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ós, meu mui venerado amigo, recebereis este ensaio: como, talvez após um passeio vespertino

pela neve hiberna!, vós haveis de fitar o Prometeu desagrilhoado no frontispício, 14 ler o meu
nome e imediatamente ficar convencido de que, seja o que for aquilo que se encontrar neste
escrito, o autor tem certamente algo de sério e urgente a dizer, outrossim que, em tudo
quanto ideou, conversava convosco como se estivésseis presente e só devesse escrever coisas
que correspondessem a essa presença. Haveis de lembrar-vos com isto que eu me concentrei
nesses pensamentos ao mesmo tempo que surgia o vosso esplêndido Festschrift (Escrito
comemorativo) sobre Beethoven, isto é, em meio aos terrores e sublimidades da guerra que
acabava de irromper. No entanto, errariam os que pensassem, a propósito desta coletânea de
reflexões, no contraste entre excitação patriótica e dissipação estética, entre seriedade
corajosa e jogo jovial: a estes, se realmente lêem este ensaio, talvez fique claro, para o seu
espanto, com que problema seriamente alemão temos a nos haver, o qual é por nós situado
com toda a propriedade no centro das esperanças alemãs como vórtice e ponto de [ 25 ]
FRIEDRICH NIE T Z SCHE viragem. É possível, porém, que justamente para eles resulte de algum
modo escandaloso ver um problema estético ser tomado tão a sério, caso não estejam em
condições de reconhecer na arte mais do que um divertido acessório, do que um tintinar de
guizos que se pode muito bem dispensar ante a "seriedade da existência": como se ninguém
soubesse o que implicava, em face dessa contraposição, tal "seriedade da existência". A esses
homens sérios sirva-lhes de lição o fato de eu estar convencido de que a arte é a tarefa
suprema e a atividade propriamente metafísica desta vida, no sentido do homem a quem,
como o meu sublime precursor de luta nesta via, quero que fique dedicado este escrito.
Basiléia, fim do ano de 1871 [26] 1. Teremos ganho muito a favor da ciência estética se
chegarmos não apenas à intelecção lógica mas à certeza imediata da introvisão15
[Anschauung] de que o contínuo desenvolvimento da arte está ligado à duplicidade do
apolíneo e do dionisíaco, da mesma maneira como a procriação depende da dualidade dos
sexos, em que a luta é incessante e onde intervêm periódicas reconciliações. Tomamos estas
denominações dos gregos, que tornam perceptíveis à mente perspicaz os profundos
ensinamentos secretos de sua visão da arte, não, a bem dizer, por meio de conceitos, mas nas
figuras penetrantemente claras de seu mundo dos deuses. A seus dois deuses da arte, Apolo e
Dionísio, vincula-se a nossa cognição de que no mundo helênico existe uma enorme
contraposição, quanto a origens e objetivos, entre a arte do figurador plástico [Bildner], a
apolínea, e a arte não-figurada [unbildlichen] da música, a de Dionísio: ambos os impulsos, 16
tão diversos, caminham lado a lado, na maioria das vezes em discórdia aberta e incitando-se
mutuamente a produções sempre novas, para perpetuar nelas a luta daquela contraposição
sobre a qual a palavra comum "arte" lançava apenas aparentemente a ponte; até que, por fim,
através de um miraculoso ato metafísico da "vontade"17 helênica, apareceram emparelhados
um com o outro, e nesse emparelhamento tanto a obra de arte dionisíaca quanto a apolínea
geraram a tragédia ática. Para nos aproximarmos mais desses dois impulsos, pensemo-los
primeiro como os universos artísticos, separados [27 ] FRIEDRICH NIET ZSCHE i entre si, do
sonho e da embriaguez, entre cujas manifestações fisiológicas cabe observar uma
contraposição correspondente à que se apresenta entre o apolíneo e o dionisíaco. Em sonho
apareceram primeiro, conforme a representação de Lucrécio, 18 diante das almas humanas, as
esplendorosas figuras divinas; em sonho foi que o grande plasmador [Bildner] viu a fascinante
estrutura corporal de seres super-humanos; e os poetas gregos , indagados sobre os mistérios
da criação poética, também recordariam o sonho e seriam de parecer semelhante ao de Hans
Sachs em Die Meistersinger (Os mestres cantores): Meu amigo, é isto precisamente a obra do
poeta, Que seus sonhos ele interpreta e marca, Creia-me, a mais verdadeira ilusão do homem
Se lhe abre no sonho: Toda a arte da poesia e todo o poetar Nada mais é que interpretação de
sonhos verazes. 19 A bela aparência20 do mundo do sonho, em cuja produção cada ser
humano é um artista consumado, constitui a precondição de toda arte plástica, mas também,
como veremos, de uma importante metade da poesia. Nós desfrutamos de uma compreensão
imediata da figuração, todas as formas nos falam, não há nada que seja indiferente e inútil. Na
mais elevada existência dessa realidade onírica temos ainda, todavia, a transluzente sensação
de sua aparência: pelo menos tal é a minha experiência, em cujo favor poderia aduzir alguns
testemunhos e passagens de poetas. O homem de propensão filosófica tem mesmo a
premonição de que também sob essa realidade, na qual vivemos e somos, se encontra oculta
uma outra, inteiramente diversa, que portanto também é uma aparência: e Schopenhauer
assinalou sem rodeios, como característica da aptidão filosófica, o dom de em certas ocasiões
considerar os homens e todas as coisas como puros fantasmas ou imagens oníricas. Assim
como o filósofo procede para com a realidade da existência [Dasein], do mesmo modo se
comporta a pessoa suscetível ao artístico, em face da realidade do sonho; observa-o precisa e
prazerosamente, pois a partir dessas imagens inter- [ 28] O NASC IMENTO DA TRAGÉ DIA preta
a vida e com base nessas ocorrências exercita-se para a vida. As imagens agradáveis e
amistosas não são as únicas que o sujeito experimenta dentro de si com aquela
onicompreensão, mas outrossim as sérias, sombrias, tristes, escuras, as súbitas inibições, as
zombarias do acaso, as inquietas expectativas, em suma, toda a "divina comédia" da vida, com
o seu Inferno, desfila à sua frente, não só como um jogo de sombras - pois a pessoa vive e
sofre com tais cenas - mas tampouco sem aquela fugaz sensação da aparência; e talvez alguns,
como eu, se lembrem de que, em meio aos perigos e sobressaltos dos sonhos, por vezes
tomaram-se de coragem e conseguiram exclamar: "É um sonho! Quero continuar a sonhá-lo! ".
Assim como também me contaram a respeito de pessoas que foram capazes de levar adiante a
trama causal de um e mesmo sonho durante três ou mais noites consecutivas : são fatos que
prestam testemunho preciso de que o nosso ser mais íntimo, o fundo comum a todos nós,
colhe no sonho uma experiên

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