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O MITO DA NEUTRALIDADE RELIGIOSA

Um ensaio sobre a crença religiosa e seu papel oculto no pensamento


teórico

Roy A. Clouser
Copyright @ 2005, de University of Notre Dame
Publicado originalmente em inglês sob o título
The myth of neutrality: an essay on the hidden role of religious belief
pela University of Notre Dame,
Notre Dame, Indiana, 46556, EUA.

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por


Editora Monergismo
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Brasília, DF, Brasil — CEP 70.760-620
www.editoramonergismo.com.br
a
1 edição, 2020

Editor: Felipe Sabino de Araújo Neto


Editor assistente: Fabrício Tavares de Moraes
Tradução: Fabrício Tavares de Moraes e Rodolfo Amorim
Revisão: Fabrício Tavares de Moraes
Capa: Bárbara Lima Vasconcelos
Sumário
PREFÁCIO À EDIÇÃO REVISADA
PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO 1. O QUE É RELIGIÃO?
CAPÍTULO 2. TIPOS DE CRENÇAS RELIGIOSAS
CAPÍTULO 3. O QUE É UMA TEORIA?
CAPÍTULO 4. TEORIAS E RELIGIÃO: AS ALTERNATIVAS
CAPÍTULO 5. A IDEIA DO CONTROLE RELIGIOSO
CAPÍTULO 6. TEORIAS EM MATÉMATICA
CAPÍTULO 7. TEORIAS NA FÍSICA
CAPÍTULO 8. TEORIAS NA PSICOLOGIA
CAPÍTULO 9. A NECESSIDADE DE UM RECOMEÇO
CAPÍTULO 10. UMA TEORIA NÃO REDUCIONISTA DA REALIDADE
CAPÍTULO 11. UMA TEORIA NÃO REDUCIONISTA DA SOCIEDADE
CAPÍTULO 12. UMA TEORIA NÃO REDUCIONISTA DO ESTADO
Posfácio
PREFÁCIO À EDIÇÃO REVISADA
No início dos anos 1960, alguém cujo nome não me recordo escreveu
uma resenha crítica da obra magna de Dooyeweerd, A New Critique of
Theoretical Thought [Uma nova crítica do pensamento teórico]. O crítico
reconheceu o vasto escopo, a enorme erudição e a originalidade
impressionante daquela obra, no entanto concluiu com uma observação
irônica. Ele comentou que descobrir a obra de Dooyeweerd no clima
filosófico atual era análogo a encontrar um carvalho no meio de um deserto.
Embora não pudesse evitar a forte impressão que o carvalho ocasionara,
disse, ele estava ainda mais impressionado pelo sentimento de perplexidade
quanto ao que, afinal de contas, ele estaria fazendo ali.
Neste livro tento cultivar um oásis ao redor do carvalho para diminuir o
espanto por ele estar ali, permitindo, então, que a atenção do leitor se foque
onde deveria: na teoria filosófica mais original desde Kant.
Esta segunda edição me permitiu esclarecer alguns pontos que foram
incompreendidos, responder a objeções e oferecer argumentos mais
detalhados para as principais afirmações do livro. As maiores mudanças serão
encontradas nos capítulos 2, 4, 10, 11, 12 e 13, embora exista uma série de
mudanças menores por todo o livro. As notas são mais completas, assim
como o próprio índice.
Quero agradecer uma série de pessoas que auxiliaram nessas melhorias.
DirkStafleu e Gerald Barnes leram e comentaram todo o manuscrito,
enquanto Walter Hartt, Bruce Wearne e Martin Rice ofereceram sugestões
valiosas sobre inúmeras questões. Também quero agradecer Luz Maria
Garcia de la Sienra por seu excelente trabalho na organização e diagramação
do texto.
A primeira edição dessa obra foi dedicada ao Professor Dooyeweerd,
que suportou muitas entrevistas comigo em sua casa por quatro meses, e à
minha esposa, Anita, que as editou. Quero agora rededicar esta edição
revisada não apenas a eles, mas também aos meus mentores no decorrer dos
anos: William White, Robert Rudolph, T. Grady Spires, Johan Vander
Hoeven e James Ross. Sem sua influência, paciência e instrução, esta obra
não teria sido possível.
― Roy Clouser
Primavera de 2005
PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO
Este livro oferece uma reinterpretação radical das relações gerais
entre religião, ciência e filosofia.
Apesar do fato de que a ideia dessas relações aqui defendida seja
praticamente desconhecida entre os profissionais nessas três áreas, ela não é
historicamente nova. Pode-se traçar sua linhagem pela obra de João Calvino e
retrospectivamente à própria Bíblia. No entanto, esse é um elemento do
pensamento de João Calvino que não foi preservado pela tradição protestante
e é baseado no ensinamento bíblico que recebeu pouca atenção por parte de
pensadores judeus, cristãos e muçulmanos. No entanto, após experimentar
uma renascença conduzida pelos calvinistas holandeses Groen Van Prinsterer
e Abraham Kuyper no século XIX, essa ideia recebeu um desenvolvimento
substancial na obra dos filósofos do século XX Dirk Vollenhoven e Herman
Dooyeweerd.
E é sobre o pensamento de Dooyeweerd, em particular, que se reflete
aqui, o qual é apresentado de uma forma pensada especialmente para aqueles
que ainda não estão acostumados com seu pano de fundo calvinista holandês.
Sou grato a uma série de pessoas que leram o manuscrito em partes ou
no todo e que fizeram sugestões valiosas para seu aperfeiçoamento. Esses
incluem Johan Vander Hoeven (Universidade Livre de Amsterdã), Grady
Spires (Gordon College), Danie Strauss (Universidade de Orange Free State,
Bloemfontein), Paul Helm (Universidade de Londres), Hendrik Hart (Institute
for Christian Studies, Toronto), Rev. Richard Russell (St. Thomas a Becket
Church, Bath), Jonathan Gold (West Liberty State College), Martin Rice
(Universidade de Pittsburgh), James W. Skillen (Association for Public
Justice, Washington, D.C.) e Carole Roos, minha editora na University of
Notre Dame Press.
Outros também auxiliaram e confortaram nesse processo em sua
própria maneira: Dr. Charles Stephenson, Dale e Lorraine Fleming, o falecido
Bea Shemeley, John e Audrey Van Dyk, Gil Hunter, Arnold Olt, e o falecido
Peter Steen.
Gostaria também de expressar meus agradecimentos a algumas
instituições por seu apoio em vários estágios da pesquisa e da redação: à
Universidade da Pensilvânia pela bolsa de estudos Harrison, à Universidade
Livre de Amsterdã pelo patrocínio de duas viagens, ao Institute for Advanced
Christian Studies e à Andreas Foundation pelas bolsas concedidas.
Mas, acima de tudo, quero expressar minha mais profunda gratidão às
duas pessoas cuja ajuda foi mais significativa para esta obra. A primeira é o
falecido Herman Dooyeweerd, que suportou longas conferências comigo em
sua casa, duas a três vezes por semana, por um total de quatro meses; a
segunda é minha querida esposa, Anita, cuja edição de todo o manuscrito foi
inestimável. É a elas que essa obra é carinhosamente dedicada.
INTRODUÇÃO

Quando consideramos o que a religião e a ciência


são para a humanidade, não é exagero dizer que
o curso futuro da história depende da decisão
desta geração sobre as relações entre ambas.

Alfred North Whitehead

Em que medida a crença religiosa faz diferença à forma que as


pessoas entendem e conduzem suas vidas?
A resposta popular é que tudo depende de quão religiosa a pessoa é.
Isso praticamente não faria qualquer diferença para um ateu, enquanto um
fanático pensa e se importa com pouca coisa além disso. A resposta popular,
assim, concebe que a maioria das pessoas se enquadra entre esses dois
extremos, e considera a religião como relacionada em grande medida à
moralidade e ao destino eterno de uma pessoa, mais do que com o grosso dos
assuntos da vida. Dessa forma, os assuntos da vida do dia a dia são vistos
como neutros em relação à crença religiosa.
Como resultado da investigação sobre a crença religiosa e suas
influências por quase cinquenta anos, fui convencido de que essas opiniões
populares estão completamente equivocadas. Em lugar disso, creio que a
crença religiosa é a crença mais poderosa e influente no mundo. Penso ainda
que a crença religiosa tenha a influência singular mais decisiva sobre o
entendimento de todos em relação aos maiores temas da vida, permeando a
totalidade do espectro da experiência humana. Ademais, creio que ela exerce
tal influência sobre as pessoas independentemente de sua aceitação ou
rejeição consciente das tradições religiosas com as quais estejam
familiarizadas.
A enorme influência das crenças religiosas permanece, no entanto, em
grande medida oculta da visão ordinária. Sua relação com o restante da vida é
como aquela das grandes placas geológicas da superfície terrestre com seus
continentes e oceanos. O movimento dessas placas não é evidente a uma
inspeção visual de qualquer paisagem particular, somente podendo ser
detectada por meio de grandes dificuldades. No entanto, essas placas são tão
vastas, tão estupendas em seu poder, que seus efeitos visíveis ― a amplitude
das montanhas, terremotos e erupções vulcânicas ― são apenas manchas em
uma fina superfície comparadas com a força e poder das próprias placas. De
semelhante modo, as grandes tradições dos ensinamentos religiosos e as
instituições devotadas à sua preservação são apenas os efeitos superficiais da
crença religiosa, a qual é uma força mais vasta e ubíqua do que todos aqueles
considerados conjuntamente.
Dentre as razões dessa influência ser tão comumente ignorada é que
as pessoas tendem a dois erros sedutores sobre a crença religiosa. Um é supor
que todas as grandes tradições religiosas sejam basicamente como aquela
com a qual estamos mais acostumados. Outro é supor que a similaridade
entre as tradições religiosas deve se basear em suas características mais
óbvias e destacadas. Esses dois erros servem para manter oculta da vista a
verdadeira natureza da crença religiosa e, assim, grande parte de sua
influência.
Nossa primeira tarefa, então, será definir a natureza da crença
religiosa, buscando características comuns entre as crenças centrais das
tradições religiosas mundiais. A definição à qual chegaremos chocará muitas
pessoas como algo surpreendente, porque demonstrará uma série de crenças
como sendo religiosas, as quais no entanto não resultam em adoração. Para
aqueles sob o feitiço dos dois equívocos acima mencionados a definição irá
parecer, portanto, estranha e suspeita. Na verdade, entretanto, uma de suas
maiores contribuições está precisamente em demonstrar porque nem todas as
crenças religiosas têm rituais ou códigos éticos a elas associados. Embora
surpreendente, essa descoberta revela um enorme benefício como um
primeiro passo em direção à vasta gama de conexões insuspeitas entre os
temas geralmente tidos como religiosamente neutros e as crenças religiosas
que, de fato, guiam sua interpretação.
Ao tratar da crença religiosa como um elemento que influencia todo o
espectro da experiência humana, não desejo sugerir que falamos nossa língua
nativa ou somamos uma coluna de números de modo diferente, a depender de
nossa religião. Falar e contar geralmente se dão em um nível da experiência
em que nossa atividade e intimidade com o mundo ao nosso redor é
notoriamente o mesmo para todas as pessoas. Mas há um nível mais profundo
de entendimento que os humanos sempre buscaram, um nível em que a
natureza de nosso mundo e de nós mesmos é interpretada e explicada. Em
nossa cultura, esse nível tem sido buscado por meio de teorias. É por meio de
teorias da filosofia e das ciências que sondamos a natureza mais profunda e
construímos explicações sobre tudo o que experimentamos.
A afirmação central deste livro é de que nenhuma teoria, enquanto tal,
deixa de ser regulada e guiada por uma ou outra crença religiosa.
Para muitos leitores essa afirmação parecerá não apenas
surpreendente, mas ultrajante. As teorias científicas, especialmente, são
consideradas como as explicações mais neutras e imparciais dentre todas.
Assim, pode ser que minha afirmação tente alguns leitores a pensar que não é
possível que eu realmente esteja querendo dizer isso. Então me deixe
assegurá-los de antemão que eu não estou exagerando o ponto agora para
apenas amenizá-lo posteriormente. Não irei, por exemplo, argumentar que
todas as teorias têm suposições não comprovadas, chamar estas suposições de
“fé” e, em seguida, concluir que a crença religiosa nesse sentido influencia as
teorias. Isso seria uma grande perda de tempo. Todos na filosofia e nas
ciências sabem que as teorias têm suposições não comprovadas, mas uma
crença não é religiosa apenas porque ela não é comprovável.
Também não argumentarei que a produção de teorias é influenciada
pelas crenças morais dos teóricos, tentando assim conectar religião com
moralidade. Existem exemplos notáveis da influência moral sobre a
teorização, e alguns destes são casos nos quais a moralidade proveio
diretamente de uma tradição religiosa. Mas tal influência certamente não se
aplica a todas as teorias, e não é o que pretendo abordar com minha
afirmação. Também não farei referência ao fato de que os cientistas por vezes
têm tomado de empréstimo ideias da religião ou da teologia, as quais eles
transformam e empregam em teorias. Isso fica aquém do tipo de regulação
pela qual argumento, pois essas ideias não são pervasivas nem reguladoras.
Finalmente, a posição que será defendida não é apenas outra versão da visão
comumente sugerida de que a filosofia e a ciência são limitadas naquilo que
explicam, deixando assim lacunas em nosso entendimento que as crenças
religiosas podem preencher. Não estou meramente afirmando que teorias
“deixam espaço para a fé”, como Kant propôs. Em vez disso, argumentarei
que uma ou outra crença religiosa sempre funciona como uma pressuposição
reguladora para qualquer teoria abstrata, e que isso é inevitável não somente
em razão da presença histórico-social de tais crenças em nossa cultura, mas
porque isso se dá a partir do próprio processo de produção teórica.
Sendo mais preciso, eu argumento que uma ou outra crença religiosa
controla a produção de teorias de tal maneira que a interpretação dos
conteúdos de uma teoria difere dependendo dos conteúdos da crença
religiosa que ela pressupõe. Isso não deveria ser entendido como uma
afirmação de que as crenças religiosas de alguma forma inspiram os
pensadores a inventar precisamente a hipótese que inventam, mas que a
natureza do que quer que a teoria proponha é concebida de modo diferente,
dependendo da crença religiosa que ela pressupõe. Deveria ficar claro,
portanto, que essa não é a afirmação de que as propostas de teorias são todas
deduzidas de convicções religiosas (embora isso tenha ocorrido algumas
vezes). Em vez disso, pretendo dizer que uma ou outra crença religiosa
delimita um espectro aceitável de interpretações sobre a natureza do que quer
que uma hipótese proponha. É nesse sentido que reconheço ser a influência
da crença religiosa totalmente pervasiva. E é nesse sentido que praticamente
todas as maiores discordâncias entre teorias rivais nas ciências e na filosofia
podem, em última análise, ser retraçadas às diferenças entre as crenças
religiosas que as orientam.
Isso significa que teorias sobre matemática e física, sociologia e
economia, arte e ética, política e direito, nunca podem ser religiosamente
neutras. Cada uma delas — e todas — são reguladas por alguma crença
religiosa. É dessa forma que os efeitos das crenças religiosas estendem-se
para além da oferta de esperança para a vida após a morte, ou da influência
sobre valores e juízos morais. Ao controlarem a produção das teorias, elas
ocasionam diferenças importantes na interpretação dos temas que abrangem a
totalidade da vida.
Essa posição está fadada a provocar dura resistência da parte de muitos
círculos, e sem dúvida uma das mais fortes objeções será direcionada contra
minha afirmação de que a influência da crença religiosa se estende a todos.
Estou realmente sugerindo que todos têm uma crença religiosa, apesar de
muitas pessoas dizerem que não possuem nem desejam? Neste ponto,
também, mais uma vez discordo da opinião popular predominante. A opinião
popular diz que uma pessoa certamente sabe se ele ou ela possui uma crença
religiosa, e que qualquer um que afirma sua rejeição de todas as crenças não
pode estar equivocado acerca disso. Além do mais, diz a opinião popular, não
é simplesmente óbvio que muitas pessoas são totalmente irreligiosas?
A meu ver, essas visões populares só soam plausíveis em razão dos
dois equívocos citados anteriormente. Se a crença religiosa deve envolver
adoração e aderência a um credo, então certamente existem muitas pessoas
privadas dela. No entanto, uma vez que a definição de crença religiosa se
torna clara, e expõe-se seu envolvimento com as teorias, torna-se bastante
plausível que as pessoas podem sustentar tal crença mesmo sem estarem
conscientes disso.
Ao mesmo tempo, não tentarei provar que todas as pessoas são
religiosas de forma inata. O projeto aqui é mais modesto, mas ainda assim
significativo. O que será demonstrado é que nenhuma teoria explanatória
abstrata pode prescindir de incluir, ou pressupor, uma crença religiosa. Nesse
caso, podemos dizer que as únicas pessoas que poderiam evitar qualquer
crença religiosa são aquelas que não creem em nenhuma teoria!
Permita-me esboçar como proponho defender tal causa aparentemente
impossível.
Após definir crença religiosa, analisarei de forma atenta o que ocorre
na produção teórica, distinguindo alguns dos principais tipos de teorias,
analisando a atividade da abstração que é inevitável na construção de
qualquer teoria que seja. É o ato da abstração e seus limites que
posteriormente será exposto como aquilo que torna o envolvimento da crença
religiosa nas teorias algo inevitável. Examinaremos, em seguida, as ideias
mais populares sobre como a crença religiosa e as teorias supostamente se
relacionam, descobrindo assim porque elas são deficientes comparadas com a
influência mais extensa que veremos. Mais adiante, elucidarei mais
precisamente como a crença religiosa exerce sua influência nas teorias,
oferecendo uma amostragem de estudos de caso para ilustrar isso. As teorias
da amostragem serão algumas das mais importantes já propostas na
matemática, na física e na psicologia. Elas demonstrarão não apenas como a
influência das crenças religiosas opera, mas também deixará claro por que a
competição entre teorias nessas ciências se deve, em última instância, às
diferenças entre as crenças religiosas que cada uma delas pressupõe. Os
argumentos sobre o porquê de tal influência ser inevitável segue-se aos
capítulos dos estudos de caso, no Capítulo 10.
A descoberta dessa relação entre a crença religiosa e a produção de
teorias não é meramente um tema de curiosidade intelectual, mas é de enorme
importância para a totalidade da vida. Pois se teorias diferem de acordo com
crenças religiosas que as controlam, então existirão maneiras de interpretação
que aqueles de nós que creem em Deus deveríamos ter acerca de todas as
teorias que produzimos ou adotamos, que serão distintas das interpretações
daqueles que pressupõem alguma outra divindade. É por essa razão que o
livro conclui com o esboço de um programa para a construção de novas
teorias, ou a reinterpretação das existentes, de modo a estarem sob o controle
da crença em Deus. Isso inclui um breve esboço de uma teoria da realidade
controlada por Deus. Os resultados dessa teoria serão então explicados
aplicando-os a uma teoria da sociedade e a uma teoria política que não são
apenas teístas em termos gerais, mas especificamente cristãs. Ou seja, elas
serão orientadas não apenas pela crença em Deus, mas também por
perspectivas sobre a natureza humana, relacionamentos sociais e instituições
que são encontrados no Novo Testamento.
Quero deixar claro, portanto, que a intenção primária deste livro não é
converter leitores à crença em Deus, nem refutar o ateísmo, o agnosticismo, o
humanismo secular, ou qualquer outro “ismo”. Na medida em que tais
“ismos” são mencionados, a referência aos tais é sempre secundária ao meu
propósito principal. Este livro é endereçado àqueles que creem em Deus. Eu
escrevo aqui como um cristão buscando persuadir meus irmãos e irmãs na
família religiosa que servem ao Deus de Abraão, Isaque e Jacó, de que nossa
crença em um Criador transcendente ordena uma perspectiva distinta para a
interpretação de cada aspecto da vida. E essa perspectiva distinta estende-se à
construção e à interpretação de teorias filosóficas, científicas e todas as
outras, porque não existe área ou tema da vida que seja neutra no tocante à
crença em Deus. Ademais, escrevo a meus irmãos cristãos para demonstrar
como a interpretação basicamente teísta das teorias pode ser combinada com
os ensinamentos cristãos para o desenvolvimento de teorias especificamente
cristãs.
Eu reconheço que essa é uma posição que não tem sido defendida pela
maioria dos cristãos ou outros teístas, apesar do fato de tantos escritores
bíblicos repetidamente ensinarem que todo o conhecimento e verdade são
impactados pelo fato de ter-se o Deus correto. A falha em tomar esse ensino a
sério resultou numa longa história de cristãos e outros pensadores teístas
aceitando inconscientemente teorias que são de fato incompatíveis com a
crença em Deus. Além disso, a ausência desse insight sobre como a crença
em Deus impacta teorias é responsável por muito da atual confusão sobre a
relação entre ciência e religião bíblica. A posição defendida aqui tornará claro
por que não é verdade que ciência e religião são, por natureza, opostas uma à
outra. Mas, ao mesmo tempo, ela demonstrará por que defender que a crença
em Deus impacta todas as teorias não requer que todas elas sejam derivadas
de, ou confirmadas por, um apelo às Escrituras ou à teologia como os
fundamentalistas tentam fazer. Apresentar-se-á, portanto, uma alternativa a
todas as visões atuais prevalecentes sobre a relação geral da crença religiosa
com as teorias.
A discussão desses temas se iniciará em um nível introdutório. Ela
assume que o leitor não possui conhecimento prévio de filosofia, apenas um
pouco de ciência do ensino médio, e de que ele não é sofisticado em relação à
religião. No decorrer do livro, entretanto, cada capítulo posterior assume o
que foi ensinado nos capítulos anteriores, de modo que não será possível
entender a posição defendida nos últimos capítulos se os capítulos iniciais
forem saltados. Mesmo em seu nível mais avançado, no entanto, os pontos
mais técnicos do argumento foram inseridos nas notas para manter o texto
acessível aos não profissionais.
Manter o texto em tal nível de discussão tem obviamente suas
desvantagens. Muitos pontos que poderiam ser levantados necessitam ser
deixados de fora, e outros que são incluídos necessitam de uma análise e
argumentos mais extensos do que se pode oferecer nesse nível. Embora seja
frustrante, isso permite que a posição como um todo seja transmitida em um
livro, e que o livro seja acessível aos leitores com pouco ou nenhum
conhecimento filosófico prévio. Minha esperança é de que o tratamento dado
aos principais pontos serão detalhados de forma suficiente, indicando as
linhas gerais ao longo das quais eles poderiam ser defendidos caso a
discussão fosse mais extensa.
A despeito das limitações de se iniciar num nível introdutório, oro para
que esta obra seja capaz de sensibilizar mesmo os leitores mais sofisticados
acerca da grande influência da crença religiosa, de encorajar todos aqueles
que creem em Deus para trabalharem juntos na promoção dessa posição e de
encorajar os cristãos a desenvolverem teorias que sejam reguladas pelos
ensinamentos do Novo Testamento.
PARTE I

RELIGIÃO
CAPÍTULO 1. O QUE É RELIGIÃO?

1.1 O problema
Definir “religião” é notoriamente difícil. A palavra é utilizada em
inúmeras formas: é aplicada a rituais, organizações, crenças, doutrinas e
sentimentos assim como a tradições amplas como o hinduísmo, o budismo, o
taoísmo, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Ademais, o próprio tema
da crença religiosa é, via de regra, emocionalmente carregado. Essa
sensibilidade é natural, uma vez que a religião afeta as pessoas no nível mais
profundo de suas convicções e valores.
Para auxiliar na minimização dessas dificuldades, tenhamos em mente
dois pensamentos firmemente à medida que avançarmos. O primeiro é que
não estamos tentando estabelecer qual religião é verdadeira ou falsa, certa ou
errada. Estamos tentando chegar a um entendimento sobre o que a religião ―
qualquer religião ― é. Em resposta a essa questão apresentarei e defenderei o
que é geralmente denominado uma definição “real”, ou seja, uma definição
que é mais precisa ou científica do que aquelas empregadas no linguajar
comum. A segunda coisa a lembrarmo-nos é de que a definição que
oferecerei é direcionada a um uso particular do termo “religião”, o sentido no
qual ela qualifica crença. Dessa forma, nossa busca por uma definição de
religião será uma busca pelo que distingue uma crença religiosa de uma
crença que não é religiosa. Isto se dará assim porque considero a crença como
o elemento chave, uma vez que são crenças religiosas que induzem e guiam
pessoas, práticas, ritos, rituais e tradições que comumente denominamos
“religiosas”.
O que, pois, é uma crença religiosa? Considere a questão desta forma.
Todos temos literalmente milhares de crenças sobre milhares de coisas. Neste
momento, por exemplo, eu creio que sou parente de sangue de algumas
outras pessoas; eu creio que 1 + 1 =2; eu creio que próxima sexta-feira é dia
de pagamento, que houve uma era do gelo cerca de 20.000 anos atrás, e que
houve uma guerra civil na Inglaterra nos anos 1640. Enquanto a maioria das
pessoas concordaria que nenhuma dessas crenças é religiosa, os antigos
pitagóricos consideravam 1 + 1 = 2 como uma crença religiosa. Então
precisamos saber não apenas o que torna uma crença religiosa e outra não,
mas como pode se dar que a mesma crença pode ser religiosa para uma
pessoa e para outra não.
Conforme prosseguirmos precisamos também ter em mente o que
qualquer definição deve conter, a fim de se evitar um caráter arbitrário. Uma
definição não arbitrária deve afirmar o conjunto de características singulares
compartilhado por todas as coisas do tipo que está sendo definido. A maneira
de se fazer isso é mediante a inspeção de tantas coisas daquele tipo quanto
possível, e tentando isolar apenas a combinação de características que é
verdadeira para elas e apenas elas. Isso é algo difícil de fazer mesmo para
objetos que podemos inspecionar, como computadores ou cadeiras, mas é
ainda mais difícil para ideias abstratas tais como crenças religiosas.
O que torna tais definições possíveis é que todos podem reconhecer
coisas como sendo de certo tipo antes de sermos capazes de definir
precisamente o tipo. Todos conhecemos muitas coisas ― árvores, por
exemplo ―, muito antes de executarmos a árdua tarefa de analisar o conjunto
de características possuída por todas as árvores, mas apenas pelas árvores.
Desse modo, enquanto o processo de definição se inicia pelo exame de uma
lista abreviada inicial de coisas do tipo a ser definido, não precisamos
examinar todas elas para formular sua definição. Na verdade, não poderíamos
fazê-lo, porque necessitaríamos já possuir uma definição para decidir incluir
ou excluir qualquer caso controverso ou limítrofe. A definição se inicia, dessa
forma, examinando-se uma lista de coisas a serem definidas que exclua os
casos controversos.
Em um primeiro momento, parece uma tarefa fácil compilar uma lista
abreviada inicial relativamente incontroversa de religiões para se buscar um
elemento comum entre suas crenças centrais. Praticamente todos
concordariam que o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, juntamente com
o hinduísmo, o budismo[1] e o taoísmo, podem seguramente figurar na lista.
De igual modo, todos pensam que as crenças nos deuses olímpicos gregos, os
cultos de mistério gregos, o panteão romano, o politeísmo egípcio, ou a
antiga crença cananeia em Baal também seriam religiosas. Nem parece
questionável que ensinamentos que nunca geraram um número expressivo de
seguidores possam contar como religiões ― as antigas crenças epicuristas e
seus ensinamentos sobre os deuses, por exemplo. Na verdade, parece haver
uma “curta lista” inicial razoavelmente ampla de religiões que inclui também
o druidismo, as crenças sobre Isis e Mithra, assim como os ensinamentos do
zoroastrismo, do xintoísmo e uma série de outras candidatas. Qual, afinal de
contas, poderia ser a razão para se recusar em reconhecer que todas essas são
religiões, e seus princípios centrais crenças religiosas? Elas são (ou foram)
todas consideradas como tal por seus adeptos e os adeptos de pelo menos a
maioria delas reconhece (ou reconheceu) as outras na lista como sendo
religiões alternativas ou rivais.
Mas apesar da disponibilidade de uma lista aceitável de religiões, tem-
se mostrado excessivamente dificultoso extrair qualquer crença que elas, e
apenas elas, compartilhem em comum. Para ilustrar isso, observemos
brevemente o quão pobres são algumas das definições mais amplamente
aceitas quando aplicadas às tradições em nossa lista. Nós começaremos com
aquelas que são as ideias atuais mais populares e, em seguida, observaremos
algumas das propostas acadêmicas mais influentes.
Uma das ideias mais populares é de que as crenças religiosas são
aquelas que inspiram e sancionam algum tipo de código ético. De fato,
muitas pessoas supõem que o propósito primário da crença religiosa é
oferecer direção moral para a vida. Embora isso pareça soar como plausível,
o fato é que existem religiões em nossa lista que não incluem qualquer
ensinamento ético. O epicurismo antigo, por exemplo, não traçou qualquer
conexão entre a crença em seus deuses e deveres morais para com os outros
seres humanos. De acordo com os epicureus, os deuses não se importavam
com os assuntos humanos e assim uma pessoa poderia ser moralmente
indiferente. Outros exemplos de religiões que apresentam a mesma ausência
são a tradição xintoísta japonesa e algumas formas da antiga religião romana.
Para tornar as coisas ainda piores para essa sugestão, existem claramente
crenças não religiosas que inspiram ou incluem ensinamentos morais. Por
exemplo, existem códigos morais de honra nas escolas, clubes de esportes,
exércitos e até mesmo em organizações criminosas. Isso é suficiente para
demonstrar que mesmo se todas as religiões de fato oferecessem
ensinamentos éticos, essa característica por si só não seria suficiente para
distinguir crenças religiosas daquelas que não são religiosas.
De igual modo, nem todas as crenças religiosas inspiram adoração.
Aristóteles, por exemplo, propôs a existência de um deus supremo que
denominou o Primeiro Motor. Porém, visto que ele também defendia que
estaria aquém da natureza e da dignidade do Primeiro Motor conhecer sobre,
ou se interessar pelos, assuntos terrestres, ele considerava a adoração como
algo fútil. Os antigos epicureus mencionados acima concordavam. Também
de acordo com eles, os deuses não se importavam com nada relacionado ao
mundo. Assim, o fato de os deuses existirem interessa aos humanos, mas não
inspira adoração. Mesmo em nossos dias, existem formas de hinduísmo e
budismo nas quais não há adoração.
Às vezes sugere-se que se as últimas duas propostas fossem ampliadas
um pouco e reunificadas, elas poderiam formar uma definição bem sucedida.
Suponha que consideremos a crença religiosa como uma que produz ritual
e/ou ética, na qual o ritual pode ser de outro tipo, em vez de adoração,
especificamente. Isso não seria suficiente? A resposta é não, não seria. No
caso dos rituais, isso conduziria ao círculo vicioso de se precisar saber quais
rituais são religiosos para identificar as crenças religiosas, e de se precisar
saber quais crenças são religiosas para identificar quais rituais são religiosos.
Se existisse uma lista específica de rituais gerados apenas por crenças
religiosas, isso poderia funcionar. Mas existem muitos rituais que, em alguns
momentos, são religiosos, e em outros, não: queimar uma casa, soltar fogos
de artifício, jejum, celebrações, intercurso sexual, cantar, lavar-se, matar um
animal, matar um ser humano, comer pão e beber vinho, raspar a cabeça e
muitos outros. Assim, parece claro que a única forma de se saber se um ritual
é religioso ou não é saber o que aqueles que fazem parte nele creem acerca
dele. Se sua crença motivadora é religiosa, então o ritual também pode sê-lo.
Mas sem saber se ele é realizado por uma razão religiosa, mesmo aquilo que
se parece como um ato de oração pode ser indistinguível da fantasia ou de
alguém conversando consigo mesmo. E note que muitos dos rituais citados
acima apresentam um código ético jungido a eles quando são realizados para
propósitos não religiosos, enquanto outros são tidos como não éticos, a não
ser se realizados por razões religiosas! Rituais conduzidos por clubes com um
código ético, ou as cerimônias de posse num cargo de uma empresa, ou no
governo, que têm um código de ética são exemplos de rituais não religiosos
acompanhados de crenças éticas, enquanto o ritual da morte de um ser
humano por razões religiosas foi considerado piedoso pelos astecas que, em
outros contextos, considerariam o ato assassinato. Concluo, portanto, que
essa sugestão é insuficiente. Crenças religiosas não são necessariamente
aquelas que geram ensinamentos éticos e/ou ritos; existem crenças religiosas
que carecem de ambas e crenças não religiosas que geram ambas.
Talvez a mais difundida dentre todas as definições populares seja a de
que uma crença religiosa é a crença num Ser Supremo. Muitas pessoas não
somente parecem pensar que isso abarca todas as religiões, mas também
suspeitam que todas as religiões adorem o mesmo Ser Supremo sob
diferentes nomes. Isso é um equívoco total. Nem todas as tradições em nossa
lista incluem crenças em algo que tenha um status supremo único. Ademais,
no hinduísmo o divino (Brahman-Atman) não é sequer considerado um ser.
Em vez disso, é um “estado-de-ser”, ou um “ser-em-si” indefinido. Por essa
mesma razão Brahman-Atman não pode ser estritamente denominado um
deus, se consideramos um deus como sendo individual e pessoal. O budismo
também nega que o divino seja um ser, mas vai ainda além. Por temor de que
o “ser-em-si” seja uma expressão demasiadamente definida, ele insiste em
tais termos como “Vazio”, “Não-Ser” e “Nada” para o divino. Assim, embora
essas religiões creiam que exista uma realidade divina, elas não creem que o
divino seja sequer um ser, muito menos um ser supremo.
De forma surpreendente, algumas das tentativas acadêmicas
amplamente aceitas para se definir crença religiosa não se saem muito melhor
do que essas populares. Uma das mais influentes nos últimos cinquenta anos
é a de Paul Tillich, o qual declarou a crença religiosa ou fé como sendo
idêntico à “preocupação última”.[2] Essa expressão supostamente daria conta
de todas as religiões. Tillich defendeu que todas as pessoas estão
derradeiramente preocupadas com algo, e que o estado de preocupação
derradeira é a religião da pessoa.
Mas o que exatamente significa estar derradeiramente preocupado
com algo? A forma mais plausível de se entender a expressão é tomá-la como
se referindo ao estado de se preocupar com o que quer que seja a realidade
última. Esta concepção, embora ainda ambígua no tocante ao que
“preocupação” significa precisamente, parece incluir o lidar de alguma
maneira com a realidade última e, dessa forma, parece bastante com o que
ocorre nas religiões. Ademais, existem razões para se pensar que isso é o que
o próprio Tillich tinha como intenção.[3] Mesmo desconsiderando a
ambiguidade de “preocupação”, existe também o problema de como
definiríamos “última” para saber quais crenças e preocupações tratam de fato
sobre o que é realidade última, sendo, portanto, religiosas.
Tillich identifica o “última” com “o sagrado” e “o divino”,[4] mas
obviamente isso não é de muita ajuda. (O que esses termos significam?) No
entanto, ele complementa que o que é verdadeiramente último ― o único
objeto de preocupação última ― é o “ser-em-si”, ou o “infinito”.[5] Ademais,
ele deixa claro que o que quer que seja infinito nesse sentido deve ser
ilimitado de tal modo que nada poderia ser distinto disso. Ele pensa que se
alguém disser que Deus é último, mas também crer que o universo é uma
realidade distinta de Deus, essa pessoa seria inconsistente. Pois se houvesse
algo distinto de Deus, Deus seria então limitado por aquilo que ele não é, e,
assim, não seria infinito e realmente último. O resultado disso, diz Tillich, é
que qualquer pessoa derradeiramente preocupada com aquele tipo de deus
(um deus que é um ser em vez do ser-em-si) estaria colocando sua confiança
em algo que não é realmente último e teria, portanto, uma falsa crença (ele
denomina a isso “fé”).[6]
Mas ao entender “último” dessa forma, a definição de fé de Tillich se
torna muito limitada. Em vez de encontrar um elemento comum a todas as
crenças religiosas, Tillich acaba prescrevendo sua versão daquilo que a
verdadeira religião é. Assim, ele falha em oferecer um sentido ao “último”
que pode levar em consideração tanto crenças religiosas falsas quanto
verdadeiras. Pois se a crença religiosa é estar preocupado com o último
apenas nesse sentido, então qualquer pessoa cuja preocupação seja com algo
tido como último mas não infinito da forma que ele entende “infinito”,
simplesmente não teria qualquer crença religiosa. Tillich, portanto, definiu fé
de tal forma que apenas sua ideia de fé verdadeira é, em última análise, fé.
Dessa forma, se sua ideia de verdadeira religião está correta ou errada é algo
além de nosso escopo por ora, pois é fato que existem religiões que não
creem em algo último nesse sentido de “infinito”.
Tillich obviamente estava consciente dessa objeção, mas ele falhou em
perceber que isso era letal para sua definição. Ele tentou contornar a
relevância disso sugerindo, como indiquei acima, que as religiões
preocupadas com algo que não seja infinito no sentido pretendido por ele
tencionam sua preocupação como sendo por aquilo que é infinito, mas ficam
aquém. Sua tentativa de contornar a objeção equivale a dizer que a verdadeira
religião é a preocupação ou crença que consegue direcionar-se ao infinito, ao
passo que a falsa religião é a preocupação que tenciona direcionar-se ao
infinito, porém erra o alvo. Mas isso não é suficiente. Pois as religiões teístas
― judaísmo, cristianismo e islamismo ― abraçam a doutrina da criação
encontrada em Gênesis. Elas não tencionam, portanto, crer em algo que seja
infinito no sentido de Tillich. Em vez disso, elas creem deliberadamente em
Deus Criador, o qual é distinto do universo que criou. Elas sustentam não que
o universo seja parte de Deus, mas que dele depende para sua própria
existência, já que Deus o trouxe à existência a partir do nada. Assim, a
“preocupação última”, como Tillich a define, não é uma característica dessas
religiões e, portanto, é muito limitada para ser a definição essencial de todas
as crenças religiosas.
Outra definição acadêmica influente é esta:
Religião é a expressão simbólica diversa e a resposta apropriada
àquilo que as pessoas deliberadamente afirmam como sendo de
valor ilimitado a elas.[7]
Em outras palavras, tudo aquilo que se crê como sendo de valor irrestrito é,
pois, considerado como o centro preciso da crença religiosa. Essa definição
parece ser mais plausível do que realmente é em razão da forma que às vezes
falamos metaforicamente sobre a obsessão de uma pessoa como sua
“religião”. Por exemplo, chamamos a devoção de um fanático por seu esporte
favorito de sua religião, por causa da forma que esta devoção se parece com a
devoção religiosa de um santo ou de um profeta. Mas o fato de que o fervor
ou a dedicação de um fanático pelos esportes ser como aquela de um santo
não torna o esporte uma religião, assim como não faz com que a religião se
torne um esporte. E, além disso, existem razões ainda melhores para pensar
que essa definição não seja correta.
Um ponto em questão aqui é que existem politeísmos nos quais há
deuses que são pouco valorizados, ou até mesmo odiados.[8] Se a crença
religiosa fosse idêntica à crença naquilo que uma pessoa mais valoriza então
a crença nesses deuses teria de ser não religiosa! Mas se a crença em um deus
não é uma crença religiosa, então o que mais é? Nisto, e no que se segue,
tomarei como uma regra que não necessita de justificação, que toda definição
que assuma a crença em um deus como não religiosa torna-se com isso
desacreditada.
Tais politeísmos não são, no entanto, os únicos contra-exemplos dessa
proposta: o cristianismo também o é. Pois ao passo que é certamente verdade
que aquilo que é de supremo valor é uma parte importante do ensinamento
cristão, a ordem apropriada de valores é apresentada no Novo Testamento
como um resultado da crença em Deus, não sendo, no entanto, idêntica a esta.
O que um cristão é admoestado a valorizar acima de tudo é o favor de Deus:
o reino de Deus e a justiça que ele oferece àqueles que creem nele (Mt 6.33).
Mas o Novo Testamento também estipula que para agradar a Deus deve-se
primeiramente crer que ele existe e que é recompensador daqueles que o
buscam (Hb 11.6). Claramente, portanto, se a crença de que Deus é real e
confiável é uma pré-condição para apreciar o reino de Deus e seu favor acima
de tudo, segue-se que a crença em Deus não pode ser o mesmo que a
valorização que dela resulta. Resumindo, Deus, no ensino cristão, não é um
valor, mas o Criador de todos os valores. E a relação apropriada para com
Deus é que o amemos com todo o nosso ser, não meramente apreciemo-lo.
Assim segue-se que o cristianismo é outro contra-exemplo a essa proposta,
uma vez que definir a crença religiosa como a crença naquilo que alguém
mais valoriza faria da crença cristã em Deus uma crença não religiosa.
(Obviamente, isso não é negar que o que as pessoas mais valorizam é
geralmente um indicador daquilo que consideram como divino. Mas o fato de
o valor mais elevado de alguém poder refletir uma crença religiosa não
demonstra que ele sempre o faça, muito menos que a crença religiosa possa
ser definida por isso.)
Embora não haja espaço aqui para examinar inúmeras outras
propostas,[9] não creio que isso seja necessário uma vez que tantos estudiosos
da religião atualmente concordem que nenhuma delas logra êxito, e alguns
deles têm concluído que uma definição precisa da crença religiosa é
impossível.[10] Por conseguinte, a visão predominante nestes dias é a de que
as crenças religiosas têm apenas “semelhanças de família”, em vez de
quaisquer características comuns a todas elas. A fim de perceber por que
tantos pensadores se sentem induzidos a dizerem isso, considere os
obstáculos para se formar uma definição real. Suponha, por exemplo, que
estivéssemos tentando respondê-los que toda religião é caracterizada por uma
crença em algo como sendo divino. Isso parece verdadeiro, mas não é útil;
pois a definição simplesmente muda o problema para a definição de “divino”.
Como, eles perguntariam, localizaremos um elemento comum entre as ideias
de divindade encontradas somente nas maiores religiões do presente? Qual
elemento comum é compartilhado entre a ideia de Deus no judaísmo, no
islamismo, no cristianismo, a ideia hindu de Brahman-Atman, a ideia de
Dharmakaya no budismo mahayana e a ideia do Tao no taoísmo? Isolar um
elemento comum entre essas ideias parece desanimador o suficiente, mas
mesmo se pudéssemos fazê-lo, ainda teríamos de localizar aquele mesmo
elemento de divindade nas ideias encontradas no Egito antigo, Babilônia,
Palestina e Grécia; as divindades da China e do Japão, das Ilhas Pacíficas, da
Austrália, dos Druidas, e nas religiões tribais da África e América do Norte e
do Sul. Não está claro, eles perguntariam, que não existe uma característica
comum às divindades de todas essas tradições? Colocada somente dessa
forma, eu teria de concordar com a resposta negativa que sua pergunta
antecipa. As supostas divindades comparadas são, de fato, tão diversas que
não apresentam características comuns.
Mas antes de desistirmos de uma definição precisa, é importante
perguntarmos se a lista cujos ensinamentos estão sendo comparados é tão
inocente o quanto faz parecer. Admite-se que as crenças representadas na
lista sejam todas religiosas prima facie, mas seriam religiosas em um mesmo
sentido? Poderia ser o caso de que a lista oculte uma mudança no sentido de
“religioso” para as crenças que estão sendo comparadas? Para ser mais
específico, estou questionando se é possível que algumas crenças na lista
sejam religiosas num sentido que seja básico às outras naquela lista, de tal
forma que as outras seriam religiosas apenas em um sentido secundário. Se
for este o caso, a lista falha em distinguir as crenças que são religiosas em um
sentido primário daquelas que são religiosas apenas em um sentido
secundário, e essa poderia ser a causa da falha em se obter uma definição
precisa para a lista como um todo.
Ora, existem pelo menos dois sentidos nos quais uma crença pode ser
primária em relação à outra. Um é o sentido noético, ou seja, um sentido que
diz respeito à ordem de nossas crenças. Nesse sentido, uma crença é primária
em relação à outra quando ela é uma pressuposição necessária da outra, de tal
forma que ninguém poderia sustentar a crença secundária sem já sustentar (ou
assumir) a crença primária. O outro sentido é o ôntico, ou seja, ele diz
respeito à ordem da realidade. Nesse sentido, por sua vez, uma crença é
primária em relação à outra quando o objeto da crença secundária é assumido
como dependendo do objeto da crença primária para sua realidade. Em cada
sentido, então, o que é “primário” é uma precondição necessária para o que é
secundário. No primeiro caso, a crença primária é necessária para sustentar a
crença secundária; no segundo caso, o objeto da crença primária é tida como
sendo o que gera a realidade do objeto da crença secundária.
Minha preocupação, portanto, é se a lista abreviada de religiões com a
qual iniciamos seria de fato uma mistura de crenças secundárias com crenças
primárias. Se sim, pode ser o caso de que a busca por uma definição precisa
tenha sido abandonada prematuramente. Pois pode ser que as crenças
religiosas primárias tenham, de fato, características definidoras comuns que
as crenças secundárias não compartilham, deixando a lista inteira com apenas
semelhanças de família.
Considere a seguinte analogia a este ponto. Suponha que queiramos
definir o que se considera uma escola, e tentemos fazê-lo sob a descrição
“organização educacional”. Guiados por essa descrição, compilamos uma
lista de tantas variedades de escolas quantas pudermos pensar, mas também
incluímos em nossa lista as associações de pais e professores (APP’s)
formadas em muitas comunidades como auxiliares às suas escolas públicas
fundamentais. Suponha que tentemos, então, formar uma definição precisa de
uma escola apenas para descobrir que não há características compartilhadas
por todas as organizações em nossa lista. A razão seria porque embora
existam características comuns compartilhadas pelo jardim de infância, uma
escola básica, uma escola de ensino médio, um colégio, uma universidade,
etc., essas características não são verdadeiras no caso das APP’s. Mas as
APP’s são claramente organizações educacionais apenas no sentido
secundário daquele termo. Não podem existir APP’s a menos que existam
escolas, e não podemos crer que necessitamos de uma APP, nem formar
crenças sobre o que ela deveria fazer para apoiar uma escola, sem crermos
que temos uma escola e sem crenças sobre quais seriam as necessidades das
escolas. Está claro nesse caso que nossa falha em alcançarmos uma definição
precisa de uma escola seria o resultado de listarmos uma organização que é
educacional apenas no sentido secundário de apoiar escolas juntamente com
organizações que são educacionais no sentido primário de promover a
educação de seus estudantes. Pois ao passo que todas as escolas têm a meta
comum de prover educação, demonstrar o mesmo relacionamento geral
interno entre instrutor e estudante, e atuar com a mesma noção de autoridade
baseada na especialidade do instrutor, as APP’s não compartilham dessas
características. Por conseguinte, seria nossa falha em distinguir entre os
sentidos primário e secundário de “educacional” que teria conduzido à falsa
conclusão de que não existe definição precisa de uma escola.
Saber se foi isso o que ocorreu no caso da “crença religiosa” é uma
questão digna de ser explorada, pois muito está em jogo. Portanto,
precisamos reexaminar nossa lista inicial para ver se, dentro da mesma
tradição de pensamento e prática, algumas das crenças em nossa lista
demonstram, ou dependência de outras crenças, ou se os objetos dessas
crenças revelam dependência de objetos de outras crenças. Se esse vier a ser
o caso, podemos então remover as crenças secundárias da lista e reexaminar
as crenças primárias para ver se elas realmente têm apenas uma semelhança
de família ou se elas compartilham, afinal de contas, de algumas
características definidoras.

1.2 Uma resolução


Do que vimos até agora, uma coisa parece clara: todas as tradições religiosas
são centradas em torno do que quer que creiam como divino, embora
discordem amplamente sobre o que é divino. Por exemplo, crê-se no divino,
de formas variadas, como um criador transcendente, duas forças eternamente
opostas, um grande número de deuses, o ser-em-si, o Nada, etc. É essa grande
divergência de crenças que prejudica as definições vistas até agora, e que
levou muitos pensadores ao desespero quanto a serem capazes de apreender
um elemento comum a todas as crenças religiosas. Assim, de acordo com
essa distinção inferida ao fim da última seção, quero investigar se algumas
das crenças em nossa pequena lista são religiosas em um sentido secundário
ao invés de primário.
A resposta só pode ser “sim”. Em muitas tradições politeístas existem
relatos de como os deuses vieram a existir. Isso significa que a divindade de
tais deuses é claramente considerada como derivada e secundária se
comparada com aquilo que é divino no sentido de possuir realidade
incondicional e ser responsável por suas origens (doravante designarei isso de
status de ser divino per se). Tome, por exemplo, a descrição dos deuses da
Grécia antiga como encontrada em Hesíodo e Homero. Na descrição de
Hesíodo, apenas o mundo natural em um estado indiferenciado é o que existe;
ele existe incondicionalmente e originou a tudo o mais após ter gerado uma
lacuna entre a terra e os céus chamada Caos. Após essa mudança inicial todas
as outras formas específicas de existência foram geradas, incluindo os deuses.
De acordo com Homero, a realidade primordial era Okeanos, uma vasta
extensão de material aquoso a partir do qual surgiram todas as demais coisas,
incluindo os deuses. Apesar de suas diferenças, portanto, ambas as descrições
concordam que os deuses são dependentes de uma realidade mais básica, de
modo que os deuses são, eles mesmos, realidades derivadas.[11] É por isso que
nenhum deles ― nem todos eles conjuntamente ― poderia ser chamado
“criador” no sentido que Deus o é em Gênesis. Ademais, os deuses não são
apenas divindades secundárias em razão de sua dependência ôntica de algo
mais que seja divino per se. Eles também são secundários no sentido noético,
uma vez que as crenças sobre eles dependem da crença em Okeanos ou no
Caos. Pois não se poderia crer num ser individual como sendo um deus ― ou
seja, um ser com mais poder divino do que os humanos possuem ― a menos
que já se creia que existe uma fonte divina per se de todas as demais coisas, a
qual confere variados graus de poder a elas.
O mesmo vale para os mitos da antiga Babilônia. Neles, também, os
deuses adquirem seu status divino e poder de modo derivado. Pois, de acordo
com eles,
A origem de todas as coisas foi o caos aquoso primevo,
representado pelo par Apsu e Tiamat... com eles a teogonia
cosmogênica se inicia.[12]
Em outras tradições, os deuses são seres com mais poderes que os humanos.
Isso é verdadeiro na tradição xintoísta, por exemplo, na qual o divino per se é
denominado “Kami”. Em outras, por sua vez, o poder divino permeia todas as
coisas, mas concentra-se em objetos, locais, ou seres humanos particulares. A
noção romana antiga de númen, a ideia melanésia de mana, e as crenças
indígenas americanas em Wakan ou Orenda são exemplos disso.[13] O mesmo
ponto foi observado numa série de religiões africanas. Mesmo que algumas
delas creiam em um deus supremo, elas afirmam essa crença de uma forma
diferente daquela do teísmo bíblico, uma forma que um escritor denominou
“monoteísmo difuso”:
visto que temos aqui um monoteísmo no qual há outros poderes que
derivam o ser e autoridade da Divindade, de modo que podem ser
tratados, para propósitos práticos, quase como fins em si mesmos.
[14]

Não é necessário pontuar todos os casos de crenças secundárias na lista


abreviada, uma vez que o que é importante não é saber quantas delas
adulteram a lista, mas sim que a lista está adulterada. Isso nos tem forçado a
comparar crenças em divindades que seriam supostamente divinas per se com
crenças em divindades que se acredita deverem sua existência e poderes
sobre-humanos ao divino per se; e temos comparado crenças que dependem
de outras como seu pressuposto às crenças que são básicas. Não é de se
admirar que não encontremos características comuns de definição entre elas!
Desse modo, o que ocorre se removermos agora de nossa lista
abreviada todas as divindades que são divinas em um sentido secundário?
Não irá uma definição essencial das crenças primárias restantes ainda se
revelar uma tarefa desanimadora? Certamente a resposta é “sim”. E por essa
mesma razão quero propor nesse momento uma forma de observar as
supostas divindades restantes que nos permita focalizar aquilo que possa ser
comum a todas elas. A proposta é que pensemos no que possa ser comum às
várias divindades primárias como o status de divindade, por um lado, e
distinguir isso da descrição específica de tudo quanto é crido como ocupando
esse status, por outro. Obviamente, trata-se de um dispositivo heurístico. Não
há diferença absoluta entre o status de uma coisa e suas propriedades; seu
status certamente é uma de suas propriedades. Mas tentar pensar dessa forma
impede-nos de voltarmos a cair na adoção de uma ou outra dentre as
definições que descobrimos anteriormente serem falsas. Será de grande
auxílio focarmo-nos naquilo que, no que se refere a qualquer suposta
divindade, torná-la-ia divina per se, em vez de conduzir nosso foco sobre as
formas pelas quais os humanos podem vir a considerá-las (como objetos de
adoração, por exemplo).
Deixe-me explicar esse foco utilizando outra analogia. Se alguém
fosse questionado sobre “Quem é o presidente dos Estados Unidos?”
poderíamos, de forma apropriada, responder em uma de duas formas. Uma
forma seria descrever a pessoa que ocupa atualmente o cargo da presidência.
A outra seria dizer que o presidente é a pessoa que tem tais e tais deveres e
poderes, e então descrever o cargo da presidência. A diferença entre essas
duas formas de responder à questão “Quem é o presidente?” é semelhante à
diferença entre as duas formas pelas quais podemos responder à questão
sobre o significado do termo “divino”. Podemos perguntar “O que é divino?”
significando que queremos uma descrição daquilo que tem o status de
divindade. Ou podemos entender como uma indagação quanto à definição
daquele status, independentemente de quem ou o quê acredita-se possuí-lo. A
diferença é importante. Se uma eleição presidencial tivesse sido disputada tão
acirradamente, de modo que as pessoas discordassem sobre quem a teria
vencido, elas também discordariam, nesse caso, sobre a descrição da pessoa
que teria sido eleita para o cargo. Mas elas ainda assim concordariam sobre o
cargo para o qual a eleição fora realizada.
A questão, portanto, é: existe algo que, de uma forma paralela, possa
ser distinguido como o status da divindade per se? É possível que, embora as
ideias do que tenha status divino sejam tão diversas que pareça não existir um
elemento comum, ainda exista assim um acordo comum entre todas as
religiões sobre o que significa ser divino? Se esse for o caso, as amplas
discordâncias entre as religiões ainda seriam importantes. Elas seriam
discordâncias sobre a identificação correta sobre quem, ou o que, possui o
status divino, mas elas ainda deixariam intacto o acordo universal sobre o que
significa algo possuir tal status.
Isso, portanto, é exatamente o que penso ser o caso! Pois nunca
encontrei uma religião que deixe de manter o divino per se como sendo o que
quer que seja incondicionalmente — não dependentemente — real.
Por favor, não me entenda mal neste ponto. Não estou afirmando que
não existam quaisquer desacordos sobre o que mais é assumido como
verdadeiro acerca da divindade ao longo e acima da não dependência. Assim,
mesmo que as pessoas possam argumentar sobre o status da divindade per se,
estou dizendo que de fato todos concordam sobre a não dependência, e
apenas sobre a não dependência. Isso também não significa que cada mito, ou
escritura, ou teologia, tenha utilizado a expressão “não dependência” ou um
sinônimo para isso. Muitos o fazem, mas não todos. Alguns escritores falam
do divino como o “autoexistente”, ou “absoluto”, ou o “não causado
necessário”, ou “o há”, por exemplo. Mas outros simplesmente retraçam o
status de tudo o que não é divino a um algo original cujo status não é
enfatizado nem explicado. Em tais relatos o algo original é deixado, portanto,
no papel de não ter realidade não dependente por definição: não há nada do
qual se diga que dependa, enquanto tudo o mais depende dele. Assim, ele
recebe tacitamente o status de não dependente. Dessa forma, não importa o
quão pouco enfatizado ou provisoriamente abordado seja este ponto, o divino
ainda é tratado como não dependente no que se refere aos relatos.
Essa definição parece-me razoável, ao passo que nenhuma outra o é.
De início, ela pode explicar um elemento comum entre as crenças em Deus,
Brahman-Atman, o Dharmakaya e o Tao, que foi a breve lista anterior
aparentemente tão desanimadora. Ademais, creio que ela também cobre todas
as seguintes crenças divinas primárias: o Nam no sikhismo, Ahura Mazda
(Ohrmazd) no zoroastrismo primitivo ou Zurvan em seu desenvolvimento
posterior, o dualismo alma/matéria dos jains, o deus elevado dos aborígenes
dieri, a crença no Mana entre os nativos das ilhas Trobrian, Kami na tradição
xinto, o Raluvhimba da religião bantu, o Vazio, Talidade ou o Nada
encontrados em várias formas de budismo e a ideia de Wakan ou Orenda
presente entre várias tribos da América do Norte e do Sul. Também vale para
a antiga ideia romana de Númen, para Okeanos nos mitos de Homero e para
uma série de outras ideias. Ou, para ser mais preciso, deveria dizer que ela
cobre cada crença religiosa conhecida em relação à sua crença em algo como
o divino per se ao invés de algo que é divino apenas em um sentido
secundário.
A última observação pode induzir a uma réplica de que minha leitura
das tradições religiosas, embora ampla, não pode reivindicar ser exaustiva, de
tal modo que minha definição pode não ser baseada em uma base empírica
suficientemente ampla. A isso respondo que a definição não se baseia apenas
em minha leitura. Descobri, após desenvolvê-la, que essa definição não é
nova, mas tem muitos defensores. É baseada, portanto, não apenas em minhas
investigações, mas na leitura e experiência acumulada de muitos pensadores,
alguns dos quais citarei em breve.
Para começar, praticamente todos os filósofos pré-socráticos
concebiam o status da divindade como sendo aquilo que não depende de nada
mais para sua própria existência, e debatiam então acaloradamente sobre qual
(ou quais) realidades possuem esse status.[15] Os pitagóricos são um exemplo.
Para eles a realidade divina eram os números, pois pensavam que os objetos
de nossa experiência ordinária são compostos de números e das relações entre
eles. Ou seja, eles criam que todas as coisas são feitas de números. Em sua
visão, as combinações de números que formam objetos vêm à existência e se
vão, mas os números que se combinam para formá-los são, em última
instância, independentes e eternos. Tanto o status de divindade quanto a
atribuição desse status aos números são belamente expressos em uma de suas
orações, uma oração ao número dez:
Abençoa-nos, número divino, vós que gerastes os deuses e os
homens! Oh santo, santo tetraktys,[16] vós contendes a raiz e a fonte
da criação em eterno fluxo! Pois os números divinos se iniciam com
a unidade profunda, pura, até que cheguem ao santo quatro; e então
esse gera a mãe de todos, o todo-abrangente, todo-delimitador, o
primogênito, o que nunca se desvia, o que nunca se cansa e o santo
dez, o portador das chaves de todos.[17]
Aqui o status divino dos números é expresso como seu ser imutável e “a raiz
e a fonte” de tudo o que é mutável. Entendo que isso signifique que tudo o
mais depende dos números, enquanto eles não dependem de nada que existe.
(É nesse sentido que os pitagóricos pensavam que 1 + 1 = 2 era uma crença
religiosa, como foi mencionado anteriormente.)
Para Platão, não eram apenas os números que eram divinos, mas as
entidades que ele denominava “Formas”. Ele diz explicitamente que essas são
“autoexistentes” (Tim. 50 ss. e Phil. 53-54), e também se refere a elas como
“deuses” (Tim. 37). De igual modo, Aristóteles é tão explícito quanto
possível quanto ao significado de ser divino quando diz:
Portanto, sobre aquilo que existe de forma independente e é
imutável, existe uma ciência... E se existe tal tipo de coisa no
mundo, aqui certamente deve estar o divino, e esse deve ser o
primeiro e mais dominante princípio. (Metaphysics, l064a33 ss.)
Note que o divino é aqui caracterizado como o que quer que exista
independentemente de tudo o mais, mesmo que Aristóteles adicione que isso
também é imutável — um ponto não compartilhado universalmente. Ele
acrescenta adiante que ser o “primeiro e mais dominante princípio” significa
que ser “anterior a” tudo o mais, no sentido de que tudo o mais depende
disso.[18]
No entanto, essa visão não estava confinada à Grécia, visto que alguns
escritores bíblicos fazem assertivas que parecem pressupô-la ou implicá-la.
Uma das visões desse tipo não é outra coisa senão o ensinamento mais básico
sobre Deus, a saber, que ele é o criador de tudo o mais além de si mesmo.
Isso implica que ele é aquele de quem tudo o mais depende para existir, ao
passo que ele não depende de nada para sua existência.[19] Obviamente, Deus
também tem o status de ser redentor, ou salvador, e de ser o único digno de
adoração. Mas os escritores bíblicos consideram o fato de Deus ser o criador
como fundamental. É porque é o criador que Deus pode garantir a redenção a
todos os que creem nele, e é porque ele é o redentor que os crentes devem a
ele adoração e gratidão.[20]
Outros ensinamentos bíblicos também parecem pressupor essa
definição. Um deles é a forma que alguns escritores falam sobre se ter um
falso deus ou “ídolo”. Pois embora muitas pessoas hoje pensem no fato de se
ter um falso deus apenas como ter um salvador substituto, ou objeto de
adoração, os escritores bíblicos não denominam algo como um falso deus
apenas porque ele é adorado (e.g., alguns deles se referem à avareza como
idolatria). Em vez disso, eles denominam qualquer coisa como um falso
deus, ou um ídolo, se isto de alguma forma substitui o verdadeiro Deus.
Desse ponto de vista, portanto, ter um criador substituto é tanto ter um falso
deus quanto um salvador substituto. Isso é crucial para entender o modo pelo
qual os escritores bíblicos, a todo momento, entendem que todas as pessoas
são religiosas de forma inata — que todos têm ou o Deus verdadeiro, ou um
ídolo. Pois se ser religioso significa apenas crer em algo como salvador, ou
adorar algo, então seria claramente falso que todas as pessoas são religiosas.
Mas se isso inclui substituir Deus por algo que se acredita ser a realidade não
dependente da qual tudo o que não é divino per se depende, então não é claro
em absoluto se alguém pode evitar tais tipos de crenças.[21]
Durante a Idade Média teólogos e filósofos judeus, cristãos e
muçulmanos tenderam a perder a distinção entre o status de divindade e seu
ocupante por uma boa razão. Uma vez que todas as três religiões aceitaram o
Criador transcendente como a única divindade, a existência independente que
outros pensadores antigos haviam visto como definindo o status divino foi
naturalmente pensada como um atributo de Deus. Mas note que eles não
tomaram a autoexistência como sendo meramente um dentre muitos atributos
que Deus possui. Em vez disso, insistiam que era-lhe essencial; Deus, eles
diziam, é o Ser cuja essência é existência. Assim, eles também reconheceram
a realidade incondicional não dependente de Deus como a característica
essencial de sua divindade.
E embora os reformadores do século XVI tivessem muitas críticas à
teologia medieval, eles não tinham problemas quanto a esse ponto. Tanto
Lutero quanto Calvino afirmaram a realidade incondicional de Deus. “Não há
nada tão apropriado a Deus”, diz Calvino, “como a eternidade e
autoexistência”.[22] E, apesar do fato de que no teísmo não há diferença entre
o status ôntico da divindade e o possuidor desse status, Lutero percorreu um
longo caminho para restaurar essa distinção — que é tão útil para se entender
a crença não teísta.[23]
Por fim, apenas no último século essa definição de crença religiosa
(primária) foi reconhecida várias vezes por uma série de diferentes
pensadores, incluindo: William James, A. C. Bouquet, H. Dooyeweerd, Hans
Kung, Paul Tillich, Mircea Eliade, N. Kemp Smith, Joachim Wach, C. S.
Lewis, Will Herberg e Robert Neville, para citar apenas alguns exemplos.[24]
Essa, portanto, é minha réplica à sugestão de que minha definição
essencial de crença religiosa não é fundada em uma base empírica
suficientemente ampla. Penso que é uma forte evidência que todas essas
pessoas, apesar de suas amplamente diversas caminhadas de vida, línguas,
culturas, tempos e convicções sobre a descrição mais aprofundada do que
exatamente teria o status divino per se, concordem com a definição que
formulei como segue:
Uma crença religiosa é uma crença em algo como divino per se, não
importa como é ulteriormente descrita, na qual o “divino per se”
significa a realidade incondicionalmente não dependente.
Embora eu creia que essa definição capture o núcleo essencial da crença
religiosa em seu sentido primário, ela ainda não inclui crenças em realidades
pensadas como sendo divinas de forma dependente, em vez de divinas per se.
Ela também não cobre outras crenças que também merecem ser chamadas
“religiosas” em outros sentidos secundários. Um sentido desse tipo é que a
crença pode ser sobre como o não divino depende do divino, e outro é que a
crença pode referir-se a como os humanos chegam a se posicionar em uma
relação apropriada com a divindade per se. Tais crenças secundárias devem
também ser consideradas para que se chegue a uma definição adequada, uma
vez que são elas que constituem a maior parte do conteúdo da crença da
maioria das tradições religiosas. Por exemplo, embora o hinduísmo ensine
que Brahman-Atman é a realidade não dependente que abrange tudo o que
existe, ele também inclui crenças sobre o carma, a reencarnação e várias
formas de alcançar-se a unificação com Brahman-Atman. O cristianismo,
também, não limita seu ensinamento à doutrina de que Deus Criador não
depende em absoluto de algo; antes, inclui de igual modo crenças sobre a
aliança de Deus com os humanos, a encarnação de Deus em Jesus Cristo e a
ressurreição dos crentes para a vida eterna. Posto de forma geral, o ponto é
que o núcleo essencial da divindade nunca é o que se pensa como verdadeiro
acerca daquilo que goza desse status. O núcleo essencial da divindade é,
portanto, como um espaço vazio no qual várias ideias sobre o que o ocupa
são inseridas, e uma descrição mais ampla do que ocupa o espaço também
está associada a outras crenças, especialmente crenças sobre como se postar
numa relação apropriada com o divino.
A analogia de um espaço vazio, no entanto, não deveria ser mal
interpretada como se sugerisse que uma crença primária sobre o que a ocupa
tem prioridade temporal em relação às crenças secundárias ligadas a essa.
Não é o caso de que as pessoas primeiro localizem o espaço vazio e então
busquem a correta descrição de seu(s) ocupante(s). Antes, é a experiência
religiosa que é a fonte de ambas as crenças simultaneamente. A experiência
que se considera ter revelado o que é divino per se sempre produz alguma
descrição ampla dele para além e acima do mero status de divindade —
mesmo se essa descrição for amplamente negativa (como no budismo, por
exemplo). Por esta razão toda crença sobre a divindade per se surge
juntamente a uma ideia de como o não divino depende de fato do divino e a
uma ideia de como as pessoas podem manter uma relação apropriada com o
divino. Assim, a experiência religiosa é crucial aqui porque, falando de forma
geral, ideias sobre como se relacionar adequadamente com o divino não são
racionalmente deduzidas da descrição sobre o que é divino per se, nem são
elas puramente acidentes históricos; em vez disso, ambas provêm juntamente
da experiência religiosa.
Para ser completa, portanto, nossa definição deve ser expandida como
segue. Uma crença é uma crença religiosa desde que:
(1) seja uma crença em algo como divino per se, não importando como isso é
ulteriormente descrito, ou
(2) seja uma crença sobre como o não divino depende do divino per se, ou
(3) seja uma crença sobre como os humanos alcançam uma relação
apropriada com o divino per se
(4) na qual o núcleo essencial da divindade per se deve possuir o status de
realidade incondicionalmente não dependente.
Duas observações se fazem imediatamente necessárias. A primeira é que
embora eu tenha chamado as crenças definidas em (2) e (3) acima de
“crenças secundárias”, não foi com a intenção de diminuir sua importância.
Como dizia pouco antes da definição expandida, elas são secundárias
somente na medida em que nos interessa a busca por uma definição essencial
de crenças religiosas, mas não na vida e prática religiosa reais. Na vida e
prática reais os ensinamentos sobre o que é divino per se estão sempre
embutidos nos ensinamentos secundários dos tipos (2) e (3), e aqueles do
tipo (3) devem possibilitar que os seres humanos adquiram a plena realização
da verdadeira natureza humana. Eu já havia argumentado que crenças do tipo
(3) não são deduzidas (nem tidas como dedutíveis) da descrição daquilo que
tem status divino per se. Assim, deve-se notar neste ponto, em contrapartida,
que a relação dos tipos de crenças (2) com aquelas do tipo (1) é geralmente
uma mescla de implicação lógica e experiência religiosa. Isso ocorre porque
a descrição daquilo que tem o status divino per se não pode deixar de possuir
algumas implicações para uma visão da natureza humana, da felicidade e do
destino.
A segunda observação é que deveria estar claro agora porque e como
incluir crenças em deuses que não são divinos per se arruinou a lista
abreviada de crenças utilizada como tentativa de uma definição essencial de
crença religiosa. Essas crenças podem, pois, ser vistas como genuinamente
religiosas, mas apenas num sentido secundário, apesar do fato de que muitas
das tradições nas quais elas ocorreram dedicou pouquíssima atenção àquilo
que se considerou divino per se.[25] Os deuses nessas tradições assumiram
todo o foco da atenção porque eram o único caminho por meio do qual os
humanos poderiam se relacionar com a divindade per se, ou seja,
indiretamente. Foi precisamente em razão de sua enorme importância prática,
que as crenças em tais deuses serviram para obscurecer aquilo que era
essencial à divindade per se. Ao mesmo tempo, isso também resultou numa
desconsideração suficientemente séria para com a mudança óbvia de sentido
que o termo “deus” adquiria, dependendo se implicava o que é divino per se,
como ocorre no teísmo, ou se implicava uma realidade que mediava o divino
per se ao possuir mais poder divino do que os humanos, como ocorre no
politeísmo.

1.3 Alguns esclarecimentos


Distinguir o sentido primário do secundário de crenças religiosas nos
possibilita, doravante, evitar outros tipos de confusões que geralmente se dão
em relação às crenças religiosas. Uma dessas é a forma que as pessoas
geralmente denominam uma crença “religiosa” quando essa não é uma crença
primária nem secundária, mas meramente alterada ou influenciada por uma.
Considere, por exemplo, a crença de judeus e cristãos de que a escravidão é
errada. Essa convicção não é parte da ideia judaico-cristã de Deus, nem é
explicitamente afirmada na Torá, nos Profetas, ou no Novo Testamento. Mas
quando judeus e cristãos examinaram a instituição da escravidão à luz de suas
crenças religiosas primárias e secundárias, eles quase universalmente a
rejeitaram como incompatível com a perspectiva de justiça social produzida
por aquelas crenças. Essa influência foi de tal maneira indireta que em alguns
lugares levou tempo considerável para que essa perspectiva surtisse efeito.
Meu ponto aqui é simplesmente advertir que quando pessoas veem tal
associação entre um ensinamento religioso e outra crença, elas tendem
frequentemente a exagerar e a identificar a crença influenciada como sendo,
ela mesma, uma crença religiosa. (Isso na verdade ocorreu durante o
movimento anti-escravagista nos EUA.) Embora a influência de uma crença
religiosa em crenças não religiosas possa ser bastante significativa, ainda é
conceitualmente importante não confundir as duas; uma crença não é em si
mesma religiosa somente por ter sido influenciada por uma que o seja.
Note também que não há nada nessa definição que exija a existência
de apenas uma divindade per se. Em muitas religiões existem duas ou mais
divindades, e pode-se conceber que se relacionam-se uma com a outra e com
o mundo não divino de várias maneiras. Por exemplo, pode haver algo, X,
que é considerado como sendo incondicionalmente real. Mas não há motivo
para que essa crença não seja associada à crença em duas outras realidades, Y
e Z, nenhuma das quais é incondicional em si mesma, mas que,
conjuntamente, formam uma segunda realidade incondicional. Nesse caso, X
e YZ seriam considerados como divino per se, e tal crença equivaleria a uma
religião dualista na qual um dos dois princípios divinos é, ele próprio,
subdividido. Ademais, existem de fato religiões que creem em todo um
domínio de seres em que cada um dos quais é considerado como tendo
existência incondicional, não dependente, e não vejo incoerência lógica em
tal posição. E, é claro, poderia haver um número ilimitado de indivíduos tidos
como divinos num sentido secundário, dependente.
Além disso, sempre que se crê em mais de uma divindade per se, é
possível pensar na dependência do não divino em relação ao divino de várias
maneiras diferentes. Por exemplo, uma religião poderia ensinar que uma parte
do mundo não divino depende de uma divindade, enquanto outra parte
depende de outra divindade. Ou uma religião poderia ensinar que uma parte
de cada coisa não divina depende de uma divindade, ao passo que o resto de
cada coisa não divina depende de outra divindade. Assim, embora a soma
total do que não é divino per se sempre dependa de pelo menos alguma(s)
parte(s) daquilo que é divino, as formas de analisar-se a dependência do não
divino em relação ao divino podem variar imensamente. Demonstrarei em
detalhes os “arranjos de dependência” mais amplamente difundidos no
próximo capítulo.
O modo que essa definição permite variações nos arranjos de
dependência divino/não divino também serve para explicar um ponto que é
problemático para as demais definições. Com isso refiro-me ao fato
mencionado anteriormente de que existem religiões que creem em divindades
das quais pouco, ou mesmo nada, de nosso mundo diário depende. Nessas
religiões algo é considerado divino, mas não é estimado nem adorado por
seus fiéis, já que ou é indiferente em relação às suas vidas, ou temido, ou
mesmo odiado. Já assinalamos algumas tradições nas quais existem deuses
que são vistos como a fonte do mal, por exemplo. Em tais casos, se
“divindade” é utilizado como um termo de honra, pode-se até mesmo deixar
de referir-se a tais deuses como divinos. Mas isso não muda o fato de que
estão sendo considerados divinos num dos sentidos definidos acima, e assim
não alterará o fato de que a crença neles é religiosa. Mais uma vez: o que
torna algo divino não é se este é pessoal, ou bom, ou amado, ou adorado, mas
se é considerado como incondicionalmente real, ou se possui mais poder
divino que os humanos. E é assim mesmo se uma divindade não for honrada
(pense na afirmação de Tiago 2.19 de que mesmo os demônios creem na
existência de Deus, ainda que não o amem nem o sirvam.)
Quanto a isso, sugere-se às vezes que talvez nem todas as religiões
tenham um arranjo de dependência. Afinal, não existem religiões que
ensinam que tudo é divino? Neste caso não seria verdade que não existe uma
realidade não divina que dependa do divino? Por exemplo, há pessoas que
dizem crer que “toda a natureza é deus e tudo em deus é a natureza”. E não
ensina o hinduísmo e o budismo que na realidade existe apenas o divino?
Antes de prosseguir em minha resposta, quero dizer que mesmo se
isso fosse verdadeiro, não seria realmente uma objeção à minha definição de
crença religiosa. De acordo com a definição, algo é considerado como divino
per se somente se se lhe atribui realidade totalmente não dependente, quer
outras coisas dependam dele ou não. A razão pela qual a questão dos arranjos
de dependência surge na discussão é que grande parte das crenças religiosas
reconhecem de fato que existem tanto a realidade divina quanto a não divina,
e usam essa dependência como a explicação tanto para a existência do não
divino quanto como um contraste que auxilia a identificar o divino. Assim,
mesmo se alguém propusesse a posição estranhamente bizarra de que tudo e
cada coisa no universo é autoexistente, tornando assim tudo divino, isso não
exporia qualquer fraqueza em minha definição.
A razão pela qual eu digo que negar toda realidade não divina, seja
qual for ela, é implausível, é porque é bastante evidente que as coisas que
observamos no dia a dia podem vir à existência e deixar de existir. Todas as
coisas, eventos e situações são, portanto, diretamente experienciadas como
não divinas. Desse modo, se alguém cresse que não existe algo além do
universo natural (tornando-o divino, uma vez que não haveria nada do qual
ele dependesse), essa pessoa ainda teria de admitir que as coisas que
observamos no universo não são divinas. É por essa razão que tal crença
ainda exigiria uma ideia sobre como as coisas individuais, não divinas, no
universo, dependem do universo (divino) como um todo. E essa ideia
equivaleria a um arranjo de dependência.
No hinduísmo e no budismo, no entanto, a evidente não divindade das
coisas individuais em nossa experiência ordinária é considerada como Maya,
ou ilusão. Assim, essas tradições chegam perto da negação de qualquer
realidade não divina. Mas note que denominar algo uma “ilusão” não se livra
disso totalmente; é simplesmente uma forma de dizer que isso não é o que
parece ser. Pois para haver uma ilusão, ainda deve existir algo que não é o
que parece ser. Esboçando dessa forma a distinção entre o mundo ilusório e a
realidade divina ainda deixa sem explicação a dependência de Maya em
relação ao divino. O hinduísmo lida explicitamente com esse problema
ensinando que Brahman-Atman gera o mundo ilusório, enquanto o budismo
evita o tema sobre a base de que não é saudável sequer pensar sobre o mundo
ilusório.[26] Mas nem a pessoa que assume que o universo como um todo é
divino, nem a doutrina hindu/budista da Maya, coloca qualquer dificuldade
para a definição que estou defendendo.
Muito pelo contrário, nossa definição pode ser utilizada para resolver
a questão assinalada anteriormente em relação a se o budismo Theravada é,
de fato, uma religião. Uma série de estudiosos duvidaram disso porque Buda
uma vez disse que ele não sabia, nem mesmo se importava, se quaisquer
deuses existiam, e porque a tradição Theravada mantém essa mesma atitude.
No entanto, em nossa definição, o budismo Theravada é confirmado como
uma religião, apesar do fato de que alguns budistas Theravadas tenham dito
que sua crença não é uma religião. Pois certamente nenhum deles diria que o
Nada no qual todos serão reabsorvidos (o estado de Nirvana) depende de
qualquer coisa que exista. Também não concordariam que o estado de
Nirvana seja literalmente nada; antes, é o estado de “felicidade indizível”.
Ademais, os budistas Theravada concordam que estão engajados em suas
disciplinas e meditações com o propósito de alcançar a relação correta com o
divino, uma vez que a relação correta é o estado de Nirvana. Aparentemente,
então, a negação Theravada foi motivada pela crença ocidental popular de
que uma religião deve incluir uma divindade individual e adoração, ao passo
que eles negam ambos.[27]
1.4 Respostas a objeções
A primeira objeção que geralmente ouço a essa definição é o desconforto que
ela produz meramente por sua diferença das formas ordinárias que as pessoas
utilizam os termos “religioso” e “crenças religiosas”. Afinal de contas, em
minha definição verifica-se que ética e adoração não são essenciais à religião.
Posso entender prontamente por que isso pode ser perturbador, mas
devo lembrá-los de que definições essenciais quase sempre produzem tal
desconforto. Considere o exemplo das baleias. Muitos anos atrás elas eram
definidas como peixes. As razões para isso eram que elas tinham a forma de
peixes, viviam em oceanos como peixes e nadavam como peixes. Mas após
os cientistas terem adquirido mais conhecimento sobre elas, redefiniram-nas
como mamíferos. Aprendemos que elas tinham sangue quente, que careciam
de brânquias e respiravam ar, carregavam seus filhotes novos e cuidavam
deles. Assim, apesar de suas caudas e barbatanas, e apesar do fato de viverem
nas águas, elas têm mais em comum com mamíferos do que com peixes.
Talvez isso tenha sido perturbador para algumas pessoas quando foi proposto,
já que isto significa que os corpos das baleias têm mais em comum com os
corpos humanos do que com os corpos dos peixes! Mas uma definição não
está errada apenas porque é incômoda ou porque não é o que pensávamos ser
verdade. Formamos as definições a fim de aprendermos mais sobre o que
estamos tentando definir, e isso também pode significar corrigir algo que
pensamos equivocadamente ser verdadeiro. E há agora tantas boas razões
para aceitar a crença religiosa (primária) como sendo crença em algo como
divino per se quantas existiram para redefinir baleias como mamíferos.
Tenha também em mente que sempre que tentamos definir um tipo de
coisa de forma precisa, a definição quase certamente deixará de fora muitas
características que regularmente associamos com coisas daquele tipo. Quando
pensamos em árvores, por exemplo, geralmente pensamos em sua folhagem.
Mas essa não é parte da definição de uma árvore; algumas árvores não têm
qualquer folha. De semelhante modo, podem haver características das coisas
que geralmente não pensamos ser importantes, mas que acabam por ser as
características definidoras de seu tipo. É verdade, obviamente, que as
definições pré-científicas podem oferecer valor prático na vida diária. Não
estou propondo que elas sejam abandonadas. Estou apenas dizendo que
definições científicas podem servir para refinar nossas noções ordinárias das
coisas e nos permitir uma maior precisão que não deveria ser rejeitada apenas
porque as definições mais precisas diferem de nossas noções ordinárias.
O segundo ponto a ser feito sobre essa objeção é que ela parte do fato
de que, na cultura ocidental, as ideias de grande parte das pessoas sobre
religião são derivadas das tradições judaica, cristã e islâmica. Em certo
sentido é bem compreensível. É razoável que (em um primeiro momento)
pensemos em crenças religiosas de formas derivadas daquelas que nos são
mais familiares. Mas não é razoável insistir que todas as crenças religiosas
devem ser como aquelas com as quais somos familiares após sermos
confrontados com outras que são bastante distintas. Esse ponto é
especialmente pertinente à objeção de que a definição aqui defendida não
inclui a adoração como essencial à crença religiosa. Muitas pessoas adotaram
de forma tão forte a associação entre crença religiosa e adoração que elas
querem rejeitar essa definição de “divino” apenas por essa razão. Tudo o que
posso dizer em relação a isso é que existem crenças religiosas integradas em
tradições cultuais que não praticam adoração, como o hinduísmo brâmane e o
budismo Theravada.
O caso do budismo Theravada também é instrutivo quando
questionamos se faz sentido dizer que uma pessoa pode ser ateia, mas, ainda
assim, ter uma crença religiosa. Já vimos por que as pessoas que creem, por
exemplo, em números, ou em uma realidade não individual e impessoal,
como sendo não dependentes, têm uma crença religiosa da mesma forma que
uma pessoa é devotada a um Deus ou a deuses pessoais. E vimos por que a
marca de uma crença genuinamente religiosa não é se o objeto da crença é
idêntico à divindade da religião com a qual um grupo de pessoas esteja mais
familiarizada. Pessoas sob o feitiço desse equívoco geralmente assumem que
crenças como o materialismo sejam o exato oposto da religião. Mas isso não
é sequer plausível nessa definição ― e não apenas por causa dessa definição.
No mundo antigo havia religiões de mistério gregas nas quais o divino era
crido como sendo o “o fluxo eterno da vida e da matéria”. E ainda existe uma
forma de hinduísmo na qual Brâman-Atman é identificado com a matéria.
Nem se pode objetar que os materialistas sejam quase sempre também ateus.
Deveria estar claro até o momento por que muitas pessoas podem ser
corretamente chamadas de ateus, mas ainda assim terem uma crença
religiosa. No sentido estrito, “ateu” significa “não há deus”, e é a negação de
que tanto o Deus bíblico quanto outros deuses existam. Mas nossa definição
demonstrou por que um indivíduo que crê em algo como sendo não
dependente tem uma crença religiosa, seja esta num deus ou não. Nesse
tocante, ser um ateu é como ser um vegetariano. Se eu sei que alguém é um
vegetariano, sei o que aquela pessoa não quer comer, mas não o que aquela
pessoa quer de fato comer. De igual modo, se sei que uma pessoa é um ateu,
sei no que aquela pessoa não crê como sendo divino, mas isso não me diz
nada sobre o que ele/ela crê como sendo o divino. (“Ateu” no sentido amplo
de negar o que quer que seja como divino per se é uma posição que, no
próximo capítulo, demonstrarei ser incoerente).
Para aqueles que pensam que esse ponto seja questionável o principal
obstáculo parece ser, mais uma vez, a suposição de que uma verdadeira
crença religiosa teria de resultar em adoração, mesmo que ela não seja
promulgada por um grupo organizado dedicado àquela crença sobre a
divindade. E certamente existem boas razões para a forte associação da
adoração com crenças religiosas. Sentimentos de admiração e respeito
parecem ser reações humanas naturais à experiência de algo como divino per
se, e adoração é uma expressão natural para tais sentimentos. No entanto,
existem ― como já vimos — tradições que evitam essa tendência natural. A
razão pela qual isso faz sentido para eles é simples: a adoração é certamente
apropriada quando o divino é pensado como pessoal (ou personificado).
Nesse caso expressões de gratidão, por exemplo, seriam parte de um
relacionamento pessoal. Mas monges Theravada e sacerdotes Brâmane não
creem que o divino seja pessoal, então eles não adoram. Semelhantemente, o
materialista que considera a matéria física como autoexistente pode não ser
induzido por essa crença a orar para partículas subatômicas, ou a entoar hinos
aos campos de força. Nem um racionalista moderno que considera, digamos,
leis matemáticas como autoexistentes, estará inclinado a desenvolver uma
liturgia de Adoração Quantitativa para seu culto — embora os pitagóricos
tenham feito justamente isso, como já vimos. No entanto, essas crenças
atribuem à matéria ou às leis matemáticas, respectivamente, o mesmo status
não dependente que um judeu, um cristão ou um muçulmano atribuem a
Deus, ou um hindu atribui a Brâman-Atman. Em vez de não terem qualquer
religião, tais pessoas simplesmente têm uma ideia bastante diferente sobre
aquilo que é divino, uma ideia que faz com que a adoração pareça
inapropriada.
Uma vez que esse último ponto apresenta uma implicação de tão
amplo alcance para a relação entre crença religiosa e as teorias, e portanto a
tese central deste livro, até o momento somente a apresentei e retomá-la-ei
posteriormente para lidar com objeções levantadas contra essa em uma seção
separada ao fim deste capítulo.
Outra ressalva que tem sido levantada sobre essa definição é a
preocupação de que assumir crenças religiosas primárias como sendo o foco
correto de atenção poderia reduzir a religião a algo mental. Isso poderia
desvalorizar a adoração e outras práticas que são tão reais como parte da
religião quanto o é a própria crença. E alguns críticos chegaram a sugerir que
começar com a crença como o ponto chave é um equívoco, pois excluiria a
possibilidade de que a religião possa ser estudada por um historiador ou um
sociólogo, por exemplo.
Primeiramente, devo dizer que essa não é de fato uma objeção à
minha definição. A definição poderia estar correta mesmo que se não fosse
correta a ideia de que focalizar na crença poderia conduzir ao risco de se
desvalorizar outros lados da vida e da prática religiosas. No entanto a
definição é, da maneira que eu enxergo, inocente em relação a essa acusação.
Ela não reduz a religião a algo mental, se “reduzir” significar que a religião
seja restrita ao mental. Argumento que são apenas os seres humanos que são
religiosos em um sentido não qualificado, e que são suas crenças divinas per
se que constituem a manifestação primária dessa qualificação. Todas as
outras coisas que podem ser chamadas religiosas o são em um sentido
derivado da condição religiosa da natureza humana como expressa em
crenças divinas per se. Mas isso não significa que não existam coisas não
mentais que adquiram significância genuinamente religiosa em relação
àquelas crenças e às pessoas que as possuem. Por essa mesma razão, também
não é verdade que minha definição exclua estudos da religião históricos,
sociológicos ou de outros tipos. O que a definição de fato demonstra, no
entanto, é que para que esses estudos sejam exitosos, precisamos ser capazes
de reconhecer quais crenças são religiosas, e como os eventos históricos ou
os grupos sociais se relacionam com elas. Pois a menos que sejamos capazes
de distinguir uma crença religiosa de uma não religiosa, e a menos que
possamos descobrir o conteúdo da crença religiosa mantida pelas pessoas
participando nas práticas ou instituições que queremos estudar, nunca
poderemos estar certos se uma prática ou instituição é religiosa, ou em qual
sentido específico ela o é (pense novamente no grande número de práticas
citadas anteriormente que podem ou não ser religiosas).
O fato de que somos às vezes capazes de inferir que certas práticas ou
instituições são religiosas, mesmo quando não podemos descobrir as crenças
que lhes são subjacentes, não conta como algo contrário a esse último ponto.
Às vezes podemos, de fato, inferir que certas ações correspondem à adoração
mesmo se estivermos observando pessoas cujas vestes são estranhas e cuja
língua não falamos. Mas podemos fazer isso apenas em razão da semelhança
entre suas ações e as ações de outros as quais nós já conhecemos como sendo
adoração. Assim, ainda é verdade que podemos reconhecer práticas ou
instituições como religiosas apenas conhecendo sua relação com as crenças
religiosas primárias ou secundárias, quer conhecendo-as diretamente ou
inferindo-as por analogia.
Por essas razões, concluo não somente que minha definição não
impossibilita estudos sociológicos ou históricos da religião, mas que só ela
possibilita saber quando uma prática ou instituição se qualifica como
especificamente religiosa. Para ver como isso ocorre, no entanto, é
importante ter em mente que ainda estamos falando aqui se uma prática ou
organização é ou não religiosa porque qualificada por uma (3) crença
secundária típica (como já mencionado, apenas pessoas e suas crenças
divinas de tipo (1) são religiosas no sentido primário).
Nesse sentido, uma instituição ou prática é religiosa se seu propósito
central é auxiliar pessoas a estarem em uma relação correta com o divino.
Assim, uma igreja, uma sinagoga, uma mesquita, ou um templo, seriam
instituições especificamente religiosas, como o seria um acampamento para o
aperfeiçoamento religioso dos participantes. Da mesma forma, orações,
jejuns, sacrifícios, ou a celebração de um dia santo seriam todos contados
como práticas religiosas se feitas pela mesma razão. Em contrapartida, uma
família, uma escola, um negócio, ou governo, mesmo que geridos de forma
distinta devido à influência de uma crença religiosa, não seriam instituições
religiosas.[28] Uma escola que inclui — ou mesmo defenda — uma crença
religiosa particular está certamente sob influência religiosa, assim como um
governo que proíba a poligamia, ou uma corporação que conceda aos seus
empregados um feriado religioso. Tais influências, no entanto, não seriam
suficientes para fazer que tais organizações sejam consideradas como
especificamente religiosas, uma vez que em cada caso o propósito central
dessas instituições permanece sendo educar, governar, ou oferecer empregos,
em vez de auxiliar pessoas a estarem numa relação correta com o divino. É
dessa forma que minha definição é capaz de oferecer uma importante chave
interpretativa para estudos históricos e sociológicos da religião.
Com essas respostas às objeções, podemos dizer agora que as
definições apresentadas para crenças primárias e secundárias, e para o divino
per se, foram comprovadas para além de qualquer dúvida? Isso, penso eu,
seria uma declaração exagerada. Poucas definições podem ser comprovadas
conclusivamente. Então a questão deveria ser: as definições aqui defendidas
foram estabelecidas como tendo evidências em preponderância a seu favor,
sendo melhores do que quaisquer outras, e muito provavelmente corretas? Eu
devo confessar que penso dessa forma. Não conheço uma tradição religiosa à
qual elas não se apliquem, assim como os outros pensadores que defenderam
essa visão. Ademais, não consigo pensar em quaisquer ensinamentos ou
crenças claramente não religiosos aos quais as definições aqui defendidas
iriam classificar inapropriadamente como religiosos (ponto o qual prometi
defender com mais detalhes ao final deste capítulo). Dessa forma, mantenho
que a definição de crença religiosa defendida aqui é a melhor maneira de
entender crença religiosa e se confirmará como correta em tudo o que se
segue, a não ser que possa ser demonstrado algo em contrário.

1.5 Algumas definições auxiliares


Nesse momento, os termos mais importantes utilizados em associação com
crença religiosa e que ainda não foram esclarecidas são “fé” e “confiança”.
Ao esclarecer esses termos irei novamente focar nas formas em que são
utilizados no que diz respeito às crenças. Assumirei também a posição de que
uma crença é uma disposição adquirida para confiar em um conceito sobre
certo estado de coisas como correspondendo àquilo que de fato é o caso, e
pensar, falar, agir ou sustentar outras crenças de tal maneiras que confiem que
a expressão linguística do conceito afirma aquilo que de fato é o caso.
Tendo dito isso, deve-se notar que utilizei o termo “confiança” em um
sentido mais amplo daquele de seu uso ordinário em português, porque o
apliquei a todas as crenças. De acordo com o uso ordinário, no entanto, a
palavra “crença” tem uma aplicação mais ampla do que em relação à
“confiança” ou “fé”, uma vez que as últimas são utilizadas apenas em
conexão com crenças consideradas como desejáveis. Assim, é bastante
comum para um indivíduo dizer, por exemplo, que crê que seu diagnóstico
médico será ruim, ou que crê que está em vias de ser demitido; no entanto,
não seria um uso comum se ele dissesse que confia que seu relatório médico
será ruim, ou que tem fé de que esteja em vias de ser demitida. Ademais, “fé”
e “confiança” são geralmente restritas às crenças que manifestam uma forte
dependência naquilo que é crido, o que é ainda outra característica que não
surge em conexão a qualquer ato de crença. Por exemplo, creio que houve
uma era glacial há cerca de 20.000 anos sem depender pessoalmente dessa
crença de algum modo que faça diferença prática para mim. Nessa questão,
deve-se pois especificar que na circunscrição de “crença” oferecida no último
parágrafo, não estava empregando essas restrições sobre o termo “confiança”
tão comumente encontradas no uso comum. Em vez disso, eu a utilizei como
significando nossa confiança sobre um conceito como verdadeiro, estejamos
ou não considerando o que é crido como sendo desejável. Por essa razão
crenças sobre a divindade per se, sejam ou não consideradas como verdades
desejáveis, irão todas envolver confiança na medida em que utilizo aquele
termo. E, é claro, elas têm resultados práticos imensamente importantes para
as vidas daqueles que creem.
Contudo, a confiança religiosa possui ao menos um traço que não se
aplica à confiança não religiosa, a saber, a confiança religiosa em algo como
divino per se sempre assume seu objeto como sendo incondicionalmente
confiável, ao passo que a confiança não religiosa é geralmente exercida com
reservas de que seu objeto seja condicionado às circunstâncias que podem
afetar sua confiabilidade. Reformulando uma frase de Lutero citada
anteriormente: tudo ao qual nosso coração se apegue e se entregue como
incondicionalmente confiável é de fato nosso Deus (nossa divindade per se).
Isso não pode deixar de ser correto dada a nossa definição de “divino”. Pois
nada poderia ser incondicionalmente confiável a menos que tivesse uma
realidade incondicional. Desse modo, considerar algo como
incondicionalmente confiável pressupõe-no como divino no sentido proposto
por nossa definição. E esse permanece sendo o caso, quer os sentimentos
subjetivos de confiança do crente correspondam ou não ao status
incondicional que se crê que o objeto de sua confiança possui. É sempre
possível para as pessoas sentirem menos ou mais confiança do que de fato é
garantido pelo objeto de sua confiança.[29]
Feito estes esclarecimentos, podemos notar agora alguns matizes mais
sutis de significado adquiridos pelos termos “fé” e “confiança” quando esses
são utilizados em relação às crenças religiosas. Um desses é a diferença entre
eles dependendo se são seguidos pelas palavras “que” ou a palavra “em”. Por
exemplo, às vezes falamos de confiar que Deus nos ajudará e outras vezes de
ter fé em Deus. Dado que esses dois significados são intimamente ligados,
ainda parece haver alguma diferença entre eles.[30]
Da forma como vejo, fé ou confiança “em” algo é a expressão mais
básica, utilizada como significando confiança em seu sentido central:
aceitação aberta e a dependência daquilo que se crê. Por outro lado, fé ou
confiança “que” algo seja o caso é uma expressão que é utilizada a respeito
da crença que passou por um juízo reflexivo. É a fé cujo conteúdo foi
analisado e à qual foi concedida uma articulação consciente; ela assume a
forma de um enunciado sobre aquilo do qual se está dependendo. Na esfera
religiosa, portanto, a “fé que” Deus fará tal e qual é comumente uma
consequência reflexiva de nossa “fé em” Deus como confiável. Não estou
sugerindo, no entanto, que fé ou confiança “em” esteja em desacordo com fé
ou confiança “que”. Uma vez que humanos não deixam de pensar sobre
aquilo em que confiam, toda confiança tem um elemento de reflexão ―
assim como todo pensamento tem um elemento de confiança. Assim,
também, a “fé em” religiosa inevitavelmente se torna também “fé que”; esses
dois elementos nunca existem isoladamente. No entanto, as duas expressões
são úteis, porque elas nos permitem distinguir aqueles dois elementos e
referir a eles separadamente se assim o desejarmos.
Estreitamente associada à diferença entre crença “em” e crença “que”
está a diferença entre “fé” e “confiança” quando utilizados para referir-se ao
ato ou ao conteúdo da crença. É “fé” no sentido de conteúdo da crença que
ocorre em tais expressões como “a fé cristã”, a “fé judaica”, e assim por
diante. Nesse sentido “fé” é equivalente a “credo”. Essa distinção é útil na
medida em que geralmente precisamos ser claros sobre se estamos falando
sobre um ato de confiança ou sobre um enunciado daquilo no qual se confia.
Mas novamente deve-se ter em mente que o que estamos distinguido aqui são
componentes de todas as crenças — componentes que nunca existem
realmente em isolamento.
Tendo definido os termos mais importantes para nossa discussão
sobre crença religiosa, quero agora afastar um possível mal entendido que
pode surgir em relação à forma que falei de pessoas “considerando algo como
divino”. Eu disse anteriormente que tudo aquilo que uma pessoa crê como
não dependentemente real é considerado por ela como o divino per se. No
entanto, não pretendíamos desse modo sugerir que toda ideia sobre o que é
divino é igualmente correta, de forma que todas essas crenças sejam
igualmente verdadeiras. O simples fato de alguém considerar algo como
completamente não dependente não o transforma nisso; a crença sobre a
divindade per se de uma pessoa pode ser piedosa, fervorosa e sincera, mas
mesmo assim ser equivocada e falsa.
É importante recordar nesse ponto que a definição de crença religiosa
foi uma definição da divindade per se. Essa foi a única coisa que encontrei
em relação à qual todas as crenças religiosas primárias concordavam. Apesar
dessa concordância, as religiões ainda estão bem longe de concordar com a
descrição posterior sobre o que possui esse status, ou sobre como o divino se
relaciona com aquilo que não é divino, ou como os humanos alcançam um
relacionamento apropriado com o divino. Onde há ideias incompatíveis sobre
esses temas, as leis da lógica garantem que elas não podem ser todas
verdadeiras. Não pode ser verdade, por exemplo, que somente o Deus
revelado na Torá, no Novo Testamento, ou no Corão seja divino, mas
também ser verdade que Brâman-Atman seja divino. Isso poderia ser o caso
apenas se “Deus” e “Brâman-Atman” fossem diferentes nomes para a mesma
realidade, em vez de realidades supostamente distintas às quais foram
concedidas o mesmo status incondicional. E uma vez que Deus é uma pessoa
individual que é distinta de tudo o mais, enquanto Brâman-Atman não é
nenhuma das duas, eles não podem ser a mesma realidade; é logicamente
impossível que o universo seja inteiramente distinto da divindade per se da
qual ele depende (como no caso de Deus), mas igualmente ser verdade que o
universo seja en toto parte da divindade da qual ele depende (como no caso
de Brâman-Atman). Isso poderia ocorrer apenas se “distinto de” e “parte de”
fossem sinônimos. Portanto, não é que Deus seja o Deus do qual todas as
outras religiões estão vagamente conscientes, mas sim acerca de quem elas
conhecem menos ou cometem erros.[31]
Em suma, a lógica exige que a confiança religiosa possa ser ou bem
direcionada ou mal direcionada quanto a confiança não religiosa, e que
crenças sobre o divino devem — assim como todas as outras crenças ― ser
ou verdadeiras ou falsas, mas não podem ser ambas simultaneamente. Segue-
se, portanto, que quando duas crenças discordam sobre o que é divino, uma
(ou ambas) deve (pelo menos em parte) ser falsa. No próximo capítulo
veremos isso mais claramente, quando utilizarmos as definições
desenvolvidas aqui para distinguir os tipos de arranjos de dependência que
surgiram em algumas das maiores religiões do mundo em relação às suas
crenças divinas per se. No desenvolvimento deste projeto tornar-se-á aparente
que, embora existam fortes similaridades entre tradições que possuem o
mesmo tipo de arranjos de dependência, aquelas que possuem diferentes tipos
desses arranjos são irremediavelmente incompatíveis. Longe de serem
distintos caminhos subindo a mesma montanha, elas na verdade não
concordam sobre qual montanha deve-se escalar.[32]

1.6 Seriam religiosas todas as crenças não dependentes?


Esse é o ponto que apresentei anteriormente e prometi retomá-lo. Ele merece
um tratamento distinto tanto porque é crucial à minha tese central quanto
porque, invariavelmente, está fadado a ser o ponto mais contestado para
aqueles que desejam argumentar que a crença religiosa não necessita exercer
qualquer papel na produção de teorias. A objeção é que mesmo se as
definições oferecidas acima estiverem corretas, e mesmo se elas fizerem uma
importante contribuição aos estudos religiosos, nada dito até o momento
garante a conclusão de que todas as crenças em algo tido como
incondicionalmente real necessitam ser religiosas. “Afinal de contas”, pode-
se dizer, “todos os cachorros são animais, mas nem todos os animais são
cachorros. Da mesma forma, crenças religiosas primárias podem ser todas
elas crenças em algo considerado não dependente, sem que seja verdade que
todas as crenças desse tipo sejam religiosas. E, certamente, elas não o são!
Não existem teorias tanto na filosofia quanto nas ciências que ensinam
claramente ou assumem algo como sendo não dependente? Mas certamente
essas crenças não são religiosas, e qualquer tentativa de fazê-las como tais
simplesmente as definindo dessa forma não passa de um truque barato”.
Com o tempo vim a reconhecer, no entanto, que muitas pessoas têm
tamanha antipatia pela religião que nada do que eu pudesse dizer persuadi-
los-ia de sua importância para as teorias ou para tudo o mais. Recordo-me
vividamente do tempo em que um dos meus colegas de graduação disse, “me
mostre alguma crença que eu possua que seja religiosa em qualquer sentido
que eu mudo prontamente de opinião!”. Ainda assim, o peso do argumento
está esmagadoramente do lado da afirmação de que todas as crenças em algo
considerado incondicionalmente não dependente são, de fato, religiosas.
Primeiramente, há o ponto óbvio de aquilo que se toma como sendo
uma realidade não dependente exerce, em todo o complexo de suas crenças, o
mesmo papel que as crenças sobre a divindade exercem nas religiões. Pois,
aquilo que é considerado não dependente per se também recebe alguma
descrição posterior, e essa descrição carrega implicações que são crenças
religiosas secundárias do tipo (2): elas são crenças sobre a natureza humana,
felicidade e destino.
Tome o exemplo do materialismo filosófico. Ele propõe que a
realidade é, em última instância, física, de forma que tudo ou é matéria ou é
dependente da matéria.[33]Longe de ser o oposto de uma crença religiosa, essa
é por si mesma uma ideia possível daquilo que tem status divino. Lembre-se,
nesse tocante, dos exemplos dados anteriormente de uma série de religiões
que consideravam ou afirmavam a matéria como o divino per se. Qual
exatamente é a diferença entre a afirmação da realidade última do
materialismo moderno e a afirmação da realidade última encontrada nessas
religiões? Não encontro qualquer diferença significativa. Cada uma implica o
mesmo panorama da natureza humana, cada uma percebe o destino humano
da mesma forma, cada uma tem as mesmas implicações para os valores, e
cada uma tem o mesmo panorama da felicidade humana.
Esse ponto geralmente provoca várias réplicas. A primeira é de que as
tradições religiosas acrescentam à sua ideia de realidade última um conjunto
de crenças secundárias do tipo (3) sobre como alguém deveria conduzir sua
vida para permanecer em uma relação apropriada ao divino, enquanto teorias
filosóficas e científicas estão interessadas em explicar o mundo em nosso
entorno, não em colocar-nos numa relação correta com o divino. Em outras
palavras, essa réplica propõe que uma crença não pode ser religiosa
simplesmente porque ela é uma crença em algo que tenha uma realidade não
dependente, mas é religiosa apenas quando está combinada com crenças
secundária do tipo (3) — crenças sobre o modo de colocar-se numa relação
apropriada com o divino de forma a receber benefícios pessoais que de outra
forma não seriam obtidos. E, poder-se-ia acrescentar, uma vez que já admiti
que possuir ambos os tipos (2) e (3) de crenças secundárias é comum a todas
as tradições religiosas cultuais, eu não posso esperar continuar ignorando o
tipo (3) de crenças.
Essa réplica toca em uma importante, embora, ao mesmo tempo, caia
num erro significativo. O elemento de verdade é que seria, de fato, um erro
ignorar que em tradições religiosas alguns tipos (3) de crenças secundárias
estão sempre ligadas a alguma crença religiosa primária. O erro é supor que
qualquer ideia de realidade última possa evitar a geração de ambos os tipos
de crenças secundárias, quer surja numa teoria ou numa tradição religiosa.
Vamos permanecer com o exemplo do materialismo. Assim como com as
crenças secundárias das tradições religiosas, o materialismo delimita um
espectro distinto de ideias aceitáveis não apenas acerca do destino e da
natureza humanos, mas daquilo que pode e que não pode ser feito para
aprimorar a condição humana. Afinal, o materialismo não exige uma visão
distinta de valores e da felicidade humana que é apresentada como a forma
apropriada de se viver à luz de sua alegada verdade? Ele não demanda, por
exemplo, que ou não existam propriedades de valores reais no mundo, ou que
sejam fisicamente determinados? Acaso os principais proponentes dessa
posição não fizeram grande alarde sobre o modo pelo qual ela nos “liberta”
de todas as alternativas alegadamente falsas, conferindo benefícios para
nossas vidas, que, de outro modo, não nos estavam disponíveis? Obviamente,
isso não se aplica apenas ao materialismo; qualquer ideia de realidade última
levará consigo o equivalente do tipo (2) e tipo (3) de crenças secundárias.
Nesse tocante, nenhuma difere minimamente de qualquer outra, e certamente
elas não diferem dependendo se ocorrem em tradições de religiões cultuais ou
em teorias.[34]
Nada dito acima, no entanto, tem como finalidade negar que existam
diferenças reais entre uma teoria e uma religião. Em teorias, as crenças sobre
a divindade são utilizadas para construir explicações nas quais elas se tornam
as suposições básicas orientando a formulação de hipóteses. Tradições
religiosas, em contrapartida, enfatizam de fato a condução de seus aderentes à
aquisição de uma relação apropriada com o divino para alcançar a felicidade
presente e (comumente, mas não sempre) um destino final que não alcançado
de outra forma. Essa é uma importante diferença, mas é uma diferença de
ênfase, não de exclusão. As crenças sobre a divindade que se dão em
tradições religiosas são também utilizadas para oferecer explicações, e ―
como venho afirmando ― teorias não podem evitar as implicações para as
atitudes pessoais e conduta daqueles que nelas creem. A vasta maioria dos
filósofos não apenas admitiram esse ponto, mas se esforçaram com afinco
para pontuar os benefícios pessoais da ideia de realidade última de suas
teorias. Eles tentaram ansiosamente demonstrar que sua teoria tem, de fato,
resultados concretos para a orientação de nossas vidas. As teorias nas
ciências sociais fazem o mesmo. São as teorias das ciências naturais que
geralmente parecem desinteressadas nos benefícios pessoais de seus adeptos
(além do conhecimento da verdade). Mas esse desinteresse superficial será
irrelevante para minha afirmação sobre o controle religioso das teorias se até
mesmo as teorias nas ciências naturais não puderem evitar a pressuposição de
alguma ideia de realidade última ― o que é exatamente o que demonstrarei
nos capítulos que se seguem. Pois se as teorias nas ciências naturais não
podem evitar a pressuposição de uma visão de realidade última, então elas
também carregam implicações para as vidas pessoais de seus adeptos, sejam
essas reconhecidas ou não.
Sendo mais específico, nos capítulos posteriores argumentarei que
todas as teorias são reguladas por alguma crença sobre a divindade per se,
seja direta ou indiretamente. A regulação direta ocorre quando uma teoria
contém uma afirmação sobre a natureza da realidade, uma vez que (conforme
argumentarei) toda visão da natureza da realidade não pode deixar de incluir,
ou assumir, uma ideia de realidade última. A regulação indireta ocorre
quando uma teoria não contém explicitamente uma visão sobre a natureza da
realidade, mas pode ser percebida como pressupondo alguma visão desse
tipo. Dessa forma, se nenhuma teoria filosófica ou científica pode evitar a
inclusão ou a pressuposição de uma visão da natureza da realidade, segue-se
que nenhuma teoria pode evitar a inclusão ou pressuposição de alguma
crença sobre a divindade per se.
Assim, minha resposta a essa primeira réplica é concordar com ela.
Não importa à minha definição se uma crença em algo como realidade última
é religiosa por si mesma, ou apenas quando combinada com crenças sobre a
natureza humana, o destino, valores, e a condução correta da vida. Mesmo
que isso seja verdade, crenças em algo como a realidade última mostrar-se-ão
todas tão religiosas quando ocorrem em teorias quanto quando ocorrem em
tradições religiosas.
Uma segunda réplica contra a posição aqui defendida é dizer que nem
crenças centrais sobre a realidade última nem crenças secundárias são
religiosas se forem aceitas sobre bases racionais, em vez de aceitas pela fé. Se
elas possuem razões e argumentos a seu favor, tais crenças devem ser
reconhecidas como filosofia ou ciência, não sendo minimamente religiosas. É
apenas quando são assumidas pela fé que elas têm significado religioso.
Diferentemente da primeira resposta, essa quer imunizar as teorias da
influência religiosa não por uma diferença em seu conteúdo, mas por uma
diferença nas bases sobre as quais seus conteúdos são aceitos.
Mas, na verdade, razões e argumentos não são confinados à filosofia e
às ciências. Pensadores religiosos e teólogos já oferecerem vários
argumentos. Por exemplo, existem argumentos para provar a existência de
Deus e para criticar crenças alternativas sobre a divindade. E isso é fatal para
esta réplica. Pois ela implica que qualquer pessoa que aceite tal argumento
teria uma crença em Deus que não é religiosa! Mas, como eu disse
anteriormente, qualquer visão que tenha o resultado de tornar a crença em
Deus (ou em um deus) não religiosa torna-se desacreditada. Ademais, essa
objeção certamente parece atribuir status divino aos princípios da razão e ser,
portanto, ela própria baseada numa crença religiosa. Pois certamente não
podem haver argumentos ou raciocínios para a confiabilidade da razão que
possam evitar o uso da própria razão para fazê-lo, levando assim a uma
petição de princípio!
Não são essas as únicas razões por que essa proposta não funciona.
Note que ela nos apresenta apenas as opções de que uma crença sobre a
divindade pode ou ser baseada no argumento, ou aceita com uma fé cega. No
entanto, o fato é que nenhuma religião que eu conheça exigiu em alguma
ocasião que se cresse nela por meio de uma confiança cega. Todas
igualmente insistem que as pessoas devem ter a experiência de vê-las como
verdade para si mesmas. Então, por que pensar que razões argumentadas e
confiança cega são as únicas opções? Tanto em relação à crença religiosa
quanto às crenças não religiosas, essas certamente não são as únicas opções.
Muitas de nossas crenças são baseadas sobre a experiência direta e, dessa
forma, não são nem derivadas de outras crenças, nem aceitas com base na
confiança cega. Por exemplo, você está agora lendo estas palavras. Sua
crença de que você as está lendo não é baseada sobre outras crenças a partir
das quais você infere que esteja lendo-as, mas isso também não é confiança
cega. E muitos pensadores têm defendido que as crenças sobre a divindade
são aceitas de uma forma similar. O ilustre filósofo Paul Ziff descreveu certa
vez seu materialismo dessa forma. Ele disse: “Se você me perguntar por que
eu sou um materialista, eu não sei ao certo o que dizer. Não é por causa de
argumentos. Creio que eu teria de dizer que a realidade me parece
irresistivelmente física”.[35] E isso, curiosamente, é exatamente o que João
Calvino disse sobre sua crença em Deus:
Quanto, porém, ao que perguntam: Como seremos persuadidos de
que as Escrituras provieram de Deus (...) É exatamente como se
alguém perguntasse: de onde aprenderemos a distinguir a luz das
trevas, o branco do preto, o doce do amargo? Pois a Escritura
manifesta plenamente evidência não menos diáfana de sua
veracidade, que de sua cor as coisas brancas e pretas, de seu sabor,
as doces e amargas.[36]
Em capítulos subsequentes retornarei a esse ponto indiretamente,
apresentando razões para pensarmos que pode não haver justificação teórica
para atribuir existência independente aos vários candidatos para tal que têm
sido defendidos por tantas teorias (leis racionais, matéria, percepção
sensorial, etc.) Se isso é correto, então ou todas essas crenças aceitas por uma
teoria são puramente equivocadas e confiança cega, ou existe uma base
experiencial para elas ― como Calvino, Ziff e tantos outros relatam.
Apresentei uma defesa detalhada da base experiencial para a crença
religiosa em outro contexto, e não há espaço aqui para repeti-la.[37] Tudo o
que posso fazer por agora é apontar brevemente para a maneira que
experimentar algo como divino per se é uma explicação melhor do que
qualquer outra para a universalidade da crença religiosa entre os humanos em
todos os tempos e lugares. Pessoas sempre foram atraídas às questões sobre
suas origens, não apenas no sentido de quais processos as produziram, mas
também (e principalmente) no sentido daquilo do qual dependem em última
instância. É por essa razão que tenho falado do único sentido não qualificado
de “religioso” como uma condição existencial dos seres humanos. Essa é a
condição do humano em sua totalidade, não apenas do pensamento, do
sentimento, da vontade, etc. Sua manifestação primária é uma crença sobre a
divindade per se, mas mesmo isso é derivado do impulso inato dos humanos
a se orientarem em relação à realidade última sobre a qual eles e tudo o mais
depende, e a entender sua própria natureza e a conduta correta de suas vidas à
luz daquilo que eles assumem como sendo essa realidade última.[38] Mesmo
sem elaborar raciocínios, as pessoas sempre têm formado instintivamente tais
crenças. Assim, embora haja poucas dúvidas de que por vezes tenham
inventado deuses específicos como portadores do poder divino, as pessoas ―
como pontuei anteriormente ― já teriam crido anteriormente em algo como
sendo o divino per se a fim de fazê-lo. Portanto, embora deuses específicos
tenham sido inventados, a religião como um todo não o foi. Ela surgiu a
partir da descoberta de pessoas em sua experiência de algo que “parecia
irresistivelmente” não dependente. Se essa descrição é correta, as crenças
sobre a divindade podem ser crenças “básicas” ― crenças que não são
derivadas de outras crenças.[39] Nesse caso elas não são nem fé cega, nem
baseadas em argumentos. Dessa forma cai por terra a réplica de que elas não
seriam religiosas quando defendidas em teorias. Além disso, se crenças sobre
a realidade última não são passíveis de justificação teórica (como
argumentarei posteriormente), e se, ao invés disso, forem o produto da
experiência direta (como hei de pressupor aqui, tendo argumentado a favor
disso em outro contexto), então os argumentos expressos nas teorias são
meramente consequências ― ao invés de serem a base real ― dessas crenças.
Entrementes, a visão de que as crenças sobre a divindade são
baseadas na experiência é um anulador para a afirmação de que uma crença
não é religiosa se for argumentada ― mesmo para aqueles que possam
discordar dela! A razão para tal é que a própria possibilidade de que a base
real de tais crenças seja a experiência, e não o argumento, torna a afirmação
inconclusiva. O fato mesmo de que exista uma descrição, em primeira
instância plausível, demonstrando que tais crenças sejam baseadas na
experiência ao invés da fé cega ou do argumento, significa que não é
suficiente apenas dizer que essas são as únicas opções. Para aquelas serem as
únicas opções, argumentos têm de ser produzidos para anular e dispensar a
experiência religiosa como sua real base. Mas ninguém chegou sequer
próximo de fazer isso, e não vejo qualquer possibilidade de que alguém um
dia o faça. Concluo, portanto, que essa segunda réplica à minha posição é
simplesmente equivocada.
Finalmente, considere a objeção de que meu argumento acerca da
natureza religiosa das crenças sobre a realidade última possa de igual modo
ser revertido a favor do caráter filosófico da crença religiosa. Por que não,
pode-se indagar, começar pesquisando teorias filosóficas em vez de religiões
e concluir que a crença em algo como realidade última seja comum às teorias
da realidade e do conhecimento? Assim, a conclusão poderia também ser de
que todas as religiões compartilham de uma suposição filosófica, assim como
teorias possuem uma suposição religiosa. Isso não enfraqueceria o argumento
a favor da regulação religiosa das teorias?
Minha resposta a isso tem duas partes. A primeira é dizer que há um
sentido importante no qual não estou argumentado pelo termo “religioso”; se
alguém insiste em substituir por outro termo, digamos: “crenças na realidade
última”, isso não faria qualquer diferença para minha tese central. Pois se tais
crenças, como argumentarei, exercem uma influência regulatória inevitável
em todas as teorias, meu argumento não seria alterado meramente por se
conferir àquelas um nome distinto. Minha tese central pode, de igual forma,
ser enunciada como a afirmação de que é o mesmo tipo de crença que regula
teorias e que é essencial às religiões, de que essas crenças são incapazes de
justificação racional, e de que elas surgem na experiência humana
independentemente de teorias e, como tal, não são derivadas delas. Ainda que
assim fosse, nada realmente importante sobre minha tese central modificar-
se-ia, não importa qual termo for utilizado para as crenças em questão.
Dito isso, no entanto, ainda resta uma questão legítima quanto a qual
seria o termo mais apropriado para tais crenças. Seria “metafísicas” tão bom
quando “religiosas”? Essa certamente é uma proposta excêntrica e pouco
persuasiva. Pois se as crenças em algo tido como não dependente não apenas
surgem na experiência pré-teórica, sendo incapazes pois do tipo de
justificação que buscamos em teorias, mas também existiram entre os
humanos em todos os tempos e lugares independentemente se teorias
metafísicas terem (ou não) existido, qual seria a razão de agora chamá-las
pelo nome de certo tipo de teoria?
Para vermos a força dessa resposta, imagine por um momento que os
papéis se trocaram. Suponha que nenhuma crença do tipo tenha existido fora
das teorias, mas surgiram apenas no curso de sistemas elaborados, abstratos,
de metafísica. Suponha que tenham surgido cultos que advogaram que as
realidades independentes propostas por aquelas teorias fossem adoradas
complementarmente ao seu emprego em teorias explanatórias. Seria agora
convincente insistir que as crenças na realidade última são religiosas em vez
de metafísicas? Os oponentes da religião não considerariam isso um ultraje?
Não diriam eles que, uma vez que essas crenças surgiram na filosofia, seria
um tipo de imperialismo abstrato afirmar que elas deveriam agora ser
apropriadamente denominadas religiosas? Não diriam eles que tentar
considerar tais crenças como baseadas na experiência imediata não seria
convincente frente ao fato de que elas se originaram como postulados de
teorias metafísicas que foram aceitas por causa de argumentos? Penso que
eles diriam exatamente isso, e que eles estariam certos ao fazê-lo. Mas como
os papéis não se trocaram, considero essas mesmas razões como convincentes
a favor de sustentar que “religiosas” é o termo apropriado para tais crenças,
quer ocorram ou não nas teorias.
Com o fracasso dessas objeções finais, concluo que as definições
propostas aqui permanecem intactas. Assim, também, é o caráter religioso
das crenças em algo tido como incondicionalmente real, a despeito do
contexto no qual essas crenças ocorrem. No próximo capítulo essas
definições serão, portanto, utilizadas para auxiliar em nosso entendimento de
alguns dos tipos básicos de arranjos de dependência encontrados nas maiores
religiões do mundo atual. A significância desses arranjos, no entanto, não
está confinada a essas tradições. Distingui-las também nos preparará para
perceber os mesmos padrões de dependência nas teorias filosóficas e
científicas quando chegarmos aos capítulos finais.
CAPÍTULO 2. TIPOS DE CRENÇAS RELIGIOSAS

Passemos agora a abordar algumas das maiores religiões contemporâneas e


ver como as definições desenvolvidas acima podem nos auxiliar a entendê-
las. Não podemos, é claro, ater-nos a uma comparação detalhada nem mesmo
de duas tradições do tipo, quanto mais cinco ou seis, sem que sejamos
completamente desviados de nosso tópico principal. Mas se comprovará
recompensador se nos ativermos brevemente às religiões mundiais mais
influentes, agrupando-as de acordo com o modo que concebem a dependência
do não divino ao divino, ou seja, segundo os arranjos de dependência aos
quais me referi no último capítulo como de crenças secundárias de tipo (2).
Uma maior precisão acerca desses arranjos não apenas lançará luz
significativa sobre essas tradições, mas permitirá que sejamos mais
conscientes de tais arranjos quando encontrarmo-los posteriormente nas
teorias.

2.1 A base para a tipificação de religiões


Lidar com as grandes religiões mundiais de acordo com suas ideias sobre
como concebem o não divino em sua dependência do divino é um importante
benefício possibilitado pelas definições desenvolvidas nos capítulos
precedentes. Isso nos permite mais do que classificar as várias tradições
religiosas de acordo com alguma(s) característica(s) arbitrariamente
selecionada(s). No passado as religiões foram categorizadas, por exemplo,
por número de deuses que possuíam, ou se defendiam ou não uma moralidade
rigorosa, e assim por diante. Mas essas formas de classificar as grandes
religiões são não apenas arbitrárias, mas bastante restritas, na medida em que
têm um espectro muito limitado de aplicação.
Tão logo tomamos o arranjo de dependência como nosso guia, torna-se
claro que existem três arranjos desse tipo que prevalecem no mundo hoje.
(Esses não são os únicos possíveis; fui capaz de distinguir quatorze possíveis
arranjos de dependência.) Chamarei esses três arranjos de as ideias de
dependência pagã, bíblica e panteísta. “Bíblica”, do modo em que o utilizo, é
um termo grosseiro para a crença teísta em um Criador transcendente tal
como se encontra no judaísmo, no cristianismo e no islã; ao passo que o
termo “panteísta” inclui o hinduísmo, o budismo e as formas mais recentes de
taoísmo. O tipo pagão de crenças religiosas cobre uma variedade tão ampla
de tradições que não me vejo capaz de explicá-lo simplesmente nomeando
uma ou duas dentre elas, embora venhamos a examinar em breve algumas de
suas tradições mais influentes e representativas. Antes de fazê-lo, no entanto,
quero deixar claro que o termo “pagão”, na forma que o utilizo, não é um
termo depreciativo. Não está sendo utilizado como, digamos, missionários
utilizaram o termo “idólatras”[40] no século XIX. Ele não se refere apenas às
crenças supersticiosas ou irracionais ou que são mantidas apenas por pessoas
consideradas primitivas. Pelo contrário, veremos que o paganismo pode ser
bastante sofisticado, e que suas formas sofisticadas exercem uma tremenda
influência no mundo atual.

2.2 O tipo pagão


A principal característica da ideia de dependência pagã é que o divino per se
é uma parte, aspecto, força, ou princípio no universo aberto à nossa
experiência ou pensamento ordinários. Dito de outra forma, o arranjo pagão
de dependência assume que existe apenas uma realidade contínua, da qual
uma parte é a divindade per se sobre a qual todas as outras dependem. Talvez
o esquema que se segue auxiliará a tornar isso claro. Se utilizarmos uma linha
contínua para representar o divino e uma pontilhada para representar o não
divino, então nosso auxílio visual para representar a ideia de dependência
pagã parecerá como a Figura 1.
Figura 1

Uma ampla variedade de crenças religiosas se enquadram nesse tipo pagão.


Religiões da natureza que adoravam um poder divino na terra, no sol, nos
rios, nos mares, etc., são todos exemplos desse tipo, assim como grande parte
dos politeísmos. Por exemplo, um dos deuses mais comumente adorados no
mundo antigo era o deus que controlava as tempestades. Ele era denominado
Baal no Oriente Próximo, Zeus na Grécia e Júpiter em Roma. Em cada um
desses casos cria-se que deus estava entre as muitas divindades que são
divinas num sentido secundário: eram seres que deviam sua existência a algo
que é divino per se, mas que tinham mais poder divino do que os seres
humanos. As crenças em Mana, Nunien e Kami (que mencionei
anteriormente) como divindades per se também se enquadram nesse tipo.
Embora essas tradições geralmente discordem sobre os nomes e as descrições
precisas desses deuses específicos, e embora algumas tenham deuses que
outras não têm, todas elas consideravam o divino per se como tendo a mesma
relação geral com aquilo que não é divino, a saber, que o divino per se é
parte de todas as coisas não divinas. Assim, a caracterização de Werner
Jaeger desse tipo de arranjo de dependência quando de seu surgimento na
filosofia devido à influência de Hesíodo aplica-se muito bem a todas as
crenças pagãs:

Quando o pensamento de Hesíodo finalmente dá lugar ao verdadeiro


pensamento filosófico, o Divino é buscado dentro do mundo ― não fora
deste, como na teologia judaico-cristã que se desenvolve a partir do livro
de Gênesis.[41]

Em relação a essa observação de que a crença pagã ainda é forte no mundo de


hoje, precisamos ter em mente o argumento apresentado no último capítulo
de que a religião nem sempre resulta em adoração. Pois enquanto pensarmos
apenas em formas de paganismo expressas em rituais e adoração será
impossível crer que o paganismo seja uma força significativa no mundo de
hoje. Isso ocorre porque o paganismo que inclui adoração ― chame isso
paganismo “cultual” ― tem estado em declínio por um longo período face
aos avanços do hinduísmo, do budismo, do cristianismo e do islã, assim como
da pressão exercida pelas crenças pagãs não cultuais como o materialismo e
outras teorias que consideram algum aspecto do universo como não
dependente e portanto como divino per se. Tais paganismos não cultuais, no
entanto, continuam a florescer. Muitos pensadores modernos na filosofia e
nas ciências defendem teorias cujas suposições são crenças religiosas tão
pagãs como aquelas de seus antigos homólogos. Por exemplo, embora a
comunidade religiosa dos Pitagóricos tenha morrido há muito tempo, e que
ninguém que eu conheça adore números atualmente, a crença pitagórica de
que os números, ou outros elementos da matemática, sejam partes de um
domínio de realidades autoexistentes sobre o qual tudo o mais depende (pelo
menos em parte) está longe de ter sido sepultada. Com efeito, continua a
dominar amplos domínios do pensamento científico até os dias de hoje.[42] E,
como já vimos, é igualmente uma crença pagã não cultual considerar matéria
e energia, em vez de números, como a realidade não dependente sobre a qual
tudo o mais depende. Pois esse também é o caso de crer em algum aspecto do
mundo natural como sendo divino.
Pode ser instrutivo neste ponto aplicar meu relato do tipo pagão de
crenças religiosas à teoria do materialismo dialético proposta por Karl Marx.
Esse é um caso especialmente interessante, uma vez que o marxismo é uma
teoria declaradamente antirreligiosa. Em sua interpretação de tudo, desde a
física e biologia à economia e à política, o marxismo se professa como oposto
a todos os tipos de religião. De acordo com a teoria de Marx, matéria/energia
é a realidade básica, e interiormente à matéria existiria uma lei inata que
conduz as coisas a modificarem-se de acordo com um processo que ele
denomina desenvolvimento “dialético”. Essa lei levou a matéria a se
organizar em uma multiplicidade de formas no decorrer de milhões de anos:
galáxias e sistemas solares, seres vivos, humanos e sociedades humanas são
todos produtos da matéria sendo organizada por meio do desenvolvimento
dialético.
A hipótese marxista prossegue afirmando que essa lei dialética,
quando corretamente compreendida, demonstra que a economia de livre
mercado (capitalista) é a causa de governos injustos e repressivos e está
fadada a desaparecer. Isto dar-se-á quando se desenvolverem governos
desejosos por abolir a propriedade privada, que é a raiz de todos os males.
Uma vez que sistemas econômicos comunistas possam ser estabelecidos eles,
por sua vez, trarão à tona governos que serão cada vez mais justos, de forma
que haverá felicidade crescente contínua por toda a humanidade. O resultado
definitivo será a emergência do estágio final da história: a sociedade
comunista. Em tal sociedade os cidadãos não apenas se absterão da
propriedade privada, mas nunca mais a desejarão. Por causa disso, o crime
desaparecerá, assim como a necessidade por um governo. A sociedade será
livre da alienação de um grupo em relação a outro, uma vez que não haverá
classes com interesses antagônicos. Não haverá qualquer alienação em
relação à natureza, ou dos meios para suprir as necessidades da vida. As
pessoas serão felizes e boas, e viverão em paz.
Deveria estar claro, no entanto, que embora Marx fosse de fato um
ateu, todas as suas teorias pressupõem a não dependência, ou autoexistência,
da matéria; a matéria física, juntamente com sua lei inata do desenvolvimento
dialético, “estão aí”.[43] A matéria não depende de qualquer outra coisa, e o
todo da realidade ou é idêntica à ou depende da matéria. Por essa razão,
apesar de seus protestos em contrário, a teoria de Marx é baseada numa
crença religiosa. E, o que é ainda mais central, essa crença religiosa é
tipicamente pagã, uma vez que ela assume que algo do universo (a matéria e
sua lei dialética) é um segmento autoexistente da realidade do qual tudo o
mais depende. Estamos autorizados a assumir essa conclusão porque nossas
definições demonstraram não apenas porque uma crença pode ser religiosa
sem envolver adoração, mas por que ela pode ser religiosa mesmo que seus
aderentes não admitam ou desejem isso. Menciono isso novamente porque é
especialmente verdadeiro acerca de paganismos não cultuais que seus
defensores geralmente neguem suas crenças são religiosas, e refiram-se a elas
como “seculares” ou “não sectárias” ― termos calculados a identificá-las
como religiosamente neutras. Mas tão logo comparamos essas crenças com
nossa definição de “divindade per se”, podemos ver por que muitas crenças
que passam como sendo humanistas ou seculares são na verdade crenças
religiosas.
Os exemplos do pitagorismo e do materialismo são casos de paganismo
nos quais há apenas um tipo de realidade que é divina per se. Mas as formas
mais populares de crença pagã ao longo da história pertenceram a um subtipo
denominado “dualismo”, para indicar que existem duas divindades per se
distintas em lugar de apenas uma. De acordo com as crenças mais influentes
desse subtipo, é a interação entre essas duas divindades que produz o resto da
realidade que é não divina. A crença forma-matéria dos gregos antigos é um
exemplo de tal dualismo, assim como a doutrina Ying-Yang do taoísmo. A
Figura 2 demonstra o esquema previamente oferecido alterado para refletir
essa diferença.

Figura 2
Geralmente, em religiões que creem que existam duas realidades divinas,
uma das divindades é considerada como a fonte daquilo que é bom no
mundo, enquanto a outra é a fonte daquilo que é mal. O paganismo dualista
da Grécia antiga recém-mencionada é um caso em questão. Ela via as duas
divindades como: (1) Matéria, um material original do qual todas as coisas
são feitas, e (2) Forma, o princípio da ordenação que torna o material no
mundo inteligível que experimentamos. Alguns pensadores gregos
entenderam essa ordenação divina como sendo lógica por natureza, enquanto
outros a viam como essencialmente matemática. Aplicada à ideia de natureza
humana, essa fé dualista ensinava que os humanos, da mesma maneira, eram
combinações de forma e matéria. O corpo humano é constituído de matéria,
que gera sentimentos e paixão. Em contrapartida, a mente humana é a
incorporação da forma, porque ela é capaz de raciocinar lógica e/ou
matematicamente. Nessa visão, tudo o que é bom, belo e verdadeiro tem um
caráter essencialmente racional e é conhecido pelo exercício racional da
mente. Em contraste, tudo o que é mal e desordenado é provocado pelos
impulsos irracionais dos sentimentos e das paixões. A vida humana, portanto,
é um conflito constante entre a natureza emocional e a natureza racional,
entre o corpo e a mente.
Da dualidade básica de suas duas divindades, essa versão de paganismo
concebia não apenas a natureza humana, mas toda a realidade, como
permeada por pares correspondentes de opostos: bem versus mal, racional
versus irracional, estabilidade versus mudança, ordem versus desordem,
beleza versus fealdade, etc. Essa perspectiva desfruta ainda hoje de grande
popularidade em nossa cultura. Mas não importa o quão confortáveis muitos
não pagãos tenham chegado a sentir-se quanto a isso, essa imagem dualista
das coisas está em conflito tanto com o tipo bíblico quanto panteísta de
crença religiosa.

2.3 O tipo panteísta


Os principais exemplos de religiões contemporâneas advogando o arranjo de
dependência panteísta são o hinduísmo e o budismo. Esse arranjo pode ser
mais bem visto como o inverso daquele mantido pelo paganismo. Em vez de
localizar o divino como uma subdivisão de uma única realidade contínua, a
crença panteísta é a de que o que quer que experimentemos como a realidade
não divina é, na verdade, uma subdivisão da realidade divina, que é tanto
infinita como todo-abrangente. Esse último ponto, no entanto, cria um
obstáculo para desenharmos um esquema ilustrativo, uma vez que não
podemos desenhar um círculo infinitamente amplo. Assim, irei simplesmente
estipular que o círculo finito na Figura 3 representa um infinito.

Figura 3
Esse esquema demonstra que as religiões panteístas compartilham com as
religiões pagãs a convicção de que existe apenas uma realidade contínua. As
duas discordam, no entanto, sobre se existe algo mais em relação à realidade
do que aquilo que é divino per se (pagã), ou se o divino é coextenivo ao ou
maior que o não divino, de modo que este último é uma subdivisão do divino
(panteísta). Dada essa diferença, podemos dizer que desde o ponto de vista
pagão existe uma clara distinção entre o que é divino e o que não é, mas
desde o ponto de vista panteísta a distinção é um tema complicado. Pois se o
não divino é, em sua totalidade, parte do divino, como pode haver algo que
não é divino? E, se não o é, qual distinção pode ser traçada?
A resposta dada pelas tradições panteístas já foi mencionada no último
capítulo. Ela afirma que sim, o divino é a essência mesma e o ser de todas as
coisas, mas que nós experienciamos as coisas individuais e os eventos de
nosso mundo cotidiano como sendo não divinos. Assim, a distinção feita
nessas tradições não é entre uma porção da realidade que é verdadeiramente
divina per se e uma porção que não o é, mas entre o ser divino de todas as
coisas e a aparência ilusória de que existem coisas que não são divinas. Isso
se dá porque a diferença é tão grande entre nossa ilusória experiência diária
(Maya) e a realidade divina que jaz por trás dessa, que as escrituras e as
disciplinas das tradições panteístas simplesmente não ensinam essa doutrina,
mas estão focadas em induzir uma experiência mística da unicidade de todas
as coisas. Apenas por meio de tal experiência mística, elas dizem, pode uma
pessoa superar o véu da ilusão, enxergar por detrás do mundo da mera
aparência, e tornar-se consciente da realidade divina que está oculta por esse.
Essa realidade divina é chamada Brahman-Atman no hinduísmo;
Dharmakaya, Vazio, Talidade, Nada, Nirvana (e outros termos) no budismo;
o Tao no taoísmo.
Nesse ponto, dever-se-ia enfatizar que é de fato bastante sério o sentido
no qual a maior parte das versões dessas tradições afirmam que o mundo é
irreal conforme é conhecido pela experiência ordinária e pela razão. Elas não
querem dizer apenas que o mundo cotidiano é menos real do que a realidade
divina que ele oculta; elas querem dizer que tudo acerca dele é irreal. De
acordo com essas versões, a experiência mística demonstra que o divino é
não apenas a verdadeira natureza de todas as coisas, mas é, com efeito, a
única realidade, de modo que o divino é tudo o que há! Dessa forma, mesmo
as características mais comuns do mundo cotidianos são ilusórias, nessa
perspectiva.[44] Por exemplo, de acordo com as versões prevalentes dessas
tradições não existem realmente objetos distintos, individuais; não existem
diferenças de qualidades ― incluindo a diferença entre o bem e o mal! No
fundo, todas as coisas são uma só; existe apenas o divino.
Essa doutrina geralmente soa estranha e impalatável para ocidentais
que via de regra pontuam que ela conduz a contradições lógicas. Em resposta
a tais críticas, essas tradições advertem que sem a necessária experiência
mística as pessoas sempre falham em entender ou em crer na identidade
(oculta) de todas as coisas com o divino. A crítica de que essa posição é
autocontraditória, eles dizem, falha em reconhecer que o pensamento lógico
também é parte do mundo da ilusão. Como tal, ele é parte do engano que
impede as pessoas de descobrirem a unidade divina de toda a realidade.
Portanto, de acordo com o arranjo de dependência panteísta, o divino não
apenas nunca deveria ser concebido como uma parte ou aspecto do mundo
divino (como o paganismo o faz), mas, uma vez que a lógica é descartada, o
divino não pode sequer ser concebido. Essa é a razão pela qual as tradições
hinduísta e budista insistem numa experiência mística de unidade com o
divino per se como a única maneira de descobrir a verdade sobre ele.
A diferença entre os arranjos de dependência pagão e panteísta resulta
em outras importantes discordâncias entre eles. Tome, por exemplo, as
diferentes crenças secundárias de tipo (3), segundo as quais interpretam a
natureza humana e a ordenação apropriada dos valores na vida. De acordo
com a influente versão grega do paganismo esboçada anteriormente, o que há
de errado com as pessoas é sua falha em reconhecer a razão humana como a
incorporação dos mesmos princípios divinos que concedem ordem à
realidade, e em esforçar-se para superar os impulsos da emoção ao tornar a
racionalidade o valor mais elevado tanto em suas vidas pessoais quanto na
sociedade humana. Nessa perspectiva, pois, viver de acordo com a razão é a
forma apropriada de se relacionar com o divino, o valor mais elevado na vida,
e que conduz à felicidade genuína.
Em contrapartida, as tradições panteístas insistem que o que há de
errado com as pessoas é elas crerem que o mundo ilusório, incluindo a
racionalidade humana, é real. Visto que nenhuma parte distinta ou
característica do mundo natural é divina ou mesmo real do ponto de vista
panteísta, a forma apropriada de relacionar-se com o divino é descobrir a
verdadeira (divina) realidade rejeitando e se desprendendo do mundo ilusório
da experiência ordinária. O valor mais elevado para os humanos, nessa
perspectiva, não é a ordenação racional da vida, mas a rejeição completa da
experiência ordinária, incluindo a própria razão! Isso, conforme vimos, deve
ser alcançado por meio de uma experiência mística de completa união com o
divino. Ademais, essa experiência faz mais do que meramente revelar o
divino, ela também é o meio de se adquirir libertação do (irreal) mundo da
ilusão e do sofrimento. Assim, comum a todas as tradições panteístas é o
ensinamento de que a forma apropriada de se relacionar com o divino e o
valor mais elevado na vida é buscar a iluminação por meio da experiência
mística. O fracasso em se alcançar essa experiência no ciclo de vida presente
resulta na reencarnação em outros ciclos de vida de ilusão e sofrimento. E
crê-se que isto continua (geralmente por milhões de ciclos de vida) até que a
pessoa seja finalmente iluminada pela experiência mística e, com isso,
dispensada de reencarnações futuras. Isto é, uma vez iluminada, uma pessoa
tem o Nirvana assegurado: o estado no qual o self individual (ilusório) é
absorvido no divino “como uma gota d’água é absorvida no oceano”. Esse é
o estado de “felicidade inefável” e portanto a realização da verdadeira
natureza humana e da felicidade genuína em seu sentido mais elevado.

2.4 O tipo bíblico


Em contraste em relação às ideias de dependência pagã e panteísta, o arranjo
bíblico nega que exista uma realidade contínua. A ideia hebraica de criação,
que é essencial também ao cristianismo e ao islã, é a de que Deus (ou Alá)
Criador é distinto do universo que trouxe à existência a partir do nada. De
acordo com este ensinamento, o divino per se não é parte do universo nem o
universo é parte do divino; há uma descontinuidade fundamental entre o
criador e tudo o mais que é sua criação. Essa diferença básica foi bem
expressa por Will Herberg. Utilizando a expressão “greco-oriental” para
abarcar tanto a ideia de dependência pagã quanto a panteísta, e o termo
“hebraica” para se referir à ideia bíblica, Herberg diz:

As religiões hebraica e greco-oriental, enquanto religiões, concordam ao


afirmar alguma Realidade Absoluta como Última, mas diferem
fundamentalmente sobre o que eles dizem acerca dessa realidade. Para o
pensamento greco-oriental, seja o místico ou o filosófico, a realidade
última é uma força primordial impessoal... uma substância divina
inefável, imutável, impassível que abrange o universo ou, em vez disso,
é o universo na medida em que este último for de alguma maneira real...
Nada poderia estar mais distante da religião normativa hebraica... De
forma contrária à concepção de imanência greco-oriental, da divindade
permeando todas as coisas e constituindo sua realidade, a religião
hebraica afirma Deus como uma pessoa transcendente que criou de fato
o universo, mas que não pode, sem que se incorra em blasfêmia, ser
identificado com este último. Onde a religião greco-oriental vê uma
continuidade entre Deus e o universo, a religião hebraica insiste na
descontinuidade.[45]

Por conseguinte, as tradições bíblicas nem exaltam alguma parte da criação


ao status divino nem dispensam o universo criado como ilusório. O universo
é menos real que Deus, obviamente, uma vez que ele depende de Deus, ao
passo que este não depende nada mais. Mas embora dependente, o universo é
real porque foi criado por Deus. E ele é importante porque é o anfiteatro no
qual os humanos devem viver em comunhão com e no serviço a Deus.
Portanto, o mundo criado é importante e, de igual modo, totalmente
dependente; não há algo nele que não seja dependente de Deus. Cada coisa,
evento e estado de coisas; cada parte e propriedade, fato e faceta, lei e norma
― resumindo, tudo que não seja o próprio Deus ― foi trazido à existência
por Deus e continua a depender de Deus, o qual é a única divindade que há.
A Figura 4 representa esse arranjo de dependência bíblico.
Figura 4

É por causa desse arranjo de dependência que a ideia de revelação é tão


importante nas tradições bíblicas. Deus não é uma realidade cuja natureza e
propósitos podem ser descobertos pela busca no universo, ou por meio de
uma experiência mística no sentido panteísta. Pelo contrário, as tradições
bíblicas são todas ancoradas na crença de que Deus criou no mundo uma
revelação inteligível de suas relações com o universo, especialmente suas
relações com os humanos. Esse corpo de ensinamentos é o guia dotado de
autoridade para todo o conhecimento de Deus (incluindo a interpretação de
experiências religiosas incomuns). Ele ensina que apenas Deus é divino per
se, e também revela o conteúdo da(s) aliança(s) redentiva(s) de Deus, que são
as crenças secundárias (tipo 3) necessárias para que os homens estejam em
uma relação apropriada com ele. Ao tornarem-se participantes dessa aliança,
ou tratado de salvação, as pessoas se tornam membros de seu reino e recebem
a vida eterna. Em contraste com as tradições pagãs, então, a experiência
religiosa que fundamenta o teísmo não tem o divino como uma parte ou
aspecto do mundo natural, mas constata-o revelado num livro. Daí o
reconhecimento islâmico de que judeus e cristãos, apesar de suas diferenças
em relação aos muçulmanos, são também parte do “povo do livro”.
E embora a religião bíblica enfatize o papel da experiência na crença de
uma pessoa em Deus, ela não exige que essa seja uma experiência “mística”
no sentido em que o hinduísmo e o budismo exigem. Na visão bíblica, visto
que Deus transcende completamente a criação, mesmo experiências de
unidade com Deus nunca são consideradas como se fossem com o ser
essencial de Deus, mas sim sempre mediada por (e em relação a) algo que ele
criou. Ainda mais proibitiva seria a possibilidade de que alguma experiência
levasse alguém a tornar-se parte de Deus. O destino prometido dos crentes
não é o ser absorvido no Ser de Deus, pois nas religiões bíblicas os humanos
são e sempre serão criaturas distintas de Deus. São indivíduos distintos, como
membros do corpo coletivo do povo de Deus, que são objetos do amor e do
perdão de Deus. E é como indivíduos que lhes eles será concedida a vida
eterna no reino final de Deus. E comunhão com Deus e com outros humanos
que amam a Deus é o cumprimento da natureza humana e aquilo que
constitui a felicidade humana. Como um dos catecismos cristãos coloca:
“Questão: Qual é o fim último do homem: Resposta: Glorificar a Deus e
desfrutá-lo eternamente.”
É crucial notar, no entanto, que insistir sobre a diferença intransponível
entre Deus e a criação não significa que Deus não possa entrar na criação e
agir nela; não significa que ele não possa estar presente com as pessoas, ou
que ele não possa se comunicar com elas. Significa simplesmente que sua
presença e comunicação são sempre acomodadas ao entendimento humano
por meio da mediação das relações que ele cria e utiliza para esse propósito.
Essa comunicação também não exclui as faculdades humanas normais; ele
projetou os humanos de tal maneira que suas capacidades para experimentar e
conhecer sejam capazes de receber sua revelação, bem como entender seu
mundo de modo a servi-lo. Assim, mesmo quando os profetas bíblicos tinham
experiências incomuns quando recebiam revelações de Deus, essa revelação
jamais foi algo que suprimiu a experiência ordinária e a razão humana, ou
demonstrasse que o mundo era uma simples ilusão. Na visão bíblica o mundo
não oculta o divino, como se supõe no panteísmo, mas foi formado com o
propósito de revelar Deus. (A razão pela qual as pessoas falham em
reconhecer a revelação de Deus na natureza e sua palavra é denominada
“pecado” pelos autores bíblicos. Retornaremos a esse ponto em breve.) Desse
modo, mesmo que sempre exista em relação a Deus aquilo que está além da
compreensão na religião bíblica, os humanos são capazes de conhecer a
verdade acerca de Deus porque ele realizou duas coisas: primeiro, ele
estruturou o universo de tal forma que, visto corretamente, ele aponta para
além de si mesmo na direção de Deus enquanto sua Origem divina
transcendente; segundo, ele se acomodou à razão e à experiência humana e
comunicou suas alianças de amor, perdão e vida eterna ao longo da história.
E isto inclui seu ato de produzir um registro escrito dessas comunicações em
escrituras.
Por essas razões, a experiência de Deus é mediada por sua revelação, e
jamais é uma realização exclusiva do esforço humano desassistido ―
conforme é ensinado nas tradições panteístas. À vista disso, o papel de um
profeta bíblico não é aquele de um Swami Hindu ou um mestre budista. No
hinduísmo ou no budismo, os mestres são especialistas que, por sua própria
iniciativa, encontraram a fórmula para experienciar o divino. Em
contrapartida, um profeta bíblico é um representante escolhido por Deus para
entregar sua mensagem; ele não é um especialista que descobriu a verdade
religiosa por si mesmo, mas um mensageiro a quem Deus revelou uma
verdade religiosa (com efeito, os profetas amiúde se queixavam de que não
entendiam a mensagem que lhes fora confiada). A iniciativa em toda
revelação é tomada por Deus, não pelos humanos. Ademais, a experiência
religiosa humana nunca é a norma ou o padrão de crença nas religiões
bíblicas; em vez disso, é a experiência de reconhecer a palavra de Deus como
a norma e o padrão para a crença. Em outras palavras, a própria experiência
não é a autoridade religiosa última — a autorrevelação de Deus o é. E isso é o
oposto da ideia de experiência mística panteísta, em que a própria experiência
é a autoridade religiosa última.
Correspondendo a essas diferenças sobre a experiência religiosa e a
revelação, ainda existe outra diferença importante. Desde a perspectiva
panteísta, uma pessoa deve buscar o alcance da experiência mística por meio
de muitos ciclos de vida. Apenas quando essa for alcançada uma pessoa verá
a verdade da unidade de todas as coisas, alcançando assim a liberação da
maldição de intermináveis renascimentos pela conquista do Nirvana. Mas, na
visão bíblica, as provisões da aliança garantem que o direcionamento da fé e
do amor a Deus já confirmam ao crente a salvação. Esse é um dom de Deus
desde o princípio, e não uma conquista adquirida en route. A segurança da
salvação é, desse modo, uma parte integral de ser-se um judeu, cristão ou
muçulmano, e não advém somente após (como se fosse o produto dos) ciclos
de vida de esforço.
Obviamente, também é verdade que existe esforço associado ao serviço
de Deus na vida diária, de acordo com a religião bíblica. Há esforço e por
vezes agonia, ao tentar-se responder ao amor que Deus oferece livremente. E
há um aprofundamento da fé em Deus e do amor em relação aos outros que
pode resultar apenas da oração e das obras, o qual é geralmente acompanhado
pela dor. No entanto, não é o destino final do crente que está em jogo nos
conflitos diários do serviço a Deus, mas apenas a proximidade do
relacionamento do crente com Deus e o grau de recompensa que Deus
conferirá em última instância. Pois, de acordo com as escrituras bíblicas,
qualquer pessoa que crê na verdade da revelação de Deus e ama a Deus já
recebeu a promessa da redenção divina e o dom da vida eterna.
Para prosseguir com os contrastes, deveríamos notar que o ponto de
vista bíblico também tem uma visão distinta da natureza humana, que se
antagoniza ainda mais às visões pagã e panteísta do que aquelas em relação
uma à outra. Em contrapartida à visão pagã mais popular, o ensinamento
bíblico sobre o que está errado com as pessoas não é que elas têm um corpo,
sentimentos e emoções. De acordo com os escritores bíblicos as mentes das
pessoas, seus corpos, emoções, pensamentos, etc., podem ser cada um bons
ou maus dependendo se eles estão sendo utilizados no serviço de Deus.
Novamente, Herberg coloca de forma apropriada:
Por mais familiar e plausível que [a] visão dualista possa parecer a
muitas pessoas religiosas hoje em dia, ela, no entanto, é totalmente
contrária à perspectiva hebraica. No hebraísmo autêntico, o homem não
é um composto de duas “substâncias”, mas uma unidade dinâmica... O
corpo, seus impulsos e paixões, não são maus; como parte da criação de
Deus, eles são inocentes e, quando ordenados de forma apropriada,
positivamente bons. Nem, por outro lado, é o espírito humano a “falsa
divindade” dos gregos. O espírito é a fonte tanto de bem quanto de mal,
pois o espírito é vontade, liberdade, decisão.[46]

É importante notar, em relação esse ponto, que a ideia bíblica de pecado não
é primariamente a de uma transgressão moral. Embora os atos imorais são, de
fato, chamados de “pecados” (plural) e são condenados, a ideia central do que
há de errado com as pessoas segundo a religião bíblica é religiosa. Ou seja,
“pecado” (singular) é o nome para a condição da natureza humana que leva
as pessoas a falharem no reconhecimento da verdade da revelação de Deus, e
portanto a falharem em amar e servir a Deus com todo o seu ser. O sentido
religioso de “pecado” é colocar algo no lugar de Deus, de ter uma falsa
divindade em lugar da verdadeira. É por isso que a primeira demanda da
aliança proposta por Deus é que o amemos com todo o nosso coração, ao que
é acrescentado que amemos ao nosso próximo como a nós mesmos, pela
razão de que nosso próximo também é criado “à imagem de Deus”. Na visão
bíblica, portanto, pecado é apenas de forma secundária uma questão de
intenções e comportamentos imorais. Ele é primeiramente uma questão de
não direcionar a fé e o amor ao Criador, e em vez disso considerar algo que
Deus criou como divino. Como um rabino colocou muito tempo atrás:
Pois do céu é revelada a ira de Deus contra toda a impiedade e injustiça
dos homens que detêm a verdade em injustiça... pois trocaram a verdade
de Deus pela mentira, e adoraram e serviram à criatura antes que ao
Criador. (Rm 1.18-25)[47]

É interessante considerar essa citação de São Paulo à luz do contraste entre as


religiões pagã e a bíblica que foi esboçado por um pensador pagão, Alfred
North Whitehead. Whitehead cita esta pergunta da Bíblia: “Poderás descobrir
as coisas profundas de Deus, ou descobrir perfeitamente o Todo-Poderoso?”
(Jó 11:7). Reconhecendo que o texto espera uma resposta negativa,
Whitehead faz a observação espirituosa de que essa atitude é “boa em termos
hebraicos, mas má em termos gregos”; isto é, ela é bíblica, mas não pagã. Ele
então brinca que a posição bíblica é aquela de “intelectos mais espessos” que
“se gloriam na noção de que os fundamentos do mundo foram assentados em
meio a uma névoa impenetrável”.[48] Em outro contexto, Whitehead retorna
ao mesmo ponto, dessa vez rejeitando tanto a perspectiva bíblica quanto a
panteísta a favor de uma versão do paganismo na qual ele vê a razão humana
como semelhante à ordem divina do mundo. Ele diz:
Qual é o status da estabilidade duradoura da ordem da natureza? Existe a
resposta resumida, a qual remete a natureza a alguma realidade maior
presente por detrás. Essa realidade ocorre na história do pensamento sob
muitos nomes, o Absoluto, Brahma, a Ordem dos Céus, Deus... Meu
ponto é que qualquer conclusão resumida que salta de tal ordem da
natureza para a suposição fácil de que existe uma realidade última...
constitui a grande recusa da racionalidade para afirmar seus direitos.
Temos de questionar se a natureza não demonstra, em seu próprio ser,
que é autoexplicativa.[49]
Esse lúcido contraste da crença (racionalista) pagã com a bíblica,
afirmada em relação à perspectiva pagã, corresponde perfeitamente tanto ao
contraste esboçado por São Paulo quanto aos esquemas que apresentei acima.
Todos eles refletem as diferenças centrais entre as ideias de dependência
mantidas pelos pagãos, panteístas e teístas. E eles servem para confirmar meu
ponto de que a crença pagã ― pelo menos em suas versões não rituais ― está
viva e bem no pensamento e na cultura ocidentais.
Os contrastes esboçados entre os três tipos de ideias de dependência
meramente arranham a superfície ao comparar apenas poucas de suas
características mais marcantes. Não obstante, eles podem ser suficientes para
reforçar três pontos que serão úteis em tudo o que segue: (1) o quão
amplamente as crenças diferem sobre o que é o divino per se, e sobre como o
divino se relaciona com aquilo que não é divino; (2) por que os tipos de
crenças revisadas aqui são irreconciliáveis; e (3) o quão facilmente se falha
em reconhecer uma crença como religiosa quando ela se apresenta em uma
forma estranha, ou por meio de uma tradição não familiar, especialmente se
ela não tem nenhum culto associado a si.

2.5 Por que pensar que algo é divino, afinal de contas?


Tendo esboçado os três maiores tipos de arranjos de dependência encontrados
nas crenças religiosas contemporâneas, terminarei esse capítulo retornando à
questão levantada no capítulo 1 relacionada a se algo, afinal de contas, é
divino per se. A questão é por que alguém não poderia responder a tudo o que
foi dito até aqui da seguinte forma: “Concordo que você possa ter tocado
naquilo que é essencial à crença religiosa, e concordo até mesmo que tais
crenças tenham exercido um importante papel nas teorias. Mas por que esse
não é apenas um fato lamentável, e não inevitável? Por que não tentamos de
forma mais persistente a não permissão de que nossas teorias sejam
entremeadas com crenças religiosas? E por que não podemos expandir o
ateísmo de tal forma que ele não apenas negue que existam deuses, mas
negue que qualquer coisa seja divina per se?”
A questão no tocante a se teorias podem evitar a inclusão ou a
pressuposição de alguma crença sobre a divindade será considerada
separadamente no capítulo 10. Por ora, concentrar-me-ei na última parte da
objeção em relação a se é possível defender a proposta de que “nada seja
divino per se”. Isso, como já vimos, é o mesmo que afirmar que “nada tem
uma realidade não dependente”. Minha réplica é que essa proposta não tem
uma interpretação coerente. Tentemos o quanto pudermos, eu argumento,
não podemos especificar qualquer estado de coisas concebível no qual nada
tenha o status de divindade. Assim, embora possamos dizer as palavras “nada
é divino” e saber o que queremos dizer, não somos capazes de pensar num
grupo de circunstâncias que seja um exemplo disso ― assim como podemos
dizer as palavras “círculo quadrado”, mas não podemos pensar qualquer coisa
que elas possam designar.
Talvez o melhor candidato para uma visão da realidade que careça de
qualquer divindade per se fosse a afirmação de que a realidade é composta
apenas de coisas e eventos individuais em que cada um dos quais é
dependente. Nessa visão cada coisa ou evento vem à existência, interage com
outras coisas e eventos, produz novas coisas ou eventos, e deixa de existir. E
pelo que sabemos, essa sucessão de coisas dependentes teria ocorrido desde
toda a eternidade, de forma que jamais teve um princípio. Nesse caso não
seriam todas as coisas dependentes? Assim, não seria isso um estado de
coisas no qual existem apenas coisas e eventos dependentes? E isso, portanto,
não seria capaz de descrever um mundo no qual nada é divino?
A resposta é que ele não o faz. Mesmo nesse relato existe algo
deixado no status da divindade per se, apesar do esforço conjunto em evitá-
lo. O que resta de divino nessa proposta é o conjunto total de coisas
dependentes. Uma vez que de acordo com a proposta nada existe além dos
membros do conjunto total, não existe nada em relação ao qual o conjunto
possa depender; não há nada que explique por que ele existe; ele apenas é.
Dessa maneira, não importa para essa proposta que cada uma das coisas e
eventos no conjunto seja dependente, porque o conjunto como um todo não o
é, enquadrando-se portanto na definição de divino per se. A questão “por que
o conjunto existe em vez de nada?” não é respondida. O conjunto total é
então deixado automaticamente com o status de possuir existência
incondicional.
Às vezes argumenta-se que, de acordo com a proposta, o conjunto
depende de algo, a saber, seus membros. Afinal de contas, ele não poderia
existir sem seus membros, certo? Essa réplica, no entanto, é bastante confusa.
O termo “conjunto” é um nome coletivo para todas as coisas dependentes que
compreendem o tipo de realidade que está sendo proposta, não o nome
próprio de uma coisa individual. Assim, o conjunto total não pode ser
considerado como um simples objeto que depende de seus membros como
partes. Em outras palavras, o conjunto não depende de seus membros; ele é
simplesmente seus membros. Desse modo, sugerir que o conjunto depende de
seus membros equivale apenas a dizer que ele depende de si mesmo ― o que
não é nada mais do que outra (embora menos clara) forma de dizer que ele é
não dependente.
Deixe-me colocar essa rejeição de que “nada é divino per se” de outra
forma, caso ainda não tenha ficado claro. A soma total da realidade, não
importa como isso é entendido, teria de ser divina em partes ou no todo, pela
simples razão de que não haveria nada mais do qual ela dependeria. A única
forma de evitar essa conclusão seria afirmar que “a soma total da realidade”
é, de algum modo, uma noção destituída de sentido. Mas por que pensar isso?
Parece-me que sei o que isso significa: isso significa tudo o que há ― o que
quer que isso seja. Se o que é independente é a soma total da realidade
tomada como um todo, então alguma forma de arranjo de dependência
panteísta está correto. Se a soma total da realidade é parcialmente não
dependente e parcialmente dependente, então ou o arranjo de dependência
pagão ou o bíblico está correto. Dentre esses dois, se o segmento
independente da realidade está contido dentro e permeia o segmento
dependente, então o arranjo de dependência pagão é o correto. Ao passo que
se a parte independente da realidade transcende (não é parte do ser de) o
segmento dependente da realidade, então o arranjo bíblico de dependência é o
correto.
Há algumas coisas que deveriam ser notadas sobre esse argumento. A
primeira pontuei anteriormente quando disse que os três arranjos de
dependência que são encontrados nas religiões do mundo do passado e do
presente não são os únicos possíveis. Assim, tenho tratado desses três apenas
porque são os mais proeminentes, e não pela suposição de que não poderiam
haver outros. Em segundo lugar, o que tenho pontuado sobre eles seria
verdadeiro, a despeito das descrições complementares que pudessem ser
apresentadas acerca daquilo que tem o status de divino per se. Tenho tratado
apenas de arranjos de dependência, e não sobre a(s) suposta(s) natureza(s)
das divindades per se, sobre a(s) qual(is) a realidade não divina depende. É
bem possível que alguém defenda qualquer desses arranjos, mas substitua
uma descrição distinta específica daquilo que tem o status divino em relação
àquelas ensinadas pelas tradições religiosas que historicamente têm defendido
aquele arranjo de dependência particular. Em terceiro lugar, esse argumento
não pretende demonstrar qual arranjo de dependência, ou qual ideia daquilo
que tem o status de divindade per se, é o correto. Ele demonstra apenas por
que não faz sentido dizer que nada tem o status de divindade per se, a saber,
porque não podemos estruturar qualquer ideia da realidade na qual nada seja
divino.
Finalmente, deveríamos notar que esse argumento não demonstra que
todas as pessoas têm alguma crença sobre a divindade. (Creio que isto seja
verdadeiro; no entanto, creio nisso porque as Escrituras o ensina, não por
causa do argumento.) O fato de que uma crença não tem alternativa coerente
não garante que todos de fato crerão nisso.
Isso conclui nossa discussão sobre crença religiosa. Dedicar-nos-emos
agora à questão do que é uma teoria e à distinção de alguns tipos principais
de teorias. Isso nos ajudará a assumir uma posição na qual podemos ver por
que e como uma ou outra descrição da divindade per se inevitavelmente
exerce um papel regulador crucial em qualquer teoria abstrata.
PARTE II

TEORIAS
CAPÍTULO 3. O QUE É UMA TEORIA?

3.1 Introdução
Vamos começar perguntando: por que deveríamos estar especialmente
interessados na relação entre crença religiosa e teorias? Certamente há mais
em relação à interpretação da vida do que é permitido por teorias! Afinal de
contas, não seriam todas as teorias questões altamente técnicas
compreendidas apenas por cientistas e filósofos? E acaso não contribuem
pouco para o entendimento que grande parte das pessoas têm de si mesmas e
de sua vida diária?
Embora algumas teorias sejam, de fato, muito técnicas e entendidas
apenas por especialistas, muitas outras, por seu turno, não o são. A ideia de
que todas as teorias estão além do cidadão comum vem da associação da
palavra “teoria” com os últimos avanços na física, na química, ou na
astronomia. Deveríamos lembrar, no entanto, que também existem teorias
influentes sobre direitos políticos, felicidade humana, moralidade, o
entendimento da arte, a criação de filhos, tratamentos médicos eficazes e
educação pública, para citar algumas. Muitas dessas teorias estão dentro do
alcance e da compreensão do cidadão comum. Além disso, parece
improvável que alguém não defenda pelo menos uma teoria num desses
tópicos citados. Dessa forma, a verdade é que o cidadão comum é
profundamente influenciado por teorias.
Outra razão pela qual deveríamos nos interessar sobre a relação entre a
crença religiosa e as teorias tem a ver com a autoridade que as teorias
geralmente reivindicam possuir, especialmente aquelas nas ciências. Uma
crença amplamente difundida em nossos dias é a de que, tão logo uma teoria
científica é formulada, testada e aceita por grande parte dos especialistas, ela
se torna um padrão dotado de autoridade para julgar a verdade daquilo que
lhe diz respeito. Isso implica, obviamente, que se a crença religiosa de
alguém for confrontada por uma teoria amplamente aceita, essa pessoa seria
perversa ao rejeitar a teoria e manter a crença. No último século e meio essa
conclusão tem sido defendida repetidamente por defensores da biologia
darwinista, da psicologia freudiana e da política marxista, para mencionar
apenas os exemplos mais óbvios.
Podem aqueles dentre nós que creem em Deus aceitar a afirmação de
que as teorias são os árbitros finais da verdade? Elas são realmente neutras
em relação à crença religiosa e assim capazes de reivindicar a aliança
primordial comumente atribuída a elas? Se sim, estariam elas
verdadeiramente numa posição para decidir sobre a verdade (ou
racionalidade) de crenças religiosas? E o que dizer da visão popular de que,
embora as teorias sejam dotadas de autoridade para um domínio da vida, a
crença religiosa o é em outro domínio? Essa é uma forma satisfatória para um
teísta entender como a crença em Deus se relaciona com as teorias? Para
responder a essas e outras importantes questões devemos, primeiramente,
adquirir alguma compreensão do que as teorias são, de forma que possamos
então investigar a relação entre elas e as crenças sobre a divindade per se.

3.2 O que é uma teoria?


A alma mesma de uma teoria é sua hipótese, e uma hipótese é uma opinião
balizada proposta para explicar algo. Obviamente, o fato de que todas as
hipóteses sejam suposições não significa que todas as suposições sejam
hipóteses, pois nem todas as suposições têm como intenção explicar algo. Por
vezes fazemos suposições com o objetivo de ganhar um prêmio ou contar
uma piada, por exemplo. No que se segue, estaremos interessados apenas nas
suposições feitas com o propósito de explicar algo e que, portanto, são
suposições bem especiais, o que denominamos “hipóteses”.
Deixe-me esclarecer de antemão que não tentarei corrigir a prática
comumente aceita de utilizar “hipótese” e “teoria” de forma intercambiável
para indicar seja uma única suposição explanatória ou um conjunto de
suposições explanatórias estreitamente relacionadas. Em grande medida, no
entanto, não demonstrarei interesse aqui em hipóteses isoladas, mas em
conjuntos delas, juntamente com suas condições iniciais e premissas de
fundo, as quais formam uma explicação altamente abstrata e sistemática que é
defendida por meio de argumentos e evidência. Há outra maneira na qual
“teoria” comumente é utilizada, que devo rejeitar completamente. Essa é a
prática empregada por muitos escritores que utilizam o termo “teoria” para
qualquer tipo de explicação, seja empregando ou não hipóteses. Para eles, o
termo “teoria” significa simplesmente qualquer explicação, interpretação, ou
auxílio para o entendimento.
Tal uso de “teoria” é tanto confuso quanto enganoso, porque ele
obscurece o que é essencial para teorias em contraste com outras formas de
explicação. Por exemplo, ele deixa obscurecido a diferença entre uma teoria e
um mito. Em muitos mitos as obras da natureza eram personificadas, e as
relações entre elas eram explicadas como explicaríamos as relações entre os
humanos. Foi esse tipo de explicação que os gregos antigos desejaram
substituir por hipóteses, as quais tentavam explicar os vários dados por meio
das propriedades que possuíam e pelas leis que os governavam, e que eram
objetos de debate por meio da produção de argumentos e evidências pró e
contra. (É por essa razão que o termo “mito” finalmente passou a carregar a
conotação de uma explicação que era tanto inferior quanto falsa.) Porém, uma
vez que não fazemos dos mitos explicações da natureza, pode parecer
irrelevante preservar sua distinção em relação às teorias. Mas mesmo
excluindo os mitos, continuamos utilizando formas de explicação que não são
teorias. Por exemplo, as direções sobre como chegar ao meu escritório, ou
instruções sobre como operar um helicóptero, oferecem explicações, ainda
que não proponham qualquer hipótese, não devendo, portanto, ser chamadas
de teorias. Dessa forma, utilizarei “teoria” para indicar apenas as explicações
que oferecem hipóteses e que tentam justificá-las por meio de argumentos e
evidência.
Dada essa definição de “teoria”, deveria parecer óbvio que o trabalho
de produzi-las não é o domínio exclusivo de cientistas e filósofos. Um
detetive pode produzir uma teoria sobre um caso no qual está trabalhando;
um motorista pode conceber uma teoria sobre um estranho barulho vindo do
motor de seu carro; e um funcionário de escritório pode propor uma hipótese
sobre o porquê de seu chefe estar tão mal-humorado hoje. Uma vez que todas
essas suposições são produzidas para explicar algo, elas são teorias na mesma
medida em que as propostas da teoria atômica e da psicologia freudiana.
Ademais, ambos os tipos de teorias ― as suposições do senso comum, assim
como aquelas dos cientistas e dos filósofos ― são promovidas pela mesma
frustração: elas são produzidas quando não podemos descobrir diretamente a
resposta para alguma questão. Quando isso acontece, supomos uma resposta.
Existem importantes diferenças, no entanto, entre a forma que as
teorias são produzidas por cientistas e filósofos e a forma pela qual são
produzidas pelo senso comum no contexto da casa ou do escritório. Duas
dentre tais diferenças que receberam aceitação quase universal são: (1) teorias
na ciência e na filosofia são mais abstratas do que aquelas do senso comum,
[50]
e (2) os métodos de avaliação de teorias oferecidos na ciência e na
filosofia são muito mais complexos e sofisticados. Essa maior sofisticação é
parcialmente o resultado da natureza abstrata dessas teorias, mas também
uma resposta ao fato de que teorias propondo a explicação do mesmo dado
geralmente discordam uma da outra. Os métodos de avaliação são, dessa
forma, orientados não apenas para o julgamento interno de uma teoria, mas
para a ponderação dessa em relação a teorias concorrentes. Assim, não
apenas as hipóteses são mais abstratas, mas também as razões oferecidas a
favor delas.
No restante deste capítulo examinaremos algumas diferenças
importantes entre teorias altamente abstratas e aquelas do senso comum. Isso
é necessário porque apesar do reconhecimento de suas diferenças, elas
raramente são examinadas de forma atenta ou se atribui a suas consequências
seu pleno significado.[51] Digo isso porque será demonstrado que suas
consequências são características cruciais para uma explicação sobre como as
teorias geralmente se relacionam com crenças religiosas. Portanto,
precisamos primeiramente de uma análise da abstração, após a qual
observaremos o que diferencia teorias científicas de teorias filosóficas. Isto
feito, distinguiremos então dois tipos de hipóteses abstratas que ocorrem
tanto na ciência quanto na filosofia. E finalmente fecharemos com uma
descrição de várias diretrizes para a avaliação de cada tipo de teorias.

4.3 Abstração
Enquanto todos parecem concordar que as teorias científicas e filosóficas são
altamente abstratas, raramente escritores tentam explicar de forma clara o que
se quer dizer por “abstrato” ou o que se quer dizer por ser “altamente”. Um
ponto de partida óbvio para essa tarefa é considerar o significado literal do
termo: “abstrair” significa extrair, ou remover algo (mentalmente) de algum
contexto mais amplo. Essa atividade é virtualmente a mesma que enfocar
nossa atenção, algo que fazemos frequentemente no dia a dia. Por exemplo,
se estamos tentando encontrar um livro que tem uma capa verde, procuramos
na estante observando todos os livros com capas verde. Para fazer isso,
precisamos primeiramente ter destacado mentalmente (abstraído) a cor verde
de todas as outras cores e também destacado a cor de cada livro de todas as
outras qualidades ou propriedades que os livros têm.
Esse nível de abstração é tão comum que geralmente não prestamos
atenção a ele. Por exemplo, geralmente executamos tais ações como evitar
algo porque cheira mal, julgar algo grande demais para um compartimento,
ou preferir um curso de ação porque ele é justo. Por mais comuns que essas
ações possam ser, todas elas exigem que tenhamos primeiramente abstraído
odores, tamanhos ou a justiça entre todas as outras propriedades exibidas por
aquilo que cheira mal, seja demasiadamente grande, ou seja mais justo. Em
tais casos, no entanto, a extração dessas propriedades em nosso pensamento
não é feita de forma a isolá-las das coisas ou eventos que as apresentem. Isto
é, esse nível de abstração não focaliza o odor, ou o tamanho, ou qualquer
outra propriedade ao ponto de romper a continuidade dessas propriedades
com todas as demais propriedades das coisas que as possuem. Nesse nível de
abstração, uma propriedade, embora distinguida e destacada, ainda é
experimentada como uma característica da coisa que a apresenta. Chamarei a
isso de o nível inferior de abstração. Em contrapartida, também somos
capazes de intensificar o foco de nossa atenção a tal grau que isolamos, de
fato, uma propriedade daquilo que a apresenta, e assim focamos nossa
atenção sobre a própria propriedade. É a isso que denomino abstração “alta”.
Uma vez que o nível mais alto de abstração é uma característica
bastante importante das teorias científicas e filosóficas, ilustrarei agora sua
diferença da abstração inferior em maiores detalhes. Tome o caso de alguém
que comprou um novo carro e o está mostrando a um grupo de amigos. Um
dos amigos diz que ama a cor do carro, outro comenta que o carro é belo,
enquanto outros perguntam o quanto ele custou e o quanto ele pesa. Todas
essas observações demonstram que os interlocutores destacaram num nível
inferior de abstração propriedades distintas do carro: sua cor, beleza, custo e
peso. Mas nenhuma dessas propriedades foi isolada do próprio carro; elas
ainda estão sendo experienciadas e concebidas como propriedades do carro.
Se, no entanto, um indivíduo se concentrasse sobre a propriedade, por
exemplo, do peso em si, à parte do carro (ou de qualquer objeto particular),
ele estaria concebendo o peso de uma forma altamente abstrata. Outras
propriedades tais como a velocidade, a massa, a densidade e o volume
poderiam, da mesma forma, ser isoladas. Dessa forma o pensamento
altamente abstrato pode oferecer-nos um tipo distinto de conceito acima e
além daqueles que estão disponíveis sem ele. Ele acrescenta uma nova
dimensão à teorização, possibilitando que as hipóteses sejam suposições de
(ou sobre) propriedades, funções, relações, etc., altamente abstraídas, além de
serem sobre as coisas e os eventos que as possuem. Dessa maneira torna-se
possível que os conceitos altamente abstratos sejam utilizados para explicar
tanto outras abstrações quanto as coisas e eventos que continuamos a
experimentar na conexão inquebrável de todas as suas propriedades. Assim,
ao abstrair propriedades, criamos a possibilidade de questionar sobre as
relações entre essas propriedades, e de buscar por padrões de conexões entre
essas relações, todas elas concebidas em isolamento de quaisquer coisas ou
eventos nos quais possam ocorrer.[52] Para as teorias, a mais importante das
relações que pode ser descoberta nisso são as leis. No caso da amostra de
propriedades descritas acima, leis presentes entre elas incluiriam:

momento linear = massa x velocidade


ou

Leis presentes ainda entre outras propriedades incluiriam as leis de


movimento, ou da termodinâmica, ou a famosa lei de Einstein E = mc².
Assim, a alta abstração nos possibilita elaborar questões sobre propriedades
que não poderiam ter sido levantadas caso não as tivéssemos isolado das
coisas que as apresentam, nem as tivéssemos respondido ao isolar ainda mais
relações específicas entre elas ― especialmente relações de leis. Assim, para
grande parte das teorias da ciência e da filosofia nem as questões propostas,
nem as respostas oferecidas a elas, poderiam ser concebidas sem a alta
abstração. Ademais, produzir argumentos e evidência para (ou contra) a
verdade de tais teorias também envolve alta abstração; na verdade, os
argumentos para teorias são geralmente mais sofisticados e engenhosos do
que as próprias hipóteses.
As teorias da ciência e da filosofia, portanto, diferem das teorias do
senso comum ao empregar alta abstração em qualquer uma (ou numa
combinação) de pelo menos três formas: (1) ao elaborar a(s) questão(ões) que
a teoria se propõe a responder, (2) ao inventar a hipótese proposta com
resposta à(s) questão(ões), ou (3) ao avaliar a verdade da hipótese por meio
de argumentos e evidência.[53] De agora em diante lidarei apenas com teorias
que empregam alta abstração, de modo que não continuarei, portanto, a traçar
tal distinção. O termo “teorias” sempre se referirá aos tipos altamente
abstratos, e o termo “abstração” sempre se referirá à alta abstração em vez do
mero destacamento de uma propriedade de uma coisa sem isolá-la da própria
coisa.

3.4 Aspectos da experiência

Em complemento às três formas listadas acima, a alta abstração exerce ainda


outro papel crucial na produção de teorias. Pois não apenas abstraímos
propriedades individuais, relações e padrões, mas também abstraímos tipos
delas. Tome como exemplo as propriedades que consideramos: peso, massa,
impulso e densidade. Podemos ver que elas, e as leis presentes entre elas,
compartilham cada uma da propriedade comum e complementar de serem
físicas. Distinguir esses tipos de propriedades e leis abrangentes, de larga
escala, é, portanto, uma abstração posterior das propriedades e leis abstraídas
daquele tipo. Dessa forma, enquanto as propriedades e leis individuais podem
ser abstraídas diretamente das coisas e dos eventos de nossa experiência
ordinária, a ideia sobre o tipo ao qual elas pertencem é uma abstração das
abstrações. Uma vez reconhecidas, tais ideias-de-tipos servem posteriormente
na produção de teorias ao delimitar um domínio, ou campo, de inquirição e
pesquisa distinto; no exemplo acima foi o domínio físico de nossa
experiência que foi isolado como um campo de estudo ― o campo para as
teorias da física, incluindo todas as suas subdivisões e ramos.
Da mesma forma, muitos outros tipos de propriedades-e-leis foram
abstraídos e transformados em áreas específicas de estudo. Por exemplo, as
propriedades e leis biológicas são o campo de estudo da biologia, enquanto as
propriedades e leis espaciais distinguem o campo de estudo da geometria. De
semelhante modo, teorias em economia ou ética resultaram do isolamento de
propriedades e leis daqueles tipos e na construção de teorias sobre como as
várias propriedades internas a cada tipo se relacionam umas com as outras e
com as coisas que as possuem. Ao longo dos últimos vinte e seis séculos, tais
tipos continuaram a ser abstraídos e se tornaram campos distintos de
investigação e de produção de teorias para as disciplinas formadas para se
devotarem a eles. Os exemplos mais expressivos dos tipos de propriedades-e-
leis que foram isolados como campos para a produção de teorias incluem
(pelo menos) aqueles listados adiante (os membros e a ordem dos quais será
discutido em maiores detalhes em capítulos posteriores):
fiduciária
ética
jurídica
estética
econômica
social
linguística
histórica
lógica
sensorial
biótica
física
cinemática
espacial
quantitativa

Chamarei a esses tipos de propriedades e leis “aspectos” das coisas


que experimentamos, e vou referir-me às disciplinas devotadas ao seu estudo
como “ciências”. O termo “aspecto” servirá para enfatizar que os tipos são
apresentados por e (indiretamente) extraídos dos objetos de nossa experiência
pré-teórica. O termo “ciência” significará qualquer disciplina específica,
delimitada por um ou mais aspectos, na qual teorias são construídas.
A lista acima não deveria ser entendida como um pronunciamento
dogmático acerca da possibilidade de todos esses aspectos serem genuínos,
uma vez que há pensadores que proporiam uma lista diferente. Na verdade,
busca-se com ela, primeiramente, uma descrição da (e não uma teoria da)
forma pela qual chegamos a experimentar as propriedades das coisas em
isolamento, assim como em sua conectividade nos objetos. E, em segundo
lugar, é uma descrição da lista dos aspectos que grande parte dos pensadores
consideraram como campos genuínos para a investigação e produção de
teorias. A lista, assim, é planejada apenas como auxílio no entendimento dos
maiores ramos da produção de teorias contemporânea, e não para alcançar a
única lista possível dos aspectos genuínos do mundo. Dessa maneira, de
agora em diante, quando utilizar expressões tais como “aspectos das coisas”,
ou “aspectos do mundo”, ou “aspectos de nossa experiência”, elas devem ser
entendidas como se referindo aos aspectos da mesma forma que a lista o faz.
Isto é, elas se referem a tipos distintos de propriedades e leis que grande parte
dos pensadores reconheceram que são apresentadas pelos objetos de nossa
experiência anteriormente a qualquer teorização. A lista não requer
dogmaticamente que qualquer lista alternativa não possa ser correta, que
nossa experiência ordinária não possa estar equivocada de alguma forma, ou
que nenhuma teoria poderia demonstrar que o mundo é diferente, de algum
modo, da forma como é apresentado em nossa experiência pré-teórica.
Embora muitas ciências sejam delineadas por e devotadas a um aspecto
particular, por vezes até mesmo assumindo sua nomenclatura a partir dele,
existem outras que delimitam seu campo e assumem sua nomenclatura a
partir de uma classe particular de coisas que buscam investigar. Entomologia,
paleontologia e botânica são exemplos.[54] Mas esse fato não depõe contra o
papel dos aspectos na teorização que venho enfatizando. Pois mesmo quando
uma ciência denomina seu campo por um tipo particular de coisa, ela ainda
assim não pode estudar todos os aspectos dessas coisas. São sempre alguns
(ou algum) aspectos dos insetos, dos fósseis, ou das plantas, que elas
investigam ― o biótico, por exemplo. Por outro lado, as ciências não
precisam ser confinadas a apenas um aspecto. Por exemplo, a antropologia
cultural lida com vários aspectos das culturas antigas e inclui teorias sobre
como certos dados relacionam-se através dos aspectos. Isso também não
diminui o papel e a importância da abstração dos aspectos na produção
teórica. Pois se uma ciência toma seu nome de um aspecto em particular, ou
de certo espectro de coisas, ou de alguns aspectos de certo espectro de coisas,
em todos os casos as delimitações aspectuais permanecem cruciais. Em cada
ponto uma teoria deve tornar claro o(s) tipo(s) de propriedades com as quais
está lidando, e o(s) tipo(s) de leis que está utilizando para relacionar e/ou
explicar seus dados.
Tendo enfatizado o papel da abstração no isolamento dos aspectos,
admito abertamente que muitas pessoas que atuam nas ciências diriam, caso
questionadas, que estão inconscientes da abstração de aspectos inteiros.
Penso que isso é verdade, mas que também falha em depor contra a
necessidade e a importância de tal abstração. A razão pela qual alguém está
inconsciente da abstração de todo um aspecto é que esse ato é geralmente
executado tão automaticamente que não é sequer notado por parte do
pensador que o realiza ― algo como a forma pela qual geralmente estamos
inconscientes do movimento de nossos olhos enquanto lemos. Em ambos os
casos existe um sub-evento ocorrendo dentro de um ato mais amplo em
virtude daquele ato mais amplo. Movemos nossos olhos para lermos, e nossa
atenção é fixada sobre nosso propósito em vez de sobre o movimento do olho
que é realizado tendo em vista o alcance daquele propósito. De igual modo, e
pela mesma razão, a abstração de um aspecto pode ocorrer despercebida
porque ela é feita em virtude da investigação e da teorização sobre as
propriedades e leis que nele se enquadram. Assim, não surpreende que
alguém engajado na ciência possa notar o papel que a abstração exerce na
conceitualização de propriedades ou relações específicas, mas não note seu
papel no isolamento de aspectos inteiros. Esse papel é tão básico que pode
passar despercebido.
Apresentarei alguns exemplos a fim de ilustrar como a abstração de
aspectos está envolvida nas ciências. Para avaliar o propósito desses
exemplos, deve-se ter em mente que a questão levantada anteriormente,
segundo a qual a abstração de um aspecto não resulta no esvaziamento da
experiência ou do pensamento do pensador, a não ser pelo aspecto que está
sendo abstraído. O que esses exemplos demonstrarão em vez disso é como a
abstração de um aspecto inteiro é acrescentado à nossa experiência e se trata
de uma adição que é indispensável para o empreendimento da teorização
científica.
Para a primeira ilustração, tomemos o caso de um biólogo observando
micróbios por meio de um microscópio. Na medida em que ele os
experiencia, os micróbios parecem ter proporção espacial e forma, cor
sensorial, massa física, etc. Pode também ser revelante a quantidade deles
existindo em certa área. Mas essas propriedades são todas entendidas desde o
ponto de vista de seu foco abstrativo sobre o aspecto biológico dos micróbios.
É esse foco que guia e dirige seu pensamento. Mesmo que o tamanho, a
massa, a cor e o número de micróbios não sejam elas mesmas propriedades
biológicas, elas são importantes na medida em que contribuem para seu
entendimento dos processos vitais desses objetos. É o foco sobre seu aspecto
biológico que orienta as questões que ele há de postular acerca dos micróbios
e as suposições explanatórias que ele constrói a fim responder a essas
questões.
Para vermos que esse ponto se aplica igualmente a outras ciências,
considere o caso no qual o foco de um pensador é guiado pela distinção do
aspecto econômico. O economista pode até mesmo se preocupar com o
mesmo grupo de micróbios que o biólogo estava examinando. Mas em vez de
estar interessado neles como dados a serem abordados por uma explicação
biológica, ele oferecerá, em vez disso, uma teoria econômica sobre eles ―
uma explicação cujos princípios explanatórios incluem a lei de oferta e
demanda e a lei de rendimentos decrescentes. Assim, os micróbios serão
abordados pela explicação do economista em razão de suas propriedades
econômicas, mesmo que suas propriedades econômicas possam se modificar
dependendo se os micróbios estiverem mortos ao invés de vivos.
Essas são ilustrações de um papel exercido pela abstração na
produção teórica que geralmente não é apropriadamente apreciado. Sem a
abstração de aspectos inteiros, não seria possível especificar os tipos de
propriedades sendo investigados, ou os tipos de leis sendo utilizados para
explicar aquilo que uma teoria está buscando explicar. Por essas razões ― e
outras que descobriremos em breve ― a abstração dos aspectos é essencial na
teorização. Não importa qual lista de aspectos um pensador adote, a
teorização necessariamente pressupõe uma ou outra lista.

3.5 Tipos de teorias


Vamos considerar primeiramente a diferença entre as teorias científicas e
filosóficas. Ambas são altamente abstratas, obviamente, mas enquanto os
cientistas delimitam um ou mais aspectos como seu domínio, os filósofos
parecem carecer de tal “solo materno”. Na verdade, o exame da lista de
aspectos apresentada anteriormente poderia levar-nos à suspeita de que, uma
vez que existem ciências dedicadas a todos os aspectos de nossa experiência,
nada resta para o tratamento exclusivo por parte da filosofia. Para tornar as
coisas ainda piores, muitos dos objetos sobre os quais os filósofos escrevem
são os mesmos daqueles que pensadores investigando um simples aspecto
também escrevem. Por exemplo, há múltiplos trabalhos dedicados à filosofia
da matemática, à filosofia da história, à filosofia da lei, e assim por diante.
Isso faz parecer que a filosofia carece de um domínio, invadindo dessa forma
os demais. No entanto, estou contente em dizer que a filosofia tem de fato um
território próprio, e que tão logo esse território seja entendido de forma
apropriada, a diferença entre uma teoria científica em um aspecto e uma
teoria filosófica sobre o mesmo aspecto torna-se clara.
Vimos anteriormente que algumas ciências teorizam através de
aspectos assim como internamente a eles. Isso nos permitiu notar a
possibilidade de se desenvolver uma teoria mais geral não restrita a um
aspecto específico, mas que oferece uma descrição de como as propriedades
de distintos aspectos se interconectam em certos dados. Esse ponto faz surgir
a possibilidade de uma teoria geral integral, uma teoria sobre como todos os
aspectos se conectam. E isso é precisamente o que distingue a filosofia das
ciências. Ao passo que as ciências são dedicadas à apenas um ou a alguns
aspectos, a filosofia visa um panorama geral e abrangente; ela oferece teorias
que buscam explicar a conexão geral de todos os aspectos e, portanto, de
todas as ciências. Mesmo que alguns filósofos tenham ocasionalmente
discordado dessa definição, tentando argumentar que a filosofia deveria ter
uma meta menos ambiciosa, seus argumentos são, eles próprios, testemunho
do fato de que, desde o princípio, as teorias filosóficas tentaram desenvolver
esse tipo de visão geral. Como Gilbert Ryle coloca:
O tipo de pensamento que faz progredir a biologia não é o tipo de
pensamento que resolve as afirmações e contra-afirmações entre biólogos
e físicos. Essas questões interteóricas não são internas àquelas teorias.
Elas não são questões biológicas ou físicas. Elas são questões filosóficas.
[55]

O famoso psicólogo Jean Piaget também reconheceu essa característica da


filosofia quando disse que
ultrapassar os limites de sua própria disciplina implica uma síntese, e a
disciplina especializada em sínteses não é outra senão a própria filosofia.
[56]

Os dois tipos de teorias inventadas pelos filósofos para “sintetizar” ou


conectar todos os aspectos da experiência em um panorama são: (1) uma
teoria geral da realidade e (2) uma teoria geral do conhecimento. Os termos
técnicos para essas teorias são, respectivamente, “ontologia” (também
apelidada de “metafísica”) e “epistemologia”. É o desenvolvimento de
ontologias e epistemologias que distinguem a teorização filosófica e seu
distinto “solo materno”. Pode-se objetar que esse é um solo materno que
abrange todos os outros solos maternos ― e estaria correto! Mas esse é
exatamente o motivo pelo qual uma teoria filosófica sobre matemática, física,
lógica ou ética não é uma simples invasão dos domínios dessas ciências. Isso
não se equivale a uma intrusão neles, porque ela está trazendo os resultados
de uma teoria geral da realidade, ou do conhecimento, para dar suporte ao
estudo desses aspectos. Pela mesma razão, sempre que cientistas se envolvem
com temas que exigem deles um posicionamento acerca de como seu campo
de estudos específico se relaciona com qualquer outro, a tomada dessa
posição conduziu-os através das fronteiras da ciência para a filosofia.
Essa observação não tem como intenção oferecer uma crítica; não há
nada de errado com teorias dentro de um aspecto específico relacionando-se
com uma perspectiva mais ampla. De fato, argumentarei que é impossível
produzir teorias dentro de um aspecto particular que não assuma pelo menos
(mesmo de forma inconsciente) alguma resposta à questão sobre como aquele
aspecto se relaciona com todos os outros. A diferença, portanto, é de ênfase.
Pois mesmo que teorias científicas não possam evitar algum panorama sobre
como todos os aspectos se conectam, esse panorama permanece uma
premissa de fundo que nunca é conscientemente levantada, questionada ou
defendida. Mas enquanto um cientista pode meramente assumir uma visão
geral, o filósofo se especializa nisso. Filósofos fazem disso seu principal
negócio a fim de justificar o panorama que inventam ou adotam, e todas as
suas outras teorias são desenvolvidas de acordo com o que é exigido pelo
panorama desenvolvido em suas teorias da realidade e/ou conhecimento.
Mas o que justamente se quer dizer por uma “teoria geral da
realidade”? Essa é uma teoria que tenta descobrir a natureza essencial da
realidade. Sua meta pode ser descrita como a tentativa de descobrir quais
tipos de coisas existem. Mas dizer isso dessa forma não deve ser confundido
com indagar quais classes de coisas existem. Classes de coisas seria uma lista
enorme que incluiria: tênis, montanhas, animais, nuvens, pessoas, etc. Assim,
a questão aqui não é quais classes de coisas existem, mas qual é a natureza
mais básica de todas elas. A abordagem tradicional para se responder a essa
questão pode ser pensada dessa forma: se os vários aspectos das coisas que
experimentamos são representados como contas num colar, então a teoria
geral da realidade quer saber “o que é o cordão?” Esses aspectos são aspectos
do quê? Isso assim se dá porque, tradicionalmente, teorias da realidade
tentaram responder a essa questão propondo que um ou dois desses aspectos
fossem, eles mesmos, o cordão ― como se fossem a natureza básica de todas
as coisas. Por exemplo, algumas teorias propuseram que todas as coisas são
basicamente físicas, outras que a natureza da realidade combina propriedades
físicas com propriedades lógicas, ainda outras que tudo é basicamente
matemático, ou sensorial, etc.
O mesmo ocorre em relação a uma teoria geral do conhecimento. Essa
é uma teoria que tenta descrever aquilo que é essencial a todo conhecimento,
não apenas um tipo específico tal qual o conhecimento matemático, o
conhecimento estético, ou o conhecimento ético. Em vez disso, ela tenta
responder a questões tais como: “O que caracteriza o conhecimento como
distinto da mera opinião? “Como adquirimos conhecimento?” e “O que é a
verdade?”. Para responder a essas questões, uma epistemologia tem de
explicar a conexão geral de todos os distintos tipos (aspectuais) de
conhecimento. Como no caso das teorias tradicionais da realidade, teorias
tradicionais do conhecimento também assumiram a abordagem da proposta
de um ou outro tipo de tipo(s) aspectual(ais) de conhecimento como a chave
para os demais. Algumas delas defenderam o conhecimento como
essencialmente matemático, por exemplo, enquanto outros disseram que esse
era sensorial, ou lógico, ou histórico.[57]
Deveria estar claro, portanto, que teorias do conhecimento e da
realidade buscam explicar a conectividade geral entre os aspectos que
formam os domínios de todas as ciências, de uma maneira que se compare à
forma pela qual grande parte das ciências tenta explicar as relações dos dados
dentro de um aspecto em particular.
Uma segunda distinção que podemos fazer em relação às teorias é entre
dois tipos de hipóteses, cada qual ocorrendo tanto na ciência quanto na
filosofia. Chamarei à primeira dessas de uma “hipótese entitária”. O termo
“entitária” é utilizado aqui porque é o termo mais amplo e indefinido que
temos em português para se referir a qualquer tipo de realidade: é utilizado
para coisas, eventos, estados de coisas, relações, propriedades, leis, e tudo o
mais a que quisermos nos referir. Uma hipótese entitária é, pois, aquela que
propõe alguma nova realidade como a solução a uma questão ou
perplexidade. Em outras palavras, esse tipo de hipótese postula alguma
realidade oculta subjacente como a explicação do que quer que estejamos
tentando explicar. Dessa forma as lacunas em nosso conhecimento
relacionado àquilo que experimentamos são preenchidas por suposições
balizadas sobre entidades que não experimentamos. É como se tivéssemos
recebido um quebra-cabeças para montar sem uma imagem para orientar-nos,
embora saibamos como suas linhas gerais deveriam ser. Quando descobrimos
que não estamos conseguindo encaixar as peças para produzir essas linhas
gerais, supomos que exista uma peça faltando a qual, se fosse de tal e tal
forma, encaixar-se-ia em uma posição particular e possibilitaria que as outras
peças formassem a configuração correta. Grande parte das teorias que são
bem conhecidas pelo público é desse tipo. A teoria atômica e a teoria do Big
Bang na física, a teoria da evolução na biologia, e a teoria psicológica de
Freud postulando tais entidades como o id, o ego e o superego, são todas
exemplos de teorias propondo entidades que não experimentamos para
explicar características das coisas que experimentamos.
Eis um exemplo simples de como tal teoria entitária pode ser
produzida. Suponha que observamos que a tinta vermelha misturada com a
tinta azul se torne roxa, e queremos saber a razão disso. Nenhuma quantidade
de observação minuciosa responderá a essa questão. Mesmo se colocarmos
nossa cabeça na própria mistura, não veremos por que a tinta se torna roxa
em vez de outra cor. Então inventamos uma teoria. Dizemos que a tinta é
feita de partes tão minúsculas que não podem ser vistas, e que essas partes
são configuradas de tal forma que refletem diferentes ondas de luz. Assim, a
tinta vermelha se parece vermelha porque suas partes minúsculas refletem a
luz do comprimento de onda associada com nossa percepção visual do
vermelho, ao passo que a tinta que se parece azul é assim porque suas partes
minúsculas são configuradas de tal maneira a refletir a onda de luz associada
com a percepção visual do azul. Propomos, dessa forma, que quando
misturadas, as partes minúsculas com suas distintas configurações se
combinam, dando origem a uma nova configuração ― uma configuração que
reflete o comprimento de onda da luz associada com nossa percepção visual
roxa.
Essa teoria postulou uma série de entidades: partes minúsculas da tinta,
comprimentos de onda de luz, associação de comprimentos de ondas da luz
com cores percebidas e leis sobre como as partes da tinta se combinam para
formar partes com uma nova configuração. Note que a forma de explicação é
grosseiramente aproximada àquela do argumento lógico. Em um argumento
listamos as premissas como razões para a verdade de uma conclusão, e então
especificamos as regras lógicas por meio das quais as conclusões decorrem
de tais premissas. Em qualquer teoria entitária, as condições iniciais assumem
o lugar das premissas, e o que necessita ser explicado assume o lugar da
conclusão. Desse modo temos:

P1. Temos a tinta vermelha


P2. Temos a tinta azul
P3. Misturamos as tintas
-----------------------------------
C. A tinta torna-se roxa

Não sabemos, no entanto, por que 1, 2 e 3 produzem o efeito afirmado em C.


Por isso questionamos: o que mais está ocorrendo que não podemos
observar? Quais outros fatores estão envolvidos que, acrescidos a 1, 2 e 3,
produzem C? Nossas suposições sobre o que seriam esses fatores constituem,
pois, nossa hipótese com relação às peças de informação ausentes que, se
pudéssemos juntá-las a 1, 2 e 3, conduziriam por leis lógicas até C. Nesse
exemplo, nossa teoria propõe o que seriam aquelas peças de informação
ausentes. Ela então tenta demonstrar que afirmações dessas hipóteses,
juntamente com afirmações relacionadas às condições iniciais (1, 2, 3),
conduziram por regras lógicas à afirmação de C. É nesse sentido que é dito
que a teoria explica C.
Deveria estar claro, mesmo a partir dessa descrição (bastante simples),
que tais teorias envolvem ― como foi dito anteriormente ― não apenas
hipóteses, mas também condições iniciais (tais como 1, 2 e 3) e premissas de
fundo (tais como as regras da prova). Minha ênfase sobre o papel da hipótese
se dá porque sua natureza é geralmente confundida, e porque são
especialmente hipóteses que podem ser demonstradas como sendo
relevantemente reguladas por crenças religiosas. Deveria também notar-se
que teorias entitárias podem conectar suas hipóteses àquilo que deve ser
explicado por regras matemáticas assim como por regras lógicas, ou
determinando sua probabilidade em vez da dedução lógica ou matemática.
No entanto, argumentos de probabilidade ainda se enquadram dentro do
mesmo formato, no entanto, uma vez que a teoria como um todo ainda está
(grosseiramente) na forma de um argumento lógico. Isto é, o argumento
propõe-se a demonstrar que, dados os fatores relevantes, a teoria de fato
apresenta uma probabilidade de X, não que ela provavelmente apresente a
probabilidade de X.
Sempre que alguma nova entidade é proposta, pensadores naquele
campo querem descobrir se as entidades que propuseram são reais. Mas visto
que as entidades geralmente propostas por teorias não podem ser
experienciadas diretamente, pode-se verificar sua realidade apenas
indiretamente.[58] A descrição mais geral de tal avaliação indireta é dizer que
uma teoria é avaliada por quão bem explica o que se propõe a explicar,
incluindo se o faz melhor que quaisquer teorias rivais. A avaliação comum de
check-list inclui tais itens como a consistência da teoria, o quão cabalmente
ela explica seus dados, e também o quão amplamente suas hipóteses podem
ser aplicadas. Esse último passo é geralmente o mais persuasivo, e é o que
denomino a “extensão para além da intenção”. Isso significa que quando se
descobre que uma teoria apresentada para explicar um enigma explica
também uma série de outros enigmas, torna-se, então, difícil negar que a
teoria tenha tocado em algo que corresponda à realidade.[59] Outra forma
especialmente persuasiva de confirmação é quando uma hipótese que
inicialmente apresentava um pequeno espectro de evidência se torna
beneficiária de novas evidências a partir de fontes inesperadas. A essa
“convergência da evidência” é, pois, opor resistência. Ora, assim como é
difícil crer que uma hipótese é totalmente falsa quando inesperadamente
explica coisas que não se propunha a explicar, também é difícil crer que ela é
inteiramente falsa quando muitos tipos de evidências a partir de fontes
amplamente distintas convergem-se para apoiá-la. Mas isso não é sugerir que
tal evidência poderia produzir uma teoria além de qualquer dúvida. Isso não
pode ocorrer mesmo quando a evidência consiste de experimentos bem-
sucedidos. Eis a razão.
Muitas hipóteses entitárias incluem a experimentação entre seus
métodos para avaliação. Mas como existem equívocos comuns sobre o papel
dos experimentos, quero dedicar um tempo para dispersar dois dos mais
comuns. O primeiro é a noção de que a menos que exista um experimento
para testar uma teoria, essa teoria não pode ser considerada como científica.
A verdade, no entanto, é que experimentos, embora desejáveis, amiúde não
são possíveis, e uma teoria não é descartada apenas em razão de não ser
sujeita ao teste experimental. O segundo equívoco é que se qualquer
experimento é exitoso, então a teoria foi confirmada além de qualquer dúvida
e deveria, portanto, ser considerara como verdade indubitável. Esse equívoco
é geralmente combinado com outro, a saber, a ideia de que a prova
experimental distingue teorias científicas das teorias filosóficas. De acordo
com esse erro composto, teorias científicas podem ser comprovadas por meio
da experimentação, mas teorias filosóficas não são passíveis de comprovação
em razão de não serem sujeitas à experimentação. Mas embora seja verdade
que existem teorias filosóficas que se opuseram umas às outras por séculos,
isso não ocorreu porque as teorias científicas são sempre comprováveis, ao
passo que as teorias filosóficas nunca o são, nem o é em virtude da presença
ou ausência de experimentos. E isso nos traz ao último equívoco: a ideia de
que experimentos podem provar uma teoria além de qualquer dúvida. O fato
é, no entanto, que experimentos desempenham um serviço distinto.
Para entender por que experimentos não podem provar que uma teoria
é verdadeira, devemos primeiro entender duas regras lógicas simples. A
primeira diz que se é verdade que “Se A, então B,” e A é verdade, então B
deve ser verdade. Por exemplo, A poderia significar “Está chovendo” e B
poderia significar “A calçada está ficando molhada”. Nesse caso, “Se A,
então B” significaria: “Se está chovendo então a calçada está ficando
molhada”. Agora a regra diz que se isso é verdade, e se é verdade que está
chovendo, então deve ser verdade que a calçada está ficando molhada.
Escrito como uma fórmula a regra se parece com isso:

l. Se A, então B
2. A
--------------------
3. Logo, B

A questão crucial sobre essa regra é que enquanto ela funciona da esquerda
para a direita, não funciona, no entanto, da direita para a esquerda. Não
estamos autorizados a dizer:

4. Se A, então B
5. B
---------------------
6. Logo, A

Pois mesmo que a calçada esteja ficando molhada, isso não nos diz que está
chovendo (outras coisas além da chuva poderiam causar a calçada molhada).
Mas para afirmar que um experimento bem-sucedido provou uma teoria é
cometer o erro representado em 4, 5 e 6 acima. O argumento seria:

7. Se a teoria é correta, então o experimento será bem-sucedido


8. O experimento é bem-sucedido
------------------------------------
9. Logo, a teoria é correta

Assim, a noção de que um experimento bem-sucedido pode provar uma


teoria como verdadeira é um equívoco lógico. Existe, no entanto, outra regra
lógica que de fato vai da direita para a esquerda. Ela apresentar-se-ia desta
forma:

10. Se A, então B
11. Não B
-------------------------
12. Logo, não A

Aplicado ao nosso argumento de amostra, isso seria traduzido em: se é


verdade que a chuva tornará a calçada molhada, e se é verdade que a calçada
não está ficando molhada, então também é verdade que não está chovendo.
Quando o valor de um experimento é entendido dessa forma, podemos ter um
argumento logicamente válido que se parece com isto:

13. Se a teoria é correta, então o experimento será exitoso


14. O experimento não foi exitoso
-------------------------------------------
15. Logo, a teoria é (pelo menos parcialmente) falsa
Aqui temos um papel importante para os experimentos em teorias. Eles não
podem provar uma teoria como verdadeira, mas eles podem provar que ela é
(pelo menos parcialmente) falsa. Mas mesmo esse valor está sujeito à
limitações. Demonstrar que uma teoria é parcialmente falsa não irá, de si
mesmo, demonstrar exatamente qual parte dela está errada. E é sempre
possível que o experimento não tenha sido conduzido de forma apropriada,
ou que ele não tenha sido concebido de modo apropriado, para começar.
Ademais, ainda que o experimento tenha sido tanto bem planejado quanto
bem executado, teorias geralmente têm tamanho poder explanatório, que não
são abandonadas meramente sobre a base de alguns poucos experimentos
fracassados. Assim, o papel real dos experimentos na produção de teorias é
mais sutil. Seu papel é este: quando uma teoria sobrevive a uma série de
tentativas (bem planejadas e bem executadas) pra ser provada com falsa,
teóricos naquele campo consideram-se justificados em ter maior confiança
nela. Diz-se, então, que a teoria é confirmada pelos experimentos.
(Experimentos podem ter também outros empregos, é claro. Eles podem, por
exemplo, auxiliar na decisão entre teorias concorrentes.) Mas nenhum
conjunto de experimentos bem-sucedidos pode alcançar o ponto de provar
conclusivamente que uma teoria é verdadeira.
Neste momento alguns leitores podem estar desejosos de questionar:
“Por que se dá, então, que a refutação por experimentos parece ocorrer mais
comumente nas ciências do que na filosofia?” A resposta é que existe ainda
outro tipo de teoria além das teorias entitárias, um tipo que geralmente não é
capaz de ser verificado por meio do experimento. E, embora ambas as teorias
entitárias e teorias desse outro tipo ocorram tanto na ciência quanto na
filosofia, as teorias mais famosas na ciência são teorias entitárias, enquanto
que as teorias filosóficas mais famosas são do outro tipo. Esse outro tipo não
se inicia propondo a existência de alguma realidade previamente insuspeita e
não experimentada, mas explica seus dados de outra forma. Pense novamente
em nossa analogia do quebra-cabeças. Se aquilo que há de ser explicado é
representado pela perspectiva geral do quebra-cabeças, então esse segundo
tipo de teoria busca chegar até à perspectiva geral considerando uma de suas
peças como a chave para o posicionamento adequado de todas as outras. Em
vez de propor alguma nova entidade, esse tipo de teoria propõe uma nova
perspectiva sobre a justaposição mútua e o arranjo de todas as peças que já
são dadas. Ou seja, essa abordagem considera as peças presentes como
suficientes para resolver o quebra-cabeças conquanto que identifiquemos a
peça-chave para organizar as demais de forma correta. Desse modo, chamo
esse tipo de teoria uma hipótese “perspectival”.
Um exemplo de hipótese perspectival é a interpretação marxista da
história. De acordo com essa teoria, o fator-chave no entendimento da
história é sempre a economia. Isso significa que o fator econômico é visto
como decisivo para explicar o curso da história de tal forma que outros
possíveis fatores explanatórios, tais como crenças religiosas, ódio racial,
rivalidade política, desejo por poder, ou o talento e a influência de poderosos
indivíduos, são sempre controlados pela economia da situação, ao invés do
contrário. Claramente, essa não é uma hipótese entitária; que as forças
econômicas exerçam um papel na história humana não é uma suposição. Mas
essa é uma hipótese de que somente elas determinem o curso inteiro da
história.
É importante distinguir teorias perspectivais de teorias entitárias por
uma série de razões. Uma delas é que isso nos permite reconhecer que as
teorias que são centrais à filosofia ― as teorias que oferecem um panorama
da realidade, ou do conhecimento ― são teorias perspectivais. Já tocamos
nesse ponto em conexão com a premissa prevalecente na filosofia ocidental
sobre como construir teorias gerais da realidade ou do conhecimento. A
premissa é de que a forma para se chegar à natureza básica da realidade, ou
do conhecimento, é selecionar um ou dois aspectos (de qualquer lista destes
que um pensador adote) como identificando aquela natureza. Com base em
nossa analogia anterior, a premissa é de que geralmente uma ou duas das que
parecem ser apenas contas de um colar de fato abarcam também o fio que as
perpassa. Essa premissa identifica assim a natureza da realidade ou do
conhecimento atribuindo uma prioridade a um ou dois aspectos sobre todos
os outros. Ela, portanto, defende sua prioridade de atribuição argumentando
que seu aspecto escolhido é responsável pela conectividade entre todos os
outros, porque todos os outros ou são idênticos a ou gerados por aquele(s)
atribuído(s) com prioridade. A prioridade é, portanto, uma prioridade
ontológica.
Uma vez que o último ponto é importante, não quero passar por ele
apressadamente, então reformulá-lo-ei a partir de um ângulo diferente. A
premissa de que a natureza da realidade ou do conhecimento é idêntica a um
ou dois aspectos de nossa experiência dita uma estratégia específica para
definir quaisquer aspectos que uma teoria escolhe para exercer esse papel.
Isso exige a estratégia de argumentar por tal teoria em uma das duas formas.
A forma mais popular de as teorias defenderem seu(s) aspecto(s)
selecionado(s) é admitir que a realidade apresenta muitos aspectos genuínos,
mas argumentar que seus aspectos selecionados têm prioridade porque geram
todos os demais. As teorias que assume essa primeira forma podem, portanto,
ser vistas como se argumentassem que seus aspectos favorecidos constituem
a natureza essencial da realidade ou do conhecimento. Em contrapartida, a
segunda forma que uma teoria pode empregar como estratégia é argumentar
que seu aspecto favorecido é o único genuíno, de forma que todos os outros
(supostos) estão inseridos nele. De acordo com essa segunda forma, o aspecto
escolhido seria não meramente a natureza básica de toda a realidade, mas sua
natureza exclusiva. O centro comum de ambas as opções, e assim o coração
da estratégia é, pois, declarar que qualquer aspecto com a prioridade atribuída
poderia existir à parte dos demais, mas os demais não poderiam existir à parte
daquele(s) com a prioridade. E é por isso que a prioridade atribuída em
ambas as formas é ontológica, e é também por isso que ela confere
simultaneamente o status de realidade não dependente e portanto de
divindade per se a qualquer (ou quaisquer) que for(em) o(s) aspecto(s)
selecionado(s) para recebê-lo.[60]
Finalmente, reconhecer a distinção das teorias perspectivais é
importante porque isso nos permite notar como visões gerais sobre a natureza
da realidade ou do conhecimento abrangem os conceitos e teorias das
ciências e não são apenas confinadas à filosofia. Na verdade, é especialmente
por meio de visões da natureza da realidade que a influência de crenças
religiosas é vinculada às teorias científicas. Em outras palavras, nossa
afirmação central sobre o controle religioso de teorias segue dois passos:
teorias científicas necessariamente pressupõem um panorama geral da
realidade, enquanto panoramas gerais da realidade pressupõem alguma
crença sobre a divindade per se. Crenças religiosas regulam, pois, panoramas
da realidade, e por meio da mediação de algum panorama regulam teorias
científicas indiretamente.
Em minhas aulas tenho encontrado resistência à ideia de que teorias
científicas não podem evitar a pressuposição de uma visão da natureza da
realidade e, portanto, da divindade. Mesmo pessoas que estão confortáveis
em admitir que teorias filosóficas da realidade possam inevitavelmente
pressupor uma crença religiosa geralmente relutam em estender o ponto à
ciência. Assim, enquanto a defesa plena dessa afirmação deve aguardar até o
capítulo 10, ao menos uma explicação preliminar e sem grande rigor faz-se
necessária agora. Para demonstrar que isso não é verdade apenas para teorias
filosóficas, ilustrarei meu ponto utilizando primeiramente o conceito de um
objeto ordinário (um saleiro), e em seguida utilizarei o conceito de átomo.
Isso nos permitirá observar como a análise de seus conceitos evoca a questão
sobre como as propriedades dos distintos tipos aspectuais neles incluídos
relacionam-se umas com as outras. Essa é a questão ― a questão sobre quais
tipos de relações conectam as propriedades de distintos aspectos ― que tem
levado tantos pensadores a identificar um ou dois aspectos como geradores de
todo o resto. Isso ocorre porque relacionar as propriedades do mesmo tipo
aspectual nunca foi tão problemático quanto fazê-lo para as propriedades de
aspectos distintos. Dentro do mesmo aspecto as propriedades podem ser
vistas como estando relacionadas causalmente, sendo mutuamente
incompatíveis, ocorrendo em padrões típicos, etc. Isso ocorre porque as
relações são do mesmo tipo que as propriedades envolvidas. Mas ao longo
dos aspectos as próprias relações se tornam um problema: quais tipos de
relações elas são? Como podem propriedades de um tipo produzir
propriedades de um aspecto distinto? É para responder a tais questões que
pensadores fizeram o que denomino atribuições de prioridade. Eles postulam
que as propriedades e leis de um (ou dois) aspecto possuem uma realidade
independente dos demais, e que eles podem, na verdade, produzir os demais.
É assim que eles identificam o tipo de relação que se dá entre diferentes
propriedades aspectuais como as que encontramos nas coisas ou postulamos
em teorias. E é por esse motivo que agir assim identifica, portanto, o tipo de
realidade sobre a qual as coisas experienciadas, ou as entidades hipotéticas,
dependem. Esse tipo de resposta, portanto, é a mesma que um panorama da
realidade, e assim também identifica a natureza daquilo que é tido como
sendo o divino per se.
Se estou num jantar com, digamos, um materialista, e peço a ele para
me passar o sal, ele é perfeitamente capaz de entender meu pedido por uma
série de razões. Primeiramente, ele está na presença do saleiro da mesma
forma que eu, e sua percepção está funcionando de forma apropriada. Como
consequência, ele também formou a crença de que existe um saleiro ao fim da
mesa. Nenhum de nós formou aquela crença em razão daquilo que
assumimos como sendo divino, mas porque nós vimos o objeto ali. Ademais,
nossa percepção desse objeto não é totalmente sensorial, mas inclui
propriedades de muitos tipos (aspectuais) distintos que o saleiro apresenta.
Esses são distinguidos logicamente e combinados por cada um de nós em um
conceito do saleiro, de tal forma que existe uma ampla sobreposição entre
nossos conceitos, uma sobreposição suficiente para confirmar em nós a
crença de que estamos lidando com o mesmo objeto.
Nesse nível da experiência e do pensamento, portanto, nenhum tema
filosófico ou religioso emerge. Ele me passa o sal. Mas se começássemos a
analisar mais extensivamente nossos conceitos de saleiro, logo chegaríamos à
conclusão de que enquanto eu creio que nenhum dos tipos de propriedades e
leis que ele apresenta são gerados pelos outros mas todos são criação de
Deus, o materialista, por sua vez, crê que todos são gerados por, ou são
idênticos a, algo físico. Assim, mesmo que em um nível inicial da experiência
ordinária o materialista possa concordar comigo caso eu comentasse que o
saleiro é belo ou está acima do preço, um exame mais aprofundado
demonstraria que seu conceito sobre o saleiro forçá-lo-ia ou a negar que
existam tais propriedades não físicas como beleza e custo, ou a insistir que
elas são dependentes das propriedades físicas e das leis comuns aos saleiros.
Isso ocorre porque, em sua perspectiva, propriedades não físicas ou não
existem, ou, se existirem, devem sua existência ao físico.[61] Descobriríamos
isso, no entanto, apenas se analisássemos nossos conceitos com muito mais
detalhes do que sempre foi necessário pelo pensamento ordinário na
experiência do dia a dia.
Ora, as teorias também se iniciam com nossa experiência comum do
mundo ao nosso redor. Elas também são baseadas em nossas percepções e na
percepção da descrição de outros, e sobre o reconhecimento de que os objetos
da experiência apresentam propriedades e conformidades-leis de distintos
tipos aspectuais. Mas, diferentemente de nosso conceito do saleiro, os
conceitos de entidades hipotéticas são nossas próprias invenções.
Depositamos sobre elas apenas as propriedades que desejamos que combinem
com a natureza da entidade em relação à qual nos propomos a preencher as
lacunas em nosso conhecimento. Ou seja, nunca propomos uma entidade sem
especificar sua natureza; não podemos simplesmente dizer “existem átomos”,
por exemplo. Teríamos de conhecer qual tipo de coisa o átomo supostamente
é a fim de entendermos o que isso explica e como isso o explica. Desse
modo, o conceito de uma entidade hipotética revela muito mais imediata e
claramente o tipo de relação que supostamente se dá entre os vários tipos de
propriedades incluídas nela do que nossos conceitos de objetos da
experiência pré-teórica. No conceito de um átomo, suas propriedades físicas,
por exemplo, devem ser pensadas como se relacionando de formas
específicas com suas propriedades matemática e espacial, assim como com
outros tipos de propriedades, tais como as propriedades sensoriais de nossas
observações. Isto é, tais relações interaspectuais devem, elas mesmas, ser
concebidas de uma forma específica, e qualquer que seja resposta dada (ou
presumida) àquela questão, trata-se de uma posição sobre a natureza
fundamental da realidade. Pois ambos os átomos e as coisas que eles
compreendem dependem da conectividade de todas as suas propriedades, de
tal modo que aquilo que supostamente qualifica esse tipo de conectividade é
também o qualificador último (natureza) do mundo que experienciamos.
Aqui temos o mesmo ponto parafraseado desde outro ângulo. Um
pensador que vê um aspecto particular como a natureza última da realidade
seria compelido a ter uma visão da realidade consistente com essa crença. E
isso seria verdade tendo ou não o pensador de fato desenvolvido uma visão
filosófica geral. Mesmo sem elaborar tal teoria, mesmo se o panorama da
realidade lhe permanecesse inconsciente, ela não deixaria de ser implícita em
quaisquer conceitos hipotéticos que o cientista aceitasse. Pois em qualquer
conceito de uma entidade hipotética, a forma que suas propriedades são
combinadas a fim de constituir sua natureza refletirá quais tipos (ou qual tipo)
delas são concebidos como se possuíssem existência independente e quais
(ou qual) devem sua existência ao(s) tipo(s) independente(s) de propriedades
e leis. Se se compreende o tipo aspectual de propriedades que constitui a
natureza da entidade como o único tipo real, ou como o tipo que gera todos
os outros tipos, então aquele aspecto está sendo considerado como se
qualificasse a natureza de toda a realidade, e por essa razão tem o status da
divindade per se. Por outro lado, se os tipos de propriedades que o conceito
combina como se fosse a natureza da entidade é apresentado como se devesse
sua existência às propriedades e leis de alguns outros tipos (ou algum outro
tipo), segue-se que a natureza da entidade hipotética é o não divino. Mas
nesse caso, seu poder explanatório é relativizado ao(s) tipo(s) divino(s) de
propriedades e leis dos quais depende em última instância. Em ambos os
casos, não se pode evitar o tema da natureza da relação entre os aspectos.
Contudo, essa paráfrase assemelha-se talvez a uma petição de
princípio, na medida em que utiliza a ilustração de um pensador que já tem
uma atribuição de prioridade que se deve a uma crença sobre a natureza
última da realidade. Assim, pode parecer que isso apenas explica como, para
pensadores que já possuem uma visão da realidade e uma crença sobre a
divindade per se, tal crença impactará seus conceitos científicos. Mas isso
não é correto. O que foi ilustrado anteriormente à paráfrase já demonstrou por
que o conceito de uma entidade hipotética não pode evitar a pressuposição de
alguma ideia sobre como os distintos tipos aspectuais de propriedades
relacionam-se dentro daquela entidade. E isso será verdadeiro em relação a
qualquer conceito, independentemente se uma pessoa que o aceita
(conscientemente) sustenta uma visão da natureza da realidade baseada na
atribuição de prioridade a um ou outro aspecto. Pois é inevitável que
propriedades que abarcam a natureza de uma entidade hipotética sejam
pensadas como: (1) pertencendo ao único tipo real de propriedades, ou a um
tipo que gera todos os demais, ou (2) devendo sua existência às propriedades
e leis de algum outro aspecto que tenha existência independente, ou (3)
devendo sua existência e conectividade a algo distinto de qualquer aspecto.
Qual desses é adotado não é um assunto trivial, na medida em que é crucial
entender o espectro explanatório e o poder de uma entidade para saber se (e
quais) propriedades incluídas em sua natureza são independentes e, se não for
o caso, saber do que (em última instância) dependem. Dessa forma, como as
propriedades incluídas no conceito de uma entidade são relacionadas umas
com as outras pressupõe algum panorama sobre como os aspectos
relacionam-se de forma geral, o que, como venho afirmando, é o mesmo que
um panorama identificando a natureza da realidade. Dessa forma, não se pode
evitar questão de como os vários aspectos se relacionam. Se uma resposta é
tacitamente assumida ou amplamente defendida, alguma visão sobre essa
resposta orienta como o conceito de qualquer ma entidade é formado. É por
essa razão que mesmo os conceitos mais simples e básicos nas ciências são
entendidos diferentemente dependendo do panorama da realidade assumida
pelo pensador.[62] (Veremos inúmeros exemplos disso nos capítulos dos
estudos de caso, quando examinarmos conflitos teóricos na matemática, na
física e na psicologia).
Quero deixar claro, no entanto, que embora eu venha lidando
principalmente com teorias e conceitos estruturados sobre a suposição das
opções (1) ou (2), isso se dá porque são essas que têm dominado a ciência e a
filosofia por um longo tempo. Mas elas não são as únicas, como a opção (3)
demonstra. E como argumento que (1) e (2) pressupõem um compromisso
religioso pagão, também defendo que elas deveriam ser rejeitadas por teístas.
Assim, investigaremos, nos três capítulos finais, com o que se poderia
parecer as teorias e conceitos estruturados sobre a opção (3).
Ao longo desse esboço preliminar tenho tratado apenas de conceitos
de hipóteses entitárias. Tenho dito que o impacto de crenças religiosas sobre
teorias entitárias deriva-se da forma na qual atribuições de prioridade
aspectual surgem dentro dos conceitos, e não apenas do contato com teorias
filosóficas.[63] Mas esse ponto se aplica igualmente às teorias perspectivais
que ocorrem nas ciências, assim como em suas teorias entitárias. Como
mencionado anteriormente, hipóteses perspectivais ocorrem tanto nas
ciências como na filosofia. Por exemplo, um botânico pode propor algo tão
simples como de que é a cor da flor que atrai as abelhas em vez de seu cheiro.
Essa seria uma hipótese perspectival, mas certamente não é uma teoria geral
sobre a relação entre todos os aspectos. No entanto, mesmo num caso simples
como esse, uma análise mais extensa dos conceitos ali empregados iria ―
assim como com o saleiro ou com o átomo ― refletir o que está sendo
pressuposto sobre as relações entre as propriedades de distintos tipos
aspectuais. Essa é a razão por que o tema do panorama não pode ser
eliminado, e também é o motivo pelo qual as ciências nunca podem ser
completamente independentes da filosofia. E como já vimos anteriormente
por que tais visões gerais por sua vez pressupõem alguma crença sobre a
divindade per se, é dessa mesma forma que teorias perspectivais não podem
também livrar-se da regulação religiosa, independente de um pensador querer
que isso ocorra, admita-o, ou esteja até mesmo consciente disso.

3.6 Critérios para o julgamento de teorias


Os métodos para a confirmação de teorias entitárias parecem ser mais
precisos e definidos do que aqueles específicos para as teorias panorâmicas
perspectivais. Como já fora mencionado, a amplitude da explicação para
teorias entitárias pode ser verificada pelo uso da lógica e/ou matemática para
dizer se os fatos conhecidos estão implicados quando uma proposta entitária é
acrescida ao dado inicial com qual uma teoria está lidando. Argumentos
também podem tentar demonstrar que uma hipótese entitária é mais provável
do que suas concorrentes. Além disso, teorias entitárias geralmente conduzem
a predições as quais podem ser verificadas por experimentos. A amplitude de
aplicação também é mais fácil de determinar no que diz respeito a uma teoria
entitária. Pode ser óbvio se uma entidade proposta, quando utilizada por outra
teoria, produz resultados confirmáveis. Teóricos também avaliam uma teoria
entitária de acordo com o número de novas entidades que ela precisa propor.
Sua regra é que se duas teorias rivais explicam as coisas igualmente bem,
aquela com menos hipóteses deve ser preferida. Por meio dessas formas, as
hipóteses entitárias podem ser avaliadas, aperfeiçoadas ou refutadas.
Em contrapartida, esses procedimentos padrão para a avaliação de
hipóteses entitárias não parecem funcionar para visões gerais perspectivais.
Uma vez que a proposta de uma inclinação perspectival sobre a natureza da
realidade não é uma questão de conjugação de entidades propostas a
condições iniciais para ver se elas acarretam resultados específicos, visões
gerais perspectivais não são moldadas no formato de um argumento lógico
como as teorias entitárias o são. Por essa razão, elas quase nunca são
passíveis de confirmação por experimentos. E quando perspectivas
concorrentes são comparadas em termos de amplitude, aquela que soar mais
verdadeira a alguém parecerá explicar as coisas melhor, mesmo se outra
explique de forma mais ampla. Na verdade, quando uma perspectiva
alternativa oferece uma explicação mais detalhada de mais coisas, isso apenas
faz com que ela se pareça falsa em maiores detalhes para alguém que a
rejeita.[64] Além disso, a amplitude de qualquer perspectiva panorâmica é
(pelo menos potencialmente) universal; toda realidade pode ser vista desde o
ponto de vista de, digamos, seus aspectos quantitativo, espacial, físico,
sensorial, lógico, etc. E, finalmente, não faz sentido comparar duas
perspectivas para ver qual propõe menos entidades, uma vez que nenhuma
propõe qualquer delas.
Assim, parece óbvio que panoramas perspectivais necessitam de suas
próprias orientações. É claro, eles compartilham com as teorias entitárias a
necessidade de serem logicamente consistentes. Uma teoria que se contradiz
não pode ser correta conforme se encontra. Mas isso certamente não é
novidade. Além e acima da consistência lógica, a única regra específica para
uma teoria panorâmica até o momento tem sido observar se existem dados
que não parecem possuir qualquer descrição plausível a partir de seu ponto de
vista. Por exemplo, é claro que formas mais antigas de materialismo não
poderiam oferecer alguma descrição plausível de conceitos. Mas materialistas
modernos agora apontam para as capacidades dos computadores e afirmam
que a formação de conceitos humanos é essencialmente o mesmo processo. A
despeito de poder-se defender isto ou não, o materialismo tem agora algum
tipo de descrição do pensamento conceitual, ao passo que anteriormente não
o tinha. Essa regra para avaliação é, obviamente, mais vaga do que a forma
pela qual as teorias entitárias são julgadas, e produzem resultados menos
definitivos. Como já se notou, embora seja algo que deponha contra uma
perspectiva, caso esta não ofereça uma descrição para um espectro de dados,
mesmo aquilo sobre o que ela oferece uma descrição ainda parecerá falso
para qualquer que defenda outra perspectiva. Além disso, não existem
critérios nítidos para o que é ou não uma “descrição plausível”. Para somar a
essas dificuldades, também é o caso de que mesmo se pudesse ser
demonstrado que todas as descrições disponíveis de certos dados de uma
perspectiva particular não são plausíveis, isso não demonstraria que nenhuma
descrição plausível jamais poderia ser oferecida a partir daquele ponto de
vista. Dessa forma, os debates entre perspectivas panorâmicas permanecem
passados vários séculos.
Creio que seja possível, no entanto, oferecer algumas orientações
adicionais que podem aguçar a avaliação de hipóteses panorâmicas. Cada
uma dessas orientações será uma afirmação de um tipo de inconsistência a ser
evitada. (Obviamente, essas incoerências deveriam ser evitadas também por
teorias perspectivais de menor alcance e teorias entitárias, mas elas serão
apresentadas aqui tendo em mente principalmente sua aplicação aos
panoramas perspectivais da realidade ou do conhecimento).
Penso que há (pelo menos) três incoerências para além da
inconsistência lógica que necessitam ser expostas, definidas e evitadas.
Ademais, essas três são geralmente mais sutis e difíceis de detectar do que a
contradição lógica direta. Também ocorre que a inconsistência lógica é
geralmente mais fácil de corrigir, e sua correção raramente exige a séria
alteração da teoria na qual ocorre. Em contrapartida, as três incoerências que
estou para formular não são facilmente corrigidas. Elas geralmente se dão no
cerne de uma teoria, e não podem ser eliminadas sem uma alteração
definitiva ou sem o abandono mesmo das principais reivindicações da teoria.
Duas dessas incoerências foram notadas por filósofos no passado, mas ainda
não são levadas suficientemente a sério, em minha opinião. A terceira é
relativamente recente, tendo sida primeiramente definida e desenvolvida por
Herman Dooyeweerd, cerca de cinquenta anos atrás.[65]
O primeiro desses critérios descarta qualquer teoria que elabore um
enunciado que, mesmo não contradizendo qualquer outro enunciado da
teoria, seja incompatível consigo mesmo. Seguindo uma série de pensadores
recentes, denominarei tal enunciado como “autorreferencialmente
incoerente”. Penso que exista tanto um sentido forte quanto um fraco pelo
qual um enunciado possa violar esse requerimento. No sentido forte, um
enunciado é autorreferencialmente incoerente se ele é, em si mesmo, uma
exceção àquilo que afirma. Nesse caso, ele anula a possibilidade de sua
própria verdade. No sentido fraco, um enunciado que comete essa
incoerência não exige sua própria falsidade, mas anula a possibilidade de que
alguém saiba que ele é verdadeiro. Assim, mesmo embora ele possivelmente
seja verdade, o fato de que nunca poderemos saber se ele é verdadeiro o torna
uma suposição explanatória bastante ruim.
Como um exemplo do sentido forte dessa incoerência, tome o
enunciado feito algumas vezes por taoístas de que “Nada pode ser dito acerca
do Tao”. Tomado sem qualificações (que não é o modo pretendido), isso é
autorreferencialmente incoerente, já que dizer “Nada pode ser dito acerca do
Tao” é dizer algo acerca do Tao. Assim, quando tomado como referência a si
mesmo, o enunciado anula sua própria verdade. Como um exemplo da versão
fraca da incoerência autorreferente, tome o enunciado feito uma vez por
Freud de que todas as crenças são o produto das necessidades emocionais
inconscientes do crente. Se esse enunciado fosse verdadeiro, teria de ser
verdade em relação a si mesmo, uma vez que essa é uma crença de Freud. O
enunciado, portanto, exige de si mesmo que não seja nada mais que o produto
das necessidades emocionais inconscientes de Freud. Isso não tornaria
necessariamente falso o enunciado, mas significaria que, mesmo que ele
fosse verdadeiro, nem Freud nem ninguém o poderia saber. O máximo que
esse enunciado permitiria alguém dizer é o indivíduo não poderia senão crer
nele.
O próximo critério diz que uma teoria não deve ser incompatível com
qualquer crença que tenhamos de assumir para que a teoria seja verdadeira.
Designarei a teoria que viola essa regra como “autoconjecturalmente
incoerente”. Como um exemplo dessa incoerência, considere o enunciado
proposto por alguns filósofos de que todas as coisas são exclusivamente
físicas. Segundo seus proponentes, esse enunciado implica que não há nada
que possua alguma propriedade ou seja governado por qualquer lei que não
seja uma propriedade física ou uma lei física. Mas deve-se admitir que a
sentença mesma que expressa esse enunciado — “Todas as coisas são
exclusivamente físicas” — possui sentido linguístico. Ora, este não é uma
propriedade física, mas a menos que a sentença o possuísse, ela não seria uma
sentença; não seria nada senão sons ou marcas físicos que não possuiriam
linguisticamente qualquer sentido e, dessa forma, não poderiam expressar
qualquer enunciado ― assim como um conjunto de seixos, ou nuvens, ou
folhas, falham em significar qualquer sentido ou expressar qualquer
enunciado. Ademais, afirmar esse materialismo exclusivista é o mesmo que
enunciá-lo como verdadeiro, o que é outra propriedade não física; e o
enunciado de que é verdadeiro admite ainda que sua negação seria falsa, o
que é uma relação garantida por leis lógicas, não físicas. (Na verdade,
qualquer teoria que negue a existência de leis lógicas é instantânea e
irremediavelmente autoconjecturalmente incoerente, já que essa própria
negação é apresentada como verdadeira de uma forma que logicamente exclui
sua possibilidade de ser falsa). O que isso revela é que se deve admitir que o
enunciado “Todas as coisas são exclusivamente físicas” contém propriedades
não físicas, e que é governado por leis não físicas, pois de outra forma ele não
poderia nem ser entendido nem ser verdadeiro. Assim, não importa o quão
hábeis pareçam os argumentos em apoio a esse enunciado, o próprio
enunciado é incompatível com conjecturas que são exigidas para que seja
verdadeiro. Assim, ele é autoconjecturalmente incoerente no sentido forte.[66]
O fato de que o exemplo anterior esteja relacionado a uma teoria que
negava a pluralidade genuína dos aspectos não é acidental. Embora tais
teorias não sejam as únicas a violarem esse critério, teorias que negam que o
mundo que experienciamos realmente contenha coisas com uma pluralidade
de tipos de propriedades e leis são, invariavelmente, autoconjecturalmente
incoerentes. Esse critério, portanto, é nossa primeira defesa para considerar
como genuína nossa experiência de uma pluralidade de aspectos: qualquer
tentativa de negar que existam muitos aspectos, ou de reduzi-los todos a
apenas um aspecto supostamente genuíno, sempre ocasiona essa incoerência.
O último dos três critérios, como o anterior, também está relacionado à
compatibilidade de uma teoria com um fator que é externo ao seu conteúdo
explícito. Mas em vez de estar interessada na compatibilidade de uma teoria
com suas suposições não declaradas, esse critério final diz respeito à
compatibilidade de uma teoria com as condições necessárias para sua
produção. Em outras palavras, ele diz que uma teoria deve ser compatível
com qualquer estado que devesse ser verdadeiro para um pensador, ou
qualquer atividade que o pensador tivesse de realizar para que formulasse os
enunciados da teoria. Tomando de empréstimo e adaptando uma antiga
expressão marxista, uma teoria deve ser compatível com “os meios de sua
produção”. Qualquer teoria que viole esse critério será considerada como
“autoperformativamente incoerente”.
Para começarmos com uma ilustração dessa regra tão simples o quanto
possível, tomemos o caso trivial de alguém dizendo que ninguém é capaz de
falar, ou de que não exista tal coisa como a linguagem. Uma vez que alguém
tem de falar para dizer que isso não pode ser feito, e uma vez que alguém tem
de falar em uma linguagem específica para dizer que esta não existe, esses
enunciados violam o critério no sentido forte e não têm a possibilidade de
serem verdadeiras. Para ilustrar a versão fraca do critério, tome o exemplo no
qual nos pedem para determinar a temperatura da água em um vidro
utilizando um termômetro. O fato é que, assim que colocamos o termômetro
na água, não podemos afirmar coerentemente qual era a temperatura antes de
realizarmos esse ato. O próprio ato modificou a temperatura da água. Desse
modo, a própria atividade necessária para descobrir o que queremos saber nos
impede de sermos capazes de sabê-lo (isso produz uma “relação de
incerteza”). Portanto, afirmar que “O termômetro demonstra que a água no
vidro era de 20°C” é ignorar o fato de que a ação pela qual essa informação
foi obtida nos impede de saber se o enunciado é verdadeiro.
Um exemplo mais sério do sentido forte dessa incoerência é aquele
oferecido por Descartes (mas sem seu reconhecimento ou definição disso
como um critério específico, distinto). Ao refletir sobre aquilo de que se pode
ou não duvidar, Descartes percebeu que a única coisa da qual não poderia
racionalmente duvidar era sua própria existência. Isto porque ele tinha de
existir a fim de realizar o ato da dúvida. Ele também tinha de existir para
pensar, ou dizer “Eu não existo”. Assim, esse estado de existência e seus atos
de pensamento e fala eram todos incompatíveis com o enunciado “Eu não
existo”. Ele, portanto, sustentava que “Eu não existo” tinha de ser falso, e que
nesse caso ele não poderia razoavelmente duvidar da verdade de “Eu existo”
sempre que pensasse nisso. Esse exemplo é importante porque destaca a
forma que esse critério pode produzir resultados significativos ao comparar
os enunciados de uma teoria às condições que não apenas permanecem
externas à própria teoria, mas que não são sequer crenças. Assim como os
critérios anteriores, a demanda por coerência autoperformativa não exclui,
mas assume as leis e distinções lógicas. No entanto, ele oferece-nos uma
forma de testar teorias que vai além da mera consistência lógica. Ela faz-nos
lembrar que uma teoria pode evitar a violação explícita de quaisquer regras
lógicas e até mesmo permanecer compatível com suas próprias suposições, e
ainda assim estar fatalmente equivocada. Note que não existe algo
autocontraditório na sentença “Eu não existo”; a verdade de “Eu existo” não é
exigida por regras lógicas apenas. Da mesma forma, Descartes viu que o
primeiro enunciado não poderia ser verdadeiro e o segundo não poderia ser
falso em algum sentido mais-do-que-lógico ― um sentido agora identificado
e nomeado.
O teste sobre se uma teoria é autoperformativamente coerente é um que
reconheceremos como particularmente iluminador, quando examinarmos as
teorias tradicionais da realidade em mais detalhes no capítulo10. Ali
utilizaremos o critério para demonstrar tanto por que o tema da conectividade
interaspectual não pode ser evitado quanto por que atribuir existência
independente a qualquer aspecto é sempre autoperformativamente incoerente
no sentido fraco. Seu emprego demonstrará que qualquer tentativa de
justificar o enunciado de que um aspecto abstraído é autoexistente (e
portanto divino) é sempre incompatível com a atividade da abstração
requerida para produzir tal enunciado.[67] E isso, como já disse, confirmará
posteriormente tanto o caráter religioso desses enunciados quanto a posição
de que eles são fundamentados na experiência, em vez de no tipo de
justificação buscado por teorias.
Antes que essa posição possa ser defendida, no entanto, é necessário
esclarecê-la um pouco mais. Essa é a tarefa dos dois próximos capítulos. O
capítulo 5 contrastará essa posição com suas maiores rivais, lidando com a
relação da crença religiosa com as teorias. Então o capítulo 6 oferecerá um
relato mais detalhado sobre o que significa dizer que algumas crenças
religiosas sempre “controlam” ou “regulam” teorias abstratas. Uma vez feitos
esses esclarecimentos, estaremos então preparados para os capítulos de
estudos de caso que ilustram esse controle em operação nas várias teorias
científicas em matemática, física e psicologia.
CAPÍTULO 4. TEORIAS E RELIGIÃO: AS
ALTERNATIVAS

Neste capítulo oferecerei um breve esboço das principais posições que


têm sido afirmadas na história do pensamento ocidental no tocante à relação
geral entre crenças sobre a divindade e teorias. Existem, é claro, inúmeras
variações dentro de cada uma dessas posições, e estas podem ser
posteriormente combinadas em uma ampla variedade de permutas. Assim, as
ideias delineadas aqui deveriam ser entendidas como as alternativas mais
básicas em suas formas mais simples.

4.1 Irracionalismo religioso


O título que dei a essa primeira alternativa não deveria ser visto como
significando que qualquer crença sobre a divindade é, em algum sentido, de
qualidade inferior ou carente de sentido quando avaliada racionalmente.
Alguns defensores dessa posição de fato inferem essa conclusão, mas outros
não. Assim, a posição em si mesma não é necessariamente um juízo sobre a
veracidade das crenças religiosas, mas uma visão sobre como, em geral, tais
crenças relacionam-se com qualquer base racional para elas. Tomada dessa
forma, a visão irracionalista pode ser elaborada de modo bastante simples: ela
diz que a razão e as crenças sobre a divindade não têm qualquer relação entre
si. Como consequência, elas não são capazes de julgar uma à outra. Isso
significa, dentre outras coisas, que a crença religiosa não pode ser provada ou
refutada. Nessa visão, o fato de que pessoas têm crenças sobre a divindade é
denominado sua “fé”, o que, conforme se admite, significa a confiança na
veracidade de uma crença sem a posse de qualquer justificação para tal (em
vez de ser a visão de que a crença religiosa é baseada na experiência, em
relação à qual argumentei anteriormente). Essa visão concebe a fé como uma
confiança cega em termos racionais, a qual é um fato inexplicável, suspensa
no do ar, sem ligações fortes com qualquer outra coisa ― com a possível
exceção da ética.
Esta posição me foi nitidamente apresentada no meu primeiro dia na
escola de pós-graduação. Um tutor do departamento de filosofia me
perguntou por que eu havia entrado na universidade e qual era o meu
principal interesse. Quando eu lhe respondi que havia entrado no programa
de filosofia da religião, sua face crispou-se em desapontamento e comentou,
“Aqui em Harvard nós ensinamos filosofia e ensinamos religião. Cabe a você
enxergar qualquer conexão.” De fato, a forma pela qual ele colocou o ponto
foi branda em comparação à forma que outros pensadores afirmaram o
mesmo. Alguns sustentaram que a crença religiosa e o raciocínio teórico são
tão mutuamente inimigos, que qualquer tentativa de oferecer razões para uma
fé a destrói. Por exemplo, Soren Kierkegaard disse o seguinte daqueles que
querem explicar ou justificar sua fé de uma forma racional:
Não seria melhor abandonar a fé, e não é revoltante que todos queiram
prosseguir? (...) Não seria melhor que eles estivessem de pé na fé, e que
aquele que está de pé prestasse atenção para que não caia? Pois os
movimentos da fé devem ser constantemente feitos em virtude do
absurdo...[68]

Ao chamar a fé de “absurdo” Kierkegaard não quer dizer apenas que


ela não é racionalmente justificável, mas que a razão teórica e a fé são
mutuamente excludentes:

Portanto é certo e verdadeiro que aquele que primeiro inventou a noção


de defender o cristianismo ― é de fato o Judas número dois...[69]

E, novamente, de forma mais extensa:


Suponha que alguém deseje adquirir fé; que comece a comédia. Ele
deseja ter fé, mas ele também deseja se salvaguardar por meio da
inquirição objetiva (...) O que ocorre? (...) Essa se torna provável, ela se
torna crescentemente provável, ela se torna extrema e enfaticamente
provável. Agora ele está pronto a crer, e ele ousa dizer a si mesmo que
não crê como os sapateiros e os alfaiates e as pessoas simples creem,
mas apenas após uma longa deliberação... e adivinhe, agora já é
impossível crer. Qualquer coisa que... seja algo que ele pode quase
conhecer... é impossível de se crer. Pois o absurdo é o objeto da fé, e o
único objeto que pode ser crido.[70]
Outro pensador que assumiu essa linha foi Friedrich Schleiermacher,
um influente teólogo alemão do século dezenove. Para Schleiermacher, a
crença religiosa era isolada da razão porque a religião é estritamente uma
questão de sentimento. Assim, ele definiu religião como a “soma de todos os
sentimentos elevados”, e inferiu a consequência:

Portanto, segue-se que ideias e princípios são externos à religião... Se


ideias e princípios são alguma coisa, eles devem pertencer ao
conhecimento, o qual é um departamento distinto da vida em relação à
religião.[71]

Dessa forma, Kierkegaard e Schleiermacher enxergam ambos a fé e a


razão teórica como mutuamente excludentes, mas ao passo que
Schleiermacher pensa que a razão não pode intrometer-se no domínio da fé
mesmo que o queira, Kierkegaard pensa que tais intrusões são possíveis,
embora sempre nocivas à fé.
Eu disse que podem haver inúmeras variações dentro de cada uma das
alternativas básicas sobre a relação entre a crença religiosa e a razão teórica, e
que isso é verdadeiro não somente dessa primeira posição, mas de todas as
outras. Assim como os dois pensadores citados acima não são os únicos que
sustentaram essa posição, também suas versões não são as únicas variações
dessa posição. Mas todos os seus apoiadores têm em comum o tema
depreciativo do papel da razão para a crença religiosa; todos mantêm que, na
melhor das hipóteses, ela não pode fazer bem, e na pior das hipóteses, pode
fazer bastante mal. O diagrama a seguir pode nos auxiliar a tornar essa
posição mais clara.

A crença religiosa: A razão teórica:


1. É opcional 1. É religiosamente neutra e
autônoma
2. É isolada da razão teórica 3. É a corte final de apelação em seu
domínio
Existem duas características dessa posição para as quais quero chamar a
atenção antes de prosseguir e observar as outras alternativas. A primeira,
indicada pelo número 1 no lado esquerdo do diagrama, é que enquanto cada
pessoa normal possui razão, a fé é uma opção que pode ou não ser exercida.
A segunda característica é que, embora essa posição limite o escopo da
razão, ela não deprecia a razão de todo, ou advoga que paremos de pensar.
Ela está disposta a demonstrar a mais alta estima para com competência da
razão em questões relacionadas ao lado racional da vida. Ela aceita que a
razão é a corte final de apelação nessas questões, que ela é ― em princípio ―
neutra em relação a quaisquer influências externas e até mesmo autônoma
(autogovernada). Em vez de depreciar a razão, a posição que denomino
irracionalismo religioso simplesmente sustenta que existe um lado não
racional da vida que “deixa espaço para a fé”. E já que o nicho então deixado
para as crenças religiosas é um no qual a razão não pode, ou não deveria,
intrometer-se, essa posição abandona qualquer esperança de obter apoio
racional para a fé, mas ganha em troca a imunidade de qualquer crítica
racional à fé. Por sua vez, a posição garante da mesma forma à razão a
imunidade de ser censurada pela fé. O resultado é que, nessa visão, os dois
membros da relação estão tão isolados um do outro que não pode haver um
conflito entre qualquer artigo de fé e qualquer teoria da ciência ou da
filosofia. O “departamento da vida” no qual a razão teórica é suprema não se
sobrepõe à área da vida na qual as crenças sobre a divindade são assumidas
pela fé.

4.2 Racionalismo religioso


Em contrapartida a essa posição irracionalista, existe a alternativa que eu
denomino “racionalismo religioso”. Nessa posição, todas as crenças devem
se apresentar diante do tribunal da inquirição racional, inclusive as crenças
religiosas. Como o filósofo A.N. Whitehead colocou certa feita: “O apelo à
razão é o juiz último, universal e, todavia, individual a cada um, diante do
qual toda autoridade deve se curvar”.[72] Nessa posição, não se deve permitir
nenhuma outra consideração ― nenhuma quantidade de confiança,
esperança, sentimento, etc. como autoridade rival ao veredicto da razão, e
nenhuma crença sobre a divindade encontra-se fora da competência da razão
para julgá-la.
O racionalismo religioso concorda, pois, com o irracionalismo religioso
sobre a neutralidade da razão, e difere somente em relação aos limites do
escopo da razão. Ambas as posições mantêm que a razão é autônoma e que
não deve, em princípio, ser guiada por nada senão suas próprias regras. Isso
não significa que as pessoas sejam sempre neutras e imparciais quando
avaliam suas crenças ou constroem teorias, é óbvio. Mas não importa o quão
malsucedidas as pessoas possam ser em impedir que influências externas
alterem seus juízos, as regras do pensamento racional e os procedimentos
pelos quais produzimos e avaliamos teorias são, eles mesmos, neutros; eles
conduzem à conclusões imparciais se e quando as pessoas evitam que outras
influências interfiram neles.
Em algumas versões mais antigas de racionalismo, a razão não apenas
era considerada neutra e a corte final de apelação, mas era também
comumente concebida como competente para julgar qualquer assunto, a
despeito de qual fosse. Aqueles que mantinham essa visão não queriam dizer
que eles possuíam de fato uma explicação para cada coisa, mas apenas que
tudo, em princípio, pode ser decidido ou conhecido racionalmente. Essa
convicção era baseada na crença de que a ordenação que subjaz à totalidade
da realidade é o mesmo tipo de ordenação que torna a racionalidade humana
possível.
Desde o princípio, no entanto, muitos racionalistas se esquivaram desse
último ponto. Alguns duvidaram se a realidade era de fato completamente
ordenada por leis matemáticas ou lógicas, abertas assim à explicação
racional. Eles duvidaram, dessa forma, que a razão humana teria o poder ―
mesmo em princípio ― de decidir todas as questões. Hoje são poucos, se
ainda existem, que discordariam dessa dúvida. Mas o racionalismo religioso
não necessita reivindicar que a razão seja onicompetente para manter sua
posição. Tudo o que precisam negar é a legitimidade de sustentar qualquer
crença a favor da qual a razão não possa decidir-se. Em lugar de permitir um
nicho para as crenças não decididas racionalmente, eles exigem que
suspendamos a crença em tais casos. Mais diretamente ao ponto, eles
insistem que a crença religiosa é um dos temas que a razão teórica pode
decidir. Esquematicamente, a posição de que a crença religiosa depende do
veredicto da razão teórica pode ser representado como segue na figura
abaixo.
A crença religiosa:
1. É uma teoria ou conclusão da razão
2. É opcional
A razão teórica:
1. É neutra em todos os assuntos
2. É a corte final de apelação em todos os assuntos
3. É capaz de decidir todos os assuntos (?)

Ser um racionalista no tocante à relação da razão teórica com a crença


religiosa não assegura, por si só, o que um dado pensador concluirá como o
veredicto da razão sobre as crenças religiosas. Um dos grandes defensores
dessa posição foi Platão, que concluiu que a razão oferece a prova de suas
crenças religiosas. Ao sermos racionais, ele diz,

somos certificados de que existem duas coisas que conduzem o homem a


crer nos deuses... Uma é o argumento sobre a alma... Que essa é a mais
antiga e mais divina de todas as coisas... A outra é um argumento da
ordem do movimento das estrelas e de todas as coisas sob o domínio da
mente que ordenou o universo. (Laws XII, 966)

Mas a mesma posição racionalista também foi sustentada pelo pensador do


século XX Bertrand Russell, que chegou a uma conclusão bastante diferente:
No que diz respeito às evidências científicas, o universo rastejou por
lentos estágios a um resultado um tanto lamentável nessa terra, e
rastejará a estágios ainda mais lamentáveis até a uma condição de morte
universal. Se isso for ser tomado como evidência de propósito, eu só
posso dizer que esse propósito não exerce o menor apelo sobre mim. Eu
não vejo razão, portanto, de crer em qualquer tipo de Deus, por mais
vago e mais atenuado que seja.[73]

Entre aqueles que assumem a posição racionalista, tem havido uma tendência
definitiva ao longo dos últimos três séculos de distanciar-se das conclusões
de Platão e aproximar-se das de Russell. Como resultado, muitos que
assumem essa visão agora consideram certo que a razão teria refutado a
crença religiosa e a substituído com as teorias da ciência e da filosofia.
Antes de prosseguirmos à próxima alternativa, é importante notar que
tanto o racionalismo como o irracionalismo concordam sobre um ponto
levantado anteriormente, isto é, de que nem todos possuem uma crença
religiosa. Para ambas as posições, é uma questão de escolha se alguém possui
ou não uma crença sobre a divindade, e se isso ocorre, qual seria essa crença.
O racionalista opõe-se ao irracionalista apenas ao insistir que as crenças sobre
a divindade devem ser julgadas por procedimentos racionais, não sendo de
outro modo legítimas.

4.3 A posição radicalmente bíblica


Ao denominar esta posição “radicalmente” bíblica não quero sugerir que esta
é uma visão extrema ou bizarra, mas sim que é apenas a visão encontrada nos
próprios escritores bíblicos. O termo “radical” refere-se aqui ao seu sentido
literal de “raiz”, de modo que a expressão significa, pois, “estritamente
bíblica”. Precisamos distinguir essa posição por duas razões. A primeira é
que se trata da visão que busco defender. A outra é que precisamos ser claros
no que lhe diz respeito a fim de entendermos a última perspectiva a ser
abordada — aquela que grande parte dos teístas na filosofia e nas ciências
tem adotado. A última visão é uma combinação das posições estritamente
bíblica e racionalista.
A posição racionalista foi a influência dominante na cultura greco-
romana antiga quando a ascensão e expansão do cristianismo introduziu no
cenário mundial a crença em outra autoridade. A religião bíblica (à época
apenas o judaísmo e o cristianismo) negava que a razão fosse a autoridade
final, ou que a razão fosse o único ou o melhor caminho à toda verdade. Ela
ensinava, em vez disso, que, embora a razão seja importante, sua função mais
elevada é capacitar os homens a entenderem a revelação de Deus e a servi-lo
com base naquilo que ele havia revelado. Consequentemente, grande parte
dos pensadores judeus e cristãos (e, mais tarde, dos muçulmanos) rejeitou a
posição racionalista. Mesmo aqueles dentre eles que tentaram permanecer o
mais próximo possível do racionalismo tinham de lidar de algum modo com
o relacionamento da razão com a palavra de Deus enquanto fonte outra e
distinta de autoridade.
Conforme disse, grande parte dos pensadores teístas hoje sustentam
uma combinação da posição estritamente bíblica e da posição racionalista. Na
verdade, essa combinação tem apresentado uma hegemonia tão abrangente,
por um período tão longo, que muitos que a abraçam têm perdido de vista tão
completamente a posição estritamente bíblica, que geralmente negam que
esta de fato exista. Eles afirmam, em vez disso, que os escritores bíblicos
nunca admitiram qualquer posição sobre um tópico tão abstrato quanto a
relação da crença em Deus com teorias, de modo que não existe uma posição
bíblica sobre esse tópico. E uma vez que esse equívoco é tão difundido, quero
dedicar algum tempo para demonstrar que existe de fato uma posição aceita
sobre esse tema encontrada nos Salmos, nos Profetas e no Novo Testamento.
A posição é esta: não existe conhecimento ou verdade neutros em relação à
crença em Deus. Os escritores que afirmam isso também não especificam
exatamente como a crença em Deus impacta “conhecimentos de todos os
tipos” ou “toda verdade”, mas eles são claros em que consideram que crenças
em outras (supostas) divindades falsificam parcialmente tudo o que se
presume como verdade ou conhecimento, e que o conhecimento de Deus
permite-nos, em princípio, evitar essa falsidade parcial.
Existem inúmeros textos em que os escritores bíblicos afirmam que
conhecer a Deus é o “princípio da sabedoria e do conhecimento”, mas muitos
deles ocorrem em obras poéticas e, dessa forma, são geralmente descartados
como hipérbole (Sl. 111.10; Prov. 1.7, 9.10, 15.33; Jr. 8.9). Assim, passarei
por ora ao largo deles comentando simplesmente que provavelmente não se
tratam de hipérboles, e que o desenvolvimento posterior desse tópico por
escritores do Novo Testamento demonstra que eles de fato não o são.
Um desses desenvolvimentos posteriores é a observação de Jesus de
que aqueles que distorcem a lei de Deus têm se “apoderado da chave do
conhecimento” (Lucas 11.52). Note que ele não diz que distorções da palavra
de Deus apoderam-se da chave do conhecimento de Deus; ele diz
simplesmente “conhecimento”. Aqueles que sustentam a visão de que a
Bíblia nunca trata de nada filosófico, como Jesus parece fazer aqui, podem
querer replicar dizendo que essa observação é elíptica, que ela é uma forma
resumida de falar do conhecimento de Deus, mesmo que a frase “de Deus”
seja omitida. Mas compare o comentário de Jesus com 1 Co 1.5, passagem
em que São Paulo diz que conhecer a Deus por meio de Cristo nos
enriqueceu em relação a “toda sabedoria e conhecimento”. Isso não se parece
elíptico nem poético. E isso não pode referir-se apenas ao conhecimento de
Deus. Pois posteriormente no próprio livro (1 Co. 12.8) ele fala de vários
dons que Deus dá aos crentes e menciona especificamente o dom do
conhecimento. Em seguida, no capítulo 13, ele diz que esse dom do
conhecimento passará juntamente com outros dons como profecia, enquanto
o conhecimento de Deus será aperfeiçoado de tal forma que o conheceremos
por relação direta, assim como Deus nos conhece. Desse modo, o dom de
conhecimento ― o conhecimento que resulta de um talento concedido por
Deus e que é impactado por conhecer a Deus ― não é (redundantemente)
apenas o conhecimento do próprio Deus.
Além disso, é importante notar a forma pela qual a Bíblia utiliza a
metáfora da luz relacionando-se com verdade, e utiliza “ser iluminado”
querendo dizer adquirindo conhecimento. O Salmo 43.3 confirma
explicitamente esse uso quando ele clama a Deus que “envie a tua luz e a tua
verdade”. Assim, quando o Salmo 36.9 afirma que “na sua luz [de Deus]
vemos a luz”, parece prima facie estar dizendo a mesma coisa que Jesus disse
e que 1 Co. 1:5 afirmou, a saber, que o conhecimento de Deus exerce um
papel crucial na aquisição de todos os outros tipos de conhecimento. A
metáfora da luz continua no Novo Testamento. Por exemplo, 1 Co. 4.3-6 diz
que descrentes são cegos à luz do Evangelho, e afirma novamente que essa
“luz” é “o conhecimento de Deus”. Com isso em mente, a clara afirmação de
Ef. 5.9 é talvez a mais forte de todas acerca da relação entre a crença em
Deus e todos os tipos de conhecimento. Ela diz que as consequências da luz
do Evangelho são encontradas “em tudo o que é bom, justo e verdadeiro”.
Concluo, portanto, que o efeito cumulativo desses textos é ensinar que
nenhum tipo de conhecimento é religiosamente neutro. É isso que tomo como
sendo a posição “radicalmente”, ou estritamente, bíblica. E uma vez que isso
se aplica para toda a verdade e para conhecimentos de “todos os tipos”,
aplica-se ao conhecimento adquirido por teorias, assim como ao
conhecimento adquirido de qualquer outra forma. Eu já havia esboçado
brevemente, no capítulo 4, minha descrição da proposta de Dooyeweerd em
relação a como isso deve ser entendido. Ali pontuei como nossos conceitos
de objetos experienciados (tal como um saleiro), ou de entidades postuladas
por teorias (tais como um átomo), refletem crenças sobre a divindade. No
capítulo 10 defenderei essa proposta em maiores detalhes, incluindo o
argumento relacionado à razão pela qual os compromissos com a divindade
são inevitáveis. E nos capítulos finais explicarei a proposta de Dooyeweerd
em relação a como a crença em Deus, especificamente, deveria impactá-los.
Essa posição sobre a relação geral de crenças sobre a divindade com
teorias pode ser representada diagramaticamente como se segue:
A razão teórica:
1. não é neutra porque controlada por crenças religiosas
2. não é a corte de apelação final

3. não é capaz de decidir todas as questões

A crença religiosa:
1. guia e dirige o uso da razão na totalidade da vida

A título de comparação, deveríamos notar que a posição bíblica radical difere


de ambas as posições anteriores em relação a se crença religiosa é opcional.
Em vez de falar da crença sobre a divindade como algo que uma pessoa pode
ou não possuir, os escritores bíblicos sempre consideram todos como tendo
uma crença ou outra sobre a divindade. De acordo com eles, o que está errado
com as pessoas não é a ausência de crença religiosa, mas crerem na divindade
errada. Com base nessa posição, portanto, ser religioso é uma parte tão
natural de todo ser humano quanto ser racional ou senciente; pode-se exercer
isso de forma correta ou incorreta, mas não se pode dispensá-lo
completamente.
É justo questionar nesse momento se, no que toca a essa posição,
trata-se de um equívoco os teístas tentarem justificar sua crença em Deus
racionalmente. Creio que a posição bíblica é a de que não é possível nem
desejável tentar qualquer justificação teórica da crença em Deus para
convencer um descrente. Mas eu complementaria logo em seguida que isso
não exclui a reflexão crítica sobre a fé para entender melhor seus
ensinamentos, ou para compará-los com os ensinamentos de outras crenças.
Isso também não significa que uma discussão racional com não teístas seja
totalmente inútil. Essa pode lançar luz sobre os ensinamentos bíblicos para
descrentes, assim como para os crentes, e permite que réplicas sejam feitas a
críticas a esses ensinamentos. Dessa forma, não vejo a posição dos escritores
bíblicos como a rejeição de todo raciocínio em relação à crença em Deus. Em
vez disso, não deveríamos esperar que não teístas se tornem crentes em Deus
por meio da persuasão racional apenas, nem deveríamos pensar que devemos
ter um tipo de argumento para nossa crença em Deus a fim de que esta seja
intelectualmente respeitável. Este último ponto, no entanto, não deveria ser
compreendido como um tipo de fideísmo, mas se refere à minha afirmação de
que todas as crenças sobre a divindade são baseadas na experiência ao invés
da inferência. Calvino articula bem essa posição quando diz:
A Escritura, carregando consigo sua própria evidência, não tem a
intenção de se submeter a provas e argumentos, mas deve a plena
convicção com a qual deveríamos recebê-la ao testemunho do Espírito
de Deus. (Institutes, I, vii, p. 5)

Assim, apesar de rejeitar a demanda por uma justificação inferencial da


crença em Deus, a posição bíblica não pede uma aderência cega. E nem o
apelo à experiência requer uma experiência bizarra. Os móveis não precisam
voar ao redor do cômodo para se ter uma experiência religiosa. Em vez disso,
a experiência à qual me refiro é aquela de ver a mensagem bíblica como
sendo autoevidentemente a verdade sobre Deus provinda de Deus. (Recorde
as citações de Calvino e a nota sobre Pascal no capítulo 2.)
Essa posição, portanto, discorda com o irracionalismo religioso ao
negar que a crença em Deus seja ou confiança cega ou um encerramento em
relação à racionalidade. Pelo contrário, ela sustenta que uma ou outra crença
sobre a divindade sempre direciona a forma que as pessoas utilizam a
racionalidade para interpretar todo o espectro de suas experiências, de forma
que a verdade plena sobre qualquer tema depende, na verdade, de ter-se a
divindade correta. Note que esses dois ensinamentos ― o controle religioso
do pensamento teórico e a negação da necessidade de justificar a fé ― estão
significativamente associados. Pois, se uma crença religiosa controla e
direciona o raciocínio, segue-se que toda tentativa teórica de provar ou refutar
qualquer crença sobre a divindade, mesmo se formalmente válida, falha em
ser religiosamente neutra e, portanto, faz petição de princípio. Em outras
palavras, qualquer tentativa, digamos, de uma prova convincente de Deus
para aqueles que possuem uma ou outra divindade seria fútil, porque para os
teístas a crença em Deus é uma pressuposição e define os limites para como
tudo o mais é interpretado, inclusive as premissas da própria prova. E o
mesmo seria verdadeiro para qualquer prova de uma crença contrária sobre a
divindade: ela também regularia como tudo o mais é interpretado por aqueles
que assumem essa crença sobre a divindade. Pascal pontuou de forma
correta: para aqueles que creem nenhuma prova é necessária, para os que não
creem, nenhuma prova é possível.
É essa posição radicalmente bíblica que defenderei no que se segue.
Sustento que o exercício da razão teórica é sempre regulado e dirigido por
alguma crença sobre a divindade, de tal forma que a razão sempre é regulada
e dirigida por alguma crença na divindade per se, não sendo, portanto,
autônoma nem é a teorização religiosamente neutra. Se as crenças sobre a
divindade são chamadas de “fé”, então, de acordo com essa visão, a fé não é
uma faculdade distinta da mente separada da faculdade da razão, mas uma
parte integral da razão. Ela afirma que as intuições racionais de autoevidência
não estão confinadas à axiomas lógicos e matemáticos, mas sempre incluem
também alguma intuição sobre a divindade. O resultado é que a razão é, para
todos os indivíduos, essencialmente dirigida pela fé.
Mas para distinguir plenamente essa visão, ela deve agora ser
contrastada com a posição mais popular, mencionada brevemente acima. Essa
é a posição que insiste em que a fé e a razão são, de fato, faculdades
separadas, de modo que existem distintos domínios para a autoridade da
razão e a autoridade da fé. Como já notamos, essa alternativa não isola
completamente a fé e a razão como o faz o irracionalismo, mas concebe
ambas de uma forma muito mais complexa.

4.4 Escolasticismo religioso


Como já foi admitido, a posição bíblica radical não foi adotada pela maioria
dos pensadores judeus ou cristãos. Muito antes da ascensão do cristianismo,
havia fortes diferenças de opinião entre judeus concernente à atitude
apropriada a se assumir no tocante à relação de sua fé com o restante da vida,
particularmente no que concerne à cultura dominante pagã, racionalista, do
mundo greco-romano. Alguns estudiosos judeus rejeitaram completamente
aquela cultura como incompatível com o que implicava ser judeu, ao passo
que outros pensavam que grande parte da cultura antiga poderia ser aceitável.
Nesta última perspectiva, tudo o que era necessário para ser verdadeiramente
judeu era manter a adoração do Deus verdadeiro e as exigências da Lei de
Moisés em contraposição ao politeísmo pagão e à moralidade frouxa. Em
outras palavras, a segunda dessas duas opiniões concebia a maior parte da
vida e da cultura como sendo religiosamente neutra, de modo que ser
distintivamente judeu era algo restrito à fé e à moralidade. Entre os eruditos
foi essa segunda visão que prevaleceu.
Os cristãos também se depararam com essa mesma questão, e assim
veio à tona, entre os cristãos, as mesmas diferenças de opinião que haviam
dividido os judeus. Alguns eruditos e teólogos pensavam que um abismo
intransponível separava a totalidade da tradição judaico-cristã da cultura
mundial antiga. Eles entendiam que os efeitos de sua fé sobre o restante da
vida eram todo-abrangentes. Um deles, Tertuliano, referindo-se à perspectiva
bíblica como aquela de “Jerusalém” e a cultura dominante como “Atenas”,
indagou: “O que tem Jerusalém a ver com Atenas?”. Mas a maioria dos
estudiosos cristãos seguiu a visão judaica predominante, e consideraram a
cultura de seu tempo não tanto equivocada como incompleta. Eles
consideravam a ciência, a filosofia, a arte, as leis, etc. como os produtos da
razão religiosamente neutra e, portanto, não necessariamente um reflexo da
cultura pagã na qual haviam surgido. (Afinal de contas, 1 + 1 não seria igual
a 2 tanto para um pagão quanto para aqueles que creem em Deus?) Desse
modo, eles adotaram a atitude de que, exceto por sua crença em Deus e a
necessidade de corrigir a moralidade pagã pelos padrões bíblicos, os cristãos
poderiam aceitar grande parte da cultura de seu dia sem remorsos. De forma
resumida, eles assumiram a posição de que não existe uma oposição radical
entre a religião bíblica e qualquer cultura particular, uma vez que grande
parte da vida é religiosamente neutra. Assim, adotaram a perspectiva de que o
entendimento apropriado da maior parte dos aspectos da cultura de um
indivíduo é independente da religião adotada. Os textos bíblicos que
examinamos acima, desse modo, foram entendidos como se afirmassem que
apenas a sabedoria e o conhecimento religioso dependem do Deus
verdadeiro.
Essa interpretação passou a dominar o pensamento da maioria dos
teólogos nos primeiros séculos após o surgimento e expansão do cristianismo.
E, em razão de ter sido finalmente desenvolvida brilhantemente na obra de
inúmeros teólogos e filósofos que eram professores, ela veio a ser chamada
mais tarde como a posição dos “homens das escolas”, ou “escolásticos”, e
posteriormente denominada simplesmente “escolástica”. A elaboração dessa
posição por Tomás de Aquino no século XIII foi realizada de forma tão
brilhante e extensa, tornando-se posteriormente tão influente, que muitos
historiadores e filósofos agora utilizam o termo “escolástica ou
escolasticismo” como um nome para as teorias de Tomás, ou para teorias
bastante semelhantes às dele. No que segue, no entanto, não me referirei a
qualquer grupo particular de teorias ou estilo de teorização em meu uso do
termo “escolasticismo”, e estarei menos ainda referindo-me apenas às teorias
que são fortemente aristotélicas, como eram as de Tomás. Nem será ainda de
meu interesse em que medida a influência escolástica então vigente pode ser
atribuída ao próprio Tomás. E vez disso, utilizo o termo para referir-me à
posição que concebe a relação geral de crenças sobre a divindade com teorias
como se correspondessem a dois tipos bastante distintos de informação:
crenças que são os pronunciamentos da razão, e crenças que são os
pronunciamentos da revelação aceita pela fé, em que fé é entendida como
uma faculdade mental distinta da razão.
Uma vez que essa visão concebe tanto a fé quanto a razão como
autoridades genuínas, ela enfatiza a necessidade de harmonizar seus
pronunciamento de modo a evitar contradição entre eles. E a tarefa de mantê-
los em harmonia, disse São Tomás, cabe à teologia. Outra forma de colocar
essa posição é dizer que ela concebeu uma transigência entre a afirmação
toda-abrangente do racionalismo pagão feita em prol da razão, e a afirmação
igualmente toda-abrangente de que a fé é um pré-requisito necessário para os
conhecimentos de todos os tipos. Isso foi feito pela limitação do escopo de
cada afirmação. A chave para essa intransigência foi apelar ao ensino bíblico
de que existem duas dimensões da criação, as quais a Bíblia chama de “céus”
e “terra”. Propôs-se que cada uma dessas dimensões fosse tomada pelo
modos distintos como são conhecidas — uma pela razão e a outra pela fé. A
dimensão da “terra” foi chamada de “natureza” e considerada como sendo a
dimensão da realidade conhecida pela percepção e pela razão. Considerou-se
tal conhecimento como sendo o mesmo para todas as pessoas. Em relação à
natureza, portanto, a razão foi considerada como sendo tudo o que os
racionalistas disseram que era: neutra, e a autoridade final para toda verdade.
A dimensão celestial da realidade foi chamada “sobrenatural”, e foi
considerada como sendo conhecida apenas pela revelação de Deus a ser
aceita pela fé. Essas verdades reveladas transmitem verdades que não são
comprováveis pela razão, tais como informação sobre Deus, a natureza da
alma humana, anjos e vida após a morte. Desse modo, essas verdades não
estão disponíveis a todas as pessoas, mas apenas para aqueles a quem a graça
de Deus concedeu o dom da fé. Pois sem fé para aceitar a revelação, a razão
está relativamente desamparada para descobrir verdades sobre o domínio
sobrenatural. (Digo “relativamente” porque a maioria dos pensadores
escolásticos sustentava que a razão desassistida da revelação poderia provar
que Deus existe e que os humanos têm alma, mas nada mais. Ela não poderia,
por exemplo, demonstrar como os humanos alcançam um relacionamento
apropriado com Deus.) Dessa forma, cada afirmação toda-abrangente é, em
um sentido, descartada e, em outro, retida: nem a razão nem a fé são toda-
abrangentes das maneiras defendidas pelos racionalistas pagãos e pelos
escritores bíblicos, mas cada uma é a autoridade suprema em seu próprio
domínio.
No que diz respeito a essa perspectiva, deve-se notar principalmente
que a fé não é uma confiança cega como a considera o irracionalista. Antes,
trata-se de uma faculdade especial para a apreensão da verdade revelada, e
um meio de adquirir certeza. Assim, não se deveria confundir, em nenhum
aspecto, a posição escolástica com a irracionalista; pois ao passo que a
posição escolástica concorda que as afirmações do racionalismo são
verdadeiras no campo da natureza, ela não alia essa concordância a uma visão
irracionalista da fé. Ademais, enquanto a posição irracionalista isola o lado
racional da vida do da fé, o escolasticismo vê a divisão entre fé e razão como
uma membrana semipermeável, não uma parede. Existe uma interação de
mão dupla entre a fé e a razão. Talvez a melhor forma de pensar essa
interação seja dizer que nessa posição a fé e a razão têm, cada uma, deveres
em relação à outra; cada uma com seu domínio próprio, mas também
afetando a outra. Por exemplo, a razão não apenas descobre verdades sobre a
natureza e prova a existência de um domínio sobrenatural, mas também
sistematiza doutrinas reveladas e controla todas as teorias racionais por sua
compatibilidade com aquelas doutrinas. Essa é a tarefa da teologia. No caso
de reconhecer-se uma teoria da filosofia ou da ciência como
irreconciliavelmente em contradição com a verdade revelada, deve-se pois
descartá-la como falsa. O dever da fé em relação à razão é, portanto, oferecer
um controle externo sobre a razão em sua possibilidade de erro; e tem-se
como vantagem para a razão o fato de ter-se tais verdades infalíveis para
testar suas hipóteses. Em última análise, portanto, a autoridade da revelação
tomada pela fé é superior àquela da razão desassistida.
Porém, apesar de sustentar a superioridade da fé para com a razão, essa
posição ainda fica aquém da posição estritamente bíblica. Ela advoga que a
razão é autônoma no domínio da natureza, enquanto os escritores bíblicos
admitem que possuir a crença sobre a divindade correta é uma condição
necessária (embora não suficiente) para entender a natureza, assim como o
sobrenatural. Além do mais, está claro que nessa posição a maioria das
teorias e muitos outros tipos de conhecimento e verdades são religiosamente
neutros. Contanto que não contradigam qualquer verdade revelada, não
necessitam em absoluto ser impactadas pela fé em Deus ― ou em qualquer
outra divindade.
Consequentemente, a questão dominante para os pensadores
escolásticos tem sido sempre a forma de se interpretar a relação entre a fé e a
razão, o natural e o sobrenatural, assim como a forma de harmonizar qualquer
conflito potencial entre eles. Pois embora as principais distinções do esquema
escolástico pareçam nítida e claras em um breve esboço como este, na prática
geraram intermináveis e confusos debates sobre o modo de aplicá-las em
casos particulares. Esquematicamente, as principais distinções do
escolasticismo podem ser representadas dessa forma:

Domínio do A fé aceita a revelação como a suprema autoridade


sobrenatural, ou da em relação a Deus, alma e temas relacionados
graça
1. A razão é neutra e a autoridade final em relação à
Domínio natural
natureza;
2. A razão harmoniza a religião com as teorias da
ciência e da filosofia;
3. A razão prova a existência do sobrenatural e
sistematiza as doutrinas reveladas

Apesar de muitas discordâncias quanto aos detalhes de como a fé e a razão


interagem em casos específicos, um amplo consenso emergiu entre os
pensadores escolásticos em inúmeros pontos principais. Primeiramente,
embora todos os humanos sejam seres naturalmente racionais, nem todos
possuem a faculdade da fé, concordando nesse ponto tanto com os
irracionalistas quanto com os racionalistas. A faculdade da fé alcança uma
pessoa como um dom de Deus, que é uma adição àquilo que o homem é
naturalmente. Falando sobre a recepção da faculdade da fé como um dom da
graça de Deus, Tomás de Aquino coloca da seguinte forma:

Ninguém recebe a graça por si mesmo por mais que se prepare para isso,
mesmo que o faça com tudo o que está em seu poder... Pois a graça
supera todos os esforços humanos... Se for da vontade de Deus tocar o
coração, então a graça infalivelmente seguirá. (Summa Theologica 1a-
11ae, q. 112, a. 3)

Essa adição da fé não suplanta a razão de uma pessoa, como vimos, mas a
suplementa. Nesse ponto, temos novamente Aquino:

Os dons da Graça são-nos adicionados para aperfeiçoar os dons da


natureza, não para substituí-los. A luz natural da razão não é suprimida
pela luz da fé... Os princípios da razão são os fundamentos da filosofia [e
da ciência], os princípios da fé são os fundamentos da teologia cristã. As
verdades da filosofia não podem ser contrárias às verdades da fé... A
natureza é o prelúdio para a graça. É o abuso da ciência e da filosofia
que provocam afirmações contrárias à fé...[74]

Assim, a orientação que a fé oferece à razão é amplamente negativa e um


controle externo sobre o que a razão pode aceitar. Não é vista como uma
influência reguladora íntima. Pois se a influência das verdades apreendidas
pela fé fossem internas à operação da razão, a razão não seria mais
religiosamente neutra e autônoma. E se não fosse neutra, não haveria teorias
religiosamente neutras em relação à natureza que poderiam ser mantidas em
comum com pessoas que carecem de fé. E uma vez que o escolasticismo
considera verdadeiro que há teorias e outras verdades assumidas em comum
por todas as pessoas, ele sustenta que o raciocínio sobre a natureza deve ser
neutro, insistindo numa nítida diferença entre o que pode ser apreendido pela
fé e o que pode ser conhecido pela razão. Ademais, se a razão não fosse
neutra, ela não poderia oferecer provas convincentes de que existe um
domínio sobrenatural. Mas, diz o escolasticismo, a razão pode de fato
oferecer evidência racional de que existe um domínio sobrenatural ao provar
a existência de Deus e da alma humana. Dessa forma a razão aponta para um
domínio que necessita ser revelado por Deus, caso formos de alguma forma
conhecer mais sobre ele.
Esse último ponto pode parecer borrar os limites entre a fé e a razão, o
que levou Aquino a explicar que isso significa que existe alguma
sobreposição: certos elementos disponíveis à razão foram revelados de algum
modo por Deus, para que se assegurasse que aqueles de intelecto mais fraco
não os perdessem. Mas uma vez que eles são cognoscíveis apenas pela razão,
esses itens não são ― estritamente falando ― artigos de fé. Assim, Aquino
diz:
Que Deus existe e outras verdades teológicas similares que podem ser
conhecidas pela razão natural não são artigos de fé, mas preâmbulos ao
Credo: a fé pressupõe a razão assim como a graça pressupõe a natureza.
(Summa Theologica la, q. 2, a. 2, ad 1)

Visto que o escolasticismo deixa latitude tão ampla tanto para a fé quanto
para a razão, embora ao mesmo tempo admitindo uma forte interação entre
elas, seus defensores julgam difícil conceber a razão pela qual deveriam
aderir à visão radicalmente bíblica. Eles continuam a tomar as afirmações de
que a crença em Deus que impacta todo o conhecimento como se significasse
que todo o conhecimento sobre o domínio sobrenatural, e assinalam
especialmente o conhecimento em matemática, lógica e física como exemplos
de verdades que todos possuem em comum.
Por fim, essa visão admite que teorias que explicam a criação como
dependente de um ou outro de seus aspectos refletiriam uma crença religiosa
pagã se elas terminassem simplesmente com a posição de que todas as coisas
dependem do aspecto X. Mas o paganismo de tal posição é facilmente
evitável, diz o escolasticismo. Tudo o que precisamos fazer é acrescentar a
qualquer dessas teorias uma afirmação adicional: que embora todo o resto da
criação dependa do aspecto X, X, por sua vez, depende de Deus. Com essa
condição adicional, o caráter pagão de tais teorias é neutralizado.
A primeira parte da minha objeção ao escolasticismo já foi apresentada.
Ela se relaciona à forma que as Escrituras veem toda verdade como sendo (de
algum modo) impactado por ter-se o Deus correto. Isso implica uma posição
mais forte do que simplesmente desaprovar aquelas teorias que contradizem
diretamente a verdade revelada. Que uma teoria não pode ser correta se ela
contradiz a verdade revelada é suficientemente verdadeiro para qualquer
teísta; mas isso não é suficientemente forte para capturar o ensinamento
bíblico. Pois não importa o quão assiduamente essa regra seja aplicada, ela
ainda deixa a grande maioria das teorias (e muitas outras crenças) intocadas
pela crença em Deus. A maioria das teorias sobre quase todos os tópicos
deixam de contradizer a doutrina revelada e, dessa forma, acabam por ser
religiosamente neutras no sentido exato que o ensinamento bíblico nega.
Mas, nesse caso, a regra de que apenas teorias que diretamente contradizem a
verdade revelada devam ser excluídas falha em sua própria exigência! Assim,
a despeito da insistência do escolasticismo de que a autoridade da fé é
superior à da razão, e que a verdade revelada acerca do sobrenatural seja mais
importante do que acerca do natural, a regra escolástica sozinha é muito fraca
para apreender a posição bíblica sobre a relação da crença religiosa com a
razão.
Essa mesma falha é também o que é passível de objeção no que diz
respeito à estratégia escolástica para neutralizar o caráter pagão de uma teoria
que explica toda a criação como idêntica com, ou dependente de, um ou outro
de seus aspectos. Seria uma posição pagã, diz o escolasticismo, com a
afirmação adicional de que qualquer aspecto da criação proposto como aquilo
em relação ao qual o resto da criação dependa, por sua vez, depende de Deus.
Mas, com essa afirmação, o que de outro modo seria uma crença em uma
divindade pagã é batizado (ou circuncidado) na aceitabilidade teísta. Minha
objeção a essa estratégia é que o poder explanatório real da teoria reside
somente no aspecto que se toma para explicar o restante da criação, e não em
Deus. O poder explanatório da teoria não é diferente com a afirmação
adicional sobre a existência de Deus do que o seria sem essa (a menos que os
milagres de Deus sejam o local de despejo para o que a teoria não pode
explicar em definitivo). A afirmação adicional é, portanto, outra forma de
ignorar (ou negar) o ensinamento bíblico de que nenhum conhecimento ou
verdade permanecem inalterados pela crença em Deus.
No entanto, outra objeção à visão escolástica é que ela nega a visão
bíblica dos homens como seres naturalmente religiosos. As Escrituras
insistem que humanos foram criados para a comunhão com Deus e, como
pontuado anteriormente, os escritores bíblicos sempre se dirigem a seus
leitores como se eles (os leitores) cressem ou em Deus ou em algum
substituto de Deus. Essa é a razão pela qual os Salmos dizem todo aquele que
insiste que não existe nada divino é um tolo (“O tolo diz em seu coração,
‘Não há deus’”); porque sempre que uma pessoa afirma isso, ela também está
considerando algo como divino. Assim, a posição radicalmente bíblica não
pode concordar que ter fé é um “donum superadditum” ― um poder
acrescentado às faculdades naturais da pessoa que não estava lá em seu
nascimento. O dom da graça de Deus não é o de adicionar uma faculdade
anteriormente ausente, mas o redirecionamento e a reparação de uma
faculdade defectiva. Como Calvino coloca, somos criados de tal forma que
teríamos naturalmente “tanto confiança nele, e um desejo de nos apegarmos a
ele, não fosse a depravação da mente humana ter nos desviado do curso
apropriado de investigação” (Institutes, I, ii, 3).
Ademais, a posição radicalmente bíblica nega que as duas dimensões
da criação sejam, cada uma delas, conhecidas por uma faculdade humana
distinta. Tanto Deus quanto a criação são conhecidos pela mesma faculdade,
a saber, a razão, que por sua própria natureza é sempre dirigida por alguma
crença sobre a divindade. Isso não é sugerir, obviamente, que não há nada
distinto sobre as formas que utilizamos a razão para conhecer a criação e as
formas pelas quais a utilizamos para conhecer a Deus. Visto que Deus não é
uma parte da criação, ele deve revelar-se a si mesmo, a fim de o
conhecermos. Além disso, existe o efeito da queda no pecado sobre a razão
humana. Diz-se que é uma condição dos homens em que sua razão opera
imperfeitamente no que diz respeito ao que experimentam como divino, de
modo que sua antena de autossuficiência deve ser restaurada a fim de
funcionar apropriadamente, caso a razão reconheça a revelação de Deus por
aquilo que ela é. O mesmo é verdade para o modo que a natureza pode
“testemunhar” acerca de Deus. Salmo 19.1 e Romanos 1.20 nos dizem que a
natureza ― vista corretamente ― revelaria sua criaturalidade dependente.
Mas a razão mal direcionada por uma fé falsa não lê de forma correta as
mensagens da natureza. Em vez disso, ela reprime aquilo que de outro modo
seria óbvio, e considera algo que não Deus como divino (Rom. 1.25). Isso só
pode ser remediado pela restauração da razão à sua ordem de funcionamento
adequado, de modo que a palavra de Deus seja vista pelo que é, e a natureza
possa ser corretamente interpretada. Como Calvino observou certa vez, a
Escritura oferece as lentes por meio das quais o livro da natureza deve ser
lido.

4.5 O conflito dessas alternativas


A perspectiva escolástica esboçada acima permeou a totalidade do
pensamento europeu por volta do século V e foi adotado praticamente por
todos os principais pensadores cristãos e judeus. Mais tarde, ela também foi
adotada por uma série de influentes pensadores muçulmanos.
[75]
Correspondendo à divisão do conhecimento entre os domínios natural e
sobrenatural, essa perspectiva viu a totalidade da vida como se dividissem em
duas partes. Qualquer assunto era ou uma questão da fé ou da razão, o
sagrado ou o secular, a alma ou o corpo. Assim, a vida não era nem
completamente unificada, nem altamente diversificada. Tudo era ou uma
questão do sobrenatural no qual a fé é a autoridade suprema, o destino da
alma está em jogo e a igreja como a instituição representativa do sobrenatural
na terra; ou era uma questão da natureza na qual a razão é a autoridade
suprema, o bem-estar do corpo está em jogo, e o Estado é a instituição dotada
de autoridade.
Entre os pensadores que creem em Deus, o escolasticismo ainda é de
longe a posição mais popular no mundo hoje. Seus adeptos nos estudos da
religião, filosofia, ciências, arte e literatura ultrapassam qualquer uma das
outras três opções, mas ela não mais apresenta a aderência quase total que
apresentava grosso modo no período entre 500-1500 d.C. Sobretudo, ela já
não é mais a perspectiva dominante da cultura ocidental. Essa perda da
liderança se deu no século XVI, quando o escolasticismo foi desafiado
simultaneamente por dois movimentos. Um deles, o Renascimento, advogava
um retorno ao racionalismo pagão, insistindo na autonomia e neutralidade da
razão em todas as questões, de modo que aboliu a imposição de qualquer
limite por parte da fé à razão. O outro foi a Reforma, que rejeitou a limitação
da fé a apenas questões sobrenaturais, e argumentou que a razão é
intrinsecamente orientada pela fé em todos os assuntos.
O reavivamento da posição racionalista foi promovido pela
redescoberta gradual das conquistas do mundo antigo. Os eruditos envolvidos
nessa redescoberta vieram a considerar a cultura antiga como superior à sua
própria e eventualmente começaram a referir-se à era entre a queda de Roma
e eles mesmos como uma “idade média”, ou seja, um período entre a última
grande cultura e a próxima que eles esperavam inaugurar. Eles viam a si
mesmos como os defensores da razão que, pelo reavivamento do
racionalismo, trariam de volta “a glória que foi a Grécia e a grandeza que foi
Roma”, restaurando o comando supremo da razão. (Historiadores do século
XIX que concordaram com eles começaram a denominar seu movimento um
“Renascimento”, um retorno à liberdade da razão para reconstruir a grandeza
da civilização ocidental.) Esses pensadores renascentistas clamavam por uma
nova perspectiva que não definiria limites de antemão àquilo que a razão
poderia ou não aceitar, e que não apontava constantemente a um domínio do
sobrenatural como sendo mais importante do que o mundo natural. Eles
confiantemente prediziam que, se sua perspectiva tivesse livre curso,
poderiam criar o paraíso aqui e agora em vez de simplesmente esperá-lo após
a morte. E começando na última parte do século XVI e ao longo de todo o
século XVII, eles apontaram para os admiráveis avanços das ciências para
essas reivindicações.
Ao mesmo tempo em que o movimento renascentista estava ganhando
ímpeto, a Reforma também desafiou o predomínio escolástico. Ele era
distinto do Renascimento em razão de ter-se originado dentro da igreja, e era
o contrário desse movimento ao advogar que a crença religiosa subjaz à razão
teórica, em vez de necessitar de uma prova racional. Embora a tônica desse
movimento tenha diferido em distintos graus dependendo de seus líderes em
várias localidades, um dos impulsos mais claros do movimento foi uma
tentativa de revivificar a posição bíblica radical. Os principais reformadores
― Lutero, e especialmente Calvino, e seus associados ― viam a palavra de
Deus como algo que permeava e transformava a totalidade da vida; para eles,
essa não era meramente uma limitação ou confirmação externa sobre a razão,
mas seu guia interno. Grande parte de seus esforços foram
compreensivelmente direcionados na reformulação da teologia e na
reorganização da igreja, mas uma convicção fundamental por trás de suas
reformas foi a rejeição da repartição escolástica entre crença religiosa e razão.
No curso de sua obra, Lutero retrocedeu à visão escolástica em uma
série de assuntos, mas Calvino levou adiante a ênfase anti-escolástica do
pensamento de Lutero. Comentando, por exemplo, sobre a suposta
neutralidade religiosa da razão no estudo da natureza, Calvino disse:

É vão para qualquer pessoa raciocinar sobre a feitura do mundo, exceto


para aqueles que aprenderam a submeter à totalidade de sua sabedoria
intelectual (como Paulo o expressa) à loucura da cruz... o reino invisível
de Cristo preenche todas as coisas e sua graça espiritual é difundida por
meio de todos.[76]

Por todos os seus escritos, Calvino assume a visão de que a razão humana
não é neutra, já que é afetada pelo pecado, sendo o pecado aqui entendido
como uma falsa crença sobre a divindade que produz efeitos deletérios sobre
as tentativas da razão de interpretar a realidade. Conforme ele o vê, as falsas
crenças religiosas não podem deixar de produzir senão distorções, de modo
geral, e não apenas na teologia e na ética. Por essa razão, quando as
Escrituras revelam o Deus verdadeiro, elas não revelam apenas o objeto
apropriado da fé e da adoração, mas restauram a perspectiva apropriada para
a operação da razão. Certamente Calvino, assim como os escritores bíblicos,
não deixa claro exatamente como a crença em Deus faz isso. Mas já comecei
a apresentar o contexto para uma descrição da explicação que Dooyeweerd
oferece sobre isso, e prosseguirei nessa direção nos capítulos subsequentes
deste livro. Elaborarei sua forma específica desse enunciado no capítulo 6, e
ilustrarei a influência das crenças sobre a divindade nas teorias utilizando
exemplos da matemática, física e da psicologia nos capítulos 7, 8 e 9. Então,
no capítulo 10 explicarei tanto seus argumentos sobre por que a regulação
religiosa das teorias é inevitável quanto sua crítica da estratégia tradicional
(pagã) para as teorias. Nos últimos três capítulos articularei, pois, seu
programa para teorizar na base da crença em Deus. Isso assumirá a forma de
demonstrar como a doutrina de que tudo o mais além de Deus depende de
Deus conduz a uma teoria distinta da realidade, e por meio dessa visão da
realidade conduz a uma interpretação distinta de todos os conceitos, incluindo
as hipóteses das ciências.
Quando os movimentos da Renascença e da Reforma chegaram a um
conflito frontal com o escolasticismo entrincheirado e de um em relação ao
outro em meados do século XVI, uma das primeiras vítimas do conflito foi a
afirmação reformada do ensinamento bíblico sobre a não neutralidade da
totalidade da vida. Embora muitas das reformas teológicas e eclesiológicas de
Lutero e Calvino tenham sido preservadas em vários ramos do
protestantismo, a doutrina da não neutralidade não foi preservada. Na
verdade, os sucessores imediatos à liderança do movimento da Reforma
(Filipe Melânctone Theodore Beza, respectivamente) abandonaram
explicitamente a ideia de que todo conhecimento é condicionado por crenças
religiosas e retornaram à posição escolástica. Desse modo, mesmo que os
teólogos protestantes e católicos continuassem a divergir sobre tais itens
como a organização da igreja, a interpretação dos sacramentos e a autoridade
papal, sua visão geral da relação entre a fé e a razão era em larga medida a
mesma. A principal diferença sobre a fé e a razão passou a ser que, enquanto
os pensadores católicos tendiam a harmonizar sua fé com teorias sobre a
natureza oriundas de Aristóteles (devido à influência de Tomás de Aquino),
os pensadores protestantes se sentiam livres para harmonizar sua fé com
quaisquer teorias sobre a natureza que estivessem na moda naquele momento.
O resultado foi um desfile virtual de combinações da crença em Deus do
escolasticismo protestante com teorias tais como o dualismo cartesiano, o
fenomenalismo, o idealismo kantiano, o monismo hegeliano, o romantismo, o
marxismo, o existencialismo, etc. Entrementes, a posição radicalmente
bíblica, embora tenha sobrevivido na obra de alguns pensadores individuais e
algumas tradições teológicas, foi marginalizada por grande parte do
pensamento protestante.
Como resultado, ambos os campos do pensamento cristão de ponta,
juntamente com muitos pensadores judeus e muçulmanos, ainda carecem de
qualquer apreciação do controle religioso da totalidade da vida. Considera-se
especialmente as teorias como religiosamente neutras, ao invés de serem
reguladas ao pressupor-se ou Deus ou uma divindade falsa. Em vez disso, a
crença em Deus é geralmente acrescentada ao fim de uma teoria como o rabo
do burro em uma festa de aniversário; em lugar de ser uma pressuposição
controladora da teoria, ela é um adendo designado apenas para neutralizar o
que seria, de outro modo, seu caráter inteiramente pagão. Por conseguinte,
grande parte dos pensadores teístas continuam a pensar que a produção de
teorias se dá de uma forma neutra, e que um teísta precisa apenas adicionar a
uma teoria a afirmação de que Deus criou aquilo que a teoria propõe e
averiguar para certificar-se de que nada na teoria contradiz abertamente
qualquer verdade revelada. Assim, a relação geral das crenças sobre a
divindade com as teorias é vista como uma relação de harmonização.
Isso, no entanto, está em oposição direta à visão radicalmente bíblica
que já examinamos. Deste ponto de vista, o projeto de harmonização da
crença em Deus com qualquer teoria é impossível a menos que a teoria já
pressuponha Deus, e desnecessário se ela já o faz! Pois nenhuma teoria que é
autoconjecturalmente coerente pode deixar de estar em harmonia com suas
próprias pressuposições, e ser incompatível com as pressuposições contrárias.
Ao deixar de reconhecer que se uma teoria não pressupõe a crença em Deus
ela não é neutra, mas inevitavelmente pressupõe a crença em alguma outra
(suposta) divindade, o escolasticismo admite que os teístas estão livres para
firmar um tratado de paz entre sua fé e a teoria que parece plausível e que não
contradiz diretamente a verdade revelada. A objeção radicalmente bíblica a
isso, obviamente, é que qualquer harmonia supostamente externa de uma
teoria com a crença em Deus é mera ilusão, contanto que a estratégia
explanatória de uma teoria pressuponha outra crença religiosa, contrária.
Colocarei um ponto a favor dessa posição radicalmente bíblica na
forma de um questão: se, como nós veremos em breve, todas as teorias são
reguladas por uma ou outra crença sobre a divindade de tal forma que suas
interpretações diferem em relação àquela crença, por que a crença em Deus
seria a única exceção? Por que faz uma importante diferença ao conteúdo de
uma teoria o fato de ela pressupor a matéria, as sensações, ou leis
matemáticas, ou substâncias de forma/matéria, ou leis lógicas, etc. como
divinos, mas deixa de fazer qualquer diferenciação importante apenas quando
Deus Criador é tomado como divino ao invés de um aspecto da criação?
Certamente isso é, à primeira vista, implausível; no entanto, essa é a visão
prevalecente.
Talvez a principal razão para o desaparecimento da posição
radicalmente bíblica foram as conquistas das ciências apontadas pelos
pensadores renascentistas como evidência de sua perspectiva. À época da
Reforma, e no século e meio que a procedeu, houve uma série de conquistas
impressionantes que foram promovidas como sendo totalmente neutras em
relação à crença religiosa. Essas incluem o reavivamento da álgebra, o
desenvolvimento da geometria analítica e do cálculo, a invenção do
microscópio e do telescópio, a descoberta das leis do movimento e da
gravitação, e os princípios das teorias abrangentes que cobrem campos como
a mecânica, a ótica e a astronomia. O fato de que grande parte dessas
conquistas tenham aparentemente sido de fato independentes das crenças
religiosas dos indivíduos, fizeram mais do que ratificar a tradição de
abandono protestante de seu elemento radicalmente bíblico. Em última
instância, isso resultou no triunfo do reavivamento renascentista do
racionalismo ― primeiramente sob o título de “humanismo” e posteriormente
denominado “Iluminismo”. Essa posição conquistou a liderança intelectual e
cultural do mundo ocidental e permanece nessa posição até aos dias de hoje.
Atualmente, seus maiores desafios vêm das várias versões de historicismo,
pragmatismo e relativismo, os quais geralmente veem a crença religiosa de
uma forma irracionalista.
Na verdade, no último século e meio, a tradição protestante tem se
afastado ainda mais dessa posição radicalmente bíblica devido à interpretação
específica dessa que tem sido advogada pelo grupo mais amplo de seus
aderentes, os fundamentalistas. Os fundamentalistas retiveram a ideia de que
a fé religiosa devesse conduzir a totalidade da vida, inclusive as teorias. Eles,
também, veem a orientação da crença religiosa como uma questão de direção
positiva e interna, em vez de uma simples questão de proibir-se as teorias que
contradizem as doutrinas teológicas. Mas seu entendimento particular de
como a crença em Deus exerce sua influência em teorias é tão implausível,
que acaba trazendo má reputação para própria noção de uma posição
radicalmente bíblica para as teorias.
Agora que disse que os escolásticos têm um número considerável em
suas fileiras, que os racionalistas estão no comando, que os irracionalistas
chegam como desafiantes, e que o grupo mais amplo a manter a posição
radicalmente bíblica são os fundamentalistas, o que pode ser plausivelmente
dito em defesa dessa posição? Pelo menos duas vezes na história ela emergiu
apenas para ser abandonada por seus prováveis defensores. Então, por que
trazê-la à superfície novamente?
A resposta simples é que a posição radicalmente bíblica não pode ser
plausivelmente interpretada como os fundamentalistas o fazem, isto é,
derivando teorias ou confirmando-as a partir das Escrituras ou da teologia.
Demonstrarei em breve como o papel da abstração dos aspectos na teorização
torna inevitável que qualquer teoria pressuponha alguma crença sobre a
divindade. Mas antes de apresentar o argumento para essa posição, devemos
deixar claro o que quero dizer por uma crença religiosa “controlar”,
“direcionar”, “impactar”, ou “regular” uma teoria ao atuar como uma sua
pressuposição. Desse modo, no próximo capítulo irei criticar a ideia
fundamentalista do controle religioso e apresentar a ideia do controle que será
defendida como a interpretação apropriada do ensinamento bíblico sobre a
relação das crenças sobre a divindade com as teorias.
CAPÍTULO 5. A IDEIA DO CONTROLE
RELIGIOSO

5.1 O equívoco do fundamentalismo


O termo “fundamentalista” tem sido utilizado de variadas formas e é aplicado
a muitas atitudes e doutrinas diferentes, mas para nosso presente propósito
estou interessado nele apenas como uma visão sobre como perceber a relação
das crenças religiosas com teorias. Nesse sentido, a atitude fundamentalista é
essencialmente a mesma, quer ocorra no judaísmo, no cristianismo ou no
islamismo. Mas, contrariamente à definição popular, o que distingue um
fundamentalista em cada uma dessas tradições não é o fato de assumir uma
interpretação literal das Escrituras. A característica verdadeiramente
distintiva é o que denomino a “suposição enciclopédica”. É a visão de que as
Sagradas Escrituras (ou a teologia dela derivada) contêm declarações
inspiradas e portanto infalíveis sobre praticamente qualquer temática
concebível. É essa suposição e suas consequências que verdadeiramente
tipificam o pensamento fundamentalista.
Uma consequência dessa suposição é a insistência fundamentalista de
que a teorização se inicia observando o que as Escrituras têm a dizer sobre
qualquer tema a ser investigado, e que as teorias sejam, então, construídas no
entorno do que quer que o ensinamento bíblico venha a ser. É dessa maneira
que o fundamentalismo concebe o controle religioso das teorias. Desse modo,
o que é crucial nessa insistência não é se o fundamentalismo interpreta as
Escrituras literalmente, mas o fato de estarem comprometidos a considerar
que as Escrituras revelam verdades sobre praticamente todos os tópicos.
(Argumentarei posteriormente que existe um sentido importante no qual esse
programa conduz os fundamentalistas às interpretações que não são
suficientemente literais!)[77] Assim, enquanto quase todos os judeus, cristãos
e muçulmanos esperam algum tipo de orientação para as teorias a partir das
Escrituras, apenas o fundamentalista insiste que a orientação deve ser aquela
de suprir verdades específicas sobre virtualmente todas as temáticas.
Outra parte da suposição enciclopédica diz respeito àquilo que ocorre
quando mesmo a exegese mais forçada dos textos das Escrituras não pode
encontrar qualquer informação sobre uma tema. Nesse caso, vê-se geralmente
sua orientação assumir a forma de um fornecimento de confirmação a uma
teoria em lugar de uma informação inicial com da qual se possa partir. Desse
modo, ao passo que um escolástico diria que uma teoria sobre biologia, ou
geologia, ou física, etc., é aceitável conquanto que não contradiga qualquer
doutrina revelada da fé, um fundamentalista diria que as teorias recebem mais
orientações do que isso. Elas deveriam, na verdade, incluir quaisquer
verdades que são reveladas sobre o tema, ou deveriam incluir entre suas
evidências confirmadoras, um apelo às Escrituras — ou ambos.[78]
Como ilustração dessas consequências da suposição enciclopédica em
operação, considere a obra de Richard Kirwan, o pai da mineralogia britânica.
Profundamente interessado na emergente ciência da geologia, Kirwan lançou
uma importante publicação naquele campo intitulada Geological Essays
[Ensaios sobre Geologia] (1799). Em todas as teorias nesses ensaios, Kirwan
assume que o dilúvio de Noé, registrado em Gênesis, deve ser o principal
evento geológico na história do planeta Terra. Uma vez que a Bíblia não diz
isso, nem oferece tanta informação sobre o dilúvio como a suposição
enciclopédica levá-lo-ia a esperar, Kirwan chega ao ponto de especular que o
texto que possuímos agora deve ser uma versão abreviada, e que o Gênesis
original deveria conter muito mais informação geológica! Ele admite
posteriormente que os seis dias da criação mencionados em Gênesis são
também orientações básicas para a prática da geologia, “encontra” evidência
de que a história da terra enquadra-se em seis estágios, e argumenta:
Aqui, portanto, nós vimos sete ou oito fatos geológicos, relatados por
Moisés em uma parte e, a outra, deduzidas somente das observações
geológicas mais exatas e melhor verificadas, concordando, no entanto,
uma com a outra não somente em substância, mas na ordem de sua
sucessão. Em qualquer uma delas em que coloquemos nossa confiança, a
concordância de uma com a outra demonstra a veracidade desta. Mas se
não colocamos nossa confiança em nenhuma delas, então sua
concordância deve ser considerada. Se tentarmos realizar isso,
concluiremos que a improbabilidade de que ambas as descrições sejam
falsas é infinita; consequentemente, uma deve ser verdadeira e, portanto,
também deve ser a outra.[79]

Passando ao largo da lógica deficiente desse argumento, chamo sua atenção


para a forma que ele expressa a suposição enciclopédica. É óbvio que o que é
expresso aqui não é o objetivo escolástico de manter uma harmonia entre as
verdades da natureza e as verdades do sobrenatural. E ainda mais óbvio, não
há um isolamento completo da fé em relação à razão teórica como o
irracionalista defende. Em vez disso, qualquer coisa que as Escrituras
mencionem é visto como sendo capaz de impactar qualquer temática, de
modo que o impacto equivale ― neste caso ― a verdades suplementares que
são fatos-chave para o entendimento de quase tudo ― no caso, a geologia.
Ao mesmo tempo, pode-se esperar que a geologia e as outras ciências
confirmem as Escrituras, de acordo com Kirwan. Essa não é uma visão que
foi mantida apenas por fundamentalistas, portanto não a menciono como
sendo algo distintivo de sua posição. Mas esse é um equívoco que é mais
pernicioso quando conjugado à suposição enciclopédica. Ele procede do
entendimento equivocado de que a providência de Deus é a intervenção de
Deus na ordem natural, em lugar da sustentação, por parte de Deus, da ordem
natural. O termo “providência” é um termo teológico para o ensino de que
Deus sustém a existência de tudo aquilo além de si mesmo. Nos escritos
bíblicos, isso é visto no sentido mais amplo possível. É pela providência de
Deus que o sol nasce e se põe, as estações mudam, a chuva cai “sobre o justo
e o injusto”, e as leis da natureza continuam a regular o universo (Gn 8.22).
Obviamente, os escritores bíblicos falam de momentos em que o próprio
Deus agiu na criação para revelar-se e/ou operar eventos miraculosos. Tais
eventos não são, desse modo, meramente parte da providência de Deus, mas
suas próprias ações na criação que ele providencialmente sustenta. Contudo,
a providência de Deus não pode ser confundida com seus atos especiais
associados à revelação de sua aliança. Seus atos especiais, em certo sentido,
de fato intervêm no curso ordinário das coisas de forma a produzir algo que
não teria ocorrido sem sua ação (tal como se dá com atos humanos). Mas
Deus geralmente leva a cabo seus propósitos no mundo providencialmente, e
sua providência nunca é uma questão de intervir na ordem natural que
simplesmente “estaria lá” de qualquer modo. A partir do ponto de vista
bíblico, não existe nada que “estaria lá” se Deus não houvesse criado e
continuasse a sustentar. Assim, não obstante Deus tenha em alguns
momentos agido na criação, as Escrituras geralmente descrevem que Deus
que ele alcança seus propósitos providencialmente, e isso não deveria ser
confundido com suas próprias ações ou com milagres. Os fundamentalistas,
no entanto, tendem a tomar cada uma das declarações de que Deus realizou
um de seus propósitos como a declaração de eventos que são (pelo menos em
parte) miraculosos.
Essa tendência de confundir o sustento providencial de Deus de todas
as coisas com seus atos especiais na criação resulta na busca, por parte do
fundamentalismo, de lacunas dentro da ordem natural das coisas (ou em
nossa explicação dessa ordem natural), que exigem que somente Deus seja
sua causa da mesma forma que Deus é a causa direta de milagres e de suas
próprias ações redentivas na história. Essas lacunas, portanto, são vistas como
a forma que a ciência pode confirmar a verdade das Escrituras. Isto é, uma
vez que a ciência não pode explicá-las, elas supostamente são elementos que
são explicados apenas por um ato especial de Deus. Dessa forma, a posição
fundamentalista vê o envolvimento providencial de Deus com a ordem da
criação como sendo sempre mais que o sustento do universo; a posição, na
verdade, vê Deus como o último passo em muitos da série de causas naturais
investigadas pela ciência. E dessa forma falha em reconhecer que isso faria
de Deus parte da série natural causal e, portanto, parte da criação!
Deixe-me reformular o último ponto para certificar-me de que está
claro. Enquanto você ou eu olharíamos pela janela e observaríamos: “está
chovendo”, um profeta bíblico teria dito algo como “o Senhor está enviando
chuva sobre a terra”. Ambas as observações descreveriam o mesmo fato,
embora a segunda contenha um lembrete adicional de que é pela providência
e propósito de Deus que todas as forças naturais convergiram-se a fim de
causar a chuva onde e quanto tenha ocorrido. Mas o fundamentalista entende
a observação do profeta como sugerindo que existe uma característica das
condições que produziram chuva que, se cientificamente investigadas, não
poderiam explicar a chuva sem incluir Deus na explicação. E este é o ponto
equivocado. Não há nada no ensinamento bíblico sugerindo que Deus
sustente o mundo de tal forma que, se investigássemos as conexões causais
nos processos (criados) naturais, encontraríamos neles lacunas que não têm
explicação natural. A visão bíblica não é a de que a chuva e outros eventos
naturais são todos parcialmente miraculosos, mas que nenhuma das coisas,
eventos ou leis encontrados na natureza existiriam a menos que Deus as
tivesse criado e continuasse a sustentá-las.[80]
Desse modo, mesmo sendo o caso de que a criatividade e a providência
de Deus são a razão última pela qual existem coisas como os ventos, nuvens e
água, bem como as leis que garantem sua ordenação, é a ordem criada que
explica os eventos criados no sentido em que a ciência busca por
explicações. Uma explicação científica da chuva não inclui por que o espaço,
o tempo, a matéria/energia, e todas as leis que governam a criação, existem.
Essa é uma questão metafísica e ― em última instância ― religiosa.
Ademais, ainda que Deus seja o criador da ordem causal a qual nos permite
explicar a chuva, ele não é em si mesmo uma de suas causas juntamente a
todas as outras causas ― nem mesmo sua primeira causa. Falando de forma
estrita, Deus não é a causa do universo, mas o criador de todos os tipos de
causalidades no universo.[81]
Esse último parágrafo não pretende negar que as Escrituras também
ensinem que o universo criado de certo modo revela seu criador. Mas,
contrariamente aos fundamentalistas (e outros), as Escrituras não sugerem
que a criação testemunha acerca de seu criador exigindo que o impliquemos
regularmente a fim de explicar como a criação funciona. As Escrituras
concebem que a criação revela seu criador ao apresentar-se como dependente
ao invés de autoexistente, seja em parte ou no todo (veja Rm. 1.20,23). Visto
a partir dessa perspectiva do ensinamento das próprias Escrituras, portanto, o
fato de que a criação testemunha acerca de Deus não é justificativa para o
sério equívoco de confundir-se a providência de Deus com aquelas ocasiões
nas quais ele agiu e reagiu com humanos no curso da revelação de sua aliança
e no cumprimento de suas promessas na história humana. E trata-se de uma
super-racionalização indefensável interpretar a forma que a criação testifica
de Deus como se fosse o caso de que ela fornece informações específicas que
podem servir como premissas a partir das quais pode-se inferir a existência
de Deus, ou que ela oferece conteúdo ou confirmação para todos os tipos de
teorias.
O que é pior, a visão de que a ciência poderia ser confirmada pelo
ensinamento bíblico é geralmente aceita como sendo recíproca. Na medida
em que as Escrituras confirmam uma teoria, e a teoria é a melhor explicação
do que quer que seja, então a ciência também teria confirmado as Escrituras!
Essa combinação, como já observado, é ainda mais perniciosa quando
combinada com a suposição enciclopédica. Isso se dá por causa do forte
elemento de racionalismo implícito nessa combinação. Pois esperar que o
ensinamento religioso seja ou provado pelo argumento ou confirmado por
teorias é tratar a crença em Deus como se ela mesma fosse uma teoria (ou
pelo menos como se devesse ser avaliada como as teorias o são). Essa
tendência pode ser vista na forma que alguns fundamentalistas se opõem a
muitas teorias correntes da ciência, contra as quais eles propõe uma teoria
“criacionista científica” concorrente, supostamente derivada de, ou
confirmada pela, Bíblia, o que por sua vez confirmaria o ensinamento bíblico
― como vimos Kirwan fazer. Mas as verdades reveladas da Escritura não
são teorias em absoluto. Elas não são hipóteses que inventamos para
preencher lacunas explanatórias e que precisamos então defender como
melhor do que hipóteses concorrentes. Em vez disso, nós cremos nelas
porque, pela graça de Deus, experienciamos os ensinamentos das Escrituras
como sendo autoevidentemente a verdade sobre Deus oriunda de Deus. Por
essa razão, a ideia fundamentalista de que Deus preenche lacunas
explanatórias em teorias é uma ideia tão alheia à Bíblia no que diz respeito à
defesa da verdade revelada quanto a suposição enciclopédica o é sobre o
modo de interpretá-la. Os dois erros, obviamente, se reforçam mutuamente.
Uma vez que se concebe que as Escrituras fornecem verdades para cada
ciência, e uma vez que se entende que as teorias que elas oferecem (ou
confirma) oferecem explicações mais bem-sucedidas que qualquer hipótese
alternativa, torna-se então fácil e irresistível considerar tal êxito como uma
confirmação da veracidade das Escrituras.[82]
Para evitar tais mal entendidos, é necessário manter em mente que, de
acordo com os próprios autores bíblicos, o propósito dos escritos bíblicos é
registrar as atividades de Deus ao estabelecer sua aliança com os homens e
preservar o conteúdo dessa mensagem pactual. Quando os autores bíblicos
falam de eventos naturais, históricos, políticos, etc., eles sempre o fazem a
fim de proclamar, interpretar, ilustrar algo sobre a aliança de Deus. Assim, os
escritos bíblicos tratam, primeiramente, sobretudo e sempre sobre religião.[83]
É simplesmente um erro colossal supor que se um evento é religiosamente
importante, por exemplo a importância do dilúvio para a aliança com Noé,
ele, portanto, também deve ser de importância crucial para a geologia ou
qualquer outra ciência. Deve-se, pois, manter o foco religioso das Escrituras
como a orientação básica para entendê-la em seus próprios termos; devemos
sempre buscar entender sua linguagem, sua estrutura, seus interesses, seu
contexto e circunstâncias, para que possamos adquirir um conhecimento tão
claro quanto possível de sua mensagem. E essa forma de tratá-la é o exato
reverso de assumi-la como uma fonte enciclopédica para quaisquer que sejam
nossos interesses e preocupações.
Para ilustrar o que quero dizer com entender as Escrituras em seus
próprios termos, e com o fato de que, de início ao fim, apresentam um foco
religioso, consideremos brevemente o relato da ordem da criação e da origem
dos seres humanos apresentada em Gênesis. Um número substancial de
fundamentalistas tomou esse texto como se oferecesse orientações básicas
para astronomia, biologia e paleontologia, assim como para a geologia. Eles
supuseram que os “dias” da atividade de Deus mencionados em Gênesis
deviam ser de períodos de vinte e quatro horas, ou então eras ou estágios
distintos na história do planeta. De igual modo, eles supõem que, quando se
diz que Deus criou formas de vida para reproduzirem-se “segundo sua
própria espécie”, isto é algum tipo de princípio básico para a biologia, em vez
de uma observação de senso comum baseado naquilo que o escritor observou.
Mas um olhar mais atento ao próprio texto demonstra que havia ali um
propósito bastante distinto, que desaprova a interpretação fundamentalista.
Pois a linguagem e a estrutura interna do texto (que entendo que demonstram
seu sentido “literal”) estão em posição diretamente contrária à suposição
enciclopédica.
No relato de Gênesis, Deus primeiramente chama à existência os “céus
e a terra” a partir do nada (ex nihilo). Dito isso, a dimensão celestial da
criação é imediatamente posta de lado, e toda a atenção é concentrada sobre a
terra (diríamos “sobre o universo”). O que segue é o famoso relato da
formação desenvolvimentista subsequente a que a terra se submete em
conformidade com os propósitos de Deus. Expressa-se isto como o trabalho
realizado por Deus nos dias sucessivos de uma única semana. Esses dias da
criação são como se segue: Dia 1, Deus separa a luz das trevas; Dia 2, Deus
separa o mar da atmosfera; Dia 3, Deus separa a terra do mar e cria a vida
vegetal; Dia 4, Deus cria o sol, a lua e as estrelas; Dia 5, Deus cria a vida
marítima e as aves; Dia 6, Deus cria animais e humanos. A ênfase nesse
relato está claramente na forma pela qual tudo depende de Deus. Não há
outras forças concorrentes em uma posição de igualdade com Deus. Pelo
contrário, é ele quem trouxe à existência tudo além de si mesmo e agora
ordena a criação de acordo com seus propósitos. Assim, a ênfase do texto é
sobre a soberania criativa de Deus: “E disse Deus, ‘Haja...’”. Não há
praticamente nada dito sobre o que veríamos caso estivéssemos lá para
observar os estágios iniciais do universo. Tudo o que o texto diz sobre as
consequências dos decretos criativos de Deus é: “E assim foi.”
Talvez o fator mais importante em manter o foco religioso desse texto
seja o reconhecimento de que, longe de ser um ensaio autônomo sobre
tópicos científicos, esse relato é um prólogo e parte da aliança dada a
Moisés no Sinai. Por essa razão, a forma mais natural para se entender os
“Dias” da atividade formativa de Deus é vê-las em conexão com o
mandamento de que os humanos devem trabalhar seis dias e descansar no
Sábado. O texto utiliza a figura literária de uma semana de trabalho para que
Deus cumpra seus propósitos de formar a terra para comunicar isso de um
modo que seja paralelo a (e um exemplo para) o mandamento de que os
homens também devessem trabalhar seis dias e descansar no Sábado. Assim,
o relato é intencionado como uma estrutura literária ― uma figura de
linguagem ao invés de seis dias literais.[84] Isso é confirmado pela estrutura
interna do relato quando notamos a forma na qual os Dias 4, 5 e 6
correspondem aos dias 1, 2 e 3. O Dia 1 separa a luz das trevas, enquanto o
Dia 4 introduz o sol, a lua e as estrelas; o Dia 2 separa os mares da atmosfera,
enquanto o Dia 5 fala da criação dos seres marítimos e das aves; e o Dia 3
testemunha o surgimento da terra seca e das plantas, enquanto o Dia 6
registra a criação dos animais e dos humanos. O diagrama a seguir pode
auxiliar na demonstração dessa correspondência:

Dia 1 Dia 2 Dia 3


luz mares terra
trevas atmosfera plantas
Dia 4 Dia 5 Dia 6
sol vida
animais
lua marítima
humanos
estrelas aves

Essa correspondência é uma característica muito proeminente no relato para


ser mera coincidência. Mas se não é uma coincidência, ela demonstra algo
crucial para o correto entendimento do relato, a saber, que não se pretendeu
que os “Dias” oferecessem uma descrição cronológica de como a ordenação
da criação se deu. Em vez disso, os “Dias” representam uma forma de
expressar o “porquê” de Deus haver criado em vez do “como”; ou seja, eles
têm como intenção descrever uma ordem de propósito, não de tempo. A
diferença básica entre luz e trevas, por exemplo, é introduzida como a
condição de fundo para a existência do sol, da lua e das estrelas. E a
diferenciação entre a terra seca e os mares e a criação das plantas é a
condição pré-planejada para o suporte da vida animal e humana. Visto dessa
forma, torna-se ridículo discutir ― como os fundamentalistas têm feito ―
sobre se os “Dias” da criação são períodos de vinte e quatro horas ou eras
geológicas. Como Santo Agostinho observou há muito tempo, a palavra “dia”
deve ser figurativa no relato da criação em Gênesis, pois como haveria
períodos de vinte e quatro horas anterior à aparição do sol, da lua e das
estrelas? (Note que essa observação se aplica da mesma forma às eras
geológicas.) A seu comentário acrescento: Qual pode ser a justificativa de se
tomar os Dias como ou sendo períodos de vinte e quatro horas, ou eras
geológicas, se eles não têm como intenção oferecer qualquer história
cronológica do universo, mas transmitir a ordem teleológica dos propósitos
de Deus? Tanto a interpretação das vinte e quatro horas quanto das eras
geológicas são baseadas diretamente na suposição enciclopédica, e essa
suposição não apenas falha em apreender, antes mascara seriamente, o caráter
inteiramente religioso do relato.
Isso não é sugerir que exista algo errado em questionarmos sobre como
a criação funciona ou sobre sua idade, ou ainda em inventarmos teorias para
responder a essas questões. Mas não podemos então supor que, visto que
essas questões são importantes para nós, elas, portanto, também devam ser o
interesse do relato de Gênesis. Os fundamentalistas erram ao impor suas
próprias questões e interesses sobre o texto de Gênesis, ao invés de ler o texto
nos termos de suas próprias questões e interesses (religiosos).[85]Por essa
razão, Gênesis não deveria nem ser louvado como boa ciência, nem
condenado como má ciência, porque ele simplesmente não é ciência. Os
interesses do texto são pactuais. Eles ensinam verdades sobre Deus e sobre a
aliança de amor e vida eterna que ele oferece aos seres humanos.
O foco religioso do texto também é a chave para seu relato sobre as
origens humanas. Ele também deve ser lido como parte da aliança sinaítica
que se inicia pela recordação das alianças anteriores que se seguiram à
provação e queda dos primeiros seres humanos. Assim, ele se inicia dizendo-
nos que Deus formou o primeiro ser humano a partir “do pó da terra”. Aqui
também, tal como na ordenação do universo nos dias de uma semana de
trabalho, os propósitos de Deus e a natureza do que ele forma (neste caso,
humanos) são o ponto real do relato; e uma vez mais eles são expressos por
uma história de trabalho ou “produção”. Essa interpretação é confirmada pela
forma com a qual as Escrituras em todas as partes utilizam a expressão “o pó
da terra” para referirem-se à mortalidade humana (Cf. Sl. 22.15, 29; 44.25;
103.14; l04.29; Ec. 3.20; 12.7; Is. 26.19; Dn. 12.2). Isso também é
confirmado no contexto da própria história de Gênesis. Note que quando os
humanos desobedecem a Deus e perdem a proteção especial de Deus, eles
ouvem de Deus que agora terão que lutar para seu sustento, e que ao fim eles
perderão essa luta e morrerão: “No suor do teu rosto comerás o teu pão, até
que te tornes à terra; porque dela foste tomado; porquanto és pó e em pó te
tornarás” (Gn. 3.19 ACR). O ponto da história, assim, não é que creiamos
que Deus formou um boneco de barro e o trouxe à vida soprando nele, mas
que foi o propósito de Deus tornar-nos criaturas mortais que dependem dele.
Ademais, esse ponto é essencial à direção central da história por inteiro,
porque as alianças que Deus oferece aos humanos incluem a promessa da
vida eterna (Gn. 3.22). Assim, Gênesis nega que a vida eterna seja natural aos
humanos, contrariamente àquilo que os antigos egípcios e gregos pensavam.
De acordo com Gênesis, não somos fragmentos da divindade colocados em
corpos físicos dos quais seria preferível nos livrarmos; em contraste a Platão,
o corpo não é a “prisão da alma”. Somos feitos do mesmo material que tudo o
mais, e somos dependentes de Deus como tudo o mais. Dessa forma, em
última instância, nossas vidas dependem de estarmos em um relacionamento
apropriado com Deus. O ponto do relato, assim, é registrar o fato de que
quando os primeiros humanos falharam em sua provação, quebrando os
mandamentos de Deus, eles perderam a promessa de vida eterna. Deus então
estabeleceu alianças de redenção por meio das quais os humanos pudessem
ser restaurados à promessa da vida eterna. E a aliança com Moisés que segue
esse preâmbulo é apresentada como a última edição na história dessas
alianças redentivas.
O mesmo vale para o relato de Deus tornando esse ser pó-da-terra em
um ser humano. Aqui, também, o propósito pactual de Deus e a natureza dos
humanos são o foco e, uma vez mais, estes são expressos como uma história
de “feitura”. Deus sopra em Adão o “fôlego de vida” e Adão se torna uma
“alma vivente”. Mas o que exatamente, nesse relato, o “fôlego de vida”
significa? Uma vez mais, se tivermos em mente que esse relato é um
preâmbulo e parte da aliança com Moisés, pode haver apenas uma resposta:
O fôlego de Deus é seu ato de fala, sua palavra pactual de vida. Neste ponto
fazemos bem em recordar que o termo hebraico para “fôlego” é o mesmo
para “espírito”. Desse modo, há um trocadilho intencional no tocante a esses
dois significados ao longo da história. O texto diz que o “espírito” de Deus
estava presente no universo e então reconta suas ordens em cada um dos seis
dias que trouxeram a ordenação daquele universo. Esse espírito é, pois, o
mesmo que a palavra de ordem de Deus, que, por sua vez, é a mesma que o
fôlego de Deus. Portanto, é pela palavra de Deus que o universo foi chamado
à existência, por seu espírito (fôlego, ordens) ele recebeu uma formação
ordenada, e é pela recepção do fôlego de vida de Deus (palavra de ordem e
promessa) que Adão se torna um humano (cf. 2Sm 22.16; Jó 4.9, 37.10; Sl
18.15, 33.6; Is 11.4). É a palavra de Deus que deu início à vida de Adão
como humano, e é pela subsequente palavra de redenção provinda de Deus
que Adão ― e qualquer outro ser humano ― pode ser restaurado à promessa
divina da vida que nunca terá fim.
O texto reconhece, por certo, que nossas vidas dependem de comida,
água, ar etc. Considera-os, no entanto, como simples condições penúltimas
para a vida, uma vez que eles também dependem de Deus; a condição última
para a vida é permanecer em um relacionamento pactual com Deus. Assim,
Deuteronômio 8.3 declara: “Não só de pão viverá o homem, mas de toda a
palavra que sai da boca de Deus”. Em outras palavras, uma vida humana
plena não consiste meramente no metabolismo e na sobrevivência biológicos,
pois a vida biótica tem um propósito supra-biológico: conhecer a Deus e
desfrutar de sua comunhão para todo o sempre. Assim, é ao revelar-se a Adão
que Deus fez dele um ser genuinamente humano, ou seja, religioso.[86]
Uma vez que a interpretação desse texto foi sujeita a tão grande
desentendimento, tenha causado muito pesar, e é tão controversa, vou expor
mais uma vez minha interpretação do relato de Gênesis sobre as origens
humanas, porém partindo de um ângulo completamente distinto. Dessa vez
iniciarei pontuando que qualquer relato das origens humanas tem de assumir
alguma definição do que se considera como um ser humano. Apenas
desenterrando, digamos, restos de esqueletos não nos demonstrará se a
natureza daquele que utilizou o esqueleto em vida era o mesmo que nós
mesmos (e o que realmente queremos saber sobre quaisquer restos
hominídeos é quão semelhante a nós aquelas criaturas eram!). Mas para
responder a essa questão devemos empregar alguma definição do que se
considera como ser humano. O homem é um ser que utiliza a linguagem,
produz arte, pensa de forma abstrata, tem um senso de moralidade, ou o quê?
Pois o que quer que seja tomado como a(s) característica(s) definidora(s) de
um humano determina(m) nosso entendimento sobre quando e onde os
primeiros humanos surgiram. Em outras palavras, os primeiros humanos
foram os primeiros seres nos quais aquela(s) característica(s) definidora(s)
surgiram, não importa o que se considere como sendo essa(s)
característica(s).
A interpretação que ofereci acima do relato das origens humanas de
Gênesis é posteriormente confirmada pela forma perfeita com a qual ela se
encaixa com a própria definição do Gênesis acerca do que é um ser humano.
Na visão de Gênesis, um humano é um ser feito à imagem de Deus para
comunhão com Deus. Em outras palavras, um humano é um ser religioso. O
primeiro humano era, portanto, o primeiro ser a ter consciência religiosa, o
primeiro a ser capaz de questionar e responder a questão relacionada àquilo
que é o divino. Mas, nesse caso, a aliança de Deus com Adão foi literalmente
o último passo no processo de Adão tornar-se humano. Pois no ponto em que
a capacidade para a consciência religiosa emergiu em Adão, Deus ativou essa
consciência revelando a si mesmo, e esse ato tornou Adão um ser humano
pleno (i.e., religioso). Quaisquer que tenham sido os processos anteriores
envolvidos na emergência da consciência religiosa, ou quanto tempo possam
ter durado, o Gênesis desconhece ou não deseja saber. Seu foco é no
surgimento do primeiro ser religioso; ele descreve, assim, a ação de Deus por
meio da qual veio se deu que num momento não havia humanos na terra e, no
seguinte, havia. E essa ação não foi outra senão a revelação por parte de Deus
de seu amor, de sua comunhão e de sua oferta de vida eterna. Assim, nessa
interpretação, o último passo causal nas origens humanas sobre a terra,
embora não seja um milagre, foi de fato um ato especial de Deus; a saber, sua
revelação de si mesmo e seu chamado ao hominídeo pré-humano para tornar-
se um ser livre, responsável, religioso.
Essa mesma interpretação se aplica também ao relato de Gênesis sobre
a origem da primeira mulher. Aqui, também, o propósito de Deus e a
natureza da mulher são expressos em uma narrativa de “feitura”. Seu ser feito
a partir da costela de Adão significa que ela compartilha com ele da mesma
natureza humana. O próprio texto enfatiza esse ponto quando registra com
aprovação o comentário de Adão: “Ela é osso dos meus ossos, carne da
minha carne” (Gn. 2.23), uma vez que isso é dito em associação ao ponto de
que ela é a única companheira apropriada para Adão. A noção de “ser tomada
de” Adão introduz, de fato, um novo fator em sua formação não presente na
formação de Adão, na medida em que sugere que sua humanidade é, de
alguma forma, dependente da dele. Mas esse ponto também se encaixa de
forma apropriada com a interpretação que tenho apresentado. Pois no texto é
dito que Adão recebeu as ordenanças e promessas reveladas diretamente de
Deus, enquanto Eva as recebeu de Adão. Assim, a ativação da consciência
religiosa de Eva, o que a tornou humana, foi (parcialmente) dependente de
Adão.[87]
Concluo, portanto, que a interpretação fundamentalista de Gênesis
obscurece a natureza religiosa do relato como preâmbulo à aliança mosaica,
ignora a estrutura interna dos dias da criação, e falha ao associar a definição
de Gênesis de “humano” com seu relato das origens humanas.
No entanto, não obstante minha rejeição da suposição enciclopédica,
meu protesto contra a confusão de providência com milagres, e minha
aversão para com a leitura de Gênesis de modo a fazê-la responder questões
científicas, concordo plenamente com os fundamentalistas sobre o escopo da
influência das crenças religiosas.[88] Sobre esse tema, concordo que as
posições irracionalista e escolástica não consideram adequadamente as
afirmações importantes que as Escrituras fazem sobre o fato de que a
totalidade de nosso conhecimento é de alguma forma impactada pelo
conhecimento de Deus. Mas se rejeitarmos o entendimento fundamentalista
de como a crença religiosa influencia as teorias, qual interpretação alternativa
resta para a posição estritamente bíblica? Minha resposta a isso já foi
brevemente esboçada no capítulo 4: nossa crença em Deus como a única
divindade exerce sua influência mais profunda e pervasiva ao regular e guiar
como deveríamos pensar sobre as naturezas das coisas criadas, incluindo as
entidades propostas por qualquer hipótese. Ao atuar como pressuposição a
toda produção teórica, ao invés de ser ou confirmar parte do conteúdo de
qualquer teoria em particular, a crença em Deus pode guiar todas as teorias e
fazê-lo de uma forma mais abrangente e importante. Ademais, esse tipo de
orientação impacta não apenas todas as nossas hipóteses, mas todos os nossos
conceitos, de tal modo que essa interpretação faz jus à afirmação bíblica de
que nenhum conhecimento é religiosamente neutro.
Como a crença em Deus oferece essa orientação? Da mesma forma que
qualquer outra crença sobre a divindade impacta teorias, a saber, pelo
processo em dois estágios descrito anteriormente. Isto é, as entidades
propostas por uma teoria são entendidas e interpretadas de forma muito
diferente dependendo de qual visão geral da realidade o pensador assuma.
Há, por exemplo, as versões materialista, dualista, fenomenalista, etc. de
teorias atômicas. E cada visão da realidade difere das outras porque
pressupõe uma distinta divindade. O que argumentarei, então, é que o mesmo
tipo de diferença resulta se se toma Deus como o divino em vez de tomar-se a
matéria, ou as sensações, ou as formas sensoriais somadas a categorias
lógicas, etc. A crença em Deus, argumentarei, exige uma visão distinta da
realidade que conduz à interpretação dos postulados das teorias científicas em
uma forma distintivamente teísta. Assim, o teísta não é um “naturalista
metodológico” na ciência; assumir essa posição seria assumir ou que algo na
criação é divino em lugar de Deus, ou que a crença em Deus não faz
diferença para a interpretação que um indivíduo faz da natureza. Ao mesmo
tempo, contudo, a visão distintivamente cristã-teísta da realidade a favor da
qual argumentarei, não consiste em buscar por milagres para explicar as obras
da natureza. Antes, consiste na interpretação de números, ou átomos, ou
evolução, ou o que quer que seja, como tendo uma natureza não reducionista
― o que, conforme argumento adiante, é o que a crença em Deus exige.

6.2 Pressuposição
Já por diversas vezes expressei a principal declaração deste livro ao dizer que
toda teoria contém explicitamente ou pressupõe alguma crença sobre a
divindade. Em lugar de fazer essa distinção repetidamente, presumi-la-ei a
partir de agora em tudo o que segue. Isto é, conforme lidar com o que
significa para uma teoria pressupor uma crença sobre a divindade, isso
deveria ser entendido como implicando que uma teoria pressupõe ao menos
uma outra; isso não exclui que essa possa de fato explicitamente conter uma.
Talvez a melhor forma de explicar o que é uma pressuposição, e como essa
pode influenciar outras crenças, é oferecer um exemplo. Suponha que duas
pessoas estejam tendo um debate informal. George afirma que, embora não
lhe agrade, como a qualquer outra pessoa, pagar impostos, parece-lhe óbvio
que o governo não está fazendo o suficiente em relação à pobreza. Ele ainda
acrescenta que uma vez que nosso país é enormemente rico, comparado com
o modo que a maior parte do mundo vive, não há justificativas para se
permitir que falte a qualquer de seus cidadãos as condições básicas de vida,
quando isto pode ser prevenido. Jane replica que o governo já oferece em
excesso. Ela acrescenta que a própria existência do sistema de bem-estar
social apenas encoraja as pessoas a dependerem dele. O governo deveria estar
encorajando as pessoas a ganharem a vida por si mesmas.
George então replica que a maioria das pessoas acha humilhante ter de
aceitar a ajuda do governo; elas prefeririam ser independentes. Mas, ele
complementa, mesmo que algumas pessoas prefiram viver do auxílio, isso
não deveria impedir o governo de fazer o que ele deve fazer, que é suprir aos
pobres a ajuda que eles desesperadamente necessitam. Jane então diz que o
governo não tem o direito de confiscar parte do pagamento daqueles que
trabalham cada semana para dar àqueles que não o fazem. Ela teme que as
consequências finais da visão de George seja que o governo terminará por
regular a economia totalmente a fim de cuidar completamente de todos.
George protesta que ele não está advogando o controle completo do governo
sobre a economia, ou sobre a vida das pessoas. Ele complementa que suas
ideias poderiam ser implementadas pelo custo de apenas um porta-aviões, e
Jane responde que o dinheiro seria mais bem gasto na defesa de todos do que
no apoio a um grupo de parasitas.
Vamos supor que nem George nem Jane seja mais duro ou agressivo do
que o outro, e que nenhum seja mais sobrecarregado com impostos do que o
outro. Por que, então, eles tendem a ver o assunto por inteiro de modos tão
completamente opostos? Um fator preponderante por trás de seu desacordo
poderia ser que cada um pressupôs uma ideia diferente sobre o papel e os
limites apropriados do governo. Esse tema nunca é explicitamente trazido à
tona seja por George, seja por Jane, mas permanece sendo uma suposição que
orienta e regula tudo o que dizem.
Tanto George quanto Jane consideram que o governo, entendido
apropriadamente, deve aos seus cidadãos algumas coisas — proteção em
relação à invasão estrangeira, por exemplo. E ambos consideram que existem
limites à autoridade do governo, de modo que há algumas coisas que ele não
deveria fazer — tal como confiscar tudo para resolver todas as necessidades
da vida de cada cidadão. Mas eles têm diferentes pressuposições sobre as
obrigações do governo na área da economia. George considera que o governo
tem a obrigação de suprir a subsistência básica aos cidadãos que não a podem
(ou não irão) alcançar por si próprios. Jane, por outro lado, considera, ou
pressupõe, que o papel apropriado do governo não se estende para o auxílio
dos necessitados. Cada um deles pensa que o debate é sobre os gastos do
governo com o auxílio social, e nenhum reconhece que a discordância
termina por ser sobre o tema mais básico sobre o papel apropriado do
governo na sociedade.
Esse exemplo ilustra a primeira característica que desejo enfatizar sobre
pressuposições: elas são crenças que podem exercer uma influência sobre
outras crenças, mesmo que permaneçam inconscientes.[89] Outra característica
do modo que pressuposições influenciam pessoas é que mesmo quando elas
são sustentadas inconscientemente, elas regulam ou guiam a forma que as
pessoas pensam. Os pensamentos de George e Jane foram conduzidos por
direções distintas devido às suas pressuposições opostas no tocante ao
governo. Quanto mais argumentavam, mas distantes eles ficavam, porque
suas suposições os levavam a enxergar cada novo ponto, ou cada nova
proposta do outro, como estando cada vez mais longe da verdade. Quanto
mais eles aplicavam as consequências de sua própria pressuposição aos
pontos trazidos pelo outro, mais seguiam direções distintas de pensamento,
que os conduziam para ainda mais longe do ponto de vista do outro. Por
exemplo, ambos concordavam que um programa de bem-estar social pode
levar as pessoas a tornarem-se dependentes dele, desencorajando a iniciativa
das pessoas. George pensava que o risco era aceitável, porque presumia que
alguma forma de assistência pública é um dever do governo. Para ele o risco
deveria ser muito maior para que o governo fosse dispensado do seu dever de
assistência pública. Jane julgava esse mesmo risco como inaceitável, em
virtude de sua suposição de que a oferta de tal subsistência não é em absoluto
um dos deveres do governo. Para ela o mesmo risco parece ridículo quando a
totalidade do programa está, em primeiro lugar, acima e além do dever
governamental. Assim, mesmo que ambos pudessem concordar sobre
exatamente quais seriam as estatísticas desse risco, isso não faria diferença
em suas posições sobre o tema: para Jane o risco seria uma boa razão contra a
assistência do governo, ao passo que, para George, isso não seria uma
objeção suficiente.
Esse tipo de discordância ocorre comumente. Todos nós já vimos
situações aonde pessoas inteligentes confrontadas com os mesmos fatos os
interpretam de forma bastante diferente. Onde uma pessoa vê certa
interpretação como sendo bastante plausível, outro, por sua vez, enxerga-a
como ultrajante; enquanto outra pessoa concebe-a como possível, mas
improvável, e assim por diante. E geralmente o tipo correto de exame e
discussão pode expor as pressuposições que são o cerne real das
discordâncias.
As piores dificuldades no percurso de se descobrir as pressuposições de
um indivíduo são de dois tipos. A primeira delas está nos casos envolvendo
engano; o segundo tipo surge nos casos em que tentamos reconhecer
pressuposições sustentadas por pessoas numa cultura bastante diferente da
nossa. Isso se dá porque o elemento-chave no reconhecimento das
pressuposições de alguém é a habilidade de nos imaginar no lugar da outra
pessoa. Sempre que pudermos fazer isso com uma precisão razoável,
podemos ― e geralmente funciona ― discernir as suposições não
abertamente comunicadas. Mas tanto o engano quanto a ampla disparidade
cultural fazem com que colocarmo-nos no lugar do outro seja algo realmente
difícil. É por essa razão que é geralmente mais fácil descobrir o que está
sendo pressuposto por uma teoria abstrata em particular do que descobrir o
que está sendo pressuposto por crenças que não são parte de teorias. No
contexto da produção de teorias científicas ou filosóficas, as pessoas são
geralmente sinceras sobre o que estão fazendo, bastante ansiosas para serem
tão claras quanto possível, e não têm a ganhar propondo ou defendendo uma
teoria na qual não acreditam. À vista disso, a possibilidade de engano
raramente interfere no mundo da produção teórica. Obviamente, o obstáculo
da diferença cultural permanece, e talvez possa ser superada apenas
experimentando e apreciando a outra cultura. Mas pelo menos uma das duas
maiores dificuldades em reconhecer pressuposições é reduzida ao mínimo
quando estamos lidando com teorias altamente abstratas.
Essas características das pressuposições são importantes porque a
posição presentemente defendida é que, ao atuar como pressuposições, que
crenças sobre a divindade exercem sua influência mais importante sobre a
teorização científica e filosófica. Esse ponto distingue nitidamente a posição
que estou defendendo de todas as outras posições que lidam com a relação
das crenças sobre a divindade com a produção teórica. A visão radicalmente
bíblica não busca nem encontrar afirmações nas Escrituras sobre todo o tipo
de temática que possa ser incluída em teorias, nem restringir a influência da
crença em Deus às raras ocasiões nas quais a verdade revelada é contradita
por uma hipótese. O que queremos dizer é que a influência mais pervasiva e
poderosa de uma crença na divindade é a forma pela qual ela atua como uma
pressuposição que orienta como concebemos a(s) natureza(s) daquilo que
uma teoria proponha.
Porém, antes de passarmos para a explicação de como essa orientação
funciona, é necessário ser mais preciso sobre o que é exatamente uma
pressuposição. Como esse conceito pode ser definido?[90]
Um ponto que deve ser enfatizado é: uma pressuposição é uma crença.
É por essa razão que, estritamente falando, não são crenças ou as sentenças
que as expressam que pressupõem; são pessoas que pressupõem. São pessoas
que podem pressupor a verdade de uma crença quando sustentam outra
crença distinta. Assim, uma pressuposição é uma crença-em-relação à outra
crença;[91] é uma crença que qualquer pessoa teria de possuir para aceitar
outra crença em relação à qual é a pressuposição. Portanto, dizer que uma
afirmação tem uma pressuposição é uma forma abreviada (mas enganosa) de
dizer que qualquer pessoa que sustenta a crença expressa em uma afirmação
também teria de aceitar sua(s) pressuposição(ões). Por exemplo, suponha que
alguém bata em minha porta e pergunte se o João está em casa. Eu respondo:
“O João retornará em meia hora”. Minha resposta pressupôs a crença de que
“João não está aqui agora”. Note que minha resposta não diz explicitamente
que João não está em casa, nem pode esse fato ser logicamente deduzido
disso. Mas ela o pressupõe. Se eu falasse essa sentença sabendo a todo
instante que João estava em casa, eu seria justamente acusado de fraude.
Esse entendimento de pressuposição foi rejeitado por alguns críticos
que contestam que, quando aplicado a sentenças, ele não distingue
adequadamente entre o que uma sentença pressupõe e o que é logicamente
deduzível a partir dela. Por exemplo, eles dizem que embora pareça claro que
“João retornará em meia hora” pressupõe “João não está aqui agora”, não está
claro, todavia, se isso pode ser considerado como se pressupusesse que “João
existe”. Obviamente isso parece pressupor “João existe”, mas o problema é
que “João existe” também pode ser logicamente deduzido de “João retornará
em meia hora” (dependendo exatamente do modo que formulamos isso
logicamente). E, certamente, eles dizem, há algo peculiar pelo fato de a
mesma sentença tanto pressupor quanto implicar logicamente a mesma
crença. O que é peculiar nisso é que, a fim de pressupor algo, devemos
acreditar de antemão naquilo, ao passo que aprendemos o que aquilo
logicamente implica apenas após extrairmos uma inferência a partir disso.
Assim, o problema é: como se pode crer de antemão que “João existe” ao
mesmo tempo que “João existe” é também uma consequência de “João não
está aqui agora”?
Em minha opinião esse não é em absoluto um problema, e o erro da
crítica está em ignorar o ponto levantado anteriormente sobre serem pessoas,
e não sentenças, que realizam o ato de pressupor. O mesmo ponto aplica-se
igualmente ao ato de concluir a partir de consequências lógicas. Sentenças
não produzem consequências lógicas por si próprias; pessoas necessitam
inferir essas consequências. E aí está o caminho para contornar essa suposta
dificuldade. Pois na linguagem normal ― a menos que estejamos falando
com nós mesmos ― existem pelo menos dois tipos de pessoas envolvidas: o
articulador e o ouvinte. E não há nada estranho no fato de que quem fala
“João retornará em meia hora” pode pressupor “João existe” ao mesmo
tempo em que o ouvinte aprende esse fato por meio de uma inferência lógica.
Visto que duas pessoas distintas estão envolvidas, não há qualquer paradoxo
envolvido. Não somos forçados à conclusão absurda de que a informação já
conhecida pelo falante também é subsequentemente adquirida pela inferência
retirada a partir do que ele mesmo disse. Uma vez que o falante já conhecia a
informação, ele simplesmente não a inferiu. Por outro lado, um ouvinte que
não sabia se João existia poderia aprender esse fato ao inferir isso de “João
retornará em meia hora”.
Resumindo, descobrimos que uma pressuposição tem as seguintes
características:
Primeiro: é uma crença que se encontra em certa relação a outra
crença. A relação é que a pressuposição é um requerimento informacional
para manter a outra crença. Isso significa que ninguém poderia manter
coerentemente uma crença negando suas pressuposições, mesmo que a crença
não seja inferida logicamente a partir de suas pressuposições (Se fosse uma
inferência lógica, então, caso João não retornasse em meia hora, teria de ser
falso que ele não está aqui agora.)
Segundo: uma pressuposição não precisa ser consciente para exercer
sua influência sobre outras crenças daquele que a possui. Como
consequência, pessoas podem professar ignorância ― ou mesmo negar ―
uma pressuposição particular, apesar do fato de que algumas de suas demais
crenças demonstram que ou a presumem inconscientemente, ou são culpáveis
de incoerência autoconjectural.
Terceiro: em questões do dia a dia, crenças e sentenças que as
expressam podem ter tantas pressuposições distintas que em geral é difícil
dizer o que alguém está pressupondo. Como já notamos, essa dificuldade
agrava-se especialmente quando uma ampla diversidade cultural está
envolvida, ou quando é possível que alguém deliberadamente tente enganar a
outros sobre o que ele ou ela esteja pressupondo. Quando, no entanto, o logro
não é um fator, as pessoas frequentemente podem ter sucesso em discernir o
que os outros estão pressupondo ao imaginarem-se em condições similares. E
a possibilidade de engano é consideravelmente reduzida no contexto da
produção teórica.
Complementando essas características resumidas, também quero
pontuar que algumas crenças que agem como pressuposições não têm, por
sua vez, premissas ou pressuposições próprias porque são adquiridas pela
experiência direta. Exemplos de tais crenças incluem (pelo menos) aquelas
produzidas pela percepção sensorial normal, pela memória, pela introspecção,
e intuições racionais de autoevidência. Denominarei essas crenças
“pressuposições básicas”. E em consonância com a posição de que as crenças
sobre a divindade per se estão entre nossas intuições de autoevidência,
assumirei a posição em tudo o que se segue de que crenças sobre a divindade
estão entre nossas pressuposições básicas.
Essa posição está, portanto, em nítido contraste às outras visões sobre
a relação geral entre crenças religiosas e teorias. A primeira dessas visões
excluiu qualquer relação entre elas. As outras focaram-se ou na
compatibilidade lógica de certas crenças religiosas e teorias específicas, ou na
inclusão de ensinamento bíblico no conteúdo ou confirmação das teorias.
Mas embora não negando que a verdade revelada pode, por vezes, agir como
“crenças reguladoras” para teorias dessas formas, essa posição nega que essas
são os únicos ou os mais importantes modos pelos quais as crenças sobre a
divindade impactam teorias.[92] Certamente, as ocasiões nas quais verdades
reveladas específicas de fato contradizem ou apresentam conteúdo para
teorias são mais fáceis de detectar do que as formas em que as crenças
religiosas agem como pressuposições para elas. Mas esse fato não é, como
disse anteriormente, razão para supor que tais ocasiões oferecem o modelo
geral sobre como a crença religiosa e as teorias relacionam-se. Isso se dá
especialmente quando reconhecemos que o tipo de interação que elas
constituem é apenas fragmentário, relativamente raro e severamente limitado
em escopo. Assim, fica aquém de ser uma descrição adequada da afirmação
bíblica de que ter o Deus correto impacta todo o conhecimento e a verdade.
Os próximos três capítulos têm como intenção ilustrar em algum
detalhe como o controle regulatório por pressuposições religiosas funcionam
para teorias em matemática, física e psicologia. Eles ainda não apresentarão o
argumento sobre a razão pela qual esse controle é inevitável para as teorias,
mas almejam apenas tornar mais claro o tipo de controle do qual se está
falando. (Como disse anteriormente, o argumento em relação ao porquê de tal
controle ser inevitável terá de esperar até o capítulo 10). Um dos pontos mais
importantes a serem notados sobre essas amostras de teorias é como elas
demonstram que crenças sobre a divindade, quando agem como
pressuposições, não vinculam exatamente qual tipo de hipóteses específicas
um pensador deveria manter. Crenças sobre a divindade sub-determinam
teorias nesse tocante; ao invés de exigir hipóteses específicas, a crença de que
um ou outro aspecto do mundo é divino é uma atribuição de prioridade que
delimita um espectro de hipóteses que parecerão plausíveis a qualquer que
tenha aquela crença sobre a divindade. Ao mesmo tempo, elas também
excluem espectros de hipóteses possíveis, espectros que podem parecer
plausíveis aos teóricos que advogam crenças sobre a divindade contrárias.
Nesses capítulos empregarei o termo “reducionista”, comumente
aceito, para referir-me a visões panorâmicas da natureza da realidade
baseadas em atribuições de prioridade. Dir-se-á que a amostra de teorias
“reduzem” os aspectos restantes àquele(s) que receberam prioridade e, dessa
forma, receberam o status de divindade. Elas demonstrarão, assim, como
qualquer crença pagã sobre a divindade exige que a totalidade da natureza da
realidade seja reduzida a seu(s) aspecto(s) favorecido(s), exigindo também
que a natureza dos postulados de uma teoria seja do mesmo modo reduzido
àquele(s) aspecto(s) favorecido(s). Dessa forma, seja a hipótese um quark,
um processo evolutivo, ou o que quer que seja, existem tantas interpretações
possíveis sobre a natureza daquilo que a teoria postula quanto forem as da
natureza da realidade como um todo. Resumindo, a amostra de teorias que
segue deveria ser vista como ilustrações de como a natureza daquilo uma
teoria propõe é concebida diferente e relativamente àquilo que é pressuposto
como o divino per se. Isso, então, pavimentará o caminho para o contraste
subsequente de uma perspectiva bíblica singular para as teorias, uma
perspectiva na qual as naturezas do que uma teoria propõe são todas
concebidas de uma maneira sistematicamente não reducionista. Eis o que é
exigido (conforme argumentarei) , para teorias adotadas ou inventadas sobre
a pressuposição de que apenas Deus é o divino per se, e que o status divino
não deve ser concedido a qualquer aspecto da criação.
PARTE III
ESTUDOS DE CASOS
CAPÍTULO 6. TEORIAS EM MATÉMATICA

6.1 Introdução
É uma ideia antiga na cultura ocidental de que a matemática seja o contra-
exemplo primário à reivindicação central deste livro. Afinal de contas,
continua a objeção, não seria 1 + 1 = 2 para todos, independentemente de sua
crença religiosa? Não seria, portanto, uma crença neutra e universalmente
aceita no sentido exato que você está negando? Este capítulo será dedicado a
responder a essa objeção.
Deixe-me começar dizendo que em um nível simples, de senso comum,
essa objeção tem uma plausibilidade ― mas em última instância enganosa ―
prima facie. Quase todos tiveram a experiência de descobrir a aritmética
simples como óbvia. À luz do que foi dito sobre abstração, isso dar-se-ia
porque as coisas que experimentamos demonstram quantidade; há um
“quanto” em relação a elas. Essas propriedades quantitativas podem ser
abstraídas, permitindo-lhes ser representadas por numerais, e relações entre
elas podem ser notadas, simbolizadas e formuladas. Desse modo, muitas
verdades e técnicas matemáticas podem ser descobertas sem a necessidade de
se formular quaisquer teorias. E nesse nível existe, de fato, concordância.
No entanto, existem questões sobre os conceitos envolvidos em 1 + 1 =
2 que não podem ser respondidas simplesmente abstraindo e simbolizando
quantidades e notando as leis mais óbvias que se mantêm entre elas. Essas
questões se relacionam com temas que são cruciais ao entendimento sobre o
que essa fórmula significa precisamente. Uma vez que essas questões são
explicitadas e respostas são dadas a elas, estas podem ser reconhecidas como
constituindo hipóteses entitárias e/ou perspectivais. Uma das mais famosas
dentre essas questões é o que, exatamente, os símbolos da fórmula
representam? Em outras palavras, o que é um número? Tão logo esse tema é
levantado, encontramos aqui discordâncias sérias entre matemáticos em
relação a como respondê-la. Suas discordâncias são forçadas à luz porque
essa questão requer um exame mais extenso do conceito de número que cada
pensador sustenta. Nesse sentido, as concordâncias e diferenças em relação
ao conceito de número são similares às concordâncias e diferenças que
notamos quando o conceito do saleiro foi discutido no capítulo 4. Assim
como no caso do saleiro, existem sobreposições entre as várias concepções de
número, de forma que 1 + 1 = 2 pode ser óbvio e objeto de concordância.
Mas, assim como com o saleiro, uma vez que um interesse emerge
ocasionando uma análise mais detalhada do conceito de número, verifica-se
ao examinar seu conteúdo mais extensivamente que diferentes pensadores
mantêm diferentes noções sobre sua natureza. Assim como no caso do
saleiro, os conceitos mais amplos de número revelam que as pessoas incluem
neles relações das propriedades quantitativas com propriedades de outros
tipos. Essas relações, quando afirmadas e defendidas, constituem uma visão
sobre a natureza do número. Tais visões podem simplesmente ser assumidas
inconscientemente, é claro, em cujo caso elas não seriam teorias. Mas se elas
são tornadas conscientes e defendidas, então seriam, de fato, teorias sobre a
natureza da matemática que refletem uma visão geral sobre a natureza da
realidade e, dessa forma, da divindade. (Se elas são apenas admitidas, segue-
se que o controle que elas exercem permanece uma fé não examinada que é,
ao mesmo tempo, religiosa em seu caráter.) E a verdade é que tais diferenças
nos conceitos de número são tão grandes que os maiores personagens na
história da matemática tiveram ideias radicalmente conflitivas sobre o que a
matemática é, como ela deve ser feita, e sobre o que se pode confiar que ela
fará! Na verdade, essas discordâncias estão entre as mais amplas e agudas na
produção teórica ocidental.
Vamos então considerar a questão: o que os símbolos 1 + 1 = 2
representam? Podemos observar diretamente, é claro, que uma coisa e outra
coisa geralmente fazem duas coisas. Isso em si mesmo não é uma teoria,
assim como não o é aquilo 1 + 1 = 2 significa. Essa fórmula expressa uma
verdade sobre quantidades abstratas, não sobre objetos da experiência pré-
teórica. Se a fórmula fosse sobre objetos ordinários, então ela não seria
sempre verdadeira. Como Whitehead observou certa vez, uma faísca é uma
coisa e uma pilha de pólvora é outra, mas juntas elas fazem uma explosão que
é bem distinta das duas coisas. E então ele complementa imediatamente: “o
bom senso lhe diz no mesmo instante o que isso significa”.[93] O que
Whitehead chamou de bom senso é o reconhecimento de que o que quer que
os símbolos 1 + 1 = 2 representem, eles não são simplesmente objetos da
experiência pré-teórica, mas números abstratos, e é isso que nossa pergunta
está buscando explicar. Assim, a distinção entre números abstratos e objetos
ordinários aos quais nós aplicamos os números é um ponto importante.
Quando pequenas crianças aprendem aritmética, elas geralmente supõem que
os numerais representam coisas e eventos de sua experiência do dia a dia. É
fácil para eles assumirem essa impressão, porque os problemas oferecidos
nos livros textos da educação elementar geralmente os incentiva à prática da
aritmética por meio de cálculos sobre fardos de feno, ou pares de sapatos, ou
maçãs, e assim por diante. Mas logo se torna evidente que, embora os
numerais possam ser aplicados aos objetos da experiência ordinária, aqueles
objetos não são o que os numerais representam em si mesmos. Se os
numerais representassem coisas, seria impossível subtrair 8 de 5. Mas,
embora não possamos tirar 8 coisas de uma pilha que contém apenas 5,
podemos subtrair 8 de 5 e chegarmos a -3.
Isso nos trás novamente à questão colocada. Se os símbolos não
representam os objetos que experimentamos, o que eles representam? Tanto
matemáticos quanto filósofos propuseram teorias bastante distintas para
responder a essa questão.

6.2 A teoria do mundo dos números


Uma hipótese bastante conhecida em resposta a essa última questão é a de
que os números e outras marcações da matemática representam entidades
reais em outro mundo, ou dimensão, da realidade. Essas entidades nunca são
observadas, nem são localizáveis no espaço; não podemos olhar pela janela e
ver algo que seja o número 2 no quintal, mesmo que possamos ver coisas às
quais aquele conceito de número pode ser aplicado. De acordo com a teoria,
no entanto, o mundo das entidades matemáticas não é somente real, ele é
mais real do que as coisas que são observáveis e existem no tempo e no
espaço. Ele é mais real por duas razões. Uma é que as entidades povoando-o
têm existência independente, são eternas, e nunca podem modificar-se ou
deixar de existir. A outra é que as leis matemáticas governando esse domínio
não são apenas independentes e imutáveis, mas todo-governantes. Elas
determinam o que é possível e impossível para toda a realidade, não apenas
para o mundo dos números. Versões dessa teoria foram advogadas nos
tempos antigos por Pitágoras e Platão, e distintas versões dela ainda são
populares entre os matemáticos hoje. O grande matemático G. W. Leibniz
(que inventou o cálculo) também mantinha uma versão dessa teoria, e tinha
uma forma bastante sofisticada de apresentá-la. Quando indagado por um
estudante sobre como podemos estar certos que 1 + 1 = 2, Leibniz respondeu
que isso é, como todas as outras verdades na matemática, uma
(...) verdade eterna e necessária que não pode ser afetada mesmo se a
totalidade [observável] do mundo fosse destruída e não houvesse alguém
para contar e nenhum objeto para ser contado.[94]

Claramente, isso é uma hipótese entitária. Ela propõe que existe um domínio
infinitamente amplo de entidades matemáticas em adição aos objetos
mutáveis, observáveis, de nossa experiência do dia a dia. Essas entidades
incluem todos os números naturais, todas as frações, os decimais, todas as
figuras geométricas perfeitas, raízes, etc. Todas essas são entidades distintas
de, e independentes do, mundo da experiência ordinária. No entanto, as leis
presentes entre essas entidades também governam o mundo mutável do dia a
dia, assim como garantem as verdades expressas por fórmulas matemáticas
sobre os números. É assim, portanto, que Pitágoras, Platão e Leibniz
respondem à questão relacionada ao que os numerais e outros símbolos
matemáticos representam.
Com a mesma clareza, no entanto, essa hipótese entitária pressupõe,
por sua vez, uma hipótese perspectival. A hipótese perspectival diz respeito a
como o aspecto quantitativo das coisas que experimentamos se relaciona com
todos os outros aspectos. Isto porque, para que a teoria do mundo dos
números seja verdade, teria de ser o caso que o aspecto quantitativo das
cosias se relaciona a outros tipos de propriedades e leis verdadeiras para
essas, sendo, em última instância, independente de todas elas. Assim, o
aspecto quantitativo é (pelo menos em parte) aquilo do qual as coisas e seus
outros tipos de propriedades dependem para a existência. Nessa teoria, então,
as coisas que experienciamos, juntamente com seus demais aspectos, são
tornados possíveis (ou possível e atual) pelas entidades e leis do mundo dos
números.[95]
Estritamente falando, a partir do ponto de vista de nossa experiência
direta, anterior à produção de teorias, o aspecto quantitativo é apenas um
dentre uma multiplicidade de aspectos que as coisas revelam. Mas Platão,
Leibniz e outros adotaram a perspectiva de que esse não é meramente uma
das contas do colar, mas o (ou pelo menos parte do) próprio cordão. Ele é
fundamental em relação aos outros aspectos. Assim, esses pensadores não
têm problema em crer que a matemática não lida meramente com as
propriedades e leis quantitativas das coisas que experienciamos, mas é a
reflexão, em nossa experiência e pensamento, de um domínio de entidades
não observáveis, independentes e imutáveis sobre as quais todas as coisas
observáveis e mutáveis dependem.

6.3 A teoria de J. S. Mill


Vamos agora contrastar essa teoria do mundo dos números, relativa ao que os
numerais simbolizam, com a teoria de John Stuart Mill. A teoria de Mill
afirmava que os numerais simbolizam percepções sensoriais. Ele considerava
forçada a afirmação de que qualquer tipo de conhecimento poderia exceder as
observações das quais ele emerge. Tudo o que experimentamos, disse Mill,
está em nossas próprias sensações, de modo que elas são tudo o que podemos
saber. Assim, podemos empregar números para falar e calcular apenas em
relação aos sentimentos, visões, gostos, toques, cheiros e sons que
experimentamos.
Mill defendeu essa visão da matemática argumentando que não apenas
o aspecto quantitativo, mas todos os outros aspectos de nossa experiência
pré-teórica são, na verdade, idênticos ao aspecto sensorial. Ou seja, a teoria
de Mill foi a de que a natureza de toda a realidade é sensorial, ponto; tudo o
que podemos conhecer é exclusivamente sensorial em natureza. Assim, na
teoria de Mill, o fato de que parece haver muitos aspectos que diferem do
sensorial é um erro, e as experiências do senso comum nas quais as coisas
parecem ser dessa forma são enganosas. As coisas que experimentamos, ele
considerava, são nada mais do que pacotes de sensações. Isso o comprometeu
a uma teoria na qual todo o conhecimento, incluindo a matemática, deve ser
derivado do dado puramente sensorial.
Obviamente, Mill não concordou com a teoria sobre um domínio de
números eternos que não são percebidos sensorialmente. Ele sustentava, pelo
contrário, que 1 + 1 = 2 e outras fórmulas matemáticas são nada mais do que
generalizações sobre nossas sensações, de modo que elas representam apenas
visões, gostos, toques, cheiros, sons ou sentimentos. A fórmula 1 + 1, assim,
não é nada além do que uma forma de dizer que descobrimos, pela percepção,
sempre que experimentamos uma e depois outra sensação, estamos na
verdade experimentando duas sensações.[96] Essa visão exige, como Mill
admitiu, que não sabemos que 1 + 1 deve ser igual a 2. Ou que isso sempre
seja assim. Estamos, no máximo, justificados em crer que 1 + 1
provavelmente serão 2 no futuro, porque geralmente foram 2 no passado! Isso
também significa que o que os numerais simbolizam pode existir apenas se
existirem objetos para contar e pessoas para contá-los. E, pelas mesmas
razões, isso significa que não temos base para supor que tudo o que envolve a
matemática seja ou eterno ou imutável. Aqui podemos ver que, assim como
no caso da teoria do mundo dos números, uma perspectiva filosófica sobre a
natureza geral da realidade é pressuposta pela teoria de Mill acerca do que os
numerais simbolizam.

6.4 A teoria de Russell


Ainda outra teoria para responder a questão sobre o que os números
simbolizam é a proposta por Bertrand Russell. Diferentemente de Mill,
Russell não poderia aceitar a proposta de que os símbolos da matemática
referem-se a percepções sensoriais, uma vez que isso removeria a
necessidade e o caráter sem exceções das verdades matemáticas. Mas, como
Mill, ele rejeitou a teoria de um domínio invisível de entidades matemáticas.
Ele apressou-se em acrescentar, no entanto, que ao rejeitar aquela teoria ele
não quis dizer que 1 + 1 = 2 fosse falso:
Eu não quero dizer que enunciados aparentemente sobre pontos, ou
instâncias, ou números, ou qualquer das outras entidades [da
matemática] são falsos, mas apenas que eles precisam de uma
interpretação que demonstre que sua forma linguística é enganosa, e que,
quando corretamente analisados, as pseudo-entidades em questão
simplesmente não são mencionadas neles.[97]

Nessa citação, Russell vai além de simplesmente rejeitar a teoria de um


domínio de entidades matemáticas independentes. Como Mill, ele também
nega que exista de algum modo um aspecto distintivamente quantitativo para
nossa experiência, e refere-se às quantidades como pseudo-entidades. Mas,
diferentemente de Mill, Russell prosseguiu para propor que a totalidade da
matemática se reduz não à sensação, mas à lógica. A matemática, diz Russel,
não é outra coisa senão uma forma de atalho para fazer lógica.[98] Assim, a
hipótese entitária que Russell defende é que os numerais representam classes
lógicas, em vez das entidades-números eternas de Pitágoras e Platão, ou das
percepções sensoriais de Mill.
Assim, a hipótese entitária de Russell também pressupõe uma visão
panorâmica filosófica sobre como todos os aspectos se relacionam. De acordo
com sua teoria, o que é estudado pela matemática se reduz ao aspecto lógico,
de modo que a totalidade da matemática ou é idêntica com, ou é derivada da,
lógica. Não surpreende, portanto, quando ele diz sobre o status da lógica de
forma geral:
Filósofos têm geralmente defendido que as leis da lógica, que estão na
base da matemática, são leis do pensamento, leis que regulam a operação
de nossas mentes. Por essa opinião, a verdadeira dignidade da razão é
amplamente rebaixada: ela cessa de ser uma investigação sobre o próprio
coração e a essência imutável de todas as coisas atuais e possíveis,
tornando-se, em vez disso, uma inquirição sobre algo mais ou menos
humano e sujeito às nossas limitações... Mas a matemática [realmente]
nos leva do que é humano até a região da necessidade absoluta [lógica],
à qual não apenas o mundo atual, mas qualquer mundo possível, deve
conformar-se.[99]

Claramente, então, a teoria entitária de Russell a respeito do que os símbolos


matemáticos representam também pressupõe uma visão sobre a natureza da
realidade, uma visão sobre como todos os aspectos se interrelacionam. Em
sua teoria o aspecto lógico ― pelo menos no que diz respeito às suas leis ―
desfruta de uma independência em relação aos outros, os quais, por sua vez,
não têm em relação ao lógico. As leis da lógica são válidas para toda a
realidade, atual ou possível. Uma vez mais deveríamos notar que, desde o
ponto de vista de nossa experiência pré-teórica, o lógico é apenas um dos
muitos aspectos. Mas uma vez tendo-o abstraído, Russell o considera como
mais do que meramente um aspecto de nossa experiência. Ao invés disso,
como ele disse, ele é o próprio “coração e essência imutável de todas as
coisas”. Assim, a perspectiva filosófica de Russell foi a de que a natureza
última da realidade é (pelo menos parcialmente) lógica, de modo que os
aspectos penúltimos das coisas dependem do lógico.

6.5 A teoria de Dewey


Finalmente, em contraste às teorias acima, John Dewey oferece ainda outra
resposta à nossa questão. Em resposta à pergunta sobre o que os símbolos
matemáticos representam, Dewey diz: “Nada”. Ao sustentar essa posição, ele
também afirma que a fórmula 1 + 1 = 2 não é verdadeira. Ou, mais
precisamente, ele afirma que ela nem é verdadeira, nem falsa.
De acordo com Dewey, humanos devem ser entendidos como seres
essencialmente biológicos lutando pela sobrevivência em certo ambiente.
Todos os seres vivos fazem o mesmo, é claro, mas os humanos lidam com
seu ambiente tentando alterá-lo para que esse se adéque a si mesmo, ao invés
de se ajustar a ele. Eles conseguem realizar isso em razão terem sido dotados
pela evolução com uma inteligência superior, e a forma que eles utilizam essa
inteligência se dá na produção de ferramentas ou instrumentos. Essa ideia de
instrumentos é muito mais ampla no pensamento de Dewey do que o que
normalmente pensamos acerca deles. Para Dewey, todos os produtos culturais
humanos são instrumentos, mesmo coisas tais como valores e instituições. Da
mesma forma, uma ideia, uma língua, uma teoria, ou um conceito também é
uma ferramenta.
Nessa visão, portanto, as próprias questões que outras teorias têm
tentado responder foram colocadas erroneamente. Os símbolos da matemática
representam algo tanto quanto um martelo, ou uma pá, representam outra
coisa. Como todas as outras ferramentas, os símbolos da matemática
meramente executam algumas tarefas. Assim, da mesma forma que seria
inapropriado perguntar o que um martelo representa, mas apropriado
perguntar o que ele pode fazer, dá-se o mesmo em relação à matemática.
Números e fórmulas não representam algo além, mas simplesmente realizam
certas tarefas. O mesmo ponto é verdadeiro para a questão sobre a verdade da
matemática. Assim como é inapropriado perguntar sobre se um martelo é
verdadeiro ou falso, é igualmente inapropriado perguntar isso acerca de
ferramentas matemáticas. 1 + l = 2, portanto, não é nem verdadeiro nem
falso, diz Dewey, embora execute bem algumas tarefas. É ao sucesso da
matemática em realizar algumas tarefas que nós (de forma equivocada) nos
referimos quando dizemos que uma fórmula matemática é verdadeira.
Dewey coloca isso desta forma:
Se ideias, significados, concepções, noções, teorias, sistemas são
instrumentais para uma reorganização ativa do... ambiente... se eles são
bem-sucedidos em seu tarefa, são confiáveis, razoáveis, bons,
verdadeiros... Aquilo que nos orienta verdadeiramente é verdade ― a
capacidade demonstrada para tal orientação é precisamente o que se quer
dizer por verdade.[100]

Em outras palavras, dizer que algo é verdade é dizer nada mais do que algo
funciona. E Dewey diz isso de forma bastante literal. Note que ele não diz
que se algo funciona isto é um teste para sabermos se algo é verdadeiro, mas,
pelo contrário, ele diz que isso é o que se quer dizer por verdadeiro.
Dewey reconhece, de fato, que a matemática é uma ferramenta
altamente refinada e enormemente útil, e que ela supera muitas outras
ferramentas conceituais em precisão e utilidade. Mas ele argumenta que ela
alcançou esse estágio de desenvolvimento por meio de uma longa história de
tentativa e erro, a qual grande parte dos matemáticos no momento ignora. Ele
diz que, visto que pareça agora tão segura e certa, a matemática recebe o
status dado a ela por Platão e Leibniz: um corpo de verdades autônomas
independente do resto da realidade. Mas isso, diz Dewey, é um erro:
Uma ciência dedutiva tal como a matemática representa o
aperfeiçoamento do método. Que um método para aqueles interessados
devesse se apresentar como uma descrição de fim em si mesmo não é
mais surpreendente do que a necessidade de haver uma firma diferente
para produzir cada tipo de ferramenta.[101]

E, novamente,
A matemática é geralmente citada como um exemplo do pensamento
puramente normativo dependente de [regras absolutas] e materiais [de
outro mundo]... Os lógicos matemáticos atuais podem apresentar o
caráter estrito da matemática como se ela tivesse surgido do cérebro de
um Zeus cuja anatomia fosse aquela da pura lógica. Mas [a matemática
tem] uma história na qual a matéria e os métodos foram constantemente
selecionados e trabalhados sobre a base do sucesso e da falha
[experimental].[102]

Resumindo: na teoria de Dewey, a própria matemática não é nem verdadeira


nem falsa no sentido tradicional, mas apenas funciona. Seus símbolos e
fórmulas não representam realidades eternas invisíveis, percepções
sensoriais, ou classes lógicas, porque eles não representam absolutamente
nada. Seu significado é seu uso. Eles nos orientam na “reorganização de
nosso ambiente”. Onde quer que o faça com êxito, chamamo-la verdade, mas
isso é uma forma enganosa de dizer que somos exitosos quando orientados
por ela.
Aplicando essa teoria, geralmente denominada instrumentalismo, a 1 +
1 = 2 é outro caso de uma visão da matemática sendo orientada e controlada
por uma visão sobre a natureza da totalidade da realidade. Pois claramente o
instrumentalismo de Dewey declara uma visão sobre como todos os aspectos
da experiência se relacionam. Desde o início, sua visão da matemática e de
todas as outras atividades conceituais humanas é governada por uma
perspectiva biológica. Para ele, os humanos devem ser vistos como
organismos vivos lutando pela sobrevivência. Essa perspectiva o conduz à
adoção de uma interpretação instrumentalista da verdade e,
consequentemente, de uma visão instrumentalista da matemática. Para ele, as
assim chamadas verdades da matemática, como todas as outras “verdades,
são todas ferramentas de sobrevivência biológica. Portanto, se as verdades da
matemática são todas elas ferramentas de nossa própria fabricação, não há,
assim, razão para crermos que elas demonstrem o coração e a essência da
realidade, ou que nos ofereçam verdade imutável. Pelo contrário, elas são
todas produtos da invenção humana, que dependem, em última instância, de
nossa evolução. Isso implica que, caso nossos cérebros tivessem evoluído de
modo diferente, talvez tivéssemos agora uma matemática tão distinta que,
com nossos cérebros atuais, não conseguiríamos sequer imaginá-la. No
entanto, essa matemática pareceria tão certa a nós sob aquelas circunstâncias
quanto a presente matemática o faz com os cérebros que agora possuímos.[103]
Dessa forma, confere-se ao aspecto biológico da realidade um status
fundamental em relação aos demais aspectos da realidade.
As perspectivas mencionadas acima não são as únicas a serem adotadas
na história da matemática. Além do mundo dos números de Pitágoras, Platão
e Leibniz, o logicismo de Russell, o empirismo de Mill, e o instrumentalismo
de Dewey, existem ainda outras “escolas de pensamento” concorrentes.
Existe, por exemplo, formalistas tais como David Hilbert e intuicionistas tais
como Henri Poincaré, Hermann Weyl e Luitzen Brouwer.

6.6 Qual diferença tais teorias fazem?


Essas distinções entre teorias sobre a ciência da matemática têm criado
diferenças consideráveis dentro do campo, resultando em amplas
discordâncias sobre as práticas e procedimentos para executá-la. Tome, por
exemplo, a resistência do uso de números irracionais pelos pitagóricos. Os
pitagóricos, como Platão e Leibniz depois deles, criam que numerais
representam um domínio de entidades matemáticas invisíveis sobre o qual o
mundo visível depende. Uma vez que essas entidades matemáticas são
consideradas como as unidades últimas, ou os componentes essenciais do
mundo, eles são concebidos como indivisíveis. Por causa dessa convicção, os
pitagóricos tinham horror de divisões, frações e números irracionais. É por
essa razão que eles traduziam as frações em coeficientes ou segmentos de
linha, e insistiam que não poderiam existir genuinamente números
irracionais. A descoberta de que existem de fato coeficientes que não podem
ser expressos como frações ― números que são decimais intermináveis como
π ― é atribuída a Hipaso de Metaponto no século V a.C. A história conta
que, no momento que meditava em sua descoberta, ele estava no mar em um
barco cheio de pitagóricos que ficaram tão indignados com ela ao ponto de o
lançarem ao mar![104]
Semelhante à resistência pitagórica aos números irracionais foi a
resistência de Leibniz aos números negativos. Embora ele os permitisse em
equações sobre a base de que sua forma era apropriada, ele o fazia com a
reserva de que eles deveriam ser considerados como quantidades puramente
imaginárias.[105] Em outras palavras, ele insistia que apenas os números
positivos são reais, ao passo que os números negativos são fictícios. Ele foi
forçado a essa interpretação (implausível) porque cria que a matemática era o
reflexo no pensamento de um domínio eterno real, invisível, de números.
Com base nessa perspectiva, cada numeral que utilizamos deveria representar
uma entidade real hipotética, uma coleção delas, ou as relações entre elas.
Sendo esse o caso, como poderia um número ser negativo? Como ele poderia
representar nada? Dessa forma, essa visão apresenta a consequência
implausível de que cálculos negativos não podem ser verdadeiros, pois eles
falhariam em afirmar algo que de fato ocorra!
Esses exemplos diferentes de se fazer matemática em razão de uma
visão panorâmica da realidade pode parecer pouco mais do que curiosidade
histórica, então consideremos outro caso que ocorre em nosso dias ― as
diferenças na execução da matemática causadas pela perspectiva da teoria
intuicionista contemporânea.
Os intuicionistas, como os defensores da teoria do mundo dos números,
mantêm uma perspectiva panorâmica que enxerga o aspecto matemático
como completamente independente dos demais aspectos. Mas enquanto
Pitágoras, Platão e Leibniz englobaram a lógica com a matemática, os
intuicionistas consideram a matemática como a base da lógica de tal modo
que deixam a matemática parcialmente independente das regras lógicas. Eles
insistem que as verdades matemáticas intuídas são mais básicas e mais
confiáveis do que aquelas de qualquer outro aspecto, incluindo os axiomas
lógicos. Assim, para os intuicionistas, se os paradoxos lógicos emergem em
relação a um sistema matemático, isso é um problema para a lógica, mas não
necessita preocupar o matemático. Como Morris Kline descreve a posição do
grande intuicionista Luitzen Brouwer,

A lógica pertence à linguagem. Ela oferece um sistema de regras que


permite a dedução de conexões verbais posteriores que têm como
intenção comunicar verdades. No entanto... a lógica não é um
instrumento confiável para revelar verdades e não pode deduzir verdades
que não são passíveis de serem obtidas de alguma outra forma... Os
avanços mais importantes na matemática não são obtidos pelo
aperfeiçoamento da forma lógica, mas pela modificação da própria teoria
básica. A lógica se baseia na matemática, não a matemática na lógica. A
lógica é bem menos certa do que nossos conceitos intuitivos, e a
matemática não necessita das garantias da lógica... Paradoxos são um
defeito da lógica, mas não da verdadeira matemática. Assim, a
consistência é um duende. Ela não faz sentido.[106]

E o matemático intuicionista Hermann Weyl coloca o ponto dessa forma:

A lógica clássica foi abstraída da lógica de conjuntos finitos e de seus


subconjuntos... Esquecido dessa origem limitada confundiu-se
posteriormente a lógica por algo acima e anterior à matemática, e
finalmente aplicaram-lha, sem justificativas, à matemática de conjuntos
infinitos. Essa é a queda e o pecado original da teoria dos conjuntos pelo
qual ela é punida de forma justa pelas antinomias.[107]

Uma das consequências práticas dessa visão é a rejeição da assim chamada


“nova matemática”, introduzida no currículo escolar público dos Estados
Unidos na década de 1960 (e que presentemente foi interrompida). A nova
matemática era baseada em uma visão semelhante à de Russel e procedia
primeiramente pelo ensino de regras lógicas tais como comutação, associação
e distribuição, e então pela aplicação dessas aos conjuntos, os quais eram
considerados como sendo o que a aritmética de fato é. Na citação acima,
Weyl adverte que a teoria dos conjuntos acarreta em paradoxos lógicos e é,
portanto, inadequada como a base para a aritmética.
Outra importante consequência da visão intuicionista é sua rejeição de
qualquer prova que repouse sobre a lei lógica do terceiro excluído. (Essa é a
lei que diz que um enunciado tem de ser ou verdadeiro ou falso, não podendo
ser ambos; não existe uma alternativa terceira, ou “média”, além do ser
verdadeiro ou falso.) Como resultado, eles rejeitam qualquer prova na forma
do reductio ad absurdum. Eles também proíbem qualquer prova que se baseie
na regra lógica de que se uma das duas posições tem de ser verdadeira, e uma
delas pode ser demonstrada como falsa, então a outra deve ser verdadeira.
Ambas consequências conduzem às diferenças agudas naquilo que os
intuicionistas irão aceitar como provas apropriadas em contrapartida àquilo
que outros matemáticos, sustentando outras posições, aceitarão.
Apesar de aceitar uma perspectiva similar àquela da teoria do mundo
dos números em razão de manterem uma independência completa do aspecto
matemático, os intuicionistas, no entanto, diferem em relação à hipótese de
que números são objetos reais. Em vez disso, eles insistem que a matemática
é exclusivamente mental, e por essa razão tudo o que acontece na matemática
deve corresponder completamente àquilo que podemos, na verdade,
conceber. Assim, muitos deles rejeitam como sem sentido tanto os números
complexos quanto os números irracionais que tanto haviam contrariado os
pitagóricos, embora fossem aceitos por platônicos, formalistas e lógicos.
Pela mesma razão, intuicionistas também negam que haja qualquer
infinitude real. Como Henry Poincaré coloca:
A infinitude real não existe. O que denominamos infinitude é apenas a
possibilidade infindável de criar novos objetos não importando quantos
objetos já existem.[108]

Essa negação da existência de conjuntos infinitos reais força os intuicionistas


a ainda outra negação. Eles rejeitam um ramo inteiro da matemática, a teoria
de números transfinitos desenvolvida por Georg Cantor. Assim, apesar do
fato de grande parte dos matemáticos considerarem a obra de Cantor como o
maior avanço na matemática nos últimos cem anos, os intuicionistas insistem
que essa não chega a eleva-se à dignidade de ser falsa, mas é completamente
sem sentido!
Esses são apenas alguns exemplos de como as diferenças em teorias
filosóficas sobre as relações entre os aspectos afetam o conceito de o que um
número é, e assim a tarefa matemática. É em razão de tais discordâncias e
suas severas e importantes consequências que Kline diz:

A situação atual da matemática é a de que não existe uma, mas várias


matemáticas, e que por inúmeras razões cada uma falha em satisfazer os
membros das escolas opostas. É agora aparente que o conceito de um
corpo infalível, universalmente aceito, de raciocínio da majestosa
matemática dos anos 1800 e orgulho do homem ― é uma grande
ilusão... As discordâncias sobre os fundamentos da ciência “mais
segura” são tanto surpreendentes quanto, colocando de forma suave,
desconcertantes. O estado presente da matemática é um escárnio da
verdade e perfeição lógicas da matemática até então profundamente
estabelecidas e de ampla reputação.[109]

Naturalmente, é possível que pessoas que trabalhem na matemática nunca


sejam importunadas pelo tipo de assunto que temos discutido. Embora muitos
cientistas podem honestamente relatar que fazem seu trabalho sem
questionarem qual perspectiva é a correta, deveríamos nos lembrar ― uma
vez mais ― que uma perspectiva não necessita ser consciente para exercer
sua influência. O que é importante é se os procedimentos e técnicas da
matemática são de tal caráter que exijam que aqueles que os utilizam
pressuponham alguma perspectiva filosófica, e não que todos estejam
conscientes de estarem fazendo isso.
6.7 O papel da religião nessas teorias
No entanto, ainda que se tenha apresentado um argumento acerca do
envolvimento das perspectivas filosóficas na matemática, seria igualmente
claro que todas elas, por sua vez, pressupõem crenças religiosas? Já agora
deveria estar claro que sim. A verdade é que alguma crença na divindade per
se está no coração de cada uma dessas perspectivas. Teorias como a de Platão
propõem um domínio separado, independente, de entidades matemáticas.
Nessa perspectiva, nossa compreensão das verdades matemáticas é o
resultado da dependência de nosso mundo de nossa experiência em relação às
entidades daquele domínio matemático de existência independente. É por
essa razão que as verdades que obtemos sobre esse domínio são supostamente
livres de influência por parte do mundo que experimentamos, como Leibniz
afirmou. Mas qualquer que considere esse domínio hipotético como tendo
existência independente já concordou com seu status divino. Lembre-se, não
é porque o domínio hipotético é povoado por entidades supostamente eternas,
imutáveis, ou logicamente necessárias, que elas são divinas. Essas
características em si mesmas não seriam suficientes. Mesmo se eterna, uma
entidade ainda poderia ser eternamente dependente de algo mais. Da mesma
forma, verdades matemáticas poderiam expressar conexões necessárias entre
quantidades e ainda assim depender, para sua existência, de algo mais. É a
existência independente das entidades e leis hipotéticas em relação a todas as
demais realidades ― a visão de que as verdades matemáticas seriam as
mesmas ainda quando nada mais existisse ― que é o mesmo que considerá-
las como divinas.[110]
Ademais, tal visão não somente é uma crença na divindade per se, mas
é uma que se conforma perfeitamente ao arranjo de dependência pagão. Pois
embora seja verdade que o domínio das entidades matemáticas seja
considerado invisível, não físico, eterno e imutável, ele ainda é visto como
contínuo ao restante do mundo que observamos em dois aspectos. O primeiro
é que, não obstante seja considerado como mais do que apenas um aspecto de
nosso mundo da experiência diária, supõe-se ainda que ele seja algo
verdadeiro desse mundo. Ou seja, o mundo que experimentamos contém
coisas que demonstram quantidade. O segundo é que tanto o domínio
hipotético quanto o mundo observável se conformam às leis matemáticas. Na
verdade, as leis presumidamente autoexistentes do mundo matemático
supostamente fazem com que o mundo experimentado seja ou possível, ou
tanto possível quanto atual. Para alguém com duas divindades per se, como
Platão, as leis do domínio hipotético tornam o cosmos possível por meio do
governo sobre a matéria (a qual também é divina per se). Para Pitágoras, por
outro lado, o mundo é inteiramente feito de números e relações entre eles.
Assim, para ele, os números e suas leis tornam o cosmos não apenas possível,
mas atual.
Para enxergarmos seu caráter pagão mais claramente, considere um
contraste entre a ideia dessa teoria sobre a relação entre o mundo observável
e o domínio hipotético, e a ideia teísta sobre a relação entre Deus e o
universo. Na visão platônica, as leis governando o domínio hipotético são
também a ordem do mundo observável. Na verdade, esse domínio invisível
(divino) é o centro mesmo do ser do mundo que se nos aparece.
Consequentemente, trata-se de uma posição claramente pagã, uma vez que o
divino é identificado com um aspecto do mundo que experimentamos. De
acordo com a ideia bíblica, Deus traz à existência (a partir do nada) tudo o
que é verdadeiro a respeito do universo, incluindo todos os tipos de ordens
que o governam. É essa ordem que tentamos capturar em enunciados-de-lei.
Assim, Deus fez com que existam coisas em quantidade, e que as relações
entre as quantidades se conformem precisamente às leis às quais se
conformam. (O fato de que é dito que Deus é “um”, ou “três em um” é a
consequência do modo em que ele livremente adotou propriedades criadas
para revelar-se aos seres humanos. Esse ponto também será explicado mais
plenamente no capítulo 10).
Tendo assinalado o caráter pagão da teoria do mundo dos números,
devo ao menos mencionar aqui que existe uma contínua tradição de
pensadores teístas que acreditam que essa teoria pode ser adaptada de modo a
se tornar compatível com a crença em Deus. Essa estratégia foi explicada no
capítulo 5, em que abordei a tradição que denomino “escolástica” e sua
proposta para a des-paganização das teorias que assumem um ou outro
aspecto do mundo como sendo aquilo do qual todo o resto da criação
depende. Expliquei ali que essa tradição concorda comigo de que considerar
as entidades matemáticas (ou qualquer outro tipo) como autoexistentes seria
inaceitável desde um ponto de vista teísta. Mas ela complementa que isso se
daria apenas se a teoria terminasse ali. O caráter pagão de tal proposta pode
ser neutralizado, é dito, enquanto se retém sua ideia básica. Isso pode ser
feito considerando o domínio matemático como, por sua vez, dependente de
Deus. A proposta mais popular nessa direção é dizer que as verdades
matemáticas são parte do próprio Deus, ou são ideias na mente de Deus.
Dessa forma, considera-se que a teoria pode explicar a necessidade e
eternidade do domínio hipotético sem admiti-lo como algo tanto
autoexistente quanto distinto de Deus. No capítulo 5 iniciei uma explicação
sobre por que isso é questionável em bases tanto religiosas quanto filosóficas.
Vimos ali que simplesmente inserir Deus em uma teoria não modifica o
conteúdo de seu poder explanatório, o qual é tratado como sendo
religiosamente neutro. Assim, não vou repetir tudo aqui. Irei, no entanto,
retornar a essa objeção e desenvolvê-la em mais detalhes no capítulo 10.
Crenças sobre a divindade exercem um papel crucial não apenas na
teoria do mundo dos números, mas também na teoria de Russell. A principal
diferença é que, para Russell, os princípios que governam a realidade por
inteiro, em razão de serem divinos, são aqueles da lógica ao invés da
matemática. As leis lógicas, diz ele, não são apenas aquelas às quais a
realidade por inteiro ― concreta ou possível ― devem se conformar, mas
elas são “o coração e a essência imutável” de todas as coisas. Uma vez mais,
essa posição se equivale a abstrair um aspecto de nossa experiência e
conceder-lhe a prioridade de possuir status divino. Assim, a teoria de Russell
também se baseia sobre uma pressuposição religiosa pagã.
Alguns pensadores escolásticos também tentaram reconciliar essa teoria
logicista dos números com a crença em Deus, e o fizeram, grosso modo, da
mesma forma que outros fizeram com a teoria do mundo dos números. Eles
propõem que leis lógicas, conjuntos, etc., sejam considerados como parte do
ser de Deus, ou como ideias na mente de Deus para preservar sua eternidade
e necessidade ao mesmo tempo em que encontram um sentido no qual
possam ser consideradas como dependentes de Deus. No capítulo 10 veremos
por que essa visão não é mais bem-sucedida em relação às leis e classes
lógicas do que o faz para leis e entidades matemáticas.
A teoria de Mill talvez seja ainda mais obviamente pagã. Na visão de
Mill, as verdades e leis matemáticas são todas generalizações sobre nossas
sensações, e possuímos sensações porque todos os objetos são constituídos de
qualidades puramente sensoriais; eles são pacotes sensoriais. Para explicar
por que todos nós observamos os mesmos pacotes sensoriais, Mill postulou
para cada um deles a existência de uma misteriosa entidade que denominou a
“possibilidade permanente da sensação”. Quando Mill foi questionado sobre
por que existem tais possibilidades permanentes e quais seriam suas causas,
ele replicou que jamais poderemos descobrir. Desse modo, até onde
possamos saber, elas simplesmente estão lá, de modo que sua teoria atribui a
elas o status divino por pré-definição (como explicamos no capítulo 2).[111]
Assim, a teoria de Mill também pressupõe uma crença religiosa pagã.
O mesmo é verdadeiro em relação à teoria de Dewey, embora ele seja
muito mais vago sobre a natureza dos aspectos físico-biológicos que assume
como sendo a natureza básica da realidade. Dewey não diz especificamente
que aqueles aspectos possuam existência independente, até onde eu saiba.
Mas por toda sua teorização ele considera todos os outros aspectos como
dependentes do físico-biológico e nunca os considera, por sua vez, como
dependentes de outra coisa. Para complicar ainda mais esse ponto, Dewey às
vezes nega que algo seja em última instância independente (ele denominava a
isso “absoluto”). Mas ele também é inflexível ao negar que exista algo
externo ao universo do qual este dependa. Assim, somos levados a dizer, no
tocante à nossa definição de divindade, que ele é simplesmente inconsistente
nesse ponto: é impossível que não haja nada além do universo e que o
universo não seja divino. Pois se não há nada além do universo, então não
existe nada em relação ao qual esse dependa e esse, na verdade, teria
autoexistência “absoluta”. Assim, parece justo dizer que a teoria de Dewey é
outro caso de uma crença religiosa pagã controlando como uma teoria sobre a
natureza da matemática é desenvolvida.
Esse mesmo estado de coisas ― a crença religiosa controlando uma
visão da natureza da realidade que, por sua vez, controla a teoria matemática
― pode ser encontrado também na lógica. Inúmeros pensadores na filosofia
concordam com a visão de Russell, e consideram as leis da lógica como (pelo
menos em partes) a realidade última. Assim, eles enxergam a lógica moderna
como um método de resolução de problemas baseado em verdades que
possuem realidade absoluta e neutralidade religiosa. Mas a questão relativa à
explicação sobre a conexão entre todos os aspectos não pode ser excluída da
lógica, assim como não pode ser excluída da matemática. Assim, as leis
lógicas também têm sido entendidas não apenas como absolutas, mas como
um produto da estrutura da linguagem, como regras pelas quais não podemos
deixar de pensar em razão do modo que nossos cérebros evoluíram, como
produtos de condicionamento histórico, e assim por diante. Mesmo alguns
dos sistemas simbólicos de lógica mais altamente formalizados são bastante
incompatíveis uns com os outros em virtude dessas diferenças e outras
similares.[112] Em cada caso, essas visões ou assumem verdades lógicas como
sendo autoexistentes ou como sendo geradas por algum outro aspecto, o qual
é considerado como autoexistente. Elas estão todas, portanto, sob o controle
religioso.
Pode estar mais claro no momento como as variedades de crenças
religiosas pagãs demonstram o caráter inquieto e errante que mencionei
anteriormente. Desde a perspectiva da religião bíblica, o paganismo escava o
universo dependente, relativo, em busca daquilo que é autoexistente e
absoluto. E cada afirmação quanto a ter encontrado o(s) aspecto(s) divino(s)
da criação evoca uma contra-afirmação de divindade em relação a outros
aspectos que são tão plausíveis (e, portanto, tão implausíveis quanto) quanto
todos os demais.
Mas como explicaríamos a diferença para uma teoria sobre a natureza
dos números se pressupuséssemos a crença em Deus ao invés de uma crença
pagã na divindade de algum aspecto da criação? Responder adequadamente a
isso exigiria que primeiro elaborássemos e defendêssemos uma teoria da
realidade que pressupõe a crença em Deus, e então demonstrássemos as
consequências dessa visão panorâmica da realidade (criada) para os conceitos
das entidades propostas na matemática e em outras teorias científicas. Um
esboço de tal teoria da realidade será apresentada nos capítulos 11, 12 e 13.
De momento posso apenas pedir que relembrem a indicação preliminar
apresentada no capítulo 4. Ali vimos por que a crença em um criador
transcendente deveria levar-nos à visão de que nenhum aspecto da criação é
autoexistente, e nem que algum gere qualquer outro, uma vez que todos são
dependentes somente de Deus. Por essa razão, deveríamos considerar todos
os aspectos que experimentamos como igualmente reais, verdadeiro para
todas as coisas criadas, e irredutíveis um ao outro. Isso exige que as naturezas
das entidades propostas nas ciências nunca deveriam ser limitadas a qualquer
aspecto, ou a uma soma deles; nada possui uma natureza que seja ou
basicamente, ou exclusivamente, um ou dois de seus aspectos conforme as
teorias com fundamento pagão sempre propuseram. Todos esses pontos serão
explicados de forma mais plena adiante. De momento podemos apenas notar
brevemente algumas das formas mais óbvias nas quais tal visão da realidade
daria orientações a uma teoria que explicasse a natureza daquilo que 1 + 1 = 2
representa.
Deveria estar claro que, nessa visão da matemática, numerais
representam as propriedades quantitativas das coisas. Abstraímos esse
aspecto de nossa experiência do mundo em nosso entorno e simbolizamos as
quantidades discretas pelo numeral “1”. Então simbolizamos quantidades
adicionais por uma série de numerais nos quais cada símbolo sucessivo ―
2,3,4, etc. ― representa um aumento em relação a seu predecessor pela soma
do primeiro. Podemos, em abstração adicional, descobrir relações e leis que
se dão entre as quantidades.[113] Mas as abstrações que alcançamos, números,
conjuntos, etc., nunca serão vistas como realidades independentemente
existentes. Elas nunca são mais ― ou menos ― do que propriedades,
relações, funções, etc., do aspecto quantitativo verdadeiro das coisas e
eventos da experiência ordinária. Assim, elas não são nem pertencentes ao
mundo autoexistente dos números de Pitágoras, Platão, ou Leibniz, nem de
ficções absolutas de nossa própria invenção, como Dewey defenderia. Nem
deveriam elas ser entendidas como derradeiramente dependentes de algum
outro aspecto da forma que Mill, Russell ou Dewey defendiam. Isso se dá
porque, conforme veremos no capítulo 10, não se pode propor nenhum
aspecto de nossa experiência como se possuísse existência independente sem
que essa proposição caia em incoerências autoperformativas. Isso significa
que nenhum pode ser justificado como sendo independente do restante, de
modo a ser aquilo do qual todo o resto depende.
CAPÍTULO 7. TEORIAS NA FÍSICA

Depois da matemática, a ciência mais comumente considera como


independente de crença religiosa é a física. Não é difícil demonstrar, no
entanto, que na física, assim como na matemática, existem teorias
concorrentes cujos conflitos podem ser remontados a diferentes perspectivas
sobre a natureza da realidade, que, por sua vez, pressupõe diferentes crenças
sobre o que é divino.

7.1 Evitando alguns mal-entendidos


Antes de prosseguirmos com a tarefa, quero pontuar alguns possíveis mal-
entendidos em relação ao termo “físico”. Na linguagem cotidiana geralmente
falamos de algo físico para dar a entender que é algo real ao invés de
imaginário. Esse não é o significado do termo na física, e não é como o
utilizaremos aqui. Neste capítulo estaremos interessados no aspecto físico
revelado pelas coisas e eventos de nossa experiência ordinária, pré-científica.
Assim, mantendo nossa definição anterior de um aspecto, utilizarei o termo
“físico” para referir-me a um tipo específico de propriedades e leis, o tipo que
delineia o campo da ciência da física em todos os seus ramos. Incluídos nesse
tipo estão propriedades tais como massa, peso, densidade, gravidade
específica, carga, etc. Dentre as leis que apresentam propriedades desse tipo
se incluem a lei de Pascal, a lei de Boyle, a gravitação universal, as leis da
dinâmica, assim como a famosa fórmula E = mc2de Einstein. Como no caso
dos adjetivos qualificadores de todos os outros aspectos, não é possível
oferecer uma definição precisa de “físico”. Mas, de acordo com a lista
(provisória) de aspectos apresentada anteriormente, podemos circunscrever o
físico como aquele tipo de propriedades e leis que têm pré-requisitos
temporais, numéricos e espaciais, mas não seriam aquelas ativamente
possuídas por um ser bioticamente vivo apenas enquanto permanecesse com
vida, as quais, portanto, distinguem um ser vivo de um ser incapaz de vida.
[114]

Outra forma pela qual o termo “físico” pode ser mal entendido é
quando ele ocorre na expressão “objetos físicos”. Isso não deveria ser
entendido como se o objeto designado fosse apenas físico. Pois enquanto
existem teorias que propõem que existam objetos puramente físicos, nunca
experienciamos as coisas dessa forma. Assim, na linguagem cotidiana a
expressão nunca significa isso. Por exemplo, ao mesmo tempo em que uma
árvore é certamente física, experienciamo-la como possuindo propriedades de
muitos outros tipos aspectuais, e como estando sujeita a muitos outros tipos
de leis além do que apenas físicas. Cada árvore demonstra qualidades e
demonstra conformidade às leis que experienciamos como a quantitativa,
espacial, biológica, sensorial, lógica, estética, e assim por diante. Assim
como em outros objetos experienciados pré-cientificamente, experienciamos
uma árvore como sendo uma coisa multiaspectual. É verdade, obviamente,
que trabalhar nas ciências físicas exige que o aspecto físico das coisas seja
abstraído e focalizado, permitindo que os demais aspectos (não físicos) das
coisas saiam do centro da atenção. Mas esse fato sobre o procedimento
científico não significa que algo tenha apenas aquele aspecto. Do ponto de
vista da descrição de nossa experiência imediata, é simplesmente falso que
existam coisas experienciadas como somente físicas, assim como é falso
supor que são coisas puramente físicas que são abordadas pela física. Em vez
disso, a física, assim como as outras ciências, se inicia com os objetos multi-
aspectuais de nossa experiência ordinária e abstrai um aspecto específico
deles como seu campo especial de investigação. Em suma, a física não diz
respeito a um conjunto de coisas puramente físicas, mas ao aspecto físico de
todas as coisas.
Demorei-me nesse ponto porque, conforme mencionado anteriormente,
muitos pensadores proeminentes acatam a visão de que a física lidaria, na
verdade, com objetos exclusivamente físicos. Na medida em que revisamos
suas opiniões, portanto, é necessário ter em mente que considerar o domínio
da física dessa forma é, em si, o resultado de uma visão perspectival sobre a
natureza da realidade, uma visão que necessita ser defendida por eles com a
finalidade de a justificarem.
Apresentados esses esclarecimentos, observaremos agora algumas
importantes teorias da física para vermos se as discordâncias entre elas
realmente emergem porque os físicos pressupõem distintas visões sobre a
natureza essencial da realidade, que, por sua vez, pressupõem distintas
crenças sobre a divindade. Para assegurarmo-nos de que isso é assim mesmo,
precisamos apenas examinar a teoria mais amplamente aceita em toda a
física, a teoria atômica. Grosso modo, a teoria atômica sustenta que os
objetos de nossa experiência do dia a dia são compostos de partes (átomos e
partículas subatômicas) tão pequenas que não podem ser diretamente
observadas. Mas aqui, também, cabe uma observação: por favor tenha em
mente que a regulação religiosa de uma teoria não significa que inventá-la
depende da adoção de uma crença religiosa particular. Não estou sugerindo
que alguém teria de ser um materialista, ou um racionalista, ou o que quer
que seja para que pensar na hipótese de que “existem átomos”. Antes, afirmei
que a regulação religiosa consiste dos modos em que as crenças sobre a
divindade controlam como a natureza dos postulados da teoria são
interpretados. O mesmo ocorre com a teoria atômica. Temos de saber a quais
tipos de coisas estamos nos referindo; temos de especificar a natureza dos
átomos, etc., para que saibamos como eles supostamente explicam aquelas
características do mundo em razão do que eles foram inventados para
explicar. Mas o fato é que físicos discordam sobre a natureza essencial dos
átomos e partículas, e, assim, eles também diferem quanto a como eles
explicam os dados que supostamente explicam. Para ilustrar tais diferenças
precisamos considerar apenas as três interpretações mais recentes da teoria
atômica, aquelas que dominaram o século XX.

7.2 A teoria de Mach


A primeira interpretação da teoria atômica que discutiremos é a de Ernst
Mach. Muitas pessoas ouviram falar do nome de Mach sem percebê-lo, pois,
a fim de honrar seu nome, seus colegas designaram a velocidade do som
como “Mach 1”, e o dobro da velocidade do som como “Mach 2”, e assim
por diante. Outro fato que grande parte das pessoas não se dá conta acerca de
Mach é que ele não acreditava na existência dos átomos! E Mach não estava
só ao adotar tal perspectiva. Durante seu tempo de vida um grande número de
distintos cientistas e filósofos veio a concordar com ele, de modo que ele
tornou-se o fundador de um novo movimento na ciência enormemente
influente ao longo dos dois primeiros terços do século XX. Mas, apesar da
rejeição de Mach em relação à realidade dos átomos e de outras partículas,
ele ainda insistia que a teoria atômica não deveria ser descartada; ela é
demasiada bem-sucedida para isso. Em vez disso, ele mantinha que ela devia
ser aceita da mesma forma que Dewey falava sobre os números e os
processos da matemática ― como uma forma útil de explicar o que
experimentamos, mesmo que suas afirmações não fossem verdadeiras, já que
as entidades às quais se referem não eram reais. Assim, Mach denominou os
átomos e as partículas de “funções úteis”.
Isso resultou do fato de que Mach e seus discípulos adotaram uma
hipótese perspectival sobre a natureza da realidade que enxerga todos os
aspectos de nossa experiência como resumidos aos aspecto sensorial. Você
deve se lembrar que, sobre a mesma base, Mill assumiu a posição de que as
fórmulas da matemática não são nada além de generalizações sobre as
sensações. Mach aplicou essa visão da realidade à ciência da física em seus
pormenores. O resultado foi que ele também rejeitou a existência de algo
além das percepções e sentimentos sensoriais.
Para entendermos suas razões para essa visão e suas consequências de
longo alcance para a física, pode ser útil preencher um pouco mais o pano de
fundo de sua perspectiva filosófica. A teoria da realidade que sustenta que
todas as coisas têm uma natureza exclusivamente sensorial tem suas raízes no
início do século XVII, quando surgiu a crença de que a mente humana opera
em grande medida como um olho ou uma câmera. De acordo com essa visão,
devemos distinguir a realidade que está fora das nossas mentes de sua cópia
que está dentro de nossas mentes, assim como o mundo das coisas fora de um
olho ou de uma câmera é distinto das imagens que aparecem na retina ou
filme. Desse modo, passou-se a pensar a mente como a retina ou filme sobre
o qual as sensações da visão, tato, olfato, audição e paladar imprimem
representações das coisas que são externas à mente.
No século XVIII, pensadores tais como George Berkeley e David
Hume demonstraram de forma convincente que, se essa imagem da mente
estivesse correta, então tudo o que podemos conhecer verdadeiramente são
somente as imagens sensoriais dentro de nossas mentes, de modo que se
torna impossível saber se elas de fato copiam algo fora da mente. Em outras
palavras, se sua mente é a câmera e tudo o que você conhece é o que está em
seu “filme”, você nunca poderia dizer se o mundo externo à sua mente é
realmente semelhante àquilo que está em seu filme, ou até mesmo estar certo
de que exista de fato um mundo real externo à sua câmera! Pois, vocês
sabem, o que está em seu filme pode ser uma demonstração de realidade
virtual gerada internamente!
Essa conclusão bizarra está muito próxima do que Berkeley, Hume,
Mill e Mach acabaram aceitando. Eles concluíram que até onde podemos
saber sobre nossa experiência, a realidade é feita de sensações. De acordo
com eles, quando observamos uma árvore em um campo, não deveríamos
supor que o que estamos vendo é físico, seja no sentido de que possui
propriedades distintivamente físicas, seja no sentido de que ela exista
externamente ao observador. O que estamos vendo é, na verdade, um pacote
de propriedades sensoriais compreendendo uma percepção que se registra em
nossa mente. Consequentemente, eles criam que tudo o que sempre podemos
conhecer sobre a natureza de uma árvore é que ela é uma coleção de todas as
sensações possíveis que poderíamos ter dela. A árvore (ou qualquer outro
objeto) é um arranjo de espectro de cores, sentimentos de toque, impressões
auditivas, gostos e cheiros. E, embora seja natural querer argumentar que
deve haver uma árvore real fora de nossas mentes causando nossas sensações
da árvore, eles pontuaram que não há sequer possibilidade de descobrir isso.
Foi na base dessa perspectiva sobre a natureza da realidade, a perspectiva que
atribuía realidade exclusiva ao aspecto sensorial, que Mach e muitos outros
físicos vieram a crer que não podemos conhecer se existe algo além do que
nossas próprias percepções. Na verdade, seu argumento parece tão
convincente que mesmo pensadores que discordaram de sua conclusão o
fizeram admitindo que, na melhor das hipóteses, é uma teoria (uma suposição
embasada) o reconhecimento de que existam realmente objetos externos a
nós!
Pontuei anteriormente que, do ponto de vista de nossa experiência
imediata, não existem boas razões para supormos que quaisquer objetos são
exclusivamente físicos, uma vez que em nossa experiência tudo parece ser
multiaspectual. Assim, você pode estar se perguntando por que afirmei esse
ponto e passei, agora, a falar sobre as teorias de Berkeley, Hume, Mill e
Mach, que afirmam não que tudo seja exclusivamente físico, mas que tudo o
que experimentamos diretamente é exclusivamente sensorial. A razão é que
meu ponto se aplica igualmente a ambas as teorias, e cada uma provoca a
outra como uma resposta.[115] Pensadores que assumiram a posição de que
objetos fora de nossa mente são exclusivamente físicos (como Galileu e
Descartes) também sustentavam que as sensações dentro de nossas mentes
eram puramente sensoriais, não físicas. O problema, então, era que tinha de
se explicar como podemos saber se as sensações em nossas mentes são cópias
fiéis dos objetos fora delas. É isso que Berkeley e Hume demonstraram como
uma impossibilidade. Portanto, eles, como Mill e Mach posteriormente,
consideraram a existência de objetos (puramente) físicos externos como uma
teoria impossível de se confirmar. Foi com essa base que Mach dispensou
como uma teoria não científica a existência de objetos que são externos aos
observadores e que possuem, de igual modo, propriedades distintamente
físicas, e procedeu com a tentativa de demonstrar como a física poderia ser
levada a cabo sem tal teoria. Como ele diz:

Se a “matéria” deve ser considerada meramente como um símbolo


mental altamente natural, inconscientemente construído, para um
complexo de [sensações], muito mais deve ser o caso com os átomos
artificiais hipotéticos e as moléculas da física e da química.[116]
O que representamos a nós mesmos, por trás das aparências, existe
apenas em nosso entendimento...[117]
Para nós, investigadores, o conceito de “alma” é irrelevante e uma
matéria irrisória, mas a matéria é uma abstração de exatamente o mesmo
tipo... sabemos tanto sobre a alma como sabemos sobre a matéria.[118]

Como mencionei anteriormente, Mach aceitou que tanto nosso discurso


habitual acerca da matéria quanto a teoria atômica como exercem um papel
na física bastante semelhante ao papel que Dewey atribuiu aos numerais na
matemática.[119] Isto é, embora os termos e símbolos da teoria atômica não
representem realidades, eles ainda são úteis ao lidar com o mundo perceptível
porque nos auxiliam a fazer predições de um conjunto de experiências a
outro. Como a citação acima demonstra, não são apenas partículas atômicas e
subatômicas que a perspectiva de Mach exclui da realidade, mas todos os
objetos que supostamente possuam propriedades físicas. Em seu livro
Knowledge and Error [Conhecimento e Erro], Mach especificamente
estendeu sua visão às leis da física, considerando-as apenas como nossas
próprias projeções psicológicas. Ele disse que elas não são nada mais que “o
produto de nossa necessidade mental de encontrar nosso caminho na
natureza”, e (seguindo Hume) que elas são “prescrições subjetivas das
expectativas de um observador”.[120] Ao mesmo tempo, no entanto, ele queria
mantê-las nas teorias da física, porque, “dentro de certos limites”, elas nos
fornecem as expectativas corretas (sobre percepções futuras) e, dessa forma,
não deveriam ser abandonadas.

7.3 A teoria de Einstein


Nem todos os físicos concordavam com Mach. Alguns, como Einstein,
sustentavam que nossas sensações são realmente causadas por objetos que
são imperceptíveis, porque são exclusivamente físicos e externos à nossa
mente. Mas, mesmo assim, ele sentiu-se compelido a admitir que sua crença
era apenas uma teoria. Ao afirmar isso contra Mach, Einstein escreveu:

Nossa experiência psicológica contém... experiências sensoriais,


impressões delas na memória, imagens e sentimentos. Em contraste com
a psicologia, a física trata diretamente apenas as experiências sensoriais
e do “entendimento” de sua conexão. Mas mesmo o conceito de “mundo
externo real” do pensamento do dia a dia se baseia exclusivamente sobre
as impressões dos sentidos... O que queremos dizer quando atribuímos
ao objeto corporal “uma existência real”... [é] que, por meio de tais
conceitos, somos capazes de orientar-nos no labirinto das impressões dos
sentidos.[121]
Nessa citação podemos ver que a visão da realidade de Einstein inicia-se
concordando com a de Mach. Semelhantemente a Mach, ele aceita a teoria
perspectival segundo a qual os objetos que experimentamos diretamente são
de uma natureza puramente sensorial. Assim, ele também aceita que o teste
para algo poder ser conhecido diretamente como real é se ele pode ser
percebido sensorialmente. Tudo o mais deve ser hipótese. Portanto, ele
admite que não pode estar certo se realmente existem objetos “corporais”
externos. No entanto, ele discordou de Mach em outras frentes. Uma delas é
que ele cria que de fato existem coisas físicas externas à nossa percepção. Ele
o faz pela razão de que a teoria que os propõe oferece tanto entendimento
racional às nossas percepções sensoriais que somos autorizados a crer que ela
é verdadeira. Eis então a principal diferença entre eles: Einstein cria que
estamos autorizados a dizer que existem objetos (puramente) físicos externos
à nossas mentes, os quais causam nossas sensações, ao passo que Mach
negava isso.
Einstein defendia essa discordância com Mach enfatizando que nossas
mentes possuem a capacidade para o raciocínio lógico e matemático além da
percepção e da sensação. Ademais, ele advogava que as propriedades e leis
matemáticas e lógicas são tão reais quanto as propriedades e leis sensoriais,
de modo que o pensamento racional pode formar conceitos que são
independentes da percepção. Ele diz:
Os conceitos que surgem em nosso pensamento são todos criações livres
do próprio pensamento que não podem ser adquiridos pela experiência
dos sentidos...[122]

Visto que atribuía realidade independente às propriedades e leis lógicas e


matemáticas, Einstein afirmava que o pensamento racional, assim como a
percepção, podem ser assumidos como uma regra para o que se considera
real. Note que ao fim da primeira seção citada, ele disse que crer que “objetos
corporais” tenham uma “existência real” é justificado pela forma que essa
crença nos auxilia no entendimento do “labirinto das impressões dos
sentidos”. Em outras palavras, porque a teoria de que existem objetos físicos
faz sentido em termos racionais, os objetos físicos, assim como as percepções
sensoriais, deveriam ser aceitas como reais. Dessa forma, a crença em objetos
físicos, como todas as outras hipóteses entitárias, pode ser vista como
indicativa da realidade, contanto que se constitua como “um sistema
conceitual... conectado de forma suficientemente firme com as experiências
sensoriais” e demonstre “tanta unidade e [economia] quanto possível” em sua
tarefa de “ordenar e mensurar a experiência dos sentidos”.[123]
Essa perspectiva, que assume o lógico/matemático em adição ao
sensorial como a regra para aquilo que se considera a natureza da realidade,
está inserida em uma longa tradição que se origina da obra do matemático e
filósofo do século XVII, René Descartes, o qual propôs que a regra tanto para
a filosofia quanto para a física fosse a de que
todas as coisas que, falando de forma geral, são abrangidas pelos objetos
da matemática pura, devem ser verdadeiramente reconhecidas como
objetos externos.[124]
No coração dessa proposta está a suposição de que as leis da matemática e da
lógica governam toda a realidade, e não apenas nosso pensamento, e fazem
isso de tal forma a garantir a correspondência entre a realidade e nosso
pensamento. Essa suposição tem sido geralmente expressa como a crença de
que o que quer que seja racional (i.e., lógica ou matematicamente calculável)
é real. Einstein admite, no entanto, que sua confiança de que a natureza é
racional nesse sentido não pode ser demonstrada. Ela é, afirma ele, “uma
questão de fé que a natureza ― do modo como é perceptível aos cinco
sentidos ― assume o caráter de um enigma bem elaborado”. Mas, ele
complementa, o sucesso da ciência “oferece certo encorajamento para essa
fé”.[125] Essa fé de que a natureza essencial da natureza é, em parte, racional,
é precisamente o que Mach negava, porque ele pensava que a realidade era
exclusivamente sensorial em sua natureza.
Isso conduziu a algumas discordâncias substanciais entre físicos que
seguiam Mach e aqueles que seguiam Einstein. Um dos motivos é que a
negação de Mach exige a adoção de uma atitude em relação às teorias que
admita que elas nunca são algo além de nossas invenções, servindo apenas
como dispositivos para predizer o que podemos esperar se fizermos tal e tal
coisa. Isso significa que, em um sentido importante, as teorias nunca
descobrem algo sobre o mundo no qual vivemos. Elas são mantidas e
utilizadas porque são exitosas na predição de experiências futuras, mas, ao
mesmo tempo, permanece o grande mistério do porquê de algumas
predizerem de forma exitosa, enquanto outras, não. Dessa forma, a
perspectiva de Mach empresta um sentido distinto ao empreendimento inteiro
da física; ela requer uma interpretação diferente não apenas sobre a natureza
das entidades propostas pela física, mas daquilo que a física é.

7.4 A teoria de Heisenberg


Werner Heisenberg discordou tanto de Mach quanto de Einstein. Para
Heisenberg, não se deve conceber as partículas atômicas elementares como
realidades do maneira que objetos observáveis são reais, mas elas também
não seriam ficções definitivas como Mach pensava. Pelo contrário, ele
sustenta a visão de que elas são essencialmente possibilidades matemáticas.
Ao apresentar essa explicação, Heisenberg afirma não apenas que partículas
elementares carecem de quaisquer qualidades sensoriais, mas que não é exato
dizer sequer que elas possuam ser. Ele diz:

Se alguém quiser oferecer uma descrição acurada da partícula elementar


― e aqui a ênfase está sobre a palavra “exata” ― a única coisa que pode
ser escrita como uma descrição é uma função de probabilidade... Nem
mesmo... o ser... pertence àquilo que é descrito. Essa é uma possibilidade
de ser, ou uma tendência de ser.[126]
Isso, no entanto, não significa que a natureza essencial da realidade é apenas
matemática. Heisenberg prossegue para deixar claro que a realidade tem uma
natureza dual: existe energia, que é a “substância primária do mundo”, e
existem as leis matemáticas que tornam possível as formas específicas que a
energia pode assumir. Assim, ele confiantemente prediz que
Na teoria moderna não pode haver dúvidas de que as partículas
elementares também serão, em última instância, formas matemáticas...
As formas matemáticas que representam as partículas elementares serão
soluções de alguma lei eterna de movimento para a matéria.[127]

Na verdade, Heisenberg concebe as partículas atômicas elementares como tão


completamente matemáticas que não pode haver algo em relação a elas que
não seja matematicamente explicável. Assim, ele diz que

quando a ciência moderna afirma que o próton é certa solução de uma


equação fundamental da matéria, isso significa que podemos deduzir
matematicamente todas as propriedades possíveis do próton e podemos
checar a correção da solução por experimentos em cada detalhe.[128]
(itálicos adicionados)

Essa visão da realidade como essencialmente explicável em termos


matemáticos está por trás da famosa interpretação de Heisenberg daquilo que
é chamado “relações de incerteza”, as relações que existem entre a descoberta
do momento de uma partícula subatômica e a descoberta de sua posição. A
incerteza emerge porque a forma de se descobrir a localização da partícula é
fazê-la chocar-se com algo suficientemente grande para pará-la. Nesse caso
sabemos onde ela está, mas não mais podemos saber o quão rápido ela estava.
Por outro lado, a forma de se descobrir o momento de uma partícula é
colidindo-a com algo que não seja suficientemente grande para pará-la.
Assim, contanto que já saibamos a massa daquilo contra o qual a partícula
colide, podemos calcular a velocidade da partícula por meio da medição da
distância do deslocamento do objeto contra o qual ela colidiu. Uma vez que a
partícula tenha colidido no outro objeto, entretanto, sua localização não é
conhecível, porque ela resvala quando em velocidade tão elevada. Por essa
razão, encontrar simultaneamente a posição e o momento de uma partícula é
impossível; qualquer dos dois que descubramos primeiro nos impede de
descobrirmos o outro.
Esse tipo de incerteza não é algo deveras estranho. Existem muitas
relações de incerteza em nossa experiência cotidiana. Anteriormente, usei o
exemplo da incerteza que emerge quando tentamos verificar a temperatura da
água em um vidro inserindo nele um termômetro. Fazer isso modifica a
temperatura da água. Assim, a ação mesma executada para encontrar aquela
informação nos impede de encontrá-la, criando uma relação de incerteza
entre a ação e o que queremos saber.
Mas a visão de Heisenberg sustentava acerca da natureza dos átomos e
de outras partículas exigiu que ele assumisse uma interpretação bastante
especial sobre a incerteza entre o momento e a localização das partículas —
que veio a ser conhecida como a “interpretação de Copenhagen”. Uma vez
que ele estava comprometido com a visão de que a realidade é
matematicamente calculável “nos mínimos detalhes”, e uma vez que não
podemos calcular a posição e o momento de uma partícula, Heisenberg disse
que as partículas não devem possuir velocidade e localização. Isso significa
que cada partícula que escolhemos medir ou seu momento, ou sua
localização, sempre teve apenas uma dessas propriedades que escolhemos
medir! Ou seja, se descobrimos a velocidade de uma partícula, então ela
nunca teve uma localização; enquanto que se descobrirmos sua localização,
então ela nunca teve velocidade. Heisenberg admite que seja algo bizarro
dizer que:
Esse é um resultado bastante estranho, uma vez que parece indicar que
[nossa] observação exerce um papel decisivo no evento, e que a
realidade varia dependendo se a observamos ou não.[129]

Ele então continua comentando, no entanto, que deveríamos estar preparados


para abandonar nossos conceitos ordinários, “clássicos”, quando estamos
lidando com o mundo das entidades subatômicas.[130]
Einstein rejeitou essa visão, sustentando que a incerteza entre a
velocidade de uma partícula e sua localização é um limite não da própria
realidade, mas de nossa habilidade de calcular e descobrir eventos
subatômicos ― da mesma forma que colocando um termômetro na água nos
limita descobrir qual é a presente temperatura em lugar daquela que havia
antes de colocarmos o termômetro nela. A diferença entre esses dois físicos é
o status distinto que eles deram ao aspecto matemático em relação a todos os
outros aspectos. Já vimos que em oposição à Mach, Einstein considerou o
aspecto matemático de nossa experiência como sendo igualmente real ao
aspecto sensorial, de modo que os sucessos explanatórios da matemática dão-
nos garantia para a crença na existência das entidades que os físicos propõem.
Mas ele não leva sua estima da matemática tão longe a ponto de dizer que
tudo além daquilo que é matematicamente calculável seria, portanto, irreal.
Contra a visão mais exaltada da matemática de Heisenberg, Einstein certa vez
gracejou: “Nem tudo o que pode ser contado conta, e nem tudo o que conta
pode ser contado”.

7.5 Qual diferença tais teorias fazem?


Examinamos brevemente algumas concepções bastante distintas da
realidade que conduziram a interpretações bastante distintas da teoria
atômica. Por exemplo, na visão de Mach não faria sentido tentar confirmar a
existência de entidades tais como átomos e partículas subatômicas. Uma vez
que elas são todas ficções, conduzir experimentos para confirmar sua
realidade faria menos sentido do que inspecionar o telhado na manhã de
Natal para encontrar marcas de cascos de renas. Por outro lado, físicos que
rejeitam a perspectiva de Mach têm se engajado em esforços extensos para
descobrir se as entidades propostas por suas teorias realmente existem.
Considere, por exemplo, a hipótese do neutrino proposta por
Wolfgang Pauli. Sua invenção tinha como intenção fazer sentido de uma
série de observações e também preservar a lei da conservação de energia. Ela
cumpriu com esses papéis muito bem, e posteriormente solucionou outras
lacunas explanatórias também na teoria atômica. Mas ainda preocupava aos
cientistas que o neutrino seria tão pequeno ao ponto de ser impossível de se
detectar; eles estavam preocupados de que isso fosse talvez apenas uma
invenção. Pois, de acordo com a teoria, neutrinos são tão minúsculos que
considerou-se que sua colisão com outros objetos acontecesse apenas
raramente. Na verdade, um cientista estimou que para colidir mesmo com o
núcleo de um átomo, um único neutrino teria de “passar pelo equivalente a 50
anos-luz de chumbo sólido”, e que uma “parede de blindagem capaz de diluir
um feixe de neutrinos teria que ser tão espessa quanto 100.000.000 estrelas”.
[131]
É por essa razão que tantos cientistas pensaram inicialmente que o
neutrino permaneceria para sempre impossível de se detectar.
Contudo, essa tarefa aparentemente impossível foi finalmente realizada
em 1956.[132] Mas obter as evidências consumiu uma quantidade expressiva
de talento, equipamento, tempo e dinheiro. O alto custo e esforços sublinham
o motivo que conduziu os físicos envolvidos. Claramente, o motivo era a
crença de que as teorias são tentativas de se conhecer a realidade; isto é,
teorias tentam descobrir o que existe e conhecer sua natureza. Meu ponto é
que essa crença pressupõe uma perspectiva filosófica que teria de aceitar
(minimamente) os aspectos lógico, matemático, espacial, físico e sensorial da
experiência como (pelo menos parte da) a natureza da realidade. Assim, se
essa visão foi ou não adotada conscientemente por esses autores, é o tipo de
perspectiva sobre a realidade que a ciência necessita. Ela necessita, e é mais
beneficiada, por uma visão da realidade que abertamente aceita sua natureza
multifacetada.
Talvez esteja claro agora por que, não obstante todos esses pensadores
tenham afirmado a aceitação da teoria atômica, eles queriam dizer algo
bastante diferente em relação a essa ― tão diferente que é justo dizer que o
século XX, na verdade, produziu três teorias atômicas, e não diferenças
inexpressivas dentro de uma e a mesma teoria. Para Mach, a teoria atômica
significava inventar um sistema de micro-entidades que fosse útil ainda
quando povoado de ficções. Para Einstein, significava postular objetos
puramente físicos que nunca experimentamos. Para Heisenberg, significava
postular micro-entidades que constituem a realidade e que, embora
compostas por energia física, são essencialmente matemáticas em sua
natureza. Essas agudas discordâncias sobre a natureza dos átomos e partículas
reflete suas discordâncias sobre a natureza da realidade, visões que se
assentam sobre distintas atribuições de prioridade entre os vários aspectos da
experiência. E essas, por sua vez, se assentam em perspectivas em relação
àquilo que é divino.

7.6 O papel da religião nessas teorias


Deveria estar bastante claro neste momento por que as teorias analisadas
acima refletem, de fato, crenças sobre a divindade. Mas ao invés de fazer essa
afirmação como se fosse uma acusação que preciso justificar, permitamos
que esses pensadores falem por si mesmos. Por exemplo, em um comentário
similar àquele de Mill apresentado anteriormente, Mach disse sobre a
sensação que
A afirmação, portanto, de que o mundo consiste apenas de nossas
sensações é correta. Caso no qual temos conhecimento apenas das
sensações.[133]
Essa citação atribui ao aspecto sensorial o status que encontramos como a
característica definidora da divindade. Ademais, Mach não oferece
argumentos para esse ponto crucial. Assim, do mesmo modo de Mill, penso
que a declaração de Mach seja a confissão de seu credo; ela afirma a crença
religiosa que regulou e guiou sua teorização.
Por outro lado, Einstein difere insistindo que os aspectos lógico e/ou
matemático também são essenciais à natureza da realidade. Na verdade, ele
terminou por considerar nossas sensações como causadas pela interação de
objetos físicos com nossas mentes, de modo que a negar qualquer existência
independente ao que é sensorial. Assim, mesmo que Einstein concordasse
com Mach de que objetos de nossa experiência direta são puramente
sensoriais, não são eles que possuem existência independente, divina, mas a
matéria e os princípios do pensamento racional que são divinos. Isso faz
sentido com o restante de seu ponto de vista. Ele baseia a aceitação de uma
hipótese sobre a crença de que o que quer que seja racional é real. Assim, a
racionalidade humana (em vez da percepção) é a regra para a crença sobre o
que existe. E essa fé na razão humana é baseada, por sua vez, na crença de
que as leis da lógica e a matemática se aplicam a toda a realidade, porque elas
são os princípios que tornam possível todas as formas que a matéria pode
assumir. Dessa forma, elas (assim como a matéria) são autoexistentes e
divinas. Acerca disso, Einstein diz:
Não posso conceber um Deus que retribui e pune suas criaturas, ou tem
uma vontade do tipo que experimentamos em nós mesmos. Estou
satisfeito com... a consciência e o vislumbre da maravilhosa estrutura do
mundo existente... da Razão que se manifesta na natureza.[134]
Por fim, vimos que Heisenberg confere um status especial aos conceitos
matemáticos, e diz isso explicitamente em termos muito semelhantes à
citação apresentada acima de Descartes.[135] Ele diz que, enquanto todos os
outros conceitos são dubitáveis e “não sabemos quão longe eles nos
auxiliarão em nosso caminho no mundo”,[136] os conceitos da matemática são
imunes a dúvidas de qualquer tipo, e refletem a natureza de toda a realidade
de tal modo que não apenas o que eles podem calcular é real, mas o que quer
que eles não podem calcular não é real. A pressuposição dessa regra é a
crença de que as leis matemáticas são princípios autoexistentes que tornam
tudo o mais possível. Isso torna o aspecto matemático divino, de modo que a
pressuposição básica da teoria de Heisenberg também é uma crença religiosa.
Mas não preciso argumentar sobre esse ponto, no entanto, uma vez que o
próprio Heisenberg o fez:

Podemos esperar que a lei fundamental do movimento acabe por ser uma
lei matematicamente simples... É difícil oferecer qualquer bom
argumento a favor dessa esperança na simplicidade — exceto o fato de
que, até o momento, tem sido sempre possível escrever as equações
fundamentais na física como formas matemáticas simples. Esse fato se
encaixa na religião pitagórica e muitos físicos compartilham de sua
crença nesse sentido, mas não se ofereceu ainda nenhum argumento a
fim de demonstrar que isso deva ser assim.[137] (itálicos adicionados)

Em suma: aos postulados dessas teorias são atribuídas distintas naturezas,


porque essas naturezas são alocadas sob o controle daquilo que seus
defensores concebem como a natureza básica da realidade como um todo. E
os aspectos tomados como a natureza da realidade como um todo recebem
sua (suposta) prioridade sobre todos os demais aspectos com base no fato de
que também são idênticos à natureza daquilo que é incondicionalmente
autoexistente e que torna tudo o mais possível e real. Assim, as teorias
diferem em última instância no tocante àquilo que seus defensores assumem
como sendo divino.
Ademais, deveria estar claro que as teorias revistas acima eram todas
reguladas por uma ou outra variedade de crenças religiosas pagãs. Desde um
ponto de vista teísta, então, não importa o quão brilhante e perspicazes as
várias entidades postuladas sejam, e a despeito de quão formidavelmente
desenvolvidas sejam as explicações baseadas nelas, elas são todas
parcialmente falsas na medida em que suas naturezas são limitadas a aspectos
particulares que são considerados como se possuíssem status divino. Também
vimos como essa diferença religiosa extrapola da distorção das naturezas das
entidades específicas postuladas e se estende ao próprio entendimento
daquilo que a física é de como deveria ser conduzida. Dessa forma, com o
devido respeito pelo talento e gênio que produziram o edifício da teoria
atômica moderna, as atuais interpretações predominantes dessa teoria
deveriam ser inaceitáveis para qualquer judeu, cristão ou muçulmano. Da
perspectiva teísta, a física seria mais bem servida se fosse baseada numa
visão não reducionista da realidade que se recusa firmemente a considerar
qualquer aspecto do universo criado como divino.[138]
CAPÍTULO 8. TEORIAS NA PSICOLOGIA

8.1 Introdução
Como na matemática e na física, as discordâncias entre teorias na psicologia
são profundas. Nessa área, também, as diferenças relativas à ideia mesma
dessa ciência resultam de diferentes visões panorâmicas sobre a natureza da
realidade. Já vimos como, em geral, isso ocorre, a saber, diferentes ideias
sobre a natureza básica da realidade afetam a forma como se concebe um
aspecto particular da experiência em sua relação com todos os demais
aspectos. A visão resultante de sua conectividade aos outros é, assim,
comunicada a cada conceito utilizado pelo pensador que o investiga,
especialmente os conceitos inventados e propostos como hipóteses. E vimos
como as visões panorâmicas da realidade são reguladas por aquilo que é
declarado ou pressuposto como divino. Esses mesmos pontos se aplicam
também à psicologia.
A psicologia surgiu como uma ciência distinta no século XIX com o
trabalho de pensadores como Wundt e Von Helmholtz, e foi Von Helmholtz
quem primeiro circunscreveu o campo da psicologia ao trabalho com o
“psíquico-sensorial”. Outros, como C. I. Lewis, utilizaram o termo
“sensível”. Mas é claro o suficiente que aquilo no qual eles estavam se
concentrando é aquele aspecto da experiência que inclui as qualidades
psíquicas, ou de sentimento, tais como os sentimentos de amor, ira,
ansiedade, aversão, medo, etc. Incluía também as propriedades dos sentidos
visual, táctil, gustativo, olfativo e auditivo: por exemplo, o vermelho, o
macio, o irritante e o ruidoso. E isso inclui as leis que relacionam essas
qualidades, tais como as leis de associação entre os sentimentos, ou a lei em
que o ser vermelho exclui o ser azul. Continuarei a me referir a esse aspecto
como o “sensorial”, de forma abreviada.
Antes de examinar os modelos de teorias que ilustrarão minha
afirmação sobre o controle religioso das teorias na psicologia, deixe-me
advertir que as visões da realidade que comumente as teorias na psicologia
adotam não são tão claramente especificadas por seus defensores como
aquelas que examinamos anteriormente nos domínios da matemática e da
física. Na matemática, por exemplo, perspectivas conflituosas são geralmente
refletidas nas próprias designações das teorias: formalista, logicista,
intuicionista, empirista, etc. Na psicologia, em contrapartida, os nomes das
maiores teorias não correspondem à realidade das perspectivas que as
regulam, e as definições mais amplamente aceitas desta ciência são por
demais ambíguas para indicar precisamente como o aspecto da experiência
que forma seu domínio é compreendido em relação aos outros aspectos. As
duas definições mais influentes da psicologia ao longo (especialmente dos
dois primeiros terços) do século XX foram: (1) a psicologia é o estudo da
mente humana, e (2) a psicologia é o estudo do comportamento humano. A
diferença entre essas duas definições representam uma séria discordância
sobre a temática própria da psicologia. A primeira (mais antiga) definição
assume a consciência humana como o foco de investigação; a segunda
concentra sua atenção no comportamento corporal. Mas enquanto a definição
mais recente rejeitou a primeira por sua suposta imprecisão e ambiguidade, a
ironia é que ambas são afligidas pelo mesmo tipo de confusão.
Para percebermos por que nenhuma dessas duas definições pode
delimitar de forma apropriada o campo da psicologia, precisamos remontar à
nossa discussão anterior sobre como as ciências são distinguidas. Ali
observamos que as ciências suegiram para investigar aspectos singulares
abstraídos dos dados a serem explicados, ou para teorizar através de dois ou
mais aspectos abstraídos, de modo a relacioná-los nas explicações que então
propõem. Mas as definições de psicologia mencionadas acima deixam sua
delimitação aspectual inteiramente no escuro.
A definição mais antiga não oferece auxílio dizendo que essa ciência
lida com a mente humana, uma vez que não diz qual aspecto da vida mental
está sendo examinado e explicado. A vida mental inclui atos do pensamento,
crenças, sentimentos, desejo e volição, dos quais qualquer um pode ser sobre
matemática, arte, ética, política ou economia. Não apenas podem tais atos
mentais tratar sobre qualquer aspecto da experiência, mas — da perspectiva
de nossa experiência pré-teórica — eles também possuem esses próprios
aspectos; eles podem ser contados, belos, amáveis, traiçoeiros, ou possuir
valor econômico, por exemplo. E, é claro, eles também têm propriedades
espacial, física, biótica, sensorial, lógica, etc. Assim, a menos que saibamos
qual(is) aspecto(s) dos atos ou objetos da consciência formam o domínio de
uma teoria, seremos deixados numa confusão sistemática resultante dessa
circunscrição insuficiente da ciência que está em operação.
Contudo, o mesmo tipo de ambiguidade também se aplica à designação
“a ciência do comportamento humano”, uma vez que precisamos saber qual
aspecto do comportamento humano está sendo estudado e explicado. O
comportamento humano, da mesma forma, apresentam todos os aspectos que
se tornaram campos de estudo para todo o espectro das ciências. Um ato de
dança, por exemplo, pode ser esteticamente belo, economicamente
recompensador, fisicamente extenuante, biologicamente saudável, e
sensorialmente esgotante. Ele pode ao mesmo tempo celebrar um festival
religioso, exigir muito espaço e exibir características típicas de uma cultura
ou período particular da história. Obviamente, nenhuma ciência pode
reivindicar a explicação de todos esses aspectos relacionados a esse
comportamento. A psicologia deve ter seu próprio “lar”, i.e., um aspecto para
servir como ponto de entrada para sua forma particular de estudo do
comportamento humano.
Curiosamente, alguns psicólogos recentes notaram essas dificuldades
relacionadas às definições aceitas, mas as dispensaram como irrelevantes!
Isaacson, Hurt e Blum, por exemplo, admitem que:
Muitos ramos das ciências que não a psicologia tentam explicar o
comportamento formulando hipóteses e testando-as; e muitos dos
interesses evidenciados pelos psicólogos em suas teorias são exatamente
como aqueles dos cientistas em outras áreas.[139] (ênfase acrescida)

Sua conclusão é a de que se a psicologia pode, de algum modo, ser


distinguida de outras ciências, isso se dá pela “relativa ênfase no
entendimento do indivíduo como uma unidade funcional total”.[140]
Mas, obviamente, o problema com essa tentativa de contornar a
dificuldade é exatamente que nenhuma ciência específica pode lidar com o
ser humano total. Tão logo uma teoria ofereça uma explicação biológica, será
biologia, e quando oferecer uma explicação física, será física, a se oferece
uma explicação histórica, será história. É por essa razão que devemos olhar
além das duas definições prevalecentes da psicologia para descobrirmos
como, de fato, um teórico particular delimita seu campo e relaciona esse
campo aos demais aspectos da realidade. Apenas dessa forma podemos
penetrar até às raízes de quaisquer diferenças entre teorias rivais e, desse
modo, até às crenças ontológicas e religiosas que as direcionam.
Nossa lista provisória de aspectos apresentada anteriormente incluiu o
aspecto sensorial como precedido pelos aspectos físico e biótico e seguido
pelos aspectos lógico, histórico, linguístico e social. A ordenação dos
aspectos nessa lista é um ponto que será esclarecido posteriormente, mas por
agora apenas direi que essa é supostamente uma ordem na qual os mais
baixos na lista são pré-condições para o surgimento daqueles que estão acima
na lista. Não nos surpreende, portanto, que conflitos entre teorias na
psicologia dizem respeito, em larga medida, ao modo que o aspecto sensorial
se relaciona com seus vizinhos próximos na lista. Curiosamente, foram
filósofos como Berkeley, Hume e Mill, juntamente com físicos como Mach,
que tentam comprimir os outros aspectos ao sensorial, enquanto grande parte
dos pensadores na psicologia têm tentado explicar o sensorial reduzindo-o a
algum outro aspecto!
Essas tendências nas teorias da psicologia foram notadas por Jean
Piaget, que as divide entre aquelas que explicam a psicologia reduzindo-a à
biologia ou à física (abaixo em nossa lista), e aquelas que a explicam
reduzindo-a à sociologia (acima em nossa lista).[141] Piaget também se refere
a essas tendências como “reducionistas”, e opõe-se a ambos os tipos de
redução a favor do que ele denomina uma visão “construtivista”:
Em sua busca por uma perspectiva específica entre o orgânico e o social,
a psicologia voltou-se para o estudo do comportamento em particular...
O comportamento, no entanto, pode ser analisado a partir de vários
pontos de vista.
É interessante demonstrar que, uma vez que a abordagem reducionista
tenha sido descartada para determinar no comportamento, como tal, a
especificidade do fenômeno psicológico, adotou-se uma abordagem
construtivista.[142]

Embora concorde com Piaget sobre o abandono de teorias “reducionistas”,


minhas razões para fazê-lo incluem não somente os becos sem saída
conceituais que ele assinala, mas também as crenças religiosas pagãs que as
inspiram e as sustentam. Para ilustrar esse controle religioso das teorias da
psicologia, comecemos examinando algumas das teorias que exemplificam a
redução “descendente” da psicologia aos aspectos físico e/ou biológico — as
teorias que são denominadas “behavioristas”.
9.2 As teorias de Watson, Thorndike e Skinner
O termo “behaviorismo” foi cunhado por J. B. Watson para indicar uma visão
da psicologia que é restrita àquilo que pode ser observado. Por isso ele tinha
como intenção romper com teorias, tal como a de William James, que
aceitam a definição de que a psicologia é centrada principalmente na
consciência. Como o próprio Watson colocou:
Para demonstrar o quão anticientífico é o conceito [de consciência],
observe por um momento a definição de psicologia de William James.
“Psicologia é a descrição e explicação de estados de consciência
enquanto tais.” Começando com uma definição que assume o que ele se
propõe a provar, ele esquiva-se de sua dificuldade com um argumentun
ad hominem. Todos os outros introspeccionistas são igualmente ilógicos.
Em outras palavras, eles não nos dizem o que é a consciência, mas
meramente começam a colocar as coisas a partir de uma suposição; e
então, quando chegam à análise da consciência, naturalmente eles
descobrem nela justamente aquilo que eles mesmos colocam ali.[143]

Watson prossegue dizendo que, conforme ele e seus colegas observavam


como ciências como medicina e química faziam progresso, parecia-lhes que
os avanços eram sempre do tipo que poderiam ser confirmados por
experimentos laboratoriais replicáveis. Tendo essas ciências como modelo,
Watson resolveu refazer a psicologia. Ele defendeu que os behavioristas
haviam riscado de seu vocabulário “todos os termos subjetivos tais como
sensação, percepção, imagem, desejo, propósito e mesmo pensamento e
emoção na medida em que eram definidos subjetivamente”. Para assumir o
lugar desses,
Os behavioristas indagam: Por que não tomamos aquilo que observamos
como o campo real da psicologia? Limitemo-nos ao observado e
formulemos leis concernentes apenas a essas coisas. Agora, o que
podemos observar? Bem, podemos observar comportamentos ― o que o
organismo faz ou diz. E permita-me apresentar esse ponto fundamental
aqui de uma vez: esse dizer é fazer ― ou seja, comportar. Falar
secretamente a nós mesmos (pensar) é um tipo tão objetivo de
comportamento quanto o baseball.
A regra, ou a régua de medição, a qual os behavioristas colocam em
frente de si é: Eu posso descrever esse fragmento de comportamento que
vejo em termos de “estímulo e resposta”?[144]

Desnecessário dizer que o simples arco reflexivo estímulo-resposta nunca foi


suficiente para explicar o comportamento de todos os animais, muito menos o
humano. É por essa razão que E. M. Thorndike tentou expandir a teoria
behaviorista para além do poder explanatório limitado da ação reflexa.
Thorndike denominou a esse suplemento “lei do efeito”. Este implicava que
as consequências do comportamento anterior exercem um papel na
determinação do comportamento futuro. Sua forma de apresentar esse ponto
foi dizer que se um estímulo-resposta é seguido de um “conforto” ou reforço,
a conexão é fortalecida; se ele é seguido por um estímulo de “desconforto” ou
aversivo, a conexão é enfraquecida. Embora os termos “conforto” e
“desconforto” pareçam referir-se a estados internos não observáveis de prazer
e dor, Thorndike não permitiu que esses entrassem em sua teoria. Atendo-se
ao programa de Watson, ele definiu mesmo esses termos de forma
behaviorista:
Por um estado de coisas confortável refiro-me àquele em que o animal
nada faz para evitar, geralmente agindo para que seja mantido ou
renovado. Por um estado de coisas desconfortável refiro-me àquele em
que o animal nada faz para preservar, geralmente agindo para colocar
um fim nele.[145]

Dessa forma Thorndike também evitou qualquer menção ao propósito, uma


vez que este também é subjetivo e inobservável.
Skinner edificou sobre a obra de Thorndike. Sua tarefa era a de explicar
respostas não-reflexas e, para isso, desenvolveu o conceito de respostas
“operantes”. Essas diferem do comportamento reflexo, porque um simples
reflexo pode ser explicado por leis que relacionam um estímulo
incondicionado a uma resposta incondicionada, ou um estímulo condicionado
a uma resposta condicionada. (Fazer isso para o último par, é claro, requer o
conhecimento da história do condicionamento passado do organismo.) As leis
operantes vão além disso, no entanto, relacionando o comportamento à ideia
de reforço de estímulo de Thorndike. Como Skinner coloca: “o operante é
definido pela propriedade sobre a qual o reforço torna-se contingente.[146] As
leis que Skinner deseja formular não são, portanto, meramente aquelas que
relacionam um estímulo a uma resposta, mas aquelas que relacionam uma
resposta a seus reforços. Leis operantes permitem a predição ou o controle de
uma resposta particular relacionando o estímulo de reforço à classe de
respostas das quais a resposta particular é um membro. No comportamento
operante, pois, nós
Lidamos com variáveis que, diferentemente do estímulo provocado, não
“causam” a ocorrência de dado fragmento de comportamento, mas
simplesmente tornam sua ocorrência mais provável. Podemos, então,
proceder para lidarmos, por exemplo, com o efeito combinado de mais
do que uma variável de tal tipo.[147]

Tudo isso pode ser descrito de forma justa como uma tentativa de elaborar a
“lei do efeito” de Thorndike, a qual, para Skinner, torna-se o ponto focal de
toda a ciência da psicologia. Nessa visão, a obra do psicólogo é predizer ou
controlar um comportamento em particular estabelecendo a probabilidade de
sua recorrência em relação a seus reforços. Ele denomina essas relações de
“contingências de reforço”:
Uma formulação adequada da interação entre organismo e ambiente
deve sempre especificar três coisas: 1) a ocasião sobre a qual a resposta
ocorre; 2) a própria resposta, e 3) as consequências do reforço. Os inter-
relacionamentos entre eles são contingências do reforço.[148]

Comum a todas essas teorias é a rejeição total de permitir na psicologia de


algo relacionado à vida mental e experiências humanas que seja prima facie
não-comportamental tais como pensamentos, sentimentos, propósitos e até
mesmo percepções.
Mesmo esse breve resumo deverá ser suficiente para estabelecer que
algo muito estranho está ocorrendo. Uma vez que todos nós experimentamos
constantemente nossos próprios pensamentos, sentimentos, percepções,
intenções, etc., por que esses devem ser ignorados pela psicologia? Observe
como Watson abordou a definição de James admitindo apenas aquilo que
precisava ser comprovado quando se refere à consciência. Mas não são os
estímulos e respostas, que supostamente assumiriam o lugar do pensamento e
da percepção, eles mesmos conhecidos pela percepção e interpretados pelo
pensamento? Por que, então, os behavioristas consideram pensamentos e
percepções como suposições? Por que eles dizem que a existência de
pensamentos e percepções necessitam ser comprovados?
Tal visão pode ser entendida apenas como o produto da visão
perspectival panorâmica desses pensadores sobre a natureza da realidade.
Para adquirir uma ideia precisa dessa perspectiva, vamos abordá-la
considerando sua visão da natureza humana. Grande parte das outras teorias
psicológicas têm visto os humanos como constituídos de duas coisas: uma
mente e um corpo. Para eles, tais ciências como a biologia e a medicina
estudam e tratam o corpo, enquanto a ciência da psicologia estuda e trata a
mente.
Em contraste a isso, os behavioristas rejeitam a dualidade mente-
corpo. Ao invés disso, eles veem um humano como apenas uma coisa: um
corpo. Assim, é apenas o corpo que deve ser estudado e explicado, não
importa qual ciência faça a explicação. Mas por que os behavioristas rejeitam
a crença de que exista uma entidade distinta chamada mente? A razão é sua
perspectiva materialista sobre a realidade.
Que uma teoria materialista da realidade esteja por trás do
behaviorismo pode ser visto de variadas formas, mas a mais óbvia é que
apenas ela pode suprir a razão pela qual desejam que todas as experiências
internas sejam excluídas de qualquer explicação do comportamento. Pois não
é necessário dispensar todas as experiências internas apenas por se rejeitar a
visão da natureza humana relacionada à mente-corpo. Uma teoria poderia
muito bem negar que um humano seja duas coisas ― isto é, negar que a
mente seja algo distinto ― mas ainda assim aceitar que os humanos tenham
experiências internas que sejam cruciais para entender seu comportamento.
Mas se a teoria materialista é aceita, então não apenas se evita a crença em
uma mente não física, mas também a crença na existência de experiências
internas, não físicas.
Considere o mesmo ponto a partir de um ângulo ligeiramente
diferente. Se ― teorias à parte ― simplesmente descrevermos o que todos
experimentamos diretamente, teríamos de dizer que os humanos apresentam
todos os aspectos que todas as coisas apresentam. Pessoas ocupam espaço,
movimentam-se, comem, sentem, raciocinam e falam, por exemplo. Tais atos
têm, respectivamente, propriedades espacial, física, biológica, sensorial,
lógica e linguística. Pessoas também têm valores, e atos de valoração podem
ser direcionados à verdade, economia, beleza, justiça, ou amor. Mas nunca
experimentamos algo que seja exclusivamente um corpo físico, ou
exclusivamente uma mente não física. Essas são hipóteses entitárias
inventadas para explicar a natureza humana. E elas são inventadas sob o
controle de uma visão panorâmica perspectival da realidade que ou é
proposta como uma teoria, ou simplesmente pressuposta. A perspectiva que
regula a dualidade mente-corpo é uma que enxerga dois aspectos particulares
como aqueles sobre os quais todos os demais aspectos de uma pessoa
dependem: geralmente o físico e o lógico. A partis dessa visão panorâmica, é
fácil aceitar que existem coisas totalmente físicas (corpos) e coisas totalmente
não físicas (mentes). Os aspectos restantes podem, assim, ser vistos como que
gerados pela interação de mentes e corpos.
Em contraste a isso, a perspectiva que orienta as teorias behavioristas
é uma que concebe a totalidade da realidade restrita ao (ou dependente do)
aspecto físico. Ou seja, ela mantém ou que: (1) existe apenas os corpos
físicos e suas ações, ou que (2) quaisquer fatores não físicos envolvidos são
inteiramente gerados por corpos físicos e suas ações. Essa é a razão pela qual
o cerne da diferença entre os behavioristas e outras teorias não pode ser
entendido simplesmente como um argumento quanto a se existem mentes não
físicas. A perspectiva behaviorista não apenas proíbe mentes explicando algo,
mas proíbem tudo aquilo que supostamente seja não físico. Ela enxerga o
aspecto sensorial, juntamente com todos os demais, como ou (1)
comprimidos ao aspecto físico da experiência, ou (2) inteiramente dependente
deste. Em ambos os casos, a explicação científica real é sempre física.
As duas versões do materialismo enumeradas acima refletem-se na
diferença entre a forma que Watson reduz o aspecto sensorial ao físico e a
forma que Skinner o faz. Watson adota a primeira versão. Para ele, a própria
consciência, juntamente com seus estados e conteúdos, é completamente
fictícia: simplesmente não existem tais entidades. Ele diz que a “consciência”
é tão fictícia quanto a “alma”, e lista todos os conceitos da vida mental na
mesma classe que as superstições dos curandeiros.[149] Skinner, por outro
lado, não nega completamente que existam experiências internas. Além do
mais, no que lhe diz respeito, as experiências internas podem até mesmo
possuir propriedades distintivamente sensoriais e outras não físicas. No
entanto, ele ainda defende que tais experiências internas não devem figurar na
ciência da psicologia. Sua razão para tal é que essas experiências nunca
causam comportamentos, mas são sempre causadas pelo comportamento.[150]
Em ambas as versões, no entanto, é conferido ao aspecto físico o
status de autoexistência. Ele explica e causa tudo o mais porque tudo depende
dele, ao passo que, no que tange à teoria, não depende, por sua vez, de nada,
sendo autoexistente por pré-definição. Dessa forma, a perspectiva materialista
pressupõe a crença religiosa na divindade do físico, uma crença que é da
variedade pagã, uma vez que considera alguns aspectos da criação como
divinos. Deveria estar claro, portanto, por que o behaviorismo não pode ser
aceito por ninguém que creia em Deus.
Como os outros capítulos de estudos de caso, meu propósito aqui não
é tanto criticar as teorias sendo analisadas, mas demonstrar como elas são
reguladas por algumas crenças religiosas. Todavia, é importante notar a
poderosa influência que a fé e perspectiva materialista exercem sobre esses
pensadores, de tal modo que eles mantenham sua posição apesar das
incoerências que afligem suas teorias. Uma dentre tais incoerências pode ser
vista na forma em que Skinner fala de como o condicionamento controla o
comportamento:
A mesma coisa é verdade quando um homem escreve livros, inventa
coisas, administra um negócio. Ele não inicia nada. Tudo isso é o efeito
da história passada sobre ele. Essa é a verdade, e temos de acostumar-
nos com isso.[151]

Mas se escrever livros é como todas as outras atividades humanas, sendo


controladas por nosso condicionamento passado, o que isso diz a respeito dos
próprios livros do Skinner? O que isso diz a respeito da teoria behaviorista?
Para ser consistente, o behaviorista teria de admitir que sua própria teoria não
seja nada além do que o produto de seu próprio condicionamento. E uma vez
que isso seja admitido, no entanto, não há razão para o behaviorista, ou
qualquer outra pessoa, considerar essa teoria (ou qualquer outra crença!)
como verdadeira. De fato, isso significaria que, mesmo se o behaviorismo
fosse de algum modo verdadeiro, ninguém nunca saberia isso, porque a teoria
exige que toda crença seja mantida apenas em razão do condicionamento
daquele que nela crê impossibilitá-lo de agir de outra forma. A afirmação de
Skinner é, portanto, autorreferencialmente incoerente. No entanto ele diz:
“Essa é a verdade, e temos de acostumar-nos com isso!”
Outra incoerência diz respeito ao fato de os behavioristas dispensarem
abertamente os estados internos de consciência da psicologia. Já notamos a
implausibilidade dessa reivindicação comparada com uma descrição daquilo
que experimentamos diretamente, mas agora estou referindo-me a outra
dificuldade. Isto é, o behaviorista deve assumir que, ao estabelecer
correlações entre estímulos ou reforços a respostas, ele teria demonstrado
algo que continuará sendo verdadeiro em relação ao organismo estudado. As
correlações não apresentariam nenhuma projeção ou científicos, caso o que
tenha sido descoberto fosse verdadeiro apenas para o momento no qual foi
descoberto. Mas para serem consideradas leis, e continuarem a se aplicar, elas
teriam de descrever uma disposição duradoura, ou tendência, no indivíduo
testado. Skinner flertou com esse problema quando disse que, se estar com
sede significasse apenas ter uma tendência à sede, isso seria aceitável. Isso
seria questionável apenas se supostamente se referisse a um estado interno de
sede que fosse uma causa contribuidora ao ato de beber de uma pessoa.
O problema aqui é que as disposições e tendências são estados internos
e são tão observáveis quanto quaisquer outras entidades que ele (Skinner) e
Watson quiseram banir da psicologia. E não adiantará se ele postular que
existe algum estado puramente físico do cérebro que seja simplesmente
idêntico à disposição. Pois, como ponto geral, sempre que estivermos em
dúvida em relação a estarmos lidando com uma ou duas coisas, a afirmação
de que existe realmente apenas uma coisa deve demonstrar que as duas coisas
(supostamentes) possuem as mesmas propriedades. Assim, para um estado
cerebral ser idêntico a uma tendência, aquele teria de possuir todas as
propriedades que a tendência possui, apresentando propriedades tanto
inobserváveis quanto não físicas! Sem as propriedades não físicas (assim
como as físicas), um estado cerebral não corresponderia, nem satisfaria a
descrição de uma tendência. Ademais, como já pontuado, nunca
experimentamos qualquer estado ou ação cerebral como puramente físico; na
medida em que os podemos observar, cérebros e suas atividades exibem uma
multiplicidade de aspectos: eles ocupam espaço, são enumeráveis assim
como observáveis, etc. (Posteriormente, quando critico as afirmações
reducionistas em detalhes, também veremos por que não é possível moldar
uma ideia de algo que tenha apenas um tipo aspectual de propriedades). No
entanto, apesar da impossibilidade de reduzi-los a algo somente físico,
Skinner tem de admitir que ele não pode fazê-lo sem tendências e
disposições. O que é pior para sua teoria, parece óbvio que mesmo se alguém
pudesse se apresentar com uma versão dela que poderia evitar a menção
explícita delas, o poder explicativo e preditivo do behaviorismo em sua
inteireza ainda exigiria sua suposição tácita. A afirmação de que estados não
físicos, internos, são banidos da psicologia está, assim, em desacordo com a
suposição de que pessoas têm tendências, de modo que essa parte da teoria é
autoconjecturalmente incoerente.
Finalmente, existe uma ampla lacuna explanatória deixada pelas leis
que supostamente demonstrariam que os reforços estão relacionados aos
padrões de respostas a estímulos. Estes, disse Skinner, são alcançados ao se
estabelecer correlações estatísticas entre reforços e respostas. Mas mesmo
concedendo que as muitas variáveis envolvidas em tal tarefa possam ser
reconhecidas e receberem seus pesos causais relativos (e de nenhuma forma é
óbvio que isso possa ser feito), o que as probabilidades resultantes
explicariam? Suponha que possamos demonstrar, por exemplo, que mais
pessoas irão passar suas férias nas montanhas do que nas praias, a depender
de quão severo o inverno será. O que explicamos de fato? Como Piaget
pontuou:
Isso é a mera expressão, em termos de cálculos, de estados e leis
observadas de facto, assim como a razão para probabilidades ainda a
serem explicadas.[152]

O propósito de se mencionar essas dificuldades é enfatizar a forma na qual a


fé na perspectiva materialista exerce seu controle sobre aqueles que são
capturados por ela. Isso ilustra que o que torna a teoria do behaviorismo
atrativa aos seus defensores não é o seu poder explanatório, uma vez que esse
é claramente incoerente. Em vez disso, sua atratividade procede de uma visão
particular sobre o que a ciência deveria ser, que é baseada, por sua vez, numa
visão específica sobre a natureza da realidade e da divindade. É a visão
materialista da realidade última que define o limite em relação a quais
hipóteses parecem plausíveis e quais não. Assim, o que está em jogo é muito
mais do que uma “hipótese de trabalho” ou uma “suposição metodológica”
que é facilmente abandonada se se mostra infrutífera. Pelo contrário,
permanecem uma esperança e uma profecia exigindo a lealdade, mesmo em
face às incoerências mais instransponíveis. A explicação real de tal lealdade é
que ela está enraizada na crença religiosa na divindade da energia/matéria.
Esse é o motivo condutor da perspectiva, e a fonte real de seu poder sobre
aqueles que praticam a ciência sob sua direção.[153]
Certamente essa perspectiva é justificada por seus defensores com base
no desejo de maximizar, na psicologia, características louváveis como
precisão, aferição e economia de pensamento. Mas por mais desejáveis que
sejam essas características, sua importância nunca pode substituir a única
preocupação que deve superar todos os demais: a teoria explica os dados
relevantes? Nesse ponto eles parecem ter se esquecido do sábio conselho de
Aristóteles:
Nossa discussão será adequada se ela possui tanta clareza quanto à
temática permite, pois a precisão não deve ser buscada da mesma forma
em todas as discussões... É a marca de um homem educado buscar a
precisão na medida em que a natureza do tema admita. (Nicomachean
Ethics, l094b12 - 25)

Assim, mesmo que estados de consciência não sejam observáveis, ainda é


difícil imaginar o que poderia ser mais relevante ao entendimento do
comportamento humano do que o que as pessoas pensam, sentem, desejam, e
— especialmente — creem. Não é o behaviorismo em si mesmo uma crença
daqueles que o advogam? Não é essa crença a razão de eles “comportarem-
se” do modo que o fazem no exercício da psicologia? A moral da história
parece ser clara: ao invés de produzir explicações genuínas da experiência
perceptiva e emotiva humana, o behaviorismo cometeu suicídio intelectual às
portas da psicologia.

9.3 As teorias de Adler e Fromm


A segunda das tendências reducionistas mencionadas por Piaget é aquela que
tenta explicar o aspecto perceptual e emocional da vida como um produto de
causas sociais, em vez de físicas e/ou biológicas. Isso não significa que os
defensores de tais teorias socialmente orientadas ignorem completamente os
aspectos físicos ou biológicos dos humanos. Ao invés disso, isso significa
que enquanto os componentes físico e biótico dos humanos definem a base e
os limites para sua vida física, eles o fazem sem determinar como as pessoas
pensam, sentem ou agem. Um excelente exemplo dessa abordagem é a forma
pela qual Alfred Adler rompeu com as teorias behavioristas anteriores e com
Freud. Ao passo que Freud havia desenvolvido teorias a partir de uma
perspectiva que deseja, em última instância, reduzir a psicologia à física,
Adler insistiu que a psicologia é uma ciência social.[154] Ele advogava que a
meta da psicologia “não é compreender fatores causais, como na fisiologia,
mas as forças e metas [sociais] direcionadoras... que orientam todos os outros
movimentos psicológicos”.[155]
Assim, embora admitindo que nossa composição genética determine o
tipo de corpos que temos, bem como as necessidades bióticas da vida, Adler
diz que até mesmo as pulsões bióticas inatas são geridas de maneiras distintas
de acordo com a orientação social das pessoas.[156] Isso, defendia ele, é
verdadeiro não apenas para coisas como pulsões sexuais,[157] mas até mesmo
para a forma que as pessoas percebem o mundo. A percepção, disse Adler,
nunca é meramente a cópia sensorial, mas o produto da forma que as pessoas
coletam e arranjam as sensações devido aos fatores de sua vida social. Como
resultado, as pessoas literalmente não enxergam as mesmas coisas. Por causa
disso, é possível para a psicologia inferir conclusões de amplo alcance
relacionadas à vida individual interna a partir da forma como o indivíduo
percebe.[158]
Quais, exatamente, seriam os fatores sociais que conduzem os
sentimentos, a percepção e o comportamento humanos? De acordo com
Adler,
Os próprios preconceitos de alguém, as pressuposições “inconscientes”,
existem, como todas as expressões humanas, em um contexto social, e
de certa forma expressam o conflito pelo poder, relevância e segurança.
[159]

De forma resumida, todos lutam por “superioridade”. Esse é o “objetivo geral


do homem” e o “principal fator condicionante da vida humana”.[160] Visto que
a pulsão por superioridade social é o “objetivo de vida” de cada pessoa,
“ninguém pode tolerar os sentimentos de inferioridade real ou aparente”.[161]
(Foi nessa conexão que Adler cunhou o termo “complexo de inferioridade”)
A pulsão social de cada indivíduo por poder e superioridade está, no
entanto, em conflito direto com aquela mesma pulsão em outros. Deixado
sem restrições, ele produziria uma caos de conflito constate que tornaria a
sociedade humana impossível. Por essa razão, Adler argumentava que o
objetivo da superioridade é “ridículo a partir do ponto de vista da realidade”
(por “realidade” aqui ele quis dizer “realidade social”). O indivíduo, ele
insistia, exerce pouca impressão sobre a sociedade. E mais: cada indivíduo
depende da sociedade para a existência, de modo que a restrição que bloqueia
a pulsão por superioridade é realmente intransponível: os sexos precisam um
do outro, os filhos precisam dos pais, e a família depende, por sua vez, do
grupo social mais amplo. Assim, a pulsão que é o fator psicológico
determinante principal na vida humana também está em oposição
irremediável às condições sociais necessárias para a sobrevivência de cada
pessoa. Essas condições sociais podem ser preservadas apenas por meio de
ajustes ― principalmente a divisão do trabalho ― pelos quais as pessoas
cooperam para sobreviver ao invés de competirem pela superioridade:
Se as condições para nossa vida são determinadas em primeiro lugar
pelas influências cósmicas, elas também são adicionalmente
condicionadas pela vida social e comunitária dos seres humanos, e pelas
leis e regulações que emergem espontaneamente da vida comunitária.[162]

Adler chamou a essa dependência do indivíduo em relação ao grupo social a


“lógica da vida comunitária” — onde “lógica” se refere àquilo que é
“universalmente útil” e necessário para a sobrevivência do indivíduo. Ele
então utilizou esses termos para expressar seu ponto de que tudo o que
caracteriza os humanos enquanto tais se desenvolveu em razão da “lógica da
vida comunitária”. Adler afirmou que não apenas a linguagem, mas
também o pensamento e conceitos, como razão, entendimento, lógica,
ética e estética, têm sua origem na vida social do homem.[163]

Na teoria de Adler, portanto, cada humano está envolvido em um grande


conflito. Por um lado, um indivíduo solitário não pode sobreviver ou
reproduzir, e cada capacidade humana distinta evoluiu para responder às
necessidades sociais. Por outro lado, é precisamente a sociedade que é a fonte
dos sentimentos de inferioridade do indivíduo, sendo portanto o obstáculo
contra o qual o indivíduo luta. A disputa, no entanto, é totalmente unilateral:
nenhum indivíduo pode vencer a sociedade. Assim, o conflito pode ser
resolvido apenas de uma forma:
Nosso único recurso nesse dilema é assumir a lógica de nossa vida
grupal... como se ela fosse uma verdade última absoluta.[164]

Assim, as necessidades da sociedade devem ser consideradas como


primordiais, e o indivíduo deve se ajustar a elas. Essas necessidade se tornam
o padrão último por meio do que todos os valores, práticas, relacionamentos,
etc. devem ser julgados. Ou seja, eles são o padrão para aquilo que é normal e
anormal na psicologia.
O que nós chamamos de justiça e retidão, e consideramos mais valioso
no caráter humano, é essencialmente nada mais do que o cumprimento
das condições que emergem nas necessidades sociais da humanidade...
Podemos julgar um caráter como mau ou bom apenas a partir do ponto
de vista da sociedade.[165]

A forma que os indivíduos lidam com o ajustamento de suas pulsões pela


superioridade com as condições sociais de sobrevivência, Adler denominou
“estilo de vida”, que poderia ser psicologicamente tanto normal quanto
anormal. Em pessoas anormais seu “desajuste é sempre a incongruência entre
o estilo de vida e as demandas sociais ao invés de um conflito interno”,[166] de
modo que a “cura é sempre fortalecer o sentimento social em vez de tentar
restringir ‘maus” impulsos”.[167] Falando de forma geral, um estilo de vida
anormal pode ser caracterizado dessa forma:
A divisão do trabalho é uma necessidade absoluta para a preservação da
sociedade humana. Consequentemente, cada pessoa deve preencher um
lugar específico em algum momento. Se uma pessoa não participa dessa
obrigação, ele nega a preservação da vida social, da totalidade da raça
humana.[168]
Esse ponto geral é aplicado ao exemplo mais específico do sexo do
casamento da seguinte forma. Em um estilo de vida normal,
a atração sexual... [é] sempre moldada em linha com o desejo pelo bem-
estar humano... Um bom casamento é o melhor meio que conhecemos
para cultivar a futura geração da humanidade, e o casamento deveria ter
sempre isso em vista.[169]

À vista disso, quando um homem corteja uma mulher, ele o faz de uma forma
psicologicamente normal, caso possamos ver, por meio do que faz, que ele
está dizendo “sim” ao futuro da humanidade.[170] Nesse, como em outros
casos, são as “regras imanentes do jogo de um grupo... [que são] a verdade
absoluta” para o indivíduo.[171]
A ênfase de Adler de ajustar o indivíduo às necessidades do grupo
social levou-o a adquirir um grande interesse pelas teorias sociais de Marx e
Engels. Na verdade, ele admirava tanto suas obras que uma vez disse que
“Karl Marx demonstrou o caminho em direção à realização final do interesse
social”.[172] Entretanto, Adler rejeitou o determinismo histórico da teoria de
Marx. Ele corretamente concluiu que se tudo é predeterminado pelo fluxo da
história, não poderiam haver normas: nenhum certo e errado, anormal ou
normal. “Se os homens fossem completamente determinados pelas
circunstâncias,” ele disse, “não poderíamos falar de erros”.[173] Assim, ele
reverteu a ideia marxista de uma história controlada economicamente, e
manteve ao invés disso que
em cada presente imediato as condições econômicas são refletidas e
respondidas por cada indivíduo e cada grupo de acordo com seu estilo de
vida previamente adquirido.[174]

Ele reconheceu, assim, a necessidade, para qualquer teoria, de permitir que os


humanos tenham liberdade genuína para reconhecer a verdade. Ele
(novamente, de forma correta) viu que, se todos os pensamentos, crenças,
sentimentos e escolhas forem determinadas (i.e., forçados sobre os humanos
por condições externas), então também a aceitação determinista da teoria do
determinismo é forçada sobre eles pelas mesmas condições. Nesse caso eles
nunca poderiam afirmar saber que sua teoria é verdadeira, pois a teoria que o
declara seria autorreferencialmente incoerente. Em outras palavras, a teoria
exige que crença alguma seja um juízo livre, feito com base na experiência da
razão, mas sim sempre uma compulsão sobre a qual o crente não tem
controle.
Adler estava consciente de que se ele fosse simplesmente suplementar
o determinismo físico dos behavioristas com os determinantes sociais, ele não
terminaria por evitar o dilema do determinismo, mas teria apenas uma versão
mais complexa do mesmo. Ele estaria permitindo duas forças determinantes
(física e social) em lugar de apenas uma (física), mas não teria evitado a
inconsistência de assumir que ele é livre para verificar a verdade de sua
teoria. No entanto, apesar de aparentemente reconhecer esse ponto, Adler
nunca oferece uma teoria da natureza humana que permita liberdade genuína
em relação à aquisição de conhecimento. Em vez disso, ele cai precisamente
no determinismo bilateral que aparentemente reconheceu como algo a ser
evitado, ao continuar a considerar que pensamentos e sentimentos são
rigidamente determinados pela orientação social da pessoa, que é definida na
primeira infância:
Talvez há alguns leitores que têm a impressão de que estamos negando o
livre-arbítrio e o julgamento. Em relação ao livre-arbítrio, essa acusação
é verdadeira... Em nosso exame devemos desentocar a história dos
primeiros dias da infância [de um paciente], porque as impressões da
primeira infância indicam a direção... na qual ele responderá no futuro...
A pressão particular que ele sentiu nos dias da primeira infância
colorirão sua atitude em relação à vida e determinará... sua visão de
mundo... Não deveria nos surpreender aprendermos que as pessoas não
modificam sua atitude em relação à vida após sua infância.[175]

Outro problema que Adler deixou não solucionado emerge de sua aceitação
das necessidades da sociedade como o padrão para a normalidade
psicológica. Em sua visão, é sempre em relação às necessidades sociais do
grupo que o indivíduo deve se conformar. Isso exclui questionar se a própria
sociedade pode ser anormal. Ao mesmo tempo, isso também resulta no fato
de que ele é forçado a considerar qualquer líder que de fato alcançou
superioridade social como anormal!
Outro bom exemplo do reducionismo na direção social é o pensamento
de Eric Fromm, que assumiu a tarefa de corrigir as falhas no pensamento de
Adler. Em seus primeiros trabalhos, Fromm também se autodenominou um
psicólogo social e, como Adler, rejeitou teorias que consideram os humanos
como determinados pelos aspectos físico/biótico de sua natureza. Ele disse
que, ao passo que Freud enxergava a psicologia como uma “ciência natural
do homem”,[176] a natureza humana verdadeira é aquela das “atividades livres,
conscientes”.[177] Tais atividades conscientes livres não são determinadas
pelas pulsões sexuais “naturais” do sexo e da fome, mas incluem as formas
que as pessoas necessitam e lidam com coisas tais como beleza e amor.[178]
Também como Adler, Fromm tinha uma grande admiração por Marx. Ele
entendia que as classes e os fatores econômicos enfatizados por Marx
determinavam o lado social da vida humana. Esses fatores são transmitidos
ao indivíduo por meio da família, que é o “agente psicológico da sociedade”.
[179]
Uma vez que a própria família é um produto das condições econômicas e
de classe da sociedade, Marx nos apresentou a forma de criticar e julgar o
tipo de sociedade e família que deveríamos ter. Uma psicologia plenamente
social não é, portanto, simplesmente lidar com a adequação do indivíduo à
sociedade, mas é também capaz de dizer se a própria sociedade é o que
deveria ser.[180]
Mas a atitude de Fromm de deslocar a psicologia social em uma
direção mais amplamente marxista o permite evitar um dos dois problemas
que lhe foram legados por Adler. Ela evita o problema de ter de admitir que
não exista padrão pelo qual julgar uma sociedade, permitindo-o dizer que
qualquer tipo de sociedade de algum modo distinto da socialista é deficiente.
Mas isso não evita o problema de que a própria teoria da história e da
sociedade de Marx era tão determinista quanto as teorias que Fromm estava
rejeitando. Para Marx, as interpretações das pessoas sobre justiça ou amor,
assim como suas concepções de normal e anormal, são totalmente
determinadas por seu condicionamento socioeconômico. Como, então,
podemos ser livres para afirmar as normas pelas quais julgamos a sociedade,
se nossas ideias de normas são socialmente determinadas?
Num primeiro momento, Fromm tentou contornar o determinismo de
Marx dizendo que a teoria marxista não deveria ser entendida como se
significasse que cada indivíduo é psicologicamente determinado pela
economia e classe. Assim, não se deveria interpretar Marx como se este
ensinasse que a “pulsão aquisitiva” é o motivo primordial de cada ato do
indivíduo, mas apenas das estruturas sociais nas quais o indivíduo vive.[181]
Mas, tendo feito esse ponto, Fromm se resguarda, pois ele também diz que
“na interação entre as pulsões psíquicas e as condições econômicas, o último
tem a primazia”.[182]
Ele repete que isso não significa que os fatores econômicos são
sempre os mais fortes, mas apenas que eles são “menos modificáveis” pelo
indivíduo. Contudo, ao mesmo tempo, ele insiste novamente em que o papel
dos “fatores formativos primários” vão para as condições econômicas, de
modo que a “tarefa da psicologia social é explicar... atitudes psíquicas e
ideologias — em particular suas raízes inconscientes — em termos da
influência das condições econômicas sobre as tensões libidinais”.[183] Nesse
ponto, Fromm quer que os humanos sejam “essencialmente condicionados
pela história” para propósitos de explicação psicológica, embora
simultaneamente quer que a vida humana tenha um “dinamismo interno
próprio”, de modo que seja livre para descobrir a verdade![184]
Essa variação inconsistente entre dois polos de pensamento é
claramente assumida na obra de Fromm, Man for Himself [O homem por si
mesmo] (1947), mas é mais claramente apresentada em The Art of Living [A
arte de viver] (1956) e The Heart of Man [O coração do homem] (1964). Nas
últimas duas obras Fromm é explícito sobre o dilema. Já em The Sane Society
[A sociedade sã] (1955), ele havia reconhecido que Marx não havia
solucionado esse impasse. Enquanto Marx havia percebido muito do que é
verdadeiro sobre a forma que a sociedade determina o indivíduo, sua visão
não era somente “simplisticamente econômica”[185], mas irrealista. Pois Marx
pensou não apenas que o socialismo fosse necessário para curar a sociedade,
mas que era suficiente para fazê-lo.[186] Em The Heart of Man, Fromm repete
sua crítica em maiores detalhes. Ele censura Marx por pressupor em todos os
momentos que o homem possui uma natureza essencial, enquanto também
diz que o homem se cria no processo da história e não é nada além do que o
“conjunto de suas relações sociais”.
Nesse ponto Fromm afirma que o homem tem, de fato, uma natureza
essencial, mas que essa natureza é “uma contradição inerente na existência
humana”![187] A contradição, obviamente, é precisamente aquela pela qual ele
criticou Marx por não ter solucionado: por um lado o homem é um animal,
natural, e determinado pela natureza e a sociedade; por outro lado, o homem
é consciente (“vida consciente de si”), racional, e “livre no pensamento”.[188]
É por meio de sua racionalidade livre que os humanos são capazes de saber
que a norma tanto para indivíduos quanto para a sociedade é a regra do amor:
ame seu próximo como a si mesmo. Dessa forma, para Fromm, assim como
para Kant antes dele, a liberdade humana repousa na razão (prática) que
conhece a verdade ética. E com Rousseau, ele enxerga o homem como
essencialmente bom em seu eu mais íntimo. São os determinantes externos da
ordem social que o tornam mau.
Isso, no entanto, não é mais do que dizer que ambos os lados da
inconsistência são de algum modo verdadeiros, que um humano é tanto livre
quanto não livre no mesmo sentido e ao mesmo tempo. E repare que mesmo
para além de tal contradição patente, manter o lado de liberdade do dilema
implica que não existe ciência da psicologia como Fromm a concebeu. Pois
se os pensamentos e as escolhas humanas são genuinamente verdadeiros, e se
eles causam as ações humanas, então nem as escolhas nem o comportamento
resultante deles pode ser totalmente explicados em termos de quaisquer leis
— quanto menos ser previsto ou controlado por meio do conhecimento de
leis.
É desnecessário dizer que tentar aceitar crenças mutuamente
contraditórias, em vez de desenvolver uma teoria que as evite, faz surgir
problemas ainda piores do que aqueles que Fromm pensa resolver. Aplicado
aos nossos conceitos, a lei lógica da não contradição ordena isso para
qualquer tipo de conceito. Ou ele inclui uma característica particular, ou não
o faz, e ele não pode simultaneamente incluir e não incluir os mesmos
elementos ao mesmo tempo. Qualquer (suposto) conceito que falhe em
incorporar essa lei não seria meramente vago ou incerto, ele literalmente
careceria de qualquer significado, deixando de ser um conceito. Mesmo
assim, Fromm defende que rejeitemos as leis da lógica e aceitemos sua
afirmação de que tais contradições mútuas seriam ilusórias.
Em The Art of Loving,[189] Fromm tenta desenvolver seu ponto em
maiores detalhes. O pensamento ocidental, diz ele, tem sido dominado pela
aceitação de axiomas lógicos desde que foram claramente formulados por
Aristóteles, o qual complementou que o axioma da não contradição, em
particular, é o “mais certo de todos os princípios”. Como notado acima, essa
lei diz que nada pode ser simultaneamente verdadeiro e não verdadeiro no
mesmo sentido e ao mesmo tempo. Isso significa que nada, por exemplo,
pode ser completamente azul e completamente não azul ao mesmo tempo, e
que nenhum enunciado pode ser simultaneamente completamente verdadeiro
e completamente falso. Contra isso, Fromm afirma que existe a opção da
“lógica paradoxal”, a qual aceita que as coisas podem simultaneamente ter e
não ter a mesma qualidade ao mesmo tempo, e que um enunciado pode ser
simultaneamente verdadeiro e falso. Para apoiar essa afirmação, ele menciona
que isso foi aceito há muito tempo por alguns pensadores chineses e hindus, e
em tempos recentes por Hegel, Marx, e outros filósofos dialéticos. Desse
modo ele conclui que a forma de resolver dilemas aparentemente insolúveis
entre o determinismo e a liberdade é aceitar ambos como verdade. Não
podemos perceber como ambos são verdadeiros, obviamente, mas isso se dá
porque a “mente humana percebe a realidade em contradições”.[190]
O programa da rejeição da lógica para aceitar crenças mutuamente
contraditórias não é, no entanto, somente uma esperança inofensiva e
extravagante de que, de algum modo, crenças lógicas incompatíveis podem
ser ambas verdadeiras. Como foi assinalado acima, isso resulta em nada
menos do que a destruição de cada um e todos os conceitos que podemos
possuir. Mesmo o conceito da rejeição da lei da não contradição depende de
se assumir e utilizar essa lei, uma vez que sem ela o conceito de rejeitá-la não
poderia ser pensado ou afirmado. E uma vez que o próprio Fromm entende
que o conceito da rejeição da lei exclui o conceito de sua aceitação, ele
termina por assumir a verdade da lei! Assim, a proposta de Fromm é
autoconjecturalmente incoerente.
Essa consequência temerária também não foi evitada por Hegel, Marx,
ou qualquer dos outros pensadores dialéticos que Fromm cita na esperança de
nos convencer de que está em boa companhia. Cada um e todos eles utilizam
a lei da não contradição para formar seus conceitos, defender suas teses, e
criticar visões rivais. Eles então negam a lei mesma que que lhes possibilita
fazer essas coisas, a fim de justificar uma inconsistência em sua própria
teoria. A única forma por meio da qual eles executam o truque que torna tal
ação possível é empregarem sua negação da lógica seletivamente; eles
abraçam apenas as contradições que eles desejam escusar, enquanto
raciocinam de modo consistente e criticam teorias concorrentes quando elas
são inconsistentes. Se eles fossem empregar sua negação da não contradição
em todos os pontos ao longo de sua teoria, o resultado seria um amontoado
absurdo que falharia em expressar, afirmar, ou negar qualquer crença que
seja.
A posição de Fromm também é um exemplo dessa mesma seletividade
dogmática. Ele apresenta sua visão como se houvesse razões para rejeitar a
lei da não contradição, e então argumenta que sua visão do divino (ele o
denomina “realidade última”) segue logicamente dessa rejeição. Ele ignora o
fato de que para realizar qualquer inferência lógica — para perceber que uma
crença “segue logicamente de” outra — significa que a crença acerca da qual
se diz que “segue” é exigida sob pena de se contradizer. Havendo negado
todas as bases para qualquer inferência, Fromm prossegue para inferir que a
própria realidade deve ser uma unidade mística toda-abrangente que
harmoniza todas as contradições que o pensamento lógico assume como real.
Ele então infere complementarmente que uma vez que o pensamento humano
não pode deixar de ser contraditório, a realidade última não pode ser
conhecida pelo pensamento. Ele oferece um resumo das expressões hindu,
budista e taoísta dessa mesma visão, e novamente infere que aceitar sua visão
do divino exige rejeitar a ideia bíblica de Deus como o Criador cognoscível,
individual e pessoal. Ele então oferece ainda outra inferência lógica quando
insiste que:
A oposição é uma categoria da mente do homem, não sendo ela mesma
um elemento da realidade... na medida em que Deus representa a
realidade última, e na medida em que a mente humana percebe a
realidade em contradições, nenhuma afirmação positiva pode ser feita
acerca de Deus.[191]

Desse modo, Fromm termina adicionando incoerência autorreferente às


contradições e à incoerência autoconjectural já asseveradas por sua teoria.
Pois ele elabora o enunciado positivo sobre Deus de que nenhum enunciado
positivo sobre Deus é possível.
Não podemos deixar de nos perguntar: o que conduziu Fromm até tal
posição caótica? Ele começou com o desejo de desenvolver uma psicologia
social, mas terminou no abandono da lógica e, portanto, de toda ciência. A
resposta é que o motivo real da guinada radical de Fromm não foi outra coisa
senão uma conversão religiosa: ele foi de uma crença sobre a divindade pagã
a uma crença sobre a divindade panteísta na qual a criação que
experimentamos não é mais do que uma ilusão contida dentro de uma
divindade toda-abrangente, totalmente inconcebível. É por essa razão que,
juntamente com algumas religiões panteístas, ele está preparado para
dispensar toda diferença e “oposição” encontradas na experiência humana
como mera aparência ou ilusão — incluindo as leis lógicas.
Fromm já havia rejeitado a ideia bíblica da divindade desde o princípio.
Ele considerava a crença em Deus, o criador transcendente, com meramente a
projeção de um desejo por um Pai celestial para cuidar de nós. Seguindo
Freud, ele designou isso de “ilusão infantil”. Portanto, ele teorizou sobre a
pressuposição do tipo pagão de crença religiosa.[192] Ele buscou algo no
universo acessível à experiência humana e o considerou como a realidade
autoexistente da qual tudo o mais depende. Mas ao perseguir a psicologia a
partir dessa pressuposição religiosa pagã, Fromm incorreu em sucessivas
incoerências. Ao mesmo tempo, ele notou ainda mais claramente que os
melhores pensadores antes dele também haviam incorrido nelas e nunca as
haviam solucionado. Consequentemente, ele veio a acreditar que não era
simplesmente coincidência o fato de tantas teorias construídas a partir de uma
base pagã incorrerem em contradições, mas que as contradições surgiriam em
qualquer teoria governada por tal fé. Confrontado com essa inferência, a
crença religiosa de Fromm foi abalada e assumiu uma nova direção. Ele
percebeu, como Marx não o havia percebido, que abrir mão das leis lógicas e
considerar todas as contradições como ilusórias também significaria abrir
mão do materialismo juntamente com toda a perspectiva pagã para a
teorização. Como alguns pensadores hindus, e grande parte dos budistas e
taoístas, ele veio a considerar o pensamento lógico como intrinsecamente
contraditório e enganoso, produzindo apenas ilusão e não realidade. Em todas
as ocasiões, disse ele, a verdade é que “ela tanto é quanto não é”.[193] Assim,
ele também somou a isso uma ênfase de grande parte dos pensadores
panteístas em defender uma experiência mística, irracional, como a forma de
conhecer a verdade sobre a realidade divina una, inconcebível. Em obras e
palestras posteriores, ele adotou uma versão especificamente budista dessa
visão (Zen Buddhism and Psychoanalysis [Zen budismo e psicanálise], 1960).

9.4 Natureza humana


Vimos acima alguns exemplos de como as teorias da psicologia variam em
sua explicação do lado psico-sensorial da experiência humana dependendo de
sua visão panorâmica sobre como todos os aspectos se relacionam. Nesse
sentido, elas não são distintas das teorias que apresentam outros aspectos
como sua temática específica. Mas, no caso da psicologia, o aspecto que
caracteriza a perspectiva para essa relação também é aquele (ou aqueles) que
a teoria defende como sendo o centro essencial da natureza humana. Como
Soloman Asch observou,

Cada disciplina possui seu espírito especial, o qual consiste em uma


forma particular de observar seus dados. O estudo do homem... também
requer sua própria perspectiva, a qual deve iniciar-se com alguma
concepção, ainda que experimental, daquilo que é ser um humano.[194]

J. A. Brown aplicou o mesmo ponto especificamente à psicologia:


Todas as escolas de psicologia... inevitavelmente se iniciam com uma
crença sobre a natureza essencial do homem que forma o marco
referencial no qual seus fatos e os resultados de suas observações são
enquadrados, ao invés do contrário, como gostariam que acreditássemos.
[195]

Uma vez que o tema da natureza humana é um tema que identificamos dentre
as verdades reveladas que podem orientar a teorização (capítulo 6, nota 11),
deveríamos de momento observar brevemente aquilo que as Escrituras dizem
sobre esse tópico. Obviamente, não podemos esperar uma teoria detalhada da
natureza humana a partir das Escrituras, mas o que elas de fato nos dizem
pode auxiliar a formar uma perspectiva distintivamente bíblica para nossa
produção teórica. Além disso, isso servirá um propósito duplo, na medida em
que é um ponto geralmente ignorado ou subestimado por pensadores teístas
assim como amplamente desconhecido por parte de não teístas.
O ensinamento bíblico central sobre a natureza humana que é relevante
para o momento é que ela é centralizada no eu humano, o qual as Escrituras
denominam “coração” (embora ela também utilize ocasionalmente os termos
“espírito” ou “alma”). Cada humano é visto como uma unidade essencial, não
importam quantos tipos diversos de funções um indivíduo possa revelar nos
vários aspectos da criação. O termo “coração” não é, portanto, utilizado para
significar meramente emoção. Assim, embora falemos geralmente de sermos
guiados por nossa cabeça (intelecto) como o oposto de sermos guiados pelo
coração (sentimentos), os escritores bíblicos falam do coração como a
identidade central do eu de uma pessoa a partir da qual fluem as fontes da
vida (Prov. 4:23). Na visão bíblica o coração é, portanto, o centro do
pensamento, da crença, do conhecimento, da vontade e do sentimento, e a
sede das disposições, talentos e temperamento inato de uma pessoa. Ele é
também a fonte e raiz do bem e do mal que uma pessoa pensa ou faz (Ex.
28.3; Sl. 90.12; Mt. 12.34, 35 e 15.18; 2 Co. 3.14, 15). Ligado a isso é
significativo que as Escrituras afirmem que apenas Deus conhece o coração
humano (1 Sm. 16.7; 2 Cr. 6.30; l Rs 8.39; Jr. 17:9, 10), uma vez que é isso
que esperaríamos caso o coração fosse o polo subjetivo último de toda
atividade humana. Pois nesse caso ele não poderia tornar-se um objeto para si
mesmo, e seríamos incapazes de analisá-lo e conceituá-lo, já que ele próprio
deve ser o agente da análise. Isso não significa que não tenhamos ideia (em
vez de um conceito) do coração humano. Mas significa que as várias ideias
sobre sua natureza são sempre reflexões indiretas daquilo que uma pessoa crê
como divino.
Esse, então, é o significado mais profundo do ensinamento bíblico de
que os humanos são criados “na imagem de Deus”. Isto é, isso é verdadeiro
não apenas sobre como os seres humanos são, mas também sobre a única
maneira que eles podem chegar a entender a si mesmos. Em outras palavras,
aqueles que não creem nem modelam sua ideia de natureza humana baseados
no Criador bíblico inevitavelmente derivarão sua ideia de natureza humana da
própria natureza de qualquer falsa divindade que coloquem no lugar de Deus.
[196]

A visão de que o “coração”, ou eu, é o agente em todas as funções da


vida humana é, para nossos propósitos, o principal ponto de orientação sobre
a natureza humana, que podemos extrair das Escrituras. Desse modo, antes de
prosseguir para demonstrar seu significado para as teorias, precisamos notar
que essa visão está em discordância com a noção popular entre os teístas de
que um humano não é uma unidade essencial, mas uma dualidade de duas
entidades — uma alma e um corpo (isso já foi tocado nas citações de Herberg
no capítulo 3). Na verdade, muitos teístas creem que o dualismo seja
ensinado pelas próprias Escrituras e como sendo a base para a doutrina da
vida após a morte. Desse modo, defende-se amplamente que apenas o corpo
morre, ao passo que a alma jamais, de modo que o corpo não é essencial ao
ser humano.
Tocamos esse ponto anteriormente, mas ele é especialmente pertinente
aqui para relembramos que essa visão tem sido confrontada com sucesso em
anos recentes por estudiosos bíblicos de contextos distintos que
demonstraram que essa visão popular é derivada da influência da filosofia
grega em vez de da própria Bíblia. As Escrituras não veem o corpo como
uma simples carapaça externa, desnecessária, para a alma. E nem é a
promessa da vida eterna baseada no ensinamento de que a alma seja
naturalmente imortal. Antes, a ideia bíblica de vida eterna é que esta é
assegurada apenas pela promessa de Deus, e de que o que Deus promete é a
ressurreição da pessoa inteira — ou seja, a ressurreição de um novo corpo —
no dia do juízo.[197] Esse tópico não pode ser defendido em toda sua extensão
aqui, de modo que simplesmente estipularei que, no que se segue, hei de
admitir essa visão holística, em vez da visão popular dualista, da natureza
humana.[198]
A visão integral recusa, portanto, a identificar o corpo humano
exclusivamente com certos aspectos da criação (por exemplo, o espacial, o
físico e o biótico) atribuindo, ao mesmo tempo, outros aspectos
exclusivamente à mente ou alma (o lógico e volitivo, por exemplo). Ela
rejeita a posição de Platão de que a alma pode existir separadamente do corpo
porque ela conhece verdades eternas, racionais, e pode portanto ser
naturalmente imortal como essas verdades. A importância dessa visão
integral é o fato de que se recusa a identificar a natureza humana com um ou
dois aspectos da criação sob as leis pelas quais os humanos vivem e operam.
Fazer isso seria aceitar a visão reducionista da natureza humana que iria, por
sua vez, superestimar o papel dos aspectos identificados como a natureza
humana quando comparados aos demais. De forma contrária, a doutrina
bíblica considera o coração humano como mais do que a soma de todos os
seus aspectos; embora ele opere igualmente em todos os aspectos, ele não
pode ser identificado com (ser nada mais do que) um único aspecto, ou uma
combinação deles. Há algo relacionado ao coração que excede os aspectos,
colocando-o em dependência direta do Criador, e que pode ser aberto para
um relacionamento pessoal com Deus. Essa visão, pois, evita toda visão
reducionista da natureza humana. Ao mesmo tempo, ela explica o sentido
importante segundo o qual os humanos são livres tanto no pensamento quanto
na ação.[199] Pois embora humanos existam e operem dentro dos limites
estabelecidos pelas leis de cada aspecto, o eu humano não é inteiramente o
produto deles ou de quaisquer forças causas na criação. Em vez disso, cada
coração humano é a criação de Deus.
Assim, concordo com Gordon Allport quando ele diz que as visões
reducionistas da natureza humana resultam em uma série de teorias
unilaterais. Allport diz: “são apenas aspectos de nossa vida total que são
como computadores, como compostos bioquímicos, ratos em um labirinto, ou
como o comportamento social de insetos.” A maneira de evitar teorias
reducionistas, sugere ele, seria possuir um “pluralismo sistemático”, mas ele
duvida de que isso possa ser alcançado, devido às muitas definições rivais de
natureza humana.[200] O que Allport não enxerga, no entanto, é que essas
definições rivais são, elas mesmas, o resultado de várias pressuposições
religiosas pagãs. É porque pensadores já identificaram a natureza da realidade
inteira com um ou mais de seus aspectos que eles então identificam a
natureza humana com aqueles próprios aspectos. É por isso que uma visão
reducionista da natureza humana reflete uma visão pagã da realidade e
deveria, pois, ser rejeitada por qualquer teísta. Foi esse ponto que
impressionou, em um primeiro momento, Herman Dooyeweerd, lecando-o a
iniciar sua reforma da filosofia com uma visão não reducionista da natureza
humana. Essa percepção, disse ele, foi
O grande ponto de inflexão em meu pensamento... quando também uma
nova luz foi lançada sobre a derrocada de todas as tentativas, incluindo a
minha própria, de estabelecer uma síntese interna entre a fé cristã e uma
filosofia que é radicada na fé e na autossuficiência da razão humana.[201]
Por conseguinte, ele expressou a relevância da visão bíblica acerca do
coração desta maneira:
Existem muitas ciências especiais interessadas no estudo do homem.
Mas cada uma delas o considera a partir de um ponto de vista, ou
aspecto, particular. A física, a química, a biologia, a psicologia, a
história, a sociologia, a ética, e assim por diante, podem cada uma delas
oferecer informações interessantes sobre o homem. Mas quando
perguntamos a elas: “O que é o homem mesmo, na unidade central de
seu eu?”, essas ciências não têm resposta... O eu não deve ser
determinado por algum aspecto de nossa existência temporal, uma vez
que ele é o ponto de referência central de todos eles.[202]

Foi assumindo esse ponto sobre a natureza humana enquanto microcosmo


que Dooyeweerd viu-se capaz de expandi-lo e aplicá-lo ao resto da realidade
criada enquanto macrocosmo. Isso o levou a perceber que, embora vários
tipos de coisas não humanas têm, cada uma delas, um caráter definido, estas
coisas são semelhantes aos seres humanos na medida em que não têm uma
natureza independente, intrínseca, que as fazem ser o que são, porque é Deus
que as fazem ser o que são. Sua característica mais essencial é depender de
Deus.
Simples o quanto podem parecer esses pontos, eles têm consequências
de longo alcance para a produção de teorias. O próximo capítulo examinará
em maiores detalhes por que esses insights bíblicos exigem a construção de
uma teoria não reducionista da realidade, e os capítulos finais apresentarão a
proposta do próprio Dooyeweerd sobre como seria uma teoria dessas.
CAPÍTULO 9. A NECESSIDADE DE UM
RECOMEÇO

9.1 Introdução
Vimos acima exemplos substanciais de como algumas das teorias mais
importantes desenvolvidas em três ciências diferem entre si devido ao modo
que são reguladas por ideias conflitantes sobre a natureza básica da realidade.
E vimos como essas ideias sobre a natureza da realidade são, por sua vez,
governadas por ideias contrárias quanto ao que é o divino per se. Conforme
mencionado anteriormente, no entanto, esses exemplos são oferecidos para
esclarecer o sentido da afirmação de que teorias são reguladas religiosamente,
e não para demonstrar sua verdade. Até o momento, nenhum argumento foi
apresentado a fim de demonstrar por que tal controle religioso é inevitável.
Assim, a primeira tarefa desse capítulo será fazer exatamente isso,
apresentando razões pelas quais o controle religioso que observamos nos
capítulos dos estudos de caso é inevitável para qualquer teoria científica ou
filosófica. Se essas razões tiverem êxito, elas terão demonstrado por que
teorias da ciência e da filosofia jamais podem ser neutras em relação a uma
ou outra crença sobre a divindade, confirmando, pois, que o pensamento
teórico não é autônomo. Ao mesmo tempo, elas também terão demonstrado
por que é o tipo indireto de controle religioso que observamos nos estudos de
caso que merecem ser entendidos como o núcleo da declaração bíblica de que
a crença em Deus impacta todo o conhecimento e toda a verdade.[203]
A segunda tarefa desse capítulo será, então, re-examinar os argumentos
oferecidos durante a primeira tarefa, a fim de observar como eles também
oferecem uma crítica filosófica das teorias de redução. A crítica apoiará ainda
mais minha afirmação de que cristãos e outros teístas deveriam abandonar a
estratégia de tentar adaptar teorias de redução acrescentando a elas a
condição de que Deus teria criado cada aspecto em relação ao qual o restante
da criação supostamente se reduz. Já notamos que essa condição não altera o
fato de que são as reivindicações de redução que governam o poder
explanatório da teoria, de modo que a crença em Deus falha em regular seu
conteúdo. A crítica da redução, no entretanto, irá além dessa objeção, no
entanto, para demonstrar por que a própria ideia de redução como uma
estratégia para explicação é infrutífera.
A tarefa final deste capítulo será fechar com um exame daquilo que
considero como a principal razão pela qual grande parte dos teístas
permanecem comprometidos com a adaptação de teorias de redução. Esse
exame será o equivalente a uma crítica religiosa da redução oferecida para
suplementar a crítica filosófica. Já vimos por que a estratégia da redução,
tomada de forma pura, assume um compromisso subjacente com uma ou
outra crença pagã sobre a divindade. É por essa razão que teístas sempre se
sentem obrigados a neutralizar essa suposição para tornar tais teorias
compatíveis com a crença em Deus. A crítica religiosa a ser oferecida
demonstrará, no entanto, por que a própria estratégia utilizada para
neutralizar o caráter pagão da redução possui suposições pagãs, e desse modo
falha ao batizar (ou circuncidar) teorias de redução para a aceitabilidade
teísta.
O efeito cumulativo dessas duas críticas será o de pavimentar o
caminho para um programa de teorização que é deliberadamente regulado
pela crença em Deus ― um programa que exige que as teorias existentes
sejam re-interpretadas, ou novas teorias sejam desenvolvidas, de um modo
completamente não reducionista. Assim, o capítulo 11 terá início com uma
descrição de uma teoria da realidade teísta, sistematicamente não
reducionista, aquela desenvolvida por Dooyeweerd.[204] Essa teoria será
pormenorizada posteriormente no capítulo 12 quando a utilizarmos para
desenvolver o perfil de uma sociologia distintivamente não reducionista. E
ela será desenvolvida ainda mais amplamente no capítulo 13 aplicando, tanto
ela própria quanto suas consequências para a sociologia, ao esboço de uma
teoria política distintivamente não reducionista. Uma vez que essas
aplicações adicionais da teoria também utilizarão alguns ensinamentos do
Novo Testamento, as teorias sociológica e política esboçadas serão não
somente teístas em seu contorno, mas especificamente cristãs.[205]

9.2 Por que as teorias são inevitavelmente reguladas por alguma crença
sobre a divindade?
Comecemos revendo alguns pontos já estabelecidos.
Os aspectos, vimos acima, são tipos básicos de propriedades e leis, e o
que estou para dizer sobre eles se aplica igualmente a qualquer listagem deles
que um pensador aceite, não apenas a lista com a qual estou trabalhando
provisoriamente.[206] Meus exemplos irão, no entanto, ser inferidos daquela
lista porque a maioria de seus elementos são amplamente aceitos. Você pode
também recordar que as teorias da realidade têm tradicionalmente tomado um
ou dois aspectos como a natureza básica da realidade. Elas têm feito isso ou
propondo que seu aspecto favorito é o único genuíno (a versão forte da
redução), ou que seus aspectos favoritos geram todos os demais (a versão
fraca da redução). Diz-se que ambas as propostas “reduzem” o mundo dado
na experiência pré-teórica a qualquer (ou quaisquer) aspecto(s) favorecido(s)
como a natureza básica da realidade. A versão forte é reducionista porque ela
poda da realidade (como a experimentamos de maneira pré-teórica) todos os
tipos de propriedades e leis além daquela favorecida. A versão fraca é
reducionista no sentido de que ela rebaixa o status de todos os outros aspectos
ao torná-los produtos e, portanto, menos reais, do que o(s) aspecto(s) que
favorece. Finalmente, vimos que ambos os tipos de redução conferem o status
de divindade sobre qual (ou quais) for(em) o(s) aspecto(s) que eles
favorecem, uma vez que qualquer aspecto tomado como sendo a natureza
básica da realidade é, por meio disso, também tratado como
incondicionalmente não dependente.[207]
O que, portanto, conduziu os teóricos a proporem teorias
reducionistas? Por que tantos teóricos se sentiram compelidos a especular
sobre a natureza básica da realidade? Por que teorias não poderiam
simplesmente ignorar esse tema e construir explicações no interior dos
próprios aspectos? Invocando novamente a metáfora já utilizada: por que as
teorias não se contentam em examinar as contas do colar e simplesmente
ignoram seu cordão? A melhor forma de responder a essa questão, eu penso,
é colocar outra primeiro. Ou seja, precisamos elaborar a questão que as
teorias de redução se oferecem por responder. A questão é essa: o que torna
possível (e atual) que as propriedades de diferentes tipos aspectuais sejam
conectadas da forma na qual as encontramos em nossa experiência, ou
postulamos em nossas teorias? Cada um dos tipos, afinal de contas,
demonstra uma diferença qualitativa implacável em relação a todos os demais
tipos. No entanto, as propriedades de diferentes tipos combinam-se nos
objetos que experimentamos de tal modo que aqueles objetos nos são
apresentados como unidades, não uniões; cada um é um indivíduo com sua
própria identidade. Do mesmo modo, nas teorias a questão da conectividade
interaspectual emerge. Pois as teorias propõem conceitos que combinam
propriedades de diferentes tipos, e especificam como elas se relacionam. A
questão, dessa forma, diz respeito ao que torna possível a forte conectividade
entre os tipos. É por essa razão que as hipóteses sobre a natureza básica da
realidade (o cordão para as contas do colar) figuravam entre as primeiras a
serem propostas quando a produção teórica sistemática primeiro surgiu (na
medida em que sabemos que isso se deu na Grécia antiga). Dessa forma, se as
teorias devessem verdadeiramente evitar tais visões panorâmicas da
realidade, e assim evitar a atribuição de divindade a algo, elas teriam de
evitar o tema da conectividade interaspectual. O que está em jogo, portanto, é
se esse tema é ou não evitável. Minha resposta é que ele não é, e oferecerei o
argumento para essa afirmação em estágios distintos a fim de torná-lo tão
claro quanto possível.
O primeiro estágio do argumento a favor da inevitabilidade da
inclusão da conectividade interaspectual se dá por meio da inferência da
atividade de abstração necessária para a construção de qualquer teoria.
Relembre o que já foi pontuado sobre a abstração no capítulo 4. Notamos que
isso significava destacar e extrair de um contexto mais amplo algum escopo
mais limitado com a finalidade de focalizar nossa atenção. Notamos, também,
que um alto grau de abstração é exigido para teorias da ciência e da filosofia,
um grau que isola não apenas propriedades individuais, mas tipos inteiros
delas, em relação aos objetos que as apresentam. É dessa maneira que as
várias ciências foram primeiramente diferenciadas, a saber, abstraindo-se
diferentes tipos de propriedades e leis como seus campos de investigação.
Desse modo, na medida em que a alta abstração é inevitável para a formação
de teorias, a questão sobre como os distintos aspectos se conectam se torna
também inevitável. Pois uma vez que os abstraímos dos objetos e os
diferenciamos nitidamente uns dos outros, somos então forçados a dizer
como eles se relacionam para explicar o que estamos tentando explicar. De
forma contrária, o pensamento pré-teórico nunca levanta a questão sobre
como os tipos-de-leis-e-propriedade relacionam-se, uma vez que ele nunca os
abstrai das coisas que os apresentam, nem os distingue uns dos outros de
forma claramente definida, tornando sua conectividade um problema.
Um vez que esse primeiro estágio do argumento aponta para a forma
que o tema da conectividade interaspectual surge pela atividade da abstração
e da diferenciação, também é importante relembrar que a descrição da
abstração oferecida anteriormente não era, ela mesma, uma teoria. Não era
uma hipótese sobre como a abstração funciona, mas uma descrição sobre o
que ocorre na abstração — uma descrição que você pode confirmar em suas
próprias autorreflexões.[208] Assim, o argumento desse ponto não se baseia em
algum conjunto de premissas privilegiadas que todos devam aceitar sob a
pena de serem considerados sub-racionais. E nem depende de qualquer
suposição em relação à natureza do eu cognoscente humano. Ele meramente
descreve a atividade da abstração e questiona se você pode reflexivamente se
observar durante o ato de fazer aquilo que descreve. Além do mais, essa
descrição não necessita ser completa, mas apenas verdadeira no que diz
respeito às suas afirmações.
O segundo estágio do argumento lida com uma diferença entre o grau
em relação ao qual podemos ser bem sucedidos ao abstrair aspectos das
coisas que os apresentam, em comparação com o que ocorre quando tentamos
abstraí-los uns dos outros. Nossa declaração acerca disso é que, embora
possamos, de fato, isolar os aspectos dos objetos da experiência pré-teórica,
jamais podemos isolá-los completamente uns dos outros. (É por essa razão
que no parágrafo anterior eu falei sobre “diferenciar nitidamente” os
aspectos, e não isolá-los abstrativamente.) A conectividade entre os aspectos
é tão intensa que não é possível pensarmos em qualquer um deles por si só. É
isso que nos impede de construir uma teoria estritamente localizada dentro
dos limites de qualquer um deles. Qualquer tentativa da fazê-lo termina com
a necessidade de relacionar as propriedades do aspecto sob investigação às
propriedades dos outros aspectos. Assim, uma teoria sempre será confrontada
com a questão relacionada ao tipo de conectividade relaciona seu aspecto a
todos os outros. Uma teoria pode ou não abordar e responder a essa questão,
mas se ela não o faz, ela ainda assume tacitamente que a conectividade
satisfaz alguma descrição, sendo, dessa forma, de um tipo específico.
Esse estágio do argumento é semelhante ao primeiro estágio pelo fato
de também não ser uma hipótese. Ele parte da premissa de que, na
experiência, são-nos apresentadas coisas, eventos, estados de coisas, relações,
pessoas, etc., e que esses objetos da experiência apresentam tipos
qualitativamente distintos de propriedades, todas as quais demonstram
relações ordenadas. Mas claramente essas suposições não são hipóteses; não
é uma suposição que experimentemos coisas-com-propriedades-ordenadas! E
se for questionado que também assumimos que as coisas-com-aspectos são
reais, nossa resposta é dupla. Primeiro: elas são dadas em nossa experiência
como reais, assim a crença em sua realidade também não é uma hipótese; a
negação de sua realidade seria uma hipótese. Segundo: não precisamos
assumir sequer sua realidade para que esse argumento seja bem-sucedido vis-
à-vis o ponto em questão. Ele é bem-sucedido somente se assumirmos que
eles são dados à nossa experiência. (Ocorrerá, no entanto, que ao assumir
somente esse sua disponibilidade, o argumento também pode demonstrar por
que qualquer tentativa de negar de forma indiscriminada a experiência pré-
teórica, i.e., negar que existam coisas-com-aspectos, conduzirá
necessariamente à incoerência.)
Da mesma forma, como no primeiro estágio do argumento, esse estágio
também renuncia antecipadamente qualquer afirmação de haver inserido um
conjunto de premissas supostamente privilegiadas, de forma que nenhuma
pessoa racional poderia negá-lo. Uma vez que esse estágio do argumento não
é uma dedução, ele não possui qualquer premissa. E nem é uma inferência
indutiva, de modo que sua conclusão não é meramente provável. Pelo
contrário, o argumento assume a forma de um experimento mental que você
pode confirmar em sua própria autorreflexão. Isso significa, no entanto, que
para captar plenamente a força do argumento, você deve de fato executar o
experimento!
O experimento é tentar pensar qualquer aspecto totalmente isolado de
todos os outros da maneira que disse acima ser impossível.[209] Isto é, você
deve tentar estruturar a ideia de qualquer aspecto de tal modo que refute
minha afirmação de que isso não pode ser feito. Se você pode fazê-lo, meu
argumento cairá instantaneamente. Se você não pode, você terá visto por si
próprio por que a questão da conectividade interaspectual não pode ser
evitada. Então vamos tentar.
Comecemos no nível mais geral, o nível dos aspectos inteiros. E vamos
tomar como nosso primeiro exemplo o aspecto físico ― o tipo físico de
propriedades e leis. O experimento é ver se você pode estruturar qualquer
ideia daquele aspecto em completo isolamento de todos os aspectos não
físicos. Assim, comece despojando de sua ideia de “físico” todas as conexões
com os aspectos quantitativo, espacial, sensorial, lógico e linguístico. Você
tem alguma coisa restando? Eu não. Uma vez que todos os outros aspectos
são subtraídos do físico, eu descubro que o “físico” não tem qualquer
significado. Além disso, descubro que o mesmo resultado se dá não importa
em relação a qual aspecto esse experimento é executado. Tente com o
sensorial, por exemplo. O que é deixado de sua ideia daquele aspecto uma
vez que todas as conexões com os aspectos quantitativo, espacial, físico,
lógico e linguístico tenham sido descartados? Propriedades e leis lógicas
também reproduzem o mesmo resultado. Por exemplo, o axioma fundamental
daquele aspecto, a lei da não contradição, diz que “nada pode ser tanto
verdadeiro quanto falso no mesmo sentido ao mesmo tempo”. Ele, assim, faz
referência tanto a outros “sentidos” quanto ao tempo, sendo inevitavelmente
conectado a propriedades não lógicas. Assim, a lei não pode ser pensada ou
enunciada à parte daquela conectividade.
Talvez colocando o argumento no nível de aspectos inteiros seja
excessivamente abstrato para alguns leitores. Então vamos tentar
experimentar novamente, dessa vez no nível de propriedades específicas.
Tentemos isso com a propriedade do peso em seu sentido físico (não do peso
como uma sensação sensorial, mas como a atração gravitacional de uma coisa
por outra). Agora, execute o mesmo experimento: despoje de sua ideia dessa
propriedade qualquer conexão com propriedades tais como ser quantificável,
ser espacialmente localizável, ser móvel, ser logicamente idêntica a si mesmo
e ser capaz de ser referida em uma linguagem. Resta algo? Ou tome como
exemplo a qualidade sensorial vermelha, tentando a mesma coisa. Você pode
estruturar uma ideia de vermelho que não possui quantidade, não tem
localização ou forma, não tem relação com as propriedades físicas da luz, e
não é logicamente distinguível de outras cores? Ou tente com a propriedade
lógica de uma coisa ser idêntica a si mesma (a propriedade de uma coisa ser
indistinguível de si mesma, no sentido de que a lei da não contradição é
violada ao negá-la.) Eu penso que você descobrirá que uma coisa puramente
lógica é tão literalmente impensável quanto uma puramente física, ou
puramente sensorial; para ser verdade, algo teria de possuir alguma
combinação ordenada de propriedades não lógicas, as quais, tomadas
conjuntamente, distinguem e, desse modo, identifiquem essa coisa. Por favor,
note que esse ponto de nenhuma forma nega que as leis da lógica sejam reais,
ou que elas realmente se apliquem tanto para as coisas que experimentamos
quanto para nosso pensamento. Ele apenas nega que possamos concebê-las
em isolamento de propriedades e leis não lógicas.
Se os resultados desse experimento são os mesmos para você como o
são para mim, então você terá percebido por si mesmo por que abstrair tipos
de propriedades e leis torna a explicação de sua conectividade um problema
filosófico verdadeiramente inevitável. Conforme disse, uma teoria pode
permanecer tácita em relação a esse tema e simplesmente pressupor que todos
os tipos se conectam, mas ela não será capaz de fazê-lo sem também assumir
que a conectividade tem alguma natureza particular, que é de certo tipo. Já
vimos como inúmeras teorias diferem exatamente nesse tema, e notamos que
suas descrições conflitivas sobre a natureza da conectividade interaspectual
são as mesmas que suas teorias conflitivas sobre a natureza básica da
realidade. Pois se os aspectos são impensáveis à parte de sua conectividade,
então, até onde sabemos, eles dependem dessa conectividade para sua
existência. Desse modo, a não ser que se admita que a conectividade
dependa, por sua vez, de algo mais, atribui-se a ela [a conectividade] o status
de divindade per se. É por essa razão que as teorias não são capazes de evitar
a inclusão ou a pressuposição de uma ou outra crença religiosa.
Caso este último ponto ter sido explicado de forma demasiadamente
rápida, elaborá-lo-ei de outro modo.
Aquilo que torna possível e real a conectividade entre tipos
qualitativamente distintos de propriedades e leis é aquilo do qual tudo o mais
depende para sua existência, uma vez que — até onde somos capazes pensar
neles — eles não podem existir à parte uns dos outros. É por essa razão que
teorias têm sido forçadas a oferecer explicações sobre a natureza de sua
conectividade. Uma teoria reducionista fraca tenta resolver o problema
tornando seu(s) aspecto(s) favorecido(s) a razão necessária e suficiente para a
existência dos aspectos restantes. Nesse caso, a explicação que ela oferece em
relação ao modo que estão conectados é que eles são gerados pelo(s)
aspecto(s) que a teoria favorece para esse papel. Uma teoria reducionista
forte, por outro lado, tenta dissolver o problema ao invés de resolvê-lo. Ela
afirma que não existem aspectos genuínos além daquele que ela favorece
como a natureza da realidade. Mas, mesmo para o reducionismo forte, o
assunto da conectividade interaspectual ainda surge de forma inevitável. Pois
seus proponentes têm de admitir que o mundo, como é dado à nossa
experiência, parece revelar propriedades de tipos qualitativamente distintos.
Se assim não fosse, teóricos não poderiam sequer formar ideias alternativas
sobre a natureza da realidade — ideias que o reducionismo forte admite
existir, mas que busca qualificar como falsas. Assim, em vez de evitar o tema
como um todo, o reducionista forte simplesmente administra a questão da
conectividade interaspectual de um modo diferente, a saber, interpretando-a
como uma relação entre realidade e ilusão. Por exemplo, uma versão de
materialismo forte declara que todas as coisas e propriedades aparentemente
não físicas são o produto daquilo que rejeitam como “psicologia-popular”.
Mas ela tem de admitir que pessoas recebem, de início, suas ideias de
propriedades a partir de sua experiência pré-teórica. Se os materialistas
simplesmente negassem que uma pessoa sequer experimenta o que parecem
ser propriedades não físicas, sua teoria seria imediatamente considerada tão
implausível ao ponto de não ser levada a sério.
Resumindo: é a questão da conectividade interaspectual que não pode
ser evitada, e que força as teorias a assumirem ou especificarem a natureza
dessa conectividade. Essa questão é inevitável porque é de igual modo
impossível pensar isoladamente os diferentes tipos aspectuais; tornamo-nos
explicitamente conscientes deles apenas ao abstraí-los dos objetos da
experiência pré-teórica e ao diferenciá-los em contraposição uns com os
outros. É esse fato intratável que faz vir à tona o tema relacionado à natureza
de sua conectividade, e responder a essa questão é o mesmo que propor (ou
assumir) alguma ideia sobre a natureza básica da realidade. Pois aquilo que se
propõe como a natureza dessa conectividade também é, por conseguinte, a
natureza da realidade não dependente da qual tudo o mais depende; isso
identifica o tipo de cordão que une as contas do colar ao produzi-las. E é por
isso que as teorias reducionistas da realidade não podem evitar conferir o
status de divindade àquilo que eles concebem como sendo esse cordão. Pois o
que uma teoria assume como sendo aquilo de que tudo o mais depende torna-
se, com isso, totalmente não dependente e portanto divino per se.[210]

9.3 Uma crítica filosófica da redução como uma estratégia para as


teorias
No que se segue argumentarei que, embora a questão da conectividade
interaspectual seja apropriada e inevitável, a redução, enquanto estratégia
para respondê-la, não é nem uma coisa nem outra. Observe que a estratégia
admite desde o princípio que a natureza da conectividade deve ser qualificada
por um ou outro dos próprios aspectos, de modo que uma ou mais das contas
do colar seja, na verdade, seu cordão. Isso é o mesmo que conferir divindade
a um ou mais aspectos, e é a razão por que a estratégia presume alguma
forma de religião pagã. Mas, conforme argumentarei agora, tal suposição não
é justificável nas formas típicas de justificação para teorias. Assim, a despeito
do fato de que isso funciona dentro do contexto de uma teoria, a própria
suposição é uma crença religiosa, e não somente uma hipótese teórica.
Anteriormente eu disse que os mesmos argumentos que demonstram
por que as teorias não podem evitar alguma pressuposição religiosa
controladora que também apresenta uma crítica da redução como estratégia
de explicação. Então vamos revisar os argumentos oferecidos acima,
observando-os a partir de um ângulo distinto a fim vermos por que as coisas
se dão dessa forma. Antes de fazer isso, no entanto, deixe-me reafirmar que o
que esse outro ângulo pretende demonstrar não é que todas as atribuições de
divindade a qualquer aspecto do mundo sejam falsas, mas sim a razão pela
qual são injustificáveis. A crítica, portanto, não equivalerá a uma prova de
que Deus existe, ou que apenas Deus tenha o status divino. Em vez disso, ela
será a evidência de que todas as atribuições de divindade são trazidas para a
teorização a partir da experiência pré-teórica, sendo, nesse sentido, artigos de
fé tanto quanto a crença em Deus.
Assim, a primeira parte da crítica da redução será esboçada a partir do
primeiro estágio do argumento oferecido acima, e diz respeito àquilo que foi
pontuado sobre a atividade da abstração. Ela chama a atenção para a maneira
na qual alguns pensadores inferiram a existência independente de um aspecto
particular a partir do modo pela qual este aspecto parece ser independente
como um resultado de ter sido abstraído. Por exemplo, Aristóteles
argumentou que a habilidade da mente humana de formar conceitos lógicos
deve ser realmente independente do corpo humano.[211] Sua base para essa
afirmação é que, uma vez que o pensamento lógico é capaz de formar
conceitos sobre o corpo e o resto do mundo, ele deve, pois, existir
independentemente do corpo e do resto do mundo. Assim, seu argumento é
um caso claro de abstração do aspecto lógico (do pensamento humano) e da
atribuição de existência real, separada, independente a este aspecto, a
despeito do fato de que sua suposta existência independente seja o produto de
sua própria atividade de abstrair e distinguir! Descartes também cometeu esse
mesmo erro, mas, em seu caso, foi ainda pior. Pois ele está claramente
consciente de que ele endossando a inferência de que se ele pode separar uma
coisa da outra no pensamento, então essas existem separadamente uma da
outra na realidade.[212]
O ponto desta parte da crítica é, pois, bastante simples: abstrair
qualquer aspecto da experiência e então admitir que a resultante aparência de
sua separação demonstra sua existência independente é cometer o erro que
anteriormente denominei incoerência autoperformativa. Uma vez que a
abstração e a distinção nítida do aspecto favorecido é um produto da
atividade do pensador, o pensador não tem direito de crer que sua distinção
no pensamento corresponda à independência desse aspecto na existência.
Lembre-se do exemplo de se colocar um termômetro em uma proveta com
água para medir sua temperatura? Se afirmássemos que o termômetro nos diz
qual era a temperatura da água antes de nela inseri-lo, teríamos ignorado o
fato de que a atividade que executamos para adquirir essa informação
modificou a própria informação. Assim também se dá com a abstração.
Podemos isolar um aspecto das coisas que o apresentam e distinguir
nitidamente esse aspecto dos demais, para que o examinemos de forma mais
aproximada. Mas o fato de confinarmos nossa atenção nele dessa forma
jamais pode justificar a conclusão de que ele é realmente capaz de existir
independentemente de todos os outros aspectos.
O segundo estágio dessa parte do argumento também depõe contra
Aristóteles, mas muito mais contra Descartes. Pois o experimento mental
acima demonstrou que nunca concebemos de fato qualquer aspecto em
completo isolamento dos demais. Tenha em mente, no entanto, que esse
ponto não é simplesmente o reverso do de Descartes. Não é o caso de que,
enquanto Descartes afirma que se podemos pensar num aspecto isolado, este
deve ser capaz de existir dessa forma, nós simplesmente inverteremos e
diremos que se você não pode pensar num aspecto isolado, este não pode
existir dessa forma. Antes, nosso ponto é que se você não pode estruturar a
ideia de X existindo independentemente (em que X é qualquer aspecto que se
queira), então você nunca poderá justificar a afirmação de que X existe
daquela forma. Isso não significa negar que as pessoas possam e de fato
formam a crença de que algum aspecto do mundo tem status divino, ainda
que não possam de fato estruturar uma ideia desse aspecto em sua suposta
independência. Elas fazem isso pela razão já mencionada algumas vezes, a
saber, que as pessoas experimentam esse aspecto como se fosse a natureza da
divindade. Assim, há um sentido no qual a experiência religiosa pagã está em
desacordo consigo mesma. Por um lado, algum aspecto do mundo da
experiência pré-teórica parece ser divino; por outro lado, o experimento
mental demonstra que não podemos estruturar a ideia de que qualquer dos
aspectos possua tal status. À vista disso, a intuição pagã da divindade
equivale a ter a experiência de algo que não podemos pensar como não
dependentemente real, que, no entanto, possui realidade não dependente de
um modo que não somos capazes de pensar.
Essa é uma posição decididamente precária para se estar, visto que se
faz dessa crença a base de uma teoria. Mas, mais do que isso, essa é uma
posição terrível para se estar na medida em que consideramos a condição
religiosa existencial do pensador. É por essa razão que as crenças pagãs
demonstram o caráter de inquietude mencionado anteriormente, no qual a
deificação de um aspecto constantemente provoca a contra-deificação de
outro. É a isso que Agostinho se referiu em relação à sua própria condição
anterior a se tornar um cristão, quando disse: “Inquieto está nosso coração,
Senhor, até em Ti encontrar repouso”.
A impossibilidade de se justificar as crenças divinas pagãs pode
também ser colocada em várias outras formas, mas talvez as mais fáceis de se
perceber sejam as duas que apresento agora. Uma delas é que nosso
experimento mental demonstrou por que a própria expressão “X que existe
independentemente” (onde X é qualificado por um ou mais aspectos do
cosmos) está, via de regra, no mesmo barco que a expressão “círculo
quadrado”. Podemos dizer as palavras, mas não podemos estruturar uma ideia
daquilo que buscam designar. Mas se não podemos fazê-lo, como será
possível oferecer qualquer argumento para demonstrar que “X tem existência
independente” é verdadeiro?[213]
A outra tem a ver com a forma usual pela qual tais teorias tentam
contornar a questão de não se identificar a separação abstrativa no
pensamento com a independência real na realidade. Grande parte dos
filósofos do século passado, ou próximo disso, concordaria com meu ponto
contra Descartes. Mas, em contrapartida, eles proporiam justificar a seleção
de seu aspecto favorito como aquele em relação ao qual todos os demais
dependem por meio da demonstração da superioridade explanatória dessa
posição, em vez de considerarem que suas abstrações implicam
independência. Isto é, eles tentariam demonstrar que tomar o aspecto X como
a natureza daquilo que tudo o mais depende é justificado porque oferece a
única ou melhor explicação de tudo o que desejamos explicar. Mas essa
abordagem também é anulada por nosso experimento mental. Pois, na medida
em que se pode considerar que as propriedades e leis de X explicam tudo o
mais, elas também são pensadas em relação aos outros tipos de propriedades
e leis, e não isoladas destes. Assim, se o próprio isolamento de seu aspecto
favorito X é o que não pode ser concebido, postular “leis de conexão” entre X
e outros aspectos falha em produzir qualquer explicação genuína, pois não se
pode pensar as leis de conexão como sendo exclusivamente X em natureza
mais do que se pode pensar qualquer outra coisa. E, a menos que as leis de
conexão fossem exclusivamente do tipo X de leis, X não seria a natureza
daquilo de que tudo o mais depende e em relação à qual tudo se reduz.
Assim, postular as leis de conexão hipotéticas não alivia em nada o fato de
“exclusivamente X” ser impensável. Ainda seria o caso de que, até onde
conhecemos X, este depende de sua conectividade com os demais aspectos
do todo, ao passo que essa conectividade seria supostamente explicada por
leis de conexão de uma natureza exclusivamente X! Em suma, o corpo inteiro
dos argumentos oferecidos como evidência de uma suposta independência de
X constantemente apela a X em sua conectividade com os demais aspectos, e
não a X como independente, enquanto a conectividade de X com os outros
aspectos não pode, ela mesma, ser puramente X em natureza. Desde que isso
seja assim, não podem haver bons argumentos para a superioridade
explanatória em tomar X como aquilo de que tudo o mais depende. Em vez
disso, a incapacidade de se conceber o “X que existe independentemente” é
simplesmente recorrente em todos os pontos ao longo da teoria, infectando
toda a alegada evidência para o poder explanatório de se tomar X como tendo
existência independente.
Deve-se notar que essas últimas críticas, como aquelas que as
precederam, também são aplicações do critério para teorias o qual denominei
no capítulo 4 “coerência autoperformativa”. Em cada caso, o que se opõe ao
êxito de uma afirmação de redução são atividades do pensamento que
precisamos realizar para produzir uma teoria (abstração), ou que podemos
executar para avaliar uma teoria (um experimento mental). E podemos
confirmar os resultados da aplicação desses testes em nossa própria
autorreflexão ao observamo-nos no próprio ato de abstração ou ao realizar o
experimento mental.
Para esclarecer ainda mais as duas últimas formas pelas quais utilizei
esse critério, ilustrarei cada uma delas novamente, dessa vez aplicando-as ao
conceito de um átomo. Como notamos anteriormente, a teoria atômica não
pode simplesmente dizer “existem átomos”. Ela tem de especificar quais
tipos de coisas os átomos supostamente são, e, ao fazer isso, inevitavelmente
faz surgir o tema da conectividade. Além do mais, isso ocorre seja quando a
teoria propõe que a natureza de um átomo inclua propriedades de tipos
distintos, seja quando propõe que sua natureza é constituída de propriedades
de apenas um tipo. Pois mesmo no último caso, a teoria deve especificar
como as propriedades que constituem a natureza dos átomos relacionam-se às
propriedades dos outros aspectos que não constituem sua natureza. Assim, se
uma teoria dissesse que um átomo é exclusivamente físico, por exemplo, ela
teria então de explicar como essas propriedades físicas típicas se relacionam,
por exemplo, com as propriedades sensoriais de nossas observações. Pois a
menos que haja tal conexão, e a menos que esta seja forte, a observação dos
experimentos não teria valor para a física. Um reducionista materialista forte
teria de replicar que simplesmente não existem tais propriedades sensoriais,
enquanto um reducionista materialista fraco teria de dizer que as propriedades
sensoriais são todas geradas por combinações de entidades que possuem
propriedades exclusivamente físicas. Observe por favor que, enquanto a
primeira resposta anula o valor dos experimentos no modo que são
efetivamente experimentados, a segunda torna a conexão entre os tipos de
propriedades como sendo, ela mesma, física.
Nós já vimos por que ambas as respostas entram em conflito com o
experimento mental. Se não podemos estruturar a ideia de qualquer tipo de
propriedades e leis em isolamento de todas as demais, não podemos
estruturar a ideia de átomos exclusivamente físicos, ou de uma relação causal
exclusivamente física entre os átomos e quaisquer propriedades não físicas.
(E isso é bem diferente da dificuldade de se explicar como uma causa
puramente física poderia produzir um efeito não físico!) Em relação a ambas
as questões, propor essa relação causal puramente física para resolvê-los
apenas re-instaura os problemas a serem solucionados.
O que foi dito acima sobre o materialismo se aplica igualmente a todos
os outros “ismos”. Não importa, para o presente argumento, qual aspecto ou
combinação deles se propõe como aquilo ao que tudo o mais se reduz.
Qualquer que seja o aspecto selecionado, permanece ainda o argumento de
que, já que não se pode pensar em nenhum deles à parte dos demais, também
nenhum deles pode ser justificado como se existisse dessa forma. Nem é essa
crítica efetiva somente contra teorias que selecionam apenas aspectos dos
objetos de nossa experiência para explicar a conectividade interaspectual.
Essa se aplica igualmente às teorias subjetivistas que propõem que é o sujeito
cognoscente (humano) quem conecta todos os tipos de propriedades das
coisas, concedendo, assim, ordem ao mundo que experimentamos. Teorias
subjetivistas também se dirigem para o mesmo beco sem saída, porque elas
ainda são obrigadas a dizer qual aspecto da mente humana, ou do eu, realiza
esse trabalho. Isso é assim porque os humanos não apenas experimentam e
distinguem os vários aspectos, mas também os possuem. Um ato de
pensamento, por exemplo, apresenta propriedades quantitativas, espaciais,
físicas, bióticas, lógicas, etc., como já notamos em nossa discussão sobre o
behaviorismo. Desse modo, a questão se torna inevitável em relação a que
tipo de atividade subjetiva oferece a conectividade sem a qual não se pode
conceber nem as propriedades individuais, nem tipos inteiros delas. Dessa
forma, os mesmos becos sem saída assomam para as teorias reducionistas do
sujeito cognoscente, assim como o fizeram para as teorias reducionistas dos
objetos conhecidos.
À vista disso, mais uma vez é o tema da conectividade interaspectual
que é a chave para perceber por que o envolvimento de alguma crença sobre a
divindade nas teorias é inevitável. Uma vez que não podemos formar a ideia
de qualquer aspecto existindo independentemente dos demais, todas as
explicações teóricas são forçadas a propor ou presumir algo como o
garantidor de sua conectividade. Se um (ou mais) dos próprios aspectos
desempenha esse papel, ele se torna, por meio disso, a natureza básica do
mundo dado à nossa experiência. E uma vez que esse, por essa razão, se torna
a natureza da realidade independente da qual tudo o mais depende, ele
também desempenha o papel de identificar-se com a natureza da divindade
per se. Ao mesmo tempo, no entanto, o fato de que qualquer aspecto, no
escopo mesmo em que podemos pensar em absoluto neles, existe apenas em
uma conectividade inquebrável com todos os demais, qualquer crença de que
um aspecto possua o status divino é incapaz de justificação teórica. Tais
crenças, portanto, não apenas satisfazem nossa definição de crenças sobre a
divindade per se, mas exercem um papel regulador nas teorias, embora
permanecem incapazes de justificar os modos pelos quais as teorias buscam
ser justificadas.
Para qualquer pessoa ainda tentada a negar esse último ponto, eu
pergunto: você pode realmente acreditar que teorias são decididas por uma
faculdade (mítica) de “racionalidade neutra, pura”? Se sim, por que um
kantiano nunca consegue convencer um tomista pelo argumento racional? Por
que os hegelianos não persuadem os materialistas? Por que nada é resolvido
entre os dualistas e monistas século após século? Observe que essas
diferenças atingem não somente teorias sobre a realidade, mas a própria
noção sobre o que é ser racional! Não têm tanto a epistemologia quanto a
ontologia sido reducionistas, estando portanto sob o controle religioso?
Houve teorias do conhecimento que propuseram que este é essencialmente
lógico, lógico/sensorial, matemático, físico/biótico, histórico, linguístico,
ético e inúmeras formas de combinações deles. Teorias do conhecimento não
apenas diferem por serem fundacionalistas, coerentistas, pragmatistas,
externalistas, internalistas, etc., mas também pela natureza que elas atribuem
aos fundamentos do conhecimento, à coerência entre as crenças, ou ao que
significa para uma crença ser bem-sucedida. Da mesma forma, elas postula
alguma natureza sobre o eu cognoscente para o qual diz-se que a justificação
é interna, externa, prática, etc. Nesse sentido, a epistemologia sempre tem
seus olhos voltados para a ontologia (e vice-versa), enquanto ambas estão
igualmente sob o feitiço de alguma crença sobre a divindade.[214]
Por fim, desejo enfatizar que, mesmo embora o ponto dessa crítica não
seja demonstrar que todas as crenças reducionistas são falsas, mas demonstrar
por que são todas elas igualmente religiosas, isso ainda assim é um resultado
significativo. E a razão é porque isso se equivale a nivelar o campo entre os
teístas e não teístas. Não é mais possível que as várias posições pagãs
ignorem o caráter religioso de suas crenças reducionistas, proclamando-as
dogmaticamente como sendo vereditos da “razão” em vez de da fé, ou como
“científicas” em oposição a sectárias, ou como produtos do “pensamento
livre” em lugar de dogma. Em vez disso, é necessário admitir que todos nós,
igualmente, teorizamos sob o controle daquilo que cremos como o divino per
se. A forma justa de se comparar essas visões, portanto, será julgar entre suas
resultados para as teorias. Pois se as crenças religiosas pagãs, e seu
consequente reducionismo, não podem produzir explicações coerentes do
mundo, a falha será ainda mais expressiva caso aconteça de que teorias não
reducionistas desenvolvidas sobre uma base teísta o possam.

9.4 Uma crítica religiosa da redução como estratégia para as teorias


A crítica a ser apresentada aqui será “religiosa” no sentido de que focará na
questão sobre o que há no entendimento de Deus dos teístas que os induziu a
tentarem preservar a estratégia da redução em seu trabalho teórico.
Começarei essa crítica uma vez mais revisando alguns pontos já
estabelecidos, de modo a assegurar de que o pano de fundo para tal esteja
claro.
Já notamos que a grande maioria dos pensadores teístas não viram
necessidade para um abandono tão amplo e radical na produção teórica da
redução como uma estratégia para as teorias. Eles tentaram, ao invés disso,
neutralizar o caráter pagão das teorias reduzidas ao acrescentar a elas a
condição de que Deus teria criado qualquer aspecto (ou aspectos) ao qual o
restante do cosmos supostamente se reduz. Ofereci algumas razões sobre o
porquê desse subterfúgio não ser bem-sucedido. A principal razão é que o
trabalho explanatório real de tal teoria ainda repousa sobre sua redução de
tudo o mais a um ou mais aspectos da criação, de modo que nada de seu
poder explanatório é modificado pela anexação da crença em Deus. (O único
papel deixado para a crença em Deus em tal teoria seria torná-la em um asilo
para a ignorância como Descartes fez quando disfarçou sua inabilidade de
explicar a interação da mente e corpo denominando-a “um milagre causado
por Deus”.) O subterfúgio, portanto, deixa a grande maioria dos conteúdos de
tal teoria, e todo o seu poder explanatório, inalterado pela crença em Deus.
Desse modo, falha em adequar-se ao ensinamento bíblico de que conhecer a
Deus impacta toda a verdade e todo o tipo de conhecimento. Ademais, agora
que vimos como as crenças sobre a divindade podem e de fato regulam
teorias, pergunto: por que deveríamos pensar que crenças pagãs podem
regular teorias interna e amplamente, mas não a crença em Deus? Por que não
deveríamos esperar que a crença em Deus possa pelo menos delimitar um
espectro de hipóteses aceitáveis como as crenças pagãs o fazem? Por que
pensar que apenas crenças sobre a divindade pagãs podem oferecer uma base
a partir da qual explicar a natureza das coisas, enquanto a crença em Deus
pode apenas ser anexada a teorias como uma reconsideração, semelhante ao
rabo do burro em uma festa infantil?
Outros pontos já estabelecidos também apoiam essa crítica inicial do
subterfúgio de adaptação. A primeira diz respeito à forma que as teorias de
redução fracas argumentam que um ou dois aspectos da criação geram todos
os demais. Essa declaração atribui aos aspectos redutores uma relação com o
resto da criação que é a mesma relação de Deus com os aspectos redutores.
Dessa forma, o subterfúgio de adaptação dá a esses aspectos um status semi-
divino; a condição teísta acrescida nega que eles sejam divinos per se, mas
ainda assim conferem a eles um status que está mais próximo da
independência divina do que o status que o restante da criação possui. Seu
status, portanto, corresponde à ideia pagã de deus! Por essa razão, é justo
dizer que o subterfúgio confere a certos aspectos da criação o status de cripto-
divindades que medeiam entre Deus e o restante da criação, ao passo que as
Escrituras sempre falam como se Deus sustentasse diretamente todas as
coisas para além de si mesmo. Esse ponto é especialmente significativo de
um ponto de vista cristão, porque o Novo Testamento insiste que o único
mediador entre Deus e a Criação é Jesus Cristo. E embora a mediação da
salvação de Cristo se dê por meio de sua natureza humana, sua mediação do
poder criador e sustentador de Deus é tida como dependente de sua natureza
divina. É apenas por meio dele, como a segunda Pessoa da Trindade, e não
mediante quaisquer aspectos, propriedades, ou leis da criação, que “todas as
coisas foram feitas” (Jo 1. 3), e “todas as coisas subsistem” (Co. 1.17). Como
São Gregório de Palamas colocou certa vez, com exceção de Cristo, os
“cristãos não podem tolerar qualquer substância intermediária entre o Criador
e as criaturas, nem qualquer hipóstase mediadora [realidade fundacional]”.
[215]

Considere o mesmo ponto afirmado de uma forma hipotética: à parte de


uma ou outra crença sobre a divindade pagã, qual teria sido a razão pela qual
os pensadores antigos presumissem desde o princípio da produção teórica que
a forma de construir uma teoria da realidade é reduzindo todos os demais
aspectos do cosmos a um ou dois deles? Se a teoria da realidade tivesse se
iniciado com os judeus em vez dos gregos pagãos, por exemplo, a doutrina da
criação teria — e deveria — tê-los conduzido em uma direção reversa. Se as
teorias tivessem se iniciado sob a influência da doutrina bíblica de que todo o
cosmos depende de Deus para sua existência, elas poderiam ter sido
realizadas sob a suposição de que é somente de Deus que tudo o mais
depende para sua existência, de modo que um princípio orientador para as
teorias teria sido a negação desse status a qualquer outra coisa. Em vez de
entender que as teorias da realidade podem aproximar-se bastante de uma
visão pagã sem, no entanto, serem totalmente pagãs, os teóricos judeus teriam
sido guiados por um horror religioso ao reducionismo. Ao invés de elevarem
certos aspectos como se fossem mais reais do que os restantes, sugerindo
assim que Deus canalizaria seu poder sustentador por meio dos tais, suas
teorias teriam partido da suposição de que todos os aspectos da criação
dependem de Deus diretamente.
Essas críticas ao subterfúgio da adaptação são, no entanto, apenas
preliminares à crítica que estou em vias de apresentar. Levantá-las acima
pode auxiliar a preparar o terreno para essa crítica, pois as réplicas que elas
geralmente provocam tornam claras as pressuposições mais profundas sobre
as quais o programa de adaptação e manutenção da estratégia da redução
repousa. Minha crítica, portanto, será endereçada a essas pressuposições mais
profundas, às crenças que são as razões reais para que a redução tenha
continuado a ser atrativa aos teístas, apesar de seu caráter inerentemente
pagão.
As réplicas às objeções levantadas acima geralmente se iniciam com o
ponto de que as Escrituras não são um tratado técnico, com o que se pretende
dizer que não é possível esperar que Escrituras lidem com temas teóricos. Em
particular, eles prosseguem, as Escrituras não podem lidar com as entidades
conhecidas pela abstração, que povoam as teorias da ciência e da filosofia.
Desse modo, o ensinamento de que Deus é o Criador deve ser entendido
como se significasse que Deus trouxe à existência o mundo de nossa
experiência cotidiana a partir do nada. Mas esse ensinamento, segue a réplica,
não exige que sustentemos que Deus também trouxe à existência tais
“realidades abstratas” como leis, propriedades, tipos, universais, proposições,
conjuntos, números, etc. Em vez disso, entidades abstratas podem muito bem
apresentar existência independente, ou um status intermediário entre Deus e o
resto da criação. Na verdade, eles dizem, estamos amplamente justificados
em crer que tais entidades independentes existam, porque a forma mais
plausível de explicar os atributos do próprio Deus é dizer que eles são
propriedades que possuem existência necessária, independente e, portanto,
incriadas. Afinal de contas, se Deus é incriado e não dependente, as
qualidades de sua natureza também devem ser.
Por fim, a réplica afirma que apenas esse entendimento da natureza de
Deus oferece uma explicação plausível para o modo que nossa linguagem
pode aplicar-se a Deus.[216] Seu ponto é que a linguagem humana pode falar
verdades sobre Deus porque existe uma analogia entre os significados dos
termos que utilizamos acerca de Deus e o que esses termos significam
quando os utilizamos no tocante às criaturas. Em outras palavras, o
significado do termos extraídos de nossa experiência enquanto criaturas é
algo semelhante àquilo que é verdade sobre Deus, embora não exatamente o
mesmo. Seus significados não são exatamente o mesmo porque Deus possui
as qualidades denominadas por aqueles termos no grau mais elevado o
possível, enquanto as criaturas as possuem em graus menos elevados,
imperfeitos. Dessa forma, enquanto a justiça, a bondade e a sabedoria de
Deus são infinitamente perfeitas, a justiça, a bondade e a sabedoria humanas
não o são. Essa visão, portanto, explica como nossa linguagem pode falar
verdades sobre Deus, a despeito do fato de que os significados de nossos
termos são derivados de nossa experiência de criaturas. Ela descreve tanto as
formas em pelas quais esses significados são (parcialmente) os mesmos
quanto as formas pelas quais eles diferem quando utilizados em relação a
Deus. Essa réplica deve também concluir pontuando que essa teoria analógica
da linguagem religiosa não apenas tem sido aceita por séculos, mas que
mesmo Karl Barth, o teólogo mais proeminente do século XX a rejeitá-la,
teve de admitir que ele não tinha nada para colocar em seu lugar.[217]
Aqui, portanto, temos uma ampla variedade de réplicas às objeções
(preliminares) listadas acima. Elas não dispensam a ironia do fato de que a
tentativa por parte de pensadores teístas em harmonizar suas teorias com a
crença em um Criador transcendente favoreceu um modo de fazê-lo que
insiste que muitas entidades e propriedades encontradas no cosmos são
independentes de Deus e, portanto, incriadas. E elas também não negam a
ironia ainda maior de que a razão pela qual esses pensadores se sentiram
compelidos a manter tal posição é seu entendimento sobre a natureza desse
Criador! Mas a ironia dessa teologia não é um argumento contra ela. As
questões que se colocam diante de nós dizem respeito a se essa visão da
natureza de Deus é (1) internamente coerente e (2) consistente com o que é
revelado sobre Deus nas Escrituras. Essas questões são importantes porque é
a essa visão da natureza de Deus a que me referi acima como a
pressuposição mais profunda dentre as tentativas dos teístas de preservarem
as teorias de redução. Assim, ao examiná-la tentarei deixar claro por que e
como ela recomenda (ao invés de proibir) a estratégia de redução para as
teorias, e também direi por que creio que se trata de uma visão inaceitável
acerca de Deus. Argumentarei que ela é inaceitável porque apresenta
dificuldades de coerência interna que podem ser resolvidas apenas de
maneiras que a tornam incompatíveis com a doutrina bíblica da criação. Visto
que esse é um ponto central desta crítica, faz-se necessário que sejamos tão
claros quanto possível sobre o significado do termo “criado” antes de
prosseguirmos. Com essa finalidade, devemos agora distinguir esses sentidos
nos quais é possível dizer que algo é criado.
O sentido no qual comumente utilizamos o termo se dá quando este se
refere a algo do qual se diz ter sido criado apenas se houve um tempo no qual
ele passou a existir, antes do qual ele não existia. Doravante chamarei a esse
sentido do termo de criado1. Outro sentido que se diz que uma coisa foi
criada por outra é quando ela é produzida por esta última e é, pois, distinta da
outra no tocante ao seu ser. Esse sentido é importante nos discursos sobre
Deus, já que é o modo que as Escrituras falam de tudo que não Deus como
sendo sua criação. Chamarei a esse sentido do termo criado2. O terceiro
sentido é aquele em que sigo Tomás de Aquino ao distingui-lo dos dois
primeiros sentidos. Nesse terceiro sentido, considera-se que algo é criado3
caso seja totalmente dependente de Deus para sua existência, de tal modo que
se Deus não tivesse trazido esse algo à realidade, ele não existiria. Deus pode,
obviamente, fazer isso ex nihilo; ou seja, ele pode fazer isso “a partir do
nada”, em que “nada” não é o nome de uma realidade, mas a afirmação de
que, à parte o fato de Deus trazer algo à existência, apenas Deus existiria.
Mas uma vez que Deus trouxe algo à existência, há criaturas que não são ele
mesmo, de cuja agência ele pode-se valer a fim de trazer à tona outras coisas
e eventos, todos os quais também são inteiramente dependentes dele nesse
terceiro sentido. Esse sentido, portanto, busca ser indiferente em relação à
questão se o que Deus cria é ou não trazido à existência ex nihilo, ou por
meio da agência de outras criaturas, e se é ou não trazido à existência
atemporalmente, para todos os tempos, ou tendo um princípio no tempo. Ele
é até mesmo indiferente à questão se o que é trazido à existência é ou não
distinto de Deus.
Isso é diferente de ter um início no tempo, como Tomás assinalou,
porque algo poderia ser perpétuo no tempo, mas ainda assim ser
perpetuamente dependente de que Deus sustente sua existência.[218] Algo
como isso não seria, portanto, criado1, mas ainda sim seria criado3. E isso
difere do criado2, porque as próprias ações de Deus no mundo, embora sejam
trazidas à tona por ele e sejam dependentes da consecução divina, não são
algo distinto dele. Assim, tenham ou não sido criadas1 (sejam ou não algo que
Deus produziu atemporal ou temporalmente), elas seriam incriadas2, mas
ainda assim criadas3.[219] Um último ponto: considerarei criado3 como o
sentido mais básico do termo, uma vez que ele está incluído no primeiro e
segundo sentidos, enquanto estes não estão incluídos um no outro nem no
terceiro sentido. Criado3 é, portanto, o sentido mais importante do termo, na
medida em que o utilizamos para Deus e é aquele que, em combinação com
criado2, reflete a forma que as Escrituras tratam de Deus como Criador. Em
tudo o que segue considerarei como requisito revelado não-negociável para o
pensamento teísta que todas as coisas que não Deus, assim como sua
existência e natureza, são criadas3 (trazidas à existência) por Deus.
Esse terceiro sentido de “criado” não é, obviamente, a forma que
geralmente utilizamos esse termo em relação a nós mesmos ou às outras
criaturas. Não podemos criar ex nihilo. E não falamos habitualmente em criar
nossas próprias ações, embora isso seja precisamente o que ocorre nesse
terceiro sentido quando executamos atos que, de outro modo, não existiriam.
Assim também soará estranho dizer que Deus “cria3” suas próprias ações —
ações que são, portanto, ao mesmo tempo incriadas2! Talvez seja por isso que
grande parte dos teólogos tenham preferido cobrir todos esses sentidos de
“criar” com uma só expressão, e simplesmente dizer que tudo que não Deus é
o produto da vontade de Deus.[220] Essa é uma forma de dizer que apenas o
ser de Deus é incondicional e divino per se, ao passo que tudo o mais é a
criação sobre a qual ele mantém controle soberano.
Mas é exatamente esse último ponto que percebo sendo violado pela
visão de Deus que as réplicas às minhas objeções preliminares adotam.
Ademais, a forma pela qual tal visão viola esse ponto também é precisamente
a forma pela qual oferece um refúgio para a estratégia da redução. Digo isso
com grande relutância, dados os muitos e eminentes defensores dessa visão, e
em vista do fato de que ela predominou na teologia cristã na parte ocidental,
latina, da Igreja, assim como teve certa influência nas teologias judaica e
muçulmana. Esse caminho foi pavimentado por ninguém menos do que
Agostinho, foi acolhido por Santo Anselmo e refinado por São Tomás de
Aquino (assim, de agora em diante eu chamarei a essa visão resumidamente
AAA). Algumas de suas principais afirmações já forma apresentadas, mas
iremos agora observá-las mais atentamente, e lidar com elas de forma
específica.
A primeira dessas premissas é a de que o ensinamento bíblico de Deus
haver criado123 os humanos à sua imagem deve ser entendido como
significando que os humanos compartilham de propriedades e capacidades
com Deus. Menciono primeiramente essa premissa a fim de separá-la das
demais, uma vez que ela parece absolutamente correta. Continuemos, então, a
examinar as outras premissas, mais problemáticas.
Uma segunda premissa principal da teologia AAA é a de tudo aquilo
que é verdadeiramente atribuído a Deus deve ser tão incriado quanto Ele. Isto
significa que as propriedades atribuídas a Deus nas Escrituras (designadas de
seus “atributos”, na teologia) não são frutos de sua livre escolha, não sendo,
portanto, criadas por ele. Entretanto, isso não se equivale a simplesmente
dizer que nunca houve ou que haverá um tempo em que Deus não as possuía
e que elas não sejam distintas de Deus — ambos são pontos em relação aos
quais não tenho nada a opor. Pois a visão AAA diz mais do que isso: ela diz
que essas propriedades não dependem de Deus para sua existência e que ele
não tem qualquer controle sobre existência delas, ou sobre o fato de que as
possui. A forma tradicional de expressar essa premissa é: todos os atributos
de Deus existem necessariamente, e necessariamente Deus possui a todos (em
que “necessariamente” significa que “não poderia ser de outra forma” e que
“não é alterável por nada”, incluindo Deus). Tenho uma discordância em
relação a essa premissa, pois nego tanto que os atributos de Deus devam ser
incriados3 porque Ele é incriado quanto que eles estejam fora de seu controle.
No entanto, ainda outra premissa dessa visão é que esses atributos de
Deus são todos perfeições, ou seja, eles são os graus mais elevados possíveis
das propriedades atribuídas a Ele. Outra forma de colocar isso tem sido dizer
que Deus possui seus atributos no grau infinito, de modo que o fato de ele
possuí-los torna-o o ser de máxima grandeza possível. Por essa premissa
entende-se também que Deus possui todas essas perfeições, não importa
quantas sejam, nem se as conhecemos ou não. É nesse sentido que Deus é
chamado de “infinito”; o que não significa que toda a realidade esteja
incluída nele (que é o sentido hindu/budista de infinito), mas que ele é
infinitamente perfeito. Devido à influência de São Anselmo, geralmente se
expressa esse ponto dizendo que Deus é ser de máxima grandeza possível,[221]
de modo que suas perfeições são entendidas como sendo o grau mais elevado
daquilo que Alvin Plantinga denomina propriedades “produtora[s] de
grandiosidade”.[222] Também considero essa premissa questionável.
Finalmente, há a premissa de que Deus possui apenas perfeições. Isso
significa que Deus possui não apenas todos os atributos “produtores de
grandiosidade”, mas que nada mais é verdadeiro acerca dele. Ele possui todas
as perfeições e somente elas; é por essa razão que Deus é o ser de máxima
grandeza possível. Posto de outra forma: se Deus possui propriedades que
sejam menos do que perfeições, ele não seria o ser mais grandioso
concebível, pois poderíamos então conceber um ser que possuísse apenas
perfeições, e este, e não Deus, seria portanto o ser mais grandioso concebível.
Novamente, considero essa premissa como altamente questionável.
As premissas dessa visão têm sido tão difundidas por tanto tempo na
teologia ocidental que é difícil para muitos teístas formados em seu contexto
imaginar que existiria qualquer objeção séria em relação a elas, muito menos
que haveria qualquer alternativa plausível. No entanto, argumentarei que
existe uma visão alternativa que não é apenas mais que plausível, mas
anterior ao próprio Agostinho. No entanto, em vez de apresentar essa visão
alternativa de imediato, primeiramente levantarei algumas objeções às
premissas de AAA esboçadas acima. Após isso, oferecerei um esboço da
alternativa para demonstrar como ela evita as dificuldades da visão AAA.
Defenderei, então, essa alternativa, que é a visão de Deus elaborada pelos
Pais Capadócios da tradição ortodoxa grega, redescobertos por Lutero e
Calvino no século XVI e defendida por Karl Barth no século XX (designarei
essa posição capadócia e reformacional abreviadamente de visão C/R).
Por favor, mantenha em mente, na medida em que prosseguirmos, que
a razão para essa excursão na teologia filosófica é demonstrar como e por que
a visão AAA exige que o cosmos seja explicado reducionisticamente,
enquanto a visão C/R proíbe a redução. O que argumentarei, portanto, é que
a visão AAA de Deus é falha e precisa ser corrigida, e que as correções
removem qualquer razão teológica para os teístas manterem a redução como
estratégia para as teorias. Esse é o lado negativo dessa crítica. Seu lado
positivo consiste em demonstrar como a visão C/R de Deus não apenas evita
as dificuldades da visão AAA, mas também proíbe, ao invés de exigir, a
redução como estratégia. Conjuntamente, esses dois lados constituirão a
totalidade desta crítica religiosa da redução. E essa, juntamente com a crítica
filosófica já apresentada, concluirá minha proposta argumentativa de
embarcarmos em um programa novo, teísta, não reducionista, para as teorias.

A. Uma avaliação da visão AAA de Deus


Comecemos com a premissa de que todos os atributos de Deus devam ser
entendidos como perfeições, os graus mais elevados possíveis de quaisquer
propriedades que seriam necessárias para tornar um ser o ser mais grandioso
possível. Minha primeira objeção a isso é pontuar uma diferença importante
entre o sentido de “perfeito”, na maneira em que é utilizado na filosofia
grega, e o sentido hebraico desse termo, no modo em que é utilizado pelos
escritores bíblicos. Pois nenhum escritor bíblico jamais utilizou o termo
“perfeito” para referir-se ao grau mais elevado de uma propriedade. O sentido
hebraico do termo significa “completo”, ou “completamente”, ou
“infalivelmente”. Assim, quando Jesus disse aos seus discípulos “Sede vós
pois perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus”, ele não estava
admoestando-os a serem Deus! Antes, ele estava dizendo que eles deveriam
ser completamente (infalivelmente) fiéis à sua parte da aliança, assim como
Deus o é em sua parte dela. O fato é que nenhum escritor bíblico atribuiu a
Deus o “grau mais elevado possível” de uma propriedade; e interpretar os
atributos de Deus como idênticos à ideia grega pagã é já ter importado uma
noção claramente platônica para a interpretação das Escrituras, que são
documentos profundamente hebraicos.
Sem dúvidas, dizer que os atributos de Deus são perfeições, e que
Deus é o ser mais grandioso concebível, pretende ser um elogio a Deus.
Afinal de contas, Platão havia postulado um domínio de perfeições distinto
do mundo no qual habitamos, e sua teoria não dominou somente o mundo
antigo, mas ainda exerce uma enorme influência. Assim, não seria não apenas
inofensivo, mas imperativo propor que essas perfeições sejam atribuídas a
Deus? Deste modo não é que exista um domínio impessoal de muitas
entidades individuais abstratas que sejam divinas per se, mas sim o único e
verdadeiro Deus que possui todas as perfeições como atributos de sua
natureza.[223] Não deveriam os teístas, portanto, serem prontos em afirmar que
Deus é o ser de máxima grandeza possível? A resposta a essa questão é que,
embora em um primeiro momento possa parecer inofensivo explicar os
atributos de Deus como perfeições platônicas, e um elogio a Deus referir-se a
ele como ser de máxima grandeza possível, esse afastamento dos modos que
os escritores bíblicos falam acerca de Deus tem, na verdade, sérias
consequências que são, em última instância, inaceitáveis a partir da
perspectiva de uma série de ensinamentos das Escrituras. Retornarei a esse
tema de forma mais detalhada à frente, mas por hora pense apenas sobre este
ponto: chamar a Deus de “o ser de máxima grandeza possível” não exige que
haja padrões para a grandeza e possibilidade que sejam independentes de
Deus? Isto não exige que Deus seja julgado e medido por esses padrões? Se
sim, então até mesmo se a conclusão for a de que Deus está no topo da escala
quando julgada por esses padrões, Deus ainda assim está sujeito a padrões
independentes de si mesmo. Isso não é um elogio a Deus, ainda que a
intenção seja elogiá-lo. Antes, trata-se de uma negação involuntária de sua
divindade per se única e sua criadoria3 de todos os padrões pelos quais
qualquer coisa possa ser julgada.[224]
Podemos também questionar por que deveríamos crer que existem
coisas tais como justiça, sabedoria, moral, bondade, etc. perfeitas e que
existem independentemente . Por que não seria o caso de não existirem graus
mais elevados possíveis de tais propriedades, assim como não existe o último
número natural? Se não existem tais coisas, então negar que Deus as tenha
não o insulta de maneira alguma; Deus não se torna menor por carecer de
perfeições, caso estas não existam.
Mas minha objeção mais forte à existência de perfeições é dirigida
contra a afirmação de que cada uma delas possui existência necessária, não
sendo pois criadas3 por Deus. Você deve se lembrar de que entre as principais
premissas de AAA estavam as afirmações de que cada uma das perfeições
tem existência necessária, e Deus necessariamente possui todas elas. A
primeira dessas exige que cada perfeição individual tenha realidade
incondicional, independente, enquanto a segunda exige que Deus as possua.
Tomadas conjuntamente, essas afirmações tornam Deus dependente de
realidades que ele não criou e sobre as quais ele não tem controle.
Meu argumento contra a primeira afirmação é um com que você já se
familiarizou, pois não é outro senão o mesmo experimento mental que
executamos para testar a estratégia de redução para teorias. Ali vimos a falha
de qualquer tentativa em estruturar uma ideia de qualquer tipo de
propriedades e leis que existam independentemente de todas as outras. Agora,
portanto, quero aplicar esse mesmo experimento mental às ideias de
perfeições individuais. Tente pensar, por exemplo, na perfeita justiça na
esplêndida solidão de sua suposta existência necessária, independente.
Despoje da ideia que tem dela todas as conexões a ações ou estados das
pessoas em sua característica quantitativa, cinemática, física, biótica,
sensorial, lógica, histórica, lingual, social econômica, estética, ética ou
fiduciária (ou qualquer lista de aspectos que você queira). Resta algo da
justiça? Se não, por que supor que exista algo como uma qualidade de justiça
que tenha uma existência necessária, independente? Mantenha em mente, por
favor, que a visão que estamos examinando é uma teoria de como entender
os atributos de Deus. Dessa forma, o experimento mental depõe contra a
existência de perfeições da mesma forma que ele depôs contra a existência de
aspectos independentes, a saber, que a hipótese de sua independência nunca
pode ser justificada, na medida em que atribuir independência a eles destrói a
própria ideia deles.
Note que não será suficiente replicar que a razão para pensar que
existam coisas tais como perfeições necessariamente existentes (apesar de
nossa incapacidade de formar qualquer ideia delas) é que a justiça de Deus,
etc., deve ser perfeita e deve ter existência independente, porque Ele a possui.
Isso seria um argumento circular nesse contexto, uma vez que o que está
precisamente em questão agora é se os atributos de Deus deveriam ser
pensados como perfeições no sentido técnico extraído da antiga filosofia
grega, e se esses atributos devem ser considerados como incriados porque
Deus o é. Note, também, que minha iminente negação de ambos os pontos
não nega de alguma forma que Deus seja perfeitamente justo conosco no
sentido hebraico; o ser de Deus infalível e completamente justo para conosco
não tem de ser explicado dizendo que ele possui o grau mais elevado possível
de uma propriedade produtora de grandiosidade necessariamente existente.
Essa justiça é igualmente descrita pela maneira como os escritores bíblicos
falam acerca dela, a saber, que a justiça de Deus é uma promessa de livre
aliança, uma faceta de sua graça, e não seu ser compelido por algo que esteja
fora de seu controle. E tal entendimento não debilita de modo algum o
ensinamento de que ele realmente é, e sempre será, justo em sua relação
conosco.
Há outro resultado que o experimento mental produziu em relação aos
aspectos que também se aplica às ideias dos atributos de Deus. Isto é, uma
vez que podemos pensar nesses atributos apenas como interligados, até o
ponto em que podemos conhecê-los, eles não podem existir à parte de sua
conectividade mútua. Assim, o que geraria a conectividade da qual
dependem? No caso dos atributos de Deus a resposta é mais óbvia do que em
relação aos aspectos: sua conectividade consiste em todos serem atributos de
Deus. Mas se eles dependem de sua conectividade e sua conectividade
consiste em serem verdadeiros em relação a Deus, então eles dependem de
Deus! Portanto, ao invés de terem existência necessária, independente, eles
deveriam ser pensados como criados3 por Deus. Isso, como veremos, é o
coração mesmo da posição C/R.
Mas não estamos indo rápidos demais? Ainda não existe outra forma
de construir a visão AAA? Por que não poderíamos dizer que os atributos de
Deus existem necessariamente e Deus os possui todos necessariamente sem
que eles sejam criados3 por Deus, uma vez que são idênticos a Deus? Ou seja,
se eles simplesmente são Deus, então não há problemas em relação a como
Deus os possui; ele não os possui, ele é esses atributos. Isso não evitaria
quaisquer inconsistências com as doutrinas de que apenas Deus é divino e de
que tudo além de Deus existe porque Deus assim o deseja?
Essa é, de fato, a posição tanto Anselmo quanto Aquino adotam. Eles
perceberam que se as perfeições de Deus fossem pensadas como sendo
independentes dele e necessariamente possuídas por ele, então Deus seria
dependente delas. Em outras palavras, eles reconheceram que se Deus é
definido como o ser com todas e apenas perfeições (o ser de máxima
grandeza possível), então Deus deve possuir as perfeições para que seja Deus.
Isto é, eles perceberam que se as perfeições existem necessariamente e são
portanto independentes de Deus, então Deus dependeria de algo além de si
mesmo em dois sentidos. Primeiramente, porque possuir essas perfeições é
essencial a Deus, Deus não poderia existir a menos que elas existissem; e em
segundo lugar, porque o caráter de Deus seria o que é em razão das
perfeições que existem independentemente dele. Em ambas as formas, a
divindade de Deus, i.e., sua não-dependência (eles denominam a isso sua
“asseidade”) seria negada.
Ora, Anselmo e Aquino foram uníssonos ao considerar qualquer
negação da asseidade de Deus como inaceitável. Eles não retificaram, no
entanto, sua visão na direção pela qual argumentei. Em lugar de abandonarem
a afirmação de que os atributos de Deus têm existência necessária e, ao invés
disso, concebê-los como desejados por Deus, eles sustentaram a existência
necessária das perfeições, mas negaram que sejam algo distinto de Deus.
Tomás lida com o tema de forma mais demorada do que Anselmo, e assim
será sua versão que analisaremos. (De fato, Tomás assumiu esse como um
tema tão importante que iniciou com ele sua maior obra[225]). Sua solução ao
problema é propor que Deus seja considerado “simples”. Com isto ele
pretende dizer que Deus é idêntico às perfeições que constituem sua natureza.
De acordo com essa teoria, pois, Deus é apenas sua natureza. Isso o livra da
negação da asseidade divina, porque ele não necessita dizer que as perfeições
existem independentemente de Deus. Ainda pode-se considerar que elas
existem necessariamente, pois, de acordo com sua teoria, não podemos
distinguir Deus de sua natureza, ou sua natureza de sua existência, ou sua
existência de suas perfeições. Deus simplesmente é a mesma coisa que sua
existência e sua natureza, a qual é constituída de bondade perfeita, justiça,
sabedoria, etc.
Mas isso, colocando de forma amena, trata-se de um remédio
desesperado. E por uma razão: se Deus é idêntico às suas perfeições, então
suas perfeições devem de algum modo ser idênticas umas com as outras. E
isso significa que a justiça de Deus é, na verdade, também o atributo de seu
poder, que, por sua vez, é também o atributo de sua misericórdia, que é
também sua sabedoria, que é a mesma que seu amor, etc. Mas isso destrói o
sentido desses termos! Dizer que todos eles denominam a mesma qualidade é
dizer que não sabemos o que qualquer um deles significa. Simplesmente não
temos qualquer ideia de justiça que seja o mesmo que poder, e que seja o
mesmo que misericórdia, por exemplo. O resultado é que nossa linguagem
não nos pode dizer algo sobre Deus, e a própria visão de Tomás de que nosso
discurso sobre Deus é analógico é, assim, aniquilado. Se a simplicidade é
verdadeira, nossa linguagem não transmite nada que seja sequer semelhante
ao que Deus é.
Contudo, por pior que possa ser o resultado, esse não é o único
desastre que se segue da teoria da simplicidade. Pois se Deus é idêntico às
suas perfeições, então não apenas as perfeições são idênticas umas com as
outras, mas elas são idênticas a Deus. E isso torna Deus uma propriedade
simples, indiferenciada! Essa consequência não destrói meramente a
possibilidade de se explicar como o discurso verdadeiro sobre Deus é
possível, mas torna tudo o que as Escrituras ensinam sobre ele positivamente
falso. Uma propriedade não é uma pessoa; não pode fazer nada. Uma
propriedade não pode criar, ou amar, ou realizar promessas pactuais. Eu
concluo, portanto, que essa solução às dificuldades relacionadas a dizer que
Deus possui todas, e somente, perfeições, fracassa. Elas não podem ser
resolvidas identificando Deus com seus atributos.
Em seu livro Does God Have a Nature? [Deus tem uma natureza?],
Alvin Plantinga considera algumas maneiras de se construir a teoria da
simplicidade de Tomás e chega a esse julgamento a respeito de todas elas. Ele
diz: “Tomada em seu valor nominal, a doutrina tomista da simplicidade
divina parece inteiramente inaceitável... Ela se inicia com um interesse
apropriado e piedoso pela soberania de Deus; ela termina desprezando as
afirmações mais fundamentais do teísmo”.[226] No entanto, Plantinga também
decide não caminhar na direção da alternativa C/R, porque ele a interpreta
como incorrendo em incoerências lógicas e autorreferenciais. Lidarei com
essas em breve. Por agora devemos considerar se a própria tentativa de
Plantinga de manter a visão AAA de Deus, ao mesmo tempo em que rejeita a
simplicidade, pode evitar a consequência de negar-se a asseidade de Deus.
Já vimos que o principal problema é reconciliar a asseidade de Deus
com a visão de que seus atributos, juntamente com as verdades necessárias da
lógica e da matemática, têm existência necessária.[227] Uma vez que isso
significa simplesmente que elas teriam de existir, não importa como, isso as
torna independentes de Deus. Ademais, como notamos brevemente acima,
isso também torna Deus dependente delas de modos importantes. Tendo
rejeitado a proposta de Tomás em relação à simplicidade, Plantinga
corretamente tenta resolver a dificuldade buscando um modo de reverter essa
dependência. Para fazê-lo ele procura um sentido no qual se pode considerar
que os atributos de Deus e as verdades necessárias da matemática e da lógica
dependem dele, a despeito do fato de existirem necessariamente. Ele o faz
propondo que as verdades necessárias sejam consideradas como ideias na
mente de Deus. Nesta proposta, ele diz, é parte da natureza de Deus conhecer
e afirmar cada uma delas:

Desse ponto de vista, portanto, explorar o domínio de objetos abstratos


pode ser visto como explorar a natureza de Deus... A matemática
assume, pois, seu lugar como um dos loci da teologia... o mesmo ocorre
para a lógica, ambas concebidas de forma ampla e restrita... cada
teorema da lógica ― lógica de primeira ordem com identidade, digamos
― é tal que afirmá-lo é parte da natureza de Deus.[228]

Somente isso — reconhece Plantinga — não resolveria a dificuldade. Para


realizar o trabalho necessário, a afirmação por Deus de verdades necessárias
torná-las-iam, de algum modo, dependentes dele. À vista disso, ele termina
seu livro da seguinte forma:

Como conclusão, gostaria de levantar, mas não responder, a seguinte


questão. Tome qualquer proposição necessária:

(68) 7 + 5 = 12
por exemplo. (68) é equivalente a
(69) Deus acredita em (68);
e
(70) Necessariamente 7 + 5 = 12
é equivalente a
(71) É parte da natureza de Deus acreditar que 7 + 5 = 12.

Podemos então perceber (71) como de algum modo anterior a (70)?


Explanatoriamente anterior, talvez? Podemos explicar (70) apelando à
(71)? Podemos talvez responder à questão: “Por que (70) é verdade?”
citando o fato de que acreditar que (68) é parte da natureza de Deus?
Podemos explicar a existência necessária do número 7 citando o fato de
que é parte da natureza de Deus afirmar sua existência? Mais
exatamente, existe um sentido sensível de “explicar-se” isso no sentido
de que (71) é a explicação de (70), mas (70) não é a explicação de
(71)?... Estas são boas questões, e bons tópicos para estudos posteriores.
Se pudermos respondê-las afirmativamente, então talvez podemos
apontar para uma importante dependência de objetos abstratos em
relação a Deus, mesmo que as verdades necessárias sobre esses objetos
não estejam sob seu controle.[229]

É importante notar que, ao fazer essa proposta, Plantinga não sugere haver
demonstrado que suas questões finais podem, de fato, ser respondidas
afirmativamente. Embora elas sejam elaboradas de forma sutil e rigorosa, sua
sugestão final não é, portanto, mais do que uma esperança. Assim, se existem
boas razões para supor que suas questões não possam ser respondidas
afirmativamente, seremos então deixados com uma poderosa razão para
abandonar a visão AAA de Deus e a examinar a visão C/R para vermos se ela
pode ser defendida das objeções levantadas contra ela. Existem duas razões
pelas quais penso que as questões de Plantinga devam ser respondidas
negativamente, dada sua visão de que os atributos de Deus não são idênticos
a Deus, embora possuam existência necessária.
A primeira é esta: nem todas as verdades necessárias podem ser
verdadeiras porque Deus as afirma, nem podem elas todas ser explicadas por
(ou fundadas em) Deus conhecê-las ou afirmá-las. Isso ocorre porque, na
visão AAA de Deus, grande parte dos atributos de Deus são aqueles que
Deus teria de possuir a fim conhecer ou afirmar algo. Por exemplo, Deus
teria de ser consciente para conhecer ou afirmar algo. Nesse caso, o atributo
necessário de consciência perfeita não poderia depender de Deus afirmá-lo ou
conhecê-lo [o atributo], uma vez que Deus teria de possuir consciência para
conhecer ou afirmar que ele a possui. Pela mesma razão, o conhecimento ou
afirmação da consciência por parte de Deus não pode ser o fundamento para
sua existência nem a explicação da verdade de que ela exista. Assim, não há
esperança plausível de que essa perfeição particular possa, em certo sentido,
depender de Deus. Pelo contrário, já que Deus deve possuí-la para ser Deus.
A asseidade de Deus é, portanto, negada; a consciência perfeita tem o status
da divindade per se, mas Deus não o tem.
A consciência não é o único atributo que não poderia depender, em
qualquer sentido, de sua afirmação por parte de Deus. A propriedade da
autoidentidade lógica teria de ser de igual modo verdadeira em relação a
Deus para que ele tivesse (ou fosse) uma mente consciente pessoal. Para que
a noção de uma mente consciente tenha algum sentido, tal entidade teria de
ser idêntica a si mesma. Portanto, a existência necessária também dessa
propriedade não pode ser considerada como dependente do, ou explicada por,
ou ainda fundada no fato de Deus conhecê-la ou afirmá-la, pelo mesmo
motivo que a consciência de Deus não pode: isso já teria de ser verdadeiro
acerca de Deus para que Deus a conheça ou a afirme. E visto que o ser Deus
logicamente idêntico a si mesmo dependeria, por sua vez, das leis da lógica,
estas também não dependeriam de Deus em qualquer sentido. Como no caso
da consciência perfeita, as leis da lógica, então, seriam divinas per se, ao
passo que Deus não o seria. O mesmo ocorre para a singularidade numérica
de Deus. Se é essencialmente verdadeiro a respeito de Deus que exista apenas
um ser como tal, então Deus não poderia existir a menos que o número 1
existisse. Assim, se o conhecimento e a afirmação de Deus de que o número
1 existe necessariamente depende da existência de Deus, e se é essencial a
Deus que Ele seja numericamente o único ser divino per se, então o número 1
não depende da afirmação de Deus, assim como não depende de nossa
afirmação. O que ocorre, em vez disso, é que Deus também termina por ser
dependente da existência de números e leis matemáticas, os quais são,
portanto, divinos per se ao mesmo tempo em que ele não o é.
Existem outras propriedades em relação às quais esse ponto igualmente
se aplica, mas é desnecessário prosseguir apresentando-as. Pois se existir
sequer uma propriedade abstrata que (na visão AAA) teria de existir
independentemente de Deus e a qual Deus teria de possuir para ser Deus,
então não apenas essa propriedade é considerada divina per se, mas Deus é
desse modo excluído de tal status. É exatamente isso que Aquino temia e
tentou evitar; e é precisamente isso que Plantinga também tentou evitar. Mas
infelizmente, nenhuma das propostas teve sucesso em fazê-lo.[230]
Mas suponha que exista uma forma de produzir outra proposta
semelhante à de Plantinga que funcione; suponha que a aparente
incompatibilidade entre insistir que os atributos de Deus existam
necessariamente e a asseidade de Deus possa ser superada. A visão AAA
seria, então livre de qualquer crítica? Eu penso que não. Pois existe ainda
outra dificuldade com essa visão que é verdadeiramente intransponível. É a
seguinte: de acordo com a posição AAA, os atributos de Deus (e.g. bondade,
justiça, ou poder) existem de modo tão necessário e incriado como ele o é, e
são compartilhados (em um grau menor) pelos humanos. A dificuldade com
essa visão é de que os humanos tornam-se (parcialmente) divinos em razão
do fato de que as qualidades que os humanos compartilham com Deus teriam
de ser tão incriadas3 em nós como elas são em Deus.[231]
Não será de grande valia neste momento replicar que as qualidades que
os humanos possuem são apenas semelhantes às que Deus possui, uma vez
que os humanos possuiriam graus imperfeitos delas, enquanto Deus possui o
grau infinito delas. Mesmo se verdadeiro, isso não auxiliará aqui, pois para
que duas coisas sejam semelhantes deve haver algum sentido no qual são
semelhantes, e independente do que seja esse sentido, ele deve ser
univocamente verdadeiro para ambos. Assim, por exemplo, se Deus é
(perfeitamente) bom e os humanos são (imperfeitamente) bons, possuir a
qualidade da bondade deve ser o sentido no qual eles são o mesmo. Teria de
ser a mesma qualidade de bondade que se possui em um grau distinto para
que o termo “bom” tenha qualquer sentido analógico quando utilizado para
humanos e para Deus. Assim, Deus e os humanos possuiriam ambos uma
propriedade incriada3. E o mesmo seria verdadeiro acerca de todas as outras
propriedades que os humanos compartilham com Deus.
Mas a consequência de se exigir que humanos sejam mesmo
parcialmente divinos é certamente incompatível com a doutrina bíblica da
criação. Na verdade, o pecado original é descrito em Gênesis como o desejo
de os seres humanos tornarem-se divinos! A posição AAA, pois, equivale a
dizer que características incriadas3 de Deus têm sido comunicadas às
criaturas, que não são portanto meras criaturas no que diz respeito à sua posse
dessas propriedades. Que a posição AAA diz isso não é apenas minha
acusação, mas é admitida pelo próprio Tomás de Aquino. Ele diz: “‘Deus é
bom’... significa que o que denominamos bondade nas criaturas existe em
Deus de uma forma mais elevada. Assim, Deus não é bom (meramente)
porque ele causa a bondade, mas porque a bondade flui dele porque ele é
bom” (ST 1a q. l3, a. 2). E novamente: “Deus é conhecido a partir das
perfeições que fluem dele e são encontradas nas criaturas que, contudo,
existem nele de uma forma transcendente” (ST 1a q. 13, a. 3). Obviamente,
isso ainda faria com que os humanos fossem criados123 por Deus em outros
sentidos. Sua existência, assim como suas qualidades espacial, física, biótica
e sensorial, por exemplo, ainda teriam sido criadas123 por Deus. Mas os
humanos não seriam totalmente criaturas, o que é exatamente o modo como
as Escrituras os descrevem. Minha objeção, assim, é simples porém óbvia: a
visão AAA torna os humanos incriados3 em uma série de importantes
sentidos.
A isso acrescento os dois seguintes pontos. Primeiro, humanos não
seriam as únicas criaturas a possuir qualidades independentemente existentes
(divinas). Segundo, não se pode dizer que as criaturas possuem todas essas
propriedades num grau menos elevado que Deus. Em relação à primeira: uma
vez que Deus é um, por exemplo, a unidade numérica teria de ser uma
propriedade incriada em Deus, e certamente a unidade numérica é encontrada
em criaturas, assim como em Deus. Mas não seria o caso de todas as criaturas
individuais necessariamente possuírem essa propriedade, e de possuí-la no
mesmo grau que Deus? Podem haver graus relacionados a ser um? Se não,
existe algo nas rochas e caramujos que é tão incriado neles como ocorre com
Deus e os seres humanos. Esse mesmo ponto se estende também aos outros
atributos. Alguma criatura pode deixar de ser logicamente autoconsistente, ou
de ser logicamente idêntica a si mesma? Certamente não. Mas, de modo
igualmente certo, as criaturas não podem ter essas propriedades em qualquer
grau menor do que o próprio Deus! Qual sentido há em falar sobre graus de
autoidentidade ou autoconsistência? Se é uma verdade necessária que nada
pode ser verdadeiro e não verdadeiro a respeito de qualquer criatura no
mesmo sentido e ao mesmo tempo, então nenhuma criatura pode se
conformar àquela lei em um grau menor do que Deus o faz. (Os pensamentos
de Deus poderiam ser perfeitamente consistentes, enquanto os nossos não o
são, é claro. Mas meu ponto se relaciona ao ser de Deus, e não ao seu
pensamento.) Assim, uma vez mais a visão AAA não apenas requer que as
criaturas possuam atributos que são divinos, mas requer que as criaturas os
possuam no mesmo grau que o próprio Deus. Isso não apenas viola uma das
premissas da própria visão AAA, mas, como demonstrarei em breve, desvia-
se do ensinamento bíblico de Deus como Criador.
Já vimos o suficiente da visão AAA de Deus para sermos capazes de
reconhecer como e por que ela apoia e encoraja a estratégia de redução para
as teorias: ela o faz precisamente advogando que certos tipos de propriedades
e leis encontradas no cosmos existem necessariamente e são incriadas3, ao
passo que outras não o são. Pois se algumas propriedades e/ou leis do
cosmos são criadas, enquanto outras não, então o que poderia fazer mais
sentido do que teorizar sobre realidades criaturais buscando pelas formas que
suas propriedades e leis contingentes dependem daquelas que são incriadas3?
De fato, como isso poderia ser evitado?
De forma contrária, se os atributos de Deus são desejados por Deus —
se eles constituem sua natureza no sentido de que expressam o caráter no qual
ele escolheu manifestar-se aos humanos — como mantém a visão C/R, então
nenhum dos resultados inaceitáveis discutidos acima decorrem. Os atributos
de Deus de forma alguma comprometem sua asseidade na visão C/R, na
medida em que apenas o ser de Deus é divino per se. Nem o
compartilhamento por Deus de alguns dos seus atributos com os humanos
tornam, por meio disso, os humanos e outras criaturas parcialmente incriados,
uma vez que os atributos são em ambos os casos produtos da vontade de
Deus. Assim, se essa visão alternativa de Deus pode ser demonstrada como
sendo internamente coerente e compatível com as Escrituras, estaremos
justificados em aceitá-la em lugar da visão AAA. E sua aceitação removerá
as razões teológicas que têm motivado os teístas a confrontarem-se com o
caráter pagão das teorias de redução por séculos. A redução — mesmo em
seus sentidos fracos — poderia finalmente ser totalmente abandonada, como
de fato merece sê-lo.
Um último ponto. Uma objeção comumente feita ao que disse acima é
que isso com efeito nega que verdades necessárias sejam realmente
necessárias. Se Deus desejou (criou3) as leis da matemática e da lógica, então
elas não são válidas “não importa o que”, mas são válidas se, e apenas se,
Deus as deseja e sustenta. Isso significa, diz a objeção, que elas não são
verdadeiramente necessárias, caso no qual não temos qualquer base para
raciocinar sobre qualquer coisa. Uma vez que esse resultado não pode ser
correto, deve haver algo seriamente equivocado com a proposta de que
verdades necessárias são desejadas por Deus.
Existe uma série de posições nessa objeção contra Deus haver criado3
as verdades necessárias, e lidarei com apenas uma delas aqui. (Retornarei a
isso posteriormente para tratar outra posição mais complexo acerca disso.) A
posição cm a qual lidarei agora é a declaração de que a menos que essas
verdades sejam elas mesmas não causadas e inevitáveis, elas não expressam
verdadeiramente relações que são necessárias. Minha réplica é que essa
objeção se baseia ou em um sério equívoco dobre o termo “necessário”, ou
em um claro non sequitur. O sentido no qual, digamos, uma lei lógica ou
matemática necessita ser uma verdade necessária para ser confiável ao nosso
raciocínio é que ela afirme uma relação que se mantém infalivelmente, de tal
modo que nada na criação poderia alterar o fato de que ela assim o faz. Ou
seja, é necessariamente o caso de que se um estado de coisas é verdadeiro,
então necessariamente algum outro estado de coisas deve ser (ou não pode
ser) verdadeiro. A necessidade envolvida precisa ser apenas uma
característica da relação mantida por aquilo que a lei governa. Por exemplo,
dizemos que se temos (a quantidade) 1 e se temos outro 1, então não
podemos deixar de ter (a quantidade) 2. Mas isso não é em absoluto o mesmo
que dizer que essa lei em si não poderia deixar de existir! Por que não poderia
a lei ser uma característica necessária do cosmos só porque Deus fez ex nihilo
que houvesse criaturas com propriedades quantitativas governadas por leis
quantitativas? Por que não poderiam as quantidades e as leis que as governam
existirem todas pela vontade de Deus? Como poderia isso sequer arranhar a
certeza ou confiabilidade da matemática? Até onde posso ver, não existe
razão (que não seja uma petição de princípio) para se pensar que se tais leis
se mantêm porque Deus integrou-as na criação, elas seriam algo menos do
que realmente leis! O mero fato de que leis expressam relações genuinamente
necessárias para criaturas não exige por si mesmo que tais leis sejam, elas
mesmas, não causadas e inevitáveis.
É claro que as leis da matemática e da lógica são também leis que
governam nossos processos de pensamento, assim como as coisas em relação
as quais pensamos. Por essa razão, não nos é possível conceber que leis não
se aplicam às coisas, propriedades e estados de coisas que percebemos que
elas governam. Mas nada sobre nossa incapacidade de conceber as coisas
diferentemente é minimamente incompatível com a crença de que Deus
chamou à existência a totalidade do cosmos em todos os seus aspectos, de tal
modo que, sem sua ação nesse sentido, não haveriam entidades, propriedades
ou leis. (Como eu disse, retornaremos a esse tema posteriormente, e
ofereceremos uma resposta mais ampla a essa crítica sob a Objeção 3 à
posição C/R.)
Como, então, deveria a alternativa C/R ser explicada? Em lugar de
procedermos diretamente a uma exposição dos pensadores que a
desenvolveram, quero iniciar, em vez disso, com suas bases bíblicas. Em
seguida relatei como um grande números de seus defensores afirmaram-na, e
finalizarei apresentando respostas a algumas das objeções mais
frequentemente apresentadas contra ela.

B. Pancriacionismo
Minha central objeção à visão AAA corresponde a tomar-se a doutrina
bíblica da criação no sentido mais amplo o possível — o sentido que sustenta
que tudo no cosmos foi criado3 por Deus. Assim, precisamos ver se existe
uma base bíblica para isso, ou se quando as Escrituras dizem que Deus criou
“todas as coisas” isso pode ser tomado de forma plausível como a maneira
que a visão AAA sugere. Ou seja, isso pode apenas significar que Deus criou
entidades concretas, mas não as (assim chamadas) entidades abstratas?
Não há dúvidas de que os escritores bíblicos de fato afirmam a
criadora, por parte de Deus, do mundo da experiência cotidiana. Considera-se
explicitamente que o sol, a lua, as estrelas, juntamente com a terra e as
formas de vida que a habitam foram criados123 e são sustentados por Deus.
Ademais, esses escritores ensinam que esse ato de criar não foi, em primeiro
lugar, simplesmente dar forma a algum material pré-existente que já estava
presente; antes, foi trazer à existência a partir do nada, e não uma mera
decoração interior cósmica. Mas o que dizer da expressão “todas as coisas”?
Será verdade que é, no máximo, uma expressão grosseira, bastante imprecisa
para ter valia em relação aos temas diante de nós? Ela é utilizada pelos
escritores bíblicos apenas para referir-se aos tais objetos concretos da
percepção cotidiana como são especificamente mencionados em Gênesis? Se
sim, a tradição teológica prevalecente poderia estar certa quando ela diz que
certas características do cosmos criado podem ser incriadas3. E, nesse caso, a
doutrina bíblica da criação será de fato muito vaga para oferecer uma base de
objeção à visão AAA de Deus. Por outro lado, se a doutrina da criação é
afirmada nas Escrituras em termos mais fortes — se ela, por exemplo, se
equivale a dizer que Deus trouxe à existência tudo além de si mesmo, de
modo que não exista nada incriado em relação ao que ele trouxe à existência
–, então a predominante doutrina AAA dos atributos de Deus de fato carece
de uma séria revisão. Além disso, tal revisão, tomada conjuntamente com o
que vimos previamente ser ensinado pelas Escrituras sobre a não neutralidade
de todo o conhecimento e verdade, exigiria o abandono da redução como
estratégia para as teorias.
Antes de examinar os textos relevantes, permita-me dizer de uma vez
que eu concordo que as Escrituras sejam escritas em linguagem comum e não
reflitam conceitos técnicos da ciência ou da filosofia. Portanto, concordo que
não podemos esperar antecipadamente que elas abordarão a existência de
entidades abstratas. Mas não há razão para supor que apenas a linguagem
técnica abstrata poderia expressar a afirmação de que tudo em relação ao
cosmos tem sido chamado à existência por Deus, e de que não existam
exceções. (De fato, minha última sentença fez exatamente isso!) Dessa forma,
é pelo menos possível que as Escrituras possam ensinar precisamente esse
ponto de vista, ainda que desprovida de linguagem técnica. O argumento de
que as Escrituras estão em linguagem ordinária não é, portanto, decisivo.
Nem o é o argumento de que não podemos esperar, de antemão, que ela dirá
coisas relevantes relacionadas ao status das realidades descobertas pela
abstração. Não deveríamos adotar resoluções antecipadamente sobre o que as
Escrituras podem ou não pode dizer sobre qualquer coisa! (Certamente, é
uma surpresa para muitos teístas que elas afirmam que todo o conhecimento e
verdade são impactados pelo conhecimento de Deus, por exemplo.) O que é
necessário não são palpites antecipados sobre o que esperar que as Escrituras
afirmam, mas um exame cuidadoso daquilo que elas de fato dizem. Em
particular, precisamos de um exame sobre como ela utiliza a expressão “todas
as coisas”, incluindo o que esses usos podem pressupõem, ao compará-los
uns com os outros.
Outra tentativa equivocada de tentar resolver essa questão de antemão é
o argumento simplista de que, uma vez que é dito que Deus criou todas as
coisas, o significado dessa expressão por si demonstraria que se refere apenas
a objetos concretos. Mas isso não funcionará, porque a palavra “coisas” não
pode carregar tal peso interpretativo. Ela não pode simplesmente implicar que
o ato criativo de Deus não se estende a entidades abstratas pela simples razão
que a palavra “coisas” não ocorre nas expressões hebraicas ou gregas
traduzidas para o português como “todas as coisas”. Em cada uma das
linguagens bíblicas existe apenas uma palavra significando simplesmente
“todas”. Os próprios termos, portanto, são indefinidos em relação à questão
perante nós, de modo que sua extensão pode ser resolvida apenas
examinando seu uso; somente seus significados léxicos não serão suficientes.
Para começar nosso exame de “todas as coisas”, podemos notar que em
inúmeros lugares as Escrituras hebraicas falam de Deus como o soberano
sobre as leis (fronteiras ou limites) que governam o mundo (conferir Sl.
119.89-91 com Sl. 148.6). Elas são parte de “todas as coisas” ditas como
sendo suas servas. Elas também são mencionadas como a ordem (ou
ordenanças) da criação que são o meio pelo qual Deus governa a criação (Jr.
31.35, 36; 33.25; Jó 38.33). Além disso, a confiabilidade permanente da
ordem do mundo — a ordem a que nos referimos como leis — é considerada
nesses textos, e em Gênesis 8: 22, como dependente de Deus. Na visão
bíblica, portanto, Deus não é confiável porque algumas leis encontradas na
criação podem ser utilizadas para demonstrar que ele o é, mas o contrário:
pode-se confiar nas leis da criação somente porque Deus promete mantê-las
em operação. Visto que a ordem do cosmos é, desse modo, incluída
especificamente entre as criações de Deus , já está claro que a expressão
“todas as coisas” não se refere somente a objetos concretos. Ainda assim,
outras assertivas, como Isaías 45.7, também apoiam este último ponto. Ali se
diz que Deus criou o curso da história, inclusive se haveria paz ou desastre.
Assim, uma vez mais, as “coisas” que dependem de Deus não são apenas
objetos concretos.
O Novo Testamento estende a referência a “todas as coisas” ainda
mais longe. É dito que Deus é o criador de todos os tipos de princípio e poder
(Ef. 1.10-22; 3.9-10), do espaço (Rm. 8.38-39) e, sim, mesmo do tempo (2
Tm. 1.9; Tt 1:2; Jd 25; Ap. 10.5-7).[232] E existem declarações ainda mais
vigorosas que essas. Em Colossenses 1.15-16 é dito que Deus criou todas as
coisas “nos céus e na terra, visíveis e invisíveis”. Ora, uma vez que tudo —
incluindo qualquer entidade abstrata — é ou visível ou invisível, o
significado literal dessa passagem logicamente implica que nada na criação é
incriado.[233] Essa declaração também não está sozinha ao exigir que a
expressão “todas as coisas” se estenda para tudo que não o próprio Deus. Em
Romanos 1.18-25 Paulo fala da falsa religião como a transformação da
verdade sobre Deus em mentira, de maneira que as pessoas “adoram e servem
algo criado em lugar do criador”. Aqui a distinção criador-criatura é expressa
como sendo total; todas as coisas ou são o próprio Deus ou algo criado3 por
Deus.
Por fim, considere 1 Coríntios 15.24-28 em comparação com
Colossenses 1. 17. Nesta última passagem diz-se que Cristo (em sua natureza
divina) é aquele de quem “todas as coisas” dependem, enquanto a primeira
diz que, no reino final de Deus, Cristo governará sobre “todas as coisas”,
exceto sobre o próprio Deus. Parece bastante natural entender “todas as
coisas” como tendo a mesma extensão em cada caso: Cristo governa o que
depende dele. Mas se isso está correto, então nós temos o ensinamento
explícito de que nada na criação2 é ou incriado3 ou não governado por Cristo,
com exceção do próprio Deus. Portanto, estabelece-se que a extensão de
“todas as coisas” é tudo que não Deus, visível ou invisível!
Sem dúvidas o defensor da visão AAA ainda achará isso inconvincente.
Uma vez que as únicas entidades abstratas mencionadas especificamente
nesses textos são leis, espaço e tempo, elas não incluem especificamente os
próprios atributos de Deus. Então vejamos uma passagem notável das
Escrituras que não apenas fala de uma propriedade em abstração, mas a
confere a Deus como um atributo e todavia afirma que teria sido criada3 por
Ele! Ela encontra-se em Provérbios 8.22-31, em que, numa personificação, há
uma representação da sabedoria dizendo de si mesma:

Yahweh me possuiu no princípio de seus caminhos, desde então, e antes


de suas obras. Desde a eternidade fui ungida, desde o princípio, antes do
começo da terra. Quando ainda não havia abismos, fui gerada... Ainda
ele não tinha feito a terra... nem o princípio do pó do mundo. Quando
ele preparava os céus, aí estava eu... Então eu estava com ele, e era seu
arquiteto; era cada dia as suas delícias... e estava com os filhos dos
homens.[234]

Ora, nunca é um bom procedimento basear-se demasiadamente em qualquer


passagem isolada das Escrituras, então não afirmarei que esse texto por si só
é suficiente para estabelecer a posição que estou defendendo. O que é
significativo aqui não é esse texto isolado, mas a bela forma pela qual ele se
encaixa com todos os outros textos que falam de Deus haver criado3 todas as
coisas. Ademais, por mais poético que seja, essa é uma das raras pistas
bíblicas sobre como Deus possui suas qualidades. Dessa forma, ainda que
isoladamente, a passagem é muito impactante para ser ignorada. Pois, mesmo
reconhecendo a licença poética, parece claro que ninguém que sustente a
visão AAA de Deus poderia ter escrito essas linhas (Anselmo não poderia tê-
las escrito tomado de embriaguez, muito menos sóbrio!) Ela diz que a
sabedoria, que é possuída pelo próprio Deus, também está presente com — e
então compartilhada pelos — os humanos, porém claramente insiste que a
sabedoria foi gerada (criada3) por Deus “desde o princípio, antes do começo
da terra” — uma clara referência ao relato da criação em Gênesis. Assim,
embora não negue que Deus compartilha sua sabedoria com os humanos,
nem que nunca houve um tempo em que Deus não a possuísse, ela de fato
nega que a sabedoria de Deus deva ser incriada3 porque Ele o é.
O que é ainda mais importante é o fato de que o texto de Provérbios
não está só também em outro sentido. Esse não é o único lugar nas Escrituras
em que se outorga a Deus um atributo que Ele criou3. O Novo Testamento
fala dessa forma em relação a à própria doutrina da Encarnação. Ele ensina
que Jesus era plenamente humano, mas que era também a encarnação de
Deus. Ele diz que Deus agora conduz todas as suas relações com o cosmos
por meio dele, incluindo sua relação de manter sua subsistência (Cl. 1.17). E
parece óbvio que Deus não fez isso antes de haver criado123 Jesus. Posto de
outra forma, a segunda pessoa da Trindade em um momento no tempo
encarnou-se no Jesus humano; assim essa relação, embora verdadeira no
tocante a Deus, é uma relação que não existiria, caso Deus não lhe tivesse
dado origem. E uma vez que se diz explicitamente que essa relação não teria
anulado nem humanidade de Jesus, nem o fato de que ele era uma pessoa, a
forma mais óbvia de entender isso é dizer que Deus tomou — assumiu em si
mesmo — a pessoa inteira de Jesus Cristo. Na encarnação, portanto, Deus se
torna o lado divino de Jesus, assim como Jesus se torna o lado humano de
Deus. Muitos teólogos cristãos de várias estirpes e afiliações reconheceram
essa maneira de formular a doutrina. Aquino, por exemplo, afirma que na
encarnação “Deus se tornou homem” e que “Deus assumiu a carne humana”
(ST III, q. 1, a. 2) (em que “carne” é obviamente uma sinédoque para o
plenamente humano). E Gregório de Nissa diz que, de acordo com essa
doutrina, o Criador era também o Salvador que se encarnou ao “tomar em si
mesmo a humanidade em sua completude” (Eun. 3.3.51).
O efeito cumulativo de toda essa evidência textual oferece um poderoso
apoio para a interpretação estrita da doutrina da criação — a visão que estou
denominando “pancriação”. Assim, vejo que a evidência demonstra que a
Bíblia diz algo que não Deus é incriado3, incluindo números, conjuntos,
propriedades, relações, leis, proporções, ou qualquer outros habitantes dos
rincões de Platão. Nenhum deles pode ser considerado como incriado3. Os
escritores bíblicos simplesmente não permitem exceções, nem mesmo os
atributos outorgados ao próprio Deus. Na verdade, os textos que
examinamos não apenas fornecem a clara impressão de que buscam ensinar a
pancriação, mas é difícil ver como eles poderiam tornar isso ainda mais claro
mesmo se utilizassem uma linguagem técnica. Desse modo, devido à maneira
que os escritores bíblicos utilizam a expressão “todas as coisas” e ao modo
que Provérbios 8 e a doutrina da Encarnação convergem no modo que Deus
possui sua sabedoria e se encarna em Cristo, proponho que todos os atributos
de Deus sejam entendidos como sendo verdadeiros em relação a ele dessa
forma.
Nessa posição, portanto, não é uma questão de que os humanos sejam
imagem de Deus e possam conhecê-lo porque são parcialmente divinos e
compartilham de algumas das propriedades incriadas de Deus. Antes, os
humanos são imagem de Deus e podem conhecê-lo porque Deus tomou para
si relações e propriedades criadas3 que conhecemos pelo fato de ele tê-las
colocado no mundo e em nós mesmos. Ademais, Deus criou e colocou essas
relações e propriedades no cosmos para o propósito mesmo de que elas nos
possibilitasse entendê-lo. É isso que constitui sua natureza revelada, a
natureza por meio da qual ele tem (como São Basílio coloca) “se adaptado ao
nosso entendimento”. É dessa natureza acomodada e revelada de Deus que os
humanos são a imagem reflexiva.[235]Assim, embora essa visão afirme que
Deus realmente tem tanto as relações com as criaturas quanto as qualidades
que as Escrituras atribuem a ele, ela todavia insiste que ele não tinha de tê-las
para existir. Pelo contrário, elas [as relações e qualidades] são verdadeiras em
relação a ele porque ele livremente desejou tê-las e sujeitar-se às leis e
normas que ele também chamou à existência, e tudo isso a fim de acomodar-
se às nossas limitações criaturais. De fato, as Escrituras atribuem a Deus
propriedades de praticamente todos os aspectos da criação. Ele é, por
exemplo, quantitativamente um (Dt 6.4; Is 44.6), espacialmente onipresente
(Sl 139.7-12), e fisicamente todo-poderoso (Êx 15.6, 1Cr 29.11, 12; Sl 62.11,
Hb 1.3). Ele também é biologicamente o Deus vivo e nosso Pai (2 Sm. 22.47,
Jr. 4.2, Sl 42.2, Ap 7.2), e sensorialmente ele nos vê e ouve (Sl 17.6, 33.18,
34.15); logicamente ele é onisciente (Jó 37.16, Sl 44.21, Is 46.10, Lc 16.15, 1
Jo 3.20), economicamente é dito que ele possui o mundo (Lv 25.23, 1Cr
29.11, Jó 41.11), etc. Essas são todas características que Deus assumiu em si
mesmo para tornar-se conhecido por meio das alianças que ofereceu a toda a
humanidade.
Além disso, a forma pactual da revelação de Deus oferece uma razão
adicional a favor dessa visão de sua natureza revelada. Pois a ideia de uma
aliança é aquela de um juramento de concordância por meio do qual Deus fez
certas demandas e promessas, dentre as quais estão suas promessas de ser
fiel, justo, amoroso, misericordioso, etc. Mas seria absurdo para Deus
prometer ser essas coisas se ele não pudesse evitar sê-las, conforme a visão
AAA insiste. Se esse fosse o caso, esperaríamos que as Escrituras dissessem
que Deus é misericordioso, ou fiel, ou justo, não porque ele promete ser, mas
porque ele simplesmente é incapaz de ser outra coisa.[236] Portanto, enquanto
sua promessa de ser essas coisas faz perfeito sentido na visão C/R, do ponto
de vista AAA, tais promessas não fazem mais sentido do que seria para você
e eu prometermos a nossos amigos e amados que amanhã nós não nos
tornaremos triângulos ou tonalidades da cor azul.
Aqui, portanto, temos uma visão da natureza que Deus que tem
embasamento bíblico, é consistente com a asseidade divina, e também evita a
falha óbvia do experimento mental que demonstra por que não podemos nem
mesmo estruturar a ideia de uma perfeição em sua suposta existência
independente.[237] Ela é mais consoante à doutrina da criação, à imagem de
Deus nos humanos e à macroestrutura pactual da Escrituras. E ela faz tudo
isso simplesmente entendendo os atributos de Deus como relações (e
propriedades de relações) que ele deseja, em vez de perfeições com existência
independente sobre as quais ele não tem controle. Nesta visão, seus atributos,
portanto, expressam sua graça em vez de serem produtos de um conjunto de
necessidades platônicas que o compelem a ser o que ele é e a fazer o que ele
faz.

9.5 As tradições teológicas capadócia e reformacional


A alguns leitores pode parecer supérfluo, neste ponto, incluir sequer um
breve relato dos teólogos que sustentaram essa visão de Deus esboçada
acima. Afinal de contas, a verdade ou falsidade da posição não depende de
quem a apoiou, então por que se importar? Mas uma vez que essa visão é
pouco conhecida e geralmente mal entendida, pode ser importante para outros
leitores aprenderem que ela tem sido defendida por um número expressivo de
homens e mulheres, cujos estudos das Escrituras levaram-nos a abandonar a
interpretação neoplatônica dos atributos de Deus. Desse modo, apresentarei
um breve relato de como essa visão de Deus tem sido afirmada por seus mais
notáveis defensores, começando com os Capadócios: Basílio de Cesareia,
Gregório Nazianzeno (o cunhado de Basílio), Gregório de Nissa (irmão de
Basílio), e a irmã de Basílio, Macrina, que não apenas contribuiu para o
corpus que produziram, mas também editou as obras de todos eles.
Todos os Capadócios enfatizaram o ponto de que o ser incriado de
Deus, exceto em suas acomodações à criação, é em última instância
“incompreensível à razão”, e, em razão disso, tudo aquilo que pode ser
racionalmente compreendido “pertence à criação”.[238] O ponto é colocado de
várias formas por cada um deles, mas a mais famosa é a afirmação bastante
citada de Basílio: “Não sabemos quem Deus é, mas sim o que Deus não é e
como ele se relaciona com as criaturas”. Eles negaram que o ser de Deus
deva ser identificado com seus atributos[239] e afirmaram, em lugar disso, que
“qualquer nome, quer tenha sido inventado pelo costume humano ou
comunicado pelas Escrituras... não significa o que a natureza [de Deus] é em
si mesma”. Na verdade, “esses nomes são verdadeiros em relação a Deus
porque eles se referem às suas energias, às atividades nas quais Deus se
envolve ao relacionar-se com suas criaturas”.[240] Acerca do próprio ser de
Deus, diz Nissa: “não sabemos nada além disto: que Deus é”.[241]
Explica-se, posteriormente, que isso significa que — excluindo-se a
adaptação revelada de Deus em relação à humanidade — o ser de Deus era
“inteiramente livre de qualidades”; em outras palavras, não existem
propriedades encontradas na criação e cognoscíveis aos humanos que
abarquem uma natureza que Deus não pode deixar de ter (contra Aquino, ver
nota 27). Em apoio a esse ponto, eles afirmavam que as regras ordinárias de
predicação “não se aplicam ao Deus do universo”, na medida em que
enunciados negativos acerca de Deus denotam “a ausência de qualidades não
inerentes, ao invés da presença de qualidades inerentes”.[242] Em outras
palavras, negar uma propriedade a Deus não é ao mesmo tempo afirmar que
Deus necessariamente possui seu complemento, como seria o caso para com
as criaturas. Assim, por exemplo, o próprio ser incriado de Deus é não
temporal, uma vez que Deus criou o tempo. Mas isso não é o mesmo que o
ser de Deus ser essencialmente atemporal, de modo que Deus não poderia
assumir a temporalidade e agir no tempo. Ao invés disso, o ser de Deus
transcende qualquer propriedade e seu complemento, sendo esta a razão por
que Deus é livre para permanecer em qualquer tipo de relação que ele quiser,
e estas relações podem ter quaisquer propriedades que ele deseja. E isso
também é a razão por que tais atribuições reveladas podem ser verdadeiras
acerca de Deus e, ainda assim, não nos informar sobre seu ser “em si” à parte
de suas acomodações em relação a nós. Assim, eles insistiam: “Dizemos que
conhecemos a grandeza de Deus, o poder de Deus, a sabedoria de Deus, a
bondade de Deus, mas não o ser mesmo de Deus”.[243] Assim, Basílio diz:
“...nas várias manifestações de Deus à humanidade, Deus tanto se adapta à
humanidade quanto fala na linguagem humana”.[244] Comentando sobre essa
posição, o grande expositor do século XIV, São Gregório Palamas, observa:
“As energias [de Deus] não abrangem o ser de Deus; é ele que lhes concede
sua existência”. Portanto, “Deus, por uma superabundância de bondade para
conosco, [embora] transcendente sobre todas as coisas, incompreensível e
inexprimível, consente em tornar-se comunicável à nossa inteligência” e “em
sua condescendência voluntária impõe sobre si um modo de existência
realmente diversificado”.[245]
Essa posição, diziam os Capadócios, deve ser aplicada até mesmo à
doutrina da Trindade. O ser mesmo de Deus está além do uno e do múltiplo,
ou de qualquer enumerabilidade. Como Pelikan coloca: “Estes três nomes de
Pai, Filho e Espírito Santo eram, pois, não nomes do [ser de Deus]... Eram,
antes, nomes do ‘relacionamento’, do relacionamento de Deus com a
humanidade e do relacionamento [das pessoas] divinas umas com as outras”.
[246]
Uma vez que essa relação existia antes de todos os tempos e não é outra
coisa senão Deus-em-relação, ela é incriada12. Mas no sentido em que essa
relação envolve tais características como número, personalidade, amor, etc.,
ela ainda deve ser vista como a expressão eterna criada3 de si mesmo, a qual
Deus escolheu dar origem a fim de revelar-se a nós.
Finalmente, os Capadócios explicitamente incluíram as verdades
necessárias entre “todas as coisas visíveis e invisíveis” que Deus criou23. As
verdades necessárias, eles diziam, são necessárias para as criaturas, não para
Deus, e eles mencionaram explicitamente os números como parte da ordem
cósmica, “concebidos como um símbolo indicativo da quantidade de
objetos”.[247] Em relação a esse ponto, parte da objeção de Palamas à posição
tomista foi precisamente que esta fez com que as leis lógicas governassem
Deus ao considerá-las como parte do ser de Deus. Palamas insiste, ao invés
disso, que elas foram originadas por Deus, não tendo, pois, “valor absoluto”.
[248]

Lossky resumiu a posição como se segue:

Os nomes negativos, sem revelarem-nos o ser [divino], coloca de lado


tudo o que lhe é externo... Assim, ao dizer que Deus é bom, estamos
declarando que não há espaço nele para o mal... Outros nomes, tendo um
sentido verdadeiramente positivo, referem-se às operações ou energias
divinas; eles levam-nos a conhecer Deus não em sua essência
inacessível, mas naquilo que o circunda. Por conseguinte é verdade que
tanto o coração puro vê a Deus quanto que ninguém nunca viu a Deus...
[porque] ele... torna-se visível por suas energias.[249]

Talvez seria útil nesse momento utilizar-me da expressão de Lossky de que


Deus se “circunda” com suas energias, a fim de trazer certo refinamento ao
esquema que se apresentou no capítulo 3 visando representar o arranjo
bíblico de dependência. A Figura 5 abaixo é apresentada para refletir tanto a
ideia bíblica de pancriação quanto a ideia da acomodação de Deus às
criaturas, seguindo o modelo sugerido por Provérbios 8 e a doutrina da
Encarnação.
Figura 5

Já que dediquei considerável tempo à posição Capadócia, não farei


referências tão extensas a Lutero e Calvino. Mas veja como eles soam
semelhantes aos Capadócios. Lutero diz:

O que você pensa que existia fora do tempo, ou antes do tempo?...


Livremo-nos de tais ideias e reconheçamos que Deus era
incompreensível em seu descanso eterno antes da criação... Deus
também não se manifesta senão por meio de suas obras e da Palavra,
porque o significado destas são compreendidos... O que mais que
pertença à Divindade não pode ser apreendido e compreendido como se
estivesse fora do tempo.[250]

Ora, Deus em sua própria natureza e majestade não deve ser


incomodado; nesse tocante não temos nada a lidar com ele, e nem ele
deseja que o façamos. Temos de lidar com ele enquanto revestido por
sua Palavra, por meio da qual ele se apresenta a nós.[251]

Não conhecemos outro Deus senão Deus revestido em suas promessas...


Quando ele está revestido com a voz de um homem, quando ele se
acomoda à nossa capacidade de entendimento, então posso aproximar-
me dele.[252]

De semelhante modo, Calvino:

[...] de que modo, por si só, penetrará no exame da substância de Deus


aquela que minimamente alcança a sua própria? (A instituição, I, xiii,
21).[253]

De fato, a linguagem de Calvino é ainda mais próxima da dos Capadócios do


que a de Lutero, quando diz que o que conhecemos do próprio ser de Deus é
negativo, a saber, que Deus é não temporal e não dependente:

Visto que nada [é] mais próprio a Deus que a eternidade e a autogênese,
ou seja, a existência desde si mesmo, se assim posso falar [...] (A
instituição, I, xiv, 3).[254]

É por essa razão que

[nessa] passagem... somos advertidos de que a sua eternidade e


soberania sejam predicadas por aquele magnífico nome por
duas vezes repetido, depois, que sejam lembradas suas virtudes,
pelas quais nos é descrito não o que Ele é em si, mas de que
modo Ele é para nós... No entanto, nada é dito ali que não seja
contemplado nas criaturas. De modo que sentimos a Deus pela
experiência que é mestra tal qual Ele se declara pela Palavra (A
Instituição, I, x, 2).[255]

Assim, Calvino se refere à natureza atribuída a Deus nas Escrituras com “a


natureza por meio da qual lhe agradou se manifestar” (Institutes, III, ii, 6),
enfatizando assim tanto o controle de Deus sobre o que aquela natureza é
quanto sobre qualquer conhecimento que possamos ter dela. Em outro
contexto ele complementa, “Portanto, deixemos livre para Deus o
conhecimento de si. ... [e] o concebamos tal qual Ele se manifesta para nós, e
não nos informamos sobre Ele senão por meio de seu Verbo” (A instituição,
I, xiii, 21).[256]
Finalmente, compare essas observações de Karl Barth aos Capadócios e
aos Reformadores:

Quando Deus cria e portanto dá realidade a outro ao lado e externamente


a si mesmo, o tempo inicia-se como a forma de existência desse outro...
Deus não está no tempo... A criatura, no entanto, não é eterna... Ser uma
criatura significa ser desse modo. Mas como pode haver qualquer
possibilidade ou atualização de... intercurso entre Deus e a criatura senão
pela graciosidade de Deus à sua criatura, sua condescendência a ela, por
sua entrada em sua [da criatura] forma de existência... Se ele não aceita
isso de um modo em que se entrega a esse nível... não pode haver
qualquer intercurso entre o Criador e a criatura.[257]

9.6 Réplicas a objeções


O que há nessa alternativa que causa sua persistente rejeição por parte dos
defensores da visão AAA? Por que até nossos dias ela não tem uma voz na
filosofia da religião na Europa ocidental e na América do Norte? A resposta a
isso, creio eu, é que por um lado muito da tradição filosófica ainda está cativa
a Platão, ao passo que, por outro, a posição C/R tem sido mal interpretada em
inúmeras formas. Obviamente, não posso lidar com todos essas interpretações
equivocadas aqui, no entanto encerrarei este capítulo oferecendo uma breve
réplica a algumas que mais comumente se repetem.
O primeiro mal-entendido é uma reação que quase todos os
familiarizados com a visão AAA têm quando ouvem a primeira vez sobre a
visão C/R — mesmo em um nível teologicamente grosseiro. A reação é dizer
que se os humanos não têm acesso ao ser em si de Deus, exceto em suas
acomodações para conosco, então aquilo que conheçamos não é realmente
Deus, e deve, portanto, outra coisa. A isso geralmente se acrescenta que,
mesmo na visão C/R, ao menos um atributo de Deus — sua autoexistência
absoluta — não poderia ser algo que ele assumiu para si. Portanto, como
pode a visão C/R explicar isso? A segunda objeção é que seria
autorreferencialmente incoerente dizer que não temos qualquer conceito do
ser de Deus. Afinal de contas, prossegue a objeção, se afirmamos no tocante
a Deus que não temos nenhum conceito sobre seu ser, não teríamos, com
isso, concebido seu ser desse modo? A terceira objeção é que dizer que Deus
criou as verdades necessárias faz com que se consinta a declarações
mutuamente contraditórias e todos os tipos de absurdidades como sendo
verdades. Uma vez que o resultado seria colocar um fim a todo o tipo de
raciocínio, a posição C/R simplesmente não pode estar certa. (Esse é o outro
lado da objeção referente às verdades necessárias ao qual prometi retornar.)
Por fim, objeta-se que se o ser de Deus é incognoscível em princípio, não
pode haver semelhança entre Deus e as criaturas, de modo que não há base
para que nossa linguagem seja verdadeira em relação a Deus. Disto segue-se
que a visão C/R é incapaz de oferecer uma descrição de como discursos
verdadeiros sobre Deus são possíveis.
Tratarei cada uma dessas objeções na ordem listada.

Objeção 1
Essa objeção equivale a insistir que deve haver alguma natureza original ao
ser de Deus que explique por que ele assumiu para si o caráter revelado em
suas ações e relações com os humanos. Esse insistência admite, no entanto,
que Deus deve ser como as criaturas, desejando e agindo a partir de uma
natureza preexistente. Mas baseados no que vimos sobre a doutrina da
pancriação, essa suposição deve ser rejeitada.[258]Em vez disso, o ser
originador de Deus teria de ser a fonte criativa3 de seu caráter revelado na
medida em que esse caráter é tudo o que podemos conhecer. Isto se dá assim
porque Deus é o criador de tudo que se encontra no cosmos, e ele se revela
em termos das propriedades e relações encontradas no cosmos. Ele trouxe à
existência o tempo juntamente com todas as propriedades e leis encontradas
no tempo. Pela mesma razão, o ser originador de Deus é a fonte criativa3 de
todos os princípios da racionalidade, caso em que não há nada que poderia
ser uma razão para ele relacionar-se conosco tal como ele o faz — para além
disso está sua vontade. A negação desses pontos, novamente, assume que
alguns tipos de propriedades encontradas na criação são incriadas e portanto
divinas. Isso contradiz claramente a doutrina bíblica da pancriação.
Ademais, é absurda a suspeita de que, se Deus quis ser aquilo que ele
revela ser, então o aquilo que ele revelou não é realmente ele. Isso equivale a
dizer que se Deus faz algo assim, isso na verdade não é assim! Além do mais,
o que essa objeção ignora é que, embora não conheçamos o ser de Deus
senão enquanto acomodado, conhecemos todavia o ser de Deus em sua
relação conosco. Na verdade é Deus, cujas energias, ações e relações
conosco são conhecidas pelo que são.
Essa objeção geralmente é reforçada pontuando-se que, se a natureza
de Deus em-relação-a-nós é desejada por Ele, então não temos garantia de
que ela não se modificará. Em contrapartida, a visão AAA entende que a
natureza de Deus está fora de seu controle, de modo que podemos ter a plena
confiança de que ela nunca poderá mudar. Isso, no entanto, é um erro
profundo, existencial e religioso — o erro que Agostinho denominou “um
insulto a Deus” (ver a citações de Lutero e Calvino na nota 50). Qual é, afinal
de contas, o fundamento último para nossa confiança em Deus? É o
juramento pactual do próprio Deus de que ele será por todo o sempre, para
conosco, o que ele prometeu ser? Ou o fundamento de nossa confiança é um
cheque de crédito lógico e/ou metafísico que podemos executar em relação a
Deus? É o fato de que algumas leis do cosmos garantem que Deus não pode
ser senão o que prometeu, ou é o fato de que confiamos na sua palavra dada?
Tão logo buscamos encontrar princípios que possam garantir a confiabilidade
de Deus, não apenas tornamos estes mais fundamentais do que Deus, mas
também depositamos, desse modo, nossa confiança última neles em vez de
em Deus! (Recorde aqui meu ponto no fim do capítulo 2 sobre a correlação
entre o que é derradeiramente confiável e o que confiamos como a realidade
última.)
O que dizemos, portanto, sobre a parte dessa objeção que diz que a
existência incondicional de Deus não pode ser algo que Deus criou e
assumiu? Isso certamente soa correto. Mas como, exatamente, isso deporia
contra a visão C/R? A realidade incondicional não é uma propriedade, nem é
algo encontrado no cosmos ou compartilhado por humanos. Não é verdade
em relação a algo que não o próprio ser de Deus. E nem é racionalmente
concebível. Talvez seja esse último ponto que está no cerne da objeção. Uma
vez que a visão C/R constante afirmou que o ser de Deus não pode ser
concebido, talvez algumas pessoas se equivoquem pensando que se podemos
estruturar a ideia da realidade incondicional, então a visão C/R contradisse a
si mesma. Para responder a isso devo explicar a diferença entre um conceito e
uma ideia limitante.
Quando formamos um conceito, combinamos no pensamento
inúmeras propriedades daquilo que estejamos concebendo. É por essa razão
que os conteúdos de um conceito podem ser averiguados, analisados e
tornados específicos. Um conceito, obviamente, também inclui a relação (ou
as relações) na qual seus conteúdos (propriedades) são tomados em sua
relação uns aos outros, razão pela qual uma definição é o enunciado
linguístico dos conteúdos de um conceito. Em contrapartida, uma ideia
limitante de algo não é uma combinação de suas propriedades, mas é nossa
percepção de algo que vem à tona através das relações que mantém com
outras coisas. Por exemplo, a propriedade “vermelho” não é capaz de ser
analisada em quaisquer elementos constitutivos, pois estes não existem.
Também é por essa razão que essa propriedade não pode ser definida.[259]
Conhecemos o vermelho ao compará-lo com outras cores, não ao combinar
seus elementos constituintes em um conceito. As meta-propriedades que
qualificam os vários aspectos (espacial, físico, sensorial, biótico, etc.) são
semelhantes, nesse sentido, às cores. Temos ideias limitantes deles, não
conceitos deles. Passamos a conhecê-las encontrando propriedades
específicas das coisas que são posteriormente qualificadas por tais meta-
propriedades. Por exemplo, experimentamos uma forma particular como
espacial, ou um exemplo particular de dureza como física, ou um caso
particular de ingestão como biótica, etc. E distinguimos as meta-propriedades
comparando umas com as outras, incapazes como somos sequer de formar
uma ideia limitante de qualquer delas isolada de todas as outras. Também
temos de manter em mente que ideias limitantes podem ter mais ou menos
conteúdo; algumas podem ser formadas pelo despojamento de parte dos
conteúdos e relações encontrados em conceitos. Quando formamos uma ideia
dessa forma geralmente utilizamos o mesmo termo tanto para o conceito
quanto para a ideia derivada dele, de modo que se torna importante não ser
lançado de um lado para o outro entre dois tipos de conhecimento sem
reconhecê-lo.[260]
Se existe qualquer dúvida sobre se realmente existe tal conhecimento-
ideia distinto de conhecimento-conceito, considere o seguinte exemplo de
uma ideia limitante: números que ninguém jamais concebeu e jamais
conceberá. Uma vez que a série de números naturais é infinita, é
necessariamente verdadeiro que sempre haverá alguns números que nenhum
ser humano conceberá. Mas concebemos tais números ao dizer isso?
Certamente não. É impossível conceber qualquer um deles, pois cada número
que concebemos é, por meio disso, excluído da classe selecionada por essa
ideia limitante. Eis, portanto, um caso de uma ideia limite, não um conceito.
Temos a ideia de que existem tais números, mas nenhum conceito do que
exatamente qualquer deles é. Essa ideia tem menos conteúdo, digamos, do
que cores ou os qualificadores aspectuais que denominei meta-propriedades,
mas ainda há algum conteúdo nela. Todos os números inconcebíveis ainda
serão quantidades de algum tipo e permanecerão em várias relações
matemáticas com outras quantidades. (Isso se encaixa com a parte anterior da
minha descrição, quando eu disse que o conteúdo de uma ideia é conhecido
através das relações que ela tem com outras coisas das quais temos conceitos
ou ideias.) Da mesma forma, pode-se formar ainda outras ideias que têm
menos conteúdo do que esses exemplos. Mas eles são possibilitadas pelo fato
de que seus conteúdos mantêm relações com os conteúdos de conceitos ou de
ideias, os quais possuem mais conteúdo do que esses exemplos têm.
Nossa percepção da existência é, eu afirmo, uma dessas ideias. Ora, a
ideia da existência é notoriamente difícil, e eu não tenho a pretensão de
resolver aqui os intrincados debates que cercam esse ponto. Apenas tentarei
deixar claro por que eu digo que essa é uma ideia limitante. Ninguém duvida
que derivamos nossa percepção da existência de nossa experiência do mundo
que nos cerca. O termo “existir” significa literalmente “estar fora de”, ou ser
distinto de. Ele reflete o fato de que reconhecemos que algo existe
distinguindo-o de outras coisas. Mas a existência de algo não pode ser
definida como sua habilidade de ser selecionado; isso é, no melhor dos casos,
uma circunscrição desse algo. O fato de que podemos distinguir uma coisa é
possibilitado pelo fato de que isso existe, e não o contrário.
Consequentemente, mesmo o sentido literal da palavra “existir”, quando dela
nos valemos, não designa aquilo de que estamos atrás, mas aponta para além
de seu próprio significado, para o fato da existência que se encontra por trás
desse algo e o torna possível. Para complicar as coisas ainda mais, parece que
a existência de cada coisa com as quais lidamos na experiência é unicamente
individual àquela coisa. Não é uma qualidade que a coisa possui ao lado de
suas outras qualidades, porque uma coisa teria de existir para possuir
qualidades. E certamente não é uma qualidade universal compartilhada por
mais de uma coisa; duas ou mais coisas não têm a mesma existência. (A
capacidade de distinção das coisas que formam o significado literal de
“existir” pode ser compartilhado, mas não o fato de sua existência que as
torna distinguíveis.) Por essas razões, penso que a existência não é algo que
seremos capazes algum dia de conceitualizar. É um fator da criação não
analisável, indefinível, que confrontamos em nossa experiência, que somos
incapazes de apreender em um conceito e do qual temos apenas uma ideia
limitante.
Quando falamos da autoexistência de Deus, portanto, estamos
aplicando a Deus nossa ideia limitante de existência, que é, por meio disso,
despojada de seu conteúdo: é a existência que não depende de nada e de
nenhum modo, é externo ao tempo, não é governada por qualquer lei que é
válida para as criaturas. Ela é, assim, uma ideia limitante que é quase
totalmente negativa, pois mesmo a propriedade de ser “distinguível” é
verdadeiro para Deus apenas em sua relação com a criação, visto que, se se
excluísse tudo que ele criou, não haveria nada do qual Deus seria distinguido.
O que sobre dessa ideia é apenas isto: o ser incondicional de Deus é aquilo do
que tudo o mais depende para a existência; Deus pode ser o que quer que
seja, todavia, sem Deus, nada mais pode sequer ser. Assim, embora esteja
além de nossa capacidade apreender conceitualmente o que esse ser é,
podemos ter uma ideia de que existe um ser último, incondicional, sobre o
qual tudo o mais permanece na relação de total dependência. Como resultado,
somos conduzidos de volta à expressão de São Basílio de que “não sabemos
quem Deus é, mas sim o que ele não é e como ele se relaciona com suas
criaturas”. A conclusão é que temos tanto conhecimento conceitual quanto
conhecimento-ideia de Deus em relação às suas adaptações criaturais para
conosco, ao passo que temos apenas a mínima ideia limitante de seu ser para
além dessas adaptações. E a ideia limitante não trata de uma natureza
primordial de seu ser, mas apenas da relação que todas as demais coisas
mantém com ele. Seu conteúdo, mais uma vez, é apenas que essa é a fonte
incondicional e última da existência de tudo o mais. Colocado de um modo
antigo: é a realidade cuja essência é existência.
A isso devemos imediatamente acrescentar que chegamos a esse
conhecimento-ideia do ser de Deus não por meio de especulação filosófica,
mas por meio de revelação. A ideia do ser transcendente de Deus assoma
porque, conforme revelava sua natureza acomodada, Deus também revelou
que cada característica da criação (visível ou invisível) foi trazida à existência
por ele a partir do nada. Isso, e não a teorização, é a base para a visão C/R de
que seu ser não acomodado, incriado, é algo em relação ao qual não podemos
sequer conceitualizar. Assim, nossa visão de que não podemos ter um
conceito do que o ser de Deus é, mas apenas a ideia de que é, provém
inteiramente da revelação de suas acomodações a nós, das quais temos tanto
conceitos quanto ideias com conteúdos definidos.

Objeção 2
A distinção entre um conceito e uma ideia limitante que nos auxiliou com a
existência incondicional de Deus, pode agora oferecer uma forma de lidar
com a alegação de que a visão C/R é autorreferencialmente incoerente. Ela
demonstra porque dizer que não temos conceitos do ser transcendente de
Deus não é mais incoerente do que dizer que necessariamente existem
números dos quais não temos conceitos. Não pensamos em qualquer desses
números dizendo isso, e da mesma forma não concebemos o ser de Deus ao
dizer que não podemos fazê-lo. Simplesmente não é verdade que não
podemos ter uma ideia de que existe algo a não ser que possamos
conceitualizar o que esse algo é de forma não-relacional. Ademais, a visão
C/R não afirma sem reservas que nossos conceitos não podem, ou mesmo
não se aplicam, a Deus. Antes, afirma o contrafactual de que eles não se
aplicariam, caso Deus não tivesse desejado manter relações com a criação
acima e além da mera relação de ter criado e sustentar sua existência. E,
felizmente, é falsa a afirmação de que ele não se adapta a nós e ao nosso
entendimento ao iniciar relações que somos capazes de entender.

Objeção 3
Chegamos agora à objeção a qual prometi retornar — aquela que, em minha
opinião, é a principal razão pela qual a visão C/R não tem voz na filosofia da
religião contemporânea no Ocidente. A objeção é que se Deus criou as
verdades necessárias (leis) da lógica e da matemática, então elas estão dentro
de seu controle, e se elas estão dentro do seu controle, então ele pode fazer
com que tanto as criaturas quanto ele mesmo as violem. Assim, segue a
objeção, na visão C/R Deus pode fazer com que 1 + 1 = 8, pode saber que ele
próprio não existe, pode criar triângulos com cinco lados, e pode ser
onisciente sem saber nada. Como Alvin Plantinga colocou, a objeção pode
ser resumida ao seguinte:

O conflito é entre duas intuições: a intuição de que algumas proposições


são impossíveis, e a intuição de que, se Deus é genuinamente soberano,
então tudo é possível. Mas quando a questão é apresentada de tal forma
inadequada, como a mim me parece, não existe de fato qualquer questão.
Obviamente nem tudo é possível; obviamente, por exemplo, é
impossível que Deus seja onisciente e, ao mesmo tempo, não conheça
nada... Deveríamos, portanto, afirmar de pronto que... nem tudo é
possível — mesmo para Ele.[261]

Minha primeira reação a esse (suposto) dilema intuitivo é dizer que se essas
duas opções fossem, de fato, as únicas escolhas, eu me aliaria a Plantinga no
tema em questão. O que argumentarei em resposta, no entanto, é que as
opções apresentadas não são exaustivas. Certamente temos duas intuições, e
uma delas é que existem verdades necessárias tais como a lei da não
contradição: a lei de que enunciados mutuamente contraditórios não podem
ser ambos verdadeiros ao mesmo tempo, de modo aquilo que alguns
enunciados expressam é impossível. Mas a outra intuição, eu argumento, não
é corretamente apresentada. Não é verdade que se Deus é genuinamente
soberano, então tudo é possível. Isso não se segue a partir da visão que tenho
esboçado (mesmo que seja verdadeiro da visão de Descartes que Plantinga
estava criticando na citação). Isto porque, na visão C/R, Deus construiu leis
de muitos tipos na criação. Ele não tinha de haver criado apenas essas leis,
obviamente, assim como não tinha de havê-las sequer criado. Mas visto que
ele as criou, e criou as leis que descobrimos no cosmos — a lei da não
contradição entre elas –, essas leis definem os limites para aquilo que é
realmente possível e impossível para as criaturas. E isso significa que elas
não apenas definem os limites para aquilo que as criaturas podem ser, mas
também definem os limites em relação ao que as criaturas racionais são
capazes de conceber.
Nessa visão, portanto, não é possível que 1 + 1 = 8, ou que triângulos
tenham cinco lados neste mundo da forma que Deus o criou. Como criaturas
(i.e., propriedades criadas das criaturas), os números e triângulos existem sob
o governo das leis que Deus instituiu na criação. Assim, as absurdidades que
supostamente se seguem do fato de Deus haver criado essas leis na verdade
não seguem. Se se replicar que a soberania de Deus sobre a criação significa
que ele poderia abolir essas leis, a resposta é: obviamente que ele poderia (no
sentido de “poderia” explicado na nota 52). Mas se as leis da quantidade e do
espaço abolidas, então não haveria tal coisa como um número e um triângulo
como o conhecemos. O falso dilema ignora isso. Ele assume que poderiam
existir os objetos que conhecemos mesmo se as leis que os governam fossem
anuladas, apesar do fato de que os objetos são o que são (em parte) em razão
das leis em relação às quais estão sujeitos. Desse modo, dado que uma das
leis que Deus instituiu na criação é a lei da não contradição, ela (e outras leis)
não pode ser alterada enquanto, simultaneamente, seja verdade que essas
alterações possam ser aplicadas a quaisquer objetos da forma que nós os
conhecemos.[262]
Essa parte da minha réplica é intimamente aliada à posição que
Agostinho adotou sobre os milagres. Ele afirmava que Deus pode agir no
mundo, e de fato o faz, para produzir eventos que não podemos explicar ou
duplicar. Mas, diz ele, Deus não estabelece leis na criação apenas para
quebrá-las. (Pense aqui nos textos bíblicos que vimos anteriormente, nos
quais Deus promete manter a ordem e as ordenanças [leis] da criação
“enquanto durar a terra”.) Portanto, não se deve pensar em milagres como
violações das leis da criação, mas como exercícios do poder de Deus ao
longo dos quais Deus ainda sustenta as leis que ele instituiu na criação.[263]
Mas mesmo que as verdades necessárias sejam válidas para as
criaturas, a visão C/R não tem de dizer que elas não são válidas para Deus?
Não é o ser incriado, transcendente, de Deus o criador de todas as leis e,
portanto, não governado por elas — incluindo a lei da não contradição? E
isso não significa que Deus pode tanto existir quanto não existir, que ele pode
saber que não existe, ou que ele pode ser onisciente, embora sem conhecer
nada?
A resposta é: não, isso não significa essas coisas. O ser transcendente
de Deus está além do domínio da lei da não contradição, assim como das
outras leis, mas é precisamente por essa razão que consequências
contraditórias não seguem da afirmação disso. Deus transcender uma lei não
é o mesmo que Deus violar uma lei, pois uma lei pode ser quebrada apenas
por algo sobre a qual ela se aplica. Assim, embora as criaturas não possam
quebrar a lei da não contradição porque são sujeitos a ela, o ser transcendente
de Deus não pode quebrar essa lei porque ela não se aplica em absoluto ao ser
de Deus. Eis uma analogia. Suponha que exista uma lei segundo a qual todos
os seres ficarão enfermos a menos que recebam nutrição apropriada, água, e
respire ar puro. As rochas em meu jardim violam essa lei? Certamente não. A
lei simplesmente não se aplica a elas. E é isso que digo sobre a relação do ser
não acomodado de Deus às leis que ele estabeleceu sobre a criação. Por favor
tenha em mente, no entanto, que a natureza acomodada de Deus é sujeita às
leis da criação; essa é parte de sua adaptação a nós. Assim, Deus é
logicamente consistente em relação “à natureza na qual lhe apraz manifestar-
se” (incluindo sua existência manifesta, existência no sentido de ser
distinguível de tudo o mais e idêntico a si mesmo). Apenas seu ser
incondicional transcende todas as leis, e o faz de tal modo que não nos é
concebível: ele nem se conforma nem viola a lei da não contradição.
Se se objetar, no entanto, que não poderia existir nada que não esteja
sujeito às leis da lógica, é importante notar que tal objeção não se justifica
pelo fato de que não somos capazes de conceber algo que não esteja sujeito
às leis da lógica. Como disse anteriormente, as leis da lógica (e outras leis)
governam nosso pensamento de tal forma que não podemos formar um
conceito ou uma ideia do que seria algo que não estivesse sujeito a essas leis.
Mas do fato de que não podemos conceber tal coisa não se segue que tal coisa
não exista. Essa afirmação é meramente a insistência dogmática de que o que
nossa rede não pode pegar não é peixe — já que não podemos transcender a
lei, nada também poderia fazê-lo. No entanto, a afirmação de que não poderia
existir nada que não estivesse sob as leis da lógica procede do fato de
considerá-las como (ou pelo menos parte) a fonte divina de todas as coisas —
razão exatamente pela qual deveria ser rejeitada por qualquer teísta.

Objeção 4
Mas e a questão sobre como nossa linguagem pode se aplicar a Deus? Uma
vez que a visão C/R rejeita a proposta AAA de que as criaturas têm graus
menores das perfeições incriadas possuídas por Deus, como isso pode
explicar que nossa linguagem possa discursar verdadeiramente acerca d’Ele?
A essa altura espero que a resposta a essa objeção esteja óbvia. Na
visão, Deus tem se acomodado à nossa experiência e linguagem. A palavra-
revelação que Deus inspirou e nos concedeu é verdadeira em relação a Deus
por causa daquela acomodação. Isso foi possível porque a linguagem das
Escrituras é analógica ou antropomórfica (embora ocasionalmente o seja),
mas porque Deus se antropomorfizou. A linguagem bíblica acerca de Deus é,
portanto, a linguagem habitual; não precisamos elaborar uma teoria da
analogia para explicar a possibilidade de sua verdade. Decerto o poder, o
amor, a misericórdia e justiça, etc., de Deus são maiores do que algo que seja
possível para humanos terem, ou compreenderem, plenamente. Mas não há
necessidade de se supor que ele possui essas características em um grau
infinito que seja totalmente desconhecido para nós. Elas são, na medida em
que consideramos seu sentido, apenas o que queremos dizer habitualmente
com poder, amor, misericórdia e justiça. Deus assumiu essas características
(criadas3) e desejou que elas fossem a natureza na qual lhe aprouve
manifestar-se agora e eternamente. Como resultado, os termos designam nele
as mesmas características que designam em relação às criaturas.[264]
Conforme disse, isso não significa que não existam diferenças em
absoluto entre os modos pelos quais Deus possui suas propriedades ou
mantém suas relações e os modos que as criaturas o fazem. Já tocamos numa
dessas diferenças, a saber, que Deus possui todas essas propriedades em um
grau impossível para as criaturas imitarem (embora não seja impossível para
elas conhecerem). Outra diferença é que, enquanto Deus é infalivelmente
bom, justo, sábio, etc., nós não o somos. E existem também outras diferenças.
Uma delas é que Deus se revela como possuidor das características que
assumiu para si dentro de limitações e em combinações que as criaturas não
podem imitar. Por exemplo, Deus permanece em relações que são boas aos
homens dentro de parâmetros estabelecidos pelas alianças, mas nunca
prometeu ser tão bom quanto possível para tantas pessoas quanto fosse
possível. Se ele tivesse feito isso, suas promessas seriam refutadas pelo
mínimo desapontamento na vida de uma só pessoa. Portanto, embora Deus
tenha prometido amar-nos, perdoar-nos, e dar-nos a vida eterna, ele jamais
prometeu que não haveria sofrimento injusto nessa vida. É por essa razão que
é abominável sugerir que se Deus fosse verdadeiramente bom, sua bondade
teria impedido todo o sofrimento injusto no mundo. Na verdade, pelo
contrário, a Escrituras revela que ele tanto conhece quanto permite o
sofrimento injusto, ao mesmo tempo que acrescenta que ele recompensará
essa situação. Mais uma vez: sua bondade não é uma perfeição grega, mas
uma promessa pactual; as Escrituras não a descrevem como se se estendesse
a todas as pessoas e circunstâncias, de modo que Deus ou deve desejar o
resultado mais feliz em cada um dos casos, ou não é bondoso. Em vez disso,
os escritores bíblicos se maravilham da bondade de Deus em relação a nós,
porque somos completamente indignos dela, e porque ela se origina antes de
sua adesão necessária a padrões anteriores e necessários da bondade, os quais
o compelem a ser bom. Desse modo, a bondade de Deus é sempre descrita
como uma questão de pura graça da parte da realidade última, absoluta, sobre
quem não havia quaisquer obrigações antecedentes. (Esse é a questão de todo
o livro de Jó, por exemplo, e foi eloquentemente expresso por Lutero na
citação da nota 50.)
Essa visão da linguagem sobre Deus se encaixa, portanto, com o
restante da visão C/R ao aconselhar-nos extrema cautela quando lidarmos
com a natureza de Deus e ao romper com toda a especulação sobre o ser não
acomodado de Deus. Não podemos nos colocar “por trás” da natureza
revelada de Deus para fazermos o que Calvino chamava de “bisbilhotar a
essência não desvelada de Deus”, que ele condenou como “curiosidade
lasciva”. Uma vez que Deus é o criador de todas as leis da criação, não há
chance algum de utilizarmos qualquer dessas leis a fim de construir uma
descrição de seu ser incriado por meio da metafísica racionalista ou da
teologia.[265] E visto que podemos conhecer a natureza acomodada perene de
Deus apenas pela revelação, a visão C/R requer que nos confinemos tanto
quanto possível somente ao que Deus revelou acerca de si mesmo. Algumas
inferências do que é revelado são obviamente inevitáveis, mas em grande
medida deveríamos buscar seguir o conselho de Calvino, citado
anteriormente, de que “nunca deveríamos pensar ou falar sobre Deus além
daquilo que temos nas Escrituras por nossa orientação”. Nessa visão,
portanto, a principal diferença entre a relevância de um termo quando é
utilizado para atribuir algo a Deus e quando é utilizado para uma criatura não
se encontra em seu significado. Em vez disso, deve-se localizá-la em sua
importância. É o fato de que é Deus, o Criador transcendente, que nos oferece
amor, ou está irado conosco que faz a maior diferença de importância nos
termos “amor” ou “ira”. É essa diferença que gera o sentido de fé distinto que
é acrescentado a tais termos quando são utilizados no tocante a Deus. Essa
diferença poderia ser denominada analógica, mas seria de um tipo de analogia
bastante distinto da visão tradicional AAA. Essa visão faz com que a
diferença esteja entre os graus finito e infinito da mesma atribuição. Na visão
que estou propondo, ela é em lugar disso uma analogia que preserva a
identidade de sentido, juntamente a uma diferença em importância e
consequências. Entendido dessa forma, o universo de discurso da fé não é
mais radicalmente distinto de outros universos de discurso aspectualmente
qualificados do que estes são um do outro. O termo “bom”, por exemplo,
apresenta uma diferença de sentido quando aplicado a uma obra de arte do
que quando aplicado à lei. E reconhecemos essa diferença sem qualquer
problema, em razão dos respectivos universos de discurso estético e jurídico
em cada caso. Assim, também existe um significado fiduciário no qual
termos adquirem sentido adicional sempre que são atribuídos aquilo que se se
considera como incondicionalmente confiável (divino).
Resumindo minha réplica a essa objeção: a visão C/R pode explicar
como a linguagem qualificada pela fé pode ser verdadeiramente predicada em
relação a Deus. Isto dá-se assim, primeiramente, porque essa visão concebe
os atributos revelados de Deus como desejados (criados3) por Deus, de
maneira que não há ameaça à asseidade de Deus. Pela mesma razão, isso não
compromete o status criatural de tudo que não é Deus ao tornar as criaturas
parcialmente divinas por compartilharem das propriedades incriadas3 com
Deus. Finalmente, não é necessário propor teorias analógicas ou outras
elaboradas sobre a linguagem para descrever as mudanças no sentido que os
termos adquirem quando utilizados para designar as propriedades de Deus. O
que as Escrituras atribuem a Deus é simplesmente o que queremos dizer
habitualmente por esses termos dentro dos limites especificados e com a
relevância adicional que lhes é acrescentada, visto que é o Criador do
universo que os possui. É por essa razão que eles têm um sentido de fé
adicional, um sentido que possui uma relevância crucial para nosso destino
eterno.[266]
Isso finaliza minha crítica religiosa da visão de Deus que apoia a
redução como uma estratégia para as teorias. Penso que essa é a principal
razão pela qual muitos pensadores teístas têm mantido essa estratégia, e que
se trata de uma visão de Deus que já está infiltrada e comprometida por
suposições de base pagã derivadas da filosofia grega antiga. Em
contraposição a isso, apresentei uma visão alternativa de Deus e da
linguagem sobre Deus que tanto se afasta dessas suposições quanto é
consistente com Sua asseidade.

10.7 Conclusão
A crítica filosófica da redução demonstrou por que tentar atribuir existência
incondicional a qualquer tipo de propriedades e leis abstraídas de nossa
experiência do mundo faz com que esse tipo se evapore perante nossas
mentes. A crítica religiosa demonstrou, por um lado, que nenhuma
calamidade como essa ocorre com a ideia de um Criador transcendente. Em
nosso encontro com Deus por meio de sua palavra e suas contínuas relações
conosco em nossas vidas diárias, as ações e relações de Deus também têm
propriedades que podemos abstrair. Mas como não se considera que nenhuma
delas tem existência incondicional, as ideias que temos delas não sucumbem
ao nosso experimento mental, como o fazem as deificações pagãs dos
aspectos do cosmos. Apenas o ser transcendente de Deus tem realidade
incondicional, e essa não é uma hipótese que precisa (embora incapaz de) ser
teoricamente justificada. Nossa ideia limitante desse ser não se esfumaça
quando quer que pensemos nela; sua própria ausência de conteúdo é o que a
livra de sucumbir-se ao experimento mental. Colocado de outra forma: a ideia
limitante da realidade incondicional que, quando combinada com a ideia de
qualquer aspecto do mundo, faz com que essa combinação se dissolva, não é
identificada com os atributos de Deus num entendimento apropriado sobre
ele. Assim, nem nossa ideia do ser incondicional de Deus, nem de seus
atributos, é autocanceladora.
Portanto: ao passo que as afirmações de redução são injustificáveis em
princípio e a redução conduz as teorias a um beco sem saída explanatório; e
enquanto a redução como estratégia para teorias não é apoiada por uma visão
da natureza de Deus que seja consistente tanto com a doutrina da criação
quanto da asseidade de Deus; fica resolvido que agora investigaremos aquilo
com que uma teoria completamente não reducionista da realidade se pareceria
— uma teoria guiada pela crença de que Deus, e apenas Deus, é
autoexistente.
PARTE IV
TEORIAS NÃO REDUCIONISTAS
CAPÍTULO 10. UMA TEORIA NÃO
REDUCIONISTA DA REALIDADE

10.1 O projeto de teorias não reducionistas


No capítulo 6 distingui a posição radicalmente bíblica daquela do
fundamentalismo. Afirmei que em um sentido a reivindicação
fundamentalista é muito forte, porque ela assume que as Escrituras são como
uma enciclopédia que contém verdades reveladas sobre todos os assuntos
possíveis. Nessa posição, a palavra de Deus não é luz para nossos caminhos,
mas o próprio caminho. É essa suposição enciclopédica que levou os
fundamentalistas a imaginarem que o modo pelo qual as teorias deveriam ser
impactadas pela crença em Deus dar-se-ia pela apresentação de hipóteses
derivadas das (ou confirmadas pelas) verdades que são extrapoladas das
Escrituras ou inferidas delas por meio da teologia. Em oposição a esse
programa, sustentei que as Escrituras não são uma enciclopédia e têm pouco
a dizer que possa servir de conteúdo ou confirmação para a maior parte das
teorias das ciências naturais — embora elas contenham ensinamentos
específicos que deveriam ser incluídos nas teorias sobre natureza humana,
sociedade e ética. Em contrapartida, afirmei que a influência mais importante
das crenças sobre a divindade sobre as teorias é menos direta e mais
abrangente, isto é, que uma ou outra delas sempre funciona como uma
pressuposição reguladora que orienta a formação das teorias na filosofia e nas
ciências. Essa orientação, conforme argumentei, é um programa bifásico: a
crença sobre a divindade define os parâmetros para uma visão perspectival
panorâmica da realidade, o que por sua vez delimita um espectro dentro do
qual a natureza atribuída às entidades hipotéticas parecerão aceitáveis. Assim,
a crença em Deus pode regular a produção teórica mesmo se as Escrituras
não oferecem outros ensinamentos específicos apropriados à disciplina
teórica.
Ao mesmo tempo, contudo, defendi que a posição fundamentalista é,
em outro sentido, muito fraca. Isto se dá porque ela considera a influência da
crença religiosa sobre as teorias como algo que todos podem, de fato, evitar.
Opondo-me a isso, argumentei que nenhuma teoria pode jamais ser livre de
regulação por uma ou outra crença sobre a divindade.
Nos capítulos intermediáriosvimos inúmeras ilustrações sobre como as
pressuposições religiosas estendem seu controle sobre as teorias científicas
por meio de teorias da realidade. Em todo caso, as amostras teóricas eram
todas controladas por alguma versão de crença religiosa não bíblica (pagã);
no entanto não ofereci amostras de como as teorias podem diferir ao
pressupor a ideia bíblica de Deus. Os exemplos considerados, no entanto,
demonstraram como as pressuposições religiosas exercem sua influência, e
então prepararam o caminho para perceber o tipo de impacto que podemos
esperar que a pressuposição da crença em Deus tenha nas teorias, tão logo
substitua as crenças não bíblicas sobre a divindade.
Uma vez que essas pressuposições religiosas exercem sua influência
sobre as teorias científicas por meio de uma teoria da realidade, deveria estar
óbvio por que estamos iniciando com uma teoria da realidade nesse capítulo.
[267]
Mas eu deveria dizer de pronto que os capítulos que se seguem não
desenvolverão teorias teístas de matemática, física e psicologia. Ou seja, eles
não serão paralelos aos capítulos referentes aos estudos de caso. E existem
duas razões para tal. Uma é que eu não tenho a expertise exigida para tal
trabalho. A outra é que a teoria da realidade que estamos em vias de examinar
não pode ser adequadamente explicada em um único capítulo, mas deve ser
desenvolvida aplicando-a numa série de diversos temas, caso se queira que
suas hipóteses e suas consequências tornem-se mais claras. E os temas que
grande parte dos leitores concordam que tornam a teoria mais clara, penso eu,
são as teorias sociais e políticas em vez das teorias da matemática, física ou
psicologia. Dessa forma, esse capítulo apresentará um esboço para uma teoria
da realidade que pressupõe que somente Deus é divino, e os dois capítulos
que seguem aplicarão esse esboço primeiro a uma teoria geral da sociedade e,
em seguida, a uma teoria mais específica de uma das instituições sociais, o
Estado.
Por essa razão, é crucial que esses capítulos sejam lidos na ordem em
que aparecem. Enfatizo isso porque lidar com uma nova teoria da realidade
pode ser um projeto pouco familiar e difícil para muitos leitores. A própria
perspectiva pode, portanto, tentá-los a saltar deste capítulo diretamente para o
capítulo sobre sociedade ou política, cujos títulos soam mais familiares e,
talvez, mais interessantes. Mas sem a teoria teísta da realidade para orientar
as teorias social e política, não ficará claro por que suas propostas devam ser
consideradas como o fruto do teísmo. Sem tal teoria da realidade, não haverá
estruturas intelectuais sobre as quais as teorias distintivamente bíblicas
possam ser construídas. Ademais, é precisamente a falta dessas estruturas
específicas a principal razão por que os esforços de tantos pensadores judeus,
cristãos e muçulmanos falharam em produzir teorias verdadeiramente teístas
e terminaram por defender teorias essencialmente pagãs às quais a crença em
Deus foi meramente anexada. Assim, nosso procedimento será reformular
completamente o projeto de uma teoria da realidade, tanto em relação às
questões que ela coloca quanto às respostas que ela lhes oferece. Por essas
razões, ignorar a teoria a ser esboçada resultará em deixar no escuro tanto o
caráter integral das principais propostas das teorias a serem apresentadas
posteriormente quanto as razões que as recomendam. Mais do que isso,
obscurecerá — como eu disse — o porquê de elas serem propostas suposta e
distintivamente teístas.[268]
Antes de prosseguir, deveríamos notar algumas dificuldades especiais
que esse projeto encontra que não afetam a teorização de base pagã. A
primeira dessas é que um pensador cuja produção teórica é direcionada por
uma crença pagã não apenas pode estar inconsciente do caráter religioso de
sua pressuposição controladora, mas pode estar totalmente inconsciente
acerca do próprio conteúdo dessa pressuposição. Dessa forma, as crenças
religiosas pagãs não apenas podem ser assumidas inconscientemente, mas
podem orientar a produção teórica enquanto permanecem inconscientes. (Isso
não é o que ocorreu nas teorias consideradas nos capítulos de estudos de
caso, é claro. Aqueles pensadores foram bastante claros sobre as
pressuposições básicas que direcionaram suas teorias, e alguns ainda
reconheceram o caráter religioso delas.) Meu ponto aqui é que enquanto as
teorias podem ser produzidas sob a orientação de uma fé pagã mesmo quando
ela é assumida inconscientemente, a produção de teorias controladas e
dirigidas pela crença em Deus necessitará mais do que uma orientação
inconsciente por parte do pensador judeu, cristão ou muçulmano. Isso não
exigirá apenas esforço consciente, mas mesmo o esforço mais sincero do
mais capaz dos pensadores pode vir a apresentar apenas êxitos parciais. E
existem pelo menos três razões para isso.
A primeira é a maneira única na qual a fé vem àqueles que creem em
Deus. De acordo com os autores bíblicos, ela se manifesta pela conjunção de
dois fatores: contato com a autorrevelação de Deus e a operação da graça de
Deus que capacita uma pessoa a enxergar a verdade dessa revelação. Do
início ao fim, as Escrituras descrevem essa graça especial como necessária,
porque ela deve sobrepujar a inclinação humana de considerar algo que não
Deus como divino (essa inclinação é o verdadeiro significado da doutrina
cristã de “pecado original”). Assim, embora as pessoas possam
inconscientemente considerar uma parte ou o todo da criação como divino,
ninguém chega inconscientemente à fé no Criador transcendente.
A segunda razão é a forma que os efeitos residuais dessa inclinação
pecaminosa fazem da resistência às influências das crenças e atitudes não
bíblicas um conflito no interior até mesmo do crente mais comprometido. Os
grades heróis das tradições bíblicas tinham tais conflitos, e nós que somos
seus admiradores não podemos esperar menos. Portanto, assim como nossa
fraqueza religiosa exige um esforço consciente para que nossas atitudes e
comportamentos pessoais sejam permeados e controlados por nossa fé, de
igual modo é um verdadeiro esforço estender a influência dessa fé às tarefas
de produzir, avaliar e reformar teorias.
Por fim, as dificuldades de se criar ou reformar teorias sobre a base da
crença em Deus tornam-se ainda maiores devido à influência da longa
tradição de teístas que tentaram preservar a estratégia pagã da redução. Na
verdade, essa visão tem sido dominante entre os teóricos teístas por tanto
tempo que é bastante difícil abalar os hábitos de pensamento que ela produz
― mesmo para aqueles que vieram a reconhecê-la como inadequada.
Em razão dos obstáculos inerentes e tradicionais à construção das
teorias radicalmente teístas, aqueles que se lançam nessa tarefa não podem
deixar de estarem plenamente conscientes de que seus esforços podem ser
seriamente deficientes, apesar de suas melhores intenções. Esse capítulo e os
dois próximos não deveriam, portanto, serem entendidos equivocadamente
como se declarassem refletir a perspectiva bíblica de uma forma completa ou
final. Da mesma forma, ele não reivindica capturar essa perspectiva com
perfeita pureza. E ela reivindica ainda menos haver atingido a única hipótese
que poderia ser desenvolvida a partir dessa perspectiva. Pelo contrário, as
teorias a serem apresentadas serão tentativas de salientar a própria
perspectiva ao ser orientada por ela.
O último ponto tem algumas consequências importantes. A mais óbvia
se relaciona com o fato de que, para qualquer questão teórica particular,
podem haver algumas hipóteses possíveis que pressupõem a crença em Deus.
Assim, uma hipótese pode ser direcionada de forma apropriada em todo o
processo por nossa fé e, ainda assim, ser simplesmente equivocada. Em
outras palavras, quando embarcamos na tarefa de fazer suposições
explicativas, podemos estar dentro do espectro e da direção do pensamento
biblicamente motivado mas, ainda assim, simplesmente estarmos
equivocados quanto à hipótese perspectival de curto alcance e entitária que
postulamos. A contrapartida a esse ponto é que descrentes podem teorizar a
partir de uma perspectiva que pressupõe uma falsa divindade mas, ainda
assim, realizarem propostas específicas as quais são corretas de importantes
modos. Devemos sempre estar abertos a aprender de tais teorias, embora
devamos também nos esforçar para reformular a interpretação delas a partir
de uma perspectiva teísta. Seria um grande erro para crentes em Deus,
portanto, rejeitar qualquer teoria em sua inteireza apenas porque ela
pressupõe uma fé não bíblica. Não precisamos, por exemplo, rejeitar a
totalidade da teoria atômica e buscar por uma substituta apenas porque ela
tem sido defendida por materialistas. Mas, embora uma hipótese possa ser
controlada por uma falsa crença sobre a divindade e ainda assim ser correta
de importantes modos, sua falsa perspectiva sobre a realidade garantirá que
ela distorcerá e parcialmente falsificará a natureza de suas propostas. Desse
modo, nossa posição é que embora tanto as hipóteses entitárias reguladas
biblicamente quanto as não teístas podem vir a ser totalmente falsas,
nenhuma hipótese direcionada de forma não teísta pode ser totalmente
verdadeira. Assim, embora uma abordagem radicalmente teísta às teorias não
vá orientar todas as novas entidades hipotéticas para todas as ciências, ela
requer que repensemos e reformemos os conceitos da natureza de todas as
entidades hipotéticas de uma forma que reflita uma perspectiva teísta, i.e.,
não reducionista.
Deixe-me avisá-lo que repensar uma teoria da realidade em tal direção
distintivamente bíblica de pensamento nos conduzirá a algumas hipóteses
bastante novas. Muitas delas soarão estranhas comparadas às tentativas
passadas realizadas por teístas de pensar sobre uma teoria da realidade ―
apesar do fato de que todos nós compartilhamos a crença no mesmo Deus.
Onde quer que isso ocorra, posso apenas pedir aos meus companheiros
crentes que tentem distanciar-se das influências da tradição de teorias
reducionistas adaptacionistas. Não importa o quão difícil isso possa ser —
purificar nossas teorias de elementos pagãos é obrigatório para qualquer
teísta. A única alternativa é abandonar a teorização sobre a criação de Deus
àqueles que pressupõe que esta não é a criação de Deus. Nossa tarefa,
portanto, é desenvolver teorias que são orientadas por nossa fé em Deus. Isto
não é teorizar para suprir credenciais para nossa fé, muito menos
simplesmente teorizar para “criar espaço para a fé”. Não é nossa fé em Deus
que necessita tornar-se intelectualmente respeitável por meio de teorias, mas
nossas teorias que precisam tornar-se religiosamente aceitáveis ao ser
motivadas e dirigidas internamente por nossa fé.

10.2 Alguns princípios orientadores


O profundo envolvimento da crença religiosa em ambas as versões forte e
fraca da estratégia de redução já foi demonstrada. Temos visto como cada
versão tenta identificar a natureza básica da realidade reduzindo todos os
demais aspectos àqueles um ou dois escolhidos como sua natureza. A ideia
central dessa estratégia é que a natureza essencial do cosmos pode ser
encontrada pela identificação dos aspectos que são independentes e sobre os
quais todos os outros dependem para sua existência. É por essa razão que
utilizar o veículo da redução para transportar-nos até a meta de explicar a
natureza das coisas equivale ao preço de um compromisso pagão: ele atribui
divindade a algum ou a alguns aspectos da criação, o que é abertamente
contrário à doutrina bíblica de Deus como o único criador transcendente e
sustentador de todas as coisas distintas de si mesmo. Qualquer teoria que
confere esse status a algo diferente de Deus é, portanto, falsa e idólatra. Desse
modo, é esse ponto que argumento que deve ser transformando no primeiro
princípio orientador para uma perspectiva genuinamente teísta. É o princípio
da pancriação defendido no último capítulo: Tudo diferente de Deus é sua
criação, e nada na criação, sobre a criação, ou verdadeiro acerca da
criação é autoexistente.
Mas esse princípio isoladamente não é suficiente para distinguir a
perspectiva bíblica, porque tem sido geralmente aceito por teorias que, no
entanto, consideram algum ou alguns aspectos da criação como gerando a
existência de todos os outros aspectos. Para proteger o princípio de criação
universal de sua distorção, um segundo princípio orientador é requerido, o
princípio da irredutibilidade: nenhum aspecto da criação deve ser
considerado como ou como o único aspecto genuíno ou como aquele que
torna a existência de qualquer outro aspecto possível ou real. Esse princípio
reflete a visão bíblica de que toda a criação depende direta e igualmente de
Deus, de modo que todos os aspectos genuínos (qualquer que possa ser a lista
deles) são igualmente reais. Esse último princípio, juntamente com o
criacionismo universal, serve para trazer a foco uma perspectiva mais
completamente teísta. Ele o faz demonstrando que a crença em Deus permeia
e controla nossas teorias ao exigir o abandono completo das estratégias
reducionistas, em lugar da simples e eclética rejeição de elementos
questionáveis nos conteúdos das teorias que utilizam essas estratégias.
Mas abandonar a estratégia da redução não nos conduzirá simplesmente
a uma resposta diferente à questão sobre a natureza básica da realidade. Ela
também resulta em uma nova forma de estruturação da própria questão.
Ainda assim desejaremos uma teoria que possa dar conta para nossa
experiência de que vários tipos de coisas têm naturezas distintas, como é
óbvio. Mas não estaremos buscando a natureza básica de tudo nos sentidos de
“básico” utilizados pelas teorias reducionistas tradicionais. Iremos, ao invés
disso, negar que qualquer aspecto seja mais real do que qualquer outro, ou
que um produza o outro. Assim, a ideia pagã de “básico” será excluída da
busca pelo o que as coisas são, assim como será excluída da busca pelo
porquê das coisas. Em lugar disso, devemos agora criar ou reinterpretar
teorias de uma forma que seja completamente não reducionista.
Isso não se equivale a negar que em nossa experiência ordinária coisas
de um tipo particular parecem compartilhar uma natureza específica que é
mais centralmente caracterizada por alguns de seus aspectos e não por outros.
Mas focar-se em um aspecto particular como se ele nos dissesse mais sobre a
natureza de um tipo particular de coisas não requer uma teoria reducionista da
realidade. Por exemplo, uma planta tem propriedades físicas assim como a
rocha, mas a planta está viva e a rocha não. Dessa forma a natureza da planta
é mais centralmente caracterizada por seu aspecto biótico do que por
qualquer outro aspecto. Isso não significa, no entanto, que seus outros
aspectos devem ser reduzidos ao seu aspecto biótico. Basta reconhecer que as
leis desse aspecto assumem a liderança na condução da organização e
desenvolvimento interno da planta tomada em sua totalidade. Por essa razão,
podemos caracterizar sua natureza como aquela de uma coisa viva. Desse
modo, podemos destacar o aspecto biótico como nos dizendo algo “central”
sobre a natureza de uma planta sem exigir que ela possua apenas
propriedades bióticas, ou que essas propriedades geram alguns, ou todos, os
seus demais aspectos.
O desenvolvimento posterior de tal abordagem não reducionista na
próxima seção abrirá algumas direções instigantes para uma teoria da
realidade que foi excluída pelas pressuposições pagãs. Se não mais
buscarmos pela natureza das coisas procurando qual aspecto seria aquele em
relação ao qual todos os demais se reduzem, ou que produz todos os demais,
então não é necessário que haja uma natureza aspectual básica para todas as
coisas. Podem haver quantas “naturezas” distintas quantas forem necessárias
para explicar os tipos de coisas que experimentamos. Se isso se dá assim,
estaremos livres dos tipos de caminhos bizarros, implausíveis, aos quais as
teorias de redução modernas têm sido conduzidos ao tentar demonstrar que os
tipos mais diversos de coisas têm, na realidade, a mesma natureza básica.
Talvez possamos ver-nos livres de tais becos sem saída precisamente ao
sermos desobrigados da compulsão de encontrar aquilo que nas coisas
representa tanto suas naturezas quanto o que as torna reais. Assim, embora
saber que Deus faz das coisas o que elas são não nos forneça uma teoria da
realidade, isto de fato nos livra de procurar avidamente no cosmos a realidade
divina, autoexistente, que faz tudo nele tanto possível quanto real.

10.3 A teoria da estrutura de leis


Já que vimos que os vários aspectos apresentados pelos objetos da
experiência e investigados pelas ciências não são apenas tipos de
propriedades, mas tipos de leis. Cada aspecto apresenta uma ordenação entre
suas propriedades de tal forma que se experiencia suas propriedades como se
relacionadas de modo co-possível, mutuamente exclusivo ou necessariamente
conectadas. Por exemplo, é uma lei do aspecto físico que todos os sais de
sódio queimam amarelo, ao passo que é uma lei do aspecto espacial que nada
possa ser simultaneamente circular e quadrado. Sem tais ordenações, a
criação como a conhecemos não poderia existir, e sem enunciados
expressando tal ordem, nenhuma teoria explanatória sobre a criação é
possível. Os enunciados das leis que formulamos são, portanto, nossas
aproximações de conexões específicas na ordem-de-lei cósmica. Elas
expressam relações que, sob condições específicas, são necessárias em que
elas não podem ser violadas.
Já notamos, do mesmo modo, que a ideia de lei é proeminente nas
Escrituras, nas quais ela tem o sentido de oferecer ordem às coisas. O uso
mais proeminente do termo é, obviamente, em referência à lei religiosa-moral
que tem um papel central na aliança que Deus realizou com Israel por meio
de Moisés. Mas, como vimos, as Escrituras também falam em grande medida
sobre ordenação do universo, e afirmam que a ordem (“ordenanças”) da
criação são estabelecidas e mantidas por Deus. E acrescentam, como parte
das promessas pactuais de Deus, que ele irá fielmente preservar essas leis.
Tais registros bíblicos não são apresentados na linguagem técnica
precisa da filosofia ou da ciência, nem envolvem o que denominei “alta
abstração”. Mas elas enfatizam um ponto que pode ser desenvolvido de um
modo significativo para produzir uma teoria da realidade: elas encorajam a
proposta de que teístas comecem a repensar uma teoria da realidade
elaborando a ideia de uma estrutura de leis sob as quais todas as coisas
criadas existem e funcionam. As Escrituras falam dessas leis como tendo sido
criadas, e portanto não devendo ser consideradas como idênticas a Deus. No
entanto, elas constituem a ordenação que ele estruturou na criação e por meio
da qual a criação é regulada. Isso não significa sugerir que essas leis são
objetos como planetas, árvores, ou oceanos, nem tem pretende implicar que
elas existem separadamente das coisas e eventos que governam (como as
formas de Platão supostamente o fazem). Em vez disso, “lei” é nosso termo
para a ordenação que Deus embutiu em sua criação, e nossa teoria iniciará
reconhecendo um lado-lei distinto à realidade criada. Ademais, uma vez que
abandonamos as estratégias reducionistas não haverá necessidade de esperar
que a estrutura de leis seja composta de apenas um ou dois tipos de leis, ou
que um ou dois tipos gerem todos os demais. Pelo contrário, nossa teoria
pode incluir todos os diferentes tipos de ordem que experimentamos como
existentes, e considerar todos eles como componentes igualmente reais de
uma estrutura de leis cósmica.
Existem uma série de leis especiais que necessitarão ser distinguidas
conforme prosseguirmos nessa abordagem. Uma dessas é o que usualmente
denominamos “leis causais”,[269] outra é o que temos chamado de “leis
aspectuais”, enquanto uma terceira é o que denominarei “lei típica”. Uma vez
que já nos focamos deliberadamente nos aspectos da experiência, comecemos
com as leis que se apresentam entre as propriedades do mesmo tipo aspectual
e tratar posteriormente as leis típicas. E uma vez que utilizaremos essa ideia
para desenvolver uma teoria, vamos revisar novamente nossa lista provisória
de aspectos de modo a esclarecer alguns de seus elementos:[270]

Fiduciário
Ético
Jurídico
Estético
Econômico
Social
Linguístico
Histórico
Lógico
Sensorial
Biótico
Físico
Cinemático
Espacial
Quantitativo

Tentei evitar substantivos para designar os membros dessa lista uma vez que
substantivos tendem a promover o mal entendido de que essas são classes ou
grupos de coisas. Em lugar disso, utilizei adjetivos para enfatizar que o que
está sendo listado são tipos de propriedades e leis apresentadas pelas coisas e
eventos que experienciamos. Isso resultou em alguns termos estranhos e
alguns significados especiais para alguns termos familiares, o que torna
necessário comentar brevemente sobre alguns deles.
O termo “quantitativo” é utilizado para designar a “quantidade” das
coisas, e não deveria ser mal interpretado como se se referisse a um (teoria
do) domínio dos números ou o sistema abstrato da matemática concebido
para calcular quantidades. Existe evidência de que alguns animais possuem
um senso de quantidade, embora não sejam capazes de contar,[271] e isto é
uma consciência intuitiva do mesmo modo que a “quantidade” das coisas que
estou pontuando aqui. É a quantidade experimentada das coisas que a ciência
da matemática abstrai como seu campo de inquirição. Dentro desse campo ela
então abstrai posteriormente a propriedade de quantidade discreta, o que se
torna a base para a série de números naturais a partir da qual conceitos
matemáticos ainda mais abstratos e complexos são construídos. Vários ramos
da matemática podem, assim, ser desenvolvidos, correspondendo às
diferentes formas que as quantidades podem ser calculadas formulando-se
leis que se apresentam entre elas. Mas tudo isso decorre de nosso
reconhecimento intuitivo de que as coisas possuem quantidade.
“Cinemático” é utilizado para designar o movimento das coisas, seu
deslocamento no espaço. Muitos cientistas incluem essas propriedades e leis
dentro do aspecto físico, embora Galileu aparentemente não tenha feito isso,
e pelo menos dois pensadores contemporâneos tenham argumentado de
maneira persuasiva que ele é, na verdade, um aspecto distinto.[272]
O termo “sensorial” é utilizado da forma explicada no capítulo 9, ou
seja, para cobrir as qualidades e leis tanto da percepção (tato, paladar, visão,
olfato e audição) quanto dos sentimentos provocados pela percepção. Eles
estão incluídos no mesmo aspecto porque a percepção e o sentimento são,
ambos, formas nas quais os humanos são sensoriais.
O termo “histórico” também merece algum comentário mesmo que seja
familiar. Isto porque muitas pessoas pensam nele como se referindo a tudo o
que ocorreu no passado. Isso não é o seu sentido apresentado aqui. Nem é a
forma que os historiadores também o utilizam, uma vez que nem tudo o que
ocorreu é historicamente importante. Julgando a partir do que interessa aos
historiadores, parece que a diferença entre o que é historicamente importante
e o que não é termina por ser o mesmo que aquilo que é significante para a
formação da cultura humana e aquilo que não o é. Aquilo do qual a história
trata, portanto, é da transmissão de poder formação cultural. Assim nosso
adjetivo “histórico” seria equivalente a “cultural”. E uma vez que a formação
de uma cultura é baseada sobre a habilidade de formar novas coisas a partir
de materiais existentes, alguns filósofos têm preferido o termo “tecnológico”
para esse aspecto. Não importa qual termo é utilizado, o que é importante é
que ele é entendido da maneira que descrevemos, de modo que me remeterei
a todos os produtos da habilidade técnica humana de formar novas coisas a
partir de materiais naturais como artefatos culturais (históricos).
Não é incomum que termo “ético” seja utilizado com um termo geral
para referir-se àquilo que é correto e bom, ou errado e mau, em relação aos
comportamentos e atitudes humanas. No entanto, o termo é comumente
utilizado para cobrir dois sentidos bastante distintos desses termos: o que é
certo ou errado de acordo com a justiça, e o que é certo ou errado de acordo
com a moralidade. Na lista apresentada acima, esses aspectos são
distinguidos. O aspecto jurídico tem a ver com as normas que se aplicam a
nossas atitudes e ações em relação ao que é justo. Em contrapartida, o aspecto
ético da maneira que esse termo é utilizado aqui tem a ver com normas que
lidam com o que é amoroso ou beneficente. Embora distintos, os dois
sentidos estão obviamente relacionados. Falando de forma geral, podemos ser
justos com alguém sem também ser amorosos, mas não podemos ser
amorosos com aquela pessoa sem sermos justos. O amor geralmente nos
ordena a irmos além do que alguém legalmente merece — como ilustrado na
famosa história que Jesus narra sobre o Bom Samaritano. Mas teríamos de
ser, para com uma pessoa, pelo menos tão justos quanto as circunstâncias
permitirem, antes de conseguirmos ser amorosos em relação a ela. Nossa
visão do aspecto ético poderia, portanto, ser chamado uma “ética do amor”,
mas em um sentido muito mais forte do que aquele no qual a expressão é
geralmente utilizada. Não queremos dar a entender que as pessoas deveriam
ser amorosas, mas que o amor é aquilo do qual a própria ética trata. Nessa
visão, portanto, o amor é mais do que simplesmente um sentimento. Ele é um
princípio normativo de ação circunscrito pela admoestação bíblica “ame teu
próximo como a ti mesmo”. Em outras palavras, devemos balancear nosso
autointeresse com o interesse de outros. Obrigações éticas são, portanto,
aquelas que emergem dessa norma nos sentidos precisos que variam de
acordo com os distintos relacionamentos de amor que temos, tais como amor
próprio, amor ao cônjuge, amor aos filhos ou pais, amor aos amigos, amor à
nação, ou amor ao necessitado, etc. Uma vez que essas obrigações emergem
de uma norma aspectual, eles se estendem sobre o espectro inteiro da
experiência humana e, portanto, também incluem obrigações com a natureza,
com o próprio trabalho, com o próprio país, arte, aprendizado, etc.
Resumindo, o aspecto ético é aquele cuja ordem inclui as normas e
obrigações da vida-de-amor humana.
Dever-se-ia também notar, no entanto, que esse sentido ético de amor
não é o mesmo no qual “amor” é utilizado nas Escrituras para referir-se a
nossa relação apropriada com Deus. Isso é demonstrado pelo fato de que o
mandamento central do amor a Deus não é condicional como o mandamento
ético de amor pelo próximo. Pois enquanto o amor ético pelos outros deve ser
equilibrado com o amor próprio, o amor a Deus é incondicional: “Amarás o
Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas
forças e com todo o teu entendimento” (Dt. 6.5; Mc. 12.28-34). Em seu
sentido religioso, portanto, o amor a Deus não é meramente uma beneficência
ética (por mais importante quanto esta seja), mas o compromisso do ser total
da pessoa ao serviço de Deus, acima de todas as demais coisas.
Finalmente, o termo “fiduciário” é utilizado aqui para se referir aos
níveis variáveis da confiabilidade ou credibilidade que uma coisa ou uma
pessoa possa ter. Esse aspecto é especialmente importante em conexão com
relações humanas de todos os tipos, que se desintegram rapidamente onde
existe significativa falta de confiança. Mas porque esse aspecto lida com
todos os graus de confiabilidade e certeza, ele também tem uma conexão
especial com a fé religiosa. Essa conexão surge quando uma pessoa confia
em algo como incondicionalmente fidedigno, pois apenas algo que tem
existência incondicional poderia ser incondicionalmente confiável. Confiar
em qualquer coisa como incondicionalmente confiável, portanto, pressupõe
que isso seja autoexistente e, desse modo, divino.
Mesmo nesse estágio inicial, é possível perceber como uma ideia não
reducionista de tal estrutura de leis cósmica pode nos livrar das garras de um
dos antigos dilemas que assolaram as teorias tradicionais da realidade: o
dilema do objetivismo versus subjetivismo. Essa questão pode ser mais bem
compreendida se vista como uma controvérsia entre respostas contrárias à
questão: qual é a fonte das leis que fornece ordem à criação? Enquanto o
objetivista localiza a fonte da ordem nos objetos da experiência humana, o
subjetivista localiza a ordem na mente do sujeito cognoscente. Obviamente,
grande parte das teorias foram parcialmente objetivistas e parcialmente
subjetivistas, mas para ilustrar os dois lados da controvérsia utilizarei teorias
que são quase tão exclusivamente uma coisa e a outra quanto possamos
pensar, a saber, as teorias de Aristóteles e Kant.
Para Aristóteles, como já vimos, a “causa do ser de uma coisa” é sua
substância ou forma. A forma de uma coisa também é responsável por
determinar a natureza inata que ela compartilha com outras coisas do mesmo
tipo, e é a natureza de cada tipo de coisas que as programa a se comportarem
e relacionarem com outras coisas da maneira que o fazem. Assim, o que
denominamos leis da natureza são nossas formulações do comportamento
observado das coisas causado por suas naturezas fixas internas. Isso significa
que não existe realmente um lado-lei distinto na criação. A “lei” não é outra
coisa senão nosso nome para as regularidades que observamos na
experiência, e essas regularidades são garantidas pela forma não observável
para cada tipo de coisa. Assim, a fonte de toda a regularidade e ordem é
localizada nos objetos da experiência mesmo que não experienciamos
diretamente essa fonte em si. Nessa visão, os humanos chegam ao
conhecimento da ordem das coisas conformando seus conceitos às naturezas
dos objetos do modo que existem externamente às suas mentes; em outras
palavras, ao conformar seu pensamento à realidade “objetiva”.
Kant, por outro lado, advogava que a mente do conhecedor, ou
“sujeito”, é a fonte de toda a ordem na experiência. Ele afirmou que o que
chega à nossa mente são estímulos sensoriais caóticos que a mente humana
então ordena numa experiência inteligível. Sua teoria sustentava que a mente
humana realiza esse ato subconsciente e espontaneamente de formas fixas
sobre as quais não tem controle. Assim, enquanto observamos regularidades
em nossa experiência, e quando tentamos formulá-las em enunciados de leis,
estas são todas gestões conscientes com uma ordem que já estamos
inconscientemente impondo sobre os estímulos, criando por meio disso a
realidade que experienciamos. No que tange ao conhecimento consciente,
então, estamos tentando entender os objetos que experimentamos — assim
como Aristóteles cria. Mas, disse Kant, isso é possível apenas porque esses
objetos já foram primeiramente formados pelo fato de nossas mentes
imporem ordem sobre eles. Dessa forma a ordem aparentemente objetiva da
realidade é, na verdade, subjetiva na origem.
Deveria estar claro que tanto o objetivismo quanto o subjetivismo são
teísticamente inaceitáveis, uma vez que cada um pressupõe uma variedade de
religião pagã ao atribuir a alguma parte da criação o papel de ser o legislador
independente do mundo. Do ponto de vista bíblico, nem os objetos
conhecidos, nem os sujeitos cognoscentes são a fonte de ordem que
experienciamos, mas somente Deus é o legislador do mundo. Assim, a forma
teísta de pensamento sobre as leis da criação evita o dilema do objetivismo e
do subjetivismo oferecendo uma terceira alternativa. Uma vez que as
Escrituras ensinam que Deus criou todas as leis que governam a criação,
podemos enxergar a ordem das coisas como não redutível aos objetos
conhecidos, nem aos sujeitos cognoscentes. Pelo contrário, ambos os objetos
e sujeitos são ordenados e conectados ao serem governados pela mesma
estrutura de leis divinamente ordenada.[273]
Retornando para nossa explanação da lista de aspectos, precisamos
notar que assim como seus elementos refletem o que encontramos na
experiência pré-teórica, assim também se dá quanto à ordem na qual eles
ocorrem na lista. Lendo-a de baixo para cima, a ordem de sua listagem
pretende refletir a ordem na qual as propriedades de cada aspecto surgem nas
coisas que experimentamos anteriormente à teorização. Ou seja, a experiência
revela uma sequência na maneira que as coisas apresentam os aspectos, de tal
modo que as propriedades daqueles inferiores na lista parecem ser pré-
condições para a ocorrência das propriedades daqueles superiores também na
lista. Por exemplo, existem coisas que têm propriedades físicas sem estarem
vivas, mas não há nada vivo que não tenha propriedades físicas. Assim, ter
propriedades físicas parece ser uma pré-condição para que algo tenha
propriedades bióticas. De semelhante modo, algo bioticamente vivo pode ou
não ser capaz de sentir ou perceber, mas nada capaz de sentir pode deixar de
estar bioticamente vivo. Da mesma forma, aparentemente a percepção
sensorial é uma pré-condição para a habilidade de um ser pensar em
conceitos lógicos, o que é uma pré-condição para ser capaz de conceber
planos por meio dos quais se alcança a formação histórico-cultural de novos
objetos a partir de objetos naturais. Essa habilidade, por sua vez, é a pré-
condição para uma dos mais proeminentes exemplos de poder cultural
formativo: a invenção da linguagem, que por seu turno é uma pré-condição
necessária para o desenvolvimento de relações sociais e costumes tipicamente
humanos. E assim se dá até o topo da lista.
Ora, tenho falado dessa ordem como uma de pré-condicionalidade, e
não de tempo, mas isso não equivale a negar que exista bastante evidência de
que a sequência recém-mencionada entre os aspectos seja espelhada em um
desenvolvimento cronológico real no passado. A evidência demonstra, por
exemplo, que houve um período de tempo sobre a terra em que haviam coisas
que eram quantitativas, espaciais, cinemáticas e físicas, mas ainda não
existiam coisas vivas; e houve um período quando havia seres que eram
vivos, mas que não sentiam ou percebiam, após o qual houve seres que eram
sensoriais, mas sem pensamento lógico, etc. No entanto, essa reflexão da
ordem aspectual no tempo não é a mesma que a pré-condicionalidade que
tenho indicado. Mesmo sem conhecermos acerca do desdobramento gradual
dessas propriedades através do tempo, a sequência de pré-condicionalidade
ainda seria adequada pelas razões dadas acima.
Na verdade, confundir a pré-condicionalidade com a aparição gradual
das propriedades no passado impedir-nos-ia de enxergar essa ordem em
relação aos primeiros quatro aspectos, uma vez que não conhecemos objetos
na criação em que os tais estivessem ausentes. Assim, precisamos salientar a
diferença entre a sequência de pré-condicionalidade e a aparição gradual no
tempo dos aspectos mais elevados na lista da seguinte forma. Podemos dizer
que uma coisa teria de ser espacial para ter movimento, o que por sua vez é
uma pré-condição para que algo tenha propriedades físicas. Da mesma forma,
ela teria de apresentar alguma quantidade de espaço, pois propriedades
espaciais têm uma pré-condição quantitativa.[274]
Mas embora a ordem da lista de aspectos reflita uma sequência de pré-
condicionalidade na maneira que as propriedades aparecem nas coisas, essa
sequência não pode ser utilizada para apoiar a estratégia do reducionismo
fraco para uma teoria da realidade. De acordo com essa estratégia, a ordem
que temos notado é causal; alguns aspectos — geralmente se considera que
aqueles mais abaixo na lista –causam a existência dos outros que estão mais
acima na lista. Ou seja, o reducionismo fraco toma alguns tipos de
propriedades e leis mais abaixo na lista como sendo não meramente a pré-
condição para a ocorrência dos tipos listados acima, mas a própria razão pela
qual existem tais tipos superiores. Mas reconhecer que as propriedades dos
aspectos superiores não surgem nas coisas sem os inferiores não demonstra
em absoluto que os aspectos inferiores produzem os superiores, uma vez que
ser uma pré-condição para algo não é o mesmo que produzi-lo. Por exemplo,
uma das pré-condições para começar uma fogueira é que o oxigênio esteja
presente, mas a mera presença de oxigênio não iniciará o fogo. Assim, somos
justificados a notar que propor que algum aspecto inferior na lista seja razão
pela qual os mais elevados implica, na verdade, assumir uma suposição pagã.
Pois assumir que um ou outro dos aspectos causa o restante é excluir de
antemão que existe um Criador transcendente que é tanto necessário quanto
suficiente para a existência de todos eles — incluindo sua ordem de pré-
condicionalidade.
Além dessa objeção religiosa, no entanto, existem sérias dificuldades
teóricas com qualquer tentativa de utilizar a ordem entre os aspectos como
apoio para uma teoria fraca de redução. Já vimos por que a afirmação de que
qualquer aspecto possa causar a existência de todos os demais falha quando
aplicada ao seu lado de propriedades: é autoperformativamente incoerente
abstrair um tipo de propriedades, considerar seu resultante isolamento como
independência real, e então proclamá-la como se fosse a identidade essencial
das coisas em vez de apenas um aspecto delas. Mas existe uma razão
adicional por que essa afirmação é implausível quando aplicada ao lado de lei
de um aspecto. Pois enquanto as propriedades aspectuais apresentam uma
ordem de aparência, as leis aspectuais não o fazem. Explicar esse ponto
permitirá, ao mesmo tempo, que uma parte substancial da teoria da estrutura
de leis seja apresentada, de modo que é importante fazê-lo aqui. Mas para
tornar o ponto claro, é preciso primeiramente introduzir algumas novas
expressões que me permitirão falar de uma forma que guardará a distinção
entre os lados lei e de propriedades de qualquer aspecto.
Trataremos dos objetos da experiência (coisas, eventos, relações,
estados de coisas, pessoas, etc.) como existindo ou funcionando “em um
aspecto” ou “sob as leis de um aspecto”. Dessa forma vamos nos relembrar
que a existência das criaturas sempre é governada por leis, e que sempre
devemos distinguir entre as entidades sujeitas às leis e as leis que exercem o
governo. Assim, dizer que uma coisa “funciona em” um aspecto é outra
forma de dizer que ela tem propriedades daquele tipo aspectual que são
governadas pelas leis daquele aspecto. A teoria da estrutura de leis afirma que
tanto as propriedades quanto as leis para um aspecto existem em correlação
mútua. A ordem de lei de cada aspecto estabelece os limites para as
propriedades que são possíveis dentro daquele aspecto e garante as conexões
necessárias entre elas, mas não cria essas propriedades. Ela tampouco é a
natureza intrínseca de certas propriedades que definem a ordem para um
aspecto, ou traz à existência outras propriedades daquele tipo. Assim, embora
nem a lei nem os lados de propriedades de um aspecto existem à parte um do
outro, eles também não produzem um ao outro; ambos dependem de Deus
para sua existência.
Focar nessa correlação permite-nos agora notar que existem duas
formas pelas quais um objeto pode possuir propriedades de um aspecto.
Tratarei dessas duas formas dizendo que uma coisa pode funcionar em um
aspecto “ativamente” ou “passivamente”. As duas funções não são, no
entanto, mutuamente exclusivas. De fato, argumentamos que todas as coisas
funcionam passivamente em todos os aspectos simultaneamente, de modo
que são apenas as funções ativas em certos aspectos que podem estar
ausentes em dada coisa e que apresentam a ordem sequencial de
aparecimento notada acima.
Considere o exemplo de uma rocha. De acordo com a distinção sendo
proposta, poderíamos dizer que uma rocha funciona ativamente nos aspectos
quantitativo, espacial, cinemático e físico. Ela apresenta essas propriedades e
está sujeita às suas leis de tal modo que elas incidem ativamente sobre outras
coisas no que diz respeito a esses tipos de propriedades. A rocha, contudo,
não funciona ativamente em outros aspectos como o biótico, sensorial,
lógico, econômico, ou jurídico. Ainda assim, existe um sentido real no qual
ela de fato funciona nesses aspectos, porque existem sentidos nos quais ela
está sujeita às suas leis. Esses sentidos dependem, no entanto, de a rocha
sofrer a ação por outras coisas que funcionam de fato ativamente naqueles
aspectos. Assim, denominarei as formas pelas quais uma coisa é sujeita às
leis de um aspecto, sem funcionar ativamente nele, de suas propriedades
passivas nesse aspecto. Que a rocha não funcione ativamente no aspecto
biótico significa que ela não está viva. Ela não desenvolve processos
metabólicos, ingestão, nem reproduz. Mas ela pode ter propriedades que são
indispensáveis à vida de seres vivos que são bióticas de um modo passivo.
Conforme disse, essas propriedades são passivas no sentido de que existem
formas nas quais as rochas podem sofrer ações, de forma que essas
propriedades não podem aparecer exceto em relação às coisas que têm uma
função ativa naquele aspecto. A rocha pode, por exemplo, ser parte da cova
de um animal; ela pode ser o objeto sobre o qual uma gaivota lança moluscos
para que estes se abram; se pequena o suficiente, ela pode entrar na moela de
uma ave e auxiliar na trituração de seu alimento. Em outras palavras, ela pode
ter funções de ser bioticamente apropriada por seres vivos. De formas
semelhantes, a água e outras coisas não vivas podem apresentar funções
bióticas passivas sem que elas mesmas estejam vivas. Tais propriedades
permanecem apenas potenciais, obviamente, até que algo com uma função
biótica ativa as atualize. Mas elas são, contudo, propriedades reais desses
objetos possibilitadas pelo fato de serem governados por leis bióticas ―
assim como todas as outras. (Certifique-se de não confundir aqui “ativa” com
“atualizar”. Propriedades passivas podem ser ou atuais ou potenciais,
enquanto propriedades ativas são sempre atuais.)
Uma rocha também não funciona ativamente no aspecto sensorial. Isso
significa que ela não sente nem percebe. Mas o fato de que ela pode ser
percebida por animais e humanos que têm funções sensoriais ativas é
possibilitada (em partes) porque está sujeita às leis sensoriais e possui
propriedades sensoriais passivas. Lembre-se, relacionado a isso, que não
percebemos diretamente as propriedades físicas no sentido estrito sensorial de
“perceber”, embora as experimentemos no sentido mais amplo do sentido de
“experiência”. O calor físico, por exemplo, é definido como a frequência de
vibração molecular, mas não sentimos sensorialmente algo vibrando mais
rapidamente, ou mais vagarosamente, quando sentimos o calor. Novamente,
falando fisicamente, as ondas de luz diferem em frequência, mas o que
percebemos é vermelho ou azul, não diferença de frequência, etc.; e o peso
sentido é a pressão ou resistência que sentimos, enquanto o peso físico é a
atração gravitacional sentida ou não sentida.
De semelhante modo, a rocha não forma conceitos lógicos. Mas se não
estivesse sujeita às leis lógicas, ela não poderia ser um objeto passivo para
nosso pensamento lógico. Da mesma forma, não poderíamos avaliá-la
economicamente se ela não estivesse sujeita à lei econômica da oferta e da
demanda. Reforçando o ponto já feito, essas funções passivas podem ser
atualizadas apenas em relação às funções ativas de outros seres. A rocha não
possui valor econômico atual [concreto] até que alguém a valorize. Mas se
ela não fosse passivamente sujeita à ordem do aspecto econômico, ela não se
tornaria um objeto de valor para nós. Seu potencial econômico é uma
característica real que ela possui, que se torna possível por sua sujeição a uma
ordem econômica já existente.
Em contraste a uma rocha, uma árvore funciona ativamente no aspecto
biótico além de suas funções ativas nos aspectos quantitativo, espacial,
cinemático e físico. Ela desenvolve processos metabólicos, tem um tempo de
vida, é capaz de se reproduzir e morre. Sua função social, por outro lado, é
passiva e atualizada apenas quando, por exemplo, ela é utilizada para oferecer
sombra para os afazeres sociais humanos. Ela também pode ter uma função
estética passiva se ela estiver localizada ou modelada para contribuir com a
harmonia estética de um jardim. Em contraste com a árvore, um animal
também poderia ser considerado como tendo uma função ativa sensorial.[275]
Mesmo os animais mais primitivos são sensoriais de uma forma que as
plantas não o são, ainda que em um nível grosseiro.
Até onde sabemos, de todas as criaturas no cosmos terrestre, apenas os
humanos apresentam funções em todos os aspectos.[276]
Talvez o seguinte diagrama auxilie a tornar esse ponto de nossa teoria
mais claro.

Fiduciário
Ético
Jurídico
Estético
Econômico
Social
Linguístico
Histórico
Lógico
Sensorial
Biótico
Físico
Cinemático
Espacial
Quantitativo
Rocha Árvore Animal

Essa distinção entre propriedades ativas e passivas nos permite apropriar os


elementos de verdade tanto do objetivismo quanto do subjetivismo evitando,
ao mesmo tempo, os extremos de cada um. Podemos concordar com o
subjetivista que as coisas não possuem propriedades passivas num aspecto à
parte da relação com os humanos que têm uma função ativa nele. (Embora as
coisas tenham funções passivas em relação aos animais assim como os
humanos, por uma questão de simplicidade aqui falarei apenas das formas
que elas têm em relação aos humanos). Em relação à nossa percepção, as
propriedades sensoriais passivas da rocha se tornam atualizadas, ao passo
que, isoladamente de nós, elas são meramente potenciais. Mas, uma vez que a
sujeição da rocha às leis sensoriais é independente de nós, podemos
concordar com os objetivistas de que não criamos suas propriedades
sensoriais indiscriminadamente. No entanto, precisamos discordar com o
objetivista sobre se essas potencialidades devem ser localizadas apenas na
rocha. Ao invés disso, entendemos que elas são o resultado dos modos pelos
quais tanto a rocha quanto os humanos se conformam ao distinto lado lei da
criação. De acordo com essa distinção, portanto, concordamos com o
objetivista de que é falso dizer que a “beleza está nos olhos de quem vê”, ou
que o valor econômico é uma invenção inteiramente humana. Se não fosse
pelo fato de as normas econômicas e estéticas estarem já embutidas no
cosmos, nada poderia ser experimentado por nós desses modos, uma vez que
não haveria potencialidade econômica ou estética para atualizarmos. Ao
mesmo tempo, no entanto, ainda é verdade que tais propriedades não estão já
em ato (plenamente) nos objetos, independentemente de nossa atividade em
relação a eles.
A distinção entre propriedades ativas e passivas também demonstra por
que sustentamos que as teorias de emergência são implausíveis, nas ocasiões
em que se considera que “emergência” explica a existência de aspectos
inteiros.[277]Pois embora exista um sentido no qual as funções ativas das
coisas “emergem” na ordem sequencial discutida acima, não faz sentido
sugerir que aspectos inteiros, incluindo suas leis, também emergiram. A
ordem de propriedades tanto ativas quanto passivas em cada aspecto é
possibilitada pelas leis de cada aspecto, de modo que suas leis já teriam de
existir. Que sentido faz sugerir, por exemplo, que em um momento haviam
apenas coisas físicas, mas que as leis lógicas então “emergiram” juntamente
com propriedades lógicas? Isso significaria que a suposta emergência não
teria, ela mesma, sido sequer logicamente possível! E que sentido há em tal
afirmação quando notamos que isso está nos apresentando um conceito
lógico de um mundo que supostamente é destituído de leis e propriedades
lógicas? O mesmo ponto se aplica igualmente a outras propriedades e leis não
físicas. Não poderíamos, por exemplo, ter qualquer noção de como se
pareceria um mundo puramente físico, uma vez que ele não possuísse
propriedades sensoriais e, portanto, qualquer aparência! Nem poderia haver
uma descrição plausível de como os seres vivos podem ter surgido e evoluído
se é negado que já existiam leis bióticas tornando isto possível.
Dessa forma, a distinção ativo/passivo remove a objeção mais plausível
de nosso argumento de que os aspectos são todos igualmente reais. Esse
ponto foi defendido anteriormente ao aplicar-se o critério da coerência
autoperformativa por meio de nosso argumento do experimento mental. O
argumento demonstrou que não podemos formar a ideia de qualquer aspecto
como se fosse realmente independente dos demais. Contra isso, os tipos
questionáveis de teorias de emergência instam que compreendemos melhor a
ordem sequencial de suas funções ativas se consideramos que demonstra que
as funções inferiores são causalmente básicas em relação às superior, porque
elas são realmente independentes destas últimas. Vimos, pois, por que isso
não é convincente e portanto não depõe contra nossos dois primeiros
princípios orientadores.[278]
Ademais, esse ponto agora nos coloca em uma posição para
introduzirmos um terceiro princípio orientador para nossa teoria. Pois se toda
a criação é ativamente ou passivamente governada pela totalidade da
estrutura de leis, podemos agora formular o princípio da universalidade
aspectual: Cada aspecto é uma aspecto para todas as criaturas, uma vez que
a totalidade da criação existe e funciona sob a totalidade das leis de cada
aspecto simultaneamente.
Esse princípio adicional forma um complemento ao princípio da
irredutibilidade aspectual e serve para enfatizar dois importantes pontos já
mencionados: (1) aspectos não devem ser confundidos com tipos ou classes
de coisas, mas são tipos de propriedades e leis verdadeiras de todas as coisas;
(2) nada que experimentamos é de algum modo experimentado puramente
como um único tipo (aspectual) de coisa. Isso é importante uma vez que
tantas das entidades propostas por teorias da filosofia moderna são
precisamente ficções desse tipo. De acordo com essas teorias, esses são
supostamente objetos puramente físicos, percepções puramente sensoriais,
conceitos puramente lógicos, etc. Comparado à nossa experiência, tais
entidades são todas elas claramente hipóteses; nunca experimentamos algo
que tem propriedades de apenas um ou dois dos aspectos. E nossa crítica da
estratégia de redução nos deu boas razões para rejeitar tais hipóteses em favor
daquilo que a experiência apresenta.
A última sentença não deveria ser entendida equivocadamente como
se afirmasse que as teorias nunca podem corrigir, alargar, ou mesmo
contradizer características particulares da experiência ordinária. Dizer que
nunca experimentamos entidades que são puramente de um tipo aspectual
não teria, por si mesmo, essa consequência. Mas em relação aos aspectos
inteiros, isso de fato diz não apenas que a experiência revela uma
multiplicidade deles, mas que teorias tentando negar a realidade dessa
multiplicidade são autorreferencialmente, autoconjecturalmente ou
autoperformativamente incoerentes. Portanto, insistimos que a única posição
plausível é dizer que todas as coisas e eventos funcionam em todos os
aspectos, desde que as propriedades passivas sejam distinguidas das ativas. A
lição, portanto, é que se uma teoria da realidade deve explicar as naturezas
das coisas que experimentamos (e o que mais poderia uma teoria da realidade
explicar?), ela deve considerar como elas funcionam em cada aspecto.[279]
Quero agora introduzir uma forma mais conveniente de abordar um
ponto assinalado anteriormente. Notamos brevemente que embora a realidade
experimentada seja multiaspectual, vários tipos de coisas revelam naturezas
distintas que são “mais centralmente caracterizadas” por um aspecto em
particular. Mencionei que a maneira que coisas de certo tipo funcionam sob
as leis de um aspecto em particular podem caracterizar sua natureza mais
fortemente do que as maneiras em que funcionam em outros, sem envolver
qualquer redução entre aspectos. De agora em diante, referir-me-ei a isso
como a maneira nas quais as coisas de um tipo particular são “qualificadas”
por aquele aspecto, e falarei da maneira nas quais as entidades são
governadas por leis de seus aspectos qualificadores como sua “função
qualificadora”. Este ponto pode nos auxiliar na explicação do elemento de
verdade contido no erro de tantas teorias modernas que consideram a
realidade como puramente física, ou puramente sensorial, etc.
Como exemplos desse equívoco, relembre o que vimos no capítulo 8
sobre como Mach e Einstein criam que os objetos de nossa experiência pré-
teórica são todos puramente sensoriais. Parte da discordância com Mach
consistiu em acrescentar que existem também objetos fora da experiência que
são puramente físicos. O que ocorre aqui, de acordo com nossa teoria, é que
as funções qualificadoras das coisas estão sendo erroneamente tomadas como
sendo sua natureza exclusiva. Por exemplo, geralmente pensamos e falamos
de uma rocha como uma coisa física, ou de atos de percepção como
percepção sensorial, mas essas intuições pré-teóricas de suas naturezas não as
revelam como sendo exclusivamente físicas ou sensoriais. Nossa intuição
sobre suas naturezas focalizam sobre o aspecto particular que mais
claramente os caracteriza, e não que os caracteriza exaustivamente. Assim,
assumimos que as rochas apresentam propriedades quantitativa, espacial,
cinemática e física ativamente, e propriedades passivas em todos os outros
aspectos. Da mesma forma, um ato de percepção não é apenas sensorial; ele
pode ser contado, localizado, mover-se e utilizar energia ativamente,
enquanto passivamente ele pode ser treinado, nomeado, valorizado
economicamente, injusto, ou confiável.
Para ilustrar melhor esse ponto, considere os exemplos oferecidos
acima de outros atos do comportamento humano. Atos humanos, conforme
vimos, são como todos os outros eventos que ocorrem no mundo na medida
em que apresentam muitos aspectos e podem diferir de acordo com sua
qualificação aspectual: atos de compra ou venda têm uma qualificação
econômica, atos de alimentação têm uma qualificação biológica, atos de
dança têm uma qualificação estética, enquanto atos de julgamentos e decisões
judiciais têm uma qualificação jurídica. Mesmo que tais eventos sejam tipos
distintos, e que cada um tenha uma qualificação aspectual específica, eles
ainda existem sob as leis de todos os aspectos simultaneamente e podem ser
estudados a partir do ponto de vista de cada um deles. Na verdade, não
apenas podem ser estudados a partir de distintos ângulos correspondentes aos
seus outros aspectos, mas é impossível, como vimos, para esses outros
aspectos não entrarem em nossas concepções acerca deles (pense no exemplo
do saleiro do capítulo 4) e por conseguinte nas teorias de qualquer ciência, a
despeito do aspecto particular sobre o qual a ciência se foque. À vista disso,
um corolário de nossa tese não reducionista é que a despeito de quão
insistentemente uma ciência tente excluir de sua descrição todas as
propriedades senão aquelas de seu aspecto delimitador, ela não consegue
deixar de lidar com as propriedades que seus dados revelam em outros
aspectos.
Até o momento o único argumento oferecido desse último ponto foi o
experimento mental que demonstrou por que não podemos estruturar a ideia
de um aspecto ou propriedade específica em isolamento de todos os outros.
Mas existe um argumento adicional para essa mesma conclusão que é digno
de nota aqui, mesmo que uma exposição completa esteja além do escopo
deste capítulo. Esse argumento tem a ver com a forma na qual os conceitos
básicos em cada aspecto exibem uma conexão àqueles de outros aspectos no
que diz respeito aos seus sentidos. Dooyeweerd se refere à forma que tais
conceitos revelam esse conexão de sentido denominando-os “conceitos
analógicos”, mas esse termo não deveria ser entendido como se sugerisse que
a conexão consiste meramente de similaridades. De fato, ela é muito mais
forte do que isso.
Tome, por exemplo, a maneira que os conceitos básicos nos aspectos
não espaciais incluem um elemento que originalmente derivamos de nossa
experiência intuitiva do aspecto espacial. A intuição original do significado
focal desse aspecto tem a ver com a extensão na simultaneidade de todos os
seus pontos. Mas essa ideia está tão entrelaçada nos conceitos que emergem
em outros aspectos que eles não podem ser formados à parte deles, nem se
pode conceitualizar pode a ideia focal à parte de sua inclusão em tais
conceitos não espaciais. Por exemplo, existe o conceito de espaço físico que
não é idêntico com o espaço da geometria pura; existe o conceito biológico
do espaço-vital; e existe o espaço da percepção sensorial que não é o mesmo
que aquele da matemática ou da física. Também falamos de espaço lógico
como o “domínio” de um quantificador ou extensão da referência de um
termo, e de espaço jurídico como o limite de uma competência legal da
autoridade jurídica. Ou observe a maneira que nossa ideia intuitiva de vida,
originalmente derivada do aspecto biótico da experiência, figura nos
conceitos de outros aspectos. Existe a vida psicológica do sentimento, vida
cultural e vida social, e cada uma das quais adicionou a esse ideia uma
qualificação distinta derivada da intuição original da vida biótica. O mesmo
vale para a vida da lei, ou a vida de fé, etc. No que diz respeito à nossa vida
linguística, por exemplo, qualquer pessoa desejando dispensar em absoluto as
analogias bióticas teria de demonstrar não apenas que o que é transmitido
pela locução “uma língua viva” ou “uma língua morta” poderia ser
substituído sem perda de sentido, mas teria de fazer o mesmo para “vivendo
juntos” como um conceito socialmente qualificado.
Se for questionado que tais aplicações analógicas da meta-
propriedade central de um aspecto aos conceitos emergindo em outros
aspectos pode ser evitado, contanto que utilizemos suficiente engenhosidade,
a réplica é simples: quaisquer circunlocuções que evitem uma aplicação
analógica inevitavelmente utilizarão outra. Desse modo, nossa alegação não
está restrita à afirmação de que um conjunto particular de conceitos
analógicos é inevitável para uma ciência particular (embora exista boa
evidência de que isso acontece), mas que alguns ou outros conceitos
analógicos são inevitáveis, uma vez que eles são passíveis de substituição
apenas por outros conceitos analógicos.
Consideremos apenas alguns outros exemplos desse ponto, dessa vez
derivados do aspecto social da experiência, já que esse é o aspecto no qual
nos concentraremos no próximo capítulo. Quando falamos da “vida” social,
recorremos a uma analogia biótica, assim como quando falamos dos
“elementos” de uma sociedade recorremos a uma analogia numérica. De
semelhante modo, tratar certas crenças ou tendências como “universais” em
uma sociedade é utilizar um conceito que recorre a uma analogia espacial,
assim como falar de dinâmicas ou constância social apela a analogias
cinemáticas. Finalmente, o conceito de uma causa social emprega uma
analogia física. Certamente ninguém pode argumentar seriamente que todos
os conceitos analógicos enquanto tais podem ser substituídos com outros que
não são analógicos!
Essa inclusão das ideias que emergem em um aspecto dentro de
conceitos indispensáveis a outros aspectos é possibilitada — assim
argumentamos — pela mesma e intensa conectividade interaspectual que
nosso experimento mental indicou. Conceitos analógicos são, pois, outra via
de reflexão sobre as maneiras pelas quais cada aspecto é entretecido com
todos os outros por elos de sentido que consistem dos modos nos quais as
propriedades de cada um surgem em (e adicionam qualificações aos)
conceitos emergindo em outros aspectos.[280] Portanto, os conceitos
analógicos constituem o lado “interno” da conectividade interaspectual em
distinção a seu lado externo que foi defendido com o argumento do
experimento mental e que tem sido nosso foco até o momento. Isto equivale a
dizer: externamente a conectividade entre os aspectos é demonstrada pela
forma que as propriedades são apresentadas simultaneamente pelos objetos
de nossa experiência, e pela maneira que sua realidade irredutível não pode
ser coerentemente negada. A esses pontos acrescentamos agora que sua
conectividade interna é demonstrada pelos elementos analógicos encontrados
em certos conceitos básicos de cada aspecto — elementos que não podem ser
eliminados sem ou recorrer a outros conceitos analógicos, ou eliminar os
próprios conceitos básicos. (E, sim, esse ponto foi feito aplicando-se a
analogia espacial à sua conectividade interaspectual interna e externa!)
Consideraremos, pois, que a presença de conceitos analógicos nas
ciências, juntamente ao argumento do experimento mental, demonstrou a
base para ainda outro princípio orientador para a teoria da estrutura de leis.
Denominarei este o princípio da inseparabilidade aspectual. Isso significa
que os aspectos não podem ser isolados uns dos outros, uma vez que sua
própria inteligibilidade depende de sua conectividade. Embora eles possam
ser abstraídos das coisas e eventos que os apresentam, eles não podem —
mesmo no pensamento — ser isolados uns dos outros.
Os argumentos oferecidos agora para o princípio da inseparabilidade
aspectual servem, no entanto, como um lembrete de que o tema de sua
conectividade foi o ponto focal de nossa defesa acerca do controle religioso
das teorias. Assim, também compete à teoria da estrutura de lei dizer o que
explica essa conectividade. Para fazê-lo, quero agora retornar à metáfora do
colar que utilizei para explicar o que as teorias tradicionais da realidade
tentavam realizar. E também quero lembrá-lo que anteriormente disse que a
teoria da estrutura de leis não apenas ofereceria respostas distintas às
questões filosóficas tradicionais, mas também reformular muitas dessas
questões. Dessa forma, o primeiro item a ser explicado é dizer por que a
metáfora do colar, embora precisa em relação à história da filosofia ocidental,
é, contudo, questionável a partir de nosso ponto de vista. Como deveria estar
claro agora, nossa posição é a de que nenhum aspecto da experiência deve ser
pensado como sendo separado do restante, ou como produzido por algum
dentre os demais. Portanto, em vez de um colar consistindo de contas
separáveis conectadas por uma corda, a metáfora mais apropriada à teoria da
estrutura de leis seria a de um colar feito de fios contínuos firmemente
entrelaçados. Na verdade, teríamos de complementar que os fios não apenas
entrelaçados uns nos outros, mas que as fibras de cada fio estão entrecruzadas
ao longo de todos os outros fios. Utilizando ainda mais da figura: não apenas
o colar não pode existir à parte de seus fios, mas os fios não podem existir à
parte de estarem costurados no colar, e nenhum deles produz os demais.
Todos igualmente são produzidos, costurados, e sustentados por Deus.
Assim, a conectividade interaspectual revelada pelas coisas, sua unidade mais
profunda e identidade como realidades individuais, são incapazes de serem
abstraídas ou serem explicadas por qualquer um de seus aspectos. A
identidade lógica, por exemplo, não é essa unidade mais básica de uma coisa,
mas, pelo contrário, é apenas um aspecto da unidade individual de uma coisa
— um aspecto que em si mesmo depende da conectividade interaspectual
mais profunda que é fornecida por Deus e é incapaz de análise ou explicação
posterior.
Embora isso signifique que a parte mais importante de nossa posição
sobre a conectividade interaspectual é sua Origem transcendente, isso não
exclui que os fios do colar demonstrem um denominador comum em nossa
experiência. É simplesmente o caso de que, nessa visão, em contraste às
teorias pagãs, o que todos os fios têm em comum não é o mesmo que os
produz ou os combina em indivíduos distintos, unificados. Desse modo,
embora nossa teoria não entenda que determinado aspecto, ou aspectos, é a
base para a existência de todos os outros, ela de fato propõe uma
característica da criação como o denominador comum de todos os aspectos.
Essa característica é o tempo. Não apenas são as coisas, eventos, estados de
coisas, relações, pessoas, etc., que povoam o cosmo temporal, mas também
os tipos de propriedades que eles possuem e as leis válidas para eles. Com
efeito, uma visão não reducionista do tempo exige que digamos que a ordem
de leis para cada aspecto apresenta um caráter anterior-e-posterior, de modo
que cada é um senso distinto da ordem temporal. Existe, por exemplo, o
anterior e o posterior de números menores e maiores em matemática, de
causas a efeitos de energia na física, da sensação ao sentimento na psicologia,
de premissas à conclusão na lógica, e assim por diante. Assim, embora seja
uma característica fundamental da existência de entidades criaturais existirem
no tempo, elas sempre o fazem de acordo com os muitos tipos (aspectuais) de
ordem que também são a ordem do tempo. Portanto, o lado lei dos aspectos
constitui as várias percepções da ordem temporal, nenhuma das quais é mais
realmente a essência do tempo que a outra.
Espero que esteja claro que, ao identificar o denominador comum dos
aspectos com o tempo, não existe o risco de se re-introduzir a ideia de que
algo no cosmos é divino. O tempo não é uma substância, e seria absurdo
considerar o tempo como um agente; ele não causa algo. Diferentemente das
teorias pagãs, a teoria da estrutura de leis insiste em uma interdependência
mútua entre entidades que são o lado factual do tempo, e as leis da criação
que constituem o lado da ordem do tempo. Nem entidades, propriedades, leis,
nem o tempo existem à parte um do outro, mas nenhum é a causa da
existência do outro. Eles são todos criações de e sustentados por Deus, cujo
ser (não acomodado) é supra-temporal e está acima de todas as leis.
Creio que também esteja claro que os princípios orientadores acima
não serão agora utilizados como premissas a partir das quais deduzir
hipóteses para nossa teoria, mas em vez disso regularão nossa teorização da
maneira que notamos que crenças sobre a divindade regulam teorias em geral.
Assim, tomaremos como um sinal de que nossa teoria se desviou se qualquer
hipótese que ela postule conduza a: (1) negar a distinção e irredutibilidade de
uma multiplicidade de aspectos à nossa experiência, (2) restringir o espectro
de qualquer aspecto dentro do cosmos criado, ou (3) considerar qualquer
ruptura da continuidade e interdependência dos aspectos como completos ou
reais ao invés de parciais e produto artificial da alta abstração.
Nesse ponto estudantes geralmente têm me questionado se esses
princípios não poderiam ser aceitos à parte da crença em Deus. Eles os
consideraram profundamente atrativos comparados com o longo desfile de
reducionismos que têm povoado a filosofia ocidental, mas se preocupam
sobre se a aceitação deles implicaria a crença em Deus. Assim, eles
expressaram a esperança de que eles poderiam aceitar os princípios sem a
crença em Deus, caso em que que não haveria qualquer conexão necessária
entre as pressuposições religiosas e as teorias! A isso tenho sempre replicado
que a conexão não é que as duas sejam equivalentes. Pois enquanto a crença
em Deus exige a não redução, a não redução não implica a crença em Deus.
Isso se dá porque é logicamente possível para alguém assumir a posição de
aquilo que conecta os aspectos é algo desconhecido X em vez de Deus, e
rejeitar a redução nessa base. Obviamente, isso ainda será equivalente à
crença em uma divindade transcendente, só que não seria o Deus cujas
relações pactuais com os humanos encontram-se registradas na Bíblia.
Mas eu também tenho acrescentado que, ao mesmo tempo em que tal
alternativa é logicamente possível, existencialmente essa não é uma opção
genuína para humanos reais. Com isso pretendo dizer que a razão pela qual
essa opção falha em ser uma opção viva não será encontrada em um
argumento teórico, mas na natureza religiosa dos seres humanos. Pois embora
alguém possa tentar ver todos os aspectos como sendo igualmente reais e
mutuamente irredutíveis com base no fato de que aquilo do qual todos
aspectos dependem (que é porém totalmente desconhecido) os transcende,
não é possível, contudo, contentar-se com esse desconhecido X por muito
tempo. Dada a disposição religiosa inata do coração humano, o indivíduo há
de experienciar como divino qualquer coisa que satisfaça a mínima descrição.
E a menos que a carga elétrica dessa disposição à fé chegue ao solo em uma
divindade específica para além da criação, ela por fim repousará em algo
dentro da criação, exigindo que o resto do cosmos seja reduzido ao que quer
que isso seja.

10.4 As naturezas das coisas


A. Coisas naturais
Vamos retornar ao assunto das diferenças experimentadas nas naturezas das
coisas e, começando com coisas naturais enquanto distintas de artefatos,
vejamos se podemos oferecer uma descrição delas que se conforme a nossos
princípios orientadores. Já admitimos que nossa ideia pré-teórica de uma
coisa reconhece algum aspecto específico como mais “centralmente
caracterizante” de sua natureza. Explicamos isso pelo conceito do que
significa para uma coisa ser “qualificada por” um aspecto. Isso pode ser
agora posteriormente esclarecido como se segue: o aspecto qualificador de
uma coisa é o aspecto cujas leis regulam a organização interna da coisa
tomada como um todo. Dessa forma, nossa explicação de tais explicações
pré-teóricas é a de que elas correspondem aos aspectos cujas leis exercem um
governo predominante na organização interna das coisas que denominamos
“físicas”, “vivas”, “sensoriais”, lógicas”, etc. Tais classificações pré-teóricas
nunca têm intenção de dizer que essas coisas são exclusivamente físicas,
bióticas, ou que tais, ou ainda que as propriedades e leis desses aspectos
causem os outros tipos ou propriedades aspectuais revelados pelas coisas
classificadas dessas maneiras.
Observemos agora mais detidamente o que se pretende ao dizer que as
leis do aspecto qualificador de uma coisa exercem um governo predominante
na coisa tomada como um todo. Se considerarmos os aspectos quantitativo,
espacial ou físico de uma árvore, por exemplo, vemos que eles não nos dizem
algo sobre a caracterização aspectual que está mais próxima de nossa ideia
pré-teórica de sua natureza. Mas quando chegamos ao aspecto biológico de
uma árvore, alcançamos aquele aspecto cujas leis orientam a organização
interna e o desenvolvimento da árvore como um todo. São as leis biológicas
que direcionam ou conduzem o arranjo geral de suas partes, suas relações
internas, seus processos, e o arranjo estrutural entre as propriedades de todos
eles. É por essa razão que combina com nossa ideia pré-teórica sobre a
natureza da árvore dizer que ela é qualificada como um ser vivo. E é isso que
damos a entender quando dizemos que sua natureza é “mais centralmente”
caracterizada por seu aspecto histórico do que por seus aspectos espacial ou
físico. Ademais, essa parte de nossa descrição se encaixa bem com a
distinção anterior inferida entre funções ativas e passivas das coisas. Aquela
distinção reconheceu uma ordem sequencial de pré-condicionalidade entre
aspectos no que tange à aparência de funções ativas nas coisas. É
significativo, portanto, que para cada exemplo que possamos pensar, o
aspecto qualificador de uma coisa é também o último aspecto naquela ordem
(o mais elevado em nossa lista) no qual a coisa funciona ativamente. Por
exemplo, uma rocha é qualificada pelo aspecto físico que é o mais elevado na
lista na qual ela funciona ativamente. O fato de que ela é meramente passiva
nos aspectos restantes é em parte a razão por que percebemos uma rocha
como tendo uma natureza (centralmente) física. Em contraste a isso, a função
qualificadora de uma planta é sua função biótica, uma vez que são as leis
biológicas que exercem governo predominante na organização interna e nos
processos de uma planta. Aqui, também, é o aspecto biológico que é o
aspecto mais elevado na lista na qual uma planta funciona ativamente. Assim,
surge uma correspondência impressionante entre nossa apreensão intuitiva da
função ativa mais elevada de uma coisa e sua função qualificadora como
definida pela teoria da estrutura de leis.
Ora, tomaria mais espaço do que tenho aqui para demonstrar essa
correspondência para centenas de outros exemplos. Mas uma vez que isso já
foi feito em outro contexto,[281] e em razão da falta de contra-exemplos
convincentes, nossa teoria agora propõe aceitar essa correspondência como
parte de nosso conceito da função qualificadora de uma coisa. Portanto, a
definição plena da função qualificadora de uma coisa será: aquele aspecto
cujas leis governam predominantemente a estrutura interna e o
desenvolvimento de uma coisa considerada como um todo, e que é o mais
elevado na ordem sequencial dos aspectos na qual a coisa funciona
ativamente. Isso deliberadamente inclui o reconhecimento intuitivo pré-
teórico da natureza de uma coisa como estando centrada no último aspecto
em que funciona ativamente e, de igual modo, as razões teóricas para
identificar quais tipos de leis têm governança predominante na estrutura
interna de uma coisa tomada como um todo. Mas por favor note que a
correspondência entre o aspecto que vemos intuitivamente como
qualificadora da natureza de uma coisa e o tipo de leis que governam sua
estrutura tomada como um todo não está simplesmente sendo estipulado por
essa teoria. Isto é, pelo contrário, uma predição da teoria, e está sujeita à
confirmação ou desconfirmação pela análise científica e filosófica dos vários
tipos de coisas e eventos — contanto que a própria análise siga nossos
princípios não reducionistas. Desse modo, o conceito de função qualificadora
das coisas oferece uma maneira de explicar suas naturezas que é tanto
minuciosamente não reducionista quanto sujeita à confirmação empírica.
O que tem sido dito até o momento sobre o conceito de uma função
qualificadora e a distinção entre funções ativa e passiva é, no entanto, apenas
o começo de uma explicação não reducionista das naturezas das coisas, uma
vez que ela ainda não é específica o suficiente. Ao dizer que a função
qualificadora de uma árvore é biológica, nossa teoria ainda não explicou nada
que seja singular a uma árvore distintamente de outros tipos de plantas. Uma
vez que as naturezas das coisas têm sido apenas grosseiramente aproximadas
quando identificamos suas funções qualificadoras, precisamos maior
especificidade se quisermos explicar as diferenças em natureza dos vários
tipos de coisas que têm a mesma função qualificadora.
A maneira na qual nossa teoria da estrutura de leis pode ser ampliada
para cobrir essa falta se refere retrospectivamente à sequência na aparição das
funções aspectuais ativas discutidas anteriormente. Pois o fato de que existe
ordem entre os aspectos implica a existência de leis interaspectuais em adição
àquelas que se apresentam dentro dos aspectos. Às leis dessa ordem
interaspectual denominarei “lei típicas”. Essas leis variam ao longo dos
aspectos, regulando como as propriedades dos vários tipos aspectuais podem
se combinar de modo a formar coisas e eventos de tipos específicos.[282]
O conceito de uma lei típica pode agora suplementar o conceito de
qualificação de uma coisa de modo a oferecer uma descrição mais adequada
da natureza do tipo ao qual uma coisa pertence. Por exemplo, o fato de que
uma árvore é biologicamente qualificada pode agora ser combinado com a
organização estrutural distintiva de suas partes e funções que a tornam uma
árvore em vez de um cogumelo ou uma margarida. (Obviamente não se pode
predizer quais estruturações essas leis permitem; sua descoberta depende de
análise empírica das realidades que encontramos.) Assim, nossa teoria da
estrutura de leis propõe uma complexa e entrecruzada rede de leis. Em
complemento às relações causais que experimentamos diariamente, a rede
inclui leis aspectuais que determinam as relações necessárias entre
propriedades dentro de aspectos particulares, e leis típicas que governam as
combinações estruturais entre propriedades de distintos aspectos que tornam
possível a miríade de tipos específicos de coisas e eventos no cosmos. É essa
governança entrecruzada por estes últimos dois tipos de leis apontados pela
nossa teoria que descreve a natureza de um tipo de coisas. Ou seja, nosso
entendimento da função qualificadora de uma coisa, tomada conjuntamente
com uma análise de seu tipo estrutural, compreende a descrição que nossa
teoria oferece para nossa ideia pré-teórica da natureza de uma coisa. (Uma
descrição mais completa da significância da ideia de leis típicas, assim como
dos outros princípios e conceitos introduzidos por essa teoria, será
apresentada no próximo capítulo.)
Com esse esboço da teoria da estrutura de leis estamos agora em uma
posição de reconhecer uma importante característica de nossa teoria que está
implicada pelo que foi dito até o momento, mas que não foi explicitada. É
uma característica pela qual ela se afasta da maioria das teorias reducionistas
— incluindo aquelas adaptadas por grande parte dos pensadores teístas. E
embora possa apenas fazer breve menção a ela aqui, mesmo uma ligeira
afirmação dela servirá para trazer maior clareza à direção única da teoria, a
saber, o como e o por que suas pressuposições teístas dirigem seu
desenvolvimento ao longo de certas linhas à exclusão de outras.
A característica à qual me refiro é que essa teoria oferece-nos uma
forma de explicar as naturezas das coisas sem necessitar da ideia de que as
coisas possuem uma “substância”. A direção de pensamento que se afasta
desse conceito tomou seu ímpeto a partir da ideia bíblica de que nada na
criação existe independentemente, e de nossa prova de que nenhuma
reivindicação de independência para qualquer aspecto pode ser justificada.
Assim, não há nada nas criaturas que as leva a ser o que são. É Deus quem as
leva a ser o que são. A característica mais básica de todas as realidades
criadas, portanto, é depender de Deus em todos os sentidos. Como
consequência, nossa teoria da natureza das coisas ou eventos criados não tem
lugar para o conceito de substância, mas enxerga uma coisa como um
conjunto de propriedades estruturais individuais determinada por uma lei
típica e centralmente qualificada por quaisquer leis que regulam sua
organização interna.[283] Isto se dá porque nenhum aspecto de qualquer coisa
criada deve ser visto como sua substância — aquilo sobre o que todos os
outros aspectos dependem –, sobre o qual argumentamos que é um erro
pensar em uma coisa ou evento como algo sobre e acima de uma combinação
estruturada por leis de todas as propriedades que consistem nela. Essa é uma
consequência adicional de nossa rejeição do programa reducionista de
selecionar um ou dois tipos aspectuais de propriedades como o que as coisas
são, deixando o resto como o que as coisas simplesmente possuem (ou
negando-as em absoluto). Assim, rejeitamos a ideia de que há qualquer
substância em algo que seja subjacente e cause o restante de suas
propriedades. Pelo contrário, mantemos que uma coisa é uma combinação
individual de propriedades de cada tipo aspectual, estruturada por leis
internas à estrutura de leis cósmica que determinam o tipo de coisa que é.[284]
B. Artefatos
Até o momento tenho aplicado os conceitos introduzidos pela teoria da
estrutura de leis apenas às coisas naturais. Começamos com elas porque as
naturezas dos artefatos são mais complicadas do que pode ser explicado
apenas pela função qualificadora de seu material natural. Nem se pode
remediar essa deficiência simplesmente adicionando a lei típica para seu
material natural à explicação. Isso ocorre porque o arranjo estrutural das
propriedades que tipificam as coisas que servem como material natural nunca
nos dirão algo sobre o que é novo na natureza de um artefato — sobre o que
seu material natural se tornou. Desse modo, seja o artefato o produto de
humanos ou animais, precisamos expandir nosso conceito da natureza de uma
coisa para além de sua função qualificadora de modo a podermos explicar a
nova natureza possuída por um artefato que seus materiais naturais não
possuíam.
Por exemplo, a terra (ou a rocha) que compõe a toca ou o buraco de um
animal não teria por si mesma mais do que uma qualificação física. Mas visto
que passou por uma transformação para ir ao encontro das necessidades
bióticas ou sensoriais de um animal, ela adquire uma qualificação adicional,
apesar do fato de que tem apenas uma função passiva nos aspectos biótico ou
sensorial. A menos que reconheçamos que tal transformação tenha ocorrido,
não reconheceríamos a terra (ou rocha) como a toca de um animal, e dessa
forma não reconheceríamos aquilo que ela se tornou. Por conseguinte, nosso
conceito de natureza de tal coisa precisa ser expandido a fim de incluir o
aspecto que qualifica o processo de transformação que o produziu. Será,
portanto, necessário para nossa teoria subdividir a qualificação aspectual de
um artefato animal entre pelo menos dois aspectos. Chamaremos o aspecto
no qual os materiais naturais que tal artefato apresenta como sua função ativa
mais elevada de sua “função fundante”, e chamaremos ao aspecto cujas leis
governam o processo de sua transformação de sua “função guia”.
Assim, quando um castor constrói um abrigo a partir de lodo, gravetos
e outros materiais, esses materiais possuem apenas funções qualificadoras
físicas ou biológicas em seu estado natural. Mas como um artefato, o abrigo
adquiriu uma qualificação sensorial adicional, porque a atividade do castor é
governada por seus instintos e necessidades sensoriais (abrigo, calor,
proteção das crias, etc.). Desse modo, diremos que o abrigo é qualificado por
uma função fundante física ou biótica, ao passo que o processo de sua
formação foi conduzido por sentimentos e necessidades sensoriais. Diremos,
portanto, que o abrigo possui uma “função guia” sensorial. Isso significa que
os artefatos diferem das coisas naturais porque parte do que os qualifica (sua
função guia) é uma função passiva atualizada, em vez de uma função ativa
como no caso das coisas naturais.
Também no caso dos artefatos humanos, pode-se formar os materiais
naturais em uma nova coisa cuja natureza não pode ser entendida sem o
reconhecimento de alguma adição à sua qualificação. Aqui, também,
precisaremos focar sobre o aspecto cujas leis governaram o tipo de processo
que transformou os materiais. Pedras, por exemplo, não têm mais do que uma
função qualificadora física na natureza, mas o esforço humano pode
transformá-las em uma casa. A menos que o novo arranjo dessas pedras seja
então reconhecido como um produto do poder formativo humano, não se
pode reconhecer que elas constituam uma casa. Mas, diferentemente de
grande parte da produção animal, o controle formativo humano dos materiais
naturais não é simplesmente ditado pelo instinto sensorial. Os humanos
transformam materiais naturais de acordo com um plano livre, logicamente
concebido (já notamos que poucos animais podem também apresentar esses
conceitos, e eles também parecem planejar apenas artefatos simples). Assim,
mudamos nossos conceitos de funções fundantes e guias em conformidade.
Para artefatos formados por um planejamento, o aspecto cujas leis governam
o processo de sua formação será sua função fundante, enquanto o aspecto
cujas leis governam o tipo de plano pelo qual eles são formados será sua
função guia.
Resumindo: no caso dos artefatos animais, utilizamos a expressão
“função fundante” para designar o aspecto mais elevado no qual o material
natural tinha uma função ativa. Mas uma vez que a atividade formativa
humana adiciona um novo fator à natureza do artefato, precisamos aplicar
nossa terminologia diferentemente. Para artefatos humanos não existe apenas
o tipo de processo ao qual foram submetidos, mas o tipo de plano que guiou o
processo. Desses, apenas a qualificação aspectual de seu plano poderia ser
referida como a função “guia” do artefato. Assim, o aspecto que qualifica seu
processo de formação será considerado como sua função fundante —
fundante no sentido de que ela provê os meios para a execução do plano.[285]
Como podemos dizer, então, qual aspecto qualifica a função fundante
para um artefato humano particular? Essa questão, assim como muitas outras
sobre as qualificações aspectuais das coisas, não é respondida por serem
deduzidas de nossa teoria, mas examinando-se os objetos de nossa
experiência. Desse modo podemos não assumir nesse ponto que todos os
artefatos terão a mesma qualificação para sua função fundante. No entanto,
permanecendo com nossos esclarecimentos anteriores sobre os sentidos de
nossos termos aspectuais, podemos dizer que para a maioria dos artefatos
humanos seu processo de formação é “cultural” ou “técnico” (examinaremos
as exceções no próximo capítulo). No caso de nosso presente exemplo de
uma casa, parece óbvio que casas são sempre produzidas a partir de um
material natural por meio de um manuseio planejado técnico dele. Ademais, é
difícil ver como uma casa poderia deixar de apresentar um estilo que é
derivado, ou que contribui, para as realizações de algum período histórico de
alguma cultura particular.
Qual então é a função guia de uma casa? Um candidato plausível seria
dizer que é biológica. E, sem dúvidas, uma casa de fato serve às necessidades
biológicas humanas. Formaríamos casas bastante diferentes se nossos corpos
fossem significativamente distintos daquilo que são. Mas uma casa é mais do
que apenas um refúgio biológico — razão pela qual ela difere de um simples
alpendre ou cabana. Ela oferece tanto um espaço para trocas sociais quanto
acomoda a necessidade social por privacidade. O tamanho e a forma de seus
cômodos, juntamente com seu arranjo, geralmente indica um status social
variante entre aqueles que as ocupam ou utilizam. Na verdade, a menos que
essa formação seja vista como conduzida por propósitos sociais, uma
construção não seria chamada de casa. Por essas razões, dizemos que a
função fundante de uma casa é histórico/cultural, e sua função guia é a social.
As funções guia de artefatos humanos historicamente fundados variam
grandemente de artefato a artefato, obviamente, e precisam ser analisadas
cuidadosamente em uma base de caso por caso. Mas as funções fundantes e
guias devem sempre ser consideradas como correlatas em tal análise, uma vez
que nenhuma delas pode ser adequadamente entendida sem a outra. Juntas,
sua análise nos auxilia a adquirir uma ideia mais completa sobre a natureza
de qualquer artefato dado.
Não há espaço aqui para analisar muitos exemplos e demonstrar a
adequação dessa distinção para descrever as naturezas dos artefatos, mas
oferecerei alguns. Um livro, por exemplo, seria considerado como tendo uma
função fundante histórica e uma função guia linguística. A poesia impressa
em um livro, por outro lado, teria uma fundação histórica, mas uma função
guia estética. Da mesma forma seria com uma pintura, uma escultura, ou uma
peça de música. Um galpão de armazenamento, com suas plataformas de
carga e amplas áreas de armazenagem, demonstra um tipo específico de
propósito que conduziu sua construção, enquanto os balcões dos caixas e o
cofre de segurança de um banco apresentam outro tipo de especificidade.
Mas embora esses sejam tipos distintos de artefatos, cada um dos quais
refletindo uma lei típica distinta, ambos exibem um propósito
economicamente qualificado, de modo que a função guia de ambos os
edifícios seja seu aspecto econômico. Em contraste, um edifício de uma
igreja, sinagoga, ou mesquita, apresenta uma estruturação que reflete sua
função guia fiduciária da fé. Esses são alguns exemplos de como as naturezas
mais complexas dos artefatos podem ser descritas por meio de uma
combinação de nosso conceito expandido da função qualificadora de uma
coisa e do conceito de sua lei típica. Eles demonstram, eu penso, por que as
naturezas dos artefatos humanos precisam ser descritas não apenas em termos
de suas funções fundantes e guias, mas também pelas formas nas quais suas
funções aspectuais estão relacionadas por leis típicas de modo a determinar o
tipo específico ao qual o artefato pertence.
Anteriormente pontuei que uma das formas que um artefato difere das
coisas naturais, de acordo com nossa teoria, é que suas funções guias são
passivas ao invés de ativas. Mas ainda existe outra diferença que diz respeito
à suas funções guias. É que a função guia de um artefato não necessita ser
superior na lista dos aspectos do que a função fundante que qualifica o
processo de sua formação. Uma ferramenta, por exemplo, não seria apenas
historicamente (tecnicamente) fundada, mas historicamente guiada; seu
propósito é formar outros artefatos. E um conjunto de dentes artificiais,
embora historicamente fundados, teria uma função guia biótica. Da mesma
forma, uma escola é historicamente fundada, mas apresenta uma função guia
lógica. Assim, embora a variabilidade dos artefatos seja de fato ampla, ela
pode ser facilmente explicada em nossa teoria.
Os conceitos introduzidos nesse esboço da teoria da estrutura de leis
serão reforçados e ilustrados no próximo capítulo, em que serão utilizados
para desenvolver uma teoria das comunidades sociais humanas.
Posteriormente, no último capítulo, a teoria da estrutura de leis e a teoria da
sociedade que ela oferece serão aplicadas em mais detalhes a uma teoria
específica de uma comunidade social particular, o Estado.
Reconheço que as comunidades sociais não são geralmente
consideradas como artefatos na forma que consideramos uma pintura ou um
edifício. No entanto, elas merecem ser consideradas como tais uma vez que
elas, também, são produtos do poder formativo humano. Elas são tão reais
quanto os outros artefatos, embora, diferentemente de entidades artificiais
não humanas, funcionem ativamente em todos os aspectos da experiência.
Ademais, elas também têm naturezas específicas analisáveis como funções
fundantes e guias, e apresentam estruturas específicas possibilitadas por leis
típicas. Nossa teoria irá, portanto, proceder com análise das comunidades
sociais como artefatos, o que significa que buscaremos estabelecer suas
naturezas descobrindo suas funções fundante e guia e as relações entre essas
funções conforme determinadas por suas leis típicas.
O procedimento dessa análise será, primeiro, observar como nossa
teoria da inseparabilidade mútua, porém irredutível, dos aspectos nos oferece
uma visão panorâmica da sociedade humana como um todo. Isso nos dará um
princípio social para determinar de uma forma geral os papeis e relações
apropriados os vários tipos que as comunidades deveriam ter uma em relação
a outra quando em sociedade. Em seguida, no capítulo 13 analisaremos a
natureza interna específica do Estado de acordo com suas leis típicas. Isto nos
permitirá enxergar pontos importantes sobre o papel apropriado do Estado na
sociedade, o que por sua vez possibilitar-nos-á formar conceitos mais
precisos sobre seus deveres e limites conforme determinados não pelas
demandas de outras instituições, mas pela natureza mesma do próprio Estado.
Uma vez que os capítulos sobre sociedade e Estado precisarão fazer
livre uso de nossa nova terminologia, e uma vez que essa terminologia é, sem
sombra de dúvidas, estranha a grande parte dos leitores, penso que seja
melhor terminar este capítulo inserindo um pequeno glossário. Eis, portanto,
um resumo dos conceitos introduzidos até o momento pela teoria da estrutura
de leis:

1. Aspecto — um tipo básico de propriedades e leis.


2. Função ativa — a maneira que uma coisa é governada pelas leis de
um aspecto, de modo que possua propriedades nesse aspecto,
independentemente se estas são atualizadas por outras coisas. Em todos
os aspectos, exceto o quantitativo, espacial e cinemático, as funções
ativas de uma coisa são apresentadas pelos efeitos que produz em
outras coisas.
3. Função passiva — a maneira que uma coisa é governada por leis de
um aspecto, de modo que ela possui apenas propriedades potenciais
nesse aspecto, até que estas sejam atualizadas pelo fato de uma coisa ter
uma função ativa naquele aspecto.
4. Função qualificadora — o aspecto de uma coisa ou evento cujas leis
governam sua organização interna e/ou desenvolvimento tomado como
um todo. Em uma coisa natural esse também é o aspecto mais elevado
no qual funciona ativamente.
5. Função fundante — o aspecto cujas leis ou qualificam o material
natural dos (da maior parte dos) artefatos animais ou governam o
processo de mudança mediante o qual todos os artefatos humanos (e
alguns artefatos animais) são produzidos.
6. Função guia — o aspecto cujas leis governam o plano ou propósito
que guiou o processo pelo qual um artefato foi produzido.

Dever-se-ia acrescentar que o conceito de propósito implicado no conceito de


uma função guia não significa qualquer capricho subjetivo sobre o uso de um
artefato, tão logo este é formado. Todos sabemos que uma xícara de chá pode
ser utilizada como um cinzeiro, ou uma cadeira como um suporte para
alcançar algo. Antes, o que se quer dizer por sua função guia é a qualificação
aspectual do plano pelo qual o artefato foi formado, que é incorporado em
sua estrutura e reflete sua lei típica. O tipo de propósito que se tem em vista
aqui é, portanto, o “propósito estrutural” do artefato, que é independente dos
propósitos subjetivos de seus usuários, e não podem ser alterados sem alterar
o próprio artefato.
7. Lei típica — leis que variam pelo espectro dos aspectos,
determinando quais propriedades de diferentes aspectos podem
combinar-se em individualidades, determinando por conseguinte os
tipos de individualidades possíveis.
CAPÍTULO 11. UMA TEORIA NÃO
REDUCIONISTA DA SOCIEDADE

11.1 Introdução
Este capítulo começará com a definição de alguns termos básicos de modo a
poderem ser utilizados para desenvolver uma interpretação da estrutura de
leis da teoria social. Antes de fazê-lo, no entanto, é necessário pontuar que a
abordagem adotada para realizar essa tarefa será iniciar reconhecendo um
aspecto especificamente social da experiência, o que não é a maneira usual
pela qual as teorias sociais são construídas. Grande parte das teorias
simplesmente se confinam a organizações ou problemas específicos, em vez
de definir tai questões no contexto mais amplo do aspecto distintivamente
social da experiência humana. Esse aspecto é aquele que inclui propriedades
como prestígio, status, respeito e autoridade, e normas como aquelas
relacionadas com respeito e honra para com os mais velhos. Em relação a
isso, por favor tenha em mente o ponto feito acima de que cada aspecto é
conhecido por experiência direta, intuitiva, em vez de por definição ou
inferência. Assim como os demais aspectos, nenhuma definição do lado
distintamente social da experiência humana poderia revelar o que ele
significa a alguém que já não esteja consciente dele.
É a partir do ângulo desse sentido “social” mais-restrito-do-que-o-
comum que os relacionamentos teorizados neste capítulo serão analisados.
Assim, nossa abordagem começa com as maneiras que as normas desse
aspecto, em interação com aquelas dos outros aspectos, tornam possível os
modos específicos em que tais interações são organizadas. Em particular
focalizarei na relação de autoridade, e abordarei as várias formas que os
humanos organizam sua vida social examinando os tipos específicos de
autoridade que são embutidos nessas organizações. Dessa forma, enquanto
“social” poderia simplesmente significar algo feito por duas ou mais pessoas,
concentrarei aqui na relação social de autoridade, à medida que essa emerge
na vida social organizada. E aplicarei a teoria da estrutura de leis a essa
relação, para ver quais insights ela poderá oferecer para determinar a forma
correta de interpretação dos vários tipos de autoridade na forma em que eles
são exercidos nas organizações sociais.
O primeiro termo que necessita de esclarecimento é, obviamente,
“sociedade”. Da mesma em que o utilizo, esse termo referir-se-á a pessoas
individuais e/ou grupos de pessoas que estão em qualquer uma das três
relações sociais básicas: indivíduo para grupo, grupo para grupo, e indivíduo
para indivíduo. Ao estar em conformidade com as observações dos últimos
parágrafos, o termo “grupo” é utilizado aqui para referir-se a algo durável que
reúne seus membros em uma unidade reconhecível ao invés de uma coleção
aleatória de pessoas como aquelas que porventura estão esperando um
ônibus. Mas uma vez que o termo “grupo” é tão vago, de agora em diante
utilizarei o termo “comunidade” para uma unidade social durável.[286]
Também mantendo a linha dos últimos parágrafos, restringirei a discussão às
primeiras duas dessas três relações, uma vez que são as que dizem respeito às
organizações sociais. Fazer isso pavimentará o caminho para um
entendimento da estrutura de leis do Estado, que será esboçada no próximo
capítulo.
Ver-se-á que as comunidades sociais enquadram-se em duas maiores
divisões, que denominarei “instituições” e “organizações”. Apenas o tipo
mais forte de comunidade social será denominada uma instituição, de modo
que o uso desse termo se referirá apenas a comunidades apresentando todas
as três características seguintes: (1) seus membros são unidos em um grau
intenso; (2) a membresia carrega a intenção de durar por toda a vida; (3) a
membresia é (pelo menos em parte) independente da vontade dos membros.
As comunidades com essas características são o casamento, a família, o
Estado e comunidades religiosas como templo, mesquita, ou igreja.[287]
A membresia em instituições pode ser independente da vontade de um
membro em dois sentidos. Um primeiro é que uma pessoa geralmente nasce
numa família, num estado, e em alguma filiação religiosa. O outro é que a
mudança de membresia em tais instituições não é feita facilmente, ou
simplesmente por uma decisão unilateral. Para se modificar a cidadania de
um indivíduo ou sua membresia em uma instituição religiosa exige-se uma
aceitação por parte da nova instituição envolvida, e legalmente o término de
um casamento envolve que o divórcio seja reconhecido pelo Estado. E não
importa como os laços de afeição familiar possam romper-se, uma pessoa é
um membro biológico de uma família enquanto existir. Em contraposição a
isso, “organizações” sociais são aquelas nas quais os vínculos do membro são
menos intensos e menos permanentes. Organizações também decidem quem
pode ou não integrá-las, mas a membresia não geralmente carrega a intenção
de que seja por toda a vida, e seus membros são livres para irem e virem mais
facilmente. Exemplos de organizações são empresas, hospitais, sindicatos,
partidos políticos e escolas.
No último capítulo vimos por que nossa teoria considera que os
artefatos apresentam naturezas que são centralmente caracterizadas por dois
aspectos: sua “função fundante” é o aspecto que qualifica o tipo de processo
pelo qual elas são formadas, e sua “função guia” é o aspecto que qualifica o
tipo de plano que conduz sua formação. Em relação à primeira, eu disse que o
processo pelo qual grande parte dos artefatos vêm a ser formados é
qualificado historicamente. (Lembre-se da forma que utilizamos o termo
“histórico” era equivalente a “cultural” e referia-se ao livre exercício do
poder técnico que os humanos têm para formar novas coisas a partir dos
materiais naturais.) Notamos, então, que as comunidades sociais também
estão entre as coisas novas que os humanos formam, e que grande parte
dessas também apresentam uma função fundante histórico/cultural.
Mas existem diferenças importantes entre os artefatos que são coisas e
os artefatos que são comunidades sociais. Por exemplo, as funções guias dos
primeiros são qualificadas por aspectos nos quais eles funcionam apenas
passivamente. Uma cadeira, ou uma casa, apresentam uma função guia social,
mas elas não exercem relacionamentos sociais de forma ativa, mas apenas
apresentam uma função potencial social passiva naquele aspecto. Assim, sua
função guia precisa ser atualizada em relação à vida social humana.
Comunidades sociais, em contrapartida, funcionam ativamente em todos os
aspectos assim como apresentam uma função guia em algum aspecto. Um
negócio, por exemplo, realizada atividades econômicas, assim como uma
banda ou uma companhia de dança exerce ações esteticamente qualificadas,
ou uma igreja conduz ativamente ritos que têm uma função guia fiduciária.
Portanto, quando disse anteriormente que apenas humanos funcionam
ativamente em todos os aspectos, isso deveria ser agora entendido como
incluindo comunidades compostas de humanos, e não apenas humanos
individuais.
Apesar de ser como humanos individuais por apresentar funções ativas
em todos os aspectos, as comunidades sociais diferem, no entanto, de
humanos individuais ao apresentarem naturezas que podem ser explicadas
pela relação de suas funções fundante e guia. Já vimos por que deve ser
mantido que a natureza humana não apresenta função guia, e argumentos
complementares para esse ponto serão oferecidos em breve. Por ora, será
suficiente relembramo-nos a razão que já assinalamos, a saber, que embora o
coração humano existe e funciona sob os limites de leis aspectuais, ele não é
determinado por estas leis, mas possui liberdade genuína. Essa liberdade, eu
disse, é possível porque há no coração mais do que suas funções aspectuais, e
esse “mais” reflete a realidade de ter sido criado à imagem de Deus. O que
qualifica a natureza humana não é, portanto, nenhum aspecto da criação, nem
todos eles tomados conjuntamente. A natureza humana é religiosa em seu
cerne: os humanos foram criados para comunhão com Deus, para ter uma
relação com Deus como a característica mais central de sua natureza, e para
ter sua destinação última com Deus em absoluto para além do presente
cosmos. Dessa forma, embora as comunidades sociais humanas sejam como
humanos individuais ao apresentar funções ativas em todos os aspectos, elas,
no entanto, não apresentam naturezas caracterizadas pelas três relações
religiosas acima mencionadas. Pelo contrário, elas são como outros artefatos
por terem uma natureza que pode ser compreendida pela relação de suas
funções fundantes à função guia, em conjunção com sua lei típica. Para
comunidades sociais, então, continuaremos a falar de sua função fundante
como o aspecto que qualifica o processo de sua formação, e sua função guia
como o aspecto que qualifica o tipo de plano que conduz sua formação.
Nessa altura você pode estar se perguntando por que eu disse que “a
maior parte” das comunidades sociais apresentam uma função fundante
histórica; afinal de contas, o que mais poderia possivelmente qualificar o
processo de sua formação? A resposta é que o “a maior parte” buscou deixar
espaço para duas instituições sociais que não são simplesmente livres
criações da formação e do planejamento humanos, mas estão enraizadas no
lado biótico, sexual, da natureza humana. São elas o casamento e a família.
As formas sociais específicas para estabelecer casamentos e famílias estão,
obviamente, sob o controle humano e variam culturalmente. Mas é a
distinção subjacente entre os sexos e a atração entre eles que qualificam o
processo pelo qual casamentos e famílias são formadas. E isso não é, em si
mesmo, um produto do planejamento ou invenção humanos. Talvez a melhor
forma de enxergar a centralidade do aspecto biótico dessas duas comunidades
é notar o fato de que eles são os únicos a cessarem de existir quando seus
membros originais morrem. Um casamento cessa de existir quando os
cônjuges morrem, ao passo que uma família nuclear deixa de existir quando
os pais, ou os filhos morrem (relações entre irmãos obviamente permanecem
após a morte dos pais, mas a família não). Isso é suficiente para distinguir
essas comunidades de outras como igrejas, escolas, negócios, organizações
de caridade, Estados, etc., que podem continuar a existir mesmo quando
todos os seus membros originais os deixam ou morrem. Nossa teoria irá,
portanto, chamar o casamento e a família de “instituições naturais”, a fim de
reconhecer sua função biótica fundante.[288]
Ao mesmo tempo, no entanto, qualquer visão do casamento ou da
família que os conceba como restritivamente biológico é reducionista.
Embora a ordem biológica da criação forneça o fundamento para sua
formação, sua função guia e propósito estrutural é governado pela ética
normativa do amor. Aqui nossa teoria não apenas apela a seus três princípios
orientadores, mas os combina com o ensinamento das Escrituras acerca do
casamento, em que é tratado como sendo essencialmente uma comunidade de
amor entre o esposo e a esposa (Gn 1.28, 2.18, 24; Mc 10.5-9; Ef 5.25-33).
De forma complementar, o livro de Gênesis evidencia de forma profunda
essa visão ao considerar a relação sexual de Adão e Eva como necessária ao
seu vínculo de amor e boa para ambos, antes mesmos de sua queda no
pecado. E finalmente, nossa linguagem ordinária também reflete isso quando
falamos que os humanos não simplesmente se “acasalam”, mas “fazem
amor”. Assim, qualquer que insista, como Aristóteles o fez, que o propósito
único do sexo é perpetuar a espécie, comete um sério erro.
Sem dúvida, o casamento e a família cumprem o propósito de
perpetuação da raça humana. O fato, no entanto, não altera o que
denominamos o “propósito estrutural” de qualquer artefato, o qual é
governado por sua função guia. Mantenha em mente, por favor, aquilo que já
foi pontuado sobre o propósito estrutural de um artefato, quando já foi
distinguido de outros propósitos subjetivos que as pessoas possam ter em
relação a eles. Pois embora seja verdade que os parceiros em um casamento
possam ser motivados por escalada social ou ganho financeiro, o propósito
estrutural da instituição do casamento permanece não afetado. Ele é garantido
por sua função guia e é evidenciado apenas por seu espírito interno: a
perpetuação e aperfeiçoamento do tipo de amor que forma o mais estreito de
todos os vínculos humanos.[289]
Em adição às suas funções fundante e guia, todas as comunidades são
estruturadas por uma lei típica e cada tipo exibe uma série de variedades.
Existem variedades de estados, negócios e comunidades artísticas, por
exemplo, e também existem variedades de famílias. Geralmente as variações
familiares estão associadas ao modo que o sustento da família é provido.
Observe, por exemplo, a variação nas relações entre os membros de uma
família do campo, uma família proletária, uma família real, e uma família que
conduz seu próprio negócio. Também reconhecemos que assim como podem
existir coisas naturais deformadas, podem haver, do mesmo modo,
comunidades sociais deformadas. Dois exemplos são um Estado com uma
ditadura absoluta e uma família poliândrica. Mas nem as variedades, nem as
deformidades em comunidades sociais atuais, afetam os princípios estruturais
que as tornam possíveis, uma vez que esses princípios residem no lado lei da
criação. Assim, enquanto comunidades concretas podem ser deformadas, as
funções qualificadoras e as leis típicas que as estruturam são imunes à
alteração.
Esse tipo de abordagem à teoria social não é bem recebida em nossos
dias. Muitos teóricos desejam considerar todos os relacionamentos sociais
como invenções completamente humanas e, portanto, infinitamente variáveis,
em vez de considerarem-nas como a atualização de potencialidades que são
possibilitadas por leis típicas já vigentes no cosmos. Mas chamar a atenção
para as leis aspectuais e interaspectuais da criação é uma das principais
vantagens interpretativas que nossa teoria pode oferecer. Isso nos permite
focar sobre os princípios fixos subjacentes aos diferentes tipos de
comunidades sociais humanas, de modo que não somos desviados por cada
variação, ou deformação, que eles possam apresentar. Essa é uma vantagem
significativa permitida pelo entendimento desses tipos com base em sua
qualificação aspectual (sua função fundante somada à sua função guia), e sua
lei típica específica. A descoberta desta última se dá pela análise dos modos
mais básicos pelos quais os membros de uma comunidade devem se
relacionar em todos os aspectos para que aquele tipo de comunidade exista. É
pela formulação de um enunciado geral sobre essas relações que podemos
nos aproximar da lei típica que as torna possíveis. Mas sem uma ideia da
estrutura de leis da criação para orientar uma teoria das comunidades sociais,
como alguém poderia chegar até a natureza aspectual de cada tipo? Como
poderia alguém sequer dizer quais formas sociais são normais e quais são
aberrações? Como Dooyeweerd colocou:
Se considerarmos qualquer bordado pela parte de trás, não descobrimos
qualquer padrão no entrecruzamento confuso dos entrelaçamentos. De
semelhante modo, não podemos descobrir os padrões estruturais dos
diferentes tipos de relacionamentos sociais se prestarmos atenção apenas
às... [formas que encontramos na existência e nos modos], nos quais
estão entrelaçados uns com os outros. (New Critique, vol. III,p. 176)

Mas, pode-se objetar, isso significa que não podemos fazer sociologia sem
uma teoria filosófica? Se sim, seria a ciência da sociologia então reduzida à
filosofia social? E, se não, qual é a diferença entre elas?
Já vimos as razões pelas quais nenhuma teoria devotada a um aspecto
particular da experiência pode evitar pressuposições filosóficas. Todas
igualmente irão fazer suposições sobre a natureza da realidade e do
conhecimento, seja quando as expressam claramente, seja quando as deixam
desarticuladas. Assim, pontuar como nossa teoria da realidade regula a
sociologia não é fazer nada senão tornar explícito como a visão da natureza
do cosmos esboçada pela teoria da estrutura de leis pode orientar a teoria
social. Assumir essa abordagem, portanto, não é uma demanda distinta para
que todos os teóricos sociais façam primeiramente filosofia do que o seria em
relação a qualquer outra ciência. Enquanto a filosofia lida explicitamente com
a questão sobre como todos os aspectos relacionam-se uns com os outros, os
cientistas (incluindo os sociólogos) podem pressupor tal ideia sem torná-la
explícita. Mas independentemente de torná-la explícita ou não, em todo caso,
as teorias oferecidas variarão em relação quanto ao modo em que entendem a
conectividade interaspectual. Deixar a teoria da estrutura de leis meramente
implícita neste capítulo, no entanto, anularia seu propósito mesmo, já que
minha intenção aqui não é apenas demonstrar as diferenças que a teoria faz
para a sociologia, mas elaborar a teoria da estrutura de leis no trajeto pelo
qual percorremos.
Ao aplicar a teoria da estrutura de leis às organizações sociais não
estamos, todavia, restringindo-nos a empregar conceitos de funções
qualificadoras e leis típicas — por mais poderosas que sejam. Também temos
à nossa disposição normas aspectuais como os padrões para aquilo que é
normal ou anormal em relação às diversas comunidades. Este é um assunto
altamente controverso. Muitas teorias sociais reivindicam que nenhuma
descrição da sociedade pode ser científica a menos que ela delete qualquer
referência a normas. Assim, voltamo-nos agora à questão sobre se a
sociologia pode desenvolver uma teoria sobre as naturezas e interações entre
comunidades simplesmente descrevendo-as como elas são (os fatos sociais),
sem qualquer referência a como elas deveriam ser (normas sociais). Para
tratar do tema, a primeira questão em relação à qual devemos estar claros é
acerca do significado do termo “norma”.

11.2 Fato versus Norma


No último capítulo notamos que existe uma sequência entre os aspectos no
tocante ao modo que as coisas apresentam funções ativas neles. Funções
ativas nos aspectos inferiores na lista são pré-condições para que as coisas
tenham funções ativas nos aspectos superiores na lista. Outra diferença que
podemos notar entre os aspectos que estão abaixo na lista e aqueles que estão
mais acima é que as leis dos aspectos inferiores são rígidas; elas são leis que
não podemos desobedecer ainda que tentemos. Não há como violar
concretamente as ordens de leis encontradas nos aspectos quantitativo,
espacial, cinemático, ou físico. Mas do aspecto biológico para cima na lista, o
caráter dessa ordem se modifica; quanto mais prosseguirmos para cima na
lista, mais a ordem de cada aspecto tem a possibilidade de ser desobedecida.
Em vez de ser apenas uma ordem que determina rigidamente o que é
necessário, possível e impossível, a ordem nesses aspectos acima do físico é
constituída cada vez mais de normas que são guias para as formas nas quais
plantas, animais e humanos necessitam ou deveriam agir de modo a
maximizar os propósitos qualificados por esses aspectos.
Por exemplo, as leis do aspecto biótico determinam as relações entre
certas propriedades biológicas. Mas existem também normas bióticas para a
saúde que relacionam outras propriedades biológicas. Uma coisa viva pode
violar tal norma e ainda sobreviver, mas ela será mais saudável se se
conforma à norma. Ou, ainda, pense nas leis da lógica. Existe um sentido no
qual as leis lógicas são invioláveis. Tudo na criação existe em conformidade
ao axioma lógico de que nada em relação a este pode ser verdadeiro e falso
no mesmo sentido ao mesmo tempo. Mas podemos desobedecer a esse
axioma em nosso pensamento cometendo falácias lógicas do raciocínio, ou
mantendo crenças incompatíveis. Assim, enquanto a ordem lógica para a
criação tem o caráter de lei inviolável para tudo o mais além do pensamento,
ela é normativa para o nosso pensamento. Podemos desobedecê-la, mas não
deveríamos fazê-lo se quisermos qualquer certeza lógica de que fizemos uma
inferência válida, ou de que nossas crenças são consistentes. Para os aspectos
ainda mais elevados na lista, nossa habilidade de desobedecer a suas ordens
se estende para além de nosso pensamento, até ao nosso comportamento.
Podemos desobedecer a normas econômicas, estéticas, jurídicas, éticas,
dentre outras, tanto em ações quanto como em pensamento ou crença. Mas os
afetos que agem assim sempre prejudicarão os propósitos de aperfeiçoamento
da saúde, de criação estética, de alcance da justiça, da prática do bem, etc., a
menos que sejam alterados por forças interventoras. Nossa capacidade de
desobedecer a normas, no entanto, não diminui sua realidade como partes da
estrutura de leis cósmicas. De fato, isso geralmente é consequência da
desobediência de normas que revelam mais vividamente sua realidade e
caráter vinculador. Resumindo: é porque essas partes da estrutura de leis têm
o caráter distintivo de serem capazes de ser desobedecidas pelos humanos, e
porque elas oferecem os padrões para o que deveria ser, que elas são
chamadas “normas”.
Tendo designado o que é uma norma, quero alertar contra alguns mal
entendidos comuns sobre elas. Primeiro, é importante não confundir o que é
médio ou comum com o que é normal no sentido de se conformar a uma
norma aspectual; “normal” no sentido utilizado aqui significa aquilo que está
em conformidade a uma norma aspectual, não importa o quanto isso possa ser
desobedecido na prática. Em segundo lugar, a governança dessas normas
dentro de seu aspecto não depende de nosso entendimento consciente de
enunciados precisos sobre elas, ou sobre nossa tentativa deliberada de
conformarmo-nos a elas. As pessoas são geralmente governadas em seu
pensamento e comportamento por normas que elas não articularam
conscientemente. Isso é demonstrado pelo fato de que pessoas reconhecem
que certas atividades se conformam a normas, ao passo que outras atividades
não o fazem, mesmo que eles não possam dizer exatamente o que seriam tais
normas. O exemplo mais óbvio é a forma pela qual as pessoas que nunca
formularam a lei da não contradição ainda tentam evitar contradizer a si
mesmas. E, embora não possamos ser capazes de enunciar muitas normas de
arte, ou fazê-lo com precisão, ainda assim fazemos julgamentos como: “Essa
obra de arte é melhor do que aquela”. Tenha em mente, também, que até
“recentemente” ninguém havia formulado normas para a psicologia, ou
economia, de modo que o fato de que normas ainda não foram formuladas
para um aspecto em particular não demonstra que isso nunca possa ser feito.
De semelhante modo, na linguística reconhecemos que uma sequência
particular de palavras é algo sem sentido em vez de uma sentença, ou que
uma forma de afirmar algo é mais clara que outra, possamos ou não formular
regras linguísticas normativas sobre clareza. Esses exemplos demonstram
que sempre pressupomos normas para esses aspectos, mesmo que elas
permaneçam vagas, não formuladas, ou mesmo subconscientes.
Por fim, uma norma não é uma perfeição absoluta como o era a ideia
grega pagã de uma Forma. Não se deveria pensar nele como um modelo
perfeito e imutável para a linguagem, os negócios, a justiça, a moralidade,
dentre outros. Se assim fosse, então tudo o mais teria de copiá-la exatamente
a fim de conformar-se a ela, e todas as coisas que se conformassem a ela
seriam exatamente as mesmas. Antes, vemos que uma norma é a parte da
ordem de um aspecto que serve como uma regra para guardar os valores
qualificados por aquele aspecto. Por essa razão muitas ações, pensamentos e
artefatos podem todos se conformar igualmente à norma de um aspecto e,
contudo, ser ao mesmo tempo bastante diferentes uns dos outros. Por
exemplo, performances de uma sinfonia podem diferir e, ainda assim, serem
igualmente excelentes do ponto de vista estético, diferentes enunciados
podem ser igualmente compassivos em termos éticos, e distintos julgamentos
e ações serem igualmente justos.[290]
Tudo o que foi dito sobre normas foi preparatório para abordar uma
série de problemas para a sociologia que se centram em torno delas,
especialmente em relação a se elas são subjetivas ou objetivas, e se elas
podem, ou deveriam, ser suprimidas na teoria social. A visão subjetivista é
que não existem normas na realidade, mas meramente os sentimentos
subjetivos e vieses que os indivíduos e as sociedades colocam como guias
(arbitrários) para o comportamento. Assim, subjetivistas veem a inclusão de
normas em qualquer teoria social como não científico. O principal argumento
a favor dessa posição é o de que existem sérias discordâncias sobre
exatamente o que seriam as normas, e nenhuma forma clara de resolver essas
discordâncias. Disto o subjetivista infere a conclusão de que as normas não
podem ser objetivamente reais, de modo que a sociologia deva se apegar
apenas às descrições dos fatos sociais (o que “é”), e excluir qualquer
avaliação normativa (o que “deveria ser”). Entre aqueles que assumem essa
abordagem, no entanto, também existe discordância sobre o que exatamente
seriam os “fatos brutos”, uma vez que todos os juízos normativos estão
supostamente excluídos.
Na teoria objetivista clássica de Aristóteles, por outro lado, normas
teriam de fato uma base na realidade. Essa base é considerada como sendo a
mesma base para as leis dos aspectos “naturais”: a afirmação tanto de leis
quanto de normas resulta de nossas formulações sobre a natureza das coisas
garantidas por sua Forma. Embora nem todas as visões objetivistas de normas
estejam comprometidas com a teoria das Formas de Aristóteles, todos estão
comprometidos em dizer que existe um sentido importante no qual as normas
podem ser diretamente “lidas” a partir da natureza. Eles então oferecem
argumentos para defender sua leitura particular do que seriam essas normas, e
para demonstrar que não é realmente possível excluir todos os juízos
normativos da teoria social.
Como no caso de nossa teoria da realidade, a ideia de uma estrutura
de leis cósmica oferece-nos uma direção distintiva de pensamento que
engendra um curso distinto daquele tanto do subjetivismo quanto do
objetivismo. Uma vez que mantemos que todas as coisas na criação
funcionam sob toda as leis aspectuais igualmente, incluindo os aspectos
normativos, rejeitamos completamente a posição de que as normas da lógica,
a linguística, a arte, a justiça, a ética, etc., não são nada mais do que vieses
subjetivos. Embora as pessoas discordem sobre quais seriam os enunciados
exatos das normas de alguns aspectos, não há como evitar o reconhecimento
geral de que os atos sociais e as comunidades sociais sejam normativamente
governadas em sua própria natureza. Por exemplo, o emprego de normas de
clareza na linguagem ou de oferta e demanda na economia é inevitável nos
discursos e nos negócios; assim também é a norma ética do amor (amar teu
próximo como a ti mesmo) para fazer o que é moralmente correto, ou a
norma da justiça (de que pessoas deveriam receber o que merecem) para que
se seja justo. Essas normas são princípios que governam as funções guias que
tornam esses tipos de atividades humanas e comunidades possíveis, mesmo
quando pessoas engajadas nessas atividades ou comunidades as negam e/ou
desobedecem.
Esse fato não pode deixar de ser implicitamente reconhecido, mesmo
por uma teoria que explicitamente deseje negá-lo. O propósito de uma
organização de negócio, por exemplo, não pode deixar de ser conduzida por
normas econômicas, mesmo que a intenção subjetiva de seu proprietário não
seja a prosperidade econômica, mas a fama ou exceder um rival. De forma
semelhante, o propósito da instituição do casamento ainda é conduzida pelas
normas do amor, ainda que um dos parceiros tenha se casado apenas para fins
de ganho econômico. É por essa razão que quando não existe amor entre
marido e esposa não existe um casamento real, e dizemos que eles têm um
casamento apenas “nominal”. De igual modo, os membros de uma família
podem de fato odiar um ao outro em vez de se conformarem à norma ética do
amor. Mas nesse caso, todos reconhecem que essa é uma família anormal.
Ou, ainda, o propósito embutido na função guia de uma sinagoga ou igreja é
governada por normas fiduciárias da fé, mesmo que seus membros participem
dela apenas para prestígio social. É por isso que afirmamos que existe um
propósito governado pelas normas da função guia dos atos e artefatos
humanos que está inevitavelmente embutido em sua natureza. Se esses
propósitos estruturais governados por normas fossem verdadeiramente
eliminados de nossa vista, deixaríamos de reconhecer as ações ou
comunidades das quais eles teriam sido apagados como distintivamente
humanas, e a maior parte do que elas são seria simplesmente perdido ao
nosso entendimento. O que, por exemplo, seria deixado de nosso
entendimento de um negócio se toda referência às normas econômicas
fossem eliminadas? O que restaria de nosso entendimento do casamento, ou
família, se toda referência ao amor fosse extirpada? O que restaria de nosso
entendimento de um templo, uma sinagoga, igreja ou mesquita, se
ignorássemos as normas e propósitos da fé? Os próprios conceitos dessas
comunidades seriam despojados de suas características mais essenciais!
Uma consequência interessante do conceito de propósitos estruturais
embutidos nas funções guias de comunidades é que isso permite que nossa
teoria compreenda as atividades e comunidades criminosas de uma forma que
as teorias não o fazem. Uma corporação criminosa, por exemplo, ainda é
estruturada por normas econômicas que conduzem seu propósito econômico,
mesmo que a condução de seus negócios desobedeça deliberadamente as
normas da justiça refletidas nos estatutos legais. De fato, nenhuma
organização pode sequer ser reconhecida como criminosa a menos que se
invoque a norma de justiça para fazer esse juízo. De forma semelhante, se
tentamos explicar a taxa de crimes em termos de moradia precária, pobreza, e
outros fatores semelhantes, essas condições podem ser reconhecidas apenas
pelo que são mediante a forma que violam as normas sociais e econômicas.
Chamar as moradias de “precárias”, ou uma condição econômica de
“pobreza” é realizar um juízo normativo.
O mesmo é verdadeiro para outras instituições sociais e organizações.
Um Estado pode agir ilegalmente, mas ele ainda terá um propósito estrutural
legal conduzido pela norma da justiça. É por essa razão que os crimes de um
governo ou de oficiais do governo nos parecem ser mais repreensíveis: eles
violam o propósito mesmo que é qualificado pela função guia daquela
instituição. O mesmo também se dá em relação a um partido político cujo
propósito estrutural é gerar confiança nas políticas e nas pessoas que deseja
que dirijam o Estado. Por essa razão, dizemos que ele é qualificado pela
função guia fiduciária. No entanto, um partido político pode violar a
confiança que as pessoas colocam nele, e até mesmo conduzir o Estado a
violar seu propósito estrutural de justiça (pense no partido nazista). No
entanto, as normas não se vão e não podem ser ignoradas. É uma ideia
comum a de que mesmo organizações criminosas têm suas próprias regras
éticas internas, de maneira que há “honra entre os ladrões”. E mesmo a
organização mais violentamente anarquista se romperia facilmente, caso se
tornasse desprovida de qualquer observância de normas de justiça ou
confiança entre seus membros.
Estamos, portanto, em concordância com a parte da posição
objetivista que mantém que as normas são reais e não podem ser ignoradas
mesmo que tentemos. Em outros modos, todavia, devemos discordar com a
posição objetivista clássica. Por exemplo, não podemos concordar que as
normas são apenas extrapolações das naturezas das coisas, como se estas
naturezas fizessem as normas possíveis. Nossa teoria defende, diversamente,
que existe um lado lei distinto na criação, cujas normas são válidas quer
existam ou não coisas de um tipo particular. Isso pareceu a alguns críticos
como sendo um ponto de menor importância, de forma que eles tomam nossa
posição como outra versão do objetivismo. Mas afirmar que leis e coisas
existem em uma correlação mútua não é um ponto de menor importância.
Pois se as normas são apenas nossos resumos sobre a natureza inviolável das
coisas, seria impossível que qualquer coisa desobedecesse a essas normas
sem violar sua própria natureza, tornando-se, assim, outra coisa.[291] À vista
disso, nossa teoria, diferentemente do objetivismo, pode explicar o fato de
que atividades individuais e comunidades podem reter sua identidade mesmo
enquanto desobedecem a normas.
Esses pontos reforçam nossa posição de que as normas devem ser
consideradas como um lado distinto da realidade, não idêntico às coisas, atos
e comunidades que elas governam. E é por essa razão que não chamamos de
propósito “objetivo” o propósito de um ato ou de uma comunidade, na forma
como são normatizados por sua função guia. Os propósitos normativos
incluídos nas funções guias dos atos e artefatos humanos não residem nos
objetos de nossa experiência mais do que residem em nós como sujeitos que
experimentam. Por isso denominei suas funções guias como propósitos
“estruturais”, referindo à estrutura de leis cósmica cujas leis típicas
determinam a ordem estrutural de cada indivíduo criado.
Também discordamos com a posição objetivista tradicional na qual a
razão humana é neutra em sua interpretação das normas a partir das naturezas
das coisas. Este ponto é o que, nas discordâncias entre subjetivistas e
objetivistas, leva os primeiros a rejeitar a opção destes últimos. Pois se as
normas realmente são “lidas” a partir das naturezas das coisas que
experimentamos pela razão pura e sem vieses (perguntam eles), então por que
todas as pessoas não as veem da mesma forma? Em contraposição a isso, no
entanto, negamos que as normas e os propósitos estruturais normativos sejam
interpretados de um modo neutro. Em vez disso, argumentamos que embora
todas as pessoas tenham um reconhecimento intuitivo das normas em sua
experiência pré-teórica, essas normas serão sempre interpretadas (e mal
interpretadas) de forma bastante diferente, dependendo da crença sobre a
divindade que regula seu entendimento. Uma visão pagã da divindade exige
uma visão reducionista da realidade que superestima quaisquer normas
estreitamente associadas com o aspecto ou aspectos que são supostamente
divinos, e, em conformidade, subestima ou nega a realidade daqueles que são
menos compatíveis com essa visão redutora. Portanto, em relação também às
normas, sustentamos que sua interpretação (e, em certa medida, mesmo seu
reconhecimento) é regulada por uma perspectiva filosófica que é, por sua vez,
controlada por uma ou outra crença sobre a divindade. Desse modo, a teoria
da estrutura de leis pode explicar o fato que aflige o subjetivismo, a saber, o
reconhecimento amplamente difundido de certas normas através de culturas
no decorrer de milênios (pense nas muitas verdades éticas e jurídicas que têm
sido reconhecidas por cada cultura altamente desenvolvida). E, ao mesmo
tempo, ela também pode explicar as fortes discordâncias sobre a interpretação
das normas que é tão problemática para o objetivismo.
Uma vez que é o subjetivismo que está em voga no momento atual,
apresentarei um ponto crítico adicional em forma de uma questão. Por que
deveríamos pensar que as discordâncias em relação às normas demonstram
que elas são apenas vieses subjetivos? Por que essa conclusão é inferida para
as normas e não para, digamos, as cores? Duas pessoas podem — e
geralmente o fazem — olhar para o mesmo objeto sob a mesma luz no
mesmo momento e ainda assim discordarem sobre se ele é mais verde do que
azul, por exemplo. Mas isso prova que as cores são meramente nossos vieses
subjetivos em vez de qualidades sensoriais reais (passivas) das coisas?
Certamente não. Mas, então, por que inferir aquela conclusão a respeito das
normas?
Em suma, o programa de eliminação de normas para lidar com os
fatos puros é, por assim dizer, destrutivo para a teoria social e impossível na
prática. O que “deveria” ser sempre é parte aquilo que “é”. Normas, como as
leis naturais, têm uma existência distinta tanto do sujeito quanto do objeto,
tendo Deus como sua fonte; apenas ele é o legislador para a criação. É por
essa razão que normas podem e continuam a governar a criação mesmo
quando as pessoas exercem sua liberdade para desobedecê-las. E essa
também é a razão de por que qualquer tentativa de reduzir as atividades
humanas e as comunidades aos “fatos brutos” ao eliminar as normas é tentar
algo que anula a si mesmo. Despojá-los de seus propósitos estruturais
governados por normas e ignorar suas funções guias é destruir seu caráter
especificamente humano e social, o que terminará por torná-los
incompreensíveis.

11.3 Individualismo versus Coletivismo


Outro dentre os problemas dominantes da teoria social diz respeito a se
devemos assumir uma visão individualista ou coletivista da sociedade. Na
verdade, cada autor que abordou o tema tendeu a um ou ao outro polo desse
dilema, por tanto tempo, que se tornou uma suposição padrão a
inevitabilidade de uma adesão a um ou de outro lado, ou tentar combiná-los
em maneiras distintas.
Individualistas insistem que a unidade social básica é a pessoa
individual com base no argumento de que indivíduos podem existir sem
comunidades, enquanto comunidades são formadas por, e compostas de,
indivíduos. O individualista Thomas Hobbes, por exemplo, afirmava que a
vida humana era originalmente completamente “solitária”, tendo a formação
de comunidades sociais surgido apenas posteriormente. O motivo para formá-
las, pensava ele, era que uma vida solitária era também “pobre, sórdida,
brutal e curta”. Ele, no entanto, acreditava que comunidades, uma vez
formadas, eram realidades cujas naturezas é importante de se entender.
Outros individualistas, no entanto, vão longe ao ponto de dizer que não
existem realidades tais como as comunidades sociais; tudo o que realmente
existe são indivíduos e os acordos que eles realizam para relacionarem-se uns
com os outros de determinadas maneiras.
Coletivistas, por outro lado, afirmam que alguma forma de
comunidade é a realidade social básica, uma vez que é ela que produz e
sustém os indivíduos. Eles enxergam o indivíduo como literalmente uma
parte da totalidade social mais ampla, totalidade sem a qual a parte não
poderia absolutamente existir. Aristóteles, por exemplo, disse:
Assim, o estado é, por natureza, claramente anterior à família e ao
indivíduo, uma vez que o todo é, por necessidade, anterior às partes... A
prova... é que o indivíduo, quando isolado, não é autossuficiente.
(Politics liv. l, cap. 2)

Aqui, também, existem duas posições para as quais ambas as partes parecem
ter bons argumentos a seu favor. O coletivista questiona como poderiam
haver indivíduos se não houvessem pais e um grupo de família estendida para
cuidar da mãe e dos filhos, enquanto o individualista questiona como poderia
haver qualquer grupo se não houvesse indivíduos para formá-los. Isso soa
como a antiga piada sobre o que veio primeiro, o ovo ou a galinha, e isso
poderia ser engraçado, não fosse o fato de que esse debate tem consequências
muito sérias tanto para a teoria quanto para a prática social. Isso se dá
particularmente associado ao entendimento de justiça em relação às
instituições e organizações da sociedade, como veremos no próximo capítulo.
Antes de abordarmos o dilema individualismo/coletivismo, no entanto,
vamos tratar da questão sobre se as comunidades sociais devem ser sequer
consideradas reais. Mesmo que não falemos usualmente de uma instituição
social ou organização como uma “coisa”, isso não significa que ela não seja
real; também não falamos acerca de uma pessoa como uma “coisa”, mas isso
não significa que pessoas não são reais. E certamente comunidades sociais
são reconhecíveis como unidades distintas, assim como coisas e pessoas o
são. Além disso, o argumento de que não existem instituições sociais reais,
mas apenas indivíduos e suas relações, é autocontraditória. Se se admite que
relacionamentos interindividuais são reais, então como pode se negar que
casamentos, famílias, negócios, igrejas, escolas, sindicatos, partidos políticos,
etc., também sejam reais? Se as relações entre indivíduos são reais, então o
são também as comunidades constituídas por eles. Ademais, a visão de que
elas são algo acima e além dos indivíduos que são seus membros é reforçado
pelo fato de que para todas as comunidades sociais, exceto o casamento, sua
identidade persiste mesmo quando seus membros se modificam. E mais:
vimos que comunidades sociais funcionam em todos os aspectos da
experiência, e têm distintas funções qualificadoras determinando suas
naturezas. Assim, em todos esses sentidos elas são o mesmo que outros
artefatos humanos, e deveriam ser consideradas tão reais quanto estes o são.
Mas colocando de lado essa versão extrema, o coração de qualquer
teoria individualista é a afirmação de que indivíduos são realidades mais
básicas do que comunidades. O sentido de “básico” aqui pretendido é, de
fato, o mesmo que se deu nas teorias reducionistas da realidade. Implica que
indivíduos podem existir sem comunidades, mas que comunidades não
podem existir sem indivíduos. Esta, no entanto, é uma declaração
extremamente implausível. Como Aristóteles pontuou, um indivíduo solitário
morrerá rapidamente. Talvez a forma mais fácil de enxergar a verdade desse
ponto seja pensar no período extenso de tempo em que bebês são totalmente
vulneráveis e exigem constante cuidado e atenção. Não apenas isso, mas
imediatamente após dar à luz uma mulher que amamenta também necessitará
de proteção e provisão de alimento, de modo que sem um arranjo social
ninguém poderia sobreviver. E embora possamos ser tentados a imaginar que
um adulto isolado poderia sobreviver no ambiente selvagem, isso seria
possível apenas porque o conhecimento e as habilidades de tal pessoa já
teriam sido adquiridos ao ser criado na sociedade humana. Finalmente, não
há evidências de que houve um tempo em que as pessoas viviam em
completo isolamento, sem qualquer comunidade social como Hobbes
afirmou, ou sem qualquer autoridade governante conforme declarou outro
famoso individualista, John Locke. Até onde sabemos, pessoas sempre
viveram em famílias, tribos, clãs, ou vilas, e com algum tipo de autoridade
reconhecida, regras e tradições.
Por outro lado, a posição coletivista enxerga cada pessoa como
dependente e portanto literalmente uma parte de alguma totalidade social
todo-inclusiva. Isso, no entanto, está completamente em desacordo com a
natureza das comunidades sociais. Uma comunidade social não é
autossuficiente em relação aos indivíduos, uma vez que ela não pode existir
sem indivíduos, assim como os indivíduos não podem existir sem ela. Desse
modo, nossa primeira objeção ao coletivismo ataca sua premissa mais
fundamental, tal como nosso primeiro ataque ao individualismo atacou sua
declaração mais fundamental. Ambas as teorias são erradas, dizemos, porque
indivíduos e comunidades sociais existem em uma correlação mútua na qual
nenhuma pode existir sem a outra: nenhuma é “básica” em relação à outra,
porque nenhuma foi alguma vez a fonte da outra já que ambas foram criadas
simultaneamente por Deus.
Ademais, a partir do ponto de vista teísta, é repugnante considerar
indivíduos meramente como partes de qualquer comunidade social humana.
Eles não são meramente “engrenagens na máquina” do Estado, ou “células no
organismo” da família humana. A coisa mais singularmente humana que as
pessoas têm, a partir do ponto de vista teísta, é sua capacidade de comunhão
com Deus. Este foi o propósito mesmo de sua criação, de acordo com
Gênesis, e é isso que torna possível para os humanos serem membros do
reino espiritual de Deus que transcende todas as comunidades formadas por
humanos. Isso é tão profundamente verdadeiro acerca dos humanos que,
mesmo quando rejeitam o verdadeiro Deus, eles não podem deixar de crer em
outro algo como divino. Quando isso ocorre, eles se tornam, por meio disso,
membros de um reino espiritual correspondente baseado numa falsa crença, o
qual também transcende qualquer comunidade formada por humanos. Por
essa razão, devemos insistir que embora os humanos sempre vivam e
funcionem em comunidades sociais, não existe comunidade formada por
humanos das quais eles não são nada senão partes.
Nesse ponto, também, temos razões adicionais para reconhecer por que
prosseguir em nosso programa não reducionista para teorias, e combiná-lo
com os ensinamentos específicos das Escrituras mencionados acima, conduz
à posição de que, embora os humanos funcionem ativamente em todos os
aspectos da criação, a natureza humana não é meramente a soma dessas
funções. Como notamos nos capítulos 9 e 11, e anteriormente neste capítulo,
a natureza humana é mais do que todas essas funções, uma vez que reside no
“coração” humano, ou ego, o qual tem uma relação única com o criador que
transcende a criação. Portanto, diferentemente de todas as demais criaturas,
os humanos não apresentam uma função qualificadora única. Mesmo sua
função no aspecto fiduciário, que expressa sua fé, não é idêntico à relação de
seu coração com Deus. Antes, é a orientação do coração em relação a Deus
(ou o que quer que ele tome como divino em seu lugar) que direciona o
exercício de todos os aspectos da fé. Sendo orientada de forma apropriada, a
relação do coração com Deus estende-se, assim, para além da realidade criada
até ao Criador e, como já pontuado, é essa relação que caracteriza mais
centralmente os humanos como seres religiosos. Ao mesmo tempo isso é
perfeitamente compatível com o fato de que humanos — individual ou
coletivamente — realizam atos e tomam parte em comunidades sociais que
apresentam, de fato, funções qualificadoras.
Também já vimos por que as comunidades sociais, em contrapartida,
não podem apresentar o tipo de relação direta com Deus que cada humano
pode ter. Elas são, com certeza, dominadas por normas, ideias, tradições, etc.,
que servem ou a Deus ou a um substituto de Deus. Mas mesmo instituições
religiosas não podem ter um destino eterno como as pessoas o têm. Assim,
existe uma diferença crucial entre a natureza de qualquer comunidade social e
a natureza humana que proíbe que interpretemos as pessoas como se não
fossem nada mais do que uma parte de determinada totalidade social.
Pelas mesmas razões, devemos também rejeitar as consequências
maiores de cada uma dessas teorias tradicionais. Por exemplo, teorias
individualistas consideram todas as comunidades sociais como formadas pela
associação voluntária de indivíduos livres que estabeleceram um contrato
entre si para promover algum valor que consideram caro. Como
consequência, essas teorias geralmente assumem que tais “contratos sociais”
são a melhor forma de se proteger a dignidade e que o bem-estar do indivíduo
é de suma importância. Eles, portanto, consideram o bem-estar da
comunidade mais ampla como algo secundário. Teorias coletivistas,
diferentemente, argumentam que indivíduos são sempre dependentes de
comunidades sociais, tanto biológica quanto culturalmente. Em sua visão,
comunidades sociais não são, em absoluto, inventadas livremente por pessoas
que outrora viveram sem elas e podiam ainda sobreviver sem elas caso o
quisessem. Isso geralmente faz com que estimem a dignidade e o bem-estar
da comunidade social totalizante como não apenas mais importante do que
aqueles de qualquer indivíduo, mas também como mais importante do que
todas as sub-comunidades contidas nela. Dessa forma, a resposta de cada uma
das teorias à questão sobre se os indivíduos criam a comunidade, ou se a
comunidade cria os indivíduos, gera diferenças importantes nas prioridades
sociais. No caso de conflito entre o bem da totalidade social e o bem do
indivíduo, uma teoria dá prioridade ao indivíduo, enquanto a outra dá-a à
comunidade. Diferentemente de nossa teoria, nenhum lado pode encontrar
um equilíbrio de princípios entre o indivíduo e a sociedade, porque cada um
já começou atribuindo uma primazia reducionista ao indivíduo ou a
sociedade.
Essa controvérsia acerca de onde deve-se estabelecer a prioridade
social não resulta simplesmente em diferenças vagas nas atitudes dos adeptos
de cada um dos lados. Não é simplesmente que, em um caso na corte, um juiz
que possua uma perspectiva individualista tenderia a favorecer os direitos do
indivíduo, ao passo que um juiz coletivista tenderia a favorecer o bem-estar
da sociedade. Tais resultados, tomados todos em si mesmos, seriam
suficientemente importantes, e resultariam em diferenças significativas na
forma como os casos são decididos. Mas a verdadeira relevância das duas
posições é ainda maior, na medida em que cada uma delas oferece uma
inclinação particular para a própria ideia de justiça que subjaz não apenas
às decisões judiciais, mas ao modo em que as leis são escritas.
Para apreciarmos a extensão em que isso se dá, considere que as visões
coletivistas de Aristóteles e Marx definiram justiça como a manutenção da
harmonia entre as partes de uma sociedade para a preservação da sociedade
como um todo. Na visão de ambos, isso significava que cada comunidade
social que não fosse o Estado deveria ser totalmente regulada pelo Estado
para o benefício do Estado. Eles assumiram essa posição porque todas as
outras comunidades eram supostamente partes do Estado, o qual era visto
como a totalidade social toda-abrangente. A justiça, com isso, é considerada
como tudo o que tende a preservar o Estado na opinião do próprio Estado.
Essa visão, pois, não enxerga limites intrínsecos ao que o Estado possa exigir
ou proibir. Consequentemente ela enxerga os direitos humanos como nada
mais do aquilo que é do interesse do Estado garantir. Em contrapartida, a
influente teoria individualista de Locke afirmava que a principal ideia de
justiça é a proteção da vida e da propriedade de cada indivíduo. Ela concebe
os indivíduos como os possuidores de direitos morais e legais “naturais”, dos
quais o Estado não é a fonte e para cuja preservação o Estado foi criado. A
única forma pela qual qualquer direito natural pode ser perdido de forma
justa, pensava Locke, é se os indivíduos concordarem voluntariamente em
entregá-los ao Estado. A visão de Locke é certamente um grande
aperfeiçoamento da visão coletivista. (E existem outras partes desta sua visão
que procedem de ensinamentos das Escrituras, com os quais não temos
objeções.) Mas seu individualismo o levou a restringir a ideia de justiça à
proteção das vidas individuais e da propriedade privada, de modo que não há
espaço em sua teoria para a preocupação do Estado com a justiça pública,
quando a propriedade privada não estiver envolvida. Nesse sentido, a
descrição de Locke sobre o governo faz com que ela se assemelhe mais a
uma empresa de segurança privada do que ao corpo legislativo no Estado.
Não me aprofundarei aqui nas consequências dessas duas posições
tradicionais, uma vez que elas serão analisadas criticamente em maiores
detalhes no próximo capítulo. No momento, é suficiente pontuar como cada
uma das visões tradicionais distorce o sentido da justiça definindo-a mais
fundamentalmente ora como a preservação dos indivíduos, ora como a
preservação da totalidade coletiva da sociedade. Por outro lado, nossa teoria
da estrutura de leis livrar-nos-á de ter de escolher entre o individualismo e o
coletivismo. Ela assinala que, visto que as normas da justiça, que são a fonte
dos direitos humanos, não residem nem nas pessoas individuais nem na
totalidade coletiva da sociedade, nenhum dentre eles deve ser favorecido em
relação ao outro na administração da justiça. Em vez de focalizar de forma
estreita sobre um ou outro, a teoria da estrutura de leis oferece lentes
angulares amplas para incluir o espectro inteiro da vida de modo que a norma
da justiça seja igualmente aplicada tanto a indivíduos quanto a comunidades
sociais.

11.4 Partes e todos


Ao lidar com a posição coletivista, notamos brevemente que Aristóteles a
defendia com o argumento de que um todo é básico (seu termo foi “anterior
a”) a qualquer de suas partes. Ele elaborou esse ponto referindo-se à relação
dos indivíduos com o Estado — um ponto que a visão teísta dos humanos
nega veementemente. Mas ainda permanece a questão sobre se certas
comunidades sociais são, de fato, partes de outras. Essa questão é importante
porque todas as teorias sociais aceitam a ideia de que, uma vez que uma parte
é dependente do todo, qualquer comunidade que seja parte de outra é,
portanto, subordinada a ela. Assim, quaisquer comunidades que são partes de
outra devem ser classificadas como inferiores em autoridade, e a comunidade
que abarca o todo recebe autoridade suprema para regular todas as
comunidades que são suas partes. Existe, desse modo, uma autoridade social
suprema? E se sim, qual seria? Essas questões devem ser respondidas por
qualquer teoria da sociedade, quer ela trabalhe a partir de um ponto de vista
coletivista, individualista, ou da estrutura de leis.
Enfatizo a importância dessas questões para qualquer teoria social,
porque elas têm geralmente sido associadas mais com as teorias coletivistas,
uma que elas têm sempre sido específicas sobre qual instituição em particular
consideram como a comunidade preponderante que abrange todos os
indivíduos e todas as demais comunidades como suas partes. Isto se dá dessa
forma porque entendem que o caráter todo-abrangente de sua instituição
favorita justifica a declaração de que ela deveria ter a autoridade suprema na
vida social humana. Teorias individualistas, por outro lado, têm uma
reputação de resistir qualquer autoridade social toda-abrangente. Visto que
consideram indivíduos como criadores de comunidades e não o oposto,
individualistas geralmente afirmam que as pessoas possuem direitos que as
dispensam, de certo modo, da autoridade de qualquer comunidade.[292] Mas
simplesmente dispensar indivíduos de certos tipos de autoridades nunca irá,
por si mesmo, impedir que pelo menos algumas comunidades sejam
subsumidas como partes de outra. Dessa maneira, embora grande parte das
teorias individualistas tenha dispensado indivíduos da autoridade comunitária
em certos aspectos, elas ainda terminam por subsumir todas as demais
comunidades sob uma comunidade suprema que supostamente abarca e
governa sobre todas as outras. Assim, nossas questões são, de fato,
inevitáveis para qualquer teoria social igualmente: como podemos dizer se
uma comunidade realmente é ou não parte de outra? Como podemos saber
quando somos confrontados com uma relação genuína de parte-todo e quando
não somos?
De acordo com nossa teoria da estrutura de leis, podemos apelar nesse
momento à ideia sobre a função qualificadora de cada coisa, juntamente com
a rede de leis aspectuais e típicas, a fim de responder a essa questão. Pois
parece que a teoria da estrutura de leis pode oferecer um insight renovado
para determinar sob quais condições um relacionamento genuíno parte-todo
existe. Ela o faz permitindo-nos traçar importantes distinções que
demonstram que muitas relações comumente referidas como relações parte-
todo não o são de fato.
Começaremos aceitando a visão defendida por Aristóteles de que uma
parte não pode existir separadamente do todo do qual é parte. O tipo de
independência que ele nega às partes inclui dois elementos, a saber, que uma
parte deve participar na organização interna e no funcionamento de um todo,
e que ela ou não pode vir à existência ou não funcionar separadamente do
todo. Obviamente, nenhuma dessas duas condições tomadas em si mesmas é
suficiente para identificar uma relação parte-todo genuína. O fato de que X é
incapaz de existir ou funcionar à parte de Y não faz de X parte de Y, uma vez
que existem relações parte-todo nas quais uma ou ambas não podem existir
sem a outra. Por exemplo, uma árvore é um todo individual apresentando
suas próprias partes internas, mas ela não pode vir à existência, ou funcionar,
separada da terra. Ela não é, no entanto, parte da terra. Da mesma forma, o
funcionamento de X na organização interna de Y não irá necessariamente
tornar X uma parte de Y. Uma pequena pedra pode funcionar no trato
digestivo de um pássaro auxiliando na moagem de seu alimento, mas mesmo
assim ela não é parte do pássaro. Mas enquanto nenhuma dessas condições
pode por si só identificar uma relação parte-todo genuína, tradicionalmente
tem sido defendido que a combinação das duas é suficiente para cumprir tal
tarefa.
Devemos discordar. Temos visto até agora que embora os humanos não
possam existir à parte de alguma comunidade, e embora eles funcionem na
organização interna de comunidades, eles no entanto não podem ser
considerados como meras partes de uma comunidade. Humanos são,
portanto, um contra-exemplo decisivo à visão tradicional. O que é necessário
acrescentar às condições tradicionais é que uma coisa deve também
compartilhar da mesma função qualificadora com qualquer todo maior, a fim
de que seja genuinamente parte desse todo. Portanto, os novos critérios
necessários para discernir relações parte-todo genuínas é que algo deve: 1)
funcionar na organização interna de um todo, 2) ser incapaz de vir à
existência ou funcionar à parte do todo, e 3) deve ter a mesma função
qualificadora que o todo, para ser uma verdadeira parte dele.
Isso nos mostra que na linguagem ordinária geralmente chamamos uma
coisa de parte de outra apenas porque satisfaz a condição (2) ao exercer um
papel em sua organização ou funcionamento interno. Por exemplo, na
linguagem comum diz-se que uma grande rocha no canto de um pátio é parte
do jardim. Mas mesmo a teoria tradicional da parte-todo teria de rejeitar a
rocha como sendo genuinamente parte do jardim, uma vez que ela pode
existir independentemente dele. Nosso novo conceito concorda com esse
juízo, mas oferece a razão complementar de que a rocha é fisicamente
qualificada, ao passo que o jardim é esteticamente qualificado. Ainda é
verdade que a rocha está incluída no jardim, obviamente; porém ela está
incluída como um todo dentro de um todo mais amplo, ao invés de ser uma
parte do todo mais amplo. O mesmo é verdadeiro acerca de plantas no jardim
que também não devem ser consideradas como partes dele; as plantas são
coisas naturais bioticamente qualificadas, enquanto o jardim é um artefato
esteticamente qualificado.
Isso nos leva a esboçar ainda outra distinção, a saber, que sempre que
uma coisa funciona dentro de outro todo mais amplo mas falha em algum
desses três critérios para ser uma parte do todo, nós a denominaremos de sub-
todo, em vez de uma parte dele. E diremos que os todos mais amplos que
incluem sub-todos “encapsulam” estes últimos, e assim chamaremos os todos
mais amplos de “todos encapsulados”. Estes termos pretendem expressar a
noção de todos incluídos em um todo-receptáculo ou cápsula maiores, sem
serem de fato partes do receptáculo. E trataremos doravante da relação de
sub-todos com seu todo encapsulado como relações “encapsuladas” para
distingui-las das relações parte-todo.[293]
Essa parte de nossa teoria produz resultados que vão além daquilo que
é possível em relação à teoria tradicional parte-todo. Para ilustrar isso,
considere o exemplo de um artefato (não social) como uma escultura em
mármore de um corpo humano. Uma importante parte de nossa explicação
sobre a natureza da escultura dar-se-á por sua função fundante (a qualificação
histórica do processo de sua formação) e por sua função guia (a qualificação
estética do plano que guia sua formação). Mas caso a questão seja levantada
em relação ao modo pelo qual devemos entender a relação do mármore com a
obra de arte como um todo, seria impossível responder em termos de parte
para o todo. Mesmo em nossa visão tradicional, o mármore não pode ser pare
da escultura, uma vez que ele pode existir sem ela. E, em nossos critérios, o
mármore também apresenta uma qualificação aspectual distinta (física) da
obra como um todo. Além disso, não faz muito sentido falar do mármore
como se este funcionasse na organização interna da escultura! Mas nossa
ideia de relações encapsuladas pode fazer melhor. De acordo com ela,
podemos dizer que o mármore, como o material natural da escultura, não é
parte da obra de arte, mas um sub-todo incluído dentro de um todo
encapsulado. Isso nos permite explicar o todo distintamente novo produzido
pelo ato de esculpir o mármore, sem ter de dizer também que o mármore é
parte da escultura (quando suas partes são obviamente sua cabeça, seus
braços, pernas, tronco, etc.), ou que nenhum todo novo foi formado e que ele
é essencialmente ainda uma peça de mármore (como Aristóteles foi forçado a
dizer).[294]
Ademais, a relação da peça de mármore encapsulado no todo da
escultura demonstra outra característica que é típica entre sub-todos e seu
todo encapsulado: nenhuma quantidade de conhecimento sobre a natureza
dos sub-todos que existem dentro de um todo encapsulado jamais pode
produzir conhecimento sobre a natureza do todo encapsulado. Isso se dá
precisamente porque eles têm diferentes naturezas devido ao fato de que suas
funções qualificadoras são diferentes. Nesse exemplo isso significa que
conhecer toda a física que há para ser conhecida sobre o mármore nunca irá
produzir qualquer informação sobre a escultura enquanto obra de arte.
A distinção entre parte-todo e relações encapsuladas também se
aplicam a coisas naturais, assim como a artefatos, e a análise de alguns
exemplos disso pode auxiliar-nos a tornar a diferença ainda mais clara. Tome,
por exemplo, a relação dos átomos em uma planta com a planta como um
todo. Os átomos certamente funcionam na organização interna da planta. Mas
uma vez que os átomos de cada elemento químico existiam antes de a vida
sequer ter surgido na terra, e uma vez que os átomos não são destruídos
quando a planta o é, não há dúvida de que os átomos podem existir
separadamente da planta. Ademais, átomos têm apenas uma função
qualificadora física, ao passo que a planta excede o físico ao ter uma função
qualificadora biológica. Os átomos não são, portanto, partes da planta, mas
permanecem em uma relação de sub-todos para um todo encapsulado. Em
contrapartida, a relação das células da planta para com a planta é uma relação
parte-todo. As células funcionam na organização interna da planta, elas não
podem existir ou continuar a funcionar (por muito tempo) à parte da planta, e
apresentam a mesma função qualificadora (biótica) que a planta.
A relação de átomos para uma molécula, no entanto, seria uma relação
encapsulada. Por exemplo, átomos de hidrogênio e oxigênio não podem ser
partes da molécula H2O, mesmo que funcionem em sua organização interna e
tenham a mesma função qualificadora física. Isto porque eles podem existir e
funcionar independentemente de serem combinados nela. Desse modo, esse é
outro caso de uma relação encapsulada. E como nas outras relações
encapsuladas, as propriedades do todo não podem ser deduzidas das de seus
sub-todos.
Em cada caso no qual pensarmos, sub-todos que são vinculados
juntamente em um todo capsulado retêm sua própria identidade, já que,
considerados à parte de seu encapsulamento, sua função qualificadora
permanece a mesma. Mas quando eles são incluídos em um todo capsulado,
suas próprias funções qualificadoras são sobrepujadas por aquela do todo
capsulado. Isto é, os sub-todos existem e funcionam dentro de um todo que
tem propriedades e uma função guia que nenhum deles possui em si, mas às
quais cada um agora serve. Por essa razão (e outras razões), sub-todos não
podem ser considerados como causas dos todos capsulados aos quais estão
vinculados. Eles são condições necessárias para tais todos, mas não são
condições suficientes para estes. O fator adicional necessário para explicar os
todos capsulados é, digamos, que eles se tornam possíveis por um segundo
modo de lei típica. Assim, além de postular leis típicas que variam através
dos aspectos para determinar como propriedades de diferentes aspectos
podem ser combinadas em coisas individuais constituídas de partes, também
postulamos leis típicas para explicar como podem existir todos constituídos
de sub-todos, tendo a mesma qualificação ou uma outra distinta.
Essa contribuição ao entendimento das relações parte/todo como
distintas das relações todo/sub-todo podem agora ser aplicadas às
comunidades sociais. Uma comunidade social será parte de outra se e
somente se ela não pode vir à existência ou funcionar sem a outra; se ela
funcionar na organização interna da outra; e se apresentar a mesma função
guia que a outra. Do contrário, não importa o quão intensamente uma
comunidade possa estar sob a influência (ou mesmo o controle completo) de
outra, ela não será parte dela. Do mesmo modo, uma comunidade é um sub-
todo encapsulado dentro de outra quando (1) ela funciona na organização
interna da outra e (2) faltam-lhe propriedades que o todo maior possui, ainda
que (3) ela possa existir à parte deste todo maior.
Quando essas definições são aplicadas às várias comunidades sociais,
os resultados são realmente importantes. Pois nossos critérios demonstram
que, embora existam casos nos quais uma comunidade é de fato parte de
outra, os principais tipos de instituições e organizações sociais não podem
ser partes de outras. Uma empresa, por exemplo, pode ter dentro de si
divisões organizadas separadamente ou empresas subsidiárias que são de fato
partes dela. E um Estado pode apresentar partes tais como províncias,
condados, departamentos, distritos e municipalidades. Um exército nacional e
as cortes são também partes do Estado. Mas um negócio nunca pode ser parte
de um Estado. Os dois apresentam funções guias distintas e, portanto,
naturezas e propósitos estruturais distintos. Além disso, seu princípio
organizador interno (lei típica) também é diferente, de modo que elas são
tipos irredutivelmente distintos de comunidades sociais.
O mesmo é verdadeiro acerca da relação de uma família com um
Estado. Uma família apresenta uma função guia (ética) distinta e é
estruturada por uma lei típica distinta. Ela pode existir e funcionar onde não
existe Estado. Dessa forma, mesmo quando ela existe dentro de um território
governado por um Estado particular, uma família nunca pode ser uma das
partes do Estado. Uma prova disso é que cada membro de uma família pode,
ao mesmo tempo, ser um cidadão de um Estado distinto, o que seria
impossível se a família fosse parte do Estado. De semelhante modo, uma
igreja, uma sinagoga ou uma mesquita nunca podem ser parte de um Estado,
ou de um negócio, ou de uma família, embora possam ser partes de uma
instituição religiosa. Todas essas instituições e organizações permanecem em
relações todo-todo umas com as outras, e não em relações parte-todo.
Mas não apenas as principais instituições e organizações da sociedade
não são partes de qualquer outra instituição — elas também não são sub-
todos encapsulados em qualquer comunidade englobante. O que esse todo
capsulado poderia ser? O candidato mais comumente indicado é o Estado,
mas se o Estado fosse realmente todo-inclusivo cada um dos sub-todos
encapsulados teria então de apresentar suas funções guias sobrepujadas pela
função guia jurídica do Estado. Isso significa que as comunidades
encapsuladas cessariam de funcionar nas distintas formas que correspondem
aos seus distintos propósitos estruturais. Em vez disso, elas seriam todas
absorvidas no propósito de legislar e implementar justiça pública, e não
restariam comunidades para se alcançar os propósitos de sustento financeiro,
produção de arte, educação da próxima geração, ou expressão da fé. O ponto
é simples mas crucial: ou temos comunidades distintas ou não, e nenhuma
comunidade pode manter seu propósito estrutural distinto ao mesmo tempo
em que funciona como um sub-todo dentro de outra comunidade toda-
abrangente. Por essa razão vemos que as ideias de uma empresa estatal, ou de
uma igreja estatal, ou ainda de uma escola estatal, como tão incoerentes
quanto a ideia de uma família estatal. Na medida em que uma organização ou
instituição é uma igreja, uma escola, ou uma empresa, ela precisamente não é
um Estado, e vice-versa. Obviamente, um Estado pode escolher apoiar outra
comunidade como uma escola, da mesma forma que uma igreja, um
sindicato, fundação, empresa, ou família podem apoiar uma escola. Mas em
cada caso esse apoio deveria ser permitido com o reconhecimento de que a
escola possui uma natureza distinta das comunidades que a apoiam, de modo
que sua própria autoridade interna não devesse ser assimilada à da
organização apoiadora.
11.5 Soberania de esfera
Esses resultados de nossa teoria da estrutura de leis, portanto, nos levam a
rejeitar qualquer visão hierárquica da sociedade como um todo. Existem,
inevitavelmente, hierarquias dentro de comunidades; mas rejeitamos a noção
de uma hierarquia “global” abrangendo a totalidade da sociedade.[295] É assim
quer pensemos a hierarquia como vários níveis, ou simplesmente como a
diferença entre a instituição suprema toda-abrangente e as comunidades que
ela supostamente subsume. Uma vez que as naturezas distintivas das
comunidades sociais demonstram como raramente uma pode ser uma parte
ou sub-todo de outra, somos levados a uma visão pluralista de sociedade.
Esse pluralismo reflete no aspecto social o mesmo tipo de pluralismo
irredutível que se apresenta entre os aspectos em nossa teoria da realidade:
assim como nenhum aspecto é mais real, ou a fonte, de qualquer outro,
também existem “esferas” irredutíveis da vida social, nenhuma das quais é a
mais real ou a fonte de qualquer outra. Daí também entendemos os diferentes
tipos de autoridades encontrados nas várias comunidades como irredutíveis e
complementares ao invés de derivados de uma fonte toda-abrangente.
Portanto, nessa visão não há instituição que possa legitimamente reivindicar a
posse de suprema autoridade pela totalidade da vida humana. Pelo contrário,
entende-se que cada tipo de comunidade tem não apenas um propósito
estrutural distinto determinado por sua função guia e uma organização interna
distinta definida por sua lei típica, mas também seu próprio tipo distinto de
autoridade. Isso significa que cada uma deveria desfrutar de uma soberania
em sua própria esfera que garanta sua liberdade de interferências por outras
comunidades no que diz respeito a suas operações internas, de forma que
cada uma delas deveria ser livre para criar suas próprias regras de operação
ao decidir a melhor forma de cumprir seu propósito estrutural. Esse é o
princípio que Abraham Kuyper elaborou por volta da virada do século XIX, o
princípio que ele denominou “soberania de esferas”.[296]
É significativo para o caráter cristão-teísta desse princípio o fato de que
Kuyper derivou sua formulação não de uma teoria da realidade, mas das
Escrituras. Ele notou que o Novo Testamento não apenas ensina que toda
autoridade na terra é derivada de Deus, mas que ele também reconhece
múltiplas autoridades na terra, ao invés de apenas uma autoridade suprema.
As Escrituras hebraicas já sugeriam isso pela forma que os profetas de Israel
viam a autoridade de seus reis como limitada, e não absoluta. Mas esse ponto
é ainda mais reforçado quando o Noto Testamento fala dos pais como
autoridades em uma família, os oficiais de governo como autoridades no
Estado, e o clero como autoridade na Igreja. Desenvolvendo essa linha de
pensamento, Kuyper estava dando continuidade a uma tradição que havia
tomado seu ímpeto do pensamento de Calvino, que, por sua vez, já havia
comentado há muito sobre os distintos chamados na vida e as autoridades
limitadas apropriadas a cada um:

E, para que ninguém ultrapassasse temerariamente seus


limites [de autoridade], chamou a tais maneiras de viver
“vocações”. Logo, o Senhor atribuiu a cada um sua
maneira de viver, como se fosse o seu posto, para que não
fique dando voltas temerariamente de um lado para outro
por toda a vida [...] [Desse modo] O magistrado dedicar-
se-á a seus afazeres com mais boa vontade; o pai de
família se esforçará para cumprir seus deveres; cada um,
dentro de seu modo de viver, suportará e tragará os
incômodos, as inquietações, os aborrecimentos, os tédios e
as ansiedades, quando estiver persuadido de que esse peso
foi imposto por Deus. Daí nascerá um exímio consolo:
que, contanto que obedeças deste modo a tua vocação, não
há nenhuma obra tão humilde e tão baixa que não
resplandeça diante de Deus e que não seja por Ele
considerada preciosíssima.[297]

O princípio social da esfera de soberania é, portanto, outro exemplo de nossa


teoria guiada não apenas por uma visão não reducionista da realidade, como
exigido pelo teísmo, mas também por ensinamentos bíblicos específicos que
alcançam sua mais clara elaboração no Novo Testamento.
Dever-se-ia enfatizar prontamente, no entanto, que esse princípio não
é meramente negativo. Ele não significa apenas que existem limites externos
à autoridade de cada comunidade distinta que, por sua vez, estabelece um
“muro de separação” entre suas esferas de autoridade. Uma vez que os
próprios limites negativos são estabelecidos pela natureza interna de cada
comunidade, o princípio também tem o objetivo positivo de permitir que cada
uma cumpra seu propósito estrutural distintivo. A esfera de soberania
também não é simplesmente um conselho prático que diz: a menos que o
caráter e os propósitos distintivos das comunidades sejam reconhecidos,
haverá conflitos entre eles em qualquer sociedade. E isso também não é uma
questão de permitir a cada uma um nicho de não interferência porque,
digamos, os negócios ou a arte geralmente prosperam quando isso é feito. Em
vez disso, as limitações das esferas de autoridade de cada tipo de comunidade
são estabelecidas pela natureza de seu tipo, de modo que ultrapassar esses
limites sempre se mostra prejudicial tanto para a comunidade que os
ultrapassa quanto para as outras comunidades que são infringidas.
A ideia de esfera de soberania nos servirá a partir de agora como o
princípio orientador para nossa visão geral sobre como todas as várias
comunidades da sociedade deveriam relacionar-se umas com as outras. Em
todos os momentos, nossa teoria buscará refletir a crença de que essas são
esferas da vida social mutuamente irredutíveis, embora inseparáveis. As
várias comunidades que correspondem a essas esferas serão, do mesmo
modo, vistas como sendo mutuamente irredutíveis e inseparáveis, porque elas
emergem a partir de diversas necessidades, habilidades e interesses humanos
que são qualificados por diversos aspectos. Por exemplo, todos nos
interessamos por nossa segurança física, nossas necessidades biológicas
como alimentação e abrigo, e nossa percepção sensorial do mundo ao nosso
redor, incluindo a prevenção de dor e o desfrute de prazer. Geralmente as
ciências que estudam esses aspectos mais abaixo em nossa lista são chamadas
de “ciências naturais”, enquanto as ciências que investigam os aspectos mais
elevados em nossa lista, como a sociologia e a economia, são chamadas de
“ciências sociais”. Mas é importante notar que os interesses aspectualmente
distintos estudados pelas ciências sociais também são “naturais”; isto é,
embora as formas que respondamos a esses interesses estejam sob nosso
controle formativo, os interesses em si mesmos refletem as formas pelas
quais a natureza humana foi criada por Deus, em vez de serem formas
completamente criadas por nós.
Por exemplo, em razão da ordem da criação todos os humanos têm
inevitavelmente um interesse natural em questões sociais (no sentido mais
estreito de “social”), que resulta no desenvolvimento de estilos de roupas,
níveis de status sociais, costumes de civilidade, etc. Eles também têm
interesses econômicos centrados na garantia de sustento, e todos expressam
suas necessidades ou habilidades estéticas por meio da criação ou desfrute de
arte e esporte. Da mesma forma, pessoas estão interessadas na justiça, no
amor, na educação de seus filhos e no exercício de sua fé. Afirmamos que
uma vez que esses aspectos da vida são naturais, nenhuma pessoa pode
suprimi-los inteiramente. Em vez disso, eles são tão abrangentes e
importantes à vida humana que as pessoas inevitavelmente formam
comunidades para promovê-los e protegê-los.[298]Ao mesmo tempo, no
entanto, deveria estar claro que a soberania das esferas sociais que estou
descrevendo não corresponde a tipos diferentes de grupos de pessoas.
Ninguém pode deixar de estar interessado em todas as esferas, sejam eles
membros de uma comunidade devotada aos seus interesses ou não. E as
mesmas pessoas que são membros de uma comunidade enquanto tal
(digamos, o Estado) são geralmente também membros de outras: e.g.,
empregados em um negócio, membros de uma sinagoga, igreja, ou mesquita,
participantes de um partido político, estudantes de uma escola, etc.
Para tornar mais clara a visão geral oferecida por nosso princípio de
soberania das esferas, retornemos à ideia de autoridade na sociedade e
apliquemos o princípio a ela. Esse foco nos permitirá enxergar como o
princípio de esfera de soberania responde às questões: por qual autoridade
uma pessoa (ou um grupo delas) produz leis que dizem aos outros o que elas
podem e não podem fazer, e qual é a origem de tal autoridade?
Apresentou-se muitas respostas a essas questões. Uma das respostas
mais influentes foi a teoria de Aristóteles de que a natureza da autoridade se
baseia na racionalidade e na virtude. Aqueles que possuem mais inteligência
e são eticamente virtuosos deveriam, portanto, governar o restante. Outra
resposta enormemente influente, proposta por Marx, é que a autoridade de
governar reside na propriedade econômica. Isso significa que aqueles que têm
riquezas e possuem os meios de produção para as necessidades da vida não
apenas inevitavelmente irão, mas também deveriam regular o Estado que, por
sua vez, deveria governar todas as outras comunidades (até que a sociedade
comunista venha à tona). No entanto, outra visão é aquela da monarquia, que
mantém que a autoridade é herdada biologicamente. Nesta perspectiva, uma
pessoa teria o direito de dizer a outras o que fazer, porque essa pessoa é a
mais próxima em termos familiares da última pessoa que possuía a
autoridade. Ainda outra teoria afirma que o poder militar seria a fonte de
autoridade, de modo que o poder cria o direito. Ainda outras teorias seguem
Rousseau investindo com autoridade as vontades das pessoas, concedendo
tanto à vontade da maioria quanto à “vontade geral” o direito de governar.
Em todas essas teorias a natureza da autoridade é identificada com
alguma função humana particular: razão, realização de juízos morais,
produção de bens e serviços, reprodução, exercício de força militar ou atos de
volição. Cada uma dessas é, portanto, uma resposta à questão sobre a
natureza da autoridade, e cada uma identifica aquela natureza com um
aspecto particular dos humanos, ou com a vontade humana. Desse modo,
declaram que a autoridade é fundamentalmente ou de caráter racional, ou
moral, ou econômico, ou biológico, ou volitivo. Feito isto, no entanto, a
questão sobre a fonte da autoridade também é decidida. Em cada caso serão
as pessoas que se notabilizam na função particular da natureza humana que é
a fonte de autoridade que deverão, portanto, exercê-la sobre a totalidade da
vida humana. Por exemplo, suponha que a natureza básica de toda a
autoridade resida na vontade da maioria. Nesse caso ainda podem haver
outros tipos de autoridades na sociedade, como a autoridade dos pais em uma
família, ou de um professor em uma escola, ou de um proprietário em um
negócio. Mas em última instância esses outros tipos existirão apenas porque a
maioria permiti-los-á. Eles devem ser vistos como autoridades subsidiárias
derivadas da autoridade fundamental.
Nas teorias do passado, a comunidade que supostamente possuía o
tipo de autoridade que é básico a todos os outros tipos de autoridade era vista
como a comunidade que incluía as demais como suas partes. Na história da
cultura ocidental, o Estado tem sido mais comumente a instituição que recebe
esse status tanto na teoria quanto na prática ― e isso ainda é verdadeiro. Mas
não importa a qual comunidade se atribui esse papel por uma teoria, a visão
de autoridade que ela pressupõe é reducionista, e a visão da sociedade que
resulta é hierárquica e literalmente totalitária. Qualquer comunidade
considerada como a fonte de toda autoridade é, portanto, concebida como se
tivesse todas as outras comunidades sob sua autoridade em todos os seus
aspectos, sendo assim suprema sobre a totalidade da vida humana.
Mesmo teorias individualistas não podem deixar de evitar esse
resultado totalitário, uma vez que aceitam que a natureza de toda a autoridade
reside em uma função humana particular e, consequentemente, em uma
instituição particular. Pois se se considera que a autoridade de todas as outras
comunidades provém de alguma em particular que é tida como a autoridade
suprema, segue-se que as outras comunidades não podem deixar de serem
vistas como partes, ou sub-todos, daquela comunidade suprema. Conforme já
visto, as teorias individualistas tentam evitar o totalitarismo encontrando
algumas formas nas quais indivíduos sejam isentos da autoridade da
instituição suprema. Mas, uma vez que se acredita que uma comunidade
particular incorpora uma autoridade que é básica a todos os outros tipos,
essas isenções se tornam não apenas difíceis de encontrar em teoria, mas
impossíveis de se obter na prática.
A afirmação clássica da teoria de que o Estado é a comunidade com a
autoridade suprema, toda-abrangente, é encontrada na obra Política, de
Aristóteles:
Cada estado é uma comunidade de algum tipo, e cada comunidade é
estabelecida com vistas a algum bem; pois a humanidade age
ordenadamente para obter aquilo que eles pensam ser bom. Mas, se todas
as comunidades objetivam algum bem, o estado, ou a comunidade
política, que é a mais elevada dentre todas, e que abrange todo o resto,
objetiva o bem em um grau maior do que qualquer outra, e visa ao bem
mais elevado. (Politics liv. 1, cap. 1)
O desenho esquemático na Figura 7 pode auxiliar na representação da visão
geral hierárquica, e portanto totalitária, de sociedade expressa pela citação,
conforme aplicada à sociedade moderna.
Já foi pontuado como a visão de que toda autoridade provém de Deus
opõe-se a quaisquer visões totalitárias de sociedade. E vimos que a Escrituras
reforçam explicitamente a ideia de que existe uma multiplicidade de
autoridades tais como pais em uma família, o proprietário de um negócio, os
poderes dominantes no Estado, e o clero em uma instituição religiosa. Disso
extraímos a implicação de que nenhum tipo de autoridade é único, a fonte de
todos os outros tipos, ou supremo sobre os outros tipos. Mas também há outra
importante consequência a ser extraída, a saber, que ele nunca pode ter o
direito de resistir a uma autoridade legítima, uma vez que esta tem sua origem
em Deus, não em seres humanos. Nenhum grupo ou indivíduo, incluindo a
vontade da maioria, é a fonte ou o criador da autoridade. Humanos não criam
autoridade, eles são investidos dela. Assim, enquanto o voto da maioria pode
de fato ser a melhor forma de selecionar aqueles que dever ser investidos de
autoridade no Estado, o voto não cria a autoridade pela qual o eleito vem a
ser investido. Na visão teísta cristã, então, podemos considerar os detentores
de autoridade como indignos e buscar substituí-los por outros detentores de
autoridade. (Detentores de autoridade no Estado podem ser cassados e
impedidos, por exemplo, ou o Estado pode ter de remover crianças de pais
abusivos). Mas a autoridade em si mesma jamais pode ser desrespeitada de
maneira legítima.
Aqui estão mais alguns exemplos de resultados que tal visão pluralista
de autoridade social e de comunidades permite. Os proprietários de um
negócio exercerão apropriadamente autoridade sobre ele porque se trata de
sua propriedade. Mas isso ocorre porque um negócio é uma organização
economicamente qualificada, e como tal apresenta uma autoridade
economicamente qualificada. A autoridade dos pais sobre filhos menores em
uma família, em contraste, não deriva do fato de que eles possuem a casa na
qual a família vive, nem mesmo no fato de que eles sustentam
economicamente os filhos. Ela reside na relação eticamente qualificada que
existe entre os pais e os filhos em virtude da forma que Deus criou os seres
humanos. Ou seja, sua autoridade é qualificada pelo amor. Assim, mesmo se
uma família não for mantida pelos pais, mas subsistir com recursos de
assistência estatal, a autoridade dos pais está normativamente intacta. Por
outro lado, uma escola é uma organização logicamente qualificada. Por meio
da educação, nossos conceitos acerca de nós mesmos e do mundo ao nosso
redor são expandidos, enriquecidos, corrigidos, e assim por diante. Por
conseguinte, a autoridade em uma escola é uma autoridade baseada na
competência do conhecimento; ela pertence àqueles que são especialistas nos
conceitos dos temas que serão ensinados. O Estado, também, tem seu próprio
tipo distinto de autoridade, uma autoridade qualificada pela justiça — mais
especificamente, justiça pública.[299] Sua habilidade de promover justiça deve
estender-se à totalidade do público dentro de seu território, obviamente. No
entanto, sua autoridade é limitada a apenas um aspecto desse público. E
permitam-me enfatizar que é precisamente porque a justiça é um aspecto de
todos os indivíduos e comunidades que o Estado não necessita subsumir
todos eles como suas partes para exercer sua autoridade apropriada em
relação a eles. Em outras palavras, a autoridade estatal não precisa ser
elevada acima de todas as outras sob a desculpa de que precisa de uma
autoridade totalitária a fim de assegurar justiça a todos os indivíduos e
comunidades. Além disso, sempre que se dá a um Estado o tipo totalitário de
autoridade, não se pode impedir suas terríveis consequências simplesmente
tornando o Estado uma democracia. Pois uma vez que se crê que o Estado
possui uma autoridade ilimitada e suprema, pouco importará se sua
autoridade é investida sobre uma pessoa, grupo governante, ou sobre todos os
seus cidadãos.
Esse último ponto merece mais atenção, porque geralmente se refere à
democracia como se este tipo de governo em si mesmo fosse suficiente para
garantir os direitos e liberdades que as pessoas querem proteger. Ela não o é.
Simplesmente dar a todos um voto não assegura um único direito ou
liberdade. A menos que a autoridade do governo seja vista como limitada em
princípio, a democracia garantirá apenas uma tirania da maioria pior do que
aquela de um único ditador. (Mesmo com métodos modernos de vigilância, é
difícil para um ditador manter um controle sobre o que todos estão fazendo,
porém, por outro lado, estamos sempre cercados pela maioria!) O que é
necessário para se assegurar os direitos e liberdades é a ideia de um Estado
limitado: um Estado restrito àquilo sobre o que pode legislar, de modo que
haja limites às suas competências legais. E esse é precisamente o ponto em
relação ao qual nossos princípios teístas Cristãos podem nos orientar.
Primeiro, eles nos livram de toda visão reducionista da natureza humana e da
sociedade. Eles nos permitem analisar a verdadeira natureza do Estado como
uma instituição social, e a determinar seus limites de acordo com sua própria
natureza. Nessa visão o Estado, portanto, não é limitado simplesmente em
relação aquilo que pode fazer, ou apenas pela regra de que não pode interferir
com a liberdade religiosa. Antes, ele é limitado por sua função guia como
definida pela estrutura de leis da criação. Por essas razões não é muito dizer
que os direitos e liberdades podem ser mais bem definidas e preservadas
quando prevalece a ideia de esfera de democracia que opera sem a crença de
que sua autoridade é limitada a uma esfera social distinta.[300]
Às vezes é sugerido que o totalitarismo pode ser evitado se
simplesmente limitarmos a autoridade do Estado dizendo que ele não deve
interferir nos assuntos internos de outras comunidades. Dessa forma, supõe-
se que não teríamos de nos envolver com nada tão complicado como uma
teoria de esferas sociais irredutíveis. De acordo com essa orientação, o Estado
poderia regulamentar todas as relações externas entre as comunidades,
contanto que não interferisse em suas operações internas. Essa proposta não é
apenas equivocada, mas contrária à razão. Os assuntos internos de uma
comunidade nunca podem estar isentos da autoridade do Estado no que diz
respeito à justiça pública. Não é verdade que o Estado não deveria processar
os crimes que são cometidos dentro de uma família ou igreja, por exemplo.
Sempre que um indivíduo ou comunidade violem a ordem da justiça pública,
eles se enquadram dentro do escopo próprio em que o Estado exerce sua
autoridade. E, no mesmo sentido, o Estado não pode regular devidamente
cada aspecto da vida pública, externa. Assim, a distinção interno vs. externo é
inútil tanto para distinguir o que é apropriado para o Estado quanto para
impedir um Estado totalitário. Apenas o reconhecimento de diferenças
aspectuais entre esferas sociais distintas pode fazer isso.
Na verdade, nossa teoria da estrutura de leis pode agora ser conduzida a
um passo adiante. De acordo com ela, devemos reconhecer não apenas as
diferenças de autoridade nas comunidades conforme qualificada por distintas
esferas, mas também como essa autoridade existe em comunidades de tipos
distintos. Mesmo comunidades que têm a mesma qualificação aspectual, e
funcionam dentro da mesma esfera social, podem demonstrar variações na
estruturação e no exercício do mesmo tipo aspectual de autoridade. O
casamento e a família têm, ambos, o aspecto ético do amor como sua função
guia, por exemplo, mas elas não são as únicas comunidades que são
eticamente qualificadas. Um orfanato ou lar para idosos também é conduzido
pela norma ética do amor. Contudo, a autoridade pela qual estas últimas
organizações são governadas não é estruturada ou exercida da mesma forma
que a autoridade em um casamento ou em uma família. Isso ocorre porque,
embora apresentem a mesma função guia ética, elas são comunidades de
distintos tipos estruturais. Portanto, a delimitação de autoridade divisada por
nosso princípio de esfera de soberania apenas tem início ao designar cada
comunidade a uma esfera social de operação, à medida em que esta é
qualificada por sua função guia. Juntamente a isso, variações nos tipos de
autoridades devem também ser reconhecidas dentro da mesma esfera. Desse
modo, embora o princípio de soberania das esferas exclua a interferência de
uma comunidade social nos assuntos de outra, quando cada uma apresenta
uma distinta esfera qualificadora, o conceito de leis típicas estende a mesma
não interferência mútua a comunidades que têm um tipo distinto de
autoridade mesmo dentro da mesma esfera.
Já deveria estar claro até o momento por que nossa afirmação de que
apenas Deus possui a autoridade suprema, e de que toda a autoridade vem em
última instância de Deus, não deve ser confundida com qualquer tipo de
teocracia. Isso não significa que o próprio Deus deveria governar o Estado,
ou os negócios, ou as escolas, ou as famílias. Deus é a fonte de autoridade em
nossa vida social mediante a forma que ele criou os humanos e o mundo. Por
um lado, isso significa que existe tal necessidade natural por autoridade
implantada na natureza humana, que se as autoridades estabelecidas forem
destruídas, as pessoas inevitavelmente erguerão novas. Por outro lado, isso
também significa que os tipos de autoridades que as pessoas necessitam e
reconhecem correspondem às distintas esferas da vida humana. Assim, do
mesmo modo que nos opomos à noção de que a dependência da criação em
relação a Deus é mediada por quaisquer dos aspectos da criação, também nos
opomos às ideia de que Deus teria canalizado sua autoridade para toda a
criação por meio de uma ou duas instituições como a igreja ou o Estado.
Cada tipo de autoridade que existe nas distintas esferas da vida é diretamente
dependente de Deus, e nenhuma é derivada de alguma outra. Em nossa visão,
assim, não existe uma única autoridade ou instituição social que seja
suprema sobre as demais, e atribuir tal status a qualquer comunidade é
usurpar um status que pertence somente a Deus.
Anteriormente citei João Calvino em relação à ideia de um Estado
limitado baseado em múltiplas autoridades, de modo que me parece
apropriado reconhecer o débito que temos com ele pelas conclusões do
último parágrafo. As ideias afirmadas aqui foram claramente reconhecidas
por ele no século XVI, especialmente em respeito à relação do Estado com a
igreja. Em seus dias já havia séculos de argumentação (e lutas) no tocante a
se era a igreja ou Estado a autoridade suprema na sociedade. Calvino não
tomou um dos lados. Pelo contrário, sua posição foi a de que enquanto alguns
assuntos da vida estão sob a jurisdição do Estado, e outros são questões da
igreja, grande parte da vida não deve ser regulada por nenhuma das duas.[301]
A ideia de esferas distintas e limitadas de autoridade para cada instituição foi
uma das pressuposições motivadoras para muitas das mudanças substanciais
nos governos da Europa e da América do Norte nos dois séculos após
Calvino. Também foi a base para a doutrina de que tanto indivíduos como
comunidades possuem direitos relativos ao Estado como contrapartes aos
limites sobre a autoridade dos governos. Por exemplo, essa doutrina deu aos
puritanos ingleses sua justificativa para exigir liberdade de imprensa e
liberdade de crença[302]. E foi a partir dessa influência que Thomas Jefferson
extraiu a ideia que chamava (distorcidamente) um “muro de separação entre a
igreja e o Estado”. Digo “distorcidamente”, porque nenhuma das duas
comunidades pode ser completamente isolada por muros, embora a
autoridade de cada seja limitada à sua própria esfera. Na verdade, o contexto
calvinista para muitas das ideias expressas na Declaração Americana de
Independência era tão óbvia a George III da Inglaterra, que quando a leu pela
primeira vez teria exclamado: “As igrejas calvinistas na colônia
enlouqueceram!”
Figura 8

Não pode existir um esquema único para representar a visão da soberania das
esferas da sociedade, porque é impossível representá-la em um diagrama bi-
dimensional. Para relembrar isso, ofereço dois diagramas. O primeiro (Figura
8) representa o funcionamento de um indivíduo em uma série de aspectos
normativos que correspondem às esferas sociais que qualificam as funções
guias das comunidades nomeadas próximas a elas. Neste esquema, o centro
do círculo representa uma pessoa individual. Cada indivíduo apresenta todos
os aspectos em sua vida social, os quais são designados pelos segmentos do
círculo, quer participem ou não ativamente nas comunidades
correspondentes. Externamente a cada segmento são nomeadas (algumas das)
as comunidades que são qualificadas por esse aspecto, comunidades que as
pessoas formam para expressar, promover e proteger os interesses da vida
que aquele aspecto qualifica.
O segundo diagrama (Figura 9) representa uma visão de uma série de
comunidades sociais conforme variam ao longo dos aspectos, a partir de sua
função fundante até sua função guia, de acordo com suas leis típicas.
Figura 9

Como deveria estar evidente mesmo neste breve esboço, nossa teoria social
quer considerar todas as comunidades sociais. Assim como a teoria da
estrutura de leis da realidade tenta oferecer uma descrição sobre a natureza de
todas as coisas, desde um átomo, passando por uma escultura, até a uma
comunidade, do mesmo modo sua aplicação a uma teoria da sociedade não
quer deixar de fora nenhuma comunidade social. Nesse tocante, ela contrasta
favoravelmente com aquelas teorias que se restringem apenas à relação do
indivíduo com o governo, como o fez Locke e os pais fundadores dos EUA.
Muitas teorias sociais modernas não fazem muito mais do que isso,
expandindo seu escopo para incluir no máximo as relações da família,
governo, igreja e negócios. Como consequência, elas invariavelmente
interpretam equivocadamente as naturezas de comunidades como escolas,
organizações artísticas, sindicatos, partidos políticos, e organizações de
caridade, seja por subsumi-las ao Estado ou ao considerá-las como negócios.
Tal desentendimento distorce a própria natureza dessas comunidades, e
prejudicam em muito seu efetivo funcionamento.
O próximo capítulo esboçará uma teoria do Estado orientada tanto pela
teoria da estrutura de leis quanto pelo princípio de esfera de soberania. Nele
ilustrarei de forma mais ampla o conceito de lei típica, de modo a termos uma
descrição mais detalhada dos deveres e limites do Estado, baseada numa
descrição mais profunda de sua natureza. Mas há uma questão relacionada ao
Estado que é geralmente levantada em relação ao princípio de esfera de
soberania que, penso, deveria ser respondida neste momento. A questão é se a
ideia da não interferência entre comunidades sociais não necessitaria, em
alguns contextos, de ser implementada e, caso positivo, se o Estado não teria
de realizar tal implementação. A questão pretende sugerir que a exigência de
que o Estado aplique limitações sobre si mesmo é tanto irônico quanto
impraticável.
A despeito da ironia, a resposta a ambas as questões, no entanto, é
“sim”. Isso é simplesmente o correto porque a esfera de soberania deve agir
como um princípio orientador para nossa ideia de justiça, de modo que tem
de refletir-se na legislação para que seus benefícios sejam desfrutados. Em
nossa visão, portanto, garantir a distinção e integridade de esfera de todos os
tipos de comunidades é parte da administração da justiça pública, que, por
sua vez, é o dever do Estado. Isso não significa, no entanto, que o Estado cria
as fronteiras das esferas entre as comunidades. Antes, significa que ele é
chamado a observar e impor tais fronteiras para o benefício de todas as
comunidades e seus membros individuais. Em relação à alegada ironia
envolvida nisso, posso apenas dizer que em todas as nações onde
presentemente há um governo limitado com um sério interesse pelos direitos
humanos, esses benefícios se seguem precisamente porque o Estado limitou a
si mesmo. De que outra forma isso poderia ter ocorrido? Assim, embora o
objetivo da questão seja demonstrar ceticismo de que aqueles no poder de
alguma forma concordariam em legislar limites a ele, a questão na verdade
serve para destacar a forma que nossas crenças sobre a natureza vida social
humana orienta a legislação. Onde as pessoas creem que a sociedade é uma
hierarquia e que existe uma pessoa ou instituição suprema, eles criam leis que
aplicam essa ideia. Mas onde pessoas creem que indivíduos e comunidades
possuem direitos e obrigações em relação umas às outras de modo que não
existe uma autoridade suprema, eles criam leis que aplicam, por sua vez, essa
ideia. E eu lembraria ao cético um exemplo notável disso, a saber, que
George Washington recebeu por duas vezes poderes ditatoriais emergenciais
pelo Congresso dos Estados Unidos, mas voluntariamente abriu mão deles,
em ambas as vezes por sua própria iniciativa. (Como resultado, quando
Washington morreu, seu adversário George III o chamou de o maior homem
do mundo, pois possuiu poder absoluto, mas voluntariamente o renunciou.)
Tudo isso serve para nos lembrar que nenhuma forma de governo em si
mesma é suficiente para assegurar direitos e liberdades, e que o fator crucial
para o tipo de Estado que uma nação tem é em que seu povo — incluindo os
oficiais do governo — crê. Se seu sentido de justiça e suas ideias sobre
comunidades sociais são orientados pela ideia de soberania de esfera entre
tipos distintos de comunidades em vez de serem orientados por alguma
versão da ideia totalitária de sociedade, eles então podem obter os benefícios
consequentes de um Estado limitado e direitos humanos. Mas, ainda assim,
nenhuma forma particular de tal governo pode garantir que o Estado nunca
usará mal seu poder.
Desse modo, apesar das muitas bênçãos jurídicas e sociais que a ideia
de esfera de soberania possibilita, não supomos que essa iria inaugurar uma
utopia se posta em prática. Mesmo se amplamente crida e rigorosamente
aplicada, ela não poderia garantir que erros não seriam cometidos em sua
aplicação ou imposição, da mesma forma que ela não faria com que o pecado
humano, a criminalidade, a pobreza, ou a guerra, desaparecessem
magicamente. Tudo o que afirmamos é que os princípios de nossa teoria são a
chave para o entendimento das liberdades, direitos e obrigações apropriados
que as comunidades possuem umas em relação às outras. E também
afirmamos que a ideia correta desses limites, direitos e liberdades
intercomunais é precisamente o que deixa espaço para a delineação de
direitos e liberdades dos indivíduos em relação às comunidades e dos
indivíduos em relação uns aos outros.
CAPÍTULO 12. UMA TEORIA NÃO
REDUCIONISTA DO ESTADO

12.1 Introdução
A visão da sociedade apresentada teoria da estrutura de leis, esboçada no
último capítulo, pode agora aplicada especificamente à teoria política, ou
seja, em uma teoria sobre a instituição do Estado. Ao nos referirmos a esta
instituição, lidaremos principalmente com o governo, mas não apenas com o
governo. Um governo é o corpo regente em um Estado, como os pais são o
corpo regente em uma família, ou um conselho administrativo é o corpo
regente em um negócio. Portanto, do mesmo modo que há mais numa família
do que os pais, e mais num negócio do que o conselho administrativo,
também há mais coisas no Estado do que seu governo. A instituição do
Estado em sua inteireza inclui tanto o governo quanto os cidadãos, e pode ser
definida como: uma comunidade política organizada sob um governo.
Ao falar assim do “Estado” não se deveria confundir com o fato de que
alguns deles são divididos em subdivisões que em alguns momentos também
são — de forma bastante confusa — denominados “Estados”. A definição
apresentada acima deveria, no entanto, ser suficiente para evitar a confusão
entre os dois significados, uma vez que ela deixa claro que analisaremos as
comunidades políticas em sua inteireza, e não simplesmente suas subdivisões.
Assim, o termo “Estado”, conforme utilizo doravante, não se refere, portanto,
meramente às subdivisões de uma comunidade política tais como os estados
individuais que constituem os Estados Unidos da América. Na forma em que
utilizo o termo, existe apenas um Estado na nação dos Estados Unidos.
Apesar do papel sempre crescente que o governo exerce na vida
moderna, muitos que creem em Deus quase não podem encontrar orientação
de sua fé para suas vidas como cidadãos. Eles podem entender, por exemplo,
que ela os ensina a exigir honestidade dos oficiais do Estado, e que ela os
exorta a obedecerem às leis. Mas esses pontos são mais éticos do que
políticos, e são tão elementares ao ponto de não oferecerem qualquer
orientação para a multidão de questões difíceis em relação às quais os
crentes em Deus devem se decidir quando votam na condição de cidadãos.
Portanto, veremos agora como a teoria da estrutura de leis pode esboçar uma
conexão mais estreita entre a crença em Deus e alguns assuntos
especificamente políticos. Farei isso resumidamente sugerindo como os
princípios oferecidos por essa teoria podem ser aplicados à natureza do
Estado e a uns poucos tópicos selecionados, de modo a ilustrar suas
consequência políticas. Isso não significa que posso desenvolver uma teoria
política inteira aqui em um curto capítulo. Em relação aos dois capítulos
anteriores, posso apenas esboçar um rascunho sobre como tal teoria poderia
ser elaborada. E, por favor, mantenham em mente que o principal propósito
do capítulo não é tanto esse rascunho, mas sim tornar mais claros os
conceitos e princípios da teoria da estrutura de leis aplicando-as dessa
maneira. Por essa razão, farei constantes referências aos pontos já
apresentados nos dois últimos capítulos, aplicando-os ao que a teoria da
estrutura de leis tem a dizer sobre a distinta natureza do Estado.
Dooyeweerd observou certa vez: “Talvez não haja outra... comunidade
cujo caráter tenha dado origem a tamanha diversidade caótica de opiniões na
filosofia social e nas ciências sociais modernas do modo que o Estado o fez”.
[303]
Ele então prosseguiu dizendo que não apenas em teorias sociais
modernas, mas também nas antigas, o entendimento da natureza do Estado
sempre girou em torno da questão sobre a relação entre “poder” e “direito”.
Em outras palavras, a relação apropriada entre o uso estatal do poder e seu
dever de formular uma ordem de justiça pública tem sido um tema central e
constante na teoria política. Pautando-se nos dois componentes desse tema
central, a teoria da estrutura de leis será agora aplicada à natureza do Estado
em duas partes: uma que lidará com o poder do Estado, e outra, com a justiça
no Estado.

12.2 A natureza do Estado: o que é?


Nossa teoria se debruça sobre a natureza do Estado a partir de diversos
ângulos. Primeiro, ela nos oferece uma norma para a sociedade — o princípio
de soberania da esfera — que nos liberta de sermos restritos às duas
principais opções oferecidas pelas teorias tradicionais: (1) o Estado é o topo
de uma hierarquia social e, dessa forma, exercita um controle totalitário sobre
todas as outras comunidades e indivíduos, ou (2) o Estado tem controle
totalitário sobre todas as outras comunidades, mas não sobre os indivíduos.
Em segundo lugar, nossa teoria nos leva a buscar pelas funções fundantes e
guias das comunidades, que, unidas, as qualificam de modo a oferecer a
caracterização aspectual de sua natureza. Em terceiro lugar, a análise da
relação entre as funções fundantes e guias de um Estado é, em nossa teoria, a
forma de descobrir e tornar acessível sua lei típica, que é o princípio
estrutural para todos os Estados. Dessa forma, uma análise da lei típica de um
Estado pode produzir um conceito ainda mais detalhado de sua natureza.
O significado básico do conceito de uma lei típica, dissemos, é que ela
nega que qualquer tipo de entidade — incluindo o Estado — seja
infinitamente variável ou completamente arbitrário. Uma lei típica é a
explicação de nossa teoria das razões pelas quais nos é impossível modificar
algo em qualquer coisa que desejemos e, ainda assim, fazer com que
permaneça sendo o mesmo tipo de coisa. Tão logo afirmemos que existe uma
lei para cada tipo de coisa na criação, entendemos a organização interna geral
das coisas de um tipo particular como algo permanente naquele tipo. Em
razão de as leis típicas serem interaspectuais, elas fazem isso relacionando as
funções fundante e guia em cada coisa daquele tipo, assim como todas as
outras propriedades que cada uma possui. Entender que a conexão típica
fundacional das funções fundante e guia de uma coisa é garantida por essas
leis da criação nos habilita a relacionar de maneira correta seus componentes
internos e a identificar as funções essenciais a ela e a todas as outras coisas
do mesmo tipo.
Mas aqui cabe um lembrete: também vimos que embora a análise de
uma lei típica possa nos auxiliar a discernir os componentes que são
essenciais a todas essas coisas de um tipo particular, ela não garante que
esses componentes estarão sempre relacionados exatamente da mesma forma
que as leis demonstram ser apropriado. Isso ocorre porque as leis típicas são
(parcialmente) normativas. Assim, coisas particulares podem se conformar às
suas leis típicas em um grau ora mais ora menos elevado, sendo pois
exemplos melhores ou piores de seus tipos. Isso é verdadeiro em relação às
coisas naturais que são qualificadas por aspectos normativos, tais como
plantas e animais, e também no que diz respeito a artefatos. Na verdade, uma
coisa pode ser tão severamente deformada antes de alcançar-se o ponto
específico no qual sua variação de sua lei típica é tão imensa que ela cessa
completamente de ser aquele tipo de coisa. Desse modo, uma lei típica nos
mostra não apenas as formas que uma coisa de determinado tipo não pode
deixar de ser (isto é, revela-nos suas partes e propriedades essenciais), mas
mostra-nos também como ela deveria ser (a relação correta de suas partes
essenciais). Por exemplo, um casamento deve incluir os cônjuges, ou não há
casamento, e uma família deve incluir pais e filhos. Mas as relações entre
parceiros de um casamento ou membros de uma família podem variar de
modo que determinado casamento ou família sejam excelentes, ao passo que
outros sejam péssimos. Foi ligado a isso, portanto, que notamos que as leis
típicas oferecem pois uma ordem às criaturas que é parcialmente necessária e
parcialmente normativa; parte do que elas determinam não pode ser
desobedecido, enquanto a outra parte o pode. Elas compreendem uma ordem
interaspectual que tanto estabelece limites de possibilidade para um tipo de
coisas quanto oferece um padrão para aquilo que coisas daquele tipo
deveriam ser.
No caso do Estado, portanto, analisar sua lei típica há de nos auxiliar a
entender os componentes que são inevitáveis para qualquer Estado e, de igual
modo, o modo como eles deveriam ser relacionados. Esses dois não devem
ser confundidos. Ou seja, nem todas as relações que ele demonstra serem
apropriadas deveriam ser entendidas como se descrevessem todos os Estados
existentes no passado e no presente, uma vez que qualquer Estado existente
pode possuir essas relações em graus variados.[304] Por exemplo, nossa
descoberta de que a lei típica para o Estado requer que ele tenha alguma
organização de poder militar jamais justificará abusos desse poder por
qualquer Estado. Pelo contrário, a função guia jurídica, que está relacionada
ao poder militar pela lei típica, é a norma mediante a qual o exercício de
poder real em qualquer Estado pode ser julgado.

A. Poder estatal
De acordo com a teoria da estrutura de leis da sociedade, a natureza da
instituição do Estado é qualificada por uma correlação entre uma função
fundante histórica e uma função guia jurídica. Isso significa que, por um lado,
o Estado é um produto da formação cultural humana guiada por normas
históricas, e que, por outro, sua atividade na sociedade é guiada pela norma
da justiça. Sua função guia jurídica é a mesma que denominamos
anteriormente como seu propósito estrutural. Para o Estado, esse propósito
pode ser circunscrito como a promoção e o alcance de justiça pública para a
sociedade inteira que vive no território que governa.
Comunidades que são historicamente fundadas são produtos da
formação cultural, mas cada tipo delas também exerce seu próprio tipo de
influência histórico-cultural na sociedade, correspondente à sua função guia.
Por exemplo, um negócio pode ser uma força econômica, uma escola pode
exercer o poder dos conceitos e das ideias, enquanto uma organização
artística pode ter influência estética, e uma igreja ou mesquita pode
influenciar as crenças éticas e religiosas de uma sociedade. O mesmo é
verdadeiro acerca do Estado. Ele, também, exerce uma influência ou poder
que corresponde à sua função guia. No caso do Estado, esse é o poder de
legislação: o Estado empunha o poder para promulgar leis visando a
consecução de seu propósito estrutural, a saber, a administração da justiça
pública.
Por essas razões, nossa primeira aproximação da lei típica que
determina estruturalmente o Estado é que a organização interna de qualquer
Estado deve incluir pelo menos duas subdivisões: órgãos para a aplicação da
justiça (militar e polícia), e órgãos para decidir sobre o que é justo (legislatura
e cortes).
Ademais, essa lei típica revela algo importante sobre a maneira
apropriada pela qual essas duas subdivisões deveriam relacionar- se dentro de
um Estado. Os órgãos de força correspondem à função fundante do Estado,
ao passo que seus órgãos para o estabelecimento e interpretação das leis
correspondem à sua função guia. Desse modo, em um Estado formado
adequadamente, essas duas partes do Estado não deveriam ser idênticas
(como elas são em uma ditadura militar), nem deveria o órgão militar
controlar ou direcionar o estabelecimento e interpretação da lei. Antes, os
órgãos de justiça deveriam controlar e dirigir os órgãos de poder de aplicação
da lei.
Com isso não estamos sugerindo que o Estado é a única comunidade
ou relacionamento social no qual a justiça seja um interesse, nem que sejam
os únicos que produzem regras e leis. Deve haver justiça em todos os
relacionamentos e comunidades humanas — por exemplo, dentro de uma
escola, um negócio, um casamento, ou uma família. E uma das facetas mais
importantes da noção de soberania em nossa expressão “esfera de soberania”
é que os vários tipos de comunidades possuem todos o direito de produzir leis
ou regras que governem suas operações internas. Mas é apenas o governo —
o corpo regente no Estado — que tem a autoridade e o direito de legislar e
fazer cumprir a justiça para o público em geral. E é apenas o Estado que o faz
com o direito de utilizar o poder da força para amparar suas leis, em distinção
às outras formas de poder cultural. Esse direito é conferido por sua função
guia, ao serviço da qual seu poder se torna o uso “legítimo” da força. Uma
família, por exemplo, pode buscar justiça produzindo leis e pode aplicá-las
por meio de atitudes de aprovação e desaprovação, ou punições associadas a
privilégios familiares. Um negócio pode ter seu próprio código, assim como
uma escola, um sindicato, ou um clube. E leis eclesiásticas têm sido
altamente elaboradas. Essas comunidades podem todas impor sanções,
incluindo a expulsão ou o banimento de membros abusivos. Mas apenas o
Estado pode criar leis para estabelecer a justiça pública, e impor sanções para
o confisco de propriedade, perda de liberdade, ou mesmo a morte, por meio
da força fisicamente coercitiva.[305]
Por essa razão, afirmamos que uma importante consequência do
reconhecimento da lei típica do Estado, conforme difere daquela das outras
comunidades, é que o Estado é plenamente atual apenas onde possui o
monopólio do uso da força no território que ele governa. Na medida em que
ele não possui tal monopólio, sua habilidade de executar seu propósito
estrutural é minado. Nesse caso, qualquer comunidade que possua um poder
competidor é, de fato, um governo competidor dentro do mesmo corpo
político. Isso pode ocorrer em tempos de guerra civil, ou quando um
movimento político rival se arma para derrubar o governo, ou mesmo quando
uma organização usurpa o direito de alcançar suas metas pela força (tais
como o crime organizado). Dessa maneira, embora uma sociedade possa
produzir uma arte magnífica ou ter uma forte economia, sem uma força
militar ou proteção policial, ela jamais terá um Estado enquanto não puder
aplicar suas próprias leis ou defender seu território.
Uma vez que o Estado é parcialmente caracterizado pela posse do
direito do uso da força, alguns escritores na tradição cristã — especialmente
Santo Agostinho[306] — sugeriram que o Estado foi estabelecido na sociedade
humana apenas por conta do pecado. Vendo o Estado como essencialmente
uma restrição ao crime, eles afirmam que o Estado não teria lugar na
sociedade, caso as pessoas não fossem pecadoras. Ela é, portanto, uma
instituição “adicionada”, sem um papel apropriado nos assuntos humanos no
que tange à vida originalmente intencionada por Deus. Essa visão tem dois
importantes efeitos colaterais. Por um lado, ela promove uma visão bastante
estreita sobre a tarefa apropriada do Estado, e, por outro, tem fomentado uma
subestimação do Estado e da política. Essa subestimação, por vezes, tem
conduzido alguns pensadores a invocar bases teológicas para a opinião de que
os crentes em Deus deveriam se retirar totalmente das atividades políticas. A
teoria da estrutura de leis deve discordar dessa visão bastante limitada acerca
da tarefa do Estado. Como veremos adiante em maiores detalhes, a justiça
pública é um tema muito mais amplo do que simplesmente a restrição do
crime, e seria uma necessidade humana genuína mesmo se não houvesse
pecado. Em sua direção positiva, a tarefa do Estado é promover a paz e a
harmonia entre as pessoas e comunidades. James Skillen fez esse mesmo
ponto comparando o Estado e a família:
Biblicamente falando, a vida familiar foi criada por Deus para um
propósito positivo, amoroso, estimulante e designado para revelar a
Deus. Parte de nossa identidade como a imagem de Deus é que somos
filhos e filhas e frequentemente pais e mães. A família não surgiu como
uma invenção técnica para castigar filhos desobedientes. A punição e a
disciplina negativa não são a razão da família. Reconhecemos,
obviamente, que devido ao pecado pais terão de incorporar a punição na
criação de seus filhos a fim de promoverem famílias saudáveis. Mas o
castigo físico e outras formas de retribuição se encaixam em um sentido
mais original, mais profundo e amplo da vida familiar.
A vida em comunidades políticas é decerto bastante distinta da vida
familiar. Não pretendo descrever a vida cívica como a vida familiar
ampliada. Em vez disso, a analogia é esta: o propósito do governo, a
razão para a vida política não é primeiramente a punição de
transgressões por meio de oficiais do Estado, advogados de acusação e
forças armadas. Antes, o sentido central da vida política encontra-se na
realidade positiva de uma comunidade pública — os
interrelacionamentos saudáveis das pessoas mediante meios legais
públicos, de modo que o comércio, a vida familiar, a agricultura, a
indústria, a ciência, a arte, a educação, e muitas outras coisas possam ser
todas conduzidas simultaneamente, no mesmo território e de modo
harmônico e justo.[307]

Isso ajuda-nos a ver que mesmo se o pecado não fosse um fator, mesmo se as
pessoas vivessem em amor genuíno e harmonia umas com as outras, ainda
existiria a necessidade de uma ordem pública para definir justiça. Por
exemplo, ainda poderiam surgir diferenças honestas de opinião acerca de
propriedades ou contratos, as quais precisariam ser resolvidas por
especialistas imparciais em justiça. Sem dúvidas é por isso que as visões
judaica e cristã sobre o destino final do povo de Deus é que seus membros
serão cidadãos de seu reino, o qual será governado por seu Messias. Assim,
de acordo com o livro de Isaías, mesmo naquele reino onde “não se fará mal
nem dano algum em todo o meu santo monte” (11.9), ainda haverá a
necessidade de um governante que, “em verdade, promulgará o direito” e irá
“estabelecer na terra a justiça” (42.3,4). Por estas razões, penso que a visão
estreita [sobre o Estado] é resultado de um foco exclusivo sobre as
responsabilidades do Estado na lei criminal e na defesa nacional, excluindo
assim seus deveres em lei civil e lei internacional.
Obviamente concordo que o caráter do poder do Estado é
completamente alterado pelo fato do pecado nos assuntos humanos. Onde não
há pecado, as pessoas não teriam de ser compelidas a obedeceram às leis ou
às decisões da corte da maneira que hoje é necessário. Em relação a isso, é
significativo que o livro de Isaías também prediz que no reino final de Deus
as pessoas “converterão as suas espadas em relhas de arados e as suas lanças,
em podadeiras”, e “uma nação não levantará a espada contra outra nação”
(Is. 2.4). Mas mesmo nesse caso ainda haveria a necessidade de aplicar-se
princípios de justiça aos mutáveis assuntos humanos.[308]
Em relação ao segundo efeito colateral, não pode haver qualquer
dúvida de que a atividade política é apropriada para aqueles que creem em
Deus. A partir de um ponto de vista teísta, o que é inapropriado é que os
crentes abandonem o interesse pela justiça e a operação do Estado aos
incrédulos — assim como seria inapropriado que abandonássemos a
produção de ciência ou filosofia àqueles que têm outra divindade que não
Deus. Se nossa crença em Deus deve sublinhar e dirigir a totalidade da vida,
como as Escrituras declaram que deveria, então ela deveria dirigir também a
teoria e a prática políticas. É por isso que propomos a busca de tal orientação
por meio do desenvolvimento de uma teoria não reducionista da realidade e
da sociedade, suplementado pela ideia cristã de esferas de soberania. Dessa
forma, a crença em Deus pode oferecer orientação política que vai muito
além de uma oposição específica à tirania, do favorecimento da liberdade
religiosa, e de uma convocação aos oficiais do governo à honestidade. Ela
traz uma norma distinta para a sociedade (soberania de esfera), assim como
oferece uma visão específica sobre a natureza do Estado que tanto esclarece
seus deveres quanto estabelece os limites apropriados ao uso do poder ao
recorrer a seu propósito estrutural.
B. Justiça pública
De acordo com a teoria da estrutura de leis, existe um aspecto distinto da
experiência humana que corresponde às propriedades jurídicas possuídas
pelas pessoas, ações, instituições e regras. Também existe uma norma que
compreende o lado lei desse aspecto jurídico. Assim como nas leis e normas
dos demais aspectos, afirmamos que a norma da justiça não é meramente uma
invenção humana, mas parte da estrutura de leis que Deus instituiu na
criação. Essas normas são válidas, portanto, para todas as pessoas em todos
os tempos, mesmo que sua aplicação efetiva possa exigir a promulgação de
distintos estatutos legais ou a necessidade de variados procedimentos legais
sob distintas circunstâncias. Este aspecto jurídico de nossa experiência é
inicialmente conhecido da mesma forma intuitiva como todos os demais
aspectos: simplesmente o encontramos como parte do sentido de nossa
experiência de vida. A intuição de sua norma é o que geralmente chamamos
de nosso “senso de justiça”, e é comum entre os humanos em todas as partes.
Essa norma pode ser circunscrita como a ideia de tratar outros de forma a dar-
lhes o que lhes é devido. Isso soa tão demasiadamente simples que
deveríamos acrescentar que a norma possui uma série de facetas. Ela inclui
tais facetas como a de que nosso tratamento dos outros deveria ser imparcial,
deveria demonstrar uma proporcionalidade entre vários direitos, e deveria
envolver equidade na distribuição de direitos. A norma não é, portanto,
apenas de justiça retributiva (mesmo que a retribuição envolva tanto
recompensas quanto punições), mas ela também ordena justiça distributiva e
proporcional.
Como foi o caso com a experiência dos outros aspectos, o
reconhecimento intuitivo das verdades jurídicas não está confinado àqueles
que têm uma fé teísta. Muitos insights sobre a justiça têm sido descobertos
por pessoas cuja fé está em outras divindades, então aqui também não
necessitamos buscar por um entendimento totalmente novo sobre justiça. Não
precisamos ignorar tudo que se aprendeu a seu respeito no mundo antigo, que
foi incorporado à lei romana, ou que foi transmitido pela tradição anglo-saxã
da Common Law, por exemplo. No entanto, como também foi o caso com os
demais aspectos, o reconhecimento intuitivo das verdades jurídicas é
inevitavelmente dirigido e interpretado sob a influência de alguma crença
sobre a divindade. E como o foi com os demais aspectos da vida, também em
questões de justiça a influência religiosa é percebida mais claramente nas
teorias produzidas acerca dela: sua interpretação é influenciada por teorias da
realidade, da natureza humana, da natureza da sociedade e da natureza do
Estado. E onde essas teorias pressupõem uma crença pagã, os reducionismos
resultantes distorcem o sentido intuitivo em favor daqueles (ou daquele)
aspectos que são considerados divinos. O resultado é que alguns temas
jurídicos são super-enfatizados, enquanto outros não recebem o peso
apropriado, ou são totalmente ignorados.
Considere brevemente apenas um exemplo disso. Nos Estados Unidos,
a lei civil assume que qualquer que cause ao outro um prejuízo deveria
compensar a parte prejudicada. Isso se dá porque parece uma exigência óbvia
da justiça que se eu causo um dano à sua pessoa, propriedade, reputação, etc.,
eu deveria restaurar sua perda. Não é incrível, então, que essa necessidade da
justiça que parece tão óbvia para casos civis continue não reconhecida para
casos criminais? Por que se inadvertidamente causo um prejuízo pessoal, a
lei exige que pague por seus custos médicos e pela perda de seu tempo de
trabalho, mas se eu deliberadamente causo a outrem o mesmo prejuízo ao
assaltá-lo, a lei não exige que o compense?
O que está por trás desse ponto cego é uma visão falsa do Estado —
uma visão contra a qual argumentei no último capítulo. É a visão que entende
que a autoridade do governo tem origem no Estado (no caso, a vontade da
maioria), e não na estrutura de leis divinamente estabelecida. Onde se
entende que autoridade da lei é gerada pelo próprio Estado, é fácil enxergar
todos os atos criminosos como ofensas contra o Estado ao invés de contra as
vítimas destes atos. Assim, o código criminal dos EUA presume que o Estado
é a parte prejudicada em ações criminais! É por essa razão que o Estado
recebe qualquer taxa imposta ou qualquer propriedade confiscada, e é
considerado como a parte ao qual qualquer pena de prisão contará como um
débito pago. (Daí a expressão de que um condenado liberto teria “pago sua
dívida com a sociedade”, em que sociedade é claramente um sinônimo para
“o Estado”.) Essa visão serve para garantir que a parte realmente prejudicada,
a vítima, permaneça sem compensação pelas perdas sofridas, o que é
claramente uma injustiça.[309] Essa falha é ainda mais notável face ao fato de
que a lei de Moisés foi mais justa do que isso há mais de 3.000 anos, assim
como o são em muitos países europeus hoje.
Em contrapartida, a teoria da estrutura de leis vê o Estado como o
portador, não o criador, da autoridade que ele empunha ao aplicar a justiça.
A vontade da maioria decide quem serão os portadores daquela autoridade,
mas a autoridade em si mesma deriva-se da estrutura de leis da criação e,
portanto, em última análise de Deus. O Estado, portanto, é visto como a
instituição encarregada de ser o zelador jurídico de seus cidadãos. No que diz
respeito à lei criminal, ele deve agir portanto em seu interesse, não em
interesse de sua própria majestade ofendida. Dessa forma, vemos sua tarefa
apropriada a partir de um ângulo mais amplo do que o faz o código criminal
dos EUA. Vemo-lo encarregado não apenas em apreender, punir e — se
possível — reabilitar criminosos, mas também em outorgar justiça para a
parte real prejudicada, a vítima.
Essa é apenas uma instância de muitos insights políticos e legais que
nossa teoria pode oferecer. Em razão de sua visão teísta cristã acerca da
natureza da autoridade, de sua diferenciação de esferas sociais e de sua
análise dos tipos distintos de comunidades sociais, a teoria da estrutura de leis
nos auxilia a orientar nosso sentido de justiça, de modo que ele não se torne
estreitamente focado num segmento particular do espectro jurídico,
negligenciando os demais. Talvez essa vantagem possa ser mais bem
ilustrada comparando a teoria da estrutura de leis às duas visões mais
influentes de justiça, o individualismo e o coletivismo. Já vimos por que
ambas as teorias são teisticamente inaceitáveis. Cada uma é baseada na
convicção de que a fonte de autoridade nas comunidades sociais deve ser
localizada dentro da criação: em indivíduos que possuem um direito natural
para governar, ou numa comunidade toda-abrangente.
Contra o pano de fundo da discussão dessas teorias reducionistas
iniciada no último capítulo, irei agora comparar cada uma delas às
consequências da teoria da estrutura de leis para a natureza do Estado
enquanto instituição. Conforme prosseguir nessa análise, continuarei a
esboçar meus exemplos em grande medida a partir de assuntos e
circunstâncias políticas nos Estados Unidos. Começarei com uma rápida
leitura do coletivismo e algumas ilustrações de sua influência. Então
dedicarei mais tempo fazendo distinção entre a visão da estrutura de leis e o
individualismo, uma vez que muitas pessoas pensam que este é a única forma
de evitar o autoritarismo, e também porque ela é bem mais influente na cena
política dos EUA. Outra razão para dedicar mais tempo com essa visão é que
muitos teístas, incluindo muitos cristãos, pensam que, já que o individualismo
buscar evitar o totalitarismo, ele deve ser um ponto de vista teísta ou mesmo
cristão.
Na teoria coletivista, os direitos jurídicos devem em larga medida
proceder do público, organizados pelo Estado, e não dos indivíduos nem das
normas criacionais. Uma vez que a visão coletivista enxerga o bem da
sociedade como um todo como primordial, sua perspectiva sobre a justiça
tende a negligenciar tanto os indivíduos quanto as outras comunidades que
não o Estado. Mesmo aqueles socialistas que querem admitir que os direitos
não são criados apenas pelo Estado, mas procedem da sociedade como um
todo, são, no entanto, eventualmente forçados a identificar a sociedade com o
Estado. Por mais que tentem, os coletivistas não podem fugir das
consequências de sua teoria, isto é, de que os direitos são dádivas que o
Estado outorga aos indivíduos ou comunidades conforme julgue apropriado,
os que podem ser subtraídos ou alterados conforme o Estado também julgue
apropriado. Isso significa que o Estado é, em princípio, ilimitado em sua
competência legal. A própria ideia de justiça será, assim, tudo aquilo que o
Estado deseja. Isso permite um Estado totalitário que nivele as diferenças
aspectuais entre esferas sociais, violando assim a soberania de esfera de todas
as outras comunidades sociais. Inevitavelmente defende-se essa teoria quando
se concebe todas as outras comunidades sociais como partes do Estado, o que
em última instância obscurece suas leis típicas e propósitos estruturais
distintos.
Já vimos como a teoria da estrutura de leis, embora concorde que o
Estado tem um dever para com a totalidade da sociedade, restringe o poder
Estatal à administração da justiça pública (incluindo a segurança pública).
Ademais, ele encontra essa restrição não em algum limite supostamente
externo estabelecido pela influência de outras instituições como a igreja e os
negócios, e que é aplicada por seus poderes concorrentes, mas sim na
natureza mesma do próprio Estado. É a própria estrutura interna do Estado
que estabelece seus limites apropriados. E é o entendimento de sua natureza
por parte de seus próprios cidadãos que é a fonte dessas ideias que em
seguida devem ser incorporadas em sua lei constitucional.
Também notamos que a história política dos EUA foi fortemente
influenciada não apenas pela ideia cristã que denominei soberania de esfera,
mas também pelo individualismo de pensadores tais como Locke. Mas apesar
do ímpeto anti-coletivista dessas influências, ainda permanece a tendência
coletivista nas políticas e leis dos EUA. Observe, por exemplo, a questão
aparentemente menor do entendimento sobre o que é uma licença de
motorista. Existem muitas razões pelas quais é apropriado ao Estado registrar
motoristas. Uma delas é que a licença é uma forma de taxação que auxilia no
pagamento de estradas públicas e outras despesas estatais relacionadas à
manutenção das vias de tráfego. Outra é que se um motorista é imprudente,
ou dirige embriagado, o Estado tem o dever de proteger outros por meio da
remoção de tais motoristas das estradas revogando suas licenças. Porém, cada
vez mais, essas licenças passaram a ser vistas como a garantia da Estado em
permitir que uma pessoa conduza um veículo. Nesse ponto, uma visão
coletivista do Estado entra em cena no vácuo deixado pelo individualismo.
Pois uma vez que o individualismo oferece apenas direitos naturais inatos aos
indivíduos como os limites ao poder do Estado, e uma vez que não é
plausível reivindicar que todos nascem com um direito natural inato para
dirigir um carro, conclui-se que ninguém tem o direito de dirigir. Nesse caso,
não sobre nada para limitar a autoridade do Estado, e conclui-se desse modo
que a única alternativa é dizer que dirigir é um privilégio garantido pelo
Estado.[310] Em contrapartida a essa posição, a esfera de soberania demonstra
por que muitas atividades não deveriam ser vistas nem como direitos per se,
nem como privilégios em relação ao Estado, mas sim como liberdades.[311]
Pode-se aplicar essa mesma argumentação no tocante às licenças para
casamento. Na visão da estrutura de leis, o Estado tem um papel regulador
legítimo para com os casamentos, quando estes estão relacionados à saúde
pública. Mas fora isso, uma licença para casamento nunca deveria ser vista
como a obtenção da permissão do Estado todo-poderoso para se casar; antes,
ela é uma forma de se registrar um casamento no Estado, de modo que ele
possa assumir seu lugar na ordem pública legal. Um casamento, dizemos, é
essencialmente uma instituição ética, qualificada pela norma do amor que
guia as relações entre os cônjuges. Como tal, um casamento é formado pela
promessa mútua de amor exclusivo entre os cônjuges; ele não é criado pelo
Estado, assim como não é criado por uma instituição religiosa. Em suma:
uma instituição religiosa pode abençoar um casamento, um Estado pode
reconhecer legalmente um casamento, e uma cerimônia ou celebração
pública pode declarar um casamento. Mas apenas os parceiros em um
casamento podem produzi-lo. Mas as leis em grande parte dos Estados
Unidos assumem a atitude reversa. No que diz respeito ao casamento e
divórcio, os estados ali entendem que ambos são privilégios garantidos pelo
governo.
Outra indicação mais sutil de um coletivismo residual (e seu
totalitarismo concomitante e sub-reptício) na mente pública dos EUA é
demonstrada pela forma que certas expressões têm vindo à tona no uso
comum tanto entre políticos quanto entre comentaristas jornalísticos. As
expressões às quais me refiro geralmente surgem em relação a escândalos
dentro da administração governamental e consistem em observações sobre
como seria melhor para todos se o escândalo fosse colocado de lado, a fim de
a não desviar a atenção do Presidente. A forma de expressar esse ponto, no
entanto, é realmente aterradora. Diz-se que deveríamos agora colocar esse
escândalo de lado e deixar que o Presidente “volte a dirigir o país”. Ainda
que tais observações não pretendam ser tomadas literalmente — isto é, não
buscam ser uma descrição do trabalho do presidente — existe o perigo real de
que falar dessa forma ajuda a obscurecer alguns princípios políticos
extremamente importantes e frágeis. Entre estes conceitos estão os de que o
Estado é apenas uma dentre muitas comunidades na nação, de que o governo
é apenas uma parte do Estado (embora seja a parte governante), e que o
Presidente comanda apenas um dos ramos do governo federal.
Esses pontos seriam, sem dúvidas, admitidos por aqueles que utilizam
a expressão. Mas o fato de que é utilizada de qualquer forma evidencia e
ajuda a reforçar a perigosa atitude de que sempre que nenhum direito
individual possa limitar de forma plausível o poder do Estado, as suposições
coletivistas podem entrar em cena. Assim, mesmo essa simples expressão
pode auxiliar na infiltração da crença de que o “país” é apropriadamente
regulado en toto pelo governo, a menos que algum direito pessoal individual
o limite.
Ademais, falar dessa maneira também serve para identificar na mente
popular a nação com seu governo. A história demonstra o risco dessa falsa
identificação. Em muitos países europeus os governos por séculos
encorajaram os cidadãos a verem seu Estado como idêntico à sua nação. Na
medida em que foram exitosos, as pessoas de muitas nações falharam em
enxergar seu governo como apenas uma instituição entre várias em sua
sociedade. Como resultado eles confundiram o orgulho e poder de seus
governos com a honra e a dignidade de seu país. Por conta disso, os governos
foram autorizados a interpretarem suas rivalidades mútuas como questões de
honra nacional, e portanto como razões supostamente boas o suficientes para
a guerra. Desse modo, identificar o orgulho do Estado com a honra nacional
foi a maior causa das guerras europeias por centenas de anos.[312]
Vamos considerar agora a teoria individualista de que o Estado é um
contrato celebrado entre indivíduos soberanos. Uma influente apresentação
dessa visão, que veio a exercer influência mundial, é aquela apresentada na
Declaração da Independência dos Estados Unidos. Ali Jefferson afirmou que
é autoevidente que “todos os homens são criados iguais, dotados pelo seu
Criador de certos direitos inalienáveis”, e que “é para assegurar esses direitos
que os governos são instituídos entre os homens”. Em seu contexto histórico,
os colonos americanos ofereceram essas declarações como razões para
dispensar George III da Inglaterra como seu rei legítimo, com base no fato
que ele havia violado seus direitos inalienáveis.[313]
A noção de que pessoas possuem direitos relativos ao Estado foi
parcialmente inspirada pelas ideias bíblicas que chegaram aos colonos a partir
da Reforma por meio do puritanismo inglês.[314] No entanto, articular a crença
em um enunciado limitado apenas em termos de direitos individuais que as
pessoas supostamente possuem enquanto qualidades inatas à natureza
humana, é uma distorção do ensinamento bíblico. Essa crença de fora o ponto
crucial de que o direito à justiça equânime, que compete ao Estado garantir a
todos os seus cidadãos, provém da norma de justiça que governa toda a
criação. A elaboração da Declaração ignorou o lado lei do aspecto jurídico da
realidade, e em vez disso tentou situar as limitações do Estado na natureza
subjetiva de cada pessoa.[315] Assim, nossa objeção à forma individualista de
colocar a questão é precisamente porque os direitos são concebidos como
individuais ao invés de universais, visto que são normativos. Em
contrapartida, portanto, afirmamos que a posse de um direito por parte de um
indivíduo é apenas um lado da justiça, enquanto o outro lado consiste no fato
de que outros têm obrigações com aquela pessoa. E um terceiro lado é que
ambos os direitos e obrigações recaem sobre pessoas porque a norma da
justiça foi incorporada à criação por Deus. De outro modo, como se poderia
defender a noção de que indivíduos possuem esses direitos? A menos que
exista uma norma de justiça sobre toda a criação, como poderíamos saber que
todas as pessoas têm direitos, ou que todas as pessoas têm os mesmos
direitos? A única base adequada para a ideia de direitos é que eles são o
resultado de sermos governados por uma norma universal.[316] Além disso, é
precisamente porque uma norma é universal, que ela governa não somente
indivíduos, mas também comunidades; não apenas indivíduos possuem
direitos e obrigações, mas também casamentos, famílias, escolas, negócios,
igrejas, hospitais, sindicatos, partidos políticos, etc.
Pode-se ainda notar outra consequência adversa de se situar a base
para os direitos na natureza das pessoas individuais numa série de escritores
recentes que têm defendido que, para estarem no gozo de um direito, as
pessoas devem ser ao menos capazes de entendê-los e desejar aquilo que
esses direitos garantem. De outra forma, dizem eles, não faz sentido falar de
pessoas que de fato possuem esse direito.[317] Ainda outros têm assinalado
que situar a fonte de direitos em indivíduos exige que seus direitos se
desenvolvam juntamente à base biológica de suas capacidades.[318] Estas
visões só são plausíveis se os direitos são identificados a certas faculdades ou
poderes da pessoa humana, como os dons naturais da visão ou da audição,
pois certamente não há ninguém que, tendo o poder da visão, é incapaz de
ver, nem que, tendo o poder da audição, não tenha capacidade de ouvir. Mas
a consequência de conceber os direitos dessa forma é que bebês, pessoas com
grave retardado, os senis, e pessoas em coma não teriam, pois, quaisquer
direitos. Isso significaria, no caso extremo, que matá-los não se qualificaria
como assassinato. Ou ainda, um adulto normal transportado de uma cultura
primitiva para um Estado moderno pode ser incapaz de entender e desejar
muitos dos direitos que passaram a ser reconhecidos em grande parte das
sociedades modernas e, dessa forma, não possuiria direitos de acordo com
essa teoria.[319] Em todos esses casos a interpretação individualista de direitos
impede o reconhecimento de que a norma da justiça é verdadeiramente
universal.
O que é pior, essas consequências hipotéticas são, de modo
significativo, semelhantes àquelas que têm de fato ocorrido na história dos
Estados Unidos. Os criadores de sua Constituição deliberadamente evitaram
estender quaisquer direitos políticos aos índios americanos e aos afro-
americanos, e também deixaram de oferecer plenos direitos políticos às
mulheres. Eles discutiram seriamente se as diferenças raciais, por exemplo,
eram suficientes para negar que essas pessoas fossem incluídas entre aqueles
“dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis”. Mas foi justamente
porque pensavam que os direitos jurídicos eram inerentes à natureza subjetiva
dos indivíduos, que fazia algum sentido questionarem se diferenças como as
de gênero ou raça eram suficientes para negar a alguém os direitos políticos.
Em contrapartida, a teoria da estrutura de leis entende que é inegável que
todos os humanos possuem direitos e obrigações, uma vez que estes não se
originam nas capacidades de cada pessoa individual, ou na raça, ou no
gênero. Na verdade, são garantidos por uma norma da criação que se aplica a
todas as pessoas simplesmente porque elas são humanas.
Existem outras dificuldades com a forma individualista de conceber
os direitos. Uma é que, a menos que os direitos sejam reconhecidos como o
resultado de normas aspectuais, seremos incapazes de identificá-los. Não há
limite ao que as pessoas podem desejar, mas esses desejos dificilmente
podem ser idênticos àquilo que eles têm direito. Outra dificuldade é que a
falha em reconhecer que direitos baseiam-se em normas tornar-nos-á mais
inclinados a ignorar o fato de que existem distintos tipos aspectuais de
direitos.
Esse último ponto é significativamente reforçado quando notamos
como um elemento crucial de clareza está ausente de qualquer discussão
sobre direitos sempre que deixamos de introduzir distinções aspectuais. Por
exemplo, é necessário distinguir entre direitos morais derivados da norma
ética do amor e direitos jurídicos derivados da norma da equidade. É este
último que estabelece limites ao poder estatal e, portanto, produz direitos
civis políticos. É importante não confundir esses dois sentidos de “direitos”,
uma vez que eles diferem de muitos modos. A menos que os tipos de normas,
obrigações e direitos sejam distinguidos, uma densa confusão segue-se, a
qual tem induzido alguns escritores a argumentar que uma obrigação de um
tipo produz um direito de outro tipo. Um exemplo dessa confusão é qualquer
argumento que conclua que uma obrigação moral pode criar um direito
jurídico. Nossa teoria reconhece que uma obrigação normativa ética de ser
amável para com os outros caminha junto com o direito ético correspondente
de que outros sejam tratados com beneficência. E ela reconhece que a
obrigação normativa de agir de forma justa vai de mãos dadas com um direito
correspondente de que outros sejam tratados de forma justa. Mas isso nunca
conduzirá à conclusão de que, uma vez que certo indivíduo ou comunidade
tem uma obrigação ética em relação a outrem, esta outra parte tem então um
direito jurídico correspondente, que deveria ser implementado pela lei
pública. Por exemplo, o ensinamento bíblico repetidas vezes deixa claro que
temos obrigações éticas com o pobre. Mas isso não dá a uma pessoa pobre
em particular o direito legal a receber esmolas de minha parte. Isso deveria
estar claro mesmo desse breve esboço sobre a natureza do Estado, de que a
aplicação de obrigações morais de amor estão fora da competência legal
própria do Estado. O Estado é conduzido por normas de justiça, não de ética;
a consecução da justiça pública é o propósito estrutural do Estado, e não a
aplicação de uma moralidade pessoal, não pública.
Isso não quer dizer, no entanto, que o Estado não tenha interesse na
moralidade pública. Se pais começassem a expulsar em massa seus filhos de
casa, ou se 75% da população se embriagasse todas as noites, não podendo
comparecer ao trabalho, o a grave perturbação da ordem pública que
resultaria disso certamente teria de ser tratada pelo Estado. Assim, embora
não seja a prerrogativa do Estado governar em todas as dimensões da
moralidade humana, o Estado tem um interesse legítimo quando qualquer
questão de peso moral ameaça a ordem pública da qual é o zelador. Por outro
lado, embora o poder do Estado limite-se legitimamente à aplicação da
justiça, nem todas as questões de justiça na vida humana podem recair sob a
alçada do Estado. O domínio do Estado é a justiça pública. As pequenas
injustiças que porventura acontecem entre os indivíduos ou entre as
comunidades não podem, e não deveriam, serem todas elas administradas
pela lei pública. Um pai que favorece um filho em detrimento do outro, por
exemplo, não faz apenas algo não amoroso, mas faz algo injusto em relação à
criança preterida. No entanto, ninguém supõe seriamente que (contanto que o
filho preterido não seja de fato negligenciado ou abusado) corrigir essa
violação da justiça faz parte do dever do Estado. Na verdade, seu dever se
estende apenas àqueles assuntos que afetam a totalidade do corpo político em
princípio.[320]
Apresentei este último ponto a fim de tornar mais claro um dos
limites apropriados para o exercício do poder estatal. Mas ao mesmo tempo
ele também nos aponta outra fraqueza na teoria individualista de sociedade e
de Estado mencionada anteriormente. Pois uma de suas consequências é que
os direitos restringem-se a pessoas individuais, de maneira que a justiça
pública e os direitos públicos não estão previstos. Visto que se considera que
os deveres do Estado e os limites sobre o seu poder são estabelecidos apenas
pelos direitos dos indivíduos, o que ocorre quando existe uma injustiça que
não viola os direitos de qualquer pessoa? Suponha, por exemplo, que no
processo de manufatura de um produto em seu próprio terreno, uma empresa
polua um rio ou a atmosfera, os quais não pertencem a qualquer indivíduo?
Tomada de forma pura, a teoria individualista não oferece bases para
qualquer remédio legal em tais casos; se apenas indivíduos possuem direitos,
apenas indivíduos poderiam ter posição legal diante das cortes. (De fato,
houve, no século XIX, instâncias das cortes dos EUA que dispensarem casos
assim exatamente com base nesse tipo de argumentos). Mas o que dizer,
então, da posição legal exigida para que um negócio entre em um contrato de
vínculo legal com outro, ou para que processe outro? A questão foi resolvida
nos EUA (e em alguns países europeus) com as cortes considerando as
empresas como “pessoas jurídicas”. Em outras palavras, a teoria é totalmente
inadequada, a menos que uma mentira seja legalmente declarada como
verdade! E, sem essa ficção, as corporações não teria qualquer tipo de
posição legal.[321]
Então indagamos: por que pensar que apenas indivíduos podem ser
sujeitos legais? Por que não reconhecer que comunidades também são
sujeitas à lei, e possuem direitos e obrigações que o Estado deveria proteger?
Pois certamente se uma teoria tem necessidade de declarar uma falsidade
como verdade a fim de tornar sua visão da lei funcional, a conclusão deveria
ser de que ela está seriamente equivocada. Nada mais é necessário para ver
que os direitos não se originam e residem apenas nos indivíduos.
Diferentemente do individualismo, portanto, a teoria da estrutura de leis tão
tem problemas em explicar como é possível que famílias, escolas, sindicatos,
clubes, negócios, e mesmo o público em geral também tenham direitos, ainda
que eles não sejam indivíduos que foram “criados iguais” por Deus. Isso é
possível, mais uma vez, porque a fonte de direitos são as normas encontradas
na estrutura de leis da totalidade da criação. Assim, embora admiremos a
intenção da teoria individualista de ter um Estado limitado, fazemos objeções,
todavia, à forma que a restrição de direitos legais apenas aos indivíduos
desconsidera os deveres públicos do Estado.
Em acréscimo a essa objeção, por favor lembre-se de outro ponto
brevemente mencionado acima, a saber, as consequências do individualismo
para a relação do Estado com outras comunidades. Pois o individualismo não
tem uma forma de limitar o poder do Estado em relação a essas outras
comunidades senão pela ficção de que elas, semelhantemente às empresas,
são pessoas individuais. Desse modo, declara-se que as questões “internas”
de outras comunidades estão fora dos limites de interferência do governo. Foi
nesse espírito, por exemplo, que Jefferson escreveu sobre o “muro de
separação” entre a igreja e o Estado, e a mesma ideia está por detrás da
doutrina “laissez faire” de que o Estado não deveria interferir sobre os
negócios.
Mas obviamente nem mesmo duas comunidades na mesma sociedade
podem ser completamente muradas uma em relação à outra. Nem, como
vimos, é apropriado dizer simplesmente que as operações internas de uma
família, um negócio, ou igreja estabelecem os limites adequados para o poder
estatal. Isto porque a designação “interno” é deixada demasiadamente vaga
pela teoria individualista. O sentido apropriado do que é interno a cada
comunidade não pode simplesmente ser o que se dá no curso de suas
atividades diárias, uma vez que isso implicaria que o Estado não poderia
intervir na prevenção de abuso conjugal, ou no fato de uma empresa possuir
um exército privado, ou na violação dos códigos de incêndio por parte de
uma igreja. Antes, o que é legitimamente “interno” e fora dos limites do
Estado deve ser definido pela função guia e pelo tipo estrutural de cada
comunidade. Assim, é preciso que se veja os verdadeiros limites do Estado ao
contrastar sua natureza com as naturezas de outras comunidades, e não
apenas por fronteiras externas entre uma comunidade e outra. Diferentemente
da teoria contratual individualista, nossa teoria não estabelece, pois, um
Estado potencialmente totalitário para em seguida tentar encontrar fronteiras
externas a fim de limitar o exercício de seu poder. Conforme já assinalado, a
teoria da estrutura de leis situa os limites apropriados para o poder do Estado
naquilo que o Estado é, ao invés de somente naquilo que ele não é. Por
conseguinte, afirmamos que o dever do Estado pode exigir que ele exerça sua
autoridade na vida de qualquer pessoa ou comunidade, contanto que esse
exercício esteja limitado à administração da justiça pública. Por essas razões,
não podemos concordar que a expressão “muro de separação” seja uma
explicação apropriada acerca das distintas esferas sociais do Estado e das
instituições religiosas.
Defendemos, portanto, que é o princípio das esferas de soberania, e
não o individualismo, que oferece os fundamentos corretos para se insistir
que exigir ou proibir qualquer crença religiosa, ou regular a doutrina ou culto
de qualquer instituição religiosa ultrapassa o uso apropriado do poder estatal.
Além disso, esse mesmo princípio não apenas explica a base para a ideia de
uma esfera distinta para as instituições religiosas, mas também restringe o
poder estatal em relação às outras comunidades não estatais. Por exemplo, ele
também estabelece limites sobre a relação do Estado à esfera das economias,
de modo que está fora da própria competência do Estado assumir o controle
de negócios privados, ou entrar em qualquer tipo de conluio que favoreça um
negócio (ou um grupo deles) sobre outros. De semelhante mesmo modo, ele
estabelece as mesmas proteções para famílias. Elas também desfrutam de
uma soberania em sua própria esfera social que as insula contra interferências
arbitrárias do Estado tais como invasão policial, ou busca sem uma mandado
de uma corte emitida quando há evidências de crime. E o mesmo se aplica
para as relações do Estado com todas as outras comunidades não estatais.
Já expliquei o sentido no qual o princípio da soberania das esferas é
tanto teísta em linhas gerais quanto especificamente cristão. Assim, gostaria
de deixar tão claro quanto possível o que disse acima acerca do princípio de
soberania das esferas proibir o Estado de usar seu poder para favorecer
qualquer fé. Isso significa que a visão cristã do Estado é que o Estado não
deveria favorecer o cristianismo. Além disso, as delimitações de esferas do
Estado e das instituições de culto não apenas implicam que, uma vez que a
natureza do Estado possui uma função guia jurídica e a função guia de uma
instituição religiosa é fiduciária, o próprio conceito de uma igreja-estatal é
uma contradição em termos; antes, essas delimitações também obstam a
possibilidade de uma instituição de culto ditar políticas públicas ao Estado —
ou interferir na esfera de integridade de qualquer outra comunidade nesse
tocante. Dessa forma, deveria estar claro que a teoria da estrutura de leis não
é uma teoria teísta da sociedade e do Estado em qualquer sentido de que
distinguiria os judeus, cristãos, ou muçulmanos como um grupo de interesse
especial. Não é uma tentativa de estabelecer uma agenda específica para
pressionar o governo para um tratamento especial para aqueles que creem em
Deus. Antes, essa teoria é teísta no sentido de fazer com que os frutos
antirreducionistas da crença em Deus influenciem nosso entendimento de
justiça e de Estado. Assim sendo, a teoria exige que os governos não
permitam que a justiça seja erodida por quaisquer demandas de
favorecimento especial, mas que se concentre na meta de produzir uma
sociedade maximamente justa para todas as pessoas, quer elas creiam ou não
em Deus.
Nenhuma dessas consequências, no entanto, poderia exigir que o
Estado seja murado contra qualquer crença religiosa. Isto, como vimos, é
impossível. Qualquer concepção tanto sobre justiça quanto sobre o Estado
pressupõe alguma crença na divindade, de modo que o Estado sempre será
concebido e operado com base ou nos pressupostos teístas ou nos não teístas,
ou numa miscelânea de ambos. É por essa razão, repetimos, que é de suma
importância que aqueles que creem em Deus não sejam desencorajados a
levarem as consequências sociais e políticas dessa crença a influenciarem sua
vida política e a legislação e governo de seu Estado. E é por essa razão que é
tão importante que eles reconheçam mais claramente como sua fé oferece
uma teoria distinta da justiça e do Estado. Sem essa teoria, os crentes de fé
teísta podem ser tentados a enxergar a relação de sua fé com a política como
um programa injusto de tentar se tornar uma maioria, de modo a forçar sua
moral por meio da lei sobre aqueles que têm outras divindades.[322]
Concluirei esta seção retornando a um ponto visto brevemente, a fim
de ilustrá-lo de forma mais profunda. O ponto foi que a soberania das esferas
não delimita o poder do Estado em relação apenas às instituições religiosas,
mas a todas as comunidades numa sociedade. Esse princípio também não o
delimita apenas de uma forma negativa, uma vez que ele estabelece os
parâmetros para as imunidades de outras comunidades do poder estatal ao
oferecer uma clara ideia das condições sob as quais o Estado pode exercer
apropriadamente em relação a elas. Um desses parâmetros é a aplicação da
própria esfera de soberania, conforme citado no último capítulo. Isto é, nossa
teoria exige que o Estado aplique as mútuas delimitações de soberania das
esferas dentre todas as outras comunidades, observando-as também para
consigo mesmo. Dessa forma, embora nossa teoria proíba o Estado de
assumir negócios ou tentar regular a totalidade da economia, ele pode
legitimamente exigir leis contra o trabalho infantil, de forma a impor limites
das esferas sobre os negócios. Nos EUA, por exemplo, anteriormente a essas
leis contra o trabalho infantil, os negócios invadiam a esfera da família. Eles
demandavam horas de trabalho que afastavam as crianças da supervisão de
seus pais por sessenta horas ou mais, inviabilizando qualquer oportunidade
para a educação dos filhos e impedindo as famílias de adorarem juntas. Com
isso, a soberania das esferas não protege somente as crianças mais novas.
Pois, até recentemente, no início do século XX, algumas empresas dos EUA
inspecionavam os lares dos trabalhadores adultos para dizer como deveriam
ser decorados, e ditavam o que os trabalhadores poderiam comer, como
deveriam vestir-se, quais livros lhe eram permitidos ler, e qual tipo de música
poderiam escutar. O princípio da esfera de soberania demonstra por que é
injusto que corporações tentem esse tipo de intrusões na esfera da família,
assim como também o seria, no caso do Estado.
De semelhante modo, vemos que as legislações antitruste também são
uma imposição apropriada da justiça quando orientada pela ideia de soberania
das esferas. Os individualistas argumentam simplesmente que o Estado
deveria preservar a livre concorrência. Porém defendemos que o Estado tem o
dever mais amplo de impedir que as esferas não econômicas da sociedade
sejam violadas pelo poder econômico dos negócios. Especialmente entre
1865 e 1900, esse foi um perigo real nos Estados Unidos; as grandes
corporações (chamadas “trustes”) não apenas se tornaram monopólios ao
restringir o livre comércio, mas, caso tivessem unido todos seus esforços,
poderiam ter dominado o Estado a fim de produzir uma sociedade
completamente controlada pelos negócios.[323]

12.3 A natureza do Estado: o que ele não é


Além das teorias individualista e coletivista da sociedade, que distorcem o
papel do Estado ao desvirtuar a ideia de justiça, existem outras teorias que
tratam especificamente sobre a natureza do próprio Estado que também são
questionáveis, se comparadas à nossa teoria baseada no teísmo. Com o
objetivo de tornar nossa própria teoria mais clara pelo contraste, mencionarei
brevemente algumas dessas.
A primeira que menciono é a antiga ideia de que apenas uma linhagem
racial ou étnica podem compor a cidadania, caso se queira a unidade política
necessária para se formar um Estado. Essa ideia foi popular não apenas antes
de contra-exemplos marcantes demonstrarem sua falsidade, mas ainda
manifesta-se ocasionalmente em nossos dias.[324] Precisamos apenas nos
lembrar que um forte Estado se desenvolveu na Inglaterra do século XVI,
quando seus cidadãos estavam etnicamente divididos entre celtas, saxões e
normandos para vermos que essa é uma falsa exigência. Ademais, alguns dos
Estados mais fortes no mundo atual são bastante diversos etnicamente.
Certamente existem dificuldades extras a serem superadas para a promoção
de unidade política onde as divisões raciais e étnicas são fortes; no entanto,
“um povo” ou “um sangue” não é uma condição necessária para a existência
de tal unidade. Nosso argumento é que a verdadeira natureza da unidade
política é a de uma ordem pública comum. Assim, a unidade racial ou étnica
não apenas não é, mas não deveria ser considerada como necessária para a
unidade de um Estado.
O mesmo é verdade acerca da ideia de que uma língua comum é uma
exigência para a unidade política de um Estado forte. É verdade, a divisão de
uma população pela língua pode ser um forte fator de desintegração política.
Esse foi um grande problema nos países baixos no passado, e resultou na
separação da Bélgica da Holanda. Em tempos mais recentes foi (parte de)
uma ameaça à unidade política do Canadá. Novamente, contudo, essa não
pode ser uma condição necessária para a unidade política, caso existam
Estados fortes que existem sem essa língua comum. E o fato de que tais
Estados existem é evidência em apoio ao nosso argumento sobre como a
unidade política deveria ser vista. Assim, mesmo que a unidade política seja
mais fácil de alcançar em um Estado cujos cidadãos compartilham uma
linguagem comum, a ausência dela não impede a unidade política. A Suíça
talvez seja o exemplo mais notável disso.
Outra ideia é de que o Estado necessita impor uma base religiosa
comum para sua unidade política. Esse é um tópico sensível de debate em
Israel presentemente, e é uma ideia defendida por uma série de países que se
autodesignam “Estados Islâmicos”. Além disso, a separação nacional do
Paquistão da Índia no último século foi devida, em grande medida, a
diferenças religiosas. Já vimos por que a teoria da estrutura de leis, com seu
princípio de esfera de soberania, se opõe a essa visão. E, uma vez mais,
podemos pontuar o fato de que muitos Estados no mundo não sofrem efeitos
de desintegração ao permitir a liberdade de crença como evidência de que a
unidade da crença religiosa não é primordial. Nesse caso, como nos casos
anteriores, essa é uma confusão sobre a natureza da instituição do Estado (sua
lei típica) que conduz a conceber a unidade do Estado como se estivesse
centrada em qualquer outra esfera senão a da justiça pública.
No entanto, dever-se-ia acrescentar que as forças desintegrativas da
animosidade linguística, étnica e religiosa podem ser facilmente subestimadas
por aqueles que nunca as experimentaram. Nos EUA, por exemplo, existe
uma considerável ingenuidade acerca particularmente da liberdade religiosa,
porque em muitas localidades não existe tanta diversidade religiosa, e porque
grande parte das pessoas entendem erroneamente que outras religiões são
provavelmente bem semelhantes àquelas com as quais eles estão
familiarizados. Quando fortes diversidades de religião — ou de qualquer dos
outros fatores — emergem onde anteriormente não existiam, elas podem
testar de forma severa a unidade até mesmo do mais forte Estado. É por essa
razão que é tão importante que, como nossa teoria exige, os governos sejam
escrupulosamente equânimes em seu tratamento de todas as diversidades com
que se depara em seu território. Diferenças de cultura, costumes, língua, raça,
religião, etc., devem ser reconhecidas e respeitadas porque isso é exigido pela
norma da justiça. O tratamento desigual, ou a supressão explícita de tais
diferenças, nunca pode ser justificada com base em exigências políticas, uma
vez que elas não afetam a base real da existência do Estado.
Isso não implica, no entanto, que o Estado deva se desassociar de tudo
o que seja religioso. Ser equânime a todos os pontos de vista religiosos não é
o mesmo que reprimir igualmente a expressão pública de todas. Pelo
contrário. Isso significa que todas igualmente podem ser livremente expressas
e devem ser protegidas sem que o Estado endosse qualquer delas. Assim, por
exemplo, não há nada de errado com o estudo de religiões em uma escola
subsidiada pelo Estado, contanto que não haja o endosso estatal a qualquer
uma dessas religiões e nenhum estudante seja pressionado a crer em qualquer
delas.[325]
Outra ideia de Estado que deve ser rejeitada por nossa teoria teísta é
aquela do Estado-poder. Essa é a adoção flagrante da visão que acusamos a
teoria coletivista de encorajar e a teoria individualista de falhar em se
resguardar adequadamente. Ela defende que o Estado não tem limites à sua
competência em todas as esferas da vida, de modo que não há limites, em
princípio, ao poder estatal. Às vezes essa visão tem sido defendida de forma
bastante explícita, como nos casos de Maquiavel, Hobbes e Hegel, embora
frequentemente tenha sido disfarçada a fim de manter a aparência de um
Estado-legislador, como fizeram os Estados nazista e fascista dos anos 1930.
Em todo caso, ela é claramente contrária ao nosso princípio de soberania das
esferas, o qual entende que a competência apropriada do Estado limita-se à
esfera da justiça pública. O Estado-poder também entra em conflito com
nossa caracterização da lei típica do Estado, que afirma que os órgãos de
poder estatais devem ser regidos por seus órgãos de legislação e por seu
judiciário. Isso significa que é a imposição da justiça que torna legítimo o uso
do poder, e não que a posse do poder torna legítimo o que o Estado queira
fazer. De um ponto de vista teísta, portanto, nenhum Estado é legítimo sem
que o poder seja orientado pela justiça e direito. Não importa quão bem
enraizado esteja seu governo, ou quão amplamente aceita seja sua autoridade,
tal Estado-poder não é mais do que um bando de salteadores armados —
como Agostinho observou há muito tempo.
A última visão sobre a natureza do Estado a ser contrastada com
nossa teoria é aquela do Estado de bem-estar social. Nesta visão, o Estado é
visto primariamente como o pai-provedor das necessidades de seus cidadãos.
Essa visão declara que é dever do Estado tanto prover trabalho, alimentação,
vestimentas e abrigo quanto oferecer proteção contra o crime e invasões.
Certamente é possível que a existência de pobreza em uma sociedade
possa ser um sinal de injustiça genuína, especialmente se essa sociedade é,
como um todo, próspera. Nesse caso, seria dever do Estado corrigir as
injustiças que conduziram a essa pobreza. Mas a injustiça envolvida teria de
ser pública, pois como já notamos, não é dever do Estado corrigir toda
injustiça. Se for possível para o Estado corrigir injustiças econômicas sem
exceder suas próprias e devidas responsabilidades, então claramente ele deve
fazê-lo. Mas se ele começa a violar esses limites em nome da justiça
econômica, ele pode facilmente se tornar totalitário. Nesse caso, um monstro
ainda maior terá sido criado para combater um menor. Assim, o Estado deve
abordar a injustiça econômica com o mesmo respeito pelo caráter distinto de
outras instituições que deveria caracterizar todas as suas políticas. Ele deve
reconhecer que, como um Estado, ele não gera prosperidade, ou abrigo, ou
educação; os bens e serviços que necessitam ser distribuídos de forma justa
são produzidos por fazendas, negócios, famílias e escolas, dentre outros.
Qualquer política que exigisse que o próprio Estado tente criar os bens e
serviços necessários aos cidadãos anularia sua própria função guia, assim
como as funções guias de outras comunidades que seriam pois usurpadas.
Existem muitas formas pelas quais o Estado pode promover a justiça
na distribuição das necessidades básicas de seus cidadãos sem que se anule os
papéis legítimos de outras comunidades. Uma forma é auxiliar os cidadãos a
distribuir os custos de tais necessidades ao longo de uma vida por meio da
taxação. Essa é a forma apropriada de se enxergar a taxação com o objetivo
de cobrir os custos de serviços educacionais, por exemplo. Ao invés de fazer
com que as famílias arquem com o custo total da educação durante os anos
que seus filhos estão de fato na escola, a taxação distribui o custo ao longo do
tempo de uma vida, de modo que todas as famílias podem ter acesso à
educação para seus filhos. Nessa mesma linha, nossa concepção da natureza
do Estado não veria nada de errado em se ter a taxação como auxílio na
distribuição dos custos crescentes da assistência médica.
Nada daquilo que foi dito acima, no entanto, pode justificar a visão de
que o próprio Estado deveria ser o provedor universal ou o garantidor de
quaisquer bens e serviços além da justiça pública. Isso não se equivale a dizer
que seria um erro o Estado oferecer uma rede de seguridade para a
distribuição de sustento básico para necessidades a pequenos segmentos de
sua população que são completamente indigentes — mesmo que isso inclua a
disponibilidade desses bens necessários à custa da população. Mas, mesmo
nesse caso, o Estado mesmo não deveria ser o provedor desses bens; isto é,
não há nesse cuidado em favor do indigente que exija que o Estado assuma o
controle das comunidades que produzem esses serviços. E também não há
nada no apoio estatal legítimo aos indigentes que possa sugerir que todos têm
o direito de recorrer ao Estado para receberem provisão, independentemente
se são ou não capazes de obtê-la por seus próprios esforços.

12.4 Pós-escrito
Este esboço sobre a natureza da instituição do Estado foi breve, e certamente
não é uma teoria política plenamente desenvolvida (isso exigiria outro livro).
Meu propósito aqui foi mais modesto, a saber, clarificar os conceitos
introduzidos pela teoria da estrutura de leis empregando-os em relação à
visão do Estado. Também tinha como expectativa, é claro, indicar algumas
das principais diferenças que procedem deles em relação à natureza do
Estado e alguns termos correlatos. Em anos recentes, no entanto, outros
defensores dessa teoria têm sido capazes de fazer mais do que isso, de modo
que existe um corpo crescente de literatura disponível que parte da
perspectiva da estrutura de leis. Esses autores têm sido capazes de pontuar
um número significativo de insights por meio dos quais essa teoria pode
contribuir com esclarecimentos ou correções necessárias a uma série de temas
importantes. Apenas para o cenário político dos EUA, por exemplo, eles têm
sido capazes de expor grandes injustiças enraizadas em questões como as
formas que os governos se relacionam com educação; as leis que governam o
modo como são conduzidas as eleições para o Congresso; e as políticas
governamentais relacionadas à temas de pobreza e bem-estar, justiça
econômica, direitos humanos e questões ambientais, dentre outros. Eles
também têm sido capazes de oferecer justificativas complementares para
muitos elementos nas tradições políticas e legais dos EUA que são saudáveis,
e de sinalizar para formas pelas quais estes elementos podem ser ainda mais
desenvolvidos pela teoria da estrutura de leis.[326] Também existe um corpo
crescente de obras dedicadas ao modo que essa teoria impacta também
comunidades não políticas, e leitores interessados em buscar essa abordagem
podem querer consultá-los também.[327]
Apesar da brevidade desses últimos capítulos, minha esperança é de
que eles servirão para demonstrar com o que se pareceria um programa de
teorias distintamente não reducionistas, e oferecer uma ideia sobre o que pode
ser adquirido quando a estratégia reducionista para teorias é abandonada e
substituída por uma estratégia que pressuponha que todas as coisas no
cosmos são diretamente dependentes de Deus. Também espero que eles
ilustrem o que pode resultar da combinação do programa não reducionista
com princípios especificamente cristãos para o entendimento da sociedade e
do Estado.
Posfácio

TECTÔNICA DA FÉ

Na introdução afirmei que uma crença religiosa exerce um papel na


vida humana análogo àquele exercido na geografia terrestre por suas grandes
placas tectônicas. Os capítulos intermediários apresentaram as razões para
crer que isso seja verdade no tocante às teorias pelas quais interpretamos a
nós mesmos e ao mundo. Vimos que, em sua base, as teorias são dirigidas e
reguladas pela ideia de divindade que tenha dominado o coração de seus
defensores. Nesse sentido, uma teoria é uma expressão da religião tanto como
a adoração o é, ainda que seja um tipo bastante distinto de expressão.
Também vimos algumas consequências importantes dessa descoberta
para aqueles de nós que creem em Deus. Essas consequências foram expostas
detalhadamente a fim de nos auxiliar a criar e/ou reinterpretar teorias de
modo que elas sejam internamente reguladas por nossa fé. Propôs-se isto em
lugar da abordagem tradicional de tentar aliar nossa fé com teorias baseadas
no paganismo. Vimos por que a harmonização externa de tais teorias com a
fé bíblica serve meramente para mascarar suas incompatibilidades religiosas
mais profundas.
Mas nessa questão alega-se por vezes que há outra consequência
dessa descoberta da qual eu — talvez convenientemente — me esqueci. É de
que essa posição, caso aceita, servirá apenas para dividir pessoas e colocá-las
em desacordo umas contra as outras. Pois isso significa que as teorias são o
produto de comunidades de fé espirituais que produzem explicações que
diferem relativamente às suas crenças religiosas. Ademais, a posição
ultrapassa o simples desvelamento de que o controle religioso de fato se deu.
Com efeito, argumenta que tal controle é inevitável, porque o papel das
crenças religiosas está integrado à própria natureza do raciocínio teórico.
Além disso, ela reconhece que, sendo o raciocínio teórico sempre dirigido
pela fé, não pode haver procedimentos ou faculdades religiosamente neutras
pelas quais as crenças religiosas possam ser, elas mesmas, julgadas. Então
essa posição não resulta no isolamento dos “ismos” da filosofia e da ciência,
encorajando a intolerância entre eles? A atribuição de teorias às várias
comunidades de fé não servirá para a galvanização de seus defensores no tipo
de oposição aos demais que produzirá um rompimento total na comunicação?
Não haverá antes pedras sendo lançadas do que diálogo?
A resposta a tais questões é que nada poderia estar mais distante da
verdade. Primeiramente, apontar as causas originais das diferenças teóricas
não produz, em si mesmo, intolerância ou ausência de comunicação por parte
daqueles que diferem, ao menos não mais do as próprias diferenças
produzem. A intolerância e a recusa em se comunicar com aqueles que
discordam são os frutos do pecado que infecta a natureza humana, e não do
desvelamento das causas últimas das discordâncias. Como tal, a intolerância
e suas consequências são males que podem e de fato afligem as discordâncias
na filosofia e na ciência, assim como na vida prática.
A segunda parte de nossa réplica é ainda mais importante. É que
desvelar as raízes religiosas das perspectivas teóricas na verdade abre o
caminho para uma comunicação mais frutífera do que seria possível de outra
forma. Minhas razões para dizer isso são: primeiro, que se o controle
religioso é um fato, então a tentativa de comunicar sem uma consciência
disso será frustrado por seus efeitos ocultos. E segundo, quando as partes de
um debate entendem que a própria razão humana é autônoma e neutra, fica
difícil para cada uma delas não ver a extensão de suas diferenças como sendo
também o domínio no qual a outra parte não está sendo razoável. O risco,
então, é que a posição do outro não apenas será rejeitada como falsa, mas
condenada como irracional. E na medida em que a racionalidade é tomada
como uma característica essencial do ser humano, será difícil não conceber
não somente a outra posição, mas a outra pessoa como sub-padrão ou mesmo
sub-humana.
Por outro lado, reconhecer que todas as pessoas possuem crenças
religiosas que regulam sua teorização pode permitir que pensadores tenham
um respeito mútuo pelas suas diferenças em larga escala como expressões de
suas distintas fés. Eles podem, assim, ser capazes de apreciar por que outros,
partindo de suas crenças religiosas contrárias, desenvolveram suas teorias
opostas da mesma forma que fizeram. Nessa base eles podem explorar
quaisquer pontos de contato e concordância que possam ter, bem como
alcançar um discernimento mais profundo acerca da natureza de suas
diferenças genuinamente irreconciliáveis. E isso tudo pode ser feito sem a
tentação de que cada lado veja o outro como sub-racional.
Na verdade, esses mesmos benefícios podem também advir para as
diferenças que ocorrem fora das teorias. Nosso foco por todo esse livro tem
sido exclusivamente sobre teorias. Mas devemos também reconhecer um
impacto correspondente da crença religiosa sobre a vida prática — em
valores pessoais, atitudes, práticas e estilos de vida. Ora, também não
devemos nos permitir pensar sobre este lado da vida como religiosamente
neutro. De um ponto de vista bíblico, nessas questões também servimos ao
verdadeiro Deus ou a algum substituto de Deus. Então nessa situação, de
igual modo, devemos reconhecer os valores e práticas alternativas de outros
como resultado de suas convicções religiosas contrárias, e demonstrar o
mesmo tipo de respeito por suas diferenças que nossa visão possibilitada no
que diz respeito às diferenças teóricas.
Obviamente, o respeito mútuo que estou defendendo não significa
deixar que o crime prossiga sem restrição. Mas à parte disso, ele conclama a
demonstrarmos amor, paciência e tolerância com práticas e estilos de vida
que possam estar em desacordo com aquelas inspiradas pela crença teísta.
Tanto na vida prática quanto na teoria devemos concentrar-nos sobre a tarefa
de reconhecer e desarraigar o que não é bíblico em nossas próprias práticas e
teorias, em vez de atacar as de outros comunidades de crenças. Somente
então estaremos equipados para representar fielmente as consequências da
crença em Deus sobre todo o espectro da vida para o benefício de toda a
humanidade.
Essa é uma tarefa árdua. Sempre é mais fácil condenar outra pessoa
do que limpar a própria casa. Mas não importa o quão árduo isso possa ser, é
muito mais preferível do que a única outra alternativa: comprometer a
verdade com a falsidade, o que pode levar-nos a perder a direção correta para
o pensamento e vida.
[1]
Alguns estudiosos duvidam que o budismo seja uma religião, uma vez que o budismo Theravada ensina que não há
deuses. Mas como grande parte dos budistas creem em deuses, incluirei, por ora, apenas as versões não Theravada do
budismo como religiões.
[2]
Paul Tillich, Systematic Theology (Chicago; University of Chicago Press, 1951), vol. 1, p. 11-55. [Edição brasileira:
Teologia sistemática, 5ª ed. São Leopoldo. Editora Sinodal, 2005.] Veja também seu The Dynamics of Faith (New
York: Harper & Bros, 1957), p. 1-40. [Edição brasileira: Dinâmica da fé. São Leopoldo. Editora Sinodal, 1985.]
[3]
Tillich, Dynamics of Faith, p. 10, 76-77, 96. Mas compare também com sua Systematic Theology, vol. 1, p. 211.
[4]
Tillich, Dynamics of Faith, p. 13.
[5]
Ibid., p. 13-14. Também na Systematic Theology, vol. 1, p. 237. Deve-se mencionar que a última passagem
primeiramente nega que Deus seja infinito, mas então fala de sua infinitude. Eu não sei o que fazer com isso, mas
parece-me que grande parte do que se segue continua a ver o divino como aquilo que é infinito no sentido de ser tanto
incondicionado quanto todo-abrangente.
[6]
Tillich, Dynamics of Faith, p. 12. Despida de sua insistência de que a preocupação última deve ser em relação
àquilo que é infinito nesse sentido, a definição de Tillich é tão próxima àquela que defendo que eu, mais adiante, listo
seu nome como um de seus defensores. Sua definição incorpora o mesmo insight e, como ele admitiu a mim, foi
extraída do mesmo comentário de Lutero que me colocou nessa direção — o comentário citado na nota 22.
[7]
T. W. Hall, ed., Introduction to the Study of Religion (San Francisco; Harper & Row, 1978), p. 16.
[8]
Por exemplo, o espírito Dakota mal denominado Grande Espírito. Veja James Fraser, The Golden Bough (New
York: Macmillan, 1951), p. 308. A visão de Platão também é um exemplo uma vez que ele insistiu na existência de
uma alma má do mundo, assim como uma boa (Laws 10, 896).
[9]
Aqui estão algumas mais. Friedrich Schleiermacher definiu religião como “a soma de todos os sentimentos mais
elevados”, especialmente os sentimentos de dependência (On Religion: Speeches to Its Cultured Despisers. New York:
Harper & Row, 1958, p. 45 [Schleiermacher, F. D. F. Sobre a religião. São Paulo: Editora Novo Século, 2000]). Mas
certamente a religião não pode evitar a crença, e todas as crenças têm um elemento conceitual, assim como um
componente sentimental. Por outro lado, Schleiermacher também falou de dependência do “absoluto” como o centro da
religião, o que se encaixa perfeitamente com a definição que defenderei (mas sem concordar com sua identificação do
Absoluto com o universo). William Tremmel, para evitar as dificuldades de uma definição essencial, oferece em vez
disso o que ele denomina uma definição “funcional”: uma definição do “que a religião faz” e da experiência que
repousa por trás dessa (Religion, What Is It? New York: Rhinehart & Winston. 1984, p. 7). Infelizmente, sua descrição
de experiência religiosa falha em distingui-la, uma vez que ele a descreve apenas como uma experiência de “grande
importância e satisfação ― até mesmo êxtase”. Isso, no entanto, poderia também ser aplicado à vitória num evento
esportivo, à aclamação por conta de uma performance, ou a um orgasmo sexual. Ademais, as ações que ele, segundo
suas especificações, são motivadas pela crença religiosa igualmente falham em distingui-las, pois elas são descritas
como o que as pessoas fazem para lidarem com o que é “horrendo”, “não manipulável”, e “negador da vida”, e como
ações pelas quais eles tentam superar seu “sentido de finitude”. Isso soa errado em todos os aspectos. Pessoas às vezes
lidam com o que é horrendo por meio do recolhimento, drogas e suicídio; e elas às vezes lidam com o que é negador da
vida por meio de um estilo de vida selvagem ou do crime. E embora o hinduísmo e o budismo ensinem que alcançando
o Nirvana nossa finitude é absorvida pela infinitude divina, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo negam que as
pessoas serão algum dia algo além de criaturas finitas distintas de Deus. Ainda outros pensadores captam a definição
correta, mas fazem-lhe acréscimos, tornando-as assim parcialmente falsas. Joachim Wach, por exemplo, diz que a
religião é “uma resposta àquilo que é experimentado como realidade última... aquilo que condiciona tudo o que nos
impressiona e desafia” (The Comparative Study of Religions. New York: Columbia University Press, 1961, p. 30). A
primeira parte soa correta, mas a definição falha ao fim: corridas de cavalo e quebras-cabeças podem nos desafiar e
impressionar. Da mesma forma, a “paráfrase” oferecida por Hans Kung também é em parte correta, e em parte não. Ela
é equivocada quando afirma que religião é “um relacionamento social e individual... com algo que transcende ou
abrange o homem e seu mundo” (Christianity and the World Religions. Garden City, N.Y.: Doubleday, 1986, p. xvi).
Essa também é uma definição muito limitada, pois muitas religiões pagãs não consideram o divino seja como
transcendente ou todo-abrangente, como será explicado no próximo capítulo. Kung prossegue dizendo, no entanto, que
a realidade que é o objeto da crença religiosa “sempre deve ser entendida como a realidade derradeiramente real,
verdadeira...”. Isso, argumentarei, está correto.
[10]
Por exemplo, W. C. Smith, The Meaning and End of Religion (New York: Harper & Row, 1978), esp. p. xiv, 11-
14, 141-46.
[11]
G. S. Kirk e J. E. Raven, The Presocratic Philosophers (Cambridge: Cambridge University Press, 1960), p. 10-18,
24-31: W. Jaeger, The Theology of the Early Greek Philosophers (Oxford: Oxford University Press, 1960), p. 10.
[12]
G. F. Moore, History of Religions (New York: Charles Scribner’s Sons, 1913), vol. 1, p. 209-10.
[13]
Mircea Eliade, Patterns in Comparative Religion (New York: Sheed & Ward,1958), p. 10-21.
[14]
E. B. Idowu, African Traditional Religion (Londres: SCM Press, 1973), p. 135. Veja também de Geoffrey
Parrinder “The Nature of God in African Belief”, in The Ways of Religion, ed. Roger Eastman (São Francisco: Canfield
Press), p. 493-99; H. Dooyeweerd, A New Critique of Theoretical Thought (Philadelphia: Presbyterian & Reformed,
1955), vol. 2, p. 316; e B. Malinowski, Magic, Science and Religion (New York: Doubleday, 1948), p. 19, 20, 76-79.
Também A. C. Bouquet, Comparative Religion (Londres: Penguin,1962), p. 45; e M. Nilsson, A History of Greek
Religion (Oxford: Clarendon, 1967), p. 3.
[15]
Jaeger, Theology of the Early Greek Philosophers.
[16]
Um tetraktys (do grego antigo τετρακτύς) é uma representação pitagórica na forma de um triângulo, consistindo de
dez pontos arranjados em quatro fileiras: a superior com um, a segunda com dois, a terceira com três e a quarta com
quatro pontos. [N. do T.]
[17]
T. Dantzig, Number, The Language of Science (Garden City, N.Y.: Doubleday-Anchor, 1954), p. 42.
[18]
Aristóteles não apenas defendia a divindade das formas, mas também considerava que a matéria tinha existência
independente. Assim era um dualista religioso e metafísico (Metafísica, 1042a). Juntamente com os pensadores já
citados, Tales afirmava o divino como sendo “aquilo que não tem princípio nem fim” (Jaeger, Theology of the Early
Greek Philosophers, p. 29); ao passo que Anaximandro disse que o divino é tudo que seja “não-gerado, imperecível... e
que rege sobre todas as coisas” (veja a Física de Aristóteles, 3.4.203b14).
[19]
W. E. Albright pontuou que o nome próprio e santo de Deus que foi revelado a Moisés (YHWH) no Êxodo 3.14
significa “aquele que causa a existência”. Veja From the Stone Age to Christianity (Garden City, N.Y.: Doubleday,
1957), p. 15-16. O profeta Isaías faz a mesma argumentação de outra forma. Ele cita Deus dizendo: “Não darei a minha
glória a um outro” (Is 48.11, NVI). Anteriormente, Isaías já havia especificado qual é a glória que Deus não permitirá
ser atribuída a algo mais (Is 6.3): “Santo, santo, santo é o Senhor dos Exércitos, a terra inteira está cheia da sua glória”.
Embora essa seja uma passagem familiar, que tem sido há bastante tempo parte da liturgia cristã, alguns estudiosos (J.
A. Alexander, por exemplo) pontuaram que a última cláusula seria mais apropriadamente traduzida como “a plenitude
de toda a terra é sua glória”. Em outras palavras, como Criador, aquele de quem tudo depende, a glória de Deus é
encher a terra com criaturas. Assim, crer que tudo na terra depende de algo que não Deus é ter para si um deus
substituto que usurpa a glória de Deus. O Novo Testamento elabora o mesmo ponto. Romanos 1 fala que todos os
humanos ou creem em Deus como Criador ou transformam “a verdade acerca de Deus em mentira” ao substituir o
próprio Criador por “algo que Deus criou”. E Gálatas 4.3 e Colossenses 1.17 e 2.8 contrasta os famosos quatro
elementos da antiga metafísica grega (terra, ar, fogo e água) a Deus, insistindo que o cosmos depende de Deus em
Cristo, não dos elementos.
[20]
Por exemplo, Apocalipse 4.11: “Tu, Senhor e Deus nosso, és digno de receber a glória, a honra e o poder, porque
criaste todas as coisas, e por tua vontade elas existem e foram criadas”. E 1 João 4.19 coloca nosso amor a Deus sobre o
fundamento de termos recebido seu amor: “Nós amamos porque ele nos amou primeiro”.
[21]
Essa é a importância real da observação bíblica: “Diz o tolo em seu coração: ‘Deus não existe’” (Sl 14.1).
Contrariamente à forma que Anselmo a compreendia, isso não significa que um ateu se contradiz, mas que qualquer
que pense que não existe deus (divindade) está enganando a si mesmo.
[22]
Institutes of the Christian Religion, I, xiv, p. 3. [Edição brasileira: A instituição da religião cristã. 2 vols. São
Paulo, Editora UNESP, 2008.]
[23]
“Como costumo dizer, apenas a confiança e a fé do coração fazem tanto Deus quanto o ídolo. Se sua fé e confiança
estão corretas, então seu Deus é o verdadeiro Deus. Por outro lado, se sua confiança é falsa e errada, então você não
tem o verdadeiro Deus. Aquilo em que seu coração se apega e confia é, digo, realmente seu Deus”, em “Larger
Catechism”, in The Book of Concord (Philadelphia Fortress, 1959), p. 365. Veja também as Lectures on Romans na
Library of Christian Classics (Philadelphia: Westminster, 1961), vol. 15, p. 23.
[24]
Veja Bouquet, Comparative Religion, p. 37; Dooyeweerd, New Critique, vol. 1, p. 57; N. K. Smith, The Credibility
of Divine Existence (New York: St. Martin’s, 1967), p. 396; William James, The Varieties of Religious Experience
(New York: Longmans, Green and Co. 1929), p. 31-34 [As variedades da experiência religiosa. São Paulo: Cultrix,
2017]; Eliade, Patterns in Comparative Religion, p. 23-25; C. S. Lewis, Miracles (New York: MacMil1an, 1948), p.
15-22 [Milagres. São Paulo: Editora Vida, 2009]; Will Herberg, “The Fundamental Outlook of Hebraic Religion”, in
The Ways of Religion, ed. R. Eastman (New York: Canfield, 1975), p. 283; Robert Neville, The Tao and the Daimon
(Albany: State University of New York Press, 1982), p. 117. Tillich, Kung e Wach também endossaram o ponto
essencial dessa definição, apesar de acrescentarem adições questionáveis a ela (ver notas 6 e 9).
[25]
M. Nilsson, History of Greek Religion, p. 72.

[26]
É por essa razão que apenas o budismo, dentre as maiores religiões, não possui um relato da criação. Veja as
observações de Neville em The Tao and the Daimon, p. 116.
[27]
Alguns críticos sugeriram que o budismo não tem uma ideia de divindade como eu a defino aqui. Isso é
simplesmente equivocado. No famoso diálogo das escrituras budista denominado “Perguntas do Rei Milinda”
encontramos isso: “Pode-se apontar o caminho da realização do Nirvana, mas não se pode demonstrar uma causa para
sua produção. E qual é a razão disso? Porque o dharma, Nirvana, é incondicionado... ele não é feito a partir de nada... é
apenas algo que é” (The Buddhist Scriptures [Baltimore: Penguin, 1968], p. 159). O Canon Pali (Udana 8.3) também
afirma que o Nirvana “não tem qualquer fundamento, qualquer desenvolvimento, qualquer base”. Comentando sobre
isso, Lambert Schmithausen pontua que “algumas passagens falam do Nirvana até mesmo como um estado metafísico,
ou essência, transcendente... De acordo com essas passagens existe uma realidade metafísica... a qual é também
denominada Nirvana e pré-existe ao Nirvana, que é o evento espiritual” (Kung, Christianity and the World Religions, p.
301, 327 [O cristianismo entre as religiões mundiais. Belo Horizonte: Editora Vozes, 1986]). Talvez o ensinamento
que chega mais próximo a soar como uma rejeição de minha definição do “divino” é o ensinamento de Nagarjuna, um
mestre do ramo Shunyavada do budismo há cerca de 1800 anos. Sua ênfase ao se referir ao divino como o “Vazio” e
sua afirmação de que mesmo os dharmas são “vazios de realidade” levaram alguns a considerá-lo como um niilista
ontológico total. Mas o fato é que ele nunca disse tais coisas. Sua afirmação foi que as coisas individuais não têm
realidade no sentido em que elas “não possuem natureza essencial própria, e são portanto impermanentes... Elas
chegam e se vão do mundo das aparências de acordo com a lei de “originação dependente” (veja Heinz Beckert,
“Buddhist Perspectives”, in Christianity and The World Religions, p. 363). Esse contraste entre o que é mutável e
dependente e o que não o é, pressupõe a definição de “divino” que estou defendendo. A mesma conclusão foi alcançada
por outros estudiosos tais como David Dilworth em “Whitehead’s Process Realism, the Ahhidharma Dharrna Theory,
and the Mahayana Critique”, in International Philosophical Quarterly 18, no. 2 (l978): p. 162-63; e Robert Neville,
The Tao and the Daimon, p. 116. Em geral, a visão budista rejeita o niilismo ontológico. Considere o seguinte de The
Sutro of Hui Neng (Phoenix: H. K. Buddhist Book Distributor Press, 1982):

Para alcançar a iluminação suprema deve-se ser capaz de conhecer espontaneamente sua própria natureza ou
Essência da Mente [Talidade], que não é nem criado nem pode ser aniquilado. (p. 17)

Quem teria pensado que a Essência da Mente é intrinsecamente livre do vir-a-ser ou da aniquilação? Quem teria
pensado que a Essência da Mente é intrinsecamente autossuficiente? Quem teria pensado que todas as coisas são
manifestações da Essência da Mente? (p. 20)

Virtuosa audiência, quando vocês ouvem-me falar sobre o Vazio, não caiam imediatamente na ideia de
vacuidade, porque essa envolve a heresia da doutrina da aniquilação. (p. 28)
[28]
Dizer que uma organização social tem um propósito central assume o desenvolvimento de organizações
diferenciadas. Quando o único grupo social é uma tribo, por exemplo, não se distingue um propósito central, mas esse
abrange os propósitos servidos pelo estado, instituições religiosas, escolas, famílias estendidas, etc. Ademais, mesmo
aonde organizações são diferenciadas é possível que uma e a mesma pessoa, ou grupo de pessoas, possam agir tanto
como uma autoridade política quanto religiosa. Isso não demonstra, no entanto, que a mesma instituição possa ser tanto
religiosa quanto política simultaneamente. Em vez disso, isso demonstra que a mesma pessoa ou grupo pode ser a
autoridade governante em ambas as instituições, agindo hora em uma capacidade, hora em outra. Assim, o fato de que
possa haver um monarca que também governa a instituição religiosa, ou as escolas, de uma sociedade, não tornará o
estado o mesmo que uma instituição religiosa, ou uma escola. Cada organização ainda reterá seu propósito distinto.
[29]
Nicholas Wolterstorff ofereceu comentários pertinentes sobre a variabilidade dos sentimentos de confiança vis-a-
vis o que é visto como verdade objetiva em sua comparação de Locke e Calvino. Veja “The Assurance of Faith”, Faith
and Philosophy 7, no. 4 (Out. 1990): p. 396-417. Ver também as observações de William James em The Varieties of
Reigious Experience, p. 258 [As variedades da experiência religiosa. São Paulo: Cultrix, 2017].
[30]
Por exemplo, H. H. Price, “Belief ‘In’ and Belief ‘That’”, Religious Studies 1, no. l (Oct. 1965): p. 5-27. Seguindo
a prática dos escritores bíblicos, não utilizarei “fé” ou “confiança” para a crença de que Deus é real. Eles utilizam esses
termos apenas para a dependência de alguém em relação às promessas de Deus, nunca para o fato de sua existência. O
último sempre é referido como “conhecimento”. Ver especialmente Dt 4.35, 1Sm 3.7, Sl 46.10, Is 12.2, 1Tm 4.3, Jo
6.69, 10.38; 1Jo 2.3.
[31]
Wilfred Cantwell Smith tem assumido a tempos a posição de que todas as religiões são igualmente eficazes ao
conduzir as pessoas a um relacionamento correto com o divino, apesar do fato de que elas ofereçam distintas descrições
do que teria o status divino; veja seu The Meaning and End of Religion. John Hick defendeu a mesma posição em An
Interpretation of Religion (NewHaven: Yale University Press, 1989). Tenho três comentários. Primeiro, é notável que
mesmo para Smith e Hick as crenças das várias tradições não possam todas ser verdadeiras; eles admitem que é
impossível. O que eles defendem é que todas as pessoas experimentam a mesma Realidade Divina, mas então a
conceitualizam, explicam e teorizam diferentemente sobre aquela Realidade. A posição deles é de que embora as
sobreposições conceituais discordem, esse fato não importa para o destino último de alguém. Uma séria dificuldade
com a proposta Smith/Hick é que ela simplesmente não é verdadeira em relação aos registros das experiências
religiosas oferecidas por aqueles que as têm. Como William James demonstra em Varieties of Religious Experience,
são as próprias experiências que diferem, não meramente as interpretações subsequentes colocadas sobre elas.
Ademais, o tema da verdade não pode ser tão facilmente dispensado. Ou o divino e nossa relação apropriada com ele
são como nós as concebemos, ou elas não o são, e toda religião insiste que é crucial para as pessoas estarem corretas,
em vez de equivocadas, sobre esses temas. Ao negar esse ponto, Smith e Hick estão afirmando que todas as religiões
mundiais são, de fato, falsas, mas que isso não importa para o destino último de alguém. Assim, eles na verdade
inventaram uma nova religião que discorda com todas as outras, em vez de oferecer uma forma de reconciliar as
religiões existentes.
[32]
Os próprios escritores bíblicos insistem nesse ponto. Eles afirmam que outras crenças religiosas atribuem o status
que pertence somente a Deus a algo diferente dele (veja Is 42.8, 44.6; Rm 1.25). O que todas as religiões (e todas as
pessoas) veem pelo menos de forma vaga é que algo é divino. É isso que Calvino denominou “senso de divindade” em
todos os seres humanos, o qual tem estado em um estado deformado desde a Queda no pecado. Apresenta-se em geral
um argumento semelhante em outras religiões a favor de suas crenças divinas como opostas à crença em Deus.
[33]
O mesmo é verdadeiro para outros “ismos” em teorias da realidade. O positivismo, por exemplo, assume as
percepções sensórias como sendo divinas em lugar da matéria. Como Ernst Mach elabora, “A afirmação, então, é
correta de que o mundo consiste apenas de nossas sensações. Nesse caso, temos conhecimento apenas das sensações”
(The Analysis of Sensation, in J. Blaekmore, Ernst Mach [Berkeley: University of Califomia Press, 1972], p. 327 n. 14).
J. S. Mill, pelo contrário, tentou conduzir a explicação até um passo atrás. Quando perguntado sobre o que causava as
sensações, Mill respondeu que elas são o produto do que ele denominava “as possibilidades permanentes da sensação”,
e ele considerava essas misteriosas entidades como metafisicamente últimas: “Existe na natureza um número de causas
permanentes as quais subsistiram... por um período de tempo indefinido e provavelmente enorme... Mas não podemos
oferecer um relato sobre a origem das próprias causas permanentes... Todos os fenômenos, sem exceção, que começam
a existir, ou seja, todos, exceto as causas primordiais, são efeitos sejam imediatos ou remotos desses fatos primitivos,
ou algumas combinações deles” (Philosophy of Scientific Method, ed. E. Nagel [New York: Hafner, 1950], p. 202-3).
Essas entidades misteriosas são, portanto, deixadas por pré-definição no status da divindade, uma vez que elas existem
incondicionalmente na forma que a descrição se desenvolve. Ou considere o comentário de Jacques Derrida de que
fundamental à sua visão de realidade é seu momento “aneconômico”, o qual se anuncia a ele tomando-o e revirando-o
na forma de uma injunção que nunca o deixa, e é “o que é o mais inegavelmente real” (Philosophy in a Time of Terror.
Dialogues with Jurgen Habermas and Jacques Derrida [Chicago: University of Chicago Press, 2003], p. 134). Da
mesma forma, Richard Rorty, apesar do feito de ele insistir em que deveríamos “tentar alcançar o ponto aonde já não
adoremos algo, aonde já não tratemos algo como uma quase-divindade, aonde tratemos tudo — nossa linguagem, nossa
consciência, nossa comunidade – como um produto do tempo e do acaso. Alcançar esse ponto seria, nas palavras de
Freud, ‘tratar o acaso como digno de determinar nosso destino’” (Contingency, Irony, and Solidarity [Cambridge:
Cambridge University Press, 1989], p. 22). Não obstante essa admoestação, Rorty se compromete à especificação de
uma natureza básica para sua contingência que se equivale a uma crença religiosa! Pois enquanto todas as (outras)
crenças são relativizadas para necessidades práticas, a independência da realidade física/biótica e a evolução darwinista
são assumidas por ele como sendo verdadeiras no sentido preciso no qual ele nega tudo o que pode ser conhecido como
sendo. Pois ele se alinha com os pragmatistas que “começam com um relato darwinista dos seres humanos como
animais fazendo seu melhor para lidar com seu ambiente — fazendo seu melhor para desenvolver instrumentos que os
capacite a desfrutar de mais prazeres e menos dor” (“Relativism: Finding and Making”, in Debating the State of
Philosophy, ed.J. Niznik e J. Sanders [Westport London: Praeger, I996], p. 38). Assim, a base para insistir que
nenhuma (outra) crença pode ser conhecida como correspondendo à realidade é sua própria crença de que a evolução
pode fazê-lo (ver também meu artigo “A Critique of Historicism” in Crítica 29, no. 85 (April 1997).

[34]
Na outra direção, poderia ser contestado que o tipo (3) de crenças não é comum a todas as religiões. Afinal de
contas, os epicureus criam em muitos deuses e Aristóteles cria em um único deus, mas em nenhum dos casos havia
qualquer tipo (3) de crenças combinadas àquelas crenças. Deve ser lembrado, no entanto, que esses deuses eram
divinos apenas em um sentido secundário. Para os epicureus eram os átomos no espaço que tinham divindade per se,
enquanto que para Aristóteles esse era a forma e a matéria. E em ambos os casos suas divindades per se eram
acompanhadas não apenas pelo tipo (2) de crenças secundárias, mas também pelas crenças do tipo (3).
[35]
O comentário foi parte de uma palestra sobre a filosofia da linguagem na Universidade da Pensilvânia em março
de 1962.
[36]
Institutas da religião cristã, I, p. 82. Cf também a experiência de Alister Hardy: “Foi enquanto ouvia um sermão
na St. Mary que me tornei convencido da realidade de Deus. A emoção estava em um mínimo... O senso de ser
convencido também não foi basicamente intelectual. Foi simplesmente que eu sabia que o pregador estava falando a
verdade” (The Spiritual Nature of Man: A Study of Contemporary Religious Experience [Oxford: Clarendon, 1979], p.
100). Tillich também notou que a noção amplamente aceita da “fé” como crença sem evidência não é uma descrição
correta da experiência sobre a qual a crença em Deus é baseada. Ele diz que essa visão equivocada da fé a vê como “um
ato de conhecimento com limitada evidência e que a falta de evidência é compensada por um ato da vontade... Isso não
faz justiça ao caráter existencial da fé.” Ele então complementa: “A certeza da fé é ‘existencial’, significando que a
totalidade da existência [do crente] está envolvida... [Isso é] certamente relacionado ao próprio ser da pessoa, a saber...
[seu] ser relacionadoa algo último ou incondicionado” (The Dynamics of Faith, p. 34-35). Ele também fala disso como
a experiência de ser “capturado pela” verdade, mais do que como uma questão de escolha (p. 37).
[37]
Knowing with the Heart: Religious Experience and Belief in God (Downers’s Grove, Ill.: InterVarsity Press,
1999). Uma vez que a afirmação de que as crenças sobre a divindade per se são baseadas na experiência religiosa é
sujeita a uma ampla diversidade de mal-entendidos, aqui está um breve esboço da posição que defendo em Knowing.
“A experiência religiosa” é considerada como significando qualquer experiência que gera, aprofunda, ou confirma uma
crença religiosa. Ela não é, portanto, limitada a experiências incomuns ou estranhas como vozes, visões, união mística
com o divino, ou milagres. Tais experiências relativamente raras são, de fato, dependentes em sua significância, eu
argumento, da experiência do reconhecimento direto da verdade — o tipo de experiência referida em outros contextos
como intuição da autoevidência sobre a verdade de uma crença. Tal experiência direta da verdade vincula, eu
argumento, às experiências ordinárias (tais como simplesmente ler as Escrituras) assim como as experiências mais
incomuns. (Compare a citação de Hardy na nota precedente.) Eu defendo isso, em primeiro lugar, demonstrando que as
restrições tradicionais em relação à autoevidência genuína são falsas: não existe e não pode haver qualquer justificação
para as afirmações de que uma crença é autoevidente apenas se todas as pessoas racionais a experimentam como tal
(como Descartes e Locke insistiram), ou que a autoevidência se vincula apenas a verdades necessárias e produz crenças
infalíveis (como defendeu Aristóteles). Ao mesmo tempo, no entanto, não existem boas razões para duvidar que
intuições de autoevidência, como percepção e raciocínio, são fontes confiáveis de verdade. Eu argumento então que,
sob as condições apropriadas, a autoevidência com respeito à divindade está no mesmo barco epistemológico que a
autoevidência de axiomas lógicos ou matemáticos. A descrição, portanto, é uma defesa da posição assumida por
Calvino na citação referida na nota anterior, e também por Pascal, que coloca desta maneira:

Nós conhecemos a verdade não apenas pela razão, mas também pelo coração, e é por essa última forma que
conhecemos os primeiros princípios; e a razão, que não tem parte nisso, tenta em vão contestá-los... [Por
exemplo], sabemos que não estamos sonhando... conquanto seja impossível provar isso pela razão, o
conhecimento dos primeiros princípios do espaço, tempo, movimento, número é tão certo quanto qualquer
daqueles que alcançamos pelo raciocínio. E a razão deve confiar nessas intuições do coração e basear todos os
argumentos sobre eles... Portanto, aqueles a quem Deus comunicou a religião pela intuição são muito
afortunados, e justamente convencidos. (Pensées, trad. A. J. Krailsheirner [London: Penguin. 1966] p. 158.
Itálicos meus.)
[38]
Cf. Dooyewccrd, A New Critique, vol. 1, p. 55-57.
[39]
Uma série de pensadores argumentaram recentemente por essa posição. Eu menciono apenas alguns aqui: Alvin
Plantinga, “Reason and Belief in God”, in Faith and Rationality, ed. Alvin Plantinga e Nicholas Wolterstortf (Notre
Dame, Ind.: University of Notre Dame Press, 1983), p. 16-93; Plantinga, Warrant and Proper Function (Oxford:
OxfordUniversity Press, 1993) e Warranted Christian Belief (Oxford: Oxford UniversityPress, 1999); William Alston,
Perceiving God (Ithaca: Cornell University Press, 1991); e Nicholas Wolterstorff, “Can Belief in God Be Rational If it
Has No Foundations?”, in Faith and Rationality, p. 135-86.
Gostaria de enfatizar que eu apenas disse que crenças “podem ser” básicas, para reconhecer que para muitas pessoas
elas não o são. Muitas adotam a religião por razões outras do que elas experimentarem diretamente sua verdade, razões
tais como as de que a religião lhes traz conforto, uni-as socialmente com outros, ou oferece ordem e beleza em suas
vidas, etc. Geralmente essas pessoas complementam que ninguém pode realmente saber se qualquer crença sobre a
divindade é verdadeira, e admitem aceitar suas próprias crenças em bases pragmáticas tais como que elas oferecerem
conforto e esperança face tragédias ou à morte. Tais pessoas são o que denominei “companheiros de viagem” em
comparação ao ponto feito anteriormente: toda grande religião afirma que crentes genuínos são apenas aqueles que
veem por si mesmos que seus ensinamentos são verdadeiros. Essa distinção não deveria, no entanto, ser tida como
sugerindo que companheiros de viagem assumem suas afiliações religiosas de forma relaxada. Pelo contrário, eles são
geralmente altamente comprometidos e fortemente leais. Na verdade, eu penso que o fanatismo religioso esteja
fortemente associado precisamente com a lealdade de grupo substituindo o reconhecimento da verdade, sendo assim
mais comumente um produto do compromisso do companheiro de viagem. Geralmente é a lealdade ao grupo que induz
violações dos próprios ensinamentos em relação aos quais o grupo supostamente estaria comprometido. Em contraste, o
genuíno reconhecimento da verdade supera todas as outras lealdades e compromissos.
[40]
O termo aqui traduzido por “idólatras” é o termo inglês “heathen”, que carrega consigo um sentido depreciativo
das religiões não cristãs, podendo ser também traduzido por “hereges”, “pagãos” e “infiéis”. [N. do T.]
[41]
W. Jaeger, Theology of the Early Greek Philosophers, p. 17.
[42]
W. Heisenberg, Physics and Philosophy (New York: Harper, 1958), p. 72-73.
[43]
J. Vander Hoeven.Karl Marx: The Roots of His Thought (Amsterdam: Van Gorcurn,1976), p. 12.

[44]
J. B. Noss, Man’s Religions (New York: Macmillan, 1980), p. 181. Obviamente, também é verdade que existem
versões das tradições panteístas que não são tão extremas e sustentam apenas que o divino é mais real do que as coisas
individuais da experiência do dia a dia. Tais importantes diferenças são típicas das tradições panteístas; suas várias
escolas de pensamento diferem de forma bem mais ampla, digamos, do que as diferenças entre os teístas.

[45]
W. Herberg, “The Fundamental Outlook of Hebraic Religion”, op. cit., p. 283.

[46]
Ibid., p. 284. Esse ponto será desenvolvido em maiores detalhes no capítulo 10.
[47]
A menos que mencionado especificamente, as citações bíblicas serão da versão João Ferreira de Almeida
Atualizada.
[48]
A. N. Whitellead, Adventures of Ideas (New York: Mentor Books, 1955), p. 108.
[49]
A. N Whitehead, Science and the Modern World (New York, Free Press, 1967), p. 92.

[50]
Por exemplo: E. Nagel, The Structure of Science (New York: Harcourt, Brace& World, 1961), p. 1-28; K. Popper,
Conjectures and Refutations(New York: Harper &Row, 1965), p. 216; J. Kemeny, A Philosopher Looks at Science
(New York: Van Nostrand Rienhold, 1959), p. 156 ss.; R. Giere, Understanding Scientific Reasoning (New York: Holt,
Reinhart & Watson, 1979), p. 61, 80, 163; M. Martin, Concepts of Science in Education (New York: Scott, Foresman,
1972), p. 50-58; N. Rescher, Scientific Explanation(New York: Free Press, 1970), p. 8-24; J. J. C. Smart, Between
Philosophy and Science(New York: Random House, 1968), p. 53-88; M. Wartofski, Conceptual Foundations of
Scientific Thought (London: Macmillan, 1968), p. 35, p. 240; G. Gale, Theory of Science(New York: McGraw-Hill,
1979), p. 193-235; W. Balzer e C. U. Moulines, eds., Structuralist Theory of Science: Focal Issues, New Results
(Berlin: Walter cle Gruyter, 1996), p. 1-13; Margaret Morrison e Mary S. Morgan, eds., Models as Mediators.
Perspectives on Natural and Social Sciences (Cambridge: Cambridge University Press, 1999), p. 10-37; U. Méiki,
“Isolation,Idealization and Truth in Economics”, in B. Hamminga e N.B. de Marchi, eds., Idealization VI. Idealization
in Economics. Poznan Studies in the Philosophy of the Sciences and the Humanities, vol. 38 (Amsterdam: Rodopi,
1994), p. 147-68.
[51]
Os principais pontos oferecidos aqui são um resumo da descrição que Dooyeweerd oferece na New Critique of
Theoretical Thought, ver esp. vol. 1, p. 38 onde Dooyeweerd utiliza sua análise da abstração como a base para a “crítica
transcendental” das teorias. Por isso ele quer dizer que a abstração é (parte da) resposta à questão transcendental: “O
que torna as teorias possíveis?” Enquanto ele reconhece que sua abordagem tem um débito com Kant, seu
desenvolvimento próprio dela (e sua própria teoria subsequente) é substancialmente não kantiano. De forma breve:
Dooyeweerd enfatiza que enquanto Kant elabora a questão transcendental “O que torna a experiência possível?” ele
então imediatamente oferece uma teoria para responder a isso sem ter perguntado a próxima, e óbvia, questão “O que
torna as teorias possíveis?”. Como resultado, diz Dooyeweerd, Kant falhou em manter uma atitude genuinamente
crítica. A esse respeito a tentativa de Kant falhou da maneira que R. Chisholm havia acusado como tendo falhado todos
os argumentos transcendentais passados no capítulo 8 de sua obra The Foundations of Knowing (Minneapolis:
University of Minnesota Press, 1982), p. 95-99. Em contrapartida, Dooyeweerd mantém a instância transcendental
oferecendo uma análise descritiva da atividade da alta abstração que é sujeita à confirmação na própria autorreflexão.
Ao ser confirmado dessa forma, a descrição da abstração é o que Dooyeweerd denomina “empírico transcendental”,
pois ela não depende de suposições a priori e nem é uma interferência cujas premissas possam ser negadas. Ademais,
em lugar de ser a base de qualquer teoria específica, sua descrição da alta abstração é empregada para derivar o critério
da coerência de todas as teorias. Assim, ele não a utiliza para provar, e.g. de que existe um mundo independente do
pensamento humano como Kant tentou fazer, o que Stroud demonstrou que os argumentos transcendentais não podem
fazer (“Transcendental Arguments”,Journal of Philosophy 65, no. 9 [1968]: p. 241-56). O critério de Dooyeweerd, no
entanto, demonstra por que todas as teorias tentando justificar a negação de um mundo externo aos humanos violam
esse critério, e assim caem em uma ou mais das incoerências que elas expõem. Esses critérios são formulados adiante
neste capítulo, e sua aplicação à teoria de Kant é resumida abaixo na nota 18.
[52]
Nagel, Structure of Science, p. 4, 11.
[53]
Exemplos das três formas de alta abstração que podem estar envolvidos em teorias são como se segue: (1) não é
necessária a alta abstração para postular se a água sempre apaga o fogo, mas ela é necessária para questionar como o
calor é transferido de um objeto ao outro; (2) não é necessária alta abstração para propor a hipótese de que a água não
apagará todos os tipos de fogo, mas ela é necessária para estruturar a teoria de que o calor é transferido pela colisão de
moléculas vibrando mais rapidamente com moléculas vibrando mais vagarosamente; (3) não é necessária alta abstração
para pensar no teste de se lançar água sobre fogos até que se encontre um que não se extinga pela água. Mas é
necessária alta abstração para se conceber argumentos e testes para a teoria molecular de transferência de calor.

[54]
A sociologia tende a ser uma mistura. Algumas de suas teorias lidam com o aspecto social da vida, ou seja, com
propriedades, normas e relações lidando com o prestígio, respeito, status, costumes, tradições, estilos de roupas, etc.
Outras teorias tomam comunidades sociais como seu campo e lidam com um ou outro aspecto dessas. No capítulo 12
assumirei a posição de que as comunidades são melhor entendidas como resultando de distintas formas nas quais as
relações sociais de autoridade são organizadas.

[55]
G. Ryle, Dilemmas (Cambridge: Cambridge University Press, 1956), p. 13.
[56]
J. Piaget, Main Trends in Interdisciplinary Thought (New York: Harper & Row, 1970), p. 12-13.

[57]
A afirmação de que todas as teorias são reguladas por alguma crença sobre a divindade será desenvolvida nos
últimos capítulos para teorias da realidade, mas não há espaço para fazer o mesmo em relação às epistemologias. Eu
ofereço uma breve descrição de algumas das formas que isso se aplica também às epistemologias em Knowing with the
Heart, mencionado anteriormente.

[58]
Se uma teoria propôs a existência de uma entidade que poderia possivelmente ser experimentada diretamente,
embora ainda não pudesse ser encontrada, então encontrá-la confirmaria a teoria como sendo verdadeira. Por exemplo,
os astrônomos que teorizaram que existe um nono planeta em nosso sistema solar foram provados como estando
corretos quando Plutão foi descoberto em 1930. A teoria germinativa das doenças também é outro exemplo. Sempre
que o que é proposto por uma teoria é encontrado, a proposta da teoria deixa de ser uma suposição e, portanto, não é
mais uma hipótese. Não é necessário dizer, no entanto, que a vasta maioria das teorias nas ciências e na filosofia não
são aquelas que propõem a existência de entidades que sejam diretamente detectáveis.
[59]
Isso não tem como intenção assumir algum lado na controvérsia atual realistas vs. antirrealistas em relação às
entidades teóricas, uma vez que cada uma é extrema em demasia da forma que elas se posicionam. Mas é mais próxima
da realista por insistir que teorias entitárias certamente intencionam descobrir realidades insuspeitas; embora ao mesmo
tempo mantenha que não podemos reivindicar justificadamente que o fizemos além de qualquer dúvida (com a exceção
reconhecida na nota anterior). O principal fator na justificação teórica é aquele já enfatizado: a razão para crer em uma
teoria é o quão bem ela explica o que se propõe a explicar. Assim, enquanto a “extensão para além da intenção” e a
“convergência da evidência” podem justificadamente conduzir à aceitação de uma teoria, pode ainda ser o caso que o
que está em uma teoria que corresponda à realidade (a razão pela qual ela funciona) seja diferente daquilo que a teoria
propõe ser. Ademais, a conclusão sobre qual teoria – ou qual interpretação de uma teoria – oferece a melhor explicação,
continuará a diferir de acordo com a visão da realidade assumida por determinado pensador, e assim também difere de
acordo com a crença sobre a divindade do pensador. O resultado é, como Dooyeweerd geralmente nos lembra, que “não
há certezas no campo da teoria” exceto as certezas que trazemos para ela a partir da experiência pré-teórica.

[60]
Minha articulação de considerar um aspecto como divino é uma expressão elíptica. Mais precisamente, um aspecto
é crido como qualificando a natureza daquilo que é divino. Teorias mais antigas da realidade eram cuidadosas ao
especificar não apenas qual tipo de coisa é divina, mas exatamente o que é que possui essa natureza. Mas teorias mais
recentes da realidade parecem avessas a ser tão diretas. Por exemplo, os materialistas contemporâneos estão certos de
que a natureza última da realidade (e, portanto, a natureza da realidade última) é física, mas nenhum dentre eles se
comprometerá a revelar quais (supostamente) coisas puramente materiais, ou processos, têm existência independente e
são, dessa forma, aquelas sobre as quais tudo o mais depende.
[61]
É a desigualdade da realidade concedida pela atribuição de prioridade que é questionável, porque ela reflete uma
crença religiosa pagã. Conectado a isso um ponto feito no capítulo 2 precisa ser mantido em mente, a saber, que se uma
explicação remonta tudo a alguma(s) fonte(s) e então simplesmente para, sem dizer explicitamente que essa fonte tem
uma realidade independente, o status independente é, dessa forma, conferido sobre a(s) fonte(s) por omissão. Até aqui
dizemos, assim, que a(s) fonte(s) é(são) divina(s). Isso não é negar, entretanto, que certas propriedades incluídas em um
conceito (ou em uma coisa) pode ser mais importante para esse do que para outros. Mas eu demonstrarei
posteriormente por que a maior importância que certas propriedades podem ter em um conceito, ou em uma coisa, é
mais capaz de ser explicada sem entronizar o aspecto qualificando-as como divino, e sem qualquer redução
correspondente no status ontológico dos aspectos remanescentes. O próprio fato de que tal e tal descrição é possível
serve para reforçar o ponto de que a persistência da redução ontológica no pensamento ocidental é derivado não de
alguma necessidade teórica, mas de uma perspectiva religiosa geral pagã.

[62]
Michael Polanyi elaborou o mesmo ponto em relação às regras para a ciência que eu apliquei para os conceitos
teóricos em Personal Knowledge (New York: Harper& Row, 1962) [Conhecimento pessoal. Por uma filosofia pós-
crítica. Porto: Editora Inovatec, 2013]: “Todas as regras formais para o procedimento científico devem se demonstrar
ambíguas, pois elas serão interpretadas de forma bem distinta de acordo com as ideias particulares sobre a natureza
das coisas pelas quais o cientista é orientado” (167, itálicos meus). Deveria ser acrescentado que, ao fazer esse ponto,
eu tenho falado de conceitos altamente abstratos tanto de objetos percebidos quanto de entidades inventadas como
hipóteses, i.e., conceitos tais como emergem na ciência e na filosofia. Em conceitos que não são altamente abstratos e
os quais ocorrem na configuração do pensamento e da experiência ordinária, pessoas raramente estão conscientes sobre
quais tipos de propriedades elas veem como dependentes de outro(s) tipo(s). Assim, em um contexto não teórico, se
pessoas forem questionadas sobre quais dos tipos de propriedades incluídas em seu conceito de algo é aquele do qual
todos os outros tipos dependem, elas poderiam responder honestamente: “Eu não sei.” Isso não demonstra, no entanto,
que elas não possuam algum tipo de crença sobre a divindade, mas apenas que essa permanece como uma
pressuposição inconsciente. Questões adicionais sobre os conceitos das pessoas sobre, digamos, o que é ser humano
(em vez de apenas um saleiro) é geralmente mais revelador de suas crenças tácitas na divindade.
[63]
Estou tentando tornar claro aqui que isso não significa que a proposta, defesa ou adoção de uma hipótese entitária
por um cientista deva ser atribuída à influência de qualquer filosofia em particular. A afirmação não é a de que algum
panorama sobre a natureza da realidade como elaborada em uma teoria filosófica necessariamente exerce uma
influência reguladora sobre as teorias na ciência. Em vez disso, é a questão sobre a natureza da realidade não poder ser
evitada, quer o que um cientista pressupõe sobre essa natureza da realidade seja derivado de um filósofo, ou tenha sido
elaborado como uma teoria na história da filosofia.

[64]
“[Em casos de disputa entre teorias] parece que os dois lados não aceitam os mesmos ‘fatos’ como fatos, e ainda
menos ‘evidências’ como evidências... Pois dentro de dois quadros referenciais distintos o mesmo espectro de
experiências assume a forma de fatos e evidências distintas” (Polanyi, Personal Knowledge, p. 167).

[65]
Alguns críticos objetaram que não faz sentido minha oferta de critérios para teorias se elas são todas interpretadas
sob o controle de alguma crença sobre a divindade. “O critério não teria força apenas para aqueles que compartilham de
sua crença religiosa?”, perguntam. Outros levantaram o mesmo tipo de objeção à minha definição de crença religiosa, e
um até mesmo sugeriu que a afirmação sobre o controle religioso das teorias é autorreferencialmente incoerente.
Vamos começar pela última crítica. Nossa afirmação não é de que todas as teorias são produzidas ou forçadas sobre nós
por alguma crença sobre a divindade, de forma que não haja incoerência autorreferencial. A afirmação é de que a
natureza dos postulados de uma teoria é sempre interpretado à luz daquilo que é pressuposto como divino.
No caso de crenças que não são hipóteses: tenho tentado por todo o tempo tornar claro que existem inúmeros estados de
coisas que são reconhecidos no nível da experiência e do pensamento os quais são compartilhados por todos da mesma
forma (cf. meus comentários no capítulo 1). Todos podem reconhecer, digamos, que a luz do semáforo está vermelha,
ou que existe uma árvore no jardim, etc. Isso permanece assim mesmo que um nível mais profundo de análises dos
conceitos desses estados de coisas demonstre diferenças relativas à crença sobre a divindade pressuposta (eu ilustrei
isso com o exemplo de duas pessoas passando o saleiro no jantar.) Isso também é verdade em relação aos critérios
oferecidos aqui para teorias, juntamente com a definição de crença religiosa e a afirmação sobre o controle religioso de
teorias. Eles são estados de coisas que não são, eles mesmos, hipóteses; eles não são opiniões abalizadas propostas para
preencher lacunas explanatórias.
Nesse sentido eles possuem um status em relação à nossa afirmação central análogo àquele da lei da não-contradição.
Essa também não é uma teoria, mas é abstraída do aspecto lógico de nossa experiência. Como tal, ela pode ser
reconhecida por qualquer pessoa, independentemente de sua orientação religiosa. Essa lei, obviamente, será então
interpretada à luz de qualquer crença que uma pessoa possua, razão pela qual ela tem sido construída de variadas
formas como: um produto acidental da forma que nossos cérebros vieram a evoluir, aplicáveis a nossos pensamentos,
mas não à realidades extra-mentais, aplicáveis à linguagem, mas não à matemática, aplicáveis ao mundo da percepção
do dia a dia, mas não ao nível sub-atômico, parte do mundo ilusório o qual devemos rejeitar como sendo liberado a
partir do ciclo de nascimento, etc.
Dessa forma, a afirmação sobre o controle religioso das teorias, juntamente com a definição de crença religiosa e o
critério oferecido para teorias, também são estados de coisas deriváveis da experiência. Com certeza, eles serão
interpretados a partir de vários pontos de vistas religiosos, mas isso servirá apenas para confirmar nosso ponto, não
enfraquecê-lo. (Cf. New Critique, vol. l, p. 34-37, 82-86, 545-66; vol. 2, p. 366-80, 429-34, 466-7l; vol. 3, p. 1-53,
145.)

[66]
Esse critério produz uma crítica bastante diferente da crítica comum do materialismo eliminativo, o qual alega que
ele nega a existência de crenças e outras atitudes proposicionais. Churchland argumentou que a última crítica assume
uma “psicologia popular” que suscita o questionamento. (A Neuro-Computational Perspective: The Nature of Mind and
the Structure of Science [Cambridge, Mass.: MIT-Bradford, 1989], p. 111-127). Mas em vez de assumir uma psicologia
popular que sustenta que as crenças devem ser não físicas, meu critério demonstra por que os ‘eliminativistas’ devem
assumir que seus próprios enunciados têm propriedades não físicas e são governados por leis não físicas se pretendem
ter sentido e serem verdadeiros. E isso inclui seus enunciados sobre a psicologia popular.

[67]
Este é o critério que Dooyeweerd considera como chave para uma crítica transcendental plena da produção teórica,
e o qual ele acusa Kant de haver ignorado. Na verdade, ele argumenta que quando ele é aplicado às próprias teorias de
Kant, elas são desqualificadas. Dooyeweerd diz:

Desde o princípio Kant derivou o conhecimento humano a partir de apenas duas origens: sensibilidade e
pensamento lógico... seguindo os passos do empirismo inglês, ele parte da suposição dogmática de que o ‘dado’
da experiência é de um caráter... puramente sensitivo...

Nessa atitude, a epistemologia simplesmente assumiu de antemão aquilo que deveria ser o problema central de
qualquer crítica do conhecimento, viz. a abstração das funções lógicas e sensoriais da plena systasis... dos
aspectos da experiência humana... Essa abstração é realizada no pensamento teórico apenas por um processo de
disjunção e oposição...

O ‘dado’ real da experiência humana precede toda a [abstração] teórica.

A suposição de que certas funções da consciência, teoricamente isoladas no ato da cognição, são os dados, não é
nada menos do que o pecado capital cosmológico. (New Critique, vol. 2, p. 431-432)

A questão primordial deveria ser: O que nós abstraímos do ‘dado’ real da experiência? E somente em uma
coerência inquebrável com essa questão primordial deveria o segundo problema ser levantado: Como pode a
antítese entre os [aspectos abstraídos] ser reconciliada por uma... síntese interaspectual? (Ibid., p. 434)

Esse tipo de violação do critério de coerência autoperformativa não é verdadeiro apenas de Kant, mas é, Dooyeweerd
demonstra, típico da filosofia ocidental (Cf. New Critique,vol. 1, p. 27-162, 297-405; vol. 2, p. 430 ss., e especialmente
p. 493-575.) Retornaremos a esse ponto novamente em capítulos posteriores, por exemplo no capítulo 8 (esp. na nota
2), onde parecerá que o tema sobre como caracterizar o dado da experiência é crucial nas interpretações concorrentes da
teoria atômica. E uma exposição mais ampla da força da crítica de Dooyeweerd será oferecida no capítulo 10.
[68]
S. Kierkegaard, Fear and Trembling and Sickness Unto Death (Garden City, N.Y.:Doubleday, 1955), p. 48. [O
desespero humano. São Paulo: Editora UNESP, 2010.]
[69]
Ibid., p. 218.
[70]
S. Kierkegaard, The Concluding Unscientific Postscript, reimpresso em Nineteenth-Century Philosophy, ed. P
Gardiner (New York: Free Press, 1964), p. 306-7. Alguns estudiosos de Kierkegaard informaram-me que a posição
expressa nessas citações é, na verdade, enganosa, e que sua posição real é mais como a minha própria. Eles admitem,
no entanto, que as afirmações como essas que citei aqui certamente indicam que sua posição é como eu a descrevi, e
também que esse (des)entendimento em relação a ele tem por um longo período se constituído como seu legado
intelectual. Uma vez que esse é o caso, eu deixarei as citações como exemplos da posição sendo descrita, com o
reconhecimento de que elas possam talvez não ser acuradas em relação ao que o próprio Kierkegaard intencionava.
[71]
F. Schleiermacher, On Religion: Speeches to Its Cultured Despisers (New York:Harper & Brothers, 1958), p. 46.

[72]
A. N. Whitehead, Adventurer of Ideas (New York: Mentor Books, 1955), p. 165.Essa tem sido a visão
prevalecente no pensamento ocidental por um longo período, e tem sido compartilhada por pensadores que, por outro
lado, diferem amplamente. Por exemplo, em sua tese doutoral (Berlim, 1841), Karl Marx citou David Hume com
aprovação como segue:

‘Há certamente um tipo de indignidade à filosofia, cuja autoridade soberana deveria ser reconhecida em toda parte,
obrigando-a em cada ocasião a ter de se desculpar por suas conclusões, e ter de se justificar... Isso faz recordar um rei
acusado de alta traição contra seus súditos.

Marx então complementa com seu próprio comentário de que “a consciência do homem (é) a divindade suprema. Não
deve haver qualquer deus à altura dela” (de “Foreword to Thesis: The Difference between the Natural Philosophy of
Democritus and the Natural Philosophy of Epicureus”, reimpresso em Marx and Engels and Religion[Moscow:
Foreign Language Publishing House], p. 14-15).
[73]
B. Russell, Why I’m NOT a Christian (New York: Simon & Schuster, 1957), p. 32-33.

[74]
Tomás de Aquino, De Trinitate exposition, 2.3.

[75]
Por uma questão de acuidade histórica, deve ser complementado que sempre houve um maior esforço de
resistência à posição escolástica entre os estudiosos judeus e muçulmanos do que entre cristãos. Muitos pensadores
cristãos que assumiram a posição escolástica geral em relação à razão e às crenças sobre a divindade sentiram-se livres
para se apropriar de muitos conceitos filosóficos gregos no desenvolvimento de suas teologias. Assim, eles, e.g.
terminaram por entender a natureza de Deus como equivalente às formas de Platão, e construíram a ideia da alma
humana em um molde helenista, em vez de estarem de acordo com a forma que os escritores bíblicos falaram dessa.
Esse tópico será tratado com maior amplitude no capítulo 10.

[76]
J. Calvino, Commentary on the First Book of Moses (Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1948), vol, 1, p. 63.

[77]
Veja as observações perspicazes do artigo de James Barr “Literality”, em Faith and Philosophy 6, no. 4 (Oct.
1989): p. 412-28.
[78]
Isto é, tanto as verdades que são reveladas sobre o tema quanto o apelo às Escrituras. [N. do R.]
[79]
Citado em C. C. Gillespie, Genesis and Geology (New York: Harper & Brothers,1959), p. 53.

[80]
Howard Van Till desenvolveu esse ponto em detalhes. Veja The Fourth Day: What the Bible and the Heavens Are
Telling Us about Creation (Grand Rapids, Mich: Eerdmans,1936) e Portraits of Creation. Biblical and Scientific
Perspectives on the World’s Formation (Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1990).
[81]
A confusão entre a providência de Deus e seu agir na criação é comum a uma ampla variedade de pensadores. Um
exemplo notável é encontrado na obra de Stephen Hawking, A Brief History of Time (New York: Bantam Books, 1988),
p. 136-41, 174-75. O equívoco também é endossado por Carl Sagan em sua introdução ao livro.

[82]
Por exemplo, a obra de Gerald Schroeder, Genesis and the Big Bang (New York: Bantam Books, 1990). Outros
autores vão ainda mais longe e tentam até mesmo utilizar evidência científica para provar a existência de Deus. Eles
argumentam que inúmeras características do universo são estatisticamente tão improváveis ao ponto de forçar a
conclusão de que elas foram projetadas inteligentemente. Mas enquanto todos os teístas sabem, a partir da revelação,
que o mundo foi planejado por Deus, apenas a improbabilidade estatística de quaisquer que sejam suas características
nunca podem provar isso. Isso ocorre porque, conquanto pequena seja a probabilidade de qualquer ocorrência, isso só
poderia conduzir à conclusão de que isso foi projetado se pudesse ser conhecido que essa probabilidade fosse menor do
que o coeficiente de coisas planejadas e não planejadas no universo em geral. Por exemplo, suponha que a
probabilidade de X se desenvolver à parte de um projeto inteligente possa ser conhecida como sendo 1/100.000.000.
Isso não nos diria nada sobre se X era mais provável de ser projetado do que o contrário a menos que já soubéssemos
que para cada coisa projetada no universo houvesse menos que 1000.000.000 de coisas não projetadas. Para o
argumento funcionar, teríamos de possuir um acesso antecedente ao coeficiente de coisas projetadas em relação às não
projetadas no universo e comparar isso à probabilidade da ocorrência não planejada de X. Mas não somente essa
informação não está disponível, ela também é dependente de já sabermos se Deus projetou o mundo! Pois se Ele o fez,
então não existem coisas não projetadas em absoluto, ao passo que se Ele não as fez, então as únicas coisas
inteligentemente projetadas (do que sabemos) no universo são aquelas produzidas por seres humanos e animais
superiores. O argumento, portanto, é um entimema, e sua premissa suprimida força qualquer inferência da
probabilidade inicial de X de ser questionada em relação à crença em Deus. (Veja John Venn. The Logic of Chance
[New York: Chelsea Pub. Co., 1962].)
[83]
É importante notar que a própria escritura oferece um enunciado sobre a extensão em relação à qual podemos
esperar sua inspiração para garantir sua verdade: “Toda a escritura é divinamente inspirada, e proveitosa para ensinar,
para redarguir, para corrigir, para instruir em justiça” (2Tm 3.16). Isso parece se encaixar admiravelmente com o que
eu tenho denominado o “foco religioso” da Bíblia uma vez que, tomada em seu próprio contexto, essa observação está
falando da escritura como equipando um pastor com o verdadeiro ensino sobre “justiça” que é o dom pactual de Deus.
Não há a menor pista de que a autoridade inspirada da Escritura seja intencionada para se estender além daquilo que ela
ensina em relação a Deus, nosso relacionamento apropriado com Deus, e o que mais que deva ser verdadeiro para que
esses ensinamentos sejam verdadeiros.
[84]
N. H. Ridderbos, Is There a Conflict between Genesis 1 and Natural Science?(Grand Rapids, Mich.: Eerdmans,
1957). Veja também C. Vanderwaal, Search the Scriptures (St. Catherines, Ontario: Paideia Press, 1978), vol. 1,53 ss. e
Meredith Kline e Lee Irons, “The Framework View”, in The Genesis Debate, ed. D. Hagopian (Mission
Viejo,Califomia, Crux Press, 2001). Eu defendi essa leitura de Gênesis em: “Genesis on the Origin of the Human
Race”, in Perspectives on Science and Christian Faith, 43, no. 1 (March 1991): p. 2-13; e em “Is Theism Compatible
with Evolution?” in Intelligent Design Creationism and Its Critics, ed. Robert Pennock (Cambridge, Mass.: MIT Press,
2001), p. 513-36.

[85]
Henry Morris expressou isso de forma bastante direta: “Mas ainda existe o problema da idade da terra... Se isso
puder ser resolvido em algum lugar, deve ser na escritura... Pareceria impossível que Deus tenha deixado um tema tão
importante... sem resolução em sua Palavra. Certamente, Deus tem a resposta em sua Palavra!”. Cf. The History of
Modern Creationism (San Diego: Master Books, 1984), p. 96.

[86]
Essa visão da natureza humana não é uma proposta nova, já que era mantida por inúmeros pais da igreja
(Lactâncio, c.g.) e por Calvino, o qual afirmou que “apenas a religião torna o ser humano mais elevado que os animais”
(Institutes, I, m, 3). Deveria ser notado que isso significa que ser religioso é uma exigência para ser minimamente
humano. Anjos também são seres religiosos, mas são super-humanos (Sl 8.5).

[87]
Alguns pontos precisam ser acrescentados aqui. Primeiro, o relato não tem a ver com qualquer afirmação de que a
feminilidade deve sua origem na masculinidade, como algumas interpretações mais antigas sugeriram. Segundo, isso se
afasta da afirmação fundamentalista de que Gênesis contém boa ciência assim como das muitas afirmações dos críticos
de Gênesis que tentaram acusá-lo de má ciência. Por exemplo, alguns leram Gênesis de forma equivocada como se
implicasse que anteriormente à Queda não havia coisas tais como a morte, ervas daninhas, ou dor no parto. Não é
assim. O que o texto diz é que Adão e Eva, como os primeiros a serem colocados em provação religiosa, foram
posicionados em um “jardim de Deus” especial no qual eram protegidos dessas coisas. Uma vez que eles
desobedeceram a Deus e foram exilados desse lugar de proteção especial, eles foram então expostos a todas as
vicissitudes da vida das quais eles haviam sido anteriormente protegidos. Esse é o ponto de vista do texto que pode ser
visto ao comparar-se Gen. 3.24 com Josué 5.13-15 e a observação de Josué em Números 14.9.
Por agora também deveria estar claro que não vejo objeção religiosa à ideia de uma longa evolução biológica como
(parte da) a história das origens humanas. A esse respeito, é notável que o próprio Gênesis faça uma referência velada a
outros humanos os quais os filhos de Adão e Eva conheciam e temiam (Gen. 4:14-16). Quase todos ao lerem pela
primeira vez essas observações se questionaram de onde essas pessoas teriam vindo. Mas se um processo evolutivo
produziu muitos seres quase-humanos acerca do mesmo tempo, essa questão seria respondida. Outros quase-humanos
poderiam ter se tornado plenamente humanos logo após Adão e Eva, e pelo mesmo passo causal final de Deus fazendo-
se conhecido a eles. O encabeçamento de Adão e Eva relativo ao resto da raça humana deve, portanto, também ser
considerado como religioso ao invés de biológico: eles eram aqueles a quem Deus colocou em provação religiosa, de
forma que eles eram os representantes de todas as pessoas ― as instâncias universais da raça humana ― relativo às
ordenanças e promessas de Deus.

Reconheço que esse ponto é contrário a uma antiga tradição teológica (endossada por Agostinho, por exemplo) que
insiste que Adão e Eva eram os ancestrais biológicos de todos os outros seres humanos. Mas não posso encontrar
garantia teológica para essa posição. A coisa mais próxima nas Escrituras a tal ideia é o momento em que Adão chama
a Eva a “mãe de todos os seres viventes”. Mas isso é dito no contexto em que a ela é prometido que um de seus
descendentes será o Messias. Assim, a observação de Adão se refere ao sentido pleno de “vida” que diz respeito ao
relacionamento apropriado com Deus, ao invés de meramente descendência biológica. Parece, portanto, que interpretar
o encabeçamento religioso da raça humana como equivalente à posição de progenitor de todos os humanos é (outro)
caso de se oferecer a um ponto religioso uma interpretação (biológica) não religiosa. Que isso seja um erro se faz ainda
mais claro no Novo Testamento do que em Gênesis, uma vez que é dito que Jesus é o Messias e, portanto, o “novo
Adão”, e certamente seu encabeçamento da raça humana é exclusivamente religioso, já que ele nunca foi o ancestral de
alguém.

Finalmente, é significativo que a oposição teísta à teoria da evolução tenha emergido da confusão mencionada
anteriormente entre a providência de Deus e seus atos milagrosos. O próprio Darwin notou que isso seria um ponto
chave em jogo quando, na primeira edição da oba A origem das espécies por meio da seleção natural (Londres: John
Murray, 1859), ele escreveu:

A meu ver isso se adequa melhor com o que sabemos das leis impressas na matéria pelo Criador, que a
produção e a extinção dos habitantes passados e presentes do mundo devem ter ocorrido devido a causas
secundárias, como aquelas determinando o nascimento e a morte do indivíduo. (p. 488)

Isso parece correto em relação aos processos físicos e biológicos que conduziram ao aparecimento dos últimos pré-
humanos, embora isso ainda exclua o último passo exigido para trazer seres humanos plenos à existência, o que é o
foco em Gênesis. Grande parte da oposição entre os fundamentalistas e os evolucionistas não teístas pode, assim, ser
visto como cada um insistindo em seu próprio lado favorecido da verdade: um diz que houve apenas processos naturais,
o outro diz que houve apenas a ação direta de Deus.

A razão pela qual Darwin abandonou a posição expressa na citação acima, tornando-se um agnóstico religioso, foi que
ele subscreveu a uma teologia falha. Ele foi convencido de que o que quer que ocorra gradualmente é natural, e que
apenas saltos inexplicáveis na natureza devem ser atribuídos a Deus. Veja a obra de Howard Gruher, Darwin on Man:
A Psychological Study of Scientific Creativity (Chicago: University of Chicago Press, 1981), p. 242.
[88]
Enquanto eu critico a afirmação fundamentalista de que as escrituras orientam teorias ao suprir ou confirmar seus
conteúdos, eu também tenho tentado tornar claro que eu não quero sugerir que isso nunca aconteça. Por exemplo,
certamente é o caso que a Bíblia ensina que o universo não é autoexistente e tem ensinamentos claros sobre a natureza
humana, cada qual tendo sido negado por teorias. Mas, como disse no capítulo 5, enquanto existem ocasionalmente
verdades reveladas que deveriam ser parte de uma teoria, ou podem confirmar uma teoria, essas são poucas e espaçadas
e não podem constituir um modelo para a relação geral entre crença religiosa e teorias, devido ao ensinamento
escritural de que a crença em Deus impacta toda a verdade e todo o conhecimento.
[89]
Alguns críticos têm objetado que não faz sentido falar de crenças inconscientes uma vez que para se ter uma
crença alguém deve estar consciente de seu conteúdo. Isso, penso eu, confunde o sentido disposicional com o manifesto
da “crença”. Ao fim do capítulo 2, eu assumi a posição de que uma crença é uma disposição adquirida para considerar
um estado de coisas como sendo de fato o caso e o enunciado dessa como verdadeira. Esse tipo de disposição pode
existir enquanto permanece inconsciente para seu possuidor tanto no sentido de não ser pensado em um dado momento
quanto no sentido de nunca ter sido conscientemente articulado em absoluto.

[90]
Muitas discussões conhecidas sobre pressuposições por filósofos e linguistas não são relevantes aqui, uma vez que
elas lidam com essas no sentido de condições de verdade ao invés de condições de crenças. Por exemplo, B. Russell,
“On Denoting”, Mind 15 (1905); P. Strawson, “On Referring”, Mind 59, no. 235 (July 1950), e “Identifying Reference
and Truth Values”, Theoria, vol. 20, pt. 2 (1964); G. Lakoff, “Linguistics and Natural Logic,” in Semantics of Natural
Language, ed. D. Davidson e G. Hannon (Dordrecht: Riedel, 1972); J. Katz, Semantic Theory (New York: Harper &
Row, 1972). O uso de “pressuposição” nesses artigos como condições de verdade é um termo técnico que não
corresponde a seu sentido no discurso ordinário, razão pela qual outros pensadores têm, por vezes, designado o sentido
ordinário por outros termos. Isabel Hungerland, por exemplo, propôs “implicação contextual” em um artigo com o
mesmo título (Inquiry 4 [1960]: p. 211-58), Dierdre Wilson denominou o termo técnico “pressuposição lógica” e o
sentido ordinário “pressuposição não lógica” (Presuppositions and Non-Truth Coriditional Semantics [New York:
Academic Press, I975], p. 141 ss.). Deveria estar claro que o sentido de “pressuposição” que estou utilizando aqui é o
sentido ordinário, ou “não lógico”. Uma elaboração mais formal da definição desse sentido de “pressuposição” é como
segue:

Uma pessoa P que sustenta uma crença X pode ser considerada como pressupondo outra crença Y em relação a X,
desde que:

1. X e Y não forem idênticas;


2. para se crer em X, P teria de crer em Y por bases outras do que X;
e
3. P não deduz X de Y.

Pode haver, é claro, muitas pressuposições possíveis para uma crença particular, e elas não necessitam ser mutuamente
consistentes. Deve ser notado que embora o “teria de” na parte 2 da definição tenha um aspecto lógico, ele não é
restritivamente lógico, uma vez que sua violação não resulta em uma contradição formal. Afirmar de forma crédula X e
afirmar (de forma crédula) ¬ Y, aonde Y é uma pressuposição de X, torna esse conjunto de crenças o que eu denomino
“autoconjecturalmente incoerente” ao invés de autocontraditório. A relação é amplamente epistêmica, ao invés de
estreitamente lógica. Strawson também notou que mais do que apenas regras lógicas estão envolvidas nesse tipo de
incoerência, embora ele pontue isso em uma discussão de pressuposições como condições de verdade ao invés de
condições de crença. Veja sua obra Introduction to Logical Theory (London: Methuen, I967), p. 175.
[91]
Geralmente as ações, assim como as crenças, são apresentadas como possuindo pressuposições. Essa é uma
expressão elíptica que não é, estritamente falando, exata. As pessoas pressupõem; suas ações podem ser motivadas pelo
que elas pressupõem.

[92]
Nicholas Wolterstorff cunhou essa expressão para denominar a forma que crenças reveladas particulares podem
regular a teorização em Reason Within the Bounds of Religion (Grand Rapids,Mich.: Eerdrnans, 1976). É interessante
que nessa obra Wolterstorff inicia a partir daquilo que parece ser grosso modo a orientação escolástica, mas a corrige
significantemente na direção que estou advogando aqui. Ele diz, por exemplo, que teorias não devem somente ser
consistentes com as crenças religiosas, mas “conviver” com elas (72), e que o controle exercido pelas crenças religiosas
deveria ser “interno” ao processo de teorização ao invés de meramente servir como controles externos (77). Mas a
partir disso ele não analisa ou define “conviver”, ou oferece uma descrição daquilo que seria controle interno versus
externo. Eu ofereço, portanto, a exposição desenvolvida nos capítulos subsequentes como uma exposição desses dois
conceitos.

[93]
A. Whitehead, Science and Philosophy (Paterson, N.J.: Littlefield, Adams & Co., 1964), p. 103.

[94]
Citado por E. Cassirer em The Philosophy of the Enlightenment (Boston: BeaconPress, I961), p. 237.
[95]
Dooyeweerd, New Critique, vol. 1, p. 223-261.

[96]
Collected Works of John Stuart Mill, ed. J. Robson et al. (Toronto: University of Toronto Press, 1973), livro 2,
capítulos 5 e 6; e livro 3, capítulo 24.
[97]
B. Russell, Principles of Mathematics (New York: W. W. Norton, 1938), p. xi.
[98]
Ibid., 119:

1 + 1 é o número de uma classe [lógica] – w – a qual é a soma lógica de duas classes – u e v– as quais não
possuem termos comuns e cada uma possui apenas um termo. O ponto principal a ser observado é que a adição
lógica de classes é a noção fundamental, enquanto a adição aritmética dos números é completamente
subsequente.

Formalmente, a proposta de Russel seria:


( ∃ u) ( ∃ v) ( ∃ w) ({[(u ∈ w) ∧ (v ∈ w)] ∧ (u ≠ v)}
∧ ( ∀ z) {(z ∈ w) → [(z = u) ∨ (z = v)}).

É difícil de simpatizar com a afirmação de Russel de que nenhum sentido quantitativo está envolvido nessa fórmula
quando o símbolo ∈ significa “é membro de”, o que não difere de “é um membro de”. Ademais, o quantificador
existencial significa “existe pelo menos um x de modo que...”. Assim, a quantidade é inevitavelmente tanto pressuposta
quanto referida pelo sentido da fórmula, mesmo que os quantificadores da fórmula variem ao longo apenas de classes
lógicas.
[99]
B. Russell, “The Study of Mathematics”, reimpresso em Mysticism and Logic (Garden City, N.Y.: Doubleday
Anchor Books), p. 65.
[100]
John Dewey, Reconstruction in Philosophy (Boston: Beacon Press, 1964), p. 156.
[101]
Ibid., p. 149.
[102]
Ibid., p. 137.
[103]
Por uma questão de exatidão, deveria ser notado que a perspectiva biológica não é o passo final na teoria da
realidade de Dewey. Isso ocorre porque ele via o aspecto biológico como dependente do (ou incluído no) físico. Assim,
em última análise, é o aspecto físico (ou o físico-biótico) da criação que ele assume como sendo a estrutura básica da
realidade.
[104]
Morris Kline, Mathematical Thought from Ancient to Modern Times (New York: Oxford University Press, 1972),
p. 32.
[105]
Ibid., p. 115.

[106]
Morris Kline, Mathematics, The Loss of Certainty (New York: Oxford University Press, 1980), p. 236.
[107]
Ibid., p. 237.

[108]
Ibid., p. 233.
[109]
Ibid., p. 6.

[110]
Deveria também ser notado que muitos intuicionistas, enquanto declaram a independência do matemático de
todos os demais aspectos da experiência, ainda insistem que as verdades da matemática também são de alguma forma
dependentes da mente humana. Isso é intrigante, porque parece exigir que as verdades da matemática reflitam algo
autoexistente e que elas são dependentes. Uma forma de reconciliar esse conflito seria dizer, com Kronecker, que
“Deus criou os números naturais enquanto tudo o mais é a obra do homem.” Mas ao comentar sobre a versão de
intuicionismo de Brouwer, Karl Popper ofereceu ainda outra interpretação para evitar a inconsistência. Ele assume que
a teoria de Brouwer exige o que ele (Popper) denomina um “terceiro mundo” de realidade que inclui (pelo menos)
entidades matemáticas e linguísticas. Como Platão, Popper considera esse mundo como autoexistente
(“ontologicamente autônomo”). Mas diferentemente de Platão, ele sustenta que esse é um domínio de possibilidades
necessitando do pensamento humano para atualização. Assim, há um sentido no qual o terceiro mundo é dependente do
pensamento humano mesmo que ele seja divino em outro sentido. A posição de Popper, assim, reflete uma crença
religiosa pagã. Veja seu Objective Knowledge (Oxford: Clarendon Press, 1972), esp. p. 128-90.

[111]
Veja a citação de Mill na nota 32 do capítulo 2.
[112]
Por exemplo, W. V. O. Quine e Nelson Goodman desenvolveram um cálculo formal de individuais para evitar
tratar predicados como representando universais realmente existentes. Veja cap. 2 da obra The Structure of Appearance
(Indianapolis: Bobbs, Merrill,1966), p. 33 ss.

[113]
Para mais sobre o impacto não-redutivo que a crença em Deus implica para teorias em matemática, ver a obra
New Critique de Dooyeweerd, vol. 2, p. 55-93. Essa visão recebeu desenvolvimentos posteriores pelos seguintes
pensadores (dentre outros):

D. H. T. Vollenhoven. De Wijsbegeerte der Wiskunde van Teistische Standpunt (Amsterdam: Wed G. Van Soest,
1918).
_____. De Noodzakeljkhbeid eener Christelyjke Logica (Amsterdam: H. J. Paris,1932).
_____. “Problemen en Richtingen in de Wijsbegeerte der Wiskunde,” Philosophia Reformata 1 (1936).
_____. “Hoofdlijnen der Logica,” Philosophia Reformata 13 (1948).
D. Strauss. “Number Concept and Number Idea,” Philosophia Reformata 35, no. 3 (1970) e35, no. 4 (1971)
A. Tol. “Counting, Number Concept and Numerosity,“ in Hearing and Doing: Philosophical Essays Dedicated to Evan
Runner, ed. J. Kraay (Toronto: Wedge, 1979).
D. Strauss. “Infinity,” in Basic Concepts in Philosophy, ed. Z. Van Straaten (Oxford:Oxford University Press, 1981).
_____. “Are the Natural Sciences Free from Philosophical Presuppositions?” Philosophia Reformata 46, no. 1 (1981).
_____. “Dooyeweerd and Modern Mathematics," Reformational Forum, no. 2, 1983, p. 40-55.
_____. “The Nature of Mathematics and Its Supposed Arithmetization,” Proceedings of the Ninth National Congress
on Mathematics Education, 1988, p. 10-31 (Mathematical Association of South Africa).
_____. “The Uniqueness of Number and Space and the Relation between Realismand Nominalism,” Journal for
Christian Scholarship, lste & 2de kwartaal, 1990, p. 104-25.
_____. “A Historical Analysis of the Role of Beliefs in the Three Foundational Crisesin Mathematics,“ in Facets of
Faith and Science, ed. J. van der Meer (Lanham, Md.:University Press ofAmerica, 1997), vol. 2, p. 217-30.
_____. “Primitive Meaning in Mathematics: The Interaction between Commitment,Theoretical Worldview, and
Axiomatic Set Theory,” In ibid., vol. 2, p. 231-56.
_____. “Reductionism in Mathematics,” Journal for Christian Scholarship, Jaargang 37, lste & 2de kwartaal, 2001, p.
71-88.
_____. Paradigms in Mathematics, Physics, and Biology (Bloemfontein: Teksor,2001).
_____. “Frege’s Attack on ‘Abstraction’ and His Defense of the ‘Applicability’ ofArithmetic as Part of Logic,” South
African Journal of Philosophy 22 (1), 2003, p. 63-80.
_____. “Is a Christian Mathematics Possible?” Journal for Christian Scholarship, 3de& 4de kwartaal, 2003, p. 31-49.

[114]
A circunscrição é parcialmente derivada de James Comman, Materialism and Sensations (New Haven e Londres:
Yale University Press, 1971), p. 11-12. A distinção entre uma propriedade estar ativa em contraste a passiva será
explicada no capítulo 11.

[115]
A. Aliotta articulou bem esse ponto:

Quando [Mach] se esforça para construir uma nova [imagem] do mundo sobre as ruínas da teoria mecânica, e
substitui o elemento de sensação pelo átomo material, ele não faz outra coisa senão substituir a mitologia
mecânica pela mitologia sensorial. O átomo era uma abstração; o que mais seria o elemento sensitivo? (The
Idealistic Reaction Against Science [London: McCaskill, 1914], p. 65)

Esse é, obviamente, o mesmo ponto no qual a crítica de Dooyeweerd focaliza, e o qual denominei o critério da
coerência autoperformativa. Na nota 18 do capítulo 4, sua crítica foi aplicada à teoria de Kant, enquanto aqui Aliotta a
aplica tanto ao materialismo quanto ao fenomenalismo. O ponto é crucial, pois cada uma das visões contrastadas nesse
capítulo tem diferenças em relação às outras que procedem das ideias alternativas sobre o caráter do dado da
experiência, e cada uma dessas ideias é dogmática ao violar do critério de coerência autoperformativa. Ademais, está
claro que em cada caso o dogmatismo tem como origem uma convicção religiosa sobre o que é autoexistente e,
portanto, divino. No capítulo 10, o critério da coerência autoperformativa será desenvolvido em maiores detalhes para
demonstrar por que ele torna a caracterização redutível dos dados da experiência injustificável em princípio.

[116]
Do texto de Mach, The Analysis of Sensations, no livro Ernst Mach, de J. Blackmore (Berkeley: University
ofCalifomia Press, 1972), p. 322.
[117]
Do texto de Mach, Conservation of Energy, in ibid., p. 86.
[118]
Ibid.
[119]
Blackmore, Ernst Mach, p. 174-75.
[120]
E. Mach, Knowledge and Error (Dordrecht: Reidel, 1976), p. 354, 358.
[121]
A. Einstein, Ideas and Opinions (New York: Bonanza Books, I954), p. 290-91.
[122]
Ibid., p. 22.
[123]
Ibid., p. 23.
[124]
Descartes Selections, ed. R. Eaton (New York: Scribncrs, 1953), p. 178.
[125]
Einstein, Ideas and Opinions, p. 295.

[126]
W. Heisenberg, Physics and Philosophy, p. 70.
[127]
Ibid., p. 71-72.
[128]
Ibid., p. 74-75.
[129]
Ibid., p. 52.
[130]
Ibid., p. 145. Deve-se ter em mente que o ponto aqui não é o de endossar a visão de Einstein sobre a Heisenberg,
ou o de rejeitar outras versões da física quântica de Copenhague; ainda menos defender algum tipo de mecânica
newtoniana. Em vez disso, é pontuar os modos pelos quais tanto Einstein quanto Heisenberg assumem uma visão
reducionista da realidade e, assim, da teoria atômica. Assim, embora ambos cheguem a muitas conclusões na física que
são justificadas relativamente às evidências, seus argumentos também incluem distorções devido às razões
reducionistas oferecidas para aquelas conclusões.

[131]
Philip Morrison, “The Neutrino,” Scientific American (Jan. 1956): 61.
[132]
Veja a obra Theory of Science de R. Gale (New York: McGraw Hill, 1979), p. 278 ss., e A. McDonald, J. Klein, e
D. Wark, “Solving the Solar Neutrino Problem”, Scientific American (April 2003): p. 40-49.

[133]
Mach, The Analysis of Sensations, na obra Ernst Mach, de Blackmore, p. 327 n. 14.
[134]
Einstein, ibid., p. 11.
[135]
Para um tratamento mais detalhado das bases racionalistas da interpretação de Heisenberg das relações de
incerteza, veja meu artigo, “A Critique of Descartes and Heisenberg”, Philosophia Reformata (45e Jaargang 1980- N.
R2): p. 157-77.
[136]
Heisenberg, Physics and Philosophy, 92. Veja também p. 144-46.
[137]
Ibid., p. 72-73.
[138]
Para mais sobre como a crença em Deus conduz a uma visão não reducionista de número, espaço e matéria, veja
Dooyeweerd, New Critique, esp. vol. 2, p. 93-106. Essa visão foi desenvolvida posteriormente por outros pensadores.
Por exemplo:

M. D. Stafleu. “Analysis of Time in Modem Physics”, Philosophia Reformata 35(1970).


_____. “Metric and Measurement in Physics”, Philosophia Reformata 37 (1972).
_____. “The Mathematical and Technical Opening Up of a Field of Science”, Philosophia Reformata 43 (1978).
_____. Time and Again: A Systematic Analysis of the Foundations of Physics (Toronto: Wedge, 1980).
_____. “Theories as Logically Qualified Artifacts”, Philosophia Reformata 46, 47 (1981, 1982).
_____. “The Kind of Motion We Call Heat”, Tydscrifvir Christelike Wetenscap, 1984.
_____. Theories at Work (Lanham, Md.: University Press of America, 1987).
_____. “Criteria for a Law Sphere”, Philosophia Reformata 53 (1988).
_____. “The Cosmochronological Idea in Natural Science”, in Christian Philosophyat the Close ofthe Twentieth
Century, ed. S. Griffoen and B. Balk (Kampen: Kok,1995).
D. Strauss. “The Significance of Dooyeweerd’s Philosophy for the Modern Natural Sciences”, in ibid., p. 127-38.
R. Clouser. “A Brief Sketch of Dooycweerd’s Philosophy of Science”, in Facets of Faith and Science, ed. 1. van der
Meer (Lanharn, Md.: University Press of America, 1996),vol. 2, p. 81-99.
M. D. Stafieu. “The Idea of Natural Law”, Philosophia Reformata 64 (1999).
D. Strauss. “Kant and Modern Physics”, South African Journal of Philosophy 19, n 1 (2000), p. 26-40.
_____.Paradigms in Mathematics, Physics, and Biology (Bloemfontein: Teksor,2001).
M. D. Staleu. “Evolution, History, and the Individual Character of a Person”, Philosophia Reformata 67 (2002).

[139]
R. Isaacson, M. Hutt e H. Bluin, Psychology: The Science of Behavior (New York: Harper & Row, 1965), p. 6.
[140]
Ibid., p. 7.
[141]
Jean Piaget, Main Trends in Psychology (New York: Harper Torchbook, I973).Esse parece ser um bom lugar para
um lembrete de que, embora Dooyeweerd ofereça uma extensa defesa da lista dos aspectos que ele aceita, não posso
repetir tudo isso aqui e, portanto, disse que estaria utilizando a lista apenas provisoriamente. Piaget, como muitos outros
pensadores, parece aceitar a mesma lista, ou algo muito próximo disso. Mas, repito, nem a crítica de Piaget das teorias
reducionistas, nem minha exposição da crítica que Dooyeweerd faz delas, depende exatamente da correção dessa lista.
As razões para isso são explicadas na nota 4 do capítulo 10.
[142]
Ibid, p. 36.
[143]
5. J. Watson, Behaviorisrn (New York: W. W. Norton, 1925), p. 5.
[144]
Ibid., p. 6.
[145]
E. M. Thorndike, The Elements of Psychology (New York: A. G. Seiler, 1913), p. 2.
[146]
B. F. Skinner, Science and Human Behavior (New York: New York Free Press,1965), p. 66.
[147]
Ibid., p. 62.
[148]
B. F. Skinner, Contingencies of Reinforcement – A Theoretical Analysis (Englewood Cliffs, N.J.: Appleton-
Century-Crofts, 1969), p. 7.

[149]
“Como um resultado dessa suposição central de que existe tal coisa como consciência e que podemos analisá-la
pela introspecção, não [há] um modo de atacar experimentalmente e solucionar problemas psicológicos e padronizar
métodos” (Watson, Behaviorism, p. 6.)
[150]
“Em que medida é útil que alguém diga ‘Ele bebe porque está com sede’, se estar com sede significa nada além
do que ter uma tendência de beber algo? Isso é uma mera redundância. Se isso significa que ele bebe em razão de um
estado de sede, um evento causal interno é invocado. Se esse estado é puramente inferencial – se não forem atribuídas
dimensões a isso que tornariam a observação direta possível – ele não pode servir como uma explicação. [Mesmo]que
ele possua... propriedades psíquicas. Qual papel isso pode exercer em uma ciência do comportamento?” (Skinner,
Science and Hurnan Behavior, p. 33).
[151]
“Skinner’s Utopia: Panacea or Path to Hell?” Time, Sept. 20, 1971, p. 52.
[152]
Piaget, Main Trends in Psychology, p. 37.

[153]
Richard Lewontin admitiu francamente esse ponto: “Não é o caso que os métodos e as instituições da ciência de
algum modo nos obriguem a aceitar a explicação material do mundo, mas ao contrário, que nós somos forçados, por
nossa adesão anterior às causa materiais, a criar um aparato de investigação e um conjunto de conceitos que produzam
explicações materiais, não importando o quão contra-intuitivo seja, não importando o quão ilusório para o não iniciado.
Ademais, esse materialismo é absoluto, pois não podemos permitir um pontapé Divino porta adentro... Apelar a uma
deidade onipotente é permitir que a qualquer momento as regularidades da natureza sejam rompidas, que milagres
possam acontecer” (New York Review of Books, Jan. 7, 1997, p. 31).

[154]
Alfred Adler, Cooperation between the Sexes: Writings on Women, Love, Marriage, Sexuality and Its Disorders,
ed. H. Ansbacher e R. Ansbacher (New York:Doubleday, 1978), p. 305.
[155]
Ibid., p. 307.
[156]
The Individual Psychology of Alfred Adler, ed. H. Ansbacher e R. Ansbacher (NovaYork: Basic Books, 1956), p.
207.
[157]
Adler, Cooperation between the Sexes, p. 305.
[158]
Alfred Adler, Understanding Human Nature (Londres: George Allen & Unwin,1974), p. 47-48.
[159]
Adler, Cooperation between the Sexes, p. 176.
[160]
Alfred Adler, The Practice and Theory of Individual Psychology (Londres: Routledge & Keagan Paul, 1964), p.
7-8.
[161]
Adler, Cooperation between the Sexes, p. 281.
[162]
Adler, Understanding Human Nature, p. 27-28.
[163]
Ibid., p. 31.
[164]
Ibid., p. 26-27.
[165]
Ibid., p. 32.
[166]
Alfred Adler, Superiority and Social Interest, ed. H. Ansbacher e R. Ansbacher (Evanston, III: Northwestern
University Press, 1964), p. 288.
[167]
Ibid., p. 295.
[168]
Adler, Cooperation between the Sexes, p. 3-4.
[169]
Ibid., p. 136-37.
[170]
Ibid., p. 135.
[171]
Ibid., p. 270.
[172]
Ibid., p. 256.
[173]
Ibid., p. 270.
[174]
Ibid.
[175]
Adler, Understanding Human Nature, p. 80-81.
[176]
E. Fromm, The Crisis of Psychoanalysis (New York: Holt, Rineharl, Winston, 1970), p. 47.
[177]
Ibid., p. 48.
[178]
Ibid., p. 52.
[179]
Ibid., p. 117.
[180]
Ibid., p. 119.
[181]
Ibid., p. 123.
[182]
Ibid., p. 121.
[183]
Ibid.
[184]
D. Hausdorff, Eric Fromm, (New York: Twayne, 1972), p. 48.
[185]
Ibid, p. 90.
[186]
Ibid.
[187]
E. Fromm, The Heart of Man (New York: Harper & Row, 1964), p. 117.
[188]
Ibid., p. 117-23.
[189]
E. Fromm, The Art of Loving (New York: Harper & Row, 1956), p. 61ss.
[190]
Em defesa desse ponto de inflexão crucial em seu pensamento, Fromm oferece apenas uma breve descrição das
leis da lógica ocidental a serem rejeitadas, e algumas ilustrações de enunciados que supostamente contradizem uns aos
outros, mas no entanto são ambos verdadeiros. Mas seria generoso dizer que o argumento de Fromm é fraco. Primeiro,
ele consegue formular erroneamente as leis da lógica, e então ocorre que nenhum dos seus exemplos seja de fato de
crenças mutuamente contraditórias. Eles incluem, por exemplo, o dito taoísta: “A gravidade é a raiz da leveza” (The Art
of Loving, 63). Nesse, assim como em seus outros exemplos, Fromm confunde combinações de termos ou qualidades
paradoxais, ou não usuais, por contradições lógicas.
[191]
Fromm, The Art of Loving, p. 64.
[192]
Isso permanece verdadeiro apesar dos muitos elementos bíblicos no pensamento de Fromm derivados de sua
herança judaica, especialmen sua ideia de amor como a norma para tanto o indivíduo quanto a sociedade. Cf. a resenha
de Rabbi Jakob Petchowshi da obra The Art of Loving, “Eric Fromm’sMidrash on Love,” Commentary 22 (Dec. I956):
p. 549.
[193]
Fromm, The Art of Loving, p. 62.
[194]
Solomon Asch, Psychology: A Study of a Science, ed. S. Koch (New York: Mc-Graw Hill, 1959), vol, 3, p. 367.
[195]
J. A. Brown, Freud and the Post-Freudians (Baltimore: Penguin, 1961), p. 15.
[196]
A elaboração clássica desse ponto é encontrada na abertura das Institutas de Calvino (I, i, p. 1-2) aonde ele diz:

Quase toda a soma de nosso conhecimento, que de fato se deva julgar como verdadeiro e sólido conhecimento,
consta de duas partes: o conhecimento de Deus e o conhecimento de nós mesmos... Por outro lado, é notório que o
homem jamais pode ter claro conhecimento de si mesmo, se primeiramente não contemplar a face do Senhor, e
então descer para examinar a si mesmo.

[197]
Por exemplo, Oscar Cullman, Immortality of the Soul or Resurrection of the Dead? (New York: MacMillan,
1958); também John Cooper, Body, Soul and Life Everlasting (Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1989).
[198]
Agostinho reconheceu que o uso bíblico do termo “alma” em geral é equivalente à “vida do corpo” e não quis
dizer com isso uma entidade racional independente como ocorreu com Pitágoras, Platão e outros filósofos gregos
(Retractiones l, xiii). Eu penso que a escritura é notavelmente persistente (embora não sem exceções) em seu uso do
termo “coração” para a unidade central do eu, enquanto o termo “espírito” geralmente se refere a uma diversidade da
pessoa (de funções, talentos, disposições etc.). “Alma”, com Agostinho notou, é geralmente utilizado para uma pessoa
como um ser incorporado, bioticamente vivo. Deveria complementar, no entanto, que essa posição não anula toda e
qualquer dualidade na ideia da natureza humana, mesmo quando rejeita os dualismos tradicionais. Isso se dá porque
ainda existe uma distinção entre a parte de um humano destruída na morte e o coração que continua além da morte
como a identidade duradoura da pessoa que será restaurada pela ressurreição para sua plena existência corporal no reino
final de Deus.
[199]
Isso também significa que a crença é mais do que “assentimento intelectual”. Uma vez que a crença está
enraizada no coração, essa é uma condição (disposicional) da pessoa inteira, e não meramente uma questão de razão
lógica. Por exemplo, para ser uma crença, um conceito lógico ou uma ideia deve também ser confiada como
correspondendo àquilo sobre o que versa, de modo que a crença é qualificada pelo aspecto fiduciário: uma crença é
verdadeira se confiável, e confiável se verdadeira. É na unidade do coração que todos os aspectos convergem para
formar crenças em seu sentido pleno.
[200]
G. Allport, The Person in Psychology (Boston: Beacon Press, 1968), p. 13-14.
[201]
Dooyeweerd, New Critique, vol. 1, p. v.
[202]
Dooyeweerd, In the Twilight of Western Thought (Philadelphia: Presbyterian &Reformed, 1960), p. 179-80.

[203]
A ênfase no que segue não se aplica sobre o impacto universal das crenças religiosas em todo o conhecimento;
ela se aplica apenas em seu impacto sobre todas as teorias. Mas a crítica da redução como uma estratégia para
explicação em teorias tem, de fato, aplicação universal. Pois não apenas cada hipótese, mas cada conceito, pelo menos
implicitamente, ou é reducionista, ou não.
[204]
Sabendo que o que será desenvolvido é uma teoria não reducionista da realidade, deveria estar claro que minha
reivindicação é de que a crença em Deus (e outros ensinamentos bíblicos) pode ser empregada também para
desenvolver uma teoria distinta do conhecimento. E essa teoria, por sua vez, pode ser empregada em teorias de todas as
ciências. Como mencionei anteriormente, descrevi algumas das consequências desse programa para a epistemologia em
Knowing with the Heart.
[205]
A ideia de que a revelação bíblica pode, e deveria, oferecer uma perspectiva distinta para a interpretação da
totalidade da vida, embora não seja popular, não é nova. João Calvino a defendia em oposição aos escolasticismos
prevalecentes no século dezesseis (veja Institutes, II, ii, p. 16-18), e ela foi revivificada na obra de Abraham Kuyper
(1837-1920). Foi Kuyper quem aplicou diretamente esse insight na relação com as teorias:

Especialmente o pensamento dominante que formamos naquele campo da vida, que representa nosso interesse
central, exercita um domínio poderoso sobre o conteúdo inteiro de nossas consciências, viz. nossas visões
religiosas... assim, então, se cometemos um erro... como isso deixaria de ser comunicado desastrosamente a todo
o nosso estudo científico? (Encyclopedia of Sacred Theology [New York: Scribners Sons, 1898], p. 109-10).

Isso se aplica a teorias filosóficas assim como científicas:


Segue, ao mesmo tempo, que o conhecimento do cosmos como um todo... a filosofia... está igualmente
destinada a naufragar sobre... o pecado [no sentido de uma falsa crença religiosa] (Ibid., p. 113)

Isso, Kuyper diz, se dá porque tal conhecimento emerge em resposta a questões que devem incluir

Questões quanto à origem e à finalidade do todo... questões quanto ao ser absoluto [não dependente] (Ibid., p.
113)

Por essa razão, a fé bíblica não pode ser confinada à provisão de verdade sobre o sobrenatural.

As Sagradas Escrituras não apenas nos levam a descobrir a justificação pela fé, mas também revelam os
fundamentos da vida humana em sua inteireza... o que deve governar a existência humana como um todo.
(Lectures on Calvinism [Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1976], p. vi. Essas foram as Palestras Stone no
Princeton Seminary em 1898. [Calvinismo. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002])

É essa posição que está refletida em sua frase mais citada:

Não há um só centímetro quadrado em todos os domínios da existência humana sobre o qual Cristo não diga: É
meu!(Souvereiniteit in Eigen Kring [Amsterdam: J. H. Kruyt, 1880], p. 5)

Essa é a tradição que recebeu desenvolvimento positivo na filosofia de Herman Dooyeweerd (l894-1977), cujas teorias
são esboçadas nos próximos três capítulos. Arthur Holmes resumiu a abordagem de Dooyeweerd como segue:

A teologia reformada (da tradição protestante de João Calvino) está insatisfeita com a doutrina Tomista da
natureza e graça e enfatiza, no lugar disso, a soberania de Deus sobre toda operação da natureza humana e a
influência igualmente pervasiva do pecado. O problema com a razão natural, nessa visão, não é apenas a
finitude humana, mas o – tão profundo quanto – seu pecado. É um pecado afirmar a autonomia da razão
filosófica... e esse pecado perverte o entendimento filosófico. Dooyeweerd, dessa forma, delimita uma linha
aguda entre a filosofia Cristã, a qual procede do coração regenerado em obediência ao Deus soberano, e todas as
outras filosofias. (“Christian Philosophy,” Encyclopedia Britannica, 1974 edition, vol. 4, p. 555-56)
[206]
A razão de por que a crítica da produção teórica a ser apresentada não se aplica apenas à minha lista particular de
aspectos é, grosso modo, essa: uma vez que qualquer candidato para o status de ser um tipo básico de leis-e-
propriedades é assumido como sendo suficientemente (logicamente) distinto de todos os demais, de modo a ser incluído
na lista de aspectos de um pensador, esse também é suficientemente distinto, de modo a invocar todos os mesmos
obstáculos de se reduzir qualquer um dentre aqueles que estou em vias de aplicar à lista com a qual estou trabalhando.
Assim, enquanto podem haver discordâncias sobre qual seria a lista correta, uma vez que os aspectos de qualquer lista
tenham sido distinguidos como suficientemente diferentes em tipo dos demais incluídos na lista, não há como eles
então serem ou dispensados como ilusórios, ou considerados como sendo causados por qualquer outro. É a diferença
qualitativa de um suposto aspecto que o torna dificilmente redutível. Em termos amplos, isso se dá porque: (1) no caso
da redução eliminadora, se há uma diferença qualitativa suficiente para distinguir dois aspectos, então não pode ser
também verdade que eles sejam idênticos; (2) para a redução causal, se existe diferença qualitativa suficiente para
considerá-los como aspectos distintos, então nenhum conceito de uma relação causal entre eles é possível.
[207]
Uma descrição mais completa desses sentidos de “redução” é como segue:
A. Redução forte
i. Substituição de significado. A natureza da realidade é exclusivamente aquela do aspecto X, de modo que todas
as coisas têm propriedades apenas do tipo X e são governadas apenas por leis do tipo X. Isso é defendido
argumentando-se que todos os termos considerados como tendo significado não-X podem ser substituídos por
termos-X sem perda de significado, enquanto nem todos os termos-X podem ser substituídos por termos com
significado não X (Berkeley, Hume e Ayer utilizaram essa estratégia para defender o fenomenalismo.)
ii. Identidade factual. A natureza da realidade é exclusivamente aquela do aspecto X, de modo que todas as
coisas têm apenas propriedades do tipo X e são governadas por leis do tipo X. Isso é defendido argumentando-
se que, embora o significado de termos não-X não possam ser reduzidos àqueles dos termos-X, sua referência
pode ser exclusiva e igualmente para coisas-X. A seleção dos tipos de termos que correspondem tanto em
extensão quanto em intensidade à natureza da realidade é argumentado tendo como base sua superioridade
explanatória. O argumento tenta demonstrar que para qualquer coisa que seja, a única, ou melhor, explicação é
sempre aquela cujos termos primitivos e leis são do tipo X (J. J. C. Smart defendeu o materialismo dessa forma.)

B. Redução fraca
i. Dependência causal. A natureza da realidade é basicamente aquela do aspecto X (ou dos aspectos X e Y). É o
“caráter” X das coisas que torna possível os outros tipos de propriedades e leis verdadeiras nelas. Assim,
enquanto outros aspectos são reais, e podem ser objetos apropriados de investigação científica, existe uma
dependência causal unidirecional entre os aspectos não-X e o aspecto X. Os aspectos não-X não poderiam
existir sem X, enquanto X poderia existir sem os demais. (Aristóteles e Descartes defenderam ambos teorias nas
quais certos aspectos eram a natureza da “substância”, e todos os outros aspectos eram acidentais, ou
secundários, à substância.)
ii. Epifenomenalismo. Essa versão se parece bastante com a dependência causal, exceto que os aspectos não-X
são considerados como sendo muito menos reais. Todas as explicações genuínas devem, portanto, ser oferecidas
exclusivamente nos termos de propriedades e leis de X. (Huxley e Skinner argumentaram que estados de
consciência são epifenômenos de processos ou comportamentos corporais.)

Essas estratégias podem ser combinadas de formas variadas na mesma teoria. Um pensador poderia argumentar, e.g.,
que alguns aspectos devem ser eliminados sobre as bases da identidade de significado, enquanto outros devem ser
eliminados por identidade factual, mantendo, ao mesmo tempo, que ainda outros são ou dependentes em termos causais
ou epifenomenais.

As reivindicações descritas aqui não são os únicos sentidos do termo “redução” na maneira em que são utilizados na
filosofia, mas são os sentidos sendo rejeitados aqui como tanto filosófica quanto religiosamente questionáveis. Também
deveria ser notado que alguns filósofos têm utilizado o termo “superveniência” para designar uma ordem na aparência
de certos tipos de propriedades sem desejar cometer uma redução entre eles em qualquer dos sentidos definidos acima.
Esse uso não é passível de críticas e é, de fato, próximo à posição proposta por Dooyeweerd como uma alternativa à
redução em sua teoria da realidade. Deveria ser notado, no entanto, que a superveniência nunca é assumida como sendo
uma ocorrência casual, mas um padrão constante. Como tal, isso deixa sem resposta a questão relativa a por que as
propriedades supervenientes operam constantemente da forma exata com a qual o fazem. Qualquer resposta a isso ou
seria reducionista, ou teria de recorrer a uma teoria não reducionista como a de Dooyeweerd.

[208]
Dooyeweerd, New Critique, vol. l, p. 34-46.
[209]
Ibid., vol. 2, p. 539.

[210]
Um lembrete aqui de um ponto feito no capítulo 2 se faz necessário. Ali pontuei que quando as escrituras, os
mitos, as teologias, etc., traçam tudo o mais a algum(s) princípio(s) originador(es), eles conferem a ele(s) o status de
divindade, chamem isso de divino ou não. O mesmo se dá para uma teoria. O que quer que seja postulado como aquilo
que torna tudo o mais possível e atual é, por conseguinte, o divino per se, estejam ou não os teóricos desejosos de
reconhecer esse fato.
[211]
Veja os comentários de Werner Jaeger sobre a Metafísica de Aristóteles XII, 3, 1070a, e sobre seu
Protrepticusem Aristóteles (Londres: Oxford University Press, 1960), p. 49-52. É a alegada existência independente da
mente, devido à nossa capacidade de concebê-la à parte do corpo, que é a base da crença de que ela é imortal e divina.
E uma vez que Aristóteles reconheceu que o que quer que exista independentemente é divino (Meta. 1064a34), é
significativo que Jaeger cite o Protrepticus como segue: “O homem não possui nada divino ou bendito, exceto a única
coisa digna de problematização, o que quer que exista em nós de Nous (mente) e razão. Somente isso, daquilo que
temos, parece imortal e divino”.
[212]
Por exemplo, “uma vez que, por um lado, eu tenho uma ideia clara e distinta de mim mesmo, na medida em que
sou apenas uma coisa pensante, e, por outro lado, uma ideia distinta do corpo, na medida em que ele é apenas uma
coisa estendida, é certo que eu sou certamente distinto do meu corpo, e posso existir sem ele” (“Meditations on First
Philosophy”, in Descartes’ Philosophical Writings, trad. N. K. Smith [New York: The Modern Library, 1958], p. 237).
[213]
Eu digo “via de regra” porque eles não estão na mesma seção do barco. Um quadrado e um círculo são duas
formas espaciais cuja combinação nós sabemos intuitivamente ser impossível. Em contraste a isso, “independentemente
existente X”, aonde X é um tipo de propriedades e leis, não é intuitivamente impossível, mas simplesmente destituído
de conteúdo. Assim, ao mesmo tempo em que um designa um conjunto nulo, o outro designa um conjunto vazio. Eles
ainda estão no mesmo barco, no entanto, na medida em que estamos interessados na justificação da afirmação de suas
realidades.

[214]
Minha obra Knowing with the Heart focaliza na crítica da visão prevalecente de autoevidência e no
desenvolvimento de uma interpretação não reducionista para substituí-la.
[215]
John Meyendorff, A Study of Gregory Palamas (Londres: Faith Press, 1964), p. 130. Veja também J. Pelikan,
Christianity and Classical Culture (New Haven: Yale University Press, 1997), p. 53, 252, 256-59. De fato, alguns
pensadores teístas foram tão longe na adaptação de suas teorias à tradição pagã que eles mantém muitas realidades
externas a Deus como existindo não dependentemente, conquanto que Deus seja o único ser independente considerado
como o criador de todas as entidades não necessárias. (E.g., Nicholas Wolterstorff em On Universals [Chicago:
University of Chicago Press,1970]). Mas nossa definição de divindade demonstra por que a objeção central a essa
posição não é simplesmente que existiriam coisas que não estão no controle de Deus; é o monoteísmo que está em jogo.

[216]
Alguns escritores recentes defenderam essa afirmação. Veja, e.g. J. Ross, “Analogy as a Rule of Meaning for
Religious Language”, International Philosophical Quarterly 1, no. 3 (Sept. 1971): p. 476; e J. McQuarrie, Principles of
Christian Systematic Theology (Chicago: University of Chicago Press, 1951), vol. 1, pt. 2, p. 235ss.
[217]
Karl Barth, Church Dogmatics (Edimburgo: T. T. Clark, 1964), vol. 2, pt. 1, p. 230.

[218]
Summa Theologica, q. 46, a. p. 1. [Suma teológica. Campinas: Editora Ecclesiae, 2018.]
[219]
Digo que as ações de Deus podem ser ou criadas1 ou incriadas1, porque a escritura fala de algumas de Suas
decisões e propósitos como sendo “desde os tempos eternos” (1Tm 1.9; Tito 1.2) enquanto outras são referidas como se
dando em um tempo específico. No caso da primeira, a “ação” seria um termo antropomórfico (assumindo que Deus
criou o tempo como uma característica do cosmos). Deveria ser notado, no entanto, que na visão a ser defendida Deus
poderia afirmar sempiternamente uma decisão ou propósito e, então, também reafirmá-la temporalmente. Nesse caso, a
reafirmação seria criada1, incriada2 e criada3.
[220]
Essa linguagem, no entanto, também necessita de clarificação, uma vez que a visão de Deus que irei contrastar e
preferir à de Agostinho/Anselmo/Aquino mantém que o ser incondicional de Deus é inconcebível por nós. Assim, o
termo “Vontade” não deveria ser tomado como significando que o ser incognoscível de Deus é literalmente uma
vontade, assim como que seja algo mais que possamos conceber. Nessa visão, o ser incognoscível originário de Deus
trouxe à existência (criou3) desde toda a eternidade o fato de que Ele simplesmente possui a natureza incriada pessoal,
amável, sábia, etc., que Ele revela como possuindo. O termo “vontade” é, assim, um termo antropomórfico
intencionado para revelar a negação (apofática) de que exista algo além de sua realidade incondicional que não esteja
sob seu controle, e afirmar sua liberdade incondicional na relação com as criaturas das formas pelas quais ele revela
como verdadeiro a si mesmo. J. Pelikan pontua que essa era a forma que os Pais Capadócios utilizavam “vontade”
quando diz que, para eles “A ‘palavra’ [criativa] de Deus, então, era idêntica à ‘vontade’ de Deus, a qual era idêntica à
ação de Deus – tudo isso, é claro, entendido em um sentido transcendente e apofático, fundamentalmente diferente do
sentido que cada um desses termos transmitem quando aplicados às vontades ou ações humanas” (Christianity and
Classical Culture, p. 105). Com essas qualificações, então, essa alternativa à visão AAA (Agostinho, Anselmo e
Aquino) pode ser expressa como a posição de que Deus escolhe o que Ele é, e é o que Ele escolhe. Apenas o ser
incondicional de Deus é divino per se.
[221]
Ou ainda: “o ser mais grandioso possível”, segundo convencionou-se nas traduções brasileiras das obras de
Plantinga. [N. do R.]
[222]
Deus, a liberdade e o mal. São Paulo: Vida Nova, 2012. Tradução Desidério Murcho. p. 132.
[223]
Cf. as observações de Vladimir Lossky: “... apologistas como Clemente e Orígenes [estavam] exageradamente
ansiosos para demonstrar aos pagãos que todos os tesouros da sabedoria helênica estariam contidas e teriam sido
superadas na ‘verdadeira filosofia’ da Igreja. Involuntariamente, eles produziram um tipo de síntese da contemplação
cristã, uma ênfase no intelectualismo platônico estranho ao espírito do Evangelho”. The Vision of God (Crestwood,
N.J.: St Vladimir’s Seminary Press, 1983), p. 65.
[224]
Como de hábito em sua obra, Clouser cunha o neologismo creatorship para referir-se ao fato, ato e condição de
Deus como Criador. Optou-se por traduzi-la por “criadoria” a fim de manter a semelhança fonética e gráfica com
curatorship (“curadoria”). [N. do R.]
[225]
Summa Theologica 1a, q. 3 e 1a, q. 21, a. l, ad 4. Veja também sua Summa Contra Gentiles l, 38, 45, 73.
[226]
Milwaukee: Marquette University Press, 1980, p. 53-54.
[227]
Uma vez que estaremos concentrando na incompatibilidade da asseidade de Deus com o fato de considerarmos
Seus atributos como perfeições necessariamente existentes, eu evitarei qualquer tratamento longo relacionado a outra
premissa de AAA que acho questionável, a saber, que apenas perfeições são verdadeiras em relação a Deus. Mas eu
também considero essa premissa como sendo desastrosa. Por uma coisa, ela implica que Deus não pode ter relações
reais, contingentes, com a criação. Aquino também recuou dessa consequência, mas sua “solução” para ela foi tão ruim
quanto sua teoria da simplicidade. Ele na verdade propôs que “enquanto as criaturas estão realmente relacionadas com
Deus, em Deus não existe uma relação real com as criaturas, mas apenas aquela que é lógica” (ST, 1a, q. 13, a. 7; q. 6,
a. 2) Isso, no entanto, não é sequer plausível. Como podemos ser, e.g., realmente amados por Deus se não é realmente
verdadeiro que Deus nos ame?
[228]
Does God Have a Nature?, p. 144.

[229]
Ibid., p. 145-46.
[230]
Por ainda outras razões contra a plausibilidade de se explicar os atributos de Deus como incriados ao mesmo
tempo em que dependem d’Ele, veja Brian Leftow, “God and Abstract Entities”, Faith and Philosophy 7, no. 2 (Abril
1990); p. 193-217.
[231]
Como Aquino coloca: “Todas as perfeições encontradas nas criaturas preexistem em Deus de uma forma mais
elevada.” (ST q. 14, a. 11) Claramente, no entanto, todos os tais atributos são aprendidos de nossa experiência da
criação, e são portanto postulados como tendo um grau perfeito em Deus. Como Karl Barth pontua, o resultado disso é
que Deus é tornado em uma série de... atributos que são primariamente atributos da mente humana, nos quais os
últimos enxergam suas próprias características transcendidas no absoluto... [Mas desse modo] eu nunca encontro um
ser absoluto que me confronta e me transcenda, mas apenas uma e outra vez o meu próprio ser. E provando a existência
de um ser a quem eu idealizei por meio de minha própria autotranscendência, eu terei uma e outra vez conseguido
apenas provar a minha própria existência (Church Dogmatics, vol. 3, pt. 1,360)
[232]
Em 2 Timóteo e Tito o texto grego diz literalmente que os planos de Deus são “desde os tempos eternos”, e 1 Co.
2.7 utiliza termos similares. Judas fala da glória, majestade, domínio e autoridade de Deus como sendo antes de todos
os tempos, agora e para todo o sempre”. Uma tradução recente apresentou o texto de Apocalipse citado como “que não
haja mais atraso” ao invés de “que não haja mais tempo”. Mas baseado em Liddell e Scott (A Greek English Lexicon, p.
2005), não existe precedente em toda a língua Grega para se utilizar o verbo εσταιcom χρονος ao invés de καιρός como
significando “atraso”. Além disso, o tema comum de todos esses textos sugere fortemente a soberania de Deus sobre o
tempo. Eu defendi essa posição em mais detalhes em outro contexto. Ver “Is God Eternal?” em The Rationality of
Theism, ed. A. Garcia de la Sienra (Amsterdam: Rodopi, 2000), p. 273-300. Minha conclusão é que rejeitar a não
temporalidade de Deus porque isso seria incompatível com a visão AAA de Deus suscita a questão em relação a visãoi
C/R, com a qual não existe muita incompatibilidade. Ademais, se as asseverações da escritura sobre Deus ser “anterior”
ao tempo e Sua destruição do tempo são tomadas em seu valor nominal, elas oferecem uma forma a mais de constatar
que a visão AAA falha em compatibilizar com as escrituras de um modo que a visão C/R o faz.
[233]
Os capadócios também consideraram esse texto como altamente significativo. Eles enfatizaram que enquanto o
pensamento pagão Grego havia tomado a divisão última da realidade com sendo entre o racional e o não racional, esse
texto torna a divisão como sendo entre o Criador e a criatura, considerando mesmo o racional como criação. Veja
Pelikan, Christianity and Classical Culture, p. 51-53.
[234]
Minha tradução aqui segue mais próximo do texto hebraico do que o da Septuaginta.
[235]
Também é assim que 2 Pedro 1.4 seria entendido se considerado como dizendo que os cristãos compartilham a
“natureza divina”. Seria aquela natureza criada3 livremente assumida e possuída por aquele que é divino. Isso não
significa que as criaturas irão em algum momento se tornar divinas no sentido panteísta de compartilharem do ser
incriado de Deus. Essa é a única interpretação possível do texto, no entanto. É plausível que ele simplesmente afirme
que os crentes são parceiros de Deus. Ver A. Wolters, “Partners of the Deity” in Calvin Theological Journal 25 (1990):
p. 28-44; e também o pós-escrito em Calvin Theological Journal 26 (1991): p. 418-20.
[236]
Por exemplo, as Escrituras diz que Deus não pode mentir (Tito 1.2; Hb 6.18). Mas essa observação ocorre em um
contexto explicitamente pactual com o sentido de que Ele não pode mentir aos crentes porque Ele prometeu não fazê-
lo. Deveria vir à nossa mente nesse momento que em outros contextos da escritura se diz especificamente que Deus
engana aqueles que não são crentes (Ez. 14.9; 1T 2.11).
[237]
As dificuldades analisadas acima não são as únicas que podem ser elencadas contra o neoplatonismo envolvido
em enxergar Deus como possuindo todas e somente perfeições necessárias. James Ross ofereceu um relato brilhante de
algumas outras, incluindo sua violação da proibição de conjuntos-teóricos de conjuntos máximos e seu relato
incoerente sobre como as criaturas podem compartilhar nos exemplares de Deus. Veja “God Creator of Kinds and
Possibilities: Requiescant universalia ante res”, in Rationality, Religious Belief and Moral Commitment, ed. R. Audi e
W. Wainwright (Ithaca, N.Y.: Cornell University Press, 1986), p. 315-34.
[238]
Pelikan, Christianity and Classical Culture, p. 42-45, p. 50-54. Dooyeweerd também enfatizou esse ponto em sua
réplica a Cornelius Van Til:
O mesmo se aplica aos assim chamados atributos de Deus [que] são imputados a Deus, tal como ele foi revelado
ao homem nas Sagradas Escrituras, i.e., no horizonte de [nossa] experiência e existência... em seu sentido
apropriado... os aspectos de nosso horizonte temporal não podem ser imputados ao ser de Deus como suas
propriedades, uma vez que eles têm um caráter criatural... [em vez disso] eles dão expressão tanto à presença de
Deus no mundo temporal quanto à sua transcendência absoluta; à sua presença, uma vez que eles implicam a
totalidade da ordem dos... aspectos [da criação]; à sua transcendência, uma vez que eles se referem à
absolutidade de Deus, a qual transcende qualquer determinação criatural... isso implica que eles não deveriam
ser separadamente chamados de absolutos, ou serem identificados com o ser absoluto de Deus. [Fazê-lo]
tornaria mesmo os fatos centrais da criação, queda no pecado e redenção uma consequência da necessidade
lógica, o que não deixaria espaço para a liberdade soberana da vontade de Deus. Pois a vontade de Deus, nessa
visão, pode apenas executar o plano de Deus, não determiná-lo. (Jerusalem and Athens, ed. J.Geehan
[Presbyterian and Reformed Pub. Co., 1971], p. 87-89).
[239]
Pelikan, Christianity and Classical Culture, p. 55.
[240]
Ibid., p. 209, p. 210.
[241]
Ibid., 214.
[242]
Ibid., 40.
[243]
Ibid., 55. Cf a comparação de John Meyendorff dessa posição com aquela de Orígenes: “O erro de Orígenes
consistiu simplismente nisso, que ele identificou Deus com [uma conhecível] essência, e não sabia que imutabilidade e
movimento, incognoscibilidade e revelação, supertemporalidade e ação no tempo, poderiam realmente coexistir, unidos
no... mistério do ser Pessoal de Deus.” A Study of St. Gregory Palamas (London:Faith Press, 1964), p. 223.
[244]
Pelikan, ibid., p. 88.
[245]
A Study of St. Gregory Palamas, p. 211, p. 204, 226.
[246]
Pelikan, ibid., p. 212. Ver também p. 231ss. especialmente p. 235, em que se explica que a “geração” do Filho e
do Espírito significa que eles são incriados12, mas ainda gerados pelo ser Divino, portanto criados3.
[247]
Ibid., p. 102, p. 101.
[248]
A Study of St. Gregory Palamas, p. 131. Calvino, também, faz o mesmo ponto quando diz que a transcendência
de Deus significa que Ele não é sujeito às leis que governam a criação. Por exemplo: “Não imaginamos Deus como
sendo arbitrário [ex lex]. Ele é uma lei para si mesmo. A vontade de Deus é a lei para todas as leis” (Institutes, III, xxiii,
p. 2). É por essa razão que ele diz: “É perverso medir [o] Divino pelo padrão da justiça humana” (Institutes, I,xxiii, p.
2). Dooyeweerd notou que essa posição de Calvino “rompe na raiz com a interferência da metafísica especulativa nos
assuntos da religião cristã”, recusando-se “elevar a razão humana ao trono de Deus” (New Critique, vol. 1, p. 93).
Dooyeweerd, em seguida, aplica especificamente o ponto geral de Calvino à transcendência de Deus em relação às leis
lógicas (New Critique, vol. 1, p. 144).
[249]
The Vision of God, p. 85.
[250]
“Lectures on Genesis”, in Luther's Works, ed. J. Pelikan (St. Louis: Concordia Publishing House, 1958), vol. 1, p.
11.
[251]
De The Bondage of the Will, como citado por J. Dillenberger em Martin Luther (Garden City, N.Y.: Anchor
Books, 1961), p. 191.
[252]
P. Althaus, The Theology of Martin Luther (Philadelphia: Fortress Press,1966), p. 20.
[253]
A instituição da religião cristã, Tomo 1, p. 137.
[254]
A instituição da religião cristã, Tomo 1, p. 153.
[255]
A instituição, tomo 1, p. 92.
[256]
A instituição, tomo 1, p. 137-138.
[257]
Church Dogmatics, vol. 3, part 1, sect. 41 (Edinburgh: T. T. Clark, 1964).

[258]
Lutero diz: “Deus é aquele cuja vontade não pode ter causas ou motivos como regra ou padrão; pois nada está no
mesmo nível dela, ou acima dela, mas ela é, em si mesma, a regra para todas as coisas. Se qualquer regra e padrão, ou
causa e motivo, existissem para ela, ela não poderia mais ser a vontade de Deus. O que Deus deseja não é correto
porque ele deva, ou esteja limitado, a desejar” (Martin Luther, ibid., 196). E Calvino faz o mesmo ponto: “De forma
justa reclama Agostinho que Deus é insultado quando quer que qualquer razão superior do que sua vontade seja
invocada (Lib. de Gent)” (Institutes, I, xiv, 1).
[259]
O ponto aqui diz respeito a uma definição real de vermelho de tal modo que poder-se ia conhecer sua qualidade
de cor somente a partir da definição. Desse modo, não será de valia oferecer uma circunscrição tal como “a tonalidade
que enxergamos quando nossa visão é normal e somos expostos à luz de tal e tal comprimento de onda”. Nós já
teríamos de conhecer como o vermelho se parece para sermos capazes de definir seus parâmetros de comprimento de
onda. O mesmo se dá para outras tentativas tais como “a cor do sangue ou a cor de um rubi” etc.
[260]
Por exemplo, quando utilizamos o termo “causa” para expressar que Deus é o criador do mundo, essa é uma ideia
em vez de um conceito. Nenhum conceito que temos de causalidade corresponde ao ato criador de Deus: ele não é
formal, nem final, nem material, nem eficiente; nem é algum tipo de relação causal que é qualificada fisicamente,
bioticamente, sensorialmente, historicamente, ou economicamente, etc. uma vez que Deus é o criador de todos os tipos
de causalidade encontradas no cosmos. Mas, despojado dessa e de todos os outros tipos de especificações conceituais
(tempo, e todas as leis), tudo o que é deixado é a ideia limite de uma coisa trazendo à existência outra em um sentido
não especificado. Apenas dessa maneira, designando uma ideia limite, pode o termo “causa” ser utilizado para a
dependência de tudo o que não é Deus a Deus. Outro exemplo é o termo “poderia” quando aplicado a Deus. Quando
perguntamos se Deus poderia ter criado o mundo de uma forma distinta da que Ele fez, ou se ele poderia ter feito as leis
governando a possibilidade diferentemente daquelas que temos em nossa experiência, estamos utilizando “poderia”
como uma ideia limite, não um conceito. Nossos conceitos de “poderia” são todos sentidos de possibilidade delimitados
por leis que existem no cosmos – leis que Deus criou. (Assim, Deus não criou escolhendo uma dentre possibilidades
anteriores existentes, mas criou qualquer sentido de possibilidade que podemos conceitualizar.) Despojado de todas as
especificações aspectuais (e outras), podemos utilizar a ideia limite de que Deus “poderia” ter criado outras leis de
possibilidade das quais não podemos agora sequer formar uma ideia, uma vez que nosso conhecimento é governado
pelas leis que Ele de fato criou. É por essa razão que questionar se Deus poderia ter feito leis diferentes não se equivale
a questionar se é logicamente possível que as leis da lógica poderiam ser diferentes da forma que são. Uma resposta
afirmativa a essa questão gera uma contradição. Mas essa não é a forma correta de entender a questão. Ao invés disso, a
questão utiliza “poderia” para se referir à ideia limite relacionada à base ontológica de qualquer tipo de possibilidade
encontrada no cosmos. Essa base é, obviamente, o ser incognoscível, originador, de Deus. O mesmo se aplica à ideia de
que Deus “assume” relações e propriedades para Si mesmo. Isso, também, é uma ideia limite significando que Ele as
traz à existência de uma maneira que é verdadeiro em relação a Ele de uma forma não especificável por nós.
[261]
Does God Have a Nature?, p. 139-40.
[262]
Um ponto análogo também é esquecido nos tratamentos do “paradoxo” nos livros-texto de lógica de que um
argumento inconsistente implica todas as conclusões (veja, e.g., Introduction to Logic, I. Copi e C. Cohen [Upper
Saddle River, N.J.: Prentice Hall, 2002], p. 375-78]). O paradoxo é considerado como equivalendo-se a que um
argumento com premissas inconsistentes implica de forma válida quaisquer conclusões possíveis. O paradoxo é de fato
o resultado de se esquecer que avaliar se um argumento implica sua conclusão é o projeto de verificar se sua conclusão
deveria ser verdadeira se suas premissas forem verdadeiras. A afirmação de que um argumento inconsistente implica
todas as conclusões ignora o ponto em itálico, e falha em notar que é a consequência de se abandonar o projeto de
enxergar o que mais teria de ser verdadeiro se as premissas o fossem. Pois se premissas inconsistentes fossem
verdadeiras, a lei da não contradição seria falsa e nenhuma conclusão se seguiria, pois não existiria tal coisa como
implicação. É essa mudança que produz a ilusão de implicação universal; ela modifica o projeto usual de avaliação ao
meta-projeto de imposição da lei da não contradição sobre um argumento cujas premissas o negam. Por favor, não
entenda isso equivocadamente como sendo uma recomendação para que a lei da não contradição seja rejeitada, ou
duvidada. É certamente correto manter a lei e rejeitar uma ou mais das premissas de um argumento inconsistente. Mas
não é um procedimento apropriado abandonar o projeto usual de avaliação lógica sem reconhecer essa mudança. A
importância desse ponto é que a mesma mudança não reconhecida no projeto é geralmente transposta à visão C/R de
Deus por aqueles que a criticam por dizer que Deus criou a lei da não contradição. Os críticos alegam que tal visão
conduz à exigência de que crenças contraditórias sobre Deus sejam simultaneamente verdadeiras. Mas na verdade isso
não faz tal coisa. Não existem exemplos de contradições que se seguem de tentar conceber qual seria o caso se a lei da
não contradição não existisse porque não haveria tal coisa como uma sequência lógica e porque nenhum conceito que
possamos formar daquela lei renderia um exemplo de algo governado por aquela lei. Assim, nada contraditório sobre
Deus segue da visão de que Seu ser incriado transcende as leis lógicas, e qualquer suposto exemplo do que
(alegadamente) seria verdadeiro se a lei não se aplicasse a Deus é – como o paradoxo de que premissas inconsistentes
implicam todas as conclusões – um caso de imposição da lei da não contradição em Sua essência transcendente para
criticar a afirmação de que a lei não se aplica a Ele. Tal crítica, portanto, falha em demonstrar qualquer equívoco na
posição C/R, e não é mais do que uma rejeição dogmática dela.
[263]
Essa posição é bem explicada por C. S. Lewis em seu livro Miracles [Milagres] (New York: Macmillan, 1948), p.
69-70.
[264]
William Alston comentou de maneira exitosa sobre o espectro de possibilidades para a linguagem religiosa:

Mas, claramente, existem várias formas nas quais os termos criaturais podem ser utilizados para se falar em
Deus... Essas formas incluem:
(1) Univocidade direta. Termos ordinários utilizados nos mesmos sentidos ordinários sobre Deus e os seres
humanos.
(2) Univocidade modificada. Significados podem ser definidos ou, por outro lado, estabelecidos de tal modo que
os termos podem ser utilizados com esses significados tanto para Deus quanto para seres humanos.
(3) Significados literais especiais. Termos podem oferecer, ou de outro assumir, sentidos técnicos especiais nos
quais eles se aplicam a Deus.
(4) Analogia. Termos para as criaturas podem ser imbuídos de extensões analógicas para serem aplicados a
Deus.
(5) Metáfora. Termos que se aplicam literalmente às criaturas podem ser aplicados metaforicamente a Deus.
(6) Símbolo. Do mesmo modo para o “símbolo”, em um ou outro significado desse termo. Os defensores mais
radicais da alteridade [de Deus], de Dionísio a Aquino e Tillich, variam de algo no espectro (4) a (6) e rejeitam
explicitamente (1). A possibilidade de (3) tem sido quase totalmente ignorada, e (2) não tem se apresentado de
modo distinto. (Divine Nature and Human Language [Ithaca, N.Y.: Cornell University Press, 1989], p. 65)

Do modo que entendo a análise de Alston minha visão é que grande parte da linguagem da escritura corresponde aos
seus pontos (1), (2) e (3), enquanto existem ocasiões de usos dos tipos (4) e (5), embora tenha de complementar a todas
elas meu ponto sobre a diferença em importância, ao invés de significado, de qualquer desses usos da linguagem. O
tipo (6) me parece exageradamente vago para fazer um julgamento, embora eu diga que nenhuma linguagem
escriturística é em absoluto simbólica no sentido de Tillich.
[265]
Para uma crítica penetrante das possibilidades de tal projeto, ver a obra de James Ross, “The Crash of Modal
Metaphysics”, Review of Metaphysics 43, no. 2 (Dec. 1989). A transcendência de Deus em relação às leis da lógica
também é a razão de por que ser contrário à sua divindade tentar provar sua existência. Como Dooyeweerd colocou: O
que quer que seja provado não seria, assim, Deus. Ou seja, nada que pode ser provado utilizando-se as leis da lógica
poderia ser aquele que as criou.
[266]
Para um tratamento mais adequado desse tema e uma réplica adicional a essas objeções, ver meu “Religious
Language: A New Look at an Old Problem”, in Rationality in the Calvinian Tradition (Lanham, Md.: University Press
of America, 1983), p. 385-407; e “Divine Accommodation: An Alternative Theory of Religious Language,” no Tydskrif
vir Chrislelike Wetenscap (Bloemfontein: 2de Kwartaal, 1988): p. 94-127.
[267]
A teoria da estrutura de leis apresentada aqui é um resumo da teoria desenvolvida primeiramente por Herman
Dooyeweerd em sua obra Wijsbegeerte de Wetsidee (Amsterdam, 1935), a qual foi posteriormente expandida na New
Critique e elaborada de forma complementar em outras publicações. Uma lista das traduções em inglês das principais
obras de Dooyeweerd é apresentada na nota final deste capítulo.
[268]
A teoria não reducionista da realidade a ser apresentada nesse capítulo é apresentada como amplamente teísta
pressupondo, assim, a crença em um Criador transcendente comum a judeus, cristãos e muçulmanos. Como já disse, em
complemento ao modo no qual a crença em Deus exige uma visão não reducionista da realidade, as escrituras também
contêm ensinamentos específicos que podem se chocar com as teorias. E eu também disse que eu creio que esses
ensinamentos adicionais se chocam mais comumente com teorias que lidam com aspectos mais elevados em minha lista
provisória do que com aqueles menos elevados nela. Assim, enquanto eu não encontro ensinamentos escriturísticos que
oferecem informações específicas para teorias em matemática, física, biologia, lógica, etc., além de que seus dados são
todos criados por Deus, eu encontro ensinamentos específicos lidando com a natureza humana e os aspectos social,
jurídico e ético da vida humana. Na medida em que eu aplico a ontologia não reducionista ao aspecto social e à uma
teoria do estado nos capítulos seguintes, irei, portanto, combinar essas com alguns desses ensinamentos adicionais. E
uma vez que muitos desses são encontrados apenas (ou primariamente) no Novo Testamento, as teorias resultantes
serão não apenas amplamente teístas, mas especificamente cristãs. Eu não presumiria dizer em que extensão elas
podem também ser aceitas a Judeus ou Muçulmanos, mas eu suspeito que haveria uma sobreposição significativa.
[269]
Dooyeweerd assume que as leis causais se originam com o aspecto físico, uma vez que não existem relações
causais entre as propriedades matemática, espacial ou cinemática. Do aspecto físico acima em nossa lista de aspectos,
contudo, existem coisas tais como relações de causa e efeito, de modo que ele fala da causalidade como “fundada” no
aspecto físico, embora não seja restrita a esse. Aspectos mais elevados que o físico contribuem cada um com elementos
adicionais às relações causais, de forma que experimentamos os sentidos de causalidade biótico, sensitivo, econômico,
lega, etc. em adição ao físico. Ver New Critique, vol. 2, 41, ll0; vol. 3, p. 34ss.
[270]
Apesar da abertura dessa lista à revisão, eu creio que ela foi defendida convincentemente por Dooyeweerd.Veja
New Critique, vol. 2, p. 79-l63.
[271]
T. Dantzig, Number: The Language of Science (Garden City, N.Y: Doubleday,1954), p. 2-3.
[272]
Veja Dooyewecrd, New Critique, vol. l, p. 93-l06; e M. D. Stafieu, Time and Again (Toronto: Wedge, I980), p.
80 ss.
[273]
Dois comentários: Primeiro, tanto a proposta objetivista quanto a subjetivista sobre leis é implausível. Como
poderiam ser as leis apenas nossas generalizações sobre as naturezas fixas das coisas, como o objetivismo diz? Se não
houvessem conexões governadas por leis entre as propriedades, as coisas não poderiam ter naturezas fixas. Ou como
poderiam todas as leis serem oferecidas à experiência pela mente, como diz o subjetivismo? A menos que já existissem
leis governando a mente que não fossem sua criação, o que explicaria a uniformidade dos modos que a mente impõe
leis sobre a experiência? Em segundo lugar, enquanto eu tenho enfatizado uma abordagem não reducionista em relação
aos aspectos, não poderia ser ignorado que teorias também têm sido reducionistas de outros modos. Vimos
anteriormente, e.g., que alguns tentaram reduzir as leis às coisas, enquanto outros tentam reduzir as coisas às leis. A
teoria da estrutura de leis é igualmente oposta a todas as reduções desse tipo, assumindo todos os distintos lados do
cosmos criado como existindo, ao invés disso, em correlação mútua. E os mesmos argumentos que ela oferece contra a
redução aspectual podem ser empregados também contra esses outros tipos.
[274]
A ordem exata de pré-condicionalidade é tão aberta a revisão quanto o são os membros da lista, e alguns
defensores da teoria de estrutura de leis têm proposto alternativas. A teoria sendo esboçada aqui necessitaria
modificações se a lista ou sua ordem fossem distintas, mas ela não seria afetada em seu essencial. Quaisquer que sejam
os aspectos tomados como genuínos ainda seriam considerados como diretamente dependentes de Deus, igualmente
reais e mutuamente irredutíveis.
[275]
Duas observações parecem ser necessárias aqui: (1) Pesquisas recentes sugerem que certos animais podem
também ter limitadas funções ativas lógicas ou linguísticas. Veja “Conversations with a Gorilla”, Francine Patterson,
National Geographic (October 1978). (2) Existem boas razões para supor que organismos unicelulares não deveriam
ser classificados nem como plantas nem como animais. Veja Uko Zylstra’s “Dooyeweerd’s Concept of Classification in
Biology”, in Life Is Religion, ed. H. Vander Goot (St. Catherines, Ontario: Paideia Press, 1981), p. 239-48.
[276]
Ao fato de que os humano têm uma função ativa em todos os aspectos não é, entretanto, sua única diferença de
todas as demais criaturas. Como mencionado no capítulo 9, a identidade de cada humano é centrada no eu que a
escritura denomina “coração” ou “alma, que é a unidade de todas as funções aspectuais humanas, o assento da
consciência, e é o que grande parte dos teólogos assumem como sobrevivendo à morte do corpo e, portanto, oferece a
identidade contínua da pessoa entre a morte e a ressurreição. Nossa teoria explica esses pontos como significando que
em uma visão bíblica, o coração humano tem um lado “pré-funcional” que não é esgotado por suas funções temporais
sob leis aspectuais. Isso tem duas importantes consequências: (1) isso permite liberdade genuína no pensamento e ação
relativo às leis de cada aspecto. Pois enquanto os humanos são limitados em suas ações pelo que é tornado possível e
impossível pelas leis aspectuais e relações causais, eles não são determinados ou criados por essas leis; e (2) o caráter
essencialmente religioso do coração humano não é idêntico à sua função no aspecto fiduciário de confiança ou fé. Ao
invés disso, o caráter religioso do coração se encontra em sua disposição inata pré-funcional a ser orientada a Deus ou
qual for a divindade colocada em Seu lugar. Isso inclui entender a si mesmo e tudo o mais à luz daquela orientação do
coração. Assim, aquela orientação também dirige cada ato concreto de confiança da pessoa. São apenas esses atos que
são qualificados pelo aspecto fiduciário. Por essas (e por outras) razões, mantemos que os humanos não apresentam
funções qualificadoras – um ponto a ser explicado em breve.
[277]
Sim, isso significa que cada aspecto existe “desde a fundação do mundo”. Deveria ser notado que o tipo de teoria
emergente questionada aqui não é uma que simplesmente enxerga uma hierarquia entre os aspectos (com a qual eu
concordo), mas uma que reduz uma aspecto ao outro em um ou outro dos sentidos questionáveis formulados na nota 5
do último capítulo. Assim, se “emergência” é utilizado sem comprometimento com qualquer desses sentidos, a teoria
da estrutura de leis não tem objeção a ela.
[278]
Teorias de emergência do tipo que eu estou questionando, assim, negocia com nosso uso ordinário, pré-científico,
do termo “causa” para sua plausibilidade, enquanto é o sentido científico do termo que eles necessitam. Na linguagem
ordinária nós geralmente falamos de um evento causando outro mesmo que essa não seja tanto uma condição necessária
quanto suficiente para o outro, o que é buscado na ciência. Andre Troost (The Christian Ethos [Bloemfontein: Patrnos,
1983]) nos ofereceu um bom exemplo de como eventos qualificados por distintos aspectos são ordinariamente
considerados como causas uns dos outros, mas não são causas no sentido de serem condições tanto necessárias quanto
suficientes. Suponha, diz Troost, que um violinista corte seu dedo enquanto prepara o jantar. No sentido ordinário de
“causa”, nós diríamos que o corte (físico) causou-lhe dor (sensorial), que causou o fato de ela ter cometido um erro que
arruinou (esteticamente) um concerto, que causou sua demissão (legal), que causou seu ato de xingar os superiores
(anti-ético). Mas em cada caso, o evento precedente não foi seja uma condição necessária, seja suficiente para seu
sucessor. Cada pré-condição poderia ter ocorrido sem o resultado subsequente, e cada resultado poderia ter ocorrido
sem o evento que de fato o ocasionou.

Às vezes é questionado nesse ponto se a teoria da estrutura de leis não evitaria os reducionismos uma vez que assume
todos os aspectos igualmente como dependentes de Deus, reduzindo-os, portanto, a Deus. A resposta é que essa
redução não é idêntica a dependência, mesmo que muitas teorias tentem alcançar uma redução argumentando que um
aspecto depende de outro. A diferença é essa: enquanto todos os aspectos dependem de Deus, eles não são reduzidos
em status na relação de um com o outro por essa dependência. Todos são igualmente reais, embora dependentes,
constituintes do cosmos criado.

[279]
Apesar dessa ênfase, seria equivocado chamar a essa teoria de realismo ingênuo. “Experiência ingênua” é
intencionada para se referir à experiência que temos anterior à fragmentação realizada pela alta abstração, não sendo,
portanto, uma hipótese. O resultado de nossa crítica é que teorias da realidade não podem negar a experiência ingênua
por atacado, ou aspectos inteiros dela, sem incorrer em sérias incoerências. Teorias devem explicar a experiência
ingênua, não contradizê-la. Dessa forma a teoria da estrutura de leis cumpre com ditado espirituoso de Wittgenstein, de
que a filosofia deveria “deixar todas as coisas como as encontrou”, ainda melhor do que suas próprias teorias fizeram
(Philosophical Investigations, parte 1, seção 124).

[280]
Dooyeweerd desenvolve essa ideia de forma extensa e demonstra que tais conexões não podem ser dispensadas
como meras figuras de linguagem. Veja New Critique, vol. 2, p. 55-180, e também em seu texto “De analogische
grondbegrippen der vakwetenschappen en hun betrekking tot de stnlctuur van dc menselijken ervaringshorizon," in
Mea'edelingen der Koninglijke Nederlandse Akademie van Welenschappen, afd. Letterkunde, New Series, vol. 17, no.
6 (Amsterdam: Noord-Hollandschc Uitgevers Maatschappij, 1954).(A tradução não publicada desse artigo foi realizada
por Robert Knudsen.)
[281]
Dooyeweerd, New Critique, vol. 3, p. 53-153.
[282]
O que eu defini aqui como “leis típicas”, Dooyeweerd denominou “estruturas de individualidades” a qual ele
descreveu como tornando possível os “arranjos típicos dos aspectos dentro de um todo estrutural” (Veja New Critique,
vol. 3, p. 78-153.) Eu alterei a expressão porque “estrutura de individualidade” está sujeito a ser mal entendido como a
organização factual de indivíduos particulares, ao invés de ser entendido como as leis que tornam possível a
organização de propriedades nos tipos de indivíduos que descobrimos no mundo. (Como notado anteriormente,
Dooyeweerd pode ter tomado essa ideia de Calvino, que falou em uma “lei da criação” que determina a “natureza
particular de cada classe de seres” (Institutes, II, ii, p. 16).

Também deveria ser notado que as leis típicas conectam as propriedades de uma coisa de um modo rígido em relação
às propriedades dos aspectos localizados abaixo na lista (leis rígidas são leis incapazes de serem violadas pelas
criaturas). Assim, não há variações nos modos que as propriedades matemática, espacial, cinemática, ou físicas são
combinadas nas coisas do mesmo tipo. Mas as propriedades dos aspectos tendo uma ordem normativa (uma ordem que
não é rígida, mas pode ser violada pelas criaturas) são combinadas pelas leis típicas de modos que também não são
rígidos. Assim, para as propriedades dos aspectos biótico acima, leis típicas permitem variabilidade em como as
propriedades desses aspectos se combinam em coisas do mesmo tipo. Isso é a razão de por que podem haver
margaridas ou porcos deformados, assim como culturas, sentenças, famílias, estados, estatutos, arte, etc. deformados, os
quais contudo são margaridas, porcos, culturas, sentenças, e assim por diante. Esse ponto será explicado mais
amplamente nos próximos capítulos.
[283]
Falar de uma coisa como um “conjunto estrutural individual de todas as suas propriedades” não tem como
intenção negligenciar o fato de que as coisas são construídas de partes. Ao invés disso, reflete a lição da filosofia
moderna de que a análise contínua das partes termina na análise das propriedades. Nossa diferença com as formas que a
lição tem sido aplicada em teorias de base pagã é que enquanto eles têm insistido em buscar um ou dois tipos de
propriedades que tornam todas as demais possíveis e atuais (ou naquilo que todas as demais são resolúveis),
argumentamos que nenhum aspecto exerce qualquer dos papéis.
[284]
A base religiosa para esse ponto foi argumentada anteriormente; ver esp. a citação de Gregório Palamas
referenciada na nota 13 do capítulo 10. Consequências adicionais dessa visão incluem o seguinte: São as leis típicas
juntamente com as leis aspectuais que determinam quais coisas são realmente possíveis, uma vez que as possibilidades
aspectuais por si mesmas não podem realizar isso – nem mesmo a possibilidade lógica, como geralmente tem sido
assumido como sendo o caso (e.g. por Leibniz tanto em “Meditations on Knowledge, Truth, and Ideas" quanto em “On
the Method of Distinguishing Real from Imaginary Phenomena”). A mera ausência da contradição lógica de um
conceito não demonstra que isso corresponde a uma entidade ou estado de coisas possível. Por exemplo, o conceito de
um círculo quadrado pode ser desdobrado em uma figura plana encerrada com quatro lados iguais e quatro ângulos
interiores iguais cuja circunferência é em todos os pontos equidistante de seu centro. Não existe contradição lógica
estrita em tal definição: sua incoerência está nas incompatibilidades espaciais que ela afirma, as quais não podem ser
descobertas pela lógica em si mesma. Assim, um círculo quadrado não é logicamente impossível, mas espacialmente
impossível. Ou considere a conclusão de Leibniz de que não existe limite real à velocidade, porque não existe limite
lógico na concepção de um aumento sobre qualquer velocidade que seja. A ausência de um limite lógico/conceitual não
impede que exista um limite físico real à velocidade, como foi demonstrado pela física da relatividade. É por essa razão
que o fato de que possamos formar um conceito consistente de uma rocha falante não significa que tal coisa é realmente
possível; o conceito de uma coisa pode ser possível enquanto a coisa concebida não o é. Ao mesmo tempo, o fato de
que não existe uma lei típica tornando tal coisa possível não a torna impossível no sentido usualmente significado pelo
termo, a saber, que tal coisa violaria uma lei. Assim, uma rocha falante não é impossível da mesma forma que afirmar
tanto A quanto não A o é, ou na forma que um círculo quadrado o seja. Por essa razão, “não ser possível” em relação à
leis típicas não é equivalente a “impossível”. (James Ross defende um ponto similar em um artigo citado anteriormente,
“God, Creator of Kinds and Possibilities”).
[285]
Dooyeweerd utilizou essa teoria para oferecer uma análise dos estágios de mudança de uma árvore de sua função
biótica como uma coisa natural, se tornando semi-formada ao ter seu tronco cortado, tendo o tronco transformado em
tábuas, e finalmente tendo as tábuas tornadas em um produto final tal como uma cadeira (New Critique,vol. 3, p. 129-
32). Eu conheço alguns poucos filósofos que tentaram tal projeto, nenhum dos quais de forma exitosa. Ele também
oferece uma extensa análise da natureza de um livro, contrastando-o com a tentativa fracassada de Aristóteles (ibid., 3,
p. 150-53). As obras de Dooyeweerd, originalmente em holandês, estão sendo traduzidas em Inglês e publicadas pela
Edwin Mellen Press of Lewiston, N.Y., Queenston, Ontario, e Lampeter, UK. Já disponíveis nessa série está uma re-
publicação da obra A New Critique of Theoretical Thought (4 vols.), In the Twilight of Western Thought, Roots of
Western Culture, Christian Philosophy and the Meaning of History, Essays in Legal, Social,and Political Philosophy,
Encyclopedia of the Science of Law (3 vols.), eo vol. l da Reformation and Scholasticism in Philosophy (3 vols). O
restante dos volumes da última obra, assim como os outros ensaios mais curtos, estão agendados para publicação
próxima.
[286]
Isso se refere, eu repito, às comunidades organizadas – aquelas com liderança oficial, e não àquelas
desorganizadas ou apenas com líderes carismáticos. Assim, meu uso do termo “comunidade” não é o mesmo daquele
utilizado quando falamos, por exemplo, “a comunidade negra”, “a comunidade gay”, ou a “comunidade de língua
francesa”, etc. De agora em diante, portanto, eu sempre utilizarei o termo para significar uma comunidade com uma
liderança reconhecida, de modo que cada tipo e modelo de comunidade será vista como um artefato que organiza a
relação social de autoridade de acordo com suas funções fundante e guia.
[287]
Neste contexto, “religiosas” é utilizado no sentido de crenças religiosas e práticas “secundárias” como explicado
no capítulo 2. Elas são comunidades cujo propósito estrutural é auxiliar no alcance de uma relação apropriada com o
que quer que seja crido como sendo divino.
[288]
A descrição das comunidades sociais oferecida até aqui tentou permanecer tão próximo da do próprio
Dooyeweerd o quanto possível. Mas deveria ser notado que uma série de pensadores que tentaram desenvolvê-la de
forma complementar sentiram a necessidade de introduzir distinções e conceitos alternativos para manter sua instância
não redutiva. Ver, por exemplo, o artigo de M.D. Stafleu, “On Aesthetically Qualified Characters and Their Mutual
Interlacements”, Philosophia Reformata 68 (2003): 137-47. Stafieu e outros também defenderam a posição de que
existe um aspecto distintamente político. Essas e outras variantes da teoria da estrutura de leis estão além do escopo
desta obra, cujo propósito é apenas oferecer uma introdução sobre como teorias não reducionistas podem ser
desenvolvidas.
[289]
A ideia do propósito estrutural de uma instituição também não nos obriga a dizer que esse propósito seja sempre
realizado em cada estágio de desenvolvimento histórico, ou em cada contexto cultural. Assim, Dooyeweerd diz:

Quando dizemos que um casamento, um Estado, uma igreja, etc., apresentam uma natureza constante,
determinada por seus princípios estruturais, nós não queremos dizer que todas dentre essas instituições sociais
[organizações] têm sido realizadas em cada fase do desenvolvimento da humanidade. Queremos dizer apenas
que a natureza interna desses tipos de relacionamentos sociais não podem ser dependentes de condições
históricas variáveis da sociedade humana. Ou seja, tão logo elas sejam realizadas em uma sociedade humana
factual, elas parecem estar vinculadas a seus princípios estruturais sem os quais não poderíamos ter qualquer
experiência social dos mesmos... isso não desvia algo da grande variabilidade das... formas nas quais elas são
realizadas.(New Critique, vol. 3, p. 170-71)

[290]
Esta é uma continuação do ponto feito no capítulo 10 sobre a diferença entre a ideia bíblica de perfeição e a ideia
de perfeição derivada da antiga filosofia grega. Ali nossa razão para rejeitar a doutrina tradicional das perfeições de
Deus foi de que a ideia que ela empregava é claramente a ideia Grega pagã, e não as ideias bíblicas.
[291]
As teorias objetivistas mais conhecidas, como aquelas de Platão e Aristóteles, tentaram contornar essa dificuldade
considerando a natureza de qualquer coisa que tivesse a habilidade de violar uma norma como fortemente dualista. O
dualismo supostamente permite a habilidade de uma coisa agir contrariamente a uma norma dizendo que a ordem
normativa é intrínseca a apenas um lado da dualidade e é desobedecida pelo outro lado. O problema com isso é que os
dois lados da dualidade são, então, mutuamente excludentes na natureza, de modo que é impossível explicar como eles
formam uma união, para não mencionar uma unidade individual. Cf. a crítica de Dooyeweerd na obra New Critique,
vol. 3, p. 10-18.
[292]
Digo “geralmente” porque a teoria de Thomas Hobbes é uma notável exceção. Hobbes iniciou com uma posição
individualista, mas então argumentou que o melhor estado que as pessoas podem criar é aquele que não permite limites
à autoridade governamental, deixando os cidadãos sem quaisquer direitos exceto o da autopreservação.
[293]
Dooyeweerd também denomina relações todo-todo de “relações encápticas” (New Critique, vol. 3, p. 627-784).
Penso, no entanto, que se torna confuso utilizar o mesmo termo para relações todo-todo na qual nenhum deles é um
sub-todo em relação ao outro assim como para as relações nas quais um é um sub-todo em relação ao outro. Assim, eu
utilizei a expressão “todo-todo” para a primeira e “capsulada” apenas para a segunda.
[294]
Aristóteles, Metaphysics livro. Z, 1043a.
[295]
Alguns pensadores tomistas têm se referido àquilo que eu chamo de uma visão “hierárquica” da sociedade como
uma visão de “subsidiariedade”. Veja, e.g., Yves Simon, Philosophy of Democracy (Chicago: University of Chicago
Press, 1951), e A General Theory of Authority (Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1962). Como ficará mais
claro em breve, nossa teoria rejeita a visão hierárquica como uma visão abrangente da sociedade, embora ela reconheça
hierarquias dentro da mesma comunidade e entre comunidades auxiliares formadas expressamente para apoiar e servir a
outra, e.g., uma organização formada para levantar recursos para uma escola ou uma orquestra. A teoria da estrutura de
leis reconhece que a subsidiariedade é um princípio valioso para a operação interna de instituições específicas.
Tomadas desse modo, a subsidiariedade pode ser combinada com a ideia de esfera de soberania para o todo da
sociedade para produzir as bases de uma poderosa teoria de sociedade baseada no teísmo. Mas como a ideia da
subsidiariedade é bastante conhecida, diferentemente da ideia de esfera de soberania, concentrarei no que segue nessa
última.
[296]
Veja as Stone Lectures de Kuyper proferidas em Princeton, intituladas Calvinism (Grand Rapids, Mich.:
Eerdmans, 1976). Ligado a isso é importante notar que enquanto a teoria da esfera de soberanias explica a natureza das
comunidades sociais em termos de seus aspectos qualificadores, isso não quer dizer que uma vez que uma comunidade
é formada, ela tenha direitos de propriedade sobre o aspecto qualificando sua função guia. Empresas não têm
monopólio sobre as questões econômicas, assim como não é apenas o Estado que esteja preocupado com a justiça, ou
as escolas que irão educar. As esferas sociais são alvo da constante participação de todas as pessoas e comunidades.
[297]
Instituição, III, x, 6, p. 190, 191.
[298]
Dooyeweerd pontua que a falha em desenvolver comunidades diferenciadas correspondendo aos interesses
sociais distintos da vida é a marca das sociedades primitivas. Nelas geralmente existe uma única comunidade, tal como
a família estendida ou tribo, a qual é súnica tutora de todos os interesses sociais Ele descreve como tal ausência de
diferenciação tem sido superada na história por meio do que ele denomina “processo de abertura”, e como esse
processo é dirigido pela crença religiosa. Ver New Critique, vol. 2, p. 68-72, p. 192 , e esp. p. 298-330).
[299]
Embora o Estado seja qualificado por sua função guia jurídica, ele é posteriormente limitado por apresentar a
justiça pública, em vez de qualquer tipo de justiça, como seu propósito estrutural. Seu dever de implementação não se
estende, portanto, a coisas tais como revogar a ideia de pais quanto ao horário apropriado de sono de seus filhos, ou as
regras da igreja sobre quem participa nos sacramentos, etc., mesmo que essas ideias sejam realmente injustas. Isso se
tornará mais claro quando a lei típica para o Estado for explicada no próximo capítulo. Deveria também ser notado que
aceitamos aqui a suposição tradicional de que a justiça pública inclui a responsabilidade governamental pela segurança
pública. Assim, não apenas a defesa nacional e a restrição do crime, mas a inspeção de aviões, pontes, alimentos, e
medicamentos, e o policiamento de estradas cai dentro dessa definição.
[300]
Dooyeweerd oferece uma crítica extensa a uma série de importantes teorias sociais para estabelecer este ponto.
Ver New Critique, vol 3, p. 198-261.
[301]
Veja as observações de Calvino nas Institutes, III, ix, p. 6.
[302]
O caso clássico a favor da liberdade de expressão e de imprensa foi feito pelo puritano calvinista John Milton em
seu ensaio “Areopagitica” (1644).
[303]
Dooyeweerd, New Critique, vol. 3, p. 380.
[304]
O processo histórico por meio do qual os Estados surgiram e assumiram distintas formas é outro lado de sua
variação. Esse lado é explicado pela análise de Dooyeweerd sobre o “processo de abertura” histórico das comunidades
sociais aludido na nota 12 do capítulo 12. (Em adição às referências apresentadas naquela nota, ver também New
Critique, vol. 2, p. 181-92, p.335-65). Isso explica o fato de que às vezes Estados têm sido nada mais do que
organizações para defender um território, enquanto leis emergiram das decisões das cortes ao invés de serem estatutos
do Estado – como no caso da common-law anglo-saxã. Assim, a explicação sobre a natureza do Estado que estou em
vias de oferecer assume um Estado plenamente desenvolvido, ou “aberto” que objetiva estabelecer uma ordem de
justiça pública. Que essa seja a natureza de um Estado plenamente desenvolvido foi reconhecido há bastante tempo
como em Aristóteles, quando ele observou que “Justiça é o vínculo dos homens nos Estados, para a administração de
justiça, a qual é a determinação daquilo que é justo, é o princípio da ordem na sociedade política.” (Politics, 1253a p.
37-39).
[305]
Dois comentários: O primeiro é que esse contraste em punições foi esboçado com o tratamento de adultos em
mente. Pais são geralmente obrigados a utilizar a força para restringir pequenas crianças, por exemplo, quando um bebê
é colocado em um cercadinho, ou uma criança é punida. Ao mesmo tempo, é claro, o Estrado certamente tem um dever
de proteger crianças de abusos tais como a força dos pais, especialmente quando a vida ou a saúde da criança está em
jogo. O segundo diz respeito à menção da pena de morte. A sanção bíblica da morte para assassinatos premeditados não
está clara somente na Torá e no Novo Testamento (cf. Gn 9.6 e Rm 13.4), mas é baseado no fato de a vítima ser feita à
imagem de Deus e, portanto, não poder ser dispensada em relação ao tempo particular ou às circunstâncias de sua
escrita. Eu penso, portanto, que sua ampla abolição na Europa reflete uma base humanista, ao invés de bíblica, para a
interpretação da justiça. Ademais, o argumento de que se é errado matar outra pessoa, portanto, a pena de morte seria
errada, é absurdo. Não existe ação que possa ser tomada para a punição de um crime que não seja em si mesma um
crime, não fosse ela uma punição legal para um crime. Por exemplo, seria roubo tomar o dinheiro de alguém sem a sua
vontade a menos que seja uma multa para um crime aplicada por uma autoridade legítima; e seria considerado
sequestro e detenção ilegítima o encarceramento de outra pessoa a menos que, do mesmo modo, isso seja uma punição
para um crime imposta por uma autoridade legítima. O mesmo se dá para a execução. Eu penso, no entanto, que a
punição capital deveria ser aplicada apelas para o assassinato premeditado, quando a evidência for esmagadora, e após
houver uma revisão do tribunal de recurso para assegurar que o procedimento judicial seja adequadamente observado.
Complementando isso, eu defendo uma segunda revisão, por uma instância independente, dos fatos em tais casos para
checar a evidência e as testemunhas.
[306]
Agostinho, The City of God, livro 19, p. 12-17. O próprio Dooyeweerd assumiu essa visão na obra The Christian
Idea of the Stale (Niitley, N.J. Craig Press, 1968), p. 40. Ali ele se alia especificamente com Agostinho contra Aquino,
que mantinha (como eu) que é apenas a necessidade de poder militar do Estado que é resultado do pecado. (Eu, no
entanto, concordo com Dooyeweerd ao rejeitar as razões de Tomás para sua visão”.
[307]
James Skillen, “The Bible, Politics, and Democracy”, artigo apresentado em uma conferência patrocinada pelo
Centre for Religion and Society do Rockford Institute, Wheaton, 111., Nov. 1985, p. 6.

[308]
Nós geralmente ignoramos o fato de que o exercício da força não necessita ser violento, ou ameaçar com
violência. O erguimento de uma torre de pedágio ou a colocação de uma barreira temporária através de uma rua
também é uma forma de força. Assim também o é o encadeamento de uma propriedade confiscada, ou a definição de
salários. Cf. N. K. Smith, “The Moral Sanction of Force”, The Credibility of Divine Existence (New York: St. Martin’s
Press, 1967), p. 214 ss.

[309]
Isso não se equivale a sugerir que o Estado não possa de alguma forma ser a parte prejudicada. Em casos tais
como traição, roubo de propriedade do Estado, ou evasão fiscal, esse claramente é o caso.
[310]
Os materiais de treinamento oferecidos pelo estado da Pensilvânia para o curso de educação de motoristas que eu
realizei à época do ensino médio faziam essa reivindicação.
[311]
A distinção entre um direito per se e o direito a uma liberdade diz respeito aos benefícios que cidadãos recebem
diretamente do Estado, tais como proteção contra invasões e crimes. Um direito secundário, por outro lado, é o direito
de cidadãos serem livres para agir de certo modo quer eles desejem ou não exercitar essa liberdade. Assim, enquanto
temos um direito per se de sermos protegidos contra crimes, não temos um direito per se para nos casarmos, ou
fazermos negócios, uma vez que ninguém viola nossos direitos se negando a casar conosco, ou fazer negócio conosco.
O que temos é o direito de sermos livres para nos casarmos ou fazermos negócios. Assim, enquanto dirigir não é um
direito per se, na visão da esfera de soberania ele é um direito nesse sentido secundário de ser uma liberdade.

[312]
Cf. as observações de Otto Von Bismarck justificando sua edição dos telegramas Ems para incitar a Guerra
Franco-Prussiana (Bismarck, the Man and the Statesman: Being the Reminiscences of Otto, Prince of Bismarck, trans.
A. J. Butler [New York: Harper & Row, 1899], vol. 2, p. 97-101).
[313]
É fascinante notar como o individualismo da declaração de Independência dá espaço para um coletivismo da
maioria na Constituição dos EUA. Pois aonde a Declaração fala de direitos inalienáveis, os direitos listados na
Constituição são todos emendas: que podem ser repelidos pelo voto do Congresso, ou pelos estados. Assim, não há um
único direito listado na Constituição dos EUA que seja garantido como inalienável.
[314]
Jefferson tinha originalmente proposto a seguinte formulação: “Nós mantemos essas verdades como sagradas e
inegáveis”. Franklin pensou que isso soaria demasiadamente religioso e o convenceu de substituí-la pela frase mais
racionalista: “Mantemos que essas verdades são autoevidentes”. No entanto, havia uma forte conexão entre a
autoevidência e a verdade religiosa entre Puritanos que (anteriormente a Locke) já haviam conectado o ensinamento
bíblico à ideia de governo limitado. Foi uma combinação da teoria de Locke com a herança Puritana mais antiga que foi
advogada pelos colonos. Veja Staughton Lynd, Intellectual Origins of American Radicalism (New York: Pantheon,
1968), p. 20, 24-31.Também deveria ser notado que embora o termo “direitos” não ocorra nas escrituras, a ideia o faz.
Uma vez que um direito é um benefício ou imunidade que não pode ser negado a uma pessoa sem que se cometa uma
injustiça (no caso de um direito legal), ou sem que o amor esteja ausente (no caso de um direito ético ou moral), então
tanto a lei de Moisés quanto a história do Bom Samaritano, e.g., claramente ensinam que todos os humanos têm direitos
como resultado de serem à imagem de Deus.
[315]
Jefferson de fato se refere às “Leis da Natureza e ao Deus da Natureza” no parágrafo inicial. No entanto, ele não
conecta especificamente esta alusão ao seu ponto sobre direitos individuais. Ao invés disso, ele a conecta apenas à
“posição separada, porém igual” que é atribuída aos Estados Unidos entre as nações. Muitas discussões subsequentes
dos direitos têm, desde então, seguido essa condução falhando em conectar direitos a normas.
[316]
Às vezes tem sido sugerido a mim que não precisamos na verdade de qualquer teoria para explicar a crença nos
direitos, porque eles não precisam mais do que construtor pragmáticos. Tudo o que precisamos fazer, é dito, é
concordarmos em dizer que pessoas têm direitos, e todas as mesmas limitações sobre o poder do Estado seguir-se-á.
Nada poderia ser mais distante da verdade. De fato, a visão pragmática de direitos é pragmaticamente autoanuladora.
Uma vez que seja concordado que não existem tais coisas e que estamos apenas fingindo que elas existem, o resultado
prático será duplo: por um lado, ninguém será constrangido por qualquer elaboração dos mesmos, enquanto, por outro
lado, todos almejarão que eles sejam elaborados como sendo o que quer que favoreça seus próprios interesses. O
resultado político prático seria o caos total. Ademais, se os direitos são vistos como invenções daqueles que estão com
o poder político, e portanto o que quer que o Estado julgue útil conferir aos seus cidadãos, a visão pragmática de
direitos resulta imediatamente em uma visão coletivista do Estado não oferecendo, portanto, qualquer limite baseado
em princípios ao poder estatal. Assim, uma visão pragmatista de direitos destrói as consequências práticas mais
importantes que a crença em direitos reais produziu.
[317]
Por exemplo, Mary Warren, “On the Moral and Legal Status of Abortion”, Monist 57, no. 1 (Jan. 1973): p. 55; e
Michael Tooley, “Abortion and Infanticide,” Philosophy and Public Affairs 2 (1971).
[318]
Thomas Hayes, “A Biological View”, Common Wealth 85 (March 1967); p. 677-78.
[319]
É interessante notar nessa conexão que ainda outros escritores tentaram evitar essas consequências baseando os
direitos na habilidade de um ser sentir, ao invés de pensar, e concluíram portanto que os animais também possuem
direitos. A partir da visão de direitos da estrutura de leis, ambas as teorias ainda estão muito limitadas ao serem
vinculadas à condição subjetiva dos seres em questão. Em nossa visão, não apenas animais, mas toda a criação
inanimada possui direitos – pelo menos indiretamente. Isso ocorre porque os humanos têm obrigações jurídicas (e
éticas) não apenas com outros humanos, mas com Deus e, assim, com a totalidade de sua Criação. Temos, por exemplo,
sido responsabilizados pelo cuidado e pelo aperfeiçoamento na criação em virtude de ela ter sido confiada a nosso
cuidado por Deus. É sobre essa base que podemos explicar por que é errado, e.g., poluir o ar ou a água, mesmo se ao
fazê-lo não prejudicarmos alguém vivendo agora. Outras teorias, no entanto, não podem explicar como uma geração
futura poderia possuir direitos em relação às nossas ações quando elas ainda não existem.
[320]
É uma fonte de grande confusão que grande parte das discussões políticas e legais do que se denomina “ética”
falhe em distinguir adequadamente entre o aspecto ético e o aspecto jurídico. Frequentemente os temas relacionados à
justiça que não são de caráter público, e portanto não são temas em relação aos quais o Estado devesse promulgar leis,
ou mesmo questões de justiça pública sobre os quais o Estado ainda deve elaborar um estatuto, são chamados temas
“éticos” ou “morais” mesmo embora eles ainda caiam sob as normas da justiça ao invés daquelas do amor.
[321]
Recorrer à ficção de que empresas são pessoas para oferecer a elas uma posição legal diante das cortes ainda
falha em cobrir a posição legal das não corporações. A inadequação dessa visão chegou a ser reconhecida
especialmente a partir do trabalho de Hohfeld. Que as cortes não podem oferecer adequadamente remédios legais na
suposição de que apenas indivíduos possuem direitos, é demonstrado por casos tais como ações de classe e outras
envolvendo partes não Hohfeldianas.Ver R. Cover, O. Fiss, e J. Resnik, Procedure (New York:Westbury, 1988).

[322]
James Skillen colocou essa parte da teoria de forma bastante apropriada em seu artigo “GoingBeyond Liberalism
to Christian Social Philosophy” in Christian Scholar's Review 19,no. 3 (Março 1990). Skillen enfatiza que a insistência
da teoria da estrutura de leis sobre a imparcialidade do governo em relação a todos não é uma concessão ao relativismo.
Em vez disso, é um ponto de justiça cuja

base bíblica é esta: Deus é longânimo e paciente até o juízo final... [Ou seja] um testemunho não da indiferença
relativista de Deus em relação ao pecado, mas em vez disso sua misericórdia e graça. Se Deus é paciente... então
nós, também, devemos ser o mesmo... Se o governo restringe a si mesmo de forçar todos os cidadãos a confessar
uma fé, ou forçar todos os pais para enviar seus filhos a um único sistema de ensino, ou forçar todas as amizades
a alcançar o mesmo comportamento de padrão sexual, não agiria, portanto, como um relativista... o governo que
cumpre seus deveres diante de Deus quando esse busca avançar a justiça pública que inclui a plena proteção dos
direitos confessionais daquelas instituições e relacionamentos não políticos, não governamentais, que devem ser
livres para obedecer ou desobedecer as leis de Deus em seus próprios domínios.
[323]
Veja os comentários de Bob Goudzwaard em Capitalism and Progress (Grand Rapids, Mich; Eerdmans, 1979),
p. 110-13.
[324]
Em novembro de 1986, o Primeiro Ministro Japonês Yasuhiro Nakasone comentou publicamente que os Estados
Unidos estavam sofrendo um declínio nacional em razão de permitir que sua população fosse diluída por meio da
mistura de raças.
[325]
Mais do que isso, eu diria que mesmo se uma escola advogar um ponto de vista religioso, político, ou ético em
particular, ela deveria mesmo assim receber igual suporte das taxas que o governo impõe a serem pagas pela educação
que ele exige que seus cidadãos tenham. Isso se dá dessa forma por que (1) não existe tal coisa como uma educação
religiosamente neutra, na medida em que cada teoria ou interpretação pressupõe uma ou outra crença sobre a divindade,
e (2) o princípio de soberania das esferas exige que o governo não favoreça um ponto de vista religioso sobre os
demais. As políticas educacionais atuais nos EUA, no entanto, fazem exatamente isso. Ela financia uma escola
conquanto que seus professores estejam inconscientes acerca das suposições religiosas das visões que eles ensinam, e
ela se recusa a financiar escolas cujos professores estão conscientes de suas pressuposições religiosas e tentam ensinar
seus temas a partir daquele ponto de vista unificado. A partir da perspectiva de soberania das esferas, a justiça exige
que todas as escolas sejam apoiadas igualmente, ou não sejam em definitivo. Como J. S. Mill argumentou, o dever do
Estado é exigir educação universal, não supri-la. Mill complementa que se o governo adotasse tal política, ele poderia
então deixar

aos pais a obtenção da educação no local e da forma que eles achassem melhor, e se contentarem com [o apoio
dessa]... que a totalidade, ou grande parte, da educação das pessoas devesse estar nas mãos do Estado, eu vou
tão longe quanto qualquer um em desaprovar... uma educação geral pelo Estado é um mero artifício para moldar
pessoas a serem exatamente como as outras; e o molde é aquilo que agrada ao poder predominante no governo...
isso estabelece, por sua vez, um despotismo sobre a mente, conduzindo por uma tendência natural a um
despotismo sobre os corpos. (On Liberty, ed. D. Spitz [New York: W. W, Norton Co.,1975], p. 97-98)

[326]
Para mais recursos sobre teoria social ou política geral, ver P. Marshall e R. Van der Vennen, eds., Social Science
in Christian Perspective (Lanham, Md.: University Press of America, 1988); Bruce Wearne: The Theory and
Scholarship of Talcott Parsons to 1951 — A Critical Commentary (Cambridge: Cambridge University Press,
1989),“Elias and Parsons: Two Transformations of the Problem-Historical Method”, in Talcott Parsons Today: His
Theory and Legacy in Contemporary Sociology, ed. I. Trevino(Lanham, Md: Rowman & Littlefield, 2001), e “Deism
and the Absence of Christian Sociology,” Philosophia Reformata 68 (2003); D. Koyzis, Political Visions and Illusions
(Downers Grove, I11.: InterVarsity Press, 2003); e D. Strauss, ReintegratingSocial Theory (forthcoming, 2005).

Para mais no assunto do papel apropriado do governo na educação, ver R. McCarthy et al., Society State, and Schools
(Grand Rapids, Mich.: Ecrdmans, 1981); R. McCarthy, J. Skillen e W. Harper, Disestablishment a Second Time:
Genuine Pluralism forAmerica’s Schools (Grand Rapids, Mich: Christian University Press and Eerdrnans,
1982);Charles Glenn, The Myth of the Common School (University of Massachusetts Press,1987); James Skillen, ed.,
The School Choice Controversy (Grand Rapids, Mich; Baker Books, l993); Charles Glenn e Jan de Groof, Finding the
Right Balance: Freedom,Autonomy, and Accountability in Education (Utrecht: Lemma, 2002); e Steven Vryhof,
Between Memory and Vision: The Case for Faith-Based Schooling (Grand Rapids,Mich.: Eerdmans, 2004).

Sobre o tema de como as eleições são conduzidas, ver Justice for Representation, a position paper of the Center for
Public Justice, Washington, D.C., por James Skillen, o Diretor do Centro de Pesquisas. O Centro é dedicado à
educação de pessoas para a conexãao entre fé bíblica e temas políticos via a teoria da estrutura de leis. O site do Centro
é: cpjnstice.org

Para obras complementares sobre temas de direitos, ver Johan Van Der Vyver, Seven Lectures on Human Rights
(Capetown: Juta, 1976); Max Stackhouse, Creeds, Society, and Human Rights: A Study in Three Cultures (Grand
Rapids, Mich.: Eerdmans, 1984); Paul Marshall, “Dooyeweerd’s Theory of Empirical Rights”, in The Legacy off
Herman Dooyeweerd, ed. C. T. Mclntire (Lanham, Md; University Press of America, 1985);John Witte, “The
Development of Dooyeweerd’s Theory of Rights,” in Political Theory and Christian Vision, ed. J. Chaplin e P.
Marshall (Lanham, Md.: University Press ofAmerica, 1994); e “Universal Rights and the Rule ofthe State,” in
Sovereignty at the Crossroads, ed. L. Lugo (Lanham, Md.: Rowman & Littlefield, 1996).

Sobre o tema do Estado, pobreza e bem-estar, ver Paul Marshall, Thine is the Kingdom (Grand Rapids, Mich.:
Eerdmans, 1984), esp. p. 90-113. Sobre justiça econômica mais geral, ver Bob Goudzwaard, Capitalism and Progress,
trad. e ed. JosinaZylstra (Toronto and Grand Rapids, Mich.: Wedgewood and Eerdmans, 1979); AlanStorkey,
Transforming Economics. A Christian Way to Employment (London: SPCK,1986); B. Gondzwaard and H. de Lange,
Beyond Poverty and Afluence, trad e ed.R. Vander Vennen (Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1995); D. Strauss,
“Capitalism andEconomic Theory in Social Philosophic Perspective”, in Journal for Christian Scholarship, lste & Zde
Kwartaal, 1997: p. 85-106; e D. Donaldson e S. Carlson-Thies, A Revolution of Compassion (Grand Rapids, Mich.:
Baker, 2003).
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Sobre questões ambientais, ver Tending the Garden, ed. Wesley Grandberg-Michaelson (Grand Rapids, Mich.:
Eerdmans, 1987). Sobre casamento e família, ver as excelentes obras de James Olthuis: I Pleadge You My Troth(New
York: Harper & Row, 1975) e Keeping Our Truth (San Francisco: Harper &Row, 1986).

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