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além da seriedade da natureza em direção à liberdade, ao ideal, à realidade

transfigurada pelo jogo. Nesse sentido, Homero não apagou o caráter terrível e trágico
da existência, mas quando coroou os espinhos da titanomaquia hesiódica com a
viçosidade das cores e a delicadeza das pétalas, com belas imagens de sonho, o poeta
elevou o caráter sério da natureza ao ideal.1 Pelas mãos do gênio de Homero, portanto,
a realidade séria despotencializada vai ao encontro do ideal artístico, da bela aparência
transfigurada. E com isso a Natureza alcança seus fins: “a verdadeira meta é encoberta
por uma imagem ilusória: em direção a esta estendemos as mãos e a natureza alcança
aquela através de nosso engano” (Nietzsche, 1999, p.35). Na cultura grega, portanto, no
ethos de Homero, a natureza dá um salto em rumo à liberdade estética que se apraz no
seu próprio jogo com a aparência que faz triunfar a vida, quando o caráter terrível da
existência séria da natureza rude é atenuado, é espiritualizado.
A referência aqui, naturalmente, é Schiller: pelas mãos do gênio é que a cultura
realiza as intenções da Natureza no mundo lúdico da cultura e corrige o que até então
ela só soube balbuciar no jogo, quando a rudeza da atividade animal deixa de aprazer-
se na satisfação de uma privação, para realizar-se na exuberância dos seus próprios
lances. Como lembra Safranski, a cultura é toda ela um jogo, isto é, “uma instituição
que transforma um número possivelmente de casos sérios em ações lúdicas que os
substituem, ou pelo menos possibilitam um trato distanciado com eles”. Nesse sentido,
Schiller aparece como “um dos primeiros a mostrar que o caminho da natureza para a
cultura passa pelo jogo — e isso significa rituais, tabus, simbolizações”, com os quais
“a seriedade dos instintos, — sexualidade, agressão, concorrência e inimizade — e os
medos da morte e da doença e do declínio perdem algo de sua força subjugado e
limitadora da liberdade”.2

1
Ideia que Nietzsche retira de A educação estética do homem em uma série de cartas, compilado de cartas
trocadas entre Schiller e o príncipe Augustenburg que o poeta publica na revista Die Horen a partir de 1795,
sobretudo da carta vigésima sexta. Nela, Schiller escreve que a passagem da natureza à humanidade é
mediada pela “alegria com a aparência, a inclinação para o enfeite, para o jogo” (Schiller, F. A educação
estética do homem: numa série de cartas. Trad. R. Schwarz e M. Suzuki, São Paulo: Iluminuras, 2002,
p.130).
2
Safranski, R. Romantismo, uma questão alemã, trad. Rita Rio, São Paulo: Estação Liberdade, 2010, p.43.
É sua força, no limite, que permite ao homem sair do Estado natureza e ascender
a uma condição superior, como nesse sentido, escreve Schiller em suas Cartas sobre
educação estética:

Todos esses, como se sabe, foram autores de fundamental monta para a formação
intelectual de Nietzsche e para a construção do pensamento do jovem filósofo até meados
do ano de 1876, o famoso ano de ruptura com Wagner e de reorientação de sua caminhada
filosófica. Já nos tempos de professor na universidade da Basileia, Winckelmann, Goethe
e Schiller são lembrados, desde seu escrito lido como aula inaugural como filólogo de
cátedra, como exemplo de correção na sua relação com o mundo antigo. Schiller vocifera
contra as imposturas de Wolf que tentou desfazer a coroa de louros de Homero Nas notas
para seu curso de introdução aos estudos de filologia, os mesmos autores são lembrados
por Nietzsche como os “amigos da Antiguidade” [Freunde des Alterthums]

- Genialidade é a capacidade de comportar-se de maneira puramente intuitiva, de


perder-se na intuição.

Por meio do espirito e da cultura a Natureza se eleva para além de si mesma, e


essa parecer ser sua vocação inclusive quando observamos
“os objetos efetivos são quase sempre apenas exemplares bastante imperfeitos da
Ideia que neles se expõe: por isso o gênio precisa da fantasia para ver nas coisas não o
que a natureza efetivamente formou, mas o que se esforçava para formar, mas que, devido
à luta de suas formas entre si, não pode levar a bom termo” p.255

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