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A CONSTITUIÇÃO DO EU E DO OUTRO PELA

INTERPELAÇÃO DA LÍNGUA PELA LÍNGUA NA


HISTÓRIA DO SUJEITO

Amanda Eloina SCHERER


(amandael@terra.com.br)
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM/Laboratório CORPUS)

“Celui qui met le pied sur le terrain de la langue


peut se dire qu’il est abandonné par toutes les
analogies du ciel et de la terre.” (Saussure)

Preâmbulo do viajante

Interpelação: para falar na constituição do eu e do outro pela


interpelação da língua pela língua na história do sujeito, é preciso enunciar o
lugar de onde estamos falando. Lugar discursivo, sim (FONTANA
DORNELES, 2005), mas lugar físico, principalmente, e de um corpo
cindindo-se em frente a todos. É preciso falar de lugar pela via da língua e
voltar a repetir que não temos lugar mesmo nos dando lugar (obrigado
Bethânia Mariani e Vanise Medeiros). Falar da língua na língua pela língua
nesse lugar nos dá até calafrios... Mas por que nos apresentamos em um
seminário como esse se não nos sentimos nesse lugar muito embora tendo
lugar? Porque aqui nos identificamos com o que é feito, lido, descrito e
interpretado.
Mas o quê vem a ser estar fora do lugar? De qual lugar? Lugar da
língua ou lugar na língua da AD? A AD, essa dita de linha francesa, de
Pêcheux e Orlandi, de Pêcheux e Milner, de Pêcheux e Althusser, de Pêcheux
e Courtine, de Pêcheux e Régine Robin... O lugar da FD, da FI, do simbólico,
dos mecanismos ideológicos de identificação, da posição-sujeito, da forma
sujeito, do acontecimento discursivo, do acontecimento enunciativo
(INDUSRKY, 2004).
Alias, se procuramos negar esse lugar é porque nos sentimos avessa
nele porque todos os conceitos que acabamos de enunciar não aparecem
claramente em nossos textos de analista e muito menos neste que segue.
Como podemos ser não sendo? Como falar sem enunciar explicitamente
quem somos? O que é essa falta de ser? Podemos nos constituir na língua não
nos constituindo na ordem discursiva da AD? O que faz com que a língua
possa nos constituir sem nos constituir no discurso da AD? Eis as primeiras
questões que seriam interessantes de serem refletidas nesse evento.
Nossa fala está alicerçada em dois pontos dependentes, pendentes na
ilusão da totalidade. O primeiro, diz respeito ao eixo teórico no qual nos
apoiamos. A leitura que estamos propondo está baseada em Pêcheux (1981a e
1981b); Milner (1978); Robin (2001, 2003ª, 2003b, 2004) e Balibar (2001).
Quatro autores que constituem o nosso alicerce de interpretação. O segundo,
diz respeito ao que somos constitutivamente mesmo não sendo mais, nem
professora de português, nem professora de francês língua estrangeira
(SCHERER, 2003).
A esse campo social, professora, devemos enfatizar dois aspectos: a) a
relação língua estrangeira x língua materna e b) o reverso dela, ou seja, língua
estrangeira deixando de ser estrangeira para ser mais uma língua, ou melhor,
como afirma Milner (1978, p.27) “une1 langue, une forme particulière, un
dialecte d’une langue” , uma reorganização específica de uma parte particular.
E aí, nós nos perguntamos, já faz certo tempo, sobre a própria noção de
materna e estrangeira. Se “a língua é não totalidade, é não fechada em si
mesma” (MARIANI E MEDEIROS, 2005) por que a fechamos na
discursividade do que seja materna e estrangeira e, mais ainda, como essa
relação acontece nos sentidos de língua nacional. Cada vez que nós
procuramos essa especificidade, nós estamos nos condenando a nos inscrever
em um processo de valorização/desvalorização.

“Justement ce n’est pas ce résultat qui m’intéresse mais que chacun puisse le
produire, et cela, parce qu’il parle, qu’il dispose d’une langue qui est à elle-même
son mode d’emploi.” (NORMAND, 2002, p.7/8).

O que queremos, aqui, nesse seminário, é refletir sobre as designações:


estrangeira, materna, segunda, nacional etc. e sobre o que vem a ser a fronteira
entre elas. Seria possível pensar essas designações discursivamente? Porque
para nós: “Il y a du langage. C’est-à-dire de la langue, des langues, sans
qu’aucune en domine une autre ».(NORMAND, 2002, p. 7).
Trazemos, então, Robin para melhor experimentar essa reflexão:

“Ce faisant, nous expérimentons à la fois le recul des limites qui caractérisent le
monde contemporain, le recul en symbolique et l’altérité, le récit de soi, l’identité
narrative au sens que Paul Ricoeur donne à ce terme.” (ROBIN, 2001, p. 263)

Mais ou menos explícita a temática sobre a língua perpassa todos os


discursos aí envolvidos2 desde sua forma mais subjetiva na relação eu x tu até
a alteridade nas identificações que possam a vir acontecer. Aquele que se
desloca desafia o próprio da alteridade que no seu movimento de uma língua
para outra língua, de um território a outro, no espaço e no tempo de
linguagem acumulam suas identificações de percurso em percurso, em sua
subjetividade analítica. Nesse sentido, esse sujeito redefine a própria noção de
língua... Existiria uma zona-limite, uma borda onde a passagem ao discurso

1
Sublinhado por Milner.
2
Os deslocamentos no espaço geográfico quer seja ele real ou virtual e por conseqüência os deslocamentos
lingüísticos, culturais e discursivos na sociedade em geral, são temas de interesse na literatura, nas artes
plásticas (ver, por exemplo, a pesquisa estética realizada por Maurício Dias e Wlater Riedweg em vídeo
instalação chamada de Os Franciscos, os Severinos e os Raimundos na 24 BIENAL de São Paulo, com 33
porteiros nordestinos na cidade de São Paulo) e mais especificamente nos estudos relativos à língua e ao
discurso.
tende a apagar as fronteiras entre o mundo do inconsciente e do consciente
sobre/na/pela língua?
Podemos começar, então, a pensar a língua como Elias Canetti, por
exemplo, quando ele se reporta à matéria em si:

“Minhas primeiras recordações estão imersas no vermelho. Saio por uma porta nos
braços de uma menina, o chão a minha frente é vermelho e a minha esquerda
desce uma escada igualmente vermelha. A nossa frente, à mesma altura, abre-se
uma porta e aparece um homem sorridente que, alegre, vem em minha direção. Ele
se aproxima bem pára e me diz: "Mostre a língua!" Mostro a língua e ele leva a mão
ao bolso, tira um canivete, abre-o e põe a lâmina bem perto de minha língua. Ele
diz: “Agora lhe cortaremos a língua.” Não ouso recolher a língua; ele se aproxima
cada vez mais, até quase tocá-la com a lâmina. No último momento ele recolhe a
faca e diz: "Hoje ainda não, amanhã”. Ele dobra o canivete e o guarda no
bolso.”(CANETTI, 1987:11).

Ou como Maria Isabel Barreno, em um discurso que quase resvala para


o impossível:

“Fomos. Somos? Seremos?


Foremos seromos
Sonhos serenos” (BARRENO 2000, p.47)

Mas nem por isso a língua deixa de ser uma instância densa e
significativa. Vejamos com Kateb Yacine: “Une langue appartient à celui qui la
viole, pas à celui qui la caresse.”
Ou ainda, pela via de Garcia Márquez (1998) em Cem Anos de Solidão,
que pela epidemia da insônia que atacou Macondo, para não esquecer o nome
dos objetos, seus habitantes colavam etiquetas em cada coisa: “balde”, “mesa”,
“vaca.”
Ou como aquela de Mia Couto:

“- Lembra que eu andava a aprender idioma da passarada? Pois, sua mãe nunca me
autorizou.
- Pai, escute...
- Agora, meu filho, eu já não falo nenhuma língua, falo só sotaques. Entende ?”
(COUTO, 2000 p. 53).

E se levássemos a sério o sonho de Canetti: “Je rêve d’un homme qui


aurait désappris les langues de la terre jusqu’à ce qu’il ne puisse plus
comprendre, dans aucun pays, ce qui s’y dit” (CANETTI, 1980:32).
Nesse discurso sobre a língua a contradição não é apenas um eixo
principal, ela é, isto sim, o próprio modo de significação. Vejamos um outro
exemplo em uma passagem do romance intitulado Le livre brisé, de Serge
Doubrovsky, quando a personagem se sente mal à l’aise em relação ao
julgamento de sua esposa:
“Je suis soulagé. Ma femme, à aucun égard, n’est une épouse complaisante.
Lorsque ce que je fais ou écris lui déplaît, elle ne me l’envoie pas dire. Sans
précautions oratoires, sans ambages. Elle me tabasse, quand elle en a envie. S’il lui
faut, elle m’assène mes quatre vérités. Entre quatre yeux. Em trois langues. Elle
m’engueule, en français, en anglais et en allemand. Variable, selon les sujets, les
humeurs.” (1989, p.45).

Mas o quê na língua nos fascina tanto? Ela nos esconde o quê ? Como
ela nos torna tão consciente inconsciente para falarmos dela e com ela? Ou
como pergunta Robin: “Qu’est-ce qui pousse la langue à être toujours sur les
bords, tout près de l’abîme, là où ça bascule, ça bouscule, ça trébuche,
bredouille, bafouille ; à être toujours au-delà ou en deçà, jamais sur le trait, sur
la lettre, en écart ...” (ROBIN, 2003, p.7).
Estamos vendo a própria concepção de língua como limite “impossible
de dire, impossible de ne pas dire d’une certaine manière” (MILNER, 1978, p.
26) ou então como nos ensina Pêcheux: “ l’ordre de la langue? Rien d’autre
que l’ordre politique dans la langue.” (PECHEUX, 1981a, p. 28).
Se a língua como limite traz ruptura nesses discursos é porque o
deslimite também se faz presente pela língua. Por isso o discurso sobre a
língua está sempre prestes a romper o deslimite transgredindo, encarregando-
se de constituir o nonsense. Ao nosso ver, ela poderia estar representada pela
tríade pechetiana “enchâssement, articulation et dé-liaison” (PECHEUX,
1981b).
Entendemos também que pela sua reiteração em situações enunciativas,
como vimos anteriormente, sentidos se deslocam e se articulam em uma
multiplicidade na historicização do acontecimento. Está aí a força de se pensar
o acontecimento como marca de significação carregada de sentidos
pela/na/sobre língua porque:

“Une incessante surveillance de tout ce qui – altérité ou différence interne – risque


de mettre en cause la construction artificelle interne de son unité et de renverser le
réseau de ses obligations.” (PECHEUX, 1981, p. 28).

Por outro lado, a surveillance desse espaço de língua toca muito perto
uma questão importante: a do sujeito no/do discurso e sua identificação com
a língua. A língua pode ser considerada, então, como o lugar privilegiado da
nossa textualização na relação com o outro:

“La langue en soi n’est rien d’autre que cette partition considérée en général, une
langue en est une forme particulière; um dialecte d’une langue, une réorganisation
spécifique d’une partition particulière.” (MILNER, 1978, p.27)

Portanto, falar a língua é uma prática do sujeito para outro sujeito na


textualidade de uma outra prática. Falar a língua é inscrever-se na história dos
materiais que constituíram essa língua enquanto produção imaginária de
sociedade e de sujeito. “O que é dito em outro lugar também significa nas
nossas palavras.” (ORLANDI, 1999, p. 32) Mas é preciso que esse
deslizamento, esse outro lugar, possa ser guiado pela constituição do outro e,
ao mesmo tempo, já tão nossa, pois, como afirma Meschonnic, “on est dans
sa langue comme on est dans sa peau.” (MESCHONNIC, 1989, p. 31)

Viajante se define

Para nós, constituir-se como sujeito, é constituir pela língua e pelo lugar
ocupado nela. Mas o lugar ocupado por ela constitui-se pelo lugar que
ocupamos, também fisicamente, nesse espaço. Lugar3 físico, corpo social,
sujeito cindido, deslizes e constituição, diversidade e unidade, vestígios e
errâncias de discurso e de sujeito e, por conseguinte, de identificações. O
sujeito vai, assim, se constituindo na língua pela sua história, na história dessa
materialidade.
Pensar a língua como território profundo, jardim sem limites, é pensar a
nossa própria essência como nos ensina a escritora portuguesa Lídia Jorge
(1998). Para nós, território é o intermédio do lugar de negociação que se faz
com a língua, pela língua e na língua. E é, pela interpelação da língua pela
língua se misturando na língua, pelo sujeito da língua, que nos constituímos.
Vida e História. História de Vida. Acontecimento Fundador.
Vejamos novamente Robin:

“J’ai longtemps pensé que je n’avais ni langue, ni nom, ni lieu, ni feu. J’en ai changé
tant des fois ! Mes premiers souvenirs: changer d’appartement tous les jours,
dormir dans des terrains vagues, des abris de fortune, des caves, des couloirs.
Tromper l’ennemi! Ne pas se faire prendre, ne pas se faire surprendre, ne pas
recontrer la police française ou la Gestapo. Ne pas ouvrir la bouche car la langue
qui en sortirait serait sans arrêt de mort, parler français, comme tout le monde,
sans accent, sans inaperçue.” (ROBIN, 2004, p.81)

Como vemos, esse acontecimento tem sentido, também, pela


possibilidade de se ter um lugar para instar, para deslizar, para cindir e para se
constituir. Sujeito nenhum é sujeito sem um lugar social. A possibilidade de
instar em uma outra matéria discursiva, em um outro lugar e, na mesma
ordem discursiva e material, em um outro e mesmo lugar, faz com que o
sujeito possa se constituir como sujeito no corpo social do discurso dessa
materialidade. Essas duas possibilidades, ou seja, falar a língua e estar habitado
e instado nela, através dos efeitos do simbólico, na eterna e provisória
mouvance da constituição do corpo social, vai se constituindo no discurso e no
sujeito em suas idas e vindas entre o real da história, o real da língua e real do
inconsciente. Divididos como sujeito, cindidos enquanto sentido, em espaços
diferentes de circulação o sujeito se instala.

“Bref, les espaces sont multiples, morcelés, diversifiés. Il y en a aujourd’hui de


toutes tailles et de toutes sortes, pour tous les usages et pour toutes fonctions.

3
Lugar é tomado aqui como uma forma de dar seguimento a um projeto pessoal e coletivo, que desde o
começo, configura-se no movimento de sentidos, na sua dimensão histórica e política.
Vivre, c’est passer d’un espace à l’autre en essayant le plus possible de ne pas se
congner.” (PEREC, 1974, p. 14)

Mas quem somos nesse espaço intermitente de língua americana e de


línguas outras quase todas em segundo plano4? Será que essa virtualidade
estaria nos levando a errance pela ausência da distância? E mais ainda, no outro
lado da fronteira material e territorial, esse acontecimento (PÊCHEUX, 1990)
tem o quê como discurso fundador (ORLANDI, 1993) ? Aquilo que é próprio
da língua, ou seja, a minha língua, a do outro e a minha na do outro? Outra
língua, mas mesma língua? Como nos constituímos identitariamente em outro
espaço e em outra língua? Somos estrangeiros à língua ou à identidade? O que
fica da memória da língua na língua da memória em outra língua? Como
constituir uma identidade diferente em um espaço e uma língua diferentes ?
Aliás, se pensarmos no caso da escola, por exemplo, veremos como ela
consegue despovoar a língua. Purificando-a. Descarnado-a. Não deixando
mais nada do que os seus ossos. Na expressão de Courtine (2005)
“exterminando a palavra”. Naquele intuito de apresentar apenas o sistema
“básico”: basic english, français élémentaire, português básico.
Para nós, são maneiras de ver e maneiras de dizer. Discursividades e
evidências subjetivas. Cada dizer é feito da combinação dos dois, de um para
outro. Há variação dos dois e de suas combinações. Há, retomando Serrani
(1993), ressonâncias fundadoras – enquanto ressonância intermediária de
significação – que constituem mecanismos essenciais de uma identificação
(possível) discursiva. Essa materialidade carrega, assim, sua duplicidade:
sujeito e discurso. Os objetos simbólicos que aí estão envolvidos, na sua
formação, são os mais variados e de natureza diversa. É tanto da produção
desses objetos, quanto da relação estabelecida entre os sujeitos, nessa
produção, que vão se fundar os sentidos atribuídos a ela, pelo dizer do sujeito
que fala essa língua. O discurso surge, então, como aquele lugar de visibilidade
para o dizer sobre o sujeito ao mesmo tempo em que a língua formula os
enunciados fundadores para estatuir o lugar de enunciação desse sujeito
(SCHERER, 2003) pela via da memória. “De acordo com esse conceito, as
pessoas são filiadas a um saber discursivo que não se aprende, mas que produz
seus efeitos por intermédio da ideologia e do inconsciente.” (ORLANDI,
2005, p11)

Viajante temporalizado pela língua

Vamos tentar de forma mais sucinta retomar as duas marcas maiores de


discursividade que são o tempo e o lugar. O tempo e o lugar em uma relação
de pluri-pertencer. Em primeiro lugar, pelo tempo via Althusser (1995) que se
subdivide em três modos: o passado, o presente e o futuro. No entanto, a
maneira de agenciá-los não é unívoca e, no caso de Althusser (1995), nós
4
no hemisfério americano, bem entendido.
podemos falar de duas temporalidades.
Na primeira temporalidade, o tempo tem um horizonte absoluto: o
presente. Neste horizonte tudo é presente e o passado e o futuro não são
senão duas dimensões relativas ao presente. E é nesse sentido que Althusser
escreve: “a ideologia não tem história” (1995: 541). Isso não significa
necessariamente que o presente horizontal coincide com o presente eterno de
Platão ou com o presente do conceito hegeliano. O presente horizontal é
capaz de formar a contemporaneidade de uma época. O presente se junta se
dilata e os presentes de misturam um no outro, se envolvem um no outro pela
língua.
Sabemos, outrossim, que o presente efetua também sua dominação em
dois eixos temporais no preço da desordem de si mesmo. E esse horizonte
instalado é fundado em um primado: “a essência do sujeito é o seu objeto”.
(SCHERER, 2002, p.14) A pergunta que permanece: Em qual língua? A língua
enquanto aparato puramente lingüístico ou a língua enquanto manifestação do
outro e já nossa ?
Na segunda temporalidade, é o passado e o futuro que dominam o
presente. Mas o tempo no qual o passado e o futuro dominam o presente é o
tempo próprio à prática da língua (a prática no sentido althusseriano). A
prática tem um espaço, tem um lugar entre o passado e o futuro e ela (a
prática) existe aí como dominação destes dois modos do tempo sobre o
presente. A dificuldade maior de se produzir sentidos nessa passagem -
passado - presente - futuro- , provém do fato de que o passado e o futuro
exercem concretamente uma dominação sobre o presente. Segundo Althusser,
“toda formação social qualquer que ela seja está em trânsito ou em viagem
nessa história” (ALTHUSSER ,1995: 542). Ou como sublinha Robin:

“Ce passage à l’acte qui trouble la frontière entre le réel, le principe de la réalité, la
finitude et l’imaginaire, où l’on peut faire l’economie de la castration symbolique,
est la source d’une grande jouissance même s’il se révèle mortifère.” (2001, p. 260)

Sendo assim, é nesse trânsito na história que o sujeito constrói o seu


lugar e dá sentido, produz sentido no e do seu lugar na história da língua e
pela língua. Mas esse lugar é a constituição do que somos como presente e é
através dele que teremos ou não futuro ao mesmo tempo partilhado com os
que aos nossos olhos já estão no futuro: o tempo aquele que somos pela
língua e que ninguém pode ser por nós.
Sabemos também que só quem tem passado, construindo o seu lugar,
vive estas duas temporalidades: lugar do sujeito e da história na língua e pela
língua. As variações de um mesmo e eterno tempo. Variação do modo de
dizer na ordem do repetível e do já dito. O que fica de nós nesta outra língua,
nesta outra materialidade? Como constituir uma língua sua, uma pele sua,
nesse espaço diferente? O que sabemos é que as palavras são habitadas por
onde elas passam pela geometria da e na língua. Para nós, todo estudo sobre a
língua é “um discours introuvable en rapport à la/dans une langue
introuvable” (SCHERER, 2001, 41). Para nós, a língua nos tira do vazio pela
via do discursivo porque a nosso ver nos protegemos da falta tendo a língua
como objeto do saber, objeto do prazer, objeto do desprazer, “où le linguiste,
en tant que linguiste, n’a plus rien à dire. Surtout quand il est un linguiste de la
langue et pas du discours” (MESCHONNIC, 2000, p. 9). De todo jeito:

“Même seule et immobile


Je suis
Les mille mouvements du monde”. (HUSTON et KORAICHI, 2001)

Eis algumas das questões que gostaríamos de discutir no II SEAD.

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