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DE CUNHA A MAMELUCA
A MULHER TUPINAMBÁ E O NASCIMENTO DO
BRASIL
-
JOAO AZEVEDO FERNANDES
rCA ""- S'~9-v: e_

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA


I•
Reitor
JADER NUNES DE OLIVEIRA
Vice-Reitor
MÚCIO ANTONIO SOBREIRA SOUTO
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Di retor
JOSÉ DA VID CAMPOS FERNANDES
Vice-di retor
JOSÉ LUIZ DA SILVA
Divisiio de Produ~iio
JOSÉ AUGUSTO DOS SANTOS FILHO
-
DE CUNHA A MAMELUCA
Divisao de Editora~iio ,
ALMTR CORREIA DE VASCONCELLOS JUNIOR
A MULHER TUPINAMBA E O NASOMENTO
DO BRASIL

·, Editora Universitária
Joáo Pessoa
2003
)
© Copyright by Joáo Azevedo Fernandes, 2003

F363d Femandes, Joao Azevedo


De cunhl'í a mameluca: a mulher tupinambá e o nasci-
mento do Brasil/ Jol'ío Azevedo Femandes - Joao Pessoa:
Editora Universitária/UFPB, 2003.
303p.il.

1. Antropologia cultural 2. Mulheres tupinambá


UFPB/ BC
CDU: 39 (81)

Direitos desta edi9ao reservados a:


UFPB/EDITORA UNIVERSIT ÁRIA Caixa Postal 508 1 - Cidade Universitária
Joao Pessoa - Paraíba - Brasil CEP 58.051 -970 - www.editora.ufpb.br
Dedico este trabalho a memória do professor
Impresso no Brasil
Prinred in Brazi/
Florestan F ernandes
Foi feito do depósi10 legal. (1920 - 1995)
,
SUMARIO

PREFÁCIO ............................................................................................ 13

PRÓLOGO ............................................................................................. 19

CAPÍTULO l: MULHERES TUPINAMBÁ, MULHERES ESQUECIDAS .....•... 24


l. 0 PROBLEJ\1A DO CONTATO INTERÉTNICO NO BRASIL COLONIAL ................... 24
2. A MULHER TUPINAJ\ffiÁ E A ANTROPOLOGIA DAS MULHERES ••••••••••••••••••••• 30
3. COMO ESTUDAR A MULHER TUPINAMllÁ? .......... ...................................... 41
4. OS TUPINAMBÁS E SUA ETNOLOGIA......................................................... 53

CAPÍTULO ll: MULHERES EM UM M UNDO DE HOMENS ........................ 59


l. 0 TRABALHO DA MULHER E A SOCIEDAD E TUPINAMBÁ ................................... 59
2. MARIDOS E ESPOSAS: AS BASES DO PODER ENTRE OS TUPINAMBÁ ................. 77
3. AS MULHERES, OS MESMOS E OS OUTROS ......................................................... 84

CAPÍTULO 111: VIVER COMO MULHER T UPINAMBÁ .................. ........... 99


l. DE PEITAN A KUGNA TIN: OS PRIMEIROS ANOS .................................................. 99
2. 0ESCOBERTAS E RESPONSABILIDADES DA VIDA ADULTA ~ ............................... 114
3. AS HIERARQUIAS FEMlNINAS NA SOCIEDADE TUPINAMBÁ .............................. 125
4. VELHAS ASQUEROSAS, VELHAS PODEROSAS: AS UAINUY ............................... 135
5. 0 RITUAL ANTROPOFÁGICO E AS VELHAS CANIBAIS ...................................... 151

CAPÍTULO IV: A MULHER TUPINAMBÁ E O CONTATO lNTERÉTNICO 169


l. OS ÍNDIOS E O PROCESSO DE CONQUISTA ......................................................... 169
2. A FORMA<;ÁO DE UM SISTEMA INTERJ<:TNICO .................................................. 189
3. ESPOSAS E ESCRAVAS: AS MULHERES, O CASAMENTO E O TRABALHO .......... 201
4. SANTAS E ENDEMONINHADAS: AS TUPINAMBÁ E A A<;ÁO JESUÍTICA .............. 244
CONSIDERA<;ÓES FINAIS .................................................................... 265 Lista de Figuras ¡~ /2 ~.2.. SS .

~11'Ít'llilI>IC::E: 1. ............................................................................................................ ~'7'7 Figura l. Theodore De Bry, "Mulher Caníbal", detalhe da calcografia "Pre-
paro da Carne Humana em Episódio Caníbal". Ilustra9ao do Relato das Via-
~I>it'llill>IC::E: '.?. •••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••• ~"JC) gens de Hans Staden ao Brasil, America Tertia Pars (3° volume de Grands
Voyages, Frankfurt, 1592), in Belluzzo, 1994: 58.
Figura 2. Phillipe Galle, A1nerica (1579-1600), in Belluzzo, 1994: 83.
BfBLIOGRAFIA ............. ······································································ 283 '
Figura 3. Anónimo, "A direita, Staden orando em agradecimento da realiza-
,
9ao de um milagre, junto a urna cruz, erguida na aldeia de Ubatuba. A es-
querda, mulheres trabalhando com seus filhos enfaixados as costas", in Sta-
den, 1974: 135.
Figura 4. Anónimo, "Mulheres trabal hando na f abricai;ao de bebidas", in
Staden, 197 4: 166.
Figura 5. Anónimo, "Mulheres e criani;as sorvendo o mingau", in Staden,
1974: 186.
Figura 6. Anónimo, "Staden procura escapar num navío francez, mas é
repelido pela equipagem", in Staden, 1974: 123.
Figura 7. Anónimo, "A Sauda9ao Lacri1nosa dos Tupinambá", in Léry,
1975: 300.
Figura 8. Anónimo, "A aldeia de Ubatuba, etapa final da viagem de retomo
dos tupinarnbás, vind~as de Bertioga e local onde permaneceu prisioneiro
cv/ Hans Staden, que está gora sendo objeto do conhecimento das mulheres. Um
po.uco acima, outro as ecto mostra urna delas raspando-lhe as sobrancelhas",
in Staden, 1974: 90.
Figura 9. Anónimo, "Dan9a das mulheres, em Ubatuba, tendo no 1neio Hans
Staden, que está com um ornato de penas na cabe9a. Ao centro, acima, ve-se
duas ilhas bern em frente ao litoral da aldeia", in Staden, 197 4: 92.
Figura 10. Theodore de Bry: "Mulheres da Tribo Pintando o lbirapema e o
Rosto do Prisioneiro para Execui;ao", in Belluzzo, 1994: 50.
Figura 11. Anónimo, "O ibirapema pendurado na cabana e a dansa em seu
redor", in Staden, 1974: 182.
Figura 12. Anónimo, "O prisioneiro ao centro bebe em companhia dos seus
executores, que também fumam sentados a sua roda", in Staden, 197 4: 183.
Figura 13. Theodore De Bry, "Abate do Prisioneiro", in Belluzzo, 1994: 51.
Figura 14. Theodore De Bry, "Hans Staden Assiste a Prepara<;ao do Corpo
para a De~oras;ao Caníbal", in Belluzzo, 1994: 59. Agradecimentos
Figura 15. Theodore De Bry, " A Divisao do Corpo do Prisioneiro Sacrifica-
do e o Preparo do Alimento", in Belluzzo, 1994: 60. Este livro é urna adapta9ao de minha Disserta9ao de Mestrado,
Figura 16. Albert Eckhout, Mulher Tapuia (1643), óleo sobre tela, in Bel- defendida em 1997, no Mestrado em Antropología Cultural da Uni-
luzzo, 1994: 89. versidade Federal de Pernambuco. Nao posso negar que fiquei tentado
Figura 17. Albert Eckhout, Mulher Tupina1nbá ( 1641), óleo sobre tela, in a fazer grandes altera96es no texto, com vistas a extirpar o tom pesa-
Belluzzo, 1994: 92. damente academico, e acrescentar as atualiza96es necessárias em um
Figura 18. Albert Eckhout, Ma1neluca (1641 ), óleo sobre tel a, in Belluzzo, tema extremamente dinamico, como é o caso da antropologia das mu-
1994: 93. llieres. Contudo, acabei por me decidir a deixar o texto praticamente
identico ao de 1997, por considerar que este trabalho é fruto de um
contexto academico, e de um determinado nível de amadurecimento
intelectual e pessoal.
Algumas pessoas foram muito importantes no trajeto desta pes-
quisa, durante o mestrado, e mais recentemente. Sou extremamente
Lista de Mapa e Tabelas grato ao meu orientador, Russell Parry Scott (Departamento de Cien-
cias Sociais, UFPE). Suas críticas e sugest6es precisas, bem como seu
entusiasmado apoio ao tema escolhido, foram cruciais para o desen-
Mapa volvimento deste trabalho. Além disso, seu rigoroso olhar antropoló-
1. Distribui<;ao das " na96es" Tupi-Guaraní da costa (início séc. XVI), in gico foi fundamental para realizar um contraponto aos meus arroubos
Fausto, 1992: 384. historiográficos.
Aos demais membros da banca, Roque de Barros Laraia (Depar-
Tabelas tamento de Antropología, UNB) e Renato Monteiro Athias (Departa-
1. Couvade e Investi1nento Pate1110 na Cria<;ao dos Fi lhos.103 mento de Ciencias Sociais, UFPE), meus sinceros agradecimentos
pela cuidadosa leitura do trabalho e pelas esclarecedoras sugest6es e
2. Rela<;ao entre a I-Iipermasculinidade e a Presenya da Couvade. l 04
críticas. Quero agradecer também a Judith IIoffnagel e Roberto Motta
3. Categorias de Idade Entre os Tupinambá.105 (ambos do Departamento de Ciencias Sociais, UFPE), pela leitura
precisa de meu projeto e pelo apoio ao estudo do tema.
Agrade90 também a Ronaldo Vainfas (Departamento de História,
UFF) , meu orientador no doutorado, tanto por seu prefácio quanto
pelo constante incentivo as minhas idéias e pesquisas, nem sempre
muito ortodoxas. Devo dizer o mesmo de Eduardo Viveiros de Castro
(Departamento de Antropologia, Museu Nacional/UFRJ), e John Ma-
nuel Monteiro (Departamento de Antropología, Unicamp), cujas críti-
cas e comentários permitiram refinar bastante meus pontos de vista e
minhas análises.
Prefácio
Tenho urna profunda <lívida de gratidao para com Norberto Luiz R ONALDO VAJNFAS*
Guarinello ,(Departamento de História, FFLCH-USP), que fez críticas
extremamente inteligentes e pertinentes ao meu projeto original de
mestrado, e que me sugeriu estudar as rela~6es de genero entre os Tu-
pinambá.
Os atilados comentários, bem como o auxílio na obten~ao de itens Se há urna tarefa difícil de cumprir na área de Ciencias Humanas,
importantes da bibliografía, de Maria Sylvia Porto Alegre (Departa- particularmente na história, é produzir um trabalho realmente original
mento de Ciencias Sociais, UFCE) me foram extre111:amente valiosos e e relevante. Mais difícil, ainda, é faze-lo em perspectiva interdiscipli-
estimulantes. nar, o que muitas vezes nao passa de urna promessa enunciada. E se o
Marcos Albuquerque (Departamento de História, UFPE) esclare- tema se inscreve, como no caso, no campo da novíssima história indí-
ceu alguns pontos importantes ero relac;ao a arqueología dos Tupi- gena, ao menos no caso do Brasil, o desafio é ainda maior.
nambá, além de me ter facilitado o acesso a bibliografía arqueológica A tradi~ao historiográfica brasileira é, neste campo, muito aca-
sobre o tema. nhada, para nao dizer negligente. Já nosso grande historiador do sécu-
Agrade~o ainda aos amigos Antonio Carlos Pinheiro (Departa- lo XIX, Francisco Adolpho de V arnhagen, dizia que os índios nao
mento de Metodología da Educac;ao, UFPB) e Telma Delgado por tinham história, ficando seu estudo circunscrito ao domínio da etnolo-
todo o apoio academico e por terem suportado estoicamente meu mau gía, razao pela qual dizia que a história do Brasil come~ara em 1500.
humor. Disse isto, a bem da verdade, apesar de escrever tres excelentes
A CAPES, através do PICD, me concedeu bolsa de estudo para a capítulos sobre o mundo dos Tupinambá na sua História Geral do
realiza~ao do curso de mestrado. O Departamento de História da
Brasil (1854-57), os quais, se pecam pelo juízo de valor, sobrevivem
UFPB sempre foi solícito para comas minhas necessidades academi- pelo esfor~o de coligir informa~6es no meio do cipoal da crónica e
cas e burocráticas. tratadística colonial.
Espero que minha família e meus amigos me perdoem por todos Muitos dos contemporaneos de V arnhagen nao lhe perdoaram
os muitos momentos de afastamento e aliena~ao. pelo juízo rigoroso acerca dos "índios brasileiros", num tempo em que
a figura do índio era cada vez mais al~ada a categoría de símbolo na-
Meu agradecimento mais especial e apaixonado vai para Serioja cional. Gon~alves de Magalhaes, autor do épico A Confederafáo dos
Mariano. Sem o seu amor e dedicac;ao eu teria conseguido bem pouco,
Tamoios , foi um dos defensores do estudo dos índios no seu libelo Os
e espero poder ajudá-la da mesma forma em suas próprias pesquisas. índios perante a história (1860) e nao faltaría, em todos os domínios,
Este trabalho é um presente de amor para ela. intelectuais, artistas, escritores e músicos a monumentalizar a figura
• dos índios.
\
José de Alencar ou Gon~alves Dias, na literatura, Rodolpho
Amoedo, na pintura, Carlos Gomes, na ópera, entre muitos outros, o
fizeram coro maestría. Entre estigmas e idealiza~oes, alguma coisa

• Professor Titu lar de História Moderna, Universidade Federal Fluminense.

13
séria se fez no oitocentos. Freí Francisco de Nossa Senhora dos Praze- Nao fosse o diálogo crescente entre historiadores e antropólo-
res escreveu um vocabulário indígena, em 1846, e o mesmo Gon9al- gos e ainda boje estaríamos, no campo da historiografía, engatinhando
ves Dias publicaria seu Dicionário da língua tupi chamada língua entre o obscurantismo e a monumentaliza9ao. Alguns passos, feliz-
geral dos indígenas do Brasil, em 1858. mente, tem sido dados para superar este quadro. Negros da Terra, de
Nao exageremos, porém. Num tempo em que até a nobreza John Monteiro é um bom exemplo. Metamorfoses indígenas, de Maria
imperial passou a ostentar títulos coro nome indígena, como o próprio Regina Celestino de Almeida, recém publicado pelo Arquivo Nacio-
Gon9alves de Magalhaes, brasonado como Visconde de Araguaia, o nal, é outro exemplo importantíssimo. Religiéio como tradufii.o: mis-
charme era incensar os tupis - nomes, tradi96es, mitos, língua. Os de- sionários, Tupi e "tapuia" no Brasil Colonial, doutorado de Cristina
mais grupos, embora seu estudo tenha ao menos se rascunhado neste Pompa premiado coro o Premio da ANPOCS, em 2002, é outro traba-
tempo, ficaram meio perdidos no universo vago dos botocudos - "ín- lho de ponta. Curiosamente, porém, as duas últimas teses que citei
dios bravos", para usar a linguagem oficial da época. foram sustentadas na Pós-Gradua9ao em Antropología da UNICAMP,
O resultado, no campo da historiografía, foi o enraizamento de embora ambas adotem perspectiva histórica e estejam baseadas em
certo desdém, misturado com ignorancia e preconceito, no que toca a pesquisa documental.
história indígena. Nem Capistrano de Abreu escapou disso, apesar de Joao Azevedo Femandes, historiador de ofício, também fez seu
crítico de Varnhagen em vários pontos. A pobreza da historiografía livro no contexto academice da Antropología. Mas fez história. Um
brasileira em rela9ao a história indígena adentrou o século XX e só no livro que, como dizia no início, enfrentou todos os desafíos da rele-
final do milenio deu alguns sinais de autocrítica. Durante a maior par- vancia, originalidade e interdisciplinaridade e o fez coro grande brilho.
te do século passado, o índio - este genérico de cariz colonialista - foi De quebra, se debru9ou sobre urna fatia do mundo tupi - o das mullie-
estudado como mao-de-obra da coloniza9ao, como objeto da cateque- res - praticamente inexplorado, nao fosse o quase solitário texto oito-
se, como obstáculo indómito ao avan90 europeu, mas raramente, para centista de J.J. de Olive.ira Machado, "Qual era a condi9ao do sexo
dizer o mínimo, como protagonista da história do Brasil. feminino entre os indígenas do Brasil?" (1842).
Isto em franco contraste como que fizeram e fazem os etnólo- Foi para responder esta e muitas outras perguntas que Joao A-
gos e antropólogos. Gilberto Freyre, que foi a um só tempo historia- zevedo Femandes escreveu seu livro, ciente das dificuldades e das mil
dor, antropólogo e sociólogo, foi dos raros a incursionar no universo !acunas que o tema apresenta, como exp6e no primeiro capítulo "Mu-
indígena, valor.izando-o com um dos elementos formadores do Brasil. lheres Tupinambá, Mulheres Esquecidas". Ato contínuo, dedica-se a
Alfréd Métraux, este magnífico etnólogo suí90, foi outro a escrever compreender e explicar o papel das mulheres numa cultura essencial-
obras preciosas, ainda nos anos 1920, como A religiao dos tupinam- mente masculina, lan9ando-se a urna aventura extraordinária: estudar
bás. Mais adiante, Darcy Ribeiro, um campeao no estudo sobre os alteridades dentro de alteridades, o avesso do avesso, porque estuda o
índios. Mas há que destacar Florestan Femandes, autor do clássico A indígena a partir de fontes européias, e estuda a mulher tupinambá -
organizafao social dos Tupinambá, ainda nos anos 1940 - autor a que, segunda alteridade - numa sociedade feita pelos homens e para os
justamente, J oao Azevedo Femandes dedica seu livro. Os antropólo- homens. Vertical.iza o estudo no capítulo terceiro, 11Viver como Mu-
gos vem há muito ensinando os historiadores neste campo, e particu- lher Tupinambá 11 , esmiu9ando as faixas etárias, de peitan a kugnatin e
larmente no caso dos tupinólogos, impossível nao mencionar as sóli- daí, passando por trés outras classes de idade, alcan9ando a categoria
das contribui96es de Roque Laraia e Eduardo Viveiros de Castro, sem de uainuy. Um percurso em que a menina se toma mulher, passa a
esquecer do trabalho de Manuela Cameiro da Cunha. viver a sexualidade permitida a luz dos tabus indígenas, assume fun-
96es na economía dos grupos locais, engravida, convive com o siste-

14 15
ma de couvade, com sua tendencia a hipermasculidade, até se tomar a Maria Mae de Deus que eu mesmo estudei na Santidade de J aguaripe
velha uainuy. quinhentista. A maioria se enroscou com os portugueses e franceses,
"
As velhas tupinambás eram mesmo velhas feias e parcas, como dando o primeiro passo na construc;ao de urna sociedade étnica e cul-
delas disse o capuchinho Yves d'Evreux no século XVIl? Joao Azeve- turalmente híbrida.
do poe tudo isto e.m xeque, esclarecendo antes de tuda, que a mulher Gilberto Freyre já havia valorizado as cunhas, no seu clássico
se tomava uainuy a partir dos quarenta anos. Mullieres na flor da ida- de 1933, nelas vendo, quando menos, a base física da familia brasilei-
de - <liria de minha parte, se me for permitido o palpite - senda caso de ra. Por seu intermédio enriqueceu-se a vida do Brasil de diversos ali-
lembrar que, no mundo portugués do tempo de Gil Vicente ou mesmo mentos, do uso de drogas e remédios caseiros, utensílios de cozinha e
de Camoes, nao era raro que mulheres na faixa dos trinta fossem con- de processos de higiene, escreveu mestre Gilberto, "inclusive o banho
sideradas velhas! De todo modo, as "velhas" Tupinambá alcanc;aram, freqüente ou pelo menos diário, que tanto deve ter escandalizado o
naquela sociedade, fatias importantes de prestígio e poder, sobretu~o europeu porcalhao do século XVI".
na relac;ao como inimigo ou o "estrangeiro". Basta ver, como examina Joao Azevedo Femandes foi muito além da grandiloqüéncia li-
nosso autor, o papel que desempenhavam na sauda~ao lacrimosa, na bérrima de nosso autor maior e, unindo antropologia e história, deu
prepara~ao do cauim, nos rituais antropofágicos, sem perder o vigor
vida as nossas antigas cunhas, permitindo reconhecé-las, também elas,
sexual. Já Anchieta, no seu Auto de Sii.o Lourenr;o, dizia, demonizan- como protagonistas da história: da história dos tupinambás e da histó-
do-as, que as ditas velhas, "como serpentes", preparavam "negras be- ria da coloniza~ao, urna e outra misóginas, pelo menos androcéntricas,
bidas", para serem belas e ardentes: ''no amor, na cama e na vida". cada qual a seu modo. Tomaram-se as cunhas pouco a pouco mamelu-
Melhor se dissesse nas redes, como entao se fazia amor naquele tem- cas, maes de mamelucos, maes dos primeiros brasileiros. Nao por aca-
po. Mas vale o registro. so nosso autor relaciona, no subtítulo de seu belo livro, a mulher Tu-
Anchieta a parte, J oao Azevedo opera com o androcentrismo pinambá ao nascimento do Brasil. Os que o lerem aprenderao muito
do mundo tupinambá para questioná-lo, quando menos matizá-lo, e sobre a nossa história, sobre si e sobre os outros - no masculino e no
assim avanc;ar em rela~ao aos clássicos modelos de Métraux e Flores- feminino.
tan. Submete as fontes coevas a urna crítica fina, misturando sua for-
mac;ao de historiador com a perspectiva tomada de empréstimo aos
antropólogos e aos estudiosos norte-americanos, adotando instrumen- Rio de J aneiro, Julho de 2003
tal analítico que maneja com máxima pericia. Tudo isto, vale acres-
centar, nosso autor realiza com sensibilidade admirável e por meio de
urna escrita que verdadeiramente seduz o leitor a ponto de fazé-lo
apaixonar-se, como Joao Ramalho e Caramuru, pela mulher tupinam-
bá.
O quarto ato <leste livro ultrapassa o universo indígena stricto
sensu, enveredando pelo mundo colonial, o contato interétnico, ex-
pando como as mullieres foram violentadas, mas souberam também se
apropriar da cultura colonizadora. Da cultura e dos homens. Urnas
alcan~aram o mundo de Deus, como a Maria Rosa, que se tomou frei-
ra franciscana. Outras ficaram entre santas e feiticeiras, como a Santa
16 17
r

Prólogo

1563. Na grande aldeia de Iperoig, José de Anchieta ajoelha-se


e inicia urna ora9ao, em meio a algazarra das crian9as e mullieres no
terreiro. Ao seu lado, o padre Manuel da Nóbrega tosse de forma pun-
gente, incomodado pela tuberculose e pelo frio e umidade da noite
anterior. Os dois padres estavam incumbidos de dificílima, e perigosa,
missao. Aqueles Tupinambá, conhecidos como Tamoio, eram inimi-
gos renhidos e ferozes dos portugueses, e aliados e parentes dos heré-
ticos franceses. No momento em que os portugueses enfrentavam urna
revolta entre seus próprios aliados, os Tupiniquim, os padres se viram
frente a necessidade de procurar a paz com aqueles inimigos, "ferozes
como bestas selvagens", e amantes da guerra e da carne humana.
Caminhando sempre no tenue limite entre o exito e a inglória
morte nas maos dos guerreiros canibais, os inacianos possuíam um
trunfo importante: para além da aversao devotada aos portugueses, os
Tamoio nutriam um ódio ainda maior pelos seus inimigos tradicionais,
os Tupiniquim, com os quais já haviam trocado inúmeras flechas e
cabe9as esmagadas. Tal trunfo também escondía um grande risco: os
padres se faziam acompanhar de escravos índios, inimigos dos Ta-
moio, e observados com cobi~a cada vez maior por guerreiros ávidos
por troféus humanos, sobre os quais conquistariam novas nomes, e
mais algumas daquelas cicatrizes que marcavam, em seus próprios
corpos, o sucesso obtido nos repastos canibais.
Desde o amanhecer daquele dia, os índios dedicavam-se ao
consumo entusiasmado de sua bebida nativa, o cauim, produzido e
servido pelas mulheres e mo9as da aldeia. Isto era um mau sinal: as
bebedeiras muitas vezes estavam associadas a guerra ou ao canibalis-
mo, e representavam grave risco a vida dos padres. Durante a embria-
guez, os índios tomavam-se ainda mais amea~adores, reafirmando,
através de longos e elaborados discursos, as velhas inimizades e re-
cordando, entre gritos de ódio e desejos de vingan9a, os parentes mor-
tos e comidos pelos inimigos.

19
De repente, algumas mullieres, simpáticas aos padres, trazem o
Apesar do aparente sucesso, Anchieta imaginou, mais urna
aviso: os índios preparam-se para tomar um dos escravos, esmagando-
v_ez, ~ue estaría vivendo seus últimos días nas maos daqueles pagaos,
llie a cabe9a e comendo de sua carne. Era verdadeiro o alerta, e apesar
tao diferentes de tudo o que era considerado civilizado e humano pe-
dos temerários protestos dos padres, urna grande quantidade de índios,
los europeus quinhentistas. Tal era a sua apreensao, que escreveu, já
cheios do cauim e de ódios ancestrais, penetram na cabana e arrastam
sem muitas esperan9as de sobrevivencia:
o desgra9ado índio para o terreiro, tomado agora por inúmeros ho-
mens, mullieres e crian9as.
"( .. .) vendo eu por es te caso e conhecendo de todo a grande fal sí-
Urna cena dantesca desenrolou-se entao. Enguanto os homens, dad.e daquela gente e sua pouca constancia no ben1 come9ado e
"como lobos", puxavam e arrastavam o prisioneiro, urna grande quan- mu1ta arte para dissimular maldades que determjnavam come ter,
tidade de mullieres, com enorme "trisca e barafunda que nao havia acabeí ele persuadir-me que n1ui pouca causa bastava para os mo-
quem se ouvisse", debatía seu destino. Algumas, temendo a rea9ao ver a nos dar a 1norte, e detenllinei de me dar maís ínti mamente a
Deus, procurando nao só achar-me mais aparelhado para recebé-la,
dos portugueses, diziam que o cativo deveria ser poupado, enquanto
n1as também desejá-la e pedí-la a Deus Nosso Senhor com contí-
outras clamavam por sua morte. Finalmente o índio foi levado e teve nuas ora96es e inflamados desejos ( ... )". 1
sua cabe9a destro9ada por um certeiro golpe do tacape cerimonial, o
ibira~ema. Deixemos que o próprio Anchieta descreva o que ocorreu a
seguir: Nao seria daquela vez que Anchieta e Nóbrega encontrar-se-
i~m com seu deus, mas esta cena, narrada nos termos em que o cana-
rmo a colocou, revela-nos um ponto dos mais importantes, mas muito
"( ...) junto com ele n1ataram out.ro seu contrário, os quaís logo pouco, ou nada, percebido por aqueles estudiosos que se debru9aram
despeda9aram com grand íss ín10 regosíjo, n1axin1é das mulheres, as sobre este período crítico na forma9ao do Brasil. Refiro-me ao papel
quai s andavam can tando e bailando, urnas lhes espetavan1 com
desempenhado pelas mullieres naquelas sociedades nativas que rece-
paus agudos os n1en1bros cortados, outras untavam as maos com a
gordura deles e andavam unt1ndo as caras e bocas ás out.ras, e tal beram, em primeiro lugar, o impacto da invasao e da expansao dos
havia que colhia o sangue com as maos e o lambía, espetaculo a- eu:opeus. Foram as mullieres que debateram o destino do prisioneiro,
bon1inavel, de nianeira que tiveram boa canü9aria con1 que se far- fo1 urna fac<;ao feminina que desencadeou e comandou o ritual antro-
tar". pofágico, e foi outra fac9~Io feminina que admoestou os índios a res-
peito do que havia sido feito.
No día seguinte, entre os restos da macabra cerimonia do dia Ora, ·como isto se coaduna como lugar, absolutamente menor,
anterior, algumas das mulheres contrárias a morte do escravo saíram a ocupado pela mulher Tupinambá em quase todas as descri9oes feítas
discursar pelas casas, dizendo que aquilo havia sido um grande erro, e sobre a etnogenese brasileira? Como escapar de urna visao, mais do
que os portugueses se vingariam fazendo-lhes a guerra de forma ainda que tradicional, que reserva aos índios, suas sociedades e suas cultu-
mais destrutiva. Fizeram-no de tal forma, que pouco faltou para que os ras, um papel de coadjuvantes em um processo de miscigenavao tre-
índios matassem também os padres, "para que os nossos tivessem bem mendamente complexo? E, o mais importante, como falar de mullieres
que vingar". Tiveram os inacianos de utilizar toda a sua pericia na fala já desaparecidas, que viviam em sociedades com um forte complexo
para convencer os Tamoio de que nao deveriam se preocupar, que os cultural de supremacía masculina, sem cair na tenta9ao de ve-las como
portugueses jamais dariam ouvidos a mullieres, nem fariam caso de
um escravo índio. 1
Os dois trechos citados estao na Carta ao Geral Diego Lainez, de Sao Vicente, Janeiro de
1565, in Anchieta, l988: 226-7.
20
21
simples emanay5es do imaginário daqueles homens que as descreve- CAPÍTULO 1
ram, marcados indelevelmente pela misoginia européia?. Este livro
tentará responder a algumas destas questoes. ,
MULHERES TUPINAMBA, MULHERES ESQUECIDAS

1. O Problema do Contato lnterétnico no Brasil Colonial

Estudar o lugar da mulher na sociedade Tupinambá, e o papel


desempenhado por mullieres indígenas e mamelucas no processo de
contato desencadeado pela invasao européia do Brasil, significa abor-
dar urna série de eventos que colocaram em choque naturezas e cultu-
ras radicalmente diferentes com conseqüencias funestas para as popu-
layoes indígenas envolvidas. Tais eventos, contudo, deram origem a
urna formayao social marcada nao apenas pela violencia e pelo etnocí-
dio, mas também por formas inteiramente originais de interayao cultu-
ral e étnica, naquilo que Darcy Ribeiro chamou de "criayao de um
povo novo". 1
Na abordagem deste fenómeno multifacetado, a mulher Tupi-
nambá surge como urna imagem que parece resumir em si boa parte
desta complexidade, na medida em que se apresenta como um elemen-
to privilegiado de intermediayao entre aqueles mundos díspares. Ele-
mento de intermediayao imagética ao fornecer ao Ocidente cristao,
juntamente coma figura do guerreiro canibal, a representayao máxima
da alteridade entre a Europa e aquele mundo novo coro seus estranhos
habitantes (figuras 1 e 2). Elemento de intermediayao ecológica,
transmitindo a europeus e seus descendentes - muitas vezes através do
trabalho agrícola escravo - as técnicas nativas de sobrevivencia no
mundo tropical. Por fim, mas nao menos importante, um elemento de

1
Ribeiro, 1996 a: 19.

22 23
intermedia9ao biológica, ao gestar os mamelucos que formaram o 1828 Hercules Florence escreveu que as senhoras paulistas de quaren-
grosso d~ populayao brasileira nos primeiros tempos da colonia. ta anos antes - por volta de 1780 - ainda falavam a língua geral no
Durante o trajeto deste livro tentarei construir um olhar crítico ambiente doméstico.3
a urna posiyao tradicional com relayao aos primórdios da sociedade O exemplo das línguas faladas no Brasil colonial mostra a ne-
brasileira que reduz indevidamente, quando nao ignora, o impacto do cessidade de se olhar, com urna seriedade e interesse cada vez maio-
encontro das culturas e estruturas sociais européias e indígenas nesta res, as influencias indígenas na forma9ao social brasileira. O que ocor-
forma9ao. Refiro-me a idéia de que urna populayao indígena rarefeita reu nos primeiros séculas da coloniza9ao, mais do que urna simples
e primitiva, "mal adaptada" a escravidao, tenha sido substituída - de "dizima9ao" das sociedades indígenas, foi um processo de transcultu-
forma lamentável por certo, mas rápida - por um mundo majoritaria- ra~ao 4 , em que muitos europeus se "indianizaram" a ponto de praticar
mente afro-brasileiro de engenhos de ayúcar voltados para o exterior. a poliginia e a antropofagia, falar as línguas indígenas, e interagir,
Tal visao, embora parcialmente correta para aquelas regi6es nem sempre de forma violenta, com as sociedades encontradas
,, no No-
mais ligadas ªº
comércio internacional, nao apenas lan9a as sombras vo Mundo. Europeos como J oao Ramalho e Diego Al vares Caramuru
as particularidades do fenómeno em vastas áreas do Brasil - caso de foram bem sucedidos, contra todas as possibilidades, porque souberam
Sao Paulo e da Amazonia, por exemplo - como nao dá contadas evi- se imiscuir naqueles espayos reservados pela sociedade Tupinambá
dencias que mostram a predominancia numérica do estrato mameluco aos estrangeiros, espa9os que sempre estavam relacionados, de urna
na populayao total e o amplo uso das línguas gerais nas rela96es pes- forma ou de outra, ao casamento e as rela96es comas mullieres.
soais, uso superior ao do portugues em boa parte do território até pelo O argumento central deste livro é de que mesmo em um con-
menos o final do século XVIII. 2 texto de contato interétnico violento e desestruturador, de epidemias e
A questao lingüística representa, aliás, um boro exemplo das escraviza9ao catastróficas, sao construídas esferas de consenso e inte-
dificuldades advindas de urna adesao muito estrita aos modelos expli- ra9ao social, sem o que a vida dos indivíduos envolvidos seria impos-
cativos tradicionais da historiografía brasileira. É bem sabido que, sível. Tais esferas nao se constituíram, pelo menos nos primeiros tem-
naquelas áreas mais afastadas dos núcleos de plantation e dos centros pos, em tomo de institlliy6es européias transplantadas, mas sim atra-
de comércio com a metrópole e com a África, as línguas gerais deri- vés das instituiy6es sociais indígenas, especialmente aquelas relacio-
vadas do Tupi representavam o principal veículo de cornunicayao. Em nadas ao casamento e a afinidade. Como este trabalho tenta compre-
regi6es de forte presenya indígena, como Sao Paulo, o uso do portu- ender o processo de contato a partir de urna visao interna das estrutu-
gues foi marginal até fins do século xvm. ras sociais dos Tupinambá, toma-se importante delimitar algumas ca-
racterísticas daquela sociedade que moldaram e mesmo dirigiram a-
Em 1698 o govemador Artur de Sá e Menezes solicitava ao
quela transculturayao.
Rei que só enviasse clérigos que falassem a língua geral, tendo em
vista que: "(... ) a mayor parte daquella Gente se nao explica em outro Em sociedades que nao se estratificam em classes sócio-
ydioma, e principalmente o sexo feminino e todos os servos, e desta económicas - como é o caso dos Tupinambá e outras sociedades tradi-
falta se experimenta irreparável perda, como hoje se ve em Sao Paulo cionalmente denominadas de "primitivas" - o sistema de rela~6es so-
como nouo Vigario que veio prevido naquella lgreja, o qual ha míster ciais e a organizayao de direitos e obriga~6es individuais se expressa
quem o interprete (... )". A mesma solicitayao foi feíta em 1725. Em em maior ou menor grau através de práticas apoiadas em terminologi-

2 3
Vill alÍa, 1997: 332-41; cf. Ribeiro (1 996a: 151 ), para urna estim ativa, bastante especulativa, Holanda, 1979 (1936): 89.
do tamanho e composiyao étnica da populayao colonial. 4
Gi ucci, 1993: 201.

24 25
as e lavos de parentesco e afinidade. Ali onde nao existem distinvoes Nao se pense, contudo, que as mulheres sejam agentes passi-
de casta OlJ classe e onde o trabalho é organizado em funvao de linhas vos neste processo, que nao se reduz a qualquer cerimónia particular,
de sexo e idade, com predominancia clara do trabalho feminino, é o que é o casamento. Antes pelo contrário: é extremamente interessante
casamento que regulará privilégios e hierarquías, desigualdades ine- para aquelas o casamento uxorilocal, visto que desta forma continuam
rentes a qualquer organizavao social humana. 5 a residir com seus consangüíneos que podem apoiá-las contra a9oes
No caso dos Tupinambá o poder pessoal estava relacionado a violentas ou indesejadas de seus maridos. Assim a uxorilocalidade,
capacidade de alguns indivíduos, chefes dos grupos domésticos, as que pelo lado mais evidente é urna forma de sogros e cunhados exer-
malocas, manterem junto a si seus filhos homens, casando-os virilo- cerem influencia sobre seus afins, por outro lado garante também o
calmente, e atraírem genros para sua maloca através da uxorilocalida- espac;o para o exercício de formas características do poder fe minino
de6 preferencial: a própria no~ao de chefia se confundia coma posi~ao em sociedades nao-estratificadas, como se verá mais tarde.
de sogro, de "<loador" de mulheres. 7 Tal situavao - ao menos no dis-
" . - . .
E a este mundo que se mtegrarao os pr1me1ros europeus, nau-
,,

curso social dominante - inaugurava entre <loadores e receptores urna fragas e degredados portugueses ou intérpretes (truchement) norman-
aparente relavao de <lívida, de "servivo da noiva", dívida que devia ser dos e breté5es, entre outros, que se defrontavam com urna situa9ao-
resgatada através da prestavao por parte do genro / cunhado de um limite: de um lado tomar-se cativo - que de certa forma se tomava um
cativo canibalizável a parentela da esposa, ou da cessao de urna filha "afim", pois era entregue a urna "esposa", urna mulher do grupo de
9
ao irmao da esposa (o casamento preferencial entre o tío materno e a seu captor, que o vigiava e o alimentava até o diado sacrifício - ou,
sobrinha, que tanto surpreendeu os cronistas). No primeiro caso, trata- em outra hipótese, cunhado, situac;ao que os cronistas europeus consi-
se de um "duplo" do próprio genro, no segundo da esposa recebida.8 deraram, exageradamente, como urna quase escravidao, em virtude
Uxorilocalidade e virilocalidade eram pontos em um continuum no das incómodas exigencias da uxorilocalidade. A primeira situa9ao era
qual escapar ao servic;o da noiva associado a uxorilocalidade era um obviamente pouco desejável, já que o cativo afinizado estava destina-
ideal somente alcanc;ável individualmente através das proezas guerrei- do ao repasto caníbal; fugir a segunda situac;ao e casar virilocalmente
ras ou, socialmente, através da forc;a política dos parentes do noivo. com as índias - o que, sintomaticamente, era o mesmo ideal dos ho-
Esta é, por certo, urna abordagem essencialmente "masculina" mens Tupinambá - tomou-se um dos problemas centrais a ser solu-
da economía política dos Tupinambá; como se verá mais a frente um cionado pelos primeiros europeus.
enfoque "femi.nino" da mesma questao permitirá o enriquecimento de Comentar as solu96es encontradas por estes significa tocar em
nossa percepvao das relac;oes de genero naquela sociedade, e mesmo urna das características mais importantes dos primórdios da presen9a
das estruturas sociais resultantes da invasao européia. De todo modo é européia: trata-se do fenómeno da transic;ao entre urna fase em que os
evidente que o casamento é urna instancia decisiva na disputa pelo europeus se integrara ao mundo indígena como genros cobi9ados por
poder político e para a apropriac;ao da forc;a de trabalho dos indiví- seus presentes, por suas armas e por sua liga9ao comas estruturas co-
duos, notadamente das mulheres. loniais de poder, sendo que alguns dentre eles alcanc;am inclusive urna
situa9ao privilegiada nos próprios termos indígenas, enquanto <loado-
5
Dumo nt, 1992: 66. res de mulheres; em um segundo momento assiste-se a consolida9ao
de algo semelhante a "família patriarcal" descrita por um Gilberto
6
No sis1ema de residencia pós-marital denominado de virilocalidade, a esposa vai resid ir
junto aos paren1es do noivo; na uxorilocalidade é o noivo que vai residir junto aos parentes da
noiva. Cf. va n den Berghe ( 1983: 150) para estas defin iy5es, e Viveiros de Cas1ro ( 1986: 96) e
Laraia ( 1~72: 36) para urna discussao sobre os sistemas pós-maritais dos pavos Tupi.
7
Viveiros de Cas1ro, 1986: 96-7 , 682-6; 1993: 190- l.
8 9
Vi veiros de Castro, 1986: 3 19. Femandes, 1989 ( 1948): 12 1.

26 27
dias e mestic;as, constituíram um grupo muito mais discemível, embo-
Freyre, em que o cunhadismo de base Tupinambá desaparece e a poli- ra pior documentado e que certamente apresentava importantes dife-
ginia se camufla nos interstícios da escravidao e do compadrio. ren9as de acordo com cada contexto regional e cada situa9ao de clas-
Do ponto de vista da mulher indígena estamos <liante de urna se, o que nao impedirá, suponho, a constru9ao de urna explanac;ao
clara transforma9ao entre a uxorilocalidade preferencial e ·a virilocali- sobre estas mullieres que considere as modifica96es nas regras de re-
dade exclusiva, o que acarreta uma transforma9ao no status fe.minino sidéncia e nos mecanismos sociais de extra9ao do trabalho feminino,
que nao pode ser compreendido unicamente apelando-se para a crítica bem como as repercuss6es destas transforma96es na vida social como
anacrónica ao colonialismo europeu: em meio a destrui9ao provocada um todo.
por este colonialismo abriam-se espa9os para que indivíduos - entre Durante décadas existiu certa dificuldade no trato deste tema,
estes as mullieres índias e mamelucas - se posicionassem de forma a notadamente por causa da supremacía de uma visao sobre o período
garantir sua sobrevivencia em um mundo marcado por súbitas trans- colonial fortemente marcada pelos aspectos ligados ao desenvolvi-
forma96es. mento do capitalismo mercantil europeu. Embora tais aspectos nao
Este nao é um tema que possa ser abordado de forma isolada. possam ser descurados, visto estarem na própria raiz do empreendi-
Estudar o papel da mulher indígena na form.a9ao social brasileira exi- mento colonial, é ainda menos aceitável que se parta desta constatac;ao
ge o uso de urna vasta gama de documentos e análises nem sempre para se chegar a idéia de que houve urna substituic;ao pura e simples
coerentes entre si. A própria dificuldade que existe em se ter acesso a de urna sociedade indígena por urna outra exclusivamente vinculada
urna realidade esmaecida como esta faz com que nao se possa desper- aquele expansionismo e ao imaginário do século da Reforma. Urna
di9ar as informa96es disponíveis sobre as mulheres do período, mes- das características mais importantes da aventura colonial européia, e
mo a custa de um certo ecletismo documental e bibliográfico. Os par- nao apenas da portuguesa como quis Gilberto Freyre, é a capacidade
cos indícios existentes sobre o tema central desta dissertac;ao, a evolu- de incorporar práticas, institui96es
,, e cosmologías indígenas como es-
9ao do status feminino, devem ser enriquecidos por urna thick descrip- tratégia de dominac;ao. E a "improvisac;ao de poder" de que fala Ste-
tion que posicione estes elementos em um contexto mais global e es- phen Greenblatt, "a habilidade européia de insinuar-se várias vezes
clarecedor. dentro das estruturas políticas, religiosas e tarnbém psíquicas preexis-
A partir de um estudo das características endógenas da socie- º
te~tes dos nativos e utilizá-las ern proveito próprio". 1
dade Tupinambá, passando pela explorac;ao do mundo claramente Desta forma, toma-se evidente a necessidade de se compreen-
mameluco dos paulistas de Piratininga, pela misoginia militante dos der nao apenas a lógica subjacente as atitudes européias mas também
jesuítas e pela perplexidade que transparece nas representa96es artísti- os aspectos da dinamica interna própria da sociedade Tupinambá que
cas européias das nativas, pode-se chegar a um corpus informativo foram utilizados, conscientemente ou nao, pelos invasores. Dentre
que, se nao revela todas as instancias da vida das mulheres, pode per- estes aspectos, sobressaem-se aqueles relacionados as vidas das mu-
mitir a supera9ao tanto da promiscuidade "gosoza" e dionisíaca entre- lheres e a todo o contexto das rela96es de genero existentes entre os
vista por Gilberto Freyre ou Paulo Prado, quanto do relativo desinte- Tupinambá, que eram, claramente, urna sociedade f ortemente marcada
resse pelo tema revelado pela moderna historiografía brasileira. por um complexo cultural de supremacía masculina. Tanto nos textos
/

E importante notar que se nao é possível falar dos "homens" de cronistas e viajantes, quanto nas obras de autores como Florestan
coloniais, já que estes estavam pulverizados em várias categorias - Femandes ou Darcy Ribeiro, as mulheres Tupinambá aparecem em
portugueses e outros europeus, clérigos e colonos, mamelucos e bas-
tardos·, índios brabos e reduzidos - as mullieres, majoritariamente ín- 10
Apud Giucc i, 1992: 207.

29
28
um papel subsidiário ao dos grandes guerreiros antropófagos como único, tanto no interior de sua própria sociedade quanto no contexto
Cunhambebe ou Alkindar-miri, mas estes mesmos textos clássicos, a de fric9ao interétnica que se seguiu. Para isso é importante urna rápida
partir de urna leitura crítica apoiada na antropologia das mullieres e na análise dos diferentes instrumentais teóricos desenvolvidos por essa
etnología indígena contemporanea, sao capazes de revelar a inadequa- antropología, na medida em que todos eles oferecem elementos impor-
9ao desta visao unicamente masculina da sociedade Tupinambá. tantes para a compreensao daquelas experiencias.
Esta nao é, por certo, urna tarefa isenta de dificuldades, em vir- Como foi <lito anteriormente, tentar-se-á neste trabalho mostrar
tude do caráter fortemente androcentrico dos documentos históricos e que é possível alargar a compreensao do contato euro-indígena, e da
do fato de que, mesmo dentro da antropologia, a idéia de se privilegiar condi9ao das mullieres Tupinambá e mamelucas durante aquele pro-
as mullieres como objeto de conhecimento seja relativamente recente e cesso, a partir do estudo das modifica96es que atingiram a organiza-
problemática. Enfrentar estas dificuldades representa, nao obstante, 9ao tradicional da família e do espa90 doméstico e as conseqüencias
urna necessidade para o pesquisador interessado nas mulheres que destas modificac;oes para o status - entendido aquí como um determi-
. ,;
cr1aram, em seus corpos e em suas mentes, o pa1s que se tomana o
.
nado grau de prestígio e valoriza9ao socialmente reconhecidos - da-
Brasil, e que sofreram, mais do que qualquer outro grupo social, o quelas mulheres. O problema do status feminino e, por extensao, a
peso de um processo catastrófico majoritariamente dirigido por ho- existencia ou nao de urna universalidade da domina9ao masculina
mens. constituí um dos pontos básicos sobre os quais se constrói a antropo-
logía das mulheres, notadamente quando este estudo se volta para a-
quelas sociedades ditas "primitivas". Trata-se de urna questao íntima-
mente ligada as lutas feministas dos anos sessenta, quando muitas mu-
2. A Mu/her Tupinomb6 e o Antropologio dos Mulheres lheres procuraram na antropologia explica96es para a desigualdade e a
12
assimetria sexual, e mesmo possíveis estratégias de liberta9ao.
Esta preocupa9ao traduziu-se dentro da disciplina através da
crítica ao que se chamou "viés masculino" (male bias). Tal crítica
Peggy Sanday, discutindo a persistencia daquilo que ela chama
representou urna tomada de consciencia do fato de que boa parte do
"modelo patriarcal" de análise antropológica, distingue duas possibili-
desenvolvimento da antropología estava marcado por um viés mascu-
dades de estudos foGalizados nas experiencias femininas: "a antropo-
- lino que apresenta um duplo caráter. Por um lado os antropólogos,
logia feminista, sugiro, é fabrica9ao de mitos em prol da transforma-
especialmente os dos países centrais, sao oriundos de sociedades soci-
c;ao, enguanto que a antropología das mulberes registra os detalhes das
almente assimétricas e "treinados" na academia para exercitarem esta
vidas das mullieres sem se importar com preocupa96es políticas atuais
e evita explicar essas vidas em termos universais". 11 assimetria em suas pesquisas. 13
Assim etnografias clássicas, como as de Radcliffe-Brown so-
Ao contrário de Sanday, que parece considerar as duas possibi-
bre os aborígines australianos, e teorías consagradas, como a de Uvi-
lidades como equivalentes en1 termos de valor explanatório, este livro
Strauss sobre o parentesco, foram colocadas em questao por ignora-
se limitará ao desenvolvimento da segunda alternativa: o interesse
rem as experiencias femininas ou por verem as mulheres como sim-
aqui estará voltado para a pesquisa e descri9ao daqueles detalhes de
vida das mulheres Tupinambá que tornaram suas experiencias algo

12
Reiter, 1975: l l.
11 13
Sanday, 1993: 87. Milton, 1979.

30 31
ples objetos de troca. 14 Também foram fortemente criticadas as re- mente por conta do papel quase exclusivo concedido aos genitores
constru96es da evolu9ao social construídas através de teorias do tipo masculinos na concep9ao dos filhos, como escreveu, em 1549, o padre
"Man-the-Hunter", que apresentam o sexo masculino como o único Manuel da Nóbrega: "(... ) y si destos tales (os prisioneiros) quedan
agente evolutivo da espécie. 15 Por outro lado, o viés masculino trans- hijos tanbién los comen, aunque sean sus nietos y hermanos, y a las
parece também no fato de que muitos antropólogos recolheram seus vezes las propias madres; y dizen qu 'el padre solamente tiene parte en
19
dados de informantes homens que lhes transmitiam os seus próprios él y la madre no tiene nada". Em 1556, o padre Luís da Gra confir-
preconceitos a respeito das mullieres: a abordagem feita por Mali- mava este fato: "y no (casam) ansí la (filha) del hermano, que es como
nowski ao parentesco e a esfera ritual dos trobriandeses, por exemplo, hija, porque tienem para sí que el niño no recibe carne de la madre,
está claramente marcada por este duplo "male bias" . 16 que es como un sacco, sino del padre".2º
Várias estratégias foram empregadas para escapar a perspecti- Estes relatos serviram de base a constru9ao de urna visao for-
va masculina e investigar as causas e modalidades da assimetria sexu- temente androcentrica da sociedade Tupinambá, e permitiram que um
al; no caso do estudo das sociedades primitivas as diferentes aborda- autor como Florestan Femandes postulasse a existencia de urna geron-
gens podem ser classificadas em tres tipos básicos, de acordo com os tocracia entre os Tupinambá, no que foi acompanhado por muitos,
aspectos privilegiados por cada autor. 17 O primeiro deles está relacio- inclusive em rela9ao aos Tupi contemporaneos.2 1 Nao obstante, os
nado a forma pela qual os grupos de parentesco, enguanto entidades documentos mostram que se o domínio masculino, especialmente dos
jurídico-políticas, realizam seu recrutamento e dividem direitos e o- homens mais velhos, é um fato inegável entre os Tupinambá, isto nao
briga96es entre seus membros. deve ser visto de forma determinista. Vejamos o que o jesuíta Antonio
Para esta corrente, da qual um dos melhores exemplos é o livro Blázquez, escrevendo em 1557 na Bahía, relatava aos seus superiores:
Fema/e of the Species, de Kay Martin e Bárbara Voorhies, o status das
mullieres está intimamente relacionado a varia9ao <lestes mecanismos "Huma hora antes do sol, se toca outra vez a campainha pera que
dos grupos de parentesco; assim, enguanto nas ·sociedades matrilinea- venhao as velhas e velhos que en1 estremo sao preguisosos, aos
res as mullieres permanecem como membros efetivos de sua própria quais toma outra vez a ensinar a doutrina. A estas trabalha o Irn1ao.
polas ter mai s benevolas porque as Aldeas rege m-se cá polas ve-
linhagem mesmo após o casamento, nas patrilineares elas sao obriga- lhas feiticeiras e con1 ellas se toma o conselho da guerra, e se ellas
das a constru9ao de nova inser9ao social, por vezes bem difícil, em quisessen1 persuadir aos n1ais a que viessem a doutrina, se1n duvi -
urna linhagem estranha, onde sua habilidade em distribuir recursos e da que se fizesse n1ais proveyto e ouvera mais nun1ero de indios,
alcan9ar prestígio estará ligada ao papel de mae, esposa (e, freqüente- mas hé tudo polo contrario, que totalmente estrovao a que nao ou-
sao a doutrina e siguao nossos custumes, e por isso se tem quaa
mente, co-esposa) ou sogra. 18
por averiguado que trabalh ar com ellas hé quasi em vao ( ... )'>.22
Este tipo de interpreta9ao, bem marcada por urna problemática
"juralista" característica da antropología social anglo-saxonica, permi-
te urna primeira aproxima9ao ao caso Tupinambá. Os Tupinambá sao
19
considerados como um caso típico de complexo patrilinear, especial- Carta do P. Manuel da Nóbrega ao Dr. Azpilcueta Navarro, Coimbra (Salvador,
10/08/15 49) in Leite, 1954 (I): 136.

14
°
2
Ca11a do P. Luís da Gra ao P. lnácio de Loyola, Roma (Piratininga, 08/06/1556) in Leite,
Rohrlich-Leavitt er al., 1975. 1954 (11): 292; cf. Fernandes, 1989: 144-5.
15 21
Slocum, 1975. Cf. Ribeiro, 1982: 32-3; sobre a geronrocracia dos Tupinambá cf. Femandes, 1989: 261-2,
16 27 1-90, 29 1-4.
Sanday, 1993: 76-7; Weiner, 1979.
17 22
T íffany; 1978; Coontz e Henderson, 1986. Quadrimestre de setembro de 1556 a janeiro de 1557 pelo Ir. Antonio Blázquez (?)"(Bahía,
18
Martin e Voorhies, 1975: 229-41. 01 /0l/1557) inLeite, 1954(11): 352.

32 33
26
Outra carta, também escrita na Bahia pelo padre Francisco Pi- domínio masculino, a poliginia pode ser revista a luz de trabalhos
res, trata do mesmo tema23 , assim como o fez Pero de Magalhaes m~s recentes que mostram ~ interesse demonstrado pelas esposas
Gandavó, em seu Tratado da Terrado Brasil, escrito provavelmente mais velhas no aumento do numero de e~posas de seus maridos, mu-
24
em 1570. Seria um tra90 específico daquela regiao? É mais plausível llieres mais jovens sobre as quais exercerao autoridade e controle.27
que a perspectiva masculina, seja de homens Tupinambá, europeus ou Apontarei mais tarde as formas pelas quais a poliginia era conscien-
antropólogos contemporaneos, tenha seu papel na constru9ao desta temente utilizada como arma política pelas mullieres Tupinambá.
suposta exclusividade da gerontocracia masculina associada aqueles O segundo tipo de abordagem ao status das mulheres nas soci-
índios. edades primitivas, talvez o mais influente deles, é o que contrasta o
Os franceses envolvidos na constru9ao da Fran9a Equinocial, papel d~ bomens e mulheres nas esferas pública e doméstica da socie-
no Maranhao de princípios do século XVII, também puderam observar dade, sendo o marco desta linba de pensamento a obra coletiva orga-
que as mulheres poderiam ocupar posi96es na sociedade Tupinambá nizada por Michelle Rosaldo e Louise Lamphere, A Mulher, a Cultura
(como a de xama) que urna perspectiva androcentrica consideraria e a Sociedade.28 A constata9ao de que, na maioria dos casos culturais,
como apanágios do sexo masculino. É o caso da velha feiticeira des- os homens ocupem aquelas posi96es mais claramente formalizadas e
crita por Yves d 'Evreux, que "era mui apreciada pelos selvagens e separadas das unidades familiares enquanto que, por oposi9ao, as mu-
procurada especialmente nas molestias incuraveis; quando todos os lheres estejam mais íntimamente ligadas a vida doméstica e ao cuida-
feiticeiros já nao sabiam o que haviam de fazer, entao ella era convi- do dos filhos e participando, de forma aparente ao menos, com menor
dada ( ...); muitas pesso as me f allaram d' esta desgra9ada creatura com intensidade da esfera "pública", foi percebida como urna explica9ao
grandes ~abos e estima, como infallivel em dar saude aos que lh 'a para a quase universal inferioridade do status feminino. 29
,
pediam". 5 E claro que, enquanto "explica9ao", esta posi~ao deixa muito a
Como se ve, a questao do poder entre os Tupinambá é bem desejar: a diferencia9ao entre os generos no que conceme as ativida-
mais complexa do que pode parecer a primeira vista, se nos vincular- des públicas e domésticas é justamente um dos pontos a ser explicado,
n:ios de forma exclusiva a no9ao de _patrilinearidade, o que parece ter o que representa urna tautología evidente. Por outro lado, nao se pode
sido o caso de Florestan Femandes. E importante perceber ainda que o deixar de reconhecer que se trata de urna abordagem heurísticamente
discurso androcentrico da maioria das sociedades patrilineares fez m~ito· interessante já que, como se verá mais tarde, a identifica~ao da

com que muitas vezes os antropólogos tivessem dificuldade em reco- mulher com o espac;o doméstico é bem evidente tanto para os Tupi-
nhecer o papel ativo e eventualmente dominante das mullieres. No nambá quanto para os Tupi contemporaneos.30 Além disso urna de
caso de Femandes isto é agravado pela misoginia que permeia os rela- minhas hipóteses é a de que o status da mulher Tupinambá se inferio-
tos coloniais que lhe serviram de fontes. riza, entre outras razoes, justamente pela profunda transforma9ao na
organiza9ao social do espa90 doméstico ocasionada pela invasao eu-
O problema da poliginia é exemplar disso: institui9ao central ,, .
ropeta.
para os Tupinambá - e no contexto interétnico colonial - e abominada
pelos jesuítas; encarada por nossa sensibilidade ocidental como algo
que desvaloriza a figura feminina e que serve inclusive como índice de 26
Divale e Harris, 1976: 523.
27
D Collier, 1988; White e Burton, 1988: 884 .
23
Carta dos Men inos Órfüos (escrita pelo P. Francisco Pires) ao P. Pero Doménech, Lisboa Rosaldo e Lamphere, 1979.
29
(Bahia, 05/08/ 1552), in Leite, 1954 (1): 385-7. Rosaldo, 1979.
30
24
Gándavo, l 995a: 29. Para os Tupinambá: Fernandes, 1989: 64-5; para os Tupi contemporáneos cf. Laraia, 1972:
25
Evreux, 187 4 ( 16 15): 268. 115; Mindlin, 1985: 82-3; Müller, 1993: 72-3; Viveiros de Castro, 1986: 272-4, 364, 462-4.

34 35
Esta abordagem é, contudo, criticável em vários aspectos: o
31 35
principal deles é a identifica9ao, feita por Sherry Ortner, entre o par posi9ao social das mulberes. Por sua vez, Juditb Brown mostrou que
mulher :: nomem e a dicotomia lévi-straussiana natureza :: cultura. a elevada posi9ao desfrutada pelas mulheres Iroquois nao estava rela-
Como mostra Peggy Sanday, 32 nao existe qualquer universalidade cionada ao tamanho - grande - da contribui9ao económica das mullie-
nesta identifica9ao; na verdade, para o caso Tupi, o que ternos é a re- res nema estrutura - matrilinear e matrilocal - do parentesco, mas an-
la9ao contrária: é a mulher que em geral está associada a cultura e a tes ao controle exercido por elas sobre a organiza9ao económica como
sociedade, e nao o homem. Como afirma, a este respeito, Eduardo um todo através do prestígio que as mullieres mais velhas possuíam e
Viveiros de Castro: de sua influencia nas decisoes do Conselho de Anciaos. 36
Na Fran9a, como surgimento de urna antropología de inspira-
"( ... ) ísto (a identifica9ao dos homens com. o Exterior, com. o Ou- 9ao marxista, desenvolveu-se toda urna reflexao acerca do problema
tro) sugere urna característica importante da cosmología Araweté: do controle do trabalho e da produ9ao nas sociedades primitivas. A-
o espa90 do Mesn10, da Socíedade, é fen1iníno ( ...). Aquí ven1os daptando os princípios marxistas as sociedades teoricamente igualitá-
que, ao contrário de outras visoes sol-americanas, em que as n1u- rias, autores como Claude Meillassoux, Pierre-Phillipe Rey, Emmanu-
lheres remetem ao exteri or do social, seres an1bíguos entre a Natu-
reza e a Cultura, o Nós e o Ini migo, sao os homens que encarnam
el Terray, e outros, passaram a considerar que na base das desigualda-
a media9ao entre o Eu e o Outro, e as mulheres remetem para o in- des existentes naquelas sociedádes estava o controle nao dos meios de
terior da sociedade. ( ...) o doniínio do hurnano é essenciamente produ9ao, de propriedade comunal, mas dos produtores, através do
. . ,, 33
fiemuuno . · controle das tracas matrimoniais por parte dos homens mais velhos.
Este controle, que seria ideologicamente produzido, criaría urna situa-
o terceiro tipo de aproxima9ao a problemática do status femi- 9ao de dominac;ao (que Rey chamaría explorarao) dos velhos sobre os
nino nas sociedades primitivas é o estudo do papel económico das jovens, estes dependendo daqueles para a obtenc;ao de urna esposa e
mulheres, e das formas utilizadas pelos homens para controlar e usu- fon;ados - ideologicamente é bom lembrar - a fazer presta9oes pré e
fruir o produto do trabalho destas. Dentro de urna perspectiva diacró- pós-maritais aos velhos. 37
nica, como pretendo fazer aqui, Eleanor Leacock .estudou o impacto Boa parte das discussoes a respeito da antropología económica
da coloniza9ao européia e das transformac;oes resultantes desta coloni- m~xista se situou em tomo da questao de se saber se há ou nao explo-
za9ao nas estruturas económicas dos Montagnais-Naskapi do Canadá, rac;ao - no sentido que deu ao termo Karl Marx - dos mais jovens pelos
mostrando o quanto este impacto foi prejudicial para o status femini- mais velhos dentro das sociedades primitivas. Enquanto Meillassoux e
no.34 outros viam aí apenas urna domina9ao temporária, Rey via o "modo
Karen Sacks retomou as f ormula96es de Friedrich Engels em A de produ9ao de linhagem" como a forma mais básica que assumia a
Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado e construiu explora9ao económica e a luta de classes, posi9ao duramente criticada
urna tipología baseada em sociedades africanas que mostra a clara pela corrente principal da antropología francesa. Autores como Pierre
correla9ao existente entre as formas de organiza9ao do trabalho e a
35
Sacks, 1975.
36
31
Brown, 1975 . É interessante notar que tanto Leacock - que tam bém fez pesquisa de campo
Ortner, 1979. com os Montagnais-Naskapi contemporaneos - quanto Brown faze m uso de relatos de jesuítas
n sanday, 1993: 74-6. dos séculas XVU e XVIII, em um procedi mento virtua.lmente identico ao real izado neste
33
Viveiro.s de Castro, 1986: 364. livro.
34 37
Leacock, 1978. Meillassoux , 1977; Rey, 1978. Sobre a antropologia marxista francesa cf. Carvalho, 1978;
Pouillon, 1978.
36
37
"
38
Clastres discordaram de qualquer aplica9ao de princípios marxistas a E preciso refletir sobre aquilo que faz com que as mullieres a-
sociedades que, segundo ele, sao inteiramente igualitárias. Masé bom ceitem ser "trocadas" entre os grupos, geralmente de parentesco, que
lembrar que a experiencia principal de Clastres como antropólogo se co~poem as sociedades primitivas. O fato de que estes grupos se or-

deu entre os Guayaki do Paraguai, cac;adores nómades de língua Gua- gan1zem com base no controle e na extrac;ao do trabalho feminino faz
rani e também reconhecidos como igualitários pelos marxistas. A dis- com que o casamento se tome a instancia privilegiada para a regulac;ao
cussao iniciada por Meillassoux, Rey e outros está relacionada as so- dos conflitos entre indivíduos e grupos em tomo das mulheres. A res-
ciedades linhageiras, bem maiores e mais complexas que os cac;adores posta para a questao proposta acima está nas formas pelas quais aque-
Guayaki. las sociedades validam as relac;oes entre "<loadores" e "receptores" de
mulheres e as estratégias utilizadas por estas para garantir algum grau
Sem entrar em todo o mérito da questao é importante perceber de autonomía no interior destas negocia96es.
que os antropólogos marxistas desferiram um profundo golpe na no-
c;ao de que as sociedades primitivas formem "comunidades" inteira- . . Este estudo foi realizado pela especialista em antropología do
mente livres de hierarquias e contradi96es sociais, no9ao alimentada d1re1to, e antropóloga feminista, Jane Collier. 40 Em seu Marriage and
por muitos anos entre os próprios marxistas, para os quais estas carac- lnequality in Classless Societies (1988), Collier retoma parcialmente a
terísticas só podem surgir na presen9a de classes sociais. Os trabalhos dis~us~ao de Meillassoux sobre os tres tipos de economía pré-
da corrente iniciada por Claude Meillassoux mostraram que existem cap1tahsta - o bando de cac;adores, as comunidades agrícolas linhagei-
fortes tensoes no interior daquelas sociedades, tensoes que muitas ve- ras e os agricultores "de arado" - relacionando estes tipos ideais as
zes se aproximam daquelas existentes nas sociedades estratificadas em formas pelas quais os casamentos sao socialmente validados. Os mo-
classes. Contudo, a obsessiva busca de urna luta de classes avant la delos utilizados por Collier sao denominados pelos termos referentes
lettre fez com que a antropología marxista se dirigisse bem mais as aos diver~os mecanismos de validac;ao matrimonial: brideservice (ser-
tensoes existentes entre os homens, e nao a verdadeira rela9ao de ex- vi90 da noiva), equal bridewealth (presente da noiva igualitário) e
plora9ao existente nas sociedades primitivas, que é a que se exerce unequal bridewealth (presente da noiva desigual). 41 Collier utiliza
sobre as mulheres - que fazem a maior parte do trabalho produtivo - fontes bibliográficas na construc;ao de seus modelos, as etnografías
pelos homens. Como afirmou um comentador: clássicas realizadas na década de trinta entre os povos das Grandes
Planícies americanas: os Comanche (brideservice), os Cheyenne (e-
qual bridewealth) e os Kiowa (unequal bridewealth).
"Se se quer, pois, analisar as rela96es de produ9ao existentes na
sociedade de linhagem, é necessário desprender-se de modelos Sociedades de servic;o da noiva (brideservice societies) , como
demasiado dogmáticos e ocidental-centricos: a sociedade de linha- sao a maioria das sociedades indígenas brasileiras, entre elas os Tupi-
gen1 n1ostra estar, de facto, organizada de un1 modo muito com- nambá, geralmente validam suas ligac;oes matrimoniais através de
plexo e diversificado para ser reduzida a simples problemática de
prestac;oes em trabalho dos genros para os parentes - pais e irmaos - de
un1a rela9ao entre duas grandes classes, os exploradores e os ex-
plorados. Vimos que a rela9ao de explora9ao , em todo o sentido da
suas esposas, o que é reforc;ado pela presen9a bastante comum da uxo-
palavra, se exercia entre as mulheres, por um lado, e os homens, rilocalidade. Nestas sociedades a grande desigualdade se dá entre os
por outro. Neste sentido, as classes sociais das linhagens serian1 homens solteiros e os casados: a posse - através do casamento - do
"bioclasses".39 trabalho feminino é o fator fundamental a transformar aquilo que a

40
38 Collier, 1988.
Clastres, 1982. 41
39 Collier, 1988: 1- J 4.
Marie, 1978: 198-9.

38 39
sociedade considera um "adolescente" em um verdadeiro adulto, pos- pouco marcadas cerimonialmente - ao contrário do que ocorre comas
se esta geralmente conseguida por meio de provas de coragem; no "bridewealth societies", onde existem grandes cerimónias de trocas de
caso do~ tupinambá o assassinato ritual de um inimigo no terreiro da mulheres por bens de prestígio - e que nao se possa falar em qualquer
aldeia. E claro que nos dois outros tipos de sociedade, como aponta- relavao de "exploravao" por parte dos velhos.4 Durante o trajeto deste ·
ram os marxistas franceses , a desigualdade está também baseada no livro tentarei aplicar os modelos teóricos de Collier ao caso Tupinam-
controle do potencial reprodutivo e económico das mulheres; o que é bá, especialmente seus instrumentos de análise que pennitem escapar
diferente nas "brideservice societies", indica Collier, é que os homens ao conceito de domina9ao masculina e estudar as estratégias utilizadas
afirmam ter conquistado suas mulheres por sua própria bravura, e nao pelas mullieres para fazer valer seus interesses.
como urna dádiva de sua linhagern, como ocorre nas "bridewealth Para finalizar esta sevao é importante lembrar que enquanto a
societies". antropología das mullieres como um todo já reuniu um corpus infor-
Sobre este assunto é interessante, aliás, ler o que escreveu An- mativo corn riqueza suficiente para permitir a constru9ao de modelos
thony Knivet, marinheiro ingles que passou por várias peripécias no sofisticados como os de Jane Collier, este nao é o caso da pesquisa
Brasil de fins do século XVI. Tendo sido feíto escravo dos portugue- sobre a mulher indígena, especialmente a Tupinambá, durante o perí-
ses e tendo fugido por várias vezes, Knivet entrou em contato corn odo colonial, pesquisa que, pelo menos nos termos que estao coloca-
várias etnias indígenas, entre elas os Puri, povo nao-Tupi já extinto. dos aqui, nunca foi realizada anteriormente. É necessário, portante,
Os Puri deviam praticar o servi90 da noiva, a julgar pelo que escreve um trabalho de compila9ao dos dados disponíveis sobre o período,
Knivet a respeito de urna visita sua a urna aldeia que ainda nao havia para que se possa compreender aquele processo de transi9ao em ter-
recebido visitas de portugueses; após ser recepcionado pelo chefe do mos de sociología "primitiva" e nao, como tem sido feíto, através de
grupo local, Knivet se ve <liante de um guerreiro de urna aldeia vizi- urna perspectiva unicamente européia e que acaba por obscurecer a
nha, atraído por sua chegada: especificidade do contato interétnico no Brasil.

"Enquanto permanec i neste povoado, um nati vo por nome Guai-


nun1bí, que nutria grande ódio aos portugueses, veio até mim, corn
duas n1ulheres, e ao entrar na casa em que e u me achava, po uso u 3 . .Como Estudar a Mu/her Tupinambá?
a
suas nlao s no pesco90 delas, assim dan9ando minha frente; de-
pois que hav ia dan9ado, talvez por un1 quarto de hora, fa lou-n1e,
d izendo: 'Ves estas mulheres? Pelo n1eu valor conq uistei-lhes o
amor, e agora, o desejo delas, que jurei cun1prir, é matar-te, assin1 A pesquisa que fundamenta este livro se baseou em fontes
co n10 fiz a mui tos outros"'.42 primárias, como crónicas, relatos de viagem e documentos do período
colonial, em fontes historiográficas secundárias e na produvao etnoló-
"Pelo meu valor conquistei-lhes o amor... " Esta demonstravao gica brasileira, notadamente a que se relaciona com os Tupi, em parti-
da fraqueza dos grupos de parentesco em estabelecer urna relavao de cular, e as sociedades amazónicas de urna forma geral, já que é óbvia a
dívida com seus próprios jovens faz com que o casamento, e as rela- inser9ao dos Tupinambá neste complexo cultural. Antes, contudo, de
96es de afinidade como um todo, nas "brideservice societies", sejam se explicitar a forma como estas informav5es serao utilizadas, é im-
portante fazer um comentário a respeito das fontes primárias.
42
In Ribeiro e Moreira Neto, 1993: 115. Kn ivet acabou por se safar, nao sem antes ter quase
43
provocado urna guerra entre as duas aldeias pela sua posse. Cf. Viveiros de Castro, 1993: 189.

40 41
Quando Florestan Femandes escreveu seus trabalhos clássicos Embora seja justificada a preocupa9ao de Raminelli com o pe-
a respeito dí>s Tupinambá,44 nao lhe pareceu necessário discutir o po- rigo do anacronismo, é bastante óbvia para qualquer um que possua
tencial de "verdade" existente nos relatos coloniais que lhes serviram alguma familiaridade com a produ9ao tupinológica atual a pertinencia
de fontes. Em suas próprias palavras: da abordagem etnográfica dos relatos coloniais: como se pode ter urna
atitude diferente quando, por exemplo, se comparam os desenhos de
"( ... ) mas aqui surge um problema: deve-se proceder a urna minu- potes, e outras pe9as cerfunicas, incluídos no livro de Hans Staden - e
ciosa crítica dos documentos, ou é suficiente reali zar um exan1e as gravuras feítas posteriormente por Theodore de Bry - com o teste-
crítico do seu conteúdo etnográfico? Parece-n1e que a segunda ori- munho arqueológico que possuímos atualmente e se percebe que os
enta9ao é a única recon1endável em um ensaio da natureza presen-
te. A crítica histórica (interna e externa) é un1a tarefa que cabe aos
desenhos sao quase que perfeitos? De que "esferas imaginárias" teri-
historiadores" .45 am sido retirados os termos de parentesco recolhidos pelos jesuítas,
muitos deles identicos aos usados pelos Tupi atuais? Como explicar a
notável semelhan9a existente entre a cosmología Tupinambá, tal como
Já nao é possível ter a mesma atitude atualmente: ao contrário
esta aparece nos relatos, e as cosmologias dos Tupi e Guarani contem-
dos historiadores que foram contemporaneos das pesquisas de Feman-
poraneos, cosmologías que estabelecem urna rela9ao original, comple-
des, muitos historiadores de hoje nao aceitam a possibilidade de se
tamente diferente da que é feíta, por exemplo, pelos Je, com a tempo-
realizar um estudo etnológico dos Tupinambá combase naqueles rela-
ralidade e com a alteridade? Como afirmou Carlos Fausto: ''( ... ) no
tos. Ronald Raminelli, que realizou excelente trabalho sobre as ima-
caso dos Tupi da costa, ao contrário, as crónicas deixam entrever um
gens da coloniza9ao, resume bem o tipo de obj~ao mais comum:
inegável ' ar de familiaridade' com os grupos Tupi contemporaneos, a
47
despeito das flagrantes dissimilaridades demográficas".
"A análise da docun1enta9ao quinhentista e seiscentista dedicada
ao cotidiano indígena permite ainda repensar as pesquisas etnográ-
Seria cansativo desfiar a infinidade de outros exemplos que
fi cas sobre os antigos Tupinambá. Alfred Métraux, Florestan Fer- podem ser citados para demonstrar a possibilidade de utiliza9ao etno-
nandes e Eduardo Viveiros de Castro, entre tantos outros tupinó- gráfica das fontes coloniais. Antes de abandonar este ponto, contudo,
logos, leram os relatos deixados pe los europeus como homens do poderia ser interessante investigar a raiz das obje96es que alguns his-
século XX, con1pletamente alheios aos princípios da coloniza9ao. toriadores e outros pesquisadores fazem ao tipo de estudo pretendido
Hans Staden, Gabriel Soares de Souza e Jean de Léry nao erarn et-
nógrafos (... ). Para os antropólogos, as narrativas sobre ritos e n1i-
aqui. Pode parecer incrível, mas a base principal destas críticas, ao
tos escritas pelos prime iros exploradores tornam-se confiáveis lado de urna "hermeneutiza~ao" que a tudo transforma em "textos"
quando encontram sin1ilitudes com as etnografías atuais, ou quan- auto-referentes, é a obra do antropólogo William Arens, em que este
do foram descri tas por mais de um testemunho. Para os historiado- simplesmente nega todos os relatos, em todo o mundo, sobre a antro-
res, os critérios apresentados pelos tupinólogos sao frágeis, pois pofagia. 48 Este é um ponto fundamental, na medida em que, sem som-
un1 n1esn10 evento pode expressar um deternlinado significado no
século XVI e outro, ten1pos depois". 46
bra de dúvida, a antropofagia era o tra90 cultural mais ressaltado pelos
documentos a respeito dos Tupinambá.

47
44 Fausto, 1992: 381; para urna comparac;ao entre os Je e os Tupi cf. Carneiro da Cunha e
Femandes, 1970; 1975; 1989. Vi veiros de Castro, 1985.
45
Femandes, 1975: 208. 48 Arens, 1979; para urna crítica a Arens, cf. Brady, 1982. Entre os autores que se valem dos
46
Raminelli, 1994: 257-8. argumentos de Arens sobre os Tupinambá estao Fleischmann et al., 1990-1 e Gambini , 1988.
42 43
dedor da panella y atizando la oguera, que parecían demonios en
. f'1erno,.·. 50
Só posso criticá-lo com rela~ao ao caso brasileiro (embora el m
desconfíe ~ue ele esteja igualmente equivocado a respeito de outras
regioes, como a Nova Guiné): Arens examina unicamente o relato de Frank Lestringant, em sua indispensável obra acerca da ima-
Hans Staden, afirma que todos os outros relatos nao passam de plágios gern do caníbal no pensamento europeu , tra9ou um julgamento que me
de Staden (ou de algum relato anterior ainda desconhecido: será ne- parece definitivo sobre Arens e suas teses:
cessário explicitar o absurdo de tal hipótese para um historiador?), e
que os cronistas e outros viajantes nao poderiam ter conversado com
"O que pode ainda nos dizer o canibal? Teria ele um dia existido?
os índios por nao conhecerem a língua dos Tupinambá, verdadeira
De fato, a soluyao mai s radical e mais có moda consiste e m negar
língua franca - ao ser transformada pelos jesuítas na lingua geral - da toda antropofagia cultural. Foi a esse revi sionismo encarnecido
costa brasileira durante mais de dois séculas após o descobrimento e que se livrou, nao sem um verdade iro sucesso de public idade, um
que era falada por inúmeros línguas portugueses e truchement france- ensaísta como William Arens. Se formes lhe dar crédito, o caníbal
ses! das Antilhas e do Brasil teria saído todo nu e ensangüentado da
cabe9a dos viajantes apressados, de europeus ávidos de espa90 e
Donald Forsyth demonstrou, de forma mais do que cabal, a to- de conquistas, prontos a projetar no outro , por ódio e desprezo, o
tal inconsistencia <lestes argumentos ao relacionar as várias oportuni- fantasma da devora9ao que os assombrava. ( ... ) O caníbal existiu
dades em que os jesuítas se viram <liante de situa~oes de antropofagia, de verdade, e jamais cessou de dirigir-se a nós".51
seja para resgatar prisioneiros prestes a serem comidos - estes nem
sempre estavam dispostos a serem resgatados por considerarem a mor- No Apendice 1 encentra-se reproduzido um mito dos Kaapor
te em terreiro gloriosa - seja encontrando restos de carne humana mo- que deixa patente a fragilidade da idéia de que a antropofagia dos Tu-
queada e pronta para o consumo ou mesmo presenciando cenas antro- pinambá seja urna "invenc;ao" européia: a extraordinária coincidencia
pofágicas.49 Embora os exemplos sejam inúmeros seria interessante entre este mito e os relatos coloniais só pode ser explicada a partir do
apresentar um deles neste momento, para se ter urna idéia da insusten- reconhecimento de que os Kaapor praticaram efetivamente a antropo-
tabilidade da tese de Aren s. Trata-se de urna carta do Padre Joao de fagia no passado, em bases rituais virtualmente identicas as dos Tupi-
Azpilcueta, datada de 1550, onde pode se vislumbrar também a impor- nambá. Os Kaapor, aliás, nos fomecem ainda outro exemplo desta
tancia das mullieres em todos os procedimentos rituais que acompa- ligac;ao com o passado. Em sua viage1n as aldeias Kaapor ( 1949-
nhavam o ato antropofágico: 1951 ), Darcy Ribeiro ouviu histórias a respeito do canibalismo que o
surpreenderam, dada a semelhan9a com os textos coloniais. Em urna
"Un día destos fueron a la guen-a muchos de las Aldeas que yo conversa com um velho, Anakanpukú , Ribeiro descreveu os passos do
enseño, y fueron n1uchos muertos por lo s contrari os. Por se venga- ritual antropofágico dos Tupinambá, deixando o velho Kaapor surpre-
ren to111áronse n1uy apercebidos y mataron muchos de los contra- so e emocionado, a ponto de, em determinado momento, este inter-
rios a trayc ión, de onde truxeron mucha carne humana. De tal ma-
romper a narrativa:
nera que, quando fu i a visitar a una Aldea de las q ue enseño (en
do nde outra vez mataron un n1iniño que yo escribí), y entrando en
la 2.ª casa alié una panela a manera de tinaja, en la qual teníam
carne humana cociendo, y al tiempo que yo llegué echaban bra9os,
pies y cabe9as de honbres, que era cosa espantosa de ver. Vi seis o
siete viejas que apenas se podían tener en pie dan9ando por el re-
°Carta do Padre Joao de Azpi lcueta aes pad res e irmaos de Coimbra (Baía, 28/311550), in
5

Leite, 195 4 (v .1): 182-3.


51
Lestringant, 1997: 16-8.
49
Forsyth , 1983: 170-3.
45
44
"Enorme era a emo9ao com que me ouvia e, por fi n1, nao suportou para arruinar urna posiyao que, soba capa do idealismo e da generosi-
e disse ao Joao: 'Ele é meu irrnao. O avo dele é rneu avo'. Nao dade intelectual, apenas incita ao desconhecimento do outro". 53
.. podendo sequer suspeítar que eu soubesse, por leitura, de tudo que
dizia, chegou a única explica9ao possível: son1os netos dos mes- Considerar que os cronistas mentiram a respeito da antropofa-
n1os avós, guardando na men1ória o mesmo saber. (... ) Con1e9ou, gia é um ato claramente etnocentrico, que nega urna das mais impor-
entao, a contar que seus antepassados tambén1 ca9avam gente de tantes dimens6es da cultura dos Tupinambá, e de muitos outros povos
outras tribos para con1er. Principalmente os Makú ou Boca Preta, ..
nativos, e que deve ser compreendida nao como um "horrível ato", tal
porque pintavan1 a boca com jenipapo. Confirn1ou
satisfatoriamente a descri9ao de Auaxí-ma, acresecentando un1 como o ve nossa cultura, mas sim nos próprios termos em que os ín-
porn1enor: o prisioneiro era amarrado con1 a corda e levado a um dios a vivenciavam. Veremos mais tarde que existem informay6es
poste no qual an1arravan1 uma extremídade dela. Davam a ele, suficientes nao apenas para o estudo da antropofagia dentro da cultura
entao, n1uito cauim, cantavam por nluito ten1po de maos dadas Tupinambá quanto para urna aprecia9ao do crucial papel feminino
con1 ele e, a certo mon1ento, chegava o matador com um tamara e
o abatía co1n un1 só golpe na cabec;a. O cadáver fícava a cargo do
nesta esfera cultural.
tuxaua" As obje96es ao uso da documenta9ao histórica como via de a-
cesso a sociedade Tupinambá nao partero apenas de historiadores re-
A ansia em "textualizar" os relatos coloniais acaba por lanyar·
visionistas. Alguns antropólogos também discutem as possibilidades
alguns no maior "erro" que um historiador pode cometer: o do ana-
de um empreendimento <leste tipo, considerando que qualquer descri-
cronismo. O exemplo seguinte é bem esclarecedor quanto a isso:
yao de urna "sociedade Tupinambá" é impossível, já que esta socieda-
de simplesmente jama.is teria existido, da mane.ira como a pensaram
"(...) estes, os europeus, hon1ens que devido a medos e a fadigas pessoas como Florestan Femandes ou Darcy Ribeiro. A sociedade ·
encontravam-se en1 un1a situa9ao psíquica extrema, propensos a ,..
Tupinambá seria, na verdade, urna espécie de "Frankenstein etnográfi-
ver coisas que nao existian1. (...) Esses equívocos se consolidavam
na cabe9a dos obsevadores e assumiam forn1as reais, seja porque, co", urna colcha em que os retalhos seriam observa96es as mais díspa-
como Anchieta, desejavam urna morte de n1ártir, ou porque sin1- res, fe.itas por agentes da colonizayao mais interessados no domínio e
plesn1ente desejavam escrever um livro interessante con1 boas na anulayao de várias sociedades afastadas no tempo e no espa90, ob-
condi96es de venda".52 servay6es que teriam sido reunidas de forma artificial e esquemática, e
que nada teriam a ver com as sociedades rea.is efetivamente encontra-
Ora, imaginar que uro homern de meados do século XVI t.ives- das pelos prime.iros europeus.
se, como sua grande preocupavao, "escrever um livro interessante com O principal proponente <leste ponto de vista é Joao Pacheco de
boas condiy6es de venda", parece-me um equívoco monumental. Oliveira F°, que acredita que os relatos de viajantes representam em si
Creio que urna prática historiográfica mais carreta seria a de conside- mesmos um problema também para o antropólogo, e nao apenas para
rar que, da mesma forma ero que muitos dos cronistas descreveram a o historiador, exatamente pelas raz6es citadas acima. Oliveira F° estu-
perfeiyao as terminologias e os sistemas de parentesco e casamento, dou a pertinencia dos relatos de viajantes europeus dos séculos XVIII
assim como diversos aspectos da vida cotidiana, também o fizeram em e XIX para a reflexao antropológica sobre a área do Alto Solim6es,
relayao ao rito antropofágico. Como afirmou, de forma lapidar, Frank levando em conta a preocupayao de Florestan Femandes com a homo-
Lestringant, acerca da negayao pós-mo dema do canibalismo cultural, geneidade dos relatos enguanto base de seu valor etnográfico e con-
"( ... ) é fácil acrescentar os testemunhos convergentes da etnología, cluindo que "de modo algum a etnografia dos viajantes pode ser vista

52 53
Fleischmann et al., 1990-1 : 145. Lestringant, 1997: 17.

46 47
como unidade, urna vez que os diferentes tipos de viajantes obedecem foi um ponto amplamente discutido por Florestan Femandes 55 , mas
a pressóes económico-sociais bem distintas e servem-se de esquemas também por antropólogos contemporáneos como Carlos Fausto: para
. bem uuerentes
men t a1s ...l~4'." " 54 p
. ara este autor, a suposta homogeneidade este autor, a despeito das grandes diferen9as nas situa9óes sociais dos
dos relatos nada mais é do que urna criayao do antropólogo contempo- cronistas, "há urna razoável homogeneidade de infonna9óes, que nos
ráneo, mais interessado em encontrar confirma96es de seus próprios permite um certo grau de seguran9a na reconstru9ao dessas socieda-
preconceitos do que em reconstruir sociedades que já nao podem mais des, mas nao nos dispensa de urna leitura critica, feita a partir da situ-
56
ser alcan9adas pela etnología. a9ao dos autores". Seguindo esta linha de raciocínio, acredito que a
Oliveira F° está correto em sua critica ahomogeneidade dos re- homogeneidade das informa9óes está mais relacionada ao valor etno-
latos enguanto critério único de validade, mas creio que existem ou- gráfico das fontes do que a urna série de plágios - como pensam Willi-
tros aspectos a serem considerados. Será adequado comparar os via- am Arens e seus seguidores - ou aos desejos funcionalistas e estrutura-
jantes europeus de períodos tao diferentes? Os viajantes dos primeiros listas de antropólogos contemporaneos, como pensa Oliveira F°.
séculos defrontavam-se com um mundo indígena que ainda apresenta- A segunda questao importante, posta por Oliveira F° em rela-
va urna dinamica interna com um alto grau de autonomia, muitas ve- 9ao aos europeus dos séculos XVID e XIX, liga-se a homogeneidade
zes independente da dinamica imposta pelo colonizador. Em várias entre os cronistas e viajantes. Jesuítas e sacerdotes protestantes, náu-
situa96es - recorde-se os apuros passados por Anthony Knivet ou fragos, inquisidores, colonos portugueses, nobres, militares e intérpre-
Hans Staden - os europeus se encontravam em risco de vida e deviam tes franceses e flamengos; ternos aí um inventário inicial da diversida-
a todo instante estar bastante atentos ao comportamento daqueles in- de daqueles europeus. Manuela Cameiro da Cunha apontou com pro-
divíduos tao diferentes de si próprios. priedade a existencia de pelo menos "duas linhas divisórias básicas"
Por outro lado a necessidade de gerir os povos recentemente na constru9ao do conhecimento europeu sobre o Brasil durante os
conquistados impunha um olhar investigativo, conquanto pragmático, primeiros séculas, "urna que passa entre autores ibéricos, ligados dire-
sobre os costumes e institui96es nativas. Este certamente nao era o tamente a coloniza9ao - missionários, administradores, moradores - e
caso dos viajantes de períodos posteriores, notadamente os do século autores nao ibéricos ligados ao escambo, para quem os índios sao ma-
XIX: estes orgulhosos cavalheiros vitorianos vinham nao apenas com téria de reflexao muito mais que de gestao". 57
o respaldo de grandes potencias como podiam dispar do apoio do pró- Em minha opiniao, e ao contrário do que pensa Oliveira F° a
prio Estado nacional brasileiro, já suficientemente consolidado. Co- este respeito, a heterogeneidade entre os cronistas e seus interesses
nhecer os indios de maneira íntima raramente se tornava, neste tipo de ressalta ainda mais o papel da homogeneidade de suas informa9óes e
situa9ao, algo que fosse realmente fundamental para a sua própria so- contribui para a concessao de um estatuto minimamente etnográfico a
brevivencia ou para a manuten9ao de um processo de domina9ao das esta documenta9ao, desde que cotejada com a produ9ao etnológica
.. _popula96es indígenas, o que se reflete na relativa "pobreza" etnográfi- contemporanea, e desde que submetida a visao crítica proposta por
ca <lestes relatos. Carlos Fausto.
Quanto ao problema da homogeneidade dos relatos que nos in- 55
Femandes, 197 5: 19 1-298.
teressam, os dos cronistas e viajantes dos dois primeiros séculos, este 56
Fausto 1992: 38 1.
pode ser desdobrado em duas questóes. A primeira diz respeito a ho- 57
Carneiro da Cunha, 1990: 95. Darcy R ibeiro e Carlos More ira Neto relacionam o sucesso
mogeneidade das informa foes apresentadas sobre os Tupinambá, que que os fran ceses obtiveram em suas alian<;as com os Tupinambá nao apenas a mareante pre-
senya dos intérpretes (truchement) normandos mas também a ..curiosidade intelectual" e a
"extraord inária capacidade de entender e de relacionar-se" com os índios demonstrada por
Olive ira Filh~, 1987: 134.
54
aqueles: Ribeiro e Moreira Neto, 1992: 151-2.

48 49
Nao se pode, contudo, deixar de concordar com Oliveira F° problemas que nos interessam: assim a discussao sobre o trabalho fe-
quando este afirma que a documenta9ao histórica é sempre lida de minino abrirá caminho para o olhar sobre atividades como a fabrica-
acordo cóm os pressupostos teóricos e paradigmáticos daqueles que as 9ao da cerfunica e das bebidas fermentadas, femininas por excelencia e
leem. Os relatos sobre os Tupinambá sao, aliás, bastante típicos quan- que sao cruciais para a compreensao do papel das mullieres. Da mes-
to a isso: os mesmos documentos serviram de base a reconstru96es e ma forma, a organiza9ao social e a metafísica servirao como portas de
preocupa96es substancialmente diferentes, em fun9ao da época ou da entrada para algumas questoes importantes ligadas, por exemplo, as
forma9ao academica dos autores que se debru9aram sobre o problema estratégias políticas femininas e aos espa9os cosmológicos ocupados
Tupinambá. Podemos distinguir tres vertentes básicas nestes traba- por homens e mullieres no mundo Tupinambá.
lhos: a problemática da origem e difusao da cultura Tupinambá - e das A pesquisa que deu origem a este livro se baseou na combina-
culturas Tupi e Guaraní como um todo - marcada fundamentalmente ~ªº entre as fontes coloniais e a etnología dos Tupi contemporaneos.
pela presen9a de Alfred Métraux; os estudos de organiza9ao social, E, de resto, importante notar que esta combina9ao de métodos é ne-
devedores fundamentalmente de Florestan Femandes mas que possu- cessária mesmo para se compreender os Tupi atuais, já que estes sao
em um outro importante referencial no trabalho de Roque Laraia; e a muito pouco estudados e estao em sua grande maioria em difícil situa-
preocupa9ao com a cosmología e a metafísica Tupinambá, advinda do 9ao demográfica devido a expansao da sociedade nacional. Assim, os
processo de enriquecimento pelo qual vem passando a etnología das Tupinambá - para os quais existem maiores informa96es (embora de
terras baixas sul-americanas, e que é basicamente representada entre pior qualidade) do que para alguns Tupi de boje - podem servir para
nós pela obra de Eduardo Viveiros de Castro e por autores que dialo- iluminar aspectos confusos para a etnología atual por conta das agru-
gam com a sua perspectiva. ras das situa96es de contato. Por outro lado, o caminho inverso tam-
Existem naturalmente sobreposi96es entre estas vertentes: as- bém é fundamental, já que a inser9ao dos Tupinarnbá no complexo
sim Métraux escreveu o trabalho clássico sobre a metafísica Tupi- cultural Tupi permitida pelos estudos etnológicos atuais é indispensá-
nambá, enquanto as pesquisas etnográficas realizadas entre povos Tu- vel para a devida abordagem etnográfica da documenta9ao histórica.
pi nos últimos quarenta anos reformularam várias das questoes postas Como se ve, nao é o caso apenas de se utilizar a etnología atual para
por Femandes com respeito a organiia9ao social Tupinambá e, por "reconstruir" os Tupinambá, mas também de se utilizar, criticamente,
extensao, dos Tupi. Esta divisao em vertentes diz respeito basicamente a ~ocumenta9ao histórica para ajudar a esclarecer pontos obscuros no
,I' • • A

ao tom predominante da antropología em cada período, sem que isso proprio registro contemporaneo, como vem sendo feito, aliás, por an-
signifique qualquer exclusivismo teórico dos autores citados. Na ver- tropólogos como Carlos Fausto, Manuela Cameiro da Cunha e Eduar-
dade ocorre justamente o contrário: sao trabalhos que, guardadas as do Viveiros de Castro.
diferen9as dos momentos históricos em que foram produzidos, apre- A apresenta9ao dos resultados desta pesquisa se dará da se-
sentam urna grande riqueza metodológica e conceitual, e que nao po- guinte forma: no capítulo II serao analisados alguns aspectos da socie-
dem deixar de ser lidos por quem se interessa nao apenas pelos Tupi- dade e cultura Tupinambá que me parecem relevantes para o estudo
nambá com um todo, mas principalmente pelas mulheres que construí- das mullieres. Como seria impossível fazer aquí um "sumário" da cul-
ram aquela sociedade. tura Tupinambá - de resto, já feito por Florestan Femandes - optei por
A análise destas diferentes abordagens nos levará nao apenas a selecionar e privilegiar tres aspectos que podem servir de ponte para o
tra9ar algumas linhas gerais daquilo que se conhece sobre a sociedade mundo feminino e para o universo das rela96es de genero. Isso será
Tupinambá, de forma a definir o contexto cultural amplo no qual vivi- feíto a partir de urna abordagem do fabrico da ceramica e das bebidas
am as mulheres, mas também permitirá urna primeira aproxima9ao aos fermentadas como esferas privilegiadas de a9ao feminina na sociedade

50 51
Tupinambá; do papel feminino nos sistemas de reproduc;ao social e do
valor, para os homens, do controle sobre sua capacidade produtiva; das sociedades indígenas foram determinantes para a constituic;ao da
por fim -será feíta urna rápida análise da posic;ao ocupada pelas mulhe- sociedade pós-contato: o que ocorreu no Brasil foi a forma9ao de um
res na cosmología e metafísica dos Tupi contemporaneos com vistas a sistema interétnico heterogeneo, no9ao que será desenvolvida no capí-
compreensao do papel cerimonial das mullieres Tupinambá. O objeti- tulo IV, mas que implica em afirmar a impossibilidade de se compre-
vo deste capítulo será o de inserir as informac;oes sobre as mullieres ender a formac;ao da sociedade brasileira enquanto um processo de
em um contexto antropológico amplo, com especial atenc;ao para os imposi9ao cultural ("acultura9ao") da parte dos europeus sobre os in-
dados que nao estavam disponíveis para Alfred Métraux e Florestan dígenas.
Femandes, como os da arqueología e os da etnología dos povos Tupi Urna idéia que penneará todo o desenvolvimento deste livro é
colliidos pela expansao da sociedade nacional a partir dos anos sessen- a de que as reconstru9oes tradicionais da sociedade Tupinambá sao
ta e setenta. fortemente androcentricas e, de certa forma, impedem a realiza9ao de
O capítulo m trará urna compilac;ao de todas as informa9oes urna investiga9ao aprofundada das rela9oes de genero naquela socie-
disponíveis sobre as mullieres Tupinambá em um contexto que, na dade, o que toma a pesquisa direta das fontes urna imposi9ao. Esta
medida do possível, se aproxime da sociedade Tupinambá tal como pesquisa direta mostrou que o status da mulher na sociedade Tupi-
era antes da chegada dos europeus, o que é apenas, claro, urna inten- nambá era bem mais elevado do que nos faz crer o viés masculino
c;ao heurística. Isto se fará através da pesquisa das fontes coloniais, já implícito nas fontes e nas reconstru9oes antropológicas. Por outro la-
que as mesmas fontes utilizadas por Florestan Femandes podem ser do, as fontes também revelam que, com a invasao européia, o status
revistas a luz da preocupac;ao atual comas mullieres, e também como relativo da mulher indígena sofre urna importante modifica9ao, nao
recurso a etnología, cujos dados sao extremamente relevantes na me- simplesmente por conta da escravidao - nem todas as mulheres Tupi-
dida em que muitos aspectos dos Tupi atuais se assemelham aos dos nambá e suas descendentes mamelucas eram escravas, e a escravidao
antigos Tupinambá, em especial o papel cosmológico das mulheres indígena apresentava características bem diferenciadas em relac;ao a
enquanto representantes do "interior", da "cultura", em contraposic;ao escravidao dos africanos - mas também pela mudan9a radical na orga-
ao papel "externo" dos homens. Será desenvolvido também o modelo nizac;ao familiar e do espac;o doméstico, além da destruic;ao das esferas
proposto por Jane Collier para a compreensao das "brideservice socie- rituais - e das técnicas sociais a elas associadas - que garantiam as
ties", em func;ao da posic;ao social das mulheres, e discutido o papel da mulheres Tupinambá um papel central na sociedade pré-contato.
uxorilocalidade como instancia privilegiada do poder na sociedade
Tupinambá, bem como as formas pelas quais as mulheres beneficiam-
se da existencia desta forma de residencia pós-marital e sao prejudica-
4. Os Tupinombás e suo Etnología
das quando as condic;oes particulares nao permitem que a uxorilocali-
dade se estabelec;a ou se mantenha.
No capítulo IV serao estudadas as formas pelas quais as mu-
lheres indígenas se posicionaram no novo mundo pós-contato. Arela- Para todo aquele que se interessa pelo problema antropológico
c;ao das mullieres com a escravidao e com a religiao crista, bem como dos Tupinambá, duas questoes se apresentam logo de início. A primei-
as formas que os europeus desenvolveram para se assegurar do poten- ra delas é a de se definir, como maior grau de precisao possível, o que
cial económico e reprodutivo das índias serao analisadas a luz da estou considerando como "Tupinambá": afinal, este termo, em sentido
hipótese principal deste livro, isto é, a idéia de que as estruturas inter- estrito, refere-se a urna etnia específica, que povoava a regiao da Ba-
nas das sociedades indígenas foram determinantes para a constituü;ao bia (ver mapa). Contudo, e isto era percebido com bastante clareza
52
53
pelos cronistas, os povos de língua Tupi da costa brasileira - Tupini- nos coloca diante de um horizonte cultural extremamente coerente. O
quim, Tamoio, Caeté, e outros - compartilhavam urna série de trayos termo Tupinambá servirá aqui, portanto, para designar os falantes de
culturais. Esta semelhan9a cultural entre povos que estavam, muitas línguas Tupi que habitavam a costa brasileira - e alguns pontos no
ve.zes, separados por milhares de quilómetros, indicava, para além da interior, como o planalto de Piratininga e áreas próximas ao rio Sao
ongem comum, que sua expansao pelo litoral seria relativamente re- Francisco - de Sao Paulo em dire9ao ao norte, até o Maranhao, o que
cente. nao impedirá a utiliza9ao de etnonimos particulares quando isso se
mostrar indispensável ou relevante.61
Esta homogeneidade cultural foi bem apontada por um cronista
como Gabriel Soares de Souza. No Tratado Descritivo do Brasil em A segunda questao importante a respeito dos Tupinambá diz
1587, Soares de Souza nao teve dúvidas em incluir as várias etnias respeito ao tipo de rela9ao que se deve estabelecer com a obra de Flo-
Tupi em um mesmo conjunto cultural, em virtude da extraordinária restan Femandes, já que ninguém, entre todos os pensadores brasilei-
semelhan9a de suas línguas e costumes. Ao tratar, por exemplo, dos ros, fez mais pela compreensao dos Tupinambá do que o sociólogo
Potiguara da Paraíba, o cronista afirmou: "falam a língua dos tupi- paulista. Em A Organiza~iio Social dos Tupinambá (1949), A Funrao
nambás e caetés; tem os mesmos costumes e gentilidades (... ) cantam, Social da Guerra na Sociedade Tupinambá (1970), e em alguns arti-
bailam, cornero e bebem pela ordem dos tupinambás, onde se declara- gas contidos em A Investigarao Etnológica no Brasil e outros Ensaios
rá miudamente sua vida e costumes, que é quase o geral de todo o (1975), Femandes estabeleceu todas as bases, etnológicas e historio-
gentio da costa do Brasil".58 gráficas, para o estudo dos Tupinambá, e continua como urna referen-
cia obrigatória.
Ao descrever, especificamente, os índios da costa da Bahia,
Soares de Souza reafirma sua convic9ao de que estava tratando de um Contudo, a obra de Florestan Femandes nao deve ser objeto de
conjunto cultural bem mais amplo do que os etnonimos particulares: qualquer tipo de "reverencia" acrítica, nem deve servir de álibi para se
"ainda que os tupinambás se dividiram em bandos, e se inimizaram escapar a necessária tarefa de combinar as informa96es de cronistas e
uns com outros, todos falam urna língua que é quase geral pela costa viajantes com a etnología contemporanea dos povos Tupi. Quando
do Brasil , e todos tem uns costumes em seu modo de viver e gentili- Femandes realizou suas pesquisas, durante os anos 40 e 50, boa parte
59 dos povos Tupi ainda nao havia sido contatada pela sociedade nacio-
dades (... )". Falando dos Tupinaé, também da Bahia, afirmou: "tupi-
naés sao urna gente do Brasil semelhante no parecer, vida e costumes nal - o que só veio a acorrer com a abertura das grandes estradas n·a
dos tupinambás e na linguagem nao rem mais diferen9a uns dos ou- Amazonia, durante os anos 60 e 70 - e mesmo aqueles povos já co-
tros, do que tero os moradores de Lisboa dos de entre Douro e Minho nhecidos, como os Tapirapé, ainda nao tinham suas etnografías reali-
( ... )".60 . zadas ou publicadas. 62
Esta homogeneidade cultural nao é urna "inven9ao" de coloni- Usando urna metodología a~ertamente funcionali sta, mas tam-
zadores cúpidos, ou urna elucubra9ao de etnólogos contemporaneos, bém influenciado pela antropología social inglesa e pelo culturalismo
mas antes representa um fato bem estabelecido, seja pelos relatos his- americano, Femandes viu nos Tupinambá urna sociedade patrilinear e
tóricos, seja pelo registro arqueológico. Esta homogeneidade nao ex- patrilocal, em que os indivíduos mais velhos exerciam uro enorme
, tingue, por certo, as diferen9as entre as particularidades locais, mas controle sobre os jovens e as mulheres - configurando mesmo urna

58
Souza, 197 1 ( 1587): 55. :~ Sob~e est_a q~estao e~. Fernand~s, 1989: 16-8; Fausto, 1992: 381 -3; Gomes, 1988: 4 1.
59 Ta¡nrape: trebo Tupi do Brasil Central, de Herbert Baldus, só fo i publicada em 1970 en-
Souza, 197 1 ( 158 7): 302.
60 quanto Welcome ofTears, de Charles Wagley (também sobre os Tapirapé), semente em 1911.
Souza, 197 1 ( 1587): 332-3.

54 55
gerontocracia - e onde a guerra e a vinganc;a estavam ligadas a um adamente a figura do guerreiro caníbal as expensas de figuras femini-
"culto aos mortos" (de cunho bastante "africano"), exercitado princi- nas tao importantes quanto aquela.
palmen1e durante o ritual antropofágico, o qual, por sua vez, tinha a Através das regras matrimoniais e de descendencia percebe-se
fun~iio de restaurar a integridade espiritual do grupo, ameac;ada pela com clareza que seria um equívoco tratar os Tupinambá, ou qualquer
morte de seus membros pela mao dos inimigos. 63 outro povo da regiao, unicamente através de paradigmas desenvolvi-
Esta visao androcentrica da sociedade Tupinambá deixa pouco dos em outros contextos culturais, com diferentes formas
,, de validac;ao
espa90 para o reconhecimento das singulares formas de expressao matrimonial e de estruturas de parentesco, como a Africa ou a Mela-
social e de poder exercidas pelas mulheres, e está em franco desacordo nésia. O problema do servic;o da noiva é típico quanto a isso: visto que
com o que se sabe hoje acerca das sociedades Tupi, e outras socieda- as Américas do Sul e do Norte sao as regioes que apresentam a maior
des das terras baixas sul-americanas. Duran te as últimas décadas a freqüencia de sociedades com "brideservice" em todo o globo, é justo
etnología americanista vem apontando para a originalidade das estru- que se conceda a esta instituic;ao um lugar central no estudo das socie-
turas sociais da regiao, autorizando um tratamento do caso Tupinambá dades indígenas e dos contatos entre estas e os europeus.
que se apóie mais no reconhecimento das estruturas sociais centradas Ora, o servic;o da noiva, associado a uxorilocalidade, conforma
nas mullieres, na busca do ideal endogamico enquanto fuga a uxorilo- um tipo de estrutura social em que mullieres consangüíneas formam o
calidade e ao servic;o da noiva, e na nao exclusividade dos agrupamen- núcleo dos grupos residenciais, e que nao permite que alguns homens
tos patriJineares como unidade de análise. poderosos se utilizem de complexas estruturas de parentesco para criar
Está conclusao nao está baseada apenas no reconhecimento de lac;os de dependencia com os homens mais jovens, como ocorre, por
que a antropología pré-feminista está irremediavelmente marcada pelo exemplo, nas sociedades africanas que serviram de modelo para os
duplo viés masculino comentado no capítulo anterior. Existem funda- marxistas franceses, ou para a "gerontocracia" de Florestan Femandes.
das raz6es, oriundas da etnología comparada, para pensar que os Tu- Apesar da importancia dos sogros enquanto "<loadores" de mu-
pinambá se enquadram muito bem em um padrao sociológico quepo- lheres, estas possuem, como veremos mais tarde, um considerável
de ser observado em várias sociedades indígenas, de norte a sul do grau de autonomía pessoal e política neste tipo de sociedade, autono-
continente americano. mía que pode se transformar, por vezes, em um verdadeiro exercício
Este padrao sociológico está marcado pela sólida presenc;a do de. poder. A documentac;ao histórica abre, em diversos momentos,.
servi90 da noiv~ e da uxorilocalidade, o que está de acordo com o fato janelas para que possamos vislumbrar esferas de autonomía e poder
de que a maioria das sociedades americanas - notadamente as amazó- das mullieres Tupinambá, permitindo que possamos escapar da tradi-
nicas, as quais os Tupinambá filiam-se culturalmente - caracteriza-se cional imagem da "besta de carga", legada a nós tanto pela misoginia
pela predominancia da residencia sobre a descendencia, das relayües dos cronistas, quanto pelo androcentrismo de algumas reconstruc;oes
parentais laterais sobre as genealógicas, e da contigüidade espacial históricas.
sobre a continuidade temporal. 64 O reconhecimento <leste padrao re- Neste sentido, <leve-se lembrar que os Tupinambá, como todas
for9a a idéia de que o papel das mulheres foi amplamente subestimado as sociedades humanas, estavam inseridos em um contexto ecológico
pelas reconstruc;oes tradicionais da sociedade Tupinambá, geralmente que era crucial para a construc;ao dos espac;os sociais adscritos a ho-
presas em urna "camisa-de-forc;a" androcentrica, que valoriza demasi- mens e mulheres. Veremos no próximo capítulo que as mullieres cria-
ram urna série de práticas e técnicas sociais que nao apenas garantiam
63
Viveiros de Castro, 1986: 83-8. a sobrevivencia material da sociedade, como também ajudavam a ela-
64
Viveiros de Castro, 1993: 169.

56 57
borar identidades e distin<;6es comos homens, comos inimigos e com ,
a natureza.
l'I
CAPITULO 11

MULHERES EM UM MUNDO DE HOMENS

1. O Trabalho do Mu/her e o Sociedade Tupinambó

Os Tupinambá representavam um exemplo clássico de adapta-


<;ao a uro sistema ecológico extremamente complexo: a caá-ete, a flo-
resta tropical costeira do Brasil ou Mata Atlantica. Com seus solos
ácidos, ricos em ferro e alumínio tóxicos, e pobres em nutrientes, a
Mata Atlantica, assim como a floresta amazónica, vive de si mesma:
sao seus próprios organismos que, apodrecendo no solo e formando o
húmus, fomecem os nutrientes que sustentam sua exuberancia florísti-
ca. Sua vegeta9ao apresenta a maipr diversidade de espécies entre to-
1
dos os ambientes, bem como a maior biomassa vegetal conhecida, o
que acarreta várias conseqüencias importantes para os ocupantes ani-
mais - humanos incluídos - destas florestas.
Urna destas conseqüencias é a espantosa quantidade disponível
de recursos alimentares de origem vegetal: os relatos de cronistas e
viajantes sao unanimes em ressaltar a abundancia e variedade de espé-
cies vegetais coletadas e consumidas pelos Tupinambá, embora deplo-
rassem sua falta de interesse pela intensifica<;ao da produ<;ao de espé-
cies cultivadas, como a mandioca ou o milho. Os Tupinambá possuí-
am em alto grau o conhecimento técnico necessário para a explora<;ao
deste potencial florístico, o que acabou por se mostrar fundamental
para os primeiros europeus: o capuchinho frances Claude d' Abbeville

1
A título de compara9ao: em urna fl oresta da regiao centro-amazónica foram encontradas 600
espécies - representadas por pouquíssimos indivíduos - por hectare, o que é bem diferente do
padrao das áreas temperadas onde existem muitos ind ivíduos de poucas espécies: Moran,
1994: 31 1.
58 59
indígenas podem mesmo ter contribuído para a manuten9ao da diver-
afirmou que os Tupinambá do Maranhao utilizavam-se de pelo menos sidade natural, ainda que privilegiando algumas espécies.
2
56 espécies de árvores frutíferas e 9 tipos de raízes. William Balée estudou as capoeiras (florestas secundárias,
"
E importante notar, a propósito, que um dos primeiros exem- manejadas pelo homem) de dois povos Tupi: os cac;adores-coletores
plos de aproprias;ao, por parte dos europeus, das técnicas de sobrevi- Guató e os horticultores Kaapor, comparando-as com áreas próximas
vencia nativas <leve ter se dado em tomo do saber botanico acumulado de floresta primária. Seus resultados mostraram que aqueles povos
pelos índios. As técnicas de manipulac;ao dos Tupinambá parecem ter manipulam, e alteram, fortemente a paisagem natural, sem diminuir a
sido cruciais para a exploras;ao européia do pau-brasil, e é bem possí- biodiversidade, e mesmo aumentando-a: na área Guató, a floresta pri-
vel que eles tenham realizado um "manejo" (facilitando a expansao de mária possui 145 espécies de árvores, contra 125 da capoeira, enguan-
sementes e queimando plantas competidoras) das popula96es nativas to que, entre os Kaa~or, a floresta primária contém 123 espécies, con-
daquela árvore, de forma a atender a demanda européia pelo produto. tra 147 da capoeira! A pesquisa de Baleé mostrou que as sociedades
lsto nao seria nada extraordinário, pois sabemos que manejos seme- indígenas sao petfeitamente capazes de conciliar seus interesses eco-
lhantes foram realizados pelos coletores pré-históricos do pinhao da nómicos com a manuten9ao da biodiversidade, o que <leve significar
araucária, que surge em agrupamentos no interior de áreas já invadi- que a floresta "virgem" encontrada pelos europeus na costa brasileira
das.3 pode ter sido bem alterada por séculas de manejo por parte dos Tupi-
Existe um grande número de evidencias a respeito da capaci- nambá e dos povos que os antecederam na regiao.
dade que popula96es de cas;adores-coletores e cultivadores incipientes W arreo Dean apontou algumas evidencias que corroboram esta
possuem para alterar as condi96es naturais em seu beneficio: os nume- afirmac;ao: os primeiros europeus nao parecem ter encontrado dificul-
rosos bosques de carvalhos encontrados pelos primeiros espanhóis na dades intransponíveis para ingressar em urna floresta naturalmente
Califómia f oram urna cria9ao dos cas;adores-coletores, que através de fechada como é a Mata Atlantica: já Américo Vespúcio, em sua se-
incendios controlados facilitaram o crescimento dos carvalhos e a ope- gunda viagem ao Brasil (1503-4), penetrou várias léguas pelo interior,
ras;ao de coleta das balotas. Com o fim das populas;oes indígenas a o que era permitido pela existencia de um grande número de trilhas
paisagem é agora mais "natural" do que no século XVI, já que plantas abertas e mantidas pelos índios. Estas trilhas, os peabirus, foram mui-
antes desprezadas e combatidas podem agora se reproduzir livremente, to utilizadas posteriormente pelos mamelucos paulistas em suas pene-
formando florestas mais diversificadas. 4 tra96es a cac;a de escravos, e certamente demandavam um manejo que
7
O caso das terras haixas sul-americanas é ainda mais impres- necessariamente alterava as matas circundantes. Tudo isto comprova
sionante: os agricultores amazónicos pré-históricos e atuais domesti- a grande disponibilidade de recursos vegetais e também a grande ca-
caram, e nao apenas exploraram, mais de cem espécies nativas, o que pacidade desenvolvida pelos índios para a manipulas;ao sustentável
representa urna marca bem superior a de outros continentes. 5 Ao con- <lestes recursos.
trário, porém, das sociedades estatais, consumidoras de combustíveis Ao contrário do que ocorre com os recursos vegetais, a ca9a
fóssei s e destruidoras implacáveis da biodiversidade, as sociedades nao é um empreendimento muito produtivo nas florestas tropicais sul-

6
Balée, 1993: 389.
2 7 Dean, 1996: 53. Por outro lado, a grande planície costeira encontrada pelos europeus na
Abbeville, 1975 (1614): 167-80. Os Tupinambá coletavam mais de cem espécies de frutos
da fl oresta: Dean, 1996: 48. reoiao dos campos dos Goitacazes (RJ) desenvolveu florestas secundárias durante o século
3
Dean, 1996: 43. XVIII , o que pode indicar haver sido manejada anterionnente pelos ocupantes amerindios:
4 Dean, 1996: 52.
MarÚn, 1996.
5
Balée, 1993: 387.
61
60
americanas: a grande diversidade da fauna se exprime em indivíduos Estas conclusoes podem ser discutidas, e até rejeitadas: vere-
de pequeno porte e que preferem ocupar a copa das árvores, como mos, mais tarde, que os abortos e infanticídios podem ter causas bem
aves e'" primatas, o que leva a urna especializayao das populai oes hu- diferentes, mais ligadas a disputas entre esposas e maridos do que a
manas na pesca ribeirinha como fonte de proteínas animais. A bio- circunstancias ecológicas. Nao obstante, alguns fatos básicos, de alta
massa animal da Mata Atlantica era bastante reduzida: segundo W ar- relevancia para as relav5es de genero, se impoem: os alimentos de
rea Dean, um hectare de mata devia conter apenas 100 kg de todos os origem vegetal representavam a principal fonte de nutrientes para os
tipos de animais vertebrados nao voadores.9 Tupinambá, apesar do prestígio (mais ideológico do que económico)
A predominancia dos alimentos vegetais nas populay6es indí- que a atividade dos· cavadores pudesse ter. Tais caracteósticas fizeram
genas tropicais levou autores como Daniel Gross a imaginarem o défi- com que o trabalho das mulheres, principais responsáveis pelo cultivo
cit protéico como um fator básico no desenvolvimento cultural das e pela coleta, assumisse um papel determinante na subsistencia dos
terras baixas sul-americanas. Para este autor, o padrao populacional e Tupinambá, o que foi bem apontado por André Thevet:
cultural da regiao é francamente moldado pela ausencia de estoques
acessíveis de proteína animal, o que levaría a existencia dos seguintes "E diga-se , a ben1 da verdade, que as n1ulheres trabalham incom-
10 paravelmente n1ais que os ho mens, pois é a elas que caben1 as tare-
travos básicos :
fas de colher raízes, preparar a farinha e as bebidas, apanhar os
a) manutenyao de pequenos assentamentos que minimizam a frutos, culti var os can1pos, e tudo o mais que se refira a faina do-
pressao humana sobre as fontes de proteína animal. Alguns mecanis- n1éstica. Enquanto isso, apenas eventualmente vao os hon1ens pes-
mos culturais favoreceriam as pequenas concentra96es populacionais: car ou ca~ar alguma coisa nos matos, sendo que alguns se ocu pam
ausencia de lideranvas políticas fortes, disputas por mulheres, acusa- son1ente con1 a confec<;ao de arcos e flechas, deixando todo o res-
12
tante do trabalho as n1ulheres".
y6es de feiti9aria e dispersoes sazonais.
b) a guerra intermitente, a manuten9ao de áreas vazias entre os
assentamentos e os freqüentes deslocamentos provocados pela agricul- Esta opiniao deixa de levar em conta as necessidades de defesa
tura de coivara impedem a sobreposiyao de áreas de explorayao eco- do grupo, e o extenuante - embora intermitente - trabalho de limpeza e
nómica e permitem a existencia de "no man' s lands" onde os animais queima dos campos para o plantio, realizados pelos homens. Para Flo-
ca9ados podem se reproduzir. restan Femandes, "(... ) o hornero realizava a parte mais árdua do traba-
lho agrícola: a denubada e a queima". 13 Contudo, é importante notar
c) urna taxa baixa de crescimento populacional, provocada por que os homens tentavam ao máximo evitar a limpeza e queima de á-
tabus sexuais, pela prática dq aborto e do infanticídio, possibilita urna reas novas de floresta virgem, preferindo antes a queima da floresta
menor pressao sobre os recursos animais. A ocorrencia de abortos secundária, a capoeira. As áreas novas eram mais difíceis de serem
provocados e infanticídios está, aliás, bem atestada, tanto para os Tu- trabalhadas, e apresentavam o inconveniente adicional de estarem
pinambá quanto para os Tupi atuais. 11 mais distantes das aldeias, aumentando assim a área a ser defendida.
Aquí se revela um importante conflito de genero: as mullieres, respon-
sáveis pelo plantio e pelo controle de plantas indesejáveis, preferiam a
8
Campbe ll , 1983: 51.
9 12
Dean, 1996: 33. Thevet, 1978 ( 1556): 137. Jean de Léry, (1975 [ 1578]: 265) confi nna este ponto:"(... ) na
10
Gross, 1975. verdade as mulheres dos nossos Tupinambá (Toüoupinambaoults) trabalham sem compara\:ªº
11
Carta de José de Anchieta ao Padre Geral , de Sao Vicente, a 1 de Junho de 1560, in Anchie- mais do q ue os homens ( ... )".
13
ta, 1988: 159; Souza, 1971 ( 1587): 332; Thevet, 1978 ( 1556): 11 7. Cf. Laraia, 1972: 67. Femandes, 1989: 11 3.

62 63
floresta virgem, já que seu solo mais fértil e livre de ervas daninhas e desgaste de trabalhos como o da derrubada e queima, indica que "as
14 oportunidades de ócio asseguradas pela cultura, todavía, eram muito
insetos facilitava sobremaneira o trabalho.
desiguais. Nesse sentido, as vantagens cabiam aos homens". 17
Mesmo levando em canta o traballio da coivara, é inegável a
existencia de urna acentuada assimetria no que conceme a divisao A quantidade de trabalho despendido pelas mullieres constituí
sexual do traballio entre os Tupinambá. Conquanto apenas os homens um importante índice cultural e de genero. Os dados etnográficos con-
ca9assem (e muitas vezes levassem suas mulheres para carregar o pro- firmam que o trabalho feminino é predominante em sociedades que
du to da ca9a), a pesca era a principal fonte de proteínas animais, e praticam a agricultura tropical nao intensiva, como era o caso dos Tu-
nesta as mullieres tinham seu papel, mergulliando para apanhar os pinambá e outros horticultores, e tende a se tomar menos importante
peixes flechados pelos homens e para colher ostras, bem como esvazi- com a intensifica9ao da agricultura e o uso do arado. Kay Martin e
ando com cuias os fundos das canoas. Além disso, participavam ati- Barbara Voorhies aventaram a hipótese de que o declínio na quantida-
vamente - assim como os homens - da captura de formigas comestí- de de trabalho agrícola fcminino se deveria a passagem do cultivo de
.
veis: raíz es para o de cereais: as mullieres seriam for9adas a despender mais
tempo no processamento doméstico dos cereais, deixando o trabalho
" Ca~am-nas tambe1n por outra maneira, e sao as raparigas e as
no campo para os homens. 18
n1lilheres que, sentando-se na bocea da caverna, convidam-nas a Para Michael Burton e Douglas White, contudo, o dispendio de
sahi r por meio de un1a pequena cantoria, assim traduzida por n1eo trabalho por parte das mulheres é urna variável que apresenta urna
interprete. ' Vinde , minha an1iga, vinde ver a n1ulher formosa, ella
f arte correla9ao com o clima. Nas regioes tropicais úmidas, o pequen o
VO S dará avelans., Repetiam isto a 1nedida que iam sahindo, e que
iam sendo agarradas, tirando-se-lhes as azas e os pés. Quando e- número de meses secos faz com que o trabalho agrícola se distribua
ram duas as n1ulheres, cantava urna e depois outra, e as fom1igas por todo o ano, com um pequeno número de horas trabalhadas por día,
que entao sahiam, eram da cantora" . 15 o que permite as mullieres o acúmulo de várias atividades. Em outras
regioes - como nas áreas que deram origem as civiliza96es andinas e
Praticamente todas as outras atividades económicas eram reali- mesoamericanas - a maior quantidade de meses secos for9a a concen-
zadas exclusivamente pelas mullieres. Estas eram responsáveis por tra9ao do traballio em curtos períodos de tempo, com grande dispen-
todos os trabalhos agrícolas, do plantío ao preparo do alimento, pas- dio de energía, situa9ao apenas comparável entre os Tupinambá a ope-
sando pela colheita (figura 3). Também realizavam todos os passos ra9ao de corte e queima de novas áreas cultiváveis, e, nao por acaso,
necessários ao fabrico dos diferentes tipos de farinha e de bebidas tarefa exclusivamente masculina 19•
fermentadas, bem como os recipientes de barro ou cestaria utilizados. Darcy Ribeiro, referindo-se aos Kaapor, fez urna importante
Todos os servi9os domésticos, como manteros fogos acesos e o abas- observa9ao a respeito das assimetrias na divisao sexual do trabalho em
tecimento de água, bem como o transporte de material ou das crian9as urna sociedade Tupi:
16
- inclusive durante as guerras - eram atividades femininas. O próprio
Florestan Femandes, ao afirmar que o "ócio" dos índios, tao detestável "O fato de ter como atribui9ao urna tarefa mais intermitente (a ca-
aos albos europeus, era fisiologicamente vital em virtude do grande ~ª e a abertura de novas áreas de cultivo), embora mais cansativa,

14 17
Dean, 1996: 5 1. Fernandes, 1989: 1 12.
15 18
Evreux, 1874 ( 16 15): 156. Martin e Voorhíes, L975: 212-75.
16 19
Femandes, 1989: 11 4-6. Burton e White, 1984.

64 65
dá ao homen1 a vantagem de mais longas horas de la_zer. As ocu- gico a respeito do fabrico da ceramica pelas mullieres Tupinambá, e
pa~óes femininas, sendo mais rotineiras, de, torrar fannha, .sen1pre do papel da ceramica no conjunto de sua cultura·: as fontes indicam
,. nas mesmas quantidades, o que a faz vol ta~ a ro~a e a~ forno un1as com clareza que a ceramica tinha urna importancia comparável, por
duas vezes por semana; bem como o prov1mento de agua e de le- exemplo, a concedida pelas oleiras Asuriní as suas belas pe9as.
22
nha, quando 0 n1arido nao está; o cuidado com ª.casa, os filhos e
os xerimbabos, que é também diário, nao lhes de1~a tempo de fol- Infelizmente, a arqueología tem pouco a oferecer neste sentido:
ga. Assim, sobram poucas horas para o re~tabelec1n1ento das ener- além de controvérsias ~uase insolúveis a respeito das origens e difusao
gías desgastadas. Muitas de suas tarefas sao penosa;, co~o o pre- da cultura Tupinambá, 3 a disciplina é vítima do mesmo tipo de pro-
paro da farinha e 0 transporte, que de modo geral e reahzado por
blema apresentado pela antropologia durante longo tempo, isto é, urna
elas".2 º indisfar9ável tendencia ao androcentrismo. O ''male bias" na arqueo-
logía transparece em vários aspectos, mas dois pontos rapidamente
o artista anónimo que ilustrou o relato de Hans Staden captou saltam aos olhos: o primeiro deles é a suposi9ao, raras vezes criticada,
bem as diferen9as de genero no que tange a divisao do trabalho: e~­ de que os canones a respeito da divisao sexual do trabalho (ho-
quanto Staden tenta, sem sucesso, escapar do cativeiro em um nav10 mem:ca9a / mulher:coleta, por exemplo) pode.ro ser aplicados automa-
,
frances, sendo perseguido e observado pelos homens, as mulheres ticamente ao passado. E um fato que tais canones possuem sólida base
estao na praia, coletando mariscos (figura 6). etnográfica e, com efeito, representam a maioria das sociedades co-
É claro que o trabalho das mullieres nao tinha um carát~r .ex- nhecidas, mas também é verdadeiro que estes nao podem ser aplicados
clusivamente económico. Muito pelo contrário: algumas das ati:1~a­ indistintamente a todas as sociedades existentes boje, e muito menos a
des femininas possuíam características bem m~is amplas, .constttum- todas as sociedades existentes no passado.
do-se em importantes técnicas de expressao social, na med.1d.a em que O segundo ponto diz respeito a maior valoriza9ao das ativida-
tais atividades representavam um verdadeiro discurso femm1no .ª res- des masculinas: nao apenas os objetos supostamente masculinos sao
peito da sociedade e do mundo como um todo. vistos como tecnicamente mais importantes, como também o passado
Estas técnicas se articulavam no complexo ceramica 1 bebidas "é descrito em termos de lideran9a, poder, guerra, traca de mulheres,
fermentadas ¡ antropofagia: o jes~íta Pe~o Correia: .coro.entando os ' man-the-hunter', direitos de heran9a, controle sobre recursos, etc.",
rituais que acompanhavam o assassmat~ ~i~al. de pns1one1ros e a an- senda as mulheres tratadas como um elemento passivo. 24
tropofagia, nao deixou de pbservar. a dihg.enc1a das mulheres na co- Escapar a esta situa9ao é urna tarefa realmente complexa, pois
lheita do milho e no fabrico do cau1m, .bebida que era armaze~ada em enquanto o sexo - como instancia biológica - apresenta grande .visibi-
grandes "(... ) tinajas y bareños y ollas. Las tinajas para el vino ~ue lidade no registro arqueológico, podendo ser abordado através dos
hazen de los miJ. os las ollas grandes para cozer la carne, los barenos restos ósseos, o genero - a dimensao cultural do sexo - é de difícil a-
mui grandes para dar ' en ellos de comer a los conv1"dados ( .. ·)" ·21
cesso, notadamente quando a perspectiva masculina impede a análise
Neste livro me concentrarei fundamentalmente no ,papel cruci- ,. .
do testemunho arqueológico ero termos de genero.25 Nao é, contudo,
al exercido pelas mullieres no ritual antropofágico, mas e n~cessar10 impossível o acesso as rela~oes de genero no passado: estas podem ser
tratar um pouco da ceramica e das bebidas ferment~das. Sena extr:- estudadas através de aspectos nutricionais - a partir do estudo campa-
mamente interessante contar com um sólido conhec1m~nto arqueolo-
22
Sobre a cerarnica Asuri ní cf. Müller, 1993; Ribeiro, 1982.
23
20
Brochado, 1984; Dias, 1994-5; Fausto, 1992; Martin, 1996.
Ribeiro, 1996 b: 245. · · 24
Hodder, 1986: · 159.
21 'cana do Ir. Pero Correia para 0 p. Joao Nunes Barreto (Sao Vicente, 20/06/ lSS 1) in Le1.te, 25
Talalay, 1994: 61.
1954 (I): 227.
66 67
rativo dos restos ósseos de homens e mullieres - ou de objetos encon- "Enguanto produto marcado, prática e simbolicamente, pela femi-
trados junto a mulheres nos sepultamentos, bem como de sua presen9a ni lidade, as bebidas poderao nos gui ar na elucida9ao da natureza
na arte e no simbolismo em geral. Para Jan Hodder, mesmo a ausencia das rela96es de genero nas sociedades an1azónicas. Ali, a di visao
das mulheres em determinados campos pode ser um indício importan- simbólica do trabalho entre os generos póe as mulheres associadas
te para os estudos arqueológicos de genero: "(...) freqüentemente é a a horticultura e os homens aca9a e aguerra; mas o verdadeiro cor-
relato da atividade cinegética e guerreira mascul ina nao é a sin1-
ausencia das mullieres de certos domínios de representa~ao que pode ples produ9ao fen1inina dos alimentos vegetais, e sim a elabora9ao
26
apoiar hipóteses a respeito da reconstru9ao das rela9oes de genero". das bebidas fe rmentadas. A assoc ia9ao entre estas e a antropofagi-
o caso da ceramica é bastante sintomático quanto as dificulda- a, por fin1, é um tema relativamente difundido no rnundo amerín-
des epistemológicas provocadas pela perspectiva masculina na ar- dio: recordemos apenas a célebre cauinagem caníbal dos Tupi-
queologia. Percebidas, muitas vezes, como indicadores culturais pas- na1nbá quinhentistas". 28
sivos, ou como ferramentas para a constru9ao de séries cronológicas
relativas, as técnicas de produc;ao e decorac;ao de ceramicas poucas Stephen Thompson, referindo-se aos Cubeo da Amazonia Oci-
vezes sao relacionadas as vidas dos indivíduos que as produzem, ge- dental, aponta o fato de que a fabricac;ao da chicha requer um aumento
ralmente mulheres. Muitas vezes alijadas dos discursos sociais domi- considerável na quantidade de trabalho feminino, porém "entre muitos
nantes, as mulheres se valem da produc;ao e decoravao das ceramicas grupos este trabalho adicional é inteiramente voluntário", já que signi-
como um discurso "técnico", dirigido ao seu próprio grupo, ou como fica a possibilidade de ascensao a posic;oes de prestígio associadas a
27
urna negociavao doméstica de poder simbólico com os homens. proficiencia no cultivo da mandioca e no fabrico da bebida. 29
Como se <lava, em termos concretos, a participac;ao das Tupi-
Para o caso Tupinambá, e para as terras baixas sul-americanas nambá nestas atividades? Alguns aspectos sao facilmente detectados
em geral, este é um ponto da maior importancia. As ceramicas nao sao através da análise arqueológica: é sabido, por exemplo, que a tradic;ao
importantes apenas por canta de sua fabricavao e decora~ao, mas tam- ceramica Tupiguarani - da qual faz parte a ceramica Tupinambá - era .
bém pelos usos que llies sao dados, entre eles a fabricavao e consumo fabricada através da técnica do acordelamento (também chamada de
30
das bebidas fermentadas . Em toda a regiao estas bebidas - a chicha roletado ou anelado ) que consiste na preparac;ao de cilindros de ar-
amazónica ou o cauim Tupinambá - ocupam um lugar central na vida gila, os roletes, que sao colocados um em cima do outro; depois, urna
cerimonial, e sao produtos exclusivamente femininos: as mulheres, pressao dos dedos realiza a junc;ao entre cada linha, e o objeto é leva-
entre os Tupinambá e na maior parte dos casos atuais, fomecem otra- do ao cozimento. Hans Staden deixou-nos urna descri~ao bastante
ballio agrícola ou de coleta necessário, fabricam e decoramos recipi- precisa do processo:
entes apropriados ao preparo das bebidas e em última análise decidem
ou influenciam decisivamente sobre sua utilizavao. O complexo cera- "As mulheres fabricam as vasilhas de que carecen1 do seguinte
mica / bebida f ermentada, e a articulac;ao destas técnicas com o cani- modo: tomam barro, amassam-no e faze m entao as vasilhas que
balismo e com a exterioridade social, constituem urna porta de entrada querem ter. Depois as deixam secar durante algum tempo. Sabem
para a compreensao das relac;oes de genero nao apenas nas sociedades também pintá-las con1 gosto. Quando queren1 quein1ar as vasilhas,
atuais mas também nas do passado: debrw;am-nas sobre pedras, póem aí bastante cortir;a seca, que a-

~: Yiveiros de Castro, 1992 b: XVI-JI ; cf. também Viveiros de Castro, 1992 a: 53-5.
26 Thompson, 1977: 909.
Hodder, 1986: 160. 30
27
Hodder, 1986: 160. Prous, 1992: 91; cf. Ribeiro ( 1996 b: 443) para fotos da fabricayao da ceramica pelas mu-
lheres Kaapor, em que é usada a técnica do roletado.
68 69
teian1. Assin1 se queiman1 as vasilhas, de modo que incandecen1 co1110 se fabricavam as panelas de barro. Amassou, en1 primeiro
como ferro en1 brasa". 31 lugar, o barro e m forma de tubos e depois os enrolou em espiral
até atingir o formato desejado. O cozimento foi feíto colocando o
objeto no centro do fogo".33 .
. A olaria era urna atividade complexa, nos limites da tecnología
dos Tupinambá, o que exigía urna grande dose de conhecimento e
Darcy Ribeiro descreve o cozimento da ceramica Kaapor, mos-
experiencia. Nao por acaso, as mullieres mais velhas eram as princi-
trando claramente o papel diretor das mullieres mais velhas neste que
pais ceramistas:
é um dos mais complexos processos tecnológicos a disposi~ao dos
índios brasileiros (o que é válido também para os Tupinambá):
"As que sao muito velhas ten1 cuidado de fazeren1 vasilhas de bar-
ro a niao corr10 sao os potes en1 que fazen1 os vinhos, e fazen1 al-
guns tan1anhos que levam tanto quanto un1a pipa, en1 os quais e "Eram seis horas, a panela estava deitada no chao e rodeada de
em outros, menores, fervem os vinhos que beben1; fazen1 mais es- enorrnes troncos que ardiam; fazia um calor insuportável, que foi
tas velhas, panelas, púcaros e alguidares a seu uso, ero que cozen1 aumentando hora a hora, até o meio-dia. Entao, retiraran1 os tron-
a farinha, e outros em que a deitam e em que cornero, lavrados de cos, puxaram as brasas com a pá de farinha, rolaram a panela para
tintas de cores; a qual low;a cozern numa cova que fazen1 no chao; outro lugar, a fin1 de arrefecer um pouco seu calor, limpando-a
e poern-lhe a lenha por cin1a; e ten1 e creen1 estas índias que se co- con1 ramos verdes, e a puseran1 de pé para esmaltar. O panelao co-
zer esta low;a outra pessoa, que nao a que a fez, que há de arreben- zinhou durante seis horas sob fogo intenso; ao fim estava rubro e
tar no fogo". 32 translúcido, resplandecendo como urna brasa no n1eio daquele bra-
seiro. Son1ente assistimos ao cozirnento eu e a fanúlia da oleira,
que trabalhou durante aquetas seis horas carregando lenha e .avi -
Aos críticos do caráter etnográfico dos textos dos cronistas ca- vando o fogo. A ,oleira nao se afastou por um só momento de sua
beria explicar a notável semelhan9a entre estes relatos e a observac;ao obra. Tomou, Iá n1esmo, os chibés que o marido preparou. Ele car-
de um antropólogo como Roque Laraia, qQe estudou os Suruí, de Ron- regou lenha todo o tempo, aproximando-se do pote algun1as vezes
donia. Analisando as atividades quotidianas das mulheres, Laraia para ajeitar os troncos que quein1avam. A filha cooperou, cuidan-
do dos xerimbabos da velha, dando comida a seus papagaios, ara-
descreve o preparo da cerfunica e indica o papel do contato na desa- ras, n1utuns e cachorros e, também, ajudando a manter o fogo ben1
gregac;ao do modo de vida tradicional dos povos Tupi: vivo. Seu genro cortou lenha e amontoou junto do pote e as 'crian-
9as, netinhas da oleira, divertiram-se· todo o tempo, olhando de
longe a enorn1e fogueira. Ali pelas onze horas, o capitao velho le-
"Con1pete as n1ulheres
'
a fia9ao do algodao, a tecelagem da rede de
vou para junto do fogaréu urna boa quantidade de resina de jatobá
dorn1ir, das tipóias e adornos de bra9os e pernas , e principalmente
(juta.yaca), que a velha ton1ou e amoleceu em água fervente, fa-
a confec9ao da ceramica ( ... ) un1a das características bem marean-
zendo bolas que colocou na ponta de un1a vara de metro e meio.
te$ dos Tupi, embora a sua prática venha desaparecendo rapida-
Com isso foi que. esmaltou o pote, digo, o panelao, encostando a
n1ente com o contato, <liante da facilidade de obtern~~ao de vasilhas
resina na superficie ainda niuito quente. Os can1ucins sao comple-
de alumínio ou material plástico. Entre os Suruí, por exemplo, nao
tamente esn1altados por esse processo; as panelas grandes, con10 a
n1ais existe a preocupa9ao na confec9ao de tais objetos. Apenas a
que vi quein1ar, usadas para cozinhar mandiocá, sao esn1altadas na
un1a mulher, Murua, era atribuído o conhecin1ento desta técnica.
boca e na superficie interior". 34
Entre os Akuáwa-Asuriní acontece a 1nesn1a coisa. Entretanto, No-
roaí, urna jovem mulher, fez a nosso pedido un1a demonstra9ao de

33
31
St~den, 1974 (1557): 165. 34
Laraia, 1972: 110- l.
32 Ribeiro, 1996 b: 467-8.
Souza, 1971 (1587): 312.

70 71
Assim como a proficiencia guerreira e cinegética eram vitais É possível que aquilo que J ean de Léry considerou urna "im-
para o recqnhecimento social de um homem adulto, a competencia e o perfei9ao" nada mais fosse do que a presen9a de urna grande quanti-
conhecimento das técnicas ceramistas eram cruciais para a obten9ao dade de motivos e temas. Tais motivos, com muita probabilidade, se-
de um status social elevado por parte das mullieres. Claude Lévi- riam os mesmos que eram aplicados, pelas mullieres, na pintura corpo-
Strauss lembra que, entre os Jivaro, "para merecer um marido boro ral, como se dá entre os Asuriní:
ca9ador, urna mulher tero de saber fabricar urna louva de qualidade,
para cozinhar e servir a ca9a. Mullieres incapazes de fazer ceramica "A omamenta9ao do corpo com desenho geométrico, alén1 de ex-
seriam, realmente, criaturas malditas". 35 pressar um conteúdo relacionado a categori za9ao social e outro re-
lacionado ano9ao de máscara, isto é, de indivíduo biológico e per-
Ainda mais do que a olaria propriamente dita, as pinturas reali- sonagem social, possui out.ros sentidos pois o elemento gráfico é
zadas sobre a ceramica representavam urna importante esfera de ex- realizado en1 outras formas além do corpo e nao há doi s estilos pa-
pressao feminina, como bem notou Hans Staden, ao afirmar que elas ra diferentes suportes. Nao se pinta apenas o corpo, mas objetos
sabiam "pintá-las com gosto". 36 As artes decorativas, realizadas sobre diversos da cultura material. E em todos eles, o desenho único é
o suporte ceramico, abriam espa9os para exibiv6es de virtuosismo abstrato, decorativo, mas igualn1ente sin1bólico: isto é, traduz no-
9oes básicas do pensamento, cujo conteúdo se encontra na própria
técnico por parte das mullieres:
forma do desenho e na tendencia do estilo. Neste sentido, trato a
arte gráfica Asuriní con10 ' n1odelo reduzido ', isto é, forn1a sintéti-
"Estas mulheres, a partir de ce.rtas tinturas acinzentadas próprias ca da visao de n1undo, de conhecimento, onde a n1etáfora está na
para tal, fazem com pincéis um sem número de pequenos e gracio- própria estrutura fom1al , no estilo da arte visual".38
sos enfeites, como guilochis, las d' amours e outras coisas delica-
das no interior destas vasilhas de barro, principal mente naquelas
onde se guarda a farinha e as carnes. Assim é tudo servido com Tanto quanto o preparo da ceramica, a proficiencia no preparo
mui to asseio; diría mesmo que de forma mais decente do que a- do cauim era urna fonte potencial de prestígio para as mullieres. As
queles que para isto nao possuem senao vasi lhas de madeira. Ver- bebidas eram produzidas a partir de tudo o que pudesse ser fermenta-
dade é que há nisto un1a imperfeicyao das artistas An1ericanas: é do - especialmente da mandioca, doce ou amarga., do milho e de frutas
que faze ndo com seus pincéis o que lhes veio na fantasía, se vós
pedís a elas, logo após, que refa9an1 a n1esn1a coisa, da n1esn1a
como o caju e a mangaba - e constituíam um domínio totalmente fe-
maneira, porque elas nao ten1 nenhum modelo, figura ou desenho mi.riino (figura 4):
que se fixe en1 seµs miolos, elas nao saberao reproduzir a prin1eira
obra: desta n1aneira v~s nunca vereis da mesn1a obra um segundo
"As n1ulheres fazen1 as bebidas. To man1 raízes de n1andioca e co-
exemplar fei to da nlesrna n1aneira" .37
zinhan1 grandes paneladas cheias. U ma vez cozida, retiram a man-
dioca da panela, passam-na em outras, ou em vasilhas, e deixam-
35 na esfriar um pouco. Entao se assentam as meninas perto, mas-
Lévi-Strauss, 1986 b: 37. .
36
Staden, 1974 (1557): 165. can1-na, colocando-a numa vasilha especial. Quando todas as raí-
37
Léry, 1975 (1578): 277-8. Guilochis significa "desenho formado de linhas e tra9os que se zes cozidas estao n1astigadas, poem de novo a massa na panela,
cruzam com simetría" (Léry, 1975 (1578): 408). Na (infelizmente) única trad u9ao da obra de deitam-lhe água, n1i sturan1 an1bas, e aquecem de novo. Ten1 para
Léry disponível em portugues, de Sérgio Milliet (trabalhei com a edi9ao de 1972, Sao Paulo, tal vasilhas adequadas, que enterran1 a meio no chao, e que en1-
Martins Editora/Edusp), las d' amours é traduzido por " lavores eróticos'', o que é totalmente pregan1 como aquí os toneis para vi nho e cerveja. Despejan1 den-
equivocado: como afirm a André Prous, las d' amours significa, no frances quinhentista, os
tro a massa e fecham bem as vasilhas. Isto fern1enta por si e fica
"desenhos geométricos do tipo ' gregas' , justamente o padrao observado em todas as cerami-
cas arqueo}ógicas pintadas" (Prous, 1992: 55 ). Correndo o risco de entediar o leitor, é de se
notar que Léry viu, nas ceramicas dos Tupinambá, as mesmíssimas fi guras que encontramos
38
no registro arqueológico. Müller, 1993: 230.

72 73
forte. Deixam-na assin1 repousar dois dias. Beben1-na ent.ao e com As bebidas fermentadas tinham tamanha importancia na cultu-
ela se e~briagam. É grossa e ten1 bom gosto".39
ra Tupinambá que seu consumo, íntimamente articulado a guerra e a
antropofagia, surgiu como um dos principais obstáculos, senao o mai-
Se os Araweté forem um bom modelo para a compreensao dos or, para a a<;ao dos jesuítas:
Tupinambá, e tuda indica que sao, é talvez necessário ver o processo
de fermen ta<;ao do cauim como o correlato feminino da própria repro- "Y lo que más los tiene ciegos, es e l in9assiable appetitu que tie-
du~ao biológica, entendida - dentro da teoría da concep~ao entre os nen1 de venguan9a, en lo qual consiste su honra, y con esto el mu-
Tupinambá - como urna prerrogativa masculina: cho vino que beven, hecho de raízes o de fruitas, que todo a de
seer n1asticado por sus hijas y otras mo9as, que de solas ellas en
quanto son vírgines usao pera este officio. Ni sé otra mejor tra9a
"Os Araweté jamais tra9aram paralelos explícitos entre a fern1en- de infierno que ver una multitud dellos quando beven, porque pera
ta9ao do cauim e a gesta9ao - deixemos isso claro. Mas há urna sé- esso combidan de nlui lexos; y esto principalmente quando tienem
rie de associa96es indiretas e con1plexas entre estes processos e de matar o con1er alguna carne hun1ana, que ellos traen de mo-
seus elementos. En1 primeiro lugar, tanto a fermenta9ao quanto a quen".4 t
concep9ao-gesta9ao se fazem através da mulher, e sao processos
de ' transforma9ao' (heriwií) de urna matéria-prima: o semen mas-
culi no, substancia da criarn;a, é ' transformado' no útero materno· 0
. '
José de Anchieta confirma nao apenas o lugar central das bebi-
mtlho cozido com água se transforn1a em cauim na boca da mulher das fermentadas como o nexo existente entre o cauim e outros elemen-
(e nas panelas). Do mesmo n1odo, urna menstruada nao pode mas-
tos básicos da cultura Tupinambá, como a vingan9a e a guerra:
tigar o cauim, e urn aborto 'aborta' o mingau. ·Mas há invers6es e
deslocamentos entre os processos. No caso da concep9ao, o ho-
mem é a figura don1inante, seu semen é a substancia exclusiva da "Estes nossos catecúmenos, de que nos ocupamos, parecen1 apar-
crian9a - a mulher é um hiro, um saco: urna panela ... No caso do tar-se un1 pouco dos seus antigos costun1es, e já raras vezes se ou-
caui~1 , o. homem é claramente um auxiliar da n1ulher, seja porque vem os gritos desentoados que costun1an1 fazer nas bebedeiras. Es-
o n11lho é um produto feminino, seja porque a saliva ' fecundante ' te é o seu maior nlal , donde lhes vem todos os outros. De facto,
(sabem o s Araweté) é da .n1ulher - e o hon1em zeJa pela fermenta- quando estao n1ais bebados, renova-se a memória dos male s pas-
9ao nas panelas. Por outro lado, se na concep9ao o semen forma a sados, e con1e9ando a vangloriar-se deles logo arden1 no desejo de
crian9a, na fermenta9ao o que se transforn1a é un1 equivalente do matar inin1igos e na fome de carne hun1ana. Mas agora, como di-
semen. O cauim é como o semen: os pais de crian9a pequena nao minui um pouco a paixao desenfreada das bebidas, diminuen1 tam-
podem ter rela96es sexuais nen1 tomar cauim alcoólico: a crian9a 42
bém necessarian1ente as outras nefandas ignominias (... )".
se e~cheria com o sen1en paterno (mesmo que tenha ido para a
bamg~ de outra n1ulher que sua mae), e como cauim tomado pe-
los pa1s (n1as as n1ulheres quase nao beben1), se engasgaría e mor- Escrevendo em 161 O, outro jesuíta relacionava as cauinagens
reria 'afogada' com estes líquidos. Já se ve urna outra associa9ao ao processo de "tomada de nomes" sobre os inimigos moitos:
inversa semen/cauim: o semen vai dos homens para as mulheres,
n1as o cauim vai das mulheres - que o n1astigam, que dele quase
nao bebem - para os homens. ( ... ) O esperma, disse-me un1a n1u- "( ... ) tomando novos non1es, conforn1e aos contrários que matam,
lher, é 'azedo con10 o cauim"'. 40 dos quais chegam alguns a ter cento e mai s apel idos, e en1 os rela-

41
Carta do P. Luís da Gra ao P. Inác io de Loyola, Roma (Bahía, 27112/1554), in Leite, 1954
39 (II): 132-3.
Staden, 1974 (1557): 165-6. 42
Carta do Ir. José de Anchieta ao P. Inácio de Loyola, Roma (Sao Vicente, fim de mar~o de
40
Viveiros de Castro, 1986: 341-2. 155.5), in Leite, 1954 (11): 194.

74 75
tar sao mui miudos, porque em todos os vinhos, que é a sun1a festa do casamento entre os Tupinambá representa um passo crucial para a
deste gentio, assi recontam o modo com que os tais nomes alcan- compreensao do lugar social das mulheres, e também para entender as
9aram, como se aquela fora a primeira vez que a tal fa9an ha acon- relaC(6es que se estabeleceram entre os índios e os europeus, após o
'
tecera; e daqui vem nao haver crian9a que nao saiba os nomes que
cada um alcan9ou, matando os inimigos, e isto é o que cantam e
con tato.
conta m. Contudo os cavaleiros nunca fazem men9ao dos seus no-
mes, senao quando há festa de vinhos, na qual só se ouve a prática
da guerra, como mataram, como entraram na cerca dos inimigos,
como !he quebraram as cabe9as. Assim que os vi nhos sao os me- 2. Maridos e Esposos: As Bases do Poder entre os Tupinombá
mori ais e crónicas de suas fa9anhas".43

O próprio momento em que as guerras eram realizadas seguia


de perta o ritmo da produC(ao das bebidas: Se, por um lado, a mulher possuía várias instancias em que o
seu trabalho era altamente valorizado em termos propriamente simbó-
licos, é também verdadeiro que a dimensao economica do trabalbo
"Tínhamos que nos acautelar especialmente contra os tupinan1bás
duas vezes por ano, épocas em que, com violencia, penetram na feminino revestía-se de um caráter essencial, senda também essencial
regiao dos tupiniq uins. Uma destas épocas é em novembro, quan- para os homens o acesso a esta capacidade economica das mulheres
do amadurece o milho, que chamam abatí, e como qua! preparam através do casamento, situaC(ao que é extremamente comum nas "bri-
urna bebida chamada cauin1. Empregam tambem aí a raiz de man- deservice societies". Nem sempre, contudo, esta necessidade transpa-
dioca, de que misturam um pouco. Logo que voltam de sua excur-
sao guerreira com abatí n1aduro, preparam a bebida e devoram
rece nos discursos sociais dominantes: como no caso dos estudos de
nesta ocasiao os seus inin1igos, se conseguiran1 aprisionar alguns. Florestan Femandes sobre os Tupinambá, em que a proeza guerreira
Já un1 ano inteiro antes esperam com alegria o te mpo do abatí". 44 assume foros de verdadeiro leitmotiv social, os etnógrafos destas soci-
edades costumam apresentar o status masculino como urna funvao da
proficiencia guerreira ou cinegética; entretanto, como afirma Jane Col-
Percebemos, a partir desta descriC(ao das atividades femininas,
lier referindo-se as sociedades das Grandes Planícies, "minha anáJise
que havia urna íntima rela9ao entre o trabalho das mulheres e as cir-
do casamento e parentesco revela que, tanto dentro quanto entre soci-
cunstancias ecológicas da sociedade Tupinambá. Por outro lado, fica
edades, o poder de um homem é urna funC(aO de seus direitos de apro-
também patente que o trabalho feminino era central para a reproduC(ao
social, seja no campo nutricional, simbólico ou guerreiro. É o momen- priaC(ao dos produtos das mulheres". 45
to, agora, de observar como as formas socialmente reconhecidas de No caso Tupinambá a importancia do casamento é demonstra-
casamento, e os la9os de afinidade decorrentes do matrimonio, repre- da pelo fato de que este era parte integrante do processo de transfor-
sentavam a principal instancia de economia política para os Tupinam- maC(ao do jovem em adulto, qual seja o assassinato ritual do inimigo.
bá. A absoluta necessidade do casamento para os homens, necessidade Um homem só se tomava um adulto socialmente reconhecido após
que se refletia diretamente na construvao das hierarquías masculinas, matar um inimigo e tomar urna esposa, e era comum que um pai, um
fazia com que os jogos políticos girassem em tomo das redes matri- irmao mais velho ou um cunhado em regime de servivo da noiva con-
moniais e de afinidade. Ent~nder os princípios da economia política cedesse um inimigo aprisionado a um jovem para que este o matasse
cerimonialmente em terreiro, tomasse um novo nome e pudessc se
43
Monteiró, 1949 ( 161 O): 409-1 O.
44 45
Staden, 197 4 (1 557): 77. Collier, 1988: xi.

76 77
tomar um mendar-amo, um homem casado. 46 Assim, a proeza guerrei- afirma Eduardo Viveiros de Castro sobre os Araweté: "a unidade do'-
ra aparece como um meio, e nao exclusivo, para o acesso a condic;ao méstico-conjugal prevalece integralmente sobre qualquer segmenta9ao
global entre as comunidades masculina e fem~ina da ald~ia". ...Guar-
49
que realm~nte fazia de um hornero um adulto socialmente reconheci-
do: o casamento. dadas as diferen9as de escala entre os Arawete e os Tupmamba, o e-
U ma confinna9ao disso é dada por Gabriel Soares de Souza: xame das fontes mostra um padrao semelhante nas rela9oes entre os
"
gen eros. 50
A importancia da dimensao política e económica do casamento
"Acon tece muitas vezes cativar um tupinambá a um contrário na
guerra, onde o nao quis matar para o trazer cativo para a sua aldei- para os homens transparece claramente em dois a~pecto~, intim~en:e
a, onde o faz engordar co m as cerimonias já declaradas para o dei- ligados, do processo matrimonial entre os Tupmamba: a va11~a9ao
xar matar a seu filho quando é mo90 e nao ten1 idade para ir a através do servi90 da noiva e a poliginia. Embora a fonna preferida de
guerra, o qua! mata em terreiro, como fica dito, com as mesmas casamento fosse o avuncular, entre um homem e a filha de sua i~a,
cerin16nias; n1as atam as nlaos aoque há de padecer, para com isso
nem sempre era possível para um jove~ conseguir um~ companheira
o filho ton1ar nome novo e ficar armado cavaleiro, e n1ui estin1ado
de todos". 47 por este meio, o que geralmente o obngava a competir c?r:1 outros
pelo direito de considerar urna mulher sua esposa, sua temerico.
Nas "brideservice societies" onde o casamento é cerimonial-
Como mostra Jane Collier, o casamento nas "brideservice so-
mente pouco elaborado e pode facilmente ser anulado por ambas as
cieties" faz com que um homem - que quando solteiro depende da boa
partes, um homem <leve estar sempre preparado .para defender seus
vontade de sua mae e irmas e é visto como um rival potencial pelos
direitos sobre urna mulher, seja através dos serv19os que presta aos
homens casados - se tome um ator político relevante. O acesso, pro-
porcionado pelo casamento, privilegiado a produ9ao feminina permite parentes desta seja pela demonstra9ao pública de que está dispos~o- a
defender tais direitos através de urna a9ao violenta. Tal compett9ao
que um hornero inicie relac;oes políticas mostrando-se generoso e ofe-
iniciava-se para os rapazes Tupinambá antes que .qualquer 1~90 fosse
recendo hospitalidade a outros homens casados, e mesmo solteiros,
estabelecido, e prosseguia mesmo após o rec?nhec1mento social de um
neste último caso estabelecendo-se um la90 de dependencia que pode
casamento. Entre os Kaapor o marido vigia a esposa até mesm~ ~o
ser muito importante para um homem com ambi9ao de prestígio. A
banho, já que os igarapés sao locais privilegiados para o adulterio:
questao fundamental é a da paridade com os outros homens: "um ho-
"uma mulher que vai banhar-se sozinha pode ser assaltada sexualmen-
mem que tem urna esposa é verdadeiramente um igual de outros ho- t ,,51
mens casados, já que um homem com esposas nunca precisa pedir te por qua1quer homem . .
nada a ninguém". 48 A descri~ao de Gabriel Soares de Souza é bem.clara a respe1t?
dos esfor9os necessários para que um jovem consegu1sse sua temeri-
A ausencia, na maioria dos povos Tupi, de grandes divisoes
co:
sociais e cerimoniais baseadas no sexo - como é o caso das casas-dos-
homens típicas de outros grupos como os Je - toma ainda mais impor- .
"( ... ) porque sao as filhas n1ui reqüestadas dos ~anceAbos que ~s
tante o casamento e suas implica96es económicas e políticas; como namoram; os quai s servem os pais das damas dots e tres anos pn-
meiro que lhas deem por mulheres; e nao as dao senao aos que
46
Fazer presente de um cativo era " um favor nao pequeno aos mancebos, quando escolhidos
para tal fim , pois é urna especie de accesso de grandeza para ser um día Principal" (Evreux,
1874 [161 5]: 233). 49
Yiveiros de Castro, 1986: 162.
47
48
Souza, 1971 (1 587): 328; cf. também Femandes, 1970: 232-3; 1989: 192.
Collier, 1988: 22.
5
°
51
Femandes, 1989: 184.
Laraia, 1972: 93.

78 79
melhor os servem, a quem os namoradores fazen1 a roi;a, e vao suas proezas guerreiras, e tanto maior será o número de mulheres que
pescar e ca~ar para os sogros que desejan1 de ter, e lhe trazen1 a
"' lenha do mato; e con10 os sogros Jhes entregam as damas, eles se
poderá ter a seu servi90. Aos menos valentes, menor número". 53 E-
vao agasalhar no Jani;o dos sogros com as mulheres, e apartan1-se xemplos como o de Cunhambebe (cujo grupo de esposas era constitu-
dos pais, rnaes e irmaos, e n1ais parentela com que antes estavam ído por oito mulheres no grupo local e cinco em outras aldeias) e A-
( ... )" .52 menduua (que tinha trinta e quatro esposas, muitas das quais em ou-
tras localidades) esclarecem o papel exercido pela poliginia no estabe-
,,
E de se notar que existe pouco espa90 neste tipo de organiza- lecimento de la9os políticos entre os principais, demonstrando outros-
9ao social para o estabelecimento de la9os de dependencia entre indi- sim a superioridade da maloca - isto é, do grupo residencial do chefe
víduos no tocante a obten9ao de esposas. Como foi dito anteriormente político - sobre o grupo local enquanto unidade sociológica de análi-
(cf. p. 40) os indivíduos nas "brideservice societies" afirmam ter obti- se. 54
do suas esposas por seus próprios meios e por sua habilidade na guerra Por outro lado a poliginia pode ser benéfica para as ambi96es
e na ca9a (habilidade demonstrada pelos presentes fomecidos aos pa- políticas de um líder mesmo quando este já está bastante velho e nao
rentes da noiva ou esposa). Nao obstante, é possível imaginar que a toma novas esposas: além de nao ser mais visto como um competidor
existencia de situa96es em que o noivo recebia o primeiro prisioneiro potencial por mulheres - o que aumenta sobremaneira sua capacidade
de seus consangüíneos ou afins - tomando-se assim um candidato ao em dirimir conflitos e sua influencia geral sobre o grupo - o veterano
casamento - significasse urna porta aberta para o estabelecimento de pode obter parcelas de poder nao apenas cedendo suas filhas como
la9os de dependencia mais típicos das "bridewealth societies", onde as também mulheres "excedentes" de seu grupo de esposas; ero outras
oportunidades de casamento sao claramente outorgadas pelos "velhos" palavras: "em sociedades onde todos os conflitos entre homens pare-
do grupo. cem ser sobre mulheres, os homens velhos emergem como líderes
De todo modo, e apesar desta fluidez sociológica e cerimonial, naturais".55
é no processo de valida9ao matrimonial que sao negociadas e estabe- Seria erróneo, contudo, conceder a institui9ao da poliginia
lecidas as hierarquías masculinas: como vimos no capítulo anterior, a qualquer caráter de "recompensa" socialmente dada a chefia: na ver-
economia política do casamento entre os Tupinambá consistía basica- dade ela,, aparece muito mais como urna imposirao da condi9ao de
mente nas tentativas dos chefes de grupos domésticos em atrair genros chefe. E necessário, para se compreender este ponto, observar o que
no regime uxorilocal, e a partir do status laboriosamente alcan9ado ocorre em um grupo doméstico polígino em um ponto máximo de
como doador de esposas - condi9ao que é a verdadeira fonte de poder crescimento. Alcida Ramos, estudando as linhagens Sanumá (urna
nas "brideservice societies" - ser reconhecido como um grande líder, fra9ao do conjunto Yanomami), mostrou que estas apresentam um
um principal, mantendo seus filhos homens junto de si e forqiando processo evolutivo extremamente fluido, que passa por urna "indife-
urna unidade guerreira e política marcada por um alto grau de coesao. rencia9ao" inicial dos indivíduos até um ponto de máxima concentra-
Neste contexto a poliginia aparece, a primeira vista, como um 9ao em tomo de um centro comum - um chefe de prestígio, por exem-
meio privilegiado para a expressao e manuten9ao do status de líder plo - seguido de urna posterior dispersao (provocada, por exemplo, por
político e guerreiro, especialmente na medida em que possibilita a disputas sobre rhulheres ou entre mullieres), processo que pode ser
existencia de la9os de alian9a com outras malocas e mesmo outros
grupos locais: "quanto mais se notabiliza o hom~m por seu heroísmo e 53
Thevet, 1978 (1556): 137.
54
Sobre a maloca cf. Fernandes, l 989: 64 e Fausto, 1992: 389; sobre Cunhambebe e Arnen-
52 duua cf. Fernandes, 1989: 202.
Souza, 197 l (1587): 304-5. 55
Collier, 1988: 39.

80 81
interrompido ou mesmo invertido a qual~uer momento do ciclo, de Ao realizar seu proselitismo religioso junto a um principal do
acordo com as circunstancias particulares. 5
l'I
Maranhao, Yves d 'Evreux insistiu para que este abandonasse suas
As malocas Tupinambá, certamente, funcionavam segundo muitas mulheres, contentando-se coro apenas urna. Ao ouvir isso, o
urna lógica semelhante. Estas grandes casas - coro um ou mais chefes principal negou que tivesse muitas esposas por prazer, mas antes por
políginos, seus ftlhos homens solteiros ou recentemente casados e os necessidade: "replicou-me, que em quanto a pluralidade de mullieres
maridos de suas filhas vivendo em regime uxorilocal - constituíam-se foi coisa, que nunca approvou, e que achava de razao um homem ter
em verdadeiras "máquinas" de produzir prisioneiros, o primum mobile urna mulher só, mas que em beneficio de sua casa necessitava de mui-
tas". 58
das atividades guerreiras dos Tupinambá. Sua existencia, contudo,
ligava-se diretamente a capacidade de seus principais em realizar os Kay Martin e Barbara Voorhies - comentando o fato de que o
ritos e festas associados ao canibalismo, capacidade que, necessaria- acúmulo de esposas poderia representar um problema para o homem
mente, variava de acorde com o tempo, e que, mais cedo ou mais tar- na medida em que elas briguem entre si ou mesmo se unam contra ele
de, acabava por desaparecer. - fazem a pergunta:
Ora, a cerimonia de morte em terreiro e o posterior repasto ca- 1
nibal exigia urna enom1e quantidade de trabalho feminino, nao apenas ·~ "O que motiva os homens a criarem tais ' vespeiros' don1ésticos?
na prepara~ao dos alimentos para os membros dos vários grupos locais Duas vantagens principais sao visadas por maridos políginos, am-
bas re·lacionadas a acumula9ao de recursos. Nas sociedades em
que participavam das festividades mas também, e principalmente, na ·( que é preferida, a poliginia é vista con10 o principal caminho para
fabrica~ao das vasilhas ceramicas e das bebidas fermentadas, sendo
oportuno recordar que algum tempo depois da morte em terreiro o
matador (que nao comia da carne do inimigo morto) tomava novo
t

a riqueza , prestigio e status. A vantagem econ6mica já foi indica-
da:. quanto nlaior o número de mulheres que um homem adquirir,
n1a1or será a terra que será alocada, explorada e controlada por ele.
nome, ocasiao em que se faziam novas cerimonias e cauinagens. Co- A expansao de seu grupo doméstico con1 n1ulheres adicionais in-
crementa nao apenas a quantidade de trabalho con10 a produtivi-
mo é evidente, tal situa~ao privilegiava a ocorrencia da poliginia en-
dade individual. U ma segunda vantagem da polig inia para os ho-
quanto método de aumento da produtividade do trabalho feminino, men s repousa na capacidade reprodutiva das mulheres. A riqueza
verdadeira base material do complexo guerra-antropofagia. também pode ser medida pelo tan1anho da progenie, isto é, pelo
crescin1ento da linhagem ou segmento de linhagem do hon1en1. Já
Claude d' Abbeville confirma que a poliginia era urna condü;tio
que as crian9as sao apoiadas pelos esfor9os econ6micos de suas
para o exercício da chefia, e nao urna recompensa devida a esta: próprias maes, e já que elas também se tornarao men1bros produti-
vos do grupo do méstico, a progenie múltipla aparece mais con10
"A pluralidade de mulheres lhes é permitida; podem ter quantas u~a recompensa do que como um problema para os maridos po lí-
desejem. As mulheres, porén1, nao ten1 o mesmo privilégio; devem . gmos. Quanto mais crian9as sao produzidas pelas ca-esposas, nlaís
contentar-se com un1 só marido e nao poden1, tan1pouco, abando- ben1 sucedido será o grupo don1éstico e mais seguro estará o n1ari-
59
ná-lo para se entregaren1 a outro homem. Entretanto, embora a po- do na velhice".
1igamia seja permitida aos homens, satisfazem-se eles, en1 sua
n1aioria, com urna só mulher. Sómente a fim de ganhar certo pres-
tígio toman1 muitas mulheres; sao nesse caso julgados grandes
hon1ens e se toman1 os principais das aldeias". 57
58
Evreux, 1874 (1615): 221.
56
59
Ramos, 1990: 115-47. Martin e Voorh ie_s, .1 975: 242-3; Florestan Femandes (1989: 204) confüma que a poliginia
57
Abbeville, 1975 (1614): 222. aurnentava a produ t1v1dade do trabalho fem inino.

82 83
Carlos Fausto também ve a poliginia como urna imposi9ao da
chefia, ao afirmar que: "a poligamia e a virilocalidade nao eram privi- res, para os religiosos tratava-se de urna dimensao de capital impor-
légios da chtfia, mas antes elementos do processo político de constitu- tancia, posto que de difícil compreensao.
i9ao de um chefe: ter muitas mullieres, e nao se sujeitar ao 'servi90 da Para estes últimos, os Tupinambá representavam um enigma e
noiva' devido ao sogro, é para quem pode (e pode quem é temido e um desafio. Aparentemente, os índios pareciam destinados a urna
respeitado) ". 60 conversao rápida, por sua "inocencia" e aparente falta de qualquer
A op9ao, feita nesta se9ao, por urna análise mais económica do forma de religiao: Pero Vaz de Caminha já afirmava que"( ...) segundo
casamento Tupinambá, nao significa que se esteja propondo urna ex- que a mim e a todos pareceu, esta gente nao lhes falece outra coisa
plica9ao puramente "material" para institui96es como a poliginia; de para ser toda crista, senao entender-nos, porque assim tomavam aquilo
1
que nos viam fazer, como nós mesmos, por onde nos pareceu a todos
J~
todo modo parece bem evidente, a partir do caso Tupinambá, a perti-
nencia da observa9ao de Alain Marie (cf. p. 38): de fato "a rela9ao de que nenhuma idolatria, nem adora9ao tem". 61
explora9ao, em todo o sentido da palavra, se exercia entre as mulhe- Contudo, rapidamente se viu que a tarefa seria bem mais com-
res, por um lado, e os homens, por outro". Resta, contudo, saber se e plexa e que iria exigir dos europeus, especialmente dos jesuítas, um
até que ponto a poliginia era benéfica para as próprias mulheres: nos- enorme esfor~o no sentido de realizar urna tradu~ao da metafísica in-
sa sensibilidade "ocidental" dificilmente percebe qualquer vantagem dígena para seus próprios termos e, ao mesmo tempo e d.e forma bem
para as mullieres em urna rela9ao <leste tipo, mas o fato é que as Tupi- mais determinada, tomar o catolicismo algo compreensível para os
nambá, bem como as mamelucas e mesmo as européias após o conta- índios. O esfor~o "interpretativo" dos jesuítas será estudado com mai-
to, nao apenas pennitiam como podiam participar ativamente na ob- or profundidade no capítulo IV; por hora gostaria de lan~ar o foco
ten9ao de novas mulheres, esposas ou concubinas, por parte de seus sobre dois aspectos diretamente ligados as quest6es de genero: o papel
maridos. A perspectiva feminina do casamento e da poliginia será de- das mulheres nos mitos de origem e sua posi~ao na metafísica da pre-
senvolvida no próximo capítulo; é o momento agora de se abrir urna da~ao/produ~ao, tal como entrevisto pelo estudo dos povos amazóni-
janela para o papel feminino na metafísica Tupinambá. cos contemporaneos.
,,
E um tema recorrente nas mitologías sul-americanas a idéia de
que .as mulheres, em um passado distante, tenham cometido rugum
"erro" perante os deuses ou tenham se mostrado incompetentes em
3. As Mulheres, os Mesmos e os Outros atividades eminentemente masculinas como a ca9a ou o uso de objetos
sagrados, daí provocando o afastamento entre os deuses e a humani-
dade ou perdendo urna anterior posi9ao de superioridade perante os

membros masculinos da sociedade. Os Mundurukú, por exemplo, con-
Se há um tema de intricada abordagem com rela9ao aos Tupi-
tam que foram as mullieres que descobriram as flautas sagradas
nambá este é, sem dúvida, o de sua visao de mundo e o das rela96es
karokiJ, ganhando desta forma ascendencia sobre os homens a ponto
desta com seus mecanismos de classifica9ao social. Enquanto que,
de fazer com que estes carregassem lenha e água e fizessem o beijú,
para os cronistas e viajantes leigos, este era um assunto secundário
tarefas atualmente femininas. Após conseguir fazer com que as mulhe-
perante quest6es como a guerra, a antropofagia ou as rela96es familia-

61
. Carta de Pero Vaz de Cam inha (Porto Seguro, 1° de maio de 1500), in Ribeiro e Moreira
60 Neto, 1992: 90; sobre a "ausencia" de religiao entre os Tupinambá cf. Clastres, 1978: 14-22 e
Fausto, 1992: 390.
Vi veiros de Castro, 1992 a.
84
85
res somente tocassem as flautas em casa e nao na floresta, os homens
_.t..,. o poder quando o possuem. Ela (a mullier) representa o caos e o des-
1 govemo (... )". 65
sentiram-se desgostosos com o fato de que as mulheres passassem
todo o tempo tocando e descurassem do servi90 doméstico, além de
oferecer homenagens as flautas na fonna da bebida preparada a partir
r
...,,.
1
Para os Tupinambá - e para os Tupi em geral - nao existe qual-
quer registro sobre urna superioridade ancestral das mulheres sobre os
da mandioca doce - notar o caráter feminino da bebida - e nao da car- homens; aliás os cronistas e viajantes coloniais - especialmente André
ne, produto masculino. Coma amea9a de nao mais ca~ar para as mu- Thevet, a quem devemos a maior quantidade de informa~oes a respei-
llieres, os homens acabam por convence-las a entregar-lhes as flautas, to da religiao dos Tupinambá - sao um tanto avaros a respeito do papel
já que elas sabiam que nao tinham capacidade para a ca9a. E assim das mulheres nos mitos de origem, preocupados que estavam comas
iniciou-se o domínio masculino, representado pelos tabus relativos a sagas do herói-civilizador Maíra e dos gémeos míticos Tamendonare
utiliza~ao das flautas karoko. 62 e Aricoute, criadores do universo e da ordem social. Contudo, é co-
Um trecho do mito é bastante eloqüente a respeito do seu papel mum aos Tupi a idéia de que homens e deuses em algum momento
enguanto discurso justificador da supremacia masculina: na última J~ viveram juntos em um mundo "pré-cultural", onde nao se trabalhava e
noite em que as mulheres possuíram as flautas "urna por urna (... ) diri-
1 nao se morria, mas onde também nao havia fago ou plantas cultivadas;
giram-se as casas e for~aram os homens a fazer sexo com elas. Os e em geral canta-se que a separa~ao entre deuses e homens foi provo-
homens nao podiam recusar, assim como as mulheres hoje nao podem ~
cada pela mulher:
1

recusar os desejos dos homens".63 Joan Bamberger, estudando o com-


plexo cultural amazónico do Jurupari, aponta dais temas importantes "Quando Maíra andava neste mundo, os Tenetehara nao precisa-
que se repetem em vários mitos sul-americanos. O primeiro deles se van1 ir a ro9a. O n1achado, o facao trabalhavam por si n1esn1os.
Se m que ninguén1 as levasse, as varas de n1andioca caminhavam
refere a precedencia das mullieres na posse dos objetos sagrados:
para os ro9ados. Era plantar num dia e colher no outro. ( ... ) Mas a
jovem mulher duvidou que a n1andioca já estivesse crescida, o que
"Os objetos secretos pertencentes aos homens (máscaras, trombe- fez Maíra, zangado, falar: 'agora voce vai esperar todo um inverno
tas, alojamentos rituais, nlúsicas etc.), foram originaln1ente criados até a mandioca ere seer' . Desde en tao, os Tenetehara plantam a
e possuídos pelas mulheres; ou se eles se originaran1 co m os ho- n1andioca e esperam até o fim do inverno pela colheita. Maíra foi
mens, seus segredos foran1 descobertos pelas mulheres que conta- en1bora".66
64
minaram sua santidade aove-los e tocá-los".

Também para os Araweté a mullier é responsável pela separa-


Um segundo tema diz respeito a posi~ao autoritária dada aos 9ao: "entao, em conseqüéncia de um insulto que ouviu de sua esposa
possuidores dos segredos tribais: o fato de que as mullieres tenham, no Tadide, a divindade Arana.mi resolveu afastar-se, agastado com os
67
passado, obtido e exercitado o poder sobre os homens com base na homens". Para ' Alfred Métraux, os Tupinambá nao relacionavam o
posse de objetos sagrados explica e justifica o atual poder dos homens "erro" feminino ao afastamento entre deuses e homens, e sim as peri-
sobre as mulheres, exercitado com base em práticas íntimamente rela- pécias dos gemeos míticos: "a mae de um dos gémeos, filho de Maira-
cionadas com aqueles mesmos objetos. Como afirma a autora: "os
mitos repetem constantemente que as mulheres nao sabem administrar 65
Bamberger, 1979: 252.
66
Laraia, 1972: 162; na mesma página Laraia apresenta urna versao mais simplificada do
62
Murphy e Murphy, 1974: 87-9. mito: "de manha, Mahira mandou que ela fosse buscar o milho. ' Voce está doido ', respondeu.
63
Murphy e Murphy, 197 4: 89.
'f
6
Iantou ontem e já quer colher hoje' . Mahira ficou zangado e foi embora".
64 Viveiros de Castro, 1986: 184.
Bamberger, 1979: 245.

86 87


atá, por este abandonado, sai a sua procura guiada pela crianva, que bá); por outro lado tais cosmologias, ao contrário das centro-
lhe indica o caminho a seguir. Recusando-se, porém, a colher 'legu- brasileiras nas quais o dualismo é o aspecto primordial, nao f azem
mes', provoca sua cólera. O menino, por isso, se cala e a mae perde- urna separa9ao nítida entre natureza e sociedade (ou cultura). Como
se". 68 Como afirma Viveiros de Castro: "o motivo do conflito H/W69 afirma Philippe Descola:
na separavao dos humanos e dos deuses ou heróis culturais é

recorren te nos Tupi-Guarani (... ). O 'pecado original' feminino foi a 1 "A despeito de suas diferen9as, todas essas cosmologías té n1 con10
descrenva nos poderes mágicos do marido divino (... )". 7º 1~ caracteóstica con1um nao operar distin96es de esséncia tra9adas
Parece certo que o tal ''pecado" está bem relacionado a urna entre os hun1anos, de um lado, e um bon1 número de espécies ani-
n1ais e vegetais de outro. A nlaior parte dos seres que povoam o
maior ligavao das mulheres com a racionalidade e com um certo "bom
mundo sao ligados uns aos outros em um vasto conrinuum anima-
senso", próprio do que é cultural, doméstico (ver-se-á adiante que La- do por princípios unitários e govemado por um idéntico regin1e de
raia discorda desta identifica9ao da mulher com a cultura). Urna varia- sociabilidade" .72
~ªº deste tema pode ser encontrada entre os Suruí:

Um grande exemplo da indissociabilidade entre o mundo natu-


"Era urna vez urna n1ulher que morreu deixando urna filha peque- ral e o social é dado pela rela~ao privilegiada entre o cavador/matador
na. A menina ficou n1orando con1 os parentes na maloca. Quando
Tupinambá e as onvas: estas quando capturadas eram sacrificadas em
ninguém estava olhando, vinha alguén1 a maloca e fazia panquecas
'n1ames' e sopa ' i' em quantidade, a n1ais nao poder. Era a aln1a terreiro com o mesmo ritual reservado aos inimigos, e seu matador
da n1ae e ninguém sabia. Un1 dia a filha espiou em segredo e fa- nao apenas tomava novo nome como era obrigado a passar pelas
lou: ' Mas é vocé, man1ae? O que está fazendo? Nao n1orreu faz mesmas práticas expiatórias; como informa Roque Laraia:
ten1po?' E aí a alma da mae morreu de verdade, nao veio mais".71

"Na mitologia Ka'apor as on9as sao homens no mundo subte rra-


Parece bem evidente que o tema Tupi do "erro" feminino ori- neo , que é o inverso do mundo Ka'apor. No mundo subterraneo
ginal, be.m como os mitos que falam de urna anterior superioridade vivem os Aé, perigosos canibais, que, na superficie, se transfor-
n1am em on9as. En1 suas aldeias sao como os homens e existen1
feminina entre outros grupos sul-americanos, devem ser vistos como 73
relatos de n1ulheres Ka ' a por que se tornara in esposas de Aé".
parte de um discurso socialmente dominante que visa explicar e justi-
ficar o domínio masculino do mundo. Nao obstante, investigar o papel
feminino na visao de mundo Tupinambá unicamente através dos mitos A possibilidade de relavoes sexuais e matrimoniais entre as
equivalería a ignorar algumas dimensoes fundamentais das cosmolo- mulheres e os seres da natureza - raras, ou mesmo inexistentes para os
gías de origem amazónica, em especial as dos povos Tupi. Em primei- homens - traz conseqüencias importantes para a compreensao das re-
ro lugar os princípios metafísicos que organizam o mundo e que ser- lavoes de genero nestas sociedades. Como visto anteriormente (cf. p.
vem de base para as classifica~oes sociais destas sociedades nao estao 36), existe um equívoco na posivao defendida por Sherry Ortner, que
contidos em estruturas religiosas formais (o que, entre outras coisas, ve na polaridade natureza/cultura (com as mulheres posicionadas do
levou os jesuítas a postular a "ausencia" de religiao entre os Tupinam- lado da natureza e os homens da cultura) urna explicavao universal
para as diferenvas de genero. De fato tal hipótese nao se sustenta para
68
Métraux, 1950: 78.
69
Husband / Wife = Marido / Esposa.
70
71
Viveiros.de Castro, 1986: 185; ver também Laraia, 1986: 200. 72
Descola, 1996: 64; para urna confirma~ao <leste ponto entre os Tupi , cf. Laraia, 1972: 142.
Mindlin, 1985: 181. 73
Laraia, 1986: 204.

88 89
o caso Tupi, em geral, e Tupinambá em particular. Muito embora seja O eixo em tomo do qual se organiza o pensamento Tupi é tem-
inteiramente impossível aprofundar aqui este tema, é evidente que um poral e nao espacial. Trata-se aquí de um tipo de pensamento que ela-
esbo90 dos p rincípios cosmológicos dos Tupi pode ser extremamente bora a tríade naturezal cultural sobrenatureza em urna perspectiva evo-
útil para a compreensao deste ponto. lutiva, tanto ao nível cosmogónico (no passado as tres dimens6es eram
Ao contrário das sociedades Je, marcadas cosmologicamente misturadas) quanto em rela9ao aos próprios indivíduos: assim o obje-
por seu fechamento estrutural - exemplificado pela rígida organiza9ao tivo e a realiza9ao da pessoa Tupi está no futuro, no devir, quando se
espacial de suas aldeias, cujos desenhos sao carregados de significa- deixará a condi9ao humana e se ascenderá a condi9ao divina. Nesta
dos - e pelo seu dualismo radical (seriam um exemplo ideal para Ort- cosmología nao se "comemora" a vitória da cultura e da sociedade
ner... ), os povos Tupi nao se organizam sobre urna base "espacial", em sobre a natureza, como fazem os Je: na verdade a sociedade é para os
que a aldeia (espa90 da cultura) se op6e a mata (espa90 da natureza), Tupi o espa90 do trabalho penoso e das exigencias da uxorilocalidade,
assim como os portadores dos valores culturais (os homens) se opoem sociedade da qual só se escapa idealmente matando os inimigos e sen-
aos seres híbridos entre natureza e cultura (as mullieres). do morto por eles. 78 Segundo Viveiros de Castro:
Nada, aliá~ , exemplifica melhor este ponto do que o relativo
desleixo - quando comparados aos Je - com que os Tupi organizam o
,. "Se comparados as propriedades cristalinas das sociedades Je, os
espa90 da aldeia: aparentemente é o bastante haver um ou mais pátios
entre as casas reservados para as cerimónias; todo o resto parece um
tanto caótico. 74 Isto parece contradizer a evidencia para os Tupinambá,
t T upi -Guarani evocam cert:amente a natureza de corpos an1orfos,
nuvens, fu n1a9a, e m sua organiza~ao social frouxa e casual, sua
ausencia de frontei ras conceituais claras entre os domínios do
cosmos, sua fragi lidade ao contato con1 a sociedade ocidental
já que todas as representa96es de suas aldeias mostram urna rígida - ou (mais ern aparenc ia q ue em essencia), sua plasticidade, e seu estilo
"cartesiana", como diz Roque Laraia75 - organiza9ao espacial. No inte- extra-mun dano o u ,n11st1co
, . ' de pensamento" .79
rior da palic;ada, a aldeia Tupinambá aparece quase como urna cidade-
la renascentista. Seria isto urna transposic;ao feíta pelos artistas euro- !
1
Tais diferenc;as se exprimem privilegiadamente através do tipo
peus de seu próprio "cartesianismo" para os Tupinambá? 't de relas;oes que os Je e os Tupi estabelecem com o exterior do social,
Talvez nunca se possa responder a esta questao: por um lado é com a alteridad e. Os Je tudo fazem para controlar e interiorizar a alte-
possível que a presens;a das pali9adas tenha se constituído em urna ridade: até mesmo os outros grupos étnicos ocupam um espa90 deter-
resposta a pressao militar advinda do contato, o que teria modificado minado no espa90 da aldeia, sendo representados por um membro da
padroes ancestrais mais próximos aos Tupi contemporaneos; por outro própria tribo; assim, o "embaixador" Apinayé em urna aldeia Krahó
lado nunca foram encontrados, nas aldeias Tupinambá ou supostamen- será um Krahó, o que de certa forma neutraliza e mantém em um pon-
te Tupinambá escavadas pelos arqueólogos, restos de pali9adas (que to mínimo e seguro a rela9ao como exterior. "Nesse espa90 (o da al-
seriam facilmente detectados caso fossem encontrados).76 Sintomati- deia) tudo tem seu lugar, diríamos até, tudo é lugar e esse lugar imutá-
camente, a aldeia Carijó visitada por Hans Staden na ilha de Santa . o tempo " .80
ve1 exorciza
Catarina nfío é representada da mesma forma. 77 Tudo se passa de urna maneira diferente para os Tupi. Estes,
74
75
Ver, por exemplo, a planta da aldeia Araweté em Viveiros de Castro, 1986: 721.
Laraia, 1986: 201.
r em lugar de exorcizar a alteridade, literalmente a comem e a desejam.

Marcos Albuquerque, comunica~ao pessoal; cf. Staden, 1974 (1557): 48, 51 , 90, 92, 99,
76

r
78 Sobre as diferen9as entre as cosmologias Jee Tupi, cf. Petesch, 1993 e Silva, 1992.
10 1, 103, 108, 123, 135, 137, 144e l 56 pararepresenta~6esdasaldeias Tup inambá. 79 Viveiros de Cas tro, 1986: 30.
77
Staden, 197 4 ( 1557): 60.
''
°
8 Cameiro da Cunha e Viveiros de Castro, 1985: 202.

90 91
trando que o jogo da vingan~a deveria idealmente pennanecer incon-
Como mostrou Viveiros de Castro a respeito dos Araweté, todo o de- cluso. É interessante citar aqui Roque Laraia: "( ... ) tanto a vítima co-
siderata da pessoa Tupi está em cumprir seu destino evolutivo e tor- mo o matador sao partes integrantes de um mesmo sistema cultural.
nar-se um outro, deificando-se e alcan~ando a sobrenatureza. O morto Em outras palavras, o inimigo também fazia parte da sociedade Tupi-
Araweté toma-se, caso tenha sido um matador exemplar, ele próprio nambá".85
um deus; já para os Tupinambá tal passagem se dava gloriosamente, Neste mundo nao existe qualquer rela~ao - coro parentes, afins
através da marte em terreiro inimigo, o que ajuda a explicar satisfato- próximos ou inimigos - que seja "neutra", e a metáfora principal das
riamente o horror sentido pelos cativos dos Tupinambá a idéia de se rela9oes como outro é dada pela preda9ao. Como afinna Viveiros de
evadir do sacrifício: "o diabo tao profundamente gravou esse ponto de
Castro:
honra no cora9ao dos selvagens, como aliás no de muitos cristaos, que
preferem morrer nas maos dos inimigos, e ser comidos, a fugir, o que
lhes seria fácil em virtude de sua liberdade". 81 Aqueles que morriam "O que significa dizer que, ' pour les indigenes', nenhunia diferen-
9ª é indiferente, toda diferen9a é in1ediatamente rela9ao , dotada
em terreiro inimigo tinham necessariamente que ser vingados para que assim de urna positividade; a ' hostilidade' nao é um nada, mas
pudessem alcan9ar o Guajupiá, a terra onde viviam os mortos que uma rela9ao socialn1ente detern1inada. É preciso, contudo, ir mais
haviam sido corajosos e vingativos. 82 longe: o esquen1a geral de toda diferen9a, con10 atesta abundante-
mente a etnología amazónica, é a preda9ao caníbal ( ... ); o para-
O lugar central ocupado pela alteridade entre os Tupinambá fi- dign1a da rela9ao predicativa entre sujeito e objeto é a predar;ao e a
ca claro quando se observa sua onomástica: enquanto os nomes pró- incorpora9ao: entre afins, entre os sexos, entre vivos e mo rtos, en-
prios dos Je estao pré-determinados pela posi~ao do indivíduo no sis- tre hun1anos e anin1ais, entre humanos e espíritos, e, natural mente,
tema de rela9oes, o guerreiro Tupinambá só deixa o nome pelo qual entre inimigos. ( ... ) A diferen9a (a ' hostilidade' ), longe de ser uny
nada, é aquilo cujo lin1ite inferior define a 'relation !amiliale'. E
foi conhecido desde a infancia após matar um inimigo e tomar-lhe o
ela o termo nao-n1arcado, regente da estrutura global. E a preda9ao
nome; em outras palavras os Tupinambá nao recebiam seus nomes, que é generalizada, nao o parentesco; ela é o n1odelo da Rela-
eles os capturavam. 83 O hornero Tupinambá lan~a-se em dire9ao a 9ao".s6
exterioridade através da guerra e da vinganva, vinganya que representa
um verdadeiro processo social de constru~ao da memória nao apenas
Prossegue o autor, abordando um aspecto fundamental para a
de seu próprio grupo mas, o que é crucial, dos grupos ·inimigos, na
compreensao da religiao dos Tupinambá e, como se verá no próximo
medida em que sao os inimigos mortos em terreiro que povoarao o
capítulo, do destino das mullieres no além-morte:
Guajupiá - o além-morte - <lestes mesmos inimigos. 84
Nota-se, a propósito, urna importante distinyao entre a guerra
"Já se obseivou que as sociedades an1azónicas, tecnologicamente
ao estilo Je e como praticada pelos Tupinambá: para os Je o ideal é ' neolíticas', sao ideologicamente ' paleolí ticas': seu paradigma da
encerrar a relayao com o inimigo, de preferencia com um massacre produ9ao e da reprodu9ao nao é o casamento fecu~do com a _t~rr~­
definitivo, enquanto que a simples captura de um ou alguns inimigos mae, n1as a preda9ao caníbal, cinegética e guerre ira, entre 1rnn11-
era suficiente para encerrar a operavao de guerra Tupinambá, mos- gos-afins. A natureza é 'afinale', nao maternal. Do mesmo n1od~,
a rela9ao com os n1ortos e e espíritos se trava no elen1ento da alt-
an9a tensa entre afins potenciais, nao naquele da ancestralidade
81
Abbevi lle, l 975 (16 l 4): 23 1; sobre este ponto cf. Fausto, 1992: 392.
82
Métraux, 1950: 222 e Viveiros de Castro, 1992 a: 44; sobre o Guajupiá, cf. Femandes,
85
1989: 161 -7. Laraia, 1986: 205.
83 86
Vive iros dé Castro, 1986: 384-90. Viveiros de Castro, 1993: 185.
84
Cameiro da Cunha e Viveiros de Castro, 1985: 205. 4'"'
93
92 J~1
"'.
~~~~~~'~~.~~~~~--
cultual filiativa: a sobrenatureza nao é paterna, mas ai nda 'a- nao raramente se transforma em nlediadora entre duas categori -
fim '".87 as".88

Em tal contexto pode-se dizer que, ao contrário do que afinna- Creio que esta particularidade pode ser mais bem explicada a
vam as análises funcionalistas, nao se define a sociedade a partir de partir da mística da preda9ao: em um mundo no qual aquele que nao é
seus limites com o mundo exterior - real ou simbólico - mas de suas predador é predado a mulher - que nao ca9a - é sempre presa, nao ape-
relafóes coro este mundo. A esfera da preda9ao é mais importante, nas nos casos de devora9ao por feras ou eventual canibalismo real -
metafísicamente e enquanto esfera privilegiada para a constru9ao dos recorde-se as cativas dos Tupinambá - mas principalmente através de
discursos socialmente dominantes, do que a da produ9ao. Ora, como urna preda9ao simbólica, o ato sexual. Acredito que as evidencias po-
visto anteriormente (cf. p. 36), o domínio da produ9ao, do interior do dem ser lidas com o sinal contrário: o discurso de género dominante
social, do cultural em sua expressao máxima, é essencialmente femi- constrói-se justamente na concessao as mulheres do centro de urna
nino, e nao masculino. sociedade sem centro (ou com vários centros), sociedade que é apenas
Ternos aí portanto urna das balizas para a compreensao das re- urna etapa intermediária de um processo evolutivo e que é englobada
la96es de género entre os Tupinambá: como esclareceu a antropología simbolicamente pela exterioridade.
das mulheres, as sociedades tendem a sobrevalorizar aquelas esferas Nesta sociedade "nebulosa", de limites fluidos, a identifica9ao
mais associadas e marcadas pela presen9a masculina. Ao contrário do da mulher com a própria sociedade é dada exatamente pelo fato de
que imaginava Sherry Ortner, contudo, estas oposi96es nao tém neces- estas sejam "predadas" sexualmente por representantes, reais ou ima-
sariamente que assumir a forma natureza : mulher :: cultura : homem; ginários, de todas as esferas - intra ou extra-sociais - do mundo Tupi.
a busca da especificidade do feminino no contexto Tupinambá deve se Desta forma elas se relacionam coro animais89 ( com a serpente, coro a
dirigir primariamente aquelas técnicas e práticas mais, e nao menos, anta, muitas vezes coro os jaguares), com os afins (inimigos potenci-
elaboradas culturalmente. Por conta disso parece-me possível arri scar ais) e com o sobrenatural: as mulheres Araweté, por exemplo, assim
urna crítica a posi9ao de Roque Laraia quanto a classifica9ao social como os homens que nao se comportaram com bravura, sao devoradas
das mulheres no mundo Tupi. Após afirmar que " (... ) na mitología pelos deuses quando morrem, tomando-se esposas <lestes. Como diz
Tupi, no que se refere ao sexo, a mulher tem um papel mais ativo do Viveiros de Castro, ao comparar os Araweté coro os Arapesh: "o es-
que o do homem, fato este que é inversamente proporcional a fun9ao pa~o da Cultura, do Mesmo, é urna ilha cercada de canibalismo por
feminina na descendencia social, quando a mulher toma-se completa- todos os lados".90
mente passiva", e oferecer exemplos míticos da maior inclina9ao e
É oportuno lembrar que quando os pajés Tupinambá invoca-
habilidade feminina para o sexo (muitas vezes realizado com animais,
vam seus mortos ("outros" sobrenaturais), ou quando estes se manifes-
o que nunca acontece com os homens), Laraia dizque:
tavam espontaneamente, eram as mulheres o seu veículo privilegiado,

"As possibilidades destas rela96es tornam os vínculos da mulher


con1 a sociedade mais fracos do que os do hon1em (o que) ( ...) de-
mo nstra que se o lugar do home m está ben1 defi nido no siste ma de 88
Laraia, 1972: 160-2.
classifica9ao Tu pi, o mesmo nao ocorre con1 a mulher. Co mo a- 89
Segundo Yves d'E vreux, os índios acredilavam que as mulheres poderiam ficar gráv.idas de
contece e m outros contextos culturais esta é um ser ambíguo, que lagartos (teiús): ·'chega esta supersti9ao a ponto de acreditarem, que estes lagartos at1rarn-se
as mulheres, adonnecem-nas, e gozam-nas, ficando grávidas, e parindo lagartos em vez de
87 criarn;as" (Evreux, 1874 [1 615]: 273).
Vivei ros de Castro, 1993: 185. 90 Yiveiros de Castro, 1986: 222; sobre o sexo com os animais cf. Laraia, 1972: 161.

94 95
servindo estas como "cavalo" daqueles; vejamos, por exemplo 0 que Tampouco o preparo dos alimentos constituí-se em urna opera-
diz sobre isso Hans Staden: ' ~ªº "neutra". Foge a minha capacidade o aprofundamento destaques-
tao, tao bem estudada por Claude Lévi-Strauss, Eduardo Viveiros de
"Primeirarnente vao os selvagens a urna cho9a, tomarn urna após Castro ou Aparecida Vila~a; de todo modo parece óbvio que, ao me-
o utra todas as mulheres da habita9ao e incensan1-nas. Depois <leve nos entre os Tupi, os alimentos que sofrem processos tecnológicos
cada urna gritar, saltar e correr ern roda, até ficar tao exausta que mais complexos - mais "culturais" - estao associados preferencialmen-
cái ao solo como marta. Entao diz o feiticeiro: ' Vede. Agora está
te a mulher. Se bem compreendo este ponto é possível tra9ar um para-
n1orta. Lago a farei viva de novo'. Quando voila a si, diz ele, está
apta a predizer cousas futuras, e quando parten1 após para a guerra, lelo entre as esferas metafísicas do mundo Tupi e as diferentes formas
sobre esta tem as n1ulheres que profetizar. Costurnes de tal sorte de transforma9ao alimentar. Assim os seres da natureza - animais e
tem eles n1uitos. A rnulher do meu amo, a quem fui mandado de espíritos ligados ao mundo natural - consomem o alimento cru ou a-
presente para ser morto, come~ou un1a noite a fazer profecías, través do apodrecimento (como os urubus), único processo de trans-
contando a seu m~rido que lhe tinha vindo visitar un1 espírito, de
forma9ao que lhes é acessível. No outro pólo encontra-se o cozimento,
terras estranhas. Este queria saber dela, quando deveria eu ser
morto e perguntou onde estava o tacape con1 o qual eu deveria ser processo de transforma~ao com alto grau de elabora9ao cultural, que
sacrifi cado. Respondeu meu amo a mulher que nao demoraría exige o domínio do fogo e da técnica, marcadamente feminina, da
muito e tuda estaría pronto. ( ...) Quando a n1ulher tem1inou sua "' .
ceram1ca.
predi9ao, perguntei-lhe por que me atentava assim contra a vida,
desde que eu nao era certamente um inimigo; se nao receava que o Em termos de rela~oes de genero é possível estabelecer - mais
n1eu Deus lhe pudesse n1aridar alguma calamidade. Respondeu que urna vez - o lugar privilegiado da mulher como símbolo da cultura e
eu nao devia preocupar-me con1 isso, pois eram os espíritos estra- da humanidade. Veja-se por exemplo o tratamento dado a carne do
nhos que queriam estar ao par dos fatos que me diziarn respeito" .91 prisioneiro morto pelos Tupinambá: esta era moqueada (isto é, assada
sobre um jirau; este é um processo que nao se utiliza da ceramica,
A investiga9ao das regras alimentares pode ajudar a esclarecer apenas do fogo sendo, portanto, menos elaborado culturalmente que o
este ponto. Em primeiro lugar é de se notar a rela~ao entre comensali- cozimento) mas as mullieres e as crian~as consumiam-na preferenci-
dade e canibalismo: come-se junto dos consangüíneos, aqueles com os almente - mas nao exclusivamente - cozida, na forma de um mingau
quais se compartilha urna mesma substancia. Os outros, estes sao de- (figura 5):
vorados (no caso dos animais) ou canibalizados (no caso dos inimigos
92
humanos). Nasce daí o aparente paradoxo do cativo destinado ao "As vísceras sao dadas as mulheres. Fervem-nas e como caldo fa-
repasto caníbal "receber" urna esposa do grupo do captor: a única re- zem un1a papa rala, que se chama nlingau, que etas e as crian9as
la9ao possível entre nao consangüíneos é a preda9ao e a matan~a (a sorvern. Comen1 essas vísceras, assirn como a carne da cabe9a. O
guerra) ou a afiniza~ao (o casamento). Ao nao ser comido imediata- n1iolo do cranio, a língua e tudo o que podem aproveitar, comem
as crian9as. Quando o todo foi partilhado, voltam para casa, le-
mente - é preciso esperar pelos preparativos da festa, a fabrica~ao das vando cada un1 o seu quinhao". 93
vasilhas, o preparo do cauim e da farinha, o convite aos aliados - o
único lugar possível para o cativo é o de genro e/ou cunhado.
Nao quis fazer neste capítulo urna "etnografía" dos Tupinam-
bá, o que seria, aliás, redundante em rela~ao as obras de Métraux e
91
Staden, 1974 ( 1557): 175; cf. também Femandes, 1970: 76-7.
92 93
Yilaya, 1992: 289-95. Staden, 1974 (1557): 183-4.

96 *"
1
97
Femandes; o objetivo aquí foi unicamente tra~ar, em tomo de temas CAPÍTULO 111
arbitrariamente selecionados, algumas linhas gerais do contexto no
qual deveÍn ser inseridas as informa~oes legadas por cronistas e via-
jantes acerca da mulher Tupinambá. Cabe agora trazer estas informa- VIVER COMO MULHER TUPINAMBÁ
~oes a luz, esperando que estas possam nos abrir urna janela, que cer-
tamente será estreita, para a vida cotidiana daquelas mullieres, assunto
do próximo capítulo.
1. De Peitan a Kugnatin: Os Primeiros Anos

"Chemembuira rakuritim" (eu já vou parir) 1: com estas pala-


vras a parturiente informava a todos que era chegado o momento. Ela
praticamente nao havia parado de trabalhar até este dia, e mesmo na
hora crucial teria que se arranjar sozinha: apesar de toda a agita~ao
que tal aviso provocava entre os membros da comunidade - notada-
mente as mulheres - o mais comum era que ninguém a ajudasse, o que
aliás está bem de acorde com as práticas dos Tupi contemporaneos.
Segundo Roque Laraia, somente os Akuáwa...Asuriní divergem neste
aspecto, já que neste caso a sogra da mulher tem um papel importante
durante o parto. Laraia também afirma que: , "(... ) o costume de ter
crian~as no mato, encontrado entre outros Indios, nao é generalizado
entre os Tupi. Este é recebido no mundo, no interior da casa de seus
pais e é o solo desta quem vai guardar a matéria organica que lhe é
associada"2 • .

Nao obstante, e em contradi~ao como relato de André Thevet,


Gabriel Soares de Souza nos dizque: "quando estas índias entram em
dores de parir, nao buscam parteiras, nao se guardam do ar, nem fa-
zeni outras cerimónias, parem pelos campos e em qualquer outra par-
te como urna alimária (... )". 3 É possível que as Tupinambá obedeces-
sem a um duplo padrao, as vezes tendo seus filhos em casa e em ou-

1
Fernandes, 1989: 148. A descri9ao mais detalhada do parto e dos ritos de nascimento é dada
por André Thevet (in Fernandes, 1975: 60); outros relatos importantes sao os de Cardim, 1978
(1 625): 107; Evreux, 1874 (1615): 81-2; Léry, 1975 (1578): 264-6; Souza, 1971 (1587): 306;
cf. também Fernandes, 1989: 147-51 e, principalmente, Métraux, 1950: 189-99.
2
Laraia 1972: 78.
3
Souza, 1971 (158 7): 306.

98 99
l
tras oportunidades na mata próxima, assim como fazem as Araweté: ..l,..
"o parto (mo-á, lit. 'fazer cair') se realiza dentro de casa ou, mais co- Parece claro que a necessidade de "dentes fortes" estava rela-
mumente, na capoeira próxima". 4
j_ cionada a mastiga9ao necessária ao fabrico do cauim; ao menos é isto
A Tupinambá se colocava em urna tora de madeira plana presa aos
J_ o que And_:é ~evet_afirma quando trata dos rituais ligados a~rimeira
suportes da maloca e ali, apenas observada pelas mulheres da vizi- l n:enstrua~ao: (... ) hgam seus bra~s e o corpo com um fio de algo-
nhan~a, se encarregava de todos os procedimentos do parto. Somente J~ dao,.. pondo em seu pesco~ dentes de um animal, que eles chamam
quando a tarefa mostrava-se muito difícil é que o marido a auxiliava, .... capugoare, que quer dizer comedora ou vivente de erva, a flill, dizem
apertando sua barriga para baixo de maneira a facilitar o nascimento. J. eles, de que seus dentes sejam melhores ou mais fortes para mastigar
sua beberagem, que eles chamam Caouyn (... )". 7
Se acaso fosse a crian~a defeituosa era rapidamente eliminada: "(... )
que assim fazem a todos os que nascem com alguma falta ou deformi-
.,l.... Conquanto todas estas lavagens e ofertas fossem algo bizarras
1
par~ os europeus? que mais chamou a aten9ao dos cronistas nos pro-
i
dade, e por isso mui raramente se acha algum coxo, torto ou mudo ~,

nesta na~ao". 5
Se o recém-nascido fosse do sexo masculino o cordao umbilical
l ced1.mentos assoc1ados ao nascimento foi a couvade, termo utilizado
~a hteratura antropológica para designar um conjunto de práticas rea-
1
era cortado pelo pai, com os dentes ou com pedras; sendo menina a ..,.,. hzad~s pelo pai durante a gravidez da esposa e durante e após o parto.
Gabnel Soares de Souza deixou-nos urna vívida descri9ao da couvade
mae ou urna sua parenta (talvez urna irma) realizava o corte. Cabia ao )~ Tupinambá. Depois da lavagem do recém-nascido,
tobajara - o cunhado, irmao da mae - ocupar o lugar do pai nos ritos 1
~
de nascimento de urna menina, podendo neste caso levá-la consigo de y
forma a reservá-la para um futuro casamento avuncular. O pai também "( ... ) O mar~do deita _Iogo na rede, onde está muito coberto, até que
podia ser substituído - geralmente por uro irmao - no nascimento de ~~ seca o umb1go da cnan~a; no qual visitam seus parentes e amigos,
um menino, caso estivesse ausente ou morto. 1 e lhes trazen1 presentes de comer e beber, e a nlulher lhe faz mui-
tos mimos, enquanto o marido está assim parido, o qual está muito
De todo modo, a crian9a era entao levada pelas mulheres a uro 1 e mpanado para que nao lhe de o ar; e dizem que se lhe der 0 ar
rio para ser lavada, enquanto sua mae fazia o mesmo. Posteriormente ~r que fará muito nojo a crian~a . e que se erguerem e forem ao traba-
o pai (ou o irmao da mulher) achatava o nariz da crian9a - urna exi- lho que lhes niorrerao os filhos, e eles que serao doentes da barri-
ga; e nao há quem lhes tire da cabe~a que da parte da niae nao há
gencia da estética Tupinambá - sendo esta untada e pintada de urucum
perig_?, senao da sua; porque o filho lhe saiu dos lon1bos, e que e-
e jenipapo e colocada em urna pequena rede. Eram entao oferecidos a las nao p6en1 da sua parte mais que teren1 guardado a sen1ente no
crian9a, caso fosse menino, flechas, pequenos tacapes e garras de on9a ventre onde se cria a crian~a". 8
ou aves de rapina, coro o intuito de tomá-lo valente e vingativo. A
menina recebia urna oferta de dentes de capivara, "com o objetivo,
Como se ve nao escapou aos europeus a explica~ao nativa para
conforme pensam, de tomar seus dentes mais fortes e apropriados aos
alimentos". 6
ª.couvade: o pai era responsável por toda a concep9ao, cabendo espe-
cialmente a ele tomar as precau96es mágicas e dietéticas necessárias
pa_ra a. s~egurar
. a saúde nao apenas da crian9a, mas também dele pró-
4
pno. E importante notar, a respeito deste ponto, que algumas socieda-
5
Viveiros de Castro, 1986: 441 .
d~s . que toleram rela96es extramaritais por parte das mulheres podem
Carta de José de Anchieta ao Geral Diogo Lainez, de Sao Vicente, Janeiro de 1565, in An -
chieta, 1988: 249. utilizar a couvade para tomar públicas e regulares tais rela~oes, en-
6
Thevet, qpud Métraux, 1950: 190. Também eram ofertadas as men inas "jarreteirazinhas e
urna caba9a": Métraux, 1950: 193. 7
Thevet, in Femandes, 1975: 67.
8
Souza, 19 7 1 ( 1587): 306.
100
t l 01
cém-nascido este era considerado um mesti~o, um marabá, indigno de
quanto que em outros casos o marido pode se recusar a couvade como ser objeto dos ritos pós-natais, entre os quais a couvade, e sumaria-
forma de protesto contra a infidelidade feminina. mente enterrado ainda com vida. 12
O primeiro caso pode ser ilustrado pelos Sumí: "todos os ho- Conquanto este seja um fator de máxima importancia, parece
mens que tiveram rela~oes sexuais com a mae sao considerados pais, e certo que a couvade nao pode ser vista unicamente como urna técnica
devem ficar em reclusao e dieta alimentar. Nao se faz mistério do fato, social de reconhecimento da paternidade, senda possível retirar da
considera-se que a crian~a tem ' país misturados', embora o marido couvade Tupinambá algumas conclusoes mais aprofundadas a respeito
9
oficial seja sempre apontado como o pai". Para o segundo caso ternos ~as rela~oes de genero. Gwen Broude, estudando sociedades que pra-
o exemplo Kaapor: ti~ai;i. a couvade "nao-intensiva" (que se valem apenas de restri~oes
dietetlcas e outros procedimentos mágico-rituais sem apresentar o
"O capitao Koaxipurú ( ... ) te m duas mulheres que sao irrnas. Uma comportamento imitativo de se deitar, como que de resguardo, o que é
delas teve rela~oes com o filho de un1 func ionário do posto (da
Funai ) e ficou grávida. O ve lho capi tao fez o que póde para matar
o caso dos Tupinambá e de vários Tupi contemporaneos) encontrou
a crian9a, deu a n1ulher beberagens de inún1eras folhas e raízes urna correla~ao positiva entre um papel ativo do genitor masculino na
abortivas; nao conseguiu nada, ela nasceu. Entao, en1 nova tentati- cria~ao dos filhos e a presen~a da couvade. 13
va de matar a crian~a ou con10 ato de nao-reconhecimento da pa-
O interesse principal de Broude é criticar a teoria "transexual"
temidade, ele nao ficou e n1 couvade. Con1eu de tudo, sem seguir
qualquer das prescri c;oes culturais para aquela ocasiao. Agora, essa da couvade, que afirma que naquelas sociedades em que o pai é ausen-
cri an9a ten1 uns doze anos e ele a quer como filha".º1
te da cria~ao dos filhos acorre urna forte identifica~ao inicial do meni-
no com o genitor do sexo aposto. Quando a crian~a percebe que na
Note-se que o experiente Koaxipurú, após o fracasso em se li- verdade pertence ao sexo masculino tende a ver na mulher um ser po-
vrar do rebento indesejado, nao deixou de se aproveitar da situa~ao ao
reconhecer a menina como filha e abrir caminho para alguma alian~a r deroso, que tem a posse de recursos básicos, como carinho e comida,
o que leva a "inveja" do status e da condi~ao f((minina, inveja que

,i
política através do casamento desta. Um outro exemplo Kaapor é dado forn:iaria a base psicológica da couvade. Ora, Broude mostra que tal
teor1a nao tem base etnográfica sólida: urna amostra de várias socie-
por Roque Laraia:
da~es praticantes da couvade revela que a institui~ao nao está, neces-

"( ...) quando Mawiratá deu a luz a urna crian9a, dois hornens alén1
sar1amente, associada a ausencia do pai:
de seu n1arido ficaran1 de resguardo. A explica9ao encontrada foi a
de que an1bos tiveram rela96es sexuais con1 a n1ulher, no período TABELA 1 '
que antecedeu a gravidez. E con10 era in1possível determinar quen1 COUV ADE E INVESTIMENTO PATERNO
era o pai, o n1ais seguro é participar do resguardo, n1esmo que isso NA CRIA<;AO DOS FILHOS
tom e público o adultério e provoque a conseqüente ira do marido
11 In vestimento In vestimento In vestimento
enciumado" .
Baixo M édio Alto
Ausencia de Couvade . 2 15 11
Para os Tupinambá, tais possibilidades eram inexistentes: Presenca de Couvade 10 8 6
quando havia qualquer dúvida a respeito da patemidade de algum re-
12
Carta de José de Anchieta ao Padre Geral, de Sao Vicente, Ao Último de Maio de 1560, in
9
Mindlin, 1985: 74. Anchieta: 1988: 139; Fernandes, 1989: 158-60.
10 13
Ribeiro, 1996a: 205. Broude, 1988.
11
Laraia, 1972: 79.
103
102
,~
l. . .

Por outro lado, Broude também afirma que a couvade está as-
sociada a ausencia de complexos culturais de supremacía masculina,
chamados "'por ela de "hipermasculinidade" (hypermasculinity). Veja-
f temidade, mas antes deve ser inserido em urna reflexao a respeito da
economía política do casamento e das rela96es de genero em socieda-
des que praticam o servi~o da noiva. Voltarei a este tema na próxima

f
mos os dados: sectao, quando se tratará do significado do casamento para as mulheres
Tupinambá.
TABELA2 Após o término da couvade era realizada urna grande cauina-
RELA<;ÁO ENTRE A HIPERMASCULINIDADE gem: "(...)e acabadas estas cerirnonias fazem vinhos com que alegrao
E A PRESEN<;A DA COUVADE todos". 15 Após a cauinagern, a crian9a recebia o norne pelo qual seria
Alta Baixa conhecida até a idade adulta, geralrnente um nome jocoso relacionado
H ipermasculinidade H ipermasculinidade a "alimárias, peixes, aves, árvores, mantimentos, pe~as de armas, e
Couvade 4 14 doutras coisas diversas".1 6 Iniciava-se, entao, um período ern que as
'
Presente crian9as eram incluídas no sistema de categorías de idade dos Tupi-
Couvade 16 o nambá. Estas categorías de idade nao tinham, certamente, a mesma
Ausente importancia sociológica dos grupos de idade dos povos centro-
brasileiros, 17 e sao conhecidas unicamente através do relato de Yves
d'Evreux, sendo as seguintes 18:
Ora, os próprios elementos que, segundo a autora, definem a
existencia desta "hipermasculinidade", revelam urna contradi9ao total
entre suas afirma96es e os dados a respeito dos Tupinambá: a hiper- TABELA3
masculinidade se definiría pela presen¡a de "jactancia, pugnacidade, ,
CATEGORIAS DE IDADE ENTRE OS TUPINAMBA
busca de glória militar e narcisismo". 1 Bem, todas estas característi-
cas foram descritas pelos cronistas a respeito dos Tupinambá, os T FASES DA VIDA MULHERES.
,
HOMENS
quais, além disso, praticavam urna forma "intensiva" de couvade, o
que deveria estar relacionado, seguindo o raciocínio da autora, a au-
sencia de tal hipermasculinidade. Isto, se por um lado, deixa entrever
I Até come~ar a andar
Até os 7 anos
Peitan
Kugnatin-miry
Peitan
Kunumy-miry

que a compreensao da couvade Tupinambá nao se beneficia de análi-


- Dos 7 aos 15 anos Kugnatin Kunumy
19 ...
ses transculturais, por outro revela que urna "explica9ao" da couvade Dos 15 aos 25 anos KugnamtnUfU Kunumy-uafu
nao deve ser buscada em fatores psicológicos, mas na estrutura geral Dos 25 aos 40 anos Kugnam Aua
20

da sociedade e particularmente na estrutura das rela~oes de genero.


40 anos ou mais Uainuy Thuyuae
O que a couvade dos Tupinambá nos mostra é urna correspon-
dencia com um fenómeno importante para a compreensao das rela~oes
entre homens e mulheres nas brideservice societies: o nascimento de 15
Cardim, 1978 (1625): 107.
urna crian~a - ao menos a primeira - é aparentemente mais desejado 16
Souza, 1971 (1587): 306-7; cf. Léry. 1975 (1578): 266; Staden, 1974 (1557): 170.
17
pelos homens do que pelas mulheres, o que se constituí em um pro- 18
Viveiros de Castro, 1986: 92.
Evreux, 1874 (1615): 71-83; Fernandes, 1989: 223; Laraia, 1972: 17 4.
blema que nao se esgota em urna discussao sobre a concep9ao e a pa- 19
Nesta fase a mulher poderia se casar, tornando-se uma Kugnam-mucupoare (mulher casa-
da).
14 20
Broude, 1988: 907. Somente nesta fase o homem poderia se tornar um Mendar-amo (homem casado).

104 105


As crian9as pequenas eram indistintamente chamadas de pei- Era característica desta fase a forma9ao de "grupos de jogos"
tan, ou "a crian9a saindo do ventre matemo".21 Yves d'Evreux é con-
traditório a respeito <leste ponto, já que afirma, ªºtratar das categorias
I monosexuais, em que as futuras habilidades necessárias para o sucesso
social eram exercitadas: assim os meninos recebiam pequenos arcos .e
masculinas, que o grau peitan só se aplica aos meninos: "o primeiro flechas, com os quais procuravam acertar caba9as ou pequenos ~.1-
grau é destinado as crian9as do sexo masculino e legítimos (... )", en- rnais. Era também neste momento que se dava a perfurac;ao do labio
quanto que, ao tratar das categorias femininas, afirma que "a primeira do menino, ritual em que se faziam prognósticos acerca de seu futuro
classe é commum a ambos os sexos, cujos indivíduos, sahindo imme- comportamento de acordo com a maneira, corajosa ou nao, com que o
22
diatamente do ventre de suas maes, se chama Peitan (... )". Nesta kunumy-miry suportava a dolorosa operac;ao.
- 27

fase, que durava até que ela desse os primeiros passos, praticamente
A importancia da perfura9ao do lábio para o pai do menino re-
nao se separava físicamente de sua mae, sendo carregada na tipóia
vela-se no fato de que esta fosse precedida de grandes cauinagens .e ~e
para onde quer que esta fosse.
que 0 pai se paramentasse com seus. melhores a~omos para a cenmo-
Os cronistas ressaltam o longo tempo - por um ano e meio e, nia.28 Futuramente o jovem podena, caso obttvesse sucesso como
as vezes, até os sete ou oito anos - em que a crian9a era alimentada guerreiro, fazer mais perfura96es no rosto, onde eram encaixados os
com o leite materno. Se isto, por um lado, ajudava a crian9a a ultra- tembetás, pedras ou cristais trabalhados para se adequarem ao tam~­
passar os perigosos primeiros anos de vida, por outro contribuía para o r nho dos huracos. É interessante comparar os desenhos dos tembetas
espa9amento dos nascimentos, dado o possível efeito contraceptivo do apresentados por Hans Staden,29 em forma de "T", co.m os r:mb.etás
aleitamento. 23 Além disso, existiam vários tabus sexuais pós-parto.24 encontrados no registro arqueológico da tradi9ao Tupiguarani, virtu-
30
Quando a menina <lava seus primeiros passos alcan9ava a cate- almente identicos aqueles desenhos.
goría de kugnatin-miry, a qual durava até os sete anos; sua liga9ao As meninas dedicavam-se ao aprendizado das técnicas privile-
com a mae de certa forma tomava-se ainda mais estreita, tendo em giadamente femininas: "as raparigas se empregam e~ .ajudar su~s
vista que as meninas eram amamentadas por mais tempo que os meni- maes, fiando algodao como podem, e fazendo urna especie de redes1-
nos: "(a menina) mama mais de um anno do que os rapazes, e vi me- nha como costumam por brinquedo, e amassando o ba~o com que
ninas com seis anos d'idade ainda mamando, embora comam bem, 31
imitam as mais habeis no fabrico de potes e panellas". E de se notar
fallero, e corram como as outras".25 Creio que isto contradiz de algu- que as meninas desde cedo ajudavam suas maes, is~o é, precocemente
ma maneira a informac;ao dada
2
¡or
Yves d'Evreux de que os pais pre- assumiam - mesmo que por vezes na forma de um JOgo - suas respon-
feriam os meninos as meninas : talvez isto só fosse verdadeiro para o sabilidades no espa90 doméstico. Tal nao se dava coro os menmos,
genitor masculino.
que nesta fase nao podiam acompanhar o pai, e se dedicavam qua se
que unicamente aos jogos dentro de seu grupo d e 1ºdade.32

21
Evreux, 1874 (16 15): 72.
22
Evreux, 187 4 ( 16 15): 79; sobre esta questao, cf. Femandes, 1989: 224. 27
23 Abbeville, 1975 (1614): 2 14.
Sobre o efeito contracepti vo do aleitamento no seio cf. Bou rguignon, 1990: 184; ver tam- 28 Abbeville, 1975 (16 14): 218.
bém Harris, 1990: 33. Sobre a amamenta~ao entre os Tupinambá cf. Cardim, 1978 (1625): 29 Staden, 1974 ( 1557): 167. , .
107; Gandavo, 1995b (1576): 104; Léry, 1975 ( 1578): 266; Souza, 1971 ( 1587): 307.
24
Sobre a interdi~ao das rela~oes sexuais durante a gravidez e o periodo pós-parto cf. Feman-
!
30 Prous, 1992: 398; as "pe<lras verdes" utilizadas como temberas ~Staden, 1974 [ 1~57). 68 e
Evreux, 187 4 [ 16 15]: 36-7) eram feítas geralmente de amazomta (feldspato ve1de), sendo
des, 1989: 205. comumente enterradas com seus proprietários: Prous, 1992: 403.
25
Evreux, 1874 ( 16 15): 79. 31 Evreux, 187 4 (1615): 80.
26
Evreux, 187 4 ( 1615 ): 80. 32
Femandes, 1989: 224-5.
l 06 107
cantes de sua vida, como o nascimento de um filho. Como notou Ro-
Como mostra Jane Collier, esta é urna característica mareante que Laraia: "as irmas constituem tradicionalmente grupos de coopera-
daquelas sociedades que praticam o servivo da noiva: nestas - ao con- vao, reforvando os la<;os que se iniciam na infancia quando ª. 'irm~
trário das sociedades linhageiras em que a antropología marxista fran- mais velha' toma canta da 'irma mais nova' , enquanto esta amda e
cesa encontrou urna "quase" exploravao dos jovens pelos velhos - as pequena". 36
crian<;as, especialmente os meninos, praticamente nao realizam qual- A respeito disso é importante recordar que as rela<;oes de urna
quer trabalho produtivo, e nem sao cobradas por isso. Inicia-se aí por mulher como irmao do sexo aposto também sao extremamente ínti-
conseguinte a grande divisa.o de genero em sociedades como a Tupi- mas, ou como afirma Laraia: ''nao existe, com efeito, rela<;ao de
nambá: enquanto os meninos tendem a permanecer "preguivosamente" parentesco mais forte do que entre irmaos, quer sejam do mesmo sexo
junto a seus companheiros, as meninas sao rapidamente inseridas na ou de sexos diferentes". 37 Nao poderia ser de outra forma: um conjun-
mais importante estrutura económica desta sociedade, isto é, os grupos to de irmaos germanos (sibling) constituí urna unidade matrimonial
femininos de trabalho. 33 extremamente integrada; para um jovem Tupinambá o fato de ter urna
A fase mais intensa de aprendizagem de técnicas femininas irma casável significava urna porta aberta, pela reciprocidade matri-
como a tecelagem, a ceramica e o fabrico dos "vinhos" iniciava-se por monial, para seu próprio casamento, enquanto que para a mulher a
volta dos sete anos, quando a menina passava a ser chamada kugnatin. existencia de irmaos guerreiros significava um apoio fundamental para
O final do período - por volta dos 15 anos - era marcado pelo doloroso o caso de conflitos com o marido. Este trecho de Laraia é mais do que
ritual de iniciavao que acompanhava a primeira menstruavao da mo<;a, esclarecedor em rela<;ao a este ponto: "um índio Akuáwa-Asuriní, ao
e era também neste momento que as meninas perdiam "( ... ) por suas mostrar-se indiferente diante da marte trágica de sua esposa, surpre-
loucas phantasias, o que este sexo tem de mais charo, e sem o que nao endeu o funcionário do SPI, que o admoestara, com a resposta franca:
. h . - ? ,,, 38
podem ser estimadas nem diante de Deos, nem dos homens (... )", 34 'Porque eu deveria chorar? Ela era, por acaso, mm a mna . .
. , .
isto é, a virgindade, tomando-se aptas ao casamento e a forma<;ao de Era como kugnatin que a menina passava a assum1r urna sene
um lar independente. Antes de descrever estes importantes eventos, de responsabilidades sociais, sempre sob a coordena9ao direta de su~
porém, seria interessante tratar um pouco do processo de formavao do mae, a qual tinha urna enorme ascendencia - talvez maio~ que a do pa1
grupo de mulheres aparentadas que constituí urna das bases da sociali- - sobre a filha inclusive quanto a escolha do futuro marido, como ve-
dade entre os Tupinambá, assim como para os Tupi contemporaneos. remos adiante. Urna destas responsabilidades das kugnatin era a parti-
Como informa Yves d'Evreux, as kugnatin apreendiam com cipa<;ao no fabrico das bebidas fermentadas:
presteza os comportamentos <litados pelo conjunto dos valores sociais
(itálicos meus): "(elas) guardam completo silencio em quaesquer reu- "( ... )o seu vinho principal é de uma raiz a que chamam aipin1, que
nioes onde ha homens, e em geral fallam pouco se nao estao com ou- se coze, e depois pisam-na e tornan1-na a cozer, e como é ben1 co-
tras da mesma idade".35 É possível notar, por este relato, a importan- zida buscani as niais formosas mofas da aldeia para espremer es-
cia dada pelas movas as relav5es - iniciadas ainda como kugnatin-miry tes ~ipins com as maos e algum masrigado com a boca, e depois
- no interior de seu grupo de idade, no qual sempre estavam incluídas
algumas irmas e primas que acabariam por formar o núcleo de suas
amizades na idade adulta e um apoio crucial nos momentos mais mar-
36
Laraia, 1972: 63.
33 37
Collier, 1988: 17, 31. Laraia, 1972: 61 .
34 38
Evreux, 187 4 (1615): 80. Laraia, 1972: 6 1.
35
Evreux, 1874 ( 16 15): 80.
109
108
espremido na vasilha, que é o ~ue di zem que lhe poem a virtude, pela qual as jovens tem um grande medo, quando o tempo se aproxi-
segundo a sua gentilidade ( ...)": 9 . quan d o e 1e c h ega" .42
. d a ma1or
ma e am
O medo estava evidentemente relacionado com o doloroso
Pero de Magalhaes Gandavo deixa claro que a mastigac;ao es- procedimento a que eram submetidas as meninas: após. terem seus
tava a cargo das kugnatin: "(... ) fazem-nos (os vinhos) da raíz de urna cabelos cortados ou queimados e serem colocadas em cima de urna
erva que se chama aipim, a qual fervem primeiro e depois de cozida pedra de mó, as moc;as eram escarificadas com um dente de ~apivara
mastigam-na urnas mo9as virgens, e es¡remem-na nuns potes grandes, na frente e nas costas de forma a jorrar bastante sangue, e em cima dos
4
e dali a tres ou quatro dias o bebem". Quando, por qualquer motivo, ferimentos eram lan~adas as cinzas de urna abóbora selvagem que
se tomava necessária a participac;ao das mulheres casadas na mastiga- deixavam marcas permanentes. A mo9a tinha entao seu corpo e bra9os
~ao, estas deviam guardar abstinencia sexual durante alguns dias, para amarrados com fios de algodao e recebia um colar de dentes de capi-
que as bebidas nao estragassem. 41 vara para que "seus dentes sejam melhores ou mais fortes".
43

Este importante papel em urna atividade tao crucial como a fa- Iniciava-se entao urna fase de reclusao, em que a mo9a era
brica9ao das bebidas fermentadas (cf. pp. 73-6), bem como o reconhe- colocada em urna rede velha onde deveria ficar por tres días sem co-
cimento social de sua habilidade em todas aquelas tarefas tradicional- mer ou beber, enrolada de tal forma que ninguém a via. Após os tres
mente adscritas as mulheres abria para as kugnatin as portas para a dias podia descer da rede, mas sem tocar o chao: só poderla pisar n~­
condic;ao adulta e para o casamento com um hornero mais velho, já quela mesma pedra em que havia sido escarificada; qualquer necess1-
que os meninos da mesma idade ainda teriam que aguardar cerca de dade fisiológica deveria ser satisfeita com a ajuda de sua mae, avós ou
dez e até quinze anos para alcan9ar o mesmo reconhecimento, que tias que a carregavam para fora de casa e executavam urna série de
estava condicionado ao assassinato ritual de um inimigo. Ao contrário ope~a96es mágicas para proteger a iniciada de alguma "coisa ruim",
do que acontecia com os homens, as kugnatin nao precisavam de- ,. 44
ou mae.
monstrar habilidade em urna ou algumas tarefas socialmente valoriza-
Alimentada unicamente com farinha, raízes cozidas e água -
das, como é o caso da captura e morte de um contrário: tal habil idade
nunca a carne - a mo9a permanecía nesta condi9ao até a chegada do
era gradualmente conquistada desde a infancia através das rela~oes
segundo eflúvio45 , quando sofría novas escarifica96es e e:a submetida
com suas companheiras de idade e da ajuda prestada as suas maes.
a· urna abstinencia um pouco menos marcada, embora atnda devesse
Para as mulheres Tupinambá o momento decisivo era <litado unica-
mantero silencio, inclusive em rela9ao as suas companheiras de idade.
mente pela biología, isto é, pelo aparecimento da menarca.
Somente após o terceiro eflúvio eram pintadas com jenipapo e poderi-
André Thevet deixou a única descri9ao dos ritos ligados aos am retomar os trabalhos agrícolas. Durante todas as menstrua96es de
primeiros eflúvios menstruais, e nos informa sobre o temor sentido
pelas meninas acerca deste momento: " a primeira purga9ao se chama,
42 Thevet in Fen1andes, 1975: 66-7 (F. Femandes prefere o termo nhemodigara para designar
pois, Quion-duar, que poderíamos interpretar como caída ou vinda, a menare~: Femandes, 1989: 227); sobre a primeira menstrua\:ªº ver também Métraux, 1950:
202-4.
43
Cf. pp. 100-1. .
44 Ma é significa "coisa ruim", coisa que de gente só tem a aparenc ia (os para~ua1~s, du rante,ª
Guerra do Paraguai, chamavam os brasileiros de '·maé": ver a nota de Est~vao Pmto em Me-
39
Souza, 1971 (1587): 311; cf. também Abbevil le, 1975 ( 16 14): 237-8; Léry, 1975 (1578): traux., 1950: 2 1O); o tenno refere-se provavelmente a espíritos que podiam atacar a mo~a.
124; Staden, 1974 (1557): 165. atraídos por sua fragilidade e pelo cheiro do sangue menstrual.
40 4s Chamado por A. Thevet de pororoipor (in Femandes, 1975: 67) e por F. Fernandes de
Gandavp, 1995 a ( 1570 ?): 26.
41
Femandes, 1989: 112. jeporeroipoca (Femandes, 1989: 228).

11 o 11 1
sua vida a mulher deveria respeitar urna série de tabus alimentares e generalizada crendice de que se ele assim nao proceder, poderá s~r
sexua1s: vítima de algum infortúnio, arriscando-se mesmo a morrer! Depo1s
de um determinado tempo, tomará ele de um instrumento cortante,
fe ito dos dentes de um animal chamado agutí (cutia), e com ele fa-
"Como nesse tempo, em todas as vezes seguintes, quando etas tem rá diversas incisoes e furinhos em vários pontos do corpo, especi-
seus menstruos, que lhes poden1 durar tres dias ou quatro no má- almente no peito, que ficará todo marcado. ( ... ) também as jovens
48
xin10, elas se limpan1 con1 um bastao branco e liso, de tres pés de fazen1 incis5es no corpo , durante os tres días que se seguem ao
con1primento pouco mais ou menos; e se guardam de tocar em prin1eiro fluxo de sangue próprio das mulheres. Em conseqüencia
coisa que (nao) possam comer, nem beber, e nao deitam com seus disto, chegam elas as vezes a ficar bem doentes. Durante este tem-
maridos, dizendo-lhes em sua língua diko-aip, quer dizer, eu me po, devem abster-se de certos alimentos, de sair de casa e até
.
smto ma1" .46 mesmo de pisar no chao, cumprindo o mesmo ritual dos carrascos,
conforn1e há pouco relatamos. Permite-se apenas que se assentem
sobre un1a certa pedra, ah. colocad a un1camente
. para tal fi1m" .49
Como interpretar estes procedimentos rituais ligados a mens-
trua~ao? Para Roberto DaMatta a menstrua~ao, tal como a gravidez,
apresenta-se como um processo "natural", incontrolável, em oposi9ao Como aponta Viveiros de Castro, ambos os rituais seguiam os
a processos "sociais" que sao criados e controlados pelo grupo. Na mesmos passos básicos: escarifica9ao, tatuagem, reclusao, abstinencia.
maioria das sociedades humanas as mulheres sao estigmatizadas e Tal semelhan9a nao é fortuita, pois da mesma forma que o derrama-
sofrem algum tipo de separa~ao nestes momentos, numa tentativa por mento do sangue inimigo inventava um homem tomando o jovem apto
parte do grupo de normatlzar
· esta natureza " mcon
. t rol"ave1".47 E m bora a casar e ter filhos, o do sangue menstrual transformava a mo9a em
esta seja urna estratégia interessante, e tradicional, de abordagem an- urna "<loadora de vida" potencial, isto é, inventava urna mulher: ''am-
tropológica da menstrua9ao, o fato é que o material Tupinambá permi- bos mulher e matador derramavam um sangue vital para o grupo",
' ' . 50
te um maior aprofundamento do problema. tornando-se assim reprodutores de sua soc1edade.
As práticas que cercam os primeiros eflúvios constituem o Tais fatos devem nos deixar de sobreaviso contra a tenta~ao
verdadeiro ritual de inicia~iio das mulheres Tupinambá, e sao virtu- de, a pretexto de se estudar a sociedade Tupinambá a partir de sua
almente identicas aquetas realizadas com os homens que matavam institui9ao central, o rito caníbal, nos deixarmos impressionar pela
inimigos em terreiro, o que é, como sabemos (cf. p. 77), o ritual mas- figura do glorioso matador com seu ibirapema a ponto de passarmos a
culino de passagem a condi~ao adulta. André Thevet descreve o ritual ver toda a sociedade Tupinambá a partir de urna ótica unicamente
envolvido na execu9ao do prisioneiro e o compara com o ritual da masculina ou mesmo gerontocrática; a verdade é que para cada ima-
menarca: gem forte associada aos homens Tupinambá existe outra. equivalente
ligada as mulheres, imagem esta que nao tem necessariamente que
estar colocada em urna posi9ao hierarquicamente inferior a masculina
''O selvagen1 que executou o prisioneiro, cun1prida a sua tarefa, re-
dentro do sistema de idéias Tupinambá.
tira-se para sua morada, onde pern1anece todo o dia sem comer
nen1 beber, deitado em sua rede, onde fica durante tres dias segui-
dos sen1 por o pé no chao. Se tiver necessidade de ir a um lugar
qualquer, pedirá que para lá o transportem, em virtude da tola e
1 48
"Este costume nao é só privativo dos homens, e sim tambem das mulheres, com a_diffe~en­
~a única de que os homens se cortam por todo o corpo, e as mu lheres apenas do umbtgo ate as
46
47
Thevet, in Femandes, 1975: 68.
Roberto DaMatta, apud Laraia, 1972: 88. DaMatta refere-se aos Timbira, mas Laraia acre- 1 coxas(... )", (Evreux, 1874 [ 16 15]).
49
Thevet, 1978 ( 1556): 133.
dita que o m.e smo é também verdadeiro para os Tupi.

112
1 50
Viveiros de Castro, 1986: 648.

i 113
}'
)
Por outro lado, é oportuno recordar que enquanto o reconhe- os tupinambás tao luxuriosos que nao há pecado de luxúria que nao
cimento social da condi9ao adulta da mulher apresenta urna sincronia cometam". 52
com sua Ínaturidade biológica o mesmo nao acontece para os homens, Tratava-se antes de urna preven9ao quanto a produtos indese-
que ainda teriam que aguardar alguns anos pelo mesmo reconheci- jáveis das rela96es sexuais, vale dizer, filhos havidos com homens
mento. Isto nao deixa de fazer alguma justi9a ao tom gerontocrático inapropriados, que nao haviam sacrificado ao menos um inimigo em
dos Tupinambá de Florestan Femandes e mesmo as discuss6es da an- terreiro, e trocado seu nome de infancia. Tais crian9as "nao serao ja-
tropologia marxista francesa acerca da domina9ao dos jovens pelos mais bom fruto, e serao Mebek, quer dizer, fracas, covardes e medro-
velhos, visto ser urna opera9ao unicamente ideológica, e aparentemen- sas",53 cabendo especialmente a mae - ou a tia materna, caso a mae
te favorável aos velhos, o que impede os jovens de assumir um papel estivesse ausente ou marta - dirigir os primeiros passos da vida sexual
para o qual já estao biologicamente preparados; nao obstante, é tam- da kugnatin no sentido de evitar riscos <leste tipo.
bém verdadeiro que o estudo das fases adultas da vida das mulheres Este fato, aliado ao grande prestígio gozado pelos homens ma-
Tupinambá pode nos permitir matizar esta constata9ao na medida em duros e velhos, fazia com que muitos casamentos apresentassem gran-
que se tomará claro que os supostos "privilégios" gerontocráticos po- des diferen9as de idade entre os cónjuges: "as raparigas nao se despre-
dem também, em certa medida, ser estendidos as mulheres adultas, sam em casar com velhos e grisalhos (... )e sim antes querem desposar
especialmente as mulheres velhas. um velho, especialmente quando é Principal, e admirei-me, como coi-
sa desagradavel, o ver muitas jovens, de quinze a deseseis annos, ca-
sadas com velhos".54
2. Descobertos e Responsabilidades do Vida Adulto Esta proibi9ao do casamento com homens imaturos nao signi-
ficava que faltassem oportunidades sexuais aos meninos e jovens, es-
pecialmente com as velhas, assunto que abordarei adiante. Seria inte-
ressante, contudo, recordar aqui a importante presen~a do homoero-
O caráter de passagem concedido aos ritos que cercavam os tismo masculino entre os Tupinambá: "sao muito afei~oados ao peca-
primeiros eflúvios menstruais das mo~as Tupinambá toma-se ainda do nefando, entre os quais se nao tem por afronta; e o que se serve de
mais claro quando se sabe que eram realizadas, tal como na perfura~ao macho, se tem por valente, e contam esta bestialidade por proeza; e
do lábio dos meninos e na renoma9ao dos matadores de inimigos em nas suas aldeias pelo serta.o há alguns que tem tenda pública a quantos
terreiro, grandes cauinagens durante estas ocasi6es: "a mulher (... )nao os querem como mullieres públicas".55
~

conhecia homem, até lhe nao vir sua regra, depois da qual lhe faziao E bem verdade que em muitas ocasi6es o espectro de escolhas
grandes festas". 51 era limitado, em virtude do casamento avuncular preferencial, em cujo
O reconhecimento social da maturidade da mo9a abría cami-
52
nho para a definitiva inser~ao desta no circuito sexual e matrimonial Souza, 1971 (1587): 308.
53
Thevet, in Femandes, 1975: 77.
dos Tupinambá, o que era feito de forma singularmente desmarcada 54
Evreux, 1874 ( 1615): 39. Evreux está fazendo neste trecho um contraponto entre os Tupi-
quanto ao cerimonial, embora nao estivesse ausente um componente nambá do Mearim e os da ilha do Maranhao, cujas moyas nao gostavam de se casar comos
importante de controle social sobre a sexualidade feminina. Nao se velhos e passavam "a sua mocidade livremente". A título de especula'rao, penso que o contato
com os europeus, mais aprofundado entre os índios da ilha, estava alterando os sistemas hie-
tratava, é claro, de qualquer proibi9ao do ato sexual em si; afinal, "sao rárquicos daquele grupo, e deslocando a balan'ra de poder na dire'rªº dos indivíduos mais
jovens e mais bem sucedidos com relavao aos europeus.
55
51
Cardim, 1978 ( 1625): 103; cf. também Fen1andes, 1989: 229; Métraux, 1950: 205. Souza, 1971 (1587): 308; cf. Femandes, 1989: 136-7.

114 115

-
contexto a mo9a era por vezes até mesmo criada na maloca ou no lan-
fO do tio materno desde o nascimento: "( ... ) isto feito, o tio materno fe polígino, a mae da mo9a era a principal personagem a ser cortejada
leva a menina, retendo-a como futura esposa, seja porque o pai foi e adulada por qualquer pretendente, iniciando-se aí urna rela9ao de
56
morto ou esteja ausente". Mesmo quando a mo9a nao era criada pelo tensao ~ evita9ao entre o futuro genro e a futura sogra que poderia ser
tio materno era esperado que ela nao recusasse o casamento avuncular, bem acrrrada naqueles casos em que a uniao assumia a forma mais
57
pois aquelas que assim procediam eram consideradas dissolutas. comum de residencia pós-marital, isto é, a uxorilocalidade. Muito em-
Também era comum que as mo9as fossem criadas por seus futuros bora um cronista como J ean de Léry refira-se apenas ao papel do pai e
maridos quando estes eram principais, chefes políginos; neste caso - dos irmaos na escolha do genro/cunhado,60 André Thevet, mais inte-
assim como em todos os outros, visto ser tabu o sexo com meninas ressado em descri96es detalhadas dos ritos que cercavam a vida dos
impúberes - o marido esperava que viessem as regras da mo9a para Tupinambá, nos deixou um relato diferente, em que a tutela exercida
praticar o ato sexual.58 pela rnae sobre a sexualidade da filha nada mais é do que urna etapa
Quando estas hipóteses nao ocorriam abria-se todo um leque de todo um longo processo de transmissao de conhecimentos, proces-
de possibilidades sexuais e matrimoniais para a mo9a, que deveria, so pro.f undamente relacionado com a forma9ao de la9os íntimos entre
porém, tomar público o desvirginamento cortando os fios de algodao a menma e sua mae e também com as outras mullieres do grupo:
que amarravam sua cintura e bra9os desde a primeira menstrua9ao (cf.
p. 111 ), quer o ato tivesse se realizado sob os auspícios da mae ou "Se alguma joven1 ( ... ) mantivesse aventuras sexuais com alguém,
nao: contra a vontade de sua mae, era tida como dissoluta e chan1ada
Souragi. Mas se as jovens fossem sábias e obedientes, acatando os
conselhos de suas maes, ou das tias maternas se elas estivessem
"E con10 o n1arido lhe leva a flor, é obrigada a noiva a quebrar es- n1ortas, elas eram tidas em considera9ao. As maes ensinavan1-nas
tes fios, para que seja notório que é feita dona; e ainda que un1a a fazer potes de barro, vasilhas para o cauim, os trabalhos domés-
n1ó9a destas seja deflorada por quen1 nao seja seu n1arido, ainda ticos, redes de algodao, etc.".61
que seja em segredo, há de romper os fios da sua virgindade, que
de outra n1ane ira cuidará que a leva logo o diabo, os quais desas-
tres lhes acontecem muitas vezes; mas o pai nao se enoja por isso, Ainda segundo André Thevet, o guerreiro interessado em um
porque nao falta quen1 lha pe~a por mulher com essa falta". 59 cas~ento ~everia. fazer urna oferta de ca9a ou pesca a miie da jovem,
que mdagana da f1lha o nome do pretendente e comunicaría o fato ao
,
E importante chamar a aten9ao aqui para o papel das mulheres pai e irmaos da mo9a, que por sua vez convidariarn amigos e parentes
mais velhas e, de forma especial, da mae no processo de inicia9ao para consumir o presente e decidir sobre a conveniencia do pedido. Se
sexual das mulheres Tupinambá. Na medida em que o casamento nao o de~fecho desta reuniao fosse favorável a mo9a avisava o pretenden-
estivesse arranjado anteriormente, como tio materno ou com um che- te, dtzendo que se este passasse a noite com ela sua mae nao diria na-
da. Prossegue Thevet: "ora, estando isso concluído e acordado entre a
mo9a e o jovern, ele vai, quando todos dormem, deitar-se com ela, no
56
Thevet, in Femandes, 1975: 60. lanro do lado em que a miie fica, retomando pela madrugada, a fim de
57
Thevet, in Femandes, 1989: 76.
58
Souza, 1971 (l 587): 305.
59
Souza, 1971 ( 1587): 305; "as raparigas nao sao despresadas por se entregarem a quem
muito bem lhes parece em quanto solteiras" (Evreux, 1874 [1615]: 44). Após a primeira rela-
iyao sexual a moya passava a ser chamada de kugnammu9u, '"moya ou mulher completa', o
que nós dizemos por ' moya boa para casar"' (Evreux, 1874 (1 6 15]: 80). 60
Léry, 1975 (1578): 262.
61
Thevet, in Femandes, 1975: 76-7.
116
117
mens: pela primeira vez lhe seria permitido beber do cauim, isto é,
nao ser percebido. E se eles sao do agrado um do outro o casamento é
participar ativamente de todos os momentos e decisoes importantes, já
feito". 62
que estes, sem exc~ao, eram fartamente regados ao "vinho"; na' ver-
glo

Como se ve, era a mae, e nao o pai, que detinha o poder de.de- dade nao se imaginava realizar qualquer reuniao entre os homens a-
sencadear o processo de aceita~ao de um futuro genro, e caso sua opi- dultos em que estivessem ausentes as bebidas fermentadas: "nada a-
niao fosse negativa o assunto sequer chegava a ser discutido pelos contecía de importáncia na vida social ou religiosa dos tupinambás
homens: "é preciso observar que as fontes nao apontam a interf~renc~a que nao fosse seguido de vasto consumo de certa bebida fermentada
dos país neste caso. Ao contrário, as ftlhas somente obedec1am as conhecida pelo nome de cauim". 65 Como afirmou Claude d' Abbeville:
maes; quando estas morriam, subordinavam-se as tias maternas e aos
63
parentes mais próximos do lado da mae". 1 \
"Se esses índios sao grandes dan9arinos sao ainda melhores bebe-
Tais relatos mostram a existencia de urna forte identifica9ao dores; em verdade nao costumam beber senao nos días de reunioes
entre as mullieres, fenómeno que traz profundas implica96es para o festivas, con10 quando matam algum prisioneiro para comer,
estudo da organiza9ao social Tupinambá. quando deliberam sobre a guerra, em sun1a quando se juntam por
prazer ou para tratar de negócios importantes, os quais nao serian1
Na medida em que a kugnammu~u entrasse em acordo com sua ben1 sucedidos se antes nao preparassem o cauim e nao cuidassem
mae a respeito do futuro genro, e, é claro, na medida em que as rela- a vontade".66
~5es sexuais no interior do "matrimonio de pro:a"... f~ssem satisfató-
rias, esperava-se que a jovem casasse logo. A cenmon1~ de casamento Se o casamento era talvez o momento mais importante na vida
era um grande marco para a vida de ambos, mas especialmente para o de um homem, o momento em que este se tomava um ator político
homem: com um grau maior ou menor de influencia na vida social (cf. p. 78),
resta saber o significado deste momento para a mulher. Como vimos
"Ao tempo de lhe entregaren1 a n1ulher faziao grandes vinhos, e no capítulo 11 o casamento era a instancia em que se regulava social-
acabada a festa ficava o casan1ento perfeito, dando-lhe uma rede mente a apropria9ao do produto do trabalho feminino, trabalho absolu-
lavada, e depois de casados come9avam a beber, porque até ali nao
tamente crucial para a sobrevivencia do grupo, por parte dos homens.
0 consentiao seus pais, ensinando-os que bebessen1 com tente, e
fossen1 considerados e prudentes em seu falar, para que o vinho É bem verdade que o casamento exogamico traz urna série de proble-
lhe nao fi zesse mal, nen1 falassem coisas ruins, e entao con1 un1a mas para estes, como a mudan9a para a casa da mulher na situa9ao
cuya Jhe davao os velhos antigos o prin1eiro vinho, e lhe tinhao a uxorilocal e as tensas rela96es que a partir daí sao estabelecidas coro
mao na cabe9a para que nao arrevessassen1, porque se arrevessava sogros e cunhados, o que acaba levando a preferencia geral, nas terras
64
tinhao para si que nao seria valente, e vice-versa.".
baixas sul-americanas, pela endogamia local ou mesmo pelo que Vi-
veiros de Castro chama de "incesto metonímico", isto é, o casamento
A descri~ao de Femao Cardim deixa entrever pouco do signifi- com a filh . - 67
I a da irma.
cado da cerimónia de casamento para as mullieres, embora mostre De qualquer forma, nao existe mesmo qualquer espa~o para
com muita clareza a extraordinária importancia do ato para os ho- um celibatário nas sociedades do tipo da que estamos estudando, e isto
65
Métraux, 1950: 321.
62 Thevet, in Femandes, 1975: 77; F. Femandes chama estas relai;oes pré-matrimoniais de 66
Abbeville, 1975 (16 14): 237; cf. Cardim, 1978 ( 1625): 104-5; Léry, 1975 (1578): 128-9;
"matrimonios de prova": Femandes, 1989: 138-9. Souza, 197 l ( 1587): 311 ; e Fen1andes, 1989: 8 1.
63
Fem andes, 1989: 187-8. 67
Viveiros de Castro, 1986: 685; 1993: 180.
64
Cardim, 1978 ( 1625): 104.

l 18 119
por conta do valor de sobrevivencia do trabalho feminino, o que fazia, maduros e estabelecidos. Mas o casan1ento nao é urna conquista
para as mulheres. M~as solteiras, diferentemente dos rapazes, nao
por exempJo, que os jovens Tupinambá que matavam um inimigo se
sao carentes; e las sao alimentadas, desejadas e cortejadas. Assim,
casassem com qualquer mulher disponível: "(... ) as vezes tomam al- as mo9as pensam no casamento como urna restri9ao imposta a sua
guma velha de que nao esperam filhos, porque nao acham outra,· so- liberdade e seus prazeres. Uma mo9a sem um marido pode brincar
mente para que lhes fava de comer, porque se acertam de nao terem e flertar. Mas a partir do momento e m que ela se casa espera-se
maes ou irmas, que tenham cuidado deles, sao coitados, e contentam- que construa e mantenha um lar, e que restrinja seus flertes com
outros homens. ( ... ) A evidencia etnográfica sugere que as mo9as
se por entao com qualquer velha". 68 Estes jovens já estavam bastante
nas brideservice societies querem amantes, e nao n1aridos; elas
habituados ao sexo com as velhas, como informa Gabriel Soares de querem sexo, nao casamento".
71

Souza: "sendo de muito pouca idade tem conta com mullieres, e bem 1
mullieres; porque as velhas, já desestimadas dos que sao homens,
granjeiam estes meninos, fazendo-lhes mimos e regalos, e ensinam- Em um contexto mais próximo ao dos Tupinambá (Munduru-
lhes a f azer o que eles nao sabem, e nao os deixam de dia, nem de kú), Yolanda e Robert Murphy apresentam urna constata9ao seme-
noite".69 lliante. Os produtos propriamente masculinos, obtidos a partir da ca9a
Deve-se notar também, o que é um ponto extremamente impor- e da pesca, tendem a ser distribuídos amplamente - por conta, · por e-
tante, que o casamento com urna mulher vellia eximia o jovem do in- xemplo, das exigencias do servivc da noiva - e, portanto:
desejado servi90 da noiva, como nos mostra o exemplo Sanumá:
"Sob estas circunstancias, nao é necessário que urna n1ulher seja
"Entre un1a n1enina impúbere e urna mulher feíta, a preferencia casada para alimentar suas crian9as. Vários homens dentro do
nao cai, necessariamente, sobre a primeira. O atrativo da nlulher grupo don1éstico - sejam maridos, irn1aos ou país - poden1 lhe en-
n1ais velha está nao só em sua disponibilidade sexual, mas também tregar carne e peixe, e ela acaba sen1pre recebendo urna quantida-
em considera96es de orden1 económica, nao desprezíveis para un1 de suficiente para si e para sua família. ( ...) Mulheres e crian9as
jovem com ambi9óes de independencia doméstica. Urna mulher sin1plesmente nao passam fome entre os Mundurucu por fa lta de
adulta, obviamente, trabalha e produz muito n1ais que un1a crian- un1 marido ou pai".72
9a. Mas parece que o fator mais decisivo para essa preferencia é a
libera9ao, total ou nlais cedo, das obriga96es para com os sogros,
mesmo que estejan1 na própria aldeia do marido". 7 º A distribui9ao ampla dos produtos masculinos entre os Tupi-
nambá é confirmada por André Thevet: "outro bom costume deles é o
seguinte: o primeiro que pegou alguma grande presa, seja terrestre ou
Ora, se encararmos a institui9ao matrimonial a partir de seu va-
aquática, distribuirá a mesma entre todos". 73 Assim, acaba por se tor-
lor de sobrevivencia é forvoso reconhecer que as mulheres, ao contrá-
nar claro que a visao antropológica tradicional a respeito do casamen-
rio dos homens, nao necessitam do casamento. Vejamos o que afrrma
to, isto é, como urna instituivao necessária para a reuniao das habili-
Jane Collier:
dades masculinas e femininas em urna unidade produtiva é difícilmen-
te sustentável, na medida em que os homens precisam do casamento
O casan1ento nas brideservice societies é un1a conquista para os para a sua sobrevivencia, enquanto que as mulheres poderiam perfei-
homens. Ele transforma solteiros excluídos e dispersos em adultos
tamente passar sem ele.
68
José de Anchieta, "lnfonna9ao dos Casamentos dos Índios do Brasil" (l 584), in Anchieta,
71
1988: 461; cf. Femandes, 1989: 135. Collier, 1988: 34.
69 72
Souza: 197 1 (15 87): 308. Murphy e Murphy, 1974: 144.
70 73
Ramos, 1990: 150. Thevet, 1978 ( 1556): 106.

120 121
Surge entao a pergunta: o que faz com que as mulheres sejam está ligada a sua própria sobrevivencia e a possibilidade de urna a~ao
obrigadas aq casamento? Creio que a resposta dada por Jane Collier a política relevante: "a relac;ao entre os homens se faz através das mu-
esta questao é a mais satisfatória: em sociedades onde a principal de- llieres ( ... ) como se o que definisse um hornero, para um outro, fosse
sigualdade social se dá entre os homens casados e os solteiros, e onde· . - d e conexo a urna mu llier" .76
sua con d i~ao
o discurso dominante afrrma que os homens conseguem mullieres por Para as mullieres, por outro lado, esta necessidade está bem
suas habilidades e pela capacidade de defender seus direitos sobre elas mais relacionada ao manejo social dos conflitos entre os homens, ma-
através da violencia, a existencia de mulheres desejáveis disponíveis é nejo sempre dependente, em última análise, da anuencia das mullieres
um permanente fator de instabilidade política e de violencia potencial, as unioes matrimoniais. Se o casamento fosse tao crucial para as mu-
podendo levar a assassinatos e fissao de grupos locais.
llieres nas brideservice societies quanto o é para os homens devería-
O texto de Collier merece ser citado: mos esperar que estas se "estabilizassem" com o matrimonio, o que
nao é o caso: os testemunhos dos cronistas sao unanimes em ressaltar
"As n109as poden1 resistir com sucesso a unioes particulares, mas a grande freqüencia de divórcios entre os Tupinambá, e a literatura
nao poden1 resistir ao casan1ento pern1anentemente, já que seus etnográfica deixa claro que os divórcios nestas sociedades se dao com
77
flertes e 'casos' sao extren1an1ente desagregadores. En1 sociedades maior intensidade antes do nascimento do primeiro fÍlho.
onde homens estabelecem direitos sobre as n1ulheres através da
competi9ao com outros hon1ens, os flertes e 'casos' fe n1ininos Jane Collier afirma que as jovens esposas, nas brideservice so-
provocam violentos confrontos entre estes. As pessoas poden1 ser cieties, podem fugir com amantes, recusar-se ao trabalho ou ~esmo
indulgentes a respeito dos desejos e flertes de uma adolescente, matar os primeiros filhos como forma de escapar a casamentos mdese-
mas ninguén1 - homem ou n1ulher - tem n1uita sin1patia por mulhe-
jados:
res adultas cuja recusa en1 estabelecer un1 lar coloca em perigo as
vidas de filhos e irn1aos queridos".74
"Porque as n109as resistero em assun1ir as responsabilidades de es-
posas o casan1ento é antes um processo lento do que un1 evento.
Gabriel Soares de Souza descreve um caso típico de conflito Os velhos poden1 arranjar casamentos, ou os irmaos de urna n109a
em tomo de mulheres, ocorrido na Babia: poden1 dá-la a um hon1em, n1as estes arranjos falhan1 a nlenos que
a mo9a coopere. ( ... ) Etnógrafos freqüenten1ente reportan1 qu~ os
primeiros casan1entos apresentan1 un1a a l ta taxa de f racasso" .78
"Entre os tupinan1bás n1oradores da banda da cidade armaram de-
saven9as uns com os outros sóbre un1a mo9a que um tomou a seu
pai por fór9a, sem lha querer tornar; con1 a qual desavenc;a se apar- Para a kugnammucupoare79 , o momento d ec1s1vo,
· · · l ent e
equ1va
tou tóda a parentela do pai da moc;a, que eram índios princi pais, em importancia ao casamento para os homens, era o nascimento do
com a gente de suas aldeias, e passaram-se a ilha de Itaparica ( ...)
onde faziam ciladas uns aos outros com canoas, em que se n1ata-
primeiro filho. Em um sistema uxorilocal isto é ainda mais pe~ceptí­
vam cada dia n1uitos deles".75 vel na medida em que mesmo após o casamento a mulher contmua a
m~ter um vínculo muito estreito com sua mae. Ao contrário do ho-
mem, cujos vínculos de origem sao, ao menos provisoriamente, esma-
O casamento é, portanto, urna necessidade para homens e mu-
lheres, mas por motivos diferentes: para os homens esta necessidade
76 Viveiros de Castro, 1986: 371.
77 Sobre os divórcios entre os Tupinambá cf. Fernandes. 1989: 205.
74
Collier, 1988: 35. 78
Collier, 1988: 34.
75
Souza, 197 1 ( 1587): 30 l. 79 " Mu lher casada, ou no vigor da idade" (Evreux, 187 4 [ 16 15): 81 ).

122 123
mentos, mas para a própria constitui9ao do espa90 doméstico como
ecidos com o casamento uxorilocal, para a mulher é apenas o nasci- urna fonte de autoridade feminina. Além disso o trecho revela, em
mento do pcimeiro filho que a toma efetivamente urna adulta indepen- concordancia com a afrrma<rao de Jane Collier de que os genitores
dente. Também é assim para as Araweté: masculinos participam "ativa e amorosamente" do cuidado com os
ftlhos, urna dimensao fundamental da couvade, nem sempre percebi-
"O nascimento do primeiro filho é ainda mais decisivo para elas da. Como já visto, o registro etnográfico mostra que existe grande
que para seu n1arido. Este, logo que casa, recebe um tecnónimo relutancia por parte das mullieres jovens em assumir as responsabili-
segundo o nome da esposa; mas ela só abandona seu nome de in- dades de um lar independente, o que acorre efetivamente coro o nas-
fancia quando seu prin1eiro filho é nominado. E a mudan9a de vi-
cimento do primeiro filho, e nao coro o casamento. Assim a couvade,
da após o nascimento do primeiro filho é muito mais radical para
urna mulher que para seu marido; ela deixa de ser um apendice da para além do reconhecimento da patemidade, assume também um
mae, e se volta para a própria casa; deixa de pertencer ao bando aspecto de confirma9ao dos direitos de um hornero sobre urna deter-
turbulento das mo9as sen1 filhos, alegres e licenciosas, e adota um minada mulher, somente possível em maior escala coma estabiliza9ao
comportamento n1edido, recolhido e sen1pre solícito para com as desta em seu lar.
necessidades do filho. De objeto de ciún1es do marido, passa a ser
quen1 controla suas aventuras. As memi ñií, n1esn10 jovens, sao Ve-se, portanto, que a matemidade permitía que a kugnammu-
respe itadas, e a balanya sutil da autoridade doméstica gende sensi- cupoare efetivamente assumisse todos os papéis adscritos as mulheres
velmente para o lado feminino após o prin1eiro filho".8 pela sociedade Tupinambá, nao sendo de se admirar que as mo9as
solteiras ou sem filhos relutassem em aceitar este fato: a primeira gra-
Também para Jane Collier o nascimento do primeiro filho é videz bem sucedida marcava o início de urna vida dura e desgastante,
um momento crucial: seja no cuidado com os filhos ou no trabalho cotidiano, conforme a-
presentado no capítulo II. Seria um equívoco, contudo, reificar as in-
forma96es dos cronistas ao ponto de se ver as mullieres unicamente
"Na n1aioria das brideservice societies o nascimento de urna crian-
iya a quen1 se permite viver marca o ponto de virada nas rela96es
como "bestas de carga"; a enorme quantidade de trabalho dispendida
conjugais. Desde que un1a n1ulher tenha urna crian9a para cuidar pelas mulheres nao as impedía de participar da reprodu9ao das rela-
deve prové-la diarian1ente con1 comida e abrigo. Mulheres con1 96es sociais Tupinambá em níveis que iam bastante além da reprodu-
recén1-nascidos e crian9as pequenas tan1bém encontram dificulda- 9ao biológica. O estudo do status feminino entre os Tupinambá, e do
des en1 se encontrar con1 amantes no n1ato. Por esta razao a pre-
papel das mulheres em cerimonias como o rito caníbal e a sauda9a~
senga de un1a crian9a muda o contexto das demandas do n1arido
por con1ida, abrigo e fidelidade sexual. Ele agora nao aparece n1ais lacrimosa nos pennitirao colocar em questao urna certa visao da soci-
con10 se estivesse exigindo que sua esposa fizesse coisas que ela edade Tupinambá que, se nao está totalmente equivocada, é ainda as-
nao estava disposta a fazer. E ele agora tem algo para oferecer a sim excessivamente marcada pela perspectiva masculina.
eta en1 retribui9ao. Etnógrafos comumente descreven1 os pais co-
mo participantes ativos e an1orosos no cuidado comos filhos". 81

3. As Hierorquios Femininos no Sociedode Tupinombó


Fica bem evidente neste trecho a importancia <leste momento
para as mullieres Araweté, nao apenas para a estabiliza9ao dos casa-
Após o nascimento dos primeiros filhos, por volta dos vinte e
80
Viveiros cÍe Castro, 1986: 461 -2. cinco anos, a mulher passava a ser chamada de kugnam, "urna mulher,
81
Collier, 1988: 35.
125
124
ou urna mulher em todo o seu vigor".82 O tipo de vida levado pelas soldado, pode servir como exen1plo típico. Tratar-se-ia, entao, de
urna autoridade sisten1atican1ente graduada. ( ...) Na época n1oder-
kugnam já foi, de certa forma, discutido no capítulo II, quando tratei na, a hierarquía se tomou 'estratifica9ao social ', isto é, hierarquía
do trabalho "da mulher. Nesta se~ao gostaria de mudar o foco: ao co- envergonhada ou nao consciente, reprimida".
84

m~armos a tratar da maturidade das mulheres Tupinambá toma-se


imprescindível o estudo do lugar, vale dizer do status, das mulheres
naquela sociedade, o que é, aliás, um dos objetivos principais deste Partindo-se deste ponto de vista parece certo que as desigual-
trabalho. dades no interior do grupo de mulheres - entre velhas e jovens durante
o aprendizado das técnicas, por exemplo - de que tratei nas se~oes
. Ora, falar de status é necessariamente falar de hierarquias, na anteriores se localizam com muito maior facilidade na esfera das hie-
medida em que diferenc;as de posi~ao social sempre acabam por fazer rarquías "integradoras". Por outro lado, o jogo de desigualdades que
referencia a algum tipo de desigualdade entre indivíduos. Contudo, e se estabeleciam entre os homens, e aqui estou falando de hierarquías
embora a sociedade Tupinambá estivesse marcada por várias destas de dominar;iio, afetava profundamente as vidas das mulheres, notada-
desigualdades - entre homens e mulheres, velhos e jovens, casados e mente quando estas desigualdades - que, é bom lembrar, acabavam
solteiros, entre outras - seria assaz insuficiente ver as hierarquias uni- quase sempre reguladas através do casamento, isto é, das mulheres -
camente como "ordens de dominancia" (as pecking orders do jargao
se expressavam por meio da poliginia.
etológico), esquecendo-se dos aspectos integradores destas mesmas
hierarquías. Como afirma de maneira mais elegante Edgar Morin: Institui~ao arduamente combatida pelos jesuítas e outros mis-
sionários, tanto por sua "imoralidade" intrínseca quanto pelo seu po-
' tencial para a perversao dos próprios colonos europeus, a poliginia
"A simples autoridade vertical (domina9ao/subordina9ao) dá ape-
nas um conceito de hierarquía muito pobre, sobretudo quando
conceme a autoridade de indivíduos dominadores sobre outros in-
i surge como um elemento central do "ser" Tupinambá nao apenas para
os cronistas mas também para a reflexao antropológica contempora-
divíduos don1inados. Todavía, esta hierarquía de don1ina9ao, tor- nea; para Florestan Femandes, por exemplo, a poliginia era fundamen-
nando-se um dos constituintes da orden1 social, desempenha um talmente urna das prerrogativas da gerontocracia Tupinambá: "a análi-
papel integrador dispondo os indi víduos nesta ordem, bem con10 se dos dados disponíveis mostra que havia urna liga~ao muito íntima
conferindo aos donlinantes (indivíduos ou grupos) a responsabili-
entre o número de esposas de um indivíduo e sua posi~ao na hierar-
dade de proteger, conduzir e até alimentar o grupo no seu conjun-
to". 83 quía tribal. Somente os grandes guerreiros e pajés possuíam extensos
grupos de mulheres".85
Louis Dumont foi ainda mais explícito quanto as dificuldades Poucas objeyoes podem ser dirigidas a esta constatayao - de
do pensamento ocidental em ver nas hierarquías algo mais do que urna resto feíta muitas vezes pelos próprios cronistas - quando se observa a
rela~ao de explora~ao:
poliginia a partir de urna perspectiva masculina (cf. pp. 80-4), mas ela
é certamente insuficiente quando se tenta integrar um ponto de vista
feminino a análise. Ora, por que motivo deveriam as mullieres aceitar
"Para o senso comum moderno, a hierarquía é uma escala de or- o casamento polígino? Nao seria mais interessante para estas estabele-
dem e m que as instancias inferiores estao, em sucessao regular,
englobadas nas superiores. A ' hierarquía mili tar', construyao arti-
cer um regime de exclusividade simétrico ao que os homens estabele-
ficial de subordina9ao progressiva do con1andante-em-chefe ao
84
Dumont, 1992: 117-8.
82 85Femandes, 1989: 203; sobre os privilégios matrimoniais dos grandes pajés cf. Evreux, 187 4
Evreux, t.87 4 ( 1615): 82. '(
83
Morin, 1989: 286. (1615): 257.

126 127
ciam para elas me9inas? Ou será que as mullieres simplesmente nao políticos, ou principais, as mullieres também podiam obter benefícios
poderiam mesmo, em virtude da dominavao masculina, evitar os no- da situa9ao polígina, inclusive em termos de hierarquia social. Que
vos casamenfos de seus maridos? tipos de vantagens seriam estas? Para os sociobiólogos a poliginia é
A resposta a estas questoes envolve o abandono de urna visao urna estratégia reprodutiva pela qual os homens maximizam o número
que reduz a poliginia a urna rela9ao de explora9ao "lúbrica", ou mes- de seus descendentes minimizando o investimento em cada crianva;
~º económica, dos homens sobre as mullieres. A imagem - que aliás
por sua vez as mulheres tenderiam a investir em netos, filhos dos seus
mcorpora urna boa dose de preconceito anti-oriental - do sultao com filhos. Disso resulta que as mulheres deverao favorecer o acúmulo de
suas dezenas ou centenas de concubinas tolda nossa visao das socie- esposas por seos filhos, mais do que pelos maridos. 89
dades concretas que praticam a poliginia e que constituem ou consti- De fato, o sucesso reprodutivo efetivamente representou um
tuíram, afinal de contas, urna boa parte das sociedades conhecidas fator político importante para os homens Tupinambá e para os euro-
pelos antropólogos. peus que se "indianizaram", na mt.~dida em que um grande número de
Das 853 sociedades catalogadas no Human Relations Area File fillios favorecia a forma9ao de grupos guerreiros e que um grande
apenas 16% prescrevem a monogamia, enquanto 83,5% admitem, em número de filhas levava ao acúmulo de genros em regime uxorilocal
te~~s fo~ais, que um hornero tenha mais de urna mulher (a polian- e/ou devedores do servi90 da noiva: "assim, o ideal matrimonial de
dna e pratlcada por 0,5% das sociedades). Contudo, apenas 5% a 10% posse de muitas mullieres ajustava-se ao outro ideal matrimonial de
dos homens nas sociedades políginas tem realmente diversas mulheres procriavao de muitos filhos". 90 Segundo Gabriel Soares de Souza:
ao mesmo tempo, o que é bastante coerente coro o que sabemos a res- "(... )o que tem mais filhos é mais rico e mais estimado, e mais honra-
peito da poliginia Tupinambá. 86 do de todos, porque sao as fillias mui reqüestadas dos mancebos que
,,. as namoram".9 1 Nao se deve desconsiderar o efeito propriamente "re-
E necessário neste ponto seguir a recomendavao de Kay Martin produtivo" da poliginia: o principal Amenduua, por exemplo, possuía
e Barbara Voorhies: "as vantagens e desvantagens relativas da situa- oitenta e seis filhos. 92
9ao polígina na vida cotidiana (na medida em que elas possam ser
objetivamente medidas) devem ser consideradas separadamente para Contudo, hipóteses de tipo sociobiológico dificilmente dao
Sª da sexo " .87 B astana
. recordar o exemplo das sociedades
. políginas da conta das evidencias que mostram urna participavao ativa das mullie-
Africa Ocidental, onde as ca-esposas vivem em residencias separadas res na obtenvao de esposas pelos maridos. Comumente esta a9ao da
/ esposa se iniciava quando o marido, após passar alguns anos na malo-
e possuem urna alta participa9ao no comércio externo e um grande
po~e~ ~olí:ico ou o caso dos Tiwi da Nova Guiné, onde a presenva da
ca do sogro, conseguia escapar ao regime uxorilocal - cedendo cativos
pohgm1a e acompanhada por urna grande liberdade sexual por parte ou fillias aos seus cunhados, por exemplo - e voltava para junto dos
das mullieres. 88 seus parentes:
Creio que a documenta9ao sobre os Tupinambá pode ser acres-
"Quando ele a ten1 de uma vez consigo, e lhe dispensa bom trata-
centada a estes exemplos quando mostra claramente que se os homens
n1ento, ela procura por todos os meios obter companheiras para se-
dependiam do acúmulo de esposas para tomarem-se grandes líderes ren1 mulheres de seu marido, a fi n1 de que seja ajudada por elas

:~ Fisher, 1995: 7 l-7; van den Berghe, 1983: 71. ~9 White e Burton, 1988: 87 1-2.
90
Marti n e Voorhies, 1975: 241. Femandes, 1989: 2 11.
88 91
Sobre a África Ocidental cf. White e Burton, 1988: 884; sobre os Tiwi cf. Martin e Voorhi- Souza, 197 1 ( 1587): 304.
92
es, 1975: 242. Fernandes, 1989: 2 11.

128 129
todas a servem (... )",97 ; e por Pero de Magalhaes Gandavo: "a prirneira
em sua casa, porque é bastante difícil que urna só muJher possa fa-
zer tudo em un1a casa, segundo o costume do país".
93 tem em muita estima e fazem rnais caso que das outras". 98
Podemos retirar <lestes relatos várias conclusoes importantes,
Percebe-se que a mulher, ao afastar-se de seu grupo de paren- entre elas a de que a poliginia podía beneficiar diretamente a esposa,
tes, logo tratava de fonnar um novo grupo, desta feíta formado por co- na medida em que esta passava a exercer autoridade e controle sobre
esposas; as mullieres pareciam mesmo ver com bons olhos o acúmulo as esposas mais jovens. Assim, se é verdade que os bomens ascendiam
de esposas por parte dos maridos: "e por isso a mulher nunca se agasta a posi9ao de principal ao se cercarem de mulheres, também é verdade
porque o marido tome outra ou outras (...) sobretudo se isso o serve e que suas primeiras esposas tinham bons motivos pessoais para auxiliá-
lhe dá de comer, etc. E de ordinário tem paz com suas combor9as, los nesta empreitada, muito embora as coisas nem sempre ocorressem
porque tanto as tem por mulheres de seus maridos como a si mes- conforme seus desejos: por vezes o marido reconhecia como esposa
mas".94 Como afirmam Kay Martín e Barbara Voorhies: "a adi9ao de principal urna mulher ma1s jovem ou mais bonita.99
urna segunda ou subseqüente esposa a um arranjo marital preexistente A poliginia poderia surgir como expressao de urna disputa en-
é freqüentemente acolhida entusiasticamente pela primeira esposa. tre o marido e a mulher, nem sempre com resultados satisfatórios para
Aliás, em algumas sociedades o marido só toma outra esposa se a mu- o marido, como ocorre entre os Sanumá :
lher fizer o pedido". 95
O padrao rnais geral <leve ter seguido de perto a descri9ao de "Lúcio util iza a poliginia como arma contra a n1ulher e con10 pos-
Hans Staden: sível fo nte de prestígio. Mas, pelo menos no seu caso, é pouco efi-
caz. T rouxe da Venezuela para a rnissao urna jovenzinha órfü, ex-
tremamente tímjda e assustada no n1eio de afins desconhecidos.
"A n1aioria dos homens ten1 só un1a n1ulher, alguns porén1 tem Ela deu-lhe un1 fil ho e foi pouco depois descartada. O n1enino 'fi-
mais, e muitos dos seus principais tem treze e quatorze. O chefe cou com ele. ( ...) Encontrei Lúcio na missao em 1973, orgulhoso
Abatí-po<;anga, ao qual fui dado de presente ultiman1ente, e do de sua nova mulher. Essa foi urna uniao até bem tolerada pela n1u-
qual os franceses n1e resgataram, tinha muitas n1ulheres, e un1a, lher mais ve lha, já que a nova co-esposa era filha de uma irma sua,
que lhe havia sido a primeira, era supren1a entre elas. Cada un1a consangüínea próxima e port.anto, n1ais aliada do que con1petido-

tinha o seu espa<;o exclusivo na cabana, seu fogo próprio e sua ra" . 100
planta<;ao de mandioca particular. Mantinha-se o varao no espa<;o
pertencente aquela con1 quen1 lidava e que lhe dava de comer. E
assim alternativamente. ( ... ) as mulheres viven1 em boa hannonia Alcida Ramos revela ainda o ódio sentido pela primeira esposa
un1as com as outras".96 de Lúcio por conta de suas constantes tentativas de obter novas mu-
lheres, existindo inclusive urna coincidencia temporal entre estas ten-
A autoridade da esposa mais velha é confirmada por Gabriel tativas e a perda de vários bebes por parte da mulher, o que faz pensar
Soares de Souza: "mas elas dao todas a obediencia a mais antiga, e em urna vingan9a exercida através do infanticídio ou negligencia vo-


97
Souza, 1971 (1 587): 304.
93 98
Thevet, in Femandes, 1989: 204. Gandavo, l 995 b ( 1576): 103 cf. também Femandes , 1989: 208.
94 José de Anchieta, "Infonna<;ao dos Casamentos dos Índi os do Brasil" ( l 584), in Anchieta, 99
José de Anchieta, "Informac;:ao dos Casamentos dos Índios do Brasil" (1584), in Anchieta ,
1988: 456; cf. Femandes, 1989: 207. 1988: 460- 1; Fernandes, 1989: 209.
95 Martín é Voorhies, 1975: 244. 100
Ramos, 1990: 127.
96
Staden, 197 4 ( 1557): 17 1.
131
130
luntária. 101 É de se notar também a maior facilidade encontrada por
"Ce-esposas que regularmente cooperam podem freqüentemente
Lúcio quando buscou urna nova mulher aparentada com a primeira
utilizar seus la9os íntin1os con10 um instrumento de coer<;ao. Se,
esposa; cofn efeito, os Tupinambá parecem ter praticado bastante a por exen1plo, urna esposa desenvolve alguma queixa do n1arido,
poliginia sororal (o casamento com duas ou mais irmas), típico das pode solicitar o apoio das outras para refor9ar sua própria posi9ao.
sociedades indígenas do Novo Mundo, 102 como se depreende <leste Em alguns casos elas podem até mesmo fazer greve, recusando-se
trecho de Manuel da Nóbrega: "ya tengo escrito que nos ayan del Papa ao trabalho agrícola, a cozinhar ou participar do sexo até a disputa
poder para dispensar nosotros en todos estos casos con los hombres ser encerrada e a restitui9ao própria ser feita". 106
que en estas partes de infieles andam, porque unos dormem con dos
hermanas y desean después que tienem hijos de una casar con ella y Nao há informa96es 'Sobre a96es de co-esposas contra os mari-
no pueden". 1 3º dos entre os Tupinambá. As descri96es sobre conflitos entre maridos e
Fatos deste tipo podiam fazer com que o jogo político no inte- mulheres, porém, mostram o tamanho das dificuldades que um ho-
rior do grupo de esposas tomasse um aspecto tenso: "e sempre há en- mem poderla passar com várias esposas:
tre estas mullieres ciúmes, mormente a mulher primeira; porque pela
maior parte sao mais velhas que as outras, e de menos gentileza, o "Escamecem e despresam o hornero, que se accomoda com as
qual ajuntamento é público <liante de todos".
1 4
º provoca9oes e questóes de sua mulher quando ella ten1 mau genio.
Em quanto ahí n1orei, aconteceo aborrecer-se um selvagem do
De qualquer forma seria um erro, repito (cf. p. 81 ), encarar a mau genio de sua mulher a ponto de empunhar coma mao direita
poliginia unicamente como um privilégio masculino. O estudo compa- un1 cacete, e na esquerda segurar nos cabellos d'ella querendo ex-
rativo mostra que "em sociedades onde a poliginia é um padrao geral perimentar se este óleo e balsamo ado9aria o azedume de seo mal,
ou preferencial, os homens podem abandonar a monogamia com con-
siderável apreensao". 1º5 E nem poderia ser de outra forma, na medida
em que a ascensao a condi9ao polígina leva o homem a enfrentar urna
1 porem admirou-se de ver, que cahindo o fogo na chaga mais o
augmentasse, porque podendo escapar-se de suas maos, á vista dos
visinhos, tomou tan1ben1 ella outro cacete, quiz fazer o mesn10 ao

série de problemas, seja no manejo das complexas intera96es entre co-


esposas ou nas intera96es entre ele próprio e cada esposa em particu- 1 n1arido, e depois de se haverem espancado recíprocamente com
grande applauso de todos, ficaran1 ambos com igualdade de cir-
cunstancias frente a frente um do outro, sendo depois o marido a

t
,
lar. E esperado que o homem distribua seus favores igualmente entre fabula e o assun1pto de todas as conversas, quer dos grandes quer
as esposas, mas é óbvio que quanto maior foro número destas mais º
dos pequenos". 1 7
difícil será cumprir esta exigencia, o que certamente levará a conflitos,
notadamente quando o marido passa a favorecer urna esposa mais jo-
vem. Mas nao apenas os conflitos entre esposas podem ser problemá-
i1 Comentando, com muita propriedade, este fato: disse Florestan
Femandes: "os demais membros da maloca, todavía, esperavam outro
ticos; na verdade em muitas oportunidades é a amizade entre esposas
que pode se tomar urna grande dor de cabe9a para um homem: f
~
t desfecho. Pensavam que a mulher castigada, a vista de todos, fugisse
das maos do marido. Em conseqüencia, o resultado da rtontenda foi
desfavorável ao marido". 1º8
~
Assim toma-se evidente que se a poliginia era um pré-requisito
º Ramos, 1990: 126-7.
í
1 1
102
White e Burton, 1988: 884. para a ascensao masculina na sociedade Tupinambá nao é menos certo
103
Carta do P. Manuel da Nóbrega ao P. Luís Gon\:alves da Camara, Lisboa (Sertao de S.
Vicente, 30/0811553) in Leite, 1954 (1): 525; cf. Fernandes, 1989: 199-200.
104 106
Souza, .1971 ( 1587): 304. Martin e Voorhies, 1975: 242.
105 107
Martín e Voorhies, 1975: 242. Evreux, 1874 (1615): 91.
108
Fernandes, 1989: 21 O.
132
133

f
que ela trazia perigos para as pretensoes de um hornero ambicioso; p. 33) carregadas de prestígio e poder e que tanto interferiram na ac;ao
afinal um Gonflito mal resolvido com urna esposa poderia, como vi- jesuítica coro seu apego a valores tradicionais relacionados a costumes
mos, trazer sérios prejuízos a sua reputa9ao. Se levarmos em conta como a antropofagia e a guerra.
que este tipo de conflito particular poderia ser multiplicado coma po-
liginia ficaremos tentados a questionar a idéia de " privilégio masculi-
no" que está associada a esta institui9ao.
Um comentário de André Thevet pode dar urna imagem vívida
, ,4. Ve/has Asquerosas, Ve/has Poderosas: As Uainuy
de como os conflitos entre esposos poderiam, embora isto nao fosse
comum, ser bem acirrados; referindo-se a um determinado fruto vene-
noso usado pelos nativos para matar seus desafetos, Thevet afirma "A sexta e última classe está entre os 40 e o resto da vida, e en-
110
que: tao a mulher se chama Uainuy". Se existe urna chave para a com-
preensao

do lugar da mullier na sociedade Tupinambá esta se situa
"Os hon1ens costun1am adn1inistrar este veneno as esposas, quan- sem dúvida na investiga9ao das mullieres mais velhas, nao sendo de
do co m elas se zangam ainda que pelo motivo mais insign ificante. surpreender que os relatos de cronistas e viajantes muitas vezes cen-
Ou entao sao as n1ulheres que o dao aos maridos ... Quando algun1a trem sua aten9ao nelas. Pode-se afirmar que na imagem das velhas
destas infeli zes a quen1 o marido irritou encontra-se grávida, sua índias concentrou-se boa parte dos preconceitos raciais e misóginos
vingarn;a consiste nao em adnúnistrar este veneno, mas em fazer
uso ela própria de un1a certa erva que provoca o aborto!". 10CJ dos europeus em rela9ao aos nativos: o horror ao canibalismo e a li-
berdade sexual, bem como a idéia de que o continente americano fa-
vorecesse a degenera9ao e o envilecimento de animais e homens, pa-
A poliginia pode ser esclarecedora quan to ao significado do recem ter se personificado na figura da selvagem decadente, desdenta-
casamento para as mulheres. Já foi <lito anteriormente que as mulheres da e suja. 11 1
nao necessitam do casamento para terem acesso aos produtos mascu-
linos, pelo menos em compara9ao com a absoluta necessidade dos
Referindo-se as kugnam, dizia Yves d 'Evreux, nao sem um
'
homens de ter acesso a produ~ao feminina através do casamento. Se o certo humor:
casamento fosse tao importante economicamente para as mulheres
quanto o é para os homens difícilmente haveria espa90 para a divisao 1
"N'essa idade conservam ainda as indias alguns tra9os de sua rno-
entre várias mulheres dos recursos fomecidos por um único homem, • cidade, e principiam a declinar sensivehnenre: sendo feias e por-
cas, trazendo as n1an1as pendentes a similhan9a dos caes de caya, o
demonstrando, a meu ver, que os benefícios da poliginia para as mu-
llieres devem ser buscados nao na esfera da produ9ao económica - já
que aí as vantagens sao claramente masculinas - mas na esfera das
+ que causa horror: quando jovens,sao bonitas e asseiadas, e tem os
peitos em pé. Nao quero demorar-me n1uito n 'esta ¿natéria, e con-
cluo dizendo que a reco mpensa dada n 'este mundo á puresa é a in-
I
hierarquías sociais: para as mullieres o seu significado reside na possi- corruptibilidade e inteiresa acompanhada de bom cheiro , n1ui ben1
bilidade de constru9ao de um espa~o de autoridade social, na possibi- representada nas letras santas pela fl or do lyrio puro, inteiro e
cheiroso" . 112
lidade de se tomar, quem sabe, urna daquelas "vellias feiticeiras" (cf.

110
Evreux, l 87 4 (16 15): 82.
Thevet; 1978 ( 1556): 117. Sobre o aborto como vinganya contra os maridos cf. José de
IOCJ 111
Gerbi , 1996; Raminelli , 1997.
Anchieta (Cana de José de Anchieta ao Padre Geral , de Sao Vicente, a 1 de Junho de 1560, in 112
Evreux, 1874 (1615): 82.
Anchieta, 1988: 159) e Fernandes, 1989: 21 O.

134 135
/

Como em outros casos, porém, urna leitura antropologicamente " ,. sejo se rigen así viejos como mo9os; ( ... )y después desto tañíamos
embasada dos relatos pode nos ajudar a olhar por trás <lestes precon- y cantávamos, de lo que algunos havían miedo, porque pensavam
que nuestro cantar les darla la muerte, otros por el contrario hol-
ceitos e nos aproximar de algumas dimensoes cruciais da sociedade
gavan mucho y venían a nuestro tañer a cantar y baylar, donde ve-
Tupinambá, fortemente marcadas, no próprio sistema cultural nativo, nían viejos y viejas que era para espantar, siendo éstas por quien
pela presen~a das uainuy. ellos se rigen".
114

Quanto a importancia política e a condi~ao hierárquica das ve-


,,
lhas na sociedade Tupinambá, parece-me suficiente citar aqui o pró- E fácil perceber que, apesar das men~oes cheias de asco afalta
prio Yves d ' Evreux: de asseio das velhas, as uainuy constituíam um grupo bem caracteri-
zado e detentar de privilégios. A men~ao a "casa-grande" é particu-
"Gosam do privilégio da mae de família: presidem ao fabrico dos larmente reveladora: as mulheres podiam ocupar a constru~ao para
cauins, e de todas as outras bebidas fern1entadas. Ocupam lugar suas próprias reunioes (sobre o que conversariam?) e, o que é ainda
distinto na casa-grande quando ahi vao as n1ulheres conversar, e mais interessante, as uainuy tomavam um lugar especial, o que é um
quando ai nda se achava em pleno vigor o poder de comerem os
indicativo da existencia de privilégios algo semelhantes aos dos ho-
escravos, eram ellas as incun1bidas de assar bem o corpo d'elles,
de guardar a gordura, que nao queriam, para fazer o mingau, de mens velhos, os thuyuae. Outro ponto da maior importancia diz res-
cozinhar as tripas, e outros intestinos em grandes panellas de bar- peito aforte identifica~ao das mullieres entre si: as velhas eram respei-
ro, de n'ellas misturar farinha e couves, e dividil-as depois por es- T tadas "especialmente pelas mofas e meninas" o que ajuda a confrrmar
cudellas de pau, que mandavam distribuir pelas raparigas. Dam + o argumento acerca dos grupos de mullieres enquanto unidades fun-
princípio as lagrymas e lan1entos pelos defunctos, ou pela boa
damentais da vida social Tupinambá, com características específicas
chegada de suas an1igas. Ensinam as n109as o que aprenderam.
Usan1 de más palavras, e sao mais descaradas do que as raparigas tanto na esfera política quanto na cerimonial. E é sobre a esfera ceri-
e as mo9as, e nem me atrevo a dizer o que ellas sao, o que vi e ob- monial que pretendo lan~ar o foco nesta se9ao: já foram analisados
servei ( ... ). Nao espero muito d'estas velhas; o superior nada tema aquí a extraordinária importancia cerimonial das bebidas fermentadas
fazer senao esperar que a n1orte o livre d'ellas ( ... ). Nao guardam e o papel dominante das mulheres mais velhas em sua fabrica~ao. Se-
asseio algum quando atingem a idade da decrepitude, e entre os
ria interessante fazer agora 1um comentário sobre o papel das mulheres,
velhos e velhas nota-se a differen9a de seren1 os velhos veneráveis
e apresentarem gravidade e autoridade, e as velhas encolhidas e notadamente as velhas, nas rela~oes cerimoniais com o exterior do
enrugadas como pergaminho exposto ao fogo: com tudo isto sao socius, seja este representado pelos aliados ou pelos inimigos.
respeitadas por seos maridos e filhos, especialn1ente pelas mo9as e
Os aliados formavam urna categoría bastante' fluida para os
meninas". 113
• Tupinambá, na medida em que mesmo os consangüíneos poderiam,
por algum motivo, tomar-se inimigos em algum momento. De todo
Quanto ao poder das velhas vejamos o que diz o jesuíta Fran- modo é possível assimilá-los afigura do afim potencial, i~to é, alguém
cisco Pires: que se define pela possibilidade da rela~ao matrimonial. Situando-se
entre o "nós" (os ca-residentes) e os "inimigos" (os estrangeiros), o
"Y quando los niños van cantando y tañendo por sus Aldeas, vie- + aliado é alguém com quem se pode casar, beber cauim, repartir um
nem los viejos (que suelen aver miedo de nosotros y esconden sus inimigo morto, em suma: alguém com quem se pode estabelecer urna
hijos) a bai lar sin descansar, y assimismo las viejas, por cuyo con-

11 4
Carta dos meninos óñaos {escrita pelo P. Francisco Pires} ao P. Pero Doménech (Bahia,
11 3
Evreux, 1874 ( 1615): 82-3; cf. Femandes, 1989: 241-2. 05/08/ 1552) in Leite, 1954 (I): 385-7; cf. também a citavao da página 33 deste livro.

136 137
relac;ao de convivencia e trocas sem ser parente ou co-residente, den- Assim a cada vez que alguém, mesmo um ca-residente que ti-
tro da norma - geral entre os povos culturalmente amazónicos - que vesse se ausentado por tres ou quatro días, chegava de fora era recebi-
afirma que (>a ausencia de urna relac;ao de parentesco ou de casamento do por urna manifesta9ao marcadamente feminina que incluía a repre-
só pode definir a inimizade e a guerra: "eles (os a.fins potenciais) sao o
operador de determinac;ao das categorías brutas da interioridade e da
exterioridade,' do parentesco e da inimizade, sem o qual o sistema es-
¡ senta9ao de um sentimento de tristeza através do choro ritual. Que .º
tal choro fosse urna "imitac;ao" fica evidente nos relatos: "mas depo1s
de cborarem por bom espai;o de tempo limpao as lágrimas, e ficao tao
tagnaria na indiferenc;a: exterior e interior estariam associados de mo- quietas, modestas, serenas e alegres que parece nunca chorarao- " . 117
"
do puramente extnnseco ,, 115
.
1 A análise do choro ritual entre os Tupinambá pode ser bastante
Ora, ao fazer esta mediac;ao o aliado tinha, necessariamente, de esclarecedora quanto as rela96es de genero naquela sociedade. Sabe-
estabelecer alguma rela9ao com as mulheres, símbolo máximo da inte- mos que os homens raramente choravam des ta forma ("também os
rioridade social (cf. p. 36); relac;ao que fica evidente nao apenas no homens se choram uns aos outros, mas é em casos alguns graves, co-
casamento - quando o aliado se toma um ca-residente pela uxoriloca- mo mortes, desastres de guerras, etc". 11 8), o que fazia do costume urna
lidade - mas também em momentos mais fugazes, como nas visitas especialidade feminina, urna prática que deveria ser realizada de ma-
que eram feítas por ocasiao dos massacres rituais de inimigos ou na t neira apropriada, daí ser sempre iniciada pelas mullieres mais experi-
recepc;ao aos recém-chegados de urna viagem. Neste caso a rela9ao era 1
entes e importantes, e que, portanto deve ser bem explorada aqui.
construída através de um choro ritual, a chamada sauda~a.o lacrimosa
(figura 7): ! Greg Urban fez um excelente estudo a respeito da saudac;ao la-
crimosa, a partir dos relatos sobre os Tupinambá, em seu próprio tra-
~?
1
balho de campo com os Xokléng e em grava96es do choro ritual entre
'
"Costun1am os tupinambás que vindo qualquer deles de fora , en1 os Xavante e os Bororo. 119 Para Urban o choro ritua . 1 representa um
entrando pela porta, se vai logo deitar na sua rede, ªº
qual se vai
exemplo de meta-afetividade,· isto é, a utiliza9ao dos sinais de urna
logo un1a velha ou velhas, e póem-se em cócaras <liante dele a
chorá-lo em altas vozes; no qual pranto lhe dizem as saudades que determinada emoc;ao (o choro como sinal de tristeza) para comentar
dele tinham, com sua ausencia, os trabalhos.que uns e outros pas- ou demonstrar a presenc;a de urna outra emoc;ao, no caso o desejo de
saran1; a que os n1achos lhes respondem chorando em altas vozes, aceitac;ao e integrac;ao social por parte daquele que chora. Esta identi-
e sen1 pronunciaren1 nada, até que enfadam, e n1andam as velhas 1 ficac;ao coma tristeza faz com que o choro ritual seja utilizado princi-
que se cale1n, ao que estas obedecem; e se o chorado ven1 de lon-
ge, o ven1 chorar desta maneira todas as fen1eas nlulheres daquela
casa, e as parentas que viven1 nas outras, e con10 acabam de cho-
rar, lhe dao as boas vindas e trazem-Jhe de con1er (...)e quando al-
t palmente em momentos de separac;ao ou perda, como a morte:

"A morte é talvez o protótipo da situa9ao em que as ,rela96es soci-


gun1 principal ven1 de fora, ainda que seja da sua ro9a, o vem cho- ais sao rompidas, la9os de sol idariedade quebrados. E natural, por-
rar tódas as mulheres de sua casa, urna e urna, ou duas em duas, e tanto, que a morte seja acompanhada por ~rofunpos sentin1entos
lhe trazem presentes para comer, fazendo-lhe as cerimónias acin1a de perda. Contudo, o senti rnento de perda nao precisa ser den1ons-
ditas".116 trado para os outros. Pode-se dizer que o choro ritual representa
nao sin1plesn1ente o sentimento de perda mas, de urna forma con1-

¡
115
Viveiros de Castro, 1993: 182-3. 11 7
Cardi m, 1978 (1625): 108; era esperado que o recém-chegaclo também se ~nostras;e choro-
116
Souza, 1971 ( 1587): 3 15; outras descri~5es da sauda~ao lacrimosa se encontram em Abbe- so, o que alguns europeus faziam muito bem, ímirnnclo os solur;os das nativas: Lery, 1975
ville, 1975 (1614): 227-8; Brandao, 1966 ( 1618): 197-8; Cardim, 1978 (1625): 108; Gandavo,
( 1578): 285.
1995 b ( 1576): 102; Léry, 1975 ( 1578): 283-5; Salvador, 1965 (1 627): 86; Thevet, 1978 118
Cardim, 1978 ( J 625): 108; cf. Métraux, J 950: 2 12.
(1556): 144; cf. Métraux, 1950: 299-31 O.

138 t 11 9
Urban, 1988.

139
"O choro ritual está, neste caso, bem próximo de urna pura expres-
plexa, o desejo de sociabilidade que é o inverso da perda. A perda sao de sociabilidade. Ele é usado para comunicar aos visitantes um
leva ao desejo de ultrapassá-la através da sociabilidade, e é esta desejo de sociabilidade, sinalizando-se a tristeza que foi causada
sociabilidade que é sinalizada pela adesao a urna forma cultural- por sua ausencia. Contudo pode-se alcan~ar este propósito comu-
mente específica de expressao de tristeza. O indivíduo que chora . . mesmo sen1 um profund o sent1mento
n1cat1vo . d e perd a" . 122 .
quer sinalizar aos outros que possui os sentimentos socialmente
corretos nos momentos socialmente prescritos". 120 I Exi5te urna rela9ao entre duas formas muito usadas de recep-
' 9ao ao visitante nas sociedades sul-americanas - a saber: o choro ritual
De fato, para os Tupinambá, a morte representava urna ocasiao
privilegiada para o exercício do choro ritual, e seu caráter "meta- e o diálogo cerimonial - e as diferen9as de genero. Os homens, em
afetivo" e formalizado transparece neste trecho de André Thevet.: alguns contextos culturais, participam do choro ritual, o mesmo se
passando com as mullieres em rela9ao ao diálogo cerimonial: o que
acorre é que nas culturas onde os homens se engajam no choro ritual
"Quando, entre esses selvagens, falece algum chefe-de-fanúlia, as mulheres também o fazem, mas nao vice-versa; por outro lado, on-
quer na guerra, quer de velhice ou por acidente, suas mulheres cor-
tam o cabelo bem rente, depois de arrancar-lhe parte com horríveis
de as mullieres participam do diálogo cerimonial os homens também o
choros e piedosos lamentos ( ... ). Vereis entao, deitados uns em su- fazem, mas nao o contrário, levando a conclusao de que os diálogos
as redes, outros acocorados, abra~aren1-se reciprocan1ente, fazen- cerimoniais - ao menos na América do Sul - sao urna atividade mais
do n1il gestos de tristeza, enquanto as mulheres exclamam - Ché- tipicamente masculina, enquanto os monólogos expressivos nos quais
rémimotarouére ymen (esse ymen é pronunciado em cerca de qua- se baseia o choro ritual sao atividades primariamente femininas, e era
tro ou cinco tons), depois do que suspiram assim - Eh hé héhé hé
heh, en1 seguida - Éh hé, heh, héh, heh (tambén1 en1 dois tons e
exatamente desta forma que as diferen~as de genero entre os Tupi-
meio, aproximadamente, sendo que, pela quarta vez, o hé é canta- nambá eram expressas: o ato de recep~ao ao visitante era organizado
do en1 un1 tome n1eio). E tais prantos e lamentos, se fossen1 tradu- em urna série de atos que se iniciavam como choro ritual feminino e,
zidos en1 nossa língua, significaria - Ó, aquele a queni tanto a- caso o visitante fosse um hornero, era finalizada como diálogo ceri-
mei".121
monial masculino. 123
A sauda~ao lacrimosa geralmente se sucedia um diálogo for-
O uso "meta-afetivo" do choro ritual toma-se claro quando ele mal entre o recém-chegado e o anfitriao: "depois dessa cena, o chefe
é praticado achegada de um viajante ou de um estranho. Nestes casos da família, que até entao nao dissera palavra, e continuara seu labor
o desejo de sociabilidade certamente supera o sentimento de perda fingindo nada ver, dirige-se ao visitante estendendo-lhe a mao e di-
enquanto "disparador" do choro ritual, em vista da ausencia de urna zendo: Ere jupé (chegaste), Ereicobépe (Estás bom)? Em seguida a
emo~ao "genuína": essa sauda~ao, indaga-lhe se deseja comer". 124 Estes diálogos cerimo-
niais masculinos estao fortemente relacionados ao prestígio gozado

120
Urban, 1988: 392-3.
t
.
1
'
pelos bons oradores entre os Tupinambá: /

.Apud Métraux, 1950: 213-4. As sauda~oes prosseguiam mesmo após o funeral: "de vez em
121

quando ahi voltam as mulheres ora de día ora de noite, choram muito e perguntam asepultura, 122
Urban, 1988: 393.
se elle ja partio" (Evreux, 1874 (1615]: 113). Outras descri~oes do choro ritual durante os 123
Urban, 1988: 395.
funerais se encontram em Abbeville, 1975 (1614): 256; Cardim, 1978 (1625): 111; Evreux, 124
Abbevi11e, 1975 (1614): 227-8; cf. também Cardim, 1978 (1625): 108; Léry, 1975 (1578):
1874 (1615): 113-4; Léry, 1975 (1578): 300; Souza, 1971 (1587): 329-31; Thevet, 1978 285-6 e 306-7 e Souza, 1971 (1587): 316-7.
(1556): 140; cf. também Fernandes, 1989: 162 e Métraux, 1950: 211 -4.)
14 l
140
"Estimam tanto um bom Iingua que lhe chaman1 o senhor da falla. .
mclu1 'dos em urna es1era.1em1n1na.
+ + . . 127 p ara compreender est e pon t o e;
Em sua mao tema n1orte e a vida, e os levará por onde quizer se1n
necessário acompanhar alguns passos da transforma~ao de um guerrei-
contrad i9ao. Quando querem experimenta r um e saber se é grande
lingua, ajuntam-se muitos para ver se o podem ca n ~a r, fallando ro inimigo em "comida", de maneira a identificar os elementos da
toda a noi te em peso con1 elle, e ás vezes do is, tres d ias, sem se participac;ao feminina naquele que era o evento central da cultura Tu-
enfadare m". 125 pinambá.
b objetivo "emico" da guerra Tupinambá era claramente a
Contudo, era no ambito do ritual antropofágico que o papel ce- captura de inimigos para o ritual antropofágico. Como visto anterior-
rimonial das mulheres, notadamente das velhas, mais se sobressaía. mente, era a morte de um inimigo que fazia de um jovem um aua, um
Na verdade urna das características básicas do canibalismo Tupinambá homem adulto que poderia se casar; em outras palavras, com o ritual
residia justamente no fato das mullieres ocuparem o centro da cena, o caníbal se ''inventava" um homem. A participac;ao em um grande nú-
que acabou por fazer da imagem da velha canibal um dos símbolos mero destes rituais confería a um hornero a possibilidade de tomar
máximos das diferen<;as entre europeus e nativos. Este papel central novos nomes, de constituir um grupo ampliado de esposas, e ser cha-
das mulheres foi comentado por Claude Lévi-Strauss: mado de principal: "considera um homem sua maior honra capturar e
matar muitos inimigos, o que entre eles é habitual. Traz tantos nomes
"Ora, um tra90 notável das sociedades que pratican1 o canibalisn10 quantos inimigos rnatou, e os mais nobres entre eles sao aqueles que
... .
parece ser q ue, com rela9ao a esse uso, as mulheres ocupan1 sen1- tem mu1tos nomes " . 128
pre urna posi9ao forten1ente marcada. ( ... ) nun1erosas sociedades Os guerreiros já partiam para a batalha envolvidos em cordas
americanas e algumas sociedades polinésias davam as n1ulheres
um papel de primeiro plano, quer quando dos banquetes canibais,
para a amarrar os inimigos capturados, 129 e se conseguiam seu intento
quer quando das manifesta96es - mutila9ao dos inimigos mortos, antes de chegarem ao destino, capturando alguns poucos inimigos, se
tortura dos prisioneiros vivos, seguidas por vezes de atos de cani- °
davam por satisfeitos. 13 Contudo, a disputa entre os guerreiros pela
bal isn10 - que dele se aproximam. Em face do canibali smo, por posse de um cativo era tamanha que, por vezes, o prisioneiro tinha seu
conseguinte, a posi9ao atribuída as 1nulheres raramente é neutra. cranio esmagado e sua carne moqueada e dividida ainda no campo de
Quando a sociedade nao as exclui, dir-se-ia que ela espera das nlu-
lheres, se nos pern1item a expressao, que ' tomen1 parte'". 126
batalha. 131 O caso de Hans Staden é típico quanto a isso: após ser feri-
do, o artilheiro alemao foi furiosamente disputado por seus captores:

De fato, a imagem forte do matador tende a obscurecer nossos
olhos para o fato de que os cativos destinados ao repasto caníbal eram, 127
Viveiros de Castro, 1986: 660-4.
128
a partir da chegada ao grupo local de seus captores, imediatamente Staden, 1974 (1557): 172; '·de todas as honras e gestos da vida, nenhum é tamanho para
este gentío como matar e tomar nemes nas cabe9as de seus contrários (... )" (Cardim, 1978
( 1625): 113); "( ... )e tantos nemes tem quantos inimigos mataram, poste que os mais honrados
125
Cardim, 1978 (1625): 186; cf. Femandes, 1989: 267. É oportuno recordar aqu í a ligayao e estimados e tidos por mais valentes sao os que os tomam" (José de Anchieta, " lnfonna9ao
íntima existente entre o uso da palavra e o exercício da chefia para os Tupi e os Guaraní: do Brasil e de suas Capitanias" [ 1584], in Anchieta, 1988: 337). \
Clastres (Pierre), 1978: 21-35 e 106-9. 129
Staden, 1974 (1557): 178.
126
Lévi-Strauss, 1986 a: 143-4. É de se notar que este papel preponderante nao se limitava 130 Brandao, 1966 (1618): 203. Sobre a motiva9ao da guerra Tupinarnbá cf. Métraux , 1950:

aqueles povos que praticavam o exo-canibalismo, mas rnrnbém se apresentava entre os endo- 226-7 e Fen1andes, 1989: 102-9, que acredita que a captura de inimigos era apenas um evento
canibais. O flamengo Roulox Baro, visitando o território dos tapuias comandados pelo chefe dentro do objetivo "religioso" maior que era a recupera9ao da "eunomia" social, afetada pela
Nhanduí em 1647 , observou que apenas as mulheres participavam de um ritual ern que os morte de um parente , o que era conseguido com o sacri ficio de um prisioneiro; para urna
cabelos dos mortos eram devorados corn mel silvestre e tapioca: ··perguntei porque os homens crítica a visao "recuperadora" do canibalismo Tupinambá proposta por Fernandes cf. Viveiros
nao tomavapl parte naquela festa e disseram-me que a mesma nao lhes cornpetia" (Moreau e de Castro, 1986: 84-8.
Baro, 1979 [1 65 1]: 104). 131
Métraux, 1950: 226-7.

142 143
"Con1e~aram entao abrigar em tomo de mim. Um dizia que havia Era considerado mais apropriado, contudo, que os prisioneiros
sido o prin1eiro a alcan9ar-n1e, outro, que me havia aprisionado. fossem levados vivos a algum grupo local, onde seria preparada urna
" ( ... ) Eles eran1 de várias aldeias e alguns estavam desgostosos por
grande cauinagem para a sua morte. A melhor descriyao das práticas
ter de voltar acasa sem urna presa. Por isso disputavam com aque-
les que n1e retinhan1. Uns dizian1 que haviam se acercado tao perto envolvidas na recepyao ao prisioneiro foi feita, naturalmente, por
de mini como outros, queriam pois ter de mim un1a parte, e matar- Hans Staden, que viveu a experiencia pessoalmente; já na chegada ao
n1e no próprio lugar. Lá estava eu, rezando e olhando em tomo, grupo lotal, Staden entraria em contato com as "ferozes" mulheres
porque esperava o golpe. Afinal o chefe, que quería possuir-me, Tupinambá:
ton1ou a palavra e disse que deviam conduzir-me vivo para casa,
a-fim-de que suas mulheres tambero n1e vissem com vida e tives-
sem o divertimento que lhes cabía a minha custa". 132 " Quando nos aproximamos, vimos urna pequena aldeia de sete
cho~as. Chan1avam-na Ubatuba. Dirigimo-nos para urna praia, a-
berta ao n1ar. Ben1 perto trabalhavam as mulheres numa cultura de
Apesar disso seria um equívoco considerar a tomada de novos plantas de raízes, que eles chamam mandioca. Estavam aí muitas
nomes sobre os inimigos como um privilégio unicamente masculino. delas, que arrancavam raízes, e tive que lhes gritar em sua língua:
Muito embora um maior prestígio fosse concedido atomada de nomes ' Aju ne xé pee remiurama', isto é: 'Estou chegando eu, vossa co-
mida'" .135
pelos homens, a inseryao do inimigo no espayo doméstico exigia urna
mediayao feminina que podia ser, ela própria, urna fonte de novos
nomes para as mulheres, e isto mesmo quando o prisioneiro já chega- A identifica9ao do prisioneiro com um animal, com urna ca9a
va morto e moqueado. A carne do prisioneiro morto no campo de ba- preciosa, já havia transparecido para Staden pouco depois de sua cap-
talha tanto podia ser consumida in loco como enviada ao grupo local. tura: "as cordas, que eu tinba no pescoyo, prenderam-nas ao alto de
Neste último caso as mulheres velhas tinham um papel tao importante urna árvpre: Deitaram-se em tomo de mim, anoite, zombando e cha-
na recep9ao aos restos do prisioneiro quanto na recepyao ao prisionei- mando-me em sua língua: 'Xé remimbaba in dé', que quer dizer: 'Tu
.
ro VIVO. és meu animal prisioneiro"'. 136 Ver-se-á mais tarde que esta identifi-
Quando o hornero encarregado de transmitir a notícia da vitória ca~ao "zoológica" do prisioneiro pode revelar importantes aspectos

na luta "trazia consigo carne humana moqueada, as mullieres arranca- das rela~óes de genero entre os Tupinambá.
vam-lhe o cesto, onde a mesma estava, devorando-a. A cesta, urna vez Após a cbegada os homens retiravam-se para suas casas, dei-
vazia, era escrupulosamente restituída ao dono pela mulher que exer- xando o prisioneiro ao encargo das mulheres. Estas se aproximavam
cia certa autoridade sobre as demais. Todas as velhas, ~ue haviam do cativo gritando e dando palmadas na boca, cercavam-no e, dan9an-
provado da carne, mudavam de nome no dia seguinte". 13 Quando o do, entoavam can~5es sobre sua futura devora9ao. As dan~as só eram
mensageiro avisava que chegariam prisioneiros vivos as velhas fica- interrompidas para que as mulheres batessem e insultassem o prisio-
vam ansiosas e passavam a noite em claro: "batendo na boca com a neiro, dizendo: "'Xé anama poepika aé!' 'Com esta pancada vingo-me
mao e gritando a mais nao poder, só para manifestar sua impaciencia pelo hornero que os teus amigos nos mataram'". 137
pela chegada dos vencedores acompanhados do prisioneiro". 134
135
Staden, 1974 (1557): 87.
136
Staden, 1974 (1557): 84.
Staden, 1974 (1557): 87; "as velhas mulheres agrupavam-se a sua frente, batendo na boca
137
132
Staden, 1974 (1557): 81-2. coma palma das maos e exclamando a um sinal detenninado: ' Nós o comeremos; ele perten-
133 ce-nos' " (Métraux, 1950: 230-1 ); cf. Abbeville, 1975 (1614): 230; Cardim, 1978 ( 1625): 114;
Métraux, 1950: 228.
134
Métraux, 1950: 228. Fernandes, 1970: 84.

144 145
prende um escravo fugido, sahem da aldeia as velhas, vao ao seu en-
Depois de muitas destas manifesta96es agressivas acontecia contro, e gritando dizem 'é nosso, entregae-nos, queremos comel-o ' , e
um rito impprtante: as mulheres faziam a media9ao entre o prisioneiro batendo com a mao na bocha, gritam uns para os outros com certa
e os objetos sagrados dos Tupinambá, os maracás: -
expressao ' / /
nos o comeremos, nos o comeremos, e/ nosso '". 141
O que mais impressionou os europeus, contudo, talvez tenha
"( ... ) conduziram-n1e as n1ulheres em frente da cho9a em que esta- sido o fato do cativo "receber" urna mulher, muitas vezes filha ou ir-
vam seus ídolos, os n1aracás, e fizeram urna roda em volta de n1im.
Fiquei no meio. Duas mulheres amarraram-n1e con1 um cordel al-
ma de seu captor:
guns chocalhos a un1a pen1a e por detrás, no pesco90, de nlodo
que me ficasse acima da cabe9a, um Jeque quadrangular de penas "( ...) e como os tupinambás rem estes contrários quietos e be n1 se-
da cauda de papagaios, que eles chamam ara~oi á. Depois come9a- guros nas pris5es, dao a cada um por mulher a n1ais formosa n1ó9a
ram todas a cantar. De acordo com seu compasso, devia eu bater o que há na sua casa, com quem se ele agasalha, tódas as vezes que
pé coma perna aqual e stavam atados os chocalhos, de modo que quer, a qual mó~a tem cuidado de o servir, e de lhe dar o necessá-
138
chocalhasse acon1panhando o seu canto" . rio para comer e beber, con1 o que cevan1 cada hora, e lhe fazem
142
n1uitos regalos".
Como se ve, a recep9ao ao inimigo era, tanto quanto a recep-
9ao ao parente ou aliado, um ato primariamente feminino, relacionado Ora, de fato o cativo de guerra e o afim eram figuras extremamen-
a identifica9ao da mulher coro o espa90 doméstico e com o interior do te relacionadas para os Tupinambá, senda oportuno recordar que urna
social. Era urna atividade considerada tao importante que também das formas possíveis para se escapar a uxorilocalidade era a cessao de
servia - assim como a captura e sacrifício dos prisioneiros para os ho- um cativo - um "substituto" do cunhado/genro - aos parentes da espo-
mens - para que as mullieres pudessem tomar novas nomes, o que a-
. ~·

sa. Como apontou Viveiros de Castro:


corría com todas aquelas que participassem da recep9ao (figuras 8 e
9). 139 Aliás, é importante lembrar, acerca da tomada de nomes pelas "Quen1 dá n1ulheres sen1 recebe-las en1 troca (e só urna pessoa va-
mullieres, que as esposas dos matadores também tomavam nomes: le outra), abre um crédito canibal contra os tomadores. ( ...) O co-
"tomam seus nomes dos pássaros, peixes e frutos das árvores. Na in- nhe.cido rito tupinambá é explícito: a mulher cedida ao cativo de
fancia tem apenas um nome; quando mulheres, porém, tomam tantos guerra era de preferencia un1a filha ou irma de seu captor ou futu-
nomes quantos escravos matam seus manºdos " . 140 ro n1atador. Con10 se, para justificar devidamente a n1orte do ini-
n1igo, fosse necessário endividá-lo con10 DH ou ZH. ( ... ) O sogro
O prisioneiro podia ser mantido vivo por bastante tempo, e era e o WB canibais sao, sem dúvida, representa9oes típicas de socie-
razoavelmente bem tratado, raramente ocorrendo fugas. Ao fugir, o dades uxorilocai s ou de brideservice, onde a ausencia de irn1a para
prisioneiro perderia ó "direito" de ser devorado como um bravo guer- trocar com o WB abre un1 crédito canibal en1 favor dos <loado-
res". 143
reiro, e de participar do festim canibal. Os fujoes deixavam de perten-
cer ªºguerreiro que os tinham capturado, passando a propriedade de
todos os membros do grupo, e senda imediata e sumariamente devo-
rados. As velhas eram as principais participantes deste ato claramente
141
punitivo e, certamente, vergonhoso para o fugitivo: "( ... ) quando se Evreux , 1874 ( 16 15): 49.
142
Souza, 1971 ( 1587): 325; cf. também Abbeville, 1975 (1614): 23 1; Cardim, 1978 ( 1625):
114; Gandavo, 1995 a (1 570 ?): 26 e 1995 b: 114; Léry, 1975 (1 578): 21 I; Staden, 1974
138
Staden,_1974 ( 1557): 91. (1557): 179; Thevet, 1978 ( l 556): 13 1; Métraux, 1950: 235-6; Fernandes, 1970: 256-8.
139 143
Viveiros de Castro, 1986: 66 1. Viveiros de Castro, 1993: 190.
140
Staden, 1974 ( 1557): 170.
147
146
Afrrmar, contudo, assim como os cronistas e viajantes euro-
peus, que eram concedidas mullieres aos cativos contribui certamente dos" seriam sacrificados por parentes próximos assumiam a missao
para a manuten~o de urna visao da mulher Tupinambá como um ele- com maior entusiasmo: /
mento passivo em sua sociedade, como um "coro grego". Poderíamos,
dentro do princípio de que os cativos eram inseridos na esfera femini- "Estas mulheres sao commun1ente nesta guarda fiéis, porque lhes
na ao viverem junto a seus captores, ler a institui9ao com o sinal tro- fica em honra, e por isso sao muitas vezes mo<;as e filhas de prin-
cado: o cativo é que era concedido a urna mulher para que esta o guar- cipes, maxime se seus irmaos hao de ser os matadores, porque as
que nao ten1 estas obriga<;0es muitas vezes se afeiyoao a elles de
dasse, engordasse e, de preferencia, engravidasse, de forma a produzir maneira que nao somente lhes dao azo para fugirem, mas também
mais um inimigo - lembremos da teoría patrilinear de concep9ao: filho - com e11es (.. .)". 147
se vao
de inimigo, inimigo é - que seria também sacrificado.
Pode-se dizer que a guarda do cativo aparece, para a mulher, Ainda sobre o problema da identifica9ao do prisioneiro com a
como urna responsabilidade simétrica ao próprio ato masculino de esfera feminina, é importante apontar aqui as semelhan9as existentes
vibrar o golpe da ibirapema, constituindo urna importante "fonte de entre a situa9ao dos cativos e a dos animais de estima9ao, os xerimba-
nomes" para as mulheres que se engajavam nestas liga96es com os bos, cuja cria9ao e cuidados sao, em todo o mundo Tupi, urna tarefa
cativos: da mesma forma que a captura do prisioneiro, feita pelos ho- feminina. Este paralelo - já feíto para Hans Staden ainda antes de seu
mens, era um evento "produtor de nomes", também o era a gesta9ao contato com as mullieres (cf. p. 145) - fica ainda mais evidente em
de um cunhambira (filho do inimigo, literalmente, "filho de mulher") outras passagens das fontes. Femao Cardim, por exemplo, nos informa
por parte da mulher. que as mullieres cantavam para o cativo, quando se aproximava o dia
Para Pero Gandavo todas estas crian~as eram mortas: "(... ) e de sua marte, versos do tipo: "nós somos aquellas que fazemos estirar
dizem que aquela menina ou menino era seu contrário verdadeiro, e o pesco90 ao passaro" e "si tu foras papagaio, voando nos fugiras''. 148
por isso estimam mu1to . comer-lhe a carne e vmgar-se
. de1e,,, 144 mas e,
Por outro lado André Thevet afrrma que eram lan9adas penas
possível que as meninas nao fossem sacrificadas por serem considera- de pa¡agaio sobre o prisioneiro como símbolo de sua morte próxi-
das portadoras da mesmá substancia da mae: "y si alguna destas se ma.
14
Estas penas representavam algo extremamente precioso: "Seu
acierta de parir, se es hijo, cómenlo, si es hija tambem la comen, mas - penas de passaros.
tesouro sao , Quem as tem mu1•tas, e, neo
. (...)". 150
pocas vezes".1 45 • Os cativos podiam ter rela96es sexuais com todas as Embora, geralmente, fossem os homens a usarem as penas, eram as
146
mo9as solteiras do grupo, mas nao com as casadas. As mo9as con- mullieres que cuidavam dos animais: "entre os selvagens, sao especi-
sideravam honrosas estas liga96es, e nao era para menos: os filhos daí almente as mulheres que criam um tipo de papagaio semelhante aos
advindos poderiam ser massacrados por seus irmaos ou outros paren- nossos verdelhoes tanto no tamanho quanto na cor. Tomam-se elas tao
tes, aumentando o prestígio de sua linhagem e o delas próprias. afei90adas a estes animais que conversam com eles chamando-os de
O caráter de grave responsabilidade, por um lado, e, por outro, 'meus amigos"'. 15 1
de grande prestígio concedido pelos Tupinambá a esta tarefa feminina
fica bem claro quando se considera que aquelas mulheres cujos "mari-
147
Cardim, 1978 (1 625): 114.
144 148
Gandavo, 1995a (1570 ?): 27. Cardim, 1978 (1 625): 116.
145 149
Carta do Ir. Pero Correia ao P. Jolio Nunes Barreto (S. Vicente, 20/06/ 1551) in Leite, 1954 Métraux, 1950: 237; Viveiros de Castro, 1986: 662.
150
(1): 227; cf. também Métraux, l 950: 24 l . Staden, l 974 ( 1557): 172. Os papagaios mais be los valiam tanto quanto dois ou tres cati-
146
Métraux,' 1950: 237. vos humanos: Dean, 1996: 67.
151
Thevet, 1978 (1556): l 58; cf. Femandes, 1989: 11 5.
148
149
al ' , a carne, parece ter cabido antes as mulheres. O cranio e os
Tratando dos Kaapor, Darcy Ribeiro fomece urna imagem do nomes, entao.-áos hon1ens, que capturavan1 os ininúgos; o corpo as
mu lheres, que os ' cn.avam ' , como a b'1c hos de est1ma9ao
. - " . 153
que deveria" ser a rela~ao das mulheres Tupinambá coro seus animais
de estima~ao. Os muitos animais criados pelos Kaapor (além de ca- _,
chorros e galinhas, papagaios e araras coloridos, e aves como o mu- E esta divisao nas esferas de privilégio que explica o fato das
tum e o jacamim; cutias, pacas e até queixadas e veados) sao dados as mullieres aparecerem na iconografía européia como protagonistas, e
mullieres pelos homens: nao como coadjuvantes, do ritual antropofágico. Serei for~ado a reto-
mar este ponto - já suficientemente esclarecido por Viveiros de Castro
"Ainda filhotes, os maridos os trazem da mata para suas mulheres - de maneira exaustivamente descritiva, porque recentemente foi pro-
con10 lembran9as carinhosas. Esse jardin1 zoológico nao dá pe- posta urna interpreta~ao historiográfica que afirma que esta preemi-
queno trabalho para seu cuidado; além de tratar das bocas hun1a- nencia feminina nas· imagens é discrepante em rela~ao as fontes escri-
nas as n1ulheres cuidan1 também dessas, tendo de preparar chibés e tas, nao sendo mais do que um estereótipo misógino dos artistas euro-
outras comidas para toda a bicharada da alde ia. Veja, ali está, ago-
peus. 154 Me parece, ao contrário, que as fontes apontam explícitamen-
ra, Mói, a filha mais velha do capitao, dando de comer a uma ara-
rajuba. Ela descasca urna batata que assou, nlastiga-a bem e depois te o papel predominante da mullier, e que os historiadores que defen-
toma a cabe9a do papagaio entre o polegar e o indicador, introduz dem este tipo de ponto de vista ainda nao lan~aram um olhar crítico
o bico d,ele em sua boca e o faz con1er ali, ajudando-o com sua sobre as reconstru~oes "androcentricas" da sociedade Tupinambá feí-
língua. E trabalho habilidoso, que exige coragen1 e muita práti- tas por Alfred Métraux e Florestan Femandes. Nada melhor para criti-
ca" .1 52
car esta posi~ao, em última análise etnocentrica, do que deixar falar as
f antes que tratam do rito caníbal.
Eduardo Vi_veiros de Castro é responsável por urna bela inter-
preta~ao deste ponto: ele mostra que, tal como as aves fomeciam plu-
mas (o bem mais precioso dos Tupinambá), o cativo fornecia nomes,
estando metaforicamente associado aos xerimbabos. Ao contrário des- 5. O Ritual Antropofógico e os Ve/has Conibois
tes, porém, os cativos eram comidos, sendo portanto criados nao ape-
nas por suas "plumas" (os nomes) mas também por sua carne. Ora,
existe aqui urna importante diferen~a de genero: enquanto a tomada de
nomes por parte das mullieres era claramente subsidiária em rela~ao a Ainda antes que se iniciassem os preparativos para o massacre
tomada de nomes por parte dos homens (exemplo: mesmo se as mu- do cativo as fun~oes e papéis que cada indivíduo deveria assumir no
lheres matassem um inimigo deveriam chamar um hornero para esma- ato, bem como as parcelas da carne do prisioneiro que seriam conce-
gar seu cranio) o preparo e consumo da carne do prisioneiro era cla- didas a cada um, eram definidos durante urna cauinagem. Tratava-se
ramente urna atribui~ao primariamente feminina: claramente de urna negocia~ao onde eram divididas as oportunidades
para a conquista de nomes, e as mulheres nao eram esquecidas: "urnas
tinham por missao tomar canta da cabeleira do prisioneiro, que devia
"( ... ) o repasto caníbal era don1inado por elas; era, de certo modo,
a forn1a por excelencia de sua participa9ao no sistema de vingan-
9a. ( ... ) O valor 'nominal ' do prisioneiro, digan1os assim, era por-
9ao sua atribuída principalmente ao nlatador; seu valor 'substanci-
153
Yíveiros de Castro, 1986: 663.
154
Raminell i, 1997.
152
R ibeiro, 1996 b: 39 1.
151
150
ser aparada ao fogo; a outras incumbia o dever de Eºr um tampao de "Primeiramente tem elles para isto urnas cordas de algodao de ar-
razoada grossura, nao torcidas, se nao tecidas de um certo lavor
madeira no anus da vítima, logo após a sua morte". 1 5
galante; é cousa entre elles de muito pre90, e nao nas rem senao
Quando era determinada a data da morte as mullieres tratavam alguns principaes, e segundo ellas sao primas, bem feítas, e elles
de fazer as ceramicas necessárias para a cerimonia, usadas para o pre- vagarosos, é de crer que nem em um anno se fazem: estas estao
paro e consumo do cauim e para o cozimento das entranhas do prisio- sempre muito guardadas ( ...)". 161
neiro: "determinado o tempo em que há de morrer, come~am as mu-
lheres a fazer lou~a, a saber: panellas, alguidares, potes para os vinhos, Neste mesmo dia todos os que iriam participar diretamente do
tao grandes que cada um levará urna pipa". 156 A fabrica~ao destas ce- rito, inclusive o prisioneiro, com~avam a ser preparados. Os cativos
rfu:nicas representava urna das tarefas femininas mais importantes, eram levados para urna cabana especialmente construída para eles
como afirma Hans Staden: "dao de comer bem ao prisioneiro. Conser- onde tinham a frente da cabe~a raspada e rostos e corpos pintados de
vam-no por algum tempo e entao se preparam. Para tanto fabricam jenipapo. Quase todas as mulheres presentes, inclusive as convidadas,
muitas vasilhas, nas quais poem suas bebidas e queimam tambem va- eram também pintadas de preto na , mesma cabana (os homens se pre-
silhame especial para os ingredientes com que o pintam e enfei- paravam em um local distinto). A noite, de acordo com as informa-
157 o · , Pero eorre1a· tambem ,, apontou o pape1 centra1 das
t am,,. Jesuita ~5es de André Thevet, os prisioneiros eram trazidos novamente para a
cerfunicas no ritual: "las mujeres en este tiempo todas andam ocupa- cho~a:
das em cozer vino de que hazen 50, 100 tinajas de que muchas llevan
más de 20 arrobas". 158 "( ... ) onde os aguardavam certo número de velhas, que, pela ma-
Durante todo o tempo de prepara~ao do cauim as mulheres nha, tinham sido enegrecidas como as demais. Essas velhas deita-
conduziam o prisioneiro ao ~átio central e dan~avam em tomo dele vam-se nas redes, que tinham armado em redor dos prisioneiros,
entoando, nessa ocasiao, can~oes. As can9oes, que duravan1 toda a
duas ou tres vezes seguidas. 59 No dia determinado para o início da noite, exprimiam o desdem dos tupinambás pelos cativos e pela
festa chegavam, dan~ando e cantando, os muitos - as vezes milhares - gente de sua tribu, que jamais fóra capaz de matar 'alguns dos a-
convidados de outros grupos locais, que logo se engajavam no consu- migos' daqueles. Anunciavan1, ainda, a sorte que lhes aguardava e
mo do cauim; era o momento de prepara~ao final da corda com a qual a vingan~a que se propunham tirar deles". 162
seria amarrado o cativo, a mussurana, fabricada e possuída pelos ho-
mens mais importantes e considerada um objeto de culto e respeito
religioso. Nesta corda eram dados, pelos velhos, complicados nós, o
1 Segundo Alfred Métraux, tanto homens quanto mullieres tra-
~avam no corpo complexos desenhos com jenipapo, colavam ao corpo
que era recebido com aplausos pelos presentes; depois a mussurana
era pintada com cal e levada em um vaso para a cabana do dono do + plumas vermelhas e pó de cascas de ovos verdes, mas apenas os bo-
rneos colavam penas na cabe~a. 163 Talvez isto nao seja correto: o jesu-
160
cativo. Afrrmou Femao Cardim, a respeito destas mussuranas:
t íta Antonio Blázquez descreveu urna cena que presenciou ao chegar a
urna aldeia cujos habitantes se preparavam para massacrar sete cati-
vos:
155
Métraux, 1950: 238. ....
156
157
Cardim, 1978 (1625): 11 4.
Staden 1974 (1557): 179.
j ....
158
Carta do Ir. Pero Correia ao P . Joao Nunes Barreto (S. Vicente, 20/061155 1) in Leite, 1954 1
( 161
(1): 228. Cardim, 1978 (1625): 115.
159 <t" 162
Staden, 1974 (1557): 179. J Thevet, apud Métraux, 1950: 392; cf. Métraux, 1950: 246.
160 163
Métraux, 1950: 242. Métraux, 1950: 247.

152 ! 4>

'f '

:;-
153

J
"Vinhao seis n10Jheres nuas polo terreiro cantando a seu modo e
faze ndo tais gestos e meneos que pareciao os mesmos diabos: dos como versada nisto e n1estra do coro a entoar urna cantiga que as
pees até a cabe9a estavao cheas de penas vern1elhas; em suas ca- outras ajudao, cuja letra é confom1e a cere monia(... )." .167
be9as traziao humas como carochas de pena an1arela; em as espal-
das levavao hum bra9ado de penas que parecia coma de cavalo, e
por alegrar a festa tangiao humas frautas que ten1 feitas das canel-
Enquanto isso, muitos dos presentes se embriagavam com o
las dos contrari os pera quando os hao de matar. Com estes trajos cauim que havia sido preparado pelas mullieres para a festa, sorvendo
andavao ladrando con10 caes e contrafazendo a fala com tantos a bebida colocada em numerosos vasos no centro de urna casa: "(... )
mon1os q ue nao sey a que os possa con1parar; ( ... ) Espectaculo era porque, como esta é a própria festa das matan9as, ha no beber dos vi-
este que a quem o vira lhe saltarao as lagrin1as de compaixao de nhos muitas particularidades que durao muito, (... ) bebem e fallao can-
huns e de out.ros, porque as ernpenadas lhe parece que estar asi
vestidas hé a mayor bem-aventuran9a do mundo, e tempera si q ue
tando em magotes por toda a casa, de guerras e sortes que fizerao
164 ( •••)". 168
nao ha hi trajes nen1 emven96es tam polidas como as suas".
A mussurana era presa ao pesco~o do cativo, sendo sustentada
Nos dois días seguintes cantava-se e dan9ava-se, homens e mu- pela mulher que o guardava. O prisioneiro era levado amarrado por
lheres, em tom o do cativo, que poderia atirar nos inimigos tudo o que toda a aldeia, recebendo jenipapos para serem lan9ados aos circuns-
estivesse ao seu alcance. No quarto, e geralmente penúltimo, dia acon- tantes; por vezes eram dados a ele um arco e flechas de pontas rombu-
tecía urna série de atos importantes. Odia come~ava quando levavam das que eram atiradas contra a assistencia: a "esposa" o acompanhava
o cativo a um rio para ser banhado; de volta a aldeia o prisioneiro era fomecendo noves projéteis ou flechas. 169
agarrado por um guerreiro que tentava ao máximo prende-lo sem a ) Depois de algum tempo nisso o cativo era levado a cabana on-
ajuda de outrem, enquanto a vítima tudo fazia para se safar. 165 Alguns de estava sua rede; entravam entao na casa várias mulheres que passa-
autores, como Claude d' Abbeville e André Thevet, descrevem esta vam a se emplumar. Quando satisfeitas com o resultado, saíam da ca-
prática como urna fuga simulada do prisioneiro, que seria preso no- bana em grupos de quatro e, batendo comas maos na boca em frente
vamente e fomeceria novos nemes para aqueles que o agarrassem. 166 ao prisioneiro, dirigiam-se ao terreiro onde realizavam um combate
Quando este arremedo de luta se encerrava, o prisioneiro era simulado, após o que voltavam a casa para tripudiar do cativo; isto se
levado ao terreiro, onde interagia novamente como grupo das mulhe- repetía por várias vezes. 170
res: Aproximando-se a noite do penúltimo día eram iniciados os
preparativos finais. Estes se constituíam fundamentalmente na decora-
"Acabada esta Juta elle em pé, bufando de birra e cansa90 com o 9ao, simultanea, do prisioneiro e do ibirapema, o tacape com que seria
outro q ue o tem aferrado, sae um coro de nymphas que trazem un1 morto, feito de urna madeira muito dura e adornada, pelas mulheres,
grande alguidar novo pintado, e nelle as cordas enroladas e ben1 com "pendentes ou campainhas de penna de diversas cores, é cousa
alvas, e poste este presente aos pés do captivo, come9a un1a velha galante e de pre90 entre elles, elles lhe chamao lngapenambin, orelhas
da espada" . 171 ·

164 167
Carta do Ir. António Blázquez por comissao de P. Manuel da Nóbrega ao P. Inácio de Cardim, 1978 ( 1625): 11 6; a can9ao é a mesma a q ue fa90 referencia na página 149.
168
Loyola (Bahía. l 0/0611557) in Leite, 1954 (II): 385-6. Card im, 1978 ( 1625 ): 116.
169
165
Cardirn~ 1978 ( 1625): 1 15-6. 170
Métraux, 1950: 250.
166 Métraux, 1950: 251 ; Thevet, in Métraux , 1950: 394-5.
Femandes, 1970: 279-82; Métraux , 1950: 248-50.
171
Card im, 1978 ( 1625): 117; cf. Femandes, 1970: 280-1 e Métraux , 1950: 251-3.
154
155
luzente, e os olhos mais pequenos, que fica urna horrenda visao
As mullieres, ao som de maracás, levavam a vítima a urna cho- ( ••• )."174

~ª provisóri~, construída no pátio central; traziam-se vasos contendo


as plumas, fios e a resina utilizados na decora~ao e um vaso novo,
onde era transportada o ibirapema. Ambos, ibirapema e cativo, eram l A'
noite o cativo era levado a beber com toda a assembléia (fi-
gura 12), e obrigado a dan~ar com seus captores, no que era conhecido
decorados da mesma maneira pelas velhas (figura 1O): como a "dan~a das co~as". Quando a festa se encerrava o prisioneiro
era conduzido ach~a provisória onde passaria sua última noite sob a
"Essa arma era, de fato, recoberta de urna camada de mel ou resina vigilia das mullieres, que seguravam as pontas da mussurana. 175 Du-
e pulverizada com pedacinhos de ovos verdes de macucara. (... ) rante a última noite o cativo comía muito pouco: "(...) e todo odia e
urna das mulheres, famosa por sua habilidade na decora9ao dos noite é bem servido de festas mais que de comer, porque lhe nao dao
potes, tra9ava na camada viscosa, que recobria a macaná, algumas
figuras de significa9ao provavelmente particular. Enquanto essa
outro conducto senao urna fructa que tem sabor de nozes, para que ao
mulher preparava assim o tacape, as demais cantavam ininterrup- outro dia nao tenha muito sangue". 176
tamente" .17~
Chegava, entio, o momento culminante. Ao alvorecer as mu- ·
llieres se levantavam e cantavam em volta da cho~a que guardava o
As mullieres nem sempre usavam a cor verde na decora~ao do tacape. A ch~ era entio destruída e o prisioneiro levado, por sete ou
tacape cerimonial: "os selvagens a untam com urna substancia gruden- oito vellias, para o lugar do massacre, onde a mussurana era retirada
ta. Tomara entao cascas de ovo duro pássaro, o macaguá, que sao cin- de seu pesco~ e amarrada na cintura. Aparentemente era neste mo-
zentas, reduzem-nas a pó, e espalham isto sobre o tacape. Depois se mento que a "esposa", em lágrimas, se despedía do cativo. 177
assenta urna mulher e garatuja nesta poeira de ovo, que está grudada. As fontes sao contraditórias quanto ao momento em que se.da-
Enquanto ela desenha, rodeiam-na, cantando, muitas mullieres". 173 va a separa~ao dos "esposos": Cardim diz que isso acontecía ao raiar
:·ºtacape era colocado na vasilha propria enquanto secava e, do dia, Thevet depois que a mussurana era amarrada a cintura da víti-
ma e Léry diz que isso só ocorria depois da morte da vítima. 178 Sobre
postenormente, preso ao teto. Durante todo o tempo, e por toda a noi-
te, mullieres cantavam e dan~avam ao som de "tambores" (figura 11 ). este tipo de contradi~ao é oportuno citar Alfred Métraux, em urna pas-
A vítima ~ra entao adornada de maneira semelhante ado ibirapema: sagem que é válida para todos os temas que dizem respeito aos Tupi-
!).ambá: "é bem possível que os ritos, notadamente a sua ordem de de-
senvolvimento, apresentassem algumas variantes de tribo a tribo". 179
"( ...) depois de lin1po o rosto, e quanta penugem nelle ha, o untao
com um leite de certa arvore que pega muito, e sobre elle poem
un1 certo pó de urnas cascas de ovo verde de certa ave do mato, e
sobre isto o pintao de preto com pinturas galantes, e untando tam-
bém o corpo todo até a ponta do pé o enchem todo de penna, que
para isto tem já picada e tinta de vermelho, a qual o faz parecer a 174
Cardim, 1978 (1625): 117; Staden: "do mesmo modo pintam o rosto do prisioneiro, e
nletade n1ais grosso, e a cousa do rosto o faz parecer tanto maior e
enquanto urna mulher o pinta, cantam as outras" ( 1974 ( 1557): 180); cf. também Sou za, 1971
(1587): 326.
175
Métraux, 1950: 254; Thevet, in Métraux, 1950: 395; cf. Staden, 197 4 (1557): 180.
176
Cardim, 1978 ( 1625): 117.
172 177
Métraux, 1950: 253; macaná é um outro nome do ibirapema. Thevet (in Métraux, 1950: Métraux, 1950: 256.
178
395) confinna. que eram as ve lhas as responsáveis pela decora~ao: "cada urna destas espadas Cf. Femandes, 1970: 284.
179
foram emplumadas de maneira apropriada pelas velhas". Métraux, 1950: 257.
173
Staden, 1974(1557): 180.
157
156 <I :

t
Comas pontas da corda bem seguras 180 , o cat1vo
. receb"ta f rut as, O fim da participa9ao direta do matador significava a volta do
pedras ou outros objetos que lan9ava contra a assisten~ia, .especi~­ prisioneiro, já morto, a esfera feminina, desta feíta como um animal a
mente contra as mulheres, como informa Hans Staden: ass1m o de1- ser preparado da mesma forma que se fazia com qualquer outro produ-
xam ficar algum tempo e poem-lhe perto pequenas pedras para que to da ca9a. A culinária era sempre urna atividade feminina, e por que
Possa lan9á-las nas mulheres, que lhe correm em redor, mostrando-lhe seria diferente com este xerimbabo comestível que era o cativo morto?
coro amea9as como o pretendem comer . Jean de Léry v1u
,, 181 . um pn- .
Segundo Pero Gandavo - e também André Thevet - assim que a vítima
sioneiro lan9ar urna pedra com tamanha for9a na perna de urna mulher caía urna velha aparava em urna cuia os miolos e o sangue, que era
que pareceu te-" 1a quebrado 182.
bebido ainda quente: "está urna índia velha prestes com um caba90
Sete ou oito velhas, pintadas de jenipapo e urucum e portando grande na mao, e como ele cai acode muito depressa e mete-lho na
colares de dentes humanos, aproximavam-se cantando e dan9ando: cabe9a para tomar nele os mio . 1os e o sangue" . 186
traziam as vasilhas, recentemente pintadas, nas quais recolheriam o Logo as outras velhas lan9avam água fervente ao corpo - ou
sangue e entranhas da vítima e levariam os peda9os do corpo a quem levavam-no ao fogo - para retirar a epiderme e introduziam uro tam-
lhes coubesse. 183 A f ogueira era acesa perto do prisioneiro. Urna velha pao no anus: "(... ) imediatamente levam as mulheres o morto, arras-
chegava correndo com o ibirapema e permitia que os assistentes o tam-no para o fogo, raspam-lhe toda a pele, fazendo-o inteiramente
tocassem, em um gesto que era considerado extremamente honroso: branco, e tapando-lhe o anus com um pau, a-fim-de que nada dele
"(... ) urna mulher se aproxima correndo com a ma9a, o ibirapema, escape". 187 Segundo Femao Cardim: "morto o triste, levao-no a urna
ergue ao alto as borlas de pena, dá gritos de alegria e passa correndo fogueira que para isto está prestes, e chegando a ella, em lhe tocando
em frente do prisioneiro, empunhando-o a- f im- . de que e"le o veja
. " .184
com a mao dá urna pellinha pouco mais grossa que véo de cebol~, até
Era neste momento que entrava em a9ao o matador, que duran- ·
que todo fica mais 11mpo . - pe11 ado ( ...)" . 188 E im-
e alvo que um 1e1tao .
.
te todo o tempo estava se preparando em casa. Desenrolavam-se entao portante notar que eram as velhas que retrravam a pe1e, 189 e mtro
• d .
uz1-
as cenas bem conhecidas a partir das fontes e das reconstru96es de am o tampao - no cad'aver. 190
Métraux e Femandes: os diálogos entre matador e cativo, em que am- As fontes sao contraditórias a respeito da responsabilidade pelo
bos refor9avam os ódios mútuos; o "jogo" em que o matador fingia esquartejamento do cadáver. Embora a maioria dos autores - Femao
acertar a vítima, ou acertava golpes nos flancos, em um exercício que · Cardim, Gabriel Soares de Souza, Jean de Léry, Hans Staden - afir-
poderia durar horas; e, por fim, o golpe na nuca que encerrava, sob mem explícitamente que os homens realizavam a tarefa, outros - Per~
clamores e estalar de cordas de arcos da platéia, a vida do cativo (figu- Gándavo, André Thevet, Yves d'Evreux - nao sao claros a este respe1-
ra 13). O matador dirigia-se entao, com toda a pompa, de volta a casa to. Ao lado <lestes, ternos um relato em que aparentemente sao as mu-
de onde t1n . do. 185
. ha vm
llieres as responsáveis pela camea9ao; segundo Claude d' Abbeville

180 1971 (1587): 326-9; Staden, 1974 ( 1557): 180-2; Thevet; 1978 ( 1556): 13 1-3; Thevet, in
Afirma Gabriel Soares de Souza ( 197 1 [1587): 326) que o cativo ficava "preso como touro
Métraux, 1950: 396-7; cf. Métraux, 1950: 258-6 1; Fernandes, 1970: 284-9 1. ,
de cordas, onde lhe as velhas dizem que se farte de ver o sol, pois tem o fi m tao chegado". 186 Gandavo, 1995 b (1 576): 11 6 e 1995 a: 27; Thevet, in Métraux, 1950: 397; cf. Metraux,
181
Staden, 1974 ( 1557): 180.
182 1950: 261 ; Femandes, 1970: 293.
Léry, 1975 (1578): 21 3-4; cf. Métraux, 1950: 257. 187
183 Staden, 197 4 (1 556): 182.
Métraux, l 950: 257. 188 Cardim, 1978 ( 1625): 119; cf. Abbeville, 1975 ( 16 14): 233; Métraux , 1950: 261 -2; Fer-
184
Staden, 197 4 ( l 557): 180- l ; cf. Métraux, 1950: 257-8. . ~
185 Abbeville, 1975 ( 16 14): 232-3; Brandao, 1966 (1 6 18): 206-7; Card1m, 1978 (1625): 111-9; nandes, 1970: 293.
189
Léry, 1975 (1578): 217-8.
Gandavo, 1995 a ( 1570 ?): 26-8 e 1995 b (1 576): 114-6; Léry, 1975 ( 1578): 2 13-7; Souza, 190
Thevet, in Métraux, 1950: 397.
158 159
nao havia qualquer separa~ao entre o ato de despelar e o de esquartejar W ari' , povo que há poucas décadas ainda praticava o exo-canibalismo,
o cadáver: "aproximam-se entao as mullieres, agarram o cadáver e eram as mullieres que cortavam a carne em peda~s utilizáveis (os
lan~am-no ao fogo até queimarem-se todos os pelos. Retiram-no entao inimigos eram cortados pelos homens em peda~os grandes ainda no
e lavam-no com água quente. Depois de bem limpo e alvo, abrem-llie local da morte):
o ventre e retiram-lhe as entranhas. Cortam-no em seguida em peda-
~os e moqueiam ou assam-no". 191 "A carne era entregue as mulheres (... ), que a cortavam e moquea-
Ambrósio Brandao é ainda mais explícito a respeito do papel vam. Segundo um informante, as mulheres colocavam os peda~s
das m~lheres na camea~ao: "e depois do desaventurado morto, por de carne sobre urna esteira, e a cortavam com um machado. Prepa-
ravam o moquém comum, e a lenha usada era do mesmo tipo da-
esta v1a, o entregam as vellias, a quem pertence o dividirem-lhe os quela que servia para assar a carne de ca~a ( ...)". 198
quartos e porem-nos a cozer e assar espeda~ados ( ... )". 192 Freí Vicente
do Salvador também nao tinha dúvidas a respeito do papel das mullie-
res: "em morrendo este preso, logo as ~velhas o despeda~am e Ihe tiram Este ponto é importante, já que serve como base para o ar-
as tripas e for~ura, que mal lavadas cozem para comer ( ... )". 193 De gumento aventado por Ronald Raminelli: este autor - que se incluí
fato, como quer Florest~ Femandes, é plausível se afirmar que era entre os que duvidam do valor etnográfico das fontes sobre os Tupi-
usualmente aos homens que cabia a camea~ao 1 94 • Contudo, as discre- namb a, 199 - acred•ta
t - icono
que as representa~oes . gráfiteas da antropofa-
pancias entre os relatos permitem-nos imaginar que o esquartejamento gia Tupinambá "hipervalorizam" o papel das mulheres no ato, sendo
do prisioneiro nao fosse algo extremamente marcado em termos de mais um sinal da misoginia européia do que urna representa~ao realis-
dif~ren~as de genero, sendo mais provável que o sexo do magarefe ta.
vanasse de acordo com as particularidades locais ou mesmo com as Afirma Raminelli, se apoiando na reconstru~ao, centrada na es-
características individuais dos participantes do rito. fera masculina, de Florestan Femandes: "era portanto o papel social
Nao é incomum, entre os Tupi contemporaneos, que as mulhe- do hornero que estava vinculado ao canibalismo e a vingan~a; as mu-
res cuidem da camea~ao: as Suruí "assam carne e peixe nos moquéns, llieres eram apenas coadjuvantes e exerciam fun~es 'a-militares"'.200.
cortando e preparando os animais". 195 Darcy Ribeiro deixou-nos um Baseado neste pressuposto, que considero equivocado - qual seja o de
relat~ que mostra o que costumava ocorrer após a chegada da ca~a a que o rito caníbal era urna opera~ao "militar" e nao culinária: os ho-
alde1a Kaapor: "(... ) o veado seria deixado a certa distancia das casas; mens, portanto, é que deveriam ser os protagonistas das representa-
a mulher do companheiro do ca~ador ou daquele que houvesse trazido ~oes do canibalismo e nao, como efetivamente acontece, as mullieres.

a ca~a o levaria dali até o igarapé, o carnearia e voltaria com toda a Creio que minha cansativa descri~ao dos passos do rito canibal mostra
ca~a, nos dando, talvez, um quarto, coma recomenda~ao de que só o de forma mais do que suficiente o erro desta proposi~ao - Raminelli
poderíamos cozinhar". 196 Entre os Araweté, sao claramente os homens passa a examinar algumas ilustra~es do calcógrafo Theodor de Bry,
, . 1 197 , baseadas nos relatos e ilustra~oes dos livros de Hans Staden e Jean de
os responsave1s pe o trato da carne. E oportuno notar que entre os
Léry.
19 1
192
Abbeville, 1975 (1614): 233. O autor se interessa pelo problema da camea~ao do prisioneiro,
Brandao, 1966 (1618): 207-8.
193
Salvador, 1965 (1 627): 96.
afirmando existir urna discrepancia entre algumas das imagens de de
194
Fernandes, 1970: 293.
195 198
Mindlin, 1985: 63. Vila9a, 1992: 101.
196 199
Ribeiro, 1995 b: 404. Cf. a cita9ao na página 42 deste livro.
197 200
Viveiros de Castro, 1986: 154-6. Raminelli, 1997: 36.

160 161
Bry e as fontes. Urna destas discrepancias se situarla nas ilustra9óes 9ao entre homens e mulheres e entre interioridade e exterioridade so-
que mostrara o preparo e o fracionamento do corpo: na primeira delas ciais. J á é tempo de que os historiadores interessados nos Tupinambá
as mullieres aparecem depelando o cadáver e introduzindo o tampao a
avancem em rela9ao reconstru9ao de Florestan Femandes, na medi-
no anus (figura 14). Vejamos o que diz Raminelli (itálicos meus): da em qu~ esta magnífica e portentosa obra está profundamente datada
em urna série de questóes, notadamente no que se refere as rela~óes de
genero. 204
"Na gravura dedicada ao ato de prepara9ao do corpo da vítima,
quatro mulheres raspam a pele, descamando-a, como se preparas- De qualquer fonna, iniciava-se a carnea9ao pela abertura do
sem um porco. Urna das mulheres possui na mao um instrumento abdome e retirada das vísceras, o que era feito segundo Femao Car-
cortante, que emprega para abrir o morro no sentido da coluna d' 1 . 205 . '
vertebral. O procedin1ento contraria boa parte das narrativas sobre
tm, pe os menmos. As mullieres faz1am com que as crian~as tocas-
o canibalisn10 no Brasil e, principalmente, op6e-se aos escritos de s~m o cadáver e se lambuzassem de seu sangue: "outras mullieres vem
Staden e Léry, as matrizes dos desenhos de Theodor de Bry".2 º' amda com seus filhos, e pondo a mao deles em cima e a molhando no
sangue, dizi~m-llie~: Tu estás vingado de teu inimig~, vinga tu aquele
golpe, meu f1lho. Ets um dos que te tomaram óñao de teu pai (... )".206
Ora, é impossível concordar com esta afirma9ao: a mulher em
questao niio está realizando qualquer corte, e sim participando da reti- ~s,~ ~articipa~ao _das crianvas t~bém ocorria entre os antigos
rada da epiderme do prisioneiro. Tanto a forma quanto a empunhadura Guarant. crtanvas, mun1das de machadinhas de cobre abriam o era-
do instrumento levam a conclusao de que se trata de um raspador.202 ?¡º.do moribundo e, enquanto se esforvavam assim n~sse míster, os
Pelo tipo de instrumento e pela empunhadura, pode-se afirmar que a 1nd1os exortavam-nas a tomar-se destemidas e a vingar os pais" e
.
entre os G uara1us Ch. . 207 '
pobre mulher levaria horas para carnear o desditoso cativo! O próprio . e 1nguanos. Um contexto nao-Tupi (Wari')
de Bry nao se equivocou a respeito dos instrumentos: em outra figura oferece u?1.ex.emplo semelhante: "algumas vezes, quando peda~os do
(figura 15), na qual realmente se representa o esquartejamento, os ins- carpo do m1m1go chegavam aaldeia, os meninos, fillios dos matadores
trumentos utilizados sao urna faca (européia) e um machado de pedra, e outro~, eram chamados a flechá-los com suas pequenas flechas, 0
manipulados - exatamente como afirmam Léry e Staden - por homens. que faz1am com enonne gáudio".2 8 º
Nao sendo o caso de analisar com profundidade o texto de · Os membros eram cortados primeiro: "toma-o um homem e
Raminelli, de resto excelente en~uanto estudo do impacto da mulher coArta-lhe _as pernas, acima dos joellios, e os bra9os junto ao corpo.
indígena no imaginário europeu, 03 fica mais urna vez assinalado o Vem ,.e ntao as quatro mulheres, apanham os quatro peda9os, correm
descompasso existente entre a produ9ao historiográfica e antropológi- com eles em tomo das cabanas, fazendo grande alarido em sinal de
l · ,, 209 A ,
ca atuais. Em nenhuma hipótese o papel das mullieres no complexo a egna . s velhas se encarregavam alegremente de todos os cuida-
antropofágico pode ser considerado "secundário". lndependente de dos cul,inários: em geral_ os quartos eram assados no moquém enquan-
quem cortava o cadáver, o repasto caníbal era indubitavelmente urna to as v1sceras eram coz1das. Quanto ao cozimento das vísceras, aliás,
esfera feminina, um discurso "culinário" sobre o mundo, sobre a rela- 204N . ,. d
o m1c10 e~ta pesqu!sa aceitei, com alguma reserva, a opiniao de Raminelli de que as
~ulheres eram h1pervalon zadas nas cenas de canibalismo, mas com a leitura das fontes e da
201 Raminelli, 1997: 34. literatura etnográfica ficou claro o equívoco: cf. Femandes 1996
202
Para a definii;ao arqueológica do raspador cf. Prous, 1992: 74-5. Os raspadores Tupinambá ~: Cardim, 1978 ( 1625): 119. ' .
eram , geralmente, feitos da concha de bivalves pertencente aes generes Phacoides e o Diplo- 207
Thevet, in Femandes ' 1970·. 293 •
don, freqüentemente encontrados nos sítios litoraneos da trad i\ ao Tupiguarani: Prous, 1992: Métraux, 1950: 269-7 1.
208
407). Vi lai;a, 1992: 1Ol.
209
203
cf. também Raminelli, 1994: 154-83. Staden, 1974 (1557): 183.

162 163
Ambrósio Brandao nos traz urna deliciosa informac;ao a respeito da
postura feminina, bastante jocosa, em relavao ~o canibalismo: "e as Florestan Fernandes toca aqui em um ponto essencial: "(... ) pa-
tripas e intestinos botam as velhas em uns alguidares e com _grandes rece que o mingau era muito apreciado pelos Tupinambá e que, quan-
cantos e bailes andam a roda deles com urnas canas nas maos, nas do o número de circunstantes estava em despropor9ao coma quanti-
quais trazem atados alguns anzóis que lanvam sobre as tripas, fingindo dade de carne a ser consumida, faziam-no para 'poder chegar a to-
,, 210 dos"'.215 De fato, como mostra Viveiros de Castro, o cozido é mais
com grandes risos que estao pescando dentro ne1as .
"democrático" que o assado que, por sua vez, assume o aspecto de
O prazer sentido pelas velhas, claramente relacio?~do ao papel urna "exo-comida", na medida em que é preferencialmente oferecido
central destas no repasto caníbal e nao a qualquer estereott~o europe~; "aos de fora" e consumido quando se está fora da aldeia, enquanto o
foi notado com espanto pelos cronistas: "as velhas (as quais, como Jª cozido é a endo-comida por excelencia, conforme demonstrado pelo
disse, gostam imensamente de comer da carne humana) reúnem-se caso Araweté:
para recolher a gordura que escorre do moquém, exortando os homens
a se esforc;arem de forma a que elas sempre tenham des~a carne, e
lambendo os dedos dizem, lguatou, isto· ,, esta" b om" ;2 11 " o s h o mens
e, "A carne de ca9a, na aldeia, é comida preferencialmente cozida,
usando-se do caldo para fazer pirao ou sopa com milho ( ...). O as-
parecem esfomeados como lobos e as mulheres mais ainda. Quanto as sado é tido pelos Araweté con10 un1a forma egoística de preparo
velhas, se pudessem se embriagar de carne humana de bom grado o alimentar, urna vez que restringe o número potencial de bocas a
. ,, 212
f ariam . encher. A generosidade alimentar é um valor essencial da socieda-
de Araweté, cujas cerin1ónias nada mais sao que grandes refei~oes
A forma de consumo dependeria de vários fatores, como a
coletivas; e comer sozinho é a n1arca do avarento. Na mata, duran-
quantidade de carne e o número de comensais. Em geral alguns peda- te as expedi r;oes n1asculinas que visan1 trazer grande quantidade
vos eram moqueados e entregues a quem lhes cabi~ ou guardados para de carne para a aldeia, o moqueado é a forma de preparo - ou an-
futuras ocasioes ou mesmo presenteados aos convidados, que os leva- tes, de tratamento, pois as carnes moqueadas sao en1 geral cozidas
' . . . na aldeia, antes de serem consun1idas. No acampamento de car;a,
riam para seus grupos locais de modo a realizar no~as cau1nagens e
come-se assado. Nas excursoes em que vao mulheres e crianr;as,
A distribui~ao da carne respeitava fundamen-
213
tomadas de nomes.
sempre se procura levar panelas para cozer".216
talmente o preceito de que todos deveria~ prov~ ~~ carne do .inimigo: I

assim, um pequeno número de comensa1s permitlna que m,,u~tos con-


sumissem a carne moqueada, enquanto que, no caso contrario, o ~o­ Certamente, para os Tupinambá, também existia esta diferen-
zimento de todo o corpo seria urna imposic;ao. De acordo com Gabriel ciavao sexual dos preparos da carne; afinal, como diz Hans Staden, "as
Soares de Souza, os velhos e as velhas seriamos principais interessa- vísceras sao dadas as mulheres. Fervem-nas e como caldo fazem urna
. ,, que e1as e as cnan9as
.
dos no consumo da carne: "( ...) e os homens mancebos e mulheres
mo~as provam-na somente, e os velhos e velhas sao os que se metem
. muito
nesta carniva . ( ... )" .214
l papa ra1a, que se c h ama rrungau, sorvem,,.2 17
Aos homens, o assado; as mulheres, símbolo do humano e da elabora-
~ªº cultural, a endo-comida, o cozido. Seria um engano, contudo, i-
maginar (como faz Ronald Raminelli21 8) que esta divisao de genero
assumisse ares de prescri9ao ou mesmo de proibi9ao: seria antes urna
210
Brandao, 1966 ( 161 8): 208. decisao estratégica dependente da relac;ao entre quantidade de carne e
2 11
Léry, 1975 (1 578): 2 18-9.
2 12
Abbeville, 1975 (1 6 14): 233; cf. Fernandes, 1970: 293; Métraux, 1950: 262-5. 215
2 13 Femandes, 1970: 296.
Cardim , 1978 (1625): 11 9; Gandavo, 1995 b ( 1576): 11 6; Souza, 197 1 ( 1587): 328; cf. 216
Fernandes, 1970: 295-6; Métrau x, 1950: 263. Yiveiros de Castro, 1986: 154-5.
214 217
Souza, 197 1 (1 587): 328; cf. Fernandes, 1970: 296-7; Métraux, 1950: 263. Staden, 1974 (1557): 183; cf. p. 97 deste livro.
218
Raminelli , 1997: 34.
164
165
número de participantes, como percebeu com perspicácia Aorestan Enfim chegamos as portas de um dos objetivos centrais deste
trabalho. O caminho percorrido por este "mundo ideal" Tupinambá
Femandes. \'!
permitirá encarar, com um instrumental pretensamente mais apurado,
Para concluir a utiliza9ao, virtualmente total, do morto, seu a grande questao do contato interétnico no Brasil, e o papel crucial
cranio seria colocado no alto de urna estaca em frente a cho9a doma- exercido pelas mulheres Tupinambá neste complexo processo. Os di-
tador, seus dentes seriam usados em colares e suas tíbias em flautas e ferentes tipos de intera9ao entre europeus e índios que se nos apresen-
19
apitos.2 tam, baseados, por um lado, nos diversos tipos de europeus (truche-
Como se viu nesta se9ao, existiam no ritual antropofágico pelo ment normandos e colonos portugueses; huguenotes franceses ou jesu-
menos duas séries simultaneas de eventos: urna masculina, vinculada a ítas ibéricos, entre outras diferen9as) e, por outro, nos também diver-
guerra e magistralmente estudada por Alfred Métraux, Florestan Fer- sos tipos de Tupinambá (velhos e jovens; homens e mullieres), permi-
nandes e Eduardo Viveiros de Castro e justamente por isso colocada tirao tra9ar algumas das linhas básicas das estratégias de resistencia
"entre parenteses" neste trabalho; e urna feminina, forteniente relacio- exercidas pelos Tupinambá, centrando o foco, evidentemente, nas es-
nada ao papel metafísico da mulher como representante da interiorida-
de social e ao papel central ocupado por esta em tudo o que dizia res-
peito a manipula~ao e ao preparo dos alimentos. As mulheres coman-
l tratégias femininas de resistencia a desestrutura9ao provocada pela
. - ,.
mvasao europe1a.

davam boa parte do rito e tomavam nomes sobre os inimigos, exata-


mente o que foi considerado por longo tempo como urna prerrogativa
unicamente masculina.
É o momento de refletir um pouco sobre tudo o que foi dito
aqui. Durante o nascimento das meninas era a mae, ou urna parenta, a
responsável pelo corte do cordao umbilical; por ocasiao do ritual da
menarca era a mae, e suas parentas, as responsáveis por todos os cui-
dados devidos a jovem, inclusive as opera~oes mágicas de prote9ao;
as tias maternas tinham, ao lado da mae, um papel crucial na prepara-
~ªº da mo9a para a vida sexual e matrimonial; o ritual canibal era do-
minado pelas mulheres. Ora, tudo isto leva necessariamente a conclu-
sao de que o quadro tradicional tra~ado pelo Handbook of South Ame-
rican Indians - de autoria de Alfred Métraux - e mesmo o quadro tra-
~ado por Florestan Femandes merecem urna revisao radical no que diz
respeito as rela9oes de genero. Se for possível ver a sociedade Tupi-
nambá como urna fun~ao do rito canibal - urna sociedade que, como
disse Femandes, existia para a vingan9a realizada idealmente no cani-
balismo - nao é possível ve-la como urna fun~ao do matador canibal: a
velha com os dedos gotejantes de gordura humana merece um lugar
muito especial no centro do palco.

219
Métraux, 1950: 265.

166 167
CAPÍTULO IV

A MULHER TUPINAMBÁ E O CONTATO INTERÉTNICO

,
1. Os Indios e o Processo de Conquista

+ Seria impossível fazer aqui um estudo realmente completo a res- ·


peito do impacto da ,invasao européia para a sociedade e para as mu-
lheres Tupinambá. E perfeitamente factível, contudo, que isolemos
,..., arbitrariamente alguns aspectos do complexo processo de contato a
1

fim de que, na medida do possível, possamos realizar o objetivo deste


livro, qual seja o de tratar o tema através do estudo das estruturas in-
•1
temas da sociedade nativa, notadamente no que se refere aquelas ati-
vidades e esferas mais diretamente ligadas as vidas das mullieres.
Ora, ao tentar realizar este objetivo é certo que nao se pode
deixar de inserir o contato interétnico no Brasil no contexto mais am-
plo da expansao européia. Quando desembarcaram no Novo Mundo os
europeus nao estavam apenas iniciando urna aventura de conquistas,
saques e camificinas: a conquista da América está inserida em um
vasto processo de expansao ecológica conduzida, nem sempre de for-
ma consciente ou voluntária, pelos migrantes europeus, e tal processo
nao pode ser reduzido a urna conquista militar cum escravidao, tal
como contam os manuais didáticos. ·
'
· Naturalmente nao quero aqui diminuir em nada a violencia e a
catástrofe social que se abateram sobre as popula~6es amerindias: a
invasao do continente que seria conhecido como América foi, sem
sombra de dúvidas, o maior genocídio jamais praticado neste planeta.
Contudo, encarar este fenómeno unicamente como urna expansao a-
gressjva do capitalismo em gesta~ao somente pode nos levar ao cos-
tumeiro beco sem saída das descri~6es tradicionais do contato euro-

169
"'f •
indígena, descriy6es incapazes de apreender todas as dimensoes da
verdadeira expansao biológica, humanos incluídos, que foi a invasao gumas das diferenc;as biogeográficas e culturais que possibilitaram a
européia, e séu impacto para os nativos americanos, em geral, e para "blitzkrieg" que se abateu sobre os índios:
os Tupinambá em particular. 1
Está mais do que claro nos días de hoje que o relativo isola- a) As diferenras entre as biotas: a capacidade de produzir ali-
mento geográfico dos amerindios - e dos nativos da Oceanía, vale re- mentos em grandes quantidades a ponto de permitir a existencia de
cordar - representou um dos fatores determinantes para a sua derrota excedentes é certamente um das condic;ües para o desenvolvimento de
perante os europeus, fator bem m~is importante, por exemplo, do que sociedades urbanas complexas, e existem grandes diferenc;as entre os
a potencia bélica destes últimos.2 E importante explorar um pouco esta continentes no que concerne a distribuic;ao de plantas e animais selva-
questao, com vistas a urna melhor compreensao do cantata interétnico gens passíveis de domesticac;ao. Conquanto os amerindios tenham
no Brasil. alcanc;ado grandes sucessos na domesticac;ao e manejo de várias espé-
Os continentes eurasiano e africano formam urna enorme mas- cies vegetais, os eurasianos foram muito mais bem sucedidos, especi-
sa de terra razoavelmente contínua, o que permitiu urna grande quan- almente no que diz respeito a produc;ao de cereais, certamente a me-
tidade de intercambios genéticos entre populac;oes - vegetais, animais lhor matéria-prima já inventada para a produc;ao de sociedades popu-
e humanas - bastante afastadas entre si. Isto, se por um lado permitiu a losas e complexas.
ocorrencia de epidemias periódicas, das quais a peste negra é apenas o O mais grave, contudo, foram as diferenc;as faunísticas: as ex-
exemplo mais conhecido, por outro lado fez com que estas populac;oes tinc;oes de grandes mamíferos em fins do Pleistoceno e prinéípios do
se tomassem extremamente adaptadas a um ambiente de acirrada Holoceno foram
,, muito mais severas na América e Austrália do que na
competic;ao. Como mostra Alfred Crosby, 3 a substituic;ao total _ou qua- Eurásia e Africa; com isso os amerindios ficaram privados da existen-
se total de populac;oes americanas ou australianas pelas européias nao cia de possíveis animais de trac;ao e, portanto, nao desenvolveram urna
foi um apanágio da espécie humana, tendo acorrido também com série de tecnologías que seriam decisivas no momento do choque de
plantas e animais, o que revela que a conquista da América é parte de culturas. Um exemplo é a roda, inventada para carros puxados por
um processo bem mais amplo de tracas entre biotas anteriormente burros e vacas (e nao por lhamas ou alpacas), e que permitiu o surgi-
isoladas entre si. mento de urna engenharia mecanica totalmente inalcanc;ável para os
Neste processo os grandes derrotados foram os pavos amerin- índios: "o nao desenvolvimento da tecnología da roda significava que
dios e australianos, e as explicac;oes para a catástrofe nao precisam ser o Novo Mundo ficava para trás em todos os processos de levantamen-
exclusivamente biológicas: é verdade que as doenc;as do Velho Mundo to, tra9ao, moagem e manufatura em que as palias, engrenagens, rodas
foram o fator decisivo na conquista européia, ao matar milhoes de dentadas e roscas tero um papel essencial". 5
índios em um espac;o de tempo extremamente reduzido, mas outros
fatores também entraram em jogo. Jared Diamond4 sistematizou al-
b) Facilidades para a difusiio cultural e migraroes: tanto a di-
fusao das inovac;oes técnicas quanto os movimentos populacionais sao
1
facilitados na Eurásia, em virtude de urna peculiaridade geográfica: o
Sobre o conceito e as modalidades da expansao biológica européia cf. Crosby, 1972; 1993 e eixo principal do continente eurasiano situa-se no sentido leste-oeste,
Dean, 1996: 7 1-2.
')

; Crosby, 1972; 1993; Dean, 1996; Diamond, 1997; Sournia e Ruffié, 1986. o que fez com que a maior parte das grandes civiliza96es eurasianas
Crosby, 1993; cf. também Sournia e Ruffié, 1986: J 52.
4
Diamond 1997: 36-7.
5
Han-is, 1990: 50.
170
171
estivessem localizadas em latitudes semelhantes, diminuindo sobre- dismo, ausencia de agricultura - destes povos em rela9ao aos Tupi-
maneira as barreiras climáticas para a troca de animais e plantas do-
mesticadas "e para as migra96es de popula~oes humanas, bem como
I nambá, dificultando a explora9ao de seu trabalho por p~e ~os eur~­
peus. Ora, além de fatores epidemiológicos (que serao d1sc~ttdos ad1-
para a transmissao das inova96es tecnológicas. O continente america- ante), é mais provável que o relativo "fech~mento" metafísico p~a ~
no, por outro lado, tem seu principal eixo no sentido norte-sul: qual- exterior apresentado pelos povos centro-brasileiros tenha se constttu1-
6• A •

quer inova9ao cultural ou movimento populacional, embora nao im- do em fator decisivo para a sua sobrev1venc1a.
possibilitado, está limitado pela presen~a de urna série de barreiras Dentre as desvantagens comparativas oriundas do isolame~to
ecológicas e climáticas advindas desta distribui9ao longitudinal das geográfico e populacional, as doen9a~ constituíram, ~ertamente, o p1or
terras americanas. dos flagelos: os nativos americanos s1mplesmente ~ao estav~m prep~­
rados para resistir a algumas infec~oes para as qua1s eles na? possu1-
am quaisquer anticorpos. As cartas jesuíticas, de forma trag1camente
c) Tamanho dos continentes: a própria extensao da Eurásia,
monótona estao cheias de referencias as incríveis mortandades provo-
muito maior que a da América, por si só representou urna vantagem
comparativa para os europeus. Urna massa de terra maior permite a
cadas pel~s patógenos do Velho Mundo entre os Tupinamb~. osé d.e · ,!
Anchieta, na "Informa~ao dos Primeiros Aldeamentos da Ba1a (escri-
coexistencia de um grande número de sociedades diferentes, e portan-
ta, provavelmente, em 1584), deixou-nos um claro testemunho acerca
to um número potencialmente maior de inova9oes culturais e urna
do impacto destas doen~as para os índios:
pressao maior no sentido de adotar tais inova~oes, simplesmente por-
que as sociedades que nao fizeram isso foram eliminadas pela compe-
ti~ao com sociedades mais agressivas. "No n1esn10 ano de 1562, por justos juizos de Deus, sobreveiu ~ma
grande doen~a aos Indios e escravos dos Portugueses, e com .1sto
grande fon1e, em que n1orreu muita gente, e do.s que ficavan1 vivos
Desta maneira fica claro que a tradicional pergunta "como é ntuitos se vendian1 e se ian1 n1eter por casa dos Portugueses a s.e
fazer escravos, vendendo-se por un1 prato de farinha, e outro~ ~1-
possível que u.m número tao reduzido de europeus possa ter conquis- ziam, que Jhes pusessen1 ferretes, que querian1. s~r escravos: fo1 tao
tado e destruído popula~oes tao grandes quanto as existentes na Amé- g rande a n1orte que deu neste gentío, que se d1z1a, que entre escra-
rica?" deva ser substituída pela questao mais apropriada: "como é pos- vos e Indios forros morreriam 30.000 no espa~o de 2 ou 3 meses"7 ·
sível que alguns indivíduos e mesmo povos americanos tenham sobre-
vivido a um tal conjunto de circunstancias desfavoráveis ?".A respos-
Em outro trecho do mesmo documento, o jesuíta é ainda mais
ta a esta questao foge totalmente ao escopo <leste Iivro, mas o que já
explícito acerca da catástrofe:
foi <lito mostra bem a complexidade dos fatores envolvidos no contato
euro-indígena.
"A gente que de 20 anos a esta parteé gastad~ nesta Ba~a , parece
Nao se pode esquecer, e este é um ponto fundamental para este cousa, que se nao pode crer; porque nunca nmguen1 cu1dou, que
trabalho, que os diferentes sistemas culturais nativos proporcionaram tanta gente se gastasse nunca, quanto .n1ais en1 ta.o pouco ten1po;
respostas também diferentes aos desafíos apresentados pelo contato: porque na 14 igrejas, que os padres tlveram, se JUntaran1 40.000
assim, muitos povos centro-brasileiros, menos populosos e, por vezes, aln1as, estas por conta, e ainda passaram deJas com a gente, com
menos belicosos que os Tupinambá, foram muito mais bem sucedidos
em resistir a catástrofe advinda do intercambio com os europeus. Se- 6
7
Viveiros de Castro, 1986: 30, e as páginas 90-3 dest~ livro. , ,, ~ . .
José de Anchieta, " Infonna\:ao dos Primeiros Alde1amentos da Baia (1 :>83?), m Anch1eta,
gundo as interpreta~oes tradicionais isto se <leve ao "atraso" - noma- 1988: 364.

172 173
que depois se forneceran1, das quais se agora as tres igrejas que há pedeiro; assim é mais provável que a pessoa infectada morra antes de
tivere m 3.500 almas será n1uita" .8 11
transmitir a doen9a a um grande número de outras pessoas. As popu-
" la96es de ca9adores-coletores denominadas de "tapuias" estavam, co-
Para os inacianos a mortandade era tao insólita que só poderia mo um todo, mais capacitadas a resistir a estas epidemias que os Tu-
ser explicada como urna a9ao de Deus para punir os maus costumes pinarnbá: um grupo de tapuias infectado poderia ser extinto antes
dos nativos, o que era, sem dúvida, urna teoría bastante útil para o seu mesmo de encontrar com outro bando; nao é a toa que os temíveis
proselitismo religioso; contudo nao eram apenas os "pecadores" que ca9adores-coletores Aimoré tenharn sido urna das poucas popula96es
. 12
momam: nativas do litoral e adjacencias que resistiram acatástrofe.
Isto difícilmente poderia ocorrer nas vastas redes de inter-
"O s días passados hizin1os algunos christianos, de los quales algu- relac;oes formadas pelos muito mais populosos Tupinambá, e esta ca-
nos se tomaram a sus costun1bres, y queriendo el Señor castigar- racterística foi evidentemente acirrada pela política de aldeamentos,
los, fué la mortandad en ellos tanta, qué fué cosa estranna, maior-
que ao juntar, sistematicamente, dezenas de milhares de indivíduos
mente por los hijos y hijas n1ás pequennas, los quales parecen no
tener culpa; mas queriendo el Señor poblar la gloria y avisar los despreparados para as doen9as européias ern urna pequena área - onde,
que qui siesen allá ir, de n1anera que guarden sus n1andan1ientos, por exemplo, se respirava o mesmo ar dos doentes de tuberculose ou
andam tan1 atten1ori9ados, que los haze tornar de sus costun1- gripe - praticamente realizava um genocídio deliberado. Deve-se notar
bres".9 que, para os colonos, interessava que os índios, desde que "pacifica-
dos", permanecessem vivos e capazes para o trabalho; para os jesuítas,
Para W~en Dean as doen9as fizeram com que a grande popu- contudo, isto pouco importava: "os jesuítas ( ...) nao consideravam a
la9ao Tupinambá da costa entre Sao Paulo e Rio de J aneiro se reduzis- morte física como algo importante, exceto com rela9ao ao drama da
se a meros 4 ou 5 .000 indivíduos em 1600, o que significa falar em salvac;ao". 13
um declínio populacional de aproximadamente 95 % em relac;ao a Era suficiente considerar que aqueles que nao aceitavam o
provável populac;ao em 1500. 10 É necessário perceber que nao se tem proselitismo jesuítico recebiam a "punic;ao de Deus", enquanto que os
notícia de grandes epidemias no Brasil das primeiras tres ou quatro fiéis iriam "ao encontro de Deus": "( ... ) porque los días passados per-
décadas de ocupac;ao européia. Parece certo que a explosao das epi- mitió Dios que los niños baptizados se morieron pocos a pocos, por
demias em meados do século XVI está relacionada a política jesuítica ventura que aquellos eran los que desta tierra estavan determinados
de concentrac;ao de grandes populac;oes indígenas nos aldeamentos, o para el cielo, y antes que la malicia los mudasse los llevó el Señor
que facilitava sobremaneira a ac;ao dos patógenos. pera sí". 14 Referindo-se a um principal morto sete días após ter rece-
Como mostra Francis Black, boa parte das infeccoes que con- bido o batismo, escrevia o Padre Antonio Pires: "Enterrárnoslo en una
tribuíram para a mortandade dos nativos brasileiros apresentam urna yglesia que teníamos hecha para los nuevamente convertidos. Algunos
alta morbidade mas desaparecem coma recuperac;ao ou morte do hos- hechizeros lo quisieron estorvar mas no pudieron, y echaron fama que
el santo baptismo lo matava, no conociendo que nuestro Señor le avía
8
hecho muy gran merced en lo quitar dantre ellos y llevarlo a su santa
José de Anchieta, .. Infonna<yáo dos Pri meiros Aldeiamentos da Baía" ( 1583?), in Anchieta,
1988: 385.
9
Carta do Ir. Vicente Rodrigues aos Padres e Innaos de Coimbra (Baía, l 7/0511 552), in Leite, 11
Black, 1975.
1954 (1): 303. 12
Dean, 1996: 79.
10
Dean, 1996: 79; cf. também Ribeiro, 1996 a: 141-8 e Ribeiro e Moreira Neto, 1992: 197- . 13
Dean, 1984: 22 .
203 ..
J 14
Carta do P. Luís da Ora ao P. Inácio de Loyola (Baía, 27/12/1 554), in Leite, 1954 (11): 134.

174
¡ 175

.11
gloria, como se deve creer". 15 José de Anchieta demonstrou claramen- A etnoepidemiologia Tupinambá era muitíssimo superior a dos
te esta posi9ao ao batizar urna menina que havia nascido quase morta: jesuítas, já que os índios logo perceberam a rela~ao existente entre a
"come~ou depois a menina a bolir pouco a pouco e viver e ainda esta- chegada daqueles homens e o surgimento de doen~as novas e terríveis.
va viva quando de lá vim, ainda que eu mais quisera deixá-la no paraí- Conquanto muitos índios conversos aceitassem a teoria jesuítica da
so (... )". 16 a~ao divina, outros - especialmente pajés e caraíbas - utilizaram-se
Esta responsabilidade, contudo, nao se esgota nesta a~ao indi- desta constata9ao para ·se contrapor a influencia dos padres. Como
reta: os jesuítas foram os principais introdutores dos agentes infeccio- lembra Viveiros de Castro, a própria água batismal, certamente imun-
sos nas aldeias nao atingidas pelos colonos europeus. Vivendo de da e infecta, constituía um poderoso meio de contágio, e o fato de ser
forma rustica, falando aos índios pelas madrugadas e dispensando muitas vezes administrada in extremis levou os índios a associarem,
mesmo os pouquíssimos confortos disponíveis na época, os jesuítas com bons motivos, o batismo com a mortandade que geralmente se
eram, eles próprios, homens bastante doentes, principalmente de tu- seguia. Dizia Manuel da Nóbrega:
herculose e disenteria. Para infelicidade dos nativos, quanto mais do-
entes mais os padres se dispunham a realizar suas prédicas pelas al- "Solamente de una cosa estamos espantados, que casi quantos bau-
deias, certamente em busca de urna gloriosa morte a servi~o do Se- tizan1os adolecieron, unos de barriga, otros de Jos ojos, otros de
nhor. Manuel da Nóbrega, em 1558, descrevia esta prática que, para hinchazos; y tuvieron ocasión sus hechizeros de dezir que nosotros
todos os efeitos, equivalia a urna verdadeira "guerra bacteriológica": con el agua, con que los bautizamos, les damos la dolencia y con
la doctrina la muerte".18

"Fodio este anno tantas doen\:as e trabalhos que ouve nesta casa
que nao saberei contar, porque todos os Padres achegarao as portas A chegada dos padres a urna aldeia poderla ser motivo para um
da morte e passaram per ignen1 et aquan1. O Padre Francisco Pirez, verdadeiro, e justificado, panico entre os índios:
despois do falecimento do pe Joao Gon\:alvez, adoeceo tambem
muito. O Im1ao Antonio Rodrigues da n1esn1a n1aneira, e porque
nao foi sangrado, foi súa infirn1idade n1ais prolixa, porque lhe sa- "Son1ente de huma derradeira que fizerao, na qual muito padece-
yo aquele sangue en1 posten1as e sama por todo o corpo e durou rao todos por si, os Padres e Irmaos, como os meninos, porque fu-
muyto ten1po; mas así nao deixava de falar e tratar com os Indios o giao os gentíos delles como da morte e despejavao as casas e fogi-
negócio de N. Senhor (...)". 17 ao pera os matos; outros queimavao pimenta por Jhes nao entrar a
n1orte em casa. Levavao crux alevantada a que aviao grande medo
e vinhao alguns ao caminho a rogar aos Padres que lhes nao fizes-
sem n1al, que passasem de largo amostrando ho caminho e, tre-
mendo con10 a verga, nao queriao ouvir as prega~oes (... )". 19

15
Ca11a do P. Antonio Pires aos Padres e llmaos de Coimbra (Pernambuco, 02/08/1551) in
Leite, 195 4 (1): 255. Naturalmente os jesuítas nao eramos únicos responsáveis pela
16
Carta de José de Anchieta ao Geral Diego Lainez, de Sao Vicente, Janeiro de 1565, in difusao patogenica. As doen~as sexualmente transmissíveis constituí-
Anchieta, 1988: 229; cf. Evreux (187 4 [ 16 15]: 2 11 -2), para a mesma prática entre os france- 1
ses do Maranhao.
17
Carta do P. Manuel da Nóbrega ao P. Miguel de Ton-es e Padres e Irmaos de Portugal (Baí-
r~' ram-se também em grandes ceifeiras de vidas: a liberdade sexual das

a, 05/07I 1559) in Leite, 1954 (III): 62. Na mesma carta (p. 60) Nóbrega afirma que o padre '8 Carta do P . Manuel da Nóbrega ao Dr. Martín de Azpilcueta Navarro (Salvador,
Joao Gonvalves, já as portas da morte, havia sido " mandado, como digo, a Sancti Spiritus a l 0/08/ 1549) in Leite, 1954 (1): 143.
doutrinar aqut:'.las almas e bautizar os lactantes, porque a estes baptizamos logo, polo perigo 19
Carta do P. Francisco Pires aos Padres e Irmaos de Coimbra (Baía, 07/08/ 1552) in Leite,
que correm ( ...)". 1954 (1): 397; cf. também a citayao de Francisco Pires nas páginas 136-7.
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176 'I
177
•/ Jltt,?
índias, muitas vezes acompanhada de grande dose de pragmatismo no légua; fiz outras muitas saídas em que destruí muitas aldeías fortes
caso do sexo com os europeus, contribuiu bastante para a contamina- e pelejei com eles outras vezes, em que foram muitos mortos e fe-
ridos, e já nao ousavan1 estar senao pelos montes e brenhas, onde
9ao de doén9as como a sífilis, que, embora já ~xistisse na América, n1atavam os caes e galos, e, constrangidos da necessidade, vieram
certamente teve sua a9ao agudizada em virtude da desagrega9ao social a pedir n1isericórdia e lhes deí pazes, com condi9ao que haviam de
e da própria "crise imunológica" provocada pelo surgimento das do- ser vassalos de sua alteza e pagar tributo e tomar a fazer os enge-
en9as européias.20 nhos, tudo aceitaram e fizeram e ficou a terra pacífica em espa90
de trinta días ( ... ).22
A catástrofe demográfica causada pelas epidemias foi tamanha
que muitas áreas da Mata Atlantica que já haviam sido ocupadas e
cultivadas pelos Tupinambá desenvolveram forma9oes secundárias Um contraponto poético asecura do relato de Mem de Sá é da-
durante o século XVII, em um verdadeiro "renascimento" ecológico do por José de Anchieta, que em De Gestis Mendi de Saa, celebra em
fugaz causado pela quase extin9ao dos antigos habitantes e pelo pe- versos a duvidosa glória dos conquistadores portugueses:
queno número de europeus e seus descendentes que os substituíram. 21
Em escala menor a escravidao e as guerras também constituí- "( ... ) Acende-se n1ais a n1ais a coragen1 do chefe
ram uro fator da maior importancia na expansao européia. Homens e seus bravos: derrubam a golpes mortais, muitos selvagens.
como Mem de Sá, Bento Maciel Parente ou Domingos Jorge Velho, Ora decepam bra9os enfeitados com penas de pássaros,
entre muitos outros, notabilizaram-se pelos grandes massacres promo- ora abaten1 com a lan1ina reluzente cabe9as altivas,
vidos contra várias popula96es indígenas. Entre os muitos testemu-
faces e bocas pintadas de vern1elho urucun1,
nhos da devasta9ao destaca-se o de Mem de Sá, que em 1570 descre-
ora parten1 as frontes salientes entre as covas das temporas
via sua guerra contra os Tupiniquim de Ilhéus, em um relato que sinte-
tiza a doutrina militar portuguesa, aplicada muitas outras·vezes: e enchem o Tártaro triste dessas vidas orladas.
Soan1 am1as e golpes e genlidos e baques de corpos.

"Neste tempo veío recado ao govemador con10 o gentío Topene- Aqui e ali jazen1 cadáveres de inin1igos, crivados
quim da capitanía dos Ilhéus se levantara, e tínha mortos muitos de chagas profundas, empastados de pó: a sangueira
cristaos e destruídos e quei1nados todos os engenhos de a9úcar (... ) cobre os arraiais e espun1ante se en1bebe na areia.
fui com pouca gente que n1e seguiu, e na noite que entrei nos 1-
lhéus fui a pé dar nun1a aldeia que estava sete léguas da vila (...) e Nao sustenta n1ais o embate, assim dízimada,
ante manha, duas horas, dei na aldeia e a destruí e matei todos os a horda selvagem. Volta as costas e em fuga apressada
que quiseran1 resistir, e a vinda vim queimando e destruindo todas abandona as cercas e escapa por portas bem conhecidas.
as aldeias que ficaram atrás, e, por se o gentío ajuntar e me vir se-
guindo ao longo da praia, lhe fiz algumas citadas onde os cerquei e Mal puderan1 os inimígos fugir as lan9as e temidas espadas
lhes foi for~ado deitaren1-se a nado ao mar costa brav.a I mandei e salvar a vida acolhendo-se a segunda trincheira,
outros índios atrás deles e gente solta, que os seguiran1 perto de inútil refúgio do desespero( ... )
duas léguas e lá no mar pelejaram de maneira que nenhun1 Tope-
nequim ficou vivo, e todos os trouxeram a terra e os puseram ao ( .. .) Seria longo referir os golpes de cada um dos guerreíros,
longo da praia, por ordem que tomavam os corpos perto de uma as vidas que despenharam nos abismos da terra.
As amias lan9aram no. inimigo extemúnio medonho.
20
Ribeiro é Moreira Neto, 1992: 200-1.
21 22
Dean, 1996: 79-107. "Instrumentos dos Servii;os de Mem de Sá", 1570, in Ribeíro e Moreira Neto, 1992: 179.

178 179
O sangue correu en1 riachos que espumejavan1: comas cabecinhas pelos troncos das árvores; e de urna maloca de tre-
,, . . ,,,25
muito,$ tombaran1 passados ao fio da espada, zentos, so escaparam trmta e sete mocentes ..
muitos, de mao e pesco90 presos, carregaram cadeias. As guerras contra os índios de Piratininga e Sao Vicente no sé-
Domado ficou assin1 seu furor indon1ável. culo XVI foram feítas com tropas formadas em sua maioria por índios
Cessou finalmente o terror, a altivez e amea9as aliados aes portugueses, e a grande guerra dos Tamoios reuniu enor-
23 mes contingentes de índios inimigos entre si. 26 Anchieta, em sua visita
dos bárbaros; e voltou aos lusos a paz suspirada. ( ... )" .
a aldeia de Iperoig (1563), um dos centros da resistencia dos Tamoio
(Tamuya), teve a oportunidade de conhecer os fundamentos das atitu-
O trecho em que Mem de Sá afirma "mandei outros índios a- des dos Tupinambá em rela9ao aes europeus. Fica bem nítido a partir
trás deles ..." <leve nos servir de alerta contra os perigos da "vitimiza- de seu relato que os índios pautavam suas a9oes com base no lugar
9ao" dos índios, perigos que, por vezes, reduzem a história do contato central ocupado pelo complexo guerra/vingan9a na. sociedade Tupi-
interétnico acronica de urna extin~ao. Sem desejar, em nenhuma hipó- nambá, lugar que nao se limita aes aspectos militares mas que avan9a
tese, amenizar a responsabilidade européia pelo massacre dos Tupi- sobre todas as esferas da vida. 27 .
nambá e de outros povos, como os tapuias do sertao nordestino ou os
Os interlocutores de Anchieta deixaram claro que aquilo que
Guaraní da regiao das Missoes, o fato é que a maior parte dos exérci-
os movia aguerra com os portugueses era unicamente o ódio aes seus
tos "europeus" que lutaram contra os índios "brabos" durante os
inimigos tradicionais que haviam se aliado aos lusitanos; no momento
primeiros séculos era fonnada por índios e mamelucos. Na conquista
em que estes, pressionados pelo acelerado processo de transforma9ao
dos Tupinambá do Maranhao e Pará em princípios do século XVII,
de aliados em escravos, erguiam-se contra os portugueses, os Tamoio
por exemplo, Bento Maciel Parente "(foi) desde o Maranhao com oi-
rapidamente tentaram fazer a paz como um meio de retirar alguma
tenta homes, e seiscentos índios frecheiros das aldeas do Maranhao e
vantagem militar. Diz Anchieta:
fez neste gentio grandes estragos (... )". 24
Bento Maciel Parente, grande matador de índios, teve um filho
"Visitán1os an1bas as aldeias e, entre eles, eu falando en1 voz alta
natural, o mameluco Vital Maciel Parente, que agiu da mesma forma: por suas casas con10 é seu costun1e, dizendo-lhes que se alegras-
em 1679 partiu de Sao Luís no comando de trinta canoas e um barco sen1 con1 a nossa vinda e an1izade: que querian1os ficar entre eles e
grande com 140 soldados a européia e 470 índios aliados em dire~ao ensinar-lhes as coisas de Deus, para que lhes désse abundancia de
ao Ceará para combater os tapuias Taramambeses (os Tremembé, ain- mantin1entos, saúde, e vitória de seos inimigos e outras cousas
da existentes) que dominavam o litoral norte cearense. Lá chegando sen1elhantes, sem subir mais alto, porque esta gera9ao sem este es-
calao nao querem subir ao céu, e a principal razao que os nloveu a
"surpreenderam os Taramambeses descuidados, e tal foi o furor dos quereren1 a paz nao foi o medo que tivessem aos Cristaos, aos
assaltantes que nao perdoaram a sexo nem a idade. Os índios aliados, quais sen1pre levaran1 de vencida fazendo-lhes muitos danos, nem
travando das crian9as pelos pés, matam-nas cruelmente, dando-lhes necessidade que tivessen1 de suas causas, porque os Franceses que
tratan1 com eles lhas dao en1 tanta abundancia, assim roupas, como
ferramentas, arcabuzes e espadas, que as podemos Cristaos com-
prar a eles, n1as o desejo grande que ten1 de guerrear com seus i-

25
23
José de Anchieta, De Gestis Mendi de Saa (1560?), in Ribeiro e Moreira Neto, 1992: 178-9; Carta de Inácio Coelho da Silva, Govemador do Maranhao, ao Príncipe Regente de Portu-
cf. Ribeiro _e Moreira Neto, 1992: 174-92 para outros testemunhos do extermínio indígena, gal (Maranhao, 22/0911679), in Varnhagen, 1975 (1854-7, t. III): 242-3.
26
bem como Gomes, 1988 e Leonardi , 1996. Leonardi, 1996: 190-9; Monteiro, 1994: 17-85.
27
24
Silveira, 1974 (1624): 38. Femandes, 1970; Cameiro da Cunha e Viveiros de Castro, 1985; Fausto, 1992.

180 L 181
nimigos Tupis, que até agora foran1 nossos an1igos, e pouco ha se "No princípio de 629 teve notícia de sua estada (dos holandeses) o
levantaran1 contra nós outros ( ...), dos quais, porque sempre foran1 capitao de Pará, Manuel de Souza Dessa. Mandou lá o capitao Pe-
vencidos e maltratados com favor dos Portugueses, queriam eles ro da Costa ( ...) dando-lhe 30 ou 40 soldados portugueses e oito-
agora com o mesn10 favor ser vencedores e vingar-se bem deles, centos índios flecheiros em 40 canoas. Chegou Pero da Costa ao
matando e comendo a sua vontade, dizendo que até agora nos ha- sítio dos inimigos. Fez uma cava defronte do seu forte, a tiro de
viam feíto muito mal, com seus saltos continuos, porque lhes es- ~
arcabuz, e nela se meteu com sua gente. Teve logo noticia que em
torvavamos a passada a seus inimigos. Que deles desejavam vin- 1
certa aldeia estavam 7 ou 8 holandeses. Manda lá vinte portugue-
gar-se, e nao de nós outros, mas daqui en1 deante nao nos lernbras-
semos n1ais das guerras passadas, pois tambem !hes haviamos
T ses com alguns flecheiros índios para os tomarem. Sendo lá, acha-
ram-se con1 48 ininúgos; mas nen1 por isso os nossos fizeram pé
n1orto muito dos seus, n1as que todo o nosso furor se convertesse atrás, antes arremeteram a eles con1 animo. E durou o conflito du-
contra os Tupis, que tao sem razao se havian1 alevantado contra 1
"(')' as horas em urna campina, na qual ficaram 2 portugueses mortos, e
nós outros, etc.". 28 1 outros feridos; e da parte dos contrários, outros 2 mortos, e outros
tambén1 feridos. E toda a desgra9a foi, que os índios, que iam com
os portugueses, vendo os naturais, que acon1panhavam os holan-
As próprias bandeiras paulistas eram expedi96es claramente l deses, lan9aram-se a eles, e os perseguiram, fazendo neles grande
pluriétnicas; nao apenas eram os próprios paulistas, em grande porcen- 1 matan9a, desamparando os portugueses, que em desigual número
tagem, descendentes dos antigos habitantes como arrastavam junto a si pelejavam contra os holandeses, havendo poucos índios, que aju-
davan1. E uns e outros pe le~~ram , até que, cansados de urna e outra
centenas de escravos índios: a famosa bandeira de Raposo Tavares,
parte, se foran1 apartando". -
por exemplo, era com~osta por 150 paulistas, em grande parte mame-
lucos, e 1.500 índios.2 Na grande batalha de Mbororé (1641), quando
os Tapes, com muitas armas européias, destro9aram a bandeira de Muitos índios brasileiros, aliás, lutaram em Angola durante a
Jerónimo Pedroso de Barros, as tropas paulistas ocupavam 130 canoas guerra entre portugueses e holandeses: em 1628 a expedi9ao de Salva-
com trezentos brancos e mamelucos e seiscentos índios. 30 dor Correia de Sá que reconquistou Angola contava com índios Tupi-
nambá, que tiveram que lutar contra os tapuias do Nordeste que bati-
A fei9ao militar da escravidao indígena transparece abertamen- 1

te no fato de que os proprietários paulistas de escravos índios chama- t am-se pelos holandeses. 33
Freqüentemente, alguns índios (os pombeiros) agiam por conta
1

vam-nos de frecheiros: "(... )os trabalhos a que os homens mesti9os e


indígenas eram habitualmente obrigados parecem ter sido atividades
• própria, ca9ando e escravizando outros índios e vendendo-os aos por-
de sua preferencia ou a que, pelo menos, estavam acostumados - cac;ar tugueses, como informava, em princípios do século XVII, o padre
para subsistencia, fazer e manejar canoas e atacar inimigos". 3 1 Francisco Carneiro: "pombeiros dos brancos, que de contínuo andam
34
Os índios e europeus que lutavam lado a lado muitas vezes tinham nestes saltos e ca9a de índios, como se foram feras". Estes "pombei-
urna idéia bastante diferente acerca dos objetivos da guerra. Em 1631 ros" - que podiam pertencer a vários povos indígenas - eram também
o jesuíta Luiz Figueira escrevia a respeito da guerra contra holandeses, chamados, de forma curiosa mas nada surpreendente, "tupis".35 Um
ingleses, franceses e seus aliados índios no Maranhao e Grao-Pará: jesuíta das missoes no Paraguai destruídas pelos paulistas, Justo Man-
cilla, escrevia em 1629 a respeito destes índios preadores:

28
Carta de José de Anchieta ao Geral Diogo Lainez, de Sao Vicente, Janeiro de J 565, in 32
Luiz Figueira, Rela~·ao de varios sucessos acontecidos no Maranhiio e Grilo -Pará ( 1631 ),
Anchieta, 1988: 209. in Ribeiro e Moreira Neto, 1992: 187-9.
29
Monteir~, 1994: 75; cf. também Leonardi, 1996: 192. 33
Ribeiro, 1992: 48.
30 34
Monteiro, 1994: 76. ApudZenha, 1970: 53;cf.Dean, 1996: 85; Leonardi , 1996: 191-7.
~ Dean, 1996: 105.
1
35
Zenha, 1970: 197 -205.

182 183
" ( ...) los Tupys, yndios solos sin Portugueses, n1uchas vezes se rio, ritualmente executado pelo matador". 40 A vingan9a deveria ser
juntam en tropas muchos, yendo a maloquear, y a traer por fuerza exercida mesmo quando nao fosse possível a realiza9ao do ritual:
,.
los indios, que pudieron, hiriendo, y matando con mucha crueldad ,
segun sus an1os los enseñan. (...) viniendo nosotros a S. Pablo v i-
Yves d'Evreux conta que os Tupinambá desenterraram o cadáver de
mos por el Camino los humos de una compañia de tupis, que assi urna cativa tapuia, falecida de marte natural, e executaram o esfacela-
solos sin Portugueses, yvan a cativar gente, con orden, y. mandato mento do cranio, mesmo correndo o risco de sofrerem puni95es. 41
de sus amos". 3<>
A relativa facilidade com que a antropofagia foi abandonada
pelos Tupinambá foi vista por alguns, de forma bastante ingenua, co-
42
Estes índios eram muitas vezes formalmente contratados para o mo urna simples imposi9ao européia. Ora, o fundamental para o sis-
trabalho de ca9ar outros índios: Francisco Cubas Preto dizia em seu tema cultural, naquilo que se ref ere a esfera masculina da sociedade,
testamento (1672) que "fiz um concerto com urn índio da aldeia de era a guerra e a vingan9a, e nao o canibalismo, como já foi demons-
Marueri por nome Marcos a quem dei arma9ao, todo aviamento e dois trado pela antropología. 43 Penso que esta constata9ao44 refor9a a idéia,
negros do gentío da terra para me trazer a gente que com isso adqui- defendida no capítulo m <leste livro, de que o ritual canibal é urna
risse para o que lhe dei urna espingarda para si, quer trouxesse gente esfera feminina por excelencia, e nao masculina. Como veremos adi-
quer nao, e nada rnais por urna nem por outra coisa". 37 ante, a questao do abandono do canibalismo nao foi nada pacífica en-
A utiliza9ao do pender guerreiro dos nativos ern fun9ao dos in-
teresses militares e escravistas europeus ajudou a extinguir urna das
Ir tre as mulheres Tupinambá, colocando em choque duas estratégias
femininas diferentes a respeito das rela96es comos europeus.
.,.,._
insti~i96es fulcrais dos Tupinarnbá: a antropofagia; aparentemente as Ainda tratando do papel dos pavos indígenas como agentes do
demandas portuguesas por prisioneiros vivos alteraram "a hierarquía
de prestígio e aurnentaram temporariamente a capacidade de sobrevi-
~) processo de coloniza9ao, é importante atentar para o complexo caso da
sociedade formada no planalto paulista. Segundo Warren Dean, as
vencia daquelas tribos que colaboravam mais intimamente como trá- ·• bandeiras paulistas devem, necessariamente, ser vistas dentro do con-
fico escravo".38 O Frei Vicente do Salvador também apontou esta rno- texto da manuten9ao de urna esfera vital da sociedade Tupinambá,
difica9ao cultural ocasionada pelo contato: "os que podem cativar na qual seja o valor guerreiro:
guerra levam para vender aos brancos, os quais lhe compram por um
machado ou foice cada um, tendo-os por verdadeiros cativos, nao tan- "É difícil evitar a impressao, por exen1plo, de que as bandeiras re-
to por serem tomados em guerra, pois nao consta da justi9a dela, quan- presentavam un1a adaptac;ao da predilec;ao tupi por aventuras mili-
to por a vida que lhes dao, que é rnaior bem que a liberdade". 39 tares. ( ...) Quando se considera o q uanto era insignificante a pro-
duc;ao de trigo e ac;úcar comparada aan1pla depredac;ao do reserva-
A a9ao jesuítica tambérn foi fundamental para o fim da antro-
pofagia, encarada por Viveiros de Castro como urna atividade com-
plementar em rela9ao a guerra e a vingan9a: "forma máxima da vin-
1 tório da mao-de-obra, fica-se a perguntar se a questao de capturar
grupos tribais ren1otos pode ter sido nao para colocá-los a traba-
lhar mas para conqu istar, através da captura em si, o n1esn10 tipo
de honrarí a que d inamizava a sociedade tu pi" .45
gan9a, o canibalismo nao era entretanto sua forma necessária. O gesto
/ crucial da vingan9a guerreira era o esfacelamento do cranio do contrá-
40
Viveiros de Castro, 1992 a: 58.
41
Evreux, 1874 ( 1615): 214.
36 42
Apud Zenha, 1970: 198 e 204. F1eischmann et al., 1990-1: 143.
37 43
Apud Monteiro, 1994: 90. Carneiro da Cunha e Vive iros de Castro, 1985.
38 44
Dean, 1996: 86. Cf. também Viveiros de Castro, 1992 a.
39 45
Salvador, 1965 (1 627): 95. Dean, 1996: l 04-5.

184 185
John Monteiro, que estudou as bandeiras com muito maior pro- Fica quase impossível entender este fenómeno dentro das pers-
fundidade do que Dean, difícilmente concordaría coma idéia de que a pectivas mais tradicionais a respeito do contato, perspectivas que en-
"
produ9ao económica fosse irrelevante como motivo para as bandeiras: caram os índios como marionetes dos interesses europeus. Segundo
aliás, todo o argumento de Negros da Terra está construido com base tais vis5es o que ocorreu nos primeiros séculas do Brasil - e que con-
na constatac;ao de que as bandeiras, ao contrário do que afirma a histo- tinua ocorrendo em algumas regi5es - foi a substituifii.o de um sistema
riografía tradicional, cumpriam urna vital func;ao económica para o cultural, o Tupinambá, por outro, o europeu. Acredito que este "para-
próprio planalto paulista: digma da substituic;ao" (cf. p. 24) está profundamente equivocado, e
deve ser substituído por urna visao que incorpore de fato o impacto
"O ponto de partida é a sin1ples constata9ao de que as freqüentes das sociedades indígenas para os europeus que aquí se instalaram, e
incursóes ao interior, em vez de abastecerem un1 suposto mercado nao apenas no território do imaginário, mas em todos os aspectos da
de escravos índios no litoral, alin1entavam uma crescente for9a de vida. Sabe-se, por exemplo, que no final do período colonial urna boa
trabalho indígena no planalto, possibilitando a produ9ao e o trans-
porte de excedentes agrícolas; ass in1, articulava-se a regiao da
parte dos domicílios rurais em Minas Gerais estava organizada da
chamada Serra Acima a outras partes da colonia portuguesa e mesma forma que as malocas: "( ...) o espac;o era indiviso, fogueira no
mesmo ao circuito n1ercantil do Atlantico n1eridional". 46 centro, e nele habitavam cerca de trinta pessoas, homens, mulheres e
crian9as, a moda indígena". 48 Ora, nao vejo como nao se relacionar
Mesmo assim, Monteiro reconhece que as bandeiras nao se esta característica, importantíssima aliás, com o modo de vida dos
constituíam unicamente em fun9ao da economía: conquistadores daquele território, majoritariamente mamelucos paulis-
tas e seus índios.

"( ...) deve-se ressaltar que a din1ensao e o significado do trabalho


O caso de Sao Paulo é, neste sentido, exemplar. Na década de
indígena em Sao Paulo nao se limitavan1 a mera lógica comercial. 1690 um representante da Coroa portuguesa, Bartolomeu Lopes de
Na verdade, praticamente todos os aspectos da forma9ao da socie- Carvalho, fazia urna defesa do cativeiro indígena em Sao Paulo, cer-
dade e econo mia paulista durante seus primeiros doi s séculos con- tamente reproduzindo o raciocínio dominante entre os senhores de
fundem-se de modo essenc ial com os processos de integra9ao, ex- escravaria nativa. Neste relato fica demonstrada a persistencia de vá-
plora9ao e destrui9ao de popula96es indígenas trazidas de outras
.-
reg1oes .
,, 47 rios aspectos do modo de vida tupi quase duzentos anos depois dos
primeiros contatos, notadamente naquela camada de indivíduos que
nao possuíam escravos, certamente urna grande parcela da popula9ao
De minha parte, nao vejo qualquer contradic;ao entre as posi- paulista:
c;oes de Dean e Monteiro: considera96es económicas de fundo euro-
peu articularam-se com os métodos de obtenc;ao de status e prestígio
"Senhor o que só digo é que carece n1uito aquelas Capitan ías <leste
herdados dos Tupinambá (relacionados aguerra e ao acesso afor9a de mesmo gentí o quer liberto quer cativo porque sem eles nen1 Vossa
trabalho feminina) em urna constru9ao cultural totalmente nova, dife- Magestade terá n1inas nem nenhum outro fruto daquelas terras por
rente tanto da matriz européia quanto da indígena. ser tal a propriedade daquela ge nte, que o que nao tem ge11tio para
o servir vi ve como gentio se1n casa mais q ue de palha se m cama
nlais que uma rede, sem oficio nem fábri ca mais que canoa, linhas,
anzóis e flechas, armas com que vivern para se sustentarem e de
46
Monteiro," 1994: 8.
47
Monteiro, 1994: 8-9. 48
Vainfas, 1997: 226.
186 187


tudo o mais sao esquecidos, sem apetite de honras para a estima-
rísticas específicas daquela sociedade, características que estao, em
\:ªº nem aumento de casas para a conserva9ao dos filhos... ". 49
grande medida, ligadas as estruturas tradicionais das sociedades indí-
genas.
"(...) porque sem eles nem Vossa Magestade terá minas ... "; es-
ta frase do representante da Coroa revela bem o interesse principal da
metrópole em rela~ao aos moradores de Sao Paulo: estes deveriam
em primeiro lugar, encontrar minerais preciosos. Esta, contudo, na¿ 2. A Formoc;áo de um Sistema lnterétnico
era nem de longe a prioridade dos paulistas, já que estes permanece-
ram, ao menos até fins do século XVII, basicamente interessados no
"ouro vermelho", os escravos índios. Como mostra John Monteiro
nao existiam índios nas zonas auríferas por ocasiao da corrida do our¿ As rela~oes entre os europeus e os Tupinambá atingiram um tal
que se inicia em 1690, e isto porque todos já haviam sido mortos ou grau de aprofundamento, que nos permite reconhecer a existencia de
escravizados pelos paulistas: um sistema de rela~oes sociais cujas regras podem, e devem, ser de-
tectadas. Patrick Menget propos urna sistematiza~ao das rela96es entre
"Na regiao de Sao Paulo, a busca da prata, do ouro e das es meral - os grupos locais nas sociedades das terras baixas sul-americanas que
das articulou-se fundamentaln1ente a procura de cativos indígenas. pode ser extremamente útil como ponto de partida para a compreensao
(...)A pesquisa de n1inérios ocasionou um sem-número de viagens do complexo e dinamico processo de contato no Brasil, processo que,
ao sertao, algun1as delas financiadas pela Coroa ( ...). A maioria, aliás, nao terminou. Levando-se em considera~ao que a unidade social
no entanto, obteve financiamento particular. De fato, a Coroa mos-
mínima é o grupo local, grupo que almeja (através da preferencia pela
trav~-se pouco ~is~o~ta a fazer grandes despesas com busca¿ que
t~az1ai:n bem ma1s indios do que metais ou pedras preciosas, prefe- endogamia local, por exemplo), mas nao alcan9a urna autonomia em
º
nndo incenti var tais expedi9oes com títulos honoríficos".5 rela9ao ao exterior, fica claro entao que estes grupos precisam estabe-
lecer rela96es com unidades do mesmo tipo ou de tipo diferente.
. .º descompasso entre as inten96es metropolitanas e as dos pau- Para Menget, deve-se chainar sistema social homogeneo ao
hstas f1cou bem evidenciado em 1607, quando um grupo de mamelu- "conjunto de grupos locais de mesma natureza, que mantem relay6es
cos que guiava um especialista em minera9ao enviado pelo governa- regulares por um período suficientemente longo, independentemente
dor matou-o e sumiu comas amostras; para Warren Dean, eles "havi- da natureza destas rela96es". Alguns exemplos de sistemas sociais
am chegado a sensata conclusao de que, se o ouro fos se descoberto homogeneos seriam dados pelas sociedades do Alto Xingu, que apesar
seriam escravizados junto com seus cativos".5 1 ' de se diferenciarem bastante etnica e lingüísticamente partilham de um
mesmo complexo cultural; e pelos Bororo, que no passado estavam
Fatos como este mostram a necessidade de se abordar a socie-
divididos em um grande número de grupos locais que partilhavam a
dade constru~da com base na intera~ao entre europeus e índios a partir
de um paradigma que escape as camisas-de-for~a do "sistema mundi-
al" e do "antigo sistema colonial", e que busque reconhecer as caracte- I mesma organiza~ao espacial das aldeias, a mesma lmgua e as mesmas
no~oes cosmológicas e sociológicas; também conjuntos de um nível
superior, multicomunitários, como os Shuar e os Yanomami devem
ser considerados como um sistema homogeneo. 52
49
Bartolomeu Lopes de Carvalho, apud Monteiro, 1994: I 35.
50
Monteiro; 1994: 96-7.
51
Dean, 1996: 105. 52
Menget, 1985: 136.
188 189
! ritual antropofágico como também desejasse tal marte gloriosa. 55 Do
Por outro lado um sistema social heterogeneo compreende "u- .L
nidades de tipos diferentes, seja porque nao partilham a mesma cultura ponto de vista do cativo morto, o repasto caníbal representava a forma
.. ideal de rito funerário: para os Tupinambá a perspectiva de ser enter-
ou os mesmos objetivos, seja porque o sistema incluí unidades de ca-
tegoria e nível diferentes". Exemplos de sistemas heterogeneos seriam rado e comido pelos bichos era pavorosa, o que explica a recusa de
dados pelos Xinguanos e seus inimigos que vivem nas adjacencias; e o muitos prisioneiros a ajuda oferecida pelos europeus para sua salva-
sistema do Uaupés, multilingüe e hierárquico, onde os grupos ribeiri- 9ao. O sentirnento dos prisioneiros em rela9ao a devora9ao foi bem
nhos sao ordenados hierarquicamente e se opoem coletivamente, de descrito por Femao Cardim:
forma também hierárquica, aos cagadores-coletores Makú. Assim
Menget percebe duas possibilidades de sistemas heterogeneos: um "(... )e assim (o prisioneiro) vai engordando, sem por isso perder o
farmado por mera justaposigao - como os Xinguanos e seus inimigos somno, nen1 o rir e folgar como os outros, e alguns andao tao con-
ou os Kaiapó e seus inimigos Tupi, Karajá e Karib - e outro baseado tentes con1 haverem de ser comidos, que por nenhuma via consen-
tirao ser regatados para servir, porque dizen1 que é triste causa
em ligagoes organicas permanentes, como no Uaupés ou no sistema
n1orrer, e ser fedorento e con1ido de bichos". 56
formado pelos cavaleiros Guaicuru (Kadiwéu), os agricultores Terena,
e os escravos obtidos pelos primeiros. 53
Um Tupinarnbá, as portas da marte sete días após o batisrno
Estas definigoes parecem se adequar bem ao que sabemos so-
também expressou o horror ao apodrecimento:
bre as relagoes entre os grupos locais Tupinambá e entre estes como
um todo e o exterior. As sociedades tradicionalmente denominadas
Tupinambá (cf. pp. 53-5) formavam um sistema homogeneo baseado "Dixo una su hermana, que se halló presente a su muerte, al P. Na-
varro, que le avía dicho el n1uerto antes que perdiesse la habla:
em urna língua, em urna adapta9ao ecológica particular e em urna or-
' Hem1ana, no veys ? ' Y ella le respondió que no veya nada; y tor-
ganiza9ao social identicas e, o que é ainda mais importante, comparti- nándole a preguntar lo mismo, ella le respondía de la n1i sma nla-
lhando tra9os fundamentais do complexo guer- nera, hasta que él con grande alegría le díxo: ' Veo, Hermana mía,
ra/vingan9a/antropofagia. Os grupos locais dependiam diretamente los gusanos holgando en la tierra, y en los cielos grandes alegrías y
uns dos outros para a sua reproduc;ao, tanto em termos matrimoniais - plazeres. Quédate en hora buena que me quiero yr' , y assí aca-
bó".s7
embora sempre se buscasse o casamento endogamico - quanto ern
relac;ao ao fomecimento de inimigos a serem mortos, aprisionados e
devorados. A total cumplicidade - evidenciada nos diálogos travados A referencia aos vermes da terra me faz ter muitas dúvidas
entre o matador e o cativo no terreiro - entre os inimigos que se entre- quanto a natureza crista do "céu" visto pelo nativo: acho que é mais
devoram mostra com clareza que, corno diz Roque Laraia: "(... ) tanto provável que o morto estivesse se referindo ao Guajupiá, o lugar para
a vítima como o matador sao partes integrantes de urn mesmo sistema onde iriam os grandes guerreiros e principais (e, por vezes, suas mu-
cultural. Em outras palavras, o inimigo também fazia parte da socie- lheres), e que se pautava pelo sexo sem as limita96es da proibic;ao do
dade Tupinambá". 54 incesto e da necessidade da afinidade, pelas dan9as, cantos e vinhos e
O inimigo ideal de um Tupinambá era sempre outro Tupinam- pela ausencia de trabalho, nada tendo a ver como paraíso cristao.
bá, alguém que nao apenas compreendesse totalmente o significado do
ss Viveiros de Castro, 1992 a: 45.
s6 Cardim, 1978 (1625): 1 14.
57
53
Menget, 1985: 136-7. Carta do P. Antonio Pires aos Padres e Innaos de Co imbra (Pe111ambuco, Q¿/08/ 1551 ) in
54
Laraia, 1986: 205. Leite, 1954 (1): 255.

190 191
! Um testemunho dos mais importantes a respeito da total neces-
Os Tupinambá também faziam parte de um sistema social he-
terogeneo s~melhante ao dos Xinguanos e seus inimigos, isto é, em sidade que tinham os Tupinambá de aliados europeus a fim de resistir
que a .diversidade de povos que os cercavam e que nao compartilha- ao assédio dos portugueses com seus mamelucos e índios f oi dado por
vam de sua cultura era simplificada através da defini9ao "tapuias":
"tao selvagens que., dos outros bárbaros, sao havidos por mais que
bárbaros", disse Gabriel So ares de Souza reproduzindo um modelo
í Japi-a9u, o maior dos principais dos Tupinambá do Maranhao ao re-
cepcionar Fran9ois de Rasilly, em 612:

nativo de apreensao da alteridade.58 Entre os Tupinambá e os "tapui-


as" as rela96es, embora freqüentes - daí formarem um sistema - ja-
mais, ao que sabemos, se expressaram dé maneira organica, permane-
¡ "Estou muito contente, valente guerreiro, como fato de teres vindo
a esta terra para fazeres a nossa felicidade e nos defenderes contra
os nossos inimigos. Já come~ávamos a nos aborrecer por nao ver-
cendo ao nível da preda9ao mútua, pelo menos até a chegada dos eu-
ropeus.
Por outro lado as relac;oes entre os Tupinambá e os europeus
í n1os chegar os guerreiros franceses sob o comando de um grande
morubixaba; já tínhamos resolvido deixar esta costa e abandonar
esta regiao com receio dos peró (os portugueses), nossos inimigos
mortais, e havámos deliberado embrenhar-nos por esta terra a den-
tro até onde jamais cristao nos visse, e estávamos decididos a pas- ·
acabaram por formar um novo sistema heterogeneo, desta feita mais
sar o resto de nossos días longe dos franceses, nossos bons ami-
semelhante ao segundo tipo proposto por Patrick Menget, em que as ~,.
1
gos, sem mais pensarmos en1 foices, machados, facas e outras
rela~6es se apresentam de forma organica - europeus e Tupinanibá l mercadorias, e conformados con1 voltar a antiga e miserável vida
rapidamente tomaram-se interdependentes - e hierarquizada. E a cons- de nossos antepassados que cultivavam a terra e derrubavam as
titui~ao deste sistema social heterogeneo que me interessará neste úl-
timo capítulo, particularmente no que se refere a alguns aspectos rele- + árvores com pedras duras".60

vantes para as vidas das mulheres Tupinambá. O fim do apoio europe_u representava, para os Tupinambá, o
Neste processo extremamente complexo e dinamice abriam-se fim das esperan9as de resistir aos portugueses; em 1654, por exemplo,
tres diferentes alternativas de atua9ao para os Tupinambá que eram Antonio Paraupaba, Potiguara do Rio Grande do Norte que havia se
colhidos pelo con tato. 59 A primeira delas foi tentada, sem sucesso, aliado aos holandeses contra os portugueses, fazia um apelo desespe-
pelos índios da Guanabara, da Paraíba, do Maranhao, entre outros: a rado e inútil aos Estados Gerais em busca de auxílio. Após a derrota
resistencia guerreira. Os imperativos culturais da guerra e da vingan9a holandesa, os Potiguara refugiaram-se no sertao de lbiapaba em con-
impediram grandes confedera96es estáveis anti-européias, e o que se di96es miseráveis:
viu foram exércitos índios contra exércitos índios, com um dos lados,
e as vezes os dais, senda "controlado" pelos europeus. Naturalmente "Sendo por isso o suplicante enviado a VVas. Exas. por aquela
os grupos Tupinambá que nao contavam com a alian~a com os· euro- Na9ao que se refugiou com mulheres e crian9as para Cambressive
peus tinha chances mínimas contra as tropas euro-indígenas, e a gran- no Sertao além do Ceará a fim de escapar aos ferozes massacres
de maioria dos que persistiram na luta acabaram mortos ou se rende- dos Portugueses; para asseverar a VV. EExas. em no me daquelas
infelizes almas, nao somente a constancia da sua fidelidade, como
ram ao aldeamento e ao trabalho for9ado. também que procurara.o ;:i sua subsistencia pelo espa90 de dois a-
nos, e mesmo mais, nos sertoes, no meio de animais ferozes, con-
servando-se a disposi~ao <leste estado e fiéis a Religiao Reformada
que aprenderan1 e praticam; contanto que V. Exas. se dignem ga-
58
Souza, 1?71 ( 1587): 79; o autor se refere neste trecho especificamente a um dos grupos
incluídos entre os tapuias, os Aimoré. Sobre os tapuias cf. Dantas et al., 1992. 60
59
Femandes, 1975: 27-30. AbbevilJe, 1975 (1614): 59-60.

192 193
rantir-lhes igualmente que no fim do <lito prazo poderao esperar sos messianicos pronunciados pelos caraíbas, grandes pajés que goza-
auxílio e socorro de V. Exas. Se lhes faltar esse auxílio, aquele vam de transito livre entre as comunidades locais: ·
povo tem necessariamente de cair afinal nas garras dos cruéis e
"
sanguinários Portugueses, que desde a primeira ocupa9ao do Bra-
sil tem dstruído tantos centenares de mil pessoas da sua na9ao ''En llegando el hechizero con mucha fiesta al lugar, éntrase en una
( ... )".61 casa oscura, y pone una calaba9a que trae en figura humana en
parte niás conveniente para sus engaños, y mudando su propria
boz como de niño, y junto de la calaba9a les dize, que no curen de
A segunda alternativa se apresentava na forma de migra96es trabajar, ni vayan a la ro9a, que el mantenimiento por sí crescerá, y
para áreas ainda nao atingidas pelos portugueses, e talvez esta tenha que nunca les faltará que comer, y que por sí vendrá a casa; y que
sido a alternativa preferida pela maioria dos grupos, embora esta su- las aguijadas se yrán a cavar, y las flechas se yrán al nlato por ca~a
gestao seja de impossível verifica9ao. Alguns Tupinambá do Rio de para su señor, y que han de matar muchos de sus contrarios, y cap-
tivarán muchos para sus comeres. Y promételes larga vida, y que
J aneiro, após a derrota da Confedera9ao dos Tamoios, migraram em las viejas se han de tomar ntoyas, y las hijas que las den a quien
dire~ao ao interior e mesmo para Santa Catarina (onde venceram os quisieren, y otras cosas semejantes les dize e promete, con que los
Carijó e foram destro~ados pelos portugueses) e para a Bahia. . - ( )" 64
engana ... . .

Grupos de Tupinambá fugitivos de Pernambuco e da Bahia o-


cuparam o Maranhao e o Pará, onde travariam contatos íntimos coro O mais interessante a respeito da Terra sem Mal é a possibili-
franceses e outros europeus a partir da segunda metade do século XVI. dade de alcan9á-la ainda em vida,65 o que certamente forneceu ~os
Durante o século XVII, após a expulsao dos franceses do Maranhao, Tupinambá fugitivos urna justifica~ao emocional absolutamente ne-
estes Tupinambá iniciariam urna grande revolta contra os portugueses cessária para o enfrentamento das agruras de migra96es que poderiam
que se espalharia até o Pará; nesta revolta, de forma fugaz e insólita, atingir milhares de quilómetros em meio a inúmeros perigo's. Aliás, o
grupos Tupinambá e de tapuias se uniram contra os portugueses, mas (
termo yvy mara ey que, para os Guarani modernos, significa "Terra
a morte do chefe Tupinambá Cabelo de Velha acabou por fazer a con- sem Mal", nos séculos XVI e XVIl tinha .provavelmente o sentido de
federa~ao se romper e ser destruída. Os sobreviventes seriam escravi-
. "' "solo intacto, que nao foi edificado", o que nos <leve deixar de sobrea-
zados e, por fim, quase extintos pelas epidemias dos aldeamentos e viso acerca de um caráter exclusivamente místico da busca da Terra
pelas guerras, sendo também utilizados com sucesso pelos portugue- sem Mal. 66
ses como ca~adores de índios bravos.
62
Para Florestan Femandes, os Tupinambá puderam manter bem
Estas fugas, muitas vezes, estavam relacionadas a busca pela o seu modo de vida enquanto os brancos ainda eram poucos, mas:
Terra sem Mal; nao é o caso de, neste trabalho, discutir a polemica
63
questao do significado da Terra sem Mal para os Tupinambá, masé "Quando as situa9oes complicaran1, o sistema organizatório tribal
importante notar que a fuga era urna das poucas estratégias de resis- nao se diferenciou internamente, modificando-se com elas. Ao
tencia as guerras, doen9as e escraviza9ao disponíveis, e com a compe- contrário, manteve-se relativamente rígido e impermeável as exi-
ti~ao entre pajés e jesuítas todo um terreno ficou aberto para os discur- gencias impostas pelo crescente domínio dos brancas. lsso fez
com que tivessen1 de escolher entre dois caminhos: a subnússao,

61 64
" Primeira Exposiyao de Paraupaba, em t 654", in Ribeiro e Moreira Neto, 1992: 23 l. Informayao das Terras do Brasil do P. Manuel da Nóbrega aos Padres .e Irmaos de Coimbra
62 Sobre as migray5es dos Tupinambá após o con tato cf. Femandes, l 989: 25-53. (Bahia, agosto [?] de 1549) in Leite, 1954 (l): 150-t.
65
63 Cf. Clastres (Heléne), 1978; Fausto, t 992: 386-8; Métraux, 1950: 328-66; Monteiro, 1992: Clastres (Heléne), 1978: 30-2.
66
481-2. Monteiro, 1992: 482.

194 195
_. •
f

com suas conseqüencias aniquiladoras da unidade tribal, ou a fuga .... "A provincia dos Tapinambaranas está situada em terra plaina que
como isolamento".67 cae sobre o rio das An1azonas. seu clima he quente e doentio, por
,.. estar debaixo da linha equinocial. Este Indios fallan1 lingoa geral;
1
, que os mais do río fallam differentes lingoas, que por interpretes
E de se duvidar desta rigidez "impermeável" quando pensa- ·~ communicam com os Portuguezes. He esta provincia ponto aonde
mos, por exemplo, no caso dos po~beiros ou dos cativos índios que as tropas que van1 para o sertam se refazem do necessario para
chegaren1 a elle, e os que veem para chegarem elles ethé Corupá_e
participavam, muitas vezes com grande entusiasmo, das guerras mo-
vidas pelos portugueses contra os índios livres. Contudo, e embora se .. Pará. San1 cantidades de aldeias e povoa9oens; e os de sua na9am
predon1inao e teem sujeitas as outras na9oens, como sam Aratús,
recuse boje a idéia da "impermeabilidade", Femandes está correto ao Apacuitáras, Yaras, Goduis e Cariatos. Servem-se delles con10
salientar o caráter subordinado da inser~ao Tupinambá no novo mun- vassa1os, e elles lhe pagao tributo. ( ... ) O princípio <lestes Indios
do euro-indígena, subordina~ao moldada pelo caráter heterogeneo e Tapinan1baranas nam foi de naturaes desse río. Dizem que, no an-
no de 1600, sairam seus antepassados do Brasil em tres tropas, em
estratificado do novo sistema social. Nao obstante, a sociedade Tupi-
busca do Paraíso terreal (cousa de barbaros) rompendo e conquis-
nambá mostrou-se suficientemente flexível ao ponto de construir um tando te1Tas, e que havendo caminhado muito tempo chegárao á-
outro sistema heterogeneo estratificado, desta feíta com os próprios quelle sitio, que achárao abundante, e cheio de Indios naturaes; e
Tupinambá na posi~ao superior. por ser bom o sitiárao e conquistárao os seus naturaes, avassallan-
do-os, e con1 o tempo se casárao uns com os outros, e se aparentá-
Isto ocorreu quando das grandes vagas migratórias que se diri- rao; n1as nam deixao de conhecer os naturaes a superioridade que
giram ao Maranhao e a Amazonia (algumas das quais chegando ao os Tapinan1baranas teen1 nelles. San1 os mais bellicosos Indios
Peru68 ) durante o século XVI, fugindo dos portugueses. Urna destas destas partes, mui senhores e liberaes, bem dispostos, mas muito
vagas levou os Tupinambá a regiao próxima ao rio Madeira, na cha- traidores, camiceiros, e era a gente que n1ais carne humana comía
mada Ilha de (ou dos) Tupinambarana. Nesta regiao os Tupinambá nesse rio, do que a communica9an1 dos Portuguezes os tem tirado
em muita parte. Seu govemo he barbara; nam tém adora9am al·
venceram os antigos habitantes e estabeleceram urna rela~ao de servi- guma. 'Seu apetite he o seu Deos. Tem a sette e a oito molheres.
dao para com eles, bem como urna rela~ao de alian~a com os portu- Aos que estam debaixo de seu don1inio, lhe dam as filhas por mo-
gueses, para os quais vendiam e "resgatavam" indivíduos de outras lheres. San1 ten1idos de muitas na9oens por serem n1uito vingati-
na~oe~. indígenas. A partir de 1660, quando come~ou a catequese jesu- vos".71
ítica na regiao, a popula~ao Tupinambarana sofreu, de forma nada
surpreendente, um decréscimo acelerado, até que estavam praticamen- Desde cedo, ainda nos primórdios do século XVI, estas migra-
te extintos por volta de 1700.69 ~oes dos Tupinambá se vinculavam a influencia européia: os cerca de
Mauricio de Heriarte, participante da expedi~ao de Pedro Tei- 300 sobreviventes de urna destas vagas migratórias que chegaram em
xeira (47 canoas, 70 portugueses e mamelucos, 1.100 índios), que dei- 1549 ao Peru haviam sido comandados por boa parte de urna trágica
xou Belém em fins de 1637 e atingiu Quito dez meses mais tarde,70 viagem por dais portugueses; os Tupinambá, premidos pelas guerras e
legou-nos urna descri~ao curta, porém precisa, dos Tupinambarana: epidemias e, certamente, também em busca da Terra sem Mal,

"( ... ) tomaran1 un1a decisao perigosa e resoluta de deixar a pátria,


parentes e amigos( ... ), elegendo para seus caudilhos dois soldados
67
Fernandes, 1975: 29-30. portugueses, um deles chan1ado Matheo. ( ... ) no ano de 1539 ( ...)
68
Porro, 1993: 23-4, 74-6.
69
Fernandes, 1989: 50-3.
70 71
Porro, 1993: 12, 116. Heriarte, (entre 1662 e 1667): 181.

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