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prática radicalmente ética, isto é, voltada para melhorar a vida humana.


Ele mesmo se considerava um “parteiro de almas”, ou seja, alguém que
fazia nascer uma consciência mais viva e mais livre.
Como Sócrates sempre adotava a postura de fazer perguntas, nunca
começando por respostas, mas levantando dúvidas sobre o que os outros
diziam, sua maneira de filosofar recebeu o nome de elenchos, em grego,
que significa “questionamento”. O sentido desse método, tal como prati-
cado por Sócrates, era o de um teste que levava a perceber se era sólido
Filosofia e razão aquilo em que acreditavam as pessoas. O ambiente desse debate ou o
clima de diálogo em que os participantes visam convencer uns aos outros
recebeu o nome de ironia. Hoje, essa palavra pode parecer negativa, por-
que a associamos muitas vezes com deboche. Se, porém, prestarmos mais
atenção em outros usos, veremos que essa palavra é ainda hoje usada
em um sentido socrático: por exemplo, quando somos desestabilizados
Juvenal Savian Filho por algum acontecimento, falamos de “ironia do destino”; ou, quando
duas pessoas que não se gostam entre si e se juntam em alguma ativida-
de, ficamos surpresos ao ver que um interesse comum as reuniu, fazendo-
as passar por cima de suas diferenças. Dizemos, então: “Ironia do desti-
A característica central da atividade filosófica, desde seu nascimento no!” A ironia serve, aqui, para mostrar que não sabemos tudo a respeito
até nossos dias, é o uso da razão, capacidade de investigar o sentido dos das coisas sobre as quais acreditamos já saber tudo...
diferentes componentes da existência e de também produzir sentido. Da mesma maneira, Sócrates, em suas conversas, mostrava a seus
Uma das maneiras mais indicadas para entendermos o que é a ra- interlocutores, passo por passo, que eles não sabiam tudo (ou não sabi-
zão ou a capacidade racional consiste em observar como um dos primei- am nada!) sobre os assuntos que acreditavam conhecer. Sócrates tinha
ros filósofos a concebeu. Trata-se de Sócrates, que viveu entre 470 e 399 mesmo prazer em conversar com as pessoas que se apresentavam como
a.C. e desenvolveu um pensamento tão significativo, a ponto de ele ser “especialistas”, para mostrar que elas não conheciam seus assuntos. Por
conhecido como “pai da Filosofia”. exemplo, ele apreciava conversar sobre a guerra e a coragem com um
Sócrates viveu na cidade grega de Atenas. Sabemos poucos deta- general; sobre a poesia com um poeta; sobre a justiça e o bem público
lhes de sua vida. Diz-se que seu pai era entalhador de pedras, e sua mãe, com um político. Ao final, ele mostrava que esses especialistas não co-
parteira. Profundamente envolvido com a vida da cidade, Sócrates conhe- nheciam bem o que diziam, ao passo que ele, reconhecendo-se como um
cia também os debates dos pensadores que o antecederam. Não escre- perguntador e alguém que não sabe, sabia mais do que eles: sabendo que
veu nenhuma obra; sua atividade filosófica era marcada pelo diálogo di- não sabia sobre esses assuntos, ele sabia algo mais certo do que aqueles
reto com as pessoas. A maior parte do que sabemos sobre seu pensamen- que, acreditando conhecer, não tinham consciência das falhas de seus
to está registrada nas obras de seu discípulo Platão. pensamentos. Daí vem a frase socrática que ficou famosa para sempre:
Graças a Platão, sabemos que Sócrates considerava a Filosofia uma Sei que nada sei!
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Sócrates, contudo, seguia adiante a partir dessa “ignorância”. Nos dos de algo bom: o fato de termos evitado a prática de algo ruim.
escritos de Platão, encontramos dois exemplos claros para entender a Então, há um modo de dizer que a injustiça é boa: quando a sofre-
atividade socrática. São dois problemas que levam a visões mais adequa- mos, mas não a praticamos.
das: Exemplo: estou numa guerra e preciso decidir se defendo minha
vida sabendo que, para isso, terei de matar uma família inteira, cujos
O aprendizado não significa conhecer pais podem atirar em mim. Mas também sei que nessa família há
crianças pequenas completamente inocentes. Devo então decidir
coisas totalmente novas. se aceito morrer para não ter de matar crianças inocentes ou se
mato a família inteira, inclusive as crianças. Se eu considerar que
Opinião corrente: no aprendizado de qualquer assunto novo, acre- matar crianças inocentes é uma injustiça maior do que a injustiça
ditamos aprender porque não sabemos nada sobre esse assunto; se da minha morte sem defesa, posso optar por morrer, vendo nessa
dissermos que já sabemos algo sobre o assunto, então ele não será injustiça um lado positivo.
novo. Revisão socrática: a injustiça pode ser boa se for melhor do que
Pergunta socrática: como poderemos procurar algum assunto novo praticar outra injustiça.
e encontrá-lo se desconhecemos tudo a seu respeito? Como procu- O que chamamos aqui de revisão socrática traduz conclusões a que
raremos algo se nem sequer sabemos que ele existe? o próprio Sócrates chegou. Vemos, então, que sua reconhecida ignorância
Exemplo: quando alguém nos explica o sentido de uma palavra que não era simples falta de conhecimento, mas sinal de descontentamento
não conhecemos, precisamos conhecer pelo menos o sentido das ou insatisfação com as opiniões correntes, em busca de respostas mais
outras palavras usadas para o aprendizado da palavra nova. É rela- adequadas.
cionando o sentido dessas palavras que podemos entender a pala- Sócrates examina tudo e procura justificações, com base na experi-
vra nova. ência comum, para aceitar ou recusar pensamentos, opiniões e visões de
Revisão socrática: o aprendizado não é a assimilação de coisas com- mundo. Ao analisar os mais variados assuntos, Sócrates via que as coisas
pletamente desconhecidas, mas uma nova maneira de relacionar têm um modo de ser e que, pelo pensamento, podemos reproduzir esse
coisas conhecidas. Para aprender, é preciso já saber. modo de ser das coisas. Então, o pensamento mais adequado, para ele, é
Algumas injustiças podem ser boas. aquele que capta e exprime bem esse modo de ser. Trata-se da atividade
Opinião corrente: nunca é bom sofrer injustiça, pois toda injustiça da razão, que, em grego, chamava-se lógos. Captar o lógos de tudo e ex-
prejudica o injustiçado. primi-lo de modo que todos os interlocutores possam avaliar se essa ex-
Pergunta socrática: o que pensar quando temos de decidir entre pressão é adequada ou não (quer dizer, se a expressão corresponde real-
praticar a injustiça ou sofrer a injustiça? Se tivermos de escolher, é mente ao que se observa no mundo) era a tarefa da Filosofia segundo
melhor sofrer a injustiça do que praticá-la. Afinal, se todos concor- Sócrates.
dam que a injustiça não é algo bom, será pior ainda praticá-la, pois Aqui se revela, então, uma característica da Filosofia como “filha”
reforçaremos algo que consideramos ruim. Tendo de escolher entre de Sócrates: ela é uma atividade racional ou um exercício da razão, capa-
praticá-la ou sofrê-la, sofrê-la será melhor, porque evitará que faça- cidade de entender os vários componentes da existência e de falar sobre
mos algo ruim. Os prejuízos que podemos sofrer serão acompanha- eles de modo justificado, permitindo que nossos interlocutores, basean-
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do-se também na mesma capacidade, possam avaliar se nossas afirma- Dessa perspectiva, temos condições de propor uma definição de
ções sobre o mundo correspondem de fato ao modo como o mundo é Filosofia:
experimentado. Não nos esqueçamos de que “mundo”, aqui, refere-se a
nossas vivências pessoais e sociais, às relações interpessoais, aos senti- A Filosofia é a reflexão sobre o pensamento em sua
mentos, às emoções, à Natureza.
atividade de compreender a existência ou de elaborar
Uma definição de Filosofia sentidos para a existência.
Outras definições de Filosofia são possíveis, porque, na realidade,
Neste momento, talvez você pergunte: “Mas a atividade da razão
existe mais de uma Filosofia: há uma constelação de filosofias, no plural.
não é uma característica também central para as ciências? Os outros sa-
Há mesmo quem afirme haver tantas filosofias quantos são os filósofos.
beres também não recorrem à razão para se justificar? Em que a Filosofia
Há ainda quem use a imagem das filosofias como ilhas espalhadas no
se diferencia deles, então?”
oceano da razão. Algumas dessas ilhas nem sequer se aproximam; outras
Sem dúvida, a atividade da razão marca o que há de comum na pes-
são vizinhas. Todas, porém, são ligadas pelas águas da razão.
quisa científica e na atividade filosófica, assim como está presente na
No entanto, se considerarmos que o ser humano, em suas múltiplas
justificação dos outros saberes. No entanto, o que caracteriza a Filosofia
relações com os outros seres, especialmente com outros seres humanos,
é o fato de ela ser, em primeiro lugar, uma investigação sobre o próprio
ocupa o centro da preocupação filosófica; e se considerarmos que o ser
pensamento ou o modo como se constroem as “leituras” que fazemos do
humano, visto em suas múltiplas relações, pode ser chamado de ser mer-
mundo (incluindo a “leitura” de nós mesmos).
gulhado na existência; então parece possível afirmar que todas as filoso-
Assim, a Filosofia pratica a razão de modo diferente das ciências,
fias são ligadas pela preocupação com diferentes aspectos dessa mesma
pois, em vez de se concentrar em explicar o mundo, ela procura conhecer,
existência e pelo procedimento racional de reflexão sobre o pensamento.
acima de tudo, o modo como as diferentes explicações são feitas. Quan-
A unidade da Filosofia ou da atitude filosófica, por trás das diferentes
do termina, porém, em construções de sentido, ela ainda difere do com-
filosofias, estaria em fazer o pensamento pensar a si mesmo em sua ação
portamento geral dos outros saberes, uma vez que tem a consciência de
de se referir à realidade. A Filosofia seria, assim, pensamento do pensa-
que suas construções não são “retratos” do mundo, mas possibilidades
mento; e mesmo aquelas filosofias que parecem “distantes” da realidade
de iluminar a existência, sem a pretensão de oferecer respostas definiti-
revelam preocupação com ela justamente ao se entenderem como refle-
vas e únicas. Essa prática racional em que o próprio pensamento é toma-
xões sobre o pensamento. Por exemplo, a Filosofia da Matemática ou a
do como alvo de investigação chama-se reflexão (a razão reflete sobre si
Filosofia da Lógica continuam a existir como busca de reflexões coeren-
mesma, volta-se para sua própria atividade).
tes e adequadas sobre aspectos da existência, nascendo do prazer que a
atividade do conhecimento oferece por si mesma.

SAVIAN FILHO, Juvenal. Filosofia e filosofias: existência e sentidos. Belo


Horizonte: Autêntica Editora, 2016, p. 33-35.

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