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TIPOS DE DISCURSO

Afrânio Garcia (UERJ) (http://www.filologia.org.br/soletras/5e6/14.htm)

INTRODUÇÃO

O professor Adilson Citelli, em seu excelente livro Linguagem e persuasão, apresenta cinco
tipos de discurso:

§ discurso dominante
§ discurso autorizado
§ discurso polêmico,
§ discurso lúdico
§ discurso autoritário.

Refletindo sobre o assunto, pareceu-nos que o professor Citelli deixou de mencionar seis
outros tipos de discurso, quais sejam:

§ discurso filosófico-questionador,
§ discurso sedutor
§ discurso amoroso
§ discurso científico
§ discurso emocional
§ discurso servil.

Em nosso artigo, pretendemos fazer uma breve exposição sobre estes onze tipos de
discurso.

OS TIPOS DE DISCURSO DO PROFESSOR ADILSON CITELLI

O discurso dominante, juntamente com o discurso autorizado, formam a expressão da fala


do “stablishment”, da organização do poder vigente. O discurso dominante verbaliza a fala,
os princípios, os anseios e os ditames da oligarquia que detém o poder num determinado
contexto. Qualquer discurso de um presidente, monarca, ditador ou ministro de Estado
constituiria um exemplo de discurso dominante. É interessante notar que o discurso
dominante, embora represente o poder, não é necessariamente autoritário, violento ou
mesmo negativo. Se o presidente Lula determinasse a criação de 10 milhões de novos
empregos, por concurso, ou a construção de milhões de novas moradias para as pessoas de
baixa renda, estas seriam medidas extremamente benéficas e positivas, mas constituiriam,
ainda assim, exemplos inequívocos do discurso dominante.

O discurso autorizado, por sua vez, seria aquele proferido por alguém dotado de autoridade
para ser o porta-voz de um determinado segmento social ou instituição. O discurso de um
médico, de um reitor ou do gerente de uma empresa constituiriam bons exemplos do
discurso autorizado. O discurso autorizado, muitas vezes, encontra-se a serviço do discurso
dominante (por exemplo, os juízes da Alemanha nazista davam foros de legalidade à maioria
das arbitrariedades cometidas pelos sequazes de Hitler), mas não deveria. Pode-se mesmo
dizer que o grau de liberdade, progresso e desenvolvimento de uma nação poderia ser
aquilatado pelo maior ou menor grau de independência existente entre o discurso autorizado
e o discurso dominante.
O discurso polêmico é aquele em que duas ou mais pessoas ou facções emitem opiniões
contrárias, podendo ir desde uma discussão banal, como “qual o melhor time de futebol?”,
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até discussões de grande alcance filosófico-existencial, como “qual o melhor sistema político:
presidencialismo ou parlamentarismo?”. É um tipo de discurso com duas facetas: por um
lado, ele estimula o intelecto, na medida em que nos põe em contato com os vários ângulos
de uma questão; por outro lado, o engajamento em discussões estéreis implica uma
demanda de tempo precioso, que poderia ser melhor aproveitado em atividades mais
construtivas.

O discurso lúdico é aquele feito por puro prazer, normalmente sem visar a persuasão,
objetivando somente a comunicação interpessoal, o diálogo (em alguns casos, nem isso,
apenas a comunicação consigo mesmo, o monólogo). É importantíssimo para nossa saúde
mental e nosso bem estar, visto sermos seres gregários, que se ressentem da ausência de
contato e comunicação. Como exemplo de discurso lúdico, podemos citar a fala de uma
criança (inicialmente, mais uma brincadeira do que uma tentativa real de se comunicar),
muitos poemas e canções (principalmente aquelas da “Bossa Nova”), a conversa entre
amigos de longa data e grande intimidade, o ato de contar piadas.

O discurso autoritário, em que o falante impõe sua vontade sobre o ouvinte, geralmente sem
lhe dar oportunidade de responder ou questionar. Representa a vontade de poder, de
influenciar comportamentos, de obter vantagens. É importante notar que o discurso
autoritário não tem nada a ver com o discurso dominante, já que mesmo pessoas sem poder
nenhum podem ser extremamente autoritárias, como é o caso de um mendigo que subjugue
sua companheira, de um porteiro que humilhe outro porteiro, etc.

OUTROS TIPOS DE DISCURSO

O discurso filosófico-questionador é um tipo de discurso específico, muitas vezes até um


solilóquio, em que o falante pergunta ao seu interlocutor ou a si mesmo as razões que
explicariam algum fato da natureza ou da sociedade ou ainda tenta investigar a constituição,
a essência de algo. É importante notar seu caráter duplo, evidenciado pela duplicidade
presente no nome que lhe atribuímos: por um lado, esse tipo de discurso procura saber a
verdade por trás dos fenômenos, das aparências: por outro lado, ele questiona as “verdades
estabelecidas”, as crenças generalizadas. Textos filosóficos, artigos como os do Arnaldo
Jabor ou do Olavo de Carvalho, constituiriam bons exemplos do discurso filosófico-
questionador.

O discurso sedutor é a persuasão suave (ao contrário do discurso autoritário), em que se


busca agradar, fascinar, envolver o ouvinte, para conseguirmos nossos intentos. Seu
exemplo mais óbvio é a sedução, mas uma boa aula, uma palestra instigante, uma
propaganda envolvente, também são bons exemplos do discurso sedutor.

O discurso amoroso deve ser separado do discurso sedutor: aqui, trata-se do discurso entre
pessoas que já consumaram a sedução ou entre pessoas que têm grande afeição, mas que
não envolve um processo de sedução (como pais e filhos, parentes, almas gêmeas). O
discurso amoroso é caracterizado pela reafirmação constante da afeição, por meio de
palavras carinhosas, murmúrios, códigos específicos (como “bizunguinho/a”, “Teté”) e por
entoações próprias.

O discurso científico talvez deva ser separado do discurso autorizado, porque tanto a prática
científica quanto a transmissão do saber científico podem ser feitos por pessoas que não têm
autoridade para representar um segmento social ou uma instituição, apenas executam
tarefas determinadas por aquelas têm esta autoridade. O que irá caracterizar o discurso
científico são dois fatores: a necessidade de um glossário próprio (e apropriado) e a
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impessoalidade (sempre buscada, nem sempre alcançada) do discurso. Qualquer livro


acadêmico pode confirmar essas duas características do discurso científico.

O discurso emocional exibe a característica de transmitir sua mensagem muito mais pelo viés
da emoção do que do significado presente no texto. Isso não o impede de ser extremamente
eficiente como persuasão. Muitos políticos foram eleitos com discursos totalmente vazios de
significado, apelando unicamente para a emoção, como o deputado que dizia “Eu te amo” ou
a senadora que dizia “Sou negra, mulher e favelada”. No primeiro caso, a frase qualificaria
um potencial marido, nunca um deputado; no segundo, as qualidades exibidas são
absolutamente independentes de qualquer esforço e totalmente desvinculadas das
competências esperadas de uma senadora. Crianças e adultos que se comportam mal ou
afetam doença para pedir atenção também são exemplos típicos do discurso emocional.

Por último, temos o discurso servil. Causa espécie o grande número de pessoas que discorre,
com profusão de detalhes e profundidade, sobre o discurso autoritário e sequer menciona
sua contrapartida, o discurso servil. É bastante comum, em artigos sobre a escravidão e
sobre a necessidade de liberação das mulheres, afirmar-se que o ponto máximo de eficiência
do discurso autoritário ocorre quando o dominado assume como seu e reproduz o discurso
do dominador. No Brasil, país marcado por intenso autoritarismo (com e sem ditadura),
praticamente não se passa um dia sem ouvir algum exemplo de discurso servil: a aceitação e
até a satisfação com discursos como “o de cima sobe e o de baixo desce” ou “se dinheiro
fosse chão, pobre vivia voando”; a valorização de poderosos só porque são poderosos; a
negação de qualquer coisa mais elevada ou digna para si mesmo; o escracho, a vulgaridade
forçada, a autodesvalorização, o conformismo orgulhoso.

CONCLUSÃO

Sem desmerecer o trabalho do professor Adilson Citelli, consideramos que o estudo dos tipos
de discurso deveria ser mais abrangente, já que o caráter extremamente pessoal dos
discursos sedutor e amoroso, o caráter histórico-social dos discursos emocional e servil e o
caráter intelectualizado dos discursos filosófico-questionador e científico não devem ser
descartados em nenhum estudo sério dos tipos de discurso.

Alguns Exemplos:

Discurso dominante:

“Como nos demais capítulos, parte também aqui da hipótese sociocognitiva sobre a
linguagem, vista, pois, como uma atividade interativa, o que leva necessariamente a uma
concepção processual da construção do sentido. Adotando esta linha de pensamento e
levando em conta a concepção do texto atualmente adotada pela Lingüística Textual, isto é,
que todo texto constitui uma proposta de sentidos múltiplos e não um único sentido, e que
todo texto é plurilinear na sua construção, poder-se-ia afirmar que – pelo menos do ponto
de vista da recepção – todo textp é um hipertexto” (Ingedore G. Villaça Koch).

Análise do texto acima:

1. A autora trabalha no interior de uma grande unidade de discurso, aquela dada pelos
estudos da linguagem – Sociocognitiva, Lingüística Textual. Ela afirma claramente, que adere
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a uma visão já consagrada por aqueles estudos, portanto, formulada por outros autores que
leu.

2. Parte de uma concepção sociocognitiva – que concebe a linguagem como atividade


interativa, dialógica. Ou seja, uma perspectiva que entende resultarem os sentidos do texto
de um jogo entre quem diz/escreve e que ouve/lê (interação, diálogo). Posto de outro modo,
os sentidos não são prévios, tampouco únicos, mas elaborados no interior de relações sociais
e cognitivas. Ademais, traz para o arcabouço conceitual que lhe servirá de referência teórica,
as contribuições da Lingüística Textual – que estuda os fenômenos lingüísticos tomando o
texto como unidade analítica e onde devem ser incluídos, necessariamente, o sujeito e a
situação comunicativa enunciada.

3. Em consonância com discursos teóricos e conceituais afeitos aos estudos da linguagem, a


autora formula a seguinte conclusão: “Todo texto é um hipertexto”. Vale dizer, cada texto o
mesmo tempo condensa e permite o surgimento de vários outros textos, como se fossem
links, como notas de rodapé, citações, teorias incorporadas e que permitem a realização de
outras leituras, conhecidos novos autores, etc.

4. Em síntese, o caminho para se chegar à compreensão de que todo o texto é em si mesmo


um hipertexto resultou de um longo percurso realizado pela autora, incluindo-se convivência
com teorias, influências recebidas de outros estudiosos, diálogos realizados com a
Sociocognição e a Lingüística Textual.

Outros exemplos: (Revista Isto É, outubro de 2003)

- “Não há comprovação científica de que os transgênicos causem mal à saúde ou ao meio


ambiente”

- “Não há comprovação científica que atestem que os transgênicos sejam inofensivos à


saúde ou ao meio ambiente”

(A. Citelli, Linguagem e Persuasão, SP: Ática, p.37-39)

Discurso Lúdico:

Alegria, Alegria (Composição: Caetano Veloso)

Caminhando contra o vento Bomba e Brigitte Bardot...


Sem lenço e sem documento
No sol de quase dezembro O sol nas bancas de revista
Eu vou... Me enche de alegria e preguiça
Quem lê tanta notícia
O sol se reparte em crimes Eu vou...
Espaçonaves, guerrilhas
Em cardinales bonitas Por entre fotos e nomes
Eu vou... Os olhos cheios de cores
O peito cheio de amores vãos
Em caras de presidentes Eu vou
Em grandes beijos de amor Por que não, por que não...
Em dentes, pernas, bandeiras
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PEIRCE POEM (Décio Pignatari)

Caos please ask me


passado infinito este arco presente
qualquer coisa entre dois infinitos
um nada nunca houve um caos
previsível haverá outros
ou imprevisível que quer dizer tempo
morte algo ocorreu no caos
futuro infinito não há quantidade zero
lei e norma zero vazio do vaso
do livre ao livre sem mais despontaram
por acaso o hábito dois pós parecidos
por acaso as cabeças englutidos no zero
matéria igual mente o acaso os refez
amor/tecida pelo hábito um caso negou o acaso
hábito criou o tempo 2 pós mais 2 pós
que é tempo e outros diversos
têmpera regular particulares
de sentimentos interativos de uma forma outra forma
multidão sem relação norma
caos não há tempo
sentimentos ignorantes sem forma
off the record tal tempo
sem mais no caos não é para sempre
poeiras de sentimentos brechas lacunas
perto desvios
longe outros tempos
que é sentimento são tempossíveis
toda e qualquer coisa por outras vias
flagrada na mente não-lácteas
em qualquer tempo aquém e além
what came first e hoje também

Discurso Polêmico

Assunto: plantio de sementes geneticamente modificadas

Envolvidos: de um lado, agricultores e empresas interessadas em produzir e vender produtos


transgênicos; de outro, ecologistas e setores da sociedade que vêm perigo no plantio
daqueles produtos.

Estratégia de comunicação: convencer a opinião pública acerca dos prós e contras sobre as
sementes geneticamente modificadas.

Prós Contras
1. Não há comprovação científica de que os 1. Não há estudos científicos que atestem que os
transgênicos causem mal à saúde ou ao meio transgênicos sejam inofensivos à saúde ou ao
ambiente meio ambiente
2. Há uma redução no custo agrícola com o uso 2. Para se defender de agressores, a planta
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de menos agrotóxicos produz substâncias que podem ser tóxicas ou


produzir alergias
3. A produtividade seria maior favorecendo a 3. Os grãos podem dar origem a bactérias
competitividade internacional resistentes a antibióticos ou a ervas daninhas e
insetos que não sucumbem aos defensivos
agrícolas
4. Podem-se produzir alimentos mais nutritivos e 4. Alguns mercados internacionais estariam
baratos, o que ajudaria a aplacar a fome mundial dispostos a pagar até um terço a mais por
produtos orgânicos ou sem alteração genética
5. As chances de cruzamento entre as espécies 5. O plantio em grandes áreas pode reduzir a
comuns e as geneticamente modificadas são riqueza genética dos grãos e desequilibrar o meio
reduzidas ambiente
6. Plantas modificadas são mais resistentes, 6. Os produtores ficariam reféns da Monsanto, a
precisam menos água, toleram sol e nascem em principal fornecedora de sementes modificadas
regiões áridas

(A. Citelli, Linguagem e Persuasão, SP: Ática, p.50-51)

Discurso filosófico-questionador

Fonte: Revista Carta Capital - 09 de Novembro de 2005 - Ano XII - Número 367

LIÇÕES DE BUDA E GÊNGIS KHAN

Contraditória, a cultura do “querendo, você pode” alastra-se e revela tanto os novos


dogmas do mercado quanto os anseios dos que lutam por um lugar ao sol

Por Flavio Lobo

A voz de João Roberto Gretz, reproduzida pelas caixas acústicas do auditório, soa firme: “Se
você lançar o seu coração naquilo que quer, você consegue!” Cerca de 200 pessoas, a maioria dos
profissionais das áreas comercial e de recursos humanos de diversas empresas, escutam a máxima,
dita em tom de garantia pessoal pelo palestrante. Logo depois se levantam para bater palmas e
cantar, num karaokê coletivo, mais uma “canção motivacional”.
Nova pausa para a fala do palestrante. Nova massagem no ego. Desta vez, mais embaixo.
“Acorde amanhã, olhe no espelho e diga: ‘Ô lindão, eu vou te comer um dia’. Porque, se você não
quiser se comer, quem vai querer?!”
Autor do recente Voando Como a Águia e de outros sete livros de auto-ajuda, o “professor
Gretz” é um dos palestrantes mais requisitados do País, garante a assessoria de imprensa do evento,
realizado no Hotel Ca’d’Oro, no centro de São Paulo.
A apresentação de Gretz é uma das inúmeras manifestações de um fenômeno marcante da
história social das últimas décadas do século XX e deste início de terceiro milênio: a explosão da auto-
ajuda.
Um gênero de aconselhamento cuja obra inaugural data do século XIX (quadro à na edição
impressa) ganhou uma dimensão industrial inédita e passou a influenciar de uma nova maneira
milhões de pessoas mundo afora. Nesse período, milhares de livros foram lançados com dicas de
sucesso para os mais variados campos e objetivos: amor, sexo, saúde, beleza, auto-estima, felicidade,
carreira, negócios...
O epicentro do fenômeno são os Estados Unidos. Segundo a empresa Marketdata, que mede
anualmente as dimensões dos principais ramos da indústria cultural, todo o mercado de auto-ajuda,
incluindo cursos, palestras, publicações e outros produtos, cresceu 50% no país entre 2000 e 2004,
quando chegou a US$ 8,6 bilhões. A empresa estima que esse total chegue a US$ 12 bilhões em
2008.
No Brasil, segundo a Câmara Brasileira do Livro, em 2003, foram produzidos 2,9 milhões de
exemplares de 510 diferentes obras de auto-ajuda. Número significativo diante da pesquisa Retrato
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da Leitura no Brasil, que, em 2001, calculou haver no País apenas 26 milhões de leitores ativos
(aqueles que tinham lido pelo menos um livro nos últimos três meses).
Este ano, nos EUA, juntamente com centenas de novos títulos de auto-ajuda, três livros
reveladores foram lançados. Cada um oferece um novo ponto de vista crítico sobre o fenômeno.
Em Self-Help, Inc., a socióloga Micki McGee, professora da Universidade de Nova York, faz
uma análise das raízes econômicas, sociais e ideológicas do fenômeno. Sham, do jornalista e escritor
Steve Salerno, é uma crítica ácida ao “movimento da auto-ajuda”, definido pelo autor como algo
intrinsecamente ineficaz, falacioso, vicioso e corruptor.
O terceiro livro é bem diferente dos dois primeiros. Em Bait and Switch, a jornalista Barbara
Ehrenreich não se propõe a analisar a cultura da auto-ajuda, mas a relatar a sua própria experiência
de buscar, durante cerca de um ano, um “emprego de colarinho-branco” no mundo corporativo norte-
americano.
Micki McGee vê a cultura da auto-ajuda como uma versão atualizada do tradicional mito
americano da auto-invenção, expresso na figura do self-made man, o homem bem-sucedido que
vence pelo próprio esforço. Um mito que sempre teria sido alienante, desde a Grécia Clássica, uma
vez que oculta conflitos de classe e de gênero. Por trás do bem-sucedido exemplar haveria sempre
escravos ou subalternos e uma esposa que fariam o trabalho mais pesado e prosaico.
A versão renovada do mito da auto-realização, disponível também para mulheres da classe
média para cima, seria mais democrática, mas também mais exigente. McGee diz que a auto-ajuda
prega que as pessoas busquem se autogovernar, como os antigos cidadãos atenienses, ao mesmo
tempo que precisam ir ao supermercado e cuidar das crianças.
As expectativas que recaem sobre os indivíduos, em parte por pressão social, em parte por
autoconvencimento, seriam excessivas, contraditórias e muitas vezes inviáveis. Como exemplo, McGee
cita escritos de Stephen R. Covey, um dos maiores gurus de auto-ajuda, autor de Os 7 Hábitos das
Pessoas Altamente Eficazes, que já vendeu 15 milhões de cópias.
As duas vertentes principais da auto-ajuda, a profissional e a afetiva-familiar, exigem um
incessante aperfeiçoamento individual. Um constante trabalho sobre si mesmo é visto como
imprescindível, diz a socióloga, para quem quer se manter apto para o mercado e para as relações
amorosas. É preciso suar para permanecer “empregável” e “desposável”.
McGee propõe-se a “investigar o modo pelo qual a cultura da auto-ajuda promove um novo
tipo de servidão ao prometer o aperfeiçoamento individual”. Mas o seu olhar não é sombrio e não se
prende a moldes conspiratórios ou mecanicistas.
As mesmas transformações econômicas e sociais que demandam novas formas de dominação,
segundo a socióloga, possibilitam conquistas de direitos e liberdade por parte de alguns grupos,
sobretudo para mulheres de classe média. Se, por um lado, a cultura da auto-ajuda está a serviço de
um novo tipo de adestramento para o trabalho e o consumo, por outro, afirma ela, expressa
aspirações de autonomia potencialmente libertárias.
Não há nada de errado no desejo de autogoverno, diz McGee, desde que assentado numa
consciência das relações sociais e que se busque compartilhar, efetivamente, essa liberdade com toda
a sociedade.
Steve Salerno critica a cultura da auto-ajuda de um ponto de vista conservador. Seu livro é
raso no que diz respeito à busca das causas do fenômeno, mas propõe interessantes relações entre
vários aspectos da sociedade e da cultura americanas.
Sobre a eficácia da auto-ajuda, o jornalista usa uma metáfora médica: ela não seria maior que
a do placebo, o “remédio falso” usado em pesquisas farmacêuticas, que pode causar alguma melhora
na saúde de pessoas que o ingerem crendo que estão sendo medicadas. Mas os efeitos colaterais da
auto-ajuda seriam graves.
Salerno identifica raízes do atual movimento de auto-ajuda em grupos como os Alcoólicos
Anônimos. Associada a grupos que se sentem incompreendidos e marginalizados, que criam regras
próprias e se fecham em si mesmos na tentativa de se fortalecer, a auto-ajuda estaria transformando
os EUA num país “bipolar”, que oscila entre o sentimento de vítima e a euforia irrealista da onda
motivacional.
O desequilíbrio psíquico dos americanos causado por essa “cultura bipolar” é, de acordo com
Salerno, indiretamente confirmado pela explosão do consumo de antidepressivos, como o Prozac e o
Paxil, no mesmo período em que o mercado da auto-ajuda expandiu-se mais aceleradamente.
O aumento da influência dos gurus de auto-ajuda que, sem ser verdadeiros especialistas,
passam a proferir verdades e regras sobre praticamente qualquer assunto, resulta num aumento de
idéias pseudocientíficas e da irracionalidade reinante. Como exemplo, Salerno cita uma tabela de
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“freqüência energética da comida”, de autoria do conhecido guru Tony Robbins, na qual “frango frito”,
por exemplo, corresponde a “3 megahertz”.
O debate público também estaria perdendo racionalidade e inteligência. A “vitimização” de
grupos minoritários, diz Salerno, tem aumentado o grau de demagogia das plataformas políticas. E as
campanhas eleitorais seguem cada vez mais os padrões simplórios e caricatos dos manuais de auto-
ajuda.
O infantilismo é um traço flagrante da cultura da auto-ajuda. Essa foi também uma das
constatações de Barbara Ehrenreich ao procurar auxílio para arranjar um emprego.
A jornalista, que já havia se transformado em faxineira para investigar a base da pirâmide do
mercado de trabalho americano, conta, em seu novo livro, a experiência de ser instruída por
“orientadores de carreira” (career coaches) na busca de uma vaga que lhe rendesse um salário de
classe média (a partir de US$ 50 mil anuais). Segundo a autora, existem atualmente cerca de 10 mil
career coaches nos EUA.
Ehrenreich é uma senhora de meia idade e seu currículo, mesmo adaptado para o projeto do
livro-reportagem, incluía formação superior e atividade docente em universidades. Nada disso
desencorajou o seu primeiro orientador a mostrar-lhe uma série de transparências com ilustrações
representando as qualidades que ela deveria valorizar e desenvolver em si mesma. Por fim,
apresentou-lhe os personagens de O Mágico de Oz: o espantalho seria o seu “lado mental”, o homem
de lata faria o papel do emocional e o leão simbolizaria o instintivo.
Quando passou à fase do preenchimento de fichas e entrevistas, Ehrenreich descobriu que o
infantilismo dos orientadores era em grande parte compartilhado pelas empresas.
Mais do que de qualidades como integridade, experiência e inteligência, afirma a autora, o
novo mundo corporativo procura por “personalidades” e “atitudes”. De que tipo? Incansavelmente
festivas, dadas a demonstrações de entusiasmo e obedientes. Tais expectativas são postas em
primeiro plano não apenas na seleção de profissionais, mas também no dia-a-dia de trabalho.
A valorização crescente de “atitudes” em detrimento de parâmetros objetivos de avaliação,
tão à moda da atual fase da cultura da auto-ajuda, segundo Ehrenreich, favorece as práticas de
manipulação e pressão psicológica nas empresas.
Se nos EUA a influência da cultura da auto-ajuda está tão presente, sobretudo no ambiente
corporativo, qual a sua força no Brasil? Segundo um dos maiores especialistas brasileiros no assunto,
o cientista social Francisco Rüdiger, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da
PUC-RS, “por aqui as tradições patrimonialista, paternalista, personalista e burocrática impõem limites
à influência do individualismo à moda americana”.
Mesmo assim, a cultura da auto-ajuda é uma constante em ambientes corporativos das
grandes capitais, sobretudo em São Paulo e no Rio, inclusive em razão da presença de um grande
número de empresas multinacionais, diz o pesquisador.
Um exemplo do caráter de “imitação” que o fenômeno assume no Brasil seria o programa de
tevê O Aprendiz. Na versão americana, esse reality show corporativo mostra a disputa “sangrenta”
entre candidatos a um cargo bem remunerado nas empresas do bilionário Donald Trump, que faz cara
de mau enquanto atiça trocas de golpes verbais entre os concorrentes. Finda a rinha, o patrão
escolhe o perdedor e decreta: “Você está demitido”.
A versão brasileira, estrelada pelo empresário Roberto Justus, é farsesca, diz Rüdiger. “No
programa daqui, a gente sente que os participantes poderiam cair na risada a qualquer hora. Uma
postura muito diferente da dos americanos, que parecem acreditar mesmo naquele negócio.”
Em seu livro Literatura de Auto-Ajuda e Individualismo, Rüdiger diz que “a literatura de auto-
ajuda é um gênero de cultura de massa portador de elementos capazes de nos auxiliar a
compreender os mecanismos de poder que caracterizam o mundo contemporâneo”, no qual se
estabelecem “novas modalidades de sujeição, em que a manutenção das obrigações sociais sobre o
indivíduo não passa mais pela coação direta”.
Outra que já estudou o assunto, que foi tema de seu mestrado, a psicóloga Jaileila de Araújo,
professora da Universidade Federal de Pernambuco, diz que “a auto-ajuda é a principal tradução do
‘culto do eu’ na cultura de massas”. O ‘eu’ que ela ajuda a constituir é economicamente útil e
politicamente dócil”.
Segundo Jaileila, as promessas de transformação e de novidade da auto-ajuda são
enganosas. “As fórmulas prontas e genéricas que ela propõe, em vez de induzir mudanças, tendem a
proporcionar uma previsibilidade conservadora.”
Não se trata de demonizar as obras de aconselhamento ou manuais de instruções, que, nos
extremos, incluem desde os textos religiosos até livros de receitas. Não há nada de essencialmente
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errado na sugestão “Eu fiz isso desse modo e deu certo. Por que você não tenta também?” Pelo
contrário. Como imaginar uma sociedade sem a transmissão de ensinamentos e dicas entre as
pessoas?
O problema da atual cultura da auto-ajuda está na visão de mundo que ela professa e
propaga. Entre suas características fundamentais estão o apelo narcisista de um culto a si mesmo e a
noção individualista e falaciosa do “querendo, você consegue”. Ela segue a lógica consumista segundo
a qual todos devem se preocupar em manter-se sempre atualizados em relação a produtos, idéias e
tendências (que, na maioria das vezes, não passam “do mesmo” em nova embalagem), para não se
tornarem obsoletos, não apenas como profissionais, mas também como pessoas.
Outro aspecto central da cultura da auto-ajuda é a tendência de aplicar modelos e lógicas do
mercado, do marketing e do mundo empresarial para organizar e nortear todas as esferas da vida.
Tudo de acordo com o momento histórico, marcado pelo contraste crescente entre
consumismo e exclusão social, pelo declínio de antigas tradições religiosas e morais, pela descrença
em utopias sociais nem tão ancestrais e pela crescente instabilidade no mundo do trabalho.
Como acontece com outros sistemas de pensamento muito disseminados, mesmo os que
rejeitam a auto-ajuda dificilmente permanecem imunes à sua influência. Provavelmente, poucos
indivíduos da classe média urbana nunca se flagraram, por exemplo, “investindo” em si mesmos,
numa relação afetiva ou numa idéia. Mesmo que nunca tenham ouvido falar em João Roberto Gretz.
Em sua palestra, o professor Gretz dá dicas de sucesso, diz frases de efeito, conta “causos”,
faz piadas, canta, fala mal do governo Lula e do PT, enquanto textos, fotos, filmes e clipes se
sucedem no telão.
“Quem gosta de homem bonito é homossexual. Mulher gosta de dinheiro e elogio.” Não, isso
não é dito em tom de piada. Deve tratar-se, portanto, de mais um “fato da vida” que o “professor”
revela aos “alunos”, e “alunas”, da platéia, que permanecem atentos e quietos. Em seguida, Gretz
veste uma peruca cor de laranja e imita uma mulher que volta do cabeleireiro à espera de elogios.
Mas o silêncio da “classe” não dura muito. Logo todos se levantam juntos para cantar
sucessos populares escolhidos por seu conteúdo motivacional. “A vida só é dura para quem é mole”,
entoam em uníssono, ao som de Rio Negro e Solimões.
Outro palestrante muito procurado – o mais requisitado pelas empresas em 2004, segundo a
revista Exame –, Mario Sergio Cortella também sabe temperar suas preleções com “aspas” bem
pinçadas. Mas, em vez de duplas sertanejas, os citados são Guimarães Rosa, Sócrates (o antigo),
Paulo Freire…
Numa palestra proferida na sede do Metrô de São Paulo, Cortella, que é filósofo e professor
da PUC-SP, esbanja carisma, simpatia e aquele tipo de lucidez que transpassa, como se fossem
transparências, milhares e milhares de páginas de centenas e centenas de manuais de motivação e
auto-ajuda.
Em resumo, diz Cortella a cerca de 150 funcionários do Metrô, com o auxílio de parábolas e
piadas mais, digamos, “palatáveis”, o mundo está mudando cada vez mais rápido e se nós, pessoas e
empresas, não soubermos compartilhar conhecimento, vamos nos dar mal. E termina recorrendo à
sabedoria de São Beda, monge e pensador nascido no século VII:
“Há três caminhos para o fracasso: não ensinar o que se sabe, não praticar o que se ensina e não
perguntar o que se ignora”.
Difícil não concordar. Mas, quando mensagens desse tipo são repetidas à exaustão por gurus
do mundo corporativo e do marketing pessoal nos quatro cantos do globo, talvez seja o caso de dar
um passo para trás e tentar enxergá-las de uma perspectiva mais ampla.
A constatação de que o egoísmo desabrido e agressivo em geral não é a melhor estratégia
para obter sucesso não é nova na cultura da auto-ajuda. Que profissionais e empresas devem
demonstrar atitudes cooperativas se quiserem ser competitivos, há muito se sabe. Já em Dinamize
Sua Personalidade, publicado em 1947, Elmer Wheeler dizia que “o egoísmo antiquado é a tentativa
de ajudar a si próprio à custa dos outros. O egoísmo inteligente é ajudar a si próprio ajudando outros
a ajudarem você”.
O discurso da auto-ajuda para o sucesso no trabalho consiste fundamentalmente de conselhos
e imperativos de motivação, empenho e autodisciplina. Dessa forma, ela assegura, o leitor seguiria a
mesma trilha dos bem-sucedidos ao mesmo tempo em que evitaria ser engolido pelo bicho-papão de
um mercado cada vez mais voraz. As promessas de ganhos e o medo do fracasso misturam-se nessa
receita psicológica.
Em muitos momentos as ameaças mostram-se nuas e cruas, como neste trecho da
reportagem “Prepare-se para o futuro”, publicada pela revista Você S.A., uma espécie de “veículo
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oficial” da cultura da auto-ajuda no Brasil: “Daqui para a frente você vai ter de escolher: ou mudanças
profundas ou morte lenta”.
Mas, ao mesmo tempo, a “literatura” de auto-ajuda também tenta cumprir a tarefa de aliviar
o estresse provocado por tantas exigências e pela constante insegurança do mercado. A mensagem
híbrida resultante desse “morde-e-assopra” soa como “enquanto você avança como um touro furioso,
sem desgrudar os olhos da sua meta de sucesso, curta a paisagem, o perfume das flores e o canto
dos pássaros” (quadro na edição impressa).
Como diz Barbara Ehrenreich, esse pessoal usa quase indistintamente frases de Buda e de
Gêngis Khan – às vezes na mesma página.
Hoje um dos campeões de vendas no Brasil, O Monge e o Executivo, prega que “a base da
liderança não é o poder e sim a autoridade, conquistada com amor, dedicação e sacrifício”. Os livros
sobre “como se dar bem” estão repletos de personagens como Jesus, Martin Luther King, Madre
Teresa de Calcutá e Gandhi. Todos devidamente despidos de qualquer conteúdo mais contestatório e
de moralidades “rígidas demais” para serem admitidas no ambiente corporativo.
Colaborar é preciso. Trata-se de um consenso. Mas para quê? Para que cada um siga rumo à
sua meta de satisfação particular, seja ela qual for, respondem os manuais. Assim, o sucesso do
grupo de trabalho e da empresa serve ao indivíduo e, como é mais óbvio e verdadeiro, vice-versa.
Autoprogramadas para dar ao mercado o que ele quer e exige, crentes de que assim chegarão ao seu
nirvana privado, as pessoas servem à empresa.
Pode haver metas que não as pessoais e empresariais? Algo que se possa chamar de coletivo
e que vá além do utilitarismo egoísta, disfarçado ou não, ou de vagas noções de comunhão humana e
cósmica típicas de espiritualidades pasteurizadas? Sobre isso, manuais e gurus têm pouco ou nada a
dizer.

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