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Psicanálise e linguagem: o que os falantes de

línguas de sinais podem nos dizer sobre isso*


Cristóvão Giovani Burgarelli****
Na primeira parte desta discussão, retomando a pergunta “o que é a língua se a
psicanálise existe?”, que Milner traz em livro O amor da língua, buscarei explicitar o
entrecruzamento entre psicanálise e linguagem que se faz necessário à minha pesquisa,
intitulada De infans a falante: o acontecimento corpolinguagem. No segundo momento,
vou apresentar a elaboração de Meynard, em seu livro Des mains pour parler, des yeux
pour entendre. Contrapondo-se radicalmente aos discursos oficiais cuja tônica é
antecipar, na infância, o diagnóstico de surdez1 e tratar os surdos como deficientes, ele
nos convoca, embasado na descoberta freudiana, ao reconhecimento da condição de
falantes nessas crianças, o que pode levá-las a tomar a palavra na Língua Francesa de
Sinais e, portanto, habitar tanto o campo da linguagem quanto o das formações do
inconsciente. Por fim, na terceira parte, vou pensar algumas implicações para a minha
elaboração sobre o que é o corpo para a psicanálise. Pretendo, nesse momento, colocar
em questão a expressão acontecimento corpolinguagem, que escolhi para abordar a
especificidade do conceito de sujeito na experiência analítica.
*****
Primeiramente, para dizer da dimensão mais ampla em que esta elaboração se
situa, vou dar alguns passos atrás para rever como o entrecruzamento entre a psicanálise
e os estudos linguísticos se fez presente em minha tese de doutorado Escrita e corpo
pulsional,2 defendida no Instituto de Estudos da linguagem da Unicamp (SP/Brasil) em
abril de 2003. O problema central em torno do qual fiz girar toda a discussão foi a
questão do sujeito. A partir de uma pesquisa sobre a entrada da criança na escrita –
educação infantil e primeiras séries do ensino fundamental – interroguei os estudos
linguísticos em sua dificuldade basilar de incluir em seu arcabouço o conceito de
sujeito. Explicitei ainda que essa dificuldade se manifesta: de um lado, pelo risco de cair
*
Uma versão em francês deste artigo encontra-se aprovada para publibação: BURGARELLI, C. G. 2018.
Psychanalyse et langage : ce que les parlants de langues des signes peuvent nous en dire. Revue de
l’Enfance et de l’Adolescence. RAFEF-GRAPE, Paris, ISSN 2101-6046 [sous presse].
****
Cristóvão Giovani Burgarelli é professor na Faculdade de Educação da Universidade Federal de
Goiás, credenciado no Programa de Pós-Graduação em Educação (mestrado e doutorado) e no Programa
de Pós-Graduação em Psicologia (mestrado). É pesquisador nos projetos “De infans a falante: o
acontecimento do corpolinguagem (Universidade Federal de Goiás e Université Paris 8 – Vincennes-
Saint-Denis, France) e “Outrarte: psicanálise entre ciência e arte” (Unicamp). É psicanalista.
1
Conforme Meynard, trata-se de uma “maladie de santé publique” inventada pelos expertises de la Haute
Autorité de Santé (HAS), a qual se chama Surdité Permanente Néonatal (SPN) e deve ser diagnosticada
no segundo dia de vida.
2
Publicada como livro em 2005, com o título Linguagem e escrita: por uma concepção que inclua o
corpo.
numa metafísica, ou seja, de tomar o sujeito como um ser, já existente, que se dirige ao
objeto linguagem com as capacidades para apreendê-la; de outro lado, pelo risco de,
mesmo considerando o conceito de língua como a descoberta radical de Saussure,3
pensando-o, portanto, como uma materialidade linguística, não poder incluir as
consequências de que um corpo falante esteja aí implicado.
É importante realçar que, nesse movimento teórico, os principais pontos de
tensão, entendidos como exigência de mudança, encontraram-se diretamente
relacionados com as experiências concretas a que dirigi a atenção, enquanto
pesquisador. De início, meu foco era uma concepção de linguagem para pensar, com as
instituições escolares, a entrada da criança na leitura e na escrita. Depois, passei a me
perguntar, sobretudo, pela especificidade da clínica psicanalítica, em sua diferença com
as psicoterapias. No primeiro momento, meus dados eram colhidos da produção escrita
das crianças inseridas “normalmente” na vida escolar (inicialmente crianças entre 7 e 8
anos; depois crianças de 3 a 6 anos). Embora comparecesse ali o litoral4 que me
impedia de demarcar um limite entre o que costumamos denominar como normalidade
ou como patologias, o meu recorte de pesquisa não me permitia conjeturar as suas
consequências. No momento atual, 14 anos após minha entrada teórica na radicalidade
do campo de pesquisa específico da psicanálise – e, mais do que isso, após ter-me
tornado psicanalista –, minhas questões nascem da experiência analítica. Quando me
proponho, portanto, a me interrogar sob o título De infans a falante: o acontecimento
corpolinguagem, minhas questões indagam, sobretudo, sobre o que é o sujeito para a
psicanálise, e isso sem perder de vista a sua dimensão de objetalidade. 5 Em síntese,
porque me pergunto agora o que é de fato uma clínica psicanalítica, o método advindo
do próprio conceito de inconsciente não pode ser outro senão partir do que comparece
como resto, ou desvio, no que pôde advir como constituído, assimilável ou, nos termos
de Milner, calculável por e para uma ciência.
Justifico, então, que a presente indagação “o que os falantes de línguas de sinais
podem nos dizer sobre psicanálise e linguagem?” constitui apenas uma parte do que
3
Tal reconhecimento impede as propostas de complementariedade, muito frequentes nos estudos sobre
aquisição linguagem, alfabetização e ensino de línguas, que geralmente aparecem sob os rótulos de
psicolinguística, sociolinguística, linguística aplicada, análise de discurso, entre outros.
4
Conferir Lacan (1971/2006, p. 113-127). Dizer litoral é diferente de dizer fronteira. Este segundo termo
se refere a uma separação ou limite entre territórios recíprocos ou complementares, enquanto que o
primeiro diz respeito ao traçado da letra, entendida como rasura entre saber e gozo.
5
Conferir Lacan (1962-1963/2004, p.248-249): “Pour vous em donner le relief dans son point vif, et
forger une formule balancée par rapport à la précédente [l’objectivité comme le corrélat d’une raison
pure], je dirai que l’objectalité est le corrélat d’un pathos de coupure. Mais, paradoxalement, c’est là que
ce même formalisme, au sens ancien du terme, rejoint son effet. ”
pretendo elaborar, ou seja, trata-se de um recorte que, neste momento, privilegio para
explicitar um passo fundamental a este percurso de estudos, qual seja, a consideração
tanto do que é uma língua para a linguística quanto das consequências para uma
reflexão sobre língua e linguagem a partir da descoberta freudiana do inconsciente.
Conforme a elaboração de Milner (1978/2012), trata-se de interrogar pela possibilidade
não só de reter do ser falante o que concerne a um objeto material, cuja substância
(fônica, sintática, lexical, etc.) pode ser descrita, mas também de pensar os
desdobramentos de que, ao ser habitada por quem fala, a linguagem constitui o campo
onde se articula gozo e sexualidade, que dizem respeito à elaboração lacaniana a
respeito do objeto a, de cuja queda advém o sujeito dividido, isto é, a realização, ou o
acontecimento, do corpolinguagem.
*****
Nesta segunda parte do trabalho, considerando a questão apresentada desde o
título, vou trazer, com base em Meynard (2016), um pouco da história sobre como os
fundamentos da psicanálise puderam contribuir para o reconhecimento da Língua
Francesa de Sinais e, na sequência, mostrar como uma experiência analítica com
falantes de línguas de sinais pode fazer avançar esses próprios fundamentos. Também,
tentarei pensar, a partir desse contexto, algumas questões importantes à continuidade da
minha pesquisa sobre o sujeito como efeito da operação inconsciente, cuja estrutura, à
semelhança do que ocorre com o advento de uma língua, só pode ser abordada a partir
de um ponto de desconhecimento.
Des mains pour parler, des yeux pour entendre: la voix et les enfants Sourds
propõe-se a questionar o que é desmentido, negado, culturalmente – un démenti
culturellement institué – quanto à dimensão linguageira, discursiva, a qual os Surdos 6
podem habitar e na qual podem tomar a palavra, isto é, dimensão em que eles podem
escutar e falar, e portanto, tal como os demais parlêtres,7 convocar pesquisas tanto no
domínio da linguística quanto no da clínica psicanalítica. Para caminhar com sua
proposta, Meynard (2016) busca distinguir, na história do movimento psicanalítico,
aqueles que se implicaram radicalmente com essa questão, recusando-se à confusão
entre sonoro e significante, bem como propondo um “Outro texto” aos efeitos nefastos
de tal “desmentido”. Nesse sentido, ele considera Françoise Dolto e Bernard This como

6
O autor grafa com maiúscula para marcar uma distinção com os surdos a essa problemática.
7
Retomado por Meynard, “parlêtre” é um termo de Lacan para dizer que, diferente da Filosofia, a
psicanálise não trata do ser, mas sim do falante (parlêtre = parle + être). Daí, tem-se como elaboração
básica que não existe ser senão aquele que advém pelos efeitos encarnados da linguagem.
os dois precursores de um trabalho de abertura do inconsciente freudiano, devido a seus
posicionamentos, incisivos, a favor da Língua Francesa de Sinais (LSF).
A respeito de Françoise Dolto, Meynard resgata os principais marcos históricos
que testemunham sua implicação com o campo dos praticantes da LSF e sua insistência
de que “a verdade não está do lado dos especialistas” (p.143), mas sim do lado do
desejo, que é inconsciente. Trata-se de um trabalho teórico-prático constante em seu
percurso, que, longe de constituir uma simples posição militante, advém dos alicerces
da descoberta freudiana a respeito do que concerne, de fato, o ato de tomar a palavra (la
prise de la parole), isto é, constituir-se como falante em uma língua. A partir do
histórico organizado cuidadosamente por Meynard, os anos de 1972 e de 1981
constituem dois momentos fortes em que Dolto propõe, sólida e politicamente, a
descoberta freudiana ao invés da maldade e da violência engendradas aos “fisicamente
surdos” pelas tomadas de posição dos oralistas.
Em seu texto “Au jeu du désir les dés sont pipés et les cartes truqués”,
apresentado em 22 de abril de 1972 na Sociedade Francesa de Filosofia, Dolto afirma:
“la fonction symbolique, spécifique de l’être humain, permet de substituer au plaisir
d’un circuit court du désir, sensuel, immédiat, un circuit plus long, qui médiatise des
pulsions et leur permet de retarder l’obtention du but premier, pour un nouveau plaisir à
découvrir” (apud Meynard 2016, pp. 149-150, grifos meus). O circuito curto é a
simbiose prolongada do filho com a mãe, e também a posição de deficiente que os
especialistas de diversos campos lhe atribuem no jogo das relações com os outros. Já o
circuito mais longo consiste, sobretudo, em “falar à criança”, isto é, ofertar-lhe como
“alternativa civilizadora” sua inserção no campo simbólico.
É justamente nesse ponto que Dolto, em abril de 1981, baseia sua carta enviada
ao ministro da saúde, na qual ela reafirma e explicita sua reivindicação quanto à
“necessidade incontornável” de que a língua de sinais seja proposta à criança surda, o
mais cedo possível, a fim de “nutrir a função simbólica continuamente em atividade
entre os humanos” (op. cit., p. 154). Também, em sua conferência, em junho desse
mesmo ano, no Instituto Nacional de Surdos-Mudos de Paris (INJS), a sua tônica é a
mesma, porém mais bem especificada: “Que l’enfant soit entendant ou sourd, la langue
des signes précède la langue de référence, Langue des Signes ou langue orale.” (Apud
Meynard, op. cit. p. 157) Em vez do pressuposto perverso de que o gesto seja inimigo
do som, ela parte do fundamento de que todas as criança – não somente as fisicamente
surdas – encontram-se inseridas numa “língua de signos” antes de falar a língua de
referência. Em síntese, Dolto argumenta que, na vida dos humanos, uma língua
intervém desde o início, pois seus gestos – como perceber ou procurar o olhar da mãe,
sentir ou não sentir o corpo da mãe, chorar ou sorrir devido a uma ação do outro, etc. –
não podem ser tomados como necessidades senão simbólicas, ou seja, numa dimensão
significante, capaz de cortar a relação dual, incestuosa, e abrir o jogo do desejo,
engenhoso e inventivo.
No que diz respeito a Bernard This, Meynard (2016) retoma principalmente
estas duas conferências: L’envie de parler (1975) e La voix in utero (1989). A primeira
foi apresentada no colóquio da Association Nationale des Parents d’Enfants Déficients
Auditifs (ANPEDA), realizado na esteira das leis para a integração dos “portadores de
deficiência” no sistema educativo padrão e considerado por Meynard como o ponto de
virada para integrar sistematicamente os chamados surdos no meio ordinário.
Contrapondo-se radicalmente a esse movimento, que pode ser entendido como a
passagem da proibição ao desmentido, This propõe a escuta da dimensão desejante do
inconsciente e a importância da triangulação estruturante como a única possibilidade de
evitar o risco de um gozo incestuoso. Ao contrário do discurso dos expertos, que
querem, o mais cedo possível, diagnosticar que “um enfant est sourd”, ele defende o
argumento de que, incontestavelmente, ela escuta, “il entend, et avec tout son corps”
(apud Meynard, p. 135). Em síntese, ele pontua a dimensão fantasmática em que a
criança poderá permanecer alienada ao desejo da mãe e convoca, portanto, a função
paterna, como um terceiro elemento, capaz de descolá-la dessa posição mortífera, de
puro objeto. Já, em sua conferência La voix in utero, pronunciada no colóquio d”Ivry
em 1989, ele vai destacar, recorrendo ao texto de Lacan “Fonction et champ de la parole
et du langage en psychanalyse”, o efeito sujeito, que, advindo do tecido significante,
movimenta o desejo inconsciente e sustenta uma pulsação corporal. Com esse
entendimento, uma língua não pode ser considerada como uma sucessão de signos a ser
aprendida, sabida e utilizada por um “sujeito”; ao contrário, ela é um encadeamento
significante possível no campo da linguagem que, a partir da função da fala – “pas
seulement dans ses aspects sonores mais également, visuels, tactiles, gestuels, écrits,
etc.” (op. cit., p. 140) –, é responsável pela divisão do sujeito no campo do Outro.
O desejo é o fundamento de uma formação subjetivante ou de uma prática
educativa que leve em conta a dimensão subjetiva, portanto, uma educação que
considere em sua base a teoria psicanálitca não pode deixar de interrogar-se a respeito
das condições de fala dos educandos nela envolvidos. Em seu livro Soigner la surdité et
faire taire les sourds: essai sur la médicalisation du Sourd et de sa parole, Meynard
(2010) toma como exemplo, para discutir como tal fundamento é desmentido, os
dispositivos de inclusão da criança surda no meio educativo ordinário, desde a sua
acolhida. Ele nos mostra como « un Sourd (parfois deux ou trois) est placé dans um
dispositif où seules langues sonorisées sont parlées par des enfants entendants » (p. 51).
Sua questão é se nos diversos dispositivos de acolhida e de integração dessas crianças
há, de fato, um lugar para a língua de sinais, uma vez que se trata de uma lógica que, ao
contrário de valorizar a dimensão da diferença, põe o seu foco no déficit e na doença.
Eis algumas de suas perguntas: «Existe-t-il um groupe de Sourds? Combien? Existe-t-il
des professionnels signants? La LSF dans ce dispositif est-elle réellement langue
d’enseignement ou seulement un appoint poctuel ? Qu’est-il mis en oeuvre pour que les
enfants entendants se familiarisent aussi avec la LSF ?» (p. 55) Se tais dispositivos
respondessem afirmativamente a essas questões, muito provavelmente estaríamos diante
da coexistência e do intercâmbio das diferenças linguageiras, contexto em que a criança
surda poderia dizer e se dizer em LSF e, a partir dessa sua inscrição numa primeira
língua, poderia também dirigir-se aos outros, crianças ou adultos, inscritos
primeiramente em outro domínio linguístico.
Para sintetizar o que foi comentado até este ponto, pode ser importante explicitar
qual é o passo enfrentado na discussão de Meynard: o de que é possível praticar e
pensar uma clínica psicanalítica com os Surdos, tendo em conta que a psicanálise é a
colocação em ato de um discurso profano, que, na contramão do “principe séducteur du
‘paraître comme les autres’” (saber preexistente), propõe-se a escutar e reconhecer o
silêncio e o insabido como a abertura para que possa acontecer algo novo (Meynard
2016, p. 204). É nesse sentido que ele retoma as elaborações de fato implicadas
psicanaliticamente com as realidades humanas rejeitadas pelos ideais culturais e sociais.
Não se trata de caridade, nem de altruísmo nem de ideologia do bem. Trata-se do
inconsciente, ou seja, dos efeitos de uma operação que, tomando como condição a
função de corte do significante, faz do vivente humano, desde antes de seu nascimento,
um corpolinguagem. Ou seja, trata-se de uma estrutura de desconhecimento, que não
pode substancializar-se e, muito menos, ser tachada numa classificação nem conforme
diagnósticos médicos nem conforme um aparelho conceitual sistematizado.
******
A partir deste ponto da discussão, vou juntar algumas peças do jogo,
pontualmente apresentado, e começar a pensar algumas implicações para a minha
elaboração sobre o corpo na psicanálise. Partindo da releitura que Lacan promove do
inconsciente freudiano, considerando que ele é estruturado como uma linguagem,
pretendo fazer consistir a expressão acontecimento corpolinguagem, que escolhi para
abordar a especificidade do conceito de sujeito com o qual opera a experiência analítica.
Trata-se, portanto, de tentar avançar com os desdobramentos a respeito do ser de gozo
do sujeito a partir do objeto pequeno a.
Em vez de me contentar com algumas expressões de que eu lançava mão
anteriormente – entre elas “constituição do sujeito”, “sujeito constituído pela
linguagem”, ou até mesmo “sujeito é efeito de significante” –, o relevo será posto na
consideração de que o significante se situa no nível da substância gozante. Para além de
pensar o sujeito como um resultado final de uma operação que se efetua pela função da
fala – que corrobora em muito o risco de tomá-lo como uma substância – outras
consequências podem ser encadeadas a partir do alerta de Lacan para não supormos o
estado de infans como “puro orgânico” ou como um vazio no sentido ontológico ou
existencial. A questão, então, é passar da concepção de “infans”, tomado no sentido
mítico-imaginário, para a consideração de uma articulação significante primordial capaz
de estruturar a fala. Trata-se de uma estruturação topológica por meio da qual o gozo
conhece o Outro (em sua dimensão desejante) por causa de um resto irredutível, não-
especularizável (objeto a). Em palavras um pouco mais simples: a estrutura da fala,
porque nela saber e gozo comparecem literalmente8 separados, responde pelo
acontecimento corpolinguagem, que não nos permite pensar nem o puro orgânico, nem
o sexual como a priori.
A primeira baliza que se faz necessária para alguns passos nessa direção é uma
explicitação teórica radical dos conceitos de inconsciente e de linguagem tomados como
estrutura, em contraposição a todos e quaisquer revisionismos que, tradicionalmente, os
apanham, pelo viés de um método empírico, como gênese. Vale a pena lembrar, para
isso, o argumento de Althusser (1964/1993; 1966/1993), em seu manifesto de retorno
aos fundamentos de Freud e Lacan, extremamente importante para os que pretendem
situar-se no campo próprio da psicanálise, em contraposição radical aos que, mais
comumente, tendem às idealizações e ao modo de resolução das vias estabelecidas,

8
À semelhança do que foi solicitado na nota 4, conferir Lacan (1971/2006, p. 121): “Entre centre et
absence, entre savoir et jouissance, il y a littoral qui ne vire au littéral qu’à ce que ce virage, vous puissiez
le prendre le même à tout instant. C’est de ça seulement que vous pouvez vous tenir pour agent qui le
soutienne.”
antes de Freud, pelos domínios seja da biologia ou da etologia, seja da psicologia ou da
sociologia.
Com a atenção voltada para a noção de “structure de la méconnaissance” (p.48),
Althusser (1664/1993) insiste que não se trata de atribuir uma linha divisória entre o
bio-eto-psicológico e o inconsciente, pois assim caímos na teoria do desenvolvimento e,
portanto, no empirismo de que a filosofia e a psicologia continuam presas até os dias
atuais. Ao contrário, trata-se de assumir e de enfrentar as consequências da invenção de
Freud e do gesto teórico de Lacan, quais sejam, aqueles que, no lugar desse suposto
limite, fundam um domínio teórico radicalmente novo, o do inconsciente. Em outras
palavras, se contamos, na base de nossos “concepts pratiques” (Althusser 1966/1993, p.
62), com uma relação de gênese entre o antes e o depois, isto é, antes o biológico e
depois o inconsciente, nós refusamos o fundamento de que o inconsciente é atemporal
(intemporel). Em síntese: a atemporalidade (intemporalité) do inconsciente deve ser
entendida conforme as leis definidas por Freud como sendo as leis de uma linguagem,
sob as quais ele funciona.
A segunda baliza consequente à continuidade desta elaboração, que se quer
radicalmente psicanalítica, é não abrir mão do que Lacan (1957-1958/1998, p. 86)
chamou de “le noeud entre l’usage du signifiant et ce que nous pouvons appeler une
satisfaction ou un plaisir ”, pois é aí que se situa o que se tem a desenvolver a respeito
do conceito de sujeito. Freudianamente falando: um complexo de “representação”, ao
contrário de se fechar, não faz senão manter-se, pela via da repetição, num circuito de
insistência. Trata-se de pulsão, cujo circuito marca a distinção entre a estrutura da fala e
a função orgânica que ela habita. Dizer dessa forma é mais radical do que dizer que o
desejo de um sujeito passa ao Outro embora deixando vestígios, pois, se colocamos na
base da estruturação da demanda o exercício primordial do significante, não podemos
ter como efeito uma comunicação (emissor – mensagem – Outro), mas sim a criação de
um desejo outro que não a necessidade. É assim que Lacan escreve a fórmula da pulsão:
$ ◊ D (sujeito barrado, corte de demanda). O acontecimento que advém desse tempo de
suspensão defasa a comunicação da demanda e embaralha as vias de acesso à satisfação,
isto é, o inconsciente – saber de gozo que não se sabe por si mesmo – funciona de tal
modo que limita o gozo e ao mesmo tempo o causa. Recusa-o, para que ele seja atingido
na escala do desejo ($ ◊ a, sujeito barrado, corte de a).
Vale a pensa retomar aqui o ponto em torno do qual gira a proposta de Meynard
(2016): “proposer aux enfants Sourds, le plus précocement possible, la possibilité de
s’exprimer au travers de la LSF9 et permettre parallèlement aux enfants entendants de se
familiariser avec une telle expresssion langagière revient à prendre acte de
l’entendement des yeux et permet une acculturation civilisatrice ouverte sur la portée
symbolique du geste humain” (p. 81). Não pela via mitológica que consistiria em
“redonner la parole” àqueles que estariam dela privados por causa de uma deficiência
(p. 91), mas sim pela via fundamental da psicanálise, ele argumenta: “au-delà de toute
visée de signification où s’épuisent les fameuses théories de la communication, c’est
bien le désir de l’Autre qui se trouve en fait questionné dans l’interlocution humaine”
(p. 93, grifos meus). Enfim, o ponto mais importante, ponto óbvio, porém rechaçado: as
implicações clínicas para um psicanalista do fato linguístico de que as línguas de sinais,
tal como as outras (maternas-estrangeiras), são língua – termo tomado aqui na acepção
conceitual de Saussure.
Moraes (1999) pode nos ajudar a desenvolver melhor a consideração, esboçada
acima, de que somos estrangeiros em nossa própria língua, questão também convocada
por Meynard (2016) com um de seus subtítulos, “Circuit de la parole et inquiétante
étrangeté” (p. 92). Segundo Moraes, interrogar o familiar da língua materna e a suposta
alteridade atribuída à língua estrangeira significa pensar as consequências do conceito
de língua, que pode ser entendida como “o lugar ilusório da certeza do Eu, ao mesmo
tempo em que representa a possibilidade da intervenção dos elementos da linguagem
inconsciente, “daquilo que fala no Eu, sem seu consetimento” (p. 6). Para além de um
trabalho descritivo, sua proposta é tomar as diferenças entre duas línguas (supostamente
materna ou estrangeira) a partir da relação entre falante e língua, relação que precisa ser
abordada do ponto de vista do desconhecimento e estranhamento. Nesse sentido, falar é
estar entre sistemas de linguagem, e a língua estrangeira não é “outra”, e sim aquela que
lê a língua materna. Uma questão importante, portanto, para Moraes (1999) é pensar, a
partir de Freud, como a linguagem separa a fala do corpo.

Sendo um campo complexo de associações de representações cujos


efeitos se manifestam na fala (no sintoma, no sonho), a linguagem deixa de
ser feita para designar as coisas, para se presentificar, sobretudo, como aquilo
que separa o falante de si próprio. Se a linguagem representa, para Freud, o
campo do desconhecimento, só podemos saber do que não sabemos, se
falarmos. Quando separa representação-palavra de associações de objeto,
Freud está nos abrindo a possibilidade de não procurarmos as explicações em
um só lugar. O fato de as associações de objeto (registradas no inconsciente)
só encontrarem uma significação ao se ligarem a uma representação verbal
(do pré-consciente) coloca a fala entre-sistemas de linguagem, pois as

9
Langue des Signes Française.
manifestações (inconscientes) de linguagem encontram, na fala, uma das
possibilidades de mostrar seus movimentos. (p. 51)

Os desdobramentos dessa abordagem permitem-nos pensar que o inconsciente se


efetua no ser falante no campo da linguagem. Sendo assim, uma corporeidade não é
natural, e sim concebida a partir dos efeitos da linguagem inconsciente. Moraes nos
ajuda a pensar o inconsciente como um aparelho psíquico, que também pode ser
chamado de aparelho de memória, no qual, pelo efeito da linguagem, se escreve a
pulsão. Então, cernir os enunciados de uma língua como “representáveis” implica
marcar um limite no campo da enunciação. Como nos ensina Lacan em “L’instance de
la lettre dans l’inconscient”, implica supor que o significante passou ao patamar do
significado, deixando sobre a barra os efeitos que advêm das manifestações
inconscientes irreprensentáveis, ou seja, deixando fora da conta a dimensão de gozo do
significante, substância “opaca”, que não compõe, de fato, a “máquina formal”, mas que
é responsável por manter o circuito pulsional constante, causa fundadora de um corpo
falante.
Voltemos mais uma vez a Meynard (2016), quando ele diz:

L’oeil ne saurait ici simplement regarder. Les mains, elles, ainsi que
le haut du corps et les déictiques faciaux, se doivent d’entrer dans les
coordonnées linguistiques par lesquelles ces langues déclinent les dires. Les
yeux sont appelés à écouter la chaîne de l’énonciation qui se déroule et dans
laquelle les signifiants, par le jeu des différences, écrivent les énoncés
linguistiques dans le respect des règles syntaxiques afférentes à de telles
langues. La clinique psycanalytique ne saurait se taire sur les profonds
bouleversements pulsionnels comme sur les mouvements subjectifs
complexes de celui qui se trouve confronté à une telle épreuve. (p. 106)

Com base em Fontaine (1983),10 Meynard comenta que se trata de tomar o signo
gestual como um signo-significante que desencadeia um funcionamento – fora de todo e
qualquer fonetismo – de uma “langue d’écriture”, cujo processo de leitura, por descolar
o signo de suas amarras figurativas, coloca em obra uma perda de gozo para que ele
possa fazer inscrição (cf. Meynard 2016, pp.112-127).
Por fim, uma terceira baliza, que tomo aqui como uma conclusão parcial do que
propus discutir a partir do que podemos aprender com os falantes de línguas de sinais a
respeito da articulação entre psicanálise e linguagem: por se tratar do inconsciente
estruturado como uma linguagem, não é possível pensar nem o que costumamos chamar
10
Meynard considera esse artigo de Fontaine, “Les silences de la lettre” como precursor, realçando,
sobretudo, que ele, a partir de uma leitura dO seminário, livro 9: A identificação, de Lacan, introduz
questões essenciais relativas a uma clínica com locutores de línguas de sinais.
de “aquisição de linguagem” nem a clínica psicanalítica como “normais”. Tomando em
conta o próprio método inaugurado por Freud, compatível com a experiência analítica,
que se propõe a decifrar por uma escrita (écriture) o que não se conhece senão por suas
leis, a existência da língua de sinais constitui-se como ponto privilegiado para pensar a
elaboração lacaniana do objeto a como “objeto causa do desejo”, permitindo
importantes conjeturas com o conceito de pulsão e, portanto, com o acontecimento
corpolinguagem.
A consideração de que o material linguageiro cujo eco ressoa no corpo não se
encontra intrinsecamente ligado ao sonoro faz avançar, sem dúvida, o próprio conceito
de significante, conforme tentei desenvolver no decorrer desta elaboração, cujas
consequências precisam ser mais bem explicitadas. Para tal, sinalizo de antemão as
seguintes tarefas de pesquisa já esboçadas no que pude falar neste recorte: as
abordagens de Lacan sobre lalangue e sobre a voz. Conforme Milner (1978/2012), a
linguística escolheu perpetuar um instante instável, por isso ela permanece na posição
de descrever uma língua, mas, por outro lado, Lacan forjou o termo lalangue por
considerar que, na estrutura da fala, está em jogo a dimensão do gozo. Lacan, dans Le
séminaire, livro X, L’angoisse (1962-1963/2004, p. 313ss), convocando-nos a enfrentar
o problema a respeito da constituição do a como resto, diz que, na experiência ordinária,
tudo o que o sujeito recebe do Outro pela linguagem, “il le reçoit sous forme vocale” (p.
317), e ainda “c’est bien du cotê d’une voix detachée de son support que nous devons
chercher le reste” (p. 316-317).

Referências
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