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INFIEL

Mari Sillva
Copyright © 2019 – Mari Sillva

Capa: Will Nascimento


Revisão: Fabiano Jucá
Diagramação: Denilia Carneiro

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos


descritos são produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com
nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência.

Esta obra segue as regras da Nova Ortografia da Língua Portuguesa.

Todos os direitos reservados.

São proibidos o armazenamento e / ou a reprodução de qualquer parte dessa


obra, através de quaisquer meios ─ tangível ou intangível ─ sem o
consentimento escrito da autora.

A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei nº. 9.610/98 e


punido pelo artigo 184 do Código Penal.
Sumário
Sinopse
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Final
Epílogo
ATENÇÃO!
Mais informações sobre os próximos lançamentos, e todos os outros livros da autora
em:
Agradecimentos
Sinopse

A vida invejada da recatada dona de casa Anne, esposa do respeitado


tenente Vargas, fica abalada com a volta de um homem sem lei para a cidade
após passar dez anos fora, banido por algo terrível que fez e que chocou
Campo Grande na época. Dois mundos completamente diferentes: ela,
temente a Deus, braço direito do padre na coordenação da igreja, e ele, um
forasteiro coberto por tatuagens sinistras, temido por todos e sem nada a
perder.
Mas existem segredos e mistérios na vida de ambos que ninguém
conhece, coisas que não condizem em nada com o que aparentam ser.
Prólogo

Anne

De olhos fechados, sorvo uma profunda lufada de ar em uma respiração


diafragmática que aprendi nas aulas de yoga ainda na época da escola. Minha
professora de geografia do oitavo ano era uma riponga de dreads no cabelo e
roupas largas que todo dia nos ensinava uma maneira diferente de catalisar a
energia positiva do nosso corpo. Costuma funcionar, mas hoje já meditei,
tomei água com açúcar, lavei o rosto pelo menos duas vezes e nada do frio na
minha barriga passar. Só aumenta conforme os minutos passam.
Eu não me lembro de ficar nervosa assim nem na primeira vez em que
me apresentei e isso já faz muitos anos; na verdade, não me lembro de ter
ficado tão agitada assim nem no dia do meu casamento.
— Tudo pronto, filha? — pergunta padre Valentim ao me entregar o
microfone, seus olhos de imediato descem para minha mão trêmula alisando
o tecido de seda da minha túnica lilás.
— Mais que pronto, padre. — Forço um sorriso amarelo, nada
convincente, diga-se de passagem.
Mas, estando no meio da missa, ele não tem muito o que argumentar.
Não lhe resta alternativa a não ser confiar em mim.
— Só um minuto, Anne, o microfone está desligado. — Uma das
meninas do nosso coral da igreja, no qual sou coordenadora e vocalista, me
dá uma assistência técnica.
— Muito obrigada, Vera, você é um amor. — Sorrio para a mulher de
cabelos louros claros curtos e olhar cheio de ternura. Além de grande amiga,
é minha fiel companheira no trabalho árduo em ajudar o padre na direção
desta igreja.
Só alguém tão doce como a Vera para criar um anjo como o Joãozinho.
Meu inteligente aluno de ensino bíblico; todos os meus alunos são meus
amores, mas com ele tenho uma ligação mais forte. É uma criança especial.
— Agora, meus filhos, chegou a hora da apresentação do Coral das
Carmelitas da nossa paróquia — anuncia padre Valentim. Sou obrigada a
deixar o nervosismo de lado e assumir o meu lugar no altar, à frente das
meninas.
De onde eu estou tenho uma ampla visão de todo o salão da igreja, que
até não está muito lotada. Os bancos de trás praticamente vazios, não faz
sentido tanta insegurança para apresentar o coral.
Meu marido, tenente Marcos Vargas, é um dos homens mais poderosos
do estado do Mato Grosso. Está sentado no primeiro banco da frente,
ajeitando uma das medalhinhas de honra ao mérito fixadas no seu terno
militar azul-escuro. Quando ergue o olhar, aceno para ele sorrindo. Ele não
sorri de volta. Apenas acena em direção à minha cabeça para que eu ajeite o
meu cabelo, nunca gostou muito dos meus cachos volumosos. Sem jeito, faço
o que pede e levo os dedos entre os fios grossos rebeldes numa tentativa falha
de acalmá-los. É um homem digamos que… rigoroso com aparências.
— Boa noite a todos, o louvor que escolhi para hoje é “Ressuscita-
me”, da cantora Aline Barros. — Pronta, na medida do possível, levanto o
dedo polegar como sinal para a banda começar a tocar.
Fecho os olhos e começo a cantar, encho o peito de ar e solto em forma
de melodia. Me entrego a outra dimensão, onde sou como um pássaro
selvagem voando livremente sobre a copa das árvores durante uma tarde
amarela de sol de setembro. Uma lágrima escapa do canto dos meus olhos,
estou tocada de uma maneira forte, como se conversasse com Deus através da
letra. Tem coisas na minha vida que só eu e ele sabemos, para mim a única
maneira segura de desabafar em voz alta é como agora, através de um louvor.

“Mestre, eu preciso de um milagre


Transforma minha vida, meu estado
Faz tempo que eu não vejo a luz do dia
Estão tentando sepultar minha alegria
Tentando ver meus sonhos cancelados

Lázaro ouviu a Sua voz


Quando aquela pedra removeu
Depois de quatro dias ele reviveu...
Mestre, não há outro que possa fazer
Aquilo que só o Teu nome tem todo poder
Eu preciso tanto de um milagre...”

Paro de cantar bem na hora do refrão, com uma agonia aterrorizante,


como se alguém tapasse minha boca com a mão. Sinto uma presença
extraordinária se aproximando, e não é divina. A ponto de me deixar sem voz
para louvar ao Senhor, não pode ser boa coisa. Abro os olhos tateando minha
garganta com as pontas dos dedos, não parece ter nada fora do comum.
Mas o que há de errado comigo, ora bolas?
Sou pressionada por uma sequência de sinais do meu marido com
diferentes membros do seu corpo para eu tomar uma atitude, mas, em vez de
me encorajar, fico mais nervosa. A banda não sabe se para ou continua a
tocar, as meninas do coral atrás de mim cochicham na tentativa de entender o
que há de errado comigo. E nem eu mesma sei.
Mas quem é ele?
Penso, ignorando todos que fazem parte da minha vida e dando total
atenção para um estranho parado no meio da porta da igreja numa linha reta,
passando pelo corredor do meio, vindo até ao altar onde estou, um homem
privilegiado no quesito dotes físicos. Alto e forte, postura ameaçadora com as
mãos fechadas em punho rentes ao corpo, roteadas por uma fita vermelha
usada para proteção durante treino de boxe. O jeito que ele me encara faz me
sentir na mira de um cão raivoso sentindo o cheiro do meu medo de longe,
prestes a atacar a qualquer momento.
Minhas mãos começam a suar. Virgem Maria! Não queria reparar tanto
em como a blusa de moletom cinza abraça seus músculos de maneira quase
que desafiadora; apesar do tecido grosso, é possível ver as elevações dos
montes duros exibidos na extensão do seu peito largo. Mas simplesmente não
consigo parar de olhar, mesmo com o meu marido sentado na fileira da frente
e todo restante da igreja presente.
Que tipo de fiel eu sou?
Mesmo punindo em mente, continuo avaliando o homem misterioso. É
evidente que esse lugar não combina com esse cara, parece ter sido atraído
até aqui nesse momento pela mesma força que me consome desde que pisei
no altar. Apesar do capuz do seu moletom cobrir sua identidade, sinto que ele
também me avalia. Minuciosamente.
— O que foi, filha? Parou de cantar no meio do louvor. — Padre
Valentim toca meu braço e eu tiro o olhar da porta por um segundo; quando
retorno o homem havia desaparecido como se nunca tivesse estado ali.
Prefiro acreditar que tudo não passou de fruto da minha pecaminosa
imaginação, porque, caso esse homem volte a aparecer na minha vida
trazendo toda essa energia que senti na sua presença hoje em sessenta
segundos, não vai terminar em boa coisa.
— Eu só senti um mal-estar, padre, podemos começar de novo? Me
desculpe! — minto.
Se tem uma coisa em que sou ótima, é fingir. Fingir que tudo está bem
quando, de fato, beira a tragédia.
Capítulo 1

Anne

Giro para um lado, depois para o outro. Viro de barriga para baixo e até
tento a sorte deitando-me aos pés da cama. Mas o sono não vem. Rolo os
olhos dentro da cavidade ocular e confiro a hora no despertador sobre o
criado-mudo ao lado, e os ponteiros marcam meia-noite em ponto; se eu não
fosse acostumada a ficar sozinha em casa devido ao trabalho do meu marido,
como hoje, até ficaria cismada com a minha insônia. Bufo. Fico de barriga
para cima com as mãos juntas sobre o abdômen, fitando o teto, e logo a
ansiedade aperta. Levanto tropeçando nos próprios pés, vou até a cômoda e
abro a primeira gaveta, onde mantenho uma pequena farmácia particular. A
maioria de medicamentos antidepressivos e para dor. São os que mais uso.
Separo os comprimidos de uso diário e engulo todos de uma vez só,
pego o copo d’água que deixo sempre a postos para momentos como este e
sorvo um longo gole. Sou motivo de torcida de rosto quando passo por pelo
menos a metade das mulheres da cidade devido à fama que criaram da vida
perfeita de luxo e ostentação que pensam que tenho. Mas se soubessem o
desastre que é a verdadeira Anne quando ninguém está olhando, mudariam de
ideia rapidinho.
Volto a deitar e dessa vez consigo dormir, o que foi pior do que ficar
acordada, pois tive pesadelos horríveis. Acordo no susto toda suada, não
tenho condições mais de continuar na cama. Levanto ainda no escuro e
decido me arrumar para limpar a bagunça na cozinha. Ontem tive um
pequeno “acidente” doméstico enquanto preparava o jantar, fiquei tão
dolorida com a queda que preferi deixar para dar um jeito na bagunça hoje de
manhã.
Faço minha higiene pessoal de roupão mesmo, e desço as escadas
mancando para iniciar a faxina. A cozinha é o maior cômodo da nossa casa, o
meu preferido também, sempre gostei de cozinhar. Eu mesma pintei nas cores
rosa e azul-púrpura uma semana antes do meu casamento, os móveis em
branco e preto dão um contraste moderno. Moramos em uma casa grande e
cara, dá para criar uma família grande confortavelmente aqui, mas meu
marido já deixou bem claro que não quer filhos e eu assino embaixo. Nas
condições mentais em que me encontro, não tenho capacidade de trazer uma
criança inocente para esse mundo cruel cheio de pessoas falsas e violentas.
— Isso vai levar mais tempo do que pensei, espero dar conta antes que
meu marido acorde. — Balanço a cabeça com as mãos na cintura diante da
minha geladeira coberta de molho de tomate, não dá para saber se sua real cor
é vermelha ou branca.
Os estilhaços da porcelana, presente de casamento da mãe do Marcos,
estão espalhados pelo piso. Tem macarrão com queijo por toda a parte, até na
imagem de Nossa Senhora aparecia, sobre o armário. Começo varrendo o
chão, gemi de dor nas costas ao me abaixar para catar o que restou de um
prato, agora o jogo de seis peças caríssimo que eu tanto amo está incompleto.
— Droga! — Cortei a ponta do dedo com um estilhaço e o levo na boca
para conter o sangramento.
Ao me levantar com extrema dificuldade, algo me chama a atenção.
Através da janela de vidro que fica sobre o balcão da pia, vejo uma
caminhonete vermelha bem antiga cheia de caixas de papelão estacionar rente
à casa da frente; faz pouco tempo que o nosso vizinho colocou a propriedade
à venda.
De dentro do veículo sai um homem que consegue ser ainda maior que
o Marcos e mais forte também, tem algo de diferente nele e não é boa coisa.
Caminha de punhos trincados até a parte traseira da caminhonete e pega uma
caixa pesada que faz a lataria ranger, mas sem fazer esforço algum, segura
como se fosse uma pluma. Não dá para ver o seu rosto direito devido aos
últimos vestígios da escuridão da madrugada ainda se fazerem presentes. No
entanto, é notória sua postura viril, os passos largos e confiantes.
Reparo com mais atenção e percebo que o cara também tem estilo.
Gosto de como a jaqueta de couro preta sobre a camisa branca preenche seu
corpo esguio; a calça jeans justa enfiada dentro das botas de camurça e o
cabelo bem curto completam o ar de Bad Boy. Meu coração dá um
sobressalto quando o homem misterioso caminha até em frente à porta, para e
vira a cabeça em direção à janela de onde eu o espiono, como se sentisse a
minha presença.
Puta merda! Quem é esse cara?
Será que ele comprou a casa dos meus vizinhos?
— Jesus! Acho que ele me pegou no flagra. — Ligeira, escondo-me
quase me enfiando no espaço minúsculo debaixo da pia, meu coração ainda
batendo rebelde dentro do peito.
É como se uma onda de calor tomasse conta de cada pedacinho do meu
corpo, algo quase profano. Rezo pelo menos uns dez “Pai Nossos” e o dobro
de “Ave-Marias” na tentativa de recobrar a compostura. Apesar de tudo
nunca perco a minha fé, sou uma mulher de Deus e acredito nele fielmente.
Vou todos os domingos na missa da parte da manhã.
Puxo o máximo de ar que posso e conto…
1… 2… 3
Mais calma após passados alguns minutos, olho pela janela e tanto o
cara como a caminhonete não estão mais lá.
Capítulo 2

Nem acredito que o final de semana chegou tão rápido, sábado é de


longe o meu dia favorito. Dou aulas de catecismo para as crianças da nossa
diocese do meio-dia às seis da tarde, meus alunos me amam e eu também
amo cada um deles. Todos fazem parte de um projeto social criado pelo padre
Valentim, que funciona de segunda a sábado no salão dos fundos da igreja e
abrange várias famílias carentes que não têm condições de deixar os filhos
pequenos para trabalhar, então o que temos é uma espécie de creche com
direito a uniforme especial, vários tipos de atividades legais e no mínimo
quatro refeições reforçadas por dia.
Como de costume, preparo o café da manhã do meu marido cedo e
subo para me arrumar com calma. Saímos de casa às onze da manhã em
ponto. Sou cuidadosa ao escolher o que vestir, precisa ser algo que não
mostre mais do que deve, só uso roupa comprida, de preferência até o
pescoço. Para o look de hoje escolho um vestido longo branco com flores
roxas de mangas compridas, deixo os meus cachos soltos presos de um lado e
passo apenas um batom nude. Gosto do tom natural caramelo da minha pele,
a simplicidade combina muito comigo.
Apesar de ter os kits mais caros de maquiagem e condições de ir aos
salões mais chiques da cidade, gosto da minha aparência ao natural, sem
forçar nada. Isso é motivo de desentendimento entre mim e o meu marido. A
verdade é que nos últimos anos não temos precisado de motivos para brigar.
— Anda logo, mulher, não tenho o dia todo! — berra meu marido do
andar de baixo, calço minhas sapatilhas e desço correndo. Ele é um homem
muito ocupado.
Marcos, além de ter o dobro da minha idade, já passou por um
casamento turbulento antes de me conhecer. Mas, devido à carreira militar,
mantém um bom físico e chama a atenção da mulherada por onde passa,
fardado e de óculos escuros. Mas como não? É um negro saradão boa pinta
com grana e poder de sobra. Elegante e inteligente, com espírito nato de
liderança. Participante ativo da igreja, sempre se senta nos bancos da frente
durante a missa.
Mas meu marido é um homem muito sério e rigoroso, exige perfeição
em todos os aspectos de sua vida, principalmente daqueles que o rodeiam,
não aceita menos do que ganhar sempre. Ele também tem algumas manias
peculiares, como não dormir na mesma cama que eu desde a nossa noite de
núpcias, há cinco anos. Só vem ter relação sexual comigo e volta para sua
cama. Diz que desde pequeno gosta de ter o seu próprio espaço, nunca julguei
isso. Até porque eu também gosto de ter o meu cantinho.
— Eu já estou pronta, Marcos — digo de cabeça baixa, ele apenas
assente.
Sai andando na minha frente, apressado. Está sempre com pressa. Sigo-
o até o carro e entramos os dois, tomados pelo dom do silêncio. Marcos só
abre a boca quando chegamos, não é um homem de muitas palavras.
— Boa aula, volto para te buscar às seis. Se atrasar, já sabe. — Fita-me
pelo canto dos olhos ao estacionar o carro em frente à igreja, é muito ditador
com horários.
— Tudo bem, não vou me atrasar. — Giro o pescoço em direção à
pequena construção de tijolos alaranjados com três colunas em formato de
pirâmide, a do meio é a mais alta e contém uma cruz no topo.
Como de costume, padre Valentim me esperava todos os sábados
naquele mesmo horário, sentado no último degrau da escadaria que dá acesso
à entrada principal da igreja, com as crianças junto a ele sentadas em uma
fileira do maior para o menor.
— Bom dia, padre! — Meu marido acena para ele, contorcendo a boca,
mas não chega a ser um sorriso.
Às vezes penso que não sabe como fazer tal ato de maneira espontânea,
mesmo que por educação.
— Tchau, Marcos, tenha um bom dia de trabalho — me despeço ao sair
do carro; mudo, ele me joga uma olhadela que me faz encolher os ombros.
Eventualmente meu marido me encara de um jeito que tenho medo de
olhar de volta, é difícil de explicar.
— Lembre-se, Anne, se comporte. — Acelera e sai cantando pneu.
Com os materiais de aula em mãos, ando de cabeça erguida até a igreja,
sentindo a brisa do outono abraçar meu corpo de maneira agradável, como se
dissesse: "Seja bem-vinda à liberdade, Anne". Seria por poucas horas, mas o
suficiente para me fazer feliz. De todos os lugares do mundo, só quando estou
nessa igreja eu sinto como se pudesse ser eu mesma.
— Tia Anne! — As crianças vêm ao meu encontro correndo, animadas.
No total são vinte e duas, entre cinco e treze anos, e eu amo a todas
igualmente, mas a minha paixão mesmo é o mais velho, Joãozinho, que é
deficiente auditivo e tem uma elevação nas costas. Precisa de uma correção
cirúrgica, mas a cirurgia é muito cara. Ele é muito carinhoso e carente, mas
não consegue acompanhar o ritmo dos maiores, então me ajuda com os
pequenos. Aprendi a falar um pouco em Libras pela internet só por causa
dele, e hoje conseguimos conversar de boa sobre várias coisas.
— Boa tarde, meus amores! — Beijo o rosto de cada uma, mas logo
sinto que está faltando alguém. — Onde está o Joãozinho? — Procuro com os
olhos ao nosso redor, como é um garoto especial não gosto de deixá-lo muito
tempo sozinho.
— Não se preocupe, filha, ele está no jardim com o novo amigo.
Padre Valentim me recebe com um abraço paternal. É assim que
sempre o vi, como um pai. É sempre bondoso e muito atencioso comigo.
— A bênção, padre, como vai? — Beijo as costas de sua mão como
sinal de respeito.
— Bem, querida! Deus te abençoe. — Sorriu docemente, abraçando-
me.
— De qual novo amigo do Joãozinho o senhor está falando?
— Depois apresento vocês, não se preocupe, é gente da minha total
confiança. — Tira alguns fios grisalhos sobre seus olhos esverdeados que
atrapalhavam sua visão. Está precisando urgentemente de um corte, vou
oferecer ajuda com isso no horário de intervalo das crianças.
— Se é assim, fico mais tranquila.
— Por que o Marcos não ficou um pouco para assistir à sua aula? Nem
saiu do carro para me cumprimentar direito. — Soa mais como repreensão do
que pergunta, não perde a oportunidade de alfinetar o jeito sistemático do
meu marido.
Todos os sábados faz essa mesma pergunta quando Marcos vem me
trazer, não se esforça nem um pouco para esconder que não simpatiza com
ele.
— Ele tinha um compromisso muito importante, sempre está envolvido
em alguma missão no exército, padre, mas quando estiver livre, virá, com
certeza! — Lhe ofereço um sorriso amarelo, depois de tanto tempo as
desculpas vão acabando e as antigas perdendo a veracidade.
— Sendo assim, eu desculpo, sei como o seu marido é um homem
ocupado. — Dá uma tossida falsa, levando o punho fechado à boca.
— Entrem para a sala, crianças, que a tia Anne vai buscar o Joãozinho
no jardim para iniciarmos a aula de hoje. Vamos falar sobre Jó e a sua
fidelidade e fé em Deus. — E assim elas fazem, saem correndo feito uma
manada de touros bravos à solta.
— Não corram, meus filhos, podem cair e se machucar. — Foi
engraçado ver o padre no seu um metro e meio de altura correndo atrás das
crianças quase sem ar, erguendo a saia longa da sua batina.
Coitado! Digamos que está um pouquinho fora de forma, somente uns
trinta quilos só na barriga. Balanço a cabeça rindo ao passar pelo portão que
dá no jardim dos fundos da igreja, sempre me sinto tão bem fora de casa.
Quase feliz. Saio da calçada a passos lentos pela montoeira de galhos e folhas
secas sobre o chão de terra escura. Tudo ali precisa de uma boa reforma, anda
meio largado faz tempo.
A princípio, de longe avisto apenas Joãozinho gesticulando rápido com
as mãos, fazendo sinais como se estivesse conversando com alguém. Achei
estranho. Ninguém, além de mim, consegue entender bem Libras. Mais
adiante, vejo um homem alto saindo de trás de uma árvore fazendo sinais
com as mãos tão rápido que eu não consigo acompanhar, tampouco entender.
Seja como for, tem uma prática invejável com língua de sinais,
provavelmente é mudo também.
Conforme me aproximo deles, consigo analisar melhor o tal novo
amigo de Joãozinho. E sangue de Jesus tem poder! Ele está sem camisa,
deixando à mostra cada centímetro começando do pescoço, indo para o peito
e toda extensão dos braços, até mesmo as pontas dos dedos repletos de
tatuagens de vários desenhos sinistros que não dá para decifrar ao certo o
significado de cada um deles. E não para por aí, os rabiscos vão descendo até
as costas e somem até o cós da calça jeans. Nunca vi tantos músculos em um
só corpo. Seus pés descalços tocam o chão de maneira tão rústica que não
tem explicação como um ato tão simples pode ser tão sexy; na verdade, tudo
nele é atraente demais, como as artimanhas do diabo.
Meu sinal de alerta apita em aviso de perigo, mas em vez de correr para
longe da tentação, meus pés, totalmente contra ao que a Lei de Deus diz, me
puxam para perto do diabo. Esse homem é o tipo de cara que mulheres
direitas como eu devem manter distância. Ainda mais no meu caso.
— Esse é o meu novo amigo, ele sabe falar a minha língua. —
Joãozinho sorri sem parar, se pudesse falar iria dar gosto de ouvir a sua voz
em meio às gargalhadas.
Isso é bastante estranho, ele não é muito de sorrir. João parece com o
Roni do Harry Potter, o cabelo avermelhado cortado de tigelinha, cheio de
sardas e as covinhas lindas bem ao meio das bochechas.
— Prazer, eu sou a Anne, dou aula de catecismo para as crianças. —
Viro de frente para ele e ergo a mão, sem coragem de encará-lo nos olhos.
Virgem Maria! Se existe de fato a imagem do pecado, eu estou diante a
ela! Um moreno perigoso. Olhos castanho-claros meio esverdeados
penetrantes do tipo que pode ler a alma, que te despe sem precisar te tocar. A
barba farta crescida de meses ou mais, sobrancelhas longas e lábios carnudos
marcados por um sorriso irônico, deixando à mostra duas presas parecidas
com as de um lobo alfa. Sua presença me intimida, e ele sabe disso.
— A vizinha bisbilhoteira. Pelo visto, as pessoas dessa cidade não
mudaram nadinha enquanto estive fora. — Seu tom foi o mais rude possível,
ignorando minha otária mão parada no ar, estou atordoada demais para tomar
a iniciativa de baixá-la.
O som grave da sua voz grossa me arrepia, amarga e fria. Deslizo os
dedos pelo meu braço para baixar os fios ouriçados pelo calafrio. Ele é o
homem que vi chegando na casa dos meus ex-vizinhos de madrugada na
bendita caminhonete vermelha, o filho da mãe tinha sim me visto.
— Eu não sou bisbilhoteira! Desde quando é proibido olhar pela minha
própria janela? – retruco empinando o nariz, mas minha falsa segurança é
desmascarada pela falta de coragem de lhe encarar nos olhos.
— Pelo jeito já conheceu o amigo de Joãozinho e novo jardineiro do
nosso salão do centro comunitário no fundo da igreja. Castiel Souza, conheço
desde menino. — Um alívio toma conta de mim quando padre Valentim
aparece, mais um segundo e sairia correndo para bem longe.
Não basta o cara parecer com um anjo, tem que se chamar como um
também. Que maravilha! Anos atrás li em um artigo bíblico que Castiel
significa "Escudo de Deus", nome de um dos arcanjos, segundo a cabala.
Estranhamente, esse nome nunca saiu da minha mente.
— Acabei de conhecer, padre. — Torço o nariz.
— Ele ficará um tempo conosco, cuidando do jardim da igreja, Anne,
isso não é maravilhoso?
— Sim, padre. Seja bem-vindo à nossa paróquia, Castiel! — desejo a
contragosto.
Acho que ele percebe, pois o ogro nem agradece.
— Não vai agradecer à moça, filho? Não foi assim que eu te ensinei
quando pequeno, pare de me envergonhar agora aos vinte e nove anos na
frente da Anne. — Falta pouco para padre Valentim puxar a orelha dele e eu
acho graça.
Baixinho como é, teria que subir em um banco e tomar cuidado para
não tropeçar na própria batina, que é visivelmente maior que o seu tamanho.
— Tem muita coisa que o senhor não me ensinou e mesmo assim eu
fiz, padre. — Puxa o canto esquerdo da boca em um sorriso sacana, me
encarando. Baixo o olhar, intimidada, contornando o desenho de flor do meu
vestido.
Por que ele está sendo tão implicante comigo? Está certo que eu estava
bisbilhotando a vida dele, sim, admito. Mas não foi por maldade, apenas
curiosidade mesmo.
Que grosso!
— Eu sei que você sente muito pelo que fez, Castiel, mas sempre foi
um bom garoto. Precisa abandonar seu passado e seguir em frente. — O olhar
do padre se torna triste, tenta tocar o rapaz e lhe oferecer apoio, mas o
esquentadinho se afasta de maneira rude e sai sem aviso.
— Desculpe os modos do Castiel, filha, digamos que a vida não tem
sido muito gentil com ele. — Olha na direção do rapaz que voltou aos seus
afazeres, carregando alguns entulhos do jardim, pegando o resto de material
da última reforma da igreja com ignorância, como se precisasse extravasar
sua raiva de alguma forma.
Não sei de onde esse Castiel Souza veio, mas uma sombra escura e
pesada envolve sua aura, impedindo que o seu real brilho se manifeste.
Contudo, é bom com crianças, tanto que elas haviam saído da sala sem
permissão e estão atrás dele de um canto para o outro. Seu humor mudou do
dia para a noite quando as viu; paciente, abaixou-se para conversar com elas
com carinho.
— Onde ele aprendeu a falar em libras? O vi conversando com o
Joãozinho, até pensei que fosse surdo também. — Quando vi já perguntei
interessada demais sobre o Bad Boy, mais até do que eu deveria.
— Castiel aprendeu faz muito tempo, filha, por alguém muito especial
na vida dele. — Há mais do que o padre está dizendo, isso é evidente.
— E onde essa pessoa especial está, padre? — não seguro a
curiosidade.
— Eles foram separados covardemente, Anne, não gosto nem de
lembrar desse dia.
— Sinto muito por ele, padre!
— Que bom que sente, filha, porque vou precisar muito de sua ajuda.
— Segura as minhas mãos, com certo pesar no olhar.
Isso me preocupa bastante.
— Ajuda com o que, padre? — Respirei fundo, tentada a dizer um não
bem grande.
— Nada de mais, filha, consegui um trabalho extra para Castiel. Ele vai
morar por um tempo na casa em frente à sua, seu ex-vizinho o contratou para
fazer alguns serviços de carpintaria na propriedade antes que entre à venda.
Quero que fique de olho nele por mim, por favor, para que não apronte
nenhuma outra besteira. — Congelo cada pedacinho do meu corpo, se o cara
já pensa que sou uma fofoqueira, imagina se eu passar a vigiá-lo de verdade.
— Claro que sim, padre, farei o que eu puder para ajudar o senhor. —
Dou um sorriso frouxo.
Posso ouvir o som do meu coração batendo alto e forte, estou muito
assustada. O que padre Valentim quis dizer sobre Castiel fazer outra besteira?
Será que é algum criminoso ou algo do tipo? Sem querer ser preconceituosa,
mas cara fechada de quem só tem pensamentos ruins na cabeça ele tem.
Alguma coisa me diz que isso não vai prestar, não mesmo.
Capítulo 3

Castiel

Não me lembrava de como o sol de Campo Grande pode ser tão


escaldante, estou suando feito um porco, minha camisa está pingando. Bebo
um pouco de água da garrafa que padre Valentim trouxe para mim, inclino o
pescoço e estico de um lado para o outro antes de olhar para o céu tomado
por uma comitiva de pássaros cantarolando em harmonia com a natureza.
Jogo um pouco do líquido gelado no topo da minha cabeça, que desliza pela
minha pele e logo se iguala à temperatura efervescente do meu corpo.
— Bom dia, rapaz! É novo da cidade? — Olho para o outro lado do
muro baixo, e lá está, atravessando a rua, uma senhora com lenço floral
jogado nos ombros e bobes no cabelo, puxando um carrinho de feira.
O tipo “fofoqueira de plantão”, que cuida mais da vida dos outros do
que da sua própria.
— Sou sim, senhora. Tenha um bom dia. — Lhe ofereço as costas antes
que me reconheça, faz dez anos que tudo aconteceu, e mesmo assim as
pessoas me tratam com o mesmo rancor, como se tivesse sido ontem.
— Tem certeza? Você me é bastante familiar, talvez eu tenha
conhecido a sua mãe — insiste em satisfazer sua curiosidade.
— Minha mãe morreu há mais de dez anos, dona. Pelo menos para
mim. Espero que aquela desgraçada queime no fogo do inferno, é isso que
pessoas más e mexeriqueiras merecem — jogo a indireta e a encaro sério, a
carapuça serviu direitinho.
Seguro o cabo da enxada com força, deixando claro que é melhor ela
sumir da minha frente o quanto antes.
— Misericórdia! Olha a boca, rapaz, você está na frente de uma igreja.
— É mesmo, velha bruxa? Nem percebi. — Dou de ombros. Ela faz o
sinal da cruz e vai embora correndo.
Viro-me para voltar ao trabalho, quase tendo um infarto de susto ao dar
de cara com Joãozinho atrás de mim, igual à minha sombra.
— A tia Anne é linda! Não é mesmo? Eu acho. Ela gosta de mim do
jeito que sou. — Aponta na direção da professora brincando de roda com as
crianças, nem havia percebido que o horário do recreio começou.
Pela forma que o moleque olha para essa Anne, acho que é o primeiro
amor dele. Conforme ela corre atrás das crianças, a montoeira de cachos voa
avulsa pelo ar como uma onda de molas. Apesar da área em que mora e
montada na grana, não faz o tipo perua esnobe magricela em cima de salto
agulha, com roupas da última coleção de estilistas conceituados e joias caras
explodindo onde conseguisse pendurar em partes visíveis do corpo. Ao
contrário, a professora tem curvas fartas e não parece se importar com os
quilinhos extras. Usa roupas simples que parecem feitas pela costureira da
esquina e sapatilhas de pano da época da minha avó, nada de maquiagem
pesada ou algo que demonstre o alto padrão de vida que tem.
Isso é muito intrigante.
Sou obrigado a desviar o olhar quando a professora me pega no flagra a
avaliando em minha mente, mas assim que volta a brincar com seus alunos
continuo a admirá-la. Não posso julgar Joãozinho por se encantar por sua
professora, gosto da maneira carinhosa que trata essas crianças carentes do
projeto social do padre. Não sei muito sobre Anne, mas tenho certeza que
canta como um anjo. No dia em que voltei para a cidade, entediado, resolvi
dar uma corrida, gosto de praticar exercícios. Foi então que passei em frente à
igreja e ouvi o coral das Carmelitas se apresentando durante a missa de
domingo. O padre implorou um milhão de vezes para que eu fosse, mas ele
melhor do que ninguém deveria saber que demônios não têm permissão de
pisar em solo sagrado. No entanto, bastou ouvir a voz da professora que fui
puxado para a porta da igreja, como que hipnotizado pelo canto da sereia.
Trocamos olhares por alguns segundos quando parou de cantar, o
suficiente para desmascarar essa Anne. A quem ela pensa que engana? Não
uma raposa astuta feito eu, bastou olhar uma vez para a santinha para ver a
dor gritante por detrás dos seus lindos olhos negros. Só alguém que já sofreu
muito na vida reconhece outra alma ferida de longe.
— E por que ela não gostaria, Joãozinho? Você é um garoto incrível e
educado. O primeiro amigo de verdade que faço em muitos anos. — Abre um
sorriso contagiante, acha o máximo eu conseguir me comunicar com ele na
sua língua.
Mesmo enferrujado, ainda sou mestre em Libras, não esqueceria nem
se vivesse mil anos.
— As pessoas não gostam de mim porque sou diferente, me chamam de
“O corcunda de Notre Dame.” — Baixa a cabeça, constrangido.
Meu coração se aperta, ergo o rostinho dele para que olhe para mim.
Tem os olhos cheios de lágrimas, pisca várias vezes na tentativa de contê-las.
— Você acredita em Deus, garoto? — Assente e limpa uma lágrima
teimosa que desliza pelo rosto cheio de sardas.
— A tia Anne me ensinou que nada acontece se não for da vontade de
Deus e que os planos Dele serão sempre melhores que os meus.
— Eu nunca ouvi falar que Deus fez algo mal feito, você já? Se não
valorizam sua presença é porque não a merecem. Aprenda a ser mais seletivo,
absorva somente o que te faz bem. O resto... Bem, é só o resto! — Sorri
dando de ombros, havia entendido meu recado.
— Obrigado, Castiel, pelo menos agora tenho você como amigo. — Me
abraçou grato, uma atitude que eu não esperava.
Me apertou tanto que quase caímos no chão, ele é um garoto emotivo.
— E eu tenho você como amigo, campeão. Agora vá aproveitar o resto
do seu intervalo e lembre-se do que eu te disse. — Afago sua cabeleira cor de
fogo, ele ri alto.
Observo meu amiguinho caminhar até o balanço que eu tinha feito para
as crianças ontem, além de outros brinquedos, usando a madeira guardada no
galpão da igreja. Valeu a pena o esforço vendo a alegria delas quando
chegaram. Quando giro o pescoço para o lado, percebo que também sou
observado. A professora dele está com as mãos na cintura e cenho franzido, a
encaro de volta cruzando os braços, fazendo cara de mau. Com o nariz em pé,
a abusada gira o corpo e volta para a sua sala de aula.
Volto ao trabalho rindo da nossa infantilidade, tem muito o que
organizar nesse jardim. Algo nessa Anne me chama a atenção, contudo, a
enorme aliança no seu dedo me convida a manter distância do seu jeitinho
encantador. Também, depois de tanto tempo sem saber o que é tocar em uma
mulher, verei algo de especial em qualquer uma que passar na minha frente.
O sol começa a se esconder atrás das montanhas ao oeste e tudo fica
um verdadeiro silêncio depois que os pequenos foram embora. É estranho
trabalhar no jardim sem pelo menos uma ou duas pestinhas espalhando fofura
atrás de mim, perguntando o porquê disso ou daquilo.
— Ficou melhor do que pensei! — digo em voz alta, orgulhoso do meu
trabalho, o canteiro de tulipas que terminei de plantar ficou incrível.
Faminto, decido ir até a cozinha da igreja para comer alguma coisa
antes de ir embora, o padre Valentim disse que eu posso ficar à vontade para
pegar o que eu quiser lá. Visto minha camisa e subo os degraus de madeira,
assoviando com as mãos no bolso do meu jeans, porém, paro antes de entrar
diante da cena peculiar que me golpeia bem nas partes baixas. A porta da
geladeira está aberta, e a professora com o corpo curvado ajeitando a segunda
prateleira, com o traseiro empinado. Minha mão chega a formigar de vontade
de arremeter um tapa nesses dois montes altos e macios, meu pau duro
gostaria de ir muito mais longe do que isso.
Porra! Para mim, que estou há tanto tempo sem sexo, isso é a coisa
mais sexy do mundo.
— Boa noite, professora! — cumprimento a santinha.
— Santo Deus! Você me assustou. — A mulher quase deu um pulo no
teto e depois apoiou-se na bancada de granito da pia com os olhos
arregalados, a mão sobre o peito que sobe e desce rapidamente.
— Você está bem? Não precisa ter medo, eu rosno, mas não mordo —
faço piada, mas ela não ri.
Mantém o olhar fixo nos próprios pés, tento me aproximar preocupado
com a reação estranha dela, os olhos chegam a estar arregalados. Assim que
minha mão toca o seu ombro ela surta de vez.
— Por favor, não me machuque. — Se encolhe toda, abraçando o
próprio corpo.
Concordo que tenho cara de mau, mas nem tanto para ela pensar que
seria capaz de machucá-la. Nunca faria isso. Homem que bate em mulher não
é homem de verdade e merece ter a mão cortada fora.
— Eu jamais encostaria um dedo em você, professora. — Seguro seu
queixo para obrigá-la a olhar para mim, parece uma coelhinha assustada. —
A não ser que você queira, é claro — digo e ela enrubesce de um jeito
encantador.
— Eu... Eu não… sou professora, apenas ensino o que sei sobre a
Bíblia para as crianças da paróquia. — Coloca o cabelo atrás da orelha com a
respiração mais rápida que o normal, sorrindo.
Gosto da maneira tímida como sorri. Mas o jeito como me olha
esperando que eu enfie a mão no seu peito e arranque seu coração a qualquer
momento me faz parecer mais perigoso do que as más línguas dizem. Gosto
disso também. Me excita.
— Se você ensina algo de bom para alguém, deve ser chamada de
professora, sim. — Ela sorri de uma forma doce, acabando comigo.
Quando nossos olhares se cruzam, é como se um pudesse ler os
segredos mais obscuros escondidos na alma do outro, dentro de uma espécie
de caixa de pandora. Nossa respiração fica auditiva, posso sentir a
temperatura do ambiente se elevando bruscamente. Nunca senti nada
parecido antes, uma energia forte nos atinge feito um imã.
Meu rosto vai se aproximando do de Anne, não posso evitar. O fato de
ela não se afastar me instiga ainda mais. Faltando centímetros para nossos
lábios se fundirem, sem querer ela esbarra em um copo sobre a pia, fazendo-o
dar pirueta no ar até se espatifar no chão, nos acordando do transe.
— Perdão, senhor, eu vou limpar tudo em um minuto. — Ajoelhou-se
diante aos meus pés, submissa, entrando em desespero como se tivesse feito a
pior coisa do mundo, se desculpando várias vezes por causa da porra de um
copo quebrado.
— Pode deixar isso, moça, eu arrumo isso depois, não quero que se
corte com algum caco de vidro — digo, mas ela parece não me ouvir. Os
joelhos fixos ao chão e a porra da cabeça baixa novamente evitando me olhar
nos olhos.
— Não precisa, limpar é minha obrigação — fala como se fosse uma
escrava ou qualquer coisa do tipo, num tom de autoflagelação.
— Levanta da porra desse chão, cacete! — grito e ela paralisa.
— Desculpa, eu sou uma idiota inútil. — Olho para as mãos dela, que
tremem muito, não sei que merda tem de errado com essa mulher.
— Anne... Anne, onde você está? Disse para não se atrasar! — uma voz
masculina grita do lado de fora, não gosto do seu tom rude.
A professora fica pálida, como se tivesse visto uma aparição
paranormal. Larga os cacos de vidro no chão e se levanta às pressas, pega
seus materiais de aula sobre a mesa e sai correndo o mais rápido que pode.
Essa Anne é uma mulher misteriosa, e isso infelizmente só faz com que eu
me interesse ainda mais por ela. Mas é casada e, mesmo morando em frente à
sua casa durante um tempo, preciso manter distância.
Capítulo 4

Castiel

Depois de comer um sanduíche na cozinha da igreja, pego uma maçã na


cesta e faço o caminho de volta para casa a pé, com os fones de ouvido no
volume máximo. Se não for para ouvir os acordes da guitarra junto com a voz
única da banda Charlie Brown Jr., assim, na boa? Nem coloco. Consertei uma
caminhonete velha que o padre me deu ainda na época que era rapaz, mas não
posso me dar ao luxo de ficar queimando gasolina sem necessidade, preciso
juntar uma boa grana rápido. O difícil é suportar os olhares tortos pelo
caminho, outro dia um grupo de garotos me pediu para tirar uma selfie
comigo, como se a coisa terrível que fiz fizesse de mim algum tipo de
celebridade.
Assim que chego em casa, jogo minha mochila em qualquer lugar e vou
direto tomar banho, estou tão cansado que nem sinto minhas pernas. Fecho o
chuveiro e saio andando e bocejando ao enrolar uma toalha na minha cintura,
e desabo na cama, apagando em questão de segundos. Mas meu sono
merecido depois de um dia pesado de trabalho é interrompido por um
estrondo alto; depois, tudo silencia. Viro para o outro lado e, assim que deito
a cabeça no travesseiro, ouço vozes alteradas em meio a sons de coisas sendo
quebradas violentamente.
Pulo nu da cama e saio correndo até a janela para ver de onde vem essa
bagunça toda, e adivinha só? Vem da casa da professora, as janelas fechadas
cobertas por cortinas claras. Mesmo assim, devido às luzes acesas, é possível
ver sombras se movendo de um lado para o outro, tem alguma coisa de muito
errado acontecendo lá. Tomado por um instinto de proteção, visto a primeira
calça que encontro, atravesso a rua correndo e bato na porta dos meus
vizinhos, quase colocando-a chão abaixo.
— O que você quer? — Um homem mal-encarado me atende, deve ser
o marido da professora.
Puta merda! Ele deve ter o dobro da idade de Anne, além do olhar
vazio e a postura superior. Não combina em nada com uma mulher pequena e
delicada como a professora, sinceramente não faço ideia do que viu para se
apaixonar por esse cara. Agora está provada a teoria de que os opostos se
atraem.
— Será que teria um pouco de açúcar para me emprestar, por favor? —
a desculpa é ridícula, mas foi a única que me veio à cabeça.
— Quem pensa que é para bater na minha porta uma hora dessas,
rapaz? — Cruza os braços sobre o peito para cobrir uma mancha vermelha na
camisa branca do seu pijama; fico mais preocupado ainda.
— Sou Castiel Souza, vou morar por um tempo na casa da frente para
fazer uma reforma na propriedade, somos vizinhos agora — uso um tom
apaziguador, mas minha sobrancelha arqueada deixa evidente minha
desconfiança.
— E daí? Isso lá é hora de incomodar os outros? — retruca grosseiro.
Eu poderia dizer o mesmo, já que minha noite foi interrompida pela
bagunça na casa dele.
— Como acabei de me mudar, minha despensa está vazia e eu não
consigo começar bem o meu dia sem um bom café, então pensei… Por que
não pedir aos meus vizinhos simpáticos, que acordaram cedo hoje, de
maneira tão “fervorosa”? — alfineto.
Olho por cima dos seus ombros à procura de Anne, mas de onde estou
meu campo de visão é limitado aos pés da escada que dá para o andar de
cima.
— O que está insinuando, cara? — Puxa os cantos da boca em um
rosnado de pitbull raivoso, se está querendo me assustar vai precisar de mais
do que isso.
— Não estou insinuando, estou afirmando. Da casa é possível escutar
tudo o que acontece aqui, por pouco não chamei a polícia hoje. — Encho o
peito e dou um passo para a frente, o encarando olho no olho.
Não quero e não posso arrumar confusão. Mas também nunca fui de
correr de briga, ainda mais se for por um motivo justo.
— Primeiro, aqui não é mercado, rapaz. Segundo, é melhor ficar
quietinho na sua ou vai sobrar para você também. Sabe com quem está
falando? — Antes que possa abrir a boca, ele mesmo responde, aproximando
mais o rosto do meu. — Sou o tenente da sede do Exército aqui de Campo
Grande, a lei e a ordem nessa cidade — faz o seu discurso de grandeza e dou
uma gargalhada bem na cara dele.
Ele quer dar uma de perigoso logo comigo? Temido pelos piores dos
piores.
— Sendo sincero, nem prestei atenção depois da primeira palavra que
disse. Não tenho paciência com gente chata. Fica esperto comigo, irmão, ou
vai descobrir por que na minha adolescência me deram o apelido de
“Vingador”. — Ameaça partir para cima de mim, mas uma terceira pessoa
entra em cena.
— Está acontecendo algum problema aqui, querido? — Anne abraça as
costas do marido de maneira que não consigo ver o seu rosto; ele dá um
sorrisinho irônico alisando o braço da esposa, roteando sua cintura.
— Está tudo bem, Anne, volte para a cama, amor, que já vou lhe fazer
companhia — diz, e a professora vai sem questionar. A única coisa que
consigo ver de relance é a parte de trás do seu roupão branco.
Tive a impressão que Anne está mancando com o pé esquerdo, mas não
posso afirmar com certeza. Que casal mais estranho.
— Posso te ajudar com mais alguma coisa, vizinho? — Alisa o queixo,
rindo, entre o dedo polegar e o indicador. Minha vontade é dar um murro
nesse tenente de merda.
Eu odeio militares, a maioria são piores do que os próprios bandidos.
— Nossa conversa termina por aqui, tenente. Por enquanto. — Vou
embora deixando no ar que estou próximo e de olhos e ouvidos bem abertos,
meu sexto sentido nunca erra.
Sendo um homem poderoso ou não, isso para mim não faz a menor
diferença. Não tenho um pingo de medo da sua patente, se achar que merece
uma lição eu darei e foda-se o resto.
Capítulo 5

Castiel

Perco o sono depois da visita relâmpago aos meus vizinhos, e decido


iniciar a reforma na casa bem mais cedo que o previsto. Pego minha caixa de
ferramentas e me concentro no trabalho, tem muitas coisas aqui precisando de
um bom ajuste e o prazo para entregar tudo pronto é curto. Começo trocando
as tábuas do piso da varanda da cozinha. Por ser um trabalho delicado levo
quase o dia todo para conclui-lo. Fui treinado por anos a fazer todo tipo de
serviço de carpintaria. Não querendo me gabar, mas sou muito bom nisso.
Por volta das oito da manhã, vejo quando o tenente tira o carro da
garagem e estaciona na frente de casa. Entra e volta com uma mala em cada
mão e coloca no porta-malas; poderia dizer que meus vizinhos fariam uma
viagem romântica. Mas Anne aparece na porta com roupas de dormir,
segurando o casaco da farda do marido. Quando me vê vira as costas para
mim em um movimento brusco. Quase acerto uma martelada no dedo
olhando a conversa dos dois, não dura mais que dois minutos. Fria e distante.
Na verdade, só o cara fala, a professora apenas concorda com a cabeça baixa.
Depois que o tenente sai, Anne olha rapidamente na minha direção.
Aceno com a mão, mas não responde, entra em casa praticamente correndo.
Mulher maluca. Dou de ombros e continuo o meu trabalho árduo, mas não
tem coluna que aguente ficar agachada por tanto tempo. Quando dou a última
martelada estou exausto. No entanto, pelo menos nessa parte o trabalho está
concluído.
Tiro a camisa toda suada e deixo-a sobre a mesa, sentando-me no chão
a fim de descansar um pouco para dar início a outro cômodo da casa. Meu
plano é interrompido por batidas na porta. Atendo resmungando. Abro e
consigo ver de relance o reflexo da professora atravessando o jardim feito um
tiro em direção à casa dela, seus cachos rebeldes chegam a pular no ar. Essa
mulher vive fugindo de mim.
— Ei, professora, tudo bem? — grito, mas ela passa pela porta
fechando-a na minha cara sem me dar a menor chance de dizer mais uma
palavra.
Um aroma delicioso me convida a olhar para baixo, tem uma bandeja
com um prato farto contendo arroz fresco soltinho, feijão preto e salada com
vários tipos de legumes picados em pedaços pequenos, incrivelmente do
mesmo tamanho e forma. Trabalho de um verdadeiro mestre na arte de
cozinhar, pensei comigo. Um bife enorme de carne de boi ao ponto,
acompanhado de um molho de creme com queijo que deveria estar cheirando
no quarteirão todo. Ainda sobrou espaço para uma boa quantia de batatas
fritas em cortes finos e um copo enorme de suco natural de laranja.
Como sobremesa, uma pequena tigela contendo salada de frutas coberta
por leite condensado, e um pratinho com doce de leite caseiro, meu favorito.
Emocionei-me ao ver um bilhete que veio junto escrito em letras pequenas e
delicadas com caneta azul. Minhas mãos tremiam ao abaixar para pegá-lo, o
cheiro doce do seu perfume está impregnado no pequeno pedaço de papel.

“Como disse hoje de manhã que estava com a despensa vazia, cozinhei
meu jantar pensando nisso e montei esse prato simples para você. Espero
que goste, vizinho.”

Engulo seco ao terminar de ler o bilhete em voz alta. Nunca, ninguém


na minha droga de vida, além de padre Valentim, tinha feito algo para mim
de mão beijada. Sempre me virei sozinho, era eu contra o mundo todo. Já tive
que fazer coisas horríveis para sobreviver.
— Santo Deus! Nem lembro a última vez que comi uma refeição
completa assim. — Sorri, olhando a bandeja agora sobre a mesa da cozinha;
me apresso em ir à pia da cozinha lavar minhas mãos calejadas e sujas
fedendo a verniz.
Antes de atacar meu jantar, sento-me e, de olhos fechados e mãos
juntas, faço uma oração agradecendo a Deus por aquele alimento. Peço
perdão por todos os meus pecados. Que não são poucos. Eu posso não ser um
bom exemplo de pessoa religiosa, mas acredito em uma força maior.
Só falta eu lamber o prato quando termino de comer até o farelo, estava
tudo divino. Lavo as vasilhas da professora e seco-as, colocando-as com
cuidado sobre a bandeja junto com um buquê improvisado de flores que fiz
com algumas tulipas colhidas no jardim e um bilhete dizendo:

"Obrigado pelo jantar, professora, foi a melhor refeição que fiz nos
últimos dez anos da minha vida."

Vou até a porta de Anne e toco a campainha, deixo a bandeja no chão e


vou embora sem olhar para trás, não quero constrangê-la impondo-lhe a
minha presença. Se ela quiser alguma aproximação entre nós, será por
iniciativa da sua parte.
Durante a semana não vi mais a professora, infelizmente, ela é boa em
se esconder. No sábado, como o combinado com o padre Valentim, fui cuidar
do jardim nos fundos da igreja, e será assim nos próximos seis meses. Apesar
de não ser escolha minha fazer esse trabalho, faço de bom gosto. Esse projeto
comunitário para crianças carentes é lindo demais, sinto-me honrado em fazer
parte dele de alguma forma.
Por volta do meio-dia, abaixado no canteiro de rosas vermelhas para
arrancar algumas ervas daninhas, avisto a professora surgindo de longe no
início da rua, linda com o seu vestido longo amarelo esvoaçante conforme a
vontade do vento. Jaqueta jeans, tênis branco e óculos escuros. Segura os
materiais com firmeza; se não conhecesse pensaria que é uma colegial.
Fico vidrado olhando para ela! Não consigo evitar.
Meu coração bate forte, e eu não faço ideia do porquê.
— Boa tarde, professora! — cumprimento.
Com descaso, ela me olha de canto de olho ao passar por mim, sem me
dar muita moral. Com um sorriso de canto, olho para a sua deliciosa pele cor
de chocolate que parece tão macia e cheirosa, pensando que teria de ter
intimidade suficiente com ela para tocá-la.
— Boa tarde, vizinho! — diz e segue seu caminho.
Continuo meu trabalho desconcertado, até porque Anne fez a graça de
não sair no horário do intervalo, acredito, só para não ter o desprazer de topar
comigo. Dou de ombros, ela está mais que certa em manter distância de um
cara problemático como eu. Quando chega a hora de ir para casa, jogo a
mochila nas costas e saio certo de que não fui notado.
No entanto, assim que coloco o pé do lado de fora do portão da igreja,
faço uma careta ao ouvir padre Valentim me chamando aos berros. Respiro
fundo e viro para saber o que ele quer. Quando começa a falar não para mais.
— Espera um pouco, filho. — Faz sinal com a mão para eu esperar
onde estou.
— Está tudo bem, padre?
— Sim, rapaz, quero te pedir um favor. Hoje Anne vai de companhia
com você até a porta da casa dela. Seu marido viajou e vai ficar fora por um
mês em uma das suas missões importantes do exército. Como ela perdeu o
horário do último ônibus não quero que vá a pé sozinha a essa hora. — Mexo
a boca para negar, mas meus lábios parecem não obedecer ao comando do
meu cérebro.
A professora vai ficar sozinha em casa por um mês? Isso não vai
prestar, não mesmo.
— Não precisa, padre, estou acostumada a voltar sozinha quando o
Marcos está trabalhando e não pode vir me buscar. Além disso, não quero dar
trabalho ao Castiel. — Anne sai de trás do padre, aparecendo no meu campo
de visão toda sem graça, ainda de óculos escuros mesmo sendo noite. Não
quer a minha companhia, tanto que nem consegue olhar nos meus olhos.
Mantém o olhar para o pinheiro à sua esquerda, sem graça, bancando a
desentendida.
— Você jamais atrapalharia o meu caminho, Anne. Mas, sendo sincero,
talvez não seja bom para você ser vista andando ao lado de um ex-presidiário
que só está trabalhando no jardim da igreja para pagar os últimos meses da
pena em serviço comunitário. — Sou sincero ao dar a ela mais um motivo
para não querer se aproximar de mim, é melhor saber a verdade da minha
boca que de algum fofoqueiro de plantão.
Assustada, a professora lança os olhos sobre mim feito uma lança
afiada, arregalados dentro da órbita, como se estivesse na frente do próprio
diabo; se soubesse o motivo pelo qual passei dez anos preso, sairia correndo
pedindo socorro.
— Pelo amor de Deus, filho! A Anne sabe que eu jamais iria colocá-la
nas mãos de alguém que não confio, te conheço desde que nasceu e sei que é
um bom garoto. Além disso, já pagou sua pena pelo que fez. — Padre
Valentim contorce o rosto, odeia quando toco no assunto da minha prisão.
Como se não falar nas merdas que já fiz apagasse alguma coisa, o fato
de me amar como um filho não o deixa ver que nunca vali nada. Sou um caso
perdido.
— Nem todo mundo pensa como o senhor, padre, desde que voltei para
a cidade todos me tratam como um cão sarnento. Não importa o quanto eu me
esforce, sempre me verão como um bandido. — Ajeito minha mochila nas
costas, inquieto. Só quero ir para casa relaxar um pouco.
— Eu não sou todo mundo, Castiel. Então vamos embora, antes que
comece a chover. A benção, padre! — A mulher sai andando na frente de
nariz empinado, surpreendendo-me pra caralho.
Despeço-me do padre Valentim às pressas e corro atrás da santinha,
acredito que esse será o percurso mais longo da minha vida. O silêncio entre
nós enquanto andamos lado a lado é gritante, e resolvo quebrar o gelo.
— Obrigado pelo jantar, estava tudo divino! — faço questão de
agradecer pessoalmente, mas ela aumenta ainda mais o passo mantendo no
mínimo a distância de uns cinco metros de mim.
Aperta os materiais contra o peito fortemente como um escudo de
proteção contra mim. Mal respira.
— Não precisa agradecer, fico feliz que alguém tenha gostado. Meu
marido vive dizendo que não sei cozinhar direito, odeia tudo o que faço. —
Morde o lábio inferior em punição por falar demais, tem vergonha que os
outros saibam o marido desprezível que tem.
— Pois para mim você tem mãos de anjo, professora. Acho que nunca
comi algo tão bom em toda a minha existência.
— Também não exagera, Castiel, não sou nenhuma chefe de cozinha.
— Curva os lábios de leve, fitando-me entremeio à bagunça de cachos
teimosos do seu cabelo caído sobre o rosto.
Só então me dou conta do quanto essa mulher é naturalmente sexy,
linda e doce como uma flor tímida que desabrocha diante de algum simples
elogio.
— Acho melhor apertarmos o passo, o céu está fechado, acho que vai
chover — corto o assunto, não gosto de como estou me sentindo…
Um adolescente no primeiro encontro, escolhendo as palavras com
cuidado para dizer. Logo eu, que sempre falo qualquer merda que vem a
minha cabeça, sem me importar com quem está ouvindo.
Ficamos em silêncio, mas é Anne que volta a falar dessa vez.
— Antes que eu me esqueça, foi muito gentil da sua parte deixar flores
junto com a bandeja na minha porta ontem, nunca havia ganhado nenhuma
antes. — Aperta os olhos, mais uma vez contou mais do que queria.
— Primeira vez? Como assim, há quanto tempo está casada? — Sou
obrigado a investigar, ela é tão jovem, parece ter no máximo vinte e poucos
anos.
Já o marido parece uma múmia comparado a Anne, deveria ter o dobro
de sua idade, no mínimo.
— Há cinco longos anos — responde baixo, como se sentisse dor no
coração.
— E nunca ganhou flores? — Ergo a sobrancelha.
— Chega de falar sobre mim. Agora é a minha vez de fazer perguntas.
A primeira é: por quanto tempo ficou preso? — Diminui a distância entre
nós, na tentativa de me distrair do assunto das flores.
— Por dez anos, mal tinha completado dezenove anos na época.
— Nossa! Não imaginei que fosse por tanto tempo. O que fez para
ganhar uma pena tão grande?
— Se não se importa, Anne, não gostaria de falar sobre isso. É uma
parte delicada da minha vida que abandonei quando terminei de cumprir
minha pena. — Respiro fundo.
Às vezes penso que esse vazio no meu peito, que me consome como
um buraco negro sugando toda a minha energia positiva, nunca vai sumir.
Capítulo 6

Anne

Fiz o resto do trajeto ao lado de Castiel, consumida pela culpa, ele não
disse mais uma palavra depois que toquei no assunto de sua prisão. Fiquei
surpresa quando revelou ser ex-presidiário, o que será que fez para
permanecer tanto tempo preso? Passou os melhores anos da sua vida lá.
Diante da sua pose dura, é o tipo de homem que não admite que ninguém
sinta pena dele, mas não consigo evitar.
— Obrigada pela companhia, Castiel. Boa noite! — Antes de entrar em
casa, olho uma última vez para aquele homem misterioso parado sob a luz
fraca da rua, tragando seu cigarro.
Luta para manter a pose de Bad Boy, mas se pararmos e olharmos com
mais atenção podemos ver que ali habita um garoto assustado que só quer a
oportunidade de recomeçar sem ser julgado pelos erros do passado.
— Boa noite, professora! — diz com o tom pesado.
Se vira e vai embora com os músculos tensionados como se carregasse
o peso do mundo nos ombros, e mesmo assim suporta sem reclamar. Entro
em casa já tirando os sapatos e jogo em qualquer lugar. Deixo meus materiais
sobre a cômoda e deito-me no sofá, sem nada para me estressar. Adormeço
num estalar de dedos.
Não tenho dormido direito nos últimos dias. Com o Marcos fora por
trinta dias inteiros poderei cuidar de mim com mais atenção. Essas missões
dele geralmente são no meio da floresta, sem sinal de celular ou internet,
completamente incomunicável. Acordo somente no outro dia com a minha
campainha tocando sem parar. Levanto-me espreguiçando para atender, sei
muito bem de quem se trata. Abro a porta para receber o furacão de cabelos
loiros.
— Chegou a dona da porra toda! — anuncia Valesca, minha melhor
amiga desde o colegial.
Pula no meu pescoço com toda sua extravagância. Ela sempre foi uma
mulher linda, decidida e confiante até demais. Tem um corpão de parar o
trânsito, e um estilo digamos que um tanto “chamativo”. Tirando isso e o
vocabulário sujo, é um amor de pessoa, sempre cuidamos uma da outra.
— Que mulher escandalosa, meu Deus! Faço uma ideia do que não
deve ser na hora que está transando, deve chamar até pelo nome do Papa. —
Esse é o Carlos, mais afeminado do que eu e a Val juntas. — Tem alguma
coisa para comer, Anne? Estou morto de fome. — Beija o meu rosto e passa
por mim, entrando na minha casa para assaltar a geladeira.
A melhor parte de ser amiga desses dois é que, quando vêm me visitar,
sei que terei motivos para rir pelo resto da semana.
— Nossa, essa bicha só pensa em comer. — Solto uma gargalhada
quando ouço Carlos resmungar de boca cheia da cozinha.
Antes de entrar, Valesca tira uma bola de chiclete da boca, cola no
aparador da porta e sai rebolando.
Não nos desgrudávamos na época da escola, mas depois que me casei
com Marcos não nos vemos com tanta frequência, só quando ele está fora, a
trabalho. Ele não entende o jeito liberal da minha amiga, e não aceita a
orientação sexual de Carlos. Para evitar problemas, mantenho nossa amizade
na encolha. Assim todo mundo fica feliz, ou pelo menos finge que está.
— O que houve com o seu olho? Parece um pouco roxo — indaga.
Levo e mão ao rosto à procura dos meus óculos escuros, devem ter caído
quando dormi no sofá.
Droga!
— Não foi nada de mais, Val, escorreguei no banheiro alguns dias atrás
e bati o rosto na pinha. Agora me conta, amiga, o que fez no seu cabelo? Está
lindo. — Encho minhas mãos com os fios loiros platinados, realmente está
lindo.
— Cê gostou mesmo, Anne? Fiz luzes ontem — conta toda animada,
ela adora falar sobre seus procedimentos estéticos.
— Eu amei, Valesca, essa cor combina com o tom da sua pele —
reforço o elogio e o seu sorriso se amplia.
— Obrigada, miga.
— Como souberam que Marcos saiu a trabalho? — Abraço minha
amiga querida, esse mundo não seria o mesmo sem essa mulher.
— Eu tenho os meus contatos, amiga, já que o traste do seu marido te
proíbe de ter um celular. — Revira os olhos puxando a barra do vestido
vermelho curto colado no corpo. Fico cansada só de olhar para o tamanho do
salto fino altíssimo da sua sandália.
— Quando o príncipe das trevas volta dessa vez? Tomara que nunca,
ou dentro de um caixão. — Carlos chega na sala com uma colher gigante
comendo o brigadeiro que fiz ontem direto da travessa, a boca toda suja em
volta igual a uma criança.
Ele e Val não escondem o desafeto pelo meu marido. No dia do meu
casamento ajoelharam aos meus pés implorando para que eu desistisse de
fazer uma loucura. Mas tem coisas que nem sempre dependem da vontade da
gente.
— Marcos vai ficar fora um mês inteirinho, é a primeira missão tão
longa dele. Geralmente, duram no máximo quinze dias. — Suspiro
longamente e desabo no tapete da sala, cheia de preguiça.
— Tempo de sobra para putiar muito, Anne, que delícia! Dessa vez não
vai ficar trancada nesse mausoléu. — Olho torto para Valesca, pois sou
mulher casada e muito direita.
Ela revira os olhos, deita-se no chão comigo e apoia a cabeça sobre
minhas pernas.
— Eu concordo com a Val, amiga, faz muito tempo que não sai
conosco. Sentimos sua falta. Além do mais, está precisando loucamente de
um banho de loja e uma hidratação nesse cabelo, porque sangue de Jesus tem
poder. — Carlos aponta a colher cheia de brigadeiro para a minha cabeça.
Nem tinha engolido ainda a última colherada que enfiou na boca.
Penso em recusar, mas por um segundo tento me lembrar da última vez
que me diverti de verdade, e mesmo após muito vasculhar a minha mente,
não me veio nada.
— Quer saber? Que se dane! Eu quero ter um dia de rainha, vou torrar
todas as minhas economias hoje. — Fico de pé enchendo o peito de ar e
perdendo a razão de vez, preciso me sentir viva de verdade.
Pela primeira vez na minha vida, sinto vontade de fazer uma loucura e
chutar o balde. Minha vida se resume em cuidar da casa e do meu marido,
está na hora de pensar um pouco em mim. Tomar minhas próprias decisões. E
se tem uma coisa que os meus amigos sabem é se divertir, quebrar um pouco
as regras vai ser excitante.
— Alguém me belisca porque acho que estou sonhando. Bora, Carlos,
antes que ela mude de ideia! — Valesca me agarra pelo braço e sai puxando,
mal tenho tempo de pegar minha bolsa. Carlos vai na frente, levando a
travessa de brigadeiro com ele.
Para evitar problemas futuros quando meu marido voltar, iremos às
compras na cidade vizinha onde a Val mora e ninguém me conhece.
Entramos no Fusca cor-de-rosa cintilante da Valesca, que chama atenção a
quilômetros de distância, e pegamos a estrada. Ele tem uma capota imitando
um conversível.
— Vamos almoçar em algum lugar com um garçom bem gostoso nos
servindo. Melhor se fosse pelado, mas nem tudo é perfeito.
— Mas que safado você, Carlos! — Ele chacoalha os ombros, fazendo
biquinho.
Sentada no banco de trás do Fusca, enquanto o veículo se distancia,
olho para a casa do meu vizinho novo com um estranho aperto no coração.
Tomara que esteja bem.

Assim que chegamos na cidade vizinha, nossa primeira parada foi em


uma loja de grife mais cara que encontramos. Mas não importa, hoje é o meu
dia.
— Que tal esse vestido? — Olho no espelho do provador, insegura, é o
décimo vestido que eu experimento.
Quando a Valesca gostava de um modelo, Carlos simultaneamente
odiava e vice-versa. Eu já estou começando a desanimar de encontrar algo
que agrade a ambos. Fui atenta em experimentar apenas os vestidos com mais
tecido tanto no comprimento quanto na espessura. Quanto menos mostrar
meu corpo melhor.
— Não gostamos, Anne, amamos! Arrasou, bicha, está um babado! —
disseram em uníssono, olhando um para o outro eufóricos e saltitando pelo
provador, o que chama, é claro, a atenção de toda a loja.
Dois malucos!
— Eu gostei muito também, me sinto linda com ele. — Aliso a lateral
da minha cintura. A peça caiu feito uma luva.
Na cor de um vermelho marcante, longo caído nos ombros e mangas
três quartos, bastante justo na cintura. Então pensei: esse vestido é perfeito
demais.
Perfeito demais para mim.
Abracei meu corpo envergonhada, sentindo-me exposta. Não é só com
o meu cabelo volumoso que Marcos implica, ultimamente tem dado uma
atenção especial para os quilos extras que ganhei. Nunca tive um corpo
perfeito, nem mesmo na adolescência, mas a coisa piorou quando meu
médico me diagnosticou com forte depressão. Passou muitos medicamentos
fortes com vários efeitos colaterais, um deles o ganho de peso. No total estou
com dez quilos a mais, a maioria na bunda e coxas, o que me trouxe algumas
estrias e celulites.
— O que foi, Anne? Você está pálida. — Carlos percebe que alguma
coisa não está certa, e se apressa em me acolher em um abraço forte.
Valesca vem até mim e leva a mão na minha testa para ver se estou
doente.
— Por Deus, mulher, você está gelada, parece uma defunta. —
Valesca, assustada, começa a esfregar minhas costas para me aquecer. — Não
para de tremer, parece estar tendo um ataque de pânico. — Olha para os lados
à procura de algum funcionário na loja para pedir ajuda.
— Eu quero voltar para casa, não devia ter saído, isso foi um erro.
Mulheres como eu não usam esse tipo de vestido, chega de me iludir —
sussurro.
— Como assim, mulheres como você? — Uma cliente da loja se
aproxima, uma morena muito bonita e elegante, com o cabelo preso em um
coque alto dentro de um terninho de três peças azul-claro, óculos escuros e
uma bolsa da Chanel pendurada debaixo do braço.
— Eu me sinto gorda e feia, nem consigo me olhar no espelho. —
Abaixo o olhar, com vergonha de mim mesma.
Como me deixei chegar nesse ponto deplorável, com a autoestima
destruída? Não existe nada mais deprimente do que sentir pena de si mesmo.
— Isso não é gordura, criatura, é fartura! — Val dá um tapa na minha
bunda, com vontade.
— Meu nome é Sonia, querida, e vou te dar um conselho — se
apresenta a mulher que se aproximou de mim. — Não deve se menosprezar
dessa forma, nunca deixe que ninguém roube seu amor próprio. — A moça
limpa as lágrimas do meu rosto, algo por trás do seu sorriso me diz que ela
entende bem a minha dor.
— O sonho do meu marido é que eu tivesse a bunda grande igual a sua,
as pernas nem vou ficar olhando muito, senão vão cair de tanta inveja que
estou delas — grita uma atendente divertida do outro lado do balcão, desde
que chegamos percebi que a simpatia dela não é do tipo falso que só quer
vender, mas sim aquela que te faz sentir feliz e confiante com o que está
comprando.
Juntos conseguiram fazer com que o meu ânimo voltasse, tanto que
comprei uma sandália preta maravilhosa para usar com o vestido e uma bolsa
no mesmo tom com pedras brilhosas. Em seguida passaríamos em um salão
de beleza para que o dia de princesa fosse completo, meus amigos
prometeram me levar a um lugar inesquecível à noite, tenho até medo de
tentar imaginar qual será. Esses dois não dão ponto sem nó.
Capítulo 7

Castiel

Depois de passar os últimos dias desde que saí da cadeia trabalhando


feito um louco, resolvo tirar a noite de folga e beber até cair. Minha cabeça
anda uma loucura. Preciso relaxar ou vou acabar pirando de vez, mais do que
já sou. Tomo um banho frio, ando pelado todo molhado mesmo até a cama e
visto meu jeans velho e uma camiseta preta que o padre tirou das roupas
doadas para a igreja e me deu. A verdade é que todo meu atual guarda-roupa
veio de lá.
Procuro um bar mais afastado para evitar os olhares tortos, encontro
uma espelunca que vende bebidas as quais meu dinheiro suado dá para pagar.
Depois de beber algumas cervejas, saio um pouco para fumar. Com as costas
apoiadas na parede da frente do estabelecimento toda pichada, ouço o som
estridente de uma casa noturna bem em frente, parece uma réplica do inferno,
com luzes vermelhas vindas lá de dentro e mulheres bêbadas seminuas
dançando na varanda.
Dou uma longa tragada no meu cigarro, soltando a fumaça no ar de
boa, pensando que foi a época que aquele tipo de rolê de putaria fazia parte
da minha agenda. Apesar que comer umas duas putas de uma vez só essa
noite não seria nada mal, preciso colocar os últimos anos de “castidade” em
dia. Olho novamente para a varanda, talvez alguma das mulheres dançando
me chamasse a atenção, e de fato chamou.
— Isso só pode ser brincadeira, porra! — Jogo o cigarro longe,
trincando os dentes.
Atravesso a rua a passos largos esmagando os meus punhos, paro
diante da bilheteria da casa noturna catando até a última moeda no fundo do
meu bolso para conseguir pagar. Enquanto o segurança me revista, meu olhar
furioso percorre para dentro do local cheio de pessoas enlouquecidas se
esfregando umas às outras, seguindo a batida do DJ.
— Pode entrar, senhor, divirta-se. — Recebo um carimbo do segurança
no braço, aceno para ele e entro indo atrás do motivo da mudança de planos
da minha noite.
Subo para o segundo andar, logo de cara encontro o que estou
procurando.
— Anne? — Puxo seu braço, ela vira para trás surpresa e me encara
franzindo o cenho como se não me reconhecesse.
Não dava para acreditar que aquela mulher toda emperiquitada
apresentando sinais de embriaguez é a mesma santinha professora de
catecismo das crianças da diocese Nossa Senhora das Dores. Na companhia
de dois amigos mais bêbados ainda.
Se não estivesse vendo com os meus próprios olhos não acreditaria,
mas, cacete! Como Anne está linda. Diferente. Mais confiante, parece. Não
pensei que fosse o tipo que usa tanta maquiagem, olhos pintados, batom
vermelho e cabelo escovado solto jogado para o lado de um jeito sexy pra
caralho.
Puta que pariu! Que mulher deslumbrante.
Mas, ainda assim, prefiro sua versão ao natural.
— Desculpa, cara, mas como é o seu nome mesmo? Gabriel ou
Ezequiel? — Bate a mão no meu peito, entorna a metade do líquido do copo
de bebida que está na sua mão, e começa a gargalhar do nada feito uma louca.
Em seguida Anne me ignora, e volta a dançar com os amigos de um
jeito para lá de provocante, está na cara que não é forte para bebidas. De
costas para mim, meus olhos caem para o seu traseiro mexendo de um lado
para o outro. Ela move o corpo com uma malemolência hipnotizante.
Quando dou por mim, aqui estou eu de pau duro dentro das calças por
causa de uma mulher casada bem no meio de uma balada na qual não deveria
e nem queria estar.
— O que faz em um lugar como este, professora? — não temos
intimidade para eu falar nesse tom autoritário com ela, mas falei assim
mesmo.
Há vários homens olhando para ela de um jeito perigoso, conheço um
cara mal-intencionado quando vejo um. Já fui um deles.
— Se divertindo com os amigos, qual o problema, cara? — Sua amiga
entra na nossa conversa. — Prazer, gato, eu sou a Valesca. — Abraçou-me de
forma fervorosa.
— O prazer é meu. Sou Castiel, vizinho da Anne. — Afasto-me do seu
toque, havia acabado de conhecê-la.
— Eu preciso ir ao banheiro, podem vir comigo, meninas? Não estou
me sentindo bem. — O cara afeminado que as acompanha, vestido de rosa
dos pés à cabeça, pálido, cobre a boca com as duas mãos como se fosse
colocar tudo que comeu durante toda a semana para fora a qualquer
momento.
— Respira, Carlos, vou pegar um copo d’água para você. Leva ele para
o banheiro, Valesca. — Anne sai cambaleando em direção ao bar enquanto a
loira socorre o amigo, fico na dúvida se vou embora ou fico mais um pouco
para ver onde aquilo dará.
Acabo ficando com a segunda opção.
De onde estou continuo de olho na professora, leva uma eternidade
para dizer ao barman o que quer. Pega o copo com água e volta passando
com dificuldade entre a multidão, na pista de dança um garoto loiro cabeludo
que mal saiu das fraldas se atreve a agarrá-la pela cintura, se engraçando para
o lado dela. Vou até eles de cara fechada.
— Que tal uma noite de sexo inesquecível, gata? — O filho da mãe
tenta beijá-la à força, o covarde.
— Eu já disse que sou casada, moço, e o meu marido é muito bravo. —
Tenta se afastar dele.
O homem está decidido em tê-la, mas isso só aconteceria por cima do
meu cadáver.
— Algum problema aqui, amor? — Cheguei abraçando Anne por trás,
fingindo ser o seu marido.
— Não tem nenhum problema, cara, eu pensei que ela estava mentindo
quando disse que é casada. Desculpa aí.
— Você tem cinco segundos para sumir da minha frente, moleque —
ameaço, ele corre e desaparece no meio do povo, sabia que se ficasse a
chance de ficar sem os dentes da frente era grande.
Nesse meio tempo os amigos da Anne voltaram, o cara parecia pior do
que saiu, escorado pela loira maluca e mais um segurança da boate. Sua cor
está opaca e os lábios levemente arroxeados, uma baba escorre no canto da
sua boca e os olhos vidrados nem piscam.
— Eu preciso levar Carlos para o hospital, acho que batizaram a bebida
dele.
— Posso ajudar em alguma coisa, Valesca? — me prontifico a ajudá-
los, é claro, quem nunca teve que socorrer um amigo bebum que atire a
primeira pedra.
— Pode sim! Já que é vizinho da Anne, leve-a para casa para mim, por
favor. — Assenti.
— Não, Valesca, eu quero ir com vocês. — A professora tenta dar um
pouco de água para o amigo, mas quase acaba de matar o rapaz afogado,
enfiando tudo de uma vez só na boca dele.
— Vai ajudar indo para a casa com Castiel, e tente não me odiar
amanhã quando a ressaca bater. Te ligo assim que der, Anne, se cuida! —
Beija o rosto da amiga, depois saem às pressas arrastando Carlos.
— Venha, santinha do pau oco, vou te levar para casa. — Pego o copo
vazio em sua mão e coloco sobre a bandeja de um garçom que passou por
nós, entrelaço meus dedos nos seus e a conduzo para fora da boate.
Atravessamos a rua e entramos na minha caminhonete estacionada em
frente ao bar, então a briga para colocar o cinto na Anne começa. Eu coloco e
ela tira, parece uma criancinha birrenta.
— Será que pode deixar a porra desse cinto quieto, caramba? — perco
a paciência e a dramática começa a chorar.
— Você é mal igual ao meu marido, não gosta de mim — diz chorosa
fazendo um beicinho muito fofo, não consigo conter o sorriso bobo que se
forma no meu rosto.
— Impossível não gostar de alguém como você, Anne — digo mais
para mim do que para ela.
Inclino e beijo a testa de Anne. Quando me afasto, olho dentro dos seus
olhos negros como a escuridão dessa noite fria. Respiro pesadamente ao
sentir o toque delicado de sua mão pequena alisando meu rosto com carinho.
Quando sorri para mim formando leves covinhas nas bochechas, sou
obrigado a me afastar, ficando de costas para ela.
— Mas que merda, Castiel! Se contenha. — Levo as duas mãos atrás da
nuca, espero alguns segundos para que o efeito da adrenalina do meu sangue
passe.
Dou a volta na caminhonete e entro, meto o pé no acelerador, disposto
a deixá-la em casa o mais breve possível. Não demorou nem quinze minutos
para que caísse no sono. Sabia que acordaria arrependida de ter bebido
daquela forma. Ligo o som baixinho na rádio local que está tocando um
sertanejo bem romântico, daqueles de arrastar o chifre no asfalto.
— Fala sério! — Giro os olhos dentro das órbitas, Anne remexe no
banco do carona, mas não acorda.
No meio do caminho escuto um barulho como se o pneu tivesse furado,
paro no acostamento e desço para ver o que aconteceu. Contudo, é apenas um
galho que havia se prendido no aro da roda. Ao voltar para dentro da
caminhonete e olhar para o lado, a maluca tinha sumido e deixado a porta
escancarada.
— Mas que porra, Anne! — resmungo ao vê-la correndo sem rumo,
cambaleando no meio da estrada.
Tinha tirado os sapatos, pisando descalça sobre o asfalto frio.
— Volta para o carro, professora! Antes que seja atropelada — pedi,
mas ela parece não me ouvir.
Rodopiava como um pião no meio da rua, com os braços abertos.
Fechou os olhos sentindo a brisa, seus cabelos flutuam lindamente pelo ar.
— Consegue sentir o gosto, Castiel?
— De quê? — questionei confuso ao me aproximar.
— De liberdade! — Para de repente e sorri, sei exatamente o que ela
está dizendo, senti o mesmo no dia em que fui solto.
Alguma coisa me diz que ficar perto da Anne é uma fria das grandes.
Mas estou disposto a encarar as consequências de peito aberto. Já que
estamos na chuva, vamos nos molhar.
— Gostaria de conhecer um lugar bacana, moça? — perguntei com um
brilho no olhar, sua curiosidade foi aguçada.
— Seguirei você por onde for, Castiel! — Estende a mão para mim e eu
a seguro firme, apresentarei a ela o meu lugar secreto quando criança até a
adolescência.
Eu conheço bem essa área, bem próximo tem um pequeno bosque no
qual um rio passa bem ao meio dele. A água tinha um tom esverdeado, cheia
de pedrinhas cristalinas no fundo, um pequeno pedaço do paraíso. Quando
era garoto e as coisas ficavam feias lá em casa, costumava andar horas de
bicicleta até chegar aqui para ficar deitado à beira dele, vendo o pôr do sol.
Podia passar a noite fora que ninguém sentia falta. No fundo, sempre achei
que a esperança da minha mãe sempre era que eu saísse e não voltasse nunca
mais. Seria uma boca a menos para alimentar.
Não cresci em um lar amoroso e quase nunca tinha o que comer em
casa, por isso aproveitava as frutas que tinha aos montes no meu esconderijo
para matar a minha fome. Esse bosque era o lugar mais perfeito do mundo
para mim, será uma emoção grande poder voltar lá depois de tanto tempo.
— Bora então, professora, temos mais de trinta minutos de caminhada
pela frente.
— Ainda está muito longe? Eu estou cansada. — Não tinha andado
nem cinquenta metros e a criatura já estava desistindo, bocejando de sono.
— Suba nas minhas costas. Eu levo você. — Pensei que não aceitaria
minha proposta, mas correu e fez o que eu pedi.
— Upa, upa, cavalinho. — Segura firme no meu pescoço, rindo alto, se
divertindo e muito com a situação.
A única vantagem da bebida é que, na dosagem certa, nos dá coragem
para fazer algo que nunca faríamos sóbrios, por medo. Esse sentimento
negativo priva muita gente de viver momentos inesquecíveis.
— Segura firme, peão, vou te levar para o paraíso — entrei na
brincadeira, rindo também.
Pouco adiante entramos em uma estrada de terra, a lua está mais
iluminada do que nunca, linda e misteriosa com nuvens brilhando ao seu
redor. Quando entrei no bosque, uma enxurrada de lembranças veio à minha
mente com o gosto nostálgico de voltar aos meus dez anos de idade, onde não
precisava pensar em mais nada além de fugir da realidade do mundo lá fora.
— Que lugar lindo! Poderia viver aqui pelo resto da minha vida. —
Com o queixo um pouco elevado, a luz do luar reflete em seu rosto, dando-
lhe um brilho especial, assim como na água corrente do riacho embelezado
pela queda da cascata de uma cachoeira.
Ao nosso redor tem diversas árvores folhadas e o chão gramado, acima
de nós um céu tomado por um lençol de estrelas. Anne olhou para cima para
admirar uma estrela cadente que cai deixando um rastro longo para trás.
— Faz um pedido, Castiel. — Coloca as mãos na cintura sorrindo,
borboletas noturnas e vagalumes brigam por espaço voando a sua volta.
Parece até mágica.
— Até poderia fazer, professora, mas o que eu quero nesse momento já
tem dono — minha sinceridade a desconcerta e desvia o olhar para longe de
mim.
— Nossa, minha cabeça está rodando, estou vendo tudo em dobro. —
Tonta demais, escorrega e rasga a lateral do vestido.
— Cuidado! Vai acabar se machucando. — Vou ao seu encontro e a
ajudo a levantar-se, está toda suja de terra.
— Obrigada por me trazer nesse bosque, Castiel. Que lugar incrível!
Moraria aqui pelo resto da minha vida. E você?
— Morar aqui seria incrível, sonho com isso desde que era só um
menino. Construir uma casa bem no meio desse bosque secreto, à beira do
rio. Montaria uma reserva florestal, onde ninguém poderia derrubar uma
árvore sequer, por mais velha que fosse — divagando, tiro a minha jaqueta e
lhe ofereço a mão para ajudá-la a sentar sobre ela, debaixo de uma árvore
enorme, a maior e a minha favorita do lugar.
É um ipê amarelo gigante, tem vários como esse no bosque e de várias
cores. É algo fascinante de se ver.
— Eu amo as árvores, em especial as florentes. Seria incrível ter uma
dessas no meu quintal, acordar de manhã tendo essa imagem da varanda do
meu quarto e ouvindo o barulho gostoso do rio — suspira.
Anne deita a cabeça sobre o meu ombro, bocejando. Como que em
modo mecânico, apoio minhas costas no tronco da árvore e a envolvo dentro
dos meus braços.
Quando mais tarde a temperatura cai, tenho que mantê-la aquecida.
Preciso acreditar que é só isso mesmo. Mas o meu coração acelerado de
felicidade em tê-la tão perto me desmente na cara dura.
— Eu iria querer um jardim bem bonito, uma casa enorme de madeira
com janelas enormes que vão do chão ao teto. Vários quartos, um para cada
um dos meus filhos, sempre quis ter uma família grande — completo
entusiasmado, acho que fiquei louco, mas não custava nada sonhar.
— Eu iria querer um piano bem no meio da sala, para ensinar os meus
filhos a tocar. Eu os educaria bem para serem homens de bem, assim como
você, o “pai” deles — disse baixinho, sonolenta. Mesmo sabendo que tudo
que disse é fruto do seu estado alcoólico, não me impede de ficar tocado de
uma maneira profunda.
No fundo queria que tudo aquilo que Anne disse se realizasse. No
entanto, sei que isso é impossível. Não pelo fato dela ser casada, mas sim
porque, mesmo sendo um homem livre agora, minha vida foi destruída no dia
em cometi aquele terrível crime.
Capítulo 8

Anne

Ouço sons agradáveis como o de água corrente de um rio e o canto dos


pássaros ao fundo, que transmitem aquele tipo de sensação boa de paz. Posso
sentir o cheiro de terra fresca, da natureza. Aconcheguei-me, não quero
acordar desse sonho lindo. Nunca me senti tão bem antes.
Protegida.
Infelizmente minha paz não dura muito, sinto o calor de uma respiração
bem na curva do meu pescoço e não é só isso. Braços fortes rodeiam minha
cintura, prendendo-me. Abro os olhos com certa dificuldade, estou meio
confusa e com uma dor de cabeça insuportável. A forte claridade do sol
acabando de nascer só piora tudo, vez ou outra um flash da noite passada
vinha à minha mente, mas nada muito concreto. Minhas lembranças do
último dia são como várias peças de um quebra-cabeças a ser montado.
Não faço ideia de como vim parar no meio dessa mata, tem tantas
árvores à minha volta que me sinto mais tonta, meu estômago parece uma
máquina de lavar rodando sem parar.
— Bom dia, professora! — A voz grossa de Castiel, sonolenta, me faz
entrar em pânico, como vim parar nesse lugar com ele?
Será que me dopou para trazer aqui e depois estuprar? Porque eu jamais
iria para o meio do mato com um homem que mal conheço.
Ou me sequestrou para pedir resgaste?
No momento de desespero meu primeiro ato é tentar fugir de Castiel.
Levanto em um movimento brusco, o que não esperava é que não estou no
comando dos movimentos das minhas pernas que parecem moles feito
gelatina e acabo me desequilibrando e caindo barranco abaixo como uma
manga podre. Por pouco não parei dentro do rio. Meu cabelo encheu de terra,
o vestido rasgou na lateral, próximo aos seios, e na barra, deixando à mostra
minhas pernas toda arranhadas.
Faço uma careta ao olhar para Castiel com a testa enrugada. Não
entendo nada, quando se acorda confuso tudo parece suspeito. Agora não sei
se o meu vestido rasgou de fato na queda ou se foi ele que o rasgou ontem à
noite. Fico muito assustada, conferindo cada pedacinho do meu corpo para ter
certeza que não está faltando nada.
— Meus Deus, Anne! Você está bem? — Castiel vem ao meu socorro,
com a testa enrugada de preocupação.
Tenta me tocar, mas me afasto. Estou apavorada demais, suja,
desorientada e cheirando a álcool.
— Se tentar tocar em mim novamente, eu te mato! — o enfrento com a
voz firme e a cor lhe foge do rosto.
Castiel recolheu a mão com a postura dura. Porém, não disse nada,
penso por alguns segundos que iria me deixar em paz. Mas não, o filho da
mãe me pega à força, joga nos seus ombros e anda comigo pelo bosque. Eu
vou aos gritos enquanto o estapeio nas costas.
— Solte-me! Pensei que fosse diferente, Castiel. Mas não passa de um
estuprador maldito! Agora sei por que passou tanto tempo preso. — Minha
raiva é tanta que sou capaz de matá-lo com as minhas unhas, estou farta de
homens covardes que usam nós mulheres como objeto sexual.
Contudo, Castiel não desvia dos meus tapas e socos, deixando que
extravase a minha ira sobre ele, continua andando calado, de cabeça erguida.
Só me soltou para jogar dentro da sua caminhonete encostada na beira do
asfalto. Consegui empurrá-lo e fugi, mas ele facilmente me pega de volta sem
nenhuma gentileza e me obriga a sentar no banco da frente, prendendo o meu
cinto apertado.
— Se tentar mais uma gracinha, professora, aí sim vai ver o monstro
que eu sou de verdade! — grita comigo apontando o dedo bem no meio da
minha cara, seus olhos alaranjados brilham como duas labaredas de fogo
fumegante.
Não tive coragem nem de piscar, permaneço imóvel durante todo o
trajeto, com tanto medo que quase urino na roupa. Castiel não me olhou uma
vez que fosse. Assim que para a caminhonete em frente à minha casa, abro a
porta e corro para dentro da minha casa, trancando a porta. Vou direto tomar
um banho, fico a maior parte do tempo chorando debaixo do chuveiro. Queria
tanto me lembrar de como tinha ido parar naquele lugar lindo com meu novo
vizinho, mas por mais que me esforce não consigo.
Saio cabisbaixa do banheiro, enrolada em uma toalha, e a primeira
coisa que vi foi que a janela do quarto de Castiel de frente para a minha está
fechada, com uma cortina grossa e escura como se aquela fosse uma barreira
que criou entre nós, para sempre.
Mas que merda, Anne!
Decido ir para a sala e ligar para a Valesca à procura de esclarecimento.
Tenho muitas perguntas e preciso de respostas. Minha última lembrança de
ontem à noite é de ter saído do apartamento de Valesca com ela e Carlos, para
um lugar surpresa escolhido por eles.
— Olá, Anne, chegou bem em casa, amiga? Carlos acabou de ter alta
do hospital, mesmo assim vou levá-lo para a minha casa e ficar de olho nele
— explica com a voz sonolenta, parecia exausta.
— Como assim, hospital, Valesca? Não consigo lembrar de nada do
que aconteceu ontem, mas pelo visto foi mais sério do que pensei. — Seguro
o telefone sem fio com a mão trêmula.
— Calma, mulher! Carlos está bem. Ele misturou vários tipos de bebida
e passou mal, achei melhor levá-lo para o hospital, um dos seguranças da
boate me ajudou.
— Boate?? — grito.
Eu nunca fui em um lugar desse tipo antes, se Marcos descobrir isso
quando voltar, me mata na base do soco.
— Você não se lembra mesmo de nada que aconteceu, Anne? Mas que
merda, amiga. Se divertiu tanto, ficou bêbada e dançou como se ninguém
estivesse olhando. Sorria o tempo todo. — Fecho os olhos sorrindo ao
imaginar a cena descrita por Valesca, feliz por pelo menos uma noite da
minha vida ter me divertido de verdade.
Fico em silêncio enquanto as lágrimas deslizam pelo meu rosto, tudo o
que eu mais quero é algum dia ter as rédeas da minha vida. Não precisar
bancar a dona de casa perfeita o tempo todo, as vezes é bom ficar bêbada e
não lembrar de nada no dia seguinte. Só vivemos uma vez, e temos apenas
uma chance de ser felizes.
— Você ainda está aí, Anne? — estranha o silêncio da minha parte.
— Sim, amiga, acho que a ligação ficou muda. — Pigarreio para
disfarçar a voz de choro.
— Desculpa por ontem não ter deixado você ir comigo e o Carlos para
o hospital, estava fora da casinha. Por isso pedi para o seu vizinho te levar
para a casa em segurança, era o único sóbrio naquele lugar. — Prendo a
respiração levando a mão sobre o peito, talvez meu marido não estivesse tão
errado quando me chamava de idiota.
— Eu preciso desligar agora, amiga, desculpa. Manda um beijo para o
Carlos, diga que desejo melhoras. — Desligo, consumida pela culpa.
Castiel não me sequestrou como pensei, foi gentil me levando para casa
a pedido da minha melhor amiga. E eu o tratei como um bandido, só
pensando o pior de sua parte igual à cidade toda, pelo único fato de ser um
ex-presidiário. Não importa o quanto tente melhorar, ninguém dará um voto
de confiança a ele. Só acusações. Assim como fiz, chamando-o de estuprador
maldito. É provável que nunca mais olhe na minha cara, e com toda razão.
Não faço ideia de como fomos parar dormindo abraçados naquele
bosque lindo, contudo, agora sóbria e vendo a história de um outro ângulo,
não acredito que tenha me levado para lá com más intenções.

Me sinto ainda pior conforme os dias passam. Não vi Castiel nem


mesmo de longe, parece ter evaporado da face da Terra. Ansiei que o sábado
chegasse logo para ir dar aula de catecismo e enfim poder me desculpar pelas
sandices que disse, mas ele não apareceu para cuidar do jardim. Perguntei ao
padre o motivo, ele disse que não foi porque tinha um compromisso
importante, mas que compensaria as horas no decorrer da semana.
Fico arrasada, mas eu não sou a única. Joãozinho está triste, sentado
sozinho pelos cantos durante o horário de intervalo. Vou até ele lhe fazer um
pouco de companhia, não gosto de vê-lo assim, pra baixo.
— Castiel não vem mais hoje, tia? — pergunta assim que me aproximo
dele. Sento-me no balanço ao lado do seu.
— Acho que não, querido, sinto muito! — Seu olhar fica ainda mais
triste, ele chuta algumas pedrinhas no chão.
Tentei animá-lo chamando para brincar, mas não quis, preferiu voltar
para a sala e passar o intervalo desenhando dentro da sala. Não insisti,
respeitei sua decisão. Ao final da aula, antes de eu ir embora, padre Valentim
veio conversar comigo.
— Amanhã terá uma reunião com os dirigentes da igreja às dezoito
horas, filha, tenho uma boa notícia para dar. Por favor, não falte, Anne. —
Assinto.
— Eu estarei presente, padre, uma notícia boa é sempre bem-vinda! —
Forço um sorriso que o padre sabe muito bem que é falso.
Ele me conhece bem, sabe quando não estou bem.
— Aconteceu alguma coisa, filha?
— Não, senhor, só estou um pouco cansada.
— Sei... — Ele franze a testa.
Desconfiado, beija meu rosto e volta para dentro da igreja assobiando
alegremente com as mãos juntas atrás do corpo.
Capítulo 9

Anne

Chego atrasada na reunião parecendo um verdadeiro bagaço, não tenho


feito outra coisa além de comer, dormir e me entupir de antidepressivos.
Vesti uma calça confortável de treino, que comprei para ir à academia e
nunca usei, por isso estou essa baleia. Peguei um suéter amarelo velho e
quentinho do meu marido, que gosto de usar. Tem as mangas longas que dá
para esconder as mãos dentro, a parte onde mais sinto frio. Prendi o cabelo de
qualquer jeito, estou sem ânimo para nada.
Mal piso dentro do salão da igreja, e viro alvo de todos os pares de
olhos presentes. Quando se tem depressão, não importa onde, sempre vai
parecer que somos o assunto principal de todos.
— Olá, Anne. Seja bem-vinda, filha! — Padre Valentim cumprimenta-
me e me puxa pela mão ao perceber que eu não me movia.
— Muito obrigada, padre. Pode continuar a reunião. Desculpe pelo
atraso. — Procuro uma cadeira mais ao fundo, sento e me encolho toda.
Graças a Deus, rapidamente todos esqueceram da minha presença.
Estremeço ao ouvir a voz imponente de Castiel próximo a mim,
acompanhada de uma risada feminina de uma mulher que conheço muito
bem. Caroline Marques, a popular filha do prefeito da cidade, conhecida pela
beleza, sucesso na carreira como estilista e por criar e ajudar diversos
projetos sociais. Por onde passa não tem quem não entorte o pescoço para
olhar para ela, uma morena alta e magérrima.
Aquele tipo que quando a gente olha, nos perguntamos se havia
acabado de sair de alguma revista ou programa de moda famosos.
— Para de me fazer rir ou o padre vai chamar nossa atenção, Castiel.
— Toca o ombro de Castiel e cruzam olhares, com intimidade demais para
serem apenas amigos.
— Tudo bem, moça, mas depois a seção de risos continua. — Pisca
para Caroline, todo cheio de charme.
Ela passa a mão pelo cabelo mexendo os olhos, aquele sinal típico de
flerte. Nervosa, alisa a saia do seu vestido azul na altura do joelho e cruza as
pernas.
Reviro os olhos!
Não tenho mais paciência de continuar olhando para o casal maravilha.
Volto toda a minha atenção para o padre falando na frente, quero saber logo
qual é a tal boa notícia.
— O motivo dessa reunião não poderia ser melhor. Depois de muita
pesquisa, encontramos um hospital perfeito para fazer a cirurgia da correção
de coluna de Joãozinho. Essa deformidade o impede de ter uma vida normal
como uma criança da sua idade. — Padre sorri feliz pelo nosso menino, eu
farei o que for preciso para que essa cirurgia se realize.
— E essa cirurgia é muito cara, padre? Podemos fazer uma vaquinha
para ajudar — alguém se manifesta na fileira da frente.
— A cirurgia custa em torno de dez mil reais. Mas pensamos em fazer
uma festa para arrecadar o dinheiro, posso contar com a ajuda de todos? —
Me pus de pé na mesma hora e levanto a mão.
— Claro que sim, padre! Que ideia maravilhosa, parabéns pela
iniciativa! Vou fazer o que puder para ajudar na cirurgia de Joãozinho, tenho
certeza que vamos conseguir esse dinheiro — prometo e, não contendo a
emoção, vou até ele abraçá-lo. Enfim, uma notícia boa de verdade.
— Obrigado, Anne querida, mas a ideia não foi minha e sim de Castiel.
Ele passou dias e mais dias pesquisando e entrando em contato com hospitais,
até encontrar o melhor. Não sei até agora como ele conseguiu total apoio do
prefeito e a sua filha para o evento de arrecadação dos fundos necessários. —
Pela primeira vez nessa noite meus olhos encontram os de Castiel. Orgulhosa
pela atitude dele.
Queria ter ido até ele e o parabenizado pelo belo ato de preocupação
com o próximo. Mal chegou e deu iniciativa a um grande feito. Só que a filha
do prefeito, agarrada no pescoço dele, me fez voltar para o meu lugar de
cabeça baixa. E como não existe nada tão ruim que não possa piorar, quando
me sento a cadeira de madeira quebra uma das pernas da frente, me levando
de bunda no chão.
Risadas ecoam por todo o salão de reuniões da igreja, olho para todos
os lados com vontade de afundar chão adentro. A vergonha é tanta que não
tenho forças nem para sair correndo, que humilhação, meu Deus.
— Você não acha que está na hora de fazer um regime, querida?
Digamos que está um pouquinho acima do peso, outro dia te vi de longe e até
pensei que estava grávida — comenta a tesoureira da igreja, dona Matilde.
Se alguém perguntasse quem é a pessoa mais inconveniente da cidade,
com certeza o nome dela viria na cabeça de qualquer morador. Sua cara
debochada tem mais pés de galinha do que um galinheiro inteiro, os cabelos
brancos presos em um rabo de cavalo trançado. Não tem nem um metro e
meio de altura, magra feito um palito de fósforo. De todos os presentes, dona
Matilde é a que mais ri de mim, nem faz questão de disfarçar.
O pior de tudo é o olhar piedoso de Castiel sobre mim. Ele coça a nuca,
incomodado com a situação. Engole o orgulho e ameaça vir me socorrer, mas
outra pessoa se adiantou.
— Você se machucou, Anne? — pergunta Caroline enquanto me
oferece a mão para ajudar a levantar.
Está de fato preocupada com o meu bem-estar. Não basta ser linda,
tinha que ser gentil e atenciosa também.
— Estou bem, sim, Caroline, obrigada! — Minha voz sai falha, só
percebi que estava chorando quando ela limpa uma lágrima que deslizava
pelo meu rosto.
— Tem certeza, filha? Parece nervosa desde que chegou. — O padre se
aproxima para conferir de perto se não tinha me machucado, a queda de fato
havia sido feia.
— Eu só fiquei um pouco tonta, não é a primeira vez que acontece isso.
— Eu não disse? Só pode estar grávida — dona Matilde se mostra
venenosa novamente, tive que morder os lábios para não a mandar para o
inferno.
— Não se preocupe, dona Matilde. Se um dia eu ficar grávida, a
senhora será a primeira a saber — ironizo.
Limpo a poeira da minha roupa, mal-humorada.
— Vou pegar um copo de água para você, está toda trêmula.
— Não precisa, Caroline, já estou de saída. — Sorrio sem graça.
— Vá para casa e descanse em paz, Anne, amanhã irei te visitar e passo
tudo da reunião. — Padre abraça-me cheio de ternura.
— Até amanhã então, padre! — Com um aceno só e sem olhar para
ninguém, me despeço de todos e vou embora.
Mas pude sentir os olhos de Castiel sobre minhas costas até o último
segundo. Chego em casa e passo o resto da noite chorando, sentindo-me um
lixo. Tive que adiantar duas doses do meu medicamento antidepressivo para
conseguir dormir.
Como o prometido, padre Valentim veio me visitar no outro dia, a cara
dele ao me ver quando abro a porta chega a ser engraçada. Fico grata pelo
fato de ele não me encher de perguntas, em vez disso engatou a conversa
sobre como seria todo o processo para a cirurgia de Joãozinho. Só acho a data
da festa para arrecadar os fundos muito próxima, pois quero que tudo saia
perfeito.
— Mas sexta que vem não está muito próximo para um evento desse
porte, padre? São vinte barraquinhas para a praça de alimentação, jogos,
brinquedos e gincanas, entre outras coisas. Teremos menos de uma semana
para organizar, será que damos conta? — questiono.
Sorrio ao ver o prato de biscoitos de chocolate que trouxe para ele
vazio, havia comido todos sozinho, só sobraram os farelos em seu colo. Padre
amou tanto que pediu para fazer duas centenas para vender na festa.
— Que nada, a filha do prefeito está nos ajudando com tudo. Ela e o
Castiel têm trabalhado muito nisso juntos. — Leva a xícara de chá à boca,
inocente, sem imaginar a força do golpe que tinha acabado de me dar.
Não sei por que os dois juntos me incomodam tanto. Deveria ficar feliz
por saber que, diferente de mim, encontrou alguém que talvez cure as feridas
do seu passado.
— Que bom, padre! Então, além dos biscoitos, vou fazer alguns bolos e
doces para vender na minha barraca. Um bom chocolate quente e pipoca —
me animo, nossa prioridade é ajudar Joãozinho da melhor forma possível.
— Hummm!!! Chocolate quente, é? Deu-me até água na boca agora,
você sabe mesmo como conquistar um homem pelo estômago — brinca, bate
a mão direita sobre a barriga enorme e lambe os lábios.
— Se o senhor está dizendo, padre. — Ergo as mãos dando de ombros,
rindo junto com ele.
Não importa o quanto eu esteja triste, ele sempre arranca altas risadas
de mim.
— Sei que gula é pecado, mas será que não rola uma amostra grátis
desse manjar dos deuses agora, não? Eu amo chocolate quente. — Faço cara
séria para ele, o padre é diabético.
O que é um grande problema, já que é louco por doces, vive com os
bolsos da batina cheios de mariolas, são os seus preferidos.
— Sim, padre, mas não pode exagerar por causa da diabetes — alerto-
o, mesmo sabendo que seria em vão.
— E o Castiel, tem o visto muito, filha? — Pigarreio enquanto mexo a
panela de chocolate quente, não queria falar em Castiel.
Quero apenas esquecer tudo que envolve ele, minha vida já é
complicada demais.
— Não muito, padre. Acho que ele tem trabalhado na reforma da parte
de dentro da casa. — Na verdade, ele que não quer me ver porque fui uma
estúpida e o tratei mal, talvez nunca mais volte a falar comigo.
Completo mentalmente, revirando os olhos.
— Não sei, Anne, ele tem andado muito calado. Mais fechado que o de
costume, assim como você nos últimos dias — ironiza enquanto me observa
de cima a baixo de onde está sentado, as pontas dos seus dedos batem sobre a
mesa da minha cozinha, pressionando-me inconscientemente.
— O chocolate quente está pronto, padre, vou servi-lo assim que esfriar
um pouco — mudo de assunto rapidinho.
— Está bem, filha, sem pressa. Tenho a tarde toda livre. — Dá de
ombros, seria uma distração muito boa passar a tarde jogando conversa fora
com o padre.
Tivemos tempo suficiente para planejar tudo. Conforme os dias foram
passando, aperfeiçoamos os preparativos da festa beneficente. O local
escolhido para a realização do evento foi o parque de exposições da cidade.
Na programação tem dupla sertaneja e tudo, os cantores ficaram sabendo da
nossa mobilização e resolveram ajudar.
Capítulo 10

Anne

Com tudo pronto, vou mais cedo no dia do evento para terminar os
últimos detalhes da decoração. Enfeitamos tudo com bandeiras coloridas
penduradas por toda parte, e muitas bexigas e flores. Montamos barraquinhas
umas ao lado das outras, deixando um corredor livre no meio para assistir ao
show no palanque montado logo à frente; assim, todos que estiverem
trabalhando nelas ou comprando, poderão assistir.
— Sua barraquinha está linda, tia Anne — elogia Joãozinho.
De fato, está linda mesmo, parece até a casinha de doces do filme João
e Maria, não terá uma criança que passe por ela e não queira comprar nada.
Usei cola quente e um material colorido de borracha para fazer o telhado com
todo tipo de réplica de doces e balas que fiz à mão. Nas paredes usei tábuas
finas do mesmo tamanho. Levou tempo, mas valeu a pena.
— Ficou linda mesmo, Joãozinho. E você, rapazinho, está muito
elegante hoje. — Bato a ponta do dedo na aba do seu chapéu preto de
cowboy, mal consigo ver seus olhos.
Ele veio para a festa todo no estilo típico do interior, com camisa
xadrez, calça justa e botas de couro.
— Obrigado, tia, eu te amo. — Abraça minha cintura.
— Você também está linda, filha! Gosto de te ver assim, com um
sorriso no rosto — elogia padre Valentim, eu nem percebi que ele estava
próximo de nós.
Eu havia mesmo caprichado um pouco, afinal, esse é um dia mais que
especial. Coloquei uma blusa branca básica por baixo de um macacão jeans
comprido. Como vou ficar muito tempo de pé trabalhando na barraca, calcei
tênis confortáveis.
Não fiz nada de grandioso no cabelo, apenas dividi em duas tranças
laterais, fiz uma maquiagem discreta sem muito exagero nas cores, mas bem-
feita.
— Obrigada, o senhor também não está nada mal. — Aliso seu ombro
sentindo a maciez do tecido da sua batina nova. Também caprichou no look
para o evento.
Acho que para todos na cidade, participar desse evento será algo
especial. Todos conhecem Joãozinho e a sua família, sabem que merecem
cada esforço que estamos fazendo por eles.
— Olha, padre, a tia Anne disse que eu estou elegante. O senhor gostou
do meu chapéu? — Joãozinho puxa a mão do padre Valentim. Como está
muito ansioso, fez os gestos rápido demais, acho que o padre não entendeu o
que o pequeno disse.
Traduzi escondido no ouvido do padre, mas antes dele responder à
pergunta de Joãozinho outra pessoa o faz.
— Você é o garoto mais boa pinta da festa, amigão. Com certeza! —
Aparece Castiel. Discreta, o observo de canto de olho.
Ele está com seu sorriso lindo de sempre. De calça escura, camisa
xadrez em vermelho e preto e gorro cinza na cabeça, fez a barba também.
Definitivamente, Castiel tem estilo e charme de sobra. Tem se mostrado com
um coração enorme, Joãozinho logo se pendura no pescoço do seu benfeitor.
A mãe dele, vendo tudo de longe, vem para se juntar a nós.
— Obrigada mais uma vez por tudo o que tem feito pelo meu filho, não
sei nem como agradecer. Serei grata pelo resto da vida. —Vera, minha amiga
querida, mulher simples que ficou viúva cedo demais, limpa a mão suja de
farinha no avental para estender a mão, que Castiel aperta firme.
Ela montou a barraca de salgados ao lado da minha. O filho mais velho,
de dezessete anos, e a caçula de dez, estão ajudando-a.
— Não precisa agradecer, senhora, Joãozinho foi o único, além do
padre, que não teve medo de mim e me tratou com respeito quando voltei
para essa cidade. — Engulo em seco, não sei se Castiel disse isso só para me
alfinetar. Mas senti como se tivesse dado um tapa no meu rosto.
Viro de costas e finjo arrumar a bancada da frente da minha barraca,
ajeitando os potes de doce de leite que já estavam perfeitamente arrumados.
Preciso de alguns segundos para me recuperar do golpe, mais um desse e não
sei se vou sobreviver. Resolvo ficar na minha.
Não demora muito para o parque de exposições lotar, eu não parei de
vender um minuto, tem até uma fila de clientes esperando atendimento. Essa
agitação toda me deixa em êxtase, porém, vendo o meu ótimo desempenho
como vendedora, padre Valentim veio me buscar para ajudar com um
problema em outra barraca.
— Será que o Gustavo poderia ficar na barraca da Anne, Vera? —
pede ele, sem me perguntar se eu queria ir onde quer que fosse que quisesse
me levar.
Fico olhando para a cara dele e de Vera, confusa.
— Claro, padre, meu primogênito é muito responsável — disse Vera.
O padre agarra minha mão e me leva até Caroline; ela obviamente, com
todos os seus belos atributos físicos, ficou responsável pela barraca do beijo.
Parece com uma casinha de boneca, toda enfeitada com balões vermelhos em
formato de coração. Toda forrada com papel de parede florido, e na frente
uma plaquinha em formato de lábios escrita “beijo solidário”, com luzes
piscando.
— Muito obrigada por vir me socorrer, Anne. Minha amiga
responsável pela outra barraca do beijo teve um problema de família e
precisou ir embora. — Olho para o padre, incrédula, por que pensou logo em
mim para ajudar com isso? Não sei qual dos dois é mais louco.
Duvido muito que alguém vá pagar para beijar alguém como eu, acho
que nem de graça.
— Eu não posso ficar na barraquinha, Carol, meu marido não vai gostar
de saber disso quando voltar do trabalho — digo a verdade, tentando ser a
mais educada possível.
— Do jeito que você fala, até aparece que vão pagar para transar com
você, e não um simples beijo no rosto. — Gargalha na minha cara e aponta
para uma plaquinha sobre o balcão com o aviso de que é proibido beijo na
boca e qualquer tipo de desrespeito.
“Beijo apenas no rosto e nas mãos, caso você seja um cavalheiro à
moda antiga”. Droga! Bufo sem mais argumentos para dizer não. Olhei para
o lado, e padre Valentim havia sumido.
— Onde eu fico? — pergunto nada à vontade com a situação, Caroline
não se faz de rogada e me leva até o meu posto.
A fila da barraca dela está enorme, chega a dar volta pelo parque. Na
minha não apareceu ninguém. Lamentei pela Val e pelo Carlos não poderem
vir. Ela tem que ir a um jantar em família, aniversário da mãe que ela nem
conversa faz anos, mas foi por insistência do pai. E Carlos precisou trabalhar
hoje à noite.
Se meus amigos estivessem aqui seriam pelo menos dois bilhetes
vendidos e eu não estaria passando tanta vergonha de ninguém querer ganhar
um beijo meu. Depois de uma hora, peço para sair e voltar para minha
barraca, onde sou bem mais útil.
— Sinto muito por não ter ajudado, Caroline, talvez se tivesse colocado
outra garota bonita como você os lucros teriam sido melhores.
— Como assim, Anne? A venda dos ingressos da sua barra... — Antes
que ela termine a frase, eu mesma completo.
— Foi um fracasso, é, eu sei. Mais uma vez, me desculpa! — Saio
andando rápido, chega de humilhação por hoje.
Ao finalzinho do show sertanejo, não sobrou mais nenhum doce para
vender. Fecho tudo e vou para a frente do palanque de mãos dadas com o
Joãozinho, ele queria dançar comigo para comemorar o sucesso do nosso
evento.
Porém, no meio da música ele me deixou sozinha e vai até onde Castiel
está de braços dados com a Caroline. O toma da filha do prefeito e arrasta
para mim, fazendo sinal para que nós dois começássemos a dançar juntos.
Castiel, é óbvio, balançou a cabeça que não para Joãozinho, eu fiz o
mesmo. Se ele não quer dançar comigo, também não quero dançar com ele.
— Por favor, Castiel, por mim! — Junta as mãozinhas, como se
estivesse orando.
Não faço ideia do porquê é tão importante para o João que dancemos
juntos.
— Ele não quer, Joãozinho, dance você comigo. — Estendo a mão na
sua direção para continuar de onde paramos, mas é Castiel que a segura,
colando o seu corpo no meu.
A dupla sertaneja começou a cantar Xote da Alegria, do Falamansa.
Meu coração bate tão rápido como as asas de um beija-flor. Segurando na
minha cintura, Castiel me conduz ao ritmo da música.

“Escrevi seu nome na areia


O sangue que corre em mim sai da tua veia
Veja só, você é a única que não me dá valor

Então por que será que este valor é o que eu ainda quero ter...
Tenho tudo nas mãos, mas não tenho nada.
Então melhor ter nada e lutar pelo que eu quiser...”

Deito a cabeça no seu ombro e deixo-me levar, entregue em seus


braços. O calor que emana da sua pele junto com o cheiro bom da sua colônia
rústica vai me trazendo lembranças guardadas no interior da minha mente.
Em um instante lembro de cada segundo que passamos juntos no bosque,
nossos planos para o futuro, a casa dos sonhos à beira daquele rio.
A emoção foi tanta que comecei a chorar, minhas lágrimas molharam a
camisa de Castiel. Percebendo que eu não estou bem, ele para de dançar.
— Desculpa, eu pisei no seu pé? — pergunta.
Fico nas pontas dos pés e uso seus ombros como apoio para minhas
mãos. Aproximo meus lábios ao seu ouvido e digo:
— Eu lembrei de tudo o que aconteceu no bosque, Castiel. Me perdoa!
— Com uma expressão enigmática, solta-me no meio da pista e se afasta para
longe de mim.
Sabia que não aceitaria meu pedido de desculpa, talvez seja melhor
assim.
No final da festa, consigo uma carona com a moradora da rua debaixo
do meu condomínio. Assim que piso na calçada da minha casa começa a
chover, corro para a varanda para me esconder dos respingos. Quando acabo
de fechar a porta atrás de mim, ouço batidas desesperadas, como se alguém
estivesse pedindo socorro.
Abro preocupada e fico sem reação com a imagem do homem cheio de
mistérios e segredos parado na minha varanda, todo molhado.
— Está tudo bem, Castiel? — Permanece mudo me olhando de maneira
intensa.
— Eu não sou um estuprador maníaco, professora, jamais tocaria em
uma mulher contra a sua vontade — a maneira dolorosa como diz parte o
meu coração. Sem saber o que fazer, o abraço bem forte.
— Desculpa por ter sido grossa com você, Castiel. Às vezes a gente se
acostuma tanto a levar pancadas da vida que quando é tratado com carinho e
respeito de verdade por alguém, se assusta. — Sinto calafrios quando sua
mão desliza pelo meu pescoço até a minha nuca. Lentamente, aproxima
nossos lábios a um segundo de se fundirem.
Tive certeza que Castiel me beijaria e não me afastei um centímetro,
mas ele muda a rota e beija a minha testa. No entanto, foi mais do que o
suficiente para despertar em mim desejos nunca sentidos antes.
— Você ainda me deve cento e noventa e nove beijos, professora —
diz brincando com a trança do meu cabelo, e eu fico confusa.
Não demoro para entender quando Castiel tira dos dois bolsos da calça
maços de fichas da barraquinha do beijo solidário onde eu estava e me
entrega apenas uma. O restante enfiou no bolso de volta.
— Não acredito que comprou todas as fichas, isso é loucura! — Não
consigo parar de sorrir, foi por isso que não apareceu ninguém.
— Tenha uma ótima noite, professora. A propósito, você dança muito
mal. — Eleva o canto direito da boca e pisca para mim todo sedutor,
atravessa o jardim e se vai, olhando para trás a cada dois passos que dá.
Capítulo 11

Castiel

Em plena segunda-feira de manhã, aqui estou eu. Sentado na


lanchonete do senhor Manoel, com o capuz do meu moletom preto na cabeça,
reviro meu ovo frito com bacon de um lado para o outro no prato. Sempre
comia esse mesmo café da manhã quando menino, fazia o mesmo pedido
sempre que vinha aqui, deixando em observação que as gemas tinham que vir
moles e o suco de laranja gelado. Meia hora depois a garçonete vinha trazer
do jeitinho que eu pedia, ainda com algumas balas como cortesia da casa.
Diziam que eu era uma criança fofa. Na verdade, eu acho que tinham
pena de mim devido à mãe viciada em drogas que eu tinha. Lembrar disso me
fez rir, aqueles foram bons tempos.
— O que foi, garoto, não gosta mais do meu ovo mexido com bacon?
— Senhor Manoel veio até a minha mesa.
Por um segundo, penso que vai me pedir para ir embora porque os
demais clientes não tiram os olhos tortos de mim, cochichando.
— Não é isso, eu sempre amei qualquer coisa que o senhor cozinha. Só
estou um pouco ansioso. — Tira o avental e se senta ao meu lado, sabe que
eu preciso de um bom conselho.
Assim como a decoração descolada desse lugar, relembrando os anos
oitenta, que vai de uma vitrola velha tocando uma música do Elvis Presley ao
fundo até os penteados das garçonetes cheios de laquê para manter a franja
alta o dia todo, senhor Manoel também continua do jeitinho que me lembro
dele. Gostaria de saber com mantém a forma trabalhando em meio a todo tipo
de fritura, e o seu segredo para não ter um fio de cabelo branco aos sessenta e
poucos anos. Deve ser boa genética familiar, ou a alma jovem que habita
nele.
— Conte-me qual é o problema, filho.
— Estou esperando um amigo que não vejo há muito tempo, digamos
que eu não fui muito gentil na última vez que nos vimos.
— Deixa-me ver se adivinho, seu amigo foi te visitar assim que você
foi preso, disposto a fazer qualquer coisa para te tirar de lá. Então o
escorraçou de lá, porque não queria que ele fodesse a vida dele por sua causa
— explica melhor do que eu seria capaz de fazer.
— Sempre fui um caso perdido vindo de uma família de merda, cedo
ou tarde teria destruído minha vida de um jeito ou de outro, era só questão de
tempo. Mas o Edgar não. Ele nasceu para ser um vencedor, e não seria eu a
tirar seu futuro brilhante. — Deixo o garfo cair sobre o prato desistindo do
meu desjejum de vez. Assumir que nasci para ter uma vida de merda não é
fácil.
— Você sempre foi um ótimo rapaz, Castiel, trabalhador e honesto.
Totalmente diferente do bandido do seu padrasto e a vadia da sua mãe. E que
a verdade seja dita, eu vi a dupla imbatível Castiel e Edgar crescer, e se tinha
um líder entre vocês estou diante dele. — Chuta minha perna debaixo da
mesa e ri, depois levanta e pega o seu avental e o meu prato frio sobre a mesa
e volta para a cozinha.
A cada cincos segundos olho na direção da porta para ver se Edgar
chega, nem sei se reconhecerei aquele filho da mãe quando colocar os meus
olhos nele. Com as mãos trêmulas, pego um cigarro no bolso e acendo,
ignorando o aviso de “proibido fumar” na entrada do estabelecimento. Já
estão todos me encarando mesmo.
Bastou ver através do vidro um cara todo engomadinho atravessar a rua
a passos largos na direção da lanchonete, que logo soube se tratar do meu
melhor amigo de infância. Eu estava errado. Não importa quanto tempo
passe, sempre o reconheceria.
Quando entra e vem andando até a minha mesa, tão emocionado quanto
eu, levanto-me para recebê-lo de braços abertos.
— Como assim está em liberdade e não avisa os amigos, porra? — Me
abraça sorrindo e batendo nas minhas costas, como se tivéssemos ficado
apenas um final de semana sem nos vermos e não dez malditos anos.
— Pensei que não iria querer me ver depois das merdas que falei para
você na última vez que nos vimos. Desculpa, irmão. — Edgar torce o rosto,
zangado, e desaba cansado na cadeira de frente para mim.
Toma o cigarro da minha mão dando uma boa tragada e joga a fumaça
na minha cara. Ontem de manhã quase não acreditei quando recebi uma
mensagem propondo esse reencontro, fiquei feliz e ao mesmo tempo receoso
quanto à sua reação.
— Você é um grande filho da puta! Não faz ideia de como fiquei
arrasado naquele dia quando disse que nossa amizade tinha acabado ali e me
mandou embora, Castiel. Tinha acabado de saber que você tinha sido preso e
fui correndo te visitar, seria capaz de qualquer coisa para te tirar daquele
presídio. — Um músculo do seu maxilar se contrai, assim como os punhos.
Em silêncio, desvia o olhar para os carros passando na rua. Lembrar
daquele dia ainda o magoa muito.
— Foi por isso que mandei você embora, Edgar, se tivesse feito alguma
besteira não teria uma família maravilhosa hoje, seria um zé ninguém feito
eu. — Aponto para mim mesmo. Em resposta, enche a boca com o dobro de
fumaça e joga na minha cara novamente.
— Quando começou a fumar?
— Desde que me tornei vice-presidente de uma empresa grande, o
salário é ótimo, mas o estresse não vale a pena. Também comecei a beber, só
assim para conseguir suportar o cretino do meu chefe. — Olha para os lados e
tira escondido uma garrafinha do bolso de dentro do paletó para sorver um
generoso gole, que me oferece e eu aceito, é claro.
— Humm, esse uísque é do bom, aposto que leva isso para onde vai. —
Dou mais um gole.
— E levo mesmo, Castiel, é o grande amor da minha vida. — Toma a
garrafa da minha mão e a abraça, com carinho, alisando e depositando um
beijo.
Doidinho de pedra!
Rimos os dois.
— Conta aí, irmão, já tirou o atraso de dez anos atrás das grades? —
Pigarreio. Sem coragem de dizer em voz alta, nego com a cabeça.
— Você está de brincadeira, Castiel? Se fosse eu, a primeira coisa que
eu teria feito assim que saísse da cadeia é comer a mulher mais gostosa que
passasse na minha frente — eleva a voz, perplexo.
— Não estou. Até me interessei por uma mulher, mas ela é casada com
um tenente do exército metido a machão. — Lembrar da minha última
conversa com a professora depois da festa beneficente faz um sorrir brotar em
meu rosto, tenho pensado mais nela do que em qualquer outra coisa
ultimamente.
— Não sei se te dou um murro ou te abraço, acabou de conseguir a
liberdade e já está arrumando motivo para ir morar debaixo de sete palmos de
terra. — Se zanga comigo.
— Eu estou muito ferrado, cara, não sei o que fazer para tirar minha
vizinha da cabeça, da última vez que a vi tive que ser muito forte para não a
agarrar — confesso.
Ela estava tão linda na festa, nunca que eu ia deixar ninguém a beijar,
por isso fiz uma loucura comprando todos os ingressos da sua barraquinha do
beijo. Não conseguia admitir a princípio, mas sim! Me corroí de ciúmes por
dentro, quero essa mulher para mim.
— Pois trate de pensar com a cabeça de cima e não a de baixo, Castiel,
porque eu não tenho mais estrutura para ver o meu melhor amigo sendo
preso. — O clima fica tenso, então mudamos de assunto.
Pedimos um café da manhã completo como nos velhos tempos,
passamos várias horas comendo e rindo, relembrando tudo o que aprontamos
juntos quando moleques. Apesar do rosto cheio de barba e alguns quilos de
músculos a mais, é como se o tempo não tivesse passado para nós.
Depois de um encontro pra lá de agradável com Edgar, volto para a
casa à tarde com a alma em paz. Mas essa paz logo vai embora quando, a uns
cincos passos de chegar na porta, vejo um bilhete colado na porta. Ao me
aproximar logo reconheço a letra, nem precisei ler o nome no final.
“Gostaria de jantar aqui em casa hoje? Te esperarei às 7:30hs,
Castiel.
Ass: Anne”
Deslizo a mão pelo rosto pensando se devo ou não aceitar o convite, as
coisas já foram longe demais entre nós. Acabo tomando a decisão certa de
não comparecer a esse jantar, mas nem fodendo, Edgar está certo sobre mexer
com a mulher de um tenente, é a mesma coisa que atirar na própria cabeça.
E eu não sou bobo de me arriscar dessa forma.
Não mesmo.
Sou um cara sensato.
Às 19h30 em ponto, aqui estou eu batendo na porta da Anne, de banho
tomado e uma garrafa de vinho em mãos, que achei abandonada junto com
algumas outras na adega da residência onde estou fazendo as reformas, meu
patrão disse que eu podia aproveitá-las como quisesse. Consumir álcool nessa
situação fodida em que me encontro parece uma excelente ideia, depois que
eu estiver sozinho com a professora na casa dela tudo pode acontecer. E que
Deus me ajude.
Capítulo 12

Anne

Sei que esse convite que fiz para o meu novo vizinho que mal conheço
é uma loucura, mas foi a única forma que consegui encontrar para compensá-
lo pela maneira grosseira como o tratei. Nada que eu experimento parece
apresentável. Minha última esperança é um vestido branco simples pouco
acima da altura do joelho, mas bem bonito, que nunca usei antes, presente de
aniversário de umas das irmãs de Marcos. Ele nunca me deixou usá-lo porque
acha curto demais para o “tipo” de corpo como o meu, entre outras coisas que
um marido nunca deve dizer para uma esposa.
— Você é mais forte do que isso, Anne, mostre para o Marcos que ele
não pode mais te ferir de nenhuma forma. Seu corpo, suas regras — digo para
o meu próprio reflexo, segura de mim.
Experimento o vestido e gosto muito do que vejo no espelho, viro de
um lado para o outro sorrindo, sentindo-me bonita de verdade, a peça se
ajustou bem ao meu corpo e o decote realçou meu busto. Sensual, mas nem
perto de ser vulgar.
Com uma animação que não me pertence, sento-me na frente da minha
penteadeira tomada pelo raríssimo desejo de ousar um pouco nas cores,
fazendo um misto de sombra escura com dourado sobre os olhos. Alongo os
cílios e finalizo com um batom vermelho mate. Deixo os cabelos soltos, os
cachos mais volumosos do que nunca.
Não consigo parar de sorrir olhando para o resultado da minha
produção no espelho. Pareço outra pessoa, não pela maquiagem ou o vestido
novo, mas sim pelo olhar cheio de confiança e amor próprio, até minha
postura corporal mudou, como se estivesse diante da minha verdadeira
identidade. E eu amei conhecê-la e não deixaria ninguém a roubar de mim
nunca mais.
Estou calçando as sandálias de salto que comprei no dia em que saí
com Valesca e Carlos, quando a campainha toca. Termino às pressas e desço
as escadas correndo para atender com o coração disparado. Paro diante da
porta por alguns segundos e me recomponho controlando a respiração. Passo
a mão pelo cabelo mais de uma vez e aliso a saia do meu vestido para então
girar a maçaneta.
— Minha nossa! — foi a única coisa que Castiel conseguiu dizer após
me analisar dos pés à cabeça em uma fração de segundo, minha autoestima
falta pouco para gritar.
— Olá, Castiel, que bom que você aceitou meu convite para jantar. Seja
bem-vindo à minha casa! — Abro espaço para que ele entre.
Hoje trocou suas roupas despojadas por algo mais formal, calça social
escura e camisa branca de manga longa e botões. Mas os sapatos são
esportivos, acho que só tem eles, além da bota de couro que sempre usa.
— Você... está linda demais, professora! — elogia.
— Obrigada! Você também fica muito bem de social, muito mesmo —
elogio de volta, admirando sua beleza rústica.
Para mim ele é como um anjo perdido em meio às desventuras do
destino, está longe de ser um demônio como dizem por aí.
— Trouxe para o nosso jantar, espero que goste de vinho tinto. —
Entrega-me a garrafa, estou tão nervosa que nem percebi que ele a segurava
desde que chegou.
— Muito obrigada, Castiel, foi muita gentileza da sua parte. Me
acompanhe até a sala de jantar, por favor. Não quero que o nosso jantar
esfrie. — Aponto a direção, ele passa por mim deixando atrás de si um rastro
irresistível de perfume.
Deixo o vinho sobre a mesa e pego duas taças no armário. Como um
verdadeiro cavalheiro, Castiel arrasta a cadeira para eu me sentar. Coisa que
em cinco anos de casamento, meu marido nunca fez.
— Não acredito que fez arroz de forno, é o prato favorito da Bia. Fazia
para ela toda semana — comenta no impulso enquanto serve o seu prato,
depois se mantém calado.
Quem será essa Bia? Pelo jeito amoroso que falou dela, provavelmente
alguma ex-namorada, que ele ainda ama com todas as suas forças.
— Você e essa Bia, eram namorados? — faço a maldita pergunta
cortando ferozmente um pedaço do lombo assado quase quebrando o prato
junto, preciso saber mais sobre essa mulher.
Mas me arrependo logo em seguida de ter perguntado. Primeiro porque
agi movida pela raiva, elevando a voz a ponto de ser rude, e segundo pela
forma que a expressão de Castiel mudou de alegre para dolorosa em
segundos.
— Bia foi e sempre será o grande amor da minha vida, mas não da
maneira que você está pensando. Ela é minha irmã caçula. — Seu tom é
hostil. Com o maxilar rígido, serve uma taça de vinho para mim e outra para
ele.
Então ele tem uma irmã? Droga! Além de intrometida, sou uma
completa idiota. Mais uma vez julgando os fatos de maneira precipitada.
— Você tem uma irmã caçula, que legal — comento sem graça debaixo
do seu olhar semicerrado, encho a boca de comida antes de falar mais merda.
— Sim, professora. Do segundo casamento da minha mãe. — Não
entra em detalhes, mas eu, teimosa, não dou o assunto como encerrado.
Tudo que envolve esse homem me intriga na mesma proporção que
atrai.
— Onde ela está agora?
— É o que estou tentando descobrir desde que soube que a nossa mãe a
entregou para a adoção assim que fui preso. Tinha apenas quatro aninhos,
tirando de mim para sempre o que mais amo no mundo. — Meu coração
quebra mais um pouco diante da sua dor, meus olhos se encheram de
lágrimas.
— Eu realmente sinto muito, Castiel. — Deslizo minha mão sobre a
mesa e coloco sobre a dele, nossos olhos se cruzam.
Castiel pega a carteira no bolso de trás da calça e tira de dentro dela
uma foto da irmã e me entrega. Dá para ver que foi tirada há muito tempo
devido à cor amarelada e à qualidade da imagem.
— Essa foi a única lembrança que me restou dela, é o meu bem mais
precioso.
— Ela é tão linda, Castiel, parece com você. — Aliso o rosto dela na
foto com tanto carinho como se estivesse na minha frente, parece um anjinho
de tão fofa.
— Sim, minha irmã se parece muito comigo — confirma todo
orgulhoso, não se importando de demonstrar sua emoção.
— Dá para ver que eram muitos unidos, seus olhos chegam a brilhar
quando fala dela.
— Se sobrevivi até hoje foi pela Bia, só vou ficar nessa maldita cidade
na esperança de encontrar alguma pista do seu paradeiro. — Bate a mão na
mesa fechada em punho, fazendo tudo sobre ela estremecer. Em vez de medo,
sinto muita pena em saber que o mundo foi mais cruel com ele do que pensei.
Não dá para saber a dimensão de como deve ser difícil para um irmão
apaixonado viver longe daquele pinguinho de gente, de sorriso doce. Olho
para a foto em minhas mãos novamente, Bia está sentada no primeiro degrau
da escada vestindo o seu pijaminha do Bob Esponja. Ela tinha o cabelo na
altura do ombro com franja reta e sorria, tapando a metade do rosto com as
mãozinhas.
Entremeio aos seus dedos é possível ver os lindos olhos castanho-claros
idênticos aos dele, grandes e expressivos. O ser mais adorável do mundo.
— Deixa-me adivinhar, depois de você esse era o melhor amigo de Bia.
— Apontei para um coelho de pelúcia azul idêntico ao desenho da Turma da
Mônica no cantinho da foto, tão fofo quanto ela.
— Era sim, ela o chamava de “Senhor Coelho”. — Em vez de falar o
nome do ursinho, Castiel falou em Libras.
— Sua irmã era muda assim como o Joãozinho, é por isso que você fala
Libras tão bem?
— Sim, Anne, nossa mãe nunca teve carinho pela filha por conta disso.
Quando descobrimos que ela era muda, disse que não era obrigada a gostar
de uma criança “defeituosa”.
— Como uma mãe pôde dizer isso da própria filha? Que horror!
— A tarefa de cuidar da minha irmã sempre foi minha. E eu o fazia
com o maior prazer, aprendi a falar Libras sozinho e a ensinei em casa. —
Sinto meu estômago embrulhar, bebo todo o vinho da minha taça para não
colocar para fora tudo o que havia comido, enojada com a vaca da mãe dele.
— Eu não entendo como uma mãe é incapaz de amar os próprios filhos.
Não pretendo ser mãe um dia, mas se acontecesse o defenderia com unha e
dentes. — Castiel analisa o que eu disse, porém, não faz nenhum comentário,
seja lá o que esteja pensando nesse momento.
— Fiz o meu melhor como irmão mais velho, professora, eu a protegi
até o último segundo em que estive liberto. — Muda o tom, logo percebo que
está contando as partes da sua história que eu posso saber.
Se ama tanto a irmã, por que cometeu um crime sabendo que seria
preso, deixando-a nas mãos da desnaturada da mãe dele? Isso não faz sentido
para mim, mas não é da minha conta, chega de incomodá-lo com esse assunto
que lhe traz tanta dor.
— Eu tenho certeza que sim, Castiel. Não precisa nem dizer. — O
conforto com um sorriso.
Dessa vez é ele que desliza a mão sobre a mesa e segura a minha.
— Eu já te disse como o seu sorriso é lindo, professora? — A ponta do
seu polegar alisa a palma da minha mão em círculos, em movimentos lentos e
sensuais.
Perco o foco! Como um simples toque desses pode me excitar tanto?
Meu corpo está em chamas. Quero pular em cima desse homem, essa é a
verdade. Sempre fui mulher direita e nunca nem olhei para outro homem que
não fosse o meu marido, mas essa tentação que o diabo mandou para morar
do outro lado da rua é demais para mim. E a idiota aqui ainda convida o
pecado para dentro da sua casa.
Que ótimo, Anne!
— Acho melhor terminarmos o nosso jantar ou vai esfriar de verdade,
ainda tem a sobremesa. — Assustada com os meus próprios sentimentos,
puxo a mão.
— Como quiser, professora. — Leva a taça de vinho na boca sem tirar
os olhos de mim, seus lábios ficam levemente tingidos pelo líquido vermelho.
Engulo em seco.
Tento me manter firme durante o resto do jantar, conversando sobre
todos os assuntos possíveis. Assim como eu, ele está feliz com o fato da festa
em prol da cirurgia do Joãozinho ter sido melhor do que esperávamos.
Conseguimos dinheiro para bancar a viagem até o hospital particular em São
Paulo onde será realizado o procedimento, além da hospedagem de toda a
família que irá acompanhá-lo durante o período em que ficará internado.
Castiel me mostrou um lado engraçado seu que não conhecia, contou
várias piadas que me fizeram gargalhar. Não media esforços para ser gentil, o
tempo todo dizia como gostava da minha comida e que dava para perceber o
enorme carinho com que fiz o nosso jantar.
— Acho que não gostou do vinho, só bebeu uma taça e meia. — Ergo a
sobrancelha, intrigada por ele ter ficado de olho no quanto bebi.
Achei o vinho magnífico, mas não quero chutar o balde como na noite
da boate e bancar a idiota novamente e estragar tudo. Quero fazer tudo
direitinho dessa vez, e de preferência lembrar de cada detalhe no dia seguinte.
— Acho que você já deve ter percebido que bebida e eu não fazemos
uma boa dupla, Castiel. — Sua risada alta diverte o ambiente.
— Você só estava assustada e confusa. Pode acreditar que se eu
acordasse nos braços de um homem no meio do mato a minha reação seria
bem pior que a sua, pode ter certeza. — A careta que ele fez é hilária.
Adoro seu jeito de Bad Boy, mas esse seu lado carismático me encanta.
— Eu adoro a maneira como me olha. Assim como tudo que há em
você, Anne. — Seguro a respiração, minha única reação é voltar atrás e beber
outra taça de vinho para acalmar os meus ânimos depois dessa direta bem
reta.
— Pensei que estivesse evitando beber, professora. — Passa a mão
pelos fios curtos do seu cabelo em um movimento, sabe o efeito que tem
sobre mim.
Eu não sou professora de verdade, mas amo quando ele me chama
assim.
— Só uma não vai fazer mal, não é mesmo? Estou um pouco tensa,
preciso relaxar. — Abro um sorriso falso, minhas pernas estão trêmulas
debaixo da mesa.
— Entendo, estou na mesma situação que você, mas no meu caso nem
todo álcool do mundo resolveria. — Toca o meu rosto, e eu paro de respirar
na mesma hora.
Preciso sair de perto dele, ou não sei o que vai acontecer daqui para
frente.
— Vou pegar a sobremesa, já volto, Castiel. — Levanto ligeira e vou
me esconder na cozinha, preciso recompor minha postura.
Por Deus, Anne. Se contenha!
Encosto-me no balcão da pia, junto meu cabelo em um rabo de cavalo
com uma mão e abano o rosto com a outra, minha pele está em brasas. Quero
gritar, mas ao mesmo tempo não consigo falar nada, parece que o ar da
cozinha evaporou. Escancaro todas as janelas, porém, não adianta. Abro a
geladeira e bebo água gelada direto da garrafa mesmo. Em vez da
temperatura do meu corpo baixar, sobe ainda mais. Acho que esse é o meu
primeiro contato com o tesão.
Pensando bem, sempre me sinto assim quando fico perto de Castiel. Ele
é quente. Literalmente, quente em todos os sentidos da palavra. Sorvendo o
máximo de ar que posso, me policio da forma mais convincente possível e
volto para a sala de jantar com a sobremesa em mãos. Sirvo um pedaço da
torta de maçã com sorvete para ele em um pires de porcelana branco, de
cabeça baixa. Ao entregá-lo ele faz questão de me tocar.
— Se uma mulher é mesmo capaz de conquistar o homem pelo
estômago, posso afirmar que estou completamente apaixonado por você. —
Geme assim que prova e quase me engasgo, tinha acabado de levar um
pedaço de torta à boca.
— Você está bem, Anne?
— Sim! Eu só me engasguei, não se preocupe. — Bebo um pouco de
água.
— Só um minuto, sua boca está suja de sorvete. — Inclina o corpo para
frente e usa o dedo para limpar contornando meus lábios, e depois o chupa
bem na minha frente olhando nos meus olhos.
Fico de boca aberta! Não sei se essa cena é real ou fruto da minha
mente devassa.
— Se quiser pode sentar-se na sala e beber mais um pouco de vinho,
Castiel. Vou lavar a louça e já irei lhe fazer companhia. — Fico de pé mais
uma vez e começo a recolher os pratos sobre a mesa, arrumando outro motivo
para fugir desse fogaréu me consumindo de dentro para fora.
Castiel levanta e começa a me ajudar. Eu paro e o encaro.
— O que está fazendo? — Seguro sua mão, impedindo-o de pegar um
prato.
— Ajudando você! Não é justo que, além de cozinhar para mim, ainda
arrume todo sozinha. Quem vai sentar-se na sala e beber mais uma taça de
vinho é você, professora, enquanto eu lavo a louça. — Me derreto toda com
uma cara patética, quase babando em cima dele.
— Por que não as lavamos juntos? — O teimoso concorda.
Eu nunca pensei que lavar louça poderia ser tão divertido, não sei de
onde o Castiel tira tantas histórias malucas para contar sobre sua estadia na
prisão. Ele as conta apenas para me fazer sorrir e isso só me deixa ainda mais
fascinada por ele. A forma como me olha faz me sentir a mulher mais
incrível do mundo.
Faltando o último prato para lavar, o cano da torneira solta jogando um
jato de água em mim. Castiel corre para arrumá-lo e acaba se molhando todo
também. Rimos feito dois retardados, até que ele fica sério de repente e desce
o olhar para os meus seios. Meu vestido está molhado, ou seja, transparente, e
eu estou sem sutiã, dá para ver perfeitamente os bicos rígidos debaixo do
tecido fino. Ele me olha como um felino feroz pronto para devorar sua pobre
presa indefesa.
Castiel se aproxima um passo e eu me afasto dois até chegar à parede e
não ter mais como fugir dele. Mas isso não foi o suficiente. Sem quebrar o
contato visual, estica o braço e apoia a mão aberta do lado do meu rosto,
cercando-me de vez. Tão perto que posso sentir o calor da sua respiração
sobre a minha pele; chego a perder o fôlego, nunca estivemos tão próximos
assim por tanto tempo. Não comigo sóbria.
— Eu estou muito grata por ter vindo jantar comigo hoje, Castiel, sinto
que seremos bons amigos. — Não faço ideia do porquê disse isso, mas disse.
Acho que estou ficando louca de vez.
— Eu não quero ser seu amigo, Anne. E você sabe muito bem disso. —
Umedece os lábios com a língua, provocante.
Será que pensou que o chamei para jantar ali para transar com ele?
Que sou uma infiel?
Não vou mentir que não me sinto atraída pelo Castiel. Mas sou sensata,
e nada entre nós além de amizade deve acontecer. Se ele não quer ser só meu
amigo, que vá embora e finja que nunca me conheceu.
— Você entendeu tudo errado, Castiel. Acho melhor que vá embora. —
Tento afastá-lo, mas não consigo.
É a mesma coisa que uma formiguinha tentar enfrentar um elefante
decidido a encurralá-la, estou à mercê da sua vontade.
— É isso mesmo que você quer, professora, que eu vá embora? —
sussurra em meu ouvido com a voz rouca, me arrepio de cima a baixo
apertando os lábios.
— O que eu quero não importa. Nunca importou para ninguém. Por que
seria diferente agora? — Viro o rosto para o lado antes que ele descubra mais
do que deve através dos meus olhos.
— Isso era antes de eu chegar. A verdade é que estou atraído por você
desde a primeira vez que te vi cantando naquele maldito altar, não sei se o
sentimento é recíproco. Mas se for, estou disposto a enfrentar as
consequências. — O diabo enfim faz a proposta indecente, e eu estou muito
tentada a aceitar.
Castiel pega a minha mão e a coloca sobre o seu peito em cima do
coração, que bate rápido a ponto de mover a caixa torácica, chega a ser
auditivo. Aproxima o rosto do meu como se fosse me beijar, mas não o faz,
espera com a respiração tensa como se estivesse pedindo permissão para o
ato proibido.
— Eu tenho tanto medo, Castiel. — Estremeço.
— Eu também, Anne. Mas que se dane tudo! Vamos viver o aqui e
agora. — Não tendo impedimento da minha parte, enfim o beijo acontece.
Quando nossos lábios se tocam a sensação é como se eu estivesse no
paraíso e ao mesmo tempo sendo sugada para o purgatório, porque é para lá
que eu vou no julgamento final por trair meu marido. O mais estranho é que
não estou nem um pouco arrependida.
Ouço o barulho da torneira se soltando mais uma vez e a água jorrando
sobre nós, unindo ainda mais nossos corpos através da roupa molhada, mas
isso não importa mais. Nada mais importa. As mãos de Castiel agarram
minha cintura erguendo-me do chão, tendo mais acesso à minha boca e
enfiando a língua com desejo, explorando novas terras nunca conhecidas por
outros homens antes.
Sinto como se toda insegurança acumulada fosse exorcizada do meu
corpo, parece até que sou uma adolescente que tanto esperou para ter o beijo
perfeito com o príncipe encantado. Ou o cara certo às vezes pode ser apenas
como Castiel, com nome de anjo e fama de demônio por toda a cidade.
Capítulo 13

Castiel

Eu havia jogado tudo pro alto assim que Anne abriu a porta para mim
naquela noite de céu coberto por nuvens escuras, por Deus! Ela está tão linda
que o meu coração parou de bater por alguns segundos quando a vi. Seus
lábios são doces como pensei, macios e deliciosos. Eu poderia beijá-la pelo
resto da minha vida.
Mesmo sendo eu quem tomou a iniciativa do beijo, ainda não tenho
certeza de como aconteceu. Em um instante estávamos tentando arrumar a
torneira quebrada, no seguinte já tinha partido para cima da professora, cheio
de desejo. Não sei o que deu em mim para agir assim, ferrando com minha
vida de vez, mas agora é tarde demais para parar.
— Eu estou completamente louco por você, Anne! — confesso.
Seguro firme na sua cintura e a puxo mais para mim, de modo que
possa sentir minha excitação. Quero que saiba como me deixa toda vez que
nos encontramos. Acho que com ela não é diferente, pois se contorce toda nas
minhas mãos excitadas.
— Eu nunca senti por outro homem o que estou sentindo por você,
Castiel — perco a razão diante da sua confissão, e a ergo mais um pouco para
suas pernas entrelaçarem na minha cintura.
Anne cruza os braços atrás do meu pescoço enquanto subimos a escada
em um beijo escandaloso, parece que iremos engolir um ao outro a qualquer
momento, a tensão sexual entre nós é como uma bomba relógio que acabou
de explodir.
— Para onde agora? — pergunto ao chegarmos no corredor do andar de
cima.
— A segunda porta à direita, é o quarto de hóspedes. — Sinto-a
estremecer, nervosa.
Entendo perfeitamente Anne não querer que aconteça no quarto dela e
do marido, não quer lembrar de Marcos quando estiver comigo.
— Ainda dá tempo de desistir, professora. Mesmo querendo muito, não
te obrigaria a fazer nada que não queira.
— Nada me faria desistir de viver esse momento com você, Castiel —
sua resposta é segura.
— Prometo fazer valer a pena, a melhor noite da sua vida. — Encosto
minha testa na sua antes de entrarmos no quarto, ela mesma fez questão de
abrir a porta.
Tudo está bem organizado e limpo, parece que esse quarto de hóspedes
nunca acomodou ninguém, acredito que não são muito de receber visita. São
um casal reservado. Estranho. Principalmente o marido.
Com cuidado, coloco Anne sobre a cama e vou engatinhando sobre seu
corpo até cobri-lo por completo com o meu. Ela sorri com cócegas quando
esfrego meu nariz no seu. Gosto da maneira que olha para mim. Nunca
desejei tanto uma mulher antes, tem tudo o que eu sempre sonhei em uma
mulher.
— Seu coração não para de acelerar, Castiel. — Faz carinho sobre o
lado esquerdo do meu peito, coloco minha mão sobre a dela e inclino para
beijá-la, dessa vez sem pressa.
Segundos depois, estamos nos devorando novamente. Queria ser mais
gentil e romântico, mas é uma década inteira sem sexo. Minha excitação
chega a latejar dentro da calça, preciso me enterrar dentro dela ou vou acabar
morrendo.
Começo a deslizar a alça do vestido da Anne para beijar seu ombro,
porém, do nada ela trava, ficando imóvel. Tento tocá-la, mas se afasta como
se meu toque queimasse sua pele.
— Você não quer mais, Anne? — Recuo, ela se arrependeu de trair o
marido.
Sento-me na cama em uma distância segura, onde posso analisá-la
melhor.
— Não é isso. O problema não é você, Castiel, sou eu. — Uma lágrima
desliza pelo seu rosto delicado, depois outra... Outra e mais outra...
Depois disso a coisa fica mais estranha. Um rubor lhe sobe à face,
aperta os braços fortemente em volta do próprio corpo como se quisesse que
eles multiplicassem para cobrir o máximo possível de seu corpo. Os olhos
fixados na porta só esperando uma distração minha para fugir de mim. Ela
treme a ponto de a cama ranger.
— Por favor, converse comigo, pequena. — Arrisco abrir os meus
braços e deixar à sua escolha se quer ou não o meu apoio para seja o que for
que a esteja afligindo, não a quero só para uma noite de prazer.
Me preocupo de verdade com a Anne.
— Não, eu prefiro que veja com os seus próprios olhos. — Fica de pé
rente a mim, sem coragem de me encarar nos olhos, e com as mãos trêmulas
desliza uma alça do vestido, depois a outra.
Engulo em seco enquanto a peça desliza vagarosamente pelo seu corpo,
indo ao chão. Respiro bem fundo sem ao menos piscar. Empalideço. O que
vejo faz meu mundo cair. Levo as mãos na cabeça sentindo o chão sumir
debaixo dos meus pés. Primeiro fico desolado, depois a fúria se apodera de
mim.
Fecho os olhos com força, trincando o maxilar, nunca conseguirei
apagar essa terrível imagem da minha mente.
— Puta que pariu, Anne! Como deixou que fizessem essa merda com
você? Por que não fugiu ou pediu ajuda ao padre Valentim, porra!? — Eu não
percebi que estava gritando com ela, não até a vergonha nublar suas feições.
Mas como eu posso me calar diante disso, meu Deus? Nem sei se
conseguirei mais dormir em paz sabendo o que essa mulher passou para que
seu corpo esteja com mais partes com cicatrizes do que sem, dá para perceber
que algumas são antigas, outras nem tanto, como se passasse a maior parte de
sua vida em uma sala de tortura.
— Eu não tive escolha, Castiel, é mais complicado do que parece! Se
eu fizer isso, pessoas que eu amo podem se machucar. — Cobre o rosto com
as mãos, caindo de joelhos no meio do quarto, refém dos seus próprios
demônios.
Eu sei bem o que ela passou, ter a vida destruída por pessoas que
deveriam nos proteger.
— Esse desgraçado vai ter o que merece, Anne. Eu mesmo darei uma
lição em Marcos — ameaço.
Não consigo ficar quieto, ando de um lado para o outro pelo quarto,
esmagando meus punhos.
— Está tudo bem, Castiel, já passou. São só marcas, eu estou bem
agora — tenta me tranquilizar, só que estou nervoso demais para levar em
consideração qualquer coisa que ela diga.
— Bem? Por quanto tempo? Até ele te matar? — As veias saltam no
meu pescoço como se o sangue passasse por elas feito um trem desgovernado
prestes a explodir na minha cabeça.
— Se você não tivesse aparecido aquele dia tarde da noite e batido na
minha porta com a desculpa de pedir açúcar emprestado, eu não estaria
conversando com você agora — confessa o que eu sempre desconfiei, foi
Deus que me mandou vir aqui naquele dia.
Soco a parede imaginando ser a cara de pau de Marcos, exprimindo
todo o meu ódio por ele.
— Eu vou matá-lo antes que possa encostar um dedo em você de novo,
Anne, não me importo em voltar para a cadeia depois por conta disso.
— NÃO! Se fizer isso vou morrer de vez, não conseguiria viver
sabendo que voltou para a cadeia por minha causa. Pensa na sua irmã, não
pode jogar tudo para o alto assim, de cabeça quente. — A tristeza lhe toma a
feição, não tem solução para nós sem que um saia perdendo.
Anne vem até mim e segura o meu rosto entre suas mãos, obrigando-
me a olhar em seus olhos. Estou arrasado.
— Se a minha felicidade custar a sua, eu não quero. Não sabe do que o
meu marido é capaz, ele é muito mais perigoso do que pode imaginar —
declara sombriamente ao contorcer as mãos, tem mais coisa nessa história
que ela não está me contando.
O gosto salgado da lágrima que eu segurava desde o dia que pisei
naquele maldito presídio derramou sobre os meus lábios, jurei nunca mais
chorar nem mesmo de saudades da minha irmã, precisava ser forte.
Mas aqui está a vida brincando de roleta russa comigo mais uma vez,
onde sou novamente obrigado a fazer a escolha de ir para a cadeia ou salvar
uma pessoa importante para mim.
— Mas, e se a minha felicidade não for completa sem você, professora?
— Descansa a testa na minha.
— Não temos controle sobre o que vai acontecer amanhã, Castiel, então
por que não aproveitamos o agora? Sem o peso do passado, medo ou receios.
Apenas eu e você. — Começa a desabotoar os botões da minha camisa,
decidida a se entregar a mim de corpo e alma.
Mesmo que seja só por essa noite.
— Se essa é a única noite que teremos juntos, vamos eternizá-la. —
Seguro suas mãos e as beijo, está nervosa, assim como eu.
Meu palpite é que essa será a primeira vez que Anne fará amor de
verdade, isso faz de mim o homem mais sortudo desse mundo.
Capítulo 14

Anne

Como em uma dessas cenas de um filme romântico bem clichê, o brilho


nos olhos de Castiel ao me carregar em seus braços reflete em sua face. Fico
ansiosa quando me deita sobre a cama de costas e começa a cariciar minha
pele em movimentos delicados com as pontas dos dedos. Lágrimas sobem em
meus olhos quando inicia uma sequência de beijos afetuosos sobre cada
cicatriz no meu corpo. A coisa mais gentil que alguém já havia feito comigo.
Não somente pelo ato em si, mas pelas lindas declarações que faz nos
intervalos entre os beijos.

“Você é tão linda que o meu coração chega a doer toda vez que te
vejo, professora.”

Sussurra com o rosto enfiado no meio dos meus seios, os fios da sua
barba começando a crescer fazem cócegas na minha pele. Talvez Castiel não
saiba o quanto esse tipo de elogio é importante para mim, toda vez que eu
ouço é um passo a mais para fora da escuridão em que meu marido me
trancafiou em anos de agressões psicológicas contra a minha aparência que,
na maioria das vezes, doía mais que a física.
Afinal, as feridas externas curam com o tempo. Mas as do coração não,
essas, dependendo da proporção do estrago, não têm cura.
— Castiel... — Seu nome escorrega dos meus lábios em um gemido
agudo quando acaricia-me a parte íntima por cima do tecido da calcinha fina.
Ele a arrasta para o lado e penetra-me com dois dedos.
Inclino minha cabeça para trás em êxtase, nunca senti nada parecido em
toda a minha vida.
— Você é tão sexy, professora. — Abocanha meu seio, suga e morde a
região sensível em volta do bico enrijecido.
— Oh, Deus! Isso é tão… tão... — Gemi alto sem condições de
completar a frase, uma pressão maior cresce dentro de mim com mais
intensidade a cada segundo.
— Tão bom! É, eu sei, meu amor — completa a frase com a boca
grudada na minha pele, é exatamente aquilo que eu tentei dizer.
Acho que estou me viciando em Castiel, e ele mal me tocou. Ele sabe
exatamente como e onde me tocar para me dar prazer, tem dedos mágicos.
— Por favor, não para — peço. Nunca tive um orgasmo com o meu
marido em cincos anos de casados, e estou prestes a ter o meu primeiro com
um homem que conheci há poucas semanas.
— Se entregue para mim, professora. — Volta a sugar meu seio com
mais vigor, seguindo o ritmo da penetração com os dedos, arrancando-me
gemidos e mais gemidos.
Primeiro vem uma forte onda de prazer, agarro o lençol da cama com
força até meus dedos ficarem brancos. Me sinto imbatível. Depois meu corpo
fica mole, meu peito sobe e desce depressa enquanto gotículas de suor
deslizam pela minha pele. Aperto os olhos sorrindo, saciada.
Eu tive meu primeiro orgasmo!
— Eu quero provar você de todas as formas possíveis, Anne, prometo
te proporcionar todo tipo de prazer essa noite. — Minha respiração ainda é
falha quando Castiel toma os meus lábios. Percebi que nossa noite está
apenas começando.
Fico constrangida quando Castiel vai descendo, descendo e descendo
até chegar no ponto mais sensível do corpo de uma mulher, ainda mais em
um momento como esse. Paciente, acaricia minhas pernas antes de abri-las e
enfiar o rosto ao meio delas.
— Cacete! — solto um palavrão quando ele me toca com a língua,
coisa que não é do feitio de uma dona de casa cristã como eu.
Mas não deu para controlar minha boca, tampouco os meus dedos que
adentram os cabelos de Castiel, puxando-o mais e mais para mim, enquanto
rebolo na sua boca. Entendendo o meu desejo, chupa e lambe em uma
velocidade eloquente. Então, para e começa tudo lentamente. Minha cabeça
gira, como os picos de velocidade de uma montanha-russa.
— Seu gosto é ainda melhor do que pensei, mal posso esperar para
estar dentro de você. — Sopra meu clitóris antes de morder de leve e puxar
com os dentes. Sem vergonha nenhuma, ergo o quadril e me esfrego nele sem
pudor.
Em alguns segundos, vivencio o segundo orgasmo da minha vida, ainda
mais intenso que o primeiro, meu corpo padece em breves espasmos
enquanto Castiel lambe até a última gota do meu líquido. Fico acesa
novamente quando me beija para que eu sinta o meu próprio gosto na sua
boca, isso é muito excitante.
— Por favor, Castiel, faz amor comigo logo! — praticamente imploro,
preciso senti-lo dentro de mim o quanto antes.
— Pensei que não fosse pedir nunca, professora. — Nesse momento
entendi que ele não iria fazer amor de verdade comigo até que eu pedisse,
queria ter certeza que é isso que eu realmente quero.
E eu quero.
Como quero!
Ele desce da cama depressa e tira o resto da sua roupa em tempo
recorde, mantendo os olhos nos meus a cada segundo. Não me parece correto
comparar o “tamanho” dele com o de Marcos, porém, a diferença chega a ser
ridícula, nem sabia que pênis podia ser tão grande.
— Gosta do que vê, moça? — Segura o membro ereto rodeado por
veias grossas e masturba em movimentos lentos, chego a salivar imaginando-
o dentro da minha boca.
— Sim, Castiel, muito! — Mordo o lábio inferior sem perceber,
levando uma mão na minha entrada e a outra apertando o seio na tentativa de
aliviar toda aquela tensão sexual.
Esse ato meu o excita tanto que voou em cima de mim. Me beija várias
vezes, devora a curva do meu pescoço e bem na hora H para. Fico frustrada.
— Porra! Eu esqueci que não tenho camisinha, desde que fui preso que
não preciso de uma. — O fato de saber que sou a primeira mulher a estar com
ele de fato faz meu ego inflar, pensei que ele e a Carol estavam de namoro.
Castiel ameaça sair de cima de mim, mas o impeço abraçando sua
cintura com minhas pernas.
— Tudo bem, Bad Boy, eu uso anticoncepcional. — Me olha com
malícia. Inclino e o beijo, atiçando-o mais.
— Tem certeza que é isso que você quer, Anne? Garanto que estou
limpo. — Não respondo, apenas agarro sua ereção e aliso.
Esse está marcado para ser “o nosso momento” e nada vai estragá-lo.
Nem mesmo o fato de eu ter esquecido de tomar o bendito anticoncepcional
hoje de manhã, só um dia não fará mal.
— Você foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida há anos.
Quando estou ao seu lado me sinto cheia de vida. — Amada e única,
completo em mente, sem coragem de terminar em voz alta.
— Porque eu sou a metade que faltava em você, Anne. E você a que
faltava em mim. — Acaricia meu rosto, juntos parecemos imbatíveis.
Com suavidade, Castiel aproxima nossos rostos e me beija sem pressa,
como se tivéssemos todo o tempo do mundo a nosso favor. Minha libido
ofega a cada nova carícia recebida da sua parte. Eu aguardo cada próximo
passo seu, quase em desespero, para ser possuída por ele.
Sem interromper o beijo, desliza para dentro de mim com facilidade,
estou toda molhada, quase pingando. Arfo de prazer em um gemido
libertador. É como estar andando em terras proibidas, mas ao mesmo tempo
flutuando no paraíso, aquele lugar onde tudo é bom, belo e possível. Sem
certo ou errado, apenas o que te faz feliz.
“Eu amo o cheiro da sua pele, como tudo em você. É tão linda.”
“Perfeita pra mim.”
Sussurra Castiel, entre outras coisas lindas em cada investida profunda,
sempre lentas e intensas, que me fazem gritar, sorrir e suplicar por mais.
— Tão gostosa... — Sai por completo de dentro de mim e entra bem
fundo, levando-me ao total delírio. Minhas unhas percorrem suas costas
arranhando por onde passam.
— Isso, Castiel, me fode! — peço escandalosa.
Não estou me reconhecendo mais.
— Porra, Anne! Assim eu não consigo me controlar — grunhe.
Sabia que ele está se segurando para prolongar esse momento por mim.
Dando-me o máximo de prazer possível para compensar as vezes que tive o
meu corpo usado à força pelo meu marido.
— Eu não quero seu controle, Bad Boy. Quero que me dê o seu melhor.
— Depois disso foi uma deliciosa loucura.
Castiel se senta na cama e me puxa para o seu colo de frente para ele,
sua face está molhada de suor e os olhos escuros e perigosos. Nos apertamos
mutuamente, num abraço que parece conter em si todo o mundo. Bem ali,
naquela mesma cama que acabara de suportar um ato de comunhão entre
amantes como nunca se viu antes, nem mesmo nos livros.
O quarto é tomado pelo som dos nossos gemidos de prazer, ele entrou
em mim infinitas vezes até me deixar mole em seus brações. Chegamos ao
clímax com um chamando pelo nome do outro, não poderia ter sido diferente.
— Castiel... — eu gemi.
— Anne... — ele gemeu.
O corpo de Castiel se enrijece ao estocar uma última vez, jorrando
dentro de mim. Gozamos juntos. Exausto, desaba ao meu lado e me puxa
para o seu peito. Com ele não sinto alívio por ter terminado como acontecia
com o meu marido, ao contrário, quero fazer mais outras diversas vezes.
— Espero que tenha sido bom para você assim como foi para mim.
Depois de tantos anos, acho que estou um pouco enferrujado — brinca
sorrindo lindamente, tem os dentes grandes brancos e bem alinhados.
— Não sei dizer se gostei, Bad Boy — digo séria e ele me olha meio
decepcionado. — Talvez se fizermos mais algumas vezes você fique em
forma, o que acha? — Um calor me sobe à face, não sou do tipo ousada.
Mas estou farta de ser oprimida, de esconder os meus desejos.
Bancando a dona de casa perfeita, a santinha.
— Só se for agora, professora! — Solta uma gargalhada.
Em um giro rápido, Castiel me coloca montada sobre seu corpo. Ele já
está em ponto de bala, esfregando seu membro duro feito pedra em mim
propositalmente.
— O que está fazendo? Talvez não seja uma boa ideia que eu fique por
cima — respondi nervosa no meu modo submisso, Marcos nunca me deixou
ficar por cima.
Segundo ele, é o homem que deve comandar, sempre! Afinal, dentro da
sua concepção sobre o sexo feminino, fomos criadas apenas para satisfazer o
homem na cama e nada mais.
— Eu não sou o Marcos, Anne! — rosna como se tivesse lido os meus
pensamentos.
— Ele não chega nem aos seus pés, Castiel — garanto.
Com um pouco de inexperiência, extrema timidez e mãos trêmulas,
encaixo sua ereção na minha entrada. Castiel usa as mãos como apoio atrás
da cabeça, e apenas me observa. Quer deixar claro que quem está no
comando sou eu.
— Isso, professora, sem pressa… — diz com a voz rouca quando
começo a cavalgar e fecha os olhos, apertando os lábios para conter o desejo
de me tocar durante os meus inseguros movimentos de sobe e desce.
Aos poucos vou pegando o jeito, apoio as duas mãos no peito de
Castiel e inclino a cabeça para trás, rebolando em cima dele.
— Você gosta assim, garotão? — Minha voz sai com uma sensualidade
que eu nem sabia que tenho.
— Muito! Senta com vontade, vai! — pede e eu obedeço.
Monto nele como se fosse um touro bravo, ergo meu corpo e desço em
um golpe profundo uma vez atrás da outra em uma velocidade alucinante.
— Isso, caralho! Porra! — xingo feito uma puta.
Castiel ri da minha perda de controle.
— Olha a boca, Santinha. — Me dá um tapa na bunda, apoia uma mão
de cada lado cravando os dedos na carne macia e me ajuda nos movimentos.
Formamos uma boa dupla de foda alcançando o terceiro nível mais alto
do prazer da noite, o clímax perfeito.
— Dez anos sem praticar e foi assim? Imagina quando estiver em
forma de verdade — brinco deitando meu corpo sobre o dele.
— Se continuar assim até lá vai acabar me matando, mal consigo
respirar. — Abana o rosto e eu rio da cara dele.
Nos beijamos.
— Quero que saiba, Castiel, que estou realizada por ter tido o meu
primeiro orgasmo em quatro anos com você. — Fico com vergonha, uma
mulher casada há tanto tempo, e que mal sabe o que é sentir prazer.
Mas eu tinha que agradecer. Só não estava preparada para o jeito que
ele está me olhando agora, uma mistura imensa de surpresa e pena por essa
ser a primeira vez que senti prazer em ter relações intimas com um homem.
Capítulo 15

Castiel

— Primeiro orgasmo em quatro anos? Mas você só pode estar de


brincadeira comigo. — Anne balança a cabeça em afirmação, acuada diante
da minha tamanha indignação.
Que tipo de homem é esse Marcos? Quanto mais o conheço, mais o
desprezo.
— Meu marido se diz do tipo à moda antiga, para ele nós mulheres
fomos feitas para suprir os desejos sexuais dos nossos maridos. Sem
demonstração afetiva, como beijos, abraços e dormir na mesma cama. Ato de
carinho em público, nem pensar. — Meu queixo cai, literalmente.
Fico de pé e começo a andar nu pelo quarto, irritado.
— Então ele vem e te usa como se você fosse algo descartável e vai
embora? Puta que pariu! Já não bastava o cara te agredir, tem que te humilhar
dessa forma também. — Trinco os dentes, nada tira da minha cabeça que
Marcos merece morrer, e pelas minhas mãos.
— Nunca passamos uma noite juntos, nem mesmo a de núpcias —
confirma.
Anne puxa o lençol cobrindo todo o corpo, sentindo-se exposta ao falar
das atrocidades do marido, ou até mesmo culpada por ter deixado que ele a
tratasse assim por tanto tempo.
— Depois de tudo o que ouvi, é até engraçado como o seu marido me
faz sentir agora. — Rio, mas de nervoso.
— Como? – Pergunta com os ombros caídos.
— Um bom partido. Jamais tocaria numa mulher se não for da sua
vontade, homem de verdade não força nada. Conquista o que quer. E quando
conquista, valoriza para não perder.
— Marcos não é um homem, mas sim um monstro. Finjo para todo
mundo que minha vida é perfeita porque tenho muito medo dele. — Se
encolhe toda, morre de medo do filho da mãe.
Como poderia ser diferente? Só recebeu coisas ruins desse animal.
— Então, por que se casou com a porra desse cara louco, Anne? —
explodo.
— Eu me casei por amor, Castiel. Tinha apenas dezessete anos, foi o
típico caso da garota idiota seduzida pelo cara mais velho. Meus pais não
queriam autorizar por ele ter quase o dobro da minha idade e já ter sido
casado, mas em pouco tempo Marcos os conquistou também, com o seu
charme.
— Como se conheceram? — pergunto irritado, um pouco enciumado
por saber que ela já sentiu amor por esse desgraçado.
— Ele foi fazer uma palestra na minha escola para incentivar jovens a
se alistarem no exército. Quando o vi usando aquele uniforme verde, falando
com tanta maestria na frente de tantos alunos e professores, mas com os olhos
o tempo todo em mim, me apaixonei na hora. Pouco tempo depois, já
estávamos casados.
— Quando os abusos começaram? — continuo o questionamento, mas
com o rosto virado.
Não estou em condições psicológicas de olhar para ela nesse momento.
— Nosso primeiro ano casados foi incrível, Marcos fazia de tudo para
me ver feliz. Mas, da noite para o dia, ele mudou, chegou do trabalho e veio
para cima de mim e me bateu até me deixar mole no chão. Como se não fosse
o bastante, ainda me estuprou. Apavorada, decidi ir embora. Mas ele se
ajoelhou aos meus pés e chorou pedindo perdão, disse que havia perdido o
controle e não faria mais. Como o amava, cometi o maior erro da minha vida
que foi perdoá-lo, porque no dia seguinte voltou a me agredir de forma mais
violenta. — Deus do céu, quando penso que a história não pode ficar pior
vem uma tragédia nova.
— Você precisa se separar desse cara, professora. Isso que ele faz
contigo é escravidão sexual, fora que ainda te faz lavar, passar e cozinhar
todo santo dia como se fosse sua empregada particular — sou taxativo com
ela, já passou da hora de acordar e pegar de volta as rédeas da sua vida.
— Você não entende, Castiel, não importa onde eu me esconda, ele vai
me matar e a todos próximos a mim. — Começa a chorar, volto para a cama e
a abraço forte.
Existem milhares de mulheres assim como Anne, vítimas de violência
doméstica, passam ano após ano vivendo uma vida medíocre sendo torturadas
de todas as formas debaixo de ameaças, sem nenhum amor próprio ou
esperança de se libertar desse inferno um dia.
— Então você espera que eu faça o que, Anne? Fique de braços
cruzados sabendo como o seu marido te trata? Se não tomar uma atitude, eu
tomarei. Assim que ele voltar teremos uma conversinha de homem para
homem, quero ver como vai se sair enfrentando alguém do tamanho dele.
— Você não pode fazer isso, ele vai te matar. — Chora e treme ainda
mais, sua pele está fria feito um iceberg.
— Por que tanto medo de enfrentar o seu marido, Anne? — Respiro
fundo na tentativa de controlar a minha raiva, assustá-la explodindo não vai
ajudar em nada, só piora as coisas.
— Marcos disse que, se eu me separar dele, vai matar os meus pais. E
se ele descobre que sou infiel, não vai parar até descobrir com quem foi. E
quando descobrir, vai atingir a pessoa onde dói mais.
— A minha irmã — constato e ela assente em prantos, o medo de Anne
não era com o que o marido podia fazer com ela, mas sim comigo e às
pessoas próximas a mim. — Mas que filho da puta do caralho! — praguejo.
— Eu não me perdoaria se ele te ferisse de qualquer maneira que fosse,
Castiel, acho que seria capaz de morrer. — Meu coração se quebra em mil
pedaços, beijo o topo da sua cabeça e afago seu cabelo amorosamente.
— Agora você entende como me sinto só de pensar na possibilidade do
seu marido te ferir novamente, Anne? — Acalento-a dentro dos meus braços,
queria que não saísse nunca mais de dentro deles.
Aos poucos senti sua respiração se normalizando e o choro cessando,
ela havia adormecido. Não percebo quando pego no sono também, mas fecho
os olhos e acordo com Anne falando baixinho com alguém ao telefone.
Quando ouvi ela falar o meu nome, continuei de olhos fechados e imóvel
ouvindo a conversa.
— Por favor, Valesca. Eu preciso te ver agora, é muito importante, te
esperarei no “Café com Amor”, no centro da cidade. — A ligação finalizou,
ela coloca o telefone no gancho e fecha a porta quase sem fazer barulho.
Anne sai sem nem ao menos me acordar antes ou dizer bom dia,
simplesmente se vai acobertada pelo silêncio da manhã. Fico arrasado. Agora
entendo como as mulheres se sentem depois de serem seduzidas por algum
cara e abandonadas no dia seguinte, como se não tivessem valor para o outro.
Magoado, levanto e cato minhas roupas espalhadas pelo chão do quarto e
visto o mais rápido possível. Antes de sair ainda sou idiota o suficiente para
procurar algum bilhete explicando sua fuga ou apenas para desejar bom dia, e
não encontro nada.
Vou embora cuspindo fogo pelas narinas. Pego minhas ferramentas e
vou direto trabalhar, serrando as tábuas na garagem para fazer a cerca no
quintal. Quando dou por mim já são onze horas da noite e eu ainda estou
trabalhando no mesmo pique que comecei de manhã, acho que só irei parar
quando terminar esse serviço.
Não recebi nenhuma mensagem da Anne durante o dia todo, não fazia
ideia para onde ela poderia ter ido com a amiga para passar tanto tempo fora
de casa. Para a minha total surpresa, estou prestes a descobrir.
— Oi, Castiel. — Quase não acredito quando ouço a voz de Anne
vindo de trás de mim. Paro de pregar uma tábua na parte de baixo da cerca e
ergo a cabeça para olhar para ela.
Minha expressão não deve ser das melhores, porque o sorriso amplo
que dançava em seus lábios morreu em um segundo. A luz da varanda acesa
paira sobre o lado esquerdo do seu rosto com alguns cachos caídos sobre ele,
lhe trazendo um brilho especial, lembrando-me que ela é mais valiosa para
mim do que eu quero admitir.
— Oi — digo rude.
E volto a me concentrar no trabalho lhe oferecendo as costas, zangado
demais para continuar olhando para ela.
— Então, Anne, já contou para ele a novidade? — Valesca aparece
falando alto com sua voz fina e irritante, logo hoje que estou cheio de serviço
para fazer e sem um pingo de paciência.
Quero ficar sozinho. Eu e a solidão sempre nos demos muito bem.
Toda vez que tento me abrir para alguém, no final saio magoado.
— Posso saber quem autorizou a entrada de vocês nessa residência?
Não sou o dono, mas enquanto eu estiver trabalhando na reforma dessa porra,
exijo respeito! — explodo.
— Foi por causa desse grosso que você me fez ligar para a bruxa da
minha mãe para pedir que deixasse a gente olhar os arquivos de adoção do
escritório dela, Anne? — retruca a loira dentro de um macacão verde
fluorescente. Ela aponta o dedo no meio da minha cara, por um momento
penso que vai chutar a minha bunda.
— Você disse arquivos de adoção, Valesca? — Minha ficha então cai,
giro o pescoço na direção de Anne e percebo que ela tem uma pasta
transparente em mãos.
Valesca não me responde, obviamente, e mostra o dedo do meio para
mim enquanto estoura uma bola que fez com o seu chiclete.
— Assim que acordei hoje de manhã lembrei do que me contou sobre a
adoção da sua irmã, então pensei em como ajudar a encontrá-la. A mãe da
Valesca trabalha na vara infantil há mais de vinte anos e tem acesso a toda
documentação das crianças que já foram adotadas nessa cidade, inclusive da
Bia. — Ergue a pasta na minha direção e pego sem acreditar que aquilo é
verdade.
Quantas vezes, depois que saí da cadeia, bati na porta desse maldito
prédio pedindo informações sobre a família que adotou minha irmã, e sempre
recebia a mesma resposta, que se tratava de documentos com sigilo judicial?
E Anne e a amiga maluca dela conseguem todas as informações que
precisam em um dia. Serei grato a elas pelo resto da minha vida.
— Como naquela época não tinha computadores no prédio, os
processos eram arquivados. Por isso eu e a Anne passamos a merda do dia
todo olhando caso por caso, meus dedos estão até dormentes de tanto virar
páginas. — Eu mal consigo ouvir o que ela diz, a sensação que tenho é a de
estar totalmente sem ar.
— Calma, Castiel, você parece que está tendo um infarto. — Anne
segura a minha mão, meu coração nunca esteve tão assustado e cheio de
esperança ao mesmo tempo.
Preciso me desculpar com ela e dizer o quanto estou grato pelo que fez
por mim. Não foram muitas as vezes que alguém fez algo para me ajudar sem
esperar nada em troca, por isso valorizo muito quando acontece.
— Por favor, Anne, me perdoe. — Me aproximo e levo a boca ao pé do
seu ouvido. — Quando você saiu hoje de manhã sem avisar, nunca passou
pela minha cabeça que iria atrás dos documentos sobre a adoção da minha
irmã, pensei que havia se arrependido da noite que passamos juntos —
sussurro.
Revelo o que me afligiu durante cada segundo do meu dia longe dela,
sua presença está se tornando uma dependência na minha vida.
— Como pode ter pensando isso, Castiel? O que aconteceu ontem foi a
melhor coisa da minha vida. Só não contei onde fui porque não queria te dar
falsas esperanças, só te falaria quando tivesse algo concreto — explica e eu a
puxo para um abraço apertado, apesar de ela não me corresponder como eu
queria.
O pigarreio alto de Valesca me alerta que meu ato foi íntimo demais
para duas pessoas que eram apenas vizinhas, por isso Anne permaneceu dura
feito um poste.
Me afasto dela em um pulo para o lado.
— Muito obrigado a você também, Valesca. Não sabe o quanto isso é
importante para mim — tento me redimir com ela com um aperto de mão,
mas ela não aceita e deixa minha mão parada no ar.
— Não fiz por você, cara, é pela Anne. Agradeça a ela por ser uma
pessoa tão maravilhosa e se preocupar tanto com os outros, até mesmo um
ogro mal-educado feito você. — Cruza os braços de cara feia e mostra a
língua.
Ela me odeia!
— Que isso, Valesca? Parece criança — Anne chama a atenção da
loira.
— Não começa, Anne. Você me deve uma das grandes. Agora vou
nessa, pessoal, até mais. — Se despede da amiga com um beijo no rosto, e de
mim com mais uma amostra obscena do dedo do meio.
— Dirige de volta com cuidado, Val, te amo!
Espero Valesca sair e tento me aproximar da Anne novamente.
— Desculpa pela maneira rude que tratei vocês quando chegaram aqui,
não sei controlar minha raiva quando estou nervoso. — Dou um passo na sua
direção, e ela dá dois para trás.
— Eu aconselho você a pegar o primeiro ônibus para São Paulo
amanhã bem cedo, a viagem é longa até o endereço da família que adotou a
sua irmã. — Seu tom foi tão distante, o motiva da sua frieza não era a
presença da amiga, como eu pensava.
— Obrigado pela dica e por toda a ajuda. — Assente.
Fico parado enquanto observo Anne ir embora. Ela precisa de espaço e
eu o daria, fui um estúpido mal-agradecido e esperaria o momento certo para
rastejar aos seus pés se preciso, para implorar o seu perdão. Por ora, vou
focar em reencontrar minha irmã, mal posso esperar por esse momento.
Capítulo 16

Castiel

O sol ainda brilha radiante no céu quando chego no endereço indicado,


mas o clima não chega a ser quente. Logo atrás meus pés atolaram em um
lamaçal de uma recente chuva. O vento forte sacode a porteira de madeira
grossa, pelas aberturas das tábuas vê-se nitidamente o casarão antigo enorme
e branco, com as janelas azuis. Para chegar até a entrada da frente é preciso
parar pelo caminho formado por palmeiras, imagino minha irmã passando por
ele todos os dias depois da escola. Crescendo nesse lugar incrível, sendo
amada por uma boa família.
Por um minuto penso que talvez seja melhor desistir de reencontrá-la,
parece que tem uma vida boa aqui e eu não tenho nada para oferecer a Bia.
Mas o meu amor incondicional de irmão fala mais alto. Mesmo estando meio
perdido em relação ao que dizer a ela quando a vir, pois na última vez que me
viu era apenas uma menininha. Nem deve mais se lembrar de mim, deve ter
se tornado uma adolescente linda e amável.
— Me ajude, Deus! Não vou conseguir sozinho — penso alto tentando
tomar coragem de seguir caminho, não vim até aqui para dar para trás logo
agora.
— Você não está sozinho, Castiel! — Ouço a voz de um anjo, fecho os
olhos e oro para ter forças.
— O rapaz está bem, moça? — Abro os olhos e me deparo com um
senhor me encarando, desconfiado.
Montado nas costas de um cavalo branco bem cuidado, pelo chapéu de
couro, camisa gasta, jeans surrado e a postura firme, deve ser o peão chefe da
fazenda.
— Ele está bem sim, senhor, não se preocupe. — Olho para o lado e
vejo Anne próxima a mim sorrindo cúmplice, com um casaco comprido
verde e os cabelos esvoaçantes.
Eu havia sim escutado a voz de um anjo, o meu anjo da guarda.
— Por que resolveu vir, professora?
— Porque juntos formamos uma bela dupla, Bad Boy! — Joga uma
piscadela, se pondo na linha de fogo para me dar apoio.
— Não faz ideia do quanto isso significa para mim, Anne. Obrigado!
— Seguro suas mãos delicadas e beijo cada uma delas. Seja como for, não
deixarei que ela volte para as mãos do seu marido covarde.
— Eu sei, Castiel, por isso estou aqui. — Apoiou a testa na minha, seu
cheiro doce sempre me traz paz.
— Será que eu posso ajudar o casal com alguma coisa? Trabalho aqui
na fazenda. — Eu e a Anne trocamos olhares e sorrimos um para o outro.
Apesar do tom irônico do senhor do outro lado da cerca, foi muito bom ouvi-
lo se referindo a nós como um casal.
— Eu gostaria de conversar com alguém da família que mora na
fazenda, é algo muito importante sobre a menina que adotaram há dez anos.
— Está falando da menina Clarinha, moço? — Enruga a testa,
desconfiado.
— Sim, senhor, tem grandes chances de ela ser minha irmã. Talvez eles
lhe tenham dado outro nome. — Tentei convencê-lo com a verdade. Podia ser
muitas coisas ruins, mas mentiroso não estava entre elas.
— Impossível, rapaz, a menina Clarinha é de origem asiática e não foi
adotada. Essa criança a quem se refere pode ser a filha dos antigos donos da
fazenda que se mudaram há muito tempo. O nome dela é Beatriz e ela era
muda. — Minha vista fica turva e tudo o que eu consigo ouvir são zumbidos
à minha volta, minhas pernas parecem não suportar mais o peso do meu
corpo.
— É essa mesma, senhor, sabe para onde eles se mudaram? — Anne
percebe o meu estado de desespero e pega as rédeas da conversa, não estou
em condições de dizer mais nenhuma palavra.
— Não, senhora, eles foram embora para outro estado pouco tempo
depois que adotaram a menina. Sinto muito. — Cambaleei para o lado e
comecei a andar pelo pasto em volta da fazenda, sem rumo, abrindo caminho
entre o capim alaranjando. Minha cabeça lateja.
— Por favor, Castiel, respira! Você está pálido. Reaja, homem! Eu
tinha certeza que era a sua irmã, a culpa é toda minha. — Anne me puxa pelo
braço para sentar-se em um tronco debaixo de uma velha árvore. Deito a
cabeça no seu colo e choro como um menino perdido.
— Eu sei que está desolado. Mas nós precisamos ir, Castiel, está
começando a escurecer. — Alisa meu rosto com ternura, se ela não estivesse
aqui comigo me dando apoio acho que não teria aguentado mais esse cruel
golpe da vida.
— Eu não faço ideia para onde, Anne. Estamos no meio do nada, nem
sei o nome da cidade mais próxima. — Respiro pesadamente com desânimo.
A dor de ter um ente querido desaparecido é como uma ferida que não
cicatriza, tem dias que a dor aperta mais do que nos outros. Eu respiro fundo,
aperto os olhos e rezo para que essa angústia termine logo. Beatriz sempre foi
o meu mundo, toda a minha alegria de viver se resumia a ela. Eu daria a
minha vida se fosse preciso, para vê-la pelo menos mais uma vez, mesmo que
de longe, por isso não posso desistir de procurar pela minha irmãzinha
amada.
— Podemos passar a noite aqui ao ar livre sob a luz das estrelas,
Castiel. O que acha? — A animação na sua voz me fez sorrir, quer me animar
a todo custo.
— Está falando sério, professora?
— Na verdade, não, estava pensando em passarmos a noite em um
motel que vi no meio do caminho, podemos ir caminhando.
— Ótimo, preciso mesmo arejar a cabeça. — Fico de pé em um pulo.
— Sei que hoje perdeu uma batalha, mas não a guerra. Agora que
temos os nomes do casal que adotou a Bia, fica mais fácil. Nós vamos
encontrar sua irmã, eu prometo!
— Nós? — Franzo a testa.
— Isso mesmo, nós! Somos uma dupla agora, esqueceu? — Estende a
mão para mim, aperto com força como se selássemos um trato de
cumplicidade.
Ela cuidaria de mim e eu dela.
De mãos dadas, caminhamos até o motel de beira de estrada, é bom
passar esse tempo sozinho com a Anne. Apesar de malsucedida, foi uma
aventura e tanto. O mais divertido foi a cara que ela fez quando entramos no
quarto, com certeza é a primeira vez em um lugar como esse. Todo decorado
de vermelho, cheio de vibradores e a maior parte da mobília em formato de
órgãos genitais.
Deu para entender de cara por que a mulher da recepção disse que era o
único disponível, com certeza não deve ser o melhor do estabelecimento.
— Bom, pelo menos a cama parece confortável. — Tento ser otimista
sentando-me na cama redonda, e do nada começa a tremer feito essas
poltronas de massagem e a fazer uns barulhos estranhos.
— Eu não vou dormir nessa coisa de jeito nenhum, Castiel. — Quero
rir na cara dela, mas me controlo, não quero constrangê-la mais ainda.
Puxo o colchão para o chão, dormiremos melhor assim.
— Você não gostaria de tomar banho antes de arrumar isso? Eu vi no
catálogo que tem uma banheira enorme na suíte desse quarto. — A mudança
no tom de sua voz, de alto para baixo e suave, me faz parar o que estou
fazendo. Anne completa quase em um sussurro: — Ótima para uma pessoa
ou mais, isso se quiser companhia para o seu banho, é claro. — Coloca o
cabelo atrás da orelha, tímida por me fazer a proposta indecente.
Para uma mulher toda certinha como Anne, ser infiel ao marido é um
pecado imperdoável perante a Deus. Mesmo Marcos não valendo um tostão
furado. Por isso não consegue se soltar, dizer claramente que quer que eu a
foda bem gostoso em todo canto desse quarto nas posições mais
inimagináveis possíveis.
Facilitando o seu lado, a agarro e a beijo do jeito que eu queria desde
que pus os meus olhos nela hoje.
— Não só quero a sua companhia como deixo você escolher os sais de
banho, professora. — Faz cara de safada, gosto muito disso.
— Então, quem chegar por último é mulher do padre, Bad Boy! —
Corre na direção do banheiro rindo divertida, uma mulher completamente
diferente das que conheci antes.
Corro atrás da professora e a agarro assim que chegamos ao banheiro,
quando a coloco no chão ambos estamos tontos e eufóricos. Abro a torneira e,
ao som da banheira enchendo, cruzo os braços para observá-la prendendo o
cabelo em um nó descontraído no topo da cabeça. Começa a tirar a roupa
peça por peça até ficar completamente nua. Eu amo cada pedacinho do seu
corpo, para mim suas cicatrizes são símbolos da sua força.
Anne é uma sobrevivente, ela não tem noção do seu incrível potencial e
beleza.
— Não vai tirar a sua roupa também, Bad Boy? — Empina os peitos
grandes, não sei se olho para eles balançando ou o seu rosto.
O aroma erótico dos sais de frutas e Anne tão sexy à minha frente me
deixam sem condição de raciocínio, nem consigo tirar minha roupa sozinho.
Ela dá um passo à frente, ergue os meus braços e passa minha camisa por
eles. Abaixa e abre o botão da minha calça e desliza para baixo
vagarosamente. Fico duro na hora.
— Damas primeiro. — Entro na banheira logo em seguida de Anne, a
temperatura da água está perfeita para um banho relaxante.
Coloco uma música tranquila no meu celular. Não poderia ser mais
perfeito. Enquanto ensaboo as costas de Anne, uma ideia ousada me passa
pela cabeça.
— Enquanto estive preso, tive muito tempo para aperfeiçoar um dom
natural que tenho para desenhar. Caso autorize, eu ficaria muito honrado de
fazer um desenho seu nua. — Os ombros dela se tencionam, convencê-la será
algo difícil, tem muita insegurança com a aparência.
— Você está brincando, não é? Eu sou gorda, meu corpo é uma mistura
horrenda de cicatrizes, estrias e celulite. — Gira o pescoço e me encara com
os olhos cheios de lágrimas, ofendida.
Aliso o seu rosto e sorrio para a mulher quebrada à minha frente, são
muitas coisas que o marido dela lhe tirou e que precisam ser restabelecidas. A
primeira de todas precisa ser o amor-próprio.
— É exatamente por isso que quero te desenhar, Anne. Quero que pare
de se ver através dos olhos do Marcos, e se veja através dos meus. — Pensa
um pouco. Quando sorri sei que a resposta é sim.
— Você pode me desenhar, Castiel. Mas eu vou querer uma coisa
depois. — Espeta o nariz no ar, ela está aprontando.
— Trato feito, professora.
— Ótimo, vamos começar esse desenho logo! — diz mandona.
Sai da banheira toda molhada e com espuma escorrendo das suas costas
para o quadril longo até o traseiro. Desenhar com uma distração dessas é um
desafio difícil.
— Onde pensa que vai, senhorita? Nosso banho ainda não terminou. —
Vou atrás dela antes que passe pela porta, jogo-a dentro do box e ligo o
chuveiro, eu quero fodê-la prensada na parede de azulejo branco.
Estou com um tesão da porra!
— Pensei que você estivesse ansioso para me desenhar, Bad Boy. —
Aperta minha bunda, brincalhona.
— Eu estou, mas primeiro quero deixar minha modelo particular bem
relaxada. Coisa de artista, sabe? — Deixo uma mordida na curva do seu
pescoço e vou descendo até o seio, abocanho um no mesmo tempo em que
ergo seu corpo frágil do chão para que cruze as pernas em volta da minha
cintura.
— Good boy! — Dá uma mordida no meu peito.
Hoje não haverá preliminares, ambos precisamos de uma boa foda.
Dois amantes em busca de prazer sem limite.
— Você me enlouquece, professora. — Entro nela de uma vez, indo
bem fundo, o gemido de Anne estoura dentro das quatros paredes do
banheiro.
— Que pau grande… Gostoso! — Sinto vontade de rir com a boa suja
dela, está começando a se soltar.
Ótimo!
Meto com mais força, Anne crava as unhas nas minhas costas
afundando na carne na mesma profundidade em que eu me enterro dentro
dela, uma, duas, três...
Infinitas vezes!
— Diz que é só minha — ordeno tomado pelo tesão.
— Eu sou só sua, para sempre. — Fico doido.
Coloco Anne no chão de costas para mim e as mãos apoiadas na
parede, seguro firme na sua cintura e estoco bruto até o talo. Ela quase não
consegue se equilibrar. A água caindo sobre nós, o som dos nossos corpos se
chocando contra o outro é excitante demais.
— Você é tão apertadinha, que delícia! — Inclino sobre o seu corpo e
mordo a curva do seu pescoço, Anne rebola no meu pau com vontade.
Prendo seus cachos em um rabo de cavalo firme entre os meus dedos e
puxo para trás dando mais impulso, mas nem precisou, Anne empurra o
corpo contra o meu em busca de mais profundidade. A safada aprende rápido.
Sinto suas paredes internas espremendo-me, não demora muito para seu
líquido escorrer pelo meu pau.
Continuo metendo nela com tudo o que tenho até não conseguir segurar
mais e gozo em um rosnado, acho que nunca gozei tanto na vida. Nos
abraçamos debaixo do chuveiro e ficamos por um bom tempo assim, juntos e
extasiados.
Capítulo 17

Anne

Nunca tinha visto Castiel tão sério como enquanto desenha, parece
estar em uma espécie de transe. Segura o lápis com segurança, seus riscos são
rápidos e precisos. Foi engraçado na hora de ele me ajudar com a pose, sabia
exatamente como eu tinha que ficar, como se já tivesse planejado cada
detalhe daquele momento. Pegou todas as almofadas do quarto e arrumou
sobre o carpete vermelho, pediu para eu me deitar de lado, nua, com uma
mão apoiada no quadril e a outra debaixo do meu queixo, soltou meu cabelo e
ajeitou os meus cachos um por um.
Mal posso esperar para ver qual será o resultado, quero saber como sou
através dos olhos deles.
— Falta muito? — pergunto pela milésima vez tentando fazer menos
movimento possível. Por fim, Castiel nem responde nada, só balança a
cabeça.
— Eleve um pouco o olhar, por favor, tente não tremer a mão sobre o
quadril, falta pouco para finalizarmos. — Segura o lápis entre os dentes de
forma erótica, essa situação toda em si é muito excitante.
Mas o que existe entre nós vai muito mais além da atração física.
É especial.
— Meu nariz está coçando, Castiel. — Contorço o rosto.
— Pode coçar, querida, já terminei. Só estou dando os últimos
retoques. — Praticamente pulo em cima de Castiel, tento ver como o desenho
ficou, mas ele não deixa, levantando o caderno bem alto.
— Pelo amor de Deus, Castiel, me deixa ver esse desenho, agora! —
Fico nas pontas dos pés tentando pegar, mas precisaria ter pelo menos uns
vinte centímetros a mais para conseguir.
— Só depois que me der um beijo, professora. — Fez um biquinho e eu
cedi, nem precisava pedir duas vezes. Castiel me entrega o desenho e eu me
surpreendo.
Ficou perfeito!
Os seus traços são de uma delicadeza fascinante, dá vontade de ficar
olhando para sempre. Fez minhas curvas com formas parecidas com as de um
violão. Seios grandes, pernas grossas e mãos finas com os dedos longos. O
que mais me deixa comovida foi que no lugar das minhas cicatrizes desenhou
flores e corações. Em meu rosto predomina uma expressão segura em um
meio sorriso.
Eu amei mesmo cada detalhe, em especial na forma que assinou o seu
nome abaixo, no canto da folha.
“Com amor, seu Castiel.”
— É assim mesmo que você me vê, Castiel? — Assente e lágrimas
tomam-me a face; fico muda.
Meus dedos alisam cada centímetro do desenho, cheia de amores por
ele.
— O que foi, meu amor, não gostou? — Fica inseguro ao perceber que
eu estou chorando, abraça-me e eu choro ainda mais por ter me chamado de
amor.
Queria tanto que nossas vidas fossem diferentes, que não fôssemos tão
quebrados. Sempre penso em como seria se tivéssemos nos encontrado antes
de Marcos se infiltrar na minha vida. Talvez Castiel nunca tivesse sido preso
e não tivesse perdido sua irmã. Hoje seríamos uma família normal e feliz.
— Gostar é pouco, eu amei! Obrigada, Castiel, você merece ter o
mundo aos seus pés. — Deito a cabeça na curva do seu pescoço, contornando
com a ponta do dedo os riscos das tatuagens no seu peito.
— Você é o meu mundo agora, professora. — Me surpreendo com essa
declaração, não estava esperando ouvi-la. Mas ansiava.
Eu deveria ter insistido que isso que estamos fazendo é loucura, um
grande erro. No entanto, não tive forças para fazer mais nada além de beijá-lo
e esquecer todo o mundo lá fora.
— E você é o meu, Castiel. — Jogo-me em seus braços de vez, o lugar
mais seguro do mundo para mim.
Ele me deita na nossa cama improvisada no chão e faz amor comigo
sem pressa, chegamos em um ponto que não conseguiremos mais nos separar
nem se quisermos.

Tarde da noite, estamos eu e Castiel abraçados sem sono. Apesar de


não tocarmos no assunto, ambos estávamos preocupados sobre o que fazer
depois que o final desse mês chegasse e Marcos voltasse para casa. Temos
que arrumar um jeito de nos livrar dele, mas não fazemos a menor ideia de
como.
— Então, professora, você disse que tinha um pedido em troca de me
deixar desenhá-la? — Esperei ele tocar no assunto e aconcheguei-me melhor
em seus braços antes de fazer a pergunta que vem me atormentando.
— Eu quero que você me conte o que fez para passar tanto tempo
preso, Castiel. Quanto mais te conheço, mais fica impossível de imaginá-lo
fazendo algo ruim. — Sua mão que fazia carinho nas minhas costas se
contrai, assim como cada músculo do seu corpo. Sabia que seria complicado
fazê-lo falar sobre esse assunto.
Esse homem precisa desabafar com alguém ou nunca superará aquilo.
Seja o que for que tenha feito, eu estou disposta a continuar vê-lo com os
mesmos olhos. Sei o homem incrível que é e não deixarei que algumas
decisões erradas do passado me afastem dele, isso se chama companheirismo.
— Desculpe, Anne, mas eu não gosto de falar sobre esse assunto. —
Vira de costas para mim. Se não está pronto para falar eu respeitarei e espero
até quando estiver.
— Eu entendo perfeitamente, Castiel. Me desculpe pela intromissão,
boa noite. — Viro para o lado contrário a ele lhe dando mais espaço. De
repente surgiu um abismo enorme entre nós que eu mesma criei.
Passados alguns minutos, percebo que Castiel está agitado. Vira de
volta e me abraça em posição de conchinha, com o rosto escondido na curva
do meu pescoço, e começa a contar a história do dia em que foi preso. Sua
voz é tão dolorosa que me fez xingar mentalmente por ser tão estúpida a
ponto de pressioná-lo para falar sobre algo que o feriu tanto.
— Na época, eu tinha acabado de completar dezoito anos e estava
prestes a viajar para São Paulo para começar a fazer Faculdade de Arquitetura
através de uma bolsa que ganhei. Queria ser alguém na vida, sabe? — Faz
uma pausa, como se um nó na sua garganta aumentasse à medida em que
fala.
Giro o corpo para ficar de frente para ele e entrelaço meus dedos aos
seus, olhando em seus olhos marejados na tentativa de passar o máximo de
apoio possível.
— Se não quiser continuar, meu amor, não precisa. — Acaricio seu
rosto.
— Não, Anne, eu preciso continuar! Tem uma coisa sobre aquele dia
que apenas o padre Valentim sabe, contei para ele em confissão. — Percebo
pelo desespero na sua voz que ele precisa contar mais do que eu queria saber,
guardar está sufocando-o.
Só não esperava que o que eu estava prestes a ouvir da boca de Castiel
é muito pior do que eu podia pensar...
"Morávamos em um bairro humilde, minha mãe trabalhava em dois
lugares como empregada doméstica, mas dividia o dinheiro que ganhava
entre bancar o vagabundo do meu padrasto e o seu vício em drogas. Era eu
que, ainda menor de idade, bancava a casa e as necessidades materiais e
afetivas da minha irmã. Ela dormia agarrada em mim, como se eu fosse um
travesseiro gigante. Se não fosse a ajuda do padre Valentim com cestas
básicas dos Vicentinos entregues mensalmente, teríamos morrido de fome.
Beatriz sempre foi uma criança muito frágil, vivia doente e os remédios
eram muito caros. Jurei para mim mesmo que nunca deixaria nada faltar
para ela, faria o possível para dar a ela tudo o que eu não tive. Foi assim
que comecei a mexer com coisas erradas para conseguir mais grana, mas
para ser aceito nesse mundo de marginais você precisa se parecer com um e
impor respeito. Quando dei por mim, já estava literalmente com tatuagens
até o pescoço, fama de Bad Boy e líder de uma gangue barra pesada.
Mas tudo mudou quando conheci um garoto playboyzinho. Nos
conhecemos através de uma briga em uma festa, nem lembro mais o motivo.
Só sei que no final, eu e Edgar nos tornamos melhores amigos. Junto com os
sermões diários do padre Valentim, aos poucos fui saindo do buraco negro
em que estava.
Voltei a estudar e pretendia fazer faculdade. Com a ajuda da influência
do pai do Edgar consegui um bom emprego. Tudo estava indo às mil
maravilhas, até o dia do meu aniversário de dezenove anos, quando pedi
para sair mais cedo do trabalho. Graças ao Santo Deus, naquela tarde não
estava me sentindo bem. Um mau pressentimento, sei lá. Coloquei a mochila
nas costas e saí o mais rápido que pude, mais tarde encontraria alguns
amigos para comemorar.
De longe percebi que a luz do quarto de Beatriz estava ligada, o que
achei muito estranho, já que naquele horário era para ela estar na casa da
babá, uma moça que eu pagava para olhá-la enquanto estava no trabalho.
Meu coração disparou quando liguei para a Jéssica e ela disse que o meu
padrasto havia ligado dizendo que podia tirar o dia de folga e que ele iria
cuidar da enteada, mas a reembolsaria o dia para que não ficasse no
prejuízo.
Nunca corri tão rápido em toda a minha vida! Não confiava no
Valquimar, era um aproveitador filho da puta. Era bem mais jovem que
minha mãe e a traía com todas as amigas dela, tentei alertá-la por diversas
vezes, mas nunca tive sucesso.
Deixei minha mochila de qualquer jeito no chão da sala e subi a
escada desesperado, pulando dois ou três degraus por vez. A porta do quarto
dela estava entreaberta, com certeza não esperava que alguém chegasse. O
único som que vinha lá de dentro era a voz nojenta do Valquimar.
— Eu sei que você não pode falar, mas pode me ouvir, Bia. Se você for
boazinha com o tio Valquimar, vou te dar um presente lindo depois. Mas se
chorar como da outra vez ou contar para Castiel, nunca mais verá seu
irmão. — O desgraçado ameaçou o meu anjinho, usando contra ela o amor
que sentia por mim para que fizesse o que queria.
Fechei os punhos com tanta força que quase quebrei os meus próprios
dedos, podia sentir os músculos do meu corpo tremendo e o sangue subindo
depressa para a minha cabeça pelas minhas veias. Perdi a cabeça! Entrei no
quarto com o diabo no corpo. E a coisa só piorou quando vi minha irmã
sentada no colo de Valquimar só de calcinha e a mão do meu padrasto
dentro dela, tocando-lhe a parte íntima enquanto o maldito gemia de prazer.
Lembro de sentir nojo e raiva, muita raiva.
Depois disso tive um apagão na minha mente, lembro somente do
choro desesperador de Beatriz, em silêncio, tampando o rosto com as
mãozinhas para não ver a polícia me tirar de cima do meu padrasto, que
estava praticamente morto em minhas mãos. O rosto desfigurado e uma poça
de sangue em volta. Minha mãe chegou e ficou contra mim, como sempre.
— Mas o que esse moleque aprontou dessa vez? — perguntou minha
mãe para o policial que estava me colocando algemado dentro da viatura,
ela me olhou com tanto desprezo que nunca vou esquecer.
Parecia que tinha saído às pressas do trabalho, o cabelo castanho
escuro bagunçado e o uniforme todo desalinhado. Minha mãe foi uma
mulher linda, mas parecia ter o dobro da idade devido ao uso descontrolado
de drogas.
— Um vizinho da senhora ligou para a polícia, senhora, dizendo estar
ouvindo gritos vindos da sua residência. Como estávamos fazendo ronda
aqui perto, pediram no rádio para darmos uma olhada. Por pouco o seu filho
não matou o padrasto a socos, os paramédicos acham que ele não
sobreviverá.
— Eu espero que o filho da puta morra ainda no caminho do hospital
engasgado com o próprio sangue, senhor policial. — Ri na cara dele, nunca
tive medo de dizer o que penso, de toda forma já estava todo ferrado mesmo.
— Cala a boca, moleque, pelo histórico da família de vocês não duvido
nada que estava sob efeito de drogas. — Tive vontade de socar a cara dele
também, mas minha mãe agiu mais rápido vindo para cima de mim e
esbofeteando o meu rosto. Foram precisos dois policiais para tirá-la de cima
de mim.
— Você e a sua irmã foram o maior erro da minha vida, Castiel! Como
se não bastasse, agora fez isso com o amor da minha vida. Se o Valquimar
morrer, eu morro também — minha mãe começou a fazer drama, pegando
pesado com as palavras.
Era óbvio que em momento algum passou pela cabeça da minha mãe
que eu poderia ter um bom motivo para ter feito aquilo, mas mesmo se eu
tivesse contado a verdade ela não acreditaria. Então me calei, aquela mulher
nunca se importou comigo. Me mantive firme o tempo todo, só desmoronei
quando padre Valentim chegou em total desespero.
— Conte-nos o que aconteceu de fato, filho, sei que tem muito mais do
está deixando transparecer. Te conheço melhor que ninguém, te vi crescer —
implorou padre Valentim, enxugando as minhas lágrimas com a manga da
sua batina.
Mas não estava dando conta, limpava uma, caíam outras várias.
— Desculpe, padre, mas não posso. Apenas em segredo de confissão
depois, só prometa que cuidará bem da minha irmã até a minha volta, leve-a
em um médico o mais rápido que puder — pedi.
— Mas por que, filho?
— Só faça o que eu pedi, padre. Não posso dizer muito agora. —
Balancei a cabeça discretamente em direção à multidão que se formou diante
da nossa casa, um bando de curiosos fofoqueiros como urubus em cima da
carniça. Ele logo entendeu o meu recado. Não queria que a minha irmã
crescesse com a imagem prejudicada como a menina que havia sido
molestada pelo namorado pedófilo da mãe, tampouco sentindo culpa pelo
irmão ter quase o matado.
Meu padrasto não morreu, infelizmente! Meu único arrependimento foi
de não ter terminado o serviço. Mas pelo menos o desgraçado perdeu os
movimentos do pescoço para baixo, nunca mais poderá se aproveitar de um
inocente. Minha mãe não virou as costas só para mim, mas para minha irmã
também, ao entregá-la para adoção como vingança. Foi me visitar na cadeia
apenas uma vez para jogar isso na minha cara, e desde então nunca mais a
vi.
Bem, o resto da história você já sabe, Anne...
— Meu Deus, que passado triste você teve! Sacrificou os melhores
anos da sua vida e todos os seus sonhos guardando esse segredo por amor à
sua irmã. É a coisa mais linda e triste que já ouvi. Pensei que nunca pudesse
sentir tanto desprezo como sinto pelo meu marido, mas a mãe de Castiel
conseguiu me fazer mudar de ideia.
— Eu passaria mais mil anos preso se fosse para proteger a Bia, não me
arrependo de nada.
— Claro que faria, Castiel. Não precisa nem dizer. — O envolvo em
um abraço bem forte, faço carinho no seu cabelo até ele pegar no sono com
uma expressão serena e indefesa.
Não dá para ser forte todo dia. Às vezes, tudo o que precisamos é se
abrir com alguém que já teve o coração tão partido como o seu. Acredito
que por isso nos damos tão bem, somos duas pessoas que foram quebradas
pela vida.
Capítulo 18

Castiel

Ao som de passos leves pelo quarto, vou despertando de um cochilo


gostoso da manhã. Abro um sorriso ao sentir o cheiro gostoso de Anne
pairando tão leve pelo ar quanto a minha paz de espírito, sinto como se as
minhas forças tivessem sido renovadas da noite para o dia. Tudo o que eu
precisava era desabafar com alguém que sabia que iria me ouvir sem julgar.
— Bom dia, Bad Boy! — Abro os olhos e vejo Anne vestida com a
minha camisa, descalça, vindo até mim com uma bandeja de café da manhã,
radiante como um raio de sol.
— Bom dia, professora. — Senta-se ao meu lado e coloca a bandeja no
colo, inclino a cabeça e beijo sua coxa.
— Sabia que tem café da manhã especial incluso para os casais que
passam a noite no motel? Peguei algumas coisas para nós, a salada de frutas
está deliciosa. — Pega uma uva e desliza pelos meus lábios antes de colocar
na minha boca, aproveito a oportunidade para chupar o seu dedo.
— Melhor pararmos por aqui, Castiel, nosso ônibus sai em poucas
horas e ainda temos que chegar no centro da cidade.
— Ora essa! Você me provoca primeiro, depois sai fora? — finjo estar
zangado.
— Alguém precisa ser sensato nesse relacionamento, não é mesmo? —
Faz graça mexendo os ombros, mas não ri ao se dar conta do que disse.
Eu também não. Os músculos do meu rosto estavam tensos demais para
qualquer tipo de manifestação, fui pego de surpresa.
Então nós tínhamos um relacionamento?
— Sei que pode ser assustador, mas eu não faço ideia de como em tão
pouco tempo me apaixonei completamente por você, Anne! — Quase deixa
nosso café da manhã cair do seu colo, tive que ser rápido para segurar a
bandeja e colocar no chão. Aproximo-me dela e me contenho em tocá-la para
esperar seu próximo passo.
— Eu também estou muito apaixonada por você, Castiel. — A puxo
para um beijo, não há mais nenhum tabu entre nós.
Somos duas pessoas feridas aprendendo juntos o significado da
felicidade, um curando o outro. Não conhecemos nada da vida além de dor,
sofrimento e perdas. Qualquer um no nosso lugar pensaria:
“Se as pessoas que deveriam ter me amado não o fizeram, então quem
será capaz de amar?”
Foi o que me perguntei desde que a minha mãe me disse pela primeira
que eu deveria ter nascido morto, pois nunca ninguém amaria um garotinho
insuportável como eu. Acreditei nisso por um longo tempo. Mas agora que
Anne apareceu na minha vida, tudo mudou.
Eu posso sim amar e ser amado, intensamente.
— Não tenho muito para te oferecer agora, Anne. Mas eu vou trabalhar
em dobro para dar uma vida decente para você e a minha irmã, sei que vamos
encontrá-la em breve e seremos uma família feliz. — Os cantos da sua boca
transformaram-se em um sorriso que fez meu coração inchar dentro do peito.
Não quero me separar dela nunca mais.
Quero formar uma vida perfeita ao lado de Anne, com tudo que temos
direito.
— Vamos ter nossos filhos, e daremos a eles todo amor que não
tivemos, posso até ouvir as risadas deles brincando à beira do rio na nossa
casa dos sonhos que construiremos no bosque — planeja, e eu não vou parar
de lutar até que cada palavra do que disse se realize.
— Prometo que construirei a casa mais linda do mundo para você no
nosso bosque secreto, meu amor. — Coloco a mão sobre o seu coração, e ela
coloca a dela sobre o meu.
— Prometo nunca desistir de você, Castiel. Seja qual for o problema,
vamos resolver.
— E eu de você, Anne. — Nos abraçamos.
— Mas o que faremos quando Marcos voltar? Fugir não adianta, tem
muitos contatos na polícia e poderia nos encontrar facilmente. — Fica
apreensiva, uma linha vigorosa aparece entre suas sobrancelhas.
— Não se preocupe com isso, meu amor, daremos um jeito — garanto.
Já estou com algo em mente para ficarmos juntos para sempre, mas
preciso aperfeiçoar o plano para não colocar em risco a segurança de Anne.
Ainda temos um tempo até que o marido dela volte, poderei pensar em cada
detalhe com calma.
— Tudo bem, amor, agora vamos tomar o nosso café da manhã antes
que percamos o horário do ônibus. — Sorrio torto, eu amo ouvir o meu nome
na voz dela, mas nada se compara em ouvi-la me chamar de amor.
— Sim, senhora, professora. — Levanto as mãos, rendido.
Sentamo-nos no chão e tivemos nosso café da manhã em meio a muitos
risos e esperança de que dias melhores estão por vir. Assim que saímos do
motel compramos um celular para Anne. Ela me contou que o desgraçado do
marido dela não autoriza que tenha um. Agora, com um aparelho móvel,
poderemos nos comunicar melhor. Como o marido dela está fora, poderá usar
o aparelho sem medo e é mais confiável do que usar o fixo da sua casa.
Depois de uma longa viagem de ônibus, chegamos na rodoviária de
Campo Grande com preocupação. Antes mesmo de sairmos do veículo vem a
preocupação de sermos vistos juntos, então achamos melhor cada um seguir
um caminho diferente para casa. O plano é não arriscar nos vermos mais
hoje, contudo, tarde da noite acabo batendo na porta dela e dormimos juntos.
Não consegui evitar.
Levanto-me antes do sol nascer e vou embora, mas não antes de dar um
último beijo na minha bela adormecida. Ajeito o cobertor sobre seu corpo
delicado e sussurro em seu ouvido que desejo que tenha um dia maravilhoso.
Não chego a terminar de atravessar a rua quando vejo doutor Alfredo, que
mora na casa do lado da Anne, paralisado, dentro de um roupão cor-de-rosa
choque, com os olhos disparados em mim por cima dos óculos de grau
enquanto rega a grama recém-plantada no seu jardim.
Está tão entretido ao reparar a vida alheia que nem percebe que a água
está caindo sobre as pantufas peludas em seus pés ao invés da grama. Fico
encabulado, sua postura está totalmente diferente do solteirão rabugento de
terno e gravata em tons neutros que briga com as crianças que jogam bola na
frente da sua casa.
Pelo visto, Anne e eu não somos os únicos que guardam segredos que,
se viessem à tona, virariam assunto na cidade para um ano inteiro.
— Bom dia, rapaz! Aconteceu algum problema na casa do tenente
Vargas para visitar a mulher dele a uma hora dessas? — ousa falar comigo.
Paro de andar e giro o pescoço na direção dele.
Não poderia estar mais calmo e seguro.
— Nada que seja da conta do senhor, com certeza. — Lhe ofereço um
sorriso irônico e sigo o meu caminho, mas não consigo chegar nem na porta
da frente.
— Creio que quando o marido dela voltar não vai gostar muito de saber
que andou frequentando a casa dele enquanto esteve fora, digamos que o
tenente tem o “gênio forte” — ameaça o filho da mãe.
Mudo para o modo ex-presidiário que toda cidade teme e vou até o
metido do Dr. Alfredo, fazendo questão de pisar sobre o seu lindo canteiro de
margaridas. Se queria arrumar problema comigo, conseguiu.
— Então você sempre soube que a Anne apanha do covarde do marido
e nunca fez nada, Dr. Alfredo? Francamente, deveria se envergonhar disso.
— Aponto o dedo no meio da cara dele, sua coragem some. Chega a
estremecer as pernas, é bom para fazer ameaças só de longe.
— Já ouviu dizer que em briga de marido e mulher ninguém mete a
colher, meu caro? — tem a cara de pau de dar uma desculpa tão hipócrita
quanto a sua postura diante da situação, filho da mãe!
— Já sim, cara! E você já ouviu dizer que vizinho conivente com
agressão merece uma boa lição? — Sua mandíbula se contrai, entendeu bem
o meu recado.
— Abaixa a bola, rapaz. Se encostar um dedo em mim volta para a
cadeia, seu marginal, de onde nunca deveria saído. — Me afronta com o
queixo elevado, se achando melhor do que eu.
— Acredite, se precisar chegar ao ponto de te dar uma boa lição não
haverá testemunhas. Sem corpo não tem crime. — Recua num grunhido, com
os olhos arregalados, e solta a mangueira no chão. Ter fama de bandido não é
de todo ruim às vezes, pelo menos serve para impor respeito.
— Está me ameaçando, rapaz? Vou ligar agora mesmo para o tenente
Marcos e contar sobre o que a sua esposa infiel anda aprontando. — Pega o
celular no bolso do seu robe, de perto percebi que, além de rosa, é todo cheio
de glitter.
— Ótimo! Liga mesmo, e amanhã a foto de quem você é de verdade vai
estar em todos os jornais, Alfredinho.
— Mas de que foto você está falando, seu louco? — Franze o cenho.
— Essa! Olha o passarinho... — Tiro algumas fotos dele vestido
daquele jeito, se contasse o meu segredo eu revelaria o dele também.
Simples assim.
— Apague essas fotos, seu bastardo, eu estou mandando! — entra em
desespero, tinha se esquecido que saiu para fora de casa daquele jeito.
— Tenha um bom dia, Alfredinho! A propósito, adorei as pantufas
peludas. — Enfio as mãos no bolso e vou embora assobiando, tem gente que
quer bancar o esperto e cai na própria armadilha.
Apesar de eu demonstrar confiança, essa situação embaraçosa me
preocupa bastante. E se da próxima vez que formos pegos não for por alguém
com o rabo preso como o de Alfredo? A verdade é que dei muita sorte e
preciso ser mais cuidadoso daqui em diante para não colocar Anne em uma
situação pior do que está.
Volto para a minha rotina normal de trabalho pegando firme na pintura
na parte interior da casa, devo ter martelado a ponta dos meus dedos pelo
menos umas cem vezes só na parte da manhã. Não consigo me concentrar no
trabalho. Na minha cabeça só vem as lembranças dos momentos
maravilhosos que passei com a professora. Meu celular toca e saio correndo
tropeçando nas latas de tinta para atender pensando ser a Anne. Nada me faria
mais feliz do que ouvir sua voz, já estou morrendo de saudades.
Mas não é ela.
— Olá, Caroline, como vai? — Sento no degrau da escada para falar
com a filha do prefeito, não faço ideia do motivo da ligação, já que o único
vínculo entre nós é trabalhar na organização da festa para pagar a cirurgia do
Joãozinho.
Então, o que essa moça de família de classe alta pode estar querendo
comigo?
— Melhor agora que estou falando com você, Castiel. Eu estava
pensando, não gostaria de passar o próximo sábado comigo se aventurando
em um piquenique nas montanhas para comemorar o sucesso do nosso
evento? — Fico em silêncio por alguns segundos, pensando em uma maneira
gentil de dizer não.
Mas, sendo sensato, é uma ótima oportunidade para as pessoas me
verem com uma mulher bastante conhecida na cidade, a notícia se espalharia
como pólvora e pensariam que estamos juntos. Tenho certeza que a minha
ideia não vai agradar nem um pouco a Anne, espero que mais tarde entenda
que vou fazer isso por nós. Não tenho nenhum interesse na Caroline, só como
amigo mesmo.
— Claro que eu aceito sair com você, Carol. Passo para te pegar às oito
da manhã, pode ser?
— Está ótimo, Castiel, sábado que nos aguarde. — Solta um gritinho,
animada.
— Te vejo no final de semana então, Carol. Beijos! — Desligo
respirando fundo, desanimado com esse encontro forçado.
— Posso saber onde a mulher-maravilha e o Bad Boy da cidade vão?
— Levo um tremendo susto com Anne parada na porta, escutou toda a minha
conversa com a Caroline.
Sua expressão não é das melhores, não sei se o reflexo da camiseta
vermelha que usa paira sobre a maçã do seu rosto ou é de raiva mesmo.
Anne segura algumas sacolas que, pelo aroma delicioso impregnado na
sala, é o almoço que tinha preparado com amor. Mas agora a impressão que
tenho é que vai jogar tudo na minha cara a qualquer momento. Me adianto
em explicar.
— Não é nada disso que você está pensando, Anne — digo em um tom
apaziguador.
Tento contato físico, mas dá um passo para trás, magoada, repelindo o
meu toque.
— Então me explica, Castiel, porque eu não estou entendendo nada.
— Eu fui pego pelo idiota do Alfredo enquanto saía da sua casa de
manhã, ele me ameaçou claramente. Disse que ligaria para o seu marido e
contaria tudo — explico, mas sua expressão continua azeda.
— E onde a filha do prefeito entra nisso, meu bem? — ironiza com as
narinas infladas, me condenando sem chance de um julgamento justo.
Fico irritado. Alguém descobriu o nosso caso extraconjugal, e a mulher
preocupada em me imprensar na parede com um ciúme bobo.
— Você ouviu o que eu disse? O seu vizinho da casa ao lado sabe que
estamos dormindo juntos. Consegui fazê-lo ficar de boca fechada, mas não
sei se teremos a mesma sorte da próxima vez, então precisamos ser
cuidadosos. — Sorvi uma longa lufada de ar, nada do que eu disser fará a
mínima diferença para essa teimosa.
Deixa as sacolas caírem no chão, mais nervosa ainda, e aponta o dedo
na minha cara, a fim de briga.
— Ser cuidadoso para você é sair com uma mulher linda e sexy louca
para ir para a cama com você, Castiel? Muito obrigada por estar se
sacrificando por nós, meu amor. — Leva as mãos na cintura se sentindo a
dona da razão. Anne se acostumou tanto a não confiar nos homens que se eu
não for paciente com ela tudo será motivo para briga.
— Eu acho melhor pararmos por aqui antes que falemos coisas das
quais nos arrependeremos depois, volte para a sua casa e repense sobre nossa
arriscada situação. Quando quiser conversar como adultos de verdade, sabe
onde me encontrar. — Ando até a mesma porta por onde ela entrou e desvio
o olhar, me parte o coração mandá-la embora, mas no momento é o mais
sensato a se fazer.
Anne passa por mim pisando duro e batendo a porta com força atrás
dela. Contei 1... 2... 3... e abri novamente, não deu nem três segundos e ela
entrou igual a um pitbull raivoso para pegar as sacolas jogadas no chão e
levar embora.
— Mulheres! — Reviro os olhos e volto para o trabalho, meu almoço
foi um sanduíche.
Passo o resto do dia trabalhando firme, consigo pintar a maioria dos
cômodos na parte de dentro da casa, parei já bem tarde. Satisfeito com o
resultado e muito cansado, tomo um banho bem demorado para relaxar a
tensão. Contudo, o que está me matando mesmo é a saudade da paranoica da
Anne. Queria ir atrás dela para fazermos as pazes, mas não posso, se eu ceder
dessa vez ela nunca aprenderá a confiar em mim de verdade. Tem muita raiva
acumulada do marido e com razão, precisa pôr tudo para fora de alguma
forma, mas não em cima de mim.
— Mas que porra, professora! — Soco a parede, zangado por ela ser
tão cabeça dura.
Encosto as mãos na parede sentindo a ducha fria cair nas minhas costas,
aperto os olhos com força na esperança de acalmar a bagunça de sentimentos
que se encontra dentro de mim.
Fico em sinal de alerta quando ouço a maçaneta da porta do banheiro
sendo girada, e então um furacão de um metro e sessenta entra logo em
seguida.
— Você tem razão, ok? Mas se você deixar aquela metida tocar em
você, Castiel, eu nunca mais olho na sua cara — troveja uma Anne
enfurecida, mexendo o pescoço feito uma cobra naja.
— Já terminou, professora? — debocho, amo o fato de ela vir levantar
a bandeira branca entre nós mais rápido do que pensei.
— Já sim, passe bem! — Se vira intencionada a ir embora.
— Eiiii… Onde pensa que vai, mocinha? — Puxo-a para mim debaixo
do chuveiro, com roupa e tudo.
Ela solta um gritinho de susto com a água fria, é bom para acalmar os
ânimos.
— Me solta, Castiel. Eu quero ir embora — resmunga.
— Você está muito nervosinha para o meu gosto, professora. Um
banho de água fria de vez em quando não faz mal a ninguém, então fique
quietinha e relaxe. — Teimosa demais, se debate por um tempo esmurrando
meu peito.
Aos poucos sua raiva vai indo embora, ficamos os dois com os corpos
colados debaixo do chuveiro frio por um bom tempo em silêncio. O dom da
palavra é lindo, mas a sabedoria encontrada apenas no silêncio é perfeita.
Capítulo 19

Anne

Sou acordada com um jato de água fria bem na minha cara, quase caí
da cama. Ao olhar para o lado e não ver Castiel, meu desespero duplica, me
enfio debaixo do cobertor toda encolhida de medo. Não consigo pensar em
outra coisa a não ser que o meu vizinho do lado tenha ligado para Marcos e
contado tudo sobre o nosso caso, e veio se vingar, destruindo nosso sonho de
amor antes mesmo de ter começado.
— Hora de levantar, preguiçosa. — Uma voz abusada se faz presente,
depois o meu edredom é puxado.
— Você quer me matar do coração, Castiel? — Jogo o travesseiro na
cara dele, só pode ter ficado louco de vez, ou me tirar do sério virou seu
esporte favorito.
Apesar de ter aceitado que saia com a Caroline, essa história não me
agrada nem um pouco.
— Andei pensando em como te ajudar a extravasar essa raiva toda que
guarda do seu marido e acabei tendo uma ótima ideia. Se troque e me
encontre em dez minutos na garagem — não pede, ordena e se vai.
Chego na garagem no exato momento em que Castiel está pendurando
no teto um saco de boxe improvisado feito de couro cheio de areia, e não para
por aí. Olhando à minha volta o que vejo é uma inteligente academia toda
feita com material reciclado. Tem levantadores de peso feitos com barras de
ferro e vidros descartáveis de refrigerante cheios de cimento, caneleiras,
cordas, bicicleta e tudo mais que tem direito.
Mais ao fundo, um radinho velho tocando a música do filme Rock
Balboa. Castiel passou a noite inteira montando isso tudo.
Para mim...
— Podemos começar agora? — Bati uma mão na outra, animada.
— Só um segundo, mocinha. — Vai até a caminhonete e pega sobre o
banco do carona um par de luvas cor-de-rosa. Eu solto um grito de alegria.
Ninguém nunca fez nada pensando em mim antes, isso me tocou de um
jeito que não tenho explicação.
— Eu amei, Castiel, muito obrigada, estava precisando mesmo socar
alguma coisa ou iria explodir.
— É. Eu percebi ontem, professora. — Me entrega as luvas, vou amar
usá-las.
— Então isso tudo foi medo de eu estragar esse seu rostinho lindo, Bad
Boy? — Mostro a língua.
— Digamos que é melhor prevenir do que remediar. Não sou nenhum
professor de boxe, mas aprendi algumas coisinhas enquanto estive preso. —
Mostra os bíceps, sorrindo, sorrio para ele de volta, mas com uma dorzinha
estranha no coração.
— Bem, agora acho que mudamos de lado. Você se tornou o professor,
e eu a Bad Girl boa de briga. — Dou um soco de leve na sua costela, mais
feliz do que nunca. Ele acertou em cheio nessa ideia de me treinar.
Apesar que no fundo eu sei que não é apenas para extravasar a minha
raiva, como Castiel diz, tem algo mais profundo nisso de me treinar. Como se
estivesse me preparando para enfrentar Marcos caso ele venha a faltar, parece
até que está prevendo que algo muito ruim vai acontecer.
— Ótimo ver sua animação, Bad Girl! Que tal começarmos dando dez
voltas pelo quarteirão como aquecimento?
— Dez voltas? — Arregalo os olhos.
— Agora são quinze pela reclamação, mas para não dizer que sou um
mal professor pode tomar o seu café da manhã antes. Preparei algo leve. —
Dá alguns socos no saco de treinar como teste, fico babando em cima desse
homem grandão, uma mistura de músculos e tatuagens.
Com seu jeito durão, mas ao mesmo tempo doce e atencioso.
— Obrigada por se preocupar com a minha segurança, Castiel. —
Abraço suas costas largas, ele alisa minhas mãos pousadas sobre o seu peito.
— É isso que casais de verdade fazem, Anne, não se destroem. Se
ajudam a melhorar.
— Só mais uma pergunta, eu posso beijar o meu professor agora ou
durante a aula não pode? — brinco.
Castiel vira de frente para mim puxando-me pela cintura para mais
próximo de si, com aquela cara de que vai terminar em safadeza.
— Beijo é permitido a qualquer momento, linda. — Me puxa para um
beijo sedento, como desconfiei. Por pouco não fizemos amor ali mesmo.
— Tentando me persuadir com sexo para fugir do treino, trapaceira? —
me interrompe assim que começo a tirar sua camisa, me joga nas costas e
leva para a cozinha.
Não dá para saber qual risada é mais feliz, a minha ou a dele. Acho que
se fosse medir daria empate.

A semana vai passando corrida, Castiel e eu acabamos criando nossa


própria rotina como qualquer outro casal normal, no entanto, requerendo
mais cuidado e discrição. Pegamos o hábito de dormir juntos todas as noites
na casa dele, acordávamos cedo e pegávamos cada vez mais pesado nos
treinos. Iniciávamos com uma corrida de uma hora na escuridão da
madrugada, depois alguns exercícios com pesos, para então vir a minha parte
favorita, as técnicas de golpes e defesa.
Castiel sempre repete que o mais importante em uma luta é usar a
inteligência ao invés da força. Avaliar tudo à minha volta e usar a meu favor,
fazer de uma simples panela ou uma vassoura uma arma conforme
manuseada de forma correta. Parece até coisa de filme de artes marciais, mas
ele tem me feito treinar com os olhos vendados, porque a escuridão pode ser
muito favorável quando se sabe lidar com ela.
Eu me divirto muito quando estou com ele, rimos de tudo e fazemos
curtos intervalos para namorar um pouquinho, já que durante o dia ele tem
que trabalhar na reforma e eu ficar em casa fazendo o papel de boa dona de
casa fiel.
Tudo está indo perfeitamente bem, até o bendito sábado do encontro
com a filha do prefeito chegar e eu me morder de ciúmes.
— Não fica com essa cara, Anne, já expliquei mil vezes que estou
saindo com a Carol para nos proteger. — Ergue meu queixo enquanto eu
ajeito a gola da sua camisa azul nova, estou putaça por ele ter colocado ela só
para sair com a entojada.
Mas não falei nada. Porém, o problema é que quando uma mulher não
fala com palavras a tromba enorme entrega. Os homens pensam que fazemos
isso de propósito, não entendem que é impossível para nós disfarçarmos
quando algo nos contraria. Faz parte da nossa natureza.
— Eu realmente desejo que se divirta, Castiel. Mesmo que não seja
comigo. Tem passado todas as suas noites preso em casa por minha causa,
precisa sair e ver gente lá fora. — Apesar da sua careta deixar evidente que
não acreditou em uma palavra do que eu disse, desejei de coração.
— Sair por que, se eu tenho tudo o que preciso para ser feliz em casa?
Eu amo a sua companhia, daria tudo não ter que fazer nada além de mimar
você. — Me derreto toda, o filho da mãe sabe melhor do que ninguém me
fazer sentir especial.
— Tudo bem, professor, agora vai antes que se atrase. — Fico nas
pontas dos pés e o beijo.
— Te vejo mais tarde, Bad Girl, espere por mim nua na minha cama.
— Coloca a jaqueta, pega a chave da caminhonete e a carteira sobre a estante
e coloca no bolso.
— Vou pensar no seu caso, professor. — Ele me dá um último sorriso
antes de ir para o seu “encontro”.
É só ele virar as costas que sinto uma solidão tremenda, volto para a
minha casa planejando tomar um banho e desabar na minha cama, talvez ver
um filme. No entanto, meus planos vão por água abaixo assim que piso na
sala. Dou de cara com Valesca e Carlos sentados no meu sofá com um olhar
acusatório.
— Posso saber onde a bonita estava que deixou a porta de casa aberta,
dona Anne? — Carlos ergue a sobrancelha em um aro perfeito e bate o pé no
chão em um ritmo contínuo.
Semicerra o olhar ao afrouxar o nó da gravata preta com listras. Como
ainda está de terno, imagino que Valesca arrancou o coitado do trabalho só
para ajudá-la na missão de me colocar contra a parede. Desde que pedi ajuda
para conseguir os documentos da adoção da irmã de Castiel, ela tem feito
várias indiretas.
— Alguma coisa me diz que na casa do novo vizinho da frente, estou
errada? — ironiza Valesca.
— Eu estou sendo infiel ao Marcos com o meu vizinho. Pronto, falei!
— me sinto até mais leve depois da confissão, precisava mesmo desabafar
com alguém sobre os meus sentimentos e nada melhor do que com os
melhores amigos para isso.
Fiquei parada esperando a reação deles, torcendo para que fosse a mais
compreensiva possível.
— Puta que pariu, Anne! — Carlos arremessa o corpo contra as costas
do sofá, fico sem saber onde enfiar a cara, morta de vergonha pelo jeito que
ele me olha.
Não chega a ser um julgamento, está é mais chocado mesmo. Nunca
imaginou esse tipo de coisa de alguém como eu, a toda certinha do grupo.
— Eu sabia! Não te disse, Carlos? Você me deve cem reais, bicha,
ganhei a aposta. — Reviro os olhos, não acredito que fizeram um bolão sobre
a minha vida pessoal.
— Vocês dois não valem nada, sabiam? — me esparramei no meio
deles no sofá, estou feliz por tê-los aqui comigo, mesmo com toda essa
loucura.
— Não mesmo, amiga, quero saber os mínimos detalhes do seu caso
com o… Como é mesmo o nome dele? — pergunta Carlos, puxa as minhas
pernas e coloca no colo dele, iniciando uma massagem gostosa.
— É Castiel — digo sorrindo feito uma idiota só de falar o nome dele,
mas que droga!
— Estou muito feliz por você, amiga, está diferente. O jeito que você e
o ogro tatuado se olham é mágico, o oposto do vazio que tem quando o
encosto do seu marido está por perto. — Deito a cabeça no colo de Valesca,
ela faz carinho no meu cabelo.
Eu tenho mesmo os melhores amigos do mundo. Não poderia estar
mais feliz, não me sinto bem em esconder algo deles.
— Toma chifre na cara, tenente Vargas. O corno manso — Carlos
apelida meu marido, fica de pé e coloca um dedo de cada lado na testa,
imitando dois chifres.
Mesmo sabendo que é errado, temos um ataque de riso e dos longos,
que chega a doer a barriga e sair lágrimas do canto dos olhos.
— Vou contar a vocês como tudo começou entre mim e Castiel, apesar
de estarmos fazendo piada. Eu estou com medo de quando Marcos voltar, não
sei o que faremos. — A graça não se faz mais presente em meu semblante,
nem mais dos meus amigos.
Eles conhecem bem o temperamento de Marcos, a chance dessa minha
infidelidade terminar em morte é grande.
— Calma, Anne, não sofre por antecedência. Vai dar tudo certo —
garante Valesca.
— Agora conta para a gente quando começou a dar para o seu vizinho,
estou louco para ouvir a história de como ele conseguiu seduzir a Santa
Anne. — Não dá mesmo para ficar séria perto de Carlos, adora um malfeito.
Conto a eles tudinho, suspiram o tempo todo achando tudo muito
romântico. Uma pena que tiveram que ir embora rápido. Carlos tem que
voltar para o trabalho e Valesca tem hora marcada no salão de beleza, vai se
encontrar mais tarde com um homem que conheceu no Tinder. Falei com ela
para tomar cuidado.
Os acompanho até a porta, instantes depois que partiram a campainha
toca enquanto eu subo as escadas. Volto para atender correndo sorridente,
pensando que meus amigos esqueceram alguma coisa. Não seria a primeira
vez.
— Dois malucos! — Desço as escadas rindo.
No entanto, sou pega de surpresa assim que abro a porta. Meu sorriso
evapora, meu cérebro para e, por mais que tente mexer os lábios para dizer
alguma coisa, não sai nada.
— Bom dia, filha! Sua mãe trouxe bolo de laranja. — Meu pai sorri
daquele jeito que aquece o meu coração, do mesmo jeito de quando tinha
cinco anos.
Capítulo 20

Castiel

— Essa vista não é linda, Castiel? — Caroline segura o meu braço e


apoia a cabeça no meu ombro, fico parado feito um poste, incomodado com
as suas investidas forçadas.
De fato, a vista no topo da montanha onde me trouxe para o nosso
piquenique é magnífica, dá para ver toda a cidade, tem muito verde e uma
orquestra feita por diferentes pássaros voando à nossa volta, cantarolando. Só
o clima que não está ajudando muito, esfriou rápido com aquela ventania
típica que traz chuva logo em seguida. Nem tiramos a comida que ela trouxe
da cesta.
— Esta vista realmente é perfeita. Você vem muito aqui, Carol?
— Na verdade não, só em ocasiões especiais. — Me viro e vejo uma
luz emanando dos seus olhos, o brilho da ilusão de um novo amor que nunca
seria correspondido da minha parte.
Me sinto um verdadeiro filho da puta! Usando os sentimentos de uma
pessoa dessa forma para proteger minha relação com Anne, porra! Carol é
uma mulher deslumbrante, uma morena linda e inteligente que sabe
exatamente o que quer.
— Desculpa, Carol, mas preciso ser sincero com você. Eu tenho
alguém — digo logo de uma vez, isso de usar as pessoas nunca fez parte do
meu caráter.
— Você tem? — Sua expressão á a mais surpresa possível.
— Sim, eu tenho. Você é uma mulher incrível, talvez se tivesse
aparecido na minha vida antes dessa pessoa o meu coração seria seu agora.
— No fundo eu não acredito em uma palavra do que eu disse, em qualquer
momento ou circunstâncias em que Anne aparecesse na minha vida eu teria
me apaixonando por ela do mesmo jeito.
Caroline sorri triste ao perceber isso, e desvia o olhar para a bela vista
diante de nós por um tempo. O vento balança o tecido azul de seda da
echarpe em volta do seu pescoço, assim como seus longos cabelos negros que
voam como se tivessem vida própria.
— Obrigada por ser sincero comigo, Castiel, isso só prova que estava
certa sobre o homem que pensei que fosse. — Relaxo os ombros, aliviado.
— Se quiser podemos ir embora, Carol — faço a proposta, não queria
que ficasse magoada comigo.
— E desperdiçar esse monte de comida? Que nada! Além do mais, se
na sua vida tiver espaço para uma grande amiga seria uma honra ocupá-lo.
— Sempre tem um lugar especial para um grande amigo, seja bem-
vinda à minha vida. — Selamos o início daquela amizade que tinha tudo para
dar certo com um aperto de mãos. A vida não é tão complicada quanto parece
quando somos sinceros com os outros e conosco mesmos.
Arrumamos as coisas da cesta sobre um lençol xadrez vermelho e
branco, Caroline trouxe garrafas térmicas de chocolate quente, café e chá.
Dois tipos diferentes de suco natural, bolos, sanduíches e vários doces.
— Esse bolo de chocolate está com uma cara ótima, você que fez?
— Tudo o que está aqui foi comprado fresquinho na padaria do senhor
Zé hoje de manhã, não nasci para ser dona de casa. — Dá de ombros.
— Isso se nota de longe, Carol. — Apontei para as suas botas de salto
feitas de couro legítimo, que devem ter custado um ano inteiro do meu
salário, no mínimo.
— Vê se não enche, cara. — Me dá uma cotovelada, típica briga entre
amigos. — Eu não sei você, Castiel, mas eu estou faminta! Bora atacar esse
banquete? — Concordo, também estou faminto.
— Só se for agora, patricinha. — É tanta coisa que nem sei por onde
começar a atacar.
Passamos um tempo agradável juntos, foi muito mais divertido do que
pensei passar esse tempo com ela. Sem precisar de mentiras ou sacanear
ninguém.
Na volta para casa, Caroline insiste em pararmos em um tradicional
pub irlandês, não queria porque tenho que trabalhar amanhã. Mas acabo
aceitando. Pedimos uma Guinness, a cerveja mais forte que já provei na vida.
Animada, Carol pede à banda ao vivo para tocar uma música, me chama para
dançar e eu vou. Somos o centro das atenções no estabelecimento. Somos
foco de muitas conversas paralelas tanto da parte dos clientes quanto dos
funcionários, eu amei isso. No dia seguinte a cidade inteira comentará sobre
nosso suposto relacionamento.
Vamos embora depois de várias cervejas, cansados e um pouco tontos.
Como Carol bebeu menos, ela dirigiu. Me deixou na porta de casa e levou
minha caminhonete emprestada, no outro dia pediria para o motorista da
família trazer. A primeira coisa que percebo ao entrar no meu quarto é que
Anne não está me esperando como disse que faria, olho para o relógio ao lado
da cama e entendo o porquê.
— Você é um idiota, Castiel! — O ponteiro marca meia-noite, que
porra! Acabei perdendo a hora, Anne cansou de me esperar e foi embora.
Vou atrás dela mesmo mal conseguindo andar direito, nunca mais
quero ver uma garrafa de Guinness na minha frente. Preciso pedir desculpas
pelo atraso. Mas a porta da casa da Anne está trancada, isso é muito estranho,
combinamos de deixar destrancadas as portas dos fundos das nossas casas
para quando um sentisse a falta do outro.
Porra! Ela está realmente muito zangada comigo, não quer me ver.
Quando vejo a luz do quarto acesa, tomado pela adrenalina do
arrependimento junto com o álcool correndo pelas minhas veias, decido
escalar até a varanda. De um jeito ou de outro, vou falar com Anne essa
noite.
— Por favor, me deixa entrar, Anne. Sou eu, o seu Castiel. — Chego na
sua janela e a chamo com a voz arrastada.
— Você ficou louco, Castiel? Os meus pais estão em casa, se eles
acordarem e te virem aqui eu estou… — Anne abre a janela, meu coração se
aquece em vê-la.
Zangada, Anne coloca as mãos na cintura sobre o tecido fino de uma
camisola sexy dos infernos, minha primeira atitude foi silenciá-la com um
beijo.
— Eu senti tanto a sua falta hoje, Anne, acho que não sei mais viver
sem você — declarei em meio ao beijo, passar o dia longe dela me mostrou
quão grandes são os meus sentimentos por ela.
— Você precisa de um banho gelado, Castiel! Pelo visto o encontro
com a filha do prefeito foi ótimo. — Interrompe o beijo, agarra a gola da
minha blusa e me arrasta até o banheiro.
— Só um minuto, eu estou bêbado demais ou você disse que os seus
pais estão aqui? — perguntei enquanto ela me ajudava a tirar a camisa, suas
mãos estão um pouco frias.
— Sim! Eles vieram sem avisar. Me parte o coração mentir para eles
que vivo uma vida feliz — diz com tristeza enquanto liga o chuveiro.
— Eu sei, amor, por isso quero que você fuja comigo o quanto antes e
seja feliz de verdade ao meu lado. Além disso, estou com um mau
pressentimento. — Atropelo a calça pelas minhas pernas abaixo, se não fosse
Anne vir me ajudar a tirar, tinha ido de cara no chão.
— Não posso fugir com os meus pais aqui em casa, vou dar um jeito
deles irem embora e então preparamos tudo para a nossa fuga.
— Você está falando sério, meu amor? — Segurei seu rosto delicado
entre minhas mãos.
— Claro que estou, seu cachaceiro sem vergonha, agora se enfia
debaixo desse chuveiro que eu vou buscar uma toalha para você se enxugar.
— Me empurra para dentro do box de forma nada gentil. Eu mereço.
— Eu não sou cachaceiro não, senhora. Sou consumidor. — Me deu
um tapa no ombro rindo baixinho com medo de acordar os pais, depois foi
buscar a toalha.
É muito bom esse clima descontraído entre nós, mesmo em meio às
dificuldades. Pensei que Anne iria desfolhar o meu corpo por ter passado o
dia fora com a Carol. Terminar tudo entre nós. Mas não. Estou orgulhoso
dela estar conseguindo controlar suas inseguranças, aprendendo a confiar em
mim e a entender que não sou e nunca serei igual ao imprestável do marido
dela.
Capítulo 21

Anne

— Rindo sozinha logo de manhã, filha? — Minha mãe chega na


cozinha no exato momento em que eu estou terminando de preparar o nosso
café da manhã, enquanto lembro de como foi bom passar a noite inteira
dormindo abraçada com Castiel.
Não passamos disso para respeitar a presença dos meus pais em casa.
— Nada de mais não, mãe, só lembrei de uma piada engraçada que a
Valesca contou ontem. — Escondo a verdade atrás de um pigarreio.
— Sabe que eu estou com saudades dessa maluquinha, a mãe dela
esteve lá em casa na semana passada e disse que as duas enfim voltaram a se
falar — comenta.
Sorrio feliz por elas. Podemos não ter achado a irmã do Castiel, mas
pelo menos a procura dos documentos da doação da irmã dele resultou em
um início de reconciliação entre Valesca e a mãe, acho que enfim chegou à
conclusão que a excentricidade da filha não vai mudar nunca.
— O que a senhora acha de convidarmos as duas para sair, mãe? Um
encontro entre mães e filhas.
— Adorei a ideia, filha, mas espero que as duas não briguem tanto
como da última vez. — Balança a cabeça com uma careta engraçada.
— Valesca derrubou vinho tinto no casaco branco da mãe de propósito,
só porque ela havia implicado com o comprimento do vestido dela. — Sorrio
ao lembrar, foi um jantar bem tenso.
Sirvo uma xícara de café para a minha mãe e em seguida beijo seu
rosto.
— Obrigada, querida, eu te amo! —Puxa a cadeira e se senta à mesa,
sorridente.
— Eu também te amo, mãe. Adorei o modelo de turbante de hoje.
— Sério, Anne? Aprendi a fazer semana passada em um tutorial no
YouTube, seu pai também amou, filha. Na verdade, eu posso vestir um saco
de batatas que Manuel diz que estou linda. — Revira os olhos e ajeita o lenço
vermelho e amarelo arrumado de um jeito impecável na cabeça, de tal
maneira que na frente forma uma flor grande.
Para o look não ficar muito chamativo, veste um macacão branco
comprido de mangas três quartos com o decote moderado.
— Alguém falou meu nome aqui? — Meu pai aparece descalço na
cozinha, de bermuda preta e camiseta, eu adoro o fato deles se sentirem à
vontade na minha casa.
Beija minha testa, depois se senta no colo da minha mãe fazendo graça.
— Vai calçar um chinelo, Manuel. Não quero que pegue um resfriado,
homem. Seu marido também é teimoso assim, Anne? — Apenas nego com a
cabeça, quem dera se o meu único problema com Marcos fosse a teimosia.
— Não começa, Penha, me deixa ser feliz. — Beija os lábios dela, eles
nunca tiveram vergonha de mostrar o que sentem um pelo outro em frente
dos outros. São completamente apaixonados, mesmo depois de quase trinta
anos de casados.
Parando para pensar, não me lembro uma vez que seja deles brigando
para valer a ponto de ficarem sem se falar depois. Encosto no balcão de
mármore para admirar o amor dos meus pais, formam um casal perfeito. Mas
inusitado, fazem o tipo “opostos que se atraíram”. Papai faz o tipo nerd com
óculos de graus e roupas simples. Já minha mãe é uma mulher ousada, linda e
empoderada. Sua alegria me encanta. Amo suas roupas coloridas, turbantes
com lenços de estampa africanos, pulseiras e brincos que ela mesmo faz e
vende na sua conhecida loja de bijuterias aqui em Campo Grande.
Eu queria ter herdado o seu estilo marcante. A altura e as curvas
definidas também não seriam nada mal. Mas a única coisa que dizem que
tenho dela é o sorriso, o resto sou a cópia perfeita do meu pai. Até mesmo na
timidez somos idênticos.
— Vamos parar com essa melação vocês dois, e decidir o que mamãe
fará para o almoço? Porque estou com saudades da comida da dona Penha —
brinco e minha mãe me olha torto fazendo bico, e depois ri alto.
— E eu estou com saudades de cozinhar para o meu bebezinho, farei
um frango recheado de dar água na boca.
— Humm! Que delícia, querida. Já disse hoje que te amo? — meu pai a
bajula.
— Eu te amo, minha negona linda. Você, Penha, é um presente de Deus
na minha vida. E ainda me deu uma filha incrível, estar ao seu lado faz de
mim um homem melhor — se declara olhando nos olhos de mamãe, enquanto
segura a mão dela com cumplicidade.
Meus olhos enchem de lágrimas vendo a cena, é isso que eu quero para
a minha vida. E quero ao lado de Castiel. Cansei de grandes sofrimentos e
pequenas alegrias. Preciso ser feliz agora! Felicidade em conta-gotas não
enche mais a taça da minha vida. Quero uma enxurrada de sorrisos e
declarações de amor, mas, acima de tudo, estar com alguém que me respeite.
Castiel está certo, não temos mais o que esperar. Vou dar um jeito de
falar com ele para fugirmos juntos nessa madrugada. Deixarei uma carta de
despedida para os meus pais explicando tudo, eles precisam saber a verdade e
se proteger de Marcos, até mudando de cidade, se possível. Pedirei mil
desculpas por colocá-los nessa situação de perigo, mas pela primeira vez em
anos vou pensar em mim primeiro. Pode parecer egoísta, mas às vezes a vida
nos obriga a ser.

Fico com a ideia da fuga na minha cabeça enquanto auxilio minha mãe
no preparo do almoço; deixo-a recheando o frango e saio com a desculpa que
vou à minha horta pegar algumas verduras para fazer uma salada orgânica.
De longe, avisto Castiel no topo de uma escada consertando alguma coisa no
telhado da fachada da frente, concentrado no trabalho. Dou um assobio para
chamar sua atenção, ele sorri galante assim que me vê.
— Precisamos conversar sobre a nossa fuga, não quero mais esperar.
Tem que ser essa noite — falo em Libras, mais decidida do que nunca.
É mais confiável nos comunicarmos dessa forma do que pelo celular
que Castiel comprou para mim, não quero correr o risco dos meus pais
ouvirem a ligação ou lerem a mensagem sem querer e descobrirem tudo antes
da hora. A verdade é que será mais fácil contar tudo através de uma folha de
papel, olho no olho não sei se tenho coragem.
Eles sãos as pessoas que mais amo no mundo, e que menos gostaria de
decepcionar. Espero que possam me perdoar algum dia.
— Pegue apenas o necessário, vamos embora assim que os seus pais
dormirem — responde de volta, animado, se desequilibra e por pouco não cai
da escada.
O enorme alívio que sinto em saber que faltam poucas horas para eu
estar livre do inferno que vivi por tanto tempo é indescritível. Tenho vontade
de chorar.
— Combinado, meu amor! — Trocamos um aceno de cabeça.
— Vai dar tudo certo, minha vida, não se preocupe — ele afirma.
Não respondo mais nada. Endireito a postura ao sentir alguém se
aproximar, viro depressa para trás com medo de ter sido pega.
— Que susto, pai! — Levo a mão sobre o peito sentindo o meu coração
bater assustado, será que nos viu conversando? Ele não sabe nada de libras,
mesmo assim poderia achar suspeito.
— Por que essa cara de quem tem culpa no cartório, filha? — brinca
com as mãos juntas atrás do corpo, analisando minhas feições à procura de
algum vestígio de confirmação ao seu comentário.
— Se me der licença, senhor Manuel, tenho que ajudar sua esposa com
o almoço. — Mostro a língua para ele e saio correndo rindo, de longe ouço a
gargalhada alta dele.
Aproveito ao máximo minhas últimas horas com os meus pais, nosso
almoço foi muito divertido. À tarde vemos um filme de terror, porém, mais
rimos do que ficamos com medo. Como despedida, cozinho um banquete
para o jantar. Minha mãe se oferece para pôr a mesa, aproveito para me
trancar no meu quarto e arrumar a mochila com tudo o que precisaria para a
nossa fuga.
— Tudo pronto, agora é só esperar o momento certo para sair sem ser
vista pelos meus pais — sussurro para mim mesma, abraçada com a minha
mochila, falta pouco agora.
A mochila cai das minhas mãos quando ouço o motor de uma Mercedes
que conheço muito bem, roncando em frente à minha garagem.
— Por favor, meu Deus, não! — Corro para a varanda do meu quarto,
de onde vejo Marcos, ele voltou muito antes do previsto.
Sinto que não voltou à toa. Ainda dentro do carro, me olha fixamente
de baixo para cima através do vidro do veículo, com um sorriso maquiavélico
que diz:
Pensa mesmo que pode fugir de mim, querida?
Em pânico, desfaço a mochila jogando tudo de qualquer jeito dentro do
guarda-roupa. O desenho que Castiel fez de mim eu escondo debaixo do
colchão da minha cama. Lembro do celular e pego para colocar junto, mas no
nervosismo deixo o aparelho cair no chão e quebrar em vários pedaços.
— Merda, merda… Merda! — Dou tapas na minha própria cabeça, isso
não podia ter acontecido, agora estou sem nenhum tipo de comunicação com
Castiel.
Tento não pensar nisso agora, cato o que sobrou do celular e jogo no
lixo do banheiro, colocando por cima quase um rolo inteiro de papel
higiênico para cobrir. Com todas as provas da minha vida infiel encobertas,
respiro fundo várias vezes e recobro a postura da melhor forma que posso
para recebê-lo o mais naturalmente possível. Desço para a sala de jantar e
sento-me ao lado da minha mãe, ela e o meu pai conversam animados.
— Me passa mais um pouco desse molho de ervilha, filha? Está uma
delícia — minha mãe tenta puxar assunto comigo, percebe que estou tensa.
Pego a tigela e entrego-a com os olhos fixos na porta que dá acesso
direto à garagem, Marcos passaria por ela a qualquer momento. Pensei que
nunca mais fosse ter aquela sensação horrível de medo consumindo cada
pedacinho do meu ser. O ranger da maçaneta girando parece mais alto do que
o de costume, o medo deixa nossos sentidos aguçados.
Marcos entra com o peito estufado dentro do seu uniforme do exército
repleto de medalhas. Pela expressão pesada, já está muito irritado só mesmo
em colocar os olhos em mim.
— O que ainda está fazendo aí sentada, que não veio me receber na
porta, mulher? Quero as minhas roupas sujas da viagem todas lavadas ainda
hoje. Espero que dessa vez tenha cozinhado algo decente para o jantar. —
Vem andando na minha direção dando ordens, como se fosse um barão e eu a
sua escrava.
Não tinha notado que os meus pais estão presentes, não até a minha
mãe fingir uma tosse para chamar-lhe a atenção para eles, sentados na mesa
comigo.
— Meus sogros queridos, que surpresa boa vê-los por aqui. — Se
aproxima com o sorriso mais falso que já vi na vida. Tudo nele exala
falsidade, até o ar que respira.
Meu marido abraça o sogro, que baba em cima do genro tenente
“perfeito” que pensa ter. Me olha com orgulho por cima do ombro de
Marcos, tipo:
“Você é uma mulher de sorte, filha.”
Marcos cumprimenta minha mãe dando-lhe um beijo carinhoso no
rosto, faz alguns elogios falsos e pergunta como tem passado. Diz que estava
com saudades da sua presença encantadora. Por alguns minutos, penso em
como teria sido a minha vida se aquele doce homem de mentirinha tivesse
sido o meu marido em todos esses anos. Poderíamos ter sido muito felizes,
tido filhos lindos.
— Não vai dar um abraço caloroso no seu marido, Anne? Deve estar
muito feliz que ele voltou antes do previsto. — Um sorriso enojado rasga a
minha boca na direção de papai, quero gritar de raiva.
Óbvio que não senti nem um pingo de saudades do meu marido. Por
mim, ele teria ficado por lá e que não voltasse nunca mais. O odeio com todas
as minhas forças, prefiro me matar do que ser obrigada a continuar ao seu
lado. É tão diferente do meu Castiel, em todos os sentidos, principalmente no
caráter.
Coitado do meu amor!
Deve estar feliz preparando tudo para fugirmos juntos e viver o nosso
amor, tenho vontade de morrer de tanto chorar imaginando como ficará triste
quando perceber que eu não vou aparecer.
— Você ouviu o que seu pai disse, querida? — Marcos me dá uma
olhadela de porco. Puxa uma cadeira e faz questão de sentar-se de frente para
mim.
Se estivéssemos sozinhos já teria me pegado pelo cabelo e me jogado
no chão, socado e chutado até cansar.
— Claro que eu ouvi, não sou surda. Seja bem-vindo de volta à sua
casa, Marcos! — Sorvi um gole do suco de acerola com desdém.
Quase engasgo com o chute na minha perna que ele dá debaixo da
mesa, por tê-lo lhe recebido de maneira rude. Eu nem me abalo, limpo minha
boca com o guardanapo como se nada tivesse acontecido. Sei que é só meus
pais virarem as costas que, se ele não tiver um motivo para me bater, inventa
um.
— E o meu beijo, meu amor, onde está? — O maldito fez de propósito
para me desafiar, faz muito tempo que não me beija e agora vem para cima de
mim com esse papinho na frente dos meus pais.
— Depois, querido, vou arrumar um prato para você primeiro, deve
estar com muita fome. — Puxo os cantos da boca em um sorriso falso, se me
obrigar a beijá-lo nem sei o que serei capaz de fazer.
Levanto-me e vou para a cozinha pegar um prato para ele, o desgraçado
me puxa em um movimento rápido e beija a minha boca.
Maldito filho da puta!
— Se fizer uma gracinha, eu mato os seus pais na sua frente — ameaça
discretamente assim que nossos lábios se separam, quero voar no pescoço
dele à unha.
Mas meu estômago embrulha tanto que só dá tempo de correr até o
banheiro mais próximo para me debruçar sobre o vaso e vomitar tudo o que
estava no meu estômago, parece até que o beijo de Marcos me envenenou,
que nojo! Sinto um gosto amargo impregnado na minha boca.
Pego um pedaço do papel higiênico para limpar minha boca, dou um
sobressalto ao ouvir fortes batidas na porta.
— Por que está demorando tanto para voltar, Anne? Quando seus pais
forem embora, vamos ter uma conversinha — ameaça Marcos.
— Eu já estou indo, só um segundo — peço cansada e volto a colocar
as tripas para fora.
— Pelo jeito nem o seu estômago suporta mais a porcaria da sua
comida, querida. — Se vai, rindo do meu mal-estar.
Não aguento mais a pressão, abro o armário sobre a pia e pego o frasco
mais forte da minha coleção de remédios antidepressivos, arranco a tampa e
viro todo o conteúdo na mão, decidida a tomar todos de uma vez só em meio
a um mar de lágrimas silenciosas. Para me livrar de Marcos, só com a morte.
— Vamos, Anne, você consegue — digo para o meu reflexo no
espelho.
Coloco os comprimidos na boca, estou prestes a começar a engolir
quando a imagem do sorriso lindo de Castiel vem à minha mente, a voz doce
ao pé do meu ouvido dizendo coisas bonitas. O jeito de me olhar que é só
dele. Perdi a coragem de acabar com a minha própria vida, preciso ser forte e
lutar até o fim. Cuspo todos os comprimidos dentro do vaso e dou descarga.
A raiva pelo Marcos é gigante, mas os meus sentimentos por Castiel
são muito maiores. Não tem medida. Por isso lutarei para ficarmos juntos
para sempre. Ele é minha alma gêmea. Prometi que nunca desistiria dele,
mesmo quando as coisas ficassem feias, e vou cumprir.
Lavo o rosto e prendo o cabelo em um rabo de cavalo com um elástico
que achei na gaveta. Volto para a sala de jantar como se nada tivesse
acontecido, fingindo falso controle. Decido não provocar mais Marcos essa
noite, fico calada ouvindo a conversa dele com os meus pais, contando um
monte de mentiras sobre o nosso casamento de contos de fadas. Fico enjoada
novamente e não consigo comer mais nada, meu estômago está frágil.
Depois do jantar, subo ao meu quarto na esperança de ter um pouco de
paz, mas dou de cara com o próprio demônio esparramado na minha cama,
com as mãos atrás da nuca e as pernas cruzadas, só de cueca samba-canção,
tranquilamente.
— O que está fazendo aqui, Marcos? Volte para o seu quarto — me
imponho corajosamente levando as mãos na cintura, o encarando de frente.
— Tem alguma coisa diferente em você, Anne. Não sei o que é, mas eu
gosto. Me excita. Por isso, pela primeira vez vou dormir com você, quero
usar o seu corpo. — Vem para cima de mim, mas me esquivo do seu toque.
— Se quiser dormir no meu quarto, Marcos, fique à vontade, mas eu
vou para o quarto de hóspedes do andar de baixo — explico com mais
gentileza do que ele merece.
Saio andando rápido sem esperar resposta, sei que não teria coragem de
fazer nenhuma maldade comigo caso algum dos meus pais estivesse por
perto. Contudo, rente à porta sinto uma batida forte na cabeça e apago antes
mesmo que minha mão chegue a alcançar a maçaneta.
Capítulo 22

Castiel

A noite passou e nem sinal da Anne, nenhuma mensagem ou


telefonema. A qualquer momento vou abrir um buraco na sala de tanto andar
de um lado para outro, nem tenho unhas mais para roer de nervoso, estão em
carne viva. Deus, o que pode ter acontecido para ela ter sumido dessa forma?
Estava trocando a lâmpada da varanda quando vi o marido dela chegar em
casa ontem. Meu maior receio é que tenha feito alguma maldade com ela, na
minha mente só vem imagens do filho da mãe abusando dela, agredindo-a
fisicamente. Juro por Deus! Se Marcos tiver encostado um dedo nela eu o
mato.
Pensar que quase conseguimos por tão pouco é torturante, era para
estarmos juntos nesse momento, bem longe desse lugar infernal. Sem saber
mais o que fazer, vou até a varanda do meu quarto na esperança de ver Anne,
mesmo que só por um instante. Isso me acalmaria um pouco.
— Mas que porra é essa? — vocifero ao perceber que a porta da
varanda do quarto de Anne foi fechada com uma parede de tijolos enorme.
Todas as outras janelas e portas da casa estão trancadas, como se não
tivesse ninguém. Como construiu tão rápido e sem fazer barulho, meu Deus?
E por qual motivo? Será que o marido dela descobriu tudo? Meu desespero se
torna ainda maior e a culpa também. Se tivesse tomado uma atitude antes, a
mulher que eu amo não estaria em perigo nesse momento.
E se ele a matou?
Eu não me perdoaria nunca.
Levo as duas mãos na cabeça, desnorteado, sem saber se entro na casa
de Anne quebrando tudo ou chamo a polícia. Mas o que eu diria? Eles jamais
escutariam a denúncia de um ex-presidiário em liberdade condicional contra
um tenente do Exército, cuja mulher está sendo infiel com ele. Para quem não
conhece nossa história a fundo, pensaria que somos os vilões e o Marcos a
vítima, o pobre coitado traído enquanto estava fora a trabalho lutando pelo
país. Dá até vontade de rir de uma merda dessa.
Acho melhor me controlar e aguardar por algum sinal de alguém na
casa, e continuo mandando mensagens para Anne, uma atrás da outra,
implorando para que só diga se está bem. Ligo várias vezes e nada. Quando a
tarde chega estou farto de esperar, não posso mais ficar de braços cruzados.
Vou tirar meu amor dessa casa ou morrerei tentando.
Cheio de coragem, vou preparado para enfrentar qualquer coisa que
apareça pelo meu caminho. Assim que abro a porta de casa, dou de cara com
padre Valentim, com a mão fechada em punho parada no ar, prestes a bater
nele.
— O que faz aqui, padre? Aconteceu alguma coisa com a Anne? —
Balanço o coitado pelos ombros, totalmente fora de mim.
Ele junta as sobrancelhas, me empurra de volta para dentro e me
abraça.
— Calma, filho, está tudo bem. Eu estou aqui agora. — Não aguento e
desabo, não faço ideia do que fazer.
— Eu estou com tanto medo, padre! Por favor, me ajude. Se o senhor
não tivesse chegado aqui, teria feito uma loucura.
— E você acha mesmo que entrar lá dando uma de Indiana Jones
quebrando tudo atrás da Anne, vai resolver alguma coisa? Já vimos esse filme
antes, onde o certo acaba saindo como errado — sussurra como se estivesse
com medo que alguém ouvisse a nossa conversa, tranca a porta e fecha as
cortinas.
Meu Deus! Como o padre sabia sobre o meu caso com Anne? Meu
rosto está queimando de vergonha, deve estar pensando em como eu fui
abusado, ele me estendeu a mão e seu protegido não pensou duas vezes antes
de decepcioná-lo seduzindo a professora casada de catecismo da paróquia.
— Ma... Mas como o senhor descobriu? — gaguejo de cabeça baixa,
sem coragem de olhar para ele, o homem que eu mais respeito no mundo.
— A sua cara de panaca perto dela te entregou, Castiel. Desculpe, filho,
mas essa é a verdade. — Gira os olhos dentro das órbitas. Em um longo
suspiro, caminha até a escada e se senta no primeiro degrau.
— Desculpe por tê-lo decepcionado novamente, padre. Juro que tentei
não me apaixonar pela Anne, mas quando vi já era tarde, estava louco de
amores por ela — sou sincero, a verdade é que, de um jeito ou de outro, iria
revelar sobre o nosso romance para ele a qualquer momento.
Desde criança nunca consegui esconder nada do padre. Sento-me no
chão próximo a ele, sua presença me deixa mais calmo.
— Você nunca me decepcionou, principalmente agora. Esse Marcos
bem que mereceu uma galhada na testa, que o Senhor não me castigue por
dizer isso. Nunca fui com a cara desse homem. Pronto, falei e não me
arrependo! — Faz o Sinal da Cruz olhando para cima, conversando com
Deus.
Por isso gosto tanto do padre, fala o que pensa. Não faz o tipo bom
samaritano para alimentar uma falsa fé aos seus fiéis e ter a igreja cheia de
almas vazias durante a missa.
— Já estava tudo certo para fugirmos ontem à noite, mas o marido dela
voltou antes do previsto. Tem coisas que o senhor não sabe sobre esse
homem, ele a trata como uma empregada e a espanca desde que se casaram, o
corpo dela é cheio de cicatrizes. — Aperto os punhos imaginando ser o
pescoço de Marcos, eu passaria mais dez anos na cadeia com gosto por esse
crime.
— Misericórdia! A situação da Anne é pior do que eu pensava casada
com esse homem. Eu vi o carro dele passando na cidade ontem, já em mente
que você faria alguma besteira.
— Desde que ele chegou em casa que não tenho notícias da Anne,
padre, e se ele a machucou? Tudo o que eu quero é tirá-la de lá e cuidar dela,
construir uma família ao seu lado e fazê-la feliz. — É a mais pura verdade,
quero tudo que a felicidade pode me oferecer ao lado dessa mulher.
— Confesso que não concordo com a forma que o amor de vocês
começou, mas ambos já sofreram demais para agradar aos outros, merecem
ser felizes.
— Então o senhor vai nos ajudar, padre? — Fico de joelhos aos seus
pés.
— Claro que vou, menino, agora se levanta desse chão. Vou dar um
jeito de saber se Anne está bem. Se quiser escrever uma carta para ela,
prometo que chegará às mãos dela. — Quase o esmago em um abraço desses
de urso, agora ele é a única ponte entre mim e Anne.
Não perco tempo, escrevo a carta com todo o meu amor. Não sei como
as coisas ficarão nos próximos dias, mas com a ajuda do padre Valentim sei
que vai dar tudo certo. Minha esperança voltou. Dessa vez eu agi da maneira
certa, com cautela. Não deixarei a raiva falar mais alto, serei paciente e não
meterei os pés pelas mãos.
Às vezes, precisamos deixar a voz da razão gritar para sufocar as
batidas do coração. Nem todas as histórias de amor seguem o mesmo
padrão.
Capítulo 23

Anne

Abro os olhos com dificuldade, estou completamente nua. Uma fisgada


estranha na minha nuca não me deixa raciocinar direito, é como se uma
agulha estivesse penetrada na minha carne. Consigo me sentar na cama, mas
não enxergo nada, meu quarto está muito escuro. Uma escuridão assustadora,
é como se alguém me observasse de algum canto.
— Bom dia, amorzinho! Dormiu bem? — A voz ameaçadora do
Marcos arrepia-me a espinha, não faço ideia de qual lado veio.
— Acenda a luz e abra a janela, por favor, Marcos! Está muito quente
aqui. — Passo a mão pelo meu rosto suado, minha pele está pegando fogo.
— Que janela, Anne? — Acende a luz para que eu veja uma parede de
blocos cinza malfeita, provavelmente por ele.
Não sei o que deu na cabeça de Marcos para ele estar enfiado dentro do
meu roupão branco, é pequeno para ele. Pelo espelho da penteadeira atrás
dele posso ver a metade da sua bunda aparecendo.
— Chega do nosso vizinho ficar bisbilhotando nossa vida, hoje ele não
saía daquela bendita varanda olhando para cá. — Enquanto ele fala, me
concentro apenas na arma semiautomática com silenciador.
— Por que está armado em casa, Marcos?
— Para te proteger do nosso vizinho, querida. Acabei de puxar a ficha
dele, ele é um ex-presidiário. É Castiel o nome dele, não é? Não podemos
confiar nesse tipo de gente. Ainda bem que basta um deslize e ele volta para
trás das grades ou vai para debaixo da terra, o que você acha disso? — Veio
até mim e encostou o cano da arma no meu queixo, quer me amedrontar.
— Para com isso, Marcos! Se vai me matar, pelo menos tenha bom
senso e espere os meus pais irem embora — suplico.
— Já faz um dia que os seus pais foram embora, Anne. Não se
preocupe, somos só eu e você agora. — Solta uma risada maquiavélica,
deslizando a arma pelo meu rosto.
— Que dia é hoje, Marcos? — pergunto, perdida no tempo.
— Segunda-feira, meu amor. Como você estava indisposta, disse aos
seus pais para voltarem outro dia e não se preocuparem porque eu cuidaria
direitinho da minha esposa. — Forço a minha mente na tentativa de lembrar
de algo e deu certo, a última imagem concreta que tenho foi de tentar fugir do
quarto para não ter que dormir com Marcos.
Algo acertou a minha cabeça e tudo ficou escuro, o que aconteceu
depois são só flashes de quando abria os olhos, Marcos me obrigava a engolir
alguma coisa e eu voltava a dormir.
— Você me drogou todo esse tempo? — Me afasto dele para a ponta da
cama, não imagino qual será a próxima maldade que fará comigo.
— Não, senhora, apenas cuidei de você dobrando a dose do seu
calmante. Te achei muito nervosa quando cheguei.
— Nunca vou entender o porquê de ser tão cruel comigo, sempre tentei
te agradar. Ser uma boa esposa — tento argumentar.
— E eu acho bom que continue assim, mulher, nunca vou deixar que se
separe de mim. Você é minha. — Pega o abajur sobre o criado-mudo ao lado
da cama e arremessa contra a parede, me assusto com o barulho.
— Não pode me obrigar a ficar do seu lado, Marcos — tento ser firme,
com muita sorte ele cairá em si.
— Sim, eu posso. Ou serei obrigado a cumprir a minha promessa e
matar a todos que você ama. Inclusive o padre Valentim. Também tem aquele
mudinho, seu aluno de catecismo, como é mesmo o nome dele? Ah, lembrei,
Joãozinho. — Viro o rosto para o lado, não quero que ele veja que eu luto
contra as lágrimas.
— Eu te odeio, Marcos.
— Eu também te amo, querida. Agora vê se arruma essa cara porque
aquele padre insuportável ligou umas cem vezes, disse que vem daqui a uma
hora te visitar — avisa e graças a Deus sai do quarto. Pela primeira vez desde
que Marcos voltou eu sorri com um pouco de esperança.
Poderia ter notícias de Castiel através do padre, ele dever estar em
desespero com tanto tempo sem notícias minhas. Estou com tantas saudades
dele. Me apresso para tomar banho, apesar da vontade de continuar na cama,
pois me sinto fraca. Coloco um vestido comprido florido e deixo o cabelo
solto para disfarçar a palidez do meu rosto, pareço um zumbi.
Desço para o andar no exato momento em que a campainha toca.
Quando abro a porta vejo um padre com um olhar bastante preocupado, não
precisou abrir a boca para eu saber que já estava a par de tudo, da minha
situação e do Castiel.
— Que bom te ver, minha filha. — Já foi logo me abraçando, parece
sentir um alívio enorme por constatar que eu estou viva.
— Eu preciso de ajuda, padre. — Mexo os lábios sem deixar o som
sair, ele assente.
— O filhote do demo está por perto? — confirmo com o dedo polegar.
Ele se aproxima e cochicha baixinho. — Fique tranquila, filha, Castiel tem
um plano para te tirar desse inferno. — Assinto com um sorriso desses que
ilumina o mundo todo.
— Entre, padre, vou fazer um chá de hortelã para o senhor. — Seguro
no seu braço e, a passos cautelosos, vamos para a cozinha certos de que
estamos sendo vigiados por Marcos.
Nossa conversa teria que ser em códigos e precisamos ficar atentos a
qualquer ruído diferente.
— Que vestido lindo, Anne, onde comprou esse tecido? — Finge
verificar a qualidade do pano e, com discrição, coloca uma folha dobrada no
bolso do meu vestido enquanto encho a chaleira com água para fazer nosso
chá.
Ele nem precisa dizer que isso é uma carta do meu Castiel, meu
coração já sabe. Eu o amo tanto, ter notícia dele me dará mais forças.
— Muito obrigada, padre! Esse vestido era da primeira esposa de
Marcos, a maioria das roupas que tenho eram dela. Ele me contou que um dia
chegou de uma missão e Amélia havia desaparecido, foi embora deixando
tudo para trás. — Mantenho a pose dando continuidade a essa conversa
estranha, mas agradecendo mil vezes pelo olhar por estar se arriscando para
nos ajudar.
Sempre me achei uma fraca por deixar o medo me vencer e não ter
feito igual a Amélia e ido embora assim que comecei a ser agredida
fisicamente pelo Marcos, ela com certeza não aceitou viver debaixo dos pés
do Marcos e partiu. Admiro muito a coragem dela.
— Eu lembro dela todos os dias, pobre Amélia. Agora muita coisa
sobre a fuga dela com o suposto “amante” faz sentido — lamenta o padre
balançando a cabeça, como se depois de muito tempo tivesse conseguido
montar as peças de um complexo quebra-cabeças.
— Como ela era, padre? Marcos vive me comparando com essa
mulher, mas nunca nem me mostrou uma foto dela, até duvidei que ela fosse
de fato real. — Enquanto a água ferve, puxei uma cadeira da mesa da cozinha
para que ele se sente e me conte mais sobre a primeira senhora Vargas.
Padre Valentim olha para os lados e se aproxima mais de mim e
sussurra:
— Ela era real sim, filha, Amélia foi professora de catecismo na minha
igreja, e fazia parte do coral da igreja, assim como você. Sempre foi amada
por todos, por isso ficamos muito tristes quando soubemos da sua suposta
partida. Pouco tempo depois, Marcos abriu um processo de separação
alegando abandono de lar. Como foi o único a comparecer em todas as
audiências, o pedido foi concedido.
— Que história estranha, Marcos sempre se refere a ela como
vagabunda traidora. E a família dela ainda mora em Campo Grande?
— Sim, filha, nem eles nunca mais tiveram notícias dela. A mãe
adoeceu com a falta da filha, não cansa de dizer que queria que a filha
voltasse para a casa, viva ou morta. — Tenho uma sensação muito estranha
ao saber do apelo dessa mãe, é como se ela soubesse que a filha não está
entre nós.
Sinto-me tonta e perco a coordenação motora da minha mão, deixo cair
no chão a xícara que acabei de pegar no armário. Os pelos do meu corpo
estão eriçados, como se uma força maior estivesse ao meu lado avisando para
tomar cuidado com Marcos ou o meu fim seria a morte.
— Seja mais atenta, querida, não quero que se corte com isso. —
Falando no diabo, ele se materializa na porta com as mãos enfiadas no bolso
e a cara fechada.
Marcos trocou de roupa. Está de camisa polo e calça social, todo de
preto como se estivesse indo a um velório.
— Foi só um acidente, Marcos, não se preocupe. — Abaixo-me para
catar os cacos, padre Valentim, gentil, se agacha para me ajudar já que o meu
marido permaneceu onde está.
— Como vai, padre? Seja bem-vindo à minha casa, é uma honra
recebê-lo. — Dá um sorriso.
— Eu vou bem, Marcos, muito obrigado pela consideração pela minha
humilde pessoa. — Mostra a língua para Marcos escondido, ele não tem jeito
mesmo.
Segurei o riso.
— Não precisa fazer isso, padre. Deixa que Anne arruma essa bagunça,
o senhor é visita, então sente-se e fique à vontade.
— Se tenho duas mãos saudáveis e posso ajudar sua esposa, por que
não o fazer? Além disso, Anne disse que está apertada para ir ao banheiro,
enquanto isso, eu e você, Marcos, terminamos de fazer o café. — Pisca para
mim, está me dando a desculpa para ler a carta de Castiel.
Sabe que depois que ele for embora, as chances de eu ter um minuto
seguro sozinha são mínimas.
— Muito obrigada, padre, já volto. — Não me dou nem ao trabalho de
olhar para Marcos, passo por ele feito um raio.
Passo pela sala e pego na gaveta da escrivaninha uma caneta azul e uma
folha em branco. Me tranco no banheiro e ouço o gotejar da torneira da pia
enquanto minhas costas deslizam na porta de madeira até encontrar o chão,
podendo, então, respirar mais aliviada.
Enfio a mão no bolso e pego a carta, abrindo-a rápido, mas com zelo,
para não amassar. Quero guardar para sempre. Começo a ler com os lábios
trêmulos, lágrimas ardem nos meus olhos.

Olá, meu amor!


Como você está? Espero que bem. Hoje o dia amanheceu escuro para
mim, meu amor. Sem cor. Não poder estar ao seu lado é como morrer aos
poucos, a dor que sinto é como se o meu coração estivesse sendo arrancado
do peito. Queria tanto que fôssemos como aqueles casais que se conhecem
ainda crianças, se tornam melhores amigos até a adolescência, quando enfim
descobrem que estão perdidamente apaixonados. Namoram anos no sofá aos
sábados, andam de mãos dadas pela rua sem se importar com quem estivesse
olhando. Às vezes brigam e até se separam, mas no mesmo dia fazem as
pazes porque sabiam que era impossível um viver um sem o outro.
Queria isso tudo com você, Anne. Tanto os momentos bons como os
ruins. Não busco o amor mais lindo do mundo, mas sim o real, com as
cicatrizes do passado, medos e inseguranças. Isso faz parte do “felizes para
sempre”, o que dura além da eternidade. Sei que as coisas parecem
assustadoras agora, mas juntos daremos um jeito. Me mande notícias suas
pelo padre Valentim, eu contei toda a nossa história para ele e se prontificou
a nos ajudar.
Você tocou meu coração de uma maneira que vai além da minha
compreensão. Acho que nos damos tão bem porque o seu coração, assim
como o meu, já foi quebrado pela vida tantas vezes que mal conseguimos
contar. Engraçado isso, não? Eu que não acreditava mais no amor,
encontrei ao seu lado mil razões para acreditar que tudo pode ser possível e
lindo quando se encontra a pessoa certa.
Aconteça o que acontecer eu não vou desistir de você, da família que
sonhamos formar juntos. Eu tenho um plano para outra tentativa de fuga,
dessa vez vai dar certo. Confie em mim.
Com todo amor, seu Castiel…

Consigo sentir o amor de Castiel enviado através desse pedaço de


papel, agora uma bagunça de palavras entrecortadas por borrões azuis
causados pelas minhas lágrimas. Nossa história parece um futuro impossível,
mas amar é isso mesmo, a magia de arriscar tudo por um sonho que ninguém
além de você consegue enxergar. Não sei como, mas faremos isso funcionar.
— Meu Deus, como eu amo esse homem! — Imagino a voz de Castiel
dizendo cada palavra escrita ali ao pé do meu ouvido, ao acariciar o meu
rosto com carinho.
O melhor da vida é amar e ser amado, conquistar e ser conquistado.
Mesmo em meio a esse furacão nunca me senti tão feliz e completa. Castiel e
eu nos completamos de uma forma tão absurda que não existe explicação no
mundo para esse fenômeno, algo tão mágico merece uma chance digna de ser
vivenciado. Por isso, agora, com forças renovadas, limpo qualquer vestígio
de choro do meu rosto.
Preciso ser rápida em escrever uma carta de volta para o meu amor,
escolho cada palavra com muito carinho. Dobro a carta e escondo no meu
sutiã para voltar à cozinha.
— Por que sempre demora tanto no banheiro, mulher? — A cara de
Marcos é de poucos amigos, na verdade, essa é a sua habitual feição.
Ele e o padre já se encontravam sentados com tudo pronto, apenas
esperando-me para o chá da tarde.
— Sério que você quer mesmo saber o que eu fiz no banheiro, Marcos?
Acredito que não será gentil fazer isso na frente de visitas. — O desafio com
o olhar.
Puxo a cadeira para perto do padre Valentim e sento-me, engatamos em
um assunto sobre a igreja que meu marido não consegue acompanhar. Ainda
assim, não sai de perto de nós um segundo, de vigia como uma águia astuta.
No fundo, sabe que tem algo a mais nessa visita do padre, mas não faz
ideia do que é e está disposto a descobrir.
— Já está um pouco tarde, meus filhos, preciso ir embora. Me
acompanha até a porta, Anne?
— Claro, padre, foi um prazer revê-lo. — Se aproxima de Marcos e se
despede, dá para ver na cara dele que se o padre não anunciasse sua partida
ele mesmo o faria, não está suportando mais sua presença.
— Vá com Deus, padre, cuidado em andar por aí naquela charrete
velha porque qualquer hora dessas pode acabar em acidente. Nunca se sabe,
não é mesmo? — ironiza o bastardo e alisa o queixo, olhando de um jeito
muito suspeito para o padre.
Para mim, foi uma ameaça camuflada.
— Eu não tenho medo de nada, Marcos, caso eu sofra um acidente
ainda hoje e morra, irei de cabeça erguida para o meu julgamento final. Mas
se eu tivesse o rabo preso como muitos por aí eu teria, afinal, a justiça dos
homens é falha, mas a Deus não. — Faz o Pai Nosso olhando direto para
Marcos, ele fica sem argumentos para isso e sai da cozinha de nariz em pé.
Bem que dizem que onde é invocada a santidade do Pai, Filho e
Espírito Santo da Santíssima Trindade, os demônios são expelidos.
— Aqui está a carta que escrevi para o Castiel, padre. Muito obrigada
por tudo o que está fazendo por nós. Mas tome cuidado, para mim essa
indireta de acidente foi uma ameaça — alerto.
Padre guarda a carta às pressas debaixo da batina.
— Não precisa agradecer, filha, podem contar comigo no que
precisarem. Não se preocupe com as ameaças do seu marido, cão que ladra
não morde.
— Estou falando sério, padre, hoje ele me ameaçou com uma arma.
Marcos está desconfiado de estar sendo enganado, então, temos que fazer de
tudo para que não descubra nada. Diga ao Castiel para tomar cuidado
também.
— Calma, filha. Castiel está na minha casa esperando por notícias suas,
achamos melhor assim para não levantar suspeitas. Já estamos agindo com
cautela. Quanto a mim, não se preocupe mesmo, se tem uma coisa que sei é
lidar com demônios. — Solto uma gargalhada, eu amo o jeito descontraído
dele levar qualquer situação.
Admiro a coragem desse velho baixinho de ir à minha casa trazer uma
mensagem de Castiel, meu amante, e ainda enfrentar Marcos, um homem
louco de pedra, de cabeça erguida e ainda sair rindo no final.
Com o tempo a gente descobre que amigo se consiste em diferentes
tipos de energia, tem aqueles que somam e aqueles que sugam. Aqueles que
só estão do seu lado quando as coisas vão bem, e os raros iguais ao padre
Valentim, que aparecem como uma luz no fundo do túnel no momento mais
difícil, segurando a sua mão decidido a colocar a vida em risco para salvar a
sua.
Capítulo 24

Castiel

Sigo sentado no terceiro degrau da varanda que fica na parte frontal da


cabana de madeira em que padre Valentim mora, com o olhar fixo na direção
da estrada de terra avermelhada. A mesma em que eu passei horas depois de
ser liberto sem um mísero centavo no bolso, mas feliz por voltar a ser dono
do meu próprio destino.
Eu me lembro de cada mínimo detalhe daquele dia, como se eu tivesse
renascido. Ganhado uma nova chance de fazer tudo diferente. Aprendi que só
quem sabe o valor da liberdade é quem a perdeu um dia, entendi isso quando
ouvi o rangido do enorme portão de aço do presídio se abrindo para eu
passar.

— Enfim, livre — sussurrei após colocar os dois pés do lado de fora,


lembro de dar uma última olhada para trás, jurando para mim mesmo que
nunca mais voltaria para um lugar infernal como aquele.
Os muros que rodeavam a Penitenciária Federal de Campo Grande
deviam ter no mínimo uns cinco metros de altura. Prisão de segurança
máxima. Foi idealizado para receber criminosos de alta periculosidade, ou
seja, os piores dos piores.
Parado ainda na calçada, fechei os olhos e inclinei a cabeça um pouco
para trás para que o leve toque da brisa passageira me recebesse de braços
abertos. Era uma atraente tarde amarelada de sol de março celebrando o
início de outono, minha estação favorita, apesar que no Brasil ela não se
manifesta com todo o seu esplendor.
Eu era parecido com ela em tudo, principalmente pelo clima instável.
Também na cor dos olhos, um castanho marrom intenso, tom de folha seca
com algumas manchas verdes dançando ao meio.
Minha personalidade sempre foi assim, imprevisível. Às vezes
agressivo, em outras chego a ser bobo de tão sentimental. Intenso como as
tempestades do princípio de abril, frio como as manhãs de outono. Porém,
acolhedor como o sol das tardes de maio. Contudo, decidido, assim como o
vento que predomina por toda a estação.
— Bem-vindo à vida, filho! Você é um homem livre agora, Castiel! —
gritou padre Valentim à minha espera do outro lado da rua, ele não disse
que viria na última visita que havia me feito na prisão. Mesmo assim, eu
sabia que estaria aqui.
— Como é bom poder ver o senhor sem uma parede de vidro nos
separando, padre! — Minha felicidade era tanta que atravessei a rua com o
sinal aberto, desviando de um carro e outro para ir ao encontro dele, a
pessoa que nunca desistiu de mim nos dez anos em que estive preso, e que ia
me visitar toda semana.
As roupas que estavam no meu corpo naquele momento, havia sido
padre Valentim que tinha comprado um mês antes do dia da minha liberdade
condicional ser aceita. Na verdade, sempre achei que tinha o dedo dele
nisso, não é à toa que fui pagar os seis últimos meses de pena fazendo
serviço comunitário no jardim dos fundos da igreja onde funciona o projeto
social criado por ele. Queria ficar de olho em mim para que não cometesse
mais nenhuma besteira.
— Cuidado, menino, não sobreviveu naquele inferno para morrer na
minha frente! — se zangou comigo.
— Obrigado por ser o pai que eu nunca tive, padre. — Eu o abracei
tão forte que ergui seu corpo gorducho do chão, quase lhe partindo ao meio
de tanta alegria, sempre o admirei muito.
— Eu também te amo, Castiel, agora me coloque no chão porque está
amassando toda a minha bata. — Deu um tapinha no meu ombro, fungando
para esconder a emoção.
— Desculpe, padre, é que estou muito feliz em vê-lo. — O coloquei no
chão, ele passou cuspe na mão e passou na extensão do tecido preto na
tentativa de desamarrotar.
Algumas coisas não mudam nunca! Pensei comigo, rindo.
— Eu também estou muito feliz em te ver, meu filho, seu quarto está
arrumado lá em casa. E, na garagem, tem uma caminhonete velha que meu
pai me deu quando era jovem, se conseguir fazer aquilo funcionar é sua, vai
precisar para o emprego que arrumei para você reformar a casa de um
conhecido meu antes de colocar à venda. Pode cuidar do jardim da igreja
nos finais de semana. — Ele nem havia acabado de desamassar a sua batina,
e eu o envolvi em um abraço ainda mais forte que o primeiro.
Dessa vez não reclamou, deixou que eu o abraçasse o tempo que fosse
preciso para demonstrar o quando eu estava grato. Graças ao padre
Valentim eu tinha tudo o que precisava para recomeçar, só faltava uma
coisa.
— O senhor tem alguma notícia do paradeiro da minha irmã, padre?
— Negou com a cabeça, cabisbaixo.
— Não se preocupe, filho, vamos encontrá-la onde quer que esteja. —
O padre afagou as minhas costas com a palma da mão em movimentos
circulares, leves e confortantes.
E assim, lado a lado, fomos embora, conversando como quando eu
tinha dez anos de idade.

Volto para o presente quando ouço o relinchar de um cavalo. Fico de pé


em um pulo ao avistar a charrete do padre Valentim um pouco distante. Ele
corta toda a região com a ajuda do Trovão, um belo animal com a pelagem
marrom escura.
Não contenho a ansiedade e atravesso o pasto para me encontrar com
ele, preciso urgente saber como Anne está.
— Cuidado, filho, quer ser pisoteado pelo Trovão? — Paro a charrete
faltando menos de um passo para passar por cima de mim, me enfiando no
meio da estrada.
Ajudo-o a descer da charrete, depois puxo as rédeas do cavalo e
caminhamos em direção ao estábulo.
— Desculpe-me, padre, mas minha ansiedade está maior do que eu
posso segurar. Só preciso saber como ela está, então, por favor, diga logo —
bufo.
— Antes de tudo, quero que saiba que ela está bem. Até resolveu dar
uma segunda chance ao marido. — Balança os ombros, como se o que tinha
acabado de falar fosse algo normal para um homem apaixonado como eu.
— Que história é essa, padre? — A minha voz sai elevada, tinha que
ouvir novamente para acreditar que aquilo é verdade.
Paro de andar e o encaro puto da vida.
— Precisava ver a sua cara, filho. — Gargalha dando um tapinha no
meu ombro, depois de quase ter me matado do coração.
Tiro a cela do Trovão quase sem fôlego, solto o animal para pastar e
guardo a charrete.
— Isso não tem graça, padre — me zango com ele.
— Você precisa relaxar um pouco, Castiel. Aquela mulher te ama. Para
que isso dê certo vai ter que acreditar mais no amor de vocês dois. Terá que
haver total confiança entre ambos.
— O senhor tem razão, desculpe.
— Marcos está desconfiado, ameaçou Anne com uma arma e jogou
uma indireta sobre eu sofrer um “acidente” a qualquer momento. — Fico
furioso.
Esse cara não tem o direito de ameaçar duas das pessoas mais
importantes da minha vida, corto suas mãos fora antes de tentar alguma coisa
contra eles.
— Eu juro por Deus que mato ele antes disso, padre! — Esmurro a
parede do estábulo, fora de mim, eu nunca odiei tanto alguém como a esse
Marcos, nem mesmo o filho da puta do meu padrasto.
— Pode sossegar o facho porque já estou no seu plano, até convoquei
reforço. — Agacha para bater a poeira da barra da batina, calmamente.
— Que reforço é esse, padre? — indago.
Já me sinto culpado por colocar o padre nessa história, não quero
colocar a vida de mais ninguém em risco.
— Confie em mim, menino! Eu apenas convoquei alguns soldados do
bem para lutar conosco nessa guerra, agora a nossa gangue está completa. —
Parece até que foi combinado, padre acabou de falar e chegou um fusca cor-
de-rosa choque correndo a “duzentos quilômetros por hora”, buzinando sem
parar.
São os amigos loucos da Anne, Valesca e Carlos.
— E aí, ogro, tudo em cima? — Desce Valesca do fusca, jogando o
cabelo para o lado, tira os óculos escuros e mostra a língua para mim.
Com uma mão puxa a saia branca curta para baixo, e com a outra
levanta a perna com as sandálias de saltos afundando terra adentro.
— Vou levando, Valesca! — Lhe ofereço a mão para ajudar a desatolar
do barro, e para minha surpresa ela aceita.
Fico muito satisfeito por isso, quero tirar a má impressão do nosso
último encontro. Se ela é amiga da mulher que amo, é minha também.
— Se acha que vou te agradecer pela ajuda está muito enganado, meu
bem, você me deve uma pelo resto da sua vida e acho que vai ficar devendo
mais ainda depois de hoje. — Gira o nariz no ar, me oferece as costas e vai
cumprimentar o padre.
Acho graça do jeito dela, essa mulher é carne de pescoço.
— Aquilo é cocô de cavalo? Eca! Que nojo! Vamos entrar logo, por
favor. — Carlos anda nas pontas dos pés até a escada, com medo de sujar os
sapatos de marca, apertando o nariz com os dedos.
— Vamos entrar, meus filhos, antes que esse rapaz morra asfixiado —
ordena o padre revirando os olhos com a frescura do rapaz. Eu balanço a
cabeça aos risos.
— Mas, e o resto do pessoal, padre? — alvoroça Valesca.
— Mas que pessoal ela está falando, senhor Valentim do Prado? —
chamo-o pelo nome completo, mesmo sabendo que não suporta.
— Vai saber na hora certa, Castiel, agora entrem em casa antes que eu
perca minha paciência com todos vocês. Essa juventude de hoje está perdida
— entra na frente resmungando. Adentramos o pequeno chalé de assoalho
atrás dele, calados e comportados.
Sua casa é muito organizada e limpa, até demais, na verdade. Minha
parte favorita é a sala com todas as paredes repletas de quadros com imagens
bíblicas pintados por ele, suas obras dão banho em muitos artistas famosos
nessa área. Também gosto de apreciar a prateleira com uma bela coleção de
discos de vinil, o de Renato Russo está em destaque, pendurado na parede.
— Tem alguma coisa para comer, padre? Preciso estar alimentada para
pensar bem, então capricha no menu.
— Para de frescura, Carlos, para você pensar bem só se trocar o seu
cérebro — implica Valesca.
Cruzo os braços impaciente com essa situação, tem gente demais aqui.
Estou perdido no meio desse povo, só quero saber mais notícias da Anne.
Esse mistério todo do padre Valentim é demais para mim.
— Sem brigas, meninos! Sentem-se e fiquem à vontade. Vou buscar
um suco de maracujá e alguns sanduíches para acalmar os ânimos e já volto,
a conversa vai ser longa. — Antes que vá para a cozinha, seguro seu braço.
— Eu preciso saber mais sobre a Anne, padre. Por favor, não me
torture assim — imploro.
— Espero que depois de ler isso sossegue um pouco, aprender a esperar
é uma virtude, sabia? — Tira uma carta de baixo da batina e me entrega,
cheguei a rir sozinho de alegria. — Quando acabar de ler não se esqueça de
escrever outra para Anne, amanhã invento outra desculpa para visitá-la
novamente e entrego a ela. — Encho a testa dele de beijos, esse homem
nunca me decepciona.
— Eu te venero, padre Valentim! — grito antes de entrar no meu antigo
quarto, a primeira porta à direita no corredor, preciso de privacidade para ler
a carta que meu amor escreveu.
Fecho a porta atrás de mim privando-me de qualquer ruído que venha
do lado de fora, dá para ouvir a voz fina irritante de Valesca a quinhentos
metros de distância. Sento-me aos pés da cama de solteiro simples feita de
madeira ainda arrumada com um lençol azul, do mesmo jeito que deixei
depois que fui morar na casa em frente à de Anne. Desdobro a folha,
emocionado, antes mesmo de ler uma palavra.

Olá, meu amor!


Eu estou bem, na medida do possível. A cada minuto que passa a
vontade de estar ao seu lado aumenta cada vez mais, e a culpa é sua por ter
me viciado em você. Apesar de ser grandão, ter esse monte de tatuagem e a
cara de mal, não consigo pensar em nada em ti que não amaria. És uma
pessoa com a alma grandiosa, a natureza mais nobre, o coração mais meigo
e carinhoso que já conheci. E tem um charme que me domina. Sabia que
poderia conseguir o que quisesse de mim com ele? Pronto, confessei! Aposto
que está sorrindo agora pensando em como usar isso a seu favor depois.
Queria poder estar aí para ver essa cena.
Gostar de você é como ouvir a minha música preferida em um dia
ruim, flutuar pelas nuvens sem tirar os pés do chão. Sentir vontade de sorrir
quando estou triste. Para duas pessoas erradas como nós, que conhecemos
apenas o lado feio do amor, até que formamos uma boa dupla juntos.
Obrigada por me fazer querer lutar por algo, lutar por nós. As coisas não
serão fáceis daqui para frente, eu sei, mas não desista de mim que eu não
pretendo desistir de você.
Eu te amo, hoje e sempre!
Ass.: Sua Anne

Abraço a folha de papel como se fosse a própria Anne, parece que


tenho um nó na garganta, mas é saudade. Quando é verdadeiro, a distância
não separa, o tempo não enfraquece e ninguém substitui.
— Aquele fusca rosa lá fora é seu, Castiel? Parece até o carro da
Penélope Poderosa. — Edgar entra no quarto sem bater e me pega com os
olhos marejados, então é ele que faltava para chegar.
Percebendo que eu não estou bem, tira o paletó do terno cinza, joga em
qualquer lugar e vem até mim para me abraçar sem perguntar nada.
— Seja o que for que está te afligindo, nós vamos dar um jeito, Castiel,
você é o cara mais durão que conheço.
— Muito obrigado, irmão. Por que não avisou antes que vinha?
— Eu soube que estaria aqui faz meia hora quando recebi uma
mensagem do padre, ele disse apenas que você precisava da minha ajuda.
Então, mesmo lotado de trabalho no escritório, aqui estou eu, e ainda trouxe a
filha do prefeito junto. — Aponta para o próprio corpo, se não fizer drama
não é o Edgar.
— Por que Caroline veio com você?
— Por acaso, Carol estava no meu escritório quando recebi a
mensagem do padre, é cliente da nossa empresa de marketing. Expliquei que
teria que sair porque alguém importante para mim precisa de minha ajuda.
Quando disse o seu nome os olhos dela brilharam e insistiu para vir comigo
ajudar no que fosse preciso, afirmou ser sua amiga também.
— Somos amigos mesmo. Não sei o que padre Valentim está
aprontando, então toda ajuda é bem-vinda. — Olho para a folha na minha
mão com alguns amassados, não existe nada no mundo que me faça desistir
de ter Anne ao meu lado.
— Aposto que tem rabo de saia no meio, mal saiu de uma confusão e já
entrou em outra. Esse é o meu amigo Castiel.
— Vai se ferrar, Edgar, pelo que me lembro eu vivia entrando em
confusão na escola, sim, mas era para te ajudar.
— Sei… Mas, falando em rabo de saia, quem é aquela loira gostosa na
sala com jeitão de piriguete do caralho?
— Cuidado com a Valesca, o que tem de bonita tem o dobro de doida
— alerto.
— Essas são o meu tipo favorito, Castiel, até parece que não me
conhece. Agora sai dessa sofrência e vamos para a sala me apresentar aquele
mulherão. — Me puxa pelo braço para fora do quarto, toda vez que me vê pra
baixo dá um jeito de me animar.
Assim que chegamos na sala, padre começa a explicar a todos o motivo
daquela reunião, os amigos da Anne choraram ao descobrir o tanto que a
amiga sofreu calada nos últimos anos, e que agora corre risco de morte.
— Eu sabia que aquele desgraçado do Marcos não valia nada, mas não
imaginava que sua maldade ia tão longe. — Valesca não consegue conter o
choro, Edgar logo se adianta para oferecer o ombro para ela.
— Por mim vamos lá agora mesmo e desmascaramos esse monstro e
tiramos minha amiga das suas garras, o denunciamos por maus tratos e
assunto resolvido — sugere Carlos movido pela ira, como se fosse tão fácil
assim.
— Um homem poderoso como Marcos, mesmo que seja condenado por
violência doméstica, não ficaria nem uma semana preso. E quando sair, irá
atrás de Anne com sede de vingança. A única chance que temos de protegê-la
é levá-la para o mais longe possível dele. Tenho tudo planejado — explico.
Se tem uma coisa que tenho aprendido com a vida é a não agir movido pela
raiva, e sim com fatos.
— E qual é esse, Castiel? — indaga Caroline, que até então vinha
mantendo-se calada, apenas escutando tudo sem esboçar nenhuma expressão.
Valesca fita a filha do prefeito de olhos semicerrados, quase dá para ler
o seu pensamento: “o que essa mulher está fazendo aqui?”. Agora sei por que
ela e a Anne são tão amigas, até antipatizam com as mesmas pessoas.
— Pelo que percebi na visita de Anne hoje, o marido está desconfiado
que ela está sendo infiel com o novo vizinho. — Padre dá um pigarreio, todos
olham direto para mim e minha cara diz tudo.
Não fico envergonhado, me apaixonar pela Anne foi a melhor coisa que
aconteceu em minha vida depois do nascimento da minha irmã.
— Precisamos tapear Marcos até a próxima missão dele. Pelo que Anne
me disse uma vez ele fica no mínimo quinze dias fora de casa.
— Tempo suficiente para vocês fugirem para longe, não é mesmo,
Castiel? — me interrompe a Caroline.
— Exatamente! Só precisamos arrumar uma forma de ganhar tempo, já
estou preparando tudo que precisaremos para a fuga. Usaremos documentos
falsos com diferentes nomes, e vamos para um lugar para onde nem mesmo
Anne sabe. Ela só vai saber quando estivermos a caminho.
— Por que não podemos saber, não confia na gente? — rosna Valesca,
só conversa comigo na base do ataque.
Sento no braço do sofá próximo a ela, esse mal-entendido entre nós
precisa acabar.
— Não é isso, Val, eu não quero que saibam para onde vamos pela
própria segurança de vocês. Marcos não pode obrigar vocês a dizer algo que
não sabem. Isso não é definitivo, afinal, a madrinha do nosso primeiro filho
tem que estar presente no batizado. — A criatura pula no meu pescoço aos
prantos, falar a palavra “madrinha” é pior do que cortar cebola para fazer uma
mulher chorar.
Com todos cientes de que terreno estamos pisando, conto todo o plano
em detalhes. Apesar de arriscado, se bem executado tem tudo para dar certo.
Depois de muita discussão e dicas de todos, montamos a estratégia perfeita e
cada um dos presentes terá um papel muito importante. Jogaremos um jogo
valendo tudo ou nada.
Capítulo 25

Anne

Como o previsto, o padre vem me visitar novamente no dia seguinte


trazendo consigo outra carta de Castiel, ainda mais romântica que a primeira.
Para a nossa sorte, Marcos saiu cedo e eu não faço a menor ideia para onde.
Ele está estranho, voltou a dormir no quarto dele e mal olha na minha cara.
Agradeço a Deus por isso. Porque se insistisse em alguma aproximação
forçada eu morreria.
Mesmo estando sozinhos, eu e o padre Valentim optamos em sentarmos
no jardim para aproveitar esse dia lindo de sol. Conto a ele que ontem Marcos
recebeu uma visita do seu chefe, ouvi a conversa deles atrás da porta do
escritório e descobri que viajará para a próxima missão em pouco mais de
uma semana. Isso significa que precisaremos correr com os preparativos da
nossa fuga, estou confiante em saber que já executaremos a primeira parte do
plano em breve. Mas para isso preciso convencer Marcos a ir à missa amanhã
à tarde.
Não gostei nem um pouco de saber que até a filha do prefeito vai
participar. No começo pensei que o meu problema com ela era apenas
ciúmes, mas por mais que eu me esforce, realmente não consigo confiar na
Caroline.
Depois de tudo acertado, escrevo outra carta para ser entregue ao
Castiel. Dessa vez a visita do padre foi mais rápida, quis ir embora cedo para
não correr o risco de topar com o meu marido. Por incrível que pareça, mais
tarde durante o jantar não foi difícil convencer Marcos a ir à missa. Estou
feliz e ao mesmo tempo desconfiada. Ele é o tipo de pessoa de quem a gente
tem que estar sempre esperando o pior, pois não dá ponto sem nó.
À noite ele se trancou no escritório e só o vi no outro dia quando estava
terminando de me arrumar para irmos à missa, cheguei até a pensar que ele
havia desistido de me acompanhar.
— Você emagreceu enquanto estive fora, ou é impressão minha? —
Fico em sinal de alerta quando ouço sua voz, estou sentada em frente à
penteadeira terminando de ajeitar o coque no meu cabelo.
Sempre faz isso, entra no meu quarto sem bater. Pelo seu reflexo no
espelho atrás de mim, vejo que caprichou no visual com direito a terno,
abotoaduras de ouro e tudo. Fez a barba por completo em vez de deixar o
cavanhaque raso como de costume, e pelo cheiro forte de lavanda havia
tomado dois banhos, um de água e outro de perfume.
— Você acha mesmo, Marcos? Que bom. Eu andei fazendo alguns
exercícios caseiros — banco a sonsa.
Os treinos intensos com Castiel melhoraram muito meu desempenho
físico, e ainda auxiliaram na perda de peso.
— Comprei um presente para você hoje, Anne. — Sua expressão ao
tirar uma caixa de veludo vermelha de dentro do paletó foi um misto de
vaidade e luxúria, enquanto eu o xingava em minha mente.
Ele ergue o braço e coloca o presente sobre a penteadeira, surpreendi-
me pelo fato de pela primeira vez ter gastado o seu precioso dinheiro comigo.
Coincidência.
— Muito obrigada, Marcos, mas realmente não precisa. — Olho com
desdém para a caixa à minha frente, não quero nada que venha dele.
Tento levantar para pegar minha bolsa no guarda-roupa, está na hora de
sairmos ou chegaremos atrasados, mas sou impedida.
— Que coisa feia, amor, não vai nem ver o que é? — Apoia as mãos
com força nos meus ombros para me obrigar a continuar sentada, fico toda
trêmula já à espera do pior.
— Mal posso esperar para saber, Marcos — ironizo.
Debaixo do seu olhar perverso para ver qual seria a minha reação
quando abrisse o maldito presente, pego a caixa com vontade de jogá-la em
sua cara e mandá-lo para os quintos dos infernos, sem passagem de volta.
Faço questão de conferir a caixa virando-a de um lado para o outro,
engulo em seco ao passar o dedo pela borda.
— Abre essa porra logo ou vamos chegar na missa atrasados, mulher!
— o grito dele me deixa ainda mais apreensiva, quando usa esse tom é
porque está por um fio da pancadaria começar.
Me obrigo a deixar o medo de lado e abro a bendita caixa, o brilho que
vem de dentro dela quase me cega. Estico os dedos e aliso uma das gigantes
pedras de diamantes em volta de toda a extensão da gargantilha de brilhantes
que chega a ser pesada. Chamativa e cafona. Esse modelo em especial lembra
muito essas coleiras de luxo que as socialites usam nos seus cachorrinhos a
tiracolo, só faltou o pingente de osso banhado a ouro.
— Eu nem sei o que dizer sobre o que achei do presente, Marcos. É
tão... exótico. Deve valer uma fortuna, nem tenho onde usar algo valioso
assim. — Fecho a caixa tão depressa quanto abri, meus olhos perfuraram os
dele pelo reflexo do espelho.
Uma pulga dança atrás da minha orelha, curiosa para saber como um
tenente do exército teria tanto dinheiro para comprar algo tão caro para a
esposa que nem gosta. Marcos ganha bem, mas não é nenhum milionário.
— Vai usar hoje na missa para que todas as outras mulheres invejem o
marido perfeito que tem, e os homens me invejem por ter condições de
comprar algo desse gabarito para a minha amada esposa. — Acerta a postura
e começa a admirar o próprio reflexo virando de um lado para o outro,
sorrindo e piscando como se fosse uma das coelhinhas da Playboy.
Agora entendi tudo. Marcos comprou esse presente mais para ele do
que para mim, para alimentar o seu ego perante as pessoas na missa. O fato
de parecer com uma coleira é apenas para me humilhar, assim mata dois
coelhos com uma cajadada só o filho da puta. Como um ser humano
consegue ser tão desprezível? Eu me faço essa pergunta desde que o conheci.
— Se quer tanto se mostrar, por que você mesmo não usa essa
coleirinha de diamantes? — Fico de pé, giro o corpo na sua direção e jogo a
caixa nele, toda paciência tem limite e a minha já se esgotou há muito tempo.
E se Marcos não gostou do que eu disse e tentar me agredir, posso até
apanhar muito, mas depois de tudo o que Castiel me ensinou sobre defesa
pessoal, ele sairá dessa com pelo menos um belo olho roxo.
— Olha como você fala comigo, vagabunda! — Agarra meu pescoço
com força e me imprensa na parede, tento pensar rápido.
No entanto, antes que eu possa iniciar o golpe de defesa o desgraçado
tira uma arma da cintura.
— Eu não pedi para usar, Anne, eu mandei. Agora, obedeça como uma
boa esposa e não me encha mais a porra do saco. — Afunda a arma na minha
barriga, e não tira até que eu coloque a maldita gargantilha.
— Satisfeito agora, querido? — Sorrio sarcástica.
Esperava que eu chorasse ou mijasse nas roupas de medo dele como
tantas outras vezes, mas mantenho o nariz em pé e o olhar desafiador.
Armado ou desarmado, esse covarde não me intimida mais.
— Vou tirar o carro da garagem, espero que esteja na porta da frente
em cinco minutos ou eu venho te buscar arrastada — diz entre os dentes e se
vai, mal-humorado.
Calço as minhas sandalinhas, pego a minha bolsa e saio antes que o
imprestável desista der ir à missa. Em poucos dias, estarei livre desse
demônio.

Chegamos na igreja e, para me deixar ainda mais nervosa, a igreja está


lotada, pelo menos a metade da cidade está presente para a missa. Entramos a
passos lentos, fico chocada quando Marcos segura minha mão ao passarmos
pelo corredor chamando a atenção de todos. Meu marido cumprimenta a
todos como um político em época de eleição. Uma simpatia forçada, um
sorriso de Coringa que, apesar de grande, por trás esconde más intenções.
Encontramos lugar para sentar-se no segundo banco da frente, bem ao
lado da passagem do meio. De fato, para a alegria do ego de Marcos todas as
mulheres próximas a nós não tiram os olhos da minha gargantilha. Sendo
sincera, não tinha quem não reparasse, até mesmo o padre, já no altar,
preparado para iniciar a missa. Mas a atenção que estamos recebendo não
dura muito, a igreja é tomada pela entrada triunfal da filha do prefeito em
cima do salto vermelho agulha finíssimo em um estalo irritante de tic-tac
sobre o piso.
Caroline está elegante demais dentro de um terninho branco de três
peças. Uma maquiagem impactante que não tem onde colocar defeito. Os
cabelos negros compridos voando tipo a cena do filme “Uma Linda Mulher”,
com a Julia Roberts, o sorriso perfeito se abrindo meio que em câmera lenta.
Mas o que atiçou a curiosidade de todos na verdade não foi a sua beleza
extravagante, mas sim quem está de mãos dadas com ela.
O meu Castiel!
Com o seu estilo Bad Boy mais marcante do que nunca, jeans surrado e
camisa branca de mangas curtas, deixando os braços e o pescoço todo tatuado
à mostra. Se tivesse combinado não teria dado tão certo, eles se sentam no
banco rente ao nosso na fileira do outro lado do corredor. A abusada da
Caroline quase se senta no colo de Castiel, agarra o braço do meu homem
como se fosse um bote salva-vidas e encosta a cabeça no ombro dele.
Mesmo sabendo que isso não passa de encenação, minha vontade é
agarrar no cabelo dessa vaca e sair arrastando asfalto afora. O que mais me
dói é ter que admitir para mim mesma que fazem um lindo casal, essa é a
verdade.
— Está vendo, Anne? Aquela sim é uma mulher perfeita. E eu
pensando que o nosso vizinho estava interessado em você, cara de sorte ele
— alfinetou Marcos, rindo, não perde a chance de me colocar para baixo.
Simplesmente finjo que não ouvi, mantenho a atenção no altar e que
Deus me dê forças para sobreviver até o final da missa. O padre inicia a missa
com o evangelho que fala sobre o amor verdadeiro, de como ele é puro e
humilde. Não humilha, maltrata ou fere. Suas palavras me tocam
profundamente, Valentim sabe de verdade como usar o dom da palavra para
tocar o coração da gente.
— Muitos devem estar se perguntando o porquê de eu ter escolhido a
carta de Paulo aos Coríntios para a missa de hoje, que fala sobre o amor,
sendo que o versículo que está marcado na cartilha semestral é outro,
completamente diferente. Eu sei que é errado burlar as regras, mas, às vezes,
a vida não nos dá alternativas. Ainda mais quando o assunto é o amor, por
isso existe o ditado…
“Deus sempre escreve certo por linhas tortas.”
Discursa o padre com o microfone em mãos com firmeza, andando pelo
altar com os olhos ora sobre mim, ora sobre Castiel. Meu marido, que não é
bobo, logo percebe.
— Por que esse padre não tira os olhos da sua direção durante o
sermão, Anne? — Marcos agarra o meu braço. Olho para ele e vejo uma veia
grossa saltar em seu pescoço.
Remexe incomodado no banco como se tivesse sentado em cima de um
formigueiro mordendo suas partes íntimas. Resolvo provocá-lo ainda mais.
Tomara que dê um show na frente de todo mundo, pondo à mostra a
verdadeira face do demônio.
— Cala essa boca, Marcos. Quero ouvir a reflexão do padre sobre o
Evangelho de hoje, que fala sobre o amor. Você deveria ser o primeiro a ficar
de ouvido em pé para ver se aprende alguma coisa. — Cruzo as pernas,
ignorando seu chilique.
— Não estou gostando dessa sua língua afiada, mulher, acho que devo
arrancar um pedaço dela. — Aperta meu braço com muita força, com certeza
a marca ficaria depois.
Um senhor de idade sentado ao nosso lado percebe que algo está errado
e fica nos encarando, mas Marcos nem se importa. Olha para nós de canto de
olho e coça a cabeça, inquieto, pensando se deve ou não tomar alguma
atitude. Acaba não tomando, como a maioria das pessoas diante de uma
situação de violência doméstica.
Isso encoraja meu marido agressivo a ir mais longe, e torce meu braço
o mais forte que pode. Trinco os dentes para não gritar de dor, chego a suar.
— Por que não quebra logo de uma vez, Marcos? — desafio.
Marcos solta o meu braço no mesmo instante. Se quer jogar, agora tem
uma rival à altura.
— Em casa você me paga, vadia — ameaça, e eu finjo que não escuto.
Ao olhar para o lado percebo Castiel de pé, com os punhos cerrados
feito um cavaleiro valente pronto para defender a sua donzela. Sorri para ele,
discreta, para ver que não precisa se preocupar. Caroline me ajuda nessa e
puxa a mão dele para que volte a sentar. Depois disso, não tenho mais forças
para olhar na direção deles novamente.
O sino toca anunciando o sagrado momento da hóstia, Marcos não
costuma tomar, tem ciência que não é digno disso. No momento eu também
não me sinto. Apesar do meu marido não valer nada, sou infiel a ele. Mesmo
assim, isso não me impede de levantar de cabeça baixa e ir humildemente
para a filar esperar para receber a benção do padre Valentim.
— Você está tão linda, meu amor. Estou com saudades. — Ouço a voz
de Castiel quase em um sussurro atrás de mim na fila, baixa e apaixonada.
— Eu também estou com saudades, meu amor — sussurro de volta.
Fico com o coração na mão de vontade de girar o pescoço e olhar nos
seus olhos e dizer o quanto eu estou com saudades. Ajo com coerência e
mantenho a cabeça baixa. Sei que Marcos está de vigia a cada movimento,
não posso arriscar colocar tudo a perder.
— Que Deus perdoe os seus pecados e conduza à vida eterna. Amém.
— O padre fez o sinal da Santa Cruz na minha testa, abençoando-me.
Sorrio para ele e beijo as costas da sua mão, em sinal de respeito. O
padre repete as mesmas palavras para Castiel e, quebrando o protocolo, se
abraçam bem forte. As pessoas encaram aquela cena, não fazendo a mínima
ideia da grande cumplicidade e amor fraternal por trás desse ato.
Para voltar para o meu lugar tive que dar uma volta grande devido ao
corredor estar com duas filas enormes. Castiel anda discreto rente a mim. O
cheiro sedutor do perfume dele está me matando, respiro pesadamente e por
um instante embriago-me, indo para outra dimensão em segundos.
— Se ele tocar em você mais uma vez hoje, eu o mato aqui mesmo
dentro dessa igreja — ameaça Castiel ao passar por mim; pelo seu tom sério
percebo que realmente não está brincando.
Acelero o passo para acompanhá-lo, também tenho um recadinho para
ele.
— E se você deixar a Caroline te tocar de forma tão íntima novamente,
quem vai morrer aqui é você! — ameaço de volta.
Passo na frente de Castiel e volto para o meu lugar de queixo elevado.
Ele também volta para o dele, mas se sentou no banco em uma distância
segura da filha do prefeito. Ótimo!
Depois que a missa acaba, as crianças da turma da aula de catecismo
vêm correndo me abraçar, amorosas como sempre. Joãozinho me abraçou
meio tímido e diz que não vê a hora de chegar o dia da próxima aula, no
próximo mês ele já viaja para fazer a cirurgia nas costas.
— Eu também estou animada para a próxima aula, Joãozinho. Vou
planejar uma atividade muito legal para vocês. — Puxo a sua bochecha
gorducha, toda vez que o vejo parece ter mais sardas em seu rosto, elas
brotam feito trepadeiras em tempo de chuva.
— Pare de ficar fazendo esses sinais estranhos, Anne. Parece uma louca
falando com esse mudinho. Não sei por que gastar tanto dinheiro para operar
essa corcunda dele, arriscado ficar mais aleijado do que é — exclama Marcos
com desdém, e olha com cara de nojo para Joãozinho. Uma criança mais que
especial, linda e carinhosa.
O pobre garoto sorri para Marcos, inocente, sem fazer ideia das duras
palavras que ele havia acabado de proferir em relação a ele.
— O único aleijado que eu estou vendo aqui é você, Marcos. Sem
coração, empatia e nenhum respeito ao próximo. — Peguei na mão de
Joãozinho e saí de perto dele, pessoas como ele merecem ficar sozinhas.
Na verdade, pessoas com Marcos nunca ficam sozinhas. Estão sempre
na companhia do seu alto ego.
Capítulo 26

Castiel

A primeira parte do plano foi um sucesso, essa aparição foi decidida de


última hora na reunião na casa do padre. A brilhante ideia de fingir que
estávamos namorando foi da Carol, ela tem sido de grande ajuda. Marcos não
tirou os olhos de nós, na verdade, Anne também não. Ficou com ciúmes, por
mais que o padre tenha ido na casa dela e explicado que tudo não passaria de
uma farsa.
Anne e o marido não demoraram a ir embora depois da missa, ele foi
andando na frente com cara de poucos amigos, sem se despedir de ninguém, e
ela logo em seguida, de cabeça baixa logo atrás. Eu senti inveja de Marcos
naquele momento, eu queria estar no lugar dele indo para casa com a mulher
da minha vida. A única coisa que me conforta é saber que em uma semana
iremos para bem longe daqui. Falta pouco agora.
— É incrível como a mulher do tenente já foi embora há mais de uma
hora e você continua com essa cara de velório, Castiel. Não escutou uma
palavra do que eu falei durante o caminho, não é mesmo? — Caroline sorve
uma longa lufada de ar, passa as mãos pelo rosto, irritada, e desce da minha
caminhonete batendo a porta.
Eu acabei de estacionar na frente do portão da sua casa, uma verdadeira
mansão, diga-se de passagem.
— Desculpe, Caroline, mas eu não consigo tirar a Anne da cabeça um
minuto. Enquanto estiver com aquele covarde, não terei paz — digo indo
atrás dela, consegui alcançá-la antes de passar pelo portão.
— Tudo bem, Castiel, eu entendo. Aquele homem me dá medo só de
olhar para ele. — Bate o pé no chão, emburrada, puxando o canto da boca de
um jeito irritante.
— Por um momento pensei que fosse bater na Anne dentro da igreja,
juro que seria capaz de matá-lo na frente de todos. — Tranco a mandíbula
para não falar mais do que devia, se alguém ouvisse um ex-presidiário em
liberdade condicional fazendo uma ameaça de morte a um tenente, daria
merda na certa.
— Eu sei que não é fácil, Grandão. Mas tem que manter o controle. Em
uma semana, se tudo correr como o planejado, estarão longe daqui, então, vê
se relaxa. — Massageia meus ombros, mais descontraída.
— Tudo bem, moça, agora acho bom você entrar porque sua mãe está
parada na porta nos vigiando. — Beijo seu rosto e trato de ir embora, não
quero que tenha problemas com a família por se envolver com más
companhias.
No caso, eu.
— Tenha uma ótima noite, Castiel, te vejo em breve. — Acena antes de
entrar em casa.
No caminho de volta para casa, Edgar me liga chamando para irmos
beber até cair relembrando os velhos tempos de farra. A princípio não acho
uma boa ideia porque tenho que me levantar bem cedo amanhã, vou trabalhar
em dobro para terminar os ajustes na casa o mais breve possível, não quero ir
embora sem terminar, odeio deixar as coisas pela metade. Contudo, a Carol
está certa quando diz que preciso tentar relaxar de alguma forma ou vou
enlouquecer com os meus próprios pensamentos. Em momentos assim, nada
melhor do que estar na companhia dos amigos.
Paro a minha caminhonete em frente ao endereço do bar que Edgar
enviou, ele disse que chegaria em vinte minutos. Já pela fachada do prédio
sou surpreendido por uma enorme placa escrito em luzes vermelhas “Ao seu
dispor”, piscando como uma árvore de natal. Percebi que ali vendia mais do
que bebida alcoólica. Resolvi entrar para ter certeza, não se deve julgar o
livro pela capa.
O sino da porta toca anunciando a minha entrada, logo de cara me
deparo com duas mulheres siliconadas só de calcinha deslizando em uma
barra de ferro, em movimentos giratórios sincronizados ao som de uma
música vulgar ao fundo. A clientela é composta apenas por homens, a
maioria bêbados. Porém, bem vestidos, roupas sociais e artigos de luxo, como
um Rolex no pulso e sapatos caros, sendo servidos por garçonetes seminuas.
— Eu vou te matar, Edgar! — penso em voz alta, furioso, decidido a ir
embora.
Já que estou na merda mesmo, vou tomar uma bebida antes. Vou até o
bar e peço uma dose caprichada de tequila, sal e limão. Puxo o banquinho e
me sento de costas para a orgia atrás de mim, esse mundo não faz mais parte
da minha vida, sou homem de uma mulher só agora.
Debruço-me sobre o balcão enquanto espero minha bebida, distraído,
até que sinto alguém colocando a mão no meu ombro. Viro-me com um
xingamento na ponta da língua para o Edgar, mas...
— Eu vou querer o mesmo que o rapaz aqui, capricha na dose. —
Chego a estremecer de raiva, não acredito que Marcos está aqui bem ao meu
lado.
Inflo as narinas tentando não cair em tentação e partir para cima dele,
mas é difícil conter a vontade de quebrar cada um dos seus dentes e tirar na
base do soco esse sorrisinho cínico dele. É bem a cara de um canalha como
ele deixar uma mulher incrível em casa para comer as putas na rua, se eu não
tivesse nada a perder o mataria sem pensar duas vezes.
— Tire suas mãos de mim, por favor! — fui educado dentro das minhas
possibilidades. Ele fez o que eu pedi limpando as mãos na roupa como se
tivesse encostado em um saco de lixo.
— Calma aí, cara, nós somos vizinhos. Devíamos sair para pescar
qualquer hora dessas. Pelo visto frequentamos os mesmos ambientes, e
alguma coisa me diz que também temos o mesmo gosto para “certas” outras
coisas também... — Jogou a indireta desafiando-me com o olhar.
— Desculpa, mas eu não gosto de pescar. Dentro de uma semana vou
embora, então não precisamos fingir que somos amigos como a maioria dos
vizinhos fazem. — Giro o meu banco e lhe ofereço as costas, o barman vem e
entrega a minha bebida.
— Como assim, embora? Pensei que estava de namoro com a filha do
prefeito. Aliás, como é comer uma mulher daquela?
— O que foi que você disse, cara? — Levanto-me e o encaro olho no
olho, o maricas recua em um grunhido.
Sabia que não passava de um covarde que só bate em quem é mais
fraco. Mas a vez dele vai chegar e eu juro por Deus que ainda darei uma boa
lição nele.
— Ei, boa noite, meu povo! Tudo certo por aqui? — Edgar chega e
entra no meio de nós, se não tivesse aparecido a coisa teria ficado feia.
— Tudo ótimo, Edgar! Se me dão licença, preciso ir embora porque
amanhã trabalho cedo. — Tiro vinte reais de dentro da carteira e deixo
debaixo do copo em que eu havia bebido, e vou-me embora.
— Irmão, espera aí, que porra é essa que aconteceu lá dentro? — meu
amigo vem atrás de mim tagarelando, me deixando mais puto que ele.
— Me deixa, Edgar, por sua causa quase fiz uma merda lá dentro.
— Foi mal, cara, só queria te levar para fazer um rolê diferente. — Me
viro com um murro pronto para dar na cara dele, mas então vejo seu olhar de
paspalho arrependido e acabo rindo e muito.
— Você não vale nada, cara! — Dou uma chave de pescoço nele e
bagunço seu cabelo como fazia quando garotos, ele ri tanto quanto eu.
Acabamos passando no supermercado, onde compramos um engradado
de cerveja, e vamos para o apartamento dele para beber até cair, isso sim para
mim é relembrar os velhos tempos. Foi bom passar um tempo com o meu
melhor amigo, daqui para frente as coisas ficarão piores. Até o dia da nossa
fuga, o único meio de comunicação que terei com Anne é através de cartas
enviadas pelo padre Valentim. Teremos que ser fortes. No final, o amor
verdadeiro sempre vence.
Capítulo 27

Castiel

Segunda-feira

Oi, meu amor!


Como vão as coisas por aí? Ele ousou te ameaçar com uma arma
novamente? Espero que não, ou não respondo por mim. Qualquer coisa é só
usar aquele soco de esquerda que te ensinei. Lembre-se sempre, a
inteligência sempre vence a força. Sei que é difícil, mas precisamos ser
pacientes, em breve teremos todo o tempo do mundo só para nós. Eu farei de
ti a mulher mais feliz desse mundo.
Hoje eu estava pensando sobre o que você disse, que ama o meu
sorriso, mas a verdade é que eu não sabia como sorrir até te conhecer. Sabe
quando a gente quer que um momento dure para sempre? Então, é assim que
sinto quando estamos juntos. É como se criássemos uma dimensão só para
nós dois, onde somos imunes à maldade do mundo.
Eu te amo!
Com todos os significados mais poéticos que existem para essa frase.
Nunca me imaginei amando alguém com tanta intensidade. Sendo sincero,
nem sabia que tinha tanta capacidade de amar assim. E a culpa disso tudo é
sua, Anne! Por que tem que ser tão encantadora assim? Não ria não,
senhora, estou falando muito sério.
Você me seduziu com esse seu jeito meigo, Anne. Esse sorriso que
ilumina tudo à sua volta me encanta. Não tive muitas mulheres na vida...
Mentira, amor, eu tive muitas quando jovem. Fui um cafajeste de marca
maior no colégio, mas posso afirmar, sem sombra de dúvidas, que você foi a
única com quem fiz amor. Com as outras, foi apenas sexo.
Eu quero fazer amor com você todos os dias, pelo resto da vida.
Falando nisso, que saudade de beijar cada pedacinho do seu corpo. Te amar
bem devagar e gostoso a noite toda. Só assim para saciar toda essa saudade
acumulada no meu peito. Estou contando os segundos para te ver.
Ass.: Seu Castiel
Capítulo 28

Anne

Terça-feira

Ficou louco, amor?


Não escreva coisas como “beijar o meu corpo todo e fazer amor
comigo devagar e bem gostoso”. Já pensou que vergonha se o padre
Valentim deu uma espiadinha na sua carta no meio do caminho? Pare você
de rir, porque não tem graça, fez de propósito, seu bobo. Quanto ao Marcos,
não precisa se preocupar, ele mal tem olhado na minha cara. Não tem me
vigiado muito desde que te viu com Caroline na igreja, anda calado e
misterioso.
Eu também tenho pensado muito em você, sabe o que é engraçado
mesmo? É que até de longe consegue me fazer bem, fazer me sentir
protegida. Essa distância que nos separa agora só faz alimentar o nosso
amor. Porque assim saberemos valorizar mais cada segundo quando
estivermos juntos. O que é verdadeiro o tempo não apaga, apenas eterniza.
Dói muito saber que muitas pessoas têm tudo o que nós não temos e
não valorizam, vivem brigando por motivos que nem eles sabem ao certo
quais são. Em uma luta constante para saber quem tem a razão, um acaba
destruindo o outro sem perceber. E quando a ficha cai, já é tarde demais.
Nós não vamos ser assim. Promete? Conversaremos sobre tudo e o máximo
que as nossas brigas vão durar é cinco minutos. Depois vamos pedir
desculpas um para o outro e nos beijarmos como se o mundo estivesse
acabando.
Eu queria ser mais forte e não chorar, mas saber que essa carta está
terminando e tenho que me despedir faz com que as lágrimas desçam em meu
rosto sem que eu perceba. O que fizemos de errado para sofrer tanto? Juro
que só queria entender, mas quando estivermos juntos novamente vou
recompensar todo esse tempo longe. Vamos fazer amor durante uma semana
inteira, desde o mais calmo até o mais selvagem. Rá! Com certeza vamos.
Eu vou esperar por você sempre, mesmo quando as circunstâncias
digam que não devo.
Ass.: Sua Anne
Capítulo 29

Castiel

Quarta-feira

Você ficou louca de vez, amor?


Não pode escrever na carta coisas como…
“Vamos fazer amor durante uma semana inteira, desde o mais calmo
até o mais selvagem”.
Não me entenda mal, eu amei a ideia. Mas se o padre estiver dando
uma olhadinha nas nossas cartas no meio do caminho, estamos perdidos. Eu
estou rindo aqui, e muito. Sabe o que nos diferencia de outros casais? É a
capacidade de fazer o outro sorrir, mesmo com a vida toda ferrada. O que
faz a diferença não é o problema, mas sim a nossa postura diante dele. Quem
luta sempre vence e nós teremos a nossa vitória.
E a comemoração vai durar um final de semana inteiro trancados no
nosso ninho de amor, até fiz uma reserva em um hotel na praia em Vitória,
no Espírito Santo, onde faremos nossa primeira parada. Não é grande coisa,
mas pelo menos a cama da foto parece reforçada. Ótima para as novas
“posições” que fiquei para te ensinar, lembra? Acho melhor ir se
hidratando, querida, porque vamos gastar muita energia nesses dois dias.
Pode parar de ficar vermelha agora, ok? Rindo alto aqui...
É assim que você me deixa, Anne, rindo sozinho feito um bobo
apaixonado com uma caneta nas mãos e os olhos cheios de lágrimas. Nunca
fui muito de chorar, porque nunca tive nada para chamar de “meu”, mas
estou começando a acreditar de verdade que o seu amor me pertence, e isso
para mim é incrível. Pessoas como eu não costumam ser amadas.
Então, muito obrigado, amor! Por, mesmo eu sendo invisível para
todos, você conseguir enxergar-me exatamente como sou.
Ass.: Seu Castiel
Capítulo 30

Anne

Quinta-feira

Eu tenho uma notícia ruim e outra boa, meu amor. Marcos recebeu
uma ligação que o deixou bastante nervoso, nem vou ter tempo de escrever
uma carta de amor decente para você. Não sei do que se trata, mas ele está
mais insuportável do que o normal. No entanto, ele disse que vai sair
amanhã cedo e só voltará à tarde. Podemos nos encontrar no nosso bosque
secreto e repassar os últimos detalhes da nossa fuga, vai ser incrível não ter
que esperar mais até segunda-feira para te ver.
Espere por mim no nosso lugar secreto, meu amor, assim que o meu
marido sair vou correndo te encontrar…
Sua Anne…
Capítulo 31

Anne

Encostada no portão, aliso a lateral do meu vestido, ansiosa, vendo o


carro de Marcos virar a esquina. Perguntei algumas vezes para onde está
indo, mas não obtive resposta. Está com um humor do cão. Espero cinco
minutos para ter certeza que não vai voltar e saio correndo feito uma louca,
quase caindo e tropeçando em tudo pelo caminho até a garagem. Tiro minha
bicicleta de trás de um monte de caixas, toda empoeirada, e a corrente
enferrujada faz um rangido estranho. Chego a pensar que não está em
condições de uso, mas nada que algumas gotas de óleo não resolvam.
Saio pedalando toda desajeitada estrada afora, mas feliz da vida por
saber que verei meu amor antes do previsto. Mesmo indo em uma velocidade
rápida, levo quarenta minutos para chegar ao bosque. Desço da bicicleta com
as mãos suando de nervoso. Agora podendo analisar esse local com mais
calma, percebo o quanto é de fato fantástico! Arvores gigantes e flores
selvagens algumas nem sabia que existia, pássaros cantantes e borboletas de
todas as formas e cores embelezando o ar até parece que estou em meio a um
borboletário.
De longe avisto Castiel esperando-me sentado à vontade à beira do rio,
aos pés da nossa árvore. Ele não me vê me aproximando, está entretido com
os fones no ouvido, balançando a cabeça de um jeito muito sexy com esses
braços fortes tatuados de fora. Parece um moleque com o boné vermelho
virado para trás, camiseta preta com a estampa da banda U2, bermuda cinza e
chinelos havaianas brancos nos pés.
— Castiel! — grito seu nome.
Ele tira os fones de ouvido e joga em qualquer lugar, se levanta e vem
ao meu encontro. Deixo a bicicleta cair e corro de braços abertos até o meu
amor. O vento assobia ao balançar a copa das árvores, formando uma chuva
de folhas secas caindo sobre nós em uma linda manhã amarelada de sol de
maio, com raios vindos de toda a parte do bosque.
Minha saudade é imensa, parece que não o vejo há anos. O percurso até
chegar a Castiel parece uma maratona inteira, meus olhos estão inundados.
— Meu Deus! Como eu senti a sua falta, Anne. — Me agarra pela
cintura, erguendo-me do chão e rodopiando no ar várias vezes.
Minhas gargalhadas ecoam pelo bosque, tive que abraçar seu pescoço
firme para não cair.
— Eu também quase morri de saudades, meu amor, mal posso esperar
para que possamos fugir desse lugar e ficar juntos de uma vez por todas. —
Nos abraçamos bem forte, o tipo de abraço que só aquele casal que se ama de
verdade conhece.
Castiel me beija com tanta paixão e desejo que acabamos indo os dois
ao chão, nos beijando entre risos e carícias.
— Eu te amo tanto, professora, sinto muito por não poder cumprir a
minha promessa de construir a nossa casa dos sonhos nesse bosque incrível.
— Giro o corpo de maneira que eu fico sobre o dele e aliso seu rosto com
todo amor do mundo.
— Desde que eu esteja ao seu lado, Castiel, qualquer lugar será o dos
meus sonhos. — Olho no fundo dos seus olhos, eles têm o mesmo tom das
folhas caídas no chão ao redor do seu corpo.
Que homem lindo!
Sua beleza chega a doer. Gosto de como suas sobrancelhas grossas
trazem um ar bruto para seu rosto quadrado, dando ainda mais expressão ao
seu olhar intenso que me despe de cima a baixo. O nariz em pé e os lábios
grossos e rosados que dão vontade de morder e beijar por toda eternidade.
Sempre fico excitada só com um simples toque seu.
— No que está pensando para te deixar com essa cara de safada, amor?
— Meu rosto queima de vergonha, minhas expressões demonstram meus
pensamentos profanos.
Percebo que ele não para de bocejar entre as palavras, então uso isso
para mudar o foco do assunto.
— Você não tem dormido bem, Castiel? — Beijo a curva do seu
pescoço enquanto ele responde, não resisto a tanto charme.
— Na verdade, não. Voltei a ter pesadelos à noite como quando estive
preso. Essa noite mesmo quase não dormi.
— O pesadelo que teve foi muito ruim? — Esfrego meu nariz no dele.
— Ontem eu não tive pesadelo, amor, à noite Carol me chamou para
sair e…
— E vocês viraram a noite bebendo juntos, que lindo! Por isso não para
de bocejar — o corto grosseira, completando a frase, puta da vida.
Me afasto sentando-me de costas para ele, porque aquela entojada está
chamando o meu homem para sair.
E o filho da mãe aceitou.
— Isso tudo é ciúmes, professora? — Puxa o meu cabelo para o lado e
beija na parte de trás do meu ombro; tenta me abraçar, mas não deixo.
Cruzo os braços emburrada, minha vontade é voltar pelo mesmo
caminho por onde vim.
— Eu não estou achando um pingo de graça nessa história, Castiel. Não
tenho escolha de querer ou não estar ao lado de Marcos, mas você tem de
querer ou não sair com a Caroline. — Inclino a cabeça e olho para o céu,
magoada.
— Exatamente, Anne. Por isso que eu neguei o convite da Carol. —
Minha cara vai no chão.
— Negou? — Arqueio a sobrancelha.
— Sim! Você nem me deixou terminar de falar, já foi logo soltando os
cachorros em cima de mim, enciumada, sem nenhum motivo. — Me
aproximo decidida a me desculpar, mas quando vejo seu sorrisinho
egocêntrico se achando só porque eu estava com ciúmes dele...
— Sem motivo nenhum é uma ova. Não quero essa mulherzinha com
liberdade para te chamar para sair, sou muito grata pela ajuda dela, mas não
precisamos mais para concluirmos a segunda parte do plano, então o proíbo
de vê-la novamente — esbravejo, minhas emoções nunca estiveram tão
afloradas como nas últimas semanas.
O amor tem o poder de fazer isso com a gente, nos deixa totalmente
sem controle.
— Olha como você me deixa falando toda mandona assim, amor — diz
baixinho ao pé do meu ouvido levando minha mão até o volume debaixo do
jeans, fica doido quando começo a masturbá-lo em movimentos de sobe e
desce, bem devagar e gostoso.
Mordisca o lóbulo da minha orelha enquanto a mão desliza para baixo
do meu vestido, sumindo pelas coxas até encontrar minha calcinha, um
tocando o outro em uma troca de prazer sem limites. Castiel aproxima o rosto
rente ao meu, mas não me beija.
— Você me deve um pedido de desculpas por desconfiar de mim,
professora. — Esfrega os lábios nos meus, não iria me beijar de verdade até
me desculpar com ele.
— Mas, se eu não vou pedir desculpa coisa nenhuma, quais serão as
consequências? — provoco com um leve sorriso.
— Dizer pra que, se eu posso mostrar, professora? — Fica de pé e me
pega no colo sem aviso prévio e sai correndo, não acredito que ele vai mesmo
fazer isso.
Filho da mãe!
Capítulo 32

Castiel

— Você ficou louco, Castiel? — troveja, esmurrando meu peito


enquanto entro com ela no rio em meus braços.
Anne mal consegue parar de pé devido à queda da cachoeira, a
correnteza é um pouco forte. Ela tenta se equilibrar, mas sua visão está
coberta pelos seus cabelos lambidos sobre o rosto. Treme de frio, a água
realmente está gelada pra cacete. Bom para essa teimosa da porra, nada como
um banho frio para acalmar mulheres ciumentas.
— Estou louco sim, professora, mas de amor por você. — Avanço para
um beijo com todo fervor evidente no meu peito, mas Anne vira o rosto para
o lado, cheia de pirraça.
Na verdade, tudo não passa de distração para a rasteira que me dá,
entrelaçando a perna em volta da minha debaixo da água para me derrubar.
Não satisfeita, afunda minha cabeça na água várias vezes, rindo, tendo o seu
momento de vingança. Consigo agarrá-la pela cintura e derrubo-a também,
agora a festa começa de verdade. Começamos uma guerra de bomba d’água
entre risos e beijos, por um momento esquecemos de todos os problemas e
agimos como um casal normal.
— Me desculpe por ter feito mau julgamento de você, amor, mas ainda
assim o proíbo de sair com a entojada da filha do prefeito. — De amorosa, se
transforma em uma onça brava enfiando o dedo na minha cara.
Seus hormônios estão alvoroçados, puta que pariu! Fiquei até excitado.
— Sim, senhora, mais alguma ordem? — Cruzo os braços sobre o peito
com as bochechas infladas, com vontade de rir da cara azeda de Anne, onde
uma linha marcante se forma em meio às suas sobrancelhas.
Com mulher ciumenta não se brinca.
— Sim, eu tenho, Tigrão, acho bom que arrume alguma maneira para
aquecer o meu corpo, porque essa água está realmente fria. — Coloca as
mãos na cintura, olhando-me daquele jeito provocante.
— Eu sei exatamente como fazer isso, meu amor, pode ter certeza! —
Levo a mão na sua nuca, a trago para mim e devoro sua boca, estou faminto
por ela.
Excitada, Anne esfrega os quadris instigando ainda mais meu desejo.
Amo essa sua versão mais ousada e confiante. Aquele vazio atrás dos seus
olhos não existe mais. Seu sorriso transborda leveza, e eu farei de tudo para
que ele nunca mais saia do seu rosto. Minha vida se resumirá em fazê-la feliz,
sentir-se amada e completa. Desejada.
— Eu tenho uma surpresa para você, amor — digo e os seus olhos se
iluminam.
— O que é? — Bate uma mão na outra, animada.
Pego sua mão e a conduzo até o meio da cachoeira onde, próximo à
queda da cascata, forma uma espécie de piscina natural. A água cristalina e
verdinha devido ao reflexo das árvores em volta. A água bate na minha
cintura; em Anne, por ser baixinha, quase chega aos seios. Um cenário
perfeito para dois amantes apaixonados como nós, cheios de saudade e amor
para dar.
— Essa é a última vez que te possuo na posição de seu “amante”, na
próxima vez será como seu marido. — Enfio a mão no bolso de trás do meu
jeans molhado e pego um anel simples de compromisso que comprei para
Anne, planejei dar a ela somente depois da nossa fuga.
Contudo, meu coração grita nesse momento para não esperar mais.
Nunca devemos deixar para fazer depois o que podemos fazer hoje, o futuro é
incerto e ama brincar com os nossos destinos.
— Minha nossa! Ele é lindo, eu amei. — Começa a dar pulos, eufórica,
sou obrigado a segurá-la para conseguir colocar o anel no seu dedo.
De repente, o sorriso da Anne desaparece. Com os ombros caídos, vira
a mão de um lado para o outro com os olhos fixos no anel, mas o brilho
dentro deles já não é mais o mesmo.
— O que foi, amor? Pensei que tinha gostado. — Analiso suas feições
na tentativa de entender o que passa na sua cabecinha, não entendo esses seus
picos de humor, indo de brava a doce e eufórica para triste em questão de
segundos.
— Eu amei, Castiel, mas é melhor que fique com você até que
estejamos bem longe daqui. — Tira o anel e me entrega com o coração
apertado, é óbvio que não quer de maneira nenhuma se separar dele.
— Você pode usá-lo por enquanto de uma maneira que ninguém veja,
meu amor. — Tiro o cordão que está no meu pescoço, coloco o anel como
um pingente, e ponho no pescoço da minha futura esposa.
— Muito obrigada, Castiel. Eu juro que nunca vou me separar desse
anel, ele será o símbolo do nosso amor. — Nos abraçamos, não sei como
sobrevivi todos esses dias longe dessa mulher.
— Seremos muito felizes juntos, eu prometo. — Afago seus cabelos.
— Promete que não importa o que aconteça, sempre dará um jeito de
voltar para mim? — Sinto sua pele toda arrepiada e não é por conta da água
fria, é como se estivesse com um mau pressentimento.
— A única coisa capaz de me impedir de voltar para você, Anne, é a
morte. — Se agarra em mim com tanto desespero que nossos corpos parecem
um só, por mim não nos separávamos nunca mais.
Viveríamos nesse bosque mágico para sempre, ele tem uma ligação
muito forte com o nosso amor. O sentimento que temos um pelo outro já é
por si só muito intenso, toda vez que Anne me toca é como se o meu corpo
fosse tomado por alguma força sobrenatural. Meu corpo pega fogo e o
coração transborda de amor.
— Toda vez que diz algo romântico assim, Castiel, eu me apaixono
mais um pouco por você.
— Você não precisa fazer nada, professora, para que eu me apaixone
mais, é só olhar para o seu sorriso lindo. — Pisca algumas vezes com a boca
entreaberta, seduzindo-me.
Essa mulher acaba comigo!
Iniciamos um beijo calmo, mas logo ele se transforma em puro fogo e
paixão. Minha mão passeia pela sua pele macia, deslizando pela coxa até
chegar ao lugar onde eu mais almejo; sinto seu corpo estremecer quando
empurro a calcinha para o lado e a penetro com um dedo.
— Castiel… — geme o meu nome ao inclinar a cabeça para trás, me
enlouquecendo de vez.
Enrolo seu cabelo na minha mão em um nó e puxo para baixo, dando
mais acesso para a minha boca devorar a curva do seu pescoço entre
mordidas e chupões. O calor da sua respiração ofegante faz cócegas na minha
pele. Anne envolve a perna em volta do meu corpo, dando mais acesso para
os meus dedos ágeis, e continuo penetrando-a, agora com dois.
Anne se contorce toda em minhas mãos, totalmente entregue ao prazer,
adoro fazê-la gozar só para ver a expressão de devassa que se forma em sua
face. Mais que o suficiente para me deixar duro novamente.
— Só tem um jeito de matar essa saudade toda que me consome,
professora. — Pressiono minha ereção contra o seu quadril para que sinta o
quanto me deixa louco de tesão.
— Eu posso saber qual é, Bad Boy? — me desafia com o olhar
semicerrado, ela sabe como.
— Te fodendo bem gostoso! — Dou um tapa na sua bunda, e ela solta
uma risadinha.
— E está esperando o que para fazer isso, Castiel? — Arqueia a
sobrancelha.
— Tire o vestido, professora! — ordeno. Eu mesmo poderia tirar, mas
prefiro me deliciar vendo ela fazer isso bem na minha frente.
Dou um passo para trás e me delicio com a cena de Anne erguendo o
vestido sensualmente e passando-o pela cabeça. Ela gira no ar fazendo graça
antes de arremessar sobre a margem do rio. Sedutora, desabotoa o sutiã com
os olhos presos aos meus, gira no ar toda sexy e joga para fazer companhia ao
vestido. Engulo em seco quando ergue a perna, alisa toda e começa a deslizar
a calcinha vermelha minúscula para baixo; não resisto e avanço um passo,
destruo com um puxão e guardo no bolso de trás do meu jeans.
Olho para seu corpo nu delicioso à minha frente e ataco, mas antes que
eu possa tocar um dedo nela, Anne estica o braço entre nós.
— Sua vez de tirar as roupas, Bad Boy! — Cruza os braços sobre os
seios gigantes e ergue a sobrancelha, ela quer me ver me despindo na sua
frente, assim como fez para mim.
Nada mais que justo, em uma relação os direitos devem ser iguais. Na
hora do sexo, principalmente.
— Como você quiser, meu amor. — Puxo o canto da boca em um
sorriso sacana, isso vai ser divertido.
Tiro a camisa sem pressa e jogo à margem, próximo às roupas dela;
deslizo as mãos pelo peito para baixo até o botão da minha calça e abro,
baixando-a junto com a cueca boxer. Meu pau pula para fora, duro feito uma
barra de aço, ganhando a atenção dos olhos de Anne, que passa a língua pelos
lábios como se imaginasse ele dentro da boca dela. Que delícia! Quase gozo
só com isso.
— Tem certeza que não quer mesmo me ajudar com isso, professora?
— provoco.
— Acaba logo com isso e vem me amar, Castiel. — Me chama com o
dedo indicador, termino de tirar a calça em um segundo e obedeço à sua
intimação.
Enquanto nos beijamos vou empurrando Anne até algumas pedras
escuras debaixo da cascata da cachoeira, a água forma um lençol à nossa
volta. Em meio a esse paraíso, fazemos amor loucamente. Sempre que entro
nela é como se fosse a nossa primeira vez, com a troca de carícias e os beijos
cheios de paixão. Não há como negar, fomos feitos um para o outro.
— Eu te amo tanto, Castiel! — declara em um fio de voz enquanto eu a
penetro eloquentemente lento, indo bem fundo.
— Se você me ama, eu te amo infinitas vezes mais — afirmo.
Não dizemos mais nada depois disso, nos amamos em silêncio ao som
da cachoeira como nossa trilha sonora. Há alguma coisa diferente no ar e não
é coisa boa, meu coração diz para aproveitar cada segundo desse momento
com Anne.
E é isso que vou fazer, como se não houvesse amanhã.

Nus, deitados na grama enquanto nossas roupas secam, faço carinho no


cabelo de Anne, deitada sobre o meu peito, um pouco sonolenta. Sinto um
aperto no meio só de imaginar que em breve teremos que nos separar
novamente, não devia ser assim. Fomos feitos para completar um ao outro,
como a lua e as estrelas.
— Vamos repassar mais uma vez a última parte do plano de fuga? —
Cutuca minha perna com o pé a preguiça, eu expliquei várias vezes, mas se
ela quer ouvir de novo eu falarei com o maior prazer.
— Edgar e Valesca irão viajar para o Paraguai e vão se hospedar em
um hotel usando o meu cartão de crédito para pagar. Eles farão paradas na
Colômbia e Venezuela seguindo o mesmo esquema, dando falsa pista para o
Marcos de que nós fugimos para fora do país. Carlos vai confirmar a história
espalhando para a cidade que você contou que nunca mais pisava no Brasil,
sendo que na verdade, nunca chegamos a sair dele — faço um resumão, sei
que cada detalhe já foi maquinado na cabecinha dela.
— Você é um gênio, Castiel!
— Outra coisa, amor, nossos documentos falsos já chegaram. Tive que
pagar um pouco a mais para adiantarem o trabalho, mas valeu a pena, eles
capricharam. Está muito real, não teremos problemas para viajar com eles. —
Muda de posição virando de frente para mim, curiosa.
— E qual será o meu novo nome, amor?
— Josefina de Jesus, foi o primeiro que me veio à mente na hora. — A
forma como contorce os lábios e entorta a boca formando fortes linhas de
expressão por todo o rosto é hilária, continuo sério mesmo morrendo de
vontade de rir na cara dela.
Óbvio que não é esse nome, mas não resisti em brincar com a situação.
— E o seu? — Senta colando as mãos na cintura, mexendo o pescoço
igual a uma cobra cascavel.
Nunca tive tara por peitos, mas agora acho que comecei a ter com Anne
quase esfregando esses dois melões na minha cara.
— Christian Grey, o que acha? Eu acho que combina comigo. — Ri
tanto que chegam a sair lágrimas do canto dos olhos, filha da mãe!
— Fala a verdade, seu bobo — pede em meio às risadas.
— Meu novo nome será Henrique Medeiros, e o da senhora minha
esposa, Laura Medeiros — entreguei o jogo; pela forma como sorri
mostrando todos os dentes acho que os nomes foram aprovados.
— Laura, sempre achei esse nome lindo. — Monta sobre o meu corpo
esfregando-se em mim, as duas mãos abertas sobre o meu peito.
Sei o que ela quer, e eu vou dar com certeza sobre esse chão
gramado…
Capítulo 33

Anne

Depois de uma longa e emocionante despedida de Castiel, ando alguns


metros bosque adentro com o coração cada vez mais apertado e lágrimas
saem dos meus olhos. Giro o pescoço, olho para trás e vejo o meu amor
parado no mesmo lugar enquanto me observa partir, a sombra escura à sua
volta que eu não via há muito tempo está lá novamente, ainda mais forte. Ele
nunca me pareceu tão solitário como agora, alguma coisa não me parece certa
aqui.
Uma angústia irrefreável toma conta de mim, como se essa fosse a
última vez que o veria. Arremesso a bicicleta no chão e volto correndo até
Castiel e pulo nos braços dele, ele me aperta bem forte como se não fosse me
soltar nunca mais.
— Eu te amo mais que qualquer coisa, Castiel. — Com carinho, apoia a
testa na minha e coloca meu cabelo atrás da orelha.
— Eu também te amo muito, meu amor, por favor, caso a segunda
parte do nosso plano não dê certo na segunda-feira e tenha que se defender
sozinha, lembre-se de tudo o que eu te ensinei durante os nossos treinamentos
— alerta-me, parece até que sabe que algo ruim está para acontecer.
— Por que está falando assim, Castiel? Você está me assustando. —
Me afasto um pouco para encará-lo melhor, lágrimas brilham em seus lindos
olhos.
— Desculpa, pequena, mas eu só quero que esteja preparada para
qualquer imprevisto que surja durante nosso processo de fuga. — Sorri para
mim na tentativa de me tranquilizar, mas fico ainda mais nervosa.
— Mas, Castiel… — Quando abro a boca para protestar pelo modo
estranho de agir, ele me corta.
— Acho melhor você ir, professora, já está um pouco tarde e não
podemos arriscar que o seu marido volte antes do previsto e não te encontre
em casa.
— Você tem razão, amor. Falta pouco agora, só mais dois dias, não
podemos arriscar colocar tudo a perder.
— Se cuida, professora. — Aperta meu nariz entre os dedos.
— Eu vou, não se preocupe. Pense em mim, porque pensarei em você a
cada segundo até o nosso próximo encontro. — Puxo os cantos da sua boca
obrigando-o a sorrir, deu certo porque ele acaba rindo de verdade.
— Eu já penso em você o tempo todo, maluca. — Mostra a língua.
Andamos de mãos dadas até a minha bicicleta. Quando abaixo para
pegá-la no chão, ele dá um tapa na minha bunda.
— Até breve, futuro marido, te vejo depois de amanhã — digo
esperançosa.
Eu sorri...
Ele sorriu...
— Até breve, futura esposa. — Segura minha mão até o último
segundo e nos beijamos pela última vez.
Em seguida cada um seguiu o seu caminho.
Sorrio durante todo o percurso de volta para casa, tanto eu como Castiel
merecemos ser felizes juntos. Faltando menos de um quarteirão para chegar,
uma gotinha solitária de chuva pinga na ponta do meu nariz. Olho para cima
e percebo que o céu está coberto por nuvens escuras e carregadas, outras
várias gotas começam a cair. Mesmo pedalando rápido chego em casa toda
molhada, e guardo a bicicleta no mesmo lugar na garagem para que Marcos
não desconfie que eu saí. O tempo se transformou de dia lindo para
tempestuoso depois que saí do bosque, o clima quente agora é um frio
nebuloso.
Trato de entrar logo e tirar as roupas encharcadas, tomo um banho
quente e desço para fazer o jantar para esperar o retorno do meu digníssimo
esposo, faço questão de caprichar na hora de escolher o menu só com pratos
que eu sei que Marcos gosta. Quero agradá-lo fazendo o papel de esposa
perfeita nesses últimos dois dias que faltam para me livrar dele, tudo precisa
sair perfeito.
Monto a mesa perfeita com direito a decoração de flores frescas e tudo.
Quando Marcos chega à noite, ainda chove muito lá fora, a impressão que
tenho é que estamos no início de um dilúvio. Me posiciono ao lado da mesa
com as mãos apoiadas em frente ao corpo, apreensiva para receber meu
marido, rezando para que não esteja de mau humor. Para a minha surpresa ele
entra na sala de jantar sorrindo.
— Mas que mesa linda, querida, eu realmente sou um homem de sorte.
— Dou um passo para trás, assustada, pois quando se aproxima de mim eu já
estou na espera de alguma bofetada, mas, ao invés disso, recebo um beijo
carinhoso no rosto.
Gentil, afaga meu cabelo que ele sempre diz ser ruim e volumoso
demais.
— Você está bem, Marcos? — Estreito o olhar, desconfiada, eu tenho
mais medo dele na calmaria do que quando tempestuoso.
— Eu não poderia estar melhor, querida. — Arrasta a cadeira para que
eu me sente, coisa que nunca fez antes.
Senta-se de frente para mim encarando-me de um jeito estranho, dou
um sobressalto quando um raio corta o céu em um som estarrecedor. O clarão
passa pelo vidro da janela da sala de jantar e reflete no rosto de Marcos,
dando ainda mais brilho ao sorriso perverso. Engulo em seco com um nó na
garganta ao contorcer as mãos sobre o meu colo, olho para a porta tentada a
sair correndo. Ele está planejando alguma maldade.
Mas, para chegar até a porta, teria que passar por ele e eu duvido muito
que conseguiria sair da cozinha sem levar pelo menos dois tiros nas costas.
Por isso, mantenho a pose com um sorriso sem graça e os olhos bem atentos.
Entrar no seu jogo é a melhor opção.
— Sua comida está com um cheiro maravilhoso, Anne. Pode deixar que
eu sirvo o seu prato, meu amor, hoje o dia é seu. — Apoia o cotovelo sobre a
mesa e segura o queixo com a mão, fazendo charme.
— Obrigada, Marcos, mas não precisa se incomodar. — Pego o prato e
recebo um olhar diabólico; solto no mesmo instante.
— Boa menina. — Dá uma risadinha. Não tiro os olhos de Marcos
enquanto me serve, com medo de que me envenene, não tem outra explicação
para o seu ato gentil.
— Obrigada — digo quando me entrega o prato pronto.
Marcos me encara enquanto comemos, levo o garfo à boca levando um
bom tempo para conseguir mastigar e engolir, minha garganta parece fechada
por um nó. Mal consigo me mexer, minha coordenação motora está lenta
devido ao medo, é horrível saber que algo muito ruim está para acontecer,
mas não se sabe quando ou o quê.
— Você parece assustada, querida. — Estica o braço e acaricia o meu
rosto com as pontas dos dedos, mas seus movimentos são tensos demais para
chegar perto de algo que lembre um gesto de afeto.
Na minha cabeça uma voz não para de dizer…
Corra, Anne. Corra!
— Não estou assustada, Marcos, só um pouco indisposta. Se me der
licença, vou me deitar um pouco, depois volto para arrumar a cozinha. —
Fico de pé e recolho o meu prato para colocar na pia, até minhas pernas
tremem.
— Sente-se e termine de comer o seu jantar, Anne, mal tocou no prato
— não pediu, mandou.
— Eu já comi o suficiente, por favor, me deixa ir para o meu quarto. —
Forço uma tosse nada convincente rezando para ele acredite que eu não estou
bem, mas não obtenho sucesso.
— Eu mandei você se sentar, porra! — grita dando um murro na mesa
que faz tudo sobre ela pular, e volto a sentar no mesmo instante.
O verdadeiro Marcos volta em cena, não consegue esconder por muito
tempo quem é de verdade, ninguém consegue.
— Como você quiser, querido — sou sarcástica.
— Vou no carro buscar a sobremesa especial que trouxe para você,
Anne, tenho certeza que vai amar. — Com a postura firme, se levanta e some
pelo corredor.
Assim que some do meu campo de visão, corro para a porta da frente,
mas está trancada. A chave sempre fica na fechadura, mas não está.
— Meu Deus! E agora? — Entro em pânico ao ver que todas as janelas
estão lacradas por pregos grossos, meu primeiro instinto é tentar a porta dos
fundos.
No entanto, quando viro dou de cara com Marcos atrás de mim
segurando uma bandeja de prata com uma tampa redonda, como essas usadas
pelos reis em banquetes especiais.
— Onde pensa que vai, querida?
— A lugar nenhum. Que sobremesa é essa tão especial, Marcos? —
Sigo-o de volta para a cozinha.
— Tire a tampa e veja com os seus próprios olhos, minha esposa
querida. — Ergue a bandeja na minha direção, não tenho outra alternativa a
não ser fazer o que pede.
A cozinha é inundada pelo som agudo da tampa de prata indo contra o
chão, o que vejo me deixa tão chocada que perco a força. Meu coração para
enquanto meus olhos percorrem o desenho que Castiel tinha feito de mim
dentro da bandeja, nua no motel em São Paulo, junto com mais outras
centenas de fotos nossas do nosso encontro romântico hoje no bosque,
inclusive na cachoeira, fazendo amor debaixo da queda d´água
Esse é o meu fim!
Marcos vai me matar. Não quero nem imaginar como, só sei que será
lenta e dolorosamente. Todos os planos que eu e Castiel fizemos estão
destruídos, preciso arrumar alguma maneira de avisá-lo que fomos
descobertos para que fuja e pelo menos um de nós saia com vida dessa
história.
— Fica longe de mim, Marcos! — Pego um rolo de macarrão e dou no
olho dele. Saio correndo até o telefone fixo na sala para ligar para Castiel e
implorar que suma no mundo o quanto antes.
— Eu vou matar você, sua vagabunda, já devia ter feito isso há muito
tempo. — Posso ouvir a respiração pesada dele vindo atrás de mim a passos
largos, chego a pegar o telefone e tirar do gancho, mas quando começo a
discar o número recebo uma coronhada.
Vou ao chão meio tonta, Marcos aproveita e começa a me espancar, são
chutes e socos vindos de todos os lados. Pensei que não pararia até me matar,
mas de repente os golpes cessam. Entre flashes de perda de sentido e lucidez,
meu corpo é arrastado pelos pés na direção do seu escritório, paramos perto
da estante de livros e ele disca um código e o móvel simplesmente se abre em
uma porta secreta. Sou arremessada lá dentro como um saco de batatas, o
lugar cheira a mofo e sujeira. É escuro e muito frio.
Marcos fecha a porta secreta com ele do lado de dentro me tirando
qualquer chance de fuga, tento me arrastar no chão para longe dele, mas sou
impedida com um soco nas costas. Trinco os dentes de tanta dor.
— Você pensou que podia me trair com esse bandido e ficaria por isso
mesmo, sua vadia? — foi mais uma afirmação do que uma pergunta, ele está
fora de si.
— Você nunca vai chegar nem aos pés de Castiel, ele é muito mais
homem do que você jamais será — confirmo. Já que vou morrer, que seja
com dignidade.
Jurei para mim mesma que não abaixaria para o Marcos nunca mais.
Defenderia o meu amor por Castiel com unhas e dentes, o homem que
consertou em um mês o estrago desastroso que ele fez em mim durante cinco
anos.
— Cala essa maldita boca, vagabunda suja. — Segura firme no meu
cabelo e bate a minha cabeça no chão várias vezes, na hora penso que ele
havia quebrado o meu nariz, pois minha respiração está difícil, como se
estivesse morrendo aos poucos, asfixiada.
Depois vem mais socos e chutes, minha visão fica turva e não sei dizer
o que aconteceu após, porque acabo apagando de vez com Marcos ainda em
cima de mim, espancando-me. Mergulho em uma enorme escuridão sem
saber se voltaria a acordar outra vez. A única certeza que tenho é que se fosse
para viver sem o meu Castiel, prefiro morrer.
Capítulo 34

Castiel

Eu ainda permaneci um tempo sentado no bosque depois que Anne foi


embora, mas então uma chuva forte começou do nada e eu voltei para a casa
do padre Valentim. Enquanto dirijo debaixo da tempestade de vento e
trovões, me pego pensando na maldição que foi a minha vida nos últimos
anos. Nem consigo acreditar que estou prestes a começar um ciclo novo ao
lado da mulher que amo. Lembro que em cada dia que passei trancado
naquela cela, acreditei fielmente que nunca teria uma mísera chance de ser
feliz. Todas as manhãs fazia um risco na parede, profundo, tão doloroso
como se tivesse sido feito em meu corpo.
Não era um simples risco feito com uma pedra que achei no pátio do
presídio, mas sim o troféu pela vitória de ter sobrevivido a mais um dia.
Minha cela era minúscula, ainda dividia o espaço com outro preso “barra
pesada”. A minha sorte é que, quando se nasce em uma família
desestruturada como a minha, acaba-se aprendendo muito cedo a se defender
sozinho. Entrei no presídio e saí dez anos depois sem nenhuma ferida no
corpo, pelo menos não exposta, porque o meu coração estava destruído, nem
sei como ainda batia dentro do peito, talvez pela esperança de reencontrar
minha irmã, esperança que agora está cada vez mais forte. Ainda vou achar
Beatriz, e voltaremos a ser uma família.
Estaciono a caminhonete na frente da casa do padre e saio correndo
com a minha jaqueta na cabeça até a porta da frente, a chuva só aumenta.
Quando piso na sala, sinto uma pontada forte no peito, uma espécie de mau
presságio.
— O que foi, meu filho? Está amarelo, senta aqui um pouco, vou pegar
um copo de água. — Minha expressão não deve ser das boas, porque padre
Valentim me olha de um jeito preocupado e me puxa até o sofá para sentar
comigo.
— Será que o senhor pode, por favor, ligar para a casa da Anne e
inventar qualquer desculpa só para eu ouvir a voz dela e saber que está tudo
bem, padre? — peço, já que eu não posso arriscar ligar ou mandar mensagens
diretamente para o celular dela por temer que o marido veja.
— Calma, filho, eu não estou entendendo nada! Vocês não acabaram de
se encontrar, aconteceu alguma coisa?
— Não, padre, nosso encontro foi lindo. Anne foi embora sorrindo, mas
agora estou com uma sensação estranha, como se ela estivesse precisando de
mim. — Inclino a cabeça para trás com uma dorzinha estranha na nuca,
massageio a área na tentativa de aliviar um pouco.
— Eu vou ligar agora mesmo, Castiel, mas tenho certeza que ela está
bem. — Assinto grato, desde que eu era um menino que escuto o padre dizer
que com intuição não se brinca.
Padre Valentim liga uma, duas, três vezes e ninguém atende o telefone
na casa de Anne. A essa altura eu já estou desorientado andando de um lado
para o outro, quase arrancando os meus cabelos fora, minha vontade é pegar a
caminhonete e ir pessoalmente saber o que está acontecendo com a minha
mulher. Sem notícias dela não posso ficar.
— Tenta ligar mais uma vez, padre, se não atender vou atrás da Anne.
— Padre me olha feio, mas eu estou decidido.
— Não vai fazer nada de que possa se arrepender depois, filho, falta
pouco para o diabo do marido dela ir para a missão dele, quando voltar vocês
estarão bem longe daqui. — Me dá um puxão de orelha.
Sei que ele tem total razão, mas como fazer um homem desesperado
como eu entender que minhas mãos e pés estão atados perante a situação? É
uma missão quase impossível, não tem coisa pior do que sentir que alguém
que você ama está em perigo e não pode fazer nada para ajudar.
— Não vou aguentar ficar até segunda-feira sem notícias de Anne,
padre — afirmo.
— Eu sei disso, rapaz, por isso amanhã cedo eu vou pessoalmente na
casa dela e não voltarei até colocar os meus olhos nela — concordo a
contragosto, não tenho uma alternativa melhor além dessa.
Padre Valentim vai para o seu quarto ler um pouco, eu me jogo no sofá,
cabisbaixo. Pela janela entreaberta observo a noite cair vagarosamente, como
que debochando do meu tormento. O irritante tic tac do relógio na parede
ecoa dentro da minha cabeça, torço para a hora passar rápido, mas o tempo
também parece zombar de mim. Não consigo parar de pensar na Anne,
rezando para que estivesse bem e tudo não passasse de coisa da minha
cabeça.
Já de madrugada, pisco as pestanas bem lento até cochilar de vez.
Acordo assustado ao ouvir a voz de Anne chamando por mim quase que em
um sussurro, fico em pânico à procura do meu amor e frustrado ao não
encontrá-la em nenhum lugar. Isso acaba comigo. Desisti de esperar sentado,
preciso ocupar minha cabeça com alguma coisa. Vou para a cozinha fazer um
café forte, a chuva ainda se estende por toda a madrugada, aos poucos
clareando, transformando-se numa manhã de domingo triste e acinzentada.
— Já de pé, Castiel? — Padre aparece na cozinha pronto para sair, capa
de chuva por cima da batina e chapéu preto na cabeça.
— Na verdade, eu nem dormi direito, padre. — Arrasto a cadeira da
mesa de madeira para ele sentar e ter o seu desjejum, minha ansiedade é
muito grande para que vá logo na casa da Anne, contudo, jamais iria deixar
que saísse de casa com fome.
— E ficar com os olhos arregalados igual a uma coruja velha por acaso
resolveu alguma coisa, menino? — implica olhando-me por cima dos óculos
de leitura, não coloca nada na boca até fazer a leitura do versículo do dia.
— Não implique comigo, padre, não hoje. — Respiro pesadamente
enquanto tiro a torta de maçã do forno, também havia feito pão de queijo e
panquecas com mel.
Só assim para manter minha mente ocupada para não pensar merda.
— Está bem, meu filho, mas ainda acho que está se preocupando à toa.
Agora sente-se comigo, leia comigo o versículo de hoje.
— Sim, senhor, padre. — Deixo a bandeja sobre a mesa, puxo a cadeira
e me sento ao seu lado, damos as mãos e eu fecho os olhos para ouvir a
palavra de Deus.
Eu sou um pecador nato, mas tenho muita fé em uma força maior.
“Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo que, segundo
a sua grande misericórdia, nos gerou de novo para uma viva esperança, pela
ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, Para uma herança
incorruptível, incontaminável, e que não se pode murchar, guardada nos
céus para vós, Que mediante a fé estais guardados na virtude de Deus para a
salvação, já prestes para se revelar no último tempo.” 1 Pedro 1:3-5.
— Está vendo, Castiel? Nós temos uma esperança incrível. Mas às
vezes o rumo da vida pode se perder um pouco, e pode ser difícil manter a fé.
Por isso devemos sempre pensar positivo, mesmo que nossa intuição diga o
contrário. — Coloca a mão no meu ombro, e enfim consigo relaxar um
pouco.
Nosso café da manhã foi tranquilo, em paz. Como a estrada está um
lamaçal por conta da chuva, padre Valentim dispensou ir de charrete até a
casa de Anne e pediu minha caminhonete emprestada.
Aproveitei o tempo livre até o seu retorno, espero que com boas
notícias do meu amor, para dar um trato no estábulo do padre Valentim, que
está caindo aos pedaços. Começo pregando as tábuas soltas, limpo e organizo
tudo. Dou banho nos cavalos e corto capim para eles; enquanto comem
aproveito para escovar sua pelagem.
— Como você consegue aguentar aquele velho teimoso por tanto
tempo, Trovão? — Aliso a crina negra do cavalo, do nada começa a trocar o
peso das pernas e relinchar como se quisesse me alertar de alguma coisa.
Olho para todos os lados e não vejo nada de suspeito. Consigo acalmá-
lo. Me convenço de que não é nada até ouvir um barulho da tábua na entrada
do estábulo ranger, saio correndo animado pensando ser o padre. Porém, paro
de andar antes de chegar na porta, afinal, lembro de ter escutado o motor
potente da minha caminhonete velha roncando de longe. Decido dar meia
volta e sair pela entrada dos fundos, de frente para o celeiro; ao girar o corpo
deparo-me com dois homens gigantes fardados com a roupa do exército
cobrindo a passagem. Um loiro alto bombado e um rapaz negro que não
parece ter mais de dezenove anos.
— Precisa trazer os seus cães de guarda para me pegar? Ah! Esqueci,
covardes como você não são homens o suficiente para enfrentar alguém do
meu tamanho sozinho. — Dou uma risada debochada.
Não preciso olhar para trás para saber que Marcos está armado,
impedindo a entrada da frente.
— Você não abaixa a crina nem na hora da sua morte, não é mesmo,
seu bandidinho de merda? Não preciso de ajuda para acabar com você, faço
com uma mão amarrada nas costas — gaba-se o babaca, viro e o encaro
mantendo a calma.
A primeira coisa que noto é que a sua farda está suja do que parece uma
mistura de sangue e muita lama, e a imagem de Anne sendo agredida vem à
minha mente. Se ele está aqui é porque descobriu tudo sobre nós e a essa
altura, com certeza, já fez alguma crueldade com ela.
— De quem é esse sangue na sua roupa? Se ousou tocar na Anne, eu te
mato! — Parto para cima dele tomado pelo ódio, disposto a qualquer coisa.
Sou impedido de chegar até Marcos pelos dois homens que o escoltam,
eles entraram na minha frente, armados com metralhadoras modernas.
— Calminho aí, parceiro, para tocar no tenente vai ter que passar por
cima de nós — exclamou o mais velho, musculoso tipo esses ratos de
academia, ele é muito branco com o cabelo loiro platinado, até os fios dos
cílios são dessa cor. Parece albino.
Fica me encarando com a expressão azeda, bate o cano da arma na
palma da mão, doido para me atirar com ela. Já o outro soldado, o rapaz
moreno com cara de filhinho de papai, pelo seu olhar perdido não está feliz
em participar dessa merda, não tem coragem nem de me olhar.
— A minha esposa está em casa, aquela vagabunda desgraçada recebeu
uma boa lição por me trair com um bandido imundo. Mas pode ficar
tranquilo, rapaz, que esse sangue na minha roupa não é dela, mas sim do
padre Valentim, aquele falso profeta do caralho — sua revelação me acerta
como uma bomba, fico paralisado.
— É mentira sua, Marcos! — me recuso a acreditar.
— Eu avisei para o padre não ficar andando por aí sozinho, ainda mais
em uma caminhonete caindo aos pedaços. Eu não tenho nada com isso, foi só
um acidente — solta uma risada macabra.
Uma dor tremenda rasga o meu peito, aquele maldito tirou de mim a
única figura de pai que tive na vida. E a culpa é toda minha, eu o mandei para
a morte. A pessoa mais bondosa e amorosa que conheci na vida. Meu Deus!
É incrível como eu tenho o poder de trazer tragédia para a vida das pessoas.
O soldado mais jovem me olha de rabo de olho, sentindo culpa, talvez.
Sabe que o dever deles é prender os caras maus, não machucar pessoas
inocentes, ainda mais um padre amado em toda a cidade.
— Que se foda tudo! Eu vou te matar, seu filho da puta. — Soco a cara
do loiro grandão entre nós, que cai no chão meio tonto, e vou para cima do
outro soldado.
— Por favor, senhor, não me machuque! — implora o jovem
apavorado, mesmo armado, não sei o que um maricas como ele faz no
exército.
Não perco tempo, passo direto por ele, pois meu alvo principal é o
tenente Marcos. Paro frente a frente com ele e encaro-o com sangue nos
olhos, agora é tudo ou nada. Covarde como é, aponta a arma na mira do meu
coração, não movo um centímetro. Se quiser me parar, só me matando.
— Você pode acabar com isso me dando um tiro no peito, mas se for
homem de verdade vai me enfrentar no punho. A decisão é sua. — Abro os
braços dando bandeira branca para que atire. Sob pressão dos olhares dos
seus homens ele joga a arma que tem em mãos longe.
— Não preciso de uma arma para acabar com um verme, pode vir com
tudo. — Fica em posição de ataque pulando de um lado para o outro em volta
de mim com os punhos fechados, com um sorriso de vitória antes mesmo da
luta começar.
— Não faz ideia do quanto ansiei por esse momento, tenente. — Acerto
uma cotovelada no olho esquerdo de Marcos, causando um corte na altura da
sobrancelha; antes que possa revidar dou uma cabeçada nele que o faz
cambalear para trás.
Depois disso foi só soco atrás de soco de cada lado do seu rosto, jab e
direto sem intervalo para respirar, tanto para mim, que desferia os golpes,
quanto ele que os recebe. Dessa vez não pretendo deixar o trabalho pela
metade como no caso do meu padrasto, só vou parar quando estiver morto.
Vou deixar Anne livre desse maldito de uma vez por todas.
Mas, como um covarde sempre tem uma carta guardada na manga,
Marcos tira um punhal do bolso e afunda no meu braço. A dor é profunda,
mas a adrenalina nas minhas veias é tanta que arranco fora da minha carne
com um puxão.
— Pelo jeito, a negrinha vagabunda te pegou de jeito, hein, Castiel? —
Fica de pé com dificuldade, rindo irônico ao limpar o sangue que escorre do
nariz, fiz um belo estrago no seu rosto.
— Eu amo a Anne, ela é a mulher da minha vida! — grito para quem
quiser ouvir.
— Eu nunca ouvi tanta baboseira! Como um cara com uma mulher
linda como a filha do prefeito, de quatro por ele, troca pela baranga da Anne?
Nunca vou entender isso — diz indignado, eu que nunca vou entender por
que um homem obriga uma mulher que despreza a ficar ao seu lado. Isso sim,
é algo inexplicável.
— Nunca mais fale assim da Anne, novamente! — Giro o corpo no ar e
coloco todo o peso do meu corpo no pé e o derrubo com um chute na lateral
da cabeça, ele cai no chão de tábuas do estábulo com uma força tremenda,
que chega a balançar.
— Filho da puta! — Geme de dor.
— Isso é o que acontece quando um covarde enfrenta alguém do seu
tamanho, caras como você só são machões para agredir mulheres indefesas.
— Piso no meio das suas pernas e esmago suas bolas, como se fosse uma
cobra peçonhenta.
Marcos berra de dor, assustando os cavalos dentro das cabines; eles
começam a chutar as portas, querendo sair.
— Eu sou mesmo muito bom em bater em mulheres indefesas, precisa
ver como minha esposa ficou ontem, a vadia hoje nem conseguia ficar de pé
— me provoca, acho que a surra que levou não foi o suficiente.
A partir daí tenho o mesmo surto do dia que ataquei meu padrasto, não
enxergo mais nada. Quero esmagar o coração dele com as minhas próprias
mãos. Começo a esmurrá-lo na costela, quanto mais eu bato mais ele
gargalha. Ele é um psicopata.
— Onde Anne está? — grito possesso.
Marcos não responde, apenas continua rindo com pelo menos dois
dentes da frente quebrados.
— Atirem nesse maldito agora, homens! — cansa de apanhar e dá a
ordem.
O primeiro tiro acerta meu ombro, levo a mão sobre o local sentindo
uma ardência forte, está jorrando sangue.
— POR FAVOR, MARCOS, NÃO! — uma voz feminina grita ao
fundo, ao erguer o olhar vejo seu delicado rosto cheio de lágrimas.
— Carol? — É a última coisa que digo antes de levar o segundo tiro,
bem no meio do peito.
Durante meus últimos segundos de vida consigo ver Caroline correndo
até mim e se jogando no chão para amparar em seus braços a queda do meu
corpo, seu choro é uma mistura de desespero e arrependimento.
— Desculpa, Castiel, te ferir não fazia parte do acordo que fiz com o
tenente Marcos. Surtei quando soube da sua fuga com a esposa dele, por isso
o procurei e contei todo o plano de vocês. Não queria perder o homem que
amo. Eu traí você, mas no final também fui traída — revela por fim, antes
que os meus olhos se fechem permanentemente, com a certeza que Anne
estava certa o tempo todo sobre o mau-caráter da mulher que eu chamei por
várias vezes de amiga. Caroline diz me amar, mas quem ama não trai.

O amor é paciente, é benigno; o amor não arde em ciúmes, não se


ufana, não se ensoberbece, não se conduz inconvenientemente, não procura
os seus interesses, não se exaspera, não se ressente do mal; não se alegra
com a injustiça, mas regozija-se com a verdade; tudo sofre, tudo crê, tudo
espera, tudo suporta.
Coríntios 13:4-13
Capítulo 35

Anne

Abro os olhos com uma certa lentidão, minhas pestanas estão pesadas e
ardendo. Levo as mãos no rosto e me assusto com o inchaço, as pontas dos
meus dedos chegam a afundar na minha pele. Até para respirar dói, estou
fraca e meio desorientada. Talvez essa seja a sensação de chegar ao final da
linha, onde não se pode fazer outra coisa a não ser esperar a morte. Não faço
ideia de quanto tempo passei desacordada, perdi totalmente a noção do
tempo. Não saber o que Marcos fez com Castiel é a pior parte, não quero
admitir para mim mesma, mas eu não consigo mais sentir sua presença nesse
mundo.
Me encolho em posição fetal e choro por um bom tempo, estou exausta.
Com dor, frio e muito assustada. Divido meu tempo em dormir e chorar,
minha garganta está seca, preciso de um pouco de água. Não dá para acreditar
que as coisas irão terminar assim, eu e o Castiel chegamos tão perto.
Depois de apagar de tanto chorar, acordo assustada com o ranger da
porta secreta se abrindo, trazendo uma luz forte para o cômodo escuro. Tive
que cobrir os olhos com o braço. Pensei que Marcos viria direto continuar
com a sessão de espancamento, mas não.
— Olá, querida esposa, bom dia! — Se aproxima a passos lentos,
permaneço calada com a cabeça baixa, sem força para me arrastar um
centímetro que seja.
— Não vai dizer nada, amor? Vim saber se está gostando do seu novo
quarto. Para ver como sou um homem bom, trouxe um pouco de água para
você. — Baixa o copo de vidro para que eu veja, penso se devo pegar ou não,
pode ter alguma substância química.
A verdade é que se tiver é até melhor, só a morte para me salvar de
Marcos. E ele sabe disso, por isso não me matará assim tão fácil, vai me
torturar muito antes. Por isso vou aceitar o copo d'água, talvez tenha
acordado hoje tocado para fazer algum ato de bondade.
Ergo a mão toda cheia de hematomas com dificuldade para pegar o
copo, mas não chego a tocar o vidro quando ele entorna até a última gota. A
minha sede é tanta que começo a lamber o chão desesperadamente feito um
animal, é assim que ele gosta de me ver, aos seus pés e completamente
humilhada.
— Tenho algo melhor do que água para você, querida. — Ouço quando
ele abre o zíper da calça e urina sobre mim, o líquido morno cai sobre as
minhas feridas, causando uma ardência muito forte.
Meu vestido se transforma em uma mistura nojenta de sangue e urina.
Acho que se existisse o título de “Rainha do Fundo do Poço”, eu seria eleita
por unanimidade.
— O que foi, a gata borralheira perdeu a língua? — Me cutuca com o
pé, abraço meu próprio corpo encolhendo-me ainda mais.
Não satisfeito em ser ignorado por mim, me chuta novamente com mais
força. Mesmo com a vista um pouco embaçada, olho para Marcos e noto que
o seu rosto está quase irreconhecível. Todo inchado e cheio de hematomas
bem roxos, fora os dois dentes da frente quebrados.
Começo a rir feito uma maluca, se esse estrago todo é obra do Castiel,
bem feito!
— Gostei do novo visual, Marcos — debocho. Ele ferrou comigo, mas
ganhou o troco.
— Precisa ver como ficou o outro cara, deve estar aproveitando as
férias no quinto dos infernos agora. — Meu mundo cai, ele não pode ter
matado o meu Castiel.
Não pode!
Tirar de mim a única pessoa que me fez feliz no mundo, grande amor
da minha vida. Devíamos ter desconfiado que algo não daria certo.
— É mentira, Marcos! — me descontrolo e puxo a barra da sua calça.
— Veja com os seus próprios olhos, querida. — Tira o celular do
bolso, coloca um vídeo caseiro e vira na minha direção, devia ter fechado os
olhos porque a cena terrível que vi nunca mais vai sair da minha mente.
Dois soldados tiram o corpo de Castiel do porta-malas do carro de
Marcos e jogam numa vala da beira de uma estrada qualquer, como se fosse
um bicho morto. Passo o dedo pela tela sobre o rosto do meu amor, a roupa
cheia de sangue e a pele tão pálida. Sem vida, eu mal posso acreditar que está
de fato morto. Agora é oficial! O demônio cumpriu sua promessa, matou o
meu anjo.
A minha alma se foi junto com a de Castiel, me sinto morta por dentro.
Todo e qualquer sentimento que existiu em mim um dia se explodiu em
milhares de partículas. Não tenho mais por que lutar, é chegada a hora de
entregar os pontos.
Marcos venceu!
— Vai ficar presa aqui sem água e comida até aprender a me obedecer,
meu amor, mas como sou um homem bom, se você pensar direitinho nas
merdas que fez e me pedir perdão eu te dou uma última chance. — Vai
embora assobiando feliz da vida, mas pelo menos esquece de apagar a luz,
agora posso analisar melhor o lugar onde estou.
Enfio a mão dentro da gola do meu vestido, agarro o anel pendurado no
cordão no meu pescoço que Castiel me deu no bosque, e choro aos gritos até
secar minha última lágrima. Fico parecendo estar em estado vegetativo,
entregue a um vazio sem fim. Nem pisco. Toda vez que fecho os olhos vejo a
imagem do meu amor morto, não aguento mais. Não sei se foi delírio da
minha mente, mas posso jurar que sinto sua mão fazendo carinho no meu
rosto bem de leve, a sensação é tão boa que acabo pegando no sono. O sonho,
é claro, foi com ele, o amor da minha vida.
Em uma visão de cima para baixo vou me aproximando cada vez mais,
eu reconheço esse lugar, é o nosso bosque secreto. Mas está diferente, tem a
nossa casa dos sonhos construída do jeitinho que imaginamos, à beira da
cachoeira. No amplo jardim da frente, Castiel está todo vestido de branco,
sentado sobre a grama verdinha. Parece ser primavera, pois há flores
selvagens por toda parte, de todas as cores e formas.
Só um minuto…
Ele não está sozinho, tem um garotinho lindo sentado próximo a ele,
também todo vestido de branco, brincando com um coelhinho de pelúcia
igual ao da irmã de Castiel na foto que me mostrou dela. Ele sorri
lindamente olhando para o pequeno amorosamente e passa a mão entre os
cachos bem enroladinhos do cabelo dele.
— Ei, Gabriel, vamos procurar a Clarinha? — pergunta Castiel para o
menino, que assente sorrindo para ele.
Quem será essa Clarinha?
O sorriso dessa criança de alguma forma lembra o meu; na verdade,
ela é muito parecida comigo. O tom de negro da pele, os olhos castanhos
escuros e o cabelo cacheado. Observo Castiel se afastando de mãos dadas
com o garotinho, conversando alegremente, ambos envoltos por uma luz
brilhante que passa uma energia boa.
Acordo sorrindo, acredito que Castiel apareceu no meu sonho para me
confortar. Mostrar que está num lugar melhor agora, no paraíso, rodeado por
pequenos anjos. Me sinto até mais forte agora.
Castiel me treinou para ser uma sobrevivente, e não vou decepcioná-lo
entregando os pontos assim tão fácil. Juntarei toda a força que me resta e vou
sim ficar de pé, chega de ficar no papel de vítima, jogada nesse chão sujo.
— Vamos, Anne, reaja. — Respiro com vontade, conto até três, forço
meu corpo a ficar de quatro e engatinho até a parede mais próxima para usar
como apoio.
Assim que encontro uma parede, uso as costas como base para deslizar
meu peso para cima, preciso descansar um pouco. Consigo me colocar de pé.
A luz aqui é um pouco fraca, mas já é mais que o suficiente para poder
analisar melhor o lugar onde estou. A primeira coisa que percebo é que não
tem nenhuma janela, poderia morrer de gritar que ninguém me ouviria.
Esse lugar parece uma espécie de porão secreto cheio de coisas velhas
guardadas, caixas e mais coisas, fechadas com fita crepe. Alguns móveis
antigos, tudo muito estranho.
— Por que Marcos mantém um lugar como esse às escondidas, senhor?
— me pergunto tentando chegar a uma estante ao fundo do cômodo, um
quadro grande virado para a parede atrás dela me chamou a atenção.
Deixei a curiosidade falar, o tiro de onde está com cuidado para não
fazer barulho e o viro para mim. Fico de cara no chão ao perceber se tratar da
pintura de uma mulher loira bonita, mas a expressão muito triste. Apesar de
jovem, os olhos azul-jacinto carregados e a pele pálida a fazem parecer mais
velha. O fato das roupas sérias demais tapando até o pescoço não colabora,
seu vestido azul desbotado parece de uma senhora de setenta anos, tem até
um babado na frente parecendo um avental. Não usa maquiagem, e traz o
cabelo em um coque severo sem nenhum fio solto.
Só me dou conta da mulher na pintura quando leio o nome escrito
embaixo pelo artista que fez o quadro.
“Amélia Vargas, ano de 2010.”
Puta merda, essa é a primeira esposa de Marcos. Ele nunca me contou
como ela era fisicamente, e agora, encontrar esse quadro sem estar esperando
me deixa atordoada demais, acabo pisando errado e arranco uma tábua do
piso. Na verdade, a peça parecia estar apenas encaixada. E a história não para
por aí, olhando o buraco é possível ver alguma coisa escondida lá dentro.
— Mas o que será isso? — Me sento em volta do buraco e enfio a mão
lá dentro, puxo para fora o objeto e constato se tratar de um diário antigo.
Não foi difícil abrir o cadeado, está bastante enferrujado, deve estar há
muitos anos escondido nesse lugar. Logo na primeira página leio uma coisa
que me deixa impactada. Isso não é apenas um simples diário, vai muito além
disso.

“Relato de uma vida triste, por Amélia Vargas.

Tinha dezoito anos quando conheci Marcos ainda na faculdade,


sempre tive uma queda por homens negros. E ele era o mais lindo de todos,
um sorriso de tirar o fôlego. Aquele tipo boa pinta, capitão do time de futebol
da escola e cobiçado por todas as meninas. Mas era mais velho do que eu, já
estava no último ano em direito, fazia parte do grupo dos veteranos. Muito
inteligente, porém tinha um grande defeito, a mania de grandeza: parecia
pensar ser melhor que as outras pessoas. Mesmo repugnando isso,
começamos a namorar em menos de um mês e não nos separamos mais. Só
descobri quem ele realmente era depois do casamento. Até tentei fugir, mas
ele sempre me achava e dizia que mataria toda a minha família caso tentasse
fazê-lo. O meu irmão nunca gostou do meu marido e acabou sendo vítima
fatal de um assalto muito suspeito que na época ficou por isso mesmo.
Fui criada em uma família cristã. Aprendi a respeitar ao próximo,
como gostaria de ser respeitada. Porém, infelizmente nem todo mundo pensa
assim, entendi isso da pior forma, no medo, na fome e na dor. As pessoas não
são o que parecem e mentem a maior parte do tempo.
O primeiro ano de casamento foi o máximo, o segundo, nem tanto. Já o
terceiro foi um caos, no quarto iniciei o primeiro dia do ano internada quase
em coma depois de “cair da escada”, essa foi a desculpa que Marcos deu
aos médicos quando dei entrada lá, toda ensanguentada. Quando acordei
estava no soro e a enfermeira falou que havia colhido sangue para fazermos
uns exames, e para eu não me preocupar porque tudo ficaria bem. Tentei
confiar nas palavras dela e descansar.
Fechei os meus olhos implorando a Deus para morrer, não suportava
mais aquela vida. Depois de algumas horas, os resultados dos meus exames
chegaram apontando uma anemia grave, pois eu quase não comia. E outra
notícia que me deixou sem chão! Eu estava grávida de um monstro. Chorei
muito e toda a equipe de enfermagem pensando ser de alegria, mal sabiam o
que eu passava. Fui para casa esperançosa que aquele bebê talvez fosse a
oportunidade para que não apanhasse mais. Triste ilusão.
No dia seguinte tomei coragem e contei ao Marcos. Sua expressão me
deixou apavorada.
— O que, vadia? Como assim, grávida? Eu não quero ser pai! —
berrou ele, mas não chegou a me bater.
Passaram-se vários dias sem falar comigo, continuei seguindo minha
rotina, o tempo continuou passando e, quando fui fazer ultrassom para saber
a condição do bebê e as batidas do coração, naquele momento consegui
esquecer a vida infernal que vivia e senti que minha vida finalmente teria um
sentido. Fiquei de olhos fechados sorrindo, meu sorriso cresceu quando o
médico virou e disse:
“Você e seu marido serão pais de uma linda menina, parabéns,
mamãe.”
Saí do consultório e logo meus pés voltaram para o chão. Permaneci
mais de uma hora sentada na escada do lado de fora da clínica, chorando em
uma mistura de euforia e pavor. Como faria para criar essa criança? Isso se
ela chegasse a nascer, não sabia se Marcos me deixaria viva até lá. Não
quero que minha filha sofra na mão dele também, mas não queria ter que
abrir mão dela. Que dor, meu Deus. Que dor!
Segurei essa informação comigo por alguns dias, até que Marcos
mexeu na minha bolsa e viu a ultrassom e descobriu o sexo do bebê. Veio
com a pasta na mão atrás me mim aos gritos, dizendo que nem para dar um
filho macho para ele eu servia. Deixou bem claro que não queria outra
vagabunda em casa. Só lembro de vê-lo pegando o que achou na frente e me
bater até me deixar inconsciente. Quando acordei, ele não estava mais lá.
Minha barriga doía e o meio das minhas pernas estava coberto de sangue e
esperma, ele havia me estuprado mais uma vez.
Graças a Deus não perdi o meu bebê. Mesmo morando na mesma casa,
ele passou um tempo sem ter qualquer contato comigo. Na frente dos outros
me tratava com carinho, alisava minha barriga e dizia estar feliz com a
chegada da minha filha. Mentiroso! Ia à igreja todo domingo e orava de
joelhos, jurando ser um homem de Deus admirado por todos. Menos padre
Valentin, esse sempre teve um pé atrás com ele. Por muitas vezes quis pedir
ajuda a ele, mas tive medo do meu marido querer se vingar dele depois.
Quando completei seis meses, fomos em um jantar de confraternização
do trabalho de Marcos. O seu chefe veio me cumprimentar pela gravidez,
beijou meu rosto com respeito e me abraçou, fazendo o mesmo com o meu
marido. Na hora não fez nada, mas no caminho de volta para a casa disse
para eu me preparar porque quando chegássemos ganharia uma lição por
deixar outro homem me beijar. Chorei implorando para ele não machucar
nossa filha. Ele apenas riu perverso, podia ver a maldade através dos seus
olhos.
Naquela noite ele quebrou meu maxilar, o nariz e um osso do rosto que
nem sei qual era, saí de casa no SAMU e ele disse cinicamente aos
paramédicos que me achou assim em casa e pediu socorro.
Fui internada às pressas, com contrações hipovolêmicas. Minha filha
nasceu antes do tempo, uma menina linda! Entrei em coma devido à pressão
alta demais assim que a enfermeira a colocou nos meus braços, nem deu
tempo de ver seu rostinho direito, só acordei duas semanas depois. A
primeira coisa que perguntei quando o médico tirou o tubo da minha boca
foi sobre o estado de saúde do meu bebê.
— Sinto muito, Amélia, ela lutou enquanto podia, mas se foi ontem à
noite devido a uma insuficiência respiratória. — Tive um ataque de histeria,
foi preciso me dopar novamente.
Mais calma no dia seguinte, estava chorando naquela cama fria de
hospital quando o meu marido chegou com o semblante mais calmo do
mundo, como se nada tivesse acontecido.
— Eu vou te denunciar pelo que fez, não vou sossegar até te ver
apodrecer na cadeia. — Encarei-o com sangue nos olhos, e afirmei
novamente: — Assim que a polícia chegar, eu vou contar tudo.
— Você não seria capaz! Além de chorar a morte da sua filha, vai
chorar a da sua família também, farei com eles o que fiz com o seu irmão.
Foi moleza dar um fim naquele notário e forjar um assalto — revelou
friamente o que eu sempre desconfiei, mas não queria acreditar.
Agora, além da minha filha, chorei um mar inteiro por saber que o
pobre do meu irmão mais velho morreu por minha culpa. Dois dias após, a
polícia veio e eu não conseguia falar, só chorava. A psicóloga tentou ajudar,
mas eu tinha muito medo, pois sabia do que ele era capaz, então fui fraca
mais uma vez e disse que perdi o controle do carro enquanto voltava para o
trabalho. Lembro-me do olhar carinhoso do policial Mauricio Cunha, um
senhor de olhos verdes.
Pegou na minha mão e disse:
— Você tem certeza, minha filha? Porque eu juro que vou te proteger.
Não acha que já perdeu muito? Agora foi a vida da sua filha, a próxima pode
ser a sua — alerta, com a sua vasta experiência como policial.
Ele sabia a verdade, percebi isso nos olhos dele.
— Não se preocupe, moço, eu não tenho mais nada a perder — insisti,
não podia colocar mais ninguém da minha família em risco.
Hoje, um ano depois desse dia, aqui estou eu, presa nesse maldito
sótão pela milésima vez, depois de ser brutalmente espancada por Marcos
por algum motivo banal. Seu esporte favorito é me causar dor. Mas dessa
vez, antes de me trancar nesse porão, vi algo diferente nos seus olhos, mais
perverso. Por isso, se alguém achar esse diário algum dia, é porque eu não
saí viva daqui.
Eu fui assassinada! E pelo meu marido, tenente Marcos Vargas. Peço
que encontre o meu corpo e faça justiça.
Amélia Vargas.”

— Minha Nossa Senhora Aparecida, o que tenho em mãos é a prova de


um crime. — Termino de ler o diário da primeira mulher de Marcos, em
choque, confesso que tive que pular algumas partes por serem muito pesadas.
Eu pensava que sofria na mão do Marcos, mas não, Amélia sofreu
muito mais. Ela não foi embora como todos pensam, provavelmente, nem
chegou a sair com vida dessa casa. Coitada! Se odiava Marcos com todas as
minhas forças antes, agora tenho certeza que é o próprio demônio.
Alguém precisa fazê-lo pagar por todas as maldades que fez, e esse
alguém serei eu.
Capítulo 36

Passaram-se dias, não sei ao certo quantos. Presa aqui não dá para ter a
menor ideia de quando o dia começa, tampouco quando termina. Marcos não
apareceu mais e eu me sinto grata por isso. Meu estômago nem ronca mais de
faminto, acho que até as minhas lombrigas morreram de fome. Me sinto
imunda, cheirando a carne podre, meu cabelo se transformou em uma
bagunça de nós, um cacho emaranhado com outro. Estou parecendo aquelas
mulheres da época das cavernas. A única coisa que tem me mantido viva é o
desejo de vingança, por Castiel e Amélia.
Fiquei pensando, será que Castiel sentiu muita dor ou medo da morte?
Pensando em mim?
Na irmã?
Essas dúvidas são dolorosas demais, não há despedida mais difícil do
que aquela que sabemos que será para sempre. Saudade é regressar a um
tempo que não volta mais. O que me resta é guardar no coração todas as
lembranças, carinhos, palavras de amor ditas e aquelas expressadas no
silêncio através do olhar. Eu tive muita sorte de ter conhecido um homem
incrível como Castiel. Me amou em pouco tempo com uma intensidade que
vale para a vida toda.
Já a pobre Amélia não teve a mesma sorte, o primeiro e o último
homem que teve foi Marcos. Casar-se com ele foi a mesma coisa que assinar
sua certidão de óbito. Eu preciso pará-lo, ou serei a próxima e depois de mim
haverá outra vítima, e mais outra em um ciclo sem fim. Aproveito que tenho
tempo de sobra para começar a pensar em como dar a lição que o filho da
puta merece, o primeiro passo é me fingir de rendida e ganhar sua confiança
para depois dar o golpe final.
Para isso, escondo o diário da Amélia debaixo da roupa e espero
paciente até que Marcos apareça, trabalhei minha mente com meditação para
conseguir lidar com o seu humor cínico. Ao ouvir seus passos se
aproximando, escondo o diário e apago a luz. Antes que a porta se abra me
jogo no chão fingindo estar derrotada, do jeitinho que gosta de me ver. Às
vezes precisamos nos abaixar para algumas pessoas, até que o seu próprio
ego o cegue e assim nos dê tempo suficiente para preparar o contra-ataque.
— Bom dia, Anne, sentiu a minha falta, amor? — Antes de responder,
profiro um gemido baixo, dando veracidade ao meu papel de pobre coitada.
— Senti sim, Marcos! Depois de passar todos esses dias aqui sozinha,
pensei muito nas minhas últimas atitudes. Estou muito envergonhada por ter
sido infiel a um marido tão bom como você, me perdoe. — Me curvo diante
dele como se fosse um rei soberano, e eu, sua súdita fiel.
— Nada como deixar uma cadela teimosa sem comida e água por uns
dias para ela voltar mansinha, mansinha... — Me derruba com a ponta do pé e
pisa sobre a minha cabeça, esmagando o meu rosto contra o chão.
— Por favor, Marcos, se você me der uma chance vou passar o resto da
minha vida me redimindo por ter sido uma péssima escolha — dramatizo no
estilo novela mexicana, com direito a lágrimas de crocodilo e tudo.
— Não me toque, mulher, está sujando a minha farda, você está
cheirando feito um animal morto. — Aperta o nariz com as pontas dos dedos
me empurrando para longe, com nojo de mim.
Percebo que Marcos está fardado, com certeza partirá para uma de suas
missões de trabalho. Perfeito! Se eu conseguir convencê-lo do meu
arrependimento e me deixar sair, os dias que ele passar fora serão mais que
suficientes para preparar a vingança que tenho em mente. Mas se eu não
conseguir, não sobreviverei muito tempo nesse lugar sem comida e água.
Quando voltar, estarei morta.
Agora é tudo ou nada! Preciso ser convincente.
— Desculpe, senhor, não deveria tê-lo tocado sem permissão! Eu
realmente preciso de um banho — sou submissa, rezando para que caia.
Marcos fica em silêncio por um tempo, pensando se me daria outra
chance ou não. Cruzo os dedos.
— Vou dar a você só mais uma chance, Anne. Estou indo para minha
missão hoje, mas deixarei os meus homens de vigia do lado de fora da casa.
Se aprontar qualquer coisa, eu volto na mesma hora e acabo com a sua raça,
ouviu bem? — Aperta minha mandíbula com tanta força que me obriga a
olhar para ele; balanço a cabeça várias vezes em afirmação.
E que a guerra comece, tenente Marcos Vargas!
— Obrigada, meu amor, você realmente é um homem incrível.
Bondoso. Prometo não o decepcionar dessa vez, darei o meu melhor para ser
digna ao posto de sua esposa. — Sorrio de dentes trincados, mas gritando de
ódio por dentro, louca para cuspir na sua cara e dizer o quanto o desprezo.
Para conter esse desejo movida pela ira, cravo minhas unhas na carne
por debaixo do vestido. É a única forma que encontro para não fazer merda, o
sofrimento faz a gente aprender que a vingança é um prato que se come frio.
— Você só vai poder comer depois que arrumar toda a casa, que está
um chiqueiro, entendeu bem? Andei fazendo algumas “festinhas” na sua
ausência.
— Como o senhor quiser, estou aqui para servi-lo. — Fico de pé, mas
mantenho as mãos juntas em frente ao corpo, e a cabeça baixa.
— Agora vai tomar banho, mulher, não estou suportando esse odor
vindo de você. — Me puxa pelo braço e me leva até o banheiro do primeiro
andar. Grosseiro, me joga debaixo do chuveiro.
Estou com tanta sede que junto as mãos debaixo do chuveiro, formando
uma pocinha de água, e bebo a água quente mesmo, esse líquido transparente
nunca me pareceu tão saboroso antes. O celular de Marcos toca e ele atende
enquanto entorna quase um vidro de sabonete líquido em mim sem se
importar que caia na minha boca e olhos, e sai para terminar a conversa na
sala. Aproveito que fico sozinha, pego diário e escondo no armário embaixo
da pia. Ainda bem que a capa é plastificada e não molha fácil. Volto para o
box e tento relaxar um pouco, tiro a roupa, me sento no chão e respiro bem
fundo de olhos fechados enquanto a chuva de gotículas cai sobre a minha
pele dolorida.
Termino o banho aliviada, a sensação de estar limpa é algo impagável,
me sinto até mais leve agora. Me enxugo de frente para o espelho da pia do
banheiro olhando o reflexo do meu corpo nu, cheio de cicatrizes e manchas
escuras. Cada uma delas significa um sorriso quebrado, que fora roubado de
mim de maneira cruel. Contudo, a mais profunda está na alma, nos pedaços
do meu coração espalhados dentro do meu peito.
— Aquela Anne que foi jogada naquele porão não existe mais, ela
morreu junto com o grande amor da sua vida — digo para mim mesma, e
enrolo a toalha em volta do meu corpo de maneira que cubra o anel preso ao
cordão no meu pescoço.
Pego uma tesoura na gaveta e começo a cortar o meu cabelo bem curto.
A cada cacho que cai no chão, uma lágrima desce junto ao lembrar de todas
as vezes que Castiel dizia o quanto amava o meu cabelo comprido, bem como
tudo que existe em mim. Se ele visse como o meu rosto está todo ferrado
agora, ficaria arrasado. Olhos vermelhos que dão a impressão das íris estarem
flutuando em um mar de sangue em volta de bolsas inchadas e escuras. Meu
maxilar tem mais partes roxas do que o normal.
Passo a língua sobre os meus lábios rachados ainda um pouco inchados,
na parte inferior tem um corte profundo. Endireito a postura ao sentir a
presença de alguém atrás de mim. É Marcos, no exato momento em que
finalizava o corte passando a máquina que usa para se barbear no número um.
Não se zanga, fica em silêncio por um tempo enquanto observa meu novo
visual.
— Até que não ficou mal, nunca gostei daquele seu cabelo ruim
mesmo. — Não sei se levo como elogio ou ofensa, tanto faz para mim.
O que Marcos acha ou não sobre mim não faz a mínima diferença, eu
gostei do meu corte novo de cabelo e é isso o que importa. Ficou bem melhor
do que eu pensei, combina com o formato redondo do meu rosto.
— Fico feliz que tenha gostado, Marcos. Tudo bem se eu for para o
meu quarto colocar uma roupa adequada para iniciar a faxina?
— Já era para ter ido, mulher. — Balanço a cabeça e saio, ele me tirou
do porão porque precisa de uma empregada para cuidar da casa enquanto
estiver fora.
Fico emocionada ao entrar no meu quarto e olhar para a minha cama,
ela guarda muitas boas lembranças de momentos íntimos meus com Castiel.
Me jogo sobre ela no lado em que o meu amor costumava dormir. Às vezes,
quando eu acordava, primeiro contornava cada traço do seu lindo rosto.
Abraço o travesseiro na esperança de sentir o seu cheiro, mas até isso o
tempo levou de mim.
No lugar tem um cheiro de perfume barato, algo cutuca as minhas
costas. Quando puxo a ponta, sai um chicote inteiro de couro com tiras na
ponta, faz parte de alguma fantasia erótica sadomasoquista.
— Filho da puta, não perdoou nem o meu quarto para fazer as suas
orgias — resmungo.
Tranco a porta e vasculho o fundo do meu guarda-roupa, onde escondo
alguns salgadinhos e chocolates, entre outras coisas com mais tempo de
validade, não é a primeira vez que Marcos me deixa sem comida, por isso
sempre deixo alguns suprimentos bem guardados para momentos caóticos
como esse. Devoro todos de uma vez só enquanto visto um conjunto de
moletom cinza, a fome é tanta que quase engasgo com uma barra de cereais.
Alimentada, desço plena para começar a faxina. Capricho na limpeza
da casa, me esforço para deixar tudo um brinco. Marcos inspecionou meu
trabalho e foi obrigado a admitir que tudo está impecável, mas não deixa de
alfinetar que poderia ter ficado melhor. À tardezinha o diabo foi para a
missão, mas não antes de deixar uma lista de exigências sobre o que eu não
posso fazer na sua ausência. Só espero virar as costas para rasgar a folha em
mil pedaços, levantando os dois dedos do meio.
— Vai se foder, Marcos! — grito de alegria.
Vou direto para a cozinha, faminta de comida de verdade, tiro tudo o
que tem na geladeira, coloco sobre a mesa e como loucamente como se não
houvesse amanhã. Só paro quando não tem espaço para mais nada no meu
estômago, levanto para lavar meu prato e, pela janela sobre a pia, vejo dois
soldados do pelotão de Marcos em um Jipe parado em frente à casa de vigia.
Dou uma de abusada e aceno para eles de longe, bater de frente com os
inimigos nem sempre é a melhor estratégia.
Deito-me no sofá e relaxo um pouco enquanto espero a noite cair.
Mantive os olhos bem abertos fixados no teto. Assim que escurece, olho pela
janela da frente e vejo os cães de guarda do meu marido ainda no mesmo
lugar. Coloco o capuz do meu moletom na cabeça e saio silenciosa pelos
fundos, sendo cuidadosa ao deixar todas as luzes da casa acesas. Preciso fazer
uma coisa que deveria ter feito há muito tempo, mas nunca é tarde para fazer
a coisa certa.
Pego um ônibus e desço no ponto em frente a um prédio ao qual já fui
várias vezes, mas voltava antes mesmo de entrar. Dessa vez não só entro,
como não peço informação a ninguém, procuro a pessoa com quem preciso
falar por conta própria.
— Ei, moça, você não pode entrar aí! — grita uma mulher correndo
atrás de mim pelo corredor extenso, com o salto fino do seu sapato batendo
no piso liso.
Quando consegue me alcançar, segura o meu braço. Viro para trás e a
fito. Assim que vê o estado desfigurado do meu rosto, me solta
imediatamente.
— A sala que está procurando é a segunda à direita, boa sorte!
— Obrigada — digo apenas e sigo o meu caminho.
Abro a porta sem bater, em um rompante, tomada por aqueles vinte
segundos de coragem, decidida a ir até as últimas consequências.
— Então, em que posso lhe ajudar? — pergunta o senhor de cabelos
escuros medianos de cabeça baixa, assinando alguns papéis. Nem fez questão
de olhar para mim.
Mal consigo vê-lo por trás de uma pilha de relatórios gigantes sobre sua
mesa, deve ser um homem muito ocupado.
— Quero denunciar o meu marido por agressão física, cárcere privado
e estupro — elevo a voz.
É indescritível o alívio que sinto ao fazer a denúncia na delegacia
contra Marcos. Onde eu estava com a cabeça que achei que não seria capaz
de vir atrás de justiça? Porque eu não vou parar até que ela seja feita.
Pela primeira vez desde que pisei nessa sala, ele ergue a cabeça e olha
para mim, vendo através do meu rosto nublado por uma mistura de lágrimas e
hematomas que eu estou falando muito sério.
— Estou feliz que veio pedir ajuda, moça. Sou o delegado Vandro de
Castro, e não vou desistir até ver o filho da puta que fez isso atrás das grades.
— Aponta para o meu olho roxo, contorcendo a boca. Realmente, não está
nada bonito.
— Mas o meu caso vai muito além de violência doméstica, delegado,
tem um possível homicídio no meio. E eu tenho um bom palpite de onde o
meu marido possa ter escondido o corpo. — Tiro o diário da Amélia de
dentro da minha blusa de moletom e o jogo sobre a mesa.
O delegado pega o caderno velho com a capa vermelha amassada e vira
para um lado e outro na tentativa de descobrir quais segredos essas folhas
amareladas guardam.
— As acusações que fez são muito graves, senhora, qual é o nome do
seu marido?
— Marcos Vargas, tenente da base do exército aqui de Campo Grande
— digo esperando que tal revelação não faça com que ele recue, é incrível o
poder que a patente do meu marido tem sobre as pessoas.
— Puta que pariu! O que esse homem tem de poderoso, tem o dobro no
tamanho do ego. Já fomos apresentados e, sinceramente, não o suporto.
— Depois do que tenho para lhe contar sobre ele, vai gostar dele menos
ainda — garanto.
— Então sente-se e fique à vontade, quero ouvir sua história desde o
começo. Gostaria de um café? — pede e eu me sento, essa conversa vai ser
longa.
Acabo aceitando o café, não sei se é a maneira como o delegado
conduz a conversa. Mas dar o meu depoimento a ele foi mais fácil do que
pensei, uma conversa que era para ser tensa foi tranquila. Suas perguntas são
diretas e precisas. Conto tudo em detalhes, desde o dia do meu casamento
com Marcos até o momento que bati na porta da sua sala.
O delegado Vandro fica perplexo com tudo que escuta. Apesar de não
simpatizar com o meu marido, não imaginava que ele é tão desprezível.
— São tantas coisas terríveis para digerir que nem sei o que dizer,
Anne. Sendo sincero, é um milagre que esteja viva — conclui estupefato. —
Posso ficar com esse diário? Vou analisá-lo com calma em casa, tem muito
material aqui para a acusação usar no julgamento. — Me encho de esperança
nele, já está pensando no caso lá na frente, isso mostra que deve ser muito
bom no que faz.
— Pode ficar com ele, delegado, só cuida com carinho, por favor —
suspiro, não queria me separar do diário, é como se houvesse uma ligação
especial entre mim e a Amélia.
De certa forma, foi através dele que nos conhecemos.
— Você disse que tem um palpite de onde ele poderia ter escondido o
corpo de Amélia, caso a tenha matado de fato?
— Meu marido mantém uma cabana caindo aos pedaços ao topo de
uma colina, um lugar assustador, parece até cenário de filme de terror.
— E o que te faz pensar que ele enterrou o corpo da Amélia nesse
lugar, Anne? Conheço muitas pessoas que mantém propriedades velhas por
não conseguir vender — questiona o delegado com a mão apoiada no queixo,
pensativo.
— Marcos só me levou nessa cabana uma vez, num dia em que
estávamos indo para o centro da cidade, e do nada mudou a rota para esse
lugar. Ordenou que eu o esperasse no carro, mas assim que saiu eu o segui.
Me escondi atrás de uma árvore e o observei de pé de braços cruzados,
olhando fixamente para o chão em uma areia gramada rindo sozinho, às vezes
mexia os lábios como se falasse com alguém. — Fico toda arrepiada, parece
até que Amélia está dentro da minha cabeça orientando o que dizer para a
encontrarmos.
— O que você disse faz muito sentido, Anne. Muitos assassinos voltam
com frequência ao local onde esconderam o corpo de suas vítimas, porque
são viciados em reviver a adrenalina do dia que cometeram o crime. No
entanto, duvido muito que consigamos um mandado de busca nesse lugar,
baseado num palpite seu. — Ergue as duas mãos para cima me olhando por
cima dos óculos. Primeiro ele me anima, depois dá o golpe de misericórdia.
— Pode parecer estranho, mas o meu coração insiste que foi lá que
enterrou a Amélia. Nunca teve certeza de uma coisa que não consegue
provar? — pergunto e ele coça o queixo, pensativo.
— Isso acontece o tempo todo na profissão que escolhi, Anne. Me dê o
endereço dessa cabana e faça um mapa improvisado do local da possível
cova. — Me dá uma folha de papel e caneta, eu pego ligeira e desenho a
planta do local da melhor maneira que posso, puxando do fundo da minha
memória cada lembrança da única vez em que estive na bendita cabana.
— Assim está bom, delegado? — Entrego a ele.
— Ótimo! Verei o que posso fazer com isso. Mas vou ser bem sincero,
Anne, para montarmos um caso sólido contra um homem poderoso como o
seu marido, precisaremos juntar o máximo de provas possível. Vou começar
com o que tenho de concreto em mãos, chamarei a médica de corpo de delito
aqui na minha sala para te examinar e deixar tudo arquivado — explica.
— Mas isso vai demorar, delegado? Marcos está em missão, mas
deixou dois dos seus cães de guarda do lado de fora de casa me vigiando, fugi
para falar com o senhor e ainda preciso passar na casa de uns amigos para
dizer pessoalmente que estou bem.
— Meu Deus! Por que não me disse isso antes, Anne? Vou ligar para a
médica agora, isso não vai levar mais de vinte minutos. — Assinto.
Ele sai da sala quando a médica do corpo de delito chega, uma senhora
de cabelos curtos brancos, baixinha, muito simpática e rápida no que faz. Me
libera em menos tempo que o delegado disse, graças a Deus.
— Muito obrigada por tudo, delegado. — Aperto sua mão, seu olhar
firme me passa muita confiança.
— Não me agradeça ainda, temos muito o que fazer até o juiz bater o
martelo e declarar Marcos Vargas culpado de todas as acusações.
— Amém — dizemos em uníssono.
— Não demore na visita aos seus amigos, e não saia mais escondida.
Nem faça ligações com o telefone residencial, todo cuidado é pouco —
orienta.
— Prometo tomar cuidado, mas como vamos nos comunicar daqui para
frente?
— Fique tranquila, darei um jeito de entrar em contato com você em
breve para dar notícias. Agora, vá logo. — Abre a porta da sua sala para mim,
vou embora confiando na sua palavra.
Capítulo 37

Anne

Saio da delegacia e vou direto para o apartamento da Valesca. Minha


amiga abre a porta, coloca os olhos em mim e começa a chorar
compulsivamente. Eu a puxo para um abraço sem esboçar nenhuma emoção,
já chorei tudo o que tinha para chorar.
— Está tudo bem, amiga, são só alguns hematomas — tento
tranquilizá-la, mas a coisa está realmente feia no meu rosto.
— Como pode dizer que está bem, Anne, por Deus! Está em pele e
osso, e o que aconteceu com o seu cabelo? — se descontrola.
— Não precisa fazer tanto drama, Valesca, cabelo curto está na moda!
— brinco na tentativa de diminuir a tensão, passando a mão pela cabeça entre
os fios batidos.
— Isso não tem graça, Anne, nem um pouco! Não tem noção de como
eu estava preocupada com você, achei que aquele maldito tinha te matado. —
Volta a chorar com mais vigor, sento abraçada com ela em algumas
almofadas grandes em formato de concha.
Olho para a minha amiga e vejo uma bagunça de lágrimas misturadas
com os fios loiros do seu cabelo colados sobre as bochechas vermelhas, ela
mal consegue me encarar.
— Eu não morri por pouco, Valesca, mas agora estou bem. Sobrevivi
presa em uma espécie de porão, sem comida e água durante todo esse tempo
em que estive sumida — esclareço e sua boca se abre em formato de “O”.
— Meu Deus, Anne! Faz mais de uma semana que eu e Carlos estamos
loucos à sua procura e de Castiel, chegamos a ir à sua casa, mas o bastardo do
seu marido nos disse que você tinha viajado para a casa dos seus pais. —
Aperto os olhos sentindo uma dor cortante atravessar meu peito, Marcos não
vale nada mesmo.
Meus amigos desesperados atrás de mim, chegaram a ficar metros de
distância de onde eu estava, e o meu marido mentiu na cara dura, mesmo
vendo o desespero deles.
— Você disse mais de uma semana, Valesca? — Assentiu. Caramba!
Fico surpresa com a minha própria força, dancei com a morte e ainda
continuo de pé.
— E o Castiel, tem notícia dele? — O seu tom inocente me corta o
coração, não tenho forças para responder, apenas balancei a cabeça
negativamente.
Pelo meu olhar ferido, ela soube que eu havia perdido o amor da minha
vida para sempre.
— Ai, amiga, eu sinto muito! Esse Marcos não vale nada, merece
receber uma lição para pagar pelos seus pecados. — Faz carinho na minha
cabeça se familiarizando com o meu visual novo, com o tempo a gente se
acostuma com tudo.
— Eu vou fazê-lo pagar por todos os seus crimes, Valesca. Antes de vir
aqui passei na delegacia e o denunciei, deveria ter feito isso há muito tempo.
— Posso sentir o gosto da vingança na minha boca, ela está próxima.
Eu posso sentir.
— Sério? Estou tão orgulhosa, Anne! Foi corajosa em ir até a polícia,
mas poderia ter me chamado para ir com você.
— Eu precisava fazer isso sozinha, amiga, é complicado explicar. Mas
tem guerras na nossa vida que precisamos lutar sozinhas.
— Entendo perfeitamente, mas se precisar de uma ajudinha para chutar
a bunda desse filho da puta é só me chamar que vou com prazer. — Faz uma
careta zangada.
— Pode deixar que eu vou me lembrar disso, Val. Mas, agora, será que
eu posso usar o seu celular para ligar para o padre Valentim? Deve estar
muito preocupado comigo e o Castiel, não posso esperar para contar que ele
nunca mais vai voltar. — A cor lhe foge do rosto, fica de pé e começa a andar
em círculos pela sala, roendo as unhas sem coragem de me contar algo.
— Eu não sei como te dar essa notícia, Anne, já passou por tanta merda
e... — Para de falar no meio da frase com os lábios trêmulos, aconteceu sim
algo muito grave que eu não estou sabendo.
— Por favor, não me diga que o padre Valentim está morto...! — A
seguro pelos ombros e balanço para que coloque o que sabe para fora.
— Sinto muito, Anne, mas o padre Valentim sofreu um acidente
enquanto dirigia a caminhonete do Castiel. Ele estava indo à sua casa para
uma visita. No começo todos pensaram que era porque estava chovendo no
dia, mas ontem saiu no jornal que os freios haviam sido cortados. — Inflo
minhas narinas sentindo meus nervos à flor da pele, mais uma vida inocente
tirada pelas mãos do Marcos, e por minha causa.
— A culpa disso é toda minha, Valesca! Se eu nunca tivesse me
envolvido com Castiel, ele e o padre estariam vivos agora. — Caio de joelhos
na sala da Valesca. Quando penso que não tem como meu coração ser mais
quebrado do que já está, a vida vem e me surpreende.
Eu perdi duas pessoas que eu amava de uma vez só, o homem que eu
amava e o outro que me tratava como uma filha. Não importa quando tempo
passe, a dor que eu sinto só aumenta.
— Mas do que você está falando, Anne? Padre não morreu, sua louca,
ele está internado no hospital Santa Casa. Eu e o Carlos temos ido visitá-lo
quase todos os dias, a primeira coisa que pergunta é sobre o menino Castiel e
a doce Anne. — Sou tomada por um alívio tremendo, não consigo parar de
sorrir.
— Me leva até ele, amiga, agora mesmo! — imploro, preciso vê-lo com
os meus olhos e ter certeza de que está de fato bem.
— Claro, amiga, eu já tinha combinado com Carlos de nos
encontrarmos no hospital hoje mais tarde, no horário de visita. Os dois vão
ficar muito felizes em te ver, eu mesma ainda nem acredito que está aqui na
minha frente nesse momento. — Pula no meu pescoço e me derruba no chão,
tive medo de nunca mais ver minha amiga querida novamente.
Valesca me leva até o hospital no seu fusquinha cor-de-rosa, mas falta
muito para o horário de visita. Como não posso ficar muito tempo fora,
minha amiga usa seus dotes físicos privilegiados para jogar charme no
enfermeiro de plantão e pede para deixar eu entrar por alguns minutos no
quarto do padre. Em troca do número de telefone dela, ele autoriza.
Padre Valentim está dormindo quando entro, tem um imobilizador no
pescoço e uma perna engessada pendurada para cima. Mas a cor da pele está
rosada e vigorosa, as bochechas chegam a estar coradas. Levo a mão no peito
respirando mais tranquila. É só me aproximar da cama que ele acorda e pisca
algumas vezes para ter certeza que está me vendo.
— Eu sabia que você vinha, filha, eu sabia! — Ergue a mão para mim
com um sorriso rasgando seu rosto em meio às lágrimas, assim como eu.
— A benção, padre, eu pensei que tinha perdido o senhor também. —
Penteio sua barba com os dedos, nunca tinha a visto tão comprida.
— Como assim também, Anne? — Ele sabe a resposta, mas quer ouvir
da minha boca para ter certeza.
— Eu sinto muito, padre, mas Castiel não está mais entre nós — conto
de uma vez e sem rodeios, pela primeira vez na minha vida vi o padre
chorando feito um menino assustado.
Não dou mais detalhes, dou meu ombro para que coloque toda essa dor
para fora. Sua pressão acaba subindo rápido, então a enfermeira trouxe um
calmante e ele acabou dormindo em menos de cinco minutos. Velo seu sono
por um tempo até que fique sereno, para então sair com a certeza de que
voltarei em breve para vê-lo.
— Anne? — Assim que fecho a porta do quarto, escuto alguém
gritando do fundo do corredor.
Giro o pescoço para ver de quem se trata, mas não reconheço o homem
de terno cinza apoiado na parede com os braços cruzados. Tem ombros largos
e uma expressão triste. Muito triste.
— Você me conhece? — pergunto mantendo uma distância segura, não
confio em ninguém mais, principalmente se for um desconhecido.
— Não pessoalmente, mas já ouvi falar muito a seu respeito. Sou o
Edgar, melhor amigo do Castiel. Vim visitar o padre e, sem querer, ouvi a
conversa de vocês atrás da porta, desculpe. — Ele não conseguiu falar mais,
tomado pela emoção. Ver um homem desse tamanho desmoronar em
lágrimas bem na minha frente após descobrir a morte do amigo de maneira
tão drástica acaba comigo.
Caminho até ele e o abraço, compartilhamos a mesma dor.
— Eu também já ouvi muito falar de você, Castiel sempre repetia que
te considerava um irmão. Também falou que estava disposto a ajudar na
nossa fuga, muito obrigada. — Sorri limpando as lágrimas, mas logo outras
aparecem.
— Prometo que vou cuidar do padre do mesmo jeito que sei que ele
faria, Castiel o amava como um pai. Estou como seu acompanhante em
tempo integral, saio do meu trabalho e venho direto para cá — promete.
— Mais uma vez, muito obrigada, Edgar. Sinto muito te conhecer
nessas circunstâncias.
— Eu também. Se precisar de qualquer coisa é só me ligar. — Me
entrega um cartão com o seu número.
— Muito obrigada, a gente se vê. — Me dá um último abraço antes de
entrar no quarto do padre, o que está fazendo por ele é muito bonito.
Valesca e Carlos estão me esperando na sala de visitas. Meu amigo
vem ao meu encontro gritando feito um louco, mesmo com um aviso de
silêncio na parede e algumas enfermeiras olhando feio para ele. Se não for
para ter amigos assim, nem quero.
— Pensei que nós tínhamos te perdido, sua mocreia, nunca mais me
assuste assim. — Toda vez que Carlos fala grosso assim é porque está
falando muito sério.
Me ergue do chão em um abraço apertado, Valesca vem e se junta ao
nosso abraço. De certa forma, somos uma família.
— Eu voltei para ficar, disposta a destruir a vida do meu querido
esposo. — Semicerro os olhos.
— Isso aí, essa é a minha garota! — Ganho um tapa na bunda da minha
amiga, sorrio ao ver o enorme orgulho nos olhos dos meus amigos.
Eu estou orgulhosa de mim mesma. Enquanto viver, ninguém mais vai
calar a minha voz. Voltei a ser minha dona e quero justiça, agora ninguém me
segura.
Depois de conversar um pouco com os meus amigos na lanchonete do
hospital, Valesca me leva para casa. Carlos não para de falar um minuto,
fofocando que acha que nossa amiga tem ido visitar não somente o padre,
mas também o Edgar. Ela, é claro, nega o romance, mas conheço quando está
mentindo. Fico muito feliz, pelo pouco que conheci dele parece ser um bom
rapaz.
Peço para Val me deixar a um quarteirão antes do meu, farei o resto do
percurso caminhando pela rua dos fundos.
— Se cuida, amiga — pede Carlos antes de eu sair do carro e deposita
um beijo carinhoso na minha testa.
— Vai dar tudo certo, nós te amamos. — Valesca solta o volante e
inclina o corpo pela abertura do banco da frente e me abraça bem forte,
fungando o nariz. Vou embora antes que ela comece a chorar de novo.
— Também amo vocês, muito mesmo. — Ofereço o melhor sorriso que
posso.
Levo a mão à porta para abrir, mas antes de chegar a colocar os dois
pés do lado de fora do fusca Valesca me chama. Olho para ela por cima dos
ombros.
— Ei, Anne, eu realmente sinto muito pelo Castiel — diz, se
arrependendo logo em seguida ao ver os meus olhos inundados só em ouvir o
nome do meu amor.
Acho que será assim para sempre.
— Eu também sinto muito, Val, nunca mais serei a mesma sem ele. —
Saio correndo, limpando as lágrimas com a manga da minha blusa.
A minha vontade é arrancar o meu coração do peito, só quero que essa
dor terrível vá embora logo.
Capítulo 38

Anne

Em meio ao vento gélido da noite faço o trajeto até a casa às pressas,


entrando silenciosa do mesmo jeito que saí. Afasto a cortina azul da janela da
sala de estar levemente para o lado e vejo que os soldados permanecem no
mesmo lugar, nem desconfiaram que passei tanto tempo fora. Reviro os
olhos, Marcos deixou dois idiotas preguiçosos para fazer o seu trabalho sujo.
Esse será o seu grande erro, subestimar demais a minha capacidade.
De nariz empinado, pego um alicate na gaveta, vou até a despensa e
quebro o cadeado do armário que meu querido marido usa para guardar suas
bebidas caras. Escolho uma garrafa de vinho branco e, antes de subir as
escadas, pego uma taça na cozinha. Quero tomar um banho de verdade sem a
supervisão de Marcos. Coloco a banheira e jogo todos os tipos de sais de
banho que encontro na casa. Entro e fico dentro da água um bom tempo, de
olhos fechados, tentando relaxar minha tensão, não apenas do corpo, mas
também da alma.
Entre uma taça de vinho e outra, puxo todo o ar que posso. Seguro o ar
por alguns segundos, enchendo minha alma de leveza e paz, e depois solto
lentamente. Repito esse ritual de purificação mental algumas vezes,
mantendo um ritmo contínuo. Aos poucos uma sonolência me abraça e entro
em uma espécie de leve cochilo, mas não o suficiente para sentir a presença
de alguém de pé próximo à banheira. Abro os olhos assustada, preparada para
um possível confronto, mas não se trata de um inimigo.
— Castiel? — Estico o braço na sua direção, mas ele não se move.
Estou um pouco tonta, mas não bêbeda a ponto de ver alucinações.
Fica parado me olhando com o semblante sério. Está com as mesmas
roupas que usava no vídeo que Marcos me mostrou, ainda sujas de sangue.
Quero levantar e tocar cada pedacinho do seu rosto, beijar e abraçar por toda
eternidade e ter certeza que está vivo. No entanto, a água parece ter criado
vida própria e me prende dentro da banheira.
— O fim está perto, amor. Seja mais cuidadosa, tudo dará certo —
alerta-me em um tom preocupante.
— O que quer dizer, Castiel? — A sensação de querer me mexer e não
conseguir é terrível, me debato como posso e mal saio do lugar.
Preciso tocá-lo mesmo que só por um segundo, eu sou capaz de dar a
minha vida em troca disso.
— Você precisa acordar, professora. — A sua imagem fica transparente
como se fosse um espírito, entro em surto com medo que se vá e não apareça
nunca mais.
— Por favor, meu amor, não vá! Não me deixe novamente — suplico.
— Você precisa acordar, Anne. AGORA! — grita tão alto que estoura
como uma bomba nos meus ouvidos; enfim, desperto do transe em um
rompante intenso em meio a um afogamento, submersa no fundo da banheira.
Eu dormi e afundei na água, se eu não tivesse sonhado com Castiel
teria morrido. Até mesmo em espírito esse homem me protege.
— Obrigada, meu amor, por cuidar de mim mesmo aí de cima —
agradeço.
Saio da banheira impressionada com o que acabou de acontecer, foi tão
real. Coloco um robe, deito-me na minha cama macia e durmo serenamente,
certa de que tudo ficará bem, como o meu Castiel disse. Na manhã seguinte,
depois de uma noite tranquila de sono, ainda estou muito ansiosa à espera de
notícias do delegado. Decido seguir minha rotina normal de dona de casa
para não levantar suspeitas para os meus cães de guarda. Até me visto como
uma, com direito a vestido florido e maquiagem para disfarçar os hematomas
do meu rosto.
Passo o dia me dedicando a cuidar do quintal, corto a grama e planto
algumas flores. Os soldados me analisam atentamente encostados no jipe de
braços cruzados, vigiando cada movimento meu. Ambos são morenos, altos e
bem musculosos, o tipo que intimida só com o olhar. Mas não a mim, já
estive várias vezes cara a cara com o diabo e sobrevivi.
— Bom dia rapazes, hoje o dia está quente. Gostariam de um suco de
laranja? — Tento contato com os inimigos, mas eles não fazem nem questão
de me responder e continuam a me encarar de cara mais feia ainda.
Pelo visto, foram muito bem instruídos pelo chefe. Tentar fazer
amizade com eles não vai dar em nada, um passo em falso e não vão pensar
duas vezes em acabar comigo. Continuo meu trabalho trocando algumas
mudas de lugar. Quando a noite cai resolvo entrar e tomar um banho, estou
toda suja de terra.

Alguns dias depois…

Não sei mais o que fazer para controlar minha ansiedade, passaram-se
dias e nada do delegado entrar em contato comigo e dar notícias, como disse
que faria. Em breve Marcos está de volta, e pelo jeito nenhuma providência
está sendo tomada. Estou até começando a acreditar que ele desistiu do meu
caso.
Delegado Vandro foi muito gentil comigo no começo, mas talvez tenha
pensado melhor e chegado à conclusão de que não vale a pena entrar em uma
briga grande dessa com um tenente do exército.
— Não surta, Anne! — digo para mim mesma na tentativa de preservar
minha sanidade, a cada dia que passa é mais difícil bancar a dona de casa
perfeita.
Pego o meu cesto de roupa lavada e vou pendurar no varal em frente à
garagem, separando por cor e tamanho. Entre duas camisas brancas, observo
um grupo de quatro menininhas fofas uniformizadas de marrom se
aproximando do meu portão.
— Ei, moça, somos escoteiros-mirins e estamos vendendo biscoitos
para pagar nossa próxima viagem. — A menina loira de olhos azuis sorri de
um jeito tão doce que é impossível dizer não, as outras três me olham como
cachorrinhos largados na esquina.
— Só um minuto, vou buscar dinheiro lá dentro e já volto. — Sorrio
para elas, que batem palmas soltando gritinhos de alegria.
Acabo comprando uma caixa inteira de biscoitos, elas insistiram para
eu pegar o sabor de hortelã com chocolate. Essas crianças merecem pela
iniciativa de pagar sua viagem com o próprio esforço.
— Posso te dar um abraço, moça? — pede a menorzinha, uma japonesa
com o cabelo preso em duas tranças laterais.
— Claro, querida, é muita gentileza sua. — Me abaixo para ficar da sua
altura. Assim que seus bracinhos envolvem meu pescoço ela sussurra:
— O delegado Vandro mandou um presente no meio dos biscoitos,
tenha um bom dia! — A pequena me solta ajeitando a boina vermelha na
cabeça, como se não tivesse me dito nada.
— Tchau, meninas, boa sorte com as vendas. — Aceno para elas até
virarem a esquina, segurando a caixa fortemente, louca para correr para
dentro de casa e abri-la.
Mas, quando giro o corpo para entrar, dou de cara com os dois soldados
estacados atrás de mim.
— Algum problema? — Arqueio a sobrancelha.
— O tenente disse para não deixar nada e nem ninguém entrar dentro
de casa sem serem revistados por nós antes, senhora — rosna o cara maior
com uma abertura enorme no meio dos dentes, mexendo, acredito que
inconscientemente, os músculos do peito a cada palavra dita.
Que nojo!
— Se dois caras desse tamanho querem passar o ridículo de revistar
uma caixa de biscoitos comprada de quatro menininhas fofas bem diante dos
olhos de vocês, por mim ok! — Ergo a caixa na direção deles sorrindo, mas
suando frio com medo que não caiam na minha provocação e abram.
Eles trocam olhares por longos segundos e voltam para o posto de vigia
sem dizerem nada.
Saio pisando firme. Depois de entrar em casa tranco a porta e me sento
no chão para abrir a caixa. Em meio aos biscoitos em formato de ursinhos
encontro um saco preto com um celular prateado novo com chip e carregador.
Assim que ligo o aparelho recebo uma mensagem de imediato.
“Você estava certa, Anne! Depois de reler o diário da Amélia de trás
para a frente, resolvi confiar no seu palpite. Foi difícil conseguir um
mandado baseado só em palavras. Mas já dei muitos motivos para receber
um voto de confiança do juiz. Com os documentos em mãos, levei alguns
policiais comigo até a cabana do seu marido. Não precisamos cavar muito
no lugar indicado para encontrar as roupas junto com os restos mortais de
Amélia, enrolados em um tapete vermelho. Agora a briga ficou boa! Temos
que deixar Marcos sem saída, quero fazê-lo confessar o crime. Posso contar
com a sua ajuda nisso?”
Releio a mensagem em choque, só tenho forças para responder de
volta:
“Topo qualquer coisa para ver Marcos sendo condenado, é só mandar
as instruções.”
Depois de enviar a mensagem, deixo o celular cair e me encolho toda
no chão, chorando de alegria e tristeza ao mesmo tempo. Agora é fato que
Amélia está morta.
— Eu sabia que íamos te encontrar, Amélia, eu sabia! — sussurro em
meio aos soluços do choro, espero que tenha paz agora e encontre sua
filhinha no paraíso.
O que me consola é saber que a família dela terá uma resposta sobre o
seu sumiço, para fazer uma despedida cheia de amor e carinho. Terão um
lugar para deixá-la descansar, e visitar sempre que sentir saudade. Para mim,
isso é o mais gratificante nessa história. Todos nós merecemos ser tratados
com respeito, antes e depois da morte.
Eu darei o meu sangue para que Marcos sofra o dobro que causou nas
pessoas, os dias de liberdade dele estão contados!
Capítulo 39

“Mesmo quando tudo parecer desabar,


cabe a mim decidir entre rir ou chorar,
ir ou ficar, desistir ou lutar.”
(Cora Coralina)

Enquanto giro a colher de madeira em círculos dentro da minha sopa de


ervilha em fogo alto, pego um pouquinho, sopro e experimento. Não está
nada mal, mas coloco um pouco de tempero verde para ficar ainda melhor.
Limpo a mão no pano de prato no meu ombro e volto a mexer, não quero que
engrosse demais. Adoro cozinhar, me deixa calma. Olho pela janela de vidro
e admiro a beleza da noite.
O silêncio do privilégio de estar sozinha em casa é cortado pelo barulho
da porta da frente batendo com força. Passos firmes se aproximam da
cozinha.
— Onde estão os meus homens que não os encontrei lá fora te
vigiando? Já tentei ligar, mas os filhos da puta não me atendem! — Marcos
aparece na cozinha aos berros, joga a mochila de viagem de qualquer jeito no
chão e arrasta a cadeira com brutalidade para se sentar.
Sem pressa, viro-me de frente para ele com as duas mãos juntas atrás
do corpo, sorrindo, nunca imaginei que ficaria tão feliz e ansiosa para que
voltasse para casa logo de uma das suas missões. Está parecendo que passou
por uma guerra, emagreceu e o cabelo perdeu o corte faz tempo. Está com a
barba grisalha grande. O uniforme de trabalho todo desalinhado até sem
alguns botões, nunca voltou tão acabado.
Já eu, me arrumei como uma princesa. Até vestido novo comprei hoje e
fui ao salão de beleza. Se ele achou que iria me encontrar no fundo do poço
quando chegasse em casa, estava muito enganado. Além do mais, tinha que
estar arrumada à altura para o dia que vai ficar marcado na história da minha
vida.
— Olá, querido, seja bem-vindo de volta em casa. — Meu sorriso se
amplia mais ainda, e ele contorce o rosto. — Não vejo os seus homens faz um
tempinho, hoje de manhã acordei e eles “puf!”, simplesmente sumiram — me
faço de boba, mas talvez o meu sorriso de deboche tenha me entregado.
Acordei cedo hoje para assistir de camarote quando os cães de guarda
de Marcos receberam voz de prisão pelo delegado Vandro, por cumplicidade
em cárcere privado, entre outros crimes cometidos a mando do chefe deles
dentro do exército.
— Tanto faz, cala a boca e me sirva algo para comer. Depois dou uma
lição nesses dois idiotas — ordena.
— Ah, está com fome, é? Então se sirva você mesmo. Não sou sua
empregada, já faço muito em cozinhar. — Pego um prato na gaveta e atiro
sobre a mesa, arranco o avental junto com o pano de prato no meu ombro e
coloco sobre o balcão da pia.
— Você não tem medo de levar outra surra e ficar trancada no porão
falando assim comigo, vadia? Faça o que eu mandei ou… — Ergue a mão
para me dar um tapa, mas dessa vez seguro antes que chegue ao meu rosto.
— Ou o que, Marcos? Vai me matar como fez com a sua esposa? Pobre
Amélia, que sua alma e de sua filhinha tenham encontrado o descanso eterno
— digo friamente. De negra, sua face se torna pálida.
— Você só pode ter ficado louca, mulher. Todo mundo sabe que aquela
desgraçada me abandonou, deixou a vida perfeita que eu dava a ela — rebate
trocando o peso do corpo de um pé para o outro, está nervoso.
— Não é isso que diz no diário da Amélia que encontrei no sótão onde
me prendeu, eu sei de todas as maldades que fez com ela, seu covarde. Como
teve coragem de espancá-la grávida da sua própria filha? — Afundo o dedo
na sua cara, vejo o terror dominar suas feições.
Sabe que não estou blefando, não teria como saber sobre a morte do
bebê dele.
— Onde está esse diário? Me entregue antes que eu te mate, sua
vagabunda, devia ter te matado quando tive a oportunidade. — Soca a mesa
com as mãos fechadas em punho, uma veia grossa chega a pular no seu
pescoço.
— Não! Eu vou mostrá-lo para o mundo, todos vão saber quem é o
verdadeiro tenente Marcos Vargas. O conquistador barato, que usa o amor
das mulheres para fazer delas suas escravas. — Gargalho na cara dele, quanto
mais nervoso deixá-lo mais verdades conseguirei arrancar.
— Acha mesmo que pode bancar a esperta comigo, Anne? Não passa
de uma negra burra que resolveu bancar a valente. — Se aproxima com
aquele olhar maligno que sempre termina comigo ensanguentada no chão,
preciso agir rápido.
Antes que ele chegue até mim, pego na alça da panela da sopa de
ervilhas fervendo no fogão e jogo nele. Seus berros enchem a cozinha, não só
de dor, mas também porque eu acabei de deformar seu rostinho perfeito. Eu
conheço bem Marcos. Narcisista deveria ser o seu primeiro nome.
— Quem é o monstro agora, Marcos? — debocho sem um pingo de
remorso.
Em uma tentativa de resolver o problema, vai até a pia e tenta lavar as
queimaduras. Se desespera ao ver a pele do seu rosto sair em suas mãos, sua
face ficou em carne viva, tipo o Freddy Krueger. Duvido que de agora em
diante não vá pensar duas vezes antes de subestimar a capacidade de uma
mulher. Sempre pensou que nós somos o “sexo frágil”, para no final estar
sendo nocauteado por uma. Toda vez que ele olhar no espelho, lembrará da
lição que recebeu de mim.
— Olha o que você fez, maldita! Eu vou te matar. — Vem para cima de
mim, uso a panela que ainda está em minha mão e o golpeio várias vezes até
deixá-lo tonto.
— Isso é por todas as vezes que usou o meu corpo contra a minha
vontade, seu filho da puta! — Acerto minha base como o Castiel me ensinou
e chuto o meio de suas pernas com toda a minha força. Se suas bolas não
estouraram, chegou bem perto.
Marcos cai de joelhos com a boca aberta em formato de “O”, segurando
suas partes íntimas com as duas mãos, a dor é tanta que seu grito não emite
nenhum som.
— Eu vou te cortar em pedaços e jogar para ser devorada pelos cães do
quartel, sua vagabunda suja — ameaça com os dentes trincados; antes que
possa piscar recebe um soco no olho.
Quando vou acertá-lo com um chute, Marcos consegue puxar o meu pé.
Em um movimento ágil, agarra no meu pescoço apertando-o com força e me
ergue, obrigando-me a ficar de pé. Sinto todo o ar dos meus pulmões se
esvaindo aos poucos. Não luto, isso faz parte do plano.
— Isso! Me mata também, mais um assassinato para a ficha extensa de
crimes do tenente Marcos Vargas — atiço a fera.
— Eu matei aquela idiota da Amélia, sim. O plano era matar ela e o
bebê, odeio crianças. Mas infelizmente só a pestinha morreu depois de
nascer, a desgraçada permaneceu viva. Então dei o meu jeitinho… — Sorri
de um jeito que nem sei explicar, os cantos da boca contraídos, parece até
possuído por alguma entidade do mal.
— Ainda bem que a justiça tarda, mas não falha, meu amor. — Ele
aperta mais as mãos em volta do meu pescoço. Mesmo quase sem ar, não tiro
a expressão de riso.
— Vou dizer para todo mundo que você fugiu com o nosso ex-vizinho,
ninguém desconfiará do seu sumiço quando mostrar as fotos dos dois juntos
no bosque — planeja, achando que está no controle da situação.
Mexo os lábios contando:
— Três.... dois... um... — Uma lágrima desce pelo meu rosto ao ver a
minha cozinha ser invadida por uma centena de policiais armados até os
dentes.
Eles monitoravam toda a nossa conversa através de uma escuta que
colocaram em mim, e câmeras que o delegado mandou colocar em lugares
estratégicos da cozinha. Estavam escondidos por toda a parte do lado de fora,
esperando o momento certo para entrar.
— Solte sua esposa agora mesmo, tenente. Ou seremos obrigados a
atirar — aconselha o delegado Vandro, de colete a provas de balas,
apontando a arma para Marcos.
Mais envergonhado do que com medo de levar uma chuva de tiros,
Marcos solta o meu pescoço. Desesperada, puxo muito ar de uma vez só e me
engasgo por isso. Depois de me manter firme seguindo as orientações para
arrancar a confissão do meu marido, dou a mim o direito de chorar. Meu
coração está tomado por sentimentos diferentes, mas o de justiça feita é o
maior de todos eles.
Eu consegui me vingar do homem que fez da minha vida um inferno,
feriu pessoas que amo e matou inocentes.
— Vocês não podem provar nada! Vou negar até a morte, disse essas
coisas em um momento de raiva. — Tenta ridiculamente fugir e não ser
detido no flagra, mas é contido por pelo menos seis homens e algemado.
— Agora essa briga é minha, tenente. Você é machão para bater em
mulheres, quero ver como vai se sair com alguém do seu tamanho. – O
delegado fala com o rosto bem próximo ao de Marcos, o covarde chega a
engolir seco.
Ergo a mão e balanço na direção do meu marido rindo debochada, me
despedindo dele para todo o sempre. Amém!
— Se acha que vai se livrar de mim está muito enganada, Anne. Eu vou
voltar para te matar! — grita para quem quiser ouvir, tentando passar pela
parede de policiais e vir até mim.
— Levem esse homem para bem longe de mim, policiais — peço ainda
rindo.
— Você está preso, Marcos Vargas. Tem o direito de permanecer
calado. Tudo o que disser poderá ser usado contra você no tribunal — recebe
a voz de prisão, agora é oficial.
O pavor nas suas feições é colírio para os meus olhos, ele está
provando do próprio veneno. Era assim que Marcos me fazia sentir,
apavorada e sem saída.
— Você conseguiu, Anne. Parabéns! — parabeniza o delegado.
— Não, Dr. Vandro. Nós conseguimos, sem o apoio de vocês eu não
teria conseguido. Obrigada pelo apoio que me deu desde o nosso primeiro
encontro. — Faço questão de abraçá-lo, nunca esquecerei tudo o que fez por
mim.
Juntos vemos Marcos Vargas sendo levado para a viatura, de cabeça
baixa, humilhado e entregue à derrota. Escoltado por um monte de policiais
na frente de todos os nossos vizinhos, ao som de vaias deles o chamando de
“assassino covarde”. É preciso segurar o povo, ou será linchado.
E assim, enfim me livro do meu marido violento. Para sempre! Estou
com o coração em paz por saber que não haverá outras para cair na rede fatal
desse monstro.

Devido à comoção dos moradores de Campo Grande com o caso, o juiz


foi obrigado a marcar o julgamento em tempo recorde. Querem vê-lo
apodrecer na cadeia, e eu também. Fui chamada para depor contra ele. Dentre
os espectadores do tribunal estavam a minha família, a de Amélia e a do
próprio Marcos também. Padre Valentim ficou sentado no primeiro banco,
tão emocionado que eu chorei também. A morte de Castiel foi um golpe
muito grande para ele, para todos nós.
Dei meu depoimento olhando nos olhos de Marcos. Um filme dos anos
terríveis que vivi ao seu lado passa pela minha cabeça enquanto narro cada
detalhe. É notável seu desejo latente de voar em cima de mim, relembrando
os velhos tempos. Seu único arrependimento é de não ter me matado antes de
toda sua merda ser jogada no ventilador. Não tira a mão do rosto para cobrir
as cicatrizes brancas deixadas pelas queimaduras em seu rosto e pescoço.
Nem se fosse um polvo teria mãos suficientes para cobrir o estrago que fiz. É
engraçado o fato de ele, que ama usar roupas caras, agora ter que se
conformar com o uniforme desbotado da cadeia.
Para uma vítima de violência doméstica é muito difícil falar sobre o
abuso sofrido, minha mãe segura a mão da mãe de Marcos o tempo todo,
ambas se debulhando em lágrimas, sentadas no segundo banco, sentindo
culpa por terem sido tão negligentes em relação ao filho e genro. Já o meu pai
nem teve forças para aparecer no tribunal, envergonhado demais para olhar
para mim. Se sente culpado por jamais imaginar que o inferno que eu vivia
era tão grande.
Meu depoimento, junto com todas as provas, condena Marcos a
duzentos e vinte anos, sem direito a fiança ou condicional. Vai morrer atrás
das grades. Todos os bens no nome do meu ex-marido ficarão para mim
como uma indenização por tudo o que me fez. A quantidade de dinheiro me
surpreende, ele tinha mais de dois milhões de reais espalhados em diferentes
contas. Obviamente, não ficarei com esse dinheiro ganhado de forma suja,
usarei a maior parte para criar um projeto para apoiar mulheres vítimas de
violência doméstica a começar uma vida nova.
A única coisa que me deixa triste é que faltaram provas para Marcos ser
condenado pelo assassinato de Castiel, ele se recusou a abrir a boca para falar
sobre o assunto. E como o corpo não foi encontrado, não foi possível montar
um caso consistente. Mas sei que a justiça do homem às vezes pode ter
algumas falhas, mas a de Deus não. De um jeito ou de outro, meu ex-marido
vai pagar pelo que fez com o meu amor. Vai ser mandado para um presidio
de segurança máxima com presos tão ou mais perigosos, que amam receber
militares no meio deles para ser novo alvo de tortura.
Capítulo 40

Sentada no banco da frente da igreja, com lágrimas nos olhos, escuto o


discurso emocionante do padre Valentim no velório digno que a família da
Amélia organizou para ela com todo amor e carinho, na igreja que ela gostava
tanto de ajudar na coordenação, para que a comunidade pudesse vir se
despedir dela.

“Hoje dizemos adeus a uma pessoa maravilhosa que encheu nossas


vidas de magia e alegria. Infelizmente foi tirada de nós cedo demais,
contudo, sua marca jamais será apagada, passe o tempo que passar, e a
saudade para sempre fará parte das nossas vidas. Esta é uma despedida
triste, mas é também um momento para recordarmos com amor de alguém
muito especial que já não está entre nós. Desejamos que descanse em paz,
Amélia, com o fato de saber que agora a sua família tem certeza que está em
um lugar melhor, olhando por nós.”

Não consigo conter as lágrimas, aquele casal inconsolável debruçado


sobre a foto da Amélia sobre o caixão lacrado poderia ser os meus pais
chorando a minha morte. Essas pessoas estariam aqui para o funeral caso o
Castiel não tivesse aparecido na minha vida e me dado um motivo para lutar.
— Você está com calor, Anne? Está suando tanto, e aqui nem está tão
quente. — Valesca tira um lenço da bolsa laranja gigante e enxuga o meu
rosto, ela tem sido um anjo na minha vida.
Morar com ela é uma grande aventura. Faltou ao trabalho só para vir no
velório comigo.
— Eu não estou me sentindo bem, Val, acho que é toda a emoção
presente nesse velório.
—Você comeu alguma hoje, amiga? Reparei que não tem se
alimentado direito.
— Eu estou bem, Valesca, não começa — brinco. Preocupa-se tanto
comigo que às vezes me enlouquece. — Me espera aqui, vou cumprimentar
os pais da Amélia e já volto. — Beijo o rosto da minha amiga e me levanto,
ela olha para o Edgar sentado no banco do lado e acena para ele com as
bochechas coradas.
Segurando uma rosa vermelha, caminho a passos lentos até a frente da
igreja onde se encontra o caixão rodeado por várias coroas de flores trazidas
por pessoas de toda a cidade. Quando a mãe da Amélia me vê, vem ao meu
encontro com o rosto banhado por lágrimas e me abraça bem forte.
— Eu nunca poderei agradecer por tudo que fez pela minha filha. Se
não fosse pela sua determinação por justiça, nunca teria a chance me despedir
dela — sussurra, emocionada demais.
— Eu que agradeço, senhora. Sua filha me deu forças para lutar, ela
salvou a minha vida. – Sussurro de volta, permanecemos abraçadas por um
bom tempo chorando juntas.
— Venha conhecer a minha família, Anne. Agora você faz parte dela.
– Segura minha mão e puxa para junto de onde está toda sua família, e não
me solta mais nem durante o enterro.
— Nós conseguimos, Amélia. — Jogo a rosa que segurei o tempo todo
dentro da cova, sobre o caixão, olho para o céu e sorrio sentindo uma
sensação boa.
Mas depois que saímos do cemitério, sinto uma coisa estranha. Tudo
fica escuro na minha frente, acordo no hospital com um médico em cima de
mim.
— Parabéns, mamãe, você está grávida! — revela o médico, sorrindo
ao verificar meu prontuário, sem imaginar o impacto das suas palavras em
mim.
Não sei se choro ou rio de alegria. Castiel partiu, mas deixou uma
sementinha dentro de mim que irá crescer e dar bons frutos. Agora tenho um
motivo para viver e lutar. Deus realizou o meu sonho de ser mãe na hora
certa, sinto como se a minha vida estivesse apenas começando a partir de
agora. Assim como eu, meu filho é um sobrevivente. Fui espancada, fiquei
dias trancada sem comer e beber e ele se manteve firme e forte dentro do meu
ventre. Sua vontade de vir ao mundo é admirável. Como sua mãe, farei cada
minuto da sua existência valer a pena.
— Obrigada, Senhor, por me enviar esse milagre. — Levo as mãos
sobre a barriga ainda minúscula, esse é o meu primeiro contato com o meu
bebê.
Um elo começa agora entre nós, e vai durar pelo resto das nossas vidas.
Eu já amo esse pedacinho de gente com todas as minhas forças.
— Parabéns, amiga! — Val chora junto comigo, o que está
acontecendo aqui é mais que um milagre.
— E de quanto tempo estou grávida, doutor? — indago ansiosa para
saber quanto tempo falta para o meu filho nascer, quero montar um quarto
lindo todo colorido.
Será que vai ser menino ou menina? Vou enlouquecer até descobrir o
sexo, mas seja qual for, eu amarei do mesmo jeito. Minha amiga segura a
minha mão o tempo todo, acho que mais ansiosa do que eu.
— Quase dezesseis semanas, Anne! O curioso é que você não engordou
nada. Na verdade, está abaixo do peso. Vai ter que começar a se alimentar
melhor, senão teremos problemas futuramente — continua falando e falando,
só para quando percebe meu estado de choque.
— Não! — grito, deixando o desespero tomar conta de mim.
Toda minha felicidade se torna em tragédia, aperto a mão de Valesca
com tanta força que minha amiga me olha, entendendo o motivo do meu
desespero. Pelas minhas contas, é impossível que Castiel seja pai do meu
filho. Quando apareceu na minha vida eu já estava grávida de Marcos.
— Oh, amiga, eu sinto tanto por isso. — Nosso choro de alegria agora é
de enorme tristeza.
— E agora, o que eu vou fazer, Valesca? Meu filho é fruto de um
estupro. — Minha voz é abafada pelo meu choro, a sementinha que está
dentro de mim foi plantada em uma de tantas vezes que fui usada por Marcos
à força.
Não consigo parar de chorar todo dia, demorei até conseguir digerir
essa realidade. Tudo que mais quero é esquecer aquele monstro para sempre,
mas agora tenho algo que fará me lembrar dele todos os dias. Meu maior
medo é que seja um menino e se torne igual ao Marcos, com o mesmo gênio
ruim. Mesmo destruída e apavorada, em nenhum momento passou pela
minha cabeça interromper a gravidez.
Já amo essa criança, ela pode ter o sangue de Marcos, mas tem o meu
também. A maternidade é única para cada mãe, mas isso nem sempre quer
dizer que seja fácil como no meu caso. Seja como for, estou disposta a cair de
cabeça e coração aberto para viver mais essa aventura, e que Deus me ajude.
Capítulo 41

Meu primeiro passo rumo a uma vida nova é vender a nossa


propriedade e os carros caros de Marcos, não quero ficar nesse lugar que me
traz tantas lembranças ruins. Usei o dinheiro para fazer uma proposta
irrecusável para o dono do terreno onde fica o bosque, ele aceitou e na
mesma semana iniciei a construção da casa perfeita que eu e Castiel
sonhávamos para morar e criar nossos filhos. Uma pena que ele não vai ver
nossos planos se tornando realidade.
Como os meus pais moram fora do centro da cidade, achei melhor ficar
hospedada no apartamento da Valesca enquanto espero meu novo lar ficar
pronto, pois quero acompanhar a obra de perto. Enquanto isso, arrumo um
emprego numa creche e começo a fazer faculdade de Pedagogia à noite.
Contratei um detetive para achar o paradeiro da irmã de Castiel, quero dizer
pessoalmente para ela o quanto foi amada pelo irmão mais velho e tudo o que
ele fez para mantê-la segura. Eu devo isso ao meu amor.
Assim como em todos os dias depois que saio do trabalho, passo no
bosque para ver o andamento das obras. Depois que os operários vão embora,
sento-me em uma pedra à beira da cachoeira. Mesmo lugar onde eu e Castiel
fizemos amor pela última vez. Deslizando as pontas dos dedos sobre a água,
meus pensamentos voam longe ao recordar daquele dia. Minha decisão de
morar aqui para sempre com meu filho é para manter essas lembranças vivas,
a presença de Castiel é muito forte aqui.
Nesse momento mesmo é tão forte que posso sentir o perfume
amadeirado dele em toda parte. Poderia ter cem anos que o reconheceria em
qualquer lugar, nessa vida ou em qualquer outra. Está grudado em mim, no
meu coração. Não podia ser diferente, Castiel tinha cheiro de homem de
verdade.
De Bad Boy.
— Agora dei para ficar sentindo o seu perfume, meu amor, acho que
estou maluca! E você, Castiel? Deve estar me olhando aí de cima pensando o
mesmo — disse rindo em meio às lágrimas, sempre choro quando lembro
dele.
Olho para o céu. Aqui do bosque parece mais bonito do que qualquer
outro lugar. É através dele que converso com Castiel, mesmo sabendo que
nunca teria respostas da sua parte. Ainda assim, sempre ficarei esperando.
— Na verdade, eu sempre te achei um pouco maluca, professora. —
Travo ao ouvir a voz de Castiel em um tom divertido, vinda de trás de mim.
Agora estou certa que fiquei louca de vez, mesmo nervosa tento
recobrar a razão, não posso me entregar à loucura de querer que Castiel volte
a qualquer custo. Preciso superar sua morte, tenho um filho para criar e não
posso fazer isso numa clínica para doentes mentais.
— Não vai nem se virar para olhar para mim, meu amor? — Ouço a
voz de Castiel novamente, em alto e bom tom para ser apenas fruto do meu
desespero.
Estou com medo de me virar e perceber que tudo não passa de um
delírio. Foram tantas coisas ruins nos últimos meses, que duvidaria muito que
no último dia da estação do outono aconteceria alguma coisa boa. Mesmo
assim, resolvo arriscar, então levanto lentamente, ainda de costas.
Penso que minhas pernas não vão suportar, lágrimas caem em silêncio
pelo meu rosto, assim como as águas da cascata. Até mesmo o vento cessou,
suspendendo o movimento das árvores, não é possível se ouvir nem o canto
dos pássaros. Apenas as batidas do meu coração são audíveis. Fortes e
descompassadas.
— Oh! Meu Deus! — dou um grito, não acredito no que eu estou
vendo.
Ele está bem aqui, parado na minha frente, o meu Castiel! Com um
sorriso rasgando seu rosto e as mãos no bolso do seu jeans. Nem parece que o
tempo passou, continua o mesmo homem por quem me apaixonei
loucamente. Lindo e sexy. Meu moreno perigoso, com pinta de Bad Boy. No
entanto, visivelmente mais magro. Olhar brilhante, barba comprida e o cabelo
crescido descendo pela nuca, quase encostando nos ombros.
Como pensei, minhas pernas não suportaram a emoção e cederam;
antes que eu vá ao chão Castiel me ampara com os seus braços fortes. Assim
que me toca uma corrente elétrica passa por todo o meu corpo, como nos
velhos tempos.
— Senti saudades! — Alisa meu rosto, com a voz entrecortada.
Eu tive medo de estar sonhando como quando quase me afoguei na
banheira, e se fosse, eu não queria acordar.
Capítulo 42

Castiel

— Minha nossa, Castiel! Como isso é possível? — Anne não consegue


acreditar que sou real, nem pisca ao me encarar.
Ela nunca esteve tão linda, uma rajada de vento elevou a barra do seu
vestido longo branco. Parece um anjo. Eu amei o seu novo estilo de cabelo
bem curto, destacou a beleza dos traços marcantes do seu rosto, olhos
expressivos, nariz arrebitado e os lábios que eu tanto amo. Tem os cílios
longos e sensuais.
No seu dedo brilha a pedra do anel que eu havia dado a ela, fiquei feliz
de ela não precisar mais usá-lo escondido em um cordão debaixo da roupa.
Minha Anne está livre para fazer suas próprias escolhas.
— Meu Deus, como isso é possível? — pergunta, agora um pouco mais
calma. Ela começou a me tatear como se quisesse ter certeza de que eu sou
real.
Um leve sorriso surgiu em seu rosto, não consigo olhar para mais nada
além dela. Como esperei incansavelmente por esse momento, o reencontro!
Sua emoção condiz exatamente com a minha, nos abraçamos fortemente
apenas sentindo um ao outro. Choramos juntos, mas um choro de pura
alegria.
— Como isso é possível, meu Deus? Eu vi o vídeo dos homens do
Marcos desovando o seu corpo em uma vala. — Sua voz é trêmula,
desesperada, cheia de dúvidas e felicidade.
— Eles se esforçaram para dar um fim em mim, mas veja, ainda estou
de pé. — Abro os braços com um sorriso de canto e jogo uma piscadela para
ela.
Anne sorri com as bochechas um pouco coradas, mas logo perde a
vergonha e me agarra.
— Eu te amo... Eu te amo... — Deposita uma chuva de beijos por toda
a extensão do meu rosto, como se quisesse ter a certeza de que sou eu
mesmo.
— Desculpa a demora, amor, vim o mais rápido que pude! Tive medo
que não me quisesse mais, que tivesse se esquecido de mim. — Pegou a
minha mão e colocou sobre o coração dela, senti uma enorme emoção tomar
conta de mim ao ouvir aquelas batidas tão aceleradas.
Eu sou completamente apaixonado por essa mulher. A puxo pelo braço
e aconchego-a em meu peito, lugar que sempre pertenceu a ela. Do meu lado,
dentro do meu coração.
— Por favor, nunca mais me assuste assim.
— Tudo bem, meu amor, eu prometo! Eu te disse, uma vez, que só a
morte para me impedir de voltar para você. — Afago os fios curtos do seu
cabelo, ela realmente ficou muito sexy.
— Gostou do meu visual novo, Castiel? Sempre dizia que amava os
meus cachos compridos. — Passa a mão na nuca, tímida.
A verdade é que eu a amo de qualquer maneira.
— Eu poderia dizer, mas prefiro deixar para mostrar mais tarde o
quanto gostei do seu visual novo. — Brinco com o grande brinco de argola
dourada que está usando, ela soltou uma risada e deu-me um tapa no ombro.
— Me conte, como sobreviveu? Onde esteve todo esse tempo? —
Separa os lábios dos meus, não consegue parar de fazer perguntas.
Eu a abraço com carinho, ela merece ter todas as respostas que quer.
Então, com calma, inicio a história.
Há pouco mais de uma semana acordei meio tonto, sentindo a cabeça
pesada. Tive um pouco de dificuldade para abrir os olhos e todo o meu corpo
doía. A impressão que eu tive era de que um trator tinha passado em cima de
mim duas ou mais vezes. Tentei mexer o braço esquerdo, mas não consegui.
Meus olhos estavam pesados e mal conseguia mantê-los abertos, voltando a
um sono profundo.
Depois de muitas outras tentativas, consegui me manter acordado,
agora com um pouco mais de lucidez. Levantei o lençol branco e percebi que
estava vestido apenas com uma calça de pijama azul, larga. Ao meu lado
havia um frasco de soro pendurado em um tripé, gotejando bem devagar.
Vários fios colados em meu peito, ligados a máquinas apitando. Em uma
rápida análise à minha volta, percebi que não se tratava de um hospital ou
algo do tipo. Parecia mais um quarto luxuoso de hotel. O quarto era enorme,
decorado de vermelho com dourado.
No canto, poltronas confortáveis que davam vontade de se sentar e
relaxar só de olhar para elas. Várias prateleiras ostentando enfeites caros,
alguns pareciam até de ouro. O chão coberto por um carpete vermelho, uma
televisão gigante afixada na parede. As janelas panorâmicas abertas trazendo
alguns ruídos de fora do quarto, assim como alguns raios de sol que refletiam
nos cristais do lustre pendurado no teto, formando a sombra de um arco-íris
na parede.
Eu não fazia a mínima ideia de onde poderia ser aquele lugar ou de
como fui parar ali, será que o paraíso depois da morte era assim tão luxuoso?
Pensei comigo, não tinha outra explicação para aquilo.
— Pai, ele acordou. — Ouvi uma voz jovial em um tom animado como
se estivesse feliz pelo meu despertar, mas que não esperava por isso tão cedo.
— Sério, filho? Que alegria ouvir isso. — Um senhor de cabelos
grisalhos entrou no quarto com uma maleta e começou a me examinar.
— Não precisa ficar assustado, senhor, eu e o meu pai estamos aqui
para ajudá-lo. — Tocou o meu ombro, seu rosto me parecia familiar. Muito,
na verdade.
Não demorou muito para me lembrar de onde conhecia o rapaz. Ele era
um dos homens de Marcos que havia participado da emboscada, o mais novo.
Um flash passou em minha mente, avisando-me de que eu ainda poderia estar
em perigo. Agitei-me tentando levantar e ir embora, talvez estivesse ali a
mando do seu chefe. Porém, ele me segurou para que a pilha de aparelhos
fixados a mim não fosse ao chão.
— Calma, homem, não pode fazer movimentos bruscos. Me ajude a
contê-lo, Adriano. — Os dois me seguraram com cuidado para não me
machucar, pareciam ser boas pessoas.
Eram tantas incertezas, não sabia mais nem o que pensar.
— Ele parece meio desorientado, pai.
— É isso, filho, ele está um pouco confuso depois de passar tantos dias
em coma. — Segurou minhas pálpebras jogando a luz de uma pequena
lanterna dentro deles, senti uma ardência de leve, mas não chegava a ser algo
insuportável.
— Onde está… Anne? — foi a única coisa que consegui dizer, nada
mais me importava além dela.
— Calma, rapaz. Eu sou o doutor Waldir, pai desse idiota que trouxe
você para cá com duas balas no peito. Eu tirei Adriano do exército naquele
mesmo dia, que espécie de tenente manda um soldado novato ajudar a matar
um homem? Meu filho não é um garoto ruim, por isso me contou toda a
história aos prantos quando chegou em casa. — Tirou os óculos de grau para
limpar as lágrimas, o filho tocou o antebraço do pai para lhe passar apoio.
— Enquanto ajudava o outro soldado a jogar o seu corpo em uma vala
na beira de uma rodovia, como segurei a parte dos seus braços senti seu pulso
batendo bem de leve. Pedi ajuda ao meu pai para voltar até o local e te
resgatamos, desde então ele tem tratado seus ferimentos aqui em casa para
não levantar suspeitas. — O garoto olhava para qualquer parte do quarto,
menos para mim, envergonhado demais para olhar nos meus olhos.
— Ainda bem que o tenente Marcos Vargas foi preso após tentar matar
a esposa, vai passar o resto dos seus dias atrás das grades. — Olhei para o
doutor, incrédulo, Marcos havia tentado matar o meu amor.
— Anne! — exclamei com mais vigor.
Fiquei apavorado devido ao que o médico disse sobre Marcos ter sido
preso, precisava saber o que ele havia aprontado enquanto estive fora.
— Calma, me diga primeiro, qual o seu nome?
— Castiel — respondi devagar, reaprendendo a falar como uma
criança.
— Então, Castiel, você, apesar de estar se recuperando rápido, vai
precisar de um pouco mais de tempo e paciência. Mas prometo que em breve
vai estar novinho em folha para sua Anne. Gosta muito dela, não é mesmo?
— Assenti com cara de bobo, acredito, porque os dois se entreolharam e
riram.
— Eu a amo. — Tentei falar mais, mas fiquei nervoso e comecei a
tossir.
O filho dele se aproximou da cama com o rosto muito vermelho,
contorcia as mãos fitando os próprios pés. Pensava que eu o odiava, mas não.
Podia ter participado do erro, mas se arrependeu e voltou para corrigi-lo.
Devo minha vida a ele e ao seu pai.
— Gostaria de pedir perdão pelo que eu fiz, senhor. Quando o tenente
Marcos me chamou para participar de uma “missão”, não sabia que era para
fazer algo tão horrível. Mas como ele era o meu superior, tinha que obedecer.
— Balançou a cabeça cheio de remorso, acho que seria mais difícil conseguir
o perdão de si próprio do que o meu.
— Eu não tenho nada que te perdoar, rapaz, se não fosse por você eu
não estaria vivo hoje. Então, obrigado! — Ergui a mão e ele apertou de bom
grado.
— Eu que agradeço por me fazer perceber que aquilo não fazia parte do
meu mundo. Quero ser médico igual ao meu pai para salvar vidas, e não as
tirar. — Fico feliz por ele por ter encontrado um rumo certo na vida, são as
situações ruins que determinam quem somos de verdade.
Em alguns dias me recuperei quase que por completo, doutor Waldir e
o seu filho me levaram até a casa da Anne. Uma vizinha revelou que, após a
prisão do seu ex-marido, havia vendido a casa e comprado um terreno no
qual pretendia construir uma casa e fazer do lugar uma reserva florestal, já
que grande parte dele era composto por árvores. Logo pensei:
— O nosso bosque secreto — dissemos juntos. Anne fez um carinho no
meu rosto.
O doutor e o filho deles me deixaram aqui na entrada do bosque, eu os
agradeci várias vezes por terem salvado a minha vida. Me despedi deles
prometendo encontrá-los em breve, nos tornamos amigos. Enquanto
adentrava o bosque, sorria sozinho ao olhar ao meu redor e ver o trabalho
incrível que Anne está fazendo aqui, tornando o nosso sonho realidade.
Construindo a casa perfeita no nosso local secreto.
— Eu parei de andar ao escutar sua linda voz cantando próximo à beira,
e aqui estou eu, meu amor, de volta para nunca mais partir. — Faço carinho
no seu rosto.
— Ainda não consigo acreditar que você está aqui comigo, Castiel. —
Sorri lindamente, meu polegar desliza para os seus lábios, sentindo a maciez.
Anne aproxima o rosto do meu e me beija, a seguro pela cintura e a
puxo cada vez mais.
— O que é isso? — Interrompo o beijo após sentir uma protuberância
entre nós.
É bem pequena, mas foi o suficiente para chamar a minha atenção.
Ainda mais quando Anne se afasta de mim bruscamente, cobrindo a barriga
com as mãos, de ombros caídos, toda atrapalhada com as palavras. Com
vergonha de mim. Fico preocupado antes mesmo de saber o que a fez ficar
tão estranha assim, espero que não seja nada grave.
— Eu preciso te contar uma coisa, Castiel. — Desvia o olhar para a
planta da casa e respira fundo algumas vezes, tomando coragem para dizer o
que quer que esteja lhe afligindo.
Em vez de falar, opta em levantar o vestido e mostrar sua barriga,
redonda e linda! Meu cérebro para, olhando para aquele pequeno milagre
bem diante aos meus olhos. Anne está grávida. Nosso primeiro filho, nosso
amor rendeu frutos. Mal posso esperar para ver o rostinho dele. Como é bom
voltar recebendo uma notícia maravilhosa, a paternidade é a melhor coisa que
pode acontecer na vida de um homem.
Pego Anne no colo e rodo seu corpo pelo ar, fazendo o seu vestido voar
feito a camada de um leque. Depois me lembro de que aquilo pode fazer mal
ao bebê e a coloco depressa no chão, não queria deixar meu filho tonto. Eu só
não entendia o porquê da mãe dele não estar tão feliz quanto eu. Pensei que
queria gerar uma criança só nossa. Mas, pela sua cara de choro, talvez eu
estivesse errado.
— Não está feliz porque vamos ter um filho, meu amor? — Olho nos
seus olhos para tentar entender o motivo de tanta tristeza. Seja o que for,
preciso saber.
— Perdoe-me, Castiel! — Começa a chorar, Anne beira ao desespero.
Eu não entendo mais nada, estou agoniado em vê-la nesse estado.
— Te perdoar por que, minha vida? — Tento me aproximar, mas sou
impedido.
— O médico disse que... Bem, eu já estava grávida quando te conheci,
sinto muito. Eu te amo mais que a minha própria vida, mas não posso te
obrigar a assumir um filho que não é seu. E sim de um homem que quase te
matou — revela atropelando as palavras, exasperada, mal respirando entre as
palavras.
Anne me olha assustada enquanto espera que eu diga algo, mas preciso
de alguns segundos para sobreviver ao impacto desse golpe mortífero. Saber
que o filho que ela espera é do Marcos e não meu doeu mil vezes mais do que
levar dois tiros. Se não é fácil ouvir que a mulher que você ama está grávida
através de um ato contra a sua vontade, imagine para ela quando recebeu a
notícia? Que ruiu seu mundo e, mesmo assim, decidiu ter a criança.
Sendo a minha Anne, não poderia esperar outra atitude da sua parte.
Por esse motivo, eu fiz a única coisa que poderia fazer diante da situação.
— Esse filho é meu — digo seguro.
— Você não entendeu, Castiel, essa criança que estou esperando é do
Marcos. — Toda vez que ela repete isso, seu sorriso morre mais um pouco.
Por esse motivo, essa é a última vez que terá que dizer que seu filho é
de outro homem que não fosse eu.
— Você que não entendeu, Ane. Essa criança é minha! — repito com
mais ênfase, com uma mão de cada lado do seu rosto para que olhe nos meus
olhos.
— Não precisa fazer isso, Castiel. Essa responsabilidade não é sua. —
Tenta se soltar do meu toque, mas não deixo.
— Quando se faz por amor, não é responsabilidade. — Limpo suas
lágrimas, quero vê-la apenas sorrindo daqui para frente.
— Não pode assumir uma criança por amor a mim, isso não é justo! —
insiste a teimosa.
— Não quero fazer isso só por amor a você, mas a esse bebezinho que
eu já estou contando os segundos para estar nos meus braços, a quem eu vou
cuidar e dar todo o amor do mundo — prometo.
— Meu filho não poderia ter um pai melhor que você, obrigada! —
Enfim deixa de teimosia e entrega os pontos.
Seu rosto se iluminou como o pôr do sol, e o meu também. Meu maior
sonho sempre foi ser pai, e poder dar o afeto paternal que não tive. Irei
proteger essa criança e educá-la, dando-lhe o melhor de mim. Ensiná-la a
andar no caminho correto, ser uma pessoa do bem. A questão do sangue é
apenas um mero detalhe, o que importa mesmo é o amor.
— Prometo te fazer o homem mais feliz desse mundo! Eu te amo! —
praticamente jura.
— Já me faz, professora! Eu também te amo muito. — Abaixo e beijo
sua barriga.
— Eu tenho uma coisa para te contar sobre o dia que o Marcos foi
preso. Você vai ficar orgulhoso de mim. — Puxa-me pela mão e nos
sentamos sobre a grama, abraçados, é muito bom poder sentir o seu cheiro
gostoso assim tão de perto.
Tive um ataque de riso quando Anne contou sobre a surra que deu no
Marcos, fiquei tão orgulhoso dela que quase beijei os seus pés. Só não beijei
porque ela não deixou, por mim beijava todo o seu corpo e faríamos amor por
horas para recompensar o tempo perdido.
— Eu não acredito que perdi essa cena, amor, queria ter assistido de
camarote — brinquei.
— O padre Valentim disse a mesma coisa quando contei a história para
ele, quando ainda estava internado no hospital, por isso, na visita seguinte
levei uma cópia das gravações da confissão do Marcos para ele assistir. Dava
para ouvir as gargalhadas dele lá da recepção. — Continuou a rir, mas eu
meio que paralisei, tomado pela emoção.
— Internado? Como assim? Antes dos homens de Marcos atirarem em
mim, ele me disse que havia matado padre Valentim.
— Não, Castiel, ele sofreu um acidente feito. Contudo, ficou internado
duas semanas e já está pronto para outra. — Não aguento e começo a chorar,
saber que padre Valentim, assim como eu, sobreviveu à tentativa de
assassinato feita pelo mesmo homem é comovente.
Só pode ter o dedo de Deus nisso, não tem outra explicação.
— Podemos ir até ele agora mesmo? Preciso vê-lo com os meus
próprios olhos.
— Claro, meu amor, ele vai ficar radiante quando descobrir que o
protegido dele está vivo. — Segura minha mão e juntos vamos até a casa de
padre Valentim. Depois de passar a dor de receber a notícia de sua morte, não
quero sair de perto dele nunca mais.
Fico surpreso de Anne ter conseguido resgatar minha antiga
caminhonete do acidente e reformá-la, está novinha em folha, pintada de um
vermelho vivo diferente do antigo, desbotado e enferrujado. Nem parecia a
mesma lata velha que eu sempre amei mesmo assim, foi o primeiro e único
carro que tive na vida. Comentei isso para ela uma vez, provavelmente por
isso fez questão de ficar com o veículo.
Por isso amo tanto essa mulher!
Assim que chegamos na propriedade do padre, o vejo de longe
agachado, plantando cenouras na horta próxima à sua casa. A batina dobrada
acima do joelho e um chapéu de palha com a aba larga na cabeça.
— Espero que não me cobre mais a comer sua sopa de cenoura como
quando eu era pequeno, padre. Nunca falei nada, mas era horrível — brinco.
Ele larga a sacola de mudas imediatamente e tira o chapéu antes de erguer a
cabeça para olhar para mim.
— Não importa quantos anos tenha, menino, eu sempre vou lhe obrigar
a comer a minha saudável e apetitosa sopa de cenouras — fala entre os
soluços do choro, não dando conta de conter as lágrimas com um lenço que
tira do bolso. Eu me agacho afundando os joelhos na terra e o puxo para um
abraço.
— Eu sei disso, senhor Valentim, e sei que fará o mesmo com o seu
neto que está a caminho. — Padre chora ainda mais, ele sabe que eu falo do
filho da Anne.
Se eu seria o pai, ele com certeza ocuparia o lugar de avô.
— Eu sempre soube que você voltaria, Castiel — revelou, e eu
acredito.
— Prometo nunca mais sair de perto do senhor, seremos uma grande
família agora. — Nós três demos as mãos, o novo ciclo se inicia em nossas
vidas.
Nunca é o fim. São eternos recomeços.
Capítulo 43

Castiel

Minha vida de casal com Anne não demora para entrar nos eixos, nos
damos muito bem e concordamos em tudo. Trabalho junto com os operários
na construção da nossa casa, mas só aos finais de semana, porque consegui
um bom emprego como servente em uma grande empresa de obras devido às
ótimas recomendações do meu trabalho de carpintaria bem feito realizado na
casa dos antigos vizinhos de Anne. Isso é uma grande vitória para mim,
afinal, para um ex-presidiário conseguir ser contratado de carteira assinada e
com um ótimo salário é a mesma coisa que ganhar na loteria.
Eu e Anne conversamos e decidimos que só vamos nos casar daqui a
um ano, com a nossa vida estabilizada. Além do mais, fazemos questão que o
nosso filho esteja presente na cerimônia. Até lá, vamos trabalhando firme na
construção da nossa casa. Depois de pronta fizemos uma festa ao pintá-la de
laranja para combinar com as folhas secas no outono, estação onde nós nos
conhecemos. Ao lado do nosso quarto montamos um lindo para o nosso bebê.
E mais outros três para os nossos filhos que virão em breve, queremos uma
família grande.
A sala é enorme, com um piano bem no meio, que comprei em
prestações a perder de vista de presente para Anne ensinar aos nossos filhos a
tocar e cantar no coral da igreja. Ficou radiante quando o viu. Também
fizemos um cantinho para pintura, onde eu poderei fazer os meus desenhos e
pintar quadros no tempo livre. Um cômodo da casa, em especial, decorei com
carinho para quando encontrarmos minha irmã. O detetive que Anne
contratou ainda está à procura de Beatriz. Infelizmente, pelo que tem nos
informado, não achou muita coisa, pois os pais adotivos delas mudam muito.
Contudo, mantenho a fé de que a encontraremos algum dia, quando menos
esperarmos.
No dia de fazer a ultrassom para saber o sexo do bebê, eu quase enfarto
quando a doutora diz que que teremos um menino. Anne decidiu chamá-lo de
Gabriel. Disse que enquanto pensava que eu estava morto, teve um sonho
lindo comigo brincando com um garotinho no paraíso com esse nome, e que
juntos fomos procurar a “Clarinha”. Apesar de não a ter visto no sonho, disse
que quando tivéssemos uma menina daria esse nome a ela, Maria Clara.
Achei isso tudo muito incrível, ainda mais porque disse que sonhar comigo
nesse dia a salvou de um afogamento na banheira.
A barriga de Anne começou a crescer rápido depois que completou seis
meses, gosto de ler livros para Gabriel à noite. Deito minha cabeça no colo de
sua mãe e leio para o meu garoto. Já terminei a série completa do Harry
Potter, O Pequeno Príncipe, A Baleia Azul, entre tantos outros livros infantis.
Quando ele nascer, vou ler tudo novamente. Além disso, meu hobby favorito
é fazer todas as vontades de Anne, das mais simples às mais complicadas.
Apesar de que ela é modesta, não tem desejos muito extravagantes no meio
da noite. Nenhum que um homem apaixonado como eu não daria a vida, se
fosse preciso, para realizar só para vê-la feliz.
Quando a bolsa dela estourou, uma semana antes do previsto, bem em
meio a uma aula de catecismo, Jesus Cristo! Quase coloco o hospital abaixo
para que a atendessem logo. Padre Valentim me pede calma e não para de
orar desde que saímos da igreja. Joãozinho e a mãe dele vieram conosco,
rindo pelo fato de ver que Anne está mais calma do que eu, um semblante
sereno enquanto empurro sua cadeira de rodas pelo corredor para a sala de
parto.
— Agora você espera aqui, senhor, vamos preparar sua esposa para o
parto. Quando chegar a hora, volto para te buscar. — Sou barrado na porta, a
enfermeira toma o meu lugar de condutora da cadeira de rodas.
— Cuida bem dela para mim, moça — peço à enfermeira, não queria
deixar minha esposa.
— Tudo bem, amor, eu vou ficar bem — Anne me conforta, suando ao
sentir as dores das primeiras contrações.
— Vejo você e o nosso filho em breve, Anne. — Ela sorri para mim
daquele jeito que eu amo. Beijo seus lábios e seguro a sua mão até o último
segundo antes dela entrar na sala de parto.
— Ainda bem que homens não ficam grávidos, acho que não daríamos
conta na hora do parto. — Joãozinho me acompanha andando de um lado
para o outro pelo corredor à espera de ser chamado, estou ansioso demais
para ficar sentado.
Meu amiguinho se recuperou bem da cirurgia, não tem mais nem sinal
da corcunda, sua postura está ereta. Está mais confiante. Me contou outro dia
que está paquerando uma aluna nova da escola, não para de falar dessa
menina que se mudou recentemente para a cidade.
— Tem razão, carinha, eu estou pirando só de esperar. — Olho no
relógio no meu pulso, já tem duas horas que Anne entrou e nada de notícias
desde então.
— Eu estou vendo, Castiel. Parece uma galinha choca, não para um
segundo — zomba na minha cara, dou uma chave de pescoço nele e bagunço
sua cabeleira.
Enquanto brinco com Joãozinho, minha sogra aparece no final do
corredor andando depressa quase sem ar, vem até mim e pergunta sobre a
Anne.
— O bebê já nasceu, Castiel? Meu marido já está a caminho, saiu
correndo do trabalho quando soube que nossa filha entrou em trabalho de
parto — indaga.
— Não, senhora, eles vão me chamar quando iniciar o parto. Quero
estar presente quando nosso filho nascer — digo alegremente e a mulher
começa a chorar e me abraça, fico sem entender nada.
— Obrigada por não desistir da minha filha, por causa do seu bom
coração meu neto vai crescer com uma ótima referência de pai — agradece, e
peço um lenço de papel na recepção para dar a ela.
— Não precisa agradecer, senhora, vocês são minha família agora —
digo e a abraço. Ela e o senhor Manuel não são apenas sogros para mim. Me
tratam tão bem que os considero meus pais.
Eles se culpam por não terem percebido o que Anne sofria casada com
o primeiro marido. Mas tudo o que aconteceu ficou no passado, todos os
culpados já foram devidamente punidos. Marcos vai morrer na cadeia, seus
homens corruptos estão sendo julgados e a traidora da filha do prefeito ficou
louca depois da minha suposta morte. Os pais a mandaram para morar com os
tios no exterior, porém, más línguas dizem que está internada em uma clínica
para pessoas com doenças mentais. Não desejo mal a ela, mas acho justo que
cada um colha o que planta.
Quero esquecer essa gente do mal e seguir em frente ao lado da minha
mulher e filho, que está chegando ao mundo em breve, já muito amado por
todos.
— Está na hora, papai, pode entrar — a enfermeira vem avisar, passo
quase por cima dela ao entrar na sala.
Seguro a mão de Anne enquanto faz força, ela está dando o seu melhor.
De repente, um choro vigoroso de bebê começa.
— Quer segurar o seu filho, papai? Parabéns! É um garotão lindo! — O
médico entrega-me Gabriel nos braços assim que nasce, sou o primeiro a
segurar meu filho no colo.
Algumas enfermeiras ficam olhando para pai e filho de olho torto só
porque o Gabriel tem a pele bem escura. Mesmo vendo que a mãe também é
negra, ainda assim agem com preconceito. Nem me importo, dou de ombros e
volto a babar em cima do meu moleque lindo e forte.
— Bem-vindo à família, filho! — Uma lágrima cheia de amor desce
pelo meu rosto enquanto faço carinho na mãozinha dele, ele segura meu dedo
indicador com força, como se soubesse que eu o protegeria para sempre.
Gabriel tem todos os traços físicos de Anne, principalmente os lábios
pequenos, porém grossos. Cílios longos e as sobrancelhas tão cabeludas que
quase se unem como se eu e ele tivéssemos nos fundido em um só logo no
nosso primeiro contato como pai e filho. Beijei sua testa, abençoando sua
chegada ao mundo.
— Traz o nosso bebê aqui, amor, quero ver o rostinho dele — pede
uma mãe ansiosa.
— Olha, Anne, como o nosso filho é lindo, se parece com você! —
Coloco Gabriel deitado sobre o peito da mãe. Ela deposita um beijo no topo
na cabeça dele, tomada pela emoção.
— Lindo e muito amado pelos seus pais. Bem-vindo às nossas vidas,
Gabriel. — Como se tivesse ouvido as boas-vindas da mãe, nosso filho sorri
pela primeira vez, encantando toda a equipe médica.
Anne segura minha mão. Agora sim nossa família está completa.
Capítulo 44

Castiel

Depois de um ano maravilhoso juntos, o dia tão esperado do nosso


casamento chegou e eu sou puro nervosismo enquanto espero Anne no altar
montado no coração do bosque. Iremos nos casar debaixo do enorme ipê
amarelo, no auge da primavera, nossa árvore favorita com a nossa casa
perfeita como imagem de fundo. Não quis usar terno, nunca fiz o tipo
engravatado. Fugindo totalmente do padrão, estou de jeans, camisa social
branca e tênis. Uma celebração simples, assim como imaginamos, bem a
nossa cara.
O gramado do nosso jardim tem duas fileiras de cadeiras de madeira
escura divididas por um corredor, onde todos os nossos amigos e familiares
estão reunidos para celebrar esse momento mágico conosco. Menos Carlos e
o meu melhor amigo, Edgar, eles estão ao meu lado no altar como meus
padrinhos. Eu nunca imaginei que me casaria um dia, e menos ainda que seria
realizado pelo padre Valentim. Me sinto privilegiado por isso.
— Atenção, a noiva está vindo! — anuncia Valesca, chamando a
atenção de todos, correndo pelo corredor para retomar o seu lugar, ao lado do
Edgar, como nossa madrinha.
O que Edgar disse que seria apenas uma noite de sexo com a loira
piriguete, acabou virando namoro sério. Em breve, o próximo casamento será
o dele com Valesca.
— Respira fundo, Castiel, porque sua futura esposa está um arraso! —
A loira bate no meu ombro, deixando-me mais nervoso.
Meu amor aparece, perfeita e de braço dado com o pai, sorrindo feito
um anjo lindo, dentro de um vestido branco longo colado ao corpo, com a
cauda longa igual ao de uma sereia. O cabelo cresceu e agora traz cachos
rebeldes soltos na altura do ombro, presos de lado. Quase sem maquiagem,
ela é perfeita de natureza. A mulher mais bela do mundo. Feliz e realizada
com a vida que construímos juntos.
O que mais me comoveu foi a surpresa que ela me fez. Ao invés do
buquê, segura o nosso filho no colo. A nossa música começa a tocar e o meu
coração flutua a cada passo dado em minha direção.

“Essa é uma velha história


De uma flor e um beija-flor
Que conheceram o amor
Numa noite fria de outono

E as folhas caídas no chão


Da estação que não tem cor
E a flor conhece o beija-flor
E ele lhe apresenta o amor

E diz que o frio é uma fase ruim


Que ela era a flor mais linda do jardim
E a única que suportou
Merece conhecer o amor e todo o seu calor...”

(Henrique e Juliano)

— Cuida bem da minha filha, rapaz — diz o meu sogro ao me entregar


a noiva, meu coração parece que vai explodir de alegria.
— Pode deixar comigo, senhor Manuel, vou cuidar dela como se fosse
a minha vida — prometo e ele me abraça, satisfeito com a resposta.
Beija o rosto da filha e do neto, depois volta para o seu lugar ao lado da
esposa, que já está aos prantos antes da cerimônia começar.
— Você está linda! — elogio-a beijando os seus lábios e depois a testa
do nosso filho.
É só me ver para Gabriel abrir os bracinhos para mim, aos risos.
Sempre que eu estou presente, não fica em outro colo além do meu.
— Você também não está nada mal, papai. Mal posso esperar pela
noite de núpcias — disse ao pé do meu ouvido enquanto entrega-me nosso
filho, olhando-me de cima a baixo toda cheia de graça.
— Eu ouvi isso, hein! Nem se casaram e já estão pensando na noite de
núpcias? — Padre Valentim se zanga, fazendo todos rirem.
Eu e a Anne olhamos um para o outro, entrelaçando os nossos dedos. Não há
necessidade de palavras entre nós, basta um olhar.
Final

Anne

Eu sou só sorrisos hoje, nossa cerimônia de casamento está linda!


Agora é o grande momento dos votos, Castiel se ofereceu para falar o dele
primeiro. Escreveu a punho atrás de um desenho que havia feito de mim no
final do nono mês de gestação, olhando para minha barriga enquanto eu fazia
carinho nela com as duas mãos. Lembro-me que nesse dia Gabriel não parava
de chutar. É sempre assim quando o pai está perto, até mesmo dentro da
minha barriga fica puxando o saco dele.
Não tenho do que reclamar, Castiel é o sonho que toda mulher imagina
ter. Ótimo pai, companheiro, amigo e amante.
— Quando eu te vi pela primeira vez eu pensei: nossa! Quem será o
sortudo que é o dono do coração dela? Mal sabendo que estava escrito no
livro de Deus que hoje esse cara seria eu. Sou muito grato a ele por isso. —
Castiel me joga uma piscadela com um sorriso de canto, que retribuo.
— Ahh, que fofo! — Reviro os olhos, ouvindo todas as mulheres
presentes suspirarem pelo meu futuro marido.
— Mas, como nada dura para sempre, tenho uma revelação para fazer a
você, Anne. Talvez nem queira mais se casar comigo. — Castiel fica tenso e
eu mais ainda, está falando muito sério.
— Não acha melhor deixar para conversarmos sobre isso mais tarde,
quando estivermos sozinhos? Acho que no meio do casamento não é uma boa
hora para ter uma DR — solto entre os dentes, estreitando os olhos, sendo a
mais discreta possível.
Não brigamos nunca, mas se Castiel continuar insistindo nesse assunto
na frente de todo mundo no dia do nosso casamento, não garanto nada. Estou
muita irritada com ele, puta da vida mesmo.
— Eu quero revelar tudo agora, e é bom que todos os nossos amigos
estejam presentes. — Eleva a voz pra mim, mas só um pouco.
Dobra a folha dos seus votos sem terminar e a coloca dentro do bolso
da camisa, me deixando confusa. Não consigo acreditar que isso está
acontecendo.
— Diga então logo de uma vez, porque já estou ficando nervosa —
perco a paciência, os convidados estão em total silêncio esperando para ver
quais serão os próximos capítulos dessa novela mexicana.
Se ele desistiu do casamento, por que não disse antes? Caralho! Para,
agora, criar essa situação constrangedora na frente de todo mundo? Eu vou
matá-lo depois por isso, filho da mãe!
— Estou apaixonado por outra pessoa, Anne — revela na cara dura.
Eu poderia pensar que ele está brincando, mas mesmo estando há tão
pouco tempo juntos eu havia aprendido a decifrá-lo nos mínimos detalhes. E
nesse momento ele fala sério. Muito mesmo.
O clima fica tenso, minha mãe é obrigada a segurar o meu pai para que
não venha para cima de Castiel.
— Você só pode estar brincando, Castiel! — rosno e tomo nosso filho
do colo dele, não acredito que está fazendo essa merda comigo.
Até porque, se eu não tivesse feito isso, teria voado no pescoço do
Castiel. Estou prestes a fazer um escândalo, mas, como costumam dizer por
aí:
“Não há nada tão ruim, que não possa piorar”.
— Estou falando sério, Anne! Estou completamente louco de amor por
outra pessoa. Para ser honesto, outro homem. E bem mais novo do que eu.
— Os convidados ficam de boca aberta, literalmente em choque.
Só não fui parar no chão por causa de Gabriel no meu colo, permaneço
firme por ele. Mas não é fácil ver o seu dia dos sonhos se tornando um
pesadelo.
— Misericórdia, Senhor! — exclama o padre, de queixo caído.
— E todos aqui conhecem esse homem muito bem, especialmente
você, querida — Castiel continua com a tortura.
Meu olhar foi direto para cima de Carlos no altar, ele logo se manifesta.
— Eu não tenho nada com isso, não, gente. — Levanta as mãos, tirando
o corpo fora.
— Chega de mistério e diga logo quem é, Castiel! — Fuzilo-o com o
olhar, é bom começar a me dar nomes ou a coisa vai ficar feia para o lado
dele.
O que mais me irrita é esse ar de riso no jeito que me encara, está se
divertindo com a situação.
— Desculpe, Anne. Eu te amo. Mas o seu charme não supera o do
Gabriel. Estou completamente apaixonado pelo nosso filho e hoje os meus
votos são exclusivamente para esse carinha aqui. — Pega Gabriel do meu
colo de volta e joga para o ar, fazendo nosso pequeno gargalhar.
Derreto-me toda ao mesmo tempo em que quero socá-lo pelo susto.
Como Castiel consegue ser tão perfeito? Um príncipe encantado, de jeans e
jaqueta de couro preta.
— Sempre soube que nunca teria chances contra o charme do nosso
filho, Castiel. Eu mesma não resisto a ele — entro na brincadeira dele e beijo
o rosto de Gabriel, que divide o olhar entre mim e o pai.
— Ufa! Que bom que estou me casando com uma mulher compressiva,
estou me sentindo até mais leve agora que tirei esse peso das costas. — Leva
a mão sobre o peito, dramático.
Sempre que penso não ter mais como amar Castiel, ele me dá um novo
motivo. Com esses olhos cor de mel e esse sorriso de canto no estilo Bad
Boy, me tem nas mãos. Não consigo conter o impulso de puxá-lo pela gola da
blusa e roubar um beijo.
— Lindos! — todos gritam em meio a palmas e assovios.
— Quero que todos saibam o quanto amo o meu filho, e a cada dia
tenho mais orgulho de ser a figura paterna com quem ele vai crescer se
inspirando. Por isso, vou tentar dar o meu melhor na criação dele, sempre.
Como disse o grande mestre Van Albuquerque:
“Ser pai é ser sábio conselheiro construindo valores. Amigo e
companheiro inseparável, herói derrotando os temores, indicando na vida os
caminhos. Ser pai é ser artista, palhaço, um menino arteiro, responsável.
Mesmo cansado se doa, ri, brinca e conta histórias. Mas explica sobre a
realidade do mundo, da forma mais gentil que encontra. Um amor
incondicional no coração, no crescimento diário do filho, ensinando, mas
que no final acaba sendo um eterno aprendiz.”
Não teve quem não se emocionasse com esse lindo voto de pai para
filho. Essa cena é linda demais, Gabriel sorri para o pai com um olhar de
admiração como se entendesse tudo o que Castiel diz. Talvez entenda
mesmo, os dois, antes mesmo de Gabriel nascer, têm uma ligação
inexplicável. Ainda dentro da minha barriga era só ouvir sua voz que
começava a chutar.
— Bom, já que é o momento de revelações bombásticas, agora é a
minha vez — tomo a palavra, e Castiel arqueia a sobrancelha, curioso.
— Estou ouvindo, amor — desafia-me com o olhar.
— Nossa Clarinha está a caminho, Castiel. Eu estou grávida
novamente! — jogo a bomba.
Castiel fica pálido. Demora um pouco para esboçar algum sinal de vida,
e balança a cabeça rindo feito um maluco.
— Eu vou ser pai de novo? É isso mesmo? Porque foi isso que eu
entendi — diz meio abobalhado, feliz da vida com a notícia de que tem outro
bebê vindo por aí.
— Vai ser sim, e dessa vez tenho certeza de que é menina, nossa Maria
Clara está a caminho — faço piada, mas com um fundo de verdade.
— Tenho certeza que sim, ela vai ser linda igual à mãe. — Acaricia
meu rosto.
— Eu aceito ser sua esposa pelo resto da vida, Castiel — afirmo
mesmo sem o padre perguntar, sinto que precisava dizer.
— E eu aceito ser seu marido pelo resto da minha vida, Anne — afirma
de volta, sentindo a mesma necessidade.
— Eu vos declaro marido e mulher! Pode beijar a noiva. Pela milésima
vez, eu acho, perdi a conta — o padre finaliza o nosso casamento, acho que o
mais inusitado que realizou até hoje.
Eu e Castiel nos beijamos por um longo tempo, selando esse momento
incrível de nossas vidas. Fomos cumprimentados por todos os presentes, é
muito bom viver assim, rodeados de pessoas do bem, felizes por nós.
A cerimônia acaba e os garçons começam a servir aos convidados.
Percebo que um carro preto estaciona em frente à nossa casa. São os pais da
namoradinha do Joãozinho, a família da garota se mudou recentemente para a
cidade. Vera nos avisou que o filho tinha viajado com eles para a praia,
acabaram perdendo o voo de volta e chegariam atrasados no casamento.
— Oi, tia Anne. — Joãozinho acena ao sair do carro e puxa a garota de
cabelos compridos pela mão até mim.
Ela é tão linda como tinha falado. Infelizmente, eu e o Castiel não
tivemos a oportunidade de conhecê-la antes. Do carro também sai um casal
mais velho de mãos dadas com uma garotinha de uns quatro anos, muito fofa,
com os traços orientais, segurando um coelho de pelúcia azul enorme igual ao
daquela personagem do desenho “Turma da Mônica”. Lembro de ter visto
uma criança com um brinquedo igual a esse, mas não lembro onde.
— Obrigada por terem vindo, é uma honra recebê-los em minha casa
— cumprimento-os.
— Meus parabéns, Tia Anne. — Me abraça Joãozinho, igual a um
homenzinho de terno e gravata, ele cresceu tanto nesse último ano.
— Obrigada, meu amor, eu estou muito feliz — converso com ele, mas
com os olhos no rosto da sua namorada, tomados por uma cor vermelha.
Ela está chorando?
Passa a mão no cabelo a cada cinco segundos, gesticula agitada
mexendo as mãos rápido demais, apontando para o meu marido, entretido,
conversando com os amigos da empresa onde trabalha, exibindo o filho no
colo.
— Sua namorada está bem, Joãozinho? — indago e ele se vira para
olhar para a moça.
Os dois começam a conversar bem na minha frente em Libras, minha
nossa! Ela também é muda, só agora que me dei conta disso.
— É ele — afirma a garota repetidas vezes, apontando para Castiel.
Joãozinho, assim como os pais dela, ficam confusos, não entendem e
pedem que ela se acalme.
— Ele quem, filha? — A senhora de cabelos grisalhos tira um lenço da
bolsa e limpa as lágrimas da filha, a situação delicada começa a chamar a
atenção de algumas pessoas próximas.
Começo a suar frio, não consigo acreditar que isso está acontecendo.
Castiel ainda está entretido na sua conversa, totalmente alheio à situação.
Olho para o meu marido e a garota, analisando a enorme semelhança entre
eles. O mesmo formato do rosto, a boca é a mesma. Eles têm a mesma cor de
cabelo, até mesmo a textura grossa dos fios lisos, mas o que chama a atenção
de fato são os olhos cor de pistache trazendo a mesma ternura na maneira de
olhar.
— Ele, mamãe! — Vira o rosto da mãe na direção de Castiel, está
nervosa demais para explicar com sinais.
— Ah! Meu Deus! Tem certeza, filha? Faz tanto tempo que estamos
procurando, você pode estar enganada — alerta a senhora, mas almejando
que a filha esteja certa em suas suspeitas.
— Tenho certeza sim, mãe. Eu nunca esqueci o rosto dele — confirma,
os pais a abraçam e desejam boa sorte.
— Empresta-me, querida? — A garota pede o coelho de pelúcia para a
irmãzinha, a florzinha lhe entrega sem fazer pirraça.
Segura o brinquedo firme contra o peito, limpa as lágrimas e respira
pausadamente indo até Castiel. Para atrás dele e puxa-lhe a beira da camisa,
não forte o suficiente para que o meu marido perceba a presença, então puxa
uma segunda vez com mais força. Ele vira lentamente, sorrindo. Quando vê a
garota a expressão do seu rosto se transforma completamente.
— Beatriz? — é a única coisa que Castiel tem forças para dizer,
olhando para o ursinho de pelúcia nas mãos dela, que conhece muito bem.
Bia levanta o dedo mindinho no ar, Castiel faz o mesmo gesto
entrelaçando o dele ao da irmã. Deve ser um cumprimento só deles, uma
forma de dizer “Eu te amo”.
— Eu guardei meu brinquedo favorito por todo esse tempo, porque foi
o meu irmão que me deu. Nunca houve ninguém nesse mundo que eu amo
mais que você, Castiel — se declara para o irmão, ele chora de alegria assim
como eu, sem acreditar que esse milagre está acontecendo.
Os dois irmãos separados pelos caminhos tortos da vida se encontram
depois de tantos anos, mas o amor só cresceu nesse tempo, é obvio. Dá gosto
de ver o abraço forte e saudoso deles, não existem palavras para descrever
essa cena linda. Nossa família está mais que completa agora. Aliso minha
barriga, em breve mais um membro vai chegar para fazer parte do grupo.
Fruto de um amor que começou de uma maneira torta, mas no momento
certo.
Eu fui uma mulher infiel, mas não me arrependo disso. Foi esse pecado
cometido que me tirou do inferno e me trouxe ao paraíso.
Epílogo

Castiel

Sete anos depois...

Estou bem no meio do expediente de trabalho quando Anne me liga


surtada, dizendo que Gabriel brigou na escola, de novo. Agora sou dono da
minha própria empresa de construções e reforma de casas, em breve abrirei
duas filiais em São Paulo e Rio de Janeiro. Pelo que minha esposa contou ele
empurrou a filha dos Nunes, fazendo-a ralar feio o joelho. E o moleque
teimoso não pediu desculpas de jeito nenhum para a menina, ainda se trancou
no banheiro e não abre a porta para ninguém, nem com a mãe implorando.
Gabriel estuda na mesma escola que a irmã Ana Clara, eles têm pouca
diferença de idade. Minha princesa é linda, uma mistura perfeita minha com a
Anne. Um cabelo todo cacheadinho e um sorriso apaixonante, olhos
castanhos iguais aos meus. Sou um homem de muita sorte, tenho uma esposa
maravilhosa e filhos lindos e amorosos. Apesar que meu primogênito tem um
gênio, digamos, meio forte. Muitas das vezes agressivo, até. Não tem
paciência com a irmã que o ama demais e quer ficar atrás dele para todo o
lado, não dá um minuto de paz para o coitado. Ele ama muito a irmãzinha,
mas de vez em quando quer brincar só com os coleguinhas dele, então a briga
começa.
Minha esposa trabalha na escola que nossos filhos estudam dando aulas
para uma turma mais velha, Anne se formou em Pedagogia e fez mestrado.
Hoje é uma das melhores professoras da escolinha de Ensino Fundamental
“Futuro Brilhante”.
Com a Anne ainda pendurada no celular tentando acalmá-lo, tento
entender o que está acontecendo com o meu garoto. Entendo todo o
desespero da mãe dele, morre de medo que Gabriel cresça e fique igual ao pai
biológico, impetuoso com as pessoas. Anne ainda tem pesadelos à noite com
tudo o que sofreu casada com Marcos, acorda chorando aos gritos e corre
para o quarto do filho para ter certeza de que está seguro. Por mais que você
se recupere de um grande trauma, sempre ficam os vestígios para se lembrar
de que é um sobrevivente. Mulher de fibra, mãe incrível e a esposa perfeita.
Juntos formamos a família dos nossos sonhos.
Minha irmã Beatriz e Joãozinho fazem parte dela também, eles
acabaram de ficar noivos. Na época que a reencontrei, ou melhor dizendo,
que ela me encontrou, nem precisei entrar na justiça, até porque casos de
adoção são irrevogáveis, quase a totalidade dos casos. Contudo, os pais
adotivos dela são pessoas incríveis, autorizaram a filha a ficar na nossa casa
todo final de semana, e sempre que Bia queria ainda levava a irmãzinha
pequena, uma doçura de menina, é um prazer enorme recebê-las no nosso lar.
Quando enfim chego à escola, enquanto estaciono o carro avisto uma
ansiosa Anne me esperando próxima à porta, de mãos dadas com nossa
filhinha sorridente.
— Papaiiiiii. — Clarinha vem correndo ao meu encontro com seu
vestido azul púrpura de princesa, fita rosa no cabelo e sapatinhos da mesma
cor.
— Oi, Clarinha, que saudade. — Pego-a e a jogo no ombro, a
danadinha não para de rir.
Minha esposa joga um beijo para nós de longe ao alisar a barriga de
quase sete meses, estamos esperando gêmeos. Mais um menino e uma
menina estão de chegada em dois meses.
— Eu senti saudades também, papai! — Esfrega a ponta do nariz no
meu, é amorosa demais.
— E o seu irmão, onde está? — Dá de ombros mexendo no meu
cabelo, adora fazer penteados nele e me maquiar quando brinca de salão de
beleza.
— Gabriel empurrou a Bruna na hora do recreio e depois se trancou no
banheiro, não quer falar com ninguém. Mamãe cansou de bater na porta, mas
ele não abre.
— Está bem, querida, vá brincar enquanto o papai tenta conversar com
o seu irmão. — Beijo seu rosto e a coloco no chão.
— Tá bem, papai, tchau. — Clarinha sorri e sai correndo em direção ao
parquinho nos fundos da escola, cantarolando a música do seu desenho
animado favorito.
Fico babando vendo aquele pingo de gente subindo no
escorregador, sentando-se no topo dele e descendo com os bracinhos abertos.
Vou ao encontro de Anne. Conforme vou me aproximando posso notar
o medo nos seus olhos, é sempre assim quando se trata de algum problema
envolvendo Gabriel. Fica histérica. Toda criança na idade dele apronta, mas
minha esposa, tomada pelo medo, vê a coisa maior do que realmente é.
— Oi, amor, e os bebês, como estão? — Beijo-lhe a barriga, depois os
seus lábios.
— Eles estão bem, amor. O Gabriel que não está, se escondeu no
banheiro há mais de uma hora para não precisar pedir desculpas à coleguinha.
Eu fiz de tudo para ele sair, mas não obtive sucesso. — Começa a chorar um
dilúvio, anda emotiva nos últimos meses de gestação.
— Tudo bem, Anne, não se preocupe. Eu vou falar com ele e vamos
acertar as coisas. — Seguro sua mão e a tranquilizo; mais calma, sorri para
mim.
Fomos até o banheiro onde Gabriel está, me aproximo da porta e bato
apenas uma vez.
— Ei, filho, aqui é o papai. — A porta abre em um rompante assim que
ouve a minha voz e agarra minha cintura com força, com tanta força que
quase me derruba.
— Desculpa, papai, eu te amo! — pede com a vozinha chorosa, é um
bom garoto.
— Ei, campeão, não precisa chorar, eu também te amo. Acalme-se e
conte para o papai o que houve. — Abaixo-me para ficar à altura de Gabriel,
limpo suas lágrimas e ajeito sua roupa.
Meu filho agarra meu pescoço, escondendo o rosto. Afago seu cabelo,
eu adoro fazer isso. É cheio de cachinhos bem pequenos, parece um monte de
molinhas minúsculas.
— Eu empurrei a Bruna porque ela disse que você não é o meu papai,
porque a minha pele é diferente da sua. — Aproxima o braço do meu,
mostrando o contraste entre nossas cores. Meu coração se parte.
Gabriel ainda é pequeno demais para conseguir explicar que a
coleguinha insinuou que eu não posso ser pai dele porque é negro e eu
branco, tão pequeno e já pagando o preço do racismo. Clarinha nasceu uma
mistura minha e da Anne, por isso não sofre tanto preconceito na escola. Já o
irmão mais velho, não é a primeira vez que um coleguinha ou até mesmo
pessoas adultas o ofendem com comentários maldosos.
— O que faz de mim seu pai não tem nada a ver com cor de pele,
Gabriel, mas sim o que eu carrego aqui dentro. — Com carinho, pego sua
mãozinha e coloco sobre o meu peito. — Consegue ouvir alguma coisa,
filho? — Assente.
— Sim papai, as batidas do seu coração — responde no seu tom
inocente.
— Sabe o que isso significa, rapazinho?
— Não sei, o que é?
— Que quando alguém disser que não é meu filho porque não tem o
mesmo sangue ou mesma cor de pele que a minha, responda que tem algo
muito mais importante que isso. O meu coração, que bate por você desde o
dia que sua mãe me contou que estava grávida — minha voz sai embargada,
eu amo demais essa criança.
— Está bem, papai, obrigado por me dar o seu coração. Prometo que
vou cuidar bem dele — promete e eu o abraço bem forte.
— Sabe o que tem que fazer agora, não sabe?
— Sei sim, o senhor pode ir comigo?
— Claro, filho, pode contar comigo sempre. — Pego na mão dele indo
em direção à saída, Anne nos olha sem entender nada.
— Onde os dois bonitões pensam que vão? — Coloca a mão na cintura,
sentindo-se excluída.
— Coisa de homem, mamãe, a senhora não entenderia. — Meu filho
olha cúmplice para mim, e eu rio da careta que a mãe dele fez.
— Não fica zangada, amor. Eu vou resolver um assunto com o meu
filho, mas voltamos a tempo para o almoço. Dá um beijo na Clarinha por
mim, eu amo as duas. Ou melhor, os quatro — me despeço dela enquanto
Gabriel sai na frente pisando firme, decidido igual gente grande.
— Como faz isso? — indagou Anne se referindo ao meu incrível
relacionamento com nosso filho, mas é complicado explicar a ligação forte
entre mim e ele.
— Coisa de meninos, amor, você realmente não entenderia — repeti as
palavras de Gabriel, ela aperta minhas bochechas e rouba um beijo.
— O senhor não vem, papai? — grita o homenzinho já do lado de fora,
apressado.
— Calma, filho, eu já estou indo.
Como a casa dos Nunes fica apenas a três quadras da escola, fomos
caminhando de mãos dadas. Com a outra mão livre segura uma rosa que
pegamos no jardim da praça. Gabriel permanece calado pensando no que vai
dizer quando chegarmos. Sua ansiedade aumenta ao avistarmos uma casa
amarela com janelas de madeira. Paro de andar na calçada e deixo que ele vá
sozinho.
— Eu vou estar aqui o tempo todo, campeão, é só olhar para trás que
vai ver o papai. — Acerto a gola da sua camisa amarela e ajeito seu cabelo.
Assente e vai caminhando a passos inseguros. Ao chegar próximo à
porta faz o Sinal da Cruz. O padre Valentim o ensinou que aquele gesto
sempre lhe daria forças quando estivesse com medo. É bater e valer, garantiu
ele.
Gabriel toca a campainha, tímido, segurando a rosa com as duas mãos
frente ao corpo. Como ninguém atende, olha para trás sem saber o que fazer.
Faço sinal para que tente novamente, dessa vez vai com mais confiança,
batendo direto na porta mesmo, com vontade. Uma mulher com o cabelo cor
de fogo e a cara fechada atende meu filho, segurando pela mão uma garotinha
também ruiva, de nariz em pé, com um curativo no joelho esquerdo.
Ambas ficaram surpresas com a presença de Gabriel, mas não fizeram
nada porque viram que eu estou presente.
— Posso te ajudar com alguma coisa, rapazinho? — pergunta a mulher,
com desdém.
Meu filho não se intimida com a cara feia dela e faz o que veio fazer.
— Eu vim me desculpar por ter empurrado sua filha, senhora.
Desculpa, Bruna! Prometo que nunca mais vai acontecer. O meu pai me
ensinou que um homem nunca deve encostar um dedo em uma mulher, a não
ser que seja para fazer carinho. — Alisa o rostinho da menina usando as
costas da mão, com a elegância de um Lorde.
— Essa flor é para mim, Gabriel? — A menina sorri diante do gesto
cavaleiro dele, até a expressão da mãe suaviza.
— É sim, Bruna, espero que um dia a cor da minha pele não nos
impeça de ser amigos. Agora preciso ir, meu pai está me esperando. Mais
uma vez, me desculpe! — Com lágrimas nos olhos, observo meu filho virar
as costas e ir embora de cabeça erguida.
— Você está chorando, papai? — Me fita preocupado.
— Estou, mas é de orgulho, filho, eu te amo.
— Eu também te amo, papai. Podemos ir para casa agora?
— Claro, campeão, bora! — Faço cosquinha nele.
Eu realmente estou muito orgulhoso de Gabriel, é assim que eu vou
ensiná-lo a enfrentar as dificuldades do mundo, com dignidade e respeito.
Desde que soube que teríamos um menino, em nenhum momento tive medo
que nosso filho fosse igual ao Marcos. Como disse Nelson Mandela.

“Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua
origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender,
e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar.”
Com a nossa missão cumprida, pego meu filho, coloco nos ombros e
fazemos o caminho de volta conversando animados. As duas mulheres da
nossa vida nos esperam para almoçar, cheias de amor para dar. Hoje, posso
dizer sem sombra de dúvidas que sou o homem e o pai mais feliz do mundo.
— Olha, papai, uma borboletinha. — Meu filho aponta o dedinho para
a borboleta em um único tom de vermelho vibrante voando ao nosso redor
enquanto caminhamos, seguindo nossos passos.
Paramos para observá-la melhor, ela vem voando timidamente e com
suavidade pousa no meu ombro. Sorrio com a imagem da minha esposa vindo
na cabeça, quando conheci Anne ela era como uma lagarta assustada presa
em um casulo escuro e sombrio. Aos poucos foi descobrindo sua força,
passou por grandes tempestades e quando achou que o seu mundo tinha
acabado, mesmo destruída, continuou lutando sozinha. Venceu e se
transformou em uma linda borboleta voando com suas próprias asas.

Fim
ATENÇÃO!

Este livro é baseado em um história real. Se você sofre ou


conhece alguma mulher vítima de violência doméstica, disque 180
e denuncie!
Mari Sillva.
Mais informações sobre os próximos lançamentos, e
todos os outros livros da autora em:

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Agradecimentos

Muito obrigada a todo o pessoal da equipe da Constelação Editorial,


que acreditou no meu trabalho e está cuidando com muito carinho dos
preparativos para lançar este livro em formato físico em breve. Me sinto
acolhida pelo jeito atencioso e paciente com que você sempre me trata,
Viviane, quero te conhecer pessoalmente em breve e agradecer com um
abraço bem forte. Beijos de Luz!
Quero agradecer em especial à minha querida irmã, Marcia, que sempre
me apoiou em todos os meus sonhos, por mais loucos que fossem. Obrigada
por me inspirar com a sua força e garra, me orgulho de tê-la em minha vida.
Te amo!
Muito obrigada a todas as minhas lindonas que tanto amo do grupo no
WhatsApp “Amoras da Mari” e do grupo do Facebook Romances — Mari
Sillva, que fazem os meus dias mais felizes.
Aos meus amados leitores do Wattpad, onde tudo começou, e estão
firmes e fortes comigo até hoje. Obrigada, amo vocês!
À equipe responsável pela produção deste livro para que ele chegasse
lindão até vocês: o talentoso capista ***, o revisor Fabiano Jucá, d´O Ponto e
A Vírgula, e a diagramadora Denilia Carneiro.
E, ACIMA DE TUDO E DE TODOS, A DEUS, QUE FOI A MINHA
BASE PARA CHEGAR ATÉ AQUI!

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