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KARLA CRISTIANE STABELE

O PURGATÓRIO NA DIVINA COMÉDIA DE DANTE

Monografia apresentada ao Curso de


história, Setor de Ciências Humanas,
letras e Artes, Universidade Federal do
Paraná, como requisito parcial à obtenção
do título de Bacharel em História.

Orientador: Prof. Dr. Fátima Regina


Fernandes.

CURITIBA
2003
À Idnal, Elza e Edlaine, pelo
amor, incentivo e compreensão.
Agradeço especialmente à
professora Fátima Regina Fernandes,
pela dedicação e amizade. E aos meus
colegas de turma: Adriana Mocelim,
Alexandre Barros, Fernanda Ferreira,
Marcelo de Souza, Paula Carvalho e
Sibeli Colere. Pelo apoio, amizade e
paciência.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.....................................................................................................5
1 CONTEXTO HISTÓRICO............................................................................12
1.1 A FORMAÇÃO DA CRISTANDADE..........................................................12
1.2 SACERDÓCIO VERSUS IMPÉRIO.............................................................14
1.3 A CENA ITALIANA.....................................................................................15
2 DANTE ALIGHIERI......................................................................................18
2.1DANTE: FLORENÇA....................................................................................18
2.2 DANTE: A POLÍTICA..................................................................................22
2.3 DANTE: o EXÍLIO........................................................................................24
3 O NASCIMENTO DO PURGATÓRIO........................................................28
3.1 O PURGATÓRIO DE SÃO PATRICIO........................................................30
3.2 O PURGATÓRIO DA DIVINA COMÉDIA.................................................32
4 OS GESTOS DO PURGATÓRIO.................................................................33
CONCLUSÕES PARCIAIS .............................................................................41
REFERÊNCIAS..................................................................................................43
5

INTRODUÇÃO

Em quase setecentos anos muitas coisas foram ditas e escritas sobre Dante
Alighieri e sobre sua obra, a “Divina” Commédia. Ambos despertaram o
interesse de pesquisadores de várias áreas do conhecimento, literatos, filósofos,
teólogos. Como também, em ocasiões menos freqüentes, de historiadores e de
muitos curiosos. Muitos estudos foram realizados na intenção de se compreender
melhor as idéias do autor e a sua obra.
Todavia, no campo da História, poucas pesquisas têm sido realizadas
tomando Dante ou a Commédia como objeto de estudo. Fato que nos deixa um
grande espaço em aberto. Na medida que Dante foi uma figura de importância na
sua época, a sua reconhecida relevância histórica e a grandeza de sua obra, um
testemunho da sociedade e da cultura da época medieval, esse espaço deixado
pela História precisa ser preenchido. Os poucos estudos históricos realizados
sobre o autor abordaram quase que exclusivamente os aspectos político e
filosófico-religioso. Outro aspecto que é também importante devido não só ao
caráter da Commédia, mas também devido ao contexto de transformação no
campo das idéias e no qual Dante está inserido, é o aspecto cultural. Este tem
sido desenvolvido muito mais pela Literatura que pela História.
A Commédia é também a obra mais “polêmica” do poeta, a que produz as
mais variadas e controversas interpretações. Uma das diversas imagens, e talvez
a mais difundida, que se construiu sobre Dante considera-o como um pensador
que, nas palavras de Hilário Franco Jr., “reuniu a intensa atividade intelectual do
primeiro e as grandes angústias e conflitos que caracterizaram o segundo. (...),
sintetizou o espírito de um século e antecipou o de outro”1. Esse tipo de
afirmação é decorrente principalmente do fato de Dante ter vivido na passagem
do século XIII para o XIV. Justamente num momento em que as estruturas que
sustentam a ordem da sociedade medieval (feudal) começam a entrar em crise,

1
FRANCO Jr., Hilário. Dante Alighieri: o poeta do absoluto. São Paulo: Brasiliense,
1986. p. 08.
6

assinalando o início de um período de decadência que se consolidará na chamada


“crise do século XIV”. Enquanto que outros historiadores classificam-no como
um homem, ou melhor, como o último representante do pensamento medieval.
Algumas questões que se colocam a partir dessas interpretações são:
Dante foi realmente um homem de transição? Quais elementos que estão
presentes no pensamento de Dante que permitem responder esta questão? Dante
viveu na passagem do século XIII para o século XIV, certamente foi um homem
da sua época, portanto não podia ser indiferente ao seu contexto de transição.
Outras questões que se colocam sobre Dante e suas obras relacionam-se, direta
ou indiretamente, primeiro aos acontecimentos políticos envolvendo as disputas
entre o Sacro Império e o Papado. E, segundo, às transformações sociais e
culturais desse período de transição e das quais Dante foi testemunha.
Algumas destas transformações dizem respeito especialmente ao
pensamento político de Dante. Há quem veja nos escritos políticos do poeta as
raízes ou traços, ainda que tênues, do pensamento político da Época Moderna. A
própria posição política do poeta é por si só uma questão bastante controversa.
Embora tenha defendido fervorosamente a separação entre os poderes temporal e
espiritual em seu tratado chamado d’Monarchia, onde deixa clara sua posição em
relação ao papel que deve ser desempenhado pelo poder espiritual, Dante sempre
pertenceu ao partido dos guelfos, que apoiavam o Papado. E mesmo quando
esses se dividiram em neri e bianchi (negros e brancos) o poeta tomou o partido
dos Bianchi, moderados, que respeitavam o Papa ainda que se opusessem à sua
interferência na política da cidade. Ainda que o poeta preferisse manter o
posicionamento político de sua família, assumidamente guelfa, para muitos
parece ser contraditório que tenha escrito um tratado tão importante como o
d’Monarchia defendendo uma postura não tão favorável ou mesmo contrária ao
Papado.
Poderíamos dizer então que Dante é um homem medieval do ponto de
vista de seu pensamento filosófico e religioso, e dizer que é um homem moderno
no que se refere ao seu posicionamento político? Seria precipitado responder
7

afirmativamente essa questão. Acreditamos que para que seja possível encontrar
uma resposta satisfatória, se faz necessário em primeiro lugar definir se Dante
Alighieri foi ou não um homem à frente de seu tempo. Ou seja, se seu
pensamento é ou foi caracteristicamente medieval ou se estava antecipando
características modernas. Para isso é importante buscar compreender Dante e a
Commédia à luz das transformações políticas sociais e culturais que marcaram
esse período de transição.
Neste sentido o “Purgatório” enquanto novo espaço sagrado e de salvação
parece refletir grande parte das mudanças que afetavam a sociedade medieval,
em especial a sociedade “italiana” e florentina. Na medida em que ao mesmo
tempo é um espaço que pode ser considerado como burguês e reflete a ortodoxia
da Igreja de interiorização da fé. Está, portanto, em sintonia com o contexto de
transformação e transição que julgamos necessário para tentarmos compreender a
natureza do pensamento de Dante. Ou seja, compreendendo o Purgatório da
Commédia poderemos também compreender o pensamento de Dante.
Considerando estes fatores, optamos por estudar “O purgatório na Divina
Comédia de Dante” à luz de transformações culturais, políticas e sociais, e da
relação entre o contexto político e social e a produção de idéias e suas
implicações. Tal proposta é relevante no sentido em que se dispõe a estudar um
assunto pouco pesquisado pela História, Dante e a Commédia, a partir de uma
perspectiva, a História cultural, que também é pouco explorada.
No nosso entender, o surgimento do Purgatório deriva, ou melhor, reflete
esse contexto de crescimento econômico, de transformação social e de
“renascimento” cultural. Embora se trate em última instância de uma mudança
cultural, mudança na mentalidade coletiva, idealizada e concretizada pela Igreja,
ela só ocorre porque também se modificaram as formas políticas, econômicas e
sociais. Só ocorre porque algumas das bases em que se organizava a sociedade
feudal (medieval) também se modificaram.
Seguindo essas considerações buscaremos compreender então o
Purgatório como representação, como símbolo do conjunto de idéias e fatores
8

que derivam dessas transformações e que configuram a sociedade medieval do


século XIII e início do XIV. Buscaremos esclarecer se a razão que leva Dante a
escrever sobre o Purgatório trata-se de uma iniciativa moderna (humanista) ou
tradicional (medieval).
Concernente à bibliografia, este projeto de pesquisa orientou-se
metodologicamente seguindo os passos propostos por Georges Duby em seu
trabalho “Idade média, idade dos homens : do amor e outros ensaios”2. E os
trabalhos de Jacques Le Goff, “A bolsa e a vida”3 e “O maravilhoso e o cotidiano
no ocidente medieval”4.
Das orientações de Georges Duby privilegiou-se a analise do autor frente
aos obstáculos em se forjar a elaboração de um sistema conceitual decorrente das
relações entre a evolução de uma cultura e as estruturas profundas, econômicas e
sociais. Partimos da elucidação dos conceitos de herança cultural, ideologia
(sistemas ideológicos concorrentes) e cultura “erudita” ou oficial (cultura
eclesiástica, laica, urbana e burguesa), esboçados por Georges Duby. A utilização
desses conceitos relacionam-se com a proposta dessa pesquisa na medida em que
Georges Duby os propõe enquanto instrumentos de análise para os estudos da
História Cultural. Buscou-se identificar na Fonte (Purgatório da Divina Comédia)
as permanências no imaginário coletivo herdadas do passado cultural recente.
Buscou-se elucidar o conceito de ideologia enquanto um sistema de idéias, na
medida em que a doutrina eclesiástica pregada pela Igreja medieval é um dos
sistemas ideológicos hegemônicos da Idade Média e a hipótese de que a Fonte
trabalhada reflete esse sistema de idéias. O conceito de cultura erudita foi
empregado considerando que o poeta Dante Alighieri foi educado dentro de uma
cultura eclesiástica, “erudita” e oficial e que a Divina Comédia reflete, ao menos
em parte, essa cultura.

2
Especificamente os artigos: “Problemas e métodos em história cultural” (p. 125-
130); “A história dos sistemas de valores” (p. 131-142); “O renascimento do século XII.
Audiência e patrocínio” (143-160).
3
LE GOFF, op. cit.
4
LE GOFF, Jacques. O maravilhoso e o cotidiano no ocidente medieval. Lisboa:
Edições 70, 1983.
9

Das orientações de Jacques Le Goff foram seguidos as observações feitas


pelo autor na análise sobre os gestos do Purgatório no documento Purgatório de
São Patrício, (Purgatorium Sancti Patricii)5, presente no livro o Maravilhoso e o
cotidiano no ocidente medieval. Acredita-se que Dante tenha considerado essa
obra, entre outras, para escrever o Purgatório da Divina Comédia. Adotaram-se
também as orientações do trabalho “A bolsa e a vida” onde o autor faz uma
análise relacionando o nascimento do Purgatório com o desenvolvimento
econômico, com o fortalecimento da burguesia e com as modificações dos
valores e das crenças religiosas que derivam do “novo” contexto de crescimento
econômico e intelectual já mencionado. A utilização desse trabalho foi pautada
no fato de que se relacionava com a proposta dessa pesquisa de analisar a Fonte à
luz do contexto de transição entre os séculos XIII e XIV.
Os trabalhos desenvolvidos pela Literatura foram utilizados na medida em
que possuíam informações sobre o autor e traziam análises interpretativas dos
símbolos e alegorias presentes na Fonte. Foi trabalhado principalmente o livro:
“Dante”6, biografia do poeta escrita por R. W. B. Lewis e que contém
informações bastante específicas sobre a cidade de Florença, a família do autor e
sobre as famílias e pessoas do círculo social de Dante. Este trabalho traz também
alguns comentários e interpretações sobre personagens, fatos históricos,
simbologias, representados na Commédia.
Destacamos ainda o artigo “A literatura: o texto e seu interprete” escrito
por Jean Starobinski, que se encontra no livro “História: novas abordagens”
organizado por Jacques Le Goff e Pierre Nora7. Na medida que Jean Starobinski
trata da História literária, seu artigo foi pertinente no sentido de que a Fonte
trabalhada por nós também se trata de uma fonte literária, fornecendo
instrumentos valiosos de análise.

5
LE GOFF, op. cit. P. 63-72.
6
LEWIS, R. W. B. Dante. São Paulo : Objetiva , 2002.
7
STAROBINSKI, Jean. A literatura. IN: LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre.
História: Novas abordagens. Rio de Janeiro : Francisco Alves, 1979. p. 133 – 143.
10

Algumas outras obras sem relação direta com a Fonte foram privilegiadas,
trabalhos historiográficos ou não. Entre os trabalhos que serviram de suporte para
o contexto sócio-político da Europa medieval e Península Itálica estão “A
civilização do ocidente medieval” do já referido autor Jacques Le Goff; “Itália:
os séculos de ouro”8 de Indro Montanelli, embora de caráter factual e ufanista
contribuiu com um panorama claro sobre a organização administrativa das
comunas italianas e das disputas políticas que envolvem essas cidades, o sacro
Império Romano Germânico e o Papado. Além de fazer referências a Dante
Alighieri. E o livro “A cultura do renascimento na Itália” escrito por Jacob
Burckhardt, embora trate do Renascimento Italiano, traz um resumo do contexto
político italiano no século XIII e algumas referências importantes a Dante e à
Divina Comédia.
Destacamos também os trabalhos “Dante Alighieri: o poeta do absoluto”9
do historiador Hilário Franco Jr, que traça um perfil bastante singular do poeta. O
artigo “O paraíso de Dante”10 de Orlando Fedeli, filósofo e teólogo, que
apresenta e discute algumas teses interpretativas sobre a simbologia da Divina
Comédia. O livro “Os dois corpos do rei”11 do historiador Ernest Kantarowicz,
sobre o pensamento político de Dante. E o trabalho de Le Goff “Os intelectuais
na idade média”12, que busca traçar um perfil do intelectual medieval.
Como já dissemos, a fonte por nós analisada é o Purgatório da Divina
Comédia. Optou-se por trabalhar com essa fonte por dois motivos: primeiro
porque a problemática apresentada refere-se diretamente ao pensamento de Dante
Alighieri, pretendeu-se esclarecer se a razão que leva Dante a escrever sobre o
Purgatório trata-se de uma iniciativa moderna (humanista) ou tradicional
(medieval). Segundo porque a proposta dessa pesquisa foi analisar como as
transformações pelas quais a sociedade medieval vem passando, permitiram que
esse novo espaço que é o Purgatório emergisse dentro do contexto social
medieval e dentro do imaginário coletivo. E se o pensamento do poeta é reflexo
desse contexto de transformação cultural, analisando o Purgatório da Divina

8
MONTANELLI, Indro. Itália: os séculos de ouro. São Paulo : Ibrasa , 1969.
9
FRANCO Jr., op. cit.
10
FEDELI, op. cit.
11
KANTAROWICZ, Ernst H. Os dois corpos do rei : um estudo sobre teologia política
medieval. São Paulo: Cia. das Letras , 1998.
12
LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na idade média. Lisboa : Gradiva , 1984.
11

Comédia à luz das transformações políticas, sociais, econômicas e culturais que


caracterizam a passagem entre os séculos XIII e XIV.
Sobre as características da Fonte, A Divina Comédia de Dante Alighieri
foi composta entre 1307 e 1321, escrita em língua vulgar, ou seja, em italiano, a
obra é um poema narrativo rigorosamente simétrico e planejado que narra a
jornada de Dante pelo Além, o Inferno, Purgatório e Paraíso. Dante é guiado no
Inferno e no Purgatório pelo poeta romano Virgílio, e no Paraíso por Beatriz
(Paraíso terrestre), sua musa, e por São Bernardo (Paraíso celeste). O poema e
dividido em três livros: o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. Cada livro é formado
por 33 cantos, exceto o Inferno com 34 cantos, o primeiro canto do Inferno
funciona como introdução ao poema. Os versos foram escritos em tercetos
decassílabos rimados de modo alternado e encadeado conhecido como Terza
rima, segundo o esquema ABA, BCB, CDC. DED, e assim por diante. Ou seja, a
linha central de cada terceto controla as duas linhas marginais do terceto
seguinte. O poema possui uma simetria matemática baseada no número três. Os
lugares descritos por cada livro (o Inferno, o Purgatório e o Paraíso) são
divididos em nove círculos cada, formando no total 27 (3 vezes 3 vezes 3) níveis.
Os três livros rimam no último verso, pois terminam com a mesma palavra:
stelle, que significa “estrelas”.
Entre as muitas edições da Divina Comédia de Dante Alighieri optou-se
por trabalhar enquanto fonte com a edição da Editora 34 e lançada em 199813.
Optou-se por esta edição por trata-se de uma edição bilíngüe em português e
italiano, pela excelente tradução e notas de Ítalo Eugênio Mauro e pelo Prefácio
escrito por Carmelo Distante contendo informações preciosas sobre a vida do
autor e sobre a Divina Comédia.

13
Cf. Supra, nota 7.
12

1 CONTEXTO HISTÓRICO

1.1 A FORMAÇÃO DA CRISTANDADE14

Para compreendermos se o pensamento de Dante Alighieri foi


comprovadamente medieval ou se antecipava características modernas, é
necessário conhecermos a conjuntura histórico-social em que o poeta viveu e
escreveu. Dante viveu na passagem do século XIII para o XIV, num momento
que chamamos de transição. Segundo Jacques LE GOFF, neste momento a
sociedade medieval “atinge o apogeu, mas ao mesmo tempo se prepara para
enfrentar uma crise e para se transformar profundamente”15. Esboçaremos a
seguir em linhas gerais as principais características que marcaram a sociedade
medieval neste período.
Entre os séculos XI e XIII a Europa medieval experimentou um intenso
movimento de crescimento e expansão, principalmente material. Entre os
diversos fatores que contribuíram para esse movimento estão o aumento
demográfico, a expansão territorial e agrícola e o desenvolvimento urbano e
econômico. Junto a este movimento vieram atreladas uma série transformações
sociais, políticas e culturais como o fortalecimento da burguesia nas cidades, as
tentativas de centralização monárquica e o Renascimento cultural do século XII.
LE GOFF16 explica que até o século XI as cidades medievais estavam
reduzidas às funções militar, administrativa e religiosa. Com o renascimento do
comércio a partir do século XII as cidades recuperam a sua função comercial e
econômica.
À medida que aumenta a importância econômica das cidades, os novos
estratos sociais urbanos buscam ganhar poder político libertando-se da tutela dos

14
“Define, pela sua religião, o mundo ocidental medieval. Em conformidade com os
esforços de certos papas, deveria ser ela o quadro único e unificador do Ocidente. Ficou como
um ideal e nunca existiu devido à fragmentação dos Estados, à diversidade e antagonismo dos
interesses nacionais e à luta de classes”. LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente
medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1983. v. 2, p. 286.
15
Ibid., v. 1, p. 139.
16
Ibid., v. 2, p. 280.
13

senhores feudais e ganhando o direito de se autogovernarem. A partir daí as


cidades tornam-se cada vez mais independentes dos poderes estabelecidos, laico
e eclesiástico, para tornarem-se núcleos políticos e passando a controlar toda a
região a sua volta. Obviamente não são todas as cidades a ascender, mas as que o
fazem são aquelas que se constituem em importantes centros comerciais e
financeiros.
Assim como foram o carro-chefe do progresso econômico, as cidades
foram também os principais centros do desenvolvimento intelectual e artístico.
As transformações culturais estiveram profundamente ligadas aos meios urbanos.
Na medida em que o núcleo da vida social se desloca do campo para as cidades,
também a produção intelectual e artística seguem o mesmo caminho.

No decurso do século XII, as escolas urbanas tomam a dianteira às escolas monásticas.


Saídos das escolas episcopais, os novos centros escolares emancipam-se delas pelo
recrutamento dos professores e dos alunos, pelos programas e pelos métodos. A
escolástica é filha das cidades. Reina nas novas instituições, as universidades, que são
corporações intelectuais. O estudo e o ensino passam a ser um ofício uma das inúmeras
actividades que no estaleiro urbano se especializam. (...) O livro passa a ser um
instrumento e não já um ídolo. Como qualquer outro utensílio, tende a ser fabricado em
série e é objeto de produção e de comércio17.

Trata-se, segundo Georges DUBY de uma inversão do sistema de valores, “uma


valorização cada vez mais avançada do meio cultural: é a tomada de consciência
do progresso”18.
Na segunda metade do século XIII a Cristandade atinge o auge desse
desenvolvimento, as transformações sociais estão consolidadas e a sociedade em
vias de sofrer uma nova mudança.
No início do século XIV, a crise da Cristandade de que falava LE GOFF
começa a mostrar os primeiros sinais, com o exílio de Avignon (1309 – 1378),
crise da teocracia papal, e a grande fome de 1315 no norte da França, começo da
crise demográfica.

17
LE GOFF, op. cit. v. 1, p. 113.
18
DUBY, Georges. Idade média, idade dos homens: do amor e outros ensaios. São
Paulo: Cia. das letras, [198-]. p. 146-147.
14

1.2 SACERDÓCIO VERSUS IMPÉRIO.

Durante toda a Idade Média a oposição entre poder temporal e poder


espiritual caracterizou as relações políticas entre reis e imperadores e os papas.
No século XIII essa oposição é marcada pelo conflito entre o Papado e os
Imperadores do Sacro Império Romano Germânico. As cidades situadas no norte
da península itálica entre os territórios do Sacro Império e os territórios
pontifícios, no centro da península, foram desde o início alvo tanto das
pretensões da Igreja como das pretensões dos Imperadores. Para o Império
dominar as terras ao norte da península era uma maneira de exercer pressão sobre
a Igreja. A instabilidade gerada por essas disputas foi um dos elementos que
contribuíram para a formação de cidades independentes, no norte da Itália. Por
tratar-se de uma região disputada por dois poderes hegemônicos, era natural que
a população dessas cidades tomassem partido no conflito demonstrando seu
apoio ao Papa ou ao Imperador.
Nas cidades italianas, esses partidos adotaram a designação de guelfos e
gibelinos, cuja origem foram nomes ligados a duas grandes famílias que
disputaram o Império Germânico. Os guelfos apoiavam o Papa e os gibelinos
apoiavam o Imperador. As disputas entre esses partidos geravam verdadeiros e
sangrentos conflitos que se espalhavam por todas as cidades italianas. A
rivalidade entre essas duas facções freqüentemente servia para inflamar as
disputas ou inimizades particulares entre famílias rivais ou mesmo entre cidades
rivais.

1.3 A CENA ITALIANA

As cidades italianas foram o principal centro do desenvolvimento


comercial e econômico da Cristandade, como também palco das transformações
políticas, sociais e culturais.
15

Na península Itálica19 o Feudalismo clássico20 nunca fora completamente


desenvolvido. LE GOFF explica que “embora mais completo em França e na
Alemanha, não chegou ao estado de completa maturidade em Itália, onde a
persistência de tradições da Antiguidade e a participação precoce dos senhores na
vida urbana lhe travaram o desenvolvimento”21. Para Indro MONTANELLI a
península Itálica “nunca foi completamente feudalizada nem ruralizada. Apesar
de decadentes e pouco habitadas, as cidades tinham resistido. Assim, a vida
urbana, na Itália, não teve que começar a partir do zero”22. Graças a isso o
comércio e a vida urbana teriam se desenvolvido mais precocemente na
península itálica que em qualquer outra parte da Europa medieval.
A península itálica, na época de Dante não formava um território coeso,
mas encontrava-se dividida em três grandes blocos de fronteiras movediças. O
sul da península formava o Reino das Duas Sicílias, pertencentes ao Sacro
Império Romano Germânico. A partir de 1250, após a morte do Imperador
Frederico II, esses territórios passaram de mãos em mãos, primeiro para as mãos
dos franceses, sob a tutela de Carlos I de Anjou, e depois para os aragoneses. O
centro da península abrigava os territórios da Igreja, cujas fronteiras eram
bastante instáveis. O norte é o território ocupado pelas Comunas italianas.
Florença na época de Dante era assolada pelas disputas políticas entre os
guelfos e gibelinos, da qual falamos anteriormente sobre a cena italiana. A rixa
política entre estes dois partidos era tanta que, em Florença, o Podestà (cuidava
do governo) e o Capitão do povo (cuidava de segurança)23, dois dos cargos

19
Preferimos utilizar a expressão península itálica, para designar a região de que
falamos, dado que um reino, país ou nação chamada Itália não havia ainda configurado-se como
tal no período do qual tratamos. Embora a região de que falamos estivesse inserida dentro dos
territórios do Sacro Império Romano Germânico, a fragmentação (independência) política e de
poder não nos permite considerar a referida região nem como parte do Sacro Império e nem
como um território independente, dado que as cidades italianas não formavam um reino coeso.
Nas vezes em que o termo Itália for utilizado será porque estaremos respeitando a idéia de um
outro autor por nós mencionado.
20
Para maiores detalhes conferir: BLOCH, Marc. A sociedade feudal. Lisboa: Edições
70, 1937. e LE GOFF, op. cit.., v. 1, p. 124-130.
21
Ibid., v. 1, p. 124-125.
22
MONTANELLI, Indro. Itália: os séculos de ouro. São Paulo: Ibrasa, 1969. p. 18.
23
FEDELI, op. cit., 19-20.
16

políticos de maior importância dentro da Comuna, não podiam ser ocupados por
cidadãos florentinos, eram recrutados nas cidades vizinhas, para que nenhuma
facção fosse prejudicada. As disputas entre os dois partidos terminavam em
condenações, expulsões, execuções e saques dos bens de membros do partido
rival.
As batalhas entre guelfos e gibelinos na Toscana tiveram fortes
repercussões na vida política de Florença. Três grandes batalhas envolvendo as
cidades da região marcaram a segunda metade do século XIII. As batalhas de
Montaperti (1260), Benevento (1266) e Campaldino (1289)24. Em Montaperti os
gibelinos obtiveram vitória decisiva. As principais famílias guelfas foram
banidas, inclusive em Florença onde boa parte da cidade foi destruída pelos
gibelinos. Curiosamente a família dos Alighieri, que pertencia ao partido guelfo,
não foi expulsa da cidade, é possível pensar que não fosse expressiva
politicamente nem representasse uma ameaça. Na batalha de Benevento25 a
situação se inverteu, a Liga guelfa foi a vencedora. Os gulefos expulsos puderam
retornar e os gibelinos foram banidos e tiveram suas casas destruídas. A batalha
de Campaldino contra os gibelinos de Arezzo e Pisa, também vencida pelos
guelfos, contou com a participação de Dante na cavalaria.
Com os gibelinos expulsos de Florença não demorou para que os guelfos
se dividissem dando início a novos conflitos. Tudo começou com uma simples
inimizade entre as famílias Donati e Cerchi, não com oposição política.
Os Donati eram uma família muito abastada tradicional de Florença,
Dante era casado com uma Donati, Gemma e muito amigo de Forese Donati,
primo de sua esposa. Os guelfos acabaram se dividindo e adotando o nome de
neri (negros) e Bianchi (brancos), nomes de duas facções em disputa importada
de Pistóia. Os que apoiavam os Donati assumiram o nome de neri e os que
apoiavam os Cerchi, o nome de bianchi. Embora casado com uma Donati, Dante

24
Ibid., p. 15-24. e também LEWIS, op. cit., p. 17-20. e ainda FRANCO JUNIOR, op.
cit., p.10 et. seq.
25
Foi na Batalha de Benevento entre os guelfos e gibelinos de Florença que se
enfrentaram Manfredo, filho de Frederico II e Carlos D’Anjou , chamado à península pelo Papa
Clemente IV, e que resultou na morte de Manfredo. LEWIS, op. cit., p. 19.
17

preferiu ficar do lado dos negros, provavelmente pela sua inimizade com Corso
Donati, primo de Gemma e irmão de Forese.
No decorrer do século XIII a organização administrativa de Florença
passou por pelo menos três mudanças: em 1207, “os antigos cônsules foram
substituído por um Podestà, que teria o poder executivo”26. Em 1248 “as
corporações impuseram uma nova constituição (...). Foi a chamada Constituição
do Primeiro ou antigo povo”27, criando o cargo de Capitão do Povo, chefe da
milícia citadina. Em 1282 os florentinos reformaram mais uma vez a constituição
da cidade, “desta vez o poder era confiado a Priores designados pelas Artes ou
corporações”28.
Além do Podestà e do Capitão do Povo o governo da cidade contava com
um conselho de Priores29, espécie de poder civil e judiciário. O priorado era ao
que parece a mais alta instância política da Comuna, os priores governavam a
cidade, emitam leis e julgavam os casos corrupção e de perturbação da ordem
pública.

No comando posicionavam-se os três priores, recrutados junto às principais corporações


e sediados a Torre de Castagna (...). Abaixo dos priores, ficavam vários conselhos cujo
número de integrantes variava entre 36 e 300, compostos por cidadãos que promoviam
debates (...), apresentavam propostas e realizavam votações. Em decorrência das
peculiaridades dos calendários das eleições e dos limites de mandatos, a cada ano, havia
cerca de duas mil vagas disponíveis nos conselhos30.

26
FEDELI, op. cit., p. 19.
27
Id.
28
Id.
29
Os diversos autores consultados não concordam quanto o número de priores, que
podem ser de três a doze.
30
LEWIS, op. cit., p. 85.
18

2DANTE ALIGHIERI.

Para que possamos responder a problemática a que nos propomos


necessitamos conhecer melhor quem foi Dante Alighieri, não só o famoso poeta
florentino, mas o homem que ele foi. Ao reconstruir, ao menos em parte, a
trajetória de vida do poeta estaremos buscando identificar que elementos
contribuíram para a formação da pessoal do poeta, seus interesses, aspirações e
motivações. E de que maneira esses elementos estarão refletidos na produção
intelectual do autor. Para tanto analisaremos a seguir que fatos marcantes na vida
do poeta influenciaram seu pensamento e conduta.
Dois acontecimentos marcaram significativamente a vida e a obra de
Dante, o encontro com Beatriz e o Exílio de Florença. Somados a esses dois
acontecimentos, os mais importantes sem dúvida, analisaremos outros que, a
nosso entender, constituem-se elementos importantes para compreendermos
quem foi Dante e para o desenvolvimento da nossa pesquisa. São eles, a figura de
Cacciaguida, antepassado do poeta que Dante encontra no Paraíso, a formação
intelectual de Dante, e a sua trajetória política.

2.1 DANTE: FLORENÇA

Passado quase setecentos anos da morte de Dante sabe ainda pouco sobre
sua vida. Muitas das informações que nos chegaram são aquelas extraídas das
obras do próprio poeta como Vita Nuova, D’monarquia, e Commédia. As
informações da época são fragmentadas e esparsas, as informações mais ricas são
posteriores e por isso já um tanto idealizadas.
O poeta Dante Alighieri nasceu na Toscana, norte da península itálica, na
cidade de Florença às margens do rio Arno. Florentia, como fora batizada pelos
romanos, era, na época de Dante, uma das mais ricas e importantes cidades da
península itálica, quiçá da Europa. A cidade tornara-se um importante núcleo de
19

vida política, centro de produção intelectual e de interesses financeiros e


comerciais que incluíam todo o continente.
Dante, cujo nome de batismo era Durante em homenagem ao avô
materno, nasceu em 1265, muito provavelmente no mês de maio, numa família
da pequena nobreza florentina. Os pais chamavam-se Alighiero di Bellincione
degli Alighieri e Bella (Gabriella) degli Abati. Já então a família dos Alighieri
encontrava-se em decadência, seu pai Alighiero vivia do arrendamento de
algumas propriedades e de emprestar dinheiro a juro. A mãe de Dante morreu
quando ele tinha apenas sete anos, seu pai casou-se novamente com uma moça
chamada Lapa com quem teve três filhos, um menino e duas meninas. O pai
morreu no início da década de 1280 e o poeta teve que assumir o posto de chefe
da família. Aparentemente Dante relacionava-se bem com a madrasta e os
irmãos, tanto que seu meio-irmão Francesco acompanhou-o livremente ao exílio
sendo muitas vezes responsável pelo sustento dos dois31.
Embora não houvesse universidades em Florença, existiam, contudo
algumas escolas urbanas e conventos que abrigavam os grandes intelectuais de
Florença da época. Entre eles dois conventos, ligados possivelmente às
Universidades de Pádua ou de Bolonha. Um convento dominicano chamado
Santa Maria Novella e outro franciscano chamado Santa Croce onde teriam
lecionado os mestres hereges dos Espirituais e beguinos Ubertino da Casale e
Jean Pierre Olivi32. O poeta Dante Alighieri teria iniciado seus estudos em um
desses conventos. Além das primeiras letras e da formação básica de sua época
(trivium e quadrivum) Dante teria aprofundado, ainda em Florença, seus
conhecimentos de teologia e filosofia. Também foi discípulo de Brunetto Latini,
o famoso autor do Tresór e do Tresoretto, com quem aperfeiçoou a retórica e a
leitura dos clássicos latinos, que foram fundamentais para a formação do autor.

31
LEWIS, R. W. B. Dante. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. p. 30-34. FRANCO
JUNIOR, Hilário. Dante Alighieri: o poeta do absoluto. São Paulo: Brasiliense , 1986.
DISTANTE, Carmelo. Prefácio. ALIGHIERI, Dante. A divina comédia : São Paulo : Editora
34 , 1998.
32
FEDELI, Orlando. O paraíso de Dante: introdução. Dante: sua vida, suas obras, seu
tempo. Cadernos Montfort. cf http://www.montfort.org.br/cadernos/dante0.html. p.2.
20

Dante o coloca no seu Inferno33 entre os sodomitas, sem contudo deixar de


devotar-lhe grande respeito. Julga-se que Dante tenha estado na Universidade de
Pádua no começo desse período (1280) graças à influência de Latini. Além de
Pádua, acredita-se que Dante tenha também freqüentado as Universidades de
Bolonha (1286-88 e 1304-06) e Paris (1310)34. Contudo Dante é considerado
acima de tudo como um autodidata. Autores como Carmelo DISTANTE e
Hilário FRANCO JUNIOR, consideram-no como detentor de um saber
verdadeiramente eclético e enciclopédico, por ter conseguido reunir a sua volta
todo, ou quase todo o conhecimento de sua época.

E a conjunção-sobreposição das duas culturas, clássica e a cristã, caracteriza toda a


cultura medieval, que encontra em Dante o seu poeta máximo e um dos seus máximos
expoentes. Além disso, do ponto de vista filosófico, (...), Dante é especialmente
eclético, isto é, ele abraça e faz suas, sem discriminação, todas as correntes de
pensamento, gnosiológicas, morais e religiosas, que o haviam precedido e que estavam
vivas no seu tempo35.

A Divina Comédia, considerada sua maior obra, é, de acordo com esses


historiadores, a maior prova desse saber chamado enciclopédico. Nela Dante
menciona e cita muitos pensadores e literatos. Começando pelos clássicos gregos
e latinos, Aristóteles, Virgilio, passando pelos árabes, Averrois, Avicena, até os
Padres da Igreja, São Gregório Magno, São Tomás de Aquino, entre outros.
Além das referências às Escrituras e às mitologias gregas e orientais.
O acontecimento mais marcante da infância e da juventude do poeta foi o
seu encontro com a mítica Beatriz, quando ambos tinham nove anos. Beatriz foi
amada e inspiradora de Dante, a ela o poeta dedicou a obra Vita Nuova, escrita
entre 1283 e 1292. A figura de Beatriz também tem um papel importante na
Commédia, é ela que intercede por Dante, quando “a meio caminhar de nossa

33
ALIGHIERI, Dante. op. cit., v.1: Inferno, canto XV, versos 22-33, p. 110.
34
Orlando FEDELI (FEDELI, op. cit., p. 02) e Carmelo DISTANTE (DISTANTE,
Carmelo. Prefácio. ALIGHIERI, Dante. op. cit., v1:Inferno. p.10) atestam a passagem de Dante
pela Universidade de Bolonha entre 1285 e 1287. Hilário FRANCO JUNIOR (FRANCO
JUNIOR, Hilário. op. cit., p. 30) diz que Dante também esteve em Pádua e Paris.
35
DISTANTE, Carmelo. op. cit.,p. 8.
21

vida, fui me encontrar numa selva escura: estava a reta minha vida perdida”36,
enviando-lhe Virgílio que será então o guia de Dante pelo Inferno e Purgatório. E
a própria Beatriz guiará o poeta no Paraíso.
Para Orlando FEDELI “o problema é que jamais ficou claro se esse amor
foi por alguém em concreto ou se foi uma expressão mítica”37. Contudo, não
descarta a hipótese de que Beatriz tenha sido alguém de carne e osso. Segundo
LEWIS38, Beatriz existiu realmente, chamava-se Beatriz Portinari, filha de Folco
Portinari, rico banqueiro florentino e uma das figuras de maior destaque da
sociedade florentina na época. Foi numa festa de aniversário na casa dos
Portinari que Dante viu Beatriz pela primeira vez e se apaixonou perdidamente,
assim permanecendo por toda a vida. Bem como Dante, o casamento da jovem
Beatriz já havia sido acertado por seu pai, a moça casou-se em 1287 com um
banqueiro chamado Simoni de Bardi. Beatriz teria morrido em 1290, deixando o
poeta inconsolável. Na Commédia, a figura de Beatriz aparece como um símbolo,
assim como Virgílio, símbolo da razão humana, Beatriz simboliza ou representa
a sabedoria Divina.
Dante casou-se entre 1283 e 128639 com uma moça chamada Gemma
Donati com quem teve três filhos, Pietro, Iacopo e Antonia, e talvez um quarto
chamado Giovanni. O casamento era parte de um contrato matrimonial, segundo
as regras da época, firmado em 1277 quando Dante tinha doze anos, entre o pai
de Dante e o pai de Gemma, Manetto Donati. Há uma lenda de que a filha de
Dante, Antonia, teria se tornado freira e adotado o nome de Beatriz40. Dante
jamais mencionou o nome da esposa ou dos filhos em qualquer uma de suas
obras41.

36
ALIGHIERI, Dante. op. cit.v.1: Inferno, canto I, versos 1-3, p. 25.
37
FEDELI, op. cit., p. 2.
38
LEWIS,. op. cit., p. 37-38.
39
Não há consenso entre os autores no que se refere a datas específicas de certos
acontecimentos da vida de Dante, por isso nós preferimos não nos ater a datas precisas, mas
coloca-las aproximadamente.
40
LEWIS,. op. cit.,p. 86.
41
Ibid., p.40-42.
22

2.2 DANTE: A POLÍTICA

Dante ingressa na vida política em 1295, depois de um período de


introspecção após a morte de Beatriz42. Para concorrer aos cargos públicos da
Comuna era preciso estar inscrito em uma das Corporações de ofício que
comandavam a cidade.
Em 1295, talvez em meados do ano, Dante inscreveu-se na Corporação dos Boticários
de Florença, sem ser, claro está, nem médico nem farmacêutico, embora tivesse
estudado medicina e farmácia como subáreas da filosofia natural. Mas a referida
corporação era simpática a literatos e a intelectuais, e Dante foi registrado como ‘poeta
florentino’43.

Dante ascendeu rapidamente na vida pública. Ainda em 1295 teria se


apresentado ao conselho dos líderes das doze corporações principais, e no ano
seguinte teria discursado ao conselho dos cem44. Dante rapidamente ganhou fama
pela sua eloqüência e persuasão oral. Em 1300 Dante foi eleito um dos priores
que deviam governar Florença durante dois meses. Durante o mandato como
prior Dante se destacou por colocar o bem estar da população e por buscar
preservar a ordem pública acima de tudo. Durante o mandato de Dante em 1300,
um novo conflito envolvendo os Cerchi e os Donati (brancos e negros) tomou
conta da cidade. Os priores tiveram que agir e por fim ao conflito. Partidários de
ambos os lados envolvidos na contenda foram expulsos, entre eles Corso Donati
do lado dos negros e o poeta Guido Cavalcante do lado dos brancos. Dante
embora fosse guelfo branco e amigo íntimo de Guido não teve escolha se não
expulsar o amigo junto com os outros.
Tudo indica que em 1301 Dante tenha sido eleito novamente para o cargo
de prior. O que sabemos de fato é no final deste ano foi enviado a Roma com
mais duas pessoas na esperança de convencer o Papa Bonifácio VIII a impedir
que Carlos de Valois, enviado pelo próprio Papa sob a falsa pretensão de

42
LEWIS, op. cit., p. 76 et seq.
43
LEWIS, op. cit., 82-83.
44
Ibid., p. 85.
23

pacificar a cidade, ajudasse os negros a tomarem o governo da cidade45. A


embaixada empreitada por Dante e seus companheiros fracassou, no caminho de
volta receberam a noticia de que Carlos de Valois e os Negros haviam invadido a
cidade e tomado o governo. Dante foi acusado de corrupção, condenado a pagar
uma pesada multa e banido da cidade. Meses depois o poeta foi condenado a
morrer fogueira caso tentasse retornar a Florença46. Após essa data Dante não
mais retornou a cidade, e ao que tudo indica permanece no exílio até hoje. Dante
morreu em Ravena em 1321 e seu corpo sepultado num convento franciscano de
lá. Alguns anos depois o governo florentino reivindicou os restos mortais do
poeta, mas parece que os franciscanos de Ravena haviam escondido o corpo que
permanece desaparecido ate hoje47.
Após o exílio, a política passou a ser objeto de profundas reflexões sobre o
homem, a sociedade e o destino. São dessa época as obras: Convívio e
d’Monarquia. O exílio e a amargura pessoal fizeram com que o poeta voltasse
sua postura política cada vez mais para o gibelinismo, “criticando os interesses
materiais da Igreja e apoiando um efetivo poder universal por parte do
imperador”48.
Há quem veja nos escritos políticos do poeta as raízes ou traços, ainda que
tênues, do pensamento político da Época Moderna. A própria posição política do
poeta é por si só uma questão bastante controversa. Embora tenha defendido
fervorosamente a separação entre os poderes temporal e espiritual em seu tratado
chamado d’Monarchia, onde deixa clara sua posição em relação ao papel que
deve ser desempenhado pelo poder espiritual, Dante sempre pertenceu ao partido
dos guelfos, que apoiavam o Papado. E mesmo quando esses se dividiram em
neri e bianchi (negros e brancos) o poeta tomou o partido dos bianchi,
moderados, que respeitavam o Papa ainda que se opusessem à sua interferência
na política da cidade. Ainda que o poeta preferisse manter o posicionamento

45
LEWIS, op. cit., 94-96.DISTANTE, op. cit., p. 10. e FEDELI, op. cit., . 22-23.
46
LEWIS, op. cit., p. 95-96. e FEDELI, op. cit., p.23.
47
FRANCO JUNIOR, op. cit., p. 50.
48
Ibid., p. 21.
24

político de sua família, assumidamente guelfa, para muitos parece ser


contraditório que tenha escrito um tratado tão importante como o d’Monarchia
defendendo uma postura não tão favorável ou mesmo contrária ao Papado.

2.3 DANTE: O EXÍLIO

O antepassado mais ilustre de Dante de nome Cacciaguida, fora ordenado


cavaleiro pelo imperador Conrado III e lutou na Segunda Cruzada a Terra Santa
onde morreu em combate em 114849. Dante encontra o trisavô no Paraíso50, onde
este lhe conta sobre a sangrenta história de Florença, o passado da família e faz
uma previsão de acontecimentos futuros na vida de Dante. Na verdade devemos
ter em conta que se trata do próprio Dante falando através de seu antepassado.
Segundo nos informa na Commédia, “nel mezzo del cammin di nostra
vita”51 Dante iniciava a sua jornada ao Além. De acordo com LEWIS52, o meio
do caminho da vida de um homem na Idade Média corresponde a 35 anos,
portanto para Dante corresponderia ao ano de 1300. Devemos observar que se
trata de um marco na vida do poeta. Em 1300 Dante foi eleito um dos seis priores
de Florença, mais alto cargo político da comuna. Dois anos depois, em 1302,
Dante foi acusado de corrupção e exilado de Florença. O fato de o poeta assinalar
o ano de 1300 justamente como um marco que dá início a Commédia não deve
ser encarado enquanto simples coincidência.
No início de seu exílio Dante procurou recuperar sua posição política
junto com os demais exilados do partido branco e alguns gibelinos também
exilados. “No principio de junho de 1302, Dante e outros 16 guelfos brancos
exilados aliaram-se à família Ubaldini, a fim de planejar a invasão de Florença.
Os Ubaldini eram tradicionalmente gibelinos e opositores ferrenhos dos guelfos

49
LEWIS,. ibid., p. 30. e DISTANTE, Carmelo. Prefácio. ALIGHIERI,Dante. op. cit.,
v. 1: Inferno. p. 9.
50
ALIGHIERI, Dante. op.cit., v.3: Paraíso, cantos XV -XVII. p. 107-126.
51
“A meio caminhar de nossa vida”. ALIGHIERI, Dante.op. cit., v.1: Inferno, canto I,
p. 25.
52
LEWIS. op.cit,. p. 115.
25

negros que dominavam a cidade”53. A empreitada não deu certo, e Dante acabou
se desentendo com os demais exilados e afastou-se deles. Nos anos seguintes
aproximou-se das cidades setentrionais e vagou de corte em corte, prestando seus
serviços como conselheiro político, militar e como diplomata. Sua primeira
parada foi em Forlì, “próspero povoado de origem romana então governado por
Scarpetta Ordelaffi, partidário gibelino”54. Seis meses depois o poeta seguiu para
Verona, como emissário dos guelfos brancos região, e apresentou-se ao líder
gibelino Bartolomeo della Scalla, permanecendo durante nove meses até a morte
de Bartolomeo. Ao deixar Verona Dante segue para a cidade de Lunigiana a
convite do marquês de Malaspina. O marquês ouvira falar do talento diplomático
do poeta e o chama para resolver uma disputa entre ele e o Bispo de Luni. Dante,
em sua viagem pelo Além, se encontra com um Corrado Malaspina55 no
Purgatório. Este lhe indaga se conhece sua família, o poeta diz que não, mas
exalta sua fama muito conhecida, Malaspina então profetiza que no prazo de sete
anos Dante terá essa fama confirmada, numa alusão ao apoio que o poeta
receberá em Lunigiana. Segundo Hilário FRANCO JUNIOR56, Dante teria
freqüentado a Universidade de Bolonha entre 1304 e 1306, e em 1309 e 1310
teria estado na Universidade de Paris.

“Segundo Boccaccio, apesar de ter cumprido brilhantemente todas as obrigações ele não
obteve o título de Doutor em Teologia. Ou por lhe faltar o dinheiro necessário, ou por se
deixar entusiasmar pela entrada de Henrique VII na Itália, ou por esses dois motivos,
Dante não concluiu seus estudos em Paris, mas saiu deles bastante enriquecido”57.

Como vimos, em 1310 a vinda do Imperador Henrique VII à Itália enche


Dante de esperanças de poder voltar a Florença. Contudo, o Imperador morre três
anos depois em Buon Convento, vítima de malária e com ele todas as esperanças
do poeta.

53
LEWIS, op. cit., p. 98.
54
Ibid.,p. 99.
55
ALIGHIERI, Dante. op. cit., v.2: Purgatório, canto VIII, versos 118-138. p. 59.
56
FRANCO JUNIOR, op. cit., p. 30-31.
57
Ibid., p. 31.
26

Por conta de suas passagens por cortes gibelinas durante o exílio e do


tratado D’Monarquia, Dante ganhou fama entre seus estudiosos de ter abraçado a
causa gibelina. Contudo, no caso de D’Monarquia, onde o autor defende a
separação entre poder temporal e poder espiritual, esta é uma questão que agita o
mundo medieval desde os tempos do Reino e depois do Império Carolíngio58, ou
seja, há pelo menos cinco séculos. Como explicar então a aproximação, a
presença de Dante nas cortes gibelinas? Nós levantamos uma hipótese provisória.
Ainda em Florença, a situação dos Alighieri não era das melhores e o poeta havia
contraído dívidas59 com familiares para poder manter a sua família. Com o
decreto de exílio Dante teve os poucos bens que lhe restavam confiscados. Como
fazer então? Essas informações sobre a situação financeira dos Alighieri vêm
corroborar a nossa hipótese de que, independente da posição política, Dante é em
primeiro lugar um homem tentando sobreviver e sustentar sua a família.
Essa primeira fase de seu exílio, entre 1302 e 1312, foi extremamente
fértil. São dessa época as obras De Vulgari Eloquentia (por volta de 1315), o
Convívio (1306-1308), a primeira parte da Commédia (iniciada em 1307) e
D’Monarquia (iniciada em 1308)60. Entre 1312 e 1315 Dante volta a estabelecer-
se em Verona, sob a proteção de Can Grande della Scala, com quem mantém-se
por mais ou menos cinco anos. LEWIS afirma que já nessa época (1315) Dante
havia se tornado uma figura bastante conhecida em Verona e que a primeira parte
da Commédia, o Inferno, já era conhecida em toda a região. “(...) o Inferno de
Dante ganhara notoriedade já, diga-se, em 1315. A primeira referência específica
à Comédia, um alusão ao Inferno, remonta 1313-1314, feita pelo poeta toscano
Francesco de Barberino”61. Durante os anos que esteve em Verona Dante
“revisou o Inferno, escreveu o Purgatório, assistiu a reprodução e a difusão
desses dois Livros e adiantou, consideravelmente, a composição do Paraíso”62.

58
RIBEIRO, Daniel Valle. Igreja e Estado na Idade Média: relações de poder. 2. ed.
Belo Horizonte: Lê, 1999.
59
LEWIS, op. cit., p. 86-87.
60
Ibid., p. 105-140.
61
Ibid., p. 143.
62
LEWIS, op. cit., p. 143.
27

Em 1318 Dante deixa Verona e transfere-se para Ravena, a convite do


senhor daquela cidade Guido Novello de Polenta. Curiosamente o senhor Guido
Novello de Polenta é mencionado por Dante no Inferno63. Dante Alighieri morreu
em Ravena na noite de 13 de Setembro de 1321, poucos meses depois de ter
concluído a sua grande obra, a Commédia.

63
ALIGHIERI, Dante. op. cit., v.1: Inferno,canto XXVII, verso 41, p. 182.
28

3 O NASCIMENTO DO PURGATÓRIO

A principal obra escrita por Dante foi batizada por ele de Commédia. O
adjetivo “divina” foi acrescentado posteriormente numa edição do século XVI.
Contudo, atribui-se a Giovanni Boccaccio, considerado primeiro grande
comentador de Dante, a primeira vez em que o termo foi utilizado. Boccaccio
também foi poeta e escritor e viveu mais ou menos setenta anos depois de Dante.
A Commédia de Dante Alighieri começou a ser escrita mais ou menos em 1307 e
foi concluída entre 1320 e 1321. Trata-se de uma narrativa escrita em versos que
contam a viagem que Dante teria feito ao além túmulo, ao Inferno, ao Purgatório
e ao Paraíso. O poeta latino Virgilio, a quem o próprio Dante chama de “meu
mestre”64, foi o guia no Inferno e no Purgatório. Beatriz, sua musa de infância, e
São Bernardo foram seus guias no Paraíso.
Contudo, esse tipo de narrativa de que Dante se utiliza não é uma
novidade. Ao contrário, trata-se de um estilo recorrente tanto dentro como fora da
Cristandade. O próprio Virgilio já havia utilizado uma narrativa semelhante, a
viagem ao além-mundo, na Eneida. Como também Homero já havia utilizado
antes na Odisséia. Como também o fizeram escritores cristãos e árabes que
viveram durante a época medieval. Entre os escritores medievais que trabalharam
com essa temática podemos citar Adam de Roe que, segundo Hilário FRANCO
JUNIOR, no século XII narra a viagem de São Paulo pelo Inferno. Também de
acordo com Hilário FRANCO JUNIOR, na mesma época, o místico Joaquim de
Fiore descrevera sua própria descida ao Inferno e sua ascensão ao Paraíso. Outra
obra, já muito famosa no século XIII, a Legenda Áurea (Lenda Dourada) escrita
por Giacomo de Voragine, narra a lenda segundo na qual São Patrício havia
visitado o Inferno e o Purgatório e visto o castigo dos condenados. Porém “se na
grande maioria dessas fontes utilizadas direta ou indiretamente por Dante não

64
ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. São Paulo: Editora 34, 1998. v. 1: Inferno,
canto I, verso 85.
29

aparece o purgatório, isso não significa que ele fosse uma criação do Poeta”65.
Acredita-se que Dante tenha se “inspirado” nesses trabalhos para escrever a sua
Commédia.
O Purgatório nasce na segunda metade do século XII, no final de uma
grande reforma imaginada pela Igreja medieval para transformar toda a sociedade
conhecida como Reforma Gregoriana66. Esta foi uma ação ao mesmo tempo
religiosa e política. No aspecto religioso pretendia reformar e renovar o clero e
cristianizar verdadeiramente a sociedade, até então convertida apenas
superficialmente67. No aspecto político a Igreja pretendia a afirmação do poder
espiritual frente os poderes laicos. A Querela das Investiduras entre o Papa
Gregório VII e o imperador Henrique IV do Sacro Império Romano Germânico
traduz este aspecto político68.
Muito embora, graças aos esforços da Igreja, o medo do juízo final
povoasse o imaginário medieval, muitos homens tinham dificuldade em
abandonar os bens materiais e os prazeres da vida terrena, sobretudo
proporcionados pelo novo contexto de crescimento material. Aos poucos a
dicotomia entre o inferno e o paraíso imposta pela Igreja, já não atendia as
necessidades desta sociedade “que cada vez menos conseguia pensar no modelo
estritamente antagonista dos bons e dos maus, do preto e do branco”69. A fórmula
encontrada pela Igreja foi a determinação de um espaço sagrado no Além onde os
que não eram “nem totalmente bons, nem totalmente maus – distinção
agostiniana”70, e que se arrependiam, ainda que tardiamente, pudessem ter
esperanças de serem salvos. Este novo espaço foi o Purgatório, cuja única porta
de saída é o Paraíso.

65
FRANCO JUNIOR, Hilário. Dante Alighieri: o poeta do absoluto. São Paulo:
Brasiliense, 1986. p. 39.
66
LE GOFF, J. A bolsa e a vida. Economia e religião na idade média. São Paulo:
Brasiliense, 1986. p. 68.
67
Ibid, p. 65-67.
68
HEERS, J. História medieval. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1974. p.
95-110.
69
LE GOFF. op. cit, p. 67.
70
Ibid, p. 76.
30

Contudo, a crença na possibilidade de ser perdoado pelos pecados mesmo


após a morte não é exatamente uma novidade do século XII. LE GOFF explica
que

“logo desde as origens os cristãos, ao rezarem pelos seus defuntos, manifestam a


convicção de que seja possível uma remissão dos pecados após a morte. Mas o tempo, o
lugar e as modalidades dessa purificação permanecem durante muito tempo no vago (...)
o processo de localização do purgatório só no século XII sofre uma aceleração O
substantivo purgatorium aparece nos últimos trinta anos deste século”71.

O Purgatório enquanto novo espaço sagrado e de salvação emerge no final


do século XII como um recurso da Igreja medieval para adaptar-se e atender as
novas exigências da sociedade em transformação. O contexto de crescimento
econômico do qual a Europa medieval foi então o centro produziu, entre outras
coisas, uma renovação no campo das idéias e da cultura conhecido como
Renascimento do século XII. Este renascimento cultural, aliado à Reforma
Gregoriana, fez emergir na sociedade medieval uma nova forma de ver e pensar o
mundo, a natureza e a relação dos homens com Deus. “Esse autêntico
‘nascimento’ do Purgatório insere-se numa grande mudança das mentalidades e
das sensibilidades ocorrida entre os séculos XII e XIII, em particular numa nova
e profunda sistematização da Geografia do Além, e das relações entre a
sociedade dos vivos e a sociedade dos defuntos”72.

3.1 O PURGATÓRIO DE SÃO PATRICIO.

Um dos primeiros tratados conhecidos sobre o Purgatório foi o Purgatório


de São Patrício73. Escrito por volta de 1190 por um cisterciense inglês foi de
importante contribuição para o nascimento e divulgação do Purgatório. “(...) é o

71
LE GOFF,. O maravilhoso e o cotidiano no ocidente medieval. Lisboa: Estampa,
1983. p. 61.
72
LE GOFF,. op. cit., p. 61.
73
Aparentemente o Purgatório de São Patrício analisado por LE GOFF não é o mesmo
mencionado por Hilário FRANCO JUNIOR no começo deste capítulo, a Legenda Áurea, escrita
por Giacomo de Voragine.
31

primeiro em que se fala explicitamente de purgatório para indicar um lugar


específico, separado, no Além. Redigido em latim, o Purgatorium Sancti Patricci
será bem depressa traduzido em francês (...) e conhecerá no século XIII
numerosas versões em latim e nas línguas vulgares”74.
Trata-se de uma aventura vivida por um cavaleiro irlandês chamado
Owein, origem de uma peregrinação realizada até hoje, ao lugar chamado
Purgatório de São Patrício, localizado numa ilha, Station Island, no meio de um
lago, Lough Derg, na fronteira com a Irlanda do Norte75. Segundo a lenda, São
Patrício, para convencer os irlandeses, conseguiu que Deus abrisse uma
passagem para o Além numa fenda na ilha. Aqueles que lá desciam e passavam a
noite sofriam as penas do Purgatório. Se resistiam regressavam à Terra
purificados, passavam a fazer penitência e a levar uma vida sem pecados com a
certeza de que iriam para o céu76. De acordo com LE GOFF o Purgatório descrito
neste tratado está muito próximo do Inferno, embora as modalidades estejam
atenuadas, é uma espécie de inferno temporário, onde aqueles que lá caem
conseguem escapar. LE GOFF salienta que na época em que o tratado foi escrito,
fins do século XII, o sistema do Purgatório não está ainda bem organizado e
construído77.
Diferente do Purgatório da Divina Comédia, no Purgatório de São
Patrício o viajante deve atravessar uma sucessão de imensos campos horizontais
(planos) onde os demônios tentam arrastá-lo consigo. LE GOFF aponta duas
hipóteses para explicar a imensidade dos espaços do Purgatório. A primeira delas
corresponderia ao desejo do autor de impressionar o protagonista, no caso
Owein, e o leitor ou ouvinte da aventura. A segunda proviria da das dúvidas do
autor a cerca da Geografia do Purgatório78.
Na Divina Comédia o Purgatório segue outro itinerário, a subida à
Montanha do Purgatório. Os visitantes, assim como os condenados, têm que
74
LE GOFF. op. cit., p. 62.
75
Ibid., p. 62-63.
76
Ibid., p. 63.
77
Ibid., p. 63-64.
78
Ibid., p. 67.
32

escalar os nove círculos ou terraços da montanha até chegar ao topo onde fica a
entrada para o Paraíso.

3.2 O PURGATÓRIO DA DIVINA COMÉDIA.

Pela cosmologia dos tempos de Dante, herdada de Aristóteles e de


Ptolomeu, e adotada pela Escolástica às Escrituras, a Terra era representada
como um globo, solto e fixo, imóvel no espaço, contendo terras e mares. Este
globo era constituído por dois hemisférios, um superior (setentrional) de
superfície sólida, o único habitado, e um inferior (austral) de superfície toda
marinha, tendo unicamente em seu centro a montanha do Purgatório. O centro do
hemisfério superior estava a cidade de Jerusalém e embaixo dela o Inferno em
direção ao centro da Terra. No pólo oposto estava a montanha do Purgatório
formada pela queda de Lúcifer79.
O Purgatório da Commédia é composto por nove círculos ou níveis, sendo
que os dois primeiros servem como uma espécie de antecâmara do Purgatório
(anti-purgatório) onde se encontram os arrependidos tardios. Nos sete círculos
subseqüentes estão os pecados propriamente ditos. Cada círculo corresponde a
um pecado e a sua expiação. São eles em ordem crescente, quanto mais alto mais
perto do Paraíso,: I- os orgulhosos; II- os invejosos; III- os iracundos; IV- os
preguiçosos; V- os avaros e pródigos; VI os gulosos; VII- luxuriosos. Ressalta-
se que os pecados do Purgatório dantesco correspondem a uma classificação dos
sete pecados capitais.

79
DISTANTE, Carmelo. Prefácio. ALIGHIERI, Dante. A divina comédia: São Paulo:
Editora 34 , 1998.v. 1:Inferno.
33

4 OS GESTOS DO PURGATÓRIO.

Analisaremos neste capítulo alguns gestos que, segundo LE GOFF embora


não estejam presentes no Purgatório de São Patrício, serão característicos do
Purgatório no século XIII. São as súplicas dos condenados dirigidas aos
visitantes para que estes quando regressem ao mundo dos vivos avisem os
parentes, filhos, cônjuges, que rezem por suas almas abreviando assim o tempo
de suas penas. Outro gesto característico são as súplicas dirigidas a Deus com a
esperança de que sejam ouvidos no Paraíso. No Purgatório da Divina Comédia
podemos observar alguns exemplos dessas súplicas.
A primeira vez que este gesto aparece na Commédia é quando Dante e
Virgílio encontram-se com Manfredo, filho e sucessor do Imperador Frederico II,
rei da Apúlia e da Sicília. Manfredo fora traído pelo Papa Clemente IV que
ofereceu seus reinos a Carlos I de Anjou. Ambos, Manfredo e Carlos I se
enfrentaram na Batalha de Benevento em 1266, e Manfredo foi morto.
Arrependido de última hora, sua alma encontra-se no anti-purgatório, onde deve
esperar, para iniciar a pena que o purgue de seus pecados, trinta vezes o tempo
que viveu afastado da Lei Divina. Porém esse tempo pode ser encurtado por
orações feitas a Deus em seu favor. Finalizando ele pede a Dante que leve este
relato a sua filha Constança.

Certo é que quem morrer, da Santa Igreja


Em contumácia, e só ao fim penitente,
Há de aguardar nesta encosta o que almeja,

Trinta vezes o tempo que, intemente,


Em vida transcorreu, salvo o prescrito
Por boa prece encurtar, que o complemente.

Vê como pode contentar meu feito


De revelar à minha boa Constança
Como me viste e qual é este interdito,

Que aqui pelos de lá muito se avança 80.

80
ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. São Paulo: Editora 34, 1998. Purgatório,
Canto III, versos 136-145.p. 30.
34

Podemos observar no exemplo a cima que o arrependimento sincero, ainda


que tardio, “e só ao fim penitente”, pelos pecados cometidos é o primeiro passo
para se adentrar no Purgatório. Se antes, até o século XII, são os Oratores que
rezam pela salvação de todas as almas, neste século XIII, a responsabilidade
individual pela salvação é cada vez maior. O primeiro gesto é o arrependimento.
O Juízo Final não está descartado, mas, no momento da morte o homem
medieval tem que enfrentar o primeiro julgamento, este individual em que vai
pesar a contrição. A nova realidade da sociedade medieval proporcionada pelo
crescimento material, muda a concepção de mundo para os medievais. A
Reforma Gregoriana cuidou para que novos valores fossem incutidos na
população. A verdadeira conversão da sociedade passa pela interiorização da fé.
Cada um individualmente torna-se responsável pela própria salvação. Trata-se,
segundo LE GOFF, “de uma evolução religiosa, desenvolvida ao longo do século
XII, que prescreve novas formas de confissão, contrição e remissão”81.
O pecador deve permanecer no Purgatório trinta vezes o tempo que viveu
afastado da Lei Divina, salvo através “de boa prece” em nome de sua alma, que
complemente o tempo de estada. Os Exempla medievais estão cheios de
exemplos, principalmente de usurários, que voltam para pedir a família,
geralmente à esposa que faça por ele o que não fez quando estava vivo. Ressarcir
os bens que este tomou por usura e rezar pela libertação de sua alma, encurtando-
lhe assim a sua pena. Percebemos aqui a existência de uma conexão entre o
mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Há uma abertura para que os vivos
possam intervir a favor dos mortos. Essa abertura é uma característica exclusiva
do Purgatório, pois em nenhum outro espaço essa conexão existe, nem no
Inferno, pois não há salvação para os danados, nem no Paraíso. Neste sentido
podemos dizer que o Purgatório se constitui num espaço totalmente novo, de
preceitos até então inexistentes, para uma sociedade que também é nova.

81
LE GOFF, Jacques. A bolsa e a vida. Economia e religião na idade média. São Paulo:
Brasiliense, 1989. p. 74.
35

“Que aqui pelos de lá muito se avança”. Nitidamente podemos notar a


importância da prece, da intervenção que os vivos podem fazer pelos mortos.
Ainda que a contrição e a responsabilidade individual conte muito para que o
pecador possa entrar no Purgatório, a salvação completa da sua alma depende dos
laços que ele estabelece no mundo dos vivos. O Purgatório se insere na
interiorização do sentimento religioso que, da “intenção à contrição, exige do
pecador mais uma conversão interna do que atos exteriores. O purgatório se
integra também numa socialização da vida religiosa que considera muito mais os
membros de uma categoria social e profissional que os membros de uma
ordem”82. Percebemos pelos dizeres de LE GOFF uma nova organização
religiosa da sociedade, mais de acordo com a nova realidade urbana e econômica.
Considerando que a cultura e o imaginário coletivo mudam mais lentamente que
a política e a economia, o Purgatório, do Purgatório de São Patrício no final do
século XII até à Commédia escrita no início do século XIV, leva quase um século
para tomar forma e estruturar-se.
No canto VIII, ainda no ante-purgatório, Dante encontra um tal Nino
Viscondi, juiz de Gallura, este ao saber que Dante é vivo , pede-lhe que na volta
procure sua filha Giovanna (Joana) para que reze pelo encurtamento de sua pena.

“Veio ele a mim e a ele eu fui: ó Céus,


juiz Nino gentil, como exultante
por não te encontrar entre os réus!

(...) E para mim: ‘Pelo singular bom grado


que Àquele deves tu, que assim esconde
o seu primo porquê é a nós vedado,

ao chegares, além das ondas, donde


vieste, dize a Joana que ela chame
por mim onde a inocentes se responde”83.

“Onde a inocentes se responde”, ou seja, no Céu. Pensemos no sentido da


palavra inocente. Inocente neste caso não deve se referir à pureza ou à

82
LE GOFF, op. cit., p. 76.
83
ALIGIERI, Dante. op. cit., v1: Inferno, canto VIII, versos 52-70, p. 57
36

virgindade, já que em muitos casos é a esposa do morto quem vai interceder por
ele. Não nos parece que inocente signifique sem pecados, já que a princípio todos
os homens são pecadores, marcados pelo pecado original. Podemos pensar que,
assim como o homem antes de morrer deve expressar arrependimento sincero,
também o parente que permanece no mundo dos vivos e pede por sua alma
também deve observar a confissão e a contrição.
Peguemos um exemplo exterior à Commédia, o caso de usurário de Liège,
contado por Cesário de Heisterbach, por volta de 1220, e citado por LE GOFF84:

“Num canto do Purgatório, de repente, o inesperado, o inaudito: um usurário. ‘Monge –


Um usurário de Liège morreu em nossa época. O bispo mandou tira-lo do cemitério.
Sua mulher dirigiu-se à sede apostólica para implorar que ele fosse enterrado em terra
santa. O papa recusou. A mulher então pleiteou pelo marido: ‘Disseram-me, Senhor,
que homem e mulher são apenas um, e que segundo o Apóstolo, o homem infiel pode
ser salvo pela mulher fiel. O que meu marido esqueceu de fazer, eu que sou parte de seu
corpo, o farei de boa vontade em seu lugar. Estou pronta ame enclausurar por ele e a
redimir junto a Deus os seus pecados’. Cedendo aos pedidos dos cardeais, o papa fez
com que o morto tornasse ao cemitério. A mulher escolheu domicílio junto ao seu
túmulo, trancou-se como reclusa e esforçou-se dia e noite para apaziguá-lo com Deus e
para que sua alma fosse salva através de esmolas, jejuns, preces e vigílias. No fim de
sete anos, o marido apareceu-lhe, vestido de negro, e lhe agradeceu: ‘Deus lhe pague,
graças às suas provações, fui retirado das profundezas do Inferno e me vi livre das
penas mais terríveis. Se você me prestar ainda tais serviços durante sete anos, serei
completamente libertado’. Ela o fez. Ele lhe agradeceu de novo no final de sete anos,
mas desta vez, vestido de branco e com ar feliz. ‘Graças a Deus e a você, fui hoje
libertado’. Noviço – ‘como se pode dizer libertado hoje do Inferno, lugar onde nenhum
resgate é possível?’ Monge – ‘Das profundezas do Inferno, isso quer dizer da aspereza
do Purgatório. Do mesmo modo que a Igreja ora pelos defuntos dizendo: ‘Senhor Jesus
Cristo, Rei de Glória, liberte as almas de todos os fiéis defuntos da mão do Inferno e das
profundezas do abismo, etc’, ela não pede pelos danados, mas por aqueles que podem
ser salvos. A mão do Inferno, as profundezas do abismo, isso quer dizer, nesse trecho,
as asperezas do Purgatório. Quanto a nosso usurário, ele não teria sido libertado de suas
penas, se não tivesse expressado uma contrição final”85.

O caso do usurário de Liège é bastante exemplar. A esposa teve, ela


também que praticar o bem, fazer penitência e expressar contrição. O marido, por
seu lado, teve também que “expressar uma contrição final”. O caminho do
Purgatório é árduo tanto para que fica quanto para que morre, contudo, há uma

84
LE GOFF, op. cit., p. 77-78.
85
Id.
37

esperança, estar no Purgatório significa ser salvo, pois a única saída do


Purgatório é o Paraíso.

“Sobretudo, estavam seguros de que, depois de passar por provações purificantes,


seriam salvos e iriam para o Paraíso. O Purgatório, em verdade, tem apenas uma saída:
o Paraíso. O essencial acontece quando o morto é enviado ao Purgatório. Ele sabe que
finalmente será salvo, o mais tardar no momento do Juízo Final”86.

Outro fator que nos chama a atenção neste caso é o fato que um usurário
tenha sido salvo. A figura do usurário foi condenada pela Igreja durante toda a
Idade Média como um Pecado mortal. A nova condição econômica da
Cristandade faz com que os teólogos e religiosos repensem a condição do
usurário. Ele também merece ser salvo pelos serviços que presta dentro deste
novo contexto sócio-econômico.
Voltemos a examinar os casos da Commédia. No canto XIII, na cornija
dos invejosos, que têm seus olhos costurados com arame, Dante conversa com
uma moça de nome Sápia, que confessa ter sido invejosa e desejosa da desgraça
alheia, tendo se arrependido só na última hora. Ao saber que Dante é vivo e deve
a sua viagem à Graça divina, deduz que Deus o quer e portanto acolherá as
preces que ele Lhe fizer em favor da abreviação de sua pena no Purgatório.

“Sábia não fui, ainda que Sápia


nomeada. Saber de outrem os danos,
mais que a minha ventura, me sorria

(...) Paz enfim desejei com Deus, no extremo


de minha vida, e ainda não teria
sido encurtada, pelo que aqui gemo,

minha dívida, sem a ajuda pia


que deu, nas preces nas preces suas me recordando,
Píer Pettinaio pra minha alforria.

(...) ‘Oh! Quão extraordinário isto é de ouvir’,


tornou-me ‘isto é sinal que Deus te quer,
pois, tua prece é a que pode me servir.

86
LE GOFF, op. cit., p. 77.
38

Rogo-te mais, por teu maior querer,


se pisares a terra de Toscana,
de junto aos meus de minha fama erguer”87.

Mais uma vez verificamos o arrependimento pelos pecados, ainda que


tardio. A contrição é o primeiro passo para a salvação da alma. De nada adianta
as orações se o pecador ou pecadora não admitir sua culpa e se arrepender. Esse
primeiro passo só pode ser dado individualmente. No exemplo a cima temos duas
intercessões. A primeira, concluída, por parte de um tal Pier Pettinaio através de
preces, sem as quais a defunta não teria sua pena encurtada apenas através do
arrependimento. A necessidade de ajuda externa para a abreviar a pena corrobora
a idéia de unidade dos cristãos, embora a carga individual seja uma fator
importante, ninguém atravessa as penas do Purgatório sem ajuda, ser cristão é um
laço indissolúvel, a Cristandade é uma só. A segunda intercessão é a que Sápia
suplica a Dante. acredita-se que uma jornada como a do poeta não pode ser
realizada sem o consentimento de Deus. E se Ele consente, também é provável
que escute suas preces. Podemos pensar que também as preces dos vivos são
expressões da vontade Divina.
Outro caso é o do poeta provençal Arnaldo Daniel, que se encontra na
sétima cornija, a dos luxuriosos88.

“Tanto me agrada vosso cortês pedido, que eu não posso nem quero me esconder de
vós. Eu sou Arnaldo que choro e vou cantando; contrito, vejo a passada insensatez, e
contente vejo à minha frente a alegria que espero. Agora vos rogo, por aquele Poder que
vos guia ao topo desta escadaria, que vos recordeis, no devido tempo, de minha dor”89.

“Choro e vou cantando”, ao mesmo tempo em que as penas são duras, a


certeza de ir para o Paraíso, “a alegria que espero”, torna a pena mais suportável.
Mesmo já dentro do Purgatório a contrição deve ser observada. Observamos
ainda que somente através da Graça divina se pode ser salvo.
87
ALIFHIERI,Dante. op. cit., v2: Purgatório, canto XIII, versos 109-148, p. 89-90.
88
A transcrição desse trecho da fonte foi feita não do poema, mas do resumo que inicia
o canto, pois, o poema está em língua provençal, que o editor teve o cuidado de traduzir para o
português.
89
Ibid., v2: Purgatório, canto XXVI, versos 140-147, p. 174.
39

Recordamos ainda um último exemplo presente na Commédia, de um caso


especial um pouco inverso dos exemplos a cima. Provenzan Salvani90, que foi
senhor de Siena e teve sua espera abreviada no ainti-purgatório por ter tido a
humildade de pedir, em praça pública, contribuições em dinheiro a seus cidadãos
para salvar da condenação à morte um seu amigo.
O exemplo a cima é diferente dos outros citados em dois pontos. Primeiro,
a abreviação da pena é feita por um ato cometido ainda em vida. Segundo, é o
penitente quem pede pela vida do amigo. A solidariedade aparece, não só neste
caso, como um fator importante para o Purgatório. A ligação estabelecida entre o
mundo dos vivos e o mundo dos mortos depende dessa solidariedade, e, como já
dissemos, a salvação da alma que se encontra no Purgatório depende dos laços
que ele mantém no mundo dos vivos.
Entre os vários trechos analisados destacamos dois elementos importantes
na análise dos gestos do Purgatório. São eles: a contrição e a prece. A contrição é
o primeiro e principal passo para a salvação da alma. É através da contrição que
se alcança o Purgatório. A prece, que encurta a pena, é o segundo elemento mais
importante. É através dela que se expressa a solidariedade entre os vivos e os
mortos. A existência de alguém que, habitando o mundo dos vivos, seja capaz de
fazer orações e até mesmo de enclausurar-se e fazer penitência por uma alma
arrependida, corrobora a idéia que o penitente em questão não é totalmente mau,
é merece ser salvo. Entramos assim num último ponto: o merecimento. Para
merecer estar no Purgatório o pecador deve arrepender-se sinceramente de seus
pecados. E para merecer a salvação, deve merecer as preces que lhe são dirigidas.
O lugar no Purgatório deve ser conquistado pelos pecadores. Deve ser,
sobretudo, fruto de merecimento individual. Para uma Igreja que pretende
cristianizar verdadeiramente a população de uma sociedade em transformação, a
mutação de certos valores, mais condizentes com a nova realidade social,
tornam-se indispensáveis. O nascimento do Purgatório, a contrição e a

90
ALIGHIERI, Dante. op. cit., v2: Purgatório, canto XI, versos 121-136. p. 77.
40

responsabilidade individual transformam a cultura e a mentalidade dessa nova


ordem social, bem como a espelham.
41

CONCLUSÕES PARCIAIS

Antes de apresentarmos nossas conclusões finais, algumas coisas precisam


ainda ser ditas.
Dante foi certamente um gênio literário. A sua fama mesmo fora do meio
literário, e que dura até hoje, setecentos anos depois, provam isso. A sua
importância histórica começa a ser descoberta. Ao contrário de algumas
suposições, Dante foi um homem extremamente apaixonado. Apaixonado por
Florença, apaixonado pela política, apaixonado por Beatriz, mas principalmente,
apaixonado pela poesia e pela arte de escrever. Ao analisarmos a conjuntura de
transição da passagem do século XIII para o século XIV, com as sua vicissitudes,
agruras e disputas, especialmente no norte da Península itálica, verificamos
através da reconstrução da trajetória de vida do poeta, que Dante não era
indiferente a estes acontecimentos. Ao contrário, o poeta não só viveu estes
momentos, participou ativamente nos conflitos entre os guelfos e gibelinos, como
também escreveu sobre eles. A Commédia e D’Monarquia, possuem muito desse
cenário político que envolve, não só o norte da Itália, mas a Europa medieval
como um todo.
Podemos dizer que Dante situa-se na vanguarda das transformações que
são o início do período de transição entre a Idade Medieval e a Idade Moderna.
Talvez por isso coexista no pensamento de Dante uma busca pelo novo, uma
tentativa de acompanhar as mudanças que estão ocorrendo em todas as instâncias
da sociedade medieval, na política, na economia, na cultura material, e um
sentimento de preservação de certos valores medievais. Dante, embora condene
alguns membros da Igreja, critique a forma como essa Igreja esteja atuando, não
questiona a sua autoridade, nem os seus dogmas, como o fazem, por exemplo, as
novas ordens religiosas, ou as chamadas seitas heréticas. Ao escrever sobre o
Purgatório, Dante está corroborando o que é pregado pela Igreja medieval.
Embora o poeta tenha colocado alguns Papas no Inferno, não é a instituição
Igreja que ele critica, mas os seus membros que a corrompem.
42

O século XIII é o século das cidades, da burguesia, do comércio. Também


é tempo das Universidades, das grandes Catedrais, de novos conhecimentos, da
escolástica, de Aristóteles. Estamos no auge do crescimento material e da
expansão da Cristandade. Estamos também diante do seu declínio, ou como disse
LE GOFF91, preparando-se pare enfrentar uma grave crise.
Ao analisarmos o Purgatório da Divina Comédia, nosso objetivo foi traçar
a relação entre a conjuntura de transição entre os séculos XIII e XIV, a vida de
Dante e a sua obra, ou parte dela. Verificamos, em primeiro lugar, a forte
participação de Dante nesse contexto de transição. Em segundo lugar, como as
vicissitudes deste contexto afetaram diretamente a vida do poeta, principalmente
a política e o exílio. Em terceiro lugar, verificamos o reflexo dessas
transformações na obra e no pensamento de Dante.
Chegamos assim a nossa problemática principal: o pensamento de Dante
Alighieri foi comprovadamente medieval ou antecipava características modernas,
escrever sobre o Purgatório trata-se de uma iniciativa medieval (tradicional) ou
moderna (Humanista)?
Considerando os fatores por nós colocados e a conjuntura de transição que
estivemos analisando, entendemos que o Purgatório da Divina Comédia
encontra-se em consenso com o momento histórico vivido pela sociedade
medieval do período que analisamos. Embora se trate de um contexto de
transformação e transição, não encontramos elementos suficientes que
corroborem a hipótese de que se trata de uma iniciativa moderna. Julgamos ser
necessário uma análise que contemple outros aspectos da Fonte para que
possamos chegar a uma conclusão mais satisfatória. A princípio não podemos
afirmar que se trata de uma iniciativa moderna, a consonância entre a Fonte e
conjuntura nos leva a acreditar que o Purgatório da Divina Comédia apresenta
mais elementos condizentes com uma cultura medieval que com um pensamento
Humanista.

91
LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Lisboa: Editorial Estampa,
1983. v. 1, p. 139.
43

REFERÊNCIAS

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Companhia das Letras, 1991.

LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Lisboa: Estampa, 1983.


2v.

_____ O maravilhoso e o cotidiano no ocidente medieval. Lisboa: Estampa,


1983.

_____ Os intelectuais na idade média. Lisboa: Gradiva, 1984.

_____ A bolsa e a vida. Economia e religião na idade média. São Paulo:


Brasiliense, 1989.

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44

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Janeiro: Francisco Alves, 1979.

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_____O poeta que amava o amor: o discurso amoroso de Dante Alighieri.


Revista Ler História, n. 11, 1987.

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http://www.ricardocosta.com/moises.html.

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