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A Pragmática das Insurreições: O que dizem aqueles que

gritam contra o poder?

Parte I

É
comum operar uma análise histórica dos movimentos políticos

partindo dos seus motivos para chegar em suas consequências. É

sempre mais fácil fazer a analise daquilo que tem um inicio, um

meio e um fim. O sentido teleológico de um movimento é,

costuma-se acreditar, seu fundamento, sua essência. Em junho de

2013 queria-se diminuir a passagem do transporte público, depois o

fim da velha política. Conseguiu-se um período sombrio que ainda

parece estarmos longe de sair. É um tipo de análise válida, claro,

mas me pergunto se não é possível um outro tipo de análise, não

menos histórica ou econômica, mais que considera os movimentos

políticos como situações de fala, isto é, locais de manifestação do


discurso. E que veja o sentido do acontecimento como um

acontecimento do sentido.

Nosografia experimental

Isto posto, comecemos com uma rápido nosografia, estipulando

então o que quer dizer cada um dos termos que usaremos em nossa

análise. Primeiro, a ideia de discurso. Não acreditamos no discurso

como um processo de comunicação, mas como um processo de

individuação, que cria para cada situação de fala um sujeito que fala

e um sujeito que ouve, ao mesmo tempo. Um discurso é sempre

uma performance verbal, ainda que não somente linguística, que

põe em jogo um agrupamento de predisposições implícitas, um

Mundo. Quando falamos, não queremos comunicar uma

informação, mas informar um sujeito. E isto possui uma profunda

diferença. É preciso entender uma informação como a passagem de

um equilíbrio a uma tensão, sendo a comunicação somente a

resolução da tensão, não possuindo mais qualquer carga

informativa. Quanto mais tensão há, mais informação existe, e o


contrário também é válido: quanto menos tensão, menos

informação.

Uma situação de fala é, assim, um campo tensionado, altamente

informativo, de onde sairão resoluções na forma do conteúdo

proposicional efetivamente dito. No entanto, não há situação de fala

ideal, isto é, uma situação de fala onde os parceiros falantes

estariam em pé de igualdade e debatendo racionalmente suas

convicções. O que existe, ao contrário, é toda situação de fala como

litígio entre aquele que informa e aquele que será informado. A

tensão discursiva surge, assim, dessa perpétua troca entre os

sujeitos falantes que querem informa-se uns aos outros.

Por tanto, uma situação de fala é como uma solução supersaturada

de onde saem resoluções possíveis na forma de cristais. No caso, os

discursos efetivamente pronunciados são ao mesmo tempo

resoluções comunicativas e problemáticas informativas, pois podem

dar origem a novas tensões, e assim por diante. Daí a necessidade,

para uma situação de fala, de ser performática: ela deve ser um ato,
uma operação, um devir. Em suma, um discurso, do ponto de vista

de uma pragmática experimental, como a que propomos, é um

acontecimento.

As palavras de ordem

Mas na medida em que propor uma teoria geral das situações de

fala possui suas limitações, pretendemos por em foco somente

aquelas que pressupõe o surgimento de palavras de ordem. Mas o

que é uma palavra de ordem? É o tensionamento de um campo

político, sua reestruturação por meio do discurso: uma

problematização. Dizer palavras de ordem como “Parem de nos

matar!” pode possuir uma contradição aparente. Obviamente, o

sujeito que fala não está morto, pelo menos não no momento em

que fala, pois caso contrário não falaria. Por tanto, a

referencialidade se torna fraca, quase inexistente. O enunciado não

aponta para qualquer estado de coisas reais, pois o sujeito, que é ao

mesmo tempo objeto, não é um morto-vivo. Mas se o enunciado

perde em referencialidade, ele ganha em sentido, em informação,


pois tenciona um campo discursivo. Ele cria uma problemática a ser

resolvida, ele informa os sujeitos que ouvem.

Nessa medida, uma pragmática desse tipo é sempre uma

pragmática menor. Mesmo dentro de sua própria limitação. Não

somente já é menor por que trata dos assuntos políticos, como

apenas de assuntos políticos determinados. não haveria nunca uma

pragmáticas das revoluções, mas somente das revoltas. Uma

micro-pragmático dessas situações de fala altamente tensionadas e

problematizantes. Ou seja, que comportam uma carga informativa

gigantesca. Imaginem, por um instante, a quantidade de

pressuposições por trás de uma frase como “Vidas negras

importam” ou “Piñera, renuncie!”. Não somente fragmentos soltos,

ou parte menores de um contexto social mais amplo. São focos de

tensionamento, problematização, informação.

No momento em que grita, a massa de falantes que emite palavras

de ordem não possui passado nem futuro, não possuem condições

materiais ou ideológicas: essa massa de falantes é, em si mesma, as


condições materiais e ideológicas. A multidão é a causa imanente de

si mesma. A multidão que grita é uma massa indiferenciada de pura

contingencia. É uma solução supersaturada prestes a explodir e já

explodindo.Os corpos passeados na ruas com os braços erguidos e

os pulmões a toda força não são o resultado de condições precárias

de vida ou de conscientização histórica. Eles são as próprias

condições precárias tensionadas como sujeito político que fala.

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