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Neste texto são apresentados e discutidos alguns registros das culturas infantis em Massacará,
aldeia central do Território Indígena Kaimbé demarcado e homologado em 1991 (Decreto N°
395), situado a 32 km de Euclides da Cunha, semiárido da Bahia, nordeste do Brasil. Trata-se
de um recorte da pesquisa de mestrado recém-concluída no âmbito do Programa de Pós-
Graduação em Psicologia da Universidade Federal da Bahia – PPGPSI/UFBA, de autoria de
Carine Monteiro de Queiroz, sob orientação da Profa. Dra. Ilka Dias Bichara e coorientação
da Profa. Dra. Clelia Neri Côrtes. A dissertação ‘Brincadeiras no TI Kaimbé’ que abordou a
ludicidade como uma sensível forma de criatividade, motriz da diversidade cultural dos povos
(QUEIROZ, 2012).
Sua escrita resultou dos diálogos colaborativos em estudos e ações etnossocioambientais
compartilhados nas equipes interdisciplinares e interculturais, quando diversos foram os
encontros e as vozes que ecoaram tornando inspiradores os caminhos. Percursos dialógicos,
multirreferenciais (ARDOINO, 1998), inicialmente em uma investigação
diagnostica/prognostica sobre a água e seus múltiplos aspectos (CÔRTES &
TARQUI/UCSAL/EMBRAPA, 2004-2008), seguindo através de uma pesquisa ação
formativa em mapeamento e sustentabilidade ecossociocultural (CÔRTES/UCSAL/FAPESB,
2008-2010). Continuando na atualidade em rede com os projetos Observatório da Educação
Escolar Indígena Yby Yara - Núcleo Local do Território Etnoeducacional Nordeste I
(CÉSAR/PÓSAFRO/UFBA/CAPES/INEP/SECADI, 2011), Culturas e Interculturalidade:
saberes/praticas, iniciativas locais e políticas culturais - CISAIS (CÔRTES/IHAC/UFBA,
2010), e Brincadeiras de Faz-de-Conta: um estudo sobre estrutura, regra e processo de
reprodução interpretativa em diferentes contextos no estado da Bahia
(BICHARA/PPGPSI/UFBA, 2010).
Nesta trajetória foram muitas as idas e vindas ao Território, desenvolvendo ações nos diversos
espaços da comunidade, inclusive na escola Kaimbé. Em todos os momentos haviam crianças
por perto, participando nas atividades, observavam, perguntavam, informavam, ou estavam
simplesmente ali, intensamente presentes, a brincar com seus pares. Passavam correndo,
rindo, empurrando seus “carrinhos de mão” construídos por elas mesmas. Estavam a
conversar, compartilhando saberes e fazeres, riscando com pedaços de pedras o chão das ruas
da aldeia. Assim, traçavam estradas que levavam a diferentes lugares, enquanto produziam
desenhos com seus corpos em movimento, interagindo com o mundo e com os diversos outros
em um processo criativo que marcava na terra, e na vida, os sentidos que interpretavam da
realidade experienciada. Estas eram cenas de um brincar espontâneo, expressão de uma
cultura infantil Kaimbé que emergia como um ritual diário nos vários espaços desta área
indígena.
Este brincar constituiu o tema nuclear da dissertação e estas crianças seus principais a(u)tores.
À pesquisadora coube também traçar alguns riscos, intercessões reflexivas entre a Psicologia
do Desenvolvimento, a Sociologia da Infância e a produção antropológica, ciente das questões
éticas que um exercício científico responsável suscita, diante das incompletudes e
complementaridades dos saberes (Souza Santos, 2009) e considerando a pertinência de
estudos comprometidos com a realidade brasileira (Gosso, 2004). Deste modo desenharam-se
os caminhos desta investigação, consoante com o compromisso ético e político de
reconhecimento deste grupo indígena a partir das expressões lúdicas de suas crianças,
entendendo-as como agentes nos grupos que integram, como legítimos interpretes de suas
próprias histórias e, por que não (?), das sociedades em que vivem.
O presente estudo constituiu uma pesquisa exploratória e descritiva, orientada pela abordagem
interpretativa (CORSARO, 2009, 2003). Os registros produzidos nos levam a refletir sobre o
olhar que temos dedicado às crianças indígenas, se é que temos olhado. Assim, considerou a
pertinência de estudos em Psicologia do Desenvolvimento atentos à diversidade cultural dos
povos, e que, para além de um viés patologizante, assuma a responsabilidade das Ciências
Humanas e, em especial, da Psicologia, de atuar comprometida com a promoção do respeito
às diferentes maneiras de viver e conceber o mundo, aproximando-se assim de um “mundo
real”, um mundo que é múltiplo (LORDELO, 2010).
Ao perguntarmos como as crianças Kaimbé compartilham criativamente cultura ao
brincar, abordamos a ludicidade como uma sensível forma de criatividade e focalizamos as
interdimensões que entrelaçam os aspectos culturais, ambientais e contextuais de
desenvolvimento. Ingressamos no campo das investigações que consideram a complexidade,
tanto dos níveis de análise reflexiva da ciência contemporânea, como dos próprios grupos
humanos, dada a dinamicidade dos processos globalizantes na atualidade, sem perder de vista
as contínuas ressignificações culturais.
Em seus grupos, as crianças Kaimbé comunicam saberes e exercitam fazeres, juntas. São,
portanto, parte ativa da comunidade, da sociedade humana, autores personagens dos enredos
que criam, inscrevendo-se em sua própria história. Neste brincar, interagem umas com as
outras e com o meio, exercitando e compartilhando formas de compreensão e ação no mundo.
As crianças não estão alheias ao universo ao seu redor, elas acessam o mundo adulto e
infantil, manipulando seus elementos materiais e simbólicos, tornando-se interlocutoras da
vida. Assim, participam ativamente através do seu brincar no processo de produção e
reprodução cultural, assim tornam “a vida uma aventura continuamente reinvestida de
possibilidades” (SARMENTO, 2003, p.13; 2004).
Então, inspirando-se nelas, busca-se também reencantar a aventura do conhecimento
aproximando-se de uma compreensão pautada na complementaridade dos saberes, propondo
como projeto de doutorado (QUEIROZ/PÓSAFRO/UFBA, 2013) investigar com as crianças
indígenas suas expressões lúdicas em seus territórios. Neste, adotando uma perspectiva
dialógica voltada para o reconhecimento das diversas vozes, expressões livres das culturas da
infância, serão utilizados recursos diversos com vista a registrar através de múltiplas
linguagens as concepções infantis acerca do mundo, suas expressões lúdicas, seus saberes e
fazeres e sua percepção do contexto em que vive.
Para isto, serão realizadas observações, entrevistas, grupos focais, além do uso de desenhos,
fotografias, filmagens e redações pelas próprias crianças. No planejamento serão realizadas
oficinas participantes com todas as crianças de 03 a 13 anos interessadas, alem de todos os
integrantes deste povo que assim desejem. Acontecerão leituras coletivas, revisões,
complementações e validações sistemáticas e grupais, também em alguns momentos com a
presença de lideranças e integrantes da comunidade, no sentido de que sejam dados
complementares aqueles oriundos do universo do grupo mais amplo, as famílias e
comunidade Kaimbé. Professores e estudantes desta etnia poderão também se engajar nesta
pesquisa como pesquisadores locais.
O material produzido irá compor um etnomapeamento dos espaços tempos destas crianças,
consoante com suas decisões articuladas às proposições da pesquisadora, tendo em vista
subsidiar a discussão dos aspectos teórico-metodológicos implicados em uma pesquisa desta
natureza, o planejamento, desenvolvimento e organização coautoral da investigação, a
produção de registros desde uma abordagem interpretativa (CORSARO, 2005, 2009;
ALDERSON, 2005; DELGADO & MULLER, 2005; PIRES, 2008).
Bibliografia