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Roy A. Clouser
Copyright @ 2005, de University of Notre Dame
Publicado originalmente em inglês sob o título
The myth of neutrality: an essay on the hidden role of religious belief
pela University of Notre Dame,
Notre Dame, Indiana, 46556, EUA.
RELIGIÃO
CAPÍTULO 1. O QUE É RELIGIÃO?
1.1 O problema
Definir “religião” é notoriamente difícil. A palavra é utilizada em
inúmeras formas: é aplicada a rituais, organizações, crenças, doutrinas e
sentimentos assim como a tradições amplas como o hinduísmo, o budismo, o
taoísmo, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Ademais, o próprio tema
da crença religiosa é, via de regra, emocionalmente carregado. Essa
sensibilidade é natural, uma vez que a religião afeta as pessoas no nível mais
profundo de suas convicções e valores.
Para auxiliar na minimização dessas dificuldades, tenhamos em mente
dois pensamentos firmemente à medida que avançarmos. O primeiro é que
não estamos tentando estabelecer qual religião é verdadeira ou falsa, certa ou
errada. Estamos tentando chegar a um entendimento sobre o que a religião ―
qualquer religião ― é. Em resposta a essa questão apresentarei e defenderei o
que é geralmente denominado uma definição “real”, ou seja, uma definição
que é mais precisa ou científica do que aquelas empregadas no linguajar
comum. A segunda coisa a lembrarmo-nos é de que a definição que
oferecerei é direcionada a um uso particular do termo “religião”, o sentido no
qual ela qualifica crença. Dessa forma, nossa busca por uma definição de
religião será uma busca pelo que distingue uma crença religiosa de uma
crença que não é religiosa. Isto se dará assim porque considero a crença como
o elemento chave, uma vez que são crenças religiosas que induzem e guiam
pessoas, práticas, ritos, rituais e tradições que comumente denominamos
“religiosas”.
O que, pois, é uma crença religiosa? Considere a questão desta forma.
Todos temos literalmente milhares de crenças sobre milhares de coisas. Neste
momento, por exemplo, eu creio que sou parente de sangue de algumas
outras pessoas; eu creio que 1 + 1 =2; eu creio que próxima sexta-feira é dia
de pagamento, que houve uma era do gelo cerca de 20.000 anos atrás, e que
houve uma guerra civil na Inglaterra nos anos 1640. Enquanto a maioria das
pessoas concordaria que nenhuma dessas crenças é religiosa, os antigos
pitagóricos consideravam 1 + 1 = 2 como uma crença religiosa. Então
precisamos saber não apenas o que torna uma crença religiosa e outra não,
mas como pode se dar que a mesma crença pode ser religiosa para uma
pessoa e para outra não.
Conforme prosseguirmos precisamos também ter em mente o que
qualquer definição deve conter, a fim de se evitar um caráter arbitrário. Uma
definição não arbitrária deve afirmar o conjunto de características singulares
compartilhado por todas as coisas do tipo que está sendo definido. A maneira
de se fazer isso é mediante a inspeção de tantas coisas daquele tipo quanto
possível, e tentando isolar apenas a combinação de características que é
verdadeira para elas e apenas elas. Isso é algo difícil de fazer mesmo para
objetos que podemos inspecionar, como computadores ou cadeiras, mas é
ainda mais difícil para ideias abstratas tais como crenças religiosas.
O que torna tais definições possíveis é que todos podem reconhecer
coisas como sendo de certo tipo antes de sermos capazes de definir
precisamente o tipo. Todos conhecemos muitas coisas ― árvores, por
exemplo ―, muito antes de executarmos a árdua tarefa de analisar o conjunto
de características possuída por todas as árvores, mas apenas pelas árvores.
Desse modo, enquanto o processo de definição se inicia pelo exame de uma
lista abreviada inicial de coisas do tipo a ser definido, não precisamos
examinar todas elas para formular sua definição. Na verdade, não poderíamos
fazê-lo, porque necessitaríamos já possuir uma definição para decidir incluir
ou excluir qualquer caso controverso ou limítrofe. A definição se inicia, dessa
forma, examinando-se uma lista de coisas a serem definidas que exclua os
casos controversos.
Em um primeiro momento, parece uma tarefa fácil compilar uma lista
abreviada inicial relativamente incontroversa de religiões para se buscar um
elemento comum entre suas crenças centrais. Praticamente todos
concordariam que o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, juntamente com
o hinduísmo, o budismo[1] e o taoísmo, podem seguramente figurar na lista.
De igual modo, todos pensam que as crenças nos deuses olímpicos gregos, os
cultos de mistério gregos, o panteão romano, o politeísmo egípcio, ou a
antiga crença cananeia em Baal também seriam religiosas. Nem parece
questionável que ensinamentos que nunca geraram um número expressivo de
seguidores possam contar como religiões ― as antigas crenças epicuristas e
seus ensinamentos sobre os deuses, por exemplo. Na verdade, parece haver
uma “curta lista” inicial razoavelmente ampla de religiões que inclui também
o druidismo, as crenças sobre Isis e Mithra, assim como os ensinamentos do
zoroastrismo, do xintoísmo e uma série de outras candidatas. Qual, afinal de
contas, poderia ser a razão para se recusar em reconhecer que todas essas são
religiões, e seus princípios centrais crenças religiosas? Elas são (ou foram)
todas consideradas como tal por seus adeptos e os adeptos de pelo menos a
maioria delas reconhece (ou reconheceu) as outras na lista como sendo
religiões alternativas ou rivais.
Mas apesar da disponibilidade de uma lista aceitável de religiões, tem-
se mostrado excessivamente dificultoso extrair qualquer crença que elas, e
apenas elas, compartilhem em comum. Para ilustrar isso, observemos
brevemente o quão pobres são algumas das definições mais amplamente
aceitas quando aplicadas às tradições em nossa lista. Nós começaremos com
aquelas que são as ideias atuais mais populares e, em seguida, observaremos
algumas das propostas acadêmicas mais influentes.
Uma das ideias mais populares é de que as crenças religiosas são
aquelas que inspiram e sancionam algum tipo de código ético. De fato,
muitas pessoas supõem que o propósito primário da crença religiosa é
oferecer direção moral para a vida. Embora isso pareça soar como plausível,
o fato é que existem religiões em nossa lista que não incluem qualquer
ensinamento ético. O epicurismo antigo, por exemplo, não traçou qualquer
conexão entre a crença em seus deuses e deveres morais para com os outros
seres humanos. De acordo com os epicureus, os deuses não se importavam
com os assuntos humanos e assim uma pessoa poderia ser moralmente
indiferente. Outros exemplos de religiões que apresentam a mesma ausência
são a tradição xintoísta japonesa e algumas formas da antiga religião romana.
Para tornar as coisas ainda piores para essa sugestão, existem claramente
crenças não religiosas que inspiram ou incluem ensinamentos morais. Por
exemplo, existem códigos morais de honra nas escolas, clubes de esportes,
exércitos e até mesmo em organizações criminosas. Isso é suficiente para
demonstrar que mesmo se todas as religiões de fato oferecessem
ensinamentos éticos, essa característica por si só não seria suficiente para
distinguir crenças religiosas daquelas que não são religiosas.
De igual modo, nem todas as crenças religiosas inspiram adoração.
Aristóteles, por exemplo, propôs a existência de um deus supremo que
denominou o Primeiro Motor. Porém, visto que ele também defendia que
estaria aquém da natureza e da dignidade do Primeiro Motor conhecer sobre,
ou se interessar pelos, assuntos terrestres, ele considerava a adoração como
algo fútil. Os antigos epicureus mencionados acima concordavam. Também
de acordo com eles, os deuses não se importavam com nada relacionado ao
mundo. Assim, o fato de os deuses existirem interessa aos humanos, mas não
inspira adoração. Mesmo em nossos dias, existem formas de hinduísmo e
budismo nas quais não há adoração.
Às vezes sugere-se que se as últimas duas propostas fossem ampliadas
um pouco e reunificadas, elas poderiam formar uma definição bem sucedida.
Suponha que consideremos a crença religiosa como uma que produz ritual
e/ou ética, na qual o ritual pode ser de outro tipo, em vez de adoração,
especificamente. Isso não seria suficiente? A resposta é não, não seria. No
caso dos rituais, isso conduziria ao círculo vicioso de se precisar saber quais
rituais são religiosos para identificar as crenças religiosas, e de se precisar
saber quais crenças são religiosas para identificar quais rituais são religiosos.
Se existisse uma lista específica de rituais gerados apenas por crenças
religiosas, isso poderia funcionar. Mas existem muitos rituais que, em alguns
momentos, são religiosos, e em outros, não: queimar uma casa, soltar fogos
de artifício, jejum, celebrações, intercurso sexual, cantar, lavar-se, matar um
animal, matar um ser humano, comer pão e beber vinho, raspar a cabeça e
muitos outros. Assim, parece claro que a única forma de se saber se um ritual
é religioso ou não é saber o que aqueles que fazem parte nele creem acerca
dele. Se sua crença motivadora é religiosa, então o ritual também pode sê-lo.
Mas sem saber se ele é realizado por uma razão religiosa, mesmo aquilo que
se parece como um ato de oração pode ser indistinguível da fantasia ou de
alguém conversando consigo mesmo. E note que muitos dos rituais citados
acima apresentam um código ético jungido a eles quando são realizados para
propósitos não religiosos, enquanto outros são tidos como não éticos, a não
ser se realizados por razões religiosas! Rituais conduzidos por clubes com um
código ético, ou as cerimônias de posse num cargo de uma empresa, ou no
governo, que têm um código de ética são exemplos de rituais não religiosos
acompanhados de crenças éticas, enquanto o ritual da morte de um ser
humano por razões religiosas foi considerado piedoso pelos astecas que, em
outros contextos, considerariam o ato assassinato. Concluo, portanto, que
essa sugestão é insuficiente. Crenças religiosas não são necessariamente
aquelas que geram ensinamentos éticos e/ou ritos; existem crenças religiosas
que carecem de ambas e crenças não religiosas que geram ambas.
Talvez a mais difundida dentre todas as definições populares seja a de
que uma crença religiosa é a crença num Ser Supremo. Muitas pessoas não
somente parecem pensar que isso abarca todas as religiões, mas também
suspeitam que todas as religiões adorem o mesmo Ser Supremo sob
diferentes nomes. Isso é um equívoco total. Nem todas as tradições em nossa
lista incluem crenças em algo que tenha um status supremo único. Ademais,
no hinduísmo o divino (Brahman-Atman) não é sequer considerado um ser.
Em vez disso, é um “estado-de-ser”, ou um “ser-em-si” indefinido. Por essa
mesma razão Brahman-Atman não pode ser estritamente denominado um
deus, se consideramos um deus como sendo individual e pessoal. O budismo
também nega que o divino seja um ser, mas vai ainda além. Por temor de que
o “ser-em-si” seja uma expressão demasiadamente definida, ele insiste em
tais termos como “Vazio”, “Não-Ser” e “Nada” para o divino. Assim, embora
essas religiões creiam que exista uma realidade divina, elas não creem que o
divino seja sequer um ser, muito menos um ser supremo.
De forma surpreendente, algumas das tentativas acadêmicas
amplamente aceitas para se definir crença religiosa não se saem muito melhor
do que essas populares. Uma das mais influentes nos últimos cinquenta anos
é a de Paul Tillich, o qual declarou a crença religiosa ou fé como sendo
idêntico à “preocupação última”.[2] Essa expressão supostamente daria conta
de todas as religiões. Tillich defendeu que todas as pessoas estão
derradeiramente preocupadas com algo, e que o estado de preocupação
derradeira é a religião da pessoa.
Mas o que exatamente significa estar derradeiramente preocupado
com algo? A forma mais plausível de se entender a expressão é tomá-la como
se referindo ao estado de se preocupar com o que quer que seja a realidade
última. Esta concepção, embora ainda ambígua no tocante ao que
“preocupação” significa precisamente, parece incluir o lidar de alguma
maneira com a realidade última e, dessa forma, parece bastante com o que
ocorre nas religiões. Ademais, existem razões para se pensar que isso é o que
o próprio Tillich tinha como intenção.[3] Mesmo desconsiderando a
ambiguidade de “preocupação”, existe também o problema de como
definiríamos “última” para saber quais crenças e preocupações tratam de fato
sobre o que é realidade última, sendo, portanto, religiosas.
Tillich identifica o “última” com “o sagrado” e “o divino”,[4] mas
obviamente isso não é de muita ajuda. (O que esses termos significam?) No
entanto, ele complementa que o que é verdadeiramente último ― o único
objeto de preocupação última ― é o “ser-em-si”, ou o “infinito”.[5] Ademais,
ele deixa claro que o que quer que seja infinito nesse sentido deve ser
ilimitado de tal modo que nada poderia ser distinto disso. Ele pensa que se
alguém disser que Deus é último, mas também crer que o universo é uma
realidade distinta de Deus, essa pessoa seria inconsistente. Pois se houvesse
algo distinto de Deus, Deus seria então limitado por aquilo que ele não é, e,
assim, não seria infinito e realmente último. O resultado disso, diz Tillich, é
que qualquer pessoa derradeiramente preocupada com aquele tipo de deus
(um deus que é um ser em vez do ser-em-si) estaria colocando sua confiança
em algo que não é realmente último e teria, portanto, uma falsa crença (ele
denomina a isso “fé”).[6]
Mas ao entender “último” dessa forma, a definição de fé de Tillich se
torna muito limitada. Em vez de encontrar um elemento comum a todas as
crenças religiosas, Tillich acaba prescrevendo sua versão daquilo que a
verdadeira religião é. Assim, ele falha em oferecer um sentido ao “último”
que pode levar em consideração tanto crenças religiosas falsas quanto
verdadeiras. Pois se a crença religiosa é estar preocupado com o último
apenas nesse sentido, então qualquer pessoa cuja preocupação seja com algo
tido como último mas não infinito da forma que ele entende “infinito”,
simplesmente não teria qualquer crença religiosa. Tillich, portanto, definiu fé
de tal forma que apenas sua ideia de fé verdadeira é, em última análise, fé.
Dessa forma, se sua ideia de verdadeira religião está correta ou errada é algo
além de nosso escopo por ora, pois é fato que existem religiões que não
creem em algo último nesse sentido de “infinito”.
Tillich obviamente estava consciente dessa objeção, mas ele falhou em
perceber que isso era letal para sua definição. Ele tentou contornar a
relevância disso sugerindo, como indiquei acima, que as religiões
preocupadas com algo que não seja infinito no sentido pretendido por ele
tencionam sua preocupação como sendo por aquilo que é infinito, mas ficam
aquém. Sua tentativa de contornar a objeção equivale a dizer que a verdadeira
religião é a preocupação ou crença que consegue direcionar-se ao infinito, ao
passo que a falsa religião é a preocupação que tenciona direcionar-se ao
infinito, porém erra o alvo. Mas isso não é suficiente. Pois as religiões teístas
― judaísmo, cristianismo e islamismo ― abraçam a doutrina da criação
encontrada em Gênesis. Elas não tencionam, portanto, crer em algo que seja
infinito no sentido de Tillich. Em vez disso, elas creem deliberadamente em
Deus Criador, o qual é distinto do universo que criou. Elas sustentam não que
o universo seja parte de Deus, mas que dele depende para sua própria
existência, já que Deus o trouxe à existência a partir do nada. Assim, a
“preocupação última”, como Tillich a define, não é uma característica dessas
religiões e, portanto, é muito limitada para ser a definição essencial de todas
as crenças religiosas.
Outra definição acadêmica influente é esta:
Religião é a expressão simbólica diversa e a resposta apropriada
àquilo que as pessoas deliberadamente afirmam como sendo de
valor ilimitado a elas.[7]
Em outras palavras, tudo aquilo que se crê como sendo de valor irrestrito é,
pois, considerado como o centro preciso da crença religiosa. Essa definição
parece ser mais plausível do que realmente é em razão da forma que às vezes
falamos metaforicamente sobre a obsessão de uma pessoa como sua
“religião”. Por exemplo, chamamos a devoção de um fanático por seu esporte
favorito de sua religião, por causa da forma que esta devoção se parece com a
devoção religiosa de um santo ou de um profeta. Mas o fato de que o fervor
ou a dedicação de um fanático pelos esportes ser como aquela de um santo
não torna o esporte uma religião, assim como não faz com que a religião se
torne um esporte. E, além disso, existem razões ainda melhores para pensar
que essa definição não seja correta.
Um ponto em questão aqui é que existem politeísmos nos quais há
deuses que são pouco valorizados, ou até mesmo odiados.[8] Se a crença
religiosa fosse idêntica à crença naquilo que uma pessoa mais valoriza então
a crença nesses deuses teria de ser não religiosa! Mas se a crença em um deus
não é uma crença religiosa, então o que mais é? Nisto, e no que se segue,
tomarei como uma regra que não necessita de justificação, que toda definição
que assuma a crença em um deus como não religiosa torna-se com isso
desacreditada.
Tais politeísmos não são, no entanto, os únicos contra-exemplos dessa
proposta: o cristianismo também o é. Pois ao passo que é certamente verdade
que aquilo que é de supremo valor é uma parte importante do ensinamento
cristão, a ordem apropriada de valores é apresentada no Novo Testamento
como um resultado da crença em Deus, não sendo, no entanto, idêntica a esta.
O que um cristão é admoestado a valorizar acima de tudo é o favor de Deus:
o reino de Deus e a justiça que ele oferece àqueles que creem nele (Mt 6.33).
Mas o Novo Testamento também estipula que para agradar a Deus deve-se
primeiramente crer que ele existe e que é recompensador daqueles que o
buscam (Hb 11.6). Claramente, portanto, se a crença de que Deus é real e
confiável é uma pré-condição para apreciar o reino de Deus e seu favor acima
de tudo, segue-se que a crença em Deus não pode ser o mesmo que a
valorização que dela resulta. Resumindo, Deus, no ensino cristão, não é um
valor, mas o Criador de todos os valores. E a relação apropriada para com
Deus é que o amemos com todo o nosso ser, não meramente apreciemo-lo.
Assim segue-se que o cristianismo é outro contra-exemplo a essa proposta,
uma vez que definir a crença religiosa como a crença naquilo que alguém
mais valoriza faria da crença cristã em Deus uma crença não religiosa.
(Obviamente, isso não é negar que o que as pessoas mais valorizam é
geralmente um indicador daquilo que consideram como divino. Mas o fato de
o valor mais elevado de alguém poder refletir uma crença religiosa não
demonstra que ele sempre o faça, muito menos que a crença religiosa possa
ser definida por isso.)
Embora não haja espaço aqui para examinar inúmeras outras
propostas,[9] não creio que isso seja necessário uma vez que tantos estudiosos
da religião atualmente concordem que nenhuma delas logra êxito, e alguns
deles têm concluído que uma definição precisa da crença religiosa é
impossível.[10] Por conseguinte, a visão predominante nestes dias é a de que
as crenças religiosas têm apenas “semelhanças de família”, em vez de
quaisquer características comuns a todas elas. A fim de perceber por que
tantos pensadores se sentem induzidos a dizerem isso, considere os
obstáculos para se formar uma definição real. Suponha, por exemplo, que
estivéssemos tentando respondê-los que toda religião é caracterizada por uma
crença em algo como sendo divino. Isso parece verdadeiro, mas não é útil;
pois a definição simplesmente muda o problema para a definição de “divino”.
Como, eles perguntariam, localizaremos um elemento comum entre as ideias
de divindade encontradas somente nas maiores religiões do presente? Qual
elemento comum é compartilhado entre a ideia de Deus no judaísmo, no
islamismo, no cristianismo, a ideia hindu de Brahman-Atman, a ideia de
Dharmakaya no budismo mahayana e a ideia do Tao no taoísmo? Isolar um
elemento comum entre essas ideias parece desanimador o suficiente, mas
mesmo se pudéssemos fazê-lo, ainda teríamos de localizar aquele mesmo
elemento de divindade nas ideias encontradas no Egito antigo, Babilônia,
Palestina e Grécia; as divindades da China e do Japão, das Ilhas Pacíficas, da
Austrália, dos Druidas, e nas religiões tribais da África e América do Norte e
do Sul. Não está claro, eles perguntariam, que não existe uma característica
comum às divindades de todas essas tradições? Colocada somente dessa
forma, eu teria de concordar com a resposta negativa que sua pergunta
antecipa. As supostas divindades comparadas são, de fato, tão diversas que
não apresentam características comuns.
Mas antes de desistirmos de uma definição precisa, é importante
perguntarmos se a lista cujos ensinamentos estão sendo comparados é tão
inocente o quanto faz parecer. Admite-se que as crenças representadas na
lista sejam todas religiosas prima facie, mas seriam religiosas em um mesmo
sentido? Poderia ser o caso de que a lista oculte uma mudança no sentido de
“religioso” para as crenças que estão sendo comparadas? Para ser mais
específico, estou questionando se é possível que algumas crenças na lista
sejam religiosas num sentido que seja básico às outras naquela lista, de tal
forma que as outras seriam religiosas apenas em um sentido secundário. Se
for este o caso, a lista falha em distinguir as crenças que são religiosas em um
sentido primário daquelas que são religiosas apenas em um sentido
secundário, e essa poderia ser a causa da falha em se obter uma definição
precisa para a lista como um todo.
Ora, existem pelo menos dois sentidos nos quais uma crença pode ser
primária em relação à outra. Um é o sentido noético, ou seja, um sentido que
diz respeito à ordem de nossas crenças. Nesse sentido, uma crença é primária
em relação à outra quando ela é uma pressuposição necessária da outra, de tal
forma que ninguém poderia sustentar a crença secundária sem já sustentar (ou
assumir) a crença primária. O outro sentido é o ôntico, ou seja, ele diz
respeito à ordem da realidade. Nesse sentido, por sua vez, uma crença é
primária em relação à outra quando o objeto da crença secundária é assumido
como dependendo do objeto da crença primária para sua realidade. Em cada
sentido, então, o que é “primário” é uma precondição necessária para o que é
secundário. No primeiro caso, a crença primária é necessária para sustentar a
crença secundária; no segundo caso, o objeto da crença primária é tida como
sendo o que gera a realidade do objeto da crença secundária.
Minha preocupação, portanto, é se a lista abreviada de religiões com a
qual iniciamos seria de fato uma mistura de crenças secundárias com crenças
primárias. Se sim, pode ser o caso de que a busca por uma definição precisa
tenha sido abandonada prematuramente. Pois pode ser que as crenças
religiosas primárias tenham, de fato, características definidoras comuns que
as crenças secundárias não compartilham, deixando a lista inteira com apenas
semelhanças de família.
Considere a seguinte analogia a este ponto. Suponha que queiramos
definir o que se considera uma escola, e tentemos fazê-lo sob a descrição
“organização educacional”. Guiados por essa descrição, compilamos uma
lista de tantas variedades de escolas quantas pudermos pensar, mas também
incluímos em nossa lista as associações de pais e professores (APP’s)
formadas em muitas comunidades como auxiliares às suas escolas públicas
fundamentais. Suponha que tentemos, então, formar uma definição precisa de
uma escola apenas para descobrir que não há características compartilhadas
por todas as organizações em nossa lista. A razão seria porque embora
existam características comuns compartilhadas pelo jardim de infância, uma
escola básica, uma escola de ensino médio, um colégio, uma universidade,
etc., essas características não são verdadeiras no caso das APP’s. Mas as
APP’s são claramente organizações educacionais apenas no sentido
secundário daquele termo. Não podem existir APP’s a menos que existam
escolas, e não podemos crer que necessitamos de uma APP, nem formar
crenças sobre o que ela deveria fazer para apoiar uma escola, sem crermos
que temos uma escola e sem crenças sobre quais seriam as necessidades das
escolas. Está claro nesse caso que nossa falha em alcançarmos uma definição
precisa de uma escola seria o resultado de listarmos uma organização que é
educacional apenas no sentido secundário de apoiar escolas juntamente com
organizações que são educacionais no sentido primário de promover a
educação de seus estudantes. Pois ao passo que todas as escolas têm a meta
comum de prover educação, demonstrar o mesmo relacionamento geral
interno entre instrutor e estudante, e atuar com a mesma noção de autoridade
baseada na especialidade do instrutor, as APP’s não compartilham dessas
características. Por conseguinte, seria nossa falha em distinguir entre os
sentidos primário e secundário de “educacional” que teria conduzido à falsa
conclusão de que não existe definição precisa de uma escola.
Saber se foi isso o que ocorreu no caso da “crença religiosa” é uma
questão digna de ser explorada, pois muito está em jogo. Portanto,
precisamos reexaminar nossa lista inicial para ver se, dentro da mesma
tradição de pensamento e prática, algumas das crenças em nossa lista
demonstram, ou dependência de outras crenças, ou se os objetos dessas
crenças revelam dependência de objetos de outras crenças. Se esse vier a ser
o caso, podemos então remover as crenças secundárias da lista e reexaminar
as crenças primárias para ver se elas realmente têm apenas uma semelhança
de família ou se elas compartilham, afinal de contas, de algumas
características definidoras.
Figura 2
Geralmente, em religiões que creem que existam duas realidades divinas,
uma das divindades é considerada como a fonte daquilo que é bom no
mundo, enquanto a outra é a fonte daquilo que é mal. O paganismo dualista
da Grécia antiga recém-mencionada é um caso em questão. Ela via as duas
divindades como: (1) Matéria, um material original do qual todas as coisas
são feitas, e (2) Forma, o princípio da ordenação que torna o material no
mundo inteligível que experimentamos. Alguns pensadores gregos
entenderam essa ordenação divina como sendo lógica por natureza, enquanto
outros a viam como essencialmente matemática. Aplicada à ideia de natureza
humana, essa fé dualista ensinava que os humanos, da mesma maneira, eram
combinações de forma e matéria. O corpo humano é constituído de matéria,
que gera sentimentos e paixão. Em contrapartida, a mente humana é a
incorporação da forma, porque ela é capaz de raciocinar lógica e/ou
matematicamente. Nessa visão, tudo o que é bom, belo e verdadeiro tem um
caráter essencialmente racional e é conhecido pelo exercício racional da
mente. Em contraste, tudo o que é mal e desordenado é provocado pelos
impulsos irracionais dos sentimentos e das paixões. A vida humana, portanto,
é um conflito constante entre a natureza emocional e a natureza racional,
entre o corpo e a mente.
Da dualidade básica de suas duas divindades, essa versão de paganismo
concebia não apenas a natureza humana, mas toda a realidade, como
permeada por pares correspondentes de opostos: bem versus mal, racional
versus irracional, estabilidade versus mudança, ordem versus desordem,
beleza versus fealdade, etc. Essa perspectiva desfruta ainda hoje de grande
popularidade em nossa cultura. Mas não importa o quão confortáveis muitos
não pagãos tenham chegado a sentir-se quanto a isso, essa imagem dualista
das coisas está em conflito tanto com o tipo bíblico quanto panteísta de
crença religiosa.
Figura 3
Esse esquema demonstra que as religiões panteístas compartilham com as
religiões pagãs a convicção de que existe apenas uma realidade contínua. As
duas discordam, no entanto, sobre se existe algo mais em relação à realidade
do que aquilo que é divino per se (pagã), ou se o divino é coextenivo ao ou
maior que o não divino, de modo que este último é uma subdivisão do divino
(panteísta). Dada essa diferença, podemos dizer que desde o ponto de vista
pagão existe uma clara distinção entre o que é divino e o que não é, mas
desde o ponto de vista panteísta a distinção é um tema complicado. Pois se o
não divino é, em sua totalidade, parte do divino, como pode haver algo que
não é divino? E, se não o é, qual distinção pode ser traçada?
A resposta dada pelas tradições panteístas já foi mencionada no último
capítulo. Ela afirma que sim, o divino é a essência mesma e o ser de todas as
coisas, mas que nós experienciamos as coisas individuais e os eventos de
nosso mundo cotidiano como sendo não divinos. Assim, a distinção feita
nessas tradições não é entre uma porção da realidade que é verdadeiramente
divina per se e uma porção que não o é, mas entre o ser divino de todas as
coisas e a aparência ilusória de que existem coisas que não são divinas. Isso
se dá porque a diferença é tão grande entre nossa ilusória experiência diária
(Maya) e a realidade divina que jaz por trás dessa, que as escrituras e as
disciplinas das tradições panteístas simplesmente não ensinam essa doutrina,
mas estão focadas em induzir uma experiência mística da unicidade de todas
as coisas. Apenas por meio de tal experiência mística, elas dizem, pode uma
pessoa superar o véu da ilusão, enxergar por detrás do mundo da mera
aparência, e tornar-se consciente da realidade divina que está oculta por esse.
Essa realidade divina é chamada Brahman-Atman no hinduísmo;
Dharmakaya, Vazio, Talidade, Nada, Nirvana (e outros termos) no budismo;
o Tao no taoísmo.
Nesse ponto, dever-se-ia enfatizar que é de fato bastante sério o sentido
no qual a maior parte das versões dessas tradições afirmam que o mundo é
irreal conforme é conhecido pela experiência ordinária e pela razão. Elas não
querem dizer apenas que o mundo cotidiano é menos real do que a realidade
divina que ele oculta; elas querem dizer que tudo acerca dele é irreal. De
acordo com essas versões, a experiência mística demonstra que o divino é
não apenas a verdadeira natureza de todas as coisas, mas é, com efeito, a
única realidade, de modo que o divino é tudo o que há! Dessa forma, mesmo
as características mais comuns do mundo cotidianos são ilusórias, nessa
perspectiva.[44] Por exemplo, de acordo com as versões prevalentes dessas
tradições não existem realmente objetos distintos, individuais; não existem
diferenças de qualidades ― incluindo a diferença entre o bem e o mal! No
fundo, todas as coisas são uma só; existe apenas o divino.
Essa doutrina geralmente soa estranha e impalatável para ocidentais
que via de regra pontuam que ela conduz a contradições lógicas. Em resposta
a tais críticas, essas tradições advertem que sem a necessária experiência
mística as pessoas sempre falham em entender ou em crer na identidade
(oculta) de todas as coisas com o divino. A crítica de que essa posição é
autocontraditória, eles dizem, falha em reconhecer que o pensamento lógico
também é parte do mundo da ilusão. Como tal, ele é parte do engano que
impede as pessoas de descobrirem a unidade divina de toda a realidade.
Portanto, de acordo com o arranjo de dependência panteísta, o divino não
apenas nunca deveria ser concebido como uma parte ou aspecto do mundo
divino (como o paganismo o faz), mas, uma vez que a lógica é descartada, o
divino não pode sequer ser concebido. Essa é a razão pela qual as tradições
hinduísta e budista insistem numa experiência mística de unidade com o
divino per se como a única maneira de descobrir a verdade sobre ele.
A diferença entre os arranjos de dependência pagão e panteísta resulta
em outras importantes discordâncias entre eles. Tome, por exemplo, as
diferentes crenças secundárias de tipo (3), segundo as quais interpretam a
natureza humana e a ordenação apropriada dos valores na vida. De acordo
com a influente versão grega do paganismo esboçada anteriormente, o que há
de errado com as pessoas é sua falha em reconhecer a razão humana como a
incorporação dos mesmos princípios divinos que concedem ordem à
realidade, e em esforçar-se para superar os impulsos da emoção ao tornar a
racionalidade o valor mais elevado tanto em suas vidas pessoais quanto na
sociedade humana. Nessa perspectiva, pois, viver de acordo com a razão é a
forma apropriada de se relacionar com o divino, o valor mais elevado na vida,
e que conduz à felicidade genuína.
Em contrapartida, as tradições panteístas insistem que o que há de
errado com as pessoas é elas crerem que o mundo ilusório, incluindo a
racionalidade humana, é real. Visto que nenhuma parte distinta ou
característica do mundo natural é divina ou mesmo real do ponto de vista
panteísta, a forma apropriada de relacionar-se com o divino é descobrir a
verdadeira (divina) realidade rejeitando e se desprendendo do mundo ilusório
da experiência ordinária. O valor mais elevado para os humanos, nessa
perspectiva, não é a ordenação racional da vida, mas a rejeição completa da
experiência ordinária, incluindo a própria razão! Isso, conforme vimos, deve
ser alcançado por meio de uma experiência mística de completa união com o
divino. Ademais, essa experiência faz mais do que meramente revelar o
divino, ela também é o meio de se adquirir libertação do (irreal) mundo da
ilusão e do sofrimento. Assim, comum a todas as tradições panteístas é o
ensinamento de que a forma apropriada de se relacionar com o divino e o
valor mais elevado na vida é buscar a iluminação por meio da experiência
mística. O fracasso em se alcançar essa experiência no ciclo de vida presente
resulta na reencarnação em outros ciclos de vida de ilusão e sofrimento. E
crê-se que isto continua (geralmente por milhões de ciclos de vida) até que a
pessoa seja finalmente iluminada pela experiência mística e, com isso,
dispensada de reencarnações futuras. Isto é, uma vez iluminada, uma pessoa
tem o Nirvana assegurado: o estado no qual o self individual (ilusório) é
absorvido no divino “como uma gota d’água é absorvida no oceano”. Esse é
o estado de “felicidade inefável” e portanto a realização da verdadeira
natureza humana e da felicidade genuína em seu sentido mais elevado.
É importante notar, em relação esse ponto, que a ideia bíblica de pecado não
é primariamente a de uma transgressão moral. Embora os atos imorais são, de
fato, chamados de “pecados” (plural) e são condenados, a ideia central do que
há de errado com as pessoas segundo a religião bíblica é religiosa. Ou seja,
“pecado” (singular) é o nome para a condição da natureza humana que leva
as pessoas a falharem no reconhecimento da verdade da revelação de Deus, e
portanto a falharem em amar e servir a Deus com todo o seu ser. O sentido
religioso de “pecado” é colocar algo no lugar de Deus, de ter uma falsa
divindade em lugar da verdadeira. É por isso que a primeira demanda da
aliança proposta por Deus é que o amemos com todo o nosso coração, ao que
é acrescentado que amemos ao nosso próximo como a nós mesmos, pela
razão de que nosso próximo também é criado “à imagem de Deus”. Na visão
bíblica, portanto, pecado é apenas de forma secundária uma questão de
intenções e comportamentos imorais. Ele é primeiramente uma questão de
não direcionar a fé e o amor ao Criador, e em vez disso considerar algo que
Deus criou como divino. Como um rabino colocou muito tempo atrás:
Pois do céu é revelada a ira de Deus contra toda a impiedade e injustiça
dos homens que detêm a verdade em injustiça... pois trocaram a verdade
de Deus pela mentira, e adoraram e serviram à criatura antes que ao
Criador. (Rm 1.18-25)[47]
TEORIAS
CAPÍTULO 3. O QUE É UMA TEORIA?
3.1 Introdução
Vamos começar perguntando: por que deveríamos estar especialmente
interessados na relação entre crença religiosa e teorias? Certamente há mais
em relação à interpretação da vida do que é permitido por teorias! Afinal de
contas, não seriam todas as teorias questões altamente técnicas
compreendidas apenas por cientistas e filósofos? E acaso não contribuem
pouco para o entendimento que grande parte das pessoas têm de si mesmas e
de sua vida diária?
Embora algumas teorias sejam, de fato, muito técnicas e entendidas
apenas por especialistas, muitas outras, por seu turno, não o são. A ideia de
que todas as teorias estão além do cidadão comum vem da associação da
palavra “teoria” com os últimos avanços na física, na química, ou na
astronomia. Deveríamos lembrar, no entanto, que também existem teorias
influentes sobre direitos políticos, felicidade humana, moralidade, o
entendimento da arte, a criação de filhos, tratamentos médicos eficazes e
educação pública, para citar algumas. Muitas dessas teorias estão dentro do
alcance e da compreensão do cidadão comum. Além disso, parece
improvável que alguém não defenda pelo menos uma teoria num desses
tópicos citados. Dessa forma, a verdade é que o cidadão comum é
profundamente influenciado por teorias.
Outra razão pela qual deveríamos nos interessar sobre a relação entre a
crença religiosa e as teorias tem a ver com a autoridade que as teorias
geralmente reivindicam possuir, especialmente aquelas nas ciências. Uma
crença amplamente difundida em nossos dias é a de que, tão logo uma teoria
científica é formulada, testada e aceita por grande parte dos especialistas, ela
se torna um padrão dotado de autoridade para julgar a verdade daquilo que
lhe diz respeito. Isso implica, obviamente, que se a crença religiosa de
alguém for confrontada por uma teoria amplamente aceita, essa pessoa seria
perversa ao rejeitar a teoria e manter a crença. No último século e meio essa
conclusão tem sido defendida repetidamente por defensores da biologia
darwinista, da psicologia freudiana e da política marxista, para mencionar
apenas os exemplos mais óbvios.
Podem aqueles dentre nós que creem em Deus aceitar a afirmação de
que as teorias são os árbitros finais da verdade? Elas são realmente neutras
em relação à crença religiosa e assim capazes de reivindicar a aliança
primordial comumente atribuída a elas? Se sim, estariam elas
verdadeiramente numa posição para decidir sobre a verdade (ou
racionalidade) de crenças religiosas? E o que dizer da visão popular de que,
embora as teorias sejam dotadas de autoridade para um domínio da vida, a
crença religiosa o é em outro domínio? Essa é uma forma satisfatória para um
teísta entender como a crença em Deus se relaciona com as teorias? Para
responder a essas e outras importantes questões devemos, primeiramente,
adquirir alguma compreensão do que as teorias são, de forma que possamos
então investigar a relação entre elas e as crenças sobre a divindade per se.
4.3 Abstração
Enquanto todos parecem concordar que as teorias científicas e filosóficas são
altamente abstratas, raramente escritores tentam explicar de forma clara o que
se quer dizer por “abstrato” ou o que se quer dizer por ser “altamente”. Um
ponto de partida óbvio para essa tarefa é considerar o significado literal do
termo: “abstrair” significa extrair, ou remover algo (mentalmente) de algum
contexto mais amplo. Essa atividade é virtualmente a mesma que enfocar
nossa atenção, algo que fazemos frequentemente no dia a dia. Por exemplo,
se estamos tentando encontrar um livro que tem uma capa verde, procuramos
na estante observando todos os livros com capas verde. Para fazer isso,
precisamos primeiramente ter destacado mentalmente (abstraído) a cor verde
de todas as outras cores e também destacado a cor de cada livro de todas as
outras qualidades ou propriedades que os livros têm.
Esse nível de abstração é tão comum que geralmente não prestamos
atenção a ele. Por exemplo, geralmente executamos tais ações como evitar
algo porque cheira mal, julgar algo grande demais para um compartimento,
ou preferir um curso de ação porque ele é justo. Por mais comuns que essas
ações possam ser, todas elas exigem que tenhamos primeiramente abstraído
odores, tamanhos ou a justiça entre todas as outras propriedades exibidas por
aquilo que cheira mal, seja demasiadamente grande, ou seja mais justo. Em
tais casos, no entanto, a extração dessas propriedades em nosso pensamento
não é feita de forma a isolá-las das coisas ou eventos que as apresentem. Isto
é, esse nível de abstração não focaliza o odor, ou o tamanho, ou qualquer
outra propriedade ao ponto de romper a continuidade dessas propriedades
com todas as demais propriedades das coisas que as possuem. Nesse nível de
abstração, uma propriedade, embora distinguida e destacada, ainda é
experimentada como uma característica da coisa que a apresenta. Chamarei a
isso de o nível inferior de abstração. Em contrapartida, também somos
capazes de intensificar o foco de nossa atenção a tal grau que isolamos, de
fato, uma propriedade daquilo que a apresenta, e assim focamos nossa
atenção sobre a própria propriedade. É a isso que denomino abstração “alta”.
Uma vez que o nível mais alto de abstração é uma característica
bastante importante das teorias científicas e filosóficas, ilustrarei agora sua
diferença da abstração inferior em maiores detalhes. Tome o caso de alguém
que comprou um novo carro e o está mostrando a um grupo de amigos. Um
dos amigos diz que ama a cor do carro, outro comenta que o carro é belo,
enquanto outros perguntam o quanto ele custou e o quanto ele pesa. Todas
essas observações demonstram que os interlocutores destacaram num nível
inferior de abstração propriedades distintas do carro: sua cor, beleza, custo e
peso. Mas nenhuma dessas propriedades foi isolada do próprio carro; elas
ainda estão sendo experienciadas e concebidas como propriedades do carro.
Se, no entanto, um indivíduo se concentrasse sobre a propriedade, por
exemplo, do peso em si, à parte do carro (ou de qualquer objeto particular),
ele estaria concebendo o peso de uma forma altamente abstrata. Outras
propriedades tais como a velocidade, a massa, a densidade e o volume
poderiam, da mesma forma, ser isoladas. Dessa forma o pensamento
altamente abstrato pode oferecer-nos um tipo distinto de conceito acima e
além daqueles que estão disponíveis sem ele. Ele acrescenta uma nova
dimensão à teorização, possibilitando que as hipóteses sejam suposições de
(ou sobre) propriedades, funções, relações, etc., altamente abstraídas, além de
serem sobre as coisas e os eventos que as possuem. Dessa maneira torna-se
possível que os conceitos altamente abstratos sejam utilizados para explicar
tanto outras abstrações quanto as coisas e eventos que continuamos a
experimentar na conexão inquebrável de todas as suas propriedades. Assim,
ao abstrair propriedades, criamos a possibilidade de questionar sobre as
relações entre essas propriedades, e de buscar por padrões de conexões entre
essas relações, todas elas concebidas em isolamento de quaisquer coisas ou
eventos nos quais possam ocorrer.[52] Para as teorias, a mais importante das
relações que pode ser descoberta nisso são as leis. No caso da amostra de
propriedades descritas acima, leis presentes entre elas incluiriam:
l. Se A, então B
2. A
--------------------
3. Logo, B
A questão crucial sobre essa regra é que enquanto ela funciona da esquerda
para a direita, não funciona, no entanto, da direita para a esquerda. Não
estamos autorizados a dizer:
4. Se A, então B
5. B
---------------------
6. Logo, A
Pois mesmo que a calçada esteja ficando molhada, isso não nos diz que está
chovendo (outras coisas além da chuva poderiam causar a calçada molhada).
Mas para afirmar que um experimento bem-sucedido provou uma teoria é
cometer o erro representado em 4, 5 e 6 acima. O argumento seria:
10. Se A, então B
11. Não B
-------------------------
12. Logo, não A
Entre aqueles que assumem a posição racionalista, tem havido uma tendência
definitiva ao longo dos últimos três séculos de distanciar-se das conclusões
de Platão e aproximar-se das de Russell. Como resultado, muitos que
assumem essa visão agora consideram certo que a razão teria refutado a
crença religiosa e a substituído com as teorias da ciência e da filosofia.
Antes de prosseguirmos à próxima alternativa, é importante notar que
tanto o racionalismo como o irracionalismo concordam sobre um ponto
levantado anteriormente, isto é, de que nem todos possuem uma crença
religiosa. Para ambas as posições, é uma questão de escolha se alguém possui
ou não uma crença sobre a divindade, e se isso ocorre, qual seria essa crença.
O racionalista opõe-se ao irracionalista apenas ao insistir que as crenças sobre
a divindade devem ser julgadas por procedimentos racionais, não sendo de
outro modo legítimas.
A crença religiosa:
1. guia e dirige o uso da razão na totalidade da vida
Ninguém recebe a graça por si mesmo por mais que se prepare para isso,
mesmo que o faça com tudo o que está em seu poder... Pois a graça
supera todos os esforços humanos... Se for da vontade de Deus tocar o
coração, então a graça infalivelmente seguirá. (Summa Theologica 1a-
11ae, q. 112, a. 3)
Essa adição da fé não suplanta a razão de uma pessoa, como vimos, mas a
suplementa. Nesse ponto, temos novamente Aquino:
Visto que o escolasticismo deixa latitude tão ampla tanto para a fé quanto
para a razão, embora ao mesmo tempo admitindo uma forte interação entre
elas, seus defensores julgam difícil conceber a razão pela qual deveriam
aderir à visão radicalmente bíblica. Eles continuam a tomar as afirmações de
que a crença em Deus que impacta todo o conhecimento como se significasse
que todo o conhecimento sobre o domínio sobrenatural, e assinalam
especialmente o conhecimento em matemática, lógica e física como exemplos
de verdades que todos possuem em comum.
Por fim, essa visão admite que teorias que explicam a criação como
dependente de um ou outro de seus aspectos refletiriam uma crença religiosa
pagã se elas terminassem simplesmente com a posição de que todas as coisas
dependem do aspecto X. Mas o paganismo de tal posição é facilmente
evitável, diz o escolasticismo. Tudo o que precisamos fazer é acrescentar a
qualquer dessas teorias uma afirmação adicional: que embora todo o resto da
criação dependa do aspecto X, X, por sua vez, depende de Deus. Com essa
condição adicional, o caráter pagão de tais teorias é neutralizado.
A primeira parte da minha objeção ao escolasticismo já foi apresentada.
Ela se relaciona à forma que as Escrituras veem toda verdade como sendo (de
algum modo) impactado por ter-se o Deus correto. Isso implica uma posição
mais forte do que simplesmente desaprovar aquelas teorias que contradizem
diretamente a verdade revelada. Que uma teoria não pode ser correta se ela
contradiz a verdade revelada é suficientemente verdadeiro para qualquer
teísta; mas isso não é suficientemente forte para capturar o ensinamento
bíblico. Pois não importa o quão assiduamente essa regra seja aplicada, ela
ainda deixa a grande maioria das teorias (e muitas outras crenças) intocadas
pela crença em Deus. A maioria das teorias sobre quase todos os tópicos
deixam de contradizer a doutrina revelada e, dessa forma, acabam por ser
religiosamente neutras no sentido exato que o ensinamento bíblico nega.
Mas, nesse caso, a regra de que apenas teorias que diretamente contradizem a
verdade revelada devam ser excluídas falha em sua própria exigência! Assim,
a despeito da insistência do escolasticismo de que a autoridade da fé é
superior à da razão, e que a verdade revelada acerca do sobrenatural seja mais
importante do que acerca do natural, a regra escolástica sozinha é muito fraca
para apreender a posição bíblica sobre a relação da crença religiosa com a
razão.
Essa mesma falha é também o que é passível de objeção no que diz
respeito à estratégia escolástica para neutralizar o caráter pagão de uma teoria
que explica toda a criação como idêntica com, ou dependente de, um ou outro
de seus aspectos. Seria uma posição pagã, diz o escolasticismo, com a
afirmação adicional de que qualquer aspecto da criação proposto como aquilo
em relação ao qual o resto da criação dependa, por sua vez, depende de Deus.
Mas, com essa afirmação, o que de outro modo seria uma crença em uma
divindade pagã é batizado (ou circuncidado) na aceitabilidade teísta. Minha
objeção a essa estratégia é que o poder explanatório real da teoria reside
somente no aspecto que se toma para explicar o restante da criação, e não em
Deus. O poder explanatório da teoria não é diferente com a afirmação
adicional sobre a existência de Deus do que o seria sem essa (a menos que os
milagres de Deus sejam o local de despejo para o que a teoria não pode
explicar em definitivo). A afirmação adicional é, portanto, outra forma de
ignorar (ou negar) o ensinamento bíblico de que nenhum conhecimento ou
verdade permanecem inalterados pela crença em Deus.
No entanto, outra objeção à visão escolástica é que ela nega a visão
bíblica dos homens como seres naturalmente religiosos. As Escrituras
insistem que humanos foram criados para a comunhão com Deus e, como
pontuado anteriormente, os escritores bíblicos sempre se dirigem a seus
leitores como se eles (os leitores) cressem ou em Deus ou em algum
substituto de Deus. Essa é a razão pela qual os Salmos dizem todo aquele que
insiste que não existe nada divino é um tolo (“O tolo diz em seu coração,
‘Não há deus’”); porque sempre que uma pessoa afirma isso, ela também está
considerando algo como divino. Assim, a posição radicalmente bíblica não
pode concordar que ter fé é um “donum superadditum” ― um poder
acrescentado às faculdades naturais da pessoa que não estava lá em seu
nascimento. O dom da graça de Deus não é o de adicionar uma faculdade
anteriormente ausente, mas o redirecionamento e a reparação de uma
faculdade defectiva. Como Calvino coloca, somos criados de tal forma que
teríamos naturalmente “tanto confiança nele, e um desejo de nos apegarmos a
ele, não fosse a depravação da mente humana ter nos desviado do curso
apropriado de investigação” (Institutes, I, ii, 3).
Ademais, a posição radicalmente bíblica nega que as duas dimensões
da criação sejam, cada uma delas, conhecidas por uma faculdade humana
distinta. Tanto Deus quanto a criação são conhecidos pela mesma faculdade,
a saber, a razão, que por sua própria natureza é sempre dirigida por alguma
crença sobre a divindade. Isso não é sugerir, obviamente, que não há nada
distinto sobre as formas que utilizamos a razão para conhecer a criação e as
formas pelas quais a utilizamos para conhecer a Deus. Visto que Deus não é
uma parte da criação, ele deve revelar-se a si mesmo, a fim de o
conhecermos. Além disso, existe o efeito da queda no pecado sobre a razão
humana. Diz-se que é uma condição dos homens em que sua razão opera
imperfeitamente no que diz respeito ao que experimentam como divino, de
modo que sua antena de autossuficiência deve ser restaurada a fim de
funcionar apropriadamente, caso a razão reconheça a revelação de Deus por
aquilo que ela é. O mesmo é verdade para o modo que a natureza pode
“testemunhar” acerca de Deus. Salmo 19.1 e Romanos 1.20 nos dizem que a
natureza ― vista corretamente ― revelaria sua criaturalidade dependente.
Mas a razão mal direcionada por uma fé falsa não lê de forma correta as
mensagens da natureza. Em vez disso, ela reprime aquilo que de outro modo
seria óbvio, e considera algo que não Deus como divino (Rom. 1.25). Isso só
pode ser remediado pela restauração da razão à sua ordem de funcionamento
adequado, de modo que a palavra de Deus seja vista pelo que é, e a natureza
possa ser corretamente interpretada. Como Calvino observou certa vez, a
Escritura oferece as lentes por meio das quais o livro da natureza deve ser
lido.
Por todos os seus escritos, Calvino assume a visão de que a razão humana
não é neutra, já que é afetada pelo pecado, sendo o pecado aqui entendido
como uma falsa crença sobre a divindade que produz efeitos deletérios sobre
as tentativas da razão de interpretar a realidade. Conforme ele o vê, as falsas
crenças religiosas não podem deixar de produzir senão distorções, de modo
geral, e não apenas na teologia e na ética. Por essa razão, quando as
Escrituras revelam o Deus verdadeiro, elas não revelam apenas o objeto
apropriado da fé e da adoração, mas restauram a perspectiva apropriada para
a operação da razão. Certamente Calvino, assim como os escritores bíblicos,
não deixa claro exatamente como a crença em Deus faz isso. Mas já comecei
a apresentar o contexto para uma descrição da explicação que Dooyeweerd
oferece sobre isso, e prosseguirei nessa direção nos capítulos subsequentes
deste livro. Elaborarei sua forma específica desse enunciado no capítulo 6, e
ilustrarei a influência das crenças sobre a divindade nas teorias utilizando
exemplos da matemática, física e da psicologia nos capítulos 7, 8 e 9. Então,
no capítulo 10 explicarei tanto seus argumentos sobre por que a regulação
religiosa das teorias é inevitável quanto sua crítica da estratégia tradicional
(pagã) para as teorias. Nos últimos três capítulos articularei, pois, seu
programa para teorizar na base da crença em Deus. Isso assumirá a forma de
demonstrar como a doutrina de que tudo o mais além de Deus depende de
Deus conduz a uma teoria distinta da realidade, e por meio dessa visão da
realidade conduz a uma interpretação distinta de todos os conceitos, incluindo
as hipóteses das ciências.
Quando os movimentos da Renascença e da Reforma chegaram a um
conflito frontal com o escolasticismo entrincheirado e de um em relação ao
outro em meados do século XVI, uma das primeiras vítimas do conflito foi a
afirmação reformada do ensinamento bíblico sobre a não neutralidade da
totalidade da vida. Embora muitas das reformas teológicas e eclesiológicas de
Lutero e Calvino tenham sido preservadas em vários ramos do
protestantismo, a doutrina da não neutralidade não foi preservada. Na
verdade, os sucessores imediatos à liderança do movimento da Reforma
(Filipe Melânctone Theodore Beza, respectivamente) abandonaram
explicitamente a ideia de que todo conhecimento é condicionado por crenças
religiosas e retornaram à posição escolástica. Desse modo, mesmo que os
teólogos protestantes e católicos continuassem a divergir sobre tais itens
como a organização da igreja, a interpretação dos sacramentos e a autoridade
papal, sua visão geral da relação entre a fé e a razão era em larga medida a
mesma. A principal diferença sobre a fé e a razão passou a ser que, enquanto
os pensadores católicos tendiam a harmonizar sua fé com teorias sobre a
natureza oriundas de Aristóteles (devido à influência de Tomás de Aquino),
os pensadores protestantes se sentiam livres para harmonizar sua fé com
quaisquer teorias sobre a natureza que estivessem na moda naquele momento.
O resultado foi um desfile virtual de combinações da crença em Deus do
escolasticismo protestante com teorias tais como o dualismo cartesiano, o
fenomenalismo, o idealismo kantiano, o monismo hegeliano, o romantismo, o
marxismo, o existencialismo, etc. Entrementes, a posição radicalmente
bíblica, embora tenha sobrevivido na obra de alguns pensadores individuais e
algumas tradições teológicas, foi marginalizada por grande parte do
pensamento protestante.
Como resultado, ambos os campos do pensamento cristão de ponta,
juntamente com muitos pensadores judeus e muçulmanos, ainda carecem de
qualquer apreciação do controle religioso da totalidade da vida. Considera-se
especialmente as teorias como religiosamente neutras, ao invés de serem
reguladas ao pressupor-se ou Deus ou uma divindade falsa. Em vez disso, a
crença em Deus é geralmente acrescentada ao fim de uma teoria como o rabo
do burro em uma festa de aniversário; em lugar de ser uma pressuposição
controladora da teoria, ela é um adendo designado apenas para neutralizar o
que seria, de outro modo, seu caráter inteiramente pagão. Por conseguinte,
grande parte dos pensadores teístas continuam a pensar que a produção de
teorias se dá de uma forma neutra, e que um teísta precisa apenas adicionar a
uma teoria a afirmação de que Deus criou aquilo que a teoria propõe e
averiguar para certificar-se de que nada na teoria contradiz abertamente
qualquer verdade revelada. Assim, a relação geral das crenças sobre a
divindade com as teorias é vista como uma relação de harmonização.
Isso, no entanto, está em oposição direta à visão radicalmente bíblica
que já examinamos. Deste ponto de vista, o projeto de harmonização da
crença em Deus com qualquer teoria é impossível a menos que a teoria já
pressuponha Deus, e desnecessário se ela já o faz! Pois nenhuma teoria que é
autoconjecturalmente coerente pode deixar de estar em harmonia com suas
próprias pressuposições, e ser incompatível com as pressuposições contrárias.
Ao deixar de reconhecer que se uma teoria não pressupõe a crença em Deus
ela não é neutra, mas inevitavelmente pressupõe a crença em alguma outra
(suposta) divindade, o escolasticismo admite que os teístas estão livres para
firmar um tratado de paz entre sua fé e a teoria que parece plausível e que não
contradiz diretamente a verdade revelada. A objeção radicalmente bíblica a
isso, obviamente, é que qualquer harmonia supostamente externa de uma
teoria com a crença em Deus é mera ilusão, contanto que a estratégia
explanatória de uma teoria pressuponha outra crença religiosa, contrária.
Colocarei um ponto a favor dessa posição radicalmente bíblica na
forma de um questão: se, como nós veremos em breve, todas as teorias são
reguladas por uma ou outra crença sobre a divindade de tal forma que suas
interpretações diferem em relação àquela crença, por que a crença em Deus
seria a única exceção? Por que faz uma importante diferença ao conteúdo de
uma teoria o fato de ela pressupor a matéria, as sensações, ou leis
matemáticas, ou substâncias de forma/matéria, ou leis lógicas, etc. como
divinos, mas deixa de fazer qualquer diferenciação importante apenas quando
Deus Criador é tomado como divino ao invés de um aspecto da criação?
Certamente isso é, à primeira vista, implausível; no entanto, essa é a visão
prevalecente.
Talvez a principal razão para o desaparecimento da posição
radicalmente bíblica foram as conquistas das ciências apontadas pelos
pensadores renascentistas como evidência de sua perspectiva. À época da
Reforma, e no século e meio que a procedeu, houve uma série de conquistas
impressionantes que foram promovidas como sendo totalmente neutras em
relação à crença religiosa. Essas incluem o reavivamento da álgebra, o
desenvolvimento da geometria analítica e do cálculo, a invenção do
microscópio e do telescópio, a descoberta das leis do movimento e da
gravitação, e os princípios das teorias abrangentes que cobrem campos como
a mecânica, a ótica e a astronomia. O fato de que grande parte dessas
conquistas tenham aparentemente sido de fato independentes das crenças
religiosas dos indivíduos, fizeram mais do que ratificar a tradição de
abandono protestante de seu elemento radicalmente bíblico. Em última
instância, isso resultou no triunfo do reavivamento renascentista do
racionalismo ― primeiramente sob o título de “humanismo” e posteriormente
denominado “Iluminismo”. Essa posição conquistou a liderança intelectual e
cultural do mundo ocidental e permanece nessa posição até aos dias de hoje.
Atualmente, seus maiores desafios vêm das várias versões de historicismo,
pragmatismo e relativismo, os quais geralmente veem a crença religiosa de
uma forma irracionalista.
Na verdade, no último século e meio, a tradição protestante tem se
afastado ainda mais dessa posição radicalmente bíblica devido à interpretação
específica dessa que tem sido advogada pelo grupo mais amplo de seus
aderentes, os fundamentalistas. Os fundamentalistas retiveram a ideia de que
a fé religiosa devesse conduzir a totalidade da vida, inclusive as teorias. Eles,
também, veem a orientação da crença religiosa como uma questão de direção
positiva e interna, em vez de uma simples questão de proibir-se as teorias que
contradizem as doutrinas teológicas. Mas seu entendimento particular de
como a crença em Deus exerce sua influência em teorias é tão implausível,
que acaba trazendo má reputação para própria noção de uma posição
radicalmente bíblica para as teorias.
Agora que disse que os escolásticos têm um número considerável em
suas fileiras, que os racionalistas estão no comando, que os irracionalistas
chegam como desafiantes, e que o grupo mais amplo a manter a posição
radicalmente bíblica são os fundamentalistas, o que pode ser plausivelmente
dito em defesa dessa posição? Pelo menos duas vezes na história ela emergiu
apenas para ser abandonada por seus prováveis defensores. Então, por que
trazê-la à superfície novamente?
A resposta simples é que a posição radicalmente bíblica não pode ser
plausivelmente interpretada como os fundamentalistas o fazem, isto é,
derivando teorias ou confirmando-as a partir das Escrituras ou da teologia.
Demonstrarei em breve como o papel da abstração dos aspectos na teorização
torna inevitável que qualquer teoria pressuponha alguma crença sobre a
divindade. Mas antes de apresentar o argumento para essa posição, devemos
deixar claro o que quero dizer por uma crença religiosa “controlar”,
“direcionar”, “impactar”, ou “regular” uma teoria ao atuar como uma sua
pressuposição. Desse modo, no próximo capítulo irei criticar a ideia
fundamentalista do controle religioso e apresentar a ideia do controle que será
defendida como a interpretação apropriada do ensinamento bíblico sobre a
relação das crenças sobre a divindade com as teorias.
CAPÍTULO 5. A IDEIA DO CONTROLE
RELIGIOSO
6.2 Pressuposição
Já por diversas vezes expressei a principal declaração deste livro ao dizer que
toda teoria contém explicitamente ou pressupõe alguma crença sobre a
divindade. Em lugar de fazer essa distinção repetidamente, presumi-la-ei a
partir de agora em tudo o que segue. Isto é, conforme lidar com o que
significa para uma teoria pressupor uma crença sobre a divindade, isso
deveria ser entendido como implicando que uma teoria pressupõe ao menos
uma outra; isso não exclui que essa possa de fato explicitamente conter uma.
Talvez a melhor forma de explicar o que é uma pressuposição, e como essa
pode influenciar outras crenças, é oferecer um exemplo. Suponha que duas
pessoas estejam tendo um debate informal. George afirma que, embora não
lhe agrade, como a qualquer outra pessoa, pagar impostos, parece-lhe óbvio
que o governo não está fazendo o suficiente em relação à pobreza. Ele ainda
acrescenta que uma vez que nosso país é enormemente rico, comparado com
o modo que a maior parte do mundo vive, não há justificativas para se
permitir que falte a qualquer de seus cidadãos as condições básicas de vida,
quando isto pode ser prevenido. Jane replica que o governo já oferece em
excesso. Ela acrescenta que a própria existência do sistema de bem-estar
social apenas encoraja as pessoas a dependerem dele. O governo deveria estar
encorajando as pessoas a ganharem a vida por si mesmas.
George então replica que a maioria das pessoas acha humilhante ter de
aceitar a ajuda do governo; elas prefeririam ser independentes. Mas, ele
complementa, mesmo que algumas pessoas prefiram viver do auxílio, isso
não deveria impedir o governo de fazer o que ele deve fazer, que é suprir aos
pobres a ajuda que eles desesperadamente necessitam. Jane então diz que o
governo não tem o direito de confiscar parte do pagamento daqueles que
trabalham cada semana para dar àqueles que não o fazem. Ela teme que as
consequências finais da visão de George seja que o governo terminará por
regular a economia totalmente a fim de cuidar completamente de todos.
George protesta que ele não está advogando o controle completo do governo
sobre a economia, ou sobre a vida das pessoas. Ele complementa que suas
ideias poderiam ser implementadas pelo custo de apenas um porta-aviões, e
Jane responde que o dinheiro seria mais bem gasto na defesa de todos do que
no apoio a um grupo de parasitas.
Vamos supor que nem George nem Jane seja mais duro ou agressivo do
que o outro, e que nenhum seja mais sobrecarregado com impostos do que o
outro. Por que, então, eles tendem a ver o assunto por inteiro de modos tão
completamente opostos? Um fator preponderante por trás de seu desacordo
poderia ser que cada um pressupôs uma ideia diferente sobre o papel e os
limites apropriados do governo. Esse tema nunca é explicitamente trazido à
tona seja por George, seja por Jane, mas permanece sendo uma suposição que
orienta e regula tudo o que dizem.
Tanto George quanto Jane consideram que o governo, entendido
apropriadamente, deve aos seus cidadãos algumas coisas — proteção em
relação à invasão estrangeira, por exemplo. E ambos consideram que existem
limites à autoridade do governo, de modo que há algumas coisas que ele não
deveria fazer — tal como confiscar tudo para resolver todas as necessidades
da vida de cada cidadão. Mas eles têm diferentes pressuposições sobre as
obrigações do governo na área da economia. George considera que o governo
tem a obrigação de suprir a subsistência básica aos cidadãos que não a podem
(ou não irão) alcançar por si próprios. Jane, por outro lado, considera, ou
pressupõe, que o papel apropriado do governo não se estende para o auxílio
dos necessitados. Cada um deles pensa que o debate é sobre os gastos do
governo com o auxílio social, e nenhum reconhece que a discordância
termina por ser sobre o tema mais básico sobre o papel apropriado do
governo na sociedade.
Esse exemplo ilustra a primeira característica que desejo enfatizar sobre
pressuposições: elas são crenças que podem exercer uma influência sobre
outras crenças, mesmo que permaneçam inconscientes.[89] Outra característica
do modo que pressuposições influenciam pessoas é que mesmo quando elas
são sustentadas inconscientemente, elas regulam ou guiam a forma que as
pessoas pensam. Os pensamentos de George e Jane foram conduzidos por
direções distintas devido às suas pressuposições opostas no tocante ao
governo. Quanto mais argumentavam, mas distantes eles ficavam, porque
suas suposições os levavam a enxergar cada novo ponto, ou cada nova
proposta do outro, como estando cada vez mais longe da verdade. Quanto
mais eles aplicavam as consequências de sua própria pressuposição aos
pontos trazidos pelo outro, mais seguiam direções distintas de pensamento,
que os conduziam para ainda mais longe do ponto de vista do outro. Por
exemplo, ambos concordavam que um programa de bem-estar social pode
levar as pessoas a tornarem-se dependentes dele, desencorajando a iniciativa
das pessoas. George pensava que o risco era aceitável, porque presumia que
alguma forma de assistência pública é um dever do governo. Para ele o risco
deveria ser muito maior para que o governo fosse dispensado do seu dever de
assistência pública. Jane julgava esse mesmo risco como inaceitável, em
virtude de sua suposição de que a oferta de tal subsistência não é em absoluto
um dos deveres do governo. Para ela o mesmo risco parece ridículo quando a
totalidade do programa está, em primeiro lugar, acima e além do dever
governamental. Assim, mesmo que ambos pudessem concordar sobre
exatamente quais seriam as estatísticas desse risco, isso não faria diferença
em suas posições sobre o tema: para Jane o risco seria uma boa razão contra a
assistência do governo, ao passo que, para George, isso não seria uma
objeção suficiente.
Esse tipo de discordância ocorre comumente. Todos nós já vimos
situações aonde pessoas inteligentes confrontadas com os mesmos fatos os
interpretam de forma bastante diferente. Onde uma pessoa vê certa
interpretação como sendo bastante plausível, outro, por sua vez, enxerga-a
como ultrajante; enquanto outra pessoa concebe-a como possível, mas
improvável, e assim por diante. E geralmente o tipo correto de exame e
discussão pode expor as pressuposições que são o cerne real das
discordâncias.
As piores dificuldades no percurso de se descobrir as pressuposições de
um indivíduo são de dois tipos. A primeira delas está nos casos envolvendo
engano; o segundo tipo surge nos casos em que tentamos reconhecer
pressuposições sustentadas por pessoas numa cultura bastante diferente da
nossa. Isso se dá porque o elemento-chave no reconhecimento das
pressuposições de alguém é a habilidade de nos imaginar no lugar da outra
pessoa. Sempre que pudermos fazer isso com uma precisão razoável,
podemos ― e geralmente funciona ― discernir as suposições não
abertamente comunicadas. Mas tanto o engano quanto a ampla disparidade
cultural fazem com que colocarmo-nos no lugar do outro seja algo realmente
difícil. É por essa razão que é geralmente mais fácil descobrir o que está
sendo pressuposto por uma teoria abstrata em particular do que descobrir o
que está sendo pressuposto por crenças que não são parte de teorias. No
contexto da produção de teorias científicas ou filosóficas, as pessoas são
geralmente sinceras sobre o que estão fazendo, bastante ansiosas para serem
tão claras quanto possível, e não têm a ganhar propondo ou defendendo uma
teoria na qual não acreditam. À vista disso, a possibilidade de engano
raramente interfere no mundo da produção teórica. Obviamente, o obstáculo
da diferença cultural permanece, e talvez possa ser superada apenas
experimentando e apreciando a outra cultura. Mas pelo menos uma das duas
maiores dificuldades em reconhecer pressuposições é reduzida ao mínimo
quando estamos lidando com teorias altamente abstratas.
Essas características das pressuposições são importantes porque a
posição presentemente defendida é que, ao atuar como pressuposições, que
crenças sobre a divindade exercem sua influência mais importante sobre a
teorização científica e filosófica. Esse ponto distingue nitidamente a posição
que estou defendendo de todas as outras posições que lidam com a relação
das crenças sobre a divindade com a produção teórica. A visão radicalmente
bíblica não busca nem encontrar afirmações nas Escrituras sobre todo o tipo
de temática que possa ser incluída em teorias, nem restringir a influência da
crença em Deus às raras ocasiões nas quais a verdade revelada é contradita
por uma hipótese. O que queremos dizer é que a influência mais pervasiva e
poderosa de uma crença na divindade é a forma pela qual ela atua como uma
pressuposição que orienta como concebemos a(s) natureza(s) daquilo que
uma teoria proponha.
Porém, antes de passarmos para a explicação de como essa orientação
funciona, é necessário ser mais preciso sobre o que é exatamente uma
pressuposição. Como esse conceito pode ser definido?[90]
Um ponto que deve ser enfatizado é: uma pressuposição é uma crença.
É por essa razão que, estritamente falando, não são crenças ou as sentenças
que as expressam que pressupõem; são pessoas que pressupõem. São pessoas
que podem pressupor a verdade de uma crença quando sustentam outra
crença distinta. Assim, uma pressuposição é uma crença-em-relação à outra
crença;[91] é uma crença que qualquer pessoa teria de possuir para aceitar
outra crença em relação à qual é a pressuposição. Portanto, dizer que uma
afirmação tem uma pressuposição é uma forma abreviada (mas enganosa) de
dizer que qualquer pessoa que sustenta a crença expressa em uma afirmação
também teria de aceitar sua(s) pressuposição(ões). Por exemplo, suponha que
alguém bata em minha porta e pergunte se o João está em casa. Eu respondo:
“O João retornará em meia hora”. Minha resposta pressupôs a crença de que
“João não está aqui agora”. Note que minha resposta não diz explicitamente
que João não está em casa, nem pode esse fato ser logicamente deduzido
disso. Mas ela o pressupõe. Se eu falasse essa sentença sabendo a todo
instante que João estava em casa, eu seria justamente acusado de fraude.
Esse entendimento de pressuposição foi rejeitado por alguns críticos
que contestam que, quando aplicado a sentenças, ele não distingue
adequadamente entre o que uma sentença pressupõe e o que é logicamente
deduzível a partir dela. Por exemplo, eles dizem que embora pareça claro que
“João retornará em meia hora” pressupõe “João não está aqui agora”, não está
claro, todavia, se isso pode ser considerado como se pressupusesse que “João
existe”. Obviamente isso parece pressupor “João existe”, mas o problema é
que “João existe” também pode ser logicamente deduzido de “João retornará
em meia hora” (dependendo exatamente do modo que formulamos isso
logicamente). E, certamente, eles dizem, há algo peculiar pelo fato de a
mesma sentença tanto pressupor quanto implicar logicamente a mesma
crença. O que é peculiar nisso é que, a fim de pressupor algo, devemos
acreditar de antemão naquilo, ao passo que aprendemos o que aquilo
logicamente implica apenas após extrairmos uma inferência a partir disso.
Assim, o problema é: como se pode crer de antemão que “João existe” ao
mesmo tempo que “João existe” é também uma consequência de “João não
está aqui agora”?
Em minha opinião esse não é em absoluto um problema, e o erro da
crítica está em ignorar o ponto levantado anteriormente sobre serem pessoas,
e não sentenças, que realizam o ato de pressupor. O mesmo ponto aplica-se
igualmente ao ato de concluir a partir de consequências lógicas. Sentenças
não produzem consequências lógicas por si próprias; pessoas necessitam
inferir essas consequências. E aí está o caminho para contornar essa suposta
dificuldade. Pois na linguagem normal ― a menos que estejamos falando
com nós mesmos ― existem pelo menos dois tipos de pessoas envolvidas: o
articulador e o ouvinte. E não há nada estranho no fato de que quem fala
“João retornará em meia hora” pode pressupor “João existe” ao mesmo
tempo em que o ouvinte aprende esse fato por meio de uma inferência lógica.
Visto que duas pessoas distintas estão envolvidas, não há qualquer paradoxo
envolvido. Não somos forçados à conclusão absurda de que a informação já
conhecida pelo falante também é subsequentemente adquirida pela inferência
retirada a partir do que ele mesmo disse. Uma vez que o falante já conhecia a
informação, ele simplesmente não a inferiu. Por outro lado, um ouvinte que
não sabia se João existia poderia aprender esse fato ao inferir isso de “João
retornará em meia hora”.
Resumindo, descobrimos que uma pressuposição tem as seguintes
características:
Primeiro: é uma crença que se encontra em certa relação a outra
crença. A relação é que a pressuposição é um requerimento informacional
para manter a outra crença. Isso significa que ninguém poderia manter
coerentemente uma crença negando suas pressuposições, mesmo que a crença
não seja inferida logicamente a partir de suas pressuposições (Se fosse uma
inferência lógica, então, caso João não retornasse em meia hora, teria de ser
falso que ele não está aqui agora.)
Segundo: uma pressuposição não precisa ser consciente para exercer
sua influência sobre outras crenças daquele que a possui. Como
consequência, pessoas podem professar ignorância ― ou mesmo negar ―
uma pressuposição particular, apesar do fato de que algumas de suas demais
crenças demonstram que ou a presumem inconscientemente, ou são culpáveis
de incoerência autoconjectural.
Terceiro: em questões do dia a dia, crenças e sentenças que as
expressam podem ter tantas pressuposições distintas que em geral é difícil
dizer o que alguém está pressupondo. Como já notamos, essa dificuldade
agrava-se especialmente quando uma ampla diversidade cultural está
envolvida, ou quando é possível que alguém deliberadamente tente enganar a
outros sobre o que ele ou ela esteja pressupondo. Quando, no entanto, o logro
não é um fator, as pessoas frequentemente podem ter sucesso em discernir o
que os outros estão pressupondo ao imaginarem-se em condições similares. E
a possibilidade de engano é consideravelmente reduzida no contexto da
produção teórica.
Complementando essas características resumidas, também quero
pontuar que algumas crenças que agem como pressuposições não têm, por
sua vez, premissas ou pressuposições próprias porque são adquiridas pela
experiência direta. Exemplos de tais crenças incluem (pelo menos) aquelas
produzidas pela percepção sensorial normal, pela memória, pela introspecção,
e intuições racionais de autoevidência. Denominarei essas crenças
“pressuposições básicas”. E em consonância com a posição de que as crenças
sobre a divindade per se estão entre nossas intuições de autoevidência,
assumirei a posição em tudo o que se segue de que crenças sobre a divindade
estão entre nossas pressuposições básicas.
Essa posição está, portanto, em nítido contraste às outras visões sobre
a relação geral entre crenças religiosas e teorias. A primeira dessas visões
excluiu qualquer relação entre elas. As outras focaram-se ou na
compatibilidade lógica de certas crenças religiosas e teorias específicas, ou na
inclusão de ensinamento bíblico no conteúdo ou confirmação das teorias.
Mas embora não negando que a verdade revelada pode, por vezes, agir como
“crenças reguladoras” para teorias dessas formas, essa posição nega que essas
são os únicos ou os mais importantes modos pelos quais as crenças sobre a
divindade impactam teorias.[92] Certamente, as ocasiões nas quais verdades
reveladas específicas de fato contradizem ou apresentam conteúdo para
teorias são mais fáceis de detectar do que as formas em que as crenças
religiosas agem como pressuposições para elas. Mas esse fato não é, como
disse anteriormente, razão para supor que tais ocasiões oferecem o modelo
geral sobre como a crença religiosa e as teorias relacionam-se. Isso se dá
especialmente quando reconhecemos que o tipo de interação que elas
constituem é apenas fragmentário, relativamente raro e severamente limitado
em escopo. Assim, fica aquém de ser uma descrição adequada da afirmação
bíblica de que ter o Deus correto impacta todo o conhecimento e a verdade.
Os próximos três capítulos têm como intenção ilustrar em algum
detalhe como o controle regulatório por pressuposições religiosas funcionam
para teorias em matemática, física e psicologia. Eles ainda não apresentarão o
argumento sobre a razão pela qual esse controle é inevitável para as teorias,
mas almejam apenas tornar mais claro o tipo de controle do qual se está
falando. (Como disse anteriormente, o argumento em relação ao porquê de tal
controle ser inevitável terá de esperar até o capítulo 10). Um dos pontos mais
importantes a serem notados sobre essas amostras de teorias é como elas
demonstram que crenças sobre a divindade, quando agem como
pressuposições, não vinculam exatamente qual tipo de hipóteses específicas
um pensador deveria manter. Crenças sobre a divindade sub-determinam
teorias nesse tocante; ao invés de exigir hipóteses específicas, a crença de que
um ou outro aspecto do mundo é divino é uma atribuição de prioridade que
delimita um espectro de hipóteses que parecerão plausíveis a qualquer que
tenha aquela crença sobre a divindade. Ao mesmo tempo, elas também
excluem espectros de hipóteses possíveis, espectros que podem parecer
plausíveis aos teóricos que advogam crenças sobre a divindade contrárias.
Nesses capítulos empregarei o termo “reducionista”, comumente
aceito, para referir-me a visões panorâmicas da natureza da realidade
baseadas em atribuições de prioridade. Dir-se-á que a amostra de teorias
“reduzem” os aspectos restantes àquele(s) que receberam prioridade e, dessa
forma, receberam o status de divindade. Elas demonstrarão, assim, como
qualquer crença pagã sobre a divindade exige que a totalidade da natureza da
realidade seja reduzida a seu(s) aspecto(s) favorecido(s), exigindo também
que a natureza dos postulados de uma teoria seja do mesmo modo reduzido
àquele(s) aspecto(s) favorecido(s). Dessa forma, seja a hipótese um quark,
um processo evolutivo, ou o que quer que seja, existem tantas interpretações
possíveis sobre a natureza daquilo que a teoria postula quanto forem as da
natureza da realidade como um todo. Resumindo, a amostra de teorias que
segue deveria ser vista como ilustrações de como a natureza daquilo uma
teoria propõe é concebida diferente e relativamente àquilo que é pressuposto
como o divino per se. Isso, então, pavimentará o caminho para o contraste
subsequente de uma perspectiva bíblica singular para as teorias, uma
perspectiva na qual as naturezas do que uma teoria propõe são todas
concebidas de uma maneira sistematicamente não reducionista. Eis o que é
exigido (conforme argumentarei) , para teorias adotadas ou inventadas sobre
a pressuposição de que apenas Deus é o divino per se, e que o status divino
não deve ser concedido a qualquer aspecto da criação.
PARTE III
ESTUDOS DE CASOS
CAPÍTULO 6. TEORIAS EM MATÉMATICA
6.1 Introdução
É uma ideia antiga na cultura ocidental de que a matemática seja o contra-
exemplo primário à reivindicação central deste livro. Afinal de contas,
continua a objeção, não seria 1 + 1 = 2 para todos, independentemente de sua
crença religiosa? Não seria, portanto, uma crença neutra e universalmente
aceita no sentido exato que você está negando? Este capítulo será dedicado a
responder a essa objeção.
Deixe-me começar dizendo que em um nível simples, de senso comum,
essa objeção tem uma plausibilidade ― mas em última instância enganosa ―
prima facie. Quase todos tiveram a experiência de descobrir a aritmética
simples como óbvia. À luz do que foi dito sobre abstração, isso dar-se-ia
porque as coisas que experimentamos demonstram quantidade; há um
“quanto” em relação a elas. Essas propriedades quantitativas podem ser
abstraídas, permitindo-lhes ser representadas por numerais, e relações entre
elas podem ser notadas, simbolizadas e formuladas. Desse modo, muitas
verdades e técnicas matemáticas podem ser descobertas sem a necessidade de
se formular quaisquer teorias. E nesse nível existe, de fato, concordância.
No entanto, existem questões sobre os conceitos envolvidos em 1 + 1 =
2 que não podem ser respondidas simplesmente abstraindo e simbolizando
quantidades e notando as leis mais óbvias que se mantêm entre elas. Essas
questões se relacionam com temas que são cruciais ao entendimento sobre o
que essa fórmula significa precisamente. Uma vez que essas questões são
explicitadas e respostas são dadas a elas, estas podem ser reconhecidas como
constituindo hipóteses entitárias e/ou perspectivais. Uma das mais famosas
dentre essas questões é o que, exatamente, os símbolos da fórmula
representam? Em outras palavras, o que é um número? Tão logo esse tema é
levantado, encontramos aqui discordâncias sérias entre matemáticos em
relação a como respondê-la. Suas discordâncias são forçadas à luz porque
essa questão requer um exame mais extenso do conceito de número que cada
pensador sustenta. Nesse sentido, as concordâncias e diferenças em relação
ao conceito de número são similares às concordâncias e diferenças que
notamos quando o conceito do saleiro foi discutido no capítulo 4. Assim
como no caso do saleiro, existem sobreposições entre as várias concepções de
número, de forma que 1 + 1 = 2 pode ser óbvio e objeto de concordância.
Mas, assim como com o saleiro, uma vez que um interesse emerge
ocasionando uma análise mais detalhada do conceito de número, verifica-se
ao examinar seu conteúdo mais extensivamente que diferentes pensadores
mantêm diferentes noções sobre sua natureza. Assim como no caso do
saleiro, os conceitos mais amplos de número revelam que as pessoas incluem
neles relações das propriedades quantitativas com propriedades de outros
tipos. Essas relações, quando afirmadas e defendidas, constituem uma visão
sobre a natureza do número. Tais visões podem simplesmente ser assumidas
inconscientemente, é claro, em cujo caso elas não seriam teorias. Mas se elas
são tornadas conscientes e defendidas, então seriam, de fato, teorias sobre a
natureza da matemática que refletem uma visão geral sobre a natureza da
realidade e, dessa forma, da divindade. (Se elas são apenas admitidas, segue-
se que o controle que elas exercem permanece uma fé não examinada que é,
ao mesmo tempo, religiosa em seu caráter.) E a verdade é que tais diferenças
nos conceitos de número são tão grandes que os maiores personagens na
história da matemática tiveram ideias radicalmente conflitivas sobre o que a
matemática é, como ela deve ser feita, e sobre o que se pode confiar que ela
fará! Na verdade, essas discordâncias estão entre as mais amplas e agudas na
produção teórica ocidental.
Vamos então considerar a questão: o que os símbolos 1 + 1 = 2
representam? Podemos observar diretamente, é claro, que uma coisa e outra
coisa geralmente fazem duas coisas. Isso em si mesmo não é uma teoria,
assim como não o é aquilo 1 + 1 = 2 significa. Essa fórmula expressa uma
verdade sobre quantidades abstratas, não sobre objetos da experiência pré-
teórica. Se a fórmula fosse sobre objetos ordinários, então ela não seria
sempre verdadeira. Como Whitehead observou certa vez, uma faísca é uma
coisa e uma pilha de pólvora é outra, mas juntas elas fazem uma explosão que
é bem distinta das duas coisas. E então ele complementa imediatamente: “o
bom senso lhe diz no mesmo instante o que isso significa”.[93] O que
Whitehead chamou de bom senso é o reconhecimento de que o que quer que
os símbolos 1 + 1 = 2 representem, eles não são simplesmente objetos da
experiência pré-teórica, mas números abstratos, e é isso que nossa pergunta
está buscando explicar. Assim, a distinção entre números abstratos e objetos
ordinários aos quais nós aplicamos os números é um ponto importante.
Quando pequenas crianças aprendem aritmética, elas geralmente supõem que
os numerais representam coisas e eventos de sua experiência do dia a dia. É
fácil para eles assumirem essa impressão, porque os problemas oferecidos
nos livros textos da educação elementar geralmente os incentiva à prática da
aritmética por meio de cálculos sobre fardos de feno, ou pares de sapatos, ou
maçãs, e assim por diante. Mas logo se torna evidente que, embora os
numerais possam ser aplicados aos objetos da experiência ordinária, aqueles
objetos não são o que os numerais representam em si mesmos. Se os
numerais representassem coisas, seria impossível subtrair 8 de 5. Mas,
embora não possamos tirar 8 coisas de uma pilha que contém apenas 5,
podemos subtrair 8 de 5 e chegarmos a -3.
Isso nos trás novamente à questão colocada. Se os símbolos não
representam os objetos que experimentamos, o que eles representam? Tanto
matemáticos quanto filósofos propuseram teorias bastante distintas para
responder a essa questão.
Claramente, isso é uma hipótese entitária. Ela propõe que existe um domínio
infinitamente amplo de entidades matemáticas em adição aos objetos
mutáveis, observáveis, de nossa experiência do dia a dia. Essas entidades
incluem todos os números naturais, todas as frações, os decimais, todas as
figuras geométricas perfeitas, raízes, etc. Todas essas são entidades distintas
de, e independentes do, mundo da experiência ordinária. No entanto, as leis
presentes entre essas entidades também governam o mundo mutável do dia a
dia, assim como garantem as verdades expressas por fórmulas matemáticas
sobre os números. É assim, portanto, que Pitágoras, Platão e Leibniz
respondem à questão relacionada ao que os numerais e outros símbolos
matemáticos representam.
Com a mesma clareza, no entanto, essa hipótese entitária pressupõe,
por sua vez, uma hipótese perspectival. A hipótese perspectival diz respeito a
como o aspecto quantitativo das coisas que experimentamos se relaciona com
todos os outros aspectos. Isto porque, para que a teoria do mundo dos
números seja verdade, teria de ser o caso que o aspecto quantitativo das
cosias se relaciona a outros tipos de propriedades e leis verdadeiras para
essas, sendo, em última instância, independente de todas elas. Assim, o
aspecto quantitativo é (pelo menos em parte) aquilo do qual as coisas e seus
outros tipos de propriedades dependem para a existência. Nessa teoria, então,
as coisas que experienciamos, juntamente com seus demais aspectos, são
tornados possíveis (ou possível e atual) pelas entidades e leis do mundo dos
números.[95]
Estritamente falando, a partir do ponto de vista de nossa experiência
direta, anterior à produção de teorias, o aspecto quantitativo é apenas um
dentre uma multiplicidade de aspectos que as coisas revelam. Mas Platão,
Leibniz e outros adotaram a perspectiva de que esse não é meramente uma
das contas do colar, mas o (ou pelo menos parte do) próprio cordão. Ele é
fundamental em relação aos outros aspectos. Assim, esses pensadores não
têm problema em crer que a matemática não lida meramente com as
propriedades e leis quantitativas das coisas que experienciamos, mas é a
reflexão, em nossa experiência e pensamento, de um domínio de entidades
não observáveis, independentes e imutáveis sobre as quais todas as coisas
observáveis e mutáveis dependem.
Em outras palavras, dizer que algo é verdade é dizer nada mais do que algo
funciona. E Dewey diz isso de forma bastante literal. Note que ele não diz
que se algo funciona isto é um teste para sabermos se algo é verdadeiro, mas,
pelo contrário, ele diz que isso é o que se quer dizer por verdadeiro.
Dewey reconhece, de fato, que a matemática é uma ferramenta
altamente refinada e enormemente útil, e que ela supera muitas outras
ferramentas conceituais em precisão e utilidade. Mas ele argumenta que ela
alcançou esse estágio de desenvolvimento por meio de uma longa história de
tentativa e erro, a qual grande parte dos matemáticos no momento ignora. Ele
diz que, visto que pareça agora tão segura e certa, a matemática recebe o
status dado a ela por Platão e Leibniz: um corpo de verdades autônomas
independente do resto da realidade. Mas isso, diz Dewey, é um erro:
Uma ciência dedutiva tal como a matemática representa o
aperfeiçoamento do método. Que um método para aqueles interessados
devesse se apresentar como uma descrição de fim em si mesmo não é
mais surpreendente do que a necessidade de haver uma firma diferente
para produzir cada tipo de ferramenta.[101]
E, novamente,
A matemática é geralmente citada como um exemplo do pensamento
puramente normativo dependente de [regras absolutas] e materiais [de
outro mundo]... Os lógicos matemáticos atuais podem apresentar o
caráter estrito da matemática como se ela tivesse surgido do cérebro de
um Zeus cuja anatomia fosse aquela da pura lógica. Mas [a matemática
tem] uma história na qual a matéria e os métodos foram constantemente
selecionados e trabalhados sobre a base do sucesso e da falha
[experimental].[102]
Outra forma pela qual o termo “físico” pode ser mal entendido é
quando ele ocorre na expressão “objetos físicos”. Isso não deveria ser
entendido como se o objeto designado fosse apenas físico. Pois enquanto
existem teorias que propõem que existam objetos puramente físicos, nunca
experienciamos as coisas dessa forma. Assim, na linguagem cotidiana a
expressão nunca significa isso. Por exemplo, ao mesmo tempo em que uma
árvore é certamente física, experienciamo-la como possuindo propriedades de
muitos outros tipos aspectuais, e como estando sujeita a muitos outros tipos
de leis além do que apenas físicas. Cada árvore demonstra qualidades e
demonstra conformidade às leis que experienciamos como a quantitativa,
espacial, biológica, sensorial, lógica, estética, e assim por diante. Assim
como em outros objetos experienciados pré-cientificamente, experienciamos
uma árvore como sendo uma coisa multiaspectual. É verdade, obviamente,
que trabalhar nas ciências físicas exige que o aspecto físico das coisas seja
abstraído e focalizado, permitindo que os demais aspectos (não físicos) das
coisas saiam do centro da atenção. Mas esse fato sobre o procedimento
científico não significa que algo tenha apenas aquele aspecto. Do ponto de
vista da descrição de nossa experiência imediata, é simplesmente falso que
existam coisas experienciadas como somente físicas, assim como é falso
supor que são coisas puramente físicas que são abordadas pela física. Em vez
disso, a física, assim como as outras ciências, se inicia com os objetos multi-
aspectuais de nossa experiência ordinária e abstrai um aspecto específico
deles como seu campo especial de investigação. Em suma, a física não diz
respeito a um conjunto de coisas puramente físicas, mas ao aspecto físico de
todas as coisas.
Demorei-me nesse ponto porque, conforme mencionado anteriormente,
muitos pensadores proeminentes acatam a visão de que a física lidaria, na
verdade, com objetos exclusivamente físicos. Na medida em que revisamos
suas opiniões, portanto, é necessário ter em mente que considerar o domínio
da física dessa forma é, em si, o resultado de uma visão perspectival sobre a
natureza da realidade, uma visão que necessita ser defendida por eles com a
finalidade de a justificarem.
Apresentados esses esclarecimentos, observaremos agora algumas
importantes teorias da física para vermos se as discordâncias entre elas
realmente emergem porque os físicos pressupõem distintas visões sobre a
natureza essencial da realidade, que, por sua vez, pressupõem distintas
crenças sobre a divindade. Para assegurarmo-nos de que isso é assim mesmo,
precisamos apenas examinar a teoria mais amplamente aceita em toda a
física, a teoria atômica. Grosso modo, a teoria atômica sustenta que os
objetos de nossa experiência do dia a dia são compostos de partes (átomos e
partículas subatômicas) tão pequenas que não podem ser diretamente
observadas. Mas aqui, também, cabe uma observação: por favor tenha em
mente que a regulação religiosa de uma teoria não significa que inventá-la
depende da adoção de uma crença religiosa particular. Não estou sugerindo
que alguém teria de ser um materialista, ou um racionalista, ou o que quer
que seja para que pensar na hipótese de que “existem átomos”. Antes, afirmei
que a regulação religiosa consiste dos modos em que as crenças sobre a
divindade controlam como a natureza dos postulados da teoria são
interpretados. O mesmo ocorre com a teoria atômica. Temos de saber a quais
tipos de coisas estamos nos referindo; temos de especificar a natureza dos
átomos, etc., para que saibamos como eles supostamente explicam aquelas
características do mundo em razão do que eles foram inventados para
explicar. Mas o fato é que físicos discordam sobre a natureza essencial dos
átomos e partículas, e, assim, eles também diferem quanto a como eles
explicam os dados que supostamente explicam. Para ilustrar tais diferenças
precisamos considerar apenas as três interpretações mais recentes da teoria
atômica, aquelas que dominaram o século XX.
Podemos esperar que a lei fundamental do movimento acabe por ser uma
lei matematicamente simples... É difícil oferecer qualquer bom
argumento a favor dessa esperança na simplicidade — exceto o fato de
que, até o momento, tem sido sempre possível escrever as equações
fundamentais na física como formas matemáticas simples. Esse fato se
encaixa na religião pitagórica e muitos físicos compartilham de sua
crença nesse sentido, mas não se ofereceu ainda nenhum argumento a
fim de demonstrar que isso deva ser assim.[137] (itálicos adicionados)
8.1 Introdução
Como na matemática e na física, as discordâncias entre teorias na psicologia
são profundas. Nessa área, também, as diferenças relativas à ideia mesma
dessa ciência resultam de diferentes visões panorâmicas sobre a natureza da
realidade. Já vimos como, em geral, isso ocorre, a saber, diferentes ideias
sobre a natureza básica da realidade afetam a forma como se concebe um
aspecto particular da experiência em sua relação com todos os demais
aspectos. A visão resultante de sua conectividade aos outros é, assim,
comunicada a cada conceito utilizado pelo pensador que o investiga,
especialmente os conceitos inventados e propostos como hipóteses. E vimos
como as visões panorâmicas da realidade são reguladas por aquilo que é
declarado ou pressuposto como divino. Esses mesmos pontos se aplicam
também à psicologia.
A psicologia surgiu como uma ciência distinta no século XIX com o
trabalho de pensadores como Wundt e Von Helmholtz, e foi Von Helmholtz
quem primeiro circunscreveu o campo da psicologia ao trabalho com o
“psíquico-sensorial”. Outros, como C. I. Lewis, utilizaram o termo
“sensível”. Mas é claro o suficiente que aquilo no qual eles estavam se
concentrando é aquele aspecto da experiência que inclui as qualidades
psíquicas, ou de sentimento, tais como os sentimentos de amor, ira,
ansiedade, aversão, medo, etc. Incluía também as propriedades dos sentidos
visual, táctil, gustativo, olfativo e auditivo: por exemplo, o vermelho, o
macio, o irritante e o ruidoso. E isso inclui as leis que relacionam essas
qualidades, tais como as leis de associação entre os sentimentos, ou a lei em
que o ser vermelho exclui o ser azul. Continuarei a me referir a esse aspecto
como o “sensorial”, de forma abreviada.
Antes de examinar os modelos de teorias que ilustrarão minha
afirmação sobre o controle religioso das teorias na psicologia, deixe-me
advertir que as visões da realidade que comumente as teorias na psicologia
adotam não são tão claramente especificadas por seus defensores como
aquelas que examinamos anteriormente nos domínios da matemática e da
física. Na matemática, por exemplo, perspectivas conflituosas são geralmente
refletidas nas próprias designações das teorias: formalista, logicista,
intuicionista, empirista, etc. Na psicologia, em contrapartida, os nomes das
maiores teorias não correspondem à realidade das perspectivas que as
regulam, e as definições mais amplamente aceitas desta ciência são por
demais ambíguas para indicar precisamente como o aspecto da experiência
que forma seu domínio é compreendido em relação aos outros aspectos. As
duas definições mais influentes da psicologia ao longo (especialmente dos
dois primeiros terços) do século XX foram: (1) a psicologia é o estudo da
mente humana, e (2) a psicologia é o estudo do comportamento humano. A
diferença entre essas duas definições representam uma séria discordância
sobre a temática própria da psicologia. A primeira (mais antiga) definição
assume a consciência humana como o foco de investigação; a segunda
concentra sua atenção no comportamento corporal. Mas enquanto a definição
mais recente rejeitou a primeira por sua suposta imprecisão e ambiguidade, a
ironia é que ambas são afligidas pelo mesmo tipo de confusão.
Para percebermos por que nenhuma dessas duas definições pode
delimitar de forma apropriada o campo da psicologia, precisamos remontar à
nossa discussão anterior sobre como as ciências são distinguidas. Ali
observamos que as ciências suegiram para investigar aspectos singulares
abstraídos dos dados a serem explicados, ou para teorizar através de dois ou
mais aspectos abstraídos, de modo a relacioná-los nas explicações que então
propõem. Mas as definições de psicologia mencionadas acima deixam sua
delimitação aspectual inteiramente no escuro.
A definição mais antiga não oferece auxílio dizendo que essa ciência
lida com a mente humana, uma vez que não diz qual aspecto da vida mental
está sendo examinado e explicado. A vida mental inclui atos do pensamento,
crenças, sentimentos, desejo e volição, dos quais qualquer um pode ser sobre
matemática, arte, ética, política ou economia. Não apenas podem tais atos
mentais tratar sobre qualquer aspecto da experiência, mas — da perspectiva
de nossa experiência pré-teórica — eles também possuem esses próprios
aspectos; eles podem ser contados, belos, amáveis, traiçoeiros, ou possuir
valor econômico, por exemplo. E, é claro, eles também têm propriedades
espacial, física, biótica, sensorial, lógica, etc. Assim, a menos que saibamos
qual(is) aspecto(s) dos atos ou objetos da consciência formam o domínio de
uma teoria, seremos deixados numa confusão sistemática resultante dessa
circunscrição insuficiente da ciência que está em operação.
Contudo, o mesmo tipo de ambiguidade também se aplica à designação
“a ciência do comportamento humano”, uma vez que precisamos saber qual
aspecto do comportamento humano está sendo estudado e explicado. O
comportamento humano, da mesma forma, apresentam todos os aspectos que
se tornaram campos de estudo para todo o espectro das ciências. Um ato de
dança, por exemplo, pode ser esteticamente belo, economicamente
recompensador, fisicamente extenuante, biologicamente saudável, e
sensorialmente esgotante. Ele pode ao mesmo tempo celebrar um festival
religioso, exigir muito espaço e exibir características típicas de uma cultura
ou período particular da história. Obviamente, nenhuma ciência pode
reivindicar a explicação de todos esses aspectos relacionados a esse
comportamento. A psicologia deve ter seu próprio “lar”, i.e., um aspecto para
servir como ponto de entrada para sua forma particular de estudo do
comportamento humano.
Curiosamente, alguns psicólogos recentes notaram essas dificuldades
relacionadas às definições aceitas, mas as dispensaram como irrelevantes!
Isaacson, Hurt e Blum, por exemplo, admitem que:
Muitos ramos das ciências que não a psicologia tentam explicar o
comportamento formulando hipóteses e testando-as; e muitos dos
interesses evidenciados pelos psicólogos em suas teorias são exatamente
como aqueles dos cientistas em outras áreas.[139] (ênfase acrescida)
Tudo isso pode ser descrito de forma justa como uma tentativa de elaborar a
“lei do efeito” de Thorndike, a qual, para Skinner, torna-se o ponto focal de
toda a ciência da psicologia. Nessa visão, a obra do psicólogo é predizer ou
controlar um comportamento em particular estabelecendo a probabilidade de
sua recorrência em relação a seus reforços. Ele denomina essas relações de
“contingências de reforço”:
Uma formulação adequada da interação entre organismo e ambiente
deve sempre especificar três coisas: 1) a ocasião sobre a qual a resposta
ocorre; 2) a própria resposta, e 3) as consequências do reforço. Os inter-
relacionamentos entre eles são contingências do reforço.[148]
À vista disso, quando um homem corteja uma mulher, ele o faz de uma forma
psicologicamente normal, caso possamos ver, por meio do que faz, que ele
está dizendo “sim” ao futuro da humanidade.[170] Nesse, como em outros
casos, são as “regras imanentes do jogo de um grupo... [que são] a verdade
absoluta” para o indivíduo.[171]
A ênfase de Adler de ajustar o indivíduo às necessidades do grupo
social levou-o a adquirir um grande interesse pelas teorias sociais de Marx e
Engels. Na verdade, ele admirava tanto suas obras que uma vez disse que
“Karl Marx demonstrou o caminho em direção à realização final do interesse
social”.[172] Entretanto, Adler rejeitou o determinismo histórico da teoria de
Marx. Ele corretamente concluiu que se tudo é predeterminado pelo fluxo da
história, não poderiam haver normas: nenhum certo e errado, anormal ou
normal. “Se os homens fossem completamente determinados pelas
circunstâncias,” ele disse, “não poderíamos falar de erros”.[173] Assim, ele
reverteu a ideia marxista de uma história controlada economicamente, e
manteve ao invés disso que
em cada presente imediato as condições econômicas são refletidas e
respondidas por cada indivíduo e cada grupo de acordo com seu estilo de
vida previamente adquirido.[174]
Outro problema que Adler deixou não solucionado emerge de sua aceitação
das necessidades da sociedade como o padrão para a normalidade
psicológica. Em sua visão, é sempre em relação às necessidades sociais do
grupo que o indivíduo deve se conformar. Isso exclui questionar se a própria
sociedade pode ser anormal. Ao mesmo tempo, isso também resulta no fato
de que ele é forçado a considerar qualquer líder que de fato alcançou
superioridade social como anormal!
Outro bom exemplo do reducionismo na direção social é o pensamento
de Eric Fromm, que assumiu a tarefa de corrigir as falhas no pensamento de
Adler. Em seus primeiros trabalhos, Fromm também se autodenominou um
psicólogo social e, como Adler, rejeitou teorias que consideram os humanos
como determinados pelos aspectos físico/biótico de sua natureza. Ele disse
que, ao passo que Freud enxergava a psicologia como uma “ciência natural
do homem”,[176] a natureza humana verdadeira é aquela das “atividades livres,
conscientes”.[177] Tais atividades conscientes livres não são determinadas
pelas pulsões sexuais “naturais” do sexo e da fome, mas incluem as formas
que as pessoas necessitam e lidam com coisas tais como beleza e amor.[178]
Também como Adler, Fromm tinha uma grande admiração por Marx. Ele
entendia que as classes e os fatores econômicos enfatizados por Marx
determinavam o lado social da vida humana. Esses fatores são transmitidos
ao indivíduo por meio da família, que é o “agente psicológico da sociedade”.
[179]
Uma vez que a própria família é um produto das condições econômicas e
de classe da sociedade, Marx nos apresentou a forma de criticar e julgar o
tipo de sociedade e família que deveríamos ter. Uma psicologia plenamente
social não é, portanto, simplesmente lidar com a adequação do indivíduo à
sociedade, mas é também capaz de dizer se a própria sociedade é o que
deveria ser.[180]
Mas a atitude de Fromm de deslocar a psicologia social em uma
direção mais amplamente marxista o permite evitar um dos dois problemas
que lhe foram legados por Adler. Ela evita o problema de ter de admitir que
não exista padrão pelo qual julgar uma sociedade, permitindo-o dizer que
qualquer tipo de sociedade de algum modo distinto da socialista é deficiente.
Mas isso não evita o problema de que a própria teoria da história e da
sociedade de Marx era tão determinista quanto as teorias que Fromm estava
rejeitando. Para Marx, as interpretações das pessoas sobre justiça ou amor,
assim como suas concepções de normal e anormal, são totalmente
determinadas por seu condicionamento socioeconômico. Como, então,
podemos ser livres para afirmar as normas pelas quais julgamos a sociedade,
se nossas ideias de normas são socialmente determinadas?
Num primeiro momento, Fromm tentou contornar o determinismo de
Marx dizendo que a teoria marxista não deveria ser entendida como se
significasse que cada indivíduo é psicologicamente determinado pela
economia e classe. Assim, não se deveria interpretar Marx como se este
ensinasse que a “pulsão aquisitiva” é o motivo primordial de cada ato do
indivíduo, mas apenas das estruturas sociais nas quais o indivíduo vive.[181]
Mas, tendo feito esse ponto, Fromm se resguarda, pois ele também diz que
“na interação entre as pulsões psíquicas e as condições econômicas, o último
tem a primazia”.[182]
Ele repete que isso não significa que os fatores econômicos são
sempre os mais fortes, mas apenas que eles são “menos modificáveis” pelo
indivíduo. Contudo, ao mesmo tempo, ele insiste novamente em que o papel
dos “fatores formativos primários” vão para as condições econômicas, de
modo que a “tarefa da psicologia social é explicar... atitudes psíquicas e
ideologias — em particular suas raízes inconscientes — em termos da
influência das condições econômicas sobre as tensões libidinais”.[183] Nesse
ponto, Fromm quer que os humanos sejam “essencialmente condicionados
pela história” para propósitos de explicação psicológica, embora
simultaneamente quer que a vida humana tenha um “dinamismo interno
próprio”, de modo que seja livre para descobrir a verdade![184]
Essa variação inconsistente entre dois polos de pensamento é
claramente assumida na obra de Fromm, Man for Himself [O homem por si
mesmo] (1947), mas é mais claramente apresentada em The Art of Living [A
arte de viver] (1956) e The Heart of Man [O coração do homem] (1964). Nas
últimas duas obras Fromm é explícito sobre o dilema. Já em The Sane Society
[A sociedade sã] (1955), ele havia reconhecido que Marx não havia
solucionado esse impasse. Enquanto Marx havia percebido muito do que é
verdadeiro sobre a forma que a sociedade determina o indivíduo, sua visão
não era somente “simplisticamente econômica”[185], mas irrealista. Pois Marx
pensou não apenas que o socialismo fosse necessário para curar a sociedade,
mas que era suficiente para fazê-lo.[186] Em The Heart of Man, Fromm repete
sua crítica em maiores detalhes. Ele censura Marx por pressupor em todos os
momentos que o homem possui uma natureza essencial, enquanto também
diz que o homem se cria no processo da história e não é nada além do que o
“conjunto de suas relações sociais”.
Nesse ponto Fromm afirma que o homem tem, de fato, uma natureza
essencial, mas que essa natureza é “uma contradição inerente na existência
humana”![187] A contradição, obviamente, é precisamente aquela pela qual ele
criticou Marx por não ter solucionado: por um lado o homem é um animal,
natural, e determinado pela natureza e a sociedade; por outro lado, o homem
é consciente (“vida consciente de si”), racional, e “livre no pensamento”.[188]
É por meio de sua racionalidade livre que os humanos são capazes de saber
que a norma tanto para indivíduos quanto para a sociedade é a regra do amor:
ame seu próximo como a si mesmo. Dessa forma, para Fromm, assim como
para Kant antes dele, a liberdade humana repousa na razão (prática) que
conhece a verdade ética. E com Rousseau, ele enxerga o homem como
essencialmente bom em seu eu mais íntimo. São os determinantes externos da
ordem social que o tornam mau.
Isso, no entanto, não é mais do que dizer que ambos os lados da
inconsistência são de algum modo verdadeiros, que um humano é tanto livre
quanto não livre no mesmo sentido e ao mesmo tempo. E repare que mesmo
para além de tal contradição patente, manter o lado de liberdade do dilema
implica que não existe ciência da psicologia como Fromm a concebeu. Pois
se os pensamentos e as escolhas humanas são genuinamente verdadeiros, e se
eles causam as ações humanas, então nem as escolhas nem o comportamento
resultante deles pode ser totalmente explicados em termos de quaisquer leis
— quanto menos ser previsto ou controlado por meio do conhecimento de
leis.
É desnecessário dizer que tentar aceitar crenças mutuamente
contraditórias, em vez de desenvolver uma teoria que as evite, faz surgir
problemas ainda piores do que aqueles que Fromm pensa resolver. Aplicado
aos nossos conceitos, a lei lógica da não contradição ordena isso para
qualquer tipo de conceito. Ou ele inclui uma característica particular, ou não
o faz, e ele não pode simultaneamente incluir e não incluir os mesmos
elementos ao mesmo tempo. Qualquer (suposto) conceito que falhe em
incorporar essa lei não seria meramente vago ou incerto, ele literalmente
careceria de qualquer significado, deixando de ser um conceito. Mesmo
assim, Fromm defende que rejeitemos as leis da lógica e aceitemos sua
afirmação de que tais contradições mútuas seriam ilusórias.
Em The Art of Loving,[189] Fromm tenta desenvolver seu ponto em
maiores detalhes. O pensamento ocidental, diz ele, tem sido dominado pela
aceitação de axiomas lógicos desde que foram claramente formulados por
Aristóteles, o qual complementou que o axioma da não contradição, em
particular, é o “mais certo de todos os princípios”. Como notado acima, essa
lei diz que nada pode ser simultaneamente verdadeiro e não verdadeiro no
mesmo sentido e ao mesmo tempo. Isso significa que nada, por exemplo,
pode ser completamente azul e completamente não azul ao mesmo tempo, e
que nenhum enunciado pode ser simultaneamente completamente verdadeiro
e completamente falso. Contra isso, Fromm afirma que existe a opção da
“lógica paradoxal”, a qual aceita que as coisas podem simultaneamente ter e
não ter a mesma qualidade ao mesmo tempo, e que um enunciado pode ser
simultaneamente verdadeiro e falso. Para apoiar essa afirmação, ele menciona
que isso foi aceito há muito tempo por alguns pensadores chineses e hindus, e
em tempos recentes por Hegel, Marx, e outros filósofos dialéticos. Desse
modo ele conclui que a forma de resolver dilemas aparentemente insolúveis
entre o determinismo e a liberdade é aceitar ambos como verdade. Não
podemos perceber como ambos são verdadeiros, obviamente, mas isso se dá
porque a “mente humana percebe a realidade em contradições”.[190]
O programa da rejeição da lógica para aceitar crenças mutuamente
contraditórias não é, no entanto, somente uma esperança inofensiva e
extravagante de que, de algum modo, crenças lógicas incompatíveis podem
ser ambas verdadeiras. Como foi assinalado acima, isso resulta em nada
menos do que a destruição de cada um e todos os conceitos que podemos
possuir. Mesmo o conceito da rejeição da lei da não contradição depende de
se assumir e utilizar essa lei, uma vez que sem ela o conceito de rejeitá-la não
poderia ser pensado ou afirmado. E uma vez que o próprio Fromm entende
que o conceito da rejeição da lei exclui o conceito de sua aceitação, ele
termina por assumir a verdade da lei! Assim, a proposta de Fromm é
autoconjecturalmente incoerente.
Essa consequência temerária também não foi evitada por Hegel, Marx,
ou qualquer dos outros pensadores dialéticos que Fromm cita na esperança de
nos convencer de que está em boa companhia. Cada um e todos eles utilizam
a lei da não contradição para formar seus conceitos, defender suas teses, e
criticar visões rivais. Eles então negam a lei mesma que que lhes possibilita
fazer essas coisas, a fim de justificar uma inconsistência em sua própria
teoria. A única forma por meio da qual eles executam o truque que torna tal
ação possível é empregarem sua negação da lógica seletivamente; eles
abraçam apenas as contradições que eles desejam escusar, enquanto
raciocinam de modo consistente e criticam teorias concorrentes quando elas
são inconsistentes. Se eles fossem empregar sua negação da não contradição
em todos os pontos ao longo de sua teoria, o resultado seria um amontoado
absurdo que falharia em expressar, afirmar, ou negar qualquer crença que
seja.
A posição de Fromm também é um exemplo dessa mesma seletividade
dogmática. Ele apresenta sua visão como se houvesse razões para rejeitar a
lei da não contradição, e então argumenta que sua visão do divino (ele o
denomina “realidade última”) segue logicamente dessa rejeição. Ele ignora o
fato de que para realizar qualquer inferência lógica — para perceber que uma
crença “segue logicamente de” outra — significa que a crença acerca da qual
se diz que “segue” é exigida sob pena de se contradizer. Havendo negado
todas as bases para qualquer inferência, Fromm prossegue para inferir que a
própria realidade deve ser uma unidade mística toda-abrangente que
harmoniza todas as contradições que o pensamento lógico assume como real.
Ele então infere complementarmente que uma vez que o pensamento humano
não pode deixar de ser contraditório, a realidade última não pode ser
conhecida pelo pensamento. Ele oferece um resumo das expressões hindu,
budista e taoísta dessa mesma visão, e novamente infere que aceitar sua visão
do divino exige rejeitar a ideia bíblica de Deus como o Criador cognoscível,
individual e pessoal. Ele então oferece ainda outra inferência lógica quando
insiste que:
A oposição é uma categoria da mente do homem, não sendo ela mesma
um elemento da realidade... na medida em que Deus representa a
realidade última, e na medida em que a mente humana percebe a
realidade em contradições, nenhuma afirmação positiva pode ser feita
acerca de Deus.[191]
Uma vez que o tema da natureza humana é um tema que identificamos dentre
as verdades reveladas que podem orientar a teorização (capítulo 6, nota 11),
deveríamos de momento observar brevemente aquilo que as Escrituras dizem
sobre esse tópico. Obviamente, não podemos esperar uma teoria detalhada da
natureza humana a partir das Escrituras, mas o que elas de fato nos dizem
pode auxiliar a formar uma perspectiva distintivamente bíblica para nossa
produção teórica. Além disso, isso servirá um propósito duplo, na medida em
que é um ponto geralmente ignorado ou subestimado por pensadores teístas
assim como amplamente desconhecido por parte de não teístas.
O ensinamento bíblico central sobre a natureza humana que é relevante
para o momento é que ela é centralizada no eu humano, o qual as Escrituras
denominam “coração” (embora ela também utilize ocasionalmente os termos
“espírito” ou “alma”). Cada humano é visto como uma unidade essencial, não
importam quantos tipos diversos de funções um indivíduo possa revelar nos
vários aspectos da criação. O termo “coração” não é, portanto, utilizado para
significar meramente emoção. Assim, embora falemos geralmente de sermos
guiados por nossa cabeça (intelecto) como o oposto de sermos guiados pelo
coração (sentimentos), os escritores bíblicos falam do coração como a
identidade central do eu de uma pessoa a partir da qual fluem as fontes da
vida (Prov. 4:23). Na visão bíblica o coração é, portanto, o centro do
pensamento, da crença, do conhecimento, da vontade e do sentimento, e a
sede das disposições, talentos e temperamento inato de uma pessoa. Ele é
também a fonte e raiz do bem e do mal que uma pessoa pensa ou faz (Ex.
28.3; Sl. 90.12; Mt. 12.34, 35 e 15.18; 2 Co. 3.14, 15). Ligado a isso é
significativo que as Escrituras afirmem que apenas Deus conhece o coração
humano (1 Sm. 16.7; 2 Cr. 6.30; l Rs 8.39; Jr. 17:9, 10), uma vez que é isso
que esperaríamos caso o coração fosse o polo subjetivo último de toda
atividade humana. Pois nesse caso ele não poderia tornar-se um objeto para si
mesmo, e seríamos incapazes de analisá-lo e conceituá-lo, já que ele próprio
deve ser o agente da análise. Isso não significa que não tenhamos ideia (em
vez de um conceito) do coração humano. Mas significa que as várias ideias
sobre sua natureza são sempre reflexões indiretas daquilo que uma pessoa crê
como divino.
Esse, então, é o significado mais profundo do ensinamento bíblico de
que os humanos são criados “na imagem de Deus”. Isto é, isso é verdadeiro
não apenas sobre como os seres humanos são, mas também sobre a única
maneira que eles podem chegar a entender a si mesmos. Em outras palavras,
aqueles que não creem nem modelam sua ideia de natureza humana baseados
no Criador bíblico inevitavelmente derivarão sua ideia de natureza humana da
própria natureza de qualquer falsa divindade que coloquem no lugar de Deus.
[196]
9.1 Introdução
Vimos acima exemplos substanciais de como algumas das teorias mais
importantes desenvolvidas em três ciências diferem entre si devido ao modo
que são reguladas por ideias conflitantes sobre a natureza básica da realidade.
E vimos como essas ideias sobre a natureza da realidade são, por sua vez,
governadas por ideias contrárias quanto ao que é o divino per se. Conforme
mencionado anteriormente, no entanto, esses exemplos são oferecidos para
esclarecer o sentido da afirmação de que teorias são reguladas religiosamente,
e não para demonstrar sua verdade. Até o momento, nenhum argumento foi
apresentado a fim de demonstrar por que tal controle religioso é inevitável.
Assim, a primeira tarefa desse capítulo será fazer exatamente isso,
apresentando razões pelas quais o controle religioso que observamos nos
capítulos dos estudos de caso é inevitável para qualquer teoria científica ou
filosófica. Se essas razões tiverem êxito, elas terão demonstrado por que
teorias da ciência e da filosofia jamais podem ser neutras em relação a uma
ou outra crença sobre a divindade, confirmando, pois, que o pensamento
teórico não é autônomo. Ao mesmo tempo, elas também terão demonstrado
por que é o tipo indireto de controle religioso que observamos nos estudos de
caso que merecem ser entendidos como o núcleo da declaração bíblica de que
a crença em Deus impacta todo o conhecimento e toda a verdade.[203]
A segunda tarefa desse capítulo será, então, re-examinar os argumentos
oferecidos durante a primeira tarefa, a fim de observar como eles também
oferecem uma crítica filosófica das teorias de redução. A crítica apoiará ainda
mais minha afirmação de que cristãos e outros teístas deveriam abandonar a
estratégia de tentar adaptar teorias de redução acrescentando a elas a
condição de que Deus teria criado cada aspecto em relação ao qual o restante
da criação supostamente se reduz. Já notamos que essa condição não altera o
fato de que são as reivindicações de redução que governam o poder
explanatório da teoria, de modo que a crença em Deus falha em regular seu
conteúdo. A crítica da redução, no entretanto, irá além dessa objeção, no
entanto, para demonstrar por que a própria ideia de redução como uma
estratégia para explicação é infrutífera.
A tarefa final deste capítulo será fechar com um exame daquilo que
considero como a principal razão pela qual grande parte dos teístas
permanecem comprometidos com a adaptação de teorias de redução. Esse
exame será o equivalente a uma crítica religiosa da redução oferecida para
suplementar a crítica filosófica. Já vimos por que a estratégia da redução,
tomada de forma pura, assume um compromisso subjacente com uma ou
outra crença pagã sobre a divindade. É por essa razão que teístas sempre se
sentem obrigados a neutralizar essa suposição para tornar tais teorias
compatíveis com a crença em Deus. A crítica religiosa a ser oferecida
demonstrará, no entanto, por que a própria estratégia utilizada para
neutralizar o caráter pagão da redução possui suposições pagãs, e desse modo
falha ao batizar (ou circuncidar) teorias de redução para a aceitabilidade
teísta.
O efeito cumulativo dessas duas críticas será o de pavimentar o
caminho para um programa de teorização que é deliberadamente regulado
pela crença em Deus ― um programa que exige que as teorias existentes
sejam re-interpretadas, ou novas teorias sejam desenvolvidas, de um modo
completamente não reducionista. Assim, o capítulo 11 terá início com uma
descrição de uma teoria da realidade teísta, sistematicamente não
reducionista, aquela desenvolvida por Dooyeweerd.[204] Essa teoria será
pormenorizada posteriormente no capítulo 12 quando a utilizarmos para
desenvolver o perfil de uma sociologia distintivamente não reducionista. E
ela será desenvolvida ainda mais amplamente no capítulo 13 aplicando, tanto
ela própria quanto suas consequências para a sociologia, ao esboço de uma
teoria política distintivamente não reducionista. Uma vez que essas
aplicações adicionais da teoria também utilizarão alguns ensinamentos do
Novo Testamento, as teorias sociológica e política esboçadas serão não
somente teístas em seu contorno, mas especificamente cristãs.[205]
9.2 Por que as teorias são inevitavelmente reguladas por alguma crença
sobre a divindade?
Comecemos revendo alguns pontos já estabelecidos.
Os aspectos, vimos acima, são tipos básicos de propriedades e leis, e o
que estou para dizer sobre eles se aplica igualmente a qualquer listagem deles
que um pensador aceite, não apenas a lista com a qual estou trabalhando
provisoriamente.[206] Meus exemplos irão, no entanto, ser inferidos daquela
lista porque a maioria de seus elementos são amplamente aceitos. Você pode
também recordar que as teorias da realidade têm tradicionalmente tomado um
ou dois aspectos como a natureza básica da realidade. Elas têm feito isso ou
propondo que seu aspecto favorito é o único genuíno (a versão forte da
redução), ou que seus aspectos favoritos geram todos os demais (a versão
fraca da redução). Diz-se que ambas as propostas “reduzem” o mundo dado
na experiência pré-teórica a qualquer (ou quaisquer) aspecto(s) favorecido(s)
como a natureza básica da realidade. A versão forte é reducionista porque ela
poda da realidade (como a experimentamos de maneira pré-teórica) todos os
tipos de propriedades e leis além daquela favorecida. A versão fraca é
reducionista no sentido de que ela rebaixa o status de todos os outros aspectos
ao torná-los produtos e, portanto, menos reais, do que o(s) aspecto(s) que
favorece. Finalmente, vimos que ambos os tipos de redução conferem o status
de divindade sobre qual (ou quais) for(em) o(s) aspecto(s) que eles
favorecem, uma vez que qualquer aspecto tomado como sendo a natureza
básica da realidade é, por meio disso, também tratado como
incondicionalmente não dependente.[207]
O que, portanto, conduziu os teóricos a proporem teorias
reducionistas? Por que tantos teóricos se sentiram compelidos a especular
sobre a natureza básica da realidade? Por que teorias não poderiam
simplesmente ignorar esse tema e construir explicações no interior dos
próprios aspectos? Invocando novamente a metáfora já utilizada: por que as
teorias não se contentam em examinar as contas do colar e simplesmente
ignoram seu cordão? A melhor forma de responder a essa questão, eu penso,
é colocar outra primeiro. Ou seja, precisamos elaborar a questão que as
teorias de redução se oferecem por responder. A questão é essa: o que torna
possível (e atual) que as propriedades de diferentes tipos aspectuais sejam
conectadas da forma na qual as encontramos em nossa experiência, ou
postulamos em nossas teorias? Cada um dos tipos, afinal de contas,
demonstra uma diferença qualitativa implacável em relação a todos os demais
tipos. No entanto, as propriedades de diferentes tipos combinam-se nos
objetos que experimentamos de tal modo que aqueles objetos nos são
apresentados como unidades, não uniões; cada um é um indivíduo com sua
própria identidade. Do mesmo modo, nas teorias a questão da conectividade
interaspectual emerge. Pois as teorias propõem conceitos que combinam
propriedades de diferentes tipos, e especificam como elas se relacionam. A
questão, dessa forma, diz respeito ao que torna possível a forte conectividade
entre os tipos. É por essa razão que as hipóteses sobre a natureza básica da
realidade (o cordão para as contas do colar) figuravam entre as primeiras a
serem propostas quando a produção teórica sistemática primeiro surgiu (na
medida em que sabemos que isso se deu na Grécia antiga). Dessa forma, se as
teorias devessem verdadeiramente evitar tais visões panorâmicas da
realidade, e assim evitar a atribuição de divindade a algo, elas teriam de
evitar o tema da conectividade interaspectual. O que está em jogo, portanto, é
se esse tema é ou não evitável. Minha resposta é que ele não é, e oferecerei o
argumento para essa afirmação em estágios distintos a fim de torná-lo tão
claro quanto possível.
O primeiro estágio do argumento a favor da inevitabilidade da
inclusão da conectividade interaspectual se dá por meio da inferência da
atividade de abstração necessária para a construção de qualquer teoria.
Relembre o que já foi pontuado sobre a abstração no capítulo 4. Notamos que
isso significava destacar e extrair de um contexto mais amplo algum escopo
mais limitado com a finalidade de focalizar nossa atenção. Notamos, também,
que um alto grau de abstração é exigido para teorias da ciência e da filosofia,
um grau que isola não apenas propriedades individuais, mas tipos inteiros
delas, em relação aos objetos que as apresentam. É dessa maneira que as
várias ciências foram primeiramente diferenciadas, a saber, abstraindo-se
diferentes tipos de propriedades e leis como seus campos de investigação.
Desse modo, na medida em que a alta abstração é inevitável para a formação
de teorias, a questão sobre como os distintos aspectos se conectam se torna
também inevitável. Pois uma vez que os abstraímos dos objetos e os
diferenciamos nitidamente uns dos outros, somos então forçados a dizer
como eles se relacionam para explicar o que estamos tentando explicar. De
forma contrária, o pensamento pré-teórico nunca levanta a questão sobre
como os tipos-de-leis-e-propriedade relacionam-se, uma vez que ele nunca os
abstrai das coisas que os apresentam, nem os distingue uns dos outros de
forma claramente definida, tornando sua conectividade um problema.
Um vez que esse primeiro estágio do argumento aponta para a forma
que o tema da conectividade interaspectual surge pela atividade da abstração
e da diferenciação, também é importante relembrar que a descrição da
abstração oferecida anteriormente não era, ela mesma, uma teoria. Não era
uma hipótese sobre como a abstração funciona, mas uma descrição sobre o
que ocorre na abstração — uma descrição que você pode confirmar em suas
próprias autorreflexões.[208] Assim, o argumento desse ponto não se baseia em
algum conjunto de premissas privilegiadas que todos devam aceitar sob a
pena de serem considerados sub-racionais. E nem depende de qualquer
suposição em relação à natureza do eu cognoscente humano. Ele meramente
descreve a atividade da abstração e questiona se você pode reflexivamente se
observar durante o ato de fazer aquilo que descreve. Além do mais, essa
descrição não necessita ser completa, mas apenas verdadeira no que diz
respeito às suas afirmações.
O segundo estágio do argumento lida com uma diferença entre o grau
em relação ao qual podemos ser bem sucedidos ao abstrair aspectos das
coisas que os apresentam, em comparação com o que ocorre quando tentamos
abstraí-los uns dos outros. Nossa declaração acerca disso é que, embora
possamos, de fato, isolar os aspectos dos objetos da experiência pré-teórica,
jamais podemos isolá-los completamente uns dos outros. (É por essa razão
que no parágrafo anterior eu falei sobre “diferenciar nitidamente” os
aspectos, e não isolá-los abstrativamente.) A conectividade entre os aspectos
é tão intensa que não é possível pensarmos em qualquer um deles por si só. É
isso que nos impede de construir uma teoria estritamente localizada dentro
dos limites de qualquer um deles. Qualquer tentativa da fazê-lo termina com
a necessidade de relacionar as propriedades do aspecto sob investigação às
propriedades dos outros aspectos. Assim, uma teoria sempre será confrontada
com a questão relacionada ao tipo de conectividade relaciona seu aspecto a
todos os outros. Uma teoria pode ou não abordar e responder a essa questão,
mas se ela não o faz, ela ainda assume tacitamente que a conectividade
satisfaz alguma descrição, sendo, dessa forma, de um tipo específico.
Esse estágio do argumento é semelhante ao primeiro estágio pelo fato
de também não ser uma hipótese. Ele parte da premissa de que, na
experiência, são-nos apresentadas coisas, eventos, estados de coisas, relações,
pessoas, etc., e que esses objetos da experiência apresentam tipos
qualitativamente distintos de propriedades, todas as quais demonstram
relações ordenadas. Mas claramente essas suposições não são hipóteses; não
é uma suposição que experimentemos coisas-com-propriedades-ordenadas! E
se for questionado que também assumimos que as coisas-com-aspectos são
reais, nossa resposta é dupla. Primeiro: elas são dadas em nossa experiência
como reais, assim a crença em sua realidade também não é uma hipótese; a
negação de sua realidade seria uma hipótese. Segundo: não precisamos
assumir sequer sua realidade para que esse argumento seja bem-sucedido vis-
à-vis o ponto em questão. Ele é bem-sucedido somente se assumirmos que
eles são dados à nossa experiência. (Ocorrerá, no entanto, que ao assumir
somente esse sua disponibilidade, o argumento também pode demonstrar por
que qualquer tentativa de negar de forma indiscriminada a experiência pré-
teórica, i.e., negar que existam coisas-com-aspectos, conduzirá
necessariamente à incoerência.)
Da mesma forma, como no primeiro estágio do argumento, esse estágio
também renuncia antecipadamente qualquer afirmação de haver inserido um
conjunto de premissas supostamente privilegiadas, de forma que nenhuma
pessoa racional poderia negá-lo. Uma vez que esse estágio do argumento não
é uma dedução, ele não possui qualquer premissa. E nem é uma inferência
indutiva, de modo que sua conclusão não é meramente provável. Pelo
contrário, o argumento assume a forma de um experimento mental que você
pode confirmar em sua própria autorreflexão. Isso significa, no entanto, que
para captar plenamente a força do argumento, você deve de fato executar o
experimento!
O experimento é tentar pensar qualquer aspecto totalmente isolado de
todos os outros da maneira que disse acima ser impossível.[209] Isto é, você
deve tentar estruturar a ideia de qualquer aspecto de tal modo que refute
minha afirmação de que isso não pode ser feito. Se você pode fazê-lo, meu
argumento cairá instantaneamente. Se você não pode, você terá visto por si
próprio por que a questão da conectividade interaspectual não pode ser
evitada. Então vamos tentar.
Comecemos no nível mais geral, o nível dos aspectos inteiros. E vamos
tomar como nosso primeiro exemplo o aspecto físico ― o tipo físico de
propriedades e leis. O experimento é ver se você pode estruturar qualquer
ideia daquele aspecto em completo isolamento de todos os aspectos não
físicos. Assim, comece despojando de sua ideia de “físico” todas as conexões
com os aspectos quantitativo, espacial, sensorial, lógico e linguístico. Você
tem alguma coisa restando? Eu não. Uma vez que todos os outros aspectos
são subtraídos do físico, eu descubro que o “físico” não tem qualquer
significado. Além disso, descubro que o mesmo resultado se dá não importa
em relação a qual aspecto esse experimento é executado. Tente com o
sensorial, por exemplo. O que é deixado de sua ideia daquele aspecto uma
vez que todas as conexões com os aspectos quantitativo, espacial, físico,
lógico e linguístico tenham sido descartados? Propriedades e leis lógicas
também reproduzem o mesmo resultado. Por exemplo, o axioma fundamental
daquele aspecto, a lei da não contradição, diz que “nada pode ser tanto
verdadeiro quanto falso no mesmo sentido ao mesmo tempo”. Ele, assim, faz
referência tanto a outros “sentidos” quanto ao tempo, sendo inevitavelmente
conectado a propriedades não lógicas. Assim, a lei não pode ser pensada ou
enunciada à parte daquela conectividade.
Talvez colocando o argumento no nível de aspectos inteiros seja
excessivamente abstrato para alguns leitores. Então vamos tentar
experimentar novamente, dessa vez no nível de propriedades específicas.
Tentemos isso com a propriedade do peso em seu sentido físico (não do peso
como uma sensação sensorial, mas como a atração gravitacional de uma coisa
por outra). Agora, execute o mesmo experimento: despoje de sua ideia dessa
propriedade qualquer conexão com propriedades tais como ser quantificável,
ser espacialmente localizável, ser móvel, ser logicamente idêntica a si mesmo
e ser capaz de ser referida em uma linguagem. Resta algo? Ou tome como
exemplo a qualidade sensorial vermelha, tentando a mesma coisa. Você pode
estruturar uma ideia de vermelho que não possui quantidade, não tem
localização ou forma, não tem relação com as propriedades físicas da luz, e
não é logicamente distinguível de outras cores? Ou tente com a propriedade
lógica de uma coisa ser idêntica a si mesma (a propriedade de uma coisa ser
indistinguível de si mesma, no sentido de que a lei da não contradição é
violada ao negá-la.) Eu penso que você descobrirá que uma coisa puramente
lógica é tão literalmente impensável quanto uma puramente física, ou
puramente sensorial; para ser verdade, algo teria de possuir alguma
combinação ordenada de propriedades não lógicas, as quais, tomadas
conjuntamente, distinguem e, desse modo, identifiquem essa coisa. Por favor,
note que esse ponto de nenhuma forma nega que as leis da lógica sejam reais,
ou que elas realmente se apliquem tanto para as coisas que experimentamos
quanto para nosso pensamento. Ele apenas nega que possamos concebê-las
em isolamento de propriedades e leis não lógicas.
Se os resultados desse experimento são os mesmos para você como o
são para mim, então você terá percebido por si mesmo por que abstrair tipos
de propriedades e leis torna a explicação de sua conectividade um problema
filosófico verdadeiramente inevitável. Conforme disse, uma teoria pode
permanecer tácita em relação a esse tema e simplesmente pressupor que todos
os tipos se conectam, mas ela não será capaz de fazê-lo sem também assumir
que a conectividade tem alguma natureza particular, que é de certo tipo. Já
vimos como inúmeras teorias diferem exatamente nesse tema, e notamos que
suas descrições conflitivas sobre a natureza da conectividade interaspectual
são as mesmas que suas teorias conflitivas sobre a natureza básica da
realidade. Pois se os aspectos são impensáveis à parte de sua conectividade,
então, até onde sabemos, eles dependem dessa conectividade para sua
existência. Desse modo, a não ser que se admita que a conectividade
dependa, por sua vez, de algo mais, atribui-se a ela [a conectividade] o status
de divindade per se. É por essa razão que as teorias não são capazes de evitar
a inclusão ou a pressuposição de uma ou outra crença religiosa.
Caso este último ponto ter sido explicado de forma demasiadamente
rápida, elaborá-lo-ei de outro modo.
Aquilo que torna possível e real a conectividade entre tipos
qualitativamente distintos de propriedades e leis é aquilo do qual tudo o mais
depende para sua existência, uma vez que — até onde somos capazes pensar
neles — eles não podem existir à parte uns dos outros. É por essa razão que
teorias têm sido forçadas a oferecer explicações sobre a natureza de sua
conectividade. Uma teoria reducionista fraca tenta resolver o problema
tornando seu(s) aspecto(s) favorecido(s) a razão necessária e suficiente para a
existência dos aspectos restantes. Nesse caso, a explicação que ela oferece em
relação ao modo que estão conectados é que eles são gerados pelo(s)
aspecto(s) que a teoria favorece para esse papel. Uma teoria reducionista
forte, por outro lado, tenta dissolver o problema ao invés de resolvê-lo. Ela
afirma que não existem aspectos genuínos além daquele que ela favorece
como a natureza da realidade. Mas, mesmo para o reducionismo forte, o
assunto da conectividade interaspectual ainda surge de forma inevitável. Pois
seus proponentes têm de admitir que o mundo, como é dado à nossa
experiência, parece revelar propriedades de tipos qualitativamente distintos.
Se assim não fosse, teóricos não poderiam sequer formar ideias alternativas
sobre a natureza da realidade — ideias que o reducionismo forte admite
existir, mas que busca qualificar como falsas. Assim, em vez de evitar o tema
como um todo, o reducionista forte simplesmente administra a questão da
conectividade interaspectual de um modo diferente, a saber, interpretando-a
como uma relação entre realidade e ilusão. Por exemplo, uma versão de
materialismo forte declara que todas as coisas e propriedades aparentemente
não físicas são o produto daquilo que rejeitam como “psicologia-popular”.
Mas ela tem de admitir que pessoas recebem, de início, suas ideias de
propriedades a partir de sua experiência pré-teórica. Se os materialistas
simplesmente negassem que uma pessoa sequer experimenta o que parecem
ser propriedades não físicas, sua teoria seria imediatamente considerada tão
implausível ao ponto de não ser levada a sério.
Resumindo: é a questão da conectividade interaspectual que não pode
ser evitada, e que força as teorias a assumirem ou especificarem a natureza
dessa conectividade. Essa questão é inevitável porque é de igual modo
impossível pensar isoladamente os diferentes tipos aspectuais; tornamo-nos
explicitamente conscientes deles apenas ao abstraí-los dos objetos da
experiência pré-teórica e ao diferenciá-los em contraposição uns com os
outros. É esse fato intratável que faz vir à tona o tema relacionado à natureza
de sua conectividade, e responder a essa questão é o mesmo que propor (ou
assumir) alguma ideia sobre a natureza básica da realidade. Pois aquilo que se
propõe como a natureza dessa conectividade também é, por conseguinte, a
natureza da realidade não dependente da qual tudo o mais depende; isso
identifica o tipo de cordão que une as contas do colar ao produzi-las. E é por
isso que as teorias reducionistas da realidade não podem evitar conferir o
status de divindade àquilo que eles concebem como sendo esse cordão. Pois o
que uma teoria assume como sendo aquilo de que tudo o mais depende torna-
se, com isso, totalmente não dependente e portanto divino per se.[210]
(68) 7 + 5 = 12
por exemplo. (68) é equivalente a
(69) Deus acredita em (68);
e
(70) Necessariamente 7 + 5 = 12
é equivalente a
(71) É parte da natureza de Deus acreditar que 7 + 5 = 12.
É importante notar que, ao fazer essa proposta, Plantinga não sugere haver
demonstrado que suas questões finais podem, de fato, ser respondidas
afirmativamente. Embora elas sejam elaboradas de forma sutil e rigorosa, sua
sugestão final não é, portanto, mais do que uma esperança. Assim, se existem
boas razões para supor que suas questões não possam ser respondidas
afirmativamente, seremos então deixados com uma poderosa razão para
abandonar a visão AAA de Deus e a examinar a visão C/R para vermos se ela
pode ser defendida das objeções levantadas contra ela. Existem duas razões
pelas quais penso que as questões de Plantinga devam ser respondidas
negativamente, dada sua visão de que os atributos de Deus não são idênticos
a Deus, embora possuam existência necessária.
A primeira é esta: nem todas as verdades necessárias podem ser
verdadeiras porque Deus as afirma, nem podem elas todas ser explicadas por
(ou fundadas em) Deus conhecê-las ou afirmá-las. Isso ocorre porque, na
visão AAA de Deus, grande parte dos atributos de Deus são aqueles que
Deus teria de possuir a fim conhecer ou afirmar algo. Por exemplo, Deus
teria de ser consciente para conhecer ou afirmar algo. Nesse caso, o atributo
necessário de consciência perfeita não poderia depender de Deus afirmá-lo ou
conhecê-lo [o atributo], uma vez que Deus teria de possuir consciência para
conhecer ou afirmar que ele a possui. Pela mesma razão, o conhecimento ou
afirmação da consciência por parte de Deus não pode ser o fundamento para
sua existência nem a explicação da verdade de que ela exista. Assim, não há
esperança plausível de que essa perfeição particular possa, em certo sentido,
depender de Deus. Pelo contrário, já que Deus deve possuí-la para ser Deus.
A asseidade de Deus é, portanto, negada; a consciência perfeita tem o status
da divindade per se, mas Deus não o tem.
A consciência não é o único atributo que não poderia depender, em
qualquer sentido, de sua afirmação por parte de Deus. A propriedade da
autoidentidade lógica teria de ser de igual modo verdadeira em relação a
Deus para que ele tivesse (ou fosse) uma mente consciente pessoal. Para que
a noção de uma mente consciente tenha algum sentido, tal entidade teria de
ser idêntica a si mesma. Portanto, a existência necessária também dessa
propriedade não pode ser considerada como dependente do, ou explicada por,
ou ainda fundada no fato de Deus conhecê-la ou afirmá-la, pelo mesmo
motivo que a consciência de Deus não pode: isso já teria de ser verdadeiro
acerca de Deus para que Deus a conheça ou a afirme. E visto que o ser Deus
logicamente idêntico a si mesmo dependeria, por sua vez, das leis da lógica,
estas também não dependeriam de Deus em qualquer sentido. Como no caso
da consciência perfeita, as leis da lógica, então, seriam divinas per se, ao
passo que Deus não o seria. O mesmo ocorre para a singularidade numérica
de Deus. Se é essencialmente verdadeiro a respeito de Deus que exista apenas
um ser como tal, então Deus não poderia existir a menos que o número 1
existisse. Assim, se o conhecimento e a afirmação de Deus de que o número
1 existe necessariamente depende da existência de Deus, e se é essencial a
Deus que Ele seja numericamente o único ser divino per se, então o número 1
não depende da afirmação de Deus, assim como não depende de nossa
afirmação. O que ocorre, em vez disso, é que Deus também termina por ser
dependente da existência de números e leis matemáticas, os quais são,
portanto, divinos per se ao mesmo tempo em que ele não o é.
Existem outras propriedades em relação às quais esse ponto igualmente
se aplica, mas é desnecessário prosseguir apresentando-as. Pois se existir
sequer uma propriedade abstrata que (na visão AAA) teria de existir
independentemente de Deus e a qual Deus teria de possuir para ser Deus,
então não apenas essa propriedade é considerada divina per se, mas Deus é
desse modo excluído de tal status. É exatamente isso que Aquino temia e
tentou evitar; e é precisamente isso que Plantinga também tentou evitar. Mas
infelizmente, nenhuma das propostas teve sucesso em fazê-lo.[230]
Mas suponha que exista uma forma de produzir outra proposta
semelhante à de Plantinga que funcione; suponha que a aparente
incompatibilidade entre insistir que os atributos de Deus existam
necessariamente e a asseidade de Deus possa ser superada. A visão AAA
seria, então livre de qualquer crítica? Eu penso que não. Pois existe ainda
outra dificuldade com essa visão que é verdadeiramente intransponível. É a
seguinte: de acordo com a posição AAA, os atributos de Deus (e.g. bondade,
justiça, ou poder) existem de modo tão necessário e incriado como ele o é, e
são compartilhados (em um grau menor) pelos humanos. A dificuldade com
essa visão é de que os humanos tornam-se (parcialmente) divinos em razão
do fato de que as qualidades que os humanos compartilham com Deus teriam
de ser tão incriadas3 em nós como elas são em Deus.[231]
Não será de grande valia neste momento replicar que as qualidades que
os humanos possuem são apenas semelhantes às que Deus possui, uma vez
que os humanos possuiriam graus imperfeitos delas, enquanto Deus possui o
grau infinito delas. Mesmo se verdadeiro, isso não auxiliará aqui, pois para
que duas coisas sejam semelhantes deve haver algum sentido no qual são
semelhantes, e independente do que seja esse sentido, ele deve ser
univocamente verdadeiro para ambos. Assim, por exemplo, se Deus é
(perfeitamente) bom e os humanos são (imperfeitamente) bons, possuir a
qualidade da bondade deve ser o sentido no qual eles são o mesmo. Teria de
ser a mesma qualidade de bondade que se possui em um grau distinto para
que o termo “bom” tenha qualquer sentido analógico quando utilizado para
humanos e para Deus. Assim, Deus e os humanos possuiriam ambos uma
propriedade incriada3. E o mesmo seria verdadeiro acerca de todas as outras
propriedades que os humanos compartilham com Deus.
Mas a consequência de se exigir que humanos sejam mesmo
parcialmente divinos é certamente incompatível com a doutrina bíblica da
criação. Na verdade, o pecado original é descrito em Gênesis como o desejo
de os seres humanos tornarem-se divinos! A posição AAA, pois, equivale a
dizer que características incriadas3 de Deus têm sido comunicadas às
criaturas, que não são portanto meras criaturas no que diz respeito à sua posse
dessas propriedades. Que a posição AAA diz isso não é apenas minha
acusação, mas é admitida pelo próprio Tomás de Aquino. Ele diz: “‘Deus é
bom’... significa que o que denominamos bondade nas criaturas existe em
Deus de uma forma mais elevada. Assim, Deus não é bom (meramente)
porque ele causa a bondade, mas porque a bondade flui dele porque ele é
bom” (ST 1a q. l3, a. 2). E novamente: “Deus é conhecido a partir das
perfeições que fluem dele e são encontradas nas criaturas que, contudo,
existem nele de uma forma transcendente” (ST 1a q. 13, a. 3). Obviamente,
isso ainda faria com que os humanos fossem criados123 por Deus em outros
sentidos. Sua existência, assim como suas qualidades espacial, física, biótica
e sensorial, por exemplo, ainda teriam sido criadas123 por Deus. Mas os
humanos não seriam totalmente criaturas, o que é exatamente o modo como
as Escrituras os descrevem. Minha objeção, assim, é simples porém óbvia: a
visão AAA torna os humanos incriados3 em uma série de importantes
sentidos.
A isso acrescento os dois seguintes pontos. Primeiro, humanos não
seriam as únicas criaturas a possuir qualidades independentemente existentes
(divinas). Segundo, não se pode dizer que as criaturas possuem todas essas
propriedades num grau menos elevado que Deus. Em relação à primeira: uma
vez que Deus é um, por exemplo, a unidade numérica teria de ser uma
propriedade incriada em Deus, e certamente a unidade numérica é encontrada
em criaturas, assim como em Deus. Mas não seria o caso de todas as criaturas
individuais necessariamente possuírem essa propriedade, e de possuí-la no
mesmo grau que Deus? Podem haver graus relacionados a ser um? Se não,
existe algo nas rochas e caramujos que é tão incriado neles como ocorre com
Deus e os seres humanos. Esse mesmo ponto se estende também aos outros
atributos. Alguma criatura pode deixar de ser logicamente autoconsistente, ou
de ser logicamente idêntica a si mesma? Certamente não. Mas, de modo
igualmente certo, as criaturas não podem ter essas propriedades em qualquer
grau menor do que o próprio Deus! Qual sentido há em falar sobre graus de
autoidentidade ou autoconsistência? Se é uma verdade necessária que nada
pode ser verdadeiro e não verdadeiro a respeito de qualquer criatura no
mesmo sentido e ao mesmo tempo, então nenhuma criatura pode se
conformar àquela lei em um grau menor do que Deus o faz. (Os pensamentos
de Deus poderiam ser perfeitamente consistentes, enquanto os nossos não o
são, é claro. Mas meu ponto se relaciona ao ser de Deus, e não ao seu
pensamento.) Assim, uma vez mais a visão AAA não apenas requer que as
criaturas possuam atributos que são divinos, mas requer que as criaturas os
possuam no mesmo grau que o próprio Deus. Isso não apenas viola uma das
premissas da própria visão AAA, mas, como demonstrarei em breve, desvia-
se do ensinamento bíblico de Deus como Criador.
Já vimos o suficiente da visão AAA de Deus para sermos capazes de
reconhecer como e por que ela apoia e encoraja a estratégia de redução para
as teorias: ela o faz precisamente advogando que certos tipos de propriedades
e leis encontradas no cosmos existem necessariamente e são incriadas3, ao
passo que outras não o são. Pois se algumas propriedades e/ou leis do
cosmos são criadas, enquanto outras não, então o que poderia fazer mais
sentido do que teorizar sobre realidades criaturais buscando pelas formas que
suas propriedades e leis contingentes dependem daquelas que são incriadas3?
De fato, como isso poderia ser evitado?
De forma contrária, se os atributos de Deus são desejados por Deus —
se eles constituem sua natureza no sentido de que expressam o caráter no qual
ele escolheu manifestar-se aos humanos — como mantém a visão C/R, então
nenhum dos resultados inaceitáveis discutidos acima decorrem. Os atributos
de Deus de forma alguma comprometem sua asseidade na visão C/R, na
medida em que apenas o ser de Deus é divino per se. Nem o
compartilhamento por Deus de alguns dos seus atributos com os humanos
tornam, por meio disso, os humanos e outras criaturas parcialmente incriados,
uma vez que os atributos são em ambos os casos produtos da vontade de
Deus. Assim, se essa visão alternativa de Deus pode ser demonstrada como
sendo internamente coerente e compatível com as Escrituras, estaremos
justificados em aceitá-la em lugar da visão AAA. E sua aceitação removerá
as razões teológicas que têm motivado os teístas a confrontarem-se com o
caráter pagão das teorias de redução por séculos. A redução — mesmo em
seus sentidos fracos — poderia finalmente ser totalmente abandonada, como
de fato merece sê-lo.
Um último ponto. Uma objeção comumente feita ao que disse acima é
que isso com efeito nega que verdades necessárias sejam realmente
necessárias. Se Deus desejou (criou3) as leis da matemática e da lógica, então
elas não são válidas “não importa o que”, mas são válidas se, e apenas se,
Deus as deseja e sustenta. Isso significa, diz a objeção, que elas não são
verdadeiramente necessárias, caso no qual não temos qualquer base para
raciocinar sobre qualquer coisa. Uma vez que esse resultado não pode ser
correto, deve haver algo seriamente equivocado com a proposta de que
verdades necessárias são desejadas por Deus.
Existe uma série de posições nessa objeção contra Deus haver criado3
as verdades necessárias, e lidarei com apenas uma delas aqui. (Retornarei a
isso posteriormente para tratar outra posição mais complexo acerca disso.) A
posição cm a qual lidarei agora é a declaração de que a menos que essas
verdades sejam elas mesmas não causadas e inevitáveis, elas não expressam
verdadeiramente relações que são necessárias. Minha réplica é que essa
objeção se baseia ou em um sério equívoco dobre o termo “necessário”, ou
em um claro non sequitur. O sentido no qual, digamos, uma lei lógica ou
matemática necessita ser uma verdade necessária para ser confiável ao nosso
raciocínio é que ela afirme uma relação que se mantém infalivelmente, de tal
modo que nada na criação poderia alterar o fato de que ela assim o faz. Ou
seja, é necessariamente o caso de que se um estado de coisas é verdadeiro,
então necessariamente algum outro estado de coisas deve ser (ou não pode
ser) verdadeiro. A necessidade envolvida precisa ser apenas uma
característica da relação mantida por aquilo que a lei governa. Por exemplo,
dizemos que se temos (a quantidade) 1 e se temos outro 1, então não
podemos deixar de ter (a quantidade) 2. Mas isso não é em absoluto o mesmo
que dizer que essa lei em si não poderia deixar de existir! Por que não poderia
a lei ser uma característica necessária do cosmos só porque Deus fez ex nihilo
que houvesse criaturas com propriedades quantitativas governadas por leis
quantitativas? Por que não poderiam as quantidades e as leis que as governam
existirem todas pela vontade de Deus? Como poderia isso sequer arranhar a
certeza ou confiabilidade da matemática? Até onde posso ver, não existe
razão (que não seja uma petição de princípio) para se pensar que se tais leis
se mantêm porque Deus integrou-as na criação, elas seriam algo menos do
que realmente leis! O mero fato de que leis expressam relações genuinamente
necessárias para criaturas não exige por si mesmo que tais leis sejam, elas
mesmas, não causadas e inevitáveis.
É claro que as leis da matemática e da lógica são também leis que
governam nossos processos de pensamento, assim como as coisas em relação
as quais pensamos. Por essa razão, não nos é possível conceber que leis não
se aplicam às coisas, propriedades e estados de coisas que percebemos que
elas governam. Mas nada sobre nossa incapacidade de conceber as coisas
diferentemente é minimamente incompatível com a crença de que Deus
chamou à existência a totalidade do cosmos em todos os seus aspectos, de tal
modo que, sem sua ação nesse sentido, não haveriam entidades, propriedades
ou leis. (Como eu disse, retornaremos a esse tema posteriormente, e
ofereceremos uma resposta mais ampla a essa crítica sob a Objeção 3 à
posição C/R.)
Como, então, deveria a alternativa C/R ser explicada? Em lugar de
procedermos diretamente a uma exposição dos pensadores que a
desenvolveram, quero iniciar, em vez disso, com suas bases bíblicas. Em
seguida relatei como um grande números de seus defensores afirmaram-na, e
finalizarei apresentando respostas a algumas das objeções mais
frequentemente apresentadas contra ela.
B. Pancriacionismo
Minha central objeção à visão AAA corresponde a tomar-se a doutrina
bíblica da criação no sentido mais amplo o possível — o sentido que sustenta
que tudo no cosmos foi criado3 por Deus. Assim, precisamos ver se existe
uma base bíblica para isso, ou se quando as Escrituras dizem que Deus criou
“todas as coisas” isso pode ser tomado de forma plausível como a maneira
que a visão AAA sugere. Ou seja, isso pode apenas significar que Deus criou
entidades concretas, mas não as (assim chamadas) entidades abstratas?
Não há dúvidas de que os escritores bíblicos de fato afirmam a
criadora, por parte de Deus, do mundo da experiência cotidiana. Considera-se
explicitamente que o sol, a lua, as estrelas, juntamente com a terra e as
formas de vida que a habitam foram criados123 e são sustentados por Deus.
Ademais, esses escritores ensinam que esse ato de criar não foi, em primeiro
lugar, simplesmente dar forma a algum material pré-existente que já estava
presente; antes, foi trazer à existência a partir do nada, e não uma mera
decoração interior cósmica. Mas o que dizer da expressão “todas as coisas”?
Será verdade que é, no máximo, uma expressão grosseira, bastante imprecisa
para ter valia em relação aos temas diante de nós? Ela é utilizada pelos
escritores bíblicos apenas para referir-se aos tais objetos concretos da
percepção cotidiana como são especificamente mencionados em Gênesis? Se
sim, a tradição teológica prevalecente poderia estar certa quando ela diz que
certas características do cosmos criado podem ser incriadas3. E, nesse caso, a
doutrina bíblica da criação será de fato muito vaga para oferecer uma base de
objeção à visão AAA de Deus. Por outro lado, se a doutrina da criação é
afirmada nas Escrituras em termos mais fortes — se ela, por exemplo, se
equivale a dizer que Deus trouxe à existência tudo além de si mesmo, de
modo que não exista nada incriado em relação ao que ele trouxe à existência
–, então a predominante doutrina AAA dos atributos de Deus de fato carece
de uma séria revisão. Além disso, tal revisão, tomada conjuntamente com o
que vimos previamente ser ensinado pelas Escrituras sobre a não neutralidade
de todo o conhecimento e verdade, exigiria o abandono da redução como
estratégia para as teorias.
Antes de examinar os textos relevantes, permita-me dizer de uma vez
que eu concordo que as Escrituras sejam escritas em linguagem comum e não
reflitam conceitos técnicos da ciência ou da filosofia. Portanto, concordo que
não podemos esperar antecipadamente que elas abordarão a existência de
entidades abstratas. Mas não há razão para supor que apenas a linguagem
técnica abstrata poderia expressar a afirmação de que tudo em relação ao
cosmos tem sido chamado à existência por Deus, e de que não existam
exceções. (De fato, minha última sentença fez exatamente isso!) Dessa forma,
é pelo menos possível que as Escrituras possam ensinar precisamente esse
ponto de vista, ainda que desprovida de linguagem técnica. O argumento de
que as Escrituras estão em linguagem ordinária não é, portanto, decisivo.
Nem o é o argumento de que não podemos esperar, de antemão, que ela dirá
coisas relevantes relacionadas ao status das realidades descobertas pela
abstração. Não deveríamos adotar resoluções antecipadamente sobre o que as
Escrituras podem ou não pode dizer sobre qualquer coisa! (Certamente, é
uma surpresa para muitos teístas que elas afirmam que todo o conhecimento e
verdade são impactados pelo conhecimento de Deus, por exemplo.) O que é
necessário não são palpites antecipados sobre o que esperar que as Escrituras
afirmam, mas um exame cuidadoso daquilo que elas de fato dizem. Em
particular, precisamos de um exame sobre como ela utiliza a expressão “todas
as coisas”, incluindo o que esses usos podem pressupõem, ao compará-los
uns com os outros.
Outra tentativa equivocada de tentar resolver essa questão de antemão é
o argumento simplista de que, uma vez que é dito que Deus criou todas as
coisas, o significado dessa expressão por si demonstraria que se refere apenas
a objetos concretos. Mas isso não funcionará, porque a palavra “coisas” não
pode carregar tal peso interpretativo. Ela não pode simplesmente implicar que
o ato criativo de Deus não se estende a entidades abstratas pela simples razão
que a palavra “coisas” não ocorre nas expressões hebraicas ou gregas
traduzidas para o português como “todas as coisas”. Em cada uma das
linguagens bíblicas existe apenas uma palavra significando simplesmente
“todas”. Os próprios termos, portanto, são indefinidos em relação à questão
perante nós, de modo que sua extensão pode ser resolvida apenas
examinando seu uso; somente seus significados léxicos não serão suficientes.
Para começar nosso exame de “todas as coisas”, podemos notar que em
inúmeros lugares as Escrituras hebraicas falam de Deus como o soberano
sobre as leis (fronteiras ou limites) que governam o mundo (conferir Sl.
119.89-91 com Sl. 148.6). Elas são parte de “todas as coisas” ditas como
sendo suas servas. Elas também são mencionadas como a ordem (ou
ordenanças) da criação que são o meio pelo qual Deus governa a criação (Jr.
31.35, 36; 33.25; Jó 38.33). Além disso, a confiabilidade permanente da
ordem do mundo — a ordem a que nos referimos como leis — é considerada
nesses textos, e em Gênesis 8: 22, como dependente de Deus. Na visão
bíblica, portanto, Deus não é confiável porque algumas leis encontradas na
criação podem ser utilizadas para demonstrar que ele o é, mas o contrário:
pode-se confiar nas leis da criação somente porque Deus promete mantê-las
em operação. Visto que a ordem do cosmos é, desse modo, incluída
especificamente entre as criações de Deus , já está claro que a expressão
“todas as coisas” não se refere somente a objetos concretos. Ainda assim,
outras assertivas, como Isaías 45.7, também apoiam este último ponto. Ali se
diz que Deus criou o curso da história, inclusive se haveria paz ou desastre.
Assim, uma vez mais, as “coisas” que dependem de Deus não são apenas
objetos concretos.
O Novo Testamento estende a referência a “todas as coisas” ainda
mais longe. É dito que Deus é o criador de todos os tipos de princípio e poder
(Ef. 1.10-22; 3.9-10), do espaço (Rm. 8.38-39) e, sim, mesmo do tempo (2
Tm. 1.9; Tt 1:2; Jd 25; Ap. 10.5-7).[232] E existem declarações ainda mais
vigorosas que essas. Em Colossenses 1.15-16 é dito que Deus criou todas as
coisas “nos céus e na terra, visíveis e invisíveis”. Ora, uma vez que tudo —
incluindo qualquer entidade abstrata — é ou visível ou invisível, o
significado literal dessa passagem logicamente implica que nada na criação é
incriado.[233] Essa declaração também não está sozinha ao exigir que a
expressão “todas as coisas” se estenda para tudo que não o próprio Deus. Em
Romanos 1.18-25 Paulo fala da falsa religião como a transformação da
verdade sobre Deus em mentira, de maneira que as pessoas “adoram e servem
algo criado em lugar do criador”. Aqui a distinção criador-criatura é expressa
como sendo total; todas as coisas ou são o próprio Deus ou algo criado3 por
Deus.
Por fim, considere 1 Coríntios 15.24-28 em comparação com
Colossenses 1. 17. Nesta última passagem diz-se que Cristo (em sua natureza
divina) é aquele de quem “todas as coisas” dependem, enquanto a primeira
diz que, no reino final de Deus, Cristo governará sobre “todas as coisas”,
exceto sobre o próprio Deus. Parece bastante natural entender “todas as
coisas” como tendo a mesma extensão em cada caso: Cristo governa o que
depende dele. Mas se isso está correto, então nós temos o ensinamento
explícito de que nada na criação2 é ou incriado3 ou não governado por Cristo,
com exceção do próprio Deus. Portanto, estabelece-se que a extensão de
“todas as coisas” é tudo que não Deus, visível ou invisível!
Sem dúvidas o defensor da visão AAA ainda achará isso inconvincente.
Uma vez que as únicas entidades abstratas mencionadas especificamente
nesses textos são leis, espaço e tempo, elas não incluem especificamente os
próprios atributos de Deus. Então vejamos uma passagem notável das
Escrituras que não apenas fala de uma propriedade em abstração, mas a
confere a Deus como um atributo e todavia afirma que teria sido criada3 por
Ele! Ela encontra-se em Provérbios 8.22-31, em que, numa personificação, há
uma representação da sabedoria dizendo de si mesma:
Visto que nada [é] mais próprio a Deus que a eternidade e a autogênese,
ou seja, a existência desde si mesmo, se assim posso falar [...] (A
instituição, I, xiv, 3).[254]
Objeção 1
Essa objeção equivale a insistir que deve haver alguma natureza original ao
ser de Deus que explique por que ele assumiu para si o caráter revelado em
suas ações e relações com os humanos. Esse insistência admite, no entanto,
que Deus deve ser como as criaturas, desejando e agindo a partir de uma
natureza preexistente. Mas baseados no que vimos sobre a doutrina da
pancriação, essa suposição deve ser rejeitada.[258]Em vez disso, o ser
originador de Deus teria de ser a fonte criativa3 de seu caráter revelado na
medida em que esse caráter é tudo o que podemos conhecer. Isto se dá assim
porque Deus é o criador de tudo que se encontra no cosmos, e ele se revela
em termos das propriedades e relações encontradas no cosmos. Ele trouxe à
existência o tempo juntamente com todas as propriedades e leis encontradas
no tempo. Pela mesma razão, o ser originador de Deus é a fonte criativa3 de
todos os princípios da racionalidade, caso em que não há nada que poderia
ser uma razão para ele relacionar-se conosco tal como ele o faz — para além
disso está sua vontade. A negação desses pontos, novamente, assume que
alguns tipos de propriedades encontradas na criação são incriadas e portanto
divinas. Isso contradiz claramente a doutrina bíblica da pancriação.
Ademais, é absurda a suspeita de que, se Deus quis ser aquilo que ele
revela ser, então o aquilo que ele revelou não é realmente ele. Isso equivale a
dizer que se Deus faz algo assim, isso na verdade não é assim! Além do mais,
o que essa objeção ignora é que, embora não conheçamos o ser de Deus
senão enquanto acomodado, conhecemos todavia o ser de Deus em sua
relação conosco. Na verdade é Deus, cujas energias, ações e relações
conosco são conhecidas pelo que são.
Essa objeção geralmente é reforçada pontuando-se que, se a natureza
de Deus em-relação-a-nós é desejada por Ele, então não temos garantia de
que ela não se modificará. Em contrapartida, a visão AAA entende que a
natureza de Deus está fora de seu controle, de modo que podemos ter a plena
confiança de que ela nunca poderá mudar. Isso, no entanto, é um erro
profundo, existencial e religioso — o erro que Agostinho denominou “um
insulto a Deus” (ver a citações de Lutero e Calvino na nota 50). Qual é, afinal
de contas, o fundamento último para nossa confiança em Deus? É o
juramento pactual do próprio Deus de que ele será por todo o sempre, para
conosco, o que ele prometeu ser? Ou o fundamento de nossa confiança é um
cheque de crédito lógico e/ou metafísico que podemos executar em relação a
Deus? É o fato de que algumas leis do cosmos garantem que Deus não pode
ser senão o que prometeu, ou é o fato de que confiamos na sua palavra dada?
Tão logo buscamos encontrar princípios que possam garantir a confiabilidade
de Deus, não apenas tornamos estes mais fundamentais do que Deus, mas
também depositamos, desse modo, nossa confiança última neles em vez de
em Deus! (Recorde aqui meu ponto no fim do capítulo 2 sobre a correlação
entre o que é derradeiramente confiável e o que confiamos como a realidade
última.)
O que dizemos, portanto, sobre a parte dessa objeção que diz que a
existência incondicional de Deus não pode ser algo que Deus criou e
assumiu? Isso certamente soa correto. Mas como, exatamente, isso deporia
contra a visão C/R? A realidade incondicional não é uma propriedade, nem é
algo encontrado no cosmos ou compartilhado por humanos. Não é verdade
em relação a algo que não o próprio ser de Deus. E nem é racionalmente
concebível. Talvez seja esse último ponto que está no cerne da objeção. Uma
vez que a visão C/R constante afirmou que o ser de Deus não pode ser
concebido, talvez algumas pessoas se equivoquem pensando que se podemos
estruturar a ideia da realidade incondicional, então a visão C/R contradisse a
si mesma. Para responder a isso devo explicar a diferença entre um conceito e
uma ideia limitante.
Quando formamos um conceito, combinamos no pensamento
inúmeras propriedades daquilo que estejamos concebendo. É por essa razão
que os conteúdos de um conceito podem ser averiguados, analisados e
tornados específicos. Um conceito, obviamente, também inclui a relação (ou
as relações) na qual seus conteúdos (propriedades) são tomados em sua
relação uns aos outros, razão pela qual uma definição é o enunciado
linguístico dos conteúdos de um conceito. Em contrapartida, uma ideia
limitante de algo não é uma combinação de suas propriedades, mas é nossa
percepção de algo que vem à tona através das relações que mantém com
outras coisas. Por exemplo, a propriedade “vermelho” não é capaz de ser
analisada em quaisquer elementos constitutivos, pois estes não existem.
Também é por essa razão que essa propriedade não pode ser definida.[259]
Conhecemos o vermelho ao compará-lo com outras cores, não ao combinar
seus elementos constituintes em um conceito. As meta-propriedades que
qualificam os vários aspectos (espacial, físico, sensorial, biótico, etc.) são
semelhantes, nesse sentido, às cores. Temos ideias limitantes deles, não
conceitos deles. Passamos a conhecê-las encontrando propriedades
específicas das coisas que são posteriormente qualificadas por tais meta-
propriedades. Por exemplo, experimentamos uma forma particular como
espacial, ou um exemplo particular de dureza como física, ou um caso
particular de ingestão como biótica, etc. E distinguimos as meta-propriedades
comparando umas com as outras, incapazes como somos sequer de formar
uma ideia limitante de qualquer delas isolada de todas as outras. Também
temos de manter em mente que ideias limitantes podem ter mais ou menos
conteúdo; algumas podem ser formadas pelo despojamento de parte dos
conteúdos e relações encontrados em conceitos. Quando formamos uma ideia
dessa forma geralmente utilizamos o mesmo termo tanto para o conceito
quanto para a ideia derivada dele, de modo que se torna importante não ser
lançado de um lado para o outro entre dois tipos de conhecimento sem
reconhecê-lo.[260]
Se existe qualquer dúvida sobre se realmente existe tal conhecimento-
ideia distinto de conhecimento-conceito, considere o seguinte exemplo de
uma ideia limitante: números que ninguém jamais concebeu e jamais
conceberá. Uma vez que a série de números naturais é infinita, é
necessariamente verdadeiro que sempre haverá alguns números que nenhum
ser humano conceberá. Mas concebemos tais números ao dizer isso?
Certamente não. É impossível conceber qualquer um deles, pois cada número
que concebemos é, por meio disso, excluído da classe selecionada por essa
ideia limitante. Eis, portanto, um caso de uma ideia limite, não um conceito.
Temos a ideia de que existem tais números, mas nenhum conceito do que
exatamente qualquer deles é. Essa ideia tem menos conteúdo, digamos, do
que cores ou os qualificadores aspectuais que denominei meta-propriedades,
mas ainda há algum conteúdo nela. Todos os números inconcebíveis ainda
serão quantidades de algum tipo e permanecerão em várias relações
matemáticas com outras quantidades. (Isso se encaixa com a parte anterior da
minha descrição, quando eu disse que o conteúdo de uma ideia é conhecido
através das relações que ela tem com outras coisas das quais temos conceitos
ou ideias.) Da mesma forma, pode-se formar ainda outras ideias que têm
menos conteúdo do que esses exemplos. Mas eles são possibilitadas pelo fato
de que seus conteúdos mantêm relações com os conteúdos de conceitos ou de
ideias, os quais possuem mais conteúdo do que esses exemplos têm.
Nossa percepção da existência é, eu afirmo, uma dessas ideias. Ora, a
ideia da existência é notoriamente difícil, e eu não tenho a pretensão de
resolver aqui os intrincados debates que cercam esse ponto. Apenas tentarei
deixar claro por que eu digo que essa é uma ideia limitante. Ninguém duvida
que derivamos nossa percepção da existência de nossa experiência do mundo
que nos cerca. O termo “existir” significa literalmente “estar fora de”, ou ser
distinto de. Ele reflete o fato de que reconhecemos que algo existe
distinguindo-o de outras coisas. Mas a existência de algo não pode ser
definida como sua habilidade de ser selecionado; isso é, no melhor dos casos,
uma circunscrição desse algo. O fato de que podemos distinguir uma coisa é
possibilitado pelo fato de que isso existe, e não o contrário.
Consequentemente, mesmo o sentido literal da palavra “existir”, quando dela
nos valemos, não designa aquilo de que estamos atrás, mas aponta para além
de seu próprio significado, para o fato da existência que se encontra por trás
desse algo e o torna possível. Para complicar as coisas ainda mais, parece que
a existência de cada coisa com as quais lidamos na experiência é unicamente
individual àquela coisa. Não é uma qualidade que a coisa possui ao lado de
suas outras qualidades, porque uma coisa teria de existir para possuir
qualidades. E certamente não é uma qualidade universal compartilhada por
mais de uma coisa; duas ou mais coisas não têm a mesma existência. (A
capacidade de distinção das coisas que formam o significado literal de
“existir” pode ser compartilhado, mas não o fato de sua existência que as
torna distinguíveis.) Por essas razões, penso que a existência não é algo que
seremos capazes algum dia de conceitualizar. É um fator da criação não
analisável, indefinível, que confrontamos em nossa experiência, que somos
incapazes de apreender em um conceito e do qual temos apenas uma ideia
limitante.
Quando falamos da autoexistência de Deus, portanto, estamos
aplicando a Deus nossa ideia limitante de existência, que é, por meio disso,
despojada de seu conteúdo: é a existência que não depende de nada e de
nenhum modo, é externo ao tempo, não é governada por qualquer lei que é
válida para as criaturas. Ela é, assim, uma ideia limitante que é quase
totalmente negativa, pois mesmo a propriedade de ser “distinguível” é
verdadeiro para Deus apenas em sua relação com a criação, visto que, se se
excluísse tudo que ele criou, não haveria nada do qual Deus seria distinguido.
O que sobre dessa ideia é apenas isto: o ser incondicional de Deus é aquilo do
que tudo o mais depende para a existência; Deus pode ser o que quer que
seja, todavia, sem Deus, nada mais pode sequer ser. Assim, embora esteja
além de nossa capacidade apreender conceitualmente o que esse ser é,
podemos ter uma ideia de que existe um ser último, incondicional, sobre o
qual tudo o mais permanece na relação de total dependência. Como resultado,
somos conduzidos de volta à expressão de São Basílio de que “não sabemos
quem Deus é, mas sim o que ele não é e como ele se relaciona com suas
criaturas”. A conclusão é que temos tanto conhecimento conceitual quanto
conhecimento-ideia de Deus em relação às suas adaptações criaturais para
conosco, ao passo que temos apenas a mínima ideia limitante de seu ser para
além dessas adaptações. E a ideia limitante não trata de uma natureza
primordial de seu ser, mas apenas da relação que todas as demais coisas
mantém com ele. Seu conteúdo, mais uma vez, é apenas que essa é a fonte
incondicional e última da existência de tudo o mais. Colocado de um modo
antigo: é a realidade cuja essência é existência.
A isso devemos imediatamente acrescentar que chegamos a esse
conhecimento-ideia do ser de Deus não por meio de especulação filosófica,
mas por meio de revelação. A ideia do ser transcendente de Deus assoma
porque, conforme revelava sua natureza acomodada, Deus também revelou
que cada característica da criação (visível ou invisível) foi trazida à existência
por ele a partir do nada. Isso, e não a teorização, é a base para a visão C/R de
que seu ser não acomodado, incriado, é algo em relação ao qual não podemos
sequer conceitualizar. Assim, nossa visão de que não podemos ter um
conceito do que o ser de Deus é, mas apenas a ideia de que é, provém
inteiramente da revelação de suas acomodações a nós, das quais temos tanto
conceitos quanto ideias com conteúdos definidos.
Objeção 2
A distinção entre um conceito e uma ideia limitante que nos auxiliou com a
existência incondicional de Deus, pode agora oferecer uma forma de lidar
com a alegação de que a visão C/R é autorreferencialmente incoerente. Ela
demonstra porque dizer que não temos conceitos do ser transcendente de
Deus não é mais incoerente do que dizer que necessariamente existem
números dos quais não temos conceitos. Não pensamos em qualquer desses
números dizendo isso, e da mesma forma não concebemos o ser de Deus ao
dizer que não podemos fazê-lo. Simplesmente não é verdade que não
podemos ter uma ideia de que existe algo a não ser que possamos
conceitualizar o que esse algo é de forma não-relacional. Ademais, a visão
C/R não afirma sem reservas que nossos conceitos não podem, ou mesmo
não se aplicam, a Deus. Antes, afirma o contrafactual de que eles não se
aplicariam, caso Deus não tivesse desejado manter relações com a criação
acima e além da mera relação de ter criado e sustentar sua existência. E,
felizmente, é falsa a afirmação de que ele não se adapta a nós e ao nosso
entendimento ao iniciar relações que somos capazes de entender.
Objeção 3
Chegamos agora à objeção a qual prometi retornar — aquela que, em minha
opinião, é a principal razão pela qual a visão C/R não tem voz na filosofia da
religião contemporânea no Ocidente. A objeção é que se Deus criou as
verdades necessárias (leis) da lógica e da matemática, então elas estão dentro
de seu controle, e se elas estão dentro do seu controle, então ele pode fazer
com que tanto as criaturas quanto ele mesmo as violem. Assim, segue a
objeção, na visão C/R Deus pode fazer com que 1 + 1 = 8, pode saber que ele
próprio não existe, pode criar triângulos com cinco lados, e pode ser
onisciente sem saber nada. Como Alvin Plantinga colocou, a objeção pode
ser resumida ao seguinte:
Minha primeira reação a esse (suposto) dilema intuitivo é dizer que se essas
duas opções fossem, de fato, as únicas escolhas, eu me aliaria a Plantinga no
tema em questão. O que argumentarei em resposta, no entanto, é que as
opções apresentadas não são exaustivas. Certamente temos duas intuições, e
uma delas é que existem verdades necessárias tais como a lei da não
contradição: a lei de que enunciados mutuamente contraditórios não podem
ser ambos verdadeiros ao mesmo tempo, de modo aquilo que alguns
enunciados expressam é impossível. Mas a outra intuição, eu argumento, não
é corretamente apresentada. Não é verdade que se Deus é genuinamente
soberano, então tudo é possível. Isso não se segue a partir da visão que tenho
esboçado (mesmo que seja verdadeiro da visão de Descartes que Plantinga
estava criticando na citação). Isto porque, na visão C/R, Deus construiu leis
de muitos tipos na criação. Ele não tinha de haver criado apenas essas leis,
obviamente, assim como não tinha de havê-las sequer criado. Mas visto que
ele as criou, e criou as leis que descobrimos no cosmos — a lei da não
contradição entre elas –, essas leis definem os limites para aquilo que é
realmente possível e impossível para as criaturas. E isso significa que elas
não apenas definem os limites para aquilo que as criaturas podem ser, mas
também definem os limites em relação ao que as criaturas racionais são
capazes de conceber.
Nessa visão, portanto, não é possível que 1 + 1 = 8, ou que triângulos
tenham cinco lados neste mundo da forma que Deus o criou. Como criaturas
(i.e., propriedades criadas das criaturas), os números e triângulos existem sob
o governo das leis que Deus instituiu na criação. Assim, as absurdidades que
supostamente se seguem do fato de Deus haver criado essas leis na verdade
não seguem. Se se replicar que a soberania de Deus sobre a criação significa
que ele poderia abolir essas leis, a resposta é: obviamente que ele poderia (no
sentido de “poderia” explicado na nota 52). Mas se as leis da quantidade e do
espaço abolidas, então não haveria tal coisa como um número e um triângulo
como o conhecemos. O falso dilema ignora isso. Ele assume que poderiam
existir os objetos que conhecemos mesmo se as leis que os governam fossem
anuladas, apesar do fato de que os objetos são o que são (em parte) em razão
das leis em relação às quais estão sujeitos. Desse modo, dado que uma das
leis que Deus instituiu na criação é a lei da não contradição, ela (e outras leis)
não pode ser alterada enquanto, simultaneamente, seja verdade que essas
alterações possam ser aplicadas a quaisquer objetos da forma que nós os
conhecemos.[262]
Essa parte da minha réplica é intimamente aliada à posição que
Agostinho adotou sobre os milagres. Ele afirmava que Deus pode agir no
mundo, e de fato o faz, para produzir eventos que não podemos explicar ou
duplicar. Mas, diz ele, Deus não estabelece leis na criação apenas para
quebrá-las. (Pense aqui nos textos bíblicos que vimos anteriormente, nos
quais Deus promete manter a ordem e as ordenanças [leis] da criação
“enquanto durar a terra”.) Portanto, não se deve pensar em milagres como
violações das leis da criação, mas como exercícios do poder de Deus ao
longo dos quais Deus ainda sustenta as leis que ele instituiu na criação.[263]
Mas mesmo que as verdades necessárias sejam válidas para as
criaturas, a visão C/R não tem de dizer que elas não são válidas para Deus?
Não é o ser incriado, transcendente, de Deus o criador de todas as leis e,
portanto, não governado por elas — incluindo a lei da não contradição? E
isso não significa que Deus pode tanto existir quanto não existir, que ele pode
saber que não existe, ou que ele pode ser onisciente, embora sem conhecer
nada?
A resposta é: não, isso não significa essas coisas. O ser transcendente
de Deus está além do domínio da lei da não contradição, assim como das
outras leis, mas é precisamente por essa razão que consequências
contraditórias não seguem da afirmação disso. Deus transcender uma lei não
é o mesmo que Deus violar uma lei, pois uma lei pode ser quebrada apenas
por algo sobre a qual ela se aplica. Assim, embora as criaturas não possam
quebrar a lei da não contradição porque são sujeitos a ela, o ser transcendente
de Deus não pode quebrar essa lei porque ela não se aplica em absoluto ao ser
de Deus. Eis uma analogia. Suponha que exista uma lei segundo a qual todos
os seres ficarão enfermos a menos que recebam nutrição apropriada, água, e
respire ar puro. As rochas em meu jardim violam essa lei? Certamente não. A
lei simplesmente não se aplica a elas. E é isso que digo sobre a relação do ser
não acomodado de Deus às leis que ele estabeleceu sobre a criação. Por favor
tenha em mente, no entanto, que a natureza acomodada de Deus é sujeita às
leis da criação; essa é parte de sua adaptação a nós. Assim, Deus é
logicamente consistente em relação “à natureza na qual lhe apraz manifestar-
se” (incluindo sua existência manifesta, existência no sentido de ser
distinguível de tudo o mais e idêntico a si mesmo). Apenas seu ser
incondicional transcende todas as leis, e o faz de tal modo que não nos é
concebível: ele nem se conforma nem viola a lei da não contradição.
Se se objetar, no entanto, que não poderia existir nada que não esteja
sujeito às leis da lógica, é importante notar que tal objeção não se justifica
pelo fato de que não somos capazes de conceber algo que não esteja sujeito
às leis da lógica. Como disse anteriormente, as leis da lógica (e outras leis)
governam nosso pensamento de tal forma que não podemos formar um
conceito ou uma ideia do que seria algo que não estivesse sujeito a essas leis.
Mas do fato de que não podemos conceber tal coisa não se segue que tal coisa
não exista. Essa afirmação é meramente a insistência dogmática de que o que
nossa rede não pode pegar não é peixe — já que não podemos transcender a
lei, nada também poderia fazê-lo. No entanto, a afirmação de que não poderia
existir nada que não estivesse sob as leis da lógica procede do fato de
considerá-las como (ou pelo menos parte) a fonte divina de todas as coisas —
razão exatamente pela qual deveria ser rejeitada por qualquer teísta.
Objeção 4
Mas e a questão sobre como nossa linguagem pode se aplicar a Deus? Uma
vez que a visão C/R rejeita a proposta AAA de que as criaturas têm graus
menores das perfeições incriadas possuídas por Deus, como isso pode
explicar que nossa linguagem possa discursar verdadeiramente acerca d’Ele?
A essa altura espero que a resposta a essa objeção esteja óbvia. Na
visão, Deus tem se acomodado à nossa experiência e linguagem. A palavra-
revelação que Deus inspirou e nos concedeu é verdadeira em relação a Deus
por causa daquela acomodação. Isso foi possível porque a linguagem das
Escrituras é analógica ou antropomórfica (embora ocasionalmente o seja),
mas porque Deus se antropomorfizou. A linguagem bíblica acerca de Deus é,
portanto, a linguagem habitual; não precisamos elaborar uma teoria da
analogia para explicar a possibilidade de sua verdade. Decerto o poder, o
amor, a misericórdia e justiça, etc., de Deus são maiores do que algo que seja
possível para humanos terem, ou compreenderem, plenamente. Mas não há
necessidade de se supor que ele possui essas características em um grau
infinito que seja totalmente desconhecido para nós. Elas são, na medida em
que consideramos seu sentido, apenas o que queremos dizer habitualmente
com poder, amor, misericórdia e justiça. Deus assumiu essas características
(criadas3) e desejou que elas fossem a natureza na qual lhe aprouve
manifestar-se agora e eternamente. Como resultado, os termos designam nele
as mesmas características que designam em relação às criaturas.[264]
Conforme disse, isso não significa que não existam diferenças em
absoluto entre os modos pelos quais Deus possui suas propriedades ou
mantém suas relações e os modos que as criaturas o fazem. Já tocamos numa
dessas diferenças, a saber, que Deus possui todas essas propriedades em um
grau impossível para as criaturas imitarem (embora não seja impossível para
elas conhecerem). Outra diferença é que, enquanto Deus é infalivelmente
bom, justo, sábio, etc., nós não o somos. E existem também outras diferenças.
Uma delas é que Deus se revela como possuidor das características que
assumiu para si dentro de limitações e em combinações que as criaturas não
podem imitar. Por exemplo, Deus permanece em relações que são boas aos
homens dentro de parâmetros estabelecidos pelas alianças, mas nunca
prometeu ser tão bom quanto possível para tantas pessoas quanto fosse
possível. Se ele tivesse feito isso, suas promessas seriam refutadas pelo
mínimo desapontamento na vida de uma só pessoa. Portanto, embora Deus
tenha prometido amar-nos, perdoar-nos, e dar-nos a vida eterna, ele jamais
prometeu que não haveria sofrimento injusto nessa vida. É por essa razão que
é abominável sugerir que se Deus fosse verdadeiramente bom, sua bondade
teria impedido todo o sofrimento injusto no mundo. Na verdade, pelo
contrário, a Escrituras revela que ele tanto conhece quanto permite o
sofrimento injusto, ao mesmo tempo que acrescenta que ele recompensará
essa situação. Mais uma vez: sua bondade não é uma perfeição grega, mas
uma promessa pactual; as Escrituras não a descrevem como se se estendesse
a todas as pessoas e circunstâncias, de modo que Deus ou deve desejar o
resultado mais feliz em cada um dos casos, ou não é bondoso. Em vez disso,
os escritores bíblicos se maravilham da bondade de Deus em relação a nós,
porque somos completamente indignos dela, e porque ela se origina antes de
sua adesão necessária a padrões anteriores e necessários da bondade, os quais
o compelem a ser bom. Desse modo, a bondade de Deus é sempre descrita
como uma questão de pura graça da parte da realidade última, absoluta, sobre
quem não havia quaisquer obrigações antecedentes. (Esse é a questão de todo
o livro de Jó, por exemplo, e foi eloquentemente expresso por Lutero na
citação da nota 50.)
Essa visão da linguagem sobre Deus se encaixa, portanto, com o
restante da visão C/R ao aconselhar-nos extrema cautela quando lidarmos
com a natureza de Deus e ao romper com toda a especulação sobre o ser não
acomodado de Deus. Não podemos nos colocar “por trás” da natureza
revelada de Deus para fazermos o que Calvino chamava de “bisbilhotar a
essência não desvelada de Deus”, que ele condenou como “curiosidade
lasciva”. Uma vez que Deus é o criador de todas as leis da criação, não há
chance algum de utilizarmos qualquer dessas leis a fim de construir uma
descrição de seu ser incriado por meio da metafísica racionalista ou da
teologia.[265] E visto que podemos conhecer a natureza acomodada perene de
Deus apenas pela revelação, a visão C/R requer que nos confinemos tanto
quanto possível somente ao que Deus revelou acerca de si mesmo. Algumas
inferências do que é revelado são obviamente inevitáveis, mas em grande
medida deveríamos buscar seguir o conselho de Calvino, citado
anteriormente, de que “nunca deveríamos pensar ou falar sobre Deus além
daquilo que temos nas Escrituras por nossa orientação”. Nessa visão,
portanto, a principal diferença entre a relevância de um termo quando é
utilizado para atribuir algo a Deus e quando é utilizado para uma criatura não
se encontra em seu significado. Em vez disso, deve-se localizá-la em sua
importância. É o fato de que é Deus, o Criador transcendente, que nos oferece
amor, ou está irado conosco que faz a maior diferença de importância nos
termos “amor” ou “ira”. É essa diferença que gera o sentido de fé distinto que
é acrescentado a tais termos quando são utilizados no tocante a Deus. Essa
diferença poderia ser denominada analógica, mas seria de um tipo de analogia
bastante distinto da visão tradicional AAA. Essa visão faz com que a
diferença esteja entre os graus finito e infinito da mesma atribuição. Na visão
que estou propondo, ela é em lugar disso uma analogia que preserva a
identidade de sentido, juntamente a uma diferença em importância e
consequências. Entendido dessa forma, o universo de discurso da fé não é
mais radicalmente distinto de outros universos de discurso aspectualmente
qualificados do que estes são um do outro. O termo “bom”, por exemplo,
apresenta uma diferença de sentido quando aplicado a uma obra de arte do
que quando aplicado à lei. E reconhecemos essa diferença sem qualquer
problema, em razão dos respectivos universos de discurso estético e jurídico
em cada caso. Assim, também existe um significado fiduciário no qual
termos adquirem sentido adicional sempre que são atribuídos aquilo que se se
considera como incondicionalmente confiável (divino).
Resumindo minha réplica a essa objeção: a visão C/R pode explicar
como a linguagem qualificada pela fé pode ser verdadeiramente predicada em
relação a Deus. Isto dá-se assim, primeiramente, porque essa visão concebe
os atributos revelados de Deus como desejados (criados3) por Deus, de
maneira que não há ameaça à asseidade de Deus. Pela mesma razão, isso não
compromete o status criatural de tudo que não é Deus ao tornar as criaturas
parcialmente divinas por compartilharem das propriedades incriadas3 com
Deus. Finalmente, não é necessário propor teorias analógicas ou outras
elaboradas sobre a linguagem para descrever as mudanças no sentido que os
termos adquirem quando utilizados para designar as propriedades de Deus. O
que as Escrituras atribuem a Deus é simplesmente o que queremos dizer
habitualmente por esses termos dentro dos limites especificados e com a
relevância adicional que lhes é acrescentada, visto que é o Criador do
universo que os possui. É por essa razão que eles têm um sentido de fé
adicional, um sentido que possui uma relevância crucial para nosso destino
eterno.[266]
Isso finaliza minha crítica religiosa da visão de Deus que apoia a
redução como uma estratégia para as teorias. Penso que essa é a principal
razão pela qual muitos pensadores teístas têm mantido essa estratégia, e que
se trata de uma visão de Deus que já está infiltrada e comprometida por
suposições de base pagã derivadas da filosofia grega antiga. Em
contraposição a isso, apresentei uma visão alternativa de Deus e da
linguagem sobre Deus que tanto se afasta dessas suposições quanto é
consistente com Sua asseidade.
10.7 Conclusão
A crítica filosófica da redução demonstrou por que tentar atribuir existência
incondicional a qualquer tipo de propriedades e leis abstraídas de nossa
experiência do mundo faz com que esse tipo se evapore perante nossas
mentes. A crítica religiosa demonstrou, por um lado, que nenhuma
calamidade como essa ocorre com a ideia de um Criador transcendente. Em
nosso encontro com Deus por meio de sua palavra e suas contínuas relações
conosco em nossas vidas diárias, as ações e relações de Deus também têm
propriedades que podemos abstrair. Mas como não se considera que nenhuma
delas tem existência incondicional, as ideias que temos delas não sucumbem
ao nosso experimento mental, como o fazem as deificações pagãs dos
aspectos do cosmos. Apenas o ser transcendente de Deus tem realidade
incondicional, e essa não é uma hipótese que precisa (embora incapaz de) ser
teoricamente justificada. Nossa ideia limitante desse ser não se esfumaça
quando quer que pensemos nela; sua própria ausência de conteúdo é o que a
livra de sucumbir-se ao experimento mental. Colocado de outra forma: a ideia
limitante da realidade incondicional que, quando combinada com a ideia de
qualquer aspecto do mundo, faz com que essa combinação se dissolva, não é
identificada com os atributos de Deus num entendimento apropriado sobre
ele. Assim, nem nossa ideia do ser incondicional de Deus, nem de seus
atributos, é autocanceladora.
Portanto: ao passo que as afirmações de redução são injustificáveis em
princípio e a redução conduz as teorias a um beco sem saída explanatório; e
enquanto a redução como estratégia para teorias não é apoiada por uma visão
da natureza de Deus que seja consistente tanto com a doutrina da criação
quanto da asseidade de Deus; fica resolvido que agora investigaremos aquilo
com que uma teoria completamente não reducionista da realidade se pareceria
— uma teoria guiada pela crença de que Deus, e apenas Deus, é
autoexistente.
PARTE IV
TEORIAS NÃO REDUCIONISTAS
CAPÍTULO 10. UMA TEORIA NÃO
REDUCIONISTA DA REALIDADE
Fiduciário
Ético
Jurídico
Estético
Econômico
Social
Linguístico
Histórico
Lógico
Sensorial
Biótico
Físico
Cinemático
Espacial
Quantitativo
Tentei evitar substantivos para designar os membros dessa lista uma vez que
substantivos tendem a promover o mal entendido de que essas são classes ou
grupos de coisas. Em lugar disso, utilizei adjetivos para enfatizar que o que
está sendo listado são tipos de propriedades e leis apresentadas pelas coisas e
eventos que experienciamos. Isso resultou em alguns termos estranhos e
alguns significados especiais para alguns termos familiares, o que torna
necessário comentar brevemente sobre alguns deles.
O termo “quantitativo” é utilizado para designar a “quantidade” das
coisas, e não deveria ser mal interpretado como se se referisse a um (teoria
do) domínio dos números ou o sistema abstrato da matemática concebido
para calcular quantidades. Existe evidência de que alguns animais possuem
um senso de quantidade, embora não sejam capazes de contar,[271] e isto é
uma consciência intuitiva do mesmo modo que a “quantidade” das coisas que
estou pontuando aqui. É a quantidade experimentada das coisas que a ciência
da matemática abstrai como seu campo de inquirição. Dentro desse campo ela
então abstrai posteriormente a propriedade de quantidade discreta, o que se
torna a base para a série de números naturais a partir da qual conceitos
matemáticos ainda mais abstratos e complexos são construídos. Vários ramos
da matemática podem, assim, ser desenvolvidos, correspondendo às
diferentes formas que as quantidades podem ser calculadas formulando-se
leis que se apresentam entre elas. Mas tudo isso decorre de nosso
reconhecimento intuitivo de que as coisas possuem quantidade.
“Cinemático” é utilizado para designar o movimento das coisas, seu
deslocamento no espaço. Muitos cientistas incluem essas propriedades e leis
dentro do aspecto físico, embora Galileu aparentemente não tenha feito isso,
e pelo menos dois pensadores contemporâneos tenham argumentado de
maneira persuasiva que ele é, na verdade, um aspecto distinto.[272]
O termo “sensorial” é utilizado da forma explicada no capítulo 9, ou
seja, para cobrir as qualidades e leis tanto da percepção (tato, paladar, visão,
olfato e audição) quanto dos sentimentos provocados pela percepção. Eles
estão incluídos no mesmo aspecto porque a percepção e o sentimento são,
ambos, formas nas quais os humanos são sensoriais.
O termo “histórico” também merece algum comentário mesmo que seja
familiar. Isto porque muitas pessoas pensam nele como se referindo a tudo o
que ocorreu no passado. Isso não é o seu sentido apresentado aqui. Nem é a
forma que os historiadores também o utilizam, uma vez que nem tudo o que
ocorreu é historicamente importante. Julgando a partir do que interessa aos
historiadores, parece que a diferença entre o que é historicamente importante
e o que não é termina por ser o mesmo que aquilo que é significante para a
formação da cultura humana e aquilo que não o é. Aquilo do qual a história
trata, portanto, é da transmissão de poder formação cultural. Assim nosso
adjetivo “histórico” seria equivalente a “cultural”. E uma vez que a formação
de uma cultura é baseada sobre a habilidade de formar novas coisas a partir
de materiais existentes, alguns filósofos têm preferido o termo “tecnológico”
para esse aspecto. Não importa qual termo é utilizado, o que é importante é
que ele é entendido da maneira que descrevemos, de modo que me remeterei
a todos os produtos da habilidade técnica humana de formar novas coisas a
partir de materiais naturais como artefatos culturais (históricos).
Não é incomum que termo “ético” seja utilizado com um termo geral
para referir-se àquilo que é correto e bom, ou errado e mau, em relação aos
comportamentos e atitudes humanas. No entanto, o termo é comumente
utilizado para cobrir dois sentidos bastante distintos desses termos: o que é
certo ou errado de acordo com a justiça, e o que é certo ou errado de acordo
com a moralidade. Na lista apresentada acima, esses aspectos são
distinguidos. O aspecto jurídico tem a ver com as normas que se aplicam a
nossas atitudes e ações em relação ao que é justo. Em contrapartida, o aspecto
ético da maneira que esse termo é utilizado aqui tem a ver com normas que
lidam com o que é amoroso ou beneficente. Embora distintos, os dois
sentidos estão obviamente relacionados. Falando de forma geral, podemos ser
justos com alguém sem também ser amorosos, mas não podemos ser
amorosos com aquela pessoa sem sermos justos. O amor geralmente nos
ordena a irmos além do que alguém legalmente merece — como ilustrado na
famosa história que Jesus narra sobre o Bom Samaritano. Mas teríamos de
ser, para com uma pessoa, pelo menos tão justos quanto as circunstâncias
permitirem, antes de conseguirmos ser amorosos em relação a ela. Nossa
visão do aspecto ético poderia, portanto, ser chamado uma “ética do amor”,
mas em um sentido muito mais forte do que aquele no qual a expressão é
geralmente utilizada. Não queremos dar a entender que as pessoas deveriam
ser amorosas, mas que o amor é aquilo do qual a própria ética trata. Nessa
visão, portanto, o amor é mais do que simplesmente um sentimento. Ele é um
princípio normativo de ação circunscrito pela admoestação bíblica “ame teu
próximo como a ti mesmo”. Em outras palavras, devemos balancear nosso
autointeresse com o interesse de outros. Obrigações éticas são, portanto,
aquelas que emergem dessa norma nos sentidos precisos que variam de
acordo com os distintos relacionamentos de amor que temos, tais como amor
próprio, amor ao cônjuge, amor aos filhos ou pais, amor aos amigos, amor à
nação, ou amor ao necessitado, etc. Uma vez que essas obrigações emergem
de uma norma aspectual, eles se estendem sobre o espectro inteiro da
experiência humana e, portanto, também incluem obrigações com a natureza,
com o próprio trabalho, com o próprio país, arte, aprendizado, etc.
Resumindo, o aspecto ético é aquele cuja ordem inclui as normas e
obrigações da vida-de-amor humana.
Dever-se-ia também notar, no entanto, que esse sentido ético de amor
não é o mesmo no qual “amor” é utilizado nas Escrituras para referir-se a
nossa relação apropriada com Deus. Isso é demonstrado pelo fato de que o
mandamento central do amor a Deus não é condicional como o mandamento
ético de amor pelo próximo. Pois enquanto o amor ético pelos outros deve ser
equilibrado com o amor próprio, o amor a Deus é incondicional: “Amarás o
Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas
forças e com todo o teu entendimento” (Dt. 6.5; Mc. 12.28-34). Em seu
sentido religioso, portanto, o amor a Deus não é meramente uma beneficência
ética (por mais importante quanto esta seja), mas o compromisso do ser total
da pessoa ao serviço de Deus, acima de todas as demais coisas.
Finalmente, o termo “fiduciário” é utilizado aqui para se referir aos
níveis variáveis da confiabilidade ou credibilidade que uma coisa ou uma
pessoa possa ter. Esse aspecto é especialmente importante em conexão com
relações humanas de todos os tipos, que se desintegram rapidamente onde
existe significativa falta de confiança. Mas porque esse aspecto lida com
todos os graus de confiabilidade e certeza, ele também tem uma conexão
especial com a fé religiosa. Essa conexão surge quando uma pessoa confia
em algo como incondicionalmente fidedigno, pois apenas algo que tem
existência incondicional poderia ser incondicionalmente confiável. Confiar
em qualquer coisa como incondicionalmente confiável, portanto, pressupõe
que isso seja autoexistente e, desse modo, divino.
Mesmo nesse estágio inicial, é possível perceber como uma ideia não
reducionista de tal estrutura de leis cósmica pode nos livrar das garras de um
dos antigos dilemas que assolaram as teorias tradicionais da realidade: o
dilema do objetivismo versus subjetivismo. Essa questão pode ser mais bem
compreendida se vista como uma controvérsia entre respostas contrárias à
questão: qual é a fonte das leis que fornece ordem à criação? Enquanto o
objetivista localiza a fonte da ordem nos objetos da experiência humana, o
subjetivista localiza a ordem na mente do sujeito cognoscente. Obviamente,
grande parte das teorias foram parcialmente objetivistas e parcialmente
subjetivistas, mas para ilustrar os dois lados da controvérsia utilizarei teorias
que são quase tão exclusivamente uma coisa e a outra quanto possamos
pensar, a saber, as teorias de Aristóteles e Kant.
Para Aristóteles, como já vimos, a “causa do ser de uma coisa” é sua
substância ou forma. A forma de uma coisa também é responsável por
determinar a natureza inata que ela compartilha com outras coisas do mesmo
tipo, e é a natureza de cada tipo de coisas que as programa a se comportarem
e relacionarem com outras coisas da maneira que o fazem. Assim, o que
denominamos leis da natureza são nossas formulações do comportamento
observado das coisas causado por suas naturezas fixas internas. Isso significa
que não existe realmente um lado-lei distinto na criação. A “lei” não é outra
coisa senão nosso nome para as regularidades que observamos na
experiência, e essas regularidades são garantidas pela forma não observável
para cada tipo de coisa. Assim, a fonte de toda a regularidade e ordem é
localizada nos objetos da experiência mesmo que não experienciamos
diretamente essa fonte em si. Nessa visão, os humanos chegam ao
conhecimento da ordem das coisas conformando seus conceitos às naturezas
dos objetos do modo que existem externamente às suas mentes; em outras
palavras, ao conformar seu pensamento à realidade “objetiva”.
Kant, por outro lado, advogava que a mente do conhecedor, ou
“sujeito”, é a fonte de toda a ordem na experiência. Ele afirmou que o que
chega à nossa mente são estímulos sensoriais caóticos que a mente humana
então ordena numa experiência inteligível. Sua teoria sustentava que a mente
humana realiza esse ato subconsciente e espontaneamente de formas fixas
sobre as quais não tem controle. Assim, enquanto observamos regularidades
em nossa experiência, e quando tentamos formulá-las em enunciados de leis,
estas são todas gestões conscientes com uma ordem que já estamos
inconscientemente impondo sobre os estímulos, criando por meio disso a
realidade que experienciamos. No que tange ao conhecimento consciente,
então, estamos tentando entender os objetos que experimentamos — assim
como Aristóteles cria. Mas, disse Kant, isso é possível apenas porque esses
objetos já foram primeiramente formados pelo fato de nossas mentes
imporem ordem sobre eles. Dessa forma a ordem aparentemente objetiva da
realidade é, na verdade, subjetiva na origem.
Deveria estar claro que tanto o objetivismo quanto o subjetivismo são
teísticamente inaceitáveis, uma vez que cada um pressupõe uma variedade de
religião pagã ao atribuir a alguma parte da criação o papel de ser o legislador
independente do mundo. Do ponto de vista bíblico, nem os objetos
conhecidos, nem os sujeitos cognoscentes são a fonte de ordem que
experienciamos, mas somente Deus é o legislador do mundo. Assim, a forma
teísta de pensamento sobre as leis da criação evita o dilema do objetivismo e
do subjetivismo oferecendo uma terceira alternativa. Uma vez que as
Escrituras ensinam que Deus criou todas as leis que governam a criação,
podemos enxergar a ordem das coisas como não redutível aos objetos
conhecidos, nem aos sujeitos cognoscentes. Pelo contrário, ambos os objetos
e sujeitos são ordenados e conectados ao serem governados pela mesma
estrutura de leis divinamente ordenada.[273]
Retornando para nossa explanação da lista de aspectos, precisamos
notar que assim como seus elementos refletem o que encontramos na
experiência pré-teórica, assim também se dá quanto à ordem na qual eles
ocorrem na lista. Lendo-a de baixo para cima, a ordem de sua listagem
pretende refletir a ordem na qual as propriedades de cada aspecto surgem nas
coisas que experimentamos anteriormente à teorização. Ou seja, a experiência
revela uma sequência na maneira que as coisas apresentam os aspectos, de tal
modo que as propriedades daqueles inferiores na lista parecem ser pré-
condições para a ocorrência das propriedades daqueles superiores também na
lista. Por exemplo, existem coisas que têm propriedades físicas sem estarem
vivas, mas não há nada vivo que não tenha propriedades físicas. Assim, ter
propriedades físicas parece ser uma pré-condição para que algo tenha
propriedades bióticas. De semelhante modo, algo bioticamente vivo pode ou
não ser capaz de sentir ou perceber, mas nada capaz de sentir pode deixar de
estar bioticamente vivo. Da mesma forma, aparentemente a percepção
sensorial é uma pré-condição para a habilidade de um ser pensar em
conceitos lógicos, o que é uma pré-condição para ser capaz de conceber
planos por meio dos quais se alcança a formação histórico-cultural de novos
objetos a partir de objetos naturais. Essa habilidade, por sua vez, é a pré-
condição para uma dos mais proeminentes exemplos de poder cultural
formativo: a invenção da linguagem, que por seu turno é uma pré-condição
necessária para o desenvolvimento de relações sociais e costumes tipicamente
humanos. E assim se dá até o topo da lista.
Ora, tenho falado dessa ordem como uma de pré-condicionalidade, e
não de tempo, mas isso não equivale a negar que exista bastante evidência de
que a sequência recém-mencionada entre os aspectos seja espelhada em um
desenvolvimento cronológico real no passado. A evidência demonstra, por
exemplo, que houve um período de tempo sobre a terra em que haviam coisas
que eram quantitativas, espaciais, cinemáticas e físicas, mas ainda não
existiam coisas vivas; e houve um período quando havia seres que eram
vivos, mas que não sentiam ou percebiam, após o qual houve seres que eram
sensoriais, mas sem pensamento lógico, etc. No entanto, essa reflexão da
ordem aspectual no tempo não é a mesma que a pré-condicionalidade que
tenho indicado. Mesmo sem conhecermos acerca do desdobramento gradual
dessas propriedades através do tempo, a sequência de pré-condicionalidade
ainda seria adequada pelas razões dadas acima.
Na verdade, confundir a pré-condicionalidade com a aparição gradual
das propriedades no passado impedir-nos-ia de enxergar essa ordem em
relação aos primeiros quatro aspectos, uma vez que não conhecemos objetos
na criação em que os tais estivessem ausentes. Assim, precisamos salientar a
diferença entre a sequência de pré-condicionalidade e a aparição gradual no
tempo dos aspectos mais elevados na lista da seguinte forma. Podemos dizer
que uma coisa teria de ser espacial para ter movimento, o que por sua vez é
uma pré-condição para que algo tenha propriedades físicas. Da mesma forma,
ela teria de apresentar alguma quantidade de espaço, pois propriedades
espaciais têm uma pré-condição quantitativa.[274]
Mas embora a ordem da lista de aspectos reflita uma sequência de pré-
condicionalidade na maneira que as propriedades aparecem nas coisas, essa
sequência não pode ser utilizada para apoiar a estratégia do reducionismo
fraco para uma teoria da realidade. De acordo com essa estratégia, a ordem
que temos notado é causal; alguns aspectos — geralmente se considera que
aqueles mais abaixo na lista –causam a existência dos outros que estão mais
acima na lista. Ou seja, o reducionismo fraco toma alguns tipos de
propriedades e leis mais abaixo na lista como sendo não meramente a pré-
condição para a ocorrência dos tipos listados acima, mas a própria razão pela
qual existem tais tipos superiores. Mas reconhecer que as propriedades dos
aspectos superiores não surgem nas coisas sem os inferiores não demonstra
em absoluto que os aspectos inferiores produzem os superiores, uma vez que
ser uma pré-condição para algo não é o mesmo que produzi-lo. Por exemplo,
uma das pré-condições para começar uma fogueira é que o oxigênio esteja
presente, mas a mera presença de oxigênio não iniciará o fogo. Assim, somos
justificados a notar que propor que algum aspecto inferior na lista seja razão
pela qual os mais elevados implica, na verdade, assumir uma suposição pagã.
Pois assumir que um ou outro dos aspectos causa o restante é excluir de
antemão que existe um Criador transcendente que é tanto necessário quanto
suficiente para a existência de todos eles — incluindo sua ordem de pré-
condicionalidade.
Além dessa objeção religiosa, no entanto, existem sérias dificuldades
teóricas com qualquer tentativa de utilizar a ordem entre os aspectos como
apoio para uma teoria fraca de redução. Já vimos por que a afirmação de que
qualquer aspecto possa causar a existência de todos os demais falha quando
aplicada ao seu lado de propriedades: é autoperformativamente incoerente
abstrair um tipo de propriedades, considerar seu resultante isolamento como
independência real, e então proclamá-la como se fosse a identidade essencial
das coisas em vez de apenas um aspecto delas. Mas existe uma razão
adicional por que essa afirmação é implausível quando aplicada ao lado de lei
de um aspecto. Pois enquanto as propriedades aspectuais apresentam uma
ordem de aparência, as leis aspectuais não o fazem. Explicar esse ponto
permitirá, ao mesmo tempo, que uma parte substancial da teoria da estrutura
de leis seja apresentada, de modo que é importante fazê-lo aqui. Mas para
tornar o ponto claro, é preciso primeiramente introduzir algumas novas
expressões que me permitirão falar de uma forma que guardará a distinção
entre os lados lei e de propriedades de qualquer aspecto.
Trataremos dos objetos da experiência (coisas, eventos, relações,
estados de coisas, pessoas, etc.) como existindo ou funcionando “em um
aspecto” ou “sob as leis de um aspecto”. Dessa forma vamos nos relembrar
que a existência das criaturas sempre é governada por leis, e que sempre
devemos distinguir entre as entidades sujeitas às leis e as leis que exercem o
governo. Assim, dizer que uma coisa “funciona em” um aspecto é outra
forma de dizer que ela tem propriedades daquele tipo aspectual que são
governadas pelas leis daquele aspecto. A teoria da estrutura de leis afirma que
tanto as propriedades quanto as leis para um aspecto existem em correlação
mútua. A ordem de lei de cada aspecto estabelece os limites para as
propriedades que são possíveis dentro daquele aspecto e garante as conexões
necessárias entre elas, mas não cria essas propriedades. Ela tampouco é a
natureza intrínseca de certas propriedades que definem a ordem para um
aspecto, ou traz à existência outras propriedades daquele tipo. Assim, embora
nem a lei nem os lados de propriedades de um aspecto existem à parte um do
outro, eles também não produzem um ao outro; ambos dependem de Deus
para sua existência.
Focar nessa correlação permite-nos agora notar que existem duas
formas pelas quais um objeto pode possuir propriedades de um aspecto.
Tratarei dessas duas formas dizendo que uma coisa pode funcionar em um
aspecto “ativamente” ou “passivamente”. As duas funções não são, no
entanto, mutuamente exclusivas. De fato, argumentamos que todas as coisas
funcionam passivamente em todos os aspectos simultaneamente, de modo
que são apenas as funções ativas em certos aspectos que podem estar
ausentes em dada coisa e que apresentam a ordem sequencial de
aparecimento notada acima.
Considere o exemplo de uma rocha. De acordo com a distinção sendo
proposta, poderíamos dizer que uma rocha funciona ativamente nos aspectos
quantitativo, espacial, cinemático e físico. Ela apresenta essas propriedades e
está sujeita às suas leis de tal modo que elas incidem ativamente sobre outras
coisas no que diz respeito a esses tipos de propriedades. A rocha, contudo,
não funciona ativamente em outros aspectos como o biótico, sensorial,
lógico, econômico, ou jurídico. Ainda assim, existe um sentido real no qual
ela de fato funciona nesses aspectos, porque existem sentidos nos quais ela
está sujeita às suas leis. Esses sentidos dependem, no entanto, de a rocha
sofrer a ação por outras coisas que funcionam de fato ativamente naqueles
aspectos. Assim, denominarei as formas pelas quais uma coisa é sujeita às
leis de um aspecto, sem funcionar ativamente nele, de suas propriedades
passivas nesse aspecto. Que a rocha não funcione ativamente no aspecto
biótico significa que ela não está viva. Ela não desenvolve processos
metabólicos, ingestão, nem reproduz. Mas ela pode ter propriedades que são
indispensáveis à vida de seres vivos que são bióticas de um modo passivo.
Conforme disse, essas propriedades são passivas no sentido de que existem
formas nas quais as rochas podem sofrer ações, de forma que essas
propriedades não podem aparecer exceto em relação às coisas que têm uma
função ativa naquele aspecto. A rocha pode, por exemplo, ser parte da cova
de um animal; ela pode ser o objeto sobre o qual uma gaivota lança moluscos
para que estes se abram; se pequena o suficiente, ela pode entrar na moela de
uma ave e auxiliar na trituração de seu alimento. Em outras palavras, ela pode
ter funções de ser bioticamente apropriada por seres vivos. De formas
semelhantes, a água e outras coisas não vivas podem apresentar funções
bióticas passivas sem que elas mesmas estejam vivas. Tais propriedades
permanecem apenas potenciais, obviamente, até que algo com uma função
biótica ativa as atualize. Mas elas são, contudo, propriedades reais desses
objetos possibilitadas pelo fato de serem governados por leis bióticas ―
assim como todas as outras. (Certifique-se de não confundir aqui “ativa” com
“atualizar”. Propriedades passivas podem ser ou atuais ou potenciais,
enquanto propriedades ativas são sempre atuais.)
Uma rocha também não funciona ativamente no aspecto sensorial. Isso
significa que ela não sente nem percebe. Mas o fato de que ela pode ser
percebida por animais e humanos que têm funções sensoriais ativas é
possibilitada (em partes) porque está sujeita às leis sensoriais e possui
propriedades sensoriais passivas. Lembre-se, relacionado a isso, que não
percebemos diretamente as propriedades físicas no sentido estrito sensorial de
“perceber”, embora as experimentemos no sentido mais amplo do sentido de
“experiência”. O calor físico, por exemplo, é definido como a frequência de
vibração molecular, mas não sentimos sensorialmente algo vibrando mais
rapidamente, ou mais vagarosamente, quando sentimos o calor. Novamente,
falando fisicamente, as ondas de luz diferem em frequência, mas o que
percebemos é vermelho ou azul, não diferença de frequência, etc.; e o peso
sentido é a pressão ou resistência que sentimos, enquanto o peso físico é a
atração gravitacional sentida ou não sentida.
De semelhante modo, a rocha não forma conceitos lógicos. Mas se não
estivesse sujeita às leis lógicas, ela não poderia ser um objeto passivo para
nosso pensamento lógico. Da mesma forma, não poderíamos avaliá-la
economicamente se ela não estivesse sujeita à lei econômica da oferta e da
demanda. Reforçando o ponto já feito, essas funções passivas podem ser
atualizadas apenas em relação às funções ativas de outros seres. A rocha não
possui valor econômico atual [concreto] até que alguém a valorize. Mas se
ela não fosse passivamente sujeita à ordem do aspecto econômico, ela não se
tornaria um objeto de valor para nós. Seu potencial econômico é uma
característica real que ela possui, que se torna possível por sua sujeição a uma
ordem econômica já existente.
Em contraste a uma rocha, uma árvore funciona ativamente no aspecto
biótico além de suas funções ativas nos aspectos quantitativo, espacial,
cinemático e físico. Ela desenvolve processos metabólicos, tem um tempo de
vida, é capaz de se reproduzir e morre. Sua função social, por outro lado, é
passiva e atualizada apenas quando, por exemplo, ela é utilizada para oferecer
sombra para os afazeres sociais humanos. Ela também pode ter uma função
estética passiva se ela estiver localizada ou modelada para contribuir com a
harmonia estética de um jardim. Em contraste com a árvore, um animal
também poderia ser considerado como tendo uma função ativa sensorial.[275]
Mesmo os animais mais primitivos são sensoriais de uma forma que as
plantas não o são, ainda que em um nível grosseiro.
Até onde sabemos, de todas as criaturas no cosmos terrestre, apenas os
humanos apresentam funções em todos os aspectos.[276]
Talvez o seguinte diagrama auxilie a tornar esse ponto de nossa teoria
mais claro.
Fiduciário
Ético
Jurídico
Estético
Econômico
Social
Linguístico
Histórico
Lógico
Sensorial
Biótico
Físico
Cinemático
Espacial
Quantitativo
Rocha Árvore Animal
11.1 Introdução
Este capítulo começará com a definição de alguns termos básicos de modo a
poderem ser utilizados para desenvolver uma interpretação da estrutura de
leis da teoria social. Antes de fazê-lo, no entanto, é necessário pontuar que a
abordagem adotada para realizar essa tarefa será iniciar reconhecendo um
aspecto especificamente social da experiência, o que não é a maneira usual
pela qual as teorias sociais são construídas. Grande parte das teorias
simplesmente se confinam a organizações ou problemas específicos, em vez
de definir tai questões no contexto mais amplo do aspecto distintivamente
social da experiência humana. Esse aspecto é aquele que inclui propriedades
como prestígio, status, respeito e autoridade, e normas como aquelas
relacionadas com respeito e honra para com os mais velhos. Em relação a
isso, por favor tenha em mente o ponto feito acima de que cada aspecto é
conhecido por experiência direta, intuitiva, em vez de por definição ou
inferência. Assim como os demais aspectos, nenhuma definição do lado
distintamente social da experiência humana poderia revelar o que ele
significa a alguém que já não esteja consciente dele.
É a partir do ângulo desse sentido “social” mais-restrito-do-que-o-
comum que os relacionamentos teorizados neste capítulo serão analisados.
Assim, nossa abordagem começa com as maneiras que as normas desse
aspecto, em interação com aquelas dos outros aspectos, tornam possível os
modos específicos em que tais interações são organizadas. Em particular
focalizarei na relação de autoridade, e abordarei as várias formas que os
humanos organizam sua vida social examinando os tipos específicos de
autoridade que são embutidos nessas organizações. Dessa forma, enquanto
“social” poderia simplesmente significar algo feito por duas ou mais pessoas,
concentrarei aqui na relação social de autoridade, à medida que essa emerge
na vida social organizada. E aplicarei a teoria da estrutura de leis a essa
relação, para ver quais insights ela poderá oferecer para determinar a forma
correta de interpretação dos vários tipos de autoridade na forma em que eles
são exercidos nas organizações sociais.
O primeiro termo que necessita de esclarecimento é, obviamente,
“sociedade”. Da mesma em que o utilizo, esse termo referir-se-á a pessoas
individuais e/ou grupos de pessoas que estão em qualquer uma das três
relações sociais básicas: indivíduo para grupo, grupo para grupo, e indivíduo
para indivíduo. Ao estar em conformidade com as observações dos últimos
parágrafos, o termo “grupo” é utilizado aqui para referir-se a algo durável que
reúne seus membros em uma unidade reconhecível ao invés de uma coleção
aleatória de pessoas como aquelas que porventura estão esperando um
ônibus. Mas uma vez que o termo “grupo” é tão vago, de agora em diante
utilizarei o termo “comunidade” para uma unidade social durável.[286]
Também mantendo a linha dos últimos parágrafos, restringirei a discussão às
primeiras duas dessas três relações, uma vez que são as que dizem respeito às
organizações sociais. Fazer isso pavimentará o caminho para um
entendimento da estrutura de leis do Estado, que será esboçada no próximo
capítulo.
Ver-se-á que as comunidades sociais enquadram-se em duas maiores
divisões, que denominarei “instituições” e “organizações”. Apenas o tipo
mais forte de comunidade social será denominada uma instituição, de modo
que o uso desse termo se referirá apenas a comunidades apresentando todas
as três características seguintes: (1) seus membros são unidos em um grau
intenso; (2) a membresia carrega a intenção de durar por toda a vida; (3) a
membresia é (pelo menos em parte) independente da vontade dos membros.
As comunidades com essas características são o casamento, a família, o
Estado e comunidades religiosas como templo, mesquita, ou igreja.[287]
A membresia em instituições pode ser independente da vontade de um
membro em dois sentidos. Um primeiro é que uma pessoa geralmente nasce
numa família, num estado, e em alguma filiação religiosa. O outro é que a
mudança de membresia em tais instituições não é feita facilmente, ou
simplesmente por uma decisão unilateral. Para se modificar a cidadania de
um indivíduo ou sua membresia em uma instituição religiosa exige-se uma
aceitação por parte da nova instituição envolvida, e legalmente o término de
um casamento envolve que o divórcio seja reconhecido pelo Estado. E não
importa como os laços de afeição familiar possam romper-se, uma pessoa é
um membro biológico de uma família enquanto existir. Em contraposição a
isso, “organizações” sociais são aquelas nas quais os vínculos do membro são
menos intensos e menos permanentes. Organizações também decidem quem
pode ou não integrá-las, mas a membresia não geralmente carrega a intenção
de que seja por toda a vida, e seus membros são livres para irem e virem mais
facilmente. Exemplos de organizações são empresas, hospitais, sindicatos,
partidos políticos e escolas.
No último capítulo vimos por que nossa teoria considera que os
artefatos apresentam naturezas que são centralmente caracterizadas por dois
aspectos: sua “função fundante” é o aspecto que qualifica o tipo de processo
pelo qual elas são formadas, e sua “função guia” é o aspecto que qualifica o
tipo de plano que conduz sua formação. Em relação à primeira, eu disse que o
processo pelo qual grande parte dos artefatos vêm a ser formados é
qualificado historicamente. (Lembre-se da forma que utilizamos o termo
“histórico” era equivalente a “cultural” e referia-se ao livre exercício do
poder técnico que os humanos têm para formar novas coisas a partir dos
materiais naturais.) Notamos, então, que as comunidades sociais também
estão entre as coisas novas que os humanos formam, e que grande parte
dessas também apresentam uma função fundante histórico/cultural.
Mas existem diferenças importantes entre os artefatos que são coisas e
os artefatos que são comunidades sociais. Por exemplo, as funções guias dos
primeiros são qualificadas por aspectos nos quais eles funcionam apenas
passivamente. Uma cadeira, ou uma casa, apresentam uma função guia social,
mas elas não exercem relacionamentos sociais de forma ativa, mas apenas
apresentam uma função potencial social passiva naquele aspecto. Assim, sua
função guia precisa ser atualizada em relação à vida social humana.
Comunidades sociais, em contrapartida, funcionam ativamente em todos os
aspectos assim como apresentam uma função guia em algum aspecto. Um
negócio, por exemplo, realizada atividades econômicas, assim como uma
banda ou uma companhia de dança exerce ações esteticamente qualificadas,
ou uma igreja conduz ativamente ritos que têm uma função guia fiduciária.
Portanto, quando disse anteriormente que apenas humanos funcionam
ativamente em todos os aspectos, isso deveria ser agora entendido como
incluindo comunidades compostas de humanos, e não apenas humanos
individuais.
Apesar de ser como humanos individuais por apresentar funções ativas
em todos os aspectos, as comunidades sociais diferem, no entanto, de
humanos individuais ao apresentarem naturezas que podem ser explicadas
pela relação de suas funções fundante e guia. Já vimos por que deve ser
mantido que a natureza humana não apresenta função guia, e argumentos
complementares para esse ponto serão oferecidos em breve. Por ora, será
suficiente relembramo-nos a razão que já assinalamos, a saber, que embora o
coração humano existe e funciona sob os limites de leis aspectuais, ele não é
determinado por estas leis, mas possui liberdade genuína. Essa liberdade, eu
disse, é possível porque há no coração mais do que suas funções aspectuais, e
esse “mais” reflete a realidade de ter sido criado à imagem de Deus. O que
qualifica a natureza humana não é, portanto, nenhum aspecto da criação, nem
todos eles tomados conjuntamente. A natureza humana é religiosa em seu
cerne: os humanos foram criados para comunhão com Deus, para ter uma
relação com Deus como a característica mais central de sua natureza, e para
ter sua destinação última com Deus em absoluto para além do presente
cosmos. Dessa forma, embora as comunidades sociais humanas sejam como
humanos individuais ao apresentar funções ativas em todos os aspectos, elas,
no entanto, não apresentam naturezas caracterizadas pelas três relações
religiosas acima mencionadas. Pelo contrário, elas são como outros artefatos
por terem uma natureza que pode ser compreendida pela relação de suas
funções fundantes à função guia, em conjunção com sua lei típica. Para
comunidades sociais, então, continuaremos a falar de sua função fundante
como o aspecto que qualifica o processo de sua formação, e sua função guia
como o aspecto que qualifica o tipo de plano que conduz sua formação.
Nessa altura você pode estar se perguntando por que eu disse que “a
maior parte” das comunidades sociais apresentam uma função fundante
histórica; afinal de contas, o que mais poderia possivelmente qualificar o
processo de sua formação? A resposta é que o “a maior parte” buscou deixar
espaço para duas instituições sociais que não são simplesmente livres
criações da formação e do planejamento humanos, mas estão enraizadas no
lado biótico, sexual, da natureza humana. São elas o casamento e a família.
As formas sociais específicas para estabelecer casamentos e famílias estão,
obviamente, sob o controle humano e variam culturalmente. Mas é a
distinção subjacente entre os sexos e a atração entre eles que qualificam o
processo pelo qual casamentos e famílias são formadas. E isso não é, em si
mesmo, um produto do planejamento ou invenção humanos. Talvez a melhor
forma de enxergar a centralidade do aspecto biótico dessas duas comunidades
é notar o fato de que eles são os únicos a cessarem de existir quando seus
membros originais morrem. Um casamento cessa de existir quando os
cônjuges morrem, ao passo que uma família nuclear deixa de existir quando
os pais, ou os filhos morrem (relações entre irmãos obviamente permanecem
após a morte dos pais, mas a família não). Isso é suficiente para distinguir
essas comunidades de outras como igrejas, escolas, negócios, organizações
de caridade, Estados, etc., que podem continuar a existir mesmo quando
todos os seus membros originais os deixam ou morrem. Nossa teoria irá,
portanto, chamar o casamento e a família de “instituições naturais”, a fim de
reconhecer sua função biótica fundante.[288]
Ao mesmo tempo, no entanto, qualquer visão do casamento ou da
família que os conceba como restritivamente biológico é reducionista.
Embora a ordem biológica da criação forneça o fundamento para sua
formação, sua função guia e propósito estrutural é governado pela ética
normativa do amor. Aqui nossa teoria não apenas apela a seus três princípios
orientadores, mas os combina com o ensinamento das Escrituras acerca do
casamento, em que é tratado como sendo essencialmente uma comunidade de
amor entre o esposo e a esposa (Gn 1.28, 2.18, 24; Mc 10.5-9; Ef 5.25-33).
De forma complementar, o livro de Gênesis evidencia de forma profunda
essa visão ao considerar a relação sexual de Adão e Eva como necessária ao
seu vínculo de amor e boa para ambos, antes mesmos de sua queda no
pecado. E finalmente, nossa linguagem ordinária também reflete isso quando
falamos que os humanos não simplesmente se “acasalam”, mas “fazem
amor”. Assim, qualquer que insista, como Aristóteles o fez, que o propósito
único do sexo é perpetuar a espécie, comete um sério erro.
Sem dúvida, o casamento e a família cumprem o propósito de
perpetuação da raça humana. O fato, no entanto, não altera o que
denominamos o “propósito estrutural” de qualquer artefato, o qual é
governado por sua função guia. Mantenha em mente, por favor, aquilo que já
foi pontuado sobre o propósito estrutural de um artefato, quando já foi
distinguido de outros propósitos subjetivos que as pessoas possam ter em
relação a eles. Pois embora seja verdade que os parceiros em um casamento
possam ser motivados por escalada social ou ganho financeiro, o propósito
estrutural da instituição do casamento permanece não afetado. Ele é garantido
por sua função guia e é evidenciado apenas por seu espírito interno: a
perpetuação e aperfeiçoamento do tipo de amor que forma o mais estreito de
todos os vínculos humanos.[289]
Em adição às suas funções fundante e guia, todas as comunidades são
estruturadas por uma lei típica e cada tipo exibe uma série de variedades.
Existem variedades de estados, negócios e comunidades artísticas, por
exemplo, e também existem variedades de famílias. Geralmente as variações
familiares estão associadas ao modo que o sustento da família é provido.
Observe, por exemplo, a variação nas relações entre os membros de uma
família do campo, uma família proletária, uma família real, e uma família que
conduz seu próprio negócio. Também reconhecemos que assim como podem
existir coisas naturais deformadas, podem haver, do mesmo modo,
comunidades sociais deformadas. Dois exemplos são um Estado com uma
ditadura absoluta e uma família poliândrica. Mas nem as variedades, nem as
deformidades em comunidades sociais atuais, afetam os princípios estruturais
que as tornam possíveis, uma vez que esses princípios residem no lado lei da
criação. Assim, enquanto comunidades concretas podem ser deformadas, as
funções qualificadoras e as leis típicas que as estruturam são imunes à
alteração.
Esse tipo de abordagem à teoria social não é bem recebida em nossos
dias. Muitos teóricos desejam considerar todos os relacionamentos sociais
como invenções completamente humanas e, portanto, infinitamente variáveis,
em vez de considerarem-nas como a atualização de potencialidades que são
possibilitadas por leis típicas já vigentes no cosmos. Mas chamar a atenção
para as leis aspectuais e interaspectuais da criação é uma das principais
vantagens interpretativas que nossa teoria pode oferecer. Isso nos permite
focar sobre os princípios fixos subjacentes aos diferentes tipos de
comunidades sociais humanas, de modo que não somos desviados por cada
variação, ou deformação, que eles possam apresentar. Essa é uma vantagem
significativa permitida pelo entendimento desses tipos com base em sua
qualificação aspectual (sua função fundante somada à sua função guia), e sua
lei típica específica. A descoberta desta última se dá pela análise dos modos
mais básicos pelos quais os membros de uma comunidade devem se
relacionar em todos os aspectos para que aquele tipo de comunidade exista. É
pela formulação de um enunciado geral sobre essas relações que podemos
nos aproximar da lei típica que as torna possíveis. Mas sem uma ideia da
estrutura de leis da criação para orientar uma teoria das comunidades sociais,
como alguém poderia chegar até a natureza aspectual de cada tipo? Como
poderia alguém sequer dizer quais formas sociais são normais e quais são
aberrações? Como Dooyeweerd colocou:
Se considerarmos qualquer bordado pela parte de trás, não descobrimos
qualquer padrão no entrecruzamento confuso dos entrelaçamentos. De
semelhante modo, não podemos descobrir os padrões estruturais dos
diferentes tipos de relacionamentos sociais se prestarmos atenção apenas
às... [formas que encontramos na existência e nos modos], nos quais
estão entrelaçados uns com os outros. (New Critique, vol. III,p. 176)
Mas, pode-se objetar, isso significa que não podemos fazer sociologia sem
uma teoria filosófica? Se sim, seria a ciência da sociologia então reduzida à
filosofia social? E, se não, qual é a diferença entre elas?
Já vimos as razões pelas quais nenhuma teoria devotada a um aspecto
particular da experiência pode evitar pressuposições filosóficas. Todas
igualmente irão fazer suposições sobre a natureza da realidade e do
conhecimento, seja quando as expressam claramente, seja quando as deixam
desarticuladas. Assim, pontuar como nossa teoria da realidade regula a
sociologia não é fazer nada senão tornar explícito como a visão da natureza
do cosmos esboçada pela teoria da estrutura de leis pode orientar a teoria
social. Assumir essa abordagem, portanto, não é uma demanda distinta para
que todos os teóricos sociais façam primeiramente filosofia do que o seria em
relação a qualquer outra ciência. Enquanto a filosofia lida explicitamente com
a questão sobre como todos os aspectos relacionam-se uns com os outros, os
cientistas (incluindo os sociólogos) podem pressupor tal ideia sem torná-la
explícita. Mas independentemente de torná-la explícita ou não, em todo caso,
as teorias oferecidas variarão em relação quanto ao modo em que entendem a
conectividade interaspectual. Deixar a teoria da estrutura de leis meramente
implícita neste capítulo, no entanto, anularia seu propósito mesmo, já que
minha intenção aqui não é apenas demonstrar as diferenças que a teoria faz
para a sociologia, mas elaborar a teoria da estrutura de leis no trajeto pelo
qual percorremos.
Ao aplicar a teoria da estrutura de leis às organizações sociais não
estamos, todavia, restringindo-nos a empregar conceitos de funções
qualificadoras e leis típicas — por mais poderosas que sejam. Também temos
à nossa disposição normas aspectuais como os padrões para aquilo que é
normal ou anormal em relação às diversas comunidades. Este é um assunto
altamente controverso. Muitas teorias sociais reivindicam que nenhuma
descrição da sociedade pode ser científica a menos que ela delete qualquer
referência a normas. Assim, voltamo-nos agora à questão sobre se a
sociologia pode desenvolver uma teoria sobre as naturezas e interações entre
comunidades simplesmente descrevendo-as como elas são (os fatos sociais),
sem qualquer referência a como elas deveriam ser (normas sociais). Para
tratar do tema, a primeira questão em relação à qual devemos estar claros é
acerca do significado do termo “norma”.
Aqui, também, existem duas posições para as quais ambas as partes parecem
ter bons argumentos a seu favor. O coletivista questiona como poderiam
haver indivíduos se não houvessem pais e um grupo de família estendida para
cuidar da mãe e dos filhos, enquanto o individualista questiona como poderia
haver qualquer grupo se não houvesse indivíduos para formá-los. Isso soa
como a antiga piada sobre o que veio primeiro, o ovo ou a galinha, e isso
poderia ser engraçado, não fosse o fato de que esse debate tem consequências
muito sérias tanto para a teoria quanto para a prática social. Isso se dá
particularmente associado ao entendimento de justiça em relação às
instituições e organizações da sociedade, como veremos no próximo capítulo.
Antes de abordarmos o dilema individualismo/coletivismo, no entanto,
vamos tratar da questão sobre se as comunidades sociais devem ser sequer
consideradas reais. Mesmo que não falemos usualmente de uma instituição
social ou organização como uma “coisa”, isso não significa que ela não seja
real; também não falamos acerca de uma pessoa como uma “coisa”, mas isso
não significa que pessoas não são reais. E certamente comunidades sociais
são reconhecíveis como unidades distintas, assim como coisas e pessoas o
são. Além disso, o argumento de que não existem instituições sociais reais,
mas apenas indivíduos e suas relações, é autocontraditória. Se se admite que
relacionamentos interindividuais são reais, então como pode se negar que
casamentos, famílias, negócios, igrejas, escolas, sindicatos, partidos políticos,
etc., também sejam reais? Se as relações entre indivíduos são reais, então o
são também as comunidades constituídas por eles. Ademais, a visão de que
elas são algo acima e além dos indivíduos que são seus membros é reforçado
pelo fato de que para todas as comunidades sociais, exceto o casamento, sua
identidade persiste mesmo quando seus membros se modificam. E mais:
vimos que comunidades sociais funcionam em todos os aspectos da
experiência, e têm distintas funções qualificadoras determinando suas
naturezas. Assim, em todos esses sentidos elas são o mesmo que outros
artefatos humanos, e deveriam ser consideradas tão reais quanto estes o são.
Mas colocando de lado essa versão extrema, o coração de qualquer
teoria individualista é a afirmação de que indivíduos são realidades mais
básicas do que comunidades. O sentido de “básico” aqui pretendido é, de
fato, o mesmo que se deu nas teorias reducionistas da realidade. Implica que
indivíduos podem existir sem comunidades, mas que comunidades não
podem existir sem indivíduos. Esta, no entanto, é uma declaração
extremamente implausível. Como Aristóteles pontuou, um indivíduo solitário
morrerá rapidamente. Talvez a forma mais fácil de enxergar a verdade desse
ponto seja pensar no período extenso de tempo em que bebês são totalmente
vulneráveis e exigem constante cuidado e atenção. Não apenas isso, mas
imediatamente após dar à luz uma mulher que amamenta também necessitará
de proteção e provisão de alimento, de modo que sem um arranjo social
ninguém poderia sobreviver. E embora possamos ser tentados a imaginar que
um adulto isolado poderia sobreviver no ambiente selvagem, isso seria
possível apenas porque o conhecimento e as habilidades de tal pessoa já
teriam sido adquiridos ao ser criado na sociedade humana. Finalmente, não
há evidências de que houve um tempo em que as pessoas viviam em
completo isolamento, sem qualquer comunidade social como Hobbes
afirmou, ou sem qualquer autoridade governante conforme declarou outro
famoso individualista, John Locke. Até onde sabemos, pessoas sempre
viveram em famílias, tribos, clãs, ou vilas, e com algum tipo de autoridade
reconhecida, regras e tradições.
Por outro lado, a posição coletivista enxerga cada pessoa como
dependente e portanto literalmente uma parte de alguma totalidade social
todo-inclusiva. Isso, no entanto, está completamente em desacordo com a
natureza das comunidades sociais. Uma comunidade social não é
autossuficiente em relação aos indivíduos, uma vez que ela não pode existir
sem indivíduos, assim como os indivíduos não podem existir sem ela. Desse
modo, nossa primeira objeção ao coletivismo ataca sua premissa mais
fundamental, tal como nosso primeiro ataque ao individualismo atacou sua
declaração mais fundamental. Ambas as teorias são erradas, dizemos, porque
indivíduos e comunidades sociais existem em uma correlação mútua na qual
nenhuma pode existir sem a outra: nenhuma é “básica” em relação à outra,
porque nenhuma foi alguma vez a fonte da outra já que ambas foram criadas
simultaneamente por Deus.
Ademais, a partir do ponto de vista teísta, é repugnante considerar
indivíduos meramente como partes de qualquer comunidade social humana.
Eles não são meramente “engrenagens na máquina” do Estado, ou “células no
organismo” da família humana. A coisa mais singularmente humana que as
pessoas têm, a partir do ponto de vista teísta, é sua capacidade de comunhão
com Deus. Este foi o propósito mesmo de sua criação, de acordo com
Gênesis, e é isso que torna possível para os humanos serem membros do
reino espiritual de Deus que transcende todas as comunidades formadas por
humanos. Isso é tão profundamente verdadeiro acerca dos humanos que,
mesmo quando rejeitam o verdadeiro Deus, eles não podem deixar de crer em
outro algo como divino. Quando isso ocorre, eles se tornam, por meio disso,
membros de um reino espiritual correspondente baseado numa falsa crença, o
qual também transcende qualquer comunidade formada por humanos. Por
essa razão, devemos insistir que embora os humanos sempre vivam e
funcionem em comunidades sociais, não existe comunidade formada por
humanos das quais eles não são nada senão partes.
Nesse ponto, também, temos razões adicionais para reconhecer por que
prosseguir em nosso programa não reducionista para teorias, e combiná-lo
com os ensinamentos específicos das Escrituras mencionados acima, conduz
à posição de que, embora os humanos funcionem ativamente em todos os
aspectos da criação, a natureza humana não é meramente a soma dessas
funções. Como notamos nos capítulos 9 e 11, e anteriormente neste capítulo,
a natureza humana é mais do que todas essas funções, uma vez que reside no
“coração” humano, ou ego, o qual tem uma relação única com o criador que
transcende a criação. Portanto, diferentemente de todas as demais criaturas,
os humanos não apresentam uma função qualificadora única. Mesmo sua
função no aspecto fiduciário, que expressa sua fé, não é idêntico à relação de
seu coração com Deus. Antes, é a orientação do coração em relação a Deus
(ou o que quer que ele tome como divino em seu lugar) que direciona o
exercício de todos os aspectos da fé. Sendo orientada de forma apropriada, a
relação do coração com Deus estende-se, assim, para além da realidade criada
até ao Criador e, como já pontuado, é essa relação que caracteriza mais
centralmente os humanos como seres religiosos. Ao mesmo tempo isso é
perfeitamente compatível com o fato de que humanos — individual ou
coletivamente — realizam atos e tomam parte em comunidades sociais que
apresentam, de fato, funções qualificadoras.
Também já vimos por que as comunidades sociais, em contrapartida,
não podem apresentar o tipo de relação direta com Deus que cada humano
pode ter. Elas são, com certeza, dominadas por normas, ideias, tradições, etc.,
que servem ou a Deus ou a um substituto de Deus. Mas mesmo instituições
religiosas não podem ter um destino eterno como as pessoas o têm. Assim,
existe uma diferença crucial entre a natureza de qualquer comunidade social e
a natureza humana que proíbe que interpretemos as pessoas como se não
fossem nada mais do que uma parte de determinada totalidade social.
Pelas mesmas razões, devemos também rejeitar as consequências
maiores de cada uma dessas teorias tradicionais. Por exemplo, teorias
individualistas consideram todas as comunidades sociais como formadas pela
associação voluntária de indivíduos livres que estabeleceram um contrato
entre si para promover algum valor que consideram caro. Como
consequência, essas teorias geralmente assumem que tais “contratos sociais”
são a melhor forma de se proteger a dignidade e que o bem-estar do indivíduo
é de suma importância. Eles, portanto, consideram o bem-estar da
comunidade mais ampla como algo secundário. Teorias coletivistas,
diferentemente, argumentam que indivíduos são sempre dependentes de
comunidades sociais, tanto biológica quanto culturalmente. Em sua visão,
comunidades sociais não são, em absoluto, inventadas livremente por pessoas
que outrora viveram sem elas e podiam ainda sobreviver sem elas caso o
quisessem. Isso geralmente faz com que estimem a dignidade e o bem-estar
da comunidade social totalizante como não apenas mais importante do que
aqueles de qualquer indivíduo, mas também como mais importante do que
todas as sub-comunidades contidas nela. Dessa forma, a resposta de cada uma
das teorias à questão sobre se os indivíduos criam a comunidade, ou se a
comunidade cria os indivíduos, gera diferenças importantes nas prioridades
sociais. No caso de conflito entre o bem da totalidade social e o bem do
indivíduo, uma teoria dá prioridade ao indivíduo, enquanto a outra dá-a à
comunidade. Diferentemente de nossa teoria, nenhum lado pode encontrar
um equilíbrio de princípios entre o indivíduo e a sociedade, porque cada um
já começou atribuindo uma primazia reducionista ao indivíduo ou a
sociedade.
Essa controvérsia acerca de onde deve-se estabelecer a prioridade
social não resulta simplesmente em diferenças vagas nas atitudes dos adeptos
de cada um dos lados. Não é simplesmente que, em um caso na corte, um juiz
que possua uma perspectiva individualista tenderia a favorecer os direitos do
indivíduo, ao passo que um juiz coletivista tenderia a favorecer o bem-estar
da sociedade. Tais resultados, tomados todos em si mesmos, seriam
suficientemente importantes, e resultariam em diferenças significativas na
forma como os casos são decididos. Mas a verdadeira relevância das duas
posições é ainda maior, na medida em que cada uma delas oferece uma
inclinação particular para a própria ideia de justiça que subjaz não apenas
às decisões judiciais, mas ao modo em que as leis são escritas.
Para apreciarmos a extensão em que isso se dá, considere que as visões
coletivistas de Aristóteles e Marx definiram justiça como a manutenção da
harmonia entre as partes de uma sociedade para a preservação da sociedade
como um todo. Na visão de ambos, isso significava que cada comunidade
social que não fosse o Estado deveria ser totalmente regulada pelo Estado
para o benefício do Estado. Eles assumiram essa posição porque todas as
outras comunidades eram supostamente partes do Estado, o qual era visto
como a totalidade social toda-abrangente. A justiça, com isso, é considerada
como tudo o que tende a preservar o Estado na opinião do próprio Estado.
Essa visão, pois, não enxerga limites intrínsecos ao que o Estado possa exigir
ou proibir. Consequentemente ela enxerga os direitos humanos como nada
mais do aquilo que é do interesse do Estado garantir. Em contrapartida, a
influente teoria individualista de Locke afirmava que a principal ideia de
justiça é a proteção da vida e da propriedade de cada indivíduo. Ela concebe
os indivíduos como os possuidores de direitos morais e legais “naturais”, dos
quais o Estado não é a fonte e para cuja preservação o Estado foi criado. A
única forma pela qual qualquer direito natural pode ser perdido de forma
justa, pensava Locke, é se os indivíduos concordarem voluntariamente em
entregá-los ao Estado. A visão de Locke é certamente um grande
aperfeiçoamento da visão coletivista. (E existem outras partes desta sua visão
que procedem de ensinamentos das Escrituras, com os quais não temos
objeções.) Mas seu individualismo o levou a restringir a ideia de justiça à
proteção das vidas individuais e da propriedade privada, de modo que não há
espaço em sua teoria para a preocupação do Estado com a justiça pública,
quando a propriedade privada não estiver envolvida. Nesse sentido, a
descrição de Locke sobre o governo faz com que ela se assemelhe mais a
uma empresa de segurança privada do que ao corpo legislativo no Estado.
Não me aprofundarei aqui nas consequências dessas duas posições
tradicionais, uma vez que elas serão analisadas criticamente em maiores
detalhes no próximo capítulo. No momento, é suficiente pontuar como cada
uma das visões tradicionais distorce o sentido da justiça definindo-a mais
fundamentalmente ora como a preservação dos indivíduos, ora como a
preservação da totalidade coletiva da sociedade. Por outro lado, nossa teoria
da estrutura de leis livrar-nos-á de ter de escolher entre o individualismo e o
coletivismo. Ela assinala que, visto que as normas da justiça, que são a fonte
dos direitos humanos, não residem nem nas pessoas individuais nem na
totalidade coletiva da sociedade, nenhum dentre eles deve ser favorecido em
relação ao outro na administração da justiça. Em vez de focalizar de forma
estreita sobre um ou outro, a teoria da estrutura de leis oferece lentes
angulares amplas para incluir o espectro inteiro da vida de modo que a norma
da justiça seja igualmente aplicada tanto a indivíduos quanto a comunidades
sociais.
Não pode existir um esquema único para representar a visão da soberania das
esferas da sociedade, porque é impossível representá-la em um diagrama bi-
dimensional. Para relembrar isso, ofereço dois diagramas. O primeiro (Figura
8) representa o funcionamento de um indivíduo em uma série de aspectos
normativos que correspondem às esferas sociais que qualificam as funções
guias das comunidades nomeadas próximas a elas. Neste esquema, o centro
do círculo representa uma pessoa individual. Cada indivíduo apresenta todos
os aspectos em sua vida social, os quais são designados pelos segmentos do
círculo, quer participem ou não ativamente nas comunidades
correspondentes. Externamente a cada segmento são nomeadas (algumas das)
as comunidades que são qualificadas por esse aspecto, comunidades que as
pessoas formam para expressar, promover e proteger os interesses da vida
que aquele aspecto qualifica.
O segundo diagrama (Figura 9) representa uma visão de uma série de
comunidades sociais conforme variam ao longo dos aspectos, a partir de sua
função fundante até sua função guia, de acordo com suas leis típicas.
Figura 9
Como deveria estar evidente mesmo neste breve esboço, nossa teoria social
quer considerar todas as comunidades sociais. Assim como a teoria da
estrutura de leis da realidade tenta oferecer uma descrição sobre a natureza de
todas as coisas, desde um átomo, passando por uma escultura, até a uma
comunidade, do mesmo modo sua aplicação a uma teoria da sociedade não
quer deixar de fora nenhuma comunidade social. Nesse tocante, ela contrasta
favoravelmente com aquelas teorias que se restringem apenas à relação do
indivíduo com o governo, como o fez Locke e os pais fundadores dos EUA.
Muitas teorias sociais modernas não fazem muito mais do que isso,
expandindo seu escopo para incluir no máximo as relações da família,
governo, igreja e negócios. Como consequência, elas invariavelmente
interpretam equivocadamente as naturezas de comunidades como escolas,
organizações artísticas, sindicatos, partidos políticos, e organizações de
caridade, seja por subsumi-las ao Estado ou ao considerá-las como negócios.
Tal desentendimento distorce a própria natureza dessas comunidades, e
prejudicam em muito seu efetivo funcionamento.
O próximo capítulo esboçará uma teoria do Estado orientada tanto pela
teoria da estrutura de leis quanto pelo princípio de esfera de soberania. Nele
ilustrarei de forma mais ampla o conceito de lei típica, de modo a termos uma
descrição mais detalhada dos deveres e limites do Estado, baseada numa
descrição mais profunda de sua natureza. Mas há uma questão relacionada ao
Estado que é geralmente levantada em relação ao princípio de esfera de
soberania que, penso, deveria ser respondida neste momento. A questão é se a
ideia da não interferência entre comunidades sociais não necessitaria, em
alguns contextos, de ser implementada e, caso positivo, se o Estado não teria
de realizar tal implementação. A questão pretende sugerir que a exigência de
que o Estado aplique limitações sobre si mesmo é tanto irônico quanto
impraticável.
A despeito da ironia, a resposta a ambas as questões, no entanto, é
“sim”. Isso é simplesmente o correto porque a esfera de soberania deve agir
como um princípio orientador para nossa ideia de justiça, de modo que tem
de refletir-se na legislação para que seus benefícios sejam desfrutados. Em
nossa visão, portanto, garantir a distinção e integridade de esfera de todos os
tipos de comunidades é parte da administração da justiça pública, que, por
sua vez, é o dever do Estado. Isso não significa, no entanto, que o Estado cria
as fronteiras das esferas entre as comunidades. Antes, significa que ele é
chamado a observar e impor tais fronteiras para o benefício de todas as
comunidades e seus membros individuais. Em relação à alegada ironia
envolvida nisso, posso apenas dizer que em todas as nações onde
presentemente há um governo limitado com um sério interesse pelos direitos
humanos, esses benefícios se seguem precisamente porque o Estado limitou a
si mesmo. De que outra forma isso poderia ter ocorrido? Assim, embora o
objetivo da questão seja demonstrar ceticismo de que aqueles no poder de
alguma forma concordariam em legislar limites a ele, a questão na verdade
serve para destacar a forma que nossas crenças sobre a natureza vida social
humana orienta a legislação. Onde as pessoas creem que a sociedade é uma
hierarquia e que existe uma pessoa ou instituição suprema, eles criam leis que
aplicam essa ideia. Mas onde pessoas creem que indivíduos e comunidades
possuem direitos e obrigações em relação umas às outras de modo que não
existe uma autoridade suprema, eles criam leis que aplicam, por sua vez, essa
ideia. E eu lembraria ao cético um exemplo notável disso, a saber, que
George Washington recebeu por duas vezes poderes ditatoriais emergenciais
pelo Congresso dos Estados Unidos, mas voluntariamente abriu mão deles,
em ambas as vezes por sua própria iniciativa. (Como resultado, quando
Washington morreu, seu adversário George III o chamou de o maior homem
do mundo, pois possuiu poder absoluto, mas voluntariamente o renunciou.)
Tudo isso serve para nos lembrar que nenhuma forma de governo em si
mesma é suficiente para assegurar direitos e liberdades, e que o fator crucial
para o tipo de Estado que uma nação tem é em que seu povo — incluindo os
oficiais do governo — crê. Se seu sentido de justiça e suas ideias sobre
comunidades sociais são orientados pela ideia de soberania de esfera entre
tipos distintos de comunidades em vez de serem orientados por alguma
versão da ideia totalitária de sociedade, eles então podem obter os benefícios
consequentes de um Estado limitado e direitos humanos. Mas, ainda assim,
nenhuma forma particular de tal governo pode garantir que o Estado nunca
usará mal seu poder.
Desse modo, apesar das muitas bênçãos jurídicas e sociais que a ideia
de esfera de soberania possibilita, não supomos que essa iria inaugurar uma
utopia se posta em prática. Mesmo se amplamente crida e rigorosamente
aplicada, ela não poderia garantir que erros não seriam cometidos em sua
aplicação ou imposição, da mesma forma que ela não faria com que o pecado
humano, a criminalidade, a pobreza, ou a guerra, desaparecessem
magicamente. Tudo o que afirmamos é que os princípios de nossa teoria são a
chave para o entendimento das liberdades, direitos e obrigações apropriados
que as comunidades possuem umas em relação às outras. E também
afirmamos que a ideia correta desses limites, direitos e liberdades
intercomunais é precisamente o que deixa espaço para a delineação de
direitos e liberdades dos indivíduos em relação às comunidades e dos
indivíduos em relação uns aos outros.
CAPÍTULO 12. UMA TEORIA NÃO
REDUCIONISTA DO ESTADO
12.1 Introdução
A visão da sociedade apresentada teoria da estrutura de leis, esboçada no
último capítulo, pode agora aplicada especificamente à teoria política, ou
seja, em uma teoria sobre a instituição do Estado. Ao nos referirmos a esta
instituição, lidaremos principalmente com o governo, mas não apenas com o
governo. Um governo é o corpo regente em um Estado, como os pais são o
corpo regente em uma família, ou um conselho administrativo é o corpo
regente em um negócio. Portanto, do mesmo modo que há mais numa família
do que os pais, e mais num negócio do que o conselho administrativo,
também há mais coisas no Estado do que seu governo. A instituição do
Estado em sua inteireza inclui tanto o governo quanto os cidadãos, e pode ser
definida como: uma comunidade política organizada sob um governo.
Ao falar assim do “Estado” não se deveria confundir com o fato de que
alguns deles são divididos em subdivisões que em alguns momentos também
são — de forma bastante confusa — denominados “Estados”. A definição
apresentada acima deveria, no entanto, ser suficiente para evitar a confusão
entre os dois significados, uma vez que ela deixa claro que analisaremos as
comunidades políticas em sua inteireza, e não simplesmente suas subdivisões.
Assim, o termo “Estado”, conforme utilizo doravante, não se refere, portanto,
meramente às subdivisões de uma comunidade política tais como os estados
individuais que constituem os Estados Unidos da América. Na forma em que
utilizo o termo, existe apenas um Estado na nação dos Estados Unidos.
Apesar do papel sempre crescente que o governo exerce na vida
moderna, muitos que creem em Deus quase não podem encontrar orientação
de sua fé para suas vidas como cidadãos. Eles podem entender, por exemplo,
que ela os ensina a exigir honestidade dos oficiais do Estado, e que ela os
exorta a obedecerem às leis. Mas esses pontos são mais éticos do que
políticos, e são tão elementares ao ponto de não oferecerem qualquer
orientação para a multidão de questões difíceis em relação às quais os
crentes em Deus devem se decidir quando votam na condição de cidadãos.
Portanto, veremos agora como a teoria da estrutura de leis pode esboçar uma
conexão mais estreita entre a crença em Deus e alguns assuntos
especificamente políticos. Farei isso resumidamente sugerindo como os
princípios oferecidos por essa teoria podem ser aplicados à natureza do
Estado e a uns poucos tópicos selecionados, de modo a ilustrar suas
consequência políticas. Isso não significa que posso desenvolver uma teoria
política inteira aqui em um curto capítulo. Em relação aos dois capítulos
anteriores, posso apenas esboçar um rascunho sobre como tal teoria poderia
ser elaborada. E, por favor, mantenham em mente que o principal propósito
do capítulo não é tanto esse rascunho, mas sim tornar mais claros os
conceitos e princípios da teoria da estrutura de leis aplicando-as dessa
maneira. Por essa razão, farei constantes referências aos pontos já
apresentados nos dois últimos capítulos, aplicando-os ao que a teoria da
estrutura de leis tem a dizer sobre a distinta natureza do Estado.
Dooyeweerd observou certa vez: “Talvez não haja outra... comunidade
cujo caráter tenha dado origem a tamanha diversidade caótica de opiniões na
filosofia social e nas ciências sociais modernas do modo que o Estado o fez”.
[303]
Ele então prosseguiu dizendo que não apenas em teorias sociais
modernas, mas também nas antigas, o entendimento da natureza do Estado
sempre girou em torno da questão sobre a relação entre “poder” e “direito”.
Em outras palavras, a relação apropriada entre o uso estatal do poder e seu
dever de formular uma ordem de justiça pública tem sido um tema central e
constante na teoria política. Pautando-se nos dois componentes desse tema
central, a teoria da estrutura de leis será agora aplicada à natureza do Estado
em duas partes: uma que lidará com o poder do Estado, e outra, com a justiça
no Estado.
A. Poder estatal
De acordo com a teoria da estrutura de leis da sociedade, a natureza da
instituição do Estado é qualificada por uma correlação entre uma função
fundante histórica e uma função guia jurídica. Isso significa que, por um lado,
o Estado é um produto da formação cultural humana guiada por normas
históricas, e que, por outro, sua atividade na sociedade é guiada pela norma
da justiça. Sua função guia jurídica é a mesma que denominamos
anteriormente como seu propósito estrutural. Para o Estado, esse propósito
pode ser circunscrito como a promoção e o alcance de justiça pública para a
sociedade inteira que vive no território que governa.
Comunidades que são historicamente fundadas são produtos da
formação cultural, mas cada tipo delas também exerce seu próprio tipo de
influência histórico-cultural na sociedade, correspondente à sua função guia.
Por exemplo, um negócio pode ser uma força econômica, uma escola pode
exercer o poder dos conceitos e das ideias, enquanto uma organização
artística pode ter influência estética, e uma igreja ou mesquita pode
influenciar as crenças éticas e religiosas de uma sociedade. O mesmo é
verdadeiro acerca do Estado. Ele, também, exerce uma influência ou poder
que corresponde à sua função guia. No caso do Estado, esse é o poder de
legislação: o Estado empunha o poder para promulgar leis visando a
consecução de seu propósito estrutural, a saber, a administração da justiça
pública.
Por essas razões, nossa primeira aproximação da lei típica que
determina estruturalmente o Estado é que a organização interna de qualquer
Estado deve incluir pelo menos duas subdivisões: órgãos para a aplicação da
justiça (militar e polícia), e órgãos para decidir sobre o que é justo (legislatura
e cortes).
Ademais, essa lei típica revela algo importante sobre a maneira
apropriada pela qual essas duas subdivisões deveriam relacionar- se dentro de
um Estado. Os órgãos de força correspondem à função fundante do Estado,
ao passo que seus órgãos para o estabelecimento e interpretação das leis
correspondem à sua função guia. Desse modo, em um Estado formado
adequadamente, essas duas partes do Estado não deveriam ser idênticas
(como elas são em uma ditadura militar), nem deveria o órgão militar
controlar ou direcionar o estabelecimento e interpretação da lei. Antes, os
órgãos de justiça deveriam controlar e dirigir os órgãos de poder de aplicação
da lei.
Com isso não estamos sugerindo que o Estado é a única comunidade
ou relacionamento social no qual a justiça seja um interesse, nem que sejam
os únicos que produzem regras e leis. Deve haver justiça em todos os
relacionamentos e comunidades humanas — por exemplo, dentro de uma
escola, um negócio, um casamento, ou uma família. E uma das facetas mais
importantes da noção de soberania em nossa expressão “esfera de soberania”
é que os vários tipos de comunidades possuem todos o direito de produzir leis
ou regras que governem suas operações internas. Mas é apenas o governo —
o corpo regente no Estado — que tem a autoridade e o direito de legislar e
fazer cumprir a justiça para o público em geral. E é apenas o Estado que o faz
com o direito de utilizar o poder da força para amparar suas leis, em distinção
às outras formas de poder cultural. Esse direito é conferido por sua função
guia, ao serviço da qual seu poder se torna o uso “legítimo” da força. Uma
família, por exemplo, pode buscar justiça produzindo leis e pode aplicá-las
por meio de atitudes de aprovação e desaprovação, ou punições associadas a
privilégios familiares. Um negócio pode ter seu próprio código, assim como
uma escola, um sindicato, ou um clube. E leis eclesiásticas têm sido
altamente elaboradas. Essas comunidades podem todas impor sanções,
incluindo a expulsão ou o banimento de membros abusivos. Mas apenas o
Estado pode criar leis para estabelecer a justiça pública, e impor sanções para
o confisco de propriedade, perda de liberdade, ou mesmo a morte, por meio
da força fisicamente coercitiva.[305]
Por essa razão, afirmamos que uma importante consequência do
reconhecimento da lei típica do Estado, conforme difere daquela das outras
comunidades, é que o Estado é plenamente atual apenas onde possui o
monopólio do uso da força no território que ele governa. Na medida em que
ele não possui tal monopólio, sua habilidade de executar seu propósito
estrutural é minado. Nesse caso, qualquer comunidade que possua um poder
competidor é, de fato, um governo competidor dentro do mesmo corpo
político. Isso pode ocorrer em tempos de guerra civil, ou quando um
movimento político rival se arma para derrubar o governo, ou mesmo quando
uma organização usurpa o direito de alcançar suas metas pela força (tais
como o crime organizado). Dessa maneira, embora uma sociedade possa
produzir uma arte magnífica ou ter uma forte economia, sem uma força
militar ou proteção policial, ela jamais terá um Estado enquanto não puder
aplicar suas próprias leis ou defender seu território.
Uma vez que o Estado é parcialmente caracterizado pela posse do
direito do uso da força, alguns escritores na tradição cristã — especialmente
Santo Agostinho[306] — sugeriram que o Estado foi estabelecido na sociedade
humana apenas por conta do pecado. Vendo o Estado como essencialmente
uma restrição ao crime, eles afirmam que o Estado não teria lugar na
sociedade, caso as pessoas não fossem pecadoras. Ela é, portanto, uma
instituição “adicionada”, sem um papel apropriado nos assuntos humanos no
que tange à vida originalmente intencionada por Deus. Essa visão tem dois
importantes efeitos colaterais. Por um lado, ela promove uma visão bastante
estreita sobre a tarefa apropriada do Estado, e, por outro, tem fomentado uma
subestimação do Estado e da política. Essa subestimação, por vezes, tem
conduzido alguns pensadores a invocar bases teológicas para a opinião de que
os crentes em Deus deveriam se retirar totalmente das atividades políticas. A
teoria da estrutura de leis deve discordar dessa visão bastante limitada acerca
da tarefa do Estado. Como veremos adiante em maiores detalhes, a justiça
pública é um tema muito mais amplo do que simplesmente a restrição do
crime, e seria uma necessidade humana genuína mesmo se não houvesse
pecado. Em sua direção positiva, a tarefa do Estado é promover a paz e a
harmonia entre as pessoas e comunidades. James Skillen fez esse mesmo
ponto comparando o Estado e a família:
Biblicamente falando, a vida familiar foi criada por Deus para um
propósito positivo, amoroso, estimulante e designado para revelar a
Deus. Parte de nossa identidade como a imagem de Deus é que somos
filhos e filhas e frequentemente pais e mães. A família não surgiu como
uma invenção técnica para castigar filhos desobedientes. A punição e a
disciplina negativa não são a razão da família. Reconhecemos,
obviamente, que devido ao pecado pais terão de incorporar a punição na
criação de seus filhos a fim de promoverem famílias saudáveis. Mas o
castigo físico e outras formas de retribuição se encaixam em um sentido
mais original, mais profundo e amplo da vida familiar.
A vida em comunidades políticas é decerto bastante distinta da vida
familiar. Não pretendo descrever a vida cívica como a vida familiar
ampliada. Em vez disso, a analogia é esta: o propósito do governo, a
razão para a vida política não é primeiramente a punição de
transgressões por meio de oficiais do Estado, advogados de acusação e
forças armadas. Antes, o sentido central da vida política encontra-se na
realidade positiva de uma comunidade pública — os
interrelacionamentos saudáveis das pessoas mediante meios legais
públicos, de modo que o comércio, a vida familiar, a agricultura, a
indústria, a ciência, a arte, a educação, e muitas outras coisas possam ser
todas conduzidas simultaneamente, no mesmo território e de modo
harmônico e justo.[307]
Isso ajuda-nos a ver que mesmo se o pecado não fosse um fator, mesmo se as
pessoas vivessem em amor genuíno e harmonia umas com as outras, ainda
existiria a necessidade de uma ordem pública para definir justiça. Por
exemplo, ainda poderiam surgir diferenças honestas de opinião acerca de
propriedades ou contratos, as quais precisariam ser resolvidas por
especialistas imparciais em justiça. Sem dúvidas é por isso que as visões
judaica e cristã sobre o destino final do povo de Deus é que seus membros
serão cidadãos de seu reino, o qual será governado por seu Messias. Assim,
de acordo com o livro de Isaías, mesmo naquele reino onde “não se fará mal
nem dano algum em todo o meu santo monte” (11.9), ainda haverá a
necessidade de um governante que, “em verdade, promulgará o direito” e irá
“estabelecer na terra a justiça” (42.3,4). Por estas razões, penso que a visão
estreita [sobre o Estado] é resultado de um foco exclusivo sobre as
responsabilidades do Estado na lei criminal e na defesa nacional, excluindo
assim seus deveres em lei civil e lei internacional.
Obviamente concordo que o caráter do poder do Estado é
completamente alterado pelo fato do pecado nos assuntos humanos. Onde não
há pecado, as pessoas não teriam de ser compelidas a obedeceram às leis ou
às decisões da corte da maneira que hoje é necessário. Em relação a isso, é
significativo que o livro de Isaías também prediz que no reino final de Deus
as pessoas “converterão as suas espadas em relhas de arados e as suas lanças,
em podadeiras”, e “uma nação não levantará a espada contra outra nação”
(Is. 2.4). Mas mesmo nesse caso ainda haveria a necessidade de aplicar-se
princípios de justiça aos mutáveis assuntos humanos.[308]
Em relação ao segundo efeito colateral, não pode haver qualquer
dúvida de que a atividade política é apropriada para aqueles que creem em
Deus. A partir de um ponto de vista teísta, o que é inapropriado é que os
crentes abandonem o interesse pela justiça e a operação do Estado aos
incrédulos — assim como seria inapropriado que abandonássemos a
produção de ciência ou filosofia àqueles que têm outra divindade que não
Deus. Se nossa crença em Deus deve sublinhar e dirigir a totalidade da vida,
como as Escrituras declaram que deveria, então ela deveria dirigir também a
teoria e a prática políticas. É por isso que propomos a busca de tal orientação
por meio do desenvolvimento de uma teoria não reducionista da realidade e
da sociedade, suplementado pela ideia cristã de esferas de soberania. Dessa
forma, a crença em Deus pode oferecer orientação política que vai muito
além de uma oposição específica à tirania, do favorecimento da liberdade
religiosa, e de uma convocação aos oficiais do governo à honestidade. Ela
traz uma norma distinta para a sociedade (soberania de esfera), assim como
oferece uma visão específica sobre a natureza do Estado que tanto esclarece
seus deveres quanto estabelece os limites apropriados ao uso do poder ao
recorrer a seu propósito estrutural.
B. Justiça pública
De acordo com a teoria da estrutura de leis, existe um aspecto distinto da
experiência humana que corresponde às propriedades jurídicas possuídas
pelas pessoas, ações, instituições e regras. Também existe uma norma que
compreende o lado lei desse aspecto jurídico. Assim como nas leis e normas
dos demais aspectos, afirmamos que a norma da justiça não é meramente uma
invenção humana, mas parte da estrutura de leis que Deus instituiu na
criação. Essas normas são válidas, portanto, para todas as pessoas em todos
os tempos, mesmo que sua aplicação efetiva possa exigir a promulgação de
distintos estatutos legais ou a necessidade de variados procedimentos legais
sob distintas circunstâncias. Este aspecto jurídico de nossa experiência é
inicialmente conhecido da mesma forma intuitiva como todos os demais
aspectos: simplesmente o encontramos como parte do sentido de nossa
experiência de vida. A intuição de sua norma é o que geralmente chamamos
de nosso “senso de justiça”, e é comum entre os humanos em todas as partes.
Essa norma pode ser circunscrita como a ideia de tratar outros de forma a dar-
lhes o que lhes é devido. Isso soa tão demasiadamente simples que
deveríamos acrescentar que a norma possui uma série de facetas. Ela inclui
tais facetas como a de que nosso tratamento dos outros deveria ser imparcial,
deveria demonstrar uma proporcionalidade entre vários direitos, e deveria
envolver equidade na distribuição de direitos. A norma não é, portanto,
apenas de justiça retributiva (mesmo que a retribuição envolva tanto
recompensas quanto punições), mas ela também ordena justiça distributiva e
proporcional.
Como foi o caso com a experiência dos outros aspectos, o
reconhecimento intuitivo das verdades jurídicas não está confinado àqueles
que têm uma fé teísta. Muitos insights sobre a justiça têm sido descobertos
por pessoas cuja fé está em outras divindades, então aqui também não
necessitamos buscar por um entendimento totalmente novo sobre justiça. Não
precisamos ignorar tudo que se aprendeu a seu respeito no mundo antigo, que
foi incorporado à lei romana, ou que foi transmitido pela tradição anglo-saxã
da Common Law, por exemplo. No entanto, como também foi o caso com os
demais aspectos, o reconhecimento intuitivo das verdades jurídicas é
inevitavelmente dirigido e interpretado sob a influência de alguma crença
sobre a divindade. E como o foi com os demais aspectos da vida, também em
questões de justiça a influência religiosa é percebida mais claramente nas
teorias produzidas acerca dela: sua interpretação é influenciada por teorias da
realidade, da natureza humana, da natureza da sociedade e da natureza do
Estado. E onde essas teorias pressupõem uma crença pagã, os reducionismos
resultantes distorcem o sentido intuitivo em favor daqueles (ou daquele)
aspectos que são considerados divinos. O resultado é que alguns temas
jurídicos são super-enfatizados, enquanto outros não recebem o peso
apropriado, ou são totalmente ignorados.
Considere brevemente apenas um exemplo disso. Nos Estados Unidos,
a lei civil assume que qualquer que cause ao outro um prejuízo deveria
compensar a parte prejudicada. Isso se dá porque parece uma exigência óbvia
da justiça que se eu causo um dano à sua pessoa, propriedade, reputação, etc.,
eu deveria restaurar sua perda. Não é incrível, então, que essa necessidade da
justiça que parece tão óbvia para casos civis continue não reconhecida para
casos criminais? Por que se inadvertidamente causo um prejuízo pessoal, a
lei exige que pague por seus custos médicos e pela perda de seu tempo de
trabalho, mas se eu deliberadamente causo a outrem o mesmo prejuízo ao
assaltá-lo, a lei não exige que o compense?
O que está por trás desse ponto cego é uma visão falsa do Estado —
uma visão contra a qual argumentei no último capítulo. É a visão que entende
que a autoridade do governo tem origem no Estado (no caso, a vontade da
maioria), e não na estrutura de leis divinamente estabelecida. Onde se
entende que autoridade da lei é gerada pelo próprio Estado, é fácil enxergar
todos os atos criminosos como ofensas contra o Estado ao invés de contra as
vítimas destes atos. Assim, o código criminal dos EUA presume que o Estado
é a parte prejudicada em ações criminais! É por essa razão que o Estado
recebe qualquer taxa imposta ou qualquer propriedade confiscada, e é
considerado como a parte ao qual qualquer pena de prisão contará como um
débito pago. (Daí a expressão de que um condenado liberto teria “pago sua
dívida com a sociedade”, em que sociedade é claramente um sinônimo para
“o Estado”.) Essa visão serve para garantir que a parte realmente prejudicada,
a vítima, permaneça sem compensação pelas perdas sofridas, o que é
claramente uma injustiça.[309] Essa falha é ainda mais notável face ao fato de
que a lei de Moisés foi mais justa do que isso há mais de 3.000 anos, assim
como o são em muitos países europeus hoje.
Em contrapartida, a teoria da estrutura de leis vê o Estado como o
portador, não o criador, da autoridade que ele empunha ao aplicar a justiça.
A vontade da maioria decide quem serão os portadores daquela autoridade,
mas a autoridade em si mesma deriva-se da estrutura de leis da criação e,
portanto, em última análise de Deus. O Estado, portanto, é visto como a
instituição encarregada de ser o zelador jurídico de seus cidadãos. No que diz
respeito à lei criminal, ele deve agir portanto em seu interesse, não em
interesse de sua própria majestade ofendida. Dessa forma, vemos sua tarefa
apropriada a partir de um ângulo mais amplo do que o faz o código criminal
dos EUA. Vemo-lo encarregado não apenas em apreender, punir e — se
possível — reabilitar criminosos, mas também em outorgar justiça para a
parte real prejudicada, a vítima.
Essa é apenas uma instância de muitos insights políticos e legais que
nossa teoria pode oferecer. Em razão de sua visão teísta cristã acerca da
natureza da autoridade, de sua diferenciação de esferas sociais e de sua
análise dos tipos distintos de comunidades sociais, a teoria da estrutura de leis
nos auxilia a orientar nosso sentido de justiça, de modo que ele não se torne
estreitamente focado num segmento particular do espectro jurídico,
negligenciando os demais. Talvez essa vantagem possa ser mais bem
ilustrada comparando a teoria da estrutura de leis às duas visões mais
influentes de justiça, o individualismo e o coletivismo. Já vimos por que
ambas as teorias são teisticamente inaceitáveis. Cada uma é baseada na
convicção de que a fonte de autoridade nas comunidades sociais deve ser
localizada dentro da criação: em indivíduos que possuem um direito natural
para governar, ou numa comunidade toda-abrangente.
Contra o pano de fundo da discussão dessas teorias reducionistas
iniciada no último capítulo, irei agora comparar cada uma delas às
consequências da teoria da estrutura de leis para a natureza do Estado
enquanto instituição. Conforme prosseguir nessa análise, continuarei a
esboçar meus exemplos em grande medida a partir de assuntos e
circunstâncias políticas nos Estados Unidos. Começarei com uma rápida
leitura do coletivismo e algumas ilustrações de sua influência. Então
dedicarei mais tempo fazendo distinção entre a visão da estrutura de leis e o
individualismo, uma vez que muitas pessoas pensam que este é a única forma
de evitar o autoritarismo, e também porque ela é bem mais influente na cena
política dos EUA. Outra razão para dedicar mais tempo com essa visão é que
muitos teístas, incluindo muitos cristãos, pensam que, já que o individualismo
buscar evitar o totalitarismo, ele deve ser um ponto de vista teísta ou mesmo
cristão.
Na teoria coletivista, os direitos jurídicos devem em larga medida
proceder do público, organizados pelo Estado, e não dos indivíduos nem das
normas criacionais. Uma vez que a visão coletivista enxerga o bem da
sociedade como um todo como primordial, sua perspectiva sobre a justiça
tende a negligenciar tanto os indivíduos quanto as outras comunidades que
não o Estado. Mesmo aqueles socialistas que querem admitir que os direitos
não são criados apenas pelo Estado, mas procedem da sociedade como um
todo, são, no entanto, eventualmente forçados a identificar a sociedade com o
Estado. Por mais que tentem, os coletivistas não podem fugir das
consequências de sua teoria, isto é, de que os direitos são dádivas que o
Estado outorga aos indivíduos ou comunidades conforme julgue apropriado,
os que podem ser subtraídos ou alterados conforme o Estado também julgue
apropriado. Isso significa que o Estado é, em princípio, ilimitado em sua
competência legal. A própria ideia de justiça será, assim, tudo aquilo que o
Estado deseja. Isso permite um Estado totalitário que nivele as diferenças
aspectuais entre esferas sociais, violando assim a soberania de esfera de todas
as outras comunidades sociais. Inevitavelmente defende-se essa teoria quando
se concebe todas as outras comunidades sociais como partes do Estado, o que
em última instância obscurece suas leis típicas e propósitos estruturais
distintos.
Já vimos como a teoria da estrutura de leis, embora concorde que o
Estado tem um dever para com a totalidade da sociedade, restringe o poder
Estatal à administração da justiça pública (incluindo a segurança pública).
Ademais, ele encontra essa restrição não em algum limite supostamente
externo estabelecido pela influência de outras instituições como a igreja e os
negócios, e que é aplicada por seus poderes concorrentes, mas sim na
natureza mesma do próprio Estado. É a própria estrutura interna do Estado
que estabelece seus limites apropriados. E é o entendimento de sua natureza
por parte de seus próprios cidadãos que é a fonte dessas ideias que em
seguida devem ser incorporadas em sua lei constitucional.
Também notamos que a história política dos EUA foi fortemente
influenciada não apenas pela ideia cristã que denominei soberania de esfera,
mas também pelo individualismo de pensadores tais como Locke. Mas apesar
do ímpeto anti-coletivista dessas influências, ainda permanece a tendência
coletivista nas políticas e leis dos EUA. Observe, por exemplo, a questão
aparentemente menor do entendimento sobre o que é uma licença de
motorista. Existem muitas razões pelas quais é apropriado ao Estado registrar
motoristas. Uma delas é que a licença é uma forma de taxação que auxilia no
pagamento de estradas públicas e outras despesas estatais relacionadas à
manutenção das vias de tráfego. Outra é que se um motorista é imprudente,
ou dirige embriagado, o Estado tem o dever de proteger outros por meio da
remoção de tais motoristas das estradas revogando suas licenças. Porém, cada
vez mais, essas licenças passaram a ser vistas como a garantia da Estado em
permitir que uma pessoa conduza um veículo. Nesse ponto, uma visão
coletivista do Estado entra em cena no vácuo deixado pelo individualismo.
Pois uma vez que o individualismo oferece apenas direitos naturais inatos aos
indivíduos como os limites ao poder do Estado, e uma vez que não é
plausível reivindicar que todos nascem com um direito natural inato para
dirigir um carro, conclui-se que ninguém tem o direito de dirigir. Nesse caso,
não sobre nada para limitar a autoridade do Estado, e conclui-se desse modo
que a única alternativa é dizer que dirigir é um privilégio garantido pelo
Estado.[310] Em contrapartida a essa posição, a esfera de soberania demonstra
por que muitas atividades não deveriam ser vistas nem como direitos per se,
nem como privilégios em relação ao Estado, mas sim como liberdades.[311]
Pode-se aplicar essa mesma argumentação no tocante às licenças para
casamento. Na visão da estrutura de leis, o Estado tem um papel regulador
legítimo para com os casamentos, quando estes estão relacionados à saúde
pública. Mas fora isso, uma licença para casamento nunca deveria ser vista
como a obtenção da permissão do Estado todo-poderoso para se casar; antes,
ela é uma forma de se registrar um casamento no Estado, de modo que ele
possa assumir seu lugar na ordem pública legal. Um casamento, dizemos, é
essencialmente uma instituição ética, qualificada pela norma do amor que
guia as relações entre os cônjuges. Como tal, um casamento é formado pela
promessa mútua de amor exclusivo entre os cônjuges; ele não é criado pelo
Estado, assim como não é criado por uma instituição religiosa. Em suma:
uma instituição religiosa pode abençoar um casamento, um Estado pode
reconhecer legalmente um casamento, e uma cerimônia ou celebração
pública pode declarar um casamento. Mas apenas os parceiros em um
casamento podem produzi-lo. Mas as leis em grande parte dos Estados
Unidos assumem a atitude reversa. No que diz respeito ao casamento e
divórcio, os estados ali entendem que ambos são privilégios garantidos pelo
governo.
Outra indicação mais sutil de um coletivismo residual (e seu
totalitarismo concomitante e sub-reptício) na mente pública dos EUA é
demonstrada pela forma que certas expressões têm vindo à tona no uso
comum tanto entre políticos quanto entre comentaristas jornalísticos. As
expressões às quais me refiro geralmente surgem em relação a escândalos
dentro da administração governamental e consistem em observações sobre
como seria melhor para todos se o escândalo fosse colocado de lado, a fim de
a não desviar a atenção do Presidente. A forma de expressar esse ponto, no
entanto, é realmente aterradora. Diz-se que deveríamos agora colocar esse
escândalo de lado e deixar que o Presidente “volte a dirigir o país”. Ainda
que tais observações não pretendam ser tomadas literalmente — isto é, não
buscam ser uma descrição do trabalho do presidente — existe o perigo real de
que falar dessa forma ajuda a obscurecer alguns princípios políticos
extremamente importantes e frágeis. Entre estes conceitos estão os de que o
Estado é apenas uma dentre muitas comunidades na nação, de que o governo
é apenas uma parte do Estado (embora seja a parte governante), e que o
Presidente comanda apenas um dos ramos do governo federal.
Esses pontos seriam, sem dúvidas, admitidos por aqueles que utilizam
a expressão. Mas o fato de que é utilizada de qualquer forma evidencia e
ajuda a reforçar a perigosa atitude de que sempre que nenhum direito
individual possa limitar de forma plausível o poder do Estado, as suposições
coletivistas podem entrar em cena. Assim, mesmo essa simples expressão
pode auxiliar na infiltração da crença de que o “país” é apropriadamente
regulado en toto pelo governo, a menos que algum direito pessoal individual
o limite.
Ademais, falar dessa maneira também serve para identificar na mente
popular a nação com seu governo. A história demonstra o risco dessa falsa
identificação. Em muitos países europeus os governos por séculos
encorajaram os cidadãos a verem seu Estado como idêntico à sua nação. Na
medida em que foram exitosos, as pessoas de muitas nações falharam em
enxergar seu governo como apenas uma instituição entre várias em sua
sociedade. Como resultado eles confundiram o orgulho e poder de seus
governos com a honra e a dignidade de seu país. Por conta disso, os governos
foram autorizados a interpretarem suas rivalidades mútuas como questões de
honra nacional, e portanto como razões supostamente boas o suficientes para
a guerra. Desse modo, identificar o orgulho do Estado com a honra nacional
foi a maior causa das guerras europeias por centenas de anos.[312]
Vamos considerar agora a teoria individualista de que o Estado é um
contrato celebrado entre indivíduos soberanos. Uma influente apresentação
dessa visão, que veio a exercer influência mundial, é aquela apresentada na
Declaração da Independência dos Estados Unidos. Ali Jefferson afirmou que
é autoevidente que “todos os homens são criados iguais, dotados pelo seu
Criador de certos direitos inalienáveis”, e que “é para assegurar esses direitos
que os governos são instituídos entre os homens”. Em seu contexto histórico,
os colonos americanos ofereceram essas declarações como razões para
dispensar George III da Inglaterra como seu rei legítimo, com base no fato
que ele havia violado seus direitos inalienáveis.[313]
A noção de que pessoas possuem direitos relativos ao Estado foi
parcialmente inspirada pelas ideias bíblicas que chegaram aos colonos a partir
da Reforma por meio do puritanismo inglês.[314] No entanto, articular a crença
em um enunciado limitado apenas em termos de direitos individuais que as
pessoas supostamente possuem enquanto qualidades inatas à natureza
humana, é uma distorção do ensinamento bíblico. Essa crença de fora o ponto
crucial de que o direito à justiça equânime, que compete ao Estado garantir a
todos os seus cidadãos, provém da norma de justiça que governa toda a
criação. A elaboração da Declaração ignorou o lado lei do aspecto jurídico da
realidade, e em vez disso tentou situar as limitações do Estado na natureza
subjetiva de cada pessoa.[315] Assim, nossa objeção à forma individualista de
colocar a questão é precisamente porque os direitos são concebidos como
individuais ao invés de universais, visto que são normativos. Em
contrapartida, portanto, afirmamos que a posse de um direito por parte de um
indivíduo é apenas um lado da justiça, enquanto o outro lado consiste no fato
de que outros têm obrigações com aquela pessoa. E um terceiro lado é que
ambos os direitos e obrigações recaem sobre pessoas porque a norma da
justiça foi incorporada à criação por Deus. De outro modo, como se poderia
defender a noção de que indivíduos possuem esses direitos? A menos que
exista uma norma de justiça sobre toda a criação, como poderíamos saber que
todas as pessoas têm direitos, ou que todas as pessoas têm os mesmos
direitos? A única base adequada para a ideia de direitos é que eles são o
resultado de sermos governados por uma norma universal.[316] Além disso, é
precisamente porque uma norma é universal, que ela governa não somente
indivíduos, mas também comunidades; não apenas indivíduos possuem
direitos e obrigações, mas também casamentos, famílias, escolas, negócios,
igrejas, hospitais, sindicatos, partidos políticos, etc.
Pode-se ainda notar outra consequência adversa de se situar a base
para os direitos na natureza das pessoas individuais numa série de escritores
recentes que têm defendido que, para estarem no gozo de um direito, as
pessoas devem ser ao menos capazes de entendê-los e desejar aquilo que
esses direitos garantem. De outra forma, dizem eles, não faz sentido falar de
pessoas que de fato possuem esse direito.[317] Ainda outros têm assinalado
que situar a fonte de direitos em indivíduos exige que seus direitos se
desenvolvam juntamente à base biológica de suas capacidades.[318] Estas
visões só são plausíveis se os direitos são identificados a certas faculdades ou
poderes da pessoa humana, como os dons naturais da visão ou da audição,
pois certamente não há ninguém que, tendo o poder da visão, é incapaz de
ver, nem que, tendo o poder da audição, não tenha capacidade de ouvir. Mas
a consequência de conceber os direitos dessa forma é que bebês, pessoas com
grave retardado, os senis, e pessoas em coma não teriam, pois, quaisquer
direitos. Isso significaria, no caso extremo, que matá-los não se qualificaria
como assassinato. Ou ainda, um adulto normal transportado de uma cultura
primitiva para um Estado moderno pode ser incapaz de entender e desejar
muitos dos direitos que passaram a ser reconhecidos em grande parte das
sociedades modernas e, dessa forma, não possuiria direitos de acordo com
essa teoria.[319] Em todos esses casos a interpretação individualista de direitos
impede o reconhecimento de que a norma da justiça é verdadeiramente
universal.
O que é pior, essas consequências hipotéticas são, de modo
significativo, semelhantes àquelas que têm de fato ocorrido na história dos
Estados Unidos. Os criadores de sua Constituição deliberadamente evitaram
estender quaisquer direitos políticos aos índios americanos e aos afro-
americanos, e também deixaram de oferecer plenos direitos políticos às
mulheres. Eles discutiram seriamente se as diferenças raciais, por exemplo,
eram suficientes para negar que essas pessoas fossem incluídas entre aqueles
“dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis”. Mas foi justamente
porque pensavam que os direitos jurídicos eram inerentes à natureza subjetiva
dos indivíduos, que fazia algum sentido questionarem se diferenças como as
de gênero ou raça eram suficientes para negar a alguém os direitos políticos.
Em contrapartida, a teoria da estrutura de leis entende que é inegável que
todos os humanos possuem direitos e obrigações, uma vez que estes não se
originam nas capacidades de cada pessoa individual, ou na raça, ou no
gênero. Na verdade, são garantidos por uma norma da criação que se aplica a
todas as pessoas simplesmente porque elas são humanas.
Existem outras dificuldades com a forma individualista de conceber
os direitos. Uma é que, a menos que os direitos sejam reconhecidos como o
resultado de normas aspectuais, seremos incapazes de identificá-los. Não há
limite ao que as pessoas podem desejar, mas esses desejos dificilmente
podem ser idênticos àquilo que eles têm direito. Outra dificuldade é que a
falha em reconhecer que direitos baseiam-se em normas tornar-nos-á mais
inclinados a ignorar o fato de que existem distintos tipos aspectuais de
direitos.
Esse último ponto é significativamente reforçado quando notamos
como um elemento crucial de clareza está ausente de qualquer discussão
sobre direitos sempre que deixamos de introduzir distinções aspectuais. Por
exemplo, é necessário distinguir entre direitos morais derivados da norma
ética do amor e direitos jurídicos derivados da norma da equidade. É este
último que estabelece limites ao poder estatal e, portanto, produz direitos
civis políticos. É importante não confundir esses dois sentidos de “direitos”,
uma vez que eles diferem de muitos modos. A menos que os tipos de normas,
obrigações e direitos sejam distinguidos, uma densa confusão segue-se, a
qual tem induzido alguns escritores a argumentar que uma obrigação de um
tipo produz um direito de outro tipo. Um exemplo dessa confusão é qualquer
argumento que conclua que uma obrigação moral pode criar um direito
jurídico. Nossa teoria reconhece que uma obrigação normativa ética de ser
amável para com os outros caminha junto com o direito ético correspondente
de que outros sejam tratados com beneficência. E ela reconhece que a
obrigação normativa de agir de forma justa vai de mãos dadas com um direito
correspondente de que outros sejam tratados de forma justa. Mas isso nunca
conduzirá à conclusão de que, uma vez que certo indivíduo ou comunidade
tem uma obrigação ética em relação a outrem, esta outra parte tem então um
direito jurídico correspondente, que deveria ser implementado pela lei
pública. Por exemplo, o ensinamento bíblico repetidas vezes deixa claro que
temos obrigações éticas com o pobre. Mas isso não dá a uma pessoa pobre
em particular o direito legal a receber esmolas de minha parte. Isso deveria
estar claro mesmo desse breve esboço sobre a natureza do Estado, de que a
aplicação de obrigações morais de amor estão fora da competência legal
própria do Estado. O Estado é conduzido por normas de justiça, não de ética;
a consecução da justiça pública é o propósito estrutural do Estado, e não a
aplicação de uma moralidade pessoal, não pública.
Isso não quer dizer, no entanto, que o Estado não tenha interesse na
moralidade pública. Se pais começassem a expulsar em massa seus filhos de
casa, ou se 75% da população se embriagasse todas as noites, não podendo
comparecer ao trabalho, o a grave perturbação da ordem pública que
resultaria disso certamente teria de ser tratada pelo Estado. Assim, embora
não seja a prerrogativa do Estado governar em todas as dimensões da
moralidade humana, o Estado tem um interesse legítimo quando qualquer
questão de peso moral ameaça a ordem pública da qual é o zelador. Por outro
lado, embora o poder do Estado limite-se legitimamente à aplicação da
justiça, nem todas as questões de justiça na vida humana podem recair sob a
alçada do Estado. O domínio do Estado é a justiça pública. As pequenas
injustiças que porventura acontecem entre os indivíduos ou entre as
comunidades não podem, e não deveriam, serem todas elas administradas
pela lei pública. Um pai que favorece um filho em detrimento do outro, por
exemplo, não faz apenas algo não amoroso, mas faz algo injusto em relação à
criança preterida. No entanto, ninguém supõe seriamente que (contanto que o
filho preterido não seja de fato negligenciado ou abusado) corrigir essa
violação da justiça faz parte do dever do Estado. Na verdade, seu dever se
estende apenas àqueles assuntos que afetam a totalidade do corpo político em
princípio.[320]
Apresentei este último ponto a fim de tornar mais claro um dos
limites apropriados para o exercício do poder estatal. Mas ao mesmo tempo
ele também nos aponta outra fraqueza na teoria individualista de sociedade e
de Estado mencionada anteriormente. Pois uma de suas consequências é que
os direitos restringem-se a pessoas individuais, de maneira que a justiça
pública e os direitos públicos não estão previstos. Visto que se considera que
os deveres do Estado e os limites sobre o seu poder são estabelecidos apenas
pelos direitos dos indivíduos, o que ocorre quando existe uma injustiça que
não viola os direitos de qualquer pessoa? Suponha, por exemplo, que no
processo de manufatura de um produto em seu próprio terreno, uma empresa
polua um rio ou a atmosfera, os quais não pertencem a qualquer indivíduo?
Tomada de forma pura, a teoria individualista não oferece bases para
qualquer remédio legal em tais casos; se apenas indivíduos possuem direitos,
apenas indivíduos poderiam ter posição legal diante das cortes. (De fato,
houve, no século XIX, instâncias das cortes dos EUA que dispensarem casos
assim exatamente com base nesse tipo de argumentos). Mas o que dizer,
então, da posição legal exigida para que um negócio entre em um contrato de
vínculo legal com outro, ou para que processe outro? A questão foi resolvida
nos EUA (e em alguns países europeus) com as cortes considerando as
empresas como “pessoas jurídicas”. Em outras palavras, a teoria é totalmente
inadequada, a menos que uma mentira seja legalmente declarada como
verdade! E, sem essa ficção, as corporações não teria qualquer tipo de
posição legal.[321]
Então indagamos: por que pensar que apenas indivíduos podem ser
sujeitos legais? Por que não reconhecer que comunidades também são
sujeitas à lei, e possuem direitos e obrigações que o Estado deveria proteger?
Pois certamente se uma teoria tem necessidade de declarar uma falsidade
como verdade a fim de tornar sua visão da lei funcional, a conclusão deveria
ser de que ela está seriamente equivocada. Nada mais é necessário para ver
que os direitos não se originam e residem apenas nos indivíduos.
Diferentemente do individualismo, portanto, a teoria da estrutura de leis tão
tem problemas em explicar como é possível que famílias, escolas, sindicatos,
clubes, negócios, e mesmo o público em geral também tenham direitos, ainda
que eles não sejam indivíduos que foram “criados iguais” por Deus. Isso é
possível, mais uma vez, porque a fonte de direitos são as normas encontradas
na estrutura de leis da totalidade da criação. Assim, embora admiremos a
intenção da teoria individualista de ter um Estado limitado, fazemos objeções,
todavia, à forma que a restrição de direitos legais apenas aos indivíduos
desconsidera os deveres públicos do Estado.
Em acréscimo a essa objeção, por favor lembre-se de outro ponto
brevemente mencionado acima, a saber, as consequências do individualismo
para a relação do Estado com outras comunidades. Pois o individualismo não
tem uma forma de limitar o poder do Estado em relação a essas outras
comunidades senão pela ficção de que elas, semelhantemente às empresas,
são pessoas individuais. Desse modo, declara-se que as questões “internas”
de outras comunidades estão fora dos limites de interferência do governo. Foi
nesse espírito, por exemplo, que Jefferson escreveu sobre o “muro de
separação” entre a igreja e o Estado, e a mesma ideia está por detrás da
doutrina “laissez faire” de que o Estado não deveria interferir sobre os
negócios.
Mas obviamente nem mesmo duas comunidades na mesma sociedade
podem ser completamente muradas uma em relação à outra. Nem, como
vimos, é apropriado dizer simplesmente que as operações internas de uma
família, um negócio, ou igreja estabelecem os limites adequados para o poder
estatal. Isto porque a designação “interno” é deixada demasiadamente vaga
pela teoria individualista. O sentido apropriado do que é interno a cada
comunidade não pode simplesmente ser o que se dá no curso de suas
atividades diárias, uma vez que isso implicaria que o Estado não poderia
intervir na prevenção de abuso conjugal, ou no fato de uma empresa possuir
um exército privado, ou na violação dos códigos de incêndio por parte de
uma igreja. Antes, o que é legitimamente “interno” e fora dos limites do
Estado deve ser definido pela função guia e pelo tipo estrutural de cada
comunidade. Assim, é preciso que se veja os verdadeiros limites do Estado ao
contrastar sua natureza com as naturezas de outras comunidades, e não
apenas por fronteiras externas entre uma comunidade e outra. Diferentemente
da teoria contratual individualista, nossa teoria não estabelece, pois, um
Estado potencialmente totalitário para em seguida tentar encontrar fronteiras
externas a fim de limitar o exercício de seu poder. Conforme já assinalado, a
teoria da estrutura de leis situa os limites apropriados para o poder do Estado
naquilo que o Estado é, ao invés de somente naquilo que ele não é. Por
conseguinte, afirmamos que o dever do Estado pode exigir que ele exerça sua
autoridade na vida de qualquer pessoa ou comunidade, contanto que esse
exercício esteja limitado à administração da justiça pública. Por essas razões,
não podemos concordar que a expressão “muro de separação” seja uma
explicação apropriada acerca das distintas esferas sociais do Estado e das
instituições religiosas.
Defendemos, portanto, que é o princípio das esferas de soberania, e
não o individualismo, que oferece os fundamentos corretos para se insistir
que exigir ou proibir qualquer crença religiosa, ou regular a doutrina ou culto
de qualquer instituição religiosa ultrapassa o uso apropriado do poder estatal.
Além disso, esse mesmo princípio não apenas explica a base para a ideia de
uma esfera distinta para as instituições religiosas, mas também restringe o
poder estatal em relação às outras comunidades não estatais. Por exemplo, ele
também estabelece limites sobre a relação do Estado à esfera das economias,
de modo que está fora da própria competência do Estado assumir o controle
de negócios privados, ou entrar em qualquer tipo de conluio que favoreça um
negócio (ou um grupo deles) sobre outros. De semelhante mesmo modo, ele
estabelece as mesmas proteções para famílias. Elas também desfrutam de
uma soberania em sua própria esfera social que as insula contra interferências
arbitrárias do Estado tais como invasão policial, ou busca sem uma mandado
de uma corte emitida quando há evidências de crime. E o mesmo se aplica
para as relações do Estado com todas as outras comunidades não estatais.
Já expliquei o sentido no qual o princípio da soberania das esferas é
tanto teísta em linhas gerais quanto especificamente cristão. Assim, gostaria
de deixar tão claro quanto possível o que disse acima acerca do princípio de
soberania das esferas proibir o Estado de usar seu poder para favorecer
qualquer fé. Isso significa que a visão cristã do Estado é que o Estado não
deveria favorecer o cristianismo. Além disso, as delimitações de esferas do
Estado e das instituições de culto não apenas implicam que, uma vez que a
natureza do Estado possui uma função guia jurídica e a função guia de uma
instituição religiosa é fiduciária, o próprio conceito de uma igreja-estatal é
uma contradição em termos; antes, essas delimitações também obstam a
possibilidade de uma instituição de culto ditar políticas públicas ao Estado —
ou interferir na esfera de integridade de qualquer outra comunidade nesse
tocante. Dessa forma, deveria estar claro que a teoria da estrutura de leis não
é uma teoria teísta da sociedade e do Estado em qualquer sentido de que
distinguiria os judeus, cristãos, ou muçulmanos como um grupo de interesse
especial. Não é uma tentativa de estabelecer uma agenda específica para
pressionar o governo para um tratamento especial para aqueles que creem em
Deus. Antes, essa teoria é teísta no sentido de fazer com que os frutos
antirreducionistas da crença em Deus influenciem nosso entendimento de
justiça e de Estado. Assim sendo, a teoria exige que os governos não
permitam que a justiça seja erodida por quaisquer demandas de
favorecimento especial, mas que se concentre na meta de produzir uma
sociedade maximamente justa para todas as pessoas, quer elas creiam ou não
em Deus.
Nenhuma dessas consequências, no entanto, poderia exigir que o
Estado seja murado contra qualquer crença religiosa. Isto, como vimos, é
impossível. Qualquer concepção tanto sobre justiça quanto sobre o Estado
pressupõe alguma crença na divindade, de modo que o Estado sempre será
concebido e operado com base ou nos pressupostos teístas ou nos não teístas,
ou numa miscelânea de ambos. É por essa razão, repetimos, que é de suma
importância que aqueles que creem em Deus não sejam desencorajados a
levarem as consequências sociais e políticas dessa crença a influenciarem sua
vida política e a legislação e governo de seu Estado. E é por essa razão que é
tão importante que eles reconheçam mais claramente como sua fé oferece
uma teoria distinta da justiça e do Estado. Sem essa teoria, os crentes de fé
teísta podem ser tentados a enxergar a relação de sua fé com a política como
um programa injusto de tentar se tornar uma maioria, de modo a forçar sua
moral por meio da lei sobre aqueles que têm outras divindades.[322]
Concluirei esta seção retornando a um ponto visto brevemente, a fim
de ilustrá-lo de forma mais profunda. O ponto foi que a soberania das esferas
não delimita o poder do Estado em relação apenas às instituições religiosas,
mas a todas as comunidades numa sociedade. Esse princípio também não o
delimita apenas de uma forma negativa, uma vez que ele estabelece os
parâmetros para as imunidades de outras comunidades do poder estatal ao
oferecer uma clara ideia das condições sob as quais o Estado pode exercer
apropriadamente em relação a elas. Um desses parâmetros é a aplicação da
própria esfera de soberania, conforme citado no último capítulo. Isto é, nossa
teoria exige que o Estado aplique as mútuas delimitações de soberania das
esferas dentre todas as outras comunidades, observando-as também para
consigo mesmo. Dessa forma, embora nossa teoria proíba o Estado de
assumir negócios ou tentar regular a totalidade da economia, ele pode
legitimamente exigir leis contra o trabalho infantil, de forma a impor limites
das esferas sobre os negócios. Nos EUA, por exemplo, anteriormente a essas
leis contra o trabalho infantil, os negócios invadiam a esfera da família. Eles
demandavam horas de trabalho que afastavam as crianças da supervisão de
seus pais por sessenta horas ou mais, inviabilizando qualquer oportunidade
para a educação dos filhos e impedindo as famílias de adorarem juntas. Com
isso, a soberania das esferas não protege somente as crianças mais novas.
Pois, até recentemente, no início do século XX, algumas empresas dos EUA
inspecionavam os lares dos trabalhadores adultos para dizer como deveriam
ser decorados, e ditavam o que os trabalhadores poderiam comer, como
deveriam vestir-se, quais livros lhe eram permitidos ler, e qual tipo de música
poderiam escutar. O princípio da esfera de soberania demonstra por que é
injusto que corporações tentem esse tipo de intrusões na esfera da família,
assim como também o seria, no caso do Estado.
De semelhante modo, vemos que as legislações antitruste também são
uma imposição apropriada da justiça quando orientada pela ideia de soberania
das esferas. Os individualistas argumentam simplesmente que o Estado
deveria preservar a livre concorrência. Porém defendemos que o Estado tem o
dever mais amplo de impedir que as esferas não econômicas da sociedade
sejam violadas pelo poder econômico dos negócios. Especialmente entre
1865 e 1900, esse foi um perigo real nos Estados Unidos; as grandes
corporações (chamadas “trustes”) não apenas se tornaram monopólios ao
restringir o livre comércio, mas, caso tivessem unido todos seus esforços,
poderiam ter dominado o Estado a fim de produzir uma sociedade
completamente controlada pelos negócios.[323]
12.4 Pós-escrito
Este esboço sobre a natureza da instituição do Estado foi breve, e certamente
não é uma teoria política plenamente desenvolvida (isso exigiria outro livro).
Meu propósito aqui foi mais modesto, a saber, clarificar os conceitos
introduzidos pela teoria da estrutura de leis empregando-os em relação à
visão do Estado. Também tinha como expectativa, é claro, indicar algumas
das principais diferenças que procedem deles em relação à natureza do
Estado e alguns termos correlatos. Em anos recentes, no entanto, outros
defensores dessa teoria têm sido capazes de fazer mais do que isso, de modo
que existe um corpo crescente de literatura disponível que parte da
perspectiva da estrutura de leis. Esses autores têm sido capazes de pontuar
um número significativo de insights por meio dos quais essa teoria pode
contribuir com esclarecimentos ou correções necessárias a uma série de temas
importantes. Apenas para o cenário político dos EUA, por exemplo, eles têm
sido capazes de expor grandes injustiças enraizadas em questões como as
formas que os governos se relacionam com educação; as leis que governam o
modo como são conduzidas as eleições para o Congresso; e as políticas
governamentais relacionadas à temas de pobreza e bem-estar, justiça
econômica, direitos humanos e questões ambientais, dentre outros. Eles
também têm sido capazes de oferecer justificativas complementares para
muitos elementos nas tradições políticas e legais dos EUA que são saudáveis,
e de sinalizar para formas pelas quais estes elementos podem ser ainda mais
desenvolvidos pela teoria da estrutura de leis.[326] Também existe um corpo
crescente de obras dedicadas ao modo que essa teoria impacta também
comunidades não políticas, e leitores interessados em buscar essa abordagem
podem querer consultá-los também.[327]
Apesar da brevidade desses últimos capítulos, minha esperança é de
que eles servirão para demonstrar com o que se pareceria um programa de
teorias distintamente não reducionistas, e oferecer uma ideia sobre o que pode
ser adquirido quando a estratégia reducionista para teorias é abandonada e
substituída por uma estratégia que pressuponha que todas as coisas no
cosmos são diretamente dependentes de Deus. Também espero que eles
ilustrem o que pode resultar da combinação do programa não reducionista
com princípios especificamente cristãos para o entendimento da sociedade e
do Estado.
Posfácio
TECTÔNICA DA FÉ
[26]
É por essa razão que apenas o budismo, dentre as maiores religiões, não possui um relato da criação. Veja as
observações de Neville em The Tao and the Daimon, p. 116.
[27]
Alguns críticos sugeriram que o budismo não tem uma ideia de divindade como eu a defino aqui. Isso é
simplesmente equivocado. No famoso diálogo das escrituras budista denominado “Perguntas do Rei Milinda”
encontramos isso: “Pode-se apontar o caminho da realização do Nirvana, mas não se pode demonstrar uma causa para
sua produção. E qual é a razão disso? Porque o dharma, Nirvana, é incondicionado... ele não é feito a partir de nada... é
apenas algo que é” (The Buddhist Scriptures [Baltimore: Penguin, 1968], p. 159). O Canon Pali (Udana 8.3) também
afirma que o Nirvana “não tem qualquer fundamento, qualquer desenvolvimento, qualquer base”. Comentando sobre
isso, Lambert Schmithausen pontua que “algumas passagens falam do Nirvana até mesmo como um estado metafísico,
ou essência, transcendente... De acordo com essas passagens existe uma realidade metafísica... a qual é também
denominada Nirvana e pré-existe ao Nirvana, que é o evento espiritual” (Kung, Christianity and the World Religions, p.
301, 327 [O cristianismo entre as religiões mundiais. Belo Horizonte: Editora Vozes, 1986]). Talvez o ensinamento
que chega mais próximo a soar como uma rejeição de minha definição do “divino” é o ensinamento de Nagarjuna, um
mestre do ramo Shunyavada do budismo há cerca de 1800 anos. Sua ênfase ao se referir ao divino como o “Vazio” e
sua afirmação de que mesmo os dharmas são “vazios de realidade” levaram alguns a considerá-lo como um niilista
ontológico total. Mas o fato é que ele nunca disse tais coisas. Sua afirmação foi que as coisas individuais não têm
realidade no sentido em que elas “não possuem natureza essencial própria, e são portanto impermanentes... Elas
chegam e se vão do mundo das aparências de acordo com a lei de “originação dependente” (veja Heinz Beckert,
“Buddhist Perspectives”, in Christianity and The World Religions, p. 363). Esse contraste entre o que é mutável e
dependente e o que não o é, pressupõe a definição de “divino” que estou defendendo. A mesma conclusão foi alcançada
por outros estudiosos tais como David Dilworth em “Whitehead’s Process Realism, the Ahhidharma Dharrna Theory,
and the Mahayana Critique”, in International Philosophical Quarterly 18, no. 2 (l978): p. 162-63; e Robert Neville,
The Tao and the Daimon, p. 116. Em geral, a visão budista rejeita o niilismo ontológico. Considere o seguinte de The
Sutro of Hui Neng (Phoenix: H. K. Buddhist Book Distributor Press, 1982):
Para alcançar a iluminação suprema deve-se ser capaz de conhecer espontaneamente sua própria natureza ou
Essência da Mente [Talidade], que não é nem criado nem pode ser aniquilado. (p. 17)
Quem teria pensado que a Essência da Mente é intrinsecamente livre do vir-a-ser ou da aniquilação? Quem teria
pensado que a Essência da Mente é intrinsecamente autossuficiente? Quem teria pensado que todas as coisas são
manifestações da Essência da Mente? (p. 20)
Virtuosa audiência, quando vocês ouvem-me falar sobre o Vazio, não caiam imediatamente na ideia de
vacuidade, porque essa envolve a heresia da doutrina da aniquilação. (p. 28)
[28]
Dizer que uma organização social tem um propósito central assume o desenvolvimento de organizações
diferenciadas. Quando o único grupo social é uma tribo, por exemplo, não se distingue um propósito central, mas esse
abrange os propósitos servidos pelo estado, instituições religiosas, escolas, famílias estendidas, etc. Ademais, mesmo
aonde organizações são diferenciadas é possível que uma e a mesma pessoa, ou grupo de pessoas, possam agir tanto
como uma autoridade política quanto religiosa. Isso não demonstra, no entanto, que a mesma instituição possa ser tanto
religiosa quanto política simultaneamente. Em vez disso, isso demonstra que a mesma pessoa ou grupo pode ser a
autoridade governante em ambas as instituições, agindo hora em uma capacidade, hora em outra. Assim, o fato de que
possa haver um monarca que também governa a instituição religiosa, ou as escolas, de uma sociedade, não tornará o
estado o mesmo que uma instituição religiosa, ou uma escola. Cada organização ainda reterá seu propósito distinto.
[29]
Nicholas Wolterstorff ofereceu comentários pertinentes sobre a variabilidade dos sentimentos de confiança vis-a-
vis o que é visto como verdade objetiva em sua comparação de Locke e Calvino. Veja “The Assurance of Faith”, Faith
and Philosophy 7, no. 4 (Out. 1990): p. 396-417. Ver também as observações de William James em The Varieties of
Reigious Experience, p. 258 [As variedades da experiência religiosa. São Paulo: Cultrix, 2017].
[30]
Por exemplo, H. H. Price, “Belief ‘In’ and Belief ‘That’”, Religious Studies 1, no. l (Oct. 1965): p. 5-27. Seguindo
a prática dos escritores bíblicos, não utilizarei “fé” ou “confiança” para a crença de que Deus é real. Eles utilizam esses
termos apenas para a dependência de alguém em relação às promessas de Deus, nunca para o fato de sua existência. O
último sempre é referido como “conhecimento”. Ver especialmente Dt 4.35, 1Sm 3.7, Sl 46.10, Is 12.2, 1Tm 4.3, Jo
6.69, 10.38; 1Jo 2.3.
[31]
Wilfred Cantwell Smith tem assumido a tempos a posição de que todas as religiões são igualmente eficazes ao
conduzir as pessoas a um relacionamento correto com o divino, apesar do fato de que elas ofereçam distintas descrições
do que teria o status divino; veja seu The Meaning and End of Religion. John Hick defendeu a mesma posição em An
Interpretation of Religion (NewHaven: Yale University Press, 1989). Tenho três comentários. Primeiro, é notável que
mesmo para Smith e Hick as crenças das várias tradições não possam todas ser verdadeiras; eles admitem que é
impossível. O que eles defendem é que todas as pessoas experimentam a mesma Realidade Divina, mas então a
conceitualizam, explicam e teorizam diferentemente sobre aquela Realidade. A posição deles é de que embora as
sobreposições conceituais discordem, esse fato não importa para o destino último de alguém. Uma séria dificuldade
com a proposta Smith/Hick é que ela simplesmente não é verdadeira em relação aos registros das experiências
religiosas oferecidas por aqueles que as têm. Como William James demonstra em Varieties of Religious Experience,
são as próprias experiências que diferem, não meramente as interpretações subsequentes colocadas sobre elas.
Ademais, o tema da verdade não pode ser tão facilmente dispensado. Ou o divino e nossa relação apropriada com ele
são como nós as concebemos, ou elas não o são, e toda religião insiste que é crucial para as pessoas estarem corretas,
em vez de equivocadas, sobre esses temas. Ao negar esse ponto, Smith e Hick estão afirmando que todas as religiões
mundiais são, de fato, falsas, mas que isso não importa para o destino último de alguém. Assim, eles na verdade
inventaram uma nova religião que discorda com todas as outras, em vez de oferecer uma forma de reconciliar as
religiões existentes.
[32]
Os próprios escritores bíblicos insistem nesse ponto. Eles afirmam que outras crenças religiosas atribuem o status
que pertence somente a Deus a algo diferente dele (veja Is 42.8, 44.6; Rm 1.25). O que todas as religiões (e todas as
pessoas) veem pelo menos de forma vaga é que algo é divino. É isso que Calvino denominou “senso de divindade” em
todos os seres humanos, o qual tem estado em um estado deformado desde a Queda no pecado. Apresenta-se em geral
um argumento semelhante em outras religiões a favor de suas crenças divinas como opostas à crença em Deus.
[33]
O mesmo é verdadeiro para outros “ismos” em teorias da realidade. O positivismo, por exemplo, assume as
percepções sensórias como sendo divinas em lugar da matéria. Como Ernst Mach elabora, “A afirmação, então, é
correta de que o mundo consiste apenas de nossas sensações. Nesse caso, temos conhecimento apenas das sensações”
(The Analysis of Sensation, in J. Blaekmore, Ernst Mach [Berkeley: University of Califomia Press, 1972], p. 327 n. 14).
J. S. Mill, pelo contrário, tentou conduzir a explicação até um passo atrás. Quando perguntado sobre o que causava as
sensações, Mill respondeu que elas são o produto do que ele denominava “as possibilidades permanentes da sensação”,
e ele considerava essas misteriosas entidades como metafisicamente últimas: “Existe na natureza um número de causas
permanentes as quais subsistiram... por um período de tempo indefinido e provavelmente enorme... Mas não podemos
oferecer um relato sobre a origem das próprias causas permanentes... Todos os fenômenos, sem exceção, que começam
a existir, ou seja, todos, exceto as causas primordiais, são efeitos sejam imediatos ou remotos desses fatos primitivos,
ou algumas combinações deles” (Philosophy of Scientific Method, ed. E. Nagel [New York: Hafner, 1950], p. 202-3).
Essas entidades misteriosas são, portanto, deixadas por pré-definição no status da divindade, uma vez que elas existem
incondicionalmente na forma que a descrição se desenvolve. Ou considere o comentário de Jacques Derrida de que
fundamental à sua visão de realidade é seu momento “aneconômico”, o qual se anuncia a ele tomando-o e revirando-o
na forma de uma injunção que nunca o deixa, e é “o que é o mais inegavelmente real” (Philosophy in a Time of Terror.
Dialogues with Jurgen Habermas and Jacques Derrida [Chicago: University of Chicago Press, 2003], p. 134). Da
mesma forma, Richard Rorty, apesar do feito de ele insistir em que deveríamos “tentar alcançar o ponto aonde já não
adoremos algo, aonde já não tratemos algo como uma quase-divindade, aonde tratemos tudo — nossa linguagem, nossa
consciência, nossa comunidade – como um produto do tempo e do acaso. Alcançar esse ponto seria, nas palavras de
Freud, ‘tratar o acaso como digno de determinar nosso destino’” (Contingency, Irony, and Solidarity [Cambridge:
Cambridge University Press, 1989], p. 22). Não obstante essa admoestação, Rorty se compromete à especificação de
uma natureza básica para sua contingência que se equivale a uma crença religiosa! Pois enquanto todas as (outras)
crenças são relativizadas para necessidades práticas, a independência da realidade física/biótica e a evolução darwinista
são assumidas por ele como sendo verdadeiras no sentido preciso no qual ele nega tudo o que pode ser conhecido como
sendo. Pois ele se alinha com os pragmatistas que “começam com um relato darwinista dos seres humanos como
animais fazendo seu melhor para lidar com seu ambiente — fazendo seu melhor para desenvolver instrumentos que os
capacite a desfrutar de mais prazeres e menos dor” (“Relativism: Finding and Making”, in Debating the State of
Philosophy, ed.J. Niznik e J. Sanders [Westport London: Praeger, I996], p. 38). Assim, a base para insistir que
nenhuma (outra) crença pode ser conhecida como correspondendo à realidade é sua própria crença de que a evolução
pode fazê-lo (ver também meu artigo “A Critique of Historicism” in Crítica 29, no. 85 (April 1997).
[34]
Na outra direção, poderia ser contestado que o tipo (3) de crenças não é comum a todas as religiões. Afinal de
contas, os epicureus criam em muitos deuses e Aristóteles cria em um único deus, mas em nenhum dos casos havia
qualquer tipo (3) de crenças combinadas àquelas crenças. Deve ser lembrado, no entanto, que esses deuses eram
divinos apenas em um sentido secundário. Para os epicureus eram os átomos no espaço que tinham divindade per se,
enquanto que para Aristóteles esse era a forma e a matéria. E em ambos os casos suas divindades per se eram
acompanhadas não apenas pelo tipo (2) de crenças secundárias, mas também pelas crenças do tipo (3).
[35]
O comentário foi parte de uma palestra sobre a filosofia da linguagem na Universidade da Pensilvânia em março
de 1962.
[36]
Institutas da religião cristã, I, p. 82. Cf também a experiência de Alister Hardy: “Foi enquanto ouvia um sermão
na St. Mary que me tornei convencido da realidade de Deus. A emoção estava em um mínimo... O senso de ser
convencido também não foi basicamente intelectual. Foi simplesmente que eu sabia que o pregador estava falando a
verdade” (The Spiritual Nature of Man: A Study of Contemporary Religious Experience [Oxford: Clarendon, 1979], p.
100). Tillich também notou que a noção amplamente aceita da “fé” como crença sem evidência não é uma descrição
correta da experiência sobre a qual a crença em Deus é baseada. Ele diz que essa visão equivocada da fé a vê como “um
ato de conhecimento com limitada evidência e que a falta de evidência é compensada por um ato da vontade... Isso não
faz justiça ao caráter existencial da fé.” Ele então complementa: “A certeza da fé é ‘existencial’, significando que a
totalidade da existência [do crente] está envolvida... [Isso é] certamente relacionado ao próprio ser da pessoa, a saber...
[seu] ser relacionadoa algo último ou incondicionado” (The Dynamics of Faith, p. 34-35). Ele também fala disso como
a experiência de ser “capturado pela” verdade, mais do que como uma questão de escolha (p. 37).
[37]
Knowing with the Heart: Religious Experience and Belief in God (Downers’s Grove, Ill.: InterVarsity Press,
1999). Uma vez que a afirmação de que as crenças sobre a divindade per se são baseadas na experiência religiosa é
sujeita a uma ampla diversidade de mal-entendidos, aqui está um breve esboço da posição que defendo em Knowing.
“A experiência religiosa” é considerada como significando qualquer experiência que gera, aprofunda, ou confirma uma
crença religiosa. Ela não é, portanto, limitada a experiências incomuns ou estranhas como vozes, visões, união mística
com o divino, ou milagres. Tais experiências relativamente raras são, de fato, dependentes em sua significância, eu
argumento, da experiência do reconhecimento direto da verdade — o tipo de experiência referida em outros contextos
como intuição da autoevidência sobre a verdade de uma crença. Tal experiência direta da verdade vincula, eu
argumento, às experiências ordinárias (tais como simplesmente ler as Escrituras) assim como as experiências mais
incomuns. (Compare a citação de Hardy na nota precedente.) Eu defendo isso, em primeiro lugar, demonstrando que as
restrições tradicionais em relação à autoevidência genuína são falsas: não existe e não pode haver qualquer justificação
para as afirmações de que uma crença é autoevidente apenas se todas as pessoas racionais a experimentam como tal
(como Descartes e Locke insistiram), ou que a autoevidência se vincula apenas a verdades necessárias e produz crenças
infalíveis (como defendeu Aristóteles). Ao mesmo tempo, no entanto, não existem boas razões para duvidar que
intuições de autoevidência, como percepção e raciocínio, são fontes confiáveis de verdade. Eu argumento então que,
sob as condições apropriadas, a autoevidência com respeito à divindade está no mesmo barco epistemológico que a
autoevidência de axiomas lógicos ou matemáticos. A descrição, portanto, é uma defesa da posição assumida por
Calvino na citação referida na nota anterior, e também por Pascal, que coloca desta maneira:
Nós conhecemos a verdade não apenas pela razão, mas também pelo coração, e é por essa última forma que
conhecemos os primeiros princípios; e a razão, que não tem parte nisso, tenta em vão contestá-los... [Por
exemplo], sabemos que não estamos sonhando... conquanto seja impossível provar isso pela razão, o
conhecimento dos primeiros princípios do espaço, tempo, movimento, número é tão certo quanto qualquer
daqueles que alcançamos pelo raciocínio. E a razão deve confiar nessas intuições do coração e basear todos os
argumentos sobre eles... Portanto, aqueles a quem Deus comunicou a religião pela intuição são muito
afortunados, e justamente convencidos. (Pensées, trad. A. J. Krailsheirner [London: Penguin. 1966] p. 158.
Itálicos meus.)
[38]
Cf. Dooyewccrd, A New Critique, vol. 1, p. 55-57.
[39]
Uma série de pensadores argumentaram recentemente por essa posição. Eu menciono apenas alguns aqui: Alvin
Plantinga, “Reason and Belief in God”, in Faith and Rationality, ed. Alvin Plantinga e Nicholas Wolterstortf (Notre
Dame, Ind.: University of Notre Dame Press, 1983), p. 16-93; Plantinga, Warrant and Proper Function (Oxford:
OxfordUniversity Press, 1993) e Warranted Christian Belief (Oxford: Oxford UniversityPress, 1999); William Alston,
Perceiving God (Ithaca: Cornell University Press, 1991); e Nicholas Wolterstorff, “Can Belief in God Be Rational If it
Has No Foundations?”, in Faith and Rationality, p. 135-86.
Gostaria de enfatizar que eu apenas disse que crenças “podem ser” básicas, para reconhecer que para muitas pessoas
elas não o são. Muitas adotam a religião por razões outras do que elas experimentarem diretamente sua verdade, razões
tais como as de que a religião lhes traz conforto, uni-as socialmente com outros, ou oferece ordem e beleza em suas
vidas, etc. Geralmente essas pessoas complementam que ninguém pode realmente saber se qualquer crença sobre a
divindade é verdadeira, e admitem aceitar suas próprias crenças em bases pragmáticas tais como que elas oferecerem
conforto e esperança face tragédias ou à morte. Tais pessoas são o que denominei “companheiros de viagem” em
comparação ao ponto feito anteriormente: toda grande religião afirma que crentes genuínos são apenas aqueles que
veem por si mesmos que seus ensinamentos são verdadeiros. Essa distinção não deveria, no entanto, ser tida como
sugerindo que companheiros de viagem assumem suas afiliações religiosas de forma relaxada. Pelo contrário, eles são
geralmente altamente comprometidos e fortemente leais. Na verdade, eu penso que o fanatismo religioso esteja
fortemente associado precisamente com a lealdade de grupo substituindo o reconhecimento da verdade, sendo assim
mais comumente um produto do compromisso do companheiro de viagem. Geralmente é a lealdade ao grupo que induz
violações dos próprios ensinamentos em relação aos quais o grupo supostamente estaria comprometido. Em contraste, o
genuíno reconhecimento da verdade supera todas as outras lealdades e compromissos.
[40]
O termo aqui traduzido por “idólatras” é o termo inglês “heathen”, que carrega consigo um sentido depreciativo
das religiões não cristãs, podendo ser também traduzido por “hereges”, “pagãos” e “infiéis”. [N. do T.]
[41]
W. Jaeger, Theology of the Early Greek Philosophers, p. 17.
[42]
W. Heisenberg, Physics and Philosophy (New York: Harper, 1958), p. 72-73.
[43]
J. Vander Hoeven.Karl Marx: The Roots of His Thought (Amsterdam: Van Gorcurn,1976), p. 12.
[44]
J. B. Noss, Man’s Religions (New York: Macmillan, 1980), p. 181. Obviamente, também é verdade que existem
versões das tradições panteístas que não são tão extremas e sustentam apenas que o divino é mais real do que as coisas
individuais da experiência do dia a dia. Tais importantes diferenças são típicas das tradições panteístas; suas várias
escolas de pensamento diferem de forma bem mais ampla, digamos, do que as diferenças entre os teístas.
[45]
W. Herberg, “The Fundamental Outlook of Hebraic Religion”, op. cit., p. 283.
[46]
Ibid., p. 284. Esse ponto será desenvolvido em maiores detalhes no capítulo 10.
[47]
A menos que mencionado especificamente, as citações bíblicas serão da versão João Ferreira de Almeida
Atualizada.
[48]
A. N. Whitellead, Adventures of Ideas (New York: Mentor Books, 1955), p. 108.
[49]
A. N Whitehead, Science and the Modern World (New York, Free Press, 1967), p. 92.
[50]
Por exemplo: E. Nagel, The Structure of Science (New York: Harcourt, Brace& World, 1961), p. 1-28; K. Popper,
Conjectures and Refutations(New York: Harper &Row, 1965), p. 216; J. Kemeny, A Philosopher Looks at Science
(New York: Van Nostrand Rienhold, 1959), p. 156 ss.; R. Giere, Understanding Scientific Reasoning (New York: Holt,
Reinhart & Watson, 1979), p. 61, 80, 163; M. Martin, Concepts of Science in Education (New York: Scott, Foresman,
1972), p. 50-58; N. Rescher, Scientific Explanation(New York: Free Press, 1970), p. 8-24; J. J. C. Smart, Between
Philosophy and Science(New York: Random House, 1968), p. 53-88; M. Wartofski, Conceptual Foundations of
Scientific Thought (London: Macmillan, 1968), p. 35, p. 240; G. Gale, Theory of Science(New York: McGraw-Hill,
1979), p. 193-235; W. Balzer e C. U. Moulines, eds., Structuralist Theory of Science: Focal Issues, New Results
(Berlin: Walter cle Gruyter, 1996), p. 1-13; Margaret Morrison e Mary S. Morgan, eds., Models as Mediators.
Perspectives on Natural and Social Sciences (Cambridge: Cambridge University Press, 1999), p. 10-37; U. Méiki,
“Isolation,Idealization and Truth in Economics”, in B. Hamminga e N.B. de Marchi, eds., Idealization VI. Idealization
in Economics. Poznan Studies in the Philosophy of the Sciences and the Humanities, vol. 38 (Amsterdam: Rodopi,
1994), p. 147-68.
[51]
Os principais pontos oferecidos aqui são um resumo da descrição que Dooyeweerd oferece na New Critique of
Theoretical Thought, ver esp. vol. 1, p. 38 onde Dooyeweerd utiliza sua análise da abstração como a base para a “crítica
transcendental” das teorias. Por isso ele quer dizer que a abstração é (parte da) resposta à questão transcendental: “O
que torna as teorias possíveis?” Enquanto ele reconhece que sua abordagem tem um débito com Kant, seu
desenvolvimento próprio dela (e sua própria teoria subsequente) é substancialmente não kantiano. De forma breve:
Dooyeweerd enfatiza que enquanto Kant elabora a questão transcendental “O que torna a experiência possível?” ele
então imediatamente oferece uma teoria para responder a isso sem ter perguntado a próxima, e óbvia, questão “O que
torna as teorias possíveis?”. Como resultado, diz Dooyeweerd, Kant falhou em manter uma atitude genuinamente
crítica. A esse respeito a tentativa de Kant falhou da maneira que R. Chisholm havia acusado como tendo falhado todos
os argumentos transcendentais passados no capítulo 8 de sua obra The Foundations of Knowing (Minneapolis:
University of Minnesota Press, 1982), p. 95-99. Em contrapartida, Dooyeweerd mantém a instância transcendental
oferecendo uma análise descritiva da atividade da alta abstração que é sujeita à confirmação na própria autorreflexão.
Ao ser confirmado dessa forma, a descrição da abstração é o que Dooyeweerd denomina “empírico transcendental”,
pois ela não depende de suposições a priori e nem é uma interferência cujas premissas possam ser negadas. Ademais,
em lugar de ser a base de qualquer teoria específica, sua descrição da alta abstração é empregada para derivar o critério
da coerência de todas as teorias. Assim, ele não a utiliza para provar, e.g. de que existe um mundo independente do
pensamento humano como Kant tentou fazer, o que Stroud demonstrou que os argumentos transcendentais não podem
fazer (“Transcendental Arguments”,Journal of Philosophy 65, no. 9 [1968]: p. 241-56). O critério de Dooyeweerd, no
entanto, demonstra por que todas as teorias tentando justificar a negação de um mundo externo aos humanos violam
esse critério, e assim caem em uma ou mais das incoerências que elas expõem. Esses critérios são formulados adiante
neste capítulo, e sua aplicação à teoria de Kant é resumida abaixo na nota 18.
[52]
Nagel, Structure of Science, p. 4, 11.
[53]
Exemplos das três formas de alta abstração que podem estar envolvidos em teorias são como se segue: (1) não é
necessária a alta abstração para postular se a água sempre apaga o fogo, mas ela é necessária para questionar como o
calor é transferido de um objeto ao outro; (2) não é necessária alta abstração para propor a hipótese de que a água não
apagará todos os tipos de fogo, mas ela é necessária para estruturar a teoria de que o calor é transferido pela colisão de
moléculas vibrando mais rapidamente com moléculas vibrando mais vagarosamente; (3) não é necessária alta abstração
para pensar no teste de se lançar água sobre fogos até que se encontre um que não se extinga pela água. Mas é
necessária alta abstração para se conceber argumentos e testes para a teoria molecular de transferência de calor.
[54]
A sociologia tende a ser uma mistura. Algumas de suas teorias lidam com o aspecto social da vida, ou seja, com
propriedades, normas e relações lidando com o prestígio, respeito, status, costumes, tradições, estilos de roupas, etc.
Outras teorias tomam comunidades sociais como seu campo e lidam com um ou outro aspecto dessas. No capítulo 12
assumirei a posição de que as comunidades são melhor entendidas como resultando de distintas formas nas quais as
relações sociais de autoridade são organizadas.
[55]
G. Ryle, Dilemmas (Cambridge: Cambridge University Press, 1956), p. 13.
[56]
J. Piaget, Main Trends in Interdisciplinary Thought (New York: Harper & Row, 1970), p. 12-13.
[57]
A afirmação de que todas as teorias são reguladas por alguma crença sobre a divindade será desenvolvida nos
últimos capítulos para teorias da realidade, mas não há espaço para fazer o mesmo em relação às epistemologias. Eu
ofereço uma breve descrição de algumas das formas que isso se aplica também às epistemologias em Knowing with the
Heart, mencionado anteriormente.
[58]
Se uma teoria propôs a existência de uma entidade que poderia possivelmente ser experimentada diretamente,
embora ainda não pudesse ser encontrada, então encontrá-la confirmaria a teoria como sendo verdadeira. Por exemplo,
os astrônomos que teorizaram que existe um nono planeta em nosso sistema solar foram provados como estando
corretos quando Plutão foi descoberto em 1930. A teoria germinativa das doenças também é outro exemplo. Sempre
que o que é proposto por uma teoria é encontrado, a proposta da teoria deixa de ser uma suposição e, portanto, não é
mais uma hipótese. Não é necessário dizer, no entanto, que a vasta maioria das teorias nas ciências e na filosofia não
são aquelas que propõem a existência de entidades que sejam diretamente detectáveis.
[59]
Isso não tem como intenção assumir algum lado na controvérsia atual realistas vs. antirrealistas em relação às
entidades teóricas, uma vez que cada uma é extrema em demasia da forma que elas se posicionam. Mas é mais próxima
da realista por insistir que teorias entitárias certamente intencionam descobrir realidades insuspeitas; embora ao mesmo
tempo mantenha que não podemos reivindicar justificadamente que o fizemos além de qualquer dúvida (com a exceção
reconhecida na nota anterior). O principal fator na justificação teórica é aquele já enfatizado: a razão para crer em uma
teoria é o quão bem ela explica o que se propõe a explicar. Assim, enquanto a “extensão para além da intenção” e a
“convergência da evidência” podem justificadamente conduzir à aceitação de uma teoria, pode ainda ser o caso que o
que está em uma teoria que corresponda à realidade (a razão pela qual ela funciona) seja diferente daquilo que a teoria
propõe ser. Ademais, a conclusão sobre qual teoria – ou qual interpretação de uma teoria – oferece a melhor explicação,
continuará a diferir de acordo com a visão da realidade assumida por determinado pensador, e assim também difere de
acordo com a crença sobre a divindade do pensador. O resultado é, como Dooyeweerd geralmente nos lembra, que “não
há certezas no campo da teoria” exceto as certezas que trazemos para ela a partir da experiência pré-teórica.
[60]
Minha articulação de considerar um aspecto como divino é uma expressão elíptica. Mais precisamente, um aspecto
é crido como qualificando a natureza daquilo que é divino. Teorias mais antigas da realidade eram cuidadosas ao
especificar não apenas qual tipo de coisa é divina, mas exatamente o que é que possui essa natureza. Mas teorias mais
recentes da realidade parecem avessas a ser tão diretas. Por exemplo, os materialistas contemporâneos estão certos de
que a natureza última da realidade (e, portanto, a natureza da realidade última) é física, mas nenhum dentre eles se
comprometerá a revelar quais (supostamente) coisas puramente materiais, ou processos, têm existência independente e
são, dessa forma, aquelas sobre as quais tudo o mais depende.
[61]
É a desigualdade da realidade concedida pela atribuição de prioridade que é questionável, porque ela reflete uma
crença religiosa pagã. Conectado a isso um ponto feito no capítulo 2 precisa ser mantido em mente, a saber, que se uma
explicação remonta tudo a alguma(s) fonte(s) e então simplesmente para, sem dizer explicitamente que essa fonte tem
uma realidade independente, o status independente é, dessa forma, conferido sobre a(s) fonte(s) por omissão. Até aqui
dizemos, assim, que a(s) fonte(s) é(são) divina(s). Isso não é negar, entretanto, que certas propriedades incluídas em um
conceito (ou em uma coisa) pode ser mais importante para esse do que para outros. Mas eu demonstrarei
posteriormente por que a maior importância que certas propriedades podem ter em um conceito, ou em uma coisa, é
mais capaz de ser explicada sem entronizar o aspecto qualificando-as como divino, e sem qualquer redução
correspondente no status ontológico dos aspectos remanescentes. O próprio fato de que tal e tal descrição é possível
serve para reforçar o ponto de que a persistência da redução ontológica no pensamento ocidental é derivado não de
alguma necessidade teórica, mas de uma perspectiva religiosa geral pagã.
[62]
Michael Polanyi elaborou o mesmo ponto em relação às regras para a ciência que eu apliquei para os conceitos
teóricos em Personal Knowledge (New York: Harper& Row, 1962) [Conhecimento pessoal. Por uma filosofia pós-
crítica. Porto: Editora Inovatec, 2013]: “Todas as regras formais para o procedimento científico devem se demonstrar
ambíguas, pois elas serão interpretadas de forma bem distinta de acordo com as ideias particulares sobre a natureza
das coisas pelas quais o cientista é orientado” (167, itálicos meus). Deveria ser acrescentado que, ao fazer esse ponto,
eu tenho falado de conceitos altamente abstratos tanto de objetos percebidos quanto de entidades inventadas como
hipóteses, i.e., conceitos tais como emergem na ciência e na filosofia. Em conceitos que não são altamente abstratos e
os quais ocorrem na configuração do pensamento e da experiência ordinária, pessoas raramente estão conscientes sobre
quais tipos de propriedades elas veem como dependentes de outro(s) tipo(s). Assim, em um contexto não teórico, se
pessoas forem questionadas sobre quais dos tipos de propriedades incluídas em seu conceito de algo é aquele do qual
todos os outros tipos dependem, elas poderiam responder honestamente: “Eu não sei.” Isso não demonstra, no entanto,
que elas não possuam algum tipo de crença sobre a divindade, mas apenas que essa permanece como uma
pressuposição inconsciente. Questões adicionais sobre os conceitos das pessoas sobre, digamos, o que é ser humano
(em vez de apenas um saleiro) é geralmente mais revelador de suas crenças tácitas na divindade.
[63]
Estou tentando tornar claro aqui que isso não significa que a proposta, defesa ou adoção de uma hipótese entitária
por um cientista deva ser atribuída à influência de qualquer filosofia em particular. A afirmação não é a de que algum
panorama sobre a natureza da realidade como elaborada em uma teoria filosófica necessariamente exerce uma
influência reguladora sobre as teorias na ciência. Em vez disso, é a questão sobre a natureza da realidade não poder ser
evitada, quer o que um cientista pressupõe sobre essa natureza da realidade seja derivado de um filósofo, ou tenha sido
elaborado como uma teoria na história da filosofia.
[64]
“[Em casos de disputa entre teorias] parece que os dois lados não aceitam os mesmos ‘fatos’ como fatos, e ainda
menos ‘evidências’ como evidências... Pois dentro de dois quadros referenciais distintos o mesmo espectro de
experiências assume a forma de fatos e evidências distintas” (Polanyi, Personal Knowledge, p. 167).
[65]
Alguns críticos objetaram que não faz sentido minha oferta de critérios para teorias se elas são todas interpretadas
sob o controle de alguma crença sobre a divindade. “O critério não teria força apenas para aqueles que compartilham de
sua crença religiosa?”, perguntam. Outros levantaram o mesmo tipo de objeção à minha definição de crença religiosa, e
um até mesmo sugeriu que a afirmação sobre o controle religioso das teorias é autorreferencialmente incoerente.
Vamos começar pela última crítica. Nossa afirmação não é de que todas as teorias são produzidas ou forçadas sobre nós
por alguma crença sobre a divindade, de forma que não haja incoerência autorreferencial. A afirmação é de que a
natureza dos postulados de uma teoria é sempre interpretado à luz daquilo que é pressuposto como divino.
No caso de crenças que não são hipóteses: tenho tentado por todo o tempo tornar claro que existem inúmeros estados de
coisas que são reconhecidos no nível da experiência e do pensamento os quais são compartilhados por todos da mesma
forma (cf. meus comentários no capítulo 1). Todos podem reconhecer, digamos, que a luz do semáforo está vermelha,
ou que existe uma árvore no jardim, etc. Isso permanece assim mesmo que um nível mais profundo de análises dos
conceitos desses estados de coisas demonstre diferenças relativas à crença sobre a divindade pressuposta (eu ilustrei
isso com o exemplo de duas pessoas passando o saleiro no jantar.) Isso também é verdade em relação aos critérios
oferecidos aqui para teorias, juntamente com a definição de crença religiosa e a afirmação sobre o controle religioso de
teorias. Eles são estados de coisas que não são, eles mesmos, hipóteses; eles não são opiniões abalizadas propostas para
preencher lacunas explanatórias.
Nesse sentido eles possuem um status em relação à nossa afirmação central análogo àquele da lei da não-contradição.
Essa também não é uma teoria, mas é abstraída do aspecto lógico de nossa experiência. Como tal, ela pode ser
reconhecida por qualquer pessoa, independentemente de sua orientação religiosa. Essa lei, obviamente, será então
interpretada à luz de qualquer crença que uma pessoa possua, razão pela qual ela tem sido construída de variadas
formas como: um produto acidental da forma que nossos cérebros vieram a evoluir, aplicáveis a nossos pensamentos,
mas não à realidades extra-mentais, aplicáveis à linguagem, mas não à matemática, aplicáveis ao mundo da percepção
do dia a dia, mas não ao nível sub-atômico, parte do mundo ilusório o qual devemos rejeitar como sendo liberado a
partir do ciclo de nascimento, etc.
Dessa forma, a afirmação sobre o controle religioso das teorias, juntamente com a definição de crença religiosa e o
critério oferecido para teorias, também são estados de coisas deriváveis da experiência. Com certeza, eles serão
interpretados a partir de vários pontos de vistas religiosos, mas isso servirá apenas para confirmar nosso ponto, não
enfraquecê-lo. (Cf. New Critique, vol. l, p. 34-37, 82-86, 545-66; vol. 2, p. 366-80, 429-34, 466-7l; vol. 3, p. 1-53,
145.)
[66]
Esse critério produz uma crítica bastante diferente da crítica comum do materialismo eliminativo, o qual alega que
ele nega a existência de crenças e outras atitudes proposicionais. Churchland argumentou que a última crítica assume
uma “psicologia popular” que suscita o questionamento. (A Neuro-Computational Perspective: The Nature of Mind and
the Structure of Science [Cambridge, Mass.: MIT-Bradford, 1989], p. 111-127). Mas em vez de assumir uma psicologia
popular que sustenta que as crenças devem ser não físicas, meu critério demonstra por que os ‘eliminativistas’ devem
assumir que seus próprios enunciados têm propriedades não físicas e são governados por leis não físicas se pretendem
ter sentido e serem verdadeiros. E isso inclui seus enunciados sobre a psicologia popular.
[67]
Este é o critério que Dooyeweerd considera como chave para uma crítica transcendental plena da produção teórica,
e o qual ele acusa Kant de haver ignorado. Na verdade, ele argumenta que quando ele é aplicado às próprias teorias de
Kant, elas são desqualificadas. Dooyeweerd diz:
Desde o princípio Kant derivou o conhecimento humano a partir de apenas duas origens: sensibilidade e
pensamento lógico... seguindo os passos do empirismo inglês, ele parte da suposição dogmática de que o ‘dado’
da experiência é de um caráter... puramente sensitivo...
Nessa atitude, a epistemologia simplesmente assumiu de antemão aquilo que deveria ser o problema central de
qualquer crítica do conhecimento, viz. a abstração das funções lógicas e sensoriais da plena systasis... dos
aspectos da experiência humana... Essa abstração é realizada no pensamento teórico apenas por um processo de
disjunção e oposição...
A suposição de que certas funções da consciência, teoricamente isoladas no ato da cognição, são os dados, não é
nada menos do que o pecado capital cosmológico. (New Critique, vol. 2, p. 431-432)
A questão primordial deveria ser: O que nós abstraímos do ‘dado’ real da experiência? E somente em uma
coerência inquebrável com essa questão primordial deveria o segundo problema ser levantado: Como pode a
antítese entre os [aspectos abstraídos] ser reconciliada por uma... síntese interaspectual? (Ibid., p. 434)
Esse tipo de violação do critério de coerência autoperformativa não é verdadeiro apenas de Kant, mas é, Dooyeweerd
demonstra, típico da filosofia ocidental (Cf. New Critique,vol. 1, p. 27-162, 297-405; vol. 2, p. 430 ss., e especialmente
p. 493-575.) Retornaremos a esse ponto novamente em capítulos posteriores, por exemplo no capítulo 8 (esp. na nota
2), onde parecerá que o tema sobre como caracterizar o dado da experiência é crucial nas interpretações concorrentes da
teoria atômica. E uma exposição mais ampla da força da crítica de Dooyeweerd será oferecida no capítulo 10.
[68]
S. Kierkegaard, Fear and Trembling and Sickness Unto Death (Garden City, N.Y.:Doubleday, 1955), p. 48. [O
desespero humano. São Paulo: Editora UNESP, 2010.]
[69]
Ibid., p. 218.
[70]
S. Kierkegaard, The Concluding Unscientific Postscript, reimpresso em Nineteenth-Century Philosophy, ed. P
Gardiner (New York: Free Press, 1964), p. 306-7. Alguns estudiosos de Kierkegaard informaram-me que a posição
expressa nessas citações é, na verdade, enganosa, e que sua posição real é mais como a minha própria. Eles admitem,
no entanto, que as afirmações como essas que citei aqui certamente indicam que sua posição é como eu a descrevi, e
também que esse (des)entendimento em relação a ele tem por um longo período se constituído como seu legado
intelectual. Uma vez que esse é o caso, eu deixarei as citações como exemplos da posição sendo descrita, com o
reconhecimento de que elas possam talvez não ser acuradas em relação ao que o próprio Kierkegaard intencionava.
[71]
F. Schleiermacher, On Religion: Speeches to Its Cultured Despisers (New York:Harper & Brothers, 1958), p. 46.
[72]
A. N. Whitehead, Adventurer of Ideas (New York: Mentor Books, 1955), p. 165.Essa tem sido a visão
prevalecente no pensamento ocidental por um longo período, e tem sido compartilhada por pensadores que, por outro
lado, diferem amplamente. Por exemplo, em sua tese doutoral (Berlim, 1841), Karl Marx citou David Hume com
aprovação como segue:
‘Há certamente um tipo de indignidade à filosofia, cuja autoridade soberana deveria ser reconhecida em toda parte,
obrigando-a em cada ocasião a ter de se desculpar por suas conclusões, e ter de se justificar... Isso faz recordar um rei
acusado de alta traição contra seus súditos.
Marx então complementa com seu próprio comentário de que “a consciência do homem (é) a divindade suprema. Não
deve haver qualquer deus à altura dela” (de “Foreword to Thesis: The Difference between the Natural Philosophy of
Democritus and the Natural Philosophy of Epicureus”, reimpresso em Marx and Engels and Religion[Moscow:
Foreign Language Publishing House], p. 14-15).
[73]
B. Russell, Why I’m NOT a Christian (New York: Simon & Schuster, 1957), p. 32-33.
[74]
Tomás de Aquino, De Trinitate exposition, 2.3.
[75]
Por uma questão de acuidade histórica, deve ser complementado que sempre houve um maior esforço de
resistência à posição escolástica entre os estudiosos judeus e muçulmanos do que entre cristãos. Muitos pensadores
cristãos que assumiram a posição escolástica geral em relação à razão e às crenças sobre a divindade sentiram-se livres
para se apropriar de muitos conceitos filosóficos gregos no desenvolvimento de suas teologias. Assim, eles, e.g.
terminaram por entender a natureza de Deus como equivalente às formas de Platão, e construíram a ideia da alma
humana em um molde helenista, em vez de estarem de acordo com a forma que os escritores bíblicos falaram dessa.
Esse tópico será tratado com maior amplitude no capítulo 10.
[76]
J. Calvino, Commentary on the First Book of Moses (Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1948), vol, 1, p. 63.
[77]
Veja as observações perspicazes do artigo de James Barr “Literality”, em Faith and Philosophy 6, no. 4 (Oct.
1989): p. 412-28.
[78]
Isto é, tanto as verdades que são reveladas sobre o tema quanto o apelo às Escrituras. [N. do R.]
[79]
Citado em C. C. Gillespie, Genesis and Geology (New York: Harper & Brothers,1959), p. 53.
[80]
Howard Van Till desenvolveu esse ponto em detalhes. Veja The Fourth Day: What the Bible and the Heavens Are
Telling Us about Creation (Grand Rapids, Mich: Eerdmans,1936) e Portraits of Creation. Biblical and Scientific
Perspectives on the World’s Formation (Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1990).
[81]
A confusão entre a providência de Deus e seu agir na criação é comum a uma ampla variedade de pensadores. Um
exemplo notável é encontrado na obra de Stephen Hawking, A Brief History of Time (New York: Bantam Books, 1988),
p. 136-41, 174-75. O equívoco também é endossado por Carl Sagan em sua introdução ao livro.
[82]
Por exemplo, a obra de Gerald Schroeder, Genesis and the Big Bang (New York: Bantam Books, 1990). Outros
autores vão ainda mais longe e tentam até mesmo utilizar evidência científica para provar a existência de Deus. Eles
argumentam que inúmeras características do universo são estatisticamente tão improváveis ao ponto de forçar a
conclusão de que elas foram projetadas inteligentemente. Mas enquanto todos os teístas sabem, a partir da revelação,
que o mundo foi planejado por Deus, apenas a improbabilidade estatística de quaisquer que sejam suas características
nunca podem provar isso. Isso ocorre porque, conquanto pequena seja a probabilidade de qualquer ocorrência, isso só
poderia conduzir à conclusão de que isso foi projetado se pudesse ser conhecido que essa probabilidade fosse menor do
que o coeficiente de coisas planejadas e não planejadas no universo em geral. Por exemplo, suponha que a
probabilidade de X se desenvolver à parte de um projeto inteligente possa ser conhecida como sendo 1/100.000.000.
Isso não nos diria nada sobre se X era mais provável de ser projetado do que o contrário a menos que já soubéssemos
que para cada coisa projetada no universo houvesse menos que 1000.000.000 de coisas não projetadas. Para o
argumento funcionar, teríamos de possuir um acesso antecedente ao coeficiente de coisas projetadas em relação às não
projetadas no universo e comparar isso à probabilidade da ocorrência não planejada de X. Mas não somente essa
informação não está disponível, ela também é dependente de já sabermos se Deus projetou o mundo! Pois se Ele o fez,
então não existem coisas não projetadas em absoluto, ao passo que se Ele não as fez, então as únicas coisas
inteligentemente projetadas (do que sabemos) no universo são aquelas produzidas por seres humanos e animais
superiores. O argumento, portanto, é um entimema, e sua premissa suprimida força qualquer inferência da
probabilidade inicial de X de ser questionada em relação à crença em Deus. (Veja John Venn. The Logic of Chance
[New York: Chelsea Pub. Co., 1962].)
[83]
É importante notar que a própria escritura oferece um enunciado sobre a extensão em relação à qual podemos
esperar sua inspiração para garantir sua verdade: “Toda a escritura é divinamente inspirada, e proveitosa para ensinar,
para redarguir, para corrigir, para instruir em justiça” (2Tm 3.16). Isso parece se encaixar admiravelmente com o que
eu tenho denominado o “foco religioso” da Bíblia uma vez que, tomada em seu próprio contexto, essa observação está
falando da escritura como equipando um pastor com o verdadeiro ensino sobre “justiça” que é o dom pactual de Deus.
Não há a menor pista de que a autoridade inspirada da Escritura seja intencionada para se estender além daquilo que ela
ensina em relação a Deus, nosso relacionamento apropriado com Deus, e o que mais que deva ser verdadeiro para que
esses ensinamentos sejam verdadeiros.
[84]
N. H. Ridderbos, Is There a Conflict between Genesis 1 and Natural Science?(Grand Rapids, Mich.: Eerdmans,
1957). Veja também C. Vanderwaal, Search the Scriptures (St. Catherines, Ontario: Paideia Press, 1978), vol. 1,53 ss. e
Meredith Kline e Lee Irons, “The Framework View”, in The Genesis Debate, ed. D. Hagopian (Mission
Viejo,Califomia, Crux Press, 2001). Eu defendi essa leitura de Gênesis em: “Genesis on the Origin of the Human
Race”, in Perspectives on Science and Christian Faith, 43, no. 1 (March 1991): p. 2-13; e em “Is Theism Compatible
with Evolution?” in Intelligent Design Creationism and Its Critics, ed. Robert Pennock (Cambridge, Mass.: MIT Press,
2001), p. 513-36.
[85]
Henry Morris expressou isso de forma bastante direta: “Mas ainda existe o problema da idade da terra... Se isso
puder ser resolvido em algum lugar, deve ser na escritura... Pareceria impossível que Deus tenha deixado um tema tão
importante... sem resolução em sua Palavra. Certamente, Deus tem a resposta em sua Palavra!”. Cf. The History of
Modern Creationism (San Diego: Master Books, 1984), p. 96.
[86]
Essa visão da natureza humana não é uma proposta nova, já que era mantida por inúmeros pais da igreja
(Lactâncio, c.g.) e por Calvino, o qual afirmou que “apenas a religião torna o ser humano mais elevado que os animais”
(Institutes, I, m, 3). Deveria ser notado que isso significa que ser religioso é uma exigência para ser minimamente
humano. Anjos também são seres religiosos, mas são super-humanos (Sl 8.5).
[87]
Alguns pontos precisam ser acrescentados aqui. Primeiro, o relato não tem a ver com qualquer afirmação de que a
feminilidade deve sua origem na masculinidade, como algumas interpretações mais antigas sugeriram. Segundo, isso se
afasta da afirmação fundamentalista de que Gênesis contém boa ciência assim como das muitas afirmações dos críticos
de Gênesis que tentaram acusá-lo de má ciência. Por exemplo, alguns leram Gênesis de forma equivocada como se
implicasse que anteriormente à Queda não havia coisas tais como a morte, ervas daninhas, ou dor no parto. Não é
assim. O que o texto diz é que Adão e Eva, como os primeiros a serem colocados em provação religiosa, foram
posicionados em um “jardim de Deus” especial no qual eram protegidos dessas coisas. Uma vez que eles
desobedeceram a Deus e foram exilados desse lugar de proteção especial, eles foram então expostos a todas as
vicissitudes da vida das quais eles haviam sido anteriormente protegidos. Esse é o ponto de vista do texto que pode ser
visto ao comparar-se Gen. 3.24 com Josué 5.13-15 e a observação de Josué em Números 14.9.
Por agora também deveria estar claro que não vejo objeção religiosa à ideia de uma longa evolução biológica como
(parte da) a história das origens humanas. A esse respeito, é notável que o próprio Gênesis faça uma referência velada a
outros humanos os quais os filhos de Adão e Eva conheciam e temiam (Gen. 4:14-16). Quase todos ao lerem pela
primeira vez essas observações se questionaram de onde essas pessoas teriam vindo. Mas se um processo evolutivo
produziu muitos seres quase-humanos acerca do mesmo tempo, essa questão seria respondida. Outros quase-humanos
poderiam ter se tornado plenamente humanos logo após Adão e Eva, e pelo mesmo passo causal final de Deus fazendo-
se conhecido a eles. O encabeçamento de Adão e Eva relativo ao resto da raça humana deve, portanto, também ser
considerado como religioso ao invés de biológico: eles eram aqueles a quem Deus colocou em provação religiosa, de
forma que eles eram os representantes de todas as pessoas ― as instâncias universais da raça humana ― relativo às
ordenanças e promessas de Deus.
Reconheço que esse ponto é contrário a uma antiga tradição teológica (endossada por Agostinho, por exemplo) que
insiste que Adão e Eva eram os ancestrais biológicos de todos os outros seres humanos. Mas não posso encontrar
garantia teológica para essa posição. A coisa mais próxima nas Escrituras a tal ideia é o momento em que Adão chama
a Eva a “mãe de todos os seres viventes”. Mas isso é dito no contexto em que a ela é prometido que um de seus
descendentes será o Messias. Assim, a observação de Adão se refere ao sentido pleno de “vida” que diz respeito ao
relacionamento apropriado com Deus, ao invés de meramente descendência biológica. Parece, portanto, que interpretar
o encabeçamento religioso da raça humana como equivalente à posição de progenitor de todos os humanos é (outro)
caso de se oferecer a um ponto religioso uma interpretação (biológica) não religiosa. Que isso seja um erro se faz ainda
mais claro no Novo Testamento do que em Gênesis, uma vez que é dito que Jesus é o Messias e, portanto, o “novo
Adão”, e certamente seu encabeçamento da raça humana é exclusivamente religioso, já que ele nunca foi o ancestral de
alguém.
Finalmente, é significativo que a oposição teísta à teoria da evolução tenha emergido da confusão mencionada
anteriormente entre a providência de Deus e seus atos milagrosos. O próprio Darwin notou que isso seria um ponto
chave em jogo quando, na primeira edição da oba A origem das espécies por meio da seleção natural (Londres: John
Murray, 1859), ele escreveu:
A meu ver isso se adequa melhor com o que sabemos das leis impressas na matéria pelo Criador, que a
produção e a extinção dos habitantes passados e presentes do mundo devem ter ocorrido devido a causas
secundárias, como aquelas determinando o nascimento e a morte do indivíduo. (p. 488)
Isso parece correto em relação aos processos físicos e biológicos que conduziram ao aparecimento dos últimos pré-
humanos, embora isso ainda exclua o último passo exigido para trazer seres humanos plenos à existência, o que é o
foco em Gênesis. Grande parte da oposição entre os fundamentalistas e os evolucionistas não teístas pode, assim, ser
visto como cada um insistindo em seu próprio lado favorecido da verdade: um diz que houve apenas processos naturais,
o outro diz que houve apenas a ação direta de Deus.
A razão pela qual Darwin abandonou a posição expressa na citação acima, tornando-se um agnóstico religioso, foi que
ele subscreveu a uma teologia falha. Ele foi convencido de que o que quer que ocorra gradualmente é natural, e que
apenas saltos inexplicáveis na natureza devem ser atribuídos a Deus. Veja a obra de Howard Gruher, Darwin on Man:
A Psychological Study of Scientific Creativity (Chicago: University of Chicago Press, 1981), p. 242.
[88]
Enquanto eu critico a afirmação fundamentalista de que as escrituras orientam teorias ao suprir ou confirmar seus
conteúdos, eu também tenho tentado tornar claro que eu não quero sugerir que isso nunca aconteça. Por exemplo,
certamente é o caso que a Bíblia ensina que o universo não é autoexistente e tem ensinamentos claros sobre a natureza
humana, cada qual tendo sido negado por teorias. Mas, como disse no capítulo 5, enquanto existem ocasionalmente
verdades reveladas que deveriam ser parte de uma teoria, ou podem confirmar uma teoria, essas são poucas e espaçadas
e não podem constituir um modelo para a relação geral entre crença religiosa e teorias, devido ao ensinamento
escritural de que a crença em Deus impacta toda a verdade e todo o conhecimento.
[89]
Alguns críticos têm objetado que não faz sentido falar de crenças inconscientes uma vez que para se ter uma
crença alguém deve estar consciente de seu conteúdo. Isso, penso eu, confunde o sentido disposicional com o manifesto
da “crença”. Ao fim do capítulo 2, eu assumi a posição de que uma crença é uma disposição adquirida para considerar
um estado de coisas como sendo de fato o caso e o enunciado dessa como verdadeira. Esse tipo de disposição pode
existir enquanto permanece inconsciente para seu possuidor tanto no sentido de não ser pensado em um dado momento
quanto no sentido de nunca ter sido conscientemente articulado em absoluto.
[90]
Muitas discussões conhecidas sobre pressuposições por filósofos e linguistas não são relevantes aqui, uma vez que
elas lidam com essas no sentido de condições de verdade ao invés de condições de crenças. Por exemplo, B. Russell,
“On Denoting”, Mind 15 (1905); P. Strawson, “On Referring”, Mind 59, no. 235 (July 1950), e “Identifying Reference
and Truth Values”, Theoria, vol. 20, pt. 2 (1964); G. Lakoff, “Linguistics and Natural Logic,” in Semantics of Natural
Language, ed. D. Davidson e G. Hannon (Dordrecht: Riedel, 1972); J. Katz, Semantic Theory (New York: Harper &
Row, 1972). O uso de “pressuposição” nesses artigos como condições de verdade é um termo técnico que não
corresponde a seu sentido no discurso ordinário, razão pela qual outros pensadores têm, por vezes, designado o sentido
ordinário por outros termos. Isabel Hungerland, por exemplo, propôs “implicação contextual” em um artigo com o
mesmo título (Inquiry 4 [1960]: p. 211-58), Dierdre Wilson denominou o termo técnico “pressuposição lógica” e o
sentido ordinário “pressuposição não lógica” (Presuppositions and Non-Truth Coriditional Semantics [New York:
Academic Press, I975], p. 141 ss.). Deveria estar claro que o sentido de “pressuposição” que estou utilizando aqui é o
sentido ordinário, ou “não lógico”. Uma elaboração mais formal da definição desse sentido de “pressuposição” é como
segue:
Uma pessoa P que sustenta uma crença X pode ser considerada como pressupondo outra crença Y em relação a X,
desde que:
Pode haver, é claro, muitas pressuposições possíveis para uma crença particular, e elas não necessitam ser mutuamente
consistentes. Deve ser notado que embora o “teria de” na parte 2 da definição tenha um aspecto lógico, ele não é
restritivamente lógico, uma vez que sua violação não resulta em uma contradição formal. Afirmar de forma crédula X e
afirmar (de forma crédula) ¬ Y, aonde Y é uma pressuposição de X, torna esse conjunto de crenças o que eu denomino
“autoconjecturalmente incoerente” ao invés de autocontraditório. A relação é amplamente epistêmica, ao invés de
estreitamente lógica. Strawson também notou que mais do que apenas regras lógicas estão envolvidas nesse tipo de
incoerência, embora ele pontue isso em uma discussão de pressuposições como condições de verdade ao invés de
condições de crença. Veja sua obra Introduction to Logical Theory (London: Methuen, I967), p. 175.
[91]
Geralmente as ações, assim como as crenças, são apresentadas como possuindo pressuposições. Essa é uma
expressão elíptica que não é, estritamente falando, exata. As pessoas pressupõem; suas ações podem ser motivadas pelo
que elas pressupõem.
[92]
Nicholas Wolterstorff cunhou essa expressão para denominar a forma que crenças reveladas particulares podem
regular a teorização em Reason Within the Bounds of Religion (Grand Rapids,Mich.: Eerdrnans, 1976). É interessante
que nessa obra Wolterstorff inicia a partir daquilo que parece ser grosso modo a orientação escolástica, mas a corrige
significantemente na direção que estou advogando aqui. Ele diz, por exemplo, que teorias não devem somente ser
consistentes com as crenças religiosas, mas “conviver” com elas (72), e que o controle exercido pelas crenças religiosas
deveria ser “interno” ao processo de teorização ao invés de meramente servir como controles externos (77). Mas a
partir disso ele não analisa ou define “conviver”, ou oferece uma descrição daquilo que seria controle interno versus
externo. Eu ofereço, portanto, a exposição desenvolvida nos capítulos subsequentes como uma exposição desses dois
conceitos.
[93]
A. Whitehead, Science and Philosophy (Paterson, N.J.: Littlefield, Adams & Co., 1964), p. 103.
[94]
Citado por E. Cassirer em The Philosophy of the Enlightenment (Boston: BeaconPress, I961), p. 237.
[95]
Dooyeweerd, New Critique, vol. 1, p. 223-261.
[96]
Collected Works of John Stuart Mill, ed. J. Robson et al. (Toronto: University of Toronto Press, 1973), livro 2,
capítulos 5 e 6; e livro 3, capítulo 24.
[97]
B. Russell, Principles of Mathematics (New York: W. W. Norton, 1938), p. xi.
[98]
Ibid., 119:
1 + 1 é o número de uma classe [lógica] – w – a qual é a soma lógica de duas classes – u e v– as quais não
possuem termos comuns e cada uma possui apenas um termo. O ponto principal a ser observado é que a adição
lógica de classes é a noção fundamental, enquanto a adição aritmética dos números é completamente
subsequente.
É difícil de simpatizar com a afirmação de Russel de que nenhum sentido quantitativo está envolvido nessa fórmula
quando o símbolo ∈ significa “é membro de”, o que não difere de “é um membro de”. Ademais, o quantificador
existencial significa “existe pelo menos um x de modo que...”. Assim, a quantidade é inevitavelmente tanto pressuposta
quanto referida pelo sentido da fórmula, mesmo que os quantificadores da fórmula variem ao longo apenas de classes
lógicas.
[99]
B. Russell, “The Study of Mathematics”, reimpresso em Mysticism and Logic (Garden City, N.Y.: Doubleday
Anchor Books), p. 65.
[100]
John Dewey, Reconstruction in Philosophy (Boston: Beacon Press, 1964), p. 156.
[101]
Ibid., p. 149.
[102]
Ibid., p. 137.
[103]
Por uma questão de exatidão, deveria ser notado que a perspectiva biológica não é o passo final na teoria da
realidade de Dewey. Isso ocorre porque ele via o aspecto biológico como dependente do (ou incluído no) físico. Assim,
em última análise, é o aspecto físico (ou o físico-biótico) da criação que ele assume como sendo a estrutura básica da
realidade.
[104]
Morris Kline, Mathematical Thought from Ancient to Modern Times (New York: Oxford University Press, 1972),
p. 32.
[105]
Ibid., p. 115.
[106]
Morris Kline, Mathematics, The Loss of Certainty (New York: Oxford University Press, 1980), p. 236.
[107]
Ibid., p. 237.
[108]
Ibid., p. 233.
[109]
Ibid., p. 6.
[110]
Deveria também ser notado que muitos intuicionistas, enquanto declaram a independência do matemático de
todos os demais aspectos da experiência, ainda insistem que as verdades da matemática também são de alguma forma
dependentes da mente humana. Isso é intrigante, porque parece exigir que as verdades da matemática reflitam algo
autoexistente e que elas são dependentes. Uma forma de reconciliar esse conflito seria dizer, com Kronecker, que
“Deus criou os números naturais enquanto tudo o mais é a obra do homem.” Mas ao comentar sobre a versão de
intuicionismo de Brouwer, Karl Popper ofereceu ainda outra interpretação para evitar a inconsistência. Ele assume que
a teoria de Brouwer exige o que ele (Popper) denomina um “terceiro mundo” de realidade que inclui (pelo menos)
entidades matemáticas e linguísticas. Como Platão, Popper considera esse mundo como autoexistente
(“ontologicamente autônomo”). Mas diferentemente de Platão, ele sustenta que esse é um domínio de possibilidades
necessitando do pensamento humano para atualização. Assim, há um sentido no qual o terceiro mundo é dependente do
pensamento humano mesmo que ele seja divino em outro sentido. A posição de Popper, assim, reflete uma crença
religiosa pagã. Veja seu Objective Knowledge (Oxford: Clarendon Press, 1972), esp. p. 128-90.
[111]
Veja a citação de Mill na nota 32 do capítulo 2.
[112]
Por exemplo, W. V. O. Quine e Nelson Goodman desenvolveram um cálculo formal de individuais para evitar
tratar predicados como representando universais realmente existentes. Veja cap. 2 da obra The Structure of Appearance
(Indianapolis: Bobbs, Merrill,1966), p. 33 ss.
[113]
Para mais sobre o impacto não-redutivo que a crença em Deus implica para teorias em matemática, ver a obra
New Critique de Dooyeweerd, vol. 2, p. 55-93. Essa visão recebeu desenvolvimentos posteriores pelos seguintes
pensadores (dentre outros):
D. H. T. Vollenhoven. De Wijsbegeerte der Wiskunde van Teistische Standpunt (Amsterdam: Wed G. Van Soest,
1918).
_____. De Noodzakeljkhbeid eener Christelyjke Logica (Amsterdam: H. J. Paris,1932).
_____. “Problemen en Richtingen in de Wijsbegeerte der Wiskunde,” Philosophia Reformata 1 (1936).
_____. “Hoofdlijnen der Logica,” Philosophia Reformata 13 (1948).
D. Strauss. “Number Concept and Number Idea,” Philosophia Reformata 35, no. 3 (1970) e35, no. 4 (1971)
A. Tol. “Counting, Number Concept and Numerosity,“ in Hearing and Doing: Philosophical Essays Dedicated to Evan
Runner, ed. J. Kraay (Toronto: Wedge, 1979).
D. Strauss. “Infinity,” in Basic Concepts in Philosophy, ed. Z. Van Straaten (Oxford:Oxford University Press, 1981).
_____. “Are the Natural Sciences Free from Philosophical Presuppositions?” Philosophia Reformata 46, no. 1 (1981).
_____. “Dooyeweerd and Modern Mathematics," Reformational Forum, no. 2, 1983, p. 40-55.
_____. “The Nature of Mathematics and Its Supposed Arithmetization,” Proceedings of the Ninth National Congress
on Mathematics Education, 1988, p. 10-31 (Mathematical Association of South Africa).
_____. “The Uniqueness of Number and Space and the Relation between Realismand Nominalism,” Journal for
Christian Scholarship, lste & 2de kwartaal, 1990, p. 104-25.
_____. “A Historical Analysis of the Role of Beliefs in the Three Foundational Crisesin Mathematics,“ in Facets of
Faith and Science, ed. J. van der Meer (Lanham, Md.:University Press ofAmerica, 1997), vol. 2, p. 217-30.
_____. “Primitive Meaning in Mathematics: The Interaction between Commitment,Theoretical Worldview, and
Axiomatic Set Theory,” In ibid., vol. 2, p. 231-56.
_____. “Reductionism in Mathematics,” Journal for Christian Scholarship, Jaargang 37, lste & 2de kwartaal, 2001, p.
71-88.
_____. Paradigms in Mathematics, Physics, and Biology (Bloemfontein: Teksor,2001).
_____. “Frege’s Attack on ‘Abstraction’ and His Defense of the ‘Applicability’ ofArithmetic as Part of Logic,” South
African Journal of Philosophy 22 (1), 2003, p. 63-80.
_____. “Is a Christian Mathematics Possible?” Journal for Christian Scholarship, 3de& 4de kwartaal, 2003, p. 31-49.
[114]
A circunscrição é parcialmente derivada de James Comman, Materialism and Sensations (New Haven e Londres:
Yale University Press, 1971), p. 11-12. A distinção entre uma propriedade estar ativa em contraste a passiva será
explicada no capítulo 11.
[115]
A. Aliotta articulou bem esse ponto:
Quando [Mach] se esforça para construir uma nova [imagem] do mundo sobre as ruínas da teoria mecânica, e
substitui o elemento de sensação pelo átomo material, ele não faz outra coisa senão substituir a mitologia
mecânica pela mitologia sensorial. O átomo era uma abstração; o que mais seria o elemento sensitivo? (The
Idealistic Reaction Against Science [London: McCaskill, 1914], p. 65)
Esse é, obviamente, o mesmo ponto no qual a crítica de Dooyeweerd focaliza, e o qual denominei o critério da
coerência autoperformativa. Na nota 18 do capítulo 4, sua crítica foi aplicada à teoria de Kant, enquanto aqui Aliotta a
aplica tanto ao materialismo quanto ao fenomenalismo. O ponto é crucial, pois cada uma das visões contrastadas nesse
capítulo tem diferenças em relação às outras que procedem das ideias alternativas sobre o caráter do dado da
experiência, e cada uma dessas ideias é dogmática ao violar do critério de coerência autoperformativa. Ademais, está
claro que em cada caso o dogmatismo tem como origem uma convicção religiosa sobre o que é autoexistente e,
portanto, divino. No capítulo 10, o critério da coerência autoperformativa será desenvolvido em maiores detalhes para
demonstrar por que ele torna a caracterização redutível dos dados da experiência injustificável em princípio.
[116]
Do texto de Mach, The Analysis of Sensations, no livro Ernst Mach, de J. Blackmore (Berkeley: University
ofCalifomia Press, 1972), p. 322.
[117]
Do texto de Mach, Conservation of Energy, in ibid., p. 86.
[118]
Ibid.
[119]
Blackmore, Ernst Mach, p. 174-75.
[120]
E. Mach, Knowledge and Error (Dordrecht: Reidel, 1976), p. 354, 358.
[121]
A. Einstein, Ideas and Opinions (New York: Bonanza Books, I954), p. 290-91.
[122]
Ibid., p. 22.
[123]
Ibid., p. 23.
[124]
Descartes Selections, ed. R. Eaton (New York: Scribncrs, 1953), p. 178.
[125]
Einstein, Ideas and Opinions, p. 295.
[126]
W. Heisenberg, Physics and Philosophy, p. 70.
[127]
Ibid., p. 71-72.
[128]
Ibid., p. 74-75.
[129]
Ibid., p. 52.
[130]
Ibid., p. 145. Deve-se ter em mente que o ponto aqui não é o de endossar a visão de Einstein sobre a Heisenberg,
ou o de rejeitar outras versões da física quântica de Copenhague; ainda menos defender algum tipo de mecânica
newtoniana. Em vez disso, é pontuar os modos pelos quais tanto Einstein quanto Heisenberg assumem uma visão
reducionista da realidade e, assim, da teoria atômica. Assim, embora ambos cheguem a muitas conclusões na física que
são justificadas relativamente às evidências, seus argumentos também incluem distorções devido às razões
reducionistas oferecidas para aquelas conclusões.
[131]
Philip Morrison, “The Neutrino,” Scientific American (Jan. 1956): 61.
[132]
Veja a obra Theory of Science de R. Gale (New York: McGraw Hill, 1979), p. 278 ss., e A. McDonald, J. Klein, e
D. Wark, “Solving the Solar Neutrino Problem”, Scientific American (April 2003): p. 40-49.
[133]
Mach, The Analysis of Sensations, na obra Ernst Mach, de Blackmore, p. 327 n. 14.
[134]
Einstein, ibid., p. 11.
[135]
Para um tratamento mais detalhado das bases racionalistas da interpretação de Heisenberg das relações de
incerteza, veja meu artigo, “A Critique of Descartes and Heisenberg”, Philosophia Reformata (45e Jaargang 1980- N.
R2): p. 157-77.
[136]
Heisenberg, Physics and Philosophy, 92. Veja também p. 144-46.
[137]
Ibid., p. 72-73.
[138]
Para mais sobre como a crença em Deus conduz a uma visão não reducionista de número, espaço e matéria, veja
Dooyeweerd, New Critique, esp. vol. 2, p. 93-106. Essa visão foi desenvolvida posteriormente por outros pensadores.
Por exemplo:
[139]
R. Isaacson, M. Hutt e H. Bluin, Psychology: The Science of Behavior (New York: Harper & Row, 1965), p. 6.
[140]
Ibid., p. 7.
[141]
Jean Piaget, Main Trends in Psychology (New York: Harper Torchbook, I973).Esse parece ser um bom lugar para
um lembrete de que, embora Dooyeweerd ofereça uma extensa defesa da lista dos aspectos que ele aceita, não posso
repetir tudo isso aqui e, portanto, disse que estaria utilizando a lista apenas provisoriamente. Piaget, como muitos outros
pensadores, parece aceitar a mesma lista, ou algo muito próximo disso. Mas, repito, nem a crítica de Piaget das teorias
reducionistas, nem minha exposição da crítica que Dooyeweerd faz delas, depende exatamente da correção dessa lista.
As razões para isso são explicadas na nota 4 do capítulo 10.
[142]
Ibid, p. 36.
[143]
5. J. Watson, Behaviorisrn (New York: W. W. Norton, 1925), p. 5.
[144]
Ibid., p. 6.
[145]
E. M. Thorndike, The Elements of Psychology (New York: A. G. Seiler, 1913), p. 2.
[146]
B. F. Skinner, Science and Human Behavior (New York: New York Free Press,1965), p. 66.
[147]
Ibid., p. 62.
[148]
B. F. Skinner, Contingencies of Reinforcement – A Theoretical Analysis (Englewood Cliffs, N.J.: Appleton-
Century-Crofts, 1969), p. 7.
[149]
“Como um resultado dessa suposição central de que existe tal coisa como consciência e que podemos analisá-la
pela introspecção, não [há] um modo de atacar experimentalmente e solucionar problemas psicológicos e padronizar
métodos” (Watson, Behaviorism, p. 6.)
[150]
“Em que medida é útil que alguém diga ‘Ele bebe porque está com sede’, se estar com sede significa nada além
do que ter uma tendência de beber algo? Isso é uma mera redundância. Se isso significa que ele bebe em razão de um
estado de sede, um evento causal interno é invocado. Se esse estado é puramente inferencial – se não forem atribuídas
dimensões a isso que tornariam a observação direta possível – ele não pode servir como uma explicação. [Mesmo]que
ele possua... propriedades psíquicas. Qual papel isso pode exercer em uma ciência do comportamento?” (Skinner,
Science and Hurnan Behavior, p. 33).
[151]
“Skinner’s Utopia: Panacea or Path to Hell?” Time, Sept. 20, 1971, p. 52.
[152]
Piaget, Main Trends in Psychology, p. 37.
[153]
Richard Lewontin admitiu francamente esse ponto: “Não é o caso que os métodos e as instituições da ciência de
algum modo nos obriguem a aceitar a explicação material do mundo, mas ao contrário, que nós somos forçados, por
nossa adesão anterior às causa materiais, a criar um aparato de investigação e um conjunto de conceitos que produzam
explicações materiais, não importando o quão contra-intuitivo seja, não importando o quão ilusório para o não iniciado.
Ademais, esse materialismo é absoluto, pois não podemos permitir um pontapé Divino porta adentro... Apelar a uma
deidade onipotente é permitir que a qualquer momento as regularidades da natureza sejam rompidas, que milagres
possam acontecer” (New York Review of Books, Jan. 7, 1997, p. 31).
[154]
Alfred Adler, Cooperation between the Sexes: Writings on Women, Love, Marriage, Sexuality and Its Disorders,
ed. H. Ansbacher e R. Ansbacher (New York:Doubleday, 1978), p. 305.
[155]
Ibid., p. 307.
[156]
The Individual Psychology of Alfred Adler, ed. H. Ansbacher e R. Ansbacher (NovaYork: Basic Books, 1956), p.
207.
[157]
Adler, Cooperation between the Sexes, p. 305.
[158]
Alfred Adler, Understanding Human Nature (Londres: George Allen & Unwin,1974), p. 47-48.
[159]
Adler, Cooperation between the Sexes, p. 176.
[160]
Alfred Adler, The Practice and Theory of Individual Psychology (Londres: Routledge & Keagan Paul, 1964), p.
7-8.
[161]
Adler, Cooperation between the Sexes, p. 281.
[162]
Adler, Understanding Human Nature, p. 27-28.
[163]
Ibid., p. 31.
[164]
Ibid., p. 26-27.
[165]
Ibid., p. 32.
[166]
Alfred Adler, Superiority and Social Interest, ed. H. Ansbacher e R. Ansbacher (Evanston, III: Northwestern
University Press, 1964), p. 288.
[167]
Ibid., p. 295.
[168]
Adler, Cooperation between the Sexes, p. 3-4.
[169]
Ibid., p. 136-37.
[170]
Ibid., p. 135.
[171]
Ibid., p. 270.
[172]
Ibid., p. 256.
[173]
Ibid., p. 270.
[174]
Ibid.
[175]
Adler, Understanding Human Nature, p. 80-81.
[176]
E. Fromm, The Crisis of Psychoanalysis (New York: Holt, Rineharl, Winston, 1970), p. 47.
[177]
Ibid., p. 48.
[178]
Ibid., p. 52.
[179]
Ibid., p. 117.
[180]
Ibid., p. 119.
[181]
Ibid., p. 123.
[182]
Ibid., p. 121.
[183]
Ibid.
[184]
D. Hausdorff, Eric Fromm, (New York: Twayne, 1972), p. 48.
[185]
Ibid, p. 90.
[186]
Ibid.
[187]
E. Fromm, The Heart of Man (New York: Harper & Row, 1964), p. 117.
[188]
Ibid., p. 117-23.
[189]
E. Fromm, The Art of Loving (New York: Harper & Row, 1956), p. 61ss.
[190]
Em defesa desse ponto de inflexão crucial em seu pensamento, Fromm oferece apenas uma breve descrição das
leis da lógica ocidental a serem rejeitadas, e algumas ilustrações de enunciados que supostamente contradizem uns aos
outros, mas no entanto são ambos verdadeiros. Mas seria generoso dizer que o argumento de Fromm é fraco. Primeiro,
ele consegue formular erroneamente as leis da lógica, e então ocorre que nenhum dos seus exemplos seja de fato de
crenças mutuamente contraditórias. Eles incluem, por exemplo, o dito taoísta: “A gravidade é a raiz da leveza” (The Art
of Loving, 63). Nesse, assim como em seus outros exemplos, Fromm confunde combinações de termos ou qualidades
paradoxais, ou não usuais, por contradições lógicas.
[191]
Fromm, The Art of Loving, p. 64.
[192]
Isso permanece verdadeiro apesar dos muitos elementos bíblicos no pensamento de Fromm derivados de sua
herança judaica, especialmen sua ideia de amor como a norma para tanto o indivíduo quanto a sociedade. Cf. a resenha
de Rabbi Jakob Petchowshi da obra The Art of Loving, “Eric Fromm’sMidrash on Love,” Commentary 22 (Dec. I956):
p. 549.
[193]
Fromm, The Art of Loving, p. 62.
[194]
Solomon Asch, Psychology: A Study of a Science, ed. S. Koch (New York: Mc-Graw Hill, 1959), vol, 3, p. 367.
[195]
J. A. Brown, Freud and the Post-Freudians (Baltimore: Penguin, 1961), p. 15.
[196]
A elaboração clássica desse ponto é encontrada na abertura das Institutas de Calvino (I, i, p. 1-2) aonde ele diz:
Quase toda a soma de nosso conhecimento, que de fato se deva julgar como verdadeiro e sólido conhecimento,
consta de duas partes: o conhecimento de Deus e o conhecimento de nós mesmos... Por outro lado, é notório que o
homem jamais pode ter claro conhecimento de si mesmo, se primeiramente não contemplar a face do Senhor, e
então descer para examinar a si mesmo.
[197]
Por exemplo, Oscar Cullman, Immortality of the Soul or Resurrection of the Dead? (New York: MacMillan,
1958); também John Cooper, Body, Soul and Life Everlasting (Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1989).
[198]
Agostinho reconheceu que o uso bíblico do termo “alma” em geral é equivalente à “vida do corpo” e não quis
dizer com isso uma entidade racional independente como ocorreu com Pitágoras, Platão e outros filósofos gregos
(Retractiones l, xiii). Eu penso que a escritura é notavelmente persistente (embora não sem exceções) em seu uso do
termo “coração” para a unidade central do eu, enquanto o termo “espírito” geralmente se refere a uma diversidade da
pessoa (de funções, talentos, disposições etc.). “Alma”, com Agostinho notou, é geralmente utilizado para uma pessoa
como um ser incorporado, bioticamente vivo. Deveria complementar, no entanto, que essa posição não anula toda e
qualquer dualidade na ideia da natureza humana, mesmo quando rejeita os dualismos tradicionais. Isso se dá porque
ainda existe uma distinção entre a parte de um humano destruída na morte e o coração que continua além da morte
como a identidade duradoura da pessoa que será restaurada pela ressurreição para sua plena existência corporal no reino
final de Deus.
[199]
Isso também significa que a crença é mais do que “assentimento intelectual”. Uma vez que a crença está
enraizada no coração, essa é uma condição (disposicional) da pessoa inteira, e não meramente uma questão de razão
lógica. Por exemplo, para ser uma crença, um conceito lógico ou uma ideia deve também ser confiada como
correspondendo àquilo sobre o que versa, de modo que a crença é qualificada pelo aspecto fiduciário: uma crença é
verdadeira se confiável, e confiável se verdadeira. É na unidade do coração que todos os aspectos convergem para
formar crenças em seu sentido pleno.
[200]
G. Allport, The Person in Psychology (Boston: Beacon Press, 1968), p. 13-14.
[201]
Dooyeweerd, New Critique, vol. 1, p. v.
[202]
Dooyeweerd, In the Twilight of Western Thought (Philadelphia: Presbyterian &Reformed, 1960), p. 179-80.
[203]
A ênfase no que segue não se aplica sobre o impacto universal das crenças religiosas em todo o conhecimento;
ela se aplica apenas em seu impacto sobre todas as teorias. Mas a crítica da redução como uma estratégia para
explicação em teorias tem, de fato, aplicação universal. Pois não apenas cada hipótese, mas cada conceito, pelo menos
implicitamente, ou é reducionista, ou não.
[204]
Sabendo que o que será desenvolvido é uma teoria não reducionista da realidade, deveria estar claro que minha
reivindicação é de que a crença em Deus (e outros ensinamentos bíblicos) pode ser empregada também para
desenvolver uma teoria distinta do conhecimento. E essa teoria, por sua vez, pode ser empregada em teorias de todas as
ciências. Como mencionei anteriormente, descrevi algumas das consequências desse programa para a epistemologia em
Knowing with the Heart.
[205]
A ideia de que a revelação bíblica pode, e deveria, oferecer uma perspectiva distinta para a interpretação da
totalidade da vida, embora não seja popular, não é nova. João Calvino a defendia em oposição aos escolasticismos
prevalecentes no século dezesseis (veja Institutes, II, ii, p. 16-18), e ela foi revivificada na obra de Abraham Kuyper
(1837-1920). Foi Kuyper quem aplicou diretamente esse insight na relação com as teorias:
Especialmente o pensamento dominante que formamos naquele campo da vida, que representa nosso interesse
central, exercita um domínio poderoso sobre o conteúdo inteiro de nossas consciências, viz. nossas visões
religiosas... assim, então, se cometemos um erro... como isso deixaria de ser comunicado desastrosamente a todo
o nosso estudo científico? (Encyclopedia of Sacred Theology [New York: Scribners Sons, 1898], p. 109-10).
Isso, Kuyper diz, se dá porque tal conhecimento emerge em resposta a questões que devem incluir
Questões quanto à origem e à finalidade do todo... questões quanto ao ser absoluto [não dependente] (Ibid., p.
113)
Por essa razão, a fé bíblica não pode ser confinada à provisão de verdade sobre o sobrenatural.
As Sagradas Escrituras não apenas nos levam a descobrir a justificação pela fé, mas também revelam os
fundamentos da vida humana em sua inteireza... o que deve governar a existência humana como um todo.
(Lectures on Calvinism [Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1976], p. vi. Essas foram as Palestras Stone no
Princeton Seminary em 1898. [Calvinismo. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002])
Não há um só centímetro quadrado em todos os domínios da existência humana sobre o qual Cristo não diga: É
meu!(Souvereiniteit in Eigen Kring [Amsterdam: J. H. Kruyt, 1880], p. 5)
Essa é a tradição que recebeu desenvolvimento positivo na filosofia de Herman Dooyeweerd (l894-1977), cujas teorias
são esboçadas nos próximos três capítulos. Arthur Holmes resumiu a abordagem de Dooyeweerd como segue:
A teologia reformada (da tradição protestante de João Calvino) está insatisfeita com a doutrina Tomista da
natureza e graça e enfatiza, no lugar disso, a soberania de Deus sobre toda operação da natureza humana e a
influência igualmente pervasiva do pecado. O problema com a razão natural, nessa visão, não é apenas a
finitude humana, mas o – tão profundo quanto – seu pecado. É um pecado afirmar a autonomia da razão
filosófica... e esse pecado perverte o entendimento filosófico. Dooyeweerd, dessa forma, delimita uma linha
aguda entre a filosofia Cristã, a qual procede do coração regenerado em obediência ao Deus soberano, e todas as
outras filosofias. (“Christian Philosophy,” Encyclopedia Britannica, 1974 edition, vol. 4, p. 555-56)
[206]
A razão de por que a crítica da produção teórica a ser apresentada não se aplica apenas à minha lista particular de
aspectos é, grosso modo, essa: uma vez que qualquer candidato para o status de ser um tipo básico de leis-e-
propriedades é assumido como sendo suficientemente (logicamente) distinto de todos os demais, de modo a ser incluído
na lista de aspectos de um pensador, esse também é suficientemente distinto, de modo a invocar todos os mesmos
obstáculos de se reduzir qualquer um dentre aqueles que estou em vias de aplicar à lista com a qual estou trabalhando.
Assim, enquanto podem haver discordâncias sobre qual seria a lista correta, uma vez que os aspectos de qualquer lista
tenham sido distinguidos como suficientemente diferentes em tipo dos demais incluídos na lista, não há como eles
então serem ou dispensados como ilusórios, ou considerados como sendo causados por qualquer outro. É a diferença
qualitativa de um suposto aspecto que o torna dificilmente redutível. Em termos amplos, isso se dá porque: (1) no caso
da redução eliminadora, se há uma diferença qualitativa suficiente para distinguir dois aspectos, então não pode ser
também verdade que eles sejam idênticos; (2) para a redução causal, se existe diferença qualitativa suficiente para
considerá-los como aspectos distintos, então nenhum conceito de uma relação causal entre eles é possível.
[207]
Uma descrição mais completa desses sentidos de “redução” é como segue:
A. Redução forte
i. Substituição de significado. A natureza da realidade é exclusivamente aquela do aspecto X, de modo que todas
as coisas têm propriedades apenas do tipo X e são governadas apenas por leis do tipo X. Isso é defendido
argumentando-se que todos os termos considerados como tendo significado não-X podem ser substituídos por
termos-X sem perda de significado, enquanto nem todos os termos-X podem ser substituídos por termos com
significado não X (Berkeley, Hume e Ayer utilizaram essa estratégia para defender o fenomenalismo.)
ii. Identidade factual. A natureza da realidade é exclusivamente aquela do aspecto X, de modo que todas as
coisas têm apenas propriedades do tipo X e são governadas por leis do tipo X. Isso é defendido argumentando-
se que, embora o significado de termos não-X não possam ser reduzidos àqueles dos termos-X, sua referência
pode ser exclusiva e igualmente para coisas-X. A seleção dos tipos de termos que correspondem tanto em
extensão quanto em intensidade à natureza da realidade é argumentado tendo como base sua superioridade
explanatória. O argumento tenta demonstrar que para qualquer coisa que seja, a única, ou melhor, explicação é
sempre aquela cujos termos primitivos e leis são do tipo X (J. J. C. Smart defendeu o materialismo dessa forma.)
B. Redução fraca
i. Dependência causal. A natureza da realidade é basicamente aquela do aspecto X (ou dos aspectos X e Y). É o
“caráter” X das coisas que torna possível os outros tipos de propriedades e leis verdadeiras nelas. Assim,
enquanto outros aspectos são reais, e podem ser objetos apropriados de investigação científica, existe uma
dependência causal unidirecional entre os aspectos não-X e o aspecto X. Os aspectos não-X não poderiam
existir sem X, enquanto X poderia existir sem os demais. (Aristóteles e Descartes defenderam ambos teorias nas
quais certos aspectos eram a natureza da “substância”, e todos os outros aspectos eram acidentais, ou
secundários, à substância.)
ii. Epifenomenalismo. Essa versão se parece bastante com a dependência causal, exceto que os aspectos não-X
são considerados como sendo muito menos reais. Todas as explicações genuínas devem, portanto, ser oferecidas
exclusivamente nos termos de propriedades e leis de X. (Huxley e Skinner argumentaram que estados de
consciência são epifenômenos de processos ou comportamentos corporais.)
Essas estratégias podem ser combinadas de formas variadas na mesma teoria. Um pensador poderia argumentar, e.g.,
que alguns aspectos devem ser eliminados sobre as bases da identidade de significado, enquanto outros devem ser
eliminados por identidade factual, mantendo, ao mesmo tempo, que ainda outros são ou dependentes em termos causais
ou epifenomenais.
As reivindicações descritas aqui não são os únicos sentidos do termo “redução” na maneira em que são utilizados na
filosofia, mas são os sentidos sendo rejeitados aqui como tanto filosófica quanto religiosamente questionáveis. Também
deveria ser notado que alguns filósofos têm utilizado o termo “superveniência” para designar uma ordem na aparência
de certos tipos de propriedades sem desejar cometer uma redução entre eles em qualquer dos sentidos definidos acima.
Esse uso não é passível de críticas e é, de fato, próximo à posição proposta por Dooyeweerd como uma alternativa à
redução em sua teoria da realidade. Deveria ser notado, no entanto, que a superveniência nunca é assumida como sendo
uma ocorrência casual, mas um padrão constante. Como tal, isso deixa sem resposta a questão relativa a por que as
propriedades supervenientes operam constantemente da forma exata com a qual o fazem. Qualquer resposta a isso ou
seria reducionista, ou teria de recorrer a uma teoria não reducionista como a de Dooyeweerd.
[208]
Dooyeweerd, New Critique, vol. l, p. 34-46.
[209]
Ibid., vol. 2, p. 539.
[210]
Um lembrete aqui de um ponto feito no capítulo 2 se faz necessário. Ali pontuei que quando as escrituras, os
mitos, as teologias, etc., traçam tudo o mais a algum(s) princípio(s) originador(es), eles conferem a ele(s) o status de
divindade, chamem isso de divino ou não. O mesmo se dá para uma teoria. O que quer que seja postulado como aquilo
que torna tudo o mais possível e atual é, por conseguinte, o divino per se, estejam ou não os teóricos desejosos de
reconhecer esse fato.
[211]
Veja os comentários de Werner Jaeger sobre a Metafísica de Aristóteles XII, 3, 1070a, e sobre seu
Protrepticusem Aristóteles (Londres: Oxford University Press, 1960), p. 49-52. É a alegada existência independente da
mente, devido à nossa capacidade de concebê-la à parte do corpo, que é a base da crença de que ela é imortal e divina.
E uma vez que Aristóteles reconheceu que o que quer que exista independentemente é divino (Meta. 1064a34), é
significativo que Jaeger cite o Protrepticus como segue: “O homem não possui nada divino ou bendito, exceto a única
coisa digna de problematização, o que quer que exista em nós de Nous (mente) e razão. Somente isso, daquilo que
temos, parece imortal e divino”.
[212]
Por exemplo, “uma vez que, por um lado, eu tenho uma ideia clara e distinta de mim mesmo, na medida em que
sou apenas uma coisa pensante, e, por outro lado, uma ideia distinta do corpo, na medida em que ele é apenas uma
coisa estendida, é certo que eu sou certamente distinto do meu corpo, e posso existir sem ele” (“Meditations on First
Philosophy”, in Descartes’ Philosophical Writings, trad. N. K. Smith [New York: The Modern Library, 1958], p. 237).
[213]
Eu digo “via de regra” porque eles não estão na mesma seção do barco. Um quadrado e um círculo são duas
formas espaciais cuja combinação nós sabemos intuitivamente ser impossível. Em contraste a isso, “independentemente
existente X”, aonde X é um tipo de propriedades e leis, não é intuitivamente impossível, mas simplesmente destituído
de conteúdo. Assim, ao mesmo tempo em que um designa um conjunto nulo, o outro designa um conjunto vazio. Eles
ainda estão no mesmo barco, no entanto, na medida em que estamos interessados na justificação da afirmação de suas
realidades.
[214]
Minha obra Knowing with the Heart focaliza na crítica da visão prevalecente de autoevidência e no
desenvolvimento de uma interpretação não reducionista para substituí-la.
[215]
John Meyendorff, A Study of Gregory Palamas (Londres: Faith Press, 1964), p. 130. Veja também J. Pelikan,
Christianity and Classical Culture (New Haven: Yale University Press, 1997), p. 53, 252, 256-59. De fato, alguns
pensadores teístas foram tão longe na adaptação de suas teorias à tradição pagã que eles mantém muitas realidades
externas a Deus como existindo não dependentemente, conquanto que Deus seja o único ser independente considerado
como o criador de todas as entidades não necessárias. (E.g., Nicholas Wolterstorff em On Universals [Chicago:
University of Chicago Press,1970]). Mas nossa definição de divindade demonstra por que a objeção central a essa
posição não é simplesmente que existiriam coisas que não estão no controle de Deus; é o monoteísmo que está em jogo.
[216]
Alguns escritores recentes defenderam essa afirmação. Veja, e.g. J. Ross, “Analogy as a Rule of Meaning for
Religious Language”, International Philosophical Quarterly 1, no. 3 (Sept. 1971): p. 476; e J. McQuarrie, Principles of
Christian Systematic Theology (Chicago: University of Chicago Press, 1951), vol. 1, pt. 2, p. 235ss.
[217]
Karl Barth, Church Dogmatics (Edimburgo: T. T. Clark, 1964), vol. 2, pt. 1, p. 230.
[218]
Summa Theologica, q. 46, a. p. 1. [Suma teológica. Campinas: Editora Ecclesiae, 2018.]
[219]
Digo que as ações de Deus podem ser ou criadas1 ou incriadas1, porque a escritura fala de algumas de Suas
decisões e propósitos como sendo “desde os tempos eternos” (1Tm 1.9; Tito 1.2) enquanto outras são referidas como se
dando em um tempo específico. No caso da primeira, a “ação” seria um termo antropomórfico (assumindo que Deus
criou o tempo como uma característica do cosmos). Deveria ser notado, no entanto, que na visão a ser defendida Deus
poderia afirmar sempiternamente uma decisão ou propósito e, então, também reafirmá-la temporalmente. Nesse caso, a
reafirmação seria criada1, incriada2 e criada3.
[220]
Essa linguagem, no entanto, também necessita de clarificação, uma vez que a visão de Deus que irei contrastar e
preferir à de Agostinho/Anselmo/Aquino mantém que o ser incondicional de Deus é inconcebível por nós. Assim, o
termo “Vontade” não deveria ser tomado como significando que o ser incognoscível de Deus é literalmente uma
vontade, assim como que seja algo mais que possamos conceber. Nessa visão, o ser incognoscível originário de Deus
trouxe à existência (criou3) desde toda a eternidade o fato de que Ele simplesmente possui a natureza incriada pessoal,
amável, sábia, etc., que Ele revela como possuindo. O termo “vontade” é, assim, um termo antropomórfico
intencionado para revelar a negação (apofática) de que exista algo além de sua realidade incondicional que não esteja
sob seu controle, e afirmar sua liberdade incondicional na relação com as criaturas das formas pelas quais ele revela
como verdadeiro a si mesmo. J. Pelikan pontua que essa era a forma que os Pais Capadócios utilizavam “vontade”
quando diz que, para eles “A ‘palavra’ [criativa] de Deus, então, era idêntica à ‘vontade’ de Deus, a qual era idêntica à
ação de Deus – tudo isso, é claro, entendido em um sentido transcendente e apofático, fundamentalmente diferente do
sentido que cada um desses termos transmitem quando aplicados às vontades ou ações humanas” (Christianity and
Classical Culture, p. 105). Com essas qualificações, então, essa alternativa à visão AAA (Agostinho, Anselmo e
Aquino) pode ser expressa como a posição de que Deus escolhe o que Ele é, e é o que Ele escolhe. Apenas o ser
incondicional de Deus é divino per se.
[221]
Ou ainda: “o ser mais grandioso possível”, segundo convencionou-se nas traduções brasileiras das obras de
Plantinga. [N. do R.]
[222]
Deus, a liberdade e o mal. São Paulo: Vida Nova, 2012. Tradução Desidério Murcho. p. 132.
[223]
Cf. as observações de Vladimir Lossky: “... apologistas como Clemente e Orígenes [estavam] exageradamente
ansiosos para demonstrar aos pagãos que todos os tesouros da sabedoria helênica estariam contidas e teriam sido
superadas na ‘verdadeira filosofia’ da Igreja. Involuntariamente, eles produziram um tipo de síntese da contemplação
cristã, uma ênfase no intelectualismo platônico estranho ao espírito do Evangelho”. The Vision of God (Crestwood,
N.J.: St Vladimir’s Seminary Press, 1983), p. 65.
[224]
Como de hábito em sua obra, Clouser cunha o neologismo creatorship para referir-se ao fato, ato e condição de
Deus como Criador. Optou-se por traduzi-la por “criadoria” a fim de manter a semelhança fonética e gráfica com
curatorship (“curadoria”). [N. do R.]
[225]
Summa Theologica 1a, q. 3 e 1a, q. 21, a. l, ad 4. Veja também sua Summa Contra Gentiles l, 38, 45, 73.
[226]
Milwaukee: Marquette University Press, 1980, p. 53-54.
[227]
Uma vez que estaremos concentrando na incompatibilidade da asseidade de Deus com o fato de considerarmos
Seus atributos como perfeições necessariamente existentes, eu evitarei qualquer tratamento longo relacionado a outra
premissa de AAA que acho questionável, a saber, que apenas perfeições são verdadeiras em relação a Deus. Mas eu
também considero essa premissa como sendo desastrosa. Por uma coisa, ela implica que Deus não pode ter relações
reais, contingentes, com a criação. Aquino também recuou dessa consequência, mas sua “solução” para ela foi tão ruim
quanto sua teoria da simplicidade. Ele na verdade propôs que “enquanto as criaturas estão realmente relacionadas com
Deus, em Deus não existe uma relação real com as criaturas, mas apenas aquela que é lógica” (ST, 1a, q. 13, a. 7; q. 6,
a. 2) Isso, no entanto, não é sequer plausível. Como podemos ser, e.g., realmente amados por Deus se não é realmente
verdadeiro que Deus nos ame?
[228]
Does God Have a Nature?, p. 144.
[229]
Ibid., p. 145-46.
[230]
Por ainda outras razões contra a plausibilidade de se explicar os atributos de Deus como incriados ao mesmo
tempo em que dependem d’Ele, veja Brian Leftow, “God and Abstract Entities”, Faith and Philosophy 7, no. 2 (Abril
1990); p. 193-217.
[231]
Como Aquino coloca: “Todas as perfeições encontradas nas criaturas preexistem em Deus de uma forma mais
elevada.” (ST q. 14, a. 11) Claramente, no entanto, todos os tais atributos são aprendidos de nossa experiência da
criação, e são portanto postulados como tendo um grau perfeito em Deus. Como Karl Barth pontua, o resultado disso é
que Deus é tornado em uma série de... atributos que são primariamente atributos da mente humana, nos quais os
últimos enxergam suas próprias características transcendidas no absoluto... [Mas desse modo] eu nunca encontro um
ser absoluto que me confronta e me transcenda, mas apenas uma e outra vez o meu próprio ser. E provando a existência
de um ser a quem eu idealizei por meio de minha própria autotranscendência, eu terei uma e outra vez conseguido
apenas provar a minha própria existência (Church Dogmatics, vol. 3, pt. 1,360)
[232]
Em 2 Timóteo e Tito o texto grego diz literalmente que os planos de Deus são “desde os tempos eternos”, e 1 Co.
2.7 utiliza termos similares. Judas fala da glória, majestade, domínio e autoridade de Deus como sendo antes de todos
os tempos, agora e para todo o sempre”. Uma tradução recente apresentou o texto de Apocalipse citado como “que não
haja mais atraso” ao invés de “que não haja mais tempo”. Mas baseado em Liddell e Scott (A Greek English Lexicon, p.
2005), não existe precedente em toda a língua Grega para se utilizar o verbo εσταιcom χρονος ao invés de καιρός como
significando “atraso”. Além disso, o tema comum de todos esses textos sugere fortemente a soberania de Deus sobre o
tempo. Eu defendi essa posição em mais detalhes em outro contexto. Ver “Is God Eternal?” em The Rationality of
Theism, ed. A. Garcia de la Sienra (Amsterdam: Rodopi, 2000), p. 273-300. Minha conclusão é que rejeitar a não
temporalidade de Deus porque isso seria incompatível com a visão AAA de Deus suscita a questão em relação a visãoi
C/R, com a qual não existe muita incompatibilidade. Ademais, se as asseverações da escritura sobre Deus ser “anterior”
ao tempo e Sua destruição do tempo são tomadas em seu valor nominal, elas oferecem uma forma a mais de constatar
que a visão AAA falha em compatibilizar com as escrituras de um modo que a visão C/R o faz.
[233]
Os capadócios também consideraram esse texto como altamente significativo. Eles enfatizaram que enquanto o
pensamento pagão Grego havia tomado a divisão última da realidade com sendo entre o racional e o não racional, esse
texto torna a divisão como sendo entre o Criador e a criatura, considerando mesmo o racional como criação. Veja
Pelikan, Christianity and Classical Culture, p. 51-53.
[234]
Minha tradução aqui segue mais próximo do texto hebraico do que o da Septuaginta.
[235]
Também é assim que 2 Pedro 1.4 seria entendido se considerado como dizendo que os cristãos compartilham a
“natureza divina”. Seria aquela natureza criada3 livremente assumida e possuída por aquele que é divino. Isso não
significa que as criaturas irão em algum momento se tornar divinas no sentido panteísta de compartilharem do ser
incriado de Deus. Essa é a única interpretação possível do texto, no entanto. É plausível que ele simplesmente afirme
que os crentes são parceiros de Deus. Ver A. Wolters, “Partners of the Deity” in Calvin Theological Journal 25 (1990):
p. 28-44; e também o pós-escrito em Calvin Theological Journal 26 (1991): p. 418-20.
[236]
Por exemplo, as Escrituras diz que Deus não pode mentir (Tito 1.2; Hb 6.18). Mas essa observação ocorre em um
contexto explicitamente pactual com o sentido de que Ele não pode mentir aos crentes porque Ele prometeu não fazê-
lo. Deveria vir à nossa mente nesse momento que em outros contextos da escritura se diz especificamente que Deus
engana aqueles que não são crentes (Ez. 14.9; 1T 2.11).
[237]
As dificuldades analisadas acima não são as únicas que podem ser elencadas contra o neoplatonismo envolvido
em enxergar Deus como possuindo todas e somente perfeições necessárias. James Ross ofereceu um relato brilhante de
algumas outras, incluindo sua violação da proibição de conjuntos-teóricos de conjuntos máximos e seu relato
incoerente sobre como as criaturas podem compartilhar nos exemplares de Deus. Veja “God Creator of Kinds and
Possibilities: Requiescant universalia ante res”, in Rationality, Religious Belief and Moral Commitment, ed. R. Audi e
W. Wainwright (Ithaca, N.Y.: Cornell University Press, 1986), p. 315-34.
[238]
Pelikan, Christianity and Classical Culture, p. 42-45, p. 50-54. Dooyeweerd também enfatizou esse ponto em sua
réplica a Cornelius Van Til:
O mesmo se aplica aos assim chamados atributos de Deus [que] são imputados a Deus, tal como ele foi revelado
ao homem nas Sagradas Escrituras, i.e., no horizonte de [nossa] experiência e existência... em seu sentido
apropriado... os aspectos de nosso horizonte temporal não podem ser imputados ao ser de Deus como suas
propriedades, uma vez que eles têm um caráter criatural... [em vez disso] eles dão expressão tanto à presença de
Deus no mundo temporal quanto à sua transcendência absoluta; à sua presença, uma vez que eles implicam a
totalidade da ordem dos... aspectos [da criação]; à sua transcendência, uma vez que eles se referem à
absolutidade de Deus, a qual transcende qualquer determinação criatural... isso implica que eles não deveriam
ser separadamente chamados de absolutos, ou serem identificados com o ser absoluto de Deus. [Fazê-lo]
tornaria mesmo os fatos centrais da criação, queda no pecado e redenção uma consequência da necessidade
lógica, o que não deixaria espaço para a liberdade soberana da vontade de Deus. Pois a vontade de Deus, nessa
visão, pode apenas executar o plano de Deus, não determiná-lo. (Jerusalem and Athens, ed. J.Geehan
[Presbyterian and Reformed Pub. Co., 1971], p. 87-89).
[239]
Pelikan, Christianity and Classical Culture, p. 55.
[240]
Ibid., p. 209, p. 210.
[241]
Ibid., 214.
[242]
Ibid., 40.
[243]
Ibid., 55. Cf a comparação de John Meyendorff dessa posição com aquela de Orígenes: “O erro de Orígenes
consistiu simplismente nisso, que ele identificou Deus com [uma conhecível] essência, e não sabia que imutabilidade e
movimento, incognoscibilidade e revelação, supertemporalidade e ação no tempo, poderiam realmente coexistir, unidos
no... mistério do ser Pessoal de Deus.” A Study of St. Gregory Palamas (London:Faith Press, 1964), p. 223.
[244]
Pelikan, ibid., p. 88.
[245]
A Study of St. Gregory Palamas, p. 211, p. 204, 226.
[246]
Pelikan, ibid., p. 212. Ver também p. 231ss. especialmente p. 235, em que se explica que a “geração” do Filho e
do Espírito significa que eles são incriados12, mas ainda gerados pelo ser Divino, portanto criados3.
[247]
Ibid., p. 102, p. 101.
[248]
A Study of St. Gregory Palamas, p. 131. Calvino, também, faz o mesmo ponto quando diz que a transcendência
de Deus significa que Ele não é sujeito às leis que governam a criação. Por exemplo: “Não imaginamos Deus como
sendo arbitrário [ex lex]. Ele é uma lei para si mesmo. A vontade de Deus é a lei para todas as leis” (Institutes, III, xxiii,
p. 2). É por essa razão que ele diz: “É perverso medir [o] Divino pelo padrão da justiça humana” (Institutes, I,xxiii, p.
2). Dooyeweerd notou que essa posição de Calvino “rompe na raiz com a interferência da metafísica especulativa nos
assuntos da religião cristã”, recusando-se “elevar a razão humana ao trono de Deus” (New Critique, vol. 1, p. 93).
Dooyeweerd, em seguida, aplica especificamente o ponto geral de Calvino à transcendência de Deus em relação às leis
lógicas (New Critique, vol. 1, p. 144).
[249]
The Vision of God, p. 85.
[250]
“Lectures on Genesis”, in Luther's Works, ed. J. Pelikan (St. Louis: Concordia Publishing House, 1958), vol. 1, p.
11.
[251]
De The Bondage of the Will, como citado por J. Dillenberger em Martin Luther (Garden City, N.Y.: Anchor
Books, 1961), p. 191.
[252]
P. Althaus, The Theology of Martin Luther (Philadelphia: Fortress Press,1966), p. 20.
[253]
A instituição da religião cristã, Tomo 1, p. 137.
[254]
A instituição da religião cristã, Tomo 1, p. 153.
[255]
A instituição, tomo 1, p. 92.
[256]
A instituição, tomo 1, p. 137-138.
[257]
Church Dogmatics, vol. 3, part 1, sect. 41 (Edinburgh: T. T. Clark, 1964).
[258]
Lutero diz: “Deus é aquele cuja vontade não pode ter causas ou motivos como regra ou padrão; pois nada está no
mesmo nível dela, ou acima dela, mas ela é, em si mesma, a regra para todas as coisas. Se qualquer regra e padrão, ou
causa e motivo, existissem para ela, ela não poderia mais ser a vontade de Deus. O que Deus deseja não é correto
porque ele deva, ou esteja limitado, a desejar” (Martin Luther, ibid., 196). E Calvino faz o mesmo ponto: “De forma
justa reclama Agostinho que Deus é insultado quando quer que qualquer razão superior do que sua vontade seja
invocada (Lib. de Gent)” (Institutes, I, xiv, 1).
[259]
O ponto aqui diz respeito a uma definição real de vermelho de tal modo que poder-se ia conhecer sua qualidade
de cor somente a partir da definição. Desse modo, não será de valia oferecer uma circunscrição tal como “a tonalidade
que enxergamos quando nossa visão é normal e somos expostos à luz de tal e tal comprimento de onda”. Nós já
teríamos de conhecer como o vermelho se parece para sermos capazes de definir seus parâmetros de comprimento de
onda. O mesmo se dá para outras tentativas tais como “a cor do sangue ou a cor de um rubi” etc.
[260]
Por exemplo, quando utilizamos o termo “causa” para expressar que Deus é o criador do mundo, essa é uma ideia
em vez de um conceito. Nenhum conceito que temos de causalidade corresponde ao ato criador de Deus: ele não é
formal, nem final, nem material, nem eficiente; nem é algum tipo de relação causal que é qualificada fisicamente,
bioticamente, sensorialmente, historicamente, ou economicamente, etc. uma vez que Deus é o criador de todos os tipos
de causalidade encontradas no cosmos. Mas, despojado dessa e de todos os outros tipos de especificações conceituais
(tempo, e todas as leis), tudo o que é deixado é a ideia limite de uma coisa trazendo à existência outra em um sentido
não especificado. Apenas dessa maneira, designando uma ideia limite, pode o termo “causa” ser utilizado para a
dependência de tudo o que não é Deus a Deus. Outro exemplo é o termo “poderia” quando aplicado a Deus. Quando
perguntamos se Deus poderia ter criado o mundo de uma forma distinta da que Ele fez, ou se ele poderia ter feito as leis
governando a possibilidade diferentemente daquelas que temos em nossa experiência, estamos utilizando “poderia”
como uma ideia limite, não um conceito. Nossos conceitos de “poderia” são todos sentidos de possibilidade delimitados
por leis que existem no cosmos – leis que Deus criou. (Assim, Deus não criou escolhendo uma dentre possibilidades
anteriores existentes, mas criou qualquer sentido de possibilidade que podemos conceitualizar.) Despojado de todas as
especificações aspectuais (e outras), podemos utilizar a ideia limite de que Deus “poderia” ter criado outras leis de
possibilidade das quais não podemos agora sequer formar uma ideia, uma vez que nosso conhecimento é governado
pelas leis que Ele de fato criou. É por essa razão que questionar se Deus poderia ter feito leis diferentes não se equivale
a questionar se é logicamente possível que as leis da lógica poderiam ser diferentes da forma que são. Uma resposta
afirmativa a essa questão gera uma contradição. Mas essa não é a forma correta de entender a questão. Ao invés disso, a
questão utiliza “poderia” para se referir à ideia limite relacionada à base ontológica de qualquer tipo de possibilidade
encontrada no cosmos. Essa base é, obviamente, o ser incognoscível, originador, de Deus. O mesmo se aplica à ideia de
que Deus “assume” relações e propriedades para Si mesmo. Isso, também, é uma ideia limite significando que Ele as
traz à existência de uma maneira que é verdadeiro em relação a Ele de uma forma não especificável por nós.
[261]
Does God Have a Nature?, p. 139-40.
[262]
Um ponto análogo também é esquecido nos tratamentos do “paradoxo” nos livros-texto de lógica de que um
argumento inconsistente implica todas as conclusões (veja, e.g., Introduction to Logic, I. Copi e C. Cohen [Upper
Saddle River, N.J.: Prentice Hall, 2002], p. 375-78]). O paradoxo é considerado como equivalendo-se a que um
argumento com premissas inconsistentes implica de forma válida quaisquer conclusões possíveis. O paradoxo é de fato
o resultado de se esquecer que avaliar se um argumento implica sua conclusão é o projeto de verificar se sua conclusão
deveria ser verdadeira se suas premissas forem verdadeiras. A afirmação de que um argumento inconsistente implica
todas as conclusões ignora o ponto em itálico, e falha em notar que é a consequência de se abandonar o projeto de
enxergar o que mais teria de ser verdadeiro se as premissas o fossem. Pois se premissas inconsistentes fossem
verdadeiras, a lei da não contradição seria falsa e nenhuma conclusão se seguiria, pois não existiria tal coisa como
implicação. É essa mudança que produz a ilusão de implicação universal; ela modifica o projeto usual de avaliação ao
meta-projeto de imposição da lei da não contradição sobre um argumento cujas premissas o negam. Por favor, não
entenda isso equivocadamente como sendo uma recomendação para que a lei da não contradição seja rejeitada, ou
duvidada. É certamente correto manter a lei e rejeitar uma ou mais das premissas de um argumento inconsistente. Mas
não é um procedimento apropriado abandonar o projeto usual de avaliação lógica sem reconhecer essa mudança. A
importância desse ponto é que a mesma mudança não reconhecida no projeto é geralmente transposta à visão C/R de
Deus por aqueles que a criticam por dizer que Deus criou a lei da não contradição. Os críticos alegam que tal visão
conduz à exigência de que crenças contraditórias sobre Deus sejam simultaneamente verdadeiras. Mas na verdade isso
não faz tal coisa. Não existem exemplos de contradições que se seguem de tentar conceber qual seria o caso se a lei da
não contradição não existisse porque não haveria tal coisa como uma sequência lógica e porque nenhum conceito que
possamos formar daquela lei renderia um exemplo de algo governado por aquela lei. Assim, nada contraditório sobre
Deus segue da visão de que Seu ser incriado transcende as leis lógicas, e qualquer suposto exemplo do que
(alegadamente) seria verdadeiro se a lei não se aplicasse a Deus é – como o paradoxo de que premissas inconsistentes
implicam todas as conclusões – um caso de imposição da lei da não contradição em Sua essência transcendente para
criticar a afirmação de que a lei não se aplica a Ele. Tal crítica, portanto, falha em demonstrar qualquer equívoco na
posição C/R, e não é mais do que uma rejeição dogmática dela.
[263]
Essa posição é bem explicada por C. S. Lewis em seu livro Miracles [Milagres] (New York: Macmillan, 1948), p.
69-70.
[264]
William Alston comentou de maneira exitosa sobre o espectro de possibilidades para a linguagem religiosa:
Mas, claramente, existem várias formas nas quais os termos criaturais podem ser utilizados para se falar em
Deus... Essas formas incluem:
(1) Univocidade direta. Termos ordinários utilizados nos mesmos sentidos ordinários sobre Deus e os seres
humanos.
(2) Univocidade modificada. Significados podem ser definidos ou, por outro lado, estabelecidos de tal modo que
os termos podem ser utilizados com esses significados tanto para Deus quanto para seres humanos.
(3) Significados literais especiais. Termos podem oferecer, ou de outro assumir, sentidos técnicos especiais nos
quais eles se aplicam a Deus.
(4) Analogia. Termos para as criaturas podem ser imbuídos de extensões analógicas para serem aplicados a
Deus.
(5) Metáfora. Termos que se aplicam literalmente às criaturas podem ser aplicados metaforicamente a Deus.
(6) Símbolo. Do mesmo modo para o “símbolo”, em um ou outro significado desse termo. Os defensores mais
radicais da alteridade [de Deus], de Dionísio a Aquino e Tillich, variam de algo no espectro (4) a (6) e rejeitam
explicitamente (1). A possibilidade de (3) tem sido quase totalmente ignorada, e (2) não tem se apresentado de
modo distinto. (Divine Nature and Human Language [Ithaca, N.Y.: Cornell University Press, 1989], p. 65)
Do modo que entendo a análise de Alston minha visão é que grande parte da linguagem da escritura corresponde aos
seus pontos (1), (2) e (3), enquanto existem ocasiões de usos dos tipos (4) e (5), embora tenha de complementar a todas
elas meu ponto sobre a diferença em importância, ao invés de significado, de qualquer desses usos da linguagem. O
tipo (6) me parece exageradamente vago para fazer um julgamento, embora eu diga que nenhuma linguagem
escriturística é em absoluto simbólica no sentido de Tillich.
[265]
Para uma crítica penetrante das possibilidades de tal projeto, ver a obra de James Ross, “The Crash of Modal
Metaphysics”, Review of Metaphysics 43, no. 2 (Dec. 1989). A transcendência de Deus em relação às leis da lógica
também é a razão de por que ser contrário à sua divindade tentar provar sua existência. Como Dooyeweerd colocou: O
que quer que seja provado não seria, assim, Deus. Ou seja, nada que pode ser provado utilizando-se as leis da lógica
poderia ser aquele que as criou.
[266]
Para um tratamento mais adequado desse tema e uma réplica adicional a essas objeções, ver meu “Religious
Language: A New Look at an Old Problem”, in Rationality in the Calvinian Tradition (Lanham, Md.: University Press
of America, 1983), p. 385-407; e “Divine Accommodation: An Alternative Theory of Religious Language,” no Tydskrif
vir Chrislelike Wetenscap (Bloemfontein: 2de Kwartaal, 1988): p. 94-127.
[267]
A teoria da estrutura de leis apresentada aqui é um resumo da teoria desenvolvida primeiramente por Herman
Dooyeweerd em sua obra Wijsbegeerte de Wetsidee (Amsterdam, 1935), a qual foi posteriormente expandida na New
Critique e elaborada de forma complementar em outras publicações. Uma lista das traduções em inglês das principais
obras de Dooyeweerd é apresentada na nota final deste capítulo.
[268]
A teoria não reducionista da realidade a ser apresentada nesse capítulo é apresentada como amplamente teísta
pressupondo, assim, a crença em um Criador transcendente comum a judeus, cristãos e muçulmanos. Como já disse, em
complemento ao modo no qual a crença em Deus exige uma visão não reducionista da realidade, as escrituras também
contêm ensinamentos específicos que podem se chocar com as teorias. E eu também disse que eu creio que esses
ensinamentos adicionais se chocam mais comumente com teorias que lidam com aspectos mais elevados em minha lista
provisória do que com aqueles menos elevados nela. Assim, enquanto eu não encontro ensinamentos escriturísticos que
oferecem informações específicas para teorias em matemática, física, biologia, lógica, etc., além de que seus dados são
todos criados por Deus, eu encontro ensinamentos específicos lidando com a natureza humana e os aspectos social,
jurídico e ético da vida humana. Na medida em que eu aplico a ontologia não reducionista ao aspecto social e à uma
teoria do estado nos capítulos seguintes, irei, portanto, combinar essas com alguns desses ensinamentos adicionais. E
uma vez que muitos desses são encontrados apenas (ou primariamente) no Novo Testamento, as teorias resultantes
serão não apenas amplamente teístas, mas especificamente cristãs. Eu não presumiria dizer em que extensão elas
podem também ser aceitas a Judeus ou Muçulmanos, mas eu suspeito que haveria uma sobreposição significativa.
[269]
Dooyeweerd assume que as leis causais se originam com o aspecto físico, uma vez que não existem relações
causais entre as propriedades matemática, espacial ou cinemática. Do aspecto físico acima em nossa lista de aspectos,
contudo, existem coisas tais como relações de causa e efeito, de modo que ele fala da causalidade como “fundada” no
aspecto físico, embora não seja restrita a esse. Aspectos mais elevados que o físico contribuem cada um com elementos
adicionais às relações causais, de forma que experimentamos os sentidos de causalidade biótico, sensitivo, econômico,
lega, etc. em adição ao físico. Ver New Critique, vol. 2, 41, ll0; vol. 3, p. 34ss.
[270]
Apesar da abertura dessa lista à revisão, eu creio que ela foi defendida convincentemente por Dooyeweerd.Veja
New Critique, vol. 2, p. 79-l63.
[271]
T. Dantzig, Number: The Language of Science (Garden City, N.Y: Doubleday,1954), p. 2-3.
[272]
Veja Dooyewecrd, New Critique, vol. l, p. 93-l06; e M. D. Stafieu, Time and Again (Toronto: Wedge, I980), p.
80 ss.
[273]
Dois comentários: Primeiro, tanto a proposta objetivista quanto a subjetivista sobre leis é implausível. Como
poderiam ser as leis apenas nossas generalizações sobre as naturezas fixas das coisas, como o objetivismo diz? Se não
houvessem conexões governadas por leis entre as propriedades, as coisas não poderiam ter naturezas fixas. Ou como
poderiam todas as leis serem oferecidas à experiência pela mente, como diz o subjetivismo? A menos que já existissem
leis governando a mente que não fossem sua criação, o que explicaria a uniformidade dos modos que a mente impõe
leis sobre a experiência? Em segundo lugar, enquanto eu tenho enfatizado uma abordagem não reducionista em relação
aos aspectos, não poderia ser ignorado que teorias também têm sido reducionistas de outros modos. Vimos
anteriormente, e.g., que alguns tentaram reduzir as leis às coisas, enquanto outros tentam reduzir as coisas às leis. A
teoria da estrutura de leis é igualmente oposta a todas as reduções desse tipo, assumindo todos os distintos lados do
cosmos criado como existindo, ao invés disso, em correlação mútua. E os mesmos argumentos que ela oferece contra a
redução aspectual podem ser empregados também contra esses outros tipos.
[274]
A ordem exata de pré-condicionalidade é tão aberta a revisão quanto o são os membros da lista, e alguns
defensores da teoria de estrutura de leis têm proposto alternativas. A teoria sendo esboçada aqui necessitaria
modificações se a lista ou sua ordem fossem distintas, mas ela não seria afetada em seu essencial. Quaisquer que sejam
os aspectos tomados como genuínos ainda seriam considerados como diretamente dependentes de Deus, igualmente
reais e mutuamente irredutíveis.
[275]
Duas observações parecem ser necessárias aqui: (1) Pesquisas recentes sugerem que certos animais podem
também ter limitadas funções ativas lógicas ou linguísticas. Veja “Conversations with a Gorilla”, Francine Patterson,
National Geographic (October 1978). (2) Existem boas razões para supor que organismos unicelulares não deveriam
ser classificados nem como plantas nem como animais. Veja Uko Zylstra’s “Dooyeweerd’s Concept of Classification in
Biology”, in Life Is Religion, ed. H. Vander Goot (St. Catherines, Ontario: Paideia Press, 1981), p. 239-48.
[276]
Ao fato de que os humano têm uma função ativa em todos os aspectos não é, entretanto, sua única diferença de
todas as demais criaturas. Como mencionado no capítulo 9, a identidade de cada humano é centrada no eu que a
escritura denomina “coração” ou “alma, que é a unidade de todas as funções aspectuais humanas, o assento da
consciência, e é o que grande parte dos teólogos assumem como sobrevivendo à morte do corpo e, portanto, oferece a
identidade contínua da pessoa entre a morte e a ressurreição. Nossa teoria explica esses pontos como significando que
em uma visão bíblica, o coração humano tem um lado “pré-funcional” que não é esgotado por suas funções temporais
sob leis aspectuais. Isso tem duas importantes consequências: (1) isso permite liberdade genuína no pensamento e ação
relativo às leis de cada aspecto. Pois enquanto os humanos são limitados em suas ações pelo que é tornado possível e
impossível pelas leis aspectuais e relações causais, eles não são determinados ou criados por essas leis; e (2) o caráter
essencialmente religioso do coração humano não é idêntico à sua função no aspecto fiduciário de confiança ou fé. Ao
invés disso, o caráter religioso do coração se encontra em sua disposição inata pré-funcional a ser orientada a Deus ou
qual for a divindade colocada em Seu lugar. Isso inclui entender a si mesmo e tudo o mais à luz daquela orientação do
coração. Assim, aquela orientação também dirige cada ato concreto de confiança da pessoa. São apenas esses atos que
são qualificados pelo aspecto fiduciário. Por essas (e por outras) razões, mantemos que os humanos não apresentam
funções qualificadoras – um ponto a ser explicado em breve.
[277]
Sim, isso significa que cada aspecto existe “desde a fundação do mundo”. Deveria ser notado que o tipo de teoria
emergente questionada aqui não é uma que simplesmente enxerga uma hierarquia entre os aspectos (com a qual eu
concordo), mas uma que reduz uma aspecto ao outro em um ou outro dos sentidos questionáveis formulados na nota 5
do último capítulo. Assim, se “emergência” é utilizado sem comprometimento com qualquer desses sentidos, a teoria
da estrutura de leis não tem objeção a ela.
[278]
Teorias de emergência do tipo que eu estou questionando, assim, negocia com nosso uso ordinário, pré-científico,
do termo “causa” para sua plausibilidade, enquanto é o sentido científico do termo que eles necessitam. Na linguagem
ordinária nós geralmente falamos de um evento causando outro mesmo que essa não seja tanto uma condição necessária
quanto suficiente para o outro, o que é buscado na ciência. Andre Troost (The Christian Ethos [Bloemfontein: Patrnos,
1983]) nos ofereceu um bom exemplo de como eventos qualificados por distintos aspectos são ordinariamente
considerados como causas uns dos outros, mas não são causas no sentido de serem condições tanto necessárias quanto
suficientes. Suponha, diz Troost, que um violinista corte seu dedo enquanto prepara o jantar. No sentido ordinário de
“causa”, nós diríamos que o corte (físico) causou-lhe dor (sensorial), que causou o fato de ela ter cometido um erro que
arruinou (esteticamente) um concerto, que causou sua demissão (legal), que causou seu ato de xingar os superiores
(anti-ético). Mas em cada caso, o evento precedente não foi seja uma condição necessária, seja suficiente para seu
sucessor. Cada pré-condição poderia ter ocorrido sem o resultado subsequente, e cada resultado poderia ter ocorrido
sem o evento que de fato o ocasionou.
Às vezes é questionado nesse ponto se a teoria da estrutura de leis não evitaria os reducionismos uma vez que assume
todos os aspectos igualmente como dependentes de Deus, reduzindo-os, portanto, a Deus. A resposta é que essa
redução não é idêntica a dependência, mesmo que muitas teorias tentem alcançar uma redução argumentando que um
aspecto depende de outro. A diferença é essa: enquanto todos os aspectos dependem de Deus, eles não são reduzidos
em status na relação de um com o outro por essa dependência. Todos são igualmente reais, embora dependentes,
constituintes do cosmos criado.
[279]
Apesar dessa ênfase, seria equivocado chamar a essa teoria de realismo ingênuo. “Experiência ingênua” é
intencionada para se referir à experiência que temos anterior à fragmentação realizada pela alta abstração, não sendo,
portanto, uma hipótese. O resultado de nossa crítica é que teorias da realidade não podem negar a experiência ingênua
por atacado, ou aspectos inteiros dela, sem incorrer em sérias incoerências. Teorias devem explicar a experiência
ingênua, não contradizê-la. Dessa forma a teoria da estrutura de leis cumpre com ditado espirituoso de Wittgenstein, de
que a filosofia deveria “deixar todas as coisas como as encontrou”, ainda melhor do que suas próprias teorias fizeram
(Philosophical Investigations, parte 1, seção 124).
[280]
Dooyeweerd desenvolve essa ideia de forma extensa e demonstra que tais conexões não podem ser dispensadas
como meras figuras de linguagem. Veja New Critique, vol. 2, p. 55-180, e também em seu texto “De analogische
grondbegrippen der vakwetenschappen en hun betrekking tot de stnlctuur van dc menselijken ervaringshorizon," in
Mea'edelingen der Koninglijke Nederlandse Akademie van Welenschappen, afd. Letterkunde, New Series, vol. 17, no.
6 (Amsterdam: Noord-Hollandschc Uitgevers Maatschappij, 1954).(A tradução não publicada desse artigo foi realizada
por Robert Knudsen.)
[281]
Dooyeweerd, New Critique, vol. 3, p. 53-153.
[282]
O que eu defini aqui como “leis típicas”, Dooyeweerd denominou “estruturas de individualidades” a qual ele
descreveu como tornando possível os “arranjos típicos dos aspectos dentro de um todo estrutural” (Veja New Critique,
vol. 3, p. 78-153.) Eu alterei a expressão porque “estrutura de individualidade” está sujeito a ser mal entendido como a
organização factual de indivíduos particulares, ao invés de ser entendido como as leis que tornam possível a
organização de propriedades nos tipos de indivíduos que descobrimos no mundo. (Como notado anteriormente,
Dooyeweerd pode ter tomado essa ideia de Calvino, que falou em uma “lei da criação” que determina a “natureza
particular de cada classe de seres” (Institutes, II, ii, p. 16).
Também deveria ser notado que as leis típicas conectam as propriedades de uma coisa de um modo rígido em relação
às propriedades dos aspectos localizados abaixo na lista (leis rígidas são leis incapazes de serem violadas pelas
criaturas). Assim, não há variações nos modos que as propriedades matemática, espacial, cinemática, ou físicas são
combinadas nas coisas do mesmo tipo. Mas as propriedades dos aspectos tendo uma ordem normativa (uma ordem que
não é rígida, mas pode ser violada pelas criaturas) são combinadas pelas leis típicas de modos que também não são
rígidos. Assim, para as propriedades dos aspectos biótico acima, leis típicas permitem variabilidade em como as
propriedades desses aspectos se combinam em coisas do mesmo tipo. Isso é a razão de por que podem haver
margaridas ou porcos deformados, assim como culturas, sentenças, famílias, estados, estatutos, arte, etc. deformados, os
quais contudo são margaridas, porcos, culturas, sentenças, e assim por diante. Esse ponto será explicado mais
amplamente nos próximos capítulos.
[283]
Falar de uma coisa como um “conjunto estrutural individual de todas as suas propriedades” não tem como
intenção negligenciar o fato de que as coisas são construídas de partes. Ao invés disso, reflete a lição da filosofia
moderna de que a análise contínua das partes termina na análise das propriedades. Nossa diferença com as formas que a
lição tem sido aplicada em teorias de base pagã é que enquanto eles têm insistido em buscar um ou dois tipos de
propriedades que tornam todas as demais possíveis e atuais (ou naquilo que todas as demais são resolúveis),
argumentamos que nenhum aspecto exerce qualquer dos papéis.
[284]
A base religiosa para esse ponto foi argumentada anteriormente; ver esp. a citação de Gregório Palamas
referenciada na nota 13 do capítulo 10. Consequências adicionais dessa visão incluem o seguinte: São as leis típicas
juntamente com as leis aspectuais que determinam quais coisas são realmente possíveis, uma vez que as possibilidades
aspectuais por si mesmas não podem realizar isso – nem mesmo a possibilidade lógica, como geralmente tem sido
assumido como sendo o caso (e.g. por Leibniz tanto em “Meditations on Knowledge, Truth, and Ideas" quanto em “On
the Method of Distinguishing Real from Imaginary Phenomena”). A mera ausência da contradição lógica de um
conceito não demonstra que isso corresponde a uma entidade ou estado de coisas possível. Por exemplo, o conceito de
um círculo quadrado pode ser desdobrado em uma figura plana encerrada com quatro lados iguais e quatro ângulos
interiores iguais cuja circunferência é em todos os pontos equidistante de seu centro. Não existe contradição lógica
estrita em tal definição: sua incoerência está nas incompatibilidades espaciais que ela afirma, as quais não podem ser
descobertas pela lógica em si mesma. Assim, um círculo quadrado não é logicamente impossível, mas espacialmente
impossível. Ou considere a conclusão de Leibniz de que não existe limite real à velocidade, porque não existe limite
lógico na concepção de um aumento sobre qualquer velocidade que seja. A ausência de um limite lógico/conceitual não
impede que exista um limite físico real à velocidade, como foi demonstrado pela física da relatividade. É por essa razão
que o fato de que possamos formar um conceito consistente de uma rocha falante não significa que tal coisa é realmente
possível; o conceito de uma coisa pode ser possível enquanto a coisa concebida não o é. Ao mesmo tempo, o fato de
que não existe uma lei típica tornando tal coisa possível não a torna impossível no sentido usualmente significado pelo
termo, a saber, que tal coisa violaria uma lei. Assim, uma rocha falante não é impossível da mesma forma que afirmar
tanto A quanto não A o é, ou na forma que um círculo quadrado o seja. Por essa razão, “não ser possível” em relação à
leis típicas não é equivalente a “impossível”. (James Ross defende um ponto similar em um artigo citado anteriormente,
“God, Creator of Kinds and Possibilities”).
[285]
Dooyeweerd utilizou essa teoria para oferecer uma análise dos estágios de mudança de uma árvore de sua função
biótica como uma coisa natural, se tornando semi-formada ao ter seu tronco cortado, tendo o tronco transformado em
tábuas, e finalmente tendo as tábuas tornadas em um produto final tal como uma cadeira (New Critique,vol. 3, p. 129-
32). Eu conheço alguns poucos filósofos que tentaram tal projeto, nenhum dos quais de forma exitosa. Ele também
oferece uma extensa análise da natureza de um livro, contrastando-o com a tentativa fracassada de Aristóteles (ibid., 3,
p. 150-53). As obras de Dooyeweerd, originalmente em holandês, estão sendo traduzidas em Inglês e publicadas pela
Edwin Mellen Press of Lewiston, N.Y., Queenston, Ontario, e Lampeter, UK. Já disponíveis nessa série está uma re-
publicação da obra A New Critique of Theoretical Thought (4 vols.), In the Twilight of Western Thought, Roots of
Western Culture, Christian Philosophy and the Meaning of History, Essays in Legal, Social,and Political Philosophy,
Encyclopedia of the Science of Law (3 vols.), eo vol. l da Reformation and Scholasticism in Philosophy (3 vols). O
restante dos volumes da última obra, assim como os outros ensaios mais curtos, estão agendados para publicação
próxima.
[286]
Isso se refere, eu repito, às comunidades organizadas – aquelas com liderança oficial, e não àquelas
desorganizadas ou apenas com líderes carismáticos. Assim, meu uso do termo “comunidade” não é o mesmo daquele
utilizado quando falamos, por exemplo, “a comunidade negra”, “a comunidade gay”, ou a “comunidade de língua
francesa”, etc. De agora em diante, portanto, eu sempre utilizarei o termo para significar uma comunidade com uma
liderança reconhecida, de modo que cada tipo e modelo de comunidade será vista como um artefato que organiza a
relação social de autoridade de acordo com suas funções fundante e guia.
[287]
Neste contexto, “religiosas” é utilizado no sentido de crenças religiosas e práticas “secundárias” como explicado
no capítulo 2. Elas são comunidades cujo propósito estrutural é auxiliar no alcance de uma relação apropriada com o
que quer que seja crido como sendo divino.
[288]
A descrição das comunidades sociais oferecida até aqui tentou permanecer tão próximo da do próprio
Dooyeweerd o quanto possível. Mas deveria ser notado que uma série de pensadores que tentaram desenvolvê-la de
forma complementar sentiram a necessidade de introduzir distinções e conceitos alternativos para manter sua instância
não redutiva. Ver, por exemplo, o artigo de M.D. Stafleu, “On Aesthetically Qualified Characters and Their Mutual
Interlacements”, Philosophia Reformata 68 (2003): 137-47. Stafieu e outros também defenderam a posição de que
existe um aspecto distintamente político. Essas e outras variantes da teoria da estrutura de leis estão além do escopo
desta obra, cujo propósito é apenas oferecer uma introdução sobre como teorias não reducionistas podem ser
desenvolvidas.
[289]
A ideia do propósito estrutural de uma instituição também não nos obriga a dizer que esse propósito seja sempre
realizado em cada estágio de desenvolvimento histórico, ou em cada contexto cultural. Assim, Dooyeweerd diz:
Quando dizemos que um casamento, um Estado, uma igreja, etc., apresentam uma natureza constante,
determinada por seus princípios estruturais, nós não queremos dizer que todas dentre essas instituições sociais
[organizações] têm sido realizadas em cada fase do desenvolvimento da humanidade. Queremos dizer apenas
que a natureza interna desses tipos de relacionamentos sociais não podem ser dependentes de condições
históricas variáveis da sociedade humana. Ou seja, tão logo elas sejam realizadas em uma sociedade humana
factual, elas parecem estar vinculadas a seus princípios estruturais sem os quais não poderíamos ter qualquer
experiência social dos mesmos... isso não desvia algo da grande variabilidade das... formas nas quais elas são
realizadas.(New Critique, vol. 3, p. 170-71)
[290]
Esta é uma continuação do ponto feito no capítulo 10 sobre a diferença entre a ideia bíblica de perfeição e a ideia
de perfeição derivada da antiga filosofia grega. Ali nossa razão para rejeitar a doutrina tradicional das perfeições de
Deus foi de que a ideia que ela empregava é claramente a ideia Grega pagã, e não as ideias bíblicas.
[291]
As teorias objetivistas mais conhecidas, como aquelas de Platão e Aristóteles, tentaram contornar essa dificuldade
considerando a natureza de qualquer coisa que tivesse a habilidade de violar uma norma como fortemente dualista. O
dualismo supostamente permite a habilidade de uma coisa agir contrariamente a uma norma dizendo que a ordem
normativa é intrínseca a apenas um lado da dualidade e é desobedecida pelo outro lado. O problema com isso é que os
dois lados da dualidade são, então, mutuamente excludentes na natureza, de modo que é impossível explicar como eles
formam uma união, para não mencionar uma unidade individual. Cf. a crítica de Dooyeweerd na obra New Critique,
vol. 3, p. 10-18.
[292]
Digo “geralmente” porque a teoria de Thomas Hobbes é uma notável exceção. Hobbes iniciou com uma posição
individualista, mas então argumentou que o melhor estado que as pessoas podem criar é aquele que não permite limites
à autoridade governamental, deixando os cidadãos sem quaisquer direitos exceto o da autopreservação.
[293]
Dooyeweerd também denomina relações todo-todo de “relações encápticas” (New Critique, vol. 3, p. 627-784).
Penso, no entanto, que se torna confuso utilizar o mesmo termo para relações todo-todo na qual nenhum deles é um
sub-todo em relação ao outro assim como para as relações nas quais um é um sub-todo em relação ao outro. Assim, eu
utilizei a expressão “todo-todo” para a primeira e “capsulada” apenas para a segunda.
[294]
Aristóteles, Metaphysics livro. Z, 1043a.
[295]
Alguns pensadores tomistas têm se referido àquilo que eu chamo de uma visão “hierárquica” da sociedade como
uma visão de “subsidiariedade”. Veja, e.g., Yves Simon, Philosophy of Democracy (Chicago: University of Chicago
Press, 1951), e A General Theory of Authority (Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1962). Como ficará mais
claro em breve, nossa teoria rejeita a visão hierárquica como uma visão abrangente da sociedade, embora ela reconheça
hierarquias dentro da mesma comunidade e entre comunidades auxiliares formadas expressamente para apoiar e servir a
outra, e.g., uma organização formada para levantar recursos para uma escola ou uma orquestra. A teoria da estrutura de
leis reconhece que a subsidiariedade é um princípio valioso para a operação interna de instituições específicas.
Tomadas desse modo, a subsidiariedade pode ser combinada com a ideia de esfera de soberania para o todo da
sociedade para produzir as bases de uma poderosa teoria de sociedade baseada no teísmo. Mas como a ideia da
subsidiariedade é bastante conhecida, diferentemente da ideia de esfera de soberania, concentrarei no que segue nessa
última.
[296]
Veja as Stone Lectures de Kuyper proferidas em Princeton, intituladas Calvinism (Grand Rapids, Mich.:
Eerdmans, 1976). Ligado a isso é importante notar que enquanto a teoria da esfera de soberanias explica a natureza das
comunidades sociais em termos de seus aspectos qualificadores, isso não quer dizer que uma vez que uma comunidade
é formada, ela tenha direitos de propriedade sobre o aspecto qualificando sua função guia. Empresas não têm
monopólio sobre as questões econômicas, assim como não é apenas o Estado que esteja preocupado com a justiça, ou
as escolas que irão educar. As esferas sociais são alvo da constante participação de todas as pessoas e comunidades.
[297]
Instituição, III, x, 6, p. 190, 191.
[298]
Dooyeweerd pontua que a falha em desenvolver comunidades diferenciadas correspondendo aos interesses
sociais distintos da vida é a marca das sociedades primitivas. Nelas geralmente existe uma única comunidade, tal como
a família estendida ou tribo, a qual é súnica tutora de todos os interesses sociais Ele descreve como tal ausência de
diferenciação tem sido superada na história por meio do que ele denomina “processo de abertura”, e como esse
processo é dirigido pela crença religiosa. Ver New Critique, vol. 2, p. 68-72, p. 192 , e esp. p. 298-330).
[299]
Embora o Estado seja qualificado por sua função guia jurídica, ele é posteriormente limitado por apresentar a
justiça pública, em vez de qualquer tipo de justiça, como seu propósito estrutural. Seu dever de implementação não se
estende, portanto, a coisas tais como revogar a ideia de pais quanto ao horário apropriado de sono de seus filhos, ou as
regras da igreja sobre quem participa nos sacramentos, etc., mesmo que essas ideias sejam realmente injustas. Isso se
tornará mais claro quando a lei típica para o Estado for explicada no próximo capítulo. Deveria também ser notado que
aceitamos aqui a suposição tradicional de que a justiça pública inclui a responsabilidade governamental pela segurança
pública. Assim, não apenas a defesa nacional e a restrição do crime, mas a inspeção de aviões, pontes, alimentos, e
medicamentos, e o policiamento de estradas cai dentro dessa definição.
[300]
Dooyeweerd oferece uma crítica extensa a uma série de importantes teorias sociais para estabelecer este ponto.
Ver New Critique, vol 3, p. 198-261.
[301]
Veja as observações de Calvino nas Institutes, III, ix, p. 6.
[302]
O caso clássico a favor da liberdade de expressão e de imprensa foi feito pelo puritano calvinista John Milton em
seu ensaio “Areopagitica” (1644).
[303]
Dooyeweerd, New Critique, vol. 3, p. 380.
[304]
O processo histórico por meio do qual os Estados surgiram e assumiram distintas formas é outro lado de sua
variação. Esse lado é explicado pela análise de Dooyeweerd sobre o “processo de abertura” histórico das comunidades
sociais aludido na nota 12 do capítulo 12. (Em adição às referências apresentadas naquela nota, ver também New
Critique, vol. 2, p. 181-92, p.335-65). Isso explica o fato de que às vezes Estados têm sido nada mais do que
organizações para defender um território, enquanto leis emergiram das decisões das cortes ao invés de serem estatutos
do Estado – como no caso da common-law anglo-saxã. Assim, a explicação sobre a natureza do Estado que estou em
vias de oferecer assume um Estado plenamente desenvolvido, ou “aberto” que objetiva estabelecer uma ordem de
justiça pública. Que essa seja a natureza de um Estado plenamente desenvolvido foi reconhecido há bastante tempo
como em Aristóteles, quando ele observou que “Justiça é o vínculo dos homens nos Estados, para a administração de
justiça, a qual é a determinação daquilo que é justo, é o princípio da ordem na sociedade política.” (Politics, 1253a p.
37-39).
[305]
Dois comentários: O primeiro é que esse contraste em punições foi esboçado com o tratamento de adultos em
mente. Pais são geralmente obrigados a utilizar a força para restringir pequenas crianças, por exemplo, quando um bebê
é colocado em um cercadinho, ou uma criança é punida. Ao mesmo tempo, é claro, o Estrado certamente tem um dever
de proteger crianças de abusos tais como a força dos pais, especialmente quando a vida ou a saúde da criança está em
jogo. O segundo diz respeito à menção da pena de morte. A sanção bíblica da morte para assassinatos premeditados não
está clara somente na Torá e no Novo Testamento (cf. Gn 9.6 e Rm 13.4), mas é baseado no fato de a vítima ser feita à
imagem de Deus e, portanto, não poder ser dispensada em relação ao tempo particular ou às circunstâncias de sua
escrita. Eu penso, portanto, que sua ampla abolição na Europa reflete uma base humanista, ao invés de bíblica, para a
interpretação da justiça. Ademais, o argumento de que se é errado matar outra pessoa, portanto, a pena de morte seria
errada, é absurdo. Não existe ação que possa ser tomada para a punição de um crime que não seja em si mesma um
crime, não fosse ela uma punição legal para um crime. Por exemplo, seria roubo tomar o dinheiro de alguém sem a sua
vontade a menos que seja uma multa para um crime aplicada por uma autoridade legítima; e seria considerado
sequestro e detenção ilegítima o encarceramento de outra pessoa a menos que, do mesmo modo, isso seja uma punição
para um crime imposta por uma autoridade legítima. O mesmo se dá para a execução. Eu penso, no entanto, que a
punição capital deveria ser aplicada apelas para o assassinato premeditado, quando a evidência for esmagadora, e após
houver uma revisão do tribunal de recurso para assegurar que o procedimento judicial seja adequadamente observado.
Complementando isso, eu defendo uma segunda revisão, por uma instância independente, dos fatos em tais casos para
checar a evidência e as testemunhas.
[306]
Agostinho, The City of God, livro 19, p. 12-17. O próprio Dooyeweerd assumiu essa visão na obra The Christian
Idea of the Stale (Niitley, N.J. Craig Press, 1968), p. 40. Ali ele se alia especificamente com Agostinho contra Aquino,
que mantinha (como eu) que é apenas a necessidade de poder militar do Estado que é resultado do pecado. (Eu, no
entanto, concordo com Dooyeweerd ao rejeitar as razões de Tomás para sua visão”.
[307]
James Skillen, “The Bible, Politics, and Democracy”, artigo apresentado em uma conferência patrocinada pelo
Centre for Religion and Society do Rockford Institute, Wheaton, 111., Nov. 1985, p. 6.
[308]
Nós geralmente ignoramos o fato de que o exercício da força não necessita ser violento, ou ameaçar com
violência. O erguimento de uma torre de pedágio ou a colocação de uma barreira temporária através de uma rua
também é uma forma de força. Assim também o é o encadeamento de uma propriedade confiscada, ou a definição de
salários. Cf. N. K. Smith, “The Moral Sanction of Force”, The Credibility of Divine Existence (New York: St. Martin’s
Press, 1967), p. 214 ss.
[309]
Isso não se equivale a sugerir que o Estado não possa de alguma forma ser a parte prejudicada. Em casos tais
como traição, roubo de propriedade do Estado, ou evasão fiscal, esse claramente é o caso.
[310]
Os materiais de treinamento oferecidos pelo estado da Pensilvânia para o curso de educação de motoristas que eu
realizei à época do ensino médio faziam essa reivindicação.
[311]
A distinção entre um direito per se e o direito a uma liberdade diz respeito aos benefícios que cidadãos recebem
diretamente do Estado, tais como proteção contra invasões e crimes. Um direito secundário, por outro lado, é o direito
de cidadãos serem livres para agir de certo modo quer eles desejem ou não exercitar essa liberdade. Assim, enquanto
temos um direito per se de sermos protegidos contra crimes, não temos um direito per se para nos casarmos, ou
fazermos negócios, uma vez que ninguém viola nossos direitos se negando a casar conosco, ou fazer negócio conosco.
O que temos é o direito de sermos livres para nos casarmos ou fazermos negócios. Assim, enquanto dirigir não é um
direito per se, na visão da esfera de soberania ele é um direito nesse sentido secundário de ser uma liberdade.
[312]
Cf. as observações de Otto Von Bismarck justificando sua edição dos telegramas Ems para incitar a Guerra
Franco-Prussiana (Bismarck, the Man and the Statesman: Being the Reminiscences of Otto, Prince of Bismarck, trans.
A. J. Butler [New York: Harper & Row, 1899], vol. 2, p. 97-101).
[313]
É fascinante notar como o individualismo da declaração de Independência dá espaço para um coletivismo da
maioria na Constituição dos EUA. Pois aonde a Declaração fala de direitos inalienáveis, os direitos listados na
Constituição são todos emendas: que podem ser repelidos pelo voto do Congresso, ou pelos estados. Assim, não há um
único direito listado na Constituição dos EUA que seja garantido como inalienável.
[314]
Jefferson tinha originalmente proposto a seguinte formulação: “Nós mantemos essas verdades como sagradas e
inegáveis”. Franklin pensou que isso soaria demasiadamente religioso e o convenceu de substituí-la pela frase mais
racionalista: “Mantemos que essas verdades são autoevidentes”. No entanto, havia uma forte conexão entre a
autoevidência e a verdade religiosa entre Puritanos que (anteriormente a Locke) já haviam conectado o ensinamento
bíblico à ideia de governo limitado. Foi uma combinação da teoria de Locke com a herança Puritana mais antiga que foi
advogada pelos colonos. Veja Staughton Lynd, Intellectual Origins of American Radicalism (New York: Pantheon,
1968), p. 20, 24-31.Também deveria ser notado que embora o termo “direitos” não ocorra nas escrituras, a ideia o faz.
Uma vez que um direito é um benefício ou imunidade que não pode ser negado a uma pessoa sem que se cometa uma
injustiça (no caso de um direito legal), ou sem que o amor esteja ausente (no caso de um direito ético ou moral), então
tanto a lei de Moisés quanto a história do Bom Samaritano, e.g., claramente ensinam que todos os humanos têm direitos
como resultado de serem à imagem de Deus.
[315]
Jefferson de fato se refere às “Leis da Natureza e ao Deus da Natureza” no parágrafo inicial. No entanto, ele não
conecta especificamente esta alusão ao seu ponto sobre direitos individuais. Ao invés disso, ele a conecta apenas à
“posição separada, porém igual” que é atribuída aos Estados Unidos entre as nações. Muitas discussões subsequentes
dos direitos têm, desde então, seguido essa condução falhando em conectar direitos a normas.
[316]
Às vezes tem sido sugerido a mim que não precisamos na verdade de qualquer teoria para explicar a crença nos
direitos, porque eles não precisam mais do que construtor pragmáticos. Tudo o que precisamos fazer, é dito, é
concordarmos em dizer que pessoas têm direitos, e todas as mesmas limitações sobre o poder do Estado seguir-se-á.
Nada poderia ser mais distante da verdade. De fato, a visão pragmática de direitos é pragmaticamente autoanuladora.
Uma vez que seja concordado que não existem tais coisas e que estamos apenas fingindo que elas existem, o resultado
prático será duplo: por um lado, ninguém será constrangido por qualquer elaboração dos mesmos, enquanto, por outro
lado, todos almejarão que eles sejam elaborados como sendo o que quer que favoreça seus próprios interesses. O
resultado político prático seria o caos total. Ademais, se os direitos são vistos como invenções daqueles que estão com
o poder político, e portanto o que quer que o Estado julgue útil conferir aos seus cidadãos, a visão pragmática de
direitos resulta imediatamente em uma visão coletivista do Estado não oferecendo, portanto, qualquer limite baseado
em princípios ao poder estatal. Assim, uma visão pragmatista de direitos destrói as consequências práticas mais
importantes que a crença em direitos reais produziu.
[317]
Por exemplo, Mary Warren, “On the Moral and Legal Status of Abortion”, Monist 57, no. 1 (Jan. 1973): p. 55; e
Michael Tooley, “Abortion and Infanticide,” Philosophy and Public Affairs 2 (1971).
[318]
Thomas Hayes, “A Biological View”, Common Wealth 85 (March 1967); p. 677-78.
[319]
É interessante notar nessa conexão que ainda outros escritores tentaram evitar essas consequências baseando os
direitos na habilidade de um ser sentir, ao invés de pensar, e concluíram portanto que os animais também possuem
direitos. A partir da visão de direitos da estrutura de leis, ambas as teorias ainda estão muito limitadas ao serem
vinculadas à condição subjetiva dos seres em questão. Em nossa visão, não apenas animais, mas toda a criação
inanimada possui direitos – pelo menos indiretamente. Isso ocorre porque os humanos têm obrigações jurídicas (e
éticas) não apenas com outros humanos, mas com Deus e, assim, com a totalidade de sua Criação. Temos, por exemplo,
sido responsabilizados pelo cuidado e pelo aperfeiçoamento na criação em virtude de ela ter sido confiada a nosso
cuidado por Deus. É sobre essa base que podemos explicar por que é errado, e.g., poluir o ar ou a água, mesmo se ao
fazê-lo não prejudicarmos alguém vivendo agora. Outras teorias, no entanto, não podem explicar como uma geração
futura poderia possuir direitos em relação às nossas ações quando elas ainda não existem.
[320]
É uma fonte de grande confusão que grande parte das discussões políticas e legais do que se denomina “ética”
falhe em distinguir adequadamente entre o aspecto ético e o aspecto jurídico. Frequentemente os temas relacionados à
justiça que não são de caráter público, e portanto não são temas em relação aos quais o Estado devesse promulgar leis,
ou mesmo questões de justiça pública sobre os quais o Estado ainda deve elaborar um estatuto, são chamados temas
“éticos” ou “morais” mesmo embora eles ainda caiam sob as normas da justiça ao invés daquelas do amor.
[321]
Recorrer à ficção de que empresas são pessoas para oferecer a elas uma posição legal diante das cortes ainda
falha em cobrir a posição legal das não corporações. A inadequação dessa visão chegou a ser reconhecida
especialmente a partir do trabalho de Hohfeld. Que as cortes não podem oferecer adequadamente remédios legais na
suposição de que apenas indivíduos possuem direitos, é demonstrado por casos tais como ações de classe e outras
envolvendo partes não Hohfeldianas.Ver R. Cover, O. Fiss, e J. Resnik, Procedure (New York:Westbury, 1988).
[322]
James Skillen colocou essa parte da teoria de forma bastante apropriada em seu artigo “GoingBeyond Liberalism
to Christian Social Philosophy” in Christian Scholar's Review 19,no. 3 (Março 1990). Skillen enfatiza que a insistência
da teoria da estrutura de leis sobre a imparcialidade do governo em relação a todos não é uma concessão ao relativismo.
Em vez disso, é um ponto de justiça cuja
base bíblica é esta: Deus é longânimo e paciente até o juízo final... [Ou seja] um testemunho não da indiferença
relativista de Deus em relação ao pecado, mas em vez disso sua misericórdia e graça. Se Deus é paciente... então
nós, também, devemos ser o mesmo... Se o governo restringe a si mesmo de forçar todos os cidadãos a confessar
uma fé, ou forçar todos os pais para enviar seus filhos a um único sistema de ensino, ou forçar todas as amizades
a alcançar o mesmo comportamento de padrão sexual, não agiria, portanto, como um relativista... o governo que
cumpre seus deveres diante de Deus quando esse busca avançar a justiça pública que inclui a plena proteção dos
direitos confessionais daquelas instituições e relacionamentos não políticos, não governamentais, que devem ser
livres para obedecer ou desobedecer as leis de Deus em seus próprios domínios.
[323]
Veja os comentários de Bob Goudzwaard em Capitalism and Progress (Grand Rapids, Mich; Eerdmans, 1979),
p. 110-13.
[324]
Em novembro de 1986, o Primeiro Ministro Japonês Yasuhiro Nakasone comentou publicamente que os Estados
Unidos estavam sofrendo um declínio nacional em razão de permitir que sua população fosse diluída por meio da
mistura de raças.
[325]
Mais do que isso, eu diria que mesmo se uma escola advogar um ponto de vista religioso, político, ou ético em
particular, ela deveria mesmo assim receber igual suporte das taxas que o governo impõe a serem pagas pela educação
que ele exige que seus cidadãos tenham. Isso se dá dessa forma por que (1) não existe tal coisa como uma educação
religiosamente neutra, na medida em que cada teoria ou interpretação pressupõe uma ou outra crença sobre a divindade,
e (2) o princípio de soberania das esferas exige que o governo não favoreça um ponto de vista religioso sobre os
demais. As políticas educacionais atuais nos EUA, no entanto, fazem exatamente isso. Ela financia uma escola
conquanto que seus professores estejam inconscientes acerca das suposições religiosas das visões que eles ensinam, e
ela se recusa a financiar escolas cujos professores estão conscientes de suas pressuposições religiosas e tentam ensinar
seus temas a partir daquele ponto de vista unificado. A partir da perspectiva de soberania das esferas, a justiça exige
que todas as escolas sejam apoiadas igualmente, ou não sejam em definitivo. Como J. S. Mill argumentou, o dever do
Estado é exigir educação universal, não supri-la. Mill complementa que se o governo adotasse tal política, ele poderia
então deixar
aos pais a obtenção da educação no local e da forma que eles achassem melhor, e se contentarem com [o apoio
dessa]... que a totalidade, ou grande parte, da educação das pessoas devesse estar nas mãos do Estado, eu vou
tão longe quanto qualquer um em desaprovar... uma educação geral pelo Estado é um mero artifício para moldar
pessoas a serem exatamente como as outras; e o molde é aquilo que agrada ao poder predominante no governo...
isso estabelece, por sua vez, um despotismo sobre a mente, conduzindo por uma tendência natural a um
despotismo sobre os corpos. (On Liberty, ed. D. Spitz [New York: W. W, Norton Co.,1975], p. 97-98)
[326]
Para mais recursos sobre teoria social ou política geral, ver P. Marshall e R. Van der Vennen, eds., Social Science
in Christian Perspective (Lanham, Md.: University Press of America, 1988); Bruce Wearne: The Theory and
Scholarship of Talcott Parsons to 1951 — A Critical Commentary (Cambridge: Cambridge University Press,
1989),“Elias and Parsons: Two Transformations of the Problem-Historical Method”, in Talcott Parsons Today: His
Theory and Legacy in Contemporary Sociology, ed. I. Trevino(Lanham, Md: Rowman & Littlefield, 2001), e “Deism
and the Absence of Christian Sociology,” Philosophia Reformata 68 (2003); D. Koyzis, Political Visions and Illusions
(Downers Grove, I11.: InterVarsity Press, 2003); e D. Strauss, ReintegratingSocial Theory (forthcoming, 2005).
Para mais no assunto do papel apropriado do governo na educação, ver R. McCarthy et al., Society State, and Schools
(Grand Rapids, Mich.: Ecrdmans, 1981); R. McCarthy, J. Skillen e W. Harper, Disestablishment a Second Time:
Genuine Pluralism forAmerica’s Schools (Grand Rapids, Mich: Christian University Press and Eerdrnans,
1982);Charles Glenn, The Myth of the Common School (University of Massachusetts Press,1987); James Skillen, ed.,
The School Choice Controversy (Grand Rapids, Mich; Baker Books, l993); Charles Glenn e Jan de Groof, Finding the
Right Balance: Freedom,Autonomy, and Accountability in Education (Utrecht: Lemma, 2002); e Steven Vryhof,
Between Memory and Vision: The Case for Faith-Based Schooling (Grand Rapids,Mich.: Eerdmans, 2004).
Sobre o tema de como as eleições são conduzidas, ver Justice for Representation, a position paper of the Center for
Public Justice, Washington, D.C., por James Skillen, o Diretor do Centro de Pesquisas. O Centro é dedicado à
educação de pessoas para a conexãao entre fé bíblica e temas políticos via a teoria da estrutura de leis. O site do Centro
é: cpjnstice.org
Para obras complementares sobre temas de direitos, ver Johan Van Der Vyver, Seven Lectures on Human Rights
(Capetown: Juta, 1976); Max Stackhouse, Creeds, Society, and Human Rights: A Study in Three Cultures (Grand
Rapids, Mich.: Eerdmans, 1984); Paul Marshall, “Dooyeweerd’s Theory of Empirical Rights”, in The Legacy off
Herman Dooyeweerd, ed. C. T. Mclntire (Lanham, Md; University Press of America, 1985);John Witte, “The
Development of Dooyeweerd’s Theory of Rights,” in Political Theory and Christian Vision, ed. J. Chaplin e P.
Marshall (Lanham, Md.: University Press ofAmerica, 1994); e “Universal Rights and the Rule ofthe State,” in
Sovereignty at the Crossroads, ed. L. Lugo (Lanham, Md.: Rowman & Littlefield, 1996).
Sobre o tema do Estado, pobreza e bem-estar, ver Paul Marshall, Thine is the Kingdom (Grand Rapids, Mich.:
Eerdmans, 1984), esp. p. 90-113. Sobre justiça econômica mais geral, ver Bob Goudzwaard, Capitalism and Progress,
trad. e ed. JosinaZylstra (Toronto and Grand Rapids, Mich.: Wedgewood and Eerdmans, 1979); AlanStorkey,
Transforming Economics. A Christian Way to Employment (London: SPCK,1986); B. Gondzwaard and H. de Lange,
Beyond Poverty and Afluence, trad e ed.R. Vander Vennen (Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1995); D. Strauss,
“Capitalism andEconomic Theory in Social Philosophic Perspective”, in Journal for Christian Scholarship, lste & Zde
Kwartaal, 1997: p. 85-106; e D. Donaldson e S. Carlson-Thies, A Revolution of Compassion (Grand Rapids, Mich.:
Baker, 2003).
[327]
Sobre questões ambientais, ver Tending the Garden, ed. Wesley Grandberg-Michaelson (Grand Rapids, Mich.:
Eerdmans, 1987). Sobre casamento e família, ver as excelentes obras de James Olthuis: I Pleadge You My Troth(New
York: Harper & Row, 1975) e Keeping Our Truth (San Francisco: Harper &Row, 1986).