Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
gabriel.binkowski@gmail.com
Resumo
Struggling through the webs of the Other: a case in the transcultural psychoanalytic clinic
Abstract
In this article we discuss the consultation of an immigrant patient from Guinea Bissau listened to in a psycho-
analytic clinical device oriented by epistemological guidelines from the transcultural clinic. The work with mi-
grants emerges as an ethical e technical challenge for psychoanalysis today because it puts its conceptions
about culture and civilization at stake and leads each clinician to encounter alterity in that which can be mor-
tiferous about submission and sublimation in each subject according to how one relates to alterity, what one
abides or resists to when facing the webs of the Other. In our reading of this case we privilege the matter of
melancolization of social bonds e of the symptoms of migrating people, who are at risk of wandering in different
discourses in order to find names that can border their experiences of limit and encounter with the senseless
and the nameless. We consider that melancholia is an interesting clinical and epistemological category to think
about both the experience of excluded and vulnerable subjects as also the very composition of a clinic that must
Revista Acta Psicossomática Jul/Dez 2018 n.1: 90-100
operate through the decentering of its practices, devices and theoretical registers.
Keywords : transcultural clinic ; migration ; melancholy ; ethnopsychoanalysis; psychosomatics.
Enredándose por las telas del Otro: un caso en la clínica transcultural psicoanalítica
Resumen
Para discutir tais temas, apresentaremos nes- Nesse largo espectro de práticas, a constân-
se ensaio um encontro clínico bastante desafiador cia é de uma ética da escuta psicanalítica na qual o
que foi acolhido por nós num dispositivo de escuta analista se propõe a portar a palavra falada (Lacan,
psicanalítica proposto pelo Projeto Veredas – Psica- 1955). Cabe assim ao analista orientar-se na escuta
nálise e Imigração, um coletivo de pesquisadores, do sujeito em meio a toda a miríade de discursos que
clínicos (psicólogos, psicanalistas e acadêmicos de atravessam cada situação. Como na maior parte dos
psicologia) e colaboradores que atuam nos últimos casos tem-se pessoas em grande vulnerabilidade so-
15 anos na cidade de São Paulo, promovendo a es- cial e em situação de exílio, certo excesso de real mar-
cuta de migrantes em diferentes espaços de atenção ca um sujeito que muitas vezes aparece condenado
psicossocial. Localizamos nesse caso, de um rapaz a uma dessubjetivação operada pelo Outro mortífero,
oriundo de Guiné-Bissau, uma configuração sinto- que goza na submissão enquanto sujeito, a eventos
mática onde os sofrimentos psíquico e orgânico apa- potencialmente traumáticos e em experiências que o
reciam enredados numa teia discursiva em que uma colocam no lugar da abjeção.
sequência de eventos de luto eram enunciados numa
trama mágico-religiosa. Esta, num contexto migra- No dispositivo onde houve o encontro clínico
tório, manifestava-se enquanto queixa somática em que narraremos, a particularidade é a proposta de
que o paciente demandava um cuidado médico e uma uma suspensão, para a escuta da palavra, onde a
teoria científica que lhe explicasse o seu mal. Com fala do sujeito possa ser acolhida num serviço em que
este caso, ao pensar e ao buscar uma produção te- as demandas são quase exclusivamente marcadas
órica, tentamos nos descentrar de alguns de nossos por um tom de urgência. Na maioria das vezes, os
a prioris técnicos e conceituais, fazendo de nós mes- atendimentos visam auxiliar na regulação administra-
mos, clínicos, migrantes de cultura, de saberes e de tiva, englobando procedimentos ligados a pedidos de
posição. asilo, casos de trabalho escravo, famílias que preten-
dem se reagrupar depois de separações forçadas por
O dispositivo de atendimento e Ousmane, en- perseguições políticas, além dos mais diversos tipos
redado nas teias do Outro de orientação e de encaminhamentos em redes de
saúde, assistência psicossocial, etc.
O primeiro contato do Veredas com Ousmane
(nome fictício) ocorreu a pedido da assistente social A aposta dos clínicos do Veredas é em fazer
de um dispositivo para atendimento a imigrantes no algo que passa tanto pela oferta de abordagens es-
Como qualquer pergunta relacionada a sinto- Ao narrar o que aconteceu com a irmã, Ous-
ma seria respondida com uma afirmação, optou-se mane abre uma porta a todo um modo discursivo en-
por uma pergunta de mais fácil verificação e que po- contrado em sociedades tradicionais, especialmen-
deria ser indicativa de hanseníase, hipótese até então te naquelas do continente africano. É um mundo de
não excluída. Questionado sobre o aparecimento de seres invisíveis, onde os sonhos, em vez de serem
manchas na pele, Ousmane respondeu afirmativa- expressão de desejo, são tanto prenúncios de uma
mente, que tinha muitas manchas, e levantou a ca- realidade porvir quanto um campo de batalha entre
misa para mostrar todas as manchas “imaginárias” seres que habitam diferentes mundos. Numa noite,
presentes em seu abdômen. nos conta com precisão e ênfase, sua irmã sonhou
com uma aranha em seu peito. Pela manhã, ao des-
Pediu-se a Ousmane que contasse um pou- pertar, ela estava doente e foi ao hospital. Ali ela vem
co sobre sua família. O paciente teve muitos irmãos, a falecer. De acordo com Ousmane, desde o sonho e
sendo que a maioria faleceu jovem, num curto espaço do falecimento da irmã, a aranha nunca mais o aban-
de tempo. Seu pai morreu quando o jovem tinha ape- donou.
nas 11 anos, e uma irmã, de quem ele fora mais pró-
ximo, morreu quando ele tinha 16 anos, pouco antes Ao associar sobre o que sentiu naquele pe-
do período de aparecimento dos primeiros “sintomas ríodo de sua vida, o jovem migrante insiste reitera-
indiagnosticáveis”. Quando perguntado se ele via al- damente que não tinha como ir contra a vontade de
guma associação entre a perda da irmã e o adoeci- Deus. Portanto, ele não podia sentir tristeza ou raiva:
mento, Ousmane ficou confuso, e respondeu que a esses sentimentos seriam pecados, de acordo com
família tivera “doença de preto”. Por “doença de preto” sua concepção religiosa de vida. Ele deveria aceitar
se referia a “doenças que só aconteciam com preto”, seu destino de perecer pelo mal que lhe foi transmiti-
e que aqui no Brasil não se conhecia essas coisas, do. “Sinto medo de sonhar com os aracnídeos como
portanto não haveria como alguém daqui saber sobre ocorreu com minha irmã, mas, por Deus, não devo
ela. ter medo”. Por sua fé religiosa, Ousmane se encontra
impossibilitado de elaborar o luto pela perda dos fami-
Apesar do estranhamento que uma expressão liares, em especial pelas perdas marcantes do pai e
desse gênero causa num terapeuta ocidental, havia da irmã.
uma experiência de encontro com um mal, da parte de
Ousmane, que ia muito além de uma simples crença O encontro clínico com Ousmane foi breve
delirante, pois toda teoria que um paciente faz sobre e pontual. Nessa entrevista, sua extrema angústia
aquilo do qual sofre responde a uma realidade cultural parecia apontar uma conexão íntima entre ele e os
(Nathan, 2001). Recusar a inscrição dessas teorias membros de sua família através da religião (islamis-
em nossas práticas advindas de um campo cultural mo, embebida de um caldo animista, como é comum
ocidental não é apenas um sintoma de etnocentrismo, na África) e da doença. Contudo, seu discurso não era
mas também uma resposta que insiste em colonizar muito claro quanto às condições de sua saída do país
alguém cuja alteridade, por vezes, nos é insuportável. de origem nem da instalação no Brasil. Apesar de o
Ao fazer isso, insistimos em agir como Outro do pa- acolhimento da irmã com quem vive no país signifi-
ciente, numa racionalidade de tipo científica que pode car uma ponte entre Brasil e Guiné-Bissau, Ousma-
até constituir uma nova experiência potencialmente ne, contudo, enfrenta uma experiência de incompre-