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RESUMO: O estudo que ora apresentamos faz parte de uma pesquisa mais ampla sobre
as infâncias da Amazônia brasileira, sobretudo a paraense, compondo o mosaico das
infâncias do Brasil. Teve por objetivo compreender a espetacularidade da criança-
brincante na cena carnavalesca em Belém do Pará. O percurso teórico-metodológico
centrou-se numa abordagem qualitativa pautada na Etnocenologia, em virtude de ser esta
a que melhor respondeu às questões concernentes ao fenômeno de estudo. Os
instrumentos de pesquisa foram: observação participante, conversa informal, entrevista
conversada, fotografias, desenhos e vídeos que possibilitaram a compreensão do
fenômeno. O lócus da pesquisa foi a Associação Carnavalesca Bole-Bole, localizada no
bairro do Guamá, Belém-PA. Os participantes foram 12 crianças na faixa etária de 5 a 12
anos e 08 adultos entre 23 a 60 anos, que viveram suas infâncias e ou tiveram experiências
com crianças nas ações desenvolvidas na Associação. O estudo mostrou que no carnaval
as crianças se tornam mestre-sala, porta-bandeira, mestre de bateria, rainha de bateria,
passista, percussionista, entre outros, na medida em que o jogo simbólico, por meio dos
papéis sociais, entra em cena; elas dão o melhor de si; o corpo da criança-brincante que
se pavoneia no carnaval é a sua espetacularidade.
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Professora efetiva da Faculdade de Dança da UFPA. Pós-Doutora em Artes (UFPA/2020). Doutora em
Educação pela (PUC Minas/2018). Mestre em Educação (UNASP/2005). Coordenadora do Núcleo de
Pesquisas Infâncias Amazônicas: Arte, Cultura e Educação de Crianças em diferentes contextos-NUPEIA
(UFPA/CNPq-2019). Membro de Asociación Latinoamericana de Sociologia (ALAS). E-mail:
simeiandrade@ufpa.br
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Professor efetivo da Escola de Teatro e Dança da UFPA. Pós-Doutor em Artes Cênicas (UNIRIO/2011).
Doutor em Artes Cênicas (UFBA/2006). Mestre em Artes Cênicas (UFBA/2003). Líder do Grupo de
Pesquisa TAMBOR – Grupo de Pesquisa em Carnaval e Etnocenologia (CNPq-2008). Consultor Ad Hoc
CAPES em Etnocenologia e coordenador do GETNO – Grupo de Estudos em Etnocenologia. Coordenador
do GT Etnocenologia da ABRACE (2016-2018). E-mail: miguelsantabrigida@hotmail.com
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Todos os subtítulos contidos no texto são fragmentos dos sambas enredos da Associação Carnavalesca
Bole-Bole dos anos 2019 (GuamÁfrica) e 2020 (Guamá: o rio que chove poesia), ambos de autoria de
Herivelto Martins e Silva (Vetinho), que foram ajustados especificamente para esse texto.
a compreensão das Práticas e Comportamentos Humanos Espetaculares Organizados
(PCHEO) das crianças-brincantes do carnaval; deste modo, o que nos interessou foi
entender como elas se colocam nessa grande festa popular que congrega a coletividade e
que adentra a vida cotidiana corroborando para o que Bião (2009) chamou de respiração
social. Assim, procuramos mostrar como a cultura popular se entrelaça com as culturas
infantis construídas na cotidianidade, possibilitando a edificação de corpos
etnocenológicos que vão se estabelecendo ao longo de toda a preparação para o desfile
oficial das escolas de samba “numa diversidade de estilo de interpretação que compõem
as [alas], as cenas e os personagens” (SANTA BRÍGIDA, 2014, p. 49 – grifo nosso).
O estudo aborda duas noções que estão no cerne da discussão sobre as infâncias
amazônicas e que dizem respeito a uma infância e a um grupo de crianças que não estão
na floresta, nos rios e não vivem em comunidades tradicionais, mas estão no centro
urbano de Belém-PA. As noções às quais nos referimos trata da infância urbana e da
criança-brincante. Assim, trazemos, neste estudo, a singularidade da infância urbana e as
crianças-brincantes do carnaval, presentes na cena cultural de uma escola de samba,
situada em um bairro da capital paraense, que tem particularidades que as difere das
demais infâncias e crianças de outros estudos já realizados por nós.
A noção de infância urbana, aqui tratada, se caracteriza pela concentração de
crianças nas grandes cidades ou centros urbanos, que vivenciam um ambiente de
mudanças sociais, culturais e econômicas extensas, com pouca ou sem nenhuma
autonomia para tomar certas decisões a respeito de políticas públicas para o seu
desenvolvimento, sendo delegada ao adulto a responsabilidade de fazer a assimilação de
questões políticas pelas crianças, principalmente nas áreas como ambiente, segurança,
políticas urbanistas e lazer, o que mostra o quanto as crianças são renegadas em seus
posicionamentos políticos, no entanto, são imprescindíveis como atores sociais que têm
todas as condições de conduzir ações mais ativas para a democratização social
(FERNANDES, 2018) e garantia de seus direitos básicos estabelecidos na Constituição
Federal de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº 8.069/1990,
principalmente.
Criança-brincante foi um conceito que emergiu durante a pesquisa de campo ao
observarmos como as crianças brincavam e demonstravam na cultura popular do
carnaval, os saberes das culturas infantis ligadas ao seu tempo, por conseguinte
conectadas às vivências do local onde residem, o Guamá. As culturas infantis propiciam
“saberes que no momento do carnaval lhes são úteis pois as permitem se localizar em seu
espaço e tempo social e facilita para elas a busca do brincar com os elementos de sua
cultura e seu transitar em meio a diversos saberes comunitários” (AIRES NETO, 2016,
96). Portanto, crianças-brincantes, consideradas nesse estudo, são aquelas que participam
ativamente das ações da escola de samba, e que, mesmo levadas pelos responsáveis,
vivenciam com alegria, dedicação e entusiasmo os ensaios, as festas, os arrastões,
experimentam as fantasias, aprendem e cantam o samba enredo, “compartilham seus
afetos, emoções, frustrações, desejos, saberes” (Idem, p. 20) e se divertem brincando,
dançando, imitando e interagindo com seus pares e a comunidade em geral.
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Considerado um campo de estudo epistemológico e metodológico (BIÃO, 1998), a “Etnocenologia surgiu
no século XX, em Paris no ano de 1995 a partir da Universidade Paris 8 Saint-Denis, UNESCO, Maison
des Cultures du Monde presidida pelo sociólogo Jean Duvignaud, instituições articuladas para a realização
do Colóquio de Fundação do Centro Internacional de Etnocenologia, tendo como principal propositor Jean-
Marie Pradier, autor do Manifesto da Etnocenologia” (SANTA BRIGIDA, 2016, P. 136).
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A Etnociência se constitui num campo multidisciplinar de pesquisa científica que admite e respeita a
diversidade cultural humana (BIÃO, 2009). “Posiciona-se como caminho alternativo à rigidez científica,
sem menosprezar nenhuma das metodologias construídas pela ciência ocidental, mas utilizando-se delas
como ferramentas para releituras que propiciem compreensão mais adequada e respeitosa da relação entre
humanidade e natureza. [...]. A Etnociência[s] em sua significação literal é a ciência do outro”
(WIECZORKOWKI; PESOVENTO; TÉCHIO, 2018, p. 154 - grifo nosso), nesse campo estão incluídas a
Etnopsicologia, a Etnomusicologia, a Etnolinguística, a Etnobotânica, a Etnohistória, a Etnopsiquiatria, a
Etnoculinária, a Etnomátemática e a Etonocenologia, entre outras. A afirmação da Etnociência como campo
de pesquisa em diversas áreas de conhecimento “revela a consolidação de um paradigma científico baseado
no conceito de alteridade e na afirmação do multiculturalismo” (BIÃO, 2009, p. 96); o autor ainda destaca
que o prefixo etno incorporados “a essas disciplinas serviu para explicitar uma perspectiva epistemológica
e metodológica (Idem, p.97).
gerou, abrindo um novo caminho para a análise dos fenômenos espetaculares” (SANTA
BRÍGIDA, 2007, p. 199).
O pilar epistemológico, principal eixo norteador das pesquisas realizadas nas
Artes Cênicas, concebido desde os primórdios da criação da disciplina Etnocenologia em
1995, com a publicação do “Manifesto da Etnocenologia”, denomina-se de Práticas e
Comportamentos Humanos Espetaculares Organizados (PCHEO), que tem como um de
seus princípios basilares avalizar a heterogeneidade de fenômenos sociais; é nesse
contexto que se encontra o carnaval, e nele as crianças-brincantes e suas
espetacularidades. Deste modo, o corpo etnocenológico (SANTA BRÍGIDA, 2014) é o
que edifica a Etnocenologia enquanto base epistemológica e metodológica deste estudo.
Nessas dimensões, o corpo é o fenômeno de interesse da Etnocenologia, uma
palavra que se estrutura em três bases da língua e da cultura grega, quais sejam: etno,
ceno e logia, que foram estabelecidas no Manifesto da Etnocenologia6 publicado em
1995, no qual os termos são assim definidos:
6
O Manifesto da Etnocenologia é um documento que foi “redigido pelo Centro Nacional de Etnocenologia
em 17 de fevereiro de 1995, na França. Tal manifesto é resultado de uma parceria entre a Maison de Cultures
du Monde presidida na época por Jean Duvignaud –, a Unesco – então coordenada por Chérik Khaznadar
– e o Laboratório Interdisciplinar de Práticas Espetaculares da Paris 8-Saint Denis – então coordenado pelo
professor Jean-Marie Pradier” (BARRETO, 2014, p. 43). Parte deste documento foi traduzida para a língua
portuguesa, disponível no livro: TEIXEIRA, João Gabriel L. C. (Org.). Performáticos, performance e
sociedade. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1996.
A Etnocenologia enquanto disciplina e método científico se consolida no espaço
amazônico com especificidades próprias e culturas singulares que emergem de todos os
locais da região “marcada por grandes linhas de forças como a natureza, as [comunidades]
indígenas e sua cultura, as manifestações de arte popular, a arte plumária, a cerâmica, as
embarcações, as casas, os rios, as ruas” (LOUREIRO, 2002, p. 133 – grifo nosso), dando
origem a uma Etnocenologia Amazônica (SANTA BRÍGIDA, 2015; CARVALHO,
2014).
A investigação foi realizada no bairro do Guamá, espaço geográfico exaltado nos
enredos da Associação Carnavalesca Bole-Bole, lócus de vários estudos científicos7, local
de resistência sociopolítica e também de explosão da cultura popular, sobretudo na
passagem Pedreirinha, onde se concentram vários ambiente que desenvolvem ações
culturais de cunho religioso, artístico, recreativo e lúdico, também é nesta via que se
localiza a sede da escola de samba8. Dias Júnior (2009) destaca em seus estudos sobre a
cultura popular no bairro do Guamá que este espaço geográfico, o Guamá, se constitui
num local
7
Podemos destacar os estudos de Ramos (2002), Dias Júnior (2009), Ferreira (2012), Palheta (2012), Gordo
(2015) e Modesto (2017).
8
A sede da Associação Carnavalesca Bole-Bole está localizada na Avenida José Bonifácio, passagem
Pedreirinha, 143, Guamá.
dela que as crianças e jovens têm a possibilidade de mudar o curso de suas vidas, tão
penalizadas pela pobreza, violência de toda ordem, especialmente pelos homicídios de
pessoas jovens na faixa etária de 16 e 17 anos, preconceito racial (MODESTO, 2017),
entre outros. Na entrevista conversada Talles dispara que a arte e a cultura são ecos que
reverberam a voz da liberdade; segundo ele,
E a arte num contexto geral, ela te oportuniza criar, ela te dá voz. Então
através da cultura, através do carnaval, eu percebo que as pessoas
podem gritar e dizer: não! Eu não sou isso. Eu não quero ser isso. O
meu mundo não se restringe a números de violência, a casos de
agressão, a uma história que já aconteceu. Ah! O bairro do Guamá tem
muita violência. Tem muita violência, mas também é um bairro hoje,
que se você for parar pra pesquisar, é um dos que mais têm grupos
folclóricos e parafolclóricos no estado do Pará e talvez no Brasil. E
então você percebe que isso são os gritos de: não, eu não quero isso pra
mim. Eu não quero ser estigmatizado, eu não quero sofrer com algo que
alguém me disse. Eu quero ter a minha própria voz (TALLES MILÉO,
ENTREVISTA 20/01/2020).
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José Fabrício Oliveira Meireles, conhecido popularmente como Mestre Mini, 41 anos, nasceu e vive até
hoje no Guamá, na passagem Pedreirinha. É Mestre de Bateria da Bole-Bole, participou das primeiras
oficinas na escola, posteriormente se tornou monitor na escola de samba e em outras instituições educativas
do bairro. Aos 12 anos de idade se tornou o primeiro chefe de bateria mirim de Belém.
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Hélio João Martins e Silva, 54 anos, Engenheiro Civil e Advogado, nasceu no Guamá, vem de uma
família de músicos e ligados à cultura popular do bairro. Foi o primeiro Diretor de Bateria da Bole-Bole.
Hoje se diz que colabora como ritmista da Bateria Audaciosa.
beber lá na fonte do Guamá porque lá nós tínhamos uma base humana e cultural pra dar
suporte. [...] a gente não fazia isso com essa leitura de formação, a gente ia fazendo meio
que na marra” (ENTREVISTA CONVERSADA, 17/01/2020).
As narrativas de Hélio Martins nos apontam que a escola de samba Bole-Bole tem
uma ligação firmada com a comunidade, e trazê-la para dentro do espaço físico e
desenvolver ações sociopolíticas com crianças, jovens e adultos foi a forma que
encontraram de avalizar a “convivência e consolidar a base comunitária como garantia da
manutenção das raízes e perpetuação da agremiação” (GORDO; SILVA, 2017, p. 178).
Portanto, os cursos, as oficinas, os processos de criação desenvolvidos pela escola
constituem ações intensas “que congregam as pessoas fortalecendo os laços identitários
delas com a escola de samba a que pertencem (Idem).
Nas ações da escola, como ensaios e arrastões culturais, as crianças eram presença
certa, com seus corpos em fase de crescimento; o esforço para segurar um instrumento
como o surdo, de dimensões avantajadas, provocava desequilíbrio e alguma dificuldade
para movimentar-se, porém, nada disso tirava delas, das crianças-brincantes, a vontade
de estar no meio da folia com os adultos. No período em que estivemos acompanhando a
escola observamos que na bateria a “criança e o adolescente vêm pra dentro da escola
pra ele aprender não só a música, mas [...] pra ele aprender a respeitar o próximo e ter
compaixão com o próximo. Isso ai já é uma coisa que contribui demais no seu
desenvolvimento” (ENTREVISTA CONVERSADA, 30/01/2020), ressalta Mestre Mini.
Na batera Audaciosa, como alguns denominam a bateria da escola, a
espetacularidade dos ritmistas crianças se mostram nos “efeitos e gestos [...] envolvidos
pelo padrão cultural (ethos) que suscita as formas de sua sensibilidade, a gestualidade, as
atividades perceptivas, e desenha assim o estilo de sua relação com o mundo” (LE
BRETON, 2012, p. 8), corroborando para a compreensão da espetacularidade como única
de cada criança-brincante, ou melhor, a relação que os sujeitos estabelecem com o mundo
é exclusiva, o que implica na maneira como a espetacularidade emerge em cada corpo,
como podemos comprovar nas imagem que se seguem.
O ritmo pulsante que a bateria de uma escola de samba produz e leva para a rua
estimula as crianças a participarem ativamente do carnaval. Handrei Serrão Barbosa, 11
anos, ritmista da escola, afirma que toda a movimentação que o carnaval provoca no
bairro dá “um ânimo pra sair na avenida” (CONVERSA INFORMAL, 6/02/2020).
Corroborando com a afirmação de Handrei Serrão, Vetinho Martins assevera que “aqui
tem aquela coisa das crianças ficarem maravilhadas com o ritmo, com o grupo. Eles
ficam, será que eu posso? Aí de repente o instrutor, o Fabrício, diz: pode! Aí pega esse
chocalho aqui e bora vê, a gente vai ensinando” (ENTREVISTA CONVERSADA,
20/03/20202). Esse conjunto de ideias, das pessoas que fazem a Bole-Bole, reafirma o
que Maffesoli (1996) anuncia que o espetáculo, no nosso caso o carnaval, assegura uma
função de comunhão, todos compartilham seus saberes e unem forças para mudança
social do bairro do Guamá.
A espetacularidade, mesmo sendo própria de cada sujeito social, só terá sentido
“quando relacionada ao conjunto de dados da simbologia própria do grupo social” (LE
BRETON, 2012, p. 9) no qual está inserida.
Durante a pesquisa de campo observamos que crianças menores de 5 anos, nas
imagens que se segue temos Lívia Sophia Lima Alencar, 4 anos e Aylla dos Santos Silva,
4 anos, que não faziam parte da bateria da Bole-Bole, se encantavam com os instrumentos
e com o som provocado pelas batidas, principalmente do surdo; eram irmãos, filhos,
sobrinhos dos ritmistas ou vizinhos da escola. Bastava os instrumentos serem colocados
à vista de seus olhos para que corressem para perto deles. Seus corpos tão pequenos se
tornavam ainda menores diante do tamanho dos instrumentos, o sorriso estampado era o
primeiro sinal indicativo de estarem participando do carnaval, as mãos iniciavam a
descoberta do objeto, em pouco tempo deles se apropriavam e o corpo, na sua totalidade,
exibia um percussionista com muitas habilidades; “este participar alimenta a sensação de
pertencimento e também instrumentaliza a criança para que em outro momento possa
utilizar estes saberes em outras ocasiões” (AIRES NETO, 2016, p. 111). As imagens a
seguir alicerçam nossos argumentos.
Imagem 7 – O encantamento das crianças, Lívia Sophia Alencar e Aylla dos Santos
pelos instrumentos de percussão.
Fonte: Simei Andrade, 2019.
A bateria, como uma das alas mais concorridas pelas crianças, tem suas
singularidades e particularidades que arrebatam as crianças-brincantes, mesmo aquelas
que não estão oficialmente na bateria. Segundo normas de proteção à criança, não é
permitida a presença de menores de 12 anos no desfile na avenida do samba, o que gera
certa frustração nessas crianças, como explica Margarida (Guida) Gordo11: “a gente tem,
por exemplo, um problema sério, todo ano com a bateria, que é pegar autorização pra
menor, tudo isso é empecilho, por que a autorização é a partir de 12 anos, a gente já
deixou crianças frustradas aqui, chorando por que não ia desfilar na Bole-Bole.”
(ENTREVISTA CONVERSADA 30/01/2020).
Mesmo que não possam participar oficialmente, encontraram outra forma de
“fazerem parte” da bateria da Bole-Bole. Acompanhavam a escola, nos arrastões e ensaios
na sede com seus instrumentos, os tamborins, se colocando sempre ao lado do grupo, fora
da ala. Elas seguiam os comandos do mestre de bateria, aprenderam os compassos e
executavam o samba enredo com maestria.
As crianças-brincantes, de certa maneira, desacatam as regras estabelecidas
socialmente, ao que Arenhart (2007) chama de transgressão. Em seus estudos, a autora
levanta o seguinte questionamento: por que as crianças transgridem? Ela nos responde,
afirmando que as crianças buscam satisfação no tempo hoje, imediato, sem levar tanto
em consideração os motivos de causa e efeito que estão centrados na lógica do adulto;
desse modo, a transgressão é a saída encontrada por elas para vivenciar essa satisfação do
tempo presente. Ao “desobedecerem” às regras impostas pelos adultos, as crianças
estabelecem com outros atores sociais a possibilidade de fazer diferente daquilo que o
sistema lhes impõe, além de construírem as culturas infantis.
Duas delas acompanhavam a escola com seus tamborins, as baquetas serviam para
bater em vários lugares e objetos para dali tirarem algum tipo de som que possibilitasse a
contagem do tempo do samba, “o tempo é intimamente ligado ao ritmo e aqui a criança
aprende a observá-lo e acompanhá-lo apara depois ter o domínio do instrumento e do
samba” (AIRES NETO, 2016, p. 111).
O tempo e o ritmo passam da oralidade para a corporeidade, a criança-brincante
“bate a baqueta no corpo, repete a contagem em voz baixa, bate com as mãos, com os pés
e, aos poucos, o próprio corpo vai encontrando o ritmo, vai incorporando-se a magia do
carnaval” (Idem), como nos mostram as imagens de Gustavo Xavier da Silva, 6 anos e
Enzo Gabriel Hervey e Sousa, 4 anos a seguir:
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Margarida do Espírito Santo Cunha Gordo, 48 anos, Profª da EAUFPA, faz parte da direção da Bole-
Bole. Está na escola desde 1993.
Imagem 8 – As crianças-brincantes, Gustavo Xavier e Enzo Gabriel Souza, e seus
tamborins contagiantes.
12
O ECA em seu art. 2º discorre que “considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos
de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade” (BRASIL, 1990).
Figura 1 – Desenho como produção simbólica da criança. Feito por Geovana Pinho,
Porta Bandeira Mirim da Associação Carnavalesca Bole-Bole.
Neste ato de desenhar o seu rosto, Geovana revela aspectos da espetacularidade que
se traduz no adorno da cabeça, na pintura do rosto, num olhar marcante, numa produção
elaborada para o olhar do outro, daquele que irá apreciar seu desenho. Embora apresente
apenas uma parte de um corpo espetacular, a cabeça, a imagem diz muito, pois se mostra
em interação com o mundo (BAKHTIN, 1987).
Mãe preta, me leva! No teu colo me ajeita, me deleita o teu amor! O cuidado com as
crianças
O cuidado dos pais e ou responsáveis com as crianças é perceptível em qualquer
evento carnavalesco no bairro, de vez que elas nunca estão sós, há sempre um adulto ao
redor. Em todos os lugares (quadra, arrastões, eventos, ensaios etc.) as crianças estavam
acompanhadas de perto por algum membro do seu convívio familiar, embora tenhamos
observado que em grande parte dos eventos eram as mulheres cuidadoras dos menores
(avó, mãe, tia, prima, madrinha, irmã). Sobre esse aspecto, Chodorow (1990) alista dois
fatores: o primeiro está relacionado à proximidade espacial, parentes morando achegados
ou no mesmo espaço, o que possibilita que os cuidados com as crianças sejam
compartilhados. O segundo fator diz respeito ao fato de mães biológicas, por motivos
diversos, não estarem com seus filhos; neste caso, outras mulheres, e não homens,
assumem seu lugar.
Outro aspecto importante diz respeito aos cuidados alimentares a elas dispensadas
pelos responsáveis durante os eventos (arrastões, ensaios e desfiles), lanches e líquidos
(água, sucos, refrigerantes), além de picolé e chopinho (também chamado de geladinho)
eram oferecidos a todo tempo às crianças. O cuidado vinha desde a preparação e
embalagem dos alimentos e das garrafinhas de água e sucos em casa, levados em mochilas
e sacolas, carregadas pelos adultos, contendo também toalha, sombrinha e boné. Tudo
para que as crianças pudessem brincar o carnaval e se alimentar com menos ricos à saúde
e os pais gastarem menos com elas na rua. Neste sentido, Palheta (2012, p. 24) salienta
que “as mães carregavam sacolas com sanduiches de pão e queijo cuia e pão com
picadinho (carne moída), além de sombrinhas e plásticos, por conta da chuva sempre
presente no carnaval de Belém”. As imagens que seguem mostram que crianças e adultos
estão juntos e conectados, constituindo partes de um todo dessa dinâmica social brincante:
REFERÊNCIAS
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produção de saberes. 2016. 148f. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade do
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as mulheres em dois grupos de cavalo marinho da Zona da Mata Norte de Pernambuco.
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DEL PRIORE, Mary. Festas e utopias no Brasil Colonial. São Paulo: Brasiliense, 2000.
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Desenvolvimento Humano e Saúde). Universidade de Brasília, Brasília, 2018. Disponível
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Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Universidade Federal do Pará, Belém, 2012.
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