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DISCURSO DE ESTADISTA, ENTREVISTA DE CANDIDATO

*Por Jorge Alexandre Alves

O ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva realizou ontem uma conferência de imprensa, a primeira
após a anulação pelo STF dos processos onde já havia sido condenado. O antigo líder sindical sempre
insistira em sua inocência, tendo recusado várias vezes fugir do país ou pedir asilo político em uma
embaixada estrangeira. Antes de responder aos jornalistas, o petista fez um discurso de grande
impacto.

Sem esquecer a injustiça da prisão, o ex-presidente não se colocou como vítima. Ao contrário, fez
questão de mostrar solidariedade às famílias que perderam seus parentes na pandemia e ao povo que
sequer tem o que comer por causa da crise econômica

Já na entrevista propriamente dita, colocou-se como líder da oposição ao governo Bolsonaro e,


mesmo negando que fosse candidato, respondeu às perguntas como postulante ao Planalto em 2022.
Goste-se ou não do ex-operário, é notável sua capacidade de falar à população e a forma carismática
pela qual se comunica.

Lula transitou com maestria pelas temáticas fundamentais para o país. Desenvolvimento, educação,
saúde, papel das Igrejas, imprensa foram temas que ele abordou.

Promoveu a vacina, ressaltou o trabalho dos médicos e defendeu o SUS. Afirmou a necessidade de
uma política externa independente – sobretudo em relação aos EUA – e se mostrou comprometido
com o princípio da autodeterminação dos povos.

Com fina ironia, condenou o negacionismo, dizendo com todas as letras que a Terra é redonda. E,
com maestria, enfiou seus adversários no bolso sem parecer agressivo.

O fato é que Luís Inácio fez uma aparição histórica ontem. Muitos consideram que foi um discurso
de estadista. Enfim, tivemos Lula em estado de graça.

Vale dizer que 116 veículos internacionais de imprensa acompanharam a sabatina dos repórteres. O
petista não fugiu das perguntas mais espinhosas. Não tergiversou a respeito da polarização com
Bolsonaro, afirmando que o PT sempre vai polarizar na defesa da classe trabalhadora.

Defendeu o papel do Estado na indução do desenvolvimento e criticou a autonomia do Banco Central.


Sobre o mercado, afirmou que a sociedade não pode ser refém do mercado, mas acenou aos
investidores e empresários com o diálogo.

A decisão judicial que devolveu a Luís Inácio Lula da Silva seus direitos políticos e suas declarações
abalaram a conjuntura política brasileira, certamente. Mas não alteraram a dramática situação
socioeconômica que o país enfrenta neste momento.

Mais de 2300 mortos de Covid por dia, alta dos preços da cesta básica, desemprego crônico, escalada
da miséria... Trata-se de um cenário catastrófico que não parece retroceder em curto prazo. Vive-se o
pior momento da história brasileira na atualidade.

Para piorar, nossos mandatários supremos comportam-se como se nada estivesse acontecendo. Nesse
momento, a reaparição de Lula na cena política se apresenta como esperança de dias melhores.
Sua retórica pode ter lavado a alma de muita gente, e reacendido as esperanças de boa parcela de
população. Vivemos um vácuo de liderança e de autoridade na condução dos destinos do país. Mas
infelizmente – salvo se for impedido – Bolsonaro continuará presidente até dezembro de 2022.

Ou seja, ainda estamos longe demais das eleições. Não sabemos nem a anulação dos processos contra
Lula será confirmada pelo STF. Houve virada política no Brasil, mas precisamos continuar
cautelosos.

A extrema-direita se agita de ódio após o discurso do ex-presidente. Segmentos do bolsonarismo


continuam a escalada autoritária, afirmando estarmos próximos do ponto de ruptura (sic!). Talvez
nada tenha sido tentado ainda nessa direção por causa da Covid-19 e pela ação enérgica do STF no
caso Daniel Silveira.

Nesse sentido, Lula é um potencial ameaça para esses setores. Mesmo que Bolsonaro deixe o poder
mais cedo ou mais tarde, a base social do bolsonarismo não irá desaparecer rapidamente. Afinal, a
cadela do fascismo sempre está no cio. Por isso, seria prudente ao ex-presidente cuidar mais de sua
própria segurança.

Lula, com um único discurso, tomou a iniciativa da ação política. E, momentaneamente, parece pautar
o comportamento do presidente. Bolsonaro, de imediato, passou a defender a vacina e usar máscaras.
Resta saber se o petista continuará a pautar o Messias, para o bem da sociedade brasileira.

É notável a reação da grande mídia em relação ao ex-presidente. O maior grupo de comunicação do


país, que dois dias atrás defendia Sérgio Moro, fez uma cobertura ímpar do discurso do líder petista.
Limitou-se a responder pontualmente as críticas e deu grande visibilidade aos temas tratados por Lula
da Silva.

Teremos a partir de agora, motivado pelos ataques que um governo extremista e negacionista desfere
sistematicamente contra a imprensa, um novo patamar nas relações entre a grande imprensa e as
esquerdas. Sobre quais bases? A mídia corporativa abandonará a narrativa em que apresenta a direita
neoliberal com alternativa civilizatória possível contra o bolsonarismo? A conferir...

Por outro lado, o velho sindicalista revelou uma ideia de desenvolvimento muito centrada na indústria
automobilística e no petróleo. Ainda vale apostar em uma agenda nacional-desenvolvimentista?

Lula também acenou para os mercados e para o centro político no melhor estilo conciliador. Discurso
de candidato ou uma espécie de versão 2.0 da Carta aos Brasileiros?

Se não estamos mais em um regime exatamente democrático; se as instituições e a Constituição estão


desfiguradas; se avança a erosão dos princípios republicanos e se destrói o Estado, será possível
resgatar direitos e um ambiente politicamente aceitável dentro das velhas regras da Nova República?
A correlação de forças nos permite hoje vislumbrar algo mais?

Finalmente, a mobilização que se produziu em torno do histórico discurso do ex-presidente deixa


várias questões em aberto. E também existe o risco do campo popular cair em certo sebastianismo
político, esperando que venha do líder do PT a redenção da sociedade brasileira.

Lula apresentou ao país uma plataforma reformista. E talvez seja essa alternativa possível diante do
descalabro que se apresenta. Um governo de união nacional capaz de tirar o Brasil desse atoleiro.
Ainda falta muito tempo até as eleições de 22. Até lá, muita coisa poderá acontecer. Muitas mudanças
podem estar por vir ainda. É preciso manter cautela e observar atentamente o desenrolar dos
acontecimentos

*Jorge Alexandre Alves é sociólogo e professor da Educação Básica. E considera que, apesar das
contradições, Lula é o maior estadista vivo da América Latina.

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