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Walter Carlos Costa

Pedro Heliodoro Tavares


Emiliano de Brito Rossi
(Orgs.)

, ,
PSICANALISE ENTRE LINGUAS
© 2016 Walter Carlos Costa; Pedro Heliodoro Tavares; Emiliano de Brito Rossi

Este livro segue as nonnas dó Acordo Ortográfico


eM Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.

Coordenação Editorial
lsadora Travassos

Produção Editorial
Ana Cecília Menescal
Rodrigo Fontoura
Victoria Rabello

Revisão técnica
Organizadores

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RI

Psicanálise entre Unguas I organização Walter Carlos Costa, Pedro Heliodoro


Tavares, Emiliano de Brito Rossi. - 1. ed. - Rio $!e Janeiro: 7 Letras, 2016.

ISBN: 978-85-421-0521-6

1. Psicanálise. 2. Linguística. 1. Costa, Walter Carlos. lI. Tavares, Pedro Heliodoro.


m. Rossi, Emiliano de Brito.

CDD: 150.1952

CDU: 159.964.2

2016
Viveiros de Castro Editora Ltda.
Rua Visconde de Pirajá, 580, SI.320 - Ipanema
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Tel. (21) 2540-0076
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Língua, Tradução e Psicanálise
Maria Rita Salzano Moraes

Quem transmuta palavras de uma língua noutra


deixa a alma nas mãos do diabo [...)
Enquanto você pensa tanto numa palavra quanto na outra,
o seu espírito permanece, indeterminado, por sobre elas,
mudo e inacabado, e fica sem saber o que é branco ou preto.

(SI MONA SORA, 2012)

Não é como tradutora ou teórica da tradução que aceitei o convite para


participar do Simpósio sobre Tradução e Psicanálise. O que tenho a dizer
se declina a partir da série que recebi como desafio para desenvolver uma
reflexão: "língua, tradução e Psicanálise': Para que eu tenha algo a dizer,
preciso primeiramente inverter essa série e perguntar: como é que, a par-
tir da Psicanálise posso falar de língua e de tradução?
Para falar primeiro da relação entre línguas, vou a Jakobson, em
"Aspectos linguísticos da tradução': Nesse trabalho, a tradução propria-
mente dita é aquela em que entram em jogo os signos de outra língua.
Nesse caso teríamos o queé próprio, autêntico da tradução, ou seja, sua
,relação com a alteridade.
r Para a Psicanálise, no entanto, pelo fato de o sujeito ser constituído
por linguagem, a condição de alteridade já está dada de saída na própria
língua materna e isso pode tornar a língua estrangeira familiar:!Gostaria
de falar, então, sobre essa alteridade, primeiramente a partir de ~ma afir-
mação de Freud, de que o aprendizado (entre outros) das línguas estran-
geiras está localizado no mesmo campo simbólico da assim chamada lín-
gua materna - o campo da linguagem:

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Todas as outras novas aquisições da função da linguagem - se aprendo, então,
a compreender ea falar várias línguas estrangeiras, se, além do alfabeto pri-
meiramente aprendido me aproprio do grego e do hebraico e, além de minha
escrita cursiva exercito a estenográfica e outras formas de escrita -, todas
essas atividades [...] estão obviamente localizadas nas mesmas áreas que
reconhecemos como os centros da primeira língua aprendida (FREUD [1891]
2013, pp. 83-84, grifo do autor).

Se o aprendizado das línguas estrangeiras - tomadas como capacida-


.\ des simbólicas - acontece no mesmo campo simbólico em que o sujeito
.'
foi constituído por sua língua materna, o que podemos dizer dessa "rela-
ção" entre línguas, e que consequências podemos daí extrair para uma
reflexão sobre língua e tradução?
Para responder essas perguntas e poder fazer referência a uma espé-
cie de cruzamento de línguas., a algo da ordem de uma passagem entre
línguas, lembro do caso inaugural da Psicanálise, Anna O. (BREUER &
FREUD [1893-1895] 1996 pp. 57-81), em que a paciente de língua alemã,
depois de sofrer transtornos afásicos em que vai perdendo as funções da
língua alemã, passa a falar inglês fluentemente durante dezoito meses,
sem o perceber, não sem utilizar, em ocasiões de extrema angústia, uma
mistura de várias línguas, tais como o francês e o italiano. Se tivesse que
ler uma dessas línguas em voz alta, produzia, com extraordinária fluência,
uma admirável tradução inglesa.
O que nos interessa nesse caso é o fato de Freud ter chamado de sin-
toma, o "esquecimento" (de Anna O.) de sua língua materna, o que nos
convoca a uma reflexão sobre a questão dos limites "entre" línguas, sobre-
tudo se observamos a familiaridade com que a língua estrangeira é tra-
tada neste caso. Se, para Freud, o sintoma é uma relação de compromisso,
tomar a língua estrangeira como sintoma supõe, necessariamente, que ela
seja referida à assim chamada língua materna e, mais precisamente, supõe
tomar o sujeito como efeito de linguagem.
Este caso vem, justamente, interrogar os estatutos de familiar atri-
buído à língua materna e de estranho atribuído à língua estrangeira. A
concepção de sujeito da Psicanálise nos permite considerar o estranho
da língua materna (a representação do estranho - a alteridade) como o
elemento organizador, e não diferenciador, nessa relação entre línguas.
i: É através dessa representação do estranho que se dá a passagem entre
línguas. A inclusão do' sujeito falante, nessa perspectiva, permite que
o estranho não as diferencie, mas que as coloque, como diz Freud, nas
mesmas áreas (op. cit., p. 60), que as tome primeiramente enquanto ele-
mentos de linguagem, de maneira que se possa entender a língua estran-
geira como uma leitura que o sujeito faz a partir de sua posição na língua
materna.
Podemos afirmar que, neste caso, a familiaridade com a língua
estrangeira vem no lugar do estranhamento na língua materna. Se con-
cordamos com a suposição de que a condição de alteridade da língua
materna torna a língua estrangeira familiar é porque, para Freud, se trata
do campo simbólico, de elementos de linguagem, entre os quais estão o
estranho, o indizível e o impossível. Para que a língua seja materna para
o sujeito é preciso que seja fruto de um impasse, de uma impossibilidade.
Charles Melman (1992) diz que a língua materna é aquela na qual,
para aquele que fala, a mãe foi interditada (p. 32) e, dessa forma, apre-
senta-a com um traço negativo, pois, tomá-la positiva e apressadamente
como veiculada pela lembrança daquela que nos introduziu na fala, seria
uma resposta já ao alcance da mão, por estar incluída no próprio signi-
ficante materna. Língua materna, portanto, não é a língua que se aprende
com a mãe, mas a língua com a qual o corpo da mãe é necessariamente
imaginarizado. Para o autor, é o objeto interditado que torna uma lín-
gua materna para nós, fazendo dela o nosso Heim (lar). Ela é a língua do
desejo, organizada tal qual o desejo, mas essa organização não garante a
expressão desse desejo. Ela é materna nessa definição, a partir do objeto
que ela interdita, isto é, sob a condição de o desejo não ser reconhecido
pelo sujeito, ou de nela faltar justamente o que é materno e, por isso
mesmo, o sujeito poder ser falado por ela e, não importa o que ela fale em
nós, seja enunciado pelo Eu (p. 15).
Freud aborda a língua materna de maneira desconcertante, pois
coloca em causa qualquer noção de língua como saber sinônimo de fami-
liaridade, porque dizer mais do que se sabe, não saber o que se diz, dizer
outra coisa do que o que se diz, falar para nada dizer, não são mais, no
campo freudiano, as falhas da língua, são propriedades inelimináveis e
positivas do ato de falar, de acordo com o dizer de Jacques- Alain Miller
(1996, p. 62). Nessa língua, a fala do sujeito testemunha a presença de um
saber que age a despeito de seu querer consciente, a determinação de um
dizer no qual se desconhece, divisão que, longe de ser uma ignorância, é
sua própria atividade.

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A operação da língua estrangeira deve, portanto, ser articulada pelo
impossível de dizer que se impõe à língua materna.
Também o caso Wolfson nos permite afirmar que o estranho da lín-
gua materna é o elemento organizador na relação entre as línguas e, assim,
coloca em questão o limite entre as línguas, embora o faça, desta vez, a
partir de uma outra visada, a das correspondências fundadas' nas sonori-
dades das línguas.
Autor de Le schizo et les langues (1970, apud FONTAINE 1987), Wolfson,
cuja língua materna é o inglês, escreve em francês. Seus escritos em fran-
cês possuem uma razão comum: sua luta com a perseguição da língua
materna, contra a qual ele se empenha em um trabalho de desarticulação.
Esse livro é a maneira pela qual o autor recebe e reage às sonoridades
de sua língua materna (e particularmente à voz de sua mãe), pois esses
sons: "fazem surgir na cabeça um eco intolerável, vizinho da dor, uma
reverberação ecolálica de seu cérebro doente" (p. n. tradução minha) que
ele trata de suspender. Para isso, não pode fazer nada menos do que des-
truir, sistematicamente, todas as palavras da língua inglesa, isto é, desarti-
cular todos os vocábulos dessa língua, fonema por fonema.
Wolfson se relaciona com a língua materna de maneira singular: ele
a escuta pelo corpo, convocado pela sonoridade literal, como se ela esti-
í I' vesse à espera de uma leitura. O que Wolfson ouve dessa língua é um
modo particular de inscrição da linguagem no corpo.
Os dois casos nos permitem afirmar que a relação com uma língua
estrangeira passa, necessariamente, pela relação estranho-familiar na lín-
gua materna. Para Anna O., o inglês vai recobrindo o alemão, para re-calcar
esse estranho que irrompe na língua alemã. O estranho, nesse caso, movi-
menta, isto é, causa o desejo, causa o familiar, porque o estranho-familiar
encontra-se ainda no campo do sentido, no campo representacional.
Anna o. não deseja o impossível, deseja, porque é impossível.
No caso de Wolfson, as outras línguas entram para de-fendê-lo da lín-
gua inglesa. Esta lhe é absolutamente estranha, uma vez que não importa,
para Wolfson, o campo do sentido. Assim, as outras línguas entram para
movimentar o estranho da língua materna que o invade como uma língua
estrangeira. O estranho não se apresenta aqui como aquilo que põe em
movimento, portanto, não pode causar o familiar. O que restou a Wolfson
de familiar é de outra ordem, não se encontra no campo representacio-
nal, apresenta-se como dor, no corpo. Se o estranho não pode causar o

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desejo, Wolfson busca o impossível: com o literal da linguagem, ou seja,
nas letras das línguas estrangeiras, defender-se da perseguição e dissolver
a tonalidade dessa língua materna, cuja ressonância o capturou no corpo.
Um caso mais tardio da obra de Freud ([1927]1996, p. 155) traz a con-
dição fetichista. Freud conta que um jovem paciente, cuja língua materna
era o inglês, veio posteriormente morar na Alemanha, esquecendo sua
língua materna quase que completamente. Num dado momento da aná-
lise, ao invés de dizer "Glanz auf der Nase': brilho no nariz, diz "Glance
auf die Nase': olhadela para o nariz. Freud nos diz em que língua é preciso
ler esse lapso, porque o fetiche, originado na infância do paciente, tinha
que ser ouvido em inglês e não em alemão.
Olhar para o nariz (Glance auf die Nase) era o fetiche, que, inciden-
talmente, na troca da letra, fora dotado de um brilho (Glanz) que a língua
estrangeira permitiu aparecer. Não se deve pensar que aí houve a virada
de uma palavra em outra por equívoco. Trata-se de uma o~tm lógica,na
qual as relações entre termos não têm a referência externa do sentido, só
a interna, da letra. Se não houvesse aí, de alguma forma, um escrito ante:
rior (Glance), o deslocamento da letra não teria produzido, nessa outra
leitura (Glanz), o acesso ao que constitui a indestrutibilidade do desejo., O
que se vê, nesse caso, é o movimento do estranho fazendo deslizar o fami-
liar de um outro texto. Em todos os casos, de maneira diversa, trata-se de
algo que se realiza entre línguas.
O ponto de fuga das duas línguas em questão foi a letra, que possibili-
tou que Glance fosse esvaziado de sentido e fizesse a passagem para Glanz.
O que fez insistência, nesse caso, foi a letra - que distingue o significante,
tomando-o como objeto ao separá-lo da-sígnificação - e não o significante
propriamente dito. Lacan ([1959]1998, p. 576) diz que a homofonia é a
dimensão em que a letra se manifesta no inconsciente. É a correspondên- \
cia sincrônica de elementos literais que forma o conjunto necessário e sufi- .~
ciente para constituir a passagem da letra~lsto quer dizer que, no equívoco,
no lapso, no esquecimento, em todas as formações do inconsciente, a letra . ;I j

v
passa. Por que não haveria também de passar na língua estrangeira? .l
Se o inconsciente fosse estruturado por língua e não por linguagem, . )~
não aconteceriam casos como esses e também não seria possível cometer /
lapsos em língua estrangeira. Se esses fenômenos ocorrem, é porque os
elementos de linguagem não pertencem a nenhuma língua em particu~
lar, melhor dizendo, não há, no momento do acontecimento, nenhuma

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fronteira entre as línguas, porque a letra, que é anterior ao s~ntido, per-
mite essa passagem. --'>-.
Avançando na reflexão, lembro que o tema deste simpósio é "Tradução
e Psicanálise", o que aponta para um interesse de conjugar ("e") a tradução
com a Psicanálise. A Psicanálise, por sua vez, não tem uma relação ou faz
r uma articulação com a tradução, porque para o psicanalista a prática da
, tradução é parte constitutiva da transmissão e de sua formação.
Por que formação? A Psicanálise chegou a nós por via da língua
estrangeira. Os textos que lemos são traduções (o Freud que conhece-
mos todos esses anos foi traduzido primeiro para o inglês e depois para
o português; e sobre Lacan, o que temos são traduções de textos autori-
zados - revistos, recortados, nomeados - por Jacques-Alain Miller; esta
é a parte ruim).
Por outro lado, de certa forma, temos condições de ir ao assim cha-
mado original de seus textos. Em quase toda Escola de Psicanálise há
sempre alguém que está às voltas com a tradução - para estudos - dos
textos fundamentais de Psicanálise. O psicanalista tem acesso a várias
versões/traduções das obras de Freud e Lacan. Isso indica que sabemos
como a tradução é importante na formação, tanto para o psicanalista que
traduz, como para aquele que consulta várias versões. Penso que constitui
exceção aquele que se debruça sobre uma única versão. Dentro dessas
operações de consultar várias versões e de traduzir já está em andamento,
simultaneamente, a formação desse psicanalista. Todo esse processo faz
. '-I parte da formação do psicanalista, porque essa passagem "entre línguas':
" , seja apenas dentro do que se chama de materna ou entre a materna e a
língua estrangeira, é o que constitui o dia a dia do psicanalista em sua
clínica e dentro de uma escola; a formação, portanto, além de ter essa
"parte material" do entre-línguas, também inclui a Ética, e vamos ver
mais adiante por que.
A tradução em Psicanálise, segundo Allouch (1995) não é uma prática
teorizável. Enquanto operação de produção de um escrito, regrada pelo
sentido a partir de um outro escrito - a tradução interessa à Psicanálise
por ser uma passagem que nos confronta com o ponto de fracasso do
simbólico, pois o sentido rola como um tonel, sempre revelando o limite
da própria linguagem. Nada nos impede, portanto, que a nomeemos de
tradução, desde que tenhamos em conta aquilo que a ultrapassa.
A prática do tradutor ultrapassa, de fato, o que ele deseja produzir,
ou seja, uma tradução (a primazia dada ao sentido). Aquilo que a ultra-
passa é o que a funda. Segundo François Cheng (1982, p. 42): "toda lín-
gua constrói seus nós e procura suas possibilidades de ultrapassamento.
Neste sentido, a tradução é indispensável. É através de uma outra língua'
que experimentamos nossas próprias riquezas e limites, e que, de repente,
tocamos no alhures do sentido ..::
Gostaria, então, de perguntar: podemos chamar de "tradução" a tra-
dução de textos de Psicanálise? A articulação entre tradução e formação
está em consonância com a ética da Psicanálise? Se, em Psicanálise, o
modo como se enuncia algo faz parte do que é transmitido, temos que o
que se transmite é menos da ordem do enunciado do que do estilo de sua
enunciação.
Se deslocarmos essa afirmação para a tradução, o que a constitui é
menos da ordem da língua do que propriamente da ordem do que existe
de escrito na linguagem. O que há de escrito na linguagem constitui ~
língua no espaço de sua estrangeiridade em relação a si mesma. Querer,
então, tomar a língua como sentido esbarra com um real do chiste, da
homofonia, o que nos mostra que não existem na língua dois ditos seme-
lhantes. Se inserimos o desejo no campo da língua, veremos que a língua
é o lugar das equivocações. Nesse sentido, nenhuma língua dá conta de
outra língua.
A tradução libera dentro de cada texto as forças subversivas de sua
própria estrangeiridade. O que está latente na obra, só o estrangeiro pode
descobrir; somente a passagem para uma língua estrangeira aperfeiçoa o
desenvolvimento da obra. Essa postura evidencia, na língua, sua posição
de rede (precária) de representação do real que não para de não se escrever.
Freud primeiro chamou a interpretação do sonho de tradução
(übersetzung), para depois explicitar que não se tratava de uma trans-
posição de sentido de uma língua para outra, deixando, em seu texto de
1913, "O interesse científico da Psicanálise" ([1913] 1996), coabitar os dois
termos, que são, precisamente, decíframento e tradução:
[...] é ainda mais apropriado comparar o sonho a um sistema de escrita
[Schriftsystem] do que a uma linguagem. Na realidade, a interpretação de
um sonho é análoga, do começo ao fim, ao deciframento de uma escrita
figurativa da Antiguidade, como os hieróglifos egípcios. (trad. modificada,
p.180)

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Ao aproximar "deciframento" e "tradução': Freud traz uma diferença
fundamental, que considero importante para a reflexão sobre tradução e
transmissão. Ele nos mostra que, quando se trata de língua, precisamos
também ordená-la por uma referência da linguagem a si mesma, à sua pró-
pria estrutura como tal. O sonho, tal como Freud o tratou no trecho acima,
distingue-se de qualquer forma de pura expressividade, por se sustentar
numa estrutura que é idêntica à estrutura da linguagem. O que Freud faz
com o sonho é não tomar a imagem como representante do objeto, mas
como a escrita de seu nome. O que deve prevalecer é o que, na imagem, se
fizer ouvir de textual. Seríamos levados ao erro, diz Freud, se tentássemos
ler [lesen] esses signos em seu valor de imagem [Bilderwert] ao invés de
lê-los em sua relação com os próprios signos [Zeichenbeziehung].
Se pensarmos, então, na ancoragem da tradução do texto de
Psicanálise em outro lugar, além do sentido, podemos perguntar: a leitura
deve ser literal? A tradução que se quer 'literal' designa apenas a procura
de seus pontos de ancoragem em outras partes, além do simples trans-
porte do sentido a que ela se consagra.
Por outro lado, todos nós sabemos reconhecer que uma imensa parte
da obra freudiana faz referência aos efeitos de linguagem, porque Freud
toma a língua diretamente como objeto, como material indispensável à
Psicanálise em seus aspectos clínicos, na análise dos sonhos, de casos, do
chiste, passando pelas vias das associações, cadeias, pontos nodais e pontes
verbais, o que revela a maneira de operação da linguagem inconsciente.
Traduzir Freud literalmente impede a versão literal de ser ao mesmo
tempo legível, porque Freud não passa seu sentido ao leitor apenas atra-
vés de palavras e sentenças, mas também através de efeitos de linguagem
na sua língua. Os efeitos da literalidade da língua de Freud não serão os
mesmos na tradução, porque a letra não se traduz, ela se transmite.
O problema em traduzir literalmente é nitidamente marcado por
Freud a propósito do chiste: no "chiste de pensamento': a formulação ver-
bal é acessória, e o chiste pode ser traduzido sem perda do efeito cômico.
Mas o "chiste de palavras" é inseparável da expressão alemã: mesmo
encontrando-se um equivalente na língua da tradução, as vias de conexão
serão necessariamente diferentes.
A tradução literal é muito mais do que traduzir palavra por palavra.
Escolher traduzir palavra por palavra pode levar, de maneira geral, a uma
literalidade premeditada, compreendida em sua acepção mais estreita,

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que pretende respeitar até mesmo a ordem das palavras nas frases em ale-
mão. O que ultrapassa a tradução é que não é com o sentido que se detém
a fuga do sentido. No trabalho de tradução, é preciso que a letra passe,
para que haja transmissão. Não se deve, portanto, colocar entre parênte-
ses a operação de passagem e isolar o trabalho de tradução.
E aqui, penso que entra a questão da Ética. A questão da Ética coloca-
-se da seguinte maneira: a partir da Psicanálise podemos afirmar que: à) a
língua materna não é a da familiaridade e nem, especificamente, a língua
estrangeira traz a alteridade, o estranho; b) faz parte da Ética da Psicanálise
não procurar diretamente o sentido, mas ouvir a maneira como se diz (na
clínica não se pode tomar o conteúdo do que o paciente diz como a revela-
ção do sentido. Há que se considerar a maneira como ele diz o que diz)}.J.É
por isso que faz parte da Ética da Psicanálise, não procurar o sentido (nem
na clínica, nem nos textos a traduzir ou já traduzidos). Então, na tradução
de textos de Psicanálise, essa ética também deve operar porque ela cons-
titui o analista. Trata-se de uma posição daquele que traduz (da mesma
forma que a posição de um psicanalista revela a clínica que ele conduz). A
consequência disso para o psicanalista que traduz ou para aquele que lê,
ou para aquele que escuta é então, por exemplo, não escolher traduzir/ler/
ouvir só o conteúdo do que disse o paciente, mas incluir a maneira como
ele o disse: materialmente falando, se ele coloca o sujeito gramatical no
final da frase ou no começo, se ele usa os tempos verbais da voz passiva
para falar das pulsões etc. Isso é Ética. É uma posição.
Tratar o estilo de Freud (a maneira como ele o diz) como irrelevante
é querer separar o que ele transmite do modo como o transmite. É pres-
supor que podemos atingir o verdadeiro conteúdo da teoria freudiana
sem necessidade de levar em conta a linguagem com que o conteúdo se
transmite. Segundo Veras (2009, p. 143), Uéo estilo que exige do tradutor
que encene em seu texto, com tato e escuta afinada, uma nova maneira de
fazer-se um tempo para transmitir': Encerro com uma citação de Freud,
de Psicopat%gia da vida cotídíana ([1901] 1987, voI. VI, p. 215):

Em geral se acredita que se é livre para escolher as palavras com que se


revestem os pensamentos ou as imagens com que eles são disfarçados. Uma
observação mais atenta mostra que outras considerações determinam essa
escolha e que, por trás da forma de expressão do pensamento, vislumbra-se
um sentido mais profundo, muitas vezes não deliberado.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALLOUCH, Jean. Letra a letra. Trad. Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro:
Companhia de Freud, 1995.
BREUER, Joseph; FREUD, Sigmund. Estudos sobre a histeria. Edição Standard
Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
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CHENG, François. "Faute de mieux': In: Confessions de traducteurs, Lf\ne, n. 4,
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FONTAINE, Albert. "Pour une lecture de Louis Wolfson': In: Littoral, n. 23-24,
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FREUD, Sigmund. Sobre a Concepção das Afasias - Um estudo Crítico. Trad.
Emiliano de Brito Rossi. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 1891/2013.
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psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, vol.


VI, 190111987.
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obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora,


vol. XIII, 191311996, pp. 166-192.
___ (1927). "Fetichismo': Edição Standard Brasileira das obras psicológicas
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completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, v. XXI, 1987, pp.
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LACAN, Jacques. (1959). Escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1998, pp. 537-590.
MELMAN, Charles. Imigrantes: incidências subjetivas das mudanças de língua e
país. CALLIGARIS, C. (org.). Imigrantes: incidências subjetivas das mudanças de
língua e país. Trad. Rosane Pereira. São Paulo: Editora Escuta, 1992.
MILLER, Jacques-Alain. Matemas 1.Trad. Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1996.
VERAS, Maria Viviane do Amaral. "A tradução e sua relação com o inconsciente:
transmitir a Psicanálise': In: Tradução em Revista 7, 2009.

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