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Polyana Muniz

Polyana Muniz
Capa e Ilustrações
Evelyn Duerre

Texto
Polyana Muniz

Edição e Montagem
Polyana Muniz

Pesquisa Iconográfica e Imagens


Polyana Muniz

Revisão
Profª. Drª. Adriana Zierer

Esta obra foi elaborada como produto educacional do Mestrado “Tem os que passam/e tudo se passa/com passos já passados/
Profissional em História/PPGHIST da Universidade Estadual do tem os que partem / da pedra ao vidro/ deixam tudo partido/ e
Maranhão/UEMA, sob orientação da Profª. Drª. Adriana Maria tem, ainda bem, / os que deixam/ a vaga impressão/de ter ficado”.
de Souza Zierer. Reitera-se ainda que esta pesquisa foi finacia- (Alice Ruiz)
da pela Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-graduação/PPG-UEMA.

Muniz, Polyana de Fátima Magalhães.

Damas e donas: mulheres sobrenaturais na Idade Média. / Polyana de


Fátima Magalhães Muniz. – São Luís, 2020.
62.; il.
Produto Educacional da Dissertação Os Livros de Linhagens e os Contos
Melusinianos: as representações femininas em Portugal no século XIV.
Orientadora: Profª. Drª Adriana Maria de Souza Zierer
1. Ensino de História. 2. Gênero. 3. Portugal Medieval. I. Título
CDU 821.134.3.09

Elaborado por Reyjane Mendes - CRB 13/679


Sumário
Apresentação______________________________________ 9
Introdução________________________________________ 10
A esposa sobrenatural e a linhagem exemplar_________ 14
Fadas, serpentes & sereias__________________________ 28
A mulher medieval portuguesa______________________ 40
Netas de bruxas___________________________________ 50
Considerações Finais_______________________________ 58
Glossário_________________________________________ 59
Referências _______________________________________ 60
Apresentação

O que era ser mulher durante um período como a Idade Média?


Será que tem relação com bruxas, castelos e vestidos longos? E as
armaduras, as espadas? Era ser livre ou viver presa? Era trabalhar?
Fora ou dentro do ambiente doméstico? Era igual ou diferente do
que é ser mulher hoje? Afinal, o que é ser mulher? Ou homem?
Imaginamos um monte de coisas diferentes sobre tudo isso.
Como indivíduos e como sociedade! Não só por razão do
lugar de onde viemos – da religião, das leituras, dos exemplos
que temos – mas também pelo tempo histórico que vivemos
e que nos separa do passado – próximo e distante de nós.
Você consegue dizer o nome de alguma mulher
importante que viveu na Idade Média? Como ela vivia?
O que ela fez? Se você não souber, não se preocupe.
O primeiro passo é questionar: onde estão as mulheres
do passado? Como posso saber mais? Mas saber sobre
elas pode nos ajudar em alguma coisa? Perguntem
a si mesmos sobre isso. É assim que começamos.
O segundo passo é investigar. Juntar evidências, imagens,
documentos, exemplos. Onde podemos achá-los?
Eu tenho algumas ideias, mas tudo começa com um encontro...

A autora.

9
Introdução

A
Idade Média, embora seja um período O historiador italiano Umberto Eco nos aju-
histórico que ocorreu há séculos, ainda da a compreender o que a Idade Média NÃO é:
é bastante presente nos dias de hoje. Não é um período exclusivamente Europeu :
Podemos encontrar vestígios e referências Ocidente e Oriente e suas diversas culturas (árabe,
desse tempo nas obras literárias, nos jogos, bizantina, hebraica, cristã, germânicas, célticas)
nas novelas e séries de TV, nos filmes e quadrinhos que estavam em constante troca, conflitos e contatos.
consumimos. Na arte, nas músicas, no teatro, na moda!
No entanto, toda a produção feita no presente sobre a Idade Não é um século:
Média parte de um olhar distante e influenciado pelo que o período medieval, segundo a divisão tradicional europeia,
gostamos e fazemos hoje. Dessa forma, os julgamentos feitos inicia-se no século V e termina no século XV. São 10 séculos
sobre esse tempo, como época de trevas e escuridão, foram de muitos acontecimentos, culturas e modos de vida. Não é
criados por pessoas que viveram depois do período medieval. possível resumir muitos anos de história em poucas definições.
Portanto, para saber como as mulheres viviam e como se
relacionavam devemos levar em consideração as mudanças
e movimentos históricos de um longo período do passado.

Não é uma Idade das Trevas:


as características mais negativas que associamos a Idade Média,
como a fome, o fanatismo religioso, guerras e pestes podem ser
utilizadas para descrever quase todos os períodos da história
humana. A tecnologia, a cultura e a arte medieval foram diversas
e complexas. Desse modo, nosso trabalho de pesquisa e
reflexão deve ser feito com cautela e responsabilidade científica.

Onde estão nossas fontes? Por onde começar?

10 11
Muito prazer, sou ...

Christine escrevendo em sua biblioteca. 1413, British Library, Harley, 4431, folio 4.
Christine de Pizan (1364-1430)
A italiana Christine de Pizan é um grande exemplo
de mulher medieval que merece reconhecimento: após
se tornar viúva, encontrou na escrita um meio de
sustento. Autora, editora e publicadora de obras, ela
pode ser considerada a primeira mulher que se tornou
escritora profissionalmente no Ocidente. Ela produziu
mais de 40 obras! Elas tinham temas diversos, que iam
desde tratados filosóficos e políticos a textos voltados
a defesa das mulheres e suas virtudes. Quem disse que
escrever não é coisa de mulher? 13
A esposa sobrenatural
e a linhagem exemplar

I
magine que você se encontra em uma grande biblioteca.
Por todos os lados que olhar, você verá estantes altas com
muitos livros, pergaminhos e artefatos curiosos. Você não
sabe quão antigo é esse lugar, e pelo que você consegue
notar o espaço se estende por muitos e muitos metros.

Próximo de você há uma mesa cheia de livros, cartas e outras


anotações. Há símbolos difíceis de decifrar, escritos em diferentes
línguas e formatos. Um dos livros chama a sua atenção, mesmo
que coberto por uma fina camada de poeira.

Ele é grande e pesado. Sua capa de couro com enfeites de metal


dourados já apresenta alguns sinais de envelhecimento, mas
ainda impressiona pelos detalhes do trabalho manual. A quem
pertenceria um livro tão rico?

Você decide abri-lo com cuidado, pois ele parece frágil.

Na página que abriu é possível ler:

Livro de Linhagens do Conde D. Pedro. III conde de Barcelos, 1314-1354; João Rodrigues de Sá e
Meneses, 1461-1576. Livraria da Alcobaça, 1601- 1700. Cota antiga: CDLXVIII.
14 15
O Livro de Linhagens do Conde D. Pedro é uma importante Durante a Idade Média esse tipo de registro foi utilizado para
fonte histórica sobre a região ibérica (onde hoje estão os países comprovar o merecimento e prestígio das linhagens de famílias
Portugal e Espanha) ambientada nos séculos XIII ao XV, ou seja, nobres. Portanto, não eram todos os homens e mulheres que
no período da Baixa Idade Média. Essa obra foi produzida entre as tinham seus nomes escritos em livros genealógicos. Esse era um
décadas de 1340 a 1380. modo de identificação da nobreza. Por isso, esses livros também
ficaram conhecidos como nobiliários, registros do patrimônio,
Ele é um tipo de registro genealógico. A genealogia é o estudo títulos e símbolos (brasão, sobrenome, hierarquias) da nobreza
da história das famílias, das relações entre os indivíduos e seus de uma região.
parentes, próximos ou distantes. A partir da “árvore genealógica” Muito mais do que uma listagem de nomes, o Livro de Linhagens
você pode saber mais sobre a história de sua família. do conde d. Pedro relata diferentes temas religiosos, morais,
anedotas, histórias e lendas. Diversas informações e temas foram
Você já fez a árvore genealógica da sua família? retirados de outros livros e fontes, além de serem inspirados em
histórias que circulavam oralmente.
Até a invenção da prensa, no século
Minha linhagem XV, todos os “livros” existentes
eram manuscritos, ou seja, feitos a
#DESAFIO
GENEALÓGICO mão. A maior parte dos usuários e
Conversando com as leitores eram homens e mulheres
pessoas da sua família, de instituições religiosas, conventos
pesquisando na ou mosteiros. muitos livros eram
internet ou no arquivo escritos em latim, um idioma que
público de sua cidade, nem todos falavam. Uma pessoa
você pode fazer a sua
para possuir um livro tinha que ser
genealogia.
Colete os nomes muito rica. Ter um livro enquanto
dos seus parentes e indivíduo era muito caro e
aprenda mais sobre incomum, pois era considerado um
sobre o seu grupo Detalhe da capa do Livro de Linhagens, objeto de luxo.
desenhando a árvore edição de 1601-1700. Livraria de Alcobaça.
16 17
que os representa.
V
O que podemos descobrir sobre as mulheres medievais nesse ocê consegue
Livro de Linhagens? Ao folheá-lo você se depara com essa passagem: compreender
essas frases? Elas
VOCÊ CONSEGUE LER O QUE ESTÁ ESCRITO? estão escritas
em galego-português, a
linguagem utilizada na
Idade Média nas regiões
de Portugal e Galiza. Esse
idioma se destacou por
ser utilizado nas poesias
trovadorescas, importante
expressão literária medieval.

Esse interessante livro contém duas narrativas bastante


curiosas onde podemos encontrar personagens femininas, A
Dama do Pé de Cabra e a Dona Marinha.

A primeira conta a história de origem da família Haro, que


eram senhores da região da Biscaia. Essa região estava sendo
disputada pelos descendentes da família e o rei de Castela no
início do século XIV.

A segunda, Dona Marinha, é descrita como fundadora da família


dos Marinhos, da região portuguesa da Galiza, próximo do mar.
aconteceo. E prossegue o linhagem dos senhores que foram de Bizcaia”. Vejamos:
casou com ele com condiçom que nunca se benzesse, e do que lhe com ela
Froom, e como casou com ua molher que achou andando a monte, a qual
Resposta: “De dom Diego Lopez, senhor da Bizcaia, bisneto de dom

18 19
A Dama do Pé de Cabra

E Q
ste Dom Diego Lopez era muito bom uando comiam juntos Dom Diego
cavaleiro, e estando um dia com sua Lopez e sua mulher, sentava ele per-
armada enquanto caçava um por- to do filho e ela, sentava-se do outro
co, ouviu uma mulher cantar em voz lado perto da filha. Um dia ele caçou
alta em cima de um monte. E ele foi para lá em suas terras um porco muito grande e trou-
e achou-a muito formosa e muito bem vesti- xe para casa para o comer com suas mulhe-
da, enamorou-se dela muito fortemente e per- res e filhos. Ele lançou um osso da mesa para
guntou-lhe quem era. os cachorros, um macho maior e uma fêmea
Ela lhe disse que era uma mulher de muito menor, que começaram a brigar. A fêmea tra-
alta linhagem. E ele lhe disse que se sendo de vou o cachorro na garganta e o matou. E Dom
alta linhagem ele se casaria com ela se ela qui- Diego Lopez quando viu, achou que fosse um
sesse, pois era senhor daquela terra toda. milagre e se benzeu, dizendo: “Valha Santa
Maria, quem viu jamais tal coisa!”
E ela lhe disse que o faria se ele prometesse
que nunca mais se santificasse, e ele aceitou, Sua mulher, quando o viu se benzer, pegou
assim ela foi junto com ele. Esta dona era mui- na mão da filha e do filho, e Dom Diego Lo-
to formosa e muito bem feita em todo corpo, pez agarrou o filho e não quis deixar tomar.
salvo que tinha um pé forcado, como um pé Ela fugiu com a filha por uma janela da casa
de cabra. E assim viveram grande tempo e e foi para as montanhas, e não a viram mais,
tiveram dois filhos, um de nome Enheguez nem à filha.
Guerra e outra que foi uma mulher de nome
‘dona’.

20 21
A Dona Marinha

O U
primeiro foi um cavaleiro bom de m dia mandou fazer uma grande
nome Dom Froiam, que era caça- fogueira em sua casa, e ela vindo
dor e cavaleiro. Andando um dia com seu filho consigo, filho que
em seu cavalo pelas margens da amava com todo seu coração. E
praia achou uma mulher marinha dormin- Dom Froiam pegou o filho seu e dela, e fez
do na ribeira. Quando ela os percebeu, ele e como se fosse jogá-lo no fogo. Ela, com rai-
mais três escudeiros seus, tentou se escon- va, esforçou-se para gritar e com o esforço
der no mar, mas eles a perseguiram e a for- cuspiu um pedaço de carne de sua boca, e
çaram antes que ela fugisse. Depois que a dali em diante falou. E Dom Froiam a rece-
prenderam, os homens a colocaram em um beu como mulher e se casou com ela.
cavalo e a levaram para casa.
E ela era muito formosa e ele a batizou com
um nome muito apropriado: Marinha, pois
ela saíra do mar. Assim foi posto, e a cha-
maram de dona Marinha. Ele teve filhos
com ela, dos quais um chamou João Froiaz
Marinho.
E esta dona Marinha não falava coisa algu-
ma. Dom Froiam amava-a muito e tentou
de várias formas a fazer falar.

22 23
É
uma tradição dos seres humanos registrar as memórias
de seus antepassados, da sua comunidade, as origens
e os acontecimentos importantes. O que muda é a
forma com que fazemos isso: gravamos em pedra, em
canções, em livros, nas narrativas dos mais velhos, em pinturas,
R e s p o n da : diários ou postando uma foto nas redes sociais. Lembrar é
importante para nós!
A partir da leitura dos contos da Dama do Pé de Ca-
bra e Dona Marinha, responda as questões abaixo: Então, o que as pessoas que viveram no passado escolheram
registrar é algo muito significativo sobre elas! Isso nos diz o que
elas consideravam importante salvar e o que preferiam esconder.
1)Quem são os personagens desses contos?
Nas duas histórias que encontramos, A Dama do Pé de Cabra e

2)Quais são as características da Dama do Pé de Cabra? E Dona Marinha, duas figuras femininas sobrenaturais se casam
de dom Diego Lopez? com homens mortais, senhores e cavaleiros de suas terras.

Não é incomum a utilização de figuras míticas e lendárias como


3)Quais são as características da Dona Marinha? E de dom tentativa de elevar o status de uma pessoa ou um grupo.
Froiam?

4)O que esses dois contos possuem em comum? Em que


aspectos eles são diferentes?
Se as figuras sobrenaturais
femininas elevam a família de seus
maridos, o que isso pode nos dizer
#desafio on line: sobre a condição das mulheres
medievais?
Nem sempre conseguimos achar uma imagem ou pintura de
mulheres históricas. A historiadora Michelle Perrot assim de- Se você tivesse a chance, que figura
mítica ou sobrenatural escolheria
finiu a presença feminina no passado: “No teatro da mémoria, para ser a fundadora de sua
as mulheres são uma leve sombra”. Essa frase faz sentido para família?
você? Faça um desenho, montagem, colagem ou pintura com
a sua leitura da Dama do Pé de Cabra ou Dona Marinha e
poste nas suas redes sociais com a hashtag #damasedonas.
Detalhe de pintura da Rainha Margareth da Escócia (1456-1486),
Hugo Van der Goes, 1440-1482.

24 25
Muito prazer, sou ...

Retrato de Hildergarda de Bingen no Codex des Liber Scivias

Hildergarda de Bigen (1098-1179)


Dentre as mulheres notáveis que viveram durante a
Idade Média, você conhece Hildegarda de Bingen?
Ela foi uma monja beneditina, mística, teóloga,
compositora, pregadora, naturalista, médica informal,
poetisa, dramaturga e escritora alemã. Ela é uma santa
e doutora da Igreja Católica. Isso é que ser multitarefas!
Que tal pesquisar mais sobre ela?
Você consegue citar outras mulheres importantes para
o mundo religioso?
26 27
Fadas, serpentes & sereias Os contos melusinianos

A
s lendas presentes no Livro de Linhagens foram 1. Encontro
identificadas como versões de um mesmo mito, Homem mortal encontra uma mulher misteriosa
que chamamos de mito de Melusina. Que mito é e bela em um espaço natural: floresta, montanha
esse?! Ele pode ser resumido assim: o encontro e o etc. próxima a uma fonte, rio, meio aquático. Ele
casamento entre um homem mortal e um ser sobrenatural, que se encanta pela sedutora figura.
através de um pacto lhe fará próspero em poder e descendentes. 2. Proibição/Pacto
No entanto, o pacto é quebrado e a esposa sobrenatural vai O homem apaixonado faz um pedido de casa-
embora. mento, que só é aceito diante de uma condição
proibitiva. No exemplo mais famoso, a Melusina
Esse conto foi adaptado em diferentes contextos regionais da francesa, o marido não deve olhá-la no banho,
Europa, variando alguns detalhes, mas sempre mantendo o pois é quando ela assume sua forma monstruosa.
mesmo enredo: 3. União e Prosperidade
A união gera filhos e grandes
poderes à linhagem que
acolheu a dama misteriosa.
4. Desobediência
O marido, por fim, tende
a desobedecer o pacto
e faz a ação proibida.
5.Desaparecimento
A mulher assume suas
formas originais e vai
embora, as vezes levando
embora tudo o que deu
O segredo de Melusina descoberto, do O Romance de Melusina de Jean d’Arras, 1450–1500. Biblioteca Nacional da França.
ao marido.
Rainha serpente. Padre Ulmannus, Livro da Santíssima Trindade,
Franconia,1470. (Munique, Bayerische Staatsbibliothek, Cgm 598, fol. 78)

28 29
A Serpente
A mulher-pecado é represen-
tada por uma serpente, cau-
sadora da destruição do ho-
mem. Os mênstruos, impuros,
foram associados ao veneno

P
das cobras, capazes de enve-
nenar. As serpentes são ani-
odemos explorar algumas das imagens e símbolos que mais complexos, conectadas
são comuns a essas lendas, formados no imaginário aos diferentes elementos na-
turais, fogo, água, terra e ar.
da Idade Média e transformadas em literatura. Além da relação com a história
A natureza, enquanto força incontrolável e da criação cristã, as serpentes
aparecem em outras mitolo-
misteriosa, foi comumente associada ao feminino: fértil, gias e culturas representando
irracional, maternal, provedora. Essa relação nos contos o conhecimento do futuro,
dos mistérios do universo etc.
é feita de diversas formas. Essas mulheres, fadas, são É um animal que retrata a sa-
seres híbridos, isto é: metade humana, metade animal. bedoria, a renovação da vida e
o equilíbrio entre os opostos. Detalhe da impressão de O Romance de Melusina,
impressão de Philippe Le Noir, Paris, 1525.

Elas podem ser metade serpente, dragão, sereia e A Sereia


no caso português, ter os pés de cabra. No mundo As damas sobrenaturais estão associadas as sereias: seres aquáticos,
que usam sua voz musical para seduzir. Elas representam, na mitologia
medieval, um ser híbrido não era bom sinal, o grega, uma armadilha mortal. No medievo, elas estão associadas
que podia representar forças malignas e o pecado. à vaidade e à luxúria, sempre de cabelos soltos e seios desnudos.
No entanto, essa criatura é muito comum em diversas culturas e
podemos achar equivalentes aqui no Brasil: a Iara, senhora dos rios.
A cabra
O sobrenatural e o extraordinário, o estranho e até o
A cabra é animal
monstruoso eram temas comuns na preocupação dos simbolicamente traduzido
intelectuais na Idade Média. Mirabilia, o maravilhoso, como demoníaco. Assim
é uma categoria que representa a coleção de seres, como o bode, foi associada à
luxúria e à servidão ao Diabo.
fenômenos, objetos, associados ao dominio divino Para o cristianismo medieval,
ou demoniaco que estavam na fronteira do natural. são animais impuros, signos
As atitudes da sociedade cristã em relação ao da maldição. Associados à
fecundidade e a deuses como
maravilhoso mudaram ao longo da Idade Média, Pã, Dionísio e Thor, possuíam
passando da repressão ao que era pagão (não-cristão) pesos simbólicos diferentes
ao florescimento de temas e culturas influenciadas nas culturas da Antiguidade.
pelo maravilhoso (LE GOFF, 2017)
Sereia . Ms. Ludwig XV 3, f.
78, J. Paul Getty Museum.

30 31
O
casamento com as damas sobrenaturais, descrito
no Livro de Linhagens, expõe o poder do senhor da
terra de controlar a natureza do local que buscava
dominar. A apresentação inicial do marido nos
contos acontece em meio a uma caçada.
Do ponto de vista do homem medieval, as características (sobre)
naturais causavam mistérios e temor. O desconhecido é sempre
assustador. Portanto, a origem misteriosa pode significar poderes
demoníacos.
As mulheres eram um enigma: maternidade, menstruação, sua
sexualidade, experiências que o homem, e principalmente os
clérigos, não compreendiam.
Nessa concepção, o mundo natural deveria servir ao homem
(provendo-lhe alimento, matéria-prima e moradia, visto que
na hierarquia divina ele foi encarregado por Deus de cuidar de
tudo e todos). Isso inclui as mulheres, consideradas inferiores e
representantes de uma força inquietante.
As esposas sobrenaturais tinham, então, um poder ambivalente,
ou seja, de vários sentidos, duvidoso.
Um fator importante nos contos é realçar a beleza e a alta
linhagem das damas: isso autorizada um homem nobre a lhe
propor casamento. Assim, a linhagem da família será igualmente
poderosa.
Nas versões portuguesas, não sabemos os nomes das esposas
sobrenaturais. Seus papéis estão ligados, assim, a elevar a
importância dos senhores e de seus filhos: deles sabemos quem
são. Não podemos deixar de considerar, portanto, os usos
A dama do Pé de Cabra, por José Garcês, (Tintin, 1980.) políticos de lendas e mitos dessa natureza.

32 33
Modelos femininos na Idade Média

A
s narrativas literárias são fontes históricas valiosas:
podemos entender melhor sobre a mentalidade
daquela sociedade, o modo como as pessoas se
enxergam e se representam e as relações sociais
#desafio literário: daquele contexto.
Agora que você conhece o enredo que caracteriza os contos
Isso não significa que essas informações definam um povo
melusinianos, pode criar a sua própria versão na forma que
em um período histórico, pois é necessário que consideremos
quiser (texto em prosa, poesia, música, quadrinhos):
outros fatores: a intenção do autor, o contexto em que a obra foi
produzida, as influências que teve etc. O olhar crítico nos ajuda a
Você pode mudar os nomes, o local e até quando a
estudar melhor nossas fontes e documentos.
história acontece.
A sociedade medieval, de modo geral, foi marcada pelo olhar
Lembre de incluir uma proibição/condição.
e valores masculinos. As sociedades humanas possuem formas,
Qual será o poder da mulher?
crenças e leis diferentes sobre as definições de ‘homem’ e
Que animal ela representará?
‘mulher’, e a perspectiva medieval foi especialmente importante
Ela ficará ou irá embora no fim da história?
para o mundo Ocidental.
Em a Dama do Pé de Cabra e em Dona Marinha encontramos dois
#pesquise:
modelos de comportamento feminino: uma é independente, tem
Quais são as figuras mitológicas femininas da cultura voz ativa e propõe pactos. A outra é muda, é controlada e forçada
do seu estado? Qual a origem dessas lendas? pelo marido a se cristianizar.
Qual dessas lendas possui uma origem medieval?

34 35
Duas representações femininas prevaleceram na Idade Média:
Maria, a redentora x Eva, a pecadora.

Observe os elementos e oposições da imagem ao lado do quadro

comparativo: de que modo essas representações afetavam as

mulheres na Idade Média? Esses modelos de conduta ainda

estão presentes em nossa sociedade? De que modo? Em que

ambientes? Justifique sua resposta.

Um dos modelos mais disseminados da figura feminina na

contemporaneidade é aquele da bruxa. No fim da Idade

Média e começo da Idade Moderna é publicado por dois

padres dominicanos o livro Malleus maleficarum (O martelo

das feiticeiras), em 1486. O manual servia para que outros

pudessem identificar a feitiçaria e tinha em seu discurso altas

doses de misoginia: mesmo que existissem feiticeiros, os


Árvore da vida ladeada por Maria e Eva. Missal de Salzburgo, 1480. Biblioteca culpados seriam, antes de tudo, as mulheres (SCHMITT, 2017).
Estadual da Baviera, Munique, Alemanha.
Comuns em várias mitologias e culturas da humanidade, as
Mulher Má Mulher boa bruxas passaram a representar aspectos anti-cristãos no contexto
Sedutora, diabólica, maliciosa Casta e pura (virgem)
medieval. Enquanto figura mítica e símbolo podemos comparar
Audaciosa, curiosa, tagarela Silênciosa, tímida, modesta
as feiticeiras as as esposas sobrenaturais. O que você acha que
Exibida, fofoqueira, sai nas ruas Se guarda em casa, no ambiente
enfeitada doméstico e privado elas têm em comum? As imagens de mulhers bruxas mudaram
Excessiva, ambiciosa, rebelde Virtuosa, submissa, religiosa
ao passar do tempo. Quais são as características da bruxa? Ela se
Má esposa, infiel, infértil Boa esposa, fiel, boa mãe
parece mais com qual modelo de conduta apresentado?

36 37
Muito prazer, sou ...

Representação de uma rainha portuguesa. Óleo de José Malhoa (1855-1933), Museu José Ma-
lhoa

Leonor Teles (1350-1405)


Uma das mulheres mais polêmicas da história
medieval portuguesa, Leonor Teles foi rainha regente
de Portugal após a morte de seu marido, D. Fernando.
Descrita pelos relatos da época como uma mulher-Eva,
Leonor participou ativamente das decisões políticas
e demonstrou um poder que não era bem visto nas
mãos de uma mulher. Por conta disso, se envolveu nas
disputas do trono português que levaram uma nova
dinastia ao poder, a dinastia de Avis, em 1385.
38 39
O jurista italiano Francesco de Barberino (1262-
A mulher medieval portuguesa 1348) escreveu uma obra chamada Reggimento
e costumi di donna (Regimento e costumes da
mulher), onde ele classifica as mulheres em

A
diferentes categorias: meninas e moças em
idade de casamento, mulheres que são mais
maioria dos documentos medievais que temos
velhas que os maridos, as que casam tarde e
acesso foram produzidos por homens e, portanto, as mulheres casadas. Isso se detalha conforme
temos de perceber que as visões e descrições sobre a origem da família: reis ou imperadores,
nobres e cavaleiros, juízes ou médicos, Aponte a câmera do
as mulheres não são neutras.
mercadores ou artesãos, camponeses e simples celular e leia esse
Os modelos de comportamento esperados para o gênero feminino trabalhadores, as viúvas. As mulheres que código de barras para
praticam vida religiosa, freiras, reclusas, damas acessar um vídeo que
não significam, simplesmente por existir, que eram cumpridos demonstra como era o
de companhia ou criadas, amas e servas. Além
totalmente. Na verdade, a mulher perfeita, Maria, mãe de Cristo processo de se vestir no
disso, inclui as barbeiras, padeiras, vendedoras
século XIV. Inspirado
era um modelo idealizado e impossível de alcançar. de frutas, tecedeiras, moleiras, vendedoras de
nas imagens do Saltério
aves de criação, mendigas, hospedeiras, mas
Desse modo, devemos considerar a pluralidade de mulheres de Lutrell, a companhia
exclui as prostitutas, por não as achar dignas Crowseye Productions
que existiram na Idade Média, um longo período histórico. O de menção. (CASAGRANDE, 1990, p. 103) encenou o processo
feminino não é singular. A experiência feminina muda conforme diário de se vestir
enquanto mulheres.
a classe social, a etnia, a cultura e a religião, com o nível de
escolaridade e é claro, com o tempo. Alternativamente, é
possível acessar o link:
rebrand.ly/85rhx4d

Observe o quadro ao
lado: ele retrata uma
cena privada, um parto.
Esse foi, por muito
tempo, um ambiente
exclusivamente
feminino. Essa imagem
cotidiana contém três
Mulheres tecendo lã. Saltério de Lutrell, 1325-1340. British Library, f. 193r. mulheres de condições
sociais diferentes.
Uma senhora rica, sua
serva e a parteira.
Que aspectos as
difereciam?
40 O nascimento de Maria. Altar de Eggelsberger, pintura 41
sobre madeira, 1481.
As mulheres medievais na região ibérica

Na Idade Média ibérica as mulheres cristãs, mulçumanas e judias


viveram por séculos na mesma região, no sudoeste da Europa.
Em 711 a expansão árabe chegou à região ibérica, e por oito
séculos ocuparam o território europeu. A chamada Guerra da
Reconquista da ‘Ibéria Mulçumana’ (Al-Andaluz) foi um conflito
longo entre os islâmicos e os cristãos pelo território ibérico,
que causou grandes deslocamentos populacionais, afetando as
mulheres em especial.
Por volta de 1300 a península comportava 5 reinos: Castela,
Aragão, Portugal, Navarra e Granada (território mulçumano).
Em 1492 o último território mulçumano foi tomado pelos cristãos. Mapa mostrando a extensão do califado de Córdoba por volta do ano 1000. Alexandre Vigo

Al-Andaluz foi um reino de religião islâmica e de cultura árabe.

Os cristãos ibéricos dentro do território andaluz podiam manter

sua religião e costumes, e ficaram conhecidos como moçárabes.

A cultura árabe era rica em saberes científicos, filosóficos e

artísticos. A presença dos mulçumanos na Península Ibérica

influenciou a cultura ibérica, inclusive emprestando algumas

palavras à língua portuguesa.

Saída da família de Boadbil da Alhambra. Manoel Gómez-Moreno Gonzalez, 1880.


Boadbil (1459-1533), foi o último rei mulçulmano de Granada.
Essa pintura retrata a cena da família do rei abandonando o
palácio depois da tomada da cidade pelos reis católicos em 1492.
42 43
A M
ssim como na cultura cristã medieval, as mulheres esmo que sujeitas às leis proibitivas, às
islâmicas do Al-Andaluz deveriam ser recatadas, recomendações morais e religiosas e às diversas
obedecer aos seus maridos. Seus principais deveres violências, as mulheres eram ativas socialmente.
e tarefas eram resguardados ao ambiente doméstico. Grande parte dos trabalhos realizados no campo,
A tentativa de controle sobre o corpo, da sexualidade e das ações nas cidades e até mesmo dentro do ambiente doméstico, eram
femininas na Idade Média tem ligação com as linhagens. Era feitos por mulheres. Essas funções podiam ser administrativas,
preciso ter certeza que ela seria fiel e geraria bebês dentro do além do papel de educadora das filhas e filhos.
casamento. As mulheres medievais, em especial as religiosas (freiras, monjas,
Isso tinha como objetivo garantir a continuação da linhagem abadessas) e as damas da nobreza (portuguesas e árabes), também
patrilinear, ou seja, do pai – do homem. Aos poucos isso foi foram ativas intelectualmente: escreviam poesia, liam livros,
afetando a organização das famílias: em vez de todos os filhos patrocinavam as artes. Temos notícias de mulheres médicas e até
e filhas dividirem o patrimônio, só o primeiro filho homem professoras em universidades.
teria direito aos bens de seu pai. Essa realidade, no entanto,
era praticada pelas famílias da nobreza e da burguesia, ou seja,
aquelas que tinham poder econômico.
Ainda vemos resquícios disso em nossa sociedade, afinal é
comum que recebamos o nosso sobrenome pelo lado paterno –
estamos continuando a linhagem masculina.

Detalhes das margens de mulheres caçando coelhos. Saltério da Rainha Maria, 1310-1320, Royal MS B VII, f.
155v.
Mulher de véu ajudando a trançar o cabelo de outra, com espelho e pente. Saltério de
Lutrell, 1325-1340. British Library, f. 63r
44 45
A vida da mulher
comum, seja de
qualquer estrato da
sociedade acontecia
principalmente na
esfera privada. As
mulheres, inclusive
as mais ricas,
# D E S C R E VA
estavam ausentes
Escolha um de seus filmes, livros, novelas ou
das assembléias das jogos favoritos ambientados/inspirados no
cortes, pois não havia período medieval. Prepare um texto contando
nomeação feminina o enredo, os personagens principais e
explique de que forma essa obra se aproxima
para esse tipo de
ou se distancia da Idade Média histórica.
cargo. A historiadora
Manuela Santos Silva
Mullheres vendendo pão e manteiga no manuscrito Tacuinum Sanita-
tis, tradução de um tratado árabe. Biblioteca Nacional da França. nos conta que a casa
P ro b l e m at i z a n d o :
deveria ser o único
Você sabe o que significa as palavras
palco aceito e nela, sexismo, misoginia, feminicídio? Aponte sua
as mulheres tinham camera para o código abaixo ou acesse o link
ampla liberdade de para assistir o vídeo do canal Nerdologia,
que trata das questões mais urgentes da
ação.
violência contra as mulheres. #ficaadica
Embora não tenhamos
muitos registros sobre
as mulheres mais
pobres, sabemos que
a mulher trabalhava
ao lado do homem nas
empresas familiares,
como artesãs,
comerciantes ou nas
https://youtu.be/cpnJ4psOoZc
atividades camponesas.
Homem e mulher com baldes na cabeça. Saltério de Lutrell, 1325-
1340. British Library.
46 47
Muito prazer, sou ...

O espião Zambur leva Mahiya para Tawariq. Detalhe de uma página do livro Hamzanama,
1570, Metropolitan Museum of Art, Nova York.

Fatima al-Fihri (800-880)


Nem todos conhecem o nome de Fatima, mas o legado
dela é muito importante. Essa mulher mulçumana
recebe o crédito de ter fundado a mais antiga
universidade do mundo, em 859 d.C. no Marocos. Não
bastava esse feito, a Universidade de al-Qarawiyyin
ainda continua funcionando! Pesquise mais sobre as
mulheres mulçumanas e sua incrível cultura.

48 49
E
Netas de bruxas nquanto seres sociais, aprendemos a nos comportar de
acordo com o que nos é ensinado por nossa família,

T
por nossa escola e é claro, com as demais pessoas que
odas as sociedades humanas possuem suas próprias nos relacionamos. Dessa forma, a concepção de gênero
crenças do é ‘ser mulher’ e ‘ser homem’. No medievo está ligada aos parâmetros da sociedade, de nossa identidade
essas concepções eram criadas principalmente a partir pessoal, e não somente do sexo biológico que nascemos. Como
das visões religiosas e morais, presentes nas culturas podemos verificar essas diferenças nos períodos históricos?
cristãs, judaicas e mulçumanas.
divisão sexual do trabalho:
As divisões e oposições entre os gêneros feminino e masculino o que é trabalho de ‘homem’ e de ‘mulher’?
não são “naturais”, elas são construídas socialmente. Nós não Existem leis específicas que proíbem a ação
nascemos sabendo como ser um homem ou uma mulher. Nós feminina?
aprendemos, assim como aprendemos a falar português, ou a As mulheres podem escrever/julgar as leis?
andar. Elas têm acesso à educação formal (escola,
universidades)?
Alguns desses jogos se
praticam a cavalo [...] Há divisão dos espaços e esferas
outros que se praticam a
pé [...] Há ainda outros
sociais:
jogos que se praticam Quem está visível e invisível? Em que
sentados como o xadrez,
tábulas, dados e muitos lugares é proibido ir por ser homem
outros jogos de tabuleiro. ou mulher? Quem ocupa os ambientes
E ainda que todos esses
jogos sejam muito bons, públicos e privados?
cada um no seu lugar
Comportamentos e deveres:
e tempo adequados, os
que se jogam sentados Como devem se vestir? Se comportar? O
são cotidianos e podem
ser realizados tanto de
que lhe é permitido fazer sozinho (a)?
noite como de dia, como Relações de poder e hierarquia:
podem também ser
praticados pelas mulheres qual a relação entre homens e mulheres?
- que não cavalgam Quem é considerado inferior ou superior?
e ficam em casa (...)
(Libro del Acedrex Como essas questões se relacionam com
de D. Alfonso, o
outras hierarquias sociais como etnia,
Sábio,1221-1284, rei
de Leão e Castela.) orientação sexual, classe social?
Detalhe do Codex Manesse de um casal jogando xadrez
Cada sociedade/período histórico vai construir uma concepção
(c. 1305-1315), UB Heidelberg, Cod. Pal. germ. 848, fol. 13r diferente sobre esses elementos. Essas relações envolvem tensões e
. conflitos, violências, negociações e trocas.
50 51
As mulheres sobrenaturais no presente

A história do mito de Melusina foi encontrada em diversos


lugares em diferentes épocas históricas. Em cada contexto, os
temas do casamento e do sobrenatural são adaptados conforme
o desejo do autor(a).
R e s p o n da :
A Dama do Pé de Cabra, a personagem ibérica, também está
Ainda há leis que proibem mulheres exercer alguma profissão presente em outras edições e mídias. No século XIX a ‘Lenda
em nossa sociedade? Pesquise. da Dama Pé-de-Cabra’ foi reescrita pelo português Alexandre
Herculano, na obra Lendas e Narrativas. O autor adicionou mais
detalhes e diálogos à história. Ele acentuou as características
Quais são as mulheres que você mais admira? Quais são suas
autoras, cantoras, atrizes ou profissionais preferidas? diabólicas da personagem, dessa vez sem simbologia positiva.

Quais foram as heroínas de seu país/estado?

#desafio detetive:

Escolha uma mulher histórica brasileira e pesquise sobre ela.


Busque fotos, descrições, discursos e quaisquer relatos ou tes-
temunhos que demonstrem a razão dela ser lembrada. Procure
por exemplos de mulheres negras, indígenas, ou qualquer ou-
tra figura normalmente esquecida pelos livros tradicionais.

Dama Pé de Cabra(IV), Paula Rego, Dama Pé de Cabra (V), Paula Rego,


2011-12. 2011-12.

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Observe a passagem em que o marido, D. Diego descumpre o
pacto e se benze:

“Pelas barbas de D. From, meu bisavô! — exclamou D. Diogo,


pondo-se em pé, trêmulo de cólera e de vinho. —A perra maldita
matou-me o melhor alão da matilha; mas juro que hei-de escor-
chá-la.” E, virando com o pé o cão moribundo, mirava as largas
feridas do nobre animal, que expirava. “A la fé que nunca tal
vi! Virgem bendita. Aqui anda coisa de Belzebu.” — E dizendo
e fazendo, BENZIA-SE E PERSIGNAVA-SE. “Ui!”— gritou sua
mulher, como se a houveram queimado. O barão olhou para ela:
viu-a com os olhos brilhantes, as faces negras, a boca torcida e
os cabelos eriçados. E ia-se alevantando, alevantando ao ar, com
a pobre D. Sol sobraçada debaixo do braço esquerdo: o direito
estendia-o por cima da mesa para seu filho, D. Inigo de Biscaia.
E aquele braço crescia, alongando-se para o mesquinho, que, de
medo, não ousava bulir nem falar. E a mão da dama era preta e
luzidia, como o pêlo da podenga, e as unhas tinham-se-lhe esten-
dido bem meio palmo e recurvado em garras. “Jesus, santo nome
de Deus!” bradou D. Diogo, a quem o terror dissipara as fumaças
do vinho. E, travando de seu filho com a esquerda fez no ar com
a direita, uma e outra vez, o sinal da cruz. E sua mulher deu um
grande gemido e largou o braço de Inigo Guerra, que já tinha se-
guro, e, continuando a subir ao alto, saiu por uma grande fresta,
A Dama Pé-de-Cabra, por Jorge Magalhães (texto) e Augusto Trigo (desenho)
levando a filhinha que muito chorava. Desde esse dia não houve Lendas de Portugal, 1.º volume (Edições Asa, 1989).

saber mais nem da mãe nem da filha.”


Observe a descrição de Alexandre Herculano e a representação
nos quadrinhos acima e responda: como a Dama é descrita nesse
(Lendas e Narrativas, Alexandre Herculano, 1851) trecho? Qual é a principal diferença entre este e o texto medieval?

54 55
E
nquanto estudantes do Brasil nós tentamos enxergar as
A Idade Média em Cordel razões e as relações entre a História da Idade Média e
a nossa História. Não é possível simplesmente afirmar
que o medievo de Portugal é a origem da civilização
brasileira. Nosso passado não é só branco e europeu. Precisamos
“Nossa mente traz memórias Quase sempre são ateus
saber o passado das sociedades africanas, conhecer mais sobre
Herdadas dos ancestrais Que, por zombarem de Deus
As quais determinam crenças Têm severa punição. as diferentes comunidades indígenas, mas especialmente, é
E tradições culturais, importante que consideremos as violências, apropriações e
Como o mítico e o lendário, Crença a muito enraizada influências dessas culturas para a formação de nossa realidade
Herança do imaginário No folclore ocidental:
Das eras medievais. A recompensa do bem, atual. Essa realidade não é igual para todos e todas.
E a punição do mal, No Brasil não tivemos uma Idade Média, pois ainda não existia
Entre os monstros medievos Popular cosmovisão o país de hoje. Temos, no entanto, a possibilidade de identificar
São descritos, comumente, Com bases na tradição
as apropriações dos vestígios desse tempo, que são modificados
Os mais horrorosos híbridos, Católica medieval”.
Mistura de bicho e gente: em nossa realidade. A isso chamamos de residualidades:
Mantícoras fantásticas, feias Trecho do cordel “A presença do manifestações vivas do presente de valores medievais trazidos
Grotesco nos Enredos dos
Melusinas e sereias Cordéis” de Rouxinol do Rinaré. pelos portugueses. É possível achá-los em nossa religiosidade,
Pintadas grotescamente!
nas manifestações culturais, em nossas concepções de familia,
Nos folhetos populares governo, em nossa linguagem e literatura.
De diversos menestréis O cordel representa um grande
Do imaginário bizarro #PROJETO CORDEL
exemplo de literatura popular
Seguem no mesmo viés, Assim como alguns
Pois é notório e dantesco herança do contato com o
estilos músicais como o
A presença do grotesco Portugal no fim da Idade Média.
Nos enredos dos cordéis. rap, o cordel necessita de
Com temas mais variados, o
Geralmente são relatos rimas. Que tal tentar fazer
formato em poesia são editados um cordel sobre alguma
Falando em transmutação. A mulher que virou cobra, Anô-
nimo. Acervo museu de arte da em pequenos livros. Um
De gente que vira bicho, UFC (MAUC), Fortaleza-CE. mulher brasileira?
Uma horrenda aberração, exemplo do contato distante com Você pode fazer uma
o maravilhoso medieval e sua sextilha, que são estrofes
Como podemos relacionar os modelos femininos e masculinos
da Idade Média e as nossas próprias representações desses modelos presença no Nordeste brasileiro, de seis versos. O segundo,
no presente? Religião, diferentes culturas, fatos históricos encontramos nas histórias de o quarto e o sexto verso
e individuais, todas esses elementos devem ser levados em de sua estrofe devem
cordel pessoas metade animal,
consideração para uma análise responsável do passado humano. rimar entre si.
Melusinas transformadas em
solo brasileiro.
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Considerações Finais Glossário
Anedota: Breve relato histórico ou fato curioso, geralmen-
te relacionado com a vida de personagem célebre ou lendário.

Cristianizar: Tornar(-se) cristão ou converter(-se) à fé cristã.


É impossível acessar todos os livros, itens e memórias da enorme
biblioteca que guarda os saberes da humanidade. Algumas Feminicídio: é uma expressão utilizada para denominar as
informações se perderam no tempo, ou foram destruídas. Outras mortes violentas de mulheres em razão de gênero, ou seja,
que tenham sido motivadas por sua “condição” de mulher
nem chegaram a ser registradas.
Muitas perguntas ficarão sem resposta. O passado das mulheres Imaginário: Conjunto de características, valores e símbo-
los de grupo de pessoas ou de um povo ou comunidade.
ainda é, em sua grande parte, desconhecido. Mas, mesmo que não
saibamos seus nomes, suas funções, seus feitos, temos certeza de Misoginia: Antipatia ou aversão mórbida às mulheres.
que elas estavam lá.
Mito: História fantástica de transmissão oral, cujos pro-
É fácil esquecer das coisas que não fazem parte de nossas tagonistas são deuses, semideuses, seres sobrenatu-
realidades. Esse material teve a proposta de levar até você rais e heróis que representam simbolicamente fenôme-
nos da natureza, fatos históricos ou aspectos da condição
algumas histórias, exemplos e perspecticas de um passado que humana; fábula, lenda, mitologia. Relato que, sob forma ale-
merece nossa atenção. Ele nos inspira, nos diverte e também nos górica, deixa entrever um fato natural, histórico ou filosófico.
alerta: ainda hoje, mulheres morrem simplesmente por serem
Prensa: Máquina composta essencialmente de duas pe-
mulheres. Investigar o passado é lidar com duras realidades, mas ças, das quais uma se move contra a outra para compri-
também nos dá ferramentas que nos ajudam a entender melhor mir, achatar ou espremer qualquer objeto ou substân-
nosso mundo e talvez, a mudá-lo. cia que entre elas se coloque. Máquina de impressão.

Representação: Imagem ou ideia que traduz nossa concepção


de alguma coisa ou do mundo. Qualquer coisa que se represen-
ta.

Sexismo: Preconceitos e discriminação que se baseiam no sexo.

Trovadorismo: gênero literário que surgiu na Idade Mé-


dia no século XII. Seus poetas escreviam e cantavam as
cantigas inspiradas em temas da épo-
ca, muitos deles valorizando a figura feminina..

58 59
Referências
Fonte:
Livro de Linhagens do Conde de D. Pedro. Ed. Crítica de José
Mattoso, et el. Portugaliae Monumenta Historica a Saeculo Octavo
Post Christium Usque ad Quintumdecimum. Lisboa: 1980, v.I/II
Obras gerais e específicas:
CASAGRANDE, Carla. A mulher sob custódia. In: DUBY, George;
PERROT, Michelle (orgs.). História das mulheres no Ocidente.
A Idade Média, vol 2. Lisboa: Afrontamentos, 1990, p. 99 -141.
ECO, Umberto. Idade Média - Bárbaros, cristãos
e mulçumanos. Alfragide: Dom Quixote, 2010.
LE GOFF, Jacques. Heróis e maravilhas da Idade
Média. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2009.
_______. Maravilhoso. In: LE GOFF, Jacques;
SCHMITT, Jean-Claude (Coord). Dicionário Analítico
do Ocidente Medieval. São Paulo: Ed. Unesp, 2017.
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MICAELIS. Dicionário de Lingua Portuguesa.
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PERROT, Michelle. As Mulheres e os
Silêncios da História. São Paulo: EDUSC, 2005
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SCHMITT, Jean-Claude. Feitiçaria. In: LE GOFF, Jacques;
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VALLE, Diego Merino del Valle. Las mujeres em al-Ándaluz:
Um estado de la cuestión. Universid de Alcalá, 2014.
VERDE, Rafael Lima; ABU, Marquinho. Bestiário Nordestino:
um olhar sobre a gravura fantástica. Fortaleza: Expressão, 2018.
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