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Universidade do Estado do Pará

Centro de Ciências Sociais e Educação


Curso de Licenciatura em Música

Elinalva Tamires Rodrigues Freitas

A REGIONALIDADE EM SERGUEI FIRSANOV:


DOCÊNCIA E OBRA DE UM MUSICISTA RUSSO EM
BELÉM DO PARÁ

Belém – PA

2019
ii

Elinalva Tamires Rodrigues Freitas

A REGIONALIDADE EM SERGUEI FIRSANOV:


DOCÊNCIA E OBRA DE UM MUSICISTA RUSSO EM
BELÉM DO PARÁ

Projeto do Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado à Universidade do Estado do
Pará, como requisito parcial para obtenção do
diploma de graduação em Licenciatura em
Música. Orientador: Prof. Dr. Paulo Murilo
Guerreiro do Amaral.

Belém – PA
2019
iii

Elinalva Tamires Rodrigues Freitas

A REGIONALIDADE EM SERGUEI FIRSANOV:


DOCÊNCIA E OBRA DE UM MUSICISTA RUSSO EM
BELÉM DO PARÁ

Projeto do Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado à Universidade do Estado do
Pará, como requisito parcial para obtenção do
diploma de graduação em Licenciatura em
Música. Orientador: Prof. Dr. Paulo Murilo
Guerreiro do Amaral.

Data:___ /02/2019

Banca examinadora:

____________________________________________ Orientador(a)
Profa. Dr. Paulo Murilo Guerreiro do Amaral
Universidade do Estado do Pará

_____________________________________________ Professor(a) Examinador(a)


Examinador(a)
Profa. Dra. Lia Braga Vieira
Universidade do Estado do Pará
iv

Aos meus professores Serguei Firsanov e


Aline Onace (in memoriam), que estarão
para sempre eternizados em meu coração.
v

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus, por te me dado a oportunidade de ter chegado até aqui; ao


Espírito Santo consolador; e a Nossa Senhora, por sua divina proteção.
Ao meu pai, Enilson Freitas, por ter me incentivado desde cedo na música, e
não me deixado desistir. Tudo o que sou devo ao seu apoio. Também agradeço à
minha mãe, Mari Rodrigues, por todo suporte financeiro e cuidados durante esses
quatro anos. Vocês são essenciais na minha vida.
Ao professor Serguei Firsanov (in memoriam), por ter acreditado no meu
potencial. Por toda dedicação a mim, e por todos os ensinamentos que irei carregar
para sempre e transmitirei aos meus alunos. A você, toda minha gratidão e admiração.
Agradeço também a professora Aline Onace (in memoriam), por ter sido fundamental
no meu desenvolvimento como violinista.
Ao professor Dr. Paulo Murilo Guerreiro do Amaral, cujas orientações foram
cruciais para a realização deste trabalho, por todo apoio e dedicação a este tema tão
especial, não só para mim, mas para todos que conviveram com o professor Serguei
Firsanov.
Agradeço aos professores: Glória Caputo, Jonas Arraes, Luiz Moraes, Dione
Colares de Souza e Celson Gomes, por terem cedido e compartilhado comigo
materiais diversos e lembranças a respeito do professor Serguei. Minha eterna
gratidão a vocês. Admiro a história de cada um.
Ao professor Me. Jonas Monteiro Arraes, por ter me cedido, gentilmente, o texto
de uma entrevista que realizou com o professor Serguei Firsanov. Agradeço
imensamente sua colaboração, ensinamentos e incentivo para a realização desta
pesquisa.
Aos meus familiares: Claudia e João Paulo de Oliveira, pela amizade e
companheirismo, especialmente minha tia Claudia, pelo apoio imprescindível para a
realização desta pesquisa bem como suas dicas que foram de muita ajuda; ao meu
irmão Felipe Freitas; minhas primas Leila, Marcia, Ana Luiza Leitão; e minha avó,
Joana, pelo incentivo de sempre.
Aos meus amigos de longa data, pelos momentos vividos, em especial ao meu
amigo Luis Costa, por compartilhar conhecimento comigo durante a pesquisa e um
livro que me auxiliou muito. Também agradeço a minha amiga Guimely Melo por me
vi

tirar algumas dúvidas e aos meus amigos de curso, em especial ao Pedro Yuri Viana
por ser um companheiro durante esses anos.
Ao meu namorado Fábio da Costa, pelo carinho, companheirismo e apoio
fundamental. Obrigada por torcer por mim independente de tudo.
vii

“Gosto muito das pessoas daqui de Belém,


acho que o Pará tem bons músicos (...).
Sou muito grato por poder conviver e ter
convivido com pessoas tão boas aqui”.

Serguei Firsanov.
viii

RESUMO

O foco desta investigação incide sobre a temática da regionalidade e abrange a


trajetória de Serguei Firsanov, um musicista estrangeiro que viveu no Pará de 1991 a
2015. Busca-se compreender de que modo a “regionalidade paraense” emerge tanto
de sua obra composicional quanto de sua atuação como professor no Instituto
Estadual Carlos Gomes, na cidade de Belém. Seu contato com aspectos da cultura
regional teria ocorrido de modo destacadamente profícuo, a ponto de ter sido, entre
vários estrangeiros atuantes nessa escola de música, aquele que por mais tempo
permaneceu na localidade. Reflexões sobre os temas composicionais desse artista,
bem como passagens de sua vida musical, sobretudo em sala de aula e
compreendendo a relação com seus alunos, deverão corroborar a construção de uma
regionalidade que é, no mínimo, bastante sui generis, dado o fato de o objeto da
pesquisa ser um estrangeiro, ou mesmo porque, talvez, a presença de uma possível
regionalidade em sua criação musical erudita, ou mesmo em sua pedagogia, se dê de
maneira pouco claramente observável.

Palavras-chave: Música no (do) Pará, Regionalidade, Serguei Firsanov, Memória,


Identidade, Instituto Estadual Carlos Gomes.
ix

ABSTRACT

The focus of this research is on the theme of regionality and covers the trajectory of
Serguei Firsanov, a foreign musician who lived in Pará State (Northern Brazil) from
1991 to 2015. We intend to understand how the "regionality of Pará" emerges as much
from his compositional work and from his work as a teacher at Instituto Estadual Carlos
Gomes, in the city of Belém. His contact with aspects of regional culture would have
occurred in a remarkable way, considering he was the one who remained in the locality,
for the longest time, among many foreigners in that school of music. Reflections on his
compositions and passages of his musical life, especially in the classroom focusing
the relationship with his students, should corroborate the construction of a regionality
that is, at least, quite sui generis, in view of Firsanov is a foreigner, or considering a
possible regionality in his erudite musical creation, or even in his pedagogy, occurs in
a little clearly observable way.

Keywords: Music in Pará, Regionality, Serguei Firsanov, Memory, Identity, Instituto


Estadual Carlos Gomes.
x

LISTA DE ABREVIATURAS

IECG Instituto Estadual Carlos Gomes


EMUFPA Escola de Música da Universidade Federal do Pará
FAM Fundação Amazônica de Música
xi

SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 1

1. MARCO TEÓRICO E ORIENTAÇÃO METODOLÓGICA ..................................... 4

1.1– REGIONALIDADE, CULTURA E IDENTIDADE ............................................... 4

1.2 – MEMÓRIA E IDENTIDADE ............................................................................. 9

1.3 – MÉTODO ...................................................................................................... 11

2. MARCOS DA TRAJETÓRIA DO COMPOSITOR E PROFESSOR SERGUEI


FIRSANOV ................................................................................................................ 13

2.1 O PROFESSOR ............................................................................................... 14

2.2 O COMPOSITOR ............................................................................................. 19

3. A REGIONALIDADE PARAENSE EM SERGUEI FIRSANOV .............................. 23

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 26

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 28
1

INTRODUÇÃO

Como musicista que sou, a curiosidade de conhecer sobre a história de vida de


compositores de música erudita sempre me vem à mente. Nesta esteira, parto do
princípio de que, por própria experiência, a qualidade de minha formação no
instrumento musical violino tem dependido não apenas de minha competência técnica,
mas também de um saber musical mais denso e amplo que me propicia, no ato da
execução musical, acessar referenciais sobre contextos de vida em sociedade e
também individuais de personalidades como Bach, Mozart, Beethoven, Schumann,
Villa-Lobos, entre outras que tanto aprecio escutar e tocar.

Refiro-me, aqui, portanto, a duas naturezas de competência. Esta última, em


outras palavras, e jamais a despeito da primeira, possui como fundamento o de
compreender esses compositores, entre tantos outros, em seus respectivos contextos
individuais e socioculturais, a partir tanto de suas obras musicais propriamente ditas,
documentadas e eternizadas em partitura, quanto das conexões possíveis de serem
estabelecidas entre cada um e o seu respectivo tempo-espaço. No que concerne à
minha atuação como instrumentista, portanto, tal compreensão vem corroborando
uma melhor apreensão de cada obra musical com a qual me defronto, tendo em vista
o desenvolvimento de uma possível competência performática que me parece
extrapolar os limites de minha capacidade técnica.

Durante parte de minha trajetória conservatorial, particularmente enquanto


aluna de música no Instituto Estadual Carlos Gomes (Conservatório Carlos Gomes),
na cidade de Belém (Estado do Pará), eu vivenciei uma experiência rara para
instrumentistas de formação erudita e raríssimas para aqueles sediados em
localidades cultural e musicalmente periféricas, que foi a de estabelecer contato com
um compositor vivo. Foi o caso do violista russo Serguei Firsanov (1952-2016), que
lecionou violino nessa escola especializada e de quem fui aluna. O músico também
ensinou, nessa escola especializada, disciplinas ligadas à teoria musical, bem como
trilhou caminho como compositor.

Embora eu tenha sido sua aluna por cerca de apenas um ano, entre 2014 e
2015, o professor tornou-se, para mim, espécie de referência no campo da música.
De meu ponto de vista, Firsanov possuía notável saber musical, motivo pelo qual teria
2

desempenhado, assim creio, competentemente, em Belém, diferentes atividades, a


partir de 1991, ano em que deixou a Rússia e passou a residir no Brasil e nesta cidade.

No que diz respeito a esta pesquisa, importa destacar dois aspectos


fundamentais, que inclusive o distingue de outros estrangeiros que também
lecionaram no referido Instituto de música: ter vivido no Pará por mais de vinte anos;
e, a princípio, por hipótese, ter se integrado, de modo contundente, à cultura regional.
Firsanov faleceu, em Belém, no ano de 2016.

Em torno de sua relação com a cultura regional orbita esta investigação,


considerando o intento de discutir a presença de uma “regionalidade paraense” em
Serguei Firsanov. Para tanto, baseio-me em marcos da trajetória docente e
composicional deste músico e professor estrangeiro que viveu no Pará por longo
tempo. A partir de leituras chego a noção de regionalidade, que consiste em termos
amplos, em um conjunto de características peculiares de determinada região que, por
sua vez, se encontram relacionadas a modos de pensar e agir de pessoas que, com
essa região, estabelecem vínculos de pertencimento.

No particular desta pesquisa, esses modos de pensar e agir emergiriam,


menos ou mais explicitamente, tanto de sua obra musical versando sobre uma
possível “regionalidade paraense” quanto por meio de narrativas de personalidades
que conviveram, em Belém, com Serguei Firsanov, acompanhando sua trajetória de
professor e compositor. Vale esclarecer que, apesar da importante atuação de
Firsanov, nessa localidade, junto à formação de violistas e violinistas, e ao
fortalecimento das músicas de câmera e orquestral, esta pesquisa não abrange sua
atividade de instrumentista, tendo em vista que esta se encontra balizada tão somente
pela tradição cultural europeia em vez de se conectar à cultura regional, exceto no
caso da execução de repertório, em âmbito coletivo, integrando o naipe das violas. O
instrumento musical, não importando se é a viola ou o violino, emerge na pesquisa
dentro de uma perspectiva pedagógica e nunca de técnica instrumental.

Além da regionalidade, que é tratada em termos teórico-conceituais, a pesquisa


também faz referência ao tema da memória, considerando a identificação, via
narrativa de colaboradores de pesquisa que foram colegas músicos de Firsanov,
marcos pretéritos de sua vida musical a partir dos quais entendo ser possível
considerar a existência, neste professor e compositor, de uma “regionalidade
3

paraense”. Tais narrativas provieram de entrevistas semiestruturadas que


instrumentalizaram a coleta de dados. A hipótese desta regionalidade ancora-se,
ainda, em minha própria experiência como aluna de Serguei Firsanov e conhecedora
de parte de sua obra composicional.

Desafio mais concreto foi o de tentar compreender de que maneira a


regionalidade emerge da obra do compositor e de sua atuação como professor, não
importando se de violino/viola ou de disciplinas de teoria da música. Formulo, portanto,
as três principais questões desta investigação: 1) é possível afirmar a existência, em
Serguei Firsanov, de uma “regionalidade paraense”?; 2) como essa regionalidade se
encontra manifestada em sua obra composicional? e 3) como essa regionalidade se
encontra manifestada em sua atuação docente?

Esta pesquisa lança uma perspectiva sobre a regionalidade, talvez menos


genuína, de que as expressões culturais identificadoras de dado povo, por meio das
quais aquele se revela, também podem ser construídas por outrem, além deste próprio
povo: no caso, por um outsider que se tornou, de certo modo, um insider – o mesmo
insider que, mesmo sendo “de fora”, tornou-se referência em minha formação artística,
e na de muitos que conheço em Belém do Pará que conviveram com Firsanov. Nesta
esteira ampliada sobre a qual se encontram postos a regionalidade e as identidades,
venho ressaltar a importância, para a musicologia regional e paraense, de narrar a
passagem deste professor e compositor por Belém. Talvez para sublinhar uma
Amazônia híbrida, conectada ao mundo, protagonista cultural, produtora de
conhecimento e possuidora de memória e identidade.

Este trabalho encontra-se dividido em três capítulos. O primeiro apresenta o


marco teórico da pesquisa encampando a delimitação da ideia de “regionalidade” e
uma reflexão sobre a relação entre memória e identidade. O capítulo seguinte, de
caráter eminentemente descritivo, situa contextos de atuação de Serguei Firsanov
enquanto compositor e professor no Instituto Estadual Carlos Gomes, em Belém do
Pará. O terceiro, por fim, de cunho analítico, reflete sobre a regionalidade, já na
ambiência da pesquisa, levando-se em consideração aspectos da trajetória de
Serguei Firsanov que, emergidos das memórias de pessoas ligadas a ele, demarcam
elementos identitários em sua obra e atuação docente constitutivos de uma possível
“regionalidade paraense”.
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1. MARCO TEÓRICO ORIENTAÇÃO METODOLÓGICA

1.1– REGIONALIDADE, CULTURA E IDENTIDADE

Em termos culturais, compreendo que a noção de regionalidade diga respeito,


em sentido abrangente, às expressões de povos, sejam quais forem, das mais
recônditas comunidades até as mais complexas e superpovoadas sociedades
planetárias. Ampliadas e também circunscritas em pensamentos e ações de
indivíduos e coletividades, tais expressões consistem, emaranhadas, em suas
próprias vidas, por meio das quais pessoas e grupos reconhecem uns aos outros, e a
si próprios, tanto praticando relações interculturais quanto compreendendo seus
papeis individuais e sociais no tempo-espaço do existir de cada um.

Integra-se a essa percepção o fato de a regionalidade pressupor, em primeira


instância, a ideia de região, que advém da geografia, significando território. Neste
sentido, cada região corresponde a um território dotado de particularidades. Contudo,
um território pode estabelecer conexões com outros territórios apesar das fronteiras
políticas, culturais e de outras ordens que os distinguem. Etimologicamente, a palavra
“região” expressa relações de extensão e domínio sobre uma determinada área, por
sua vez compreendidas, ao longo da história, sob diferentes perspectivas, envolvendo
a organização de espaços administrativos e relações de poder (, 2005).

Pozenato (2003) compreende a ideia de região como um espaço natural mais


amplo, considerando critérios históricos, linguísticos, econômicos, sociais e
etnográficos. Ou seja, regiões devem ser entendidas para além dos seus territórios
físicos, podendo-se considerar regiões históricas, culturais, econômicas, assim por
diante, correspondentes ou não àqueles (territórios físicos).

No âmbito científico, pode-se considerar que a noção de região é discutida em


distintas áreas de conhecimento, tais como a economia, a sociologia e a etnologia.
Neste sentido, região vem tratar de dinâmicas entre partes e todos, já que, segundo
Haesbaert (2010, p. 3), muitas são as relações suscetíveis a serem discutidas dentro
de uma abordagem regional, sobretudo se considerarmos um mundo globalizado em
que conexões variadas fluem entre regiões, ou até dentro de uma mesma região.
5

Para Suertegaray (2005), o conceito de região é versátil e assume diversos


significados, incluindo a dimensão cultural. Nas regiões constituídas são formatadas
as expressões dos povos. Ou, quem sabe, são as expressões dos povos que
formatam as regiões constituídas. No seminal trabalho intitulado The Antropology of
Music (1964), Alan Merriam considera que, se por um lado, a música [que constitui
expressão dos povos] emerge das culturas [regiões constituídas] às quais pertence,
por outro correspondem às próprias culturas. O autor em questão compreende a
música na e enquanto cultura.

Para Suertegaray (2005, p. 55) a região pode ser entendida como espaço
identitário para um determinado grupo social, no interior do qual regionalidades se
manifestam embaladas por hibridismos do político, do econômico e do cultural
enquanto representações construtoras e fortalecedoras de identidade.

Portanto, a região deve ser compreendida em sentido simbólico, já que


encontra-se imbuída de relações compatíveis com a noção de regionalidade que estou
alinhavando, vinculada à identidade e concebida em termos culturais (POZENATO,
2003).

Compreende-se a temática da identidade a partir de concepções construídas


sobre o indivíduo e a sociedade à qual pertence e na qual se encontra inserido.
Santinello (2011) esclarece que, devido sua flexibilidade complexidade, o
entendimento em torno da identidade abrange perspectivas distintas (HALL, 2006;
CASTELLS, 1999).

Em Identidade Cultural na Pós-Modernidade (2006) Hall afirma que a


identidade vem passando por transformações desde que a sociedade do século XX
não se encontra mais em ‘’sólidas localizações como indivíduos sociais’’. Estas
mudanças alteram nossa identidade pessoal, pois afetam nosso modo de pensar
como indivíduos integrados. A este exemplo temos a fragmentação das paisagens
culturais como a nacional, de etnia e raça. Assim, a figura do sujeito pós-moderno
nasce de um processo, onde não há uma identidade fixa, permanente.

CASTELLS (1999) em sua obra O poder da Identidade compreende que esta é


um processo de construção de significado com base na atribuição cultural, ou em um
conjunto de atribuições culturais que se relacionam a significados.
6

Na esteira da relação indivíduo-sociedade, identidades são construídas em


dados tempos-espaços e vinculam-se a preceitos abrangendo raça, etnia, família,
profissão etc.

Para Santinello (2011),

O conceito de Identidade e sua constituição transformam-se


temporalmente/espacialmente, bem como uma área muito debatida,
graças às análises defendidas por teóricos da área, e também a
delimitação, se isso assim pode-se dizer das ideias permeadas pelo
termo e suas conjecturas sociais no envolvimento de processos
histórico-filosóficos. (SANTINELLO, 2011, p. 155).

Segundo Miranda (2012),

A formação da identidade passa por uma gama de sentimentos e


decisões racionais e irracionais na escolha dos investimentos
pessoais que o sujeito faz para sua identificação. A subjetividade
sugere a compreensão que temos sobre o nosso eu. É ela que permite
explicar o motivo de um sujeito se apegar a uma identidade peculiar.
Neste caso, as posições que assumimos e com as quais nos
identificamos. (MIRANDA, 2012, p. 15).

Para Habermas (apud Miranda, 2012, p.1) o ser humano é responsável pela
condução de sua biografia, construindo novas identidades, ao longo de sua existência,
a partir de fragmentações e rupturas de velhas identidades que abrem campos de
possibilidades para o estabelecimento de outras interações sociais.

Considerando tais interações sociais, Candau (apud SOUZA, 2014, p.1)


compreende que a identidade deve ser forjada, inicialmente, como um estado erigido
socialmente por meio de relações dialógicas com o Outro. O contato com alteridades
propicia que as elaborações sociais se mantenham em constante construção. Este
continuum estende-se até o fim da existência dos sujeitos implicados.

Moura (2007) elenca o conceito de identidade em diferentes níveis: 1)


“identidade pessoal”, mais complexa de ser descrita e que está relacionada a fatores
como a personalidade, questões familiares e costumes locais; 2) “identidade social”,
que se dá por meio do convívio com outras pessoas por meio de interesses em
comum; 3) identidade cultural, que extrapola fatores como a descendência, por
exemplo, podendo misturar-se a costumes locais e a padrões de comportamento da
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época, de modo a exercer grande influência sobre as pessoas, suas ações, atitudes
e interpretações de acontecimentos; 4) identidade étnica, que abrange não somente
traços físicos, mas também a cultura familiar, ou mesmo a identificação do indivíduo
com sua terra, seu povo e/ou seus descendentes; e 5) identidade nacional, fortemente
ligada ao sentimento de pertencimento ao país de origem ou de moradia por longo
tempo.

Se, por um lado, as identidades estão relacionadas a determinados


indivíduos/sociedades e são circunscritas a dados espaços-tempos, por outro podem
açambarcar referenciais de outros momentos históricos, culturas, localidades e
pessoas/comunidades, incluindo os da cultura global, que também impactam os
saberes e fazeres culturais pretensamente locais-regionais-nacionais, a depender do
caso estudado.

Para Souza (2014),

Com a globalização as identidades são expostas ao contato com


outras culturas nacionais, outras ideologias, pois as produções
culturais não se restringem a um único espaço. Assim, a interação
entre culturas produz identidades abertas, desprendidas dos
referentes tradicionais de espaço e tempo, vez que essas
demarcações são dissolvidas. (SOUZA, 2014, p. 95).

De acordo com Santos (2009) são as relações de poder, que determinam


posições no espaço social no qual uns qualificam outros como “étnicos” e
“culturalmente peculiares”. Neste sentido, o regional é construído como traço distintivo
do local, apropriando-se e reelaborando significantes que podem incluir da paisagem
às práticas linguísticas, da culinária à religiosidade e à origem comum.

Penso na afirmação de uma cultura regional fundamentada na


associação mecânica entre, de um lado, um conjunto de valores,
estilos-de-vida, práticas sociais, modos de fazer, saberes e artefatos
culturais e, de outro, uma determinada territorialidade. Essa visão tem
desdobramentos imediatos na problemática da identidade, pois acaba
por supor, enunciar ou, muitas vezes, reivindicar uma identidade
cultural regional, em alguns casos sob a forma de identidade étnica
compartilhada pelos membros de um grupo portador de valores
regionais. (SANTOS, 2009, p. 4).
8

De maneira ainda mais particular, a regionalidade pode ser definida, no âmbito


cultural, como regionalidade autêntica. Diz ser regional uma obra que não somente é
localizada numa região, mas que, também, é capaz de retirar a sua “substância real”
das particularidades deste lugar (COUTINHO, apud ARAUJO, 2006, p. 113). Do
interior da chamada substância real e de modo articulado com aspectos físicos,
humanos e temporais, articulam-se as identidades de uma dada região e de uma
determinada comunidade cultural.

“A noção de ‘identidade’ ou ‘consciência’ regional, envolve a identificação dos


próprios habitantes com sua região, tanto dentro quanto fora dela” (HAESBAERT,
2010, p. 19). Para Candau (2018),

‘’Identidades não se constroem a partir de um conjunto estável e


objetivamente definível de ‘’traços culturais’’ mas são produzidas e se
modificam no quadro das relações, reações e interações
sociossituacionais -situações, contexto, circunstâncias- de onde
emergem os sentimentos de pertencimento’’. (CANDAU, 2018, p. 27).

Na esteira desta compreensão sobre identidade, um fato ou um produto


cultural, a exemplo de uma obra de arte, classifica-se como regionalista na medida
em que contém aspectos que expressam elementos de determinada região e/ou de
um povo, dos quais eclodem símbolos e significados.

O sentido de regionalidade pode se revelar em um conjunto de características


que identificam lugares e povos, que por sua vez estão ligadas ao folclore, à
religiosidade, à culinária, entre outros saberes e fazeres, incluindo a música, que a
este trabalho interessa de modo especial. A música não apenas integra contextos,
mas também os constrói no tempo-espaço, no sentido que Merriam (1964) a respeito
da música na e enquanto cultura. Considerando tempo, espaço e sujeitos implicados.

Para Alencar e Bruzadelli (2009),

A música é provavelmente uma das unanimidades de todos os povos


em todos os tempos; por mais distintas que sejam as matrizes
culturais, sempre teremos a música como representação da situação
sócio-histórica, política e econômica de determinado povo, em
determinado espaço e tempo (ALENCAR & BRUZADELLI, 2009, p. 1).
9

Se, por um lado, a regionalidade, como o próprio nome sugere, circunscreve a


cultura em termos regionais no tempo-espaço, por outro pode incluir referenciais
universais, conforme comenta Coutinho (apud ARAÚJO, 2006). Esta pesquisa
articula, exatamente, a construção de uma regionalidade que encampa referenciais
universais, considerando tanto a atividade docente de Serguei Firsanov, em Belém,
quanto a sua obra composicional identificadora da região do Pará e do povo paraense.

Neste subitem propus realizar um breve exercício teórico-conceitual em torno


da noção de regionalidade, esta que, por sua vez, encontra-se atrelada a duas outras
noções, a de regional, e a de identidade, sobre a qual discorro, no próximo subitem,
conectada ao conceito de memória. Identidade e memória são temas que nortearam
todo o trabalho de coleta de dados sobre o professor e compositor em questão, tendo
em vista o objetivo de compreender nele uma possível “regionalidade paraense”,
tomando como critérios de análise a sua atuação de professor e de compositor.

1.2 – MEMÓRIA E IDENTIDADE

Independente de perspectiva, seja ela coletiva ou individual, como afirma


Souza (2014, p.14), “a memória pode ser observada como fonte de referentes
identitários, como instrumento atuante na reconfiguração das identidades na medida
em que permite que o sujeito se apodere de imagens do passado para consolidar uma
nova posição identitária”.

O conceito de memória advém de questões da psicologia humana, bem como


de áreas distintas do conhecimento, como a antropologia e a sociologia. No presente
trabalho apresento a memória como uma constituição de lembranças individuais
mantidas e construídas sobre determinado assunto, que se relacionam com outras
memórias, de modo a compor, também, uma memória coletiva. Estas memórias
individuais se interpenetram, para obtenção de um objetivo comum no contexto de um
grupo, a fim de se traçar a composição de uma identidade forjada a partir de traços
de acontecimentos (CANDAU, 2018).

Para Le Goff (apud SOUZA, 2014),

A memória é vista como a faculdade humana responsável pela


conservação do passado, das experiências vividas”. Em razão disso,
10

“remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas,


graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações
passadas, ou que ele representa como passadas (LE GOFF apud
SOUZA, 2014, p. 98).

Candau (2018) esclarece que,

“Se a história objetiva esclarecer da melhor forma possível aspectos


do passado, a memória busca instaurá-los, uma instauração imanente
ao ato da memorização. A história busca revelar as formas do
passado, enquanto a memória as modela” (CANDAU 2018, p.131).

Ainda de acordo com Candau (2018 p. 99), a memória é como um museu de


acontecimentos singulares associados à evocabilidade ou memoriabilidade de
indivíduos e também de coletividades. A memória individual ocorre em torno de uma
determinada pessoa, quando esta possui um passado resguardado que a vê a partir
de seu ponto de vista. Já a memória coletiva, é aquela que ocorre a uma sociedade
cujas lembranças distribuem-se parcialmente (SOUZA, 2014, p.99).

Candau (2018) observa que, quando ocorre a evocação de uma lembrança,


real ou imaginária, e esta estabelece comunicação com o outro, passando por um
processo de transformações ou reformulações, ela acaba por perder seu caráter
isolado, individual. Nesta perspectiva a memória coletiva “funciona como uma
instância de regulação da lembrança individual” (LÉGER apud CANDAU, 2018, p. 49).
Assim sendo, a memória dos outros orientam e elucidam a ação da memória
individual.

Para falar em memória coletiva, importa dizer que a memória individual deve
estar em consonância com a memória de outros membros do grupo social, uma vez
que se faz necessário, individualmente, evocar um evento que também faça parte da
vida da comunidade à qual cada sujeito pertence (SILVA, 2010, p. 249).

Nesta circunstância, toda memória é social, já que cada uma sofre


“interferências coletivas” (CANDAU, 2018). Memórias individuais e coletivas são
recíprocas, portanto. Do contrário, quando aquelas se contradizem, “os caminhos
tomados por estas últimas (...) se confundem” (Id, Ibid, p. 49).
11

O mesmo autor, “não pode haver construção de memória coletiva se as


memórias individuais não se abrem umas às outras visando objetivos comuns, tendo
um mesmo horizonte de ação” (Ibid, p. 48).

O acionamento da memória, individual ou coletiva, traz à tona aspectos que


constituem os sujeitos por meio de suas ações, pensamentos e relações com o outro.
Por conseguinte, esses sujeitos constituídos indicam a constituição das próprias
sociedades às quais pertencem e nas quais estão inseridos.

Souza (2014) considera que é,

(...) em razão da construção discursiva da identidade que se faz


necessário recorrer à memória: é preciso revolver o passado para
narrar-se, para construir uma identidade, para constituir-se como
sujeito diante do outro e posicionar-se dentro do grupo (SOUZA, 2014,
p. 98).

De acordo com Candau (2018) há uma forte ligação entre memória e


identidade, em uma perspectiva narrativa, especificamente no que diz respeito ao
caráter das representações sociais advindas de memórias coesas que dão
continuidade ou manutenção às identidades. Estas, portanto, acabam por permitir, por
meio da retrospecção, a manutenção daquilo que é o indivíduo.

Existe certo consenso de que a identidade é uma construção social,


permanentemente redefinida em uma relação dialógica com o outro; Também existe
consenso de que memória consiste em uma reconstrução continuamente atualizada
do passado (CANDAU apud SILVA, 2010, p. 443).

1.3 – MÉTODO

Esta pesquisa consiste em duas etapas, em termos metodológicos: uma de


revisão de literatura envolvendo principalmente os temas memória e identidade, bem
como a concepção de regionalidade, em termos culturais; e outra encampando coleta
de dados, tanto documental e bibliográfica sobre o objeto de estudo, quanto por meio
de entrevistas que realizei com pessoas que conheceram Serguei Firsanov e
acompanharam sua trajetória musical, em Belém, em especial como professor e
12

compositor, dentre as quais Glória Caputo, Jonas Arraes, Dione Colares de Souza, e
Luiz Moraes, o Pardal.

Maria da Glória Boulhosa Caputo foi superintendente da Fundação Carlos


Gomes à época em que Firsanov foi convidado a trabalhar no Instituto Estadual Carlos
Gomes, em Belém. Também denominado Conservatório Carlos Gomes, o Instituto é
mantido financeiramente pela Fundação. Jonas Monteiro Arraes é contrabaixista,
professor aposentado do Instituto e docente efetivo do curso de Licenciatura Plena
em Música da Universidade do Estado do Pará. Atuou em grupos camerísticos e em
orquestras nas quais Firsanov tocou viola e violino, a exemplo da extinta Orquestra
da Câmera do Pará e da atual Orquestra Sinfônica do Theatro da Paz. Dione Colares
de Souza é cantora lírica é intérprete de obras desse compositor. Luiz Moraes, o
Pardal, é multi-instrumentista, compositor e professor aposentado de violino da Escola
de Música da Universidade Federal do Pará. Firsanov teve sua trajetória de
compositor influenciada por Pardal, em especial no que concerne às suas obras de
cunho regional.

Lakatos e Marconi (2003) consideram que a entrevista,

É um encontro entre duas pessoas, a fim de que uma delas obtenha


informações a respeito de determinado assunto, mediante uma
conversação de natureza profissional. É um procedimento utilizado na
investigação social, para a coleta de dados ou para ajudar no
diagnóstico ou no tratamento de um problema social (LAKATOS &
MARCONI, 2003, p. 195).

Conforme Gil (2002),

É fácil verificar como, entre todas as técnicas de interrogação, a


entrevista é a que apresenta maior flexibilidade. Tanto é que pode
assumir as mais diversas formas. Pode caracterizar-se como informal,
quando se distingue da simples conversação apenas por ter como
objetivo básico a coleta de dados (GIL, 2002, p. 117).

Para Lakatos e Marconi (2003) a entrevista apresenta diversas vantagens:


maior flexibilidade, na medida em que o entrevistador poderá repetir ou esclarecer
perguntas; maior oportunidade para a avaliação de atitudes (dentre as quais reações,
gestos etc.) dos entrevistados; obtenção de dados que não se encontram em fontes
13

documentais e que sejam relevantes e significativos; possibilidade de o pesquisador


conseguir informações mais precisas.
Consideram ainda a importância de o entrevistador seguir um planejamento,
que inclusive antecede a própria entrevista, e ter em mente os objetivos a serem
alcançados. Marcar a entrevista com antecedência e organizar roteiro prévio de
perguntas são providências fundamentais que corroboram o êxito de uma entrevista.
Ainda, o pesquisador deve estabelecer, desde o contato inicial com o colaborador
entrevistado, relação que inspire confiança e bem-estar.
Quanto ao registro, os mesmos autores compreendem que “as respostas, se
possível, devem ser anotadas no momento da entrevista, para maior fidelidade e
veracidade das informações. O uso do gravador é ideal, se o informante concordar
com a sua utilização” (Ibid, p. 200).

Aos colaboradores desta pesquisa foram aplicadas entrevistas


semiestruturadas, que consistem em poucas perguntas diretas e que deixam o
entrevistado falar livremente, explorando as questões de interesse ao longo do curso
da entrevista. (GIL, 2011).

2. MARCOS DA TRAJETÓRIA DO COMPOSITOR E PROFESSOR SERGUEI


FIRSANOV

2.1- O PROFESSOR

Inaugurado em Belém, no ano de 1895, o Conservatório Carlos Gomes teve


como primeiro diretor o compositor Antônio Carlos Gomes. Após seu falecimento, na
mesma cidade, o Conservatório tornou-se estabelecimento de ensino ligado ao
Governo Estadual, passando a ser chamado de Instituto Estadual Carlos Gomes
(IECG). (BARROS & VIEIRA, 2015).

Até os anos 1970, o IECG oferecia vagas apenas para piano, violino e canto
lírico. Em seguida houve mudanças na estrutura pedagógica da Instituição, em
decorrência da lei Nº 5692/71, de 1972 e da vinculação de sua grade curricular ao
nível técnico (BARROS & VIEIRA, 2015). A nova estrutura abriu possibilidades para
14

formação em outros instrumentos musicais, incluindo sopros e cordas. Foi necessário,


então, para manter-se funcionando, agora na qualidade de escola especializada de
música e formadora em vários instrumentos, que o Instituto recebesse injeção de
recursos. O caminho foi a criação da Fundação Carlos Gomes, em 1986 (BARROS &
VIEIRA, 2015).

A partir da criação da Fundação Carlos Gomes, significativas mudanças


ocorreram nos cursos e na estruturação pedagógica do Instituto, tais como: a
reorganização das classes de instrumentos de sopro e de cordas, a reestruturação
dos espaços físicos, a criação da oficina de lutheria e a contratação de músicos
estrangeiros para atuarem no IECG como professores (VIEIRA, 2001).

A ampliação de cursos de instrumentos acarretou o estabelecimento, em


Belém, de músicos búlgaros, que integraram o núcleo de cordas, e de instrumentistas
tchecos, que passaram a atuar no núcleo de sopros. Músicos tais como Euguení
Rátcheve (violino), Alexándr Serafímov (violino), Haralámpi Mitóv (viola), Pétar
Saráliev (violoncelo) e Vassíl kazandjiev (violoncelo), tornaram-se professores do
Instituto.

Na década de 1980 eclodiu a primeira orquestra de cordas do Estado, de


pequeno porte, mas com todos os naipes, denominada Orquestra de Câmera do Pará.
“Era um fluxo de estrangeiros. Tinha uma orquestra de câmara que diziam: ‘ah, essa
orquestra é búlgara’. Porque predominavam estrangeiros e um ou outro paraense ali’.
Era uma orquestra de alto nível artístico” (COLARES, 2019).

Em meados de 1991, a convite da então superintendente da Fundação Carlos


Gomes, Glória Caputo, o músico Serguei Firsanov veio a Belém para substituir o
violista Haralámpi Mitóv na mencionada orquestra de câmera.

Eu fui à Rússia, fiz a visita ao conservatório Tchaikovsky e a professora dele


[de Firsanov] indicou-o, falando da índole dele. Além de ser um bom violista
(...) [ele] tinha um conhecimento amplo musical. E tinha um conhecimento
não só musical, mas de história, de maneira geral, de ciência, de
matemática... Ele era um estudioso. (CAPUTO, 2018).

Mas não foi apenas na orquestra que Serguei Firsanov se destacou. Mostrou-
se profícuo em diferentes atividades musicais, incluindo a de professor de instrumento
(viola e violino) e de outras disciplinas do currículo do curso técnico do IECG.
15

O Serguei veio pra cá. Eu só sabia que ele era professor de viola. Mas, na
verdade, ele começou a fazer de tudo. Porque ele foi ser professor de viola,
de violino, de contraponto (...). O meu objetivo era ter professores de alto nível
pra montar o [curso de] Bacharelado. Então (...) faltava, pra mim, professor
de teorética. Eu falo porque teoria pra nós é uma coisa. Teorética é outra. É
a pessoa que domina todo o universo da teoria musical. Então vem desde a
teoria, solfejo, análise musical, contraponto... Porque na Rússia, acho que é
um dos únicos lugares que forma teoréticos. Eles sabem tudo da área.
(CAPUTO, 2018).

Além de seu conhecimento musical amplo, Firsanov dedicou-se, de maneira


contundente, ao aprendizado da língua portuguesa. A este respeito relatam os
professores Dione Colares de Souza, cantora lírica, e Jonas Arraes, contrabaixista,
que foram amigos de Serguei Firsanov em Belém do Pará:

Ele aprendeu a falar um português muito bom, a compreender o português.


Claro que, quando ele falava gíria, soava engraçado. A gente se divertia com
isso. Porque todo mundo sabia que ele era muito formal. E, pra sair dessa
formalidade, ele ficava um pouco sem jeito. Não tinha como. (ARRAES,
2018).

Eu já me lembro [dele] com uma boa comunicação em português, sem muitos


entraves no idioma, ele era muito estudioso e decorrido tanto tempo aqui
[falava] com perfeição a língua. (COLARES, 2019).

O aprendizado do idioma viria acompanhado, e este talvez tenha sido o


diferencial em Serguei Firsanov, de uma disposição para vivenciar a cultura brasileira,
em particular a paraense, mesmo sendo um estrangeiro. De modo análogo, e no
tocante à sua atividade docente, apesar de ter sido formado na tradicional escola
russa, o professor precisou adaptar-se ao aluno brasileiro.

Ele tinha uma capacidade muito grande de adaptação à vida brasileira, ao


aluno brasileiro, né? Coisa que outros não têm muita paciência e nem
capacidade de se adaptar. O nosso aluno é bem diferente do aluno da Rússia,
do aluno americano, francês, daí por diante. E também o que é diferente do
nosso aluno daqui, pra outros lugares, é que o nosso aluno tem pouca
participação da família. Nossos alunos, normalmente, são muito solitários.
Quando a família vem, vem no dia que ele toca, na audição. Então, em muitos
países, é costume a família ir junto, principalmente quando é muito criança.
Aqui é costume deixar a criança no conservatório. Depois vai apanhar a
criança no conservatório. (ARRAES, 2018).

O aluno europeu, além do estímulo no âmbito familiar, conta com uma estrutura
curricular que propicia o aprendizado musical em idade pré-estabelecida. Esse
modelo de ensino contribui para o desenvolvimento pleno do aluno, no instrumento
musical, desde a mais tenra idade. Em contrapartida, o aluno brasileiro carece, ainda,
16

de incentivo, no seio familiar, em favor de seu progresso no aprendizado musical. Não


raramente este fator contribui para a sua evasão da escola de música.

Em entrevista concedida ao professor Jonas Arraes, em 2011, Firsanov


comenta sobre a música no Brasil e em Belém:

Acho que aqui tem muitas pessoas talentosas, no entanto vejo que
falta um sistema de Educação Musical onde possa se fazer uma
revisão geral. Por exemplo no sistema musical russo tem padrão de
idade. A pessoa de 9 anos de idade pode entrar, mas não no ensino
profissionalizante. Para viola tem que estudar violino antes. Tem
programa para todos os níveis de alunos. (FIRSANOV apud ARRAES,
2011).

Em termos do ensino do instrumento, o qual eu não exploro neste trabalho,


apenas devo fazer menção de que, no aspecto técnico, prevaleceram os princípios de
sua formação na Europa, mais especificamente da Escola Russa, que pode, em algum
nível, distanciar-se da formação no Brasil, ao menos em relação a formas
composicionais, gêneros e estruturas sonoras “estranhas” ao seu habitus
composicional e de escuta. Em contrapartida, tal como no modelo conservatorial
“brasileiro” trazido da Europa, Firsanov era inflexível quanto à afinação, postura e
sonoridade.

E aí ele se adapta ao jeito brasileiro. No entanto ele mantinha o programa


dele, os métodos dele, que constava principalmente no desenvolvimento da
afinação, do ouvido, né? Quem estudou com o Serguei melhorou a afinação.
Porque ele usava muito recurso de comparação com cordas duplas, com
cordas soltas, e de insistir na afinação diversas vezes, até que tivesse certo.
Buscando sempre tirar do aluno uma audição cada vez melhor da afinação,
e ele não abria mão desse rigor. (ARRAES, 2018).

Então, nessa fase em que a minha filha foi estudar com ele, (...) o que eu
pude notar é que ele era um professor exigente com a afinação. Ele não
deixava passar questões de desafinação. Ele parava, corrigia. [...] Então,
mesmo sendo criança, ele fazia com que a criança se escutasse, e era uma
metodologia que ele tocava pra criança tocar. Sempre tinha a parte de
apreciação. Ele tocava, a criança escutava e tentava realizar depois, com a
afinação, com o padrão técnico correto, a postura. E realmente ele não
deixava passar. (SOUZA, 2019).

“Ele falava muito de algumas coisas que (...) tinha criado: o ‘peixinho’. Ele
associava esses movimentos1 com a natureza”. (CAPUTO, 2018). Havia ainda a

1
Movimentos corporais que Serguei associava a “personagens”, com intuito de auxiliar no
desenvolvimento da técnica básica nos instrumentos violino e viola. A exemplo disto estão os
movimentos denominados “espantalho” (abaixar o ombro), “serpente” (para trabalhar o pulso),
17

“serpente” e o “pássaro”. Neste sentido, compreendo que Serguei Firsanov construiu


um modo de ensinar ao mesmo tempo referindo movimentos imitáveis, tais como o
rastejo e o voo, e uma base técnica sólida que precedia todo o estudo do instrumento.
Conforme a cantora Dione Colares de Souza, o professor sempre iniciava suas aulas
com estudo técnico: escalas e exercícios. Não abria mão disto. O repertório seria a
segunda etapa do processo (SOUZA, 2019).

Ele era muito detalhista. Por exemplo, ele chamava atenção dizendo: “essa
sonoridade é na ponta do arco ou é no meio do arco”. Mas ele demonstrava
e falava das diferentes sonoridades que o violinista poderia produzir,
dependendo de como ele segurava o arco, como ele atacava e tangia as
cordas. Ele era bem detalhista e bem exigente com relação à sonoridade.
(SOUZA, 2019).

O grande legado dele foi de gerar músicos afinados, com boa arcada, com
sonoridade boa, né? E, assim, é também uma pessoa e um homem que
trabalhava demais. Era comum o pessoal querer fechar o conservatório [a
equipe administrativa] (...) e botando ele pra fora. De manhã cedo até
22h00min, se deixasse. (...) Se deixasse ele chegava até 03h00min da
manhã, escrevendo música; sábado e domingo. E o aluno que queria
aproveitar isso tinha muitas aulas. E ele dava aulas intensas. E ele era muito
estudioso, o Serguei estudava violino e viola todos os dias como um
estudante comum no seu instrumento [...] O Serguei estava praticamente com
os órgãos falindo, muito doente e não parava de dar aula (ARRAES, 2018).

Sua rigidez formal, na lida pedagógica do instrumento, no trato com o aluno e


no modo cerimonioso como se dirigia às pessoas, contrastava com seu esforço em
ministrar aulas interessantes, lançando mão, também, de sua maneira “pouco
europeia”, por assim dizer, de relacionar-se com aspectos do Brasil – a cultura, a
natureza, assim por diante.

É o temperamento dele. Porque vê bem! Os Russos, eles ainda têm aquela


formação de que só se consegue as coisas exigindo a força. Essa era uma
característica que eu tentava conversar... Que ele tinha que ser diferente.
Que nossas leis eram diferentes das leis Russas. Porque eles acreditam que
a força é muito importante no processo de aprendizagem: o castigo. Eu tinha
que explicar que o Russo acredita que umas boas palmadas resolvem... E ele
teve que se adaptar ao jeito brasileiro. Mas, o principal, é que ele conseguia
passar o conhecimento para os seus alunos; a dedicação que ele tinha. Ele
não era muito (...) de horários, disciplina. Ele gostava de fazer da maneira
dele. Por isso entrava em choque com a direção. Os alunos gostavam dele.
A relação dele era relação de Russo. Ele era um pouco bruto. Ele queria que

“pássaro” (para trabalhar o cotovelo) e “peixinho” (treinar a flexibilidade dos dedos) (BARROS &
VIEIRA, 2015).
18

o aluno conseguisse tocar as coisas. Mas isso faz parte da cultura do Russo.
Apesar da “brabeza” ele era muito mole, mole demais (CAPUTO, 2018).

Seu modo de ensinar fez com que se destacasse como professor, pois
compunha para fins didáticos e/ou de performance. Cito como exemplo a opereta
intitulada “O viajante das lendas Amazônicas”, que compôs em parceria com o poeta
paraense João de Jesus Paes Loureiro. Conforme Caputo (2018), os alunos que
executaram a opereta tinham pouco tempo de estudo no instrumento. Mas
conseguiram se apresentar em público com êxito, graças à pedagogia empreendida
pelo professor.

Eu considero um milagre. Porque o projeto, aqui [na Fundação Vale Música,2


coordenada pela Professora Glória Caputo], começou em 2004. Ele fez essa
ópera com os nossos alunos, em 2007. Três anos! Mas olha... Foi mérito dele.
Porque uns professores disseram: “olha! Não é possível esses meninos
tocarem”. (...) O conhecimento musical das crianças era de três anos. Ele
começou a escrever no início de 2007 e elas apresentaram em 2007 [no final
do ano]. Com três anos de instrumento? Tocar as Lendas Amazônicas?
Violino, viola, com todos os instrumentos? Isso aí é milagre! E se
apresentaram no Teatro Nacional, em Brasília. Se apresentaram no Teatro
das Artes, em Minas. E ele tava todo tempo aí, comandando tudo (CAPUTO,
2018).

Tornou-se um professor de referência para os alunos e contribuiu para a


formação de músicos locais.

Eu vejo o professor Serguei como uma figura essencial na formação das


últimas gerações de violinistas e violistas. Seria diferente o cenário musical
sem a pessoa dele. [...] Era, com certeza, um músico diferenciado. Era um
privilégio de quem pode conhecê-lo e conviver com ele. Ele acrescentou
muito na formação dos músicos e realmente (...) deixou um legado. A
formação desses músicos que hoje são profissionais e que dão continuidade
a esse legado que ele deixou, aqui, (...) eu vejo assim, como uma história a
ser registrada, a ser escrita. Porque foi uma pessoa que deixou a própria
pátria (...) pra investir num projeto de música, projeto de vida (SOUZA, 2019).

Ele formou músicos que puderam se desenvolver na parte estética, na


técnica, na sensibilidade. Ele era um homem que conhecia muita música
erudita, e os alunos dele sentiam e iam pra isso, ou seja, ele formou alunos
que podem se desenvolver e crescer com essa experiência que tiveram com
ele. (ARRAES, 2018).

2
Criada em 1996, a Fundação Amazônica de Música (FAM) tem como objetivos difundir a cultura
musical no Estado do Pará, estimulando a formação de novos musicistas, proporcionando a divulgação
do trabalho destes e da música através de eventos culturais voltados à sociedade, além de incentivar
a inclusão social e a profissionalização de músicos participantes do projeto. Disponível em:<
https://fambelem.com.br/sobre.html>. O Projeto Vale Música, de formação de instrumentistas e
destinado a estudantes jovens de baixa renda, é vinculado à FAM e financiado pela Vale do Rio Doce.
19

2.2- O COMPOSITOR

A partir de 1991, ano de sua chegada à cidade de Belém. Serguei Firsanov


passou a exercer intensa atividade como músico e compositor no cenário musical da
cidade. Na medida em que os estrangeiros advindos do leste europeu foram deixando
a cidade, Serguei Firsanov encontrou na Amazônia certa afinidade. Como relata Glória
Caputo.

O Serguei começou a ter uma atividade na vida musical. Ele veio pra cá pra
ser professor de viola e acabou se envolvendo com tantas outras coisas na
música... Até porque muita gente foi embora [da orquestra de câmara do
Pará] Na verdade ele foi a pessoa que mais se envolveu com as coisas
regionais de todos os estrangeiros que vieram [do leste europeu, nenhum, né.]
Houve uma simbiose! (CAPUTO, 2018).

Com a extinção da Orquestra de Câmera do Pará, em 1995, passou então a


desenvolver trabalhos com os músicos locais no âmbito do Quinteto Vivace,
coordenado pelo professor Jonas Arraes. Sua atividade como instrumentista esteve
diretamente ligada ao seu trabalho composicional, uma vez que produzia arranjos
para o grupo.

[...] Nós viajamos muito juntos. Nós fizemos muita coisa nessa vida sinfônica
e de câmara. Eu coordenava um quinteto de cordas e ele foi violista nesse
quinteto (...) por muito tempo. Então, muitas vezes, nós fizemos concertos de
vários tipos. Nós fizemos várias obras de música de câmera. A sonata do
Carlos Gomes em ré, e esses arranjos dele. Ele fez também um arranjo da
Chacone, de Bach, que também é um arranjo fantástico. (ARRAES, 2018).

O professor Jonas Arraes relata que Serguei Firsanov escreveu, na época,


arranjos de “Tamba-tajá”, de Waldemar Henrique, assim como arranjos de músicas
do Mestre Drago.

[...] Especialmente eu lembro de um concerto que ele fez alguns arranjos


próprios pro quinteto. [...] Um deles foi o Tamba-Tajá do Waldemar Henrique.
Ele fez pra quinteto de cordas [...] que foi um muito belo arranjo dele. [...]
Depois uma família procurou para que o quinteto tocasse as músicas do
mestre Drago e ele fez também uns arranjos das músicas do mestre Drago
[...] e nós tocamos os arranjos do Serguei [do mestre Drago]. Dentre outros
desses arranjos que ele foi produzindo pra vida do quinteto que tocava em
eventos diversos. (ARRAES, 2018).
20

Ao mesmo tempo em que estabeleceu relações com a cultura paraense,


buscou por comunicar-se satisfatoriamente bem no idioma português. Desta maneira
foi que acabou se interessando pelo modo de falar do povo, entre outros hábitos
regionais. Estreitou relações com compositores paraenses, ademais.

O contato que Firsanov teve com as obras de compositores regionais o teria


inspirado no âmbito composicional. Luiz Pardal relata que ambos se aproximaram um
do outro por ocasião de uma encomenda da Secult (Secretaria de Cultura) para que
fosse composta uma peça para o pianista Arthur Moreira Lima tocar com orquestra
(MORAES, 2019).

Nós nos aproximamos porque ele viu que a minha música era impregnada de
elementos brasileiros (...). E ele se interessava muito por isso. Nessa época
[1990] ele ainda não tava, assim, familiarizado com as coisas do Brasil. Tava
morando aqui, mas toda cultura dele era europeia. Então ele começou a se
interessar (MORAES, 2019).

Sobre de seu interesse pela música brasileira, Pardal conta que,

Tanto que uma vez eu estava fazendo um show [...], e lá estava ele, no
cantinho, ouvindo. Depois ele veio falar comigo e perguntava coisas sobre
música brasileira, sobre ritmos brasileiros, né? Então ele pesquisou um pouco
da minha música. Eu sei por que ele me falou isso. Depois eu escrevi um trio
de clarinete, piano, cordas e violino, que ele também se interessou muito
pelos três movimentos serem bem brasileiros. E eu sei que ele estudou isso
e andou pesquisando.
(MORAES, 2019).

Em uma entrevista concedida em 2011 ao professor Jonas Arraes, Serguei


relatou que classificava a música brasileira e paraense como uma fonte inesgotável
de emoções e que trabalhava com estas fontes musicais desde que veio para Belém
(ARRAES, 2011, p. 2). “Ele fez muitos arranjos baseados na nossa música. Ele era
apaixonado pela música popular brasileira, pela música folclórica brasileira”.
(CAPUTO, 2018).

De acordo com relatos dos entrevistados, percebe-se que, em termos musicais,


Serguei Firsanov manteve seu caráter composicional no romantismo da música
europeia. Constata-se que há, portanto, traços de regionalidade contidos em algumas
de suas obras, a exemplo de “O viajante das lendas amazônicas”. SOUZA (2019)
considera que, se, por um lado, a estética russa se encontra presente tanto na música
21

autoral de Serguei quanto em seus arranjos, por outro também lançou mão, em sua
obra, de referenciais regionais. Conforme a cantora,

Olha! A minha observação em relação aos arranjos do professor Serguei e


as composições é que ele se utilizava da temática melódica, assim, regional.
Por exemplo: tinha um momento, na ópera dele, que o Tamba-tajá do
Waldemar Henrique era executado (...). A mãe-natureza aparecia em uma
das cenas cantando o Tamba-tajá, com o arranjo orquestral dele. Tá aí um
aproveitamento regional no sentido melódico. Um aproveitamento também de
autoria regional porque compunha em cima de um texto de um autor nosso,
que é o Paes Loureiro, no caso da ópera especificamente. Alguns outros
arranjos que eu tive a oportunidade de cantar e de apreciar, (...) [tais como] o
próprio tema do Lírio Mimoso, do Círio [de Nazaré], com arranjo também do
professor Serguei. E outras obras. Cheguei a cantar uma ‘Ave Maria’ dele
(SOUZA, 2019).

Serguei comentou a Arraes, em entrevista, sobre o seu orgulho em ter uma


composição sua, a “Fantasia Sobre dois Temas de Waldemar Henrique” [“Minha
Terra” e “Côco Peneruê”, para orquestra e coro], ter sido levada à cena no dia 07 de
Novembro de 2000, no Palácio do Planalto, e tendo como solistas o tenor paraense
Augusto Ó de Almeida e o pianista Arthur Moreira Lima. (ARRAES, 2011, p.2).

Em termos composicionais, Firsanov pensava sobre a instrumentação como


método de trabalho, e que esta depende do gênero musical que está escrevendo. Isto
é, músicas regionais, vinculadas a gêneros regionais, abrangeriam instrumentação
compatível. Já em relação á harmonia musical, não se prendia a regras e trabalhava
livremente. Tendo o arranjo como uma das bases de seu trabalho de criação musical
envolvendo a regionalidade paraense, disse a Arraes que “um arranjo é uma
composição”, tendo em vista que, embora usasse temas dele mesmo ou de outros
compositores, as suas versões, em forma de arranjo, correspondem a um verdadeiro
trabalho de composição. Todos os processos composicionais são exigidos neste
trabalho, segundo ele (ARRAES, 2011, p.2).

Escrevia direto no papel, o manuscrito (...). Tocava bem piano, escrevia música
constantemente, produzia constantemente. [...] Conversando com ele uma vez,
ele fez essa diferença. Nós conversamos sobre esta diferença, entre
composição e arranjo. Não eram simplesmente arranjos. Eram composições
que tinham elementos de composições daqui [do Pará]. Tudo que ele fez [–],
por exemplo, o disco do Arthur Moreira Lima, [em] que foi gravada a obra dele
[–] foi gravado em Brasília. Então, esse trabalho do Serguei não é arranjo, e
isso nós discutimos. ‘Não Jonas. Não é arranjo. É composição’” (ARRAES,
2018).
22

Em sua atividade como professor, Serguei também compôs arranjos para os


seus alunos tocarem. Da mistura do universal e do regional, compôs uma opereta
intitulada “O viajante das lendas amazônicas”, conforme comentei anteriormente. Esta
obra é composta em três atos, conforme Caputo (2018), e baseia-se em três lendas
amazônicas: “Uirapuru”, “Como Nasceram os Insetos” e “Tamba-tajá”.

Ele fez a ópera o viajante das Lendas Amazônicas, onde ele


demonstra o amor pela nossa música; onde ele faz homenagem ao
Waldemar Henrique, duas vezes, cantando o pequeno trecho do
Waldemar. Não só no Uirapuru, como [também] no Tamba-tajá. E ele
termina com o hino à Amazônia, que fecha. E [...] ela é escrita em
língua indígena, em Língua Tupi. Ele foi ao Museu Goeldi. Ele
pesquisou e fez a parceria com Jesus Paes Loureiro, [que] fez a
poesia. (CAPUTO, 2018).

Um projeto de ópera infantil também é revelador da regionalidade em Serguei


Firsanov. De acordo com SOUZA (2019),

O professor Serguei comentava que estava trabalhando em um projeto de


uma ópera, embrionário ainda, e que o libreto estava sendo feito pelo Paes
Loureiro. E ele comentava, mas sem aprofundamento. E tem o papel da mãe
natureza que ele tinha pensado, na minha voz, pra interpretar (...). Ele
produziu [compôs] especialmente para aquele Projeto [Vale Música]. (...) E
foi um trabalho adorável. Assim, muito bom! Principalmente por ser uma
experiência. Porque era um contato [dos alunos do projeto Vale Música]
diretamente com o compositor, né? (SOUZA, 2019).

Ainda no âmbito do Vale Música, Firsanov desenvolveu atividade de arranjador


para uma orquestra de violinos composta exclusivamente por alunos deste Projeto.
Nesta orquestra criou arranjos de música brasileira e regional.

Vê bem! Ele criou aqui, pra nós, a orquestra de violinos. E ele fez todos os
arranjos porque não tem nada escrito pra orquestra de violinos. E você não
vê orquestra de violinos pelo mundo. Então, o sonho do professor Serguei
era levar essa orquestra pra fazer uma turnê pela Europa e pelos Estados
Unidos. Porque ele dizia que só conhecia orquestra de violino lá na terra dele,
na Rússia. (Caputo, 2018).

Tanto como compositor quanto professor de música, Serguei colecionou


algumas experiências emblemáticas, das quais lancei mão para apontar uma possível
“regionalidade paraense” em seu saber-fazer musical. No próximo e derradeiro
capítulo, pretendo aprofundar a reflexão em torno dessa regionalidade, não apenas
23

trazendo exemplos, mas também retomando temas mais abrangentes, tais como
identidade, já tratado em termos teóricos, e diversidade cultural caraterística do Pará,
da Amazônia e do Brasil, que emolduraram, certamente, a marcante passagem do
professor Serguei Firsanov em Belém.

3. A REGIONALIDADE PARAENSE EM SERGUEI FIRSANOV

A “regionalidade paraense” pode ser imaginada a partir da valorização de


aspectos da diversidade cultural e das identidades criadas no bojo dessa mesma
diversidade de saberes e fazeres, incluindo os artísticos e musicais. No tocante à
música, mas não apenas a esta linguagem, a associação com a natureza parece
mandatória e, ao mesmo tempo, como o próprio nome diz, completamente natural.
Dessa associação emerge a relação do homem com os rios, os animais e a floresta
(COSTA, 2016), que pode ser desdobrada em outras tantas e diversas relações,
específicas da região, e, por vezes, não raramente, desconhecidas do ponto de vista
dos outsiders. Serguei Firsanov foi um desses outsiders, mas que, mediante
constantes negociações de pertencimento regional por intermédio da música, tornou-
se também um insider.

Para Oliveira e Santos (2007),

Viver a cultura amazônica é confrontar-se com a diversidade, com


diferentes condições de vida locais, de saberes, de valores, de
práticas sociais e educativas, bem como de uma variedade de sujeitos:
camponeses (ribeirinhos, pescadores, índios, remanescentes de
quilombos, assentados, atingidos por barragens, entre outros) e
citadinos (populações urbanas e periféricas das cidades da Amazônia)
de diferentes matrizes étnicas e religiosas, com diversos valores e
modos de vida, em interação com a biodiversidade dos ecossistemas
aquáticos e terrestres da Amazônia (OLIVEIRA & SANTOS, 2007, p.
33).

Não apenas no Pará, mas na Amazônia, de modo mais amplo, coexistem


contextos que são reais, talvez revelados pelo dia-a-dia das sociedades e dos sujeitos
regionais, e também aqueles que integram o imaginário sobre a região, tanto o dos
nativos conhecedores das estórias fantásticas de um espaço caracterizado por
lendas, mitos e muito misticismo, de vários deuses, de homens que se transformam
24

em animais, e de segredos embutidos em cosmologias aborígines, quanto o das


sociedades e das pessoas “de fora”, que superestimam ou depreciam esse
nascedouro de práticas e saberes “exóticos”, por assim dizer.

Se não há como saber se, ou, em que medida, Firsanov teria se alinhado a uma
dada perspectiva outsider, importa ressaltar a importância dos “segredos” amazônicos
para a constituição dessa “regionalidade paraense” a que me proponho pensar. De
uma terra de brancos (e aqui me reconheço também outsider, ou mesmo colonizada,
ao reconhecer a Europa como “modelo” do meu próprio processo civilizatório – ou
mesmo a Rússia, como modelo para a formação de musicistas de cordas, por
exemplo), Serguei Firsanov migrou ao Brasil. E ainda, se não bastasse, fez morada
na culturalmente diversificada região amazônica composta por negros, indígenas,
também por europeus, e por híbridos de diferentes raças, credos, sotaques,
vocabulários, paladares, paisagens, corporeidades e sonoridades.

Caputo (2018) relata sobre o amor que Firsanov tinha pelas frutas e comidas
amazônicas, uma vez que, segundo o artista, em nenhum outro lugar do mundo havia
semelhante fartura. Hábito conhecido dos paraenses e incorporado por Serguei
Firsanov foi o de tomar açaí, diariamente. Neste sentido, há situações em que
identidades não se constroem a partir de “traços culturais” claramente identificáveis,
mas de processos de pertencimento (CANDAU, 2018).

Além das frutas e comidas regionais, Serguei reconhecia fartura nas chuvas
abundantes, na fertilidade do solo e na grandiosidade dos rios da Amazônia, tal como
a Amazônia também pode ser compreendida, tanto pelo nativo, em uma perspectiva
real (mas também fantástica), quanto pelas pessoas “de fora”, que idealizam a região,
positivamente ou não. Dione Colares de Souza relata que Serguei Firsanov comparou
a Amazônia a um paraíso sobre o qual leu, ainda quando jovem, em um livro de um
autor russo (COLARES, 2019). Ainda que a Amazônia com a qual Serguei se
confrontou não tenha sido a mesma daquele livro, na Amazônia ele fez morada, como
já disse.

A espiritualidade conectada à natureza e à crença na medicina natural das


ervas constitui um de seus traços identitários mais relevantes e indicativos de que,
nas palavras de Caputo (2018), Serguei “amava isso aqui mais que tudo na vida”.
25

Identificou-se com as pessoas de Belém e apreendeu, a seu modo outsider-


insider, a musicalidade do povo paraense. Despediu-se da vida em terras brasileiras,
sentindo a música do Brasil e falando a língua da nação que escolheu como sua.

Aprendeu o hino nacional e a falar muito bem. Tinha um vocabulário grande.


E, no dia que ele foi jurar a bandeira brasileira, eu fui com ele lá no tribunal.
Cantaram [o hino nacional]. Não é (...) desprezar a sua nacionalidade. Mas
você deixa de ser. (...) Ele passou a ser brasileiro (CAPUTO, 2018).

Eu dizia que ele era um russo com alma de paraense. Ele virou um paraense.
Ele tinha esse amor por aqui e gostava daqui de Belém. Ele se encantou e
não voltou mais. Ele se identificou com a nossa terra. Tanto é que ele entrou
na Academia Paraense de Música. E eu, como faço parte, eu disse: “o
Serguei é paraense”. E meti corda, também, e [o] auxiliei. E ele foi aprovado
e considerado músico aqui da terra né? Alma de paraense (MORAES, 2019).
26

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa buscou, por meio de memórias narradas, compreender uma


possível “regionalidade paraense” na obra e na atuação como docente de Serguei
Firsanov, abrangendo aspectos de sua trajetória e referenciais identitários que
assimilou durante sua passagem por Belém do Pará. Tendo em vista este objetivo,
empreendi uma reflexão, ainda que breve e pouco fundamentada em termos
estritamente musicais, abrangendo contextos diversos em que essa regionalidade
teria vindo à tona.

Em termos teóricos, a intenção foi a de construir a ideia de regionalidade a


partir de um entendimento tanto sobre região quanto a por meio de conexões dessa
mesma ideia com os temas da memória e da identidade. Se, por um lado, a pesquisa
empreendeu alguma revisão bibliográfica em termos teórico-conceituais, por outro
deixou a desejar em aspectos tais como o de um satisfatório encadeamento de ideias,
em especial no primeiro capítulo.

De importância cabal a esta pesquisa foi a possibilidade de dialogar, por meio


de entrevistas semiestruturadas, com colaboradores que conheceram Serguei
Firsanov e com ele estabeleceram relações profissionais e de amizade. As memórias
narradas constituíram um caminho metodológico pertinente, uma vez que Serguei não
é mais vivo, assim como sua importância para a música paraense e amazônica ainda
não havia sido ressaltada em nenhum trabalho acadêmico, ao que me consta.

Outro ponto a destacar foi a impossibilidade de analisar a chamada


“regionalidade paraense” em Serguei Firsanov por meio de seu discurso musical, isto
é, por meio de uma reflexão stricto-sensu em cima de sua obra, bem como a partir de
narrativas de alunos seus, por exemplo, enfocando marcos de sua pedagogia em que
a cultura regional foi referenciada. Ainda que estas abordagens não tenham sido
planejadas, assumo que ambas corroborariam o objetivo maior da pesquisa. Isto sem
jamais desprezar ou diminuir o valor contido nas memórias narradas enfocando suas
atividades de professor e compositor. Compreendo tais abordagens “faltantes” (por
assim dizer) como inventivo para novas pesquisas, tendo em vista a necessidade de
registros, ou mesmo de estudos histórico-musicais ou teórico-musicais (referindo-me
à análise musical, em termos de sua estruturação: forma e conteúdo) sobre Serguei
27

Firsanov, que constitui, sem dúvida, um capítulo fundamental da recente história


cultural e musical paraense.
28

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Centro de Ciências Sociais e Educação


Curso de Licenciatura em Música
Av. Djalma Dutra, s/n, Telégrafo
66030-010 Belém - PA

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