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Tecendo Vozes: História, memória e o eco de vozes femininas

Luis Celestino de França Júnior


E-mail luis.celestino@ufca.edu.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4998271672992540

Sauanny de Oliveira Lima


E-mail: profannyoliv@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7241791535657961

RESUMO
A presente pesquisa aborda o projeto Tecendo Vozes. Aqui serão abordados alguns pontos principais
do projeto em diálogo com as dimensões dialógica, estética, ética e formativa da mediação. A
relevância desta pesquisa se dá no âmbito do processo de utilização da biblioteca como conceito vivo e
interativo com os membros da comunidade. A metodologia utilizada é análise qualitativa, de caráter
exploratório. No tocante ao objetivo geral desta pesquisa temos como base analisar de que forma as
obras literárias produzidas por mulheres e que contam histórias de mulheres, podem atuar como
ferramenta de fomento às discussões acerca da identidade feminina e memória no espaço da biblioteca.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura. Memória. Biblioteca. Feminino.

1 INTRODUÇÃO

O projeto Tecendo Vozes nasce de uma proposta literária, que visa incentivar a leitura
de textos escritos por mulheres. Antes de adentrarmos os aspectos que envolvem essa
pesquisa, faz-se necessário um exercício. Imaginemos uma estante de livros, ou quaisquer
aparatos em que se opta por guardar os mesmos. Pensemos estar passando a mão por seus
livros favoritos, sentindo a textura de cada um, observando as cores e tamanhos diferentes.
Agora, observemos um elemento específico dos seus livros: o nome do autor ou autora que
escreveu esta obra. Pensemos naquelas obras mais marcantes, não importa o gênero,
elencando os nomes de autoras e autores que escreveram tais textos. Quais eram esses
autores? Terminado o exercício fica uma questão, se tirássemos todos os livros escritos por
homens das estantes, quantos livros sobrariam?
É esta questão que dá norte à presente pesquisa, desenvolvida no Programa de
Mestrado Profissional em Biblioteconomia da Universidade Federal do Cariri (UFCA), que
busca aprofundar como o espaço das Bibliotecas da UFCA – compostas pelos campus
localizados em Juazeiro do Norte, Crato, Barbalha e Brejo Santo – podem ser palco para o
debate sobre o gênero feminino, tendo como mediador o profissional da informação.
Este projeto ocorre no formato de desconstrução do modelo de clube do livro, onde
os participantes leem livros e após a leitura debatem suas narrativas. O Tecendo Vozes leva
em conta o repertório do leitor acerca de livros escritos por mulheres. O requisito do projeto é
que os textos a serem usados como indicações ao público sejam produzidos por mulheres e
que contenham vivências de mulheres. Devido ao cenário atual de pandemia, optamos por
realizar as edições do projeto de forma virtual através da plataforma Google Meet.
O principal objetivo desta pesquisa é de que sejam discorridos os pontos centrais dos
livros com os participantes através da figura de um mediador e estas questões são debatidas
junto ao público, buscando alcançar novos leitores para as obras em questão. Essa ação
também tem como objetivos gerais; aumentar o repertório de livros dos participantes acerca
de escritoras femininas que desempenham em seus textos discursos feministas e fomentar a
participação ativa do profissional da informação atuante no espaço da biblioteca. A primeira
edição desse projeto ocorreu como parte integrante da X Semana de Letras (SEMALE), no dia
10 de outubro de 2019, na Universidade Regional do Cariri (URCA), de forma presencial. As
demais edições ocorrem de forma virtual, vinculadas a Biblioteca Salesiana Luiz Magalhães,
tendo iniciado no dia 18 de setembro de 2020.
A proposta desta pesquisa é um convite a ouvir mulheres contarem suas histórias, a
partir da sua própria voz. Bell Hooks (2013), afirma que o indivíduo oprimido socialmente,
deve resistir como sujeito e não como objeto. De forma questionadora, consciente e atuante
no meio, sendo assim buscar questionar a sociedade a sua volta, os meios a que estão
sujeitados e assim produzir ferramentas que vão de frente a essas questões. É assim que essas
mulheres buscam utilizar a literatura, como forma de renovação da voz que narra suas
histórias, formando um sistema e constituindo uma forma de resistência a uma série de
opressões.
Ao longo da história contemplamos diferentes visões sobre as mulheres, por vezes
contadas pelo sexo masculino. Porém, alguns destes olhares relatam o papel feminino como
protagonista, ou até mesmo autora da fala sobre si própria. A mulher desempenha assim o
papel de agente social da sua própria história (PERROT, 2008). Esta pesquisa busca colocar a
mulher como protagonista de narrativas no espaço da biblioteca.
Neste sentido, a construção da problemática desta pesquisa se dá em: Como o espaço
da biblioteca funciona enquanto local para uma mediação acerca de obras autobiográficas
produzidas por mulheres? Como o profissional da informação pode utilizar obras escritas por
mulheres nas bibliotecas da Universidade Federal do Cariri, para mediar o acesso a
informação e debater sobre questões femininas com a comunidade acadêmica? Quais pontos
podem ser aperfeiçoados no projeto Tecendo Vozes para uma melhor experiência junto ao
público?
Para o desenvolvimento da pesquisa será aprofundado o conceito de mediação
relativo a Ciência da informação (GOMES,2014), bem como o estudo de memória coletiva
(HALBWACHS, 2006); (LeGOFF,1990), relatar a si mesmo e identidade cultural (HALL,
2005); (FOUCALT, 1996); (HOOKS,2013). Faremos análise das obras abordadas, elencando
as problemáticas trazidas pelas autoras que se ligam às questões de gênero. Também serão
feitos questionários, a serem respondidos pelo público para perceber o diálogo do Tecendo
Vozes com as dimensões da mediação.
O produto final da pesquisa de Mestrado será um manual, que será disponibilizado
no formato de ebook para os bibliotecários que compõem as bibliotecas da UFCA, tendo
como estratégia ajudar no processo de uso da literatura feminina como elemento que pode vir
a somar na produção de subjetividades relacionadas ao gênero feminino podendo ser
utilizadas como difusoras de informação e material propulsor para uma série de reflexões no
tocante ao gênero.

2 METODOLOGIA:

Para abordagem da pesquisa em questão, se optou por realizar uma análise


qualitativa, de caráter exploratório, já que visa levantar informações sobre um determinado
objeto. Se justificando por se ter como objetivo analisar e compreender o assunto estudado
detalhadamente, através de suas características e significado, de acordo com Richardson
(2011).
Há, naturalmente, situações que implicam estudos de conotação qualitativa e, nesse
sentido, alguns estudiosos têm identificado, pelo menos, três: 1. Situações em que se
evidencia a necessidade de substituir uma simples informação estatística por dados
qualitativos. Isso se aplica, principalmente, quando se trata de investigação sobre fatos
do passado ou estudos referentes a grupos dos quais se dispõe de pouca informação. 2.
Situações em que se evidencia a importância de uma abordagem qualitativa para
compreender aspectos psicológicos, cujos dados não podem ser coletados de modo
completo por outros métodos devido à complexidade que encerra. Nesse sentido,
temos estudos dirigidos à análise de atitudes, expectativas, valores, etc. 3. Situações
em que observações qualitativas são usadas como indicadores do funcionamento de
estruturas sociais. (RICHARDSON, 2011, p. 80).
Serão abordados neste estudo conceitos de práticas culturais sociais, se fazendo
necessária uma abordagem qualitativa, que se alinha com a produção do material que será
realizando durante o estudo que visa criar um ebook que tem como intuito contribuir com o
processo de difusão do conhecimento. Esta pesquisa se utilizará de elementos de diferentes
fontes metodológicas para abranger as temáticas abordadas, sendo estes, elementos da análise
do discurso e elementos da análise de conteúdo.
As questões abordadas no projeto auxiliarão no processo de construção do
ebook, que será dividido em três partes: manual, diário de bordo e mapeamento. O manual se
refere a uma parte didática de como realizar o referido projeto em sua biblioteca, sendo um
material destinado a proporcionar a difusão do debate sobre gênero na biblioteca em
diferentes espaços do país. O diário de bordo irá contar como foi o nascimento do projeto,
quais os obstáculos encontrados e como estes foram solucionados. O mapeamento trata uma
breve descrição dos títulos utilizados, para inspirar a leitura destes. Temos como meta
disponibilizar o ebook no site da UFCA, bem como propor o projeto Tecendo Vozes junto a
Pró Reitoria de Cultura da referida universidade para que ele se torne periódico, e possua
bolsistas para auxiliarem o seu desenvolvimento.
A escolha do ebook foi feita pela sua fácil disponibilização online, fomentando a
democratização do conhecimento, para os profissionais da informação interessados em
realizar tal prática. Previamente a divulgação o material, este será lançado junto à comunidade
acadêmica da UFCA, tendo como objetivo dar visibilidade o produto.

3 ELAS POR ELAS: HISTÓRIAS DE MULHERES, NARRADAS POR MULHERES

Uma prática que em tempos foi tão comum como a de contar histórias, repassar os
conhecimentos por meio da oralidade, assumiu novas formas com o tempo. Embora, o uso da
memória seja efetuado tanto nas sociedades orais, quanto nas sociedades que utilizam a
escrita. Estando a memória em suas diferentes formas cotidianamente presente para os
indivíduos (LeGOFF, 1990). Dentro do contexto de memória e história temos como ícone do
suporte a informação a figura do livro, estando este sob a proteção do espaço da biblioteca.
Sendo assim, os suportes da informação ganham vida para adentrar o campo do
conhecimento a ser perpassado entre os membros da comunidade. Para Vieira (1969), assim
se constitui uma biblioteca viva, capaz de produzir cultura, crescendo o papel do bibliotecário
socialmente. E assim, remodelando também a relação com a memória social. Ao que concerne
à biblioteca universitária, esta foi criada no séc. XIII, devido a própria demanda dos alunos, e
a doações dos nobres. Vemos então a ascensão da figura do bibliotecário enquanto difusor da
informação (SANTOS, 2012). Por meio do projeto Tecendo Vozes visamos abranger a figura
do bibliotecário, ao ser mediador de temas como gênero e memória.
A memória que parece ser algo tão individual também deve ser entendida como um
fenômeno coletivo, construído pelas experiências sociais constantes. A característica flutuante
da memória faz com que fatos sociais passem a ser relevantes na história de uma pessoa,
marcando a sua essência. Na memória individual, incluímos, excluímos, relembramos
determinados fatos em detrimento a outros, selecionando consciente ou inconscientemente
nossas lembranças (POLLAK, 1992). Observando o contexto de uma sociedade patriarcal em
que a história é narrada por quem vence, vemos as histórias de mulheres serem mediadas por
uma hegemonia masculina. Para esta pesquisa em questão optamos utilizar o conceito de
memória definido por Tedeschi, sendo ele:
Ao abordarmos a memória coletiva numa perspectiva de gênero podemos ver
que ela possui um movimento de recepção e transmissão. Esse movimento é
o que forja a memória do grupo, e o que estabelece o contínuo de sua
memória. A memória definida desta maneira não se trata de um acúmulo de
conhecimentos, datas, referências, objetos, pelo contrário, está formada por
práticas culturais, tradicionais, valores, ritos, modos de relação, símbolos,
crenças, determinados muitas vezes por representações do que é ser homem e
mulher na história, definindo sua identidade (TEDESCHI, 2014, p. 42).

No contexto da memória social coletiva observamos que os relatos são construídos


com base em experiências, desenvolvimentos em meios familiares, sociais, nacionais, não
envolvendo apenas um sujeito, mas uma série de indivíduos que contribuíram para a formação
desse passado (HALBWACHS, 2006). Essas experiências modificam a visão de si e do outro
(MOREIRA, 2005).
Conforme Perrot (2008) as mulheres precisavam romper com o silêncio que
lhes foi submetido na história, no entanto, como se haveria de supor, essa
tarefa não foi fácil, pois a maioria dos escritos sobre mulheres foram
produzidos por homens, o que na opinião da autora dificultou imensamente o
trabalho de reconstituição do passado feminino. As mulheres não
representavam a si mesmas, elas eram representadas (DUBY apud PERROT,
2008, p. 24).

Quem narra, presencia o relato de suas vidas, e faz em dupla qualidade de indivíduos
singulares e de sujeitos coletivos. Cada um destes relatos é único, mas no caminho da
construção social sua subjetividade tem sofrido influência familiar, social, cultural,
socioeconômica do meio em que viveram ou vivem. Como sujeitos singulares, encarnam de
maneira única e irrepetível valores, modas, costumes, normas, mitos de ordem familiar,
grupal, social, que as incluem no que fazem dentro de um contexto social que não é estático,
pelo contrário, está continuamente afetado por contradições, rivalidade e tensões de seus
membros (TEDESCHI, 2014, p.35).
A memória, história: longe de serem sinônimos, tomamos consciência que tudo opõe
uma à outra. A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido,
ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento,
inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e
manipulações, suscetível de longas latências e de repentinas revitalizações. A história
é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A
memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido num eterno presente; a história,
uma representação do passado (...) A memória é um absoluto e a história só conhece o
relativo (NORA, 1993 p. 9).

Dado isso, podemos observar que o meio em que vivemos vai alterar nossa percepção
dos fatos, assim como nossa visão particular afetará nossa memória individual. Temos
características particulares, cargas culturais, afetos por pessoas singulares, que vão alterar
como nos relacionamos com os fatos e lugares, alteram nossa experiência, e
consequentemente a memória resultante dessas ações.
Somos influenciados por uma série de caracteres que definiram como nos
relacionamos com determinados grupos (HALBWACHS, 2006). De acordo com o autor, em
um nível geral, os eventos que dizem respeito à maioria da comunidade compõem uma
memória coletiva. Ao passo que atravessam cada sujeito vão sendo formadas memórias
próprias, de acordo com a forma que o sujeito se apropria dos dados.
Segundo este mesmo autor, a memória coletiva constrói leis naturais. Esse discurso de
naturalização assume o poder de demarcar e de regular os discursos (FOUCAULT, 1996).
Importante nesse sentido é a noção foucaultiana de “raridade de discurso" em que há um
processo de embate e luta entre diferentes discursos para a configuração daquele que será
considerada válido, legítimo e hegemônico e que será responsável, em certa As ações
resultantes desse processo reiteram o que foi dito e ressaltado ao longo do tempo. Entretanto,
os corpos que são colocados a margem não são estáticos e podem questionar as normas
impostas, reformulando as mesmas (BUTLER, 1999). A tomada de consciência acerca destes
elementos, e das representações que estes fazem, está presente na formação da memória
individual.
Outro pesquisador que aborda a temática da memória é Le Goff (1990) sendo que sua
base se dá na memória documental. Para ele, a memória está figurando um dos fatores na luta
pelo poder social, e acrescenta ainda que o domínio de uma memória coletiva é o desejo de
uma classe que busca ser dominante dentro de um contexto social. Não só a forma como se
conta a história, mas os sujeitos que são silenciados, contribuem na formação da memória
coletiva. Assim, podemos observar a memória individual como um ponto de vista sobre a
memória coletiva de acordo com as relações tramadas no espaço por cada integrante do grupo,
e as influências sociais. A produção das lembranças está ligada às relações em diversos
ambientes, isoladamente e também em conjunto, a memória é uma unidade composta por
multiplicidades (HALBWACHS, 2006).
Segundo Foucault (1979) se tem uma ordem do discurso que é ritualizada, para se ter
acesso a esta é necessário se fazer presente dentro de um circuito, em uma relação de
dominação entre diferentes poderes. Nas diversas sociedades estes discursos são regulados,
escolhidos, regidos, onde indivíduos são incluídos e excluídos nesse sistema de apoderação.
Estando relegado a mulher um papel secundário ao homem.
Diante deste cenário, a pesquisa pensa em uma possibilidade de informação fora da
lógica massiva, tendo como base a literatura, com sustentação na memória, dando acesso a
uma experiência subjetiva. Como uma possibilidade frente ao discurso hegemônico, estas
formas de discursos alternativos dão voz aos que geralmente não são consultados como fontes
oficiais (POSSEBON,2011).
Compreender a memória nas tensões que compõem um meio heterogêneo dá abertura
para observar a expressão social. Disputas cotidianas que giram em torno do pensamento e
práticas a serem visibilizadas, em um processo de resistência. Entendendo a cultura como
parte de um processo cotidiano em diálogo com a subjetividade dos atores sociais
(TEDESCHI, 2014). Levando a prática de tornar o natural, estranho para assim pensá-lo e
problematizá-lo, perceber as coisas, ideias, lugares sob uma nova ótica na superação lógica e
empírica (CANEVACCI,2004).
O surgimento da tipografia configurou a precedência para as demais tecnologias
comunicacionais que nos marcam atualmente (McLUHAN,1977). A escrita, o alfabeto, que
nos parecem tão comuns hoje, e nos sãos ensinados desde cedo, trouxeram consigo uma
inovação que iria perdurar anos, e influenciar nosso modo de pensar, até mesmo nossa
linguagem. Modificar a forma de aprender, do saber e do ouvir, com a palavra impressa, tanto
a compreensão, quanto o suporte irão se modificar, remodelando a capacidade de reprodução
e interpretação (ONG, 1998). A escrita a que nos acostumamos é o passo de uma inovação
comunicacional, assim como as tecnologias presentes nas diversas plataformas que vão nos
proporcionar novas e diferentes experiências.
Não apenas o processo da escrita sofre modificações ao passar do tempo,
historicamente a visão que era dada ao feminino também se remodelou ao longo dos anos. De
acordo com Nunes (2000), até o século XVII a visão social sobre as mulheres era baseada em
um cristianismo arcaico, que delegava as mulheres serem inferiores aos homens, já que estas
teriam sido criadas através da costela de Adão, tendo dentre suas características
comportamentos sexuais, pecadoras, as herdeiras de Eva, sendo assim, também teriam
herdado o pecado original. Os elementos apontados acima, indicam uma visão sobre a mulher
difundida na época, já que o clero detinha entre os seus feitos a produção do conhecimento.
Com a Reforma Protestante, observamos que no século XVI, se inicia um debate
acerca da educação feminina, este tem como pano de fundo o objetivo de que as mulheres
sejam ativas no processo de integração dos seus maridos a Igreja Luterana. Acompanhando
esta linha de pensamento a Igreja Católica também molda sua visão sobre o feminino, com o
intuito de atingir mais fiéis, mas apenas no século XVIII, com o advento da Revolução
Francesa, que irá se ter uma maior mudança na visão desigual sobre a mulher em detrimento
ao homem, teremos então argumentos biológicos para justificar as funções domésticas serem
relegadas as mulheres (NUNES, 2000).
O físico da mulher marcaria sua predestinação por sinais particulares: a fragilidade
dos ossos, a forma alongada da bacia, a moleza dos tecidos, a estreiteza do cérebro e a
superabundância das fibras nervosas deixariam perceber que a mulher tem como
vocação natural a maternidade (NUNES, 2000, p. 39).

Se tem um fator biológico que delimita a identidade, segundo Foucault (1988) no


momento em que o médico diz: ‘É uma menina’. Ele não está só afirmando o sexo biológico,
mas também as sequencias de padrões que aquele corpo deve desempenhar dentro do social,
seus deveres e posturas. Ao colocar a relação da família como balizador central, um
determinado discurso fomenta dominação, e divergência de classes.
Tais fatos culminam em uma série de padrões e comportamentos impostos e dados
como aceitáveis. O matrimonio e a religião por vezes atuando como órgãos reguladores dessa
ordem. A transformação da imagem da mulher em mãe redefine a imagem da mulher que se
adequa as funções desejadas que esta desempenhe. Entre o século XIX e XX vemos essa
divisão binária que relega a mulher a função de maternidade, e remete ao espaço privado,
enquanto cabe ao homem ocupar o espaço público (NUNES,2000).
Em um contexto histórico desigual no tocante ao capitalismo, observamos que no
início da sociedade capitalista as mulheres ascenderam como força de trabalho, porém com
uma remuneração que chegou à alcançar um terço do salário recebido pelos homens. Outro
ponto é que, devido a condições precárias de formas de manutenção a vida encontradas nesse
contexto social, também podemos ver mulheres como líderes de revoluções e protestos, até
mesmo por comida, por verem os seus filhos perecerem a fome (FEDERICI, 2017).
Ainda em um contexto histórico, de acordo com Silvia Federici (2017), em meados
do século XVI, vemos uma caça às bruxas, como medida do Estado para manter uma
proporção populacional. De acordo com a canção feminista “Abordo de Estado”, que tem
origem na Itália em 1971, as mulheres eram obrigadas a “produzir filhas e filhos para o
Estado”, este controle estatal provocava uma alienação sobre o próprio corpo da mulher. O
que se estende a diversos âmbitos da sua vida, como a desvalorização do trabalho da mulher, e
sua delegação para o espaço doméstico. Fatos estes, que geralmente não estão citados em um
contexto histórico, quando se pensa na origem do capitalismo, em obras clássicas como a de
Karl Marx.
Marx também reconheceu que “muito capital que aparece hoje nos Estados Unidos,
sem certidão de nascimento, é sangue infantil ainda ontem capitalizado na Inglaterra”
(ibidem, p.945). Por outro lado, não encontramos em seu trabalho nenhuma menção às
profundas transformações que o capitalismo introduziu na reprodução da força de
trabalho e na posição social das mulheres. Na análise de Marx sobre a acumulação
primitiva tampouco aparece alguma referência à “grande caça às bruxas” dos séculos
XVI e XVII, ainda que essa campanha terroristas patrocinada pelo Estado tenha sido
fundamental para a derrota do campesinato euroupeu, facilitando sua expulsão das
terras anteriormente comunais (FEDERICI, p.120, 2017).

Historicamente o papel da mulher vem sendo demarcado de acordo com a postura


masculina (WOODWARD, 2014; BOURDIEU, 2002; FOUCALT, 1988) situação que dá base
para posturas desiguais. É criado um imaginário de que o homem é o que sustenta o lar, que
dá força de trabalho e a mulher ficam reservadas as atividades domésticas, cuidar dos filhos e
da cozinha, dados que também demonstram uma postura heteronormativa.
Essa mudanças históricas – que tiveram auge no século XIX com a criação da figura
da dona de casa em tempo integral – redefiniram a posição das mulheres na sociedade
e com relação aos homens. A divisão sexual do trabalho que emergiu daí não apenas
sujeitou as mulheres ao trabalho reprodutivo, mas também aumentou sua dependência,
permitindo que o Estado e os empregadores usassem o salário masculino como
instrumento para comandar o trabalho das mulheres (FEDERICI, p.145, 2017).

O contexto de gênero parte de uma formulação cultural de poder entre o masculino e o


feminino. A palavra proferida por mulheres cotando sua própria história, como protagonistas,
tendo como suporte a figura do livro, pode formular uma desmontagem do que chamamos de
mulher, ao formularem uma narrativa que quebra um silenciamento feminino sobre a sua
própria vivência, e por vezes quebrando um olhar heteronormativo.
Se na aurora da modernidade o corpo feminino, descrito a partir da ênfase nos órgãos
reprodutivos, no ‘cérebro menor’ e na ‘fragilidade dos nervos’, foi utilizado para
definir o lugar ‘naturalmente’ inferior das mulheres na sociedade, justificando a sua
permanência no espaço privado, hoje um novo território se constitui para pensar a
relação entre os sexos. A crítica ao modelo essencialista da diferença sexual dos
séculos XVIII e XIX prosperou e deu frutos. Caiu por terra o projeto de tornar
universal o modelo da dominação masculina, em que a mulher só tem lugar como
objeto (ARÁN, 2003, p. 400).

Temos um enunciado que carrega consigo o potencial para provocar uma performance,
repensando a materialidade e a fixidez dos corpos. A questão é que estes corpos podem
subverter a norma genérica a ressignificá-la. Saindo da fundamentação subordinada do
feminino tanto no âmbito social, quanto econômico e político. A mulher pode assumir papel
de protagonismo e ecoar a sua própria história.
No século XIX, observamos a ascensão de um movimento que adquire caráter
político, ocorrendo nos Estados Unidos da América, este movimento luta por ideais
igualitários e direitos das mulheres, sendo denominado de feminismo. A fase inicial do
feminismo é marcada pelo movimento sufragista, que luta pelo direito das mulheres terem
participação política, votarem e serem votadas.
Seguindo a linha do tempo, vemos em 1980 o neofeminismo, que busca uma
transformação mais abrangente nas situações sociais e culturais que envolvem homens e
mulheres. Mais adiante nos anos 90, o feminismo retoma seus próprios ideais
problematizando novas questões, e dando maior atenção a pautas como a questão social das
mulheres negras (HOLANDA,1994). Vemos então que o feminismo fez-se refletir sobre
história e cultura.
Nesse sentido, o enunciado proposto por Simone de Beauvoir na frase mais falada,
lida e comentada desse livro – “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher” – provocou
um deslocamento da naturalização da condição feminina construída nos séculos XVIII
e XIX e abriu um leque de possibilidades para pensar “o que o sujeito pode se tornar,
sendo (também) mulher”. O efeito social provocado pelas mulheres na luta por seus
direitos introduziu a necessidade de pensar sua história. A partir daí, incorporou-se no
horizonte do trabalho reflexivo o efeito histórico da relativização da ‘essencialização’
do feminino. Na medida em que foi sendo tecida uma história coletiva, puderam-se
reconstruir histórias individuais e reinventar projetos para o futuro. (ARÁN, 2003,
p.400)

Sendo assim, vemos que o modelo essencialista que havia sido proposto nos séculos
XVIII e XIX que propõe uma dominação masculina, ao ser refutado e debatido abre espaço
para modelo mais igualitário, a partir de uma visão feminista. No que concerne ao discurso
feminista vemos a literatura como importante veículo de difusão de ideias e ideais.
No ensaio de Viginia Woolf, nomeado Um teto todo seu, a autora aborda questões
como o binarismo cultural, dominação masculina, bem como o fato de algumas mulheres
terem seus textos dados como anônimos, pela falta de espaço dentro do contexto educacional,
social e político. A autora profere um discurso feminista em seu texto, problematizando
questões como: A mulher pode ser escritora? O que é ser escritora?
O texto prossegue denunciando que, no século XIX, as mulheres que
desejassem se tornar escritoras necessitavam, ainda, se esconder sob um
pseudônimo masculino. Esse fenômeno só viria a ser desfeito com o advento
do século XX, no qual as mulheres emergiram como escritoras, poetas e
pesquisadoras, sem a necessidade de ocultar seu nome (CAVALCANTI;
FRANCISCO, 2016, p.46).

Podemos assim observar que a apropriação das mulheres de um lugar a que lhes foi
historicamente relegado, como o de construírem o seu próprio discurso, é uma ferramenta de
resistência. Ao passo que podem também elaborar discursos feministas, visando a igualdade e
questionando padrões socialmente impostos, as mesmas fazem da palavra um potencial de
desconstrução de padrões dados e tecem suas vozes de acordo com suas vivências.
Outra autora que aborda a potencialidade do discurso, no contexto da mulher negra é
Grada Kilomba, na introdução do seu livro Memórias da Plantação, a mesma esclarece uma
série de terminologias que são usadas, ou tem origens, em termos que subjugam as mulheres
negras. Ela termina seu glossário com a seguinte afirmação: “Parece-me que não há nada mais
urgente do que começarmos a criar uma nova linguagem. Um vocabulário no qual possamos
todas/xs/os encontrar, na condição humana” (KILOMBA,p.15,2019).
Em seu texto Kilomba aborda o fato da escrita ter a potencialidade para ter acesso a
uma história oculta que foi renegada historicamente, já que não seriam todos os discursos a ter
espaço e visibilidade igualitária. Sendo assim, ao fazer o processo de escrita essas vozes
femininas sairiam do lugar do outro, aquele sobre quem é contada a história e se tornaria
sujeito. Neste espaço de sujeito, se apropriaria de sua própria história, seria narradora da sua
própria ótica (KILOMBA, 2019).
Se tem um fator biológico que delimita a identidade, segundo Foucault (1988) no
momento em que o médico diz: ‘É uma menina’. Ele não está só afirmando o sexo biológico,
mas também as sequencias de padrões que aquele corpo deve desempenhar dentro do social,
seus deveres e posturas. Ao colocar a relação da família como balizador central, um
determinado discurso fomenta dominação, e divergência de classes. Tais fatos culminam em
uma série de padrões e comportamentos impostos e dados como aceitáveis. O matrimonio e a
religião por vezes atuando como órgãos reguladores dessa ordem.
É traçada uma linha de divisão entre o ‘nós’ atores que desempenham papel de reforço
dentro de uma tradição arraigada, e ‘eles’ que de acordo com as representações culturais se
integra ou se exclui (HALL,2005). O simbolismo que é atribuído a estes corpos tem
repercussão que perpassa as relações pessoais, até a divisão social de trabalho. Assim a
dicotomia que é associada aos sexos como cabeça/coração, resistente/ frágil, cima/ baixo,
atividade/ passividade acabam revelando uma postura por vezes negativas do próprio sexo
(BOURDIEU, 2002).
Possuir uma identidade cultural nesse sentido é estar primordialmente em
contato com um núcleo imutável e atemporal, ligando ao passado o futuro e o
presente numa linha ininterrupta. Esse cordão umbilical é o que chamamos
“tradição”, cujo teste é o de sua fidelidade às origens, sua presença
consciente diante de si mesma, sua “autenticidade”. É, claro, um mito- com
todo potencial real dos nossos mitos dominantes de moldar nossos
imaginários, influenciar nossas ações, conferir significado às nossas vidas e
dar sentido à nossa história. (HALL, 2003 p.29).

O contexto de gênero parte de uma formulação cultural de poder entre o masculino e o


feminino. Formulando a desmontagem do que chamamos de mulher, observando que ações
podem ser produzidas por palavras. Temos um enunciado que carrega consigo o potencial
para provocar uma performance, repensando a materialidade e a fixidez dos corpos. Essa
performatividade vai de encontro as normas regulatórias que colocam sujeitos nas margens
sociais (BUTLER, 1993). A questão é que estes corpos podem subverter a norma genérica a
resignificá-la. Saindo da fundamentação subordinada do feminino tanto no âmbito social,
quanto econômico e político. A mulher pode assumir papel de protagonismo em sua história.

4. RESULTADOS/DISCUSSÃO

A primeira edição do projeto Tecendo Vozes ocorreu dentro da programação da X


SEMALE com o intuito de ser uma ação experimental antes de levá-lo para as bibliotecas da
UFCA, possibilitando a reflexão acerca do desenvolvimento da atividade, bem como a
identificação de pontos de melhoria. Para isso, foram aplicados questionários para os
participantes opinarem sobre os pontos positivos e negativos da experiência vivenciada.
A oficina foi dividida em quatro momentos, sendo eles: (I) Leitura dinâmica:
Sentados em círculo, os participantes realizaram conjuntamente e em voz alta a leitura da
crônica “Elis”, texto de autoria da mediadora Sauanny Oliveira que narra a experiência de
uma mulher vítima de violência sexual. Nessa atividade, cada pessoa ficou responsável pela
leitura de um parágrafo, possibilitando que todos passassem pela experiência do ouvir e ser
ouvido. (II) Em seguida, houve um momento de partilha de saberes com a dinâmica da teia.
Nela, os participantes foram convidados a compartilhar suas próprias indicações de livros e
textos produzidos por mulheres que foram relevantes nas vidas de cada um deles. Essa
dinâmica será melhor explicada ao longo deste relato. (III) A terceira parte foi a apresentação
de livros elegidos pela mediadora aos participantes, todos eles atendendo aos requisitos de
serem produzidos e contarem experiências de mulheres. (IV) Por fim, foi produzido um
fanzine pelos participantes com indicações de produções femininas na literatura, para que este
fosse posteriormente compartilhado com mais pessoas.
O mundo que nos é mostrado, não é um reflexo, mas uma refração (assim
como a informação). Isso significa que sempre veremos o mundo de maneira
deformada, a partir desses olhares? A chave é essa: são vários olhares e, estes,
nos permitem confrontá-los, estabelecer relações, identificar interesses. O
"nosso" olhar crítico possibilita uma aproximação com o real (este é um termo
complexo, mas, de maneira simplista, pode ser empregado aqui). Em suma:
nosso conhecimento se constrói mediado e, da mesma forma, somos
mediadores na construção do conhecimento dos outros. (JÚNIOR, 2015, p.11)
Diante disso, podemos observar que o processo de mediação se dá de dois modos
principais. Primeiramente, o processo realizado pela mediadora se deu de forma consciente e
direta através da mediação oral. Depois, com a produção do fanzine, ao passo que os
participantes da oficina passassem as informações contidas ali adiante ou distribuíssem o
material para outras pessoas, estava sendo realizada uma mediação indireta. Assim, foram
compartilhados conhecimentos e visões de mundo.
[...] e pensei no órgão ressoando na capela e nas portas fechadas da biblioteca;
e pensei em como é desagradável ser trancada do lado de fora; e pensei em
talvez seja pior ser trancada do lado de dentro; e, pensando na segurança e na
prosperidade de um sexo e na pobreza e insegurança do outro, e no efeito da
tradição e na falta de tradição na mente de um escritor, pensei finalmente que
era hora de recolher a carcaça amarfanhada do dia, com suas discussões e
impressões e sua raiva e seu riso, e atirá-la num canto (WOOLF, 2004, p. 29).
Dentro do processo de construção do projeto, foram escolhidos alguns livros que
seriam indicação de obras produzidas por mulheres e que contam histórias sobre mulheres. A
partir disso, podem ser elencadas algumas questões como: Por que utilizar histórias de
mulheres? Quais as obras usadas como indicação de leitura ao público? Por que estas obras
foram escolhidas? Qual a relação da oficina com as dimensões da mediação? Pretendemos
neste texto esclarecer essas questões de forma sucinta.
Ao longo da história contemplamos diferentes visões sobre as mulheres. Alguns
destes olhares relatam o papel feminino como protagonista ou, até mesmo, autora da fala
sobre si própria. A mulher desempenha, assim, o papel de agente social da sua própria história
(PERROT, 2008). Dentro do contexto da sociedade com base patriarcal em que vivemos, o
Tecendo Vozes busca colocar a mulher como protagonista de narrativas e dar visibilidade as
produções femininas como narradoras das suas próprias experiências. Por isso, foi
estabelecido o critério de abordar apenas obras produzidas por mulheres e que relatam
histórias femininas.
No tocante a dimensão dialógica da mediação o projeto Tecendo Vozes, busca
aumentar o repertório do leitor e promover uma troca de experiências acerca das obras que
marcaram a sua trajetória, de acordo com tema delimitado pelo projeto. Usamos o termo
“leitor”, com base na proposição de Sueli Bortolin, que enuncia:
Pensar a leitura, a literatura e o leitor numa perspectiva estreita é um equívoco, pois a
literatura em si é uma manifestação aberta, dinâmica, que possibilita expressão da
imaginação do leitor; leitor que deve ser entendido em seu sentido amplo, isto é, todo
aquele que tem na sua essência, independentemente das suas condições: sociais,
econômicas, educacionais, psicológicas, religiosas, culturais e afetivas, a capacidade
de perceber minimamente ou profundamente as manifestações ocorridas em seu
contexto e fora dele. (BORTOLIN, 2014, p.20)
As obras a serem compartilhadas com o público foram eleitas a partir de categorias
que não se enquadram ao meio massivo de visibilidade literário, que são: (I) A metodologia
da escrita de si; (II) Relatos da mulher estrangeira; (III) A narrativa da mulher negra; (IV)
Histórias de mulheres que não se enquadram ao padrão heterossexual, sejam elas lésbica,
bissexuais ou transsexuais. A partir dessas categorias norteadoras, foram selecionados os
seguintes textos: A crônica “Elis”, produzida por Sauanny Oliveira (escrita de si); os livros
“Persépolis” e “Bordados” ambos da autora Marjane Satrapi (mulher estrangeira), o livro
“Americanah” de Chimamanda Ngozi Adichie (mulher negra), e por fim o livro “Tudo nela
brilha e queima” de Ryane Leão (mulher bissexual).
Ao fim do momento de partilhas foi produzido um fanzine, é possível observar que
essas indicações de leitura foram combinados aos textos e referências trazidas pelos próprios
participantes. Dessa forma, a partir da combinação de seus repertórios e leituras, formou-se
um produto final diverso, que combina as obras supracitadas com a particularidade de cada
um dos membros integrantes. Com isso, se deu um processo dialógico da informação.
O processo dialógico possibilita a interlocutores distintos o encontro e a
manifestação das subjetividades que emanam da interlocução inter e
intrasubjetiva. Na mediação consciente, a dialogia torna exequível o exercício
da crítica e a observação mais clara das incompletudes e lacunas que
promovem a desestabilização dos conhecimentos estabilizados em cada
sujeito. Ao mesmo tempo, o processo cooperativo e de 'trocas" objetivas e
subjetivas também é capaz de fazer com que seja acionada no sujeito desse
processo o que Vygotsky (1998,2001,2003, 2003) denominou de zona de
desenvolvimento proximal, entendida como uma instância potencializadora
do desenvolvimento interior e da construção de sentidos, o que é
imprescindível à apropriação da informação. (GOMES, 2014,p.48)
Adiante, no tocante as dimensões da mediação, podemos abordar a dimensão
estética. Para a oficina foi escolhida uma sala de aula para proporcionar aos estudantes,
diferentes momentos dentro da atividade. Um primeiro em que sentamos ao chão, em formato
de círculo, realizando uma dinâmica para nos conectarmos e trocarmos conhecimentos. Já no
segundo momento, cada aluno sentava em uma cadeira para o processo de produção do
fanzine, da forma que lhe fosse mais confortável e interessante, já que conforme GOMES
(2014):
Os sujeitos da ação comunicativa precisam transitas com 'conforto' no
'ambiente' do encontro, no espaço da interlocução, precisam desenvolver
sentimento de pertença, já que o encontro promissor com a informação é
aquele capaz de gerar o terreno propício para o desenvolvimento intelectual e
a construção do conhecimento" (GOMES, 2014, p. 50).
Conforme citamos anteriormente, foi realizada a “Dinâmica da Teia”, em que,
primeiro, todos se sentavam em formato de círculo. O círculo rompe com a noção de
hierarquia e coloca todos em um mesmo nível, atendendo assim a diretriz do projeto que foge
de modelo hierárquico e se volta para a educação horizontal. Procurando uma alternativa da
dinâmica de poder sobre outras formas de conhecimento. Ao buscar uma saída da ideia de que
os pesquisadores e intelectuais possuem o papel de dar o conhecimento, revelá-lo aos que não
estão incluídos na sua classe (FOUCAULT, 1996).
Estando todos iguais nessa formação, é repassado um barbante, cada pessoa que
recebe esse barbante indica um obra que tenha lhe marcado em seu repertório de leitor,
atendendo os pré-requisitos já citados e repassa o barbante para outro que também está no
círculo. Seguindo assim até que todos tenham feito suas indicações. Ao fim, temos diante de
nós uma teia, no espaço que o barbante foi se entrelaçando, na medida em que era lançado
para uma nova pessoa. Essa representação indica a mescla dos conhecimentos que foram
compartilhados. Cada nova fala se somava com a anterior e nos instigava a praticar novas
leituras. Em alguns casos, havia reconhecimento e identificação entre as leituras e referências
dos participantes.
Dentro dessa abordagem, compreende-se a mediação como uma ação
semiótica, dependente das diversas linguagens, e que para alcançar sucesso é
também dependente da consciência de seus agentes de que todos os
envolvidos na ação mediadora são interlocutores, portanto, também
protagonistas do processo. Tais características da mediação colocam mais uma
vez a sua dimensão estética em pauta, em especial por reafirmar a mediação
como uma ação ligada ao movimento multidirecional, a um agir na vida,
representando uma ação geradora de experiências a partir do encontro com a
informação e com o outro {ou outros) que a produziram, promovem e
disponibilizam, e ainda do encontro com os próprios dispositivos
(instrumentos, processos, produtos, serviços, espaços e ambientes) que
possibilitam a busca, o acesso e o uso da informação. (GOMES, 2014,p.51)
Dentro dessa dinâmica de reconhecimento e participação ativa, partimos para a
dimensão formativa. Para Pareyson (1993 apud GOMES, 2014) na medida em que os sujeitos
sociais interagem, eles se estabelecem em um constante e infindável processo de formativo, a
partir do qual "a experiência possibilita o aprender e alteração do estágio intelectual, cognitivo
e afetivo do sujeito". Na oficina, a mediadora propôs uma série de obras escritas por
mulheres, explicou como se dá o processo de elaboração prática e criativa de um fanzine e
suscitou a leitura de uma crônica conjunta. Embora todas essas atividades tenham sido
pré-definidas por ela, o resultado da oficina foi uma construção conjunta, que derivou da
interação e entrelaçamento das subjetividades de cada um dos integrantes. A partir disso, é
possível inferir que todos eles saíram modificados dessa experiência. Em maior ou menor
grau, todos foram apresentados a outras obras, outras vivências, outros modelos de produção
de comunicação.
Para acessarmos essas modificações, ao final da oficina foi aplicado um questionário
aberto, composto por duas perguntas norteadoras: "Quais os pontos fortes dessa experiência?"
e "Que aspectos você melhoraria?". Para essa atividade, não foi exigida a identificação dos
participantes, permitindo que eles se sentissem mais confortáveis para explanar suas ideias e
opiniões. As imagens 1 – 2 apresentam algumas das respostas ao questionário, conforme
abaixo:

IMAGEM 1 - RESPOSTA DE PARTICIPANTE NÃO IDENTIDICADO AO


QUESTIONÁRIO BASE
IMAGEM 2 - RESPOSTA DE PARTICIPANTE NÃO IDENTIFICADO AO
QUESTIONÁRIO BASE

Tendo base nessas informações foram organizadas as edições do projeto online, em


parceria com a biblioteca Biblioteca Salesiana Luiz Magalhães, a convite da bibliotecária
responsável pelo espaço, Liliane Gomes. Foram elencadas as seguinte obras para serem
abordadas no projeto Tecendo Vozes:

Quadro 1: Calendário das edições do projeto Tecendo Vozes de 2020


Data Mediador(a) Obra
18/09 Sauanny Oliveira Abertura: Crônica Elis, de Sauanny Oliveira e
Bordados, de Marjane Satrapi
25/09 Liliane Gomes Memórias da plantação: episódios de Racismo, de
Grada Kilomba
02/10 Eliete Bezerra Histórias de ninar para garotas rebeldes: 100 fábulas
sobre mulheres extraordinárias, de Elena Favilli
09/10 Jade Luiza História da Beleza no Brasil, de Denise Bernuzzi de
Sant'anna.
23/10 Pablo Soares Pipi Raiolaser – A anunciação da nova era, de Pipi
Raiolaser, pseudônimo de Pablo Soares
30/10 Kleber Fideles A bela e a Fera, de Elizabeth Rudnick
06/11 Suellen Lôbo Para educar crianças feminista: um manifesto, de
Chimamanda A. N.
13/11 Anderson Maia A hora da estrela, de Clarice Lispector
20/11 Nirvana Lima O que você vai ser antes de crescer? - Youtubers,
infância e celebridade, de Renata Tomaz
27/11 Luís Celestino Paraíso , de Tatiana Salem
Fonte: Elaborado pela autora (2020).
Dentre essas edições uma deles foge ao padrão de ser escrita por uma mulher, sendo
esta Pipi Raiolaser – A anunciação da nova era, que foi escrita por Pablo Soares, utilizando
um pseudônimo feminino de Pipi Raiolaser. O encontro com Pipi RaioLaser foi marcado por
uma série de particularidades que o tornaram singular. Tanto pelo encontro em si que fora
planejado originalmente para ocorrer de forma presencial, mas que, por conta do isolamento
social obrigou o encontro a ocorrer de forma virtual através de uma sala do GoogleMet, como
pelo fato de a autora em questão ser ao mesmo tempo Pablo Soares e Pipi Raio Laser o que
provoca necessariamente uma reflexão sobre a escrita feminina.
O desafio de ocorrer de forma virtual algo que presencialmente traria a performance
aumentava esse desafio. Não havia, ali, portanto, um corpo presente fisicamente diante de um
público necessitando de uma mediação tecnológica e de um enquadramento da cena
perfomartiva ao meio. No entanto, o que se viu foi um encontro singular não no sentido de
superar as dificuldades encontradas, mas se singularizar o encontro diante dos recursos que se
tinham disponíveis. É a partir disso, que será proposta uma breve reflexão que pretende
percorrer uma reflexão sobre a arte dos encontros e as possibilidades de uma escrita feminina
suscitadas pela experiência com Pipi RaioLaser.
Marcado para as 14 horas do dia 23 de outubro, o encontro começou com a voz de
Pipi Raio Laser: “Estou conversando com um monte de mulher”. Há, diante disso, uma
inversão na perspectiva de que não se trata de observar a escrita de uma autora feminina, mas
de provocar o público a também se perceber como “um monte de mulher”. Pablo-Pipi Raio
Laser carrega na voz a potência crítica de não só observar a questão feminina a partir de
qualquer essencialismo seja ele cultural ou biológico e a subversão dessa dicotomia, algo já
tematizado e discutido pela teoria feminista (BUTLER, 2017). A provocação passa da autoria
para o público, da escrita para a leitura, da fala para a escuta. Esse deslocamento do centro das
preocupações é então anunciado não como uma teoria, mas como um encontro. “Essa tarde é
de experimentação”. Há, assim, um encontro de corpos mesmo estando diante de telas.
Encontro, no sentido, de relações, de composições, decomposições. E, sobretudo, começa
uma tarde de afetos e de movimentos, mesmo estando todos sentados ou deitados diante de
uma câmera. Para tentar compreender como isso pôde ser possível, é preciso uma leitura
sobre a compreensão dos encontros, dos corpos e dos afetos.
Diante do encontro, corpos entram numa combinação ou numa tensão. Corpos se
encontram e se modificam através dos encontros. Na leitura que faz dos corpos pelos estoicos,
Gilles Deleuze (2009), instiga a pensar que corpos não se definem apenas pela sua
materialidade física ou biológica. Corpos podem ser pensamentos. Interessa a Deleuze pensar
sobretudo os encontros dos corpos. Deleuze é sobretudo um filósofo preocupado com a
questão do acontecimento que emerge do encontro dos corpos, das marcas nas superfícies
desses encontros e dos afetos que daí surgem. O filósofo francês remete a Baruch de Spinoza
para construir uma filosofia dos acontecimentos. O que nos interessa aqui, de forma bastante
resumida, é a partir da leitura de Deleuze poder oferecer uma leitura sobre o encontro
ocorrido com Pipi Raio Laser sem nenhuma pretensão de esgotar o tema, oferecendo uma
chave de leitura entre tantas outras possíveis.
O afecto é aqui compreendido como poder de afetar e ser afetado. Cada encontro é,
portanto, um afecto. Cada encontro suscita diferentes afetos. Pode-se mesmo dizer que cada
afecto é uma imagem e cada encontro produz diferentes imagens. O encontro com Pipi
RaioLaser é único, singular e, ao mesmo tempo, produz diferentes afetos. Trata-se, portanto,
de uma potência do cordel que carrega uma performatividade pela leitura, pela voz, pelos
ambientes em que é lido e performado. Cada leitura de um texto já é singular por si pela
forma como os leitores se apropriam e reescrevem o texto na leitura a partir de suas
referências e da forma como o texto os afeta. Mas, no caso do cordel, a performance da leitura
em voz alta, das encenações, das ênfases, dos corpos que se encontram tornam cada leitura
um encontro singular. A biblioteca já é pela sua natureza um local de encontro, de troca de
afetos. Trata-se já de um ambiente de troca de afetos. Um ambiente cuja vida é carregada pelo
prazer táctil, pelo peso dos livros e dos afetos suscitados pelos encontros e pelas leituras.
Quando Pablo Soares / Pipi Raio Laser anuncia que “essa tarde é de experimentação”
carrega a força dos encontros para uma dimensão virtual e digital de uma biblioteca que não
está parada. Não existe biblioteca parada quando a leitura e a troca de afetos permanece ativa.
O que o projeto Tecendo Vozes propõe é tornar os encontros da biblioteca carregados de
afetos alegres, porque nem todo encontro produz bons afetos, não no sentido moral, mas no
sentido de “aumento de potência”. A biblioteca dentro de um ambiente de formação
acadêmica deve aumentar a potência de agir. Num momento de isolamento, a biblioteca se
reiventa e o projeto Tecendo Vozes conseguiu, nesse encontro, reunir pessoas de Juazeiro do
Norte, Crato, Juazeiro (Bahia), Salvador, entre outras cidades geograficamente distantes
fazendo possível um encontro de afetos.
As afecções produzem afetos que vão da alegria à tristeza. Segundo Deleuze, é
necessária uma preparação para os encontros. Não viver ao acaso dos encontros, mas saber
escolher os encontros. Uma das utilidades da razão é fazer com que saibamos mais ou menos
escolher nossos encontros. Escolher os encontros que aumentem nossa potência de agir.
Roberto Machado (2009) nos ajuda a compreender a diferença entre afecções e afetos.

“Se uma afecção é um estado – o estado de um corpo enquanto ele sofre a


ação de outro corpo – o afeto ou sentimento não é propriamente um estado,
mas a passagem, o movimento, a transição, a variação de um estado a outro.
O afeto é a variação contínua da potência de agir de alguém, determinada
pelas ideias que ele tem” (MACHADO, 2009, p. 77)

O encontro com Pipi RaioLaser não é um encontro alegre pelo caráter festivo ou por
uma leveza que possa suscitar – embora isso também seja verdade. É um encontro alegre pela
potência de agir que o encontro engendra. É um encontro de corpos mesmo as pessoas não
estando presentes fisicamente no mesmo espaço. É um encontro de movimento, mesmo as
pessoas estando sentadas ou deitadas assistindo ao encontro.
Não é um “corpo sem órgãos” no sentido de não haver um corpo físico materialmente
constituído num espaço e num tempo específicos. É uma experimentação em que todos os
corpos são ao mesmo tempo um corpo único. O que nos interessa aqui é chamar atenção para
a intensidade do encontro e a capacidade de provocar o deslocamento das noções de
identidade.

“O corpo intensivo, pleno de afetos, é uma potência, antes de ser uma


identidade. Daí a importância da noção de corpo sem órgãos. Um corpo sem
órgãos é um corpo intensivo, o corpo do acontecimento, e não o corpo de
uma unidade orgânica. Um corpo definido não pelo seu gênero, mas por sua
potência”. (SALES, 2014, p. 193)

Vale destacar aqui a noção de movimento dentro do contexto de um encontro


mediado pela tecnologia. Como pensar o movimento dentro de um encontro virtual? Como é
possível falar de movimento quando as pessoas estão reunidas num sala online estando
sentadas ou deitadas diante de uma tela? Não estamos diante de um paradoxo já que a própria
ideia de biblioteca remete ao silêncio, a um cuidado na movimentação dos corpos para que
não atrapalhe os outros ali presentes e que, transposto para um ambiente virtual, essa
sacralidade do silêncio como ritualística dos ambientes informacionais permaneceria mesmo
em ambientes online? É Pipi Raio Laser quem nos provoca a pensar possibilidades diferentes.
O texto do seu cordel é marcado por vários trechos sobre o silêncio. As vozes femininas
silenciadas como um ato de violência. Essa ausência de autoras nas bibliotecas ou a
quantidade menor de autoras em detrimento dos autores configurando-se como uma espécie
de “silenciamento acadêmico”. Pipi Raio Laser coloca então o silêncio num entre-lugar. O
entre-lugar da violência das formas de silenciamento e do silêncio como potência de ação. “O
silêncio é ação”, sentencia. Sem qualquer tentativa de dar um significado único a essa frase,
mas a potência do enunciado que coloca dimensões aparentemente contrárias, “silêncio como
ação” é a tentativa de construção de um sentido outro, múltiplo já que sendo ação carrega o
movimento em si. Movimento do pensamento. Movimento do deslocamento do sentido.
Pablo Soares / Pipi RaioLaser ainda provoca o público que o assiste a refletir sobre a
própria história do cordel, bem como sobre os processos criativos na elaboração da poesia e
da escrita do cordel. Distante de uma historiografia oficial do gênero, o cordel tem uma
história marcada pela voz de mulheres que durante o trabalho cantavam versos para suas
filhas e filhos. “O cordel carrega vozes de mulheres silenciadas e que cantavam pra seus
filhos e netos”. Cordel é canto. Não reivindica o estatuto de reconhecimento de literatura pelo
cânone acadêmico-formal já que independente desse estatuto, “escrita como a base de toda
literatura negando essa voz que nasce. Que jorra. Que é água”.
Ainda sobre movimento, o cordel como “canto” instiga-nos a pensar o corpo em
movimento. O corpo que se movimenta no canto. O pensamento em movimento vindo da
leitura. Não se busca uma transcendência com a leitura do cordel. O cordel não é pautado por
uma metafísica. Parecendo dialogar com o dramaturgo francês Antonin Artaud, Pablo nos
instiga a pensar que “cordel é corpo e corpo é sempre movimento”. Afastando de um modelo
ideal de cordel, nos aproximando de uma dimensão de “experiência”, “de corpo” de
singularidades, o cordel passa a ser visto a partir de um plano de imanência.
Não queremos desconsiderar as dificuldades impostas pelo ambientes virtuais
sobretudo porque sendo corpo, sendo experiência, sendo impresso, esse cordel vindo das
crônicas informativas de feiras das cidades mais distantes do Nordeste brasileiro, atravessa,
como todas as outras expressões artísticas e culturais do país, uma enorme dificuldade em
tempos de pandemia. Mas o que Pablo/Pipi RaioLaser nos mostra é que o cordel também
encontra uma forma de resistir.
Por fim, é importante uma breve reflexão sobre o fato de sendo Pablo Soares um
homem cis poder participar do projeto Tecendo Vozes como representante de uma “escrita
feminina”. Não está em jogo qualquer essência da mulher, do feminino, ou da sexualidade
feminina. Só é possível entender esse feminino afastando-se de uma perspectiva
essencializante. Não se trata também de provocar gestos de desnudamento de um feminino
encoberto do artista. Não há algo secreto, escondido ou indecifrável tanto quanto não há um
dado ou elemento transparente. A potência da experimentação da(o) artista
masculino/feminino está nos deslocamentos de sentidos. Na crueldade, tal qual pensada por
Antonin Artaud, como uma arte que desloca os territórios firmes sendo esse território a casa,
o corpo e a vida. Não há uma questão do feminino na obra de Pablo. Há várias e múltiplas
questões advindas do seu processo criativo e da sua experimentação junto com o público.
Quando Pablo Soares / Pipi Raio Laser anuncia que está conversando com “um monte
de mulher” mesmo tendo no público vários homens cis, desloca para o público a questão
feminina. Se foi decretada a morte do autor e cada leitura representa a reescrita de um texto, a
questão da escrita feminina deve ser pensada também a partir da leitura do público. Pablo
Soares iniciou sua apresentação enfrentando a questão do feminino. “A mão que escreveu foi
dessa personagem”.
Num outro momento, ainda pensando a questão da escrita feminina, diante da câmera
e de um público atento, anuncia: “me coloquei na minha casa no lugar mais feminino”. O que
define um canto da casa como sendo o “lugar mais feminino”? Como pensar o feminino a
partir dos espaços? E aqui, mais uma vez, provoca a pensar que o feminino não é uma questão
de corpo tanto quanto não é um estilo de escrita. O feminino pode ser pensado a partir dos
espaços e territórios.
Por fim, Pipi Raio Laser provoca: “feminino é água. Pois ela nos compõe”. A
provocação da água não só como composição de todo e qualquer corpo. Como elemento
químico mais presente. Como elemento que se renova. Mas como algo que carrega uma
fluidez. Qualquer definição de feminino, nesse momento, escapa, flui, escorre.

5. CONCLUSÃO

Conforme já mencionado, o projeto Tecendo Vozes, também atua em um aspecto


político, que busca levar ao público, através de uma experiência de mediação,
posicionamentos socioculturais da mulheres escritoras, e suas óticas através dos textos ali
apresentes. Compondo em todas obras aqui citadas, aspectos biográficos, sendo esse ponto
comum escolhido, para dar maior visibilidade a essas mulheres e lembrar aos leitores ali
presentes, a importância de ouvir as histórias de mulheres através da sua própria voz.
Nada adianta ao leitor ter acesso aos livros, se não há a recepção dos
textos contidos neles por meio da mediação, seja ela informacional,
tecnológica, cultural, literária; utilizando-se dos recursos de
comunicação impresso, eletrônico ou oral. (BORTOLIN, 2014, p.106)

Ao passo que as autoras revelam suas impressões em formas de palavras, suas


vivências viram textos e o feminismo se torna verbo a ser propagado entre os leitores. “O
artista vê aquilo que não é possível ao sujeito comum; transforma suas impressões em
palavras, frases, textos e em verbos. Esses verbos podem ser transformados em ações na luta
por uma sociedade melhor e mais justa (CAVALCANTI; FRANCISCO, 2016, p.47).
Conforme GOMES (2014), o processo de mediação depende, necessariamente, da
interlocução entre os sujeitos e, por isso, trata-se de uma ação de interferência. Essa relação
suscita a preocupação entre a linha tênue que separa interferência de manipulação. Nesse
sentido, Almeida Junior (2009 apud GOMES, 2014) argumenta que a consciência do
mediador acerca dessa dimensão, pode reduzir a probabilidade da manipulação. Com isso,
chegamos à dimensão ética que, para GOMES (2014) relaciona-se com a conduta do
profissional para lidar com as potencialidades que a atividade mediadora possibilita.
Para GOMES (2014) essa relação entre ética e mediação se fortalece na medida em
que relacionamos a atividade mediadora ao ato de cuidar, ou seja, aquele que recorre ao
profissional da informação precisa sentir-se acolhido dentro do ambiente de pertença
informacional. Por isso, na oficina, a mediadora apresentou-se como tal, definiu claramente os
objetivos e critérios do projeto e indicou as obras escolhidas para dar início as discussões.
Entretanto, nada esteve engessado. A formação do círculo e a abertura de espaço de fala para
todos os membros, de acordo com as suas necessidades, criou um ambiente acolhedor, de
cumplicidade e companheirismo. Nenhum saber foi super ou subestimados, todas as
contribuições tiveram seu valor e foram relacionadas, somadas ou confrontadas por outros
discursos dentro do grupo. Por isso, apesar de consciente de seu papel, o processo de
mediação ocorreu de forma ética, respeitando a pluralidade de vivências dos sujeitos.
Bell Hooks (1995), faz a distinção entre o sujeito e objeto, ao afirmar que o sujeito
assume o protagonismo de sua história e identidade, podendo somente eles definirem quem
são. Já na dimensão de objeto a identidade é definida por outrem, a história é contada com
base na relação tecida com os sujeitos. Para a autora essa tomada de lugar, na passagem de
objeto à sujeito é um processo político de reinvenção e resistência. Podemos citar aqui o
poema de Sam-La Rose, que afirma: “Por que eu escrevo / Porque tenho que / Porque minha
voz / em todas as suas dialéticas / foi silenciada por muito tempo”.
Traçando um diálogo entre o proposto pela autora e o poema citado acima, vemos
um paralelo de ideais, em que se vê na escrita um refúgio e uma forma de expressão que está
para além de repassar o conhecimento, como também um espaço de apropriação e resistência.
O projeto Tecendo Vozes busca formular assim, um espaço de partilha de saberes, onde a
escrita feminina é sujeito protagonista. Com o intuito de aumentar a visibilidade sobre as
obras abordadas, e promover reflexões sobre as principais ideias ali contidas.

Nurturing Voices: History, memory and the echo of female voices

ABSTRACT
This research addresses the project Nurturing Voices. Here, some main points of the project will be
discussed in dialogue with the dialogic, aesthetic, ethical and formative dimensions of mediation. The
relevance of this research is in the context of the process of using the library as a living and interactive
concept with members of the community. The methodology used is qualitative, exploratory analysis.
With regard to the general objective of this research, we have as a basis to analyze how literary works
produced by women and that tell women's stories, can act as a tool to foster discussions about female
identity and memory in the library space.

KEYWORDS: Literature. Memory. Library. Feminine.

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