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Coleção O MUNDO, HOJE tl PAULO FREIRE

Vol. 21

Ficha catalográfica
(Preparada pelo Centro de Catalogação-na-fonte do
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ)

Freire, Paulo.
PEDAGOGIA DO OPRIMIDO
F934p Pedagogia do oprimido, 11 • ed. Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1982
(O Mundo, hoje, v. 21)
1. Alfabetização - Métodos 2. Alfabetização - Teoria L
lta EDIÇÃO
I. Título II. Série
CDD - 374.012
371.332
77-0064 CDU - 371.3:376.76

EDITORA PAZ E TERRA


Conselho Editorial:
Antonio Candido
· Celso Furtado
Fernando Gasparian
é?J.
Paz e Terra
Fernando Henrique· Cardoso
t

CAPITULO III

- A dialogicidade - essência da educação


como prática da liberdade.
- Dialogicidade e diálogo.
údo
- O diálogo começa na busca do conte
programático.
as
- As relações homens-mundo, os "temico
· geradores" e o conteúdo programát
desta educação.
- A investigação dos "temas geradores" e
sua metodologia.
- A significação conscientizadora da inves­
tigação dos "temas geradores".
- Os vários momentos da investigação.

89
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Ao iniciar êste capitulo sôbre a dialogicidade da
educaç;o, com o qual estaremos continuando as análi­
� ses feitas nos anteriores, a propósito da educação pro­
�� blematizadora, parece-nos indispensável tentar algumas
considerações em tôrno da essência do diálogo. Consi­
derações com as quais aprofundemos afirmações que
fizemos a respeito do mesmo tema em Educação como
Prática da Liberdade*.
Quando tentamos um adentramento no diálogo,
como fenômeno humano, se nos revela algo que já po­
deremos âizer ser êle mesmo:. a palavra. Mas, ao en­
contrarmos a palavr�, na análise do diálogo; como J1,lgo
mais que uni meio para que çle se faça, se nos impõe
buscar, também, seus elementos constitutivos.
Esta busca nos leva a surpreender, nela, duas di­
mensões; ação e reflexão, de tal forma solidárias, em
uma interação tão radical que, sacrificada, ainda que
em parte, uma delas, se ressente, imediatamente, a ou­
tra. Não há palavra verdadeira que não seja praxis**.
Daí, que dizer a palavra verdadeira seja transformar
o mundo***.
• Paz e Terra, Rio, 1967.
(ação)
,,,:, Palavra ------ = Praxis.
(reflexão)
(da ação) = palavreria, -.erbalismo, bla-bla-bla.
Sacrifício
(da reflexão) = Ativismo.
'' • • Algumas destas reflexões nos :foram motivadas em nossos diá­
logos com o Prof. Ernani Maria Fiori.

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A palavra inautêntica, por outro lado, com que não a palavra verdadeiro. sozinho, ou dlz(q" pctra 011 o\d l'llll,
se pode transformar a realidade, resulta da dicotomia· num a.to do prcscrtçõ.o, com o (l\1111 ro111J11 ,, pul11vrn
· 11011
que se estabelece entre seus elementos constituintes. demo.is.
Assim é que, esgotada a palavra de sua dimensão de o diálogo 6 Ost.o CllCO\Ül'O tlO,'I hmnc•n", llltillll Ur.11rlo
ação, sacrificada, automàticamente, a reflexão também, pelo mundo, pnru p1'onu:1tclà-lo, ntlo i1t• «'IIKol.l1nclo, pol'
se transforma em palavreria, verbalismo, bla-bla-bla. tanto, na relação cu-tu.
Por tudo isto, alienada e alienante. É uma palavra ôca, Esta é a razão por que não ó possível o diúlogo c11-
fia qual não se pode esperar a denúncia do inundo, pois tre os que querem a pronúncia do mundo e os que não
que não há denúncia verdadeira sem compromisso de a querem; entre os que negam aos demais o direito de
transformação, nem êste sem ação. dizer a palavra e-os que se acham negados dêste direito.
Se, pelo contrário, se enfatiza ou exclusiviza a ação, É preciso primeiro que, os que assim se encontram ne­
com o sacrifício da reflexão, a palavra se converte em gados no direito primordial de dizer a palavra, recon­
ativismo. 1!:ste, que é ação pela ação, à.o minimizar a quistem êsse direito, proibindo que êste assalto desuma­
reflexão, nega também a praxis verdadeira e impossibi­ nizante continue.
lita o diálogo. Se é dizendo a palavra com que, "pronunciando" o
Qualquer destas dicotomias, ao gerar-se em formas mundo, os homens o transformam, o diálogo se impõe
inautênticas de existir, gera formas inautênticas de pen­ como caminho pelo qual os homens ganham significa­
sar, que reforçam a matriz em que se constituem. ção enquanto homens.
A existência, porque humana, não pode ser muda, Por isto, o diálogo é uma exigência existencial. E,
silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas pala­ se êle é o encontro em que se solidariza o refletir e o
vras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser trans­
transformam o mundo. Existir, humanamente, é pro­ formado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato
nunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronuncia­ de depositar idéias de um sujeito no outro, nem tam­
do, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pouco· tornar-se simples troca de idéias a serem consu­
pronunciantes, a exigir dêles nôvo pronunciar. midas pelos permutantes.
Não é no silêncio* que os homens se fazem, mas Não é também discussão guerreira, polêmica, entre
sujeitos que não aspiram a comprometer-se com a pro­
na palavra, no trabalho, na ação-reflexão. núncia do mundo, nem com buscar a verdade, mas com
Mas, se dizer a palavra verdadeira, que é trabalho, impor a sua.
que é praxis, é transformar o mundo, dizer a palavra Porque é encontro de homens que pronunciam o
não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos mundo, não deve ser doação do pronunciar de uns a
os homens. Precisamente por isto, ninguém pode dizer outros. É um ato de criação. Daí que não possa ser
• Não nos referimos, obviamente, ao silêncio das meditações pro­ manhoso instrumento de que lance mão um sujeito pa­
fundas em que os homens, numa forma só aparente de sair du ra a conquista do outro,. A conquista implícita no diá­
mundo, dêle "afastando-se" para "admirá-lo" em sua globalidade, logo, é a do mundo pelos sujeitos dialógicos, não a de
com êle, por isto, continuam. Daí que estas formas de recolhi­ um pelo outro. Conquista do mundo para a libertação
mento só sejam verdadeiras quando os homens nela se encontrem
"molhados" de realidade e não quando, significando um desprêzo dos homens.
ao mundo, sejam maneiras de fugir dêle, numa espécie de Não há diálogo, porém, se não há um profundo amor
"esquisofrenia histórica". ao inundo e aos homens. Não é possível a promhicia do
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mundo, que é um ato de criação e recriação, se não hú.
amor que a infunda*. 1·crn. com,1m de $1\l.>or L�gh', "'º
O diálo(to, côlt'lo e11conlto doti hcn11N1u p111 ,, 11 111
ron11w, 111• r11•111· pnlrnt 11111
Sendo fundamento do diá.logo, o amor é, também, nm dfücs) pérdt•m ri humUtlntlt-.
diálogo. Dai que seja essencialmente tarefa de sujeitos Como po.'lao dlr�lognr, 1w 11llt•110 11 lRt1orl\1tc•h,, \tt\11 .,,
e que não possa verificar-se na relação de dominação. se a vejo sempre no outro, 11u11t:u 1m1 111ltt1'/
Nesta, o que há é patologia de amor: sadismo em quem Como posso d1alognr, se me tldm!Lo óOtr\O 11m ho
domina; masoquismo nos dominados. Amor, não. Por­ mem diferente, virtuoso por heru.uça, diante dos out,roo,
que é um ato de coragem, nunca de mêdo, o amor é com­ meros "isto", em quem não reconheço outros eui'
promisso com os homens. Onde quer que estejam êstes, Como posso dialogar, se me sinto participante de
oprimidos, o ato de amor está em comprometer-se com um "gueto" de homens puros, donos da verdade e do
sua causa. A causa de sua libertação. Mas, êste com­ saber, para quem todos os que, estão fora são "essa gen­
promisso, porque é amoroso, é dialógico. te", ou são "nativos inferiores"?
Como ato de valentia, não pode ser piegas; como Como posso dialogar, se parto de que a pronúncia
ato de liberdade, não pode ser pretexto para a manipu­ do mundo é tarefa de homens seletos e que a presença
lação, senão gerador de outros atos de liberdade. A não das massas na história é sinal de sua deterioração que
ser assim, não é .amor. devo evitar?
Somente com a supressão da situação opressora é Como posso dialogar, se me fecho à contribuição dos
possivel restaurar o amor que nela estava proibido. outros, que jamais reconheço, e até me sinto ofendido
Se não amo o mundo, se não amo a vida, se não com ela?
amo os homens, não me é possível o diálogo. Como posso dialogar se temo a superação e se, só
em pensar nela, sofro e definho?
Não há, por outro lado, diálogo, se não há humil­ A auto-suficiência é incompatível com o diálogo.
dade. A pronúncia do mundo, com que os homens o re­ Os homens que não têm humildade ou a perdem, não
criam permanentemente, não pode ser um ato arrogante. podem aproximar-se do povo. Não podem ser seus com­
• Cada vez nos convencemos mais da necessidade de que os ver­ panheiros de pronúncia do mundo. Se alguém não é
dadeiros revolucionários reconheçam na revolução, porque um ato capaz de sentir-se e saber-se tão homem quanto os ou­
criador e libertador, um ato de amor. tros, é que lhe falta ainda muito que caminhar, para
Para nós a revolução, que não se faz sem teoria da revolução, chegar ao lugar de encontro com êles. Neste lugar de
portanto sem ciência, não tem nesta uma inconciliação com o
amor. Pelo contrário, a revolução, que ê · feita pelos homens, o ê encontro, não há ignorantes absolutos, nem sábios ab­
em nome de sua humanização. solutos: há homens que, em comunhão, buscam saber
Que leva os revolucionários a aderir aos oprimidos, senão a con­ mais.
dição desumanizada em que se acham êstes? Não há também, diálogo, se não há uma intensa fé
Nê.o é devido à deterioração a que se submete a palavra amor nos homens. Fé no seu poder de fazer e de refazer. De
no. mundo capitalista que a revolução vá deixar de ser amorosa,
nem os revolucionários façam silêncio de ser caráter biófilo. criar e recriar. Fé na sua vocação de Ser Mais, que não
Guevara, ainda que tivesse salientado o "risco de parecer ridí­ é privilégio de alguns eleitos, mas direito dos homens.
culo", não temeu afirmá-lo. "Dejeme decirle ( ... declarou diri­ A fé nos homens é um dado a ,priori do diálogo.
gindo-se a Carlos Quijano ... ) a riesgo de parecer sentimientos de
nmor. Es lmposlble pensar un revolucionário autêntico, sin esta Por isto, existe antes mesmo de que êle se instale. O
r·u,•. ,dad". Ernesto Guevara: Obra Revolucionária, Ediciones homem dialógico tem fé nos homens antes de encon­
J,.ra-S.A., 1967, México, págs. 637-638. trar-se frente a frente com êles. Esta, contudo, não é

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uma ingênua fé. O homem díalógico, que é criLico, sabe Não é, porém, a esperanço. un1 Cl'UZI\J' ela hnu;1111 1
que, se o poder de fazer, de criar, de transformar, é um esperar. Movo-me na espero.nço. enquanto luto 1•, 11•• h\1(1
poder dos homens, sabe também que podL,:l éles, em com esperança, espero.
situação concreta, alienados, ter êste poder 11 rejudicado. Se o diálogo é o cncont1·0 uos homcad p1u n H11 1•
Esta possibilidade, porém, em lugar de mata:: no homem Mais, não pode fazer-se na dt!stispo1·1mç11 tio 011 11uj1•ltrn1
dialógico a sua fé nos homens, aparece a êlc, pelo con­ do diálogo nada esperam do seu qucfa:r.or Jt\ nt\o podo
trário, como um desafio ao qual tem de responder. Está haver diálogo. O seu encontro é vazio o cstér11. li: bu1·0-
.convencido de que êste poder de fazer e transformar, crático e fastidioso.
mesmo que negado em situações concretas, t.ende a re­
nascer. Pode renascer. Pode constituir-se. Não gratuita­ Finalmente, não há o diálogo ·,erdadeiro se não há.
mente, mas na e pela luta por sua libertação. Com a nos seus sujeitos um pensar verdadeiro. Pensar crítico.
instalação do trabalho não mais escravo, mas livre, que Pensar que, não aceitando a dicotomia mundo-homens,
dá a alegria de viver. reconhece entre êles uma inquebrantáv�l solidariedade.
Sem esta fé nos homens o diálogo é uma farsa·. "E:ste é um pensar que percebe a realidade como pro­
Transforma-se, na melhor das hipóteses, em manipula­ cesso, que a capta em constante devenir· e não como
ção adocicadamente paternalista. algo estático. Não se dicotomiza a si mesmo na ação.
Ao fundar-se no amor, na humildade, na fé nos ho­ "Banha-se" permanentemente de temporalidade cujos
riscos não teme. ·
mens, o diálogo se faz uma relação horizontal, em
que a confiança de um pólo no outro é conseqüência Opõe-se ao pensar ingênuo, que vê o "tempo his­
óbvia. Seria uma contradição se, amoroso, humilde e tórico como um pêso, como uma estratificação das aqui­
cheio de fé, o diálogo não provocasse êste clima de con­ sições e experiências do passado"*, de que resulta de­
fiança entre seus sujeitos. Por isto inexiste esta confian­ ver ser o presente algo normalizado e bem comportado.
ça na antidialogicidade da concepção "bancária" da Para o pensar ingênuo, o importante é a acomoda­
educação. ção a êste hoje normalizado. Para o crítico, a transfor­
Se a. �{;. nos homens é um dado a priori :lo d1álogo, mação permanente da realidade, para a permanente
a confiança se instaura com êle. A confiança vai fazen- humanização dos hCJmens. Para o pensar �rítico, diria
00 ,,s sujeitos dialógicos cada vez mais companheiros na Pierre Furter, "a meta não será mais eliminar os riscos
pronúncia do mundo. Se falha esta confiança, é que da temporalidade, agarrando-se ao espaço garantido,
falP::!ram as condições discutidas anteriormente. Um mas temporalizar o espaço. O universo não se revela a
falso amor, uma falsa humildade, uma debilit.ada fé nos mim ( ... diz ainda Furter ... ) no espaço, impondo-me
homens não podem gerar confiança. A confiança im- · uma presença maciça a que só posso me adaptar, mas
plica no testemunho que um sujeito dá aos outros de com um campo, um domínio, que vai tomando forma
suas reais e concretas intenções. Não pode existir, se a na medida de minha ação"**.
palavra, descaracterizada, não coincide com os atos. Di­ Para. o pensar ingênuo, a meta é agarrar-se a êste
zer uma coisa e fazer outra, não levando a palavra a espaço garantido, ajustando-se a êle e, negando a tem­
sério, não pode ser estímulo à confiança. poralidade, negar-se a si mesmo.
Falar, por exemplo, em democracia e silenciar o • Trecho de carta de um am!go·do autor.
povo é uma farsa. Falar em humanismo e negar os ho­ ., Fµrter, Pierre, Educação e· Vida. Editôra. · Vozes de Petrópolis,
mens é uma mentira. Rio, 1966, págs. 26-27.

9C 97
Sómente o diálogo, que implica num pensar critico, desafia a \ll11'l C ll outros, Ol'lP,hlllll<.IO VIRúl'll Uil pmün:1
é capaz, também, de gerá-lo. de vista sôbro ôlo. Visões llnp,◄ t1 14111lcln11 tl11 llttn,,lnu, dil
Sem êle, não há comunicação e sem esta não há dúvidus, de esponmçaa on dcst'Mf1c1·u11t;ntt q1w h1q1llt•ll11n1
verdadeira educação. A que, operando a superação da temas ::iignifica.tivos, à bu.su clcm q1111lt1 110 C't111i1lll 111111 11

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contradição educador-educandos, se instaura como si­ conteúdo programático da cductu;üo. UJI\ tloM 1•q11lvm•1111
tuação gnosiológica, em que os sujeitos incidem seu de uma concepção ingênua. do huinu.nhrn10, t!1M� l'Jtt 111w,
ato cognoscente sôbre o objeto cognoscivel que os na ânsia de corporificar um modêlo ideo.l tlu "bom ho•
,. mediatiza. mem", se esquece da situação concreta, existencial, pre­
Daí que, para esta concepção como prática da li­ sente, dos homens mesmos. "O humanismo consiste,
berdade, a sua dialogicidade comece, não quando o ( ... diz Furter ... ) em permitir a tomada de consciên­
educador-educando se encontra com os educandos-edu­ cia de nossa plena humanidade, como condição e obri­
cadores em uma situação pedagógica, mas antes, quan­ gação: como situação e projeto*.
do aquêle se pergunta em tôrno do que vai dialogar Simplesmente, não podemos chegar aos operários,
com êstes. Esta in,quietação em tôrno do conteúdo do urbanos ou camponeses, êstes, de modo geral, imersos
diálogo é a inquietação em tôrno do conteúdo progra­ num contexto colonial, quase umbilicalniente ligados
mático da educação. ao mundo da natureza de que se sentem mais partes
Para o "educador-bancário", na sua antidialogici­ que transformadores, para, à maneira da concepção
dade, a pergunta, óbviamente, não é a propósito do con­ "bancária", entregar-lhes "conhecimento" ou impor-lhes
teúdo do diálogo, que para êle não existe, mas a res­ um modêlo de bom homem, contido no programa cujo
peito do programa sôbre o qual .dissertará a seus alunos. conteúdo nós mesmos organizamos.
E a esta pergunta responderá êle mesmo, organizando Não seriam poucos os exemplos, que poderiam ser
seu programa. citados, de planos, de natureza política ou simplesmen­
Para o educador-educando, dialógico, problemati• te docente, que falharam porque os seus realizadores
zador, o conteúdo programático da educação não é uma partiram de sua visão pessoal da realidade. Porque não
doação ou uma imposição - um conjunto de informes levaram em conta, num mínimo ·instante, os homens
a ser depositado nos educandos, mas a devolução orga­ em situação a quem se dirigia seu programa, a não ser
nizada, sistematizada e acrescentada ao povo, da­ como puras incidências de sua ação.
ql.l-eles elementos que êste lhe entregou de forma ines­ Para o educador humanista ou o revolucionário
truturada*. autê:q.tico a incidência da ação é a realidade a ser trans­
A educação autêntica, repitamos, não se faz de "A" formada por êles com os outros homens e não êstes.
para "B" ou de "A" sôbre "B" mas de "A" com "B" Quem atua sôbre os homens para, endoutrinando­
mediatizados pelo mundo. M�ndo que impressiona � os, adaptá-los cada vez mais à realidade que deve per­
manecer intocada, são os dominadores.
• Em uma longa conversação com Malraux, declarou Mao: "Vous Lamentàvelmente, porém, neste "conto" da verti­
savez que je proclame depuis longtemps: Nous devons enseigner
aux masses avec précision ce que nous avons reçu d'elles avec calidade da programação, "conto" da concepção "ban­
confusion·•. André Malraux, - Antimemoires Gallimard, Paris, cária", caem muitas vêzes lideranças revolucionárias,
1967. pág. 531. Nesta afirmação de Mao está tôda uma teoria no seu empenho de obter a adesão dh povo à ação re­
dialógica de constituição do conteúdo programático da educação, volucionária.
que não pode ser elaborado a partir das finalidades do educador,
do que lhe pareça ser o melhor para s�us educandos. * Pierre Furter, obra citada, pág. 165.

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Acercam-se das massas camponesas ou urbanas com Afinul, o empenho do11 ll.umari.l1:1L1U.1 1liw podu MI' o
projetos que podem corresponder à sua visão do mundo, da luta de 1-1cua slo{la1LS clo:-1 0JH'cs1mr1•.-.1 l1•11<lo 1•1111111 ln
mas não necessàriamente à do povo". termediários os opl'hntcto11, �orno 11n rot11111111 "lrn,1p,,1h·I
Esquecem-se de que o seu objetivo fundamental é ros" dos slogans rlo um1 o do 011tro11, o nm1w11t11, 111111
lutar com o povo pela recuperação da humanidade rou­ human1stu8, p<.1 10 ccmLrário, tillLf\ t'lll ftlll\ º" 11prl111lrln,.
bada e não conquistar o povo. :tsic verbo não deve caber tomem consciôncia do ',\1},,C, polo ruto 111t•m110 rio q1111 1111\lw
na sua linguagem, mas na do dominador. Ao revolucio­ sendo "hospedeiros" aos OJ)l'CHSOJ't•�. como 11l'n•11 chtilllC,
nário cabe libertar e libertar-se com o povo, não con­ não estão podendo Ser.
quistá-lo. Esta prática implica, por isto mesmo, cm quo o
acercamento às massas populares se faça, não paro.
As elites dominadoras, na sua aluação política, são levar-lhes uma mensagem "salvadora", em forma de
eficientes no uso da concepção "bancária" (em que a conteúdo a ser depositado, mas, para, em diálogo com
conquista é urn dos instrumentos) porque, na medida elas, conhecer;-·não só a objetividade em que estão, mas
ein que esta desenvolve uma ação apassivadora, coin­ a consciência que tenham desta objetividade; os vários
cide com o estado de "imersão" da consciência oprimida. níveis de percepção dt: si mesmos e do mundo em que
Aproveitando esta "imersão" da consciência oprimida, e com que estão.
estas elites vão transformando-a naquela "vasilha'' de Por isto é que não podemos, a não ser ingênuamén­
que falamos. e pondo nela slogans que a fazem mais te, esperar resultados positivos de um programa, seja
temerosa ainda da liberdade.
educativo num sentido mais técnico oti de ação política,
Um trabalho verdadeiramente libertador é incom­ se, desrespeitando a particular visão do mundo que te­
patível com esta prática. Através dêle, o que se há de nha ou esteja tendo o povo, se constitui numa espécie
fazer é propor aos oprimidos os slogans dos opresso­ de "invasão cultural", ainda que feita com a melhor
res, como problema, proporcionando-se, assim, a sua das intenções. Mas "invasão cultural" sempre*.
expulsão de "dentro" dos oprimidos. Será a partir da situação presente, existencial, con­
creta, refletindo o conjunto de aspirações do povo, que
• Pour établir une liason avec les masses, nous devons nous con­ poderemos organizar o conteúdo programático da si­
former a leurs désirs. Dans tout travai! pour Jes masses, nous tuação ou da ação política, acrescentemos.
...
devons partir de leurs besoins, et non de nos propres desirs, si
louables soient-ils. II arrive souvent que les masses aient obJe­ O que temos de fazer, na verdade, é propor ao povo,
tivement besoin de tel!es ou telles transformations, mais que através de certas CQntradições básicas, sua situação
subJetivemente el!es ne soient conscientes de ce besoin, que'elles existencial, concreta, presente, como problema que, por
n'aient ni la valonté ni le désir de les iéa!iser; dans ce cas, nous
devons attendre avec patience; c'est seulement lorsque, à la
suite de notre travai!, les masses seront, dans leurs majprité
sua vez, o desafia e, assim, lhe exige resposta, não· só
no nível intelectual, mas no nível da ação**.
.
conscientes de la nécessité de ces transformatlons, lorsqu'elles au­ Nunca apenas dissertar sôbre ela e jamais doar-lhe
ront la volonté et le desir de les faire aboutir qu'on pourra les conteúdos que pouco ou nada tenham a ver com seus
realiser; sinon, l'on risque de se· couper des masses. ( ...) Deux
príncipes doivent nous guider: premiérement, les besoins réels • No capítulo seguinte, analisaremos detidamente esta· questão.
des masses et non les besolns nés de notre imagination; deuxlc­ �•* Neste sentido, é tão contraditório que homens verdadeiramente
ment, le desir libremente exprimé par les masses, les resolutions humanistas usem a prática "bancária", 'quanto que homens de
qu'elles ont · prises elles memes et non celles ciue nous prenons direita se empenhem num esfôrço de educação problematizadora.
à leur place". Mao Tsé-Tung, Le front 1111i da11s /e Tra,·ai/ Culm­ �stes são sempre mais co�rentes - jamais aceitam uma peda­
rel, 1944. gogia da problematização.

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anseios, com suas dúvidas, com suas esperanças, com Esta invesUgfl.çã.o implica, noc!'IU'lt'irltnnNll,c�, 111111111
seus temores. Conteúdos que, às vêzes, aumentam êstes metodologia que não podo cont,nttll:,,c•r ,� dl11lnKlrld11rlr
temores. Temores de consciência oprimida. da educaçuo Ubcrlincloni, n,ti 11uo IH'Jll lp,1ullmm1t1• dl11
Nosso papel não é falar ao povo sôbre a nossa visão lógica. Dai quo, con1:1cii.mLlzu.tlom l,11mh(1111, rn·npnrl'11111",
do mundo, ou tentar impô-la a êle, mas dialogar com ao mesmo tempo, a nprucn:mo dm1 "lcnwn e_M1ldm 1•,s" r
êle sôbre a sua e a nossa. Temos de estar convencidos a tomada de consciência dos incllv!duo« t'lll Mruu doll
de que a sua visão do mundo, que se manifesta nas vá­ mesmos.
rias formas de sua ação, reflete a sua situação no mun­ Esta é a razão pela qual, (cm coerência a.Inda com
do, em que se constitui. A ação educativa e política não a finalidade libertadora da educação dialógica) não se
pode prescindir do conhecimento crítico dessa situa­ trata de ter nos homens o objeto da investigação, de
ção, sob pena de se fazer "bancária" ou de pregar no que o investigador seria o sujeito.
deserto.
Por isto mesmo é que, muitas vêzes, educadores e O que se pretende investigar, realmente, não são
políticos falam e não são entendidos. Sua linguagem os homens, como se fôssem peças anatômicas, mas o
não sintoniza com a situação concreta dos homens a seu pensamento-linguagem referido à realidade, os ní­
quem falam. E sua fala é um discurso a mais, alienado veis de sua percepção desta realidade, a sua visão do
e alienante. mundo, em que se encontram envolvidos seus "temas
É que a linguagem do educador ou do político (e
geradores".
cada vez nos convencemos mais de que êste há de tor­ Antes de perguntar-nos o que é um "Tema Gera­
nar-se também educador no sentido mais amplo da ex­ dor", cuja resposta nos aclarará o que é o "universo mí­
pressão) tanto quanto a linguagem do povo, não existe nimo temático", nos parece indispensável desenvolver
sem um pensar e ambos, linguagem e pensar, sem uma algumas reflexões.
realidade a que se encontrem referidos. Desta forma, Em verdade, o conceito de "tema gerador" não é
para que haja comunicação eficiente entre êles, é pre­ uma criação arbitrária, ou uma hipótese de trabalho
ciso que educador e político sejam capazes de conhecer que deva .ser comprovada. Se o "tema gerador" fôsse
as condições estruturais em que o pensar e a linguagem uma hipótese que devesse ser comprovada, a investiga­
do povo, dialeticamente, se constituem. ção, primeiramente, não seria em tôrno dêle, mas de
Daí também que o conteúdo programático para a sua existência ou não.
ação, que é de ambos, não possa ser de exclusiva eleição Neste caso, antes de buscar apreendê-lo em sua ri­
daqueles, mas dêles e do povo. queza, em sua significação, em sua pluralidade, em seu
É na realidade mediatizadora, na consciência quê devenir, em sua constituição histórica, teríamos que
dela tenhamos educadores e povo, que iremos buscar o constatar, primeiramente, sua objetividade. Só depois,
conteúdo programático da educação. então, poderíamos tentar sua captação.
O momento' dêste buscar é o que inaugura o diá­ Ainda que esta postura - a de uma dúvida crítica
logo da educação como prática da liberdade. É o mo­ - seja legítima, nos parece que a constatação do "tema
mento em que se realiza a investigação do que chama­ gerador", como uma concretização, é algo a que che­
mos de universo temático* do povo ou o conjunto de gamos através, não só da própria experiência existen­
seus temas geradores. cial, mas também de uma reflexão crítica sôbre as re­
�Õma.-mesma conotação, usamos a expressão: Temática signi­ lações homens-mundo e homens-homens, implícitas nas
ficativa. primeiras.

102 103
Detenhamo-nos neste ponto. Mesmo que possa pa­ um correr riscos, uma vez que não os sabe correndo.
recei· um lugar-comum, nunca será demasiado falar em :tstes, porque não são desafios perceptíveis reflexiva­
tôrno dos homens como os únicos sêres, entre os "in­ mente, mas puramente "notados" pelos sinais que os
conclusos", capazes de ter, não apenas sua própria ati­ apontam, não exigem respostas que impliquem em ações
vidade, mas a si mesmos, como objeto de sua consdên­ decisórias. O animal, por isto mesmo, não pode com­
cia, o que os distingue do animal, incapaz de separar-se prometer-se. Sua condição de ahistórico não lhe permite
de sua atividade. assumir a vida, e, porque não a assume, não pode cons­
Nesta distinção, aparentemente superficial, vamos trui-la. E, se não constrói, não pode transformar o seu
encontrar as linhas que demarcam os campos de uns e contôrno. Não pode, tampouco, saber-se destruído em
de outros, do ponto de vista da ação de ambos no espaço vida, pois não consegue alongar seu suporte, onde ela
em aue se encontram. se dá, em um mundo significativo e simbólico, o mundo
Ão não poder separar-se de sua atividade sôbre a compreensivo da cultura e da história. Esta. é a razão
qual não pode exercer um ato reflexivo, o animal não pela qual o animal não animaliza seu contôrno para
consegue impregnar a transformação, que realiza no �­ ·animalizar-se, nem tampouco se desanimaliza. No bos­
mundo, de uma significação que vá mais além de si que, como- no zoológico, continua um "ser fechacto em
mesmo. si" - tão animal aqui, como lá.
.Na medida em que sua atividade é uma aderência Os homens, pelo contrário, ao terem consciência de
dêle, os resultados da transformação operada através sua atividade e do mundo em que estão, ao atuarem em
dela não o sobrepassam. Não se separam dêle, tanto função de finalidades que propõem e se propõem, ao te­
quanto sua atividade. Daí que ela careça de finalidades rem o ponto de decisão de sua busca em si e em suas re­
que sejam propostas por êle. De um lado, o animal não lações com mundo, e com os outros, ao impregnarem o
se separa de sua atividade, que a êle se encontra ade­ mundo de sua presença criadora através da transforma­
rida;_ de outro, o ponto de decisão desta se acha fora ção que realizam nêle, na medida em que dêle podem
dêle: na espécie a que pertence. Pelo fato de que sua separar-se e, separando-se, podem com êle ficar, os ho­
_ atividade seja êle e êle seja sua atividade, não podendo mens, ao contrário do animal, não sàmente vivem, mas
dela separar-se, enquanto seu ponto de decisão se acha existem, e sua existência é histórica.
em sua espécie e não nêle, o animal se constitui, fun­ Se a vida do animal se dá em um suporte atem­
damentalmente, como um "ser fechado em si". poral, plano, igual, a existência dos homens se dá no
Ao não ter êste ponto de ç.ecisão em si, ao não po­ mundo que êles recriam e transformam incessantemen­
der objetivar-se nem ?, sua atividade, ao carecer de fi­ te. Se, na vida do animal, o aqui não é mais que um
nalidades que se pr.ononha. e que proponha, ao viver "habitat" ao qual êle "contacta", na existência dos ho­
"imerso" no "mundo". 'a que. não consegue dar sentido, mens o aqui não é sàmente um espaço físico, mas tam­
ao não ter um amanhã nem um hoje, por viver num pre­ bém um espaço histórico.
sent.e esmagador, o animal é ahistórico. Sua vida ahis­ Para o animal, rigorosamente, não há um aqui, um
tórica se dá, não no mundo tomado em sentido rigoroso, agora, um ali, um amanhã, um ontem, porque, carecen­
pois que o mundo não se constitui em um "não-eu" do da consciência de si, seu dever é uma determinação
para êle, que seja capaz de constituí-lo como eu. total. Não é possível ao animal sobrepassar os limites
O mundo humano, que é histórico, se faz, para o impostos pelo aqui, pelo agora ou pelo ali.
"ser fechado em si" mero suporte. Seu contôrno não Os homens, pelo contrário, porque são consciência
lhe é problemático, mas estimulante. Sua vida não é de si e, assim, consciência do mundo-, porque são um

104 105
corpo consciente", vivem uma relação dialética entre
11 a9ão do� homens 1iõbre a, roa.lida.do concl'OLll om qnn 111
os condicionamentos e sua liberdade. duo as "s1tuo.çõcs-11m1Lca".
Ao se separarem do mundo, que objetivam, ao se­ Supcl'o.dns cstu..'I, com u t1·u.11stor1m1.çuo dll n•ullth,
pararem sua atividade de si mesmos, ao terem o ponto de, novas surgtru.o, provocumlu outror1 "aLolí llmll,i•N" rlrni
de decisão de sua atividade em si, em suas relações com homens.
o mundo e com os outros, os homens ultrapasam as Desta fotma, o próprio elos hol\wu11 t, c11L1\r, t•omn
"situações-limites", que não devem ser tomadas como consciência de si e do mundo, em l'uluça.o do ottfrNüt\
se fôssem barreiras insuperáveis, mais além das quais mento com sua. realidade em que, hlatàricmmmtc, l'it.l
nada existisse*. No momento mesmo em que os ho­ dão as "situações-limites". E êste enfrentnmenlo com a.
mens as apreendem como freios, em que elas se con­ realidade para a superação dos obstáculos só pode ser
figuram com obstáculos à sua libertação, se transfor­ feito históricamente, como históricamente se objetivam
mam em "percebidos destacados" em sua "visão de as "situações-limites".
fundo". Revelam-se, assim, como realmente são: dimen­ No "mundo'' do animal, que não sendo rigorosamen­
sões concretas e históricas de uma dada realidade. Di­ te mundo, mas suporte em que está, não há "situações­
mensões desafíadoras dos homens, que incidem sôbre limites" pelo caráter ahistórico do segundo, que se es­
elas através de ações que Vieira Pinto chama de "atos­ tende ao primeiro.
limites" - aquêles que se dirigem à superação e à ne­ Não sendo o animal um "ser para si", lhe falta o
gação do dado, em lugar de implicarem na sua aceitação poder de exercer "atos-limites", que implicam numa
dócil e passiva. postura decisória frente ao mundo, do qual o ser se "se­
Esta é a razão pela qual não são as "situações li­ para", e, objetivando-o, o transforma com sua ação.
mites", em si mesmas, geradoras de um clima de deses­ Prêso orgânicamente a seu suporte, o animal não se dis­
perança, mas a percepção que os homens tenham delas tingue dêle.
num dado momento histórico, como um freio a êles, Desta forma, em lugar de "situações-limites", que
como algo que êles não podem ultrapassar. No mo­ são históricas, é o suporte mesmo, maciçamente, que o
mento em que a percepção crítica se instaura, na ação limita. O próprio do animal, portanto, não é estar em
mesma, se desenvolve um clima de esperança e confian­ relação com seu suporte - se estivesse, o suporte seria
ça que leva os homens a empenhar-se na superação das mundo - mas adaptado a êle. Daí que, como um "ser
"situações-limites". 'fechado' em si, ao "produzir" um ninho, uma colmeia,
um ôco onde viva, não esteja realmente criando· pro­
Esta superação, que não existe fora das relações dutos que tivessem sido o resultado de "atos-limites" -
homens-mundo, sómente pode verificar-se através da respostas transformadoras. Sua atividade produtora está
submetida à satisfação de uma necessidade física, pu­
• O Prof. Alvaro Vieira Pinto analisa, com bastante lucidez, o
problema das "situações-limites", cujo conceito aproveita, esva­ ramente estimulante e não desafiadora. Daí que seus·
ziando-o, porém, da dimensão pessimista que se encontra origi­ produtos, fora de dúvida, "pertençam diretamente a
nàriamente em Jaspers. seus corpos físicos, enquanto o homem é livre frente a·
Para Vieira Pinto, as "situações-limites'' não são "o contõrno seu produto"*.
infranqueãvel onde terminam as possibilidades, mas a margem
real onde começam tôdas as possibilidades"; não são "a fronteira Sómente na medida em que os produtos que resul­
entre o ser e o nada, mas a fronteira entre o ser e o ser mais" tam da atividade do ser "não pertençam a seus corpos
· ('mais ser). Alvaro Vieira Pinto, Consciênda e Realidade Nacto�
nal, ISEB - Rio, 1960, ·vol, II, pág. 284, * MARX, K. - Manuscritos Eco11ômicos-Filosóficos.
106 107
fisicos", ainda que recebam o seu sêlo, darão surglmento dos. Se assim fôsse, desapareceria uma condiçüo fundo.­
à dimensão significativa do contexto que, assim, se faz mental da historia: sua continuidade. As unidude.'I l•po
mundo. · cais, pelo contrário, estão em relação Ulllll" rom u11 O\I
Daí em diante, êste ser, que desta forma atua e que, tras• na dinâmica da continuidade hisl6l'lcn.
necessà:riamente, é um ser consciência de si, um ser "pa­ Uma unidade epocal se caracteriza pulo conjunto
ra si", não poderia ser, se não estivesse sendo, no mun­ de idéias, de concepções, esperanças, dúvltlns, VlllÕl'CU,
do com o qual está, como também êste mundo não exis­ desafios, em interação dialética com seus contrários,
tiria, se êste ser não existisse. buscando plenitude. A representação concreta de mui­
A diferença entre os dois, entre o animal, de cuja tas destas idéias, dêstes valôres, destas concepçõea e
atividade, porque não constitui "atos-limites", não re­ esperanças, como também os obstáculos ao ser mais dos
sulta uma produção mais além de si e os homens que, . homens, constituem os temas da época.
através de sua ação sôbre o mundo, criam o domínio :6:stes, não sómente implicam em outros que são seus
da cultura e da história, está em que sómente êstes são contrários, às vêzes antagônicos, mas também indicam
sêres da praxis. Sómente êstes são praxis. Praxis que, tarefas a ser realizadas e cumpridas. Desta forma, não
sendo reflexão e ação verdadeiramente transformadora há como surpreender os temas históricos isolados, sol­
da realidade, é fonte de conheci':,1ento reflexivo e cria­ tos, desconectados, coisificados, parados, mas em rela­
ção. Com efeito, enquanto a atividade animal, realizada ção dialética .com outros, seus opostos. Como também
sem praxis, não implica em criação, a transfarmação não há outro lugar para encontrá-los que não seja nas
exercida pelos homens implica nría. relações homens-mundo. O conjunto dos temas em in­
E é com, sêres transforma .;ores e criadores que os teração constitui o "universo temático" da época.
homens, em saas, permanentes relações com a realidade, . Frente a êste "universo" de temas que dialetica­
produzem, não não sómente os bens materiais, as coi­ mente s� contradizem, os homens tomam suas posições
sas sensíveis, os objetos, m&s também as instituições também contraditórias, :realizando tarefas em favor,
sociais, suas idéias, suas con :epções*. uns, da manutenção das estruturas, out:ros, da mudança.
Através de sua permanente ação transformadora Na medida em que se aprofunda o antagonismo
da realidade objetiva, os homens, simultâneamente, entre os temas que são a expressão da realidade, há
criam a história e se fazem sêres histórico-sociais. uma tendência para a mitificação da temática e da rea­
Porque, ao contrário do animal, os homens podem lidade mesma, o que, de modo geral, instaura um clima
.. de "irracionalismo" e de sectarismo.
tridimensionalizar o tempo (passado-presente-futuro)'
que, contudo, não são departamentos estanques. Sua :mste clima ameaça esgotar os temas de sua signifi­
história, em função de suas mesmas criações vai se cação mais profunda, pela possibilidade de retirar-lhes
desenvolvendo em permanente devenir, em que se con­ a conotação dinâmica que os caracteriza.
cretizam suas unidades epoca.is: Estas, como o ontem, o No momento em que uma s·ociedade vive uma época
hoje e o amanhã, não são como se fôssem seções fecha:. assim, o próprio irracionalismo mitificador passa a cons­
das e intercomunicáveis do tempo, que ficassem petri­ tituir um de seus temas fundamentais, que terá, como
ficadas e nas quais os homens estivessem enclausura- seu oposto combatente, a visão crítica e dinâmica da
• A propósito dêste aspecto, ver Kosic, Karel: Dialética de lo Con­ • Em tõmo de épocas históricas, ver Hans FreYer: Teoria de la
creto, Editoria;l GriJalbo, México, 1967. época actual, Fondo de Cultura, - México (breviário).

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realidade que, empenhando-se em favor do seu desve­
lamento, desmascara sua mitificação e busca a plena
realização da tarefa humana: a permanente transfor­ não concretizar-se. Dai que aluem no 11011Udo do mun
mação da realidade para a libertação dos homens. terem a "situação-limito" quo lht�H 6 ru.vorúv••t•
Os temas• se encontram, em última análise, de Desta forma, se lmpõo à uçõ.o llbOl'LLLdOl'II, ()1111 f\ hlR•
um lado, envolvidos, de outro, envolvendo as "situações­ tórlca, sôbl·e um contexto, tumblnn hll1t6dco, H 1•xlgõn
limites", enquanto as tarefas em que êles implicam, eia de que esteja em relação do corrcspond(lncln, 111\11 116
quando cumpridas, constituem os "atos-limites" aos com os "temas geradores", mas com u poret•pçilo flllll
quais nos referimos. dêles estejam tendo os homens. Esta cxigõnciu ucccssà­
riamente se alonga noutra: a da investigação da temá­
Enquanto os temas não são percebidos como tais, tica significativa.
envolvidos e envolvendo as "situações-limites", as ta­ Os "temas geradores" podem. ser localizados em
refas referidas a êles, que são as respostas. dos homens círculos concêntricos, que partem do mais geral ao mais
através de sua ação histórica, não se dão em têrmos particular.
autênticos ou criticos.
Temas de caráter universal, contido,s na unidade
Neste caso, os temas se encontram encobertos pelas epocal mais ampla, que abarca tôda uma gama de uni­
"situações-limites" que se apresentam aos homens como dades e subunidades, continentais, regionais, nacionais,
se fôssem determinantes históricas, esmagadoras, em etc., diversificadas entre si. Como tema fundamental
face das quais não lhes cabe outra alternativa, senão desta unidade mais ampla, que poderemos chamar
adaptar-se. Desta forma, os homens não chegam a "nossa época", se encontra, a nosso ver, o da libertação,
transcender as "situações-limites" e a descobrir ou a que indica o seu contrário, o tema da dominação. É
divisar, mais alé:t� delas e em relação com elas, o "iné­ êste tema angustiante que vem dando à nossa época o
dito viável". caráter antropológico a que fizemos referência ante­
Em síntese, as "situações-limites" implicam na exis­ riormente.
tência daqu�les a quem direta ou indiretamente "ser­ Para alcançar a meta da humanização, que não se
vem" e daqueles a quem "negam" e "freiam". consegue sem o desaparecimento da opressão desuma­
No momento em que êstes as percebem não mais nizante, é imprescindível a superação das "situações-li­
'.
como uma "fronteira entre o ser e o nada, mas como mites" em que os homens se acham quase colsificados".
uma fronteira entre o ser e o mais ser", .se fazem cada Em círculos menos amplos, nos deparamos com
vez mais críticos na sua ação, ligada àquela percepção. temas e "situações-limites", características de socieda­
Percepção em que está implícito o inédito viável como des de um mesmo continente ou de continentes distin­
algo definido, a cuja concretização se dirigirá sua ação.

tos, que têm nestes temas e nestas "situações-limites"
A tendência então, dos primeiros, é vislumbrar no similitudes históricas.
inédito viável, ainda como inédito viável, uma "situa­ A "situação-limite" do subdesenvolvimento, ao qual
ção-limite" ameaçadora que, por isto mesmo, precisa esta ligado o problema da dependência, é a fundamen­
• :E:stes temas se chamam geradores porque, qualquer que seja a
tal característica do "terceiro mundo". A tarefa de su­
natureza de sua compreensão como a ação por êles provocada, perar tal situação, que é uma totalida,.de, por outra, a do
contêm em si a possibilidade de deso.obrar-se em outros tantos
temas que, por sua vez, provocam novàs tarefas que devem ser • A Libertação desafia, de forma dialéticamente antagônica, a opri­
cumpridas. midos e a opressores. Assim, enquanto é, para os primeiros, seu
"inédito viável", que precisam concretizar, se constitui, para os
segundos. como "situação-limite", que necessitam evit3r.
110
111
dese�volvimento, é, por sua vez, o imperativo básico do Este é um to.to de hnporlànclo. lndl1tcuU-.,,,1 JJIUI\ o
Terceiro Mundo. investigador da tcmá.Ucn ou do "ttmm gtmutol'",
Se olhamos, agora, uma socieclade determinada em A questão fundamcntnl, rlt.'iitt• 1•11r10 1 t•1tli\ mu quü,
sua unidade epocal, vamos perceber que, além desta faltando aos homens uma comprern:1110 f'l'lt.lc•1t cln lfl•
temática universal, continental ou de um mundo es­ talidade em que cstdo, cu.ptnndo ll 1•m pt•d1tçoli nu:, qunltt
pecífico de semelhanças históricas, ela vive seus temas não reconhecem a interação corn1tit\11ntt• <111 nw1un11 ,
próprios, suas "situações-limites". totalidade, não podem conhecê-la. E no.o o podem por­
Em círculo mais restrito, observaremos diversifica­ que, para conhecê-la, seria necessário partir do ponto
ções temáticas, dentro de uma mesma sociedade, em inverso. Isto é, lhes seria indispensável ter antes a visá.o
áreas e subáreas em que se divide, tôdas, contudo, em totalizada do contexto para, em seguida, separarem ou
relação com o todo de que participam. São áreas e sub­ isolarem os elementos ou as parcialidades do contexto,
áreas que constituem subunidades epocais. Em uma através de cuja cisão voltariam com mais claridade à
unidade nacional mesma, encontramos a contradição da totalidade analisada.
"contemporaneidade do não coetâneo".. :tl:ste é um esfôrço que cabe realizar, não apenas na
Nas subunidades referidas, os temas de caráter na­ metodologia da investigação temática que advogamos,
cional podem ser ou deixar de ser captados em sua ver­ mas, também, na educação problematizadora que de­
dadeira significação, ou simplesmente podem ser sen­ fendemos. O esfôrço de propor aos indivíduos dimen­
tidos. As vêzes, sem sequer são sentidos. sões significativas de sua realidade, cuja análise crítica
O impossível, porém, é a inexistência de temas nes­ lhes possibilite reconhecer a interação de suas partes.
tas subnidades epocais. O fato de que indivíduos de Desta maneira, as dimensões significativas que, por
uma área -não captem um "tema gerador", só aparente­ sua vez, estão constituídas de partes em interação, ao
mente oculto ou o fato de captá-lo de forma distorcida,
pode significar, já, a existência de uma "situação-li­ �erem analisadas, devem ser percebidas pelos indi ·íduos
mite" de opressão em que os homens se encontram mais como dimensões da totalidade. Dêste m0do, a análise
imersos que emersos. crítica de uma dimensão significativo-existencial pos­
De modo geral, a consciência dominada, não só sibilita aos indivíduos uma nova postura, também cri­
popular, que não captou ainda a "situação-limite" em tica, em face das "situações-limites". A captação e a
sua globalidade, fica na apreensão de suas manifesta­ compreensão da realidade se refazem, ganhando um ni­
ções periféricas às quais empresta a fôrça inibidora que vel que até então não tinham. Os homens tendem a
cabe, contudo, à "situação-limite"*. perceber que sua compreensão e que a "razão" da rea-
1idade não estão fora dela, como, por sua vez, ela não
� Esta forma de proceder se observa, não raramente, entre ho­ se encontra dêles dicotomizada, como se fôsse um mun­
mens de classe média, ainda que diferentemente de corno se ma­
nifesta entre camponeses. Seu rnêdo da liberdade os leva a do à parte, misterioso e estranho, que os esmagasse.
assumir mecanismos de defesa e, através de racionalizações, es­ Neste sentido é que a investigação do "tema gera­
condem o fundamental, enfatizam o acidental e negam a realida­
de concreta. Em face de um problema cuja análise remete à. dor", que se encontra contido no "universo temático
visualização da "situação-limite", cuja critica lhes é -incômoda, mínimo" (os temas geradores em interação) se reali­
sua tendência é ficar na periferia dos problt,nas, rechaçando_ zada por meio de uma metodologi� conscientizadora,
tôda tentativa de adentramento no núcleo mesmo da questão. além de nos possibilitar sua apreensão, insere ou come­
Chegam, inclusive, a irritar-se quando se lhes chama a atenção ça a inserir os homens numa forma crítica de pensa­
para algo fundamental que explica o acidental ou o secundário,
aos quais eatão .dando significação primordial. rem seu mundo.

112 113
Na medida, porém, em que, na captação do todo 1i:ste todo, que é a siLuaçiío figul'Udu (codtrlc1uh,) 11
que se oferece à compreensão dos homens, êste se lhes que antes havia sido a.ptecm.dklo dlttt1fümt't1Lo, pnmm 11
apresenta corno algo espêsso que os envolve e que não ganhar signiflca.çi'io no. modidu. om quo t1ofru u "rir1hn"
chegam a vislumbrar, se faz indispensável que a sua e em que o pensar volta a Olo, n pru·th· d1111 tllnrnwu'lt!tl
busca se realize através da abstração. Isto não significa resultantes da "cisão".
a redução do concreto ao abstrato, o que seria negar a Como, porém, a codificação ó u rcprc111.l1ü1.Lçúo d
sua dialeticidade, mas tê-los como opostos que se diale­ uma situação existencial, a iendõncia dos lndividuos ó
tizam no ato de pensar. dar o passo da representação da situação (codificação)
Na análise de uma situação existencial concreta, à situação concreta mesma em que e com que se
"condificada"*, se verifica exatamente êste movimen­ encontram.
to do pensar. Teoricamente, é lícito esperar que os indivíduos
A descodificação da situação existencial provoca passem a comportar-se em face de sua realidade obje­
esta postura normal, que implica num partir abstrata­ tiva da mesma forma, do que resulta que deixe de ser
mente até o concreto; que implica numa ida das par­ ela um beco sem saída para ser o que em verdade é: um
tes ao todo e numa volta dêste às partes, que implica desafio ao qual os homens têm que responder.
num reconhecimento do sujeito no objeto (a situação Em tôdas as etapas da descodificação, estarão os
existencial concreta) e do objeto como situação em que homens exteriorizando sua visão do mundo, sua forma
está o sujeito**. de pensá-lo, sua percepção· fatalista das "situações-limi­
tes", sua percepção estática ou dinâmica da realidade.
'€ste movimento de ida e volta, do abstrato ao con­ E, nesta forma expressada de pensar o mundo fatalis­
creto, que se dá na análise de uma situação codificada, tamente, de pensá-lo dinâmica ou estàticamente, na
se bem feita a descodificação, conduz à superação da maneira como realizam seu enfrentamento com o
abstração com a percepção crítica do concreto, já agora mundo, se encontram envolvidos seus "temas gera­
não mais realidade espêssa e pouco vislumbrada. dores".
Realmente, em face de uma situação existencial co­ Ainda quando um grupo de indivíduos não chegue
dificada, (situação desenhada ou fotografada que re­ a expressar concretamente uma temática geradora,
mete, por abstração, ao concreto da realidade existen­ o que pode parecer inexistência de temas, sugere, pelo
cial), a tendência dos indivíduos é realizar uma espécie contrário, a existência de um tema dramático: o tema
de "cisão" na situação, que se lhes apresenta. Esta do silêncio. Sugere uma estrutura constituinte do
"cisão", na prática da descodificação, corresponde à mutismo ante a fôrça esmagadora de "situações-limi­
etapa que chamamos de "descrição da situação". A cisão tes", em face das quais o óbvio é a adaptação.
da situação figurada possibilita descobrir a interação É importante reenfatizar que o "tema gerador"
entre as partes do todo cindido. não se encontra nos homens isolados da realidade, nem
tampouco na realidade separada dos homens. Só pode
• A codificação de uma situação existencial é a representação ser compreendido nas relações homens-mundo.
desta, com alguns de seus elementos constitutivos, em interação. Investigar o "tema gerador" é investigar, repita­
A descodificação é a análise critica da situação codificada.
mos, o pensar dos homens referUlo à realidade, é
•• O sujeito se reconhece na representação da situação existencial
"codificada'", ao mesmo tempo em que reconhece nesta, objeto investigar seu atuar sôbre a realidade, que é sua praxis.
agora de sua reflexão, o seu contôrno condicionante em e com A metodologia que defendemos exige, por isto
que está, com outros sujeitos, mesmo, que, no fluxo da investigação, se façam ambos

114 115
sujeitos·da mesma - os investigadores e os homens do significativa a.pa1·ecc, do quulqncr. mn11011'0., com o Nó\t
povo que, aparentemente, seriam seu objeto. conjunto de dúvlduli, d!.l n,mmlm1, e.lo w1pi11·1\HÇl\1t
Quanto mais assumam os homens uma postura 1!: preciso que nos convonçumou do que 1111 n1111lrn­
ativa na investigação de sua temática, tanto mais ções, os motivos, as !inalldu.uou q11u 110 l'l1ccmlrnm
aprofundam a s.i,a tomada de consciência em tôrno da implicitados na temática :;lgnlf1cuUvu., Hiló u:iplnu;oon,
realidade e, explicitando sua temática significativa, se finalidades, motivos humanos. Por isio, rrno wM10 111,
apropriam dela. num certo espaço, como coisas petrificndua. tnus csilw
Poderá dizer-se que o fato de sermos homens do sendo. São tão históricos quanto os homens. Não podom
povo, tanto quanto os investigadores, sujeitos da busca ser captados fora dêles, insistamos.
de sua temática significativa sacrifica• a objetividade da Captá-los e entendê-los é entender os homens que
investigação. Que os achados já não serão "puros" os encarnam e a realidade a êles referida. Mas, preci­
porque terão sofrido uma interferência intrusa. No samente porque não é possível entendê-los fora dos
caso, em última análise, daqueles que são os maiores homens, é preciso que êstes também os entendam. A
interessados - ou devem ser - em sua própria investigação temática se faz, assim, um esfôrço comum
educação. de consciência da realidade e de autoconsciência, que
Isto revela uma consciência ingênua da investi­ a inscreve como ponto de partida do processo educativo,
gação temática, para a. qual os temas existiriam em sua OUi da ação cultural de c. aráter libertador.
pureza objetiva e original, fora dos homens, como se
fôssem coisas. Por isto é que, para nós, o risco da investigação
Os -temas, em verdade, existem nos homens, em não está em que os supostos investigados se descubram
suas relações com o mundo, referidos a fatos concretos. investigadores, e, desta form_a, "corrompam" os resul­
Um mesmo fato objetivo pode provocar, numa sub­ tados da análise. O risco está exatamente no contrário.
unidade epocal, um conjunto de "temas geradores", e, Em deslocar o centro da investigação, que é a temática
noutra, não os mesmos, necessàriamente. Há, pois, uma significativa, a ser objeto da analise, para os homens
relação entre o fáto objetivo, a percepção que dêle mesmos, como se fôssem coisas, fazendo-os assim obje­
tenham os homens e os "temas geradores". tos da investigação. Esta, à base da qual se pretende
11.: através dos homens que se expressa a temática elaborar o programa educativo, em cuja prática educa­
significativa e, ao expressar-se, num certo momento, dores-educandos e educandos-educadores conjuguem sua
pode já não ser, exatamente, o que antes era, desde que ação cognoscente sôbre o mesmo objeto cognoscível,
haja mudado sua percepção dos dados objetivos aos tem de fundar�se, igualmente, na reciprocidade da ação.
quais os temas se acham referidos. E agora, da ação mesma de investigar.
Do pontOI de vista do investigador importa, na A investigação temática, que se dá no domínio do
análise que faz no processo da investigação, detectar o· humano e não no das coisas, não pode reduzir-se a um
ponto de partida dos homens no seu modo de visualizar ato mecânico., Sendo processo de busca, de conheci­
a objetividade, verificando se, durante o processo, se mento, por isto tudo, de criação, exige de seus sujeitos
observou ou não, alguma transformação no seu modo que vão descobrindo, no encadeamento dos temas signi­
de perceber a realidade. ficativos,. a interpenetração dos problemas.
A realidade objetiva continua a mesma. Se a per­ Por isto é que a investigação se . fará tão mais
cepção dela variou no fluxo da investigação, isto nã� pedagógica quanto mais crítica e tão mais crítica
significa prejudicar em nada sua validade. A temática quanto, deixando de perder-se nos esquemas estreitos

116 117
não se dá. fora dos homens, nem num homem 1:16, nom
das visões parciais da realidade, das visões "focalistas" no vazio, mas nos homens e entto os llomons 1 t• 11ei11prn
da realidade, se fixe na compreensão da totalidade. referido à realidade.
Assim é que, no processo de busca da temática Não posso investigar o pcrnmr 0011 ou�ro11, rrf,,drln
significativa, já deve estar presente a preocupação pela ao mundo se não penso. Mas, não pomm 1füLônt.lc1111w11Lo
problematização dos próprios temas, Por suas vincula­ se os outros também não pensam. Sbuph•11mu11L1), nim
ções com outros. Por seu envolvimento histórico­ posso pensar pelos outros nem para os outtos, nc.iu-1 sem
cultural. os outros. A investigação do pensar do povo não pode
Assim corno não é possível - o que salientamos no ser feita sem o povo, mas com êle, como sujeito de seu
início dêste capítulo _,.. elaborar um programa a ser pensar. E se seu pensar é mágico ou ingênuo, será
doado ao povo, também não o é elaborar roteiros de pensando o seu pensar, na ação, que êle mesmo se
pesquisa do universo temático a partir de pontos prefi­ superará. E a superação não se faz no ato de consumir
xados pelos investigadores que se julgam a si mesmos idéias, mas no de produzi-las e de transformá-las na
os sujeitos exclusivos da investigação. ação e na comunicação.
Tanto quanto a educação, a investigação que a ela Sendo os homens sêres em "situação", se encontram
serve, tem de ser urna operação simpática, no sentido enraizados em condições tempo-espaciais que os marcam
etimológico da expressão. Isto é, tem de constituir-se na e a que êles igualmente marcam. Sua tendência é
comunicação, no sentir comum uma realidade que não refletir sôbre sua própria situacionalidade, na medida
pode ser vista mecanicistamente compartimentada, em que, desafiados por ela, agem sôbre ela. Esta reflexão
sirnplistamente bem "comportada", mas, na complexi­ implica, por isto mesmo, em algo mais que estar em
dade de seu permanente vir a ser. situacionalidade� que é a sua -posição fundamental. Os
Investigadores profissionais e povo, nesta operação homens são porque estãQ em situação. E serão tanto
simpática, que é a investigação do tema gerador, são mais quanto não só pensem criticamente sôbre sua
ambos sujeitos dêste processo. forma de estar, mas criticamente atuem sôbre a situa­
O investigador da temática significativa que, em ção em que estão,
nome da objetividade científica, transforma o orgânico Esta reflexão sôbre a situacionalidade é um pensar
em inorgânico, o que está sendo no que é, o vivo no a própria condição de existir. Um pensar crítico através
morto, teme a mudança. Teme a transformação. Vê do qual os homens se descobrem em "situação". Só na
nesta, que não nega, mas que não quer, não um medida em que esta deixa de parecer-lhes uma reali­
anúncio de vida, mas um anúncio de morte, de deterio­ dade espêss'a que os envolve, algo mais ou menos
ração. Quer conhecer a mudança, não. para estimulá-la, nublado em que e sob que se acham, um beco sem
para aprofundá-la, mas para freiá-la. saída que os angustia e a captam como a situação
Mas, ao temer a mudança e ao tentar aprisionar objetivo-problemática em que estão, é que existe o
a vida, ao reduzi-la a esquemas rígidos, ao fazer do engajamento. Da imersão em que se achavam, emer­
povo objeto passivo de sua ação investigadora, ao ver gem', capacitando-se para inserir-se na realidade que se
na mudança o anúncio da morte, mata a vida e não vai desvelando. •
pode esconder sua marca necrófila. Desta maneira, a inserção é um estado maior que
A investigação da temática, repitamos, envolve a emersão e resulta da conscientização da situação. É a
a investigação do próprio pensar do povo. Pensar que própria consciência histórica.

118 119
Dai que seja a conscientização o aprofundamento investigação da temática. como ponto de partida elo
da tomada de consciência, característica, por sua vez, processo educativo, como ponto de pl\rtldn dti tu"
de tôda emersão. dialogicidade.
Neste sentido é que tôda investigação temática de Dai também o impero.tiva de dever f!Or conaclcnU
caráter conscientizador se faz pedagógica e tôda autên­ zadora a metodologia desta investigação.
tica educação se faz investigação do pensar.
Quanto mais investigo o pensar do povo com êle, Que fazermos, por exemplo, se temos a re11pou1u.1.bt
tanto mais nos educamos juntos. Quanto mais nos lidade de coordenar um plano de educação de adulto1:1
educamos, tanto mais continuamos investigando. em uma área camponesa, que revele, inclusive, uma
alta porcentagem de analfabetismo? O plano incluirá a
Educação e investigação temática, na concepção alfabetização e a pós-alfabetização. Estariamos, por­
._ problematizadora da educação, se tornam momentos de tanto, obrigados a realizar, tanto a investigação das
uzn. mesmo processo. "palavras geradoras", quanto a dos "temas geradores",
... . . Enquanto na prática "bancária" da educação, anti­ ã base de que teríamos o programa para uma e outra
. diàlógica por essência, por isto, não comunicativa, o etapas do plano.
educador deposita no educando o conteúdo programá­ Fixemo-nos, contudo, apenas na investigação dos
tico da educação, que êle mesmo elabora ou elaboram 'temas geradores" ou da temática significativa*.
para, êle, na prática problematizadora, dialógica por
excelência,· êst� conteúdo, que jamais é "depositado", · Delimitada a área em que se vai trabalhar, conhe­
se· organiza e se constitui na visão do mundo dos ida através de fontes secundárias, começam os inves­
educandos, em que se encontram ,.+,eus "temas gera- tigadores a primeira etapa de investigação.
dores". · · . ,. Esta, como todo comêço em qualquer atividade no
Pôr tal razão é que êste ccmteiído º há de estar domínio do humano, pode apresentar dificuldades e
sempre re11ovándo�se e ampliando:.$e. ·: .· · riscos. Riscos e dificuldades normais, até certo ponto,
A tarefa· do. educador dialógico é, trabalhando em ainda que nem sempre existentes, na aproximação

1
equipe interdisciplinar :ê.ste universo t.erriático, recolhido primeira que fazem os investigadores aos indivíduos da
na investigação, devolvê-lo, como problema, não. como área.
dissertação, aos homens de quem recebeu. É que, neste encontro, os investigadores necessitam
Se, na etapa da alfabetização, a educação proble­ l de obter que um número significativo dé pessoas aceite
matizadora e da comunicação busca e-·. investiga a uma conversa informal com êles, em que lhes falarão
"palavra geradora"*, na pós-alfabetização, busca e dos objetivos de sua presença na área. Na qual dirão o
investiga o "tema gerador". ,--► porque, o como e o para que da investigação que pre­
Numa visão libertadora, não mais "bancária" da tendem realizar e que não podem fazê-lo se não se
educação, o seu conteúdo programático já não involucr� estabelece uma relação de s1m-patia e confiança mútuas.
finalidades a serem impostas ao p9vo, mas, pelo contrá­ No caso de aceitarem a reunião, e de nesta aderi­
rio, porque parte e nasce dêle, em diálogo com os rem, não só à investigação, mas ao • processo que se
educadores, reflete seus anseios e esperanças. Daí a
• A propósito da Investigação e do "tratamento" das "palavras
• Ver Paulo Freire, Ed.ucação ·como prática da liberdade, Paz e geradoras" ver Paulo Freire, Educação como prática da lfüer­
Terra, Rio, 1967. dade.

120 121
segue•, devem os investigadores estimular os pre­
sentes para que, dentre êles, apareçam os que queiram visita, realizar a "cisão" desta, na o.nál111e dus dlmon110ti11
participar diretamente do processo da investigação como parciais que os vão impactando.
seus auxiliares. Desta forma, esta se inicia com um Neste esf01·ço de "cisãô" com que, mnl11 11cll1111t,,,
diálogo às claras entre todos. voltarào a adeutrar-se na. totalictudc, vitt> u.111pllnndo ,�
Uma série de informações sôbre a vida na área, sua compreensão dela, na 1ntetação elo H\H\11 :purtm1,
necessárias à sua compreensão, terá nestes voluntários Na etapa desta igualmente sui ge1wrls dcscodlrt
os seus recolhedores. Muito mais importante, contudo, cação, os investigadores, ora incidem sua visão cdLlcn,
que a coleta dêstes dados, é sua presença ativa na observadora, diretamente, sôbre certos momentos da
investigação. existência da área, ora o fazem através de diálogos
Ao lado dêste trabalho da equipe local, os investi­ informais com seus habitantes.
gadores iniciam suas visitas à área, sempre autêntica­ Na medida em que realizam a "descodificação"
mente, nunca forçadamente, como observadores sim­ desta "codificação" viva, seja pela observação dos fatos,
páticos. Por isso mesmo, com atitudes compreensivas seja pela conversação informal com os habitantes da
em face do que observam. área, irão registrando em seu caderno de notas, à ma­
Se é normal que os investigadores cheguem à área neira de Wright Mills*, as coisas mais aparentemente
da investigação movendo-se em um marco conceitual pouco importantes. A maneira de conversar dos homens;
valorativo que estará presente na sua percepção do a sua forma de ser. O seu comportamento no culto
observado, isto não deve significar, porém, que devem religioso, no trabalho. Vão registrando as expressões do
transformar a investigação temática no meio para povo; sua linguagem, suas palavras, sua sintaxe, que
imporem êste marco. não é o mesmo que sua pronúncia defeituosa, mas a
A única dimensão que se supõe devam ter os inves­ forma de construir seu pensamento**
tigadores, neste marco no qual se movem, que se espera Esta descodificação ao vivo implica, necessària­
se faça comum aos homens cuja temática se busca mente, em que os investigadores, em sua fase, surpre­
investigar, é a da percepção crítica de sua realidade, endam a área em momentos distintos. É preciso que a
que implica num método correto de aproximação do visitem em horas de trabalho no campo; que assistam a
concreto para desvelá-lo. E isto não se impõe. reuniões de alguma associação popular, observando
Neste sentido é que, desde o comêço, a investigação

l1
o procedimento de seus participantes, a linguagem
temática se vai expressando como um quefazer educa­ usada, as relações entre diretoria e sócios; o papel que
tivo. Como ação cultural. desempenham as mulheres, os jovens. É indispensável·
Em suas visitas os investigadores vão fixando sua que a visitem em horas de lazer; que presenciem seus
"mirada" crítica na área em estudo, como se ela fôsse, habitantes em atividades esportivas; que conversem com
para êles, uma espécie de enorme e sui-generis "codifi­
cação" ao vivo, que os desafia. Por isto mesmo, visuali­ Wright Mills, The socio/ogical lmagi11a1io11.
zando a área como totalidade, tentarão, visita após '' • Neste sentido Guimarães Rosa nos parece um exemplo - e
genial exemplo - de como pode um escritor captar fielmente,
não a pronúncia, não a corruptela prosódica, mas a sintaxe do
• "Na razão mesma em que a "investigação temática" ( ... diz a
socióloga Maria Edy Ferreira, num trabalho em preparação ... ) povo das Gcrnis - a estrutura d� seu pens:irnento. No momento.
o educador brasileiro Paulo de Tarso - escreve um ensaio cujo
só se Justifioa enquanto devolva ao povo o que a êle pertence;
valor e interêsse antecipamos, em tórno desta obra, em que
enquanto seja, não o ato de conhecê-lo, mas o de conhecer com
êle a realidade que o desafia", analisa o papel de Guimarães Rosa como investigador du,
temáticn fundamentnl do homem do Sert.'10 brn�ileiro.

122 123
pessoas err. suas casas, registrando manifestações em Quanto mais cindem o todo o o 1·0-totnlhmm tU� i-1•­
tôrno das relações marido-mulher, pais-filhos; afinal, admiração' que fazem de sua. ad-mlruçuo; tnl.dli ví.lo
que nenhuma atividade, nesta etapa, se perca para esta aproximando-se dos núcleos oonti·o.ia tllltl coi-üru.tllçfü•11
compreensão primeira da área. principais e secundá.rias em que ctitf.\o onvolv1do1.1 o:s
A propósito de cada uma destas visitas de obser­ individuos da área.
vação compreensiva devem os investigadores redigir
um pequeno relatório, cujo conteúdo é discutido pela Poderíamos pensar que, nesta. pr1molro. otapn tll\
equipe, em seminário, no qual se vão avaliando os investigação, ao se apropriarem, através de suas obsor­
achados, quer dos investigadores profissionais, quer dos vações, dos núcleos centrais daquelas contradições, os
auxiliares . da investigação, representantes do povo, investigadores já estariam capacitados para organizo.r
nestas primeiras observações que realizaram. Daí que o conteúdo programático da ação educativa. Realmente,
êste seminário de avaliação deva realizar-se, se possível se o conteúdo desta ação reflete as contradições, in­
na área de trabalho, para que possam êstes participar discutivelmente estará constituído cl.a temática signifi- ·
dêle. cativa da área.
. Não tememos, inclusive, afirmar que l;l, margem de
Observa-se que os pontos fixados pelos vários in­ acêrto para a ação que se desenvolvesse a partir dêstes
vestigadores, só conhecidos por todos na reunião de dados seria muito mais provável que a dos conteúdos
seminário avaliativo, de modo geral coincidem, com resultantes das programações verticais.
exceção de um ou outro aspecto que impressionou mais Esta, contudo, não deve ser uma tentação pela qual
singularmente a um ou a outro investigador. os investigadores se deixem seduzir.
Estas reuniões de avaliação constituem, em verdade, Na verdade, o básico, a partir da inicial percepção
um segundo momento da "descodificação" ao vivo, que dêste núcleo de contradições, entre as quais estará
os investigadores estão realizando da realidade que se incluída a principal da sociedade como uma unidade
lhes apresenta como aquela "codificação" sui-generis. epocal maior, é estudar em que nível de percepção delas
Com efeito, na medida em que, um a um, vão todos se encontram os indivíduos da área.
expondo como perceberam e sentiram êste ou aquêle No fundo, estas contradições se encontram consti­
momento que mais os impressionou, no ensaio "desco­ tuindo "situações-limites", envolvendo temas e apon­
dificador", cada exposição particular, desafiando a todos tando tarefas.
como descodificadores da mesma realidade, vai re-pre­ Se os indivíduos se encontram aderidos a estas "si­
sentificando-lhes a realidade recém-presentificada à sua tuações-limites", impossibilitados de "separar"-se delas,
consciência intencionada a ela. Neste momento, "re-ad­ o seu tema a elas referido será necessàriamente o do
miram" sua admiração anterior no relato da "ad-mira­ fatalismo e a "tarefa" a êle associada é a de quase não
ç�o'1 dos demais. terefo-,.tarefa.
Desta forma, a "cisão" que fêz cada um da reali­ Por isto é qúe� embora as "situações-limites" sejam
dade, no processo particular de sua descodificação, os realidades objetivas e estejam provocando necess_idades
remete, dialõgicamente, ao todo "cindido" que se reto­ nos indivíduos, se impõe investigar, com êles, a consci-
taliza e se oferece aos invetigadores a uma nova aná­ ência que delas tenham. •
lise, à qual se seguirá nôvo seminário avaliativo e Uma "situação-limite", como realidade concreta,
crítico, de que participarão, como membros da equipe pode provocar em indivíduos de áreas diferentes e até
investigadora, os representantes populares. de subáreas de uma mesma área, temas e. tarefas
124 125
"j
1
1)

opostos, que exigem, portanto, diversificação programá­


tica para o seu desvelamento. A pattir dêste momento, sempl'c em equipo, cifro
Dai que a preocupação básica dos investigadores lherão algumas destas contro.diçôcs, com qlw �orM t•lu
deva centrar-se no conhecimento do que Goldman "' boradas as codificações que vão Sõl'Vir u. 1t1vc11Ug11çho
chama de "consciência real" (efetiva) e "consciência temática.
máxima possível". Na medida em que as codificações (pintadas on
"Real consciousness is the result of the multiple foto.grafadas e, em certos casos, pretoroncia.lmonLo foto
obstacles and desviations that the different factors of grafadas* são o objeto que, mediatizando os sujclton
empírica! reality put into opposition and submit for descodificadores, se dá à sua análise critica, sua. prepu­
realization by this potential consciousness". Daí que, ração deve obedecer a certos principíos que são apenas
ao nivel da "consciência real", os homens se encontrem os que norteiam a confecção das puras ajudas visuais.
limitados na possibilidade de perceber mais além das Uma primeira condição a ser cumprida é que, ne­
"situações-limites", o que chamamos de "inédito viável". cessàriamente, devem representar situações conhecidas
Por isto é que, para nós, o "inédito viável", [ que pelos indivíduos cuja temática se busca, o que as faz
não pode ser apreendido no nível da "consciência real" reconhecíveis por êles, possibilitando, desta· forma, que
ou efetivaJ se concretiza na "ação editanda", cuja via­ nelas se reconheçam.
bilidade antes não era percebida. Há uma relação entre Não seria possível, nem no processo da investigação,
o "inédito viável" e a "consciência real" e entre a "ação nem nas primeiras fases do que a êle se segue, o da
editanda" e a "consciência máxima possível". devolução da temática significativa como conteúdo pro­
A "consciência possível" (Goldman) parece poder gramático, propor representações de realidades estra­
identificar-se com o que Nicolai** chama de "soluções" nhas aos indivíduos.
praticáveis despercebidas" (nosso "inédito viável"), em É que êste procedimento, embora dialético, pois que
oposição às "soluções praticáveis percebidas" e às "solu­ os indivíduos, analisando uma realidade estranha, com­
ções efetivamente realizadas," que correspondem à parariam com a sua, descobrindo as limitações desta,
"consciência real" (ou efetiva) de Goldman. não pode preceder a um outro, exigível pelo estado de
Esta é a razão por que o fato de os investigadores, imersão dos indivíduos: aquêle em que, analisando sua
na primeira etapa da investigação, terem chegado à própria realidade, percebem sua percepção anterior, do
apreensão mais ou menos aproximada do conjunto de que ,:esulta uma nova percepção da realidade distorci­
contradições, não os autoriza a. pensar na estruturação damente percebida.
do conteúdo programático da ação educativa. Até então, Igualmente fundamental para a sua preparação é
esta visão é. dêles ainda, e não a dos indivíduos em face a condição de não poderem ter as codificações, de um
de sua realidade. lado, seu núc1eo temático demasiado explícito; dE\ outro,
A segunda fase da investigação começa precisa­ demasiado enigmático. No primeiro caso, correm o risco
mente quando os investigadores, com os dados que de transformar-se em codificações propangandísticas,
recolheram, chegam à apreensão daquele conjunto de em face das quais os indivíduos não têm outra descodi-
contradições.
• As codificações também podem ser orais. Çonsistem, neste caso,
• Lucien Goldman, The human sciences and Ph.ilosophy, The na apresentação, em poucas palavras, que fazem os investigado­
Chancer Press, London, 1969, pág. 118. res, de um problema existencial e a que se segue sua "descodi­
André Nicolai, Compur1111e111 Eco11omiq11e et S1ruc111re.1· Sodt1/es .. ficação". A equipe do ''Instituto de Desarrolla Agropecuário"
Paris, PUF, 1960. - Chile, vem usando-os com resultados positivos em investi­
gações temáticas.
126
127
ficação a fazer, senão a que se acha implícita nelas, de Ao terem a percepção d" como o.nt1�'! pernubhou, p1�1·
forma dirigida. No segundo, o risco de fazer-se um jôgo cebem diferentemente a realidade, e, unipllm·ulo o hm 1�
de adivinhação ou "quebra-cabeça". zonte do perceber, mais fàcilmento vô.o 1mrpnloud11ucto,
Na medida em que representam situações existen­ na sua "visão de fundo", as rola.çôe1:1 dla.l6Ucu11 1mLru mnu.
ciais, as codificações devem ser simples na sua comple­ dimensão e outra da realidade.
xidade e oferecer possibilidades plurais de análises na
sua descodificação, o que evita o dirigismo massificador Dimensões referidas ao núcleo da coditicução sôbro
da codificação propagandística. As codificações não são que incidem a operação descodificadora.
slogans, são objetos cognoscíveis, desafios sôbre que Como a descodificação é, no fundo, um ato cognos­
deve incidir a reflexão crítica dos sujeitos descodifica­ cente, realizado pelos sujeitos descodificadores, e como
dores*. êste ato recai sôbre a representação de uma situação
Ao oferecerem pos.sibilidades plurais de análises, no concreta, abarca igualmente o ato anterior com o qual
processo de sua descodificação, as codificações, na orga­ os mesmos indivíduos haviam apreendido a. mesma rea­
nização de seus elementos constituintes, devem ser lidade, agora representada na codificação.
uma espécie de "leque temático". Desta forma, na me� Promovendo a percepção da percepção anterior e o
dida em que sôbre elas os sujeitos descodificadores inci­ conhecimento do conhecimento anterior, a descodifica­
dam sua reflexão crítica, irão "abrindo-se" na direção ção, desta forma, promove o surgimento de nova per­
de outros temas. cepção e o desenvolvimento de nôvo conhecimento.
Esta abertura, que não existirá no caso de seu con­
teúdo temático estar demasiado explicitado ou dema­ A nova percepção e o nôvo conhecimento, cuja for­
siado enigmático, é indispensável à percepção das rela­ mação já começa nesta etapa da investigação, se pro­
ções dialéticas que existem entre o que representam e longam, sistemàticamente, na implantação do plano edu­
seus contrários. cativo, transformando o "inédito viável" na "ação edi­
Para atender, igualmente, a esta exigência funda­ tanda", com a superação da "consciência real" pela
mental, é indispensável que a codificação, refletindo "consciência máxima possível".
uma situação existencial, constitua objetivamente uma Por tudo isto é que mais uma exigência se impõe
totalidade. Daí que seus elementos devam encontrar-se na preparação das codificações - é que elas represen­
em interação, na composição da totalidade. tem contradições tanto quanto possível "inclusivas" de
No processo da descodificação os indivíduos, exte­ outras, como adverte José Luís Fiori*. Que sejam
riorizando sua temática, explicitam sua "consciência codificações com um máximo de "inclusividade" de ou­
real" da objetividade. tras que constituem o sistema de contradições da área
Na medida em que, ao fazê-lo, vão percebendo como em estudo. Mais ainda e por isto-mesmo, preparada uma
atuavam ao viverem a situação analisanda, chegam ao destas codificações "inclusivas", capaz de "abrir-se" em
que chamamos antes de percepção da percepção anterior. "leque temático•� no processo de sua descodificação, que
se preparem as demais "incluídas" nela, como suas di­
* As codificações, de um lado, são a mediação entre o "contexto mensões dialetizadas. A descodificação• das primerias te­
concreto ou real", em que se dão os fatos e o "contexto teórico",
em· que são analisadas; de outro, são o objeto cognpsclvel sôbre rá uma iluminação explicativamente dialética na desco­
que o educador-educa.ndo e os educandos-educadores, como dificação das segundas.
sujeítos cognoscentes, incidem sua reflexão critica. Ver Paulo
Freire, Cultural Action for Freedom. Trabalho inédito.

128 129
Neste sentido, um jovem chileno, Gabriel Bode•, em leque temático terminativo, se estenderó. 11aa outrM,
que há mais de dois anos trabalha com o Método na eta­ que êle chama de "codificações aux11inrc11".
pa de pós-alfabetização trouxe uma contribuição da
mais alta importância. Depois de descodificada. a "esscnrlul''. ttll�lll.N1dn 11
Na sua experiência, observou que os camponeses so­ projetada como um supoi't� roforonciul p1irn l,lli cnn•
mente se interessavam pela discussão, quando a codifi­ ciências a ela intencionadas, vai, 11uccsslva1twnLo, pro
cação dizia respeito, diretamente, a aspectos· concretos jetando a seu lado as codificações "uuxiliurna".
de suas necessidades sentidas. Qualquer desvio na codi­ Com estas, que se encontram em relação diroLu com
ficação, como qualquer tentativa do educador de orien­ a "essencial", consegue manter vivo o interêase dos indl•
tar o diálogo, na descodificação, para outros rumos que víduos que, em lugar de "perder-se" nos debates, chegam
não fôssem os de suas necessidades sentidas, provoca­ à síntese dos mesmos.
vam o seu silêncio e o seu indiferentismo.
Por outro lado, observava que, embora a codificação No fundo, o grande achado de Gabriel Bode está
se centrasse nas necessidades sentidas (codificação, con­ em que êle conseguiu propor à cognoscibilidade dos in­
tudo, não "inclusiva", no sentido de José Luís Fiori) os divíduos, através da dialeticidade entre a codificação
camponeses não conseguiam, no processo de sua análise, "essencial" e as "auxiliares", o sentido da totalidade.
fixar-se, ordenadamente, na discussão, "perdendo-se", Os indivíduos imersos na realidade, com a pura sensibi­
não raras vêzes, sem alcançar a síntese. Assim também lidade de suas necessidades, emergem dela e, assim, ga­
não percebiam, ou raramente percebiam, as relações en­ nham a razão das necessidades.
tre suas necessidades sentidas e as razões objetivas mais Desta forma, muito mais ràpidamente , poderão ul­
próximas ou menos próximas das mesmas. trapassar o nível da "consciência real", atingindo o da
Faltava-lhe, diremos nós, a percepção do "inédito "consciência· possível".
viável" mais além das "situações-limites", geradoras de
suas necessidades. Se êste· é o objetivo da educação problematizadora
Não lhes era possível ultrapassar a sua experiência que defendemos, a investigação temática, que a ela mais
existencial focalista, ganhando a consciência da tota­ que serve, porque dela é um momento, a êste objetivo não
lidade. pode fugir também.
Desta forma, resolveu experimentar a projeção si­ Preparadas as codificações, estudados pela equipe
multânea de situações e a maneira como desenvolveu interdisciplinar todos os possíveis ângulos temáticos ne­
seu experimento é que constitui o aporte indiscutivel­ las contidos, iniciam os investigadores a terceira fase da
mente importante que trouxe. investigação.
Inicialmente, projeta a codificação (muito simples Nesta, voltam à área para inaugurar os diálogos
na constituição de seus elementos) de uma situação exis­ descodificadores, nos "círculos de investigação temá­
tencial. A esta codificação chama de "essencial" - tica"*.
aquela que representa o núcleo básico e que, abrindo-se
"' José Luís Fiori, em seu artigQ já citado, retificou com esta
''' Funcioniirio es�cializadü ti.:! llllla da, mais s�ria;; instilui.;õcs designação, adequada à instituição em qUe se processa a ação
governamentais chilenas - Instituto de Desarrollo Agropecua• investigadora da temática significativa, a que antes lhe dáva­
rio (INDAPl - em cuja direção até bem pouco estêve o eco­ mos, realmente menos própria, de '"circulo de cultura", que
nomista, de fot·mação autênticamente humanista Ji\cques podia, ainda, estabelecer confusão com aquela em que se rea­
Cho11chol. liza a etapa que se segue à da investigaçõ.o.

130 131
.Na medida em que operacionalizam êstes círculos*, de si, do mundo e dos outros, que po1,1alveltncnlc ni,o t!x..
com a descodificação do material elaborado na eta­ trojetariam em circunstâ.nc1as dlfllro1llo11,
pa anterior, vão sendo gravadas as discussões que serão,
na que se segue, analisadas pela equipe interdisciplinar. Numa das 1nvest1gaçõl'S rou.11:.iinrlu� 0111 l:iHHl,l1lKO
Nas reuniões de análise dêste material, devem estar pre­ (esta, infelizmente não conclu1d1�) no dllicl!Llr \1m grupo
sentes os auxiiiares de investigação, representantes do de ind1viduos residentes num "cortiço" (convdrltllo) umn
povo, e alguns participantes dos "círculos de investiga­ cena em que apareciam um 11omcm oml)rlu.g1\do, quo
ção". O seu aporte, além de ser um direito que lhes ca­ caminhava pela rua e, em uma esquina, t1·ês Jové1lll quo
be, é indispensável à análise dos especialistas. É que, tão conversavam, os participantes do circulo de investiga­
sujeitos quanto os especialistas, do ato do tratamento ção afirmavam que "aí apenas é produtivo e útil à na­
dêstes dados, serão ainda, e por isto mesmo, retificadores ção o "borracho" que vem voltando para casa, depois do
. e ratificadores da interpretação que fazem êstes dos trabalho, em que ganha pouco, preocupado com a famí­
achados da investigação. lia, a cujas necessidades não pode atender. É o único
Do ponto de vista metodológico, a investigação que, trabalhador.. É um trabalhador decente como nós, que
desde o seu início, se baseia na relação simpática de que também somos "borrachos".
falamos, tem mais esta dimensão fundamental para a o interêsse do investigador, o psiquiatra Patrício
sua segurança - a presença crítica de representantes Lopes, a cujo trabalho fizemos referência no nosso en­
do povo desde seu comêço até sua fase final, a da aná­ saio anterior, era estudar aspectos do alcoolismo. Pro­
lise da, temática encontrada, que se prolonga na organi­ vàvelmente, porém, não haveria conseguido estas res­
zação do conteúdo programático da ação educativa, co- postas se se tivesse dirigido àqueles indivíduos com um
mo ação cultural libertadora. roteiro de pesquisa elaborado por êle mesmo. Talvez,
A estas reuniões de descodificação. nos "círculos de ao serem perguntados diretamente, negassem, até mes­
investigação temática", além do investigador como coor­ mo que tomavam, vez ou outra, o seu trago. Frente, po­
denador auxiliar da descodificação, assistirão mais dois rém, à codificação de uma situação existencial, reconhe­
especialistas - um psicólogo e um sociólogo - cuja ta­ cível por êles e em que se reconheciam, em relação dia­
refa é registrar as reações mais significativas ou aparen­ lógica entre si e com o investigador, disseram o que real­
temente pouco significativas dos sujeitos descodifica­ mente sentiam.
t dores. Há dois aspectos importantes nas declarações dês­
[� No processo da descodificação, cabe ao investigador, tes homens. De um lado, a relação expressa entre ga­
auxiliar desta, não apenas ouvir os indivíduos, mas ·desa­ nhar pouco, sentirem-se explorados, com um "salário
fiá-los cada vez mais, problematizando, de um lado, a que nunca alcança", e se embriagarem. Embriagarem­
situação existencial codificada e, de outro, as próprias se como uma espécie de fuga à realidade, como tentati­
respostas que vão dando aquêles no decorrer do diálogo. va de superação da frustração do seu não atuar. Uma
Desta forma, os participantes do "círculo de inves­ solução, no fundo, autodestrutiva, necrófila. De outro,
tigação temática" vão extrojetando, pela fôrça fatárti­ a necessidade de valorizar o que bebe. Era o "único útil
ca da metodologia, uma série de sentimentos, de opiniões, à nação, porque trabalhava, enquanti os outros o que
faziam era falar mal da vida alheia". E, após a valori­
1:: :�
Em cada "círculo de investigação" rleve haver um máximo de zação do que bebe, a sua identificação com êle, como
vinte pessoas, existindo tantos círculos quantos a soma de seus
participantes atinja a da população da área ou da subárea trabalhadores que também bebem. E trabalhadores de­
em estudo. centes.

132 133

\
Imaginemos, a.gora, o insucesso de um educador do lizadas e estudando as nota.s f1xadnl! pelo p11ic6l0Ru "
tipo que Niebuhr• chama :iP. "moralista", que fôsse pelo sociólogo, observadores do p1·ocos1:10 dc:1rodtrkado1,
fazer prédicas a êsses homens contra o alcoolismo, apre­ vão arrolando os tema1i cxp\1cltm1 ou lmplidt.011 1•m nfll'
sentando-lhes como exemplo de virtude o que, para êles, mações feitas nos "circulos du lnvc:1UBllÇll0 11 •
não é manifestação de virtude.
O único caminho a seguir, neste como em outros :6:stes temas devem .ser clusstrktLdou 11u111 qui1d1•0 l(ll
casos é a conscientização da situação, a ser tentada des­ ral de ciências, sem que Isto ttigntrlqnt•, c<.mt.u<.10 1 tJU•
de a etapa da investigação temática. sejam vistos, na futura elabora�ôo do ptogl'nmu, co:rno
Conscientização, é óbvio, que não pára, estoicamente, fazendo parte de departamentos estnnqucs.
no reconhecimento puro, de caráter subjetivo, da situa­ Significa, apenas, que há uma visão mais especitica,
ção, mas, pelo contrário, que prepara os homens, no central, de um tema, conforme a sua situação num do­
plano da ação, para· a luta contra os obstáeulos à sua minio qualquer das especializações.
humanização.
Em outra experiência, de que participamos, esta, O tema do desenvolvimento, por exemplo, ainda que
com camponeses, observamos que, durante tôda a dis­ situado no domínio da economia, não lhe é exclusivo. Re­
cussão de uma situação de trabalho no campo, a tônica ceberia, assim, o enfoque da sociologia, da antropologia,
do debate era sempre a reivindicação salarial e a ne­ como da psicologia social, interessadas na questão do
cessidade de se unirem, de criarem seu sindicato para câmbio cultural, na mudança de atitudes, nos valôres,
esta reivindicação, não para outra. que interessam, igualmente, a uma filosofia do desenvol­
Discutiram três situarões neste encontro e a tónica vimento.
foi sempre a mesma - reivindicação salarial e sindicato
para atender a esta reivindicação. Receberia o enfoque da ciência política, interessada
Imaginemos, agora, um educador que organizasse o nas decisões que envolvem o problema, o enfoque da edu­
seu programa "educativo" para êstes homens e, em lugar cação, etc.
da discussão desta temática, lhes propusesse a leitura Desta forma, os temas que foram captados dentro
de textos que, certamente, chamaria de "sadios", e nos de uma totalidade, jamais serão tratados esquemàtica­
quais se fala, angelicalmente, de que "a asa é da ave" ... mente. Seria uma lástima se, depois de investigados na
E isto é o que se faz, em têrmos preponderantes, na riqueza de sua interpenetração com outros aspectos da
ação educativa como na política, porque não se leva em realidade, ao serem "tratados", perdessem esta riqueza,
conta que a dialogicidade da educação. começa na inves­ esvaziando-se de sua fôrça, na estreiteza dos especialis­
tigação temática. mos.
A sua última etapa se inicia quando os investigado­
res, terminadas as descodificações nos circulos, dão co­ Feita a delimitação temátiça, caberá a cada espe­
méço ao estudo sistemático e interdisciplinar de seus cialista, dentro de seu campo, apresentar à equipe in­
achados. terdisciplinar o projeto de "redução" de seu tema.
Num primeiro instante, ouvindo gravação por gra­ No processo de "redução" dêste, o •especialista busca
vação, tõdas as que foram feitas das descodificações rea- os seus núcleos fundamentais que, constituindo-se em
• Reinhold Niebuhr, Moral Man and lmmoral Society. Charles unidades de aprendizagem e estabelecendo uma seqüên­
Scribner's Son, N.Y. 1960. cia entre si, dão a visão geral do tema "reduzido".

134 135
Nn. discussão de cada projeto específico. se vão ano­ Feita a "redução"• da temática irtvc-MtiR"n<lu., 11
\.nndo o.s sugestões dos váríos especialistas. Estas, ora etapa que se segue, segundo vhnoa, ó u. do 1n1t1. "cocUrt
!ll' lncoq>orum à "redução" em elaboração, ora. consta-
cação". A da escolha do melhor CU.llL\l du coum11lc•11i;fü1
1•110 tlt)II pequenos ensaios a serem escritos sôbre o tema
para êste ou aquêle tema "reduzido'' o 1:1uu J't1 1we1t1•1ü11
1
'1'l'duzido'', ora uma coisa e outra. ção. Uma "codificação" pode .ser shrtpleN ou <•ott1pm1t 11
No primeiro caso, pode-se usat o ctuml v11:1uul, pldól'l<m
11l11tt•11 pequenos ensaios, a que se juntam sugestões ou gráfico, o táctil ou o canal audiUvo. No 1wgunclo 1 n1ul
hib!lugró.f\cus, são subsidios valiosos para a. formação tiplicidade de canaisº.
dm1 educadores-educandos que trabalharão nos "círculos A escolha do canal visual, pictórico ou gráfico, de­
do cultura". pende não só da matéria a codificar, mas também dos
indivíduos a quem se dirige. Se têm ou não experiência
Neste esfôrço de "redução" da temática significati­ de leitura.
va, a equipe reconhecerá a necessidade de colocar alguns Elaborado o programa, com a temática já reduzida
temas fundamentais que, não obstante, não foram suge­ e codificada, confecciona-se o material di<;lático. Foto­
ridos pelo povo, quando da investigação. grafias, slides, films-stups, cartazes, textos de lei­
A introdução dêstes temas, de necessidade compro­ tura, etc.
vada, corresponde, inclusive, à dialogicidade da educa­ • Se encaramos o prqgrama em sua extensão, observamos que
ção, de que tanto. temos falado. Se a programação edu­ êle é uma totalidade cuja autonomia se encontra nas inter-re- .
cativa é dialógica, isto significa o direito que também lações de suas unidades que são, também, em si, totalidades, ao
mesmo tempo em que são parcialidades da totalidade maior.
têm os educadores-educandos de participar dela, incluin­ Os temas, sendo em si totalidades, também são parcialidades
do temas não sugeridos. A êstes, por sua função, chama­ que, em interação, constituem as unidades temáticas da totali­
mos "temas dobradiça". dade programática.
Na "redução" temática, que é a operação de "cisão·• dos temas
Como tais, ora facilitam a compreensão entre dois enquanto totalidades, se buscam seus núcleos fundamentais, que
temas no conjunto da unidade programática, preenchen­ são as suas parcialidades. Desta forma, "reduzir" um tema é
do um possível vazio entre ambos, ora contêm, em si, as cindi-lo em suas partes para, voltando-se a êle como totalidade,
melhor conhecê-lo.
relações a serem percebidas entre o conteúdo geral da Na "codificação·• se procura re-totalizar o tema cindido, na
programação e a visão do mundo que esteja· tendo o po­ representação de situações existenciais.
vo Dn.1 que um dêstes temas possa encontrar-se no Na ''descodificação", os indivíduos, cindindo a codificação como
"1·011Lo" dt' unidades temáticas. totalidade, apreendem o tema ou os temas nela implicitos ou a
ela referidos. tste processo de "descodificação" que, na sua
n <•tmcelto antropológico de acultu ra é um dêstes
do
dialeticidade, não morre na cisão, que realizam na codüicação
como totalidade temática, se completa na re-totalização de
"t, 111111:i clohn1diça", que prendem concepção geral ama. totalidade cindida, com que não apenas a compreendem mais
11111lldo <tllc o povo esteja tendo ao resto do progr claramente, mas também vão percebendo as· relações com outras
11J11rlr1rt•t•t•, através de sua compreensão, o papel dos ho-­ situações codificadas, tôdas elas representações de situações
111t•11s 110 mundo e com o mundo, como
sêres da trans existenciais.
f pictório
fonnnçno e não da adaptação*. ( Canal vi-uai l gráfico
1.;;;;; -

to antropológico •• CODIFICAÇAO a) Simples 1 Canal táctil


• A prol)ôijlto da importância da análise do concei l Canal auditivo
prática da Liber­
do culturn, ver Paulo Freire - Educação como Práctica de b) Composta f Simultaneidade
dade, Paz e Terra, Rio, 1967. Ou La Educación como \ de canais
ln Libertad, ICIRA, Santiago, Chile, 1969.

137
136
Na confecção dêste material pode a equipe escolhOr capltu10s de livros, começurtdo-i;e por t1•ccho�. Con10 lli.H,
alguns temas, ou aspectos de alguns dêles e, se, quando e entrevistas eravu.dns, aqui iu.rnb601, 1uü1•11 tl«• lold111' ft
onde seja possível, usando gravadores, propô-los a espe� lo1turu. de urliKo ou do cuplL11lo do Hvro IH' fol111 l11 d11
cialistas como assunto para uma entrevista a ser reali­ :!CU UUlOl'. l•Jin aoguidu, se l'C[l 1l1,11r}1\ O llrlud,f\ i:111 \.(\i'ÍIU
zada com um dos membros da equipe. do conLcúdo dn lciLui:u.
Figuremos, entre outros, o tema do desenvolvimen­ Na linha uo cinprôgo u�:-il1•a l'l'Clll'lmH, 111111•1•1• l\lllt lil
to. A equipe procuraria dois ou mais especialistas (eco­ dispensó.vc1 a análise do conL�údo dml uc11Lol'l11ld dli l111 °
nomistas), inclusive de escolas diferentes, e lhes falaria prensa, a propósllo de un-1 mesmo nconlccbiwnlo Pm·
de seu trabalho, convidando-os a dar uma contribuição que razão os jornais se manifestam de fonnu dHcruhLo
que seria a entrevista em linguagem accessível sôbre tais sôbre um mesmo fato? Que o povo então desenvolva o
pontos. Se os especialistas aceitam, faz-se a entrevista seu espírito crítico para que, ao ler jornais_ ou ao ouvir
de 10 a 15 minutos. Pode-se, inclusive, tirar uma foto­ o noticiário das emissoras de rádio, o faça não como me­
grafia do especialista, enquanto fala. No momento em ro paciente, como objeto dos "comunicados" que lhes
que se propusesse ao povo o conteúdo da entrevista, se prescrevem, mas como uma consciência que precisa li­
diria, antes, quem é êle. O que fêz. O que faz. O que es­ bertar-se.
creveu, enquanto se poderia projetar sua fotografia em Preparado todo êste material, a que se juntariam
slides. Se é um professor de Universidade, ao declinar­ pré-livros sôbre tôda esta temática, estará a equipe de
se sua condição de professor universitário, já se poderia educadores apta a devolvê-lo ao povo, sistematizada e
discutir com o povo o que lhe parecem as universidades ampliada. Temática que, sendo dêle, volta agora a êle,
de seu País. Como as vê. O que delas espera. como problemas a serem decifrados, jamais como con­
O grupo estaria sabendo que, após ouvir a entrevis­ teúdos a serem depositados.
ta, seria discutido o seu conteúdo, o qual passaria a fun­
cionar como uma codificação auditiva. O primeiro trabalho dos educadores de base será a
Do debate realizado, faria posteriormente a equipe apresentação do programa geral da campanha a iniciar­
um relatório ao especialista em tôrno de como o povo se. Programa em que o povo se encontrará, de que não
reagiu à sua palavra. Desta maneira, se estariam vin­ se sentirá estranho, pois que dêle saiu.
culando intelectuais, muitas vêzes de boa vontade, mas Fundados na própria dialogicidade da educação, os
não raro, alienados da realidade popular, a esta reali­ educadores explicarão a presença, no programa, dos te­
dade. E se estaria também proporcionando ao povo co­ mas "dobradiça" e de sua significação.
nhecer e criticar o pensamento do intelectual. Como fazer, porém, no caso em que não se possa
Podem ainda alguns dêstes temas ou alguns de seus dispor dos recursos para esta prévia investigação temá­
núcleos ser apresentados através de pequenas dramati­ tica, nos têrmos analisados?
zações, que não contenham nenhuma resposta. O tema
em si, nada mais. Com um mínimo de conhecimento da realidade, po�
Funcionaria a dramatização como codificação, co­ dem os educadores escolher alguns temas básicos que
mo situação problematizadora, a que se seguiria a dis­ funcionariam como "codificações de investigação". Co­
cussão de seu conteúdo. meçariam assim o plano com temas, introdutórios ao
Outro recurso didático, dentro de uma visão pro­ mesmo tempo em que iniciariam a investigação temá­
blematizadora da educação e não "bancária", seria a lei­ tica. para o desdobramento do programa, a partir dês­
tura e a discussão de artigos de revistas, de jornais, de tes 'temas.

138 139
Um dêles, que nos parece, como já dissemos
tema central, indispensável, é o do conc , um central um rico material temático a estudai\ dentro c\011
gico de cultura. Sejam homens camponeses eito antropoló­
ou urba nos, princípios descritos na primeira hipótese de 1nvct1Uf(t1<:1ió
em programa de alfabetização ou de pós- da temática significativa.
o comêço de suas discussões em busc alfabetização,
a de O importante, do ponto de vista. do urn,� 1 cl111�1i1;n11
1

cer, no sentido instrumental do têrmo, é o mais conhe­ libertadora, e não "bancária'', é que, um quu.l<ll"'' t11111
conceito. debate dêste
casos, os homens se sintam sujeitos do 1w11 1wrn1111 1 clhi
Na proporção em que discutem o mundo da cutindo o seu pensar, sua própria. visão do mumlíl, ml,
vão explicitando seu nível de consciê cultura, nifestada impUcita ou expllcitamente, nuM lll\1111 11ugo11•
no qual estão implicitados vários temncia da realidade, tões e nas de seus companheiros.
se a outros aspectos da realidade, que as.
com
Vão referindo­
Porque esta visão da educação parte da convicção
coberta em uma visão crescentemente críteça a ser des­ de que não pode sequer presentear o seu programa, mas
· que envolvem também outros tantos tem ica. Aspectos tem de buscá-lo dialogicamente com o povo, é que se
Com a experiência que hoje temos, as. inscreve como uma introdução à Pedagogia do Oprimido,
mar que, bem discutido o conceito de cultpodemos afir­ de cuja elaboração deve êle participar.
ou em grande parte de suas dim ões, ura, em tôdas
cionar vários aspectos de um proens nos pode propor­
além da captação, que diríamos graqua
ma educativo. Mas,
. temática, na,hipótese agora referida, se indireta de uma
res, depois de alguns dias de relações podem os educado­
os participantes do "círculo de cultura horizontais com
diretamente: ", perguntar-lhes
"Que outros temas ou assuntos podería
além dêste?" mos discutir
Na medida em que forem respondend
de anotar a- resposta, a propõem o, logo depois
blema também. ao grupo com um pro­
Admitamos que um dos
"Gostaria de discutir sôbre o me mbros do grupo diz:
nac
bem, ( ... diria o educador, após regionalismo". "Muito
acrescentaria... ): "Que significa istrar a sugestão e
que pode interessar-nos a discuss nacionalismo? Por
mo?". ão sôbre o nacionalis­
· É provável que, com a problem
ao grupo novos temas surjam. Assimatiz ,
ação da sugestão
na medida em que
todos vão se manifestando vai o educado
zando, uma a uma, as sugestões que nasc r problemati­
Se, por exemplo, numa área em que fun em do grupo.
"Círculos de Cultura", na mesma ciona� 30
denadores" (educadores) procedemnoit e, todos os "coor­
assim, terá a equipe

14t

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