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A ÉTICA DO DISCURSO

Exemplo: Sófocles, Antígona, diálogo entre Hémon e Creonte1

Hémon – Pai, a palavra é o bem que os deuses deram ao homem,


Um dom que dentre todos é o mais grandioso. (...) Palavra – específico do ser humano
O que um outro diz pode ter seu valor. Palavra – bem a ser partilhado no diálogo
Neste posto que estás [governante] não te cabe vigiar
Tudo o que é dito, feito, tudo o que é culpável.
Pois teu olhar terrível ao homem do povo
Faz com que ele cale tudo o que não te agrade (...) Igualdade – condição do diálogo
Não vás morar sozinho com teu pensamento, Necessidade de diálogo para o
Achar que só é justo aquilo que tu dizes. pensamento
Quem pensa que é sozinho o dono da razão
Que não possui rival na palavra e na ideia,
Um dia alguém o abre e só encontra o vazio. Monólogo – vazio das palavras e da vida
Não há vergonha alguma, mesmo para um sábio,
Em sempre aprender mais e não forçar o arco. (...) Consciência da falibilidade
Se há em mim algum juízo, digo que nada supera
O homem que nasce sábio em todas as coisas.
Mas, como raramente as coisas tendem a isso,
É bom também ouvir a discrição dos outros. Finitude humana e dever moral
de participação no diálogo

Antropologia da Ética do discurso: zoon logikon (logos – razão, palavra, discurso):


o ser humano como ser vivo dialógico

Se a razão humana é limitada pela posição (histórica, social) na qual cada um se


encontra, somente a abertura à perspectiva dos outros pelo diálogo é que nos permite
uma aproximação à verdade.
O logos faz a mediação entre a doxa (opinião) e a aletheia (verdade).

1. Doxa (opinião) – o mundo como aparece para mim.


“A doxa (opinião) era a formulação lingüística daquilo que dokei moi, daquilo
que me parece.”2
“A opinião não é fantasia subjetiva e arbitrariedade, e tampouco uma coisa
absoluta e válida para todos. O pressuposto é o de que o mundo se abre de modo
diferente para cada ser humano, de acordo com a posição que ocupa nele.”3

2. Aletheia (verdade) - o mundo como é em si mesmo.

1
Sófocles, Antígona, trad. Lawrence Flores Pereira, 680-723, pp. 62-63.
2
Hannah Arendt, A dignidade da política, p.96.
3
Hannah Arendt, A dignidade da política, p. 97.

1
“Falso é dizer que o ser não é ou que o não-ser é; verdadeiro é dizer que o ser é e
que o não-ser não é.”4
“Está nevando é uma sentença verdadeira se e somente se está nevando.”5
“A verdade é o todo” (Hegel).

Aristóteles
“O bem da razão é a verdade.”6
“Todo ser humano tem qualquer coisa de particular a contribuir à verdade.”7
“É impossível a um ser humano apreender toda a verdade e igualmente
impossível não apreender nenhuma parte dela. De fato, se cada um pode dizer algo a
respeito da realidade, e se, tomada individualmente, essa contribuição pouco ou nada
acrescenta ao conhecimento da verdade, todavia, da união de todas as contribuições
individuais decorre um resultado considerável.”8
“Os seres humanos são por natureza capazes de verdade, e, na maior parte dos
casos, alcançam a verdade.” 9
“Por natureza, as coisas verdadeiras e justas são mais fortes que os seus
contrários.”10

FUNDAMENTOS DO DISCURSO: O FALIBILISMO


Karl Popper

1. Recusa do fundamentalismo: verdade e não certeza


“O falibilismo indica que podemos errar e que a procura de certeza é uma procura
equivocada.
Mas isto não implica que a busca da verdade seja errada.
Pelo contrário, a noção de erro implica a noção de verdade como padrão em
relação ao qual podemos falhar.
Implica que, embora possamos encontrar a verdade, e embora possamos até
encontrá-la, como acredito que fazemos muitíssimas vezes, não podemos ter a certeza
absoluta de tê-la encontrado.” 11
O dever moral básico é “a discussão crítica a serviço da verdade”.12

2. Recusa do relativismo: a verdade existe


“Responder e rechaçar o relativismo é, em minha opinião, algo de suma
importância. A falibilidade humana significa que podemos errar e que não devemos

4
Aristóteles, Metafísica IV, 7, 1011b.
5
Alfred Tarski, A concepção semântica da verdade, p. 23.
6
Aristóteles, Ética a Nicômaco VI, 2, 1138b.
7
Aristóteles, Ética a Eudemo, I, 6, 1216b.
8
Aristóteles, Metafísica II, 1, 993 a 30-b 8.
9
Aristóteles, Retórica I, 1, 1355a.
10
Aristóteles, Retórica, I, 1, 1355a.
11
Popper, A sociedade aberta e seus inimigos II, p. 342.
12
Popper, Después de la sociedad abierta, p. 402. De agora em diante, DSA.

2
confiar no que nos parece certo ou verdadeiro ou moralmente correto, porque pode
acontecer que não seja certo, verdadeiro ou moralmente correto.
Mas isto supõe que existe algo assim como a verdade e que há ações que são
moralmente corretas ou estão muito perto de sê-lo. O falibilismo certamente supõe que
a verdade e a bondade são frequentemente, difíceis de alcançar, e que sempre devemos
estar dispostos a descobrir que cometemos um erro. Por outro lado, o falibilismo
implica que podemos nos aproximar da verdade ou de uma boa sociedade.
Não podemos evitar agir ou tomar partido, posto que inclusive uma inação é uma
ação e equivale a tomar partido. O que isto nos ensina é que nunca devemos deter nossa
busca crítica da verdade, que devemos procurar sempre aprender daqueles que
sustentam uma opinião diferente. Devemos escutar os demais e aprender deles, e
concretamente, de nossos oponentes, se queremos seriamente aproximar-nos da verdade
ou descobrir o melhor tipo de ação a nosso alcance. E precisamente por esta razão,
devemos rechaçar o relativismo.”13

3. Superação da tendência à intolerância


“Existe uma tendência quase universal, talvez uma tendência inata, a desconfiar
da boa fé de uma pessoa que sustenta opiniões que diferem das nossas, se trate de
opiniões religiosas, científicas ou políticas (...). Estas tendências foram durante muito
séculos fonte da intolerância e das perseguições religiosas; e por esta e outras razões,
deveríamos combatê-la energicamente e eliminá-la em nós mesmos. Se atacamos uma
pessoa e não uma opinião e uma teoria, colocamos sem dúvida em perigo a liberdade e
a objetividade de nossa discussão (...). Nunca devemos imputar motivos a quem
sustenta uma teoria errônea. Ao fim e ao cabo, todos nós cometemos erros, graves erros,
sem exceção.”14
“A tolerância (...) é uma condição necessária da possibilidade de que uns e outros
se corrijam mutuamente, e deste modo se aproximem mais da verdade.”15

4. A transcendência da verdade face aos interlocutores


“Discutir as coisas racionalmente (...) significa falar das coisas a fundo, com o
objetivo de averiguar o que há de verdadeiro ou falso; assim como daquilo que está mal
ou está bem; ao mesmo tempo que em que torna irrelevante, na medida em que é
humanamente possível, da questão de quem está equivocado e quem tem razão.”16
“Quando dizemos algo, nosso pensamento se converte em um objeto externo a
nós mesmos; e ao fazê-lo, fica exposto à crítica. Na medida em que é um pensamento
não expressado, é como se fizesse parte de nós mesmos (...). Uma das principais
funções da linguagem, desde o ponto de vista da verdade, é que faz dos pensamentos
objetos possíveis de crítica, ainda que ninguém mais esteja presente.”17

13
DSA, pp. 397-398.
14
DSA, p. 408.
15
DSA, p. 402.
16
DSA, p. 399.
17
DSA, p. 400.

3
“O objetivo (...) é o descobrimento da verdade e não incentivar as paixões ou a
vitória em um debate.”18

O MÉTODO DO DISCURSO: A DIALÉTICA


Sócrates

Preliminares: a dialética socrática


Sócrates, por meio de uma atividade dialogal metodicamente conduzida (dialética
- dialegesthai - discutir algo até o fim com alguém)19, procura estabelecer o que há de
verdadeiro nas opiniões dos seus interlocutores.
Os princípios da dialética explicitam a estrutura metódica/ética do discurso.

a)Verdade
“Dizer a verdade é a excelência do orador.”20
“Ficai sabendo que só vos direi a verdade.”21
“A verdade jamais é refutada.”22
“Eu creio que é necessário que todos nos esforcemos em saber qual é o
verdadeiro e o falso do que estamos falando, pois isto será um bem comum a todos que
estão participando na discussão. Se algum de vocês considerar que eu sustento algo que
não é verdadeiro, deve tomar a palavra e refutar-me. Tampouco eu tenho certeza de que
é verdade o que eu digo, mas investigo juntamente com vocês; por conseguinte, se meu
opositor tenha qualquer coisa de válido a dizer, eu serei o primeiro a concordar com
ele.”23
“Sócrates não sabe mais que os outros, sabe apenas que não há saber absoluto e
que é por isso que estamos abertos à verdade.”24

b)Amizade
“Alguns não querem me dizer a verdade porque não tem interesse por mim, com
tu [Cálias] o tem.”25
“O maior bem que pode haver para um ser humano é, todos os dias, discorrer
sobre a excelência (...), examinando-se a si como aos demais. Uma vida não examinada
não é digna de ser vivida pelo ser humano.”26
“Tentei persuadir a cada um de vós a não cuidar primeiro das coisas da cidade,
mas a cuidar antes da própria cidade, cuidando dos outros como de si próprio.”27

c)Isegoria

18
DSA, p. 401.
19
Hannah Arendt, Dignidade da Política, p. 96
20
Apologia 18a.
21
Apologia 20d.
22
Górgias 473b.
23
Platão, Górgias 506a
24
Merleau-Ponty, Elogio da filosofia, p. 51.
25
Platão, Górgias, 487a.
26
Apologia 38a
27
Apologia 36c.

4
Potencialmente, todos os seres humanos e pontos de vista podem participar do
diálogo.
-Aspásia (Xenofonte, Memoráveis)
-Diotima (Platão, Banquete)
-Artesãos (Platão, Apologia)
-Escravo (Platão, Teeteto)
-As “leis” (Platão, Críton)
“Atenas, o lugar da Grécia onde há maior liberdade para falar (isegoria)”.28
“Se um homem, ao chegar ao Hades (...) melhor será – como aqui fiz – examinar
e questionar os que aí estão (...). Conversar com eles seria uma felicidade inconcebível.
E não há dúvida que lá não se mata ninguém por causa disso.”29

d)Consistência (não-contradição)
“Cálicles, tu não estarás de acordo contigo mesmo, mas estarás em desacordo
contigo mesmo durante toda a tua vida. Entretanto, eu acredito que é melhor que muitos
homens não estejam de acordo comigo e me contradigam do que eu, que sou um, esteja
em desacordo comigo mesmo e me contradiga.”30

A CONDIÇÃO DO DISCURSO : A LIBERDADE DE EXPRESSÃO


John Stuart Mill

1. Liberdade de consciência e expressão


“O indivíduo possui liberdade de consciência no sentido mais amplo da palavra:
liberdade de pensamento e de sentimento, absoluta independência de opinião e
sentimento em todos os assuntos, práticos ou especulativos, científicos, morais ou
teológicos.
Pode parecer que a liberdade de expressar ou publicar opiniões se enquadre em
um princípio diferente, uma vez que pertence à parte da conduta do indivíduo que diz
respeito a outras pessoas.
Mas tendo quase a mesma importância da própria liberdade de pensamento, e
baseando-se em grande parte nas mesmas razões, é praticamente inseparável dela.”31

2. A tendência à conformidade
“Noventa e nove por cento das pessoas educadas, mesmo as que são capazes de
demonstrar com fluência suas opiniões, encontram-se nessa situação de nunca terem
tido contato com a posição mental dos que pensam diferentemente delas, e jamais
consideram o que tais pessoas podem ter a dizer.”32
“Em proporção à falta de confiança em seu próprio julgamento, a pessoa se
baseia, com implícita confiança, no ‘mundo’ em geral. E o ‘mundo’, para cada

28
Platão, Górgias 461e.
29
Apologia 41b-c.
30
Platão, Górgias 482b.
31
Mill, Liberdade, p. 21.
32
Mill, Liberdade, p. 58

5
indivíduo, significa a parte deste com a qual entra em contato: seu partido, sua seita, sua
igreja, sua classe social (...), seu país ou sua época.”33

3. Razões e preferências
“Ninguém, com efeito, admite a si mesmo que seu padrão de julgamento seja seu
próprio gosto. Porém, uma opinião que não esteja apoiada em razões pode ter
importância somente como preferência pessoal; e se as razões, quando apresentadas,
constituírem um mero apelo a preferências semelhantes de outras pessoas, são ainda
somente preferências.”34
“O ser humano que for incapaz de refutar as razões do lado contrário, não possui
fundamentos para preferir sua opinião à outra.”35

4. A intolerância
“A intolerância é tão natural ao homem em tudo quanto de fato lhe interessa, que
na prática possivelmente a liberdade religiosa não se tenha concretizado em lugar
algum, exceto onde a indiferença religiosa, que detesta ver sua paz perturbada por
conflitos teológicos, fez pender a balança a seu favor.”36

5. Liberdade de expressão como bem comum


“Silenciar a expressão da opinião é um roubo à humanidade. Se a opinião é
correta, as pessoas são privadas de trocarem o erro pela verdade; se errada, perde-se a
percepção mais clara da verdade, produzida pelo confronto da verdade com o erro.”37
“Todo silêncio que se impõe à discussão equivale à presunção de
infalibilidade.”38

6. Refutabilidade e aproximação à verdade


“O único modo pelo qual é possível a um ser humano tentar aproximar-se de um
conhecimento completo acerca de um assunto é ouvindo o que podem dizer sobre isso
pessoas de grande variedade de opiniões, e estudando todos os aspectos em que o
podem considerar mentalidades de todo tipo. O hábito constante de corrigir e completar
a própria opinião (...), cotejando-a com a dos outros, constitui o único fundamento
estável para que nela se tenha justa confiança. Pois, quando a pessoa tomou
conhecimento de tudo quanto possa ser dito contra si, e por assumir posição contra
todos os contestadores, sabendo que buscou objeções e dificuldades em vez de evitá-las,
e não impediu que de nenhuma parte se lançasse alguma luz sobre o assunto – tem
direito a pensar que seu juízo é melhor que o de qualquer pessoa ou multidão que não
tenha passado por semelhante processo.”39

33
Mill, Liberdade, p. 30
34
Mill, Liberdade, p. 12
35
Mill, Liberdade, p. 57
36
Mill, Liberdade, p. 15
37
Mill, Liberdade, p. 29
38
Mill, Liberdade, p. 30
39
Mill, Liberdade, p. 34.

6
“As crenças mais aceitas não se firmam em outra garantia senão no permanente
convite ao mundo inteiro para provar que não possuem fundamento. Com isso, teremos
realizado o que de melhor podemos fazer: nada negligenciamos que nos pudesse dar
uma chance de esperar a verdade. Podemos crer, assim, tanto quanto é possível em
nossos dias, a proximidade da verdade. Esta é a única certeza que pode alcançar um ser
falível, e o debate, o único meio de alcançá-la.”40

7. O serviço da verdade
“Revelar ao mundo uma verdade ignorada ou provar que ele se enganou acerca
de algum ponto importante, constitui o mais importante serviço que o ser humano pode
prestar a seus semelhantes.”41
“Constitui imperativo e dever protestar contra a exclusiva pretensão de uma parte
da verdade a se fazer passar pela verdade inteira.”42

8. O modo racional de estar na verdade: a argumentação


“Admitindo que a opinião verdadeira subsista no espírito, mas subsista como
preconceito, como crença independente do argumento e como prova contrária ao
argumento, essa não é a maneira como um ser racional deve professar a verdade. Isso
não é conhecer a verdade. A opinião de uma pessoa só merece o nome de
conhecimento, na medida em que siga o mesmo processo mental que lhe seria exigido
se mantivesse uma ativa controvérsia com seus adversários.”43
“A disciplina [do debate entre posições opostas] é tão essencial para a real
compreensão dos assuntos morais e humanos que, se não existissem oponentes a todas
as verdades importantes, seria indispensável imaginá-los, e provê-los dos mais fortes
argumentos.”44

BIBLIOGRAFIA

ARENDT, Hannah. A dignidade da política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993.


ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco (trad. Julián Marías). Madri: Centro de estudios
constitucionales, 1999
______________. Ética a Eudemo (trad. J. A. Amaral e Artur Morão). Lisboa: Tribuna,
2005.
______________. Política. Lisboa: Vega, 1998.
______________. Retórica (Trad. Antonio Tovar). Madri: Centro de estudios
constitucionales, 1990.
______________. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2002. (Vols. 1 e 2)
MILL, John Stuart. Liberdade/Utilitarismo. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

40
Mill, Liberdade, p. 35
41
Liberdade, p. 44.
42
Liberdade, p. 79.
43
Liberdade, p 55; p. 70.
44
Liberdade, p. 59

7
SÓFOCLES. Antígona. (Trad. Lawrence Flores Pereira). Rio de Janeiro: Topbooks,
2006.
TARSKI, Alfred. A concepção semântica da verdade. São Paulo: Unesp, 2007.
POPPER, Karl. Después de la sociedad abierta. Escritos sociales y políticos.
Barcelona: Paidós, 2010.
_____________. A sociedade aberta e seus inimigos. Lisboa: Edições 70, 2012.
PLATÃO. Êutifron, Apologia de Sócrates, Críton. Lisboa: Imprensa Nacional, 1993.

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