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Mari Sillva
Copyright © 2019 – Mari Sillva
Anne
Anne
Giro para um lado, depois para o outro. Viro de barriga para baixo e até
tento a sorte deitando-me aos pés da cama. Mas o sono não vem. Rolo os
olhos dentro da cavidade ocular e confiro a hora no despertador sobre o
criado-mudo ao lado, e os ponteiros marcam meia-noite em ponto; se eu não
fosse acostumada a ficar sozinha em casa devido ao trabalho do meu marido,
como hoje, até ficaria cismada com a minha insônia. Bufo. Fico de barriga
para cima com as mãos juntas sobre o abdômen, fitando o teto, e logo a
ansiedade aperta. Levanto tropeçando nos próprios pés, vou até a cômoda e
abro a primeira gaveta, onde mantenho uma pequena farmácia particular. A
maioria de medicamentos antidepressivos e para dor. São os que mais uso.
Separo os comprimidos de uso diário e engulo todos de uma vez só,
pego o copo d’água que deixo sempre a postos para momentos como este e
sorvo um longo gole. Sou motivo de torcida de rosto quando passo por pelo
menos a metade das mulheres da cidade devido à fama que criaram da vida
perfeita de luxo e ostentação que pensam que tenho. Mas se soubessem o
desastre que é a verdadeira Anne quando ninguém está olhando, mudariam de
ideia rapidinho.
Volto a deitar e dessa vez consigo dormir, o que foi pior do que ficar
acordada, pois tive pesadelos horríveis. Acordo no susto toda suada, não
tenho condições mais de continuar na cama. Levanto ainda no escuro e
decido me arrumar para limpar a bagunça na cozinha. Ontem tive um
pequeno “acidente” doméstico enquanto preparava o jantar, fiquei tão
dolorida com a queda que preferi deixar para dar um jeito na bagunça hoje de
manhã.
Faço minha higiene pessoal de roupão mesmo, e desço as escadas
mancando para iniciar a faxina. A cozinha é o maior cômodo da nossa casa, o
meu preferido também, sempre gostei de cozinhar. Eu mesma pintei nas cores
rosa e azul-púrpura uma semana antes do meu casamento, os móveis em
branco e preto dão um contraste moderno. Moramos em uma casa grande e
cara, dá para criar uma família grande confortavelmente aqui, mas meu
marido já deixou bem claro que não quer filhos e eu assino embaixo. Nas
condições mentais em que me encontro, não tenho capacidade de trazer uma
criança inocente para esse mundo cruel cheio de pessoas falsas e violentas.
— Isso vai levar mais tempo do que pensei, espero dar conta antes que
meu marido acorde. — Balanço a cabeça com as mãos na cintura diante da
minha geladeira coberta de molho de tomate, não dá para saber se sua real cor
é vermelha ou branca.
Os estilhaços da porcelana, presente de casamento da mãe do Marcos,
estão espalhados pelo piso. Tem macarrão com queijo por toda a parte, até na
imagem de Nossa Senhora aparecia, sobre o armário. Começo varrendo o
chão, gemi de dor nas costas ao me abaixar para catar o que restou de um
prato, agora o jogo de seis peças caríssimo que eu tanto amo está incompleto.
— Droga! — Cortei a ponta do dedo com um estilhaço e o levo na boca
para conter o sangramento.
Ao me levantar com extrema dificuldade, algo me chama a atenção.
Através da janela de vidro que fica sobre o balcão da pia, vejo uma
caminhonete vermelha bem antiga cheia de caixas de papelão estacionar rente
à casa da frente; faz pouco tempo que o nosso vizinho colocou a propriedade
à venda.
De dentro do veículo sai um homem que consegue ser ainda maior que
o Marcos e mais forte também, tem algo de diferente nele e não é boa coisa.
Caminha de punhos trincados até a parte traseira da caminhonete e pega uma
caixa pesada que faz a lataria ranger, mas sem fazer esforço algum, segura
como se fosse uma pluma. Não dá para ver o seu rosto direito devido aos
últimos vestígios da escuridão da madrugada ainda se fazerem presentes. No
entanto, é notória sua postura viril, os passos largos e confiantes.
Reparo com mais atenção e percebo que o cara também tem estilo.
Gosto de como a jaqueta de couro preta sobre a camisa branca preenche seu
corpo esguio; a calça jeans justa enfiada dentro das botas de camurça e o
cabelo bem curto completam o ar de Bad Boy. Meu coração dá um
sobressalto quando o homem misterioso caminha até em frente à porta, para e
vira a cabeça em direção à janela de onde eu o espiono, como se sentisse a
minha presença.
Puta merda! Quem é esse cara?
Será que ele comprou a casa dos meus vizinhos?
— Jesus! Acho que ele me pegou no flagra. — Ligeira, escondo-me
quase me enfiando no espaço minúsculo debaixo da pia, meu coração ainda
batendo rebelde dentro do peito.
É como se uma onda de calor tomasse conta de cada pedacinho do meu
corpo, algo quase profano. Rezo pelo menos uns dez “Pai Nossos” e o dobro
de “Ave-Marias” na tentativa de recobrar a compostura. Apesar de tudo
nunca perco a minha fé, sou uma mulher de Deus e acredito nele fielmente.
Vou todos os domingos na missa da parte da manhã.
Puxo o máximo de ar que posso e conto…
1… 2… 3
Mais calma após passados alguns minutos, olho pela janela e tanto o
cara como a caminhonete não estão mais lá.
Capítulo 2
Castiel
Castiel
Castiel
“Como disse hoje de manhã que estava com a despensa vazia, cozinhei
meu jantar pensando nisso e montei esse prato simples para você. Espero
que goste, vizinho.”
"Obrigado pelo jantar, professora, foi a melhor refeição que fiz nos
últimos dez anos da minha vida."
Anne
Fiz o resto do trajeto ao lado de Castiel, consumida pela culpa, ele não
disse mais uma palavra depois que toquei no assunto de sua prisão. Fiquei
surpresa quando revelou ser ex-presidiário, o que será que fez para
permanecer tanto tempo preso? Passou os melhores anos da sua vida lá.
Diante da sua pose dura, é o tipo de homem que não admite que ninguém
sinta pena dele, mas não consigo evitar.
— Obrigada pela companhia, Castiel. Boa noite! — Antes de entrar em
casa, olho uma última vez para aquele homem misterioso parado sob a luz
fraca da rua, tragando seu cigarro.
Luta para manter a pose de Bad Boy, mas se pararmos e olharmos com
mais atenção podemos ver que ali habita um garoto assustado que só quer a
oportunidade de recomeçar sem ser julgado pelos erros do passado.
— Boa noite, professora! — diz com o tom pesado.
Se vira e vai embora com os músculos tensionados como se carregasse
o peso do mundo nos ombros, e mesmo assim suporta sem reclamar. Entro
em casa já tirando os sapatos e jogo em qualquer lugar. Deixo meus materiais
sobre a cômoda e deito-me no sofá, sem nada para me estressar. Adormeço
num estalar de dedos.
Não tenho dormido direito nos últimos dias. Com o Marcos fora por
trinta dias inteiros poderei cuidar de mim com mais atenção. Essas missões
dele geralmente são no meio da floresta, sem sinal de celular ou internet,
completamente incomunicável. Acordo somente no outro dia com a minha
campainha tocando sem parar. Levanto-me espreguiçando para atender, sei
muito bem de quem se trata. Abro a porta para receber o furacão de cabelos
loiros.
— Chegou a dona da porra toda! — anuncia Valesca, minha melhor
amiga desde o colegial.
Pula no meu pescoço com toda sua extravagância. Ela sempre foi uma
mulher linda, decidida e confiante até demais. Tem um corpão de parar o
trânsito, e um estilo digamos que um tanto “chamativo”. Tirando isso e o
vocabulário sujo, é um amor de pessoa, sempre cuidamos uma da outra.
— Que mulher escandalosa, meu Deus! Faço uma ideia do que não
deve ser na hora que está transando, deve chamar até pelo nome do Papa. —
Esse é o Carlos, mais afeminado do que eu e a Val juntas. — Tem alguma
coisa para comer, Anne? Estou morto de fome. — Beija o meu rosto e passa
por mim, entrando na minha casa para assaltar a geladeira.
A melhor parte de ser amiga desses dois é que, quando vêm me visitar,
sei que terei motivos para rir pelo resto da semana.
— Nossa, essa bicha só pensa em comer. — Solto uma gargalhada
quando ouço Carlos resmungar de boca cheia da cozinha.
Antes de entrar, Valesca tira uma bola de chiclete da boca, cola no
aparador da porta e sai rebolando.
Não nos desgrudávamos na época da escola, mas depois que me casei
com Marcos não nos vemos com tanta frequência, só quando ele está fora, a
trabalho. Ele não entende o jeito liberal da minha amiga, e não aceita a
orientação sexual de Carlos. Para evitar problemas, mantenho nossa amizade
na encolha. Assim todo mundo fica feliz, ou pelo menos finge que está.
— O que houve com o seu olho? Parece um pouco roxo — indaga.
Levo e mão ao rosto à procura dos meus óculos escuros, devem ter caído
quando dormi no sofá.
Droga!
— Não foi nada de mais, Val, escorreguei no banheiro alguns dias atrás
e bati o rosto na pinha. Agora me conta, amiga, o que fez no seu cabelo? Está
lindo. — Encho minhas mãos com os fios loiros platinados, realmente está
lindo.
— Cê gostou mesmo, Anne? Fiz luzes ontem — conta toda animada,
ela adora falar sobre seus procedimentos estéticos.
— Eu amei, Valesca, essa cor combina com o tom da sua pele —
reforço o elogio e o seu sorriso se amplia.
— Obrigada, miga.
— Como souberam que Marcos saiu a trabalho? — Abraço minha
amiga querida, esse mundo não seria o mesmo sem essa mulher.
— Eu tenho os meus contatos, amiga, já que o traste do seu marido te
proíbe de ter um celular. — Revira os olhos puxando a barra do vestido
vermelho curto colado no corpo. Fico cansada só de olhar para o tamanho do
salto fino altíssimo da sua sandália.
— Quando o príncipe das trevas volta dessa vez? Tomara que nunca,
ou dentro de um caixão. — Carlos chega na sala com uma colher gigante
comendo o brigadeiro que fiz ontem direto da travessa, a boca toda suja em
volta igual a uma criança.
Ele e Val não escondem o desafeto pelo meu marido. No dia do meu
casamento ajoelharam aos meus pés implorando para que eu desistisse de
fazer uma loucura. Mas tem coisas que nem sempre dependem da vontade da
gente.
— Marcos vai ficar fora um mês inteirinho, é a primeira missão tão
longa dele. Geralmente, duram no máximo quinze dias. — Suspiro
longamente e desabo no tapete da sala, cheia de preguiça.
— Tempo de sobra para putiar muito, Anne, que delícia! Dessa vez não
vai ficar trancada nesse mausoléu. — Olho torto para Valesca, pois sou
mulher casada e muito direita.
Ela revira os olhos, deita-se no chão comigo e apoia a cabeça sobre
minhas pernas.
— Eu concordo com a Val, amiga, faz muito tempo que não sai
conosco. Sentimos sua falta. Além do mais, está precisando loucamente de
um banho de loja e uma hidratação nesse cabelo, porque sangue de Jesus tem
poder. — Carlos aponta a colher cheia de brigadeiro para a minha cabeça.
Nem tinha engolido ainda a última colherada que enfiou na boca.
Penso em recusar, mas por um segundo tento me lembrar da última vez
que me diverti de verdade, e mesmo após muito vasculhar a minha mente,
não me veio nada.
— Quer saber? Que se dane! Eu quero ter um dia de rainha, vou torrar
todas as minhas economias hoje. — Fico de pé enchendo o peito de ar e
perdendo a razão de vez, preciso me sentir viva de verdade.
Pela primeira vez na minha vida, sinto vontade de fazer uma loucura e
chutar o balde. Minha vida se resume em cuidar da casa e do meu marido,
está na hora de pensar um pouco em mim. Tomar minhas próprias decisões. E
se tem uma coisa que os meus amigos sabem é se divertir, quebrar um pouco
as regras vai ser excitante.
— Alguém me belisca porque acho que estou sonhando. Bora, Carlos,
antes que ela mude de ideia! — Valesca me agarra pelo braço e sai puxando,
mal tenho tempo de pegar minha bolsa. Carlos vai na frente, levando a
travessa de brigadeiro com ele.
Para evitar problemas futuros quando meu marido voltar, iremos às
compras na cidade vizinha onde a Val mora e ninguém me conhece.
Entramos no Fusca cor-de-rosa cintilante da Valesca, que chama atenção a
quilômetros de distância, e pegamos a estrada. Ele tem uma capota imitando
um conversível.
— Vamos almoçar em algum lugar com um garçom bem gostoso nos
servindo. Melhor se fosse pelado, mas nem tudo é perfeito.
— Mas que safado você, Carlos! — Ele chacoalha os ombros, fazendo
biquinho.
Sentada no banco de trás do Fusca, enquanto o veículo se distancia,
olho para a casa do meu vizinho novo com um estranho aperto no coração.
Tomara que esteja bem.
Castiel
Anne
Anne
Anne
Com tudo pronto, vou mais cedo no dia do evento para terminar os
últimos detalhes da decoração. Enfeitamos tudo com bandeiras coloridas
penduradas por toda parte, e muitas bexigas e flores. Montamos barraquinhas
umas ao lado das outras, deixando um corredor livre no meio para assistir ao
show no palanque montado logo à frente; assim, todos que estiverem
trabalhando nelas ou comprando, poderão assistir.
— Sua barraquinha está linda, tia Anne — elogia Joãozinho.
De fato, está linda mesmo, parece até a casinha de doces do filme João
e Maria, não terá uma criança que passe por ela e não queira comprar nada.
Usei cola quente e um material colorido de borracha para fazer o telhado com
todo tipo de réplica de doces e balas que fiz à mão. Nas paredes usei tábuas
finas do mesmo tamanho. Levou tempo, mas valeu a pena.
— Ficou linda mesmo, Joãozinho. E você, rapazinho, está muito
elegante hoje. — Bato a ponta do dedo na aba do seu chapéu preto de
cowboy, mal consigo ver seus olhos.
Ele veio para a festa todo no estilo típico do interior, com camisa
xadrez, calça justa e botas de couro.
— Obrigado, tia, eu te amo. — Abraça minha cintura.
— Você também está linda, filha! Gosto de te ver assim, com um
sorriso no rosto — elogia padre Valentim, eu nem percebi que ele estava
próximo de nós.
Eu havia mesmo caprichado um pouco, afinal, esse é um dia mais que
especial. Coloquei uma blusa branca básica por baixo de um macacão jeans
comprido. Como vou ficar muito tempo de pé trabalhando na barraca, calcei
tênis confortáveis.
Não fiz nada de grandioso no cabelo, apenas dividi em duas tranças
laterais, fiz uma maquiagem discreta sem muito exagero nas cores, mas bem-
feita.
— Obrigada, o senhor também não está nada mal. — Aliso seu ombro
sentindo a maciez do tecido da sua batina nova. Também caprichou no look
para o evento.
Acho que para todos na cidade, participar desse evento será algo
especial. Todos conhecem Joãozinho e a sua família, sabem que merecem
cada esforço que estamos fazendo por eles.
— Olha, padre, a tia Anne disse que eu estou elegante. O senhor gostou
do meu chapéu? — Joãozinho puxa a mão do padre Valentim. Como está
muito ansioso, fez os gestos rápido demais, acho que o padre não entendeu o
que o pequeno disse.
Traduzi escondido no ouvido do padre, mas antes dele responder à
pergunta de Joãozinho outra pessoa o faz.
— Você é o garoto mais boa pinta da festa, amigão. Com certeza! —
Aparece Castiel. Discreta, o observo de canto de olho.
Ele está com seu sorriso lindo de sempre. De calça escura, camisa
xadrez em vermelho e preto e gorro cinza na cabeça, fez a barba também.
Definitivamente, Castiel tem estilo e charme de sobra. Tem se mostrado com
um coração enorme, Joãozinho logo se pendura no pescoço do seu benfeitor.
A mãe dele, vendo tudo de longe, vem para se juntar a nós.
— Obrigada mais uma vez por tudo o que tem feito pelo meu filho, não
sei nem como agradecer. Serei grata pelo resto da vida. —Vera, minha amiga
querida, mulher simples que ficou viúva cedo demais, limpa a mão suja de
farinha no avental para estender a mão, que Castiel aperta firme.
Ela montou a barraca de salgados ao lado da minha. O filho mais velho,
de dezessete anos, e a caçula de dez, estão ajudando-a.
— Não precisa agradecer, senhora, Joãozinho foi o único, além do
padre, que não teve medo de mim e me tratou com respeito quando voltei
para essa cidade. — Engulo em seco, não sei se Castiel disse isso só para me
alfinetar. Mas senti como se tivesse dado um tapa no meu rosto.
Viro de costas e finjo arrumar a bancada da frente da minha barraca,
ajeitando os potes de doce de leite que já estavam perfeitamente arrumados.
Preciso de alguns segundos para me recuperar do golpe, mais um desse e não
sei se vou sobreviver. Resolvo ficar na minha.
Não demora muito para o parque de exposições lotar, eu não parei de
vender um minuto, tem até uma fila de clientes esperando atendimento. Essa
agitação toda me deixa em êxtase, porém, vendo o meu ótimo desempenho
como vendedora, padre Valentim veio me buscar para ajudar com um
problema em outra barraca.
— Será que o Gustavo poderia ficar na barraca da Anne, Vera? —
pede ele, sem me perguntar se eu queria ir onde quer que fosse que quisesse
me levar.
Fico olhando para a cara dele e de Vera, confusa.
— Claro, padre, meu primogênito é muito responsável — disse Vera.
O padre agarra minha mão e me leva até Caroline; ela obviamente, com
todos os seus belos atributos físicos, ficou responsável pela barraca do beijo.
Parece com uma casinha de boneca, toda enfeitada com balões vermelhos em
formato de coração. Toda forrada com papel de parede florido, e na frente
uma plaquinha em formato de lábios escrita “beijo solidário”, com luzes
piscando.
— Muito obrigada por vir me socorrer, Anne. Minha amiga
responsável pela outra barraca do beijo teve um problema de família e
precisou ir embora. — Olho para o padre, incrédula, por que pensou logo em
mim para ajudar com isso? Não sei qual dos dois é mais louco.
Duvido muito que alguém vá pagar para beijar alguém como eu, acho
que nem de graça.
— Eu não posso ficar na barraquinha, Carol, meu marido não vai gostar
de saber disso quando voltar do trabalho — digo a verdade, tentando ser a
mais educada possível.
— Do jeito que você fala, até aparece que vão pagar para transar com
você, e não um simples beijo no rosto. — Gargalha na minha cara e aponta
para uma plaquinha sobre o balcão com o aviso de que é proibido beijo na
boca e qualquer tipo de desrespeito.
“Beijo apenas no rosto e nas mãos, caso você seja um cavalheiro à
moda antiga”. Droga! Bufo sem mais argumentos para dizer não. Olhei para
o lado, e padre Valentim havia sumido.
— Onde eu fico? — pergunto nada à vontade com a situação, Caroline
não se faz de rogada e me leva até o meu posto.
A fila da barraca dela está enorme, chega a dar volta pelo parque. Na
minha não apareceu ninguém. Lamentei pela Val e pelo Carlos não poderem
vir. Ela tem que ir a um jantar em família, aniversário da mãe que ela nem
conversa faz anos, mas foi por insistência do pai. E Carlos precisou trabalhar
hoje à noite.
Se meus amigos estivessem aqui seriam pelo menos dois bilhetes
vendidos e eu não estaria passando tanta vergonha de ninguém querer ganhar
um beijo meu. Depois de uma hora, peço para sair e voltar para minha
barraca, onde sou bem mais útil.
— Sinto muito por não ter ajudado, Caroline, talvez se tivesse colocado
outra garota bonita como você os lucros teriam sido melhores.
— Como assim, Anne? A venda dos ingressos da sua barra... — Antes
que ela termine a frase, eu mesma completo.
— Foi um fracasso, é, eu sei. Mais uma vez, me desculpa! — Saio
andando rápido, chega de humilhação por hoje.
Ao finalzinho do show sertanejo, não sobrou mais nenhum doce para
vender. Fecho tudo e vou para a frente do palanque de mãos dadas com o
Joãozinho, ele queria dançar comigo para comemorar o sucesso do nosso
evento.
Porém, no meio da música ele me deixou sozinha e vai até onde Castiel
está de braços dados com a Caroline. O toma da filha do prefeito e arrasta
para mim, fazendo sinal para que nós dois começássemos a dançar juntos.
Castiel, é óbvio, balançou a cabeça que não para Joãozinho, eu fiz o
mesmo. Se ele não quer dançar comigo, também não quero dançar com ele.
— Por favor, Castiel, por mim! — Junta as mãozinhas, como se
estivesse orando.
Não faço ideia do porquê é tão importante para o João que dancemos
juntos.
— Ele não quer, Joãozinho, dance você comigo. — Estendo a mão na
sua direção para continuar de onde paramos, mas é Castiel que a segura,
colando o seu corpo no meu.
A dupla sertaneja começou a cantar Xote da Alegria, do Falamansa.
Meu coração bate tão rápido como as asas de um beija-flor. Segurando na
minha cintura, Castiel me conduz ao ritmo da música.
Então por que será que este valor é o que eu ainda quero ter...
Tenho tudo nas mãos, mas não tenho nada.
Então melhor ter nada e lutar pelo que eu quiser...”
Castiel
Anne
Sei que esse convite que fiz para o meu novo vizinho que mal conheço
é uma loucura, mas foi a única forma que consegui encontrar para compensá-
lo pela maneira grosseira como o tratei. Nada que eu experimento parece
apresentável. Minha última esperança é um vestido branco simples pouco
acima da altura do joelho, mas bem bonito, que nunca usei antes, presente de
aniversário de umas das irmãs de Marcos. Ele nunca me deixou usá-lo porque
acha curto demais para o “tipo” de corpo como o meu, entre outras coisas que
um marido nunca deve dizer para uma esposa.
— Você é mais forte do que isso, Anne, mostre para o Marcos que ele
não pode mais te ferir de nenhuma forma. Seu corpo, suas regras — digo para
o meu próprio reflexo, segura de mim.
Experimento o vestido e gosto muito do que vejo no espelho, viro de
um lado para o outro sorrindo, sentindo-me bonita de verdade, a peça se
ajustou bem ao meu corpo e o decote realçou meu busto. Sensual, mas nem
perto de ser vulgar.
Com uma animação que não me pertence, sento-me na frente da minha
penteadeira tomada pelo raríssimo desejo de ousar um pouco nas cores,
fazendo um misto de sombra escura com dourado sobre os olhos. Alongo os
cílios e finalizo com um batom vermelho mate. Deixo os cabelos soltos, os
cachos mais volumosos do que nunca.
Não consigo parar de sorrir olhando para o resultado da minha
produção no espelho. Pareço outra pessoa, não pela maquiagem ou o vestido
novo, mas sim pelo olhar cheio de confiança e amor próprio, até minha
postura corporal mudou, como se estivesse diante da minha verdadeira
identidade. E eu amei conhecê-la e não deixaria ninguém a roubar de mim
nunca mais.
Estou calçando as sandálias de salto que comprei no dia em que saí
com Valesca e Carlos, quando a campainha toca. Termino às pressas e desço
as escadas correndo para atender com o coração disparado. Paro diante da
porta por alguns segundos e me recomponho controlando a respiração. Passo
a mão pelo cabelo mais de uma vez e aliso a saia do meu vestido para então
girar a maçaneta.
— Minha nossa! — foi a única coisa que Castiel conseguiu dizer após
me analisar dos pés à cabeça em uma fração de segundo, minha autoestima
falta pouco para gritar.
— Olá, Castiel, que bom que você aceitou meu convite para jantar. Seja
bem-vindo à minha casa! — Abro espaço para que ele entre.
Hoje trocou suas roupas despojadas por algo mais formal, calça social
escura e camisa branca de manga longa e botões. Mas os sapatos são
esportivos, acho que só tem eles, além da bota de couro que sempre usa.
— Você... está linda demais, professora! — elogia.
— Obrigada! Você também fica muito bem de social, muito mesmo —
elogio de volta, admirando sua beleza rústica.
Para mim ele é como um anjo perdido em meio às desventuras do
destino, está longe de ser um demônio como dizem por aí.
— Trouxe para o nosso jantar, espero que goste de vinho tinto. —
Entrega-me a garrafa, estou tão nervosa que nem percebi que ele a segurava
desde que chegou.
— Muito obrigada, Castiel, foi muita gentileza da sua parte. Me
acompanhe até a sala de jantar, por favor. Não quero que o nosso jantar
esfrie. — Aponto a direção, ele passa por mim deixando atrás de si um rastro
irresistível de perfume.
Deixo o vinho sobre a mesa e pego duas taças no armário. Como um
verdadeiro cavalheiro, Castiel arrasta a cadeira para eu me sentar. Coisa que
em cinco anos de casamento, meu marido nunca fez.
— Não acredito que fez arroz de forno, é o prato favorito da Bia. Fazia
para ela toda semana — comenta no impulso enquanto serve o seu prato,
depois se mantém calado.
Quem será essa Bia? Pelo jeito amoroso que falou dela, provavelmente
alguma ex-namorada, que ele ainda ama com todas as suas forças.
— Você e essa Bia, eram namorados? — faço a maldita pergunta
cortando ferozmente um pedaço do lombo assado quase quebrando o prato
junto, preciso saber mais sobre essa mulher.
Mas me arrependo logo em seguida de ter perguntado. Primeiro porque
agi movida pela raiva, elevando a voz a ponto de ser rude, e segundo pela
forma que a expressão de Castiel mudou de alegre para dolorosa em
segundos.
— Bia foi e sempre será o grande amor da minha vida, mas não da
maneira que você está pensando. Ela é minha irmã caçula. — Seu tom é
hostil. Com o maxilar rígido, serve uma taça de vinho para mim e outra para
ele.
Então ele tem uma irmã? Droga! Além de intrometida, sou uma
completa idiota. Mais uma vez julgando os fatos de maneira precipitada.
— Você tem uma irmã caçula, que legal — comento sem graça debaixo
do seu olhar semicerrado, encho a boca de comida antes de falar mais merda.
— Sim, professora. Do segundo casamento da minha mãe. — Não
entra em detalhes, mas eu, teimosa, não dou o assunto como encerrado.
Tudo que envolve esse homem me intriga na mesma proporção que
atrai.
— Onde ela está agora?
— É o que estou tentando descobrir desde que soube que a nossa mãe a
entregou para a adoção assim que fui preso. Tinha apenas quatro aninhos,
tirando de mim para sempre o que mais amo no mundo. — Meu coração
quebra mais um pouco diante da sua dor, meus olhos se encheram de
lágrimas.
— Eu realmente sinto muito, Castiel. — Deslizo minha mão sobre a
mesa e coloco sobre a dele, nossos olhos se cruzam.
Castiel pega a carteira no bolso de trás da calça e tira de dentro dela
uma foto da irmã e me entrega. Dá para ver que foi tirada há muito tempo
devido à cor amarelada e à qualidade da imagem.
— Essa foi a única lembrança que me restou dela, é o meu bem mais
precioso.
— Ela é tão linda, Castiel, parece com você. — Aliso o rosto dela na
foto com tanto carinho como se estivesse na minha frente, parece um anjinho
de tão fofa.
— Sim, minha irmã se parece muito comigo — confirma todo
orgulhoso, não se importando de demonstrar sua emoção.
— Dá para ver que eram muitos unidos, seus olhos chegam a brilhar
quando fala dela.
— Se sobrevivi até hoje foi pela Bia, só vou ficar nessa maldita cidade
na esperança de encontrar alguma pista do seu paradeiro. — Bate a mão na
mesa fechada em punho, fazendo tudo sobre ela estremecer. Em vez de medo,
sinto muita pena em saber que o mundo foi mais cruel com ele do que pensei.
Não dá para saber a dimensão de como deve ser difícil para um irmão
apaixonado viver longe daquele pinguinho de gente, de sorriso doce. Olho
para a foto em minhas mãos novamente, Bia está sentada no primeiro degrau
da escada vestindo o seu pijaminha do Bob Esponja. Ela tinha o cabelo na
altura do ombro com franja reta e sorria, tapando a metade do rosto com as
mãozinhas.
Entremeio aos seus dedos é possível ver os lindos olhos castanho-claros
idênticos aos dele, grandes e expressivos. O ser mais adorável do mundo.
— Deixa-me adivinhar, depois de você esse era o melhor amigo de Bia.
— Apontei para um coelho de pelúcia azul idêntico ao desenho da Turma da
Mônica no cantinho da foto, tão fofo quanto ela.
— Era sim, ela o chamava de “Senhor Coelho”. — Em vez de falar o
nome do ursinho, Castiel falou em Libras.
— Sua irmã era muda assim como o Joãozinho, é por isso que você fala
Libras tão bem?
— Sim, Anne, nossa mãe nunca teve carinho pela filha por conta disso.
Quando descobrimos que ela era muda, disse que não era obrigada a gostar
de uma criança “defeituosa”.
— Como uma mãe pôde dizer isso da própria filha? Que horror!
— A tarefa de cuidar da minha irmã sempre foi minha. E eu o fazia
com o maior prazer, aprendi a falar Libras sozinho e a ensinei em casa. —
Sinto meu estômago embrulhar, bebo todo o vinho da minha taça para não
colocar para fora tudo o que havia comido, enojada com a vaca da mãe dele.
— Eu não entendo como uma mãe é incapaz de amar os próprios filhos.
Não pretendo ser mãe um dia, mas se acontecesse o defenderia com unha e
dentes. — Castiel analisa o que eu disse, porém, não faz nenhum comentário,
seja lá o que esteja pensando nesse momento.
— Fiz o meu melhor como irmão mais velho, professora, eu a protegi
até o último segundo em que estive liberto. — Muda o tom, logo percebo que
está contando as partes da sua história que eu posso saber.
Se ama tanto a irmã, por que cometeu um crime sabendo que seria
preso, deixando-a nas mãos da desnaturada da mãe dele? Isso não faz sentido
para mim, mas não é da minha conta, chega de incomodá-lo com esse assunto
que lhe traz tanta dor.
— Eu tenho certeza que sim, Castiel. Não precisa nem dizer. — O
conforto com um sorriso.
Dessa vez é ele que desliza a mão sobre a mesa e segura a minha.
— Eu já te disse como o seu sorriso é lindo, professora? — A ponta do
seu polegar alisa a palma da minha mão em círculos, em movimentos lentos e
sensuais.
Perco o foco! Como um simples toque desses pode me excitar tanto?
Meu corpo está em chamas. Quero pular em cima desse homem, essa é a
verdade. Sempre fui mulher direita e nunca nem olhei para outro homem que
não fosse o meu marido, mas essa tentação que o diabo mandou para morar
do outro lado da rua é demais para mim. E a idiota aqui ainda convida o
pecado para dentro da sua casa.
Que ótimo, Anne!
— Acho melhor terminarmos o nosso jantar ou vai esfriar de verdade,
ainda tem a sobremesa. — Assustada com os meus próprios sentimentos,
puxo a mão.
— Como quiser, professora. — Leva a taça de vinho na boca sem tirar
os olhos de mim, seus lábios ficam levemente tingidos pelo líquido vermelho.
Engulo em seco.
Tento me manter firme durante o resto do jantar, conversando sobre
todos os assuntos possíveis. Assim como eu, ele está feliz com o fato da festa
em prol da cirurgia do Joãozinho ter sido melhor do que esperávamos.
Conseguimos dinheiro para bancar a viagem até o hospital particular em São
Paulo onde será realizado o procedimento, além da hospedagem de toda a
família que irá acompanhá-lo durante o período em que ficará internado.
Castiel me mostrou um lado engraçado seu que não conhecia, contou
várias piadas que me fizeram gargalhar. Não media esforços para ser gentil, o
tempo todo dizia como gostava da minha comida e que dava para perceber o
enorme carinho com que fiz o nosso jantar.
— Acho que não gostou do vinho, só bebeu uma taça e meia. — Ergo a
sobrancelha, intrigada por ele ter ficado de olho no quanto bebi.
Achei o vinho magnífico, mas não quero chutar o balde como na noite
da boate e bancar a idiota novamente e estragar tudo. Quero fazer tudo
direitinho dessa vez, e de preferência lembrar de cada detalhe no dia seguinte.
— Acho que você já deve ter percebido que bebida e eu não fazemos
uma boa dupla, Castiel. — Sua risada alta diverte o ambiente.
— Você só estava assustada e confusa. Pode acreditar que se eu
acordasse nos braços de um homem no meio do mato a minha reação seria
bem pior que a sua, pode ter certeza. — A careta que ele fez é hilária.
Adoro seu jeito de Bad Boy, mas esse seu lado carismático me encanta.
— Eu adoro a maneira como me olha. Assim como tudo que há em
você, Anne. — Seguro a respiração, minha única reação é voltar atrás e beber
outra taça de vinho para acalmar os meus ânimos depois dessa direta bem
reta.
— Pensei que estivesse evitando beber, professora. — Passa a mão
pelos fios curtos do seu cabelo em um movimento, sabe o efeito que tem
sobre mim.
Eu não sou professora de verdade, mas amo quando ele me chama
assim.
— Só uma não vai fazer mal, não é mesmo? Estou um pouco tensa,
preciso relaxar. — Abro um sorriso falso, minhas pernas estão trêmulas
debaixo da mesa.
— Entendo, estou na mesma situação que você, mas no meu caso nem
todo álcool do mundo resolveria. — Toca o meu rosto, e eu paro de respirar
na mesma hora.
Preciso sair de perto dele, ou não sei o que vai acontecer daqui para
frente.
— Vou pegar a sobremesa, já volto, Castiel. — Levanto ligeira e vou
me esconder na cozinha, preciso recompor minha postura.
Por Deus, Anne. Se contenha!
Encosto-me no balcão da pia, junto meu cabelo em um rabo de cavalo
com uma mão e abano o rosto com a outra, minha pele está em brasas. Quero
gritar, mas ao mesmo tempo não consigo falar nada, parece que o ar da
cozinha evaporou. Escancaro todas as janelas, porém, não adianta. Abro a
geladeira e bebo água gelada direto da garrafa mesmo. Em vez da
temperatura do meu corpo baixar, sobe ainda mais. Acho que esse é o meu
primeiro contato com o tesão.
Pensando bem, sempre me sinto assim quando fico perto de Castiel. Ele
é quente. Literalmente, quente em todos os sentidos da palavra. Sorvendo o
máximo de ar que posso, me policio da forma mais convincente possível e
volto para a sala de jantar com a sobremesa em mãos. Sirvo um pedaço da
torta de maçã com sorvete para ele em um pires de porcelana branco, de
cabeça baixa. Ao entregá-lo ele faz questão de me tocar.
— Se uma mulher é mesmo capaz de conquistar o homem pelo
estômago, posso afirmar que estou completamente apaixonado por você. —
Geme assim que prova e quase me engasgo, tinha acabado de levar um
pedaço de torta à boca.
— Você está bem, Anne?
— Sim! Eu só me engasguei, não se preocupe. — Bebo um pouco de
água.
— Só um minuto, sua boca está suja de sorvete. — Inclina o corpo para
frente e usa o dedo para limpar contornando meus lábios, e depois o chupa
bem na minha frente olhando nos meus olhos.
Fico de boca aberta! Não sei se essa cena é real ou fruto da minha
mente devassa.
— Se quiser pode sentar-se na sala e beber mais um pouco de vinho,
Castiel. Vou lavar a louça e já irei lhe fazer companhia. — Fico de pé mais
uma vez e começo a recolher os pratos sobre a mesa, arrumando outro motivo
para fugir desse fogaréu me consumindo de dentro para fora.
Castiel levanta e começa a me ajudar. Eu paro e o encaro.
— O que está fazendo? — Seguro sua mão, impedindo-o de pegar um
prato.
— Ajudando você! Não é justo que, além de cozinhar para mim, ainda
arrume todo sozinha. Quem vai sentar-se na sala e beber mais uma taça de
vinho é você, professora, enquanto eu lavo a louça. — Me derreto toda com
uma cara patética, quase babando em cima dele.
— Por que não as lavamos juntos? — O teimoso concorda.
Eu nunca pensei que lavar louça poderia ser tão divertido, não sei de
onde o Castiel tira tantas histórias malucas para contar sobre sua estadia na
prisão. Ele as conta apenas para me fazer sorrir e isso só me deixa ainda mais
fascinada por ele. A forma como me olha faz me sentir a mulher mais
incrível do mundo.
Faltando o último prato para lavar, o cano da torneira solta jogando um
jato de água em mim. Castiel corre para arrumá-lo e acaba se molhando todo
também. Rimos feito dois retardados, até que ele fica sério de repente e desce
o olhar para os meus seios. Meu vestido está molhado, ou seja, transparente, e
eu estou sem sutiã, dá para ver perfeitamente os bicos rígidos debaixo do
tecido fino. Ele me olha como um felino feroz pronto para devorar sua pobre
presa indefesa.
Castiel se aproxima um passo e eu me afasto dois até chegar à parede e
não ter mais como fugir dele. Mas isso não foi o suficiente. Sem quebrar o
contato visual, estica o braço e apoia a mão aberta do lado do meu rosto,
cercando-me de vez. Tão perto que posso sentir o calor da sua respiração
sobre a minha pele; chego a perder o fôlego, nunca estivemos tão próximos
assim por tanto tempo. Não comigo sóbria.
— Eu estou muito grata por ter vindo jantar comigo hoje, Castiel, sinto
que seremos bons amigos. — Não faço ideia do porquê disse isso, mas disse.
Acho que estou ficando louca de vez.
— Eu não quero ser seu amigo, Anne. E você sabe muito bem disso. —
Umedece os lábios com a língua, provocante.
Será que pensou que o chamei para jantar ali para transar com ele?
Que sou uma infiel?
Não vou mentir que não me sinto atraída pelo Castiel. Mas sou sensata,
e nada entre nós além de amizade deve acontecer. Se ele não quer ser só meu
amigo, que vá embora e finja que nunca me conheceu.
— Você entendeu tudo errado, Castiel. Acho melhor que vá embora. —
Tento afastá-lo, mas não consigo.
É a mesma coisa que uma formiguinha tentar enfrentar um elefante
decidido a encurralá-la, estou à mercê da sua vontade.
— É isso mesmo que você quer, professora, que eu vá embora? —
sussurra em meu ouvido com a voz rouca, me arrepio de cima a baixo
apertando os lábios.
— O que eu quero não importa. Nunca importou para ninguém. Por que
seria diferente agora? — Viro o rosto para o lado antes que ele descubra mais
do que deve através dos meus olhos.
— Isso era antes de eu chegar. A verdade é que estou atraído por você
desde a primeira vez que te vi cantando naquele maldito altar, não sei se o
sentimento é recíproco. Mas se for, estou disposto a enfrentar as
consequências. — O diabo enfim faz a proposta indecente, e eu estou muito
tentada a aceitar.
Castiel pega a minha mão e a coloca sobre o seu peito em cima do
coração, que bate rápido a ponto de mover a caixa torácica, chega a ser
auditivo. Aproxima o rosto do meu como se fosse me beijar, mas não o faz,
espera com a respiração tensa como se estivesse pedindo permissão para o
ato proibido.
— Eu tenho tanto medo, Castiel. — Estremeço.
— Eu também, Anne. Mas que se dane tudo! Vamos viver o aqui e
agora. — Não tendo impedimento da minha parte, enfim o beijo acontece.
Quando nossos lábios se tocam a sensação é como se eu estivesse no
paraíso e ao mesmo tempo sendo sugada para o purgatório, porque é para lá
que eu vou no julgamento final por trair meu marido. O mais estranho é que
não estou nem um pouco arrependida.
Ouço o barulho da torneira se soltando mais uma vez e a água jorrando
sobre nós, unindo ainda mais nossos corpos através da roupa molhada, mas
isso não importa mais. Nada mais importa. As mãos de Castiel agarram
minha cintura erguendo-me do chão, tendo mais acesso à minha boca e
enfiando a língua com desejo, explorando novas terras nunca conhecidas por
outros homens antes.
Sinto como se toda insegurança acumulada fosse exorcizada do meu
corpo, parece até que sou uma adolescente que tanto esperou para ter o beijo
perfeito com o príncipe encantado. Ou o cara certo às vezes pode ser apenas
como Castiel, com nome de anjo e fama de demônio por toda a cidade.
Capítulo 13
Castiel
Eu havia jogado tudo pro alto assim que Anne abriu a porta para mim
naquela noite de céu coberto por nuvens escuras, por Deus! Ela está tão linda
que o meu coração parou de bater por alguns segundos quando a vi. Seus
lábios são doces como pensei, macios e deliciosos. Eu poderia beijá-la pelo
resto da minha vida.
Mesmo sendo eu quem tomou a iniciativa do beijo, ainda não tenho
certeza de como aconteceu. Em um instante estávamos tentando arrumar a
torneira quebrada, no seguinte já tinha partido para cima da professora, cheio
de desejo. Não sei o que deu em mim para agir assim, ferrando com minha
vida de vez, mas agora é tarde demais para parar.
— Eu estou completamente louco por você, Anne! — confesso.
Seguro firme na sua cintura e a puxo mais para mim, de modo que
possa sentir minha excitação. Quero que saiba como me deixa toda vez que
nos encontramos. Acho que com ela não é diferente, pois se contorce toda nas
minhas mãos excitadas.
— Eu nunca senti por outro homem o que estou sentindo por você,
Castiel — perco a razão diante da sua confissão, e a ergo mais um pouco para
suas pernas entrelaçarem na minha cintura.
Anne cruza os braços atrás do meu pescoço enquanto subimos a escada
em um beijo escandaloso, parece que iremos engolir um ao outro a qualquer
momento, a tensão sexual entre nós é como uma bomba relógio que acabou
de explodir.
— Para onde agora? — pergunto ao chegarmos no corredor do andar de
cima.
— A segunda porta à direita, é o quarto de hóspedes. — Sinto-a
estremecer, nervosa.
Entendo perfeitamente Anne não querer que aconteça no quarto dela e
do marido, não quer lembrar de Marcos quando estiver comigo.
— Ainda dá tempo de desistir, professora. Mesmo querendo muito, não
te obrigaria a fazer nada que não queira.
— Nada me faria desistir de viver esse momento com você, Castiel —
sua resposta é segura.
— Prometo fazer valer a pena, a melhor noite da sua vida. — Encosto
minha testa na sua antes de entrarmos no quarto, ela mesma fez questão de
abrir a porta.
Tudo está bem organizado e limpo, parece que esse quarto de hóspedes
nunca acomodou ninguém, acredito que não são muito de receber visita. São
um casal reservado. Estranho. Principalmente o marido.
Com cuidado, coloco Anne sobre a cama e vou engatinhando sobre seu
corpo até cobri-lo por completo com o meu. Ela sorri com cócegas quando
esfrego meu nariz no seu. Gosto da maneira que olha para mim. Nunca
desejei tanto uma mulher antes, tem tudo o que eu sempre sonhei em uma
mulher.
— Seu coração não para de acelerar, Castiel. — Faz carinho sobre o
lado esquerdo do meu peito, coloco minha mão sobre a dela e inclino para
beijá-la, dessa vez sem pressa.
Segundos depois, estamos nos devorando novamente. Queria ser mais
gentil e romântico, mas é uma década inteira sem sexo. Minha excitação
chega a latejar dentro da calça, preciso me enterrar dentro dela ou vou acabar
morrendo.
Começo a deslizar a alça do vestido da Anne para beijar seu ombro,
porém, do nada ela trava, ficando imóvel. Tento tocá-la, mas se afasta como
se meu toque queimasse sua pele.
— Você não quer mais, Anne? — Recuo, ela se arrependeu de trair o
marido.
Sento-me na cama em uma distância segura, onde posso analisá-la
melhor.
— Não é isso. O problema não é você, Castiel, sou eu. — Uma lágrima
desliza pelo seu rosto delicado, depois outra... Outra e mais outra...
Depois disso a coisa fica mais estranha. Um rubor lhe sobe à face,
aperta os braços fortemente em volta do próprio corpo como se quisesse que
eles multiplicassem para cobrir o máximo possível de seu corpo. Os olhos
fixados na porta só esperando uma distração minha para fugir de mim. Ela
treme a ponto de a cama ranger.
— Por favor, converse comigo, pequena. — Arrisco abrir os meus
braços e deixar à sua escolha se quer ou não o meu apoio para seja o que for
que a esteja afligindo, não a quero só para uma noite de prazer.
Me preocupo de verdade com a Anne.
— Não, eu prefiro que veja com os seus próprios olhos. — Fica de pé
rente a mim, sem coragem de me encarar nos olhos, e com as mãos trêmulas
desliza uma alça do vestido, depois a outra.
Engulo em seco enquanto a peça desliza vagarosamente pelo seu corpo,
indo ao chão. Respiro bem fundo sem ao menos piscar. Empalideço. O que
vejo faz meu mundo cair. Levo as mãos na cabeça sentindo o chão sumir
debaixo dos meus pés. Primeiro fico desolado, depois a fúria se apodera de
mim.
Fecho os olhos com força, trincando o maxilar, nunca conseguirei
apagar essa terrível imagem da minha mente.
— Puta que pariu, Anne! Como deixou que fizessem essa merda com
você? Por que não fugiu ou pediu ajuda ao padre Valentim, porra!? — Eu não
percebi que estava gritando com ela, não até a vergonha nublar suas feições.
Mas como eu posso me calar diante disso, meu Deus? Nem sei se
conseguirei mais dormir em paz sabendo o que essa mulher passou para que
seu corpo esteja com mais partes com cicatrizes do que sem, dá para perceber
que algumas são antigas, outras nem tanto, como se passasse a maior parte de
sua vida em uma sala de tortura.
— Eu não tive escolha, Castiel, é mais complicado do que parece! Se
eu fizer isso, pessoas que eu amo podem se machucar. — Cobre o rosto com
as mãos, caindo de joelhos no meio do quarto, refém dos seus próprios
demônios.
Eu sei bem o que ela passou, ter a vida destruída por pessoas que
deveriam nos proteger.
— Esse desgraçado vai ter o que merece, Anne. Eu mesmo darei uma
lição em Marcos — ameaço.
Não consigo ficar quieto, ando de um lado para o outro pelo quarto,
esmagando meus punhos.
— Está tudo bem, Castiel, já passou. São só marcas, eu estou bem
agora — tenta me tranquilizar, só que estou nervoso demais para levar em
consideração qualquer coisa que ela diga.
— Bem? Por quanto tempo? Até ele te matar? — As veias saltam no
meu pescoço como se o sangue passasse por elas feito um trem desgovernado
prestes a explodir na minha cabeça.
— Se você não tivesse aparecido aquele dia tarde da noite e batido na
minha porta com a desculpa de pedir açúcar emprestado, eu não estaria
conversando com você agora — confessa o que eu sempre desconfiei, foi
Deus que me mandou vir aqui naquele dia.
Soco a parede imaginando ser a cara de pau de Marcos, exprimindo
todo o meu ódio por ele.
— Eu vou matá-lo antes que possa encostar um dedo em você de novo,
Anne, não me importo em voltar para a cadeia depois por conta disso.
— NÃO! Se fizer isso vou morrer de vez, não conseguiria viver
sabendo que voltou para a cadeia por minha causa. Pensa na sua irmã, não
pode jogar tudo para o alto assim, de cabeça quente. — A tristeza lhe toma a
feição, não tem solução para nós sem que um saia perdendo.
Anne vem até mim e segura o meu rosto entre suas mãos, obrigando-
me a olhar em seus olhos. Estou arrasado.
— Se a minha felicidade custar a sua, eu não quero. Não sabe do que o
meu marido é capaz, ele é muito mais perigoso do que pode imaginar —
declara sombriamente ao contorcer as mãos, tem mais coisa nessa história
que ela não está me contando.
O gosto salgado da lágrima que eu segurava desde o dia que pisei
naquele maldito presídio derramou sobre os meus lábios, jurei nunca mais
chorar nem mesmo de saudades da minha irmã, precisava ser forte.
Mas aqui está a vida brincando de roleta russa comigo mais uma vez,
onde sou novamente obrigado a fazer a escolha de ir para a cadeia ou salvar
uma pessoa importante para mim.
— Mas, e se a minha felicidade não for completa sem você, professora?
— Descansa a testa na minha.
— Não temos controle sobre o que vai acontecer amanhã, Castiel, então
por que não aproveitamos o agora? Sem o peso do passado, medo ou receios.
Apenas eu e você. — Começa a desabotoar os botões da minha camisa,
decidida a se entregar a mim de corpo e alma.
Mesmo que seja só por essa noite.
— Se essa é a única noite que teremos juntos, vamos eternizá-la. —
Seguro suas mãos e as beijo, está nervosa, assim como eu.
Meu palpite é que essa será a primeira vez que Anne fará amor de
verdade, isso faz de mim o homem mais sortudo desse mundo.
Capítulo 14
Anne
“Você é tão linda que o meu coração chega a doer toda vez que te
vejo, professora.”
Sussurra com o rosto enfiado no meio dos meus seios, os fios da sua
barba começando a crescer fazem cócegas na minha pele. Talvez Castiel não
saiba o quanto esse tipo de elogio é importante para mim, toda vez que eu
ouço é um passo a mais para fora da escuridão em que meu marido me
trancafiou em anos de agressões psicológicas contra a minha aparência que,
na maioria das vezes, doía mais que a física.
Afinal, as feridas externas curam com o tempo. Mas as do coração não,
essas, dependendo da proporção do estrago, não têm cura.
— Castiel... — Seu nome escorrega dos meus lábios em um gemido
agudo quando acaricia-me a parte íntima por cima do tecido da calcinha fina.
Ele a arrasta para o lado e penetra-me com dois dedos.
Inclino minha cabeça para trás em êxtase, nunca senti nada parecido em
toda a minha vida.
— Você é tão sexy, professora. — Abocanha meu seio, suga e morde a
região sensível em volta do bico enrijecido.
— Oh, Deus! Isso é tão… tão... — Gemi alto sem condições de
completar a frase, uma pressão maior cresce dentro de mim com mais
intensidade a cada segundo.
— Tão bom! É, eu sei, meu amor — completa a frase com a boca
grudada na minha pele, é exatamente aquilo que eu tentei dizer.
Acho que estou me viciando em Castiel, e ele mal me tocou. Ele sabe
exatamente como e onde me tocar para me dar prazer, tem dedos mágicos.
— Por favor, não para — peço. Nunca tive um orgasmo com o meu
marido em cincos anos de casados, e estou prestes a ter o meu primeiro com
um homem que conheci há poucas semanas.
— Se entregue para mim, professora. — Volta a sugar meu seio com
mais vigor, seguindo o ritmo da penetração com os dedos, arrancando-me
gemidos e mais gemidos.
Primeiro vem uma forte onda de prazer, agarro o lençol da cama com
força até meus dedos ficarem brancos. Me sinto imbatível. Depois meu corpo
fica mole, meu peito sobe e desce depressa enquanto gotículas de suor
deslizam pela minha pele. Aperto os olhos sorrindo, saciada.
Eu tive meu primeiro orgasmo!
— Eu quero provar você de todas as formas possíveis, Anne, prometo
te proporcionar todo tipo de prazer essa noite. — Minha respiração ainda é
falha quando Castiel toma os meus lábios. Percebi que nossa noite está
apenas começando.
Fico constrangida quando Castiel vai descendo, descendo e descendo
até chegar no ponto mais sensível do corpo de uma mulher, ainda mais em
um momento como esse. Paciente, acaricia minhas pernas antes de abri-las e
enfiar o rosto ao meio delas.
— Cacete! — solto um palavrão quando ele me toca com a língua,
coisa que não é do feitio de uma dona de casa cristã como eu.
Mas não deu para controlar minha boca, tampouco os meus dedos que
adentram os cabelos de Castiel, puxando-o mais e mais para mim, enquanto
rebolo na sua boca. Entendendo o meu desejo, chupa e lambe em uma
velocidade eloquente. Então, para e começa tudo lentamente. Minha cabeça
gira, como os picos de velocidade de uma montanha-russa.
— Seu gosto é ainda melhor do que pensei, mal posso esperar para
estar dentro de você. — Sopra meu clitóris antes de morder de leve e puxar
com os dentes. Sem vergonha nenhuma, ergo o quadril e me esfrego nele sem
pudor.
Em alguns segundos, vivencio o segundo orgasmo da minha vida, ainda
mais intenso que o primeiro, meu corpo padece em breves espasmos
enquanto Castiel lambe até a última gota do meu líquido. Fico acesa
novamente quando me beija para que eu sinta o meu próprio gosto na sua
boca, isso é muito excitante.
— Por favor, Castiel, faz amor comigo logo! — praticamente imploro,
preciso senti-lo dentro de mim o quanto antes.
— Pensei que não fosse pedir nunca, professora. — Nesse momento
entendi que ele não iria fazer amor de verdade comigo até que eu pedisse,
queria ter certeza que é isso que eu realmente quero.
E eu quero.
Como quero!
Ele desce da cama depressa e tira o resto da sua roupa em tempo
recorde, mantendo os olhos nos meus a cada segundo. Não me parece correto
comparar o “tamanho” dele com o de Marcos, porém, a diferença chega a ser
ridícula, nem sabia que pênis podia ser tão grande.
— Gosta do que vê, moça? — Segura o membro ereto rodeado por
veias grossas e masturba em movimentos lentos, chego a salivar imaginando-
o dentro da minha boca.
— Sim, Castiel, muito! — Mordo o lábio inferior sem perceber,
levando uma mão na minha entrada e a outra apertando o seio na tentativa de
aliviar toda aquela tensão sexual.
Esse ato meu o excita tanto que voou em cima de mim. Me beija várias
vezes, devora a curva do meu pescoço e bem na hora H para. Fico frustrada.
— Porra! Eu esqueci que não tenho camisinha, desde que fui preso que
não preciso de uma. — O fato de saber que sou a primeira mulher a estar com
ele de fato faz meu ego inflar, pensei que ele e a Carol estavam de namoro.
Castiel ameaça sair de cima de mim, mas o impeço abraçando sua
cintura com minhas pernas.
— Tudo bem, Bad Boy, eu uso anticoncepcional. — Me olha com
malícia. Inclino e o beijo, atiçando-o mais.
— Tem certeza que é isso que você quer, Anne? Garanto que estou
limpo. — Não respondo, apenas agarro sua ereção e aliso.
Esse está marcado para ser “o nosso momento” e nada vai estragá-lo.
Nem mesmo o fato de eu ter esquecido de tomar o bendito anticoncepcional
hoje de manhã, só um dia não fará mal.
— Você foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida há anos.
Quando estou ao seu lado me sinto cheia de vida. — Amada e única,
completo em mente, sem coragem de terminar em voz alta.
— Porque eu sou a metade que faltava em você, Anne. E você a que
faltava em mim. — Acaricia meu rosto, juntos parecemos imbatíveis.
Com suavidade, Castiel aproxima nossos rostos e me beija sem pressa,
como se tivéssemos todo o tempo do mundo a nosso favor. Minha libido
ofega a cada nova carícia recebida da sua parte. Eu aguardo cada próximo
passo seu, quase em desespero, para ser possuída por ele.
Sem interromper o beijo, desliza para dentro de mim com facilidade,
estou toda molhada, quase pingando. Arfo de prazer em um gemido
libertador. É como estar andando em terras proibidas, mas ao mesmo tempo
flutuando no paraíso, aquele lugar onde tudo é bom, belo e possível. Sem
certo ou errado, apenas o que te faz feliz.
“Eu amo o cheiro da sua pele, como tudo em você. É tão linda.”
“Perfeita pra mim.”
Sussurra Castiel, entre outras coisas lindas em cada investida profunda,
sempre lentas e intensas, que me fazem gritar, sorrir e suplicar por mais.
— Tão gostosa... — Sai por completo de dentro de mim e entra bem
fundo, levando-me ao total delírio. Minhas unhas percorrem suas costas
arranhando por onde passam.
— Isso, Castiel, me fode! — peço escandalosa.
Não estou me reconhecendo mais.
— Porra, Anne! Assim eu não consigo me controlar — grunhe.
Sabia que ele está se segurando para prolongar esse momento por mim.
Dando-me o máximo de prazer possível para compensar as vezes que tive o
meu corpo usado à força pelo meu marido.
— Eu não quero seu controle, Bad Boy. Quero que me dê o seu melhor.
— Depois disso foi uma deliciosa loucura.
Castiel se senta na cama e me puxa para o seu colo de frente para ele,
sua face está molhada de suor e os olhos escuros e perigosos. Nos apertamos
mutuamente, num abraço que parece conter em si todo o mundo. Bem ali,
naquela mesma cama que acabara de suportar um ato de comunhão entre
amantes como nunca se viu antes, nem mesmo nos livros.
O quarto é tomado pelo som dos nossos gemidos de prazer, ele entrou
em mim infinitas vezes até me deixar mole em seus brações. Chegamos ao
clímax com um chamando pelo nome do outro, não poderia ter sido diferente.
— Castiel... — eu gemi.
— Anne... — ele gemeu.
O corpo de Castiel se enrijece ao estocar uma última vez, jorrando
dentro de mim. Gozamos juntos. Exausto, desaba ao meu lado e me puxa
para o seu peito. Com ele não sinto alívio por ter terminado como acontecia
com o meu marido, ao contrário, quero fazer mais outras diversas vezes.
— Espero que tenha sido bom para você assim como foi para mim.
Depois de tantos anos, acho que estou um pouco enferrujado — brinca
sorrindo lindamente, tem os dentes grandes brancos e bem alinhados.
— Não sei dizer se gostei, Bad Boy — digo séria e ele me olha meio
decepcionado. — Talvez se fizermos mais algumas vezes você fique em
forma, o que acha? — Um calor me sobe à face, não sou do tipo ousada.
Mas estou farta de ser oprimida, de esconder os meus desejos.
Bancando a dona de casa perfeita, a santinha.
— Só se for agora, professora! — Solta uma gargalhada.
Em um giro rápido, Castiel me coloca montada sobre seu corpo. Ele já
está em ponto de bala, esfregando seu membro duro feito pedra em mim
propositalmente.
— O que está fazendo? Talvez não seja uma boa ideia que eu fique por
cima — respondi nervosa no meu modo submisso, Marcos nunca me deixou
ficar por cima.
Segundo ele, é o homem que deve comandar, sempre! Afinal, dentro da
sua concepção sobre o sexo feminino, fomos criadas apenas para satisfazer o
homem na cama e nada mais.
— Eu não sou o Marcos, Anne! — rosna como se tivesse lido os meus
pensamentos.
— Ele não chega nem aos seus pés, Castiel — garanto.
Com um pouco de inexperiência, extrema timidez e mãos trêmulas,
encaixo sua ereção na minha entrada. Castiel usa as mãos como apoio atrás
da cabeça, e apenas me observa. Quer deixar claro que quem está no
comando sou eu.
— Isso, professora, sem pressa… — diz com a voz rouca quando
começo a cavalgar e fecha os olhos, apertando os lábios para conter o desejo
de me tocar durante os meus inseguros movimentos de sobe e desce.
Aos poucos vou pegando o jeito, apoio as duas mãos no peito de
Castiel e inclino a cabeça para trás, rebolando em cima dele.
— Você gosta assim, garotão? — Minha voz sai com uma sensualidade
que eu nem sabia que tenho.
— Muito! Senta com vontade, vai! — pede e eu obedeço.
Monto nele como se fosse um touro bravo, ergo meu corpo e desço em
um golpe profundo uma vez atrás da outra em uma velocidade alucinante.
— Isso, caralho! Porra! — xingo feito uma puta.
Castiel ri da minha perda de controle.
— Olha a boca, Santinha. — Me dá um tapa na bunda, apoia uma mão
de cada lado cravando os dedos na carne macia e me ajuda nos movimentos.
Formamos uma boa dupla de foda alcançando o terceiro nível mais alto
do prazer da noite, o clímax perfeito.
— Dez anos sem praticar e foi assim? Imagina quando estiver em
forma de verdade — brinco deitando meu corpo sobre o dele.
— Se continuar assim até lá vai acabar me matando, mal consigo
respirar. — Abana o rosto e eu rio da cara dele.
Nos beijamos.
— Quero que saiba, Castiel, que estou realizada por ter tido o meu
primeiro orgasmo em quatro anos com você. — Fico com vergonha, uma
mulher casada há tanto tempo, e que mal sabe o que é sentir prazer.
Mas eu tinha que agradecer. Só não estava preparada para o jeito que
ele está me olhando agora, uma mistura imensa de surpresa e pena por essa
ser a primeira vez que senti prazer em ter relações intimas com um homem.
Capítulo 15
Castiel
Castiel
Anne
Nunca tinha visto Castiel tão sério como enquanto desenha, parece
estar em uma espécie de transe. Segura o lápis com segurança, seus riscos são
rápidos e precisos. Foi engraçado na hora de ele me ajudar com a pose, sabia
exatamente como eu tinha que ficar, como se já tivesse planejado cada
detalhe daquele momento. Pegou todas as almofadas do quarto e arrumou
sobre o carpete vermelho, pediu para eu me deitar de lado, nua, com uma
mão apoiada no quadril e a outra debaixo do meu queixo, soltou meu cabelo e
ajeitou os meus cachos um por um.
Mal posso esperar para ver qual será o resultado, quero saber como sou
através dos olhos deles.
— Falta muito? — pergunto pela milésima vez tentando fazer menos
movimento possível. Por fim, Castiel nem responde nada, só balança a
cabeça.
— Eleve um pouco o olhar, por favor, tente não tremer a mão sobre o
quadril, falta pouco para finalizarmos. — Segura o lápis entre os dentes de
forma erótica, essa situação toda em si é muito excitante.
Mas o que existe entre nós vai muito mais além da atração física.
É especial.
— Meu nariz está coçando, Castiel. — Contorço o rosto.
— Pode coçar, querida, já terminei. Só estou dando os últimos
retoques. — Praticamente pulo em cima de Castiel, tento ver como o desenho
ficou, mas ele não deixa, levantando o caderno bem alto.
— Pelo amor de Deus, Castiel, me deixa ver esse desenho, agora! —
Fico nas pontas dos pés tentando pegar, mas precisaria ter pelo menos uns
vinte centímetros a mais para conseguir.
— Só depois que me der um beijo, professora. — Fez um biquinho e eu
cedi, nem precisava pedir duas vezes. Castiel me entrega o desenho e eu me
surpreendo.
Ficou perfeito!
Os seus traços são de uma delicadeza fascinante, dá vontade de ficar
olhando para sempre. Fez minhas curvas com formas parecidas com as de um
violão. Seios grandes, pernas grossas e mãos finas com os dedos longos. O
que mais me deixa comovida foi que no lugar das minhas cicatrizes desenhou
flores e corações. Em meu rosto predomina uma expressão segura em um
meio sorriso.
Eu amei mesmo cada detalhe, em especial na forma que assinou o seu
nome abaixo, no canto da folha.
“Com amor, seu Castiel.”
— É assim mesmo que você me vê, Castiel? — Assente e lágrimas
tomam-me a face; fico muda.
Meus dedos alisam cada centímetro do desenho, cheia de amores por
ele.
— O que foi, meu amor, não gostou? — Fica inseguro ao perceber que
eu estou chorando, abraça-me e eu choro ainda mais por ter me chamado de
amor.
Queria tanto que nossas vidas fossem diferentes, que não fôssemos tão
quebrados. Sempre penso em como seria se tivéssemos nos encontrado antes
de Marcos se infiltrar na minha vida. Talvez Castiel nunca tivesse sido preso
e não tivesse perdido sua irmã. Hoje seríamos uma família normal e feliz.
— Gostar é pouco, eu amei! Obrigada, Castiel, você merece ter o
mundo aos seus pés. — Deito a cabeça na curva do seu pescoço, contornando
com a ponta do dedo os riscos das tatuagens no seu peito.
— Você é o meu mundo agora, professora. — Me surpreendo com essa
declaração, não estava esperando ouvi-la. Mas ansiava.
Eu deveria ter insistido que isso que estamos fazendo é loucura, um
grande erro. No entanto, não tive forças para fazer mais nada além de beijá-lo
e esquecer todo o mundo lá fora.
— E você é o meu, Castiel. — Jogo-me em seus braços de vez, o lugar
mais seguro do mundo para mim.
Ele me deita na nossa cama improvisada no chão e faz amor comigo
sem pressa, chegamos em um ponto que não conseguiremos mais nos separar
nem se quisermos.
Castiel
Anne
Sou acordada com um jato de água fria bem na minha cara, quase caí
da cama. Ao olhar para o lado e não ver Castiel, meu desespero duplica, me
enfio debaixo do cobertor toda encolhida de medo. Não consigo pensar em
outra coisa a não ser que o meu vizinho do lado tenha ligado para Marcos e
contado tudo sobre o nosso caso, e veio se vingar, destruindo nosso sonho de
amor antes mesmo de ter começado.
— Hora de levantar, preguiçosa. — Uma voz abusada se faz presente,
depois o meu edredom é puxado.
— Você quer me matar do coração, Castiel? — Jogo o travesseiro na
cara dele, só pode ter ficado louco de vez, ou me tirar do sério virou seu
esporte favorito.
Apesar de ter aceitado que saia com a Caroline, essa história não me
agrada nem um pouco.
— Andei pensando em como te ajudar a extravasar essa raiva toda que
guarda do seu marido e acabei tendo uma ótima ideia. Se troque e me
encontre em dez minutos na garagem — não pede, ordena e se vai.
Chego na garagem no exato momento em que Castiel está pendurando
no teto um saco de boxe improvisado feito de couro cheio de areia, e não para
por aí. Olhando à minha volta o que vejo é uma inteligente academia toda
feita com material reciclado. Tem levantadores de peso feitos com barras de
ferro e vidros descartáveis de refrigerante cheios de cimento, caneleiras,
cordas, bicicleta e tudo mais que tem direito.
Mais ao fundo, um radinho velho tocando a música do filme Rock
Balboa. Castiel passou a noite inteira montando isso tudo.
Para mim...
— Podemos começar agora? — Bati uma mão na outra, animada.
— Só um segundo, mocinha. — Vai até a caminhonete e pega sobre o
banco do carona um par de luvas cor-de-rosa. Eu solto um grito de alegria.
Ninguém nunca fez nada pensando em mim antes, isso me tocou de um
jeito que não tenho explicação.
— Eu amei, Castiel, muito obrigada, estava precisando mesmo socar
alguma coisa ou iria explodir.
— É. Eu percebi ontem, professora. — Me entrega as luvas, vou amar
usá-las.
— Então isso tudo foi medo de eu estragar esse seu rostinho lindo, Bad
Boy? — Mostro a língua.
— Digamos que é melhor prevenir do que remediar. Não sou nenhum
professor de boxe, mas aprendi algumas coisinhas enquanto estive preso. —
Mostra os bíceps, sorrindo, sorrio para ele de volta, mas com uma dorzinha
estranha no coração.
— Bem, agora acho que mudamos de lado. Você se tornou o professor,
e eu a Bad Girl boa de briga. — Dou um soco de leve na sua costela, mais
feliz do que nunca. Ele acertou em cheio nessa ideia de me treinar.
Apesar que no fundo eu sei que não é apenas para extravasar a minha
raiva, como Castiel diz, tem algo mais profundo nisso de me treinar. Como se
estivesse me preparando para enfrentar Marcos caso ele venha a faltar, parece
até que está prevendo que algo muito ruim vai acontecer.
— Ótimo ver sua animação, Bad Girl! Que tal começarmos dando dez
voltas pelo quarteirão como aquecimento?
— Dez voltas? — Arregalo os olhos.
— Agora são quinze pela reclamação, mas para não dizer que sou um
mal professor pode tomar o seu café da manhã antes. Preparei algo leve. —
Dá alguns socos no saco de treinar como teste, fico babando em cima desse
homem grandão, uma mistura de músculos e tatuagens.
Com seu jeito durão, mas ao mesmo tempo doce e atencioso.
— Obrigada por se preocupar com a minha segurança, Castiel. —
Abraço suas costas largas, ele alisa minhas mãos pousadas sobre o seu peito.
— É isso que casais de verdade fazem, Anne, não se destroem. Se
ajudam a melhorar.
— Só mais uma pergunta, eu posso beijar o meu professor agora ou
durante a aula não pode? — brinco.
Castiel vira de frente para mim puxando-me pela cintura para mais
próximo de si, com aquela cara de que vai terminar em safadeza.
— Beijo é permitido a qualquer momento, linda. — Me puxa para um
beijo sedento, como desconfiei. Por pouco não fizemos amor ali mesmo.
— Tentando me persuadir com sexo para fugir do treino, trapaceira? —
me interrompe assim que começo a tirar sua camisa, me joga nas costas e
leva para a cozinha.
Não dá para saber qual risada é mais feliz, a minha ou a dele. Acho que
se fosse medir daria empate.
Castiel
Anne
Fico com a ideia da fuga na minha cabeça enquanto auxilio minha mãe
no preparo do almoço; deixo-a recheando o frango e saio com a desculpa que
vou à minha horta pegar algumas verduras para fazer uma salada orgânica.
De longe, avisto Castiel no topo de uma escada consertando alguma coisa no
telhado da fachada da frente, concentrado no trabalho. Dou um assobio para
chamar sua atenção, ele sorri galante assim que me vê.
— Precisamos conversar sobre a nossa fuga, não quero mais esperar.
Tem que ser essa noite — falo em Libras, mais decidida do que nunca.
É mais confiável nos comunicarmos dessa forma do que pelo celular
que Castiel comprou para mim, não quero correr o risco dos meus pais
ouvirem a ligação ou lerem a mensagem sem querer e descobrirem tudo antes
da hora. A verdade é que será mais fácil contar tudo através de uma folha de
papel, olho no olho não sei se tenho coragem.
Eles sãos as pessoas que mais amo no mundo, e que menos gostaria de
decepcionar. Espero que possam me perdoar algum dia.
— Pegue apenas o necessário, vamos embora assim que os seus pais
dormirem — responde de volta, animado, se desequilibra e por pouco não cai
da escada.
O enorme alívio que sinto em saber que faltam poucas horas para eu
estar livre do inferno que vivi por tanto tempo é indescritível. Tenho vontade
de chorar.
— Combinado, meu amor! — Trocamos um aceno de cabeça.
— Vai dar tudo certo, minha vida, não se preocupe — ele afirma.
Não respondo mais nada. Endireito a postura ao sentir alguém se
aproximar, viro depressa para trás com medo de ter sido pega.
— Que susto, pai! — Levo a mão sobre o peito sentindo o meu coração
bater assustado, será que nos viu conversando? Ele não sabe nada de libras,
mesmo assim poderia achar suspeito.
— Por que essa cara de quem tem culpa no cartório, filha? — brinca
com as mãos juntas atrás do corpo, analisando minhas feições à procura de
algum vestígio de confirmação ao seu comentário.
— Se me der licença, senhor Manuel, tenho que ajudar sua esposa com
o almoço. — Mostro a língua para ele e saio correndo rindo, de longe ouço a
gargalhada alta dele.
Aproveito ao máximo minhas últimas horas com os meus pais, nosso
almoço foi muito divertido. À tarde vemos um filme de terror, porém, mais
rimos do que ficamos com medo. Como despedida, cozinho um banquete
para o jantar. Minha mãe se oferece para pôr a mesa, aproveito para me
trancar no meu quarto e arrumar a mochila com tudo o que precisaria para a
nossa fuga.
— Tudo pronto, agora é só esperar o momento certo para sair sem ser
vista pelos meus pais — sussurro para mim mesma, abraçada com a minha
mochila, falta pouco agora.
A mochila cai das minhas mãos quando ouço o motor de uma Mercedes
que conheço muito bem, roncando em frente à minha garagem.
— Por favor, meu Deus, não! — Corro para a varanda do meu quarto,
de onde vejo Marcos, ele voltou muito antes do previsto.
Sinto que não voltou à toa. Ainda dentro do carro, me olha fixamente
de baixo para cima através do vidro do veículo, com um sorriso maquiavélico
que diz:
Pensa mesmo que pode fugir de mim, querida?
Em pânico, desfaço a mochila jogando tudo de qualquer jeito dentro do
guarda-roupa. O desenho que Castiel fez de mim eu escondo debaixo do
colchão da minha cama. Lembro do celular e pego para colocar junto, mas no
nervosismo deixo o aparelho cair no chão e quebrar em vários pedaços.
— Merda, merda… Merda! — Dou tapas na minha própria cabeça, isso
não podia ter acontecido, agora estou sem nenhum tipo de comunicação com
Castiel.
Tento não pensar nisso agora, cato o que sobrou do celular e jogo no
lixo do banheiro, colocando por cima quase um rolo inteiro de papel
higiênico para cobrir. Com todas as provas da minha vida infiel encobertas,
respiro fundo várias vezes e recobro a postura da melhor forma que posso
para recebê-lo o mais naturalmente possível. Desço para a sala de jantar e
sento-me ao lado da minha mãe, ela e o meu pai conversam animados.
— Me passa mais um pouco desse molho de ervilha, filha? Está uma
delícia — minha mãe tenta puxar assunto comigo, percebe que estou tensa.
Pego a tigela e entrego-a com os olhos fixos na porta que dá acesso
direto à garagem, Marcos passaria por ela a qualquer momento. Pensei que
nunca mais fosse ter aquela sensação horrível de medo consumindo cada
pedacinho do meu ser. O ranger da maçaneta girando parece mais alto do que
o de costume, o medo deixa nossos sentidos aguçados.
Marcos entra com o peito estufado dentro do seu uniforme do exército
repleto de medalhas. Pela expressão pesada, já está muito irritado só mesmo
em colocar os olhos em mim.
— O que ainda está fazendo aí sentada, que não veio me receber na
porta, mulher? Quero as minhas roupas sujas da viagem todas lavadas ainda
hoje. Espero que dessa vez tenha cozinhado algo decente para o jantar. —
Vem andando na minha direção dando ordens, como se fosse um barão e eu a
sua escrava.
Não tinha notado que os meus pais estão presentes, não até a minha
mãe fingir uma tosse para chamar-lhe a atenção para eles, sentados na mesa
comigo.
— Meus sogros queridos, que surpresa boa vê-los por aqui. — Se
aproxima com o sorriso mais falso que já vi na vida. Tudo nele exala
falsidade, até o ar que respira.
Meu marido abraça o sogro, que baba em cima do genro tenente
“perfeito” que pensa ter. Me olha com orgulho por cima do ombro de
Marcos, tipo:
“Você é uma mulher de sorte, filha.”
Marcos cumprimenta minha mãe dando-lhe um beijo carinhoso no
rosto, faz alguns elogios falsos e pergunta como tem passado. Diz que estava
com saudades da sua presença encantadora. Por alguns minutos, penso em
como teria sido a minha vida se aquele doce homem de mentirinha tivesse
sido o meu marido em todos esses anos. Poderíamos ter sido muito felizes,
tido filhos lindos.
— Não vai dar um abraço caloroso no seu marido, Anne? Deve estar
muito feliz que ele voltou antes do previsto. — Um sorriso enojado rasga a
minha boca na direção de papai, quero gritar de raiva.
Óbvio que não senti nem um pingo de saudades do meu marido. Por
mim, ele teria ficado por lá e que não voltasse nunca mais. O odeio com todas
as minhas forças, prefiro me matar do que ser obrigada a continuar ao seu
lado. É tão diferente do meu Castiel, em todos os sentidos, principalmente no
caráter.
Coitado do meu amor!
Deve estar feliz preparando tudo para fugirmos juntos e viver o nosso
amor, tenho vontade de morrer de tanto chorar imaginando como ficará triste
quando perceber que eu não vou aparecer.
— Você ouviu o que seu pai disse, querida? — Marcos me dá uma
olhadela de porco. Puxa uma cadeira e faz questão de sentar-se de frente para
mim.
Se estivéssemos sozinhos já teria me pegado pelo cabelo e me jogado
no chão, socado e chutado até cansar.
— Claro que eu ouvi, não sou surda. Seja bem-vindo de volta à sua
casa, Marcos! — Sorvi um gole do suco de acerola com desdém.
Quase engasgo com o chute na minha perna que ele dá debaixo da
mesa, por tê-lo lhe recebido de maneira rude. Eu nem me abalo, limpo minha
boca com o guardanapo como se nada tivesse acontecido. Sei que é só meus
pais virarem as costas que, se ele não tiver um motivo para me bater, inventa
um.
— E o meu beijo, meu amor, onde está? — O maldito fez de propósito
para me desafiar, faz muito tempo que não me beija e agora vem para cima de
mim com esse papinho na frente dos meus pais.
— Depois, querido, vou arrumar um prato para você primeiro, deve
estar com muita fome. — Puxo os cantos da boca em um sorriso falso, se me
obrigar a beijá-lo nem sei o que serei capaz de fazer.
Levanto-me e vou para a cozinha pegar um prato para ele, o desgraçado
me puxa em um movimento rápido e beija a minha boca.
Maldito filho da puta!
— Se fizer uma gracinha, eu mato os seus pais na sua frente — ameaça
discretamente assim que nossos lábios se separam, quero voar no pescoço
dele à unha.
Mas meu estômago embrulha tanto que só dá tempo de correr até o
banheiro mais próximo para me debruçar sobre o vaso e vomitar tudo o que
estava no meu estômago, parece até que o beijo de Marcos me envenenou,
que nojo! Sinto um gosto amargo impregnado na minha boca.
Pego um pedaço do papel higiênico para limpar minha boca, dou um
sobressalto ao ouvir fortes batidas na porta.
— Por que está demorando tanto para voltar, Anne? Quando seus pais
forem embora, vamos ter uma conversinha — ameaça Marcos.
— Eu já estou indo, só um segundo — peço cansada e volto a colocar
as tripas para fora.
— Pelo jeito nem o seu estômago suporta mais a porcaria da sua
comida, querida. — Se vai, rindo do meu mal-estar.
Não aguento mais a pressão, abro o armário sobre a pia e pego o frasco
mais forte da minha coleção de remédios antidepressivos, arranco a tampa e
viro todo o conteúdo na mão, decidida a tomar todos de uma vez só em meio
a um mar de lágrimas silenciosas. Para me livrar de Marcos, só com a morte.
— Vamos, Anne, você consegue — digo para o meu reflexo no
espelho.
Coloco os comprimidos na boca, estou prestes a começar a engolir
quando a imagem do sorriso lindo de Castiel vem à minha mente, a voz doce
ao pé do meu ouvido dizendo coisas bonitas. O jeito de me olhar que é só
dele. Perdi a coragem de acabar com a minha própria vida, preciso ser forte e
lutar até o fim. Cuspo todos os comprimidos dentro do vaso e dou descarga.
A raiva pelo Marcos é gigante, mas os meus sentimentos por Castiel
são muito maiores. Não tem medida. Por isso lutarei para ficarmos juntos
para sempre. Ele é minha alma gêmea. Prometi que nunca desistiria dele,
mesmo quando as coisas ficassem feias, e vou cumprir.
Lavo o rosto e prendo o cabelo em um rabo de cavalo com um elástico
que achei na gaveta. Volto para a sala de jantar como se nada tivesse
acontecido, fingindo falso controle. Decido não provocar mais Marcos essa
noite, fico calada ouvindo a conversa dele com os meus pais, contando um
monte de mentiras sobre o nosso casamento de contos de fadas. Fico enjoada
novamente e não consigo comer mais nada, meu estômago está frágil.
Depois do jantar, subo ao meu quarto na esperança de ter um pouco de
paz, mas dou de cara com o próprio demônio esparramado na minha cama,
com as mãos atrás da nuca e as pernas cruzadas, só de cueca samba-canção,
tranquilamente.
— O que está fazendo aqui, Marcos? Volte para o seu quarto — me
imponho corajosamente levando as mãos na cintura, o encarando de frente.
— Tem alguma coisa diferente em você, Anne. Não sei o que é, mas eu
gosto. Me excita. Por isso, pela primeira vez vou dormir com você, quero
usar o seu corpo. — Vem para cima de mim, mas me esquivo do seu toque.
— Se quiser dormir no meu quarto, Marcos, fique à vontade, mas eu
vou para o quarto de hóspedes do andar de baixo — explico com mais
gentileza do que ele merece.
Saio andando rápido sem esperar resposta, sei que não teria coragem de
fazer nenhuma maldade comigo caso algum dos meus pais estivesse por
perto. Contudo, rente à porta sinto uma batida forte na cabeça e apago antes
mesmo que minha mão chegue a alcançar a maçaneta.
Capítulo 22
Castiel
Anne
Castiel
Anne
Castiel
Castiel
Segunda-feira
Anne
Terça-feira
Castiel
Quarta-feira
Anne
Quinta-feira
Eu tenho uma notícia ruim e outra boa, meu amor. Marcos recebeu
uma ligação que o deixou bastante nervoso, nem vou ter tempo de escrever
uma carta de amor decente para você. Não sei do que se trata, mas ele está
mais insuportável do que o normal. No entanto, ele disse que vai sair
amanhã cedo e só voltará à tarde. Podemos nos encontrar no nosso bosque
secreto e repassar os últimos detalhes da nossa fuga, vai ser incrível não ter
que esperar mais até segunda-feira para te ver.
Espere por mim no nosso lugar secreto, meu amor, assim que o meu
marido sair vou correndo te encontrar…
Sua Anne…
Capítulo 31
Anne
Castiel
Anne
Castiel
Anne
Abro os olhos com uma certa lentidão, minhas pestanas estão pesadas e
ardendo. Levo as mãos no rosto e me assusto com o inchaço, as pontas dos
meus dedos chegam a afundar na minha pele. Até para respirar dói, estou
fraca e meio desorientada. Talvez essa seja a sensação de chegar ao final da
linha, onde não se pode fazer outra coisa a não ser esperar a morte. Não faço
ideia de quanto tempo passei desacordada, perdi totalmente a noção do
tempo. Não saber o que Marcos fez com Castiel é a pior parte, não quero
admitir para mim mesma, mas eu não consigo mais sentir sua presença nesse
mundo.
Me encolho em posição fetal e choro por um bom tempo, estou exausta.
Com dor, frio e muito assustada. Divido meu tempo em dormir e chorar,
minha garganta está seca, preciso de um pouco de água. Não dá para acreditar
que as coisas irão terminar assim, eu e o Castiel chegamos tão perto.
Depois de apagar de tanto chorar, acordo assustada com o ranger da
porta secreta se abrindo, trazendo uma luz forte para o cômodo escuro. Tive
que cobrir os olhos com o braço. Pensei que Marcos viria direto continuar
com a sessão de espancamento, mas não.
— Olá, querida esposa, bom dia! — Se aproxima a passos lentos,
permaneço calada com a cabeça baixa, sem força para me arrastar um
centímetro que seja.
— Não vai dizer nada, amor? Vim saber se está gostando do seu novo
quarto. Para ver como sou um homem bom, trouxe um pouco de água para
você. — Baixa o copo de vidro para que eu veja, penso se devo pegar ou não,
pode ter alguma substância química.
A verdade é que se tiver é até melhor, só a morte para me salvar de
Marcos. E ele sabe disso, por isso não me matará assim tão fácil, vai me
torturar muito antes. Por isso vou aceitar o copo d'água, talvez tenha
acordado hoje tocado para fazer algum ato de bondade.
Ergo a mão toda cheia de hematomas com dificuldade para pegar o
copo, mas não chego a tocar o vidro quando ele entorna até a última gota. A
minha sede é tanta que começo a lamber o chão desesperadamente feito um
animal, é assim que ele gosta de me ver, aos seus pés e completamente
humilhada.
— Tenho algo melhor do que água para você, querida. — Ouço quando
ele abre o zíper da calça e urina sobre mim, o líquido morno cai sobre as
minhas feridas, causando uma ardência muito forte.
Meu vestido se transforma em uma mistura nojenta de sangue e urina.
Acho que se existisse o título de “Rainha do Fundo do Poço”, eu seria eleita
por unanimidade.
— O que foi, a gata borralheira perdeu a língua? — Me cutuca com o
pé, abraço meu próprio corpo encolhendo-me ainda mais.
Não satisfeito em ser ignorado por mim, me chuta novamente com mais
força. Mesmo com a vista um pouco embaçada, olho para Marcos e noto que
o seu rosto está quase irreconhecível. Todo inchado e cheio de hematomas
bem roxos, fora os dois dentes da frente quebrados.
Começo a rir feito uma maluca, se esse estrago todo é obra do Castiel,
bem feito!
— Gostei do novo visual, Marcos — debocho. Ele ferrou comigo, mas
ganhou o troco.
— Precisa ver como ficou o outro cara, deve estar aproveitando as
férias no quinto dos infernos agora. — Meu mundo cai, ele não pode ter
matado o meu Castiel.
Não pode!
Tirar de mim a única pessoa que me fez feliz no mundo, grande amor
da minha vida. Devíamos ter desconfiado que algo não daria certo.
— É mentira, Marcos! — me descontrolo e puxo a barra da sua calça.
— Veja com os seus próprios olhos, querida. — Tira o celular do
bolso, coloca um vídeo caseiro e vira na minha direção, devia ter fechado os
olhos porque a cena terrível que vi nunca mais vai sair da minha mente.
Dois soldados tiram o corpo de Castiel do porta-malas do carro de
Marcos e jogam numa vala da beira de uma estrada qualquer, como se fosse
um bicho morto. Passo o dedo pela tela sobre o rosto do meu amor, a roupa
cheia de sangue e a pele tão pálida. Sem vida, eu mal posso acreditar que está
de fato morto. Agora é oficial! O demônio cumpriu sua promessa, matou o
meu anjo.
A minha alma se foi junto com a de Castiel, me sinto morta por dentro.
Todo e qualquer sentimento que existiu em mim um dia se explodiu em
milhares de partículas. Não tenho mais por que lutar, é chegada a hora de
entregar os pontos.
Marcos venceu!
— Vai ficar presa aqui sem água e comida até aprender a me obedecer,
meu amor, mas como sou um homem bom, se você pensar direitinho nas
merdas que fez e me pedir perdão eu te dou uma última chance. — Vai
embora assobiando feliz da vida, mas pelo menos esquece de apagar a luz,
agora posso analisar melhor o lugar onde estou.
Enfio a mão dentro da gola do meu vestido, agarro o anel pendurado no
cordão no meu pescoço que Castiel me deu no bosque, e choro aos gritos até
secar minha última lágrima. Fico parecendo estar em estado vegetativo,
entregue a um vazio sem fim. Nem pisco. Toda vez que fecho os olhos vejo a
imagem do meu amor morto, não aguento mais. Não sei se foi delírio da
minha mente, mas posso jurar que sinto sua mão fazendo carinho no meu
rosto bem de leve, a sensação é tão boa que acabo pegando no sono. O sonho,
é claro, foi com ele, o amor da minha vida.
Em uma visão de cima para baixo vou me aproximando cada vez mais,
eu reconheço esse lugar, é o nosso bosque secreto. Mas está diferente, tem a
nossa casa dos sonhos construída do jeitinho que imaginamos, à beira da
cachoeira. No amplo jardim da frente, Castiel está todo vestido de branco,
sentado sobre a grama verdinha. Parece ser primavera, pois há flores
selvagens por toda parte, de todas as cores e formas.
Só um minuto…
Ele não está sozinho, tem um garotinho lindo sentado próximo a ele,
também todo vestido de branco, brincando com um coelhinho de pelúcia
igual ao da irmã de Castiel na foto que me mostrou dela. Ele sorri
lindamente olhando para o pequeno amorosamente e passa a mão entre os
cachos bem enroladinhos do cabelo dele.
— Ei, Gabriel, vamos procurar a Clarinha? — pergunta Castiel para o
menino, que assente sorrindo para ele.
Quem será essa Clarinha?
O sorriso dessa criança de alguma forma lembra o meu; na verdade,
ela é muito parecida comigo. O tom de negro da pele, os olhos castanhos
escuros e o cabelo cacheado. Observo Castiel se afastando de mãos dadas
com o garotinho, conversando alegremente, ambos envoltos por uma luz
brilhante que passa uma energia boa.
Acordo sorrindo, acredito que Castiel apareceu no meu sonho para me
confortar. Mostrar que está num lugar melhor agora, no paraíso, rodeado por
pequenos anjos. Me sinto até mais forte agora.
Castiel me treinou para ser uma sobrevivente, e não vou decepcioná-lo
entregando os pontos assim tão fácil. Juntarei toda a força que me resta e vou
sim ficar de pé, chega de ficar no papel de vítima, jogada nesse chão sujo.
— Vamos, Anne, reaja. — Respiro com vontade, conto até três, forço
meu corpo a ficar de quatro e engatinho até a parede mais próxima para usar
como apoio.
Assim que encontro uma parede, uso as costas como base para deslizar
meu peso para cima, preciso descansar um pouco. Consigo me colocar de pé.
A luz aqui é um pouco fraca, mas já é mais que o suficiente para poder
analisar melhor o lugar onde estou. A primeira coisa que percebo é que não
tem nenhuma janela, poderia morrer de gritar que ninguém me ouviria.
Esse lugar parece uma espécie de porão secreto cheio de coisas velhas
guardadas, caixas e mais coisas, fechadas com fita crepe. Alguns móveis
antigos, tudo muito estranho.
— Por que Marcos mantém um lugar como esse às escondidas, senhor?
— me pergunto tentando chegar a uma estante ao fundo do cômodo, um
quadro grande virado para a parede atrás dela me chamou a atenção.
Deixei a curiosidade falar, o tiro de onde está com cuidado para não
fazer barulho e o viro para mim. Fico de cara no chão ao perceber se tratar da
pintura de uma mulher loira bonita, mas a expressão muito triste. Apesar de
jovem, os olhos azul-jacinto carregados e a pele pálida a fazem parecer mais
velha. O fato das roupas sérias demais tapando até o pescoço não colabora,
seu vestido azul desbotado parece de uma senhora de setenta anos, tem até
um babado na frente parecendo um avental. Não usa maquiagem, e traz o
cabelo em um coque severo sem nenhum fio solto.
Só me dou conta da mulher na pintura quando leio o nome escrito
embaixo pelo artista que fez o quadro.
“Amélia Vargas, ano de 2010.”
Puta merda, essa é a primeira esposa de Marcos. Ele nunca me contou
como ela era fisicamente, e agora, encontrar esse quadro sem estar esperando
me deixa atordoada demais, acabo pisando errado e arranco uma tábua do
piso. Na verdade, a peça parecia estar apenas encaixada. E a história não para
por aí, olhando o buraco é possível ver alguma coisa escondida lá dentro.
— Mas o que será isso? — Me sento em volta do buraco e enfio a mão
lá dentro, puxo para fora o objeto e constato se tratar de um diário antigo.
Não foi difícil abrir o cadeado, está bastante enferrujado, deve estar há
muitos anos escondido nesse lugar. Logo na primeira página leio uma coisa
que me deixa impactada. Isso não é apenas um simples diário, vai muito além
disso.
Passaram-se dias, não sei ao certo quantos. Presa aqui não dá para ter a
menor ideia de quando o dia começa, tampouco quando termina. Marcos não
apareceu mais e eu me sinto grata por isso. Meu estômago nem ronca mais de
faminto, acho que até as minhas lombrigas morreram de fome. Me sinto
imunda, cheirando a carne podre, meu cabelo se transformou em uma
bagunça de nós, um cacho emaranhado com outro. Estou parecendo aquelas
mulheres da época das cavernas. A única coisa que tem me mantido viva é o
desejo de vingança, por Castiel e Amélia.
Fiquei pensando, será que Castiel sentiu muita dor ou medo da morte?
Pensando em mim?
Na irmã?
Essas dúvidas são dolorosas demais, não há despedida mais difícil do
que aquela que sabemos que será para sempre. Saudade é regressar a um
tempo que não volta mais. O que me resta é guardar no coração todas as
lembranças, carinhos, palavras de amor ditas e aquelas expressadas no
silêncio através do olhar. Eu tive muita sorte de ter conhecido um homem
incrível como Castiel. Me amou em pouco tempo com uma intensidade que
vale para a vida toda.
Já a pobre Amélia não teve a mesma sorte, o primeiro e o último
homem que teve foi Marcos. Casar-se com ele foi a mesma coisa que assinar
sua certidão de óbito. Eu preciso pará-lo, ou serei a próxima e depois de mim
haverá outra vítima, e mais outra em um ciclo sem fim. Aproveito que tenho
tempo de sobra para começar a pensar em como dar a lição que o filho da
puta merece, o primeiro passo é me fingir de rendida e ganhar sua confiança
para depois dar o golpe final.
Para isso, escondo o diário da Amélia debaixo da roupa e espero
paciente até que Marcos apareça, trabalhei minha mente com meditação para
conseguir lidar com o seu humor cínico. Ao ouvir seus passos se
aproximando, escondo o diário e apago a luz. Antes que a porta se abra me
jogo no chão fingindo estar derrotada, do jeitinho que gosta de me ver. Às
vezes precisamos nos abaixar para algumas pessoas, até que o seu próprio
ego o cegue e assim nos dê tempo suficiente para preparar o contra-ataque.
— Bom dia, Anne, sentiu a minha falta, amor? — Antes de responder,
profiro um gemido baixo, dando veracidade ao meu papel de pobre coitada.
— Senti sim, Marcos! Depois de passar todos esses dias aqui sozinha,
pensei muito nas minhas últimas atitudes. Estou muito envergonhada por ter
sido infiel a um marido tão bom como você, me perdoe. — Me curvo diante
dele como se fosse um rei soberano, e eu, sua súdita fiel.
— Nada como deixar uma cadela teimosa sem comida e água por uns
dias para ela voltar mansinha, mansinha... — Me derruba com a ponta do pé e
pisa sobre a minha cabeça, esmagando o meu rosto contra o chão.
— Por favor, Marcos, se você me der uma chance vou passar o resto da
minha vida me redimindo por ter sido uma péssima escolha — dramatizo no
estilo novela mexicana, com direito a lágrimas de crocodilo e tudo.
— Não me toque, mulher, está sujando a minha farda, você está
cheirando feito um animal morto. — Aperta o nariz com as pontas dos dedos
me empurrando para longe, com nojo de mim.
Percebo que Marcos está fardado, com certeza partirá para uma de suas
missões de trabalho. Perfeito! Se eu conseguir convencê-lo do meu
arrependimento e me deixar sair, os dias que ele passar fora serão mais que
suficientes para preparar a vingança que tenho em mente. Mas se eu não
conseguir, não sobreviverei muito tempo nesse lugar sem comida e água.
Quando voltar, estarei morta.
Agora é tudo ou nada! Preciso ser convincente.
— Desculpe, senhor, não deveria tê-lo tocado sem permissão! Eu
realmente preciso de um banho — sou submissa, rezando para que caia.
Marcos fica em silêncio por um tempo, pensando se me daria outra
chance ou não. Cruzo os dedos.
— Vou dar a você só mais uma chance, Anne. Estou indo para minha
missão hoje, mas deixarei os meus homens de vigia do lado de fora da casa.
Se aprontar qualquer coisa, eu volto na mesma hora e acabo com a sua raça,
ouviu bem? — Aperta minha mandíbula com tanta força que me obriga a
olhar para ele; balanço a cabeça várias vezes em afirmação.
E que a guerra comece, tenente Marcos Vargas!
— Obrigada, meu amor, você realmente é um homem incrível.
Bondoso. Prometo não o decepcionar dessa vez, darei o meu melhor para ser
digna ao posto de sua esposa. — Sorrio de dentes trincados, mas gritando de
ódio por dentro, louca para cuspir na sua cara e dizer o quanto o desprezo.
Para conter esse desejo movida pela ira, cravo minhas unhas na carne
por debaixo do vestido. É a única forma que encontro para não fazer merda, o
sofrimento faz a gente aprender que a vingança é um prato que se come frio.
— Você só vai poder comer depois que arrumar toda a casa, que está
um chiqueiro, entendeu bem? Andei fazendo algumas “festinhas” na sua
ausência.
— Como o senhor quiser, estou aqui para servi-lo. — Fico de pé, mas
mantenho as mãos juntas em frente ao corpo, e a cabeça baixa.
— Agora vai tomar banho, mulher, não estou suportando esse odor
vindo de você. — Me puxa pelo braço e me leva até o banheiro do primeiro
andar. Grosseiro, me joga debaixo do chuveiro.
Estou com tanta sede que junto as mãos debaixo do chuveiro, formando
uma pocinha de água, e bebo a água quente mesmo, esse líquido transparente
nunca me pareceu tão saboroso antes. O celular de Marcos toca e ele atende
enquanto entorna quase um vidro de sabonete líquido em mim sem se
importar que caia na minha boca e olhos, e sai para terminar a conversa na
sala. Aproveito que fico sozinha, pego diário e escondo no armário embaixo
da pia. Ainda bem que a capa é plastificada e não molha fácil. Volto para o
box e tento relaxar um pouco, tiro a roupa, me sento no chão e respiro bem
fundo de olhos fechados enquanto a chuva de gotículas cai sobre a minha
pele dolorida.
Termino o banho aliviada, a sensação de estar limpa é algo impagável,
me sinto até mais leve agora. Me enxugo de frente para o espelho da pia do
banheiro olhando o reflexo do meu corpo nu, cheio de cicatrizes e manchas
escuras. Cada uma delas significa um sorriso quebrado, que fora roubado de
mim de maneira cruel. Contudo, a mais profunda está na alma, nos pedaços
do meu coração espalhados dentro do meu peito.
— Aquela Anne que foi jogada naquele porão não existe mais, ela
morreu junto com o grande amor da sua vida — digo para mim mesma, e
enrolo a toalha em volta do meu corpo de maneira que cubra o anel preso ao
cordão no meu pescoço.
Pego uma tesoura na gaveta e começo a cortar o meu cabelo bem curto.
A cada cacho que cai no chão, uma lágrima desce junto ao lembrar de todas
as vezes que Castiel dizia o quanto amava o meu cabelo comprido, bem como
tudo que existe em mim. Se ele visse como o meu rosto está todo ferrado
agora, ficaria arrasado. Olhos vermelhos que dão a impressão das íris estarem
flutuando em um mar de sangue em volta de bolsas inchadas e escuras. Meu
maxilar tem mais partes roxas do que o normal.
Passo a língua sobre os meus lábios rachados ainda um pouco inchados,
na parte inferior tem um corte profundo. Endireito a postura ao sentir a
presença de alguém atrás de mim. É Marcos, no exato momento em que
finalizava o corte passando a máquina que usa para se barbear no número um.
Não se zanga, fica em silêncio por um tempo enquanto observa meu novo
visual.
— Até que não ficou mal, nunca gostei daquele seu cabelo ruim
mesmo. — Não sei se levo como elogio ou ofensa, tanto faz para mim.
O que Marcos acha ou não sobre mim não faz a mínima diferença, eu
gostei do meu corte novo de cabelo e é isso o que importa. Ficou bem melhor
do que eu pensei, combina com o formato redondo do meu rosto.
— Fico feliz que tenha gostado, Marcos. Tudo bem se eu for para o
meu quarto colocar uma roupa adequada para iniciar a faxina?
— Já era para ter ido, mulher. — Balanço a cabeça e saio, ele me tirou
do porão porque precisa de uma empregada para cuidar da casa enquanto
estiver fora.
Fico emocionada ao entrar no meu quarto e olhar para a minha cama,
ela guarda muitas boas lembranças de momentos íntimos meus com Castiel.
Me jogo sobre ela no lado em que o meu amor costumava dormir. Às vezes,
quando eu acordava, primeiro contornava cada traço do seu lindo rosto.
Abraço o travesseiro na esperança de sentir o seu cheiro, mas até isso o
tempo levou de mim.
No lugar tem um cheiro de perfume barato, algo cutuca as minhas
costas. Quando puxo a ponta, sai um chicote inteiro de couro com tiras na
ponta, faz parte de alguma fantasia erótica sadomasoquista.
— Filho da puta, não perdoou nem o meu quarto para fazer as suas
orgias — resmungo.
Tranco a porta e vasculho o fundo do meu guarda-roupa, onde escondo
alguns salgadinhos e chocolates, entre outras coisas com mais tempo de
validade, não é a primeira vez que Marcos me deixa sem comida, por isso
sempre deixo alguns suprimentos bem guardados para momentos caóticos
como esse. Devoro todos de uma vez só enquanto visto um conjunto de
moletom cinza, a fome é tanta que quase engasgo com uma barra de cereais.
Alimentada, desço plena para começar a faxina. Capricho na limpeza
da casa, me esforço para deixar tudo um brinco. Marcos inspecionou meu
trabalho e foi obrigado a admitir que tudo está impecável, mas não deixa de
alfinetar que poderia ter ficado melhor. À tardezinha o diabo foi para a
missão, mas não antes de deixar uma lista de exigências sobre o que eu não
posso fazer na sua ausência. Só espero virar as costas para rasgar a folha em
mil pedaços, levantando os dois dedos do meio.
— Vai se foder, Marcos! — grito de alegria.
Vou direto para a cozinha, faminta de comida de verdade, tiro tudo o
que tem na geladeira, coloco sobre a mesa e como loucamente como se não
houvesse amanhã. Só paro quando não tem espaço para mais nada no meu
estômago, levanto para lavar meu prato e, pela janela sobre a pia, vejo dois
soldados do pelotão de Marcos em um Jipe parado em frente à casa de vigia.
Dou uma de abusada e aceno para eles de longe, bater de frente com os
inimigos nem sempre é a melhor estratégia.
Deito-me no sofá e relaxo um pouco enquanto espero a noite cair.
Mantive os olhos bem abertos fixados no teto. Assim que escurece, olho pela
janela da frente e vejo os cães de guarda do meu marido ainda no mesmo
lugar. Coloco o capuz do meu moletom na cabeça e saio silenciosa pelos
fundos, sendo cuidadosa ao deixar todas as luzes da casa acesas. Preciso fazer
uma coisa que deveria ter feito há muito tempo, mas nunca é tarde para fazer
a coisa certa.
Pego um ônibus e desço no ponto em frente a um prédio ao qual já fui
várias vezes, mas voltava antes mesmo de entrar. Dessa vez não só entro,
como não peço informação a ninguém, procuro a pessoa com quem preciso
falar por conta própria.
— Ei, moça, você não pode entrar aí! — grita uma mulher correndo
atrás de mim pelo corredor extenso, com o salto fino do seu sapato batendo
no piso liso.
Quando consegue me alcançar, segura o meu braço. Viro para trás e a
fito. Assim que vê o estado desfigurado do meu rosto, me solta
imediatamente.
— A sala que está procurando é a segunda à direita, boa sorte!
— Obrigada — digo apenas e sigo o meu caminho.
Abro a porta sem bater, em um rompante, tomada por aqueles vinte
segundos de coragem, decidida a ir até as últimas consequências.
— Então, em que posso lhe ajudar? — pergunta o senhor de cabelos
escuros medianos de cabeça baixa, assinando alguns papéis. Nem fez questão
de olhar para mim.
Mal consigo vê-lo por trás de uma pilha de relatórios gigantes sobre sua
mesa, deve ser um homem muito ocupado.
— Quero denunciar o meu marido por agressão física, cárcere privado
e estupro — elevo a voz.
É indescritível o alívio que sinto ao fazer a denúncia na delegacia
contra Marcos. Onde eu estava com a cabeça que achei que não seria capaz
de vir atrás de justiça? Porque eu não vou parar até que ela seja feita.
Pela primeira vez desde que pisei nessa sala, ele ergue a cabeça e olha
para mim, vendo através do meu rosto nublado por uma mistura de lágrimas e
hematomas que eu estou falando muito sério.
— Estou feliz que veio pedir ajuda, moça. Sou o delegado Vandro de
Castro, e não vou desistir até ver o filho da puta que fez isso atrás das grades.
— Aponta para o meu olho roxo, contorcendo a boca. Realmente, não está
nada bonito.
— Mas o meu caso vai muito além de violência doméstica, delegado,
tem um possível homicídio no meio. E eu tenho um bom palpite de onde o
meu marido possa ter escondido o corpo. — Tiro o diário da Amélia de
dentro da minha blusa de moletom e o jogo sobre a mesa.
O delegado pega o caderno velho com a capa vermelha amassada e vira
para um lado e outro na tentativa de descobrir quais segredos essas folhas
amareladas guardam.
— As acusações que fez são muito graves, senhora, qual é o nome do
seu marido?
— Marcos Vargas, tenente da base do exército aqui de Campo Grande
— digo esperando que tal revelação não faça com que ele recue, é incrível o
poder que a patente do meu marido tem sobre as pessoas.
— Puta que pariu! O que esse homem tem de poderoso, tem o dobro no
tamanho do ego. Já fomos apresentados e, sinceramente, não o suporto.
— Depois do que tenho para lhe contar sobre ele, vai gostar dele menos
ainda — garanto.
— Então sente-se e fique à vontade, quero ouvir sua história desde o
começo. Gostaria de um café? — pede e eu me sento, essa conversa vai ser
longa.
Acabo aceitando o café, não sei se é a maneira como o delegado
conduz a conversa. Mas dar o meu depoimento a ele foi mais fácil do que
pensei, uma conversa que era para ser tensa foi tranquila. Suas perguntas são
diretas e precisas. Conto tudo em detalhes, desde o dia do meu casamento
com Marcos até o momento que bati na porta da sua sala.
O delegado Vandro fica perplexo com tudo que escuta. Apesar de não
simpatizar com o meu marido, não imaginava que ele é tão desprezível.
— São tantas coisas terríveis para digerir que nem sei o que dizer,
Anne. Sendo sincero, é um milagre que esteja viva — conclui estupefato. —
Posso ficar com esse diário? Vou analisá-lo com calma em casa, tem muito
material aqui para a acusação usar no julgamento. — Me encho de esperança
nele, já está pensando no caso lá na frente, isso mostra que deve ser muito
bom no que faz.
— Pode ficar com ele, delegado, só cuida com carinho, por favor —
suspiro, não queria me separar do diário, é como se houvesse uma ligação
especial entre mim e a Amélia.
De certa forma, foi através dele que nos conhecemos.
— Você disse que tem um palpite de onde ele poderia ter escondido o
corpo de Amélia, caso a tenha matado de fato?
— Meu marido mantém uma cabana caindo aos pedaços ao topo de
uma colina, um lugar assustador, parece até cenário de filme de terror.
— E o que te faz pensar que ele enterrou o corpo da Amélia nesse
lugar, Anne? Conheço muitas pessoas que mantém propriedades velhas por
não conseguir vender — questiona o delegado com a mão apoiada no queixo,
pensativo.
— Marcos só me levou nessa cabana uma vez, num dia em que
estávamos indo para o centro da cidade, e do nada mudou a rota para esse
lugar. Ordenou que eu o esperasse no carro, mas assim que saiu eu o segui.
Me escondi atrás de uma árvore e o observei de pé de braços cruzados,
olhando fixamente para o chão em uma areia gramada rindo sozinho, às vezes
mexia os lábios como se falasse com alguém. — Fico toda arrepiada, parece
até que Amélia está dentro da minha cabeça orientando o que dizer para a
encontrarmos.
— O que você disse faz muito sentido, Anne. Muitos assassinos voltam
com frequência ao local onde esconderam o corpo de suas vítimas, porque
são viciados em reviver a adrenalina do dia que cometeram o crime. No
entanto, duvido muito que consigamos um mandado de busca nesse lugar,
baseado num palpite seu. — Ergue as duas mãos para cima me olhando por
cima dos óculos. Primeiro ele me anima, depois dá o golpe de misericórdia.
— Pode parecer estranho, mas o meu coração insiste que foi lá que
enterrou a Amélia. Nunca teve certeza de uma coisa que não consegue
provar? — pergunto e ele coça o queixo, pensativo.
— Isso acontece o tempo todo na profissão que escolhi, Anne. Me dê o
endereço dessa cabana e faça um mapa improvisado do local da possível
cova. — Me dá uma folha de papel e caneta, eu pego ligeira e desenho a
planta do local da melhor maneira que posso, puxando do fundo da minha
memória cada lembrança da única vez em que estive na bendita cabana.
— Assim está bom, delegado? — Entrego a ele.
— Ótimo! Verei o que posso fazer com isso. Mas vou ser bem sincero,
Anne, para montarmos um caso sólido contra um homem poderoso como o
seu marido, precisaremos juntar o máximo de provas possível. Vou começar
com o que tenho de concreto em mãos, chamarei a médica de corpo de delito
aqui na minha sala para te examinar e deixar tudo arquivado — explica.
— Mas isso vai demorar, delegado? Marcos está em missão, mas
deixou dois dos seus cães de guarda do lado de fora de casa me vigiando, fugi
para falar com o senhor e ainda preciso passar na casa de uns amigos para
dizer pessoalmente que estou bem.
— Meu Deus! Por que não me disse isso antes, Anne? Vou ligar para a
médica agora, isso não vai levar mais de vinte minutos. — Assinto.
Ele sai da sala quando a médica do corpo de delito chega, uma senhora
de cabelos curtos brancos, baixinha, muito simpática e rápida no que faz. Me
libera em menos tempo que o delegado disse, graças a Deus.
— Muito obrigada por tudo, delegado. — Aperto sua mão, seu olhar
firme me passa muita confiança.
— Não me agradeça ainda, temos muito o que fazer até o juiz bater o
martelo e declarar Marcos Vargas culpado de todas as acusações.
— Amém — dizemos em uníssono.
— Não demore na visita aos seus amigos, e não saia mais escondida.
Nem faça ligações com o telefone residencial, todo cuidado é pouco —
orienta.
— Prometo tomar cuidado, mas como vamos nos comunicar daqui para
frente?
— Fique tranquila, darei um jeito de entrar em contato com você em
breve para dar notícias. Agora, vá logo. — Abre a porta da sua sala para mim,
vou embora confiando na sua palavra.
Capítulo 37
Anne
Anne
Não sei mais o que fazer para controlar minha ansiedade, passaram-se
dias e nada do delegado entrar em contato comigo e dar notícias, como disse
que faria. Em breve Marcos está de volta, e pelo jeito nenhuma providência
está sendo tomada. Estou até começando a acreditar que ele desistiu do meu
caso.
Delegado Vandro foi muito gentil comigo no começo, mas talvez tenha
pensado melhor e chegado à conclusão de que não vale a pena entrar em uma
briga grande dessa com um tenente do exército.
— Não surta, Anne! — digo para mim mesma na tentativa de preservar
minha sanidade, a cada dia que passa é mais difícil bancar a dona de casa
perfeita.
Pego o meu cesto de roupa lavada e vou pendurar no varal em frente à
garagem, separando por cor e tamanho. Entre duas camisas brancas, observo
um grupo de quatro menininhas fofas uniformizadas de marrom se
aproximando do meu portão.
— Ei, moça, somos escoteiros-mirins e estamos vendendo biscoitos
para pagar nossa próxima viagem. — A menina loira de olhos azuis sorri de
um jeito tão doce que é impossível dizer não, as outras três me olham como
cachorrinhos largados na esquina.
— Só um minuto, vou buscar dinheiro lá dentro e já volto. — Sorrio
para elas, que batem palmas soltando gritinhos de alegria.
Acabo comprando uma caixa inteira de biscoitos, elas insistiram para
eu pegar o sabor de hortelã com chocolate. Essas crianças merecem pela
iniciativa de pagar sua viagem com o próprio esforço.
— Posso te dar um abraço, moça? — pede a menorzinha, uma japonesa
com o cabelo preso em duas tranças laterais.
— Claro, querida, é muita gentileza sua. — Me abaixo para ficar da sua
altura. Assim que seus bracinhos envolvem meu pescoço ela sussurra:
— O delegado Vandro mandou um presente no meio dos biscoitos,
tenha um bom dia! — A pequena me solta ajeitando a boina vermelha na
cabeça, como se não tivesse me dito nada.
— Tchau, meninas, boa sorte com as vendas. — Aceno para elas até
virarem a esquina, segurando a caixa fortemente, louca para correr para
dentro de casa e abri-la.
Mas, quando giro o corpo para entrar, dou de cara com os dois soldados
estacados atrás de mim.
— Algum problema? — Arqueio a sobrancelha.
— O tenente disse para não deixar nada e nem ninguém entrar dentro
de casa sem serem revistados por nós antes, senhora — rosna o cara maior
com uma abertura enorme no meio dos dentes, mexendo, acredito que
inconscientemente, os músculos do peito a cada palavra dita.
Que nojo!
— Se dois caras desse tamanho querem passar o ridículo de revistar
uma caixa de biscoitos comprada de quatro menininhas fofas bem diante dos
olhos de vocês, por mim ok! — Ergo a caixa na direção deles sorrindo, mas
suando frio com medo que não caiam na minha provocação e abram.
Eles trocam olhares por longos segundos e voltam para o posto de vigia
sem dizerem nada.
Saio pisando firme. Depois de entrar em casa tranco a porta e me sento
no chão para abrir a caixa. Em meio aos biscoitos em formato de ursinhos
encontro um saco preto com um celular prateado novo com chip e carregador.
Assim que ligo o aparelho recebo uma mensagem de imediato.
“Você estava certa, Anne! Depois de reler o diário da Amélia de trás
para a frente, resolvi confiar no seu palpite. Foi difícil conseguir um
mandado baseado só em palavras. Mas já dei muitos motivos para receber
um voto de confiança do juiz. Com os documentos em mãos, levei alguns
policiais comigo até a cabana do seu marido. Não precisamos cavar muito
no lugar indicado para encontrar as roupas junto com os restos mortais de
Amélia, enrolados em um tapete vermelho. Agora a briga ficou boa! Temos
que deixar Marcos sem saída, quero fazê-lo confessar o crime. Posso contar
com a sua ajuda nisso?”
Releio a mensagem em choque, só tenho forças para responder de
volta:
“Topo qualquer coisa para ver Marcos sendo condenado, é só mandar
as instruções.”
Depois de enviar a mensagem, deixo o celular cair e me encolho toda
no chão, chorando de alegria e tristeza ao mesmo tempo. Agora é fato que
Amélia está morta.
— Eu sabia que íamos te encontrar, Amélia, eu sabia! — sussurro em
meio aos soluços do choro, espero que tenha paz agora e encontre sua
filhinha no paraíso.
O que me consola é saber que a família dela terá uma resposta sobre o
seu sumiço, para fazer uma despedida cheia de amor e carinho. Terão um
lugar para deixá-la descansar, e visitar sempre que sentir saudade. Para mim,
isso é o mais gratificante nessa história. Todos nós merecemos ser tratados
com respeito, antes e depois da morte.
Eu darei o meu sangue para que Marcos sofra o dobro que causou nas
pessoas, os dias de liberdade dele estão contados!
Capítulo 39
Castiel
Castiel
Minha vida de casal com Anne não demora para entrar nos eixos, nos
damos muito bem e concordamos em tudo. Trabalho junto com os operários
na construção da nossa casa, mas só aos finais de semana, porque consegui
um bom emprego como servente em uma grande empresa de obras devido às
ótimas recomendações do meu trabalho de carpintaria bem feito realizado na
casa dos antigos vizinhos de Anne. Isso é uma grande vitória para mim,
afinal, para um ex-presidiário conseguir ser contratado de carteira assinada e
com um ótimo salário é a mesma coisa que ganhar na loteria.
Eu e Anne conversamos e decidimos que só vamos nos casar daqui a
um ano, com a nossa vida estabilizada. Além do mais, fazemos questão que o
nosso filho esteja presente na cerimônia. Até lá, vamos trabalhando firme na
construção da nossa casa. Depois de pronta fizemos uma festa ao pintá-la de
laranja para combinar com as folhas secas no outono, estação onde nós nos
conhecemos. Ao lado do nosso quarto montamos um lindo para o nosso bebê.
E mais outros três para os nossos filhos que virão em breve, queremos uma
família grande.
A sala é enorme, com um piano bem no meio, que comprei em
prestações a perder de vista de presente para Anne ensinar aos nossos filhos a
tocar e cantar no coral da igreja. Ficou radiante quando o viu. Também
fizemos um cantinho para pintura, onde eu poderei fazer os meus desenhos e
pintar quadros no tempo livre. Um cômodo da casa, em especial, decorei com
carinho para quando encontrarmos minha irmã. O detetive que Anne
contratou ainda está à procura de Beatriz. Infelizmente, pelo que tem nos
informado, não achou muita coisa, pois os pais adotivos delas mudam muito.
Contudo, mantenho a fé de que a encontraremos algum dia, quando menos
esperarmos.
No dia de fazer a ultrassom para saber o sexo do bebê, eu quase enfarto
quando a doutora diz que que teremos um menino. Anne decidiu chamá-lo de
Gabriel. Disse que enquanto pensava que eu estava morto, teve um sonho
lindo comigo brincando com um garotinho no paraíso com esse nome, e que
juntos fomos procurar a “Clarinha”. Apesar de não a ter visto no sonho, disse
que quando tivéssemos uma menina daria esse nome a ela, Maria Clara.
Achei isso tudo muito incrível, ainda mais porque disse que sonhar comigo
nesse dia a salvou de um afogamento na banheira.
A barriga de Anne começou a crescer rápido depois que completou seis
meses, gosto de ler livros para Gabriel à noite. Deito minha cabeça no colo de
sua mãe e leio para o meu garoto. Já terminei a série completa do Harry
Potter, O Pequeno Príncipe, A Baleia Azul, entre tantos outros livros infantis.
Quando ele nascer, vou ler tudo novamente. Além disso, meu hobby favorito
é fazer todas as vontades de Anne, das mais simples às mais complicadas.
Apesar de que ela é modesta, não tem desejos muito extravagantes no meio
da noite. Nenhum que um homem apaixonado como eu não daria a vida, se
fosse preciso, para realizar só para vê-la feliz.
Quando a bolsa dela estourou, uma semana antes do previsto, bem em
meio a uma aula de catecismo, Jesus Cristo! Quase coloco o hospital abaixo
para que a atendessem logo. Padre Valentim me pede calma e não para de
orar desde que saímos da igreja. Joãozinho e a mãe dele vieram conosco,
rindo pelo fato de ver que Anne está mais calma do que eu, um semblante
sereno enquanto empurro sua cadeira de rodas pelo corredor para a sala de
parto.
— Agora você espera aqui, senhor, vamos preparar sua esposa para o
parto. Quando chegar a hora, volto para te buscar. — Sou barrado na porta, a
enfermeira toma o meu lugar de condutora da cadeira de rodas.
— Cuida bem dela para mim, moça — peço à enfermeira, não queria
deixar minha esposa.
— Tudo bem, amor, eu vou ficar bem — Anne me conforta, suando ao
sentir as dores das primeiras contrações.
— Vejo você e o nosso filho em breve, Anne. — Ela sorri para mim
daquele jeito que eu amo. Beijo seus lábios e seguro a sua mão até o último
segundo antes dela entrar na sala de parto.
— Ainda bem que homens não ficam grávidos, acho que não daríamos
conta na hora do parto. — Joãozinho me acompanha andando de um lado
para o outro pelo corredor à espera de ser chamado, estou ansioso demais
para ficar sentado.
Meu amiguinho se recuperou bem da cirurgia, não tem mais nem sinal
da corcunda, sua postura está ereta. Está mais confiante. Me contou outro dia
que está paquerando uma aluna nova da escola, não para de falar dessa
menina que se mudou recentemente para a cidade.
— Tem razão, carinha, eu estou pirando só de esperar. — Olho no
relógio no meu pulso, já tem duas horas que Anne entrou e nada de notícias
desde então.
— Eu estou vendo, Castiel. Parece uma galinha choca, não para um
segundo — zomba na minha cara, dou uma chave de pescoço nele e bagunço
sua cabeleira.
Enquanto brinco com Joãozinho, minha sogra aparece no final do
corredor andando depressa quase sem ar, vem até mim e pergunta sobre a
Anne.
— O bebê já nasceu, Castiel? Meu marido já está a caminho, saiu
correndo do trabalho quando soube que nossa filha entrou em trabalho de
parto — indaga.
— Não, senhora, eles vão me chamar quando iniciar o parto. Quero
estar presente quando nosso filho nascer — digo alegremente e a mulher
começa a chorar e me abraça, fico sem entender nada.
— Obrigada por não desistir da minha filha, por causa do seu bom
coração meu neto vai crescer com uma ótima referência de pai — agradece, e
peço um lenço de papel na recepção para dar a ela.
— Não precisa agradecer, senhora, vocês são minha família agora —
digo e a abraço. Ela e o senhor Manuel não são apenas sogros para mim. Me
tratam tão bem que os considero meus pais.
Eles se culpam por não terem percebido o que Anne sofria casada com
o primeiro marido. Mas tudo o que aconteceu ficou no passado, todos os
culpados já foram devidamente punidos. Marcos vai morrer na cadeia, seus
homens corruptos estão sendo julgados e a traidora da filha do prefeito ficou
louca depois da minha suposta morte. Os pais a mandaram para morar com os
tios no exterior, porém, más línguas dizem que está internada em uma clínica
para pessoas com doenças mentais. Não desejo mal a ela, mas acho justo que
cada um colha o que planta.
Quero esquecer essa gente do mal e seguir em frente ao lado da minha
mulher e filho, que está chegando ao mundo em breve, já muito amado por
todos.
— Está na hora, papai, pode entrar — a enfermeira vem avisar, passo
quase por cima dela ao entrar na sala.
Seguro a mão de Anne enquanto faz força, ela está dando o seu melhor.
De repente, um choro vigoroso de bebê começa.
— Quer segurar o seu filho, papai? Parabéns! É um garotão lindo! — O
médico entrega-me Gabriel nos braços assim que nasce, sou o primeiro a
segurar meu filho no colo.
Algumas enfermeiras ficam olhando para pai e filho de olho torto só
porque o Gabriel tem a pele bem escura. Mesmo vendo que a mãe também é
negra, ainda assim agem com preconceito. Nem me importo, dou de ombros e
volto a babar em cima do meu moleque lindo e forte.
— Bem-vindo à família, filho! — Uma lágrima cheia de amor desce
pelo meu rosto enquanto faço carinho na mãozinha dele, ele segura meu dedo
indicador com força, como se soubesse que eu o protegeria para sempre.
Gabriel tem todos os traços físicos de Anne, principalmente os lábios
pequenos, porém grossos. Cílios longos e as sobrancelhas tão cabeludas que
quase se unem como se eu e ele tivéssemos nos fundido em um só logo no
nosso primeiro contato como pai e filho. Beijei sua testa, abençoando sua
chegada ao mundo.
— Traz o nosso bebê aqui, amor, quero ver o rostinho dele — pede
uma mãe ansiosa.
— Olha, Anne, como o nosso filho é lindo, se parece com você! —
Coloco Gabriel deitado sobre o peito da mãe. Ela deposita um beijo no topo
na cabeça dele, tomada pela emoção.
— Lindo e muito amado pelos seus pais. Bem-vindo às nossas vidas,
Gabriel. — Como se tivesse ouvido as boas-vindas da mãe, nosso filho sorri
pela primeira vez, encantando toda a equipe médica.
Anne segura minha mão. Agora sim nossa família está completa.
Capítulo 44
Castiel
(Henrique e Juliano)
Anne
Castiel
“Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua
origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender,
e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar.”
Com a nossa missão cumprida, pego meu filho, coloco nos ombros e
fazemos o caminho de volta conversando animados. As duas mulheres da
nossa vida nos esperam para almoçar, cheias de amor para dar. Hoje, posso
dizer sem sombra de dúvidas que sou o homem e o pai mais feliz do mundo.
— Olha, papai, uma borboletinha. — Meu filho aponta o dedinho para
a borboleta em um único tom de vermelho vibrante voando ao nosso redor
enquanto caminhamos, seguindo nossos passos.
Paramos para observá-la melhor, ela vem voando timidamente e com
suavidade pousa no meu ombro. Sorrio com a imagem da minha esposa vindo
na cabeça, quando conheci Anne ela era como uma lagarta assustada presa
em um casulo escuro e sombrio. Aos poucos foi descobrindo sua força,
passou por grandes tempestades e quando achou que o seu mundo tinha
acabado, mesmo destruída, continuou lutando sozinha. Venceu e se
transformou em uma linda borboleta voando com suas próprias asas.
Fim
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