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Agradeço a Mabel Velloso e Vitor Mantovanini, que inspiraram a criação dos

personagens homônimos, e a Guto, Lia e Priscila Nemeth, por suas ótimas sugestões;
finalmente, a Fernando Bonassi, companheiro querido das aventuras literárias, pela
grande amizade.
Mistérios da Imaginação

Sempre adorei ler. Mas quando li as histórias de Edgar Allan Poe, aprendi o
que é ler sem parar.
Eu tinha treze ou catorze anos quando isso aconteceu. Lembro que era
verão e eu havia encontrado um livro com o título: Contos de imaginação e
mistério. Comecei a ler enquanto tomava sol deitada na grama. De repente, foi
como se eu tivesse sido hipnotizada. Não conseguia me separar daquelas
histórias de suspense. Eram vários contos de assombração, com castelos
tenebrosos, vielas fatais, pêndulos mortais, gatos de arrepiar. Assim que
terminava um conto, imediatamente começava a ler o próximo, morta de
curiosidade, aprisionada numa espécie de encantamento lançado por aquele
escritor de nome tão misterioso quanto suas histórias. Por m, adormeci com
a cabeça apoiada no livro. Até hoje sou capaz de recordar trechos dos sonhos
alucinantes que tive naquele dia, nos quais os ambientes dos contos se
misturavam e eu os atravessava como se estivesse num labirinto in nito.
Como a curiosidade sempre foi meu maior defeito, ou talvez qualidade,
quei louca para descobrir mais coisas sobre Edgar Allan Poe. Imaginava que,
para escrever aquelas histórias absolutamente alucinadas, ele deveria ser um
sujeito esquisito e sinistro.
Bem, certos aspectos de sua personalidade até combinavam um pouco com
essa gura que eu havia criado em minha mente: Poe na verdade tinha um
temperamento diferente, era um homem tímido, de difícil trato, que nasceu
em Boston, cidade dos Estados Unidos, no ano de 1809. Seus pais morreram
quando ele tinha apenas dois anos, e ele foi criado por um tio. Em 1836, Poe se
casou, muito apaixonado, com uma prima chamada Lenora. Seu casamento
foi feliz, talvez a melhor época de sua vida, porém Lenora morreu jovem,
deixando-o completamente desolado.
Fiquei sabendo também que Poe publicava seus contos em jornais e fazia
muito sucesso entre os leitores. Após sua morte prematura, suas histórias
foram traduzidas para o francês por Baudelaire, outro grande escritor.
Atualmente Poe é considerado um dos maiores autores de literatura
fantástica.
Embora sua vida tenha sido muito tumultuada, quando Poe se colocava
diante de uma página em branco sua atitude era outra. Ele pensava
cuidadosamente no efeito que queria provocar em seus leitores. Inventava
fórmulas e frases especiais para que as pessoas não abandonassem a leitura
que haviam iniciado. Talvez porque pensasse que o leitor de jornal é mais
apressado do que o leitor de um livro, decretou uma lei pessoal: “Quero que
todos leiam minhas histórias de uma sentada só”. Ele acreditava que o leitor,
se interrompesse a leitura, seria invadido pelas distrações da vida cotidiana e
perderia a conexão da “viagem” ao mundo dos enigmas e segredos ao qual ele
tentava conduzi-lo, reduzindo o impacto das histórias.
Poe foi também um dos primeiros autores modernos a escrever sobre a arte
de compor uma história. Ele não acreditava que um escritor pudesse trabalhar
movido apenas pela inspiração e a rmava que gostava de construir suas
histórias como se trabalhasse com uma fórmula matemática.
Estudou cuidadosamente a obra milenar Mil e uma noites, tentando entender
quais eram os truques de Sherazade, personagem que sobreviveu à ira de um
sultão enlouquecido seduzindo-o por meio de histórias. Aos poucos, Poe foi
descobrindo como utilizar o suspense, como interromper a narrativa na hora
certa, de modo que o leitor desejasse saber seu desfecho e permanecesse
enredado na leitura.
Pois bem, 1001 Fantasmas é minha homenagem ao meu autor predileto.
Uma história que funciona como um quebra-cabeça e começa com um jovem
herói numa situação de perigo, encaixa um mistério no outro construindo a
trama e revela uma surpresa no nal.
Confesso que usei todos os truques que conheço para agarrar sua atenção.
Espero que, mesmo sendo uma pessoa superocupada ou alguém que
simplesmente prefere ver televisão, você dê uma variada e leia esta história
(quase) sem parar.

Heloisa Prieto

P. S. Muitos contos de Poe foram adaptados para o cinema e a televisão. Se você já viu
filmes como O corvo, O pêndulo, O gato preto, vale a pena conferir o texto
original, pois todas essas histórias vieram deste livro absolutamente inesquecível:
Contos de imaginação e mistério.
São Paulo, 26 de junho de 2001

Pessoal,

Esta é a primeira vez que escrevo para a 1001 Fantasmas e não sei bem
como começar. Quer dizer, o que aconteceu comigo é o tipo de história que
a gente esconde dos outros porque está na cara que vai ser chamado de
louco se disser a verdade para alguém.
Bem, eu sou um garoto como muitos por aí. Filho único. Tenho um
quarto só para mim. Nós moramos numa casa antiga na rua Caconde,
cidade de São Paulo.
A família da minha mãe é do interior e a gente quase nunca vê os
parentes. Acho que foi por isso que todo mundo acreditou quando o tio
Ademar apareceu e disse que era um parente do meu avô.
Primeiro ele telefonou para os meus pais e disse que estava só de
passagem. Minha mãe o convidou para tomar um cafezinho. Ele tinha um
jeito calmo. Disse que era aposentado e tinha vindo conhecer a cidade.
Mamãe gosta de tudo o que tenha a ver com o vovô. Ele morreu no ano
passado. Ela sente saudade. Acho que foi por isso que ela logo convidou o
tal tio para jantar.
Quando meu pai chegou em casa gostou muito do convidado. E querem
saber de uma coisa? Eu também estava achando o sujeito legal. Quer dizer,
ele inspirava confiança. Eu tinha certeza de que ele era do bem.
E então, quando as coisas ficaram ruins para o meu lado, senti um medo
estúpido. Porque eu não estava esperando.
O tio foi ficando aqui em casa. Ele ajudava a empregada, anotava todos os
recados, resolvia muita coisa que tinha a ver com a casa. E quando meus
pais saíam, ele ficava comigo vendo televisão. A gente comia pipoca, ele me
deixava ir dormir bem tarde, como é que eu ia adivinhar o que o cara ia me
aprontar?
Um dia, no meio do jantar, ele disse assim para os meus pais:
— Por que vocês dois não fazem uma viagem? Como se fosse uma
segunda lua de mel? Se vocês quiserem, eu fico aqui cuidando do Vitinho.
Eu dei um grande sorriso e meus pais concordaram na hora. Há muito
tempo eles não conseguiam tirar férias. Mas mamãe teve outra ideia. Ela é
bióloga. Estava louca para estudar umas espécies de peixes encontradas no
litoral de Santa Catarina. Disse que preferia viajar para uma ilha da região.
Assim dava para pesquisar, se divertir e descansar.
— Você não fica chateado, meu filho? Tudo bem se você ficar em São
Paulo? — ela perguntou preocupada.
— Tudo bem. Eu posso passear com o tio Ademar — respondi.
Eu tinha caído na armadilha. Feito um rato abobalhado. E demorou um
pouco para eu perceber a encrenca em que estava metido.
Dois dias depois de meus pais terem viajado, o tio Ademar dispensou a
Cleide, nossa empregada. Assim que ficamos sozinhos, a coisa começou a
mudar. Primeiro foi o jeito dele comigo. De alegre e animado que era, virou
um sujeito caladão.
O primeiro café da manhã que tomamos só nós dois foi superesquisito. A
cara dele tinha mudado completamente. Não perguntou o que eu queria
comer, me deu um copo de leite frio e um pão velho com manteiga e não
me fez companhia. Eu me senti mal e perguntei:
— Tio Ademar, está acontecendo alguma coisa? O senhor está bravo
comigo?
Ele estava de costas quando eu fiz a pergunta. De repente, virou-se para
mim e sorriu. Foi muito estranho. Aquele sorriso parecia uma máscara
igual à do Curinga do Batman! Era horrível. E ele respondeu:
— O que é isso, Vitinho? Não é nada, não... Só estou com uma leve dor
de cabeça. Por que você não assiste um pouco de televisão?
Então as coisas mudaram. Eu passava o tempo todo na sala brincando
sozinho ou vendo televisão. Ele vivia no quarto dos meus pais falando ao
telefone. Fiquei cada vez mais cismado. Chegou uma hora em que não me
aguentei de curiosidade e me escondi atrás da porta para escutar as
conversas dele. Isso foi pior. Ele dizia assim:
— Agora a casa já está nas minhas mãos. Só falta dar um jeito no
menino. Acho que ele vai servir direitinho para o que estamos planejando.
Ninguém desconfiou de nada. Estão todos acreditando que eu sou mesmo o
tal tio Ademar. Foi bom ter feito a pesquisa da família antes de iniciar o
trabalho...
Só não desmaiei porque fiquei paralisado de medo. Eu sempre me achei
um cara esperto. Adulto pensa que é fácil enganar criança, só que é muito
mais fácil enganar adulto. Mas desta vez eu tinha levado um susto daqueles!
Eu garanto a vocês que não tem coisa pior do que estar sozinho nas mãos
de um adulto do mal. Quem será que é esse cara? Por que ele apareceu na
minha casa? O que ele tanto quer da minha família? O que eles querem fazer
comigo? Por que será que eu sirvo direitinho para os planos deles? E afinal,
com quem será que o sujeito estava falando?
Espero que vocês possam me ajudar. Não tenho mais ninguém com
quem conversar. Se eu contar isso tudo a um adulto, ele certamente vai
dizer que é bobagem, porque o Ademar é muito educado. Quem iria
acreditar na minha palavra contra a dele? Por favor, façam alguma coisa ou
me digam o que devo fazer.
VÍTOR ALIGUERI FILHO
Belém, 29 de junho de 2001

Meu amigo Vítor,

Estou muito feliz por você ter nos descoberto. Pouca gente é capaz de

escrever para um simples anúncio de jornal. Eu também comecei desse

jeito. Vi um tijolinho na seção de classificados que dizia exatamente o

seguinte:

Como você pode ver, esse antigo anúncio era um pouquinho mais

engraçado do que o que colocamos no jornal aí de São Paulo. Afinal, hoje


em dia precisamos escrever de outro jeito, senão o pessoal pensa que é

brincadeira e a gente acaba perdendo muito tempo com trotes.

Para você entender bem o espírito da coisa, vou lhe contar a história de

minha amiga secreta. Por causa dessa amiga que eu respondi ao anúncio

do jornal. Ah, quase ia me esquecendo. Meu nome é Manuel e tenho

quinze anos. Sou uma espécie de conselheiro da Sociedade. Bem, vamos

logo ao assunto.

Aconteceu há sete anos. Eu tinha oito anos de idade e era o campeão de

bola de gude da minha rua. Sempre fui um menino magro, pequeno, mas

esperto e rápido. Quando o bando dos moleques da praça me desafiou para

uma partida, olhei bem para o jeito deles e achei que tinha chance de

ganhar.

Apostei meu canivete novinho contra um carrinho de rolimã do

moleque que parecia ser o chefe. Fizemos uma roda e começamos a jogar.

Fui logo ganhando. Mas na hora de cumprir o combinado, o dono do

carrinho declarou que ia me bater. Pense só na minha situação. Se agora,

com quinze anos, ainda sou pequeno... O jeito era correr para valer. E foi

o que fiz.

Dei uma carreira e fui derrubando tudo o que estava na minha frente,

até que tropecei numa velhinha. Fomos os dois para o chão. Nessa hora eu

me esqueci dos moleques. Parei para ajudá-la a ficar de pé, abaixei para

apanhar a sombrinha dela e, então, vi que estava cercado por quase todos

os lados. Eu disse quase, não foi? Passei feito um jato por debaixo das

pernas de um menino e corri para a avenida. Foi quando o grandalhão me

puxou pela camiseta. “Tô perdido!!!”, pensei. “É agora que eu vou me

danar!” Mas bem nesse momento, vindo sei lá de onde, um táxi parou na

minha frente. A porta estava escancarada e uma garota gritou:

— Corre, Manuel! Entre aqui comigo.


Não foi nem preciso repetir o convite. Corri para o lado dela, a porta se

fechou. Respirei aliviado. Nem me passou pela cabeça perguntar como é

que ela sabia meu nome.

A garota era linda demais, com um vestido de festa branco.

— Hoje é meu aniversário — ela disse. — Você não quer brincar

comigo?

Concordei, é claro.

O táxi então nos levou para um parque maravilhoso que eu nunca tinha

visto antes. Quando eu quis saber o seu nome, ela não me disse nada. Só

me perguntou se eu queria lhe dar um beijo de aniversário.

Mas eu preferi brincar.

Rimos muito juntos, jogamos baralho.

O sol começou a se pôr.

Um vento frio cortou minha pele e ela disse outra vez:

— Corre, Manuel! Entre no carro comigo.

Obedeci. Nunca consegui ver direito quem é que estava dirigindo o

automóvel.

Tive a impressão de que a noite tinha caído de repente. O interior do

carro foi ficando escuro, eu não conseguia mais vê-la. Eu já estava meio

assustado. Então o táxi parou e a porta se abriu.

Antes de sair olhei para minha amiga mais uma vez. Ela estava

iluminada, parecia contente. Sorriu e seu rosto ficou branco e dourado.

— Obrigado, Manuel — ela disse. — Você me trouxe a liberdade. Eu só

queria ter um último dia de aniversário. Mas eu sempre estarei ao seu lado.

Fiquei emocionado, nem consegui responder. Corri para casa feliz.

Já era bem tarde. Meus pais estavam preocupados. Fizeram mil

perguntas, mas eu estava muito cansado. Adormeci sem conseguir explicar

aonde tinha ido.


Na manhã seguinte acordei feliz e animado. Resolvi contar tudo aos

meus pais. Só que quanto mais eu falava da menina, do quanto ela havia

me ajudado, de como era linda e de nossas brincadeiras, mais assustados

eles ficavam.

— Meu filho — finalmente minha mãe falou —, essa menina não

existe. É a garota do táxi, o fantasma de Belém que leva crianças para o

Vale das Almas Perdidas.

Não acreditei no que ela disse. Aquele parque não era um lugar

assombrado: era um local encantado. Nele me senti feliz, brinquei e me

diverti. Minha amiga era do bem, uma garota normal. Sem a ajuda dela,

eu teria levado uma surra danada.

Será que ela era um fantasma? E o que é um fantasma? Os fantasmas

são maus? Hoje sei que não. Naquele momento, eu tive a sensação de que

ela era uma garota de outro lugar, de um mundo meio misterioso, desses

que ficam escondidos da gente.

A verdade é que depois desse dia comecei a sentir muita saudade da

garota. Perguntei para meus amigos sobre essa história de fantasma do táxi.

— Ah, minha mãe fala muito dessa garota, minha avó também contava

uns casos. Só que na história da vovó ela estava num coche puxado por

cavalos — me disse uma amiga da escola.

Passei meses levando um buquê de rosas na praça, no final da tarde,

esperando o táxi. Eu queria encontrar a garota e agradecer sua ajuda. Mas

o carro nunca veio.

Até que chegou o dia do meu aniversário. Ganhei vários presentes, mas

só fiquei feliz mesmo quando adormeci. É que a garota do táxi apareceu

em meus sonhos, voltamos para aquele parque e brincamos muito. Ela

estava ainda mais linda e parecia ter crescido um pouco, assim como eu.
Depois disso, comecei a vê-la sempre que estava em perigo. Como no

dia em que caí do cavalo e quebrei o braço. Na véspera minha amiga tinha

aparecido em meus sonhos e pedido para eu não sair de casa pela manhã.

Eu não obedeci e deu no que deu.

Agora presto muita atenção nos conselhos que ela me dá. Isso porque ela

sempre aparece. Não só nos meus sonhos, mas também quando estou

sozinho no final da tarde. Ela senta ao meu lado e conversamos muito.

Acho que ela virou uma espécie de amiga invisível, uma protetora.

Assim como uma fada das histórias infantis, que os adultos dizem que é

bobagem depois que a gente cresce.

Manuel M. Pessoa
São Paulo, 2 de julho de 2001

Manuel,

Não entendi sua carta!


Você não me deu resposta nenhuma!
Você não me explicou nadinha sobre essa Sociedade!
Morri de raiva!
Eu só estou escrevendo de volta porque gostei da sua história de
fantasmas.
Sabe de uma coisa?
O negócio aqui em casa anda tão ruim para o meu lado que eu bem que
queria uma fantasminha igual a sua amiga invisível!

Um abraço,

VÍTOR A.
Salvador, 1o de julho de 2001

Caro Vítor,

Você não me conhece. O Manuel me enviou seu endereço com a


recomendação de que contasse a você um pouquinho sobre nossa sociedade
secreta.
Meu nome é Mabel. Entrei para a Sociedade como todo mundo:
respondendo a um anúncio de jornal. Só que o anúncio que encontrei era
muito, mas muito velho. Na verdade, estava no meio do baú de antigos
pertences que herdei de minha tia-avó.
Minha tia-avó era poeta. Uma mulher belíssima. Um dia ela escreveu um
livro de contos que fez um enorme sucesso. Todo mundo queria saber como
ela podia ter tantas ideias. Ela nunca disse nada a ninguém. Mas quando fiz
dez anos, ela me chamou de lado e disse:
— Mabel, eu sei que você sabe olhar para o mundo. Vou lhe contar toda a
verdade sobre meu sucesso, mas só para você. Eu desperto de madrugada e
converso com fantasmas. Uma gente tão bonita que não dá medo nenhum.
Eles sentam na beirada da minha cama e me contam direitinho como foi a
vida deles. De manhã eu acordo e escrevo tudo. As histórias são tão
emocionantes... Eu adoro ficar ouvindo. Sabe o que são fantasmas para mim?
São pessoas boas que querem nos proteger, minha filha. Eu fico pensando.
Quando uma criança perde a mãe ou o pai, logo as pessoas dizem para ela:
“Sua mãe agora vai proteger você lá do céu. Ela vai virar uma espécie de anjo
da guarda”. Mas depois, se aquela mesma criança disser que viu um fantasma,
todo mundo já sai falando em assombração. Eu nunca tive medo do além, das
coisas do outro mundo. Acredito que a gente sempre pode ter amigos, tanto
na terra como no céu.
Alguns meses depois ela morreu. Minha mãe me entregou um baú lindo
com seus pertences. Chorei muito de emoção. Quando finalmente tive
coragem de abri-lo, encontrei um pedacinho muito velho de jornal que dizia
assim:

Como eu já disse, respondi ao anúncio. Depois, minha vida mudou. Eu


vou explicar direitinho mais tarde. Saiba que fui a escolhida para ser sua
companheira nesta aventura. Isso foi ordem da diretoria e eu preciso
obedecer. E vou obedecer mesmo, com todo o carinho, porque soube que
você está precisando urgente de uma amiga.
Agora, preste muita atenção nestes conselhos:
Como você já reparou, este fulano não é boa pessoa, e também não é seu
parente. Pela descrição que você forneceu, ele deve ser o dr. Ademar
Abelardo, o maior caça-fantasmas do Brasil. Se ele está em sua casa é porque
aí mora um fantasma, e dos bons. Um fantasma muito poderoso. Você deve
pedir ajuda a ele, pois só assim poderá vencer o dr. Ademar.
Não demore para responder.
Aguardo sua carta.

Com carinho,

Mabel Alencar
São Paulo, 4 de julho de 2001

Mabel,

Gostei de sua carta. Nossa, de repente começaram a aparecer amigos.


Legal! Eu estava mesmo precisando.
Não entendi direito o que você me contou! Sempre pensei que os caça-
fantasmas fossem heróis. Mas pelo jeito o negócio não é bem assim. Os
fantasmas protegem as pessoas e quem caça fantasmas está prejudicando o
mundo e as pessoas. Estou certo?
Bem, eu preciso lhe contar o que está acontecendo aqui. Se não falar com
alguém, entro em parafuso. Ontem, eu jantei com o impostor, fazendo um
esforço danado para fingir que não tinha percebido nada. Depois, passei a
noite inteirinha acordado de tanto medo e preocupação. No jantar eu
percebi como a coisa ficou feia para o meu lado. A conversa que tive com o
impostor foi totalmente em clima de filme de terror. Ele me perguntou cada
coisa esquisita... Veja só a nossa conversa:
— Escuta, Vitinho, você acredita em fantasmas? — ele começou puxando
papo.
— Sei lá — eu respondi.
— É importante acreditar nessas coisas — ele foi me dizendo. — Todo
fantasma é do mal. Eu sei que pode parecer estranho, mas fantasma é uma
coisa que a gente precisa exterminar. Eles aparecem feito barata. Vão se
reproduzindo e, se a gente deixar, acabam dominando o mundo. Fantasma
a gente deve caçar mesmo. Os espíritos que rondam os vivos só querem nos
prejudicar, aliás, eles adoram enganar crianças. Por isso eu queria ter a
certeza de uma coisa: você já viu algum fantasma aqui nesta casa? Olhe,
pode me contar toda a verdade! Juro que ninguém vai ficar sabendo. Será
um segredinho de tio para sobrinho, que tal?
Ele estava bancando o bonzinho de novo. Se eu não tivesse escrito para
vocês, se não tivesse desconfiado e escutado escondido as conversas do
impostor, tenho certeza de que ia cair na conversa do tal tio Ademar... E
daí, sei lá o que o sujeito anda planejando para mim, quer dizer, contra
mim.
Depois, à noite, sozinho no meu quarto, eu não conseguia nem pregar os
olhos. Minhas mãos estavam geladas. Só consegui dormir um pouquinho,
quando já eram quase quatro da manhã.
Mas de repente abri os olhos de novo. Como se escutasse alguém me
chamando. Logo que acordei percebi duas coisas: eram quatro e meia da
manhã, chovia pra caramba e eu não estava sozinho no quarto. Já não
aguentava mais sentir medo. Ia ficar maluco! Havia muitos trovões e raios
também, uma barulheira daquelas. Eu até gosto de chuva, não tenho medo
de tempestade, não. Mas, não sei bem por quê, naquela hora me deu uma
saudade enorme dos meus pais. E então eu o vi. Foi a coisa mais estranha
do mundo. Enxergar alguém que está bem atrás de você, sem ser preciso
virar a cabeça para olhar. Era como se eu tivesse um olho na nuca. E o
velhinho que eu via flutuava no ar igual a um holograma. E... ele era do
bem. Eu tive uma impressão muito boa daquela figura. Parecia uma luz
dourada, quente e alegre. Que alívio! Até que enfim tenho alguém em quem
confiar. Ele me disse uma coisa muito simples:
— Eu sou o fantasma desta casa. Vivo, quer dizer, moro aqui há muito
tempo. Fiquei muito feliz quando vocês vieram ficar comigo. Aliás, gostei
demais de você. Eu o protejo desde que você nasceu. Você já reparou que
nunca levou um tombo, nunca se feriu, nunca sofreu nesta casa?
E ele continuou:
— Meu nome é Guimarães. Eu já era poderoso antes de morrer.
Pesquisei filosofia, as artes da magia e os poderes da mente. Quando passei
da antiga vida para uma melhor, percebi que não tem gente mais teimosa e
cabeça-dura do que um adulto vivo. Para eles, viver é não enxergar. Mas é
óbvio que nem todos os adultos são assim, existem aqueles que guardam os
olhos da infância dentro de si. Pena que sejam uma minoria. Aliás, você tem
sorte de ter pais muito especiais. Mas isso é um outro assunto. Bem, com
os jovens e as crianças tudo é diferente. Eles enxergam todas as dimensões
e são meus melhores amigos. Como você.
Dito isso, o velhinho desapareceu.
Acho que você tinha toda a razão. Nesta casa mora um fantasma. E dos
bem poderosos! E agora, o que é que eu faço?

Um abraço,

VÍTOR
Salvador, 6 de julho de 2001

Meu querido Vítor,

Não tenha medo! Você está sob grande proteção! O velho Guimarães é
mesmo forte, bom e generoso. Você deve estar se perguntando como é que eu
posso saber disso. Mais tarde eu explico. A história é comprida. Agora,
preciso dizer outra coisa:
Prepare-se!
Logo terá mais companhia. Esse tal Ademar só trabalha em parceria. A
companheira dele é uma mulher muito esquisita. Ela é ruiva, tem um pescoço
estranho e até parece gente boa no começo. Não se deixe enganar! A mulher é
uma víbora! Cuidado com ela! Faça de tudo para escapar do olhar dela. Essa
dona, infelizmente, tem poderes.
Escreva logo. Qualquer problema, feche os olhos, lembre-se de seu
Guimarães e peça-lhe proteção!
De sua amiga,

Mabel
São Paulo, 8 de julho de 2001

Mabel,

Novamente você tinha toda a razão. Ela está aqui. A tal da comparsa, a
ruiva do mal.
Ontem, quando desci a escada para tomar o café da manhã, ouvi a voz de
uma mulher conversando com o impostor. Andei bem devagarzinho para
não deixar que eles percebessem que eu estava espiando. Só que, quando
me aproximei, percebi que eles conversavam em outra língua. Um idioma
que eu não conheço. Uma espécie de fala muito antiga. Mesmo assim,
fiquei observando escondido na curva da escada.
A mulher tem cabelos avermelhados, com um rosto bem bonito até, e no
começo não me deu medo. Só que ela tirou da bolsa um baralho todo
desenhado com cobras e caveiras. Gelei. Ela desandou a falar tanto que
nem parecia mais respirar. Os olhos se escureceram e ficaram horríveis,
avermelhados também. Caramba! Ainda falta muito tempo para os meus
pais voltarem! A mulher foi ficando empolgada, começou a falar cada vez
mais alto e o espelho da sala partiu bem ao meio, o piano tocou sozinho, as
gavetas da cristaleira se abriram, os talheres voaram pela casa e depois
caíram no chão. Não aguentei ficar ali. Voltei correndo para o quarto e me
escondi debaixo da cama.
Eu estava paralisado de pavor. Nesse momento o Guimarães apareceu de
novo.
— Meu filho, não tenha medo, não — ele foi dizendo. — Eles não
querem saber de você, o negócio é comigo. Aliás, você me desculpe, mas
tenho a impressão de que eles querem usar você de isca para me apanhar.
Eles sabem como é forte a ligação que eu tenho com as crianças e os
jovens... E sabem também que posso ser visto por vocês. Parece que já está
na hora de você conhecer toda a verdade. Mas só posso contar os segredos
hoje à noite. Agora preciso colocar um ponto-final na folia desses dois
bandidos.
Em pouco tempo eu ouvi a porta bater e olhei pelo vidro da janela. O
casal infernal tinha saído. Que alívio! Não sei o que seu Guimarães fez para
expulsar os dois bandidos aqui de casa. Eu juro que fiquei morto de
curiosidade. Será que ele conhece algum truque “repele-parasita”? (Estou
brincando, mas é que, na minha situação, se eu não brincar um pouco fico
doidinho da silva.) E por enquanto é só. Por favor me dê mais explicações.
O que é que está acontecendo? Não aguento mais!

VÍTOR
Salvador, 10 de julho de 2001

Vítor, meu amigo do coração,

É melhor você se acalmar porque isso não é nada. Já que está tão confuso
eu vou lhe contar um pouco mais da minha própria história e das coisas que
eu aprendi quando entrei para a Sociedade. Prepare-se. Leve esta carta para
um lugar bem tranquilo e leia com tempo e atenção. A história de hoje é bem
comprida.
Bem, como a sede brasileira da Sociedade era aqui mesmo em Salvador e,
além de escrever, sou uma garota muito curiosa, resolvi fazer uma visita ao
endereço na rua do Tororó. Cheguei lá e toquei a campainha. Estava com um
pouco de medo enquanto esperava aparecer alguém. Mas quem atendeu foi
uma senhora muito parecida com minha tia-avó. O nome dela era dona
Adélia. Ela me fez entrar e me inspirou muita confiança. A casa ficava abaixo
do nível da rua, e pela janela eu podia ver as pernas das pessoas caminhando.
Era estranho. Tudo parecia nos conformes e, ao mesmo tempo, tive uma
sensação tranquila, diferente, naquele lugar. Gostei muito dos móveis, todos
eles bem antigos, da coleção de miniaturas de louça que ficava guardada na
cristaleira e das toalhinhas de renda que enfeitavam as prateleiras e mesinhas.
Dona Adélia me ofereceu bolo de fubá com uma xícara de cafezinho, depois
tirou um álbum de recortes de uma caixa muito antiga e disse assim:
— Quando eu era bem menina gostei de um menino lindo que morava na
fazenda ao lado da do meu pai. Um dia, esse menino foi brincar na
cachoeira, levou um tombo, bateu a cabeça e morreu. Eu fiquei inconsolável.
Ele tinha sido meu primeiro amigo de verdade.
“Alguns meses depois, eu estava brincando perto de uma árvore quando
um menino danado atirou uma pedra na colmeia que estava em cima do
galho. Eu não tive tempo de fugir. Fui atacada por tantas abelhas que meu
braço ficou inteirinho inchado, meu rosto irreconhecível e passei mal
durante dois dias. Eu delirei muitas horas de tanta febre. Foi quando vi meu
amigo bem à minha frente. Ele estava lindo e disse com muita calma: ‘Você
não está à beira da morte. Não tenha medo, ainda tem muito o que fazer.
Depois de curada, vá até a biblioteca do seu pai. Procure um livro com o
título 1001 Fantasmas, e abra na página 100’.

“Dito e feito. Assim que me curei corri até a biblioteca e procurei o tal
livro. Não foi difícil encontrá-lo. O livro estava escrito em francês e o autor
se chamava Alexandre Dumas. Você já deve ter ouvido falar. Foi ele que
escreveu Os três mosqueteiros. Pois então, na página 100 do livro encontrei uma
folha muito antiga de papel. Nela estava escrito o seguinte:
“Quando eu estava com a boca na botija, lendo tudo aquilo, meu bisavô
apareceu. Pensei que ia levar a maior bronca, mas ele me tratou com carinho:
‘Adélia, querida, um dia eu sabia que você seria minha aliada. Agora já está
quase pronta para ingressar na Sociedade. Antes disso, precisa ler um pouco
sobre nossa origem. Veja esta carta secreta’, ele me disse enquanto me
entregava algumas folhas de papel muito, mas muito amareladas pelo tempo.
Eu as segurei com todo o cuidado. Ele começou a explicar: ‘Leia este material
com muita atenção. Quando terminar, você será um novo membro de nossa
Sociedade’.
“A carta datava de 18 de setembro de 1831. Era mesmo muito antiga e estava
escrita em francês. Mas, minha querida Mabel, naquele tempo o francês era
ensinado nas escolas e eu era uma ótima aluna. Li a carta num minutinho.
Agora, como eu já havia sonhado com a sua vinda, preparei uma tradução
para você. Quando estiver sozinha, faça como eu fiz, leia a carta com toda a
atenção. Ela será sua porta de entrada para um novo mundo. O mundo das
coisas invisíveis, o mundo daqueles que conhecem de perto os mais
profundos segredos do universo da mente...”
Meu querido Vítor, eu nunca voltei para casa tão depressa quanto naquele
dia. Foi sebo nas canelas. Depois fiquei meio arrependida porque mal me
despedi da dona Adélia. Mas eu estava louquinha para ler a carta que ela havia
me dado. O papel era antigo, escrito à mão em tinta nanquim. Eu me
tranquei no quarto e li. Quando terminei a leitura, entendi por que eu
precisava lê-la para entrar de verdade para a Sociedade. Mas não adianta ficar
falando da carta. É preciso que você mesmo a veja. É por isso que eu a estou
enviando. Quando terminar de ler esta minha carta, abra com cuidado a
outra que coloquei bem dobradinha dentro do mesmo envelope.
Agora chegou a sua vez. É preciso que você leia a mesma carta que dona
Adélia me deu há dois anos, com a mesma tradução que me foi feita pelo
punho dela. Cuide bem desse documento. Ele é mágico. Quando você
terminar de ler será, como eu, um verdadeiro membro da 1001 Fantasmas.
Boa sorte, meu querido amigo. Não fique atordoado. Sei que estou muito
cheia de novidades e que emendei um assunto no outro. Mas acho que você
sabe muito bem o que estou tentando dizer. Receba este material com a
mente aberta. Lembre-se de sua infância, de como era bom enxergar todos os
mundos que nos rodeiam. Como era bom ter amigos invisíveis, como era
bom ouvir vozes protetoras. Não tenha medo, não fique confuso. Leia tudo
com cuidado e paciência. Essas palavras que lhe envio o ajudarão a
compreender melhor os mistérios que você deve enfrentar agora.
Escreva assim que puder.
Um beijo de sua amiga,

Mabel
Paris, 18 de setembro de 1831

1001 Fantasmas

Meu nome é Anne Marie Camille Phillipa Dumas. Sou a

filha secreta de Alexandre Dumas, o famoso escritor. Tenho muito

orgulho de meu nome, mas como papai uniu-se a muitas mulheres

durante a vida, hoje posso dizer que tenho muitos irmãos. Ter muitos

irmãos, em certos casos, significa ter muitas brigas. É assim em nossa

família. Todos disputam o direito de usar o nome de papai. Todos são

rivais. Por isso mamãe sempre guardou segredo sobre minha

verdadeira origem, sobre a real identidade de meu pai.

O nome de mamãe é também muito antigo, já que nossa família

pertence à alta nobreza. Mamãe nunca precisou da fama de papai

para ser uma mulher admirada. Ela tinha um salão em que todos os

grandes artistas se encontravam. Mamãe organizava festas

maravilhosas, com deliciosos banquetes, a decoração mais elegante da

época, e convidados que declamavam poesia e contavam emocionantes

histórias, músicos que se punham a tocar as mais lindas melodias. Foi

dessa maneira que ela e papai se conheceram. Eles se apaixonaram

numa noite em que papai vinha da estreia de uma de suas peças de

teatro. Mamãe lhe prestou uma homenagem naquela noite.


Ofereceu-lhe uma recepção maravilhosa. Algum tempo depois, eu

nasci. Na verdade eles nunca se casaram nem chegaram a habitar a

mesma casa. Mas não me envergonho disso. Amores impossíveis e

proibidos são comuns em nossa sociedade. Na verdade, tenho orgulho

de ser filha dele. Tenho a pele negra como a de meu pai e os mesmos

olhos azul-claros. Meus cabelos são longos, encaracolados, e não há

quem não me admire quando passo.

Papai deixou-me outra herança além da fama de seu nome e

talento. Quando eu era pequenina, um dia ele me pôs sentada ao seu

lado e me disse o seguinte:

— Querida Anne Marie. Estou no final de meus dias e posso

dizer que me diverti muito. Hoje sei que trouxe o sonho e a aventura à

vida de muitas pessoas. Tantos foram os que me agradavam enquanto

eu fazia sucesso. Infelizmente, agora que estou me tornando um

velho, apenas alguns amigos restaram. Estes, para mim, são o que há

de mais precioso.

Aliás, tenho pensado muito sobre as coisas que realmente

permanecem, que realmente valem a pena, e cheguei a uma estranha

conclusão: curiosamente, as coisas mais importantes da vida são

invisíveis, imaginárias talvez. Como o afeto, o carinho, a inspiração.

Sinto que estou cansado e doente. Talvez não me reste muito

tempo. Há pouco escrevi um livro diferente dos demais. Ele se chama

1001 Fantasmas. Trata-se de minha homenagem ao mundo

invisível.

Quero que você o leia um dia. Fiz com que meus personagens

dissessem as verdades nas quais creio.


Bem, depois que papai faleceu, mamãe me entregou uma caixa de

música toda incrustada de pedras preciosas que ele deixara

especialmente para mim. Tratava-se de uma caixa diferente das

demais, porque era de bom tamanho, mais parecendo um bauzinho.

Descobri que dentro dela havia um manuscrito. O texto original de

1001 Fantasmas que meu pai, secretamente, dedicara a mim.

Comecei a lê-lo com atenção. Eram histórias tão emocionantes, casos

de amores impossíveis, vidas ceifadas por lutas políticas, inocentes que

perdiam as cabeças na guilhotina apenas por terem sangue azul.

Quantas injustiças, quantos mortos, quanta intolerância e tragédia.

Mas o talento de papai transformara aquelas histórias de fantasmas

em páginas de encantamento, mistério e humor.

Lembro-me de que, no dia em que terminei a leitura do original,

saí caminhando pelas ruas de Paris com as lágrimas escorrendo dos

olhos. Eu sentia que o talento de papai seria eternamente reconhecido.

Que a força de sua imaginação jamais seria derrotada pela morte

porque ele viveria para sempre no coração de seus leitores. Eu sabia

também que cada nova geração de leitores contaria as histórias

inventadas por papai aos seus próprios filhos, criando uma espécie de

ciclo infinito, um caminho de luz e alegria, uma mensagem de força

para os povos do futuro.

Distraída, imersa nesses pensamentos, nem sequer percebi quando,

sem querer, entrei numa ruela escura. Assim que atinei o lugar em

que estava, tentei encontrar meu caminho de volta. Não consegui.

Era como se a ruela me levasse a outro lugar que não o ponto de onde

eu partira. Era assustador. Como se eu estivesse aprisionada num


intrincado labirinto. Senti que anoitecia e meu medo aumentou.

Apesar do frio de outono, minhas mãos transpiravam.

Nesse momento ouvi um canto. Uma melodia tão linda e triste

que senti uma espécie de arrepio. Prestei atenção. E sabem o que a voz

dizia?

— Venha, Anne Marie, venha comigo, eu preciso de você!

A essa altura, meu corpo inteiro tremia. Estava tomada pelo

terror. Quem me chamava com aquela voz do além? Como a voz

poderia saber o meu nome? O que estava me acontecendo naquele

momento? Me arrependi com todos os poros por ter saído sozinha de

casa, sem a companhia de ninguém, em plena Paris, ao anoitecer.

De repente, o som de uma porta se abrindo fez com que eu me

virasse. Seria uma ilusão? Uma impressão que nascia do medo

terrível que eu sentia? Mas quando me virei, constatei que realmente

havia uma porta escancarada, bem à minha frente. Respirei fundo e

me aproximei dela. A porta dava para uma escada escura, velha,

empoeirada. Contrariando o bom senso, desobedecendo aos conselhos

mais frequentes de minha adorada mãe, dominada apenas pela mais

profunda curiosidade, respirei fundo e subi os degraus. A voz

prolongava seu triste canto. Cheguei ao alto da escada. Ninguém à

vista. Entrei num estreito corredor, orientada apenas pelo som

daquela estranha melodia. Subitamente, um guincho horrível

rompeu o silêncio. Meu coração disparou. Pensei que desmaiaria.

Mas era apenas um pobre gato negro em cuja cauda eu havia

tropeçado. Quando o animalzinho saltou escada abaixo, percebi que

mais uma porta se abria. Pensei que tudo não passava de um mero
sonho. Que naquela pequena casa só havia pobres gatos abandonados.

Quem sabe eu encontraria um filhotinho perdido? “Eu poderia levá-

lo comigo”, pensei, e me dirigi rapidamente à porta aberta.

Assim que atravessei o limiar, a porta se fechou. Sozinha. Um

vento atravessou o velho cômodo vazio, subitamente uma estranha luz

amarelo-dourada invadiu o aposento e eu vi surgir bem à minha

frente uma belíssima penteadeira, repleta de vidrinhos de perfumes,

colares de ouro, brincos e anéis de brilhantes, escovas com cabos de

prata, um banquinho estofado de tecido de brocado e uma linda

jovem, branca, quase transparente, com olhos tão claros que pareciam

inexistentes, cabelos flutuantes tão longos que alcançavam o chão

empoeirado.

Fiquei ali, paralisada, sem saber se estava diante de uma pessoa ou

de uma aparição do outro mundo.

— Pequena Anne Marie — ela me disse —, eu a trouxe até

mim.

— Quem é você? — perguntei, assustada.

— Sou sua protetora, sua madrinha. Você se esqueceu de mim?

Não se lembra mais das canções que a embalavam quando

descansava no berço?

Foi então que eu a reconheci. Era Madeleine, a melhor amiga de

mamãe, que havia morrido prematuramente num acidente com sua

carruagem.

— Sim, querida — ela continuou —, eu ainda sou sua amiga.

Preciso manter-me perto de você sempre que houver algum perigo no

ar. Esse foi o encargo que seu pai me atribuiu. Sabe, às vezes eu o
encontro no outro mundo. Ele parece feliz. Mas se preocupa com

você. Sabe o que ele me disse?

“A morte não mata a vida. A morte é só uma transformação. A

morte só mata a memória. Este é o grande perigo.”

Eu a atraí até aqui porque preciso de sua ajuda. Quero que vá até

um certo lugar chamado Fontenay-aux-Roses. Lá você encontrará

um grupo de pessoas especiais. Elas cuidam de uma pequena sociedade

secreta cujo nome é 1001 Fantasmas, em homenagem ao seu pai.

Quero que você se una a elas. Elas precisam de sua força.

Quando Madeleine terminou de dizer essas palavras, desmaiei.

Quando despertei, estava em minha cama, em casa. Eu parecia

vivenciar um conto de fadas ou, para ser mais precisa, era como se eu

fosse a heroína de A bela e a fera, que atravessava os mundos ao

sonhar.

Não perdi tempo duvidando da veracidade de minha experiência

secreta. Obedeci ao conselho de Madeleine. Fui até o endereço que ela

havia me dado. Quando lá cheguei, encontrei uma pequena reunião.

Havia apenas mais seis pessoas tomando parte em misteriosas

conversas. Fui saudada como a sétima integrante de um grupo de

pessoas mágicas.

Durante a reunião, o líder, um poeta muito famoso cujo nome não

posso revelar, declarou o seguinte:

— Como você pode ver, Anne Marie, somos pessoas diferentes.

Defendemos uma tradição milenar. A Sociedade dos 1001

Fantasmas existe desde que o mundo é mundo. Os sábios da

biblioteca de Alexandria, queimada nos tempos do antigo Egito,


sabiam de nossa existência. A jovem Sherazade nos conhecia muito

bem e contou com nossa ajuda quando salvou seu príncipe por

intermédio de suas belas histórias. Nós somos os eternos defensores do

mundo imaginário. Das grandes belezas que pairam em torno do

cotidiano e que nem todos são capazes de captar.

Sempre que as pessoas se reúnem em torno do fogo e contam

histórias de mistério, atravessando as fronteiras que as separam do

mundo encantado da imaginação, estamos presentes, emprestando

força à voz daquele que narra e enche de emoções o espírito daqueles

que ouvem.

Querida Anne Marie, seu pai nos respeitava tanto que dedicou

um livro em nossa homenagem. Por isso, queremos retribuir o seu

carinho; nosso desejo é que você seja nossa presidenta. Sabemos que

tem grande talento para a escrita e organização de correspondência.

Temos certeza de que, se você aceitar nosso convite, nossa organização

se espalhará pelo mundo e fará com que as pessoas respeitem a

memória daqueles que já partiram. A memória é uma dádiva

divina, as lembranças são as únicas coisas que realmente possuímos

nesta vida.

Não preciso dizer que aceitei a missão. E, realmente, eles estavam

certos. Em minhas mãos, sob minha direção, a 1001 Fantasmas

se espalhou pelo mundo. Percebi que tenho um grande talento para

me comunicar com as pessoas, para organizar, para atrair novos

membros para nossa causa. Tenho certeza de que nossa milenar

Sociedade resistirá à dura prova do tempo e, um dia, terá adeptos em

lugares muito distantes de nossa querida França.


Anne Marie Camille Phillipa Dumas
São Paulo, 12 de julho de 2001

Querida Mabel,

Quanto mais eu tento descobrir o que está acontecendo, mais acabo


enrolado! Quer dizer então que essa Sociedade é muito antiga?
Essa história é uma loucura! Uma pessoa me leva a outra e depois mais
outra e mais outra. Bem, vamos por partes, porque você me contou muitas
coisas de uma vez só. Primeiro, eu gostei muito dos dez princípios básicos.
Segundo, adorei o jeito como você conheceu dona Adélia. Ela deve ser uma
senhora muito legalzinha. Juro que fiquei com vontade de experimentar
aquele bolo de fubá com cafezinho. Se eu sobreviver ao impostor e um dia
for à Bahia, quero que você me leve à casa dela, nessa tal rua do Tororó.
Deve ser muito legal. Aqui em São Paulo a gente pensa que Tororó é coisa
de musiquinha de criança. Você conhece, é uma música que diz: “Fui no
Tororó beber água e não achei”.
Mas agora eu preciso confessar uma coisa. A tal da carta da Anne Marie
me deu um pouco de medo. Nossa! Parece filme de Drácula, sei lá, essas
coisas que eu vejo de vez em quando em filme de suspense. Na hora em que
ela resolve entrar na casa abandonada enquanto a mulher cantava com
vozinha esquisita e tudo o mais, eu pensei: “Puxa, que coisa, se fosse
comigo eu saía correndo”. Quase parei de ler a carta, mas depois pensei o
óbvio, quer dizer, ela não tinha morrido, se não como é que tinha escrito a
carta?
Foi emocionante... mas não entendi bem por que a carta da Anne Marie é
obrigatória para quem quer entrar para a Sociedade. Está certo que eu estou
com o raciocínio meio perturbado... medo demais dá nisso.
Na verdade, eu nunca soube se queria ou não ser um membro da 1001.
Foi acontecendo por acaso, porque para mim não tinha outro jeito. O
negócio aqui em casa me deixa louco, é uma coisa que não dá para
acreditar. Deixa eu contar a última:
Agora enxergo seu Guimarães o tempo todo. Ele é superengraçado.
Quando percebe que estou com medo do tal impostor, fica fazendo umas
caretas malucas no espelho, eu não aguento e morro de rir. Assim, dando
risadas, eu estou conseguindo vencer meu medo. Pelo menos um pouco...
E eu preciso mesmo ter muita coragem. A ruiva do terror voltou. Tentei
ligar para os meus pais no hotel mas o telefone aqui de casa está mudo.
Procurei dinheiro para comprar um cartão telefônico, mas minhas moedas
sumiram. Então inventei de telefonar a cobrar para o hotel. Pensei assim:
“Vou fazer tanto escândalo com o gerente que ele vai ter que aceitar a
ligação a cobrar”. Acontece que o aparelho de telefone do hotel deve estar
com defeito, pois chama, chama e ninguém atende. Acho melhor esquecer
esse negócio de telefone. Ainda mais porque agora o casalzinho está me
controlando o tempo todo. Acho que eles não estão vigiando as cartas
porque eu sempre corro e ponho na caixa do correio quando eles estão
distraídos. Ainda me sobraram muitos selinhos. Que sorte, que sorte
mesmo! Imagine que eu tinha comprado esse monte de selos porque estava
querendo participar de um concurso de desenhos. Era uma promoção legal.
Quem ganhasse ficava com uma bicicleta e o desenho premiado ainda
apareceria na tv. Agora todos os desenhos que eu fiz, porque eu tinha
achado melhor concorrer com muitos, vão ter que ficar guardados. Mas
ainda bem que comprei os selos, se não fosse por eles, eu não teria saída.
Nem teria como escrever para vocês. Estou praticamente nas mãos do
sujeitinho. O pior é que eu estou desconfiado de que eles estão querendo
fazer mais magia no meio da sala. Isso me dá um pânico daqueles. A
mulher trouxe uma toalha toda bordada com umas figuras muito estranhas.
O que será que vai acontecer? Me ajude! Mande vir a tal da Anne Marie, peça
para dona Adélia fazer uma reza, sei lá!
Socooooooorro!!!!

VÍTOR
Salvador, 14 de julho de 2001

Caro Vítor,

Lembra da dona Adélia, a velhinha da Sociedade? Da segunda vez que eu a


visitei ela me ensinou mais coisas. Me disse que quando uma pessoa morre,
ela enxerga a vida inteira. A maioria das pessoas se arrepende das besteiras
que fez. Mas tem gente que não. Tem pessoas que não querem ir para o céu e
ficam aprontando em volta dos vivos. Como se isso fosse uma maneira de
continuar a viver também. Esses são os maus fantasmas. Bem, criança e gente
feliz não atraem essa turma do mal. Eles geralmente vivem perto de gente que
tem muita raiva no coração. Um fantasma mau ganha poderes quando se une
a uma pessoa má. Por exemplo, eles podem fazer objetos voarem. Foi por isso
que tudo voou na sua casa.
Já sei! Você deve estar mortinho de medo. Mas não ligue, não. Quando
alguém morre e acha que ainda precisa ajudar um pouco mais as pessoas,
também fica por aqui. Como se fosse um anjo da guarda. Eu acho que o seu
Guimarães é uma espécie de guardião. Ele irá protegê-lo.
Essa história de toalha é para chamar o fantasma do mal que está
trabalhando junto com os dois. Eu sei disso porque dona Adélia me explicou.
No seu lugar eu faria o seguinte: me trancava no quarto, chamava o seu
Guimarães e pedia ajuda. Tenho certeza de que ele virá acalmá-lo, e, quem
sabe, contará umas boas piadas, não é mesmo? Bem, enquanto isso, vou
escrever para a diretoria e explicar o seu caso. Logo você terá novidades pelo
correio.
Muito cuidado.

Um beijo,

Mabel
São Paulo, 15 de julho de 2001

Caro Vítor,

Meu nome é Toshiro e eu sou um membro da 1001 Fantasmas.


Também moro em São Paulo, no bairro da Liberdade. Soube que você
está em perigo e quero ajudá-lo. Posso ir até sua casa, se você achar
melhor. A diretoria me pediu que o socorresse porque sou muito bom
nessas coisas.
Como você já deve ter percebido pelo meu nome, minha família veio do
Japão. Na terra dos meus pais, as pessoas não têm tanto medo da morte
como aqui. Quando alguém da família morre, um avô ou um tio, por
exemplo, ele se reúne com os ancestrais. Os ancestrais são os parentes
que já morreram mas que têm muita importância para os vivos. Aquilo
que vocês chamam de fantasmas, nós chamamos de ancestrais. Minha
mãe me ensinou que eles são nossos sábios protetores.
Quando eu era pequeno, meus pais não cavam me contando essas
historinhas bobas que eu ouço por aí. Eles me contavam histórias de
fantasmas que eram fantásticas. Você conhece a lenda do jovem samurai
e os cinco fantasmas? É demais. Preste atenção.
No antigo Japão havia um jovem guerreiro samurai chamado
Yoshinaru. Certa noite, no meio de uma viagem, ele sentiu frio e resolveu
se abrigar num velho templo vazio. Mas, quando ele se deitou para
dormir, ouviu um barulho estranho e uma voz que dizia:
— Tem alguém aí?
O cara apanhou a espada e cou preparado. A voz então disse:
— Eu sou o brilhante, aquele que se perdeu no nevoeiro, posso entrar
um pouquinho?
E outra voz ainda mais esquisita respondeu:
— Entre, meu amigo, seja bem-vindo.
O samurai achou que estava louco! E então alguém bateu outra vez:
— Aqui é o miudinho, o sozinho, aquele que se perdeu entre as árvores.
Posso entrar um pouquinho?
— Entre e seja bem-vindo — responderam.
Foi então que o samurai entendeu tudo. O templo era assombrado e
aquilo era uma festa de fantasmas.
Daí, uma terceira voz perguntou:
— Aqui é o cansado, o fatigado, o que sumiu e nunca mais voltou.
Posso entrar para car?
— Entre, meu amigo — responderam os fantasmas —, e aproveite
para festejar.
O samurai acendeu uma vela. Nada. Não tinha ninguém. Mesmo assim
as vozes continuaram a falar:
— Aqui é o faminto, o afogado, o que se perdeu no meio do lago, posso
entrar também?
— Claro, meu amigo, venha para cá — responderam.
“Um samurai não pode ter medo”, pensou Yoshinaru, que já estava
começando a car bem cismado. Depois foi caminhando devagarzinho
pelo templo. Descobriu que as vozes vinham de um quarto que estava com
a porta fechada.
Primeiro o samurai ergueu a espada e preparou-se para a luta. Depois
mudou de ideia e disse:
— Abram esta porta! Eu quero entrar!
Uma luz vermelha cortou o escuro e uma voz disse:
— Quem sou eu? Você pode me dizer?
O samurai reconheceu a voz e respondeu:
— Você é o brilhante, o que se perdeu no nevoeiro!
Na mesma hora, a luz sumiu.
Então apareceu uma bola branca e fez a mesma pergunta para o
samurai.
— Você é o miudinho, o sozinho, aquele que se perdeu entre as árvores
— ele respondeu.
O efeito foi o mesmo. A bola branca desapareceu. Em seguida, uma luz
azul o cercou e o samurai ouviu as seguintes palavras:
— Vamos, agora diga quem sou eu!
O samurai era esperto e respondeu:
— Você é o cansado, o fatigado, o que sumiu e nunca mais voltou.
A bola desmanchou-se no ar.
O samurai percebeu que tinha vencido todos os fantasmas sem usar a
espada. Mas então apareceu o último fantasma, uma luz violeta e rajada,
dizendo:
— Quem sou eu?
— Você é o faminto, o afogado, e eu não tenho medo nenhum de você.
Foi nessa hora que o samurai se lembrou de que tinha sobrado um
fantasma. Aquele que nunca tinha dito o seu nome. E agora?
Nisso, uma voz disse assim:
— Diga já quem eu sou, senão eu faço você morrer de rir.
E Yoshinaru respondeu:
— Que bom que você é o último, meu amigo, eu já estou cansado desta
brincadeira. Você é o voador, o das nuvens, o que se perdeu e se esqueceu
de voltar. Você também é o brincalhão, aquele que queria me assustar.
Uma luz amarela cercou o samurai, fez cócegas nele e depois se
apagou. No dia seguinte, Yoshinaru foi até a cidadezinha mais próxima.
Estava morrendo de pena dos fantasmas. Eles estavam tão sós e
abandonados! Quando chegou ao meio da vila, reuniu os habitantes e
declarou:
— Fui dormir com seus fantasmas! Todos tão solitários. Por que vocês
os abandonaram? Eu tenho certeza de que se formos até lá e lhes
zermos uma homenagem, esta cidade se transformará num lugar de
grande felicidade.
O pessoal da vila obedeceu ao samurai só porque os antigos guerreiros
eram muito respeitados. Ninguém estava querendo saber de fantasmas.
Mas quando as pessoas se sentaram diante do templo, naquela noite
escura, os cinco fantasmas apareceram: a luz azul e espiralada, a luz
redonda e amarelada, a luz branca e estrelada, a luz violeta e o raio
vermelho e enroscado. Cercaram todos os convidados como se quisessem
lhes mostrar uma cena mágica.
De manhã bem cedinho, o samurai foi embora. Mas no ano seguinte,
quando voltou à mesma vila, tudo tinha mudado, as pessoas pareciam
mais felizes e as crianças estavam mais alegres.
Gostou?
Minha mãe me contava essa história para me ensinar que é muito bom
cuidar dos fantasmas da família.
Bem, agora vamos ao assunto sério: a diretoria me disse que você está
enfrentando problemas com os vivos e com os mortos. Parece que tem
alguém mau na sua casa, não é?
Você gostaria de receber minha ajuda?
Escreva logo.
Já fui informado de que você está sem telefone e não consegue sair de
casa. Portanto, espero sua resposta. Basta me dar um ok e eu pego um
ônibus e corro aí para encontrá-lo.
Um abraço,

Toshiro
São Paulo, 16 de julho de 2001

Toshiro,

Eu achei melhor lhe escrever; como você já sabe, está complicado demais
usar o telefone. O impostor está controlando isso. Agora a mulher ruiva
amiga dele não sai mais daqui. O clima está horrível. Eles conversam
naquela língua estranha dia e noite. Mudaram toda a decoração da sala. O
negócio aqui está superesquisito. E, para piorar ainda mais a situação, seu
Guimarães sumiu! Ele estava conversando comigo sentado ao lado da
minha cama e contava umas histórias superengraçadas da gente do sertão.
Eu fui ficando tão tranquilo com o olhar dele, que é tão bondoso, com
aquele jeito carinhoso que ele tem de falar que me esqueci de que precisava
falar muito baixinho para eles não perceberem que eu não estava sozinho.
Comecei a falar em voz alta com seu Guimarães e a rir para valer também.
Estava me sentindo muito feliz.
Bem, na melhor parte da nossa conversa, o tal do impostor e a ruiva
abriram a porta e ele perguntou:
— Vítor, com quem é que você está conversando? Que folia é essa, hem?
Eu percebi na mesma hora que eles não conseguiam ver seu Guimarães.
— Não é nada, não. Acho que me deu bobeira. Estava só treinando umas
piadas novas que eu li numa revista e depois quero contar na escola.
— Engraçado — disse a ruiva com uma cara de desconfiança —, parecia
que você estava falando com alguém. Você está enxergando mais alguém?
Não estava falando com um fantasma, não, estava?
Eu gelei. Mas fiz cara de quem não estava nem aí e, fingindo que estava
ofendido, respondi:
— Puxa! Assim não dá! Vocês não me levam para lugar nenhum, eu não
tenho ninguém para conversar, nenhum amigo, nem nada. Só dá para ficar
falando sozinho, né!
Felizmente, a ruiva e o comparsa engoliram minha desculpa. Saíram
batendo a porta, mas quando eu me virei para seu Guimarães, ele estava
começando a sumir no ar. Antes de desaparecer totalmente, ele me disse:
— Vítor, meu menino, sinto que estou ficando fraco. Acho que
subestimei o poder desses dois, precisamos ter mais cuidado. Não sei
direito que magia é essa que eles estão usando para me fazer desaparecer,
só sei que está funcionando. Preciso desaparecer por um tempo para me
recarregar e buscar ajuda. Agora, vou precisar que confie em mim e resista
ao próprio medo. Você não deve temer nada, pois sua força é imensa. Você
ainda não a sente porque é muito inexperiente, mas esses dois não podem
fazer nada contra você, a menos que você deixe que eles façam. Mas eu
tenho certeza de que isso não irá acontecer. Espere por mim e continue em
contato com o pessoal da Sociedade. Apenas eles podem ajudá-lo agora.
Adeus, meu grande amigo.
Naquela noite, pela primeira vez na vida, eu chorei para valer. Seu
Guimarães tinha sido afetado e estava sofrendo, eu podia sentir. Eu pensei
que ele era o meu protetor invencível, mas não é bem assim. Ele foi atingido
e não consigo mais vê-lo.
Por favor, venha me visitar. Eu vou dizer ao impostor que você é um
amigo que veio me ajudar a estudar para uma matéria em que fiquei de
recuperação. Sei lá, falo algo desse gênero. O que não deixa de ser verdade,
pois você vem me ensinar mais coisas sobre fantasmas, não é?
Eu estou esperando por você, preciso de sua ajuda, urgente!
VÍTOR

P. S. Esqueci de falar, mas fiquei bem mais calmo depois que recebi sua
carta. Valeu!
São Paulo, 16 de julho de 2001

Caro Vítor,

Você não me conhece. Pertenço à Sociedade dos 1001 Fantasmas. A diretoria


pediu para ajudá-lo. Meu nome é James. Minha família é irlandesa. Fiquei
membro da Sociedade quando passava as férias em Dublin. Vi o anúncio no
jornal e morri de curiosidade. Escrevi só de farra e acabei entrando para a
Associação.
Como você pode ver, a 1001 Fantasmas se espalhou pelo mundo inteiro. É
uma sociedade muito antiga que teve seus ideais resgatados na França, no
século XIX. Durante a Revolução Francesa no século XVIII muita gente foi
decapitada. No começo eram só os nobres, depois foram matando tudo quanto
é gente porque a coisa ficou mais violenta que jogos de lutas. Quase cem anos
depois, os parentes desses condenados políticos começaram a receber a visita
de seus fantasmas. Por isso resolveram dar corpo a essa Associação. Mas, como
você já deve estar sabendo, a coisa tomou mais força com a entrada de nossa
primeira presidenta, Anne Marie Camille Phillipa Dumas, a filha secreta do
grande Alexandre Dumas. Meu, você precisa ler os livros desse cara urgente.
São demais. Leia O conde de Monte Cristo. Você vai ver como o herói conseguiu
se safar mesmo preso e detonado.
Bem, voltando ao assunto, a história da Sociedade, na verdade, vem de antes
da Revolução. Parece que o negócio começou no Oriente, no Egito, não sei
bem. Na verdade, não existem registros dessa época do passado. Só histórias.
Agora, na Sociedade, temos um grande arquivo de cartas e depoimentos de
pessoas que viveram experiências extraordinárias. Atualmente estamos
pensando em modernizar nosso trabalho e, quem sabe, introduzir a Sociedade
na internet. Mas alguns membros da diretoria se opõem a isso.
Dizem que a Associação é baseada na correspondência por cartas. O correio
é mais sigiloso do que a internet. Uma carta é um documento que atravessa os
tempos, e nada deve ser mudado em nossa maneira de funcionar.
Por que eu estou lhe contando essas coisas? Além de termos um centro na
Europa no qual as cartas são catalogadas, criamos também um arquivo de
fantasmas. Esse fantasma que mora na sua casa pertence ao nosso arquivo.
Resolvemos enviar a história dele para que você compreenda melhor o que está
acontecendo por aí. Não se preocupe. Logo você terá mais informações.

Um abraço,

James J.
Nova Orleans, 15 de julho de 2001

Meu caro Vítor,

Ontem recebi um telegrama urgente da diretoria. Pediram para eu mandar esta carta
via sedex para que chegasse o mais rápido possível. Parece que você está enfrentando um
supervilão. Daqueles que a gente só vê mesmo em filme de terror de sexta-feira à noite.
Mas primeiro preciso me apresentar: meu nome é Eriq de la Molle. Sou negro,
estadunidense e moro em Nova Orleans, a cidade mais mágica e musical dos Estados
Unidos. Sei que você está morto de medo, por isso vou primeiro conversar um
pouquinho para acalmá-lo, depois você dá uma olhada no arquivo sobre seu amigo
Guimarães. Minha avó sempre me diz que o lugar mais calmo do mundo é o centro de
um furacão. Quer dizer, dê um tempo, leia minha carta, quem sabe ficamos amigos? Eu
adoraria ter um amigo no Brasil. Por puro interesse, mesmo, é que eu adoraria conhecer
sua terra.
Bem, português, como você pode ver, eu falo e escrevo bem. Como é que aprendi? Eu
tenho sete irmãos e minha mãe é viúva. Ela é dona de um restaurante de frutos do mar.
Quem sempre cuidou de nós foi minha bisavó Clarice. Aliás foi com ela que aprendi a
falar francês. Aqui em Nova Orleans todo mundo fala um pouquinho de francês. Há
dois anos uma família brasileira mudou para a casa da esquina. Eles são os Sampaio.
Tocam em uma banda de música num bar no French Quarter. Eu vivo lá. Conheci o
Rafael, o filho mais velho, na escola e desde então fiquei íntimo da casa. Foi fácil
aprender a falar português porque eu já conhecia francês. Depois comecei a ler os livros
que eles têm...
Mas não foi só por isso que a diretoria me mandou escrever para você. É que eles
querem que eu relate minha história para você ficar mais tranquilo.
Um dia eu estava andando numa rua estreitinha, no bairro francês de Nova
Orleans. Ele é cheio de lojinhas de cartomantes, videntes, gente que lê o futuro nas
cartas etc. Eu estava com um pouco de dinheiro no bolso porque tinha ajudado minha
mãe no restaurante e os fregueses haviam me dado gorjetas. Olhei para uma janelinha
iluminada e toda colorida de anúncios. Fiquei com vontade de saber meu futuro. Eu
queria saber se ia passar de ano.
Pensei que ia encontrar uma velhinha fantasiada de cigana, mas apareceu um cara
todo fortão e barbudo, que não parecia ser vidente de nada. Ele me serviu uma xícara de
chá-preto, mandou que eu bebesse o líquido e depois lhe entregasse a xícara de volta.
Obedeci. Enquanto eu bebia, o cara perguntou:
— O que você quer saber?
— Se vou passar na prova de inglês — respondi.
— Não vai, não — ele disse.
— Como é que o senhor sabe? — eu perguntei.
— Se tivesse estudado, você não tinha dúvida, seu moleque.
Achei que o cara era esperto. É verdade, eu não tinha estudado nada. Dei uma
risadinha. Estava gostando dele. Mas quando eu lhe devolvi a xícara, o cara ficou
sério. Sua boca foi se abrindo devagarzinho.
— Você é um menino especial, Eriq. Desculpe se fiz umas brincadeiras. Você será um
grande músico. Conhecido internacionalmente. Suas canções serão mágicas.
Estava gostando daquilo. Eu adoro música. Já inventei umas canções. Os Sampaio
aprovaram. Disseram que tenho talento. Comecei a viajar nessa história de ser
músico...
— Mas atenção, garoto. Você terá que enfrentar um grande perigo num futuro
próximo — falou o homem, interrompendo minhas divagações.
Depois de dizer isso o cara parou de falar. Ele me entregou um trevinho-de-quatro-
folhas feito de prata e disse que era para eu guardar. Então me mandou embora. Nem
cobrou nada. Foi desse jeito mesmo. Sem mais nem menos.
Em Nova Orleans acontecem coisas estranhas a toda hora. Fui andando para casa
morto de medo. Resolvi parar no parque para descansar. Havia um cara tocando
violão. Aqui tem um músico em cada praça. Nisso eu vi um senhor muito tranquilo
sentar-se no banco da frente. Ele sorriu para mim. Ficamos quietos ouvindo a música.
Daí apareceu um outro sujeito. Ele era tão nervoso que o rosto dele ficava se mexendo o
tempo todo. Ele piscava, suava (mas naquele dia fazia um frio tremendo) e batia o pé
no chão. Era bem magrinho e pálido. Seu cabelo estava todo ensebado. Ele sentou do
lado do senhor simpático. De repente, eu reparei, ele tirou uma faquinha do bolso e
murmurou alguma coisa para o meu amigo. Vi que era um assalto. Olhei ao meu
redor. O cantor não estava percebendo nada. Não tinha sequer um policial para pedir
ajuda. Aliás, não havia mais nenhum adulto. Só uma molecada andando de patins.
Comecei a suar frio também. Tinha que fazer alguma coisa. O senhor me olhou e fez
sinal com a mão para que eu fugisse. Mas isso eu não ia fazer. O cara cutucou meu
amigo outra vez. Ele enfiou a mão no bolso e deu para perceber que estava vazio. Acho
que ele tinha saído para passear sem carteira. “E agora?”, pensei. O assaltante vai ficar
louco da vida. Fechei os olhos e pedi assim: “Por favor, alguém me ajude, preciso salvar
esse homem!”.
Quando abri os olhos vi a coisa mais estranha do mundo. Atrás da pracinha tem
uma casa antiga que foi transformada em museu. Já não era mais hora de visitas. Mas
tudo foi tão rápido que é difícil descrever. Uma moça vestida com uma camisola branca
comprida atravessou a porta da casa. Atravessou mesmo. Como se seu corpo não fosse
de carne e osso. Ela era linda. Mas a cara estava muito brava. Ela veio andando bem
rápido na nossa direção. Depois cobriu os olhos do assaltante. O cara colocou as mãos
no rosto gritando e deixou cair a faca. Então, deu um salto e saiu correndo dali. E a
moça sumiu. Desintegrou no ar.
O senhor que tinha sido atacado se aproximou de mim e me deu um abraço dizendo:
— Agora você já sabe, meu filho. Você é diferente. Você pode ver fantasmas. Você
pode chamá-los. Muito obrigado. Por pouco eu não viro um fantasma também. E
ainda é cedo para isso. Tenho muito o que fazer. Tome isto — ele me entregou um
jornal — e vá para casa. Leia direitinho na página 77.
Naquele dia eu não corri para casa, voei mesmo. Nem jantei. Eu me tranquei no
quarto, abri o jornal e vi o seguinte:

Nem é preciso saber inglês para descobrir o que dizia o anúncio, não é? Entrei para a
Sociedade. Como você vê, é a mesma coisa com todo mundo, em todo lugar. Os caras
aparecem bem na hora em que a gente mais precisa deles. Aos poucos fui conhecendo
melhor a Sociedade. Desde que trabalho com a 1001, já descobri mais alguns segredos.
Agora, preste atenção:
Até os dezessete anos, mais ou menos, todo mundo ainda enxerga o mundo pelo olho
da mente. Qualquer jovem pode ver fantasmas. Depois, para a maioria das pessoas o
olho vai se fechando bem devagarzinho e só volta a abrir quando elas ficam bem
velhinhas. É por isso que os adultos não acreditam em fantasmas. Eles não conseguem
ver. E, além disso, também não acreditam em crianças, jovens ou velhos. Para adulto
só existe a tal da “verdade adulta”. E isso, meu caro Vítor, na maior parte das vezes, é
pura bobagem.
A diretoria quer que você faça como eu, feche os olhos e peça ajuda: o velho
Guimarães nunca falha.

Good luck,

Eriq de la Molle
São Paulo, 18 de julho de 2001

Caro Eriq de la Molle,

Fiquei muito feliz em receber sua carta. Agora começo a compreender o


que está acontecendo por aqui. Mas, principalmente, já não estou me
sentindo tão só e abandonado. Parece que conquistei dois tipos de amigos:
amigos da minha idade, reais e humanos, como vocês, e aliados no além,
como seu Guimarães. Nunca imaginei que um dia pudesse viver uma
aventura dessas, com conexão internacional e tudo!
Achei muito legal sua história. É claro que você pode vir passar uns
tempos comigo no Brasil. Eu ia adorar! Mas depois também vou querer
passar umas férias com você, em Nova Orleans. Cara, sua vida parece ser
muito divertida. Ouvir música em todo lugar, falar um monte de línguas,
viver numa cidade cheia de mistérios. Estou achando o máximo!
Mas, por falar em mistérios, estou superpreocupado com seu Guimarães.
Desde que o casalzinho do mal estendeu a toalha toda desenhada eu não
pude mais vê-lo. Será que ele está por aqui? Será que ele pode me ajudar?
Mesmo assim, em todo caso, eu entendi a mensagem dele. Agora
depende de mim. Da força que eu tiver. Chegou a hora de me concentrar e
abrir a cabeça para chamar seu Guimarães para perto de mim. Hoje à noite
vou fingir que estou cansado, venho para a cama mais cedo, apago a luz e
me concentro; espero que dê certo, porque eu já estou ficando meio
apavorado.
Good luck para você também!
VÍTOR
São Paulo, 18 de julho de 2001

James,

Recebi a sua carta e a do Eriq também. Estou gostando muito da nossa


Sociedade. É muito legal! Vocês acham que eu também tenho poderes?
Estou começando a acreditar que sim. Fiquei pensando... se eu não tivesse
algum poder, sei lá, um pouco de importância, o casalzinho já tinha
sumido comigo. Ou então eles tinham me mandado viajar junto com meus
pais. Por que é que o tal do comparsa fez de tudo para que eu ficasse
sozinho nas mãos dele? Será que ele tem algum plano terrível contra mim?
Será que eles querem me usar para alguma coisa? Caramba, eu não aguento
mais!
Só me resta uma coisa a fazer. Seguir os conselhos do Eriq. Hoje à noite
eu vou me concentrar e chamar seu Guimarães. Mas, em todo caso, queria
muito que você viesse aqui para casa. O impostor e sua comparsa estão tão
entretidos em suas tramoias que nem irão se importar.
Por favor, venha ou escreva o mais rápido que puder! Sinto que tenho
pouco tempo!

VÍTOR
São Paulo, 19 de julho de 2001

Caro Vítor,

Ontem me aconteceu uma coisa muito especial. Recebi um

telefonema da Mabel, minha melhor amiga. Ela me deu seu

endereço e pediu para que escrevesse para você o mais rápido

possível.

Bem, preciso me apresentar primeiro: meu nome é Maria

Lumiana da Cruz. Sou trisneta de Guimarães da Cruz e moro em

São Paulo, como você. Também pertenço à 1001 Fantasmas. Já sei

de tudo o que está acontecendo em sua casa.

Meu avô morreu quando eu tinha só cinco anos. Mesmo com

pouca idade eu o adorava. Ele me levava para passear no parque.

Sei que tinha o maior orgulho de mim. Lembro dele ao meu lado,

do seu terno cinza, no sofá, de seu jeito calmo de falar. Quando me

dava a mão eu sentia uma calma muito grande e uma alegria

também. Fiquei muito triste no dia em que ele morreu, por isso

mamãe me levou para o quarto e disse que ia ter uma conversa

especial comigo:

— Maria Lumiana, eu sei que você tinha muito amor por seu avô.

Mas ele não iria gostar nem um pouco de ver você chorando tanto.

Aliás, ele me disse que queria que você ficasse com todos os livros

dele. O que você acha disso?


Eu adorei. Meu avô tinha os mais lindos livros de contos de fadas

que eu já havia visto. Passei quase um mês, ao lado da mamãe,

montando a biblioteca com os livros que ele tinha me deixado de

presente. Agora, que já estou com catorze anos, continuo lendo

tudo o que ele me deixou. Dá para conhecer uma pessoa pelo que

ela gosta de ler.

Eu estou falando essas coisas porque um dia adormeci com um

livro dele no colo e quando despertei vovô estava sentado ao meu

lado. Ele me disse assim:

— Lumiana, minha neta. Você se lembra que fui eu quem

escolheu o seu nome? Todo mundo reclamou, disseram que era

um nome muito estranho. Mas eu sei que ele é mágico, significa a

menina da luz. É por isso que você pode me ver. Porque seus olhos

têm a luz da mente. Você tem poderes também. Mas hoje vou

partir. Preciso morar em outra casa. Existe um garoto que necessita

demais de minha proteção.

Lembro que comecei a chorar de saudade, de tristeza, de

solidão. Mas meu avô sorriu, fez um carinho na minha cabeça e

disse:

— Esse garoto será seu amigo, também. Você vai acabar me

agradecendo por tudo isso, querida.

Bem, Vítor, acho que esse menino é você. Você é o protegido do

meu avô. E eu preciso ajudá-lo também. Será que posso visitá-lo?

Eu não tenho medo dessa dupla nefasta que está aí em sua casa.

Escreva logo. Se der, quero estar com você no máximo depois de

amanhã!

Um superabraço,
Maria Lumiana
São Paulo, 20 de julho de 2001

Meu amigo Vítor,

Toshiro e Maria Lumiana me telefonaram ontem e resolvemos que vamos


juntos até sua casa. Nós iremos visitá-lo no dia 22 de julho, às 14 horas.
Achamos que você precisa muito de nossa companhia e do nosso apoio. Se, por
acaso, o impostor e a mulher tentarem impedir nossa entrada, fique bem
preparado. Nós vamos botar pra quebrar. A gente não quer nem saber daqueles
dois.
Fico imaginando como você deve estar assustado. Sabe, os irlandeses têm
fama de ser completamente malucos. Não sei se são malucos ou só diferentes.
Na minha casa todo mundo fala de duendes, gnomos, fadinhas... Para nós eles
são personagens reais.
Bem, melhor conversar pessoalmente.

Espere por nós,

James
São Paulo, 20 de julho de 2001

Meus querido Vítor,

Hoje você está recebendo várias cartas, não é mesmo? A gente

combinou que seria desse jeito. Você precisa ter a certeza de que

pode contar conosco. Também já deve estar sabendo que

combinamos de ir até sua casa para salvar você da enrascada. Já

falei com minha mãe sobre o seu caso. Contei a ela que você ficou

com um tio doidão, que parecia bem normal no começo mas que

depois se transformou em um atraso de vida. Se estiver muito mal,

ou se por acaso o sujeito deixá-lo sozinho e tudo o mais, mamãe

disse que você pode ficar aqui em casa até seus pais voltarem.

De qualquer jeito você sai dessa enrascada. Isso eu garanto.

Depois, esse é o jeito da mamãe. Aqui em casa parece uma

espécie de clube. Você sempre encontra o pessoal. Mamãe disse

que um a mais, um a menos, não faz a menor diferença.

Até amanhã.

Fique frio.

Um beijão,

Maria L.
São Paulo, 21 de julho de 2001

Querida Mabel,

Você não sabe o que aconteceu!


Enquanto escrevo para você, estou esperando três amigos: Toshiro,
James e Maria Lumiana. Eles prometeram me ajudar a resolver o problema
do impostor enfiado na minha casa. Até agora não entendi direito o que
esse falso tio quer comigo e minha família. Fiquei pensando e fiz uma
listinha de questões:
1 – Será que esse tal Ademar quer acabar com seu Guimarães?
2 – Será que ele quer prender seu Guimarães?
3 – Será que ele quer chamar para minha casa algum inimigo do seu
Guimarães?
4 – Será que ele quer sumir comigo também?
Bem, ontem eu não conseguia mais dormir porque estava morrendo de
medo dessas coisas. Recebi cartas de todo mundo. Cartas bem legais,
engraçadas, dizendo para eu ficar animado, que tudo ia dar certo, mas
quando eu acabo de ler e ouço a voz dos dois lá embaixo, o medo volta e
fico meio desesperado. Ontem, quando já era quase meia-noite, os dois
estavam muito animados, falando aquela língua estranha e tudo o mais.
Tive outra vez uma imensa vontade de chorar, uma saudade da minha mãe e
do meu pai. Deitei na cama e parecia que meu corpo estava afundando todo
no colchão. Estava difícil até de respirar.
Então seu Guimarães apareceu. Sentou-se ao lado da minha cama e me
explicou o que está acontecendo. Sabe o que ele disse?
— Preciso ficar entre os vivos por mais sete meses porque tenho uma
missão a cumprir. E você faz parte da minha missão. Amanhã você
encontrará três ótimos amigos. Juntos, vocês formarão um grupo de
iluminados e isso é muito bom.
Aí eu perguntei:
— Seu Guimarães, me diga: o que esse tal Ademar quer com o senhor?
— Ele finge ser um caça-fantasmas. Quando as famílias enfrentam
problemas inexplicáveis, como objetos que se movem, crianças que
enxergam seres invisíveis etc., as pessoas se assustam e saem à procura de
uma solução, de explicações racionais. É aí que o Ademar entra em ação.
Ele chega na casa da pessoa dizendo que vai tirar as más influências do
além. É mentira. Na realidade, auxiliado por sua comparsa, eles sugam a
energia dos seres vivos e também a dos seres invisíveis. São vampiros
modernos.
— Mas como eles conseguem? — eu perguntei.
— Essas coisas existem desde que o mundo é mundo. No Egito, por
exemplo, havia muitas formas mágicas de sugar energia. Quem conhece
esses segredos vive mais tempo, tem mais força física, até consegue atrair
mais dinheiro e admiradores, mas não é feliz. Porque ser feliz é seguir o
fluxo da vida e da natureza. Ser feliz não é ficar tentando controlar e roubar
a energia das outras pessoas. Mas não se preocupe. Amanhã, quando
acontecer o grande confronto de forças, o bem vencerá.
Assim que disse isso, seu Guimarães sumiu. O que será que vai acontecer
aqui em casa? Estou apavorado!

Um beijo,
VÍTOR
Salvador, 23 de julho de 2001

Meu querido Vítor,

Sei que quando você receber minha carta, tudo já terá acontecido. Tenho
certeza de que as coisas vão dar certo no final. Há algo que eu não esclareci
direito. A 1001 Fantasmas é uma sociedade de muita força. Nós nunca fomos
vencidos por ninguém. Isso porque todos os membros da nossa organização
são pessoas de ótimo coração e, quando se unem, formam uma espécie de
aliança que nunca ninguém conseguiu destruir.
Escreva assim que puder.

Um grande beijo,

Mabel
São Paulo, 25 de julho de 2001

Querida Mabel,

Nem sei como começar.


Todos vocês me escreveram dizendo que o bem venceria o confronto das
forças. Até mesmo seu Guimarães me disse isso. Mas na hora em que me vi
sozinho, e a situação ficou feia para o meu lado, eu me esqueci de todos os
conselhos, de todas as histórias, das cartas e até da Sociedade.
Quando entrei na cozinha para ver se encontrava alguma coisinha para
comer no café da manhã, a tal ruiva foi logo me mandando embora. Já vi
muito adulto bravo na minha vida: professor dando bronca, guarda de
trânsito dando bronca, lanterninha de cinema dando bronca, meu pai me
passando um sermão, minha mãe reclamando pela casa; mas eu nunca
tinha visto uma expressão tão feia nos olhos de uma pessoa. O olhar da
ruiva era tão maldoso que seus olhos perdiam todo o brilho e viravam dois
buracos no meio da testa. Corri para o meu quarto apavorado.
Depois, começou a musiquinha. Eles (ela e o tal tio Ademar) cantavam
uma cantiga muito esquisita, naquela língua que eu não conheço nem sei
de qual país pertence. No começo aquilo me deu um medo incrível, e fui
ficando apavorado. Mas pensei: “Desse jeito não dá, Vítor. Você não está
fazendo nenhum esforço para se concentrar. E o pessoal todo? Eles estão
para chegar”.
Depois me lembrei de seu Guimarães e fui ficando com raiva do que eles
estavam tentando fazer. Corri para a janela para ver se meus amigos
estavam chegando. Ninguém.
Desci para espiar o que os impostores estavam fazendo... e fui pego em
flagrante!
— Ah, seu moleque! Você estava tentando bancar o espião, não é?
Os dois vieram caminhando na minha direção. Fechei os olhos e pensei:
“Agora, danou-se!”.
Mas eles não me bateram. Só seguraram meus braços, e o tal Ademar
disse:
— Pensando bem, acho que posso usar sua energia de outro jeito. Já que
você não serviu de isca para o Guimarães, vou fazer você se transformar
num de nós. Assim, desde pequeno, será treinado para canalizar a sua
esperteza para as coisas certas da vida.
Depois ele começou a cantar a tal musiquinha esquisita. Fui ficando
tonto. Fui ficando fraco. Uns desenhos estranhos, como figuras de
caleidoscópio, apareceram na minha cabeça. Eram desenhos muito
bonitos, mas havia algo esquisito com eles. Parecia que emitiam uma
espécie de escuridão e estavam me deixando hipnotizado. Minha vontade
estava sumindo. Eu esqueci meu nome e onde estava. Perdi a noção dos
acontecimentos e não sabia mais quem eram meus pais.
Nesse momento, seu Guimarães apareceu de repente para mim. Seu
rosto estava tão triste, mas tão triste, que eu quase chorei. E, ao lado dele, vi
uma garota linda, com umas roupas antigas, que também estava com o
rosto sofrido. Abri os olhos e pensei assim: “Ah, comigo não! Ninguém me
controla desse jeito. Eu vou gritar. Eu sei gritar bem alto. Eu vou fazer um
escândalo dos bons”. E foi o que fiz!
— Socorro! Alguém me ajude! Estão acabando comigo!
O Ademar e a ruiva fizeram uma cara horrível. Berrei mais ainda. E a
campainha começou a tocar. A ruiva disse:
— Espere, vou já resolver esse problema. Deve ser alguém querendo
vender alguma coisa. Talvez seja algum vizinho preocupado com a gritaria.
Vou dizer que você está com medo de tomar injeção contra gripe e está
dando escândalo para não ir ao pronto-socorro. Não é boa essa desculpa?
Como eu já disse, nossa casa é muita antiga. É um daqueles sobrados que
quase dão na calçada, sem jardim e sem portão. Quando a ruiva abriu a
porta, um garoto de ascendência japonesa rápido pra caramba passou por
ela num segundo e ficou do meu lado. Era Toshiro, o campeão mirim de
artes marciais. E junto com ele veio um menino de olhos claros e cabelos
escuros: James, o irlandês. E por fim apareceu uma garota de cabelos cor de
mel que era linda, mas estava com uma cara brava, com jeito de que brigaria
pra valer. Ela disse então:
— Ah, quer dizer que vocês estão querendo acabar com o meu avô? Mas
primeiro vocês terão que enfrentar a gente.
Quando James, Toshiro e Maria Lumiana correram e ficaram do meu
lado, eu percebi que uma espécie de estrela nascia bem no meio da sala e
cada um de meus amigos formava uma ponta brilhante. A estrela começou
a rodopiar como uma shuriken, aquela estrela cortante que os ninjas
atiram, você conhece?
Ela foi subindo pelos ares e soltando raios luminosos que eram o
máximo.
Depois voltei ao normal. Olhei de novo ao meu lado e ouvi a ruiva
dizendo:
— Vamos embora daqui, Ademar. Isso já deu o que tinha que dar. Eu não
falei que não dava para enfrentar o Guimarães?
Caí na real. Vi que os dois rapidamente arrumavam as coisas para sair.
No começo eu fiquei muito feliz. Mas depois me lembrei de que eu era
garoto e comecei a falar:
— Onde estão meus pais? Eu estou morrendo de fome, de cansaço, com
uma saudade tão grande da minha família... Estou com uma vontade
danada de chorar.
Mas nossa amiga Maria Lumiana logo disse:
— Vitinho, você se esqueceu da minha carta? Esqueceu que já está tudo
combinado com meus pais? Ande, vamos lá em cima arrumar suas coisas
que vou levar você para passar uns tempos comigo na minha casa.
Depois ela me deu um abraço e eu me senti muito bem. James e Toshiro
foram andando em direção à cozinha. Logo depois reparei que eles tinham
trazido uma sacolona cheia de tudo o que eu mais adoro: salgadinho,
refrigerante e chocolate. Pela primeira vez, em muitos dias, eu lembrei que
estava em casa.

Um beijão,

VÍTOR
Salvador, 27 de julho de 2001

Vítor, meu amigo querido,

Minha avó uma vez me disse assim:


— Gente boa é meio boba.
E eu fiquei com cara de quem não estava entendendo. Depois ela
continuou:
— É porque gente boa confia em todo mundo, acredita em muita mentira.
Eu lembro que fiquei muito brava e respondi de imediato:
— Mas, vovó, a senhora está dizendo que eu preciso ser ruim, que eu tenho
que aprender a ser malvada?
— Não, minha neta, o que é isso? Não precisa, não. Gente boa é boba mas
vive cercada de anjos da guarda.
Tudo o que você me contou me fez pensar nas palavras dela. Eu sei que
você está cansado e passou por um grande perigo. Ver o perigo pela primeira
vez dá medo, eu sei disso. Mas vencer dá coragem. É emocionante. E você
venceu, não foi? E ainda ganhou tantos amigos...
Agora o que eu quero é o seguinte: trate de convencer os seus pais de que
está na hora de conhecer a Bahia. Daí a gente se encontra. Que tal?

Um beijão,

Mabel
São Paulo, 30 de julho de 2001

Querida Bette,

Você tinha toda a razão!!! Sua intuição estava corretíssima. Ainda bem
que você me obrigou a voltar para casa e ver como estava nosso filho. Estou
muito preocupado com o Vitinho. Cheguei em casa e descobri nossos dois
aparelhos de telefone espatifados, escondidos num canto da garagem.
Como não posso telefonar para você, achei melhor enviar este e-mail
porque sei que hoje você irá se conectar e logo receberá minha mensagem.
Estou dando graças aos céus por você ter levado nosso computador para a
pesquisa.
Você nem imagina o que aconteceu enquanto estávamos ocupados aí na
ilha. O tal tio Ademar desapareceu. Parece que ele não era seu tio coisa
nenhuma. Vitinho me disse que ele era um grande impostor. Nem pense
em como me senti quando cheguei e encontrei a casa vazia, uma verdadeira
bagunça. Sorte que logo dei com um cartaz enorme que o Vitinho deixou
pregado na parede de entrada dizendo que ele estava na casa de uma amiga,
com endereço, telefone e tudo o mais.
Calcule só o meu desespero. Peguei o carro e voei para a tal casa, que fica
em Pinheiros. Cheguei lá e logo fui me acalmando porque vi que ele estava
com uma família sensacional, convidado por uma menina muito educada
com um nome estranho: Maria Lumiana.
Quando a mãe dela me levou até o quintal onde eles jogavam bola, vi que
o Vitinho estava com mais dois novos amigos: um garoto filho de japoneses
chamado Toshiro, e outro garoto que tem um pouco de sotaque porque
nasceu na Irlanda e se chama James. Foram eles que salvaram nosso filho
das mãos do impostor, que parece que estava em companhia de uma
mulher horrível, cujo nome ninguém soube me informar. E não é só isso!
Além de nosso filho ter sido abandonado, ter ficado sem dinheiro e sem
telefone, não havia nada em casa para ele comer. Os pais da Maria Lumiana
disseram que o Vitinho está comendo feito um boi e que, no começo,
quando ele chegou lá, parecia fraco, cansado e assustado.
Você já imaginou o susto que eu levei?
É verdade que tudo deu certo e o Vítor acabou sendo auxiliado por gente
muito boa, mas nem imagino como foi que ele conheceu essas pessoas. Os
pais da Maria Lumiana também não conseguiram me explicar muito bem.
Parece que os quatro se comunicavam através de cartas.
Fiquei tão cismado...
Você lembra como foi que nos conhecemos? Você lembra quando escrevi
pela primeira vez para a 1001 Fantasmas?
Pensei em seus conselhos e concluí que você tem razão. Precisamos
contar para o Vítor sobre a nossa participação na Sociedade. Você já
imaginou que ele pode se transformar em uma dessas crianças que têm
medo de fantasmas? O nosso filho? Um Aligueri? Não posso deixar que isso
aconteça. Eu gostaria tanto que ele seguisse a tradição da nossa família e
entrasse para a 1001 Fantasmas... O que você acha? Será que é muito cedo?
Será que ele ficaria assustado?
De qualquer modo, acho bom você voltar logo. Temos muito a decidir
daqui para a frente.

Um beijo, minha querida,

VÍTOR ALIGUERI
PRISCILA NEMETH

HELOISA PRIETO nasceu em São Paulo, em 1954. É formada em letras, mestra em


comunicação e semiótica pela PUC-SP e doutora em literatura francesa pela USP.
Além de escrever, também atua como tradutora e pesquisadora de tradições orais
brasileiras, mitos e lendas universais. Já publicou noventa livros, muitos deles
adaptados para o teatro, o cinema e a televisão.
Copyright © 2002 by Heloisa Prieto

O selo Seguinte pertence à Editora Schwarcz S.A.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em
2009.

Ale Kalko

Veridiana Scarpelli

Raul Loureiro

Renato Potenza Rodrigues

Maysa Monção
Cláudia Cantarin
Adriana Bairrada

2 estúdio grá co

Rafael Alt

978-65-5782-446-7

2a edição

Todos os direitos desta edição reservados à


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Sumário

Capa
Folha de rosto
Sumário
Mistérios da Imaginação
São Paulo, 26 de junho de 2001
Belém, 29 de junho de 2001
São Paulo, 2 de julho de 2001
Salvador, 1o de julho de 2001
São Paulo, 4 de julho de 2001
Salvador, 6 de julho de 2001
São Paulo, 8 de julho de 2001
Salvador, 10 de julho de 2001
Paris, 18 de setembro de 1831
São Paulo, 12 de julho de 2001
Salvador, 14 de julho de 2001
São Paulo, 15 de julho de 2001
São Paulo, 16 de julho de 2001
São Paulo, 16 de julho de 2001
Nova Orleans, 15 de julho de 2001
São Paulo, 18 de julho de 2001
São Paulo, 18 de julho de 2001
São Paulo, 19 de julho de 2001
São Paulo, 20 de julho de 2001
São Paulo, 20 de julho de 2001
São Paulo, 21 de julho de 2001
Salvador, 23 de julho de 2001
São Paulo, 25 de julho de 2001
Salvador, 27 de julho de 2001
São Paulo, 30 de julho de 2001
Sobre a autora
Créditos

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