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Não queiras acreditar nas fadas, nem nos papões, nem nos príncipes
transformados em gatos e em cães, nem nos reis que passeiam de manto e de
coroa na cabeça. Os reis são homens como quaisquer outros. Quando nascem
vêm nus como tu quando nasceste.
Rómulo de Carvalho
RESUMO: Entre as múltiplas faces da cultura que foram alvo de interesse para Rómulo de Carvalho
também está presente a história social do seu país. Neste campo sublinha-se bem a convergência dos
seus labores profissionais e da sua vocação: professor de liceu, pedagogo e autor de manuais escolares,
historiador do ensino e da educação, divulgador científico e até poeta (sob o pseudónimo de António
Gedeão). No presente artigo ocupamo-nos sobretudo das suas reflexões em torno da sociedade
medieval a partir de quatro publicações: As origens de Portugal – História contada a uma criança,
composta em forma de uma conversa descontraída de um pai com o seu filho de oito anos; História do
Ensino em Portugal, grosso volume que aborda desde os tempos da fundação da nacionalidade até ao
fim do regime de Salazar-Caetano; O texto poético como documento social, onde estabelece um
diálogo entre os versos e o ambiente social em que foram gerados; e o artigo “Ay flores, ay flores do
verde pino”, em que analisa, a partir da estilística, a célebre cantiga do rei D. Dinis.
RESUMEN: Entre las múltiples facetas de la cultura que fueron objeto de interés para Rómulo de
Carvalho también está presente la historia social de su país. En este campo destaca especialmente la
convergencia de sus labores profesionales y de su vocación: profesor de instituto, pedagogo y autor de
manuales escolares, historiador de la enseñanza y de la educación, divulgador científico y hasta poeta
(bajo el pseudónimo de António Gedeão). En el presente artículo nos ocupamos sobre todo de sus
reflexiones en torno a la sociedad medieval a partir de cuatro publicaciones: As origens de Portugal –
História contada a uma criança, compuesta en forma de una fluyente conversación de un padre con su
hijo de ocho años; História do Ensino em Portugal, grueso volumen que aborda desde los tiempos de
la fundación de la nacionalidad hasta el fin del régimen de Salazar-Caetano; O texto poético como
documento social, en donde establece un diálogo entre los versos y el ambiente social en el que fueron
compuestos; y el artículo “Ay flores, ay flores do verde pino”, en el que analiza a partir de la estilística
la célebre cantiga del rey D. Dinis.
1
INTRODUÇÃO
1
Por citar apenas um caso em língua portuguesa, pensemos na colecção da História da vida privada no Brasil,
coordenada por Fernando A. Novais e publicada pela Companhia das Letras a partir de 1997. Esta “nova”
história brasileira preocupa-se especialmente em trazer à colação e comentar costumes e comportamentos do dia-
a-dia, conhecimentos, gostos e sentimentos da população e da sua mentalité, deixando de lado a “velha” história,
que seleccionava apenas os mais altos estratos da pirâmide social e se interessava sobretudo pelos feitos dos
grandes dirigentes.
2
também neste caso a obra chegou a experimentar um considerável êxito junto do público
leitor, com curtos espaços de tempo entre as reedições e com traduções para outros idiomas.
Embora de uma maneira menos intensa e extensa do que em relação a outros períodos
(nomeadamente o século XVIII como época revolucionária na ciência universal), também
Rómulo de Carvalho mostrou interesse pela Idade Média na sua actividade em prol da
divulgação da cultura. E, como veremos, é precisamente na linha de pensamento descrita e
exemplificada acima quanto à aproximação da história que se situam as páginas que Rómulo
de Carvalho escreveu sobre tal período, preocupando-se em incentivar um “diferente olhar”
sobre o passado para reconstituir os hábitos, os gestos, os saberes e as sensibilidades da
sociedade. Sob tal prisma redigiu já em 1943, quando era um jovem professor liceal e pai de
um menino que acabava de entrar na escola primária, um grosso volume sobre as origens de
Portugal. Parece que nunca pretendeu o autor publicar aquelas páginas, mas em boa hora a
Fundação Calouste Gulbenkian no-las deu a conhecer em 1998 através de uma edição fac-
similada2.
Na verdade, fácil é perceber que o autor ensaiou aqui os seus excepcionais dotes de
didacta, pedagogo e divulgador de conhecimentos. Para a maioria das crianças a proto-história
de Portugal e os primeiros anos da nacionalidade são períodos dificilmente assimiláveis, pelos
quais passam de forma apática, desinteressados perante uma sucessão de povos
desconhecidos, todos igualmente estranhos e habitantes de terras com nomes caídos em
desuso. Não possuindo uma noção do tempo histórico, as datas que os alunos se vem
obrigados a fixar chegam a carecer de sentido, guardando amiúde desses tempos unicamente
uma visão bastante turva, salpicada de batalhas e conquistas. Face a tal situação, Rómulo de
Carvalho pretendeu entrar sem reservas no mundo das vivências infantis logo desde as
primeiras palavras que dirige ao seu leitor/ouvinte, por meio das quais localiza o país nas suas
coordenadas geográficas e cronológicas:
2
As nossas primeiras reflexões sobre as aproximações que Rómulo de Carvalho faz da história do seu país foram
expostas em “Rómulo de Carvalho como historiador social: a sua focagem da Idade Média”, comunicação
apresentada no Colóquio Internacional Rómulo de Carvalho / António Gedeão, que teve lugar nos dias 23 e 24
de Novembro de 2006 no ISMAI (Instituto Superior da Maia).
A presente abordagem equivale a uma versão desenvolvida e actualizada, ligando-se ao projecto de investigação
“La obra de Mário Martins como estudio de las interrelaciones literarias y culturales en el contexto ibérico”
(referência FFI2008-0824/FILO), com sede na Universidade de Santiago de Compostela, dirigido por Maria
Isabel Morán Cabanas e subsidiado pelo Ministerio de Ciencia e Innovación.
3
Como já te disse o nosso país, Portugal, não existiu sempre. É claro que o
sítio onde ele fica sempre existiu. Simplesmente não se chamava Portugal
nem os homens que cá viviam se chamavam portugueses. Sabes há quanto
tempo é que Portugal existe? Sabes há quanto tempo é que existe um pedaço
de terra com o nome de Portugal? Não sabes, mas eu digo-te. Há pouco mais
de 800 anos. Fixa bem: oitocentos anos [...].
Muitos dos papeis onde eles escreveram se perderam ou se estragarem com o
tempo mas também houve muitos que conseguiram chegar até hoje e estão
guardados, com todo o cuidadinho, nas tais casas chamadas bibliotecas
(1998, s.p.).
Tal como podemos observar nas palavras acima transcritas, o autor opta por uma
relação directa, coloquial, entre docente e discente, que funciona como uma conversa com
todas as suas derivações. Procura em cada momento manter activa a atenção, provocando e
esperando perguntas, ou demandando respostas de quem, pela primeira vez, se vai defrontar
com os prelúdios da história do seu país. Na verdade, evidencia-se a cada passo o propósito de
manter acesa uma teia de cumplicidade na explicação e nos comentários dos dados que
progressivamente se fornecem. Aliás, Rómulo de Carvalho escolhe como alvo privilegiado
desta viagem no tempo a vida quotidiana dos povos que habitaram a Península Ibérica, dando
a conhecer usos e costumes de todo o tipo: meios e modos de navegação, profissões, espaços
de habitação, armas e técnicas de batalha, formas de sobrevivência (pesca e caça) etc.
Outrossim, descreve com pormenores um castelo da Idade Média, visto estas fortificações
fazerem parte do imaginário infantil e serem, simultaneamente, construções emblemáticas
para o estudo do período em questão. Não comenta ainda tal estrutura arquitectónica apenas
como baluarte militar, mas tendo em conta a sua função como residência e enquadrada na
vida social da época.
Embora o protagonismo seja colectivo na história contada com as palavras do pai-
mestre, salientam-se naturalmente as figuras de Viriato, o pastor líder da tribo lusitana que
confrontou os romanos na Península Ibérica, e dos dois primeiros reis de Portugal: Afonso
Henriques e Sancho I. Ao evocar os projectos e a autoproclamação como monarca daquele
que ao longo de quarenta anos mais que duplicou o território que o seu pai, o Conde
Henrique, lhe tinha legado – sendo, por isso mesmo, cognominado O Conquistador – , o autor
apela à imaginação e até procede, como em bastantes outras ocasião, à dramatização,
utilizando-a como ferramenta de grande valor para incentivar uma aprendizagem
participativa:
Calcula como ele deve andar contente lá no seu castelo de Guimarães. Deve
andar com a espada pendurada à cintura e a pensar no que há-de ir fazer
4
agora. Que fazer? [...] Lá para baixo, para o sul é que estão os seus inimigos
mouros. E que belas terras que eles têm! Até faz lamber os beiços! Ai, quem
me dera apanhá-las! Que boas terras! Duas delas então! Ai! Santarém e
Lisboa! [...] E se nós fôssemos conquistá-las? Vamos? Vamos? Pois vamos.
Primeiro Santarém. Depois Lisboa (1998, s.p.).
Por outro lado, nos comentários críticos que se publicaram em diferentes meios
impressos e digitais sobre a designada “literatura infanto-juvenil” composta por Rómulo de
Carvalho já se tem sublinhado a importância da sua preocupação pela exactidão3. Descobre-se
na sua escrita a vontade de seguir a verdade e imparcialidade como guia, afastando-se assim
dos modelos então em voga no Estado Novo (e não só), amiúde prontos a omitirem,
adulterarem e avolumarem a realidade até transformarem os relatos históricos para crianças
em narrativas heróicas e gloriosas. Pelo contrário, incentiva a perspectiva crítica e
nomeadamente ética perante as personagens e as suas acções, assim como estimula o apreço
pela liberdade de consciência de quem professa uma religião, seja ela qual for. Não silencia
nem dissimula a crueldade dos cavaleiros e cruzados sob o reinado de Afonso Henriques e do
seu sucessor, também chamado O Povoador, precisamente pelo estímulo com que apadrinhou
o povoamento dos territórios do país. Relata, por exemplo, a maneira como foram roubados e
trespassados com lanças muitos velhos, mulheres, crianças e pessoas que não tinham com que
se defender na tomada sangrenta da cidade algarvia de Silves até concluir com o seguinte
esclarecimento: “depois de os habitantes terem sido assassinados com toda a crueldade, os
cruzados voltaram aos seus barcos e partiram para o seu destino que era a Palestina [...]. Os
cruzados, como te disse, eram os soldados cristãos” (1998, s.p.).
Descreve os combates como se de um filme se tratasse, mostrando também a sua face
anti-heróica ou anti-épica e recomendando mesmo ao seu leitor/ouvinte de pouca idade que:
“O melhor é tu fechares os olhos para não veres tanta desgraça”. Tal como indica a estudiosa
e autora de literatura infanto-juvenil Luísa Ducla Soares (2006), nestas páginas deixa-se
revelar a formação científica tão arreigada de Rómulo de Carvalho, que insiste em
desmitificar fantasias, falácias ou patranhas enganadoras quanto às sumptuosidades e ao
status social que os adultos costumam infundir na mente dos meninos:
Não queiras acreditar nas fadas, nem nos papões, nem nos príncipes
transformados em gatos e em cães, nem nos reis que passeiam de manto e de
coroa na cabeça.
3
Referimo-nos aos que apareceram sobretudo ao longo do ano 2006, em que se comemorou o centenário do
nascimento de Rómulo de Carvalho. Entre outros, veja-se especialmente o atento estudo de Luísa Ducla Soares
(2006), que passa em revista todas as publicações de Rómulo de Carvalho dirigidas a um público jovem,
sublinhando as constantes de tal escrita e os seus aspectos inovadores, por vezes explicados com comentários
que se situam na contracorrente de um discurso oficializado.
5
Os reis são homens como quaisquer outros. Quando nascem vêm nus como
tu quando nasceste. Comem como tu, mastigam com os dentes como tu,
constipam-se como tu e, às tantas, morrem como tu [...]
Apesar de terem tanto poder e tantas grandezas, os reis e os papas também
têm os seus aborrecimentos, as suas dores de dentes, as suas constipações e
também morrem, como nós (1998, s.p.).
6
criança4. O livro suscita muitas abordagens laterais a propósito de ensinamentos básicos de
geografia, ciências naturais ou cultura geral, todas elas indispensáveis à compreensão da
história que costumava ser, nesses anos quarenta do século XX, basicamente tagarelada no
âmbito escolar como um elenco de reis com seus cognomes e batalhas em ordem cronológica
a fim de criar na mocidade portuguesa uma visão “patrioteira”.
Em síntese, cabe sublinhar a actualidade das páginas redigidas por Rómulo de Carvalho:
aprendizagem participativa, história interactiva ou dinamizadora de espaços e momentos,
interdisciplinaridade, transmissão de valores éticos (humildade perante o saber; amor à
verdade, mesmo se desagradável; respeito pela diversidade e liberdade de consciência). Eis
toda uma série de conceitos manejados sobretudo nas últimas décadas em relação à teoria e
prática didáctico-pedagógica, que o leitor encontra já perfeitamente desenvolvidos nestas
explicações sobre as origens do Portugal elaboradas há mais de meio século.
Mais de quatro décadas passam até que sai do prelo História do ensino em Portugal, em
que se evidencia a tentativa de diluir a aparente contradição entre ciência especializada e
interesse divulgador. Alivia-se ali a terminologia especializada e nas notas de rodapé conjuga-
se sabiamente a exposição de um vasto saber erudito com a vontade de evitar a densidade do
estilo. Rómulo de Carvalho também remete aqui o seu leitor para os primórdios da
nacionalidade, reflectindo acerca do modo como se praticou a actividade pedagógica na zona
da Península Ibérica que veio constituir o território da nação. Passa em revista as relações
entre instrução e Igreja através de escolas monásticas e episcopais, estas também designadas
como escolas catedrais. Relativamente às primeiras, sublinha a importância das ordens
religiosas pertencentes ao mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e ao mosteiro de Alcobaça,
descrevendo os seus programas e métodos de ensino, lembrando as suas personalidades e a
riqueza das suas bibliotecas em códices manuscritos. Quanto às segundas, também nos dá
4
Tenha-se em conta que em 1952 se iniciou na editora Atlântida de Coimbra uma colecção chamada Ciência
para gente nova, na qual Rómulo de Carvalho assinou ao longo de uma década todos os títulos: História do
telefone, História da Fotografia, História dos Balões, História da Electricidade Estática, Histór ia do Átomo,
História da Radioactividade, História dos Isótopos e História da Energia Nuclear, apenas com excepção da
História do Sangue, que redigiu Ilídio Sardoeira. Toda esta série aparece profusamente ilustrada com gravuras
antigas que contribuem com eficácia para dar uma perspectiva histórica, junto com vários gráficos e desenhos
actuais que representam diversos objectos e experiências. E, ainda, o visual da capa da História dos Isótopos
apresenta-se-nos sob a responsabilidade de António Gedeão, o alter-ego do professor que, além de poeta,
também como artista plástico se expressa nesta ocasião.
7
informações de casos concretos (Sé do Porto, Sé de Coimbra e Sé de Lisboa) e ilustra-nos,
ainda, sobre o funcionamento das Colegiadas, igrejas que comportavam um cabido de
cónegos presidido por um prior, assim como acerca da existência das escolas paroquias e
mesmo da promoção e do auxílio prestados a estudantes pobres por iniciativas particulares
durante o período medieval. Aliás, discute índices relativos ao (an)alfabetismo naquela altura
e reflecte a propósito das dificuldades que se opunham naquela altura à expansão do ensino.
Obviamente que a figura de D. Dinis merece um especial destaque na obra e, com
efeito, a sua focagem até chega a marcar a separação dos capítulos no grosso volume. Rómulo
de Carvalho distingue um ANTES, um DURANTE e um APÓS este monarca, dado o seu
empenho pela criação do Estudo Geral em Lisboa, para o qual mandou o rei construir um
prédio próprio na freguesia de Santo Estêvão de Alfama. A fim de evitar as confusões
terminológicas que tantas vezes se detectam nos escritos sobre a história da educação, o autor
sente a necessidade de esclarecer previamente que este não corresponde de modo exacto com
o conceito de Universidade:
5
Eis mais uma prova do culto pelo pormenor didáctico que caracterizou o espírito de Rómulo de Carvalho. Sabia
que desse pormenor, apenas aparentemente secundário, resultava o enriquecimento e a compreensão daquilo que
pretendia comunicar aos discentes. Quando Alcina do Aido e Maria Gertrudes Basto, suas estagiárias, evocam a
metodologia que seguia nas aulas, lembram que ele sempre defendeu a “necessidade de ressaltar bem um termo
novo que aparecesse durante uma lição, escrevendo-o destacadamente no quadro e, sempre que possível,
apresentando a sua etimologia, de forma a facilitar a compreensão do seu significado” (2001, p. 33-34). Na
verdade, tal atitude evidencia-se a propósito de muitos dos vocábulos relativos ao ensino na Idade Média: para
além do caso acima mencionado, o autor considera preciso o esclarecimento dos significados e das evoluções
semânticas experimentadas por termos como escolar, clérigo, lente etc.
8
historiador social. Quer no seu prefácio quer em excursos conclusivos adverte com ênfase que
apenas sob uma óptica abrangente se pode encarar o percurso do ensino em qualquer país. De
facto, esclarece relativamente ao século XIII:
6
No início seriam utilizadas cópias manuscritas, mas após a invenção da imprensa sucederam-se
admiravelmente tanto edições da obra completa como de certas partes. Algumas delas localizarem-se em cidades
como Nápoles, Lovaina, Antuérpia, Milão, Colónia, Lyon, Veneza, Basileia, Paris, Saragoça, Lípsia, Ruão,
Sevilha, Estrasburgo, Viena, Alcalá de Henares, Salamanca etc. Enfim, pela extensão da lista se pode apreciar
bem a projecção que alcançou este livro do famoso médico, professor, e matemático português do século XIII
como manual de referência em toda a Europa culta.
9
régias que se reproduzem literalmente no livro em foco que alguém lhes faça mal, os fira, os
roube ou os incomode de qualquer outra forma, oferecendo-lhes inclusive protecção durante
os dias de férias que passavam longe do seu lugar de estudo e obrigando os proprietários das
casas a alugá-las aos escolares. Ao longo de todos os reinados os estudantes tiveram
dificuldades para se alojarem e a população trabalhadora – inclusive os funcionários do rei –
manifestaram sempre má vontade contra os seus privilégios. O termo ódio e certos sinónimos
são mesmo utilizados nalguns dos escritos que Rómulo de Carvalho transcreve para nos
iluminar sobre a gravidade de tais desavenças tantas vezes repetidas:
7
Com efeito, quando o rei D. Duarte trata de forma minuciosa a virtude da prudência no seu Leal Conselheiro e
insiste no papel central que esta deve exercer no regimento do reino – reservando-lhe mesmo um espaço
nitidamente desproporcional ao concedido à Justiça, à Fortaleza e à Temperança -, transcreve um texto composto
por tal jurista (MUNIZ, 2001, p. 247-305).
10
propostas para emendar erros detectados nos sistemas pedagógicos; aos regimentos
promulgados etc. Quanto à orientação dada à obra, Rómulo de Carvalho insiste em que lhe
interessam sobretudo os factos, o que se efectuou e o que não se efectuou, enquadrando-os via
de regra nas suas respectivas conjunturas temporais de modo a entender o porquê de certas
realizações ou projectos e a pôr em destaque as atitudes mentais dos responsáveis. Neste
sentido, quando lembra que o infante D. Henrique, cognominado o Navegador, defendeu a
conveniência de ensinar a Aritmética, a Geometria e a Astrologia, pergunta-se se a inclusão
destas cadeiras não se vincularia já a um pensamento voltado para o mar:
8
No que respeita à formação de pilotos para a navegação na era de Quatrocentos tem-se citado a existência de
uma escola que funcionaria em Sagres, mas não existe nem uma única prova fiável de tal instituição. Seja como
for, no elenco das matérias nomeadas num novo Estatuto assinado em 1431 figuram as seguintes: Gramática,
Lógica, Retórica, Aritmética, Música, Geometria, Astrologia, Medicina, Teologia, Decretais, Filosofia Natural e
Moral, e Leis.
11
um desprezo indisfarçado pelos séculos localizados entre a Antiguidade Clássica e o próprio
século XVI. Tudo o que estivera entre estes dois picos de ciência e criatividade artística não
passava de um hiato, de um intervalo vago. Era também designada como Idade das Trevas, ou
Espessa Noite Gótica, ou Noite de Mil Anos, por ser vista como um período reduzido à
barbárie, ignorância e superstição. Identificava-se com uma interrupção no conhecimento que
fora impulsionado por gregos e romanos e que só fora retomado pelos homens do século XVI
e de períodos subsequentes.
É verdade que ainda ao falar da transição entre Idade Média e Renascimento
encontramos na obra de Rómulo de Carvalho a equiparação do mundo do homem medieval
com um “vale de lágrimas”, ou “triste morada”, ou “lugar de expiação”, quando sublinha a
importância do teocentrismo e a categoria de essência que atingia a salvação da alma,
acomodando qualquer doutrina às exigências do cristianismo. Ora, ao longo dos vários
capítulos que dedica à Idade Média, e que ilumina amiúde com documentos e imagens,
declara implícita e explicitamente que a ânsia do saber científico não estava morta naquela
altura, mas sim profundamente comprometida nas suas expressões. Quanto a Portugal,
embora aluda em várias ocasiões a um atraso face a outros países europeus, sublinha o
elevado número (cada vez maior) de portugueses que frequentaram centros de estudo no
estrangeiro, auxiliados economicamente por meio de bolsas (já nó século XII o rei D. Sancho
patrocinou viagens e estadas para tais efeitos e só na Itália dos séculos XIV e XV podem
contar-se por dezenas). Igualmente, destaca a riqueza de códices manuscritos nos mosteiros e
a perda paulatina do seu monopólio pelas bibliotecas até se evidenciar uma (ainda que não
forte) secularização da cultura e generalização do entusiasmo perante a aquisição de
conhecimentos, facilitada pela invenção da imprensa.
Rómulo de Carvalho dedica também uma atenção especial à Idade Media no seu livro O
texto poético como documento social, publicado também pela Fundação Calouste-Gulbenkian
em 1995. Com ele, pretende o autor erguer aos olhos do público leitor a pessoa do poeta como
um ser observador dos acontecimentos que o rodeiam, e envolvem, no ambiente social em que
se movimenta. O primeiro capítulo, apresentado sob a epígrafe “A contribuição dos poetas
medievais para a apreciação da sociedade em que viveram”, recolhe dezenas de cantigas
trovadorescas galego-portuguesas e ainda em parte do seguinte aparecem focados versos do
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Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, de uma gazetilha que este redigiu sob o título
Miscelânea de coisas e costumes e de diversas peças de Gil Vicente.
As páginas do livro permitem descobrir o árduo trabalho de selecção de textos que foi
levado a cabo, fornecendo-nos em muitos casos trechos quase esquecidos ou que passaram
despercebidos para a crítica literária e que, no entanto, apresentam um acentuado valor
histórico. Tal como acontece na restante produção do autor, revela-se aqui uma orientação
pedagógica e a intenção de aceder a um público mais vasto, não especialista. É por isso que
sente a necessidade de iluminar a transcrição dos versos tirados das edições canónicas dos
Cancioneiros (particularmente, das realizadas por Rodrigues Lapa, Carolina Michäelis de
Vasconcelos e José Joaquim Nunes) com notas sobre o significado de certos vocábulos ou
expressões, as quais acabam por constituir um útil glossário. Leva a cabo uma actualização da
grafia, mas respeita em geral as normas gramaticais da época e o seu padrão estrutural, não
renunciando ao socorro da crítica filológica e permitindo assim o confronto entre dois estádios
da mesma língua poética.
Já no prefácio salienta que a presente obra pretende servir de contributo não só para a
história literária, mas também como elemento de estudo para a (intra-)história de Portugal.
Aliás, particularmente em relação à abordagem dos Cancioneiros galego-portugueses ainda
sublinha a impossibilidade de ter uma ideia correcta do homem peninsular dos séculos XIII e
XIV sem conhecê-los previamente, esclarecendo:
Ao lado das relações amorosas que constituem o tema principal nas cantigas de amor e
de amigo, Rómulo de Carvalho atenta noutros aspectos que encontra explicitados nas cantigas
de escárnio e maldizer e que se referem à vida quotidiana: as disputas entre ricos-homens,
infanções, cavaleiros e escudeiros; as atitudes mostradas perante certos exercícios militares;
as relações de reis e infantes com os seus vassalos; as denúncias que deixam a descoberto a
13
licenciosidade dos meios monásticos; ou a prática da prostituição na Idade Média. Com efeito,
no que diz respeito à focagem desta última questão no corpus da poesia trovadoresca, conta
até trinta e nove cantigas satíricas, fazendo mesmo um levantamento dos nomes que os
trovadores e jograis eternizaram nos seus versos:
9
Concretamente neste sentido o nosso artigo apresenta vinculação ao projecto de investigação “Seis siglos de
poesia amorosa de tipo satírico en lengua portuguesa” (HUM2005-08291), com sede na Universidade de
Santiago de Compostela, dirigido por Carlos Quiroga e subsidiado pelo Ministerio de Ciencia e Innovación.
14
perspectiva que coincide com a consideração da obra literária como produto estético e com a
estilística como orientação na análise do texto. Quer dizer, aplica aqui um tipo de abordagem
imanente, que se detém sobretudo no significante e na busca de sentidos recorrentes a partir
da força que as palavras adquirem no discurso. Tenha-se em conta que a estilística como
metodologia aplicada à crítica literária foi especialmente recorrente no Portugal das décadas
de 60 e 70, caracterizando-se sobretudo pela importância que concede ao estilo – palavra que
começa por significar um instrumento pontiagudo (stylus), com o qual se escrevia sobre
tabuinhas cobertas de cera, e que adquire desde tempos remotos o sentido de modo de
escrever. São conhecidas, de facto, as fórmulas de Platão, “tal carácter, tal estilo”; de Séneca,
“o estilo é a fisionomia da alma”; e, sobretudo, a de Buffon no século XVII, “o estilo é o
próprio homem” (MATOS, 2001, p. 162).
Outro aspecto a acentuar é o papel tão importante que confere tal tendência de análise à
intuição do crítico, entendida como “corrente de afinidade entre este e o poema, clic, ou
estalido percebido como prova de que se deu um encaixe, um ajuste que franqueia a
compreensão da obra”. Em resumo, tal método parte da observação de uma particularidade
linguística superficial que a intuição pressente como digna de nota: averigua-se se ela
constitui um caso característico e procura-se logo investigar o motivo da sua aparição, ou seja,
a sua origem como maneira de conceber a vida ou como dado da psique. São precisamente
estes os passos seguidos por Rómulo de Carvalho perante a presença da interjeição ay na
composição trovadoresca acima referida. Assim, realiza um levantamento dos ays registados
em D. Dinis e em todo o corpus da lírica medieval, definindo-os afinal como um elemento
revelador dos lamentos da alma:
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Conforme o próprio autor do artigo declara explicitamente, não pretendeu de modo
nenhum esgotar aqui o assunto, mas apenas justificar e ilustrar a leitura da cantiga de amigo e
insistir na importância musical e estilística do uso da interjeição pelos poetas dos
Cancioneiros medievais, cuja temática demonstra conhecer bem tanto neste breve artigo como
noutras ocasiões.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Referências bibliográficas:
AIDO, Alcina do; BASTO, Maria Gertrudes. Rómulo de Carvalho enquanto metodólogo. In:
CORTE REAL, Maria Luísa; LOURENÇO, Marta (Coord.). Pedra Filosofal: Rómulo de
Carvalho / António Gedeão. Lisboa: Associação de Apoio ao Museu de Ciência da
Universidade de Lisboa, p. 33-35.
CARVALHO, Rómulo. O texto poético como documento social. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1995.
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CARVALHO, Rómulo. História do Ensino em Portugal, desde a fundação da nacionalidade
até ao fim do regime de Salazar-Caetano. 2 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996.
GEDEÃO, António. Ay flores, ay flores do verde pino. Colóquio Letras, Lisboa, 26, p. 45-53,
1975.
MATOS, Maria Vitalina Leal de. Introdução aos estudos literários. Lisboa-São Paulo: Verbo,
2001.
MUNIZ, Márcio Ricardo Coelho. Os leais e prudentes conselhos de El-Rei D. Duarte. In:
MONGELLI, Lênia Márcia (Coord.). A literatura doutrinária na Corte de Avis. São Paulo:
Martins Fontes, 2001, p. 245-306.
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