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Polyana Muniz

Polyana Muniz
Capa e Ilustrações
Evelyn Duerre

Texto
Polyana Muniz

Edição e Montagem
Polyana Muniz

Pesquisa Iconográfica e Imagens


Polyana Muniz

Revisão
Profª. Drª. Adriana Zierer

Esta obra foi elaborada como produto educacional do Mestrado


Profissional em História/PPGHIST da Universidade Estadual do
Maranhão/UEMA, sob orientação da Profª. Drª. Adriana Maria
de Souza Zierer. Reitera-se ainda que esta pesquisa foi finacia-
da pela Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-graduação/PPG-UEMA.

Muniz, Polyana de Fátima Magalhães.

Damas e donas: mulheres sobrenaturais na Idade Média. / Polyana de


Fátima Magalhães Muniz. – São Luís, 2020.
62.; il.
Produto Educacional da Dissertação Os Livros de Linhagens e os Contos
Melusinianos: as representações femininas em Portugal no século XIV.
Orientadora: Profª. Drª Adriana Maria de Souza Zierer
1. Ensino de História. 2. Gênero. 3. Portugal Medieval. I. Título
CDU 821.134.3.09

Elaborado por Reyjane Mendes - CRB 13/679


“Tem os que passam/e tudo se passa/com passos já passados/
tem os que partem / da pedra ao vidro/ deixam tudo partido/ e
tem, ainda bem, / os que deixam/ a vaga impressão/de ter ficado”.
(Alice Ruiz)
Sumário
Apresentação _____________________________________ 9
Introdução _______________________________________ 10
A esposa sobrenatural e a linhagem exemplar ________ 14
Fadas, serpentes & sereias _________________________ 28
A mulher medieval portuguesa _____________________ 40
Netas de bruxas __________________________________ 50
Considerações Finais ______________________________ 58
Glossário ________________________________________ 59
Referências ______________________________________ 60
Apresentação

O que era ser mulher durante um período como a Idade Média?


Será que tem relação com bruxas, castelos e vestidos longos? E as
armaduras, as espadas? Era ser livre ou viver presa? Era trabalhar?
Fora ou dentro do ambiente doméstico? Era igual ou diferente do
que é ser mulher hoje? Afinal, o que é ser mulher? Ou homem?
Imaginamos um monte de coisas diferentes sobre tudo isso.
Como indivíduos e como sociedade! Não só por razão do
lugar de onde viemos – da religião, das leituras, dos exemplos
que temos – mas também pelo tempo histórico que vivemos
e que nos separa do passado – próximo e distante de nós.
Você consegue dizer o nome de alguma mulher
importante que viveu na Idade Média? Como ela vivia?
O que ela fez? Se você não souber, não se preocupe.
O primeiro passo é questionar: onde estão as mulheres
do passado? Como posso saber mais? Mas saber sobre
elas pode nos ajudar em alguma coisa? Perguntem
a si mesmos sobre isso. É assim que começamos.
O segundo passo é investigar. Juntar evidências, imagens,
documentos, exemplos. Onde podemos achá-los?
Eu tenho algumas ideias, mas tudo começa com um encontro...

A autora.

9
Introdução

Idade Média, embora seja um período

A histórico que ocorreu há séculos, ainda


é bastante presente nos dias de hoje.
Podemos encontrar vestígios e referências
desse tempo nas obras literárias, nos jogos,
nas novelas e séries de TV, nos filmes e quadrinhos que
consumimos. Na arte, nas músicas, no teatro, na moda!
No entanto, toda a produção feita no presente sobre a Idade
Média parte de um olhar distante e influenciado pelo que
gostamos e fazemos hoje. Dessa forma, os julgamentos feitos
sobre esse tempo, como época de trevas e escuridão, foram
criados por pessoas que viveram depois do período medieval.

10
O historiador italiano Umberto Eco nos aju-
da a compreender o que a Idade Média NÃO é:
Não é um período exclusivamente Europeu :
Ocidente e Oriente e suas diversas culturas (árabe,
bizantina, hebraica, cristã, germânicas, célticas)
estavam em constante troca, conflitos e contatos.

Não é um século:
o período medieval, segundo a divisão tradicional europeia,
inicia-se no século V e termina no século XV. São 10 séculos
de muitos acontecimentos, culturas e modos de vida. Não é
possível resumir muitos anos de história em poucas definições.
Portanto, para saber como as mulheres viviam e como se
relacionavam devemos levar em consideração as mudanças
e movimentos históricos de um longo período do passado.

Não é uma Idade das Trevas:


as características mais negativas que associamos a Idade Média,
como a fome, o fanatismo religioso, guerras e pestes podem ser
utilizadas para descrever quase todos os períodos da história
humana. A tecnologia, a cultura e a arte medieval foram diversas
e complexas. Desse modo, nosso trabalho de pesquisa e
reflexão deve ser feito com cautela e responsabilidade científica.

Onde estão nossas fontes? Por onde começar?

11
Muito prazer, sou ...

Christine escrevendo em sua biblioteca. 1413, British Library, Harley, 4431, folio 4.
Christine de Pizan (1364-1430)
A italiana Christine de Pizan é um grande exemplo
de mulher medieval que merece reconhecimento: após
se tornar viúva, encontrou na escrita um meio de
sustento. Autora, editora e publicadora de obras, ela
pode ser considerada a primeira mulher que se tornou
escritora profissionalmente no Ocidente. Ela produziu
mais de 40 obras! Elas tinham temas diversos, que iam
desde tratados filosóficos e políticos a textos voltados
a defesa das mulheres e suas virtudes. Quem disse que
escrever não é coisa de mulher?
13
A esposa sobrenatural
e a linhagem exemplar

I
magine que você se encontra em uma grande biblioteca.
Por todos os lados que olhar, você verá estantes altas com
muitos livros, pergaminhos e artefatos curiosos. Você não
sabe quão antigo é esse lugar, e pelo que você consegue
notar o espaço se estende por muitos e muitos metros.

Próximo de você há uma mesa cheia de livros, cartas e outras


anotações. Há símbolos difíceis de decifrar, escritos em diferentes
línguas e formatos. Um dos livros chama a sua atenção, mesmo
que coberto por uma fina camada de poeira.

Ele é grande e pesado. Sua capa de couro com enfeites de metal


dourados já apresenta alguns sinais de envelhecimento, mas
ainda impressiona pelos detalhes do trabalho manual. A quem
pertenceria um livro tão rico?

Você decide abri-lo com cuidado, pois ele parece frágil.

Na página que abriu é possível ler:

14
Livro de Linhagens do Conde D. Pedro. III conde de Barcelos, 1314-1354; João Rodrigues de Sá e
Meneses, 1461-1576. Livraria da Alcobaça, 1601- 1700. Cota antiga: CDLXVIII.
15
O Livro de Linhagens do Conde D. Pedro é uma importante
fonte histórica sobre a região ibérica (onde hoje estão os países
Portugal e Espanha) ambientada nos séculos XIII ao XV, ou seja,
no período da Baixa Idade Média. Essa obra foi produzida entre as
décadas de 1340 a 1380.

Ele é um tipo de registro genealógico. A genealogia é o estudo


da história das famílias, das relações entre os indivíduos e seus
parentes, próximos ou distantes. A partir da “árvore genealógica”
você pode saber mais sobre a história de sua família.

Você já fez a árvore genealógica da sua família?

Minha linhagem
#DESAFIO
GENEALÓGICO
Conversando com as
pessoas da sua família,
pesquisando na
internet ou no arquivo
público de sua cidade,
você pode fazer a sua
genealogia.
Colete os nomes
dos seus parentes e
aprenda mais sobre
sobre o seu grupo
desenhando a árvore
16
que os representa.
Durante a Idade Média esse tipo de registro foi utilizado para
comprovar o merecimento e prestígio das linhagens de famílias
nobres. Portanto, não eram todos os homens e mulheres que
tinham seus nomes escritos em livros genealógicos. Esse era um
modo de identificação da nobreza. Por isso, esses livros também
ficaram conhecidos como nobiliários, registros do patrimônio,
títulos e símbolos (brasão, sobrenome, hierarquias) da nobreza
de uma região.
Muito mais do que uma listagem de nomes, o Livro de Linhagens
do conde d. Pedro relata diferentes temas religiosos, morais,
anedotas, histórias e lendas. Diversas informações e temas foram
retirados de outros livros e fontes, além de serem inspirados em
histórias que circulavam oralmente.
Até a invenção da prensa, no século
XV, todos os “livros” existentes
eram manuscritos, ou seja, feitos a
mão. A maior parte dos usuários e
leitores eram homens e mulheres
de instituições religiosas, conventos
ou mosteiros. muitos livros eram
escritos em latim, um idioma que
nem todos falavam. Uma pessoa
para possuir um livro tinha que ser
muito rica. Ter um livro enquanto
indivíduo era muito caro e
incomum, pois era considerado um
Detalhe da capa do Livro de Linhagens, objeto de luxo.
edição de 1601-1700. Livraria de Alcobaça.
17
18

Resposta: “De dom Diego Lopez, senhor da Bizcaia, bisneto de dom


Froom, e como casou com ua molher que achou andando a monte, a qual
casou com ele com condiçom que nunca se benzesse, e do que lhe com ela
aconteceo. E prossegue o linhagem dos senhores que foram de Bizcaia”.

VOCÊ CONSEGUE LER O QUE ESTÁ ESCRITO?

Livro de Linhagens? Ao folheá-lo você se depara com essa passagem:


O que podemos descobrir sobre as mulheres medievais nesse
ocê consegue

V
em
compreender
essas frases? Elas
estão
galego-português,
linguagem utilizada
escritas
a
na
Idade Média nas regiões
de Portugal e Galiza. Esse
idioma se destacou por
ser utilizado nas poesias
trovadorescas, importante
expressão literária medieval.

Esse interessante livro contém duas narrativas bastante


curiosas onde podemos encontrar personagens femininas, A
Dama do Pé de Cabra e a Dona Marinha.

A primeira conta a história de origem da família Haro, que


eram senhores da região da Biscaia. Essa região estava sendo
disputada pelos descendentes da família e o rei de Castela no
início do século XIV.

A segunda, Dona Marinha, é descrita como fundadora da família


dos Marinhos, da região portuguesa da Galiza, próximo do mar.
Vejamos:

19
A Dama do Pé de Cabra

ste Dom Diego Lopez era muito bom

E cavaleiro, e estando um dia com sua


armada enquanto caçava um por-
co, ouviu uma mulher cantar em voz
alta em cima de um monte. E ele foi para lá
e achou-a muito formosa e muito bem vesti-
da, enamorou-se dela muito fortemente e per-
guntou-lhe quem era.
Ela lhe disse que era uma mulher de muito
alta linhagem. E ele lhe disse que se sendo de
alta linhagem ele se casaria com ela se ela qui-
sesse, pois era senhor daquela terra toda.
E ela lhe disse que o faria se ele prometesse
que nunca mais se santificasse, e ele aceitou,
assim ela foi junto com ele. Esta dona era mui-
to formosa e muito bem feita em todo corpo,
salvo que tinha um pé forcado, como um pé
de cabra. E assim viveram grande tempo e
tiveram dois filhos, um de nome Enheguez
Guerra e outra que foi uma mulher de nome
‘dona’.

20
uando comiam juntos Dom Diego

Q Lopez e sua mulher, sentava ele per-


to do filho e ela, sentava-se do outro
lado perto da filha. Um dia ele caçou
em suas terras um porco muito grande e trou-
xe para casa para o comer com suas mulhe-
res e filhos. Ele lançou um osso da mesa para
os cachorros, um macho maior e uma fêmea
menor, que começaram a brigar. A fêmea tra-
vou o cachorro na garganta e o matou. E Dom
Diego Lopez quando viu, achou que fosse um
milagre e se benzeu, dizendo: “Valha Santa
Maria, quem viu jamais tal coisa!”
Sua mulher, quando o viu se benzer, pegou
na mão da filha e do filho, e Dom Diego Lo-
pez agarrou o filho e não quis deixar tomar.
Ela fugiu com a filha por uma janela da casa
e foi para as montanhas, e não a viram mais,
nem à filha.

21
A Dona Marinha

O
primeiro foi um cavaleiro bom de
nome Dom Froiam, que era caça-
dor e cavaleiro. Andando um dia
em seu cavalo pelas margens da
praia achou uma mulher marinha dormin-
do na ribeira. Quando ela os percebeu, ele e
mais três escudeiros seus, tentou se escon-
der no mar, mas eles a perseguiram e a for-
çaram antes que ela fugisse. Depois que a
prenderam, os homens a colocaram em um
cavalo e a levaram para casa.
E ela era muito formosa e ele a batizou com
um nome muito apropriado: Marinha, pois
ela saíra do mar. Assim foi posto, e a cha-
maram de dona Marinha. Ele teve filhos
com ela, dos quais um chamou João Froiaz
Marinho.
E esta dona Marinha não falava coisa algu-
ma. Dom Froiam amava-a muito e tentou
de várias formas a fazer falar.

22
U
m dia mandou fazer uma grande
fogueira em sua casa, e ela vindo
com seu filho consigo, filho que
amava com todo seu coração. E
Dom Froiam pegou o filho seu e dela, e fez
como se fosse jogá-lo no fogo. Ela, com rai-
va, esforçou-se para gritar e com o esforço
cuspiu um pedaço de carne de sua boca, e
dali em diante falou. E Dom Froiam a rece-
beu como mulher e se casou com ela.

23
R e s p o n da :

A partir da leitura dos contos da Dama do Pé de Ca-


bra e Dona Marinha, responda as questões abaixo:

1)Quem são os personagens desses contos?

2)Quais são as características da Dama do Pé de Cabra? E


de dom Diego Lopez?

3)Quais são as características da Dona Marinha? E de dom


Froiam?

4)O que esses dois contos possuem em comum? Em que


aspectos eles são diferentes?

#desafio on line:

Nem sempre conseguimos achar uma imagem ou pintura de


mulheres históricas. A historiadora Michelle Perrot assim de-
finiu a presença feminina no passado: “No teatro da mémoria,
as mulheres são uma leve sombra”. Essa frase faz sentido para
você? Faça um desenho, montagem, colagem ou pintura com
a sua leitura da Dama do Pé de Cabra ou Dona Marinha e
poste nas suas redes sociais com a hashtag #damasedonas.

24
uma tradição dos seres humanos registrar as memórias

É de seus antepassados, da sua comunidade, as origens


e os acontecimentos importantes. O que muda é a
forma com que fazemos isso: gravamos em pedra, em
canções, em livros, nas narrativas dos mais velhos, em pinturas,
diários ou postando uma foto nas redes sociais. Lembrar é
importante para nós!

Então, o que as pessoas que viveram no passado escolheram


registrar é algo muito significativo sobre elas! Isso nos diz o que
elas consideravam importante salvar e o que preferiam esconder.

Nas duas histórias que encontramos, A Dama do Pé de Cabra e


Dona Marinha, duas figuras femininas sobrenaturais se casam
com homens mortais, senhores e cavaleiros de suas terras.

Não é incomum a utilização de figuras míticas e lendárias como


tentativa de elevar o status de uma pessoa ou um grupo.

Se as figuras sobrenaturais
femininas elevam a família de seus
maridos, o que isso pode nos dizer
sobre a condição das mulheres
medievais?
Se você tivesse a chance, que figura
mítica ou sobrenatural escolheria
para ser a fundadora de sua
família?

Detalhe de pintura da Rainha Margareth da Escócia (1456-1486),


Hugo Van der Goes, 1440-1482.

25
Muito prazer, sou ...

Retrato de Hildergarda de Bingen no Codex des Liber Scivias

Hildergarda de Bigen (1098-1179)


Dentre as mulheres notáveis que viveram durante a
Idade Média, você conhece Hildegarda de Bingen?
Ela foi uma monja beneditina, mística, teóloga,
compositora, pregadora, naturalista, médica informal,
poetisa, dramaturga e escritora alemã. Ela é uma santa
e doutora da Igreja Católica. Isso é que ser multitarefas!
Que tal pesquisar mais sobre ela?
Você consegue citar outras mulheres importantes para
o mundo religioso?
26
27
Fadas, serpentes & sereias

s lendas presentes no Livro de Linhagens foram

A identificadas como versões de um mesmo mito,


que chamamos de mito de Melusina. Que mito é
esse?! Ele pode ser resumido assim: o encontro e o
casamento entre um homem mortal e um ser sobrenatural, que
através de um pacto lhe fará próspero em poder e descendentes.
No entanto, o pacto é quebrado e a esposa sobrenatural vai
embora.

Esse conto foi adaptado em diferentes contextos regionais da


Europa, variando alguns detalhes, mas sempre mantendo o
mesmo enredo:

O segredo de Melusina descoberto, do O Romance de Melusina de Jean d’Arras, 1450–1500. Biblioteca Nacional da França.

28
Os contos melusinianos

1. Encontro
Homem mortal encontra uma mulher misteriosa
e bela em um espaço natural: floresta, montanha
etc. próxima a uma fonte, rio, meio aquático. Ele
se encanta pela sedutora figura.
2. Proibição/Pacto
O homem apaixonado faz um pedido de casa-
mento, que só é aceito diante de uma condição
proibitiva. No exemplo mais famoso, a Melusina
francesa, o marido não deve olhá-la no banho,
pois é quando ela assume sua forma monstruosa.
3. União e Prosperidade
A união gera filhos e grandes
poderes à linhagem que
acolheu a dama misteriosa.
4. Desobediência
O marido, por fim, tende
a desobedecer o pacto
e faz a ação proibida.
5.Desaparecimento
A mulher assume suas
formas originais e vai
embora, as vezes levando
embora tudo o que deu
ao marido.
Rainha serpente. Padre Ulmannus, Livro da Santíssima Trindade,
Franconia,1470. (Munique, Bayerische Staatsbibliothek, Cgm 598, fol. 78)

29
odemos explorar algumas das imagens e símbolos que

P são comuns a essas lendas, formados no imaginário


da Idade Média e transformadas em literatura.
A natureza, enquanto força incontrolável e
misteriosa, foi comumente associada ao feminino: fértil,
irracional, maternal, provedora. Essa relação nos contos
é feita de diversas formas. Essas mulheres, fadas, são
seres híbridos, isto é: metade humana, metade animal.

Elas podem ser metade serpente, dragão, sereia e


no caso português, ter os pés de cabra. No mundo
medieval, um ser híbrido não era bom sinal, o
que podia representar forças malignas e o pecado.

O sobrenatural e o extraordinário, o estranho e até o


monstruoso eram temas comuns na preocupação dos
intelectuais na Idade Média. Mirabilia, o maravilhoso,
é uma categoria que representa a coleção de seres,
fenômenos, objetos, associados ao dominio divino
ou demoniaco que estavam na fronteira do natural.
As atitudes da sociedade cristã em relação ao
maravilhoso mudaram ao longo da Idade Média,
passando da repressão ao que era pagão (não-cristão)
ao florescimento de temas e culturas influenciadas
pelo maravilhoso (LE GOFF, 2017)
Sereia . Ms. Ludwig XV 3, f.
78, J. Paul Getty Museum.

30
A Serpente
A mulher-pecado é represen-
tada por uma serpente, cau-
sadora da destruição do ho-
mem. Os mênstruos, impuros,
foram associados ao veneno
das cobras, capazes de enve-
nenar. As serpentes são ani-
mais complexos, conectadas
aos diferentes elementos na-
turais, fogo, água, terra e ar.
Além da relação com a história
da criação cristã, as serpentes
aparecem em outras mitolo-
gias e culturas representando
o conhecimento do futuro,
dos mistérios do universo etc.
É um animal que retrata a sa-
bedoria, a renovação da vida e
o equilíbrio entre os opostos. Detalhe da impressão de O Romance de Melusina,
impressão de Philippe Le Noir, Paris, 1525.

A Sereia
As damas sobrenaturais estão associadas as sereias: seres aquáticos,
que usam sua voz musical para seduzir. Elas representam, na mitologia
grega, uma armadilha mortal. No medievo, elas estão associadas
à vaidade e à luxúria, sempre de cabelos soltos e seios desnudos.
No entanto, essa criatura é muito comum em diversas culturas e
podemos achar equivalentes aqui no Brasil: a Iara, senhora dos rios.
A cabra
A cabra é animal
simbolicamente traduzido
como demoníaco. Assim
como o bode, foi associada à
luxúria e à servidão ao Diabo.
Para o cristianismo medieval,
são animais impuros, signos
da maldição. Associados à
fecundidade e a deuses como
Pã, Dionísio e Thor, possuíam
pesos simbólicos diferentes
nas culturas da Antiguidade.

31
A dama do Pé de Cabra, por José Garcês, (Tintin, 1980.)

32
casamento com as damas sobrenaturais, descrito

O no Livro de Linhagens, expõe o poder do senhor da


terra de controlar a natureza do local que buscava
dominar. A apresentação inicial do marido nos
contos acontece em meio a uma caçada.
Do ponto de vista do homem medieval, as características (sobre)
naturais causavam mistérios e temor. O desconhecido é sempre
assustador. Portanto, a origem misteriosa pode significar poderes
demoníacos.
As mulheres eram um enigma: maternidade, menstruação, sua
sexualidade, experiências que o homem, e principalmente os
clérigos, não compreendiam.
Nessa concepção, o mundo natural deveria servir ao homem
(provendo-lhe alimento, matéria-prima e moradia, visto que
na hierarquia divina ele foi encarregado por Deus de cuidar de
tudo e todos). Isso inclui as mulheres, consideradas inferiores e
representantes de uma força inquietante.
As esposas sobrenaturais tinham, então, um poder ambivalente,
ou seja, de vários sentidos, duvidoso.
Um fator importante nos contos é realçar a beleza e a alta
linhagem das damas: isso autorizada um homem nobre a lhe
propor casamento. Assim, a linhagem da família será igualmente
poderosa.
Nas versões portuguesas, não sabemos os nomes das esposas
sobrenaturais. Seus papéis estão ligados, assim, a elevar a
importância dos senhores e de seus filhos: deles sabemos quem
são. Não podemos deixar de considerar, portanto, os usos
políticos de lendas e mitos dessa natureza.

33
#desafio literário:
Agora que você conhece o enredo que caracteriza os contos
melusinianos, pode criar a sua própria versão na forma que
quiser (texto em prosa, poesia, música, quadrinhos):

Você pode mudar os nomes, o local e até quando a


história acontece.
Lembre de incluir uma proibição/condição.
Qual será o poder da mulher?
Que animal ela representará?
Ela ficará ou irá embora no fim da história?

#pesquise:
Quais são as figuras mitológicas femininas da cultura
do seu estado? Qual a origem dessas lendas?
Qual dessas lendas possui uma origem medieval?

34
Modelos femininos na Idade Média

s narrativas literárias são fontes históricas valiosas:

A podemos entender melhor sobre a mentalidade


daquela sociedade, o modo como as pessoas se
enxergam e se representam e as relações sociais
daquele contexto.
Isso não significa que essas informações definam um povo
em um período histórico, pois é necessário que consideremos
outros fatores: a intenção do autor, o contexto em que a obra foi
produzida, as influências que teve etc. O olhar crítico nos ajuda a
estudar melhor nossas fontes e documentos.
A sociedade medieval, de modo geral, foi marcada pelo olhar
e valores masculinos. As sociedades humanas possuem formas,
crenças e leis diferentes sobre as definições de ‘homem’ e
‘mulher’, e a perspectiva medieval foi especialmente importante
para o mundo Ocidental.
Em a Dama do Pé de Cabra e em Dona Marinha encontramos dois
modelos de comportamento feminino: uma é independente, tem
voz ativa e propõe pactos. A outra é muda, é controlada e forçada
pelo marido a se cristianizar.

35
Duas representações femininas prevaleceram na Idade Média:
Maria, a redentora x Eva, a pecadora.

Árvore da vida ladeada por Maria e Eva. Missal de Salzburgo, 1480. Biblioteca
Estadual da Baviera, Munique, Alemanha.

Mulher Má Mulher boa


Sedutora, diabólica, maliciosa Casta e pura (virgem)
Audaciosa, curiosa, tagarela Silênciosa, tímida, modesta
Exibida, fofoqueira, sai nas ruas Se guarda em casa, no ambiente
enfeitada doméstico e privado
Excessiva, ambiciosa, rebelde Virtuosa, submissa, religiosa
Má esposa, infiel, infértil Boa esposa, fiel, boa mãe

36
Observe os elementos e oposições da imagem ao lado do quadro

comparativo: de que modo essas representações afetavam as

mulheres na Idade Média? Esses modelos de conduta ainda

estão presentes em nossa sociedade? De que modo? Em que

ambientes? Justifique sua resposta.

Um dos modelos mais disseminados da figura feminina na

contemporaneidade é aquele da bruxa. No fim da Idade

Média e começo da Idade Moderna é publicado por dois

padres dominicanos o livro Malleus maleficarum (O martelo

das feiticeiras), em 1486. O manual servia para que outros

pudessem identificar a feitiçaria e tinha em seu discurso altas

doses de misoginia: mesmo que existissem feiticeiros, os

culpados seriam, antes de tudo, as mulheres (SCHMITT, 2017).

Comuns em várias mitologias e culturas da humanidade, as

bruxas passaram a representar aspectos anti-cristãos no contexto

medieval. Enquanto figura mítica e símbolo podemos comparar

as feiticeiras as as esposas sobrenaturais. O que você acha que

elas têm em comum? As imagens de mulhers bruxas mudaram

ao passar do tempo. Quais são as características da bruxa? Ela se

parece mais com qual modelo de conduta apresentado?

37
Muito prazer, sou ...

Representação de uma rainha portuguesa. Óleo de José Malhoa (1855-1933), Museu José Ma-
lhoa

Leonor Teles (1350-1405)


Uma das mulheres mais polêmicas da história
medieval portuguesa, Leonor Teles foi rainha regente
de Portugal após a morte de seu marido, D. Fernando.
Descrita pelos relatos da época como uma mulher-Eva,
Leonor participou ativamente das decisões políticas
e demonstrou um poder que não era bem visto nas
mãos de uma mulher. Por conta disso, se envolveu nas
disputas do trono português que levaram uma nova
dinastia ao poder, a dinastia de Avis, em 1385.
38
39
A mulher medieval portuguesa

maioria dos documentos medievais que temos

A acesso foram produzidos por homens e, portanto,


temos de perceber que as visões e descrições sobre
as mulheres não são neutras.
Os modelos de comportamento esperados para o gênero feminino
não significam, simplesmente por existir, que eram cumpridos
totalmente. Na verdade, a mulher perfeita, Maria, mãe de Cristo
era um modelo idealizado e impossível de alcançar.
Desse modo, devemos considerar a pluralidade de mulheres
que existiram na Idade Média, um longo período histórico. O
feminino não é singular. A experiência feminina muda conforme
a classe social, a etnia, a cultura e a religião, com o nível de
escolaridade e é claro, com o tempo.

Mulheres tecendo lã. Saltério de Lutrell, 1325-1340. British Library, f. 193r.

40
O jurista italiano Francesco de Barberino (1262-
1348) escreveu uma obra chamada Reggimento
e costumi di donna (Regimento e costumes da
mulher), onde ele classifica as mulheres em
diferentes categorias: meninas e moças em
idade de casamento, mulheres que são mais
velhas que os maridos, as que casam tarde e
as mulheres casadas. Isso se detalha conforme
a origem da família: reis ou imperadores,
nobres e cavaleiros, juízes ou médicos, Aponte a câmera do
mercadores ou artesãos, camponeses e simples celular e leia esse
trabalhadores, as viúvas. As mulheres que código de barras para
praticam vida religiosa, freiras, reclusas, damas acessar um vídeo que
de companhia ou criadas, amas e servas. Além demonstra como era o
processo de se vestir no
disso, inclui as barbeiras, padeiras, vendedoras
século XIV. Inspirado
de frutas, tecedeiras, moleiras, vendedoras de
nas imagens do Saltério
aves de criação, mendigas, hospedeiras, mas
de Lutrell, a companhia
exclui as prostitutas, por não as achar dignas Crowseye Productions
de menção. (CASAGRANDE, 1990, p. 103) encenou o processo
diário de se vestir
enquanto mulheres.

Alternativamente, é
possível acessar o link:
rebrand.ly/85rhx4d

Observe o quadro ao
lado: ele retrata uma
cena privada, um parto.
Esse foi, por muito
tempo, um ambiente
exclusivamente
feminino. Essa imagem
cotidiana contém três
mulheres de condições
sociais diferentes.
Uma senhora rica, sua
serva e a parteira.
Que aspectos as
difereciam?
O nascimento de Maria. Altar de Eggelsberger, pintura 41
sobre madeira, 1481.
As mulheres medievais na região ibérica

Na Idade Média ibérica as mulheres cristãs, mulçumanas e judias


viveram por séculos na mesma região, no sudoeste da Europa.
Em 711 a expansão árabe chegou à região ibérica, e por oito
séculos ocuparam o território europeu. A chamada Guerra da
Reconquista da ‘Ibéria Mulçumana’ (Al-Andaluz) foi um conflito
longo entre os islâmicos e os cristãos pelo território ibérico,
que causou grandes deslocamentos populacionais, afetando as
mulheres em especial.
Por volta de 1300 a península comportava 5 reinos: Castela,
Aragão, Portugal, Navarra e Granada (território mulçumano).
Em 1492 o último território mulçumano foi tomado pelos cristãos.

Saída da família de Boadbil da Alhambra. Manoel Gómez-Moreno Gonzalez, 1880.


Boadbil (1459-1533), foi o último rei mulçulmano de Granada.
Essa pintura retrata a cena da família do rei abandonando o
palácio depois da tomada da cidade pelos reis católicos em 1492.
42
Mapa mostrando a extensão do califado de Córdoba por volta do ano 1000. Alexandre Vigo

Al-Andaluz foi um reino de religião islâmica e de cultura árabe.

Os cristãos ibéricos dentro do território andaluz podiam manter

sua religião e costumes, e ficaram conhecidos como moçárabes.

A cultura árabe era rica em saberes científicos, filosóficos e

artísticos. A presença dos mulçumanos na Península Ibérica

influenciou a cultura ibérica, inclusive emprestando algumas

palavras à língua portuguesa.

43
ssim como na cultura cristã medieval, as mulheres

A islâmicas do Al-Andaluz deveriam ser recatadas,


obedecer aos seus maridos. Seus principais deveres
e tarefas eram resguardados ao ambiente doméstico.
A tentativa de controle sobre o corpo, da sexualidade e das ações
femininas na Idade Média tem ligação com as linhagens. Era
preciso ter certeza que ela seria fiel e geraria bebês dentro do
casamento.
Isso tinha como objetivo garantir a continuação da linhagem
patrilinear, ou seja, do pai – do homem. Aos poucos isso foi
afetando a organização das famílias: em vez de todos os filhos
e filhas dividirem o patrimônio, só o primeiro filho homem
teria direito aos bens de seu pai. Essa realidade, no entanto,
era praticada pelas famílias da nobreza e da burguesia, ou seja,
aquelas que tinham poder econômico.
Ainda vemos resquícios disso em nossa sociedade, afinal é
comum que recebamos o nosso sobrenome pelo lado paterno –
estamos continuando a linhagem masculina.

Detalhes das margens de mulheres caçando coelhos. Saltério da Rainha Maria, 1310-1320, Royal MS B VII, f.
155v.

44
esmo que sujeitas às leis proibitivas, às

M recomendações morais e religiosas e às diversas


violências, as mulheres eram ativas socialmente.
Grande parte dos trabalhos realizados no campo,
nas cidades e até mesmo dentro do ambiente doméstico, eram
feitos por mulheres. Essas funções podiam ser administrativas,
além do papel de educadora das filhas e filhos.
As mulheres medievais, em especial as religiosas (freiras, monjas,
abadessas) e as damas da nobreza (portuguesas e árabes), também
foram ativas intelectualmente: escreviam poesia, liam livros,
patrocinavam as artes. Temos notícias de mulheres médicas e até
professoras em universidades.

Mulher de véu ajudando a trançar o cabelo de outra, com espelho e pente. Saltério de
Lutrell, 1325-1340. British Library, f. 63r
45
A vida da mulher
comum, seja de
qualquer estrato da
sociedade acontecia
principalmente na
esfera privada. As
mulheres, inclusive
as mais ricas,
estavam ausentes
das assembléias das
cortes, pois não havia
nomeação feminina
para esse tipo de
cargo. A historiadora
Manuela Santos Silva
Mullheres vendendo pão e manteiga no manuscrito Tacuinum Sanita-
tis, tradução de um tratado árabe. Biblioteca Nacional da França. nos conta que a casa
deveria ser o único
palco aceito e nela,
as mulheres tinham
ampla liberdade de
ação.
Embora não tenhamos
muitos registros sobre
as mulheres mais
pobres, sabemos que
a mulher trabalhava
ao lado do homem nas
empresas familiares,
como artesãs,
comerciantes ou nas
atividades camponesas.
Homem e mulher com baldes na cabeça. Saltério de Lutrell, 1325-
1340. British Library.
46
# D E S C R E VA
Escolha um de seus filmes, livros, novelas ou
jogos favoritos ambientados/inspirados no
período medieval. Prepare um texto contando
o enredo, os personagens principais e
explique de que forma essa obra se aproxima
ou se distancia da Idade Média histórica.

P ro b l e m at i z a n d o :
Você sabe o que significa as palavras
sexismo, misoginia, feminicídio? Aponte sua
camera para o código abaixo ou acesse o link
para assistir o vídeo do canal Nerdologia,
que trata das questões mais urgentes da
violência contra as mulheres. #ficaadica

https://youtu.be/cpnJ4psOoZc

47
Muito prazer, sou ...

O espião Zambur leva Mahiya para Tawariq. Detalhe de uma página do livro Hamzanama,
1570, Metropolitan Museum of Art, Nova York.

Fatima al-Fihri (800-880)


Nem todos conhecem o nome de Fatima, mas o legado
dela é muito importante. Essa mulher mulçumana
recebe o crédito de ter fundado a mais antiga
universidade do mundo, em 859 d.C. no Marocos. Não
bastava esse feito, a Universidade de al-Qarawiyyin
ainda continua funcionando! Pesquise mais sobre as
mulheres mulçumanas e sua incrível cultura.

48
49
Netas de bruxas

T
odas as sociedades humanas possuem suas próprias
crenças do é ‘ser mulher’ e ‘ser homem’. No medievo
essas concepções eram criadas principalmente a partir
das visões religiosas e morais, presentes nas culturas
cristãs, judaicas e mulçumanas.
As divisões e oposições entre os gêneros feminino e masculino
não são “naturais”, elas são construídas socialmente. Nós não
nascemos sabendo como ser um homem ou uma mulher. Nós
aprendemos, assim como aprendemos a falar português, ou a
andar.
Alguns desses jogos se
praticam a cavalo [...] Há
outros que se praticam a
pé [...] Há ainda outros
jogos que se praticam
sentados como o xadrez,
tábulas, dados e muitos
outros jogos de tabuleiro.
E ainda que todos esses
jogos sejam muito bons,
cada um no seu lugar
e tempo adequados, os
que se jogam sentados
são cotidianos e podem
ser realizados tanto de
noite como de dia, como
podem também ser
praticados pelas mulheres
- que não cavalgam
e ficam em casa (...)
(Libro del Acedrex
de D. Alfonso, o
Sábio,1221-1284, rei
de Leão e Castela.)

Detalhe do Codex Manesse de um casal jogando xadrez


(c. 1305-1315), UB Heidelberg, Cod. Pal. germ. 848, fol. 13r
.
50
nquanto seres sociais, aprendemos a nos comportar de

E acordo com o que nos é ensinado por nossa família,


por nossa escola e é claro, com as demais pessoas que
nos relacionamos. Dessa forma, a concepção de gênero
está ligada aos parâmetros da sociedade, de nossa identidade
pessoal, e não somente do sexo biológico que nascemos. Como
podemos verificar essas diferenças nos períodos históricos?

divisão sexual do trabalho:


o que é trabalho de ‘homem’ e de ‘mulher’?
Existem leis específicas que proíbem a ação
feminina?
As mulheres podem escrever/julgar as leis?
Elas têm acesso à educação formal (escola,
universidades)?
divisão dos espaços e esferas
sociais:
Quem está visível e invisível? Em que
lugares é proibido ir por ser homem
ou mulher? Quem ocupa os ambientes
públicos e privados?
Comportamentos e deveres:
Como devem se vestir? Se comportar? O
que lhe é permitido fazer sozinho (a)?
Relações de poder e hierarquia:
qual a relação entre homens e mulheres?
Quem é considerado inferior ou superior?
Como essas questões se relacionam com
outras hierarquias sociais como etnia,
orientação sexual, classe social?

Cada sociedade/período histórico vai construir uma concepção


diferente sobre esses elementos. Essas relações envolvem tensões e
conflitos, violências, negociações e trocas.
51
R e s p o n da :

Ainda há leis que proibem mulheres exercer alguma profissão


em nossa sociedade? Pesquise.

Quais são as mulheres que você mais admira? Quais são suas
autoras, cantoras, atrizes ou profissionais preferidas?

Quais foram as heroínas de seu país/estado?

#desafio detetive:

Escolha uma mulher histórica brasileira e pesquise sobre ela.


Busque fotos, descrições, discursos e quaisquer relatos ou tes-
temunhos que demonstrem a razão dela ser lembrada. Procure
por exemplos de mulheres negras, indígenas, ou qualquer ou-
tra figura normalmente esquecida pelos livros tradicionais.

52
As mulheres sobrenaturais no presente

A história do mito de Melusina foi encontrada em diversos


lugares em diferentes épocas históricas. Em cada contexto, os
temas do casamento e do sobrenatural são adaptados conforme
o desejo do autor(a).
A Dama do Pé de Cabra, a personagem ibérica, também está
presente em outras edições e mídias. No século XIX a ‘Lenda
da Dama Pé-de-Cabra’ foi reescrita pelo português Alexandre
Herculano, na obra Lendas e Narrativas. O autor adicionou mais
detalhes e diálogos à história. Ele acentuou as características
diabólicas da personagem, dessa vez sem simbologia positiva.

Dama Pé de Cabra(IV), Paula Rego, Dama Pé de Cabra (V), Paula Rego,


2011-12. 2011-12.

53
Observe a passagem em que o marido, D. Diego descumpre o
pacto e se benze:

“Pelas barbas de D. From, meu bisavô! — exclamou D. Diogo,


pondo-se em pé, trêmulo de cólera e de vinho. —A perra maldita
matou-me o melhor alão da matilha; mas juro que hei-de escor-
chá-la.” E, virando com o pé o cão moribundo, mirava as largas
feridas do nobre animal, que expirava. “A la fé que nunca tal
vi! Virgem bendita. Aqui anda coisa de Belzebu.” — E dizendo
e fazendo, BENZIA-SE E PERSIGNAVA-SE. “Ui!”— gritou sua
mulher, como se a houveram queimado. O barão olhou para ela:
viu-a com os olhos brilhantes, as faces negras, a boca torcida e
os cabelos eriçados. E ia-se alevantando, alevantando ao ar, com
a pobre D. Sol sobraçada debaixo do braço esquerdo: o direito
estendia-o por cima da mesa para seu filho, D. Inigo de Biscaia.
E aquele braço crescia, alongando-se para o mesquinho, que, de
medo, não ousava bulir nem falar. E a mão da dama era preta e
luzidia, como o pêlo da podenga, e as unhas tinham-se-lhe esten-
dido bem meio palmo e recurvado em garras. “Jesus, santo nome
de Deus!” bradou D. Diogo, a quem o terror dissipara as fumaças
do vinho. E, travando de seu filho com a esquerda fez no ar com
a direita, uma e outra vez, o sinal da cruz. E sua mulher deu um
grande gemido e largou o braço de Inigo Guerra, que já tinha se-
guro, e, continuando a subir ao alto, saiu por uma grande fresta,
levando a filhinha que muito chorava. Desde esse dia não houve
saber mais nem da mãe nem da filha.”

(Lendas e Narrativas, Alexandre Herculano, 1851)

54
A Dama Pé-de-Cabra, por Jorge Magalhães (texto) e Augusto Trigo (desenho)
Lendas de Portugal, 1.º volume (Edições Asa, 1989).

Observe a descrição de Alexandre Herculano e a representação


nos quadrinhos acima e responda: como a Dama é descrita nesse
trecho? Qual é a principal diferença entre este e o texto medieval?

55
A Idade Média em Cordel

“Nossa mente traz memórias Quase sempre são ateus


Herdadas dos ancestrais Que, por zombarem de Deus
As quais determinam crenças Têm severa punição.
E tradições culturais,
Como o mítico e o lendário, Crença a muito enraizada
Herança do imaginário No folclore ocidental:
Das eras medievais. A recompensa do bem,
E a punição do mal,
Entre os monstros medievos Popular cosmovisão
São descritos, comumente, Com bases na tradição
Os mais horrorosos híbridos, Católica medieval”.
Mistura de bicho e gente:
Mantícoras fantásticas, feias Trecho do cordel “A presença do
Grotesco nos Enredos dos
Melusinas e sereias Cordéis” de Rouxinol do Rinaré.
Pintadas grotescamente!

Nos folhetos populares


De diversos menestréis
Do imaginário bizarro
Seguem no mesmo viés,
Pois é notório e dantesco
A presença do grotesco
Nos enredos dos cordéis.
Geralmente são relatos
Falando em transmutação. A mulher que virou cobra, Anô-
nimo. Acervo museu de arte da
De gente que vira bicho, UFC (MAUC), Fortaleza-CE.
Uma horrenda aberração,

Como podemos relacionar os modelos femininos e masculinos


da Idade Média e as nossas próprias representações desses modelos
no presente? Religião, diferentes culturas, fatos históricos
e individuais, todas esses elementos devem ser levados em
consideração para uma análise responsável do passado humano.

56
nquanto estudantes do Brasil nós tentamos enxergar as

E razões e as relações entre a História da Idade Média e


a nossa História. Não é possível simplesmente afirmar
que o medievo de Portugal é a origem da civilização
brasileira. Nosso passado não é só branco e europeu. Precisamos
saber o passado das sociedades africanas, conhecer mais sobre
as diferentes comunidades indígenas, mas especialmente, é
importante que consideremos as violências, apropriações e
influências dessas culturas para a formação de nossa realidade
atual. Essa realidade não é igual para todos e todas.
No Brasil não tivemos uma Idade Média, pois ainda não existia
o país de hoje. Temos, no entanto, a possibilidade de identificar
as apropriações dos vestígios desse tempo, que são modificados
em nossa realidade. A isso chamamos de residualidades:
manifestações vivas do presente de valores medievais trazidos
pelos portugueses. É possível achá-los em nossa religiosidade,
nas manifestações culturais, em nossas concepções de familia,
governo, em nossa linguagem e literatura.
O cordel representa um grande
exemplo de literatura popular #PROJETO CORDEL
herança do contato com o Assim como alguns
estilos músicais como o
Portugal no fim da Idade Média.
rap, o cordel necessita de
Com temas mais variados, o
rimas. Que tal tentar fazer
formato em poesia são editados um cordel sobre alguma
em pequenos livros. Um mulher brasileira?
exemplo do contato distante com Você pode fazer uma
o maravilhoso medieval e sua sextilha, que são estrofes
presença no Nordeste brasileiro, de seis versos. O segundo,
encontramos nas histórias de o quarto e o sexto verso
de sua estrofe devem
cordel pessoas metade animal,
rimar entre si.
Melusinas transformadas em
solo brasileiro.
57
Considerações Finais

É impossível acessar todos os livros, itens e memórias da enorme


biblioteca que guarda os saberes da humanidade. Algumas
informações se perderam no tempo, ou foram destruídas. Outras
nem chegaram a ser registradas.
Muitas perguntas ficarão sem resposta. O passado das mulheres
ainda é, em sua grande parte, desconhecido. Mas, mesmo que não
saibamos seus nomes, suas funções, seus feitos, temos certeza de
que elas estavam lá.
É fácil esquecer das coisas que não fazem parte de nossas
realidades. Esse material teve a proposta de levar até você
algumas histórias, exemplos e perspecticas de um passado que
merece nossa atenção. Ele nos inspira, nos diverte e também nos
alerta: ainda hoje, mulheres morrem simplesmente por serem
mulheres. Investigar o passado é lidar com duras realidades, mas
também nos dá ferramentas que nos ajudam a entender melhor
nosso mundo e talvez, a mudá-lo.

PM

58
Glossário
Anedota: Breve relato histórico ou fato curioso, geralmen-
te relacionado com a vida de personagem célebre ou lendário.

Cristianizar: Tornar(-se) cristão ou converter(-se) à fé cristã.

Feminicídio: é uma expressão utilizada para denominar as


mortes violentas de mulheres em razão de gênero, ou seja,
que tenham sido motivadas por sua “condição” de mulher

Imaginário: Conjunto de características, valores e símbo-


los de grupo de pessoas ou de um povo ou comunidade.

Misoginia: Antipatia ou aversão mórbida às mulheres.

Mito: História fantástica de transmissão oral, cujos pro-


tagonistas são deuses, semideuses, seres sobrenatu-
rais e heróis que representam simbolicamente fenôme-
nos da natureza, fatos históricos ou aspectos da condição
humana; fábula, lenda, mitologia. Relato que, sob forma ale-
górica, deixa entrever um fato natural, histórico ou filosófico.

Prensa: Máquina composta essencialmente de duas pe-


ças, das quais uma se move contra a outra para compri-
mir, achatar ou espremer qualquer objeto ou substân-
cia que entre elas se coloque. Máquina de impressão.
Representação: Imagem ou ideia que traduz nossa concepção
de alguma coisa ou do mundo. Qualquer coisa que se represen-
ta.

Sexismo: Preconceitos e discriminação que se baseiam no sexo.

Trovadorismo: gênero literário que surgiu na Idade Mé-


dia no século XII. Seus poetas escreviam e cantavam as
cantigas inspiradas em temas da épo-
ca, muitos deles valorizando a figura feminina..

59
Referências
Fonte:
Livro de Linhagens do Conde de D. Pedro. Ed. Crítica de José
Mattoso, et el. Portugaliae Monumenta Historica a Saeculo Octavo
Post Christium Usque ad Quintumdecimum. Lisboa: 1980, v.I/II
Obras gerais e específicas:
CASAGRANDE, Carla. A mulher sob custódia. In: DUBY, George;
PERROT, Michelle (orgs.). História das mulheres no Ocidente.
A Idade Média, vol 2. Lisboa: Afrontamentos, 1990, p. 99 -141.
ECO, Umberto. Idade Média - Bárbaros, cristãos
e mulçumanos. Alfragide: Dom Quixote, 2010.
LE GOFF, Jacques. Heróis e maravilhas da Idade
Média. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2009.
_______. Maravilhoso. In: LE GOFF, Jacques;
SCHMITT, Jean-Claude (Coord). Dicionário Analítico
do Ocidente Medieval. São Paulo: Ed. Unesp, 2017.
JELIN, Elizabeth. El género en las memorias. In: ______. Los
trabajos de la memoria. Madri: Siglo Veintiuno, 2002. p. 99-116.
MICAELIS. Dicionário de Lingua Portuguesa.
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PERROT, Michelle. As Mulheres e os
Silêncios da História. São Paulo: EDUSC, 2005
SCHAUS, Margareth (org.). Women and gender in Medieval
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SCHMITT, Jean-Claude. Feitiçaria. In: LE GOFF, Jacques;
SCHMITT, Jean-Claude (Coord). Dicionário Analítico
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SILVA, Manuela Santos. Protagonistas ainda ausentes: as mulheres
nas cortes medievais portuguesas. In: As cortes e o parlamento,
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VALLE, Diego Merino del Valle. Las mujeres em al-Ándaluz:
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VERDE, Rafael Lima; ABU, Marquinho. Bestiário Nordestino:
um olhar sobre a gravura fantástica. Fortaleza: Expressão, 2018.
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