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A HISTÓRIA DE PORTUGAL REVISITADA POR RÓMULO DE CARVALHO /

ANTÓNIO GEDEÃO: ILUSTRAÇÕES SOBRE O QUOTIDIANO MEDIEVAL


PARA CRIANÇAS E ADULTOS

Maria Isabel Morán Cabanas


Univ. Santiago de Compostela – USC
isabel.moran.cabanas@usc.es

Não queiras acreditar nas fadas, nem nos papões, nem nos príncipes
transformados em gatos e em cães, nem nos reis que passeiam de manto e de
coroa na cabeça. Os reis são homens como quaisquer outros. Quando nascem
vêm nus como tu quando nasceste.
Rómulo de Carvalho

RESUMO: Entre as múltiplas faces da cultura que foram alvo de interesse para Rómulo de Carvalho
também está presente a história social do seu país. Neste campo sublinha-se bem a convergência dos
seus labores profissionais e da sua vocação: professor de liceu, pedagogo e autor de manuais escolares,
historiador do ensino e da educação, divulgador científico e até poeta (sob o pseudónimo de António
Gedeão). No presente artigo ocupamo-nos sobretudo das suas reflexões em torno da sociedade
medieval a partir de quatro publicações: As origens de Portugal – História contada a uma criança,
composta em forma de uma conversa descontraída de um pai com o seu filho de oito anos; História do
Ensino em Portugal, grosso volume que aborda desde os tempos da fundação da nacionalidade até ao
fim do regime de Salazar-Caetano; O texto poético como documento social, onde estabelece um
diálogo entre os versos e o ambiente social em que foram gerados; e o artigo “Ay flores, ay flores do
verde pino”, em que analisa, a partir da estilística, a célebre cantiga do rei D. Dinis.

PALAVRAS-CHAVE: Rómulo de Carvalho; António Gedeão; História; Pedagogia; Idade Média;


Quotidiano; D. Dinis.

RESUMEN: Entre las múltiples facetas de la cultura que fueron objeto de interés para Rómulo de
Carvalho también está presente la historia social de su país. En este campo destaca especialmente la
convergencia de sus labores profesionales y de su vocación: profesor de instituto, pedagogo y autor de
manuales escolares, historiador de la enseñanza y de la educación, divulgador científico y hasta poeta
(bajo el pseudónimo de António Gedeão). En el presente artículo nos ocupamos sobre todo de sus
reflexiones en torno a la sociedad medieval a partir de cuatro publicaciones: As origens de Portugal –
História contada a uma criança, compuesta en forma de una fluyente conversación de un padre con su
hijo de ocho años; História do Ensino em Portugal, grueso volumen que aborda desde los tiempos de
la fundación de la nacionalidad hasta el fin del régimen de Salazar-Caetano; O texto poético como
documento social, en donde establece un diálogo entre los versos y el ambiente social en el que fueron
compuestos; y el artículo “Ay flores, ay flores do verde pino”, en el que analiza a partir de la estilística
la célebre cantiga del rey D. Dinis.

PALABRAS-LLAVE: Rómulo de Carvalho; António Gedeão; Historia; Pedagogia, Idade Media,


Quotidiano; D. Dinis.

1
INTRODUÇÃO

A vida quotidiana, tradicionalmente considerada como parente pobre da investigação


histórica, tornou-se, desde há algumas décadas, uma face privilegiada desta. São abundantes
as publicações recentes que tratam de questões relacionadas com o viver diário nas diferentes
etapas do passado humano e, em concreto, da Idade Média. A vivenda, a alimentação, as
profissões, os costumes, os modos de trajar etc. representam alguns dos temas analisados de
maneira mais recorrente pela historiografia medievalista dos nossos dias em congressos,
revistas e livros monográficos. Todos eles ligam-se, em princípio e aparentemente, ao âmbito
material. Porém, tenha-se em conta que até na própria eleição de qualquer um ou de quaisquer
outros dos elementos mencionados entra em jogo o mundo do espírito (individual ou
colectivo). Afinal sempre existe uma razão ou uma série circunstâncias pessoais e/ou sociais
que justificam a escolha de uma determinada forma de aproveitar o espaço em que se vive; a
roupa que se utiliza; a comida que se ingere etc. E, assim, até acabam por situar-se sob o
espectro do quotidiano certos assuntos directamente conectados com o território do atitudinal,
tais como o emprego do tempo livre; a participação em certos espectáculos, festas e rituais de
cariz simbólico; ou a reprodução de gostos, valores, relações sociais e ideias adquiridas.
Neste sentido, o produto editorial mais célebre foi a colecção dirigida por Philippe
Áries e Georges Duby, Histoire de la vie privée, obra colectiva publicada a partir de 1981 e
constituída por vários tomos, na qual se aborda a história europeia ao longo de dois milénios.
Na verdade, tal estudo gozou de um notável sucesso e as traduções feitas do original francês
para outras línguas figuraram durante bastante tempo nas listas dos livros mais vendidos,
assim como deixou inúmeros e fortes ecos em textos redigidos noutros países da Europa e da
América1. Ora, concretamente no que diz respeito a Portugal, não podemos deixar de
sublinhar aqui o cariz inovador que apresentou A sociedade medieval portuguesa, subtitulada
Aspectos da vida quotidiana e elaborada já por A. H. Oliveira Marques mais de quinze anos
atrás. O autor, logo no prefácio, declara a sua consciência de precursor: “Este livro procura
trazer qualquer coisa de novo [...]. É portanto um trabalho de pioneiro, com todas as
desvantagens que a abertura de caminhos traz sempre” (1981, p. 15) – diga-se, aliás, que

1
Por citar apenas um caso em língua portuguesa, pensemos na colecção da História da vida privada no Brasil,
coordenada por Fernando A. Novais e publicada pela Companhia das Letras a partir de 1997. Esta “nova”
história brasileira preocupa-se especialmente em trazer à colação e comentar costumes e comportamentos do dia-
a-dia, conhecimentos, gostos e sentimentos da população e da sua mentalité, deixando de lado a “velha” história,
que seleccionava apenas os mais altos estratos da pirâmide social e se interessava sobretudo pelos feitos dos
grandes dirigentes.

2
também neste caso a obra chegou a experimentar um considerável êxito junto do público
leitor, com curtos espaços de tempo entre as reedições e com traduções para outros idiomas.

UM PRIMEIRO OLHAR SOBRE A HISTÓRIA DO PAÍS

Embora de uma maneira menos intensa e extensa do que em relação a outros períodos
(nomeadamente o século XVIII como época revolucionária na ciência universal), também
Rómulo de Carvalho mostrou interesse pela Idade Média na sua actividade em prol da
divulgação da cultura. E, como veremos, é precisamente na linha de pensamento descrita e
exemplificada acima quanto à aproximação da história que se situam as páginas que Rómulo
de Carvalho escreveu sobre tal período, preocupando-se em incentivar um “diferente olhar”
sobre o passado para reconstituir os hábitos, os gestos, os saberes e as sensibilidades da
sociedade. Sob tal prisma redigiu já em 1943, quando era um jovem professor liceal e pai de
um menino que acabava de entrar na escola primária, um grosso volume sobre as origens de
Portugal. Parece que nunca pretendeu o autor publicar aquelas páginas, mas em boa hora a
Fundação Calouste Gulbenkian no-las deu a conhecer em 1998 através de uma edição fac-
similada2.
Na verdade, fácil é perceber que o autor ensaiou aqui os seus excepcionais dotes de
didacta, pedagogo e divulgador de conhecimentos. Para a maioria das crianças a proto-história
de Portugal e os primeiros anos da nacionalidade são períodos dificilmente assimiláveis, pelos
quais passam de forma apática, desinteressados perante uma sucessão de povos
desconhecidos, todos igualmente estranhos e habitantes de terras com nomes caídos em
desuso. Não possuindo uma noção do tempo histórico, as datas que os alunos se vem
obrigados a fixar chegam a carecer de sentido, guardando amiúde desses tempos unicamente
uma visão bastante turva, salpicada de batalhas e conquistas. Face a tal situação, Rómulo de
Carvalho pretendeu entrar sem reservas no mundo das vivências infantis logo desde as
primeiras palavras que dirige ao seu leitor/ouvinte, por meio das quais localiza o país nas suas
coordenadas geográficas e cronológicas:
2
As nossas primeiras reflexões sobre as aproximações que Rómulo de Carvalho faz da história do seu país foram
expostas em “Rómulo de Carvalho como historiador social: a sua focagem da Idade Média”, comunicação
apresentada no Colóquio Internacional Rómulo de Carvalho / António Gedeão, que teve lugar nos dias 23 e 24
de Novembro de 2006 no ISMAI (Instituto Superior da Maia).
A presente abordagem equivale a uma versão desenvolvida e actualizada, ligando-se ao projecto de investigação
“La obra de Mário Martins como estudio de las interrelaciones literarias y culturales en el contexto ibérico”
(referência FFI2008-0824/FILO), com sede na Universidade de Santiago de Compostela, dirigido por Maria
Isabel Morán Cabanas e subsidiado pelo Ministerio de Ciencia e Innovación.

3
Como já te disse o nosso país, Portugal, não existiu sempre. É claro que o
sítio onde ele fica sempre existiu. Simplesmente não se chamava Portugal
nem os homens que cá viviam se chamavam portugueses. Sabes há quanto
tempo é que Portugal existe? Sabes há quanto tempo é que existe um pedaço
de terra com o nome de Portugal? Não sabes, mas eu digo-te. Há pouco mais
de 800 anos. Fixa bem: oitocentos anos [...].
Muitos dos papeis onde eles escreveram se perderam ou se estragarem com o
tempo mas também houve muitos que conseguiram chegar até hoje e estão
guardados, com todo o cuidadinho, nas tais casas chamadas bibliotecas
(1998, s.p.).

Tal como podemos observar nas palavras acima transcritas, o autor opta por uma
relação directa, coloquial, entre docente e discente, que funciona como uma conversa com
todas as suas derivações. Procura em cada momento manter activa a atenção, provocando e
esperando perguntas, ou demandando respostas de quem, pela primeira vez, se vai defrontar
com os prelúdios da história do seu país. Na verdade, evidencia-se a cada passo o propósito de
manter acesa uma teia de cumplicidade na explicação e nos comentários dos dados que
progressivamente se fornecem. Aliás, Rómulo de Carvalho escolhe como alvo privilegiado
desta viagem no tempo a vida quotidiana dos povos que habitaram a Península Ibérica, dando
a conhecer usos e costumes de todo o tipo: meios e modos de navegação, profissões, espaços
de habitação, armas e técnicas de batalha, formas de sobrevivência (pesca e caça) etc.
Outrossim, descreve com pormenores um castelo da Idade Média, visto estas fortificações
fazerem parte do imaginário infantil e serem, simultaneamente, construções emblemáticas
para o estudo do período em questão. Não comenta ainda tal estrutura arquitectónica apenas
como baluarte militar, mas tendo em conta a sua função como residência e enquadrada na
vida social da época.
Embora o protagonismo seja colectivo na história contada com as palavras do pai-
mestre, salientam-se naturalmente as figuras de Viriato, o pastor líder da tribo lusitana que
confrontou os romanos na Península Ibérica, e dos dois primeiros reis de Portugal: Afonso
Henriques e Sancho I. Ao evocar os projectos e a autoproclamação como monarca daquele
que ao longo de quarenta anos mais que duplicou o território que o seu pai, o Conde
Henrique, lhe tinha legado – sendo, por isso mesmo, cognominado O Conquistador – , o autor
apela à imaginação e até procede, como em bastantes outras ocasião, à dramatização,
utilizando-a como ferramenta de grande valor para incentivar uma aprendizagem
participativa:

Calcula como ele deve andar contente lá no seu castelo de Guimarães. Deve
andar com a espada pendurada à cintura e a pensar no que há-de ir fazer

4
agora. Que fazer? [...] Lá para baixo, para o sul é que estão os seus inimigos
mouros. E que belas terras que eles têm! Até faz lamber os beiços! Ai, quem
me dera apanhá-las! Que boas terras! Duas delas então! Ai! Santarém e
Lisboa! [...] E se nós fôssemos conquistá-las? Vamos? Vamos? Pois vamos.
Primeiro Santarém. Depois Lisboa (1998, s.p.).

Por outro lado, nos comentários críticos que se publicaram em diferentes meios
impressos e digitais sobre a designada “literatura infanto-juvenil” composta por Rómulo de
Carvalho já se tem sublinhado a importância da sua preocupação pela exactidão3. Descobre-se
na sua escrita a vontade de seguir a verdade e imparcialidade como guia, afastando-se assim
dos modelos então em voga no Estado Novo (e não só), amiúde prontos a omitirem,
adulterarem e avolumarem a realidade até transformarem os relatos históricos para crianças
em narrativas heróicas e gloriosas. Pelo contrário, incentiva a perspectiva crítica e
nomeadamente ética perante as personagens e as suas acções, assim como estimula o apreço
pela liberdade de consciência de quem professa uma religião, seja ela qual for. Não silencia
nem dissimula a crueldade dos cavaleiros e cruzados sob o reinado de Afonso Henriques e do
seu sucessor, também chamado O Povoador, precisamente pelo estímulo com que apadrinhou
o povoamento dos territórios do país. Relata, por exemplo, a maneira como foram roubados e
trespassados com lanças muitos velhos, mulheres, crianças e pessoas que não tinham com que
se defender na tomada sangrenta da cidade algarvia de Silves até concluir com o seguinte
esclarecimento: “depois de os habitantes terem sido assassinados com toda a crueldade, os
cruzados voltaram aos seus barcos e partiram para o seu destino que era a Palestina [...]. Os
cruzados, como te disse, eram os soldados cristãos” (1998, s.p.).
Descreve os combates como se de um filme se tratasse, mostrando também a sua face
anti-heróica ou anti-épica e recomendando mesmo ao seu leitor/ouvinte de pouca idade que:
“O melhor é tu fechares os olhos para não veres tanta desgraça”. Tal como indica a estudiosa
e autora de literatura infanto-juvenil Luísa Ducla Soares (2006), nestas páginas deixa-se
revelar a formação científica tão arreigada de Rómulo de Carvalho, que insiste em
desmitificar fantasias, falácias ou patranhas enganadoras quanto às sumptuosidades e ao
status social que os adultos costumam infundir na mente dos meninos:

Não queiras acreditar nas fadas, nem nos papões, nem nos príncipes
transformados em gatos e em cães, nem nos reis que passeiam de manto e de
coroa na cabeça.

3
Referimo-nos aos que apareceram sobretudo ao longo do ano 2006, em que se comemorou o centenário do
nascimento de Rómulo de Carvalho. Entre outros, veja-se especialmente o atento estudo de Luísa Ducla Soares
(2006), que passa em revista todas as publicações de Rómulo de Carvalho dirigidas a um público jovem,
sublinhando as constantes de tal escrita e os seus aspectos inovadores, por vezes explicados com comentários
que se situam na contracorrente de um discurso oficializado.

5
Os reis são homens como quaisquer outros. Quando nascem vêm nus como
tu quando nasceste. Comem como tu, mastigam com os dentes como tu,
constipam-se como tu e, às tantas, morrem como tu [...]
Apesar de terem tanto poder e tantas grandezas, os reis e os papas também
têm os seus aborrecimentos, as suas dores de dentes, as suas constipações e
também morrem, como nós (1998, s.p.).

Tornar a história viva em todos os aspectos do mundo quotidiano e da dinâmica militar


que caracterizaram a proto-história e a Idade Média em Portugal revela-se como o principal
objectivo de Rómulo de Carvalho. Vê-se logo que o autor, através da sua redacção, procura (e
consegue) trazer até ao presente um pouco mais da ampla tessitura social dos períodos em
questão. Tenta recriar certos interesses e modos de sobrevivência, defendendo um
conhecimento mais concreto, não meramente livresco, e incitando o seu pupilo a executar (ou
levar à prática) alguns pequenos afazeres que marcarão outros contextos e regularão as
existências do passado. Com efeito, repare-se que aconselha à criança viver a experiência de
atear fogo com os adultos, tal como faziam os homens em tempos primitivos; explica-lhe
como se atiram pedras com as engenhocas (fundas), usadas pelos celtiberos, advertindo do seu
perigo; lembra-lhe que “quando fores grande não te esqueças de ir à cidade de Guimarães
visitar o lindo castelo que lá está” ou que “O túmulo dele [de D.Sancho I] encontra-se também
em Coimbra na mesma igreja em que está o túmulo do pai. Quando lá fores verás os dois, um
defronte do outro” (1998, s.p.). Em definitivo, recorre a cada passo a estratégias que advogam
por uma HISTÓRIA VIVA, demonstrando que tal expressão apenas aparentemente acarreta
um contra-senso semântico.
Seguro da eficácia da ilustração apelativa, Rómulo de Carvalho entremeia breves fichas
com espaços em branco para preencher, mapas para localizar certos pontos, e elementos para
recortar, assim como quadros sintéticos com expressões sublinhadas. Colorida para a faixa
etária a que se destinava, elaborou uma obra exuberante, em que o desenho se intercala no
texto, oscilando entre a exactidão científica e o humor. A ilustração aparece aqui como um
complemento indispensável da narrativa e das diversas explicações que a acompanham, que
desta maneira nunca chegam a cair na pura abstracção. Por isso não hesitou, em determinadas
passagens, em recomendar que o melhor era ver o “bonequinho” por ele pintado e mesmo em
recorrer a certas imagens que se aproximam da banda desenhada, tentando reproduzir, por
exemplo, a impressão de movimento – eis mais provas da procura de um equilíbrio justo, mas
amiúde difícil, entre o rigor e a simplificação necessária à transmissão de informação a uma

6
criança4. O livro suscita muitas abordagens laterais a propósito de ensinamentos básicos de
geografia, ciências naturais ou cultura geral, todas elas indispensáveis à compreensão da
história que costumava ser, nesses anos quarenta do século XX, basicamente tagarelada no
âmbito escolar como um elenco de reis com seus cognomes e batalhas em ordem cronológica
a fim de criar na mocidade portuguesa uma visão “patrioteira”.
Em síntese, cabe sublinhar a actualidade das páginas redigidas por Rómulo de Carvalho:
aprendizagem participativa, história interactiva ou dinamizadora de espaços e momentos,
interdisciplinaridade, transmissão de valores éticos (humildade perante o saber; amor à
verdade, mesmo se desagradável; respeito pela diversidade e liberdade de consciência). Eis
toda uma série de conceitos manejados sobretudo nas últimas décadas em relação à teoria e
prática didáctico-pedagógica, que o leitor encontra já perfeitamente desenvolvidos nestas
explicações sobre as origens do Portugal elaboradas há mais de meio século.

HISTÓRIA DE QUÊ?, DO ENSINO?, DA INSTRUÇÃO?, DA EDUCAÇÃO?...

Mais de quatro décadas passam até que sai do prelo História do ensino em Portugal, em
que se evidencia a tentativa de diluir a aparente contradição entre ciência especializada e
interesse divulgador. Alivia-se ali a terminologia especializada e nas notas de rodapé conjuga-
se sabiamente a exposição de um vasto saber erudito com a vontade de evitar a densidade do
estilo. Rómulo de Carvalho também remete aqui o seu leitor para os primórdios da
nacionalidade, reflectindo acerca do modo como se praticou a actividade pedagógica na zona
da Península Ibérica que veio constituir o território da nação. Passa em revista as relações
entre instrução e Igreja através de escolas monásticas e episcopais, estas também designadas
como escolas catedrais. Relativamente às primeiras, sublinha a importância das ordens
religiosas pertencentes ao mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e ao mosteiro de Alcobaça,
descrevendo os seus programas e métodos de ensino, lembrando as suas personalidades e a
riqueza das suas bibliotecas em códices manuscritos. Quanto às segundas, também nos dá

4
Tenha-se em conta que em 1952 se iniciou na editora Atlântida de Coimbra uma colecção chamada Ciência
para gente nova, na qual Rómulo de Carvalho assinou ao longo de uma década todos os títulos: História do
telefone, História da Fotografia, História dos Balões, História da Electricidade Estática, Histór ia do Átomo,
História da Radioactividade, História dos Isótopos e História da Energia Nuclear, apenas com excepção da
História do Sangue, que redigiu Ilídio Sardoeira. Toda esta série aparece profusamente ilustrada com gravuras
antigas que contribuem com eficácia para dar uma perspectiva histórica, junto com vários gráficos e desenhos
actuais que representam diversos objectos e experiências. E, ainda, o visual da capa da História dos Isótopos
apresenta-se-nos sob a responsabilidade de António Gedeão, o alter-ego do professor que, além de poeta,
também como artista plástico se expressa nesta ocasião.

7
informações de casos concretos (Sé do Porto, Sé de Coimbra e Sé de Lisboa) e ilustra-nos,
ainda, sobre o funcionamento das Colegiadas, igrejas que comportavam um cabido de
cónegos presidido por um prior, assim como acerca da existência das escolas paroquias e
mesmo da promoção e do auxílio prestados a estudantes pobres por iniciativas particulares
durante o período medieval. Aliás, discute índices relativos ao (an)alfabetismo naquela altura
e reflecte a propósito das dificuldades que se opunham naquela altura à expansão do ensino.
Obviamente que a figura de D. Dinis merece um especial destaque na obra e, com
efeito, a sua focagem até chega a marcar a separação dos capítulos no grosso volume. Rómulo
de Carvalho distingue um ANTES, um DURANTE e um APÓS este monarca, dado o seu
empenho pela criação do Estudo Geral em Lisboa, para o qual mandou o rei construir um
prédio próprio na freguesia de Santo Estêvão de Alfama. A fim de evitar as confusões
terminológicas que tantas vezes se detectam nos escritos sobre a história da educação, o autor
sente a necessidade de esclarecer previamente que este não corresponde de modo exacto com
o conceito de Universidade:

O Estudo Geral era a própria escola, o edifício onde se encontravam os


professores para leccionarem e os alunos para receberem o ensino, e era
também a instituição em si mesma, organizada para receber os estudantes
que quisessem seguir os estudos, assim como o conjunto dos cursos. A
Universidade era uma Corporação, uma assembleia, uma congregação de
mestres e alunos, com personalidade jurídica. Na Idade Média os ofícios
estavam congregados em corporações que constituíam confrarias dos
indivíduos dedicados à mesma actividade. A Universidade era uma
corporação análoga à dos ofícios. Este é o significado histórico da palavra
“Universidade”: uma organização corporativa de mestres e de alunos (1996,
p. 55)5.

Distribuição em quatro faculdades (Artes, Direito, Medicina e Teologia) e orientação


das disciplinas leccionadas em cada uma delas; constituição do corpo docente e escala
hierárquica; autores estudados e método de ensino baseado na leitura do texto (lectio) e na sua
discussão (disputatio); calendário escolar e horários; idas e vindas do estrangeiro à procura de
formação; frequência e procedência estudantil; títulos académicos de bacharel e licenciado
etc. são apenas alguns dos temas em torno aos quais reflecte Rómulo de Carvalho como

5
Eis mais uma prova do culto pelo pormenor didáctico que caracterizou o espírito de Rómulo de Carvalho. Sabia
que desse pormenor, apenas aparentemente secundário, resultava o enriquecimento e a compreensão daquilo que
pretendia comunicar aos discentes. Quando Alcina do Aido e Maria Gertrudes Basto, suas estagiárias, evocam a
metodologia que seguia nas aulas, lembram que ele sempre defendeu a “necessidade de ressaltar bem um termo
novo que aparecesse durante uma lição, escrevendo-o destacadamente no quadro e, sempre que possível,
apresentando a sua etimologia, de forma a facilitar a compreensão do seu significado” (2001, p. 33-34). Na
verdade, tal atitude evidencia-se a propósito de muitos dos vocábulos relativos ao ensino na Idade Média: para
além do caso acima mencionado, o autor considera preciso o esclarecimento dos significados e das evoluções
semânticas experimentadas por termos como escolar, clérigo, lente etc.

8
historiador social. Quer no seu prefácio quer em excursos conclusivos adverte com ênfase que
apenas sob uma óptica abrangente se pode encarar o percurso do ensino em qualquer país. De
facto, esclarece relativamente ao século XIII:

Assim foi sempre e continuará a ser, em todo o tempo e em todo o lugar. A


escolha das disciplinas que deverão ser ensinadas, os assuntos que nelas
serão tratados, a orientação que deverá ser dada na respectiva comunidade
escolar, tudo assenta numa determinada concepção da vida, tanto individual
como social. Na Escola, toda a informação transmitida ao aluno durante o
acto de ensinar visa uma formação mental que pretende modelar o indivíduo
para a sociedade que se deseja conservar ou instaurar. A diferença de fundo
que distingue entre si as diversas épocas da História da Pedagogia reside
no tipo de Homem que a Escola pretende criar” (1996, p. 65. Grifo nosso).

É claro que em tal época a preocupação dominante era a de acordar e consolidar no


aluno o sentimento religioso e a glorificação da obra de Deus. Assim, o estudo da natureza
servia para descobrir através dela a presença de Cristo e o Direito para implantar na terra a
justiça divina. Já as primeiras letras eram aprendidas nos livros dos Salmos – no chamado
Saltério – e toda a exemplificação das regras da Gramática partia de autores considerados
como modelos cristãos. A Teologia constituía, portanto, a matéria que mais pesava nas
preocupações dos formadores e, quanto à instrução em Filosofia, a acomodação da obra de
Aristóteles à doutrina do Cristianismo foi um assunto de transcendental interesse. Neste
sentido, Rómulo de Carvalho sublinha o papel de Pedro Hispano, que exerceu o papado com
o nome de João XXI e cujo tratado, Summulae Logicales, serviu de texto básico durante três
séculos – de Duzentos a Quinhentos –, com mais de 260 edições em toda a Europa!6
Aliás, o historiador da pedagogia em Portugal explica-nos pormenorizadamente os
porquês das transferências sucessivas do Estudo Geral de Lisboa para Coimbra e vice-versa.
Sempre guiado pela vocação de oferecer uma leitura amena, mas sem cair em aspectos fúteis
que pudessem retirar algum carácter de seriedade ao seu estudo, Rómulo de Carvalho recorre
com bastante frequência a alguns casos “pitorescos” da vida no dia-a-dia de docentes e
discentes que são registados em crónicas ou noutro tipo de documentação medieval.
Lembremos, assim, os seus comentários e ilustrações quanto à atitude de hostilidade com que
os estudantes eram vistos nestas duas cidades. A estes proibiu-se-lhes em diversas cartas

6
No início seriam utilizadas cópias manuscritas, mas após a invenção da imprensa sucederam-se
admiravelmente tanto edições da obra completa como de certas partes. Algumas delas localizarem-se em cidades
como Nápoles, Lovaina, Antuérpia, Milão, Colónia, Lyon, Veneza, Basileia, Paris, Saragoça, Lípsia, Ruão,
Sevilha, Estrasburgo, Viena, Alcalá de Henares, Salamanca etc. Enfim, pela extensão da lista se pode apreciar
bem a projecção que alcançou este livro do famoso médico, professor, e matemático português do século XIII
como manual de referência em toda a Europa culta.

9
régias que se reproduzem literalmente no livro em foco que alguém lhes faça mal, os fira, os
roube ou os incomode de qualquer outra forma, oferecendo-lhes inclusive protecção durante
os dias de férias que passavam longe do seu lugar de estudo e obrigando os proprietários das
casas a alugá-las aos escolares. Ao longo de todos os reinados os estudantes tiveram
dificuldades para se alojarem e a população trabalhadora – inclusive os funcionários do rei –
manifestaram sempre má vontade contra os seus privilégios. O termo ódio e certos sinónimos
são mesmo utilizados nalguns dos escritos que Rómulo de Carvalho transcreve para nos
iluminar sobre a gravidade de tais desavenças tantas vezes repetidas:

É a desconfiança, o ciúme, a raiva dos que exercem uma actividade muitas


vezes penosa, duramente sofrida, perante aqueles cuja aparência de vida é
improdutiva [...], podendo dispor do tempo conforme lhes agrada (1996, p.
80)

Outros aspectos da vida quotidiana são também trazidos à colação ao pesquisar


atentamente os diversos níveis do ensino no Portugal medieval. Pense-se, entre outras, nas
linhas que dedica a Diogo Afonso Mangancha, professor de Artes e de Leis, pessoa íntima do
rei D. Duarte e, nalguma ocasião, embaixador de Portugal7. Este, por disposição
testamentária, lega a vasta casa onde habitava em Lisboa para que nela se instale um Colégio,
indicando com pormenores todos as características que devia possuir o funcionamento interno
de tal instituição, que parecia ser ideada segundo os sistemas de Oxford e Paris: alimentação e
comida, estudo das disciplinas, disposição dos quartos, administração económica, anos a
passar naquele centro escolar segundo determinadas circunstâncias etc. Ora, carece-se de
qualquer dado em relação à actividade deste Colégio, motivo por que não se pode afirmar se
chegou a ter existência concreta ou não. O que se sabe é que, perto de dez anos depois de tal
testamento, em 1459, todos os bens deixados pelo dador foram incorporados à Universidade.
Como o próprio autor tem declarado explicitamente, a publicação da História do Ensino
em Portugal quer desempenhar uma função de legitimação da actividade docente,
contribuindo para a construção e o reforço ético da actividade profissional. Assim, presta-se
ali uma particular atenção aos estudos realizados e aos exames que deviam passar os
chamados lentes; ao surgimento de novos cargos ao longo da Idade Media, tal como o de
Protector dos Estudos de Portugal, criado na dinastia de Avis e ocupado, entre outros, por
João das Regras, doutor em Direito e chanceler do rei D. João I e o infante D. Henrique; às

7
Com efeito, quando o rei D. Duarte trata de forma minuciosa a virtude da prudência no seu Leal Conselheiro e
insiste no papel central que esta deve exercer no regimento do reino – reservando-lhe mesmo um espaço
nitidamente desproporcional ao concedido à Justiça, à Fortaleza e à Temperança -, transcreve um texto composto
por tal jurista (MUNIZ, 2001, p. 247-305).

10
propostas para emendar erros detectados nos sistemas pedagógicos; aos regimentos
promulgados etc. Quanto à orientação dada à obra, Rómulo de Carvalho insiste em que lhe
interessam sobretudo os factos, o que se efectuou e o que não se efectuou, enquadrando-os via
de regra nas suas respectivas conjunturas temporais de modo a entender o porquê de certas
realizações ou projectos e a pôr em destaque as atitudes mentais dos responsáveis. Neste
sentido, quando lembra que o infante D. Henrique, cognominado o Navegador, defendeu a
conveniência de ensinar a Aritmética, a Geometria e a Astrologia, pergunta-se se a inclusão
destas cadeiras não se vincularia já a um pensamento voltado para o mar:

Não estamos a supor que fosse pretensão do Infante D. Henrique que o


Estudo Geral preparasse pilotos para a tarefa dos descobrimentos marítimos,
mas parece-nos que o momento histórico decorrente teria criado a
consciência do valor daquelas disciplinas escolares e, portanto, a da
necessidade da sua inclusão no currículo do Estudo [...]. Quanto à
Astrologia, se hoje a consideramos fantasia inútil, recordemos que teve no
passado muitos e notáveis adeptos, e que os astrólogos desempenhavam
função específica junto dos reis a quem serviam de conselheiros. Da
actividade astrológica distinguia-se a chamada “Astrologia judiciária”, que
procurava estabelecer relações entre as posições dos astros e a vida dos
humanos. Admitia-se mesmo que os corpos celestes influenciavam o
organismo humano e que, portanto, deles dependia o estado de saúde de cada
um, o que obrigava aos médicos (então chamados “físicos”) a conhecerem a
matéria designada por “Astrologia médica”. A par destas duas especialidades
astrológicas ainda se considerava uma “astrologia meteorológica”, cuja
finalidade era a previsão do tempo, a partir dos astros, e as condições de boa
ou má produção agrícola.
Qualquer que seja o aspecto que se considere, o certo é que os estudos
astrológicos exigiam a aquisição de conhecimentos astronómicos que
correspondiam a uma preparação científica já concreta que podia ser
aproveitada com vista à técnica da navegação (1996, p.109)8.

Enfim, quanto à época medieval e às posteriores registam-se na matéria tratada por


Rómulo de Carvalho implicações de toda a ordem, não só estritamente pedagógicas, mas
doutros vastíssimos campos sociais e políticos. Com efeito, o autor confessa no Prefácio as
suas hesitações em relação ao título da obra: história de quê?, do ensino?, da instrução?, da
educação?, da pedagogia?, das instituições escolares? Na verdade, envolve-se na abordagem
de tantas questões que se torna realmente embaraçosa a escolha da designação mais adequada.
E, ainda, devemos assinalar o seu tratamento da Idade Média sem os preconceitos com que
tradicionalmente foi abordada e que se descobre mesmo na sua designação: esta acarretava

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No que respeita à formação de pilotos para a navegação na era de Quatrocentos tem-se citado a existência de
uma escola que funcionaria em Sagres, mas não existe nem uma única prova fiável de tal instituição. Seja como
for, no elenco das matérias nomeadas num novo Estatuto assinado em 1431 figuram as seguintes: Gramática,
Lógica, Retórica, Aritmética, Música, Geometria, Astrologia, Medicina, Teologia, Decretais, Filosofia Natural e
Moral, e Leis.

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um desprezo indisfarçado pelos séculos localizados entre a Antiguidade Clássica e o próprio
século XVI. Tudo o que estivera entre estes dois picos de ciência e criatividade artística não
passava de um hiato, de um intervalo vago. Era também designada como Idade das Trevas, ou
Espessa Noite Gótica, ou Noite de Mil Anos, por ser vista como um período reduzido à
barbárie, ignorância e superstição. Identificava-se com uma interrupção no conhecimento que
fora impulsionado por gregos e romanos e que só fora retomado pelos homens do século XVI
e de períodos subsequentes.
É verdade que ainda ao falar da transição entre Idade Média e Renascimento
encontramos na obra de Rómulo de Carvalho a equiparação do mundo do homem medieval
com um “vale de lágrimas”, ou “triste morada”, ou “lugar de expiação”, quando sublinha a
importância do teocentrismo e a categoria de essência que atingia a salvação da alma,
acomodando qualquer doutrina às exigências do cristianismo. Ora, ao longo dos vários
capítulos que dedica à Idade Média, e que ilumina amiúde com documentos e imagens,
declara implícita e explicitamente que a ânsia do saber científico não estava morta naquela
altura, mas sim profundamente comprometida nas suas expressões. Quanto a Portugal,
embora aluda em várias ocasiões a um atraso face a outros países europeus, sublinha o
elevado número (cada vez maior) de portugueses que frequentaram centros de estudo no
estrangeiro, auxiliados economicamente por meio de bolsas (já nó século XII o rei D. Sancho
patrocinou viagens e estadas para tais efeitos e só na Itália dos séculos XIV e XV podem
contar-se por dezenas). Igualmente, destaca a riqueza de códices manuscritos nos mosteiros e
a perda paulatina do seu monopólio pelas bibliotecas até se evidenciar uma (ainda que não
forte) secularização da cultura e generalização do entusiasmo perante a aquisição de
conhecimentos, facilitada pela invenção da imprensa.

QUADROS DO DIA-A-DIA DESENTRANHADOS DOS VERSOS MEDIEVAIS

Rómulo de Carvalho dedica também uma atenção especial à Idade Media no seu livro O
texto poético como documento social, publicado também pela Fundação Calouste-Gulbenkian
em 1995. Com ele, pretende o autor erguer aos olhos do público leitor a pessoa do poeta como
um ser observador dos acontecimentos que o rodeiam, e envolvem, no ambiente social em que
se movimenta. O primeiro capítulo, apresentado sob a epígrafe “A contribuição dos poetas
medievais para a apreciação da sociedade em que viveram”, recolhe dezenas de cantigas
trovadorescas galego-portuguesas e ainda em parte do seguinte aparecem focados versos do

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Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, de uma gazetilha que este redigiu sob o título
Miscelânea de coisas e costumes e de diversas peças de Gil Vicente.
As páginas do livro permitem descobrir o árduo trabalho de selecção de textos que foi
levado a cabo, fornecendo-nos em muitos casos trechos quase esquecidos ou que passaram
despercebidos para a crítica literária e que, no entanto, apresentam um acentuado valor
histórico. Tal como acontece na restante produção do autor, revela-se aqui uma orientação
pedagógica e a intenção de aceder a um público mais vasto, não especialista. É por isso que
sente a necessidade de iluminar a transcrição dos versos tirados das edições canónicas dos
Cancioneiros (particularmente, das realizadas por Rodrigues Lapa, Carolina Michäelis de
Vasconcelos e José Joaquim Nunes) com notas sobre o significado de certos vocábulos ou
expressões, as quais acabam por constituir um útil glossário. Leva a cabo uma actualização da
grafia, mas respeita em geral as normas gramaticais da época e o seu padrão estrutural, não
renunciando ao socorro da crítica filológica e permitindo assim o confronto entre dois estádios
da mesma língua poética.
Já no prefácio salienta que a presente obra pretende servir de contributo não só para a
história literária, mas também como elemento de estudo para a (intra-)história de Portugal.
Aliás, particularmente em relação à abordagem dos Cancioneiros galego-portugueses ainda
sublinha a impossibilidade de ter uma ideia correcta do homem peninsular dos séculos XIII e
XIV sem conhecê-los previamente, esclarecendo:

A história romântica legou-nos uma imagem muito falsa dessa humanidade


irrequieta, apenas com laivos de alguma verdade em casos excepcionais.
Quem visionaria figuras respeitáveis, reis como Afonso X de Leom e Castela
ou Dinis de Portugal, infantes como Afonso Sanches ou D. Pedro, que foi
conde de Barcelos, interessados na vida particular, até doméstica, dos outros,
colaborando em situações ridículas, proporcionando, pelo seu trato
convivente, abusos de confiança verdadeiramente surpreendentes,
despojados de toda aquela dignidade com que estamos habituados a imaginar
tais figuras? [...]
É divertido, sem deixar de ser comovedor imaginar um rei, e um rei
medieval, sentindo-se obrigado a aturar um maçador que nunca mais o larga
nem se cala, farto, fartíssimo de o ouvir, já a pingar de sono, mal podendo
erguer as pálpebras, com os olhos a “tosquiar-se”, como o próprio declara.
Este é o tema de uma das cantigas de D. Dinis (1995, p. 24).

Ao lado das relações amorosas que constituem o tema principal nas cantigas de amor e
de amigo, Rómulo de Carvalho atenta noutros aspectos que encontra explicitados nas cantigas
de escárnio e maldizer e que se referem à vida quotidiana: as disputas entre ricos-homens,
infanções, cavaleiros e escudeiros; as atitudes mostradas perante certos exercícios militares;
as relações de reis e infantes com os seus vassalos; as denúncias que deixam a descoberto a

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licenciosidade dos meios monásticos; ou a prática da prostituição na Idade Média. Com efeito,
no que diz respeito à focagem desta última questão no corpus da poesia trovadoresca, conta
até trinta e nove cantigas satíricas, fazendo mesmo um levantamento dos nomes que os
trovadores e jograis eternizaram nos seus versos:

eram a Domigas Eanes, a Elvira Lopes, a Maior Garcia, a Maria do Grave, a


Maria Leve, a Maria Negra, muitas Marinhas: a Crespa, a Lopes, a
Mejouchi, a Sabugal, a Cadoe, a Foça; eram a Ouroana, a Urraca Lopes, a
Urraca Aores, a Luzia Sanches, e a rainha de todas elas, a celebrada Maria
Peres Balteira (1995, p. 33).

À maneira de complementação de certos dados e como asseveração do que se diz, o


autor recorre também a textos cronísticos, como os de Fernão Lopes, ou inclusive a outros
pouco conhecidos na história da literatura portuguesa9. Mostrar e demonstrar são, como
vemos, duas máximas a seguir sistematicamente por Rómulo de Carvalho para espelhar as
linhas de força da sociedade e do viver quotidiano da Idade Média em quadros vivos, sem
hesitações quando tem de quebrar estereótipos ou ideias herdadas. Por exemplo, quando fala
do indivíduo palaciano que é simultaneamente agente e destinatário das composições
recolhidas no Cancioneiro Geral, afirma:

A desenvoltura de atitudes e de expressões, ilustrada pelos excertos das


trovas que transcrevemos, surpreendem quem tenha sido educado na leitura
de compêndios escolares ou de romances de capa e de espada, em que se
visionam os homens dos séculos XV e XVI como modelos de galantaria, de
comportamento cavalheiresco perante as damas [...]. Os documentos
discordam de tal imagem [...]. Erro grande seria visionar esses homens
segundo tal modelo” (1995, p. 69).

AY FLORES, AY FLORES DO VERDE PINO! E O IMAGINÁRIO AMOROSO

Também a propósito da literatura medieval não podemos deixar de lembrar as reflexões


que Rómulo de Carvalho publicou em 1975 acerca da famosa cantiga de amigo composta pelo
rei-trovador D. Dinis: “Ay flores do verde pino / se sabedes novas do meu amigo / Ay Deus é
u e?”, assinando em tal ocasião como António Gedeão. Apareceram publicadas na revista
Colóquio / Letras, então dirigida por Jacinto do Prado Coelho, e o autor adopta nelas uma

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Concretamente neste sentido o nosso artigo apresenta vinculação ao projecto de investigação “Seis siglos de
poesia amorosa de tipo satírico en lengua portuguesa” (HUM2005-08291), com sede na Universidade de
Santiago de Compostela, dirigido por Carlos Quiroga e subsidiado pelo Ministerio de Ciencia e Innovación.

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perspectiva que coincide com a consideração da obra literária como produto estético e com a
estilística como orientação na análise do texto. Quer dizer, aplica aqui um tipo de abordagem
imanente, que se detém sobretudo no significante e na busca de sentidos recorrentes a partir
da força que as palavras adquirem no discurso. Tenha-se em conta que a estilística como
metodologia aplicada à crítica literária foi especialmente recorrente no Portugal das décadas
de 60 e 70, caracterizando-se sobretudo pela importância que concede ao estilo – palavra que
começa por significar um instrumento pontiagudo (stylus), com o qual se escrevia sobre
tabuinhas cobertas de cera, e que adquire desde tempos remotos o sentido de modo de
escrever. São conhecidas, de facto, as fórmulas de Platão, “tal carácter, tal estilo”; de Séneca,
“o estilo é a fisionomia da alma”; e, sobretudo, a de Buffon no século XVII, “o estilo é o
próprio homem” (MATOS, 2001, p. 162).
Outro aspecto a acentuar é o papel tão importante que confere tal tendência de análise à
intuição do crítico, entendida como “corrente de afinidade entre este e o poema, clic, ou
estalido percebido como prova de que se deu um encaixe, um ajuste que franqueia a
compreensão da obra”. Em resumo, tal método parte da observação de uma particularidade
linguística superficial que a intuição pressente como digna de nota: averigua-se se ela
constitui um caso característico e procura-se logo investigar o motivo da sua aparição, ou seja,
a sua origem como maneira de conceber a vida ou como dado da psique. São precisamente
estes os passos seguidos por Rómulo de Carvalho perante a presença da interjeição ay na
composição trovadoresca acima referida. Assim, realiza um levantamento dos ays registados
em D. Dinis e em todo o corpus da lírica medieval, definindo-os afinal como um elemento
revelador dos lamentos da alma:

Supõe-se a namorada vagueando numa paisagem campesina, roída das


saudades do amigo e interrogando as flores, para que lhe dêem notícias dele.
Mas, em vez de se dirigir às flores que se impõem como tal, pelo seu
colorido, pela sua esbelteza, pelo seu aroma, e que desabrochariam do solo,
ao alcance da mão, dirige-se a namorada às flores do verde pino, às flores do
verde ramo, que nada têm que as recomende como “flores”, e se situam no
alto do pinheiro, por vezes até a muitos metros de altura.
Penso, não sei se com originalidade, qual teria sido o quadro poético que D.
Dinis desenhou no seu espírito. A rapariga teria visto passar o namorado,
junto da povoação onde habitava, incluído numa hoste que o próprio rei (o
poeta) dirigia. A hoste passou, seguiu ao seu destino, e a rapariga não voltou
a ter notícias do amigo [...]. É nesta situação aflitiva que a namorada
interroga as flores do pino, porque o pinheiro é alto, as flores estão lá no
cimo, e é daí que se vê a paisagem descoberta e o horizonte extenso. Daí se
poderá descortinar a hoste, quando vier de regresso, e ela anseia por tornar a
ver o seu amado (1975, p. 51-52).

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Conforme o próprio autor do artigo declara explicitamente, não pretendeu de modo
nenhum esgotar aqui o assunto, mas apenas justificar e ilustrar a leitura da cantiga de amigo e
insistir na importância musical e estilística do uso da interjeição pelos poetas dos
Cancioneiros medievais, cuja temática demonstra conhecer bem tanto neste breve artigo como
noutras ocasiões.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em definitivo, apoiado num variado e vasto acervo de fontes bibliográficas e mostrando


interesse em divulgar os conhecimentos a partir de uma linha expositiva caracterizada pela
clareza, Rómulo de Carvalho procurou que as suas contribuições para aprender e dar a
aprender a história fossem inovadoras e funcionassem à maneira de primeiros passos para
uma maior reflexão e aprofundamento. Na aproximação da sua obra como historiador social e,
mais particularmente, como observador atento da Idade Média em Portugal revela-se um
ensaísta versátil que pretende em todos os casos a comunicação directa com o leitor. Procura
sempre que este seja partícipe do discurso, tratando de discriminar os acontecimentos reais de
preceitos e preconceitos legados pela tradição. Com efeito, adverte amiúde sobre as
diferencias entre verdades lapidares, que podem e devem acompanhar-se de documentação
incontestável, e os desenvolvimentos que são resultado de um raciocínio com coerência, mas
sem uma contrastação de dados que conduz a afirmações categóricas. Através das quatro
obras que aqui focámos e de diversas alusões dispersas ao longo de todo o seu corpus
descobrimos a sua intenção de aguçar o gosto do leitor pela observação, espicaçando o desejo
de saber e incentivando a procura de explicações, que é essencialmente a base do espírito
científico.

Referências bibliográficas:

AIDO, Alcina do; BASTO, Maria Gertrudes. Rómulo de Carvalho enquanto metodólogo. In:
CORTE REAL, Maria Luísa; LOURENÇO, Marta (Coord.). Pedra Filosofal: Rómulo de
Carvalho / António Gedeão. Lisboa: Associação de Apoio ao Museu de Ciência da
Universidade de Lisboa, p. 33-35.

CARVALHO, Rómulo. O texto poético como documento social. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1995.

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CARVALHO, Rómulo. História do Ensino em Portugal, desde a fundação da nacionalidade
até ao fim do regime de Salazar-Caetano. 2 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996.

CARVALHO, Rómulo. As origens de Portugal - História contada a uma criança. Lisboa:


Fundação Calouste Gulbenkian, 1998 [sem paginação].

GEDEÃO, António. Ay flores, ay flores do verde pino. Colóquio Letras, Lisboa, 26, p. 45-53,
1975.

MARQUES, A. H. de Oliveira. A sociedade medieval portuguesa. 4 ed. Lisboa: Sá da Costa,


1964.

MATOS, Maria Vitalina Leal de. Introdução aos estudos literários. Lisboa-São Paulo: Verbo,
2001.

MUNIZ, Márcio Ricardo Coelho. Os leais e prudentes conselhos de El-Rei D. Duarte. In:
MONGELLI, Lênia Márcia (Coord.). A literatura doutrinária na Corte de Avis. São Paulo:
Martins Fontes, 2001, p. 245-306.

SOARES, Luísa Ducla. A literatura infanto-juvenil de Rómulo de Carvalho. In: António é o


meu nome. Rómulo de Carvalho. Lisboa: Biblioteca Nacional, 2006. Disponível em:
http://purl.pt/12157/1/estudos/estudos-sobre-autor.html. Acesso em: 2 Nov. 2006.

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