Você está na página 1de 4

1

Texto: A gramática social da desigualdade brasileira | Autor: Jessé Souza


Resenha Crítica
Professor: Elenise Felzke Schonardie
Mestrando: Marco Antonio Compassi Brun

1 RESENHA

O artigo “A gramática social da desigualdade brasileira” traz posicionamentos do


autor Jessé Souza de maneira densa e a partir da incorporação de teorias sociológicas e
filosóficas. Com o intuito de demonstrar que o desequilíbrio extremo existente entre os
povos nacionais é reflexo de hierarquias, práticas culturais e identidade.
Para o autor, há uma ideologia de meritocracia que se fundamenta através de uma
hierarquia social e é naturalizada pelo grupo dominante na sociedade, a ponto de tornar
aqueles que não alcançam esse status “subcidadãos”. Por reconhecimento próprio, visto
que a estrutura estabelecida no pensamento popular se materializa através do desempenho
pessoal, o qual desconsidera as desigualdades previamente existentes.
Assim,

[...] tanto o mercado como o Estado são perpassados por hierarquias


valorativas implícitas e opacas à consciência cotidiana, cuja naturalização, que
a transveste de “neutra” e “meritocrática”, é responsável pela legitimação da
ordem social que essas instituições atualizam. A compreensão dessa “ideologia
espontânea” é fundamental para que possamos perceber a importância do
componente simbólico e cultural na produção social da desigualdade e da
subcidadania, sem apelar para o “essencialismo culturalista”, típico das
abordagens que articulam personalismo, familismo e patrimonialismo, as quais
descuram da articulação entre valores e seu necessário ancoramento
institucional, único vínculo que poderia explicar de que modo valores
influenciam o comportamento efetivo dos agentes (SOUZA, 2004, p. 81).

Para direcionar o trabalho, o autor traz o conceito de self pontual de Charles


Taylor, como noção de que há um ser central que permanece apesar das experiências da
vida. É, portanto, uma nova maneira de ver o sujeito, que também auxilia a forma de
entender as hierarquias sociais que se formam em locais periféricos, como no Brasil.

Essas idéias, germinadas durante séculos de razão calculadora e distanciada e


da vontade como auto-responsabilidade, não lograram dominar a vida prática
dos homens até a grande revolução da reforma protestante. Tanto para Max
2

Weber, como para Taylor, a reforma trouxe à tona a singularidade cultural e a


moral do Ocidente. A revolução protestante impôs no espaço do senso comum
e da vida cotidiana essa nova noção de virtude ocidental. Daí que, para Taylor,
à noção de self pontual deve ser acrescida a idéia de “vida cotidiana”, no
sentido de compreender melhor a configuração moral dominante hoje
(SOUZA, 2004, p. 82).

Esses conceitos de vida cotidiana passam a moldar o mundo contemporâneo


também em esferas particulares, como o trabalho e a família, em espaços em que aqueles
que usufruem do privilégio podem acessar, enquanto os demais são colocados à margem,
sob a justificativa de meritocracia. Ou seja, de que não são reconhecidos socialmente pela
sua falta de desempenho, e não pela herança estrutual de desigualdade social.

Desse modo, dado seu potencial equalizador e igualitário, abriu-se espaço para
uma nova e revolucionária, noção de hierarquia social, baseada no self pontual
tayloriano, ou seja, em uma concepção contingente e historicamente específica
de ser humano, presidida pela noção de cálculo, raciocínio prospectivo, auto-
controle e trabalho produtivo como fundamentos implícitos tanto da auto-
estima como do reconhecimento social dos indivíduos (SOUZA, 2004, p. 83).

Esse novo modelo de hierarquia social é, segundo o autor, perpetuado pela


burguesia. Há uma espécie de máscara colocada na desigualdade, com o fundamento de
que todos são cidadãos, com direitos e deveres e que o reconhecimento e o sucesso social
depende de cada um igualmente, em uma ideologia puramente meritocrática.
Isso silencia quaisquer oposições às heranças desiguais e sociais, pois tem-se que
apenas o sujeito é que pode obter o reconhecimento, através do seu próprio desempenho
diferencial.

Nesse sentido, o desempenho diferencial no trabalho tem de se referir a um


indivíduo e só pode ser conquistado por ele próprio. Apenas quando essas
precondições estão dadas é que o indivíduo pode obter sua identidade pessoal
e social de forma completa (SOUZA, 2004, p. 88).

O autor, a partir dessas concepções, traz o conceito de habitus, desenvolvido pelo


sociólogo Pierre Bourdieu, no qual é incorporado as experiências sociais ao indivíduo,
como gostos, preferências, coportamentos e habilidades. E são tais elementos que
influenciam a posição de cada sujeito na sociedade e que molda as relações estruturais e
de poder.
Por isso que o autor traz, após a noção de self pontual e de hierarquias perpetuadas
de maneira invisível através da ideologia de meritocracia e de desempenho, a vinculação
3

com o habitus. Mais precisamente com o gosto, baseado nas preferências de cada um, que
pode ser fator elementar na legitimização da desigualdade.

Como a distinção social baseada no gosto não se limita aos artefatos da cultura
legítima, mas abrange todas as dimensões da vida humana que implicam
alguma escolha – vestuário, comida, formas de lazer, opções de consumo etc.
–, o gosto funciona como o sentido de distinção por excelência, permitindo
separar e unir pessoas e, conseqüentemente, forjar solidariedades ou constituir
divisões grupais de forma universal (tudo é gosto!) e invisível. [...] mesmo as
escolhas consideradas mais pessoais e recônditas, desde a preferência por
carro, compositor ou escritor até a escolha do parceiro sexual, são, na verdade,
frutos de fios invisíveis que interligam interesses de classe, fração de classe
ou, ainda, de posições relativas em cada campo das práticas sociais. Esses fios
tanto consolidam afinidades e simpatias, que constituem as redes de
solidariedade objetivamente definidas, como forjam antipatias firmadas pelo
preconceito (SOUZA, 2004, p. 85).

Nesse sentido, o autor ainda vai além da teoria de Bourdieu e elabora uma divisão
entre habitus primário e habitus precário. Assim, o segundo é o limite do primeiro. Ou
seja, é onde são alocados os sujeitos – ou a personalidade – que não consegue alcançar os
padrões esperados da sociedade. Logo, não pode ser considerado útil em seus
desempenhos e para integrar o meio social. O que torna necessário retomar os
entendimentos de meritocracia e desempenho.
Essas concepções sociais afastam ainda mais indivíduos de baixa renda e aquelas
à margem das comunidades. Os quais não conseguem desempenhar suficientemente o
que espera o capitalismo e a meritocracia. Isto é, a qualificação, posição e o salário não
estão de acordo com os padrões do que é útil para a soceidade competitiva.

Isso explica por que uma dona de casa, por exemplo, passa a ter um status
social objetivamente “derivado”, ou seja, sua importância e reconhecimento
sociais dependem de seu pertencimento a uma família ou a um “marido”. Ela
se torna, nesse sentido, dependente de critérios adscritivos, já que no contexto
meritocrático da “ideologia do desempenho” não possuiria valor autônomo
(SOUZA, 2004, p. 88).

Em outras palavras, o autor expõe que a sociedade e as hierarquias sociais se


formam com certas pedisposições, que devem ser alcançadas pelo próprio indivíduo, por
mérito e desempenho. No entanto, em momento algum se leva em consideração as
estruturas sociais desiguais que são perpetuada em âmbitos periféricos como o Brasil.
Assim,

[...] em uma sociedade capitalista moderna se o habitus primário implica um


conjunto de predisposições psicossociais que reflete, na esfera da
4

personalidade, a presença da economia emocional e das precondições


cognitivas para um desempenho adequado ao atendimento das demandas
(variáveis no tempo e no espaço) do papel de produtor, com reflexos diretos
no papel do cidadão, a ausência dessas precondições implica a constituição de
um habitus marcado pela precariedade (SOUZA, 2004, p. 89).

Esse modelo que o autor vai chamar de transclassita estabelece, assim, metas de
desempenho de trabalho e de comportamento, que apenas após alcançado pelo indíviduo,
o concedem reconhecimento social. Porém, essa conquista é mascarada pela ideia de
meritocracia. O que, por consequência, faz com que a inadaptação e a marginalização
sejam percebidos como limitações pessoais; e não como barreiras sociais.
Conceitos que, inclusive, transpassam ao próprio tratamento social, eis que são
verificáveis no tratamento jurídico e econômico.

Com certeza, na dimensão infra e ultra jurídica do respeito social


compartilhado socialmente, o valor do brasileiro pobre “não-europeizado” –
ou seja, aquele que não compartilha da economia emocional do self pontual,
criação cultural contingente da Europa e América do Norte – é comparável ao
que se confere a um animal doméstico, o que caracteriza objetivamente seu
status subhumano (SOUZA, 2004, p. 91).

Por toda essa exploração, o autor reflete ser imprescindível reproduzir tais
conceitos de self pontual e habitus – inclusive suas divisões – para compreender o
fenômeno de naturalização das desigualdades sociais.
Com isso, Jessé Souza enfatiza a importância de compreender essas dinâmicas
para promover mudanças efetivas na sociedade brasileira, com o objetivo de construir
uma nova narrativa que desafie a "gramática social" da desigualdade e promova a justiça
social e a igualdade de oportunidades.

2 REFERÊNCIAS

SOUZA, J. A gramática social da desigualdade brasileira. Revista Brasileira de


Ciências Sociais, São Paulo, 19, n. 54, 2004. 80-96. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/s9LNmXtYm6KRFPJxwmrvwPq/?format=pdf. Acesso
em: 08 jun. 2023.

Você também pode gostar