Você está na página 1de 1

homem o perfaz com um pulo.

66
Quem compreende esse cerne interior da lenda de Prometeu
- quer dizer, a necessidade de sacrilégio imposta ao
indivíduo que aspira ao titânico - deverá também sentir ao
mesmo tempo o não-apolíneo dessa concepção pessimista;
pois Apolo quer conduzir os seres singulares à tranqüilidade
precisamente traçando linhas fronteiriças entre eles e lembrando
sempre de novo, com suas exigências de autoconhecimento
e comedimento, que tais linhas são as leis mais sagradas
do mundo. Mas, para que a forma, nessa tendência
apolínea, não se congelasse em rigidez e frieza egípcias, para
que no esforço de prescrever às ondas singulares o seu curso
e o seu âmbito não fosse extinto o movimento do lago
inteiro, de tempo em tempo a maré alta do dionisíaco torna
a desfazer todos aqueles pequenos círculos em que a "vontade"
unilateralmente apolínea procura constranger a helenidade.
Essa repentina maré montante do dionisíaco toma
então sobre o seu dorso as pequenas vagas dos indivíduos,
assim como o irmão de Prometeu, o titã Atlas, tomou sobre
o seu dorso a Terra. Esse afã titânico de ser como que o Atlas
de todos os indivíduos e carregá-los com a larga espádua cada
vez mais alto e cada vez mais longe, é o que há de comum
entre o prometéico e o dionisíaco. O Prometeu esquiliano
é, nessa consideração, uma máscara dionisíaca, ao passo
[ 68 ]
O NASCIMENTO DATRAG ÉDIA

que, no profundo pendor para a justiça antes mencionado, Ésquilo


trai, ao olho penetrante, a sua descendência paterna de
Apolo, o deus da individuação e dos limites da justiça. E assim
a dupla essência do Prometeu esquiliano, sua natureza a um só
tempo dionisíaca e apolínea, poderia ser do seguinte modo expressa
em uma formulação conceitual: "Tudo o que existe é
justo e injusto e em ambos os casos é igualmente justificado' ' .
Isso é o teu mundo! Isso se chama um mundo!67
10.
É uma tradição incontestável que a tragédia grega, em sua
mais vetusta configuração, tinha por objeto apenas os sofrimentos
de Dionísio, e que por longo tempo o único herói
cênico aí existente foi exatamente Dionísio. Mas com a mesma
certeza cumpre afirmar que jamais, até Eurípides, deixou
Dionísio de ser o herói trágico, mas que, ao contrário, todas
as figuras afamadas do palco grego, Prometeu, Édipo e assim
por diante, são tão-somente máscaras daquele proto-
herói, Dionísio. Que por trás de todas essas máscaras se
esconde uma divindade, eis o único fundamento essencial
para a tão amiúde admirada "idealidade" típica daquelas célebres
figuras. Não sei quem asseverou que todos os indivíduos
enquanto indivíduos são cômicos e, portanto, não trágicos:
de onde se deduz que os gregos não podiam suportar
em absoluto indivíduos na cena trágica. De fato, eles parecem
ter sentido assim; como, aliás, aquela distinção e avaliação
platônica da "idéia" em contraposição ao "ídolo" , à reprodução,
estava profundamente radicada na natureza helênica.
Para que possamos, porém, nos servir da terminologia
de Platão, dever-se-ia falar mais ou menos do seguinte modo
das figuras trágicas do palco helênico: o único Dionísio verdadeiramente
real aparece numa pluralidade de configurações,
na máscara de um herói lutador e como que enredado
nas malhas da vontade individual. Pela maneira como o deus
aparecente fala e atua, ele se assemelha a um indivíduo que
erra, anela e sofre: e o fato de ele aparecer com tanta precisão
e nitidez épicas é efeito do Apolo oniromante que interpreta
para o coro o seu estado dionisíaco, através daquela apa-

Você também pode gostar