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Capítulo 1 1

Razões e verdade
Não se deve procurar indiferentemente o
mesmo rigor em todas as discussões.
(Aristóteles, Ética a Nicômaco)
A gente navega na vida servido por faróis
estrábicos. (Guimarães Rosa)

INTRODUÇÃO
No início da Metafísica, obra atribuída ao filósofo grego clássico Aristóteles (384
- 322 A. C.), a justo título considerado o criador da Lógica como disciplina teórica, é dito
que os homens desejam naturalmente conhecer. Considerada de maneira desarmada, essa
observação parece ser a mera constatação de um traço ostensivo da conduta dos seres
humanos, que se manifesta já nas crianças.
Com efeito, ninguém confessadamente quer labutar no falso; intencionalmente
todos pretendem dar adesão apenas ao que é verdadeiro e recusar tudo que seja falso. Já
porque, como observara Descartes, “[...] há, entretanto, grande diferença entre as
resoluções que procedem de alguma falsa opinião e as que se apoiam tão somente no
conhecimento da verdade, visto que se seguirmos as últimas, estamos certos de não ter
jamais do que lamentar, nem arrepender, ao passo que o teremos sempre, se seguirmos as
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primeiras, quando lhes descobrirmos o erro. ” (§49) .
Ademais, os homens não se limitam a refugar o que é falso (ou o que tomam por
falso) e a desejar singelamente o que é verdadeiro (ou o que tomam por verdadeiro);
querem também a certeza, assegurarem-se de que o tido por verdadeiro é mesmo
verdadeiro, e aquilo que recusam, porque tido como falso, é falso. Todos queremos nos

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Versão preliminar, de circulação restrita. Favor não citar sem permissão. José Alexandre Durry Guerzoni
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O leitor deve atentar para o fato de que a citação de passagens de textos que soem ou soeram ser chamados
de filosóficos ao longo do presente texto (que não pretende ser um texto filosófico, mas uma mera prosa
motivadora dos estudos lógicos) não tem por fim subscrever as teses enunciadas neles, mas apenas o de
ilustrar desejos humanos. Já porque não é implausível crer que a questão da verdade ou falsidade não se
põe propriamente para as aparentes proposições constantes dos textos que soem ou soeram ser chamados
filosóficos e, sob esse aspecto, eles são semelhantes aos textos literários ou, antes aos textos míticos (visto
que os autores desses, ao contrário dos autores de obras de ficção, tinham a pretensão de ciência das
presuntivas realidades aludidas nos textos). Por exemplo não tem sentido próprio perguntar se Capitu traiu
Bentinho (equivalentemente, se é verdade que Capitu traiu Bentinho); o que tem sentido, isso sim, é
perguntar se o personagem Capitu da obra Dom Casmurro é caracterizado implícita ou explicitamente na
referida obra como tendo tal predicamento (o de ter traído Bentinho). O fato dessa compreensão dos textos
que soem ou soeram ser chamados filosóficos ser contrária às intenções explicitas dos autores dessas obras
(que imputavam verdade a suas afirmações) em nada a prejudica; tampouco considerar os textos que soem
ou soeram ser chamados filosóficos como desprovidos de valor de verdade literal tira todo e qualquer
interesse em estudar tais textos, que constituem uma parte significativa do cabedal cultural da talvez extinta
Civilização Cristã Ocidental. O caso aqui é inteiramente análogo ao dos textos tidos como míticos; ao
arrepio das intenções dos autores desses textos (indivíduos ou coletividades) e de seus primeiros “leitores”,
o etnólogo não os considera como descrevendo realidades (agentes, eventos e fatos reais); nem por isso
deixa de encontrar muito interesse no estudo (certamente não para encontrar, no espaço físico, Valhala,
nem para cortejar Lorelei ou seduzir um Tritão).

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certificar de estarmos dando adesão apenas ao que é verdadeiro e de estarmos recusando
apenas o que é falso. Muitos espontaneamente sentem que a dúvida é perigosa para todos
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e não apenas para as almas fracas . Filósofos como Descartes criam até ser possível banir
a dúvida do horizonte intelectual, pelo menos em certos contextos. De fato, todos
procuramos fugir, as vezes até mesmo sem nos darmos conta propriamente, da mormente
temida dúvida. Procuramos, pois, não apenas nos assenhorear da verdade, mas também
e, talvez, principalmente, estar na posse da certeza. As noções de verdade e certeza até
mesmo se mesclam em seus usos correntes e costuma-se dizer, indistintamente, que algo
é verdadeiro ou que é certo.
Mais ainda, os seres humanos não costumam se contentar com a mera posse, ainda
que tida por certa e segura, do que têm por verdadeiro, querem também o reconhecimento,
por parte dos outros, de suas posses cognitivas. Em outra obra, também atribuída a
Aristóteles, denominada Retórica, é observado que todos os homens procuram, em certa
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medida, debater e sustentar suas posições, defender-se e atacar os outros . Certamente, o
debate pode ser ocasião para dirimir dúvidas e a aceitação por muitos pode ser um
razoável crivo da verdade, ainda que não dirimente. No entanto, não é raro que, na defesa
de suas posições e no ataque às alheias, o ser humano lembre antes aquele amante que,
incerto dos ditames do coração amado ou de seu próprio, necessita proclamar aos sete
ventos que ama e é amado.
Todos já assistiram, e possivelmente inúmeras vezes, o espetáculo oferecido por
fiéis de algum credo que ocupam o espaço público em procissão, com fortes apelos
sensoriais (estandartes, imagens, bandeiras, saudações, etc.) e impõem a todos, crentes e
não crentes, a manifestação de suas convicções. Muitas vezes não reivindicam algo de
propriamente objetivo, pretendem simplesmente sensibilizar todos para a causa que
professam, seja ela a dos católicos, protestantes, sindicalistas, militantes de partidos
políticos da direita ou da esquerda, homossexuais, feministas e que tais.
Não disputemos aqui a legitimidade desse uso do espaço público; fiquemos apenas
com a observação que, ao procederem assim, chamando a atenção de todos para suas
convicções peculiares, não estão apenas exercendo o direito de livre escolha e expressão
de credos, mas reclamando senão a adesão, pelo menos a confirmação pública de seus
próprios credos e opções existenciais ou, na metáfora de Kierkegaard, se faze de guardas
noturnos, encarregados de darem o alarme. Um exemplo que confirma a tese de que os
seres humanos gostariam de dispor da aprovação de todos, mesmo no tocante às suas
convicções e procuram destarte cooptarem-se mutuamente para que todos tomem como
verdadeiras as mesmas coisas.
Elenquemos os elementos que foram destacados naquilo que se pode chamar de
desejos cognitivos humanos. Em primeiro lugar, os homens proclamam ansiar a verdade
e rechaçar a falsidade, e assim, pelo menos intencionalmente, pretendem dar adesão
apenas ao que é verdadeiro e rejeitar o que que é falso (ainda que frequentemente, e talvez
não por mero acaso, o que é tido por verdadeiro seja suas próprias convicções e o que é

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Em uma de suas belas obras, Temor e Tremor, Kierkegaard observa
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Na trad. inglesa, organizada por Ross,
"Rhetoric is the counterpart of Dialectic. Both alike are concerned with such things as come
more or less, within the general ken of all men and belong to no definite science. Accordingly,
all men make use, more or less, of both: for to a certain extent all men attempt to discuss
statements and to maintain them, to defend themselves and to attack others. Ordinary people
do this either at random or through practice and from acquired habit. (Arist. Rhetoric, 1354a)

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tido por falso, as dos outros, quando discordantes das suas próprias). Em segundo lugar,
os homens anseiam pela segurança das crenças, confortam-se na certeza e temem a
dúvida. E, por último, mas não menos importante, os seres humanos desejam que suas
convicções sejam compartilhadas. Podemos resumir numa fórmula única, algo
metafórica, esses três elementos: os homens desejam a posse certificada e reconhecida
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(portanto compartilhada) da verdade . As posses cognitivas certamente não se furtam ao
jogo da emulação; não raramente um intelectual exibe o último livro lido como um
burguês esnoba o último modelo de carro de luxo que adquirira.
Talvez seja possível mostrar que esses três objetos de desejo – a posse, a posse
certificada e a posse compartilhada (eventualmente exigível) da verdade – estão
imbricados já no desejo de conhecer, assinalado no início da Metafísica. Talvez também
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seja possível mostrar que o segundo é principal em relação ao primeiro , isto é, que nosso
temor da dúvida supere largamente nosso suposto amor à verdade. Também não se pode
descartar ad limine a subordinação dos dois primeiros ao terceiro (a busca da verdade e
da certeza esteja subordinado inteiramente ao desejo de confirmação) e que se veja nesse
último desejo, de confirmação, como um meio de realizar um outro desejo de animais
racionais gregários, o de integração. Esses pontos bem como aqueles das causas, motivos
e razões desses desejos revestem-se certamente de grande interesse. Ademais, a todos e a
cada um se impõe a tarefa de decidir conveniência ou de não, eventualmente levanto em
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conta as circunstâncias, de subscrevê-los . Mas mais certa é a complexidade do tema;
razão pela qual queremos nos eximir dessas monumentais tarefas. A compreensão dos
anseios de cada um e de todos pela verdade, pela certeza e pelo reconhecimento talvez
nunca seja plenamente alcançada mesmo que recorramos a contribuições oriundas de
diferentes províncias intelectuais (seja de presuntivas ciências como a biologia, a
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sociologia, a antropologia, a psicologia e a psicanálise, a teologia e a cristologia , seja de
artes discursivas como a literatura e a dramaturgia).

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A assim chamada caracterização clássica do conhecimento como crença verdadeira justificada, originada
de um texto platônico, claramente acarreta a presença dos dois primeiros elementos. Se não em todos, pelos
menos em muitas situações, aquele que alega conhecer não faria tal alegação se ele considerasse falsa a
proposição que descreve o presuntivo conhecimento ou se ele não tivesse certeza dessa verdade. Mas
também, parece razoável que aquele que alega conhecer algo pretende que a verdade disso poderia (e
deveria) ser reconhecida por todos nas circunstâncias adequadas. Registro aqui esse ponto, juntamente com
a sugestão de que se investigue as relações entre o desejo de conhecer e a busca do consenso.
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A principalidade é sugerida por aquelas situações, possivelmente já assistidas por todos e vivenciadas por
muitos, em que o agente se cega ao evidente e às provas para não renunciar à certeza.
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Lembremos que, ao contrário de um Aristóteles (que nesse ponto talvez represente a própria cultura
grega), não cremos mais que seja correto derivar imediata e simplesmente a legitimidade de uma empresa
da observação que sua realização é um desejo “natural” dos seres humanos. Pois, não apenas o conceito de
“natural” quando aplicado aos seres humanos sofreu grandes abalos advindos das especulações das assim
chamadas ciências humanas (sociologia, antropologia, psicanálise, entre outras), como desde pelo menos
os primeiros leitores do Gênesis até os atuais leitores de Freud inseriu-se em nosso horizonte intelectual a
ideia de um desejo se apresentar como “natural” (em algum sentido da palavra) e ainda assim não ser
estimado (ser tido por disparatado e, por conseguinte, ter-se por certo a inconveniência de lhe dar adesão).
Não vamos discutir esse ponto aqui, basta ter assinalado.
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Possivelmente o leitor estranhe tal enfileiramento de províncias e que todas sejam igualmente chamadas
de ciência, ele que talvez nunca antes se deparara com um uso tão lato, talvez promíscuo, do termo ciência.
Certamente isso fere hábitos linguísticos e disciplinas intelectuais atualmente em voga. Todavia, mesmo
inusitado, é respaldado por usos e costumes que dominaram séculos passados. A que hábitos devemos dar
nossa adesão? Por quais razões?

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Para os limitados propósitos do presente texto, basta reconhecer na posse, posse
certificada e posse compartilhada da verdade desejos humanos. E podemos agora nos
perguntar, sem pretender subscrever tais desejos, mas apenas a título de mero exercício
conceitual, como seria possível realizar tais desejos. Quais seriam os métodos a serem
seguidos para ter sucesso em empreendimentos tão ansiados? Como assenhorear-se de
verdades e evitar falsidades? Como repousar na certeza? Como obter o reconhecimento
de todos (o consenso)? Enfim, como distinguir, em foro íntimo e em foro público, os
casos particulares de verdade e de falsidade e assim excluir a temida dúvida? Os possíveis
objetos do assentimento não trazem em si mesmos, pelo menos não de maneira manifesta,
marcas de sua verdade ou falsidade; pelo contrário, todos se apresentam conspicuamente
como verdadeiros e reclamando a adesão. Ainda que talvez se possa dizer que uma
alucinação visual não é propriamente um caso de visão, uma proposição falsa é
legitimamente uma proposição (do contrário, não seria possível dizer a verdade negando
a proposição falsa).
É razoável crer que todos nós gostaríamos, consciente ou inconscientemente, de
poder sempre proclamar: hoc volo, sic iubeo, sit pro ratione voluntas (quero isso, assim
ordeno, e que minha vontade sirva de razão). Dizer, como o faz o matemático em suas
definições, se dermos crédito a uma reflexão kantiana: sic volio, sic jubeo (assim quero,
assim ordeno). Mas sabemos todos que são poucas as situações em que se pode proceder
arbitrariamente, a maneira que procedemos ao fazermos o nosso pedido num restaurante.
Não apenas a vontade humana é insuficiente para conferir verdade a uma proposição, mas
muitas são as situações em que a mera vontade (ou desejo) de crer não basta para persuadir
razoavelmente nem mesmo aquele que quer crer e a fortiori os demais. Nesses contextos,
a argumentação (ou seja, a oferta e o exame de razões que confirmariam ou infirmariam
a posição em causa) pode ser um instrumento de grande valia para se obter a certeza e o
reconhecimento.

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RAZÕES
Com efeito, o exame de eventuais razões para acatar ou rechaçar uma dada posição
é muito apreciado em nossa cultura secular como o procedimento precípuo nas tentativas
de assenhorear-se. assegurar-se do que é verdadeiro e de compartilhar sua presuntiva
posse, ou seja, nas tentativas de realizar desejos de assentir, de assegurar-se e de cooptar.
Nessa demanda pelo assentimento, pela convicção e pelo convencimento – i.e. por
assegurar a si mesmo ou a outros a posse de presumidas verdades –os homens
frequentemente recorrem a oferta e ao exame de razões de crer (ratio assentiendi); ou
seja, à argumentação em sentido amplo. Essa prática permeia muitas atividades humanas,
não apenas aquelas explicitamente dedicadas à inquirição da verdade (a ciência, lato
senso), mas também aquelas da vida prática, inclusive atividades corriqueiras, do dia-a-
dia; em certa medida, identifica-se ao próprio exercício da racionalidade. Mas o que
significa dar razões?
A noção de razões é extremamente ampla e complexa, fez fortuna na literatura
filosófica tomando parte em famosas expressões (latinas, como mandava a moda
acadêmica até o século dezenove), entre as quais se destacam ratio cognoscendi e ratio
essendi, e num outrora reputado princípio lógico-ontológico, o princípio da razão
suficiente. Dada a importância dessa noção e de suas aparentadas (explicações – respostas
para questões de por que – e de condições), convém tecer alguns comentários sobre elas.
Somos facilmente tentados a aproximar a noção de razão da noção de condição.
Atualmente é comum distinguir condição necessária (antigamente denominada pela
fórmula latina conditio sine qua non) e condição suficientes. Uma condição necessária,
como indica a denominação latina, é aquela que, se não estiver satisfeita (realizada),
aquilo que é por ela condicionada também não se realiza; por outro lado, uma condição
suficiente é aquela cuja satisfação basta para a realização daquilo que ela condiciona.
Vemos, assim, que uma condição necessária pode não ser suficiente e vice-versa, uma
condição suficiente pode não ser necessária. Por exemplo, a presença de água é uma
condição necessária para a existência de vida (tal como a conhecemos), mas não é uma
condição suficiente. Tirar a nota máxima em todas as avaliações é uma condição
suficiente para um aluno ser aprovado, mas não é uma condição necessária (pois pode ser
aprovado com notas medianas).
Há uma íntima conexão entre essas duas noções de condições e um dos principais
usos de proposições condicionais, ou seja, de proposições da forma “se…, então…”.
Proposições dessa forma podem ser empregadas exatamente para expressar que aquilo
que é dito imediatamente após a partícula “se” (chamado usualmente de o antecedente do
condicional) é uma condição suficiente do que segue a partícula “então” (usualmente
chamado de consequente do condicional). Por outro lado, o consequente do condicional
é dito uma condição necessária do antecedente.
Um bom exercício para fixar essa relação entre condição suficiente e necessária é
uma aposta conhecida como a aposta das quatro cartas de baralho. Suponhamos quatro
cartas de um baralho especial, tal que, cada uma das cartas apresenta em uma de suas
faces uma letra do alfabeto e na outra, um numeral. E são apresentadas quatro cartas, com
a seguinte distribuição de figuras: a primeira mostra a face literal e nela tem estampado a
letra “a”; a segunda, um numeral, a saber, “3”; a terceira, a letra “b”; e finalmente, a quarta
o numeral “2”. A asserção a ser verificada ou falsificada é seguinte:
Se no verso de uma carta ocorre uma vogal, no anverso ocorre um algarismo que
designa um número par.

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A questão interessante é quais cartas devem ser viradas para determinar (confirmar ou
refutar a asserção em pauta). Para animar um pouco, digamos que haja um prêmio de
quatro mil patacas para quem fizer isso; no entanto, como tudo tem seu custo, é necessário
pagar mil e quinhentas patacas por cada carta que for virada. Quem aceita o desafio?
Ainda que baste, em muitos contextos, distinguir condições suficientes e
condições necessárias, as explicações em geral (e, por conseguinte a noção de razão como
aquilo que pode servir de resposta a questões do tipo “por quê? ”) não se prestam ao leito
de Procusto dessa distinção. Uma explicação pode não ser a expressão nem de uma
condição suficiente, nem de uma necessária; por exemplo, quando alguém afirma que foi
ao cinema porque lhe deu vontade de assistir a um bom filme, ele não está se
comprometendo em tomar a vontade de assistir um bom filme ou como condição
suficiente ou como condição necessária do ir ao cinema. Talvez seja correto observar que,
no uso ordinário, tais condições explicativas participam (juntamente com outras asserções
nunca inteiramente esclarecidas e tornadas explícitas) tanto da determinação das
condições necessárias, quanto das suficientes; de sorte que a explicação cabal, meramente
ideal, seria aquela que fornece as condições tanto necessárias, quanto suficientes. De
qualquer modo, é notória a vagueza da noção de explicação e, como razão significa algo
que pode servir de explicação, a mesma sorte de vagueza e indeterminação da
compreensão ordinária de explicação se faz presente na noção corrente de razão.
Mesmo que nos limitemos ao caso particular que nos interessa agora – razões para
ter algo por verdadeiro, razões do assentimento (ratio assentiendi, numa formula démodé,
reasons for belief, na fórmula up to date) –, a noção de razão não se presta a fácil
delimitação e esclarecimento.
Certamente gostaríamos de dispor de uma caracterização de ratio assentiendi que
nos permitisse reconhecer, em qualquer circunstância, o que valeria como fundamento
adequado, na circunstância, para assentir (para crer naquilo que estivesse em causa).
Todavia, o variegado de circunstâncias que reclamam a deliberação sobre o assentimento,
a diversidade das matérias do assentimento, as naturezas dispares e de diferentes
gravidades das consequências de decisões de assentir ou não, tudo são razões para a
renúncia desse desejo, porque sugerem a vanidade de qualquer empresa que busque
responder, de maneira cabal e perspícua, a questão “O que é ratio assentiendi?”.
A renúncia à perspicuidade plena, porém, não obriga a completa cegueira.
Aditemos, então, alguns esclarecimentos acerca da noção de ratio assentiendi. Não
procuremos determinar um traço (ou um conjunto de traços) comum a tudo aquilo que
pode, como razoabilidade, ser dito razão de assentimento (ou ser dito verdadeiro,
respectivamente), nem mesmo procuraremos determinar um traço (ou conjunto de traços)
próprio das coisas que podem ser ditas razões de assentimento. Pois, as razões assinaladas
antes sugerem que apenas características triviais (ou seja, pouco informativas) poderiam
ser indicadas nesse contexto.
Peter Geach em sua pequena, porém instigante obra Reason and Argument,
lembra uma distinção aparentemente fundamental entre motivos, causas e razões do
assentimento (da crença). Por razões da crença esse autor entende “razões estáveis de cuja
verdade decorre, com certeza ou provavelmente, que a crença é verdadeira” (p. 3). Como
motivos de crença, Geach cita crenças, contrárias às provas disponíveis, de enamorados,
crenças que seus corações acalentam porque se tidas por falsas, acarretariam a
infelicidade. Por fim, como exemplo de causas de crenças, nosso autor lembra a crença
que alguém pode ter de que cachorros pretos são particularmente perigosos, crença
oriunda de um temor, já esquecido, sentido na infância (op. cit. pp. 3-4).

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Geach não é ingênuo ao ponto de ignorar os processos de racionalização, aqueles
pelos quais crenças seriam esposadas por causas ou motivos, mormente sentimentos ou
vivências, mas que são convertidas, na maioria das vezes sem plena consciência, naquilo
que Geach chama de razões. De fato, reconhecer os processos de racionalização antes que
prejudicar a pretensão de distinguir, justifica-a, pois pressupõe as distinções que Geach
pretende estar vendo. Se não houvesse nenhuma distinção entre as coisas que Geach cifra
pelas expressões causa do crer, motivo do crer e razão de crer, não teria sentido falar em
conversão de causas ou motivos em razões.
Certamente há coisas a serem distinguidas aqui. Todavia procurar distingui-las
recorrendo à complexa e disputada distinção entre causas, motivos e razões, além de
desnecessariamente custoso, é indevido e desencaminhador. Observemos inicialmente
que há um sentido de razão – aquele em que razão é o que pode servir de explicação e,
por conseguinte, servir de resposta para perguntas do tipo “por quê?” – em que todas as
coisas distinguidas por Geach podem ser ditas razões, sejam aquelas coisas que Geach
denomina motivos, seja aquelas que ele denomina causas, seja ainda as denominadas
razões. Qualquer uma dessas coisas pode servir de explicação do assentimento, pode ser
oferecida como resposta para a questão de porquê assentir (no presente, no passado ou no
futuro). Mas como parecem servir a tal fim de maneiras distintas, justifica-se a pretensão
em introduzir distinções nesse domínio.
Em verdade, esses três gêneros de explicação do crer parecem se dirigir a
diferentes aspectos do complexo que é o ato de crer (dar o assentimento). Aqueles que
Geach denomina de motivos do assentimento dizem respeito aos desejos e quereres,
aqueles denominados de causas do assentimento parecem dizer respeito aos atos, eles
próprios, de assentir e, finalmente, aquelas denominadas razões do assentimento
concernem ao conteúdo do assentimento, mais precisamente, à verdade ou falsidade
daquilo em que se crê (o crido). Assim, aparentemente, a discriminação das três coisas,
motivos do crer, causas do crer e razões de crer, enfatizada por Geach, poderia ser feita
sem recorrer às eventuais, e disputadas diferenças entre motivo, causa e razão, dizendo
simplesmente: os ditos motivos do crer são aquelas razões pelas quais se quer ou se
deseja assentir, as ditas causas do crer aquelas coisas que conduzem, sem envolver
nenhuma sorte de deliberação, ao exercício do ato de assentimento e, por fim, as ditas
razões do crer são aquelas das quais decorreria a verdade daquilo a que se assente. Nessa
explicação, as eventuais diferenças de significado entre os termos “motivo”, “causa” e
“razão”, objeto de acirradas disputas conceituais que povoam a literatura filosófica,
podem ser dispensadas de qualquer função discriminatória, visto que a diferença entre as
coisas já é determinada pelos incidentes (o querer, o próprio ato, ou a verdade do conteúdo
do ato). Dizendo de outro modo, poderíamos talvez diferenciar as coisas que Geach
chama de motivos, causas e razões do assentir sem recorrer à polêmica distinção geral
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entre motivos, causas e razões do agir em geral . Poderíamos ficar apenas com a noção

9
A importância dessa distinção, negada por muitos, para a compreensão da ação humana reside,
fundamentalmente, no fato de que segundo uma certa compreensão da liberdade as razões de agir,
presuntivamente não manteriam nenhuma sorte de vínculo determinista (seja ele causal, seja motivacional)
com a ação, de sorte a serem compatíveis com a ação livre, mais precisamente, ações putativamente livres
seriam exatamente aquelas executadas por razões. Sem pretender alongar-se no tema, salientemos apenas
que a distinção geral entre motivos, causas e razões da ação não diz respeito propriamente às coisas
(eventualmente ações) que podem estar na base de uma ação, mas a sorte de relações que essas coisas
podem ter com a ação. A remissão às mesmas coisas (sejam elas de ordem física, neurofisiológica,
emocional, social lógico-intelectual, teológica, etc.) pode funcionar, dependendo do contexto, como razões,
ou como causas ou, ainda, como motivos de uma ação (em particular, do assentimento), conforme a relação

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geral de razão (como o que pode servir de explicação), distinguindo então as razões do
querer (desejar) crer, as razões do exercício do ato e as razões do conteúdo do ato (da
verdade do crido). Essa maneira de tratar eventuais diferenças permite, embora não
implique, a consideração de que desejos (de crer), causas (de crer) e fundamentos (do
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crido) estejam presentes e se mesclem entre si em todos os atos de assentimento.
A maneira como Geach introduz a diferença entre as três coisas não apenas
compromete-se, aparentemente sem necessidade, com pontos doutrinais disputados,
como é, indiscutivelmente, desencaminhadora, ao erroneamente sugerir que a distinção
relevante aqui é tão somente um caso particular de uma distinção mais geral, afeita a toda
e qualquer ação (quando se considera o assentir como um tipo de ação). Em primeiro
lugar, a maneira como Geach pretende distinguir (como se fossem diferentes modos de
exercer o ato de crer) obscurece o fato de que crer, como qualquer ato humano, quaisquer
que sejam as razões que legitimariam seu exercício, tem suas motivações,
condicionamentos e envolve atos apetitivos (desejo, vontade, quereres). Ademais, a
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peculiaridade dos atos de crer (como atos mentais, imanentes ) permite pôr em dúvida a
possibilidade de distinguir o exercício desse ato do desejo (do querer ou da vontade) e,
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portanto, a pertinácia em distinguir motivos e causas no tocante a atos de crença . Pior
que isso, a maneira como Geach introduz a distinção contrabandeia sob a forma de uma
mera distinção nos termos (na denominação), uma tese substantiva, uma peculiar resposta
a uma questão disputável. Um contrabando que talvez passe despercebido entre os
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aficionados pela literatura filosófica, em sua maioria aletomaníacos (obcecados pela
verdade), mas que não deixa de ser um contrabando.
Aquilo que Geach denomina de razões de crer poderia mais propriamente ser
chamado de razões de verdade do crido: aquilo do qual decorre a verdade do crido (ou
seja, seus fundamentos de verdade). Assim, se o uso do termo razão é limitado ao que
confere legitimidade (correção) a um ato (o que Geach está supondo), então chamar as

que estabelecem com a ação em pauta. Por exemplo, muitos creem que a melhor razão que se pode oferecer
para unir seu destino ao de outrem é o amor; nesse caso, um sentimento serve de razão, e, por outro lado,
as posses de alguém pode ser um bom motivo (e, até mesmo, um motivo dito racional) para querer casar
com alguém, mas poucos reconhecem nisso uma boa razão. Consequentemente, para os “românticos”,
como soem ser chamados os crentes no amor conjugal, casar-se por outra razão que não o amor seria
irracional. A reflexão sobre isso deve levar o leitor a ver com alguma suspeita o hábito, arraigado na cultura
moderna, de opor a razão aos sentimentos (aos apetites), hábito que se manifesta na tendência a considerar
contraditórias (oximoros) as expressões “amor intelectual” e, em especial, “amor racional”; expressões para
os quais outrora era emprestado pleno sentido e que permitia, por exemplo, pensar um ser como puro
intelecto e, ainda assim, pensa-lo como amoroso.
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E talvez seja exatamente isso que, ainda de contrabando, Peter Geach queira evitar que eventualmente se
perceba, na sua cegueira missionária.
11
Uma certa tradição escolástica, na qual se inclui o importante teólogo medieval São Tomás de Aquino,
distinguia dois gêneros de atos, transitivos e imanentes; conforme o termo da ação estivesse em outro ser,
diferente do agente (ações transitivas) ou no próprio agente (ações imanentes). Atos volitivos, desiderativos,
cognitivos forneciam exemplos típicos de ações imanentes. (Veja-se, por exemplo, o breve vocabulário da
Suma Teológica de Marie-Joseph Nicolas reproduzido na tradução brasileira da Suma, coordenada por
Carlos-Josaphat Pinto de Oliveira, OP e editação pela Loyola ({Citation})
12
Os exemplos aduzidos de uma e outra espécie de coisas sugerem, antes, uma distinção entre diferentes
atos apetitivos (de inclinar ou de refugar, de amor ou de temor, etc.). Distinguir tais coisas é comprometer-
se com uma tese substantiva sobre a possibilidade de atos de crença ou não queridos ou mesmo contrários
ao querer. Não é difícil perceber que decidir se de fato há não uma distinção a ser feita aqui depende de
uma espinhosa empresa intelectual: a consideração dos atos mentais e de suas naturezas.
13
Embora a mitomania, a mania de mentir, seja um transtorno mental muito estudado, o seu oposto, a
aletomania, mania pela verdade, é praticamente ignorada nos tratados de psicopatologia.

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razões de verdade do crido de razões de crer (o que Geach explicitamente faz) é considerar
que apenas a posse de razões de verdade do crido poderia justificar o assentimento,
conferir propriedade (legitimidade, correção ou racionalidade) ao exercício do crer.
Ainda que pareça obvio que os únicos fundamentos razoáveis do crer sejam
aqueles que são fundamentos da verdade do crido, essa é um ponto doutrinário
substantivo que não pode ser embutido e, assim, contrabandeado numa mera questão de
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distinção e terminologia . Não convém proceder assim particularmente quando se trata
de uma questão dificultosa e tormentosa como a de justificar o assentimento (a crença) –
sobre o que conferiria propriedade (legitimidade, correção, racionalidade) ao exercício do
ato de crer (e serviria assim de justificativa racional para o seu exercício).
Independentemente de nossa atitude face a tomar a posse de razões da verdade do
crido como único fundamento que pode conferir legitimidade ao assentimento, devemos
reconhecer que, ad limine (ou seja, antes de uma avaliação cuidadosa do mérito), o que
podemos fazer aqui é, por um lado, distinguir a noção de razões de verdade do crido das
noções de motivos e/ou causas da crença e, por outro, chamar atenção para a questão dos
critérios de legitimidade da crença. Deixando assim aberta a possibilidade de que, na
análise substantiva do ponto, sejamos obrigados a reconhecer que seria possível, própria
e legitimamente, conceder o assentimento a algo por outras razões que não aquelas que
seriam as melhores razões para a verdade daquilo que reclama o assentimento. Para
motivar a dúvida sobre a resposta de Geach a questão dos critérios de legitimidade do
assentimento, que o leitor reflita sobre as melhores razões para dar o assentimento à
crença na identidade de nossos pais; o teste de paternidade não parece ser a melhor razão
para darmos adesão que consta em nossas certidões de nascimento. Assim como um
erudito e bem arrazoado discurso sobre a finitude humano não parece ser a melhor atitude
a ser tomada se pretendemos consolar e levar alguém a se conformar com a perda de um
ente querido.
Percebemos, portanto, que tormentosas questões incidem naquela que parecia ser
apenas uma distinção elementar. Questões cujas respostas, se estiverem ao alcance
cognitivo dos homens, demandam complexas e sutis inquirições sobre a natureza de
presuntivos atos mentais, suas inter-relações bem como suas relações com outras coisas
(em particular, aquelas coisas tidas por não mentais que seriam seus objetos). Mas não
precisamos cuidar delas aqui, pois para nossos propósitos basta identificar a noção de
razões da verdade. Dessa depende a delimitação do escopo das doutrinas lógicas, bem
como o destino dessas doutrinas.
Como veremos mais adiante, o futuro da Lógica (o desenvolvimento das doutrinas
lógicas) não depende, nem de uma compreensão de atos mentais como o de crer (e,
portanto, pode ignorar completamente as noções de causa e de desejo do exercício do
ato), tampouco de qualquer resposta peculiar à questão sobre os critério de legitimidade
(de racionalidade) da crença. Para o destino das doutrinas da Lógica importa e sempre
importou a noção de razão da verdade: a ideia de que a verdade de uma determinada
asserção pode estar fundada na verdade de outras (que seriam então suas razões de

14
Como soe ocorrer em muitos casso, talvez aqui também seja o caso de aparências enganadoras. Talvez o
ponto de Geach seja não apenas um contrabando, mas uma falsidade, como um falso uísque escocês
verdadeiramente contrabandeado (pois contrabandeado do Paraguai onde havia sido produzido). Talvez
seja possível (e não apenas isso, mas também conveniente) reconhecer que existem situações que reclamam
a nossa crença nas quais procurar razões para a verdade daquilo que é proposto não é o melhor a fazer:
alguém consideraria razoável que filhos exigissem o exame de DNA de seus presuntivos pais a fim de
assentirem racionalmente ao que está declarado em suas certidões de nascimento?

9
verdade, condições suficientes). E para os nossos propósitos, de evitar que a Lógica seja
tomada ad limine como um presuntiva ciência da argumentação ou mesmo como uma
arte que dirigiria a razão suficientemente em todas as circunstâncias, basta destacar bem
a noção de razões da verdade. Portanto, separar as questões afeitas aos critérios de
legitimação do crer daquelas afeitas às razões da verdade e, assim, ter claro que explicar
o que são razões de verdade não é ipso facto fornecer critérios de legitimação da crença.
Concluindo, não basta distinguir motivos e ou causas da vontade (ou do desejo)
de crer, e fundamentos da verdade do crido, é necessário também distinguir, pelo menos
preliminarmente (e, portanto, lexicalmente), essas três (eventualmente, duas) coisas de
razão do assentir, para que não se tome gratuitamente, sem a apresentação de razões, um
peculiar critério de legitimidade racional do assentimento, aquele segundo a qual as
únicas razões para crer que seriam legítimas (racionais, adequadas, próprias, etc.) são as
razões da verdade do crido e essas são as que forem condições suficientes da verdade.
Devemos, então preservar, pelo menos ad limine distinção entre as noções de
15
motivo/causa do crer, razão de verdade e razão do crer . Ademais, nesse contexto, deve-
se reconhecer na noção de razão a vagueza que lhe é própria, sem querer reduzir, sem a
oferta de razões ulteriores, a noção de razão à de condição (seja ela suficiente, seja
necessária). E saber o que investigar é um passo importante da investigação.
VERDADE
Como o leitor já deve ter se dado conta, a palavra ‘verdade” (ou algum de seus
cognatos) foi muito empregada nas considerações anteriores. De fato, a verdade é um
conceito tão importante para a Lógica que um dos importantes fautores da Lógica
16
Contemporânea via nas presuntivas leis da verdade o objeto próprio da Lógica. . Mas o
que entender por essa palavra tida não raro por tormentosa?
E a primeira coisa que devemos fazer é recuperar a natureza prosaica, comezinha
do que é significado pela palavra verdade e seus aparentados (cognatos, antônimos, etc.)
em certos contextos e aqui também. Devemos renunciar aqui ao desejo grandioso de ver
17
respondida a questão de Pilatos “O que é a Verdade?” . Percebamos que em seu uso

15
Evidentemente, trata-se de distinções conceituais que não prejulgam serem domínios disjuntos. É
possível que, em situações muito peculiares, aquilo mesmo que é motivo ou causa do crer seja a razão de
verdade do crido (aquelas situações denominadas de profecias auto-realizadoras)
16
Frege, G. Der Gedanke (tradução brasileira em Cadernos de História e Filosofia da Ciência, série 3, vol.
8, n. 1, pp. )
17
Parece razoável ter como disparatado ou esse próprio desejo ou, caso se o compreenda como em si mesmo
legítimo, a busca de sua satisfação com os parcos recursos cognoscitivos próprios do ser humano. O texto
que possivelmente pela primeira vez apresentou a demanda, o Evangelho de São João (18, 37-38), fornece
uma resposta a essa questão ao atribuir a Cristo, em uma passagem anterior, a afirmação “Eu sou o caminho,
a verdade e a vida” (Jo, 14, 6). Donde, segundo São João, ainda que Pilatos não a visse, a resposta viva da
questão encontrava-se à sua frente, era o próprio Cristo. Certamente essa não é uma resposta que se impõe
a todos os homens (de foro republicano), uma vez que acatá-la não apenas depende de um ato da vontade
(como soe ocorrer em todo assentimento), mas se funda sobre a vontade (para os fiéis, sobre ato de adesão
à graça da fé, livre e misericordiosamente concedida por Deus). Por outro lado, fora desse contexto
teológico, parece impossível emprestar algum sentido à questão de Pilatos. A impressão (que reputamos
falsa) de um sentido laico (não teológico) para a questão de Pilatos talvez surja exatamente da confusão
entre o tema cristológico e temas gnosiológicos, tratado já pelos filósofos gregos e enfatizados
principalmente pelos assim chamados céticos (em particular, Sexto Empírico), sobre a possibilidade de
discernir verdade de falsidade, realidade de ilusão, etc. Confusão claramente ilustrada pela literatura dita
filosófica de língua alemã do século XVIII, em que era comum considerar a questão de Pilatos como uma

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corriqueiro, a palavra verdade é despida de qualquer grandiosidade, não raro o que é dito
serem verdadeiros são coisas prosaicas, comezinhas (“é verdade que os bancos não
abrirão hoje”), outras vezes coisas tidas por extremamente danosas (“é verdade que Stalin
condenou milhões de camponeses a morte”). Aqui, como talvez em qualquer outro
contexto laico, são suficientes alguns esclarecimentos sobre os usos que faremos das
18
palavras “verdade” e “falsidade” (e de seus cognatos, como verdadeiro e falso) , para
eliminarmos a aura de obscuridade que lançam sobre tal predicado (talvez porque
“pescadores de águas turvas”). Com a intenção de isolar aquele que será o uso
privilegiado aqui, ilustremos alguns usos correntes dessas palavras, com diferentes
significados e que se expressam por construções gramaticas distintas.
O uso mais comum do termo ‘verdadeiro’ na linguagem cotidiana seja o de
adjunto adnominal: quando associado a um substantivo ou adjetivo, forma o sujeito ou o
predicado de uma oração. Por exemplo, nas asserções:
1. João é um verdadeiro amigo.
2. O verdadeiro uísque escocês não causa ressaca.
O termo ‘verdade’, por outro lado, pode ser empregado como complemento verbal,
formando o predicativo do sujeito, como, por exemplo, nas asserções:
3. Cada um tem a sua verdade.
4. Eu sou o caminho, a verdade e a vida (Jo, 14, 6).
Embora não muito frequente, há também um uso predicativo do termo ‘verdade’,
em orações compostas, nas quais o sujeito é representado por outra oração. Tal uso pode
ser exemplificado pela asserção
É verdade que o Coritiba ganhou o Campeonato Brasileiro de Futebol em 1985.
Percebe-se, assim, que o termo ‘verdade’ ou seus cognatos podem comparecer em
diferentes construções gramaticais e receber diferentes significados na linguagem
corrente. Na Lógica, no entanto, a referência à verdade é sempre feita de uma maneira
semelhante a que é exemplificada pela asserção acima, (5). E, no uso que lhe dá a Lógica,
o termo verdade tem a mesma acepção que se lhe empresta no contexto de um julgamento,
ao exigir que a testemunha jure dizer a verdade e apenas a verdade. Nessa acepção, dizer
que uma asserção é verdadeira é dizer que aquilo que é asserido de fato ocorre. Não é
difícil perceber que, tomando o termo ‘verdade’ nessa acepção, a asserção (5) tem, em
certo sentido, o mesmo conteúdo informativo que a asserção:
O Coritiba ganhou o Campeonato Brasileiro de Futebol em 1985.
Tomado nessa acepção, o paradigma é ilustrado na asserção:
É verdade que a neve é branca se e somente se a neve é branca.
Para facilitar a discussão futura, pode-se introduzir uma nova noção, que não é de
uso corrente, a saber, a noção de valor de verdade de uma asserção. Distingue-se dois
valores de verdade: o Verdadeiro e o Falso. Por valor de verdade de uma asserção

questão dos céticos. A laicização da questão de Pilatos talvez seja assim mais um dos muitos exemplos de
quiproquó (de consequências não cômicas) que permeiam a modernidade.
18
Futuramente teremos ocasião de apresentar uma delimitação precisa do uso do conceito de verdade,
porém, em um contexto muito restrito, com respeito a certas estruturas algébricas, de cunho simbólico que
são denominadas, em geral, de “linguagens formais”.

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pretende-se indicar ou o Verdadeiro, se a asserção for verdadeira, ou o Falso, se ela for
falsa. Assim, o valor de verdade da asserção
Quine escreveu o livro O Sentido da Nova Lógica.
é o Verdadeiro: ao passo que o valor de verdade da asserção
Bertrand Russel demonstrou a incompletude da Aritmética.
é o Falso, uma vez que esse resultado fundamental da Lógica Contemporânea se deve ao
lógico austríaco Kurt Gödel.
A expressão ‘valor de verdade de uma proposição’ será usada para fazer referência
à característica fundamental das asserções de que a elas se pode aplicar, com propriedade,
o predicado "ser verdadeiro" ou "ser falso"; ou seja, sem incorrer em "non sense", pode-
se dizer que uma asserção é verdadeira ou, alternativamente, que é falsa. O valor de
verdade de uma asserção é o Verdadeiro, se ela for verdadeira e é o Falso, caso contrário.
Na Lógica, muitas vezes adota-se o ponto de vista segundo o qual cada asserção
tem necessariamente um e apenas um dentre os dois valores de verdade definidos (o
Verdadeiro ou o Falso) e cada asserção tem o valor de verdade que tem independe
completamente de alguém ser capaz de determinar qual seja. Ou seja, considera-se como
duas questões distintas a de ser ou não verdadeira uma asserção e a de ser ou não
conhecida como verdadeira. Assim, a asserção (4), acima, é ou verdadeira ou falsa,
embora não saibamos qual é o caso e, talvez, nunca venhamos a saber.
A fim de tornar mais claro esse ponto, pode-se observar que o termo ‘verdadeiro’
nessa acepção opõe-se, quanto ao significado, ao termo ‘falso’ e apenas a esse; em
particular, nessa acepção verdade não se opõe não propriamente a “ilegítimo”, “não
autêntico”, “inútil”, “mentiroso”, nem “hipócrita”. Observe que na acepção em que a
palavra ocorre em asserções como (1) e (2), o antônimo seria ilegítimo, não autêntico. E
tanto o verdadeiro como o falso são predicamentos de asserções. Em particular, uma
asserção falsa é uma asserção (a justo título, o mesmo de uma asserção verdadeira) que é
falsa (ou seja, uma proposição falsa não é um simulacro de proposição, mas uma
proposição); enquanto um falso uísque escocês não é um uísque escocês que é falso (pois,
aqui o adjetivo falso é empregado como sinônimo de falsificado).
Tomando o adjetivo “verdadeiro” (e seu oposto, “falso”) nessa acepção (como
atributo de asserções), devemos ter o cuidado de distinguir claramente o ser verdadeiro
do ser reconhecido (ou, pior ainda, ser tido por) verdadeiro. Pois, nessa acepção o ser
verdadeiro de uma asserção depende do ser das coisas a que a asserção alude, e não de
nossas atitudes em face da asserção. Assim, em particular, também devemos distinguir,
embora algo inusitada, o dizer a verdade e ser veraz (não mentir), porque a mentira diz
respeito a uma atitude daquele que mente (a saber, crer no contrário do que afirma).
Assim, uma asserção de fato verdadeira pode ser dita como mentira por alguém, e, por
19
outro lado, asserir algo falso pode não ser o mesmo que mentir.
A verdade, na acepção que consideraremos aqui, supõe uma adequação entre dois
termos, a asserção e as coisas aludidas pela asserção, no entanto, esses dois termos não
comparem de maneira equânime na relação, pois é o segundo termo que determina a
norma da adequação. Não é porque é asserido que as coisas são de tal e qual maneira, que
as coisas são dessa maneira; mas porque as coisas são assim que asserir que elas são assim

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No texto “Sobre um suposto direito de mentir” de Kant encontra-se um interessante exemplo de alguém
que mente, embora o que assere calha ser verdadeiro.

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é asserir o verdadeiro. Nesse contexto, é comum falar-se em flecha da verdade, a direção
da verdade é das coisas ao asserido e não o contrário. Por exemplo, é porque o Coritiba
venceu o Campeonato Brasileiro de Futebol em 1985 que a asserção anteriormente feita
é verdadeira e de modo algum pela razão contrária. Vemos assim, que a verdade é um
valor (positivo) da asserção, mas não daquilo que a sentença expressa; contrariamente, a
falsidade é uma desvalia da asserção, mas o que é falso pode ser um valor (por exemplo
é falso que vivemos num mundo onde predomina a tolerância de crenças, mas não são
poucos que creem ser valiosa a tolerância no tocante às crenças, religiosas ou não).
Esses pontos – da verdade como adequação do asserido às coisas e não o contrário
e a diferença entre dizer a verdade e não mentir – é bem ilustrado por um causo, ouvido
num jantar durante um congresso de lógicos, que o seu narrador na ocasião jurara ser
verdadeiro.
O lógico e a verdade
De certa feita, um jovem europeu, que recém defendera sua tese de doutorado
sobre sentenças aritméticas indecidíveis, foi intimado a comparecer ao Tribunal de Justiça
da União Europeia, para prestar depoimento como testemunha. Ao receber a intimação,
o jovem logo se entristeceu, pois sabia que testemunhar nesse tribunal, como em muitos
outros, conduziria logicamente (portanto, inexoravelmente) à prisão ou por desacato ao
tribunal ou por prática estelionatária. Mas cônscio de seus deveres lógicos e jurídicos,
preparou-se para viajar a Luxemburgo e submeter-se ao destino que as leis lógicas aliadas
às jurídicas lhe reservavam. Na data aprazada, nosso jovem, ainda cabisbaixo e tristonho,
compareceu à sessão do julgamento. Após ter prestado o seu depoimento, foi-lhe
ordenado, como apregoa o regulamento do referido tribunal, a prestar o juramento
20
seguinte: “Juro ter dito a verdade, toda a verdade e só a verdade” . Começou assim a
caminhada inexorável (porque lógica) de nosso lógico para a prisão. Como além de
lógico, era também uma alma ingênua e essencialmente honesta, em vez de simplesmente
responder sim, inicia uma longa preleção sobre a verdade, expondo assim as razões (boas
razões lógicas) para não proferir o juramento que lhe fora exigido. O juiz ouviu
incialmente com atenção o arrazoado do jovem, mas sua tolerância se extinguiu após três
horas do que lhe pareceu ser intrincados malabarismos lógico-conceituais, e
simplesmente ordenou a prisão do jovem por desacato. Mal sabia o juiz que essa seria
uma sentença de morte; meses após, o infeliz lógico morreu em sua cela, amargurado não
tanto pela injustiça de que fora vítima, mas pela frustração de não ter sido capaz de
mostrar ao juiz o absurdo da exigência que os preceitos legais impõem às testemunhas
em tribunais, ainda que detinha a demonstração cabal desse absurdo (ou seja, as boas
razões logicas dirimentes). Quem assistiu a seus momentos finais conta que concluía:
Ergo, ..., mas a gentil morte cerrou seus lábios.

20
Essa é a fórmula usada no Tribunal Europeu, tal como preconizada pelo Artigo 47, inciso 5, do
Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias de 19 de Junho de 1991.A
título de curiosidade, podemos citar outras fórmulas de igual teor. O Tribunal Administrativo da OEA
reclama da testemunha que profira o juramento seguinte “Juro (ou comprometo-me a) dizer a verdade, toda
a verdade e nada mais que a verdade” (Tribunal Administrativo da OEA). Já o artigo 203 de nosso Código
Processo Processual Penal (Decreto Lei 3689/41) diz que a “testemunha fará, sob palavra de honra, a
promessa de dizer a verdade do que souber e lhe for perguntado”
Essas fórmulas talvez signifiquem mais do que um certo descuido dos tribunais com questões de expressão,
talvez sejam manifestações do arraigado desejo de pôr o fundamento (a razão) da verdade de suas alegações
no próprio ser humano.

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Da que fora uma detalhada e precisa preleção, não apenas sobre a verdade, mas
também sobre os atos de jurar e assentir, o contador de casos só gravou o trecho que lhe
pareceu mais curioso, qual seja, o raciocínio conduzindo a tese de que qualquer
testemunha num tribunal seria presa ou por desacato ao tribunal ou por uma forma de
estelionato (prometer dar algo sobre o qual não tem nenhum direito). O arrazoado lógico
teria argumentado de maneira simples e inequívoca. Se dizer a verdade é dizer do que é
que é e do que não é que não é, então o que digo depende de mim, mas ser verdadeiro ou
não aquilo que digo depende de como as coisas são e, portanto, prometer dizer a verdade
é arvorar-se detentor de algo que nenhum ser humano pode vir a possuir: o fundamento
das coisas. Por conseguinte, prometer dizer a verdade sobre coisas reais é como prometer
um lote na Lua (ou, a entrada no Paraíso Celeste).

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