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J. JULIUS SCOTT JR.

ORIGENS JUDAICA S DO
Novo TESTA MENTO

UM ESTUDO DO
JUDAISMO INTERTESTAMENTARIO
VENDA PROIBIDA

ORIGENS JUDAI CAS DO

Novo Testamento
VENDA PROIBÍDA

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Angélica Ilacqua CRB-8/7057

Scott Jr.,J. Julius


Origens judaicas do Novo Testamento : um estudo do judaísmo
intertestamentário ; tradução de Valéria Lamim Delgado Fernandes. — São
Paulo : Shedd Publicações, 2017.

432 p.
Bibliografia
ISBN: 978-85-8038-058-3
Título original: Jewish Backgrounds o f the New Testament
1. Judaísmo - História 2. Judaísmo - História - Período pós-exílio, 586 a.C.
-210 d.C. 3. Bíblia N.T. I. T ítulo II. Fernandes, Valéria Lamim Delgado

17-1313 CDD-230.09

índices para catálogo sistemático:


!.Judaísm o - História - Período intertestamentário
 VENDA PROIBIDA

J. J u l i u s S c o t t J r .

ORIGENS J UDA I C A S DO

Novo Testamento

Tradução
Valéria Lamim Delgado Fernandes

SHEDD
Copyright © 1995 by J. Julius Scott Jr.
Originally published in English under the title
Customs and Controversies
by Baker Academic,
a division o f Baker Publishing Group,
Grand Rapids, Michigan, 49516, U.S.A.
All rights reserved.

IaEdição - Novembro de 2017

Publicado no Brasil com a devida autorização


e com todos os direitos reservados por
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ISBN 978-85-8038-058-3

Printed in Brazil/ Impresso no Brasil

T radução - Valéria Eamim Delgado Fernandes


R e v is ã o - Rogério Portella
D i a g r a m a ç ã o & C a p a - Edmilson Frazão Bizerra
C om a m o r e a p r e ç o à s d u a s s e n h o ra s J. J u liu s S c o tts

Pirn memória de LaVerne, que me deu à luz,

e para Florence, que me suporta.


Sumário
Ilustrações......................................................................................................9
Prefácio.....................‫־‬................................................................................... 11
Abreviações.................................................................................................. 15
Introdução e definições................................................................................17

P R IM E IR A PA R T E

AS O R IG E N S E O C O N T E X T O D O JU D A ÍS M O IN T E R T E S T A M E N T Á R IO

1. Fontes de informação.............................................................................. 29
2. A geografia da terra de Israel................................................................... 41
3. Visão geral do Antigo Testamento...........................................................53
4. Idéias e instituições do Antigo Testamento.............................................63
5. Visão geral da história do judaísmo intertestamentário e
do Novo Testamento.............................................................................. 75

S E G U N D A PA R T E
AS C R IS E S E RESPO STA S D O JU D A ÍS M O IN T E R T E S T A M E N T Á R IO

6. As crises dos séculos IV e V I................................................................111


7. A resposta geral do judaísmo intertestamentário às crises.................. 127
8. Tentadvas intertestamentárias de reconstrução das instituições
tradicionais (do Antigo Testamento)..................................................... 157
9. Escribas e tradição.................................................................................177
10. Apocaliptismo................. ................................................................... 193
11. Divisões, seitas e grupos.......................................................................207
12. A vida comum no Israel do século I ...................................................251
T E R C E IR A !,A R T E :

O P E N S A M E N T O R E L IG IO S O D O JU D A ÍS M O IN T E R T E S T A M E N T Á R IO :

C O N T E X T O D O S C O S T U M E S E C O N T R O V É R S IA S CRISTÃ O S

13. O pensamento religioso do judaísmo intertestamentário..................287


14. O rim dos tem pos................................................................................307
15. O Reino de D eus.................................................................................321
16. A esperança messiânica........................................................................331
17. Aliança e lei no fim dos tem pos.......................................................... 351
18. Atitudes judaicas intertestamentárias em relação aos gentios............ 361

Epílogo.......................................................................................................383

A P Ê N D IC E S

A. Os livros apócrifos do Antigo Testamento.......................................... 389


B. Os livros pseudepigráficos.....................................................................391
(2 Tratados da Mixná, do Talmude e da Tosseftá......................................... 393
D. A crucificação........................................................................................397
E. A oração judaica diária e a exclusão de cristãos judeus....................... 401
E A literatura apocalíptica e as Escrituras inspiradas...............................403
G. A interpretação da literatura apocalíptica............................................. 407
H. Como funciona a erudição....................................................................411

Bibliografia 415
Ilustrações

Figuras

1. Perfis representativos da terra de Israel.................................................. 44


2. O plano básico do templo de Herodes...................................................52
3. I.inha do tempo da história de Israel................................................. 54-55
4. Herodes, o Grande, e seus descendentes.............................................. 102
5. Governantes da Palestina..................................................................... 103
6. As fases da história do m undo.............................................................. 295

M apas

1. Características topográficas de Israel.......................................................43


2. A terra de Israel........................................................................................ 4‫ל‬
3. Jerusalém.................................................................................................. 49
4. O mundo antigo....................................................................................... 56

Q uadros

1. Os festivais e o calendário intertestamentário.............................. 166-167


2. As principais divisões de Israel no século I .......................................... 256
Prefácio

Meu primeiro ano como professor universitário transcorreu na épo-


ca do Natal de 1963. David, um empresário cristão devoto e sério, meu
irmão, acompanhou-me quando apresentei um breve panorama sobre
“As origens judaicas do Natal” para uma classe de escola dominical. Mais
tarde, ele perguntou: “Por que esse tipo de informação não está ao alcance
dos leigos?”. Assim foi colocada na minha cabeça a semente do “livro de
David”. Talvez ele não fique sempre satisfeito com o que se segue; o texto
pode parecer um pouco técnico. Sinto-me aliviado quando me lembro de
que David também fica um pouco técnico ao explicar seu negócio; receio
que isto seja inevitável em todas as áreas.
Em 1963, não contei a meu irmão que eu, na verdade, tinha na mão
um breve manuscrito completo sobre o assunto. Eu queria elaborá-lo.
Mais tarde, houve um aumento vertiginoso de descobertas e textos sobre
o judaísmo intertestamentário. Desde 1963 têm aparecido novas traduções
e edições dos livros apócrifos, dos pseudepígrafos e dos manuscritos do
mar Morto. Além disso, várias fontes secundárias importantes tornaram-se
disponíveis. Refiro-me em especial à nova edição da grande obra de Emil
Schürer, The History of theJewish People in the Age of Jesus Christ [A história
do povo judeu na época de Jesus Cristo], aos vários e grandes volumes da
Compendia Rerum ludaicarum ad Novum Testamentum [Compêndio dos temas
judaicos até o Novo Testamento], ao EarlyJudaism and Its Modem Interpreters
[O judaísmo primitivo e seus intérpretes modernos], de Robert Kraft e
George Nickelsburg, e aos dois volumes de Judaismfrom Cyrus to Hadrian
[O judaísmo de Ciro a Adriano], de Lester Grabbe. Obtive muita ajuda
com artigos do Dicionário teológico do Novo Testamento, de Gerhard Kittel e
12

Gerhard Friedrich. Seguindo para a conclusão do estudo, o Anchor Bible


Dictionary [Dicionário Bíblico Anchor] tornou-se útil; consultei-o muitas
vezes de modo muito proveitoso. É impossível mostrar minha dívida para
com esses e outros muitos estudos em forma de notas de agradecimento.
Um dos maiores prazeres que se têm na conclusão de um projeto como
este é reconhecer as muitas pessoas com as quais o autor está em dívida e
agradecer-lhes. Embora seja longa, a lista não está completa. Quatro dos
mencionados aqui já não estão mais conosco, mas na presença daquele
que agora os recompensa.
Meu interesse pelo judaísmo intertestamentário surgiu graças à minha
mãe, por causa de um pequeno livro sobre os costumes do mundo bíblico.
Durante meu doutorado na Universidade de Manchester, quem o instigou
foram F. F. Bruce, Arnold A. T. Ehrhardt e, em especial, Robert A. Kraft
(no momento, da Universidade da Pensilvânia). ()entusiasmo pelo assunto
permaneceu e aumentou graças ao interesse dos alunos que o estudaram
comigo no Belhaven College (Jackson, Mississippi), na Western Kentucky
University, na Wheaton College Graduate School e no ECWA Theological
Seminary (da Igreja Evangélica da Africa Ocidental — Igbaja, Nigéria).
Gostei do incentivo e da oportunidade de discutir questões com
colegas como Norm an E. Harper, John N. Akers, J. Knox Chamblin, E.
Margaret 1!owe, Ronald A. Veenker, Walter A. !dwell, Herbert M. Wolf, C.
1lassell Bullock ejo hn R. McRay, arqueólogo do Novo Testamento. Com
frequência, recorro à assistência de meu bom amigo Robert D. Carlson
para assuntos relacionados ao conteúdo e às questões editoriais.
Há muitos anos, Allan Fisher, atual diretor de publicações da Baker
Book House, começou a me incendvar com muito tato a levar a sério o
projeto. Sua amizade e persistente incentivo nunca hesitaram, mesmo dian-
te de minha procrastinação bem exercida. Jim Weaver, editor de trabalhos
acadêmicos e de referência da Baker, com quem eu tinha muita afinidade
na apreciação da música do gênero bluegrass, foi uma pessoa agradável e
prestativa com quem trabalhar. Meus agradecimentos e admiração sinceros
a Ray Wiersma, editor sênior de livros acadêmicos e de referência, por
seu trabalho no manuscrito. Seu trabalho paciente, meticuloso e exímio
foi muito além do que a maioria imagina como o trabalho de um editor.
Outros da organização Baker Book I louse merecem crédito e louvor. A
cada um digo: “Muito obrigado!”.
13

Em bora, ao longo dos anos, eu tenha tentado trabalhar no projeto


em momentos livres aqui e ali, meu progresso foi pouco substancial.
Faltavam-me longos períodos ininterruptos para pesquisas, reflexão e
escrita. Isso se tornou possível nas licenças sabáticas da Wheaton College
em 1985 e de 1993 a 1995. Mais uma vez, a palavra “obrigado” parece
insuficiente para expressar a profundidade da minha gratidão.
Antes de morrerem, minha mãe e meu pai manifestaram muito inte-
resse por meus estudos sobre as origens judaicas do Novo Testamento.
Minha irmã Mary S. Ward e seu marido Jack mostraram uma atenção mo-
tivadora, como meus filhos Mary S. Smith, Julia S. Fox e James J. Scott III.
Meu irmão David, depois de ter plantado a semente do livro, cuidou para
que ela crescesse e a cultivou. Enquanto lia todo o manuscrito, ele corrigiu
diversos erros de ortografia e de fraseologia. A todos os citados e a muitos
outros que, de uma forma ou de outra, ajudaram-me, digo: “Obrigado”.
Não raro, os prefácios reconhecem a contribuição da esposa do autor.
Isto não é suficiente aqui. Minha esposa ouviu, discutiu as questões, fez
perguntas provocativas, apresentou sugestões e me ajudou a seguir em
frente. Quando escrevo, sou criativo e habilidoso com minhas inovações
gramaticais; Florence esforçou-se muito para adaptar o manuscrito ao es-
tilo mais tradicional. Ela trabalhou com minha gramática e estilo de escrita
para elucidar os trechos difíceis e ajustar os irregulares. Sem Florence, o
projeto jamais seria concluído.
Cabe ao escritor a parte solitária. Tive a companhia constante de Syd,
um cachorrinho desmiolado, mas adorável. Ele cochilava perto de mim
dia após dia. Eles também ajudam quem se deita e dorme!
Durante a preparação deste livro, imaginei que poucos leigos, estudan-
tes e ministros dominam com proficiência estudos linguísticos e literários
bastante úteis na leitura e estudo da Bíblia. Também estou convencido
de que certa compreensão dos contextos históricos, sociais, culturais e
religiosos da Bíblia está ao alcance de várias dessas pessoas. De tempos
em tempos, por mais de trinta anos, dediquei-mc ao estudo do judaísmo
intertestamentário. Espero que o conhecimento desse tempo, lugar e
cultura distantes que disponibilizei neste livro faça pelos outros o que fez
por mim, ou seja, ofereça uma melhor compreensão do Novo Testamento.
Sou grato pela oportunidade de ter realizado este estudo. Por fim, a
oportunidade foi-me dada por quem escolheu o judaísmo intertestamen-
14

tário como palco e cenário para entrar na história de forma extraordinária,


uma vez que a Palavra se fez carne! Meu maior desejo é que, de alguma
forma, este trabalho redunde na glória a Deus.
Wheaton, Illinois
Novembro de 1994

Fico feliz em saber da demanda suficiente para a segunda impressão


deste livro. E especialmente gratificante saber que vários colegas pro-
fessores neste continente consideraram-no útil na sala de aula. Também
tive notícias de que ele tem sido útil na África e no Japão, onde está em
processo de tradução.
Apesar do meu desejo de oferecer uma revisão completa, não há
oportunidade para fazê-la no momento. Uma vez que o título original,
Costumes e controvérsias, não pôde ser reconhecido de imediato como um
trabalho sobre as origens judaicas do Novo Testamento, escolhemos um
título novo e mais apropriado. Também aproveitamos a oportunidade para
fazer algumas correções ortográficas e assim por diante.
Minha principal preocupação é que os leitores estejam cientes de que a
presente seção sobre os manuscritos do mar Morto foi concluída no final
de 1993, logo após a divulgação do último grupo desses documentos. Para
aprimorar seus conhecimentos, os leitores devem consultar livros sobre os
manuscritos publicados depois de 1996, mas devem fazê-lo com cautela.
Foram feitas muitas alegações sensacionalistas sobre o material que não
foram comprovadas pela maior parte da comunidade acadêmica. Embora
eu não possa endossar todas as conclusões do autor, recomendo Hart-
mut Stegemann, lhe Librar)‫ ׳‬of Qumran |A biblioteca de Qumran] (Grand
Rapids: W. B. Eerdmans; Leiden: E. J. Brill, 1998), como uma resenha
adequada dos acontecimentos recentes e sua análise plausível.
Wheaton, Illinois
Fevereiro de 2000
Abreviações

Versões das Es c r itu r a s

KJV Kingjames Version


NASB New American Standard Bible
NRSV New Revised Standard Version
RSV Revised Standard Version

M a n u s c r it o s do m ar M o r to

ACD Aliança da Comunidade de Damasco (documento zadoquita)


1QH Manuscrito de Salmos
1QM Manuscrito de Guerras
I QpHab Comentário (Pesher) sobre Habacuque
1QS Manual de disciplina
lQ S a Regra messiânica da congregação
4Q169 Comentário (Pesher) sobre Naum
4QAmram Visão de Anrão
4QFlor Florilégio
4QMMT M iqsatM a‘ase ha-Torah (“Alguns dos preceitos da Torá)
4QPBless
4QpNaum Comentário (Pesher) sobre Naum
4QPsDan Pseudo-Daniel
4QSirSabb Liturgia angelical
4QTestim Testimonia
llQ M elch Manuscrito de Melquisedeque
II QTemple Manuscrito do Templo
Introdução e definições

• O cristão contemporâneo e o judaísmo intertestamentário


• O judaísmo intertestamentário: um período distinto
• O novo consenso sobre o judaísmo intertestamentário
• Os princípios básicos que compõem este estudo
• Uma nota sobre alguns termos

O CRISTÃO CONTEMPORÂNEO E O JUDAÍSMO INTERTESTAMENTÁRIO

Enquanto estava diante do rei Agripa TI, o apóstolo Paulo expressou


gratidão por poder falar com quem estava “bem acostumado com todos
os costumes e controvérsias deles fdos judeus]” (At 26.3). Ele pressupôs
que, para compreender seu caso e, por implicação, o cristianismo, era
necessário ter certa noção do judaísmo intertestamentário. Essa situação
não mudou.
Ao passar do Antigo Testamento (AT) para o Novo Testamento (NT),
o leitor mergulha em um mundo radical mente diferente. O idioma originá-
rio já não é o hebraico ou aramaico, mas o grego. O domínio político persa
deu lugar ao romano. “Judeu”, termo encontrado do começo ao fim de
alguns livros do fim da era do AT (Jeremias, Esdras, Neemias, Ester), mas
raramente em outras passagens, é um nome comum para os descendentes
de Abraão, Tsaque e Jacó. A palavra rei já não designa o monarca absoluto,
e novos títulos administrativos, como etnarca, tetrarca e governador (ou
procurador) aparecem pela primeira vez ou assumem outro significado.
O sacerdócio judaico é mais proeminente e seu papel é ampliado com o
intuito de incluir a administração de questões civis e também cerimoniais.
18

Percebe-se maior grau de hostilidade na atitude do povo de Israel em


relação aos governantes estrangeiros. Surgem centuriões e publicanos.
Os escritores do N T acreditam que os leitores saberão a localização e
a importância de áreas geográficas como Galileia, Samaria, Pereia (literal-
mente, a região que ficava “além” do Jordão), Idumeia, Judeia, Decápolis
e muitas outras. Pela primeira vez, encontramos o conselho judaico, ou
Sinédrio, e contempla-se o culto realizado na sinagoga, como também no
templo. Grupos como fariseus, saduceus, herodianos, rabinos e zelotes
entram em cena; os escribas assumem nova importância e funções dife-
rentes. Faz-se presente uma influência cultural diferente para com a qual
os sentimentos judaicos são ambivalentes.
Na vida religiosa da época, a lei do AT continua a ocupar o lugar
central, mas é interpretada e observada com novas ênfases. A Escritura
parece compartilhar a autoridade com os costumes ou a tradição (“a tra-
dição dos líderes religiosos” ou “tradição dos homens”, como é chamada
em Mc 7.5,8). A preocupação com a separação entre judeus e outros
povos aumenta uma vez que a determinação é proteger o lugar especial
dos hebreus diante de Deus. Alguns dos contemporâneos de Jesus estão
preocupados com questões relacionadas à vida após a morte, à ressurrei-
ção, à imortalidade — temas apenas pincelados no AT. Outros termos e
idéias raras vezes mencionados no AT — Reino de Deus, Messias, Filho
do homem — tornaram-se importantes; as esferas do pensamento com
as quais eles estão associados são de extrema importância nesse momen-
to para muitos dentre a população geral. Ao que parece, há um clima de
frustração, inquietação, anseio, esperança e expectativa entre muitos judeus
que viviam nos tempos do N T no local hoje conhecido como Palestina
ou a terra de Israel (Eret^ Israel).
Claramente, mudanças significativas ocorreram. O AT não é o cenário
histórico, cultural ou religioso imediato da vida e do ministério de Jesus,
dos apóstolos e seus companheiros. Em bora os escritores do N T admitam
o conhecimento do AT, eles têm a fase intermediária da história judaica
como contexto e cenário imediatos. As influências da Grécia e de Roma
são, sem dúvida, consideráveis. Mas, pelo menos no início, até essas in-
fluências foram intermediadas pelo contexto judaico.
Os estudiosos deste período histórico tornaram-se cada vez mais
cientes de sua qualidade distintiva, não só do AT, mas também da forma
de judaísmo que lhe sucedeu. O que causou as diferenças? A resposta é
19

simples, mas suas implicações são complexas. Em 586 a.C., os babilônios


destruíram Jerusalém e o templo da cidade, encerrando, assim, o período
da história dos hebreus no AT. Em 70 d.C., Jerusalém e o templo foram
destruídos novamente, agora pelos romanos, e, de novo, a vida e a cultura
judaicas sofreram mudanças. Entre esses dois acontecimentos devastado-
res, os judeus enfrentaram outras crises significativas, mas nenhuma mais
importante que a incursão da cultura helenística (grega) após as conquistas
de Alexandre, o Grande, no século IV a.C.
Este livro foi escrito segundo a convicção de que a Bíblia deve ser
interpretada em seu contexto histórico e gramatical originais. Por tradição,
entende-se o termo “gramatical” como referência às características lin-
guísticas; eu gostaria de ampliar a categoria para incluir formas e recursos
literários. De igual modo, o termo “histórico” deve incluir mais que o relato
da sequência cronológica. Geografia, fenômenos culturais e sociológicos,
diferentes visões da vida e do mundo e as circunstâncias particulares do
autor e dos leitores em relação a um documento bíblico também fazem
parte do contexto histórico.
As condições mundiais prevalecentes quando se deram os aconteci-
mentos registrados na Escritura e quando os escritores inspirados reali-
zaram seu trabalho são o contexto para o que os cristãos acreditam ser a
revelação divina ímpar. Os escritores partiram do princípio de que o leitor
originário estava acostumado com esse contexto ou de que algumas pala-
vras trariam clareza suficiente (v., p. ex., Mc 7.3,4). Nós, leitores modernos
sérios, não devemos minimizar o contexto do século I. Precisamos realizar
uma viagem à terra em que somos estrangeiros — a terra daqueles a quem
o evangelho chegou primeiro. Assim podemos voltar a nosso tempo e
lugar, como entendedores mais bem preparados e melhores para viver e
proclamar a Escritura.
Embora trate de certos aspectos da história e do pensamento judaicos,
este é um livro cristão. O foco não é apresentar o judaísmo, nem intertes-
tamentário ou do segundo templo, por si mesmo. Ao contrário, este livro
seleciona e interpreta as partes de um corpo geral de informações que,
segundo o escritor, serão de ajuda especial para seus colegas cristãos na
compreensão do NT. Procurei lidar de forma honesta e imparcial com os
dados judaicos relevantes. Espero corrigir algumas impressões equivocadas
sobre o judaísmo do período em questão e do judaísmo em geral.
20

Ao descrever o judaísmo intertestamentário por meio da perspectiva


cristã, quero deixar claro que, de forma alguma, percebo que as diferenças
entre judaísmo e cristianismo deem o menor respaldo para o antissemi-
tismo — a mancha mais escura no rosto da igreja. O antissemitismo é
um fato da história cristã, mas um dos que me envergonho. Acredito que
todos os vestígios dele devam ser eliminados de nosso meio. Até mesmo
os sentimentos antissemitas são, no sentido cristão, pecado — um pecado
do qual devemos nos arrepender com a contrição genuína que produz a
mudança radical em nossa mente, emoções e ações. Devemos buscar o
perdão de Deus e do povo judeu.

O JUDAÍSMO INTERTESTAMENTÁRIO: UM PERÍODO DISTINTO

E difícil saber como se referir ao período que é tema deste livro. Pa-
rece que os escritores judeus preferem “judaísmo do segundo templo”
ou “judaísmo da segunda aliança”. Às vezes, são usados nomes como
“judaísmo primitivo”, “judaísmo médio”, “judaísmo greco-romano” e
“judaísmo do Período Helenístico tardio” . Nós o chamaremos “judaís-
mo intertestamentário”, por ter mais chances de soar conhecido para a
maioria dos leitores deste livro. Usamos o termo e pedimos desculpas aos
amigos judeus, que talvez o achem confuso por não poderem reconhecer
a legitimidade do segundo ou novo testamento.
Muito frequentemente, o caráter único do judaísmo intertestamentá-
rio passa despercebido. O s estudiosos muitas vezes insistem na ideia de
que o contexto do N T pode ser determinado com a inserção no AT de
informações de textos rabínicos (p. ex., o Talmude, os Midrashim etc.) que,
na presente forma, surgiram de fato após a era do NT. Como resultado,
há o risco de atribuirmos de forma anacrônica ao contexto do N T condi-
ções, práticas e idéias surgidas ou modificadas após o ano 70 da nossa era.
Nossa afirmação da distinção do judaísmo intertestamentário re-
sulta de descobertas materiais recentes e do novo estudo de tudo o que
se conhece desse período. O catalisador das pesquisas contemporâneas
foi, sem dúvida, a descoberta dos manuscritos do mar Morto, em 1947.
Esses documentos não deram apenas novas evidências, mas também no-
vas perspectivas pelas quais se tornou possível interpretar informações
disponíveis antes. Com essas outras evidências vieram técnicas e métodos
novos e aprimorados para a compreensão e interpretação. Nas próximas
fases do trabalho acadêmico, as informações recém-descobertas foram
21

disponibilizadas de imediato. O s resultados dos estudos estão sendo usados


neste momento em descrições revisadas da época em parte ou no todo.
A medida que essas novas peças se juntam ao quebra-cabeça e técnicas
mais apuradas ajustam o foco, a imagem do judaísmo intertestamentário
se torna cada vez mais clara. O conhecimento atual sobre o período certa-
mente excede o que foi disponibilizado pouco depois do desaparecimento
do judaísmo intertestamentário nas páginas da história. O especialista e
o amador têm acesso agora a informações e perspectivas essenciais para
compreender melhor o contexto de vários aspectos e tensões, costumes
e controvérsias do NT.

O NOVO CONSENSO SOBRE O JUDAÍSMO INTERTESTAMENTÁRIO

Mais de trinta anos se passaram desde a escrita do primeiro rascunho


deste estudo. N a época, procurei demonstrar e usar uma série de suposi-
ções sobre o judaísmo intertestamentário. Elas foram reconhecidas por
apenas alguns indivíduos envolvidos no aspecto mais técnico do estudo
do N T e das obras literárias relacionadas. Daí em diante, a pesquisa sobre
a natureza do mundo judaico após o AT avançou com rapidez. Grande
parte das suposições com as quais comecei a trabalhar agora estão estabe-
lecidas com firmeza como parte do consenso acadêmico cada vez maior.
Elas incluem, pelo menos, oito pontos amplos, mas muito importantes.
Primeiro, o judaísmo intertestamentário provém da fé e da cultura
hebraica do AT, mas não é idêntico a elas. Ao mesmo tempo, deve-se
distingui-lo do judaísmo rabínico, surgido após a destruição de Jerusalém,
do templo e do Estado judeu pelos romanos, em 70 d.C.
Segundo, a sociedade, a cultura e a fé do judaísmo intertestamen-
tário não compreendiam um bloco monolítico, mas um conglomerado.
Continham diversos elementos que, individualmente e juntos, devem ser
considerados na tentativa de compreender o período.
Terceiro, as formas tradicionais de distinguir os elementos judaicos (ou
hebraicos) dos helenísticos na vida judaica intertestamentária são muito
simplistas. O s elementos (p. ex, A t 6.1) referem-se a algo que ultrapassa as
preferências linguísticas. Também é incorreto igualar a cultura hebraica de
m odo exclusivo com a Palestina, e o helenismo com a forma de judaísmo
intertestamentário encontrada entre os judeus na dispersão.
Quarto, a divisão do judaísmo em quatro seitas (fariseus, saduceus,
essênios e a quarta filosofia) feita pelo historiador do século 1, Josefo, é
22

uma descrição inadequada das diversidades da época. Havia subdivisões


em cada uma dessas seitas; havia também outros grupos. Além disso, de-
vemos reconhecer que a maioria dos contemporâneos de Jesus, os judeus
comuns, não pertencia a nenhuma dessas seitas ou partidos.
Quinto, o movim ento apocalíptico e a escatologia da época são
importantes para o entendimento da visão de um número significativo de
pessoas no judaísmo intertestamentário. Em bora estejam estreitamente
relacionados, a escatologia e o apocaliptismo não são idênticos; nem se
pode pressupor que toda escatologia é apocalíptica, nem que o que é
apocaliptismo é sempre, em sentido básico, escatológico.
Sexto, não havia separação entre Igreja e Estado no judaísmo inter-
testamentário. O pensamento, as ações e as aspirações da religião normal-
mente eram inseparáveis.
Sétimo, o judaísmo intertestamentário era uma civilização dinâmica
que enfrentava as tensões genuínas decorrentes de situações e questões
políticas, culturais, sociológicas, existenciais e religiosas e reagia a elas.
Surgiu graças ao compromisso com a herança nacionalista-religiosa, como
era entendida na época, e com a necessidade de enfrentar de modo realista
as circunstâncias inconstantes do mundo.
Por último, as diversas culturas, grupos, interesses, estilos de vida e
aspirações do judaísmo intertestamentário, seus costumes e controvérsias,
desempenharam papel significativo no período de formação dos dois
principais grupos provenientes dele: o judaísmo rabínico primitivo e o
cristianismo primitivo. Portanto, a compreensão das principais tensões e
trajetórias do judaísmo intertestamentário é essencial para entendermos
de forma adequada a literatura e a natureza dos dois grupos.

OS PRINCÍPIOS BÁSICOS QUE COMPÕEM ESTE ESTUDO

Este livro procura dar ao leitor o entendimento intermediário das carac-


terísticas do judaísmo intertestamentário de maior valor na interpretação do
NT. Grande parte dos livros básicos para quem estuda o NT, como livros
didáticos para cursos de pesquisa bíblica, oferecem panoramas das caracte-
rísticas básicas da história, do governo e da religião, dos grupos e seitas do
período intertestamentário e um pouco sobre a expectativa messiânica. Há,
sem dúvida, muitas obras de um único volume que tratam dos acontecimentos
da história judaica intertestamentária.1
1 Existem vários estudos sobre o judaísmo intertestamentário. A lista c muito
longa para mencionar todos os que consultei, sempre com muito proveito. Os
23

É nosso objetivo ir além deles. Procuraremos considerar informações


que talvez não estejam tão facilmente disponíveis, mas possam ajudar o lei-
tor a ter noção da época. Assim, esperamos disponibilizar para estudantes
universitários ou seminaristas, pastores atarefados e leigos interessados no
assunto alguns dos resultados das descobertas e conclusões acadêmicas mais
recentes sobre as quais estamos falando, em particular as mais úteis para a
compreensão do NT.
Tenho uma posição interpretativa definitiva; ou seja, que os costumes
distintos e as controvérsias que tornam o judaísmo intertestamentário singular
na história judaica resultaram de certa dinâmica histórica, social e psicoló-
gica da época. De forma mais específica, sugiro que uma das razões mais
significativas para o surgimento de costumes distintos e controvérsias foram
as várias reações a duas grandes crises: a destruição do Estado judaico e do
templo pelos babilônios no século VI a.C. e a chegada da cultura helenística
no século IV a.C.2 Indivíduos e grupos reagiram de forma diferente a essas

seguintes títulos representam alguns que considero particularmente úteis: Edwvn


R. Bevan,Jerusalem under the High-Priests (London: Edward Arnold, 1918); Charles
Guignebert, TheJewish Worldin the Time ofJesus, trad. S. H. Hooke (London: Kegan
Paul, Trench, Trubner, 1939); D. S. Russell, Between the Testaments (London: SCM,
1960) e From Early Judaism to Early Church (Philadelphia: Fortress, 1986); Elias
Bickcrman, From Evpa to the Last of the Maccabees: Foundations of Post-BiblicalJudaism
(New York: Schockcn, 1962); F. F. Bruce, Israel and the Nations (Grand Rapids:
Ferdmans, 1963) e New Testament History (Garden City, N. Y.: Douhleday, 1972);
Werner Foerster, From the Exile to Christ (Philadelphia: Fortress, 1964); Bo Reicke,
The New Testament Era: The World of the Biblefrom 500 B .C toA.D . 100, trad. David
E. Green (Philadelphia: Fortress, 1968); Eduard Lohse, Contexto e ambiente do Novo
Testamento, trad. Hans Jorg Witter (São Paulo: Paulinas, 2000); H. L. Ellison, From
Babylon to Bethlehem: 'The People of God between the Testaments (Grand Rapids: Baker,
1984); Martin McNamara, Palestinian Judaism and the New Testament (Wilmington,
Del.: Michael Glazier, 1983); H. jagersma, A History of Israelfrom Alexander the Great
to Bar Kochba, trad. John Bowden (Philadelphia: Fortress, 1986); Jacob Neusner,
From Testament to Torah: A n Introduction to Judaism in Its Formative Age (Englewood
Cliffs, N. J.: Prentice Hall, 1988); Frederick J. Murphy, The Religious World of Jesus
(Nashville: Abingdon, 1991) e Gabriele Boccaccini, MiddleJudaism:Jewish Thought,
300 B.C.E. to 200 C.E. (Minneapolis: Fortress, 1991).
2 Depois de chegar à conclusão de que o judaísmo intertestamentário surgiu em
reação a duas crises, fiquei satisfeito ao descobrir que Jacob Neusner usa o conceito
de crises como foco para organizar seu estudo From Testament to Torah. Ele também
reconhece a destruição do Estado judeu em 586 a.C. e 70 d.C. como crises cm
formação e acrescenta a conversão de Constantino, em 312 d.C., como a terceira.
24

crises. Das reações surgiu grande parte das características que tornaram ο
judaísmo intertestamentário um fenômeno claramentc distinguível na história
da raça e da nação.
Este livro divide-se em três seções. A primeira, “As origens e o con-
texto do judaísmo intertestamentário”, identifica as principais fontes de
informação, descreve a geografia e esboça o contexto histórico do AT e
dos períodos intertestamentários. A segunda seção, “As crises e respostas
do judaísmo intertestamentário”, concentra-se nas crises dos séculos VI
e IV e tenta descrever os resultados das reações mais importantes a elas.
O capítulo 12, “A vida comum no Israel do século I”, é, na verdade, uma
incursão pela natureza e descrição do livro. E u o incluí porque pode ser
de interesse e ajuda para os que tentam entender melhor o mundo do
judaísmo intertestamentário.
Por fim, a seção “ O pensamento religioso do judaísmo intertesta-
mentário: Um contexto para os costumes e controvérsias cristãos” reflete
minha convicção de que os conceitos intertestamentários sobre a natureza
e as consequências do fim dos tempos são de especial importância para
o leitor do NT. Os primeiros cristãos judeus acreditavam que o fim dos
tempos era uma realidade presente. Isso, junto com suas convicções so-
bre a pessoa e o papel de Jesus de Nazaré em relação ao fim dos tempos,
distingui-os de outros grupos judeus no período intertestamentário. Junto
com o AT, ofereceu o cenário no qual eles interpretaram e desenvolve-
ram as implicações do compromisso com Jesus. As preocupações e a
diversidade que integraram os pontos de vista judaicos contemporâneos
sobre o fim dos tempos e questões relacionadas refletem-se na vida, na fé
e nas lutas dos primeiros discípulos e seguidores do “Caminho” (At 9.2;
19.9,23; 22.4; 24.14).
Não entraremos em detalhes sobre qualquer aspecto discutido no
estudo. O leitor que desejar continuar o aprofundamento deverá exami-
nar as principais fontes listadas no capítulo 1. Felizmente, todas as mais
importantes estão agora disponíveis em traduções para o inglês.3 Os livros
importantes e recentes, mencionados no prefácio, também são essenciais
para o trabalho neste campo. O estudo de Lester Grabbe é um guia valioso

3 Os dados dessas traduções podem ser encontrados na bibliografia (p. 415). Usei
as edições cm vários volumes da Loeb Classical Library sobre Josefo e Fílon, que
contêm os textos em grego e a tradução em inglês.
25

para as discussões históricas e fundamentais relacionadas ao período —


uma área importante que quase não mencionei. São muitos os estudos
individuais de diversos temas e questões.
N o nosso estudo farei referência a algumas passagens e questões
específicas do N T com o objetivo de ilustrar ou esclarecer. Apresentar o
contexto específico para passagens ou questões em particular ultrapassa
nosso propósito. Nossa principal tarefa é retratar o cenário geral com pin-
celadas largas. Acredito que isto ajudará muito quem deseja compreender
melhor o N T e empregar de forma mais precisa no mundo moderno as
implicações da revelação da pessoa e da vontade de Deus — outorgada
de forma originária nesse outro tempo, lugar e cultura.

Um a n o ta sobre a lg u n s ter m o s

E preciso explicar o uso de quatro termos. O primeiro tem a ver com


0 nome pessoal de Deus.4 Como a maioria dos tradutores modernos do
AT, traduzirei o nome pessoal sagrado de Deus como “o S f.n h o r ” e
usarei “Senhor” como tradução de Adonai, um termo mais genérico de
reverência. Nos casos em que o contexto exigir, usarei “Javé”, a pronúncia
mais provável do nome pessoal de Deus.
A segunda palavra é Torá, o termo hebraico usado para designar os
cinco livros de Moisés ou suas seções que determinam conduta, adoração
e coisas do tipo. As versões gregas do AT traduzem Torá por nomos (lei),
e a prática é seguida por escritores do NT. N o entanto, Torá não é exa-
tamente “lei”; talvez “instruções” fosse melhor. São requisitos precisos,
mas também contêm promessas e bênçãos. São as instruções para quem
se relaciona de m odo especial e agradável com o S e n h o r . Normalmente
usarei “lei”, mas posso usar “instruções” ou Torú., dependendo do contexto.
Terceiro, “escatologia” é um termo que não podemos deixar de usar.
Sua raiz é a palavra grega eschaton, que significa “último” ou “ fim”. As
discussões sobre escatologia tradicionalmente lidam com temas como o
fim de todas as coisas e o destino do indivíduo. Por isso, as discussões
sobre a escatologia cristã dizem respeito à m orte física, aos eventos que
precedem a segunda vinda de Cristo, incluindo-se a(s) última(s) batalha(s)
contra as forças do mal, e, então, à própria segunda vinda de Cristo.
Também podem considerar a questão milenar, o estado intermediário c
a imortalidade, a(s) ressurreição(ões) e o(s) juízo(s). Os estudos também 1

1 Para obter uma explicação sobre o ponto em questão aqui, vá para a p. 290.
26

lidarão com o fim da natureza (a ordem cósmica) e da humanidade, as


recompensas e punições (céu e inferno), o novo céu e a nova terra e o
estado final do universo. Estes são apenas alguns dos temas que podem
ser considerados na escatologia tradicional.
Grande parte da teologia contemporânea concentra a atenção em ou-
tras questões sob o título de escatologia.5 Ela pode, por exemplo, discutir
o estágio final das evoluções moral, social, intelectual, física e espiritual.
Acredita-se que o resultado seja a utopia na terra, causada (em grande
parte) por processos naturalistas. Ainda mais generalizada, uma vez que
“fim” muitas vezes significa “objetivo” ou “propósito”, é a visão de que
o tema da escatologia é a obtenção de sentido, propósito, autoconsciência
e autenticidade do indivíduo.6
Por fim, o que chamamos de terra prometida por Deus a Abraão e
seus descendentes? Com frequência no AT, e em Atos 13.19, ela é chamada
“terra de Canaã”, por causa de seus habitantes originários (Gn 10.15-19).
O termo “Palestina” significa “terra dos filisteus” e não é usado nem
pelos escritores da Bíblia nem pelos judeus modernos como referência à
Terra Prometida. Sigo a convenção e emprego a tradução de Eret^ Israel,
“a terra de Israel” (pedindo desculpas aos árabes palestinos modernos
que dividem, pelo menos, partes dela com os israelenses da atualidade).

5 Grande parte da teologia não evangélica continua com suposições que depreciam
ou negam o sobrenatural e as afirmações acerca do fim do mundo material.
6 Note a forma como Rudolf Bultmann usa o termo dentro na interpretação exis-
tencial do N T em “The New Testament and Mythology”, em: Rudolf Bultmann,
The New Testament and Mythology and Other Basic Writings, trad. Schubert M. Ogden
(Philadelphia: Fortress, 1984), p. 1-43.
PRIMEIRA PARTE

AS O R IG E N S E O C O N T E X T O D O JU D A ÍS M O IN T E R T E S T A M E N T Á R IO
1

Fontes de informação

• Um catálogo de fontes gerais


• Escritores judeus do século I d.C.
- Fláviojosefo
- Fílon de Alexandria

Um c a t á l o g o d e f o n t e s g e r a is

Um elemento essencial em qualquer estudo histórico é a identidade e o


caráter das principais fontes de informação.1A contribuição da arqueologia
para o estudo do judaísmo intertestamentário muitas vezes foi subestimada
ou ignorada. O objetivo da arqueologia é reconstruir a vida como ela era.
Poucos reconhecem que a arqueologia palestina como ciência é quase
um avanço do século XX. A luz que ela tem lançado sobre localizações
particulares contribui muito para a compreensão total do período.12
As principais fontes escritas do judaísmo intertestamentário propa-
gam-se de forma irregular ao longo do período. À parte do AT, nosso
conhecimento acerca dos primeiros duzentos anos é pequeno; a grande
maioria de nossas fontes se dá a partir de 200 a.C. Elas se dividem em
uma série de categorias:

1 Para obter uma discussão detalhada sobre fontes, cf. Emil Schürer, The History of
theJewish People in the Age ofJesus, Geza Vermes et al., 3 vols. (Edinburgh: T. e T.
Clark, 1973-87), 1:17-122; 3.1:177-703; 3.2:705-889; TheJewish People in the First
Century, S. Safrai, M. Stern ct al. (orgs.), em Compendia Rerum Iudaicarum ad Novum
Testamentum, 7 vols. (Philadelphia: Fortress, 1974-92), 1:1—61; e Lester L. Grabbe,
Judaismfrom Cyrus to Hadrian, 2 vols. (Minneapolis: Augsburg Fortress, 1991—92),
1:1—73 c passim.
2 Cf.John Me Ray, Archaeology and the New Testament (Grand Rapids: Baker, 1991).
30

1. O AT hebraico foi o ponto de partida do judaísmo intertestamen-


tário. O Pentateuco ocupou o lugar especial como autoridade inquestio-
nável. Quase no final do período, os 39 livros do cânon hebraico foram
considerados a Palavra Sagrada de Deus.
2. A tradução grega do AT, a Septuaginta (LXX), tem algumas ênfases
e conteúdo que diferem do texto hebraico. Nas passagens em que as di-
ferenças aparecem, a Septuaginta e, em essência, uma fonte à parte.
3. Os livros apócrifos do AT, encontrados na Septuaginta, mas não no
AT hebraico, constituem uma coleção à parte. (Para obter uma lista dos
títulos reconhecidos como parte dos livros apócrifos, v. o Apêndice A,
p. 389.)3
4. A chamada pseudepigrafia do AT é uma categoria, de certa forma,
aberta de obras judaicas provenientes de cerca de 200 a.C. a 200 d.C.4
Representam diversos pontos de vista. Algumas têm origem no mundo
estritamente hebraico; outras vêm do judaísmo helenístico (ou dirigido
para os gregos). As coleções de textos pseudepigráficos podem conter
uma grande variedade de estilos literários e títulos. Algumas das principais
classificações literárias incluem história, expansões das Escrituras hebrai-
cas, lendas, orações, odes e salmos, testamentos, literatura de sabedoria e
literatura apocalíptica. Algumas categorias se sobrepõem; há discordância
quanto ao lugar em que alguns textos deveríam ser atribuídos.
A preservação e a propagação de livros pseudepigráficos às vezes
foram menos cuidadosas que o desejável. Partes de alguns documentos
se perderam. É estranho o modo como as seções de alguns livros foram
organizadas. Em bora representem o pensamento judaico intertestamen-
tário, praticamente todos esses documentos foram preservados não por
judeus, mas pelos primeiros cristãos. Com exceção de alguns fragmentos,
eles são encontrados apenas em traduções antigas das quais foram feitas
todas as traduções modernas.
Nosso conhecimento dos escritos pseudepígrafos expandiu-se de

’ Para obter uma descrição dos livros apócrifos, v. Bruce M. Metzger, A n Introduc-
tion to the Apocrypha (New York: Oxford University Press, 1957). George W. E.
Nickelsburg, Literaturajudaica entre a Bíblia e a Mixná (São Paulo: Paulus, 2011) e
Leonhard Rost, Judaism outside the Hebrew Canon: A n Introduction to the Documents,
trad. David E. Green (Nashville: Abingdon, 1976), discutem os livros apócrifos
e alguns textos pseudepigráficos.
'‫ י‬Para obter uma introdução, v. James H. Charlesworth, The Pseudepigrapha andModem
Research (Missoula, Mont.: Scholars, 1976).
31

m odo considerável graças às descobertas recentes. A tradução da pseu-


depigrafia feita por R. H. Charles, em 1913, continha dezessete títulos.5A
tradução de 1983-1985, editada por James H. Charlesworth, apresenta 63
documentos (não incluindo dois títulos na edição mais antiga [PirkeiAvotc
Fragmentos de uma obra de Sadoque] são agora atribuídos a outras categorias).6*
Listamos aqui as categorias e os títulos de livros pseudepigráficos citados
com mais frequência neste estudo (para obter a lista completa, v. o Apên-
dice B, p. 391-92):

a. Históricos e lendários: Livro dosjubileus, Carta de Aristeias, Vida de


Adão e Eva, Martírio e ascensão de Isaías, Pseudo-Fílon e José eAsenet.
b. Apocalípticos: 1 Enoque, Oráculos sibilinos, 2 Baruque (siríaco) e
4 Esdras?
c. Testamentos: Testamentos dos dotçepatriarcas-, Testamento (Assunção) de
Moisés.
d. Salmos e orações: Salmos de Salomão-, Odes de Salomão.

5. Dos escritos dos sectários judeus do judaísmo intertestamentário,


os famosos manuscritos do mar Morto são os mais significativos. N o
entanto, deve-se lembrar que documentos similares ou idênticos foram
encontrados nagenitçah do Cairo (uma sala de armazenamento na sinagoga)
e em Massada, a antiga fortaleza do deserto na terra de Israel. Listamos
aqui por categoria alguns dos manuscritos mais importantes:8

5 The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament, R. H. Charles (org.), 2 vols.
(Oxford: Clarendon, 1913), vol. 2.
6 The Old Testament Pseudepigrapha, James H. Charlesworth (org.), 2 vols. (Garden
City, N. Y.: Doubleday, 1983, 1985). Observe também The Apocryphal Old Testa-
ment, H. F. D. Sparks (org.) (New York: Oxford University' Press, 1984); o título é
enganoso, uma vez que este livro é, na verdade, uma tradução à parte dos textos
pseudepigráficos mais importantes.
' Também chamado 2Esdras, 4Esdras está incluído em muitas coleções de livros
apócrifos.
‫ א‬O s documentos dos manuscritos do mar Morto são frequentemente identificados
por abreviaturas convencionais. Os documentos associados com Qumran foram
descobertos em onze cavernas diferentes; alguns manuscritos foram descobertos
em outros lugares e a origem dos outros é desconhecida. O número na abreviação
identifica a caverna em particular. A letra seguinte indica o local da descoberta, a
32

a. Textos do Antigo Testamento: Isaías (lQ Isa); Êxodo no manus-


crito em hebraico antigo (4QEx.a); Êxodo no manuscrito judaico
(4QExa); Levítico; Deuteronômio 32 (4QDeut32); 1 e 2Samuel
(4QSanT); 1 e 2Samuel — o segundo manuscrito (4QSamb).
b. Apócrifos e pseudepígrafos: o Testamento de Levi (do Testamento dos
Do%e Patriarcas) (4QTLevi); fragmentos de Enoque.
c. Normas sectárias ou comunitárias: o Manual de disciplina (IQS); a
Regra comunitária (ou Regra messiânica) (1 QSa); a.Aliança da Comunidade
de Damasco (documento zadoquita) (AD ou ACD); um exemplar
em papiro da Regra de Disciplina (pap4QSa); Miqsat Ma'ase ha-Torah
(“Alguns dos Preceitos da Torá”) (4QMMT).
d. Materiais para adoração: O Rolo dos Salmos (1QIT).
e. Especulações escatológicas: a Guerra dos Filhos da Lup contra osFilhos
das Trevas (1QM); Florilégio (ou Midrash sobre os Últimos Dias ou
Midrashim Escatológicos) (4QFlor[ilegium] ou 4QEscaMidr).
f. Testimonia (4QTest).
g. Interpretações bíblicas: Apócrifo de Gênesis (lQApoc ou lQ ap-
Gen); Oração de Nahonido (4QPrNab); Comentário (Pesher) sobre
Oseias (4QpOse); Comentário (Pesher) sobre Miqueias (lQpMiq);
Comentário (Pesher) sobre Naum (4QpNa ou 4Q169); Comentário
(Pesher) sobre Habacuque (1 QpHab); Bênçãospatriarcais ou Antologia
messiânica (4QPBênç); Palavras ou provérbios de Moisés (1QDM);
Leis bíblicas ou Halacá essênia (4QOrd).
h. Diversos: Rolo de Cobre (3Q15); Manuscrito do Templo (llQ T em -
ple); Manuscrito de Melquisedeque (llQ M elch); a Liturgia angelical
(4QSirSabb).
6. Muitos estudiosos esquecem-se de incluir o N T na lista de fontes do
judaísmo intertestamentário, mesmo que ele esteja entre os mais significa-
tivos. Todavia, é encorajador notar a seriedade com que alguns escritores

letra Q, se for de uma caverna de Qumran, algum outro símbolo para outro local
ou nenhum símbolo se a origem for desconhecida. Em seguida vem a abreviação
do nome do documento e, se houver mais de um exemplar, a letra minúscula o
indica. A abreviação padrão lQSa, por exemplo, tem em vista um documento da
primeira (1) caverna do Qumran (Q), ou seja, o segundo exemplar (a) do Manual
da Disciplina (S) da seita.
33

contemporâneos, incluindo-se judeus, consideram o N T uma importante


fonte com a qual se pode aprender sobre o período intertestamentário.9
7. A vida e também os escritos de dois escritores do século 1 — Fílon
(c. 20 a.C.-50 d.C), o filósofo judeu de Alexandria, e Flávio Josefo (c. 37-
100 d.C.), historiador, estudioso, traidor e soldado — são de importância
especial.
8. Durante as décadas de 1950 e de 1960 foram realizadas explorações
nas cavernas do deserto da Judeia, em Nahal Hever, perto da costa sudoeste
do mar Morto, que renderam documentos e outras informações do período
da revolta dos judeus do século II da nossa era (132-35). Os documentos
incluíam cartas escritas pelo próprio líder Bar Kochba e fornecem infor-
mações sobre o período eufórico do judaísmo intertestamentário. Outras
cavernas nos desertos ao sul e a leste de Belém redundaram em outras
informações sobre o período.
9. O s escritos do período do judaísmo rabínico (de 90 d.C. em diante)
constituem um corpo volumoso de uso e avaliação difíceis por quem não é
especialista.10Grande parte das tradições religiosas, associadas ao judaísmo
intertestamentário, circulava de forma oral. Só depois da destruição do
templo de Herodes, em 70 d.C., houve o esforço conjunto dos rabinos
para coletar e submeter o material à escrita. O processo envolveu muito
mais que a preservação da tradição. O material era coletado de forma se-
letiva, simplificado, ampliado, adaptado e criado em parte com o intuito
de suprir as necessidades das situações após o ano de 70. O resultado
foram coleções, como a Mixná (codificada pelos tanaítas, 90-200 d.C), a
Guemará (codificada pelos amoraítas, 200-500 d.C. [a Mixná e a Guemará
juntas formavam o Talmude)), a Tossefiá, o Targum e os Midrashim.
Os escritos rabínicos podem, às vezes, refletir o período do judaísmo
intertestamentário. N o entanto, as informações do século I são paralelas,
e muitas vezes entrelaçadas, aos registros que refletem situações e práticas
surgidas na época. Portanto, quem usa os escritos rabínicos como fonte
do período intertestamentário deve fazê-lo com cuidado e senso crítico.
(Para obter a lista dos títulos da Mixná, que também são os títulos no
Talmude e na Toseftá, v. Apêndice C, p. 393-96).

'‫ ׳‬Por exemplo, os editores do Compendia Rerum ludaicarum Novum Tesiamentum


(CRINT).
10 Para a introdução ao material, cf. H. L. Strack, G. Stcmberger, Introduction to the
Talmud and Midrash, trad. Markus Bockmuehl (Edinburgh: T. e T. Clark, 1991).
54

10. As coleções cristãs, incluindo-se os apócrifos do NT, os pais da


igreja anteriores ao Concilio de Niceia, os escritores hereges (p. ex., os
livros gnósticos encontrados em N ag Hammadi, no Egito, em 1945), e
alguns escritores posteriores como Eusébio, Jerônimo e Epifânio oferecem
informações restritas sobre os judeus e o judaísmo.
11. Os escritores greco-romanos fazem referências aos judeus e aos
costumes judaicos. Plínio, o Velho, Tácito, Juvenal e Dião Cássio estão
entre os mais importantes para nossos propósitos. Vários textos sobre os
judeus, escritos por autores tradicionais não judeus, foram coletados por
Menahem Stern."
12. Foram descobertos numerosos papiros provenientes do início ao
final do período intertestamentário. Grande parte é composta por frag-
mentos, mas, ainda assim, muitas vezes informativos. Três importantes
coleções de papiros, não muito conhecidas, merecem atenção especial e
explicação:
a. Papiros de Elefantina: Em algum momento do século VI a.C., uma
colônia militar persa composta de hebreus estabeleceu-se na ilha de
Elefantina, ao sul do Egito. Registros arqueológicos escritos (em
aramaico) revelaram a vida cultural, comercial, social e religiosa
dessa comunidade da diáspora no período do qual pouco se sabe.
De particular interesse é o fato de os documentos mencionarem
o nome Sambalale, que pode ou não se referir ao adversário de
Neemias. Outra característica interessante é que a comunidade de
Elefantina contava com um templo próprio e recorria a Jerusalém
quando se via diante de uma crise.112
b. Papiros de Samaria ou de Wadi Daliyeh: Esqueletos, joias, utensí-
lios domésticos, moedas, bem como fragmentos de documentos
aramaicos foram descobertos entre 1962 e 1964 em uma caverna
perto de Wadi Daliyeh, cerca de 15 quilômetros ao norte de Jerico.

11 Greek andLatin Authors onJews andJudaism, ed. Menahem Stem, 3 vols. (Jerusalém:
Israel Academy of Sciences and Humanides, 1989); v. tb. Menahem Stern, “Latin
and Greek literary Sources”, emJewish People, Safrai et al. (orgs.) (CR1NT), 1:18—35.
12Cf. A. E. Cowley, Aramaic Papyri of the Fifth Century B.C. (New York: Oxford
University Press, 1929); Bezalel Porten, Archivesfrom Elephantine: The Life of an
Ancient Jewish Military Colony (Berkeley: University of California Press, 1968);
Corpus PapyrorumJudaicarum, Victor Tcherikover, Alexander Fuks (orgs.), 3 vols.
(Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1957-1964).
35

É provável que sejam os restos mortais de alguns samaritanos de


classe alta fugidos de Alexandre, o Grande, em 332 a.C., e massa-
crados por ele. Além de informações gerais sobre os tempos, os
documentos são úteis para a reconstrução da situação em Samaria,
incluindo-se a lista de governadores da região. Embora os livros
de Esdras e Neemias provavelmente tenham sido escritos antes,
as informações dessa caverna são importantes para entendermos
o cenário e a situação implicados neles.
c. Os papiros de Zeno: Grande parte das cartas de Zeno, administra-
dor no governo de Apolônio, tesoureiro dc Ptolomeu II Filadelfo
(285-246 a.C.) do Egito, foi descoberta em 1915. Cerca de um
quarto dos documentos diz respeito à Palestina e áreas adjacentes
e inclui informações que refletem a vida e as condições dessas
áreas enquanto Zeno estava em uma jornada pessoal por elas de
260-258 a.C.
13. Várias inscrições de túmulos, edifícios públicos e outros monumen-
tos lançam luz sobre a cultura e a história do período intertestamentário.
14. Alguns estudiosos talvez queiram criar categorias distintas para
documentos que refletem a literatura judaica gnóstica, mágica e mística
do período intertestamentário.
A interpretação das obras literárias provenientes do judaísmo inter-
testamentário ou que pertencem a ele c repleta de dificuldades. Às vezes,
não podemos ter plena certeza do significado de alguns dos conceitos e
palavras usados. Há momentos em que não podemos identificar as pessoas,
os acontecimentos ou as instituições mencionados.
O utro problema é o tratamento dado aos documentos pelos antigos
— muito diferente dos métodos modernos. Seus padrões de precisão
não eram iguais aos nossos. Além disso, os métodos pelos quais os docu-
mentos assumiam suas formas atuais eram variados e, às vezes, confusos.
Três práticas literárias antigas identificadas por estudiosos modernos são
evidentes em algumas das fontes escritas de informação do judaísmo in-
tertestamentário: 1) A junção de materiais escritos em diferentes lugares
e épocas resultou no que podemos chamar de documentos evoluídos.
2) A intercalação é a prática de inserir em um documento materiais que
claramente vêm de um período posterior ou têm origem diferente, e que,
muitas vezes, apresentam pontos de vista diferentes. 3) Mais difícil (e mui-
tas vezes impossível) de distinguir são as alterações feitas por um editor
36

posterior, ou seja, adições, subtrações, textos reescritos, reformulações,


reorganizações que visam cumprir seus objetivos. Portanto, muitas vezes
devemos perguntar não só a intenção do escritor originário, mas também
o que a forma atual nos diz sobre colecionadores e editores posteriores.
Não é de admirar que estas e outras considerações críticas, inevitável-
mente, levem a diferenças de opinião sobre um documento e, portanto,
a diferentes interpretações e avaliações.

Es c r ito r e s ju d e u s d o sécu lo I d .C.

Dois escritores judeus não cristãos do século I são tão importantes


para nosso propósito que precisamos descrevê-los com brevidade. À
sua maneira, eles foram judeus helenistas. Josefo fornece informações
sobre a vida e a história da terra de Israel de sua época. Fílon viveu em
Alexandria, Egito. Seus principais interesses foram atividades intelectuais,
exposição bíblica, filosofia e coisas do tipo. N a maioria das vezes, Fílon
dá apenas vislumbres de si mesmo e do mundo a seu redor. Junto com a
descrição dos acontecimentos com os quais se envolveu no final da vida,
esses vislumbres são importantes fontes de informação sobre os contextos
judaicos do NT.
Flávio Josefo
Graças a seu pai Matias, Josefo pertenceu à nobreza sacerdotal.13Descen-
dia da casa real dos hasm oneus p o r parte de mãe. O riginariam ente cham ado
José, ele, mais tarde, se deu o nom e de Flávio Josefo, sendo Flávio o nom e
da família de im peradores rom anos que eram seus patronos e Josefo, a form a
rom anizada de seu n o m e hebraico. E n tre seu nascim ento e m orte (37-100),
Josefo foi um estudioso, sectário, estadista, oficial militar, traidor, historiador
e apologista dos judeus.
A vida e a época d e josefo estão intim am ente entrelaçadas. Pouco antes
de seu nascim ento, Pôncio Pilatos foi trazido da Judeia para enfrentar acusa-
ções de má gestão. G aio Caligula torn o u -se im perador em 37 d.C., libertou
o am igo H erodes A gripa da prisão e nom eou-o rei dos judeus. E m 40-41,
todo o m undo judeu caiu na consternação, e a Judeia foi levada à iminência
da guerra quando Caligula am eaçou erigir sua própria estátua no tem plo de
Jerusalém.

13A seguinte discussão é uma condensação e revisão de meu artigo “Josefo”, em


Dictionary ofJesus and the Gospels, Joel B. Green, Scot McKnight e 1. Howard Mar-
shall (orgs.) (Downers Grove, 111.: Inter-Varsity, 1992), 391-4.
37

Aos 14 anos, afirma Josefo, seu conhecimento era tão respeitado que
os rabinos chegavam a consultá-lo. Alguns anos mais tarde, ele começou
um estudo das três principais seitas da nação: saduceus, fariseus e essênios.
Segundo ele, durante três anos, viveu como asceta no deserto com um ere-
mita chamado Bano. Então, tornou-se fariseu. Em 64, )osefo visitou Roma e
obteve a liberdade de alguns sacerdotes presos ali. Nessa cidade, Josefo ficou
impressionado com a grandeza e o poder do império.
De volta a Judeia, Josefo percebeu que sua terra estava caminhando para
a guerra com Roma. Notando a insensatez, ele procurou levar a nação a tomar
outras direções. Mas, com apenas 29 anos de idade, Josefo foi encarregado
de preparar a Galileia para a invasão romana já prevista.
No outono de 67, os romanos chegaram a Galileia. Os esforços de Josefo
para impedir o avanço deles foram inúteis. Ele e suas forças ofereceram resis-
tência pela última vez aos romanos em Jotapata. Uma vez que seus soldados
preferiam morrer com honra a se render e viver na servidão, Josefo propôs
um plano de suicídio em massa. No entanto, depois que todos os outros se
mataram, ele e um companheiro se renderam aos romanos. Quando colocado
diante de Vespasiano, Josefo prenunciou que o general, um dia, se tornaria
imperador, permanecendo, no entanto, cativo.
As operações militares romanas na Palestina foram interrompidas durante
68-69 enquanto esperavam o resultado da luta pelo trono após a morte de
Nero. Por fim, o exército de Vespasiano proclamou-o imperador. Ele libertou
Josefo, que acompanhou seu benfeitor até Alexandria e, em seguida, retornou
para ajudar o filho de Vespasiano, Tito, no cerco final de Jerusalém. Josefo foi
intérprete e mediador entre as forças combatentes, foi ferido e testemunhou
a destruição da nação e da cidade no ano 70.
Depois da guerra, Josefo foi levado a Roma por Tito, que, por fim, su-
cedeu ao trono imperial. Sob a autoridade de Vespasiano e Tito, Josefo viveu
como pupilo da corte. Com um estipêndio e uma casa de campo, ele dedicava
a maior parte do tempo à escrita. E possível que seu destino não tenha sido
bom depois da morte de Tito (81). Com respeito à duração de sua vida, sabe-
mos que Josefo viveu mais que Herodes Agripa II, que morreu no ano 100.
Os escritos de Josefo foram preservados pelos cristãos que reconheceram
a contribuição desses textos para a definição das origens históricas de sua fé.
Esses escritos oferecem o maior (praticamente o único) relato judaico con-
temporâneo da história e condições dos períodos que levaram à era do NT
e a incluíram. De sua pena também vieram as mais antigas referências não
cristãs ao cristianismo na forma de breves comentários sobre João Batista,
Jesus e a morte de Tiago, irmão de Jesus.
38

Emborajosefo mencione outras obras que escreveu ou esboçou, somente


quatro de seus escritos permaneceram.11‫׳‬Sua primeira obra, Guerra dosjudeus, é
a mais importante. Concentra-se na luta contra os romanos (66-70) na qual ele
desempenhou papéis de ambos os lados. Os dois primeiros livros oferecem
uma introdução que investiga esses eventos e atitudes que, ao ver de Josefo,
levaram à revolta judaica. Ao longo da obra, o escritor descreve a geografia
da Palesdna (incluindo Jerusalém e seu templo) e a história, vida, costumes
e pensamento judaicos. Estas descrições forneceram os dados necessários
para os leitores romanos não acostumados com a região e as pessoas. O ob-
jetivo de Josefo era elogiar seus patronos romanos e acalmar os sentimentos
contrários aos judeus ao transferir a culpa pela guerra do povo judeu como
um todo à minoria de líderes imprudentes e partidos ou seitas radicais, em
especial os zelotes.
Antiguidades dosjudeus apareceu em vinte livros em 93-94. N o intervalo
de quase vinte anos entre Guerra dosjudeus e Antiguidades provavelmente
dedicou-se à pesquisa e escrita. Esse período incluiu o reinado de Domi-
ciano, cuja aversão à literatura, especialmente à história, silenciou escritores
como Tácito, Plínio, o Jovem, e Juvenal. Antiguidades (o\x Arqueologia, como
o chama Josefo) traça a história judaica desde a criação do mundo à sua
própria época. Para as partes bíblicas da história, ele emprega a estrutura
da tradução grega do AT, a Septuaginta, nas quais insere histórias, lendas
e ornamentos judaicos. Para seu relato dos séculos logo após a história
do AT, ele tem apenas informações escassas. Menciona brevemente,
por exemplo, conflitos judeus e samaritanos, a chegada de Alexandre,
o Grande, a Jerusalém, o subsequente controle egípcio (ptolomaico) da
Palestina, a tradução da Septuaginta e os conflitos sobre o sacerdócio. Em
seguida, começa a mencionar o mesmo material encontrado no primeiro 1

11Josefo, Works, trad. H. St. J. Thackeray, Ralph Marcus, Allen Wikgren e Louis H.
Feldman, 9 vols., Loeb Classical Library (Cambridge, Mass.: Harvard University
Press, 1926-65); The Works of Josephus, trad. William Whiston (Peabody, Mass.:
Hendrickson, 1987); a última é uma edição restaurada e levemente atualizada da
tradução de Whiston de 1736.
Há dois métodos importantes de referência aos escritos de Josefo. A tradução
original de Whiston dividiu cada livro em capítulos e parágrafos. Por exemplo,
o relato sobre a morte de Tiago apareceu em Antiquities X X:9,1. A edição Loeb
divide cada livro em seções; aqui a morte de Tiago aparece em Antiquities 20.200.
A edição atualizada de Whiston usa ambos os sistemas. Para a conveniência do
leitor, também combinaremos os dois: Antiquities 20.9.1 (200).
39

e segundo livros de Guerra dosjudeus até o começo da guerra com Roma,


mas, muitas vezes, com detalhes, formas e ênfases diferentes.
Com respeito à sua vida, no final de Guerra dosjudeus,)osefo fala de
acusações contra si mesmo. A Vida não é tanto uma autobiografia, mas
uma defesa contra constantes críticas à sua conduta e posição na guerra.
Contra Apion, a última obra de Josefo que restou, é uma defesa do judaís-
mo contra seus detratores, em especial Apion, um conhecido antissemita.
Muitas vezes foi questionada a precisão dos escritos de Josefo. Ele se
vale de seus relatos, excessivamente amáveis e generosos na forma como
apresenta os romanos, e molda os fatos da história judaica para servir a
seus fins. E notório seu exagero de números. Seções paralelas de diferentes
obras têm variantes inconciliáveis. N o entanto, embora a questão ainda
seja discutida, dados recentes, como os apresentados pelas escavações de
Massada na década de 1960, parecem acrescentar certa credibilidade ao
modo como Josefo lidou, pelo menos, com as principais características
de seus relatos.
O maior valor de Josefo para o estudo do N T e do cristianismo primi-
tivo encontra-se nas informações contextuais. Sem seus escritos, restaria
a nós tentar juntar os pedaços de uma história do século I na Palestina. A
despeito das limitações, à medida que nos conduz em meio a essa estranha
época e mundo que abrigaram Jesus e os apóstolos, Josefo permite que
compreendamos melhor a época em que apareceu a Palavra.
Fílon de Alexandria
A comunidade judaica de Alexandria era a maior fora da terra de Israel.
Fílon era membro de uma família proeminente e rica da cidade. Alexandre,
seu irmão, exercia cargos governamentais de responsabilidade. De seus
próprios recursos, Alexandre emprestou dinheiro para o rei judeu Agripa I
e doou placas de ouro e de prata para as portas do templo de Jerusalém.
O filho de Alexandre, Tibério Júlio Alexandre, renunciou ao judaísmo e
seguiu a carreira política. Foi procurador (governador) da Judeia, de 46 a
48, e, de 66 a 70, prefeito romano do Egito, a posição mais alta ali. Tibério
Júlio Alexandre foi chefe de estado de Tito durante o cerco e destruição
de Jerusalém, no ano de 70.
Pouco se sabe sobre a vida de Fílon. Ele era, obviamente, bem instruí-
do no aprendizado grego; era proficiente na filosofia grega, em especial
a de Platão e dos estoicos. Em bora participasse da vida social de Alexan­
40

dria, permaneceu um judeu muito dedicado, sendo fiel ao monoteísmo,


à inspiração das Escrituras e a outros princípios básicos de sua religião.
Fflon menciona a prática da peregrinação ao templo de Jerusalém. Seus
escritos mostram profundo interesse e vida religiosos.
Ele conta que teve de deixar as atividades intelectuais em um momento
para participar de assuntos cívicos em um período de turbulência. Isso
pode ter acontecido durante os tumultos antissemitas em Alexandria,
iniciados no ano de 38, enquanto Flaco era prefeito, de acordo com os
acontecimentos descritos por Fílon. Embora idoso, chefiou uma delegação
judaica até Roma para apelar ao imperador Gaio Caligula a revogação da
ordem de ter a própria estátua no templo de Jerusalém. A missão diplo-
mática com Caligula falhou; esse é o último vislumbre de Fílon. Em geral,
acredita-se que ele tenha morrido por volta do ano 50.
Seus escritos são volumosos15e podem ser classificados como filosó-
ficos, apologéticos, históricos e expositivos. As categorias podem induzir
ao erro, uma vez que ele lida com o texto bíblico na grande maioria dos
escritos.
Fílon empregou o m étodo alegórico de interpretação — popular no
mundo de sua época, especialmente em Alexandria. N o entanto, ele critica-
va o uso extremo desse método que ignorava o significado literal do texto.
Com a alegoria, procurou sintetizar o pensamento judaico c grego. Isso
incluía demonstrar que as idéias essenciais de Platão já estavam presentes
em Moisés (no mundo antigo, a antiguidade dos conceitos validava sua
autenticidade). Seus estudos sobre Abraão descrevem o patriarca como
exemplo de vida virtuosa “de acordo com a natureza”, isto é, sem a lei.
Abraão, portanto, retrata a jornada de cada alma que busca a Deus.
Discute-se o lugar de Fílon no espectro total do judaísmo (ele é cha-
mado de tudo, desde seguidor de uma religião grega misteriosa a adepto
de uma forma de farisaísmo). Parece correto reconhecê-lo como um judeu
helenista fiel à sua fé. Para nossos objetivos, Fílon é valioso como exemplo
do modelo, provavelmente o mais elevado, do judaísmo hclenístico e do
judeu (não palestino) intelectual da diáspora. Era bem versado na totali-
dade do pensamento judeu e fará contribuições importantes para nosso
estudo do judaísmo intertestamentário.

1‫ י־‬Works, trad. F. H. Colson, G. H. Whitaker, Ralph Marcus, 10 vols. com dois su-
plementos, Loeb Classical Library (Cambridge, Mass.: Harvard University Press,
1929-1962); The Works of Philo, trad. C. D. Yonge (Peabody, Mass.: Hendrickson,
1993); o último é uma versão mais atual da tradução de Yonge de 1854-1855.
2
A geografia da terra de Israel

• As características físicas
• Divisões políticas nos tempos do Novo Testamento
• A cidade de Jerusalém
• O complexo do templo

AS CARACTERÍSTICAS FÍSICAS

A consideração das características físicas da terra de Israel é útil para


compreendermos sua história. Podemos apresentar aqui apenas um breve
esboço de algumas destas características mais importantes.1A leste de Israel
está o deserto da Arábia com o mar Mediterrâneo (ou o Grande Mar) na
fronteira ocidental. Nos dois mundos, antigo e moderno, o Líbano (a terra
de Tiro e Sidom) e a Síria ficam na fronteira norte da terra de Israel, um
deserto ao sul. Um pouco mais ao sul e a oeste está o Egito.
A importância estratégica de Israel é muito maior que seu tamanho.
Para quem queria evitar viagens pelo mar ou deserto, a área oferecia as
únicas passagens entre, por um lado, as terras das grandes civilizações da
Mesopotâmia e do que hoje conhecemos como atual Turquia, ao norte,
e, pelo outro, Egito e Etiópia, ao sul. Grande parte da história da região,
incluindo-se a história bíblica, aconteceu ao longo das rotas comerciais
que davam passagem (nem sempre fácil) pelo território. O controle do
comércio, incluindo os direitos para coletar tarifas, tornou Israel um prê­

1 Para estudos mais abrangentes, da geografia bíblica, cf. Yobanan Aharoni, The
Land of the Bible: Λ Historical Geography, ed. rev. (Philadelphia: Westminster, 1979);
e George Adam Smith, The Historical Geography of the Holy Land (fievr York: Harper
and Row, 1966, rcimpr.).
42

mio muito cobiçado. Não causa admiração a terra tenha sido cercada por
inimigos ao longo da história.
A terra atual de Israel é diferente da antiga em muitos sentidos. Grande
parte da área moderna não tem a vegetação rica, em especial árvores, o
que leva o indivíduo a se perguntar se esta é de fato “uma terra boa e vas-
ta, onde manam leite e mel” (Êx 3.8,17; 13.5; 33.3; Lv 20.24; N m 13.27;
14.8; D t 6.3; 11.9; 26.9,15; 27.3; 31.20). O leitor deve saber que, depois
dos tempos bíblicos, os poderes governantes, às vezes, cobravam um
imposto especial sobre as árvores, e, por isso, as desnecessárias eram
cortadas, resultando em desastres ecológicos. Da mesma forma, o grande
número e a diversidade de animais mencionados na Bíblia não existem
no momento. Israel não é a única terra cujos seres viventes pagaram caro
pelo avanço da civilização.
N o entanto, algumas coisas não mudam. A área continua diversificada.
Quem visita a terra pela primeira vez fica impressionado com a rapidez
com que a topografia muda, com a proximidade dos lugares importantes
mencionados na Bíblia e com o quanto a água é estratégica. Várias caracte-
rísticas da área devem ser observadas antes de continuarmos. Uma rápida
olhada no mapa revela um pequeno promontório, cerca de três quartos
do caminho até o litoral, projetando-se para o mar Mediterrâneo. Este é
o monte Carmelo, onde Elias manteve a famosa disputa com os profetas
de Baal (lRs 18.20-40). N o sopé, a nordeste do Carmelo, começa uma
vasta planície, seguindo para o sudeste, que quase atravessa a região. As
colinas da Galileia estão no norte e as de Efraim e de Judá, no sul. Esta é
a planície de Esdrelom com o vale de Megido (Armagedom) no oeste e
o vale de Jezreel no extremo leste. Esdrelom é a parte mais fértil da terra
de Israel, uma importante via para os viajantes, e o palco de diversas ba-
talhas decisivas.
Outra característica importante é o volume de água no território. O rio
Jordão, com suas várias nascentes na região do monte Hermom, percorre
toda a extensão. Cerca de 15 quilômetros ao sul de Dã, que fica no norte,
as águas do Jordão são coletadas no lago Hulé (ou Semeconites) e, então,
avançam para o mar (ou lago) da Galileia (ou Quinerete). Este corpo de
água doce com forma mais ou menos de lágrima chega a quase 21 quilô-
metros de comprimento e 11 quilômetros no ponto mais largo. Na época
de Jesus, sustentava um mercado próspero de pesca, do qual alguns de seus
discípulos faziam parte. Entre as cidades visitadas por Jesus ao longo do
43

lago estão Betsaida, Genesaré, Magdala e Cafarnaum, que se tornou sua


base. O Jordão continua ao sul e, por fim, deságua no mar Morto (mar
Salgado). Este mar não tem vazão; suas águas têm alta concentração de
minerais, em especial de sal, e não suportam vida (por causa da condição
favorável do mar à flutuabilidade, uma pessoa pode flutuar sem esforço).
44
Figura 1
Perfis representativos da terra de Israel

De oeste a leste----- ►

Estamos falando de uma pequena terra. O trecho de Dã, a tradicional


fronteira norte, a Berseba, ao sul, tem apenas 242 quilômetros. O trecho do
mar da Galileia ao mar M orto é de cerca de 105 quilômetros. As distâncias
entre oeste e leste podem variar de 45 quilômetros, do mar da Galileia
ao Mediterrâneo, a 87 quilômetros, do mar Morto ao Mediterrâneo. As
diferenças de altitude são impressionantes. O cume do monte Hermom,
no norte, tem 2.804 metros; o mar da Galileia fica 211 metros abaixo do
nível do mar. A altitude de Jerusalém é de 790 metros acima do nível do
mar, enquanto a apenas 23 quilômetros a leste, o mar Morto, o ponto mais
baixo da terra, está 388 metros abaixo do nível do mar.2

J Note que a queda dc altitude dejerusalém ao mar Morto é de quase 1.190 metros
em uma distância dc 24 quilômetros.
45

É importante notar as várias áreas geográficas gerais. Ao prenunciar


a restauração e bênção futuras, Jeremias menciona ou sugere várias delas:
“ ‘Tanto nas cidades dos montes, da Sefelá, do Neguebe e do território
de Benjamim, como nos povoados ao redor de Jerusalém e nas cidades
de Judá, novamente passarão ovelhas sob as mãos daquele que as conta’,
diz o S e n h o r ” (Jr 33.13).
A listagem sistemática das áreas de oeste a leste começaria no mar
Mediterrâneo. Ao longo do mar, a planície costeira é uma área fértil e
plana. Embora houvesse, pelo menos, outras três grandes rotas comerciais
entre norte e sul, a que oferecia o trajeto mais fácil ficava na planície; como
consequência, seus habitantes estavam sujeitos ao contato frequente com
estrangeiros. N o sul, na parte ocidental do território de Judá, está a região
de colinas baixas, a Sefelá, que se ergue da planície.
A espinha dorsal de Israel é a região montanhosa, que vai de Esdrelom
ao sul. As colinas são altas e escarpadas, cortadas por vales profundos. A
agricultura próspera requer desenvolvimento do planalto natural, meios
para a preservação da água e a seleção cuidadosa de colheitas e rebanhos.
O s moradores da região montanhosa tinham pouquíssimo contato com
estrangeiros.
A segunda grande rota comercial entre norte e sul estende-se pelos
topos das colinas. É conhecida, às vezes, como a rota da Cordilheira.
Uma vez que Abraão e seus descendentes viajaram por ela, também é
conhecida como o caminho dos Patriarcas. O s vales de leste a oeste na
região montanhosa são particularmente importantes, porque oferecem
acesso ao interior e às regiões mais distantes. A casa de Sansão, perto
de Zorá no vale do Soreque, deu-lhe fácil acesso às terras dos filisteus; a
derrota de Golias por Davi frustrou a tentativa filisteia de invadir a região
montanhosa através do vale de Elá.
O lado ocidental das montanhas recebe uma quantidade considerável
de chuva, ao contrário das encostas no oriente. Jerusalém, por exemplo,
tem chuvas anuais de cerca de 60 centímetros; Jerico, a menos de 32 qui-
lômetros a leste, tem apenas 10 centímetros. Por isso, ao longo do lado
oriental das montanhas está o deserto quente, seco, irregular e estéril de
Judá, onde as tropas dos macabeus esconderam-se durante o período
intertestamcntário, onde João Batista pregou e onde Jesus foi tentado.
46

O deserto da região montanhosa ao oriente desaparece de forma súbita


no vale do Jordão, parte da grande fenda que se estende até a África.3Gran-
de parte da escarpa profunda tem o mesmo tipo de paisagem encontrado
no deserto pouco acima dela. Uma vez ou outra, os oásis, como Jericó,
tornam a habitação possível e até mesmo desejável; o palácio favorito de
Herodes, o Grande, ficava perto de Jericó. Percorrendo o fundo do vale está
o sinuoso rio Jordão. Logo ao sul de Jericó, ele deságua no mar Morto. A
terceira rota comercial entre o norte e o sul estendia-se ao lado do Jordão.
N o leste do vale do Jordão elevam-se as planícies de Moabe, o pia-
nalto da Transjordânia (atual Reino Hachemita da Jordânia). E a área que
Moisés dividiu entre as tribos de Rúben, Gade e metade de Manassés. A
estrada dos Reis, a quarta rota comercial entre o norte e o sul, começou
em Damasco e se estendeu até parte do território da Transjordânia. As
planícies mesclam-se de m odo gradual com o deserto árabe.
Como se o território de oeste a leste já não fosse complicado o sufi-
ciente, também temos de lidar com o que vai do norte ao sul. As alturas
elevadas da cordilheira do monte Hermom terminam nas colinas menos
escarpadas das áreas da Alta e Baixa Galileia (ou Quinerete). Elas mergu-
lham de forma abrupta no amplo vale de Esdrelom.
Ao sul da planície central, a terra eleva-se em direção à região mon-
tanhosa, primeiro as colinas de Efraim (ou Samaria), depois a região
montanhosa de Judá. Entre elas, ao norte de Jerusalém, está uma área
relativamente plana, o planalto de Benjamim, cujo entorno abriga cidades
como Betei, Ai, Ramá, Gibeom, Gibeá, Micmás e outras que desempe-
nharam papéis importantes no início da história de Israel. A passagem de
Bete-Horom dá acesso do planalto à planície costeira no oeste; ao longo
desta estrada, Josué perseguiu a confederação de cinco reis que atacaram
Gibeom e Israel (Js 10.10).
Um pouco ao sul de Hebrom começa o Neguebe. A região desértica é
a parte que fica ao extremo sul da região. E quase estéril nos meses secos

3 Deuteronômio, Josué e uma série de outros livros do AT rcfcrcm-se a Arabá.


Tecnicamente, a Arabá é a região que vai do sul do mar Morto ao golfo de Acaba.
Mas o termo, que significa “depressão”, muitas vezes é usado para incluir outras
áreas: 1) todo o vale do Jordão (|s 11.2, 16; 12.1, 3); 2) a área ao redor do mar
Morto (Dt 1.7; 2.8) e 3) as terras das tribos além do Jordão (“também a Arabá,
tendo como fronteira ocidental o Jordão, desde Quinerete até o mar da Arabá,
que é o mar Salgado”, D t 3.17).
47

de verão, mas fértil nas estações úmidas.4 Berseba é sua principal cidade,
mas outros locais bíblicos, como Arade, encontram-se em suas fronteiras.

D ivisões políticas n o s te m p o s d o No v o T estam ento


As divisões políticas da terra de Israel mudavam de tempos em tem-
pos. Ao que parece, antes da conquista sob a liderança de Josué, ela foi
dividida em numerosas cidades-estados. Após a conquista, os israelitas
4 Ez 20.46,47 menciona a “ floresta da terra do Negucbc”; projetos modernos de
reflorestamento estão pouco a pouco restaurando partes desta área.
48

estabeleceram-se em uma federação em que cada tribo era quase autô-


noma. Na monarquia, toda a terra foi politicamente unida no início, mas
depois se dividiu em duas partes. Judá, após o retorno do cativeiro, era
um pequeno Estado com o templo que começava no Jordão a leste, mas
não se estendia tanto ao norte quanto à planície costeira; não incluía Betei
ao norte, nem Hebrom, ao sul.
As fronteiras estavam sujeitas a mudanças constantes no período inter-
testamentário. Estamos interessados na situação política nos tempos do NT.
A princípio, Herodes, o Grande, governava toda a área como um reino. Em
sua morte, ela foi dividida em várias partes. N o início, alguns delas foram
governadas por seus descendentes; outros arranjos, incluindo-se o domínio
dc governadores romanos, prevaleceram mais tarde em alguns locais.
Somente três partes da região foram povoadas principalmente por
judeus. Entre elas estavam a Judeia (e Idumeia) no sul, Percia, ao leste
do Jordão, e a Galileia, no norte. Em bora Samaria fosse parte da Judeia
em sentido políüco, seus habitantes não eram judeus, e havia hostilidade
entre os dois povos.
Em se tratando de população e governo nas três partes eram for-
madas por gentios. A Fenícia (a terra de Tiro e Sidom) localizava-se ao
longo da costa do Mediterrâneo, ao norte e um pouco a oeste da Galileia.
Seguindo para o interior da Fenícia ficava o território do nordeste, que
incluía as regiões de Gaulanites, Itureia e Traconites, e também a cidade de
Cesareia de Filipe. Decápolis, a federação de dez cidades de língua grega,
era originariamente uma área da Transjordânia ao norte e leste da Pereia.
Atravessava a Jordânia e ocupava um pequeno território em Israel ao sul
do mar da Galileia.

A CIDADE DE JERUSALÉM
Não se pode deixar de enfatizar a importância de Jerusalém. Até o
auge de sua expansão, no entanto, a cidade bíblica, conhecida hoje como a
Cidade Antiga, era minúscula segundo os padrões modernos. Suas origens
perderam-se na história. Sua localização estratégica ainda hoje é óbvia. Ela
fica no alto da região montanhosa da Judeia, podendo ser vista da rota
da Cordilheira. Suas características predominantes são vales profundos, o
Cedrom, a leste, e o Hinom, a oeste, o qual forma um círculo e se junta ao
Cedrom, no sul. Nos tempos antigos, os vales eram a base de fortificações
da cidade. Um vale mais raso, o Central (também chamado Tiropeão ou
49

vale dos Queijeiros), atravessa a cidade. O monte das Oliveiras eleva-se


acima de Jerusalém, do lado oriental do vale de Cedrom. Ele se destaca
no horizonte e na história da cidade, mas nunca foi parte oficial dela.
A cidade bíblica, por fim, espalhou-se por cinco colinas entre os vales
Cedrom e Hinom. Davi construiu sua cidade em uma pequena colina,
com o formato de rim, chamada Ofel, a sudeste. O monte Moriá, o local
do templo, foi incluído na cidade por Salomão. N a monarquia, a cidade
50

começou a se espalhar em direção à grande colina sudoeste; esta área é


conhecida hoje como Siãod Evidências arqueológicas mostram que Eze-
quias provavelmente aumentou os muros da cidade com o intuito de incluir
esta área. Alguns acreditam que Salmos 122.3: “Jerusalém está construída
como cidade firmemente estabelecida”, possa celebrar esse evento.
A localização exata dos muros da cidade do N T é um grande problema
para arqueólogos e historiadores. Evidentemente, uma área a oeste do
templo e ao norte da colina sudeste se desenvolveu como mercado (ágora)
e local para edifícios públicos e palácios no período intertestamentário.
A localização do muro, que ficava a oeste da área, é fundamental para a
determinação do provável local da crucificação e do sepultamento de Jesus.
A parte do norte da cidade não tem vale ou outra forma natural de
proteção. Em termos militares, é a parte mais vulnerável de Jerusalém.
Vários muros antigos protegiam-na. Depois do ministério de Jesus, He-
rodes Agripa I começou a construção de um muro extenso para cercar os
arredores do norte de Jerusalém no norte e oeste. O imperador romano
ordenou-lhe que interrompesse o projeto antes da conclusão.
O abastecimento de água sempre foi uma grande preocupação local.
Duas fontes importantes abasteciam a cidade antiga. O Giom, abaixo
da cidade de Davi, no vale de Cedrom, era a principal forma de abaste-
cimento de água. EnRogel ficava ao sul da cidade e não era usado com
tanta frequência. Ao longo da história de Jerusalém, inúmeros aquedutos
e cisternas foram construídos para o transporte e armazenamento de
água. O mais conhecido é o túnel construído por Ezequias (2Rs 20.20;
2Cr 32.30) para ligar a fonte de Giom ao tanque de Siloé (Jo 9.7) no vale
Central. Contava pouco mais de 530 metros de extensão e atravessava
uma rocha sólida debaixo de Ofel. O projeto fazia parte dos preparativos
para o esperado cerco dos assírios. Uma inscrição encontrada no túnel
menciona o encontro no ponto central de duas equipes de cavadores que
começaram por extremidades diferentes.56 O utro tanque, Betesda (ou

5 O termo Sião era usado antigamente como referência a toda a cidade.


6 “... (o túnel) estava sendo escavado. Era cortado da seguinte maneira [...| com ma-
chados, sendo que cada homem seguia em direção a seu colega, e, enquanto ainda
faltavam três côvados para serem cortados, a voz de um homem chamando pelo
outro era ouvida, mostrando que ele estava se desviando para a direita. Quando o
túnel foi concluído, os escavadores se encontraram frente a frente, machado com
machado, e a água fluiu da fonte para o reservatório de 1.200 côvados. A altura da
rocha acima da cabeça dos escavadores era de cem côvados” (cf. D. J. Wiseman,
51

Betzata), é mencionado em João 5.2; provavelmente ficava ao norte do


templo, mas sua localização exata é incerta.

O COMPLEXO DO TEMPLO

As características físicas do complexo do templo nos tempos do N T


são bem conhecidas, mas os detalhes exatos de uma reconstrução estão
em discussão. Descrições do aspecto físico do templo são dadas por Josefo
e, com algumas variações, no Middoth, um tratado da Mixná.*7
A localização do templo do N T era a mesma que a dos templos an-
teriores. A planta baixa e o mobiliário essencial seguiam os modelos do
tabernáculo. N o entanto, quando Herodes, o Grande, assumiu o compro-
misso de reconstruir o edifício de Zorobabel, ele decidiu superá-lo em se
tratando de tamanho e beleza.
Para atender à necessidade do espaço adequado para os adoradores
que se aglomeravam no templo nas ocasiões festivas, Herodes ampliou
a plataforma sobre a qual ele se encontrava. Para isso, fez uma extensão,
sustentada por arcos, sobre o vale de Cedrom. Esta plataforma, o átrio
dos Gentios, ocupava quase 35 acres. Herodes cercou a plataforma com
pórticos (varandas, colunata). O pórtico de Salomão (Jo 10.23; At 3.11;
5.12) provavelmente era a colunata oriental com vista para o vale de Ce-
drom. Vários portões levavam à plataforma; o principal provavelmente era
o portão com três arcos no alto de uma grande escadaria no sul. Foram
apresentadas diferentes sugestões para a localização do pináculo do tem-
pio (Lc 4.9); talvez tenha sido o ponto mais alto da estrutura do templo
propriamente dito, ou a extremidade sudeste da plataforma (o canto de
Ofel), que dá vista para o vale do Cedrom.
Nos limites da plataforma estava a estrutura do templo em si. Era
cercada por um muro baixo que servia de aviso para os gentios não o ul-
trapassarem.8 Havia três divisões ao ar livre dentro do templo, o átrio das
Mulheres, o átrio de Israel (dos Homens) e o átrio dos Sacerdotes. Sacri-
fícios e outros atos de adoração eram realizados na área citada por último.
“Siloam”, em New Bible Dictionary,). D. Douglas et al. (orgs.), 2. ed. [Downers
Grove, 111.: Inter-Varsity, 1982], p' 1113-4).
7 Josefo, Guerra dosjudeus 5.5.1-8 (184-247); Antiguidades 15.11.3-7 (391-425).
8 Josefo menciona este muro em' Guerra dosjudeus 5.5.2 (193-94); 6.2.4 (124-26);
Antiguidades 15.11.5 (417). Arqueólogos encontraram duas ocorrências da inscrição.
Ela dizia: “Nenhum estrangeiro deve entrar no pátio nem passar pela balaustrada
ao redor do santuário. Quem for pego será culpado por sua morte subsequente”.
52

A estrutura fechada era uma construção magnífica. Como o taber-


náculo, essa estrutura compreendia o Lugar Santo e o Santo dos Santos.
Evidentemente, a arca da aliança estava perdida quando os babilônios
destruíram o primeiro templo. Uma vez que a arca não havia sido substi-
tuída, o Santo dos Santos do templo do N T estava vazio. N o entanto, ele
permaneceu o ponto central da religião israelita.
Figura 2
O plano básico do templo de Herodes
Fortaleza
Antônia

Átrio dos Gentios

Muro do Aviso
1
---------------------------------------------- ‫ד‬

1. O Santo dos Santos


2. O Lugar Santo
3. Pórtico
4. Pátio dos Sacerdotes
5. Altar
3
Visão geral do Antigo Testamento

1. Começos (c. 2000 a.C.; G n 1— 11)


2. Os patriarcas (c. 2000-1650 a.C., metade da Idade do Bronze; G n 12—

50l
3. O Êxodo: O deserto e o nascimento da nação (c. 1445-1405 ou 1290-
1250, final da Idade do Bronze; Êx, Lv, N m , Dt)
4. Conquista e ocupação de Canaã (c. 1400-1350 ou 1250-1200, final da
Idade do Bronze; js)
5. O s juizes (c. 1350 ou 1200-1050, Idade do Ferro I; Jz, Rt)
6. O reino unido (1050-931, Idade do Ferro I; ISm, 2Sm, IRs 1— 11,
lC r 10— 29, 2Cr 1— 9)
7. O reino dividido (931-586, Idade do Ferro II; lR s 12— 22, 2Rs,
2Cr 10— 36)
8. O Exílio ou cativeiro dc Judá (586-538, Idade do Ferro III ou Período
Babilônico)
9. O período pós-exílico (538-c. 400, Período Persa; Ed, Ne)

O s escritores judeus do período intertestamentário pressupõem que


o leitor esteja acostumado com o AT. Portanto, é imperativo rever os
principais períodos de sua história. N o próximo capítulo, examinaremos
algumas de suas instituições, idéias e costumes mais importantes.
A história do AT é religiosa. Embora trate de acontecimentos e perso-
nagens do mundo real, ela diz respeito principalmente a Deus e à relação
dos seres humanos com ele. Incluí pessoas e eventos reais importantes
para o propósito religioso. Portanto, os pontos de grande importância na
54

Figura 3
Linha do tempo da história de Israel

1050
Patriarcas ‫־‬

política
Moisés -
Aliança Reino
Torá Juizes unido
I ‫י‬ o
ΗΌ
2000 a.C. 1800 1600 1400 1200 1000 U I
>
Q

história do mundo podem ser mencionados de forma rápida ou omitidos


por completo pelos escritores bíblicos, cujo relato ou exame da história
sempre visa fins teológicos. È o caso de Miqueias, que menciona uma
série de acontecimentos na experiência de Israel como nação e depois
pede ao leitor que se lembre de “que os atos do S e n h o r são justos” (6.5).
Deus opera a redenção por meio da história de Israel que faz com que ele
mesmo e a salvação sejam conhecidos.
Resumiremos a história do AT em nove divisões. Embora sejam
apresentadas em ordem cronológica, existem lacunas na sequência, em
particular, o período de quatrocentos anos entre o fim do período dos
patriarcas e o Êxodo. Embora esse tenha sido um momento importante
na história do Egito, a terra onde os hebreus viviam, nada foi significativo
o suficiente no relacionamento entre Deus e o homem para ser registrado.
Por sua vez, algumas atividades registradas no livro de Juizes podem se
sobrepor; vários juizes podem ter vivido ao mesmo tempo, mas agiram
em diferentes partes da região.

1. COMEÇOS (C. 2000 A.C.; GN 1— 11)

O primeiro período da história bíblica define o cenário do drama da


redenção. O escritor mostra que todas as coisas passaram a existir como
resultado da iniciativa e da ação de Deus, o universo foi criado como algo
bom. O escritor então relata que por causa da desobediência humana, o
pecado, o mal entrou na criação, causando confusão, desarmonia, aliena-
ção e morte. São citadas ocorrências que demonstram o castigo divino do
pecado, mas recompensa e bênção para quem busca a Deus. O registro do
período termina com o resumo do início de grupos nacionais e étnicos.
As principais pessoas e acontecimentos do período dos começos são a
Criação, Adão e Eva, a Queda e a entrada do pecado, Noé e o Dilúvio e
o surgimento de nações.
55

Dominação
Israel 722 Grega (330)
Helenística
Destruição de
Revolta dos Jerusalém por

cultural
Macabeus (164) Roma (70)
1 AC DC
800 600 538 400 |> 200 Novo Testamento
h Invasão Romana Revolta de
(63) Bar Kokhba
931 Destruição de (132-135)
Jerusalém pela Semita
Babilônia (586)

2. Os PATRIARCAS (C. 2000-1650 A.C., METADE DA


Id a d e d o B r o n z e ; G n 12— 50)

A medida que as nações se desenvolviam, Deus agiu para estabelecer


a nação que manteria um relacionamento especial com ele e por meio da
qual ele agiria na terra de forma ímpar. Ele escolheu Abraão, um cidadão
de Ur, na Mesopotâmia, para trazer essa nação à existência. Deus ofereceu
a Abraão uma aliança na qual lhe prometeu ser o pai de uma nação, dona
de uma região geográfica (a terra de Canaã, mais tarde chamada terra de
Israel ou Palestina), e uma relação e missão espirituais (Deus prometeu:
“[Serei] o seu Deus e o Deus dos seus descendentes”, e: “Por meio de
você todos os povos da terra serão abençoados” [Gn 17.7; 12.3]). Para
demonstrar sua fé na fidelidade e nas promessas de Deus e para mostrar
que aceitava a oferta feita na aliança, Abraão viajou da Mesopotâmia para
a terra de Canaã.
Embora Abraão tenha tido muitos filhos, apenas Isaque foi escolhido
para continuar a linhagem da aliança e receber as promessas de Deus. E
só um dos filhos de Isaque, Jacó (também chamado Israel), continuou a
linhagem. Os doze filhos de Jacó participaram da tradição espiritual da
nação e tornaram-se chefes das subdivisões (ou tribos) da nação hebrai-
ca. A fome levou Jacó e sua família ao Egito, onde um dentre eles, José,
ascendeu a uma posição importante no governo.
Os principais acontecimentos do período patriarcal são a proposta
da aliança, as manifestações de fé de Abraão e a mudança para o Egito.
Abraão, Isaque, Jacó e José são as pessoas mais importantes.
56

Á SIA M E N O R

O MUNDO ANTIGO
3. O ÊXODO: Ο DESERTO Ε Ο NASCIMENTO DA NAÇÃO (C. 1445-1405 OU
1290-1250, f in a l d a I d a d e d o B r o n z e ; Êx , Lv , N m , D t )

Os descendentes de Abraão, Isaque e Jacó, já adultos em um clã de


número considerável de pessoas, foram escravizados pelos egípcios. Por
fim, Deus (o S e n h o r , Iavé) designou Moisés como líder dos hebreus. Com
a ajuda de orientação e sinais divinos (pragas), ele tirou o povo do Egito
e da escravidão (o Êxodo) e levou-o ao deserto da península do Sinai (a
data exata do Êxodo é uma questão controversa).
N o monte Sinai, o S en h o r fez uma série de aparições a Moisés, aos
líderes da nação e a todo o povo. Além de renovar a aliança feita antes
com Abraão, ele deu instruções (a Torá ou a lei) para a organização po-
lítica, social e religiosa da nação. Essas instruções (incluindo-se os Dez
Mandamentos) objetivavam controlar todos os aspectos da vida das pes-
soas no relacionamento com o S e n h o r firmado na aliança. N o Sinai, foi
construída uma tenda para servir como centro de adoração para a nação.
Na viagem do Sinai em direção a Canaã, o descontentamento, a impa-
ciência e o medo levaram à rebelião, desobediência e pecado contra Deus.
Como consequência, os hebreus foram forçados a vagar pelo deserto por
quarenta anos até que a geração de adultos na época da saída do Egito
morresse. Moisés também, por causa do pecado, foi proibido de entrar
em Canaã, a Terra Prometida.
Moisés é considerado o maior dos líderes hebreus, o legislador e o
porta-voz de Deus que falava face a face com o S e n h o r . Ele era inigualável:
“Nunca mais se levantou profeta como Moisés” (Dt 34.11). Seu irmão
Arão foi o primeiro sumo sacerdote. Também somos apresentados a )o-
sué, assistente de Moisés e, mais tarde, seu sucessor, durante este período.
Os acontecimentos do período do êxodo concentram-se no cativeiro e
libertação de Israel do Egito, nos acontecimentos no monte Sinai (a entrega
da lei, a organização da nação, a construção do tabernáculo e a instituição
da adoração). As fases finais do período incluem as peregrinações de Israel
pelo deserto como punição pela desobediência, os preparativos de Moisés
nas planícies de Moabe para a entrada da nação na Terra Prometida e a
morte de Moisés.
58

4. Co n q u is t a e o c u p a ç ã o de Ca n a ã ( c . 1400-1350 o u 1250-1200,
f in a l d a Id a d e d o B r o n z e ; Js )

O sucessor de Moisés foi seu assistente Josué, que conduziu os he-


breus na travessia do rio Jordão em direção a Canaã. Em uma série de
campanhas militares, a terra foi subjugada pelos hebreus. N o entanto, ao
contrário da instrução dada por Deus, muitos habitantes originários das
terras tiveram permissão para permanecer nela.
Josué dividiu o território entre as doze tribos. Cada uma se estabeleceu
na própria terra. A tenda foi erguida em Siloé, no meio da terra.
O principal acontecimento do período foi a liderança de Josué que
levou Israel à conquista, ocupação e divisão da terra que o Se n h o r havia
prometido a Abraão muitos anos antes.

5. Os ju íz e s (c. 1350 ou 1200-1050, Id a d e do Fe r r o I; Jz, Rt)


Após a conquista e o assentamento, cada tribo passou a existir quase
como uma entidade independente, unida às outras apenas por laços raciais
e o lugar comum de adoração. Houve, na prática, a anarquia na terra (“cada
um fazia o que lhe parecia certo” [jz 17.6]).
A história dos hebreus durante esse período seguiu um ciclo que se
repetia: 1) os hebreus caíam em pecado — muitas vezes a idolatria das tri-
bos nativas que não haviam sido expulsas na conquista; 2) o castigo vinha,
normalmente na forma de derrota ou opressão causada pelo inimigo; 3)
Israel arrependia-se e invocava o livramento do Senhor; 4) o livramento
vinha quando Deus ungia um juiz (uma liderança carismática, ou seja, não
hereditária) para levar os hebreus oprimidos à vitória sobre os inimigos. O
juiz normalmente permanecia como administrador ou governador depois
da certeza da vitória militar. Alguns dos juízes mais importantes foram
Débora e Baraque, Gideão, Jefté e Sansão.
O livro dos Juízes termina com o registro de alguns acontecimentos
que ilustram o pecado e as más características da vida no período. O livro
de Rute, em nítido contraste, narra uma história de fidelidade e devoção
e serve como transição para a vida de Davi.

6. O r e in o u n id o (1050-931, Id a d e do Fe r r o I; I S m , 2Sm ,
IR s 1— 11, 1CR 10— 29, 2CR 1— 9)

Diversos fatores, em especial a ameaça econômica e militar dos fi-


listeus, levaram os hebreus a tentar se unir sob a autoridade de um rei.
59

Relutante, Samuel, o último juiz, ungiu Saul como o primeiro rei das doze
tribos. A desobediência levou Israel a perder o favor do S e n h o r , e Saul,
no final, perdeu a vida na batalha contra os filisteus.
Samuel também ungiu o segundo rei de Israel, Davi. A despeito dos
inúmeros pecados pessoais, Davi arrependeu-se e permaneceu fiel ao
Sen h o r e, como consequência, foi abençoado por ele. Davi conseguiu
estabelecer os hebreus como a maior potência do mundo de sua época.
O S e n h o r prometeu a Davi que a família dele reinaria “para sempre”
(2Sm 7.13). Essa promessa, a base da monarquia hereditária na família de
Davi, foi, mais tarde, tida como garantia de que o futuro líder e rei ungido
(Messias) descendería de Davi.
Salomão continuou a expandir o reino de seu pai Davi. Seus projetos
de construção incluíam o templo para o S e n h o r . N o entanto, suas polí-
ficas administrativas e financeiras, junto com as sérias falhas de sua vida
pessoal e religiosa, levaram a nação à beira da ruína.
Pessoas que merecem notas especiais são os três reis: Saul, Davi e
Salomão. Este foi o período de transição da confederação de tribos livres
para a monarquia, de governantes habilidosos esporádicos para a liderança
fixa de uma família. Na monarquia unida, os hebreus foram a superpotência
do mundo antigo. Israel desfrutou do auge político, social, financeiro e
religioso. As gerações posteriores lembraram-se desse período como uma
era de ouro, o modelo do tempo futuro de glória. O período marcou o
auge do controle geográfico, da influência e da grandeza de Israel.7

7. O REINO DIVIDIDO (931-586, IDADE DO FERRO II;


1RS 1 2 -2 2 , 2Rs, 2C r 1 0 -3 6 )

Apesar de sua sabedoria, Salomão permitiu a adoração de deuses


pagãos na terra de Israel (deuses trazidos principalmente por suas mui-
tas mulheres, com as quais, na maioria, se casou por motivos políticos).
Deus decretou o castigo sob a forma da divisão do reino após a morte de
Salomão. O s projetos caros de construção de Salomão e as políticas de
tributação alta, o recrutamento para o serviço militar e o trabalho forçado,
e a centralização do poder suscitaram oposição e hostilidade generalizada
em relação à família real. Esses fatores tornaram-se o impulso para a divisão
do reino. A divisão surgiu com a coroação de Roboão, filho de Salomão.
As tribos do norte rebelaram-se contra a casa de Davi; as tribos do sul
permaneceram sob o domínio dos reis descendentes de Davi.
60

O Reino do Norte, chamado Israel (às vezes, Efraim ou Samaria), era


composto por quase dez tribos hebraicas e ocupava a maior parte da área
geográfica. Por fim, Samaria foi estabelecida como capital desse reino.
Várias formas de idolatria ou paganismo misturadas com a adoração ao
S en h o r prevaleceram como a religião popular e, às vezes, oficial de Israel.
Alguns dos dezenove reis (p. ex., Onri c Jeroboão II) foram governantes
políticos ou militares dignos de confiança. A Bíblia, no entanto, ao avaliar
tudo pela perspectiva espiritual, declara que todos os reis do norte foram
maus aos olhos de Deus.
O Reino do Sul, chamado Judá, ocupava a área geográfica de duas
tribos e meia. Sua população aumentou graças aos muitos membros da
tribo sacerdotal de Levi que se mudaram para a área após a divisão po-
lítica. Jerusalém, a cidade instituída como capital por Davi e o local do
templo erguido por Salomão, permaneceu o centro político, religioso e
cultural de Judá. Embora Judá tenha sentido com uma força cada vez
maior a influência da idolatria e das religiões pagãs, seu avanço foi muito
mais lento que em Israel. A investida da decadência espiritual e moral era,
vez por outra, reprimida por avivamentos da devoção à lei e da adoração
ao S en h o r promovidos por alguns reis (em especial Asa, Joás, Ezequias
e Josias). Os vinte principais governantes de Judá descendiam de Davi.
Só oito deles foram aprovados por fazerem “o que era reto aos olhos do
S e n h o r ” (ARC) (Asa, Josafá, Joás, Amazias, Uzias, Jotão, Ezequias e Jo-
sias), e dois desses caíram em apostasia nos últimos dias (Joás e Amazias).
Ao longo da história do reino dividido, o povo hebreu se deixou
envolver pela interação com os assuntos de outras nações. N o início
do período, egípcios, moabitas, edomitas, filisteus, sírios e outros povos
exerceram pressão política, econômica e social sobre um dos reinos ou
ambos. Mais tarde, os impérios maiores da Assíria, Babilônia e Medo-Pérsia
desempenharam papéis decisivos para determinar o destino dos hebreus.
A Assíria invadiu e escravizou os dois reinos hebreus. Por fim, os assí-
rios destruíram Israel por completo, em 722. A Bíblia registra que apenas
a intervenção milagrosa de Deus salvou Judá de um destino similar. Os
assírios deportaram a maior parte do povo de Israel e repovoaram a área
com estrangeiros. Esses estrangeiros casaram-se com as hebreias nativas
sobreviventes; seus descendentes foram os samaritanos do NT.
61

Judá sobreviveu até o ano de 586. Nesse momento, perdeu a indepen-


dência; a cidade de Jerusalém e o templo foram destruídos pelo Império
Babilônio (a sucessora da Assíria como potência mundial dominante).

8. O Ex íl io o u c a t iv e ir o d eJ u d á (586-538, Id a d e do F e r r o III ou
Pe r ío d o Ba b il ô n ic o )

Após a derrota de Judá nas mãos da Babilônia, os líderes sobrevi-


ventes e as famílias influentes foram deportados para a Babilônia, onde
os hebreus viveram exilados por cerca de setenta anos (a primeira depor-
tação pode ter ocorrido já em 605). Com liberdade considerável, esses
cativos engajaram-se na vida política e econômica da Babilônia. Outros
hebreus fugiram e estabeleceram-se no Egito. Outros ainda parecem ter
se espalhado por várias partes do mundo. Alguns hebreus, em especial os
pobres e os grupos considerados desprezíveis pelos babilônios, tiveram
permissão para permanecer em Judá, mas sem exercer influência política.
Nenhum livro histórico da Bíblia relata os acontecimentos desse pc-
ríodo. Dos livros proféticos, Jeremias 40— 44, Ezequiel 25— 48, Obadias
e Daniel provêm do período do cativeiro e refletem esse período.

9. O PERÍODO PÓS-EXÍLICO (538-C. 400, PERÍODO PERSA; ED, N e )

O período pós-exílico compreende o final da história do AT e o início


da era intertestamentária. A linha divisória precisa entre os dois não pode
ser definida. Após a parte inicial do período, tornou-se cada vez mais difí-
cil datar pessoas e eventos com precisão. Josefo diz que a história bíblica
chegou ao fim com o reinado de “Artaxerxes, que sucedeu Xerxes como
rei da Pérsia” ;1esse seria Artaxerxes I Longímano (464-424 a.C.).
Os medo-persas tiraram o domínio mundial dos babilônios e inau-
guraram uma nova política para os povos capturados. Em consequência,
os hebreus receberam permissão para retornar à pátria e estabelecer um
pequeno estado vassalo. Mesmo com o regresso de hebreus de muitas
áreas, a Bíblia dá atenção apenas ao retorno formal dos que viveram cm
Babilônia. São mencionadas quatro viagens distintas a Judá. A primeira
foi liderada por Zorobabel e Sesbazar, a segunda por Esdras, o escriba,

ContraApion 1.8.
62

e as duas últimas por Neemias. D o estado hebreu reconstruído ali foi


emergindo pouco a pouco uma forma adaptada da religião hebraica que
dava ênfase especial ao desenvolvimento e à observância das tradições
legais e cerimoniais.
Depois da derrota nas mãos da Assíria, o Reino do Norte de Israel
nunca se restabeleceu como nação. Alguns indivíduos voltaram e prova-
velmente assimilaram o estado renovado de Judá. Antes da derrota de Judá
nas mãos dos babilônios, o rei Josias havia anexado a Judá a parte norte
do território de Israel (mais tarde chamada Galileia). Como resultado do
alcance ampliado das reformas e dos avanços de Josias no período inter-
testamentário, a área manteve laços estreitos com Judá no NT.
Os livros históricos de Crônicas, Esdras, Neemias, Ester e as profecias
de Ageu, Zacarias e Malaquias vêm deste período. Zorobabel, Sesbazar,
Esdras e Neemias foram grandes protagonistas no período pós-exílico.
A reconstrução dos muros de Jerusalém e do templo, o conflito com os
samaritanos e a reforma moral e religiosa encontram-se entre os aconte-
cimentos mais importantes.
4
Idéias e instituições do
Antigo Testamento

• Teologia
• A adoração no Antigo Testamento
- O lugar de adoração
- Líderes para a adoração
- Sacrifícios
- Festas e festivais
- Purificação ritual (leis kasher)
- Votos
• Profetas e reis

T eologia
Nem nos escritos do AT nem nos intertestamentários encontramos
o que os ocidentais chamam de teologia de primeira ordem. Embora
conceitos e conteúdos religiosos abstratos não sejam importantes, a maior
atenção está voltada para preocupações mais concretas. N o entanto,
certas crenças c convicções são fundamentais para a plenitude da vida
e experiência religiosas de Israel. A primeira delas é o monoteísmo — a
crença e a adoração do Deus único. O s hebreus não só adoram o único
Deus (lavé, o S en h o r ), mas também afirmam a existência de um só Deus.
O AT refere-se à divindade hebraica com termos como E l (ou Elohim),
o nome genérico para a divindade, e Acionai, que significa “Senhor”. No
entanto, em Êxodo 3.1315‫־‬, em resposta à pergunta “Qual é o nome dele
|de Deus]?”, Deus disse a Moisés: “ Eu Sou o que Sou.” E disse ainda: “E
isto que você dirá aos israelitas: Eu Sou me enviou a vocês.” Deus também
disse a Moisés: “Diga aos israelitas: O S e n h o r , o Deus dos seus antepas­
64

sados, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque, o Deus de Jacó, enviou-me


a vocês. Esse é o meu nome para sempre, nome pelo qual serei lembrado
de geração em geração”.
O nome revelado a Moisés é representado em hebraico pelas letras
YH W H , às vezes chamado “tetragrama” (quatro letras). Por fim, os hebreus
deixaram de pronunciar este nome. Λ pronúncia correta provavelmente
foi esquecida. O mais próximo que podemos chegar agora é algo como
“YaHWeH”. Toda vez que o termo aparece, a Tradução Brasileira (2010)
o traduz como “Jeová”. N o entanto, tornou-se uma prática comum nas
traduções recentes (p. ex., a Almeida Revista eAtualizada, a Almeida Século 21
e a Nova Versão Internacional) representar as quatro letras como “ S e n h o r ” ,
distinguindo assim este nome do título reverenciai Adonai (“Senhor”).
Os hebreus, como dissemos, mantiveram-se fiéis à sua convicção de
que o S e n h o r , um ser único, não era apenas seu Deus, mas o único Deus
existente. Os ídolos pagãos, os deuses de outras nações, não eram apenas
falsos, mas deficientes na área mais importante da existência. Eles não
existiam; quem os adorara havia sido enganado por poderes demoníacos.
O segundo princípio cardeal da fé hebraica é a crença na criação do
universo: Deus fez todas as coisas do nada. Intimamente associada com
isto está a crença na providência, a atividade de Deus pela qual ele conti-
nua a se envolver nos assuntos do universo enquanto preserva, governa e
supre as necessidades de toda a criação. Os salmistas, encontrando força
e confiança na convicção de que o Deus pessoal, o S e n h o r , criou e ainda
está em ação no universo, proclamam esse fato repetidas vezes.
A terceira área essencial para a fé hebraica é a crença na posição
única da nação de Israel. Eles se consideram o povo de Deus, a nação
favorecida. A aliança, da qual falamos em nossa pesquisa da história (p.
55), é a base para esta crença. A palavra aliança, na mentalidade semita,
refere-se a um acordo instituído e definido apenas por uma das partes. O
possível beneficiário deve aceitar ou rejeitar o oferecimento, incluindo-se
todas as cláusulas e condições do acordo. Como o testamento pessoal,
ele é inegociável.
Observamos que a parte essencial da aliança foi a promessa de Deus
a Abraão: “ [Serei] o seu Deus e o Deus dos seus descendentes”, e: “Por
meio de você todos os povos da terra serão abençoados” (Gn 17.7; 12.3).
Só podemos compreender a importância da promessa no contexto do
relacionamento entre Deus e o homem descrito na Escritura antes de
65

ser instituída a aliança com Abraão. Na aliança, o Deus santo, ofendido


pelo pecado, toma a iniciativa e se identifica com os pecadores, quem o
ofendeu. Aqui ele se identifica com um grupo em particular, mas também
manifesta o desejo de trabalhar por meio deles em prol de outros grupos
e indivíduos. A aliança exemplifica a essência da graça — o favor divino
imerecido e a aceitação por Deus. Embora as provisões posteriores am-
pliem e desenvolvam a aliança, o ponto essencial permanece o mesmo. E
o modelo de redenção ao longo da história de salvação descrita na Bíblia.
Abraão e, mais tarde, seus descendentes físicos espirituais responde-
ram à oferta da aliança ao aceitarem suas promessas e colocarem-nas em
prática.1 N o caso do Israel do AT, a circuncisão foi incluída como sinal
externo ou selo. Abraão demonstrou sua aceitação ao obedecer às instru-
ções de Deus para se mudar para a terra de Canaã e adorar e servir só ao
Se n h o r .2 N o monte Sinai, a aliança foi renovada — Deus se identificou
como “o S e n h o r , o teu Deus” (Ex 20.2), e foi realizada uma cerimônia
formal para confirmar a aliança (Ex 24.1-8). Mais uma vez, Deus deu
instruções que deveríam ser obedecidas como forma de a nação aceitar
e cumprir a aliança.
A palavra hebraica Torah normalmente é traduzida como “lei”. Na
época do judaísmo intertestamentário, a ênfase na lei era, sem dúvida, mais
importante. N o entanto, o significado é mais amplo; “instruções”, seria
uma melhor tradução. N o monte Sinai, o S e n h o r deu a Israel instruções
para quem integrava a aliança com ele. O conceito da Torá como lei é a
quarta área essencial da fé hebraica.
Os livros bíblicos de Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio
contêm 613 leis ou instruções escritas para reger todos os aspectos da
vida dos hebreus. Essas leis incluem injunções e diretrizes em várias áreas
amplas. Escritores posteriores (principalmente cristãos) dividiram as leis
do AT em cerimoniais (rituais religiosos), civis e morais (incluindo-se os
Dez Mandamentos). E.ssa divisão pode ser útil para identificarmos as áreas
compreendidas pelas instruções do AT, mas também pode induzir ao erro.
Para os hebreus, a lei era uma, e todas as partes eram de igual importância.

Sobre os descendentes espirituais de Abraão, v. G1 3.11-14,23-29.


Antes da oferta da aliança, Abraão e sua família eram pagãos; eles “prestavam
culto a outros deuses” (Js 24.2,14,15). Mas, em Canaã, Abraão começou a adorar
o S e n h o r ; “Abraão construiu ali um altar dedicado ao S e n h o r , que lhe havia
aparecido” (Gn 12.7,8; 13.4).
66

A ADORAÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO


Muitas instruções dadas no monte Sinai diziam respeito à adoração.
Com isso, Deus informou a seu povo que os meios de adoração não seriam
escolhidos por eles, mas por ele.
O lugar de adoração

Dá-se atenção considerável em Êxodo 25— 40 à construção do local


de adoração. A princípio, no deserto e nos períodos de conquista e dos
juizes,(‫ ר‬lugar de adoração era uma tenda. Mais tarde, Salomão, Zorobabel
e Sesbazar após o cativeiro, e, no início da era do NT, Herodes, o Cirande,
construíram templos como lugares de adoração. Embora fossem estru-
turas grandes, elaboradas e permanentes, as plantas baixas e a mobília
normalmente eram iguais às da primeira tenda.
A tenda era composta por três partes. O átrio exterior era uma área
descoberta e fechada por cortinas. D o lado de dentro da única entrada
estava um altar de bronze sobre o qual vários tipos de ofertas eram quei-
mados. Atrás do altar havia uma bacia ou pia também de bronze. Ela
continha a água com a qual os sacerdotes se lavavam.
Dentro do átrio exterior ficava uma estrutura retangular fechada feita
de postes, painéis e várias camadas de cortinas. Os primeiros dois terços da
estrutura eram o Lugar Santo. Ali estavam três peças de mobília: uma mesa
sobre a qual os pães eram substituídos todas as semanas, um candelabro
com sete braços para lâmpadas (de argila ou bronze) e um pequeno altar
sobre o qual só se queimava incenso. Por fim, havia o Santo dos Santos,
separado do restante da estrutura por uma cortina ou véu pesado. Ali ficava
uma caixa coberta de ouro, a arca da aliança. Sua tampa tinha adornos e
era chamada propiciatório. Em cada uma das extremidades da arca havia a
forma de um querubim com as asas pairando sobre o propiciatório. Dentro
da arca estavam as tábuas da aliança (Êx 25.16,21; 40.20), normalmerite
tidas como as tábuas da lei (Êx 24.12).
Esta planta era simbólica. O Santo dos Santos e a arca da aliança re-
presentavam a presença de Deus no meio de seu povo. Ele estava separado
do povo (pelo véu), e, para se aproximarem dele, os sacerdotes, a quem ele
havia escolhido como representantes de Israel, deveríam se lavar e oferecer
sacrifícios. N o entanto, Deus estava, na verdade, presente com aqueles a
quem havia dito: “Eu os farei meu povo e serei o Deus de vocês” (Ex 6.7).
Líderes para a adoração
Moisés era o líder humano especial de Israel (Dt 34.10-12). Além
disso, os livros de Êxodo a Deuteronômio designaram a tribo de Levi
como líder na vida e adoração comunitária. Os homens do clã levítico, o
do irmão de Moisés, Arão, foram designados sacerdotes. O s sacerdotes
eram representantes do povo diante de Deus. Sua principal responsabi-
lidade dizia respeito a cerimônias, sacrifícios e outros deveres religiosos
associados ao tabernáculo ou templo. Os sacerdotes eram liderados pelo
sumo sacerdote (ou principal), originariamente Arão, e depois pelo filho
mais velho em cada geração seguinte.
lí mais difícil definir a função dos levitas. N o período do Êxodo, eles
levavam o tabernáculo de um lugar para o outro. Mais tarde, passaram
a viver em cidades e povoados especiais espalhados por toda a terra de
Israel e serviram como representantes da religião, possivelmente dando
instruções religiosas e, quando necessário, ajudando os sacerdotes em
suas funções.
Sacrifícios
0 meio mais óbvio de adoração em Israel consistia nos sacrifícios
prescritos. A oferta, no sentido mais amplo, é qualquer coisa apresentada a
Deus. O termo sacrifiáo normalmente é reservado para ofertas apresentadas
no altar. O sacrifício podería ser oferecido pela nação ou por indivíduos
por várias razões, como cxpiaçâo ’ pelo perdão dos pecados, como expres-
são de agradecimento ou como parte regular dos rituais de adoração. O
sacrifício usual era um animal doméstico ou ave, ccrimonialmcnte limpo,
para ser abatido e depois queimado inteiro ou em partes no altar. Azeite,
vinho, incenso ou grãos poderíam ser oferecidos em sacrifício em algumas
circunstâncias. Em alguns casos, o sacerdote ou adorador comia parte do
sacrifício.
1 lavia cinco tipos principais de sacrifícios. Eílcs são diferentes em se
tratando de motivo, material e método:
1. A oferta queimada (ou holocausto) demandava um animal domés-
tico ou uma ave, era o sacrifício regular da manhã ou do final de

' “Expiaçào” é uma palavra anglo-saxônica cujo sentido literal é “tornar um”. No
AT, normalmente é a tradução da raiz hebraica kpr, que carrega significados como
“cobrir”, “pacificar” e “ fazer propiciação”. Esta raiz hebraica ocorre cerca de
oitenta vezes só nos livros de Êxodo a Números.
68

tarde. Era totalmente consumido no altar e sempre acompanhado


por uma oferta de grãos.
2. A oferta de comunhão (ou sacrifício de comunhão), que incluía
um animal, era uma oferta voluntária da qual familiares e amigos
participavam. Havia três tipos, dependendo do motivo do adora-
dor: a oferta de gratidão (louvor) reconhecia a bênção imerecida
ou inesperada de Deus; a oferta votiva era feita para cumprir um
voto e a oferta voluntária, como expressão de amor a Deus. Cada
tipo de oferta de paz era acompanhado por uma oferta prescrita
de grãos.
3. As ofertas pelo pecado eram feitas pelo pecado cometido de modo
involuntário ou pela contaminação cerimonial (não havia oferta
pelo pecado intencional). Tanto o ritual como a vítima (animal
doméstico ou ave) variavam de acordo com a proeminência e a
situação econômica de quem havia pecado.
4. As ofertas pela culpa eram exigidas pela violação ritual ou pela
transgressão para com outra pessoa. Estes erros exigiam correção
ou restituição e apresentação da oferta.
5. A oferta de cereal (farinha, grãos, alimento) era o único sacrifício
que não envolvia a vida animal; em vez disso, eram oferecidos os
frutos da terra, que podiam ser óleo ou incenso, grão desidratado
ou torrado, pão, bolos ou biscoitos sem fermento. A oferta de
grãos normalmente acompanhava outro tipo de oferta, sobretudo
a oferta queimada ou a oferta de paz.
Os sacrifícios e ofertas do AT representavam o meio ordenado por
Deus pelo qual a pessoa poderia se aproximar de Deus e ser recebida por
ele. O modelo da religião hebraica envolvia 1) a eleição por meio da aliança
e 2) a obediência ou arrependimento e a expiação como condição para
permanecer na aliança. Por esta razão, a exigência de sacrifícios por Deus
enfatiza que a desobediência, o pecado, é uma ofensa a ele. Embora um
ato individual seja direcionado a outra pessoa, ele também afeta Deus; o
pecado é, sobretudo, contra ele. Além disso, a necessidade de sacrifícios
indica a gravidade do pecado: ele separa a pessoa de Deus e é uma barreira
à aceitação, favor e comunhão. Os sacrifícios mostram que, com Deus, o
pecado é questão de vida ou morte; deve ser expiado pelo derramamento
de sangue. O s seres humanos não podem obter perdão pelos próprios
69

esforços e, como consequência, recuperar o acesso a Deus. Por causa da


natureza do pecado e da impotência humana, a expiação pelo pecado e o
perdão do pecado devem seguir as condições de Deus e envolver meios
sobrenaturais.
Festas e festivais
Festas, festivais e épocas especiais do ano judaico faziam parte regular
da adoração do S e n h o r . Centravam-se, respectivamente, nos aspectos do
ano lunar, em eventos agrícolas sazonais ou na lembrança de importantes
momentos históricos e religiosos. A descrição e as prescrições bíblicas
são gerais. Algumas festas e festivais sobreviveram e até assumiram mais
significados no período intertestamentário. As instruções mais detalha-
das encontradas na literatura rabínica (Mixna) representam alguns desses
avanços posteriores.4
Todas as festas continham certos elementos básicos em comum. Seu
objetivo era fazer o povo se lembrar de que todas as áreas da vida são
controladas pelo S en h o r e devem estar sujeitas a ele. Dois temas, a tristeza
pelos pecados e a alegria no S e n h o r , permeavam ao mesmo tempo todas
as épocas especiais. Portanto, jejuar, lamentar e fazer sacrifícios pelo pecado
eram ações que acompanhavam festas, alegrias, o som de trombetas e as
ofertas de ação de graças.
O texto de Números 28.11-15 menciona um sacrifício especial no dia
da lua nova. Em outras passagens, o AT confirma certo tipo de observância
por ocasião da lua nova na monarquia e nos períodos pós-exílicos (ISm
20.5-34; 2Rs 4.23; Ed 3.5, SI 81.3; Is 1.13; 66.23; Ez 46.1,6; Am 8.5). Essa
não era na prática uma grande festa.
Dentre as principais épocas especiais ou festas, a mais frequente era
o sábado. Todo o trabalho cessava no sétimo dia da semana. O tempo
celebrava a obra criadora e o descanso de Deus. A observância do sábado
também era sinal do relacionamento com o S e n h o r na aliança. Por meio
de Moisés, Deus disse: “Diga aos israelitas que guardem os meus sábados.
Isso será um sinal entre mim e vocês, geração após geração, a fim de que
saibam que eu sou o S e n h o r , que os santifica” (Ex 31.13).

4 Para a descrição das observâncias no judaísmo moderno, cf. Theodor H. Gaster,


Festivals o f the Jewish Year: A Modern Interpretation and Guide (New York:
Sloane, 1952).
70

A Páscoa, a festa dos Pães sem fermento (o 14.‫ ״‬dia de nisã, final de
março ou início de abril), durava sete dias (Êx 12.1— 13.16; 23.15; 34.18,
25; Lv 23.4-8; Nm 28.16-25; D t 16.1-8). Nela, Israel se lembrava de sua
libertação do Egito e de toda a experiência no Êxodo. Apesar de ser uma
das três festas de peregrinação da qual todos os homens eram obrigados
a participar (de preferência, viajando a Jerusalém), era também uma festa
de família. O fermento era removido das casas durante a festa; como lem-
brete da noite do livramento, só se comia pão sem fermento. A festa da
Páscoa em si consistia em uma refeição especial com alimentos prescritos
e a repeüção dos acontecimentos do Êxodo, muitas vexes na forma de
perguntas feitas por crianças e respostas de adultos.
O Pentecoste (a festa das Semanas) acontecia cinquenta dias após a
Páscoa e sinalizava o fim da colheita de grãos e o início da época em que
se ofereciam as primícias. Como outra festa de peregrinação, ela lhes dava
a oportunidade de apresentar os dízimos de grãos c das primícias no san-
tuário central (Êx 23.16; 34.22; Lv 23.15-21; Nm 28.26-31; Dt 16.9-12).
Com o primeiro dia de tisre (do final de setembro ao início de outu-
bro) vinha o sopro das trombetas para marcar o início do ano civil. Era
comemorado com a interrupção do trabalho e uma “reunião sagrada”
(Lv 23.23-25).
A festa das Trombetas acontecia apenas dez dias antes da ocasião es-
pecial mais solene, o Yom Kipur, o Dia da Expiação (lit., “o dia do perdão”
ou “propiciação”) (Lv 16; 23.26-32; 25.9). Acerca disso, o S en h o k disse:
“Porquanto nesse dia se fará propiciação por vocês, para purificá-los”
(Lv 16.30). Eram oferecidos sacrifícios especiais. O dia incluía a cerimô-
nia do bode expiatório ou do “ bode para Azazel”: por sorteio, um dos
dois bodes era escolhido para ser sacrificado como oferta pelo pecado e
o outro, lançado no deserto (Lv 16.7-10,15-22). Esse era o único dia do
ano em que o sumo sacerdote, levando sangue primeiro para si mesmo e
depois para o povo, entrava no Santo dos Santos.
A terceira festa de peregrinação era a festa das Cabanas, que durava
uma semana com outras observâncias sobre o oitavo dia (Êx 23.16; 34.22;
Lv 23.33-36,39-43; Nm 29.12-38; D t 16.13-16). Para comemorar as pe-
regrinações pelo deserto, todos os homens hebreus ficavam em tendas
ou cabanas durante a semana. Eram observadas cerimônias especiais e
oferecidos sacrifícios. Esse festival também marcava o fim da colheita.
71

Duas outras épocas especiais do AT, o ano sabático e o ano do jubileu,


tinham implicações econômicas e também religiosas.' Serviam para prepa-
rar a terra para o descanso, ou seja, permanecer sem cultivo por um ano,
enquanto as pessoas viviam da colheita farta dos anos anteriores e do que
crescesse sem cultivo. Também se exigiam o cancelamento de dívidas, o
retorno de propriedades ao proprietário original e a libertação de escravos
hebreus. O ano sabático, que ocorria a cada sete anos, e o jubileu, a cada
cinquenta anos, impediam o acúmulo de riqueza e a opressão dos pobres.
Purificação ritual (leis k a s h e r)

A purificação ritual era importante no antigo Oriente Médio. Muitos


grupos e religiões mantinham tabus próprios em relação a alimentos,
condições de higiene e assim por diante. As práticas hebraicas estavam
enraizadas com firmeza nas diretrizes do S en h o r e se relacionavam com o
conceito de santidade. Diz Levítico 10.10: “Vocês têm que fazer separação
entre o santo e o profano, entre o puro e o impuro”.
Aqui, Deus estava instruindo o povo de Israel sobre a condição ceri-
monial (religiosa) em que pessoas, animais, alimentos ou objetos específi-
cos eram considerados impuros.5 A pessoa que entrasse em contato com
algo impuro era inaceitável e não podia se associar com os que tinham a
mesma crença que ela. A pessoa e alguns objetos podiam ser limpos ao se
submeterem a uma cerimônia que normalmente envolvia água; às vezes,
a purificação também exigia um sacrifício. N ão raro, a pessoa impura
precisava esperar um período antes de ser considerada limpa. Não havia
desonra, pecado ou culpa alguma em se tornar impuro; a dificuldade surgia
quando alguém podia não buscar ou não buscava a purificação por meio
das cerimônias prescritas.
Foi dito a N oé que fizesse distinção entre animais puros e impuros
(Gn 7.2), mas é na lei mosaica que as exigências são enunciadas com
clareza. Os textos de Levítico l i e Deuteronômio 14.3-20 listam animais
terrestres, peixes, aves e répteis impuros que não devem ser consumidos.
Outras causas de impureza incluem o contato com um cadáver humano,
certas funções reprodutivas e algumas doenças. Algumas deformidades
‫ י‬Há uma diferença entre as duas principais descrições bíblicas destas estações
especiais, Lv 25 e D t 15; v. tb. Êx 23.10,11.
'‫ י‬Além dos tratamentos detalhados como Lv 11—15, as regulamentações para a
purificação cerimonial são encontradas do início ao fim dos livros de Êxodo a
Deuteronômio.
72

físicas privavam as pessoas, em especial sacerdotes ou levitas, de realizar


rituais religiosos.

Votos
O voto era uma oblação voluntária feita por um grupo ou um indiví-
duo. Poderia implicar a promessa de fazer alguma coisa, abster-se de algo,
apresentar uma oferta, oferecer uma dádiva ou algo do tipo. O s votos
normalmente eram feitos de forma verbal e considerados obrigatórios
(exceto no caso da mulher cujo voto era anulado pelo pai ou marido
[Nm 30.3-15]).
Não era pecado fazer ou não fazer voto. () indivíduo o fazia para
expressar gratidão pelo favor de Deus (p. ex., Nm 21.1-3) ou para decla-
rar zelo e devoção a Deus (SI 22.25). Ao cumprir o voto, o indivíduo era
obrigado a oferecer alguns sacrifícios (Lv 22.17-25).
Dava-se importância especial ao voto do nazireu, que prescrevia re-
gulamentações estritas. N o período de vigência do voto, o nazireu deveria
se abster de bebidas fortes, cortar o cabelo e tocar um cadáver (mesmo
de um membro da família) (Nm 6.1-8). As prescrições para o fim de um
voto de nazireu eram particularmente precisas (Nm 6.13-20).

Profetas e reis

Mais adiante no AT, encontramos outro grupo de líderes religiosos, os


profetas. Sua tarefa era o oposto da do sacerdote; eles eram representantes
de Deus perante o povo. O s profetas (cuja autorização consistia apenas
no chamado divino) podiam vir de qualquer tribó ou setor da sociedade.
Sua principal função era chamar o povo de Deus de volta para o S e n h o r
quando as instituições regulares da religião não estivessem funcionando
de modo correto. Seu apelo a Israel era para que a nação voltasse para o
Senhor e para a adoração, o serviço e a conduta apropriados para quem se
relacionava com ele por meio da aliança. Não raro, portanto, os profetas
apareciam nos períodos de apostasia e decadência espiritual.
Embora os profetas estivessem, sobretudo, preocupados com a relação
dos hebreus com o Deus deles, eles também com frequência se preocu-
pavam com questões políticas, sociais e morais. Para eles, estas questões
eram sintomáticas do problema mais fundamental da não manutenção da
atitude religiosa correta para com o S e n h o r e sua lei.
73

Muitos profetas não deixaram o registro de suas mensagens. Os mais


conhecidos dentre esses profetas são Elias e Eliseu, que pregaram no
Reino do N orte durante a metade da história desse reino. Os profetas que
deixaram mensagens escritas, encontradas em parte ou na íntegra no AT,
apareceram pela primeira vez na última parte do reino dividido. Partes de
Jeremias e Ezequiel, possivelmente de Isaías e o livro completo de Oba-
dias e Daniel se passam no período do exílio. Ageu, Zacarias e Malaquias
profetizaram no período da reconstrução.
A maioria dos profetas que deixaram mensagens escritas se dirigiu a
um dos reinos hebraicos, Israel (Amós e Oseias) oujudá (Isaías, Jeremias,
Ezequiel, Daniel, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias). Mi-
queias e talvez Joel (um livro quase impossível de ser situado em termos
históricos ou geográficos) foram escritos para os dois reinos. Três livros
dirigiam-se a nações estrangeiras: Obadias, a Edom, Jonas e Naum, a
Nínive, capital da Assíria.
A última instituição do AT que precisamos mencionar é a monarquia
hebraica. Embora normalmente se acredite que os reis eram como líderes
políticos, legais e militares, na comunidade hebraica eles eram líderes re-
ligiosos também. O rei hebreu não era o monarca absoluto. Ele consistia
no representante de Deus, o rei absoluto. Ele deveria cumprir as políticas
e fazer cumprir as leis de Deus.
5
Visão geral da história do
judaísmo intertestamentário e
do Novo Testamento
De 586 a.C. à Segunda Revolta contra Roma (132 a.C.-35 d.C.)

• O Período Persa (539-331 a.C.)


• O Período Helenístico (331-164)
- Alexandre, o Grande
- O Período Ptolemaico (320-198)
- O Período Selêucida (198-164)
• O Period() Hasmoneu (Macabeu) (164-63)
-Judas Macabeu (164-160)
- Jônatas (160-143)
-Simão (143-134)
-João Hircano (134-104)
- Aristóbulo I (104-103)
- Alexandre Janeu (103-76)
- Salomé Alexandra (76-67)
- Hircano 11, Aristóbulo 11 e Antípatro
• O Período Romano (63 a.C.-135 d.C.)
- Uma rápida visão do Império Romano
- Principais instituições locais
+ O sumo sacerdócio
+ O Sinédrio
- Governadores políticos
+ Herodes, o Grande
+ Os filhos de Herodes, o Grande
+ Procuradores romanos (governadores)
+ Herodes Agripa 1
+ Procuradores romanos
+ Herodes Agripa 11
- O Período Romano da Primeira à Segunda Revolta
76

O segundo êxodo! Assim Jeremias (16.14,15; 23.7,8) descreveu o re-


torno e a restauração que viríam após o cativeiro babilônico. O primeiro
êxodo, sob a liderança de Moisés, marcou a intervenção direta de Deus na
história dos hebreus para se revelar, para livrá-los da escravidão no Egito,
para suprir as necessidades da vida e para dar proteção e orientação na
travessia do deserto. N o monte Sinai, Deus deu instruções para a vida
e a adoração e, mais tarde, estabeleceu seu povo na terra prometida. O
profeta olha para o segundo êxodo da mesma forma, como um tempo de
libertação divina, provisão sobrenatural e um novo começo da nação —
completo com uma nova (ou renovada) aliança (Jr 31.31-34).
De tal modo foi inquestionável a expectativa da primeira leva dos
que voltaram com Sesbazar, o príncipe da Babilônia, para Jerusalém em
538 a.C. (Ed 1.8). O deslumbramento do primeiro êxodo foi rapidamcn-
te ofuscado pela realidade das guerras com os cananeus, pelo trabalho
árduo de construção das cidades, pelo cultivo das fazendas e por outras
tarefas necessárias para a rotina da vida diária. O s que seguiram Josué
para Canaã se depararam com a tentação sempre forte do afastamento do
S e n h o r , seu Deus, de desobedecerem ou ignorarem as instruções dele e
de se acomodarem com outros sistemas religiosos. Embora o tempo e as
condições externas fossem diferentes, os que regressaram da Babilônia
enfrentariam o mesmo tipo de experiência. Mal sabiam que seu recomeço
lhes mudaria a vida tanto quanto o primeiro êxodo havia mudado a vida
dos exescravos que seguiram Moisés.
Sabemos pouco sobre o cativeiro. Os hebreus passaram o período do
cativeiro em lugares espalhados. Suas experiências foram diversas. Muitos
jamais retornaram à terra de Israel. Na verdade, desse momento em diante,
a maioria dos hebreus, em cada momento da história, viveu na Dispersão
ou Diáspora, ou seja, fora dos limites da terra de Israel.
O trauma do cativeiro não deve ser subestimado. Examinaremos
mais adiante algumas de suas ramificações sociais, culturais e religiosas. É
suficiente notar aqui que, de forma positiva, ele tirou as pessoas de condi-
ções que promoviam a endogamia física, cultural, intelectual e espiritual, e
isso, mais tarde, despertou nelas o senso de unidade que não era possível
enquanto os antigos laços tribais e as rivalidades continuassem fortes. O
exílio proveu a terra cultivada da qual cresceu a nova ordem.
Os eventos da história política intertestamentária podem ser bem re-
sumidos sob os títulos dos quatro principais grupos que se sucederam no
77

poder na terra de Israel — os persas, os gregos ou helenistas (incluindo-se


Alexandre, o Cirande, os ptolemeus do Egito e os selêucidas do norte),
os macabeus, ou hasmoneus, e, por último, os romanos. As informações
anteriores ao início do domínio selêucida (c. 200 a.C.) são escassas. As
condições a partir desse momento mudaram com rapidez, e o número
de fontes disponíveis aumenta. Assim, alguns escritores da atualidade
começam o estudo do período intertestamentário nesse momento. Mas,
como sempre acontece na história, o último estágio emerge do anterior;
portanto, não podemos ignorar o período persa e o início do grego.

O Pe r ío d o Per sa (539-331 a.C.)

O Período Persa foi, ao mesmo tempo, a última fase da história do


AT e a primeira do judaísmo intertestamentário. Até pouco tempo, não se
sabia muito sobre este período. A última parte do século XX, no entanto,
viu novos dados e uma melhor compreensão dos hebreus sob o domínio
persa.1
Quase tudo o que sabemos da história dos hebreus sob o domínio dos
persas vem dos escritos do(s) cronista(s) — o(s) autor(es) de 1 e 2Crônicas
e Esdras— Neemias (possivelmente o próprio Esdras) — , do livro de Es-
ter, de alguns salmos e dos profetas pósexílicos do AT (Ageu, Zacarias e
Malaquias).2A arqueologia, as inscrições esporádicas e, de modo especial,
os artefatos e escritos de Elefantina, no Egito, e da caverna Wadi Daliyeh,
perto de Jericó, oferecem outras fontes de informação.

1 Cf. A. T. Olmstead, History of the Persian Empire (Chicago: University of Chicago


Press, 1948); Cambridgel listoiy ofJudaism, vol. 1, ed. W. D. Davies e Louis Finkelstein
(New York: Cambridge University Press, 1984); Edwin M. Yamauchi, Persia and
the Bible (Grand Rapids: Baker, 1990); Jon 1.. Berquist, Judaism in Persia’s Shadow:
A Socialand HistoricalApproach (Minneapolis: Fortress Press, 1995). Os principais
governantes do Império Persa foram: Ciro (559-530 a.C.), Cambises (530-522),
Dario (522-486), Xerxes (Assuero) (486-465), Artaxerxes I Longímano (464-424),
Dario II Nótus (424-404), Artaxerxes II Mnemom (404-358), Artaxerxes 111
Oco (358-338), Dario 111 Condomano (336-330). A Pérsia foi conquistada por
Alexandre, o Grande (330).
2 Observe que, originariamente, 1 e 2Crônicas constituíam um único livro, como
Esdras e Neemias. Ambos fazem parte dos Escritos (.Ketuvim), a terceira divisão
do AT hebraico. A relação estreita entre Crônicas e Esdras— Neemias é evidente
na possível identidade de 2Cr 36.22,23 c Ed 1.1-3.
7H

A política assíria e babilônica de deportar os prisioneiros não con-


sistia na tentativa de amalgamar ou assimilar povos e culturas. Em vez
disso, ela procurava destruir o senso de unidade e dificultar a rebelião,
dispersando grupos étnicos e nacionais e misturando-os com outros. l)m
pouco antes de derrotar a Babilônia em 539, Ciro (559-530) inverteu esta
política. Os persas acreditavam que seria mais fácil controlar seus súditos
se permitissem que eles vivessem cm suas próprias terras e praticassem
suas refigiões (acreditavase que a religião não podería ser praticada fora
do domínio territorial de seus deuses). Assim, os hebreus dispersos que
desejavam isso tiveram permissão para voltar e reconstruir Jerusalém e o
templo. A Judeia, que compreendia apenas uma pequena área ao redor de
Jerusalém, parece ter sido pouco mais que um estado-templo.
A sequência e a importância dos eventos em Esdras— Neemias são
muito discutidas. A seguinte descrição reconstrói a história de acordo com
as quatro fases implícitas nos documentos bíblicos.
1. Após o decreto de Ciro, em 538 (2Cr 36.22,2.3; Ed 1.24), grupos de
judeus da Babilônia voltaram a Jerusalém (possivelmente em momentos
diferentes), sob a liderança de Sesbazar, Zorobabel e do sacerdote Jesua.
Foram restabelecidos os sacrifícios (Ed 3.16) e teve início o trabalho de
reconstrução do templo (v. 613).
Alguns grupos locais (provavelmente habitantes da região samarita-
na, a área antes ocupada pelo Reino do Norte) ofereceram ajuda para a
construção do templo. Eles foram rejeitados e se tornaram adversários
ferrenhos dos hebreus recém-chegados e dos projetos de construção em
Jerusalém. Essa oposição local, junto com a apatia dos judeus (Ag 1.1-11),
conseguiu parar temporariamente o trabalho no templo (Ed 4).
Mais de uma década mais tarde, os profetas Ageu e Zacarias instigaram
o povo a agir, e a permissão régia para a obra no templo foi assegurada
mais uma vez (por Dario I, 522-486). O projeto foi concluído em 516, e
o culto cerimonial foi restabelecido (Ed 5— ó).3

' E difícil calcular a duração exata do exílio. O texto de Jr 25.11,12 e 29.10 havia
prenunciado setenta anos de cativeiro. Da primeira invasão da Palestina por
Nabucodonosor e a primeira deportação (605) até o primeiro retorno (538) foram
67 anos. Da destruição do templo (586) até a dedicação do segundo templo (516)
foram setenta anos.
79

2. Esdras, um escriba sacerdotal, chegou a Jerusalém comissionado


por Artaxerxes.4Ele instituiu reformas organizacionais, cerimoniais e mo-
rais; em pardcular, forçou a dissolução de casamentos mistos (Ed 7— 10).
Embora não seja mencionado nos sete primeiros capítulos de Neemias,
Esdras reaparece no capítulo 8. Ele pode ter deixado a Judeia (ao que tudo
indica, para retornar ao rei persa em Susã) e voltou mais tarde.
3. Neemias foi nomeado governador dajudeia e, evidentemente, che-
gou a Jerusalém por volta do ano 445 (Ne 1— 2). A despeito da contínua
oposição de Sambalate, de Tobias, o amonita, e de outros (Ne 2.10,19;
4— 6), Neemias reconstruiu os muros da cidade, reorganizou a economia
e realizou reformas rituais.
De particular importância é Neemias 8 (o único contexto em que Esdras
e Neemias agem juntos [v. 9]). Esdras leu a lei, e os levitas explicaram-na ao
povo. Em seguida, houve uma nova tentativa de pôr em prática a lei na
vida dos indivíduos e da sociedade.
4. Neemias visitou Artaxerxes e voltou a Jerusalém em 432 (Ne 13).
Em sua ausência, os estrangeiros, incluindo-se o arqui-inimigo Tobias,
tiveram permissão para entrar no templo. Um neto do sumo sacerdote
Eliasibe casou-se com a filha de Sambalate, aliado de Tobias, e Eliasibe
até fez uma habitação para Tobias no recinto sagrado. Ao voltar, Neemias
excluiu os estrangeiros do templo, restabeleceu o dízimo como meio de
sustento dos levitas, executou as regulamentações sabáticas e, mais uma
vez, lidou com os problemas dos casamentos mistos.
Algumas tradições judaicas associam a expulsão de Tobias do templo
de Jerusalém por Neemias com a construção de um templo no monte
Gerizim pelos samaritanos. Outras atribuem a construção do templo
samaritano ao tempo de Alexandre, o Grande (v. p. 209-11). Sem dúvi-
da, a controvérsia entre samaritanos e judeus sobre o local de adoração
e outras questões agravou-se (se não começou) quando Samaria e Judeia
eram partes da província persa chamada Além do Rio.
Embora o livro de Ester descreva acontecimentos que se passaram
entre os judeus fora da terra de Israel, provavelmente quase no tempo de
Esdras, pouco sabemos sobre eventos específicos na terra de Israel no
último século do reinado persa. O aramaico, conhecido por alguns judeus,
pelo menos já na época de Ezequias (2Rs 18.26), tornou-se o idioma co-

4 Provavelmente Artaxerxes I (464-424), embora alguns estudiosos tenham sugerido


Artaxerxes II Mnemom (404-358).
80

mum da região. Km essência, os hebreus em sua terra natal constituíam um


estado vassalo pequeno, insignificante e ignorado às margens do império.
() profeta Malaquias sugere que quem voltou do exílio se encontrava letár-
gico e apático no cumprimento das observâncias e obrigações religiosas.
Km geral, o Período Persa viu o desenvolvimento de conceitos religio-
sos e nacionalistas distintos entre os hebreus. Esses deveríam estar entre
as peculiaridades das formas típicas do judaísmo que estavam surgindo.
Incluíam ênfases e interpretações especiais com relação ao templo e à
lei, e o aumento de práticas para proteger a identidade étnica, nacional,
cultural e religiosa. O Período Persa viu também o aumento da nova ten-
são com os vizinhos, em especial os do norte da (udeia. Os samaritanos
seriam uma fonte de conflitos durante os séculos futuros. Este é o pe-
ríodo histórico do qual vêm tradições sobre um grupo político-religioso
chamado a Grande Sinagoga. Kle é mencionado na Mixná (Avot 1.1— 2)
e pelos escritores talmúdicos.5 Há poucos detalhes sobre ele; até mesmo
sua existência é incerta. O texto de Neemias 8— 10 pode descrever sua
origem. De acordo com a tradição, a Grande Sinagoga foi fundada por
Esdras, seu primeiro presidente. Dizem que era composta por 85 ou
120 homens que controlavam os assuntos judaicos, de modo especial os
religiosos, entre 450 e 200 a.C. Mesmo que não tenha existido de fato na
forma sugerida pelas fontes, as tradições sobre o grupo tiveram efeitos
profundos na história subsequente.
Enquanto viviam sob o governo persa, pelo menos alguns judeus
entraram em contato com a religião agora conhecida como zoroastris-
mo. Estudiosos discordam quanto à possibilidade do zoroastrismo ter
influenciado ou não o judaísmo intertestamentário, e, em caso afirmativo,
em que sentido. E suficiente notarmos que o zoroastrismo ilustra as in-
fluências às quais, pelo menos, alguns judeus foram expostos no mundo
mais amplo da época.
A exposição dos hebreus não foi só às culturas do ( )riente no Período
Persa. O s arqueólogos encontraram cerâmicas gregas da época anterior
a Alexandre na terra de Israel. Isso indica o contato com a cultura grega
antes mesmo da invasão de Alexandre, o Grande. Os textos gregos mais

5 Cf. I.ouis Finkelstein, “The Men o f the Great Synagogue {circa400—170 B.C.E.)”,
em Cambridge History ofJudaism, vol. 2, The HellenisticAge, ed. W. D. Davies e Louis
h'inkelstein (New York: Cambridge University Press, 1989), p. 229-44.
81

antigos cm óstracos são de 277 a.C , o Período Ptolemaico.6 Vestígios da


cultura grega são muito evidentes nas cidades ao longo da planície costeira.
F.ra inevitável que parte dessa influência achasse o caminho para a região
montanhosa e a própria Jerusalém.

O Pe r ío d o H e l e n ís t ic o (331-164)

“ Helenismo” é o termo usado para descrever o período e a cultura


provenientes das conquistas de Alexandre, o Grande. Embora a referên-
cia literal do termo seja à civilização “grega”, ele deve ser distinguido da
civilização grega clássica que o precedeu. Helenismo é o legado de um
dos homens mais notáveis da história.
Alexandre, o Grande
A carreira de Alexandre foi breve, e seus movimentos foram rápidos.
Na verdade, ele só era grego por causa do treinamento, não de nascença.
Seu pai Filipe reanimou as tribos da Macedonia (na parte do norte da
Grécia moderna) e tornou-se rei da Grécia à força. Alexandre sucedeu o
pai e, em 334, iniciou a carreira de conquistas. Naquele ano, derrotou os
generais persas junto ao rio Grânico e libertou as cidades gregas ao longo
da costa ocidental da Asia Menor (atual Turquia). N o ano seguinte, em
Isso, Alexandre conheceu e derrotou o rei persa Dario III Codomano
(336-330) e, em seguida, entrou na Síria. Em 332, foi para a costa leste do
Mediterrâneo, em direção à terra de Israel. Após batalhas difíceis, Tiro
e Gaza caíram; os samaritanos e os habitantes da judeia transferiram
voluntariamente sua lealdade à Pérsia para Alexandre e, ao que parece,
permaneceram tranquilos.
N o ano seguinte, a Macedonia conquistou o Egito, e lá foi editicada a
cidade de Alexandria. Em seguida, Alexandre retornou pela terra de Israel
e da Síria, atravessou os rios Eufrates e Tigre, derrotou Dario mais uma
vez e ocupou as grandes capitais persas da Babilônia e de Susã.
De 330 a 326, Alexandre esforçou-se para abrir caminho pela Pérsia
e pelo Afeganistão, até o rio Indo, na índia. Quando suas tropas ficaram
agitadas (nostálgicas), Alexandre voltou para o oeste e começou a sofrer

'‫ י‬Lester L. Grabbe, Judaism from Cyrus tn Hadrian, 2 vols. (Minneapolis: Augsburg
Fortress, 1991-1992), 1:73, 149; Filias Bickcrman, From E%ra to the I mst of theMac-
cahees: Foundations of Post-BiblicalJudaism (New York: Schocken, 1962), p. 14-6.
82

perdas. Em 323, enquanto fazia planos para futuras expedições, ele morreu
de forma inesperada, de febre, na Babilônia aos 33 anos de idade.
A carreira de Alexandre marcou o início de uma nova fase da história
do mundo. Em suas campanhas, encontramos, talvez pela primeira vez,
o desejo da conquista ideológica, como também militar. As influências
helenístdcas ainda estão arraigadas na cultura ocidental. Por causa da pronta
aceitação do governo grego e de sua localização remota, os judeus, so-
bretudo os habitantes da Judeia, foram inicialmente pouco influenciados
pelo helenismo. Não seria assim por muito tempo. Nenhum grupo podería
escapar do encontro com a nova força mundial.
O Período Ptolemaico (320-198)
Após a morte de Alexandre, seus generais lutaram pelo controle do
império. Por fim, ele foi dividido em quatro partes, cada uma delas go-
vernada por um dos quatro generais (os diádocos [sucessores]). Uma vez
que a poeira baixou, a terra de Israel, em 320, viu-se anexada ao Império
Ptolomaico do Egito. Infelizmente, ela estava, em termos estratégicos,
localizada entre o Império Ptolomaico, ao sul, e os selêucidas, que gover-
navam a Síria e a Pérsia, ao norte e a leste. As principais rotas comerciais
entre eles estavam ao longo de sua costa e em meio às suas colinas. Assim,
os judeus não puderam deixar de se envolver na rivalidade entre as duas
potências. Nos séculos seguintes, a terra de Israel tornou-se um impor-
tante campo de batalha em várias guerras entre os selêucidas e ptolomeus.
N o início do período, Ptolomeu I (323-285) estabeleceu muitos ju-
deus em Alexandria. Eles se tornaram o núcleo da comunidade judaica,
consdtuindo um dos cinco distritos da cidade e desempenhando um papel
importante na história dos séculos seguintes (o Apoio bíblico veio de Ale-
xandria [At 18.24-28]). De acordo com a tradição mais anüga, Ptolomeu II
Filadelfo (285-246) ordenou a produção da Septuaginta, a tradução grega
das Escrituras hebraicas.
Temos poucas informações sobre os assuntos da Judeia enquanto
a cidade encontrava-se sob domínio egípcio. Duas famílias, Oníades e
Tobíades, lutaram pela influência política e pelo controle do sacerdócio —

Os reis do Egito depois de Alexandre, o Grande, foram: Ptolomeu I Lagi (ou Sótcr)
(323-285), Ptolomeu II Filadelfo (285-246), Ptolomeu III Euergetes (246-221),
Ptolomeu IV Filopator (221 -203), Ptolomeu V Epífanes (203-181), Ptolomeu VI
Filometor (181-145) e Ptolomeu VII Fiscon (145-117).
83

conflito que aumentou em importância no período seguinte. Os papiros


de Zeno atestam que a cultura helenística estava disseminada pela região
rural habitada por judeus fora de Jerusalém. Alguns estudiosos percebem
em escritos como Eclesiástico (a Sabedoria de Jesus, filho de Siraque) e par-
tes de 1 Enoque evidências de reações negativas dos judeus ao helenismo
antes da crise que levou à revolta dos macabeus.
O Período Selêucida (198-164)

Com a chegada do século II a.C. veio também a passagem do poder


político na terra de Israel que estava nas mãos dos ptolomeus para os selêu-
cidas (muitas vezes chamados sírios). Razões ideológicas e considerações
políticas práticas motivaram os selêucidas a acelerar bastante a inserção
da cultura helenística em todos os aspectos da vida judaica.
Com a morte de Alexandre, seu general Seleuco recebeu o controle
da Babilônia.8 Ele e seus herdeiros expandiram seu domínio para o les-
te, até a índia, e para o ocidente a fim de incluir a Síria e a Ásia Menor.
Antioquia, no rio Orontes (ao norte da Síria), tornou-se sua cidade mais
importante — a cidade destinada a se tornar o primeiro grande centro
não judeu do cristianismo (At 11.19-26) e a sede de onde Paulo partiu
para as viagens missionárias.
Em 198 a.C., Antíoco III, o Grande (223-187), derrotou Ptolomeu V
Epifânio (203-181) em Paneas (mais tarde, Cesareia de Filipe), perto das
nascentes do rio Jordão. Alguns judeus receberam com alegria o controle
selêucida. Antíoco confirmou os privilégios judaicos, reduziu tributos e
fez contribuições para o templo. N o entanto, as relações amigáveis não
durariam.
Quando Antíoco IV Epifânio (175-163) chegou ao trono selêucida,
os judeus enfrentaram o governante determinado a propagar o helenismo
por todo o império. Ele teve de lidar com dois problemas internacionais.
Na fronteira sul, Ptolomeu VI Filomctor (181-145) procurava recuperar
a terra de Israel; quanto a ele, Antíoco desejava controlar o Egito. Além

* Os reis selêucidas foram: Seleuco 1 Nicator (312-280), Antíoco 1 Sóter (280-261),


Antíoco II Teos (261 -247), Seleuco II Calínico (247-226), Seleuco 111 Sóter Cerau-
no (226-223), Antíoco III, o Grande (223-187), Seleuco IV Filopator (187-175),
Antíoco IV Epífanes (175-163), Antíoco V Eupator (163-162), Demétrio I Sóter
(162-150), Alexandre Balas (150-145), Demétrio II Nicator (145-138), Antíoco VI
Epífanes Dionísio (145-142), Antíoco VII Sideta (138-129), Demétrio II (pela
segunda vez) (129-125).
84

disso, ele era obrigado a procurar fundos com os quais pudesse pagar um
acordo espantoso imposto pelos romanos quando derrotaram Andoco III.
A carga tributária dos judeus tornou-se muito mais pesada. Andoco
saqueou o templo à procura de ouro. Por terem resistido, os judeus sofre-
ram a derrota militar e o massacre de muitos compatriotas. O s muros de
Jerusalém foram destruídos, e as tropas aliadas ao rei foram colocadas na
recém-construída Acra, fortaleza militar selêucida na cidade. O mais grave
de tudo foi a decisão de Antíoco de criar uma fronteira ideológico-cultural
leal ao Egito mediante a helenização completa da sociedade judaica.
Como observamos antes, o judaísmo palestino foi exposto à cultura
grega do Período Ptolemaico e anterior. Muitos, em especial os da classe
alta, aceitaram o novo espírito do mundo. Uma família proeminente, os
Tobíades (descendentes de Tobias, adversário de Neemias), foi particu-
larmente forte no apoio ao helenismo. Igualmente decidida a se opor à
ideia estava a família de sumo sacerdotes, os Oníades (com raízes que
remontavam ao notável Simão, o Justo, a Zadoque, sacerdote do tempo
de Davi [2Sm 15.24-29]).9
Nos últimos anos do governo dos ptolomeus, o sacerdote Onias II,
não cumpriu a obrigação de apresentar o dinheiro do tributo ao rei. Os
descendentes de Tobias aproveitaram-se da situação para ganhar o direito
rentável e prestigioso de coletar impostos e apresentar o tributo — direito
que mantiveram no governo dos selêucidas. Mais tarde, no governo de
Antíoco Epifânio, Onias III perdeu o ofício sacerdotal para seu irmão
Jasom, que se valeu de suborno e da promessa (contrária à política da
família) de promover o helenismo em Jerusalém. O próprio Jasom, mais
tarde, foi enganado por Menelau, um tobíade, que comprou o ofício de
sumo sacerdote. Assim, foram estabelecidos precedentes importantes para
a remoção do direito exclusivo da família zadoquita ao sumo sacerdócio,
colocando o ofício nas mãos do governante. Portanto, os sacerdotes se-
guintes normalmente apoiavam o poder dominante e o helenismo.
Nesse momento, as fontes escritas apresentam em primeiro lugar um
grupo conhecido como hassideus (piedosos). Eles parecem ter resistido
ao helenismo. Ficaram estarrecidos com a transferência do sacerdócio de
Onias para Jasom, e horrorizados quando o ofício deixou o clã de Arão
e, em particular, a família de Zadoque — a legitimidade do sacerdócio

9 Sobre Simão, o Justo (m. 200 a.C), v. Siraque 50; Mixná, Avot 1:2; Josefo, Antigui-
dades 12.2.5 (43); 12.4.1 (157).
85

zadoquita, mais tarde, foi uma questão importante para os escritores dos
manuscritos do mar Morto.
Jasom cumpriu a promessa de helenizar Jerusalém. Construiu um
ginásio, criou organizações sociais de estilo grego e estabeleceu outros
costumes gregos. Menelau, seu sucessor, promoveu o processo e até
ajudou Antíoco a confiscar as riquezas do templo.
Vendo como a rebelião os esforços de Jasom para retomar o sumo
sacerdócio de Menelau, Antíoco, em 168, tentou eliminar a religião judaica,
que, para ele, estava no centro da resistência ao helcnismo. Foi interrom-
pido o ritual no templo, foi ordenada a destruição das F.scrituras e foram
proibidos a observância do sábado, dos dias de festa, das leis alimentares e
da circuncisão. Frgueu-se um novo altar, consagrado ao Zeus Olímpico, e
nele foi oferecido um porco.1" Flavia provavelmente uma estátua de Zeus
também, cuja manifestação Antíoco acreditava ser ele mesmo (“Fpifânio”
significa “Deus manifestado”). Foram erguidos santuários e altares por
toda a terra, e ordenou-se ao povo em geral que oferecesse sacrifícios
como sinal de aceitação da nova religião. Os desobedientes eram punidos
com tortura e m orte.11

O Pe r ío d o H a s m o n e u (M a c a b e u ) (164-63)

Judas Macabeu (164-160)

O ataque de Antíoco Fpifânio contra a religião judaica resultou em uma


revolta armada. Foram registrados a resistência e os martírios em 1 e 2 Ma-
cabeus e outros escritos. Fim Modim, aos pés das montanhas da Judeia, um
sacerdote idoso chamado Matatias (da família de Asmom) matou um oficial
selêucida e um judeu apóstata e bradou: “Que venham comigo todos os que*1

Joscfo, Antiguidades 12.5.4 (253), atesta que, ao contrário da lei judaica, eram ofe-
rccidos suínos em sacrifício; cf. 2 Macabeus 6.5.
11Josefo,Antiguidades 12.5.4 (256), diz que os judeus que se recusavam a obedecer às
ordens de Antíoco eram “maltratados diariamente e, sofrendo tormentos cruéis,
enfrentavam a morte. Na verdade, eram chicoteados, tinham o corpo mutilado e,
enquanto ainda estavam vivos, eram crucificados, ao mesmo tempo que as esposas
e os filhos a quem eles tinham circuncidado, a despeito das vontades do rei, eram
estrangulados, sendo os filhos pendurados no pescoço dos pais crucificados. F.
onde fosse encontrado um livro sagrado ou exemplar da lei, ele era destruído;
quanto àqueles com quem o livro era encontrado, os pobres coitados também,
lamentavelmente, pereciam”.
86

são dedicados à Lei e querem continuar fiéis à aliança!” (IMacabeus 2.27,


NTLH-P). Então ele e seus defensores retiraram-se para o deserto da Judeia.
Matatias morreu logo após o início da revolta, mas seus cinco filhos,
dos quais Judas Macabeu era o líder, continuaram as guerrilhas.12Muitos se
juntaram a eles, incluindo-se alguns dos hassideus, leais à religião e ao estilo
de vida tradicionais.Judas apresentava habilidades extraordinárias como líder,
estrategista militar e diplomata. A situação internacional instável impediu os
selêucidas de dedicarem todas as suas energias à repressão da revolta judaica.
Por fim, eles tiveram de se retirar para reagrupar as forças. Em 164, três anos
após o altar de Zeus ter sido erguido, o templo foi purificado e a oferta quei-
mada diária e outras cerimônias religiosas, retomadas. Essa nova dedicação
do templo ainda é comemorada no mês de dezembro como o Chanuca, a festa
das Luzes. Em 163, os selêucidas ofereceram condições para a paz ajudas e
seus seguidores, incluindo-se o cancelamento da proibição do culto judaico.
Os macabeus venceram a luta pela liberdade religiosa, mas os selêucidas
permaneceram seus senhores, o helenismo ainda era uma ameaça, Mcnelau
continuou sumo sacerdote e os judeus fora de Jerusalém e da Judeia viviam
em constante perigo de ataque. Nesse momento, Judas e seus seguidores
voltam-se para a independência política, excetuando-se alguns hassideus
contentes com a liberdade religiosa. Batalha após batalha, períodos de paz
e concessão iam e vinham. Eleazar, irmão de Judas, foi morto na batalha ao
sul de Jerusalém menos de um ano depois de o templo ter sido assegurado.
Os selêucidas, por fim, substituíram Menelau por Alcimo, descendente
de Arão, mas não da família Zadoque-( )nias. Por volta desse tempo, ( )nias
IV fugiu para o Egito c obteve permissão de Ptolomeu VI Filometor (181-
145) para construir um templo em solo egípcio. Nos próximos 230 anos,
um templo judaico em Leontópolis, que estava sob a liderança de sacerdotes
zadoquitas, reproduzia a Jerusalém ritual, até ser fechado pelos romanos em
73 d.C. Vestígios arqueológicos em Araq el-Emir, na Transjordânia, desen-
terrados na década de 1960, revelam o que alguns acreditaram ser os restos
de outro templo judaico, o qual um membro da família de Tobias pode ter
começado por volta da mesma época.13*1

12Os governantes hasmoneus (ou macabeus) foram: Judas Macabeu (164-160), Jô-
natas (103-76), Simão (143-134), João Hircano (134-104), Aristóbulo I (104-103),
Alexandre Janeu (103-76), Salomé Alexandra (76-67), Aristóbulo II (67-63), João
Hircano II (63-40) c Antígono Matatias (40-37).
11 Alguns estudiosos afirmam que sua estrutura era provavelmente uma fortaleza
cercada por um fosso; v. G n b b z, Judaism, vol. 1, p. 188, 193.
87

Jônatas (160-143)

Em 160,Judas foi morto em batalha na passagem estratégica de Bete-Horom.


Sucedeu-lhe o irmão Jônatas, homem prudente e de grandes habilidades.
No início do mandato dejônatas, o irmão deles, João, foi morto por ladrões
do outro lado do Jordão. Embora os selêucidas ainda tentassem impor sua
vontade aos judeus, seu reino foi dividido por lutas internas. Jônatas demons-
trava diplomacia, como também habilidades militares. Ele se aproveitou da
situação interna dos selêucidas para obter uma grande vantagem, conseguindo
expandir o território ocupado pelos judeus e adquirir, na prática, independência.
Embora a família dos hasmoneus fosse formada por sacerdotes comuns, e não
com os da linha sumo sacerdotal de Zadoque, em 152Jônatas tornou-se sumo
sacerdote; a posição deveria permanecer na família até a ocupação romana.
Jônatas foi, por fim, assassinado pelos saduceus em 143.
A descrição feita por Josefo sobre o reino de Jônatas menciona três
grupos que deveríam desempenhar papéis importantes nos últimos dias:
os fariseus, os saduceus e os essênios.1415Embora não os tenha mencionado
antes, Josefo parece sugerir que eles já estavam bem definidos nesse tempo.
Simão (143-134)

Com a morte dejônatas, a liderança passou de imediato para Simão,


o segundo e único filho vivo dc Matadas. O rei selêucida, Demétrio II
Nicator, viu-se diante da resistência das forças militares de Simão e da
necessidade de ajuda de Simão na luta contra outras pessoas que reivin-
dicavam o trono selêucida. Como consequência, ele liberou os judeus do
pagamento do tributo. Isso significou foi na prática a carta de indepen-
dência que os judeus há tanto procuravam. “O povo de Israel ficou livre
do poder cruel dos pagãos” (IMacabeus 13.41, NTLH-P). C) inimigo foi
expulso da fortaleza em Jerusalém, a odiada Acra. Simão e seus seguidores
entraram em Jerusalém “cantando hinos de louvor, ao som de harpas,
pratos musicais e liras. Cantaram hinos e canções, pois um inimigo terrível
tinha sido derrotado e expulso de Israel” (IMacabeus 13.51, NTLH-P).1’
14Josefo, Antiguidades 13.5.9 (171-73).
15 Procissões triunfais eram comuns no mundo antigo. A de Simão pode refletir a
influência helcnística, mas podería também ter raízes hebraicas (1 Cr 13.5-8; SI 24.7-
10). Interessa saber se essa exibição pode ter sido influenciada pela profecia de
Zacarias 9.9: “Alegre-se muito, cidade de Sião! Exulte, Jerusalém! Eis que o seu
rei vem a você, justo e vitorioso, humilde e montado num jumento, um jumenti-
nho, cria de jumenta.” Sem dúvida, Simão naturalmente não usou como meio de
transporte algo tão humilde quanto um jumento.
‫אא‬

A política e a liderança religiosa foram dadas a Simão e seus descen-


dentes: “Os judeus e os seus resolveram que Simão e os seus descendcn-
tes serão o seu chefe e Cirande Sacerdote para sempre, até que apareça
um verdadeiro” (IMacabeus 14.41; v. tb. 13.42). De tempos em tempos,
os selêucidas ainda procuravam envolver-se em assuntos judaicos. No
entanto, para todos os efeitos práticos, eles já não representavam de fato
uma ameaça. A renovação de tratados com Esparta e Roma reforçou
ainda mais a posição dos judeus. Como seus irmãos, Simão teve um fim
violento (134), mas seu assassino foi um membro de sua própria família,
Ptolomeu, filho de Abubus.
João Hircano (134-104)

Ptolomeu pretendia assumir a liderança, mas João Hircano, filho de


Simão, tendo escapado da tentativa de Ptolomeu de assassiná-lo também,
foi aclamado sucessor de seu pai. Nos primeiros cinco ou seis anos do
governo de Hircano, os selêucidas, mais uma vez, invadiram a terra de
Israel e assumiram o controle temporário, mas, por volta do sétimo ano,
os judeus voltaram a ser independentes.
1 lircano, então, deu início a uma política de conquista, usando mer-
cenários, bem como soldados judeus. Anexou áreas a leste do Jordão, a
Idumeia ao sul e as terras samaritanas até Citópolis (Bete-Seã) ao norte. Os
idumeus foram forçados a aceitar a circuncisão e a viver de acordo com a
lei judaica. Hircano destruiu o templo samaritano no monte Gerizim em
108 e, mais tarde, a cidade de Samaria.
Josefo inclui uma história na qual João Hircano deixa de lado a leal-
dade aos fariseus e passa a ser leal aos saduceus.16N o início, favoreceu os
tariseus, mas os rejeitou para apoiar os saduceus quando um dos fariseus,
Eleazar, pediu-lhe para renunciar o sumo sacerdócio e se contentar com
o poder político e militar. O motivo apresentado foi o rumor (provável-
mente infundado) de que sua mãe havia sido presa e, portanto, estava
contaminada; também é possível que tenha havido objeções teológicas
à união dos ofícios de governador e sacerdote em um único indivíduo.
Desse momento em diante, com a única exceção de Salomé Alexandra,
Os paralelos entre a entrada triunfal de Simão e a de Jesus (Mt 21.1 -11 ;Mc 11.1-11;
Lc 19.28-40; Jo 12.12-19), mais de um século e meio depois, são impressionantes.
A aura messiânica da entrada de Jesus é intensificada quando comparada com este
episódio da vida de Simão, e em especial com a passagem de Zacarias.
1(1Josefo, Antiguidades 13.10.5-6 (288-98).
89

os fariseus tornaram-se inimigos da dinastia dos hasmoneus; daí surgiu a


forte oposição entre hasmoneus e saduceus.
E possível, embora longe de ser incontestável, que esse período tenha
visto o início da comunidade de Qumran (os escritores dos manuscritos
do mar Morto), um grupo cujo isolamento da sociedade foi estimulado
pela avaliação dos males sociais, políticos e religiosos na terra. Eles tam-
bém rejeitaram a liderança da família sacerdotal que imperava na época.
Hircano não reivindicou o título de rei, mas agiu como se ocupasse
essa posição. Sua principal atenção estava em preocupações externas,
e seu reinado foi marcado pela crescente secularização (embora fontes
rabínicas descrevam atividades e mudanças litúrgicas nas quais ele estava
envolvido). Os limites geográficos do território judaico e o prestígio e a
força do estado eram quase tão grandes quanto os desfrutados pelos he-
breus antes da divisão do reino, após a morte de Salomão. A maioria dos
escritos posteriores (sendo alguns dos manuscritos do mar Morto uma
possível exceção) faz uma avaliação favorável de seu reinado.
Aristóbulo I (104-103)

Aristóbulo, que deveria reinar apenas um ano, consolidou seu poder


à custa da prisão de seus parentes mais próximos, incluindo-se a mãe, a
quem ele permitiu morrer de fome. Ele condnuou o programa de ex-
pansão territorial iniciado pelo pai e trouxe a Itureia, nos pés dos montes
do Líbano, e a Galileia (área que seria o cenário da maior parte da vida e
atividade de Jesus) sob controle judaico.
Ao contrário de seus antecessores, Aristóbulo reivindicou abertamente
o título de rei. Josefo registra que esse bisneto de Matatias também tinha
outro título, fileleno (amante das coisas gregas).1
Alexandre Janeu (103-76)

A viúva de Aristóbulo, Salomé Alexandra, libertou seus irmãos da


prisão e ofereceu-se em casamento a um deles, Alexandre Janeu. Isso
permitiu que ele se tornasse rei e sumo sacerdote. A devoção de Alexandre
ao helenismo é evidente pelo uso de dois nomes, um grego (Alexandre) e
outro hebraico (Janeu = Yannai = Jônatas), e na inscrição de suas moedas
nos dois idiomas.17

17 Ibid., 13.11.3(318).
90

Janeu envolveu-se em conflitos militares estrangeiros ou nacionais


durante a maior parte de sua carreira (geralmente com a ajuda de tropas
mercenárias gregas). Logo no início, foi derrotado pelos egípcios e naba-
teus. Janeu também enfrentou a oposição cada vez mais forte de grupos
sectários e outros judeus preocupados com assuntos religiosos. A certa
altura, enquanto oficiava no templo, foram lançados frutos contra ele por
adoradores que desaprovavam a maneira como realizava uma parte do
ritual da festa das Cabanas. As relações com os fariseus se deterioraram a
ponto de alguns deles pedirem a ajuda do rei selêucida Demétrio 111 Eu-
cairás contra ele. N o entanto, a cena do rei judeu fugindo dos selêucidas
fez com que até seus inimigos viessem ajudá-lo, e os selêucidas foram
expulsos. Esse acontecimento marcou o momento decisivo do destino
de Janeu. Ele se vingou dos fariseus crucificando oitocentos deles em
Jerusalém e matando as esposas e os filhos desses fariseus diante dos
olhos deles ao mesmo tempo.18 Esse e outros atos de atrocidade leva-
ram oito mil de seus adversários a fugirem da região. Depois disso, suas
campanhas militares tiveram grande êxito. Ele estendeu as fronteiras do
território ocupado pelos judeus para além dos alcançados por Hircano; de
nota especial foram suas aquisições do outro lado do Jordão e ao longo
da planície costeira do Egito ao monte Carmelo (onde somente a cidade
de Ascalom permaneceu fora de seu controle).
Alexandre Janeu não foi um modelo dos ideais do movimento sacer-
dotal dos macabeus nem dos valores mais elevados de cultura helenística.
Ele foi mais um déspota asiático helenizado. Sua vida pessoal foi carac-
terizada pelos piores tipos de depravação. Sua morte deixou o território
bem dividido; o reino passou para Salomé Alexandra, viúva de Janeu e de
seu antecessor, Aristóbulo.
Salomé Alexandra (76-67)
Josefo diz quejaneus, no leito de morte, aconselhou Salomé a esconder
sua morte até que ela tivesse tomado as fortalezas e, então, quando voltasse
a Jerusalém, dividisse o poder com os fariseus.19 Seja verdade ou não, os

'‫ ״‬Ibid., 13.14.2 (380). H provável que a referência a este acontecimento tenha sido
intencional no Comentário sobre Naum dos manuscritos do mar Morto (4QpNa),
que fala do “leãozinho furioso |que se vinga] com ‘os que buscam coisas agra-
dáveis’ ]fariseus?] e suspende homens vivos, [algo nunca feito] antes em Israel”.
Para obter mais informações sobre a crucificação, v. Apêndice D, p. 397.
19Josefo,Antiguidades 13.15.5 (399-404).
91

fariseus quase obtiveram o controle total durante o reinado de Salomé.


Josefo diz: “Se ela governou a nação, os fariseus a governaram”.2" Escri-
tos rabínicos posteriores descrevem seu reinado como uma era de ouro.
O filho mais velho de Alexandra, Hircano II, um homem calmo e
pacífico, tornou-se sumo sacerdote. O irmão dele, Aristóbulo 11, uma
personalidade mais dominante e ambiciosa pelo poder, tornou-se líder
das forças militares.
Os assuntos estrangeiros não tiveram tanta importância no reinado
de Alexandra. Internamente, a coligação entre saduceus e aristocratas não
estava de todo rompida e contava com a vantagem de estar associada de
forma íntima com Aristóbulo. Em 67, os fariseus, com a permissão da
rainha, tentaram avançar contra seus inimigos. Quanto a eles, Aristóbulo
e seus aliados estavam prontos não só para se defenderem, mas também
para tomarem o poder. Nesse momento, Alexandra morreu e a guerra
civil foi inevitável.
Hircano II, Aristóbulo II e Antípatro

As forças de Antípatro de imediato derrotaram Hircano. Em troca da


permissão para ir em paz para seu território, Hircano entregou o sumo
sacerdócio, como também a autoridade civil a seu irmão. O s dias dos go-
vernantes macabeus/hasmoneus não estvam acabados. Embora fossem
sacerdotes, eles se mostraram tão corruptos quanto qualquer soberano
pagão. Não conseguiram consolidar o território em uma unidade forte.
Depois de Aristóbulo tornar-se rei, Antípatro, cujo pai (também
chamado Antípatro) havia sido nomeado governador da região ao sul da
Judeia (Idumeia) por Alexandre Janeu, começou a ganhar poder graças
ao fraco Hircano. Por fim, ele persuadiu Hircano a buscar o apoio do rei
nabateu Aretas. Com essa ajuda, Hircano derrotou Aristóbulo, que, em
65, fugiu para a área do templo e fortaleceu-se contra o cerco criado por
seu irmão e os nabateus.
Ao norte, o general romano Pompeu havia subjugado a Asia Menor
e a Síria. Escauro, tenente de Pompeu, foi o responsável pela resolução
dos assuntos nas antigas propriedades selêucidas. Notícias do conflito em
Jerusalém levaram-no à cidade, onde ambas as partes ofereceram dinheiro
em troca do apoio romano. O grupo de Aristóbulo saiu-se vitorioso. Os
nabateus foram obrigados a levantar o cerco e, enquanto tentavam voltar
2"Josefo, Guerra dosjudeus 1.5.2 (112).
92

para casa, sofreram uma derrota humilhante de Aristóbulo e seu exércita


Pompeu, por fim, começou a desconfiar das últimas atividades de Aristó-
bulo e voltou-se contra ele. Depois de outro cerco e batalha concentrados
na área do templo, em um dia de sábado do ano 63, a fortaleza do templo
foi rompida, as forças de Aristóbulo foram derrotadas e Jerusalém foi
reivindicada pelos romanos. Enquanto a batalha ganhava força, os sacer-
dotes cuidavam de seus atos regulares de sacrifício e adoração com calma;
muitos morreram em seus postos.
Provavelmente pela curiososidade criada pelos rumores do mundo
gentio, Pompeu à força no Santo dos Santos do templo. Para ele, o ato
não significava nada mais que o exercício do privilégio do conquistador.
Para sua surpresa, ele o encontrou vazio. Para os judeus, sua ação repre-
sentou o maior sacrilégio. Eles não se esqueceram tão cedo, e o incidente
deu início à atmosfera de desconfiança, mal-entendido e hostilidade que
marcaria o futuro das relações entre judeus e romanos.

O Pe r ío d o Ro m a n o (63 A.C.-135 d.C.)

O início do domínio romano na terra de Israel viu a continuação


dos conflitos internos, iniciados no Período dos Macabeus. Na verdade,
as mesmas personagens que levaram essa era ao fim ainda estavam em
cena: Aristóbulo II, Hircano II, mais uma vez designado sumo sacerdote,
e Antípatro, o idumeu, que, tendo caído nas graças dos romanos, detinha
o poder. Além dos romanos surgiram novos rostos, incluindo-se os filhos
de Antípatro: José, Fasael e Herodes, e Antígono, filho de Aristóbulo.
Os acontecimentos e as intrigas eram numerosos e complexos. An-
tígono, o último governante macabeu, ficou preso em uma luta amarga
pelo controle com Herodes e seu irmão Fasael até a invasão dos partos,
em 40 a.C. Em resposta às promessas feitas por Antígono, os partos
capturaram Fasael e Hircano II. Em seguida, nomearam Antígono rei e
sumo sacerdote dos judeus. Herodes, no entanto, obteve a ajuda romana
c recebeu autoridade na terra de Israel. O retorno dos partos em 38 logo
devolveu o domínio a Antígono. Em 37, Herodes emergiu vitorioso, um
monarca independente na teoria, mas, na verdade, um fantoche de Roma.
E ele que a história intitulou rei Herodes (Mt 2.1) e Herodes, o Grande.
A execução de Antígono acabou com a dinastia dos hasmoneus.
93

Um a rápida visão do Império Romano

O Império Romano era o mundo do NT. Até 27 a.C., Roma era tec-
nicamente uma república governada por dois cônsules e o Senado. No
entanto, apenas os patrícios (a classe mais alta) tinham plenos direitos legais
de participar da política. Os cavaleiros (classe executiva) e plebeus (cidadãos
da classe mais baixa) tinham direitos limitados; estrangeiros, libertados e
escravos quase não detinham direitos. As aspirações dessas classes des-
favorecidas levaram à revolução e ao movimento para o governo mais
centralizado (como consequência, isso acabaria com o poder das famílias
governantes). Para esse fim, em 49, Júlio César estabeleceu-se como único
governante, mas foi assassinado (44) por defensores do republicanismo
patrício. A derrota dos conspiradores (Bruto e Cássio) levou à ascensão
de Otaviano (sobrinho-neto e filho adotivo de César). F.m 27, Otaviano
recebeu o nome de Augusto (v. Lc 2.1) e governou como imperador. Em
todo o período do NT, embora os títulos e formas governamentais de
República tenham sido mantidos, Roma foi, na verdade, uma monarquia.
Augusto dividiu o império em 32 províncias. As mais antigas e estáveis
foram designadas províncias senatoriais. Eram governadas pelo procôn-
sul, que prestava contas ao senado e não contava com autoridade militar.
As províncias imperiais normalmente eram mais difíceis de governar e
muitas vezes continham elementos revolucionários. Seus governantes
detinham autoridade civil e militar e prestavam contas de forma direta
ao imperador. Os legados eram responsáveis pelas províncias imperiais
maiores e os prefeitos, pelas menores. O s procuradores (governadores)
eram funcionários públicos que administravam áreas específicas sob a
supervisão de um procônsul ou legado. Havia também um número de
reinos em parte independentes e presididos por governantes nativos cha-
mados reis; eles desempenhavam o cargo como aprazia a Roma. Outros
príncipes subalternos eram chamados tetrarcas ou etnarcas (título um
pouco mais elevado). Outros tipos de funcionários do governo e títulos
eram encontrados em locais específicos.
Os interesses de cada província eram regulados de modo estrito pela
lei romana. N o entanto, as cláusulas da lei romana muitas vezes eram
interpretadas de forma muito diferente pelos governantes. Qualquer in-
divíduo que tivesse a posição de cidadão romano, fosse de nascença, por
uma permissão particular ou compra, desfrutava de direitos e privilégios
94

especiais que os outros não detinham.21 Todo o sistema, infelizmente,


estava sujeito a abusos e injustiças, como ilustra a desconfiança popular
dos publicanos, responsáveis pela cobrança de impostos para Roma.22
Três imperadores romanos são mencionados no NT: Augusto (27 a.C.-
14 d.C.), que governava quando Jesus nasceu (Lc 2.1); Tibério (14-37), que
governava quando João Batista e Jesus começaram o ministério (Lc 3.1),
e Cláudio (41-54) — Atos 11.28 menciona uma fome em todo o mundo
durante o reinado de Cláudio, e Atos 18.2 observa que Áquila e Priscila
haviam deixado Roma por causa de um decreto de Cláudio que expulsava
os judeus da cidade.
Houve outros imperadores, não mencionados no NT, em cujos rei-
nados ocorreram eventos com profundas consequências para os judeus.
Caligula (37-41) ordenou que sua estátua fosse colocada no templo em
Jerusalém. Todo o mundo judeu ficou consternado. Tentativas feitas por
grupos de judeus, incluindo-se o liderado por Fílon, para convencer o
imperador a revogar sua ordem foram vãs. O desastre foi evitado graças
às táticas dilatórias de Petrônio, o legado da Síria, e à morte do imperador.
N o reinado de Nero (54-68), Tiago, irmão de Jesus, foi martirizado em
Jerusalém por autoridades judaicas (62). Nero desencadeou a primeira
perseguição oficial do império dos cristãos em Roma (64-66), provocando
a morte de Pedro e provavelmente também a de Paulo.

21 Não se sabe perfeitamente quais eram os direitos exatos dos cidadãos romanos.
Parece que, ao menos, eles 1) ocupavam posições preferenciais no exército, 2)
podiam ser tributados com taxas mais baixas que os não cidadãos, 3) não podiam,
se presos, ser espancados ou torturados, 4) recebiam o direito de recorrer em casos
legais à corte imperial e 5) não podiam ser executados por crucificação, exceto
no caso de deserção do exército. Cf. A. N. Sherwin-White, The Roman Citizenship,
2. ed. (New York: Oxford University Press, 1973), e Roman Society and Roman I mw
in the New Testament (Oxford: Clarendon, 1963), p. 144-85.
22 Os publicanos muitas vezes subdividiam seu território, dando autoridade a outros
publicanos que trabalhavam em posições inferiores a eles. O líder publicano era
obrigado a levantar uma quantia específica para Roma; cada publicano subalterno
a ele deveria levantar sua parcela. Cada cobrador de impostos no processo coletava
quantidades extras, que eram seu lucro. Ao que parece, Roma não tinha regula-
mentos para publicanos, exceto que cumprissem a cota prescrita. Obviamente,
esse sistema estava sujeito a muita desconfiança e abuso. Uma vez que os publi-
canos consistiam em cidadãos locais (não romanos), não raro eram considerados
traidores; isso se aplicava de forma especial à terra de Israel.
95

A revolta judaica irrompeu nos últimos anos do reinado de Nero como


imperador e foi sufocada no governo de Vespasiano (69-79). Domiciano
(81-96) perseguiu os judeus e possivelmente também os cristãos, como
o fez Trajano (98-117). A Segunda Revolta judaica (132-35) irrompeu no
governo de Adriano (117-38).
A estabilidade do império e a manutenção da famosapax romana (paz
romana) dependiam do exército. Eram nomeados oficiais dentre os cida-
dàos; outros soldados eram homens livres e, às vezes, mercenários. O NT
menciona vários centuriões, oficiais que comandavam cem soldados de
infantaria. Na organização militar romana havia seis centuriões em uma
coorte e dez coortes em uma legião.
Principais instituições locais

Sempre que possível, os romanos governavam por meio de canais


locais. Com duas exceções, quando eram designados procuradores, esta
política foi adotada na terra de Israel no período intertcstamcntário. Os
romanos faziam isso, sobretudo, por meio da família de Antípatro e, de
modo especial, por meio de seu filho Herodes, o Grande, e dos herdeiros
dele, que se tornaram representantes leais dos romanos. Além disso, os ro-
manos utilizavam as instituições judaicas do sumo sacerdócio e o Sinédrio.
0 su m o sa ce rd ó c io

Como vimos, a politização do sumo sacerdócio teve início no Perío-


do Ptolemaico com o conflito entre os descendentes de Onias e Tobias.
Mais tarde, os governantes macabeus obtiveram para si mesmos o ofício.
Portanto, a ordenança do AT de que o ofício deveria permanecer em uma
única família foi deixada de lado. Os irmãos Aristóbulo II e Hircano II,
de forma acrimoniosa, alternavam-se no sumo sacerdócio.
Herodes, o Grande, e outros governantes romanos depois dele viram
o ofício sumo sacerdotal como algo muito importante para ser deixado à
mercê da sucessão de gerações. Eles desprezaram a prescrição de que o
sumo sacerdote deveria servir pelo resto da vida. Em vez disso, instaura-
ram e destituíram os principais sacerdotes de acordo com sua preferência.
Josefo lista 28 pessoas diferentes que ocuparam o cargo entre 37 a.C. e a
supressão da revolta em 70 d.C. Ao que parece, essas pessoas provinham
apenas de algumas famílias aristocráticas.
)6

A família sumo sacerdotal mais influente foi a de Anás, filho de Sete;


Anás ocupou o cargo de 6 d.C. a 15 d.C.23 Ao todo, oito membros de sua
família desempenharam o ofício. O mais conhecido é o genro de Anás,
José Caifás (18-36), que presidiu o julgamento de Jesus.24 A frequente
rotatividade de sumos sacerdotes explica por que Anás, que não era o
sumo sacerdote na época, participou do julgamento de Jesus (Jo 18.13,24)
e do de Pedro e João (At 4.6), e por que Caifás é descrito como “sumo
sacerdote naquele ano” (Jo 11.51).
Quando Paulo esteve perante o Sinédrio, o sumo sacerdote era Ana-
nias, filho de Nebedeu (At 23.2; 24.1). Bem conhecido por suas atividades
políticas opressivas, ele ocupou o ofício de 47 a 58. Em um momento
do reinado foi acusado de incitar tumultos na Judeia, resultando em seu
envio, preso, a Roma.25 Absolvido, seu poder e influência aumentaram.26
Mesmo depois de ter deixado o ofício, continuou a exercer considerável
influência. N o início da revolta judaica contra os romanos, a casa de Ana-
nias foi queimada;27 no mês seguinte, ele foi morto.28
O último sumo sacerdote foi Fineias, filho de Samuel (68-70). Estabe-
lecido pelo povo na revolta que aconteceu depois de o povo ter assassinado
o antecessor dele, Matatias, filho de Teófilo e neto de Anás (65-68).
O S in é d rio
O Sinédrio era o supremo conselho judaico, o grupo que regia os
judeus depois da destruição da monarquia. N a última parte do período
intertestamentário, sua proeminência e autoridade aumentaram e dimi-
nuíram. Em sentido técnico, não se deveria incluir a descrição do Sinédrio
no tema maior do domínio romano na terra de Israel, pois ele antecedeu

23 O texto de Lc 3.2 menciona o “sumo sacerdócio de Anás e Caifás” no início do


ministério de João Batista e de Jesus. Anás permaneceu ativo e sua influência
excedeu os nove anos de seu domínio como sumo sacerdote. Mesmo depois de
deixar o oficio, ele nâo raro consistia no poder por trás do trono.
24 O provável túmulo de José Caifás foi descoberto em Jerusalém; v. Zvi Greenhut,
“O túmulo da família de Caifás”, em BiblicalArchaeologyReview(September-October
1992): 29-31 ;John McRay, “O túmulo do sumo sacerdote Caifás é encontrado ao
sul de Jerusalém”, Messianic limes 3.2 (Fali 1992): 10.
25Josefo, Guerra dosjudeus 2.12.6 (243); Antiguidades 20.6.2 (131).
26Josefo, Antiguidades 20.9.4 (213).
2 Josefo, Guerra dosjudeus 2.17.4 (426); v. tb. Antiguidades 20.9.3 (208-10).
28Josefo, Guerra dosjudeus 2.17.9 (441 -42).
97

nesse período. N o entanto, é preciso que os leitores do N T esteiam cientes


em particular da forma como ele existiu na primeira parte do controle
romano. São muitas as fontes de informação sobre o Sinédrio, mas nem
sempre consistentes.29 O N T e, às vezes, Josefo, por exemplo, apresentam
uma visão muito mais negativa que a maioria dos outros.
Uma série de termos gregos é usada para referir-se à principal insti-
tuição do governo judaico pós-exílico.3" Em fontes provenientes dos Pe-
ríodos Persa e Selêucida, o grupo é conhecido como gerousia. D o Período
Macabeu em diante, seu nome normalmente é Sinédrio. Os que vieram
antes do Sinédrio do século I podem remontar aos primeiros dias de Israel
como nação. Enquanto se encontravam no deserto (durante o Êxodo),
foram designados setenta ou setenta e duas autoridades para ajudar Moisés
(Nm 11.10-17). N o AT, durante o cativeiro, no entanto, há apenas algumas
referências vagas a um grupo similar ao Sinédrio. D o retorno em diante,
a instituição torna-se cada vez mais proeminente.
Depois do exílio, na comunidade dos que haviam retornado à terra
de Israel, as autoridades dos judeus parecem ter recebido influência cada
vez maior em todas as áreas da vida judaica (v., p. ex., Ed 5.5,9; 6.7,8,14;
10.8,14). Os governantes da dinastia dos hasmoneus contaram com o apoio
de especialistas na interpretação da lei, incluindo-se sacerdotes. As reuniões
desses especialistas não raro se tornavam cenas de conflito entre fariseus
e saduceus. N o Período Romano, o poder e a importância do Sinédrio
oscilaram muito. Herodes, o Grande, começou o reinado com a execução,
pelo menos, dos membros mais proeminentes do grupo.31 Ao eliminar a
antiga nobreza e intimidar os membros restantes e recém-designados, ele
reduziu a autoridade do Sinédrio ao nível mais baixo.

B As principais fontes são a literatura apócrifa (esp., Judite c 1, 2 e 3Macabeus),


Josefo, os primeiros escritos rabínicos c o NT.
" Além de synedrion (o alto conselho, Sinédrio), os termos gregos incluem gerousia
(assembléia), boulè (conselho),presbyterion (reunião das autoridades, o sínodo) e to
koinon tõn lerosolymitõn (o conselho comum de Jerusalém), título encontrado apenas
cm Josefo. Outros nomes incluem o grande tribunal na sala da Pedra Lavrada, o
tribunal dos 71 (juizes), os anciãos do tribunal, anciãos e sábios e, algumas vezes,
o Grande Sinédrio.
" Josefo, Antiguidades 14.9.4 (175), diz que Herodes executou “todos” os membros
do grupo; Antiguidades 15.1.2 (6) diz que ele executou 45 dos defensores de An-
tígono.
98

Diz-se que o Sinédrio consistia em 70 ou 71 membros (o número


provavelmente depende da inclusão ou não do presidente na contagem).
Os membros do Sinédrio vinham principalmente da nobreza sacerdotal;
os saduceus eram a maioria ou os mais influentes. O sumo sacerdote era o
presidente e convocation3’ Mais tarde, uma vez que os fariseus se tornavam
cada vez mais populares entre o povo, eles também foram incluídos no
número do conselho. A presença dos fariseus é evidenciada pelas refe-
rências do N T a Nicodemos (Jo 3.1) e Gamaliel (At 5.34; cf. 22.3) como
membros do Sinédrio e pelo conflito registrado em Atos 23.6-10. Josefo
diz que, por volta do século I, os saduceus, que controlavam o Sinédrio,
tiveram de entrar em acordo com as fórmulas dos fariseus; do contrário,
“o povo não iria tolerá-los”.33 Mais tarde, escribas e anciãos passaram a
integrar o Sinédrio. A participação de José de Arimateia mostra que o grupo
não era restrito aos homens de Jerusalém (Lc 23.50). Não sabemos como
os membros eram selecionados; a falta de um processo democrático de
eleição popular é uma das principais diferenças entre o conselho judaico
e os de cidades helenísticas. Acredita-se que os novos membros eram
empossados ou ordenados pela imposição de mãos.34
Havia, sem dúvida, conselhos similares em outros povoados, cidades
e regiões. A relação exata entre eles e o Grande Sinédrio de Jerusalém nem
sempre é clara. Sem dúvida, em matéria de interpretação da lei religiosa,
o grupo de Jerusalém detinha a palavra final.
Como já dissemos, a função e a autoridade do Sinédrio variavam,
dependendo da vontade e da força do governante político que ocupava o
cargo. Em geral, suas responsabilidades eram religiosas e civis. Sem dúvida,
ele supervisionava a religião instituída na nação, mantinha a superinten-
dência do templo e cumpria deveres religiosos como a determinação da
data da lua nova e da inserção do mês extra no ano lunar. O Sinédrio tinha
deveres legislativos, executivos, administrativos e judiciários; também era
uma instituição acadêmica.32

32 Emil Schürer, The History of theJewish People in theAge ofJesus, Geza Vermes et al.
(orgs.), 3 vols. (Edinburgh: T. and T. Clark, 1973-87), 2:215, considera completa-
mente infundadas as afirmações de escritos rabínicos posteriores de que os líderes
das escolas farisaicas eram os presidentes do Sinédrio.
"Josefo ,Antiguidades 18.1.4 (17). Esta afirmação também é feita em escritos rabí-
nicos; v. Mixná Yoma 1:5; Sukkah 4: 9.
’4 A prática está de acordo com a forma usada por Moisés para passar a liderança
para Josué (Nm 27.18-23; Dt 34.9.); v. tb. Schürer, History, 2:211 (esp. n. 41).
99

Como corpo voltado à aplicação da lei, contava com força policial


própria e servia como tribunal de justiça. Há um constante debate sobre
sua autoridade para executar a pena de morte. João 18.31 é a única fonte
antiga que indica com clareza que o Sinédrio não comportava essa auto-
ridade. Outra evidência mostra que o Sinédrio não era completamente
limitado em casos de pena capital.'5
Após a destruição de Jerusalém em 70,Jâmnia e algumas outras cida-
des tornaram-se centros de discussões rabínicas e estudo. Elas serviram
como pontos centrais enquanto o judaísmo se reorganizava. N o entanto,
quase não exerciam influência política.
G o v e rn a n te s p o lític o s

Herodes, o Grande

Herodes, o Grande, rei de toda a terra de Israel de 37 a.C.-4 d.C., era


um homem robusto e, por natureza, violento, impetuoso, cruel, arrogante,
calculista e desapiedado.*36A desconfiança, as intrigas e a crueldade sugeri-
das no relato de Mateus acerca de seu acordo com os magos e a matança
dos bebês de Belém estão em plena harmonia com o que se sabe sobre
seu caráter por meio de outras fontes.
Como idumeu, a natureza judia de Herodes era suspeita aos olhos de
muitos. Ele era sensível aos interesses judaicos e não raro se esforçava para
não ofendê-los. Mas, no fundo, era de todo helenófilo e com probabilidade
sua cosmovisão era totalmcnte pagã — fato refletido em seu estilo de vida,
em suas atividades e até mesmo na arquitetura de sua maior realização
entre os projetos de construção, o templo reconstruído de Jerusalém.
É comum dividir o governo de Herodes em três partes: os períodos
da 1) consolidação do poder (37-25), 2) prosperidade (25-13) e 3) disputa
doméstica (13-4). N o geral, ele foi um governante competente, e suas rea­

‫ ’־’־‬Schürer, History, vol. 2, p. 221 -2, observa que o Sinédrio parece ter sido competente
para julgar e executar vários casos de pena capital: 1) a entrada de qualquer pessoa
no Santo dos Santos, até mesmo o sumo sacerdote em qualquer ocasião além do
dia da Expiaçâo; 2) a entrada de um gentio, até mesmo um cidadão romano, no
pátio interior do templo; 3) Estêvão; 4) Paulo; 5) Tiago, irmão de Jesus e 6) a filha
de um sacerdote culpada de adultério.
36Sobre a família herodiana, v. Harold W. Hoehner, HerodAntipas (Grand Rapids:
Zondervan, 1980); Stewart Perowne, The Life and Times of Herod the Great (Nashville:
Abingdon, 1956); idem, The IMter Herods (Nashville: Abingdon, 1958).
100

lizações foram consideráveis. Em particular, a amizade e a cooperação de


Herodes com Roma eram de real valor para os judeus da terra de Israel.
Em sentido político, ele trouxe estabilidade e prosperidade razoável para
a região.
Os projetos de construção de Herodes foram vastos; os vestígios de
alguns permanecem até hoje. Eles incluíam cidades inteiras, como Sarna-
ria (cujo novo nome foi Sebaste) e Cesareia Marítima com seu magnífico
porto artificial. Muitas cidades foram ornamentadas e receberam templos
pagãos, centros esportivos e outros edifícios importantes. Ele reconstruiu
Jerusalém com todas as características esperadas de uma cidade helenís-
tica. Seu próprio palácio era magnífico e bem fortificado. A Antônia, a
cidadela militar que ele construiu na extremidade noroeste do monte do
templo, é mencionada em conexão com a prisão de Paulo (At 21.31-40)
e foi possivelmente o local de parte do julgamento e da tortura de Jesus.
Uma série de fortalezas oferecia refúgios luxuosos para Herodes e sua
família — as mais conhecidas são o Herodium, perto de Belém, Maque-
ronte e Massada, dos lados leste e oeste do mar Morto, respectivamente.
A obra de Herodes no templo dejerusalém merece atenção especial. A
estrutura erguida por Zorobabel era velha, havia sofrido danos nas guerras
e era muito pequena para a multidão que se reunia na cidade durante as
festas de peregrinação. Não condizia com o novo caráter que Herodes
imaginava para a cidade. Mil levitas foram treinados e dedicados à tarefa
de reconstrução, que começou em 20 ou 19 a.C. A plataforma no monte
do templo foi ampliada. A estrutura principal foi concluída em menos de
um ano e meio; as outras obras continuaram até quase 70 d.C., quando
ele foi destruído pelos romanos.37 Seu tamanho e magnificência eram
famosos em todo o mundo antigo.
Eram muitos os inimigos de Herodes. Ele nunca foi totalmente aceito
pelos súditos judeus. As incertezas da política romana exigiam constante
vigilância e adaptação. Ao sul, Cleópatra, rainha egípcia e amante de vários
romanos poderosos e influentes, planejava anexar o reino de Herodes ao
seu. A vida pessoal e familiar de Herodes era trágica, quase inimaginável.
Ele exilou, prendeu ou executou filhos, esposas, outros parentes e amigos

' Por isso a afirmação em João 2.20 de que havia levado 46 anos para o templo ser
construído.
101

a quem, muitas vezes com razão, suspeitava de conspirar contra ele.8’‫ ׳‬For
fim, quando a morte o encontrou em seu adorado palácio em Jericó (4 a.C.),
Herodes, o Grande, era um homem enfermo, insano, arruinado e patético.
Os filhos de Herodes, o Grande

O testamento de Herodes dividia seu reino entre três de seus filhos.


Quando seus desejos foram confirmados pelos romanos, Arquelau foi
designado etnarca de Samaria e Judeia.39 Por sua incompetência e pela
severidade de seu governo, oficiais judeus e samaritanos apelaram à aju-
da de César. Arquelau foi deposto em 6 d.C. e a área foi colocada soh os
cuidados de procuradores designados pelo imperador.
Filipe recebeu terras a nordeste do mar da Galileia e o título de tetrarca
(Lc 3.1). Ble era um governante justo e cuidadoso. Depois de sua morte,
em 34 d.C., seu território foi anexado com rapidez à província da Síria e
depois concedido a Herodes Agripa I, neto de Herodes, o Cirande.
Herodes Antipas. I !erodes, o tetrarca, como é chamado no NT, rece-
beu a Galileia no norte e a Pereia, a região leste do rio Jordão. Como seu
pai, ele levou adiante projetos de construção ambiciosos, incluindo-se as
cidades de Séforis e Tiberíades.
Durante uma visita ao seu meio-irmão Herodes Filipe (não o tetrarca),
Antipas encantou-se pela esposa de Herodes Filipe, Herodias, filha de
outro meio-irmão, Aristóbulo, e mãe de Salomé, filha de Herodes Filipe
(Mc 6.22-28). Em bora o casamento com a esposa de um irmão vivo fosse
contrário ao direito de levirato (Lv 18.16; 20.21), Antipas casou-se com
ela. Para isso, ele se divorciou da filha do rei nabateu Aretas IV (que, mais
tarde, em um ato de retaliação, infligiu uma derrota militar a Antipas). Foi
a denúncia dessa união (Mt 14.4; Mc 6.18; Lc 3.19) que provocou a prisão
de João Batista em Maqueronte, a fortaleza de Herodes, e, por fim, sua
morte.40
Ao que parece, Herodes Antipas possuía a menos desejável das qua-
lidades de seu pai, mas não sua capacidade de governar. Não é à toa que
Jesus, ao ouvir sobre a trama do tetrarca contra ele, referiu-se a Antipas
como “aquela raposa” (Lc 13.32). Sabemos também que Antipas já havia
5‫ ״‬Augusto, atento à aversão dos judeus à ingestão de carne de porco, uma vez disse
que era mais seguro ser porco do que filho de Herodes. Este é um jogo com duas
palavras gregas com o mesmo som, hys (porco) e hyios (filho).
‫ ׳״׳‬Mt 2.22; Josefo, Antiguidades 17.9.3-7 (213-49); 17.11.1-5 (299-323)
411Josefo, Antiguidades 18.5.2 (116-19).
102

Figura 4
Herodes, o Grande, e seus descendentes
Herodes, o Grande (morreu em 4 a.C.)
(Mt 2.1-19; Lc 1.5) casado com

----------------- 1-------------------- Γ
Dóris Mariane Mariane Maltace Cleopatra
neta de filha de Simâo, o
Hircano II sumo sacerdote
Antípatro
(morreu em Filipe
4 a.C.) Herodes Filipe (Lc 3.1)
(Mc 6.17) tetrarca da
casado com Itureia
Herodias
(Mc 6.17-28)
Arquelau Herodes Antipas
(Mt 2.22) (Mc 6.14; Lc 23.7)
Salomé etnarca da tetrarca da Galileia
(Mc 6.22-28) Judeia casado com Herodias

Aristóbulo (morreu Alexandre (morreu Salampsio Cipros


em 7 a.C.) em 7 a.C.)
casado com Glafira Olímpia

Herodes Agripa I Herodias Aristóbulo Herodes, rei de


(morreu em 44 d.C.) casada com Cálcis (morreu
(At 12.1) 1) Herodes Filipe em 48)
2) Herodes Antipas

Herodes Agripa II Mariane Berenice Drusila Druso


lorreu c. de 100 d.C.) (At 25.13) (At 24.24)
(At 25.13) casada com casada
1) Herodes de com
Cálcis 1) Azizo,
2) Polemom, rei de
rei da Cilicia Emesa
2) Félix

Agripa
(morreu em
79)

Alexandre Tigranes IV
rei da Armênia
,. ,, . . . . . (morreu em 36)
Tigranes V - rei da Armenia

Alexandre - rei da Cilicia

C. Júlio Agripa

desejado ver Jesus (Lc 9.7-9). Um encontro entre os dois, na verdade,


aconteceu durante o julgamento de Jesus (Lc 23.7-12).
103

Figura 5
Governantes da Palestina
20/19 a.C. Início
da reconstrução
Judeia, Samaria Itureia e Traconites Galileia e Pereia do templo
e Idumeia (Lc 3.1)
27 a.C.
Rei Herodes, 0 Grande

4 a.C.
6 a.C.
Nascimento
Augusto Arquelau Filipe (tetrarca) Herodes Antipas de Jesus
(etnarca) (tetrarca)

6 d.C.

Procuradores
(governadores)
14 d.C.

c. 30 d.C.
Crucificação
Tibério
de Jesus
Pôncio Pilatos 34 d.C.
26-36
Procuradores
37 d.C.

Gaio (Caligula) 37 d.C.


41 d.C. 39 d.C.
41 d.C. 40 d.C. Caligula
Herodes Agripa 1
44 d.C. ameaça profanar
(rei)
o templo
Cláudio
Procuradores romanos 51/52 d.C.
Antônio Félix Paulo e Gálio em
52-59 Corinto
53 d.C.
54 d.C.

56 d.C. 57 d.C. Prisão de


Pórcio Festo Paulo
Nero 59-62
Herodes Agripa II 62 d.C. Fim de
(rei — 56 ou 61) Atos; morte de
Albino 62-64
Tiago, irmão de
Géssio Floro
Jesus
64-66

64-66 d.C Morte


66 d.C.
de Pedro e de
69 d.C.
Paulo
Revolta
Vespasiano 70 d.C.
(69-79)
Tito (79-81)
Domiciano
(81-96)
Nerva (96-98)
Trajano (98-117)
Adriano
(117-138)

Ao tornar-se imperador (37), Caligula deu a seu amigo Agripa, irmão


de Herodias, o território que até três anos antes havia sido governado por
Filipe, o tetrarca, e também o título de rei. Flerodias convenceu Antipas a
104

pedir o mesmo título ao imperador. N o entanto, Agripa começou a acusar


Antipas de tramar uma insurreição, o que resultou no exílio de Antipas
na Gália (a França moderna), em 39; ele foi acompanhado por Herodias.
Procuradores romanos (governadores)

Depois da deposição de Arquelau, foram nomeados funcionários


públicos romanos para governar a Judeia e, mais tarde, a área controlada
por Filipe, o tetrarca. O mais conhecido desses governadores é Pôncio
Pilatos (26-36 d.C).
Herodes Agripa I

Herodes Agripa 1, neto de Flerodes, o Grande, governou toda a terra


de Israel até sua morte, em 44. O s primeiros anos de vida de Agripa, filho
de Aristóbulo, que era filho de Herodes, o Grande, estavam longe de ser
notáveis. Problemas financeiros causados pela vida extravagante, por con-
flitos com familiares e oficiais e pela corrupção administrativa causaram
dificuldade e, por fim, levaram à sua prisão em Roma. O destino de Agripa
mudou com a ascensão de seu amigo Caligula ao trono imperial, em 37.
Como já observamos, Agripa tornou-se rei do território ocupado por
Filipe, o tetrarca. Em 39, o território antes ocupado por Herodes Antipas
lhe foi dado também. Em 41, Agripa estava em Roma quando Caligula foi
assassinado e Cláudio se tornou imperador. O último confirmou Agripa
como rei e anexou a Judeia e Samaria ao seu domínio. Assim, Agripa ocu-
pou o mesmo território e o mesmo título que seu avô Herodes, o Grande;
por essa razão, em Atos 12.1, Agripa é chamado de “rei Herodes”.
Agripa procurou agradar aos judeus. Quando Caligula ordenou que
sua estátua fosse erigida no templo dejerusalém, Agripa defendeu a causa
judaica. Mesmo parecendo aliado dos saduceus, ele ainda conquistou a boa
vontade dos fariseus. Evidentemente, para assegurar o favor dos súditos,
ele iniciou o projeto malfadado de ampliação das fronteiras dejerusalém,
erigindo o terceiro muro para proteger os limites ao norte. Além disso,
matou Tiago e prendeu Pedro (At 12.13).
Após a morte de Caligula, Agripa, ao que parece, começou a demons-
trar considerável devoção ao judaísmo. Mudou a capital para Jerusalém e
nomeou um novo sumo sacerdote. Josefo diz: “Não se passou um dia sem
os sacrifícios prescritos”.■" O zelo de Agripa pelo judaísmo poderia ter41

41Josefo ,Antiguidades 19.7.3 (331).


105

sido uma das razões para a perseguição dos cristãos ciescrita cm Atos 12
(note em especial o v. 3). Josefo e o texto de Atos 12.21-23 registram a
morte repentina de Hcrodes Agripa I, em Cesareia.42 Rle deixou um filho
de 17 anos, Agripa II, e três filhas, incluindo-se Berenice (At 25.13,23;
26.30) e Drusila.
Procuradores romanos

Uma vez que Agripa II era jovem quando seu pai morreu, em 44,
toda a área foi colocada no início sob o controle de procuradores. F.sses
procuradores eram pobres administradores; os problemas do território se
multiplicaram. Fado (44-46) teve de lidar com um falso messias chamado
Teudas.43O renegado governador judeu Tibério Júlio Alexandre (46-48),
sobrinho de Fílon (v p. 39), enfrentou uma revolta liderada por Tiago e
Simâo, filhos de Judas, o Galileu, que havia liderado c perecido em uma
revolta na época do recenseamento, em 6 d.C. O reinado de Cumano
(48-52) foi caracterizado por constantes tumultos causados pelo ressen-
timento dos judeus, pela provocação dos romanos e pelas tensões entre
galileus e samaritanos. Esses são apenas alguns indícios da inquietação
geral da época.
Dois procuradores, Antônio Félix (52-59) e Pórcio Festo (59-62), apa-
recem no N T como juizes de Paulo (At 23.23— 26.32). Félix, cuja terceira
esposa era Drusila, filha de Agripa I,44viu-se diante de uma atividade insur-
gente cada vez violenta, incluindo a aparição dos infames sicários (homens
da adaga ou assassinos). Paulo foi confundido com um deles — um egípcio
que levou um grupo ao monte das Oliveiras e anunciou que os muros de
Jerusalém cairíam para permitir sua entrada (At 21.38). Paulo estava na
prisão em Cesareia quando Festo substituiu Félix (At 24.27). Festo morreu
no ofício. Antes da chegada de seu sucessor, o sumo sacerdote Anás II
aproveitou a oportunidade para acabar com uma série de seus inimigos
em Jerusalém. Um deles era Tiago, o Justo, irmão de Jesus.45

42 Ibid., 19.8.2 (343-51).


'‫ יי‬Este provavelmente não era o Teudas de Atos 5.36.
44 Drusila havia sido prometida em primeiro lugar a um filho do rei Antíoco de
Comagena, mas desistiu do casamento quando ele se recusou a ser circuncidado.
Mais tarde, ela se casou com Azizo, rei de F.mesa. Félix encantou-se com sua beleza
logo após o casamento e, com a ajuda de um mágico, convenceu-a a se casar com
ele.
45 Eusébio, / listória eclesiástica 2.23; Josefo, Antiguidades 20.9.1 (199-200).
106

A corrupção, injustiça, brutalidade e prepotência dos dois últimos pro-


curadores da Judeia e de Samaria, Albino (62-64) e Géssio Floro (64-66),
aceleraram o movimento dos judeus em direção à rebelião. A guerra que
se irrompeu com Roma estava envolta pelo histórico de malentendidos e
hostilidades entre judeus e romanos que havia começado quando Pompeu
entrou no templo em 63 a.C. Diante da lembrança da revolta dos maca-
beus e da subsequente amostra de independência, aumentou o desejo de
liberdade misturado com o espírito messiânico que confirmava cada vez
mais a aprovação divina de uma ação armada. Josefo menciona os zelotes
e seu desejo insaciável de liberdade como propulsores na revolta; mas, ao
que parece, eles eram apenas a parcela radical de uma população que há
muito havia se colocado em rota de colisão com o poder imperial.
Herodes Agripa II
Em 53, a tetrarquia de Filipe e, mais tarde, a Galileia e a Pereia foram
dadas a Agripa 11, que governou com o título de rei; a Judeia e Samaria
permaneceram nas mãos de procuradores. Era essa a situação quando
Agripa 11 e Berenice fizeram a visita a Festo registrada em Atos 25.13—
26.32.40 Quando a revolta irrompeu, Agripa ficou do lado dos romanos.
Depois disso, ele se fortaleceu como rei e recebeu outros territórios para
governar. Mudou-se para Roma, em 75. Com sua morte por volta do ano
100, a dinastia herodiana chegou ao fim.
O P e río d o R o m a n o d a P rim e ira à S e g u n d a R evo lta

A faísca que provocou a explosão veio em 66, quando Géssio Floro


insultou os costumes religiosos judaicos. A guerra durou até 70, quando
Jerusalém, o templo e o estado judaico foram reduzidos a cinzas. Levou
outros três anos para eliminar o último vestígio da resistência judaica
em Massada. A lembrança do templo de Herodes está enterrada sob as
mesquitas islâmicas na colina do templo de Jerusalém e gravada no arco
triunfal de Tito, que ainda existe em Roma.46

46Como Drusila, esposa de Félix, Agripa II e Berenice eram filhos de Agripa I.


Após a morte de seu primeiro marido, Berenice casou-se com seu tio, Herodes
de Cálcis. Após a morte dele, ela viveu com seu irmão Agripa II. Rumores sobre
uma relação incestuosa entre eles alastravam-se no mundo antigo (v. Juvenal, Sátiras
6.156-60). Ela abandonou o próximo marido, o rei Polemom da Cilicia, e voltou
para o irmão. Foi nessa época que os dois ouviram a defesa de Paulo. Mais tarde,
Berenice tornou-se amante do imperador Tito.
107

Temos apenas vislumbres da história judaica nos sessenta anos se-


guintes. O Talmude relata como o rabino Yohanan ben Zakkai foi tirado
às escondidas de Jerusalém durante o cerco da cidade, ganhou o favor de
Vespasiano e teve permissão para criar uma academia para aprendizado
em Jâmnia (ou Yavne).47 Aqui ele e o mestre Gamaliel II estabeleceram
um novo centro para a vida judaica, que continuou, com adaptações e
adições, as tradições dos fariseus, e nada além dessas tradições. Assim
começou o judaísmo rabínico. Em Jâmnia, Yohanan e Gamaliel lideraram
discussões legais e religiosas que preservaram e reorganizaram o judaísmo,
e começaram a codificar a tradição mais tarde registrada na Mixná. Com o
tempo, outras cidades também se tornaram centros de discussões rabínicas.
Em algum momento antes do fim do século I, alterou-se a liturgia da
sinagoga para a inclusão na Shemoneh ‘Esreh (as dezoito bênçãos \herakoth\ da
oração diária) a condenação de cristãos judeus que efetivamente os excluía
da adoração na sinagoga e da participação contínua da vida judaica (para
ver a mudança, v. Apêndice E, p. 401-402). Há certa sugestão de que os
judeus talvez tenham tentado restabelecer a adoração sacrificial no local
do templo destruído, mas a evidência é discutida. Tanto na terra de Israel
como no exterior, os judeus estavam sujeitos à hostilidade cada vez maior
e a perseguições formais nas mãos dos imperadores Domiciano (81-96)
eTrajano (98-117).
Em 132, enquanto Adriano era imperador (117-38), irrompeu a Se-
gunda Revolta judaica sob a liderança de Simon Bar Kosiba, que capturou
Jerusalém e rapidamente restabeleceu o estado judeu.48 Um elemento
religioso nessa guerra é confirmado quando Bar Kosiba foi aclamado Mes-
sias por alguns rabinos influentes, incluindo Akiva, e por sua perseguição
aos cristãos judeus que se recusaram a reconhecê-lo como tal. Durante
três anos travou-se uma guerra selvagem e cruel, cujos detalhes quase se
perderam. O fim veio em Betar, não muito longe de Belém, com a der-
rota das forças judaicas e a morte do seu líder. Jerusalém foi reconstruída

47Talmude babilônico, Gittin 56.


4‫״‬Descobertas feitas no deserto da Judeia na segunda metade do século XX es-
clareceram o nome preciso do líder da rebelião. O rabino Akiva, um defensor,
chamou-o de Bar Kokhba (filho da estrela, uma alusão à profecia messiânica de
Km 24.17); mais tarde, escritores judeus referem-se a ele como Bar Koziba (filho
da mentira). Escritores cristãos referem-se a Kokheba ou Bar Kokheba. Moedas
e documentos de seu reinado, incluindo cartas escritas por ele, esclarecem que
seu nome era Simão (Shimeon) Bar (Ben) Kosiba (h) (Simão, filho de Kosiba).
108

como uma cidade não judia, chamada Aelia Capitolina, e com um templo
dedicado a Júpiter. Os judeus foram proibidos de entrar na cidade sob
pena de morte. O Estado judeu, como uma entidade política, só ressurgiría
depois de mais de dezoito séculos.
SEGUNDA PARTE
AS CRISES E RESPOSTAS DO JUDAÍSMO INTERTESTAMENTÁRIO
6
As crises dos séculos VI e IV

• A crise do século VI: A destruição de Judá e o exílio babilônico


• A crise do século IV
- Helenismo
- A civilização helenísüca e os judeus

Numerosos acontecimentos na história que acabamos de examinar


contribuíram para as características distintas do judaísmo da Era do Novo
Testamento.1As principais características de qualquer período ou movi-
mento histórico não provêm só de algumas causas específicas. O aumento
da diversidade — parte importante do judaísmo intertestamentário — foi,
sem dúvida, afetado pela personalidade e dinâmica de grupo, como tam-
bém por fatores geográficos, sociológicos e econômicos. N o entanto, há
pelos menos dois acontecimentos importantes provocadores de crises que
se tornaram forças explosivas na formação do mundo judaico emergente.
Eles tiveram significado especial por causa das implicações para todo o
povo e a variedade de respostas que suscitaram de diferentes pessoas e
grupos. Seu aspecto fundamental deve ser reconhecido em qualquer estudo
sobre o contexto do Novo Testamento. O primeiro foi a destruição do
Estado judaico pelos babilônios, em 586 a.C., e tudo que esse aconteci-
mento envolveu. O segundo foi a intrusão da cultura helenística do tempo
de Alexandre, o Grande, no século IV a.C.

1 Parte do conteúdo deste capítulo e dos imediatamente seguintes apareceu em


J. Julius Scott, Jr., “Crisis and Reaction: Roots o f Diversity in Intertestamental
Judaism”, EvangelicalQuarterly 64.3 (1992): 197-212.
112

A CRISE DO SÉCULO VI: A DESTRUIÇÃO DE JUDÁ E O EXÍLIO BABILÔNICO


A queda de Judá, com a destruição de Jerusalém e do templo, foi
precedida por uma série de acontecimentos desfavoráveis. A Assíria e
o Egito iniciaram ataques contra Israel e Judá já no século IX a.C. Nos
reinados de Acabe c Jeú, Israel (o Reino do Norte) foi quase reduzido a
estado-satélite por Salmaneser III (859-824) da Assíria. Mais tarde, Acaz
de Judá (o Reino do Sul) aceitou o domínio assírio sob Tiglate-Pileser III
(Pul, 745-727). Uma série de revoltas ocasionadas pelos reis títeres de
Israel provocou seu fim mais tarde, em 722, nas mãos de Salmaneser V
(727-722) e seu sucessor Sargão II (722-705).
Judá durou quase 135 anos após a destruição de Israel. O fim ocor-
reu em etapas. Após a batalha de Carquemis (605), quando os babilônios
derrotaram os egípcios e o que havia restado do Império Assírio, eles
perseguiram os egípcios até o sul pela terra de Israel. Parece que Jeoa-
quim aceitou o Nabucodonosor babilônio como seu novo senhor. Não
há registro de reféns da Judeia levados para a Babilônia na época; alguns
acreditam que isso aconteceu, no entanto, e que Daniel e seus amigos pro-
vavelmente estavam entre eles (Dn 1.1-7 implica o mesmo). Uma revolta
contra a soberania babilônica por Jcoaquim levou Nabucodonosor a Judá
mais uma vez. Jeoaquim morreu antes da resolução da questão, e seu filho
Joaquim subiu ao trono. Joaquim rendeu-se aos babilônios em 598. O rei
com muitos cidadãos importantes, incluindo-se o profeta Ezequiel, foram
deportados para a Babilônia. Uma revolta provocada por Zedequias, de
Judá, causou a destruição final do estado judaico. Após o cerco de quase
um ano e meio, Jerusalém foi tomada e destruída, o templo foi queimado
e muitas pessoas foram mortas, levadas para o cativeiro ou se tornaram
refugiadas.
O núm ero exato de judeus levados para a Babilônia é incerto:
2Reis 24.14 observa dez mil na deportação de Joaquim; Jeremias 52.28-30
lista 4.600 em três deportações distintas (o número talvez inclua apenas os
homens adultos). Em todo o caso, o total era apenas uma pequena parte
da população; expressivamente, no entanto, parece ter incluído os líderes
da nação. Outros hebreus procuraram lugares de refúgio no Egito (Jr 43.1-
7) e cm outras partes. É provável que a guerra tenha desestabilizado de
forma séria apenas as imediações de Jerusalém, e a vida nas áreas vizinhas
tenha continuado, em parte, como era antes.
113
Contudo, os efeitos da queda de Judá foram devastadores e general!-
zados. Em sentido geográfico, marcou o início da Diaspora — a dispersão,
a disseminação dos judeus por todo o mundo. O livro de Lamentações
deplora: “ [Judá] vive entre as nações” (1.3). A Dispersão teve efeitos
abrangentes na vida e psicologia judaicas. A proximidade contínua com
outros grupos tornou-se ameaça à identidade racial, étnica e cultural dos
hebreus. Portanto, os judeus da Diáspora normalmente viviam próximos
uns dos outros, formando assim comunidades distintas (mais tarde cha-
madas guetos), alvo de antissemitismo mesmo antes da Era Comum.
Em sentido político, a queda marcou a perda da identidade nacional
como entidade autônoma reconhecível. Em bora os judeus tivessem se
tornado antes vassalos da Assíria e da Babilônia, nesse momento até a
aparência de independência havia desaparecido. Eles já não viviam sob a
autoridade dos oficiais nativos, mas sob o controle direto de estrangeiros.
O livro de Ester retrata alguns dos perigos comuns que eles constante-
mente enfrentavam.
A queda do Estado judeu também precipitou uma crise religiosa
de proporções terríveis. N ão podemos compreender esse fato sem nos
concentrarmos em três aspectos importantes da vida judaica: a terra,
a monarquia c o templo em Jerusalém eram símbolos religiosos, além
dos bens e das instituições nacionais. A terra de Israel era mais do que
uma propriedade. Quando Deus ofereceu sua aliança pela primeira vez a
Abraão, ele disse: “Vá para a terra que eu lhe mostrarei [...] toda a terra [...]
darei como propriedade perpétua a você e a seus descendentes” (Gn 12.1;
13.15; 17.8). A posse da terra era um elemento importante na designação
especial de Israel por Deus e a demonstração dela. Perdê-la significava a
ausência de um aspecto visível da promessa divina. E possível organizar
toda a teologia do Antigo Testamento em torno da posse e da perda da
terra por Israel.2 De igual modo, nos tempos modernos, a posse de um
pedaço particular de terra pode ter implicações que vão além do valor
monetário; pode ser vital para a identidade pessoal e bem-estar emocional
dos indivíduos, em especial os encontrados no contexto rural (como este
escritor conhece muito bem!).
2 Walter Brueggemann, A terra na Bíblia: dom, promessa e desafio (São Paulo: Edições
Paulinas, 1986); v. tb. W. D. Davies, The Gospeland lhe Land. Early Christianity and
Jewish Territorial Doctrine (Berkeley: University o f California Press, 1974) e, do
mesmo autor. The TerritorialDimension of Judaism (Berkeley: University o f California
Press, 1982).
114

A monarquia também contava com um significado nacional e reli-


gioso. Embora Deus fosse reconhecido como o único rei verdadeiro de
Israel, os governantes da casa de Davi eram seus representantes. Deus
prometeu a Davi que os descendentes dele governariam sobre Israel para
sempre (2Sm 7.12-16). A destruição da linhagem régia levou muitos em
Israel a questionar a relação da nação com Deus e a confiabilidade de sua
promessa. O espanto deles está refletido em Salmos 89.38-45:
Mas tu o rejeitaste, recusaste-o e te enfureceste com o teu ungido. Revo-
gaste a aliança com o teu servo e desonraste a sua coroa, lançando-a ao
chão. Derrubaste todos os seus muros e reduziste a ruínas as suas for-
talezas. Todos os que passam o saqueiam; tornou-se objeto de zombaria
para os seus vizinhos. Tu exaltaste a mão direita dos seus adversários e
encheste de alegria todos os seus inimigos. Tiraste o fio da sua espada
e não o apoiaste na batalha. Deste fim ao seu esplendor e atiraste ao
chão o seu trono. Encurtaste os dias da sua juventude; com um manto
de vergonha o cobriste.
A cidade de Jerusalém e seu templo eram outras evidências visíveis do
favor e da presença de Deus entre o povo. O salmo 48 exulta na presença
de Deus com seu povo em seu santo monte; o monte Sião (Jerusalém) é
“a cidade do grande Rei” (v. tb. M t 5.25) e Deus, sua “proteção” . Agora
isso se foi! O choro era: “Como está deserta a cidade, antes tão cheia de
gente!” (Lm 1.1). O templo havia sido a casa de Deus, onde se realizava
a adoração divinamente ordenada, o lugar onde Deus e seu povo podiam
se encontrar. O local em que sacerdotes ofereciam sacrifícios, o ponto
focal das grandes festas e festivais. Israel podia se colocar diante de seu
Deus sem símbolos e meios visíveis para adorá-lo?
Portanto, os acontecimentos do ano 586 a.C. precipitaram uma crise
teológica uma vez que a nação reconheceu que o S e n h o r havia permitido
a conquista de seu povo! As dúvidas eram inevitáveis: Deus era bom e
amoroso? Ele realmente se importava com seu povo? Se sim, ele podería
protegê-lo? A perda da terra, da monarquia e de Jerusalém com o templo
pôs em dúvida a viabilidade permanente da aliança, que designava os
hebreus como o povo distinto de Deus.
Longe da terra e do templo, os hebreus ficaram mais próximos do
paganismo. Nessa nova situação, eles enfrentaram uma série de dificul-
dades. Manter a pureza cerimonial era mais difícil. Diariamente eles eram
forçados a ter contato com pessoas e coisas que traziam profanação. Sem
115

o templo e o sacerdócio, o meio de erradicar essa impureza não estava


disponível ou era muito menos acessível.
O sincretismo, que respeita todas as religiões como igualmente válidas,
ou que procura combinar parte ou o todo de muitas religiões em uma
só, era outra ameaça constante. Alguns judeus sucumbiram e adotaram
várias práücas pagãs na adoração tradicional; outros de fato cometeram
apostasia e trocaram seu Deus por outras deidades. Alguns talvez tenham
se tomado agnósticos seculares.
Outra dificuldade foi que com a perda da monarquia veio a perda do
apoio político para o sistema religioso hebraico. A adoração centrada no
templo e a monarquia tinham uma ligação estreita. A história anterior de
Judá havia sido marcada por, pelo menos, quatro avivamentos sob o go-
verno dos reis Asa, Jóás, Ezequias e Josias, respectivamente. Até mesmo
governantes com menos zelo protegeram a santidade do templo e sua
prática religiosa. O apoio financeiro para a adoração apropriada vinha de
forma direta dos monarcas ou graças à insistência deles.
A crise teológica também compreendeu as Escrituras Hebraicas, o
Antigo Testamento (ou seja, as partes escritas na época). Seu conteúdo e
uso estavam intimamente ligados à nação, terra, situação política, história
e cultura dos hebreus. Qual deveria ser o lugar da Escritura após a derrota
nas mãos dos babilônios? E como ela deveria ser usada e interpretada nessa
situação bastante alterada, bem diferente da pressuposta pelos escritores
bíblicos? À medida que o tempo passava, surgiu a questão da tradução.
O livro sagrado de Deus podería ser vertido para uma língua profana? Se
não, como aqueles judeus que não sabiam hebraico conseguiríam entender
e seguir a Escritura?3
Parecia que muitos dos sobreviventes hebreus acreditavam estar diante
de um silêncio profético. Nos tempos passados, os profetas junto com o
sacerdócio (ou no lugar dele) proviam a comunicação e orientação divinas.
Diz Amós 3.7: “Certamente o S e n h o r , o Soberano, não faz coisa alguma
sem revelar o seu plano aos seus servos, os profetas.” O mesmo sentimento
percorre toda a literatura do Antigo Testamento ligada ao reino dividido.
Contudo, várias declarações tanto no Antigo Testamento canônico como
nos livros apócrifos admitem que o exílio e o período pós-exílico foram
tempos sem profetas (embora Ageu, Zacarias e Malaquias, todos da pri­

' Observe-se que até hoje uma das grandes religiões do mundo, o islamismo, não
reconhece oficialmente nenhuma tradução de seu livro sagrado, o A lc o rã o .
116

meira parte do período pós-exílico, como também indivíduos selecionados


mais tarde, tenham sido reconhecidos como autênticos profetas). Observe
as seguintes suposições do silêncio profético:
Já não vemos sinais miraculosos; não há mais profetas, e nenhum de nós
sabe até quando isso continuará (SI 74.9).

O altar onde eram queimados os sacrifícios tinha sido profanado; então


eles [Judas Macabeus e seus seguidores] discutiram o que deveríam fazer
com ele. Tiveram a boa ideia de desmontá-lo, a fim de que não ficasse
ali para envergonhá-los, pois os pagãos o tinha profanado. Portanto,
desmontaram o altar e puseram as pedras num lugar próprio, no monte
do Templo, onde ficariam guardadas até que aparecesse um profeta que
dissesse o que deviam fazer com elas (1 Macabeus 4.44-46, NTLH-P).

... os judeus e seus sacerdotes resolvem que Simão e os seus descendentes


serão o seu chefe e G rande Sacerdote para sempre, até que apareça um
verdadeiro profeta. Simão será o chefe militar e será responsável pelo
Templo (1 Macabeus 14.41,42,7, NTLH-P).

O silêncio profético não podería ter acontecido em pior hora, um


tempo em que os judeus mais precisavam da mensagem e direção dc
Deus. Vários avanços do período intertestamentário, como a lei oral e o
apocaliptismo, parecem ter sido tentativas de proteger a direção divina ou
a interpretação fidedigna das Escrituras quando nada parecia disponível.
Em suma, a derrota e o exílio confrontavam os sobreviventes hebreus
com a perda de suas principais instituições: nacional e religiosa. Eles es-
tavam sem o centro unificador de influências. Eram forçados a repensar
a natureza de Deus, a relação dele com o povo e a viabilidade da religião
do Antigo Testamento. Foram colocados em contato próximo com outras
culturas, e seu estilo de vida tradicional tornou-se difícil ou impossível. De
forma diferente, eles confrontavam a questão da relação entre religião e
cultura. Todas as áreas da raça hebraica e seus sistemas políticos e religiosos
deparavam-se com uma constante ameaça à sobrevivência.

A CRISE DO SÉCULO IV

Helenismo
As conquistas de Alexandre, o Grande, mudaram o mundo; a comu-
nidade judaica não foi exceção. A parte mais ampla dessa mudança não foi
117

política, mas cultural. Intencionalmente, Alexandre começou a propagar a


cultura grega. Seu exército era acompanhado por urbanistas e arquitetos,
agentes literários e filósofos, biólogos e botânicos, músicos e atores, e
outros agentes culturais. A infusão da cultura helenística no m undo mais
amplo foi seu maior legado. A dominação política helenística perdurou
até as conquistas romanas absorverem os últimos reinos helenísticos (c.
30 a.C.). A cultura helenística foi um fator importante no judaísmo por
quase 360 anos, e sua influência continua até hoje.
O que significa “cultura”? E a maneira de pensar e o estilo de vida
que um grupo de pessoas procura passar de geração a geração. As carac-
terísticas externas da cultura incluem a forma de governo, o planejamento
urbano e a arquitetura, a moda, o entretenimento e a linguagem. Mais sutis,
e ainda mais importantes, são as características culturais que envolvem
prioridades e valores, formas de pensar e solução de problemas, sistemas
filosóficos, religião e normas de comportamento. Mudanças relativamente
pequenas podem desempenhar um impacto maior sobre a cultura (observe
o efeito da televisão nas culturas modernas).
Alexandre acreditava estar propagando a cultura grega do período
clássico de Homero, Heródoto, Péricles, Sócrates, Platão e Aristóteles,
que havia sido seu mestre. A cultura helenística emergente de suas con-
quistas, no entanto, era diferente. Absorvendo parte das culturas com as
quais se deparava, o helenismo foi simplificado e adaptado por pessoas
que, embora não fossem nativas, compreendiam seu valor. Um exemplo
é a simplificação do grego clássico para o grego (comum) coiné, usado
de forma ampla no Ocidente até por volta de 330 d.C.; na verdade, é a
linguagem de registro do Novo Testamento.
Descrever características distintivas de qualquer cultura é difícil. O
helenismo não é exceção, mas devemos fazer uma tentativa. Nós nos
concentraremos em três áreas: 1) governo, 2) vida dos cidadãos e 3) es-
pírito grego.
Primeiro, falemos sobre o governo. Não havia modelo uniforme de gover-
no grego ou helenístico. A Grécia antiga era dividida em cidades-estados; isso
constituía o ponto forte e também seu ponto fraco. Cada cidade-estado
(polis) era governada por um rei e um tipo de assembléia ou concilio (boulê).
Os pontos fortes relativos do rei c ao concilio variavam. Normalmente
o rei detinha poder absoluto. As estruturas da administração, por fim, se
desenvolveram, em especial enquanto a cidade-estado obtinha controle
118

sobre áreas mais amplas ou, como acontecia no governo de Alexandre,


se transformava em império. O s oficiais e os membros da corte mais pró-
ximos do rei eram chamados seus “amigos”. Era normal chamar stratègoi
aos principais oficiais de fora da corte, provavelmente eles cumpriam
responsabilidades civis e militares. Outros servos civis eram acrescentados
quando necessário. Os reis provinham da família real, que assumia uma
origem distinta, muitas vezes divina. O concilio era formado por todos os
cidadãos ou representantes eleitos por eles. A propagação do helenismo,
depois da conquista de Alexandre, modificou o sistema governamental
básico, mas a estrutura essencial permaneceu. Algumas formas helenísticas
sobreviveram até mesmo no Império Romano, em especial no Oriente.
O helenismo procurava dar aos cidadãos todo o necessário para a
boa vida; em essência, era uma civilização urbana em que as instituições
privilegiavam um grupo. N ão causa admiração que, ao longo de sua his-
tória, diferenças sociais e econômicas levassem a constantes tensões e
revoltas ocasionais.
O s cidadãos eram gregos nativos, incluindo-se imigrantes da Grécia,
e pessoas das classes altas de áreas não gregas que aceitavam a cultura
helenística. Entre esse grupo estavam os membros mais privilegiados da
sociedade: o rei, sua família e “amigos”. Também considerados cidadãos
eram os chefes abastados dos administradores e, pelo menos, parte das
classes de comerciantes. N ão sendo cidadã, a maioria das pessoas, portanto,
estava excluída dos principais benefícios da civilização helenística. Elas
formavam as classes trabalhadoras, incluindo artífices, artesãos, fazendeiros
do campo, funcionários do sistema burocrático, diaristas, servos, escravos
(aos quais Aristóteles chamou ferramentas humanas) e assim por diante. A
posição social das mulheres era determinada pelo pai ou marido. Embora
algumas detivessem posições importantes, poucas profissões estavam
disponíveis para a maioria das mulheres. Seu acesso à educação e à vida
social era limitado; elas possuíam poucos direitos legais e se ocupavam
principalmente com os deveres domésticos e se dedicavam ao lar.
As cidades gregas eram o foco da vida política, social e econômica.
Elas se conformavam a um plano prescrito. N o centro estava a ágora
(mercado), o local de atividades governamentais, artísticas, religiosas e co-
merciais; era importante também como lugar para a troca de idéias. Vários
tipos de prédios agrupavam-se em torno da ágora ou estavam próximos a
ela. Entre eles estavam teatros, templos, ginásios, estádios e hipódromos
119
para o cultivo do corpo, da mente e do espírito. Todos exibiam estilos
arquitetônicos helenisticos.
O ginásio era de especial importância; na verdade, era uma necessidade
na cidade helenística. Tratava-se do centro da vida comunitária, dos ne-
gócios e do aprendizado, como também o local para exercícios e banhos.
Daí a importância da construção de um ginásio em Jerusalém nos poucos
dias antes da revolta dos macabeus (IMacabeus 1.14; 2Macabeus 4.12;
4Macabeus 4.9). O diretor ou dirigente do ginásio (gymnasiarchos) recebia
muitos privilégios.
A importância da educação era muito grande. A maior parte das es-
colas era particular; algumas eram mantidas por governantes ou patronos
abastados. Havia vários níveis de treinamento no ginásio — formal, para
os cidadãos jovens, e informal, para os adultos do sexo masculino. O mais
importante era o treinamento do efebo (jovem de 18 anos que acabara de
se tornar cidadão). Eram dadas algumas instruções para as moças também.
A lista dos assuntos a serem dominados incluía “leitura, escrita, recitação,
aritmética, pintura, tocar lira e cantar ao som da lira, comédia, tragédia,
escrever versos e canções, e conhecimentos gerais, além de corrida, luta,
boxe e, em alguns casos, exercícios militares como arco e flecha” .4
O propósito da educação clássica era capacitar o cidadão para atuar
bem na política ou nas cortes de justiça. Esse objetivo diminuiu na era
helenística. Parece que nos tempos do Novo Testamento o objetivo passou
a ser preparar o estudante para causar uma boa impressão ao fazer um
discurso polido. A retórica ainda era o centro do currículo. Infelizmente, o
dito clássico “falar bem é sinal de pensar bem”, foi esquecido; e a educação
estava mais preocupada com os aspectos técnicos e exteriores da comu-
nicação. Os helenistas continuaram a produzir literatura, historiografia,
arte, ciência, filosofia e assim por diante, mas se acredita normalmente
sem a criatividade e a profundeza do período clássico.
O espírito grego, que não de m odo necessário dependia da presença
da cidade helenística, era instigado pela busca de princípios de harmonia,
virtude, sabedoria, coragem, temperança, resistência, prudência e justiça.
Acreditava-se que esses princípios podiam ser descobertos pela mente
humana nas forças impessoais no Universo. A filosofia da era helenística

4 Arnold Η. M. Jones, The Greek CityfromAlexander ίοJustinian. Oxford: Clarendon,


1940, p. 222-3.
120

normalmente considerava a vida dominada pelo destino e buscava signi-


ficado na conformidade e na rejeição da dor e da infelicidade.
Duas escolas filosóficas helenísticas são mencionadas em Atos 17.18,
os epicuristas e estoicos. Epicuro (341-270 a.C.) não acreditava no ser
sobrenatural ou na existência humana futura. Como consequência, ele
procurava obter a paz de espírito e da alma imperturbável com a liber-
dade e o prazer no presente. Para Epicuro, o prazer significava amizade,
serenidade mental e a ausência de medo e dor. Seus seguidores definiram
o prazer em termos mais materiais e sensuais. Parece que o estoicismo foi
a filosofia predominante do mundo helenístico. Foi fundado por Zenão
(c. 335-265 a.C.), um fenício, cuja visão se resumia a “viver de acordo
com a natureza”. Ele acreditava que o mundo natural consiste em duas
formas: 1) o exterior e visível e 2) o sopro ou espírito {logos) que permeia
a realidade. Tudo passou a existir e encontra significado por meio do logos,
que envolve a razão, o princípio universal ativo. O s estoicos acreditavam
no caráter cíclico da ordem natural. Felicidade c virtude eram encontradas
na vida em harmonia com essa ordem, na submissão ao logos.
A religião da era helenística era uma mistura do culto grego clássico às
divindades olímpicas, formas religiosas mais novas, vindas principalmente
do Oriente, astrologia e magia. A religião clássica mais antiga não estava
morta c, na verdade, foi adotada pelos conquistadores romanos, que deram
nomes ladnos às deidades gregas e adaptaram-nas a seu próprio culto. No
entanto, a religião tradicional exercia pouco impacto sobre o povo, exceto
para fins cerimoniais. Havia m edo do invisível, do destino (“as fundas e
flechas do cruel destino”), das inseguranças indescritíveis da vida e da
morte. Além disso, parecia existir o sentimento predominante de solidão
entre as massas e a crescente busca pelo verdadeiro companheirismo ou
contato íntimo com a deidades e com outros seres humanos, pela felici-
dade no presente e pela segurança após a morte. Surgiram vários cultos,
incluindo-se religiões de mistério, alegando oferecer diversos tipos de
ajuda, salvadores, relacionamentos com outros humanos e com deuses.
Isso se mostrou um ambiente fértil para o aumento do culto ao imperador
no século I.
Associavam-se de imediato templos e estruturas similares com a
religião. N o mundo helenístico, teatros, ginásios (incluindo banhos e pa-
lestras sobre exercícios e lutas), estádios (para competições de corrida e
outras compeüções atléticas) e hipódromos (onde se corriam com bigas)
121

tinham funções religiosas também. Mesmo os jogos eram mais religiosos


que esportivos. O cultivo da mente e do corpo fazia parte da cultura geral
e também da cerimônia religiosa.
A civilização helenística e os judeus
Será útil neste m om ento tentarmos fazer uma breve comparação
do helenismo com a cultura semita tradicional dos hebreusú Em termos
linguísticos, o hebreu cultural falava hebraico ou aramaico, enquanto o
helenista usava o idioma grego. A economia e o ambiente semitas eram,
em essência, rurais e agrícolas, enquanto os gregos eram urbanos. A vi-
são religiosa dos hebreus era monoteísta, ética e prática; a dos helenistas
era politeísta ou panteísta, metafísica e especulativa. A religião hebraica
enfatizava o culto a Iavé e a relação humana com ele; a religião helenística
era pagã e secular e se concentrava no ser e no corpo humano. A visão
semita era propensa ao particularism() e isolacionismo; a helenística era
universal e sincretista. A semita dava ênfase à comunidade; a helenística,
ao indivíduo. O conflito entre ambas era inevitável.
O contato inicial dos judeus com a cultura grega e helenística foi be-
nigno. Após a conquista de Alexandria, os judeus passaram a ter contato
com o helenismo por meio de comerciantes e militares que vieram para
suas áreas. Quando viajavam, os judeus viam cidades, procedimentos
administrativos e o estilo de vida helenísticos.
Sob o governo dos sucessores de Alexandre, o Grande, a exposição ao
helenismo aumentou. Uma vez que parte do Império Ptolemaico estava
centralizado no Egito, os judeus foram forçados a lidar com a estrutura
governamental helenística e, por pelo menos razões pragmáticas, funcio-
nar de acordo com a estrutura helenística. A Sepluagmla, a tradução grega
das Escrituras Hebraicas, originou-se nesse período. N a terra natal dos
judeus, grande parte da zona rural estava helenizada por completo. Isso
é bem atestado pelos papiros de Zenão. Jerusalém, a capital, era no início

‫ ’־‬Sobre o tópico geral do helenismo e judaísmo, veja Martin Hengel, Judaism and
Hellenism‫׳‬. Studies in Their Encounter in Palestine during the Early Hellenistic Pe-
riod, trad. John Bowden, 2 vols. (Philadelphia: Fortress, 1974); Victor Tcherikover,
“Prolegomena”, em Corpus Papjrorum Judaicarum, Victor Tcherikover; Alexander
Fuks (orgs.), 3 vols. (Cambridge, Mass.: Harvard University‫ ׳‬Press, 1957-64), voL 1,
p. 1-111; Victor Tcherikover, Hellenistic Civilisation andtheJews, trad. S. Applebaum
(Philadelphia: Magnes, 1961); Shemaryahu Talmon (org!),Jewish Civilisation in the
Hellenistic-Roman Period (Philadelphia: Trinity, 1991).
122

protegida por sua localização remota na colina e pela liderança conserva-


dora centralizada no templo.
A princípio, a vida sob o domínio dos selêucidas suscitou o mesmo
nível de contato com o helenismo que o sob o domínio dos ptolomeus.
Isso, sem dúvida, mudou quando Antíoco IV (Epifânio) (175-163) iniciou
uma campanha resoluta de helenizar totalmente a Judeia. Estudiosos con-
temporâneos discutem as razões das ações de Antíoco.6*Provavelmente elas
se derivaram da combinação de considerações políticas, sociais e religiosas.
Além disso, a atividade judaica a favor do helenismo já em Jerusalém não
deve ser ignorada. Em todo o caso, as ameaças latentes apresentadas pelo
helenismo aos judeus irromperam como desafio aberto e contundente à
existência da cultura tradicional dos judeus, em especial sua religião,
A revolta dos macabeus não estava voltada em primeiro lugar contra o
helenismo em geral, mas contra a adoração pagã. Como observamos antes,
já havia uma considerável aceitação do helenismo e muitos defensores
entre os judeus, incluindo-se alguns na terra de Israel. A revolta irrom-
peu quando Antíoco tentou impor a adoração pagã. Sua ação então pôs
em dúvida outras instituições e práticas helenísticas. O fato de a revolta
não se dirigir ao helenismo em geral também é evidenciado pelo fato de
sua permanência como característica duradoura no judaísmo posterior.
A dinastia dos hasmoneus, em especial os últimos governantes, contava
com simpatizantes ou até defensores categóricos. A evidência conclusiva
da presença da cultura helenística na terra de Israel é forte, em especial,
ao longo da planície costeira e na Galileia. Como consequência, a área
é chamada “Galileia dos gentios” (Mt 4.15). Herodes, o Grande, recons-
truiu Jerusalém, incluindo-se o templo, segundo, o modelo helenístico.
Uma antiga discussão sobre as línguas da terra de Israel na época de Jesus
encerra-se com rapidez quando se reconhece a presença grega muito forte.8
É impressionante descobrir que 40% das inscrições nas lápides anteriores
ao ano 70 d.C. em Jerusalém encontram-se em grego.9

6 Cf. Lester L. Judaismfrom Cyrusίο Hadrian, 2 vols. (Minneapolis: Augsburg


Fortress, 1991-92), vol. 1, p. 247-56.
Saul Liebermann, HellenisminJewish Palestine, 2. ed. (New York: Jewish Theological
Seminary o f America, 1962).
s Saul Liebermann, Greek inJewish Palestine (New York: Jewish Theological Semi-
nary of America, 1942); Joseph A. Fitzmver, “Did Jesus Speak Greek?”, Biblical
Archaeology Review 18.5 (Scptember-October 1992), p. 46-57.
9 Pieter W van der Horst, “Jewish Funerary Inscriptions”, BiblicalArchaeology Review
18.5 (September-October de 1992), p. 46-57.
123

Um forte grupo helenístico foi ativo na terra de Israel até depois da


segunda revolta (135 d.C.). Até mesmo o próprio Bar-Kochba escrevia
em grego! Palavras gregas continuam a aparecer nos escritos rabínicos em
hebraico/aramaico dos séculos III e IV d.C.
Explicar apenas por que e como o helenismo no século IV a.C. pro-
vocou uma crise para os judeus, igualmente tão séria quanto a derrota
inicial e destruição nas mãos da Babilônia no século VI, é tão complexo
quanto definir o helenismo com precisão. E difícil esclarecer em especial a
natureza exata da ameaça mais ampla do helenismo, porque, após a revolta
dos macabeus, havia acontecido tudo com a ameaça do paganismo, menos
seu desaparecimento. N o entanto, embora um judeu devoto como Fílon
pudesse aceitar quase tudo, menos os aspectos religiosos do helenismo,
outros textos intertestamentários, como IMacabeus, o livro dos Jubileus
e Eclesiástico, para citar alguns, mostram uma forte e decidida oposição.1"
E essencial lembrar que havia graus e vários tipos de reação contra o
helenismo, como ocorria entre os que o aceitavam. N o âmago da reação
contra o helenismo estavam fortes visões da eleição de Israel por Deus e
sua consequente relação com ele e outros povos. Muitos exponentes da
tradicional cultura semita hebraica adotavam a visão que podemos cha-
mar particularismo. Nesse contexto, “particularismo” não só significa a
crença de que só os judeus eram o povo escolhido de Deus, mas também
de que essa posição exigia, por necessidade, um estilo específico de vida.
Qualquer desvio dele era visto como um perigo para o relacionamento de
Israel com Deus e para a totalidade da nação e da raça. O desvio podería
baixar as barreiras e levar à amálgama sincretista do judaísmo com uma
massa amorfa que o deixaria difícil de distinguir das outras religiões.
Três pontos devem ser considerados para a compreensão do zelo dos
judeus oponentes ao helenismo. 1) A lei do Antigo Testamento descrevia
a cultura e a conduta como as consequências visíveis do relacionamento
com Deus na aliança. 2) Os profetas, de Moisés em diante, advertiam
repetidas vezes que o bem-estar nacional e individual dependia da fideli-
dade e obediência a Deus. 3) Eram muitos os exemplos de raças, nações,
1(1Elias Bickerman, From B%ra to the Last of theMaccabees·. Foundations o f Post-Biblical
Judaism (New York: Schocken, 1962), p. 59-64, por exemplo, vê a oposição ao
helenismo no livro dos Jubileus, mas uma influência positiva do helenismo na
tradição de sabedoria do Eclesiástico; H engel,Judaism and Hellenism, p. 131-53, vê
um forte sentimento contrário ao helenismo em outro documento da sabedoria,
Eclesiástico.
124

culturas e religiões que perdiam a identidade nos caldeirões aquecidos


pelas superpotências da época. A infidelidade a Deus e o contato com
influências pagas eram reconhecidos em grande escala como causas da
derrota e humilhação da nação; quem sustentava a cultura tradicional
contava com um argumento convincente a seu favor.
Já os judeus defensores do helenismo podiam apontar para relações
amistosas e solidárias entre helenistas e judeus. Os governantes, de Alexan-
dre até Antíoco Epifânio, permitiram aos judeus a prática livre de seu estilo
de vida. Os apoiadores do helenismo talvez tenham apontado também para
os benefícios recebidos pelo judaísmo como parte do mundo helenístico.
Pode-se dizer que, dadas as vantagens da participação na nova ordem e
cultura, para alguns judeus as ameaças do helenismo eram mínimas.
Edwyn R. Bevan, estudioso do século XX, entende parte do dilema
que alguns judeus da Era Intertestamentária enfrentavam ao confrontar
o helenismo:

Imagine o que deve ter sido para um jovem judeu, cuja mente estava
repleta desde a infância com as exortações solenes da Lei, as ricas ima-
gens dos profetas, os clamores dos salmistas ao D eus vivo, quando, pela
primeira vez, ouviu serem lidas, ou ele mesmo leu, os discursos de Platão,
muito diferentes de tudo o que lia em seus livros, e, ainda assim, impres-
sionantes na profunda paixão p o r justiça e temperança, na fé de que, por
trás do movimento do mundo, havia um Poder que se importava com
o bem. O u talvez ele tivesse conhecido algum estoico grego vivo cuja
filosofia de fato governava sua vida — alguém que fizesse o indivíduo
sentir pelo toque de sua personalidade, p or algum estranho poder em
seus olhos, que nada — exceto a bondade e a liberdade interior — era
digno de desejo. Aqui, sem dúvida, o jovem judeu, leal a seu Deus, en-
contraria algo comparável, e que o atraísse pela semelhança a seus ideais
de justiça e, contudo, algo, em outros sentidos, diferente, dissonante,
gentio. Talvez ele tenha ficado perplexo. Era impossível dar as costas a
tudo isso, como se daria em relação às superstições fantásticas do Egito
ou de Canaã. Quase não se podia banir o helenismo desse tipo como
algo mau. E, contudo, era seguro permiti-lo entrar, com seu sutil poder
dominador, na mente que deveria ser consagrada à Lei?"

" “Hellenistic Judaism”, em The Legacy· of Israel, Edwyn R. Bevan; Charles Singer
(orgs.). Oxford: Clarendon, 1927, p. 40-1.
125

Ocorreram duas crises, uma no século VI, outra no século IV. A


primeira foi, em essência, militar e política; a segunda, cultural e social.
Ambas, no entanto, ameaçavam as características singulares e a exis-
tência da identidade hebraica e, principalmente, sua religião. Como os
hebreus responderam a essas crises? A resposta é: “D e diversas formas”.
Essa diversidade de respostas comprovou uma influência dominante na
formação do judaísmo intertestamentário. Determ inou que o judaísmo
intertestamentário seria, na verdade, o que um escritor moderno chamou
“multiforme” — um grupo, uma comunidade, uma religião caracterizada
por muita diversidade.12Neste momento, vamos considerar algumas das
diferentes maneiras pelas quais os judeus enfrentaram a nova situação
provocada pelas duas crises e se ajustaram a ela.

12Robert A. Kraft, “The Multiform Jewish Heritage o f Early Christianity”, em Chris-


lianity,Judaism, and Other Greco-Roman Cults·. Studies for Morton Smith at Sixty,Jacob
Ncusner (org.) (Leiden: Brill, 1975), p. 174-99; v. tb. Gary G. Porton, “Diversity in
Postbiblical Judaism”, em EarlyJudaism and Its Modern Interpreters, Robert A. Kraft;
George W. E. Nickelsburg (orgs.) (Atlanta: Scholars, 1986), p. 57-80.
7
A resposta geral do judaísmo
intertestamentário às crises

Mudanças de ênfase
1. D o culto à lei moral
2. Ortopraxia, em vez de ortodoxia
3. Particularismo, exclusivismo e superioridade
4. A ênfase renovada nas características distintivas religiosas e culturais
Passos para aumentar o impacto das Escrituras
1. O desenvolvimento de métodos interpretativos
2. Tradução
3. Identificação do cânon
Desenvolvimento da sinagoga
Reações de grupos específicos

O judaísmo intertestamentário de modo notável m udou o pensamento


e a cultura hebraica clássica antes do exílio. Como dissemos, uma caracte-
rística importante dessa diferença era a diversidade no judaísmo intertes-
tamentário. O que podería ter causado essa modificação? As crises duais
de 586 e do século IV a.C. deixaram a raça, cultura e religião hebraica em
perigo de extinção. Ameaçaram a essência do significado de ser hebreu ou
judeu. Sugerimos que a diversidade de respostas à situação pós-exílica e,
mais tarde, ao helenismo contribuiu muito para essa variedade emergente
tão característica do judaísmo.
As respostas não foram de m odo necessário calculadas. Muito prova-
velmente, foram tentativas desenvolvidas aos poucos por grupos distintos
e indivíduos com formação e personalidade diferentes para enfrentar os
128

problemas da época. Além disso, é concebível que uma única pessoa ou


grupo possa muito bem ter respondido de diversas maneiras.
Nossa discussão sobre a readaptação dos judeus diante da crise se
concentrará nas principais reações. Primeiro, notaremos algumas respostas
gerais à totalidade do povo (cap. 7). Em seguida, examinaremos algumas
respostas que parecem ter se limitado a partes distintas da população
(caps. 8— 11).

M udanças de ênfase

O monoteísmo, a aliança e a lei constituem os elementos essenciais da


religião hebraica. Esses pilares teológicos não podem ser mudados, mas
podem ser reinterpretados e ajustados em situações novas. A mudança de
ênfase na forma como esses elementos essenciais da teologia, em especial a
lei, eram entendidos e aplicados consistiu em uma das formas importantes
de readaptação às crises que confrontavam o judaísmo intertestamentário.
Podemos identificar, pelo menos, quatro mudanças.
1. Do culto à lei moral
A prática religiosa de Israel apoiava-se em dois elementos funda-
mentais: 1) o templo e o culto cerimonial e 2) ética e princípios morais,
a aplicação das diretrizes de Deus para a vida diária. N o período mo-
nárquico, o templo e as cerimônias eram primordiais; as diretrizes da lei
para a conduta e a vida diária, a moralidade e a ética, eram muitas vezes
relegadas ao papel secundário. O culto no templo era apoiado pelas insti-
tuições do Estado, ou seja, a monarquia e o sacerdócio, que, por sua vez,
estavam centralizadas no templo e, pelo menos, dependiam em parte dele.
Ao mesmo tempo, a imoralidade, a injustiça e a negligência da lei eram
desmedidas na vida pessoal e coletiva.
Os profetas denunciavam as cerimônias e as formas vazias, pois não
havia equivalentes na prática ética. Prenunciavam a destruição do Estado
por conta das violações das diretrizes morais da lei tanto por indivíduos
como pela sociedade geral. Prova da contínua aceitação da aliança do Se-
nhor, afirmavam eles, estava na obediência fiel e na conformidade de toda
a vida às instruções dele na lei. N ão obedecer às instruções consistia no
sintoma de um problem a muito mais sério — a rejeição real do próprio
Deus. A despeito do apoio de Israel ao culto formal, Deus o repreendeu:
“ (Você] me deixou exausto com suas ofensas” (Is 43.24).
129

Nesse m om ento a nação estava perdida! Jerusalém havia caído! O


templo já não existia! O povo havia sido levado para o cativeiro! As
palavras dos profetas se confirmaram! Nesse m om ento era óbvio que o
Se n h o r , na verdade, se im porta mais com obediência, amor leal (hesed),
justiça, retidão e conhecimento dele e a caminhada humilde com ele que
com sacrifícios e holocaustos, festivais e assembléias solenes (Jr 7.21-23;
Os 6.6; Am 5.21-24; Mq 6.6-8).
Talvez de maneira imperceptível a princípio, houve uma mudança
de ênfase do templo e das cerimônias para os princípios morais e a ética.
Afinal, a negligência dessa parte da religião havia levado Israel a essas
situações difíceis. Uma vez que o templo não existia, só a parte moral e
ética da prática religiosa ainda era possível.
As implicações da mudança são evidentes. O foco na participação do
ritual e da cerimônia deu lugar ao estudo da lei e à sua aplicação na vida
diária. A observância cerimonial exigia um templo central, e os judeus reli-
giosos nesse mom ento se reuniam em lugares designados para o estudo, a
discussão e a administração da justiça (por fim, sinagogas). A liderança do
povo passou da tribo de sacerdotes profissionais para mestres-estudiosos
leigos (por fim, escribas e rabinos) que conheciam e podiam aplicar os
preceitos; portanto, a antiga aristocracia de nascença precisou competir
com a elite do saber.
A mudança de ênfase não significou a eliminação do elemento ce-
rimonial fundamental da religião hebraica. Na verdade, a lei havia orde-
nado a instituição do ponto central de adoração e dado instruções para
as cerimônias. Por isso, a nação desejava a reconstrução do templo e o
restabelecimento do culto tradicional. Os estudantes da lei meditavam
em suas instruções e exigiam sua obediência explícita. Mas a mudança
foi feita; a estrutura religiosa nesse m om ento dependia, sobretudo, do
elemento moral-ético.
2. Ortopraxia, em vez de ortodoxia
Enquanto o cristianismo muitas vezes enfatiza a importância da or-
todoxia (sã doutrina ou crença), o judaísmo está mais preocupado com
a ortopraxia (comportamento, ações e prática corretos e apropriados).
Mesmo a discussão sobre se a crença ou conduta correta deveria ser prio-
ritária é mais cristã que judaica. N o período intertestamentário, a ênfase
judaica na ortopraxia solidificou-se.
130

N o entanto, o pensam ento hebraico não está desprovido de teologia;


longe disso! Suas suposições básicas sobre o único Deus, o Criador do
Universo, que entrou em uma relação com Abraão, Isaque, Jacó e os des-
cendentes deles com base em uma aliança e que os libertou da escravidão
no Egito, são eminentemente teológicas. A teologia inerente aos três pila-
res — monoteísmo, aliança e a lei — é inquestionável. Contudo, a mente
hebraica sempre enfatizou a ortopraxia; no período intertestamentário,
isso ocorria ainda mais. Era inevitável com o foco cada vez maior no sig-
nificado da lei para a vida diária, a primeira mudança de ênfase.
As possibilidades de variedade no compromisso comunitário com a
ortopraxia são quase ilimitadas. O term o geral usado com mais frequência
para descrever o resultado é “legalismo” . O legalismo propriamente dito
é uma categoria ampla, uma form a geral de pensamento, definida em
sentido popular como “estrita conformidade literal a um código legal ou
religioso”. Um estudo do N ovo Testamento amplamente usado define-o
como “conceito da religião que faz a religião consistir em conformidade
com a lei e promete a graça divina só aos praticantes da lei”.1 Em bora
o termo não seja encontrado na Bíblia, o conceito básico de legalismo
parece estar presente, em especial no N ovo Testamento. Nesse contexto,
0 legalismo parece assumir qualquer noção de merecer ou contribuir para
obter a salvação por meio de recursos humanos, e, em particular, pela
observância de um conjunto específico de leis ou tradições.
Há uma antiga controvérsia sobre o lugar da lei na sociedade judaica e,
em especial, em se tratando de saber se o judaísmo é uma religião de salva-
ção por meio da observância da lei. A questão foi levantada mais uma vez
na última parte do século XX pelos textos de Ed Parish Sanders.2Ele insiste
que o judaísmo, em especial o da Era Intertestamentária, é, em essência,
uma religião de nomismo pactuai, que a observância da lei é a resposta
à oferta graciosa da aliança feita por Deus. E suficiente agora notarmos
que o período intertestamentário testemunhou a ênfase cada vez maior na
importância da ortopraxia, da conduta correta e das ações e a percepção
consciente delas. O resultado foi duplo: 1) à parte da aceitação geral dos
três pilares teológicos, havia espaço para uma grande variedade de crenças
desde que o indivíduo vivesse de acordo com certo entendimento da lei e

1 Bruce M. Metzger, The New Testament Its Background, Growth, and Content. New
York: Abingdon, 1965, p. 41.
2 V. esp. Paul and Palestinian Judaism (Philadelphia: Fortress, 1977).
131

2) havia, em grande parte dos segmentos do judaísmo intertestamentário,


um ethos legalista. Se a maioria dos judeus desse período acreditava ou não
que, no final, a salvação deveria ser obtida pela observância da lei, a lei,
na verdade, permeava o pensamento e a visão deles.
3. Particularism(), exclusivismo e superioridade
Observamos antes que, em reação ao helenismo, parece ter havido
um desenvolvimento do particularismo. O exclusivismo e a mentalidade
protecionista se desenvolveram com ele. Essas não eram de modo ne-
cessário novas idéias ou atitudes; ao contrário, houve um impacto cada
vez maior sobre os judeus da Era do Novo Testamento, em especial os
residentes na terra de Israel.
O particularismo, o exclusivismo e a superioridade eram extensões
injustificadas da convicção judaica de que Deus escolheu Abraão e seus
descendentes de forma especial. Na verdade, Deuteronômio 7.6 afirma
que Israel é um povo santo, que Deus “os escolheu dentre todos os povos
da face da terra para ser o seu povo, o seu tesouro pessoal” . Contudo, a
passagem que vem logo em seguida adverte que a seleção de Deus estava
baseada apenas em seu amor, não na superioridade numérica de Israel.
A singularidade da relação de Israel com o Se n h o r é, sem dúvida, in-
discutível. Até Paulo reconheceu as vantagens especiais de Israel (Rm 3.1,2;
9.4,5). Em seguida, também, houve o paganismo óbvio de outras nações
e seu estilo de vida, claramente contrários ao que Israel entendia ser a
vontade de Deus revelada na lei. Λ hostilidade dessas outras nações para
com o povo de Deus sugeria, e muitas vezes foi interpretada como, ata-
ques do mal contra o bem (v., p. ex., a caracterização de Habacuque sobre
a incursão babilônica [1.13]). A experiência judaica no período intertes-
tamentário confirmou a noção da posição especial de Israel e fertilizou
idéias e convicções reacionárias associadas a ela.
A posição particular de Israel exigia um modo de vida específico. Os
profetas prenunciaram que, se eles não vivessem desse modo, isso levaria
ao cativeiro e exílio. As exigências do estilo de vida eram estritas e radi-
calmente diferentes das de outros grupos nacionais; as prescrições para
a pureza cerimonial eram especificamente difíceis de manter enquanto o
judeu vivesse com as pessoas de outras nações. Não causa admiração que
o isolacionismo, como consequência natural do particularismo, tenha se
tornado uma forte tentação e, ao mesmo tempo, a prática real de muitos.
132

Contudo, podemos fazer referencia a outro desenvolvimento associa-


do a essa mudança como noção do privilégio judaico; ela vai além do par-
ticularismo, exclusivismo, superioridade e isolacionismo para incluir uma
atitude protecionista, uma determinação de defender a posição especial de
Israel diante de Iavé. Podia se manifestar com reações violentas, até mesmo
à mera sugestão de que Deus poderia demonstrar favor a um gentio, em
especial se esse favor fosse estendido a um gentio, e não a um hebreu.
Tanto Jesus como Paulo provocaram a ira dos judeus ao sugerir que, na
verdade, Deus se interessava pelos gentios (Lc 4.24-29; At 22.21,22). O
caso de Jesus foi, sobretudo, insuportável para seus conterrâneos, porque
ele observou que Deus, por meio de Elias, alimentou uma viúva de Sidom
e curou um leproso sírio, e ignorava os necessitados em Israel.
A mudança de ênfase esclareceu, afirmou e defendeu a posição e os
direitos de Israel diante de Deus. As atitudes resultantes explicam diversas
características e acontecimentos da história judaica intertestamentária
(como ações relativas aos gentios e ao tratamento deles). Os cristãos judeus
precisaram lidar com essa mentalidade enquanto o evangelho passava por
Jerusalém e pela Judeia e seguia para Samaria e os confins da terra (At 1.8).
4. A ênfase renovada nas características distintivas religiosas e culturais

A última mudança de ênfase s ser observada envolve uma nova função


para velhas práücas. A circuncisão, a observância do sábado e o cumpri-
mento das leis kasber com relação a alimentos puros e impuros faziam
parte da lei e da vida. N o período de readaptação, eles foram escolhidos.
A ênfase deles mantinha os judeus como povo separado depois que seu
governo c instituições centrais haviam sido abolidos e o povo, dispersa-
do pelo mundo. A circuncisão, que seria imediatamente evidente se um
judeu se juntasse a um ginásio (a palavra gregagymnos significa “nu”) era
uma ofensa para os helenistas, que adoravam o corpo humano natural.
Interromper o trabalho no sábado era algo desconhecido entre outras
culturas e considerado preguiça por muitos gentios. As leis alimentícias
judaicas e outros tabus facilmente identificavam quem o observava como
diferente de outros grupos.
Esses costumes religiosos, no início praticados para identificar a
raça e proteger a cultura, no final eram também como instrumentos de
exclusivismo e segregação. Mantinham os judeus praticantes distantes das
outras raças. Os mais zelosos viam os ataques contra seus costumes como
133

ameaças contra o privilégio judaico. O leitor do Novo Testamento pode


sendr a tensão crescente quando Jesus desconsiderou o entendimento das
leis do sábado na época (Mc 2.23— 3.6) e atacou as tradições sobre pureza
eimpureza (Mc 7.1-23). A rejeição da necessidade da circuncisão pela igreja
primitiva quase equivaleu à rejeição da herança judaica intertestamentária
(At 15; IC o 7.19; Cd 5.2).

Passos para a u m e n ta r o im pacto das Escrituras


As crises dos séculos VI e IV trouxeram implicações para as Escritu-
ras. Consideradas a Palavra de Deus, elas estavam envolvidas nas questões
mais amplas sobre sua existência, natureza e poder. Além disso, esta era
a principal questão enfrentada por todos os intérpretes da literatura es-
crita em uma época e lugar diferentes dos deles: Como os escritos de um
tempo, lugar e cultura podem se tornar compreensíveis e relevantes para
outro tempo, lugar e cultura? As respostas dadas pelo judaísmo intertes-
tamentário envolviam dois passos: desenvolver métodos interpretativos
(procedimentos hermenêuticos) e disponibilizar as Escrituras em outros
idiomas. O terceiro passo levantou a questão do cânon, ou seja: Quais
documentos deveríam ser reconhecidos como Escrituras Sagradas? Cada
um desses passos merece um estudo básico. Podemos oferecer aqui apenas
descrições breves.
1. O desenvolvimento de métodos interpretativos
As mudanças na situação cultural de Israel mesmo antes do exílio
foram drásticas. Em termos organizacionais, os hebreus deixaram de ser
uma tribo nômade em Canaã para ser um povo escravo no Egito, depois
uma nação errante no deserto, uma confederação de tribos unidas apenas
pelo uso de um santuário comum e pelo laço de sangue e, por fim, uma
monarquia unida e depois dividida — protagonista ocasional no cenário
internacional. Em termos econômicos, os hebreus eram pastores errantes,
lavradores e pequenos fabricantes e comerciantes. Em bora fossem, em
essência, um povo rural e de cidades pequenas, eles também tinham suas
cidades maiores com problemas concomitantes. Em termos religiosos,
Abraão e sua família eram, originariamente, pagãos (]s 24.2,14,15). Ele e
seus descendentes se tornaram monoteístas que adoravam, primeiro, em
vários lugares, depois em uma tenda portátil e, por fim, em um templo
centralizado. Eram muitas vezes tentados a adotar algumas práticas pagãs
134

ou até mesmo esquemas religiosos completos; de vez em quando, eles


sucumbiam à tentação. Sob essas condições foram escritas as primeiras
partes das Escrituras.
O período pós-exílico trouxe uma situação muito diferente. N o início,
a Judeia era uma pequena cidade-estado dentro do Império Persa. Grande
parte do povo era constituída de escravos que haviam voltado; a população
em geral se esforçava para sobreviver e reconstruir Jerusalém. Distinções
de classe e econômicas causavam dificuldades, como os encargos tribu-
tários (Ne 5.1-13). Com exceção de governadores e alguns aristocratas,
a situação socioeconômica em geral parece ter sido, em essência, rural,
agrícola e provinciana, com poucos fabricantes e comerciantes. Em geral,
as condições eram muito diferentes das supostas pela maioria dos escri-
tores do Antigo Testamento. Como consequência, para muitos judeus
intertestamentários, desconhecedores das circunstâncias pressupostas
pelos escritores, as Escrituras eram ilegíveis e inadequadas ou irrelevantes
no mundo muito diferente em que viviam. A essas questões os próprios
intérpretes intertestamentários se dirigem.
Os intérpretes intertestamentários estavam, sobretudo, interessados
em descobrir o significado do texto. Além disso, eles procuravam demons-
trar como a revelação divina na lei deveria ser aplicada às situações variá-
veis da vida. Também tentavam convencer seus seguidores a aceitar suas
interpretações como se fossem a vontade divina para a vida e a conduta.
Criaram uma série de métodos e procedimentos interpretativos. Alguns são
muito difíceis de definir; às vezes, as linhas de separação são pouco nítidas.
Alguns parecem quase absurdos para a mente ocidental moderna; outros
parecem um ponto de vista óbvio. Uma vez que sabemos mais sobre os
procedimentos interpretativos que, no final, se tornaram associados com
o judaísmo rabínico, iremos considerá-los primeiro.
Provavelmente a forma interpretativa mais antiga seja o targum (tradu-
ção, interpretação), que abordava problemas linguísticos e interpretativos
ao mesmo tempo. Escrito em aramaico, um targum é um comentário-
paráfrase contínuo sobre o texto hebraico. O texto de Neemias 8 dá um
exemplo da situação em que surgiram os targumim e seu uso. A reconstrução
do templo e os muros de Jerusalém estavam concluídos. N o momento,
era essencial que os habitantes da Judeia conhecessem e aplicassem a lei
na adoração e na vida. Em bora o hebraico ainda fosse a língua sagrada, o
aramaico era a língua comum. Esdras levantou-se para ler a lei de Moisés
135

em uma reunião em Jerusalém. Ao fazer isso, vários levitas se levantaram


com ele e “instruíram o povo na Lei, e todos permaneceram ali. Leram
o Livro da Lei de Deus, interpretando-o e explicando-o, a fim de que o
povo entendesse o que estava sendo lido” (Ne 8.7,8). A preocupação era
que houvesse conhecimento e entendimento. Ao que parece, Esdras leu
em hebraico enquanto seus companheiros fizeram a tradução e explicaram
o significado em aramaico.
Um exemplo de um targum específico será útil. O targum chamado
Pseudo-Jônatas é uma coletânea cuja data é bem posterior à do Novo
Testamento, “mas, uma vez que ele se baseia em uma tradição que remonta
a tempos pré-cristãos, inclui um material muito antigo”.34*É comum seu
registro sobre Gênesis 3.15:
Poreiinimizade entre vocêea mulher, entrea sua descendência e o descendente
dela; e acontecerá que, quando o descendente da mulher cumprir os
mandamentos da Lei, ele se voltará (contra você) e lhe ferirá na cabeça;
mas, se ele abandonar os mandamentos da Lei, você se voltará (contra
ele) e lhe ferirá no calcanhar. N o entanto, para ele haverá um remédio,
mas para você não haverá, e, no futuro, ele fará as pazes com [ou terá “a
cura para” ] o calcanhar nos dias do rei, Messias.‘1

Outra categoria de método interpretativo é encontrada no desenvolví-


mento do material que foi, mais tarde (c. 90-200 d.C.), coletado, editado e
adaptado na Mixnâ (mandamentos).‫ כ‬Sua natureza está refletida na Mixná
Avot 1.1, que menciona a necessidade de estabelecer “uma cerca em torno
da Lei”. Essa cerca (ou cercado), consiste em um conjunto de leis, costu-
mes e usos do Pentateuco, foi criada nos períodos pós-exílico e seguinte
e, originariamente, circulou sob forma oral. Constituía a chamada lei oral,
a tradição, considerada tão fidedigna quanto a lei escrita.6

' John W. Bowker, The Targums and RabbinicLiterature. New York: Cambridge Uni-
versin' Press, 1969, p. 26.
4 Ibid., p. 122.
‫ יי‬A Mixná é “a codificação autorizada da lei oral que, com base na lei escrita contida
no Pentateuco, surgiu entre o período do segundo templo até o fim do século IT da
era comum” (Moses Mielziner, Introduction to the Talmud, 5. ed. (New York: Block,
1968), p. 4. A Mixná, junto com sua Guemará (conclusão, final), comentários sobre
a Mixná e seus desenvolvimentos, compilados entre c. 200 e 500 d.C., constituem
o Talmude (estudo).
ή “A tradição é uma cerca em torno da Lei”, Mixná Avot 3.14.
136

Uma forma particular da tradição encontrada na M ixná é chamada


balacbá (andar aprumado, a forma correta) e lida quase de maneira exclusiva
com as leis do Pentateuco. Muitas vezes explica e interpreta por meio de
citações de idéias do passado. A balacbá também inclui o que parece para o
não judeu leis adicionais e secundárias que, se observadas, evitam a violação
da lei seja ao levantar uma cerca ou cercado em torno do mandamento
escrito. Essas interpretações e leis adicionais eram consideradas parte da
intenção divina originária.
Outra cerca, a hagadá (ensino), veio mais tarde. Está associada aos livros
bíblicos diferentes do Pentateuco. Transmite também a reformulação de
materiais bíblicos e inclui relatos, lendas e a história que oferece ilustrações
e aplicações de materiais legais e éticos.
Contudo, outra forma de interpretar é o Midrash (buscar, procurar,
examinar, investigar). Esta é a exposição bíblica e chega mais perto do que
os cristãos reconhecem como exegese ou comentário que as formas já
mencionadas. Há midrashim na forma de homílias ou sermões de sinagoga;
alguns estão incluídos em coletâneas rabínicas como a Mixná. A maioria
dos midrashim à nossa disposição hoje vem de coletâneas feitas bem depois
da Era do Novo Testamento. Com toda a probabilidade, no entanto, a
forma e parte do material dos midrashim antecedem o cristianismo.
O processo de interpretação era complexo. Envolvia o estudo minu-
cioso do texto, a consideração de discussões e aplicações da lei no passado,
as consultas entre estudiosos legais e mais. Além disso, havia diretrizes
claras, mas nem todas elas são totalmente compreendidas hoje. A litera-
tura rabínica contém, pelo menos, três listas de regras para interpretação,
middot — sete regras são atribuídas a Hillcl (30 a.C.-lO d.C.), treze ao
rabino Ismael (antes de 132 d.C.) e 32 ao rabino Eliezer (a geração após
a revolta de Bar-Kochba). Muito provavelmente, as regras não foram
criadas por esses homens, mas representam estágios do desenvolvimento
hermenêutico do judaísmo no período intertestamentário e depois dele.
As sete regras de Hillel servem como um bom exemplo das diretrizes
usadas para desenvolver a tradição em suas muitas formas. Pelo menos,
algumas delas eram seguidas no período intertestamentário; outras são
refletidas no Novo Testamento.
1. “Leves a pesadas” (Oal ivahomer)·. podem ser feitas inferências na
suposição de que tudo o que se aplica em uma situação menos
importante se aplica ainda mais cm um caso mais importante.
137

Jesus usa o princípio em Mateus 6.26: se Deus se preocupa com


as aves, ele se preocupa muito mais com as pessoas.
2. “Analogia verbal entre os versículos” (General·) shawatí)·. quando a
mesma palavra ou expressão é encontrada em duas passagens
distintas, as mesmas considerações se aplicam a ambos os casos;
o que se sabe sobre uma pode ser pressuposto para a outra.
Êxodo 22.7,8 trata de dinheiro ou bens deixados para serem guar-
dados, mas então são roubados. O guardião “terá que comparecer
perante os juizes” para se decidir se o ladrão é ele. O texto não diz
como se decidirá isso nem se o guardião deve fazer a restituição.
Os versículos 10 e 11 tratam de animais entregues para serem
guardados, mas morrem, são feridos ou levados. O guardião, mais
uma vez, terá de “comparecer perante os juizes”; se ele prestar
um juramento atestando inocência, o juramento deverá ser aceito
como prova de inocência e nenhuma restituição será feita. Por
analogia, o primeiro caso também deve ser resolvido por meio de
um juramento; ele deve ser aceito e nenhuma restituição é exigida.
Mateus 12.1-8 (Mc 2.23-28; Lc 6.1-5) diz que Jesus justificou
a violação da lei do sábado com base na analogia de Davi, que
quebrou a lei para suprir a mesma necessidade humana: a fome.
3. “Construindo uma família a partir de um só texto” (Binyan ab
mikathub ehad)\ uma palavra, expressão ou lei encontrada em um
texto pertence a todos os textos da mesma família temática (isto
inclui generalizar de um texto aos outros).
Deuteronômio 17.2-7 começa: “Se um homem ou uma mulher
que [...] for encontrado...”, e continua a detalhar como se deve pro-
ceder com alguém que adora outros deuses, incluindo a condição
de que a sentença de m orte pode ser pronunciada só com base
no testemunho de mais de uma testemunha. Como consequência,
qualquer procedimento criminal discutido na Escritura com a con-
dição: “Se um homem ou uma mulher que [...] for encontrado”,
também requer o testemunho de mais de uma testemunha para
a condenação.
4. “Construindo uma família a partir de dois textos” (Binyan abmishene
kethubm): uma palavra, expressão ou lei encontrada em dois textos
relacionados pode ser generalizada em um princípio.
138

Êxodo 21.26 diz que um(a) escravo(a) deve ser libertado(a) se o


senhor lhe ferir o olho; o versículo 27 exige que o(a) escravo(a)
cujo dente for quebrado seja libertado(a). Como consequência, se
um(a) escravo(a) perder qualquer parte insubstituível do corpo por
causa da ação do senhor, clc(a) deve ser libertado(a).
5. “ O geral e o particular; o particular e o geral” (Kelaluferatuferatuke-
lal): um princípio geral pode ser limitado pela aplicação particular
(específica) dele em outra passagem; por outro lado, uma regra
particular pode ser ampliada em um princípio geral.
Levítico 1.2 menciona animais domésticos em geral; esta afirma-
ção é limitada pelos animais particulares listadas em versículos
subsequentes. Êxodo 22.10, 11 fala de um “jumento, boi, ovelha
ou qualquer outro animal” entregue para ser guardado. Os três
primeiros são particulares; “qualquer outro animal” é geral. Por-
tanto, o procedimento aqui inclui a classe geral, qualquer animal,
não apenas os três primeiros citados.
Em Gálatas 3.28, Paulo afirma que não há “judeu nem grego,
escravo nem livre, homem nem mulher”. Em seguida, ele amplia
estes grupos particulares para um princípio geral: “Todos são um
cm Cristo Jesus”.
6. “Uma similaridade em outra passagem” (Keyosebo bemaqom aher)\ uma
dificuldade em uma passagem pode ser resolvida ao compará-la com
outra passagem que tenha pontos normalmentc similares.
7. “Algo deduzido pelo contexto” [Davar balamed meinyano): o signi-
ficado pode ser obtido pela compreensão do contexto no qual o
texto aparece.
A mesma palavra hebraica ocorre na lista de aves impuras da pas-
sagem de Levítico 11.18, na qual é traduzida por “coruja-branca”,
e na lista de répteis impuros no versículo 30, na qual é traduzida
por “camaleão” . O significado exato da palavra é desconhecido
tanto para os antigos rabinos como para os estudiosos modernos;
no entanto, os contextos confirmam que a palavra deve designar
criaturas diferentes.
O mandamento “N o sétimo dia, fiquem todos onde estiverem;
ninguém deve sair” (Êx 16.29) podería ser mal interpretado como
139

se ordenasse que todos os israelitas deveríam permanecer em casa


no sábado. N o entanto, o contexto deixa claro que se refere à ideia
de alguém sair de seu lugar para recolher o maná.
A descoberta dos manuscritos do mar M orto concentrava a atenção
cm outro método de interpretação chamadopesher (interpretação), que é
nosso primeiro método não associado ao judaísmo rabínico. O gênero
faz uma série de suposições básicas: 1) os textos bíblicos, em especial os
dos profetas, não tratam da época do escritor, mas do final dos tempos, a
era final em que Deus cumprirá seus prenúncios e levará a história c sua
obra de salvação ao fim — todos os elementos no texto devem ser trata-
dos pelo mesmo critério; 2) a interpretação fiel depende de um intérprete
designado e inspirado por Deus que transmitirá o verdadeiro significado a
seus seguidores (a comunidade do mar M orto acreditava que seu Mestre
da Justiça era tal indivíduo) e 3) o intérprete está vivendo no final dos
tempos, a era final.
N o pesher, a situação histórico-cultural originária do escritor e muitas
vezes o significado claro das palavras do texto não servem para nada.
São apenas meios de transmitir o mistério, o verdadeiro significado do
texto. Esse verdadeiro significado, que é encontrado quando o isolamos
do contexto original, quando atualizamos a mensagem histórica e espiri-
tual, diz respeito apenas ao fim dos tempos e o papel do intérprete e de
seus seguidores. O comentário (Pesher) sobre Habacuque, por exemplo,
transforma a mensagem do profeta em uma descrição da vida e da fé da
comunidade do mar M orto e de seu líder.
A tipologia e a alegoria são duas formas interpretativas que muitas
vezes estão ligadas e às vezes são confusas. N a verdade, há um debate
sobre sua natureza exata e a relação entre elas. A alegoria é um método
interpretativo segundo o qual o escritor tenta comunicar algo diferente do
que ele está, na verdade, dizendo. Procurando chegar ao verdadeiro sentido
por trás do óbvio, a alegoria trata os elementos do texto como símbolos. A
alegoria, ao que parece, começou com os gregos, que buscavam encontrar
relevância constante em seus poetas (em especial Hom ero e Hesíodo) e
sua mitologia, da qual dependia a religião grega. Os judeus adotaram o
método para diversos objetivos: 1) diminuir a distância histórica e cultural
entre os escritores da Bíblia e a situação contemporânea; 2) evitar constran-
gimento com os antropomorfismos encontrados no Antigo Testamento
140

e 3) harmonizar o Antigo Testamento com certas tradições filosóficas.


O exemplo mais conhecido de interpretação alegórica por judeus é a de
Fílon de Alexandria.
Já a tipologia enquanto identifica o significado teológico ou espiritual
por trás de um texto, ao mesmo tempo aceita e reconhece a realidade e o
significado do acontecimento histórico. Neil S. Fujita resume da seguin-
te forma: “A tipologia é a compreensão da história da salvação em que
pessoas, acontecimentos e instituições são considerados pela ordenação
divina, de tal maneira que correspondem a seus semelhantes. Por exemplo,
Paulo chama Cristo de segundo e último Adão (Rm 5.12-17; ICo 15.45-47)
e, de igual modo, Melquisedeque prenuncia Cristo, de acordo com a carta
aos Hebreus. Esse ponto de vista, em que a figura antecipa o antítipo na
história, é diferente da alegoria, que não se baseia no processo histórico” .
Reiterando da distinção entre as duas: Na alegoria, a situação história
e cultural é irrelevante no sentido de determinar o significado espiritual;
ela apenas fornece pistas por meio das quais o significado espiritual pode
ser encontrado. Na tipologia, a situação e o conteúdo histórico da passa-
gem não são importantes em si mesmos; a verdade é que eles podem ser
subestimados e considerados simplesmente de importância secundária,
no máximo, mas são vistos como reais e valiosos.
Mais um método de interpretação deve ser observado aqui, o apoca-
liptismo (v. Capítulo 10). () apocaliptismo é, em primeiro lugar, a tentativa
de fazer a Bíblia falar com a própria época do intérprete. Portanto, o apo-
caliptismo, como o escritor do pesher, muitas vezes lia o passado bíblico
em termos de seu próprio presente.
2. Tradução

Já observamos que os targumim procuravam lidar com o problema


de quem entendia o aramaico, mas não o hebraico. A crise do século IV,
resultante do helenismo, deixou muitos judeus, em especial os de fora dos
limites da terra de Israel, incapazes de entender o hebraico ou o aramaico.
Para esses judeus, e por fim para o cristianismo, um dos resultados mais
importantes da crise foi a tradução do Antigo Testamento para o grego.
O termo Septuaginta normalmente é usado em discussões sobre a tradu-
ção grega da Bíblia hebraica (incluindo os livros apócrifos). Ele vem do

A Crack in theJar. What Ancient Jewish Documents Tell Us about the New Tes-
tament .Mahwah, N.J.: Paulist, 1986, p. 135.
141

latim septuaginta (setenta); e os algarismos romanos para setenta, LXX, se


tornaram a referência padrão ao Antigo Testamento em grego.
As primeiras fontes de informação sobre a origem da Septuaginta são
resquícios fragmentários dos textos de um filósofo judeu de Alexandria
chamado Aristóbulo (c. 170 a.C.) e a Carta de Aristeus (normalmente in-
cluídos nos textos pseudepígrafos), segundo os quais a primeira tradução
da Bíblia hebraica para o grego foi feita no Egito, durante o reinado de
Ptolomeu II (Filadelfo) (285-246 a.C.). Outras informações, na maioria
de valor histórico questionável, vêm de Fílon e escritores posteriores. Em
geral, elas relatam a lenda de que Ptolomeu desejava uma tradução da lei
judaica para sua grande biblioteca. Assim, 72 (ou setenta) estudiosos foram
enviados de Jerusalém; eles cumpriram a tarefa em 72 dias. O resultado
foi elogiado como uma obra de grande precisão.
Há sérias dúvidas sobre a precisão dessa história sobre os setenta
estudiosos. Além disso, outras considerações tornam o uso do termo sep-
tuaginta impreciso e enganoso. E comum usar o termo como referencia a
todas as traduções antigas do Antigo Testamento para o grego. Existem
outras possibilidades, no entanto. Talvez o termo devesse ser usado de
maneira exclusiva como referência ao Pentateuco grego, ou à mais andga
tradução grega conhecida de cada livro bíblico, ou à tradução grega da
Bíblia Hebraica, e nada mais, excluindo, portanto, livros escritos origina-
riamente em grego e não incluídos no cânon hebraico.
Infelizmente, não há evidências conclusivas que indiquem com preci-
são quando se deu a tradução das Escrituras Hebraicas para o grego, sejam
por quais motivos e em quais condições. O que se sabe no momento indica
que partes distintas foram traduzidas por pessoas diferentes, em tempos c
lugares diferentes, usando textos c métodos de tradução diferentes. Se, de
fato, houve a tradução originária no Egito, e pode ser que tenha havido,
ela provavelmente incluía apenas a Lei, os cinco livros de Moisés. As tra-
duções de outros livros bíblicos foram feitas mais tarde. Cópias, revisões
e traduções adicionais posteriores apresentaram variações importantes
no texto da Bíblia grega e resultaram em uma série de perguntas sobre
sua origem, relações e valor. Investigações especiais concentraram-se na
gramática e vocabulário, como também na orientação teológica.8

s Cf. Sidneyjellicoe, The Septuaginl andModern Study (Oxford: Clarendon, 1968);idem,


Studies in the Septuagint Origins, Recensions, and Interpretations (New York: Ktav,
142

Em todo o caso, a Bíblia em grego foi amplamente usada por judeus


que falavam grego, mas, é evidente que não era muito respeitada por alguns
dos judeus mais rígidos na terra de Israel. A maioria dos cristãos primitivos
adotou as Escrituras Gregas como se fossem suas. Por volta do século
II d.C., estudiosos judeus produziram edições próprias em reação ao uso
do Antigo Testamento grego pelos cristãos. Essas edições procuravam
corrigir traduções equivocadas usadas por cristãos para promover sua fé
e, normalmente, para adequar o grego ao texto hebraico mais amplamente
usado na terra de Israel.
A obra de Aquila (128 d.C.) era excessivamente literalista na tentativa
de reproduzir o texto hebraico da forma mais fiel possível. N o final do
século II, em reação ao uso da Septuaginta pelos cristãos, Aquila tornou-se
a versão oficial a ser lida nas sinagogas sempre que a tradução grega era
apropriada. A tradução de Símaco (final do séc. II e início do séc. III d.C.)
é uma mistura de conformidade precisa com o hebraico e paráfrases livres
que tentam transmitir o significado originário de forma compreensível e
agradável. Entre as duas está a obra de Teodósio, um estudioso do sécu-
Ιο II, provavelmente de Éfeso. As tradições divergem em se tratando de
saber se ele era um prosélito do judaísmo ou talvez um cristão ebionita. A
discussão sobre a versão de Teodósio concentra-se na natureza do texto a
partir do qual ele trabalhou, uma questão sobre a qual recentes descobertas
no deserto da Judeia lançaram luz.
As edições tradicionais da Septuaginta diferem do Antigo Testamento
hebraico em três sentidos primordiais. Primeiro, a ordem dos livros diver-
ge da divisão tripla no hebraico (Torá, Profetas Anteriores e Posteriores
e Escritos). A ordem é, em essência, a encontrada em grande parte das
traduções bíblicas internacionais. Segundo, o conteúdo dos livros. O tex-
to das versões gregas difere do da versão hebraica tradicional em muitas
passagens. Além disso, vários livros são divididos de modo diferente; al-
guns contêm mais ou menos material que o hebraico. Vários salmos, por
exemplo, estão divididos de m odo diferente; há também o salmo 151 não
encontrado em hebraico. O livro de Jeremias é cerca de um oitavo menor
na Septuaginta, e algumas de suas partes estão reorganizadas. Por fim, o
número de livros na Septuaginta é maior; ela contém os chamados livros

1974); Emanuel Tov, “Jewish Greek Scriptures”, em EarlyJudaism and Its Modern
Interpreters, Robert A. Kraft; George W. E. Nicklesburg (orgs.) (Atlanta: Scholars,
1986), p. 223-37.
143

apócrifos, que não aparecem no cânon hebraico. Embora haja um cerne


reconhecido de livros apócrifos, há um debate sobre o número exato.
A natureza das diferenças entre a Septuaginta e o hebraico é complexa e
levou a intensos estudos. Basta observar que às vezes a Septuaginta é muito
literal e, em outras, quase uma paráfrase; às vezes, parece que uma expan-
são do targum ou midrash foi incorporada ao texto. O s escritos rabínicos
reconhecem como legítimas várias mudanças textuais feitas na Septuaginta?
Em alguns casos, a reverência a Deus ou adaptação às sensibilidades do
mundo grego parece ter provocado uma modificação proposital do texto.
Outros detalhes podem ter sido alterados para proteger a reputação de
pessoas importantes ou para remover dificuldades do texto. Alguns deta-
lhes específicos, como o número de familiares de Jacó que foram para o
Egito e as dimensões do tabernáculo, diferem do hebraico.
Certo conhecimento da Septuaginta é muito importante para os estudos
cristãos. Oitenta por cento das citações do Antigo Testamento no Novo
Testamento são extraídas da Septuaginta. A medida que o cristianismo foi
deixando o contexto estritamente judaico, a Septuaginta tornou-se a Bíblia
da igreja primitiva. Além disso, foi por meio desse canal que os livros
apócrifos passaram a fazer parte dos debates sobre o cânon da Escritura.
A Septuaginta é importante para os estudos do judaísmo intertestamen-
tário também. E essencial reconhecer que o Antigo Testamento grego é
a fonte principal de informação sobre o judaísmo helenístico; suas carac-
tcrísticas distintivas inspiram a mente de seus tradutores e, assim, suas
experiências e teologia. Para nossos fins, é essencial reconhecer a Septuaginta
como uma das maneiras importantes pelas quais os judeus responderam
às duas principais crises que ameaçaram sua religião e cultura.
3. Identificação do cânon

A mudança de ênfase do templo e da cerimônia para os princípios


morais e ética fez com que as Escrituras escritas fossem ainda mais im-
portantes. Elas se tornaram o foco do estudo, da vida e da adoração. A
Bíblia, em especial a Lei, era entendida como inspiração divina; ela possuía,
portanto, uma autoridade inerente."1Isto é demonstrado com clareza na910
9 Uma lista c apresentada por Bowker, Targums and Rabbinic Literature, p. 319-20.
10Há no cristianismo moderno uma importante diferença na compreensão dos
fundamentos da canonicidade. Os católicos romanos c gregos ortodoxos, e
alguns protestantes liberais, afirmam que os concílios judaicos oficiais e, mais
tarde, cristãos deram autoridade aos livros bíblicos ao selecioná-los para o cânon.
144

história em que Esdras lê a Lei (Ne 8— 10): o povo reuniu-se em uma


solene assembléia; eles se levantaram quando o livro, especificamente
chamado “Lei de Deus”, foi aberto, e o povo e seus líderes se obrigaram
“a obedecer rtelmente a todos os mandamentos, ordenanças e decretos
do Se n h o r , o nosso Senhor” (Ne 10.29). A Lei era respeitada como a lei
de Deus e aceita como norma. Um exemplo da atitude intertestamentária
é encontrado no livro dos Jubileus, no qual a lei mosaica é descrita como
“tábuas celestes”, pelo menos, vinte vezes (p. ex., Jubileus 3.10,31; 4.5,32).
As outras duas divisões das Escrituras Hebraicas, os Profetas e os Escritos,
também tinham a origem divina e a autenticidade reconhecidas; contudo,
nunca eram respeitadas como se tivessem a mesma posição da Torá.
A importância da Escritura, cm especial da Lei, no judaísmo quase não
era novidade. A lei mosaica era reconhecida como sagrada desde o momen-
to em que surgiu. Ela prescrevia com detalhes a realização das cerimônias e
também como a vida deveria ser vivida. N o entanto, a mudança na ênfase
da cerimônia para a ética brilhou sobre o conteúdo da Escritura, e fez com
que fosse ainda mais necessário identificá-lo, protegê-lo e obedecer a ele.
Dentro da cultura hebraica tradicional e na terra de Israel, ao que
parece, houve pouca dúvida sobre o conteúdo da Bíblia. “Os judeus pales-
tinos faziam uma nítida distinção entre a escritura inspirada e os escritos
humanos; a canonização era o reconhecimento solene da parte dos líderes
e do povo de que certos livros foram revelados por Deus aos profetas.
Tradicionalmente, a canonização final de toda a Bíblia foi realizada pelos
homens da Grande Sinagoga (Assembléia) na época de Esdras e Necmias.
O judaísmo ortodoxo na Palestina depois de 400 a.C. sempre soube o que
era Escritura e o que não era.” 11
A primeira referência à divisão tripla hebraica da Bíblia está no pró-
logo de Eclesiástico, no qual “Os livros da Lei, os livros dos Profetas e
os livros que foram escritos depois” são comparados às “ Escrituras”. As
mesmas divisões, certamente, estavam na mente de Jesus quando ele falou
da “Lei de Moisés, [dos] Profetas e [dos] Salmos” (Lc 24.44). Josefo fala
A visão protestante tradicional afirma que os concílios judaicos c cristãos apenas
reconheceram a autoridade inerente à inspiração divina. As ramificações do debate
são importantes. Na primeira visão, a igreja dá autoridade à Escritura (e assim,
de certo modo, ela a julga), enquanto na última visão a igreja apenas reconhece a
autoridade (e, portanto, as Escrituras têm autoridade sobre ela e a julgam).
11 R. H. Pfeiffer, “Canon o f the OT”, em Interpreter's Dictionary of the Bible, George
A. Buttrick et al., 4 vols. New York: Abingon, 1962, vol. 1, p. 510.
145

dos 22 livros cm três divisões.12 Esses 22 livros parecem ser os mesmos


39 encontrados nas Bíblia Hebraica e nas versões protestantes.13As dis-
cussões rabínicas, ocorridas após o ano 70 d.C. afirmam que o cânon do
Antigo Testamento já estava bem definido; só Cântico dos Cânticos e
Eclesiastes eram discutidos.14
12“Não temos miríades de livros inconsistentes e conflitantes uns com os outros.
Nossos livros, os que são justamente credenciados, são apenas 22 e contem o
registro de todos os tempos”.
“Desses, cinco são os livros de Moisés, que compreendem as leis e a história tradi-
cional do nascimento do homem à morte do legislador. Esse período compreende
apenas três mil anos. Da morte de Moisés ao reinado de Artaxerxes, sucessor de
Xerxes como rei da Pérsia, os profetas que vieram depois de Moisés escreveram
a história dos acontecimentos do tempo deles em treze livros. Os quatro livros
restantes contêm hinos a Deus e preceitos de conduta para a vida humana.
“De Artaxerxes ao nosso próprio tempo, a história completa foi escrita, mas não
foi considerada digna de receber o mesmo crédito com os registros anteriores,
por causa do fracasso da sucessão exata dos profetas” (]osefo, AgainstApion 1.8
[38-411).
13O cânon de 22 livros de Josefo sem dúvida exclui os adendos na versão grega de
sua época. As discussões que procuram identificar com precisão quais livros ele
tinha em mente devem levar em consideração que alguns livros contados como
apenas um na época de Josefo estão divididos em dois nas versões bíblicas mo-
dernas. O exemplo mais drástico é o de que, no século 1, os Profetas Menores
eram considerados um livro, o Livro dos Doze, possivelmente porque todos se
encaixavam nem um pergaminho de tamanho padrão.
Em uma nota sobre a declaração de Josefo, H. St. J. Thackeray {Works, 9 vols., Loeb
Classical Library, Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1926-65), vol. 1,
p. 179 sugere a seguinte divisão: A. Os cinco livros de Moisés; B. Os Profetas:
1) Josué, 2) Juizes e Rute, 3) Samuel, 4) Reis, 5) Crônicas, 6) Esdras e Neemias,
7) Ester, 8) Jó, 9) Isaías, 10) Jeremias e Lamentações, 11) Ezequiel, 12) Profetas
Menores, 13) Daniel; C. Os Restantes: 1) Salmos, 2) Cântico dos Cânticos, 3) Pro-
vérbios, 4) Eclesiastes. O cânon hebraico moderno atribui livros à segunda c terceira
divisões de forma um pouco diferente. Para uma discussão mais completa, veja
Emil Schürer, The History of lheJewish People in theAge ofJesus Christ, Geza Vermes
et ai, 3 vols. (Edinburgh: T. and T. Clark, 1973-87, vol. 2), p. 317 n. 12.
14 Por exemplo, Mixná Yadaim 3.5: “Todas as Sagradas Escrituras apresentam mãos
impuras. Cântico dos Cânticos e Eclesiastes apresentam mãos impuras. R. [Rabino]
Yeudah diz: Cântico dos Cânticos apresenta mãos impuras, mas, com relação a
Eclesiastes, há dissensão. R. Yose diz: Eclesiastes não apresenta mãos impuras, e,
com relação a Cântico dos Cânticos, há dissensão. R. Shimon diz: Eclesiastes é
uma das coisas sobre as quais a Escola de Shammai adotou a decisão mais indul-
gente c a Escola de Hillel, a mais rigorosa. R. Shimon b. Azzai disse: Ouvi uma
146

O advento do helenismo e a subsequente aparição das Escrituras em


grego apresentaram um desafio para o consenso. Os livros da Septuaginta,
diferentes dos cinco de Moisés, estavam dispostos de acordo com mo-
delos literários. Isso enfraqueceu a divisão tripla e suas implicações para
interpretação.
Além disso, alguns judeus que falavam grego não compartilhavam a
convicção de que a era da profecia havia cessado e o cânon, portanto, sido
encerrado. Livros com apelo especial à mente grega começaram a ser lidos
junto com o cânon tradicional, e, pelo menos, alguns judeus helenistas
consideravam alguns desses livros iguais em termos de autoridade. Uma
vez que todas as edições existentes do Antigo Testamento grego são cris-
tãs, não sabemos com precisão quais grupos de judeus helenistas incluíam
livros apócrifos no cânon nem quais eles incluíam. Podemos supor que o
tipo de variedade evidente hoje nas listas das Igrejas Católica Romana e
Ortodoxa Grega corresponda à diversidade entre os judeus que falavam
grego nos tempos intertestamentários. Para nosso estudo, é importante
notar que uma das respostas para a crise dos séculos VI e, em especial, do
IV era a diversidade de opinião sobre os livros precisamente pertencentes à
Bíblia judaica. O utra resposta diz respeito a como lidar com a diversidade.

D esen volvim ento da sin a g o g a

Nada expressa de forma mais eloquente a readaptação judaica diante


das crises intertestamentárias que o crescimento da sinagoga. Uma vez que
o estudo da lei e a obediência a ela, a ênfase moral e ética tornaram-se o
principal fundamento da religião e da vida judaicas, a sinagoga tornou-se
a instituição central da comunidade. Os nomes para a instituição variam.
tradição dos 72 anciãos, no dia em que tornaram R. Elazar b. Azaryah diretor da
escola [de Sábios], dc que Cântico dos Cânticos c Eclesiastes apresentam mãos
impuras. R. Akiva disse: “Deus proíba! — nenhum homem em Israel jamais
contestou que Cântico dos Cânticos não apresenta mãos impuras, pois todas as
eras não se igualam ao dia em que Cântico dos Cânticos foi dado a Israel; pois
todos os Escritos são sagrados, mas Cântico dos Cânticos é o Lugar Santíssimo.
E se não havia o que contestar, a contestação dizia respeito somente a Eclesiastes.
R. Yohanan b. Yehoshua, filho do sogro de R. Akiva, disse: Dc acordo com as
palavras de Ben Azzai, assim eles contestaram e assim decidiram.” Observe que a
expressão “apresentam mãos impuras” significa algo como “são santas, separadas
para Deus, de origem divina”; o contato com algo santo exigia que o indivíduo
lavasse as mãos em termos cerimoniais. V. tb. Schiirer, History, vol. 2, p. 320, η. 18.
147
Proseuché (lugar de oração) pode ser o nome mais antigo e o usado com mais
frequência na terra de Israel no século I. Ocorre também na Diáspora. Em
Atos 16.13, parece se referir a uma pequena estrutura semelhante à capela,
usada para oração, porque não havia um número suficiente de famílias
para a configuração completa da sinagoga. (Pelo menos, eram necessários
dez homens para formar uma sinagoga.) A palavra mais comum, synagõgê,
significa “lugar de assembléia” ou “casa de adoração”. Josefo registra um
decreto de Cesar Augusto que se refere a um sabbateion (casa do sábado).15
O Talmude muitas vezes usa o termo “o lugar [ou casa] da assembléia” ou
simplesmente “a assembléia” . A ideia da assembléia comunitária prova-
velmente expressa de forma mais precisa a natureza da instituição.
A origem da sinagoga é incerta. Algumas fontes alegam que ela esteve
presente no judaísmo desde o começo.16 O Talmude afirma a existência
de sinagogas na Babilônia no cativeiro. Afirmações bíblicas como: “Por
breve período tenho sido um santuário para eles nas terras para onde
foram” (Ez 11.16) e: “Algumas das autoridades de Israel vieram e se sen-
taram diante de mim” (Ez 14.1) às vezes são citadas para respaldar este
argumento. () registro escrito mais antigo vem do tempo de Ptolomcu
III (Euergetes) (246-221 a.C.). A assemblcia do povo em Jerusalém para a
leitura das Escrituras e oração no tempo de Esdras, sem dúvida, refletem
o tipo de situação do surgimento da sinagoga. Vale observar que as tra-
dições sobre a Grande Sinagoga afirmam que ela teve início com Esdras
no Período Persa.
Em termos mais simples, a sinagoga se desenvolveu como centro da
vida hebraica após a perda das instituições tradicionais. Ela não consistia
em um substituto da adoração e dos serviços no templo, mas um comple-
mento. O interesse pelo templo continuou, e as sinagogas permaneceram
depois da reconstrução do templo. O Novo Testamento afirma que havia
sinagogas em Jerusalém na época de Jesus, onde teriam sido supérfluas se
fossem apenas algo para a substituição do templo. A M ixná até implica a
presença de uma sinagoga dentro do recinto do templo (“a sala de pedra
talhada”). A tradição rabínica indica que havia 480 sinagogas em Jerusalém,
um provável exagero se considerarmos o tamanho da cidade.
15Antiquities 16.6.2 (164).
u AgainstApion 2.18 (175) e Fílon, Life of Moses 2.39 (216) dizem que a sinagoga
foi instituída por Moisés. Isso se reflete em outros escritos também. Cf. Schürer,
History, vol. 2, p. 427, n. 7.
148

São vagas as informações sobre quase todos os aspectos da sinagoga


— organização, ofícios, encarregados, culto de adoração e edifícios. Há
poucos relatos detalhados anteriores ao ano 70 d.C. que falam sobre estas
questões; as evidências arqueológicas também são principalmente de sécu-
los posteriores. Uma inscrição encontrada no monte Ofel indica a presença
de sinagogas em Jerusalém e oferece informações importantes sobre a
instituição em geral: “Teódoto, filho de Veteno, sacerdote e sacerdote e
líder da sinagoga, neto de um líder da sinagoga, construiu a sinagoga para
a leitura da lei e para o ensino dos mandamentos, e a casa de hóspedes, os
quartos e os suprimentos de água como hospedaria para os necessitados
quando viessem de fora, a sinagoga fundada por seus antepassados, pelos
anciãos e por Simonides” . A M ixná e outras fontes rabínicas falam muito
sobre a sinagoga, mas muitas vezes é difícil distinguir relatos e descrições
de acontecimentos posteriores de condições e práticas normalmente
presentes no período intertestamentário. A evidência existente confirma
a sinagoga como uma instituição desenvolvida ao longo do período. As
práticas tornaram-se muito mais padronizadas e prescritas após a Era do
Novo Testamento; mesmo assim, restou certa oportunidade para adap-
tação, liberdade de expressão e participação de leigos.
A sinagoga era, sobretudo, o lugar para a leitura das Escrituras e
oração. O conhecimento mais profundo da lei estava à disposição só dos
estudiosos. Contudo, o judaísmo intertestamentário esperava que todos
a conhecessem bem como a base para a vida. A sinagoga, com a leitura
regular e interpretação da Lei e dos Profetas e com suas escolas para os
jovens, que tecia as Escrituras no tecido da vida e da experiência do povo.
Não havia altares nem sacrifícios na sinagoga; em vez disso, só os livros
sagrados (pergaminhos) eram absolutamente necessários. Em bora os
sacerdotes que serviam normalmente fossem selecionados como leitores
públicos e também para pronunciar as bênçãos, sua presença não era ne-
cessária para a realização do culto na sinagoga como ocorria no templo.
Os líderes reverenciados da sinagoga eram os anciãos da comunidade,
cujo conhecimento da lei podia ser reconhecido.
As sinagogas eram organizadas sempre que havia homens suficientes
(dez) para constituir uma assembléia apropriada, na terra de Israel ou mais
longe. As pessoas mais velhas e mais distintas tomavam os lugares à frente;
outras se sentavam ou ficavam em pé na parte de trás ou talvez nas laterais.
Embora homens e mulheres fossem separados na Idade Média, não há
149

evidência da prática no período intertestamentário.17 Os não judeus, ou


seja, os tementes a Deus, podiam participar, pelo menos, de alguns cultos
na sinagoga. O s cultos eram realizados aos sábados (muitas vezes mais
de um), e possivelmente nas segundas e quintas também. Havia também
assembléias especiais em dias de festas e outras ocasiões importantes dos
calendários religioso e civil.
A liturgia era simples e os cultos podiam durar várias horas. As princi-
pais partes do culto incluíam a recitação do Shemâ, a oração diária (Shemoneh
‘Esreh), e a leitura da Lei e dos Profetas. A leitura era acompanhada por uma
tradução-interpretação (um targum) e muitas vezes uma homilia-sermão.
Todos os elementos do culto eram precedidos por bênçãos e normalmen-
te concluídos com elas. Ao final de cada oração, todos da congregação
diziam “amém”.
O Sherná não era uma oração, mas uma confissão de fé. Consistia em
Deuteronômio 6.4-9 (“Ouça, ó Israel...”), Deuteronômio 11.13-21 (“Por-
tanto, se vocês obedecerem ficlmente aos mandamentos...”) e Números
15.37-41 (“O S e n h o r disse a Moisés...”). N a Era Intertestamentária, pode
ser que tenha incluído os Dez Mandamentos também.
A oração diária, a Shemoneh ‘Esreh [Dezoito Bênçãos], era um compo-
nentc importante tanto da adoração na sinagoga como da oração particular.
Nem a origem nem as palavras intertestamentárias exatas da oração diária
podem ser reconstruídas hoje. O texto ainda era bastante fluido e podia
ser adaptado pelo celebrante. É óbvio que a oração diária teve raízes an-
tigas e passou por muitas formas. Reflexões anteriores das Dezoito bênçãos
podem ser encontradas em Eclesiástico 51. A versão encontrada na genizá
do Cairo, às vezes conhecida como versão palestina, é substancialmente
diferente da babilônica e pode se aproximar mais do texto do século I.18A
l: Normalmente acredita-se que havia separação por gênero na sinagoga. Schürer,
History, vol. 2, p. 447, n. 9, por exemplo, admite a segregação. Mas, para obter
o resumo de evidências convincentes contra essa prática no período intertesta-
mentário, cf. S. Safrai, “The Synagogue”, em TheJewish People in the First Century,
S. Safrai; 1M. Stern et a l, em Compendia Rerum Judauantm ad Novum Testamentum, 7
vols. (Philadelphia: Fortress, 1974-92), vol. 2, p. 919-20,39-40.
ls O texto das duas versões está impresso em Schürer, History, vol. 2, p. 54-63. V. tb.
a discussão de Safrai, “Synagogue”, vol. 2, p. 916-17,22-26.
150

versão usada hoje nas sinagogas, a babilônica, é posterior ao ano 70 d.C.


e tem uma forma estabelecida.1920
As três primeiras bênçãos louvam o poder e a graça de Deus, os fun-
damentos da esperança de Israel. As três últimas agradecem a ele por sua
bondade e pedem sua bênção. N o meio delas estão orações pedindo por
conhecimento, arrependimento, perdão, livramento, saúde, terra frutífera,
reunião dos dispersos, restauração da nação, reconstrução de Jerusalém,
reinstituição da adoração sacrificial e futura vinda do Messias. A oração
pelo Messias aparece cm uma forma menor na versão palestina do Cairo.2"
A décima segunda bênção da versão mais antiga contém a condenação que,
como observamos antes (p. 106), forçou os cristãos judeus a se afastarem
da adoração na sinagoga (v. Apêndice E, p. 401).
A leitura concentrava-se no Pentateuco, mas incluía os Profetas tam-
bém. As leituras da Lei eram organizadas de forma a assegurar a inclusão
consecutiva de todos os livros mosaicos no ciclo de três anos. Na terra
de Israel, vários membros de uma congregação, normalmente três, cinco
ou sete, eram convidados a participar da leitura, tendo cada um de ler,
pelo menos, três versículos. Nas sinagogas da Diáspora, a leitura era feita
só por uma pessoa. Tanto em Israel como no exterior, somente uma pes-
soa lia os Profetas; ela era livre para escolher a passagem (v. Lc 4.17). As
leituras eram acompanhadas por um targum, uma tradução-interpretação
que incluía uma tradução livre do texto para outro idioma e uma breve
explicação dele. N a terra de Israel, a interpretação era em aramaico e em
outros lugares, no vernáculo, por exemplo, o grego. A Torá era interpretada
versículo por versículo e os Profetas, em unidades maiores.
Quase na última parte do século I, um sermão ou homília era parte
frequente, embora não obrigatória, da adoração na sinagoga. Um ancião,
rabino ou outra autoridade podería ser convidado a falar, se apropriado
(v. At 13.15). O sermão era, em essência, um estudo da Lei que incluía a
interpretação e a aplicação além do largum. Por meio dessa leitura regular

19“Shimon Pckoli (ou: o comerciante de algodão) dispôs as bênçãos na ordem delas


na presença de Rabban Gamaliel em Yavneh” (Talmude Babilônico Berakoth 28b
1tMegillah 17b, citado de Safrai, “Synagogue”, 2:916).

20Na resenha palestina, a décima quarta bênção diz o seguinte: “Sê misericordioso,
Senhor, nosso Deus, com tuas grandes misericórdias, para com Israel, teu povo, e
para com Jerusalém, tua cidade; e para com Sião, a habitação da glória; e para com
teu templo e tua habitação; e para com os reis da casa de Davi, teu justo Messias.
Bendito sejas, Senhor, Deus de Davi, que construísteJerusalénP.
151

e sistemática, c da exposição da Escritura, a mente e o coração do judeu


intertestamcntário tornavam-se repletos de seu conteúdo e exigências.
Enquanto o templo era controlado pelos sacerdotes, a sinagoga era,
basicamente, uma instituição do povo. O que sabemos sobre a organi-
zação da sinagoga é impreciso, e a evidência demonstra diferenças entre
as instituições. Não há evidência de governo pela assembléia popular na
comunidade judaica nem na sinagoga como nas cidades-estados gregas e
algumas igrejas cristãs (1QS 8.25— 9.2). A liderança atual estava nas mãos
dos anciãos, líderes respeitados de famílias da comunidade. Em grupos
predominantemente judaicos de Israel no século I, o conselho da cidade e
a liderança da sinagoga provavelmente compreendiam as mesmas pessoas;
não havia separação entre as esferas religiosa e civil. Em lugares em que
a maioria da população era formada por gentios, os anciãos da sinagoga,
sem dúvida, recebiam funções estritamente religiosas.
Em áreas judaicas, a sinagoga era propriedade da cidade. Prover o
edifício, o equipamento necessário e a supervisão era responsabilidade do
governo. Em áreas não judaicas, a responsabilidade cabia ao todo da co-
munidade judaica. Em todos os casos, o contato constante com os gentios
e judeus menos praticantes tornou necessário que os líderes reconhecidos
estivessem sempre vigilantes contra a invasão de elementos estranhos.
Embora houvesse alguns cargos oficiais designados, não havia alguém
encarregado especificamente de conduzir a adoração na sinagoga — ler,
pregar e orar. Todos os homens, até os jovens, estavam qualificados para
participar do serviço. O principal oficial era o archisynagõgos, o líder da
sinagoga, responsável geral por seus assuntos. Ele era designado pelos
anciãos e servia sem remuneração. O hangar! (ministro ou assistente) era, em
áreas judaicas, um oficial executive) da cidade como também da sinagoga.
Era remunerado pela comunidade e sinagoga. O hagga/7 era, na verdade,
responsável por grande parte do serviço e das atividades religiosas. Ele
trazia os pergaminhos, entregava-os aos escolhidos pelo líder da sinagoga
para servirem como leitores, recolhiam os pergaminhos após as leituras,
anunciavam orações e outros elementos da adoração e faziam sinais para
que o povo dissesse “amém”. O haggan controlava o toque das cornetas
e trombetas para indicar o início e o fim do sábado e outros momentos
significativos. Ao que parece, era responsável pela manutenção física das
instalações. Embora não fosse, de fato, o supervisor e mestre, ele auxilia-
va na educação das crianças. Quando eram prescritas punições em casos
152

judiciais, o hasgan as administrava. Outro oficial comum da sinagoga era


o assistente social, que recebia e distribuía esmolas.
Ruínas físicas de sinagogas intertestamentárias foram encontradas
só no Heródio e em Massada. Ambas eram adaptações de estruturas
originariamente construídas para outros fins. Λ descrição na inscrição
de Teódoto (p. 148) oferece outras evidências anteriores ao ano 70 d.C.
sobre sinagogas intertestamentárias. A M ixná e outros textos rabínicos
descrevem uma variedade, complexidade e ornamentação improváveis
antes de 70 d.C.
Havia uma construção de algum tipo. A Mixná prescreve que ela deve-
ria estar no ponto mais alto da cidade, perto da água e voltada na direção do
templo dejerusalém; muitas sinagogas não cumpriam essas especificações.
O bem mais importante da sinagoga consistia, sem dúvida, nos livros; o
item indispensável no mobiliário era a arca, o lugar sagrado da Torá, no
qual eles eram mantidos. Essa arca às vezes ficava permanentemente no
edifício; nas sinagogas do século I, algumas arcas eram colocadas sobre
rodas e transportadas para a sala principal. É evidente que as sinagogas
tinham uma área e posição elevada para leitores e pregadores; arqueólogos
não descobriram traço algum dessas características, mas elas são mencio-
nadas em fontes escritas. Um assento proeminente à frente, a cadeira de
Moisés (Mt 23.2), era reservado para quem proferisse o sermão ou cum-
prisse outra função importante. Entre outros móveis estavam assentos de
madeira ou pedra. Outros equipamentos incluíam lâmpadas, trombetas
e possivelmente sinos. Por último, para fins cerimoniais, acesso rápido à
água e banhos para a purificação ritual (mikvoth) eram uma necessidade.
As sinagogas, como a palavra implica, eram locais de reunião. Os
edifícios eram usados como locais de encontros públicos oficiais, escolas,
tribunais de justiça e eventos sociais. A inscrição de Teódoto menciona
uma estalagem: “a casa de hóspedes, quartos e fornecimento de água como
uma hospedaria para os necessitados quando chegam de fora” . Ruínas
arqueológicas em vários locais confirmam a presença de uma hospedaria
no pátio da sinagoga.

Reações de grupos específicos

Vimos que a derrota e o cativeiro nas mãos dos babilônios e a chegada


do helenismo suscitaram várias reações de judeus pegos pelas ondas de
mudanças traumáticas. A sinagoga, por exemplo, surgiu como núcleo do
153

povo judeu. Símbolo da singularidade do judaísmo intertestamentário


do período clássico do Antigo Testamento, ela se tornou o centro de
toda a comunidade ou de um grupo específico (At 6.9). Muitos judeus
intertestamentários, provavelmente a maioria, simplesmente aceitaram e
procuraram se adaptar à nova ordem e estrutura social. Outros resistiram
à nova sociedade e se esforçaram para que a mudança partisse de dentro,
enquanto outros ainda buscavam, dentro e fora, criar uma sociedade to-
talmente diferente cujo modelo estivesse no passado ou em alguma nova
visão do futuro. N o extremo do continuum estavam os inconformistas e
ascéticos que se retiraram por completo para formar sociedades próprias
e viver à sua maneira sem referência a outras pessoas e às forças que
guiavam o restante do mundo.
As reações divergentes ao helenismo constituem um bom exemplo
da variedade que temos em mente. Alguns se desvincularam da herança
judaica, tornaram-se totalmente helenizados, adotaram o paganismo e se
dispuseram a trabalhar para prejudicar os judeus e o judaísmo por lealdade
ao novo engajamento. Tibério Júlio Alexandre, sobrinho do filósofo Fílon,
parece ter sido um desses indivíduos. Ele se aliou ao mundo greco-romano,
ocupou cargos governamentais e até comandou uma parte do exército
romano na guerra de 66-70 d.C. contra os judeus.
N o outro extremo estavam aqueles que, como os macabeus originá-
rios, lutaram contra a invasão do novo, ou pelo menos partes dele. Entre os
extremos estavam os que resistiram sem violência, recorrendo à oposição
ou apatia passiva em relação ao helenismo. Alguns grupos e indivíduos
parecem ter enfatizado as características distintivas diante da influência
grega, ou talvez exagerado na ênfase.
O judaísmo helenístico representa o caminho do meio-termo, a
tentativa de ser parte da nova ordem mundial e um judeu leal ao mesmo
tempo. Fílon apresenta as melhores qualidades desse grupo; para Josefo
e outros membros egoístas das famílias sacerdotais e da aristocracia, no
entanto, o compromisso com os tradicionais interesses religiosos da nação
era apenas um verniz para a orientação de essência secular.21

21 Com respeito às reações literárias ao helenismo, poucos duvidariam que a influem


cia helenística na Carta de Aristeus, 4 Macabeus, os Oráculos sibilinos e outros textos
apócrifos e pseudepígrafos. No entanto, os estudiosos às vezes se dividem quanto
a um documento representar o helenismo ou uma polêmica contra ele. Para obter
algumas avaliações, cf. p. xxx, n. 10.
154

C) fato de existirem reações muito diferentes não é nada além do


esperado por observadores com até mesmo uma consciência superficial
da dinâmica sociológica. Nossa tarefa nos capítulos seguintes será parti-
culari/.ar trajetórias judaicas desenvolvidas em reação à crise do período e
que lançaram o fundamento para grande parte da diversidade dentro dele.
Algumas pessoas tentaram restabelecer as instituições do passado —
monarquia, sacerdócio e adoração no templo (Capítulo 8). Esse grupo
liderou os egressos do exílio, reconstruindo Jerusalém e seu templo e
tentando restaurar a vida e a adoração do passado. Entre os representantes
posteriores estão os macabeus, seus defensores e outros tradicionalistas, os
conservadores religiosos. N o entanto, as visões políticas e sociais liberais
de algumas pessoas desse grupo, como os saduceus — visões evidentes
no apoio dado ao helenismo e às autoridades romanas — ilustram a com-
plexidade do tema tratado.
Os escribas procuraram unir-se à nova situação desenvolvendo a lei
oral, que transmitiam às gerações seguintes por meio de uma sucessão
de mestres (Capítulo 9). Pelo menos, uma divisão desse movimento
transformou-se nos elementos farisaicos e rabínicos das eras do Novo
Testamento e posterior ao ano 70 d.C.
O utro reajuste ocorrido no período intertestamentário foi o movi-
mento apocalíptico, com pontos de vista particulares a respeito do mundo,
da forma literária e metodologia hermenêutica (Capítulo 10). Enquanto
algumas pessoas e grupos podiam ser classificados como apocaliptistas
rígidos, em termos de visão e compromisso, a influência do apocaliptismo
também é evidente em vários outros movimentos.
O movimento sectário incluía os vários grupos que acabamos de
mencionar: pessoas que procuravam restaurar o passado, escribas que
desenvolveram a tradição oral e apocaliptistas (Capítulo 11). Cada grupo
enfocou as crises dos séculos VI e IV à sua maneira e contava com prá-
ticas, visões, ênfases e experiências próprias. Sua existência evidencia a
extraordinária diversidade do judaísmo intertestamentário.
Em 1935, o escritor francês Joseph Thomas, trabalhando quase de
maneira exclusiva a partir de evidências literárias, postulou a existência
de numerosas seitas batismais na terra de Israel, em especial no vale do
Jordão.22 Graças às descobertas no deserto da Judeia, em Qumran e em
outros lugares, agora sabemos mais sobre esses grupos, em especial o

11Le Mouvement baptist m Palestine etSyrie (Gembloux: J. Duculot, 1935).


155

grupo do século I que criou os manuscritos do mar Morto. De acordo


com as evidências, ele está incluído no movimento essênio, definido em
linhas gerais. Daremos atenção especial à comunidade e literatura do mar
Morto por causa de suas contribuições significativas e reação distinta à
situação cultural.
Há ainda outra categoria de reações às crises dos séculos VI e IV. É
a mais importante, embora a mais complexa e difícil de avaliar. Os am
haaret^ (o povo da terra) eram, sem dúvida, a maioria da população. Para
os líderes dos sacerdotes e fariseus, consistiam a “ralé que nada entende
da lei [e] é maldita” (Jo 7.49). Sua reação às crises pode ter sido uma sim-
plificação instintiva do reajuste de seus líderes. N o entanto, sob a longa
sombra lançada pelo passado sobre as páginas da história, o que realmente
determinou o caráter do judaísmo intertestamentário e o curso futuro
da história judaica foi a reação das pessoas comuns entre as quais Jesus
viveu e ensinou.
8
Tentativas intertestamentárias para
reconstruir as instituições tradicionais
(do Antigo Testamento)

• Reconstrução do templo e restauração da adoração sacerdotal


- A adoração no templo
- Atitudes ambíguas em relação ao templo
- Festas e festivais
• O desejo de restauração da monarquia

É natural para que quem suportou a grande perda deseje a restaura-


ção do passado. Isso normalmente significa reconstruir o passado como
era. Sem dúvida, a restauração completa consistia, pelo menos, no desejo
sentimental da maioria dos judeus, talvez com a inclusão de muitas pessoas
que não voltaram para a terra de Israel.
As maiores perdas em 586 a.C. foram, como vimos, da terra e do
templo e da monarquia. Foram feitas tentativas para recuperar o passado
por meio do regresso à terra, da reconstrução do templo e do restabelecí-
mento da adoração e da vida em Jerusalém. As esperanças do retorno da
monarquia faziam parte de um elemento importante no desenvolvimento
das expectativas messiânicas.
A reconstrução completa era, sem dúvida, uma impossibilidade. As
pessoas antes cativas na Babilônia se depararam com uma situação radi-
calmente nova; eles não podiam reconstruir o velho sobre o fundamento
do novo contexto político e social. Em sentido religioso, as mudanças de
ênfase já haviam começado a acontecer; as coisas não seriam as mesmas.
N o entanto, ocorriam tentativas persistentes de criar replicas exatas das
antigas instituições. Essa atitude contribuiu muito para o caráter do ju-
158

daísmo intertestamentário. É muito provável que a maioria das pessoas


não tenha percebido que, na verdade, as instituições e práticas resultantes
eram diferentes.
Não se faz muito necessário falar sobre a presença judaica renovada
na Judeia. A terra era apenas uma porção muito pequena do que fora
governado pelos reis. N a verdade, a Judeia nos tempos persas ficava a
pouco mais de cinquenta quilômetros do leste para o oeste e um pouco
menos do norte para o sul. Contudo, para as pessoas que regressaram, era
sua terra. O S en h o r havia cumprido a promessa. Eles estavam em casa!

Reconstrução do te m p lo e restauração da a d o r aç ão sacerdotal

Reconstruir o templo era o objetivo primordial dos primeiros a re-


gressar da Babilônia (Ed 3.10-13). A colocação do fundamento foi uma
ocasião de alegria e choro. Os mais jovens viam o início do cumprimento
do sonho que lhes foi legado pelos anciãos, mas os mais velhos percebe-
ram que esse templo seria menos magnífico em tamanho e grandeza que
0 primeiro (Ag 2.3).
A adoração no templo requer sacerdotes. Mesmo antes da partida
para a Babilônia e mais uma vez na chegada à terra de Israel, cuidou-sc de
assegurar o encontro de líderes religiosos, sua qualificação e certificação
devida (Ed 2; 8.15-20; Ne 7.39-65). Neemias insistiu na manutenção do
sustento dos levitas (Ne 13.10-14). O s livros de Esdras e Neemias estão
repletos de evidências da preocupação com a devida organização do
pessoal e dos serviços do templo e com a santidade moral e cerimonial
entre todo o povo.
Os livros de Crônicas devem ser considerados evidências da preocu-
paçâo com a cidade, o templo, a cerimônia, o ritual e a vida controlada
pela lei, junto com Esdras e Neemias.1O cronista oferece a interpretação
histórica do passado pelo ponto de vista da centralidade da adoração ce-
rimonial. Davi, o fundador da dinastia monárquica, vislumbrou o templo,
preparou sua construção e reestruturou a adoração. Salomão construiu o
templo e o consagrou. Os livros de Crônicas avaliam os reis posteriores
de Judá com base na lealdade ao culto.
A reorganização dos sacerdotes e levitas descrita em Crônicas refere-se
ao problema. O assentamento na terra de Israel na época de Josué deixou

1 O acordo verbal imediato de 2Cr 36.22,23 e Ed 1.1 -3 demonstra a relação próxima


entre os textos.
159

a posição dos levitas incerta; durante o período no deserto, o principal


dever deles era transportar o tabcrnáculo e seu mobiliário. Qual deveria ser
a função deles na nova situação? Por fim, Davi e Salomão reestruturaram
as funções sacerdotais e levíticas. A comunidade pós-exílica, determinada
como estava a duplicar as condições anteriores da forma mais fiel possível,
recorreu à reestruturação de Davi e Salomão. Contudo, permaneceu no
judaísmo intertestamentário uma ambiguidade sobre a posição do templo,
do sacerdócio e das cerimônias.
Certa explicação da história do templo e das atitudes em relação a ele
antes e durante o período intertestamentário é vital para qualquer con-
sideração do contexto judaico do Novo Testamento. Já descrevemos as
principais características físicas do templo na época de Jesus (p. 50-52).
Não é preciso dizer que tanto o Antigo Testamento como o judaísmo
intertestamentário deram muito valor à estrutura e ao culto sacrificial.
O templo dominava a linha do horizonte de Jerusalém e o pensamento
judaico. Mas o fato de a religião hebraica não ter desaparecido quando da
destruição do templo cm 586 a.C. e novamente em 70 d.C. deixa a dúvida
sobre seu exato papel e posição.
O templo de Jerusalém era o sucessor do tabernáculo, que havia sido
construído e usado no deserto, erguido como o santuário central em Siloé
após o assentamento na terra e, obviamente, destruído no tempo de Sa-
muel, depois da derrota de Israel em Afeque para os filisteus (ISm 4.1-11;
v. tb. Jr 7.12). Davi levou a arca da aliança para uma tenda em Jerusalém e
começou a fazer planos a fim de construir o templo. Salomão os executou.
Josias destruiu todos os outros centros de adoração, completando, assim,
a centralização do culto em Jerusalém (2Rs 23; 2Cr 34).
A conclusão do segundo templo, depois do cativeiro, ünha um sig-
nificado real e simbólico. O zelo e a ferocidade da revolta dos macabeus
contra a profanação cometida por Antíoco Epifânio falam muito sobre o
lugar ocupado pelo templo no coração dos judeus. A entrada de Pompeu
no templo e no Lugar Santíssimo enquanto ele estendia o domínio de
Roma sobre os judeus foi um ato inescrupuloso.
Apesar das falhas de Herodes, o Grande, sua obra de restauração (na
verdade, de reconstrução) do templo deve-se à sua posição entre a maioria
dos judeus e o mundo em geral. A importância do templo para os judeus
intertestamentários também é ilustrada pela reação à ameaça de Caligula de
profanar o templo em 40-41 d.C. A destruição do templo no ano 70 d.C.
160

foi uma tragédia comparada na história judaica somente ao incêndio que


consumiu a edificação que o precedeu. A ligação dos judeus às poucas
pedras herodianas no muro de arrimo da plataforma do templo que mais
se aproximavam do Lugar Santíssimo (ou seja, o muro das Lamentações
ou, como foi chamado depois que a área passou a ser controlada pelos
israelenses na guerra de 1967, o muro Ocidental) testemunha com elo-
quência o contínuo significado étnico, nacional, emocional e religioso do
templo, até nas ruínas.
A maioria dos judeus intertestamentários, portanto, até mesmo os
da Diáspora, considerava o templo uma estrutura permanente de valor
inestimável e santidade. Peregrinos juntavam-se para adorar no templo
nos festivais anuais. A maioria dos judeus na terra de Israel e na Diáspora,
o sustentavam em caráter voluntário mediante o pagamento regular dos
impostos do templo (Mt 17.24-27).
A adoração no tem plo

Em nosso debate sobre as idéias e instituições do Antigo Testamento,


notamos os vários tipos de sacrifícios oferecidos no templo (p. 67-68).
Reservamos uma descrição do ritual sacrificial neste momento, porque a
cerimônia se desenvolveu de maneira mais completa no período intertes-
tamentário e as fontes intertestamentárias o descrevem com mais detalhes.
Provavelmente a descrição extrabíblica mais antiga da adoração no
templo se encontre no louvor de Jesus, filho de Siraque ao sumo sacerdote
Simão, o Justo, provavelmente o filho de Onias II. Com isso podemos ter
uma ideia básica do culto. O sumo sacerdote...
... vestia o seu belo manto sacerdotal [...] e subia até o altar sagrado [...]
ele ficava de pé em frente do altar e recebia dos sacerdotes as sacrifícios
a serem queimados com todos os seus sacerdotes ajudantes espalhados.
[...] O s sacerdotes que eram descendentes de Arão, estavam lá, todos de
pé na frente do povo. [...] Eles usavam seus belos mantos e seguravam as
ofertas que eram apresentadas ao Senhor. [O sumo sacerdote] terminava
a cerimônia diante do altar, punha em ordem as ofertas para o Deus Al-
tíssimo [...] e depois pegava um copo, despejava nele um pouco de vinho
e o derramava ao pé do altar com o uma oferta dc cheiro agradável. [...]
F.ntão os sacerdotes, que eram descendentes de Arão, gritavam e toca-
vam as suas trombetas dc metal batido, [...] eles gritavam bem alto [...].
N o mesmo instante, todos eles se ajoelhavam e encostavam o rosto no
chão para adorar o seu Senhor, [...] o coro louvava a Deus com canções,
161

c uma bela música enchia o ar. O povo orava ao Senhor, o Altíssimo,


fazia os seus pedidos ao Senhor |...| até que terminasse a adoração ao
Senhor e a cerimônia sagrada acabasse. Depois, [o sumo saccrdote| descia
e levantava as mãos sobre todos os israelitas ali reunidos, para dar, em
voz alta, a bênção do Senhor e ter a honra de dizer o seu santo nome.
E, mais uma vez, o povo se ajoelhava para receber a bênção do Deus
Altíssimo (Eclesiástico 50.11-21, NTLH-P).

Deve-se observar que o sumo sacerdote não dirigia a adoração de cada


dia. Normalmente ele o fazia isso aos sábados e dias festivos. O Antigo Tes-
tamento não inclui orações nem a bênção sacerdotal (Nm 6.24-26) como
parte do ritual de sacrifício. Estes componentes, junto com os cânticos e
a leitura da lei, estavam entre os elementos que foram acrescentados no
período intertestamentário. Em bora o livro de Eclesiástico omita vários
detalhes, os elementos essenciais da cerimônia diária são mencionados.
() que Eclesiástico descreve é a oferta diária regular, o holocausto, o
sacrifício de um cordeiro pela manhã e outro no final da tarde a favor de
toda a nação. Entre os sacrifícios, indivíduos e grupos apresentavam uma
grande variedade de ofertas por si mesmos. Entre elas estavam sacrifícios
exigidos para purificação da impureza cerimonial. Nos sábados e dias
festivos, a cerimônia básica era mais elaborada, por isso normalmente não
eram oferecidos sacrifícios pessoais.
Além do livro de Eclesiástico, grande parte das informações sobre a
rotina diária procede de documentos rabínicos, complementados por Jo-
sefo e outros escritores intertestamentários. Os sacerdotes eram divididos
em 24 grupos, dos quais cada grupo servia em sistema de revezamento
durante uma semana; o rodízio ocorria no meio de todo sábado. Todos
os sacerdotes a serviço do templo se vestiam com roupas especiais.
Todo dia, perto do amanhecer, os sacerdotes que haviam dormido
no templo eram convocados. Um oficial lançava a sorte para definir as
responsabilidades. Os sacerdotes selecionados para servir no dia lavavam
as mãos e os pés; os outros eram dispensados. Os recintos do templo
eram inspecionados para se ter certeza de que os pátios não haviam sido
contaminados.2 As cinzas eram retiradas do altar de bronze c a madeira
colocada sobre ele. A adoração começava quando a luz do dia chegava.
As lâmpadas eram limpas, e óleo novo era colocado neles, as cinzas eram

2 Essas inspeções eram necessárias, pois, em algum momento entre 6 e 9 d.C., alguns
samaritanos jogaram ossos humanos no templo (Josefo, Antiquthes 18.2.2 [30]).
162

removidas do altar de incenso e as portas do templo eram abertas para


indicar o início da adoração. (Os sacrifícios oferecidos enquanto as portas
do templo estavam fechadas não eram considerados válidos.)
Um cordeiro sacrificial era levado até a área de abate no lado norte
do altar de bronze. Davam-lhe água para beber em uma vasilha de ouro
e, em seguida, ele era morto. Seu sangue era coletado, e as partes de seu
corpo eram divididas, dispostas e mantidas em uma mesa de mármore até
serem levadas para o altar. O s sacerdotes e adoradores recitavam os Dez
Mandamentos, o Shemá, bênçãos e outras orações. A M ixná determinava
o salmo específico a ser entoado a cada dia da semana.3
O momento anterior, em que era lançada a sorte, determinava o sa-
cerdote que oferecería incenso no Lugar Santo, o santuário interior. Essa
oferta era considerada uma das partes mais importantes da cerimônia.
Só os sacerdotes que nunca haviam apresentado a oferta eram elegíveis.
Outros o acompanhavam até o santuário. Uma vez oferecido o incenso,
os cinco sacerdotes que haviam cumprido as várias tarefas no Lugar San-
to (incluindo a limpeza das lâmpadas e a remoção das cinzas do altar do
incenso) permaneciam na escada do templo com o sacerdote que havia
oferecido o incenso no meio. Então eles davam a bênção, que incluía a
pronúncia do nome divino.4
Nesse momento, os sacerdotes escolhidos para oferecer o holocausto
colocavam as partes do corpo do sacrifício sobre o altar. Q uando o sumo
sacerdote exercia seu ofício, os outros sacerdotes lhe passavam as partes,
e ele executava o rito. A oferta de bebidas, derramada cm seguida, era
o sinal para que os levitas começassem a cantar, ato intercalado com o
toque de duas trombetas de prata. O povo se prostrava ao toque de cada
trombeta. O fim do canto encerrava a adoração.

·’ O salmo 24 no domingo, o 48 na segunda, o 82 na terça, o 94 na quarta, o 81 na


quinta, o 93 na sexta e o 92 no sábado {Mixná TamidlA). Sem dúvida, não se sabe
ao certo se essa prescrição era observada no período intertestamentário.
4 Esse é o contexto da história sobre a aparição do anjo a Zacarias, pai de João
Batista (Lc 1.5-23). Ele estava presente porque era a vez de seu grupo estar no
templo (v. 5,8). Ele foi “escolhido por sorteio” para oferecer o incenso (v. 9). A
aparição do anjo enquanto ele fazia a oferta assemelha-se às tradições de outras
pessoas que tiveram visões ou receberam revelações no altar do incenso. O fato
de Zacarias não poder falar (v. 20,22) tornou-se ainda mais evidente uma vez que
ele não conseguiu pronunciar a bênção.
163

O ritual do sacrifício do final da tardc era quase idêntico ao da manhã.


Ao anoitecer, as lâmpadas eram acesas, mas não limpas. Em seguida vinha
a oferta de incenso, antes do holocausto.
Atitudes ambíguas em relação ao templo

Como observamos antes, havia certa ambiguidade em relação ao tem-


pio e sacerdócio. Sem dúvida, a oposição externa ao templo e à adoração
sacrificial quase não tcria sido tolerada no judaísmo intertestamentário.
Considere como prova o fato de as ameaças contra o templo estarem
entre as supostas acusações contra Jesus e Estêvão (Mt 26.60-62; 27.40;
Mc 14.56-58; 15.29,30; At 6.11-14). Contudo, de algumas partes, há evi-
dência do apoio pouco sincero, até mesmo de indiferença, e de oponentes
à dominação do templo em Jerusalém.5
Mesmo antes da destruição do primeiro templo, alguns profetas fo-
ram críticos à adoração sacrificial praticada em seu tempo. Israel e Judá
tentavam satisfazer as exigências de Deus com observâncias formais;
eles rejeitaram os aspectos internos da religião e a manifestação externa
necessária dela na vida pessoal e social.6
N o período intertestamentário havia grupos e indivíduos pelo menos
céticos em relação à validade dos sacrifícios, quando não eram, na verdade,
contra os sacrifícios e o templo. Por exemplo, lE noque 89.73, em termos
que lembram Malaquias 1.6-14, fala sobre a adoração no segundo templo:
“Toda comida que estava sobre o altar se encontrava contaminada e im-
pura” (tradução livre). O texto de Eclesiástico 34.18— 35.12 submete os
sacrifícios à ética. A Septuginta faz uma distinção cuidadosa entre a habitação
permanente de Deus no céu e a morada temporária no templo; o conceito
do lar temporário é refletido antes na história de Israel pelos recabitas, que

5 Embora não constituíssem uma ameaça séria ao templo dc Jerusalém, templos rivais
foram erigidos em Samaria e no Egito (Elefantina e Leontópolis). Acreditava-se que
outro templo teve a construção iniciada, mas não concluída, em Araq cl-Emir, do
outro lado do Jordão.
ή Embora muitas vezes haja a sugestão de que os profetas se opunham ao templo
e aos sacrifícios, a consideração cuidadosa dos textos mostra que a hostilidade
deles se voltava contra os abusos dos aspectos religiosos externos. Observe que
Os 6.6; Am .21-24 e Mq 6.6-8 insistem que a adoração cerimonial não substitui a
vida de devoção; de igual modo, outros textos afirmam que a obediência deve ter
prioridade sobre a adoração cerimonial (ISm 15.22,23; SI 4.4,5; 40.6; 51.17-19;
ls 1.11-20; 43.22-24; Jr 7.21-26).
164

viveram em tendas e não em casas permanentes (Jr 35), e provavelmente


pelo profeta Nata, que rejeitou uma casa-templo permanente, preferindo
um tabernáculo-tenda (2Sm 7).7
Fílon é o exemplo da atitude ambivalente em relação ao templo e às
cerimônias. Ele afirmava que Deus não honra os sacrifícios do homem
“cujo coração é o berço da cobiça que se espreita e de desejos inapro-
priados... Em bora os adoradores não tragam nada mais, quando eles se
apresentam, oferecem o melhor dos sacrifícios, a oblação completa e
verdadeiramente perfeita da vida nobre, ao honrarem com hinos e ação
de graças seu Benfeitor e Salvador, Deus” .8 N o entanto, Fílon honrou e
visitou o templo,910e também condenou a espirituaüzação excessiva dele:
“Estaremos ignorando a santidade do templo e outras mil coisas se só pres-
tarmos atenção ao que nos é mostrado pelo seu significado profundo”.1"
Não causa surpresa, portanto, que ele tenha liderado a delegação de
alexandrinos que viajou a Roma na tentativa de convencer Caligula a não
desonrar o templo.” Contudo, Fílon reconheceu que a Divindade não
precisa de uma casa para habitar,12 porque “no sentido mais verdadeiro,
o santo templo de Deus é [...] todo o universo”.13
Os escritores dos manuscritos do mar M orto rejeitaram o sacerdócio
em poder na época. Embora enviassem sacrifícios ao templo, deixaram de
adorar nele. O Manuscrito do templo de Qumran acredita que a estrutura de
Jerusalém será substituída pela deles. Além disso, o grupo do mar Morto,
como Eclesiástico e Fílon, tirava a ênfase dos sacrifícios para insistir prin-
cipalmente na ética da lei divina; outros grupos substituíram os sacrifícios
pelo ritual da purificação.
Alguns judeus, em especial os helenizados, provavelmente tinham
sentimentos idênticos aos dos filósofos gregos que polemizavam contra
os templos. Afirmam que as seguintes palavras foram ditas por Zenão,
o estoico: “Porque um templo não tem muito valor e não é santo, e não

Marcel Simon, “Saint Stephen and the Jerusalem Temple”, Journal of Ecclesiastical
History 2 (1951): 128-33.
Fílon, SpecialLam, vol. 1, p. 270, 272; v. tb. 0« Plants (Noah’s Work as a Planter),
p. 107-9.
9 Fílon, SpecialHnvs, vol. 1, p. 67; On Providence, 264.
10Fílon, Migration of Abraham, p. 92.
11 Fílon, Embassy·■to Gains.
12Fílon, Questions on Exodus, vol. 2, p. 83.
13Fílon, Special Laws, vol. 2, p. 66; v. tb. Questions on Exodus 2.85.
165

há obra alguma de construtores ou de mecânicos que valha tanto”.11*4 As


declarações posteriores ao ano 70 d.C. mostram que havia no judaísmo
um elemento realmente depreciador da ideia do templo permanente.15
E evidente que essa reavaliação da adoração no templo era apenas o de-
senvolvimento de uma tendência mais antiga que, como vimos, fazia-se
presente no judaísmo. Diante da perda do templo de Herodes, os rabinos
permitiram várias coisas para substituir os sacrifícios: 1) a leitura da lei,
2) o jejum, 3) a oração e 4) os atos de caridade e justiça.16
Portanto, temos o contexto para a atitude ambígua de Jesus e dos
primeiros cristãos em relação ao templo e ao sacrifício. Ambos visitaram o
templo, adoraram nele c honraram os impostos do templo (Mt 17.24-27).
Mas Jesus não aceitou a legitimidade das atividades do templo como elas se
apresentavam. Por isso ele purificou o templo (Mc 11.15-19; T,c 19.45,46;
Jo 2.13-17) e prenunciou sua destruição (Mt 24.1,2; Mc 13.1,2; Lc 21.5,6),
afirmando também: “Aqui está o que é maior do que o templo” (Mt 12.6).
Além disso, segundo João 2.19-21, Jesus declarou: “Destruam este templo,
e eu o levantarei em três dias” , mas, em seguida, explica: “o templo do
qual ele falava era o seu corpo” . As palavras de Jesus foram repetidas por

11Citado em Johannes Weiss, Earliest Christianity, trad. F. C. Grant (New York: Harper,
1959), p. 167 n. 7.
‫ יי‬Refletindo sobre a situação do século II d.C.,Justino Mártir diz aTrifão, o judeu:
“K até agora, procurando rivalidades, dizes que Deus não aceita os sacrifícios dos
que habitam em Jerusalém, e eram chamados israelitas, mas que ele se agrada das
orações feitas pelos homens daquela nação que, na época, estava dispersa e que
ele chama de sacrifícios as orações deles” (Diálogo com Trifio 117). De igual modo,
os Oráculos sihilinos 4.6-11, 24-30: “ [Eu sou aquele que proclama] o grande Deus,
a quem mãos humanas não fabricaram à semelhança de ídolos mudos feitos dc
pedra polida. Porque ele não tem uma casa, uma pedra erguida como templo,
muda e sem dentes, uma maldição que traz muitas desgraças aos homens, mas
uma morada que não pode ser vista da terra nem medida por olhos mortais, uma
vez que não foi fabricada por mãos mortais... Felizes serão aqueles da humanidade
na terra que amarem o grande Deus, bendizendo-o antes de beberem e comerem,
colocando sua confiança na devoção. Eles rejeitarão todos os templos quando
os virem, c os altares também, fundamentos vãos dc pedras mudas (e estátuas de
pedras c imagens feitas por homens) profanados pelo sangue dc seres viventes e
sacrifícios de animais quadrúpedes” (tradução livre).
16 Talmude Babilônico Megillah 31 h (v: tb. Avot4.3); Berakoth \ la\ Sanhedrin43b (—Sotah
5b); Sukkah 49b.
Quadro n.e 1
166

Os festivais e o calendário intertestamentário

Colheita Primeiros Colheita Colheita Colheita de Lavoura Flores de Colheita


de cevada; figos de uvas de tâmaras; de figos amêndoas de frutos
colheita de azeitonas colheita no cítricos
linhaça de figos no inverno
verão

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de dias

*Adar Sheni, 0 décimo terceiro mês, ocorria somente a cada três anos; quando ocorria, Adar tinha trinta dias.
Festas prescritas em Levítico 23

As três festas de peregrinação, quando todos os homens tinham de se apresentar no santuário central (Ex 23.14-17; Dt 16.16)
167
168

falsas testemunhas no julgamento (Mt 26.61; Mc 14.58) e pela multidão


no momento da crucificação (Mt 27.40; Mc 15.29). Parece provável que
Jesus tenha feito outras declarações negativas sobre o templo além das
registradas nos evangelhos.
Estêvão, no discurso diante do Sinédrio, claramente pensava no taber-
náculo portátil como símbolo e centro de adoração mais apropriado para
o povo peregrino de Deus que a estrutura permanente em Jerusalém. Ele
considerava o templo uma casa “ [feita] por homens” (cheiropoiêtos; A t 7.48),
palavra grega usada na Septuaginta com referência a ídolos. Isto sugere
que ele via o uso que se fazia do templo, na sua época, como a atitude
de assumir e perpetuar uma caricatura idólatra de Deus. Em bora Deus
esteja presente em todos os lugares do universo, Estêvão deu a entender
que seus contemporâneos haviam quase reduzido Deus a uma divindade
tribal trancada em uma caixa de ouro no monte do Templo, em Jerusalém.
Para Paulo, cada cristão e a igreja são o templo de Deus (ICo 3.16,17;
6.19; 2Co 2.15,16; E f 2.21). Também digno de nota é que a epístola aos
Hebreus não menciona o templo, mas descreve o tabernáculo como o
modelo do centro da adoração celestial.
Portanto, o significado do templo no judaísmo intertestamcntário
era muito simbólico e sentimental. Ele consistia no centro visível da vida
religiosa e o orgulho da nação. N o entanto, na verdade, seu papel e função
estavam em declínio. A experiência havia demonstrado que Israel podería
sobreviver sem o templo; na Diáspora, os judeus faziam isso todos os
dias. Havia também a distinção cada vez maior entre leigos e sacerdotes
que não podiam fazer outra coisa além de influenciar os sentimentos do
povo em relação ao templo.
Na verdade ocorreu uma mudança de ênfase na religião hebraica. O
centro do judaísmo havia passado do templo e das cerimônias para os
princípios morais e a ética. A devoção e o pensamento de grupos como
os fariseus estavam baseados na lei, não só no templo e nas cerimônias
da lei. Esses grupos controlavam a admiração do povo comum. O ver-
dadeiro centro da vida religiosa judaica havia passado para a sinagoga. O
templo, como centro espiritual, era um anacronismo para o judaísmo e
o cristianismo.
Nossa atenção concentrou-se de modo principal no templo como
instituição. N o próximo capítulo, nós nos concentraremos nos escribas e
em seu trabalho como agentes de ajuste às crises. Deveriamos perguntar:
169

Qual era o papel dos sacerdotes nessa época fundamental? N ão podemos


resumir melhor seu papel senão nas palavras de Emil Schürer:
O desenvolvimento interno de Israel após o exílio foi determinado cm
essência por dois grupos igualmente influentes: sacerdotes e escribas. Nos
primeiros séculos após o exílio até o período helenístico, os sacerdotes
predominaram. Eles organizaram a nova comunidade; deles proveio a
Torá; em suas mãos estava a liderança da comunidade, não só em questões
espirituais, mas também materiais. No entanto, enquanto eles mesmos
eram, segundo sua origem, os exímios intérpretes da Torá, aos poucos foi
surgindo junto a eles uma ordem independente de estudiosos e mestres
da Torá. E os membros dessa ordem teriam mais prestígio e influência
à medida que o zelo pela Torá esfriasse entre os sacerdotes e passasse a
ter mais valor e significado entre o povo. Desse momento em diante, os
escribas teriam o controle cada vez maior da direção espiritual da nação.1

Festas e festivais

Enquanto o prestígio do templo estava em declínio, o período inter-


testamentário viu a introdução de novas festas e alterações em algumas
das antigas. () texto de Zacarias 7.1-7 menciona a consulta feita pelo
povo de Betei para saber se, na situação pós-exílica, deveria continuar a
lamentar dois acontecimentos relacionados ao fim de Judá e ao início do
exílio. Esses acontecimentos ocorreram no nono dia do quinto mês (abe
= julho-agosto), quando o templo foi queimado (2Rs 25.8,9;Jr 52.12,13), e
no terceiro dia do sétimo mês (tisri = setembro-outubro), quando Gcdalias
foi assassinado (Jr 41). A palavra do Se n h o r por intermédio do profeta
era, em essência, negativa. N o entanto, o nono dia de abe permaneceu
como uma cerimônia popular. Uma oferta de lenha era feita no templo,
e chamas ou tochas eram acesas como lembretes das tochas lançadas no
templo pelos babilônios para destruí-lo.
Uma festa mais conhecida de origem posterior é o Purim (sorteio).
O livro de Ester oferece o contexto e a justificação. De acordo com Es-
ter 9.26-28, Mardoqueu separou dois dias — o décimo quarto e o décimo
quinto de adar, o décimo segundo mês (fevereiro-março) — para que fosse
lembrado o livramento do massacre intentado por Hamã. Mais tarde, o17

17 Th■History* of theJewish People in the Age ofJesus Christ. Geza Vermes etal. (orgs.), 3
vols. Edinburgh: T. and T. Clark, 1973-87, vol. 2, p. 238-9.
170

décimo terceiro dia de adar tornou-se um dia de celebração da vitória sobre


Nicanor, o general selêucida m orto por Judas Macabeus (lJVlacabeus 7.49).
O texto de 1Macabeus 4.52-58 relata a reconsagração do templo no
vigésimo quinto dia de quislcu (novembro-dezembro) depois que os ma-
cabeus lutaram contra Antíoco Epifânio para ter o controle do templo.
Então, “Judas, os seus irmãos e todo o povo de Israel resolveram que a
festa da dedicação do altar seria comemorada com muita alegria, durante
oito dias, na mesma data, todos os anos, começando no dia vinte e cinco
de quisleu” (v. 59, NTLH-P). () texto de 2Macabeus 10.6-8 (NTLH-P)
dá os detalhes:
Durante oito dias, Judas Macabeu e os seus soldados fizeram come-
morações alegres, como as que são feitas durante a Festa das Barracas,
lembrando que há pouco tempo haviam comemorado essa nas mon-
tanhas e nas cavernas, onde estavam vivendo como animais selvagens.
Por isso, segurando bonitas, folhas de palmeira e varas enfeitadas com
folhas de hera, cantavam hinos a Deus, pois ele tinha deixado que eles
purificassem o templo dele. Depois, todos votaram a favor de uma lei
em que se ordenava que a nação inteira dos judeus comemorasse todos
os anos essa festa.
O texto de 2Macabeus 1.18-36 associa a festa não só à Festa das Ca-
banas, mas também à aparição do fogo miraculoso na reconsagração do
altar na época de Neemias. Entre as leis para a observação da festa estavam
a de que se queimasse, pelo menos, uma lâmpada cm cada casa durante
todas as noites da festa. Λ Festa da Dedicação 0o 10.22), ou Chanuca, ainda
é celebrada por famílias judaicas.
Não precisamos repetir o breve exame feito antes sobre as festas
e festivais do Antigo Testamento (p. 69-71). N o entanto, é importante
notar algumas de suas alterações ou expansões para nossos propósitos.
Infelizmente, as fontes intertestamentárias têm pouco a dizer sobre essas
questões. Escritos posteriores, no entanto, oferecem descrições detalha-
das de algumas cerimônias mencionadas com tanta brevidade em alguns
escritos intertestamentários.
A Festa das Trombetas, no primeiro dia de tisri (setembro-outubro), é,
de acordo com o livro de Números, a festa do Ano Novo. Mas há também
referências ao início do ano novo em nisã (março-abril) (Êx 12.2). De
acordo com a Mixná: “Há quatro dias dc ‘ano novo’: no primeiro dia de
nisã é o ano novo para reis e festas; no primeiro dia de elul é o ano novo
171

para o dízimo do gado (r. Eleazar e r. Shimon dizem: () primeiro dia de


tisri); no primeiro dia de tisri é o ano novo para [avaliar] os anos [de reis
estrangeiros], dos Anos de Libertação e do Jubileu; e o primeiro dia de
sebate é o ano novo para árvores [frutíferas] (por isso a Escola de Sham-
mai e a Escola de Hillel dizem: N o décimo quinto dia dele).18O judaísmo
intertestamentário parece ter observado o ano novo durante o tisri.
Como se observou no estudo das festas do Antigo Testamento, o
Dia da Expiaçâo era uma ocasião para arrependimento e purificação do
pecado da nação c do indivíduo. Fílon diz que o dia era “cuidadosamente
observado não só pelos zelosos que buscavam devoção e santidade, mas
também por quem nunca agira de forma religiosa pelo resto da vida... A
grande dignidade do dia tem dois aspectos: um como festival, o outro
como tempo de purificação e fuga dos pecados”.19 O livro dos Jubileus
34.18-19 diz que também era observado como uma festa de arrependí-
mento por crimes contra José.
Ficaríamos surpresos se a Páscoa, uma das festas mais importantes, não
mudasse em alguns sentidos no período intertestamentário. Três grandes
áreas podem ser mencionadas. A primeira foi a mudança de alguns deta-
lhes.2‘1O livro dos Jubileus 49, por exemplo, omite as ervas mais amargas
e dá atenção ao momento exato do sacrifício do animal. A segunda foi a
reinterpretação e o desenvolvimento considerável de outros significados.
O capítulo 18 de Sabedoria extrai lições de gratificações e castigos da
experiência dos egípcios e hebreus na primeira Páscoa. Por último, havia
a distinção cada vez maior entre o sacrifício da Páscoa e a festa em si e
a Festa dos Pães sem Fermento. Ao que parece, isso era útil, de modo
especial, onde era possível observar uma delas, mas não as duas.21
Os adendos mais detalhados às instruções do Antigo Testamento
para qualquer festival eram os da Festa dos Tabernáculos ou Cabanas. Ela
permaneceu a comemoração das peregrinações de Israel pelo deserto. E

18Mixná Rosb ha-Shanah 1:1.


19Fílon, Special I mips 1.186-87. Nas seguintes seções, Fílon encontra significado no
número c tipos de sacrifícios oferecidos no dia.
Nos desenvolvimentos intertestamentários da Páscoa, cf. Baruch M. Bokscr,
“Unleavened Bread and Passover, Feasts o f”, cm Anchor Bible Dictionary, David
Noel Freedman (org.), 6 vols. (New York: Doubleday, 1992), vol. 6, p. 270-3, e a
extensa bibliografia nas p. 764-5.
21Trifôo afirma que o sacrifício da Páscoa não pode ser oferecido longe de Jerusalém
(Justino Mártir, Diálogo com Trifa.0 , 40, 46).
172

os hebrcus continuaram a construir barracas ou cabanas e a viver nelas


por urna semana (oito dias no período intertestamentário). Nos tempos
intertestamentários, as mulheres não eram obrigadas a se mudar para a
cabana, mas algumas optavam por isso.
Vimos que no período intertestamentário a Festa dos Tabernáculos
tornou-se um modelo para celebrar a vitória dos macabeus. Há certa
indicação de que a festa também passou a ser associada à renovação da
aliança e celebração do Reino de Deus.
Além das informações gerais sobre a Festa dos Tabernáculos, a Mixná
oferece evidências de que, pelo menos, alguns dos adendos podem provir
do período intertestamentário. O tratado mixnaico Sukkah começa com
a discussão dos materiais aceitáveis para a construção da sukkah (cabana
ou tabernáculo). Hle segue com a discussão de como coletar e amarrar o
lulav, um maço de ramos de murta, de salgueiro e de palmeira colhidos nos
arredores de Jerusalém e ao qual era presa uma cidra (um fruto similar a
um limão, mas um pouco maior). Esse maço era balançado cerimonial-
mente durante o festival.
O tratado de Sukkah segue descrevendo o uso especial da água neste
festival.22N o primeiro dia da festa, uma procissão conduzida por sacerdo-
tes levava água do tanque de Siloé para o templo; tocavam-se trombetas
no portão da cidade quando a procissão entrava. Todos os dias, os sacer-
dotes rodeavam o altar enquanto os adoradores agitavam o lulav. O Halel
(Salmos 113— 118) era recitado ou entoado em cada um dos oito dias. O
sacerdote oficiante subia a rampa do altar e, usando duas vasilhas de prata,
uma para a água e outra para o vinho, derramava a libação.
Sukkah 4.9 diz-nos: “Para o sacerdote que realizava a ligação, [o povo]
dizia: ‘Levanta tua mão!’ ”, porque um ano o sacerdote “derramou a liba-
cão sobre seu pé, e todo o povo jogou as cidras nele.” Josefo identifica o
culpado como Alexandre Janeu.22’ Isto confirma que tanto a libação com
água e o lulav eram partes da liturgia intertestamentária.
Outra característica extrabíblica eram os quatro candelabros grandes
(menorás) acesos; os pavios de suas lâmpadas eram feitos de vestes puídas
dos sacerdotes. Essas menorás iluminavam toda a área do templo. O povo *23

12 Cf. George Foot Moore, Judaism in the First Centuries of the Christian Era, 3 vols.
(Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1927-30), vol. 2, p. 44.
23Josefo, Antiquities 13.13.5 (372). O Talmude diz que a parte culpada era um saduceu;
Janeu, sem dúvida, era saduceu.
173

dançava enquanto os levitas recitavam os salmos de ascensão (120— 134).


A celebração poderia durar grande parte da noite.
O auge do festival acontecia no último dia. A procissão dava sete voltas
em torno do altar, e o povo batia o lulav na terra, em vez de balançá-los no
ar. Evidências posteriores sugerem que havia também leituras especiais
da lei nesse último dia.
Em João 7, Jesus chega a Jerusalém na última parte da Festa das Caba-
nas. “N o último e mais importante dia da festa, Jesus levantou-se e disse
em alta voz: ‘Se alguém tem sede, venha a mim e beba. Quem crer em mim,
como diz a Escritura, do seu interior fluirão rios de água viva’ ” (v. 37,38).
Considerando a época (a Festa dos Tabernáculos), o lugar (o templo) e
o tema (a água), a declaração foi ousada e forte. N ão é de surpreender
muito nos versículos seguintes a discussão do povo querendo saber se
Jesus poderia ser o Messias.24
N o período intertestamentário, a importância do Pentecoste (a Festa
das Semanas) parece ter aumentado. O Antigo Testamento o apresenta, em
essência, como um acontecimento agrícola. N o período intertestamentário,
o Pentecoste também celebrava a entrega da lei no Sinai.*2‫ ’־‬Isso dá maior
sentido aos acontecimentos de Atos 2, que ocorreram no Pentecoste.

O DESEJO DE RESTAURAÇÃO DA MONARQUIA


() papel da monarquia em Israel era um pouco problemático. O
ideal era refletido por Gideão. Quando os israelitas quiseram instituir a
monarquia hereditária a partir da família dele, ele não aceitou, dizendo:
“O S e n h o r reinará sobre vocês” (Jz 8.23). Em bora tenha estabelecido
condições para os reis hebreus, o Pentateuco lhes impõe restrições e

24 Em cada um dos relatos sobre a transfiguração (Mt 17.1-9; Mc 9.2-10; Lc 9.28-


36), uma vez que Pedro pede para que sejam feitas três tendas, a palavra grega é
skênè, a tradução de sukkah, o nome da festa e das estruturas nas quais os homens
viviam. O texto de Lc 9.31 diz que a conversa entre Jesus, Moisés e Elias era
sobre “a partida de Jesus, que estava para se cumprir cm Jerusalém”. A palavra
grega traduzida por “partida” é êxodos, o evento histórico comemorado na Festa
das Cabanas. Deveriamos observar também que alguns grupos judaicos intertes-
tamentários consideravam Moisés e Elias figuras escatológicas, se não, de fato,
messiânicas.
2-‫ י‬Acreditava-se que Israel levou cinquenta dias para viajar do Egito ao Sinai. Por-
tanto, foram cinquenta dias a partir da Páscoa, o dia da libertação do Egito, que
os hebreus devem ter ficado no monte Sinai.
174

insiste para que conheçam e sigam a lei de Deus (Dt 17.14-20). Samuel
resistiu ao pedido do povo que queria um rei, cedendo apenas quando
Deus lhe disse: “Atenta a tudo o que o povo está lhe pedindo; não foi a
você que rejeitaram; foi a mim que rejeitaram como rei” (ISm 8.7) Saul
e Davi foram escolhidos por Deus e ungidos por Samuel. A monarquia
hereditária perpétua foi estabelecida com a família de Davi (2Sm 7.12-17;
lC r 17.10-15). Assim, reis governaram Israel com permissão divina.
Enquanto Deus trabalhava por meio da monarquia, ela era tudo menos
absoluta. Deus é o único rei legítimo, os reis humanos são apenas seus
representantes. O s reis de Israel eram responsáveis por governar em nome
de Deus e cumprir a vontade dele, não estabelecer leis e políticas próprias.
A visão pós-exílica está resumida no texto de 2Crônicas 13.8, em quejudá
é chamado “reino do S e n h o r , que está nas mãos dos descendentes de
Davi” (v. tb. lC r 28.5).
Vários profetas prenunciaram que a restauração e a bênção futura
incluiríam a volta da lei por meio da casa de Davi (Is 9.7; 16.5; Jr 17.25;
23.5; 30.9; 33.15,17,20-22; Ez 34.23,24; 37.24,25; O s 3.5; Am 9.11). Além
disso, a promessa feita a Davi e seus descendentes levou à expectativa de
que o Messias (o líder/rei por excelência) surgiria dessa família. As espe-
ranças imediatas do restabelecimento da monarquia hebraica após o exílio
concentraram-se na família de Davi.26 Dois indivíduos são mencionados
em Esdras como líderes politicos: Sesbazar, príncipe e governador, e Zo-
robabel, o reconstrutor do templo.27 O livro de Esdras não apresenta a*2

:<i Daí o título “Filho de Davi” (I.c 18.38,39; v. tb. 1.32; At 2.25-36; Rm 1.3) era en-
tendido como messiânico; muitas vezes foi visto como referência ao rei messiânico
cuja função seria, sobretudo, na esfera político-militar.
2 Para ler sobre Sesbazar, cf. F.d 1.8-11; 5.14-16. Não é preciso considerar a palavra
hebraica traduzida por “príncipe” em algumas versões como uma referência a uma
pessoa de descendência real; “governador” também é um possível significado.
A relação entre Sesbazar e Zorobabel é pouco clara. As principais teorias são:
1) Os dois nomes designam a mesma pessoa; Sesbazar é apenas o nome usado
por Zorobabel na corte; 2) Sesbazar é, na verdade, Senazar de 1Cr 3.18, irmão de
Sealtiel e, portanto, tio de Zorobabel; 3) o autor intencionalmente deixou incerta
a relação entre os dois para tratar da resposta tardia de Zorobabel de cumprir o
decreto de Ciro para a reconstrução do templo; 4) Sesbazar (gentio ou hebreu)
era oficialmente o governador-líder, enquanto Zorobabel, o hebreu, era o líder
informal dos que haviam retornado e 5) Sesbazar era o primeiro e Zorobabel,
o segundo, dos vários governadores de Judá; embora o nome dos governadores
(incluindo Neemias) tenha sido parcialmente mencionado mais uma vez nesse
175

linhagem de Sesbazar, e Zorobabel é chamado apenas “filho de Sealtiel”


(Ed 3.2; 5.2; Ne 12.1). O texto de 1Crônicas 3.16,17 deixa claro que Sealtiel
era filho do reijeconias (Joaquim/Conias) (v. M t 1.12; Lc 3.27). Portanto,
Zorobabel, que mais tarde foi designado governador por legítimo direito
(Ag 2.21), era descendente de Davi.
Ao silêncio de Esdras sobre a herança real de Zorobabel devemos
acrescentar a convicção de Ageu de que Zorobabel e o sumo sacerdote
Josué seriam protegidos em meio a tempos perigosos (2.4,5). Mais tarde, o
profeta entregou a palavra do S e n h o r : “ E u o tomarei, meu servo Zoroba-
bel [...] e farei de você um anel de selar, porque o tenho escolhido” (2.23).*28
Esta declaração é lembrada em Eclesiástico 49.11 (NTLH-P): “Zorobabel
[...] era como um anel-sinete na mão direita de Deus” . Devemos também
acrescentar que, na profecia de Zacarias, o Se n h o r diz ao sumo sacerdote
Josué: “Trarei o meu servo, o Renovo” (3.8), e o “Renovo [...] construirá
o templo do S e n h o r ” (6.12). Nos textos de Jeremias 23.5, 6 e 33.14-18, o
“Renovo” é um título do Messias davídico vindouro. Considere também o
que o S e n h o r diz a Zorobabel em relação à restauração do templo: “Não
por força nem por violência, mas pelo meu Espírito” (Zc 4.6-9).
O silêncio em Esdras sobre o descendente davídico de Zorobabel,
junto com a confiança que o S e n h o r lhe restaurou, pode indicar que
alguns de seus contemporâneos o viam como o rei messiânico. Outras
indicações incluem a associação de termos como “anel de selar” e “Reno-
vo” com o reconstrutor davídico do templo. A razão para o silêncio era
que os rumores de que ele era um rei poderíam ter colocado Zorobabel
em perigo no Império Persa.
Precisamos dizer algo aqui sobre o papel sacerdotal em conexão com
a restauração da monarquia como também do templo. Ao longo de todo
o livro de Esdras, o sumo sacerdote Josué está presente com Zorobabel.
Ele partilha as certezas dadas a Zorobabel por Ageu e Zacarias. Portanto,
ele é, pelo menos, um bom candidato, como Zorobabel, para ser o “Reno­

momento, suas atividades eram muito complexas para serem entendidas e forma
completa. Cf. Derek Kidner, “Apêndice II: A identidade de Sesbazar”, em Esdras
e Neemias: Introdução e comentário (São Paulo: Vida Nova, 1985), p. 139-42; Tamara
C. Eskenazi, “Sheshbazzar”, em Anchor Bible Dictionary, vol. 5, ρ. 1207-9.
28 A expressão aqui é particularmcnte enfática diante das palavras do Senhor para
Joaquim, avô de Zorobabel: “Ainda que você []oaquim] [...] fosse um anel de selar
em minha mão direita, eu o arrancaria. Eu o entregarei nas mãos daqueles que
querem tirar a sua vida” (Jr 22.24,25).
176

vo”. Também precisamos observar que, no judaísmo intertestamentário,


havia a expectativa do sacerdote que fizesse companhia ao Messias e até
do Messias sacerdotal.
A restauração da monarquia não veio nos dias de Esdras, Zorobabel,
Neemias e seus contemporâneos. Na verdade, nem veio por meio da família
de Davi, mas por meio da linhagem dos sacerdotes hasmoneus. Embora
Aristóbulo 1 fosse o primeiro dos macabeus a reivindicar, na verdade, o
título de rei, vários predecessores dele que ocuparam o cargo preservaram
o nome em todos os sentidos.
A associação do Zorobabel davídico com as aspirações da restauração
da monarquia, junto com a disposição posterior dos judeus de aceitar os
macabeus como reis, mostra o forte desejo pela volta do cargo e instituição.
Esse anseio fazia parte do programa de reajuste de muitos. O desejo de
ter um rei próprio, junto com promessas divinas, ajudou a fortalecer as
expectativas messiânicas ao longo do período intertestamentário.
9
Escribas e tradição

• O s escribas
• Textos intert.estamentários que atestam as tradições dos escribas
- O tratadoAvot
- A tradição secreta de 2Esdras
• A variedade de tradições dos escribas
- O movimento apocaliptista
- Os saduceus
- A comunidade do mar M orto e outros essênios

OS ESCRIBAS
O judaísmo intertestamentário desenvolveu uma variedade de for-
mas de pensamento e tradições nos esforços para interpretar e manter a
relevância da Escritura.1Nossa sugestão é de que isto consistia em parte
do reajuste geral diante das crises dos séculos VI e IV a.C. Observaremos
neste momento os que desenvolveram algumas dessas formas, parte do
conteúdo e transmissão e, por fim, evidências da multiplicidade de tradi-
ções no judaísmo intertestamentário.
N o capítulo anterior citamos a afirmação de Emil Schürer no sentido
de que o judaísmo intertestamentário resultou do trabalho de dois grupos
diferentes: sacerdotes e escribas. Ambos eram intérpretes da lei e líderes
do povo. Os escribas aos poucos foram assumindo seu lugar ao lado dos
sacerdotes como um grupo respeitado e independente. Contudo, muitos

1 Corno exemplos, vêm à mcnt:e as distinções entre o judaísmo semita c helenístico e


entre o judaísmo da palestina e o da Diaspora. Portanto, também, havia diferenças
entre comunidades judaicas, como as de Antioquia, Alexandria e Babilônia.
178

escribas, sc não a maioria deles, especialmente nos primeiros dias do


período intertestamentário, eram sacerdotes.2 Isto está bem ilustrado no
caso de Esdras, o escriba quintcssencial.
As descrições de Esdras no livro que porta seu nome são significati-
vas. Ele é chamado sacerdote, escriba e estudioso (7.11). Como escriba, ele
“conhecia muito a Lei de Moisés dada pelo S en h o r , o Deus de Israel” (7.6).
Ele “tinha decidido dedicar-se a estudar a Lei do Sen h o r e a praticá-la, e a
ensinar os seus decretos e mandamentos aos israelitas” (7.10). Sem dú-
vida, o foco principal desse sacerdote estava no estudo da lei, refletindo
a mudança dc ênfase do templo c das cerimônias para a própria lei. Não
que Esdras não se preocupasse com o templo, a adoração cerimonial e
os ritos religiosos na vida diária — esses, no entanto, eles faziam parte do
que Esdras aprendera com o estudo da lei e do que ele procurava aplicar
na vida comunitária dos que regressaram.
Esdras é descrito na Bíblia não só como sacerdote-escriba-estudioso,
mas também como governador e reformador. À parte da Escritura, a tra-
dição judaica afirma que ele restabeleceu a nação e a religião, o segundo
Moisés.3 E importante ressaltar que Esdras não se limitou a um único
ofício no judaísmo intertestamentário.
O papel multifacetado de Esdras como paralelo ao dos escribas pos-
teriores são descritos em Eclesiástico 38.24— 39.11. Eles também eram
procurados para dar conselhos, destacavam-se na assembléia pública e

2 “Os escribas do final do período do Segundo Templo cuja genealogia é conhecida


eram sacerdotes em sua maioria... Os rabinos diziam que os sacerdotes comuns
eram ricos, por isso é evidente que nos dias do Segundo Templo os escribas vi-
nham quase exclusivamentc de famílias ricas e distintas, na maioria de sacerdotes
ou levitas. Mas, com a propagação do helenismo na terra de Israel, o processo de
seculari/.açào e de status decrescente dominou a profissão de escriba, e surgiram
muitos escribas dentre o povo sem qualquer relação com a posição oficial, o sacer-
dócio ou o templo” (Mcir Bar-Ilan, “Writing in Ancient Israel and Iiarly Judaism”,
em Mikra, M. J. Mulder, Harry Sysling (org.), em Compendia Rerum ludaicarum ad
Novum Testamentum, 7 vols. Philadelphia: Fortress, 1974-92], seção 2, vol. 1, 22).
' Entre as lendas a respeito de Esdras está a afirmação de que ele foi discípulo de
Baruque, na Babilônia, e se recusou a voltar a Jerusalém enquanto seu mestre vi-
vesse. Acreditava-se também que Esdras conseguiu escapar por milagre da morte,
entrou vivo no paraíso, conversou com anjos e é um dos cinco homens rcalmente
devotos. Cf. Louis Ginzberg, The Legend of theJews (A lenda dos judeus), 7 vols.
Philadelphia: Jewish Publication Society o f America, 1909-38, vol. 4, p. 354-59;
vol. 6, p. 441 -7.
179

agiam como juizes e governantes (38.32,33). Contudo, mesmo nessa im-


portante passagem, o escritor descreve a essência do trabalho do escriba
como erudito e religioso:
... [Ajquele que se dedica ao estudo da lei do Deus Altíssimo. Ele estuda a
sabedoria de todos os mestres antigos e medita nas profecias. Ele aprende
de cor os ensinamentos de hom ens famosos e procura descobrir o que
querem dizer as comparações. Explica também o significado escondido
dos provérbios e entende os segredos das comparações. Presta serviços
a pessoas importantes e é visto na companhia das autoridades. Ele viaja
por países estrangeiros e sabe, p o r experiência própria, o que é bom e o
que é mau neste mundo. Ele levanta muito cedo para orar ao Senhor, o
seu Criador, faz os seus pedidos e, em voz alta, pede a Deus que perdoe
os seus pecados (39.1-5, NTLH-P).

Além dc Esdras, são poucas as referências do AT aos escribas; ao


que parece, eles eram pouco mais que secretários.4 N o m undo antigo, os
escribas eram, sobretudo, copistas. Quase toda corte tinha seus escribas,
e eles eram parte essencial do cortejo de muitos templos. N o entanto, o
escriba não ocupava de forma necessária uma posição oficial. Além disso,
quase qualquer grupo podia ter escribas, e muitos tinham. Originariamente,
no judaísmo também, os escribas copiavam a lei e outros textos sagrados.
A ruína das instituições judaicas na época do cativeiro deixou um
vácuo de autoridade e liderança. Ao mesmo tempo, a posição do escriba
foi ampliada como resultado da mudança de ênfase, que deixou de ser no
templo e na cerimônia. Pode-se começar a reconhecer a natureza da situa-
cão só quando nos lembramos da importância e santidade da lei na vida
judaica intertestamentária. Quanto mais alto estiver a lei, mais importantes
serão o estudo e o exercício dela. Seus conhecedores eram impreteríveis
na nova situação, e podiam ensinar e aplicar a lei. Para isso, era preciso o
estudo profissional e muitos exercícios. Na verdade, com a mudança de
ênfase, esperava-se que todo judeu conhecesse a lei e fosse obediente a ela.
N o início do período intertestamentário, os sacerdotes cumpriam os
papéis de mestres e intérpretes da lei. Várias fontes parecem indicar que,
tão logo a cultura helenística e outros interesses seculares ocuparam cada
vez mais sua atenção, eles começaram a negligenciar o ensino e a aplica­

4 V., p. ex., lC r 2.55; 24.6; 27.32; 2Cr 34.13; Ed 4.8,9,17,23; SI 45.1; Jr 8.8; Na 3.17.
Embora não seja considerado escriba, Baruque desempenha a função enquanto
escreve as palavras ditadas por Jeremias (Jr 36.4,18).
180

ção da lei e das tradições surgidas em torno dela. Por isso, por volta do
século 11 a.C , os escribas se tornaram um grupo respeitado e influente
que não dependia dos sacerdotes. Ao copiar a lei, os escribas passaram a
conhecê-la por completo. Com o tempo, por causa do conhecimento, eles
foram reconhecidos como peritos. Eram procurados para dar informações
sobre o que a lei realmente dizia, e, mais tarde, para ajudar na compreensão
de seu significado e suas exigências. Os escribas surgiram para preencher
a lacuna deixada pelos sacerdotes. Eles se tornaram os guardiões zelosos
da lei, os verdadeiros mestres e líderes da vida espiritual. Sua preocupa-
ção era, principalmente, com as seções legais da lei, com relação ãs quais
eles começaram a desenvolver tradições (halakhah). Como consequência,
tornaram-se responsáveis pela definição e aperfeiçoamento dos princí-
pios fundamentais ou provenientes da lei, e ajudavam na administração
da lei como conselheiros instruídos nas cortes de justiça. Por fim, muitos
escribas se tornaram mestres (mas não devemos pressupor que todos os
mestres [rabinos] eram escribas). Uma vez que não eram remunerados
(exceto, provavelmente, na função como mestres dos jovens), os escribas
se sustentavam por meio do trabalho secular.
O trabalho dos escribas e o desenvolvimento e transmissão da tradição
estão interligados. É comum imaginar que todos os escribas faziam parte
do mesmo grupo e tinham cm comum a mesma ideologia. Ainda mais
comum é o conceito da tradição única. Assim, os escribas estão associados
aos fariseus, cuja tradição é vista como a que, mais tarde, foi codificada e
ampliada no judaísmo rabínico. Essas suposições precisam ser reavaliadas.
A própria evidência do N T é reveladora. C) estudo cuidadoso dos
dados mostra que os escribas estavam associados a diversos grupos e,
ao que parece, pelo menos em alguns casos, trabalhavam em posições
oficiais.s De importância ainda maior é a constatação da associação dos

‫ י־‬Λ expressão “mestres da lei (escribas) c fariseus”, que deixa ambígua a relação entre
eles, é usada sete vezes em Mt 23 (v. 13,14,15,23,25,27,29). “Fariseus e mestres
da lei (escribas)” ocorre em Mt 5.20 e 12.38; “os mestres da lei (escribas) e os
fariseus” em Mt 23.2; Mc 7.5; l.c 5.21; 6.7; 11.53; 15.2 (“os fariseus e os mestres
da lei [escribas]) e Jo 8.3; e “os fariseus e alguns dos mestres da lei (escribas) cm
Mc 7.1, sugerindo de modo contundente que eles podem ter integrado, de certo
modo, pelo menos dois grupos diferentes. Os textos de Mc 2.16 e At 23.9 escla-
recem a situação ao se referir aos “mestres da lei (escribas) que eram fariseus”
(Lc 5.30, que faz um paralelo com Mc 2.16, diz “os fariseus e aqueles mestres da
lei [escribas]), indicando que só alguns escribas estavam associados aos fariseus.
181

escribas a uma variedade de tradições. Para entendermos o trabalho deles


e a variedade de tradições a eles associadas, consideraremos dois textos
intertestamentários e alguns grupos com tradições distintas.

T e x to s in t e r t e s t a m e n t á r io s q u e a t e s t a m a s t r a d iç õ e s d o s escribas

O tratado Avot
O primeiro texto a ser considerado é o tratado mixnaico Avot. Com o
restante da Mixná, ele foi compilado entre os anos 90 e 200 d.C. Contém
alguns dos ensinos mais anügos da Mixná. Em bora sua data precisa seja
incerta, ele parece conter o material de uma serie de fontes que datam do
século III a.C. ao século II d.C. Avot é uma coletânea de comentários de
muitos rabinos, dos quais 65 são identificados. Dentre os citados, vários
estavam ativos enquanto o templo de Jerusalém ainda existia. Portanto,
Avot oferece vislumbres da mente judaica intertestamentária cuja visão e
prática, mais tarde, suscitaram o movimento rabínico.
N ão há um método, organização ou ponto de vista evidente no Avo/·,
parece que cabe aos leitores formar a própria impressão. O A voté, contudo,
um clássico da literatura judaica. Observou um escritor: “ O A vot fala ao
coração do judeu de uma maneira e com uma força raramente percebí-
das por leitores não judeus, e as tentativas para explicar seus ensinos e
significado são frustradas à medida que esse fato não é compreendido”.6
Os escribas são mencionados ao lado de oficiais judeus em vários contextos. Eles
estão associados aos chefes dos sacerdotes e lideres religiosos em Mt 16.21 (=
Mc 8.31; Lc 9.22); Mt 26.57 (= Mc 14.53; Lc 22.66); M t 27.41; Mc 11.27; 14.43;
15.1; Lc 19.47; 20.1 e At 4.5,6. Eles aparecem só com os chefes dos sacerdotes
em Mt 2.4; 20.18 (= Mc 10.33); Mt 21.15 (= Mc 11.18); Mc 14.1; 15.31; Lc 20.19;
22.2; 23.10. Os escribas também são um grupo identificável em Mt 7.29; 8.19; 9.3
(= Mc 2.6); Mt 1.3.52; 17.10; Mc 1.22; .3.22; 9.11,14; 12.28,32,35,38; Lc 20.39,46 e
ICo 1.20. Eles aparecem na lista como conspiradores contra Jesus (Mc 14.1,4.3)
e participantes de seu julgamento (Mt 26.57 [= Mc 14.53; Lc 22.66]; Mc 15.1;
Lc 23.10). Aparentemente, alguns eram membros do concilio (Sinédrio). Λ asso-
ciação próxima de alguns escribas com os chefes dos sacerdotes pode indicar que
alguns escribas eram saduceus ou solidários aos saduceus. C) texto de Mt 2.4 c,
partieularmente, interessante, pois se refere aos “chefes dos sacerdotes do povo e
os mestres da lei (escribas)”. O NT, portanto, associa os escribas a uma variedade
de grupos e sugere que, pelo menos, alguns deles tinham posições oficiais.
6 R. Travers Herford, The Ethics of the Talmud·. Sayings o f the Fathers |Pirke Aboth].
New York: Schocken, 1962, p. 1.
182

propósito do tratado é reconhecer a origem divina (sinaítica) da lei,


tanto oral como escrita, e o caráter confiável de sua transmissão pelos seres
humanos. O tratado A vot define padrões que devem reger todo o Israel
(mestre e aluno, juiz e julgado) no estudo, administração e cumprimento da
lei. File menciona os principais temas da ética com os quais provavelmente
se comprometiam a maioria dos judeus que viviam no final do período
intertestamentário e início da era seguinte. Sua principal ideia é a de que
ser virtuoso significa fazer a vontade divina revelada na lei; para se tornar
virtuoso, é preciso aprender o que ele revelou e levar isso a sério. Uma
grande parte das máximas de A vot não se refere, portanto, só à leitura da
lei, mas também ao estudo do pensamento divino revelado nela.
C) tratado começa:
Moisés recebeu a Lei |Torá] do Sinai e transmitiu-a a Josué; e Josué,
aos anciãos; e os anciãos, aos profetas; c os profetas a transmitiram aos
homens da Grande Assembléia. Eles diziam três coisas: sejam cautclo-
sos no julgamento, façam muitos discípulos e coloquem uma proteção
em torno da I.ci. Simão, o Justo, foi um dos remanescentes da Grande
Assembléia. Ele dizia: São três coisas que sustentam o mundo: a Lei, o
serviço [no Templo] c os atos da benevolência [Avot 1.1,2],
( )s três comentários dos homens da Grande Sinagoga fazem entender
o ponto de vista de Avot. A cautela no julgamento alude à aplicação da
justiça pelos juizes; também pode se referir à aplicação mais ampla da lei
em uma ampla variedade de circunstâncias. Fazer discípulos tem em vista
o processo ensino-aprendizado e o objetivo de transmitir conhecimento
e observância. O tipo de aprendizado exigido é ilustrado no louvor de
Eliezer ben Hircanus, descrito como “uma cisterna cimentada que não
perde uma gota de água” (2.8). O melhor modelo de discípulo é “pronto
para ouvir e tardio para perder” (5.12). Por último, a colocação de uma
proteção em torno da lei é esclarecida em A vot 3.14: “A tradição é uma
cerca em torno da Lei”.8 Para assegurar a observância da lei, as instruções

Ibid., 20-21: “Cautela no julgamento originariamente como aqui, o julgamento de


um juiz, mas, mais tarde, ‘argumentação’, é a chave para o casuísmo do Ίαtmude,
e, em geral, jusdfica esse casuísmo. Pois cautela expressa o desejo de estudar uma
questão a partir de todos os pontos de vista e levar em consideração toda contin-
gência possível ainda que improvável”.
a George Foot Moore,Judaism in the First Centuries of the Christian Era, 3 vols. (Cam-
bridge, Mass.: Harvard University Press, 1927-30), vol. 1, p. 33, traduz a palavra
183

em torno dela foram multiplicadas; elas instruções constituem grande


parte do que se conhece como tradição oral.
Na essência do judaísmo comentado no Avot estavam, pelo menos,
quatro passos relacionados. Primeiro era o estudo cuidadoso da lei por
todos, em especial pelo líder-mestre (rabino). Em seguida, o ensino da
lei aos estudantes — processo que incluía transmiür a lei junto com as
opiniões de mestres do passado c do presente. Isso levou à expansão da
lei com novas leis e interpretações que foram acrescentadas, e, por fim
(embora não de modo necessário à parte dos outros passos) a aplicação
da lei em situações específicas. O registro das discussões sobre a lei e das
ações subsequentes tornou-se parte do corpo de jurisprudência, a base
de outra expansão e aplicação.
Implícita em tudo isso está a codificação de um corpo de leis, opi-
niões e atividades judiciais que aconteciam junto com a lei escrita. Essa
codificação, afirma o Avot, era o trabalho da Grande Assembléia e abria o
precedente para seus sucessores fazerem o mesmo. Resumindo a tradição
judaica sobre a Grande Assembléia, Herbert Danby descreve-a como “um
corpo de 120 anciãos, incluindo muitos profetas, que surgiram no exílio
com Esdras; eles viram que a profecia havia chegado ao fim e que falta-
va restrição; portanto, eles criaram novas leis e restrições para a melhor
observância da Lei” .1'
N o resumo do Período Persa, observamos o questionamento da
existência da Grande Assembléia (p. 80). O problema da historicidade
não pode ser resolvido de forma definitiva. Se, de fato, houvesse esse
corpo, seria provável que sua datação ocorresse por volta dos dias de
Esdras (444 a.C.) e dos acontecimentos registrados em Neemias 8— 10
à época de Simão, o Justo. Aqui, mais uma vez, nós nos deparamos com
dificuldades históricas: Simão, o Justo, foi identificado com duas pessoas.
Havia o Simão filho de Onias I, sumo sacerdote de 310 a 291 (ou 300 a*9

seyag como “barreira” e fala de “decretos cujo objetivo é evitar qualquer violação
possível do estatuto divino... [e] ‘manter o homem bem longe da transgressão’ ”
(Mixná Berakoth 1.1). Λ barreira tinha como intenção “protcgc-la |a Torá] ao
cercáda com medidas cautelares para deter o homem como se fossem um sinal
de perigo antes que ele chegasse a violar a distância do próprio estatuto divino”
(1:259).
9 TbeMishnab, trad. Herbert Danby. Oxford: Oxford University Press, 1933, p. 446
n. 5.
184

270). Josefo dá a esse indivíduo o título “o Justo”."' O outro candidato


é Simão II, sumo sacerdote de 219 a 199. Ele parece a figura religiosa e
política descrita em Eclesiástico 50. Seja qual for o caso, o significado da
Grande Assembléia não é limitado pelas incertezas históricas. Até na
forma lendária, ela representa a fonte da reorganização do judaísmo e do
desenvolvimento do conceito de tradição, que se tornou um elemento
importante no judaísmo intertestamentário.
Pelo menos, os dois primeiros capítulos de A vot estão, de igual modo,
interessados tanto na transmissão da tradição quanto na própria tradição.
A tradição foi passada de Deus (Sinai) para Moisés, depois para Josué,
depois para os anciãos, depois para os profetas, depois para os homens
da (írande Assembléia, incluindo Esdras e Simão, o Justo. Depois vieram
Antígono de Soco e os Pares, que, de acordo com a tradição, eram os pre-
sidentes e vice-presidentes do Sinédrio e transmitiram a tradição oral de
aproximadamente 160 a.C. até o rabino Judá, o Patriarca, quem compilou
a Mixná." Em A im/, eles representam os seguidores de Esdras no sentido
de desenvolver a religião da lei.
São oportunas observações sobre alguns indivíduos incluídos nos
Pares. Hillel e Shammai (30 a.C.-10 d.C.) são os mais conhecidos. Ambos
eram estudiosos importantes, mas tinham pontos de vista diferentes, e os
escritos rabínicos fazem referência frequente ao conflito entre eles e entre
seus discípulos. Iim geral (mas nem sempre), Shammai e seus seguidores
costumavam ser mais rígidos na interpretação da lei e da tradição e em
decisões judiciais. Hillel e sua escola eram mais liberais no modo como
tratavam a lei, mais tolerantes em questões de interpretação e julgamento.
Gamaliel era filho ou neto de Hillel. Ele provavelmente é a pessoa (ou,
pelo menos, um antepassado da pessoa) mencionada em Atos 5.34-39 e
22.3 (na primeira passagem, a atitude mais branda e mais cautelosa dos
hillclitas é evidente).1

Antiquities 12.2.5 (43).


11 Os Pares incluem 1) Yo.se ben Yo czer, de Sereda (c. 160 a.C.), e Yosef ben
Yohanan, de Jerusalém; 2) Yehoshu 'a ben Perahyah c Nitai, o arbelita (c. 120 a.C.);
3) Yehudah ben Tabbai e Simão ben Shetah (c. 80 a.C.); 4) Shema'yah e Avtalion;
e 5) Hillel eShammai (c. 30 a.C.-10 d.C.). Depois vieram Rabban Gamliel (neto
ou possivelmente filho de Hillel); Shim' on ben Gamliel; mestre Yohanan ben
Zakkai; o rabino (Avot 2:1 = Yehudah, o Patriarca) e o mestre Gamliel III, filho
de Yehudah, o Patriarca (v. Mishnah, trad. Danby, p. 446-48).
185

Avot reconhece com clareza que a tradição passada pelos Pares incluía,
como diz Danby, “muitas novas leis e restrições para a melhor observância
da Lei” . Essas são apresentadas com ousadia pelos escribas e mestres,
reivindicando autoridade divina para elas. Constituem o que é chamado
lei oral ou ao que Jesus se refere como “a tradição dos líderes religiosos” .1‫’־‬
O s fariseus, sem dúvida, consistiam na parte principal da linhagem
transmissora da tradição oral que A vot tinha em vista. Josefo confirma a
manutenção de ensinamentos extrabíblicos, conscientemente seleciona-
dos e passados por gerações anteriores." Josefo e o N T concordam que
a tradição farisaica incluía a crença no destino (predestinação), anjos e
espíritos, ressurreição, recompensas e castigos eternos, e um estilo de
vida virtuoso.12*14Ela também lidava com questões cerimoniais c cultuais.
Neste momento, vamos resumir as afirmações do A vot 1) Além das
Escrituras escritas, há uma tradição oral. 2) Deus criou a tradição e a deu a
Moisés. 3) Como consequência, ela carrega autoridade divina. 4) A tarefa
de cada geração é aplicar a lei de maneira prudente, ensiná-la e protegê-la
ao acrescentar outras leis (cercas) em torno dela. Por último: 5) A tradição
foi transmitida com precisão, e há uma ordem para que continue a ser
repassada às gerações futuras. Deveriamos observar aqui que, embora os
estudiosos modernos normalmentc acreditem que a lei oral tenha sido

12Observe as palavras e sentimentos da passagem de Mc 7, em que Jesus compara


os mandamentos divinos às coisas acrescentadas pelos seres humanos a eles: v.
3, “a tradição (paradosin) dos líderes religiosos”; v. 5, “a tradição (paradosin) dos
líderes religiosos”; v. 7, “seus ensinamentos (didaskalias) não passam de regras
ensinadas por homens (entalmata anttirõpõn)”; v. 8, “vocês negligenciam os man-
damentos (entolèn) de Deus c sc apegam às tradições dos homens (paradosin)”; v. 9,
“os mandamentos (entolèn) de Deus... tradições (paradosin)”; v. 13, “vocês anulam
a palavra (logon) de Deus, por meio da tradição (paradosei)” (v. tb. Mt 23.23,24;
Jo 5.39-47). Em geral, Jesus parece ter rejeitado a noção de autoridade divina por
trás da tradição extrabíblica.
u “Os fariseus passaram ao povo certas regras transmitidas por gerações anteriores
e não registradas nas Leis de Moisés, razão pela qual foram rejeitadas pelo grupo
dos saduceus, que defendiam que só deveríam ser consideradas válidas as regras
registradas (na Escritura) e as passadas por gerações anteriores não precisavam
ser observadas” (Josefo, Antiquities 13.10.6 [297]). “Os fariseus [...] seguem a di-
reção do que sua doutrina selecionou c transmitiu como bom, associando o mais
importante à observância dos mandamentos tidos como adequados para reger a
vida” (Antiquities 18.1.3 [12]).
,‫־‬, Joscio,Jewish War2.8.14 (162-66);Antiquities 18.1.3 (12-15); v. tb. At 23.8,9.
186

desenvolvida apenas por escribas na tradição representada pelo Avot, do-


cumentos de outras trajetórias do judaísmo intertestamentário indicam
com contundência que coletâneas de materiais orais foram desenvolvidas
por escribas em outras tradições também.1^
E preciso observar aqui uma reconstrução interessante feita pela
estudiosa judia Leah Bronner.1516 Ela acredita que os escribas (soferim) eram
companheiros de Esdras e Neemias; esses homens da Grande Assembléia
“dirigiram, guiaram e supervisionaram a vida religiosa e social do povo com
competência e devoção até a invasão grega da Palestina. O ataque helenís-
üco perturbou e prejudicou a vida religiosa da comunidade”.1' Muitos da
camada alta da sociedade começaram a adotar costumes gregos. Entre o
grupo estavam alguns escribas. Outros se recusaram e procuraram “manter
distância segura do terreno proibido”.18Como consequência, houve uma
divisão entre os escribas, os que se opunham à ideia de o helenismo se
tornar o assidismo primitivo (os “devotos”). Portanto, “a conquista de
Alexandre, o Grande, em 333 a.C. e daí em frente deu lugar não somente
ao helenismo, mas também ao assidismo” .19
Bronner acredita que os assideus primitivos eram os verdadeiros
descendentes de Esdras e Neemias, e mais rígidos na observação da lei
que os outros escribas. Tornavam-se extremistas em se tratando de ob-
servar a pureza levítica. D e bom grado, aceitavam o martírio, em vez de
comprometer suas interpretações das exigências da lei.
Nós nos deparamos pela primeira vez com o assidismo em IMaca-
beus, passagem na qual eles, “um grupo de assideus, homens de Israel
que eram valentes e dedicados à Lei” (2.42, NTLH-P) juntaram-se às

15 E. P. Sanders, “Did the Pharisees Have Oral Law?”, cm Jewish Lawfrom Jesus to the
Mishnab. Five Studies. Philadelphia: Trinity Press Internadonal, 1990, p. 98, resume
diversas definições da lei oral e, em seguida, afirma: “ Há alguns sentidos em que
se deve dizer que não só os fariseus, mas outros tinham a lei oral”. Alcm disso, ele
duvida que os fariseus se apegassem à lei oral no sentido em que normalmente a
entendemos.
16Sects and Separatism during the SecondJewish Commonwealth. New York: Block, 1967,
p. 37-55.
17Ibid., 39.
IS Ibid., p. 40; Bronner acredita que este seja o contexto para a instrução de “criar
uma proteção em torno da Torá” (Avot 1.1).
'‫ יי‬Ibid. Bronner refere-se a este grupo como o assidismo primitivei para distingui-lo
do grupo surgido no Período Rabínico.
187

forças de Matadas contra Antíoco Epifânio. Mais tarde, contentaram-se


em viver sob o governo sírio depois de vencida a batalha religiosa (7.13).
Eles normalmente se identificavam com os que se deixavam ser mortos,
em vez de profanarem o sábado ao se defenderem (1.32-38). Embora a
postura de não resistir no sábado provavelmente esteja de acordo com as
convicções dos assideus, o texto não os identifica com os mártires.
A teoria de Bronner é plausível. O s pontos fracos da teoria estão na
data tardia das primeiras referências aos assideus. Ela desenvolve grande
parte do caso nos escritos rabínicos que podem ou não ser precisos neste
caso. Em todo o caso, ela faz uma importante contribuição no sentido
de chamar a atenção para as divisões entre os escribas no período inter-
testamentário.
A tradição secreta de 2Esdras

(3 texto de 2Esdras 14.19-48 é outro que lança luz aos conceitos ju-
daicos da lei, interpretação e tradição no período intertestamentário. Na
essência do livro está um apocalipse escrito no final do século I d.C. por
um escritor judeu que se identifica como o Esdras bíblico e Salatiel.20 Em
uma série de revelações ou visões (caps. 3-14), ele luta contra a derrota
da nação nas mãos de Roma, à qual se refere como Babilônia. Ele levanta
algumas das questões formuladas por seus antepassados sobre Deus e a
relação dele com Judá, após a queda em 586 a.C. N o final, o escritor en-
contra esperança quando lhe é revelado que a presente era logo findará e
a nova era verá a salvação e a defesa de Israel. Deus também permite que
Esdras-Salatiel seja o segundo Moisés que, mais uma vez, disponibiliza a
lei para as gerações futuras.
O cenário da restauração da lei é definido tão logo Esdras reconhece
que o Senhor o enviou para “reprovar as pessoas que estão presentes”;
pensando nos que não ainda nasceram, no entanto, ele pede permissão
para escrever novamente a lei que “está queimada” (2Esdras 14.20-22).
O pedido é atendido; ele escreve 94 livros em quarenta dias e recebe a

211Parece que os capítulos 3— 14 foram escritos em aramaico ou hebraico por um


judeu. Mais tarde, um cristão acrescentou os capítulos 1— 2 para tornar os escritos
válidos para seus companheiros cristãos. Posteriormente, os capítulos 15— 16
foram acrescentados por outro cristão. Salatiel é identificado como filho do rei
Jeconias (Joaquim) em lC r 3.17 e Mt 1.12 e pai de Zorobabel em Ed 3.2,8; 5.2;
Ne 12.1; Ag 1.1,12,14; 2.2,23; Mt 1.12 e Lc 3.27.
188

ordem: “Publique os 24 livros que você escreveu primeiro, para que os


dignos e os indignos possam lê-los; mas mantenha os setenta escritos
por último para entregá-los aos sábios no meio do seu povo. Pois neles
estão a primavera do entendimento, a fonte da sabedoria e a corrente do
conhecimento” (v. 45-47, tradução livre). Vemos aqui 1) a importância
do líder comissionado, 2) a primazia do registro das Escrituras e 3) a ne-
cessidade de disponibilizar novamente a lei. Os três fatores, e em especial
o terceiro, constituem o reconhecimento da necessidade de reajuste na
situação pós-exílica. Mas talvez mais importante seja a evidência a favor
da tradição pública e da tradição secreta, ambas vindas de Deus. Observe
também a condição implícita para a transmissão desta tradição, tanto
pública quanto secreta.
Pode-se afirmar que os grupos representados por A votc 2Esdras es-
tavam, em geral, de acordo com o conteúdo da lei escrita, mas qual era a
relação entre o conteúdo da cerca de proteção em torno da lei e os livros
secretos de 2Esdras? N ão sabemos qual c o tema da tradição secreta de
2Esdras. Muito provavelmente não era o mesmo que o conteúdo da cerca
usada para proteger a lei.21

A VARIEDADE DE TRADIÇÕES DOS ESCRIBAS

O m ovim ento apocaliptista

Os textos de Avot e 2Esdras representam de forma respectiva a tra-


dição farisaico-rabínica e o grupo apocaliptista,22 quase seguramente têm
em vista tradições diferentes das defendidas por outros grupos de judeus
intertestamentários. O movimento apocaliptista era em si mesmo uma
reação complexa que coletou, desenvolveu, interpretou e transmitiu várias
tradições. Ainda que as raízes do movimento apocalipdsta antecedam as
crises dos séculos VI e IV, as crises e os eventos subsequentes deram-lhe
ímpeto e materiais aos quais reagir e pediram novas atitudes e perspectivas
para facilitar a sobrevivência.
21Jacob M. Myers, / andIIEsdras·. A New Translation with Introduction and Com-
mentary (Anchor Bible 42. Garden City, N.Y.: Doubleday, 1974, p. 329), associa
os setenta livros secretos com “as visões da Escola Apocaliptista”.
22Observe, no entanto, W. D. Davies, “Apocalyptic and Pharisaism”, cm Christian
Origins andJudaism. London: Dalton, Longman and Todd, 1962), 19-30, que, com
outros, vê influências apocalípticas entre os fariseus.
189

E x a m in a r e m o s o m o v im e n to a p o c a lip tis ta d e m a n e ir a m a is d e ta lh a d a
n o p r ó x im o c a p ítu lo . A q u i o b s e r v a r e m o s a p e n a s a lg u n s f a to s re le v a n te s
p a ra n o s s a b u s c a d e e v id ê n c ia s d a e x is tê n c ia d e tr a d iç õ e s v a ria d a s . A p a -
la v ra g r e g a apokalypsis e m si m e s m a s ig n ific a “ re v e la ç ã o d o q u e e s tá o c u l-
to ” . P o r ta n to , c o m o já a p r e n d e m o s c o m 2 E s d r a s , o m o v im e n to a d o t o u
a tr a d iç ã o s e c r e ta q u e s e u s e s c r ito r e s t o r n a r a m c o n h e c id a . O m o v im e n to
a p o c a lip tis ta re iv in d ic a v a o r ig e m d iv in a p a r a s u a tr a d iç ã o , c u jo c o n t e ú d o
lid a v a c o m as q u e s tõ e s e c o n d i ç õ e s s u s c ita d a s p e la s c ris e s h is tó ric a s d o
p e r ío d o in te r te s ta m e n tá r io .
O u tr a s d u a s o b s e r v a ç õ e s s o b r e o s a p o c a lip s e s s ã o o p o r tu n a s . P rim e ira ,
o a p o c a lip tis m o é u m m e io d e in t e r p r e t a r e a p lic a r a s E s c r itu r a s H e b ra ic a s
d a m e s m a f o r m a q u e a le i o r a l fa ris a ic a e o u tr a s tr a d iç õ e s e x tra b íb ü c a s .2’
O s a p o c a lip tis ta s tr a b a lh a m d e m o d o c o n s c ie n te c o m o te x to b íb lic o , e a
p a r ti r d e le tr a n s p o r t a m e s tr u t u r a s lite rá ria s e h is tó ric a s , n o m e s p e s s o a is ,
e v e n to s , a l u s õ e s e c o n c e i t o s p a r a s e u s c o n t e x t o s . C o m o d is p o s itiv o
h e r m e n ê u tic o , o a p o c a l ip tis m o t e n ta m a n t e r a r e le v â n c ia d o r e g is tro d a s
E s c r itu r a s e , a o m e s m o te m p o , r o m p e r o s ilê n c io p r o fé tic o . S e g u n d a , d e -
v e m o s le m b r a r q u e o a p o c a l ip tis m o n ã o r e p r e s e n t a a tr a d iç ã o u n id a . E le
r e f le te e c o n t r i b u i p a r a a d iv e r s id a d e d o ju d a ís m o i n te r te s t a m e n tá r io . P o r
e x e m p lo , e n c o n tr a - s e n e le u m a m u ltip lic id a d e d e e s q u e m a s e s c a to ló g ic o s
c o m m u it o s d e ta lh e s d iv e rg e n te s . A d iv e r s id a d e d e v e t e r c o n t r i b u íd o p a ra
a c o n f u s ã o e a s c o n tr o v é r s ia s e n t r e o s q u e s e v ia m c o m o p e s s o a s q u e es-
ta v a m v iv e n d o n a e r a e s c a to ló g ic a — c o m o o s p r im e ir o s c r is tã o s ju d e u s.

Os saduceus
É c o m u m a a f ir m a ç ã o d e q u e o s s a d u c e u s re je ita ra m a s tr a d iç õ e s o ra is,
a p e g a n d o s e s ó à le i e s c rita . E s s a é a p r im e ir a im p r e s s ã o d a d e c la ra ç ã o d e
J o s e f o : o s s a d u c e u s “ n ã o fa z ia m o b s e r v â n c ia d e q u a l q u e r t ip o à p a r t e d a s
leis” ,2324 c o n s id e r a n d o - s e “ le is” a q u i c o m o le is e s c r ita s o u o P e n ta te u c o . N o
e n t a n to , a p a s s a g e m c o n tin u a : “ E le s c o n s id e r a m u m a v ir tu d e d is c u tir c o m
o s m e s tr e s d o c a m in h o d a s a b e d o r ia q u e e le s s e g u e m ” . E s s a s d is c u s s õ e s
p o d e r ia m t e r e n v o lv id o d e s e n te n d im e n to s n ã o a p e n a s s o b r e o s ig n ific a d o
d a lei e s c r ita , m a s t a m b é m s o b r e o u tr a s tr a d iç õ e s a s s o c ia d a s a ela. J o s e f o

23 Cf. N eil S. Fujita, A Crack in theJar. W h a t A n cien t Jew ish D o cu m en ts Tell Us ab o u t


the N ew T estam en t (M ahw ah, N. J.: Paulist, 1986, p. 120-2); W alter Schmithals,
The Apocalyptic Movement·. In tro d u c tio n an d In terp reta tio n , trad. Jo h n E . Steely
(Nashville: A bingdon, 1975, p. 68-88).
Antiquities 18.14 (16).
190

e o N T enfatizam que fariseus e saduceus eram diferentes em se tratando


de doutrina e estilo de vida. Mas Josefo também conta: “Toda vez que [os
saduceus] assumem algum ofício, embora se submetam a contragosto e for-
çadamente, eles se submetem às fórmulas dos fariseus, pois, do contrário,
as massas não os tolerariam”.23Portanto, a diferença entre a preferência dos
saduceus e as fórmulas dos fariseus incluía interpretações no sentido de
como as cerimônias públicas e os rituais religiosos deveríam ser realizados.
Fossem ou não enunciadas em um corpo de tradições tão bem definidas
quanto as dos fariseus, as preferências dos saduceus sem dúvida consti-
miam parte de uma tradição distintiva, a lei oral dos saduceus. josefo não
é a única testemunha desse fato. As “referências mixnaicas e rabínicas aos
saduceus descrevem-nos quase inteiramente em termos de suas diferenças
com os fariseus em se tratando de questões rituais, cerimoniais e judiciais.
Essas questões envolviam uma vasta gama de perguntas relacionadas a
assuntos como a data e a observância de certas festas, a observância do
sábado, o modo do oferecimento dos sacrifícios e a realização do ritual no
templo, a conduta e as punições em casos criminais e os procedimentos
relativos à contaminação e purificação cerimonial”.2526
Mais uma vez, é relevante a confusão ocorrida na festa dos Taberná-
culos (v. p. 173). D e acordo com Josefo, o reis-acerdote asmoneu Alexan-
dre Janeu (103-76 a.C.) foi atingido por cidras enquanto celebrava uma
cerimônia religiosa no templo. O s adoradores desaprovaram o modo de
sua celebração de parte do ritual da festa.27 O tratado mixnaico Sukkah,
ao descrever os procedimentos litúrgicos farisaico-rabínicos, prescrevia
que a libação de água para o festival fosse derramada em uma das duas
tigelas colocadas à direita no alto da rampa do altar. N o entanto, “certa
vez, determinado homem derramou a libação sobre seu pé, e todo o
povo jogou cidras nele” (4.9). O Talmude acrescenta que o transgressor
era “certo saduceu”.28Janeu era conhecido como defensor dos saduceus.
Seu cumprimento do ritual provavelmente era ditado pela preferência dos
saduceus. Esta é mais uma confirmação da existência da tradição cultuai
e cerimonial dos saduceus que diferia da lei oral dos fariseus.

25 Ibid., 18.1.4 (17).


2'‫י‬J. Julius Scott, Jr., “Sadducees”, em Novo didonám internacional de teologia do Novo
Testamento, Colin Brown (org.), 4 vols. São Paulo: Vida Nova, 1982.
2‫ י‬A ntiquities 13.13.5 (372).
28 Talmude babilônico Sukkah 48h.
191

A comunidade do m ar M o rto e outros essênios

Acredita-se que os manuscritos do mar M orto foram produzidos


por uma comunidade com escribas próprios e representantes de uma
tradição diferente das já descritas. O Documento de Damasco ou Documento
Zadoquita (CD) afirma que Deus “levantou para |a comunidade] um Mestre
da Justiça para guiá-la no caminho do seu coração. E ele manifestou às
últimas gerações o que Deus havia feito à última geração, a congregação
de traidores, àqueles que se afastaram do caminho” (col. 1). O Comentário
(Pesher) sobre Habacuque (lQ pHab) condena “os infiéis junto com o Men-
tiroso, no sentido de que não [ouviram a palavra recebida pelo] Mestre
da Justiça vinda da boca de Deus. E isso diz respeito aos infiéis da Nova
[Aliança] no sentido de que não creram na aliança de Deus [e profanaram]
seu santo Nom e” (col. 2). O documento, então, continua a descrever o
Mestre da Justiça como aquele “a quem Deus deu a conhecer todos os
mistérios das palavras de seus servos, os Profetas” (col. 7).29*Aqui, mais
uma vez, está uma suposição bem conhecida em nossos estudos de Es-
dras, A vot e 2Esdras — a tradição extrabíbüca oriunda do próprio Deus
por meio de seus instrumentos escolhidos que deveria ser transmitida
às gerações seguintes. A tradição é descrita como um “mistério” (rã%),
um segredo, certamente diferente do de 2Esdras. Λ descrição de Josefo
acerca dos essênios, um grupo do qual é quase certo que a comunidade de
Qumran fazia parte, apresenta uma longa lista de suas práticas e idéias.i‫״‬
Ele mostra claramente que suas tradições incluíam, entre outras coisas,
visões singulares sobre questões cerimoniais e cultuais. Por exemplo, “eles
enviam ofertas votivas ao templo, mas realizam seus sacrifícios por meio
de um ritual diferente de purificação. Por esta razão, eles são impedidos
de entrar nos recintos do templo frequentados por todo o povo e realizam
seus ritos sozinhos”.31As tradições essênias deveríam ser transmitidas com
precisão. Na verdade, de acordo com Josefo, o essênio “jura transmitir
suas leis exatamente como as recebeu” .32
A lista de grupos com tradições distintas é, sem dúvida, tão longa
quanto a lista de grupos e seitas distintos. A menção de apenas outros

29Todas as citações dos manuscritos do mar Morto foram extraídas de The DeadSea
Scrolls in English, trad. Geza Vermes, 3. ed. New York: Viking Penguin, 1990.
MJewish War 2.8.2-13 (120-61); Antiquities 18.1.5 (18-22).
‫ 'נ‬A ntiquities 18.1.5 (19).
32Jewish War2.8.7 (142).
192

dois, na terra de Israel, deve ser suficiente aqui. Os samaritanos criaram


sua própria tradição extrabíblica, práticas de culto e ênfases teológicas, das
quais algumas eram consideradas por eles “tradição secreta”.33 Eles tam-
bém alegavam sanção divina para suas visões singulares e as transmitiam
aos filhos. Por último, os zelotes eram uma variante que acrescentava à
tradição farisaica um violento nacionalismo religioso. Nós os observamos
aqui apenas como outro grupo com uma tradição distinta.
Uma vez que o judaísmo intertestamentário se reajustou diante da
queda de Judá e da invasão do helenismo, os escribas emergiram como
líderes ideológicos e também práticos. A mudança de ênfase do templo
e do culto para a moralidade, a ética c o estudo resultante da lei tornou
inevitável a ascensão de alguns desses grupos. Foram, sobretudo, os es-
cribas que estruturaram a sociedade pós-exílica.
Com os escribas veio o surgimento das tradições, não um conjunto
singular, mas várias linhas ou conjuntos de tradições. Elas tratavam do
modo como a lei deveria ser lida, interpretada e aplicada. O que desen-
cadeou a necessidade de uma tradição oral autêntica além da escrita na
situação dos judeus intertestamentários? Sugerimos que a resposta seja
a percepção do silêncio profético, que acompanhou as crises do período
pós-exílico e que parecia ter deixado a comunidade judaica sem a direção
divina adequada. A lei e outras revelações do passado, adequadas ao deser-
to ou a vida estabelecida em Canaã, pareciam nesse momento dar pouca
direção para a vida em uma terra destruída e derrotada, ou para eles como
cativos dispersos. As novas tradições, para as quais se reivindicada origem
divina, tornaram-se uma maneira de se ajustar a essa situação.
Parece que muitas facções do judaísmo intertestamentário tinham es-
cribas próprios que norteavam o desenvolvimento das tradições. E possível
que outros escribas tenham trabalhado em escolas ou associações mais ou
menos distintas de qualquer grupo ou partido discernível. Os diferentes
grupos de escribas e as tradições alternativas que eles desenvolveram
contribuíram para a natureza multiforme do judaísmo intertestamentário.

" A tradição secreta está refletida no título da tradução cm inglês de um dos prin-
cipais documentos samaritanos, The A satin The Samaritan Book o f the “Secrets
o f Moses”, trad. Moses Caster (London: Royal Asiatic Society, 1927).
10

Apocaliptismo

• Definição e descrição
- Considerações gerais
- Descrição geral do apocaliptismo
• As origens e contextos do apocaliptismo
• Apocaliptismo como interpretação
• Alguns exemplos
• Apocaliptismo como reajuste

O surgimento do apocaliptismo é uma característica importante do


judaísmo intertestamentário. Sua definição precisa, origem, contexto social
e religioso e interpretação são temas de debate como também de constantes
pesquisas acadêmicas. As controvérsias se estendem até mesmo à lista de
escritos considerados apocalípticos.1Os detalhes podem ser encontrados

1 Klaus Koch, The Rediscovery of Apocalyptic, Studies in Biblical Theology, 2n<l Series,
vol. 22 (Naperville, ill.: Alec R. Allenson, 1972), p. 23, sugere que o estudo do
apocaliptismo deveria começar e buscar uma definição a partir de uma lista mínima:
Daniel, lEnoque, 2Baruque, 4Esdras, o Apocalipse deAbraão e o livro de Apocalipse.
Outras obras literárias bíblicas consideradas muitas vezes apocalípticas incluem
lsaías 2A— 27; partes de Ezequiel, Joel, possivelmente Amós, Sofonias c Zacarias;
Marcos 13 (e seus textos paralelos de Mt 2A— 25; Lc 21) e partes de 1 e 2Tessa-
loniccnses e 2Pedro.
O volume 1 de The Old Testament Pseudepigrapha, James H. Charlesworth (org.)
(Garden City, N. Y: Doubleday, 1983), reflete a decisão de que os vários testa-
mentos deveríam, de algum modo, estar associados com a literatura apocalíptica.
Também inclui uma série de apocalipses que demoram para acontecer na Era
Cristã, possivelmente ainda no século XIX d.C. O volume divide os apocalipses
bíblicos da seguinte forma:
194

em outras partes. Nosso interesse está na compreensão geral do apoca-


liptismo e de seu lugar na reação judaica às crises dos séculos VI e IV.

D efinição e descrição

Considerações gerais

O “apocaliptismo” é um termo de difícil definição, tile designa ao mesmo


tempo um tipo geral de literatura (gênero), uma maneira particular de olhar
para a vida e um conjunto de idéias e crenças. Contudo, há diferenças con-
sideráveis entre os escritos apocalípticos e os pontos de vista apocalípticos.
Vale observar a distinção entre o que muitas vezes é chamado tipo mais
antigo de definição e o tipo mais novo.
As definições mais antigas enumeravam várias características encon-
tradas nas obras apocalípticas. Elas incluíam o uso frequente de sonhos ou
visões como estrutura para transportar o leitor a outro mundo, imagens
amplas e simbolismo (animais, pássaros ou monstros que representavam
nações ou indivíduos; números que transmitiam significados especiais),
fenômenos astronômicos e forças em papéis pouco comuns (por exem-
pio, astrológicos). Comuns no drama apocalíptico são anjos e demônios,
males naturais, como pragas, fomes, secas c outras formas de catástrofes
cósmicas, incluindo guerras e desordem política e social. Há um sentimento
predominante de destruição e prenúncios de desgraça. O escritor pode usar
a. Literatura apocalíptica e obras relacionadas·. Enoque (= Apocalipse Etíopê)2 ,‫־‬Enoque (=
Apocalipse Eslavônico)-, 3Enoque (= Apocalipse Hebraico)‫־‬, Oráculos sibilinos‫־‬. Tratado de
Sem; Apócrifo de Esçequiel; Apocalipse de Sofoniar, 4Esdras; Apocalipse grego de Esdras;
Visão de Esdras; Questões de Esdras; Revelação de Esdras-,Apocalipse deSidraque; 2fíaruque
(= Apocalipse Siríaco); 3Banque (= Apocalipse Grego)-, Apocalipse de Abraão-, Apocalipse
deAdão-, Apocalipse de Elias e Apocalipse de Daniel.
b. Testamentos (muitas vezes com seções apocalípticas): Testamentosdos dosçepatriarcas-,
Testamento deJâ; Testamentos dos três patriarcas (Abraão, I saque ejacó); Testamento de
Moisés‫־‬, Testamento de Salomão e Testamento deAdão.
Outros escritos que poderíam ser classificados como apocalipses judaicos ou cris-
tãos podem ser encontrados entre os manuscritos do mar Morto (Visões deAnrão
[4Q ‘Amram], UA Nova Jerusalém” |5Q15|, Pseudo-Daniel |4QpsDan| e partes do
Manualde disciplina (1QS| e o Documento de Damasco |CD], entre os pais apostólicos
(Didaquê 16 e partes de O Pastor, de Hennas) e em alguns documentos gnósticos.
Para obter uma pesquisa de estudos recentes sobre o apocaliptismo, cf. John ].
Collins, “Apocalyptic I áterature”, em EarlyJudaism and Its Modern Interpreters, Robert
A. Kraft, George W. E. Nickelsburg (orgs.) (Atlanta: Scholars, 1986), p. 345-70.
195

localizações geográficas falsas ou reformular a história, de modo que um


lugar ou evento possa realmente representar outro lugar ou evento. Uma
característica frequente é a pseudonímia — recurso literário que apresenta
como autor alguém que não seja o verdadeiro escritor; o suposto autor
normalmente é uma pessoa importante do passado. O apocaliptismo é
pessimista e fatalista, pois acredita que os acontecimentos atuais estão
além do controle do indivíduo, mas é otimista na convicção de que, no
final, o Deus soberano será vitorioso e todos os erros serão corrigidos.
Ocorre o dualismo cósmico: o mundo espiritual e celestial e este mundo
material. Em bora separados, os dois mundos estão interligados. O que
acontece na esfera espiritual afeta a material. Como consequência, o foco
do apocaliptismo se encontra no mundo espiritual e no tempo futuro.
Embora a lista dessas características seja útil, ela não oferece uma descrição
ou definição adequada do apocaliptismo. Nenhuma obra literária contém
todas as características, e faltam às listas grande parte de sua essência.
As supostas definições mais recentes procuram identificar e enfatizar
as principais características universais do apocaliptismo, de modo geral o
dualismo e a escatologia, ou, pelo menos, a revelação de mistérios ceies-
tiais.2 Em vez de pressupor que todas as características sejam igualmente
significativas, as definições conferem uma posição secundária à maioria das
listadas nas definições mais antigas. Estudiosos recentes do apocaliptismo
vão mais longe na tentativa de distinguir o apocaliptismo da escatologia
apocalíptica. O “apocaliptismo” denota um estilo literário ou o contexto
social percebido pelo escritor e seu grupo e a visão de mundo deles. A
“escatologia apocalíptica” se refere à descrição dos acontecimentos e
ações divinas por meio dos quais Deus será vitorioso c justificará os seus
quando o universo simbólico das visões apocalípticas for transformado
em uma realidade nova, perfeita e gloriosa.

‫ ־‬Um grupo de estudiosris que trabalhava no Projeto de Gêneros da Society o f Bi-


blical Literature propôs uma definição prática para o apocaliptismo: “O apocalipse
é um gênero da literatura de revelação com uma estrutura narrativa, em que se
transmite uma revelação por um ser de outro mundo a um destinatário humano,
anunciando uma realidade transcendente e temporal, à medida que contempla a
salvação escatológica, e espacial, que envolve outro mundo, o mundo sobrena-
tural” (Apocalypse: The Morphology o f a Genre, John J. Collins [org.], Semeia 14.
Missoula, Mont.: Scholars, 1979, p. 9).
1%

Outra distinção útil se encontra entre os escritos principalmente de


caráter histórico e os que descrevem jornadas por regiões sobrenaturais.3Os
primeiros podem rever a história, rccscrevê-la ou as duas coisas. Os apoca-
lipses da jornada contêm boa dose de especulações cósmicas; compartilham
algumas características e objetivos com um amplo espectro de escritos
esotéricos, em especial os de Merkavah (carruagem ou trono-carruagem).4
Quase todos os escritos apocalípticos se enquadram em uma categoria ou
outra; lEnoque e Apocalipse de Abraão se enquadram em ambas.
E oportuna uma observação sobre o termo escatülogia (para obter uma
definição, veja p. 26) e sua relação com o apocaliptismo. Embora possa
haver semelhanças consideráveis entre seus temas, eles não significam a
mesma coisa. As questões escatológicas podem ser apresentadas em es-
truturas e formas literárias diferentes do apocaliptismo (Paulo o fa‫׳‬/ em
2Co 5). O apocaliptismo tem uma forte ênfase escatológica, mas outras
preocupações também (como a teodiceia — o problema de como um Deus
justo, amoroso e onipotente pode permidr a existência do mal). Alguns
estudiosos até argumentam que a escatologia não é parte necessária do
apocaliptismo.''
E claro que, ao longo da história, muitos cristãos acreditaram que
a forma apocalíptica sempre indica que o escritor se refere ao “ fim dos
tempos” no sentido restrito desta expressão — o fim da história huma-
na, a segunda vinda de Cristo. Esta pode ser uma suposição equivocada.
A escatologia, como já observamos, é apenas parte da preocupação dos
apocaliptistas. O s escritores talvez também tenham em vista seu próprio
dia e o futuro imediato, como também o futuro mais distante. Outra
abordagem sem fundamento que alguns cristãos aceitam quando leem
a literatura apocalípdca é a de se preocupar com perguntas e questões
sobre as quais os escritores, incluindo-se os escritores do NT, mostraram

' Collins, “Apocalyptic I .iterature”, p. 346, classifica vários apocalipses: 1) 1listóricos


— Daniel, 4Esdras, 2Baruque\ 2) Jornadas por outro mundo — 2Enoque, 3fíaruque,
Testamento de Abraão, Apocalipse de Abraão, Testamento de 1£tú 2— 5, Apocalipse de
Sofonias.
4 Para uma boa introdução ao misticismo no pensamento judaico, cf. Neil S. Fu-
jita, A Crack in theJar. What Ancient Jewish Documents Tell Us about the New
Testament (Mahwah, N. J.: Paulist, 1986), p. 158-200. FIc observa o lugar do
apocaliptismo cm tudo isso. V. tb. Michael E. Stone, Scripture, Sects and Visions
(Philadelphia: Fortress, 1980), p. 31-35.
s Cf. Christopher Rowland, The Open I leaven (New York: Crossroad, 1982).
197
poucas preocupações. Temos em mente aqui esquemas cronológicos e a
identificação precisa de pessoas, eventos e instituições.
Descrição geral do apocaliptismo

Hmbora o fenômeno apocalíptico tenha ocorrido séculos antes, o


primeiro documento a se autodenominar apokalypsis é o livro de Apoca-
lipse. O significado literal da palavra grega é “revelação, descoberta, tornar
público o que antes estava oculto”. O título do livro, portanto, dá o tom
do tipo de escrita usado pelo autor bíblico. Um escritor contemporâneo
enfatizou que os dois primeiros versículos de Apocalipse apresentam uma
estrutura e características típicas do apocaliptismo geral: “ 1) A revelação é
dada por Deus, 2) por meio de um mediador{aqui Jesus Cristo ou um anjo),
3) a um profeta acerca de 4) acontecimentos futuros”.6
O apocaliptismo é um fenômeno multilateral em que os escritores
buscam entender e responder ao que percebem como circunstâncias más e
perigosas.7Eles podem fazê-lo ao retratar o dualismo cósmico, o conflito
espiritual e a soberania divina e a vitória final. O apocaliptismo reconhece
com franqueza que o pecado, a maldade e o sofrimento não raro dominam
o mundo, e as pessoas boas são as pobres vítimas das forças do mal. Elas
também pelejam com a natureza, vontade, poder e atividade do Deus bom
que permite essas condições.
Em geral (embora a estrutura nem sempre seja óbvia), os apocaliptistas
admitem, no dualismo cósmico, a divisão radical entre o bem e o mal, a
luz e as trevas, Deus e Satanás. Nas esferas espirituais, o poder do mal luta
contra o bem, o reino de Satanás está em guerra com o reino de Deus.
Agora os sucessos da batalha avançam e recuam, mas Deus e o bem, no
final, serão vitoriosos. O mundo, suas sociedades e povos, é afetado pela
luta. Quando o mal espiritual domina, seus aliados na terra, as nações e
povos perversos, prosperam e perseguem o bem; quando o bem espiritual
vence, então há paz ê harmonia na terra e o bem prospera. Quanto mais
a história se aproxima do fim, mais furiosas se tornam as forças do mal

‫ 'י‬Paul D. Hanson, Old TestamentApocalyptic (Nashville: Abingdon, 1987),p. 32; v. tb.


idem, “Apocalypse, Genre”, cm Interpreter’s Dictionary of the Bible, vol. supl. Keith
Grim etal. (orgs.) (Nashville: Abingdon, 1976), p. 27.
Paul D. 1lanson, “Apocalypses and Apocalypticism, The Genre”, em Anchor Bible
Dictionary, David Noel Freedman (org.), 6 vols. (New York: Doubleday, 1992),
vol. 1, p. 280, define “apocaliptismo” como o “esforço para estabelecer uma base
para que a expectativa transcenda as experiências deste mundo já em mudança”.
198

na luta e piores se tornam as condições na terra. N o entanto, o resultado


não é incerto. Deus será vitorioso. O mal será derrotado, julgado, punido
e eliminado. Os bons serão salvos, abençoados, recompensados e compar-
tilharão o reino eterno de Deus. Como observou um de meus ex-alunos:
“Não existe apocaliptismo sem o final feliz”.8
Essa concepção da realidade permite que os escritores apocalípticos
entendam a situação atual. Com essa visão, eles discernem os atos divi-
nos. Com ela, o apocaliptista é capaz de esclarecer o verdadeiro papel de
instituições humanas do governo e sociais: principaknente sob o controle
das forças do mal, elas são instrumentos para alcançar os objetivos dessas
forças. De m odo geral, as pessoas boas parecem consistir a minoria fraca
abusada e perseguida apenas por estar do lado de Deus, o inimigo de Sa-
tanás e do mal. Na realidade, elas são os fortes, e estão do lado vencedor.
Toda a humanidade é, na verdade, impotente para alterar a situação. Os
seres humanos precisam entender isso: estar do lado de Deus significa ter
certeza de que, no final, o bem será justificado.
Os apocaliptistas concentram a atenção no curso de acontecimentos
nas regiões celestiais, em lugares do além, em seres e acontecimentos so-
brenaturais e, em especial, na guerra travada no outro mundo. Eles confiam
no futuro e na vitória divina final. Contudo, isso não significa que isso
seja necessariamente do outro mundo. Pelo contrário, sua “mundanidade”
é influenciada pela “vivência com o outro mundo”; eles insistem que só
pela compreensão do âmbito celestial e espiritual é possível entender este
mundo e ter esperança nele.
Na tentativa de explicar o verdadeiro significado do que ocorre, os es-
critos apocalípticos muitas vezes se concentraram no presente, oferecendo
a própria interpretação da história contemporânea. N o entanto, uma vez
que os escritores criam que eles mesmos, sua mensagem e seu público
estariam em perigo se o que dissessem fosse entendido por todos, eles
usaram a linguagem figurada (governos e instituições normalmente não
gostam quando são identificados como instrumentos do reino de Satanás).
Seus símbolos eram entendidos com facilidade pelo público-alvo, mas
pareciam obscuros para quem não fazia parte de seu círculo (incluindo
os leitores modernos). Além disso, uma vez que os apocaliptistas falavam
com os sentimentos da mesma maneira que com o intelecto, muitas vezes

Brian Arnold, “The Messianic Woes in Jewish and Christian Apocalyptic Litera-
ture”, Wheaton College Graduate School (12/2/1985).
199

usavam exageros, imagens esquisitas e outras distorções da realidade para


criar a atmosfera emotiva. Seu objetivo era retratar uma passagem longa e
tortuosa de perigos, tristezas, maus presságios e escuridão que, de repente,
surge em um jardim de segurança, proteção, serenidade, salvação e luz.
Uma vez que a verdadeira realidade só pode ser percebida pela pers-
pectiva sobrenatural, o apocaliptista muitas vezes pretende transmitir a
revelação divina por meio de visões, sonhos, especulações cósmicas ou
jornadas espirituais. Normalmente, o escritor afirma ter contato com
algum mensageiro sobrenatural, talvez até o próprio Deus, que transmite
a mensagem e oferece uma interpretação (não necessariamente clara para
o leitor moderno).

AS ORIGENS E CONTEXTOS DO APOCALIPTISMO


Dois fatos sobre as origens do apocaliptismo parecem claros. Pri-
meiro, ele ganhou destaque na última parte da história do AT. Segundo,
chegou no momento em que os hebreus, tanto na terra de Israel como
na diáspora, estavam sujeitos a uma grande variedade de influências.
Ainda existem pontos de discussão quanto à época precisa em que o
apocaliptismo começou e sob quais influências. Parte do problema aqui
é que diferentes compromissos filosóficos e teológicos entre os intérpre-
tes contemporâneos, em especial as premissas relacionadas à natureza
da Bíblia, influenciam a avaliação dos dados relacionados às origens do
apocaliptismo (veja Apêndice F, p. 403-405).
A antiga suposição de que os hebreus tomaram emprestado ou se
apoderaram do apocaliptismo a partir de fontes persas, em especial do
zoroastrismo, foi quase abandonada.9*1O s documentos persas relevantes
vêm da Era Cristã, e é difícil determinar até que ponto eles podem conter
materiais anteriores ao cristianismo. Paul Hanson associa o apocaliptismo
à literatura profética hebraica exílica e pós-exílica.1" Outros ressaltaram a
complexidade da situação e uma variedade de possíveis fontes."

' Esta era a posição da Escola da História das Religiões. Para obter um exemplo,
cf. Wilhelm Bousset, Die Religion desJudentums im spàthellenistischen Zeitalter, 3. cd.,
Hugo Gressmann (org.) (Tübingen: Mohr, 1926).
Paul D. Hanson, The Dawn of Apocalyptic (Philadelphia: Fortress, 1975).
11 V. os sumários d ejohn |. Collins, The Apocalyptic Imagination, em Anchor Bible Die-
tionary, vol. 1, p. 282-3.
200

Para nosso estudo, é importante notar aqui a diferença essencial entre


profecia e apocalipdsmo. Na profecia, Deus trabalha e realiza sua obra
nas estruturas do mundo. A salvação para o indivíduo e a comunidade c,
em sentido básico, a renovação que ocorre na terra, mesmo que seja uma
terra renovada. N o drama apocalíptico, o livramento vem de algo que ul-
trapassa a ordem presente; o universo simbólico se torna a nova ordem. O
apocalipdsmo está, sobretudo, interessado em temas como a ressurreição
dos mortos, o juízo eterno e reino celestial, espiritual.
Aconteceu algo na história judaica para alterar a-natureza da esperança
e da expectativa. A recompensa pela justiça não mais podería ser expli-
cada em termos de vida longa na terra prometida no mundo (Dt 4.26;
5.33; 11.9; 30.18; 31.13; 32.47). Já na úldma parte do Reino Dividido, os
hebreus devotos tiveram de considerar a possibilidade da morte violenta
e precoce. A derrota nas mãos da Babilônia, a vida em meio a povos hos-
tis, a luta crucial contra tiranos como Antíoco Epifânio c sua ideologia
intensificou a possibilidade. O s apocaliptistas abandonaram a esperança
de livramento e salvação na terra. Segundo eles, os acontecimentos que de
fato determinam o destino humano estão além deste mundo; a sentença
final e a vingança, as recompensas reais, a salvação final vêm no fim, no
outro mundo.
Qualquer outra coisa que possa ter contribuído para o surgimento do
apocalipdsmo, as situações históricas, sociais, culturais e religiosas em que
os hebreus se encontravam provavelmente desempenharam papel impor-
tante. Sobre essas situações podemos falar em termos gerais, mas muitas
particularidades estão em páginas da história que permanecem fechadas.
Sabemos, no entanto, graças à cuidadosa leitura dos textos, que a antiga
suposição de que toda a literatura apocalíptica veio de um movimento mais
ou menos unificado e das mesmas circunstâncias político-sociais é incorreta.
Não há evidência convincente de um movimento identificável;12em vez
disso, existiam escritores apocalípticos distintos e, provavelmente, comu-
nidades apocalípticas distintas, como Qumran. A prova da conclusão é o
grande intervalo, os diferentes lugares e grupos e a variedade de preocu­

12 A despeito dos livros influentes, e mais recentes, como o de Koch, Rediscovery e de


Walter Schmithals, TheApocalyptic Movement·. Introduction and Interpretation, trad.
John Pi. Steely (Nashville: Abingdon, 1975), não há prova alguma desse movimento.
Observe que o título alemão do livro de Schmithals, Die Apokalyptic. Einführung
und Deutung, não contém a palavra movimento. No entanto, ele parece admiti-lo
(p. 127-50).
201

pações representadas em qualquer coleção de obras literárias apocalípticas.


Ainda que fosse mais provável encontrar o apocaliptismo entre pessoas
e grupos que se viam em situações físicas e espirituais adversas, o fato da
privação do direito à cidadania resultava de uma grande diversidade de
circunstâncias.
De modo evidente, o apocaliptismo judaico era um fenômeno aceito
com características e pontos de vista comuns. A designação frequente dos
escritos apocalípticos como tratados para tempos ruins tem, de fato, uma
base, pelo menos no que diz respeito aos escritores. Quase todos os apoca-
liptistas acreditavam que eles e seus colegas eram o remanescente de Deus
que se via atacado pelo mal como uma forma de agressão a Deus. Ainda
assim, há tanta diversidade entre os escritos assim como uniformidade.
Parece melhor, então, pensar no apocaliptismo como um ponto de vis-
ta geral, uma direção ou trajetória dentro do judaísmo intertestamentário,
e não como um movimento ou grupo definido com clareza. Seus adeptos
avaliaram sua situação de igual modo, embora as situações talvez tenham
sido bem diferentes. E, a despeito das formas literárias, visões dc mundo
e expectativas em resposta a essas situações serem um pouco parecidas,
elas foram desenvolvidas e expressas de forma diferente (as várias obras
reunidas em IBnoque são um exemplo).
O apocaliptismo era parte inegável do judaísmo intertestamentário.
De onde e por que ele surgiu são questões complexas, impossíveis de
responder com base nas informações hoje disponíveis. A influência e os
avanços estrangeiros dentro do judaísmo muito provavelmente desem-
penharam um papel em seu surgimento e crescimento. Também podería
ser explicado apenas como a resposta de certos tipos de personalidade a
alguns estímulos do ambiente. O apocaliptismo também pode ter estado
mais ou menos em circulação em determinadas épocas e lugares. Seja qual
for a causa, o apocaliptismo era parte das origens judaicas do cristianismo
que, por sua vez, se tornaram parte do próprio cristianismo.

A pocaliptism o c o m o interpretação

Os profetas eram porta-vozes divinos que transmitiam a mensagem de


Deus a seus contemporâneos. Ao fazerem isso, eles interpretavam as Escri-
turas, a história e as condições presentes à luz de sua compreensão da pessoa,
da obra e dos objetivos divinos. Os profetas afirmavam ter conhecimento de
Deus graças às tradições religiosas do passado e à revelação especial direta.
202

Os escribas apocalípticos também eram intérpretes. Eles recorriam


a algumas das mesmas fontes que os profetas. N o entanto, mais uma
vez, havia diferenças. Já observamos que eles trocaram a esperança neste
mundo pela expectativa de vitória e justificação no outro. Eles moldavam
suas interpretações de maneira diferente (apocalíptica) e, às vezes, apre-
sentavam avaliações e conclusões diversas. Suas interpretações do cenário
mundial eram, em essência, negativas. As interpretações das razões para
os acontecimentos terrenos eram totalmente espirituais. As interpretações
do futuro estavam baseadas na confiança no Deus poderoso, bom e, por
fim, vitorioso. Por meio dessa interpretação eles procuravam se ajustar à
sua situação e ajudar seus leitores a fazer o mesmo.
Um aspecto raramente observado do apocaüptismo é que ele constitui
um método interpretativo, uma hermenêutica. O s escribas apocalípticos
faziam uso sobejo das Escrituras Hebraicas. Mais óbvias são as figuras
bíblicas, como Adão, Sem, Enoque, Abraão, Moisés, Elias, Baruque e
Esdras, às quais atribuíam suas obras. Os relatos bíblicos dos nefilins,
de Noé e do Dilúvio (em Enoque), a Jeremias e o prenuncio de setenta
anos de cativeiro (em Daniel), são o contexto para algumas narrativas.
Os apocalipses históricos contam toda a história bíblica ou suas partes.
Contudo, o texto bíblico é mais que uma fonte de nomes e narrativas; ele
é autêntico, e esse é o segredo de seu uso pelos apocaliptistas.
Os apocaliptistas, como outros escribas, estavam diante do dilema
de que os escritos fidedignos pareciam irrelevantes para as necessidades
da época. Por isso suas visões e descrições interpretam a Escritura de
maneira a torná-la relevante. Ao fazerem isso, com a alegoria e o pesher, o
apocaliptismo remove o texto da situação originária e o coloca em outra;
a do próprio escriba. O apocaliptismo vai além da alegoria e do pesher, no
entanto, quando introduz novas imagens e se concentra no universo sim-
bólico. O apocaliptista pode estar preparado para o período mais longo, um
intervalo, entre sua época e a consumação final do que o escritor do pesher
Nenhuma regra ou orientação hermenêutica precisa é evidente de ime-
diato para interpretar a Bíblia no contexto apocalíptico. A natureza do gênero
provavelmente impediría essas regras. O que sabemos é que, enquanto os
escritores se ajustavam ao ambiente histórico e cultural, eles procuraram
dar mais autoridade às próprias ofertas e resgatar a Bíblia como um livro
significativo para si mesmos e para seu círculo. (Para ver algumas sugestões
sobre como interpretar o apocaliptismo, cf. Apêndice G, p. 407-409.)
203

A lguns exem plo s

Os textos c comentários sobre a literatura apocalíptica judaica são


fáceis de ser encontrados.13Aqui oferecemos alguns exemplos de escritos
apocalípticos que ilustram algumas características já observadas.
O livro de Apocalipse difere dos apocalipses estritamente judaicos
por causa da adaptação cristã da forma.14 Ainda assim, ilustra caracte-
rísticas mais apocalípticas que a maioria dos outros escritos do gênero.
Descrevendo-se como “revelação (apokalypsis) de Jesus Cristo” (1.1), o
Apocalipse assume desde o início que seu escritor tem uma visão, está
“no Espírito” (1.10) e passa por uma porta aberta (4.1) para o mundo
espiritual. O dualismo cósmico e espacial se fax presente em toda parte,
como a guerra entre Satanás e Deus. O livro está repleto de imagens, in-

13A coleção mais completa de textos chama-se Old Testament Pseudepigrapha, Char-
lesworth (org.), vol. 1. The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament, R. H.
Charles (org.) (Oxford: Clarendon, 1913), vol. 2, e TheApocryphal Old Testament, H.
F. D. Sparks (org.) (New York: Oxford University Press, 1984), também oferecem
os textos dos principais documentos apocalípticos, introduções a cada livro e
algumas notas e comentários textuais.
Resumos dos livros apocalípticos podem ser encontrados em Collins, Al imaginação
apocalíptica; George W. E. Nickelsburg, Literaturajudaica entre a Bíblia eaM ixná (São
Paulo: Paulus, 2011); Robert 11. Pfeiffer, History of New Testament Times (London:
Adam and Charles Black, 1949); Leonhard Rost,Judaism outside the Hebrew Canon·.
An Introduction to the Documents, trad. David F. Green (Nashville: Abingdon,
1976); Η. H. Rowley, TheRelevanceof Apocalyptic, 3. ed. (London: Lutterworth, 1963);
Schmithals, Apocalyptic Movement, Emil Schiirer, The History of the Jewish People in the
Age ofJesus Christ, Ge/.a Vermes etal. (orgs.), 3 vols. (Edinburgh: T. and T. Clark,
1973-1987), vol. 3, partes 1 e 2;Jewish Writings of the SecondTemplePeriod. Apocrypha,
Pseudepigrapha, Qumran, Sectarian Writings, Philo, Josephus, Michael E. Stone
(org.), cm Compendia Rerum ludaicarum ad Novum Testamentum, 7 vol. (Philadelphia:
Fortress, 1974-1992), seção 2, vol. 2.
14 Oscar Cullmann, The New Testament. An Introduction for the General Reader, trad.
Dennis Pardee (Philadelphia: Westminster, 1968), p. 120-1, faz uma importante
distinção entre os apocalipses cristãos e judaicos: “Ao contrário dos apocalipses
judaicos voltados apenas para o futuro, a revelação de João é caracterizada pela
noção cristã do tempo de acordo com a qual o centro da história divina já é, por
antecipação, alcançado em Jesus Cristo. Portanto, o tempo presente é o tempo
do fim, embora o próprio fim ainda deva ser alcançado. O autor mostra o aspec-
to celestial dos acontecimentos presentes, como descreve o aspecto celestial de
eventos futuros. Este é o segredo para entender o livro todo”.
204

cluindo quase todas as características enumeradas pelas definições mais


antigas do apocaliptismo. O documento termina com a vitória de Deus,
o estabelecimento de seu reino, cenas de juízo e punições (caps. 18—20)
e descrições do novo céu e da nova terra (caps. 21— 22).
A falsa geografia é bem ilustrada pela grande prostituta de Apocalip-
se 17. Ria é identificada como Babilônia, que “estava embriagada com o
sangue dos santos, o sangue das testemunhas de Jesus” (v. 6). Babilônia
sem dúvida perseguiu os hebreus, os santos, mas já não existia quando o
sangue das testemunhas de Jesus foi derramado. Assim, além da notifica-
cão de que o nome da prostituta é “mistério” (v. 5), o leitor é acautelado a
olhar além do óbvio e observar sua verdadeira identidade. Isso se resolve
no v. 9, em que as sete cabeças da besta blasfema sobre a qual ela está
sentada (v. 3) são identificadas como “sete colinas”, referência óbvia às
sete colinas sobre as quais Roma foi construída. Roma — ela será lem-
brada — perseguiu judeus e cristãos.
A falsa história é ilustrada cm 4Esdrasc 2Baruque. Esses textos afirmam
descrever a situação após a destruição de Jerusalém e dc Judá pelos babi-
lônios no século VI. Na realidade, eles reagem à destruição de Jerusalém
pelos romanos em 70 d.C.
De todos os apocalipses extrabíblicos, / Enoque é o mais importante
e o mais complexo. Ele resulta da junção de seções escritas ao longo do
período de mais de dois séculos. O livro pode ser dividido cm seções
distintas:
1. O livro dos vigilantes: a jornada visionária de Enoque (caps. 1—36)
2. As similitudes ou parábolas (37— 71)
3. Os escritos astronômicos: o livro do movimento de corpos celestes
(72— 82)
4. A história do mundo observada em visões de sonhos (83—90)
5. Admoestações aos justos (91— 105)
6. Conclusão (106—8)

N o entanto, isto não representa toda a diversidade de 1Enoque. Cada


uma das divisões contém materiais anteriores à compilação final. Antes
da descoberta dos manuscritos do mar Morto, havia um consenso sobre
a identificação e a data deste material:
205

1. Apocalipse das Semanas (91.12-17■—-93.1-10), início do período


pré-macabeu;
2. Fragmentos das visões de Enoque (12— 16), início do período
pré-macabeu;
3. Fragmentos do livro de N oé (6— 11; 106— 7; cf. 54.7— 55.2; 60;
65.1— 69.25), final do período pré-macabeu;
4. Fragmento independente (105), início do período pré-macabeu(?);
5. Visões de sonhos (83— 90), c. 165-161 a.C;
6. Livro das luminárias celestes (72— 82), c. 110 a.C.;
7. Similitudes (37— 71), c. 105-64 a.C.;
8. Adendos posteriores às visões de sonhos (91.1-11,18,19; 92;
94— 104), c. 105-104 a.C;
9. Capítulos introdutórios (1— 5), final da era pré-cristã.15

A descoberta dos manuscritos do mar M orto pôs em dúvida algumas


das datas supracitadas. O fato de terem sido encontrados fragmentos de
cada divisão, exceto das Similitudes, levou alguns estudiosos a questionar
seu direito a um lugar na coleção da literatura de Enoque.16 Agora parece,
no entanto, que as Similitudes vêm de uma comunidade judaica e já fazia
parte de 1Enoque no final do século I d.C.17 O s fragmentos aramaicos do
Livro dos vigilantes e dos Escritos astronômicos sugerem que podem conter
materiais, no mínimo, tão antigos quanto o século III a.C.
A complexidade de 1Enoque é ilustrada pela inclusão de apocalipses
históricos (o Apocalipse animal 185— 90] e () Apocalipse das semanas [91.11-19;
93]) e os apocalipses da jornada (Livro dos vigilantes [1— 36], as Similitudes
[37— 71] e os Escritos astronômicos [72— 82]). Suas preocupações incluem

‫ 'י‬Esta lista pertence a E. Isaac, “ 1 (F.thiopic Apocalypse of) Enoch”, em Old Testa-
merit Pseudepigrapha, Cfiarlesworth (org.), vol. 1, p. 7; cle segue Charles, Apocrypha,
vol. 2, p. 170-1.
lftJ. '1'. Milik, “Problcmes dc la littérature hénochique à la lumière des fragments
araméens de Qumrân”, Harvard Theological Review 64 (1971): 333-78; e The Books
of Enoch (New York: Oxford University Press, 1976), afirma que as Similitudes
foram escritas por cristãos por volta de 400 d.C. Suas visões não foram aceitas
pela maioria dos estudiosos que trabalhavam na área.
17 Isaac, “ 1 Enoch”, 7; Adcla Yarbro Collins, “The Origin of the Designation of
Jesus as Son o f Man”, Harvard Theological Review 80 (1987): 404-5.
206

a origem do mal, anjos e demônios, julgamento e punição, questões rela-


cionadas a calendários,18o “Filho do Homem” ou o “Escolhido” (apenas
nas Similitudes), como também a luta entre o bem e o mal na história e nas
esferas celestiais.

A pocaliptism o c o m o reajuste

A visão apocalíptica tornou-se uma forma de compreender e enfrentar


questões como o problema do mal, o sofrimento dós justos, as promessas
não cumpridas de bênção e longevidade, a derrota e a humilhação do povo
de Deus e o domínio e a prosperidade evidentes dos ímpios. Tornou-se
a maneira de compreender e enfrentar as questões quando não parecia
haver outra perspectiva à disposição. Deus, que já havia falado por meio
de seus servos, os profetas, estava cm silêncio nesse momento, não havia
profetas. O s apocaliptistas tentaram continuar, ou reviver, a voz dos
profetas. Eles também afirmavam ter contato com Deus por meio de
sonhos, visões e coisas do tipo. Procuravam direção para o presente por
meio da compreensão das atividades de Deus no passado.
Os escribas dos fariseus (Avot), os saduceus, Qumran e outras tradições
procuravam direção na nova situação intertestamentária. Os apocaliptistas
judeus também procuravam ajuda cm circunstâncias idênticas — a perda
do templo, as ameaças de forças externas e culturas, a irrelevância da for-
ma tradicional de lidar com a Escritura por causa da mudança histórica e
cultural e o silêncio profético. Eles também alegavam que sua abordagem
e visão tinham origem e autoridade divinas. Era deles também, por fim,
um sistema de ortopraxia, pois esse sistema procurava suscitar fidelidade
e obediência na vida dos adeptos.

18Os escritos astronômicos defendem o ano de 364 dias, em vez do calendário lunar.
11
Divisões, seitas e grupos

• Samaritanismo
• Seitas ou partidos dentro do judaísmo
- Fariseus
- Saduccus
- Herodianos
- Λ quarta filosofia
+ Comentários gerais
+ Zelotes
+ Sicários
- Essênios
- Os escritores dos manuscritos do mar Morto: O s homens de
Qumran
+ Descoberta e controvérsia
+ Tipos de literatura nos manuscritos do mar Morto
+ A história de Qumran
+ A comunidade e sua organização
+ As crenças da comunidade
+ Qumran e os essênios
+ A relevância dos manuscritos do mar M orto para um estudo
do judaísmo intertestamentário e do N T
- Therapeutae
- Judaísmo mágico

A diversidade, como vimos, era uma das principais características do


judaísmo intertestamentário. As seitas, práticas ou filosofias (escolas de pen-
sarnento) judaicas, como as chama Josefo (saduceus, fariseus, essênios), nor­
208

malmente eram consideradas a marca mais óbvia dessa diversidade.1Agora é


claro que a variedade teve seus precursores na comunidade sócio-religiosa do
período do AT, sendo os nazireus e recabitas os exemplos mais óbvios.23*A
diversidade intertestamentária também se manifestou na divisão da religião
mosaica em dois tipos (samaritanismo e judaísmo), nas classificações por
localização geográfica (a terra de Israel e a Dispersão, Galileia e Judeia etc.)
ou por orientação cultural (judaísmo semita e helenístico) e também em
outros sentidos tão variados e muitas vezes muito obscuros para serem
mencionados. Vamos primeiro focar a atenção na variedade alternada da
religião mosaica, no samaritanismo e, em seguida, nas principais seitas ou
partidos do judaísmo.

Sa m a r ita n is m o
Dois versículos do Evangelho de João revelam algo sobre as tensões
entre judeus e samaritanos. De acordo com João 4.9: “A mulher samari-
tana lhe perguntou [a Jesus]: ‘Como o senhor, sendo judeu, pede a mim,
uma samari tana, água para beber?’ (Pois os judeus não se dão bem com
os samaritanos.)” . A declaração da mulher reflete a tensão e a segregação
social entre os dois grupos. Em João 8.48, os judeus lançam os piores
insultos contra Jesus ao perguntarem: “Não estamos certos em dizer que
você é samaritano e está endemoninhado?”. Por trás desses sentimentos
está uma longa história de relações tensas e aparente animosidade entre
povos que dividiam a região montanhosa da terra de Israel desde o vale
de Esdrelom, no norte, ao Neguebe, no sul.
James Purvis resume os problemas da origem samaritana com quatro
perguntas: “ Quem eram os samaritanos? Como os samaritanos vieram a
existir como comunidade religiosa distinta? Quando ocorreu a ruptura
entre samaritanos e judeus? Qual era a raison d’etre teológica da comunidade
samaritana?”.5Uma pesquisa dos acontecimentos históricos envolvendo
os samaritanos se mostrará útil. A grandeza salomônica desmoronou de
forma veloz com a morte de Salomão. Seu filho Roboão o sucedeu durante
um cisma. Israel, composto por quase dez tribos do Norte, rebelou-se

1 As seitas palestinas são conhecidas, pelo menos de nome, a partir de várias fontes.
2 Morton Smith, Palestinian Parties and Policies That Shaped the Old Testament (New York:
Columbia University Press, 1971).
3 “The Samaritans and J udaism”, em EarlyJudaism and Its Modern Interpreters, Robert
A. Kraft, George W. E. Nickelsburg (orgs.). Atlanta: Scholars, 1986, p. 83.
209

JOSEFO HEGESIPO JUSTINO MÁRTIR NOVO TESTAMENTO


(citado em A história (Diálogo com Trifão
eclesiástica, de Eusé- 80)
bio, 4.22.7)

Fariseus Fariseus Fariseus Fariseus


Saduceus Saduceus Saduceus Saduceus
Essênios Essênios
A quarta filosofia
(=zelotes) Zelotes
Sicários Sicários (At 21.38)
(samaritanos) Samaritanos Samaritanos
Helenistas Flelenistas Helenistas
(galileus) Galileus Galileus Galileus
Herodianos Herodianos
Escribas Escribas
(Discípulos de João Discípulos de João
Batista) Batista
Hemerobatistas
Masboteus
Meristae
Genistae

contra a casa de Davi. J udá, as duas tribos e meia do Sul, permaneceu leal
aos reis davídicos, que governaram em Jerusalém. Jeroboão, o primeiro
rei de Israel, tomou uma ação divisiva em termos religiosos, como tam-
bem políticos e geográficos por meio da criação de centros de adoração
alternativos, sacerdotes e festivais (lRs 12.2533‫)־‬. A semente da divisão
entre samaritanos e judeus da era do N T estava plantada.
Cerca de duzentos anos depois, em 722 a.C., os assírios derrotaram
e destruíram o Reino do Norte (2Rs 17). O s conquistadores deportaram
alguns israelitas e trouxeram estrangeiros para a terra. O casamento misto
entre os dois grupos foi inevitável. Mais tarde, para afastar os leões que
lhe disseram terem sido enviados pelo Deus hebraico, o rei assírio enviou
um sacerdote hebreu para reintroduzir o jeovismo (v. 25-28). Como con-
sequência, eles “adoravam o S e n h o r , mas também prestavam culto aos
seus próprios deuses, conforme os costumes das nações de onde haviam
sido trazidos” (v. 33). Ocorreu, então, um sincretismo racial e religioso.
210

Josefo, 2Reis e os rabinos posteriores dizem que os samaritanos vieram


desse grupo.4*
Esdras 4 menciona os adversários de Judá e de Benjamin que procu-
raram ajudar na construção do templo no início do período pós-exílico.
Recusados por Zorobabel, eles, mais tarde, se opuseram à reconstrução
do templo e da cidade. O mal-estar entre os dois grupos aumentou.
Josefo indica que, no Período Persa, Manassés, irmão do sumo sacer-
dote Jadua, casou-se com a filha de Sambalate, oficial samaritano do rei
Dario.‫ י‬Ele e alguns outros sacerdotes rejeitados para o serviço no templo
de Jerusalém abandonaram os samaritanos. Com a derrota de Dario nas
mãos de Alexandre, o Grande, Sambalate assegurou a permissão do novo
governante para construir um templo no monte Gerizim e fez de seu
genro sumo sacerdote.6*A crença comum de que este incidente marca o
início do cisma entre samaritanos e judeus não está isenta de dificuldades,
tampouco a afirmação de Josefo de que a ruptura ocorreu antes, após a
derrota de Israel nas mãos dos assírios no século VIII a.C.
Quando Antíoco Epifânio perseguia os judeus que se recusaram a
aceitar os costumes helenistas, os samaritanos denunciaram os judeus
perante o rei e se dissociaram deles. O s samaritanos alegavam ter origem
sidônia. Para provar a aceitação do helenismo, eles dedicaram seu templo
a Zeus Heleno. Essas ações intensificaram também o mal-estar entre os
dois grupos.8
A irritação judaica com os samaritanos chegou ao ápice sob o governo
macabeu de João Hircano. Ele derrotou e devastou a cidade de Samaria.9*
Josefo diz que ele já havia destruído o templo samaritano (108 a.C.)."'
Sc a ruptura final entre os dois grupos ainda não houvesse ocorrido (e é
quase certo que já havia), as ações de Hircano, sem dúvida, o teriam feito.

4 Josefo chama os samaritanos de “cuteus” {Antiquities 9.14.3 f288-91]).


■' O nome Sambalate figura de forma proeminente na história samaritana do período.
Aparece em Ne 2.10,19; 4.1,7; 6.1,2,5,12,14; 13.28. O nome também ocorre nos
papiros de Elefantina (sc. V) e nos do uádi Daliyeh (séc. IV). Acredita-se também
que se tratassem de pessoas diferentes de alta posição na sociedade samaritana.
Provavelmente eram da mesma família, sendo o nome passado de avô para neto.
6 Antiquities 11.7.2-8.5 (302-25).
Cf. Purvis, “Samaritans”, p. 84-5 e as obras literárias por ele citadas.
8 Antiquities 12.5.5 (257-64).
'‫ ׳‬Ibid., 13.10.2-3(275-81).
‫’״‬Ibid., 13.9.1 (255-56).
211

O Pentateuco samaritano é outro fator na compreensão das relações en-


tre samaritanos e judeus. Os samaritanos não reconhecem as Escrituras,
exceto os cinco livros de Moisés, para os quais eles têm uma edição con-
sideravelmente diferente da dos judeus. Alguns estudiosos afirmam que
o texto samaritano representa uma tradição independente que pode, em
parte, representar melhor o original que o texto massorético dos judeus.
No entanto, a despeito da concordância de alguns fragmentos dos manus-
critos do mar M orto com a versão samaritana, a melhor evidência parece
indicar que os samaritanos produziram seu Pentateuco no século II a.C.
para dar legitimidade às suas visões e práticas teológicas.11
Descobertas recentes em Qumran e no uádi Daliyeh, bem como nas
escavações arqueológicas de Siquém e do monte Gerizim, permitem a
reconstrução mais completa da história samaritana. Parece agora que,
por volta do tempo de Alexandre, o Grande, as famílias governantes de
Samaria perderam o controle, deixaram a cidade e estabeleceram uma
comunidade no antigo local de Siquém. Naquela época, eles construíram
um templo no monte Gerizim. Um tempo mais tarde, possivelmente muito
mais tarde, a comunidade produziu o Pentateuco samaritano. Sua insistência
em que Gerizim era o centro ordenado por Deus para a vida religiosa
tornou permanente a divisão entre eles e os judeus. Os samaritanos, então,
não são uma ramificação do judaísmo, mas uma fé rival que afirma ser a
verdadeira religião dos hebreus.
Os documentos samaritanos que temos à nossa disposição agora re-
fletem avanços para o período medieval e diversas influências, incluindo
o islamismo.12Informações sobre as crenças dos samaritanos modernos
aumentaram no final do século XVII ou início do século XV11I por meio
de cartas de samaritanos para estudiosos europeus e britânicos (que pen-
savam escrever para irmãos samaritanos). Embora a natureza precisa das

11 Esta é uma complexa questão técnica. Bruce K. Waltke, “Samaritan Pentateuch”,


em Anchor Bible Dictionary, David Noel Freedman (org.), 6 vols. (New York: Dou-
bleday, 1992, vol. 5, p. 932-40), oferece uma excelente pesquisa e bibliografia. Pa-
rece que Waltke, em geral, está de acordo com Purvis, “Samaritans”, que também
escreveu extensivamente sobre o assunto.
12 Resumos desses documentos podem ser encontrados em obras clássicas sobre
o samaritanismo; p. ex., John Macdonald, The Theology of the Samaritans (London:
SCM, 1964), p. 40-49; Robert T. Anderson, “Samaritans”, cm Anchor Bible Dictio-
nary, vol. 5, p. 945-6.
212

crenças e práticas do século I não possa ser identificada hoje,13 uma das
cartas dos samaritanos modernos afirma seu credo: “Nós dizemos: Minha
fé está em ti, Se n h o r ; e em Moisés, filho de Anrão, teu servo; e na Lei
santa; e no monte Gerizim, Betel; e no Dia da Vingança e Recompensa”.14
Assim, em geral, eles afirmam: 1) O monoteísmo rígido, incluindo a
aliança de Deus com seu povo; 2) A posição para Moisés além da que
ela tem no judaísmo — ele é o mediador da lei e o último profeta; 3) A
Lei (de acordo com sua edição); 4) A santidade do monte Gerizim como
casa de Deus, fato que se torna claro por causa do décimo mandamento
acrescentado ao Pentateuco Samaritano15 e 5) A escatologia incluindo
recompensas e punições.
O calendário e os festivais samaritanos diferem dos utilizados pelos
judeus. Outra diferença importante é a visão singular dos samaritanos sobre
a história da salvação. Rejeitando a visão judaica, eles dividem a história
da salvação em uma era de desaprovação anterior a Moisés e uma era de
graça depois de Moisés que durou 260 anos. A escatologia samaritana
procura repetir das eras de desaprovação e graça no final da história. A
primeira será iniciada pelo perverso sacerdote Eli; a segunda, pelo Taheb
(Restaurador = Messias), o Profeta como Moisés. Há também evidências
de que se espera que um sacerdote acompanhe o Restaurador.16

13Para obter um estudo sobre o pensamento samaritano, veja Macdonald, Theology.


'4James Alan Montgomery, The Samaritans. The Earliest Jewish Sect (Philadelphia:
John C. Winston, 1907), p. 207; v. tb. Moses Gaster, The Samaritans: Their History,
Doctrines and Literature, Schweich Lectures (London: Oxford University Press,
1925), p. 180; Macdonald, Theology, p. 40-50.
' () Pentateuco samaritano harmoniza as palavras diferentes dos Dez Mandamentos
no texto massorético de Ex 20 e D t 5. Ele conta esses mandamentos como nove
e acrescenta o décimo: “E acontecerá que quando o Senhor os trouxer para a terra
dos cananeus da qual tomarão posse, erijam para si grandes pedras e as cubram
com cal, e escrevam sobre as pedras todas as palavras desta Lei, e acontecerá
que, quando cruzarem o Jordão, vocês erigirão as pedras que lhes ordeno sobre
o monte Gerizim, construirão ali um altar para o Senhor, seu Deus, um altar de
pedras, e não levantarão sobre elas instrumentos de ferro; vocês edificarão seu
altar com pedras perfeitas, colocarão sobre ele holocaustos ao Senhor, seu Deus,
sacrificarão ofertas de paz, comerão ali e se alegrarão diante do Senhor, seu Deus.
Aquele monte está do outro lado do Jordão e no final da estrada cm direção ao
pôr do sol na terra dos cananeus, que habitam em Arabá, de frente para Gilgal,
perto de Elom-Moré, de frente para Siquém” (Gaster, Samaritans), p. 189.
16Moses Gaster, Samaritan OralLaw andAncient Traditions, vol. 1, Eschatology (London:
Search, 1932, p. 271-2), resume a ideia: “Então aparecerá um sacerdote, vindo
213

A Samaria e os samaritanos faziam parte do mundo do NT. N o início


da seção observamos dois incidentes envolvendo a Samaria, registrados no
Evangelho de João. Entendendo a hostilidade entre judeus e samaritanos,
alguns tornam ainda mais notável o fato de o herói de uma parábola de
Jesus ser samaritano (Lc 10.29-37), c de que, ao contrário dos nove judeus
leprosos que também foram curados, um samaritano voltou para agradecer
(Lc 17.11-19). O leitor do N T também não deveria se esquecer de que
a Samaria era o primeiro campo missionário estrangeiro do cristianismo
(At 8.4-25).

Seitas o u partidos do ju d a ís m o

Algumas fontes antigas, incluindo o NT, usam a palavra hairesis para


descrever grupos como fariseus, saduceus e essênios. Portanto, eles pas-
saram a ser considerados seitas discordantes cujas visões estavam erradas.
N o mundo ocidental, “heresia” e “seita” sugerem, principalmente, crenças
ou doutrinas inaceitáveis. Mas “heresia” é um termo muito forte para
representar o significado comum da palavra grega hairesis. A palavra pode
significar “uma divisão, opinião ou dissensão”, como também “grupo
herético” . Da mesma forma, a palavra seita é entendida muitas vezes no
sentido de um grupo herético, embora não precise ter nuança negativa.17A
tradução mais exata da palavra grega, quando aplicada a fariseus, saduceus
e essênios, é “partido” ou “denominação”.
Cada partido contava com tradições distintas, incluindo cultura, cren-
ças religiosas, cerimônias, calendário, estilo de vida e assim por diante. As
fontes antigas não nos permitem enunciar todos os pontos de divergência
entre os diversos partidos. Dos que temos ciência, não sabemos todas as
razões, nem as implicações exatas para os respectivos grupos. O que parece*2

dos descendentes de Fivebar, que foi levado ao céu por Deus, como Enoque dos
tempos antigos, paralá andar com os anjos e agir como sacerdote; ele então será
enviado à terra e agirá como sumo sacerdote, cumprindo todos os serviços do
novo templo”. V. tb. o livro samaritano Yom al-Din 67 (edição de Gaster).
1 O Webster’s New Twentieth-Century Dictionary of the English Language, Unabridged,
2. ed., s.v. “seita”, apresenta três usos: “1) G rupo de pessoas que têm um líder,
conjunto de opiniões, doutrina filosófica etc. em comum; uma escola; um séquito;
2) Qualquer grupo que tenha certas visões, princípios políticos etc., em comum;
3) Denominação religiosa, em especial um grupo pequeno que rompeu com uma
igreja estabelecida”.
214

mais estranho para a mente moderna é que essas diferenças aparentemente


diziam respeito a atividades que iam além da teologia.
Devemos lembrar que o judaísmo era, em essência, a religião da orto-
praxia. Além da aceitação do monoteísmo, do reconhecimento da aliança
de Deus com Israel e da obediência a alguma interpretação da lei, era a
prática, o estilo de vida de alguém, que consistia na base para a aceitação
ou rejeição da comunidade sócio-religiosa predominante. O escritor cris-
tão Hipólito diz que as diferenças entre os grupos judaicos surgiram por
causa de “interpretações diferentes das declarações-feitas por Deus”.18
A presença de vários partidos religiosos é uma característica visível do
judaísmo intertestamentário, conforme descreveram o NT, Josefo e outras
fontes. Parece que eles constituíam apenas uma pequena porcentagem do
total de adeptos do judaísmo, tanto na terra de Israel como na diáspora.
Na terra de Israel, pelo menos, a influência deles foi muito maior que o
número de seus seguidores.
Observamos antes o surgimento dos assideus no início do século II
a.C. (p. 84,85). Eles apoiaram a revolta dos macabeus, enquanto os motivos
foram religiosos (1Macabeus 2.42; 2Macabeus 14.6), mas desistiram quando
a revolta se tornou política (/Macabeus!.13.). Infelizmente, as informações
sobre os assideus são limitadas. Eles às vezes são mencionados como pre-
cursores de partidos judaicos posteriores, em especial fariseus e essênios.
Escrevendo principalmente para o mundo helenístico, Josefo usa a
expressão “escolas de pensamento” para descrever as principais divisões no
judaísmo: “Agora, nesse momento, havia três escolas de pensamento entre
os judeus, que tinham opiniões diferentes acerca das questões humanas,
sendo a primeira a dos fariseus; a segunda, dos saduceus e a terceira, dos
essênios”.1920O historiador interrompe o relato sobre o reinado de Jônatas
Macabeu (160-143) para fazer esta declaração. Portanto, ele implica que
esses grupos se originaram no século II a.C. Mais tarde, ele diz: “A quarta
[...] escola concorda em todos os outros aspectos com as opiniões dos
fariseus, exceto que têm uma paixão pela liberdade quase insuperável”.2"
Ele afirma de forma específica que o grupo teve início no século I d.C.
Já observamos a relação entre as escolas de pensamento mencionadas
por josefo e o desenvolvimento de diferentes tradições no judaísmo. Agora

18 Refutação de todas as heresias 9.13.


19Antiquities 13.5.9 (171); v. tb. 18.1.2 (11) eJewish 2.8.2 (119).
20Antiquities 18.1.6 (23); observe que ele não menciona os zelotes aqui.
215

consideraremos esses grupos com mais detalhes. Primeiro, falaremos dos


partidos especificamente mencionados no N T — fariseus, saduceus, hero-
dianos, a quarta filosofia (incluindo zelotes e sicários) — e, em seguida, dos
essênios, da seita do mar M orto e de outros grupos no contexto do NT.21
Fariseus

As informações sobre os fariseus vêm do NT, de Josefo e dos escritos


rabínicos.22 Possíveis alusões nos livros apócrifos, pseudepígrafos e ma-
nuscritos do mar Morto também são muito incertas e vagas para serem
úteis. Há duas partes principais nos debates sobre as fontes. Primeiro, até
que ponto elas são precisas e como devem ser interpretadas? Segundo,
qual é a natureza essencial do farisaísmo que elas representam? São várias
as teorias, muitas vezes influenciadas pelo ponto de vista do pesquisador.

21 Cf. Leah Bronner, Sects and Separatism during the SecondJewish Commonwealth (New
York: Bloch, 1967); Marcel Simon, Jewish Sects at the Time of Jesus, trad. James H.
Farley (Philadelphia: Fortress, 1967); William W Buehler, The Pre-Herodian Civil
War and Social Debate. Jewish Society in the Period 76-40 B.C. and the Social Fac-
tors Contributing to the Rise o f the Pharisees and Sadducees (Basel: Friedrich
Reinhardt, 1974).
22 Para obter outras informações sobre os fariseus, c f Lester L. Grabbe, Judaism
from Cyrus to Hadrian, 2 vols. (Minneapolis: Augsburg Fortress, 1991-1992), vol. 2,
p. 467-84; Anthony J. Saldarini, “Pharisees”, em Anchor Bible Dictionary, vol. 5,
p. 289-303; John Kampen, The Hasideans and the Origin of Pharisaism■. A Study in
1 and 2 Maccabees (Atlanta: Scholars, 1988); Jacob Neusner, FormativeJudaism·.
Torah, Pharisees, and Rabbis (Chico, Calif: Scholars, 1983), e The Rabbinic Tradi-
tions about the Pharisees before 70 ,3 vols. (Leiden: E. J. Brill, 1971); Emil Schiirer, The
History of theJewish People in theAge of Jesus Christ, Geza Vermes etal. (orgs.), 3 vols.
(Edinburgh: T. and T. Clark, 1973-87), vol. 2, p. 388-403; Ellis Rivkin, A Hidden
Revolution‫׳‬. The Pharisees’ Search for the Kingdom Within (Nashville: Abingdon,
1978); John W Bowkcr, Jesus and the Pharisees (New York: Cambridge University
Press, 1973); Louis pinkclstcin, The Pharisees·. The Sociological Background of
their Faith, 3. ed., 2 vols. (Philadelphia: Jewish Publication Society o f America,
1962); R. Travers Herford, The Pharisees (Boston: Beacon, 1962); Stephen Taylor,
“Pharisees”, em Evangelical Dictionary of Theology, Walter A. Elwcll (org.) (Grand
Rapids: Baker, 1984), p. 849-51; Moisés Silva, “The Pharisees in Modern Jewish
Scholarship”, Westminster TheologicalJournal42 (1979-80); H. F. Weiss, “Pharisaios”,
em Theological Dictionary of the New Testament, Gerhard Kittel, Gerhard Friedrich
(orgs.), trad. Geoffrey W Bromilcy, 10 vols. (Grand Rapids: Eerdmans, 1964-76),
vol. 9, p. 11-48; Ralph Marcus, “The Pharisees in the Light o f Modern Scholar-
ship ”,Journal of Religion 32 (1952): 153-64.
216

O significado da raiz de “fariseu” é incerto. Provavelmente esteja rela-


cionado com o hebraicoparash e o aramaicoperasb (aquele que separa). De
quem os fariseus se separam? Daqueles, especialmente sacerdotes e clérigos,
cuja interpretação da lei era diferente da deles? D o povo comum da terra (Jo
7.4749‫ ?)־‬Dos gentios ou judeus que aceitavam a cultura helenística? Ou de
determinados grupos políticos? Todos esses estariam incluídos na decisão
dos fariseus de se separarem dos tipos de impureza proibidos pela lei levítica
ou, mais especificamente, por sua compreensão rígida da lei. ( )utra explica-
ção sugere que “fariseu” é um apelido derivado de uma forma helenizada
de “persa”; os oponentes dos fariseus usavam-na quando os acusavam de
introduzir doutrinas estrangeiras (cm especial iranianas) no judaísmo.
As referências de Josefo não são neutras; ele afirma, por exemplo,
que governou sua “vida de acordo com as regras dos fariseus”.23 Suas
declarações são seletivas e provavelmente adaptadas ao público de gentios
cultos. As informações dele provêm de duas formas, às vezes incoerentes:
1) descrições diretas e 2) relatos do papel dos fariseus na história.24
Josefo diz que os fariseus mantinham um estilo de vida simples; eram
carinhosos e equilibrados na forma como tratavam os outros, principal-
mente respeitosos com seus anciãos, e muito influentes em toda a terra de
Israel — embora, na época de Herodes, fossem apenas cerca de seis mil.25
Josefo menciona que eles criam no destino (soberania divina) e na vontade
humana, como também na imortalidade de pessoas boas e más.2627Alguns
fariseus recusavam-se a fazer juramentos.2 Especialmente importantes são
as declarações dele dc que os fariseus cumpriam “as leis que a Divindade

23 Life 2 (12). Suas descrições mais importantes acerca dos fariseus são encontradas
em Jewish War 2.8.14 (162-66); Antiquities 13.10.5-6 (288-98); 17.2.4 (41); 18.1.3
(12-15) e Life 2 (12); 38 (191).
24 Como exemplo de incoerência, os fariseus parecem desempenhar um papel menos
importante nos relatos históricos que se esperaria de sua declaração: “Tão grande
é a influência deles com as massas que até quando falam contra um rei ou sumo
sacerdote, eles obtêm credibilidade imediata” (Antiquities 13.10.5 [288|). Além disso,
a descrição do fariseu Eleazar, feita por Josefo, condiz com a afirmação de que
“os fariseus são carinhosos uns com os outros e cultivam relações harmoniosas
com a comunidade” Jewish War2.ΆΛΑ [166]).
25Antiquities 18.1.3 (12)■Jewish War2.8A4 (166);Antiquities 13.10.5 (288); 17.2.4 (41 -
45); 18.1.3 (15).
2,1Jewish War 2.HA4 (162-63); Antiquities 18.1.3 (13-14).
27Antiquities 17.2.4 (42).
217

aprova” e “são considerados os intérpretes mais precisos das leis”.28*Os


fariseus “seguem a direção do que sua doutrina selecionou e transmitiu
como bom, dando a maior importância à observância dos mandamentos
considerados adequados para ditar a vida” .‫ ’־‬Além disso, eles “passavam
às pessoas certos regulamentos transmitidos por gerações anteriores não
registrados nas leis de Moisés.30 Em bora a expressão “lei oral” não seja
usada, parece que, de acordo com Joscfo, os fariseus sustentavam um
conjunto de interpretações tradicionais, aplicações e desenvolvimentos
da lei do AT que era comunicado na forma oral.
O modo como Josefo menciona primeiro os fariseus (em conexão
com o reinado de Jônatas Macabeu, mas com a suposição de que eles já
existiam há algum tempo) levanta a questão muito discutida sobre sua
origem.31 Alguns veem as raízes dos fariseus no Esdras bíblico, outros
nos assideus.32 Estudos recentes sugerem que os fariseus eram parte do
espírito revolucionário geral dos tempos pré-macabeus; eles surgiram
como classe acadêmica dedicada a ensinar a lei escrita e a oral e enfatizar
o lado interno do judaísmo. O u seja, eram sem dúvida um dos grupos que
procuravam adaptar o judaísmo à situação pós-exílica.
João Hircano era, a princípio, um discípulo dos fariseus, mas se tornou
inimigo deles.33 Os fariseus passaram a se opor aos governantes asmo-
neus daí cm diante. A hostilidade foi especialmente terrível no reinado
de Alexandre Janeu (103-76), e, ao que parece, eles tiveram um papel de
liderança na oposição a ele; em geral, acredita-se que todos ou uma grande
parte dos oitocentos judeus que ele crucificou eram fariseus.34 A única
exceção à oposição farisaica aos asmoneus era Salomé Alexandra (76-67),
sob quem eles quase dominaram o governo.

2‫ ״‬Antiquities 17.2.4 (41 y,Jewish W ir 2.8.14 (162).


‫׳ ־‬Antiquities 18.1.3 (12).
30Antiquities 13.10.6 (297); v. tb. 17.2.4 (41).
31Antiquities 13.5.9 (171-72).
32 A preocupação de Esdras estava no cumprimento exato da lei e, em especial, na
pureza cerimonial (Ed 7.10).
33Antiquities 13.10.5 (288-98).
34Jewish W arlA.6 (96-97); Antiquities 13.14.2 (380); v. tb. o Comentário eleNaum sobre
os manuscritos do mar Morto (4QpNah), no qual “o leãozinho furioso” prova-
velmente é Alexandre Janeu e “os que buscam coisas suaves” são os fariseus por
ele crucificados.
218

As informações de Josefo sobre os fariseus sob o governo dos ro-


manos são incoerentes. N o governo de Herodes (37-4 a.C), os fariseus
foram influentes, mas controlados com cuidado pelo rei. Alguns fariseus
se opunham a Herodes. Josefo quase não oferece informações sobre os
fariseus a partir da m orte de Herodes até o início da revolta contra Roma
(66 d.C.). A princípio, diz ele, eles tentaram persuadir os judeus contra
ações militantes.55Mais tarde, os fariseus aparecem como parte da liderança
do povo na revolta e guerra contra Roma.
O N T descreve os fariseus como oponentes de Jesus e dos primeiros
cristãos. N o entanto, eles advertem Jesus, dizendo que a vida dele está em
perigo por causa de Herodes (Lc 13.31), convidam-no para as refeições
(Lc 7.36-50; 14.1), são atraídos ajesus e até creem nele ()o 3.1-21; 7.45-
53; 9.13-16) e protegem os primeiros cristãos (At 5.34-39; 23.6-9). Paulo
afirma que ele era fariseu antes da conversão (Fp 3.5).
A afirmação mais clara do N T acerca das características distintivas dos
fariseus é Atos 23.8: “O s saduceus dizem que não há ressurreição nem
anjos nem espíritos, mas os fariseus admitem todas essas coisas”. Isso dava
a impressão de que a doutrina era a preocupação básica do grupo. No
entanto, Marcos 7.3,4 diz: “Os fariseus [...] não comem sem lavar as mãos
cerimonialmente, apegando-se, assim, à tradição dos líderes religiosos.
Quando chegam da rua, não comem sem antes se lavarem. E observam
muitas outras tradições, tais como o lavar de copos, jarros e vasilhas de
metal”. Portanto, sabemos da preocupação dos fariseus com a lavagem
cerimonial (pureza) e a observância da tradição dos líderes religiosos, uma
descrição da lei oral. O texto de Mateus 23 chama a atenção para a posição
de autoridade religiosa dos fariseus na comunidade, sua preocupação com
o reconhecimento e a honra aparente, o entusiasmo para converter pes-
soas e a ênfase na observância dos detalhes da lei. N o versículo 23, Jesus
os condena, não pelo que fizeram, mas por negligenciarem “os preceitos
mais importantes da lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade” .
A descrição dos fariseus na literatura rabínica é particularmente difícil
de interpretar. A descrição foi, afinal, compilada e escrita por rabinos que
se consideravam sucessores dos fariseus e, portanto, tinham parcialidades
históricas e sociológicas. Algumas declarações rabínicas sobre os fariseus
podem ter sido propaganda para melhorar ou apoiar a posição deles contra
os oponentes. Além disso, a natureza do material dificulta a distinção do

*Jewish IK411) 2.17.3 ·‫) ״‬.


219

que nele representa a situação anterior ao ano 70 d.C. Ao contrário de


Josefo e do NT, os escritores rabínicos pouco dizem sobre as crenças dos
fariseus. Sua preocupação é quase toda com questões cultuais e cerimoniais
relacionadas à pureza, comida, ao sábado, aos festivais, à agricultura e a
questões como noivado, casamento e divórcio.
Nossas três fontes, não em termos individuais nem coletivos, dão
informações suficientes para a compreensão abrangente dos fariseus.
Cada uma apresenta um retrato diferente ou tem uma ênfase distinta. Por
causa do peso dado à evidência do NT, os fariseus, por tradição, foram
vistos como uma seita legalista e hipócrita, mas até a descrição que o NT
faz deles é mais complexa que isso.
O zelo farisaico à lei é óbvio, mas o que se entende por lei? A santidade
da lei escrita nunca foi questionada por qualquer grupo judeu intertes-
tamentário. O que distingue os fariseus está nas próprias tradições, que,
como vimos, incluíam as cercas ou limites em torno da lei escrita (Mixná
Avot 1:1), o corpo de interpretações, desenvolvimentos e aplicações da
lei que eles passaram a considerar de origem divina. A maioria dessas
tradições — a lei oral — tratava de questões da pureza levítica. Algumas
incluíam adendos que se distinguiram na situação intertestamentária. Entre
elas estava a crença na imortalidade, em anjos e demônios, cm espíritos e
na soberania divina. O desenvolvimento dessas doutrinas levou a outras.
Por exemplo, a crença na imortalidade resultou no desenvolvimento de
conceitos messiânicos e escatológicos. As visões sociais e políticas dos
fariseus se baseavam na premissa de que toda a vida deve ser vivida sob
o controle da lei divina. Eles se opunham aos asmoncus que, contrários à
lei, buscavam unir a monarquia e o sacerdócio. D a mesma forma, rejeita-
vam a autoridade romana quando ela parecia conflitar com a lei de Deus.
Com certeza a atribuição do legalismo e do literalismo pelos escri-
tores modernos aos fariseus reflete fontes antigas. Ao mesmo tempo, os
fariseus não eram tão rigorosos quanto outros grupos, em particular os
essênios.’6 Suas interpretações e estilo de vida eram mais precisos que os
das pessoas comuns, sobre as quais diziam: “Essa ralé que nada entende
da lei é maldita” (]o 7.49).36

36 A referência dos manuscritos do mar Morto aos fariseus como “os que buscavam
coisas suaves” (4QpNah 2:11b), significa “os que pegam a saída fácil”, provável-
mente é uma descrição pejorativa.
220

A o co n trário d o s saduceus, o s fariseus resistiam à cultura helenista e


à co o peração co m o s p o d eres políticos estrangeiros. A o q ue parece, os
fariseus aceitavam um c o n ju n to m uito m aio r de tradições que os saduceus.
A tradição farisaica n ão só incluía regulam entos cerim oniais e cultuais
diferentes, m as tam b ém desenvolvim entos de crenças inaceitáveis aos
saduceus.

Saduceus
As in fo rm açõ es so b re os saduceus aparecem nas m esm as fontes que
as in form ações so b re o s fariseus: Josefo, o N T e o s escritos rabínicos. ’7
Trabalhando com o n o m e saduceu, foram realizadas tentativas de determ inar
a origem d o g ru p o . A s sugestões incluem associá-lo à família sacerdotal de
Z adoque,*38*n o AT, a palavra hebraica usada para “justo” o u “re to ” (Sãdduj),
ou “oficiais da c o rte ” o u “juizes” (em grego, syndikoi). Infelizm ente, há
problem as com essas etim ologias e todas as o u tras tentativas de identificar
a origem d o s saduceus.
N o N T , o s saduceus aparecem só n o s E vangelhos S inópticos e em
A to s.1'1 O texto d e A to s 23.8 define os saduceus em term o s teológicos,
dizendo q u e eles n ão acreditavam na “ ressurreição n em anjos nem espí-
ritos” . A rejeição da ressurreição pelos saduceus é o p o n to em questão
em M arcos 12.18-27 e seus paralelos.
Jo sefo afirm a q u e os saduceus são briguentos, grosseiros e b ru to s
uns com o u tro s e co m o s estrangeiros.4041E m b o ra p o u co s em núm ero, eles
incluíam ho m en s d a mais alta posição.4' T in h am a confiança d o s ricos,

' Para obter outras informações, cf. Gtdbbc,Judaism, vol. 2, p. 484-7; Gary G. Potion,
“Sadducees”, em Anchor Bible Dictionary, vol. 5, p. 892-95; Anthony J. Saldarini,
Fariseus, estribas esaduceusna sociedadepalestinense (São Paulo: Paulinas, 2010); Schürer,
History, vol. 2, p. 403-14; Simon, /««xí‫ ׳‬Sects, p. 22-7; Rudolf Meyer, “Sadducccs”,
cm Evangelical Dictionary of Theology, p. 965-6; E. E. Ellis, “Jesus, the Sadducees,
and Qumran”, New Testament Studies 10 (1963-64): 274-79.
38Zadoque é o nome de um sacerdote do reinado de Davi (2Sm 15.24-36; 17.15;
19.11) que, com a família, ganhou o controle do sumo sacerdócio e do templo no
reinado de Salomão (lRs 2.35; lC r 29.22). “Os sacerdotes !evitas e descendentes
de Zadoque” ministram no santuário na visão de Ezequiel do templo reconstruído
(44.15).
Eles aparecem em seis contextos diferentes: três nos sinópticos (Mt 3.7; 16.1-12;
22.23-34 [= Mc 12.18-27; Lc 20.27-40]) e três em Atos (4.1; 5.17; 23.6-8).
mAntiquities 18.1.4 (16); Jewish War 2.8.14 (166).
41Antiquities 18.1.4 (17).
221

m as não do povo.42 C o m o consequência, q u an d o estavam n o exercício do


ofício, os saduceus eram forçados pela opinião pública a seguir as fórm ulas
dos fariseus.43 E v id en tem en te, eles eram m ais rig oro so s na adm inistração
de p u nições q u e o s fariseus.44
C o m o o N T , Jo sefo m en cio n a a rejeição d a ressurreição pelos sadu-
ceus.45 E le o b serv a tam b ém a rejeição d o d estin o (predestinação) a fim de
dissociar D eu s d o m al e su sten tar o livre-arbítrio h u m a n o d o b em ou do
mal.46 A lém disso, as tradições extrabíblicas d o s fariseus eram “ rejeitadas
pelo g ru p o d o s saduceus, q u e alegam q u e só deveríam ser considerados
válidos os regulam entos registrados (na E scritu ra)” .47 Isto indica um a das
principais características d o saduceísm o: a rejeição da lei oral farisaica ou
da “ tradição dos líderes religiosos” (M c 7.3). Já ob serv am o s que os sadu-
ceus contav am co m tradições, in terp retaçõ es e p ro ced im en to s próprios
(p. 189-191).
E m A tos 5.17, o s aliados d o su m o sacerd ote são identificados com o
a seita d o s saduceus. Josefo, de igual m o d o , diz que os saduceus estavam
estreitam ente associados co m o s g o v ern an tes asm oneus d o sacerdócio.
N a ép o ca d o N T , a família su m o sacerdotal e seus d efensores saduceus
pareciam constitu ir a m aioria n o Sinédrio. N o entanto, n ão se deve pressu-
p o r q ue to d o s o s saduceus eram sacerdotes n e m q u e to d o s os sacerdotes
eram saduceus.
As referências rabínicas são escassas e contenciosas.48 A s vezes cha-
m am o s saduceus d e “sam aritan o s” (aqui significando “ o p o n en tes”) ou
“b etusianos” . O s últim os provav elm en te p ro v êm de su a conexão com a
casa d e B oethus, d a qual p ro ced eram vários su m o s sacerdo tes no período
d o N T . O s escritos ap ó s o an o 70 d.C . fazem d isdn çâo e n tre as posições
dos saduceus e dos fariseus sob re assuntos cerim oniais e judiciais. E m geral,
parece q u e o s saduceus apoiavam as in terp retaçõ es e pro ced im en to s que

42Antiquities 13.10.6 (298).


43Antiquities 18.1.4 (17).
44Antiquities 13.10.6 (294).
45Jewish War2.8.14 (165)·,Antiquities 18.1.4 (16).
''·Jewish War2.8.14 (164-65).
''1Antiquities 13.10.6 (297); v. tb. 18.1.4 (16).
48 Os saduceus são mencionados na Mixná, em Bruvin 6.2; Makkot 1.6; Parah 3.3;
Niddah 4.2 e Yadayim 4.6,7. As referências pós-mixnaicas no Talmude são de um
período posterior, confusas e no geral pouco confiáveis.
222
aumentavam o prestígio, poder e as finanças do culto no templo sacerdotal
e da aristocracia. O s fariseus tomaram a posição oposta.
Em sentido religioso, os saduceus eram conservadores e literalistas na
forma como tratavam a lei do AT e resistiam às novas idéias e tradições
dos fariseus. Política e socialmente, eram abertos à reconciliação com a
cultura helenística (grega) e o sistema político romano. Como resultado de
exclusão divina (destino) dos assuntos humanos e da convicção de que os
seres humanos não podem esperar nada além da vida, os saduceus eram,
em essência, secularistas.
Jesus e os primeiros cristãos representavam uma ameaça aos saduceus
(v., p. ex.,Jo 11.47-50). A proclamação da realidade do reino espiritual por
Jesus, sua denúncia da religião judaica praticada na época e seu grande
apoio popular poderíam ter colocado em perigo a posição já precária dos
saduceus. Além disso, Jesus e seus seguidores apoiavam algumas posições
dos fariseus. Os saduceus achavam particularmente censurável a proclama-
ção cristã de que, em Jesus, a ressurreição é a realidade presente (At 4.2).
Inseparavelmente ligado às instituições políticas, sociais e, sobretudo,
centradas no templo do judaísmo, os saduceus entraram para as páginas
da história com a destruição do Estado c templo judaicos, em 70 d.C.
Os herodianos
Os herodianos aparecem com os fariseus em Marcos 3.6 (após a cura
do homem com a mão atrofiada) e Mateus 22.16 (passagem que levan-
ta a questão da legitimidade do pagamento de impostos a César). Em
Marcos 12.13, os fariseus os consultam para saber como podem prender
Jesus.49 O nome deles os identifica como membros da família ou corte de
Herodes ou como defensores da dinastia.
Josefo descreve o afogamento dos “partidários de Herodes” no mar
da Galileia nas mãos de galileus rebeldes nos dias de Herodes, o Grande.50
Note que as vítimas não são chamadas de “ herodianos”, mas “partidá-
rios de Herodes”. Herodes, o Grande, não teria se cercado de um grupo
de defensores judeus. Consequentemente, é provável que os chamados
49Alguns manuscritos citam “herodianos” em Mc 8.15, mas “Herodes” é uma leitura
mais autenticada.
50Antiquities 14.15.10 (450); Jewish War 1.17.2 (326).
223

herodianos surgiram durante o reinado de Herodes Antipas, e, por isso,


sua presença na Galileia.51*
Pode-se presumir que os herodianos eram favoráveis aos romanos.
A associação de herodianos e fariseus, com quem não tinham afinidade
natural, se viu diante de Jesus com os representantes de duas opiniões
extremas sobre a questão da tributação (Mt 22.15-22; Mc 12.13-17). Da
mesma forma, em Marcos 3.6, os fariseus, sabendo que os herodianos
tinham influência, procuraram a ajuda deles, ainda que eles não tivessem
participado do momento em que a mão atrofiada foi curada. Por fim,
deve-se notar que os saduceus compartilhavam o apoio dos herodianos à
família de Herodes, mas não há evidência a favor da suposição esporádica
que iguala herodianos e saduceus.
A quarta filosofia
C o m e n tá rio s g e ra is

Josefo é a principal fonte de informações sobre a chamada quarta


filosofia (sendo as três primeiras as seitas dos fariseus, saduceus e essê-
nios). Ele diz que os judeus só se familiarizaram com a quarta filosofia
na rebelião do ano 6 d.C., liderada por Judas da Galileia, em que Quirino
ordenou que fosse realizado um censo.2’'‫־‬Parece que Josefo, de alguma
forma, associa os zelotes a esse espírito rebelde. Ele culpa a quarta filosofia
por plantar “a semente de todo tipo de desgraça” , guerras, assassinatos
de amigos e pessoas importantes, roubos e, em resumo, os distúrbios
gerais e rebelião que, por fim, levaram à derrota dos judeus nas mãos dos
romanos em 70 d.C.51

51 Norm an Hillyer, “Hêrõdianoi\ em New International Dictionary of New Testament


Theology, Colin Brown, 4 vols. (Grand Rapids: Zondervan, 1975-78), vol. 3, p. 441 -3.
^Antiquities 18.1.1 (1-10); 18.1.6 (23). Os dados bíblicos relativos ao censo de Qui-
rino na terra de Israel apresentam um problema. Mateus situa o nascimento de
Jesus antes da morte de Herodes, o Grande (4 a.C.). O texto de Lc 2.2 o situa na
época em que Quirino era governador da Síria. Normalmente acredita-se que ele
assumiu o ofício depois da morte de Herodes. Outros problemas concentram-se
na natureza do próprio censo. Não há uma explicação satisfatória para todos os
dados. Sobre a questão, cf. o excelente resumo de 1. Howard Marshall, The Gospel
of Luke‫׳‬. A Commentary on the Greek Text, New International Greek Testament
Commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 1978), p. 97-104.
53
224

De acordo com Josefo, Quirino visitou a Judeia a fim de fazer uma


avaliação da propriedade dos judeus. Isso ocorreu no ano 6 d.C., após a
retirada de Arquelau como etnarca da Judeia e Samaria. Embora a ação
de Quirino tenha trazido uma inquietação generalizada entre o povo,
grande parte foi silenciada pelo sumo sacerdote. Mas Judas, de Gamala,
e Zadoque, um fariseu, convocaram a rebelião, dizendo:
A avaliação trazia consigo uma condição equivalente à da escravidão pura
e simples, não menos, e apelava à nação a fazer um esforço para obter
a independência. Eles exortavam que, em caso d» sucesso, os judeus
teriam lançado as bases da prosperidade; se não conseguissem qualquer
benefício, ganhariam honra e fama pelo nobre objetivo; e que o céu seria
seu ajudante zeloso para nada menos que a promoção da iniciativa até
ela ser exitosa — ainda mais se, com muita devoção no coração, eles
permanecessem firmes e não evitassem o derram amento de sangue que
podería ser necessário.54

Alguém podería se perguntar por que um censo causaria uma reação


tão exaltada. O censo era um requisito para o aumento dos impostos, algo
que por si só podería ter instigado algumas hostilidades e podería também
explicar o grito de liberdade. Mas por que as fortes insinuações religiosas
na retórica de Judas e Zadoque? Josefo chamajudas de “líder” (hêgemòn) e
“sofista” ([sophistès).55 Sobre o último termo, Emil Schürer diz: “Esta des-
crição distingue Judas como um mestre com suaprópria interpretação distinta
da Torã’.56 Isso significa que Judas e seus seguidores, com vários outros
grupos de judeus intertestamentários, apegavam-se ao próprio conjunto
de tradições junto com o texto escrito.
A realização de um censo em Israel não era questão sem importância.
Para muitos judeus, era uma medida administrativa que só Deus podería
instigar. O texto de Números 1 e 26 mostra que Deus fez isso no deserto.
Até Davi, o protótipo do governante hebreu, fez cair sobre si a ira divina
quando contou o povo (2Sm 24). A ideia por trás dos clamores de Judas
e de Zadoque parece ser a de que qualquer ser humano que ordenasse o

4‫ י‬Antiquities 18.1.1 (4-5). Para a reconstrução mais extensa da mensagem de Judas, v.


Martin Hengel, The Zealots: Investigation into theJewish Freedom Movement in the Period
from Herod I until 70 A .D . (Edinburgh: T. andT. Clark, 1989), p. 90-144.
55Jewish War 2.8.1 (118).
56 Schürer, History, vol. 2, p. 600, n. 5 (ênfase do autor).
2 2 .5

censo de Israel estava se colocando em uma posição reservada apenas para


Deus — um ato de blasfêmia. Se Davi trouxe sobre si o desfavor divino
por fazer isso, quanto mais os hebreus se levantariam em uma rebelião justa
quando um estrangeiro tentasse contar o povo de Deus! A quarta filosofia,
então, não era só um grupo revolucionário; seus partidários buscavam a
revolução em nome da religião.57O comentário de Josefo, “eles consideram
normal se submeter à morte [...] se tão-somente puderem evitar se referir
a qualquer homem como mestre”, deveria ser entendido nesse contexto.58
Josefo sugere que o espírito e o exemplo de Judas influenciaram
todos os revolucionários subsequentes. Sua filosofia provavelmente se
transformou na convicção fundamental da maioria dos judeus posteriores
que lutaram pela liberdade, em especial dos ativos na guerra de 66—70.
Na verdade, a família de Judas era importante entre os últimos guerreiros
pela liberdade.59
O espírito da quarta filosofia de Judas assemelhava-se ao patriarca
macabeu que convocou a rebelião contra o sacrilégio de Antíoco Epifânio.
E possível que o título pelote tenha vindo do grito de guerra de Matatias:
“Que venham comigo todos os que são dedicados à Lei e querem continuar

57É possível também que houvesse obrigações financeiras religiosas para os contados
pelo censo. Foi o que aconteceu no desert() quando o tabernáculo estava sendo
construído (Êx 30.11-16; 38.26).
58Antiquities 18.1.6 (23). O grego despotès, do qual vem a palavra déspota, pode significar
o senhor de uma casa ou pode ser usado como referencia a um governador abso-
luto ou até mesmo a um deus (Henry G. Liddell e Robert Scott, A Greek-English
Lexicon, revisado por Henry S. Jones, 9. cd. [Oxford: Clarendom, 1968J, 381).
Josefo usa o termo para descrever o lugar especial de Deus na quarta filosofia:
“Só Deus é o líder e Senhor deles {hêgemona kai despotên)” {Antiquities 18.1.6 [23]).
Ele também emprega o termo quando descreve a posição dos sicários no Egito
que tentaram persuadir seus companheiros judeus a “não considerar os romanos
melhores que eles e a respeitar só a Deus como seu Senhor (despotên); os sicários
suportavam a maior tortura, que tinha como objetivo forçá-los a reconhecer “César
como Senhor (Kaisaradespotên)” (Jewish WarlAOA [410, 418]).
19 Schürer, History, vol. 2, p. 600-1, resume da seguinte forma: “Seu pai Ezequias
opôs-se à tirania de Herodes; seus filhos Simão e jacó foram crucificados pelas
atividades contra Roma no governo de Tibério Júlio Alexandre; seu descendente
Manaém tomou Massada no início da revolta, em 66, e liderou a revolução em
Jerusalém até ser assassinado pelo partido de Eleazar b. Simon, e Eleazar b. Jair,
sobrinho de Manaém, liderou o último grupo que lutou pela liberdade em Mas-
sada”.
226

fiéis à aliança!” (JMacabeus 2.27).60 Uma vez que o espectro da guerra se


tornou maior, alguns dos adotantes da filosofia de Judas, tendo afirma-
do que “o céu seria seu ajudante zeloso”, podem ter pensado que Deus
protegeria o nome dele ao intervir (possivelmente enviando o Messias) a
seu favor. Tais visões estariam de acordo com o espírito do movimento
e as condições na terra de Israel na época.
Antes de considerarmos grupos possivelmente associados com a
quarta filosofia, devemos observar a situação social no Israel do século I.
Josefo se refere aos oponentes judeus de Roma como “rebeldes” (stasias-
tai) e “revolucionários” (neõieripontes). E também significativo que Josefo
e o N T grego façam distinção entre 1) kakourgos, o malfeitor e criminoso
comum (Lc 23.32,33,39; 2Tm 2.9) e 2) lêstês, que pode denotar um ladrão,
salteador e bandido (Mt 27.38; Mc 11.17; 15.27; Lc 10.30,36; Jo 10.1,8;
2Co 11.26), ou um revolucionário e insurgente (Mt 26.55; Mc 14.48;
Lc 22.52). Lucas descreve os crucificados com Jesus como “criminosos”
(kakourgoi), mas Mateus, provavelmente preservando mais o tom exato,
chama-os bandidos ou revolucionários (lêstai).
Josefo indica que os grupos aos quais nos referimos poderíam ser en-
contrados por toda a Galileia e Judeia. As áreas rurais estavam, sobretudo,
repletas de “bandidos”, aos quais ele atribui o mesmo tipo de atividades
consignadas aos seguidores da quarta filosofia. Agora o banditismo é um
fenômeno multilateral. “Bandido” (lêstês) pode designar alguém forçado a
roubar para sustentar a si mesmo e à sua família, ou que roubava dos ricos
para dar aos pobres (como um Robin Hood). Nessa situação, as autori-
dades no poder, as classes mais altas e os ricos viam os bandidos como
ladrões e criminosos, enquanto o povo comum podia aclamá-los heróis e
salvadores. O terrorista de uma pessoa é o que luta pela liberdade de outra!
Z e lo te s

Josefo só menciona os zelotes como grupo distinto no relato sobre


o início da guerra de 66-70 d.C., no qual ele os descreve como uma das

611O conceito tem uma história ainda mais longa. O sacerdote Fincias foi recom-
pensado por seu zelo quando matou um israelita imoral e idólatra e uma moabita
nas campinas de Moabe (Nm 25.1-13). Elias disse ter sido “zeloso” pelo Senhor
(lRs 19.10,14). O texto d e jo 2.17 aplica SI 69.9: “o zelo pela tua casa me consu-
mirá”, à purificação do templo feita por Jesus, interpretando, assim, a passagem
de forma messiânica.
227

várias facções revolucionárias.61Ele cita os sicários, João de Giscala e seus


seguidores, Simão, filho de Giora, e seus seguidores, e os idumeus como
outros grupos revolucionários. Outras fontes indicam que o Barjone e
os galileus estavam entre os envolvidos na luta contra Roma.6263Alguns
estudiosos modernos até incluem os bandidos (lêstai) entre os grupos
do movimento pela liberdade.65‫ ׳‬Mas esses grupos lutaram entre si tanto
quanto os romanos ou mais que eles.
Quem precisamente foram os zelotes?64Josefo diz que João de Giscala
reuniu vários grupos de bandidos e militantes em Jerusalém, em 66 d.C.
A ação causou uma divisão entre os que antes seguiam Eleazar, filho de
Simão.65 Nesse momento, os seguidores de João, o grupo mais radical,
foram, pela primeira vez, chamados zelotes.6667N o entanto, como vimos,
Josefo também associa o termo de forma específica à insurreição liderada
pelo galileu Judas, sessenta anos antes. A questão torna-se mais difícil, por-
que Lucas 6.15 e Atos 1.13 identificam Simão, um dos apóstolos de Jesus,
como zelote,6 um uso anacrônico se “zelote” aqui se refere a um grupo
surgido mais de trinta anos depois de Jesus ter concluído seu ministério.
Estudos recentes tentam fazer a distinção entre vários possíveis
referentes para o termo pelote: 1) indivíduo com fervorosa devoção à lei
de Deus (Eclesiástico 45.23,24; 48.1,2; Jubileus 30.18-20; IMacabeus 2.27);
2) atitude e movimento geral ilustrado por Judas de Gamala e Zadoque,
que, prometendo “que o céu seria o ajudante zeloso deles” , lideraram
uma revolta frustrada contra o censo romano em 6 d.C. (este movimento
violento, religioso e revolucionário é chamado por Josefo quarta filoso-
fia) e 3) conjunto de facções revolucionárias judaicas surgidas na guerra
de 66—70 sob João de Giscala (Josefo os chama coligação de bandidos e

6'Jewish War 43.9 (161).


62 Cf. Hengel, Zealots, p. 53-9, que recorre às fontes rabínicas como também do séc. I.
63 Richard A. Horsley, John S. Hanson, Bandidos, profetas eMessias: Movimentospopulares
no tempo deJesus (São Paulo: Paulus, 1997); Hengel, Zealots, p. 24-46.
64 Para obter outras informações, v. Hengel, Zealotr, David Rhoads, “Zealots”, em
Anchor Bible Dictionary, vol. 6, p. 1043-54; Morton Smith, “Zealots and Sicarii:
Their Origins and Relation”, Harvard Theological Review 64 (1971): 1-19; Richard
Horsley, “The Zealots”, Novum Testamentum27 (1986): 159-92; William R. Farmer,
Maccabees, Zealots, andJosephus (New York: Columbia University Press, 1956).
65Jewish War 2.20.3 (564).
66Jewish War4.3.9 (160).
67 Em Mt 10.4 e Me 3.18, ele é chamado de cananeu.
228

malfeitores). A erudição contemporânea difere sobre a relação, se houver,


entre estes grupos e os sicários.
É possível que as discussões sobre o significado específico do termo
pelote e os dados sobre o primeiro uso atribuam a Josefo a precisão que ele
não intentou. Ele diz que Judas e Zadoque “começaram” a quarta filosofia
entre os judeus e o zelo inspirado no grupo mais jovem.68 Portanto, ele
parece descrever uma orientação, um espírito, que deu à 1112 e alimentou
o tipo de pensamento e ações que, por fim, levaram à guerra com Roma.
Assim, um escritor popular como Lucas podería muito bem usar “zelote”
para se referir a alguém que aceitou o espírito de Judas e Zadoque bem
antes do início das hostilidades; em sentido mais técnico, “zelote” se re-
fere ao participante de uma das facções revolucionárias durante a guerra.
De nosso ponto de vista, é importante observar com cuidado que
Josefo descreve o movimento zelote como algo aprovado pelos fariseus
(pelo menos, com a orientação geral deles). Os zelotes acrescentaram o
nacionalismo violento e revolucionário ao sólido contexto religioso. Com
eles, podemos aprender algo sobre os fariseus (entre os quais também
parece ter havido um elemento quietista, meio pacifista), os revolucioná-
rios anteriores à guerra e os grupos judaicos militares que lutaram contra
os romanos.
S ic á rio s

Os sicários eram um grupo terrorista com o qual Paulo foi identi-


ficado de forma equivocada (At 21.38).6970*Josefo diz que eles surgiram
durante a procuradoria de Félix (52-59), mas também os associa com as
perturbações muito mais antigas no tempo de Quirino.7" Sem dúvida,
eles foram ativos dentro e em torno de Jerusalém desde a época de Félix
até a procuradoria de Albino (62-64) e, mais tarde, estavam presentes na
fortaleza de Massada (72-73).

68Antiquities 18.1.1 (9-10).


69 O termo grego sikarioi vem do latim sicarius (homicida, assassino), que, por sua
vez, vem de sica (punhal curvo). As versões bíblicas em português traduzem sik-arioi
como “assassinos” (NV1), “sicários” (ARA), “salteadores” (ARC) e “terroristas
armados” (NTLH-P).
70Jewish War2.\3.2,3 (252-54); 7.8.1 (253-54); Schürcr, History, vol. 2,p. 602, sugerem
que eles se organizaram mais ccdo.
229

Durante a procuradoria de Félix, os sicários realizaram uma campa-


nha de terror — sequestros, extorsões, roubos e assassinatos. Josefo os
distingue de outros bandidos: “Uma nova espécie de bandidos estava
surgindo em Jerusalém, os chamados sicários, que cometiam assassinatos
em plena luz do dia no coração da cidade. Os festivais eram suas épocas
especiais, quando se misturavam à multidão, carregando punhais curtos
sob as vestes com os quais esfaqueavam seus inimigos. Então, quando
caíam, os assassinos se juntavam aos gritos de indignação e, por meio
desse comportamento plausível, não eram descobertos” .71A arma favorita
desses terroristas ou guerrilheiros urbanos era um punhal curvo para matar
adversários, normalmente judeus que defendiam os romanos.
N o último período de proeminência, em Massada, os sicários parti-
ciparam da investida inútil contra os romanos. O suicídio dos defensores
de Massada trouxe o fim da resistência judaica organizada aos romanos
na terra de Israel no século I. Josefo também menciona as atividades
insurgentes de alguns sicários que fugiram para o Egito após a queda de
Jerusalém. “
O líder sicário de Massada, Eleazer, filho de Jairo, era parente de Ju-
das, o galileu, como Menaém, líder revolucionário que havia se colocado
quase como rei de Jerusalém, mas foi atacado e m orto por outros judeus
insurgentes liderados por Eleazar, filho de Simão.‫ יי‬A relação exata de
Menaém com os sicários é confusa. Embora Josefo culpe os sicários por
começarem a perturbação na qual Menaém se impôs e foi m orto,'4 ele se
abstém de identificar Menaém com os sicários. E possível que Eleazer,
filho de Jairo, e seus seguidores tenham sido defensores de Menaém e
também dos sicários, ou é possível que os seguidores de Menaém tenham
se juntado aos sicários em Massada depois da m orte dele. Em todo o caso,
a conexão entre Judas, o galileu, a quarta filosofia e os sicários está bem
estabelecida.
A questão mais difícil é a relação entre os zelotes e os sicários. As
recentes opiniões acadêmicas divergem sobre a questão. 5 A escolta de*75

1'Jewish War2.13.3 (254-55).


11Jewish War 7.10.1 (409-19); 7.11.1-2 (437-46).
‫'■י‬Jewish War 2.17.8-9 (433-48).
"AJewish War 2.17.6 (425).
75 Gary G. Porton, “Diversity in Postbiblical Judaism”, cm Early Judaism, Kraft,
Nickelsburg (orgs.), p. 72-3.
230

Menaém é descrita como “zelotes armados”, mas “zelote” aqui não pre-
cisa ser um nome técnico de partido.76 O s zelotes e os sicários podem ter
sido grupos completamente distintos. Também é possível que, antes da
investida em Massada, os sicários atuassem apenas como uma força secreta.
Como consequência quando Josefo descreve seu papel na batalha aberta,
ele os chama zelotes ou membros de algum outro grupo revolucionário.
Isso podería explicar por que não há referência alguma aos sicários enfren-
tando, de fato, os romanos na batalha em Jerusalém. Também é possível
que, após a m orte de Menaém, eles tenham se retkado da cidade e não
estivessem presentes em Jerusalém na agonia final da cidade.
Essênios
Os essênios não são mencionados no NT. As principais descrições e
comentários acerca deles vêm de escritores judeus, Josefo, Fílon e o gen-
tio Plínio, o Velho.7" Mais de dez escritores cristãos, incluindo Hegesipo,
Hipólito, Eusébio, Epifânio e Jerônimo, mencionam os essênios; deles
apenas Hipólito acrescenta informações dignas de nota. '8
Os essênios ainda são um enigma da história judaica; até o significado
do nome é incerto.79 Além disso, “a seita não exerceu influência notável no
judaísmo”.80 Sua relevância para nosso estudo está no 1) exemplo de mais
uma das divisões do judaísmo intertestamentário, na 2) reação (afastamento
da sociedade) às crises que moldaram o caráter distintivo do período e
na 3) provável relevância para os manuscritos do mar Morto. O fascínio
deles pelos primeiros escritores cristãos demonstra que tinham algum
significado especial para algumas ramificações da cristandade.

16Jewish War2.17.9 (444).


11Antiquities 18.1.5 (18-22); Jewish War 2.8.2-13 (119-61); Fílon, Every Good Man Is
Free, p. 75-91; Hypothetical Apology for the Jews 11.1-18; Plínio, o Velho, Natural
History 5.73.
78 Hipólito, Refutation of A ll Heresies 9.13-22; em certo momento, Hipólito confunde
os essênios com os sicários e zelotes. A compilação de todos os textos antigos
(em grego e latim) que tratam dos essênios pode ser encontrada em Alfred Adam,
AntikeBerichte überdie Essener, Kleine Texte 182 (Berlim: Walter De Gruyter, 1961).
79Tentativas para relacionar o termo a várias palavras gregas e hebraicas e para
encontrar indícios nas descrições da comunidade produziram diversas sugestões
de significados para o nome essênio: “santo”, “cumpridor da lei”, “silencioso”,
“adorador” e “curador” foram sugeridos. A melhor suposição, e é somente essa,
é “devoto”.
80 Bronner, Sects■, v. tb. Schürcr, History, vol. 2, p. 558.
231

N ão há informações sobre a origem dos essênios. A primeira refe-


rência de Josefo a eles surge com o relato do profeta Judas, atuante no
reinado de Aristóbulo I (104-103 a.C.).81 Eles podem ter vindo de uma
ramificação dos assideus após o fim do apoio de Judas Macabeu.
Em geral, os essênios representam uma linhagem monástica, asceta
e purista do judaísmo intertestamentário. Alguns viviam em vilas e cida-
des, enquanto outros se isolavam nas próprias comunidades no deserto.
Todos viviam em comunidade; nela, todas as propriedades, bens, dinheiro
e salários eram colocados na tesouraria central para o uso de todos. Eles
faziam refeições simples em conjunto. A maioria se ocupava com o tra-
balho agrícola, mas alguns com o comércio.
A vida da comunidade essênia era aberta para os homens adultos. As
fontes divergem quando o assunto é saber se eram totalmente celibatários
ou podiam ser casados e se as mulheres podiam ter qualquer associação
com o grupo. Eles adotavam crianças e as criavam de acordo com as
próprias tradições. Não havia escravos entre eles.
A organização dos essênios era hierárquica, liderada por sacerdotes e
oficiais eleitos por um método simples: mãos erguidas. O s candidatos ao
grupo se submetiam a um período de experiência preliminar de um ano
e depois outros dois anos de experiência enquanto eram examinados e
ensinados. Só depois faziam o juramento exigido de todos na associação
(de m odo geral, os essênios não faziam juramentos). A partir daí integra-
vam a comunidade e unham permissão para comer com os demais. Ainda
assim, havia níveis entre os membros. Por exemplo, os membros seniores
se banhavam se fossem tocados por um membro júnior.
Os essênios se dedicavam ao estudo das Escrituras e de outros escri-
tos antigos. Eles se preocupavam com os princípios morais e a édea, não
com a filosofia especulativa. Reverenciavam o legislador Moisés ao lado de
Deus e enfatizavam a observância da lei. Sua interpretação e prática da lei
eram mais rigorosas que as de qualquer outro grupo judeu conhecido. Sua
prática sabática proibia até acender uma fogueira ou evacuar. Os essênios
davam muita ênfase à prática de manter a pureza levítica. Banhavam-se
muitas vezes com água fria, rejeitavam a unção com óleo, usavam vestes
brancas e simples e vivam de forma extremamente modesta.
Em termos de crenças, os essênios eram, fundamentalmente, judeus,
embora diferentes de outros grupos judaicos em várias áreas. Rejeitavam

81Jewish War 1.3.5 (78-80); Antiquities 13.11.2 (311-13).


232

as tradições alheias, em especial as dos fariseus. Eram completamente


deterministas (fatalistas), acreditando que Deus está no controle absoluto
de todas as coisas. Acreditavam na destruição do corpo e na imortalidade
da alma. Rejeitaram a legitimidade dos controladores do templo de Jeru-
salém; em vez disso, acreditavam que só a família de Zadoque deveria ter
essa prerrogativa. Enviavam ofertas ao templo, mas não faziam sacrifícios
ali, tendo, ao que parece, cerimônias e liturgia próprias. Viviam de acordo
com seu calendário.
Os escritores antigos que descrevem os essênios mencionam sua re-
jeição à guerra, exceto, possivelmente, para se defenderem. N o entanto,
Josefo lista João, o Essênio, entre os oficiais na guerra contra Roma.82
Como se observou antes, pelo menos um essênio foi reconhecido profeta;
outros, por causa do intenso estudo da Bíblia, também acreditavam ter
o dom profético. Fílon e Josefo mencionam a prática das artes médicas
pelos essênios.
Os escritores dos manuscritos do mar Morto:
O s h o m e n s d e Q u m ra n

E importante quando discutimos que a seita do mar Morto junto com


os essênios ainda marca uma divisão entre eles. Embora a identificação dos
homens de Qumran como essênios seja extremamente plausível, existem
diferenças inexplicáveis entre o estilo de vida e as crenças dos dois grupos.
Devemos também levantar a questão da relação deste grupo obscuro e
incomum com o N T e o cristianismo. Aqui, também, os estudiosos mo-
demos divergem na resposta.
Alguns pontos precisam ser apresentados no início. Nem todos os
manuscritos das cavernas ao longo da costa ocidental do mar Morto,
que se acredita terem sido produzidos pelos habitantes do assentamento
em Qumran, são do mesmo tipo; eles mencionam diversos campos de
estudo. Foram escritos de acordo com — e refletem — a vida e a mente
de um grupo judaico intertestamentário que se separou da corrente prin-
cipal em termos de localização física e pensamento. Alguns escritos se
limitam à vida e pensamento do grupo; outros tratam da história geral e
do pensamento do período intertestamentário. Embora os manuscritos
comportem muitas informações novas para o estudo do judaísmo, ainda
existem muitas lacunas no conhecimento dos escritores dos manuscritos
*2Jewish War2.20A (567).
233

e do período intertestamentário. Os manuscritos não respondem todas as


nossas perguntas; na verdade, eles muitas vezes suscitam novas.
D e sc o b e rta e co n tro v é rsia

Sabe-se muito bem como os manuscritos do mar M orto foram desco-


bertos.83 Eles vieram à luz no início de 1947, quando um menino pastor,
beduíno, tentava pegar uma cabra que havia fugido para uma caverna.
A importância dos documentos não foi reconhecida de cara. Coletá-los
tornou-se difícil e perigoso por causa da guerra entre árabes e israelenses
em 1948. Algumas partes da história se enquadram bem em histórias de
mistério com capa e espada; alguns aspectos ainda não são totalmente
conhecidos.
Por fim, organizou-se um comitê de estudiosos para examinar e publi-
car os documentos recém-descobertos. A publicação começou no início
da década de 1950; os manuscritos mais longos e considerados mais im-
portantes foram publicados com muita rapidez. Outras partes do material
permaneceram inéditas (principalmente os fragmentos da Caverna 4) sob
a guarda do comitê oficial. Outros estudiosos foram proibidos de trabalhar
neles. Ao longo dos anos, a pressão acadêmica e pública se uniram contra o
isolamento do material inédito guardado pelo comitê. N o outono de 1991,
o restante dos manuscritos do mar Morto se tornou público, primeiro de
forma cxtraoficial, depois de forma oficial por autoridades competentes.
Quase não há questões relacionadas aos manuscritos do mar Morto
que não estejam envolvidas em controvérsia. Quem os escreveu e quando?
Qual seu significado e importância? A quem eles deveríam pertencer agora?
São traduções e reconstruções modernas corretas? Por que demorou tanto

83 Estudos gerais e práticos sobre os manuscritos do mar Morto e as questões rela-


cionadas incluem F. F. Bruce, Second Thoughts on the Dead Sea Scrolls, 2. ed. (Grand
Rapids: Eerdmans, 1961‫ ;)־‬Millar Burrows, Burrows on the Dead Sea Scrolls (Grand
Rapids: Baker, 1978); Frank Moore Cross, The Ancient Library of Qumran, 2. ed.
(London: Duckworth, 1961); Lawrence H. Schiffman (org.),Archaeology and History
in the Dead Sea Scrolls: The New York University Conference in Memory of Yigael
Yadin (Sheffield, Eng.: Sheffield Academic Press, 1990); Andre Dupont-Sommer,
TheBssene Writingsfrom Qumran, trad. Geza Vermes (Cleveland: World, 1962); Idem,
TheJewish Sect of Qumran and the Essenes, trad. R. D. Barnett (London: Valentine,
Mitchell, 1953); Geza Vermes, Os manuscritos do mar Morto (São Paulo: Mcrcuryo,
2004); Yigael Yadin, The Message of the Scrolls (New York: Grosset and Dunlap,
1962).
234

tempo para a disponibilização para o mundo acadêmico e o público geral?


Essas são apenas algumas das perguntas e discussões sobre os manuscritos.
(Para obter uma breve discussão de algumas razões legítimas que explicam
a demora entre a descoberta e a publicação, veja o Apêndice H, p. 411.)
T ip o s d e lite ra tu ra n o s m a n u sc rito s d o m a r M o rto

O material do mar Morto inclui 1) textos ou fragmentos de todos os


livros do AT, exceto Ester; 2) partes dos livros apócrifos e pseudepígra-
fos; 3) escritos da comunidade de Qum ran e, dependendo da extensão da
definição que se dá à expressão “manuscritos do mar M orto”, 4) cartas,
relatórios e materiais bíblicos, religiosos, militares, comerciais e contratuais
escritos por pessoas ou grupos que não faziam parte da comunidade de
Qumran.
Os documentos mais extensos, e para nossos objetivos mais impor-
tantes, são os que versam sobre a vida, o pensamento e as expectativas
do grupo de Qumran. Outras informações sobre eles vêm de descobertas
arqueológicas no local central. O s escritos da seita tratam 1) da organi-
zação e funcionamento da comunidade; 2) da exposição bíblica; 3) da
adoração — hinos, orações, bênçãos, meditações — e 4) de expectativas
do futuro — o papel da seita na batalha final, o Messias, o novo templo e
coisas do tipo. E a partir desses documentos que a história, o pensamento
e as práticas do grupo devem ser reconstruídos.
A h istó ria d e Q u m ra n

Qumran está localizada em um planalto pequeno e estéril com vista


para o extremo noroeste do mar Morto. A disposição de muros, cisternas e
cursos de água do assentamento era, em grande parte, visível antes mesmo
do início dos trabalhos arqueológicos formais. As escavações revelaram
piscinas para banhos rituais, uma cozinha, um local de reunião e sala de
jantar, uma olaria, um estábulo, moedas e muito mais.84 Foram encon-
trados alguns artefatos para escrita, incluindo penas, tinteiros e uma sala
tida como escritório. Os primeiros resquícios encontrados no local vêm
de uma cidade ou fortaleza militar da Judeia do século VIII ou VII a.C.

84J. van der Ploeg, The Excavations atQumran·. A Survey o f the Judean Brotherhood
and Its Ideas, trad. Kevin Smyth (New York: Longmans, Green, 1958).
235

Em algum momento no período entre 134-105 a.C , um mosteiro foi


construído em torno da antiga fortaleza.85Era pequeno e podia acomodar
apenas cerca de cinquenta monges. Entre 105 e 31 a.C., o mosteiro foi
ampliado e um extenso sistema de água foi acrescentado. As evidências
indicam o aumento do tamanho da comunidade e no número de vocações
comportadas. Na última parte do século I a.C., o assentamento foi dani-
ficado e abandonado. A causa exata é incerta. Talvez os monges tenham
sido atacados por seus inimigos judeus ou invasores partos (40 a.C.); o mais
provável é que os edifícios tenham sofrido danos por causa do terremoto
que atingiu a área em 31 a.C. O s danos causados pelo terremoto ainda são
evidentes nos restos de uma piscina e alicerces de construções rachados. O
local de Qumran foi abandonado do ano 31 até a última parte do reinado
de Herodes, o Grande (pouco antes do ano 4 a.C.), que, pelo que se sabe,
foi favorável aos essênios. A fase final da ocupação veio quando o local foi
reativado quase no fim da vida de Herodes. O s edifícios foram destruídos
em 68 d.C. e o local, ocupado pela Décima Legião Romana. Não se sabe
se os ocupantes de Qumran foram assassinados pelos romanos depois de
uma resistência armada ou passiva ou se fugiram antes da chegada deles.
Obviamente, eles esconderam seus manuscritos preciosos nas cavernas
com a esperança de recuperá-los mais tarde.
Outras informações sobre a história da seita podem ser obtidas nos
próprios escritos. A maioria dos dados históricos é críptica, tendo o sig-
nificado muitas vezes debatido. Entre as fontes mais importantes estão a
Aliança de Damasco (CD), o Manual de disciplina (IQS) e os peshers (comen-
tários) sobre Naum (4QpNah ou 4Q169) e Habacuque (lQpHab).
O Documento de Damasco se refere ao início do grupo, 390 anos após
a conquista de Nabucodonosor (196 a.C.) e, em seguida, à aparição do
Mestre da Justiça vinte anos mais tarde (176 a.C.).86 O mesmo escrito fala

85 Além das informações nos estudos gerais listados na nota 83, cf. Phillip R. Cal-
laway, The History of the Qumran Community (Sheffield, Eng.: Sheffield Academic
Press, 1988).
86 CD 1:5-12: “Quando eles foram infiéis e o abandonaram, ele ocultou seu rosto de
Israel e de seu santuário e os entregou à espada. Mas, ao se lembrar da aliança dos
antepassados, deixou um remanescente para Israel e não o entregou à destruição.
E, no tempo da ira, 390 anos depois de tê-los entregado nas mãos do rei Nabu-
codonosor da Babilônia, ele os visitou fez com que uma raiz brotasse de Israel e
Arão para herdar sua terra e prosperar nas coisas boas da terra. E eles perceberam
236

dos “convertidos de Israel [sacerdotes] que se afastam da Terra de Judá e


(os levitas são) que se juntam a eles” (CD 4). Isto parece se referir a uma
retirada voluntária da sociedade. O Manual de disciplina diz que o grupo se
retirou para o deserto a fim de se separar dos ímpios, preparar o caminho
para Deus por meio do estudo da lei.87
O Peshersobre Habacuque fala do Sacerdote ímpio que invadiu o lugar
do retiro e causou confusão durante o Dia da Expiação da comunida-
de.88Outros documentos incluem referências similares ao Escarnecedor,
Mentiroso e ao Proclamador de Mentiras. Não está tlaro se os referentes
devem ser identificados uns com os outros e com o Sacerdote ímpio.89
Os contextos, particularmente no Documento de Damasco, no manuscrito
de Salmos (1QH) e, provavelmente, em “Alguns dos Preceitos da Torá”
(4QMMT), deixam claro que havia uma facção que rompeu com o Mestre
da Justiça e permaneceu em oposição a ele.

sua iniquidade e reconheceram que eram homens cheios dc culpa, mas, por vinte
anos, foram como cegos tateando para achar o caminho. [...] E Deus observou
seus feitos, que eles o buscavam dc todo o coração, e levantou para eles um Mestre
da Justiça para guiá-los no caminho de seu coração. E deu a conhecer às gerações
posteriores o que havia feito à última geração, a congregação de traidores, aos que
se afastaram do caminho” (tradução livre).
871QS 8:14: “E quando esses se tornarem membros da Comunidade de Israel de
acordo com todas essas regras, eles se separarão da habitação de homens ímpios
e irão para o deserto a fim de preparar o caminho dele; como está escrito: No de-
seriopreparem 0 caminho [...]façam no deserto um caminho retopara 0 nosso Deus (Is 40.3).
Este (caminho) é o estudo da Lei que ele ordenou pelas mãos de Moisés, para
que possam agir de acordo com tudo o que foi revelado de era em era, e como os
Profetas revelaram por meio de seu Espírito Santo” (tradução livre).
88 lQ pH ab 11: “A i daquele que dá bebida ao seupróximo, que derrama seu veneno a fim de
embebedá-lopara que ele observesuas^■!*‫ ״‬/Interpretando, isto diz respeito ao Sacerdote
ímpio que seguiu o Mestre da Justiça até a casa de seu exílio para que pudesse
confundi-lo com sua fúria venenosa. E, no momento designado para o descanso, o
Dia da Expiação, ele apareceu diante deles para confundi-los e levá-los a tropeçar
no Dia do Jejum, o sábado do descanso deles” (tradução livre). Observe que, como
resultado do uso feito do calendário solar de doze meses e 364 (ou 365) dias, em
vez dc um calendário lunar, a comunidade de Qumran provavelmente observava
o Dia da Expiação em um dia diferente do da maioria de seus contemporâneos.
1‘‫״‬Jerome Murphv-O’Connor, “The Judean Desert”, era EarlyJudaism, Kraft, Nickes-
burg (orgs.), p. 139-41.
237

O Pesheràt Naum refere-se aos reis selêucidas Demétrio III Eucairós


e Antíoco Epifânio pelo nome, e à oposição dos “que buscam coisas sua-
ves” ao “leãozinho” que, por vingança, “pendura homens vivos”.90Como
já vimos, normalmente acredita-se que isso se refira ao que aconteceu
depois de alguns judeus terem convidado o rei selêucida Demétrio para
atacar Alexandre Janeu — Janeu foi vitorioso e, em retaliação, crucificou
oitocentos de seus inimigos (fariseus?) em Jerusalém.91
Embora as pessoas associadas à comunidade não possam ser identi-
ficadas de forma conclusiva, a época em que elas viveram é muito clara.
A comunidade surgiu a partir do século II a.C. até o último terço do sé-
culo I da Era Comum. Representa um dos vários grupos que reagiram de
diversas formas à intensificação da presença helenística, várias pressões
dentro da terra de Israel e avanços políticos, sociais e religiosos associados
aos governantes macabeus. Como os essênios, a comunidade de Qumran
representa uma linhagem monástica, asceta e purista do judaísmo intertes-
tamentário. Mas, antes de considerarmos a natureza exata de sua relação
com os essênios, precisamos entender um pouco sobre a vida e as crenças
da comunidade.
A c o m u n id a d e e su a o rg a n iza ç ã o

As informações sobre a natureza e a organização da comunidade vêm


de uma série de documentos, dos quais os mais importantes são o Manual
de Disciplina (1QS), a Aliança da Comunidade de Damasco (CD) e o Governo

904QpNah 2:1 lb-12: "Aonde 0 leão vai, lá está a cria do leão, [sem nadapara perturbá-lo].
Interpretando, isto diz respeito ao rei Demétrio da Grécia que tentou, seguindo
o conselho do que buscam coisas suaves, entrar em Jerusalém. [Mas Deus não
permitiu que a cidade fosse entregue] às mãos dos reis da Grécia, da época de
Antíoco até a chegada dos governantes de Quitim. Mas, então, ela será pisoteada
por...
"O leão chora 0 suficientepor seusfilhotes e sufoca a presapara sua leoa”. [Interpretando,
isto] diz respeito ao leãozinho furioso que ataca por meio de seus grandes homens
e por meio dos homens de seu conselho.
“[E sufoca a presapara sua leoa; e enche] suas cavernas [depresas] e suas covas, de vítimas.
Interpretando, isto diz respeito ao leãozinho furioso |que faz vingança] contra
aqueles que buscam coisas suaves e pendura homens vivos, [...] antes em Israel.
Por causa de um homem pendurado vivo [na] árvore, Deus proclama: ‘Eu estou
contra [você, declara o Senhor dos ExércitosJ”.
91Jewish War 1.4.6 (96-97); Antiquities 13.14.2 (380).
238

messiânico (1 QSa); outros dados estão espalhados pelos documentos, dos


quais o Manuscrito de Guerra (1QM) e o Manuscrito do Templo (11 QTemp)
merecem menção especial.92
Os objetivos da comunidade são mais bem expressos com suas pa-
lavras:
O Mestre ensinará os santos a viver [de acordo com] o livro da Regra da
comunidade, para que possam buscar a Deus de todo o coração e alma, e
fazer o que é bom e correto perante ele, como ordenou pelas mãos de
Moisés e de todos os seus servos, os profetas; para que possam amar
tudo cjue ele escolheu e odiar tudo que ele rejeitou; para que possam se
abster de todo o mal e perseverar em todo o bem [...] |O Mestre] admitirá
na aliança da graça todos os que se dedicaram de forma livre à obser-
vância dos preceitos divinos [...] para que possam amar todos os filhos
da luz, cada um segundo a sua parte no desígnio divino, e odiar todos
os filhos das trevas [...] para que possam purificar seu conhecimento
na verdade dos preceitos divinos... Todos os que aceitarem a Regra da
comunidade entrarão na aliança diante de Deus para obedecer a todos os
seus mandamentos, para que não o abandonem durante o domínio de
Satanás por causa do medo ou terror da aflição [1QS 1]. [Tradução livre.]

Eles se separarão da congregação dos homens falsos e sc unirão, com


respeito à lei e aos bens, sob a autoridade dos filhos de Zadoque, os sacer-
dotes que cumprem a aliança, e da multidão dos homens da comunidade
que perseveram na aliança. Toda decisão com relação à doutrina, bens e
justiça deverá ser tomada por eles [1QS 5], [Tradução livre.]
Nessas declarações, vemos as linhas gerais da comunidade sob a
autoridade do Mestre ou Guardião, responsável por administrar a Regra.
Cada pessoa funciona na comunidade “segundo a sua parte no desígnio
divino”. O s sacerdotes, os filhos de Zadoque, desempenham um papel
especial. A comunidade vê a sociedade, incluindo Israel, marcada pela
clara dicotomia entre o bem e o mal. O objetivo deles, os filhos da luz, é
se separar do mal, praticar a verdade e a justiça e se apegar ao que é bom.
Nesse sentido, buscam conhecer a lei de Deus e viver com pureza. Embora
as exigências legais tenham lugar importante, não há puro legalismo; o
objetivo é “buscar a Deus de todo o coração e alma”.

92 Alguns questionam se o Manuscrito do Templo deveria ser classificado como um


documento sectário no mesmo sentido que o Documento de Damasco e o Manual
de Disciplina; veja o resumo de Murphy-O’Connor, “Judean Desert”, 136-37.
239

Os documentos mencionam dois estilos de vida diferentes para os


membros da “nova aliança” (o nome que escolheram para si mesmos).
Alguns viviam cm cidades e outros, em acampamentos. Ao que parece,
os primeiros viviam juntos, mas longe dos vizinhos. Participavam de ati-
vidades urbanas normais. Observavam com cuidado as regras da comu-
nidade, principalmente a pureza ritual, “para que pudessem distinguir o
puro e o impuro, o santo e o profano” (CD 12). Nada mais se sabe sobre
os membros urbanos.
Os que moravam nos acampamentos, provavelmente em mosteiros
no deserto, como Qumran, viviam de forma muito diferente. Por exem-
pio, faziam as refeições juntos, nas quais os assentos eram distribuídos de
acordo com a posição. Algumas refeições eram assembléias solenes nas
quais um sacerdote presidia e dava a bênção. Vendo-se como o verdadeiro
Israel, os membros do acampamento tinham como modelo de organiza-
ção o texto de Êxodo 18.25: “Aqueles que seguem estes estatutos na era
da maldade até a vinda do Messias de Arão e Israel formarão grupos de,
pelo menos, dez homens, de mil, de cem, de cinquenta e de dez. E onde
estiverem dez, nunca haverá falta de um sacerdote instruído no Livro das
meditações; eles serão governados por ele” (CD 12,13). Essa era, sem dúvida,
uma meta idealista; a comunidade jamais alcançou milhares de adeptos,
apenas algumas centenas, no máximo.
Os principais oficiais, o guardião e o tesoureiro, ambos provavelmente
sacerdotes, eram responsáveis pela supervisão de todos os assuntos. O
Manual de disáplina (1QS 8) se refere ao Conselho da Comunidade, com-
posto por doze leigos e três sacerdotes. Esse conjunto não é mencionado
em outras passagens, por isso não se sabe ao certo se o termo se refere a
um comitê executivo da comunidade ou a toda a comunidade, sendo os
números aqui o mínimo para um quórum.
A expressão “segundo a sua parte” aparece várias vezes nos documen-
tos de Qumran e se refere à ordem hierárquica. Uma passagem menciona
uma divisão entre sacerdotes, levitas, israelitas e prosélitos (CD 14). Outras
divisões fazem distinção entre mais velhos e mais jovens e os de posição
inferior e superior.
A membresia plena exigia um período de experiência para instrução,
provação e exame prático para a qualificação de, pelo menos, dois anos,
talvez três. Se aprovado pelo guardião e o corpo, o candidato fazia um
240

juramento.9’ Sua propriedade era, então, anexada à da comunidade, e ele era


admitido à vida do grupo. Essa vida se centrava no aprendizado e na prática
da lei e das tradições da comunidade. Entre os muitos regulamentos estava
a exigência de que todos os membros da comunidade deveríam participar
todos os anos da assembléia geral no dia de Pentecoste, chamada “festa da
renovação da aliança”. Um tribunal aplicava castigos rigorosos em casos
de violação de todas as leis bíblicas e dos regulamentos da comunidade.
Esperava-se que os membros da comunidade que viviam em cidades
se casassem. A questão das mulheres em Qumran é discutida. O celibato
concordava bem com o estilo de vida ascético. N o entanto, nada é dito
sobre o assunto. Os ossos de algumas mulheres e crianças foram des-
cobertos em escavações dos limites externos do cemitério de Qumran.
Evidências arqueológicas também indicam que os habitantes de Qumran
se sustentavam com várias ocupações. N o entanto, como vimos, suas
principais preocupações eram manter a pureza, pardcipar de frequentes
lavagens rituais, estudar da lei e orar.9394
A s c re n ç a s d a c o m u n id a d e

Os habitantes de Qumran acreditavam ser o verdadeiro Israel, a “nova


aliança”.95 Ao se juntar ao grupo, o indivíduo se tornava parte dos eleitos
de Deus e recebia os dons da salvação, do verdadeiro conhecimento e
da capacidade de aceitar a verdade e viver de forma justa. Isso levava o
membro à vida de pureza e santídade e a visões do trono celestial.96

93 O candidato jurava “voltar-se de todo o coração e alma para todo mandamento


da Lei de Moisés de acordo com tudo que havia sido revelado dela aos filhos de
Zadoque, os que cumpriam a aliança e buscavam a vontade de Deus, e à multidão
dos homens de sua aliança que, juntos, haviam se comprometido a seguir a verdade
de Deus e andar no caminho do deleite dele” (1QS 5).
94 “Onde estiverem os dez, nunca faltará entre eles um homem que estudará a lei de
forma contínua, dia e noite, com relação à conduta correta do homem com sua
companheira. E a congregação assistirá à comunidade durante um terço de toda
noite do ano, lerá o livro, estudará a lei e orará junto com ela” (1QS 6).
95 Para saber sobre a “nova aliança”, cf. CD 8 e lQ pH ab 2 (em 1.5).
96Vários fragmentos sugerem este tema, em especialmente “Os cânticos do sacri-
fício do sábado”, que também são chamados Liturgia angelical (4QSirShabb). As
visões da merkavah (o trono-carruagem de Deus no livro de Ezequiel) são parte
importante do apocaliptismo e do pensamento místico judaico. Cf. Neil S. Fujita,
A Crack in theJar. What Ancient Jewish Documents Tell Us about the New Tes-
tament (Mahwah, N. J.: Paulist, 1986), p. 158-66.
241

Entre as características distintivas da crença de Qumran estão a relação


da comunidade com o templo de Jerusalém. Uma vez que eles conside-
ravam ilegítimos os sacerdotes não zadoquitas, os monges não adoravam
em Jerusalém ou eram proibidos de fazê-lo. Eles enviavam ofertas, mas
parece que contavam com uma liturgia sacrificial própria. Outra caracte-
rística é o dualismo ético com uma base espiritual. A principal fonte aqui
é chamada pelos estudiosos modernos Instrução dos dois espíritos (1QS 3,4).
De acordo com o Manual de disciplina (1QS 8), os homens de Qu-
mran também se viam como se estivessem “ no deserto [preparando] um
caminho para o Se n h o r ” (I s 40.3). Mais ainda, eles acreditavam estar
diretamente envolvidos na salvação de Israel:
Eles guardarão a fé na terra com firmeza e mansidão, c expiarão o pecado
pela prática da justiça c pelo sofrimento das tristezas da aflição... Quando
estiverem em Israel, o conselho da comunidade será estabelecido na ver-
dade. Será uma plantação eterna, uma casa de santidade para Israel, uma
assembléia da suprema santidade para Arão. Eles serão testemunhas da
verdade no juízo e serão os eleitos da boa vontade que expiarão a terra
e pagarão aos ímpios a recompensa deles. [Tradução livre.]

Assim, os homens de Qumran parecem se ver, como na tradição dos


justos, sofredores que suportam a aflição de forma vicária pela nação de
Israel.
N o outono de 1994 foi publicado o quinto volume oficial de materiais
da Caverna 4 de Qumran.97 Ele contém muitos fragmentos que, quando
reunidos, constituem um documento único, o MiqsatMa asêha-Torah (“Al-
guns dos Preceitos daTorá”) (4QMMT) há muito esperado.98Seguindo os
vestígios parciais do calendário de 364 dias, o documento oferece mais de
vinte leis acompanhadas de comentários e instruções sobre sua observação.
Parece que um dpo específico de cumprimento dessas leis, a maioria do
AT, pode ter separado o grupo que criou esse documento dos demais.
Ele pode, de fato, tê-los separado não só de outros judeus em geral, mas
também de membros de outra facção da comunidade. Pois ele afirma de
forma específica: “ [E vocês sabem que] nos separamos da multidão de

97 Elisha Qimron, John Strugnell, Discoveriesin theJudaean Desert, vol. 10,Qumran Cave
4 (New York: Oxford University.Press, 1994).
98Martin Abegg, “Paul, W orks o f the Law’ and MMT”, BiblicalArchaeology Review
20.6 (November-December 1994): 54, prefere traduzir o título como “Obras
pertinentes à lei”.
242

pessoas (e de toda a impureza delas]”.9910Sabe-se que o documento ressalta


a importância dada pelo grupo às passagens cerimoniais da Torá e à pró-
pria interpretação e aplicação dela. Além disso, semelhanças linguísticas
podem tornar o documento um contexto útil para a compreensão de
algumas passagens do NT.1""
O Documento de Damasco revela a visão da história pela comunidade de
Qumran: “Esta é a regra para o levantamento dos acampamentos durante
toda [a era da maldade, e quem não perseverar] nestes (estatutos) não estará
apto para habitar na terra [quando o Messias de Arãó e Israel vier no fim
dos dias]” (CD 13). A divisão do tempo entre a era da maldade e a era
que virá depois e será marcada por uma presença messiânica é expressa,
de uma forma ou de outra, ao longo dos manuscritos. Os homens de
Qumran se veem como a comunidade dos últimos dias. O Messias virá
por meio de sua organização.
A expressão “Messias de Arão e Israel” ocorre em uma série de do-
cumentos. Duas passagens são de particular importância e levantam uma
questão interessante:
O s homens de santidade [...] serão governados pelos preceitos primitivos
nos quais os homens da comunidade foram primeiramente instruídos até
a chegada do Profeta e dos Messias de Arão e de Israel (1QS 9:10-11).

e
Ele virá [na] cabeça de toda a congregação de Israel, com todos os [seus
irmãos, os filhos] de Arão, o sacerdote, [aqueles que foram chamados]

99 O manuscrito neste ponto está incompleto. A palavra traduzida por “pessoas”


também podería ser traduzida como “conselho” ou “congregação”. Qualquer uma
das leituras alternativas indicaria que o grupo representado pelo escritor pode ter
se separado dos outros da comunidade do mar Morto. Cf. Abegg, “ Paul”, p. 54.
100 P. cx., Abegg, “Paul”, nota que ma asêha-Torah (“preceitos da Torá) é o equivalente
do grego erga nomou na Septuaginla. A expressão hebraica não ocorre nos escritos
rabínicos. O grego, no entanto, ocorre no NT, mas só em Rm 3.20,28 e G12.16;
3.2,5,10, passagens nas quais literalmente significa “obras da lei” (como nas ver-
sões ARA e ARC, mas “obediência à lei” e “prática da lei” na NVI e “o que a lei
manda” em Rm e em Gl 2.16; 3.2,5, na NTLH-P). Abegg sugere a possibilidade
de que Paulo use a expressão para rebater um tipo de pensamento semelhante
ao encontrado em 4QMMT, p. ex., um tipo de pensamento que buscava separar
os grupos, possivelmente até cristãos (e, minha sugestão, cristãos judeus), que
procuravam a justificação por meio de algumas obras especiais da lei, não por
meio de Jesus Cristo (Gl 2.16).
243
para a assembléia, os homens de renome; eles se sentarão [diante dele,
cada homem] na ordem de sua dignidade. E então |o Messias] de Israel
[virá]...

Quando a mesa comum for posta para se com er e o vinho novo [derra-
mado] para beber, que nenhum homem estenda a mão sobre as primícias
do pão e do vinho antes do sacerdote, pois [ele] abençoará as primícias
do pão e do vinho e será o primeiro [a estender] a mão sobre o pão. De-
pois disso, o Messias de Israel estenderá sua mão sobre o pão, [e] toda a
congregação da comunidade [proferirá uma] bênção, [cada homem na
ordem] de sua dignidade (lQ Sa 2).

Os monges de Qumran esperavam uma série de figuras messiânicas? A


primeira citação usa o plural, designando um Messias de Arão (o Messias
sacerdotal) e um Messias de Israel (provavelmente o Messias real e políti-
co); o profeta (como Moisés) pode ser a terceira dessas figuras. A segunda
citação, na verdade, não se refere ao sacerdote com o título Messias, mas
lhe dá prioridade sobre o Messias de Israel. Na verdade, se o sumo sacer-
dote do Manuscrito de Guerra (1QM) tiver de ser identificado pelo Messias
sacerdotal, o Messias sacerdotal conduzirá à vitória na batalha final.
A comunidade de Qumran não acreditava ser apenas o instrumento
por meio do qual viria a era messiânica, mas também que o fim dos tempos
era iminente. O Manuscrito daguerra apresenta os planos para a batalha final.
O Manuscrito do templo (11 QTemp), pelo menos em parte, dá atenção à nova
ordem estabelecida quando a era da maldade tiver passado. Os peshers de
Qumran afirmam que os livros proféticos falam do dia em que uma era
passará para a nova; esse dia, na visão dos comentaristas, era o deles! O
tempo de salvação, segundo a crença dos que participavam da aliança de
Qumran, estava perto.
Q u m ra n e o s e ssê n io s

Quase desde o início do estudo dos manuscritos, muitos afirmaram


que eles foram escritos por um grupo de essênios. N o entanto, há tam-
bém estudiosos que duvidam da identificação.11,1 Entre as contrapropos-
tas mais intrigantes está a de que os manuscritos foram escritos por um
grupo saduceu. Alguns dos preceitos da Tom (4QMMT) e o Manuscrito do10

101 Para obter um resumo, cf. James C. Vanderkam, Os manuscritos do mar Morto hoje
(Rio de Janeiro: Objetiva, 1995); Edward M. Cook, Solving the Mysteries of the Dead
Sea Scrolls·. New Light on the Bible (Grand Rapids: Zondervan, 1994), p. 104-26.
244

templo (1 lQTemp) parecem respaldar a possibilidade.102Serão necessários


outras evidências e estudos para convencer a maioria dos pesquisadores
a abandonar a convicção da necessidade de dar atenção aos essênios para
saber a origem dos manuscritos.
Parece-me que até os breves estudos apresentados antes são suficientes
para tornar óbvias as muitas semelhanças entre os essênios e o grupo de
Qumran. Elas e o fato de que Plínio, o Velho, situa os essênios na costa
oeste do mar M orto apresentam um forte caso a favor da identificação de
Qumran como uma comunidade essênia. Embora a cómparação detalhada
dos manuscritos com as descrições antigas dos essênios revele discrepân-
cias, devemos ter em mente que são os mesmos tipos de discrepâncias
encontrados entre os vários relatos antigos dos essênios, bem como
entre alguns dos manuscritos individuais do mar Morto. Além disso, os
manuscritos apresentam uma descrição muito mais detalhada do grupo
de Qumran que os resumos antigos dos essênios.
A diferença mais significativa está nos pontos de vista a partir dos quais
os assuntos são tratados. Josefo e Fílon procuram inserir os essênios no
contexto do mundo filosófico grego. Os manuscritos, em contrapartida,
foram escritos segundo a perspectiva judaica e estão muito mais interes-
sados na pureza levítica, na conduta adequada e na escatologia que no
pensamento grego especulativo. Isso confere aos manuscritos um ethos
totalmente diferente.
Concluindo, não há razão substancial que impeça de afirmar que o
grupo de Qumran era uma ramificação essênia. Ao mesmo tempo, para
não definirmos “essênio” de maneira muito precisa, as palavras de Mathew
Black servem como boa advertência: “A seita de Qumran identificava-se
com o povo conhecido dos historiadores antigos como ‘essênios’. Mas
é bom lembrar que o nome [...] é uma formulação grega, possivelmente
uma descrição popular, e, nesse caso, poderia muito bem ser a descrição
de um tipo sectário geral e aceita dentro dele grupos diferentes, mas in-
timamente ligados”.103*105

102 O resumo a favor das origens dos saduccus pode ser obtido em Vanderkam, 0.f
manuscritos do mar Morto hoje, p. 93-5; Cook, Solving the Mysteries, p. 111-6. Qimron
e Strugnell, Qumran Cave 4, fazem referência frequente à possibilidade da teoria
dos saduceus.
105 The Essene Problem. London: Dr. Williams’s Trust, 1961, p. 27.
245

A re le v â n c ia d o s m a n u sc rito s d o m a r M o rto p a ra o e stu d o do ju d a ísm o


in te rte sta m e n tá rio e d o N o v o Testa m ento

Seria difícil superestimar a relevância dos manuscritos do mar Morto


para o estudo do texto do AT. Eles oferecem cópias de partes do AT
quase um milênio mais antigas que qualquer manuscrito hebraico antes
conhecido. Embora, em geral, respaldem o texto massorético tradicional,
não é sempre isso que acontece. O s críticos textuais do AT têm mais que
o suficiente para se manterem ocupados pelo futuro próximo, e mais
distante. Os manuscritos também dão informações importantes sobre a
história das línguas do AT.
Outra importante contribuição deles é a visão aprimorada do judaísmo
intertestamentário, em especial do final de sua história. As informações
sobre a vida e o pensamento de Qumran são muito mais extensivas que
o que se sabia antes sobre qualquer grupo do período. Além disso, eles
finalmente acabam com qualquer ideia do judaísmo unido e normativo
no período intertestamentário.
Para quem estuda o contexto judaico do N T e do cristianismo pri-
mitivo, as descobertas de Qumran são muito mais importantes que o
imaginado. Há ainda tentativas de identificar Jesus ou João Batista como
o Mestre da Justiça ou, pelo menos, como membro da comunidade de
Qumran. O s esforços foram totalmente refutados por uma vasta gama
de estudiosos. Os manuscritos atestam “outra comunidade judaica que,
como os primeiros cristãos, vivia na crença de que o fim dos dias era imi-
nente e que sua luta era contra principados e potestades, reinterpretando
as Escrituras nesse contexto”.10'1
Talvez a maior contribuição dos manuscritos seja a mais ignorada.
Eles apresentam novas informações e também uma perspectiva diferen-
te. a partir da qual é possível observar dados disponíveis antes. Agora se
pode ver com mais clareza em Josefo, nos apócrifos, pseudepígrafos e
em outros escritos antigos idéias antes vistas com vagueza. Um exemplo
será suficiente. Uma vez alertados pelos manuscritos acerca da teologia
das duas eras, agora nós a vemos de maneira mais clara em vários outros
escritos antigos. A consciência dessa teologia oferece uma chave poderosa
para entendermos muitas passagens do NT.10510*

101John J. Collins, “Dead Sea Scrolls”, em Anchor Bible Dictionary, vol. 2, p. 100.
1115 Para obter outras informações, confira os estudos gerais listados na nota 83;
Matthew Black, The Scrolls and Christian Origins (New York: Thomas Nelson,
246

Therapeutae

A Vida contemplativa de Fílon contém uma descrição do grupo chamado


therapeutae. Eles estavam localizados perto de Alexandria e são interessan-
tes porque representam o único exemplo conhecido de uma nítida seita
ou partido dentro do judaísmo na diaspora.*1061 7Fílon introduz seu relato
0
com referência às descrições anteriores acerca dos essênios. Ele tem a
clara intenção de incluir os therapeutae nesse movimento. Eles apresentam
muitas semelhanças com os essênios de Josefo e o grupo de Qumran. No
entanto, as diferenças dos essênios e habitantes de Qumran levantaram a
questão a respeito de os therapeutae serem, de fato, essênios."1 A principal
diferença é o estilo de vida contemplativo deles e a vida mais ativa dos
essênios. Ao contrário dos essênios, os //6era/>ft«/íZ<?abstinham-se de carne
e vinho. Faziam só uma refeição por dia, enquanto os essênios faziam
duas. Havia mulheres nos assentamentos dos therapeutae, mas isso é muito
vago em se tratando dos grupos essênios. Também não há registro de que
todos os bens eram compartilhados entre os therapeutae.
Devemos lembrar que temos muito menos informações sobre os
therapeutae que a respeito dos essênios; na verdade, elas vêm de uma única
fonte. Ao que parece, os therapeutae adotavam os costumes essênios, em
vez de divergir deles. Sem dúvida, pelo menos no sentido amplo do termo
essênio sugerido por Black, parece prudente concordar com a classificação
implícita de Fílon. A importância dos therapeutae para o presente estudo
é que eles ilustram duas características observadas antes: 1) a tendência
monástica e ascética no judaísmo e 2) a diversidade existente até mesmo
no judaísmo na diáspora.

1961); Krister Stendahl, ed.. The Scrolls and the New Testament (New York: Harper
and Row, 1957); Fujita, Crack in theJar.
106 Eusébio, História eclesiástica 2.17, sugere que a Vida contemplativa descreve um
mosteiro cristão c não é um artigo genuíno de Fílon. Esta posição teve seus
defensores em meados do século XIX. N o entanto, E. R. Gdodenough, An
Introduction to PhiloJudaeus, 2. ed. (New York: Barnes and Noble, 1963), p. 32, diz
que a “controvérsia há muito foi resolvida, e há anos ninguém questiona que
Fílon é o autor”.
107 Veja a excelente discussão cm Schürer, History, vol. 2, p. 591-7.
247

Judaísmo mágico
As superstições, a astrologia e as artes mágicas, em especial com fins
de cura, eram muito populares no mundo antigo.108 Acreditava-se com
frequência que o povo judeu tinha poderes mágicos especiais. Com a força
de IReis 5.12 (“ O Sen h o r deu sabedoria a Salomão”), Salomão geralmente
recebia o crédito de ter criado a arte em Israel. Josefo diz: “E Deus con-
cedeu [a Salomão] o conhecimento da arte usada contra demônios para
o bem e a cura dos homens. Ele também fez encantamentos pelos quais
enfermidades eram remediadas e deixou formas de exorcismos com as
quais os endemoninhados podiam expulsá-los para nunca mais voltarem.
E esse tipo de cura tem um poder muito grande entre nós até hoje”.109
Certos escritos intertestamentários, incluindo lEnoque e a Sabedoria de
Salomão, contêm relatos semelhantes. Um documento grego posterior, o
Testamento de Salomão, afirma que esse rei usou poderes mágicos para sub-
jugar demônios e forçá-los a ajudar na construção do templo. A mesma
lenda é encontrada na literatura rabínica e também ocorre em, pelo menos,
um fragmento de Qumran.
Entre os partidos judeus mencionados, os essênios e os tberapeutae
eram conhecidos de forma especial por suas artes de cura.110 Não raro,
essas habilidades estavam associadas à magia. Além disso, parece que havia
grupos à margem do judaísmo praticantes das artes mágicas em nome
da religião.111 Sem dúvida, foi o que aconteceu em Efeso, como mostra o
incidente relatado em Atos 19.13-16. O Talmude e outras fontes também
dão a impressão de que a superstição desempenhava papel importante no
dia a dia de muitos judeus comuns.112
O judaísmo mágico, provavelmente mais que a maioria dos grupos
ocultistas, parece ter mantido o interesse vivo por materiais escritos. Sem

108Cf. G. H. C. MacGrçgor, A. C. Purdy‫־‬,Jew and Greek‫׳‬. Tutors unto Christ (Edin-


burgh: Saint Andrew, 1959), p. 291-301.
11,9Antiquities 8.2.5 (45).
110Jewish War2.8.6 (136); Fílon, Vida contemplativa X (2).
111 Sobre o judaísmo mágico, cf. Marcel Simon, Virus Israel. A Study of the Rela-
tions between Christians and Jews in the Roman Empire (A.D. 135-425), trad.
H. McKeating (New York: Oxford University Press, 1986), p. 339-68, 498-506,
e as obras literárias que ele cita; Michael E. Stone, Scripture, Sects and I isions (Phi-
ladelphia: Fortress, 1980), p. 82-6.
112Cf. Henri Daniel·Rops, A vida diária nus tempos deJesus (São Paulo: Edições Vida
Nova, 2008).
248

dúvida, isso era uma extensão das lendas relacionadas a Salomão e suas
atividades. O elemento literário é evidente na passagem de Atos 19.19,
na qual se relata que certos indivíduos queimaram livros como prova da
determinação de se distanciar da associação com a magia, ocorrida no
passado.11' Embora se espere que o elemento mágico no judaísmo esteja
intimamente relacionado a escritos esotéricos como o Merkavah, a evidên-
cia da associação desse tipo no período intertestamentário é pequena, na
melhor das hipóteses. Nos séculos posteriores a magia tomou seu lugar
nos movimentos místicos como a cabala."4
Como se esperava, grande parte das atividades mágicas em comunida-
des judaicas ocorreu na diáspora. Parece que os judeus da Frigia tinham,
sobretudo, um profundo envolvimento com a prática da magia e eram
notórios pela negligência religiosa. Alguns estudiosos sugerem que o en-
volvimento com o ocultismo era um elemento importante em quase todo o
judaísmo helenístico (e mais tarde no gnosticismo).*1415N o entanto, ele não
se restringiu à diáspora. O texto de Atos 8.9-24 situa Simão, o Mago, em
Samaria. Uma vez que o AT é categórico ao condenar a prática da magia
(p. ex., D t 13), a presença da magia no judaísmo intertestamentário deve
ser considerada, pelo menos até certo limite, evidência de que o judaísmo
foi sincretizado com religiões pagãs.116O elemento mágico também é mais
uma evidência da grande diversidade do judaísmo intertestamentário.
Nosso estudo, de forma alguma, completa a lista de partidos judai-
cos do século I. Parece que havia muitos outros grupos menores nesse
período do judaísmo. Vários, como os que participavam da aliança de
Qumran, davam valor especial aos rituais de purificação e de imersão,

'"C f. Emil Schürer, The History of theJewish People in the Time of Jesus Christ, 5 vols.,
trad. J. MacPherson etal. (Edinburgh: T. and T. Clark, 1897-1898), vol. 5, p. 151-
4; Wilfred L. Knox, St Paul and the Church of the Gentiles (New York: Cambridge
University Press, 1939), frequentemente menciona os elementos judaicos eviden-
tes em alguns papiros gregos pagãos de magia e formas de influência mágica no
judaísmo; cf. sua “N ote II: Jewish Influence on Magical Literature”, p. 208-11.
114 Cf. Gershom G. Scholem, A s grandes correntes da místicajudaica (São Paulo: Pers-
pectiva, 1995); e idem,Jewish Gnosticism, Merkabah Mysticism and Talmudic Traditions
(New York: Jewish Theological Seminary, 1965).
115 Como exemplo, E. R. Goodenough, By Light, Light The Mystic Gospel o f Hel-
lenistic Judaism (New Haven: Yale University Press, 1935).
116 Charles Guignebert, TheJewish Worldin the Time ofJesus, trad. S. H. Hooke (London:
Kegan Paul, Trech, Trubner, 1939), p. 240.
249

chegando a ponto de substituir os sacrifícios do templo por esses ritos."7


As especulações escatológica e messiânica também desempenharam papel
importante. Algumas das discussões mais complexas sobre o calendário
eram de extrema importância. Ao que parece, alguns grupos adotantes
da abordagem mística existiam na corrente principal do judaísmo, mas
estavam relacionados com tendências sincretistas. Eles podem ter sido
precursores do gnosticismo. Sem dúvida, havia alguns grupos, além dos
homens de Qumran, que se formaram em protesto às práticas religiosas
existentes dos judeus, líderes e instituições. Outros provavelmente estavam
preocupados com aspirações políticas ou sociais. Em bora nosso conheci-
mento desses partidos seja escasso, sua existência prova que o judaísmo
da terra de Israel, e talvez fora dela, incluía muitas práticas e crenças di-
ferentes das dos fariseus e saduceus. Estes grupos também demonstram
a natureza eclética e diversa do contexto judaico do NT.

117 Mais de uma década antes da descoberta dos manuscritos do mar Morto, Joseph
Thomas, Le Mouvement baptist en Palestine et Syne (Gembloux: J. Duculot, 1935),
usou fontes escritas para postular a existência de muitos grupos praticamente
desconhecidos, incluindo seitas do tipo de Qumran.
12

A vida comum no Israel do século I

• Judeus comuns: O s “Am ha-Eretz”


• Divisões da sociedade
• Aldeias e cidades
• Economia
- Uma sociedade agrícola
- A classe inferior dos bandidos
- Dinheiro
• Casa e lar
- Habitações
- A vida no lar e em família
+ Religião pessoal e familiar
+ Sábado
+ Pureza cerimonial
+ Épocas especiais
• Educação
• Medições e tempo
- Medições
- Calendário
- Horas do dia
A vasta maioria dos contemporâneos de Jesus na terra de Israel era
constituída por pessoas comuns, cuja principal preocupação era a sobrevi-
252

vencia básica. Elas se encontravam no meio de uma sociedade mais com-


plexa que sua aparência. Nossa tarefa aqui não é descrever a sociedade em
detalhes, mas procurar entender algumas das principais características que
afetavam a vida diária das pessoas comuns. Os historiadores raras vezes
descrevem esse grupo; eles são as pessoas sem rosto, ainda que tenham
sido muito mais influentes que eles mesmos ou os escritores posteriores
imaginaram. O que podemos dizer sobre as pessoas comuns no Israel do
século l?1

J u deus com uns: Os " A m ha - eretz "

O s partidos políticos e religiosos consistiam grande parte da minoria


com sofisticação intelectual. Além disso, havia alguns judeus e gentios
ricos e poderosos na terra de Israel. Mas a grande maioria da população
não pertencia a um grupo específico. Era, naturalmente, a massa da qual
os outros se distinguiam. O termo cam ha-eret%(o povo da terra) muitas
vezes é usado como referência às pessoas comuns do século I em Israel.
0 uso do termo pode, entretanto, causar um mal-entendido uma vez que
os rabinos posteriores o empregavam como termo técnico para designar
quem, em contraste com eles e seus companheiros, era considerado por
eles “ignorante, descuidado e rústico” .2 Em bora os fariseus do período

1 Dois trabalhos muito importantes tratam com detalhes as características impor-


tantes da vida judaica: Joachim Jeremias,Jerusalem in the Time ofJesus, trad. F. H. e
C. H. Cave. (London: SCM, 1973); e Sean Freyne, Galileefrom Alexander the Great
to Hadrian, 323 B.G.E. to 135 C.B. (Wilmington, Del.: Michael Glazier, 1980).
Detalhes da vida cotidiana e da sociedade são encontrados em outras referências:
Madeline S. ej. Lane Miller, Harper’s Uncyclopedia of Bible Life, revisado por Boyce
M. Bennett Jr. e David H. Scott (San Francisco: Harper and Row, 1978); Henri
Daniel-Rops,M vida diária nos tempos deJesus (São Paulo: Edições Vida Nova, 2008);
em um nível mais técnico, cf. TheJewish Peoplein the First Century, S. Safrai, M. Stern
et at. (orgs.), cm Compendia Rerun7 ludaicarum ad Novum Testamentum (Philadelphia:
Fortress, 1974-1992), vol. 2. Além disso, o interesse cada vez maior pelos estudos
sociológicos de povos e religiões antigas tem produzido uma riqueza de informa-
ções. Seguem-se dois exemplos de trabalhos de interesse especial dos estudiosos
do Novo Testamento: Bruce J. Malina, The New Testament World■. Insights from
Cultural Anthropology (Adanta: John Knox, 1981); e Jacob Neusner et al (orgs.)
The Social World of Formative Christianity andJudaism (Philadelphia: Fortress, 1988).
2 Kaufmann Kohler, “The Pharisees”, em Jewish Encyclopedia, 12 vols. (New York:
Funk and Wagnalls, 1925), vol. 9, p. 661.
253

anterior a 70 d.C. menosprezassem as pessoas comuns,’’ é um erro afirmar


que suas opiniões estivessem definidas com clareza, como as encontradas
na M ixná e cm escritos posteriores. Para nossos propósitos, a despeito das
dificuldades inerentes da palavra comum, vamos nos referir aos habitantes
não sectários, que não faziam parte da elite de Israel no século I, como
judeus comuns.
Observamos que os líderes descreviam os judeus palestinos comuns
como “essa ralé [maldita] que nada entende da lei” (Jo 7.49). N o entanto,
não devemos afirmar que eles eram uma massa irreligiosa. Na maioria, com
diferentes graus de intensidade, dedicavam-se aos dogmas da religião. Parte
deles consistia cm pessoas humildes e devotas das quais vieram Jesus e
seus seguidores. Entretanto, havia outros que, mesmo circuncidados, eram
judeus apenas no nome, pois haviam desistido da pretensão de adesão a
qualquer forma da vida judaica distintiva.
É inútil procurar identificar um consenso de opinião ou posição
normativa dos judeus comuns do século I.345Contudo, talvez seja possível
detectar o tom prevalente de seu pensamento e sentimento. O compro-
metimento dos judeus comuns com a religião e o nacionalismo estava tão
entrelaçado que só com muita dificuldade podia ser distinguido. Os anseios
interiores eram controlados pelo desejo de libertação político-religiosa da
dominação estrangeira. A maioria dos judeus esperava que essa liberta-
ção viesse com o aparecimento do Ungido (= Messias) do Senhor e do
Reino de Deus. Thomas W. Alanson diz que esse é o espírito por trás do
Magnificat de Maria (Lc 1.46-55), do Benedictus, de Simeão (Lc 2.29-32) e do
pseudepígrafo Salmos de Salomão? Sem dúvida, a combinação da libertação
política e religiosa é evidente na oração de Zacarias, pai de João Batista: “O
juramento que fez ao nosso pai Abraão: resgatar-nos da mão dos nossos
inimigos para o servirmos sem medo, em santidade e justiça, diante dele
todos os nossos dias” (Lc 1.73-75).
A adesão estrita à lei dominava a admiração dos judeus comuns, se
não a imitação por parte deles; eles respeitavam os fariseus. Os judeus
3 George F. Moore, “The Am Ha-Arcs (the People o f the Land) and the Haberim
(Associates)”, em The Beginnings of Christianity, F. J. Foakes Jackson, Kirsopp Lake
(orgs.), 5 vols. (Grand Rapids: Baker, 1979), vol. 1, p. 439-45.
4 T. W. Manson, TheServant-Messiah (New York: Cambridge University Press, 1953),
p. 11, sugere que os judeus comuns totalizavam 92% da população.
5 Ibid, p. 4,24.
254

comuns eram fiéis na frequência à sinagoga e nos serviços do templo,


na observância das festas e no pagamento do tributo do templo. Ao que
parece, as especulações apocalípticas e místicas eram populares entre
eles. Mesmo ao custo da própria vida, muitos se lançavam com zelo atrás
de um ou outro impostor messiânico ou líder nacionalista em revoltas
contra Roma. As esperanças políticas combinavam com o compromisso
religioso para dar à fé dos judeus comuns um ar de expectativa e um clima
de esperança. Entretanto, era uma esperança sem sofisticação e pouco
desenvolvida que incorporava muitos elementos diversificados e estava
sujeita a várias interpretações. Os judeus comuns do século I na terra de
Israel tinham zelo sem pleno conhecimento, esperança sem entendimento,
prática religiosa sem teologia clara. Em suma, não eram diferentes dos
grupos socioeconômicos mais baixos de qualquer civilização. Podiam ser
facilmente levados à oclocracia. Eram simpatizantes de atitudes e precon-
ceitos profundamente arraigados e muitas vezes irracionais.

D ivisões d entro da sociedade

Nenhuma tentativa de entender o judeu comum estaria completa sem


a discussão das divisões na sociedade. Já observamos que o judaísmo in-
tertestamentário era bastante diverso. Por exemplo, havia a divisão cultural
entre os que se apegavam à cultura semita tradicional e os aderentes ao
helenismo. As divisões geográficas eram igualmente significativas, como,
por exemplo, entre os judeus residentes na terra de Israel e os da diáspora.
Muitas vezes negligenciada é a diferença entre as três áreas predominante-
mente judaicas na terra de Israel: Judeia, Galileia e Pereia. Em Marcos 14.70
e Lucas 22.59, Pedro é reconhecido como galileu; Mateus 26.73 explica que
seu sotaque o traiu. N o entanto, as diferenças entre as regiões iam além
de padrões de pronuncia; às vezes, as três regiões “eram consideradas, em
certos aspectos, terras diferentes”.6
As diferenças políticas podiam também ser profundas. Os favoráveis
a Roma se indispunham com os nacionalistas. Lealdades à família gover­

6 Emil Schürer, The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ, cd. Geza
Vermes eta l, 3 vols. (Edinburgh: T. and T. Clark, 1973-1887), vol. 2, p. 14; havia
diferenças entre “as leis matrimoniais; costumes diferentes nas relações entre
casais comprometidos; pesos diferentes na Judeia e na Galileia. Há até referencia
a uma observância diferente da Páscoa: na judeia, o povo trabalhava no dia 14 de
nisã até o meio-dia; na Galileia, não se trabalhava de modo algum nesse dia”.
255

nante, como os herodianos ou a família sacerdotal de Anás, podiam ser


intensas. O s fariseus e saduceus tinham seus defensores; Josefo identifica
vários diferentes grupos militantes pouco antes da guerra de 66-70 e du-
rante sua ocorrência.
Eclesiástico apresenta informações valiosas sobre a sociedade judaica
intertestamentária. O autor, Jesus, filho de Siraque, era um sábio, mestre
dos jovens, possivelmente sacerdote, que se via como alguém que não
era dos ricos e poderosos nem dos pobres e desprezados. Ele escreveu
por volta de 200 a 180 a.C , antes da parte mais amarga da luta contra o
helenismo, influência à qual se opôs. Tendo escrito antes da Revolta dos
Macabeus, ele retratou a sociedade com divisões que, embora muito reais,
não havia se endurecido e se tornado maléfica como as de um século e
meio mais tarde.7
Jesus, filho de Siraque menciona vários agrupamentos e missões, e
testemunha as animosidades entre eles. Ele se separa do fazendeiro, artesão,
ferreiro e oleiro, que, embora necessários à sociedade (“Sem eles, não seria
possível construir cidades; ninguém poderia morar nelas [...] Mas, por causa
do trabalho deles, o mundo continua funcionando” [Eclesiástico 38.32,34,
NTLH-P]), não têm lugar ou voz entre os influentes nem oportunidade
de buscar sabedoria (38.24-34). Contudo, ele tem palavras especiais de
louvor para agricultores (7.15) e para médicos (38.1-8).
Escritores contemporâneos, reconhecendo que o Israel do século I
era mais complexo que a maioria das sociedades, buscam entender sua
composição. Shaye J. D. Cohcn fala de duas vertentes fundamentalmentc
diferentes, uma religiosa e outra econômica (veja Quadro n.° 2).8 Ele ob-
serva que a situação se complica ainda mais pelo fato de o relacionamento
entre elas ser obscuro. A vertente econômica era típica de uma sociedade
no Império Romano. A estrutura religiosa era exclusiva dos judeus.

7 Sobre a descrição que Jesus, filho de Siraque fez de seu contexto, cf. Edwyn R.
Bevan,Jerusalem under the High-Priests (London: Edward Arnold, 1918), p. 49-68;
Victor Tcherikover, Hellenistic Civilisation and theJews, trad. S. Applebaum (Phila-
dclphia: Magnes, 1961), p. 143-51; e Martin Hengel,Judaism and Hellenism·. Studies
in Their Encounter in Palestine during the Early Hellenistic Period, trad. John
Bowden, 2 vols. (Philadelphia: Fortress, 1974), vol. 1, p. 131-53.
8 Shaye J. D. Cohen, “The Political and Social History o f the Jews in Greco-Roman
Antiquity‫׳‬: The State o f the Question”, em EarlyJudaism and Its Modern Interpreters,
Robert A. Kraft, George W. E. Nickelsburg (orgs.) (Atlanta: Scholars, 1986), p. 46-
8.
256

Ainda que não aceitemos todos os detalhes da proposição de Cohen


como reconstrução da estrutura social, devemos reconhecer os dois
elementos principais dessa estrutura e buscar entender sua constituição,
relação e implicações para o leitor do NT. Sem dúvida, os escritores do
N T imaginam algo como o que Cohen sugere: uma sociedade construída
sobre duas hierarquias distintas, uma religiosa e outra econômica.

Quadro n.2 2
As principais divisões de Israel do século I

Econômica Religiosa
I. Classe alta I. Judeus
A. Ricos da cidade
A. A instituição religiosa
B. Ricos do campo (proprietários de
1. Sumo sacerdote, sacerdotes e levitas
latifúndios)
2. O patriarca e sua corte (pós-70)
3. Escribas, líderes religiosos, rabinos,
II. Classe média sábios, membros do Sinédrio
A. Artesãos, mercadores (cidade) B. As seitas e as figuras extraoficiais de
B. Proprietários de latifúndios medianos autoridade
(campo) 1. Assideus, fariseus, saduceus, betu-
sianos, essênios, a seita de Qumran,
III. Classe baixa a quarta filosofia, judeus-cristãos,
samaritanos (?), Haberim (?),
A. Pobres da cidade
rabinos (?)
B. Pobres do campo
2. Homens santos, magos, carismáticos,
1. Fazendeiros camponeses curandeiros, exorcistas, messias etc.
2. Camponeses sem-terra C. Outros judeus
1. Os am ha-eretz e outros judeus não
IV. Indigentes sectários
A. Mulheres e crianças 2. Judeus helenistas
B. Escravos 3. Prosélitos

II. Não judeus


A. Romanos e o exército romano
B. Gregos, pagãos helenizados, pagãos não
tão helenizados
C. Samaritanos (?)
257

A leitura de Josefo e do N T indica uma inter-relação considerável


entre os economicamente ricos e as instituições religiosas. Como era de
esperar, eles mantinham o poder político ou estavam muito alinhados
com ele. Suas ações eram concebidas para projetar sua riqueza e posição
privilegiada (p. ex., Jo 11.49,50). Portanto, a lacuna entre as classes alta e
baixa era, talvez, maior do que poderiamos concluir depois de uma olhada
rápida e casual para a vertente de Cohen. A animosidade entre os grupos
podia ser grande — como sugerida pela observação de Josefo de que, em
uma ocasião, rebeldes da classe baixa afogaram um homem importante
da Galileia no mar local.9
Como normalmente acontece, os níveis mais baixos da sociedade
estavam mais cientes de sua desvantagem econômica que os outros. Na
terra de Israel, as causas comuns de dificuldades econômicas — salários
baixos; preços, impostos e dívidas altos — eram agravadas pelas exigên-
cias religiosas. O dízimo no AT era apenas o começo das contribuições
exigidas pela instituição religiosa. Sacrifícios, ofertas, dádivas para ocasiões
especiais, como cerimônias de purificação e coisas do tipo, somavam-se às
exigências econômicas religiosas. Além disso, esperava-se que cada judeu
pagasse anualmente o imposto ao templo de meio siclo ou didracma. O
encargo total dos deveres religiosos chegava perto de cinquenta por cento
da renda do trabalhador.
A própria aristocracia sacerdotal era opressiva, não apenas para com as
pessoas comuns, mas também para com outros sacerdotes. Ao descrever o
período que precedeu a revolta, Josefo diz que, durante o sumo sacerdócio
de Ismael (58-60), “lá agora se acendeu a inimizade recíproca e a guerra de
classes entre os sumos sacerdotes, de um lado, e os sacerdotes e os líderes
da multidão de Jerusalém, de outro”. Ele continua, indicando a ganância e
o egocentrismo dos sumos sacerdotes: “Na verdade, eles eram tão desca-
rados a ponto de enviar escravos para as eiras a fim de receber os dízimos
devidos aos sacerdotes, levando os sacerdotes mais pobres a morrer de
fome”.10O Talmude preserva um lamento de Abba Yosef ben Hanan, que
viveu no período do templo de Herodes; ele expressa a situação difícil
das pessoas comuns sob a autoridade das famílias dos sumos sacerdotes:

9 Jewish \V a r\.\1 2 (326)·,Antiquities 14.15.10 (450).


111Antiquities 20.8.8 (180-81).
25S

Ai de mim, por causa da casa de Boethus, ai de mim, por causa de seus


bastões.

Ai de mim, por causa da casa de Hanan, ai de mim, por causa de seus


sussurros.

Ai de mim, por causa da casa de Katros, ai de mim, por causa de suas


penas.

Ai de mim, por causa da casa de Ismael ben Fiabi, ai çle mim, por causa
de seus punhos.

Pois eles são sumos sacerdotes e seus filhos, tesoureiros, e seus genros,
fideicomissários, e seus servos batem no povo com bastões."

A ldeias e cidades

Vilas e cidades são geralmente entendidas como medidas de civili-


zação.112 Não se discute que a civilização helenista se centrava no ajun-
tamento urbano. Contudo, as cidades precisavam de uma subestrutura
complexa para sustentá-las; poucas conseguiam ser autossustentáveis.
Em geral, pode-se dizer que uma cidade é sustentada pela combinação de
quatro atividades: agricultura, fábrica, negócio e comércio, e serviços. A
agricultura provê comida e bens básicos para a sobrevivência, e a fábrica
transforma a matéria-prima em mercadorias utilizáveis e desejáveis. O
negócio e comércio envolvem a distribuição de bens e serviços. O maior
e mais óbvio componente do serviço é o governo, mas religião, educação
e entretenimento também podem desempenhar papéis importantes. Uma
cidade oferece proteção e serviços, mas depende muito da capacidade de
cobrar tributos, taxas e tarifas.
As cidades antigas dependiam de sua posição geográfica. O suprimen-
to adequado de água, localização defensável, clima favorável e proximidade

11 Talmude babilônico Pesahim 57a; Toseftá Menahot 13.21 (citado por Menahem Stern,
“Aspects o f Jewish Society: The Priesthood and O ther Classes”, em Jewish People,
Safrai, Stern [orgs.], vol. 2, p. 602-3).
12 Sobre as cidades antigas, cf. A. Η. M. Jones, The Greek City from Alexander to
Justinian (Oxford: Clarendon, 1940); John E. Stambaugh, The Ancient Roman City
(Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1988); John McRay, Archaeology and
the New Testament (Grand Rapids: Baker, 1991), p. 37-8.
259

de rotas de comércio eram necessários para o progresso do centro urbano.


Solo suficiente e adequado para aragem nas proximidades era igualmente
essencial. Shirrrion Applebaum coloca a questão de modo sucinto: “Com
poucas exceções, as cidades antigas se baseavam na agricultura, com cujos
rendimentos pagavam a maior parte das obrigações tributárias, importa-
ções e comodidades. Se os cultivadores de seus territórios fossem forçados
a contribuir com mais que o necessário para manter o padrão de vida mí-
nimo, eles deixariam de usar os serviços oferecidos pela cidade; o declínio
se instauraria, sendo acelerado pela tributação excessiva. Assim, apenas
as cidades que eram entrepostos comerciais continuavam a prosperar”.13
A distinção entre uma aldeia ou vila e uma cidade é difícil de fazer;
a dificuldade se reflete no NT.14Tamanho e importância eram as marcas
da cidade; acredita-se com frequência que a cidade era delimitada por
muralhas. As aldeias localizavam-se ao redor das cidades e, em tempos
de perigo, os habitantes das aldeias fugiam para as cidades em busca da
proteção de suas muralhas. As cidades também forneciam ampla gama de
serviços, como abastecimento central de água, proteção policial, instalações
sanitárias públicas e estações de tratamento de águas residuais. Até mesmo
as grandes cidades eram pequenas se comparadas aos padrões modernos.
O s antigos assentamentos hebraicos cresciam com desordem. O
portão era o centro do governo e do comércio. As cidades helenistas, em
contrapartida, eram marcadas pelo planejamento cuidadoso: o centro físico

13 “Economic Life in Palestine”, em Jewish People, Safrai, Stern (orgs.), vol. 2, p. 667.
14 Polis é o termo usado tanto para designar cidades importantes, como Jerusalém,
c também localidades menores; as traduções usam tanto “cidade” como “aldeia”
para essa palavra. Kõmê é geralmente traduzido por “vila”, mas, às vezes, por “al-
deia”. Betsaida é chamada kõmê em Mc 8.23,26 e polis em Mt 11.20,21; Belém é
kõmê em Jo 7.42 epolis em Lc 2.4,11. Hermann Strathmann, “Polis”, em Theological
Dictionary of the New Testament Gerhard Kittel, Gerhard Friedrich (orgs.), trad.
Geoffrey W Bromilcy' 10 vols. (Grand Rapids: Eerdmans, 1964-76), vol. 6, p. 530,
afirma que no NT a palavra polis é “apolítica. |ElaJ significa um ‘lugar fechado de
habitação humana’ como algo distinto de áreas, pastos, vilas e casas inabitadas...
Em geral, cidades muradas sãopoleis, enquanto lugares abertos de habitação são
kõmaP. O texto de Mc 1.38 usa o termo kõmopolis, significando algo como “centro
populacional” ou “cidade-mercado”. Agros normalmcnte significa “campo” ou
“província”, mas no plural pode significar “ fazenda(s)” ou “lugarejo(s)”. Walter
Bauer, Greek-Bnglish Lexicon of the New Testament, trad. William F. Arndt, F. Wilbur
Gingrich, 2. ed. (Chicago: University o f Chicago Press, 1979), p. 14.
260

e ponto focal de atividade era a ágora (mercado). As construções públicas,


ginásios e teatros, palácios e stoas (colunatas), ficavam de modo geral nas
proximidades da ágora. Em cidades menores, tais luxos eram limitados ou
inexistentes. As cidades romanas se pareciam, com algumas alterações, com
as dos gregos, embora suas muralhas, em geral, fossem mais regularmente
retangulares. O s padrões das ruas romanas eram organizados ao redor
de duas vias públicas principais, orientadas de acordo com os pontos da
bússola — o cardo (norte-sul) e o decúmano (leste-oeste) se cruzavam perto
do centro da cidade. Fontes escritas e arqueológicas Indicam que as ruas
eram muito estreitas, normalmente de dois a quatro metros, embora as
ruas principais pudessem chegar a oito metros ou mais. As vielas públicas
levavam das ruas a pátios cercados por várias residências. Lojas poderíam
se localizar nas vielas, bem como ao longo das vias principais.
O fato de existirem poucas cidades no Israel do século I diz muito
sobre a esfera social.15 A história e a religião desempenharam um papel
no sentido de dar o clima essencialmente rural e agrícola do Israel inter-
testamentário. As reformas de Neemias renovaram a estrutura financeira
e garantiram a terra para pequenos agricultores, que estavam em perigo
de serem tragados pela ganância dos nobres e dos oficiais (Ne 5.1-13).
Suas medidas políticas reinstituíram as leis mosaicas contra a cobrança de
juros de companheiros judeus (Êx 22.25-27; Lv 25.35-38; veja também a
provisão para a remissão das dívidas no ano sabático [Dt 15.1-11]) quanto
ao reconhecimento da solidariedade do povo de Deus (Ne 5.7-9). Mais
tarde, a revolta dos macabeus “libertou os camponeses judeus da tributação
opressiva associada ao regime [selêucida] e distribuiu terras recém-adqui-
ridas entre eles como compensação pela obrigação do serviço militar”.16
Assim, estavam postas as bases para a construção de uma sociedade de
essência agrária em que os pequenos lavradores pudessem sobreviver.
Por volta do século I, entretanto, a salvaguarda para os pequenos
proprietários de terra havia sido severamente enfraquecida, se não
completamente derrubada. A ameaça de perder a terra era uma realidade

15 Quanto aos assentamentos judaicos, apenas Jerusalém podería reivindicar, de fato,


o status de cidade. Tiberíades e Scforis, na Galileia, também podem ser incluídas.
Ao longo da costa, Cesareia, Asquelom e Gaza eram centros importantes, mas
essencialmente gentios; apenas o porto de Jope pode ter tido uma presença judaica
substancial.
16 Applebaum, “Economic Life in Palestine”, ρ. 635.
261

constante, e muitos foram, de fato, desalojados. Como consequência, a


maioria das pessoas comuns no Israel do século I vivia em assentamentos
fora das cidades. Muitas aldeias e vilas, entretanto, eram independentes, ou
seja, não estavam associadas a nenhuma cidade. Delas as pessoas saíam para
os campos ou barcos de pesca para ganhar a vida. Negócios, comércios e
fábricas aconteciam nas aldeias, cada um com, pelo menos, uma sinagoga.
Mesmo na melhor das hipóteses, a vida nas vilas, aldeias e cidades era,
pelos padrões modernos, austera e difícil para todos, com exceção dos
ricos. A maioria dos assentamentos era abarrotada, barulhenta e possi-
velmente perigosa. Não havia luz nas ruas, por isso “quando a noite caia,
todos permaneciam em casa, atrás de portas trancadas e janelas fechadas”.17
As habitações eram apertadas, carentes de ventilação e com instalações
limitadas de aquecimento para as estações frias. Há também evidência
do antagonismo entre habitantes de cidades e os residentes em pequenas
aldeias ou áreas rurais.18Essas condições deveríam ser lembradas quando
consideramos as igrejas domésticas e a vida dos primeiros cristãos urbanos.

A ECONOMIA

Um a sociedade agrícola

N o século I a terra de Israel estava entrelaçada à economia greco-romana.1'‫׳‬


Contudo, a terra tinha características distintas. Seus artesãos provavelmen-
te estavam à frente dos artesãos gentios, e “a escravidão era fortemente
marcada por reservas morais” .20O trabalho manual era valorizado e atraía
participantes das classes intelectuais, em especial os rabinos. Mas o fato
notável é que a área era menos urbana que a maioria. “Os judeus eram pre-
ponderantemente um povo interiorano, preocupado com a agricultura” .21
Declarações feitas pelos antigos confirmam essa conclusão:

17 McRay,Archaeology, p! 86. Após observar a prática ilegal de esvaziar urinóis pelas


janelas de andares superiores à noite, ele acrescenta: “Era especialmente difícil
lidar com problemas de conforto e higiene à noite, porque as ruas de Roma e de
outras cidades antigas ficavam totalmente escuras”.
18 Applebaum, “Economic Life in Palestine”, ρ. 663.
19Estudos sobre a economia de partes específicas de Israel podem ser obtidos em:
Jeremias, Jerusalem, p. 3-57; Freyne, Galilee, p. 155-300.
2(1Applebaum, “Economic Life in Palestine”, ρ. 631.
21 Ibid., ρ. 632.
262

Curve as costas no cultivo,


realize as tarefas do solo em todos os tipos de agricultura,
oferecendo com gratidão ofertas ao Senhor.
Assim o Senhor irá abençoá-lo com os primeiros frutos, como abençoou
todos os santos de Abel até o presente. Pois a você não é dada outra
porção além da fertilidade da terra, de onde vem o produto por meio
da labuta.22

Da mesma forma, Josefo, em uma declaração bem conhecida, con-


firma o foco judaico intertestamentário na agricultura, por causa da
localização e da escolha: “Bem, a nossa região não é marítima; nem o
comércio nem a relação que isso promove com o mundo exterior tem
alguma atração para nós. Nossas cidades são construídas no interior,
afastadas do mar; e nos dedicamos ao cultivo do campo produtivo com
o qual somos abençoados”.23
A variação no solo, na topografia, no clima e no acesso à água dita os
locais c o tipo de cultivo na terra de Israel.24O interior, as colinas centrais,
apresentava terríveis desafios para os lavradores antigos. O aprimoramento
do socalco natural para conservar solo e água, a construção de cisternas e
de outras instalações para transporte e armazenamento de água, a preser-
vação de florestas e árvores frutíferas, e a cuidadosa seleção para o corte
eram necessários. A área relativamente plana logo ao norte de Jerusalém, o
Planalto Central de Benjamim, oferecia, em especial, condições favoráveis
no interior para cultivo do solo e a criação de gado. Outras áreas da região
tinham vantagens próprias. A Galileia era geralmente mais adequada para
a agricultura cjue a região montanhosa, e também tinha a vantagem do
segmento pesqueiro no entorno do mar da Galileia.25 A planície costeira
e o vale de Esdrelom ofereciam, e oferecem, as melhores condições para
a lavoura. O Neguebe, bem a sul, é um deserto nos meses de seca, mas,

22 Testamento de Issacar 5.3-5; observe também 6.2, que fala de um dos pecados dos
últimos tempos: “Abandonando a agricultura, eles buscam seus próprios desígnios
maus”.
25Against Apion 1.12 (60). Sobre o papel do comércio e negócios, cf. Applebaum,
“Economic Life in Palestine”, ρ. 667-92.
24 Applebaum, “Economic Life in Palestine”, p. 638-41, apresenta um excelente
panorama das características geográficas e sua relação com a agricultura.
2‫ י‬Freyne, Galilee, p. 1-19,155-200.
263

com o uso cuidadoso da água nas estações chuvosas, pode ser uma área
agrícola produtiva.
O s lavradores israelitas produziam grande variedade de culturas. Eles
também se ocupavam da criação de ovelhas, cabras e outros tipo de re-
banho.2627A despeito das dificuldades impostas pelos fenômenos naturais,
parece que o lavrador do século I obtinha um rendimento suficiente e até
mesmo confortável. Infelizmente, entretanto, outros fatores, sobretudo
políticos e sociais, conspiravam contra ele. Além de levantar o suficiente
para alimentar a família, o lavrador tinha de comprar as coisas básicas de
que necessitava e que não conseguia produzir, precisava guardar semente
para o plantio do ano seguinte e cumprir outras obrigações. Essas outras
obrigações provaram ser a ruína de muitos no século I. Entre elas estavam
tributos exigidos pelas autoridades judaicas e romanas, tarifas de impor-
tação e exportação, taxas para os proprietários de latifúndios, encargos
religiosos especiais e juros sobre empréstimos (os escribas dispunham
de meios para evitar a proibição do AT quanto a cobrar juros de outros
judeus). Essas obrigações permaneceram constantes apesar dos fatores
negativos que periodicamente ameaçavam o lavrador — rupturas sociais
como guerras ou mudanças na estrutura administrativa ou econômica,
ineficácia governamental, bem como corrupção, alterações nos padrões da
população, sem falar de perdas decorrentes de fatores climáticos, desastres
naturais, pragas agrícolas.
Os impostos poderíam subir a um ritmo imprevisível. As condições
no tempo de Herodes, o Grande, são um exemplo notório. O rei vivia de
modo tão além de seus recursos que era forçado a aumentar os impostos,
embora percebesse a reação adversa que isso provocaria em seus súditos.2
E Tácito, que não era amigo dos judeus, observou que durante o reinado

26 Applebaum, “Economic Life in Palestine”, ρ. 646-56.


27 “Herodes amava horftas e, sendo poderosamente dominado por essa paixão, era
levado a exibir generosidade sempre que havia motivo para esperar a lembrança
futura ou a reputação presente; mas, uma vez envolvido em gastos maiores que
seus recursos, ele era obrigado a ser severo com os súditos, pois o grande número
de coisas nas quais ele gastava dinheiro, como presentes para alguns, o tornava
fonte de prejuízo para as pessoas das quais tirava o dinheiro. E, ainda que estivesse
consciente de ser odiado por causa dos males feitos aos súditos, ele decidiu que
não seria fácil consertar seus erros — isso não teria sido lucrativo em se tratando
das receitas — , e, em vez disso, reagiu à oposição deles, aproveitando-se da animo-
sidade de seus súditos como oportunidade para satisfazer as próprias vontades”
(Josefo, Antiquities 16.5.4 [153-55]).
264

de Tibério “as províncias da Síria e da judeia, exaustas por causa dos en-
cargos, imploravam a redução do tributo”.28
Sob esses encargos, o lavrador precisava lutar não só para alimentar a
família, mas também para manter a terra. Muitos não conseguiram. Essa
situação fez surgir o desemprego e a hostilidade das classes baixas contra
a aristocracia e os oficiais do governo. Outras consequências incluíam uma
nova classe de bandidos e, por fim, a rebelião e a revolução contra Roma
e contra seus apoiadores.
A classe inferior dos bandidos'
O banditismo é um fenômeno socioeconômico, pré-revolucionário.29
Em geral, ele surge em sociedades rurais diante de perturbações sociais
e de vulnerabilidades econômicas e judiciais dos pobres. Não raro é o
último recurso das pessoas forçadas a abandonar suas terras ou, de outra
maneira, despojadas do sustento e deixadas sem recursos. Os habitantes da
cidade e a aristocracia, que normalmente eram o alvo da ira e dos ataques
dos bandidos, consideravam-nos criminosos. As pessoas comuns muitas
vezes compartilhavam o drama e o senso de justiça dos bandidos; elas
podiam apoiá-los e protegê-los. Bandidos, como Robin Hood, podiam
dar um auxílio aos sofredores.
Josefo diz que a presença de bandidos era recorrente em toda a zona
rural, e eles tinham um papel de liderança na guerra contra Roma. Mas
Roma não era o único objeto da ira dos bandidos. Em um levantamento,
os insurgentes queimaram os registros públicos de dívidas; em uma ocasião
anterior, já mencionada, eles afogaram alguns membros da aristocracia.30

28Tácito, Anais 2.42.


29 Na discussão a seguir, recorrí muito a Richard A. Horsley e John S. Hanson: Ri-
chard A. Horsley, John S. Hanson, Bandidos,profetas eMessias·. Movimentos popu-
lares no tempo de Jesus (São Paulo: Paulus, 1997); Applebaum, “Economic Life
in Palestine”, ρ. 656-64, 691-2; Sean Freyne, “Bandits in Galilee: A Contribution
to the Study o f Social Conditions in First-Century Palestine”, em Neusner etaL
(orgs.) Social World, p. 50-65. V. tb. Martin Goodman, Ruling Classes ofJudaea·. The
Origins o f the Jewish Revolt against Rome, A.D. 66-70 (New York: Cambridge
University Press, 1987).
Os sicários “explodiram e atearam fogo [...] nos arquivos públicos, ávidos para
destruírem as amarras dos prcstamistas e evitar a cobrança de dívidas, a fim de
conquistarem um grande número de devedores gratos e provocarem um levante
dos pobres contra os ricos, certos da impunidade” (Josefo,Jewish War2.\1.6 [427]);
Jewish W arlA l.2 (326); Antiquities 14.15.10 (450).
265
Com esses dados, a imagem da situação desesperadora enfrentada todos
os dias por muitos membros das classes inferiores no mundo de Jesus
começa a aparecer.
Já observamos as dificuldades enfrentadas pelos lavradores. A le-
gislação do ΛΤ havia instituído o ano do jubileu para manter a divisão
equitativa da terra (Lv 25.8-54; 27.17-24). Evidentemente, essa lei não
era observada no judaísmo intertestamentário. Cada vez mais o melhor
da terra era progressivamente incorporado às propriedades régias ou às
amplas terras arrendadas da aristocracia. Como consequência, cada vez
menos estava disponível para as pessoas comuns. Quando contratempos
na agricultura e aumento nos impostos forçavam o pequeno produtor a
pedir um empréstimo, os juros podiam ser bem altos; os credores e os
cobradores de impostos podiam ser impiedosos ao exigir o pagamento. Um
número crescente de camponeses era expulso da terra por forças além de
seu controle. Esses camponeses desalojados provavelmente constituíam
uma parcela significativa da mão de obra contratada, ilustrada na parábola
de Jesus sobre os trabalhadores da vinha, alguns dos quais estavam tão
desesperados que procuravam por trabalho o dia inteiro (Mt 20.1-16).
O s Evangelhos contêm outros indícios da situação desesperadora de
algumas das pessoas comuns da época. A admoestação de Jesus dizen-
do ao povo que não se preocupasse com comida e roupa (Mt 6.25-34;
Lc 12.22-34) é especialmente relevante para as pessoas na economia de
sobrevivência. A condenação dos fariseus por não se importarem com a
justiça e a misericórdia (Mt 23.23) deveria ter soado verdadeira para quem
se sentia privado de justiça e misericórdia. Teria o canto de Maria em Lu-
cas 1 considerado o sofrimento dos judeus comuns nas mãos dos ricos e
poderosos, e seria ele um retrato da própria Maria e de seus companheiros
tão humildes e famintos (v. 52,53)?
Como membro da aristocracia, Josefo minimiza a condição miserá-
vel existente na terra de Israel em meados do século I. Entretanto, essas
condições eram o criadouro e a estufa do banditismo desenfreado que o
historiador retrata. A frustração dos camponeses contra a aristocracia é
mostrada com clareza no relato do historiador: “Simão, filho de Gioras,
reunindo um grande bando de revolucionários, dedicou-se à rapinagem;
não se contentando em saquear as casas dos ricos, ele ainda maltratou os
proprietários”.31

‫ ״‬Josefo, /?‫«״‬/.‫ ׳‬War 2.22.2 (652).


266

A evidência indica que, embora o banditismo fosse uma força no


tempo de Jesus, ele crescia em intensidade à medida que os judeus se
aproximavam da rebelião e guerra contra Roma. Em grande parte, era
um banditismo econômico. Sua ascensão sugere que a altiva e opressora
classe rica estava em conflito constante com a classe baixa cada vez mais
desesperada e vulnerável, em especial com os lavradores camponeses que
faziam parte dela. Eles se sentiam explorados e privados da justiça provinda
dos meios regulares. Banditismo e revolução pareciam ser sua única opção.
Dinheiro
A discussão sobre dinheiro no mundo antigo apresenta problemas
especiais. Não era o único meio de troca; a permuta também era comum.
Além disso, uma série de sistemas monetários podería ser usada na mesma
área. Entender o valor das unidades monetárias é particularmente des-
concertante por causa das frequentes mudanças na apreciação dos valores
— tanto do dinheiro antigo como do moderno. Igualmente, as unidades
monetárias podiam designar um padrão de peso bem como uma moeda.
Um modo de determinar equivalência entre valores monetários é comparar
a quantia paga a um trabalhador por um dia de salário na cultura antiga
e na moderna. Entretanto, isso também pode ser enganoso por causa da
mudança do poder aquisitivo de um dia de salário.
Na Era do Novo Testamento havia, pelo menos, três tipos diferen-
tes de dinheiro em circulação na terra de Israel: judaico, grego e romano
(as moedas gentílicas não eram aceitas para o pagamento dos encargos
religiosos; por isso a necessidade dos cambistas nos pátios do templo).
As moedas judaicas incluíam o siclo, o meio siclo, o quarto de siclo e o
lépton. O último é a moeda de cobre, o pouco da viúva em Marcos 12.42
e em Lucas 21.2; representa a menor quantia imaginável de dinheiro.32 A
dracma grega era o salário de um dia do trabalhador. A libra ou mina (Lc
19.11-17) equivalia a cem dracmas. A didracma correspondia ao valor de
duas dracmas, enquanto o estáter valia quatro dracmas.33 O talento (Mt

32Um lépton valia cerca de metade do quadrante romano (centavo) ou um oitavo


do assarion.
33 A didracma era o equivalente a meio siclo, a quantia da taxa anual paga ao templo
por todos os judeus (Mt 17.24). O estáter provavelmente é o que está em vista
quando Mt 26.14 menciona as trinta peças de prata pagas ajudas Iscariotes para
trair Jesus. Embora o valor exato seja incerto, é provável que Judas tenha recebido
cerca de 120 dias de salários.
267

18.24; 25.14-30) não era, de fato, uma moeda, mas uma unidade de medida
de trabalho. Representava uma soma muito grande. O s dez mil talentos de
Mateus 18.24 (ACF) são praticamente um montante incompreensível de
dívida, em especial para ser contraída por uma pessoa comum. Na moeda
romana, o denário (Mt 20.9) representava um dia de salário e era, assim,
equivalente em valor à dracma grega. Cem denários eram o equivalente
a uma mina grega.

Casa e lar

Habitações
Os ricos viviam em mansões ou estruturas palacianas.34 Podemos
presumir que o lar das classes médias era menor e menos luxuoso do que
o dos ricos. A habitação típica na terra de Israel era, sem dúvida, a das
classes baixas. Era feita de pedras, barro ou tijolos de barro com chão
duro de terra batida. Um pátio aberto servia, em muitos casos, a várias
famílias diferentes. O pátio era cercado por uma série de casas e aposentos
individuais. Ainda na mesma área havia galpões de armazenamento para
mercadorias diversas, abrigos para animais, cisternas, depósitos de lixo
e instalações sanitárias (quando disponíveis). Uma casa de família podia
consistir em apenas um cômodo, mas a maioria consistia em mais. Os
cômodos, divididos por cortinas ou tapetes, eram bem pequenos, por isso
as pessoas normalmente passavam o máximo de tempo possível na rua.
As janelas eram geralmente pequenas e permaneciam abertas nos meses
quentes; quando o tempo ficava frio, eram cobertas com vidro ou algum
material translúcido. À noite, lamparinas, lampiões e tochas eram a única
fonte de luz. Cada lar era equipado com uma porta, um ferrolho e uma
tranca. Frequentemente a casa consistia em mais de um andar; o acesso
aos pisos superiores era feito por escadas ou degraus externos. A maior
parte dos telhados era plana, por isso as famílias costumavam usá-los para
fazer refeições, se sentarem nas horas frias do dia e, possivelmente, dormir.
As mobílias, cuja maioria podia ser movida ou armazenada quando
não estivesse em uso, incluíam camas que, com exceção das de casas mais
pobres, ficavam acima do nível do chão, um fogão e um forno, uma mesa

34 Para obter evidências arqueológicas sobre as moradas, cf. McRay, Archaeology,


p. 76-88. A maior parte de sua discussão concentra-se em moradas fora da terra
de Israel.
268

para refeições, sofás sobre os quais se reclinavam enquanto comiam, ca-


deiras e bancos (sentavam-se no chão apenas os pranteadores ou os que
estavam sob algum tipo de banimento), e uma variedade de baús, cestas
e outros recipientes de armazenagem. Agua, óleo e vinho eram usados
em quantidade; o que quer que fosse consumido deveria, de acordo com
as leis regulamentadoras de pureza cerimonial, ser conservado em potes
cobertos. Havia vasos separados para estocar, cozinhar e servir. De vários
formatos e tamanhos, esses vasos eram feitos de barro, pedra ou vidro;
lares ricos usavam também recipientes de bronze, ·cobre, prata e ouro.
Utensílios para cozinhar e servir, como colheres, facas e tigelas, eram
feitos dos mesmos materiais. A pedra não estava suscetível à impureza
cerimonial e, por isso, seu uso era com frequência preferido na fabricação
de vasos, superfície para refeições e outras implementações domésticas.
Equipamentos domésticos feitos dc madeira só se tornaram comuns
após o período do NT. A condição econômica de um lar se refletia nos
materiais, na qualidade e na quantidade de seus equipamentos domésticos.
Em meses quentes e secos, a prática culinária era feita no pátio; em
outras estações, o fogão e o forno eram trazidos para dentro e coloca-
dos próximos da janela. O pão assado todas as semanas com frequência
envolvia toda a família: “O s filhos ajuntam a lenha, os pais acendem o
fogo, e as mulheres preparam a massa” (Jr 7.18). Ao jantar, as pessoas se
reclinavam sobre os sofás ao redor da mesa e comiam de um prato co-
mum. Uma lasca de madeira ou possivelmente uma pequena faca podia
ser usada para comer; colheres ou outros tipos de facas eram empregados
apenas na preparação da comida.
A vida no lar e em família
Os escritos rabínicos estão repletos de informações e de requisitos
relacionados à família como uma unidade e como uma instituição da socie-
dade. Também eram tratadas a questão da responsabilidades e das funções
individuais dentro da família. A maior parte de nossas informações vem
do período após o NT, mas uma parcela substancial disso provavelmente
reflete a situação antes de 70 d.C. A arqueologia moderna tem dados
aprimorados e complementados vindos de materiais escritos. Uma conta-
bilidade detalhada dos costumes em voga no judaísmo intertestamentário
269

requerería uma discussão extremamente longa. Iremos, portanto, apenas


resumir alguns aspectos mais importantes.35
O casamento precoce era a norma. A família era vista como uma
instituição estabelecida por Deus, e a procriação de filhos, sua ordenança.
A família era muito valorizada como base da vida social. Os casamentos
judaicos intertestamentários normalmente eram monogâmicos, mas a
poligamia era conhecida entre as classes aristocráticas.36 O nascimento de
uma criança era muito desejado; se um homem não tivesse filhos depois
de dez anos de casamento, era exigido que ele se divorciasse da esposa e
se casasse com outra.
O marido liderava a casa e se esperava que ele providenciasse comida
e vestimenta. O s rabinos afirmavam que a mulher proveniente de família
mais próspera que a do marido deveria ser mantida no nível ao qual estava
acostumada; se ela viesse de uma casa mais pobre, deveria ser mantida
ao nível comensurável com o padrão do esposo. O marido conduzia as
cerimônias religiosas familiares e era responsável pela educação dos filhos.
Ele, no geral, comprava no mercado os produtos necessários. E cumpria
obrigações especiais para com sua esposa, que iam desde o cuidado das
despesas pessoais dela até relações sexuais. Ter respeito por ela era parte
dos deveres familiares; eles não podiam ter relações sexuais sem o con-
sentimento dela. Os escritos rabínicos também incluem a obrigação do
marido de comer com a esposa, pelo menos, no final da tarde de todos
os sábados.
“D o ponto de vista legal [...] a posição da esposa era inferior à do
marido. Não há dúvida, entretanto, que socialmente o lugar da mulher na
casa era muito estimado.”37 A mulher tinha certos direitos com relação
ao local onde o casal vivería e não precisava pedir permissão ao marido
para visitar seus pais. Ela também tinha deveres prescritos pelo costume.
A esposa moía farinha, cozinhava e assava, lavava roupa, arrumava a
cama e fiava lã. Ela amamentava os filhos (até por volta de dezoito meses

35 O que se segue baseia-se consideravelmente em S. Safrai, “Home and Family”,


em Jewish People, Safrai e Stern (orgs.), vol. 2, p. 748-91.
36 Safrai, “ Home and Family”, P. 749-50, faz o seguinte comentário revelador:
“Dentre todas as histórias sobre a vida conjugal [nas escolas rabínicas] de tannaim
e amoraim [...] não há nem um caso de bigamia”.
37 Safrai, “Home and Family”, p. 763.
270

a três anos). Não se exigia que ela auxiliasse o marido no trabalho, ainda
que muitas mulheres o fizessem. Ela assumia a responsabilidade primária
quanto a estender hospitalidade e preparar os filhos para a escola. Ela
podería se envolver em atividades manuais e outros trabalhos em casa;
parece que algumas mulheres guardavam o dinheiro ganho. Esperava-se
que a esposa se vestisse e se adornasse de modo a não perder o encanto
aos olhos de seu marido.
Gravidez e parto eram considerados bênçãos. Homens e mulheres
ocasionalmente praticavam controle de natalidade. O-aborto era consi-
derado assassinato. O número de abortos espontâneos e de mulheres que
morriam ao dar à luz era alto. As parteiras assistiam nos nascimentos;
todo o trabalho que envolvia a preparação para o nascimento da criança
e o cuidado com a mãe estava isento das restrições da lei sabática. O nas-
cimento de um descendente era ocasião de alegria, maior ainda se fosse
um filho e não uma filha.
Após o parto, mãe e bebê passavam pelos rituais prescritos de pureza
e dedicação. A circuncisão do menino aos oito dias era realizada por um
médico profissional. Era um momento de celebração. Mas, por causa do
aumento das despesas com os sacrifícios exigidos, mesmo das pombas
que Levítico 12.8 prescrevia apenas para o pobre, foram tomadas medidas
durante o período rabínico para manter baixos os custos.
Todos os membros da família, incluindo os filhos mais velhos, au-
xiliavam no cuidado e na criação das crianças. Os filhos eram ensinados
a honrar e respeitar os pais. (Por extensão, esperava-se que os adultos
cuidassem dos pais idosos.) A disciplina podia ser administrada pelos dois
pais; fontes escritas frequentemente recomendam Provérbios 13.24, que
conecta a disciplina dada pelos pais ao amor. Os filhos participavam de
todas as cerimônias no lar, na comunidade e na sinagoga.
A passagem da infância para a adolescência era física, social, legal e
religiosa. Pela tradição, estava associada ao décimo segundo aniversário da
menina e ao décimo terceiro do menino, mas isso era apenas um número
aproximado. Mesmo pessoas fisicamente imaturas eram consideradas
maduras aos 18 anos, de acordo com a lei, pelos seguidores de Shammai,
ou aos 20 anos, pelos seguidores de Hillel.
A puberdade coincidia aproximadamente com a saída do menino da
escola para começar a aprender um ofício e assumir a responsabilidade
do trabalho regular. As meninas também começavam a assumir mais
271

responsabilidade. As meninas e as jovens não eram tão segregadas no


judaísmo intertestamentário como em outras culturas. Quando estavam
velhas o suficiente, elas podiam tirar água do poço ou do riacho comuns,
frequentar mercados e até mesmo procurar emprego.
Noivado (contrato de casamento) e casamento envolviam um longo
processo de passos e costumes. O candidato ao casamento deveria ter tanto
a linhagem familiar quanto à condição cerimonial agradáveis à família do
possível parceiro. Os homens eram considerados prontos para o matri-
mônio por volta dos 18 aos 20 anos, e as meninas, com uma idade bem
menor. O s jovens poderíam encontrar possíveis parceiros de casamento
por si mesmos. Quase sempre os casamentos eram arranjados pelos pais
ou por meio de casamenteiros.
Os contratos de casamento envolviam implicações financeiras e legais
e podiam ser objeto de longas negociações. O noivado formal acontecia
na casa do pai da noiva, onde o noivo dava à noiva dinheiro ou algo de
valor como símbolo de sua intenção. Ele também apresentava um contrato
matrimonial escrito, listando suas responsabilidades e a soma de dinheiro
que ela recebería no caso de ele morrer ou se divorciar.3839Os aspectos le-
gais do noivado exigiam a presença de testemunhas formais. A cerimônia
incluía um momento de celebração jubilosa e de entrega de presentes.
Depois disso, a noiva permanecia na casa do pai. Fontes antigas como a
Mixná não excluíam a possibilidade de contato sexual entre o noivado e
o casamento.30
O casamento ocorria quando ambos, noivo e noiva, sentiam-se pron-
tos. Havia estágios prescritos para a celebração do casamento: “ 1) pre-
paração da noiva, 2) transferência da noiva da casa de seu pai à casa do
noivo, 3) introdução da noiva na casa do noivo e 4) bênçãos e festividades
na casa do marido” .40 A celebração incluía muitas pessoas, convidadas ou
38 Fílon, SpecialLmws3.(f! (311), menciona esse arranjo, confirmando a existência da
prática no período intertestamentário.
39 Daí o importante significado da declaração em Mt 1.18 (“antes que se unissem”,
que é mais literal e exata do que a “antes do casamento”, da NTLH) e em 1.25
(“ |ele| não a conheceu” [ACF] ou “ [ele] não teve relações com ela” [NVI]). A ideia
da virgindade de Maria, em Lc 1.27,34 (v. tb. 35-38), c reforçada pela expectativa
de José de repudiá-la (Mt 1.19), indicativo da consciência de que não era o pai do
filho de Maria.
411Safrai, “Home and Family”, p. 757.
272

não. Exigia-se que testemunhas recitassem bênçãos ao longo de toda a


semana do casamento. Havia banquetes e uma atmosfera geral de alegria
e regozijo. Mesmo após a semana do casamento havia outros costumes
a serem observados.
A morte era outro evento marcado por costumes bem estabelecidos.
O luto começava assim que a m orte ocorria ou quando era anunciada a um
parente. Exigia-se o sepultamento assim que possível, preferencialmente
no mesmo dia da morte. O s preparativos para o sepultamento incluíam
lavar o corpo, cuidar para que ele permanecesse alinhado e enrolá-lo em
uma mortalha. Especiarias e outros unguentos podiam ser usados. Nor-
malmente se exigia também um caixão.
O sepultamento muitas vezes acontecia em uma caverna natural ou em
uma cavada para esse fim. Às vezes, o m orto era enterrado no campo, e,
nesse caso, medidas eram tomadas para marcar a sepultura a fim de evitar
a impureza ritual (Lc 11.44) e preservar a memória do morto. O corpo
era levado nos ombros dos carregadores de caixão, que podiam se revezar
durante o percurso. Flautistas, pranteadoras profissionais (carpideiras) e
membros da família lamentavam o falecido em casa, no caminho para o
local do sepultamento, junto ao túmulo e depois disso. Panegíricos eram
oferecidos a caminho do sepultamento e ao túmulo. Mesmo desconhecidos
podiam se juntar à procissão funeral. Uma pedra grande, mas móvel, era
usada para bloquear a entrada da caverna. Era costume visitar o túmulo nos
três dias seguintes para se assegurar de que a pessoa estava de fato morta;
erros eram possíveis por causa da rapidez do sepultamento dos mortos.
O lamento continuava por uma semana, mas podia ser prolongado.
Sinais de luto incluíam rebaixar todas as camas da casa (“derrubar todas as
camas”, na fraseologia rabínica), rasgar as vestes, cobrir a cabeça, sentar-se
descalço no chão e abster-se de trabalhar, de se lavar e de se relacionar
sexualmente. A família enlutada era visitada por amigos e consoladores
(Jo 11.9), que poderíam levar comida e bebida. Pelo menos no período
rabínico, eram pronunciadas bênçãos especiais de consolo quando o quórum
de dez homens estava presente.
Perto do final do período intertestamentário se tornou costume re-
visitar o túmulo depois do apodrecimento da carne, ou seja, um ano ou
mais depois da morte. As famílias mais abastadas colocavam os ossos em
ossários, caixas ou baús especialmente preparados e os enterravam mais
uma vez, não raro em nichos na estrutura do sepulcro.
273

Religião pessoal e familiar


As observâncias religiosas públicas se concentravam no templo. Os
sacrifícios e as cerimônias relacionadas eram, com algumas adaptações,
como os serviços do AT. A sinagoga era o ponto focal para a prática re-
ligiosa local. A terceira via para a expressão religiosa era o lar.
A marca distintiva do judaísmo intertestamentário era a centralidade da
lei, a Torá, na vida diária. Ela regulamentava o dia a dia, não só as ocasiões
especiais. N o nível mais básico, não se comia alimento algum sem que se
pronunciasse uma bênção. O Shemá e outras orações eram recitados antes
de a família iniciar os afazeres do dia e em outros momentos também.
Havia diversos dízimos: da produção, da terra, da massa ou do pão e de
dinheiro. Usavam-se franjas nas borlas do manto, fixavam-se partes da
Escritura no umbral direito da porta das casas e de construções (msçusph),
filactérios (ou tefilin) que prendiam as palavras da lei na cabeça e no braço
serviam como um constante lembrete de Deus, de sua lei e da obrigação
de obedecer a ela. A Carta deAristeu (157—60) fala desses símbolos:
Assim ele nos exorta à recordação de que [...| bênçãos são mantidas e
preservadas pelo divino poder sob sua providência, pois ele ordenou
que em todo o tem po e lugar haja um lembrete constante do Deus su-
premo e sustentador (de tudo). Assim, na questão de carnes e bebidas,
ele ordena que os homens ofereçam os primeiros frutos c os consumam
ali, de imediato. Além disso, em nossas vestes ele nos deu uma marca
distintiva com o um lembrete, e, do mesmo modo, em nossos portões
e nossas portas ele nos ordenou que colocássemos as “Palavras”, de
m odo a serem um lembrete de Deus. Ele também ordena estritamente
que o sinal seja usado sobre nossas mãos, indicando claramente que é
nosso dever cumprir toda atividade com justiça, tendo em mente nossa
própria condição e, sobretudo, o tem or de Deus. Ele também ordena
que os homens, “indo para a cama e levantando-se”, meditem nas or-
denanças divinas, observando não só em palavra, mas no entendimento
do m ovim ento e da impressão que elas têm quando eles vão dorm ir e
também quando acordam, a mudança divina que há entre elas — muito
além da compreensão.

Concentraremos nossa atenção em outras três observâncias familiares:


o sábado, as leis quanto à pureza e as épocas especiais.
274

S ábado

A guarda do sábado era a marca fundamental da comunidade judaica


e um indivíduo judeu. O quarto mandamento impõe descanso no sétimo
dia (Êx 20.8-11; D t 5.12-15).41 O texto de Êxodo 31.13 declara: “Diga aos
israelitas que guardem os meus sábados. Isso será um sinal entre mim e
vocês, geração após geração, a fim de que saibam que eu sou o S e n h o r ,
que os santifica”. Portanto, a intenção do mandamento é que o sábado
seja observado como sinal da aliança e do fato de Deus ter separado Israel
para si mesmo.42 Essa ideia é reiterada pelo a u to r intertestamentário de
jubileus 2.17-22.
O grau de especificidade das instruções sabáticas na Bíblia não foi
suficiente para o judaísmo intertestamentário. Por isso, as tradições e as leis
orais dos vários grupos davam mais instruções detalhadas. Por exemplo,
Jubileus 2.29, 30 deixa claro que os filhos de Israel “não devem preparar
fno sábado] nada que seja comido ou bebido, o que não prepararam para
si mesmos no sexto dia... [Nem é lícito] tirar água ou trazer para dentro de
suas habitações ou tirar delas qualquer trabalho que seja carregado pelos
portões. E eles não devem trazer ou levar de casa em casa naquele dia”.
Em 50.6-13, de igual modo, proíbem-se as relações maritais, a discussão
de transações comerciais, o tirar ou carregar água “que não foi preparada
[...] no sexto dia”, sair em jornada, arar a terra, acender o fogo, montar
em um animal, matar um animal ou ave doméstica, jejuar ou guerrear. A
Regra de Damasco (CD 10-12) contém uma lista similar, porém ampliada,
dessas proibições. Os dois documentos limitam os sacrifícios que podem
ser oferecidos no templo no sábado para apenas os prescritos para esse dia.
A Mixná, e mais tarde o Talmude, dedicam um tratado inteiro, Shabbat,
às instruções quanto ao sábado. O utro tratado, Eruvin (a fusão dos limites

41 Outras declarações bíblicas sobre o mandamento do sábado podem ser lidas ema
Êx 16.23-30; 23.12; 31.12-17; 34.21; 35.1-3; Lv 23.3; Nm 15.32-36; cf. Ne 10.31;
13.15-22; Is 58.13;Jr 17.21-24; Ez 22.8; Am 8.5 (esta lista foi adaptada de Schürer,
History, vol. 2, p. 468).
4‫ ־‬Observe também Is 56.6: “E os estrangeiros que se unirem ao Senhor... todos
os que guardarem o sábado deixando de profaná-lo, e que se apegarem à minha
aliança”.
275

sabáticos), trata de m uitos lim ites p ertin en tes ao sábado.43 A M ixná Shab-
bat 7.2 lista as classes d e trabalho proibidas n o sábado:
As classes de trabalho são quarenta menos uma: semear, arar, ceifar, atar
molhos, debulhar, joeirar, limpar colheitas, moer, peneirar, amassar, assar,
tosquiar lã, lavar ou bater ou tingi-la, fiar, tecer, fazer dois laços, tecer
dois fios, separar dois fios, atar [um nó], afrouxar [um nó], costurar dois
pontos, rasgar a fim de costurar dois pontos, caçar uma gazela, abater ou
esfolar ou salgá-la ou curar sua pele, raspá-la ou cortá-la, escrever duas
letras, apagar a fim de escrever duas letras, construir, derrubar, apagar
o fogo, acender o fogo, bater com o martelo e levar o que quer que seja
de um domínio para outro.

O u tro s escritos rabínicos elucidam e am pliam a lista.


A luz de tu d o isso fica ev idente q u e o m an d a m e n to d o sábado tinha
um efeito p ro fu n d o não apenas n o s especialistas e líderes religiosos, mas
tam b ém nos lares m ais hum ildes. O sábado deveria ser u m dia de absten-
ção d e qualq u er fo rm a de trabalho, exceto a necessária para a preserva-
ção d a vida. A o lado das proibições estavam as obrigações sabáticas de
com p arecer às cerim ônias da sinagoga e p articipar das refeições com uns
à fam ília o u em um g ru p o m aior. A refeição sabática, n o rm alm en te feita
n o final d a tard e de sexta-feira, era u m a ocasião especial para a família e
seus convidados; n aturalm ente, a refeição era prep arada antes da chegada
d e fato d o sábado. T an to Jo se fo q u a n to F ílon observam qu e o sábado era
o c u p a d o co m o e stu d o d a lei.44
H avia várias evidências d o to q ue de trom b etas n o sábado nos tem pos
intertestam en tário s. P o r exem plo, o A T prescreve o to q u e de trom betas
p ara p ro p ó sito s religiosos (Lv 23.24; 25.9; N m 10.8-10; 29.1). O Talmude
indica que as tro m b etas anunciavam a chegada e o fim d o sábado. U m a
ped ra d o m uro sul d o tem p lo de H ero des traz a inscrição “ esquina para
soar o an úncio ” , c o n firm an d o que o to q ue das tro m b etas para fins reli-

43 D o tratado talmúdico vem a prática conhecida como eruv. “o recurso técnico


casuística mediante o qual propriedades adjacentes eram amalgamadas como
uma na véspera do sábado ou em dias santos, a fim de atenuar a gravidade das
restrições para a observância destes dias” (Saio W. Baron, Joseph L. Blau ,Judaism■.
Postbiblical and Talmudic Period [New York: Liberal Arts, 1954), p. 242).
44Josefo, AgainstApion 2.18 (175); Fílon, / Jfe of Moses 2.39 (211-12); Todo homem bom
é livre 81.
276

giosos era praticado no período intertestamentário. Embora a inscrição


não indique o exato propósito do toque das trombetas, é provável que
um deles fosse o anúncio do sábado.
Pureza cerimonial
Os sacerdotes deveríam se abster de bebidas fortes, pois eles deveríam
“fazer separação entre o santo e o profano, entre o puro e o impuro”
(Lv 10.10). O conceito de fazer “distinção entre o puro e o impuro” apa-
rece mais uma vez em Levítico 11.47. Essa expressão, por sua vez, segue
imediatamente a declaração: “Pois eu sou o S e n h o r , o Deus de vocês;
consagrem-se e sejam santos, porque eu sou santo. Não se tornem impuros
[...] Eu sou o Se n h o r que os tirou da terra do Egito para ser o seu Deus;
por isso, sejam santos, porque eu sou santo” (v. 44,45). Também digno
de nota é Levítico 20.24-26: “Eu sou o S e n h o r , o Deus de vocês, que os
separou dentre os povos. Portanto, façam separação entre animais puros
e impuros [...] os quais separei de vocês por serem eles impuros. Vocês
serão santos para mim, porque eu, o S e n h o r , sou santo, e os separei den-
tre os povos para serem meus”. O s princípios da distinção entre o puro
e o impuro, e o ser santo de Israel, um reflexo da natureza do Deus com
o qual eles estavam em um relacionamento de aliança, são tidos como a
base das leis de pureza ritual e do comportamento moral.43
A Bíblia contém várias leis relacionadas a pessoas, comidas e objetos
impuros, e aos requisitos rituais de purificação (v. esp., Lv 11— 22; Nm
5.1-4; 19). Esses assuntos foram desenvolvidos com detalhes no século I
d.C. e nos seguintes; uma seção inteira da M ixná— Taharot (Purificações)
— bem como muitas outras partes tratam da questão de puro e impuro.
Poucas coisas mais tiveram maior impacto na vida diária que esses regula-
mentos. O escritor do evangelho mal arranha a superfície com a conhecida
declaração de Marcos 7.3,4: “Os fariseus e todos os judeus não comem
sem lavar as mãos cerimonialmente, apegando-se, assim, à tradição dos
líderes religiosos. Quando chegam da rua, não comem sem antes se la-
varem. E observam muitas outras tradições, tais como o lavar de copos,
jarros e vasilhas de metal” (v. tb. Mt 23.25,26; Lc 11.38-41). As discussões45

45Observe a passagem de Lv 19, em que parte da declaração “Sejam santos porque


eu, o Senhor, o Deus de vocês, sou santo” é repetida como a justificativa ou o
padrão para as injunções precedentes.
277

rabínicas observam que o material e o formato dos vasos poderíam afetar


a natureza da impureza e o tipo de limpeza exigidos.
Os vários grupos tinham visões próprias dos regulamentos cerimo-
niais: “Alguns tentavam restringir seu âmbito, mas outros o aumentavam,
visando elevar todo o Israel ao mesmo nível de santidade que os sacer-
dotes. Os saduceus defendiam que a pureza era apenas para os últimos,
enquanto alguns, pelo menos os fariseus, sustentavam que ela deveria ser
preservada por todos os dispostos a aceitar a obrigação, embora não fosse
necessariamente incumbência de todo o Israel. Os essênios insistiam no
rigor total da lei para todos os seus grupos, e a pureza ritual era uma dc
suas prioridades”.46
A regulamentação mais conhecida, pelo menos do ponto dc vista dos
gentios, era a que fazia distinção entre a comida kasher e a impura. Mas
eram esses itens que lidavam com a impureza pessoal que requeriam o
esforço mais consciente dos judeus comuns. A lista bíblica de situações
vinculadas à impureza incluía: 1) relações sexuais; 2) tocar a carcaça de
um animal (exceto se m orto para alimentação); 3) fluxos do corpo do
homem ou da mulher, incluindo menstruação e nascimento; 4) contato
com lepra e 5) contato com o corpo de um morto. A lei oral acrescentou
o contato com um gentio ou uma residência gentílica, com a terra fora
de Israel e com idolatria.47
Os rituais de purificação dependiam da fonte da impureza. Lavar as
mãos antes de comer e orar é uma prática atestada no período intertesta-
mentário. Lavar o corpo todo era uma exigência frequente; vestígios dos
banhos rituais, mikvot (sing, mikvah), são comuns em sítios arqueológicos
em Israel.48 Enquanto o templo permaneceu em pé, sacrifícios e outros
rituais, incluindo o sacrifício da novilha vermelha (Nm 19.1-10), eram
exigidos.
É p o c a s e sp e cia is

N ão é necessário repetir aqui o que foi dito sobre festas, festivais e


ocasiões especiais em nossa discussão sobre as instituições do AT e o res-
tabelecimento de instituições tradicionais após o exílio. Entretanto, uma
46 S. Safrai, “Religion in Everyday Life”, em Jewish People, Safrai, Stern (orgs.), vol. 2,
p. 828.
47 Ibid., p. 829.
48McRay, Archaeology, p. 48-50.
278

vez que eles eram parte tão importante da vida judaica intertestamentária,
de m odo geral e no contexto familiar, cabem aqui alguns comentários.
Embora a observância de grande parte das festas exigisse cerimônias
elaboradas no templo, a maioria também demandava cuidado especial
no lar. Jejuar ou festejar estava associado aos festivais, e orações especiais
eram feitas no lar. Cada festival contava com requisitos próprios para os
membros adultos da comunidade. O s festivais também ofereciam opor-
tunidades para instrução direta e indireta dos jovens na lei divina e nas
tradições do povo.
Nas três festas de peregrinação, toda a família ou parte dela deveria
viajar a Jerusalém. As festas também envolviam observâncias e rituais no
lar. Por exemplo, eram feitas preparações cuidadosas para a Páscoa. Todo
o fermento era removido de casa. Cessava-se o trabalho. Fazia-se uma
refeição especial, comemorando a libertação do Egito. Os filhos eram
encorajados a fazer perguntas sobre a festa.49*O s começos da nação eram,
desse modo, lembrados e ensinados.
A festa dos Tabernáculos, além de ser marcada por serviços especiais
em Jerusalém e no templo, poderia ser celebrada em uma barraca (sukkah)
construída perto da residência da família, embora pudesse ser afastada, fora
de Jerusalém. Era principalmente no lar que as lamparinas de Purim eram
acesas. Mesmo as ocasiões mais solenes podiam ter momentos mais tran-
quilos com ramificações para a vida familiar: “Rabban Simeon b. Gamaliel
disse: ‘Não havia dias mais felizes para Israel do que o décimo quinto de
abe e o dia da Expiação, porque neles as filhas de Jerusalém costumavam
sair com vestes brancas [...] para dançar nos vinhedos. E o que elas diziam?
“Jovem, erga seus olhos e veja qual escolherá para si mesmo” ’ 5°.‫״‬

Educação
A verdade sobre essa questão é que se sabe muito pouco sobre a edu-
cação no judaísmo intertestamentário. Algumas tentativas de descrevê-la
dizem que o que sabemos da educação judaica no início do período rabí-
nico também era válido na era do templo de Herodes. Outra suposição
é que a educação judaica era uma adaptação da encontrada no mundo
greco-romano. Parecería razoável supor que a educação judaica intertesta-

4'‫ ׳‬Como parte da liturgia moderna, a criança pergunta: “Por que essa noite é diferente
de todas as outras?”. Essa é uma oportunidade para se relatar a primeira Páscoa.
‫ "י־‬Mixná TaanitA2>.
279

mentária também contivesse características distintas das formas rabínicas


e greco-romanas, mas nossas informações são limitadas. Três coisas pare-
cem certas: a centralidade da lei no currículo, o dever do lar no sentido de
prover educação e o envolvimento da comunidade e da sinagoga.
Mais uma vez, iniciamos nossa consideração de um assunto com in-
formações de Josefo. Ele fala tanto da importância quanto do conteúdo
da educação: “Acima de tudo, nós nos orgulhamos da educação de nossos
filhos e, considerada como a tarefa mais essencial da vida, a observância de
nossas leis e das práticas religiosas nelas baseadas, as quais herdamos” .51 A
isso podemos acrescentar o testemunho de Fílon: “Pois todos os homens
guardam seus próprios costumes, mas isso é especialmente verdadeiro
sobre a nação de Israel. Ao afirmar que as leis são oráculos concedidos
por Deus, e tendo sido treinados nessa doutrina desde os primeiros anos,
eles carregam as similitudes dos mandamentos consagrados na alma”.52*
A educação, portanto, concentrava-se no estudo da lei. Entendia-se de
forma inequívoca que viver de acordo com a lei exigia seu conhecimento.
Para conhecer a lei, a pessoa precisava ser capaz de ler. Como consequên-
cia, o currículo básico envolvia a leitura, e estudo e, pode-se presumir, a
aplicação da lei à vida diária.33
Dependendo de modo principal das fontes rabínicas que mantêm a
justa reivindicação de representar a situação anterior a 70 d.C., pode-se
delinear o processo educacional.54 Desde, pelo menos, a época da leitura
que Esdras fez da lei (Ne 8), a educação era um processo público; o estudo
da lei consistia no foco de toda a sociedade judaica. Era o compromisso

51AgainstApion 1.12 (60).


52 Fílon, Embassy to Gaius 31 (210).
‫ ״‬Cf. Schürer, History, vol. 2, p. 464: “Todo o propósito da educação na família, na
escola e na sinagoga era transformar os judeus em ‘discípulos do Senhor’. O ho-
mem comum deveria saber o que a Torá pedia dele e fazê-lo. Toda a sua vida deveria
se conformar aos preceitos e mandamentos da ‘Instrução’ ou ‘Esclarecimento’.
A obediência a essas regras, que criam firmemente terem sido estabelecidas por
Deus, era vista pelos estudiosos da Torá, fariseus c rabinos, de igual modo, como
o único meio para pôr em prática o mandamento celestial: ‘Vocês serão para mim
um reino de sacerdotes e uma nação santa’ (Ex 19.6)”.
54 Este resumo depende muito de S. Safrai, “Education and the Study of the Torah”,
em Jewish People, Safrai, Stern (orgs.), vol. 2, p. 945-69. V. tb. Schürer, History, vol. 2,
p. 417-21; James L. Crenshaw, “Education in Ancient Israel”, Journal of Biblical
Literature 104.4 (December 1985): 601-15.
280

vitalício de todos os homens. Começava com os muito jovens. A Mixná


exige que as crianças sejam ensinadas “nela um ou dois anos antes [de
atingirem a maturidade], para que se tornem versadas nos mandamentos”.55
Outras fontes estabelecem idades diferentes para o começo dos estudos
formais, algumas já com cinco anos.
Os pais tinham a responsabilidade especial de educar os filhos. Ceri-
mônias religiosas domésticas, como o seder da Páscoa, incluíam os filhos
e eram um veículo para o ensino por meio de palavras e do exemplo.
Evidenciava-se a observância religiosa materna quatido a mãe acendia as
velas cerimoniais no sábado e em outras ocasiões.
As comunidades proviam escolas. A situação era diferente de um lugar
para outro. Há evidência de que, durante o sumo sacerdócio de Yehoshua
ben Gamala (Jesus, filho de Gamaliel, 63-65 d.C), “fez-se grande progresso
na instituição de uma rede de escolas em todas as cidades” .56Muitas vezes
as escolas se encontravam nos arredores da sinagoga; o próprio serviço
na sinagoga exigia que os homens fossem capazes de ler e era organizado
de m odo a prover instrução e educação contínuas. Além disso, os oficiais
da sinagoga às vezes participavam do ensino das crianças.
O Talmude fazia distinção entre a bet ha-sefer (casa do livro), onde a
criança era ensinada a ler a lei, e a bet ha-talmud (casa do estudo), onde as
tradições (a lei oral da Mixná) eram o tema. Ler requeria aprender o alfabeto
e a pronúncia adequada das palavras do texto sagrado. As vogais só foram
acrescentadas ao texto por volta de 500 d.C., pois “a leitura podería ser
aprendida apenas pela repetição da leitura do professor e pela memória
auditiva”.57 Isso significava que a pronúncia deveria ser aprendida com
exatidão a fim de assegurar a transmissão precisa da lei. Pelo menos durante
os tempos rabínicos, a leitura começava com Levítico 1— 8 e os primeiros
capítulos de Gênesis, provavelmente por serem as únicas passagens que
poderíam serem escritas em rolos pequenos separados do restante do livro
a que pertenciam. Mais tarde, o pupilo era ensinado a ler toda a Torá e
os Profetas, bem como certos textos litúrgicos. A instrução para a leitura
do texto sagrado não necessariamente progredia para o ensino da escrita.
Embora a evidência sugira que muitos pudessem escrever, essa aptidão
não era tão difundida quanto a facilidade na leitura.

55 Yoma 8.4.
56 Safrai, “Education”, p. 948.
‫ די‬Ibid., p. 950.
281

D o aprendizado da leitura e do conteúdo do texto, o estudante, en-


tão, seguia para a bet ha-talmud e o estudo da tradição oral. Isso implicava
memorização, leitura em uníssono, perguntas e respostas, e estudo cm
grupo. O objetivo era equipar o aluno para entender a lei e aplicá-la a
situações da vida.
A educação formal normalmente era concluída aos 12 ou 13 anos de
idade. A essa altura, muitos jovens começavam a aprender um ofício ou
a negociar. Os estudantes que mostravam habilidade e interesse excep-
cionais poderíam continuar os estudos com um professor ou um sábio.
O nível mais alto de instrução provavelmente só podia ser encontrado
em Jerusalém.38 O fim da educação formal não significava o término dos
estudos. Muitos homens continuavam o estudo pessoal ou em grupo por
toda a vida.
Por fim, as meninas e as mulheres eram educadas no judaísmo inter-
testamentário? A evidência é muito escassa e inconsistente para podermos
dar uma resposta clara. Tanto a literatura intertestamentária quanto a rabí-
nica concordam que a obrigação de educar os meninos não se estendia às
meninas. Os deveres religiosos esperados de uma mulher no lar contavam,
entretanto, com algum conhecimento básico que deveria ser comunicado
de alguma forma. Aparentemente, pelo menos algumas meninas recebiam
certa educação formal, o que podería incluir até mesmo a alfabetização. É
improvável que as meninas frequentassem escolas. A maioria era provável-
mente ensinada em casa; é possível que algumas famílias providenciassem
tutores para as filhas. Frequentar cerimônias nas sinagogas promovia a
instrução adicional. Algumas mulheres eram suficientemente educadas
para serem reconhecidas como estudiosas da Torá no período rabínico.

M edições e te m p o

Medições
O leitor moderno do N T raramente sente mais a estranheza do mundo
neotestamentário do que quando é confrontado com um assunto mun-
dano como seu sistema de medidas.5859 Elas não apenas eram diferentes
58Schürer, History, vol. 2, p. 322-80, concentra a atenção no treinamento e no tra-
balho de especialistas na lei.
-9‫ י‬Para obter explicações prontas de pesos e medidas bíblicos, cf. The N I V Study
Bible, Kenneth Barker el al. (orgs.) (Grand Rapids: Zondervan, 1985); The New
OxfordAnnotated Bible with theApocryphal/DeuterocanonicalBooks, Bruce M. Metzger,
282

das medidas modernas, mas também estavam sujeitas a mudanças. Con-


sideraremos duas delas. O comprimento de um cúbito, a medida linear
mais comumente mencionada na Bíblia, não pode ser determinado com
precisão; originariamente dizia respeito ao comprimento do antebraço. O
fato de ter ocorrido uma mudança no padrão do comprimento do cúbito
é observado em 2Crônicas 3.3 (Ez 40.5; 43.13). Uma aproximação fixa
o “cúbito” do AT em 44,5 centímetros. O “novo cúbito”, o do Império
Romano, incluindo a Palestina do NT, media 52,5 centímetros.
“A distância da caminhada de um sábado” (At 1.42) não era, de modo
algum, uma medida exata, mas um dos cercados ao redor da Torá. Pres-
creve a distância que alguém podería viajar de uma residência sem quebrar
o quarto mandamento. De acordo com o Talmude, a jornada de um dia de
sábado media cerca de 2 mil cúbitos (por volta de um quilômetro),60 mas
podia ser ampliada, de m odo quase ilimitado, pelo uso da prática do eruv
(expansão dos limites pelo estabelecimento de residências temporárias ou
a amálgama de propriedades adjacentes).
Calendário
O calendário era de imensa importância no mundo antigo. Uma vez
que ele media o ciclo regular das estações, acreditava-se na sua relação
especial com a natureza e com o Deus (ou deuses) que fez e controlava a
ordem natural. Já observamos que alguns partidos judaicos se apegavam
a um calendário particular como uma de suas características. Aqui se
podem fazer apenas algumas observações gerais para esclarecer a maior
diferença entre os grupos de calendários e para esclarecer o leitor sobre
essa questão importante.61

Roland E. Murphy (orgs.). (New York: Oxford University Press, 1992), p. 424-5
(New Testament); Interpreter's Dictionary of the Bible, George A. Buttrick etal. (orgs.),
4 vols. (New York: Abingdon, 1962), vol. 4, p. 828-38; New Bible Dictionary, ). D.
Douglas (org.), 2. ed. (Downers Grove, 111.: Inter-Varsity, 1982), p. 1245-9; Harper's
Bible Dictionary, Paul J. Achtemeier el al. (orgs.) (San Francisco: Harper and Row,
1985), p. 1126-31 \ Anchor Bible Dictionary, David Noel Freedman et al (orgs.), 6
vols. (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1992), vol. 6, p.897-908.
6(1 Talmude babilônico Eruvin 51a.
61 Análises detalhadas sobre o assunto extremamente complexo, cf. M. D. Herr, “The
Calendar”, em Jewish People, Safrai, Stern (orgs.), vol. 2, p. 834-62, e a literatura citada
por ele, p. 862-64; Daniel-Rops,M vida diária·,}. Van Goudoever, Biblical Calendars,
2. ed. (Leiden: E.J. Brill, 1961); James C. Vanderkam, “Calendars: Ancient Israelite
283

O Israel do AT e, ao que parece, a maioria dos judeus do século I


seguiam alguma versão do calendário lunar. Os calendários lunares já
vinham com um problema. O sistema em que os meses duram 29,5 dias
não se correlaciona facilmente com o ano solar. Sem ajustes, qualquer mês
lunar que pegássemos vaguearia pelo ano, vindo agora durante a época da
plantação da primavera, depois na colheita do outono ou no verão ou no
inverno.62 Isso é intolerável na sociedade em que as festas e os festivais
religiosos também comemoram eventos agrícolas. Como consequência,
em algumas sociedades foram feitos ajustes, como o acréscimo de dias
ou até mesmo de meses extras quando necessário. O quadro n.° 1 (p. 166)
propõe uma reconstrução do calendário pós-exílico do AT seguindo essa
linha. Parece que algo similar esteve em vigor na corrente principal do
judaísmo intertestamentário.
Outros grupos usavam calendários solares. N ão havia instrumentos
disponíveis para medir a duração precisa do ano solar, por isso as deter-
minações deveríam ser feitas pela observação. Embora alguns cálculos
antigos se aproximassem do ano astronômico, faziam-se ajustes de tempos
em tempos.
Horas do dia

O cálculo do tempo pelos antigos era diferente do cálculo do mundo


moderno em dois aspectos. Primeiro, qualquer parte de uma unidade de
tempo (ano, mês ou dia) era contada como o todo. Portanto, o ano final
do reinado de um rei também era o primeiro de seu sucessor. De igual
modo, o período entre a colocação de Jesus no túmulo, no final da tarde
de sexta-feira, e sua ressurreição na manhã de domingo foi contado como
três dias. Segundo, o novo dia começava ao pôr do sol.63 Em algumas
culturas isso era determinado pela observação do momento em que uma
linha branca não podia mais ser distinguida de uma colorida.

and Early Jewish”, cm Anchor Bible Dictionary, vol. l,p . 814-20; Roger T. Beckwith,
Calendar and Chronology, Jewish and Christian (Leiden: E. J. Brill, 1996).
62 Esta situação ocorre em sociedades islâmicas. O jejum, quando seguidores do
Profeta se abstêm de toda comida c bebida durante as horas do dia, é observado
durante o nono mês, o mês santo do Ramadã. As exigências são muito difíceis
em períodos mais frios do ano. Constituem dificuldades especiais durante os anos
em que o Ramadã cai no verão.
63 Portanto, em Mc 1.32, a multidão que procurava Jesus para receber cura se reuniu
no pôr do sol, quando o sábado havia acabado.
284

O cálculo das horas do dia era dividido em dois períodos: as horas do


dia e as da noite. O tempo não podia ser calculado com exatidão e variava,
sem dúvida, de acordo com as estações. As horas do dia eram divididas cm
doze seções geralmente iguais entre o nascer e o pôr do sol; a primeira hora
era a primeira do período da luz do dia; e a décima segunda, a última. Como
regra, a terceira hora era aproximadamente 9h; a sexta hora, o meio-dia; a
hora nona, cerca de 15h e a décima segunda hora, 18h.M
A noite se dividia em uma série de vigílias, sendo a vigília o período que
um grupo de soldados montava guarda até ser substituído. Ao que parece,
nos tempos do AT, os judeus usavam um sistema de três vigílias por noite.
Essa é a implicação da referência à “vigília da meia-noite” (NVI, nota de
rodapé), ou “vigília média” (ARA), em Juizes 7.19. N o período romano, a
Era do Novo Testamento, havia quatro vigílias. A primeira vigília (opse, tarde)
ia aproximadamente das 18h às 21h; a segunda (mesonyktion, meia-noite), das
21 h à meia-noite; a terceira (alektorophõnia, cantar do galo), da meia-noite
às 3h, e a quarta vigília (prõi, manhã), das 3h às 6h. As quatro vigílias da
noite são mencionadas em Marcos 13.35.

64 Observe o uso de referências antigas de tempo em Mt 20.1-9 e nos relatos da


crucificação de Jesus.
T E R C E IR A PA R T E
O P E N S A M E N T O R E L IG IO S O D O JU D A ÍS M O IN T E R T E S T A M E N T Á R IO :
U M C O N T E X T O PARA O S C O S T U M E S E C O N T R O V É R S IA S C RISTÃ O S
13

O pensamento religioso do judaísmo


intertestamentário

• A existência de Deus
• Visão de mundo
• A lei e as práticas legalistas
• Atitudes particularistas, elitistas
• Imortalidade e ressurreição

O termo teologia, no sentido empregado pelos cristãos, em especial


pelos protestantes, é inapropriado no debate sobre o judaísmo intertes-
tamentário.1 Os judeus desse período estavam mais preocupados com a
prática correta (ortopraxia) que com o pensamento ou a doutrina correta.
“Pensamento religioso”, portanto, é a melhor descrição do conteúdo da
fé do judaísmo intertestamentário que qualquer termo que implique a
totalidade organizada e coerente.
O pensamento do judaísmo intertestamentário retém todas as caracte-
rísticas essenciais da fé do AT e a maioria de suas outras partes e estruturas.
0 esforço para restabelecer as instituições tradicionais da nação testemu-
nha o desejo consciente de manter a continuidade. Quaisquer adendos e
adaptações feitos eram respostas a desafios e circunstâncias diferentes dos
1 Uma tentativa de sistematização do pensamento judaico intertestamentário foi
feita por Joseph Bonsirvcn, Palestinian Judaism in the Time of Jesus Christ, trad.
William Wolf (New York: Holt, Rinehart and Winston, 1964), mas ele nem sempre
conseguiu esclarecer as diferenças entre o período intertestamentário e as fontes
rabínicas. Um esforço mais modesto, mas que trata de forma mais cuidadosa com
as fontes, é F. F. Bruce, “Inter-testamental Literature”, em What Theologians Do, F.
G. Healey (org.) (Grand Rapids: Eerdmans, 1970), p. 85-102.
288

do mundo no AT. Como já observamos, havia uma variedade de respostas,


e essa miscelânea se concentrava no pensamento e na prática religiosos. O
pensamento religioso posterior a 70 d.C. deu continuidade à tradição de,
pelo menos, uma ramificação do período intertestamentário (os fariseus),
mas também teve de responder à mudança da situação. Nosso interesse
é observar alguns elementos fundamentais do pensamento religioso que
tornaram o judaísmo intertestamentário distinto de seu predecessor.
Os três maiores pilares da religião no AT — monoteísmo, aliança e
lei — mantiveram o lugar de primazia. A forma de sua interpretação e
aplicação na prática constituiu a maior parte da singularidade do judaísmo
intertestamentário.

A EXISTÊNCIA E A NATUREZA DE DEUS


O Shema, “Ouça, ó Israel: O S e n h o r , o nosso Deus, é o único Se -
nhor” (Dt 6.4), é, como Joseph Bonsirven observa, uma oração diária e
uma confissão de fé.2 É uma afirmação “daquele que existe”, o Ser cuja
realidade não precisa ser provada. A ênfase do AT no monoteísmo per-
manece forte, caso não se torne mais robusto, no pensamento intertesta-
mentário. Deus ainda é reconhecido como Criador e o Ser que, por meio
de sua providência, sustém a ordem criada. Sem dúvida, o Deus de Israel
era o Deus da aliança, que escolheu e redimiu seu povo para si mesmo.
Os judeus intertestamentários, exceto alguns envolvidos na cultura
helenista, não viam necessidade de provar a existência de seu Deus. Jose-
fo — um judeu helenista — ecoou a prática de demonstrar a existência
divina principalmente por meio de suas obras, em vez de argumentos:
“[Abraão] foi, deste modo, o primeiro a declarar com ousadia que Deus, o
criador do universo, é um... Isso ele inferiu das mudanças às quais a terra
e o mar estão sujeitos, do curso do sol e da lua, c de todos os fenômenos
celestiais; pois, ele argumentou, fossem esses corpos dotados de poder,
eles proporcionariam a própria regularidade, mas, uma vez que essa lhes
falta, fica manifesto que mesmo os serviços nos quais cooperam para
nosso benefício maior, prestam não em virtude da própria autoridade,
mas pelo poder de sua soberania dominante, a quem somente é correto
render homenagem c ação de graças”.3

2 PalestinianJudaism, p. 3.
3 Antiquities 1.7.1
289

O ponto exato do efeito da fé na centralidade do único Deus na vida


e no pensamento intertestamentários é ilustrado na Carta de Aristeu. De-
pois de questionar os estudiosos judeus que se prontificaram a traduzir s
Escrituras para o grego (a Septuaginta), o rei egípcio observou: “Quando
questionados [...] inesperadamente dão respostas apropriadas, nas quais
Deus é a base de seu argumento” (v. 200).
Das numerosas influências às quais os judeus intertestamentários
estavam sujeitos, havia, pelo menos, três com maior efeito no modo
como pensavam e agiam em relação a Deus. A primeira foi a queda de
Jerusalém em 586 a.C., o cativeiro e depois a subsequente restauração. Já
observamos a crise teológica precipitada pela derrubada do Estado hebreu
e a destruição do templo. As dúvidas suscitadas por esses desastres sobre
Deus foram, sem dúvida, reavaliadas em vista do retorno do cativeiro e
da reconstrução do Estado judeu.
Os efeitos exatos da experiência de 586 e suas decorrências sobre a
visão coletiva do judaísmo intertestamentário em relação a Deus e sua
atitude para com ele são difíceis de avaliar. Registros escritos refletem
visões similares às encontradas no AT. N o entanto, é provável que tenha
havido pelo menos um impacto emocional subconsciente. Os prenúncios
proféticos do juízo eram, nesse momento, vistos como fatos consumados.
O reconhecimento de que Deus permitiu a conquista de seu povo con-
sistia em uma dura realidade. Era um poderoso lembrete de que a pessoa,
a vontade e as exigências de Deus não deveríam ser tratadas de modo
leviano. As consequências disso são muito consideráveis. A alegria do
novo êxodo, o retorno do cativeiro, deu uma nova percepção para a fide-
lidade, misericórdia e o poder do Senhor. Os escritos intertestamentários
enfatizam a ternura de Deus, sua paternidade em relação à nação;4 há até
uma tendência de personificar a benignidade de Deus como ele mesmo.‘1
Ao lado desse desenvolvimento estava a discussão intensificada sobre o
conceito de providência divina; rejeitado pelos saduceus, o conceito era

4 P. ex., “E o Senhor se regozijará com seus filhos; ele se comprazerá em seus


amados para sempre” (Testamento de Levi 18.13).
‫ י׳‬A palavra hebraica besed normalmente é traduzida por “benignidade” ou “mise-
ricórdia”. Bonsirven diz que a palavra é “às vezes apresentada como um nome
divino” (PalestinianJudaism, p. 18). Na verdade, ela conota a extensão do amor e
da misericórdia divinas por causa de sua natureza e da aliança com o povo.
290

mantido com firmeza pelos essênios e sectários de Qumran. O conceito


dos fariseus ficava em algum lugar entre as duas posições distintas.
Um efeito concreto do cativeiro e da restauração foi o da mudança
de ênfase que levou mais a sério o estudo da lei e da obediência a ela. A
vontade de Deus e as instruções reveladas não deveríam ser tratadas com
brincadeira. Havia cada vez mais esforços para agradar a Deus com a ob-
servância cuidadosa de formas, cerimônias e comportamentos prescritos,
e para lembrar de seus papéis como legislador e juiz.
Também se deve notar que os judeus que retornaram da vida passada
em meio às culturas pagãs tinham maior aversão à idolatria e a tudo que
dizia respeito a ela. Em bora alguns indivíduos e provavelmente grupos
posteriores se sentissem atraídos por várias religiões e práticas pagãs,
parece que isso nunca mais ameaçou se tornar a política nacional, como
ocorreu no tempo da monarquia. Judite, a heroína intertestamentária, disse:
“Nas nossas tribos, ou famílias, não há ninguém que, hoje em dia, esteja
adorando ou há pouco tenha adorado deuses feitos por mãos humanas.
Antigamente, os nossos antepassados fizeram isso, e foi por esse motivo
que Deus deixou que os inimigos os matassem e levassem embora tudo
o que eles tinham. Foi uma grande desgraça” (Judite 8.18-20, NTLH-P).
Contudo, estudiosos modernos mencionam algumas vezes que ainda
ocorreu um distanciamento maior entre Deus e seu povo no pensamento
intertestamentário: “ Houve uma ênfase maior em Deus como transcen-
dente e o ‘totalmente outro’ ” .fi Isso teve efeitos maiores em todos os
aspectos da vida judia intertestamentária.
A segunda influência sobre os judeus era a apresentação helenística
de um modo de pensar completamente novo. Isso incluía abordagens
especulativas em discussões sobre a deidade. O judaísmo helenístico
adaptou algumas delas. Partes das obras de Fílon são apenas um exemplo.
Um exemplo mais influente é o tratamento na Septuaginta de passagens
relacionadas a Deus. A tradução, em geral, fez adaptações às sensibilida-
des do mundo grego, como, por exemplo, o conceito grego da deidade.
A mais óbvia é a suavização ou eliminação da linguagem antropomórfica
a respeito de Deus.76

6 Bruce, “Inter-testamental Literature”, p. 88-9.


Os exemplos são numerosos: o texto massorético de Gn 5.22,24 diz: “Enoque
andou com Deus”; a Septuaginta·. “Enoque se comprazia em Deus”; o hebraico
de Jz 18.6: “Vá em paz. A missão na qual você se encontra está sob os olhos do
291

A terceira foi evitar a palavra Deus. Os escritores intertestamentários


empregavam circunlóquios, uma forma indireta de se referir a ele. Ex-
pressões como “o Deus do céu”, “os céus”, “o poder” e “o Bendito” são
comuns nos escritos do período. Particularmente se esquivavam do uso do
nome pessoal mais sagrado. Eram cada vez mais procurados substitutos
para YHWH (o tetragrama fas quatro letras] = Yahweh).Adonai (Senhor)
começou a ser usado em lugar do nome sagrado em leituras públicas das
Escrituras. Sacerdotes resmungavam ou engoliam esse nome nas orações
e bênçãos no templo. Os targumim aramaicos trocaram-no por Memra
(Palavra). A Septuaginta traduziu-o por Kyrios (Senhor), a forma usada em
citações do AT no NT. O Talmude e outras fontes rabínicas indicam que,
na época da morte de Simão, o Justo, (c. 200 a.C.) o nome divino (YHWH)
não era mais pronunciado, exceto pelo sumo sacerdote no Yom Kippur.
E quase certo que isso foi a culminação de um longo processo em que o
uso do nome foi progressivamente se tornando restrito.
Havia provavelmente duas preocupações por trás desse desenvolví-
mento. Primeira, o cercado ao redor do terceiro mandamento restringia o
uso do nome — um m odo de protegê-lo contra o uso indevido era evitar
o uso em absoluto. Segunda, o aumento do contato com o helenismo e
outras formas de paganismo provavelmente fez o uso do nome pessoal
de Deus parecer muito materialista, como se o arrastasse para o nível das
supostas deidades de outras religiões. Qualquer que tenha sido a razão, o
resultado aumentou a distância entre Israel e seu Deus. Pois, como regra,
chamar alguém por apenas um termo ou título genérico normalmente
leva à despersonalização subconsciente do indivíduo.

V isão de m u n d o

Uma consequência natural da crença hebraica na existência de Deus é


a presença e a atividade dele na história e no mundo material, bem como
além dele. Daí advém o entendimento geral sobre como Deus se relacio-
na com o universo e como o universo deve operar. Eis o que chamamos
visão de mundo, um modo de observar a realidade e explicá-la — como
e quando as coisas acontecem. Em bora os autores bíblicos tenham uma
visão de mundo distinta, em parte alguma ela é apresentada de forma
explícita. N o entanto, ela controla o pensamento e os escritos religiosos.

Senhor ”; a Septuaginta: “Vá em paz; o seu caminho, pelo qual você vai, está diante
do Senhor”.
292

A p artir das in fo rm açõ es dos escritores, p o d e m o s re c o n stru ir o co n to rn o


geral de um a visão d e m u n d o de q u atro fases.
Fase 1: Criação. O m u n d o veio a exisdr pela vo ntad e, ação e poder
de D eus. O s au to res bíblicos co n cen tram -se n o fato, n ão n o m éto d o , da
criação, g u ard an d o o registro d e q u e D e u s falou e o m u n d o foi criado.
Isso significa que, p ara o escritor, o universo n ão é ete rn o ; ele é separado
(distinto) de D eu s, m as n ão in d e p e n d e n te dele.
A Bíblia tam b ém afirm a que D eu s criou o m u n d o “ b o m ” . N ã o sa-
bem os as im plicações plenas dessa palavra. Sem dyvida significa que o
universo foi feito em u m a co n d ição m o ralm en te perfeita, para um propó-
sito digno, e co m h arm o n ia e o rd em inerentes (de aco rd o com um plano).
A o rd em criada foi feita p ara fu ncionar so b o co n tro le de D eus, seu rei.
D eus, acreditam o s escritores, ainda está intim am en te envolvido n o sen-
tido de dirigir o universo q u e ele criou. C o m o consequência, a n o ção do
Reino de D eus — seu co n tro le so b eran o so b re todas as coisas — é parte
inseparável d o e n te n d im e n to bíblico da criação.
Fase 2: A queda. O s seres h u m an o s se rebelaram co n tra as regras de
D eus ao lhe d esobedecerem ; essa traição espiritual é cham ada pecado. A
hum anidade e D eus foram afetados; a natureza m oral de D eus foi ofendida,
a natureza h u m a n a e o estad o h u m a n o fo ram alterados. D e algum m odo
não explicado pelos au to res bíblicos, o pecad o h u m a n o abriu o cam inho
para a invasão e o co n tro le d o m u n d o p elo p o d e r m aligno hostil a D eus
e às vezes ch am ad o de rein o de Satanás o u d o mal.
O pecad o resu lto u n o ro m p im e n to d e to d o s os relacionam entos. Por
causa disso, o s seres h u m an o s estão separados e alienados de D eus, uns
dos o u tro s, da sociedade e até de si m esm os. O universo se to rn o u apa-
ren tem en te m al, desprov id o de p ro p ó sito e sem h a rm o n ia / A estrutura
m oral dos seres h u m an o s foi m udada: a p esso a n ão apenas peca, isto é,
com ete atos pecam inosos, m as tam b ém é pecadora, o u seja, tem a natureza
pecam inosa. O s resultados e as consequências d o pecado são extensos. Os
seres h u m an o s vivem n o u niverso q u e se to rn o u m o ralm ente corrom pí-
do, e eles fazem p a rte da contam inação. A h u m anidade é culpada diante
de D eus e passível de punição. A punição final é a “ m o rte ” , term o com
im plicações m orais, espirituais e eternas, b e m co m o físicas e tem porais. 8

8 A palavra aparentementeé fundamental aqui. O texto de Rm 8.20 insiste que o mundo


se tornou “inútil” (NTLH), com tudo o que isso implica. Assim, o presente estado
lamentável do universo resulta do pecado, não é parte de sua natureza inerente.
293

O pecado, acreditam os autores da Bíblia, deixa a raça humana impotente


para alterar sua situação e condição; ela é incapaz de retomar a posição e
natureza perdidas, ou até mesmo de fazer qualquer coisa que contribua
para a própria restauração e salvação.
Fase 3: Regeneração (reconciliação, redenção ou restauração). Deus tomou me-
didas para reivindicar e restaurar a criação rebelde e arruinada, para inverter
as presentes condições causadas pelo pecado. Esse período — a principal
preocupação dos escritores bíblicos — corresponde aproximadamente à
história humana. Por meio de sua obra redentora e restauradora, Deus
está intimamente comprometido a fazer o que a impotência humana não
pode; ele coloca a salvação à disposição de todos. É importante notar
que a visão bíblica pressupõe que Deus tomou a iniciativa e realizou o
necessário para efetuar a reconciliação.
A visão de mundo dos hebreus, então, inclui a convicção de que as
atividades divinas não se restringem à esfera espiritual, mas estão presentes
aqui na terra também. A fase de restauração implica uma série de acon-
tecimentos e temas às vezes aparentemente desvinculados que, de fato,
constituem o drama que se desenrola na história e além dela. Os escritores
bíblicos também estão convencidos de que Deus trabalha em uma história
especial dentro da história do mundo. Essa ideia é evidente na profecia
de Miqueias; ele fala para Israel se lembrar dos acontecimentos históricos
do AT para “reconhefcer] que os atos do S e n h o r são justos” (Mq 6.5 b \
v. tb. Ê x 33.13; 34.10; ISm 12.6,7). Ele tem em mente os acontecimen-
tos terrenos por meio dos quais Deus age para revelar a si mesmo e sua
vontade, prover salvação, chamar pessoas para si mesmo e viver em um
relacionamento com elas. O s estudiosos contemporâneos denominam
essa história dentro da história “história da salvação”, “história salvífica”,
“história redentora” e outros termos similares (tentativas de captar o sig-
nificado do termo alemão Heilsgeschichte).
A visão de mundo intertestamentária também sustentava a crença em
duas eras distintas no período dc redenção.9 Enquanto que documentos
9 Oscar Cullmann, Cristo eo tempo‫׳‬, tempo e história no cristianismo primitivo (São Paulo:
Custom, 2003), argumenta que o mundo hebraico parece enxergar o tempo dc forma
linear, como algo que avança do começo ao ponto final. O livro pressupõe que Deus
trabalha para levar o tempo ao propósito e à conclusão designados. Portanto, a salva-
ção envolve libertação no tempo e no mundo. Segundo Cullmann, isso contrapõe a
compreensão sustentada pelo mundo grego, que parece considerar o tempo cíclico;
como consequência, a salvação envolvia libertação do tempo e do mundo.
294

intertestamcntários apresentam numerosas visões dessa dicotomia, uma


das expressões mais claras é a de 2Esdras 6.6,7, texto em que se lê “Deus”
dizendo: “O fim deve vir por mim e não por outro”. Esdras, então, per-
gunta: “O que será o divisor dos tempos? Ou quando será o fim da pri-
meira era e o começo da era que se segue?”.10 Acredita-se que essas eras
ocorrerão no período da redenção (v. Figura 6).
A era passada, iniciada após a queda, foi um tempo de preparação para
algo esperado no futuro e seu prenuncio. Nessa era, a obra de Deus se deu
principalmente por meio de recursos e símbolos in4iretos. Sua atividade
salvadora se concentrou na nação de Israel e aconteceu principalmente
na história dessa nação.
Esperava-se que a era passada chegasse ao fim com a intervenção
direta e especial de Deus na história. Alguns pensavam que a passagem
de uma era para outra viria quando o próprio Deus entrasse na história;

A visão do tempo de Cullmann e sua suposição de que a salvação ocorre no


mundo material foram discutidas de forma veemente; cf. James Barr, Biblical
Wordsfor Time (Naperville, 111.: Allenson, 1962); e Rudolf Bultmann, “The New
Testament and Mythology”, em The New Testament and Mythology and Other Basic
Writings, trad. Schubert M. Ogden (Philadelphia: Fortress, 1984), p. 1-43. V. tb.,
de Bultmann, “History of Salvation and History”, em Existence and Faith, trad.
Schubert M. Ogden (New York: Meridian, 1960), p. 226-40.
111V. tb. 7.3-44,113; 8.1. Observamos antes que o conceito de duas eras aparece
no pensamento dos escritores dos manuscritos do mar Morto (p. 226). Outros
exemplos incluem lEnoque 16.1: “A partir dos dias da matança e destruição, e da
morte dos gigantes e dos seres espirituais do espírito, e da carne, dos quais eles
procederam, que se corromperão sem incorrer julgamento, eles corromperão até
o dia da grande conclusão, até que a grande era seja consümada, até que tudo seja
concluído (sobre) os Vigilantes e sobre os ímpios” (note também a referência ao
“mundo que está para se tornar”, em 71.15); 2Baruque 15.7: “Com respeito aos
justos, aqueles de quem disseste que o mundo havia vindo por causa deles, sim,
aquele que está vindo é por causa deles” (v. tb. 14.13-19); MixnáMra/4.1: “Feliz tu
serás — neste mundo; e tudo irá bem contigo — no mundo que há de vir” (v. tb.
6.4,7). Veja a discussão de Gustaf H. Dalman, The Words of Jesus (F.dinburgh: T.
and T. Clark, 1902), p. 147-56.
O conceito das duas eras é admitido com frequência no NT; p. ex., Mt 12.32;
Mc 1.14,15; 10.30; Rm 8.18. Na epístola aos flebreus, note a tensão entre o que
está aqui agora (em contraste com o AT) — 1.2; 3.18-4.11; 6.4,5; 8.10; 9.11,24-26;
11.39,40 — e o que está por vir, isto é, ainda está no futuro para o autor — 2.8;
9.27,28; 10.12,13,25.
295

outros esperavam a aparição de um agente divino (uma ou mais figuras


messiânicas) por meio do qual ele cumpriría sua vontade. Em todo o caso,
esse momento decisivo, esse ponto de crise, resultaria em uma mudança
radical na história de salvação e na maneira de Deus conduzir suas ativi-
dades redentoras.
A era final era esperada como o último período e a culminação da
luta de Deus contra as forças hostis. Ele derrotaria Satanás e o poder do
mal; reafirmaria seu direito de governar (soberania) o universo. Por meio
dessas ações, a salvação seria disponibilizada, enquanto Deus lidaria de
forma direta e conclusiva com o fato e as consequências do pecado. Assim,
Deus expressaria amor, misericórdia e perdão, bem como vindicaria sua
pessoa e satisfaria sua justiça. (Para obter mais informações sobre a era
final, veja o Capítulo 14.)
Fase 4: Consumação. A era que está por vir é o período final da visão de
mundo bíblica. As condições causadas pela queda serão completamente
invertidas. Na consumação, a comunhão e a harmonia serão restauradas
entre aqueles elementos alienados pela queda. O alvo da obra salvífica,
do perdão e da reconciliação de Deus será, de fato, alcançado. O objetivo
original e final da história se cumprirá quando o governo (reino) de Deus
for restabelecido em sua plenitude e forma mais abrangente.

Figura 6
As fases da história do mundo

Intervenção
de Deus
Fim do mundo
Criação Queda

Mundo
Era passada Era final vindouro

História humana
296

A LEI E AS PRÁTICAS LEGALISTAS

N a essência do judaísmo está a convicção de que Israel é, por elei-


ção, o povo de Deus. Isso foi expresso por meio da aliança de Deus com
Abraão, na qual ele fez sua amorosa e livre escolha por Israel. A aliança
abraâmica (“Estabelecerei a minha aliança [...] para ser o seu Deus e o
Deus dos seus descendentes” — G n 17.7) foi reafirmada por Moisés no
tempo do Êxodo*11 e depois ecoada por todo o AT. A Torá está ligada de
forma inseparável dessa aliança. Por meio dos requisitos da lei, o povo de
Israel era sempre lembrado da inclusão na aliança. A5 guardar a lei, Israel
aceitava a oferta divina graciosa na aliança.
Já vimos que a lei ocupava um lugar significativo na vida e na experiên-
cia do judaísmo intertestamentário. Mas qual é exatamente a relação entre
lei e religião? Qual era a relação entre lei e salvação — a posição favorável
diante de Deus? Mais uma vez, devemos estar atentos ao concluir que havia
uma única visão. Mas talvez seja justo pressupor que havia uma ideia geral,
embora possivelmente vaga, sustentada pela maior parte da população.
Nesse ponto, devemos perguntar sobre o entendimento do judaís-
mo intertestamentário quanto à salvação. O comentário de George Foot
Moore sobre o entendimento do judaísmo rabínico é, em geral, aplicável
ao período anterior também: “ ‘Uma porção no Mundo Vindouro’, que é
no judaísmo rabínico o que mais se aproxima da ideia paulina e cristã de
salvação, ou vida eterna, é, por fim, assegurada a todo israelita em razão da
eleição original do povo pela graça divina, não causada por seus méritos,
coletivos ou individuais, mas apenas pelo amor de Deus, o amor iniciado
com o Pai... ‘Uma porção no Mundo Vindouro’ não. é o salário devido às
obras, mas é outorgado por Deus por pura bondade aos membros do povo
escolhido” .12 Isso não significa que um indivíduo não podia se remover
dessa salvação coletiva; na verdade, o AT e o pensamento que se segue
admitiram que alguns indivíduos fizeram isso. N o entanto, acreditava-se
que a salvação era, como diz Moore, a possessão de todos os verdadeiros
israelitas. Envolvia essa vida bem como a futura.
11 Ex 20.2: “Eu sou o S e n h o r , o teu Deus, que te tirou do Egito, da terra da escra-
vidão.” Note tanto a identificação do próprio Deus com Israel como com sua
provisão de redenção.
11Judaism in the First Centuries of the Christian Era, 3 vols. (Cambridge, Mass.: Harvard
University Press, 1927-1930), vol. 2, p. 94-5; v. tb. idem, “Christian Writers on
Judaism”, Harvard Theological Review 14.3 (July 1921): 199-254.
297

A declaração de M oore enfatizando a graça como a essência do


judaísmo não é o entendimento tradicional do pensamento intertesta-
mentário. Pelo contrário, normalmente pensava-se que tanto o judaísmo
intertestamentário quanto o rabínico eram legalistas por natureza, que eles
buscavam conseguir ou merecer a salvação pela observância meticulosa da
lei. N o rastro de vários escritores sobre o judaísmo que, como ilustrado
por Moore, desafiaram essa avaliação tradicional, Ed P. Sanders liderou
um grupo de estudiosos no final do século XX que propõe uma nova
perspectiva sobre Paulo, a qual é, de fato, uma nova perspectiva sobre o
judaísmo intertestamentário também.1’
Sanders argumenta que é errado pressupor a estrutura legalista para o
judaísmo. Em vez disso, ele argumenta, “o padrão [da religião do judaísmo]
se baseia na eleição e expiação de transgressões, entendendo-se que Deus
outorgou mandamentos em conexão com a eleição e que se esperava que
a obediência a eles, ou a expiação e arrependimento das transgressões,
fosse a condição para permanecer na comunidade da aliança. O melhor
título para esse tipo de religião é “aliancismo” [...] a aliança pela graça
de Deus e a obediência à Torá como resposta adequada do homem na
aliança”.1314Ou, em outras palavras, o judaísmo é uma religião baseada na
graça de Deus expressa pela aliança; a lei “diz respeito a ‘permanecer’ em
vez de ‘entrar’ ” .15
Sanders sustenta sua teoria com um estudo cuidadoso e magistral
dos targumim, da literatura tanaítica, dos manuscritos do mar Morto, dos
apócrifos e dos pseudepígrafos. A resposta adequada a ele envolve a in-
vestigação igualmente completa e análise dessas fontes. Há, entretanto,
algumas razões gerais para questionarmos sua conclusão. Primeira, a
natureza conglomerada do judaísmo intertestamentário leva-nos a estra-
nhar qualquer alegação de que um ponto de vista engloba os outros. Não
havia posição normativa nesse período. Segunda, como ressalta Moore,
os escritos rabínicos evidenciam o mérito como também dá motivos

13 Pauland PalestinianJudaism (Philadelphia: Fortress, 1977); idem, Paul, theLaw, and the
Jewish People (Philadelphia: Fortress, 1983). Uma excelente pesquisa e bibliografia
desse movimento pode ser encontrada em: Donald A. Flagner, “Paul and Judaism
— The Jewish Matrix o f Early Christianity: Issues in the Current Debate”, Bulletin
for Biblical Research 3 (1993): 111 -30.
14 Sanders, PalestinianJudaism, p. 236, 420.
15 Hagner, “Paul and Judaism”, p. 118.
298

mais elevados para a observância da lei. Havia também a crença da ne-


cessidadc do acúmulo de tesouro para o futuro por meio de boas obras
no presente: “O judaísmo não hesitava em reconhecer o mérito das boas
obras ou em exortar o homem a adquirir e acumular muito mérito para
o porvir”.16 Essas evidências de que o medo da punição e a esperança de
recompensa motivavam a observância da lei não surgiram do nada no
período posterior a 70 d.C. Elas tinham raízes anteriores.17Terceira, pode
muito bem ter havido uma diferença entre a teoria e a prática de alguns
grupos, como expresso em suas declarações escritas e nas convicções
que de fato impregnavam seu estilo de vida. O s escritos do Qumran, por
exemplo, têm o compromisso positivo com a graça da aliança. Contudo,
0 modo de vida diário da comunidade e a atitude para com os de fora do
grupo deixa aberta a possibilidade de que a religião deles fosse, de fato,
uma que buscasse a salvação pelos esforços humanos. Quarta, esse tipo de
pensamento legalista é encontrado em alguns escritos intertestamentários,
sendo 2Esdras, 2Baruque e provavelmente “Alguns dos Preceitos da Torá”
(4QMMT) os exemplos mais claros.18
Por fim, quem nega uma visão legalista da religião em, pelo menos,
alguns círculos judaicos normalmente desconsidera a fonte com a melhor
declaração que reflete a visão dos judeus comuns, o NT. Nós nos lem-
bramos imediatamente de Paulo e sua constante luta contra o conceito
de salvação adquirida pela observância da lei. O s proponentes da nova
perspectiva sobre Paulo argumentam que, reconhecendo o judaísmo como
religião da graça, ele não condenou a lei como lei, mas, sim, a barreira por*1

16Moore,Judaism, 2:90. V. tb. p. 89-111 e Emil Schürcr, The'Histoiy of theJewish People


in the Age of Jesus Christ, Geza Vermes et al. (orgs.), 3 vols. (Edinburgh: T. and T.
Clark, 1973-1987), vol. 2, p. 464-7.
1 P. ex., Tobias 4.8-11: “Dê esmolas de acordo com o que você tiver: se tiver muito,
dê muito; se tiver pouco, mesmo assim não pense antes de dar esse pouco. Assim,
você ajuntando riquezas para usar no dia da necessidade. Pois as esmolas salvam
a pessoa da morte [...] Dar uma esmola é o mesmo que fazer uma oferta que o
Deus Altíssimo aceita”; e o Testamento de Levi 13.5: “Portanto, meus filhos, façam
justiça na terra a fim de poder encontrá-la no céu”.
|>‫ י‬Até mesmo Sanders, em PalestinianJudaism, p. 409-18, parece reconhecer isso. A
segunda coluna de 4QMMT diz em parte: “... Vocês podem se regozijar com o
fim dos tempos, descobrindo que algumas de nossas práticas estão corretas. E isso
será considerado uma obra virtuosa de vocês, uma vez que farão o que é justo e
bom aos olhos do Senhor, para o próprio bem-estar e para o bem-estar de Israel”.
299

ela erigida entre cristãos judeus e gentios e todas as tentativas de impô-la


aos cristãos gentios. Contudo, devemos ressaltar, o próprio Paulo disse
que Israel “não a buscava [a justiça] pela fé, mas como se fosse por obras”
(Rm 9.32). Ele também insistiu que não somos justificados “pela prática
da Lei, porque pela prática da Lei ninguém será justificado” (G1 2.16).
Evidências desses sentimentos cm Paulo poderíam ser multiplicados.
Obviamente, ele estava convencido de que alguns judeus procuravam a
justificação pelas obras.
Também há evidências nos evangelhos de que, pelo menos, alguns
em Israel apegavam-se à teoria retributiva da justiça, o conceito de que se
obtém a vida eterna com base na fidelidade à lei e sua guarda. Esse é um
assunto que Jesus, não menos que Paulo, precisou enfrentar. Note a questão
importante no diálogo com o jovem em Marcos 10.17: “Bom mestre, que
farei para herdar a vida eterna?”. De igual modo, quando Jesus falou em
trabalhar “pela comida que permanece para a vida eterna” , a multidão per-
guntou: “O que precisamos fazer para realizar as obras que Deus requer?”
(Jo 6.27,28). Na parábola do filho pródigo, o irmão mais velho, que pode
representar o modo farisaico de observar as coisas, espera aceitação com
base no que diz: “Todos esses anos tenho trabalhado como um escravo
ao teu serviço e nunca desobedecí às tuas ordens” (Lc 15.29). E a pará-
bola do publicano e do fariseu estava voltada para os “que confiavam em
sua própria justiça c desprezavam os outros” (Lc 18.9). Esses exemplos
são evidências de, pelo menos, um ethos legalista. Isso é provavelmente
inevitável em qualquer religião cuja principal preocupação é a ortopraxia.
Apesar disso, parece plausível que ainda mais esteja envolvido aqui.
É certo que na declaração formativa teórica do AT, a religião hebraica
era, em essência, uma religião da graça, e que a guarda da Torá objetivava
responder à graciosa oferta de Deus pela aliança. Esse entendimento era,
sem dúvida, parte dp pensamento religioso judaico intertestamentário.1'1
Mas também é verdade que o judaísmo intertestamentário era caracterizado19

19 Note a declaração em Salmos de Salomão 9.8-11: “E agora, tu és Deus c nós somos


o povo a quem amaste; olha e sê compassivo, ó Deus de Israel, pois somos teus,
e não tires tua misericórdia de nós, para que eles não se ponham sobre nós. Pois
escolheste os descendentes de Abraão acima de todas as nações, e puseste teu
nome sobre nós, Senhor, e ele não cessará, para sempre. Fizeste uma aliança com
nossos ancestrais a nosso respeito, e esperamos em ti ao voltarmos a alma em tua
direção. Que a misericórdia do Senhor esteja sobre a casa de Israel para todo o
sempre”.
300

pelo foco cada vez maior no cumprimento da lei, e que a leitura, o apren-
dizado e a discussão da lei se tornavam partes ainda maiores dos deveres
religiosos dos judeus comuns. Nessa situação, tornou-se difícil observar a
perspecdva apropriada na relação entre a graça divina na aliança e a obser-
vância da lei. A relação entre as duas podia ser invertida com facilidade e
a lei ser vista como algo precedente, o meio para obter e também manter
a graça da aliança. É muito provável que essa seja a situação precisa que
Paulo discute em Gálatas 3.17: “A Lei, que veio quatrocentos e trinta anos
depois, não anula a aliança previamente estabelecida*por Deus, de modo
que venha a invalidar a promessa”.
Quanto tomamos conhecimento das visões religiosas às quais os
autores do N T procuram se opor e das várias declarações dos escritos
intertestamentários e rabínicos, vemos uma imagem muito diferente da
proposta por Sanders. Mas uma consideração é a provável diferença entre
as crenças das pessoas comuns, por um lado, e as dos teólogos, rabinos
e escribas, por outro, mais propensas a estarem refletidas nas fontes que
perduraram. Em suma, embora no AT e no ideal do judaísmo intertesta-
mentário a lei permaneça como resposta à graça da aliança, para muitos,
em especial os judeus comuns, a observância da lei se tornou a essência da
religião hebraica. O zelo equivocado levou alguns a confiar apenas nas ob-
servâncias externas para obter salvação. Outros provavelmente confiaram
nas práticas como meio de adquirir mérito sem entendê-lo com clareza.20
Como eloquentemente atesta a história do cristianismo, o judaísmo não
seria a única religião em que a relação entre lei e graça foi mal entendida
por uma parte considerável dos leigos e alguns dos líderes.21

211E gratificante encontrar cm essência a mesma reconstrução proposta de maneira


mais eloquente por meu respeitado amigo Don Hagncr, “Paul e Judaism”, 117:
“No período pós-exílico, começando com o prototípico escriba Esdras, houve a
volta à lei com um novo grau de comprometimento. N o novo desenvolvimento,
que constitui o início do judaísmo, não causa surpresa a lei assumir a importância
central. O judaísmo se encontra, de forma natural, em continuidade com o AT e
a graça não era necessariamente oeluída pela ênfase intensificada na lei. Mas me
parece provável seu ofuscamento pela ênfase na lei.
“É bom perguntar até que ponto os rabinos ou protorrabinos do século I pre-
sumiram e articularam o caráter fundamental da graça para a religião de seus
antepassados do AT”.
21 O chamado para aceitar a graça requer o reconhecimento de que o ser humano é
incapaz de contribuir para a salvação, e contraria a corrente do “posso fazer”, o
301

Atitu d es particularistas , elitistas

Atitudes crescentes de particularism(), exclusivismo e superioridade


eram mudanças de ênfase encontradas entre os reajustes no período in-
tertestamentário (p. 131—32). Aqui precisamos salientar que havia apenas
um pequeno passo entre o conceito de Israel como escolhido do S en h o r ,
seu tesouro especial (Gn 12.1-3; Êx 19.5; D t 7.6; 14.2), e a noção de que
Israel era a única preocupação dele. Esse aspecto do pensamento reli-
gioso intertestamentário era mais característico do judaísmo semita que
do helenístico. Para os comprometidos com ele, conscientemente ou de
outra forma, o resultado era a separação e o isolamento cada vez maio-
res de outros grupos, conceitos de superioridade e zelo para proteger o
privilégio judaico.
Entre as consequências mais óbvias estava a atitude para com os gen-
tios. A experiência de Israel com os gentios ao longo desse período sem
dúvida intensificou sentimentos negativos em relação aos estrangeiros.
Três observações gerais são pertinentes aqui: 1) A aütude elitista e parti-
cularista era parte significativa do pensamento religioso de alguns grupos
intertestamentários; religião e nacionalismo normalmente estavam unidos.
2) Todos os grupos judaicos mantinham posturas próprias para com as
relações entre gentios e judeus. Em alguns casos, a atitude dependia da
classe particular dos gentios em vista. 3) N a terra de Israel cm especial,
essas questões poderíam se tornar problemas bastante emocionais, levando
até à violência (veja o Capítulo 18 para obter mais detalhes).

Im ortalidade e ressurreição

Uma vez mais voltamos ao significado preciso de “salvação” no ju-


daísmo intertestamentário. O termo podia fazer referência a uma estrutura
deste mundo quanto a uma de outro mundo. Isso, não raro, se concentrava
na esperança da libertação racial e nacional da opressão dos inimigos. Às
vezes era combinada com a esperança do fervor religioso maior, como
se vê na oração de Zacarias, pai de João Batista (Lc 1.73-75). A salvação
também podia significar libertação de perigo, doença ou morte.
O lado da salvação de um outro mundo, futurista, era a antecipação
da aceitação na presença de Deus. Uma expressão comum aqui era, como

ponto dc vista de muitos, em especial no mundo ocidental. Ter que aceitar a graça
é uma experiência humilhante.
302

observou Moore, “uma porção no Mundo Vindouro”. O Testamento de


Benjamim 10.6-9 procura esse tempo em que “nos prostraremos diante
do rei celestial” . Vindicações, recompensas para os bons e punições para
os maus faziam parte da expectativa de salvação. De particular interesse
era a inclusão do justo no Reino de Deus. “Reino” carregava a conotação
do governo de Deus presente agora, também apontava para o domínio
além da história. Muitos esperavam que, pelo menos na fase posterior, a
nação de Israel desempenhasse o papel proeminente e recebesse honra e
glória como o povo do Rei. No período intertestaméhtário, então, muitos
entendiam que a salvação incluía imortalidade e ressurreição.
O conceito de imortalidade está presente no AT, mas não há palavra
hebraica para ele. Por exemplo, Provérbios 12.28 diz: “Na vereda da justiça
está a vida, e no caminho da sua carreira não há m orte” (ACF); a expres-
são “não há m orte” (al-mãwel) significa “imortalidade” (na versão NIV,
em inglês, aparece a tradução equivalente, “immortality”). Deuteronômio,
de igual modo, ordena a retidão, para que “seus dias se prolonguem na
terra” (Dt 5.33; 11.9; 30.20; 32.47). O termo Sheol, que ocorre 65 vezes
ao longo do AT, refere-se a um lugar obscuro, sombrio e tenebroso de
existência e esquecimento após a morte. Entretanto, alguns autores ex-
pressam esperança de libertação do Sheol (SI 16.10; 49.15; 86.13).22 O texto
de Jó 10.20-22 antecipa apenas o estado similar ao Sheol depois da morte,
mas o texto de 19.25, 26 parece procurar algo mais. Enquanto a profecia
de Isaías pode acabar com a vaga expectativa de existência contínua do
bem e do mal (Is 66.22-24; cf. SI 23.6), há expressões muito mais claras
em Isaías 26.19 (“Mas os teus mortos viverão; seus corpos ressuscitarão.
Vocês, que voltaram ao pó, acordem e cantem de alegria... A terra dará à
luz os seus m ortos”) e em Daniel 12.2 (“Multidões que dormem no pó
da terra acordarão: uns para a vida eterna, outros para a vergonha, para
o desprezo eterno”).23
N o judaísmo intertestamentário a situação era muito diferente. Vários
textos pseudepigráficos expressam de forma direta ou implícita a crença

22Cf. J. A. Balchin, “Life after Death in the Psalms”, 'theological Students Fellowship
Bulletin 29 (Spring 1961): 1-4.
23Note também que Jesus cita Ex 3.6 para respaldar a existência contínua após a
morte (Mt 22.31,32; Mc 12.26,27; Lc 20.37,38).
303

na imortalidade ou ressurreição dos mortos.24Josefo e o N T atestam que


os fariseus criam na ressurreição. Ela era um dos pontos de contenção
entre eles e os saduceus. Josefo parece implicar que os fariseus criam
na imortalidade e na ressurreição do corpo.25 Ele mesmo, no discurso
diante das tropas em Josapata, sustenta a crença na vida após a morte.26
O historiador também registra que, apesar de serem mais fortes o desejo
de liberdade e a morte honrada, a expectativa da imortalidade fazia parte
do apelo de Eleazar, instando os companheiros em Massada a cometer
suicídio, em vez de cair nas mãos dos romanos.2
O judaísmo intertestamentário contava com uma série de visões diver-
sas quanto ao que realmente implicava a vida após a morte:281) a recorda-
ção posterior das virtudes de uma boa pessoa;292) a sobrevivência da alma,
em especial da alma dos justos, que se encontra nas mãos de Deus para

24 P. ex., lEnoque 51.1,2: “Naqueles dias, o Sheol retornará todos os depósitos re-
cebidos e o inferno devolverá todos os que possui. Ele escolherá os justos e os
santos dentre (os mortos ressurretos), pois chegou o dia em que serão seleciona-
dos e salvos”; Salmos de Salomão 3.12: “Aqueles que temem o Senhor se erguerão
para a vida eterna, e sua vida será à vista do Senhor, e nunca findará”; 14.1-3: “O
Senhor é fiel [...] àqueles que vivem na retidão de seus mandamentos, na Lei, que
ele ordenou para nossa vida. O devoto do Senhor viverá por ela para sempre”;
2Esdrasl .32: “A terra cederá os que dormem nela; e o pó, os que descansam nele
cm silencio; c as câmaras entregarão as almas que estão em sua posse”; o Testamento
deJudá 25.4: “E os que morreram na aflição serão levantados na alegria; e os que
morreram [...] por causa do Senhor serão despertados para a vida”; o Testamento
de Benjamim 10.6-9: “E, então, vocês verão Enoque e Sete e Abraão e Isaque e
Jacó sendo levantados à direita com grande alegria. Depois também seremos le-
vantados, cada um de nós dentre nossas tribos, e nos prostraremos diante do Rei
celestial. Então todos serão transformados, alguns destinados para glória, outros
para desonra, pois o Senhor primeiro julga Israel pelos erros que cometeu e depois
fará o mesmo com todas as nações”; além disso, 2Baruque 50.1— 51.6 registra um
discurso detalhado sobre a ressurreição do corpo.
25Antiquities 18.1.3 (14);Jewish War2.8.14 (163).
26Jewish War 3.8.5 (374).'
27Jewish War 7.8.6 (323-88).
28 O que se segue é uma síntese de F. F. Bruce, “Paul on Immortality”, ScottishJournal
of Theology 24.4 (November 1971): 458-61; v. tb. idem, “Inter-testamental Litera-
ture”, p.97-8.
29 Eclesiástico 44— 50.
304

que nenhum mal lhe sobrevenha;30 3) a ressurreição do corpo enquanto


estava na terra (os membros mutilados no martírio seriam restaurados);31
4) a supremacia da justa razão sobre a dor e a morte físicas (usando a
linguagem do estoicismo);32 5) o fogo da geena não apenas para punir os
ímpios, mas também para purgá-los a fim de que possam, por fim, entrar
no paraíso (essa visão parece ter sido popular no Israel do século I);33
6) a preservação da alma dos mortos em depósitos ou tesourarias entre
a morte e a ressurreição34*e 7) a vida eterna para os justos e a aniquilação
para os ímpios.33N ote que apenas as visões 3) e 5) requerem algum tipo de
ressurreição do corpo. Não apenas a ressurreição, mas se espera o corpo
imutável em 2Baruque 50.2, 3: “A terra certamente devolverá os mortos
naquele tempo; ela os recebe agora para guardá-los, sem mudar nada em
sua forma. Mas, como os recebeu, também os devolverá. E, como eu
os entreguei a ela, assim ela os levantará. Porque então será necessário
mostrar aos vivos que os mortos vivem de novo, e os que se foram estão
voltando”. Outras descrições enfatizam que o corpo ressurreto do justo
será radiante e glorificado no Reino futuro.36

30Sabedoria de Salomão 3.1-9.


31 2Macabeus 7.10,11.
324Macabeus 5.14-38.
33 Talmude babilônico Rosh hashanah 16b.
342Esdras 7.32, 75-101; 2Baruque 21.23; 30.2.
33 O Manuscrito de Salmos (1QH 11) da seita de Qumran: “Tu [...] diriges meus pas-
sos nos caminhos da retidão para que eu possa andar diante de ti na terra [dos
vivos], nos caminhos de glória c [infinita] paz que [nunca] acabarão”, e o Manual
de disciplina (1QS 4): “Todos os que andam em espírito [...] [terão] bênção perene
e alegria eterna na vida sem fim, uma coroa de glória e um manto de majestade
na luz infindável”. Cf. The Dead Sea Scrolls in English, trad. Geza Vermes (org.),
3. ed. (New York: Viking Penguin, 1990), p. 55-6; Millar Burrows, Burrows on the
Dead Sea Scrolls (Grand Rapids: Baker, 1978), p. 344-7; George W. PI Nickelsburg,
Resurrection, Immortality, and EternalLife in IntertestamentalJudaism (Cambridge, Mass.:
Harvard University Press, 1972), p. 144-59,165-7.
36P. ex., Salmos de Salomão 3.12: “O s tementes ao Senhor se erguerão para a vida
eterna, e sua vida será à vista do Senhor, e nunca findará”; e 14.3-5: “O devoto do
Senhor viverá por ela |pela I .ei | para sempre; o paraíso do Senhor, as árvores da
vida são seus devotos. A plantação deles está firmemente enraizada para sempre;
eles não serão desarraigados enquanto os céus durarem, pois Israel é a porção e
a herança de Deus”. V. tb. 2Esdras 7.97.
305

Havia provavelmente várias razões para a consciência crescente da vida


após a morte e o interesse nessa vida no judaísmo intertestamentário. A
mencionada com mais frequência é a de que em tempos de perseguição,
em especial da perseguição de Antíoco Epifânio em diante, não se podería
esperar a vida longa como recompensa para a justiça; os devotos podiam
muito bem sofrer o martírio precoce e violento. Sob tais circunstâncias
ninguém queria contemplar a existência sombria no Sheol vago; portanto,
a esperança de ressurreição entrou em foco de forma mais acentuada. A
evidência mais clara é encontrada cm 2Macabeus 7, passagem em que sete
irmãos mártires e sua mãe afirmam a crença inabalável na ressurreição
(v. 9,11,14,23,29,36). Mais tarde, Judas Macabeu fez uma coleta para uma
oferta pelo pecado para os soldados mortos, sobre cujos corpos foram
encontrados fetiches pagãos. Ele fez isso porque “cria na ressurreição dos
mortos. Pois, se ele não esperasse que os mortos vão ressuscitar, orar a
favor deles seria uma tolice sem valor” (2Macabeus 12.43^,44).
Mas a razão para o desenvolvimento da crença na vida após a morte
era mais complicada que a simples reação à perseguição aos judeus pelos
forasteiros. Uma variedade de situações incitou escritores apocalípticos
a se focarem na vida após a morte.37 N o livro Resurrection, Immortality, and
Eternal Life in IntertestamentalJudaism, George Nickelsburg estuda com
cuidado textos relevantes e conclui que as crenças sobre a vida após a
morte são transmitidas em sentido primário por três estruturas: “a his-
tória do Homem Justo”, “a cena do julgamento” e “a teologia dos dois
caminhos”. Nessas estruturas, temas proeminentes como a vindicação
dos justos e a punição dos injustos dão certeza aos retos e promovem o
comportamento moral.
Nos tempos do NT, a crença na imortalidade e em alguma forma de
ressurreição parece ter sido aceita pela maioria dos grupos judeus (exceto os
saduceus) e pelos judçus comuns. Normalmentc acreditava-se que todos os
israelitas participariam, de alguma forma, do Reino de Deus. Portanto, a se-
gunda petição da oração diária (as Dezoito bênçãos) termina assim: “Bendito
és tu, ó Senhor, que trazes os m ortos à vida”. E claro que a imortalidade
e a ressurreição estavam entre os componentes do pensamento religioso
intertestamentário.

’ D. S. Russell, The MethodandMessage ofJewishApocalyptic{Philadelphia: Westminster,


1964), p. 357-90.
14

A era final

• Uma palavra sobre escatologia


• A era final: visão geral
• Acontecimentos preliminares
• A natureza da era final
• Os acontecimentos da era final
• A cronologia da era final
• A era final no pensamento cristão

O s capítulos seguintes tratam de cinco temas fundamentais do pen-


sarnento religioso do judaísmo intertestamentário: a era final, o Reino dc
Deus, a esperança messiânica, a aliança e a lei na era final, e os gentios.
Veremos que, por trás desses e de todos os outros aspectos do pensamento
judaico intertestamentário, encontram-se as premissas da visão dc mundo
descritas no capítulo anterior. O s temas dizem respeito aos atos finais do
drama do tratamento de Deus com a criação.
O capítulo “A efa final” observa de forma mais cuidadosa o que o
judaísmo intertestamentário cria ser a última fase da história humana e
da salvação. Esperava-se que a era chegasse com a vinda do Reino de
Deus (Capítulo 15) ou do Messias (Capítulo 16). Além disso, devemos
considerar o efeito esperado da chegada da era final sobre a aliança e a lei
(Capítulo 17), as quais, com o monoteísmo, eram os pilares do judaísmo.
O último capítulo procura reunir os principais elementos das atitudes
do judaísmo intertestamentário a respeito dos não judeus, incluindo as
expectativas sobre o destino dos gentios na era final e na consumação.
308

Os cinco tópicos escolhidos integram a escatologia judaica e têm


importância singular para o leitor do NT. A aceitação de Jesus como
Messias significava que os escritores do N T criam que a situação religiosa
diferia do ponto de vista de seus contemporâneos. O surgimento de Jesus
alterou a forma como os primeiros cristãos judeus consideravam quase
todas as partes da herança judaica. Eles criam que a era escatológica havia
começado. Não surpreende, então, que os cinco tópicos discutidos no
restante deste livro abranjam a maioria das questões enfrentadas pelos
primeiros cristãos.

Uma palavra sobre escatologia

Na introdução, buscamos esclarecer a palavra escatologia. Enfatizamos


que ela pode ter outros significados alcm da crença nos eventos esperados
na volta de Cristo, o fim da história e do mundo. “Escatologia” pode im-
pücar “o padrão recorrente de interação de julgamento e redenção divinos
até o alcance de sua manifestação definitiva. A escatologia pode, portanto,
denotar a consumação do propósito divino, quer ela coincida com o fim
do mundo (ou da história) ou não, cjuer a consumação seja totalmente final
ou marque uma etapa no padrão de desdobramento de seu propósito”.1
Quando usarmos o termo, estaremos nos referindo à era final e além, ao
fim da obra divina de redenção. Assim, a expressão “escatologia judaica
intertestamentária” se referirá ao que se cria sobre temas como a era final,
a consumação e a eternidade; a “era escatológica” será referência à era
final ou consumação. “Figura escatológica” denota alguém que surge na
era escatológica e tem uma função específica nela,
E particularmente difícil oferecer uma visão abrangente e precisa
da escatologia judaica intertestamentária. As fontes antigas não apre-
sentam descrições sistemáticas dos pontos de vista dos escritores, que
assumiram várias formas. Por exemplo, havia o modelo nacionalista
de escatologia centrada na libertação e glorificação da nação. Outros
modelos concentravam-se em fatores religiosos, sociológicos, econômicos,
apocalípticos ou legalistas que esperavam ser afetados de modo radical
na era final.
Os escritores normalmente discutem acontecimentos isolados ou ape-
nas partes limitadas do drama final. Portanto, a sequência cronológica entre

1 F. F. Bruce, “Eschatology”, cm Evangelical Dictionary of Theology. Walter A. Elwell


(org.). Grand Rapids: Baker, 1984, p. 362.
309

os eventos muitas vezes não está clara, e diferentes escritos apresentam


sequências cronológicas diferentes. Alguns dos livros antigos combinam
materiais de vários escritores, datas e locais. Como consequência, o mes-
mo livro pode refletir perspecdvas escatológicas diferentes, até mesmo
contraditórias. E o caso de lEnoque.
Alguns escritores contemporâneos, que procuram descrever as visões
escatológicas da época de Jesus, conscientemente expõem o pensamento
do judaísmo rabínico.2*Como resultado, algumas considerações ou ênfa-
ses rabínicas distintas podem ser confundidas com descrições precisas
da situação anterior a 70 d.C.’ N o entanto, com as devidas restrições,
o material rabínico merece lugar próprio no estudo do judaísmo inter-
testamentário. O s estudos modernos que buscam a escatologia judaica
distintamente intertestâmentária têm sido capazes de identificar o núcleo
comum, os padrões principais e alguns detalhes. Essas são informações
úteis. N o entanto, não se deve permitir que elas obscureçam a variedade
nos conceitos intertestamentários da era final.
Parece que, à medida que o período intertestamentário segue para
o fim, seu pensamento escatológico pode ter começado a assumir um
pouco mais de estrutura e coesão. A escatologia de 2Baruque, 2Esdras e,
possivelmente, dos manuscritos do mar M orto — todos prodecentes de
um pouco antes desse período ou logo após ele — parece indicar isso.
Evidências adicionais de apoio são as visões do período histórico posterior,
o judaísmo rabínico, definidas com mais clareza. Emil Schürer apresenta
uma bom panorama dos principais temas incluídos na escatologia inter-
testamentária:
1. A provação e a confusão finais
2. Elias como precursor
3. A vinda do Messias
4. O último ataque dos poderes hostis

2 P. ex., George Foot Moore, Judaism in the First Centuries of the Christian Era, 3 vols.
(Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1927-1930), vol. 2, p. 279-395;
Joseph Klausner, The Messianic Idea in Israeltrad. W. F. Stinespring (New York:
Macmillan, 1955), p. 388-517. Note que a primeira c a segunda partes da obra de
Klausner tratam do material bíblico e dos apócrifos c pseudepigrafos em separado.
’ Receio que isso ocorra às vezes cm Joseph Bonsirvcn, Palestinian Judaism in the
Time ofJesus Christ, trad. William Wolf (New York: Holt, Rinehart and Winston,
1964), p. 163-251. N o entanto, essa obra ainda é um ponto de partida muito útil
para nossa pesquisa.
310

5. A destruição dos poderes hostis


6. A renovação de Jerusalém
7. O ajuntamento dos dispersos
8. O reino de glória na Terra Santa
9. A renovação do mundo
10. A ressurreição geral
1 1 .0 juízo final, a bênção eterna e o torm ento4

O texto que se segue utiliza material de escritoreS modernos bem como


de antigos.5 Só a pesquisa geral, mais ou menos dependente do padrão
que parece estar por trás de 2Baruque e 2Esdras, é apresentada aqui. Um
procedimento mais preciso, mas com resultados fragmentados, teria sido
usado para descrever a escatologia de cada texto individual.6 Nenhuma
tentativa foi feita para limitar nossas fontes a um período curto ou a grupos
específicos. Como consequência, nós nos depararemos com exceções ao
padrão em quase todos os pontos deste panorama. N o entanto, o quadro
composto pode ajudar o leitor moderno a compreender o teor do pen-
sarnento escatológico dos vários grupos do judaísmo intertestamentário
predominante.

A ERA FINAL: VISÃO GERAL


N o capítulo anterior, apresentamos o conceito geral de duas eras na
história humana. Nossa preocupação aqui é observar com mais detalhes
a segunda das duas eras. Esperava-se que a segunda era chegasse por
meio de alguma forma de intervenção divina, quando Deus irrompería
na história humana de forma única. Assim, ele introduziría uma nova fase
no modo de tratar a humanidade e realizar mudanças radicais na forma
de agir na terra.

4 History of theJewish People in theAge ofJesus Christ, Geza Vermes etal. (orgs.), 3 vols.
(Edinburgh: T. and T. Clark, 1973-1987), vol. 2, p. 514-47.
5 Os modernos incluem Schürer, History, D. S. Russell, The Method and Message of
Jewish Apocalyptic (Philadelphia: Westminster, 1964), p. 205-390; Sigmund Ο. P.
Mowinckel, He That Cometh, trad. G. W Anderson (New York: Abingdon, 1956),
p. 261-450; Klausner, Messianic Idea e Bonsirven, PalestinianJudaism, p. 172-225.
6 Cf. Schürer, History, vol. 2, p. 497-513; Klausner, Messianic Idea, p. 246-386.
311

Presume-se mais a expectativa da era final no futuro do que se encon-


tram afirmações explícitas.7 As vezes, não é nítido se o escritor distingue
a era vindoura como período da história humana ou da vida eterna. A
expressão “o mundo vindouro” poderia ser considerada de qualquer das
formas ou possivelmente reflete certa confusão sobre o assunto na mente
do autor.8
Os escritores intcrtestamentários usam uma série de termos para se
referir à totalidade ou parte da era que se esperava seguir ao irrompimento
de Deus na história humana.9Talvez a prática mais simples seja chamá-la
era final, com o entendimento de que é parte da história de salvação na
história humana.10
A era final é também a era do Reino de Deus. Sem dúvida, os escritores
bíblicos pressupõem que Deus é e sempre foi o governante soberano do
universo, o rei. Ao mesmo tempo, eles entendem que o Reino de Deus é
contestado pelo reino do mal (de Satanás), presente no universo. Com o

‫ ד‬Gustaf H. Dalman, The Words of Jesus (Edinburgh: T. and T. Clark, 1902), p. 148-
54, apresenta um exame do contexto intertestamentário. O N T está repleto de
evidências de que o conceito de duas eras havia sido dc alguma forma assumido:
“o fim dos tempos” (Mt 28.20; Hb 9.26); “quando a plenitude do tempo veio” (G1
4.4) e “os últimos dias” (At 2.17). De particular importância é Mc 1.14,15: “Jesus
foi para a Galileia, proclamando as boas novas de Deus: ‘O tempo é chegado’, dizia
ele. Ό Reino de Deus está próximo. Arrependam-se e creiam nas boas novas!”.
A expressão “boas novas” (evangelho) refere-se ao registro do tempo vindouro
de paz, salvação e do Reino de Deus como resultado da intervenção divina (cf. Is
52.7). A palavra grega usada aqui para “tempo” é kairos, um momento importante
específico, um ponto de crise. Refere-se à chegada da crise esperada na história
de salvação, o dia de salvação. A expressão “está próximo” é especialmente im-
portante. O verbo está no tempo perfeito, que vê a ação como tendo chegado ao
ponto de conclusão enquanto os resultados continuam. A própria palavra grega
significa “aproximar-se ou estar em processo de aproximar”. Assim, o sentido
aqui é “acaba de chegar” . Com o início do ministério de Jesus, o ponto de crise
na história da humanidade foi atingido!
8 1Evoque 71.15; 2Baruque 15.7; Mixná Avo/ 4.1; 6.4,7.
9 Alguns dos termos mais comuns são “o dia”, “o dia do Senhor”, “naquele(s)
dia(s)”, “os últimos dias”, “a era final”, “a era messiânica”, “os dias do Messias”,
“o reino (de Deus)”, “a era vindoura”, “o mundo que há de vir”, “a hora” e “o
tempo”.
10Os escritores modernos muitas vezes empregam a palavra eschaton (transliteração
do adjetivo grego que significa “último”) para se referir ao período final da história.
312

alvorecer da era final, Deus reafirmará sua autoridade legítima e seu go-
verno de forma mais positiva e contundente na terra. Considera-se a era
final, portanto, o momento da chegada do Reino de Deus nesse sentido
especial. Por causa da relação singular entre Israel e Deus, esperava-se que
a presença do Reino trouxesse resultados favoráveis (em sentido político,
espiritual e econômico etc.) para Israel.
Além disso, a era final era considerada a era do Messias. A natureza
precisa e a obra do Messias foram debatidas. Diversos pontos de vista
eram defendidos por vários grupos e indivíduos. Alguns esperavam que
o Messias fosse uma pessoa específica ou um grupo de pessoas. Alguns
pensavam que o Messias podería ser um espírito ou talvez apenas um
conceito idealizado. Alguns judeus intertestamentários esperavam que 0
Messias fosse um ser humano; outros, que fosse uma pessoa sobrenatu-
ral ou divina. Além disso, havia pouco consenso sobre as realizações do
Messias. Independentemente da expectativa, parece ter sido consenso que
a chegada da era final indicaria a presença ou o iminente aparecimento
do Reino ou do Messias. D a mesma forma, a chegada do Reino ou do
Messias deveria ser o sinal seguro da era do fim.

A c o n te c im en to s preliminares

Alguns grupos intertestamentários esperavam que a era final fosse


precedida por um período especial de aflição e angústia, os ais ou as dores
de parto do Messias". D e acordo com o Manuscrito da Guerra (1QM 1):
“Esse será o tempo de salvação para o povo de Deus [...] a batalha de des-
truições para os filhos das trevas. E será uma época de [grande] tribulação
para o povo que Deus redimirá; de todas as suas aflições nenhuma será
como esta, desde seu súbito início até seu fim na redenção eterna”.112Os
11 TalmudebabilônicoSanhedrin 97a\ Oráculossibilinos 3.635-61; 2Baruque25. A expressão
dores departo (õdines) é usada cm Mt 24.8 e em Mc 13.8 para descrever o período
preliminar dc aílição. O conceito, usado com frequência no cenário escatológico
para descrever o juízo divino, tem raízes no AT (Is 13.8; 26.17; 66.7-9; Jr 4.31;
6.24; 13.21; 22.23; 49.22; 50.43; Os 13.13; Mq 4.9,10). Tornou-se termo técnico
na literatura rabínica.
12V. tb. lEnoque 1.3-8: “O Deus do universo, o Grande Santo, sairá de sua habitação.
E, a partir dali, ele marchará sobre o monte Sinai e aparecerá em seu acampamento
emergindo do céu com grande poder. E todos terão medo, e os Vigilantes treme-
rão. E grande temor e tremor irão dominá-los até os confins da terra. Montanhas
e lugares altos cairão e se assustarão. E montes elevados serão abatidos; e eles
313

tempos mudarão, e haverá sinais ameaçadores na ordem cósmica, entre


nações, indivíduos e no reino espiritual. O pecado e a maldade se multi-
plicarão e dominarão a terra. As relações entre indivíduos e nações serão
interrompidas, animosidades e hostilidades aumentarão.*13
A vinda do Messias e a era final serão anunciadas por um precursor
profético, frequentemente identificado como Elias.1415Sua tarefa será pre-
parar o caminho para o Senhor, restaurando todas as coisas, promovendo
a paz na terra e, de modo geral, substituindo a desordem pela ordem.11
Ele realizará isso ao chamar Israel ao arrependimento.

A NATUREZA DA ERA FINAL


Nem sempre ficam claras as expectativas sobre a era final. A glori-
ficação nacional de Israel consistia, sem dúvida, em uma característica
fundamental de grande parte do esperado. A ressurreição final, o juízo final
e a renovação da natureza e da ordem social também eram componentes
importantes do período.
Embora prevista como acontecimento futuro, descrevia-se a era final
com termos alusivos ao passado. São dignos de nota três momentos da
história bíblica que forneceram as estruturas para o pensamento sobre a
era final. Ela poderia ser descrita como o “paraíso” devolvido, o “jardim
do Éden” restaurado. Seria marcada pelo retorno da paz, do descanso e
da prosperidade entre as pessoas e a natureza. Nesse cenário, o Messias
poderia ser descrito como o segundo Adão. A expressão clássica do mo-
delo edcnico é Isaías 11.6-9:
O lobo viverá com o cordeiro, o leopardo se deitará com o bode, o be-
zerro, o leão e o novilho gordo pastarão juntos; e uma criança os guiará.

derreterão como um favo de mel diante da chama. E a terra será fendida, e tudo
o que está sobre a terra perecerá. E haverá o juízo de todas as coisas, (incluindo)
os justos. E para todo!f os justos ele concederá paz. Ele preservará os eleitos, e
a bondade será sobre eles. Todos eles pertencerão a Deus, prosperarão e serão
bem-aventurados; e a luz divina brilhará para eles”. Tudo isso é o prelúdio do
anúncio da vinda do Senhor: “Eis que ele virá com dez milhões dos santos para
julgar a todos” (v. 9, cit. em Jd 14,15).
13 Oráculos sibilinos 3.796-808; 2Baruque 26-29; 48.38-41; 2Esdras 4.52-5.13; 6.20-24;
9.16; 13.29-32; Testamento de Moisés 10.
14Ml 4.5; Eclesiástico 48.10; cf. Mt 17.10-12; Mc 9.11-13.
15 Is 4 0.15‫ ;־‬Ml 3.1-4 (cf. Mt 11.10); Ml 4.5,6; Eclesiástico 48.10; Mixná Uduyot 8.7.
314

A vaca se alimentará com o urso, seus filhotes se deitarão juntos, e o leão


comerá palha com o o boi. A criancinha brincará perto do esconderijo
da cobra, a criança colocará a mão no ninho da víbora. Ninguém fará
nenhum mal, nem destruirá coisa alguma em todo o meu santo monte,
pois a terra se encherá do conhecimento do Senhor como as águas
cobrem o mar.16
A era final tam b ém podería ser co m p arad a ao “ nov o êx o d o ” (Is 51.9-
11; 52.12). A saída d o E g ito tro u x e liberdade, renovação d a aliança, provi-
são divina, nacionalidade e novas revelações divinas. A era final, o “novo
êx odo” , seria m arcada p o r bên ção s sim ilares, m as em u m nível espiritual
e m aterial superior. O M essias seria o P ro fe ta c o m o M oisés (D t 18.15,18).
Sem dúvida, a im agem mais d ifundida com parava a era final ao reino
davídico renovado, a era de o u ro da história hebraica. E ssa im agem aten-
tava para o re to rn o das condições existentes na era de D avi e de Salomão,
qu ando Israel figurava c o m o su p erp o tên cia da ép o c a .17 E sperava-se que a
era final restaurasse a n ação à g ran d eza política, m ilitar, geográfica e espi-
ritual alcançada nesse período. O M essias — Filho de D avi e rei davídico
— cum priría as p ro m essas d o reinado e d o m ín io eternos.
D e m o d o in d ep en d en te d o m o d elo d o m in an te, a m aioria dos judeus
esperava que a era final contivesse características co m u n s a to d o s eles.
Ela era vista c o m o u m m o m e n to de alegria e felicidade incom paráveis.18
H avería paz e n tre indivíduos e nações;19 o s anim ais selvagens perderíam
a ferocidade.20 O te m p o de vid a dos seres h u m a n o s aum entaria, a doença
e a d o r (incluindo a d e d ar à luz) seriam elim inadas.21 O trab alh o perdería
as características cansativas.22 O capítulo 73 de 2fíaruque resum e:
E acontecerá que, depois de ele derrubar tudo o que há no mundo
e estiver assentado em paz eterna no trono do reino, então, a alegria

16V. tb. Is 4.2; 55.13; 65.25; Am 9.13-15; Testamento de Iievi 18.10-14; Testamento de Da
5.12; 2Baruque 4; 2Enoque 8; 2Bsdras 7.36-44,123.
17Cf. 2Sm 7.13,16; os “salmos régios” (p. ex., 2; 19; 20; 21; 72; 89.19-37; 101; 110;
132.11; 144.1-11); Is 9.6,7; 11.1; Jr 23.5,6; 30.8,9; 33.14, 22; Am 9.11; Zc 12.7-9;
Salmos de Salomão 17.4-10, 21; 2Esdras 12.31,32.
18 lEnoque 45.4,5; 62.15; Oráculos sibilinos 3.371-80.
19 lEnoque 10.17; Jubileus 23.29; Oráculos sibilinos 3.751-80; 2Baruque 73.1.
20 Is 11.6-9; 65.25; 2Baruque 73.6; Fílon, Sobregalardões epunições 15 (85-90).
21Jubileus 23.27,28, 30; 2Baruque 73.2-5, 7; cf. Is 65.20.
22 lEnoque 10.18,19.
315
será revelada e o descanso aparecerá. E a saúde descerá no orvalho, a
doença desaparecerá, o medo, a aflição e a lamentação sumirão do meio
dos homens, e a alegria circundará a terra. Ninguém mais morrerá de
forma prematura, nem qualquer adversidade acontecerá de repente.
Julgamentos, condenações, contendas, vinganças, sangue, paixões, zelo,
ódio e todas essas coisas serão condenados de uma vez, pois serão ex-
tirpados. Essas coisas encheram a terra de males, e, por causa delas, a
vida dos homens tornou-se ainda mais confusa. O s animais selvagens
virão da floresta e servirão aos homens, e víboras e dragões sairão de
suas tocas para se sujeitarem a uma criança. E as mulheres não terão
mais dor quando conceberem nem serão atormentadas quando derem
o fruto de seu ventre.

Acima de tudo, a era messiânica seria a época da limpeza da terra de


toda a imundícia e do pecado.23 Israel, libertado dos inimigos, levará to-
das as nações a “ [servir o Senhor] sem medo, em santidade e jusdça” (Lc
1.74,75). Todas as nações se ajuntarão no templo de Jerusalém para adorar.
O governo do Messias será universal e caracterizado pela justiça, pois a
marca predominante da era messiânica será a obediência universal à lei.24

OS ACONTECIMENTOS DA ERA FINAL


N ão havia unanimidade quanto à sequência precisa dos aconteci-
mentos que levariam à restauração de Israel e que nela resultariam. Os
detalhes diferem de fonte para fonte. N o entanto, um cenário geral parece
ter sido sustentado pela população. Em algum momento depois do início
da era final, os poderes pagãos se reunirão sob o governo de um líder não
identificado (o Anticristo) e atacarão, mas serão derrotados pelas forças
do Senhor.25
23 lEnoque 10.20-22; Salmos de Salomão 17.26-46; 18.9; Oráculos sibilinos 3.377-80.
24 Oráculos sibilinos 3.767-95; Jubileus 23.26.
25 O NT chama o líder nao identificado de Anticristo (ljo 2.18,22; 4.3; 2Jo 7; cf.
2Ts 2; Ap 13); menos específico é 2Baruque 40.1,2: “O último governante que
será deixado vivo naquele tempo será preso, ao passo que todo o exército será
destruído. E [...] meu Ungido [...] vai matá-lo e proteger o restante de meu povo”.
Nos manuscritos do mar Morto, o inimigo normalmente é chamado Rei do Mal
ou Satanás; no Manuscrito de Melquisedeque (1 lQMelch), ele é o antítipo de Melqui-
sedeque. Cf. Wilhelm Bousset, The·Antichrist Legend, trad. A. H. Keane (London:
Hutchinson, 1896). Sobre a batalha, cf. 1Bnoque 90.13-19; Oráculossibilinos 3.663-68;
Jubileus 23.22-24; 2Esdras 13.312 ;35‫־‬Baruque 39—40; Manuscrito deguerra (1QM)
15-19.
316

Havia discordância quanto a se o próprio Deus ou o Messias havería


de liderar a batalha.26 Alguns acreditavam que ela seria vencida pelo pró-
prio Deus27 e que o Messias aparecería só depois da vitória.28 Há também
evidências da crença de que o Messias permanecería cm segredo por causa
dos pecados do povo.29*31Mas a opinião dominante parece ter sido a de que
o Messias, capacitado pelo Senhor, derrotaria o inimigo.
O juízo se segue à vitória sobre as forças do mal. De novo as opiniões
diferem, desta vez sobre a identidade do juiz. Em lEnoque 90.20-27 Deus,
“o Senhor das ovelhas”, está sentado no trono e condena anjos caídos e
ovelhas cegas (israelitas apóstatas). N o entanto, na maior parte de lEnoque
e em outros lugares,21 o Messias é o juiz soberano; nada está oculto dele
enquanto ele se assenta no trono de glória para julgar seres humanos e
anjos.32 O mal será então punido — em especial os opressores de Israel.3’
Após a vitória e o juízo, o reino messiânico será estabelecido na terra
de Israel e terá domínio sobre todo o mundo.34 O Messias reinará, mas
Deus será o governante supremo quando sua soberania for restabelecí-
da.35 A cidade de Jerusalém e o templo serão purificados da corrupção e

262Baruque 30.1 indica que o Messias aparecerá após as desgraças.


27J13.1 -12; lEnoque 90.15-19; Testamento deMoisés 10.7; Midrash sobre SI 7.1; Manuscrito
de Guerra (1QM).
28 lEnoque 90.37-39; 2Esdras 7.26-28.
2''Jo 7.27; Justino Mártir, Diálogo com Trifão\ targum sobre Mq 4.8.
3(1Salmos de Salomão 17.21 -25,28,39,40; 18.6,7; Oráculos sibilinos 3.652-56; Fílon, Sobre
galardões epunições 16 (95); 2Baruque 39.7-40.2; 70.2-6; 2Esdras 12.32,33; 13.26-38;
targum sobre Is 10.27: “As nações serão destruídas diante do Ungido (Messias)”;
targum (recensão Neofiti) sobre Gn 49.11: “Como é formoso o Rei Messias que virá
da casa de Judá; ele cinge os lombos c sai para a batalha contra os que o odeiam,
e ele mata reis e governantes” (citação de Schürer, History, vol. 2, p. 528).
31 P. ex., 2Esdras 13.37,38.
32 lEnoque 45.3; 49.3,4; 53.2; 55.4; 61.8-10 e cm especial os caps. 62 e 69.
33 lEnoque 54; Testamento de Moisés 10.7; Oráculos sibilinos 3.669-701,761.
34Jubileus 1.28,29; 32.19; Oráculos sibilinos 3.767-95; 2Esdras 9.8.
35 Oráculos sibilinos 3.705,706,716,717,757-61; Salmos de Salomão 17.1,38; Manuscrito de
Guerra{\QM); Shemoneh ‘Esreb 11 (“Reina sobre nós, somente tu, Senhor, em graça
c misericórdia, e justifica-nos no juízo”); cf. ]oseío, Jewish War 2.8.1 (118).
317

se tornarão mais belos.36 Em alguns pontos de vista, a Jerusalém terrena


será substituída por uma cidade celestial já existente no céu; ’7ela aparecerá
na terra no lugar da andga e será superior em magnificência e beleza.38
A oração diária judaica manifesta a antiga esperança do ajuntamento
dos israelitas dispersos na terra natal: “Levanta uma bandeira para reunir
nossos dispersos e congrega-nos desde os quatro confins da terra”.39
Entre os escritos intertestamentários mais antigos, Jesus, filho de Sira-
que, clama: “Ajunta todas as tribos de Israel e dá- lhes, de novo, a Terra
Prometida, como fizeste no começo” .4" Essa esperança e expectativa de
que o Israel disperso compartilhará as alegrias da era vindoura está entre
os elementos mais consistentes da escatologia judaica intertestamentária.
Ajuntar e assentar os dispersos na própria terra são tarefas messiânicas.4142
Vários escritores descrevem o retorno de todas as partes da terra;12alguns
sustentavam que os israelitas falecidos seriam, nesse momento, ressusci-
tados dentre os mortos.43

36 Testamento cie D ã 5.12,13; Salmos de Salomão 17.30; 2Baruque 32.2; 2Esdras 10.44;
Ts 54.11,12; 60; Ez 40—48; Ag 2.7-9; Zc 2.6-12; G1 4.26; Hb 12.22; Ap 3.12;
21— 22.
3‫ יי‬Essa era uma premissa comum em Qumran. De acordo com 2Baruque 4, a Jeru-
salém celestial originariamente se encontrava no paraíso, mas, depois de Adão ter
pecado, ela foi levada para o céu e ali preservada. Ela foi mostrado a Abraão cm
uma visão e a Moisés, no monte Sinai. De acordo com 2Esdras 10.44-59, Esdras
também teve uma visão da cidade celestial.
38 lEnoque 53.6; 90.28,29; 2Esdras 7.26; 2Baruque 32.2-4.
39 Shemoneh ‘Esreh 10.
3,"Eclesiástico 36.13; o hebraico do capítulo 51 acrescenta: “Dê graças àquele que
congrega os dispersos de Israel”. V. tb. Is 49.22; 60.4; 66.20.
41 Salmos de Salomão 17.28: “Ele os distribuirá sobre a terra segundo suas tribos; o
estrangeiro não mais viverá perto deles” (cf. Targum Yonatan sobre Jr 33.13).
42 IBaruque (grego) 5.5-9: “Levanta-te, ó Jerusalém, põe-te no alto; olha para o Oriente e
contempla teus filhos reunidos de leste a oeste pela palavra do Santo, regozijando-se
porque Deus se lembrou deles. Pois eles saíram de ti a pé, levados por seus inimigos;
mas Deus os trará de volta a ti, repletos de glória, como em um trono real. Porque
Deus ordenou que todo monte alto e os montes eternos sejam aplainados e os vales,
preenchidos, para nivelá-los com o solo, de modo que Israel possa caminhar com
segurança na glória divina. Os bosques c cada árvore aromática darão sombra a Israel
por ordem divina. Pois Deus conduzirá Israel com alegria, na luz de sua glória, com
a misericórdia e a justiça que vêm dele”. V. tb. 4.36,37; 2Esdras 13.39-47; Salmos de
Salomão 11; Eílon, Sobregalardões epunições 28-29 (164-65).
43 Dn 12.2,3; lEnoque 51; Salmos de Salomão 3.
318

A CRONOLOGIA DA ERA FINAL


Alguns escritores intertestamentários acreditavam que, com a interven-
ção divina na história, a era final (vista como a era messiânica ou o reino de
Deus) começaria de imediato e seria eterna.'14Outros supunham que, após
um período, haveria outro evento de crise que introduziría o período final
da história da redenção, a fase de consumação (“a era [o mundo] por vir”
ou eternidade).4‫ י׳‬Por exemplo, enquanto 2Baruque 73.1 fala que o Messias
se assentará “em paz eterna no trono do reino”, o texto de 40.3 diz que
“seu domínio durará para sempre até que o mundo de corrupção termine”,
antecipando, assim, algo mais. Há também diversidade de opinião sobre
a duração da era final — o reino messiânico. Enquanto 2Baruque é vago,
dizendo apenas: “até que o mundo de corrupção termine”, 2Esdras 7.28
apresenta o número de quatrocentos anos como a duração do período
messiânico.44*46 O texto de Jubileus 23.27 menciona, mas em um contexto
bastante ambíguo, um período de mil anos (cf. Ap 20.1-7). O tratado do
Talmude Sanhedrin 97a define o período de dois mil anos.
Os que antecipavam a ocorrência simultânea da inauguração da era
final e da consumação esperavam que o novo mundo aparecesse de pron-
to.47 Outros a esperavam apenas na conclusão do período messiânico.4849
O último grupo, que esperava o início de outra era após o período final,
acreditava que o mundo passaria por outras mudanças à medida que a era
vindoura fosse inaugurada.4'' O pensamento judaico intertestamentário
sempre aguardou a ocorrência da consumação, a consumação de elemen-
tos perecíveis e corruptíveis por um fogo purificador e a renovação do

44 lEnoque 62.13,14; Oráculos sibilinos 3.49,50, 767-68; Salmos de Salomão 17.4; cf. Jo
12.34. Λ mesma expectativa parece se refletir na promessa de permanência para
o trono de Davi Or 33.17,20-22; Ez 37.25; cf. Dn 7.27).
4‫ י׳‬Um dos escritos rabínicos, o Midrash tanaítico Sifre sobre D t 11.21, faz distinção
entre “os dias do !Messias” e “o mundo vindouro”.
46 V. tb. Talmude babilônico Sanhedrin 99a.
4~ lEnoque 45.4-6; cf. 91.16; Is 65.17; 66.22; M t 19.28; 2Pd 3.13; Ap 21.1-5.
48 P. ex., o Comentário deQumran sobreHabacuque (1 QpPIab 2.3b): “... quando a era final
for prolongada. Pois todas as eras de Deus chegam ao fim determinado conforme
ele lhes determinou nos mistérios de sua sabedoria”. Isso também é o caso claro
de 2Esdras 7.28-33; 12.32-34.
49 2Bantque 44.15; 2Esdras 7.13-16 — note que as expressões era messiânica e era m -
doura não raro eram confundidas ou usadas alternadamente; ambas se referiam
ao futuro do ponto de vista dos escritores judeus pré-cristãos e não cristãos.
319

mundo.50O reino sofreria mudanças. Então também havería a ressurreição


dos mortos, ou a ressurreição final, da perspectiva de quem esperava por
ela mais cedo.
Mais uma vez, as idéias divergiam sobre o número de juízos; havería
um único julgamento ou uma série deles? Normalmente aceitava-se que,
na função de juiz, Deus selaria o destino de todos, do povo de Israel e de
toda a humanidade.'’1Alguns parecem ter esperado que o juízo final prece-
desse a chegada do reino messiânico e que os justos fossem ressuscitados
a fim de participar dele para sempre.52 Em outros escritos, como lEnoque
91-104, o juízo vem no fim do reino; os justos não são ressuscitados para
compartilhar dele, mas depois desfrutam da bendita imortalidade. O texto
de 2Baruque 50.4 também parece fazer alusão ao juízo após a conclusão do
reino, e 2Esdras o menciona com mais detalhes.53 Os justos serão aceitos
no paraíso e ocuparão os lugares altos e contemplarão a majestade divina.’4
Os ímpios serão lançados na geena, caracterizada pelo fogo e sofrimen-
to intenso.55 Acreditava-se que no caráter permanente da destinação de
alguém ao céu ou à geena. N o entanto, em 2Esdras, na descrição da dico-
tomia entre paraíso e inferno é seguida da enigmática declaração: “Durará
por uma semana de anos” (7.43). O s rabinos posteriores sugeriram que o
torm ento dos ímpios podería ser apenas por um período limitado.

A ERA FINAL NO PENSAMENTO CRISTÃO

Embora existissem vários de pontos de vista sobre os efeitos da chega-


da da era final, havia consenso de que sua chegada resultaria em mudanças
significativas cm todas as áreas da vida. Temos de enfatizar mais uma vez
a expectativa de mudanças radicais no ambiente, na experiência humana e
na esfera espiritual. Claro que não havia unanimidade de opinião quanto à
natureza, ao grau e aos resultados das mudanças. N o entanto, parece que

502Esdras 7.31-44; 8.1; cf. 2Pe 3.7-13.


51 2Esdras 7.33, 37; 2Baruque 50.4-51.6.
52 lEnoquefâ—90 (“As visões de sonho”); Testamento deJudâ 25; Testamento deZebulom
10 e Testamento de Benjamim 10.4-10, mas alguns deles podem ser alterações cristãs
ou adendos a livros judaicos.
53 2Esdras 6.17-28; 7.33-44.
54 2Esdras 7.38-42, 88-99; 2Baruque 51.3,7-14; Testamento de Moisés 10.9,10.
55 2Esdrasl.33-42,79-87; 2Bamque44.15; 51.4-6,15,16. Geena (ou Gehinom) descreve
o vale de Hinom, o limite sul de Jerusalém. Representava o lugar de exclusão, onde o
lixo (ardia de forma constante), de execução, o lugar para os imundos, os insepultos.
320

muitos judeus intertestamentários previram que a era final os colocaria


em uma situação muito diferente.
O anúncio original de Jesus falando de si mesmo e de seu ministério
equiparava sua chegada à era final (Mc 1:14,15). Contudo, sua visão não
correspondia com exatidão a qualquer um dos pontos de vista judaicos
intertestamentários que conhecemos agora. A renovação nacional, es-
perada pela maioria da população, não era parte de sua agenda imediata.
Em vez disso, ele chamava os indivíduos ao arrependimento pessoal e à
aceitação dele. Seu programa não incluía levantar a_espada contra César,
mas as coisas concernentes à paz (Lc 19.42). Ainda assim, uma vez que a
paz requeria a aceitação de sua pessoa, ele também seria a causa de conflito
e divisão, mesmo dentro de famílias (Lc 12.49-53). Ele rejeitou o conceito
da entrada drástica do reino apocalíptico ou materialista. Em vez disso,
falou do reino que “não vem de modo visível [...] porque o Reino de Deus
está entre vocês” (Lc 17.20,21). Apesar de não estar alheio aos pecados
e à opressão dos gentios, sua preocupação versava mais com os pecados
do povo de Deus. Ele apelou a Israel: “ [Dê] [...] a Deus o que é de Deus”
(Mc 12.17). Por isso, o ministério de Jesus envolvia não só implementar,
mas também redefinir a era final. Veremos que ela consistia na verdade
do reino de Deus e do messianismo.
Por último, o fato de o judaísmo intertestamentário esperar grandes
mudanças também tinha implicações importantes para a compreensão das
atitudes, ações e dos conflitos entre os discípulos de Jesus e os primeiros
cristãos judeus. Eles entenderam que realmente estavam vivendo na era
final. Para eles, o futuro era agora!
15
O reino de Deus

• Elementos dó contexto
• Alguns pressupostos básicos do século I
• O Reino de Deus e a nação de Israel
• Prenúncios do Reino de Deus

Elem entos do c o n tex to

João Batista e Jesus começaram sua pregação com o anúncio da imi-


nência do reino (Mt 3.2; 4.17; Mc 1.14,15). Nos evangelhos sinópticos,
o anúncio do Reino de Deus, seu esclarecimento e sua implementação
consütuem o tema principal do ministério de Jesus. Sem certa consciência
das conotações do termo na sociedade judaica, o leitor moderno perderá
grande parte do significado das ações e dos ensinamentos de Jesus.
Precisamos observar, primeiro, que, cm hebraico, aramaico e grego,
todas as palavras usadas para “reino” são abstratas. N o mundo antigo,
“reino” referia-se a senhorio, governo, reinado ou soberania, não a uma
área geográfica. Assim, “ soberania (ou governo) de Deus” podería ser
uma tradução melhor que “reino de Deus”. Essa tradução designa a esfera
de influência ou controle divino e inclui qualquer pessoa ou grupo que,
independentemente de sua localização, reconhece a soberania divina. Além
disso, as expressões “reino de Deus” e “reino do céu” são intercambiáveis
nas fontes judaicas, sendo a última um circunlóquio para evitar o uso da
palavra Deus‫׳‬, ela também se destaca como lembrete de que o governo
soberano de Deus ultrapassa os limites temporais c espaciais da ordem
material.
322

Algumas palavras também precisam ser ditas sobre a natureza geral


do Reino, pressuposta pelos escritores do NT. Apesar de ter sido con-
cebido como um fato escatológico a ser estabelecido na Terra Santa, ele
significava mais que isso. Era material e espiritual; presente e, não obstan-
te, futuro. Às vezes Jesus aceitava algumas das noções do Reino de seus
contemporâneos; com mais frequência ele os desafiava e se encarregava
de corrigi-los. Jesus sem dúvida aceitou o conceito amplo do Reino de
Deus, em especial o surgido a partir do AT. Mas ele rejeitou ou procurou
redefinir vários detalhes descritivos correntes em sua época.
Os elementos essenciais do contexto podem ser apresentados de
forma concisa. A doutrina do AT acerca de Deus incluía a crença em sua
soberania.1 A afirmação de que ele criou o universo tinha como conse-
quência natural a expectativa de que o universo funcionaria sob o governo
direto de Deus. O pecado humano significou a rejeição do governo divino,
uma sedição espiritual. N o entanto, mesmo diante da rejeição e rebelião
humanas, Deus continua a afirmar sua soberania e seu Reino. Israel foi
o veículo particular do Reino; na verdade, o AT mostra uma relação es-
pedal entre o Reino de Deus e a realeza davídica em Israel. Em termos
escatológicos, o AT afirma que, embora a soberania de Deus não seja
universalmente reconhecida agora, ela o será algum dia.
Na literatura intertestamentária, ocorrências explícitas da expres-
são “Reino de Deus” são raras, embora o conceito esteja presente. Por
exemplo, as referências a “dele” ou “seu” reino pressupõem a soberania
divina.2 Em Sabedoria de Salomão 10.9,10 (NTLH-P), a visão que Jacó tem
do céu é comparada com “o reino de Deus” (“A Sabedoria salvou do
! P. ex., Êx 15.18: “O Senhor reinará eternamente”; ISm 12.12: “O Senhor , o seu
Deus, fosse o rei”; lC r 29.11: “Teu, ó Senhor, é o reino; tu estás acima de tudo”.
Os salmistas afirmam: “D o Senhor é o reino; ele governa as nações” (22.28); “O
Senhor reina!” (93.1; 97.1; 99.1); “Eles anunciarão a glória do teu reino e falarão
do teu poder, para que todos saibam dos teus feitos poderosos e do glorioso es-
plendor do teu reino. O teu reino é reino eterno, e o teu domínio permanece de
geração em geração. O Senhor é fiel em todas as suas promessas e é bondoso em
tudo o que faz” (145.11-13). N o livro de Daniel, o rei Nabucodonosor diz: “O seu
domínio é um domínio eterno; o seu reino dura de geração em geração” (4.34).
O próprio Daniel fala do Reino como futuro: “Na época desses reis, o Deus dos
céus estabelecerá um reino que jamais será destruído e que nunca será dominado
por nenhum outro povo” (2.44; v. tb. 7.14,27; lC r 17.14; 28.7; Is 45.23; Zc 14.9).
2 Sabedoria de Salomão 6.4; Cântico dos três 33; v. tb. Salmos de Salomão 5.18; 17.3,30-34.
323

perigo todos os seus servos. Quando um homem bom fugiu do ódio do


seu irmão, a Sabedoria o guiou por caminhos certos, mostrou-lhe o céu,
onde Deus reina, e lhe deu o conhecimento de coisas santas. Ela fez com
que ele progredisse nos seus trabalhos e que tivesse sucesso em tudo o
que fazia”). Em Tobias 13.1, “reino” aparece em um contexto referindo-se
ao governo de Deus em geral.
N o pseudepígrafo Testamento de Moisés, o reino é uma manifestação
apocalíptica. O poético décimo capítulo resume a visão do escritor sobre
o reino:
“Então, seu reino será exibido por toda a sua criação.
Então, o diabo terá fim.
Sim, a tristeza será levada embora com ele.
Em seguida, serão enchidas as mãos do mensageiro,
que está no mais alto lugar indicado.
Sim, ele irá, de uma vez, vingá-los dc seus inimigos.
Pois o Celestial surgirá de seu trono real.
Sim, ele sairá de sua santa morada
com indignação e ira em nome de seus filhos.
E a terra tremerá, até mesmo seus confins serão abalados.
E as altas montanhas serão aplainadas.
Sim, elas serão abaladas, como vales cobertos elas cairão.
O sol não dará luz.
E na escuridão os chifres da lua fugirão.
Sim, eles serão quebrados em pedaços.
Tudo será transformado em sangue.
Sim, até o círculo das estrelas será lançado em desordem.
E o mar se retirará para o abismo,
para as fontes de águas que faltam.
Sim, os rios desaparecerão.
Porque o Deus Altíssimo surgirá,
o Eterno sozinho.'
A plena vista de todos, ele virá para exercer vingança sobre as nações.
Sim, todos os ídolos delas serão destruídos.
Então, tu serás feliz, ó Israel!
E tu montarás sobre o pescoço e as asas de uma águia.
Sim, todas as coisas se cumprirão.
E Deus te erguerá às alturas.
Sim, ele te colocará firmemente no céu das estrelas,
no lugar da habitação delas.
324

E tu verás do alto.
Sim, tu verás teus inimigos sobre a terra.
E, ao reconhecê-los, tu te alegrarás.
E tu darás graças.
Sim, tu confessarás teu criador”.3
() texto dc Salmos de Salomão 5.18 afirma: “Aqueles que temem 0
Senhor são felizes com as coisas boas. Em seu reino, sua bondade [está]
sobre Israel”; e em 17.3: “O reino de nosso Deus está para sempre sobre
as nações em juízo” (cf. v. 29-46).
O s targumim também contêm referências ao Reino,4 como os manus-
critos do mar Morto. O Manuscrito da guerra (1QM 6.5,6) diz: “O primeiro
batalhão está armado com lanças c escudos e o segundo, com escudos
e espadas, para matar por meio do juízo divino e para vencer a linha do
inimigo pelo poder de Deus, para exigir retribuição da parte deles por
sua maldade sobre todas as nações da vaidade, e o reino será do Deus de
Israel, e ele fará ações valentes por intermédio dos santos de seu povo”.
N o Qaddish, o judeu devoto ora: “Que ele faça com que seu reino governe
[...] rapidamente e logo”.
As vezes há confusão entre a era final, o reino messiânico e o Reino
de Deus. Os dois últimos eram esperados na era final e, nesse sentido,
foram muitas vezes considerados sinônimos dela. A relação entre o Reino
de Deus e o reino messiânico é mais complicada. Algumas fontes pare-
cem mantê-los distintos; com mais frequência parecem estar ligados aos
mesmos fenômenos. Embora, como já notamos, as referências diretas
ao Reino de Deus sejam limitadas, as referências ao reino messiânico,
implícitas e explícitas, são relativamente numerosas.

ALGUNS PRESSUPOSTOS BÁSICOS DO SÉCULO I


Os conceitos judaicos do século I sobre o Reino de Deus eram muitas
vezes confusos e contraditórios. N o entanto, algumas idéias eram aceitas
de modo geral. Primeira, Deus é rei, e só ele tem o direito absoluto de
governar todas as coisas no céu e na terra. Ele detém o direito de gover-
nar por conta dc sua natureza. Como o ser supremo, só ele conta com
as qualidades necessárias para governar o universo com perfeição. Elas

3 Cf. os targumim sobre Is 31.4; 40.9; 52.7.


4 P. ex., os targumim sobre Ez 7.7, 10; 11.24; v. tb. n. 3.
325

incluem (mas não se restringem ao) perfeito conhecimento, sabedoria,


força, justiça (retidão) e bondade (incluindo o amor) de Deus. Ele também
tem o direito de governar porque, como Criador do universo (que trouxe
à existência), ele o possui. O universo deve a Deus obediência e respeito.
Além disso, o universo funciona corretamente, e a vida no universo
c feliz e harmoniosa, só quando Deus está no controle absoluto, pois o
universo é complexo. Cada pessoa e cada parte devem funcionar em rela-
cão precisa com as outras. A manutenção do equilíbrio não é automática;
requer a supervisão geral inteligente. Só Deus é capaz de manter todas
as pessoas, forças e componentes da natureza funcionando cm relação
adequada uns com os outros.
Os seres humanos foram criados com a capacidade de fazer escolhas
morais. N o exercício dessa liberdade, a humanidade em sentido total e
individual se rebelou contra o governo de Deus. Isso trouxe desarmonia
ao universo. A rejeição do direito divino de governar e a violação dos
mandamentos régios dc Deus constituem um motim espiritual. Quando
parte do universo, isto é, os seres humanos, se recusa a funcionar dentro
do plano geral de Deus, as outras partes do universo também entram em
desordem.
Mesmo antes da criação do universo material, a autoridade régia de
Deus foi contestada por uma força (ser) espiritual chamada de Satanás
(adversário). Assim, ao se rebelar contra Deus, a humanidade não ganhou
autonomia espiritual. Ela passou do controle divino (a esfera de influência
de Deus = o Reino de Deus) para o governo satânico (a esfera dc iniluên-
cia de Satanás = o reino de Satanás). Desse modo, o reino de Satanás é
real e presente. Ele não está confinado a outro mundo, mas está presente
neste mundo e na ordem mundial. Por meio da rebelião humana contra
Deus, a influência de Satanás invadiu a alma, o corpo e o ambiente dos
seres humanos. Como consequência, o reino de Satanás atua no próprio
território em que o Reino de Deus deveria operar: no mundo material e
em especial na vida e experiência dos seres humanos.
À medida que Deus reafirma sua legítima autoridade sobre o universo,
de m odo especial à medida que busca recuperar a lealdade do homem, a
colisão entre o Reino de Deus e o reino de Satanás é inevitável. Antes de
Deus poder voltar a estender a influência de seu Reino ao mundo material
e à humanidade, ele precisa primeiro subjugar as forças de ocupação, o
reino de Satanás. O conflito entre Deus e Satanás envolve o direito de
326

governar, o direito da soberania completa, no mundo. É uma luta pelo


coração, pela vida, alma, sociedade e pelo ambiente dos seres humanos.
Pressupõe-se que essa luta esteja por trás de todos os acontecimentos
registrados na Bíblia.
Os escritores bíblicos acreditavam que a presente ordem mundial —
em especial governadores, sistemas políticos e religiões pagãs — estão sob
o controle de Satanás. O povo de Deus consiste em indivíduos, grupos,
nações e povos que aceitaram o governo divino e são seus representantes
e agentes na luta. A vinda do Reino de Deus se refere, de modo geral,
à reafirmação de seu direito de governar o universo. Isso inclui colocar
a humanidade sob seu controle. As vezes, a vinda do Reino se refere ao
ataque inicial da invasão decisiva de Deus no território ocupado pelo
reino de Satanás. Em outras, ela se refere à vitória final e à restauração do
controle total por parte de Deus.

O Rein o de D eus e a nação de Israel

Israel acreditava que, mediante a aliança de Deus com Abraão (Gn


12-17), desfrutava de um relacionamento único e especial com o Senhor.
N o entanto, Israel, como povo de Deus, foi forçado a viver em ambien-
tes hostis, dominados pelo reino de Satanás. Forças políticas, militares e
sociais que oprimiam Israel eram consideradas representantes do reino
de Satanás. (No entanto, sem que Israel soubesse, os poderes pagãos às
vezes eram usados por Deus para cumprir seus propósitos, em especial
na punição do povo.) A vinda do Reino de Deus daria fim ao controle do
mundo material por Satanás. Isso produziría resultados favoráveis para
o povo de Deus.
Nas Escrituras hebraicas, embora a realeza humana em Israel seja
retratada como concessão divina,3os reis são considerados representantes
e legados de Deus, o Grande Rei. Como consequência, o Reino de Deus é
descrito muitas vezes com metáforas extraídas da realeza hebraica, c muitas
vezes se espera que ele venha por meio da linhagem de Davi. As promes-
’ Gideão expressou o ideal do AT: “O Senhor reinará sobre vocês”, ao rejeitar a
oferta da monarquia hereditária para sua família (Jz 8.22,23). O pedido de Israel
por um rei foi inicialmente rejeitado por Samuel. Ele concordou apenas com as
instruções de Deus (ISm 8.4-9), que viam o pedido como diminuição da autoridade
divina (“Foi a mim que rejeitaram como rei” [v. 7J). Samuel, então, advertiu os
israelitas quanto aos aspectos negativos da realeza pedida (v. 10-18; cf. D t 17.14-
20) .
327

sas feitas a Davi do reino eterno são a base dessa expectativa (2Sm 7). O
cronista, refletindo os pontos de vista do judaísmo intertestamentário,
cita as palavras de Davi: “Ele [o Sen h o r ] escolheu Salomão para sentar-se
no trono de Israel, o reino do S e n h o r . Ele me disse: ‫־‬... Firmarei para
sempre o reino dele’ ” (ICr 28.5-7). Mais tarde, o cronista registra que
o rei Abias, dejudá, repreende o rei Jeroboão, de Israel, por pensar que
pode “resistir ao reino do Se n h o r , que está nas mãos dos descendentes
de Davi” (2Cr 13.8). Além disso, os salmistas e os profetas falam muitas
ve7.es sobre o futuro agente de Deus como filho de Davi (SI 2; Is 9.6,7;
Jr 23.5,6).
N o período intertestamentário criou-se a expectativa de que o Reino se
tornaria uma realidade quando, no início da era final, a intervenção divina
libertasse o povo (a nação hebraica) da opressão exercida pelo poder satâni-
co. Exatamente o que aconteceria quando o Reino de Deus chegasse era o
tema de debate. Esperava-se que trouxesse ampla mudança, mas não havia
acordo sobre qual área recebería a atenção primordial do Rei. A maioria
das pessoas nos dias de Jesus esperava que o Reino de Deus lidasse com
a situação política. A libertação nacional traria liberdade do domínio de
Roma e a restauração do poder político e do prestígio da nação hebraica.
Muitos sentiam que o Reino de Deus também traria uma mudança no mun-
do natural. Como resultado da renovação cósmica, males naturais, pragas
agrícolas e doenças físicas seriam eliminados. O mundo funcionaria com
harmonia, como Deus intentou. A produtividade natural (agrícola) seria
muito maior. Além disso, a ordem social seria alterada quando o Reino de
Deus chegasse. A prosperidade aumentaria muito. Seria estabelecida a paz
entre as pessoas; a justiça prevalecería; os propósitos divinos na história se
cumpriríam. Por fim, a disposição espiritual da humanidade e das nações
seria tão reordenada que todos serviríam, obedeceríam e adorariam a Deus
de forma adequada. A revelação da vontade divina seria reinterpretada ou
reapresentada de tal forma que as pessoas teriam pouca dificuldade em se
conformarem a ela. Os escritores apocalípticos enfatizaram todas essas
características do reino vindouro: políticas, cósmicas, sociais e espirituais.

Prenúncios do Rein o de D eus


Isaías proclamou: “Como são belos nos montes os pés daqueles que
anunciam boas novas, que proclamam a paz, que trazem boas notícias, que
proclamam salvação, que dizem a Sião: Ό seu Deus reina!’ ” (52.7). No
328

versículo, a expressão “boas novas” (heb., basset) é o anúncio do período


proveniente do futuro. Ele será caracterizado pela paz, salvação e o reinado
(reino) de Deus. Em suma, a chegada do Reino de Deus resultará em paz
e salvação. O prenúncio desse tempo vindouro, a afirmação de chegada
do Reino de Deus é, usando a palavra grega, o euangelion, ou seja, a boa
notícia, o evangelho. N o AT, o evangelho é o anúncio da vinda do Reino
e, com ele, salvação e paz.
A natureza e as características do Reino vindouro de Deus são se-
melhantes, se não idênticas, às da era final descrita rto Capítulo 14. O AT
enfaüza o restabelecimento e o reinado do trono de Davi (Is 9.1-7;Jr 23.5;
33.15; Zc 3.8). Tsaías 11 prediz a restauração do trono de Davi, e a visão da
renovada ordem natural (v. 6-9) é colocada no meio desse oráculo. A visão
de Ezequiel, dos ossos secos vivificados (cap. 37), prenuncia a restauração
da nação de Israel. O texto de Joel 2.28-32 descreve a era vindoura do
Reino cm termos apocalípticos.
Outras passagens do AT e de escritos não canônicos podem ser adi-
cionadas a este estudo. D e particular interesse são as referências ao Reino
em Salmos de Salomão 17. O salmo é uma boa ilustração de como o conceito
do Reino de Deus está mais implicado que abertamente descrito. Ele
também mostra como os conceitos de era final e do Messias são usados
nos escritos intertestamentários.
O salmo começa e termina com a afirmação do governo de Deus:
“Senhor, tu és nosso rei para sempre” (v. 1); “O próprio Senhor é nosso
rei para sempre” (v. 46). Reafirmando a natureza eterna do reino de Deus
(“O reino do nosso Deus é para sempre sobre as nações em juízo” [v. 3]),
o escritor não vê incompatibilidade com o estabelecimento por Deus da
realeza humana na família de Davi (“Senhor, tu escolheste Davi para ser
rei sobre Israel, e lhe juraste acerca de sua descendência para sempre, que
o reino dele não deixaria de existir diante de ti” [v4]).
A revisão histórica, em seguida, descreve a triste situação do povo de
Deus (v. 5-20), que veio “ [por causa] de nossos pecados” (v. 5). A esperança
de libertação é expressa no versículo 21: “Vê, Senhor, e levanta para eles
seu rei, o filho de Davi, para governar sobre teu servo, Israel no tempo
conhecido por ti, ó Deus”. O Rei divino trará libertação mediante um
rei davídico. O tempo conhecido por Deus é provavelmente referência
à era final.
329

Então o escritor descreve a futura restauração de uma forma apoca-


líptica poética (v. 26-31). A passagem antecipa a liberdade, o ajuntamento
e a purificação do povo de Deus c o julgamento dos ímpios. A sociedade
renovada estará sob o governo de Deus por meio de seu Alessias: “E ele
será um rei justo sobre eles, ensinado por Deus. N ão haverá injustiça entre
eles em seus dias, pois todos serão santos, e seu rei será o Senhor Messias.
[PoisJ ele não contará com cavalo, cavaleiro e arco, nem coletará ouro e
prata para a guerra. Nem colocará sua esperança na multidão para o dia
de guerra. O próprio Senhor é seu rei, a esperança daquele que tem forte
esperança em Deus” (v. 32-34).
A era final, escatológica e messiânica, terá caráter idílico. O Reino de
Deus será “compassivo com todas as nações” (v. 34). O povo de Deus
será abençoado “com sabedoria e felicidade” (v. .35). Livre do pecado e
“poderoso no Espírito Santo” (v. 37), o rei vai “pastorear com fidelidade
e justiça o rebanho do Senhor” (v. 40). A “beleza do rei de Israel” será a
santidade, a justiça e a santidade do povo (v. 41-43).
O conceito hebraico do Reino de Deus é sumarizado no final do
cântico de Moisés: “O S en h o r reinará eternamente” (Êx 5.18). A partir
do contexto cristão, o livro do Apocalipse concorda. N o que diz respeito
ao universo material, “ fortes vozes nos céus” dizem:
O reino do mundo
se tornou dc nosso Senhor
e do seu Cristo,
e ele reinará para todo o sempre (11.15).
N o que diz respeito à esfera celestial, a grande multidão brada:
Aleluia!,
pois reina o Senhor, o nosso Deus,
o Todo-poderoso (19.6).
16

A esperança messiânica

• A esperança messiânica e o Messias


• Títulos e nomes
- Messias
- Messias levítico
- Filho do homem
- O Servo d o S en h o r
- O Profeta como Moisés
- Elias
- Outros termos e títulos
• Sinais e provas do messiado
• A obra do Messias

A ESPERANÇA MESSIÂNICA E O MESSIAS


O título “A esperança messiânica” é melhor para este capítulo que o
que possa implicar a visão unificada ou um tipo particular de Messias. As
expectativas messiânicas eram tão diversas quanto qualquer outra parte
do pensamento judaico intertestamentário, se não mais. Esses assuntos
eram “o centro da grande massa de noções confusas, emaranhadas e até
contraditórias, das quais surgiram poucas convicções reconhecidas por
todos” .1 Um fator contribuinte foi a pletora dc divisões do próprio pen-
sarnento judaico intertestamentário, mas a diversidade de pensamento
sobre o Messias até pode estar presente no AT.2
1 Henri Danid-Rops, A vida diária nos tempos deJesus. São Paulo: Edição Vida Nova,
2008 .
2 Joachim Becker, Messianic Expectation in the Old Testament, trad. David E. Green
(Philadelphia: Fortress, 1980); Joseph Klausncr, The Messianic Idea in Israel, trad.
W. F. Stine-spring (New York: Macmillan, 1955), p. 241.
332

Os estudiosos modernos chegaram a conclusões longe de serem


unânimes com relação às visões pré-cristãs sobre o Messias.3 O debate se
concentra em saber se a idéia messiânica foi importada para o pensamen-
to judaico ou se foi um artigo de revelação genuína para os hebreus.4 A
maior parte do material messiânico do AT está nos escritos dos profetas.
Eles mantiveram forte oposição à influência pagã, em especial às idéias
e práticas religiosas. Por isso, é difícil ver como eles teriam importado
o conceito messiânico. Aceitar os escritos proféticos como Escritura
inspirada fortalece a ideia da origem hebraica da esperança messiânica.
O fato de a expectativa judaica intertestamentária, às vezes, ser expressa
com uma linguagem c figuras que refletem fontes gentílicas não destrói
o caráter essencialmente hebraico.
E útil distinguir as formas mais antigas das visões messiânicas dentro
do judaísmo e das mais novas. Nas mais antigas, a restauração e a glorifica-
ção da nação de Israel receberam consideração primordial. Deu-se pouca
ou nenhuma atenção à pessoa do Messias. Mais tarde, quando a esperança
se tornou universalizada e individualizada, e incluiu a pessoa do Messias,
o estabelecimento do verdadeiro Israel espiritual como o primeiro entre
as nações permaneceu o ponto central. A orientação nacionalista proveu
uma ligação importante entre as esperanças do Israel bíblico e as formas
posteriores de judaísmo.

' James H. Charlesworth (org.), The Messiah. Developments in Earliest Judaism and
Christianity (Minneapolis: Augsburg Fortress, 1992); Jacob Neusner etal (orgs.)
Judaisms and Their Messiahs at the Turn of the Christian Era (New York: Cambridge
University Press, 1987); Emil Schiirer, History of theJewish People in the Age ofJesus
Christ, Geza Vermes etal. (orgs.), 3 vols. (Edinburgh: T. and T. Clark, 1973-1987),
vol. 2, p. 488-554; George A. Riggan, Messianic Theology and Christian Faith (Phila-
delphia: Westminster, 1967); Joseph Bonsirven, PalestinianJudaism in the 'Time of
Jesus Christ, trad. William Wolf (New York: Holt, Rinehart and Winston, 1964),
p. 172-225; Sigmund Ο. P. Mowinckel, He That Cometh, trad. G. W Anderson (New
York: Abingdon, 1956); David Daube, The New Testament and RabbinicJudaism (New
York: Arno, 1973), p. 3-51; Klausner, Messianic Idea.
Alguns estudiosos argumentam que o messianismo entrou no pensamento hebrai-
co graças às fontes assírias, egípcias, babilônicas ou persas (a literatura é citada por
Klausner, Messianic Idea, p. 13 η. 1). Outros sugerem que ele era basicamente um
conceito hebraico, mas diferente quanto à representação de um desenvolvimento
pós-exílico (p. ex., Mowinckel, Pie That Cometh) ou se tem raízes no AT.
333

T ítulos e nom es

Muitas idéias e conceitos associados à esperança messiânica foram


expressos e passados aciiante por meio de vários nomes e títulos que tam-
bém revelavam as funções do Messias. A maioria dos títulos veio do AT,
mas foi adaptada por escritores intertestamentários. Alguns eram títulos
messiânicos reais do AT; em outros casos, pessoas ou imagens do AT se
tornaram vinculadas à esperança messiânica. Normalmente supõe-se que
os títulos eram apenas designações alternativas para o Messias ou para a
figura escatológica. Alguns grupos possivelmente acreditavam que cada
título representava uma figura distinta, cujo aparecimento era esperado
na era final.
Alguns grupos esperavam, de fato, vários Messias ou figuras messiâ-
nicas. Moisés e Elias estavam entre os nomes incluídos na especulação
sobre a era final. Sua aparição ao lado de Jesus, o Messias, na transfiguração
teria confirmado, para quem esperava uma série de figuras escatológicas,
a chegada da era final. A comunidade de Qumran esperava um Messias
de Levi, um Messias de Israel e, possivelmente, um Profeta como Moisés.
O quarto evangelho registra que fariseus e levitas (que faziam parte da
principal corrente da vida judaica) perguntaram a João Batista se ele era
o Messias, Elias ou o Profeta (}o 1.19-23). Os discípulos parecem não ter
tido dificuldade em reconhecer o messiado de Jesus, tampouco o concei-
to expandido de Jesus ao igualá-lo com o Filho do homem. Eles tiveram
dificuldade com a insistência de Jesus de que o Messias-Filho do homem
suportaria o sofrimento do “Servo do Se n h o r ” (M c 8.29-33).
Messias

O termo Messias (lit., “ungido”) poderia ser aplicado a qualquer pessoa


que ocupasse o ofício por dom, graça e unção de Deus. Desse modo, em
sentido técnico, ele ,poderia ser aplicado a todos os líderes de Israel, em
especial aos reis ungidos. Em Isaías, prediz-se que Ciro, o rei persa, é o
agente divino da reconstrução de Jerusalém; como consequência, ele é
chamado “ungido” do Senhor (Is 45.1). Deus diz: “Ele é meu pastor [...]
Eu levantarei esse homem cm minha retidão [...] Ele reconstruirá minha
cidade e libertará os exilados” (44.28; 45.13). Em bora a ideia esteja im-
pücitamente difundida no AT, o termo Messias para designar o líder por
excelência ocorre raras vezes (p. ex., D n 9.25,26).
334

Algumas das primeiras fontes intertestamentárias atribuíram “àquele


que viria” características dc um ser angelical ou divino preexistente. O
rei vindouro de Salmos de Salomão 17 é descrito como “um rei justo [...] o
Senhor Messias” (v. 32), “livre dc pecado” (v. 36), “poderoso no Espírito
Santo e sábio no conselho de entendimento, com força e justiça” (v. 37).
O judaísmo posterior, possivelmente em reação ao cristianismo, enfatizou
a humanidade do Messias.
A esperança messiânica de cada grupo específico no judaísmo intertes-
tamentário provavelmente tinha características distifitivas. Normalmente
acredita-se que alguns grupos (p. ex., os saduceus) rejeitaram dc forma
completa o conceito.5 Em contrapartida, Qumran esperava mais do que
um Messias ou figura escatológica e produziu longas descrições da guerra
final, bem como das bênçãos e do banquete do Messias.6 Nos tempos de
Jesus, a maioria das pessoas comuns pensava no Messias vindouro primei-
ramente como um rei político e militar que lidaria com as crises externas
enfrentadas pela nação.
O tema fundamental do conceito popular era o caráter régio do Mes-
sias, Essa figura dizia mais respeito à tribo de Judá e à dinastia davídica, a
família assim designada pela promessa divina (2Sm 7.4-16). A princípio,
a esperança messiânica talvez acalentasse apenas o restabelecimento do
reinado davídico; nos tempos de Jesus, o povo procurava um indivíduo para
ser o Messias, o filho de Davi. O nível de adesão à expectativa messiânica
pelos judeus comuns é atestado nos evangelhos pela disposição de seguir
os vários candidatos ao ofício e pela prontidão tardia com que se engajaram
nas guerras santas contra Roma nos anos 66-70 e 132-35 d.C. Embora a
antecipação do povo comum possa ter sido mais intensa e militante, ainda

‫ כ‬No entanto, G. H. C. MacGregor, A. C. Purdy,Jew and Greek. Tutors unto Christ


(orgs.) (Edinburgh: Saint Andrew, 1959), p. 99, observam: “A esperança messiânica,
no sentido mais amplo, como a vinda e a manifestação do governo de Deus em
toda a terra, provavelmente foi mantida pelos saduceus por causa de sua base nas
Escrituras”.
6 1QS 9.11; lQSa 2; CD 12.13; 14.19; 19.10; 21; cf. Testamento de Rúben 6.7,8; Tes-
tamento de Levi 8.14; Testamento deJudá 21.1-5; Testamento de D ã 5.10; Testamento de
José 19.5-11. Cf. Geza Vermes, The Dead Sea Scrolls‫־‬. Qumran in Perspective (Cie-
veland: Collins and World, 1978), p. 52-57; Schürer, History, vol. 2, p. 550-4; Karl
Kuhn, “The Two Messiahs of Aaron and Israel”, em Krister Stendahl (org.), The
Scrolls and the Neiv Testament (New York: Harper and Row, 1957), p. 54-64.
335

que exercitada com menos cuidado que a dos instruídos, parece ter havido
concordância geral com a esperança messiânica dos fariseus.
Em síntese, embora o termo Messias pudesse se referir a qualquer líder
designado por Deus, ele veio a ser usado principalmente em contextos
escatológicos. Com mais frequência, referia-se ao rei davídico vindouro.
O título podia transmitir outras idéias. N a verdade, parece que às vezes
foi usado como term o genérico para designar qualquer agente de Deus —
indivíduo, conceito idealizado ou entidade coletiva — cujo aparecimento
era esperado na era final.
Messias levítico
N o período intertestamentário, a expectativa do Messias davídico da
realeza competia com a esperança, em certos círculos, do Messias da tribo
de Lcvi.7 O texto de IMacabeus reflete o anseio pelo Messias levítico da
realeza. Essa ideia provavelmente surgiu entre os apoiadores da dinastia
dos asmoneus. Havia também a expectativa de que o Messias levítico
fosse sacerdote. A promessa do sacerdócio eterno para Fineias, por causa
de seu zelo por Deus (Nm 25.10-13), é expressa em linguagem similar à
promessa feita a Davi, em que se baseia a expectativa do Messias davídico,
pelo menos em parte (2Sm 7; v. tb. Eclesiástico 45.23-26). O texto de Sal-
mos 110.4, “O S e n h o r jurou e não se arrependerá: ‘Tu és sacerdote para
sempre, segundo a ordem de Melquisedeque’”, dá motivos para esperar
um agente vindouro de Deus que, como Melquisedeque, seria sacerdote e
rei. Várias passagens nos Testamentos dos do-^epatriarcas apontam na direção
da expectativa do líder sacerdotal da tribo de Levi.8 Nos manuscritos do
mar Morto espera-se que o Messias levítico sacerdotal tenha precedência
sobre o davídico político.9
Filho do homem
Em uma visão, o autor de 2Esdras 13 vê “algo como a figura de um
homem emergindo do coração do mar [...] esse homem voou com as

7 Becker, Messianic Expectation, ρ. 83-86.


‫ ״‬Ρ. ex., Testamento de Ruben 6.7,8; Testamento dejudá 21.1 -5; Testamento de Dã 5.10,11
e Testamento deJ0sé\9.5A 1.
'‫ ׳‬N o pensamento samaritano, o Taheb (libertador messiânico) deveria scr acompa-
nhado por um sacerdote. De igual modo, Shimon Bar Kochba, o pseudomessias,
que se declarou rei durante a segunda revolta (132-35), unha uma companhia
sacerdotal.
336

nuvens do céu” (v. 3). Ele derrota os poderes cósmicos hostis e liberta os
cativos por meio de uma série de ações que precedem a confirmação de
seu governo. As afinidades linguísticas e conceituais entre o homem de
2Esdras e o Filho do homem que aparece em Daniel 7.13,14 e nas Simi-
litudes ou Parábolas de lEnoque (37—71) levam muitos a equipará-los.1‫״‬
Em Daniel 7, o profeta vê “alguém semelhante a um filho de um
homem,1011vindo com as nuvens dos céus. Ele se aproximou do ancião e
foi conduzido à sua presença. Recebeu autoridade, glória e o reino; todos
os povos, nações e homens de todas as línguas o adoraram. Seu domínio
é um domínio eterno que não acabará, e seu reino jamais será destruído”.
Aqui a referência é um tanto incerta; “alguém semelhante a um filho de
um homem” pode ser equiparado aos “santos do Altíssimo” (v. 18), pos-
sivelmente a nação de Israel como um Messias coletivo que reina após o
julgamento.
N o livro de lEnoque, o Filho do homem, mais uma vez uma figura
celestial, é personalizado e associado aos “traços da soberania agrupados
em torno do Ultimo Julgamento tradicional e sua execução”.12Deixaremos
as principais referências ao Filho do homem que aparecem na segunda e
terceira parábolas falarem por si mesmas:
Naquele lugar, vi aquele a quem pertence o tem po antes do tempo pit.,
Chefe de dias]. E sua cabeça era branca como a lã, e havia com ele outro
indivíduo, cuja face era com o a de um ser humano. Seu semblante estava
repleto de graça com o o de um entre os santos anjos. E eu perguntei

10O aramaico bar 'ends (no grego, ho hyios tou anthrõpoü) provavelmente significa
“homem” ou “o homem”. Cf. Η. E. Tõdt, The Son of Man in the Synoptic Tradition,
trad. Dorothea M. Barton (Philadelphia: Westminster, 1965).
1' De acordo com sua política de evitar a linguagem sexista, a versão NRSV, em inglês,
traduz o aramaico bar 1ends por “ser humano”. Essa é uma interpretação infeliz.
Podería ser justificada na maioria dos casos em Ezcquiel, em que a expressão “filho
do homem” é a forma padrão de tratamento com a qual Deus chama o profeta
ao ministério (embora mesmo aqui a expressão seja endereçada a uma pessoa do
sexo masculino que é escolhida para um papel e responsabilidades especiais). Em
Daniel, o contexto requer que “o Filho do homem” seja reconhecido como, pelo
menos, uma figura transcendente. Os tradutores da NRSV fizeram um julgamento
interpretativo que remove até mesmo a possibilidade da conexão entre o “filho
do homem” de Daniel e o emprego frequente do título por Jesus (em especial
nos Evangelhos Sinópticos) como forma preferida de se referir a si mesmo.
12Tõdt, Son of Man, p. 29.
337
àquele — dentre os anjos — quem iria comigo e quem havia revelado a
mim todos os segredos a respeito daquele que nasceu dos seres humanos
[o Filho do Homem]: “Quem é este e de onde é aquele que segue como
o protótipo do Antes-do-Tempo |Chefe de dias]?” . E ele me respondeu
e me disse: “Este é o Filho do Homem, a quem pertence a justiça, e com
quem a justiça habita. E ele abrirá todos os depósitos secretos [...] ele
está destinado a ser vitorioso diante do Senhor dos Espíritos em eterna
retidão. Este Filho do Homem [...] é aquele que removia os reis [...] Ele
afrouxará os reinos dos fortes e esmagará os dentes dos pecadores. Ele
destituirá os reis [...] Pois eles não o exaltam nem glorificam, sua fonte
de realeza” |46.1-5].

Aquele Filho do Homem foi dado um nome, na presença do Senhor dos


Espíritos, o Antes-do-Tempo [Chefe dc dias], mesmo antes da criação
|...| Ele se tornará um bordão para os justos [...] Ele é a luz dos gentios
e se tornará a esperança de quem tem o coração doente. Todos os que
habitam sobre a terra se prostrarão e adorarão diante dele [...] Para esse
propósito ele se tornou o Escolhido; ele foi ocultado na presença do
(Senhor dos Espíritos) antes da criação do mundo e por toda a eternidade.
E ele revelou a sabedoria do Senhor dos Espíritos aos justos e santos,
pois preservou a porção dos justos [...] eles serão salvos em seu nome e
é seu beneplácito que tenham vida [48.2-7].

N o dia do juízo, todos os reis, os governadores, os altos oficiais c os ar-


rendadores [...] estarão apavorados e abatidos; e a dor se apoderará deles
quando virem aquele Filho do Homem sentado no trono dc sua glória
[...] Pois o Filho do Homem foi ocultado desde o começo, e o Altíssimo
o preservou [...] então ele o revelou aos santos e aos eleitos [...] Aqueles
que governam a terra se prostrarão diante dele, adorarão e elevarão
suas esperanças ao Filho do Homem; eles implorarão e suplicarão por
misericórdia aos pés dele [62.3-91.

O s justos e eleitos serão salvos naquele dia [...| O Senhor dos Espíritos
habitará sobre eles; eles comerão, descansarão e se levantarão com aquele
Filho do Homem para todo o sempre [62.13,14].

[No dia do juízo, os governadores do m undo implorarão por misericórdia


diante do Senhor dos Espíritos.] Depois disso, o rosto deles se encherá
de vergonha diante do Filho do Hom em ; e, de diante de sua face, eles
serão expulsos. [63.11]
338

Eles bendisseram, glorificaram e exaltaram (o Senhor) pelo fato de o


nome do (Filho do) Hom em lhes ter sido revelado. Ele nunca passará
nem perecerá de diante da face da terra. Mas os que desviaram o mundo
do caminho serão acorrentados [...] A partir daí, nada corruptível será
encontrado; pois o Filho do Homem apareceu e se assentou sobre o trono
de sua glória; e todo o mal desaparecerá de diante de sua face; ele irá e
dirá ao Filho do Homem, e ele será forte diante do Senhor dos Espíritos
[-.·] E aconteceu depois disso que seu nome vivo foi levantado diante
daquele Filho do Hom em e para o Senhor dentre aqueles que habitam
sobre a terra [69.27— 70.1],

Haverá extensão de dias com o Filho do Homem, e paz aos justos; seu
caminho é reto para os justos, no nome do Senhor dos Espíritos para
todo o sempre [71.17],

É evidente q u e o F ilh o d o h o m e m de E n o q u e é preexistente, celestial


e m ajestoso. E le po ssu i d o m ín io e julgará to d a a h u m anid ade e o s anjos.
D eb ates acadêm icos consideráveis co n centram -se em um a série de
assuntos relacionados ao título Filho do homem. P o r exem plo, é um a questão
em ab erto se o F ilho d o h o m e m e o M essias eram n o rm alm en te igualados
o u co nsid erad o s figuras d istin tas an tes d o te m p o de Jesu s.13 Q ualquer
q ue seja a resp o sta, p elo m e n o s alguns g ru p o s judaicos esperavam que
u m a figura no táv el ap arecesse n a era final. E ssa figura é “ o E sco lh id o , o
Filho d o H o m e m , um ser tra n sc e n d e n te, p reexistente, p ró x im o de Deus.
E le é investido d e d o n s divinos, c o m p a rtilh a d o tro n o de D eu s e exerce
função divina d e juízo; o a p o io d o s h o m en s, ele é o o b je to da adoração
deles e reina co m D e u s p o r to d a a e te rn id a d e ” . C o m re sp e ito a esse
M essias-Filho d o h o m e m esperado, Jo se p h B onsirvcn conclui: “ Parece
que certas escolas judaicas pensavam n o M essias c o m o u m ser divino” ;14
ele talvez esteja levando m u ito longe o s d ad o s de fontes existentes. Emil

1' Nos Evangelhos Sinópticos, “Filho do homem” é o título favorito usado por
Jesus para se referir a si mesmo. “Messias” e “Filho do homem” são comparados
em Jo 12.34, bem como “Filho”, “Filho de Deus” e “Filho do homem” em [o
5.22-27.
14PalestinianJudaism, p. 189. Nem todos concordam que as fontes judaicas retratem
o Filho do homem como uma figura preexistente; cf. T. W Manson, “The Son
of Man in Daniel, Enoch and the Gospels”, em Studies in the Gospels and Epistles
(Philadelphia: Westminster, 1962), p. 123-45.
339

S chürer está provavelm ente m ais p ró x im o d a v erd ad e q u an d o afirma:


“o M essias era con sid erad o u m rei e g o v e rn ad o r hu m an o , m as alguém
d o ta d o p o r D eu s de d o n s e poderes especiais [...] T o d a a visão da pessoa
d o M essias é [...] essencialm ente so b ren atu ral” .15
O "Servo do Sen h o r "
O u tra figura de im p o rtâ n c ia d o A T é o S ervo d o S e n h o r (jeved
Y H W H ). Referências ao Servo são en co n trad as em u m a série de pas-
sagens em Isaías. Q u a tro passagens, os “C ân tico s d o S ervo” (Is 42.1-4;
49.1-7; 50.4-11; 52.13— 53.12), são d e especial im portância. O s intérpre-
tes discutem a n atu reza e a iden tid ad e d o Servo. T ie é um a pessoa real
o u u m co n ceito idealizado? O S ervo é u m indivíduo co n tem porâneo,
co m o o p ró p rio p ro feta, o u algum a p e sso a futura que viria para cum prir
o p ro p ó sito divino? E ssas passagens falam de u m a figura coletiva, com o
a totalidade d o s israelitas o u o rem an escen te justo da nação? N a verdade,
p o d e haver oscilação en tre várias op çõ es, m esm o em Isaías; isso é mais
eviden te se n o sso e stu d o incluir to d as as referências ao Servo, n ão apenas
o s q u a tro “ C ânticos d o S ervo” .
A s perspectivas divina e h u m an a sob re o S ervo são b astante diferentes.
D a perspectiva divina, o Servo é seu escolhido, seu deleite, aquele em quem
ele se com praz. D eu s o ungirá co m o E sp írito e, p o r fim, o levantará e
vindicará c o m o seu Servo. N o e n ta n to , o S ervo é rejeitado pelos seres hu-
m anos. N as m ãos deles ele é escarnecido, to rtu ra d o e m orto . E m Isaías 53,
a tarefa d o “ Servo d o Se n h o r ” é so frer pelos pecados dos outros, to m ar o
lugar d o s m uitos q u e deveríam padecer. M ediante seu so frim ento vicário,
ele o s justifica d iante d e D eus. P o r m eio de seu Servo, D eus restabelece
a aliança e n tre si m esm o e seu p o v o escolhido.16

15A History of the Jewish People in the Time ofJesus Christ, trad. j. MacPherson et al, 5
vols. (Edinburgh: T. and T. Clark, 1897-1898), vol. 2., p. 1,160-1. A nova edição cm
ingles (1973-1987) diz: “() judaísmo pré-cristão — na medida que suas expectativas
messiânicas podem ser conclusivamente documentadas — considerava o Messias
como um indivíduo plenamente humano, uma figura real descendente da casa
de Davi [...] como alguém dotado por Deus com dons e poderes especiais... Em
4Esdras c nas Parábolas de Enoque, sua aparência eleva-se ao nível do sobrenatural
e a ele é atribuída a preexistência” (2.518-9).
16Oscar Cullmann, The Christologyof theNew 'Testament, trad. Shirley C. Guthrie, Char-
les A. M. Hall (Philadelphia: Westminster, 1959), p. 55, resume: “A característica
essencial [...] é que sua representação vicária se dá por meio do sofrimento. O ‘eved
340

N o judaísm o in tertestam en tário , a in terp retação d o S ervo se movia


entre o en ten d im en to coletivo e o individual d o term o. A Septuaginta (com
três exceções) trad u z ceved Y H W H c o m o pais theou.17 Pais po d e significar
tan to “ filho” c o m o “serv o ” . N o judaísm o helenístico, parece que a maioria
dos in térpretes en tend eu o te rm o c o m o “ filho” e o in te rp reto u de form a
coletiva, rep resen tan d o a totalidade d e Israel.18
E n tretan to , havia o u tra tradição, provavelm ente tam bém d o judaísm o
helenístico, “ q u e usava o s ‘C ânticos d o S ervo’ e algum as o u tras profecias
para caracterizar a história e o p erso n ag em d e u m hcftnem excepcional” .19
U m exem plo clássico é Sabedoria de Salomão 1— 5, que usa os tem as d o Servo
para descrever a perseguição e o so frim en to d o h o m em justo.20 N a terra de
Israel, as passagens d o Servo eram entendidas de m o d o diferente: com o
referências a Israel (Is 44.1,2,21; 45.4; 48.20; 49.3), a um g ru p o específico
em Israel (essa parecia a posição da co m u n id ad e d e Q u m ran ), ao próprio
p ro feta (49.5; 50.10) c ao M essias.21

[servo] é o Servo sofredor de Deus. Por meio do sofrimento, ele toma o lugar de
muitos que deveríam sofrer no lugar dele. Uma segunda característica essencial
do ‘eved Yahweh é que sua obra representativa restabelece a aliança que Deus havia
feito com o povo”.
1 Por essa razão, o uso da expressão em escritos cristãos: Mt 12.18; At 3.13, 26;
4.27, 30; D idaquêYl\ 10.2; 1Clemente 59.2-4.
18Joachim Jeremias em Walther Zimmerli e Joachim Jeremias, The Servant of God,
trad. Harold (Knight. Naperville, 111: Allenson, 1957), p. 51. Essa é uma tradução
dc “pais theou”, em Theologisches Worterbuch pum Neuen Testament, Gerhard Friedrich
(org.), vol. 5 (Stuttgart: Kohlhammer, 1954).
19 Pierre Prigent, Les Testimonies dans le christianismeprimitif. L’Epitre de Barnabc 1-XVI
et ses sources (Paris: Lecoffre, 1961), p. 215-6, citado em uma análise dc R. A.
Kraft,‫י‬Journal of Theological Studies, não especificado, 13 (1962): 403.
211P- ex., 2.10: “Oprimamos o pobre justo; não poupemos a viúva nem consideremos
os cabelos brancos do idoso”.
21 Os textos de Is 42.1-4 e 53.13-15 foram interpretados dc modo messiânico nos
séculos pré-cristãos, como o foram, na ocasião, 43.10 e 49.1-7. Os textos de
Ez 34.23,24 e 37.24,25 referem-se em termos messiânicos a “meu servo Davi”,
como Zc 3.8 a “meu servo, o Renovo”. V. tb os targumim de Is 42.1; 43.10;
Ez 34.23,24; 37.24,25 e Zc 3.8. Em lEnoque 37— 71, o Filho do homem e o Servo
de Deus são associados (sobre isso, cf. Jeremias, Servant, p. 58-60); 2Baruque 70.9
refere-se ao “meu Servo, o Ungido”; os textos de 2Esdras 7.28,29; 13.32,37 e 14.9
talam do “meu filho, o Messias” e “meu Filho”, os quais Jeremias (em Servant,
p. 49) interpreta como referência ao Servo (pais).
341

Qual é a relação entre o Servo c o Messias esperado ou a figura


messiânica? A identificação ocasional do Servo cm Isaías com o Messias
levanta a questão de alguns judeus esperarem pelo Messias sofredor. É
quase lugar-comum a negação dos estudiosos sobre a possibilidade dessa
crença no período pré-cristão.22234A evidência, entretanto, não é tão defi-
nitiva. O sofrimento de pessoas justas ou retas para benefício alheio está
bem estabelecido no AT e no que veio depois dele. Não é por acaso que
em Isaías 53.11 o reto (justo) e o Servo são igualados: “Meu servo justo
justificará a muitos, e levará a iniquidade deles”. Nos targumim e na litera-
tura rabínica há uma interpretação messiânica definitiva dessa passagem.2’
O Targum Yonatan de Isaías data do século IV ou V d.C. Aqui, de forma
geral, “o Messias é uma figura associada com intimidade à restauração”.21
Contudo, no mesmo período em que se esperaria que as fontes judaicas
distanciassem o Servo e o Messias, o Targum em 52.13 iguala o Servo ao
Messias.2526De igual modo, no século II d.C.Justino Mártir, no debate com
Trifão, o judeu, pressupõe a crença judaica pré-cristã no Messias sofre-
dor. Trifão não nega a suposição, mas objeta apenas à ideia do Messias
crucificado2‫ — ’׳‬uma impossibilidade para a mente judaica por conta da
maldição de Deuteronômio 21.23 — “qualquer que for pendurado num
madeiro está debaixo da maldição de Deus”. Com o podería o Messias,

22 Entre os exemplos estão Paul Volz,JüdischeEschatologievon DanielbisAkiba (Tübin-


gen: 1903), p. 237, apud W. D. Davies, Paul and RabbinicJudaism, 2. ed. (London:
SPCK, 1955), p. 275; Charles Guignebert, TheJewish Worldin the Time ofJesus, trad.
S. H. Hooke (London: Kcgan Paul, Trench, Trubner, 1939), p. 145-50; c George
Foot Moore, Judaism in the First Centuries of the Christian Bra, 3 vols. (Cambridge,
Mass.: Harvard University Press, 1927-1930), vol. 1, p. 551-2; vol. 2, p. 370.
23 Samson H. Levey, TheMessiah·. An Aramaic Interpretation; TheMessianicExegesisof
the Targum (Cincinnati: Hebrew Union College-Jewish Institute o f Religion, 1974),
p. 65-7; Bruce D. Chilton, The Glory of Israel·. The Theology and Provenience of
the Isaiah Targum (Sheffield: JSOT, 1982), p. 86-6. Ainda na discussão de visões
rabínicas sobre o Messias, Jacob Ncusncr, Messiah in Context (Philadelphia: Fortress,
1984), nem menciona a possível relação entre o Servo e o Messias.
24 Chilton, Glory of Israel, p. 87.
25 Targum de Is 52.13. “Eis meu servo, o Ungido (ou, 0 Messias), prosperará”; de
igual modo, 53.10, no contexto geral da obra do Servo: “eles olharão para o reino
de seu Ungido (ou, Messias)” ( The Targum of Isaiah, trad. J. F. Stenning [Oxford:
Clarendon, 1949], p. 178,180). O targum do capítulo 53 geralmente faz da nação
de Israel o Servo Sofredor.
26Diálogo com Trijao, 89-90.
342

que, p o r definição, é bendito, ser crucificado e, p o rta n to , am aldiçoado por


causa d o m éto d o de sua m o rte?27
O s editores da nova edição d o livro History of theJewish People in the Age
of Jesus Christ [História dopovojudeu na era deJesus Cristoj, de E m il Schiirer,
observam que o p ro b le m a essencial n ão é existir a ideia d o M essias sofre-
dor. A ntes, a q u estão é h av er algum co n ceito d o M essias so fred o r “ cujos
sofrim en to s e cuja m o rte p udessem ter valor expiatório” . O s editores de
Schürer reco n h ecem que o judaísm o rabínico p o d e te r acolhido as noções
de que um “ h o m em perfeitam en te justo [...] [podej-expiar [...] p o r meio
de so frim en to o s pecado s passados, e q u e o so frim en to excessivo do
justo é para benefício d e o u tro s” . M as eles citam “o c o m p o rta m e n to dos
discípulos e d o s o p o n en te s d e je s u s (M t 16.22; Lc 18.34; 24.21 ;Jo 12.34)”
co m o evidência de que a n oção d o M essias q u e sofre pelo pecado era, se
existente, in co m u m n o judaísm o d o século I.28
Várias referências d o N T fo rm am a b ase d o A T para a controvérsia
sobre o sofrim ento d o M essias (Lc 24.25,26,44-46; A t 3.18; 17.3; 26.22,23).
O n d e, alguém p o d e perg u n tar, e n co n tram o s essa ideia fora das passagens
do Servo? P o d em o s a p o n ta r p rim eiro para a experiência de sofrim ento
pela nação, em especial se o M essias fosse en ten d id o co m o o Israel co-
letivo. D eterm in ad o s salm os (p. ex., 22) falam de sofred o res misteriosos.
O pasto r de Z acarias foi traído (11.12,13) e ferido p o r D eu s (13.7). N o
A T e fora dele h á a trad ição d o ju sto so fre d o r (Is 53.11; Is 3.10 (LXX);29
e Sabedoria de Salomão 2.10).
U m auxílio para e n te n d e rm o s as referências d o N T sobre o Messias
so fred o r vem co m os estu d o s de C harles H . D o d d .30 E le não só estudou
as referências individuais d o A T n o N T , m as tam b ém n o to u que muitas
delas surgem d o m esm o contexto geral d o AT, d o qual um “enredo” similar

27 E com esse problema que Paulo parece lutar em G1 3.1-14.


28Vol. 2, p. 547-9.
29 Compare o grego na Septuaginta‫׳‬. “Atemos o justo, pois é penoso para nós”, com o
hebraico (trad, da NRSV): “Digam os inocentes quão afortunados eles são, pois
comerão do fruto de seu trabalho”.
30 The Old Testament in the New (Philadelphia: Fortress, 1963); idem, According to the
Scriptures·. The Sub-Structure o f New Testament Theology (New York: Scribner,
1952).
343
p o d e ser d iscern ido .’‫ י‬N o esquem a, u m in divíduo o u u m g ru p o inocente
é rejeitado, to rtu ra d o e às vezes m o rto ; depois, p o r um a inversão drásti-
ca da so rte, o so fre d o r é vindicado, h o n ra d o c glorificado. D o d d segue
sugerindo que, q u an d o o escrito r d o N T cita o AT, ele tem a intenção de
cham ar a atenção para to d o o con tex to , incluindo o enredo, bem com o
p ara as palavras reais. E le acredita que os escritores d o N T entendem a
p roclam ação d o AT so b re a necessidade da m o rte d o M essias a partir do
enredo d o sofrim ento injusto seguido p o r m udanças drásticas e pela honra.
Assim , parece haver entre certo s g ru p o s um leve ra stro de expectativa
judaica d o M essias so fred o r o u , p elo m enos, de algum a figura escatológica
so fred ora.3132 E ssa expectativa co m eço u a se to rn a r m ais intensa e aceita em
alguns círculos n o século II antes da E ra C ristã.33 E n tre ta n to , a evidência
n ão susten ta a ideia d e q u e nos te m p o s d e Jesu s havia um a expectativa
am plam ente d ifundida d o so frim en to m essiânico. E la poderia estar limi-
tada aos círculos mais in stru íd o s o u à periferia d o judaísm o.34
O Profeta como Moisés
C ontu do, o u tro título com im portância m essiânica é o de o Profeta ou
o P ro feta c o m o M oisés.35 O tex to de D e u te ro n ô m io 18.9-22 avisa Israel
c o n tra o en volvim ento com práticas idólatras e o em p reg o de magia e
m eios ocultos de p ro cu rar revelação e orientação divinas (v. tb. D t 12.29—
13.18). O tex to p ro m ete q u e D eu s levantará um P ro feta co m o M oisés
para se co m u n icar com Israel. A passagem é a base d o ofício profético em
Israel. E n tretan to, alguns g ru p o s judaicos interpretavam D eu teronôm io 18
co m o referência àquele p ro fe ta em particular, o o u tro M oisés, q ue viria.36

31 Além dos “Cânticos do Servo” de lsaías, os textos do enredo do AT incluem SI 69;


80 (a videira); Is 6.1-9.7; J1 2— 3; Zc 9— 14; as passagens do Filho do homem
(SI 8; Dn 7.13,14) e as passagens da Pedra (p. ex., SI 118.22; Is 8.14; Dn 2.34,45;
cf. Mt 21.42; [=Mc 12.10,11; Lc 20.17,18]; At 4.11; E f 2.20; lPe 2.4-8).
32 Após a pesquisa cuidadosa dos dados, Davies (Paul, p. 283), conclui: é “pelo me-
nos, possível que o conceito do Messias Sofredor não fosse estranho ao judaísmo
pré-cristão”.
33 Schürer, History (1897-1898), vol. 2, p. 2,186.
34 Cullmann, C.hristohgy, p. 56-7.
35Cf. Cullmann, Christology, p. 13-50; Howard M. Teeple, The Mosaic Eschatological
Prophet (Philadelphia: Society of. Biblical Literature, 1957).
3‫ '׳‬IMacaheus 14.41; Testamento delxvi 8.14,15; Fílon, Leis especiais 1.11 (64-65); 4QTest;
1QS 9.11. Há também a sugestão de que a ideia de um novo Moisés está por trás
344

Era possível esperar que um Profeta messiânico como Moisés liderasse o


novo êxodo do cativeiro, restabelecesse a aliança, trouxesse uma melhor
revelação divina (a nova lei ou a melhor interpretação da lei) e, em suma,
servisse como o novo fundador da nação.
Elias
O nome do profeta Elias também figura em algumas expectativas
judaicas intertestamentárias. Havia, entretanto, uma série de idéias so-
bre o papel de Elias na era final. Com base em Malaquias 4.5, 6, alguns
esperavam que Elias (ou uma figura como Elias) fosse o precursor do
caminho para o Messias. Outros parecem ter esperado que Elias voltasse
a viver e se tornasse o Messias. '7justino Mártir preserva a tradição de que
o precursor-Elias, de fato, ungiría o Messias.*38
Outros termos e títulos
Além dos termos discutidos até agora, o AT e as fontes apocalípticas
usam outros títulos para se referirem a uma figura escatológica espera-
da. '9 O conceito do Salvador presente ou vindouro,40Juiz ou Libertador

dc, pelo menos, parte da ideologia do servo de lsaías; cf. Aage Bentzen, King and
Messiah (London: Lutterworth, 1955), p. 65-7. Os samaritanos tinham a doutrina
de um Taheh (Restaurador) que estava baseada em D t 18.15 com D t 34.10-12 (em
que se lê no Pentateuco samaritano: “Nenhum profeta se levantará como Moi-
scs”, em vez de: “Nunca se levantou um profeta em Israel como Moisés”). Eles
acreditavam que Moisés não havia morrido de fato, mas estava escondido até o
tempo determinado. Ele, então, reaparecería como Messias.
’7Cf. Eclesiástico 48.1-11, em especial v. 10,11.
­8‫ י‬Justino Mártir, Diálogo com Trifio 49.
'‫ יי‬Observe o contexto apocalíptico na discussão messiânica de Lcl 7.20,21 .
1(1O nome próprio hebraico Josué se traduz para o grego como Ièsous ou Jesus, que
significa “O Senhor salva”. A conexão verbal levanta a possibilidade de alguns
hebreus terem procurado a figura messiânica que seria o salvador-lídcr como Jo-
sué, da mesma forma que alguns esperavam um Profeta como Moisés. O texto de
Hb 4.1-11 pode refletir parte dessa ideia. Uma variante textual cm jd 5 tem “Jesus/
Josuc”, quando a NRSV, cm inglês, traz “o Senhor”; assim, “quero lembrá-los,
embora já estejam plenamente informados, de que Josué [ou Jesus], que uma vez
por todas salvou um povo da terra do Egito, mais tarde destruiu aqueles que não
criam nele”.
345

é proeminente no AT, em escritos intertestamentários e no helenismo.'"


Pode, às vezes, refletir a posição e obra dos juizes do AT,4142 bem como
o conceito mais amplo de alguém que vem resgatar de situações angus-
dantes ou perigosas, doenças, morte ou rejeição da parte de Deus. Em
Ezequiel 34.11 -16, o “pastor” é uma imagem que descreve Deus juntando
o povo espalhado; também parece ser um termo messiânico no contexto
de Zacarias 9— 14 (em especial 11.4-17; 13.7).43 “Palavra” {logos) é clara-
mente um título messiânico-cristológico em João 1.1-18; a sabedoria pode
ser, às vezes, quase idêntica a esse termo.44 Aceitam-se de modo geral os
dois títulos aceitos como provenientes do ambiente helenista, mas eles
também podem ter raízes hebraicas.45 Outras designações incluem o Justo

41 Werner Foerster, “sõtéi”, em Theological Dictionary of the New Testament, Gerhard


Kittel, Gerhard Friedrich (orgs.), trad. Geoffrey W. Bromiley, 10 vols. (Grand
Rapids: Eerdmans, 1964-1976), vol. 7, p. 1003-14; Cullmann, Christology, p. 236-40.
42 Um conceito relacionado pode estar por trás do uso de archêgos (pioneiro, funda-
dor, vencedor, líder, governante, herói) em At 3.15; 5.31; f lb 2.10; 12.2. A palavra
também é usada em um dos textos gregos de Jz 11.6,11 para descrever a posição
de Jefté. V. tb. Is 9.6.
43 Os pastores antigos apresentavam uma imagem confusa. Por isso, Jesus se iden-
tifica com todo o cuidado como o bom pastor que cuida e sustenta seu rebanho
(Jo 10.11-16).
44 Pv 8— 9; Eclesiástico 4.11 -19; 14.20-27; 24.1 -34; 51.13-30; Sabedoria de Salomão 6.12—
11.1 (em especial); cf* Ulrich Wilckens, “Sophia" em TheologicalDictionary of theNew
Testament, vol. 7, p. 498-505.
45 Sobre “Sabedoria”, cf. nota 44. A “Palavra” tem raízes bem conhecidas na filo-
sofia grega, cm especial no estoicismo. É também a tradução usual do hebraico
dãvãr, a palavra criativa de Deus e o oráculo pelo qual ele revela a si mesmo e à sua
mensagem. O aramaico memra pode ser uma tradução para logos e também para o
nome divino. Cf. Cullmann, Christology, p. 254-8.
346

ou o Reto,46 o Renovo,47 o Eleito ou o Escolhido,48 o Filho de Deus ou de


Davi,4950*2a Pedra’" e Aquele que virá.’1

Sinais e provas do m essiado

Havia o fermento messiânico na terra de Israel no século I. A conduta,


se não as alegações, dos impostores messiânicos antes e também depois de
Jesus deve ter levantado a pergunta: “Este é o Messias?” (Jo 1.19-22; 4.29).
Jesus prenunciou que muitos se apresentariam dessa forma (Mc 13.6); es-
critos antigos confirmam a exatidão de sua declaração.’2 Portanto, temos
a pergunta: “Por quais motivos os judeus deveríam aceitar ou rejeitar um
candidato messiânico?”. Não havia procedimento formalmente prescrito.
Há, entretanto, alusões no N T e em outros escritos que nos permitem
dizer algo sobre o assunto.

4(12Sm 23.3; a Septuaginta de Is 3.10; 32.1; 53.11 (cf. 42.6, em que o Senhor diz a seu
servo: “Eu, o Senhor, o chamei para justiça”); lEnoque 38.2; 45.6; 53.6; Salmos
de Salomão 17.26; Sabedoria de Salomão 2.10-20. Nos manuscritos do mar Morto, o
conceito de justiça aparece com frequência; é atribuído a Deus (p. ex., 1QS 10.12),
o Mestre Justo (p. ex., lQ pH ab 5.10), e o “Messias Justo” (4QPBless 1.3); cf. Frank
Moore Cross, The Ancient Library of Qumran, 2. ed. (London: Duckworth, 1961),
p. 80xc. A própria comunidade é chamada “os Justos” (1QH 1.36; 1QS 3.20,22;
9.14; CD 11); entretanto, qèdõsím (santos) c geralmente usado nessa relação em
vez de sadíqim.
47 O Renovo ou Ramo (= descendência) de Davi: Is ll .l ; J r 23.5; 33.15; Zc 3.8; 6.12.
48 Is 42.1; 43.10; 44.1 (= Israel); lEnoque45.3-5; 49.2; 51.3,4; 52.6,9; 53.6; 55.4; 61.8;
62.1.
49 Is 9.6,7; lEnoque 105.2; 2Esdras 7.28,29; 13.32,37,52; 14-9; 4QFlor 1.10-12; v. tb.
Cullmann, Christology, p. 272-5.
50SI 118.22; Is 8.14; 28.16; Dn 2.35,44,45; v. tb. Gn 28.18.
71 Ao que parece, o termo não é usado de forma direta no AT ou nos escritos in-
tertestamentários. Dois dos três usos da construção no N T — artigo definido e
particípio (ho opisõ mou erchomenos, lit., “o que virá atrás de mim”) — ocorrem na
pregação de João Batista (Mt 3.11 [mas não no paralelo lucanoj e Jo 1.27) e, deste
modo, podem ser uma peculiaridade de sua pregação. O termo pode também
refletir um modo comum de se referir à figura cscatológica esperada. O texto dc
Hb 10.37 parece reforçar essa possibilidade.
52 Para obter uma lista e descrição de movimentos messiânicos no scculo I, veja
Richard A. Horsley com John S. Hanson, Bandits, Prophets, and Messiahs: Popular
Movements at the Time ofJesus (New York: Harper and Row, 1985), p. 110-31.
347

A avaliação da alegação messiânica era uma questão individual e ofi-


ciai. O s comprometidos com Jesus o fizeram com base na avaliação dele
(Jo 1.38-45; 4.42). O mesmo poderia ser dito dos seguidores de Teudas,’3
do Egípcio4’‫ ׳‬e de outras supostas figuras escatológicas. Decisões oficiais
precisavam de bases mais sólidas.
Em Mateus 15.1, Marcos 3.22 e 7.1, lemos sobre indivíduos que vieram
de Jerusalém para ouvir Jesus. Eles são identificados como escribas ou
fariseus. Seriam eles de algum tipo de conselho oficial de inquérito? Antes,
“judeus de Jerusalém enviaram sacerdotes e levitas para perguntarem |a
João Batista] quem ele era” (]o 1.19). É razoável supor que as autorida-
des procurariam reunir informações sobre qualquer pessoa carismática e
que alguns habitantes de Jerusalém, que se uniram às multidões ao redor
de Jesus, foram enviados com esse propósito. N o caso de João Batista,
eles fizeram perguntas diretas: “ [Você] não é o Cristo, nem Elias, nem
o Profeta?” — todos títulos messiânicos. Pelo menos uma vez, quando
Jesus estava no templo, “os judeus [...] perguntaram [a ele]: ‘... Se é você
o Cristo, diga-nos abertamente’ ” (jo 10.24).
O texto de João 7.30 conta uma tentativa de prender Jesus. É provável
que o propósito fosse examiná-lo em vista do entusiasmo popular por
ele despertado. Isso pode representar outro passo na investigação oficial.
Lemos nos versículos seguintes que as multidões perguntavam: “Quan-
do o Cristo vier, fará mais sinais miraculosos do que este homem fez?”
(v. 31). Então devemos pressupor que eram esperados sinais indicativos
da presença do Messias. O próprio Jesus diz: “A própria obra que o Pai
me deu para concluir, e que estou realizando, testemunha que o Pai me
enviou” 0o 5.36; v. tb. 10.24-26; 14.11). Pedro diz que Jesus foi aprovado
“por meio de milagres, maravilhas e sinais que Deus fez [...] por intermé-
dio dele” (At 2.22). João 12.37 queixa-se de que as multidões não creram
em Jesus “mesmo depois que Jesus fez todos aqueles sinais miraculosos”.
Que tipo de sinais se esperava do Messias? Esperavam-se milagres na
Palestina do século I. A questão não era a genuinidade ou não do milagre; o534

53At 5.?>(>·,]oseío,Antiquities20.5Λ (97-98); sobre se Josefo e Atos referem-se ou não


ao mesmo indivíduo, cf. F. F. Bruce, The Book of the Acts, rev. ed. Grand Rapids:
Eerdmans, 1988,116 n. 57.
54 At 21.38;Josefo,Jewish W ar2.\'iB (261-63); idem,Antiquities20.8.6 (169-72).
348

teste da verdadeira p rofecia consisda em n o m e de quem ele era realizado.55


( ) texto de D eu tero n ô m io 13.1-5 pede a m o rte de qualq uer p ro feta que
procurasse fazer Israel seguir o u tro s deuses. P o d e m o s tam bém pressu p o r
que as características registradas em D e u te ro n ô m io 18 tam b ém seriam
esperadas d o P ro feta. E le deveria ser um h eb reu cham ado pela aliança
de D eu s co m Israel, falar em n o m e de D eus, te r consciência da história,
m o strar p reo cu p ação social e ética e ser capaz d e co m b in ar proclam ação
e prenúncio.
A indicação dos m ilagres que pod eríam ser esperados d o Messias
vem d o N T . Q u a n d o Jo ã o Batista m an d a inquirir Jesus: “ É s tu aquele que
haveria de v ir o u d evem os esp erar algum o u tro ? ” , Jesus cham a atenção
para seus m ilagres: “ O s cegos veem , o s m an cos andam , os leprosos são
purificados, o s su rd o s o u v em , o s m o rto s são ressuscitados, e as boas no-
vas são pregadas aos p o b re s ” (M t 11.2-5; v. tb. Lc 7.21,22). E sses são, em
essência, os m ilagres p ren u n ciad o s em Isaías.56Jesus afirm a as o b ras são
sua atestação. E sses m ilagres, p o d e m o s observ ar, n ão são incom patíveis
com as condições esperadas na era final o u m essiânica.57
T am b ém se deve o b se rv a r q u e o c o m p o rta m e n to ap arentem ente
ultrajante d o S inédrio n o ju lg am en to de Jesus p o d e te r sido, de fato,
o u tro teste d o m essiado. D e p o is de Jesu s se reco n h ecer o M essias, ele
foi v en d ad o e o g o lp ead o , e exigiram q u e ele identificasse o golpeador
(Mc 14.61-65). E ssas ações parecem se basear em “ u m a antiga interpre-
tação de Isaías 11.2-4; de a c o rd o co m ela, o M essias poderia julgar pelo

33 Os apóstolos declararam diante do concilio: “Saibam os senhores e todo o povo


de Israel que por meio do nome de Jesus Cristo, o Nazareno, a quem os senhores
crucificaram, mas a quem Deus ressuscitou dos mortos, este homem está aí curado
diante dos senhores” (At 4.10; v. tb. Mt 7.22; Mc 9.38,39; jo 10.25; At 3.6,16; 4.7,
30; 16.18; 19.13).
56Is 29.18,19: “Os surdos ouvirão [...] os olhos dos cegos tornarão a ver. Mais uma
vez os humildes se alegrarão no Senhor, e os necessitados exultarão no Santo de
Israel”; 35.5,6: “Então se abrirão os olhos dos cegos e se destaparão os ouvidos
dos surdos. Então os coxos saltarão [...] e a língua do mudo cantará de alegria”;
61.1: “ [Ele] ungiu-me para levar boas notícias aos pobres”.
3 Para obter uma descrição dos sinais pelos quais esperavam, de acordo com es-
critos rabínicos, que o Messias criasse as condições idílicas da era messiânica, cf.
Klausncr, Messianic Idea, p. 502-17.
349
cheiro sem precisar enxergar”.58 Identificar o golpeador enquanto estava
vendado seria, presumivelmente, prova do messiado.
Jesus também ofereceu o sinal de Jonas: “Pois assim como Jonas
esteve três dias e três noites no ventre de um grande peixe, assim o Filho
do homem ficará três dias e três noites no coração da terra” (Mt 12.39,40;
v. tb. 16.4; Lc 11.29,30). Isso seus contemporâneos poderíam entender, ou
não. O sinal pelo qual a vasta maioria esperava era a libertação nacional,
a independência de Roma. Eles esperavam que o Messias entrasse em
Jerusalém como o “bendito [...] o que vem em nome do Senhor! Bendito
é o Reino vindouro de nosso pai Davi!” (Mc 11.9,10). E eles se reserva-
vam o direito de definir com precisão o significado dessas palavras. Sem
dúvida, havia grande diversidade de opiniões quanto aos sinais indicadores
da presença do Messias.

A obr a do M essias
A natureza da tarefa messiânica era outro assunto sobre o qual o ju-
daísmo intertestamentário mantinha opiniões diversas. Esperava-se que
o Messias estivesse no centro do grande drama escatológico da era final,
esboçado no Capítulo 14. Ele deveria ser o inaugurador da era, quem
a traria à existência. Esperava-se que ele fosse o fundador do Reino de
Deus, o supremo regente sobre ele. Sobretudo, ele iria “ restaurar o reino
a Israel” (At 1.6). Cada um dos modelos da era final no AT (o Éden, o
Êxodo e a era davídico-salomônica) contava com uma obra messiânica
correspondente. Cada termo ou título escatológico, da mesma forma,
carregava consigo uma obra messiânica única.
58William L. Lane, The GospelAccording to Mark., New International Commentary
on the New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1974), p. 539-40. Conforme
Lane explica (n. 148), o Talmude babilônico Sanhedrin 93b apresenta Is 11.3,4: “Ele
sente o cheiro [de um homem] e julga, como está escrito: ‘E ele não julgará pela
aparência, nem decidfrá com base no que ouviu; mas com retidão julgará os neccs-
sitados, com justiça tomará decisões em favor dos pobres’ ”. Os rabinos, portanto,
pressupunham que 11.3 dissesse: “Ele sente o cheiro de acordo com o temor do
S e n h o r ” — eles interpretam a palavra hebraica normalmente traduzida por “se
inspirará” como “sentir o cheiro”. A passagem talmúdica logo em seguida fala do
pseudomessias Bar Kochba: “Bar Kochba reinou dois anos e meio, e então disse
aos rabinos: ‘Eu sou o Messias’. Eles responderam: ‘Sobre o Messias está escrito
que ele sente o cheiro e julga: vejamos se ele pode fazer isso’. Quando viram que
ele era incapaz de julgar pelo cheiro, eles o mataram”.
350

O aguardado papel do Messias como Salvador pode ter sido vago,


mas a afirmação do N T de que Jesus “salvará o seu povo dos seus peca-
dos” (Mt 1.21) com certeza estava no perfil da esperança messiânica do
judaísmo intertestamentário.59Tais sentimentos eram compatíveis com a
expectativa da era final e da consumação, quando Deus completaria sua
obra para inverter os efeitos da queda.

‫ 'יי‬Λο que parece, esperava-se que o Filho do homem seria um regente espiritual,
cósmico. Por isso, o ensino de Jesus de que “nem mesmo o Filho do homem veio
para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mc 10.45)
e de que ele veio “buscar e salvar o que estava perdido” (Lc 19.10) teria sido difícil
para seus discípulos entenderem.
17

Aliança e lei na era final

• A aliança na era final


• A lei na era final

A liança n a era final

O monoteísmo, a aliança e a lei eram os pilares da fé hebraica. O


salmista expressa confiança na natureza imutável de Deus quando clama:
“N o princípio firmaste os fundamentos da terra, e os céus são obras das
mas mãos. Eles perecerão, mas tu permanecerás; envelhecerão como
vestimentas [...] Mas tu permaneces o mesmo, e os teus dias jamais terão
fim” (SI 102.25-27). E as outras duas? A chegada da era final, que traria
mudanças radicais, poderia afetar a lei e a aliança?
N o AT, Jeremias fala de forma mais explícita da nova aliança, ou pelo
menos renovada:
“Estão chegando os dias”, declara o Senhor , “quando farei uma nova
aliança com a comunidade de Israel e com a comunidade de Judá. Não
será como a aliança que fiz com os seus antepassados quando os tomei
pela mão para tirá-los do Egito; porque quebraram a minha aliança, apesar
de eu ser o Senhor deles”, declara o Senhor . “Esta é a aliança que farei
com a comunidade de Israel depois daqueles dias”, declara o Senhor :
“Porei a minha lei no íntimo deles e a escreverei nos seus corações. Serei
o Deus deles, e eles serão o meu povo. Ninguém mais ensinará ao seu
próximo nem ao seu irmão, dizendo: ‘Conheça ao Senhor ’, porque
todos eles me conhecerão, desde o m enor até o maior”, diz o S enhor .
“Porque eu lhes perdoarei a maldade e não me lembrarei mais dos seus
pecados” (|r 31.31-34; v. tb. Ez 36.22-36).
352

O conceito é encontrado em outras passagens. Em Ezequiel 37, por


exemplo, a visão da ressuscitação dos ossos secos e da junção das duas
varas (judá e Josc) é concluída com a promessa: “Farei uma aliança de paz
com eles; será uma aliança eterna” (v. 26).
A grande maioria das referências à “aliança” em escritos intertesta-
mentários afirma sua natureza eterna ou confessa o pecado de Israel ao
quebrá-la. Referências à nova aliança são esparsas e normalmente ambí-
guas. Ao falar da restauração de Israel à sua terra, Baruque 2.35 (NTLH-P)
diz: “ Farei com eles uma aliança eterna, pela qual u .1 serei o Deus deles,
e eles serão o meu povo. E nunca mais tirarei o meu povo de Israel da
terra que eu lhe dei”.
O livro de Jubileus pressupõe a validade permanente da lei e implica
que a era futura já estava, em certo sentido, presente.1 Nesse contexto,
embora a palavra aliança não seja usada, uma declaração como a de Jubileus
1.22-25 é significativa:
E o Senhor disse a Moisés: “Eu conheço a contrariedade, o pensamento
e a teimosia deles. E eles não obedecerão até que reconheçam seu pe-
cado e o pecado de seus pais. Mas, depois disso, retornarão a mim com
toda a retidão e de todo o coração e alma. E cortarei o prepúcio de seu
coração e o prepúcio do coração de seus descendentes. Eu criarei para
eles um santo espírito e os purificarei para que não deixem de me seguir
naquele dia e para sempre. E sua alma se apegará a mim e a todos os meus
mandamentos. Eles cumprirão meus mandamentos. E serei um pai para
eles, e eles serão filhos para mim. E todos eles serão chamados ‘filhos do
Deus vivo’. E todos os anjos e espíritos saberão e reconhecerão que eles
são meus filhos e eu sou seu pai com retidão e justiça. E eu os amarei”.

As palavras e o conceito desta declaração são similares às da passagem


de Jeremias. Ela aponta de modo inequívoco para o novo relacionamento
entre Deus e o povo em algum momento futuro.

1 Jubileus 2.33: “Essa lei e testemunho foram dados aos filhos de Israel como lei
eterna para suas gerações”; v. tb. 6.14; 13.25,26; 15.25,28,29; 16.29,30; 30.10; 49,8.
Jubileus afirma várias vezes que a lei está “escrita em tábuas celestes” (3.31; 6.17;
15.25; 16.29; 49.8). A respeito da presença da era futura, cf. The Apocrypha and
Pseudepigrapba 0J the Old Testament, R. Η. Charles (org.), 2 vols. (Oxford: Clarendon,
1913), vol. 2, p. 9.
353

Dentre as informações anteriores a respeito da comunidade do mar


Morto observou-se que ela se considerava o Israel dos últimos dias (Ca-
pítulo 11). A terminologia e os conceitos da aliança são proeminentes
nos manuscritos, eles usam até mesmo a expressão “nova aliança”. O
grupo acreditava viver sob tal aliança; essa convicção os mantinha juntos
e dominava sua vida.
N o NT, a Ultima Ceia é uma cerimônia de renovação da aliança. Jesus
proferiu: “ Isto é o meu sangue da aliança” (Mt 26.28; Mc 14.24; Lc 22.20;
IC o 11.25). Alguns manuscritos de Mateus e Marcos se juntam a Lucas e
ICoríntios ao incluir a palavra “nova” para modificar “aliança”.
A epístola aos Hebreus afirma claramente que, por conta da era final
(“nestes últimos dias” , 1.2),2 a nova aliança tornou “antiquada a primeira;
e o que se torna antiquado e envelhecido está a ponto de desaparecer”
(8.13). Por duas vezes o autor cita a passagem de Jeremias 31 sobre a “nova
aliança” (Hb 8.8-12; 10.16,17); também afirma que Jesus é o “mediador
de uma melhor aliança” (Hb 8.6, ACF; v. tb. 7.22; 9.15; 12.24). Tudo isso
porque Jesus apareceu “no fim dos tempos” (Hb 9.26).
Em bora haja certa obscuridade sobre o significado exato da “ nova
aliança”, os autores do AT e dos escritos intertestamentários acreditam
que algo acontecerá à aliança no raiar da era final. Não obstante, quando
Jeremias fala da “nova aliança”, ele resume seu conteúdo com as mesmas
palavras que expressam a essência da antiga aliança: “Eu serei o Deus
deles, e eles serão o meu povo”. Assim, fica claro que a natureza essen-
ciai da nova aliança é a mesma da antiga. A real novidade parece estar na
forma como ela será administrada e, em particular, na forma como a lei
se relaciona com ela.

Lei na era final

A estreita relação entre aliança e lei podería levar à suposição de que o


destino de uma também afetaria o da outra; havendo nova aliança, deveria
haver uma nova lei também. Essa expectativa não é, entretanto, apresentada
de m odo explícito nos escritos judaicos anteriores ao período do templo
de Herodes nem nesse período.

2 A estrutura fundamental pode ser obtida em J. Julius Scott Jr., “Archêgos in the
Salvation History o f the Epistle to the Hebrews”Journalof the Evangelical Theological
Society 29:1 (March 1986): 47-54.
354

Antes de prosseguirmos, precisamos perguntar que tipo de evidências


apontaria para a crença na mudança da lei na era final. Precisamos entender
com clareza que os judeus intertestamentários viam a lei como um conjunto.
Se parte dela fosse afetada, ela o seria de modo integral; se parte dela fosse
deixada de lado, toda ela, de certo modo, seria revogada. Esse conceito judai-
co foi resumido de forma inequívoca em Tiago 2.10: “Pois quem obedece a
toda a Lei, mas tropeça em apenas um ponto, torna-se culpado de quebrá-la
inteiramente” (v. tb. G1 3.10). Assim, qualquer evidência da expectativa
de uma alteração, substituição ou anulação de qualquer mandamento ou
instituição legal na era final apontaria para a crença de que a totalidade
da lei seria alterada.
São poucos os estudos cuidadosos sobre o lugar da lei na era final.
O mais importante é um pequeno livro de William D. Davies, Torah in the
MessianicAge and/or theAge to Come [A Torn na era messiânica e / ou era vindoura{?
As principais linhas de seu argumento moldam o restante deste capítulo.
N o período intertestamentário acreditava-se que a lei permanecería o
padrão da justiça e do juízo na era final. Por isso, as passagens intertesta-
mentárias que mencionam a justiça ou o juízo pressupõem a continuidade
da validade da lei.
Em Eclesiástico, lEnoque e Sabedoria de Salomão, observa Davies, há
uma ligação estreita entre a sabedoria e a lei; isso é significativo, diz ele,
“porque, desde os primórdios, a sabedoria foi associada à Torá como em
Deuteronômio 4.6”.34 Em lEnoque 42.1,2, a Sabedoria não encontra um
lar terreno e retorna ao céu. Quando a passagem é colocada ao lado de
várias outras, “nas quais se afirma que a Sabedoria em sua plenitude é a
3 Philadelphia: Society o f Biblical Literature, 1952; v. tb. idem: “The Role of Torah
in the Messianic Age”, apêndice 6 em The Setting of the Sermon on the Mount (New
York: Cambridge University Press, 1964), p. 447-50; idem, Pauland RabbinicJudaism,
2. ed. (London: SPCK, 1955), p. 60-1. O assunto também foi tratado por H. L.
Strack, Paul Billerbeck, Kommentar gum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch,
6 vols. (München: C. H. Beck, 1922-1961), vol. 1, p. 244 e Excursus 29 (“Diese
Welt, die Tage des Messias und die zukünftige Welt”, 4.2:799-976); Alfred Eder-
sheim, “The Law in Messianic Times”, apêndice 14 em The Life and Times ofJesus
the Messiah, 8. ed., 2 vols. (New York: Longmans, Green, 1907), vol. 2, p. 762-6;
e Joseph Klausner, The Messianic Idea in Israel, trad. W. E Stinespring (New York:
Macmillan, 1955), p. 408-19; os últimos três dependem quase exclusivamente de
fontes rabínicas.
4 Davies, Torah, p. 42.
355

marca da existência messiânica”, temos a implicação de que a lei deixará


de estar presente na terra até o alvorecer da era final.5 Assim, a chegada
da era final tem, de fato, algum efeito sobre a lei.
A passagem de Esdras 2.63 busca o sacerdote futuro que use o Urim
e Tumim para resolver o dilema dos sacerdotes cujas genealogias estão
perdidas. De igual modo, / Macabeus 4.46 e 14.41 antecipam o tempo em
que o profeta vindouro resolverá os problemas não tratados com clareza
pela lei. Presume-se que tanto esse sacerdote como o profeta chegassem
à era escatológica. Embora Salmos de Salomão 17 não diga nada sugestivo
de que o Messias trará uma nova lei, o texto deixa implícito que a era
final será marcada por condições que não estão presentes agora. Essas
condições capacitarão as pessoas a viver com retidão, de acordo com a lei.
Os manuscritos do mar M orto dizem que a comunidade só poderá saber
mais da lei com a chegada do Messias, que revelará coisas novas.6A partir
dessas referências dispersas, Davies conclui que, apesar de os escritores
intertestamentários acreditarem na continuidade da validade da lei, eles
antecipavam que “havería, pelo menos, um entendimento melhor [dela]
no futuro”.7 De forma mais específica, eles esperavam que 1) a lei fosse
interpretada de maneira mais satisfatória e gloriosa e que 2) os gentios
fossem colocados sob seu domínio (v. Capítulo 18).
Ao se voltar para as fontes rabínicas, Davies aponta que nesse período
a lei se tornou a pedra angular da vida judaica. Isso era evidente pelo fato
de a lealdade a ela ser um fator essencial para reger assuntos religiosos
e políticos; também era evidente pelo modo que a lei era glorificada no
pensamento judaico. Acreditava-se na preexistência da lei, e na sua ins-

5 Ibid., p. 43; Davies lista lEnnque 5.8; 48.1; 49.1-3; 91.10 e 2Baruque 44.14, e observa
que, na interpretação de R. H. Charles, lEnoque 42.1,2 significa que a Sabedoria
retornará nos tempos messiânicos.
6 Davies, Torah, p. 46, cita o chamado Documento de Damasco (ou Zadoquita) (CD
6): “O poço é a Lei, e os que o cavaram são os penitentes de Israel que saíram da
terra de Judá e peregrinaram na terra de Damasco; eles foram todos chamados
príncipes por Deus, pois eles o buscaram, e a glória divina não foi rejeitada pela
boca de ninguém. O doador da Lei é quem a estuda no que diz respeito a quem
Isaías disse: ‘F.le produz a ferramenta para sua obra’. E os nobres do povo são os
cavadores do poço de acordo com os preceitos nos quais o doador da Lei ordenou
que eles andassem ao longo de todo o período de iniquidade. E salvo eles, eles
não terão nada até que surja o Mestre da Justiça no fim dos dias”.
7 Davies, Torah, p. 44.
356
trumentalidade na criação do mundo, e imutabilidade. N o entanto, ele
prossegue, a literatura rabínica representa “apenas uma tendência da [...]
corrente [do judaísmo]... A possibilidade que deve sempre ser considerada
é a de que muitas ênfases ou tendências no judaísmo do século I não estão
representadas nas fontes que temos; [...] pode ser que grande parte do
material na tradição sobre a natureza e o papel da Torá na era messiânica
tenha sido ignorada ou intencionalmente suprimida ou modificada”.8
Sobre a questão de existir alguma evidência de outro ponto de vista,
Davi responde que alguns grupos estavam cientes da necessidade de várias
modificações da lei na era futura. Ele chama a atenção para os escritos
que sugerem o seguinte: na era messiânica, certos festivais já não seriam
celebrados, leis acerca da pureza e impureza poderíam ser mudadas e alguns
sacrifícios suspensos. Há também a sugestão de que os gentios compar-
filhariam as bênçãos da lei na era messiânica. Era comum a antecipação
de novas interpretações e esclarecimentos da lei. Isso inclui a expectativa
de que as dificuldades e incompreensibilidades seriam explicadas e en-
tendidas. Por exemplo, esperava-se que a era messiânica fosse um tempo
em que Deus explicaria a seu povo as razões para mandamentos para os
quais agora não parece haver nenhuma.
Algumas passagens de um período bem posterior à era intertesta-
mentária afirmam que a lei será alterada ou completamente revogada na
era messiânica ou que surgirá uma nova lei. O Sifre de Deuteronômio 17.8
diz: “M ixná Torá [...] foi destinada a ser alterada”.9*Uma vez que “ensi-
no” é uma possível tradução para Torá, o targum de Isaías 12.3 é relevante
aqui: “E com alegria vocês receberão do escolhido da justiça um novo
ensino”. Além disso, embora o significado exato seja discutido, Davies
acredita que o Talmude babilônico Shabbat 151 b implica que “a Torá já não
se sustenta na era messiânica” .1" O texto em questão diz: “R. Shim‘on b.
E l‘azar (165-200 d.C.) disse: ‘... e que cheguem os anos em que dirás: Não tenho
prazer neles (Ec 12.1), e isso se refere à era messiânica, na qual não haverá
nem mérito nem culpa’. Agora, ele discorda de Samuel, que diz: A única
diferença entre este mundo e a era messiânica tem a ver com a servidão aos
poderes (estrangeiros), pois é dito: Pois o pobre nunca deixará de existir

8 Ibid., p. 53.
9 Toseftá, Sanhedrin 4.7, de igual modo, diz: “A Torá está destinada a ser alterada”.
Davies, Torah, p. 65.
357

na terra”. O ponto é: não há recompensa nem punição na era messiânica,


pois não há lei.
Davies conclui que, embora o AT, os apócrifos, os pseudepígrafos
e as fontes rabínicas gcralmente esperem que “a Torá, em sua forma
existente, continue a existir na era messiânica [...] há também expressões
ocasionais de expectativas de que a Torá sofra modificação nessa era...
[Entretanto,] acreditava-se que todas as mudanças previstas ocorressem
no contexto da Torá existente... Esperava-se que [o] jugo |da Torá], em
algumas passagens, se tornasse ainda mais pesado”." N o que diz respeito
à escassez de evidências para a doutrina da modificação da lei ou da nova
lei na era final, Davies sugere que elas podem ter sido suprimidas pelos
judeus em reação ao cristianismo.1112Ele argumenta que a polêmica contra
a doutrina, de fato, indica sua existência.1'
Uma das passagens talmúdicas à qual Davies se refere, Sanhedrin
91a-b, também é importante para a compreensão de Leo Bacck acerca da
visão da lei por Paulo: “A Ί 'atina d“vê Eliyahu [a Escola de Elias] ensina:
Ό mundo deve existir por seis mil anos. N os primeiros dois mil anos
houve uma desolação [lit., não existiu a Torá]; em dois mil anos a Torá
floresceu; e os próximos dois mil anos é a era messiânica, mas, por causa
de nossa iniquidade, tudo isso se perdeu’ ”.14 Aqui está a crença clara de
que o período da lei chegaria ao fim e seria substituído pela era messiânica.
Baeck afirma que entre alguns grupos judaicos, ao menos, havia a crença
pré-cristã na substituição da lei na era final e que a experiência de Paulo é
exemplo disso. Ele sugere, para entendermos com correção a doutrina de
Paulo sobre a lei, que devemos pressupor a manutenção de suas convicções
na mudança do judaísmo para o cristianismo. Visto por essa perspectiva,
argumenta Baeck, o apóstolo “lutava não contra a ‘lei’, mas contra a ‘pre­

11 lbid., p. 84, 66.


12 Ibid, p. 86-89.
13 Ibid, p. 87, trecho em que Davies cita Deuteronômio Rabhah 8: “Está escrito: ‘Pois
este mandamento não está no céu’ (Dt 30.11,12). Moisés disse aos israelitas: Para
que não digam: Outro Moisés deve se levantar e nos trazer outra Lei do céu,
portanto, eu lhes dou a saber agora que ela não está no céu: nada dela resta no
céu”. Davies também observa que Justino Mártir “alega ter lido ‘que haverá uma
lei final (e uma eterna)’ ”.
H Cf. Davies, Torah, p. 78-83; Leo Baeck, “The Faith o f Paul”, Journal of Jewish Sin-
dies 3 (1952): 105-6.
358

sente’ validade dela”.15 Esse assunto era importante para Paulo porque
“não era a ‘lei’ como tal, mas o Messias, sua presença, sua realidade que
estavam em jogo... Quem quer que sustentasse que a lei ainda permanecia,
era incrédulo; esse indivíduo não cria na presença de Cristo”.16 O que quer
que seja dito da visão de Baeck sobre Paulo, ele mostra que o lugar da lei
na era final é um assunto possivelmente significativo em qualquer estudo
do pensamento cristão.
Observamos antes a natureza unificada da lei. Se uma parte for deixada
de lado, toda a lei é afetada; a violação de uma lei-torna o transgressor
culpado de quebrar o conjunto. Tendo isso em mente, devemos observar
o NT. Jesus desafiou a ordenança do sábado, pelo menos do modo como
ela era interpretada em seus dias (Mt 12.1-14; [=Mc 2.23— 3.6;Lc 6.1-11];
Lc 13.10-17; 14.1-6;J0 5.2-18; 7.19-24; 9.14,16]). Sua autoridade para fazer
isso era: “O Filho do homem é Senhor até mesmo do sábado” (Mc 2.28)
— a presença de uma figura escatológica era autoridade suficiente para
mudar interpretações e práticas passadas. O mesmo era verdade sobre
o desafio da validade das tradições dos líderes religiosos (Mc 7.2-23). A
sentença “Ao dizer isso, Jesus declarou ‘puros’ todos os alimentos” (v. 19)
fala por si só. Ele então continuou a argumentar que a legalidade depende
do que vem “do interior do coração dos homens” (v. 21). Dificilmente
pode-se ignorar o paralelo com o prenuncio de Jeremias de que “depois
daqueles dias [...] porei a minha lei no íntimo deles e a escreverei nos seus
corações” (Jr 31.33). Jesus afirmou que a lei permanece só “até que tudo
se cumpra” — “de forma alguma desaparecerá da Lei a menor letra ou o
menor traço, até que tudo se cumpra” (Mt 5.18).17
Podemos avançar mais, passando para as palavras de Paulo: “Porque
0 fim da Lei é Cristo, para a justificação de todo o que crê” (Rm 10.4), e
“Cristo nos redimiu da maldição da Lei” (G13.13). Lembrando do princí­
' ‫“ י‬Faith o f Paul”, ρ. 106-7; v. tb. idem, The Pharisees (New York: Schocken, 1947),
p. 72-74.
16Baeck, “Faith of Paul”, p. 107.
1 A palavra traduzida por “se cumpra” é a grega gemtai, que significa algo como
“venha a acontecer” ou “aconteça”. Deve ser considerada junto com “cumprir”
(plêrõsai) no versículo anterior (“não vim abolir, mas cumprir”). A mesma palavra
é usada em Mc 1.15 para anunciar o ponto crítico que introduz a nova era (“o
tempo é chegado \peplêrõtai\”). Por isso, suspeito que a expressão “até que tudo
se cumpra”, em Mt 5.18, possa ser uma referência velada à chegada da era final.
359

p io de que p a rte da lei rep resen ta o to d o, co nsidere tam b ém a im plicação


de G álatas 5.2: “ C aso se deixem circuncidar, C risto de nada lhes servirá” .
Talvez pudéssem o s parafrasear a declaração: “Se você se subm ete às orde-
nanças da lei (para o b te r a salvação), então está agindo co m o se o Messias,
que traz a era final, n ão tivesse vind o; a vida e o m inistério de Jesus não
terão significado nem benefício para você” . A epístola aos H ebreus é ainda
m ais forte. E la argum enta q ue em C risto a antiga revelação — a liderança
d e M oisés, o sacerdócio levítico e os sacrifícios — deu lugar à nova.
D avies conclui que a evidência da crença pré-cristã na lei alterada
o u nova na era final n ão é suficien tem en te definitiva e clara nas fontes
judaicas p ara nos d ar certeza. A evidência m ais fo rte dessa crença é que
“ o s p rim eiros cristãos, cien tes d e viverem n a e ra m essiânica, de fato
en co n traram lugar em sua in terp retação da dispcnsação cristã para tal
co n ceito ” .18 D avies acredita que, para o s prim eiros cristãos judeus, a nova
lei da era final era um a realidade; n ão era um código, m as a própria pessoa
de Jesus C risto.19
E m b o ra aceitem os o s princípios gerais da conclusão, reconhecem os
que ainda existem várias dúvidas e pro blem as a respeito da lei na era final.
D izer que a era v indoura trará m udanças à lei é algo que não especifica
o tipo de m udanças. Im plicações nas fontes judaicas d ão origem a várias
opiniões: 1) a lei p erm an ecerá inalterada, m as será m u ito m ais reveren-
ciada; 2) haverá u m m elh o r e n te n d im e n to da antiga lei, a devoção mais
p ro fu n d a a ela e a capacidade cada vez m aior de cum pri-la na era final; 3) a
antiga lei perm an ecerá, m as d e fo rm a m udada, alterada e m odificada; 4) a

Davies, Torah, p. 90.


19 Ibid., ρ. 93-94: “Embora Paulo considere as palavras de Jesus a base de um tipo
de halakhah cristã, é o Cristo em pessoa, não apenas, nem principalmente, em suas
palavras, que constitui a Nova Torá: e assim também nos quatro Evangelhos a
Nova Torá não é arenas resumida no mandamento de agapi, que encontra sua
regra no amor de Cristo aos seus e no amor de Deus a Cristo, mas é percebida
também na Pessoa de Jesus, que é o Caminho, a Verdade e a Vida, isto é, a Torá
personalizada é comparada com Moisés. A personificação da Torá em Cristo
ultrapassa qualquer coisa encontrada nas fontes judaicas: não há premonição do
Messias se tornando a Torá em si mesmo... Então devemos afirmar que os mem-
bros da igreja primitiva viram a Torá no próprio Jesus, bem como nas palavras dele,
descobriram não apenas que quaisquer possíveis expectativas de uma Nova Torá
que o judaísmo pudesse ter acalentado se cumpriram nele, mas que elas também
foram transcendidas”.
360

antiga lei e a nova lei existirão lad o a lado n a era final; 5) a antiga lei será
abolida p o r com p leto, su b stitu íd a p o r um a nova lei escrita e, p o r últim o,
6) o Messias reinará de m aneira direta e pessoal; p o rta n to , apenas a palavra
d o M essias será lei na era final. T am b ém p erm an ecem sem respostas as
perguntas so b re a fo rm a q u e a lei assum iría, seu co n te ú d o e u so (p. ex.,
ela era para salvação o u o u tra coisa?). P o r isso, então, n ão sabem os tanto
q u an to gostaríam o s so b re as m udanças radicais esperadas que a chegada
da era final. E evidente, entretan to , q u e pelo m en o s alguns g ru p o s judaicos
intertestam entários esperavam q u e elas afetassem até m esm o o cerne do
judaísm o: a aliança e a lei.
18

Atitudes judaicas intertestamentárias


em relação aos gentios

• Atitudes judaicas em geral


• Regulamentos da conduta esperada dos gentios
• A questão da missão judaica aos gentios
• Prosélitos e tementes a Deus
- Prosélitos
- Tementes a Deus
• Os gentios na era final

Atitu d e s judaicas em geral

As atitudes judaicas para com os gentios eram complexas. Nesse senti-


do é significativo que no hebraico e no grego a mesma palavra (gôy, ethnos)
possa carregar a idcia de “gentio”, “nações”, “estrangeiro” ou “pagão”.
As Escrituras ensinam ser Deus o Criador de tudo e que seu soberano
poder e senhorio se estendem sobre todos. Ao mesmo tempo, os judeus
consideravam as nações do mundo sob o controle de poderes espirituais
do mal que, com frequência, usavam-nas como ferramentas. Por meio das
nações gentílicas, os p*oderes do mal procuravam atingir Deus ao atacar
e perseguir Israel.
De forma geral, a literatura rabínica expõe sentimentos hostis contra
os não judeus.1E preciso lembrar, entretanto, que os sentimentos foram
' Resumidos por E. G. Hirsch e J. D. Eisenstein, “Gentiles”, em Jewish Encyclope-
dia, 12 vols. (New York: Funk and Wagnalls, 1925), vol. 5, p. 614-8; v. tb. Joseph
Bonsirven, Palestinian Judaism in the Time of Jesus Christ, trad. William Wolf (New
York: Holt, Rinehart and Winston, 1964), p. 64-71; C. G. Montefiore, I I. Loewe
(orgs.) RabbinicAnthology (New York: Schocken, 1974), p. 556-65.
362

se solidificando com as experiências do período intertestamentário e dos


primeiros séculos da era cristã, incluindo-se a opressão, as várias medidas
antissemitas e mesmo a destruição de Jerusalém. Esses sentimentos eram
consequências do longo processo histórico em que aumentaram as atitudes
particularistas e elitistas e o zelo para proteger o privilégio judaico. Apenas
em um nível moderado as atitudes nos escritos posteriores capturam os
sentimentos do judaísmo antes de 70 d.C.
N o que diz respeito às atitudes para com os gentios, deveriamos es-
perar a mesma diversidade observada com frequência em muitos outros
componentes do judaísmo intertestamentário. Isso era, de fato, o que
acontecia. Não havia atitude única, uniforme, para com os gentios; eles
eram vistos de várias formas por grupos judaicos particulares. Além disso,
os judeus faziam distinções entre os gentios. Diversos níveis de bondade,
amizade e aceitação eram conferidos aos gentios simpatizantes ou, pelo
menos, não hostis aos judeus e ao judaísmo. Respeito e honra normalmente
eram dados àqueles em posições de grande poder, embora sentimentos de
hostilidade e desejo de vingança fossem evidentes, em especial para com
governadores que perseguiam os judeus ou lhes causavam dificuldades.23
Outros, talvez a maioria dos gentios, eram objeto de suspeita, desprezo
e até animosidade.
Há evidência de que, quase no fim do período do AT, alguns judeus
tinham uma atitude bem menos severa que o isolacionismo e desdém cada
vez maiores para com os gentios que se viam entre muitos de sua raça.’
Enquanto o profeta Habacuque considerava a hostilidade e brutalidade
dos gentios para com Israel como oposição dos ímpios aos comparativa-
mente justos, parecia que outros escritores, como Jeremias, viam os pagãos
compartilhando o amor de Deus e, por fim, sendo objetos de salvação.
Assim, lado a lado, dentro do judaísmo intertestamentário, havia um forte
movimento separatista e um desdém temeroso geral dos gentios, mas
também havia aceitação de, pelo menos, alguns não judeus e o desejo de
ganhá-los para o judaísmo.
Vários elementos contribuíram para o desenvolvimento da atitude
judaica intertestamentária para com os gentios. Notável entre eles era

2 Veja, p. cx., o tratado de Fílon contra Flaco e os livros de Ester, Macabeus c Judite.
3 Hirsch, Eisenstein, “Gentiles” 5:616, observam que se as conclusões das escolas
básicas forem aceitas, “os livros de Rute e Jonas são provas documentais de que
o radicalismo hebraico de Esdras foi recebido com oposição estrênua”.
363

uma mentalidade vinda do entendimento de Israel quanto à sua condição


especial baseada na eleição no contexto da aliança. A resposta de Paulo à
sua própria pergunta: “Que vantagem há então em ser judeu?” pode ter
vindo de muitos judeus sérios de sua época: “Muita, em todos os sentidos!
Principal mente porque aos judeus foram confiadas as palavras de Deus [...]
Deles é a adoção de filhos; deles é a glória divina, as alianças, a concessão
da Lei, a adoração no templo e as promessas. Deles são os patriarcas, e a
partir deles se traça a linhagem humana de Cristo, que é Deus acima de
todos” (Rm 3.1,2; 9.4,5).
Será útil tentar entender exatamente as principais questões que levavam
o devoto judeu intertestamentário a evitar o contato desnecessário com
os gentios.‘1Claro que alguns judeus não gostavam dos gentios apenas por
serem gentios; não raro existe uma desconfiança e um distanciamento de
pessoas e culturas diferentes. A força dominante nos sentimentos negativos
de Israel em relação aos gentios, entretanto, não era basicamente racial,
nacional ou cultural. Era religiosa. Israel era o povo de Deus, o objeto do
favor especial do S e n h o r , não por causa de seus méritos, mas apenas por
causa da livre escolha e do amor de Deus (Dt 7.7,8; 26.5-9). Os gentios
estavam fora da aliança; eles eram os não eleitos.
Três fatores específicos parecem ter sido especialmente importantes
no sentido de levar muitos judeus a reduzir o contato com estrangeiros.
Primeiro, os judeus abominavam os gentios e desconfiavam deles por sua
idolatria e todas as coisas ligadas a ela. A história de Israel mostra repulsa à
idolatria e fascinação por ela. O exílio, ao que parece, abrandou a segunda.
Para o judeu, a idolatria era a blasfêmia e o crime máximo contra Deus.
Segundo, os judeus detestavam o baixo padrão ético e moral tão evidente
no mundo gentílico. Além das práticas associadas ao culto pagão, havia
irregularidades sexuais, bestialidades, abortos, infanticídios, assassinato
4 O Midrash Gênesis Rabbah 31.6 lança um pouco de luz sobre a questão: “Quais
são os pecados capitais no judaísmo?”. A passagem comenta sobre Gn 6.11,
que afirma que a ira de Deus caiu sobre o mundo de Noé “porque a terra estava
cheia de hãmãs (violência)”. O rabino Levi diz que hãmãs significa “derramamen-
to de sangue” (]1 3.19), “abominações sexuais” (|r 51.35) e “idolatria” (Ez 8.17,
citação de Gn 6.11). O Talmude babilônico Sanhedrin ΊΑα diz que todo judeu deve
estar disposto a ser martirizado para não cometer esses três pecados. Por essas
referências rabínicas sou grato a T. S. Frymer-Kensky, “The Atrahasis Epic and
Its Significance for our Understanding of Genesis 1-9”, BiblicalArchaeologist 40:4
(December 1977): 147-55.
364

de escravos e outros atos envolvendo derramamento de sangue inocente.


Muitos judeus se afastavam do que viam como irresponsabilidade moral
dos gentios. O s devotos se mantinham o .mais longe disso possível. Por
fim, havia toda a questão da pureza cerimonial. Os gentios e suas ações
eram impuros. O casamento misto entre gentios e judeus traria corrupção
à estirpe pura de Israel (Ed 9—10; Ne 13.23-31).5 De fato, qualquer asso-
ciação com os gentios podería levar o judeu ao estado de contaminação.
O contato desregulado com os gentios podia pôr em perigo todo o siste-
ma de obscrvâncias cerimoniais e rituais baseadas nâ lei do AT e que, no
período intertestamentário, se tornaram emblemas de identidade nacional
e instrumentos de exclusivismo e proteção de alguns grupos judaicos. As-
sim, a aversão judaica à comunhão à mesa com os gentios estava baseada
em mais que o simples temor de alimentos não kasher ou carne dedicada
em templos pagãos. Além disso, os gentios não raro desconsideravam as
restrições alimentares e outros regulamentos destinados à pureza racial e
cerimonial ou mostravam animosidade visível em relação a eles. Às vezes
procuravam enganar os judeus ou forçá-los com situações compromete-
doras que os levariam à impureza.
A animosidade judaica cm relação aos gentios naturalmente aumentou
em reação aos períodos de perseguição nacional; esforços para acabar
com os judeus e as características distintivas da religião judaica, como a
tentativa de Hamã (do livro de Ester), de Antíoco Epifânio e de outros,
alimentaram a desconfiança deles. Alta tributação, medidas administrativas
pesadas, crueldade e insensibilidade dos soberanos estrangeiros também
incitaram o ódio judaico em relação aos estrangeiros.
N o entanto, o isolamento não podería ser a única postura do judaísmo
intertestamentário. Havia uma forte presença da cultura gentílica (hele-
nismo) e de residentes não judeus da terra de Israel, mesmo na região
mais protegida, a região montanhosa da Judeia. Os judeus, em especial
na diáspora, estavam muito envolvidos com a vida e cultura gentílicas.
Na verdade, mesmo antes das descobertas e reavaliações de meados do
século XX em diante, um escritor podería dizer: “Dentre todos os povos

5 Bonsirven, PalestinianJudaism, p. 66; Joachim Jeremias, Jesus’ Promise to the Nations,


trad. S. H. Hooke (London: SCM, 1958), p. 40.
365

antigos, nenhum aprendeu tanto com os gregos como os judeus”.6*O


particularismo era equilibrado com o universalismo.
Uma parte desse equilíbrio estava no fato de a lei judaica estender
certos direitos e proteção aos gentios.' Em bora esses direitos e suas apli-
cações correspondentes nem sempre atendessem aos padrões modernos
de equidade, sua existência indica uma dimensão da atitude judaica inter-
testamentária em relação aos estrangeiros que é às vezes negligenciada.
Mesmo no período rabínico, quando alguns rabinos consideravam os
gentios um pouco melhores que os animais, sempre houve mestres com
uma perspectiva bem menos severa. Essa boa vontade era especialmente
forte para com os gentios que tentavam guardar a lei.8
Uma palavra precisa ser dita aqui sobre as provisões para a partici-
pação dos gentios do culto no templo em Jerusalém, bem como sobre as
restrições a essa prática. Aqui, mais uma vez, encontra-se uma ilustração da
atitude mista em relação aos estrangeiros. Durante a ocupação romana, e
mesmo no período em que Jerusalém esteve sob cerco, sacrifícios regulares
eram oferecidos ao imperador.9 O átrio dos gentios, a área aberta para a
presença gentílica e a adoração por parte deles, ocupava a maior parte da
ampla plataforma construída por Herodes, o Grande. Entretanto, havia
também o muro que servia de alerta aos gentios para não entrarem no
templo propriamente dito, sob pena de morte.
Scot McKnight resumiu as características gerais das atitudes judaicas
em relação aos não judeus.10 Naturalmente, cada uma dessas caracterís-
ticas era mais evidente em um grupo que em outros. Primeiro, havia as
atitudes positivas: 1) as fontes judaicas reconhecem que Deus é o Senhor
de toda a humanidade; o Deus dos judeus é o Deus universal; 2) quase
todas as fontes judaicas indicam que os judeus eram, em geral, tolerantes e

6 I. Heinemann, Diegnechische WeltanschauungheiJuden undRomem (Berlin: Philo, 1932),


citado aqui a partir diiScot McKnight,M Lightamongthe Gentiles·.Jewish Missionary
Activity in the Second Temple Period (Minneapolis: Augsburg Fortress, 1991),
p. 12.
' Hirsch, Eisenstein, “Gentiles”, 5:616-25.
8 Por isso, a famosa declaração do rabino Meir (séc. II), um implacável oponente de
Roma: “Portanto, o próprio gentio, se observar a lei, é como o sumo sacerdote”
(Sifra de Levítico 18.5).
9 Josefo, Jewish War2.10.4 (197).
10Light, p. 25-9.
366

bondosos com os gentios; 3) permitia-se aos gentios alguma participação


na religião judaica e 4) os judeus participavam da sociedade gentílica de
várias formas e em diversos níveis. Havia também fortes evidências de
relações negativas: 1) os judeus estavam convencidos de que eles eram
diferentes, e os gentios, obviamente, reagiam a isso; 2) eles mantinham
uma forte consciência de que eram o povo escolhido e santo de Deus,
com a exclusão de todos os outros; 3) os judeus criticavam os gentios por
causa de sua religião pagã e das práticas às quais ela levava — práticas
claramente inaceitáveis para os membros da aliança com o Senhor; e, por
fim, 4) os próprios gentios com frequência exibiam atitudes de desdém e
tratavam os judeus de maneira injusta.

Re g u la m en to da c o n d u ta esperada dos g en tios

Grupos judaicos excepcionais procuravam se isolar por completo


dos gentios — como o Qumran. D e todos os períodos da história judaica
temos evidências de que pelo menos alguns judeus estavam dispostos a
se associar com certos gentios. N o AT havia leis que regulamentavam os
gerim, os residentes estrangeiros, os não judeus que desejavam viver na
terra de Israel. Procurando no Pentateuco, podemos montar uma lista de
regulamentos gerais para tais pessoas. Elas deviam 1) abster-se de blasfe-
mar o nome do S e n h o r (L v 24.16,22); 2) abster-se dos ídolos (Lv 20.2);
3) evitar a feitiçaria, o incesto e outras abominações (Lv 18.26); abster-se
de trabalhar no sábado (Êx 20.10; 23.12); 5) observar as ordenanças a
respeito dos sacrifícios (Lv 17.8,9; Nm 15.14); 6) observar certas festas
(Dt 16.11,14); 7) evitar comer pão com fermento na Páscoa (Êx 12.19;
eles eram proibidos, entretanto, de repartir a refeição [v. 43-49]) e 8) deixar
de trabalhar no Dia da Expiação (Lv 16.29).
Mais compactos são os regulamentos de Levítico 17 e 18 que fornecem
a salvaguarda contra a idolatria ao restringir sacrifícios ao santuário central
(Lv 17.1-9), proíbem o consumo de sangue ou de carne que não tivesse
sido propriamente drenada (17.10-16) e proíbem todas as perversões se-
xuais (18.6-23). O texto de Ezequiel 33.24-26, condenando a idolatria no
contexto geral, apresenta uma lista similar. Há, por exemplo, proibições
contra comer carne que contenha sangue, adorar ídolos, derramar sangue
e desonrar sexualmente a mulher do próximo.
Nos escritos judaicos intertestamentários, os Oráculos sibilinos pronun-
ciam bênçãos sobre os gentios que: 1) reconhecem o Deus verdadeiro;
367

2) abstêm-se da idolatria e dos sacrifícios idólatras; 3) não assassinam;


4) não cometem violência; 5) abstêm-se de roubar e 6) lavam-se da cabeça
aos pés em água corrente.11Josefo observa a consciência que os gentios
tinham da expectativa judaica de que eles observassem o sábado, certas
cerimônias e leis quanto à comida.12
A literatura rabínica detalha as leis dos filhos de N oé.13 Com isso en-
tende-se que essas ordenanças eram obrigatórias para toda a humanidade.
De um ponto de vista prático, entretanto, esses regulamentos poderíam
ser exigidos apenas dos gentios que desejassem contato e associação
com os hebreus. Os vários escritos rabínicos oferecem listas diferentes,
de seis a mais de trinta regras. O tratado talmúdico Sanhedrin fornece um
exemplo adequado:
1. Não adore ídolos;
2. Não blasfeme o nome de Deus;
3. Estabeleça tribunais de justiça;
4. Não cometa assassinato;
5. Não cometa adultério;

11 Oráculos sibilinos 4.24-34,162-70: “Felizes serão os homens na terra que amarem


o grande Deus, bendizendo-o antes de beber e comer, colocando sua confiança
na devoção. Fies rejeitarão todos os templos quando os virem; altares também,
fundações inúteis de pedras mudas (e estátuas de pedra e imagens feitas à mão)
contaminadas com sangue de criaturas animadas e sacrifícios de animais de quatro
patas. Eles confiarão na grande glória do único Deus e não cometerão assassi-
natos perversos, nem terão ganhos desonestos, que são as coisas mais horríveis.
Nem têm eles o desejo vergonhoso pela esposa de outro nem pelo abuso odioso
e repulsivo de um homem...
“O, mortais miseráveis, mudem essas coisas e não levem o grande Deus a todos os
tipos de raiva, mas abandonem punhais e gemidos, assassinatos e ultrajes, e lavem
todo o corpo em rios perenes. Estendam as mãos para o céu, peçam perdão por
suas obras anteriores ς façam propiciaçâo pela impiedade amarga com palavras
de louvor; Deus lhes concederá arrependimento e não os destruirá. Ele deterá sua
ira novamente se vocês praticarem a devoção honrosa no coração”.
12Josefo, AgainstApion 2.39 (282): “As massas há muito têm mostrado o forte desejo
de adotar nossas observâncias religiosas; e não há nenhuma cidade, grega ou bár-
bara, nem uma única nação, para a qual nosso costume de nos abster do trabalho
no sétimo dia não se espalhou e onde os jejuns, a iluminação das lamparinas e
muitas de nossas proibições quanto à comida não são observados”.
13Midrash Gênesis Rahbah, Noé 34; Talmude babilônico Sanhedrin 56b; cf. Montefiore,
Loewe (orgs.), RabbinicAnthology, p. 556-7.
368

6. Não roube;
7. Não coma carne fresca com sangue ou de animal que não tenha
sido abatido segundo o ritual adequado.
Nossa preocupação não é comparar as listas intertestamentárias e rabí-
nicas de regulamentos do AT para os genüos. O importante é a evidência
de que pelo menos alguns judeus estavam abertos a se associar aos gentios,
e que essas associações eram regulamentadas. Os regulamentos estabele-
ciam um padrão mínimo de moralidade para os não judeus e ofereciam
a eles certa proteção contra a contaminação cerimtmial desnecessária.14

A QUESTÃO DA MISSÃO JUDAICA PARA OS GENTIOS

N ão há resposta conclusiva para a questão de haver ou não uma


missão judaica para os gentios.15Alguns autores acreditam que havia uma
vigorosa atividade missionária destinada a converter gentios.16Já McK-
night acredita que, embora o judaísmo atraísse convertidos, o judaísmo
intertestamentário não era uma “religião missionária”.17Em vez de buscar
convertidos de m odo ativo, os “judeus [intertestamentários] eram umalu£
entre osgentiose estavam mais que dispostos a permitir que outros tomassem
parte dessa luz”.18
Apesar de McKnight estar certo, há evidência, como ele reconhece,
de que alguns judeus estavam de fato preocupados em fazer convertidos.
Isso se reflete na declaração de Jesus: “ [Vocês, mestres da lei e fariseus]
percorrem terra e mar para fazer um convertido” (Mt 23.15). O desejo de
conversões também é mostrado no relato feito por Josefo de Metílio, um
14É útil a comparação dessas várias listas com os decretos do Concilio de Jerusalém:
os convertidos gentios fariam bem de se absterem 1) da idolatria, 2) da fornicação
(falta de castidade), 3) dos animais estrangulados e 4) do sangue (At 15.20,29;
21.25).
15O resumo dos estudos sobre o tópico pode ser encontrado em McKnight, Light,
p. 1-4.
16P. ex., Jeremias, Promise, 11: “No tempo da aparição de Jesus, um período incom-
parável de atividade missionária estava em andamento em Israel”.
17McKnight, Light, p. 4-5: “religião missionária” é “a que conscientemente [...] man-
tém [...] uma missão para o resto do mundo... [e que] pratica a missão [...] com a
intenção de evangelizar os que não são membros [dela] para que se convertam...”.
18McKnight, Light, p. 48.
369

general romano que, ameaçado de morte pelos judeus, salvou sua vida ao
prometer se submeter à circuncisão e se tornar prosélito.19
Mesmo sem se engajar em um programa formal de missões, os judeus
se comprometiam a se apresentar de tal forma que ganhassem entendi-
mento, boa vontade e mesmo convertidos dentre as nações. Parece que
não havia métodos regularmente usados para alcançar os não judeus com
a mensagem do judaísmo.2" Havia, entretanto, vários meios pelos quais
as características distintivas dos judeus, em relação às crenças e conduta,
ganhavam exposição. A sinagoga provia um símbolo visível do judaísmo
e um lugar em que curiosos e interessados podiam buscar informações.
Havia intenções apologéticas incorporadas em algumas literaturas judai-
cas, como a Caria de Arisleu, 4Macabeus, grande parte da obra de Fílon e
Jewish War [Guerra dos judeus] e AgainstApion [Contra Apion], dejosefo.
A educação (escolas judaicas frequentadas por gentios) e o estilo de vida
judaico podiam também atrair alguns olhares de não judeus. A percepção
dos judeus e do judaísmo às vezes resultava em escárnio e hostilidade; em
outras, ganhava respeito, admiração e prosélitos.

Prosélitos e te m e n te s a D eus
Prosélitos
Alguns gentios se sentiam atraídos ao judaísmo e se apegavam a ele
cm vários níveis de comprometimento.21Precisamos nos preocupar apenas
com os prosélitos (ou convertidos) e os tementes a Deus. Os primeiros
eram gentios que se convertiam plenamente ao judaísmo. As palavras de
Rute para Noemi: “O teu povo será o meu povo e o teu Deus será o meu
Deus!” (Rt 1.16), refletem o tipo de compromisso esperado. Os conver-
tidos aceitavam todas as áreas da vida judaica — lei, lealdade nacional,
costumes sociais e culturais etc.; eles se tornavam judeus naturalizados.22
Ainda que alguns pudessem considerá-los judeus de segunda classe, eles
eram judeus.

1‘,Josefo Jewish IP®454) 2.17.10 ‫)־‬.


2" McKnight, Light, p. 49-77.
21 Ibid., p. 90-101; Emil Schürcr, History of theJewish People in the Age of Jesus Christ,
Geza Vermes etal (orgs.), 3 vols. (Edinburgh: T. and T. Clark, 1973-1987), vol. 1,
p. 164-72.
22Tácito, Anais 5.5 (281).
370

Embora não se possa determinar o número de prosélitos, sua existên-


cia é certa. O livro de Atos refere-se aos prosélitos no Pentecoste (2.11),
entre os sete (6.5) e em Antioquia da Pisídia (13.43). Eles são notados em
literaturas e inscrições antigas. Os convertidos ao judaísmo mais conhe-
cidos eram membros da família real de Adiabena.2’
Costuma-se supor que, além do compromisso de observar toda a
lei, esperava-se que o candidato a prosélito se circuncidasse (no caso dos
homens), oferecesse um sacrifício e passasse pela imersão. Sobre essas
exigências, Emil Schürer diz: “As três são consideradas tradicionais já na
Mixná\ de fato, eram tão naturais no judaísmo rabínico que, mesmo na
ausência de prova definitiva, podem ser consideradas predominantes no
período do Segundo Templo” .2324 Pode ser assim, mas algumas exceções
precisam ser observadas e algumas questões levantadas; pode ser muito fá-
cil aceitar procedimentos posteriores como normativos no período inicial.
Ninguém pode duvidar da importância da circuncisão na mente judai-
ca. A circuncisão foi ordenada por Deus como símbolo da associação à
comunidade da aliança (Gn 17.10-14) e uma marca judaica daí em diante.
N o período intertestamentário, Aquior, o amonita, “creu firmemente em
Deus. Foi circuncidado e ficou fazendo parte do povo de Israel” Judi-
te 14.10<2). O romano Metílio presumiu a necessidade da circuncisão. No
entanto, nem as hebreias nem as convertidas ao judaísmo eram circunci-
dadas.25E, em Gálatas, Paulo parece lutar contra a exigência da circuncisão
para os convertidos. Antes de decidir se submeter ao ritual, Izates, rei de
Adiabena, foi submetido a opiniões conflitantes sobre a necessidade da
prática.26McKnight resume: “Parece bem provável [...] que a circuncisão
era vista como o ato pelo qual o homem convertido demonstrava zelo à lei
e a disposição de se juntar ao judaísmo sem reservas. Hesito em concluir
23Josefo, Antiquities 20.2.1 -5 (17-53) c Jewish War2.20.2 (560) também mencionam
que as esposas dos líderes de Damasco haviam aceitado a religião judaica (embora
a palavra usada para “prosélito” \prosé!jtos\ não apareça aqui).
2ASchürer, History, 3.1:173; v. tb. George Foot Μo o re,Judaism in the First Centuries of
the Christian Era, 3 vols. (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1927-1930),
vol. 1, p. 331.
2‫ כ‬A circuncisão feminina é praticada em algumas culturas até hoje. Um projeto de
lei proibindo essa prática nos EUA foi apresentado ainda em 1994.
26Josefo ,Antiquities 20.2.4 (38-48).
371

que a circuncisão fosse uma exigência no judaísmo do Segundo Templo,


porque a evidência não é de todo clara”.2728
Como a circuncisão, apresentar uma oferta no santuário parecia
uma exigência natural. N o entanto, falta uma declaração bem definida
nas fontes intertestamentárias. Há muitas evidências de que os judeus de
nascença e prosélitos ofereciam sacrifícios, mas não há indicação de que
o sacrifício fosse parte prescrita do rito de iniciação. Fílon afirmou: Se “os
adoradores não trouxessem nada mais, ao se apresentarem eles oferecem
o melhor dos sacrifícios, a plena e verdadeiramente perfeita oblação da
vida nobre” . ’ O s judeus da diáspora lidavam com poucos sacrifícios, ou
nenhum. Além disso, depois da destruição do templo, os sacrifícios foram
substituídos pela 1) leitura da lei, pelo 2) jejum, pela 3) oração e pelas
4) obras de caridade e justiça. Mesmo depois dos três requisitos terem
sido estabelecidos pelos rabinos, o sacrifício não era necessariamente um
rito para a admissão na comunidade. George Moore coloca muito bem a
questão: “A oferta de um sacrifício [não] é [...] uma das condições para se
tornar prosélito, apenas uma condição precedente ao exercício de um dos
direitos que lhe pertencem como prosélito, a saber, participar da refeição
sacrificial. Assim que fosse circuncidado e imerso, ele teria pleno respeito
na comunidade religiosa, tendo todos os direitos e poderes legais, e estando
sujeito a todas as obrigações do judeu de nascença”.29
O argumento de que a imersão era um pré-requisito para a admissão
na comunidade também permanece incerto. Dois fatos precisam ficar
claros. Primeiro, havia, de fato, inúmeras lavagens cerimoniais prescritas
para todos os judeus praticantes, tanto os de nascença como os prosélitos;
essas lavagens consistiam em algumas das principais partes das exigências
para se purificar após a contaminação. Segundo, a cerimônia pardeular
com a água que normalmente imaginada quando se fala da imersão ligada
à admissão de prosélitos era diferente das cerimônias judaicas regulares
de purificação em peto menos um aspecto: não deveria ser repetida. Para
afirmarmos que a imersão era uma condição para a aceitação no judaísmo,
precisamos de evidências na forma de uma ordem explícita nesse sentido
ou de um registro histórico. Também precisamos nos assegurar de que o
que temos em vista é algo diferente das lavagens rituais regulares.

27McKnight, Light, p. 82.


28 Fílon, SpecialLaws 1.50 (272).
21‫י‬Judaism, vol. 1, p. 332.
372

A ordem nos Oráculos sibilinos 4.165 (“lavem todo o corpo em rios


perenes”) não é uma clara referência à imersão de proséütos. Vista em
seu contexto, ela é, no máximo, uma injunção aos gentios desejosos de
fazer parte da comunidade judaica para indicar sua decisão de levar uma
vida moral e, assim, alcançar certa aceitação dos judeus.
Fílon às vezes é apresentado em conexão com a imersão de proséütos.
N o ensaio “Sobre a imutabilidade de Deus”, ele cüz: “Se cultivarmos o espí-
rito de render graças e honra a Deus, seremos purificados das transgressões
e lavados das imundícias que contaminam nossa vida em pensamentos,
palavras e ações. Pois é absurdo que o homem seja proibido de entrar no
templo, salvo depois de banhar-se e lavar o corpo, e, não obstante, tente
orar e fazer sacrifícios com o coração ainda sujo e manchado” .3" Fílon
havia acabado de falar sobre a entrega que Ana fez de Samuel a Deus e,
então, da oferta de gratidão e várias outras dádivas a Deus. Ele diz que
essas coisas são retribuições a Deus, da parte dos adoradores, do que ele
lhes dera primeiro. Segue-se a observação de que a verdadeira adoração não
é reaüzada por dádivas e lavagens, mas pelo coração. Em outra passagem,
Fílon fala da lavagem ou ümpeza ao se referir à água misturada com as
cinzas da novilha vermelha, parte regular dos rituais de todos os judeus,
incluindo os de nascença.3031É concebível que na parte “Sobre o querubim”
Fílon tivesse em mente a ümpeza dos proséütos que continuaram com a
vida imoral; entretanto, isso está longe de ser esclarecido. O comentário
de que “eles passam para o interior do santuário” mais provavelmente
sugere que esteja falando de sacerdotes indignos.32Em suma, parece que
as lavagens às quais Fílon se refere são rituais para quem já fazia parte da
comunidade, não para quem estava prestes a entrar nela.
A evidência mais forte a favor da imersão como requisito para os
proséütos vem da Mixná:
Quem lamenta pelos parentes próximos, pode, após imergir a si mesmo,
comer a oferta da Páscoa no final da tarde, mas não pode comer das

30 Fílon, Sobre a imutabilidade de Deus 1.2 (7-8).


31 Fílon, Specialisms 1.49 (262); idem, Sobre sonhos 1.36-38 (209-20).
32 Fílon, Sobre 0 querubim 28 (95): “Eles limpam o corpo com lustrações e purificações,
mas não desejam nem praticam a lavagem da alma das paixões pelas quais a vida
é contaminada. Eles têm o zelo de ir ao templo com o manto branco, adornados
com vestes impecáveis, mas com o coração manchado eles passam para o interior
do santuário e não se envergonham”.
373

[outras] coisas santificadas. Se um homem ouvir da morte de um de seus


parentes próximos ou fizer com que os ossos de seu morto sejam ajun-
tados, ele pode, após imergir a si mesmo, comer das coisas santificadas.
A Escola de Shammai diz: Se um homem se tornar um prosélito no
dia antes da Páscoa, ele pode sc imergir c consumir a oferta da Páscoa
no final da tarde. E a Escola de Hillel diz: Aquele que se separa de sua
incircuncisão é como o que se separa de uma sepultura |Pesahim 8.8|.

R. Yose relata seis opiniões nas quais a Escola de Shammai segue a


orientação mais leniente e a escola de Hillel, a mais rigorosa [...] A Escola
de Shammai diz: “Se um homem se tornar um prosélito no dia antes da
Páscoa, ele pode se imergir e consumir sua oferta da Páscoa no final da
tarde”. E a Escola de Hillel diz: “Aquele que se separa de sua incircuncisão
é como o que se separa de uma sepultura” \Eduyot 5.2].
As duas passagens se referem ao mesmo debate dos rabinos do sécu-
Ιο I. A questão para nós é saber se a imersão do prosélito nesses textos se
refere a um ritual regular de purificação ou a um banho especial que não sc
repetia. Em Pesahim, o tópico é levantado logo após a pergunta a respeito
de um judeu, que acabara de se purificar de uma terrível contaminação,
o contato com os mortos, poderia participar da refeição da Páscoa no
mesmo dia. A mesma questão é feita em seguida sobre o prosélito que se
imergiu na véspera da Páscoa. Com certeza alguém proveniente da cul-
tura gentílica teria passado, pelo menos, pelo mesmo ritual de limpeza de
quem se contaminara ao tocar um corpo morto. Mas a imersão do pro-
sélito nessas passagens é do mesmo tipo da do hebreu que teve contato
com o morto? Isto é, trata-se de uma das limpezas regulares de alguém já
reconhecido como parte da comunidade ou se trata da imersão especial
do prosélito? A limpeza inicial do prosélito poderia ser considerada um
momento de importância singular para ele mesmo e para os outros. Mais
uma vez, perguntamos: a cerimônia no judaísmo intertestamentário era
um ato especial que não se repetia? É impossível ter certeza.
McKnight conclui sua investigação com esta declaração: “À luz da
natureza sociológica da comunidade judaica e à luz dos rituais necessários
para as mulheres, é mais provável (em minha opinião) que a imersão tenha
se tornado uma exigência para a maior parte do judaísmo no período do
Segundo Templo”. Ele continua desafiando a sugestão de que isso talvez
ainda não signifique que a imersão do prosélito tivesse origem pré-cristã:
374

“Eu gostaria de sugerir, então, que os ritos no judaísmo e cristianismo


devem a origem a um ambiente judaico comum em que as lustrações com
água se tornaram cada vez mais importantes para os convertidos e que o
rito do batismo no judaísmo pode muito bem ter recebido o ímpeto deei-
sivo de João Batista, Jesus e os primeiros cristãos. As origens da imersão
judaica de prosélitos, então, podem ter estado nas exigências de entrada
do cristianismo judaico”.33
De nossa parte, ficamos satisfeitos em observar que todas as ce-
rimônias judaicas de lavagem tinham o mesmo propósito. Esses ritos
assinalavam o ponto em que o indivíduo considerado contaminado e
inaceitável pelos correligionários tornava-se aceitável. O ato de lavar-se
envolvia reconhecer o estado de imundícia e então utilizar o procedimento
prescrito por Deus para remover a poluição cerimonial. Isso sem dúvida
seria esperado do prosélito. Falta a evidência a favor da imersão distinta,
e que não se repetia, do prosélito no judaísmo intertestamentário.
Tementes a Deus
O N T refere-se de modo literal a certos indivíduos como “tementes a
Deus” (phoboumenos ton theon), “adoradores de Deus” (sebomenos ton theon) ou
apenas “adoradores” (sebomenos).34 Esses termos são tidos como referência
a uma classe de gentios incircuncisos que não completaram o processo
de conversão ao judaísmo, mas lhes era permitida (por alguns judeus)
uma participação limitada no culto judaico.35Além disso, esperava-se que
eles observassem certos padrões básicos que envolviam o monoteísmo, a
moralidade e as cerimônias.
A natureza e a existência desse grupo estão no centro de uma con-
trovérsia acadêmica contemporânea.36 Há um volume significativo de
33Light, p. 85.
34 “Temente a Deus” é a expressão usada para descrever Cornélio em At 10.2,22;
v. tb. 13.26,43,50; 16.14; 17.4,17; 18.7.
35 Cf. Kirsopp Lake, “Proselytes and God-Fearers”, em F. J. Foakes Jackson e Kir-
sopp Lake (orgs.). Beginnings of Christianity, 5 vols. (Grand Rapids: Baker, 1966),
vol. 5, p. 74-96; Karl Georg Kuhn, “Sebomenoi orphoboumenoi ton theort\e m Theological
Dictionary of the New Testament, Gerhard Kittel, Gerhard Friedrich (orgs.), trad.
Geoffrey W. Bromiley, 10 vols. (Grand Rapids; Eerdmans, 1964-1976), vol. 6,
p. 743-4; Schürer, History, 3.1:165-76.
36Veja o reestudo recente de Max Wilcox, “The ‘God-Fearers’ in Acts — A Re-
consideration”, Journalfor the Study of the New Testament 13 (1981): 102-22; e três
artigos ■na. BiblicalArchaeologist Review 12.5 (September/October 1986): RobertS.
375

evidências para indicar que havia não judeus associados às sinagogas.3.


Provavelmente cies eram um grupo extraoficial. Isso podería explicar
o fato de serem chamados por termos distintos e de não se saber com
precisão o que se exigia deles.
Em geral, esperava-se que os tementes a Deus adorassem apenas ao
Senhor, adorassem sem imagens, frequentassem a sinagoga, observassem
o sábado e as leis referentes aos alimentos, acatassem os padrões judai-
cos de moralidade e praticassem outros elementos básicos da lei e da
tradição judaicas. E razoável presumir que o tratamento e a posição deles
eram moldados de acordo com o que o AT estabelecia para os residentes
estrangeiros. As várias listas de regulamentos de conduta para todos os
gentios (p. 366-68) são as possíveis fontes e modelos do que se esperava
dos tementes a Deus. É significativo que os regulamentos do AT e os
requisitos intertestamentários para os associados gentios oferecessem
salvaguardas contra cada um dos três principais aspectos da cultura e do
comportamento gentílicos dos quais muitos judeus se evadiam (idolatria,
imoralidade e contaminação cerimonial).
Os gentios na era final

Nos capítulos anteriores tivemos oportunidade de fazer algumas re-


fercncias às expectativas sobre a condição e o destino dos gentios na era
final. A importância da questão para o leitor do N T deveria ser óbvia. A
medida que judeus vindos de contextos divergentes se tornavam crentes
em Jesus como Messias, eles aceitavam a realidade de que a era final já
estava presente. Sem qualquer indicação contrária, esperavam que suas
idéias pré-cristãs governassem seus conceitos cristãos sobre a condição
dos gentios na era final. As atitudes dos cristãos judeus para com os
gentios no período escatológico tiveram implicações para a legitimidade
das missões cristãs aos gentios e para os contatos sociais com os cristãos
gentios. Essas questefes estavam por trás de grande parte do conflito rc-

MacLennan, Thomas Kraabel, “The God-Fearers — A Literary and Theological


Invention”, p. 47-53; Robert Tannenbaum, “Jews and God-Fearers in the Holy
City o f Aphrodite”, p. 55-57; Louis Feldman, “The Omnipresence o f God-
Fearers”, p. 59-63.
37 Schürer, History, 3.1:165.
376

fletido em Atos 10— 15 e nas epístolas de Paulo aos romanos, coríntios,


gálatas e efésios.
A consideração sobre o problema dos gentios na era final mais uma vez
nos confronta com questões complexas, materiais de fontes insuficientes e
a multiplicidade de opiniões. Que eu saiba, apenas Joseph Bonsirven tentou
catalogar a relação das crenças judaicas sobre os gentios na era final.™ Ele
é forçado a recorrer, sobretudo, aos escritos rabínicos. Dessa forma, mais
uma vez nos deparamos com a questão de como formar o entendimento
acurado dos pontos de vista anteriores a 70 d.C. ·Felizmente, sabemos
que pelo menos uma linha geral das opiniões rabínicas remete ao AT; al-
gumas dessas visões, de uma forma ou de outra, também estão refletidas
na literatura intertestamentária. A pesquisa das expectativas judaicas em
relação aos gentios apresenta, se não informações precisas, pelo menos a
apreciação da dificuldade encontrada pelos primeiros cristãos judeus, ao
buscar entender a situação resultante de sua fé e suas experiências como
seguidores de Jesus, o Messias.
Começamos com algumas visões gerais que, de um modo ou de
outro, eram amplamente aceitas. Primeiro, acreditava-se que na grande
batalha da era final alguns gentios, ou todos eles, se reuniríam em torno
dos líderes dos poderes espirituais hostis e seriam derrotados. Muitos se-
riam aniquilados.3839 O Messias, diz Fílon, “liderando seu exército à guerra
[...] subjugará nações grandes e populosas”.40 Salmos de Salomão 17 retrata
o Messias como conquistador dos gentios. Declarações similares sobre
38 PalestinianJudaism, p. 220-25; Schürer, History, vol. 2, p. 525-47, também há material
sobre esse assunto, mas não de forma consolidada como a de Bonsirven.
39 P. ex., lEnoque 90.18,19.
411Fílon, Sobre recompensas epunições 16 (95). Fílon segue dizendo (16 [96-97]): “Ele
promete se organizar contra eles para sua vergonha e perdição; enxames de vespas
para lutar na linha de frente dos piedosos, que não terão só a vitória permanente
e sem sangue na guerra, mas também a soberania que ninguém poderá contestar,
trazendo para seus súditos o benefício advindo da afeição, temor ou respeito que
eles senrem. Pois a conduta de seus governantes mostra três qualidades elevadas
que contribuem para tornar um governo livre de subversão, a saber: dignidade,
rigor e benevolência — que produzem os sentimentos mencionados antes. Pois sc
cria respeito pela dignidade; temor, pelo rigor; afeição, pela benevolência, e esses,
quando se juntam de forma harmoniosa na alma, rendem súditos obedientes aos
governantes”.
377

a derrota dos poderes do mal e o julgamento de seu líder ocorrem em


outros escritos.'11
Segundo, havia também a convicção de que na era final ou messiânica
o reino de Deus incluirá todo o mundo.4142 O Se n h o r será rei sobre toda
a terra,43 e o Messias, um sinal para todos os povos.44 Deus estabelecerá
um Reino sobre toda a humanidade (Dn 2.44; 7.14,27); todo o seu povo
governará45 ou, pelo menos, os profetas serão juizes e reis justos.4647
Quando observamos mais de perto, fica evidente a existência de duas
expectativas claras e divergentes quanto ao estado dos gentios na era final.
Primeiro, pelo menos alguns gentios experimentariam uma condição fa-
vorável; eles seriam incorporados ao reino messiânico. Ezequiel, um dos
profetas mais particularistas, diz: “Farei conhecido o meu santo nome
no meio de Israel, o meu povo. Não mais deixarei que o meu nome seja
profanado, e as nações saberão que eu, o S e n h o r , sou o Santo de Israel”
(Ez 39.7); e Zacarias declara: “Muitas nações se unirão ao Se n h o r naquele
dia e se tornarão meu povo” (Zc 2.11).4
Ao mesmo tempo, havia o forte sendmento de que a vasta maioria
de gentios seria destruída ou entregue a alguma forma de punição seve-
ra. Escritores posteriores associam a destruição de Gogue e Magogue
41 P. ex.. Is 10.25; 2Baruque 39.7-40.2; 70.2, 6-9; 2Esdras 12.32,33; 13.26-38.
42 Cf. W . D. Davies, Torah in lhe Messianic Age and/or the Age to Come (Philadelphia:
Society o f Biblical Literature, 1952), p. 76-8.
43 Zc 8.20,21: “Assim diz o S e n h o r dos Exércitos: ‘Povos e habitantes de muitas
cidades ainda virão, e os habitantes de uma cidade irão a outra e dirão: “Vamos
logo suplicar o favor do S e n h o r e buscar o S e n h o r dos Exércitos. Eu mesmo já
estou indo” ’ ”.
44 Is 11.10: “Naquele dia as nações buscarão a Raiz de Jessé, que será como uma
bandeira para os povos, e o seu lugar de descanso será glorioso”.
45Jubileus 32.19: “Eu darei à sua semente [|acó] toda a terra debaixo do céu, e eles
regerão todas as nações como desejarão. E, depois disso, toda a terra se juntará e
eles a herdarão para sempre”.
46 Oráculos sihilinos 3.767-82.
47 Note também SI 22.27: “Todos os confins da terra se lembrarão e se voltarão para
o Senhor, e todas as famílias das nações se prostrarão diante dele”; 47.8: “Deus
reina sobre as nações”; 67.2: “ [Que Deus faça resplandecer o seu rosto sobre nós,]
para que sejam conhecidos na terra os teus caminhos, a tua salvação entre todas
as nações”; 86.9: “Todas as nações que tu formaste virão e te adorarão, Senhor, c
glorificarão o teu nome”; 102.15: “Então as nações temerão o nome do Senhor,
e todos os reis da terra a sua glória”.
378

em Ezequiel 38— 39 à destruição das nações gentílicas. De fato, como


diz Bonsirven: “De modo geral, [...] os textos rabínicos mostram pouca
confiança nas nações que desejam se figar aos israelitas, e eles tendem a
mantê-las em posição de inferioridade e dependência” .48
O Apocalipse de Baruque dá um bom exemplo das visões divergentes
sobre a condição dos gentios na era final:
Depois de virem os sinais dos quais lhes falei antes, quando as nações se
moverem e o tem po do meu Ungido vier, ele chamará todas as nações, e
algumas ele poupará, e outras matará. Essas coisas Sticederão às nações
que serão poupadas po r ele. Todas as nações que não conheceram Israel
e que não pisaram na semente de Jacó viverão. E isso acontecerá porque
algumas dentre todas as nações se sujeitaram ao seu povo. Todas aquelas,
agora, que governaram sobre vocês ou os conheceram serão entregues
à espada \2Baruque 72.2-61.

Essa evidência é valiosa, pois vem do final do período intertestamen-


tário. Na época, o aguilhão da opressão gentílica era forte, mas a atitude
negativa para com os gentios, que é evidente em alguns escritos rabínicos,
não havia ainda se solidificado.
A antecipação de que alguns gentios desfrutarão dos benefícios da
era final levanta a questão sobre o papel e a condição deles nesse tempo.
O fato de que eles reconhecerão o Deus de Israel e a supremacia de Israel
era esperado. Eles virão a reconhecer o SEN H O R como o juiz supremo
(Is 2.4; Mq 4.3; 7.16,17) e se submeterão à comunidade do povo de Deus.
Além disso, os Testamentos dos do%e patriarcas admitem que, por meio do
sacerdote e rei messiânico, os gentios serão salvos junto com Israel.49
Sobre a questão de os gentios honrarem Israel50e trazerem presentes,
Isaías diz: “Para que lhe tragam as riquezas das nações” (Is 60.11); desse

48PalestinianJudaism, p. 222.
49 Testamento de Simeão 7.1,2: “Sejam obedientes a Levi ejudá. Não se exaltem sobre
essas duas tribos, [porque delas se levantará o Salvador vindo de Deus]. Pois o
Senhor levantará dc Levi alguém como sumo sacerdote e de Judá, alguém como
rei [Deus e homem]. Ele salvará todos os gentios e as tribos de Israel”.
‫ "’׳‬A linguagem figurativa de IBnoque 90.30 parece implicar que os gentios que sobre-
viverem honrarão Israel: “Então eu vi todas as ovelhas que haviam sobrevivido,
bem como todos os animais sobre a terra e os pássaros do céu, caindo e adorando
as ovelhas, fazendo petição e obedecendo a elas em todos os aspectos”.
379

modo, Israel possuirá as “riquezas das nações” (Is 61.6; 66.12). Oráculos
sibilinos?>n02-7?)\ indica que, quando os gentios tomarem conhecimento
da paz e do sossego do povo de Deus, eles darão louvor e honra ao único
Deus verdadeiro, enviarão presentes ao templo e obedecerão às suas leis.
Salmos de Salomão 17.31 fala das nações trazendo um presente, mas aqui o
presente são os “ filhos expulsos [de Israel]”. O texto de Isaías 61.5 declara:
“Gente de fora vai pastorear os rebanhos de vocês; estrangeiros trabalharão
em seus campos e vinhas”, o que, de acordo com Bonsirven, a passagem
foi interpretada mais tarde com o sentido de que, na era messiânica, os
gentios se tornariam escravos de Israel.11
Uma questão importante diz respeito à possibilidade de os gentios
serem aceitos como prosélitos na era final. Alguns textos pressupõem
que o Messias será a luz para as nações, ou seja, ele não governará os
gentios apenas por força (Is 42.6; 49.6; 51.4; 1Enoque 48.4; v. tb. Lc 2.30-
32). Portanto, alguns autores acreditavam que pelo menos alguns gentios
se converterão a Deus. Jeremias 16.19 (“S e n h o r , [...] a ti virão as nações
desde os confins da terra”) parece prever que os gentios se tornarão adora-
dores do Senhor (v. tb.Jr 3.17; Sf 2.11; 3.9; Zc 8.20-23). Bonsirven sugere
que os prenúncios sobre os pagãos abandonando seus ídolos (p. ex., Is
2.20,21) são outras evidências.5152 Contudo, pelo menos um texto rabínico
é de opinião contrária. Ele assevera que qualquer gentio que procurar se
tornar prosélito na era final o fará por interesse próprio e, portanto, não
deverá ser aceito.53*5

51 PalestinianJudaism, ρ. 222.
52 Ibid., 221; outras evidências incluem a Mekilta de Rabbi Ishmael sobre Ex 15.11:
“Os ídolos perecerão para sempre”, e o Talmude babilônico Pesahim 118b·. “As na-
ções louvarão a Deus, o Egito e a Etiópia trarão presentes ao Messias, e, uma vez
que ele hesita em aceitá-los, Deus lhe ordena que o faça” (conforme citado por
Bonsirven). , -----
55“R. Yitshaq disse que a única vez em que Deus rirá será no julgamento das nações.
R. Yose acrescentou que, no futuro, os idólatras viríam para se tornar prosélitos.
Mas eles podem ser aceitos, uma vez que a tradição diz que eles não poderíam
ser aceitos no tempo do Messias mais do que poderíam no tempo de Davi e Sa-
lomão? Eles serão convertidos insinceros, mesmo que usem filactérios e franjas, e
coloquem a mezuzá nos umbrais da porta. Mas quando virem a guerra de Gogue
e Magogue, os primeiros perguntarão: ‘Contra quem estão lutando?’. E eles res-
ponderão: ‘Contra o Senhor e o seu Messias’. Pois está escrito (SI 2.1,3): ‘Por que
se amotinam as nações?’. Elas rejeitam os mandamentos: ‘Façamos em pedaços as
suas correntes, lancemos de nós as suas algemas’. Então o Santo, bendito seja ele,
380

Em suma, devemos notar que o judaísmo estava preocupado com


a ortopraxia e era concreto na oposição à abordagem abstrata da lógica
ocidental. Como consequência, encontra-se pouca estrutura sistemática
do pensamento na maioria dos escritos intertestamcntários judaicos. Só
algumas fontes lidam com o assunto que estamos investigando, e a maior
parte delas vem de uma data posterior. Isso nos deixa com menos do que
gostaríamos para responder à pergunta: “Quais eram as principais visões
judaicas intertestamentárias sobre o estado e o destino dos gentios na era
final?”.
Quaisquer conclusões, ainda que provisórias, devem se apoiar, em
parte, em inferências. A maioria pode ser apenas de natureza geral. Ten-
do isso em mente, podemos oferecer uma lista de algumas das prováveis
atitudes judaicas intertestamentárias sobre a posição dos gentios durante
a era final:
1. Os gentios serão os inimigos, os aliados do mal, a serem derrotados
na batalha final; eles serão eliminados ou severamente punidos.
2. Os gentios estão além da preocupação e da salvação de Deus;
portanto, não será apropriado procurar fazer prosélitos dentre eles
durante a era final.
3. Os gentios são tão corruptos que, mesmo que lhes seja dada a
oportunidade de se tornarem prosélitos durante a era messiânica,
eles resistirão e rejeitarão ao Senhor.
4. Qualquer gentio que tentar se tornar prosélito na era final será
motivado por interesse próprio e, portanto, não poderá ser aceito
em Israel.
5. Alguns gentios provavelmente virão servir ao Senhor sob a direção
de Israel, mas não como prosélitos.
6. Os gentios sobreviventes se tornarão escravos para servir a Israel.
7. É da vontade do Senhor que alguns gentios sejam incorporados a
Israel e, assim, recebam as bênçãos e a salvação; portanto, é apro-
priado e desejável buscar prosélitos, mesmo na era final.

estará assentado no céu e sorrirá, como está escrito: ‘Aquele que está assentado no
céu sorri’ ” (Talmude babilônico Avodah Zarab 3b, citado por Bonsirven, Palestinian
Judaism, p. 221-2).
381

Podemos imaginar as diversas reações de confusão, satisfação, alegria


e provavelmente raiva no início da igreja judaica quando, pela primeira vez,
foi ouvida a proclamação de que, uma vez que amanheceu a era final em
Cristo, os gentios “foram aproximados mediante o sangue de Cristo [...] o
qual de ambos [judeus e gentios] fez um e destruiu a barreira, o muro de
inimizade, anulando em seu corpo a Lei dos mandamentos expressa em
ordenanças [...] [criando], dos dois, um novo homem, fazendo a paz, [...]
por meio da cruz [...]. Portanto, vocês [gentios] já não são estrangeiros nem
forasteiros, mas concidadãos dos santos c membros da família de Deus”
(Ef 2.13-19). As crises no judaísmo intertestamentário, o contexto para
o cristianismo, já haviam forçado o povo a enfrentar mudanças e ajustes.
Agora, para esses cristãos judeus, outra crise, o ponto crítico na história
divina da salvação, exigia mais uma mudança, a definitiva.
Epílogo

Mesmo após anos de viagem e pregação no mundo gentílico, incluindo


cortes romanas, Paulo se sentia mais à vontade discuündo o cristianismo
no cenário “dos costumes e das controvérsias dos judeus” . Buscamos não
apenas identificar alguns desses costumes e controvérsias mais influentes,
mas também observar as forças que os trouxeram à existência. Fizemos
isso a fim de melhor equipar-nos para sermos o tipo de leitor do N T que
“vai e volta”, como Charles H. Dodd nos ensinou a ser: “O intérprete ideal
é o que entrou no estranho mundo do século I, sentiu toda a estranheza
dele, peregrinou por ele até ter vivido nele, pensando e sentindo como
um daqueles a quem o evangelho veio primeiro, e que então volta para
nosso mundo e dá à verdade que discerniu um corpo fora das coisas do
nosso pensamento” .1Para isso, é preciso praticar a arte do historiador e a
da ciência. Portanto, buscamos observar os fatos disponíveis e, por meio
deles, captar parte da atmosfera e dos sentimentos da época. O historia-
dor deve se esforçar para apresentar os dados de forma objetiva e clara,
e, assim, transmitir ao leitor moderno parte do poder que se encontra nos
próprios fatos sobre outro tempo e lugar.
N osso estudo sobre o judaísmo intertestam entário consistiu em
examinar o quadro'historico, observando alguns de seus elementos im-
portantes — eventos, instituições, mudanças, pensamentos e atitudes,
costumes e controvérsias. Vimos sua afinidade com o que o antecedeu,
mas também, sua singularidade na história hebraica. Ele foi, como suge­
1 “Cambridge Inaugural Lecture”, apudJ. A. T. Robinson, “Theologians of Our
Time: XII. C. H. Dodd”, Expository Times!5A (January 1964): 102. Thereand Rack.
Again é o título de uma série de histórias para crianças nas quais o professor Dodd
retrata a dificuldade de um grupo de crianças para explicar, no próprio mundo,
um “outro mundo” estranho ao qual tiveram acesso.
384

rimos, profundamente influenciado por crises e múltiplas reações a elas.


Enfatizamos a diversidade do mundo judaico. Ponderamos a natureza da
religião judaica intertestamentária, incluindo o nacionalismo e partícula-
rismo, a perspecdva legalista e nomista, e o caráter primário dessa religião
da ortopraxia. Consideramos a diversidade e incerteza das crenças judaicas
sobre a era final, que, no entanto, consistia no elemento mais proeminen-
te de esperança na sociedade judaica. A era final consistia no foco das
especulações e expectativas messiânicas do judaísmo intertestamentário.
Tentamos compreender parte do impacto das crenças intertestamentárias
a convicção dos primeiros cristãos sobre o despontamento da era final.
O mundo judaico intertestamentário foi o lar de Jesus na encarnação.
Sua geografia, seu povo, seus costumes e suas controvérsias formavam o
ambiente em que ele nasceu, cresceu, realizou seu ministério e morreu.
Ele conhecia intimamente esse mundo. Jesus, com os escribas, fariseus e
judeus comuns de seus dias, aceitaram sem questionamento o monoteísmo,
a aliança, a lei e a autoridade das Escrituras hebraicas. Jesus questionou
ou rejeitou alguns adendos feitos às tradições, interpretações e costumes
sobre os quais os próprios judeus mantinham controvérsias. Ainda assim,
ele não necessariamente se opôs mais a esses adendos que à negligência em
relação ao que ele considerava o verdadeiro cerne da religião hebraica: “Os
preceitos mais importantes da lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade.
Vocês devem praticar estas coisas, sem omitir aquelas [ou seja, algumas
das minúcias sobre as quais a controvérsia era travadaj” (Mt 23.23).
Para Jesus, assuntos internos, espirituais e relacionais eram centrais. O
maior de todos os mandamentos é o amor — que tem objetos concretos,
específicos: Deus e o próximo. Mas o amor é primeiro o amor a Deus,
amor que leva a sério a ruptura do nosso relacionamento com ele e deseja
remover a presença e os efeitos do pecado. Da perspectiva humana, o amor
aceita e responde ao prévio amor divino, atentando para o chamado de
Jesus: “Venha a mim [...] siga[m]-me” .
A pedra de tropeço para os judeus intertestamentários não foi o fato
de Jesus aceitar alguns costumes e rejeitar outros, ou de ele tomar um lado
e não outro na controvérsia. Eles estavam acostumados à diversidade de
opiniões nesses assuntos. A pedra de tropeço era sua própria pessoa e
suas reivindicações — que Deus estava trabalhando e se fez conhecido
em Jesus, que a aliança se fez nova, que tanto a Lei quanto os Profetas se
cumpriram. Ele veio como Messias e também como portador do Reino
385
de Deus, mas não se encaixou em nenhum dos modelos contemporâneos
dessas figuras. E assim ele “veio para o que era seu, mas os seus não o
receberam” 0o 1.11).
A multidão de zombadores aos pés da cruz de Jesus incluía repre-
sentantes de todos os segmentos do judaísmo intertestamentário. Mas
representantes dos gentios estavam presentes também. A culpa da morte
de Jesus não recai apenas sobre um grupo, mas sobre todos. Ele morreu
para que todos, judeus e gendos, pudessem encontrar perdão e aceitação
diante de Deus e para que todos os povos, nações e línguas fossem um
só sob seu governo como soberano Rei divino.
O mundo de Jesus era o mundo do judaísmo intertestamentário, mas
eventos ocorridos na metade do milênio anterior tornaram esse mundo
parte do mundo todo. Na cruz, Jesus foi erguido sobre o mundo para poder
chamar todas as pessoas para Deus. Em sua ressurreição e ascensão, tendo
cumprido no tempo e no espaço a vontade e as exigências de Deus, ele
subiu às alturas para reinar como o Filho messiânico do homem, Servo
sofredor, Filho de Davi, Salvador, Rei diante de quem todos os joelhos
se dobrarão e toda a língua confessará.
Após o advento de Cristo, o cristianismo primitivo precisou esclare-
cer suas crenças, práticas e princípios morais com a consciência de que
deveria fazê-lo sob a direção do Espírito Santo (cf., p. ex., At 15.28), mas
também no contexto do que havia passado antes e da dinâmica das socie-
dades e das culturas em que os cristãos se encontravam. O meio social do
judaísmo intertestamentário permaneceu, mas a igreja primitiva não podia
permitir que os costumes e a cultura intertestamentários determinassem
sua natureza e resposta ao mundo.
Daí em diante, o cristianismo precisou se definir em relação aos cos-
tumes e às controvérsias do judaísmo intertestamentário. De fato, a tarefa
de se adaptar a cenários socioculturais singulares e de se definir nesse
contexto, sem comprometer sua natureza essencial, acompanhou a igreja
em cada geração subsequente. Seus sucessos e fracassos eram amplamente
determinados pelo nível com que cada geração entendia a natureza das
lutas da igreja primitiva e os princípios morais e espirituais básicos apli-
cados pelos cristãos judeus do mundo do século I nos contextos e nas
situações divergentes.
As implicações teológicas e éticas deveríam ser óbvias. Mas deixe-me
mencionar uma área menos evidente. Os missiólogos modernos enfatizam
386

o desafio do ministério em contextos pouco conhecidos. O problema não é


novo. A deportação dos hebreus no século VI a.C. e a presença do helenis-
mo a partir do século IV a.C. forçaram os judeus intertestamentários a lidar
com os mesmos tipos de questões. Enquanto mudavam do mundo judaico
para o gentílico, os primeiros cristãos provavelmente estavam cientes do
fato, e se beneficiaram dele, pois o judaísmo intertestamentário antes deles
já havia lutado com o desafio intercultural. Sua rejeição às respostas mais
particularistas e isolacionistas, dadas por alguns judeus intertestamentários,
indica que os primeiros cristãos haviam aprendido bem.
O judaísmo intertestamentário continua ensinando. O leitor res-
ponsável e sério do N T deve estar preparado para ouvir e aprender. Ao
compreendermos mais plenamente o contexto do judaísmo intertesta-
mentário, nós nos tornamos mais bem preparados para compreender a
mensagem do N T e lidar com situações atuais semelhantes às enfrentadas
pela igreja primitiva.

Uma, duas, talvez quatro vezes ao ano, eu ia de carro para o leste de


Decatur, na Geórgia, e atravessava a Ponce de Leon Avenue em direção a
Stone Mountain. A cerca de um quilômetro e meio dos limites da cidade,
eu virava à esquerda em uma estrada estreita e passava por um bosque.
Então eu podia ver a casa branca de dois andares com a grande varanda.
Ela ficava no alto de uma colina e mostrava sua idade. N o começo, eu a
visitava com duas pessoas idosas que viveram lá. Eu dava a volta pelo quin-
tal e pelo pasto, e subia até o celeiro. Passava pelos bosques que cercavam
a fazenda dos três lados. Depois de visitar a formação rochosa que, para
um garotinho, parecia corcovas de camelo, eu ia para um velho pinheiro
retorcido e para uma pequena clareira familiar cercada de espinheiros,
vinhas e árvores que cresciam bem juntas.
Em alguns anos, os velhinhos se foram. Então eu apenas andava pelos
quartos da casa desocupada e visitava as construções anexas, os bosques
e os campos. Logo, não demorava muito, era hora de ir, de atravessar no-
vamente o caminho conhecido. De volta à estrada principal eu me dava
conta mais uma vez de que não morava mais ali.
Hoje, até mesmo a possibilidade de fazer essa jornada sentimental se
foi. Uma barreira bloqueia o percurso, o tempo e o clima venceram a guerra
contra o celeiro, a casa foi vítima de uma escavadeira. Mesmo assim, eu
ainda volto, volto por meio da memória e de imagens mentais. As vezes
387

eu vou, fisicamente, a dois túmulos sob uma mesma pedra. Essas viagens
são importantes. Embora não possa voltar à casa, preciso me lembrar das
raives das quais brotei. Elas me fazem lembrar de quem eu sou. Elas me
dão maior entendimento do quanto o menino da fazenda que antes existiu
e o professor universitário que agora existe são parecidos e diferentes. Sou
grato pelo que passou, mas não posso mais voltar a casa.
E o mesmo acontece com o judaísmo intertestamentário. Os cristãos o
visitam para compreenderem mais plenamente as raízes espirituais a partir
das quais brotamos, mas também a diferença radical do que foi construído
sobre o fundamento de Jesus, o Messias. Entendemos mais, cremos com
mais firmeza e funcionamos melhor à medida que, conscientemente,
compreendemos a natureza das raízes do cristianismo nos costumes e nas
controvérsias do judaísmo intertestamentário e os apreciamos.
apêndice A

Os livros apócrifos do
Antigo Testamento

Tobias
Judite
Adições de Ester
Sabedoria de Salomão
Eclesiástico, ou a Sabedoria de Jesus, filho de Siraque
Baruque
3Esdras (= 1Esdras)
4Esdras (= 2Esdras)
Carta deJeremias
Oração de Abarias e 0 Cântico dos trêsjovens
Susana
Bel e 0 dragão
IMacabeus
2Macabeus
3Macabeus
4Macabeus
Salmo 151 - ‫־־־ ־‬

Todos estes livros, exceto 4Esdras (2Esdras), estão presentes na tra-


dução grega do AT (I -XX); 2Esdrasécncontrado nas traduções latinas do
AT e foi usado por muitos pais da igreja primitiva. Os ortodoxos gregos
usam 3Macabeus, 4Macabeus e o Salmo 151, ao contrário da Igreja Católica
Romana.
apêndice B

Os livros pseudepigráficos

Os 63 títulos listados aqui aparecem em The Old Testament Pseudepigra-


pha [Ospseudepígrafos do Antigo 7 'estamento\ ,James H. Charlesworth (org.), 2
vols. (Garden City, N. Y: Doubleday, 1983,1985); os que estão marcados
com um asterisco também aparecem em The Apocrypha and Pseudepigrapha
of the Old Testament [0.f apócrifos epseudepígrafos do Antigo Testament0], R. H.
Charles (org.), 2 vols. (Oxford: Clarendon, 1913), vol. 2.

Apocalipse de Abraão
Apocalipse de Adão
Testamento deAdão
* Vida de Adão e Eva
* Ahikar
Carta deAristeu
Aristeu, 0 Exegeta
Aristóbulo
Artápano
* 2Baruque
* 3Baruque
4Baruque
Cleodemo Malco
Apocalipse de Daniel
Outros Salmos de Davi
Demétrio, o Cronógrafo
Eldade e Medade
Apocalipse de Elias
* lEnoque
* 2Enoque
3Enoque
392

Eupólemo
Pseudo-Eupólemo
Apócrifo de Ezequiel
Ezequiel, de Tragédias
* 4Esdras
Apocalipse grego de Esdras
Questões de Esdras
Revelação de Esdras
Visão de Esdras
Fragmentos de poetas pseudogregos
Pseudo-Flecateu
Orações sinagogais belenistas
* Martírio e ascensão de Isaías
Escada deJacó
Oração deJacó
Janes eJambres
Testamento deJó
José eAsçenate
História deJosé
Oração deJosé
*

3Macabeus
* 4Macabeus
Oração de Manasses
Menandro Siríaco
* Testamento de Moisés (Assunção de Moisés em Charles)
Órficas
Fílon, 0poeta épico
Pseudo-Fílon
Pseudo- Focílides
A vida dosprofetas
História dos recabitas
Apocalipse de Scdraque
Tratado de Sem
* Os Oráculos sibilinos
Odes de Salomão
* Salmos de Salomão
Testamento de Salomão
Teódoto
Testamentos dos três patriarcas
* Testamentos dos doze patriarcas
Apocalipse de Sofonias
apêndice C

Tratados da Mixná,
do Talmude e da Tosseftá

Não se conhece a lógica por trás da organização da Mixná. Às vezes


parece que o material foi organizado de modo a facilitar a memória. Há
seis seções principais {sedarim): 1) Zeraim (Sementes); 2) Moed(Festas fixas);
3) Nashim (Mulheres); 4) Ne^iqin (Danos); 5) Qodashim (Coisas santificadas);
6) Tohorot (Purificações).
Cada seder é dividido em massektot (tratados). Os sedarim normalmente
lidam com apenas um ou dois temas intimamente relacionados. Cada tra-
lado é dividido emperaqim (capítulos). Os tratados ou capítulos individuais
podem tratar de temas que parecem não ter relação alguma com o tema
geral do sederem que se encontram. Cada capítulo se divide em parágrafos
chamados mixná ou halakak (ensinamentos individuais).
O leitor deve estar ciente de que as transliterações variam. As tradu-
ções dadas aqui são de TheMishnah, trad. Herbert Danbv (Oxford: Oxford
University‫ ׳‬Press, 1933). Por causa da falta de familiaridade da maioria dos
leitores com este material e da dificuldade de localizar um tratado em
particular, incluímos um índice (o primeiro número representa a seção e
o segundo número, o tratado dentro da seção).

AS DIVISÕES MIXNAICAS

1. Zeraim (Sementes)
1. Berakot (Bênçãos)
2. Peah (Seleções)
3. Demai (Produto sem dízimo certo)
4. Kilayim (Tipos diversos)
5. Shehiit (O sétimo ano)
6. Terumot (Ofertas levantadas)
7. Maaserot (Dízimos)
8. Maaser sheni (Segundo dízimo)
9. Hallah (Oferta de Massa)
10. Orlah (O fruto de árvores novas)
11. Bikkurim (Primeiros frutos)

2. Moed (Festas Fixas)


1. Shabbat (Sábado)
2. Erubin (A fusão dos limites do sábado)
3. Pesahim (Festa da Páscoa)
4. Sheqalim (Os siclos)
5. Yoma (O Dia [da Expiação])
6. Sukkah (A Festa dos Tabernáculos)
7. Yom tov ou Betsah (Dias-festival)
8. Rosh hashanah (Festa do Ano Novo)
9. Taanit (Dias de jejum)
10. Megilah (O pergaminho de Ester)
11. Moed qatan (Dias de meia-festa)
12. Hagigah (A oferta festiva)

3. Nashim (Mulheres)
1. Yevamot (Cunhadas)
2. Ketubot (Certidões de casamento)
3. Nedarim (Votos)
4. N a^ir (Voto do nazireu)
5. Sotah (A suspeita de adultério)
6. Gittin (Certificados de divórcio)
7. Qiddushin (Noivados)

4. Nesjqin (Danos)
1. Baba qamma (O primeiro portão)
2. Baba metsia (O portão do meio)
3. Baba batra (O último portão)
4. Sanhedrin (O Sinédrio)
5. M akkot (Açoites)
6. Shevuot (Juramentos)
7. Eduyot (Testemunhos)
395

8. Avodah %arah (Idolatria)


9. Avo/ (Pais)
10. Horayot (Instruções)

5. Qpdasbim (Coisas Santificadas)


1. Zevaim (Ofertas de animais)
2. Menaot (Ofertas de manjares)
3. Hullin (Animais mortos para comer)
4. Bekorot (Primogênitos)
5. Arahin (Votos de avaliação)
6. Temurah (A oferta substituída)
7. Keritot (Extirpação)
8. Meilah (Sacrilégio)
9. Tamid (O holocausto diário)
10. M iddot (Medidas)
11. Q tnnim (As ofertas de aves)

6. Tohorot (Purificações)
1. Kelim (Vasos)
2. Ohalot (Tendas)
3. Negaim (Sinais de lepra)
4. Parah (A novilha vermelha)
5. Tohorot (Limpezas)
6. Miqwaot (Tanques para imersão)
7. Niddah (A menstruada)
8. M aqshirin (Os que se predispõem)
9. Zavim (Aquelas que sofrem fluxo)
10. Tevulyom (Aquele que se imergiu naquele dia)
11. Yadayim (Mãos)
12. U qttyn (H a s te s )

Lista alfabética de tratados individuais

Dois números seguem cada nome. O primeiro é o número do seder e


o segundo, o número do tratado dentro dessa seder. Assim, Avo14.9 indica
que este é o nono tratado dentro do quarto seder (Ne^ikiri). Esta lista e
estas referências apresentam um mapa do material rabínico para facilitar
a localização de um tratado em particular.
396

Avodah \ ‫׳‬arah 4.8 Na-^iròA


^4w/4.9 Nedarim 3.3
Araqhin 5.5 Negaim 6.3
Niddah 6.7
Zfofe /Wra 4.3
qamma 4.1 Ohalot 6.2
metsia 4.2 Orlah 1.10
Beqbojvt 5.4
Beraqot 1.1 Parah 6.4
Betsah 2.7 Peah 1.2
Bikkurim 1.11 Peahim 2.3

Demai 1.3 Qiddushin 3.7


Qinnim 5.11
Eduyol 4.7 hashanah 2.8
Eruvin 2.2
Sanhedrin 4.4
Gittin 3.6 Shahbat 2.1
Sheviit 1.5
Plagigah 2.12 Shevuot 4.6
llallah 1.9 Sheqalim 2.4
Horayot 4.10 .Waé 3.5
Huílin 5.3 Sukkah 2.6

Kelim 6.1 Taanit 2.9


Keriiot 5.7 Tamid 5.9
Ketubot 3.2 Tevuljom 6.10
Kiddushin 3.7 Temurah 5.6
Kilayim 1.4 Terumot 1.6
Kinnim 5.11 Tohorot 6.5

Maaserot 1.7 Uqtyin 6.12


Maaser sheni 1.8
M akkol 4.5 Yadayim 6.11
Maqshirin 6.8 Yevamot 3.1
Megillah 2.10 Yoma 2.5
Meilah 5.8 35«‫ ׳‬Tov 2.7
Menahot 5.2
Middot 5.10 Zavim 6.9
Miqwaot 6.6 Zvahim 5.1
Afüé2.11 7>‫׳‬
apêndice D

A crucificação

A crucificação implicava erguer o condenado por meio de um poste,


alguma forma de base ou andaime, ou um madeiro natural.1Isso expunha
a vítima à vista e ao escárnio público. Em muitos casos, o indivíduo era
executado por outro meio, e, então, seu corpo inteiro ou parte dele (ge-
ralmente a cabeça) era erguido. Em outras circunstâncias, a crucificação
era o meio propriamente dito de execução. Normalmente a crucificação
era uma forma de punição, mas há evidências de que, em algumas áreas,
pode ter sido também associada ao sacrifício humano religioso.
Por causa dos efeitos sobre o corpo e o longo período antes da ocor-
rência da morte, a crucificação era a forma de execução mais dolorosa,
cruel e bárbara. Suas raízes perderam-se na história. Conhecida por ter
sido usada de uma forma ou de outra por muitos grupos diferentes, ela é
mais associada a persas, cartagineses, fenícios, gregos e, em especial, aos
romanos.2 Na terra de Israel, a crucificação era uma forma romana de
execução; o método judaico era o apedrejamento.
A crucificação dava aos executores a oportunidade de usar sua cria-
tividade mais cruel e sadista; a vítima era, às vezes, pendurada em uma
posição grotesca por uma variedade de meios. As primeiras formas de
____________ »*
1 Este apêndice c uma adaptação de J. Julius Scott Jr., “Cross/Crucifixion”, em
Evangelical Dictionary of Theology, Walter A. Elvvell (org.). Grand Rapids: Baker,
1984, p. 286-8. V. tb. Mart in Hengcl, Crucifixion in the Ancient Worldand the Folly of
the Message of the Cross, trad. John Bowman (Philadelphia: Fortress, 1977); William
D. Edwards, Wesley J. Gabel, Floyd E. Hosmer, “On the Physical Death of Jesus
Christ”, Journal of the American MedicalAssociation 255.11 (March 21,1986): 1455-
62.
2 Entre outros grupos praticantes da crucificação estão indianos, citas, celtas, ger-
manos, bretões e taurinos.
398

crucificação provavelmente envolviam empalar o condenado em um poste


único ou suspendê-lo, encaixando a cabeça entre as laterais da estrutura
em forma de Y. Nos tempos do NT, vários tipos de cruzes eram usadas
pelos romanos. A maioria incluía, pelo menos, duas peças de madeira para
a construção da estrutura. As duas formas mais provavelmente usadas
para a execução de Jesus são a cruz cm forma de T de Santo Antônio e a
cruz latina, peça vertical da qual se erguiam a trave horizontal e a cabeça
da vítima.3
São poucas as descrições detalhadas das crucificações; os escritores
antigos parecem ter evitado o assunto. Descobertas arqueológicas recentes,
incluindo os restos do esqueleto de um homem crucificado na Jerusalém
do século I, somaram-se de forma considerável a nosso conhecimento.
Parece que os relatos dos Evangelhos sobre a morte de Jesus indicam o
procedimento padrão romano para a crucificação. Em algum momento
a vítima era açoitada, uma experiência que causava a morte de alguns. O
condenado era obrigado a carregar a peça horizontal até o local da exe-
cução, sempre um lugar proeminente fora da cidade. O líder do grupo
de execução, formado por quatro homens, dava um sinal detalhando o
motivo da execução.
O condenado era despido; a nudez aumentava a vergonha. O s braços
estendidos da vítima eram fixados à trave com pregos ou cordas. A trave
era, então, erguida e presa ao poste perpendicular, que em algumas áreas
era deixado no lugar permanentemente, tanto por conveniência como para
servir de aviso. O sinal que identificava o crime também era preso à cruz.
E possível que uma pequena tábua ou estaca fosse dada como assento
para suportar parte do peso do corpo. Os pés eram presos de modo a
forçar os joelhos a permanecer em posição dobrada. Contrário à opinião
popular moderna, a cruz não era alta; os pés do crucificado provavelmente
ficavam a apenas alguns centímetros do chão.
A morte vinha lentamente; era comum as pessoas sobreviverem por
dias na cruz. A causa precisa da m orte podia ser exposição, fome, choque
ou exaustão. Alguns estudos médicos recentes sugerem que, se o cruci-
ficado não tivesse algum tipo de assento para suportar o corpo ou fosse
incapaz de usar os pés para empurrá-lo para cima, ele não conseguiría

’ Tanto a afirmação em Mt 27.37 (Lc 23.38) de que a inscrição foi colocada “por
cima de sua cabeça” quanto às tradições mais antigas sugerem que Jesus foi cru-
cificado em uma cruz latina.
399

respirar de forma correta e logo morrería por asfixia. Às vezes a morte


era apressada “por um golpe de misericórdia” que quebrava as pernas do
condenado. Isso intensificava o choque físico e a asfixia induzida, impos-
sibilitando que os pés empurrassem o corpo para cima. Outro motivo de
desonra era deixar o corpo do crucificado insepulto para ser devorado
por aves e animais carnívoros.
O estigma social e a desonra associados à crucificação no mundo
romano dificilmente podem ser descritos com exagero. A crucificação
era uma punição reservada para escravos, criminosos da pior espécie —
vindos das classes mais baixas da sociedade — , desertores militares e, em
especial, traidores. Em apenas casos raros, como a deserção militar, eram
crucificados cidadãos romanos. O estigma da crucificação estendia-se à
família e aos amigos da vítima; ser conhecido como alguém que tinha algu-
ma relação com o crucificado era marca de extrema vergonha. N o mundo
judaico, a crucificação carregava uma desonra adicional. De acordo com
Deuteronômio 21.23: “ Qualquer que for pendurado num madeiro está
debaixo da maldição de Deus” — o método de morte trazia a maldição
divina sobre o crucificado.
apêndice E

A oração judaica diária e a exclusão


de cristãos judeus

E m algum m o m e n to n o século I o te x to da décim a segunda petição


da oração diária judaica (Shemoneh ‘esreb) foi alterado a fim d e incluir a con-
denação d o s cristãos judeus. P o r isso a diferença n o texto entre a versão
co m u m e a d a genitçah n o C airo (a v ersão palestina):
Versão babilônica
E não haja esperança para os delatores; e todos os que agem com per-
versidade sejam destruídos cm um piscar de olhos; e que em breve sejam
todos exterminados; e que desarraigues, esmagues, faças cair c humilhes
os insolentes já em nossos dias. Bendito sejas tu, Senhor, que esmagas os inimigos
e humilhas os insolentes.

E não haja esperança para os apóstatas; e que o reino insolente seja


imediatamente arrancado em nossos dias. E que os nazarenos e os
hereges pereçam com rapidez; e que eles sejam apagados do Livro da
Vida; e que não sejam inscritos com os justos. Bendito sejas tu, Senhor, que
humilhas os insolentes.
A palavra trad u zida c o m o “ n azareno s” é a palavra hebraica m oderna
(nasorim) p a ra cristãos judeus; a palavra traduzida c o m o “h ereges” (minim)
é u m te rm o m ais am plo p ara hereges em geral.1O texto da versão de Cai-

1 Foram dadas cinco sugestões para explicar a etimologia de minim·. 1) contração da


palavra hebraica usada para “cristãos”; 2) acróstico do hebraico usado para “crentes
fem] Jesus, o Nazareno”; 3) derivação do nome Maniqueu, fundador do sistema
maniqueísta; 4) derivação da raiz que significa “negar” c 5) derivação do significado
comum e original de min, “tipo” ou “espécie”, designação do judeu infiel. A última
sugestão parece a mais provável. Cf. R. Travers Herford, Christianity in Talmud
402

ro, cujo surgimento é atribuído normalmente no final do século I, chama


atenção para João 9.22; 12.42 e 16.2, que falam de exclusão dos seguido-
res de Jesus da sinagoga (em contraste com a perseguição nas sinagogas
[Mc 13.9; Lc 12.11]). A inclusão desse texto na oração diária proferida nas
sinagogas de Israel tornou-se o instrumento para excluir cristãos judeus
da participação contínua nos cultos — o entusiasmo deles para se juntar
à oração coletiva seria severamente minado graças à petição para que
fossem condenados. Deve-se notar que as versões modernas não contem
referências específicas aos nazarenos e aos hereges.‫״‬A versão de Simeon
Singer (Authorised Daily Prayer Rook [Livro autorizado de orações diárias]) diz:
“B para os caluniadores, não haja lar, e que toda a maldade pereça em um
piscar de olhos; que todos os teus inimigos sejam logo removidos, e que
rapidamente desarraigues, despedaces, destruas e humilhes o domínio da
arrogância já em nossos dias. Bendito sejas tu, ó Senhor, que despedaças
os inimigos e humilhas os arrogantes”.

andMidrash (Clifton, N. J.: Reference Book, 1966), ρ. 362-81 e 161; George Foot
Moore, Judaism in the First Centuries of the Christian Bra, 3 vols. (Cambridge, Mass.:
Harvard University Press, 1927-1930), vol. 3, p.68-9. Particularmente úteis são
as distinções feitas por Herford (p. 366) entre quatro termos da Tosseftá, Sanhedrin
12.4,5: masorot (delatores, traidores políticos), epiqurosin (pensadores livres, judeus
ou gentios), meshummadim (os que, por livre e espontânea vontade, violam alguma
parte da lei cerimonial e com isso proclamam a apostasia da religião judaica) e minim
(os que, no fundo, são falsos, mas não necessariamente proclamam sua apostasia).
Ele vê acjui uma série de quatro termos que estão no mesmo pé de igualdade.
apêndice F

A literatura apocalíptica e as
Escrituras inspiradas

A forma literária apocaliptismo é estranha para a maioria dos cristãos


contemporâneos, em especial no Ocidente. Sua estranheza muitas vezes
cria uma atmosfera de mistério que sugere para alguns leitores um tipo es-
pccial de significado espiritual. Há uma tendência de pressupor a presença
da forma apocaliptismo como indicador automático não só do conteúdo
escatológico geral, mas também de prenúncios sobre os acontecimentos
que imediatamente antecederão e acompanharão o retorno de Cristo e o
fim do mundo. Esses pressupostos não reconhecem que o apocaliptismo
era (e é) uma forma literária humana específica, utilizada por escritores
para diversos fins. Sua qualidade especial para os cristãos não vem de algo
inerente à sua natureza, mas do uso por escritores inspirados nas Escritu-
ras. Além disso, como os escritores bíblicos usaram e também adaptaram
outras formas literárias antigas (narrativa, poesia, profecia e epístola), eles
se valeram do estilo apocalíptico e o adaptaram.1
As pessoas que sustentam o ponto de vista tradicional sobre a natureza
da Bíblia pouco discutem os vários problemas sobre como essa visão se
relaciona com os fenômenos apocalípticos. E de importância particular
0 fato de o apocaliptismo ter surgido em outra parte do mundo antigo
por volta do mesmo período em que o apocaliptismo judaico ganhava
proeminência e era incorporado à literatura bíblica. Em suma, como os
pressupostos sobre a origem do apocaliptismo afetam as afirmações da
defesa da inspiração divina das Escrituras? Quem lida com as Escrituras
com tendência antissobrenaturalista afirma que o apocaliptismo bíblico,

1 Um exemplo da adaptação é que o conceito dos apocalipdstas cristãos sobre o


período da história da salvação em que vivem difere do conceito dos escritores
judeus (cf. p. 190 n. 14).
404

como outras partes das Escrituras, é de origem humana. Ainda que


admita que a visão ou sonho por meio do qual o apocaliptista entra no
outro mundo ultrapassa o uso do recurso literário, ela vê aqui a prática
da orientação mística ou psicológica bastante subjetiva ou um símbolo
literário para uma experiência existencial.
Quem aceita a origem divina das Escrituras afirma que o processo de
inspiração utilizou a forma literária do apocaliptismo da mesma maneira
natural que outros gêneros o fizeram. Portanto, as visões e os sonhos de-
vem ser considerados dois dos modos pelos quais o ·Espírito se comunicou
com os escritores bíblicos. Como consequência, a literatura apocalíptica,
como outros gêneros, deve ser entendida de acordo com sua natureza e
segundo princípios interpretativos apropriados.
Outra questão envolvendo o apocaliptismo e as Escrituras diz respeito
à datação da origem do apocaliptismo e de certos livros bíblicos. Alguns
estudiosos contemporâneos pressupõem que certos cânones de críticas
podem ser usados com independência para determinar os limites para as
datas de um documento. Assim, com o pressuposto de que o apocalip-
tismo bíblico resulta da exposição de Israel a uma influência particular,
como o zoroastrismo ou o helenismo, os livros bíblicos contendo seções
apocalípticas devem, de acordo com essa lógica, ser datados depois que
os hebreus tiveram contato com essa influência. Portanto, partes de Isaías,
Daniel, Joel e outras seções do AT devem ser pós-exílicas. O utro cânone
diz respeito a alusões históricas. As afirmações bíblicas referentes a uma
pessoa, acontecimento ou instituição histórica não podem ser prenúncios,
mas devem ter sido escritas após o fato (exeventú).
Este não é o fórum para a discussão ampla sobre essas questões. N o
entanto, algumas observações são oportunas. Primeira, nas areias move-
diças da opinião acadêmica, pressupostos sobre a origem e o desenvol-
vimento do apocaliptismo estão sujeitos à revisão. A incerteza recente
sobre os aspectos identificadores de pertinência de um documento ao
apocaliptismo ofusca a questão de sua natureza e data de origem. Por
exemplo, o texto de Isaías 24— 27 é apocalíptico ou pré-apocalíptico?
Embora a passagem de 24.2123 e outras passagens mencionem o juízo
escatológico (note a expressão “naquele dia” cm 24.21; 25.9; 26.1; 27.1,2,
12,13), não há dualismo evidente. Existe agora certa aceitação da possibi-
lidade de que as raízes do apocaliptismo sejam muito mais antigas que se
pensava antes. A pergunta “Quem tomou emprestado de quem?” já não
405

tem a resposta autom ática de que quem provavelm ente tom ou em prestado
foram os hebreus.2
Segundo, é im p o rtan te ch eg arm o s a conclusões so b re as questões
suscitadas, m as elas n ão devem ser usadas c o m o testes da o rtodoxia tra-
dicional o u crítica. N e n h u m d o s lados está livre d o raciocínio circular, de
arg um en tos especiais e assim p o r diante. H á necessidade de reconhecer
com coragem n o sso s p ressu p o sto s e sua influência, separarm o s dados
de suposições e interp retaçõ es, e o b se rv a rm o s repetidas vezes o s fatos e
a direção p o r eles ap o n tad o s. E sta abo rd ag em não dim inuirá a influência
d o s p ressupo sto s, m as n o s p erm itirá fazer a distinção entre diferenças de
opinião que se baseiam apenas em evidências factuais e as enraizadas em
p ressu p o sto s e co m p ro m etim en to s filosóficos.

2 P. Gignoux, “Apocalypses et voyages extra-terrestres dans 1’Iran Mazdéen”, em


Apocalypses et voyages dans lAu-delà, ed. C. Kappler (Paris, 1987), p. 355, levanta a
possibilidade da influência judaica sobre o apocaliptismo persa.
apêndice G

A interpretação da literatura
apocalíptica

Por alguma razão, os escritores apocalípticos usaram uma linguagem


de difícil compreensão para todos, menos para o próprio grupo. O leitor
moderno não só está fora do grupo do escritor, mas em uma localização
geográfica, período da história, cultura e estrutura linguística diferentes. A
forma literária apocalíptica é estranha para a maioria de nós. A dificuldade
de entendê-la é demonstrada pela variedade de esquemas interpretativos
apenas para o livro de Apocalipse.*1Muitos livros sobre hermenêutica ou
interpretação bíblica dão sugestões para a interpretação do apocaliptismo.234

1 Embora haja quase tantas interpretações diferentes de Apocalipse quanto o nú-


mero de intérpretes, elas podem ser classificadas em quatro grupos amplos:
1. Idealista: O livro de Apocalipse descreve a luta contínua entre o bem e o mal,
Deus e Satanás, a igreja e o paganismo e o triunfo final do cristianismo. Portanto,
ele não contém prenúncio algum sobre o futuro.
2. Preterista: O livro de Apocalipse descreve a perseguição do cristianismo promo-
vida por Roma antiga no próprio tempo do autor; há também certa indicação
do que ele esperava acontecer no futuro imediato. Portanto, o livro foi escrito
cm uma das duas perseguições do século I que ocorreram por todo o império:
a) no reinado do imperador Nero (54-68), que perseguiu cristãos de 64 a 68;
ou b) no reinado de Domiciano (81-96), que perseguiu cristãos em 95 e 96.
3. Histórica: Apocalip^e-é uma apresentação simbólica da história da igreja desde os
tempos apostólicos até o fim da história. O livro descreve etapas sucessivas da
história da igreja ou ciclos que constantemente se repetiam ao longo da história
da igreja e continuarão a se repetir até a segunda vinda de Cristo.
4. Futurista: O livro de Apocalipse descreve apenas tempos e condições anteriores
à segunda vinda de Cristo e ao fim do mundo e da história. Portanto, pela pers-
pectiva do autor, o livro trata de acontecimentos no futuro distante. A maioria
dos defensores dessa posição interpretativa afirma que vivem nos últimos dias
e que o livro descreve seu próprio tempo.
2 Por exemplo, A. Berkeley Mickelsen, Interpreting the Bible (Interpretando a Bíblia).
Grand Rapids: Eerdmans, 1963; Gordon D. Fee e Douglas Stuart, How to Read
408

Aqui oferecemos apenas algumas observações que ajudam os leitores


desse esülo literário.
Primeira, é essencial a compreensão das características distintivas
do gênero. As definições apresentadas no Capítulo 10 provavelmente
consistem em um conjunto um pouco útil. N o entanto, nunca podemos
nos acostumar com uma forma literária, em especial uma tão estranha à
nossa experiência, valendo-nos apenas de definições secundárias. Para
entendermos qualquer gênero literário, devemos ler muitos textos dessa
forma: para entendermos romances, devemos ler muitos. Nós nos fami-
liarizamos com o apocaliptismo pela leitura do maior número possível
de apocalipses.
Segunda, a ampla variedade de interpretações de apocalipses é, em
grande medida, o resultado do uso de métodos inapropriados ao gênero.
O fato de os escritores terem em mente pessoas, acontecimentos e situa-
ções específicos não significa que devamos procurar significados ocultos
em cada detalhe de suas imagens. O leitor moderno não está na posição
de compreender de forma plena as figuras do escritor ou, às vezes, nem
mesmo a intenção do escritor.
Terceira, quanto maior o conhecimento da história, cultura, sociedade
e do pensamento da época do escritor pelo intérprete, mais provável é a
compreensão de alusões, insinuações e referências indiretas. Mais uma vez,
o leitor moderno deve proceder com cautela. Em bora o estudo histé>rico
ofereça informações muito necessárias e úteis, nunca podemos saber e
perceber tudo o que o escritor e seus leitores originais vivenciaram.
Quarta, é útil reconhecer que o apocaliptista se concentra na situação
geral — todo o movimento da história. Mesmo os detalhes do presente
são considerados partes do mosaico gigantesco; cada parte é importante,
mas sua importância é evidente só quando o todo está em vista. O escriba
apocalíptico insiste em que as perseguições, adversidades e desastres do
passado e do presente sofridos pelo povo de Deus devam ser considerados
à luz da vitória divina final e da glória futura de seu povo. O intérprete erra
a menos que procure e aprecie todo o esboço do trabalho do apocaliptista.
Quinta, o intérprete deve permiür que o escritor fale às emoções, bem
como à mente. O escriba deseja atrair os leitores para o outro mundo a fim

the Biblefor A ll Its Worth, Grand Rapids: Zondervan, 1982. (Em português: Como
l'era Bíblia livropor livro. Edições Vida Nova.)
409

de que des possam sentir toda a estranheza desse mundo e, então, com um
ponto de vista ampliado, reingressar no próprio mundo e na própria vida.
Por fim, deve-se considerar a questão da relevância do apocaliptis-
mo para o mundo moderno. Os apocaliptistas lidaram com problemas e
questões que consistem em preocupações constantes do drama humano.
O pecado e sofrimento, a prosperidade dos ímpios, o sentido da história,
a natureza e relevância do mundo sobrenatural, e o destino final do uni-
verso e dos que nele estão são questões sempre presentes. Os apocalipses,
como o livro de Jó, oferecem, se não respostas, pelo menos uma maneira
de lidar com essas questões.
Quem acredita que a Bíblia é a revelação divina enfrenta ainda a ques-
tão de como os escritos apocalípticos da Bíblia podem ser normativos
em nosso tempo e lugar. Pelo menos, do século TI em diante, a questão
levou a muitas tentativas de encontrar paralelos exatos entre as imagens
dos apocaliptistas e o mundo do leitor. Obviamente, aqueles nas gerações
anteriores que prenunciaram o retorno de Cristo c o fim do mundo em sua
época estavam errados. Claro está que o apocaliptismo bíblico, em especial
o do NT, lida com a escatologia. Sua mensagem geral condiz com a de
muitos escribas apocalípticos não bíblicos, mas também com a mensagem
cristã distintiva. O povo de Deus é a igreja, a nova Jerusalém, a noiva de
Cristo (Ap 23; 19.7; 21.2,9,10). As várias forças perseguidoras do povo de
Deus são as bestas ou Satanás (Ap 12— 19). Os cristãos são remidos pelo
sangue do Cordeiro e vencem por meio desse sangue; Cristo é o Cordeiro
morto, o agente definitivo da vitória (Ap 1.5; 5.9; 7.14; 12.1l).3A segunda
vinda de Cristo sinalizará a derrota do mal, o juízo, as recompensas para
o povo de Deus e a punição para os ímpios, e o novo céu e terra.
Até que ponto os detalhes do apocaliptismo bíblico se aplicam além
do próprio tempo do escritor é a questão mais difícil. A história de in-
terpretação narra as divergências sobre o ponto. Esperamos que nossos
comentários sejam útçis. Além disso, o leitor deve tomar cuidado ao fazer
interpretações de forma isolada de outros de mesma fé, pois o cristianismo
é comum! Precisamos da ajuda de nossos irmãos, tanto cm pessoa como
por meio de seus escritos. Quanto mais, melhor. É perigoso permitir que
o indivíduo ou um pequeno grupo faça a interpretação por nós. Precisa-
mos nos beneficiar, o máximo possível, com as realizações e os erros do
passado e de nossos contemporâneos.

A identificação de Cristo com o Cordeiro é confirmada pela referência aos “doze


apóstolos do Cordeiro” em Ap 21.14.
apêndice Η

Como funciona a erudição

É importante que os interessados em estudos bíblicos e afins entendam


algo sobre o processo de lidar com um conjunto recém-descoberto de
informações. O primeiro passo é o relato dos fatos. Ele inclui o que foi
encontrado, onde, por quem c o local presente da descoberta. É importante
a disponibilização do material para que todos o possam ver e interpretar.
N o caso de manuscritos, isso significa prover reproduções e transcrições
para o público acadêmico. Eis a primeira área de dificuldade e controvér-
sia. O s indivíduos que controlam esse material querem reservar para si o
primeiro contato com ele. Portanto, o conteúdo dos manuscritos pode
ser retido por um período considerável. E continua o debate sobre o que
é um período “considerável” .
O processo de transcrição de manuscritos é difícil e muitas vezes está
sujeito à dúvida. Com “transcrição” nós nos referimos à cópia das letras
reais em um meio moderno de estudo ou publicação. Com frequência,
algumas letras serão difíceis de identificar por causa da caligrafia do es-
criba, da escrita apagada, da deterioração ou da mutilação do manuscrito.
Por serem valiosos e /rágeis, os manuscritos não podem ser transferidos
repetidas vezes de um lugar para outro. Por isso, é habitual publicar foto-
grafias. As técnicas fotográficas modernas ajudam a determinar o que está
no manuscrito, mas muitas vezes as fotografias não são tão boas quanto
trabalhar com o original. É possível haver um debate justificável entre os
estudiosos sobre a leitura de uma passagem em particular (ou seja, sobre
precisamente o que são as letras no original).
A partir da transcrição, o processo segue para a tradução e interpreta-
ção. A influência subjetiva aumenta. E impossível traduzir de um idioma,
412

mesmo um moderno, para outro com precisão absoluta que transmitirá


não só o significado das palavras, mas também nuanças. Com um idioma
como o hebraico antigo, a tradução é ainda mais difícil. () hebraico antigo
era escrito sem vogais, e a pronúncia correta transmitida oralmente. Suas
construções gramaticais são diferentes das do nosso idioma e muitas
vezes envolvem sutilezas com as quais a mente ocidental moderna não
está acostumada. Além disso, os estudiosos modernos desconhecem o
significado de algumas palavras. Em documentos como os manuscritos
do mar Morto, o problema se agrava porque faltarrrpart.es deles; na ver-
dade, a maioria dos manuscritos consiste em pequenos fragmentos. Não
é preciso dizer, em tal situação, que haverá discordâncias legítimas sobre
a tradução adequada.
Ainda mais controversa é a área de interpretação: O que as palavras
e frases significam? Quais os acontecimentos históricos e idéias a que se
referem? O “sacerdote ímpio” é mencionado em alguns manuscritos, por
exemplo, o Comentário (ou Pesher) sobreNaum, Jônatas Macabeu (160-143),
Simão Macabeu (143-134), João Hircano (134104), Alexandre Janeus
(103- 76), ou de outra pessoa? () verbo é representado pelas consoantes
;whmytw no fragmento 4Q285 como causativo (tradução: “Eles causaram
a morte”) ou indicativo (“eles mataram”)? Os regulamentos do Manual
de disciplina (1QS) e a Aliança da comunidade de Damasco (CD) indicam uma
comunidade essênia ou algum outro grupo?
A erudição trabalha por um consenso. Uma vez disponibilizados os
dados brutos — as letras, palavras e frases dos manuscritos — , diferen-
tes indivíduos começam a elaborar e publicar traduções e interpretações
próprias. Suas descobertas são avaliadas e discutidas por outras pessoas da
área. O impossível rapidamente será exposto e eliminado. Outras opções
continuarão a ser estudadas e avaliadas. As vezes, é impossível avaliar
opiniões alternativas.
Infelizmente, os sensacionalistas muitas vezes se apressam em publi-
car idéias que objetivam prender a imaginação do público, vender livros
c dar reconhecimento ao escritor. Uma publicação anterior sobre os
manuscritos do mar M orto afirmava que cada palavra do manuscrito de
Isaías de Qumran difere do texto atualmente usado por judeus e cristãos.
O autor estava correto — o manuscrito do mar Morto não incluía e não
podia incluir as vogais, pois elas não faziam parte do escrito original, mas
foram acrescentadas por estudiosos judeus quinhentos ou seiscentos
413

anos depois da cópia do manuscrito de Isaías de Qumran. O verdadeiro


processo acadêmico é muito mais lento, meticuloso e menos impactante
que as ofertas precipitadas de sensacionalistas.1

1 Pouco antes da publicação do chamado material do mar Morto, no outono de


1991, adverti uma classe de que, se os documentos tivessem sido disponibilizados,
havería interpretações absurdas e inimagináveis. Antes do fim do semestre, levei
à classe um tabloide que dizia que os manuscritos recém-publicados provavam
que Elvis Presley estava vivo e vivia em Israel, e que a cura para o câncer podia
ser encontrada em certa planta que cresce na Palestina.
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k
professor Scott oferece a estudantes e pastores um excelente estudo
‘( )

sobre o judaismo intertestamentario c como o periodo —


sua literatura e

^ —
institui oes serve como contexto para a meihor compreensao do Novo
Testamento. ( ) fato deste livro nao so oferecer uma visao gcral acessivel
dos dados ( historia, institui ocs , pensamento religiose), mas tambem
^
procurar entender as ideias e controversias surgidas no judaismo desse
periodo e o que o torna especialmente util . Da -se, portanto, ao leitor um
acesso ao fenomeno complexo e diverso conhecido como judaismo
primitive, do qual Jesus, Paulo e a maioria dos outros escritores do Novo
Testamento fizeram parte.”

Gordon D Fee
Professor do Novo Testamento, Regent College
.

“ Em geral , o livro oferece um tratamento muito detalhado, mas legivel, de


seu tema, claramente relevante para o estudante cristao, mas valioso para
outros muitos leitores tambem . ”

— Craig L. Blomberg
Themelios

J. Julius Scott Jr. e professor emerito de Estudos Biblicos e Historicos


da Wheaton College Graduate School. E doutor pela Universidade de
9

Manchester .

- -
ISBN 978-85-8038 058 3

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Iatcrarura que edifica

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