967), p. 62-82.
z:History, 2. ed., p. 79. Edições posteriores são mais cuidadosas em suas afirmações.
33U m a das primeiras foi “A nother look at R acheis theft o f the teraphim ”, de M . Greenberg (JBL
81 [1962], p. 239-48).
34“The alleged H urrian wife-sister m otif in Genesis”, Transactions o f the Glasgow University Orien
ta l Society 22 (1967/1968), p. 14-25. Veja tb. D. Freedman, “A new approach to the N uzi sisterhood
180 A H I S T Ó R I A D E ISR A E L , D E ABRAÃO A T É O P E R Í O D O PER SA
Eichler afirma que atualm ente temos um a visão m uito mais clara desse costume,
visto que hoje existem onze textos procedentes de N uzi que podem ser analisa
dos.35 Agora entendem os que a motivação para a adoção de um a m ulher como
irm ã era financeira, tanto para o vendedor quanto para o comprador. Supõe-se
que a família do irmão original precisasse com urgência de dinheiro, então, ele
vendia por determ inado valor a um irmão “adotante” o direito de receber o valor
do dote de um eventual casamento futuro da irmã. O novo “irm ão” seria assim
um investidor que mais tarde arranjaria o casamento da m ulher e receberia o
dote de casamento (presumivelmente de valor mais elevado). Portanto, não há
relação alguma com o texto bíblico. N a verdade, a fim de que a comparação fun
cionasse, a interpretação do texto bíblico foi distorcida. D e fato, quando Abraão
disse que Sara era sua irmã, ele om itiu a verdade sobre a condição dela, a de que
era sua esposa, para se proteger. Apesar disso, como o próprio Abraão observa, em
certo sentido Sara era realm ente sua irmã, não por meio de compra nem contrato,
mas pelo fato de terem o mesmo pai, em bora de mães diferentes (G n 20.12). N a
realidade, Speiser achava que os editores bíblicos posteriores não entenderam os
costumes, o que explica a razão da dissonância entre o texto e o costume — mas
esse caso, obviamente, é só um exemplo de exposição tendenciosa dos fatos na
defesa de um argumento fraco.
A crítica às comparações entre o comportamento patriarcal e os costumes sociais
em Nuzi atinge o clímax com a obra de Thompson e Van Seters.36 A argumentação
de ambos segue duas linhas de raciocínio: 1) os paralelos não são reais, mas forçados
pela interpretação distorcida dos textos de Nuzi e dos textos bíblicos, 2) em muitos
casos, de qualquer maneira, os costumes não se restringem ao segundo milênio,
mas prosseguem até o primeiro milênio.3' Esses estudiosos deram um a contribuição
importante, alertando os leitores acerca do perigo de fazer comparações falsas, mas
vão longe demais quando dizem que, como conseqüência disso, o material patriarcal
é uma retroprojeção fictícia de um período bem posterior.38
contract",JA N E S 2 (1970), p. 77-85, e S. Greengus, “Sisterhood adoption at N uzi and the ‘wife-sister’
in G enesis”, H U C A 46 (1975), p. 5-31.
35“N uzi and the Bible”, p. 113.
36T. L. Thompson, The historicity o f the patriarchal narratives (B Z A W 133 [Berlin: D e Gruyter,
1974]; J. Van Seters, Abraham in history and tradition (New Haven: Yale University Press, 1975).
37J. Van Seters, “The problem o f childlessness in N ear Eastern law and the patriarchs o f Israel”
(JBL 87 [1968], p. 401-8.
38E m bora concordem nas críticas ao retrato bíblico dos patriarcas, discordam na avaliação do
material. N o entendim ento de Van Seters, o material reflete as condições do fim do período monárquico,
origina-se nos períodos exílico e pós-exílico e data desta época. Thom pson rejeita essa ideia e sustenta
que o texto é produto de um a perspectiva pós-exílica.
A N T E S DA C O N Q U IS T A DA T E R R A 181
É claro que essa afirmação surpreendente só pode ser explicada como falta
de atenção à lógica, pois o fato de certos argumentos a favor da historicidade
dos patriarcas se revelarem fracos não leva logicam ente à conclusão de que é
impossível dizer algo a favor da historicidade deles. No entanto, associada a esse
aspecto, há tam bém um a evidente desatenção ao texto, pois é certo que não se
pode interpretá-lo plausivelmente como a retroprojeção fictícia de um período
m uito posterior. N a verdade, podemos indicar costumes, crenças e ações dos
patriarcas que são não apenas anacrônicos em relação a períodos posteriores, mas
tam bém são às vezes absolutam ente sujeitos à objeção. G. W enham 39 relaciona os
seguintes exemplos:
incluísse essas coisas?41 È bem mais provável que o retrato tenha essa forma porque os
autores de Gênesis receberam uma tradição patriarcal estabelecida, que precisaram
adaptar, quaisquer que tenham sido seus principais objetivos religiosos e sociais, ao
escrever seu relato.
Voltando agora à questão da comparação entre textos bíblicos e extrabíblicos,
é preciso ressaltar que, mesmo depois de a crítica dos paralelos ter realizado seu
necessário e salutar trabalho — alertando os leitores quanto ao erro de fazer falsas
comparações — , ainda assim, existem dados extrabíblicos que se harmonizam com o
retrato bíblico dos patriarcas.42 Por exemplo, no que diz respeito aos documentos de
Nuzi, Selman menciona o período de reflexão mais madura sobre a comparação entre
tais textos e os textos bíblicos, chamando-o de “terceira etapa” do debate intelectual,
que sucede as etapas anteriores de aceitação e crítica. As comparações sustentáveis,
resultado dessa reflexão amadurecida, ainda não “provam” a realidade histórica (nem
mesmo a data recuada) da narrativa patriarcal e, no futuro, poderão receber críticas
convincentes. Contudo, com base no conhecimento de que dispomos no presente, é
certo que essas comparações dão apoio à imagem bíblica do período. Com o Eichler
conclui, “junto com outros documentos cuneiformes, os textos de Nuzi continuarão
ajudando a esclarecer as leis, as instituições e as práticas bíblicas”.43 Existem, ali
ás, outros dados consistentes com a correspondência do período patriarcal com a
primeira metade do segundo milênio. K. A. Kitchen, por exemplo, menciona que
o preço pago por José como escravo, evento citado em Gênesis 37.28, foi de vinte
siclos, e, com base em outros textos do Antigo Oriente Próximo, mostra que esse era
o preço de mercado de um escravo durante o período babilônico antigo (início do se
gundo milênio). Ele observa que os preços de escravos em textos bíblicos posteriores
são mais elevados e, assim, argumenta que a narrativa de José reflete as condições da
<
41Sou grato a G raham Davies por um a palestra seguida de um debate, ambos igualm ente estim u
lantes, sobre esse aspecto do texto das narrativas patriarcais (“Genesis and the early history o f Israel”,
palestra apresentada no Colloquium Biblicum Lovaniense X LV III). Tenho, no entanto, um a forte sus
peita de que ele não levaria suas conclusões até o mesmo ponto que eu.
42N ão há dúvida de que é preciso prestar bastante atenção ao desenvolvimento de um método
aceitável de comparação. Considerei essa questão em relação a outro tem a de comparação entre os
textos bíblicos e os do A ntigo O riente Próximo (vejaT. L ongm an III, FictionalAkkadian autobiography
([W inona Lake: Eisenbrauns, 1991], p. 23-38).
43“N uzi and the Bible”, p. 119. Veja ainda, como exemplo, o interessante estudo “Patriarchal family
relationships and the N ear E astern law”, de T. Frym er-Kensky (B A 44 [1981], p. 209-14), em que a
autora, ao tratar da adoção de um servo da família por Abraão e do fato de posteriorm ente ele tom ar
A gar como concubina (G n 15; 17), argum enta que esses costumes eram atestados na prim eira metade
do segundo milênio. Isso a leva a concluir que “são os dados cuneiformes que ilum inam e esclarecem o
m aterial patriarcal, indicando sua autenticidade histórica ao dem onstrar que é fiel às tradições e costu
mes do A ntigo O riente Próximo” (p. 209).
A N T E S DA C O N Q U IS T A DA T E R R A 183
^ “The patriarchal age: M y th or history?” B A R ev 21, n. 2 (1995), p. 48-57, 88, 90, 92, 94-5. M ais
um a vez, esses argumentos não “provam” a veracidade histórica das narrativas patriarcais, mas com cer
teza são consistentes com sua historicidade. Consideram os que, em geral, as críticas de R. S. H endel a
Kitchen não são convincentes (“Finding historical m emories in the patriarchal narratives”, B A R ev 21,
n. 4 [1995]); o próprio Kitchen lida com essas críticas em “Egyptians and H ebrew s, from Ra’amses to
Jericho” (in: S. A hituv; E. D ., O ren, orgs., The origin o f early Israel — current debate: biblical, historical
and archaeologicalperspectives, Beer-Sheva 12 [Jerusalem: B en-G urion University o f the Negeb Press,
1998], p. 65-134). O próprio H endel apresenta um argum ento interessante sobre a antiguidade das
tradições patriarcais quando cita um a passagem egípcia do décimo século na qual h á referência a Arade
como o “Forte A brão”.
45J. K. Hoffmeier, Israel in Egypt: the evidence fo r the authenticity o f the Exodus tradition (Oxford:
O xford University Press, 1997), p. 33. Ele cita o relevo de M edinet H abu, que relata um a batalha entre
os filisteus e Ramessés III, em 1177 a.C.
46Ibidem , p. 202. Veja o raciocínio parecido apresentado por A lan R. M illard (citando K. A.
Kitchen) em “M ethods o f studying the patriarchal narratives as ancient texts” (in: M illard; W isem an,
orgs., Essays on the patriarchal narratives, p. 35-54; veja p. 44).
184 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA
cananeus ocupavam o litoral sul do Levante, embora Êxodo 13.17 se refira aos
habitantes como filisteus, povo que somente mais tarde veio a ocupar a região.
É claro que outra possibilidade é a de que não há nenhum anacronismo, mas, sim,
que tenha ocorrido uma migração anterior e m enor de imigrantes filisteus, esta
belecidos no Levante antes da migração maior ocorrida no século 12.47 É verdade
que até o momento não há nenhum dado extrabíblico que dê apoio a essa posição.
No entanto, a história do estudo das narrativas patriarcais demonstra que nem todo
aparente anacronismo é, de fato, anacronismo e, tendo em vista nosso conhecimento
bastante limitado do mundo antigo, devemos ter cautela para não ser dogmáticos
demais ao empregar o termo “anacronismo”. Por exemplo, ainda é comum dizer
que os camelos não foram domesticados antes do século 12 a.C. e que a presença
desses animais nas narrativas patriarcais é um anacronismo (e.g., G n 24.9-14, em
que o servo de Abraão viajou de camelo para a Mesopotâmia). Contudo, hoje temos
indicações de que os camelos foram usados desde tempos mais remotos no antigo
O riente Próximo, o que torna questionável a afirmação de anacronismo.48
E m resumo, muitos argumentos usados no passado para demonstrar que os
costumes patriarcais eram típicos do período do início do segundo milênio foram
adequadamente questionados. No entanto, essa noção está longe de demonstrar
que as narrativas patriarcais conflitam em geral com o quadro oferecido por fontes
do Antigo O riente Próximo acerca do período, mesmo que tenhamos de levar em
conta certo grau de anacronismo na apresentação.
Como as narrativas bíblicas nos levam a retratar Abraão e seus descendentes imedia
tos? È claro que o texto não fornece um relato completo da posição que os patriarcas
ocupavam na sociedade, mas há vislumbres que nos permitem fazer conjecturas sobre
o estilo de vida deles. M uitos indícios sugerem um estilo de vida nômade. Os patriar
cas viviam em tendas (e.g., G n 12.8; 13.3; 31.33) e viajavam de um lugar para outro.
A primeira viagem de Abraão é longa, indo de U r até a terra de Canaã. A referência
à parada temporária em H arã confirma nossa suposição de que Abraão seguiu a rota
tradicional entre esses dois lugares, viajando rio Eufrates acima e, depois, descendo
do norte até Canaã. Essa longa viagem, contudo, foi um acontecimento único e, na
realidade, não nos informa sobre o modo de vida dos patriarcas.
49D . J. W isem an, “A braham reassessed”, in: M illard; W isem an, orgs., Essays on the patriarchal
narratives, p. 144-9.
50“A braham the noble warrior: patriarchal politics and laws o f war in ancient Israel” (JSS 33
[1982]), p. 81-107; citação na p. 106.
S1“gw r”, N ID O T T E , vol. 1, p. 837.
186 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E A BR AÃO A T É O P E R Í O D O PER SA
Gênesis 14 tem atraído muito interesse e motivado vários debates. Isso acontece
em grande parte porque, dentre as narrativas patriarcais, parece que Gênesis 14 é, à
primeira vista, a passagem com mais possibilidade de ter um a associação específica
com a história extrabíblica. Outras passagens descrevem Abraão vagando pela terra,
ocasionalmente entrando em contato com personagens poderosos cujos nomes não
são informados (G n 12.10-20) ou então não tão poderosos a ponto de esperarmos
que fontes extrabíblicas os mencionem (G n 26). Em Gênesis 14, porém, Abraão
estabelece contato com personagens influentes de grandes potências.
O capítulo começa com a descrição de um ataque de quatro reis de fora da terra
de Canaã contra cinco reis — presumivelmente da terra — liderados pelos gover
nantes de Sodoma e Gomorra. Por vários anos, o chefe da coalizão de quatro reis
havia sujeitado os cinco líderes cananeus.34 Os quatro reis executaram o ataque em
resposta a uma rebelião. Seu objetivo era colocar os vassalos novamente na linha. N a
ocasião, derrotaram outras tribos, algumas das quais com notável reputação como
52W. G. Dever, “Palestine in the second millennium BCE: the archaeological picture”, in: J. H . Hayes;
J. M . Miller, orgs., Israelite anãJudaean history (London: SCM , 1977), p. 70-120; V. H . M atthews, “Pasto-
ralists and patriarchs”, (BA 44 1981), p. 215-8; idem, “The wells o f G erar” (BA 49 1986), p. 118-26; I. C or
nelius, “Genesis xxvi and M ari: the dispute over water and the socio-economic way o f life o f the patriarchs”,
JN S L 12 (1984), p. 53-61. E m “The background o f the patriarchs: a reply to W illiam Dever and M alcolm
Clark” (JSO T 9 [1978], p. 2-43), T. L. Thompson criticou essa abordagem, mas não de forma convincente.
53“Genesis xxvi and M ari”, p. 56.
S40 texto (G n 14.4) m enciona explicitamente doze anos, mas, devido à sua referência à rebelião no
décimo terceiro ano, é possível que o versículo esteja utilizando um paralelismo num érico do tipo “x, x
+ 1”, de m odo que talvez não se deva interpretar o núm ero literalmente.
A N T E S DA C O N Q U IS T A DA T E R R A 187
guerreiras (os refains, os zuzins, os emins, os horeus, todo o território dos amalequi
tas e os amorreus). Q uando os cinco reis enfrentaram os outros quatro, os primeiros
foram dispersos e os quatro reis capturaram Ló, que era sobrinho de Abraão e havia
se mudado para as cercanias de Sodoma e Gom orra (G n 13).
Abraão foi logo informado dessa tragédia e partiu para a batalha com 318
homens. Derrotou a coalizão de reis estrangeiros, não apenas resgatando Ló, mas
também recuperando o restante dos despojos que os reis inimigos haviam tomado
da coalizão cananeia. Q uando Abraão voltou, o sacerdote-rei de Salém o encontrou
e o abençoou. Abraão deu o dízimo ao sacerdote-rei. Depois dessa cena, o rei de
Sodoma insiste com Abraão para que fique com os despojos, mas Abraão não aceita,
evitando ter dívida com o rei de Sodoma. A única exceção feita por Abraão é deixar
que seus aliados cananeus (Aner, Escol e M anre) recebam a parte que lhes cabe.
Comentaristas observam problemas nesse relato que suscitam dúvidas quanto à
sua historicidade. Primeiro, alguns questionam se a posição “correta” da passagem é
de fato entre os capítulos 13 e 15 de Gênesis.-- Um exame cuidadoso do contexto mais
amplo mostra, contudo, que o capítulo se encaixa em um a estrutura mais abran
gente. O centro da narrativa de Abraão são os capítulos 15— 17, cujo foco são as
promessas pactuais. Esses capítulos são emoldurados por dois capítulos em que Ló
desempenha papel im portante (G n 13— 14; 18— 19).
Segundo, alguns comentaristas questionam se o relato realmente “faz parte”
da narrativa de Abraão. Afirmam que, em outras passagens da narrativa, Abraão é
retratado como um simples nômade, vagando de uma cidade para outra, ao passo
que aqui é apresentado como um guerreiro, obtendo vitória sobre uma coalizão
estrangeira relativamente grande. Anteriormente, porém, questionamos essa
descrição de Abraão. Ele não era um simples nômade, mas um líder que dispunha
de riquezas imensas e que também tinha aliados cananeus que lhe davam apoio.
Terceiro, para alguns estudiosos há também tensões dentro do capítulo. Eles
sustentam que existe um a contradição entre Gênesis 14.10, que descreve os reis de
Sodoma e Gom orra caindo em poços de betume, e a passagem, mais adiante no
capítulo, em que o rei de Sodoma insiste que Abraão receba os despojos. Entretanto,
outros estudiosos respondem a i a o mostrando que é possível e mesmo necessário
interpretar a expressão hebraica com o sentido de que os reis se esconderam nos
poços de betum e.56 H á ainda muito debate em torno da aparição repentina de
” O s críticos das fontes, com certa frequência, afirmam que o texto não tem nada em comum com
nenhum a das outras fontes e o consideram um acréscimo. E ntre esses estudiosos, debate-se se a natu
reza idiossincrática do texto indica que o livro é de um a data recuada ou recente.
S6Veja, e.g., Muffs em “Abraham the noble warrior”, que também mostra que cada elemento de Gênesis
14 possui equivalente exato nos textos que tratam das leis de guerra e das regras de cortesia na recuperação
de despojos, sendo encontrados esporadicamente nos tratados internacionais de Boghazkõy e Ugarite.
188 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E A BR AÃO A T É O P E R Í O D O PER SA
57V. H am ilton destaca que esse nom e não corresponde ao nome de nenhum a divindade conhecida
do panteão cananeu (Genesis, 2 vols. N IC O T [G rand Rapids: Eerdm ans, 1990], vol. 1, p. 410).
S8J. G . G am m ie, “L oci o f the M elchizedek tradition o f G enesis 14.18-20” (JBL 90 [1971]),
p. 385-96.
39Rendsburg, “Biblical literature as politics”, p. 55-6. E m “Prologom ena on the approach to his-
torical texts in the H ebrew Bible and the ancient N ear E ast”, J. A. Soggin defende que o texto aponta
para o período persa, quando a região a leste do T igre dominava a M esopotâm ia propriam ente dita
(.E retz Israel24 [1993], p. 212-5).
“ D uas das análises mais interessantes dessas questões são a de M . A stour e a de J. A . Em erton.
E m “Poiitical and cosmic symbolism in Genesis 14 and its Babylonian sources” (in: A. A ltm ann; J. A.
E m erton orgs., Biblicalmotifs: origins andtransformations [Cambridge: H arvard University Press, 1966],
p. 65-112), A stour sustenta que Gênesis 14 foi produto da escola deuteronôm ica do final do século VI
a.C. e reflete a realidade daquele período. Para Astour, os quatro reis representam a Babilônia, a Assíria
(Elasar), o Elão e a terra de H atti, os quatro cantos do mundo. A dem ais, ele acredita que o historiador
deuteronôm ico encontrou afinidade nos textos denom inados Spartoli e foi, desse modo, inspirado por
eles. E m erton apresenta, contudo, um a refutação convincente da tese de Astour, m ostrando que há um a
boa dose de especulação envolvida (“Some false clues in the study o f Genesis xiv”, V T 21 [1971], p.
24-47). E m um segundo artigo ele apresenta um a história redacional bem complexa da passagem, que
ocorre em cinco etapas (“The riddle o f Genesis xiv”, F T 2 1 [1971], p. 403-39).
"T em os de fato um a lista de reis elamitas que vai de 2100 a 1100 a.C. A lbright inicialm en
te identificou Q uedorlaom er com um rei desconhecido de nom e Kudur-Lagam ar, porém, mais tarde
A N T E S DA C O N Q U IS T A DA T E R R A 189
defendeu que Q uedorlaom er é K udur-N ahuti, que teve um a atuação m ilitar bastante agressiva no
A ntigo O riente Próximo, entre 1625 e 1610 a.C.
“ H am ilton tam bém observa que o itinerário dos quatro reis é apresentado com “exatidão geográ
fica” ( Genesis, vol. 1, p. 402).
63Ancient Orient and Old Testament (Chicago: InterVarsity, 1965), p. 45.
64O bserve-se o artigo recente de O. M argalith, “The riddle o f Genesis 14 and M elchizedek” (Z A W
112 [2000], p. 501-8), que sustenta que o texto é u m para-mythe, correspondendo aos acontecimentos
do século 13 a.C.
190 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA
Análise literária
O início e o fim da narrativa de José são claros. Em 37.1, José se torna o foco prin
cipal da narrativa, e a seção term ina com o relato de sua morte no final do livro de
Gênesis. Contudo, essa exposição pode ser simples demais. A objeção principal
contra a unidade de Gênesis 37— 50 é Gênesis 38, que não faz menção alguma a
José, mas, ao contrário, concentra-se em seu irmão mais velho, Judá. A estrutura da
parte final de Gênesis, porém, fica mais clara quando notamos em 37.1 a últim a fór
mula tõledôt no livro. Isso indica que, na verdade, não devemos considerar essa secção
como a narrativa de José, mas sim como o relato acerca dos descendentes de Jacó,
que incluem Judá e José. Entretanto, devido ao notável interesse desses capítulos
em José, mantemos o nome tradicional da unidade e focalizamos esse personagem.
O estilo da narrativa de José indica uma mudança radical em relação ao m a
terial precedente no livro de Gênesis, o que também explica seu exame à parte.
As narrativas patriarcais são, em grande parte, constituídas de episódios curtos
(G n 24 é uma notável exceção), mas a narrativa de José tem as características de
um enredo novelesco. Coats observa esse detalhe e comenta que “como [...] em um
conto, [a narrativa de José] apresenta um enredo que vai de um ponto de crise até
sua solução”.65 Apesar de a narrativa principal desses capítulos fluir naturalmente, os
críticos ainda procuram isolar diferentes fontes de texto, sendo as de maior destaque
J e E. A presença de nomes duplos usados para designar tribos, personagens e assim
por diante desempenha um papel im portante na elaboração dessas tentativas, mas
existem explicações alternativas para as que são oferecidas pela crítica das fontes.
Conforme destacado por G. W. Coats, “...Um exame mais recente do relato en
fraquece o argumento a favor de duas fontes, sugerindo que é possível um autor
6SGenesis, p. 2 6 5 -6 .
A N T E S DA C O N Q U IS T A DA T E R R A 191
usar a repetição como técnica narrativa para ênfase, talvez apenas com o propósito
de diversificar”.66 Vejamos, por exemplo, a importante questão dos midianitas e dos
ismaelitas em Gênesis 37. Críticos das fontes separam um a fonte que menciona os
midianitas como o grupo que leva José para o Egito (v. 28,36) de outra fonte que
atribui esse papel aos ismaelitas (v. 25,27,28; 39.1). Em um artigo recente E. Fry
apresentou a explicação alternativa de que “havia o entendim ento de que tanto
‘ismaelitas’ quanto ‘midianitas’ eram termos genéricos que designavam um povo nô
made que, conforme se acreditava, descendia de Abraão e, por esse motivo, os dois
termos eram considerados um a referência ao mesmo grupo”. Como comprovação, ele
cita Juizes 8.22-24, texto que identifica os midianitas com os ismaelitas.67
Conquanto em relação às narrativas patriarcais o estilo literário tenha mudado,
não identificamos absolutamente nenhum a mudança no gênero literário ou na
intencionalidade histórica. Em bora alguns sustentem que o livro de Gênesis, em
geral, e a narrativa de José, em particular, são contos narrativos, defendemos, ao
contrário, que eles são histórias narrativas.
A vida de José parece estar sob o controle de um a força maior que ele. Inicialmente,
a identidade dessa força não fica clara; poderia até mesmo ser considerada má sorte.
José era impetuoso quando jovem e com certeza não tinha muito tato. Ele provocou
a ira de seus irmãos quando lhes contou os sonhos que prenunciavam sua superio
ridade sobre eles (G n 37.1-11). Isso os enfureceu tanto que decidiram eles mesmos
se livrar dessa peste. Q uando José foi encontrá-los em D otã, pensaram em matá-lo,
mas então preferiram vendê-lo a comerciantes ismaelitas/midianitas que iam para
o Egito (37.12-36). Parecia que o destino o havia levado para longe do lar de sua
família, para longe da terra da promessa. No Egito, José passou a servir um perso
nagem poderoso chamado Potifar. O relato sobre José na casa de Potifar (G n 39)
testifica claramente o fato de que ele é o portador da promessa divina. A expressão
“o S e n h o r estava com ele” reverbera ao longo do capítulo; o resultado da presença
do Senhor é a bênção material sobre a casa de Potifar.
N o entanto, em uma leitura superficial do texto, o destino iria aparentemente
interferir de novo na vida de José. A mulher de Potifar o cobiçou e o convidou para
se deitar com ela. José não aceitou, então ela o acusou de estupro, e o jovem foi
lançado na prisão. Contudo, mais uma vez, Deus estava com José (39.21-23) e a
prisão prosperou por causa de sua presença.
O tempo que José ficou na prisão o colocou em contato com dois oficiais egíp
cios de alta posição: o copeiro e o padeiro reais. Ambos haviam desagradado o faraó
e, por isso, estavam presos. José interpretou o sonho de cada um deles e previu a
soltura dos dois homens, mas enquanto o copeiro obteria o favor do faraó, o pa
deiro seria executado. Os acontecimentos ocorreram exatamente como José havia
predito, mas o copeiro esqueceu a promessa de interceder em favor de José junto ao
faraó. Novamente, porém, como por puro destino, o próprio faraó teve um sonho
perturbador e o copeiro finalmente se lembrou do hábil intérprete de sonhos que
havia conhecido na prisão. Assim, os acontecimentos fazem com que José chegue
à presença do faraó e o ajude a lidar com uma catástrofe em potencial, alertando-o
e preparando-o para uma terrível fome que haveria de vir.
Por causa dessa fome, os irmãos de José vão ao Egito em busca de alimento.
A família da promessa percebe que sua existência está ameaçada. N o início, José
não está preparado para se revelar aos irmãos, pois, afinal de contas, haviam cons
pirado para tirar sua vida. Ele os testa, ameaçando Benjamim, seu irmão mais novo,
para ver se agirão de acordo com a natureza dem onstrada no passado, protegendo as
próprias vidas. Q uando Judá se oferece para servir de refém no lugar de Benjamim.
(44.33,34), José não suporta mais e se revela aos irmãos. Depois, intercede junto
ao faraó e traz sua família à terra de Gósen, local situado na região delta do Nilo.
E assim que a família de Deus chega ao Egito.
A narrativa de José é um a peça literária elaborada habilidosamente e com um
tem a teológico sutil. A ausência de um a linguagem teológica explícita ao longo
do relato levou alguns a classificá-lo como literatura sapiencial. O tema, porém, se
torna explícito no final do relato, quando Jacó morre. Nesse momento, os irmãos
se preocupam com a possibilidade de, com a morte do pai, José finalmente se vingar.
D iante do pedido deles por misericórdia, José responde com uma emocionante
declaração sobre a providência divina: “Certam ente planejastes o mal contra mim.
Porém Deus o transformou em bem, para fazer o que se vê neste dia, ou seja, con
servar muita gente com vida” (50.20). Esse tema da providência divina protegendo
os portadores da promessa explica a escolha dos episódios narrados da vida de José.
José no Egito
esteja na história, a narrativa nos leva à seguinte pergunta: Será que ela corresponde ao
que sabemos sobre o Egito na primeira metade do segundo milênio a.C.? Certamente
podemos esperar que pelo menos reflita alguns costumes e características do Egito
daquela época, mesmo não sendo possível encontrar ligações específicas entre a história
egípcia e a patriarcal. Essa questão tem atraído a atenção tanto de estudiosos bíblicos
como de egiptólogos. É interessante notar, conforme veremos, que a maioria dos espe
cialistas em Egito (Vergote,68 Kitchen69 e Hoffmeier70) demonstram que há uma forte
nuance egípcia na narrativa, enquanto muitos estudiosos bíblicos negam isso.71
Concordando com Hoffmeier, observamos inicialmente que “até hoje não sur
giu nenhum a prova direta de que o hebreu José foi um oficial na corte egípcia”.72
Estudiosos que anseiam mostrar a autenticidade da narrativa se satisfazem, portanto,
em apresentar provas indiretas e em lidar com aparentes anomalias. Limites de
espaço impedem uma análise detalhada das provas indiretas aqui, mas concordamos
com a conclusão de Hoffmeier de que elas “tendem a comprovar a autenticidade
do relato. N a realidade, não existe nada de extraordinário ou de inacreditável na
narrativa”.73 Considerem-se alguns exemplos.
Primeiro, como indicado anteriormente, Kitchen faz a interessante observação de
que, com base no conhecimento que temos hoje, o preço pelo qual José foi vendido
como escravo (vinte siclos de prata, cf. G n 37.28) está totalmente de acordo com o
que sè sabe acerca da primeira metade do segundo milênio. Os dados revelam que, por
volta da segunda metade do segundo milênio, o preço de um escravo era de trinta siclos
e chegou a cinqüenta no primeiro milênio.74 Esta questão é um detalhe, mas favorece
uma recordação histórica autêntica, em vez de um texto posterior fictício ou semifictício.
Segundo, os nomes egípcios que aparecem na narrativa (Potifar, Potífera,
Asenate e Zafenate-Paneia) têm sido estudados minuciosamente ao longo dos
anos. As fontes egípcias não confirmam a existência dessas pessoas específicas, o
que, particularmente, não causa surpresa, tendo em vista a natureza dos registros
mJoseph en Egypte: Geneses chap. 37— 50 à la lumière des études égyptologiques recentes (Louvain:
Publications Universitaires, 1959).
69Kitchen tem contribuído com vários estudos para a compreensão do assunto, em particular
“Joseph” (in: N B D , p. 617-20) e “Genesis 12— 50 in the N ear Eastern w orld” (in: R. S. H ess et al., orgs.,
He siuore an oath: biblical themesfrom Genesis 12— 50 [Cambridge: Tyndale House, 1993], p. 77-92).
70Israel in Egypt. N esta seção devo m uito à obra de Hoffmeier.
71E ntretanto, a principal divergência provém de um egiptólogo, D. Redford, em sua obraví study o f
the biblicalstory o f Joseph (V T S 20 [Leiden: Brill, 1970]). Suas interpretações (que tendem a desprezar
a autenticidade histórica da narrativa de José) são contestadas por Kitchen e Hoffmeier, embora eles
reconheçam as contribuições positivas de Redford.
n Israel in E gypt, p. 97.
73Ibidem .
74“Genesis 12— 50 in the N ear Eastern w orld”, p. 79-80.
194 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E A BR AÃO A T É O P E R Í O D O PERSA
arqueológicos que restaram. Contudo, embora exista alguma dificuldade pelo fato de
serem transliterações de nomes egípcios para o hebraico — e não os próprios nomes
em egípcio — , ninguém duvida de que esses nomes sejam autenticamente egípcios.
As datas em que foram usados e as etimologias são objeto de debate, mas Currid,
HofFmeier e outros75 mostram como esses nomes certamente podem ter sido usados
no contexto do segundo milênio em que a Bíblia situa a narrativa de José. Kitchen
vai mais longe, concluindo que “os melhores equivalentes de Zafenate-Paneia e
Asenate são, em sua esmagadora maioria, do Reino M édio (início do segundo milê
nio a.C.), aparecendo raramente depois; Potifar/Potífera é um a forma modernizada
(presente no final do segundo milênio a.C. em diante) de um nome encontrado do
início do segundo milênio (Didire)”.76
Essas observações conduzem a mais dois comentários. Primeiro, o personagem
que esperaríamos encontrar nas fontes originais é o faraó. No entanto, como é bem
sabido, em Gênesis 37-50, o líder egípcio nunca é mencionado pelo nome. Nosso
conhecimento dos reis egípcios provavelmente permitiria a datação do contexto do re
lato, caso soubéssemos o nome do faraó da narrativa de José, mas este não é o caso, por
isso, ficamos apenas com um a data incerta. Alguns têm sugerido que não identificar
o faraó está em conformidade com a prática egípcia de não mencionar o nome de um
inimigo e, desse modo, não contribuir para que fique famoso. Outros dizem que, uma
vez que o faraó era considerado um deus, o autor bíblico evitou escrever seu nome.77
A melhor explicação está no fato de que, até por volta do décimo século, era comum
os próprios egípcios não se referirem ao faraó pelo nome, mas apenas chamá-lo de
“faraó”. Conforme observado por Hoffmeier, era exatamente essa a prática
encontrada no AT; no perío d o que abrange G ênesis e Ê xodo até Salom ão e R oboão, o
term o “faraó” ocorre sozinho, ao passo que depois de S h esh o n q (c. 925 a.C .), o título e
o nom e aparecem ju n to s (e.g., faraó N eco, faraó H ofra).
P ortanto, o em prego do term o “faraó” em G ênesis e Ê xodo está de p leno acordo
com a prática egípcia do século 15 até o 10 a .C .78
75í lofFmcier, Israel in Egypf, p. 84-8;J. C urrid, Ancient E gypt and the Old'1'esíament (G rand Rapids:
Baker, 1997), p. 74-82.
76“Genesis 12— 50 in the N ear E astern w orld”, p. 90.
77W alton; M atthew s, Bible background commentary, p. 75.
'8Hoffmeier, Israel in Egypt, p. 87-8. Cf. tb. o que K. Kitchen diz em “Egyptians and Hebrew s,
from Raam ses to Jericho” (in: A hituv; Oren, orgs., Origin o f early Israel, p. 105-6): “... um ou mais
escritores bíblicos podem m uito bem ter conhecido o nom e do rei, mas durante o período ramessida,
na comunicação e documentação do dia a dia (com exceção de trechos que indicavam a data oficial,
algo desnecessário para os escritores bíblicos), as pessoas costum eiram ente se referiam a seu governante
como ‘faraó’ ou ‘faraó, nosso bom senhor, L P H ’ ou algo parecido — nunca pelo nome! [...] M ais um a
vez as práticas egípcia e bíblica m udam juntas com o passar o tem po”.
A N T E S DA C O N Q U IS T A DA T E R R A 195
O NASCIMENTO DE MOISÉS
passou a viver com os midianitas, mas também se casou com a filha do sacerdote,
cujo nome era Zípora.
Frequentemente compara-se a fuga de Moisés do Egito com o conto egípcio de
Sinuhe.87 D e acordo com esse conto, Sinuhe era alguém que ocupava uma posição
elevada, servindo como assistente da princesa Nefru, a esposa do faraó Sesóstris I,
na primeira parte do segundo milênio a.C. Sinuhe caiu no desfavor do faraó e fugiu
para a Síria, passando por Canaã. Além disso, casou-se com a filha mais velha do
líder sírio. Entretanto, um a leitura cuidadosa desse texto indica que as semelhanças
são puramente superficiais. É provável que a cena de um oficial que caiu em desgraça
e, para salvar a vida, fugiu de um rei poderoso como o faraó tenha ocorrido inúmeras
vezes na longa história do Egito. O fato de o refugiado haver sido aceito entre os
asiáticos de Canaã ou da Síria tam bém não é de semelhança notória. Certam ente,
ao contrário do que alguns afirmam, a comparação não nos permite compreender
m elhor o significado ou a origem do relato sobre Moisés.
A fuga de Moisés para M idiã também o conduziu para a região do M onte
Sinai, que desempenharia um papel im portante na narrativa do Êxodo/peregrinação
pelo deserto. O s autores de Êxodo contam que ali Deus chamou Moisés a ir ao
Egito e dali conduzir Israel ao Sinai, a fim de receber a Lei. N a narrativa, em
ambas as ocasiões, uma aparição de Deus na forma de fogo tem papel importante.
O comissionamento de Moisés para a tarefa de resgatar Israel, livrando-o da
escravidão, envolve especificamente um a sarça ardente, ou melhor, um a sarça que
não queima e, por esse motivo, atrai a atenção de Moisés. Q uando ele vai examinar
o estranho fenômeno, Deus lhe fala e o comissiona de uma maneira parecida com
outras narrativas de chamado encontradas na Bíblia. Deus convoca Moisés para uma
tarefa básica; este levanta objeções e Deus lhe dá garantias. O mesmo padrão pode
ser encontrado nas narrativas de comissionamento de Gideão (Jz 6.11-24), Isaías
(Is 6.1-13) e Ezequiel (Ez 1.4— 3.15).88
Moisés continua resistindo ao chamado divino à liderança até que Deus, irado,
concorda em deixar que Arão, irmão de Moisés, atue como seu porta-voz. Com essa
decisão, testemunhamos os primeiros passos rumo à escolha, ocorrida mais tarde,
de Arão e seus descendentes para serem sumos sacerdotes. Em seguida, Moisés
deixa o sogro e, junto com esposa e os filhos, volta ao Egito para confrontar o faraó.
O texto bíblico sugere que, no início, os israelitas receberam Moisés com esperanças.
Quando, porém, o faraó não apenas rejeitou o pedido dele e de Arão para realizarem
uma festa de três dias no deserto (Êx 5.1-5), mas também aumentou a carga de
87Q uanto ao texto, v c ja J N E T , p. 18-22, e W . W . Hallo; K. L. Younger, orgs., The context o f Scripture
(Leiden: Brill, 1997), vol. 1, p. 77-82.
88G . W. Coats, Exodus 1— 18, F O T L IIA (G rand Rapids: Eerdm ans, 1999), p. 39.
A N T E S DA C O N Q U IS T A DA T E R R A 199
Por fim, o texto narra que o faraó deixou os israelitas saírem do Egito. O termo
“Exodo” vem de um vocábulo grego que significa “saída”, de modo que agora, ao
analisarmos a saída de Israel, nos ocuparemos do Êxodo no sentido estrito. D e
início, os israelitas aparentemente não conseguiram sair do Egito com suficiente
rapidez (Ex 12.31-42). Os egípcios querem tanto que eles vão embora que os
enchem de presentes e, na pressa, os israelitas nem sequer acrescentam fermento
ao pão. Quando partem, Deus não os conduz pela estrada habitual para a Palestina
(Ex 13.17,18), conhecida pelos egípcios como caminho de Hórus. Essa estrada
seguia pelo litoral do mar M editerrâneo e era a rota mais fácil e rápida, mas também
a mais vigiada; de acordo com o texto, Deus estava ajudando os israelitas a evitar
um a batalha precoce. Por isso, Moisés conduziu Israel de Sucote até Etã, e daí até
Pi-Hairote, onde acamparam às margens do mar, no lado oposto de Baal-Zefom.91
91Veja a seguir sobre esses e outros pontos geográficos m encionados no itinerário da viagem de
Israel pelo deserto.
A N T E S DA C O N Q U IS T A DA T E R R A 201
Essa massa de água, cujo nome hebraico é yam süp, é o cenário em que ocorre o
evento culminante do Êxodo.
O que é o yam süp e onde está localizado? Essas perguntas têm incomodado os
historiadores bíblicos há algum tempo. Inicialmente, parece que a Bíblia emprega
yam süp para se referir a diferentes ajuntamentos de água.92 A tradução e identifica
ção tradicionais de yam süp é o “mar Vermelho”, um a grande porção de água salgada
conhecida, hoje em dia, pelo menos em parte, como golfo de Suez. No entanto,
súp não significa “vermelho”, e parece que essa identificação se baseia na tradução
do term o feita pela Septuaginta. É bem mais provável que essa palavra deva ser
entendida à luz de um cognato egípcio (tw fy) que significa “junco”. Ao fugirem do
exército egípcio, os israelitas atravessaram um “mar de juncos”. E comum a afirma
ção de que juncos não crescem em água salgada, mas apenas em água doce, o que
tem levado muitos a sustentar que a travessia israelita não poderia ter acontecido no
local que conhecemos como mar Vermelho, mas deve ter ocorrido em um dos lagos
pantanosos entre o M editerrâneo e o mar Vermelho (lagos Amargos, lago Balah,
lago Tim sah ou lago M anzala). Nesse caso, não se pode exigir uma decisão do tipo
“um ou outro”, pois Hoffmeier não apenas provou que “juncos e caniços, denom i
nados halófitos, resistentes ao sal, vicejam de fato em áreas pantanosas salgadas, mas
também demonstrou que o mar Vermelho e o sul do lago Amargo podem realmente
ter sido contíguos na Antiguidade:
Além disso, devemos considerar o fato de que a palavra süp também tem o
sentido de “fim”.94 Esse sentido pode ter ecoado na mente dos leitores do passa
do e indicado que essa travessia significou o fim do Êxodo. D e qualquer maneira,
esse acontecimento notável foi de suprema importância para as gerações israelitas
92Com parem -se, por exemplo, IR eis 9.26 e Jeremias 49.21 (que fazem referência ao que hoje em
dia chamamos de golfo de Aqaba) com Núm eros 33.10,11 (que é associado ao golfo de Suez).
93HofFmeier, Israel in Egypt, p. 209.
94B. F. Batto, “The Reed Sea: requiescat in pace” (JBL 102 [1983]), p. 27-35.
202 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA
95“The num ber o f people in the Exodus from Egypt: decoding m athem atically the very large
num bers in Num bers 1 and 26”, ( V T 48 [1998]), p. 196-213. Críticas podem ser encontradas em “O n
decoding very large num bers”, de J. M ilgrom (F T 4 9 [1999], p. 131-2), e em “O n the interpretation o f
the census lists by C. J. H um phreys and G . E. M endenhall” ( V T 50 [2000], p. 250-2), de R. H einzerling.
A resposta de H um phreys pode ser encontrada em “The num bers in the exodus from Egypt: a further
appraisal” ( V T 50 [2000], p. 322-8). O debate prossegue enquanto este livro é escrito.
96V isto que N úm eros 1.46 registra apenas quantos hom ens de vinte anos para cima existiam,
a m elhor m aneira de entender o núm ero é como um registro m ilitar e não como um censo geral
da população.
A N T E S DA C O N Q U IS T A DA T E R R A 203
A DATA DO ÊXODO
A narrativa do livro de Êxodo não nos apresenta o nome do faraó da época97 nem
fornece qualquer informação que nos ajude a datar esses acontecimentos. Por
isso, somos forçados a procurar fora de Êxodo alguma ajuda para a datação. Nesse
aspecto, parece que a passagem bíblica mais relevante é IReis 6.1: “Quatrocentos
e oitenta anos depois que os israelitas saíram da terra do Egito, no mês de zive, o
segundo mês, no quarto ano do seu reinado sobre Israel, Salomão começou a edi-
ficar o templo do S e n h o r ” . Geralmente se aceita que o quarto ano de Salomão é
966 a.C., embora seja difícil ser preciso a respeito da data (veja cap. 10). Entretanto,
supondo-se, por enquanto, que ela não esteja muito errada (mesmo que seja impos
sível ser exato acerca da data), então o acréscimo de 480 anos nos levaria a 1446 a.C.
como data aproximada do Êxodo. Segundo esse ponto de vista, o Êxodo ocorreu em
meados do século 15 a.C .,98 o que parece ter apoio na referência de Juizes 11.26 aos
trezentos anos que a região da Transjordânia, então (na época de Jefté) disputada
pelos amonitas, era controlada pelos israelitas. Ademais, essa datação não enfrenta
problemas com outros detalhes da cronologia bíblica.
Contudo, mesmo entre os que sustentam a ideia de que o livro de Êxodo tem
valor histórico, essa data é questionada. Aliás, K. Kitchen chama o argumento do
parágrafo anterior de “solução do preguiçoso”,99 insistindo que não se deve interpre
tar o número 480 ao pé da letra, uma vez que, na verdade, é uma espécie de número
simbólico. Segundo ele, esse número representa doze gerações, sendo que cada uma
é simbolicamente representada pelo número de “quarenta anos”. Por isso, é preciso
cuidado na transposição do texto para a cronologia histórica, já que “quarenta anos”
não representam, do ponto de vista histórico, a duração de um a geração, estando
esse ciclo mais próximo de algo em torno de 25 anos. D o ponto de vista histórico,
doze gerações cobririam trezentos anos em vez de 480, o que colocaria o Êxodo no
século 13 a.C. e não no 15. Com umente se acredita que essa data no século 13 se
encaixa melhor com o que as pesquisas arqueológicas feitas na Palestina (como têm
sido geralmente interpretadas) revelam sobre o estabelecimento israelita na terra
97E m Israel in Egypt, H offm eier sugere que essa abordagem está em conform idade com a prática
egípcia de jam ais m encionar o nom e de um inimigo (p. 109-11), ao passo que R. H endel, que acredita
que mais tarde Israel é constituído a partir de várias experiências diferentes de êxodo ao invés de um a
só, afirma que tal abordagem perm ite às pessoas, que ao longo do tem po tiveram diferentes experiências
de opressão egípcia, se identificarem com a tradição (“The exodus in biblical m em ory”,JB L 120 [2001],
p. 607-8). Veja a nota 78.
98Se, por outro lado, seguirmos a cronologia alternativa da Septuaginta, que sugere acrescentarmos
apenas 440 anos à cifra de 966, chegamos a um Êxodo bem no fin a l do século 15 a.C.
mA B D , vol. 2, p. 702.
204 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO A T É O P E R Í O D O PER SA
A PEREGRINAÇÃO NO DESERTO
O livro de Êxodo nos inform a que, para chegarem até o yam súp vindos da cidade
de Ramessés, os israelitas montaram acampamentos temporários em Sucote,104 em
E tã10S e em Pi-H airote, entre M igdol106 e o mar, no lado oposto de Baal-Zefom
(Êx 12.37; 13.20-22; 14.1-9). Depois de atravessar o yam súp, entraram enfim no
deserto (Êx 15.22). O pano de fundo do restante do Pentateuco são as “peregri
nações” nesse deserto — que é im portante para o relato de Israel, mas difícil de
reconstruir com precisão porque: 1) ao longo de milênios, a geografia da região, em
particular o litoral, lagos e pântanos, sofreu alterações significativas;107 2) os textos
bíblicos raramente apresentam informações claras e diretas.
E m teoria, três rotas possíveis ligavam o Egito à Palestina. N a rota do norte, m en
cionada anteriormente, havia fortalezas egípcias, tornando provável a luta armada.
Por isso, o melhor seria evitar esse caminho. U m a rota intermediária ia “direto para
o outro lado da região central de rochas calcárias no Sinai”,108 mas nela não havia
suprimento adequado de água. A terceira rota ficava a sudeste e é a que os israelitas
provavelmente seguiram.
104Geralm ente, Sucote é identificado com o lugar conhecido na literatura egípcia como Tjeku. E m
geral, Sucote/Tjeku é associado a Tell el-M askhouta. T jeku era um a área militar, portanto, supomos ser
possível que os israelitas tivessem precisado atravessá-la rapidamente.
105A palavra E tã está associada com um a palavra egípcia cujo significado é “fortaleza”.
106E m bora M igdol seja um a palavra semítica com o sentido de “fortaleza”, o local é cham ado de
“o M igdol de Seti” tam bém em idiom a egípcio. D urante a composição deste livro, escavações m uito
anim adoras estavam em andam ento em Tell el-Borg sob a liderança de Jam es H offm eier (N orth Sinai
Archaeological Project). Esse local foi claramente ocupado entre 1450 e 1200 a.C., e a hipótese de
trabalho de Hoffm eier é que se trata do M igdol bíblico.
107Recentem ente, porém, Stephen O. M oshier, do W h eato n College e do N o rth Sinai
Archaeological Project, realizou um excelente trabalho na reconstrução da geografia da região que se
acredita ter sido o cenário da travessia do m ar e das primeiras peregrinações de Israel.
108Kitchen, “Egyptians and Hebrew s”, p. 65-131, citação na p. 92.
206 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA
Seu primeiro destino foi o M onte Sinai. Para chegar ali, os israelitas acampa
ram em M ara, Elim, deserto de Sim, Dofca, Alus e Refidim — lugares informados
pela própria narrativa bíblica e tam bém pelo itinerário formal encontrado em
N úm eros 33. M uito se debate quanto à confiabilidade do itinerário exposto nesse
capítulo, o qual revela sinais da influência de interesses literários em sua elabora
ção.109 Para os que sustentam a curiosa crença de que interesses literários e históricos
são necessariamente incompatíveis, essa forma literária representa um problema.
N o entanto, acreditar que a forma literária destrói a referencialidade histórica é
um a crença estranha, pois dependemos em grande parte da literatura para chegar
ao volume de conhecimento histórico atual. Com certeza, o gênero literário de que
estamos tratando em Números era bem conhecido no m undo antigo. G. I. Davies110
demonstrou que a passagem corresponde perfeitamente ao gênero literário mais
abrangente de “itinerário” que era usado no Antigo O riente Próximo, conforme
descrição feita por W. W. Hallo e outros.111 C. Krahlmakov comenta ainda que,
“ao que parece, essa passagem é um trecho notável e confiável de escrita histórica
antiga”.112 Entretanto, isso não significa que podemos traçar com alguma certeza a
rota precisa que os israelitas seguiram para chegar ao M onte Sinai, pois não sabe
mos exatamente onde ficavam os locais mencionados no texto, e a arqueologia não
pode nos ajudar nesse ponto.113 Aliás, até mesmo a localização do Sinai é incerta.
As tradições mais antigas114 situavam esse monte em Jebel M usa, na região sudeste
da península do Sinai. M as outros defendem que o Sinai deve ser situado onde é
hoje a Arábia Saudita.
D e acordo com os textos bíblicos, eventos de grande alcance e impacto ocor
reram no Sinai (Ex 19.1— N m 10.10). Essa m ontanha foi o lugar exato para onde
109O utros itinerários são relatados no Pentateuco e tam bém em Josué 3— 4, e todos têm um padrão
semelhante. Fornecem o vínculo estrutural dessa seção da Bíblia, unindo os diferentes relatos. Veja “The
wilderness itinerary”, de G . W . Coats, CBQ 34 (1972), p. 135-52.
“ ““The wilderness itineraries: a comparative study”, TynBul 25 (1974), p. 46-81.
m “The road to E m ar” (JCS 18 [1964]), p. 57-88.
m “Exodus itinerary confirmed by Egyptian evidence”, B A R ev 20 (1994), p. 54-62, citação na
p. 56. M as os dados egípcios citados por ele se referem diretam ente apenas à últim a etapa da peregri
nação no deserto. E m “The w andering-traditions from K adesh-Barnea to Canaan: a study in biblical
historiography” (JJS 33 [1982], p. 175-84), Z. Kallai acrescenta que “não só Núm eros 33 é consistente
em sua form a literária, mas tam bém, até o que se pode verificar, a seqüência das paradas é geografica
m ente correta”, embora prontam ente acrescente que o m esmo não se pode dizer de todas as tradições
de itinerário presentes no Pentateuco (p. 178).
u3Com o Kitchen nos traz à lem brança, “essa é um a região pouquíssim o explorada pela arqueologia
m oderna” (“Egyptians and Hebrew s”, p. 78).
114A tradição mais antiga é a de Eusébio de Cesareia. A sua época já existia em Jebel M usa um
mosteiro construído para celebrar os acontecimentos no Sinai.
A N T E S DA C O N Q U IS T A DA T E R R A 207
Deus havia instruído M oisés a levar Israel. Assim que Israel chegou ali, Deus
estabeleceu um a aliança com o povo, deu-lhe um a Lei para observar e entregou a
Moisés instruções para construir um tabernáculo. Tudo isso serviu para fazer com
que Israel, que agora havia crescido e se multiplicado, se transformasse em uma
comunidade coesa centrada em Yahweh. No entanto, a antiguidade da aliança, da
Lei e do tabernáculo tem sido questionada ao longo dos anos.
E m um a metáfora antiga para a relação de Israel com Deus, a aliança é m en
cionada pela primeira vez na história de Noé (G n 9) e depois no relato de Abraão
(G n 15; 17).115 Aliás, a aliança mosaica pressupõe a libertação do Egito (Êx 20.2),
que está relacionada às promessas abraâmicas. O Pentateuco contém duas grandes
seções dedicadas à aliança entre Deus e Israel mediada por Moisés. Em Êxodo
19— 24, lemos acerca do estabelecimento dessa aliança no M onte Sinai. Em
Deuteronômio, há uma cerimônia de renovação dessa aliança, ocasião em que, logo
antes de entrar na terra prometida, Israel reafirma seu compromisso de obedecer
Yahweh. Apesar disso, na mente de muitos estudiosos, o conceito de aliança é uma
retroprojeção de ideias tardias na história de Israel e, conforme sustentam, não exis
tia nenhum a concepção desse tipo na época de Abraão ou de Moisés.
E ntretanto, pesquisas recentes, embora não “provem” que a ideia de aliança
seja um aspecto do pensamento israelita mais remoto, certamente indicam que
não é anacrônico falar de um a aliança na época de Moisés. A comprovação está
na form a de tratados hititas do segundo milênio a.C. A estrutura desses tratados
é muito próxima da estrutura de documentos bíblicos pactuais, em particular do
livro de Deuteronôm io, os quais os autores bíblicos atribuem a esse período inicial
da história de Israel.116 Aliás, são os tratados hititas desse período — e não os
tratados assírios do sétimo século — que m antêm essa relação tão próxima com
os documentos bíblicos, especialmente pelo fato de terem um preâmbulo histórico
norm alm ente inexistente nos tratados assírios, mas encontrado em Êxodo,
Deuteronôm io e Josué 24. Em bora o gênero literário não seja tão fixo a ponto
de podermos afirmar com toda a certeza que a forma de nossos textos bíblicos
corresponde apenas ao segundo milênio, fica claro que o conceito de aliança não é
anacrônico quando identificado nesse período.
O mesmo se pode dizer do conceito de lei. M uito se discute nos últimos duzen
tos anos sobre a data da Lei israelita ou pelo menos de alguns aspectos dessa Lei. Por
exemplo, a tendência dos defensores de métodos tradicionais de crítica das fontes
tem sido associar boa parte da Lei com a fonte ou o editor do Pentateuco conhecido
117Assim como o próprio W ellhausen, muitos acham que algumas leis foram introduzidas como
coleções separadas. W ellhausen acreditava que o mais antigo código legal foi “o Livro da Aliança”
(Ex 20.22— 23.19), seguido pela legislação deuteronôm ica associada à reform a de Josias no sétimo
século a.C.
118Veja J. J. Finkelstein, “The laws o f U r-N am m u”,/C S 22 (1969), p. 66-82.
119R. W . Klein, “Back to the future: the tabernacle in the b o o k o f Exodus”,I?2/er£50 (1996), p. 264-
-76, citação na p. 264. Alguns estudiosos chegam a questionar se existe mesmo algum objeto concreto
por trás da descrição do tabernáculo.
120Vejadois textos de K. Kitchen: “The tabernacle — a Bronze Age artefact” (Eretz Israel24 [1993],
p. 119*-29*) e “The desert tabernacle: pure fiction o f plausible account?” (B R 16 [2000], p. 14-21).
A N T E S DA C O N Q U IS T A DA T E R R A 209
O longo relato que vai de Êxodo 19.1 até Números 10.10, situado próximo ao M onte
Sinai, conta, na realidade, um período relativamente curto que terminou no segundo
ano depois do Exodo. Quando Deuteronômio começa, os israelitas já estão nas pla
nícies de M oabe do outro lado de Jericó, prontos para entrar na Terra Prometida. Em
contraste, um número relativamente pequeno de capítulos do livro cobre um número
bem maior de anos de peregrinação. O texto bíblico diz que o evento de transição
entre os dois períodos ocorreu em Cades-Barneia, no deserto de Parã. A essa altura
da viagem, Moisés enviou à Terra Prometida doze espiões, cada um representando
uma tribo (Nm 13). Quando voltaram, trouxeram uma notícia boa e outra má. A boa
notícia era que a terra que Deus havia lhes dado era belíssima e muito mais produtiva
do que imaginavam. A má era que seus habitantes eram um povo temível, entre eles
os descendentes de Anaque, que fizeram os espiões se sentirem “como gafanhotos”
(Nm 13.33). Isso causa então uma falta de confiança no guerreiro divino que, no
yam süp, havia derrotado forças poderosíssimas. Essa falta de confiança leva à longa
peregrinação no deserto. Somente Josué e Calebe, dois espiões que não vacilaram
na fé, entrariam, finalmente, na terra, depois de toda uma geração (“quarenta anos”,
N m 14.34) haver morrido nesse deserto.121 Conforme destacado por D. Olson, o livro
de Números é inteiramente estruturado em torno do tema da morte da geração que
participou do Exodo e do surgimento de uma segunda geração, uma geração de espe
rança.122 È a essa nova geração que Moisés dirige seu discurso nas planícies de Moabe.
Números 33.37-49 alista uma série de acampamentos no caminho de Cades-
-Barneia até as planícies de Moabe. Os israelitas pararam primeiro no monte Hor,
onde Arão morreu. Então acamparam sucessivamente em Zalmona, Punom, Obote,
Ije-Abarim, Dibom-Gade, Almom-Diblataim, nos montes de Abarim, perto de Nebo,
e, por fim, nas planícies de Moabe. Alguns estudiosos acreditam que, assim como
Números 21.14-21, essa passagem descreve uma rota direta ao longo da Estrada Real,
a principal estrada que, às margens do deserto, atravessava a Transjordânia de norte a
sul e basicamente ligava Damasco, ao norte, ao golfo de Aqaba, ao sul.123 No entanto,
121Em bora, de acordo com o texto bíblico, a fé de M oisés tam bém não tenha vacilado, ele não
recebeu permissão para entrar na Terra Prom etida por causa de um a ação posterior em que dem onstrou
falta de fé (N m 20.1-13).
m Essa estrutura é vista de form a mais clara nos dois relatos do censo em Núm eros 1 e 26. Veja
D. Olson, The death o f the old and the birth o f the new: the fram ework o f the book o f Numbers and the
Pentateuch (BJS 71 [Chico: Scholars, 1985]).
123Veja The Holman Bible atlas (Nashville: Broadm an and H olm an, 1998), p. 71; J. M . Miller,
“The Israelite journey through (around) M oab and M oabite toponym y” (JBL 108 [1989]), p. 577-95;
e Kallai, “W andering-traditions”.
2 10 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA
outras passagens descrevem que primeiro os israelitas viraram para o sul, em direção ao
yam süp (cf. N m 21.4; D t 2.1), em um desvio para o leste a fim de evitar os edomitas,
que haviam impedido Israel de passar por suas terras usando aquela mesma estrada
(Nm 20.17). É difícil compreender claramente o que aconteceu nesse ponto, e parte do
problema é a incerteza na identificação de muitos lugares mencionados. No entanto,
parece que os israelitas realmente viajaram para o norte seguindo uma rota alternativa, a
leste da Estrada Real, rota denominada “caminho do deserto de Edom” e “caminho do
deserto de Moabe”, situada já no deserto, onde havia poucos povoados e pouca água.124
Depois de evitar dessa forma a guerra com os edomitas e os moabitas, os israe
litas se depararam com Siom, rei dos amorreus, e Ogue, rei de Basã. Eles infligiram
um a derrota completa a esses dois reis, submetendo parte da região da Transjordânia
ao controle israelita e obtendo acesso à Terra Prometida mediante a travessia do
rio Jordão em um ponto logo acima do M ar M orto. M ais uma guerra pairava no
horizonte, nas “planícies de M oabe” (que, na realidade, nessa época, não faziam parte
do reino moabita, N m 21.26). Números 22— 24 narra as tentativas dos moabitas,
temerosos de um futuro ataque dos israelitas, de se precaverem contratando um
vidente chamado Balaão. O texto diz que Balaão, embora pago para amaldiçoar
Israel, só conseguiu abençoá-lo, mas também dá a entender que ele foi o responsável
por um a estratégia m oabita/m idianita125 diferente, tentando enfraquecer Israel ao
fazer com que suas mulheres seduzissem os homens israelitas (Nm 25; 31.16). Por
fim, essa estratégia levou à guerra com M oabe (Nm 31), depois da qual a terra
tom ada por Israel na Transjordânia foi dada às tribos de Rúben e Gade e à meia
tribo de Manassés, na condição de que atravessassem o Jordão para ajudar a comba
ter as regiões principais dos cananeus que viviam do outro lado daquele rio.
O único dado extrabíblico relevante dessa últim a etapa da peregrinação no
deserto — e ainda assim um dado indireto — é uma interessante inscrição que
menciona esse mesmo Balaão, o vidente de Números 22— 24. O texto, escrito em
aramaico, foi descoberto em Tell Deir ‘A lia, em 1967, e data do oitavo século a.C.
Devemos, porém, mencionar, também de passagem, os aparentes problemas levanta
dos pela pesquisa que o arqueólogo N. Glueck realizou na Transjordânia na década
de 1930, ao menos no que diz respeito à data da incursão israelita ali. O levantamen
to de Glueck abrangeu o mapeamento de lugares e, então, a realização de um estudo
de superfície para determinar as datas de ocupação. Essa última etapa envolveu ba
sicamente uma equipe de assistentes e voluntários que colhiam cacos de cerâmica
encontrados na superfície dos sítios arqueológicos e então datavam esses cacos. Essa
datação foi feita com a ajuda de cronologias que levam em conta mudanças de forma,
cor e acabamento de peças de cerâmica e que foram desenvolvidas com base na cerâ
mica encontrada em vários estratos de escavações anteriores. A conclusão de Glueck
foi que essa região esteve geralmente inabitada entre o final da Idade do Bronze
Antigo IV (perto do final do terceiro milênio a.C.) e a idade do Bronze Recente Ilb
(1300 a.C.). Isso excluiria uma datação do Exodo no século 15. Entretanto, o tipo de
levantamento conduzido por Glueck tem sérios problemas metodológicos, entre eles
o principal é que os investigadores recolheram os cacos ao acaso. E natural, pois, que
se sentissem atraídos por cacos “interessantes” com cores e/ou bordas ou alças, distor
cendo desse modo os dados. Além disso, tal pesquisa não leva em conta o fato de que
certo tipo de cerâmica pode ter estado em uso em um a época específica em determi
nada região de Canaã, ao passo que, em outra região, sua utilização pode ter ocorrido
bem depois. Por isso, não causa surpresa o fato de que alguns levantamentos mais re
centes tenham indicado indícios de ocupação naTransjordânia precisamente durante
a denominada “lacuna” entre o Bronze Antigo IV e o Bronze Recente Ilb. “Em um
trabalho realizado mais tarde, o próprio Glueck encontrou mais vestígios do Bronze
Recente ao norte, e levantamentos e escavações subsequentes não mostram no norte
do Arnom nenhum a lacuna nas idades do Bronze M édio e Bronze Recente”, embora
no sul os “vestígios ainda sejam escassos”.126 Portanto, para resolver mais claramente
a questão da data do Exodo, os dados arqueológicos da Transjordânia não são mais
úteis do que outros já mencionado.
CONCLUSÃO
O estabelecimento na terra
'E . D . O ren, “O pening remarks”, in: S. A hituv; E. D . O ren, orgs., The origin o f early Israel— current
debate: biblical, historical and archaeologicalperspectives, Beer-Sheva 12 (Jerusalem: B en-G urion Univer-
sity o f the H egeb Press, 1998), p. 1.
2C £, e.g., W . G. Dever, “Is there any archaeological evidence for the Exodus?”, in: E. S. Frerichs;
L. H . Lesko, orgs., Exodus, the Egyptian evidence (W inona Lake: Eisenbrauns, 1997), p. 67-86. Para
um a refutação com petente, veja K. A. Kitchen, “Egyptians and Hebrew s, from Ra‘amses to Jericho”
(in: A hituv; O ren, orgs., The origin o f early Israel, p. 65-131).
3O ren, “O pening remarks”, p. 2.
2 14 A H I S T Ó R I A D E ISR A EL , D E A B R AÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA
4Sobre a abordagem geral que busca, à m edida do possível, reexaminar separadamente cada con
junto de dados antes de propor um a síntese, veja What did the biblical writers know, and when did they
knozo it? What archaeology can teach us about the reality o f Ancient Israel, de W . G . Dever (G rand Rapids:
Eerdm ans, 2001), em especial sua análise do m étodo de “convergência”, no cap. 4 do livro. Veja ainda
“Archaeological data on the Israelite settlement: a review o f two recent works”, tam bém de autoria de
D ever (BASO R 284 [1992], p. 88).
5Z. Kallai, “Biblical historiography and literary history: a program m atic survey”, V T 49 (1999),
p. 338-50, citação na p. 338.
6Praticam ente todos os livros de história de Israel e todos os comentários de Josué contêm algum
exame das teorias dom inantes; para um resumo recente e sucinto exposto em um comentário bíbli
co, veja Joshua, de D . M . H ow ard Jr. (N A C 5 [Nashville: Broadm an and H olm an, 1998], p. 36-40).
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 215
A teoria da conquista
A seguir são listados alguns textos relevantes sobre o assunto: R. Gnuse, “BTB review o f current schol-
arship: Israelite settlem ent o f Canaan: a peaceful internai process — part 2 ”, B T B 21 (1991), p. 109-17;
R. S. Hess, “Early Israel in Canaan: a survey o f recent evidence and interpretation”, PEQ 125 (1993), p.
125-42; B. S. Isserlin, “The Israelite conquest o f Canaan: a comparative review o f the arguments appli-
c sb \e’,P E Q 115 (1983),p. 85-94;J.M .M ille r,“Israelite history”,in: D . A. Knight; G .M .T ucker,orgs.,
The Hebrew Bible and its modem interpreters (Philadelphia: Fortress; Chico: Scholars, 1985), p. 10-2;
B. K. W altke, “The date o f the conquest”, W TJ 52 (1990), p. 181-200; M . W eippert; H . W eippert, “Die
vorgeschichte Israels in neuem L ich t”, T R u 56 (1991), p. 341-90; E. Yamauchi, “The current State of
O ld Testam ent historiography”, in: A. R. M illard; J. K. Hoffm eier; D . W . Baker, orgs., Faith, tradition,
and history: Old Testament historiography in its Near Eastern context (W inona Lake: Eisenbrauns, 1994),
p. 1-36; K. L. Younger Jr., “Early Israel in recent biblical scholarship”, in: D . W . Baker; B. T. Arnold,
orgs., Theface o f Old Testament studies: a survey o f contemporary approaches (G rand Rapids: Baker, 1999),
p. 176-206, veja esp. p. 178-91.
7“The Israelite conquest o f C anaan in the light o f archaeology”, B ASO R 74 (1939), p. 11-23.
8“Is the biblical account o f the Israelite conquest o f C anaan historically reliable?”, B A R ev 8, n. 2
(1982), p. 16-23.
9Biblical archaeology, nova edição revisada (Philadelphia: W estm inster, 1962), p. 84.
216 A H I S T Ó R I A D E ISR A EL , D E A B R AÃO A T É O P E R Í O D O PERSA
de 970 a.C., seu quarto ano teria ocorrido por volta de 966 a.C. e a data bíblica do
Êxodo seria por volta de 1446 a.C. A solução de W right, seguida por muitos desde
então, foi interpretar os 480 anos não no sentido literal, mas como representativos
de doze gerações de quarenta anos. Nesse caso, se de fato a duração aproximada de
uma geração for de vinte ou 25 anos, então o tempo entre o Êxodo e o quarto ano
de Salomão seria de trezentos anos ou menos, estabelecendo a entrada de Israel em
Canaã por volta de 1270 a.C. ou depois.
O utra passagem im portante é Juizes 11.26, em que Jefté contende com seu
adversário amonita declarando haver trezentos anos que o território da Transjordânia
estava sob a posse de Israel. A m elhor estimativa estabelece Jefté no início do
século l l , 10 o que dataria a conquista dos territórios transjordanianos no início
do século 14. E m resposta a isso, W right defendeu que o número redondo “trezen
tos” é suspeito pelo simples fato de que é próximo dos 319 anos, o número a que se
chega quando se somam os anos de opressão e de livramento registrados no livro de
Juizes antes deJefté.11 Deve-se também observar que é um personagem do relato e não
o narrador oficial quem reivindica os trezentos anos de presença de Israel na terra;
e personagens podem, é claro, errar.
Nem todos os estudiosos aceitam essas explicações de IReis 6.1 e Juizes 11.26.
Ademais, a data do século 13 apresenta outros problemas. Conforme mostrado por
J. J. Bimson, parece que muitos lugares mencionados no relato bíblico da conquista
não estavam ocupados no século 13. Além disso, ao contrário do que se chegou a
imaginar, não é possível estabelecer uma relação tão precisa entre a destruição de
cidades cananeias no século 13 e os invasores israelitas.12 O problema é que essas
destruições estão separadas por intervalos grandes demais para serem resultado de
um a única campanha, mesmo que esta fosse longa.
H oje, a m aioria dos estudiosos considera a teoria da conquista proposta por
A lbright um fracasso, o que não é de surpreender, pois, conforme observado por
L. Younger, “desde o início, a teoria [da conquista] estava condenada devido à sua
10Se iniciarmos com a data estabelecida para a ascensão de Salomão, cerca de 970 a.C., e elabo
rarm os a cronologia do período anterior, o reinado de Davi iniciaria por volta de 1010, e o de Saul,
por volta de 1030 (com base em um reinado de Saul de cerca de vinte anos — veja o cap. 8, que trata
do início da m onarquia israelita). Samuel veio depois de Eli, e o texto bíblico diz que E li julgou Israel
durante quarenta anos (IS m 4.18; possivelmente, um núm ero arredondado). Portanto, mesmo pressu
pondo alguma sobreposição entre as lideranças dos juizes (e.g., Sansão), chegamos a um a provável data
para Jefté não posterior ao início do século 11. Veja tb. K. A. Kitchen; T. C. M itchell, “Chronology o f
the O ld T estam ent” (N B D , p. 186-93).
n Biblical archaeology, p. 84.
n Redating the exodus and conquest, JS O T S 5 (Sheffield: JSO T, 1978), cap. 1. Cf. tam bém W . G.
Dever, “Israel, history o f (Archaeology and the ‘conquest’)”, in: A B D , vol. 3, p. S4S-S8, esp. a tabela
da p. 548.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 217
leitura literal e sim plista de Josué”.13Talvez seja mais correto falar de um a leitura
errada e sim plista de Josué, pois a teoria da conquista pressupõe um a enorme
destruição de bens e de povos, ao passo que o livro de Josué não dá a entender
isso. Josué fala de cidades sendo capturadas e de reis sendo m ortos, mas só m en
ciona três cidades incendiadas: Jericó, Ai e H azor.14 O fato de apenas essas três
serem mencionadas não significa que outras não possam haver sido queimadas,
mas ressalta quão teim osa é a insistência na confirmação arqueológica da destrui
ção generalizada das cidades. E claro que no caso das três cidades incendiadas é
legítim o buscar algum indício arqueológico. M as insistir em um a destruição em
larga escala em Canaã como prova da conquista israelita é proceder com uma
busca mal orientada, com base em um a leitura equivocada dos textos. Além do
mais, estudos comparados sugerem que invasões e conquistas violentas, até m es
mo quando bem docum entadas, “nem sempre [podem] ser reconhecíveis com
base em indícios arqueológicos”.15
de Israel em Canaã não foi repentina nem agressiva, mas, sim, bem gradual e, em
grande parte, pacífica — pelo menos no início. Os imigrantes eram povos nômades
ou seminômades que foram chegando aos poucos durante um longo período (talvez
de séculos). A teoria básica de A lt foi adotada por M artin N oth, que acrescentou
a ela a ideia de que o Israel primitivo consistia em um a anfictionia de 12 tribos,
a saber, um a federação de tribos unidas pela lealdade a um a divindade comum
(no caso, Yahweh) e a um centro comum de adoração. Para N oth, o relato da “con
quista” no livro de Josué era em grande parte de natureza etiológica — uma etiologia
é um a história cujo principal objetivo é explicar a existência de certos aspectos pre
sentes em uma região ou de determinados costumes, nomes ou crenças. Os dados
arqueológicos das destruições do século 13 não tinham quase nenhum a importância
para A lt e Noth; A lt atribuiu a boa parte do período da descoberta arqueológica
uma data mais recuada, e N oth, embora não negasse as destruições, relutou em
atribuí-las à chegada dos israelitas a Canaã.17
A teoria da infiltração pacífica é criticada em vários aspectos, especialmente a
teoria de N o th acerca de uma anfictionia israelita. Por estar baseada em modelos
gregos clássicos, a hipótese da anfictionia pareceu anacrônica e em desarmonia
com o testem unho bíblico de que o Israel primitivo estava unido por vínculos
tanto étnicos quanto religiosos. A teoria da infiltração pacífica tam bém é acusada
de ter uma ideia inadequada de como a comunidade pastoril realmente funciona.18
Defensores mais recentes dela a estão ajustando de m odo a reconhecer a ocor
rência de relações simbióticas entre populações estabelecidas e nômades que
coexistiam mais ou menos continuam ente na mesma terra.19 Dessa maneira, a
ideia de “pacífica” permanece, mas a “infiltração” é questionada, o que nos leva ao
modelo seguinte.
17E m um sentido mais amplo, parece que N o th aceitou aos poucos a im portância dos dados
arqueológicos em questões de probabilidade histórica; veja R. de Vaux, “The H ebrew patriarchs in
history” (reimpresso em V. P. Long, org., Israels past in present research: essays on ancient Israelite histo-
riography, SBTS 7 [W inona Lake: Eisenbrauns, 1999], p. 470-9, esp. p. 475-7; original em francês de
1962-1963; tradução em inglês de 1972).
18Para um breve resumo das críticas às ideias dos principais proponentes da teoria, veja Younger,
“Early Israel”, p. 180-1.
19Veja, e.g., V. Fritz, “C onquest or settlement? l h e early Iron Age in Palestine”, B A 50 (1987),
p. 84-100. E m bora adote ideias da hipótese da infiltração, na verdade Fritz entende que sua abordagem
é um a alternativa a todas as hipóteses dom inantes — a denom inada hipótese da invasão, a hipótese da
infiltração e a hipótese da revolução (p. 84). Baseando-se especialmente em dados arqueológicos, ele
defende um a “hipótese da simbiose” (p. 98-9). Q uanto aos dados textuais, afirma sem rodeios que “Josué
não tem nenhum valor histórico” (p. 98).
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 219
Enquanto, para as duas teorias analisadas até aqui, o “Israel primitivo” entrou em
Canaã vindo de fora (modelos exógenos), as duas seguintes entendem que o “Israel
primitivo” surgiu de populações já existentes dentro da terra de Canaã (modelos
endógenos). A primeira das teorias endógenas é a hipótese da revolta campesina.
Conforme o nome deixa implícito, a hipótese sustenta que o surgimento de Israel
em Canaã não se deu basicamente pela conquista nem pela infiltração pacífica, mas
sim por transformações culturais internas. George Mendenhall apresentou essa teoria
em um artigo de 196220 e, um a década depois, a ampliou, publicando-a em livro.21 Em
seus escritos, M endenhall não nega completamente a ideia da conquista, mas entende
que a maioria dos “conquistadores” era de origem local, ou seja, cananeia:
Para M endenhall, o vínculo que m antinha “Israel” unido não era a etnicidade (laços
consanguíneos), mas “o fator religioso” 24
P ara o h o m em m oderno, essa ênfase bíblica nos “atos de D eu s” parece ser a p ró p ria an
títese da história, pois é d en tro do arcabouço de organizações econôm icas, sociológicas
e políticas que hoje em dia ten tam o s en ten d e r a nós m esm os e, p o r conseqüência, o
h o m em antigo.25
25Ibidem , p. 66.
26“A ncient Israels hyphenated history”, in: D . N . Freedman; D . Frank Graf, orgs., Palestine in
transition: the emergeiice o f ancient Israel (Sheffield: A lm ond Press, 1983), p. 91-103; citação na p. 99.
27N . K. G ottw ald, The tribes o f Yahweh: a sociology o f the religion o f liberatedIsrael, 1250— 1000 B. C.
E. (Maryknoll: O rbis Books, 1979) [edição em português: A s tribos de Javé: uma sociologia da religião do
Israel liberto 1250-1050 a.C. (São Paulo: Paulinas, 1986)].
28Procusto era um bandido da A tica (Grécia) que forçava suas vítimas a se deitarem em um a de
duas camas, um a curta e outra longa, estirando-lhes os m em bros ou decepando-lhes as pernas, para que
suas medidas coincidissem exatam ente com as do móvel. O uso da expressão pelo autor citado indica o
reducionismo resultante da imposição da leitura marxista ao texto bíblico. (N. do E.)
29“A ncient Israels hyphenated history”, p. 91.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 221
procurar entender a questão, antes de mais nada e acima de tudo, com base
no que anteriorm ente denom inam os de categorias de “conjunto interm ediário”
(segundo nível), que são as categorias de “organizações econômicas, sociais
e políticas”.30
E ntre outras críticas à hipótese da revolta — em especial na form a desenvolvida
por G ottw ald — incluem -se as quatro seguintes: a aversão nutrida entre o urbano
e o rural, pressuposta pela teoria, não é necessariamente corroborada pela pesquisa
antropológica em que, com frequência, a regra é a simbiose; o nomadismo
necessariamente não implica nem requer o igualitarismo; a sedentarização não
é necessariamente um avanço em relação ao nomadismo; e a retórica “imperialista”
do livro de Josué, tão típica de outros textos do A ntigo O riente Próximo que
relatam conquistas, parece ser contraditória, caso o livro seja o reflexo literário de
um a revolução campesina igualitária.31
Q uanto à questão sobre o que m antinha o Antigo Israel unido — compromisso
religioso ou etnicidade — , parece sem fundamento e desnecessária a insistência de
M endenhall no primeiro aspecto, a ponto de excluir o aspecto étnico. M esm o que
estivesse certo ao afirmar que “foi somente quase mil anos depois de Moisés que a
comunidade religiosa finalmente adotou a ideia de que a etnicidade ou a raça era
o fundamento da comunidade religiosa e a base da identidade de cada um, decisão
ocorrida quando Esdras e Neemias obrigaram os judeus a se divorciarem de esposas
não judias”,32 isso não negaria o quadro bíblico da origem étnica de Israel. Não há
nada inerentemente improvável na noção de que Israel começou como uma família
que, à medida que foi crescendo, tornou-se o núcleo ao qual outras pessoas foram
incorporadas — na época do Êxodo (Êx 12.38), possivelmente antes e certamente
depois. Conforme destacado por R. Hess, “a possibilidade de grupos estrangeiros
haverem se unido a Israel durante a peregrinação e depois de sua entrada na terra
talvez esteja registrada nas referências aos midianitas (Nm 22-25), aos queneus
(Jz 4.11; IS m 15.6), aos gibeonitas (Js 9) e a outros”.33 Nem mesmo a natureza
m ultiétnica que Israel passou a ter deveria nos impedir de perceber o fato de que
o casamento com “estrangeiras” foi repetidamente proibido; em vez disso, deveria
apenas nos lembrar de que o motivo dessas proibições não era racial, mas religioso,
conforme deixam claro passagens como Êxodo 34.15,16:
N ão faças aliança com os h ab itan tes da terra, p ara que, q uando se p ro stitu írem seguindo
seus deuses e a eles sacrificarem , tu não sejas convidado p o r eles e não com as do seu
sacrifício. N ão tom es p ara teus filhos m ulheres entre as filhas deles, p ara que, quando
elas se prostituírem com os deuses deles, não levem tam b ém teus filhos a se p ro stitu ir
com esses deuses.
aí p o d e haver algum a verdade h istó ric a co ncreta, visto que, d en tre os g rupos do sul
que sabem os que escreveram boa p a rte da B íblia H eb raica, existe u m que é conhecido
com o “casa (trib o ) de Jo sé ”, da qual m uitos p o d e m te r de fato p ro ced id o do E gito.
Q u a n d o os in teg ra n te s desse g ru p o n arra ra m a h istó ria d a o rig em de Israel, é n atu ra l
que te n h a m pressuposto que falavam em n o m e de “to d o Israel” (com o a B íblia e m
prega o term o ), m u ito em b o ra a m aio ria dos ancestrais dos israelitas fosse da p ró p ria
região, isto é, can an eu s.42
Afirmações como essa revelam certa afinidade, reconhecida ou não, com a ideia
de M endenhall sobre a composição do Israel primitivo — isto é, basicamente um
grupo de cananeus aos quais se juntou um contingente bem pequeno de pessoas
recém-chegadas — , quaisquer que sejam as especulações sobre como o processo de
fato ocorreu.
...o surg im en to do Israel p rim itiv o não foi u m a c o n te cim en to sin g u lar n a h istó ria da
P alestina. A o con trário , foi u m a fase específica de processos cíclicos socioeconôm icos
e dem ográficos de lo n g a duração que tiveram início n o q u a rto m ilênio a.C . A onda
de estabelecim en to s nas regiões m o n tan h o sas ao final do segundo m ilên io a.C . [i.e.,
o florescim ento de aldeias n a região m o n ta n h o sa cen tral n a Id ad e do F erro I] não
passou de m ais u m cap ítu lo nas m ud an ças ocorridas ao lo n g o do continuum socioe-
conôm ico típico do O rie n te P róxim o, em que se altern av am o m o d o de subsistência
sedentário e o p asto ril.47
43D ois de seus estudos mais recentes são The Bible unearthed, mencionado anteriorm ente e em
coautoria com Silberman, e “The rise o f early Israel: archaeology and long-term history” (in: A hituv;
O ren, orgs., Origin o f early Israel, p. 7-39).
44"The rise o f early Israel”, p. 10.
45Veja, e.g., I. Finkelstein, The archaeology o f the Israelite settlement (Jerusalem: Israel Exploration
Society, 1988); I. Finkelstein; N . N aam an, orgs., From nomadism to monarchy: archaeological and historical
aspects o f early Israel (W ashington: Biblical Archaeology Society, 1994).
46"The rise o f early Israel”, p. 24-5.
47Ibidem , p. 8.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 225
Com a adoção desses critérios é de se esperar que o Israel primitivo não tenha deixado
quase nenhuma marca arqueológica, exceto talvez no que se refere a suas “tradições” e do
seu “mundo cognitivo”. Mais adiante em seu texto, Finkelstein menciona dados arqueo
lógicos indicativos de que, nas aldeias da região montanhosa durante a Idade do Ferro I,
“porcos eram, aparentemente, um tabu” e reconhece que esse pode ser de fato um indi
cador étnico, como Stager havia sugerido alguns anos antes.53 É preciso fazer muito mais
escavações na região montanhosa antes de se tirar conclusões definitivas,54mas o aparente
tabu relacionado aos porcos pode muito bem sugerir tanto “tradições” culinárias cultuais
quanto o “mundo cognitivo” que as sustentava. Voltaremos mais adiante a essa questão.
48Ibidem , p. 26.
49Ibidem , p. 25.
^ E a r ly Israel”, p. 129.
51Ibidem , p. 130.
“ Finkelstein, “The rise o f early Israel”, p. 16.
53L. E. a<ta.gti,Ashkelon discovered (W ashington: Biblical Archaeology Society, 1991), p. 9,19, 31.
34O bservem -se as advertências de cautela que Younger faz em “Early Israel” (p. 196).
2 26 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O P ER S A
E m term os teóricos, os estudiosos p o d em utilizar duas ferram entas para decifrar esses
enigm as: texto e arqueologia. E m anos recentes, a im portância da fonte bíblica, que no
passado dom inou a pesquisa sobre o surgim ento do A ntigo Israel, dim inuiu notavelm ente.
A data relativam ente tardia do texto e/o u de sua com pilação — no sétim o século a.C .
e m ais tarde — e seu com prom isso teológico/ideológico/político to rn a m -n o irrelevante
com o testem unh o histórico direto. E claro que, em bora reflita as convicções e os in te
resses religiosos de pessoas que viveram séculos depois que os supostos acontecim entos
ocorreram , é possível que alguns rudim entos históricos estejam ocultos no texto.56
Josué e Juizes, não são fato seguro (e de qualquer maneira não invalidariam necessaria
mente a possibilidade de um texto transmitir informação histórica);58 2) a perspectiva
teológica não compromete necessariamente a utilidade histórica dos textos, desde que
esse viés seja entendido e analisado (afinal, “toda produção escrita da história [antiga
ou moderna] exige uma análise crítica de nossa leitura”59); 3) com frequência, as conclu
sões tiradas de descobertas arqueológicas não são de forma alguma óbvias, o que vale
tanto para pesquisas regionais de superfície quanto para escavações de sítios.60 Dessa
forma, continuamos a afirmar a importância vital dos textos bíblicos e a necessidade de
uma compreensão correta de sua natureza e conteúdo gerais.
Segunda, não está totalmente evidente que qualquer um a das teorias básicas
tenha sido justa com o testemunho bíblico — embora cada um a possa, de fato, haver
compreendido algum aspecto dele.61 Por exemplo, é inegável que o retrato bíblico
do surgimento de Israel em Canaã envolve conquista militar, mas, com exceção da
primeira teoria, nenhum a dá muito espaço (se é que chega a dar algum) para esse
aspecto. M esm o a primeira, a “teoria da conquista” de Albright e outros, pressupõe
um tipo de conquista que não tem apoio em uma leitura cuidadosa dos textos bíblicos.
Nossa tarefa é, portanto, voltar aos textos e tentar lê-los corretamente.
Os textos bíblicos mais relevantes para a questão do surgimento de Israel em
Canaã são os livros de Josué e Juizes. E claro que limitações de espaço não permitem
um exame completo dessas duas obras, de modo que nossas leituras serão necessaria
mente seletivas e sugestivas. Assim que formarmos uma ideia do quadro da história
inicial de Israel em Canaã descrito pelos textos bíblicos, nos concentraremos nos textos
extrabíblicos potencialmente relevantes. Apenas quando obtivermos uma ideia correta
do quadro apresentado pelos textos é que nos voltaremos para os dados materiais.
Conforme observamos anteriormente, da perspectiva metodológica há muito
que se pode falar a favor da análise independente de cada tipo de dado. Por exemplo,
em princípio, nossa leitura dos textos deve ser feita, inicialmente, sem qualquer
referência aos dados materiais e vice-versa. O objetivo é evitar que os resultados
de um a área de investigação influenciem prematuramente os resultados da outra.
Por mais lógica e desejável que seja essa estratégia, executá-la na prática é quase
impossível, exigindo que os estudiosos façam um a compartimentalização imensa de
seu pensamento ou então simplesmente não tenham conhecimento prévio algum
da área que não está sendo examinada em determinado momento. O melhor que
se pode fazer é tentar evitar conclusões apressadas sobre os dados de um a área com
base no conhecimento prévio de outra.
Sendo assim, por que começar com os dados textuais, bíblicos e extrabíblicos?
Tam bém seria possível começar com os dados arqueológicos, desde que nos
limitássemos a catalogar os dados materiais (talvez form ando juízos conjecturais
sobre o contexto social e a m aneira geral de viver) e resistíssemos com vigor
à tentação de começar a escrever os próprios “relatos” dos acontecimentos e
pessoas específicas. Com o geralm ente se observa, os dados materiais sozinhos
são inadequados para elaborar um relato, exceto talvez para a elaboração de
um relato bem genérico sobre a longue durée.62 O estudo dos dados materiais
é mais apropriado para o estabelecimento de condições gerais e para avaliar a
plausibilidade de relatos narrados nos textos disponíveis. Se nosso interesse é
a história humana e não apenas a história natural ou social geral, os textos se
revelam inestimáveis. Portanto, tendo em vista especialmente nossa consideração
pelo testem unho, é apropriado começarmos com os textos. Eles fornecem um
relato, ou vários relatos, cuja plausibilidade podemos verificar à luz de quaisquer
vestígios materiais conhecidos.
Desde o último quarto do século 20, tem havido um florescimento do interesse nos
estudos literários holísticos de muitas partes da Bíblia, sendo esse interesse talvez
mais acentuado na área das narrativas bíblicas. Essa mudança literária está geran
do percepções novas que se refletem não apenas em comentários recentes sobre
Josué e Juizes, mas tam bém em vários estudos especializados. U m a amostra de
estudos significativos que cobrem tanto Josué quanto Juizes precisaria incluir, em
ordem de publicação, obras de R. Polzin,63 D. M . G unn,64 L. Alonso Schõkel,65 K. L.
62A expressão longue durée designa a abordagem histórica adotada pela Escola Francesa dos Anais,
segundo a qual as estruturas históricas de longa duração recebem prioridade sobre a descrição e a aná
lise dos eventos. (N. do E.)
a Moses and the Deuteronomist: a literary study o f the Deuteronomistic history (N ew York: Sea-
bury, 1980).
64"Joshua and Judges”, in: R. A lter, F. Kerm ode, orgs., The literary guide to the Bible (Cam bridge: The
Belknap Press o f H arvard University, 1987), p. 102-21 [edição em português: Guia literário da Bíblia
(São Paulo: Unesp, 1997)].
65“Narrative art in Joshua—-Judges— Samuel— Kings”, in: Long, org., IsraeVs past, p. 255-78 (texto
publicado originalm ente em espanhol: “Arte narrativa en Josué—Jueces— Samuel— Reyes”, Estúdios
Bíblicos 48 [1990], p. 145-69).
0 E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 229
“ “The configuring o f judicial preliminaries: Judges 1.1— 2.5 and its dependence on the book o f
Joshua”, J S O T 68 (1995), p. 75-92.
67“Joshua and Judges”, in: L. Ryken; T. Longm an III, orgs., A complete literary guide to the Bible
(G rand Rapids: Z ondervan, 1993), p. 137-50.
6S“D e opbouw van h et boekjozua”. Dissertação de Teologia (Leuven: University o f Brussels, 1990).
mA fm clio n a l discourse grammar o f Joshua: a computer-assisted rhetorical structure analysis, C onB O T 40
(Stockholm : Alm qvist & W iksell, 1990); veja tam bém idem, “The miraculous gram m ar o f Joshua 3— 4:
C om puter aided analysis o f the rhetorical and syntactic structure”, in: R. D . Bergen, org., Biblical H e-
brew and discourse linguistics (Dallas: Sum m er Institute o f Linguistics, 1994), p. 300-19.
70Ancient conquest accounts: a study in ancient Near Eastern and biblical history writing, JS O T S 98
(Sheffield: JSO T, 1990).
' !E very promisefulfilled: contestingplots in Joshua (Louisville: W estm inster/John Knox, 1991).
72“The com position o f the book o f Judges ”, Eretz-Israel 16 (1982), p. 70-79.
7>,Ihe book o f the Judges: an integrated reading, JS O T S 46 (Sheffield: JSO T , 1987).
14The triumph ofirony in the book o f Judges, JS O T S 68 (Sheffield: A lm ond Press, 1988).
75“'Ihe book o f Judges: literature as politics ”,JB L 108 (1989), p. 395-418.
76“E cho narrative technique in H ebrew literature: a study in Judges 19”, W T J 52, n. 2 (1990),
p. 325-41; idem , “W ill the real G ideon please stand up? Narrative style and intention in Judges
6— 9”,J E T S , vol. 40, n. 3 (1997), p. 353-66; idem , Judges, R uth, N A C 6 (Nashville: Broadm an and
H olm an, 1999).
77“Narrative criúcism: H um an purpose in conflict w ith divine presence”, in: G. A. Yee, org., Judges
and method: new approaches in biblical studies (M inneapolis: Fortress, 1995), p. 17-44.
1’:The rhetoric o f the book o f Judges, V T S 63 (Leiden: Brill, 1996).
75'lhe book o f Judges: the art o f editing (Leiden: Brill, 1999).
80Cf. J. Barton, “H istorical criticism and literary interpretation: Is there any common ground?”,
in: S. E. Porter; P. Joyce; D. E. O rton, orgs., Crossing the boundaries: essays in biblical interpretation in
honour o f Michael D. Goulder (Leiden: Brill, 1994), p. 3-15; H . H . Klement, “M odern literary-critical
m ethods and the historicity o f the O ld T estam ent”, in: Long, org., IsraeVs past, p. 439-59 (original
m ente em alemão: “D ie neueren literaturwissenschaftlichen M ethoden und die H istorizitàt des A lten
Testam ents”, in: G . Maier, org., Israel in Geschichte und Gegenwart (W uppertal/G iessen und Basel: R.
Brockhaus V erlag/Brunnen Verlag, 1996], p. 81-101).
230 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA
não existem. Se, por exemplo, alguém ignorasse a natureza hiperbólica do resumo
da campanha ao sul de Josué encontrado em Josué 10.40 — Josué “não deixou uma
pessoa sequer; mas tudo o que tinha fôlego destruiu totalmente” — então a desco
berta, seja pela exploração arqueológica, seja pela leitura de outros textos bíblicos
(inclusive outros trechos de Josué!), de que muitos cananeus sobreviveram daria a
impressão de haver aí um a contradição. Contudo, o problema não está no texto, mas
em sua interpretação. É difícil vislumbrar qualquer estudioso sério da Bíblia fazen
do essa confusão, mas, em m enor escala, erros assim são cometidos com frequência.
Um exemplo seria a afirmação bastante repetida de que Josué e Juizes apresentam
relatos contraditórios sobre o surgimento de Israel em Canaã. Logo trataremos
dessa questão, mas primeiro devemos examinar cada livro separadamente, procu
rando obter um a visão geral de sua estrutura e mensagem central.
O livro de Josué
Início efim
85E im portante observar de passagem que o livro de Juizes começará com as palavras “Depois da
m orte de Josué”.
232 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O P ER S A
Olhando para o fim do livro, o tem a da dádiva divina da terra como cumpri
m ento da promessa continua dominante. Josué, agora “já [...] velho, de idade muito
avançada” (23.1), convoca “todo o Israel” — com “os anciãos, os chefes, os juizes e
os oficiais” servindo como representantes do povo (23.2) — e lembra quão fiel Deus
havia sido ao dar a terra ao povo: “sabeis no coração e na alma que não falhou uma
só palavra de todas as boas coisas que o S e n h o r , vosso Deus, falou a vosso respeito;
nenhum a delas falhou, mas todas se cumpriram” (23.14). O capítulo 24 prossegue
com a mesma ênfase:
E n tã o eu vos trouxe à terra dos am orreus, que habitavam além do Jordão e que b atalh a
ram contra vós; m as eu os entreguei [lit. dei] na vossa m ão e vos apropriastes da terra
deles; assim eu os d estruí de diante de vós (v. 8).
E eu vos dei u m a terra em que não trabalhastes, e cidades que não edificastes, onde
agora habitais; e comeis de vinhas e de olivais que não plantastes (v. 13).
A p a rtir desse m om ento, a ênfase sobre quem deve ser adorado recebe destaque
rapidam ente, cujo clímax é nada menos do que dezesseis ocorrências do verbo
“servir” no capítulo 24 (v. 2,14 [três vezes], 15 [quatro vezes], 16,18,19,20,
21,22,24,31). Tendo reunido o povo em Siquém para renovar a aliança (de forma
bastante parecida com a que M oisés, antes de morrer, renovou a aliança com
o povo, conform e narrado no livro de D euteronôm io), Josué expõe a questão
claram ente. O povo deve escolher a quem servirá. Josué lhes dá um a incum bên
cia: “Agora, tem ei o S e n h o r e cultuai-o com sinceridade e com verdade; jogai
fora os deuses a que vossos pais cultuaram além do Rio e no Egito. C ultuai o
S e n h o r ” ( v . 14). C ontudo, ele não os obrigará: “M as, se vos parece m al cultuar
o S e n h o r , escolhei hoje a quem cultuareis [...]. M as eu e m inha casa cultuare
mos o S e n h o r ” ( v . 15). O povo responde com firmeza dizendo “Nós tam bém
cultuarem os o S e n h o r . . . ” (v. 18), no entanto, Josué continua preocupado, dei
xando im plícito que talvez o povo não esteja entendendo todas as implicações
da lealdade exclusiva exigida dos que querem servir ao S e n h o r (“Não podereis
cultuar o S e n h o r , porque ele é D eus santo, é Deus zeloso”, v. 19). Q uando,
assim mesmo, o povo insiste — “Não! A ntes, cultuarem os o S e n h o r ” ( v . 21)
—■Josué diz que eles seriam testem unhas contra si mesmos de que escolheram
servir ao S e n h o r ( v . 22). Por fim, Josué ordena ao povo que comece a agir em
conform idade com o que professaram: “Agora, jogai fora os deuses estrangeiros
que há no meio de vós; e inclinai o coração ao S e n h o r , D eus de Israel” (v. 23).
A resposta do povo, que parece excelente à prim eira vista — “C ultuarem os o
S e n h o r , nosso D eus, e obedecerem os à sua voz” (v. 24) — , soa um pouco pres-
sagiadora quando percebemos que ela om ite a referência a jogar fora os “deuses
estrangeiros”.86 A inda mais pressagiadora é a últim a ocorrência do verbo “servir”
no livro de Josué: “Israel cultuou o S e n h o r todos os dias de Josué e todos os
dias dos anciãos que sobreviveram a Josué e que conheciam toda a obra que o
S e n h o r havia feito em favor de Israel” (v. 31). Sem afirmar de m odo direto,
Estrutura
Uma das análises mais completas e perspicazes da estrutura geral do livro de Josué foi
formulada por H . J. Koorevaar em sua tese de doutorado, cujo título em holandês é
“D e opbow van het boek Jozua” [A estrutura do livro de Josué].87 Koorevaar divide o
livro em quatro seções principais, cada uma caracterizada por uma palavra-chave. As
quatro seções são: 1.1— 5.12; 5.13— 12.24; 13.1— 21.45; 22.1— 24.33. As palavras-
-chave são, na ordem em que aparecem, “atravessar” o Jordão, “tom ar” a terra, “dividir”
a terra e “servir” ao Senhor. N o hebraico, as palavras-chave que formam uma parelha
apresentam correspondência no som e na aparência: abar (“atravessar”) se parece com
‘ãbad (“servir”), e lãqah (“tom ar”) se parece com hãlaq (“dividir”).
Cada um a das três primeiras seções principais começa com um a iniciativa
divina. Por ordem de Deus, Israel atravessa o Jordão, toma a terra (começando por
Jericó) e divide os territórios conquistados. E m contraste, a quarta e última seção
não começa com um a iniciativa divina. Em vez disso, em cada um dos três últimos
capítulos, Josué toma a iniciativa, encarregando o povo de servir o Senhor.
As quatro seções principais também têm finais distintos. A seção “atravessando”
[o Jordão]-para-dentro-da-terra termina em 5.1-12 com o restabelecimento do povo
peregrino de Deus na terra da promessa. Seu relacionamento pactuai com Javé é rea
firmado com a circuncisão dos que haviam nascido no deserto. O ato de os israelitas
serem redimidos da escravidão é indicado pela restauração da celebração da Páscoa.
Nesse momento, acaba o maná que os havia sustentado em sua peregrinação. Israel
chegou! A seção “tomando”-a-terra termina em 11.16— 12.24 com resumos do su
cesso de Josué na execução de sua missão militar, listando não apenas territórios, mas
também reis conquistados. A seção “dividindo”-a-terra termina em 21.43-45 com
uma confissão retumbante de que Deus foi fiel à sua promessa: “Nenhuma palavra
falhou de todas as boas coisas que o S e n h o r prometera à casa de Israel! Tudo se cum
priu!” (v. 45). Deus fez a sua parte. Desse modo, na quarta seção, “servindo”-o-Senhor,
a atenção se volta para a questão da resposta do povo ao que Deus fez. Essa seção final
termina em 24.29-33, em que, conforme observado anteriormente, ficamos sabendo
que “Israel cultuou o S e n h o r todos os dias de Josué e todos os dias dos anciãos que
sobreviveram a Josué” (v. 31). E depois? Bem, Juizes conta o que aconteceu.
O enredo (histórico)
valor algum como fonte histórica? Alguns afirmariam isso, mas a esta altura nossa
posição já deve estar bem clara. Nesta seção, nossa tarefa é acompanhar o enredo da
forma mais simples e breve possível, observando em particular os aspectos do relato
que possam ser testados “com base”.
A ação começa no capítulo 1, com Josué, agora que Moisés morrera, sendo
encarregado de assumir o m anto da liderança. Ao ser comissionado, sua prim eira
providência é m andar espiões para o outro lado do Jordão a fim de fazerem um
reconhecimento da terra, em particular de Jericó. No entanto, a presença dos es
piões em Jericó é im ediatam ente descoberta e, depois de escaparem por pouco
e passarem algum tempo nas montanhas, voltam com apenas duas informações:
1) a palavra de que “certamente o S e n h o r nos tem entregue nas mãos toda esta
terra” (2.24; o que não é de surpreender em face de todas as promessas feitas no
cap. 1); 2) o fato de que Israel, por meio dos espiões, havia feito um pacto com a
prostituta cananeia Raabe (2.8-21; algo um tanto surpreendente, tendo em vista a
missão de Israel). Em seguida Josué lidera toda a população na travessia do Jordão
(caps. 3— 4), depois que “as águas que desciam pararam e ficaram amontoadas,
muito longe, à altura de Adã, cidade que está junto a Zaretã; e as águas que desciam
ao mar da Arabá, que é o mar Salgado, foram de todo interrom pidas” (3.16). Assim
que chegaram à terra de Canaã, as primeiras ações dos israelitas foram: erigir um
memorial que registrasse a fidelidade de Yahweh em trazê-los à terra (4.19-24) e
renovar seu relacionamento pactuai com Yahweh mediante o restabelecimento da
circuncisão e da Páscoa (cap. 5).
A prim eira ação m ilitar resulta em um a vitória im pressionante sobre
Jericó, no vale do Jordão (cap. 6). Tendo sido posta sob condenação (6.17),
a cidade é incendiada (6.24). Em seguida, os israelitas fazem um ataque inicial
m ente desastroso contra a cidade de Ai, que é então corrigido após a purificação
do acam pam ento israelita do pecado de Acã (caps. 7— 8). Ai tam bém é incen
diada (8.28).
A seção final do capítulo 8 descreve um a cerimônia de renovação da aliança nos
montes Ebal e Gerizim, nos arredores de Siquém. Considerando a distância entre
Ai e Siquém (c. 32 km) e a aparente facilidade com que Josué conseguiu entrar na
região sem precisar lutar, comentaristas ponderam se o posicionamento literário
da cerimônia se deve mais a considerações teológicas do que cronológicas. Essa
conclusão é possível, especialmente pelo fato de que a seção é uma “perícope flutuante”,
aparecendo em vários e diferentes lugares na tradição manuscrita.88 Deve-se, con
tudo, observar que
88Veja R. D . Nelson, Joshua: a commentary, O T L (Louisville: W estm inster John Knox, 1997),
p. 116.
2 36 A H I S T Ó R I A D E ISR A EL , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O PERSA
S iquém tin h a tradicio n alm en te u m valor religioso e pactuai p ara Israel que rem ontava
a A braão. P or exemplo, A braão construiu u m altar ao S e n h o r depois que o S e n h o r
lhe apareceu ali (G n 12.6,7). A li Jacó com prou terras e tam b ém erigiu u m altar (G n
33.18-20) e, p o r fim , a cidade foi o local de residência da fam ília (G n 35.4; 3 7 .1 2 -1 4 ).89
Por isso, não é de surpreender que as instruções dadas por Moisés em Deuteronôm io
27.1-8, que constituem os antecedentes do relato que estamos examinando, focali
zaram justam ente essa região. E tam bém não é necessariamente surpreendente que
o livro de Josué não faça menção alguma a Siquém sendo tom ada à força; “é possível
que os siquemitas tenham sido amistosos com os israelitas, talvez devido a vínculos
anteriores entre a cidade e Israel”.90 Portanto, na seção final do capítulo 8, Josué
constrói um altar no M onte Ebal seguindo as instruções recebidas de Moisés (v. 30),
oferece sacrifícios ali (v. 31), copia em suas pedras (ou em outras) a “lei de M oisés”
(v. 32)91 e, então, lê “todas as palavras da lei, a bênção e a maldição, conforme tudo o
que está escrito no livro da lei” (v. 34).92
A notícia das primeiras vitórias militares de Israel provoca reações diferentes
entre os cananeus. A maioria começa a se unir para resistir (9.1,2). M as um grupo de
aldeões da região montanhosa, os gibeonitas, decide por um curso de ação diferente e,
convencendo os líderes de Israel de que é de um país distante, consegue ludibriá-los
e os faz estabelecer uma aliança de paz (cap. 9). Preocupado com as primeiras vitórias
de Israel e com a deserção de Gibeão, o rei de Jerusalém se une aos reis de Hebrom,
Jarmute, Laquis e Eglom para dar uma lição nos gibeonitas (cap. 10). Israel é cha
mado para sair em defesa de seus aliados cananeus(!) e obtém uma vitória esmagadora
contra os cinco reis, que são perseguidos e finalmente mortos. Após a derrota e a
execução dos reis da coalizão, Josué e “todo o Israel” se dirigem rapidamente para
o sul, derrotando pelo menos sete cidades; Maqueda, Libna, Laquis, Gezer, Eglom,
Hebrom e Debir (10.29-39). Nos breves resumos da tomada dessas cidades, dá-se
bastante ênfase a matar as populações à espada e a não deixar nenhum sobrevivente,
mas não há quase nada que dê a entender que as próprias cidades foram destruídas.
89Howard,/oí/5>&«, p. 213.
90Ibidem , p. 213, nota 130, que apresenta um a bibliografia e um a análise mais aprofundada
desse assunto.
91N ão está totalm ente claro em Josué 8 ou em D euteronôm io 27 se as pedras que foram caiadas e
inscritas são as mesmas do altar. E m D euteronôm io 27, M oisés dá instruções para erigir pedras grandes,
caiá-las e escrever nelas (v. 2-4). N o v. 5, ele determ ina a construção de um altar e no v. 6 descreve o tipo
de pedras a serem usadas, o que sugere um segundo conjunto de pedras. N o entanto, no v. 8, M oisés
volta a tratar da ordem de escrever “naquelas pedras” “todas as palavras desta lei”.
92N o v. 34, a expressão apositiva “bênção e maldição” parece delim itar o sentido de “todas as pala
vras” (cf. Ex 20.1), mas o v. 35 talvez sugira um a leitura mais completa.
O ESTABELECIM ENTO NA TERRA 237
9SPara um a análise diversificada das diferentes maneiras que palavras como “conquistar” e “con
quista” são usadas não apenas na Bíblia, mas tam bém em relatos de conquista provenientes do A ntigo
O riente Próximo e de tem pos mais modernos, veja Younger, Ancient conquest accounts, p. 243-4.
96Para um a análise de detalhes, veja Yíess,Joshua, p. 216-7.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 239
Josué veio e exterminou [lit. cortou fora] os anaqueus” (v. 21).97 A pertinência dessa
informação, aparecendo precisamente nesse ponto do desenvolvimento do livro de
Josué, fica clara quando nos lembramos de que foi o tem or de Israel aos anaqueus
— diante de quem os israelitas liderados por Moisés se sentiram como “gafanhotos”
(Nm 13.33) — que os impediu de entrar anteriormente na terra prometida (veja N m
13.27,28,33; 14.1,2 no contexto). Em Josué 11.21, detalhes adicionais informam o
nome de regiões (montanhosas) e de cidades (Hebrom, Debir, Anabe) de onde os
anaqueus foram erradicados. A luz de notas posteriores que afirmam que Calebe
fez com que os anaqueus fossem expulsos de Hebrom (Js 15.13,14) e que Otoniel
tomou D ebir (Js 15.15-17),98 alguns afirmam que existe neste ponto uma discrepân
cia histórica. È mais provável, porém, que no resumo geral e transicional de Josué
11.21-23, Josué esteja recebendo o crédito dos resultados finais de processos a que ele
deu início. O fato de 11.23 servir de ponte confirma essa possibilidade, passagem que
não apenas atribui a Josué a tomada de “toda esta terra”, mas também a entrega dela
“como herança a Israel, dividindo-a segundo as suas tribos” — embora este último
aspecto somente será descrito na segunda parte do livro de Josué.
A principal função literária não apenas do versículo 23, mas de todo o resumo
de 11.16-23 é proporcionar uma ponte entre o tema da conquista, que domina a
primeira metade do livro,99 e a divisão de territórios e cidades conquistadas, que
domina a segunda metade. A principal mensagem teológica é que Deus, tendo
prometido dar a terra ao povo liderado por Josué, cumpriu a promessa. “ O S e n h o r ,
o Deus de Israel, batalhava por Israel” (10.42), conforme declarado no resumo
anterior no final do capítulo 10, e “nenhum a palavra falhou de todas as boas coisas
que o S e n h o r prometera”, conforme ressaltado no resumo posterior de 21.45.
A principal ideia histórica é que a guerra de conquista havia sido bem-sucedida —
“a terra descansou da guerra” (11.23) — e agora a ocupação pode ter início.
Contudo, antes que a ocupação comece de verdade, é preciso dividir a terra e
distribuí-la às várias tribos. Esse processo começa no capítulo 13, depois da lista de
9/E m outras passagens do AT, os anaqueus são associados aos nefilins (N m 13.33) e aos refains
(D t 2.11) e são apresentados como um a raça de “gigantes” (veja R. S. Hess, “Nephilim ”, in: A B D , vol. 4,
p. 1072-3. U m a referência bíblica intrigante encontra-se no papiro egípcio Anastasi I, do século 13, que
“descreve beduínos em Canaã, ‘alguns dos quais m edem quatro ou cinco côvados do nariz até os pés e
têm rostos ferozes” (veja H ess,Joshua, p. 218, nota 3; em que cita E. W ente, Lettersfrom ancient Egypt,
SBLW AW [Adanta: Scholars, 1990], p. 108). H ess explica que “cinco côvados egípcios seriam 2,7 m”.
9SJuízes 1.9-15 trata basicamente do mesmo assunto de Josué 15.13-19, “atribuindo a Judá,
de form a generalizadora, as ações que Josué 15.13,14 haviam atribuído a Calebe” (Block, Judges, p.
92). N o contexto de Juizes 1, a passagem funciona (junto com Jz 1.8) como um a “retrospectiva” (veja
E. H . M errill, Kingdom ofpriests: a history o f OldTestamentIsrael (G rand Rapids: Baker, 1987), p. 143,4).
"O bserve-se tanto no v. 16 quanto no v. 23 a referência a Josué tom ando a terra toda.
240 A H I S T Ó R I A D E ISR A E L , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA
reis derrotados que aparece no capítulo 12. Se a primeira metade do livro de Josué se
concentrou em Deus dar a terra a Israel, a segunda se concentrará no dever do povo
de ocupar, ou possuir, seus lotes tribais. Pela primeira vez desde o capítulo 1, o verbo
yrsh (possuir, desapossar, ocupar etc.) começa a ocorrer com certa frequência.100
Em vez de examinar cada porção de terra distribuída a cada tribo, faremos
apenas alguns comentários gerais. Primeiro, essas seções que delineiam os terri
tórios das tribos são bastante honestas quanto aos fracassos ocasionais (talvez até
mesmo progressivos) das tribos de Israel na tentativa de desalojar os inimigos e
ocupar cidades dentro dos respectivos territórios. As tribos a leste do Jordão não
expulsaram (Hifil de yrsh) os gesureus e os maacateus (13.13) nem Judá expulsou
os jebuseus que habitavam em Jerusalém (15.63), tampouco Efraim, os cananeus
de Gezer (16.10). No início, Manassés não teve quase nenhum sucesso em ocupar
as cidades que lhe foram designadas (17.12,13). Q uanto às sete tribos restantes, no
capítulo 18 ficamos sabendo que, embora “a terra [estivesse] sujeita [Nifal de kbsh\
diante deles” (v. I),101 sua herança ainda não havia sido distribuída (Mq) (v. 2) e eles
nem sequer haviam começado a “tom ar posse” (Hifil de yrsh) da terra que Deus lhes
dera (v. 3). Essas notas ressaltam a distinção entre sujeição e ocupação e prenunciam
um a tendência que, conforme veremos, continua e se intensifica no livro de Juizes.
Segundo, devemos ser cautelosos ao examinar a divisão territorial conforme
aparece na lista de Josué 13— 19. Em sua análise esclarecedora sobre os territórios
distribuídos,102 Hess destaca que as listas, originalmente documentos de família,
logo devem ter se tornado documentos administrativos e, nessa condição, é provável
que tenham sofrido atualizações à medida que novas cidades surgiram.103 Por esse
100Das aproximadamente trinta ocorrências em Josué, cinco estão no cap. 1, e 21 nos caps. 13— 24.
Nos demais, o verbo ocorre apenas em 3.10 (duas vezes; em ambas tendo Deus como sujeito), 8.7 (no
contexto da tom ada de Ai) e 12.1 (que faz referência a “terras [que] possuíram além do Jordão, no lado
do nascente do sol”).
10IO verbo aqui traduzido por “sujeitar” ocorre apenas um a vez em Josué. A ntes de Josué, o verbo
ocorre só em Gênesis 1.28, quando se fala de sujeitar a terra (trazendo-a sob controle), e nas instruções
que M oisés dá às duas tribos e meia da Transjordânia, dizendo que devem acom panhar Israel a Canaã
até que a terra seja sujeita.
m2Joshua, p. 229-86. Veja tam bém outro texto de Hess, “A typology o f W est Semitic place name
lists w ith special reference to Joshua 13— 21”, B A 59, n. 3 (1996), p. 160-70.
103Hess, Joshua, p. 248-9. Esse entendim ento pode ajudar a explicar por que o total apresentado em
15.32 parece estar errado (15.32 indica que o total de cidades mais ao sul de Judá era de 29, ao passo
que a contagem das cidades listadas em 15.21-32 parece ser 36). Será que o núm ero m aior poderia
estar atestando o acréscimo de novas cidades à m edida que surgiram, ao passo que o total original
não foi alterado? (Q uanto a outras possibilidades, veja H ow ard, Joshua, p. 341.) Considerando outra
possibilidade, será que alguns nom es poderiam ser apostos (nomes alternativos do mesmo local), como
o possível caso de G edera e G ederotaim em 15.36? Se, neste caso, o segundo nom e for interpretado
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 241
O livro de Juizes
Estudos recentes reconhecem cada vez mais o livro de Juizes como “um a unidade
literária em si”.105 Em 1987, em sua “leitura integrada” do livro de Juizes, W ebb
recapitulou teorias histórico-críticas desenvolvidas anteriorm ente por N oth,
Richter, Smend, D ietrich, Veijola, Boling e A uld e chegou à conclusão de que,
como aposto, m antém -se o total de 14 cidades inform ado em 15.36. O utro possível exemplo de um
aposto unido por wazv é “Berseba ou Seba” (19.2, NV I); novamente, o total é correto quando o segundo
nom e é tratado como aposto. As vezes nomes alternativos são explicitamente introduzidos usando-se
o pronom e hebraico hi \ como em 15.49,54,60, mas é possível que nem sempre seja este o caso. Se a
tradução de Josué 16.2 como “Betei, que é L uz” (NVI) estiver correta, esse seria então um exemplo de
justaposição apositiva assindética (cf. tam bém 19.8, Baalate-Ber, Ram á do sul).
104H ess,Joshua, p. 249.
105W ebb, The book ofjudges, p. 28.
242 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO A T É O P E R Í O D O PER SA
“em bora há tempos a unidade redacional da seção central de Juizes tenha sido
reconhecida”, existem bons motivos para estender ao livro todo a ideia de um a
composição unificada. Em The triumph ofirony in the book o f Judges [O triunfo da
ironia no livro de Juizes], Klein adotou um a concepção geral parecida, concluindo
que “o livro de Juizes é um a unidade cuja estrutura — incluindo os recursos de
linguagem que contribuem para sua estruturação — comunica sentido”.106 Assim
como no livro de Josué, tam bém em Juizes descobrimos que prestar atenção a
como o livro inicia e finaliza e como é sua estrutura geral leva à revelação de seu
sentido e significado básicos.
Início efim
10SVeja W ebb, Book o f the Judges, p. 115. Nossa análise do livro de Juizes é bastante devedora aos
estudos feitos por W ebb, G ooding e outros, mas, por motivo de concisão, lim itarem os a apresentação de
notas de rodapé aos pontos mais essenciais de contato com esses autores ou a citações diretas.
109O livro de Josué registra concessões feitas a Raabe e aos gibeonitas, mas não por iniciativa
de Israel.
110Veja o quadro feito por W ebb em Book o f the Judges (p. 99).
244 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO A T É O P E R Í O D O P ER S A
entrega o povo nas mãos de seus inimigos (v. 13-15). Porém, não abandona Israel
totalmente, antes levanta “juizes” (libertadores) para resgatá-lo (v. 16). Ainda assim,
a tendência do povo à apostasia ficava novamente visível na primeira oportunidade
(v. 17-19). Porque o povo abandona sua aliança com Deus (v. 20; cf. a advertência
de Josué em Js 24.19), este decide que não mais expulsará o inimigo diante deles
(Jz 2.21). E m vez disso, utiliza a presença do inimigo para testar seu povo (v. 22,23)
e treiná-lo (3.1-4).
E nquanto a prim eira parte do prólogo se concentra na deterioração das
circunstâncias políticas favoráveis a Israel (introduzindo o fracasso religioso de
Israel só no final, em 2.1-5), a segunda parte, como acabamos de ver, se concentra
nos fatores religiosos que contribuíram para isso. Os dois últim os versículos do
prólogo (3.5,6) unem os dois aspectos — Israel viveu no meio dos cananeus e,
daí por diante, casou-se com eles e serviu a seus deuses. Resumindo, em últim a
instância Israel não passa pelo teste nem política nem religiosamente. Os de
talhes desses fracassos relacionados, porém, ainda precisam ser elaborados nas
“oscilações”que seguem em 3.7— 16.31.111 Ademais, m uito em bora esteja descre
vendo a falta de fé de Israel, o texto ressalta com sutileza a fidelidade de Yahweh
(primeiro em 2.16: “M as o S e n h o r levantou juizes que os livraram das mãos dos
saqueadores”). Yahweh reage aos repetidos fracassos com repetidos livramentos
que vemos, vez após vez, na seção central do livro, que trata das “oscilações”.
Com o, porém , o livro term ina?
Talvez o primeiro fator que chama a atenção do leitor de Juizes 17— 21 —
seção que constitui o epílogo, ou “coda”, do livro — seja o refrão de que “naquela
época, não havia rei em Israel; cada um fazia o que lhe parecia certo” (17.6 e, com
alguma variação, também em 18.1; 19.1; 21.25). Em um a primeira leitura, esse
refrão serve para preparar o caminho para o estabelecimento de um a monarquia
hum ana em Israel (ISamuel). Assim, conforme observado por Webb, o refrão “serve
tanto para recapitular um a fase distinta da história de Israel quanto para apontar
para a seguinte”.112 Contudo, à luz da afirmação de Gideão em 8.23 de que nem
ele nem seu filho iriam governar Israel, mas “o S e n h o r reinará sobre vós”, é difícil
deixar de perceber a questão mais profunda do fracasso de Israel, durante os dias
sombrios dos juizes, em servir a Deus como rei.
m C onquanto pareça apropriado dividir o prelúdio nas seções descritas anteriorm ente, tam bém
vale observar que elas estão unidas com bastante esmero. Os versículos finais do primeiro m ovim ento
(2.1-5) apresentam um a explicação para o que havia acontecido antes e tam bém antecipam o desenvol
vim ento do assunto nos versículos que constituem o segundo movimento. E m outras palavras, eles têm
a função de transição. D e m odo parecido, a últim a seção do segundo m ovim ento (2.16— 3.6) serve de
transição entre o que veio antes e o que será mais desenvolvido na seção das “oscilações”.
n2Book o f the Judges, p. 30.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 245
Estrutura
Introdução (1.1—3.6)
A Política: Israel versus cananeus (1.1— 2.5)
B Religião: Israel abandona Yahweh e serve a outros deuses (2.6— 3.6)
Os libertadores-juízes (3.7—16.31)
C Otoniel: sua esposa israelita contribui para seu sucesso (3.7-11; veja o
texto anterior de 1.11-15)
D Eúde\ leva uma mensagem a um rei estrangeiro — mata moabitas
na passagem do Jordão (3.12-31)
E Débora, Baraque: Jael, um a mulher, mata o cananeu Sísera e
põe fim à guerra (4.1— 5.31)
F Gideão\
a. sua postura contra a idolatria (6.1-32)
b. sua luta contra o inimigo (6.33— 7.25)
b.’sua luta contra os próprios compatriotas (8.1-21)
a.’ sua queda na idolatria (8.22-32)
E 'Abimeleqw. “um a mulher” m ata o israelita Abimeleque e põe
fim à guerra (8.33— 10.5)
Xyjefté- envia mensagens a um rei estrangeiro — mata efraimitas
nas passagens do Jordão (10.6— 12.15)
C ’ Sansão: suas mulheres estrangeiras contribuem para sua queda
(13.1— 16.31)
Epílogo (17.1—21.25)
B’Religião: a idolatria é desenfreada; levitas servem em altares idólatras; D ã
conquista Laís e institui a idolatria (17.1— 18.31)
A Política: Israel versus Benjamim (19.1— 21.25)
Esta apresentação resumida da análise bem mais detalhada feita por Gooding
é suficiente para sugerir que uma mente organizadora está por trás do padrão
geral do livro de Juizes. Descobrimos que não apenas o padrão bem conhecido
de pecado-subjugação-súplica-salvação (introduzido com O toniel em Jz 3.7-11 e
u5Com base na análise feita por G ooding e no resumo apresentado por W ebb (Book o f the fudges,
esp. p. 35).
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 24 7
a partir daí repetido com frequência), mas especialmente “um a densa rede de temas
condutores intim am ente ligados [...] unifica o material de 3.7— 16.31 em um plano
mais profundo do que o dos padrões que se repetem na superfície”.116 A importância
da disposição dos elementos vai muito além do mero interesse estético na sime
tria. Conforme já observado, os temas de concessões políticas e corrupção religiosa
introduzidos na primeira seção do livro retornam no epílogo na forma de anar
quia política e religiosa. Esses temas interligados de decadência política e religiosa
são reforçados, pelo menos de modo implícito, na estrutura da seção central, em
que Gideão, o juiz intermediário, atua como figura principal. A despeito de um
início mais ou menos positivo (v. os elementos Fa e Fb no diagrama exposto
anteriorm ente), a segunda metade do relato acerca de Gideão m ostra-o não apenas
se voltando contra os próprios compatriotas (Fb'), mas até mesmo fazendo um
colete sacerdotal que contribui para sua queda na idolatria (Fa')- Assim, conforme
observado por W ebb em seu resumo da análise de Gooding, com Gideão aospróprios
juizes se envolvem, mediante suas ações, no padrão geral de decadência”.117A espiral
descendente só piora com Abimeleque, Jefté e Sansão.
E m seu estudo que amplia, refina e em alguns aspectos se distingue do de
Gooding, W ebb ressalta o relato sobre Sansão como “a concretização culminante
de temas principais”,118 fornecendo um reflexo da experiência do próprio Israel:
“A consciência de Sansão de que está separado para Deus e, mesmo assim, sua
desconsideração em relação a esse fato, sua atração fatal por mulheres estrangeiras,
sua teimosia e seu atrevimento — tudo isso é um espelho do comportamento do
próprio Israel. É também o que determina seu destino.”119
Toda a seção central está “entrelaçada” de tal maneira que “o leitor é convidado
a ler cada episódio à luz do que ocorreu antes”.120 O modo que muitos episódios,
em especial os do início do livro, estão organizados em torno do esquema pecado-
-subjugação-súplica-salvação tem levado alguns leitores a supor que o “período dos
juizes” é apresentado apenas como cíclico. M as Webb, assim como G ooding e outros
que vieram antes dele, insiste acertadamente que não são ciclos recorrentes, mas
uma espiral descendente que representa a era descrita no livro de Juizes:
E m sum a, a estru tu ra editorial desses episódios não é u m m olde rígido ao qual, sem
levar em conta o conteúdo, o m aterial narrativo precisa se subm eter. O padrão estrutural
é de tal variedade que reflete a situação m utável de Israel, conform e se vê na sucessão de
O enredo (histórico)
M esmo a nossa breve análise da maneira que o livro de Juizes inicia, finaliza e está
estruturado revela um alto grau de composição literária e propósito didático. Uma
reação comum a esses aspectos do livro é supor que, de alguma maneira, eles redu
zem o valor histórico dos textos. Por exemplo, em sua análise de Juizes, Finkelstein e
Silberman afirmam claramente que “a teologia e não a história é o elemento básico”
do livro.122 D e modo parecido, M iller e Hayes chegam à conclusão de que, “quando
o objetivo é a reconstrução histórica, dificilmente se pode tom ar o livro de Juizes ao
pé da letra”. Ambos ficam incomodados não apenas com “questões de detalhes que
em cada relato abusam da credulidade”, mas em particular com o “esquema edito
rial, que é artificial e não convincente”.123
Nossa abordagem reconhece a natureza sistemática e padronizada da descrição
do período dos juizes, mas não a estabelece em oposição ao conteúdo potencial
mente histórico do quadro pintado. Não deveria nos surpreender o fato de que o
testemunho sobre o passado pode, sem maiores dificuldades, combinar técnica de
composição, objetivo didático e também informação histórica. Para se fazer um
juízo correto da natureza da informação histórica evidentemente é preciso levar em
conta a natureza da apresentação. O livro de Juizes apresenta o retrato de um a era.
Q uando vemos um retrato pintado, instintivamente levamos em conta a seleção
dos detalhes, a simplificação, a coloração, a padronização da composição, alguma
artificialidade no arranjo e assim por diante — mas não pressupomos que esses
aspectos diminuam a imagem histórica. Aliás, nas mãos de um artista competente,
esses aspectos acentuam o objetivo referencial da obra. Nossa abordagem do livro
de Juizes segue essa perspectiva.
Conforme já vimos, existe um padrão teológico dominante no livro. M iller e
Hayes assim o descrevem:
121Ibidem , p. 175-6.
n2The Bible uneartheá, p. 120.
123A history o f ancient Israel andJudah (Philadelphia: W estm inster, 1986).
124Ibidem , p. 89.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 249
É claro que a dinâmica da história é bem mais complexa do que essa (ou, nesse
sentido, do que qualquer) peça de historiografia consegue comunicar, da mesma
maneira que a dinâmica do semblante de alguém é bem mais complexa do que
qualquer retrato conseguiria captar. Aliás, conforme M iller e Hayes reconhecem, o
próprio livro de Juizes dá demonstrações dessa complexidade. Em bora as atividades
dos juizes estejam relacionadas de forma geral ao destino de “Israel” como um todo,
“um exame mais cuidadoso revela [...] que os acontecimentos narrados em relatos
específicos estão bem localizados — em geral envolvendo no máximo um ou dois
clãs ou tribos”.125 Parece um procedimento estranho citar a complexidade indicada
pelos textos como prova contra a plausibilidade histórica do quadro maior retratado
pelos próprios textos. Seria possível os escritores desejarem dar um a ideia da dinâ
mica geral do período — teológica, política e histórica — e ao mesmo tempo não
oferecerem pistas de sua complexidade? Bons retratos se concentram em contornos
básicos, apresentando só detalhes sugestivos o suficiente para estimular a mente do
espectador a preencher o restante.126
Por fim M iller e Hayes chegam à conclusão negativa de que as narrativas do livro
de Juizes não “oferecem nenhum a base para reconstruir qualquer tipo de seqüência
histórica detalhada de pessoas e acontecimentos”, embora cheguem à conclusão
positiva de que “as condições socioculturais gerais pressupostas pelas narrativas
estão em conformidade com o que se sabe das condições existentes na Palestina no
início da Idade do Ferro” e de que “a situação refletida nessas narrativas fornece um
contexto crível e compreensível para o surgimento da monarquia israelita conforme
descrito em 1— 2Samuel”.127
Podemos concordar, sem dificuldade alguma, com as conclusões positivas,
mas o que dizer da declaração de que o livro de Juizes não fornece quase nenhum a
base para um a “seqüência [...] detalhada de pessoas e acontecim entos”? Nossa
resposta depende da ênfase que se dá aos termos “seqüência” e “detalhada”.
E óbvio que não se pode pressupor que o livro de Juizes apresenta um a seqü
ência cronológica simples, direta e objetiva. Tanto a menção dupla da m orte de
Josué no prólogo quanto a possibilidade de que o epílogo fale de eventos ocor
ridos em um a data mais recuada, em vez de posterior, no período dos juizes
m ostram que nem sempre existe a preocupação de seguir a ordem cronológica.
Tam bém pode ser que, conforme observado por Bright, “a impressão é a de que a
125Ibidem .
126Veja V. P. Long, The art o f biblical history, M oisés Silva, ed., F C I 5 (G rand Rapids: Zondervan,
1994), p. 71-3 e passim.
12‘History, p. 91.
250 A H I S T Ó R I A D E I S R A E L , D E ABRAÃO A T É O P E R Í O D O P ER S A
* 0 total de 410 anos não inclui a duração da magistratura de Sangar, que não é especificada
em Juizes 3.31.
12SA history o f Israel, 4 ed. (Louisvüle: W estm inster John Knox, 2000), p. 178.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 251
inicial129 e um número de anos não especificado (Vinte? Trinta? M ais?) até o fale
cim ento dos anciãos que sobreviveram a Josué (Js 24.31; Jz 2.7). A contecim entos
subsequentes poderiam incluir quarenta anos da liderança de Eli (IS m 4.18),
talvez doze anos da liderança de Samuel antes da unção de Saul,130 um período
de aproximados vinte anos de reinado de Saul, quarenta anos de reinado de Davi
e quatro de Salomão. A soma de todos esses números resulta em 573 anos (mais o
núm ero não especificado de anos dos anciãos que sobreviveram a Josué), um total
que ultrapassa em m uito os 480 anos de IR eis 6.1. E óbvio que sim plesmente
somar os núm eros cria sérios problemas para um Êxodo no século 15, para não
falar de um no século 13.
Será que devemos concluir que os dados bíblicos são simplesmente confusos?
U m exame mais cuidadoso do texto sugere alternativas melhores. Primeiro, os
períodos de paz depois de Otoniel, Eúde, Débora e Gideão são, respectivamente,
quarenta, oitenta, quarenta e quarenta anos, enquanto o período da opressão filis
teia é de quarenta anos e o da judicatura de Sansão é de vinte. Alguns ou todos
esses números podem ser arredondados, simbólicos ou representativos.131 É possí
vel interpretar outros números de forma literal (e.g., 8, 18, 7, 3, 23, 22 e números
semelhantes). Com base no conhecimento disponível hoje, parece im prudente ser
dogmático quanto à maneira exata que se deve entender cada número, mas é plau
sível que haja um a combinação de diferentes tipos de números. Por isso, um a soma
simples talvez seja a abordagem errada.
Segundo, é possível que alguns acontecimentos cuja duração é indicada tenham
sido, de fato, cronologicamente simultâneos ou sobrepostos. Não apenas os atos
específicos de livramento realizados pelos diferentes juizes se concentram tipica
mente em ameaças regionais envolvendo apenas algumas tribos (mesmo quando
suas atividades são apresentadas como importantes para todo o Israel),132 mas
129Cálculo feito com base na afirmação de Calebe, em Josué 14.7, de que tin h a quarenta anos
de idade quando foi enviado pela prim eira vez para explorar a terra (N m 13.6) e 85 quando recebeu
H ebrom como herança (Js 14.10). Caso tenham se passado 38 anos entre a exploração inicial feita
por Calebe e o início da conquista (cf. D t 2.14), então um cálculo simples indica que devem ter
transcorrido cerca de sete anos entre o início da conquista liderada por Josué e a distribuição dos
territórios conquistados.
130C onquanto a Bíblia não ofereça nenhum a informação de quanto tem po Samuel ocupou seu
cargo entre a m orte de E li e a unção de Saul, Josefo escreve: “Depois da m orte do sumo sacerdote Eli,
ele governou e liderou o povo por apenas doze anos e junto com o rei Saul mais dezoito anos. Esse foi
então o fim de Samuel” (Ant. 6.294). E sta citação de Josefo e as subsequentes foram extraídas de The
Loeb Classical Library (London: H einem ann, 1930-1965).
13IE.g. , representando um a geração, duas gerações, ou um tem po longo, um tem po bem longo, ou
algo semelhante.
132Para um resumo das regiões que sofreram pressão externa, veja a tabela em VAoáí, Judges, p. 62.
252 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO A T É O P E R Í O D O P ER S A
133Observam os, por exemplo, que não há inform ação sobre os anos de m agistratura de Sangar
(Jz 3.31).
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 253
Por exemplo, é bem possível que os quarenta anos de magistratura de Eli, menciona
dos em ISamuel 4.18, tenham em maior ou menor extensão se sobrepostos à opressão
filisteia a que Sansão reagiu, o que poderia reduzir o cálculo em mais quarenta anos.
Levando tudo isso em consideração, podemos facilmente ver como é difícil
(talvez impossível) estabelecer um a cronologia precisa do período dos juizes; o
núm ero de variáveis indefinidas é simplesmente grande demais. Essa conclusão não
significa que não se possa confiar no livro de Juizes, apenas que se deve inter
pretá-lo considerando suas características particulares. Com a grande probabilidade
de algumas sobreposições e a possibilidade de outras, há um intervalo de tempo
bem grande para o período dos juizes, em especial para aqueles que supõem que o
Êxodo ocorreu no século 15. U m Êxodo no século 13 exige um grau bem maior de
sobreposição, mas até isso é possível.
Para ilustrar a ideia básica: mesmo que consideremos somente a sobreposição
das opressões am onita e filisteia indicada em Juizes 10.6-8 e ao menos alguma
sobreposição entre as magistraturas de Sansão e Eli, chegamos a um quadro crono
lógico hipotético geral como o da Tabela 7.3.
Acontecimento Anos
134Para análises mais detalhadas em que se busca um a precisão relativamente maior, veja Block,
Judges, p. 59-63, e esp. M errill, Kingdom ofpriests, p. 146-51.
254 A H I S T Ó R I A D E ISR A EL , D E A B R AÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA
As análises anteriores dos livros de Josué e Juizes lidam apenas com um a parte
muito pequena do que poderíamos obter de informação caso houvesse tempo para
análises literárias completas, mas essas revisões são talvez suficientes para estabe
lecer as trajetórias temáticas gerais dos dois livros. O livro de Josué se concentra
basicamente na fidelidade de Yahweh em dar a terra da promessa a Israel, cum
prindo, desse modo, o aspecto da promessa patriarcal em evidência ainda no final do
Pentateuco. O livro de Juizes focaliza a reação imprópria de Israel diante da ordem
dada no final do livro de Josué para que servisse Yahweh com fidelidade e exclusi
vidade. Ao cumprir a promessa de dar a terra de Canaã a Israel, Yahweh se revelou
absolutamente fiel, mas depois da morte de Josué e de sua geração, os israelitas
fracassaram progressivamente em sua responsabilidade de ocupar os territórios que
haviam recebido. Q uando lidos dessa forma, os livros parecem se complementar e,
de modo geral, estar em seqüência.
Assim mesmo, para muitos estudiosos os dois livros se contradizem. G. W.
Ramsey, por exemplo, só consegue falar de “relatos conflitantes da conquista hebreia
de Canaã”.135 W. G. Dever descreve o livro de Juizes como “outra rsão com alguns
pontos de contato com Josué” e insiste em que não se deve harmonizar os dois
livros, visto que, em sua perspectiva, “as contradições óbvias são grandes demais”.136
D e forma semelhante, A. Ben-Tor e M . T. Rubiato afirmam que o livro de Josué
apresenta um a “conquista rápida de Canaã”, ao passo que Juizes “mostra um quadro
totalmente diferente, em que o estabelecimento na terra é lento, em geral por meio
13:1lhe questfor the historical Israel: reconstructing IsraeVs early history (A tlanta: John Knox, 1982),
p. 101.
LV:What did the biblical writers know, p. 121-2.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 255
137“Excavating Hazor, Part II: D id the Israelites destroy the Canaanite city?”, BARev 25, n. 3 (1999),
p. 23-39, citação na p. 24. Não está claro se, para Ben-Tor e Rubiato, os quadros de Josué e de Juizes são
m utuam ente exclusivos ou apenas enfatizam aspectos diferentes do surgimento de Israel em Canaã.
lnHistory, p. 129.
139Ibidem , p. 130.
,40“W h ith e r the Bible and archaeology”, in: Proceedings, Eastern GreatLakes and M idw est Biblical
Societies 9 (1989), p. 14.
141“The literary and historical problem o f Joshua 10 and Judges 1”,J N E S 5 (1946), p. 105-14.
u2Ihe biblical account o f the conquest o f Palestine (Jerusalem: M agnes, 1953; reimpr. em 1985 pela
mesma editora com o título de The biblical account o f the conquest o f Canaan e com um prefácio escrito
por M . Greenberg). Acerca dessa obra, Bruce K. W altke afirma que “harm onizou convincentemente as
diferenças entre Josué e Juizes 1” (“The date o f the conquest”, W TJ52, n. 2 [1990], p. 189).
256 A H I S T Ó R I A D E ISR A EL , D E A B R AÃO A T É O P E R Í O D O P ER S A
143Para um a análise perspicaz e recente das questões básicas (com notas bibliográficas úteis), veja
D . R . Ulrich, “D oes the Bible sufficiently describe the conquest?”, Trinity Journal 20, n. 1 (1999), p.
53-68. E m relação à dependência de Juizes 1.1— 2.5 de estruturas e trajetórias já introduzidas em Josué
13— 19, veja K. L. Younger Jr., “The configuring o f judicial prelim inaries”. Sobre o assunto em pauta,
Younger sustenta que essa seção de Juizes deixa explícito o que Josué já havia deixado implícito, a saber,
que na ocupação dos territórios distribuídos, Judá obteve em geral mais sucesso do que outras tribos,
especialmente Dã.
144Veja K. A. Kitchen, The Bible in its world: the Bible and archaeology (Exeter: Paternoster,
1977), p. 90-1.
14SIb id em , p. 90.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 257
aos deuses das nações que restaram (v. 7,16). Agir de outro modo será um a violação
da “aliança do S e n h o r , vosso Deus” (v. 16, ACF) e incidirá nas penalidades da aliança
(v. 15; cf. v. 13). No livro de Juizes, essa possibilidade se torna uma triste realidade.
Quando tudo isso é levado em conta, a contradição muitas vezes citada entre
Josué e Juizes revela um a compreensão descuidada em vários aspectos. Com
propriedade, Younger resume a situação da seguinte forma:
A esteia de Merneptá
149Para o texto completo, com introdução e bibliografia, veja A N E T , p. 376-8; veja tam bém A N E P ,
p. 115,148. U m a cópia fragm entária da inscrição tam bém existe no tem plo de Karnak.
150Veja K. Kitchen, “Egyptians and Hebrews, from Ra’amses to Jericho”, in: The origin o f early
Israel— current debate: biblical, historical and archaeological perspectives, S. Aliituv; E. D. O ren, orgs.,
Beer-Sheva 12 (Jerusalem: B en-G urion University o f the Negeb Press, 1998), p. 100.
151Q uanto ã questão específica dos determinativos egípcios dessa esteia, veja Kitchen, “Egyptians
and H ebrew s”, p. 101.
ls2What did the biblical writers know, p. 118.
O ESTABELECIM ENTO NA TERRA 259
anel”, em que não se deve juntar “Israel” às cidades-estado precedentes numa espécie
de seqüência do sul para o norte, a qual colocaria Israel na região da Galileia, mas, em
vez disso, deve-se entendê-lo como um termo paralelo a “Canaã”, que é mencionada
logo antes das três cidades-estado. Com base no paralelo Canaã/Israel, eles sugerem
duas possíveis interpretações: ou Canaã representa “a planície litorânea e as terras
baixas adjacentes”, e Israel, a “região montanhosa”, ou tanto Canaã quanto Israel são
“aproximadamente equivalentes como sinônimos para indicar toda a região”.153
Outros estudiosos, estando de acordo ou não com a análise estrutural de Ahlstrõm
e Edelman, tendem a concordar que se deve situar o Israel de M erneptá “nas regiões
altas e nos vales de Canaã”154 ou, simplesmente, na região montanhosa central da
Palestina.155 Isso, conforme observado por Isserlin, gera duas perguntas: “Durante
quanto tempo os israelitas estiveram no país antes de serem mencionados [na esteia]?
E como chegaram ali?”156 Q uanto à segunda pergunta, utilizando vários argumentos
(inclusive os dados oferecidos pelos relevos das paredes do templo de Karnak, os quais
retratam as batalhas de M erneptá contra os líbios, os povos do mar, as cidades-estado
cananeias [Asquelom é uma das mencionadas] e “Israel”), alguns alegam que o Israel
de M erneptá deve ter surgido de “grupos pastoris de fora da Cisjordânia”.157 Apenas
com base nos dados egípcios, porém, não é possível demonstrar isso conclusivamente.
No que diz respeito à primeira pergunta — por quanto tempo Israel pode ter estado
na terra de Canaã antes de ser mencionado por M erneptá — , os dados arqueológicos
não oferecem nenhuma resposta. No entanto, se Finkelstein estiver correto em sua
análise de que o rápido aumento de aldeias na região montanhosa na Idade do Ferro
l33“M erneptah’s Israel”, J N E S 44, n. 1 (1985), p. 59-61. D a mesma forma, veja D . V. Edelm an,
“W h o or w hat was Israel?”, B A R ev 18, n. 2 (1992), p. 21 ,7 2 -3 . Respondendo à leitura que Edelm an e
A hlstrõm fazem da Esteia de M erneptá, em “A nson F. Rainey”, B A R ev 18, n. 2 (1992), p. 73-4, Rainey
diz preferir a interpretação originalm ente sugerida por F. Yurco, segundo a qual C anaã e K haru são
elementos paralelos. Rainey sustenta que Kharu é um a designação egípcia do território de Canaã,
talvez por causa dos hurrianos (os horeus da Bíblia?) que viviam na região. Rainey trata seriam ente o
determinativo associado ao nom e Israel e crê que a inscrição distingue Israel como um grupo étnico,
embora reconheça que os escribas egípcios daquele período tinham com certeza “alguma liberdade para
representar as várias entidades estrangeiras, em especial os grupos nôm ades” (p. 74).
IS4Kitchen, “Egyptians and H ebrew s”, p. 102.
15jDever, What did the biblical lariters know?, p. 119.
1Silhe Israelites, p. 56.
157Veja “Settlem ent o f C anaan”, de B. H alpern (A B D , vol. 5, p. 1130), em que o autor fundam enta
seu ponto de vista na descrição de Israel como “Shasu” (i.e., “pastores daTransjordânia”).P a ra u m racio
cínio diferente que chega a conclusões semelhantes, veja A . F. Rainey, “Rainey s challenge”, B A R ev 17,
n. 6 (1991), p. 56-60, 93. Para um a perspectiva contrária, segundo a qual “pelo menos alguns israelitas”
se unem “fora da sociedade cananeia”, veja F. J. Yurco, “Yurcos response”, B A R ev 17, n. 6 (1991), p. 61;
cf. tam bém o estudo pioneiro anterior de Yurco, “3,200-year-old picture o f Israelites found in E gypt”,
B A R ev 16, n. 5 (1990), p. 20-38.
260 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO A T É O P E R Í O D O P ER S A
As cartas de Amarna
15sE m “Exodus and conquest: M yth or reality”, Journal, o f the Ancient Chronology Forum 2 (1988),
J. Bimson escreve: “Fritz defende que os assentam entos indicam a sedentarização de seminômades
que haviam entrado na terra m uito antes de 1200 a.C: ‘Sua “migração” para a terra deve, portanto, ter
acontecido no século 14 ou já no 15’[1981, p. 71]”. (Tam bém disponível em http://w w w .nunki.net/isis/
jacf2articlel.htm , acesso em 2003.)
159Tam bém merece menção a possibilidade de “Qazardi, o lider de A ser”, m encionado no papiro
Anastasi I (veja A N E T , p. 475-9, seção xxiii), um a carta satírica datada do final do século 13 a.C, ser
um a referência extrabíblica à tribo de A ser mencionada no A T (para um a análise desse e de outros da
dos egípcios, veja J. M . M iller, “The Israelite occupation o f Canaan”, in: J. H . Hayes; J. M . M iller, orgs.,
Israelite andJudaean history [London: SC M , 1977], p. 245-52).
160“Text and artifact: Two monologues?”, in: N. A. Silberman; D. Small, orgs., The archaeology o f Israel:
constructing thepast, interpreting thepresmtjJSOTè 237 (Sheffield: Sheffield Academic, 1997), p. 335.
161 J. Bimson, “O ld Testam ent history and sociology”, in: C raig C. Broyles, org., Interpreting the
Old Testament: a guidefor exegesis (G rand Rapids: Baker, 2001), p. 141.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 261
sul do Cairo.162 A maioria das cartas está escrita em acádico (um grupo de línguas
semitas orientais que inclui o babilônio e que, no século 14 a.C., era a língua do
comércio internacional e da diplomacia). As cartas abrangem um período inferior
a trinta anos, desde o final do reinado de Am enhotep III até o terceiro ano de
Tutankhamon, sendo que a maioria foi enviada durante o reinado do “monoteísta”
A m enhotep IV (chamado Akhenaton, c. 1352— 1336 a.C.). No conteúdo, com
exceção de uns 32 textos léxicos/literários e 44 cartas trocadas entre o Egito e outras
potências importantes da época,“mais de trezentas tábuas [...] são correspondências
entre o Egito e reinos vassalos em Canaã e no norte da Síria”.163 Entre as cartas
provenientes de governantes de cidades-estado em Canaã, cerca de dezesseis
mencionam os incômodos ‘apiru e recorrem ao Egito em busca de ajuda.164 Esses
‘apiru “parecem ser mercenários saqueadores que às vezes representavam ameaça
para todos os Estados cananeus e que, em outras oportunidades, apareciam divididos
em lados opostos nas guerras entre essas cidades-estado”.165
Por várias razões, não causa surpresa que, como conseqüência da descoberta das
cartas de Am arna, tenham ocorrido tentativas de relacioná-las aos hebreus bíblicos
que invadiram Canaã. Com o Nadav N a’aman explica em um estudo minucioso
publicado em 1986,166 “a semelhança entre os nomes habiru e hebreu, a proximi
dade do lugar em que viviam e tam bém a relação cronológica bastante próxima
entre os habiru de A m arna e os israelitas despertaram a imaginação dos estudiosos,
provocando a identificação im ediata entre os dois grupos”.167 Essa empolgação,
contudo, estava fadada a ter vida curta, pois logo ficou evidente que a existência
dos 'apiru era amplamente atestada em textos do Antigo O riente Próximo, além das
cartas de Amarna.168 Na realidade, parece que os ‘apiru, designados frequentemente
162Q uanto à história da descoberta, veja N. N a’aman, “A m arna letters”, A B D , vol. 1, p. 174-81.
A m elhor tradução em inglês das cartas é a de W . L. M oran, The Amarna letters (Baltimore and L ondon:
Johns H opkins U niversity Press, 1992; original em francês publicado em 1987). U m a seleção das cartas
tam bém está disponível em A N E T , p. 483-90.
163N a’aman, “A m arna letters”, p. 174.
164I.e., E A (= El-A m arna) 243, E A 246, E A 254, E A 271, E A 273-274, E A 286-290, E A 298-
-299, E A 305, E A 318 e A O 7096. Para um a relação e um resumo práticos do conteúdo, veja M errill,
Kingdom ofpriests, p. 105.
1''"'Merrill, Kingdom ofpriests, p. 100.
166“H a b iru and Hebrews: the transfer o f a social term to the literary sphere,_/ZVES 45, n. 4 (1986),
p. 271-88.
167Ibidem , p. 271. Para a história dessa tentativa de identificação, veja M . Greenberg, The Hah/piru
(New Haven: A m erican O riental Society: 1955), p. 3-12.
168Para um a lista útil, veja B right, History, 4 ed., p. 94-5. B right conclui que os apiru são “um povo
encontrado por todo o oeste da Ásia do final do terceiro milênio até por volta do século 11” (p. 95).
262 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O PERSA
176“Refining the etymology for ‘H ebrew ’: M a ris ‘I B R U M ", palestra não publicada, apresentada em
novembro de 2001 por ocasião da SBL A nnual M eeting, realizada na cidade de Denver. A qui expressa
mos a Flem ing nosso agradecim ento por nos disponibilizar o texto de sua apresentação.
177Ibidem , p. 8-9.
17sCf. ibidem.
1,9O u deve-se tentar, como fez T. J. M eek, inverter a ordem bíblica e situar a conquista liderada
por Josué antes do Êxodo liderado por M oisés (veja M errill, Kingdom ofpriests, p. 102).
264 A H I S T Ó R I A D E ISR A E L , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA
como um “termo genérico injurioso aplicado a párias sociais [...] é possível que, no
contexto cananeu, [o termo] se refira a israelitas, mesmo que isso não ocorra em ou
tros lugares”.180 A nova hipótese etimológica de Fleming talvez seja uma explicação
melhor para a designação “hebreu”, uma explicação que se harmoniza com a descrição
bíblica do Israel primitivo como “pastores de regiões rurais remotas”.
Considerações geográficas podem oferecer apoio adicional a essa ideia. De
acordo com Finkelstein, “as únicas entidades políticas da região montanhosa citadas
nas cartas de Am arna do século 14 a.C. (um período de grande decadência na região
montanhosa) são Siquém e Jerusalém”,181 e mesmo a identificação de Siquém tem
sido contestada.182 Isso está bem de acordo com o fato de que, entre os séculos 15
e 12, a presença egípcia na Palestina parece ter sido mais sentida “nas terras baixas,
que eram estratégica e economicamente importantes, do que na região montanhosa,
que tinha menos relevância”.183Também está em harmonia com o quadro bíblico que
situa a maior parte da população israelita durante o período da conquista na região
montanhosa. Em suma, de acordo com Chavalas e Adamthwaite:
Cumulativamente, no que diz respeito aos ‘apiru, a natureza da evidência não apoia
o dogmatismo a favor desta ou daquela posição, mas um cenário possível é que
tanto o Israel de M erneptá quanto os apiru das cartas de Am arna nos oferecem
180M . W . Chavalas; M . R. Adam thw aite, “Archaeological light on the O ld T estam ent”, in Baker;
A rnold, orgs., Theface o f Old Testament studies, p. 59-96; citação na p. 90. E m Kingdom ofpriests, M erril
faz um a defesa convincente de que as cartas de A m arna apresentam o contexto para o período após a
conquista inicial liderada por Josué (p. 102-8).
181“The rise o f early Israel”, p. 31.
182M . R. Adam thw aite, “Lab’aya’s connection w ith Shechem reassessed”, Abr-Nahrain 30 (1992),
p. 1-19, esp. p. 8-12. Veja mais apoio a essa ideia em “Archaeological light”, de Chavalas e A dam thw aite
(p. 90, nota 138).
ls3Isserlin, The Israelites, p. 55.
184“Archaeological lig h t”, p. 90.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 265
18SCf. J. J. Bimson, “M erneptahs Israel and recent theories o f Israelite origins”, J S O T 49 (1991),
p. 3-29.
266 A H I S T Ó R I A D E ISR A E L , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA
Jericó
D e acordo com os relatos bíblicos, Jericó foi a primeira cidade conquistada após a
entrada de Israel em Canaã e, geralmente, é a primeira a ser mencionada em debates
sobre a “conquista”.186 Aliás, Jericó é frequentemente citada como um “exemplo evi
dente” de como a arqueologia tem demonstrado que a Bíblia não é historicamente
confiável. O motivo alegado é que supostamente a cidade de Jericó não foi sequer
ocupada durante o período atribuído a Josué, pressupondo-se tanto um a conquista
recuada quanto recente. Isso não quer dizer que, em muitos pontos importantes, a
arqueologia da cidade não esteja associada ao relato bíblico. H á evidência de que
as muralhas da cidade ruíram. Existem vestígios de incêndio, bem como indícios
até mesmo da época do ano em que esse incêndio pode ter acontecido — prova
velmente na primavera, logo após a colheita, visto que os escavadores recuperaram
uma quantidade significativa de cereal na cidade incendiada. A presença de cereal
tam bém sugere que a cidade caiu rapidamente e não como resultado de um cerco
prolongado, pois, nesse caso, esses suprimentos com certeza teriam se esgotado.
as águas que desciam pararam e ficaram am ontoadas, m uito longe, à altura de A dã,
cidade que está ju n to a Z aretã; e as águas que desciam ao m ar da A rabá, que é o m ar
Salgado, foram de to d o interrom pidas. E n tã o o povo passou b em em frente de Jericó.
Visto que interrupções no fluxo do Jordão na vizinhança de Adã têm sido confir
madas várias vezes ao longo de séculos de registros históricos geológicos,188 esse
comentário incidental no texto bíblico atesta um conhecimento geográfico/geoló-
gico preciso da área e fornece uma explicação plausível de como pode ter ocorrido a
interrupção mencionada no livro de Josué.
Reunidos, todos esses fatores parecem reforçar a confiança na compatibilidade
dos dados arqueológicos e textuais referentes à queda de Jericó. O problema de
Jericó não se relaciona tanto com as descobertas materiais, mas com as datas atri
buídas a essas descobertas. Entretanto, a datação das ruínas de Jericó tem mudado
várias vezes durante a história da escavação do sítio. Em tempos modernos, a mais
antiga escavação do sítio arqueológico, feita por um a expedição austro-germânica
dirigida por E rnst Sellin e Carl Watzinger, entre 1907 e 1911, encontrou provas
de um a notável estrutura de muros que eles dataram da Idade do Bronze M édia
(que, de acordo com cronologias-padrão, term inou c. 1550 a.C.). N a década de 30,
o arqueólogo britânico John Garstang retomou as escavações no sítio e encontrou
indícios de muros caídos feitos de tijolos de barro, os quais datou em cerca de 1400
a.C. e associou à conquista liderada por Josué. Não é de surpreender que a afirmação
de Garstang tenha causado bastante agitação. A pedido de Garstang, a arqueóloga
britânica Kathleen Kenyon conduziu, entre 1952 e 1958, as próprias escavações em
Jericó. Ela tam bém encontrou “tijolos vermelhos caídos”, os quais aparentemente
187Para detalhes de todos esses aspectos, veja “D id the Israelites conquest Jericho? A new look at
the archaeological evidence”, de B. G . W ood (B A R ev 16, n. 2 [1990], p. 44-58).
18SW ood cita o geofísico A m os Nur, da Stanford University, que declarou: “H oje o nom e de A dã é
Damiya, o local em que, em 1927, houve deslizam entos de terra que interrom peram o fluxo do Jordão.
Tais interrupções, com duração típica de um ou dois dias, tam bém foram registradas em 1906, 1834,
1546,1267 e 1160 d.C .” (ibidem, p. 54).
2 68 A H I S T Ó R I A D E ISR A E L , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O PERSA
189Para análise mais aprofundada e literatura pertinente, veja ibidem , esp. p. 47-9.
190W ood escreveu um a tese de doutorado sobre o assunto: “Palestinian pottery o f the L ate Bronze
age: an investigation o f the term inal LB IIB phase” (tese de P h.D ., University o f Toronto, 1985). Um a
versão am pliada de um a das partes da tese de W oods foi publicada com o título The sociology o f pottery in
ancient Palestine: the ceramic industry and the diffmion o f ceramic style in the Bronze and IronAges, JS O T S
103; JS O T /A S O R M onographs 4 (Sheffield: JSO T , 1990).
191 K. M . Kenyon; T. A. H olland, Excavations at Jericho (London: British School o f Archaeology
in Jerusalem, 1981-1983), vols. 3-5.
192“D id the Israelites conquer Jericho”, p. 50.
1,3“Jericho”, in: D . W in to n Thomas, o r g Archaeology and Old Testament study (Oxford: Clarendon
Press, 1967), p. 271.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 269
194Veja a análise feita por W ood em “D id the Israelites conquer Jericho”, p. 52.
195Inform ação baseada num a conversa pessoal com W ood.
1,6U m argum ento que W ood apresenta em sua resposta ao artigo de P. Bienkowski, “Jericho was
destroyed in the M iddle Bronze Age, not the Late Bronze A ge”, B A R ev 16, n. 5 (1990), p. 45-6,69; veja
B. G . W o o d ,“D ating Jerichos destruction: Bienkowski is w rong on ali counts”, B A R ev 16, n. 5 (1990),
p. 45-69, citação na p. 47).
I97Veja a nota anterior.
198“D ating Jerichos destruction”, p. 47-8.
I99Veja W ood, “D id the Israelites conquer Jericho”, p. 52-3, e tam bém a análise adicional que ele
faz em “D ating Jerichos destruction”,p. 49.
200“D ating Jerichos destruction”, p. 47.
201E.g., J. K. Hoffmeier, Israel in Egypt: the evidence fo r the authenticity o f the Exodus tradition
(Oxford: O xford Universitv Press, 1997), p. 7; H ow ard, Joshua, p. 178; W altke, “The date o f the
conquest”, p. 192; J. L. Sheler, Is the Bible true? H ow modem debates and discoveries affirm the essence o f the
Scriptures (N ew York: H arperSanFrancisco, 1990), p. 90-1.
2 70 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA
Ai
202Já mencionam os o questionam ento feito por Bienkowski e a resposta de W ood. E m nossa
opinião, os argumentos de W ood são melhores.
203A. M azar, Archaeology o f the land o f the Bible: 10,000-586 B .C .E (N ew York: Doubleday, 1990),
p. 331 [edição em português: Arqueologia na terra da Bíblia 10000-586 a.C. (São Paulo: Paulinas,2003)].
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 271
A i, que em u m consenso razo av elm en te am plo está situ ad a nas ruínas de et-Tell,
localizadas p e rto de B e itin (que m u ito s acred itam ser a cidade que su b stitu iu a B etei
bíblica), apresen to u o u tro p ro b lem a, pois o local esteve deso cu p ad o e n tre ap ro x im a
d a m en te 2400 a.C . (q u an d o a cidade foi c o n q u istad a n a Id a d e do B ro n ze A n tig a ) e
a fundação da aldeia de cu rta existência no século 12 a .C . A té agora as ten tativ as de
en co n trar u m lu g ar alternativo que m o stre u m registro arqueológico m ais satisfatório
não estão te n d o sucesso.204
Conforme observado por Isserlin, parece que et-Tell não foi ocupada durante o pe
ríodo aproximado de 2400 e 1200 a.C.205 Sem dúvida isso cria bastante dificuldade
para a narrativa bíblica acerca da captura e destruição de Ai, a menos que haja algo
além do que é sugerido no relato bíblico em uma primeira leitura. Observamos, por
exemplo, que, em um determinado ponto da descrição da batalha, os homens de Betei
se juntam aos de A para lutar contra Israel (Js 8.17). Além dessa menção a Betei, a
descrição não faz nenhuma outra, embora em Josué 12 o rei de Betei esteja com o de
A na lista de reis cananeus vencidos (v. 9,16). W. F. Albright levantou a hipótese de
que a luta tenha sido contra Betei, mas por motivos etiológicos — a saber, explicar
as proeminentes “ruínas” (um dos vários e possíveis sentidos do termo “A i” e também
de “et-Tell”) — a narrativa mudou seu foco para Ai.206 Concordando ou não com a
“forçada” teoria etiológica de Albright207, o fato de o relato mencionar A de passagem
talvez aponte para uma situação mais complexa do que somente o conflito Israel versus
A . A n d a assim, qualquer que seja a data atribuída à conquista liderada por Josué, a
aparente não ocupação de A nesse período cria dificuldades. A guns estudiosos ten
taram solucionar o problema pressupondo que os procurados vestígios de ocupação
do lugar sofreram erosão durante o longo período em que a cidade permaneceu em
ruínas (cf.Js 8.28, “até o dia de hoje”) ou então meramente continuam soterrados nos
vários hectares que nunca foram escavados no sítio.208 Outros estudiosos pressupõem
que o relato bíblico simplesmente esteja errado. Aliás, para J. A. Callaway o conflito é
tão sério a ponto de ser necessário “uma revisão da avaliação que fazemos da Bíblia”.209
lem bra que, embora a arqueologia “seja um a boa fonte para esclarecer a cultura
material do passado, dados de artefatos são fontes bem ineficientes de informação
sobre pessoas e acontecimentos específicos”.215
H azor
215Ibidem , p. 59.
216Veja W . G . Dever, “Q edah, Tell el-”, in: A B D , vol. 5, p. 578-81.
217Ibidem , p. 578-9.
218H azor é mencionada, e.g., nos textos execratórios egípcios do século 19, nas cartas de M ari
(século 18), nas cartas de A m arna (século 14) e assim por diante.
274 A H I S T Ó R I A D E ISR A E L , D E A B R AÃO A T É O P E R Í O D O PER SA
superiores a 1288 °C. Sob esse calor intenso, as paredes de tijolo de barro vitriíicaram , as
placas de basalto trin caram e os utensílios de argila derreteram .
Q u e m quer que te n h a incendiado a cidade tam b ém destru iu d eliberadam ente as
estátuas do palácio. N o m eio das cinzas, en tre as estátuas cananeias com form a hu m an a,
descobrim os a m aior já enco n trad a em Israel. E sculpida n u m bloco de basalto que deve
te r pesado m ais de u m a to nelada, a estátu a de cerca de 90 cm de altura foi desp ed a
çada em aproxim adam ente cem fragm entos espalhados em u m raio de cerca de 1,8 m .
A cabeça e as m ãos dessa estátua e de várias outras estavam faltando, ten d o sido ap aren
tem en te decepadas pelos conquistadores da cidade.
Q u e m m utilo u as estátuas de H azo r? Q u e m incen d io u o palácio? Q u e m d estruiu
essa rica cidade cananeia?219
Q uem , de fato, fez isso? Yigael Yadin, que entre 1955 e 1958 e entre 1968 e
1972 dirigiu a única outra escavação de grande porte no local, estava convencido
de que a destruição colossal que deu fim à H azor do período do Bronze Recente
foi obra de Josué e dos israelitas invasores e, em consonância com sua aceitação de
um a conquista no século 13, ele atribuiu à destruição a data aproximada de 1230
a.C. Para Ben-Tor, atual diretor de escavações, à luz dos dados disponíveis, a datação
feita por Yadin revela “confiança excessiva”; ele se dispõe a afirmar apenas que a
destruição deve ter ocorrido no século 14 ou 13 a.C.220 Prevê, contudo, que estudos
adicionais podem confirmar a data do século 13.
Ben-Tor tam bém tende a atribuir a destruição aos israelitas, em bora manifes
te um a opinião mais cautelosa do que a de Yadin. As estátuas cananeias e egípcias
mutiladas descobertas em meio aos destroços da destruição final de H azor são
especialmente significativas. Q uem poderia ter sido responsável por essas m u
tilações e pela destruição final da H azor do Bronze Recente? O raciocínio de
Ben-Tor é o seguinte:
N o que diz respeito aos povos do mar, H a z o r está localizada m u ito n o in te rio r para
ser de algum interesse p ara os com erciantes m arítim os. A dem ais, en tre as centenas de
cacos de recipientes de b arro recuperados em H azor, não existe u m único sequer que
possa ser atribuído à conhecida coleção de recipientes usados pelos povos do mar.
Isso nos deixa som ente com os israelitas.221
221Ibidem , p. 38.
222Ibidem , p. 38-9.
123Judges, p. 189.
22AJoshua, p. 214, nota 1.
2 76 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA
225Redating, p. 188-9.
22(,Ibidem , p. 189.
22/E m bora m ereça séria consideração, a tese de Bimson não alcançou m uitos seguidores que escre
vam em defesa dessa posição. E possível que estudiosos simpáticos à ideia relutem em receber ataques
verbais, como os que B. H alpern faz em “Radical exodus redating fatally flawed”, B A R ev 13, n. 6 (1987),
p. 56-61.
22%Redating, p. 194.
229“Further light on biblical H azo r”, B A 20 (1957), p. 34-47, citação na p. 44.
230“'Hie third season o f excavating at H azo r”, BA 21 (1958), p. 30-47, citação na p. 31.
231Redating, p. 193.
232Ibidem , p. 200.
O ESTABELECIM ENTO NA TERRA 277
e Baraque tenha sido a segunda metade do século 13, ligando, desse modo, aquela
vitória à destruição da cidade do Bronze M édio e permitindo um a leitura simples e
direta da nota existente em Juizes 4.24, segundo a qual “o poder dos israelitas sobre
Jabim, rei de Canaã, tornou-se cada vez maior, até que eles o destruíram”.233
Nossa análise de H azor poderia se estender um pouco mais, mas já vimos talvez
o suficiente para concluir que é possível defender razoavelmente vários cenários,
embora nenhum deles esteja totalmente resolvido.234 Por exemplo, será que, em uma
primeira análise, a presença de estátuas cananeias e egípcias na H azor do século
13 e sua mutilação aparentemente feita por israelitas não geram problemas para a
concepção de que os israelitas comandados por Josué haviam anteriormente con
quistado e destruído a cidade? A resposta elementar a tal questionamento é que os
ventos e os compromissos políticos oscilam, especialmente no transcorrer de longos
períodos. Por exemplo, depois de um período cada vez m enor de controle egípcio,
é possível que Seti I (c. 1294-1279 a.C.) tenha conseguido restabelecer a soberania
sobre H azor235 (o que talvez tenha possibilitado um a ótim a oportunidade para
reerguer estátuas egípcias ali).
As peças do quebra-cabeça podem ser encaixadas de várias maneiras e no
momento nenhum a é obviamente a correta. A esta altura o melhor é não ser de
masiadamente detalhista ou dogmático quanto a qualquer reconstrução específica.
Podemos esperar que outras escavações e interpretações esclareçam de forma mais
completa a potencial relação entre texto e artefato, mas, no presente, tudo o que
podemos dizer é que a arqueologia de H azor não oferece um a confirmação óbvia
do quadro bíblico, tampouco o contradiz.
Laís/D ã
D e acordo com Juizes 18, o povo “despreocupado e tranqüilo” de Laís (v. 7) caiu nas
mãos israelitas não no transcorrer da conquista, mas algum tempo depois, quando
um contingente de danitas se dirigiu rumo ao norte em busca de uma alternativa
para o território que lhes havia sido designado, o qual consideravam difícil de
ocupar. Espremidos entre Efraim, ao norte, e Judá, ao sul, e limitados por Benjamim
a leste e o mar M editerrâneo a oeste (cf. Js 19.40-46), os danitas descobriram que
233Ibidem , p. 199.
234E m tais questões é difícil ser exato. Por exemplo, B. H alpern, que é codiretor da escavação em
M egido, observa que em sítios como M egido e H azor “é possível determ inar apenas aqueles que des
truíram os últim os estratos; no caso, foram os assírios do final do oitavo século” (D a v id s secret demons:
Messiah, murderer, traitor, king [G rand Rapids: Eerdm ans, 2001], p. 473).
235Veja A. F. Rainey, “H a zo r”, in: G . W . Bromiley, org., The International standard Bible encyclopedia
(G rand Rapids: Eerdm ans, 1982), vol. 2, p. 637.
278 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O P ER S A
236E m “D an (place)”, A . Biran, que dedicou boa parte de sua vida à escavação de L aís/D ã, oferece
um a descrição sucinta da arqueologia desse sítio (A B D , vol. 2, p. 12-7); cf. tam bém D . W . M anor, “L aish
(Place)”, in: A B D , vol. 4, p. 130-1.
237A . Biran, “To the god w ho is in D an”, in: ibidem , org., Temples and high places in biblical times
(Jerusalem: the Nelson G lueck School o f Biblical Archaeology o f H ebrew U nion College—Jewish
Institute ofR eligion [hebraico], 1981), p. 142-51.
238M anor, “Laish”, p. 130.
23,A . M alam at, “Syro-Palestinian destinations in a M ari T in inventory”, I E J 2 1 (1971), p. 31-8.
240Veja A N E T , p. 242.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 279
...um núm ero relativam ente grande de covas, algum as revestidas com pedras, presente
em todas as áreas escavadas indica a existência de u m novo estilo de vida. A s covas ou
silos lem bram construções sem elhantes às encontradas n a região m ontanhosa de Ju d á e
B enjam im , denom inadas “covas de estabelecim ento” e pertencentes ao período israelita.241
Biran também observa que no início da Idade do Ferro surgem os jarros “de boca
estreita”,242 o que se harmoniza bem com a conquista da cidade pelos israelitas. Há,
porém, vestígios de incêndio? Embora M anor afirme que “no sítio arqueológico não
se encontrou nesse horizonte de transição nenhum indício de destruição generalizada
por fogo”,243 Biran de fato menciona que “existem em um lugar ou outro indícios visí
veis de incêndio, e em alguns pontos as covas foram construídas sobre uma camada de
seixos estéril”.244Tendo tomado D ã como “exemplo no exame da abordagem sintética
da pesquisa bíblica, histórica e arqueológica”, Biran conclui que, no que diz respeito
à migração danita descrita em Juizes 18, “não há nenhum motivo para duvidar da
historicidade do acontecimento ou da narrativa, ainda que a data dessa migração não
esteja de modo algum determinada”.245 Biran não está sozinho em sua posição de que
existem convergências entre a arqueologia de D ã e o relato bíblico da destruição de
Laís pelos danitas (Jz 18.27). Stager resume a mesma posição da seguinte forma:
E m suas escavações de Tel D a n , A v rah am B iran descobriu recentem ente indícios dessa
destruição [i.e., Jz 18.27], Sobre as ruínas de u m a p róspera cidade da Idade do B ronze
R ecente foi descoberto u m assentam ento consideravelm ente m ais pobre e rústico.
H av ia covas de arm azen am en to e u m a variedade de jarros de boca estreita usados com o
recipientes, m as n en h u m a ou quase n en h u m a cerâm ica filisteia pintada. A s tradições
bíblicas e os dados arqueológicos convergem tão b em que não p ode haver n en h u m a d ú
vida de que os danitas p erten ciam à confederação israelita e não à dos povos do m ar.246
241“D an”, in: Perdue; Toombs; Johnson, orgs., Archaeology and biblical interpretation, p. 101-11,
citação na p. 105.
242Ibidem .
243“Laish”, p. 131.
244“D an”, p. 106.
245Ibidem , p. 101 e 105-6 respectivamente.
246“Forging an identity”, p. 167. O comentário de Stager sobre os povos do m ar revela seu ceticis
m o a respeito da ideia comum ente sugerida no meio acadêmico de que “os danitas não faziam parte de
Israel, mas, na verdade, eram m em bros de um a confederação de povos do m ar e devem ser identificados
com os danaans de H om ero e os denyen da inscrição de Ramessés I I I ” (ibidem).
280 A H I S T Ó R I A D E ISR A E L , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA
Gibeão
Ainda que Gibeão — ao contrário de, por exemplo, Jericó, Ai ou Hazor — não
ocupe um papel tão central nos debates sobre o surgimento de Israel em Canaã,
essa cidade não é irrelevante. N a Bíblia, é mencionada pela primeira vez em Josué 9,
no relato sobre a astúcia gibeonita que levou Israel a estabelecer a primeira aliança
251E bem provável que os gibeonitas e as cidades com as quais estavam associados (veja Js 9.17) não
fossem cananeus nativos, tendo m igrado do norte após o colapso do Im pério H itita (para um resumo
de dados onomásticos e arqueológicos, veja Hess, “E arly Israel”, p. 127). Sobre a possível identificação
dos heveus (a designação dos gibeonitas em Js 9.7) com os hurrianos não semitas, veja D . W . Baker,
“I Iivitcs”,y/BD, vol. 3, p. 233-4. Fora da Bíblia, a prim eira m enção a Gibeão é feita pelo faraó Sheshonq
I {A N ET, p. 242).
252P. M . A rnold, “G ibeon”, in: A B D , vol. 2, p. 1010.
2ílHistory, p. 72.
2!4Veja Chavalas; Adam thw aite, “Archaeological light”, p. 83; cf. Kitchen, “Egyptians and
H ebrew s”, p. 108.
255E.g., Y. Aharoni, The land o f the Bible: a historical geography, tradução para o inglês de A. F.
Rainey, ed. rev. e amp. (Philadelphia: W estm inster, 1979), p. 215-6.
256Para amostras de fotografias e desenhos, veja J. B. Pritchard, Gibeon: Where the sun stood still: the
discovery o f a biblical city (Princeton: Princeton University Press, 1962), p. 73.
257Ibidem , p. 156.
282 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO A T É O P E R Í O D O P E R S A
Siló
A história bíblica de Siló começa em Josué 18.1, passagem em que a cidade aparece
como o lugar em que se concluiu a distribuição dos territórios tribais (19.51). Ali, as
cidades de refugio foram designadas, e as cidades levíticas, especificadas (Js 20— 21).
Desse local as duas tribos e meia partem para voltar à sua herança na Transjordânia
(22.9). Ali também os israelitas se reúnem para guerrear, quando ouvem que as tribos
que haviam partido para a Transjordânia construíram um altar junto ao Jordão (22.12).
Siló se tornou o local de uma festa anual (Jz 21.19) e, por fim, a sede do sacerdócio
liderado por Eli (ISm 1.3 e passim), além do lugar em que a arca da aliança ficava
guardada (ISm 4.3; 14.3). De acordo com o Salmo 78 e Jeremias 7, Siló foi o primeiro
santuário central (“a tenda da sua morada [i.e., de Deus] entre os homens” [SI 78.10];
“onde primeiro fiz habitar o meu nome” [Jr 7.12]), mas se presume que foi destruída
ou pelo menos abandonada (Jr 7.14; 26.6,9) depois da batalha de Ebenézer (ISm 4).
Essa breve recapitulação apresenta o quadro bíblico. O que a arqueologia tem a dizer?
Escavações recentes que Israel F in k elstein fez em Siló confirm aram a interpretação
dada p o r W . F. A lb rig h t aos resultados da expedição dinam arquesa realizada an terio r
m ente. Siló (estrato V ) floresceu com o u m grande centro efraim ita n a p rim eira m etade
do século 11 a.C . P ara as tribos israelitas, seu tem p lo foi u m im p o rta n te local de p ere
grinação anual no o utono, d u ran te a festa do vin h o (e do ano novo?). A destruição desse
santuário p o r volta de 1050 a.C . pelos filisteus repercutiu p o r séculos n a m em ória dos
israelitas (SI 78.60-64; J r 7.12).271
Monte Ebal
Enquanto o suposto local de adoração em Siló, ao que tudo indica, não sobreviveu à
ação do tempo, o lugar de adoração no M onte Ebal pode ter tido um a sorte melhor,
pelo menos de acordo com A. Zertal, que escavou o sítio arqueológico. Em um rela
to fascinante de exploração e interpretação arqueológicas,274 Zertal descreve como,
no decorrer de um a análise da superfície da região, ele e sua equipe encontraram
ao acaso, no M onte Ebal, uma estrutura cuja identidade não era clara. Foi só na
terceira temporada de escavações que um a resposta começou a surgir. As primeiras
teorias sobre a natureza da estrutura principal, um retângulo de pedras não lavradas
que media cerca de sete metros por nove e chegava a uma altura de aproximada
mente três metros, incluíam a ideia de que seria uma casa de fazenda ou talvez uma
torre de vigia, mas essas interpretações se deparavam com um problema após outro.
275Ibidem , p. 31.
276Ibidem , p. 35.
277“Joshua’s altar — an Iron A ge I w atchtow er”, B A R ev 12, n. 1 (1986), p. 42,44-9.
278“H ow can Kempinski be so wrong!”, B A R ev 12, n. 1 (1986), p. 4 3 ,4 7 ,4 9 -5 3 .
279Archaeology o f the land o f the Bible, p. 350.
2s0Ibidem . Cf. o otim ism o cauteloso de Isserlin, em The Israelites, p. 242. Para um resumo mais
completo dos dados e do debate, veja Hess, “Early Israel”, p. 135-7.
286 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO A T É O P E R Í O D O PER SA
Josué ter construído um altar no M onte Ebal”281 (em D t 27.1-8, Moisés prescreve
a construção do altar de Ebal, e Js 8.30,31 descreve sua construção, que finalmente
aconteceu). Zertal baseia essa ligação em três itens relacionados: a localização, a
natureza do local e o período.
Entretanto, surge um a pergunta interessante neste ponto. D e acordo com
Zertal, o sítio revela pelo menos dois níveis distintos: o que descrevemos e um
mais antigo. O nível mais antigo consiste em “um círculo feito de pedras naturais
de tamanho médio assentadas sobre leito rochoso e localizadas no exato centro
geométrico da estrutura [posterior]”.282Assim, a instalação maior e mais elaborada —
à qual Zertal, em seu artigo, dedica mais atenção — fica bem em cima da estrutura
anterior, o que parece indicar que a estrutura mais antiga deve ter sido importante
para os construtores da mais recente. N a descrição feita por Zertal, a estrutura mais
antiga e circular media aproximadamente dois metros de diâmetro e estava “cheia de
um material ralo e amarelado que ainda não identificamos. Em cima dessa camada
meio amarela havia uma camada fina de cinzas e ossos de animais”.283 Zertal coloca
os dois níveis no período do Ferro I. Em termos específicos, ele situa o nível mais
antigo na “segunda metade do século 13 a.C. e o mais recente na primeira metade
do século 12”.284 Embora, com base em formas distintas de cerâmica encontradas
no local e em um escaravelho egípcio passível de datação,28S a data da estrutura
posterior e maior possa ser razoavelmente estabelecida, a da estrutura mais antiga
parece menos segura. Hess manifesta a devida cautela quando escreve que “o nível
mais antigo se estende até cerca de 1200 a.C. e o nível mais recente está limitado a
um a data até cerca de 1150 a.C.”286Talvez deva permanecer aberta a questão de por
quanto tempo o nível mais antigo existiu até que a nova estrutura fosse construída
em cima dele.
A n tes e d u ran te o estabelecim ento dos povos do mar, sítios cananeus revelam nível
baixo — m as ainda assim real — de consum o de carne de porco. P o r outro lado, as
prim eiras cam adas filisteias indicam u m nível b em elevado de consum o de porco.
M as os sítios israelitas nas áreas m o n tan h o sas revelam u m a ausência quase to tal de
porcos, m ostrand o , além disso, preferência, em geral, p o r carneiros a bodes.290
[Finkelstein] defende que esses prim eiros habitantes das regiões altas não chegaram ali
com o invasores que conquistaram o local, nem basicam ente com o im igrantes pastoris
vindos do leste, nem ainda com o cam poneses tam bém desalojados vindos do oeste. A ntes,
afirm a que eram em sua m aioria descendentes da população local do período da Idade
do B ronze M édia, a qual, depois da destruição de suas cidades, p or volta de 1550 a.C.,
passou a ser um a com unidade pastoril, m as cerca de três séculos depois voltou a te r um
m odo de vida sedentarizado. Essa parte de sua interpretação continua sem comprovação, e
A . Z ertal, u m de seus colegas israelenses, p o r exemplo, optaria pela im igração proveniente
do vale do Jordão. A té que a origem desses supostos grupos nôm ades pastoris seja arqueolo-
gicam ente identificada, a questão deve necessariam ente perm anecer indefinida.291
290H alpern, D a v id ’s secret demons, p. 457. Veja a nota 59 para um a bibliografia mais completa.
™The Israelites, p. 62. Finkelstein tam bém reconhece que a expansão demográfica na região m on
tanhosa geralmente ocorreu do leste para o oeste, o que ele associa a fatores “ecológicos e socioeconô-
micos” (“The rise o f early Israel”, p. 27).
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 289
Assim, com base apenas nos dados arqueológicos, sabemos que: 1) no início
da Idade do Ferro, centenas de novas aldeias surgiram repentinamente na região
montanhosa; 2) os habitantes dessas aldeias evitavam o consumo de carne de porco;
3) os novos moradores podiam muito bem ter vindo de algum outro lugar ou (caso
aceitemos os estudos de Finkelstein que apontam para indícios de grande número de
comunidades pastoris na região durante os anos de crise da Idade do Bronze Recente)
poderiam já estar na região há centenas de anos. No comentário sucinto de Hoffmeier,
“as aldeias não nos dizem por quanto tempo antes de se instalarem ali os moradores
teriam sido pastores na região nem se, antes de se estabelecerem em uma vida seden
tária, teriam vindo do interior de Canaã ou de fora, ou mesmo de ambos”.292
2nhrael in Egypt, p. 32. Bim son defende que “Israel existia antes da m udança para o novo padrão de
assentam ento que supostam ente deu origem a Israel” (“O ld Testam ent history and sociology”, p. 140;
veja nas notas 66 e 68 um breve resumo do debate gerado pela opinião de Bimson).
290 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O P ER S A
293N . A. Silberm an (“W h o were the Israelites”, Archaeology 45, n. 42 [1992], p. 22-30) sustenta que
populações anteriorm ente sedentarizadas, as quais mais tarde foram identificadas como israelitas, vive
ram em C anaã como nômades e pastores durante vários séculos, antes de começarem a se sedentarizar
de novo em aldeias recém fundadas na região m ontanhosa no fim do século 13 (p. 29-30). E m favor
da ideia de que após um a conquista israelita pode ter havido um período de pastoralismo antes de os
lugares serem reocupados, E. Yamauchi observa que “no m undo egeu, depois da destruição de vários
assentam entos micênicos atribuída por tradições gregas aos dóricos, que eram pastores gregos vindos do
norte, tam bém ocorre um a considerável lacuna tem poral até a reocupação de povoados” (“The current
State o f O ld Testam ent historiography”, p. 34).
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 291
Se formos identificá-la com et-Tell, a cidade de Ai não tem quase nada que se
harmonize com o relato bíblico de sua derrota e incêndio, mas esse é um grande
“se”. Talvez, ao contrário do que geralmente se presume, não se deva identificar
Betei, a cidade aliada de Ai, com a m oderna Beitin, mas com Bireh, o que sig
nificaria tam bém que A i deveria ser identificada com algum outro local (e no
m om ento estão fazendo pesquisas nesse sentido). H azor revela vestígios de vários
incêndios entre o fim da Idade do Bronze M édia e a Idade do Bronze Recente.
O últim o incêndio na Idade do Bronze Recente foi particularm ente destruidor,
e estátuas cananeias e egípcias foram mutiladas, o que levou Ben-Tor, o diretor
de escavações, a especular que os mais prováveis incendiários foram os israelitas
(os da Esteia de M erneptá, segundo acredita). Em Laís (Tel D an), os indícios
de incêndio são irregulares, mas existem evidências claras de que a cidade foi
destruída na transição do Bronze Recente para o Ferro I e reocupada por um povo
cuja cultura material era tipicam ente “israelita”. Biran, diretor de escavações em
Tel D an, bem como vários outros arqueólogos de renome, como Stager, sentem -
-se à vontade para afirmar que existe aí um a clara correspondência com o relato
bíblico da migração danita narrada em Juizes 18.
O utros locais examinados foram Gibeão, Siló e o M onte Ebal. Em bora
alguns considerem Gibeão um problem a, devido à ausência de ruínas no período
do Bronze Recente, Pritchard, que escavou o sítio, acreditava que vestígios de
um a cidade cosm opolita do Bronze Recente estavam presentes e cria que suas
ruínas estivessem na grande área não escavada do local. Siló revela indícios de
haver sido um centro de adoração na região m ontanhosa de Efraim durante o
período do Bronze Recente e de ter sido destruída por volta de meados do século
11 a.C ., o que com bina de form a satisfatória com a descrição bíblica geral. Sem
dúvida alguma, a estrutura singular que Z ertal descobriu no M onte Ebal conti
nuará gerando debates por algum tem po, mas, sem dúvida, parece possível que
tenha sido um altar, talvez erigido para rem em orar um altar mais antigo erigido
ali por Josué.
O ra, em que ponto nos encontramos? Nosso estudo dos dados arqueológicos
foi necessariamente seletivo, e nossas análises dos locais e desse estudo tam bém
não esgotaram o assunto. O ptam os por dedicar tem po a alguns lugares que, de
acordo com o relato bíblico, são mais im portantes, em vez de tentar realizar um
estudo superficial de todos os locais que poderiam ser m encionados. N o entanto,
no que diz respeito a esses sítios arqueológicos, é provável que o que descobrimos
represente o que descobriríamos caso empreendêssemos um exame mais exaus
tivo; na verdade não descobrimos nesses locais nada que indique falsidade na
descrição bíblica da história inicial de Israel em Canaã. A m aneira de avaliar
os dados variará, é claro, de pessoa para pessoa. E m nossa opinião, resultante
292 A H I S T Ó R I A D E ISR A E L , D E ABRAÃO A T É O P E R Í O D O P ER S A
CONCLUSÃO
294Pelo m enos quanto ao livro de Juizes, D ever concorda que, “conquanto a arqueologia m oderna
possa pôr em dúvida a historicidade de Josué, ela fornece um a corroboração impressionante do relato
de Juizes, até em detalhes obscuros” (“Israel, H istory o f ”, in: A B D , vol. 3, p. 555). O veredito menos
favorável que D ever faz do livro de Josué é, em grande parte, resultado de seguir A lbright na leitura
errônea da natureza da conquista descrita no livro.
295“The rise o f early Israel”, p. 7.
296Cf. Hess, “E arly Israel”, p. 139.
O E S T A B E L E C I M E N T O NA T E R R A 293
que vieram a existir na Idade do Ferro I não fosse formada por pessoas que haviam
acabado de chegar à terra de Canaã, mas pastores que moravam em Canaã já havia
algum tempo. Talvez tenham de fato vivido fora da terra (ausência de consumo de
carne de porco?) e sua chegada teve algum papel na precipitação dos anos de “crise”
da Idade do Bronze Recente.
O caráter provisório destas observações finais reflete o fato de que, em um sen
tido muito real, a reconstrução histórica “não é definida” pelos dados disponíveis.
Assim como no julgamento em um tribunal é impossível a certeza absoluta sobre
todos os detalhes de determinada reconstrução, é impossível comprovar um a de
term inada reconstrução — pelo menos um a que agrade a todos. Tudo o que se
deveria desejar é apresentar um a reconstrução razoável que faça total justiça ao
maior conjunto de dados disponíveis. Por mais im portante que sejam as provas
materiais — tanto na história quanto nos tribunais — sem testemunho o passado
continua em grande parte misterioso, exceto talvez no que se refira a aspectos ge
néricos como “estilos de vida” e coisas semelhantes. A menos que alguém faça um
relato, ficamos à mercê de nossos planos imaginários, que podem facilmente criar
tanto fantasias quanto fatos.
N o caso do Israel primitivo em Canaã, os livros de Josué e Juizes apresentam
o primeiro relato e, aceitando a perspectiva desses livros, ele é o melhor de todos.
Suas narrativas são as mais detalhadas e, em muitos aspectos, as mais interessantes.
Nosso objetivo não é reduzir esse relato a um a paráfrase racionalista, embora não
sejamos contra a paráfrase em si; apenas acreditamos que assistir a um a peça de
teatro é mais interessante do que ver um cartaz que anuncia essa peça. Portanto,
nosso objetivo foi investigar a questão sobre se os historiadores, e não apenas os
teólogos e os críticos literários, devem se interessar por essas obras. Perguntamos se
o testem unho bíblico tem coerência interna e se é consistente com os dados exter
nos. Reconhecemos, é claro, que pela própria natureza os dados arqueológicos são
parciais e estão em constante mudança. Reconhecemos que sua importância nem
sempre é óbvia e que é necessário a interpretação na “leitura” de vestígios materiais
tanto quanto na leitura de textos. Reconhecemos que problemas espinhosos ainda
permanecem: Ai foi corretamente localizada? A data da destruição de Jericó foi
corretamente determinada? O que é aquela estrutura encontrada no M onte Ebal?
Reconhecemos, por fim, que a maneira pela qual lemos os dados está, em certa
medida, relacionada a questões mais amplas de como vemos o mundo. No fim das
contas, cremos que os dados arqueológicos que conhecemos não invalidam de modo
algum o testem unho bíblico (desde que tanto o texto quanto o artefato sejam lidos
corretamente) e que existem pelo menos algumas “convergências” promissoras.
E m resumo, portanto, não vemos praticamente motivo algum para que uma
tentativa de escrever um a história do surgimento de Israel em Canaã siga um
294 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E ABRAÃO A T É O P E R Í O D O PER SA
caminho radicalmente diferente daquele que os textos bíblicos sugerem. É claro que
é possível trabalhar com muitos fatores não tratados nos textos bíblicos, pois esses
textos são seletivos e têm um viés teológico. Por exemplo, ao se pintar um retrato
mais diversificado do período, com certeza é legítimo introduzir fatores de primeiro
e segundo níveis (desde que seja possível determiná-los) — mas não encontramos
nos dados examinados nada que possa invalidar o esboço bíblico básico.
Capítulo 8
A Monarquia Antiga
Os livros de 1 e 2Samuel talvez sejam mais conhecidos por seus enredos cativantes:
o jovem Samuel correndo até Eli para enfim descobrir que é o Senhor quem o está
chamando; Saul saindo em busca de animais extraviados e encontrando um reino;
o jovem Davi derrotando o gigante Golias sem usar espada ou lança, mas lutando
em nome do Senhor dos Exércitos; a revolta de Absalão abatida por seus longos
cabelos presos em um galho de um a árvore; e assim por diante. Para o historiador,
porém, esses livros têm muito mais a oferecer do que enredos que prendem a aten
ção. Conform e observado por R. R Gordon, “1 e 2Samuel registram um a mudança
estrutural dentro da sociedade israelita, mudança essa que teve as mais profundas
conseqüências políticas e religiosas”.1 Q uando o livro de Samuel2 inicia, o período
dos juizes está chegando ao fim e a sociedade israelita está caminhando para se
tornar um a monarquia. O livro de Juizes term inou com repetidos lembretes de que
naqueles dias não havia rei em Israel e cada um fazia o que bem entendia. N o início
da obra de Samuel, a situação praticamente não mudou — até mesmo os sacerdotes
filhos de Eli parecem fazer o que lhes agrada (2.12-17) — , porém a monarquia já
está no ar. O Cântico de Ana, registrado em ISam uel 2.1-10, faz referência explícita
a um rei que viria, afirmando que o Senhor “dará força ao seu rei e exaltará o poder
do seu ungido” (v. 10). Entretanto, antes de analisar o primeiro rei de Israel, deve
mos conhecer a figura central que conduziu os primeiros reis ao trono. Os capítulos
*R. P. G ordon, 1 & 2 Samuel, O T G , série editada por R. N . W hybray (Sheffield: JSO T, 1984),
p. 9. D aqui em diante essa obra será indicada p or 1 & 2 Samuel (O T G ) para distingui-la de outra obra
de G ordon: I & I I Samuel: a commentary, L B I (G rand Rapids: Regency Reference Library, Zondervan,
1986), que será indicada sim plesm ente por I & I I Samuel.
2D e acordo com Eusébio e Jerônim o, 1 e 2Sam uel eram originalm ente um único livro. Parece que
a divisão em dois segue a prática da Septuaginta (daqui em diante, LXX). Para um a análise do assunto,
veja B. S. Childs, Introduction o f the Old Testament as Scripture (Philadelphia: Fortress, 1979), p. 266-7.
Q uando o contexto não dá m argem a nenhum a ambigüidade, às vezes nos referiremos a l e 2Samuel
simplesmente como Samuel ou como o livro de Samuel.
296 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E A B R AÃO A T É O P E R Í O D O PER SA
3As duas citações foram tiradas de excertos encontrados na coletânea The Hebrew Bible in literary
criticism, organizada por A . Prem inger; E. L. G reenstein (New York: Ungar, 1986, p. 556-7). Cf. tb.
Long, “First and Second Samuel”, in: L. Ryken; T. L ongm an III, orgs., A complete literary guide to the
Bible (G rand Rapids, Z ondervan, 1993), p. 165-81.
4Veja, neste cap., a seção intitulada: “A ascensão de Davi e a decadência e a m orte de Saul”,
p. 328-47.
A M O N A RQ U IA A N T IG A 29 7
O livro de Samuel não é o único texto que descreve o período da M onarquia Unida
em Israel. Além dele, há os dois livros de Crônicas, sendo que o texto de lC rônicas
é aproximadamente paralelo ao material encontrado em Samuel (i.e., Saul e Davi)
e o de 2Crônicas é paralelo aos dados presentes em Reis (i.e., o período que vai
do reinado de Salomão até o Exílio babilônico), acrescentando a informação espe
rançosa do decreto de Ciro, que antecipa o retorno do exílio. A inda que algumas
pessoas acusem o cronista de plagiar e suprim ir os textos de Samuel-Reis, é mais
apropriado ver Samuel-Reis e Crônicas como histórias sinóticas, como têm sido
denominados. Isso significa que são duas descrições diferentes — ou “quadros”,
para quem assim preferir — (aproximadamente) do mesmo assunto, e é mais pro
veitoso dois quadros em vez de um só. Cada um apresenta os próprios interesses,
o próprio viés, a própria perspectiva e assim por diante. Não se deve, porém, ver a
obra posterior (1 e 2Cr) como um a pintura que se sobrepõe intencionalm ente à
prim eira (Samuel-Reis). N a realidade, conforme observado com frequência, parece
que Crônicas supõe que seus leitores já estejam familiarizados com Samuel-Reis.
R. Dillard expressa a questão com clareza: “os vários pontos em que [o cronista]
supõe que o leitor esteja familiarizado com o relato de Samuel-Reis mostram que
298 A H I S T Ó R I A D E ISR A EL , D E A B R AÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA
E u m erro básico de in terpretação in ferir com base nesse m éto d o de seleção [i.e., o
m éto d o do cronista] que o p ro pósito do cronista foi su p rim ir a tradição m ais antiga
ou substituí-la pelo próprio relato. H á duas razões que depõem diretam ente contra essa
suposição. P rim eiro, é freqüente o cronista supor que seus leitores te n h a m conhecim en to
de to d a a tradição, a p o n to de seu relato ser p raticam en te incom preensível se não houver
u m a relação im plícita com os outros (cf. l C r 12.19ss.; 2 C r 3 2.24-33). Segundo, m esm o
quando, na escolha do m aterial, o cronista o m ite u m relato p resente em Sam uel-R eis,
ele frequentem en te faz referências explícitas a ta l relato p o r m eio de fontes. P o r exem
plo, o cronista o m ite a referência à eleição divina de Jeroboão (IR s 11), m as sua m enção
explícita à profecia de A ías (2 C r 9.29) elim ina u m a teoria de supressão consciente.6
s“T h e reign o f Asa (2 Chronicles 14— 16): an example o f the C hroniclers theological m ethod”,
J E T S 23 (1980), p. 207-18; citação na p. 214.
6Introduction to the Old Testament as Scripture, p. 646-7.
7E altam ente questionável im aginar que, como alguns defendem, “os diversos poemas, tradições,
conjuntos literários e livros que constituem o A T ” pudessem ter sido todos compostos no período
exílico ou pós-exílico: “os vários escritos bíblicos podem ter chegado à sua form a final e definitiva no
período pós-exílico, mas parece improvável que o período persa seja testem unhada própria composição
de todos esses livros” (G . N . Knoppers, “T h e historical study o f the monarchy: Developm ents and de-
tours”, in: Baker; A rnold, orgs., Theface o fO ld Testament studies, p. 207-35; citações na p. 212). Acerca
da questão da “form a definitiva”, a teoria de um a H istória D euteronom ista que se estende de D eute
ronôm io a 2Reis tem prevalecido no meio acadêmico desde M artin N o th , embora atualm ente alguns
prefiram falar de um a “H istória Prim ária”, que compreende Gênesis— 2Reis, distinguindo-a de um a
“H istória Secundária”, que abrange a obra do cronista e Esdras— Neemias. Veja, e.g., D . N. Freedman,
“T h e earliest Bible”, in: M . P. 0 ’C onnor; D . N . Freedm an, orgs., Backgrounds fo r the Bible (W inona
Lake: Eisenbrauns, 1987), p. 29-37; Idem , “T h e nine com m andm ents: the secret progress o f Israels
sins”, Bible R eview 5, n. 6 (1989), p. 28-37, 42; P. J. Kissling, Reliable characters in theprim ary history:
profiles ofMoses, Joshua, Elijah, andElisha, JS O T S 224 (Sheffield: Sheffield Academ ic Press, 1996).
A M O N A RQ U IA A N T IG A 299
8Cf. R. Dillard, “D avids census: perspectives on 2 Samuel 24 and 1 Chronicles 21”, in: W . R.
Godfrey; J. L. Boyd, orgs., Through Christs word: a Festschrift fo r Dr. Philip E. Hughes (PhiUipsburg:
Presbyterian and Reformed, 1985), p. 94-107, esp. p. 99-101.
9Para um a análise mais ampla e detalhada de todas essas questões, veja V. P. Long, The art o f bibli
cal history, F C I 5, editado por M oisés Silva (G rand Rapids: Z ondervan, 1994), p. 76-86.
300 A H I S T Ó R I A D E ISR AEL , D E A B R AÃO ATÉ O P E R Í O D O PER SA
mD a v id ’s secret demons: Messiah, murderer, traitor, king (G rand Rapids: Eerdm ans, 2001), p. 75.
n Ibidem , p. 99,101.
12E.g., sobre a “H istória da ascensão de Saul”, veja M . W h ite, “Searching for Saul: w hat we really
know about Israels first king”, B ibleR eview 17, n. 2 (2001), p. 22-9, 52-3.
nA history o f ancient Israel andJudah (Philadelphia: W estm inster, 1986), p. 126.
A M O N A R Q U IA A N T IG A 301
D e m odo geral não se pode negar a ideia de que fontes foram usadas na compo
sição de 1 e 2Samuel. R. R G ordon escreve: “O fato de que 1 e 2Samuel abrangem
várias fontes que foram unidas umas às outras para formar uma narrativa contínua
que culmina com o reinado de Davi é um a conjectura perfeitamente razoável”.15
Aliás, é possível que tal conjectura esteja em consonância com indicações explícitas
desse tipo de atividade composicional e literária nos livros de Reis e Crônicas. Dessa
forma, a tendência entre os estudiosos de identificar, por exemplo, “três narrati
vas originalmente independentes” nos livros de Samuel — a Narrativa da Arca, a
História da Ascensão de Davi e a Narrativa da Sucessão — não exige necessaria
mente alguma objeção. U m a divisão tripartite como essa pelo menos “oferece uma
análise acessível da maior parte do material desses livros”,16 não im portando qual
a ideia que se tenha das teorias das fontes e por mais que tal análise requeira um
exame complementar. Gordon, por exemplo, tem consciência de que os livros de
Samuel abrangem bem mais do que as três “narrativas independentes” citadas com
mais frequência: “Além delas, tradições acerca de Siló, do início da monarquia e dos
reinados de Saul e Davi foram incluídas para ajudar a formar a vivida montagem
literária, teológica e histórica que são 1 e 2Samuel”.17
A té aqui tudo bem. Infelizmente, porém, muitas tentativas de adivinhar as
fontes originalmente independentes nos textos bíblicos se dedicam tanto a separar
as várias passagens que não dedicam tempo suficiente para identificar qualquer tipo
de coerência narrativa já existente no texto em sua forma atual. E, logo que se reali
zam a divisão e a reorganização do texto, causando um a ruptura no fluxo narrativo
original, o entusiasmo com leituras mais atentas dos textos em sua forma atual
diminui, junto com a probabilidade de que os textos recuperem um dia sua condição
de um enredo completo que faça sentido.
O que defendemos é que recorrer às teorias das fontes é proveitoso — se é que
de fato pode ser proveitoso — somente quando o texto na forma atual não oferece
um sentido adequado. Sem dúvida, é justam ente a crença de que os textos que
I4Ibidem , p. 126-8.
151 & 2 Samuel (O T G ), p. 12.
“ Ibidem .
17Ibidem .
302 A H I S T Ó R I A D E I S R A E L , D E ABRAÃO A T É O P E R Í O D O P E R S A
possuímos são até certo ponto incoerentes que tem motivado várias gerações de
estudiosos a resolver criticamente a “confusão” com as fontes. Contudo, por volta
do último quarto do século 20, começaram a haver avanços significativos no meio
acadêmico na análise literária de textos bíblicos, em particular na área da poética
narrativa, e atualmente um número bem grande de estudiosos acredita que muitos
trechos da narrativa bíblica, considerados problemáticos no passado, perm item de
fato leituras m uito mais coerentes do que os estudiosos de gerações anteriores su
punham .18 Isso, por sua vez, pode conduzir a um a avaliação mais positiva do valor
desses textos como fontes históricas.19 A medida que avançarmos, analisaremos os
assuntos pertinentes em um a abordagem caso a caso. Por enquanto, apenas ressal
tamos a importância de abordar os textos bíblicos com atenção para sua natureza
literária — ou seja, seu modo cênico, sua organização de recursos, sua reticência e
dissimulação, seu emprego de uma variedade de técnicas literárias bastante sofistica
das como jogos de palavras e uso de palavras-chave, caracterização por comparação
e contraste, repetições (com variações), estrutura narrativa, analogias e assim por
diante.20 Com frequência a sensibilidade a um ou mais desses aspectos literários
abre as portas para um a apreciação maior da coerência e da unidade composta das
narrativas bíblicas em sua forma atual, o que por sua vez gera uma percepção mais
clara de seu significado histórico em potencial.
Passando dos textos bíblicos para os extrabíblicos, precisamos ter em mente que
também estes são obras literárias e que, nessas condições, devem ser abordados de
um a forma que leve em conta sua natureza literária e ideológica. Por exemplo, com
frequência se supõe que, embora confirmando a existência de “Davi”, a Esteia de Tel
D an (mencionada anteriormente) na verdade contradiz o texto bíblico na questão
de quem m atou os reis de Israel e Judá mencionados na esteia (foi Hazael ou Jeú?).
Pressupondo que Hazael foi o responsável pela Esteia de Tel D an, Lemaire escreve:
Lem aire prossegue em sua argumentação e cita outro caso (dessa vez em um a
inscrição real assíria) de um a afirmação falsa junto com um relato verdadeiro e
então conclui que “esse texto paralelo nos dá outra indicação de que H azael está
se gabando aqui e de que a esteia de D ã não foi entalhada logo depois de 841,
mas vários anos mais tarde, pelo menos em um período posterior do reinado
de H azael em que dom inava sobre Israel, Judá e a m aior parte da região do
T rans-E ufrates”.22 M as, se H azael está apenas se gabando como os governantes
do A ntigo O riente Próximo geralm ente faziam, será que o emprego do term o
“contradição” é a m elhor m aneira de descrever a diferença entre os relatos bíblico
e extrabíblico? U m a percepção adequada dos gêneros de inscrições régias deve
servir de alerta para não lermos a ostentação de H azael como um a simples decla
ração do que teria acontecido. É comum pessoas que estão no poder reivindicar
para si as realizações de outros.
Com esse breve exemplo, vemos a importância de abordar não apenas os textos
bíblicos, mas também os extrabíblicos com as expectativas literárias adequadas e
com a percepção correta do gênero que estamos examinando. Além disso, é preciso
ressaltar que há poucos textos extrabíblicos relevantes para o estudo da M onarquia
Unida. Um a conclusão provavelmente correta é que agora esses textos ao menos
confirmam a existência de um Davi que aparentemente fundou um a dinastia (a
“Casa de Davi”), mas além disso não nos dizem quase nada. Q uanto às informações
específicas sobre o período em questão, continuamos dependendo em grande parte
do texto bíblico.
Além dos dados textuais, a arqueologia também pode dar sua contribuição.
A arqueologia de Jerusalém, por exemplo, pode fornecer informações contextuais
úteis para ajudar a detalhar a descrição do reinado de Davi, porém, conforme vere
mos, a interpretação dos dados materiais coletados é bem controversa.
21“T h e T e l D an stela as a piece o f royal historiography”,/S O T '81 (1998), p. 3-14; citação na p. 10.
22Ibidem , p. 11.
304 A H I S T Ó R I A D E ISR A E L , D E ABRAÃO ATÉ O P E R Í O D O P ER S A
Saul tin h a [...] anos q uando com eçou a reinar, e reinou [...] e dois anos sobre Israel
(N R S V ).
23A questão cronológica recebe tratam ento mais completo em nossa análise da M onarquia Dividida.
24A té m esmo estimativas dessa data variam ligeiram ente de um estudioso para outro: C ogan a
coloca em 928 a.C.; Finegan, em 931; Hayes e H oker, em 926; e T hiele, em 930. Veja M . Coogan,
“C hronology”, m :A B D ,vol. l ,p . 1002-11 (tabela na p. 1110); J. Finegan, Handbook ofbiblicalchronology:
principies o f time reckoning in the ancient world and problems o f chronology in the Bible, ed. rev. (Peabody:
Hendrickson, 1998), tabela na p. 261; J. H . Hayes; P. K. Hooker, A new chronology fo r the kings o f
Israel andfudah and its implicationsfo r biblical history and literature (Atlanta: John Knox, 1988); Thiele,
Mysterious numbers, nova ed. rev. (G rand Rapids: A cadem ic Books, p. 1983), tabela na p. 10.
A M O N A R Q U IA A N T IG A 305
Saul tin h a [trinta] anos de idade quando com eçou a reinar, e rein o u sobre Israel [qua
renta] e dois anos (N V I).