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PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 1

apresenta

06 A 08 JANEIRO DE 2015
AV. ALMIRANTE BARROSO, 25, CENTRO
FACEBOOK.COM/CAIXACULTURALRIODEJANEIRO
#VIVAMAISCULTURA

Não recomendado para menores de 18 anos.


CURADORIA PEDRO HENRIQUE FERREIRA E THIAGO BRITO
A CAIXA é uma das principais patrocinadoras da cultural brasileira, e des-
tina, anualmente, mais de R$ 60 milhões de seu orçamento para patrocínio
a projetos culturais em seus espaços, com o foco atualmente voltado para
exposições de artes visuais, peças de teatro, espetáculos de dança, shows
musicais, festivais de teatro e dança em todo o território nacional, e artesa-
nato brasileiro.
Os eventos patrocinados são selecionados via Programa Seleção Pública
de Projetos, uma opção da CAIXA para tornar mais democrática e acessível
a participação de produtores e artistas de todas as unidades da federação,
e mais transparente para a sociedade o investimento dos recursos da
empresa em patrocínio.
A mostra Paisagens do Rio de Janeiro: a poética de David Neves apresenta-
rá uma panorama atualizado da obra de Davi Neves tendo como pano de fundo
a trajetória do cinema carioca. Serão exibidos 11 longas e 15 curtas-metra-
gens do cineasta, um dos mais importantes do Cinema Novo além de encon-
tros que pretendem aprofundar a discussão em torno de sua obra.
Desta maneira, a CAIXA contribui para promover e difundir a cultura nacional
e retribui à sociedade brasileira a confiança e o apoio recebidos ao longo
de seus 152 anos de atuação no país, e de efetiva parceira no desenvolvi-
mento das nossas cidades. Para a CAIXA, a vida pede mais que um banco.
Pede investimento e participação efetiva no presente, compromisso com o
futuro do país, e criatividade para conquistar os melhores resultados para
o povo brasileiro.

Caixa Econômica Federal

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Rascunhos da vida cotidiano pulsante de viver na metrópole carioca durante os anos setenta. O
Rio de Janeiro foi seu cenário, e dedicou a ele uma trilogia de crônicas - Muito
Prazer (1979), Fulaninha (1986) e Jardim de Alah (1988) – além de tê-lo presen-
“As coisas nem sempre se passam como te como pauta em praticamente todas as suas obras.
quer nosso vão e egoísta idealismo”1 Sob os olhos de David Neves, o Rio de Janeiro é ao mesmo tempo o palco
das contradições sociais que o Cinema Novo expunha com tanta veemência -
um ambiente de decadência onde, lado-a-lado com membros da elite da zona
1994-2015. São já 21 anos de sua ausência. Recentemente, caminhávamos pela sul, vivem figuras marginalizadas, moradores de rua, alcoólatras, prostitutas
Prado Junior, em Copacabana, e perguntávamos às pessoas com quem nos de- e travestis. Mas ao invés do confronto direto entre classes retratado em obras
parávamos na rua se conheceram pessoalmente a David Neves. As respostas como Os Fuzis, Deus e o Diabo na Terra do Sol e O Desafio, dentre outras das
positivas eram quase unânimes. Um senhor que jogava fora conversa com o mais célebres do primeiro momento do Cinema Novo, os filmes de David Ne-
chaveiro dizia ter sido seu médico durante seus últimos dias de vida. No restau- ves se passam em um momento onde já “não se é possível lutar”. O trabalho
rante El Cid, o garçom recordava seu hábito de sentar em uma mesa à janela, político (e político, somente na justa medida em que deixa de ser político) agora
e, acompanhado do seu cotidiano “suco de pão”, desenhar ou fazer anotações era não permitir que estas figuras marginalizadas fossem esquecidas. Que
observando os pedestres. Asmático, passava a tarde e a noite acordado pelas não fossem abandonadas pelo regime instaurado, varridas deste Brasil pro-
ruas, e dormia durante os dias. Um jornaleiro lembra que ele se sentava em gressista que “queria ser algo que não é”.
uma cadeira na calçada e lia seu jornal diário às 17h, quando tomava café-da- Artisticamente, tratava-se de demonstrar a humanidade do marginal. Hu-
-manhã com o morador de rua conhecido como “Jacaré”. E logo depois, uma manidade não como capacidade de conciliação e de levar à cabo os valores
limusine estacionava e ele ia encostar no boteco com um diplomata ou militar. da moral burguesa, mas justamente a capacidade de passar por cima destes
David Neves foi esquecido pelo cinema e lembrado pelos botecos. Esteve na valores e ainda deslumbrar e ser deslumbrado. Um deslumbre joyceano, en-
pequena cúpula que inventou o Cinema Novo, antes mesmo de Glauber Rocha contrado soterrado num ambiente que não lhe parece propício. Num ambiente
chegar à cidade maravilhosa. Ou melhor, cidade turbilhão. No imaginário do onde destoa, como a copa da árvore e os pássaros na primeira imagem de
movimento, David é uma figura relegada ou deslocada. Por um lado, porque, Fulaninha, o idílio encontrado no meio de apartamentos barulhentos, pessoas
na alvorada dos sessenta e nos primórdios do que viria a ser o grupo mais co- brutas e o trânsito confuso da Prado Junior. O cinema de David é político, jus-
mentado da historiografia nacional, David Neves não fazia filmes. Propagava tamente por que ama aquilo que retrata. Pois a humanidade surge (desponta,
o Cinema Novo, quiçá mais que qualquer outro, através da crítica cinemato- eleva-se) na capacidade que o homem tem de ficcionalizar o mundo; no gesto
gráfica no jornal O Metropolitano (na Itália, o chamavam carinhosamente de Il de sublimar o objeto mais simples e elevá-lo, amá-lo, até torna-lo presente
critico). E, logo em seguida, ocupando um cargo governamental no Itamaraty, para que ele viva e exista com as pernas próprias, ainda que não tenha se
promovendo oficialmente o jovem cinema brasileiro no exterior. Na medida encontrado dentro do mundo. Ainda que não tenha precisamente um nome.
do possível, David era uma figura low profile, o “líder afetivo”, como diziam os
demais membros do insipiente movimento. De modo que só foi filmar seu pri- ***
meiro longa-metragem, Memórias de Helena, em 1969, num outro momento, O presente catálogo pretende expandir a discussão em torno destas apa-
quando o impulso radical inicial do movimento já se transformara, após a con- rentes múltiplas facetas de David Neves que, em realidade, sempre foram
1 cretização da ditadura militar e o decreto do ato institucional número cinco. uma e a mesma. Tripartido, o ponta pé inicial é uma fortuna crítica inédita
Trecho de texto encontrado
no livro Cartas do meu Bar,
Quando falamos em uma poética no cinema de David Neves, é, senão im- que analisa a obra de Neves a partir de um amplo prisma de questões: do seu
organizado e editado pelo possível, improvável pensa-la separada da cidade turbilhão: as ruas onde vi- papel na construção do Cinema Novo, até uma análise mais detida sobre o
David Neves, em 1993, através
da Editora 34. via e frequentava, os amigos que fazia e os desconhecidos que via passar, o uso de filmes caseiros e de uma estética amadora como forma de atingir um

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sentimento diferenciado e único em Memória de Helena. O conjunto de quatro É possível que tais respostas não existam. Qual o Iago de Othelo, David se
textos inéditos trilham a proposição de que ainda há muito o que cavar e revi- despede, em Cartas do Meu Bar, sob tom shakespeariano, elucubrando sobre
rar dentro de sua obra, mesmo após 21 anos de sua morte. o que Brasil é, ao invés do que poderia ou deveria ter sido. E, com efeito, David
A segunda parte se dedica a um conjunto de entrevistas com profissionais Neves foi. Definitivamente, foi um homem de mão cheia, de vida experimenta-
e amigos que trabalharam e conviveram ao lado de David, mas jamais tiveram da, tortuosa, complexa, e plena de afeto, carinho, amigos e depressão. Como
a oportunidade de falar de forma mais detida sobre ele. São sete entrevistas julgar a vida de um homem, afinal? O rascunho, o croqui, está aí, diante de vo-
inéditas que nos apresentam um retrato para lá de complexo do diretor – do cês. Tudo o que, então, lhe pedimos, querido leitor e espectador, é que não faça
engravatado que trabalhava no Itamaraty, ao sujeito pacato, tocado pela sim- ideia errada sobre nós. Elevemo-nos, nós mesmos, à condição única, banal e
plicidade da vida e das coisas, passando pelo alcoólatra dedicado à esbórnia extraordinária, de que, mesmo com todo progresso e iphones, ainda vive-se
e ao submundo da Prado Junior. São nestas entrevistas que nos damos conta apenas uma vez.
do seu método de trabalho, suas consciência artística e seu esmero técnico. E, no entanto, aqui estamos... diante de David.
Por fim, a terceira parte é composta por seus textos pessoais, encontrados
em uma extensa pesquisa por inúmeros acervos. Destacam-se os textos en-
contrados no Acervo David Neves, localizado no Centro Universitário Moacyr
Bastos, em Campo Grande. Ao total, foram 31 textos produzidos por David ao Pedro Henrique Ferreira e Thiago Brito
longo de sua vida, incluindo material de seus primeiros passos no periódico O curadores
Metropolitano, passando pelos textos mais diretamente voltados à construção
ideológica do que viria a ser o Cinema Novo, incluindo textos de seu livro Cine-
ma Novo no Brasil (o primeiro a ser publicado sobre o tema), até os textos mais
maduros, onde analisa os descaminhos do Cinema Brasileiro.
Toda a terceira parte do catálogo é estruturada por vai-e-vem, elaborando
intersecções – ou, como diria David Neves, gatos – que quebrassem a apa-
rente harmonia de seus textos e criassem diálogos, ruídos e ressonâncias.
Além de um panorama de fotos, pinturas e fotografias de autoria do diretor,
que também era exímio com o pincel, mesclamos com seus textos críticos
o inédito Diário de Luz del Fuego, um caderno rosa, ou hebdomadário, como
dizia David, redigido durante as filmagens de seu maior sucesso de público;
os aforismos e poesias encontrados em Cartas do Meu Bar, escrito em idade
avançada, quando David já era marcado por doença que levaria ao seu faleci-
mento em 1994, demonstrando uma visão filosófica e existencial muito mais
ampla do que todos os seus textos críticos; uma entrevista reveladora com
Rubens Fonseca, autor do livro que adaptou em Lúcia McCartney, uma garota
de programa; e, por fim, uma passagem raríssima e fortemente confessional
do Diário de Jardim de Alah, produzido no mesmo espírito que o anterior. Mais
do que respostas, terminamos com perguntas. O que aconteceu com o David?
O que estava passando? O que estava se buscando, e por que sua vida tomou
este rumo?

10 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 11
sumário
Textos introdutórios Textos introdutórios União e Censura Cultural 104

Memória de Helena 16 O Testemunho de Marcoreles 106


Lila Foster
Afinal, o realismo. 108
David Neves: impressões 22
Luís Alberto Rocha Melo A verdade do Nordeste 111

David Neves e o Cinema Novo 31 Garrincha decalcado? 114


Arthur Autran
Diário de Luz Del Fuego IV 118
O Cinema da Indução 37
Hernani Heffner Poética do Cinema Novo 120
Cartas do Meu Bar I 124
Diário de Luz Del Fuego V 125
ENTREVISTAS ENTREVISTAS
Guimarães Rosa e o Cinema 126
Jom Tob Azulay 48
Rio, Zona Norte 130
Ittala Nandi 53
Diário de Luz Del Fuego VI 137
Joaquim Vaz de Carvalho 57
Uma Aventura Malgaxe 139
Carlos Moletta 64
Cartas do Meu Bar II 142
Joel Barcellos 71
A Vida como Rascunho 143
Mariana de Moraes 76
Diário de Luz Del Fuego VII 144
Paulo Thiago 81
Feu Follet 145
Diário de Luz Del Fuego VIII 147
Textos de david neves Textos do david neves
Vista para o Mar 149
Duas peças de Bach 88
Cartas do Meu Bar III 152
Relações Internas 90
Cartas do Meu Bar IV 152
Diário de Luz Del Fuego I 93
Entrevista com Rubem Fonseca 153
O Primeiro Passo 95
Diário Jardim de Alah 158
Diário de Luz Del Fuego II 96
David Neves, Sem título 159
O Mestre e o Poeta 97
Cartas do Meu Bar V 160
Diário de Luz Del Fuego III 100
Filmografia 161
Concessão é Conformismo 103
textos
introdutórios
14 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 15
O cinema pode ser:
1. A maquilagem da vida.
2. A revelação pura e simples da vida.
3. A destruição da própria vida.(...)
O bom cineasta é o que diz verdades em forma de mentiras.
O cinema é a mentira por excelência. (...)
A mentira é o veículo e a verdade, o passageiro.
(David Neves em Cartas do meu bar, 1993)

A feitura de filmes domésticos, esses filmezinhos amadores que registram os


pequenos e grandes eventos do cotidiano familiar, talvez seja uma das práticas
audiovisuais mais comuns desde a invenção do cinema. As formas e as possi-
bilidades de se filmar a família, evidentemente, mudaram muito no decorrer do
tempo por conta das inovações tecnológicas, que permitiram novos usos das câ-
meras amadoras, e porque as demandas que dirigimos às imagens também se
alteraram. A distância que separa os filmes de família rodados em 16 mm no
Brasil na década de 1930 e os vídeos digitais caseiros compartilhados no YouTube
é, de fato, enorme. O desejo de realizar filmes ou vídeos domésticos, no entanto,
se une por uma premissa básica: o poder dos sentimentos, uma potência que se
estende e se multiplica em diversas temporalidades. A força que une a família no 1
Ver, respectivamente, A câmara
momento da filmagem - aqui podemos entender a família em um sentido mais clara: nota sobre a fotografia
amplo, considerando amigos, pessoas de um mesmo círculo de convivência - e (Nova Fronteira, 1989), Sobre
fotografia (Companhia das

O cinema amador
o arrebatamento que esses filmes causam no espectador distante no espaço ou Letras, 2004) e “Ontologia da
imagem fotográfica” em O que é
no tempo. o Cinema? (Cosac Naify, 2014).

em Memória de Helena:
Roland Barthes, Susan Sontag e André Bazin1 tematizaram essa relação parti-
2
cular e sentimental do espectador com a fotografia familiar, uma percepção que As câmeras amadoras -- 9.5
mm, 16 mm, 8 mm e Super

verdade e sentimento
também se funda na crença das imagens como provas de existência, índices de 8 – também permitiram os
primeiros exercícios em
realidade. Tais imagens também não deixam de ser uma luta contra a morte, a cinematografia de diversos
imagem que sustenta a existência de um ser ausente. Estendendo tal ideia para cineastas, como Humberto

Lila Foster
Mauro, que rodou o seu
a imagem em movimento, o filme doméstico tem as suas próprias “regras do primeiro filme, Valadião,
o cratera (1925) com uma
jogo”, situadas entre a vocação para o registro e a constituição de memória, e a Pathé-Baby; Jacques Demy,
condensação de um tempo que se antecipa como lembrança e ausência. Ele se que teve a sua incursão no
amadorismo ainda adolescente,
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais da define, portanto, pelo seu valor sentimental e mnemônico, sua estética particular representada no belíssimo
ECA-USP, mestre em Imagem e Som pelo Programa de Pós-Graduação da Universi- e seu efeito de real-presença.
Jacquot de Nantes (1991) de
Agnes Varda; e, inclusive, David
dade Federal de São Carlos (PPGIS) e formada em Filosofia (2005) pela Faculdade de Neves, que fez dois filmes
Parte expressiva da nossa cultura visual, o cinema nunca deixou de se apro-
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH - USP). amadores em 16 mm, Domingo
Articulando pesquisa histórica e preservação audiovisual, o seu trabalho se concentra priar e se inspirar no filme doméstico2 amador. Diante do manancial de imagens e Fuga, rodados com Cacá
Diegues no início dos anos 1960
no levantamento da produção amadora e de filmes domésticos no Brasil. amadoras preservadas em arquivos particulares e públicos, o arquivo se tornou e, infelizmente, desaparecidos.

16 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 17
matéria de criação, sendo o caso mais exemplar o do cineasta húngaro Peter For- e a apropriação do universo amador nos parecem distantes. É evidente que toda
gács, que, através de filmes domésticos rodados em diversos países da Europa, e qualquer generalização seria redutora, mas existe algo que subjaz muito da
reconstitui, do ponto de vista particular e da intimidade, grandes eventos trau- produção audiovisual contemporânea construída a partir da categoria amadora,
máticos que assombram a Europa, como a Segunda Guerra Mundial e a Guerra - aqui podemos incluir as artes visuais e a mídia - algo que diz muito sobre o
Civil Espanhola. Já a defesa do amador nos filmes de Jonas Mekas perpassa não nosso tempo e sobre a relação que construímos com a imagem: a busca de uma
somente a contraposição ao modus operandi do cinema profissional, mas tam- verdade constituída a partir de uma relação de colamento com o real, uma prova,
bém a captação amorosa da família nuclear e estendida: cada filme com a sua o seu flagrante ou a sua tentativa de reconstituição. O que se busca nesse recurso
implicação estética de um cinema próximo ao coração. A câmera amadora, seja ao amadorismo é o próprio real, esse, por sua vez, sempre inacessível. Diria que
analógica ou digital, possibilita a produção de filmes-diário, a filmagem em tem- nesta relação existe quase sempre uma dureza, uma aridez entre a realidade e a
po estendido como escrita imagética pessoal e quase onipresente, caso dos do- nossa percepção dela, uma cisão, um desalento.
cumentários Diários (1973-1983), de David Perlov e Tarnation (2004) de Jonathan Diante deste cenário, assistir a Memória de Helena se torna uma experiência
Cauette. Vale lembrar que o gesto do amador também pode ser ficcionalizado e a reveladora. Não são somente os quarenta e cinco anos desde o seu lançamento
estética precária da imagem amadora, emulada; procedimentos tão comuns hoje que nos separam. Assim como Rosa e Renato revisitam as imagens amadoras
3
em dia na publicidade e na ficção. filmadas por Helena e seu Tio Mario, também revisitamos outro tempo do cinema Vale citar aqui um trecho do
Nos últimos anos, a produção audiovisual brasileira tem explorado com fre- brasileiro, outra forma de entender o que é a verdade e a autenticidade no cine- texto “Idiotas da subjetividade”,
de David Neves, publicado na
quência o uso de imagens domésticas de arquivo e a estética amadora como ele- ma, uma questão cara a David Neves. O diretor não nos convida somente para o coletânea Telégrafo visual:
crítica amorosa de cinema
mentos da criação. Podemos citar, dentre vários exemplos, Pacific (2009) de Mar- mundo íntimo de uma jovem vivendo em Diamantina, Minas Gerais, mas para a (Editora 34, 2004): “Minha
celo Pedroso, Olhos de Ressaca (2009) e Elena (2012) de Petra Costa, Babás (2010) sua biografia e para um conjunto de referências que se confundem com o próprio preocupação maior é com a
maneira de dizer e não com
de Consuelo Lins, Avós (2009) de Michael Wahrmann, Supermemórias (2010) de cinema brasileiro da época, fazendo da experiência e da vida o solo da represen- aquilo a ser dito. Quando penso
num filme, procuro encaixar o
Danilo Carvalho, Os dias com ele (2013) de Maria Clara Escobar, Já visto Jamais tação3. assunto numa forma original.
(...) O cinema deveria ser
visto (2013) de Andrea Tonacci, Cine-Penhor (2013) de Guilherme Martins, Elegia Memória de Helena se assume como construção fílmica desde o início. A voz considerado uma coisa lúdica,
à Rimbaud (2011) de Leo Pyrata e Roberto Cabeção (2011) de Salomão Santana. off de Rosa anuncia esta pequena história intimista, um filme sentimental feito sempre, até quando se dedica
a reproduzir ou documentar
Cada um a seu modo, todos apontam para a centralidade que essas imagens ocu- por David Neves e equipe. Helena é ainda um mistério para o espectador que a História. (...) Se meus filmes
não são plenamente originais
pam no cenário atual. Memória, arquivo, poética amadora, cotidiano, intimidade, acompanha a descoberta dos seus filmes domésticos por Renato, um namora- como eu desejaria que fossem,
amorosidade, observação, corporeidade, subjetividade, efeito de real, autentici- do de adolescência, e por Rosa, a melhor amiga de Helena. É a luz da projeção ao menos têm qualquer coisa
de enigmático ou marginal que
dade, biografia e morte são algumas palavras-chave que podem sintetizar essa desses filmes no rosto dos personagens e o som do projetor que antecedem o me agrada (...) meus filmes
foram sempre um pouco
diversidade de relações. E são palavras que também definem Memória de Helena aparecimento dos primeiros filmes caseiros, imagens em preto e branco no for- marginais, umas experiências
que eu mesmo produzi, não
(1969). mato original do 16 mm, com sua janela reduzida e de bordas arredondadas. São tinham compromisso com o
Primeiro longa-metragem de David Neves dirigido durante o que podemos imagens que mostram Diamantina, seus morros e sua gente trabalhadora, é um mercado, eram quase meio
autobiográficos, confessionais
chamar de segunda fase do Cinema Novo, o filme vai na contracorrente do cine- plano de uma babá negra segurando um bebê: olhar de atenção sociológica, que até certo ponto, sem,
entretanto se encaixarem
ma feito pelos seus companheiros de geração, dedicados ao diagnóstico do país, também permeará outros desses filmezinhos. nessas características. O que
ao didatismo, ao gesto da intervenção e ao ideal revolucionário coletivo (a luta Esse segundo lugar e dispositivo fílmico, o espaço amador, vai oscilar entre eu acho é que o cinema que
foi feito até um tempo atrás
de classes aparece ali, mas numa chave muito diversa). Íntimo, pessoal e com os filmes feitos por Helena e pelo seu tio, entre o olhar particular da adolescente foi um cinema sem senso
de oportunidade, porque
um olhar que observa, ao invés de intervir, o filme habita um espaço temático – seu quarto, seu diário, suas amizades – e um olhar de atenção sociológica, tão tinha muito dessa idiotice de
objetividade; quer dizer, era
muito mais próximo ao do cinema contemporâneo, principalmente no gesto de caro ao Cinema Novo, dirigido ao mundo do trabalho fora e dentro do ambien- muito despersonalizado. (...)
apropriação do código do cinema amador e do filme doméstico como arquivo de te doméstico: as empregadas, a cozinha, a mulher que passa a roupa. Nos dois, Fomos o tempo todo idiotas
da objetividade, sejamos pelo
rememoração. Mas apesar dessa semelhança, a relação final com a encenação percebemos uma atenção à Diamantina, à captação de certo espírito mineiro - as menos idiotas da subjetividade.”

18 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 19
pedras, os rios, a cachoeira, a sua História - e uma característica de inspiração sentir e não para pensar”, escreve Helena. Renato é o segundo personagem que
“maureana”: o encantamento e a mistura dos personagens ����������������������
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paisagem. Esses fil- surge através dos filminhos, uma tentativa de ajuste, um contato que mergulha
mes domésticos também complementam a presença de Humberto Mauro, atuan- Helena não só na sua dificuldade de entrega, mas na vergonha de sua inexperi-
do no filme como o Tio de Helena, e condensam a clara admiração pelo cineasta ência amorosa. Nas imagens seguintes, Helena filma uma procissão religiosa e
mineiro. A presença também se conecta a Paulo Emílio Salles Gomes, roteirista a família, em contraste com o que ela chama de “lugares sagrados ou o jardim
do filme, que dedicou ao cineasta intensa pesquisa sintetizada no livro Humberto encantado”, cenas da fazenda, do jardim sem capinar, do moinho e da roda d’água.
Mauro, Cataguases, Cinearte (Editora Perspectiva, 1974). Os dois, crítico e cineasta, Um mundo exterior, de normas e convenções que a amedronta e que se opõe ao
formam uma dupla de grande inspiração para David Neves4. seu mundo íntimo e secreto.
Os onze filmezinhos caseiros, em conjunto com as vozes em off, também serão O último filmezinho sintetiza sua crise, um filme quase delírio que move o
estruturantes em termos narrativos e dramatúrgicos. No primeiros minutos do olhar pelas copas das árvores. O corte brusco mostra ele, André, à distância. O
filme, que podemos chamar de “introdução à Helena”, a voz off de Rosa funciona homem que, ao realizar o desejo de Helena de ter uma paixão verdadeira e cor-
como análise, fonte de informação e instaura o tempo da memória. No primeiro respondida, a lançará na maior das suas angústias. Ocupada com a sua paixão,
filmezinho, o amor pelos gatos traduz sua personalidade: “o universo felino de Helena não filma mais, o hobby não mais parece ter importância. Quem produz
Helena: preguiça e agressividade”, diz Rosa. No segundo, as ruínas de Diamanti- as imagens agora é André, fotógrafo profissional. Lançada no desespero com o
na ilustram a história de Xica da Silva e o espaço de predileção da personagem sumiço do amante, Rosa mergulha definitivamente na paisagem de Diamantina.
principal. No terceiro, mais um vestígio de Helena nas imagens das páginas do A morte torna ainda mais impactante o último filme caseiro, que fecha este conto
seu diário. No quarto, a voz de Rosa apresenta os membros da família, que ace- antimoral. Helena em preto e branco pela primeira vez, um plano próximo ilumi-
nam para a câmera e sorriem, um gesto clássico do gênero doméstico. nado e um pouco fora de foco dela acariciando o seu gatinho. Helena, que morre
Quando Helena surge por detrás de um lençol no varal, como se estivesse de forma tão trágica, volta para a vida através desses filme domésticos, das pági-
abrindo as cortinas de um palco, o passado passa agora a ser colorido e o filme nas do seu diário e das lembranças do casal Rosa e Renato.
instaura o tempo do passado vivido e não captado em imagens preto e branco. Não só pela função narrativa, o recurso ao filme doméstico em Memória de
A fotografia e a montagem exploram o contraste entre esses dois passados, o Helena é completo. Uma recriação que se guia pelo efeito emocional das imagens,
4 primeiro com um o olhar de observação do espaço um tanto distanciado dos seus algo alcançado com o belo trabalho de câmera e fotografia dos trechos amadores
David Neves dirigiu, em 1975,
o curta-metragem Mauro, personagens e o segundo explorando a integração entre quem filma e quem é e pela montagem que une diversas temporalidades. A prática de filmar e de pro-
Humberto para o INC – Instituto filmado, outra característica marcante do gênero amador. Neste movimento, va- jetar filmes no ambiente doméstico, uma forma de captura da imagem e de com-
Nacional de Cinema -, um filme
que também une gerações em mos sendo apresentados ao mundo de Helena. A atenção às mulheres da família partilhamento que se alterou com o surgimento do vídeo, aparece incorporada à
torno do pioneirismo de Mauro
e da brasilidade de seus filmes. – sua mãe, sua tia e avó – oprime e ressalta a sua inadequação e ansiedade em vida dos seus personagens, um capítulo da história de como nos filmamos e com-
Com depoimentos de Glauber
Rocha e Alex Viany, o filme não
relação ao futuro já desenhando para uma boa moça de família mineira: a sua partilhamos as imagens de nós mesmos. A fotografia dos filmes caseiros emula a
deixa de ter uma qualidade realização como mulher através do noivado e do casamento, a conquista de um filmagem “malfeita”, o filme sem montagem, cheio de flares, a comunicação entre
doméstica por mostrar Mauro
em sua rotina cotidiana, uma homem como fundamento da existência. A leitura do diário e a narração de algu- quem filma e quem é filmado e a atenção amorosa aos seus personagens. E é no
domesticidade que culmina
numa cena em que Humberto mas imagens são agora assumidas por Helena. corpo a corpo com a linguagem do cinema, essa mentira que transporta a verda-
Mauro, Rogério Sganzerla, O filme caseiro seguinte relembra a chegada de Rosa, a personagem principal de como passageira, que David Neves realiza um dos filmes mais líricos do cine-
Helena Ignez e Julio Bressane
conversam em torno da mesa de pequenas encenações em preto e branco, essas signo da força da amizade en- ma brasileiro. Um filme que investe sua energia de observação para recriar não
da sala de jantar. O filme
sintetiza uma característica tre as duas e a paixão explícita, mas delicada, de Rosa. Mulher ajustada ao papel um mundo convincente, mas uma geografia apurada dos sentimentos e dilemas
do cinema de Neves, a união
de gerações de pensadores
social imposto na época, Rosa é considerada fútil, um contraponto às aspirações de amadurecimento de uma jovem adolescente se descobrindo mulher. Ao invés
e cineastas brasileiros e a de liberdade de Helena, mas, ao mesmo tempo, é fonte de frustração pois ressalta de fazer do cinema a continuidade, o espelho do mundo, David Neves investe na
busca desta geração pelo estilo
brasileiro de cinema. a sua incapacidade de sentir: “acho que a mulher tem que ser inteligente para fabulação e na afirmação das verdades que não vemos, mas que podemos sentir.

20 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 21
Entre os 2.862 filmes/planos que compõem a série Cinématon, de Gérard
Courant, o de número 984 recebe o título de David Neves1. Seguindo o modelo
dos demais, David Neves consiste em uma única tomada silenciosa, com cerca
de 4 minutos de duração - espécie de “instantâneo em movimento”.
O encanto da série Cinématon talvez decorra exatamente desse aparente
paradoxo: justamente porque concebidos como retratos fotográficos estáticos,
esses filmes ampliam o prazer da sensação/da apreensão do movimento ci-
nematográfico pelo espectador. Tudo o que o retratado tem a fazer, no caso, é
permanecer diante da câmera e agir como quiser. Gestos mínimos das mãos,
dos olhos, da boca etc., se tornam, assim, verdadeiros ensaios impressionis-
tas de uma autobiografia involuntária. Quatro minutos de cinema instantâneo
silencioso como esses, muitas vezes, valem por dezenas de documentários
biográficos de longa-metragem.
É bem este o caso de David Neves. Em sua delicada operação poética/es-
tética, Gérard Courant absorve, por meio do movimento e de sua duração, o
mais íntimo na personalidade do cineasta, para, em seguida, transformá-lo
em epiderme e, depois, nos jogar de volta à subjetividade do “biografado”. Ou,
para nos lembrarmos do jogo de palavras godardiano, a expressão se torna
impressão – e vice-versa. Mas não é isto o cinema?
David Neves exprime-se em David Neves, quatro minutos de impressões a
24 quadros por segundo, imagem silenciosa de um personagem titubeante,
inquieto e retraído. O ideal aqui seria ver o filme, já que qualquer descrição
será incapaz de dar conta da experiência espectatorial. Mas deixo a dica ao
1
leitor para que ele o acesse via YouTube. Por enquanto, e provisoriamente, vale O filme, rodado em 27 de
novembro de 1987, em Paris,
a pena mencionar pelo menos alguns gestos reveladores. pode ser assistido no YouTube
Quando o filme se inicia, o olhar de David Neves parece perdido em algum (https://www.youtube.com/

David Neves: impressões


watch?v=kakO-TDBlBw).
ponto de seus pensamentos ou de suas lembranças; ele não olha para a câ- Sobre o trabalho do escritor,
mera, sequer parece olhar para fora de si. Mas o fato é que há uma câmera cineasta e ator Gérard Courant,
especialmente a série em
diante dele, ela é incontornável. Não há escolha: é preciso encará-la. E David processo Cinématon, “o filme

Luís Alberto Rocha Melo a olha/nos olha. Um olhar sério. Subitamente, como se tal situação fosse in-
sustentável por mais que alguns segundos, ele se desvia, e, ao inclinar-se
mais longo do mundo”, cf. o
site oficial www.gerardcourant.
com. Desde 1977, utilizando
películas 16 mm, 8 mm ou
lateralmente, quase sai de campo. Retorna um tanto curvo à posição anterior, vídeo, Courant vem filmando
ensimesmado, o rosto quase escondido na parte inferior do quadro. A câmera cineastas, atores, atrizes e
personalidades do cinema
Cineasta, pesquisador e professor do Curso de Cinema e Audiovisual e do Programa de permanece imóvel, impassível; desafiadora, é o que parece dizer a olhadela mundial,em ocasiões diversas,
Pós-Graduação em Artes, Cultura e Linguagens da UFJF. Dirigiu os longas-metragens furtiva que ele (nos) dá. Por alguns instantes, é essa a relação que se mantém: em geral no contexto de
festivais e mostras: em cerca
Nenhuma fórmula para a contemporânea visão do mundo (HD, ficção, 2012) e Legião David olha para a câmera/para nós, desvia o olhar, olha novamente, seu rosto de 190 horas de duração total,
estrangeira (HD, doc., 2011); o curta-metragem em 35 mm Que cavação é essa? (ficção, oscila entre o fora e o dentro de campo. Mas toda essa movimentação, que, até já foram retratados de Jean-
2008) e o média-metragem O Galante rei da Boca (DV, doc., 2004). Seu primeiro tra- então, nos parecia inquietude ou mal-estar, enfim se justifica quando o vemos
Luc Godard a Robert Kramer,
de Juliet Berto a Samuel Fuller,
balho como diretor foi Alex Viany – Um documentário em vídeo (1990), seguido pelos incluindo brasileiros, como
acender uma cigarrilha com piteira. É que o campo estreito do enquadramento
experimentais O desejo de Deus (1992), A projeção no cinema (1993), Fernando Py Nelson Pereira dos Santos e
frontal nos impedia de ver o simples ritual de pegar a cigarrilha e o isqueiro. Luiz Carlos Barreto.
(1994), Fragmentos – Uma narrativa intranquila (1997) e O trapezista (1999).

22 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 23
Após a primeira tragada, David tosse. Apanha do bolso do casaco uma bombi- de Andrade, 1960) e Barravento (Glauber Rocha, 1962) decorrem justamente
nha e a aspira. Quem conhece o personagem sabe que se trata de um asmá- dessa urgência. O primeiro é resultado de “uma elaboração cuidadosa, oriun-
tico. Um asmático que fuma. Sublime e reveladora contradição eivada de um do de um espírito criador de alto gabarito”, razão pela qual “a fita se despe
humor irônico. O cigarro e a bombinha: quase uma gag ao melhor estilo de um conscientemente dos resquícios de subjetivismo e se apresenta numa rou-
Jacques Tati. Por outro lado, nada mais providencial para um não ator diante pagem reveladora, pela sua objetividade”. Já o longa-metragem de estreia de
de uma câmera inquisidora do que fumar um cigarro. Pelo menos, sabe-se o Glauber Rocha “não só não possui dégradés como evidencia desconhecer de
que fazer com as mãos. A cigarrilha deixa David mais convicto e corajoso: nos que se tratam esses inúteis e desvirtuantes recursos. É um filme concreto,
segundos que se seguem, ele olha demoradamente para a objetiva. Agora é a palpável, desadjetivado”4.
luta contra a fumaça que parece penosa, e ele tosse novamente. Ao encarar a Em muitos outros textos da mesma época, contudo, se torna clara a irre-
objetiva com mais vagar, é como se um duelo se instalasse entre o retratado- mediável atração que sobre o jovem David exerciam não só os meios-tons
-David e a câmera-Golias. O que é o cinema para David? Ele desvia mais uma como uma série de outros aspectos defeituosos de um cinema ainda buscando
vez o olhar. O cinema não se vê, não se define; ele existe acima, dentro, em afirmar-se perante um público que, não por acaso, era visto como “principal
torno ou apesar de nós. Não há como vencê-lo pelo olhar. No máximo, sere- adversário”5 ou como um “obstáculo a transpor”6. Aqui, observamos quase
mos seus cúmplices ou súditos. Alguma conclusão a respeito de sua própria mesmo o contrário, em relação ao dégradé: deplora-se, justamente, no cinema
possível derrota diante da câmera/cinema/espectadores faz com que David, brasileiro, a tradição dos tons absolutos que, por um lado, marcam a linha-
4
pela primeira vez em cerca de dois minutos de projeção, esboce um sorriso, gem “expressionista” da chanchada e do “cinema tradicional ou industrial”, David E. Neves. “O dégradé
que não sabemos dizer se nasce dos olhos ou da boca. E, tão logo esse sorriso com seus enquadramentos que tendem para a “estratificação e a rigidez”, e impossível”. In: Op. cit., p. 170.
se pronuncia, também logo se apaga. Talvez aí, nesse sorriso, se manifeste personagens “à disposição do espectador”, que “posam para falar e estão su- 5
uma vitória – sutil, particular, infantil, subversiva. Um lampejo de absurdo (o mamente preocupados com a clareza de suas palavras”7. David E. Neves. “O dégradé
impossível”. In: Op. cit., p. 169.
cinema? a vida?) temperado de melancolia. Ou, como exemplificou Jean Eps- É contra este cinema tradicional, exagerado, artificial, que o novo cinema
tein, a própria fotogenia: “O rosto que se prepara para o riso é mais bonito que feito pelos jovens realizadores da virada dos anos 1950-60 se afirmaria: 6
David E. Neves. “Um obstáculo a
o próprio riso”.2 transpor: o público”. In: Cinema
Novo no Brasil. Petrópolis: Ed.
Assim David se expressa, e dele vamos acumulando impressões. Esse pro- Porto das Caixas, de Paulo Cézar Saraceni, foi o primeiro longa-metragem a que- Vozes, 1966, pp. 17-19.
cesso, detonado pela visão de seu retrato animado em Cinématon, não dei- brar no cinema novo a falsa e precária técnica de “perfeição”. O flou, o trompe
7
xa de remeter ao próprio método que caracterizou a atuação de David Neves l’oeil, o sussurro são as saídas adotadas. Um filme verdadeiramente realista, David E. Neves. “Da chanchada
como crítico e cronista de cinema. Um trabalho que sempre oscilou entre o sem exageros ou cacoetes. A sugestão da realidade é o elemento que conta.8 ao Cinema Novo”. In: Op. cit.,
p. 14-16.
reconhecimento do espetáculo da objetividade cinematográfica e a fidelidade
à música dos sentidos e das impressões. Interior/exterior, cine-reportagem e Por isso, e já em 1962 – contrariando seus mestres Alex Viany e Paulo Emi- 8
David E. Neves. “Da chanchada
diário íntimo. Algo que transparece não só nas críticas como também nos fil- lio Salles Gomes –, a preferência de David Neves recai não no Nelson Perei- ao Cinema Novo”. In: Op. cit., p.
16. Grifos do autor.
mes que realizou, em especial no curta Mauro, Humberto (1966) e nos longas- ra dos Santos neorrealista de Rio, 40 graus (1955), e sim no realizador mais
2
Jean Epstein. “Bonjour cinéma -metragens Memórias de Helena (1969), Muito prazer (1979) e Fulaninha (1986). sincero e prosaico de Rio zona norte (1957), filme que estaria, no entender do 9
- Excertos”. In: Ismail Xavier David E. Neves. “Mandacaru
(org). A experiência do cinema:
A primeira fase do David crítico, militante do Cinema Novo e cineasta é, por crítico, distante do “hipercinematografismo”, isto é, de um “desejo extremado vermelho”. In: David E. Neves.
antologia. Rio de Janeiro: Graal/ exemplo, marcada por uma curiosa tensão entre a necessidade política das de ser claro-através-do-cinema”9. Anos mais tarde, David Neves retomaria a Telégrafo visual. Crítica amável
Embrafilme, 1983, p. 278. de cinema. Carlos Augusto
ideias claras e a sedução do pensamento impressionista. Por um lado, o com- análise de Rio zona norte, reforçando os valores de organicidade narrativa e de Calil (org). São Paulo: Editora
3 promisso ideológico de David Neves com o movimento cinematográfico do simplicidade da encenação: 34, 2004, p. 154. Originalmente
David E. Neves, “O dégradé publicado em 1962 (sem
impossível”. In: David E. Neves. qual fazia parte o conduzia ao elogio da radicalidade e à recusa dos meios- identificação de fonte).
Telégrafo visual. Crítica amável -tons, conforme se observa em um texto de 1962: “O brasileiro, culturalmente Do mural ambicioso que foi Rio, 40 graus [Nelson Pereira] passou a um filme com
de cinema. Carlos Augusto 10
Calil (org). São Paulo: Editora subdesenvolvido, é avesso ao dégradé. [...] No Brasil cinematográfico de hoje uma bela estrutura arredondada, fazendo uso expresso do flash-back como recurso David. E. Neves. “Rio zona norte.
34, 2004, p. 169. Originalmente Um filme esquecido”. Filme
publicado em O Metropolitano.
devem ser procurados os tons. É um primeiro estágio necessário, obrigatório, narrativo e, por outro lado, apto a se dedicar à sua personagem central, o composi- Cultura, nº 28. Rio de Janeiro:
Rio de Janeiro: 30 jun 1962. insubstituível”.3 A importância de filmes como Couro de gato (Joaquim Pedro tor Espírito da Luz Soares, extraordinariamente protagonizado por Grande Otelo.10 fev 1978, p. 91.

24 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 25
O elogio à estrutura narrativa circular, à centralidade do protagonista e ao ção em filmes como Couro de gato, Garrincha, alegria do povo (Joaquim Pedro
uso dos flash-backs remete, aparentemente, ao que se convencionou chamar de Andrade, 1963), Maioria absoluta (Leon Hirszman, 1964) e Integração racial
de linguagem “clássica”; mas não é bem nesse sentido que a argumentação (Paulo César Saraceni, 1965). A esse aprendizado técnico, somam-se os anos
de David Neves se encaminha. O que ao crítico interessa destacar, em relação em que David foi o responsável pelo Setor de Filmes Documentários da Di-
à Rio zona norte (e talvez também a uma concepção mais ampla do próprio retoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que havia sido criado a
cinema) é o investimento na “linha ideológica de simplificação e de economia partir de uma doação de equipamentos (uma câmera Arriflex 35 mm e um
de tempo”. É por esta razão que, segundo David Neves, o “rigor pressentido” gravador Nagra) pela Fundação Rockfeller. Filmes como Memórias do cangaço
de Rio zona norte só encontrará par em Vidas secas (1963), a obra-prima de (Paulo Gil Soares, 1963), Integração racial e O circo (Arnaldo Jabor, 1965) foram
Nelson Pereira dos Santos.11 realizados com o equipamento do S.F.D. e financiamento da Divisão de Difusão
Ou seja, o rigor de um filme não precisa residir no didatismo ou na afir- Cultural do Ministério das Relações Exteriores.
mação expressionista de algum método. Assim também, o realismo não está Em depoimento a Alex Viany David13 conta que Mauro, Humberto foi sendo
na pura e simples exposição de uma dada realidade à objetiva impassível de feito aos poucos, com o equipamento do Setor de Filmes Documentários e so-
uma câmera que ambiciona reorganizar o mundo. Necessário, antes, é en- bras de negativos de 35 mm colorido e preto-e-branco dos filmes ali produzi-
tender a extrema limitação do cineasta diante da realidade ficcional de seus dos. As filmagens eram realizadas nos finais de semana, na casa de Humberto
personagens. Não é jamais pela perfuração dessa camada fluída da diegese Mauro, na Tijuca, zona norte do Rio. Era um hábito de David visitar Humberto
(no fim das contas, um tiro n’água) que o realizador encontrará uma pretensa Mauro em sua casa, aos sábados, ou então no INCE (Instituto Nacional do Cine-
“verdade”; ao contrário, é na aceitação mesma das imprecisões, dos descen- ma Educativo), onde Mauro trabalhava desde 1936.
tramentos, dos encontros e desencontros de subjetividades (do cineasta, dos O interesse de David era justamente capturar o cotidiano do personagem-tí-
personagens, dos espectadores, do próprio crítico) que se poderá descobrir a tulo, fugindo do didatismo tradicional. Como explica a voz over do narrador, logo
sinceridade fundamental, cara aos verdadeiros artistas. no princípio do filme, a respeito da abordagem sobre Humberto Mauro: “Não se
No limite, para se chegar a essa sinceridade, torna-se necessário romper pretendeu fazer um levantamento detalhado de sua vida. São as impressões que
com o próprio Cinema Novo, na medida em que o movimento se estabiliza no vão contar.” A busca pela espontaneidade se dava dentro das coordenadas de
que David Neves chamará, em 1973, de “cacoetes”: um cinema direto possível ao Brasil dos anos 1960, o que significava adaptar-se
às condições técnicas e tecnológicas daquele momento, condições que, por sua
Fomos o tempo todo idiotas da objetividade, sejamos pelo menos idiotas da sub- vez, impossibilitavam em parte a concretização desse ideal.14
jetividade. Nesse sentido, o Glauber [Rocha] e o José Celso [Martinez Correia] e David Neves se refere a Mauro, Humberto como uma espécie de “coleção
13
a dramaturgia clássica foram funestos ao cinema brasileiro. [...] Se você juntar de fotografias animadas”.15 Embora com resultados muito diversos, essa feliz David E. Neves, entrevista a
esses três elementos e examinar alguns filmes feitos de 1964 a 1971, verá que definição faz lembrar a já comentada série de Gérard Courant: Cinématon. Es- Alex Viany. “1983: David Neves”.
In: Alex Viany. O processo do
tenho minhas razões. Essas influências desvirtuam o cinema, solenizam em ex- sencial no projeto de David, contudo, era conseguir a proximidade necessária Cinema Novo. José Carlos
cesso o relacionamento do autor com o filme.12 à captação da personalidade através da espontaneidade. E é a partir de uma Avellar (org.). Rio de Janeiro:
Aeroplano, 1999, p. 273.
compreensão muito particular da dialética entre proximidade e distância que
A passagem do David-crítico ao David-cineasta não deixará de carregar David Neves forja, em Mauro, Humberto, estratégias de encenação e de supe- 14
Cf. David E. Neves. “A
essa tensão entre compromisso político e originalidade individual, entre a ração de entraves técnicos que, pela criatividade de suas soluções, merecem descoberta da espontaneidade
(Breve histórico do cinema-
11
expressão e a impressão, o concreto e o abstrato, o aparato mecânico e fo- aqui ser observadas mais de perto. direto no Brasil)”. In: Flávio
David E. Neves. “Rio zona norte. toquímico e o fenômeno espiritual de figuração do real. Não deve nos deixar Em Mauro, Humberto – como de resto na maior parte dos filmes brasileiros Moreira da Costa (org.). Cinema
Um filme esquecido”, cit., p. 91. moderno. Cinema novo. Rio de
indiferentes o fato de que essa passagem não se fez sem o cumprimento de dos anos 1960 afinados à corrente do cinéma vérité – era fundamental con- Janeiro: José Álvaro Editor,
12 certas etapas profissionais, talvez necessárias a um temperamento mais re- quistar a cumplicidade do espectador, fazendo com que ele acreditasse na in- 1966, pp. 253-278.
David E. Neves. “Idiotas da
subjetividade”. In: David E. cluso, como o de David Neves. timidade da cena filmada pelo cineasta. Mesmo quando se tratasse de depoi- 15
Neves. Op.cit, pp. 225-226. Antes de dirigir seu primeiro curta, Mauro, Humberto (1966), David foi assis- mentos formais para a câmera. Certos procedimentos, para tanto, deveriam David E. Neves, entrevista a
Originalmente publicado em Alex Viany. “1983: David Neves”,
Opinião. Rio de Janeiro: 1973. tente de fotografia, fotógrafo, assistente de direção e coordenador de produ- ser questionados, quando não francamente recusados. Um deles, que particu- cit., p. 275.

26 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 27
larmente nos interessa, era o uso da teleobjetiva. Por um lado, o foco em longa como algo de secretamente religioso – que não pode, portanto, deixar de in-
distância possibilitava que o documentarista capturasse de bem longe certas cluir, entre seus elementos centrais, o sagrado e o profano.
reações ou movimentos, sem que o sujeito filmado notasse a intervenção da “Um filme sentimental”. Com esse letreiro, David Neves define seu longa-
câmera. Mas isso tinha um preço: a configuração mesma da distância entre a -metragem de estreia, Memória de Helena. Não deixa de ser curioso observar
câmera e o personagem (evidenciada na imagem pelo plano de fundo fora de o quanto a noção de proximidade e de distanciamento impregna a realização
foco), o que, no limite, negava em termos concretos a proximidade almejada desse filme incomum, o que tanto pode ser observado pelos filminhos casei-
pelo ideal estético e, pior ainda, poderia tornar exótico o tema tratado.16 ros de Helena (Rosa Maria Penna), quanto pelo jogo interior/exterior tão bem
Por outro lado, havia o problema do som direto. Em um momento em que a expresso pela sequência do passeio de táxi de Helena pelas ruas do Rio (nos
captação da fala em sincronismo era tão importante para o projeto da espon- quais não vemos a paisagem que ela vê) e pela cena em que, de dentro de sua
taneidade quanto a proximidade com os corpos filmados, conciliar a gravação casa, olhando pela janela, ela enxerga do lado de fora - como num delírio ou
do som do Nagra com planos próximos realizados por câmeras 35 mm sem numa projeção de lanterna mágica - as pessoas que tiveram mais importância
blimp, isto é, extremamente ruidosas, era algo bastante complicado de ser em sua vida: elas passam, olham ou acenam para Helena, demarcando o es-
executado, a menos que a câmera estivesse bem longe, a uma distância se- paço exterior e interior da vida sentimental/amorosa da personagem. De fato,
gura para que o ruído do motor não fosse capturado pelo microfone, pois isto este é o drama de Helena: ela recusa o mundo exterior, não por medo de se
obviamente atrapalharia o registro da fala. Diante desse impasse, o documen- entregar a ele, mas por já possuí-lo em demasia.
tarista tinha duas alternativas: ou mantinha-se afastado e filmava em plano Seria um equívoco acreditar que, nos filmes de David Neves, o que deter-
de conjunto o entrevistado, assumindo a presença, no interior do quadro, de mina a intimidade com o personagem (ou sua tradução em sentimentos) seja
parte da equipe de filmagem (diretor e técnico de som)17, ou filmava-se a uma apenas o uso do plano próximo. Em Memória de Helena, tão tocante quanto os
longa distância mas, com o uso da teleobjetiva, enquadrava-se em plano pró- closes em preto e branco dos filminhos caseiros de Helena é a cena de seu
ximo a figura que estivesse falando. Nos dois casos, porém, a sensação da suicídio, filmada em plano geral. Definir a distância exata da câmera é, de fato,
distância entre o cineasta e o personagem permaneceria. o problema principal com o qual deve lidar o cineasta, e isso inclui a percep-
16 Em Mauro, Humberto, David Neves procurou solucionar esse problema. O ção do quanto estar próximo ou distante em relação aos atores/personagens
Isso, em parte, explica as filme conta com depoimentos de Alex Viany, Glauber Rocha e do próprio Hum- ajuda ou atrapalha na performance dos mesmos.
duras críticas que Gustavo
Dahl dirige ao filme Garrincha, berto Mauro. Ou seja, o realizador teve de se defrontar com o jogo de proximi- Basta pensarmos nas longas cenas dialogadas de Muito prazer (filmado em
alegria do povo, em carta a dade/distância acima referido, uma vez que os depoimentos foram filmados 16 mm, o que facilitou bastante esse tipo de encenação), em particular o bate-
Glauber Rocha, 1963: “Num
cinema antiespetacular em som direto. Assumindo o uso do primeiro plano com teleobjetiva (o que -boca na cozinha entre Octávio Augusto e Ítala Nandi; ou no magistral plano-
[Joaquim Pedro] procurou o
pitoresco, com os primeiros
o permitiria gravar em sincronismo o som das falas), David faz com que os -sequência de Fulaninha, no qual Canela (Roberto Bonfim) xinga e escracha
planos no estádio [...] você não entrevistados se posicionem sempre rentes ou levemente perpendiculares a longamente os personagens que o cercam, seus amigos e sua mulher Sulami-
ataca a realidade para fazer
montagem, nem filma o povo um fundo próximo (uma parede, no caso de Viany e Mauro, ou, como ocorre ta (Zaira Zambelli). Nessa cena, a câmera fixa colocada a uma distância corre-
de teleobjetiva. Você pega a com Glauber Rocha, o cartaz de seu filme Deus e o diabo na terra do sol, 1964). ta – nem muito perto, nem muito longe, acima dos personagens – cria um es-
câmera e começa a andar no
meio dele, com ele, esta é a O fundo colado à figura que fala anula a sensação de distância provocada pelo paço de extravasamento absolutamente necessário às energias represadas.
vantagem da câmera que anda”. plano de fundo em foco difuso, típico das tomadas em teleobjetiva; por outro A proximidade e o jogo de olhares estabelecido entre câmera e retratado
Citado em Luciana Corrêa
de Araújo. Joaquim Pedro de lado, com esse recurso, a ilusão de proximidade entre a câmera e o depoente em David Neves, de Gérard Courant – para voltarmos à referência inicial do
Andrade. Primeiros tempos.
São Paulo: Alameda, 2013,
reforça o aspecto de intimidade almejado por esse “novo realismo”. texto – nos ajudam a pensar sobre a própria relação entre David Neves e o
p. 148. O cinema de David Neves – isto é, o cinema para David Neves – parece situ- cinema. Uma questão de distância focal e de duração do movimento, que, no
17 ar-se a essa meia-distância entre a proximidade e o recuo, um procedimento entanto, não se resume à mera instrumentalização de um aparato técnico,
Veja-se, por exemplo, certas que condiz não só com o retraimento de sua personalidade como também mas ao problema fundamental do ser e do existir.
passagens de Memórias
do cangaço e de Brasília, com o respeito que ele sente pela vida interior de seus personagens, que deve Assim, o olhar titubeante de David Neves diante da objetiva (recusando o
contradições de uma cidade sempre, de algum modo, permanecer parcialmente intocada. Postura que, confronto, olhando de soslaio, desafiando ou afirmando o poder expressivo
nova (Joaquim Pedro de
Andrade, 1967). de certa forma, revela a percepção do cinema como um fenômeno espiritual, do registro impresso) vai construindo um acordo de desarmonia perene – e,

28 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 29
por isso mesmo, cômica – entre a implacabilidade da máquina de filmar e a
fragilidade da existência humana. Num piscar de olhos, ou no gesto de encarar
fixamente a câmera, tendo à frente dos olhos a sinuosa e difusa fumaça de um
cigarro provisório, o que resta são as marcas do desaparecimento de si mes-
mo e, ao mesmo tempo, a ressurreição: David E. Neves, impresso em cinema.

David Neves e o Cinema Novo


Arthur Autran
Pesquisador e professor da UFSCAR. Autor dos livros “Pensamento Industrial
aCinematográfico Brasileiro” e “Alex Viany: Crítico e Historiador”.

30 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES


O Cinema Novo permanece insuficientemente estudado pela nossa historio- ponsabilidade pela pacificação de eventuais disputas dentro do grupo, coisa que
grafia, em que pese o fato dele ser constantemente citado e de alguns direto- sabia fazer com extrema habilidade. O que Leon Hirszman conduzia politica-
mente, David completava no plano pessoal dos sentimentos e das idiossincra-
res – notadamente Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos – já contarem
sias, com o objetivo de manter a união do que considerávamos ser uma família.3
com diversas análises de suas obras com elevado grau de profundidade.
No entanto, a história do Cinema Novo como movimento ainda merece muita Se Leon Hirzsman foi a figura política do Cinema Novo, Nelson Pereira dos
discussão, já que vários dos seus realizadores têm sido pouquíssimo estuda- Santos a figura paternal e inspiradora, Glauber Rocha o aglutinador, agitador
dos, como é o caso de David Neves – uma das suas figuras de proa e de primei- e teórico e Paulo Emílio Salles Gomes e Alex Viany os mestres da história do
cinema, coube a David Neves esse papel difícil de decifrar - mas que o texto de
ra hora. Esse texto busca apontar para o papel de David Neves como um dos
Cacá Diegues taquigrafa tão bem -, de “confidente” e pessoa que buscava (re)
articuladores principais do Cinema Novo, possuindo como recorte temporal o unir os amigos, especialmente após as brigas.
período do final dos 1950 até o início dos 1970. Ao longo dos anos 1960, David Neves continuou a atuar como crítico de ci-
Em 1957, o carioca David Neves, então aluno no curso de Direito de PUC, nema em alguns dos principais jornais do país – Correio da Manhã, Jornal do
foi convidado, por Paulo Alberto Monteiro de Barros – mais conhecido pelo Brasil, Diário Carioca e O Estado de S. Paulo – de par com sua atividade na práti-
pseudônimo que adotaria posteriormente, Artur da Távola -, para ser crítico ca cinematográfica como assistente de direção – em Garrincha, alegria do povo
de cinema no jornal O Metropolitano, órgão da União Metropolitana dos Estu- (Joaquim Pedro de Andrade, 1963) –, coordenador de produção – em Maioria
dantes. A partir de então, passou a frequentar a Cinemateca do MAM, cujas absoluta (Leon Hirszman, 1964) – ou fotógrafo – em Integração racial (Paulo
sessões eram realizadas na sede da ABI (Associação Brasileira de Imprensa), César Saraceni, 1964).
começando, assim, a se inserir no ambiente cinematográfico. Também integrou organismos estatais, como a Diretoria do Patrimônio His-
Pouco depois, David começou a experimentar a prática cinematográfica, tórico e Artístico Nacional, o setor cultural do Itamaraty e a CAIC (Comissão
fazendo a fotografia de curtas-metragens em 16 mm: Perseguição (1958), de de Auxílio à Indústria Cinematográfica). No primeiro, David trabalhou no setor
Paulo Perdigão, Fuga (1960) e Domingo (1960) - esses dois últimos de Cacá cinematográfico, que possuía uma moviola e um gravador de som Nagra, equi-
Diegues, que conhecera na Rua da Matriz, em Botafogo, onde ambos moravam pamentos que possibilitaram a realização de diversos documentários impor-
e se tornaram amigos. Ainda em 1960, trabalhou como assistente de câmera tantes, tais como o já citado Integração racial ou Memória do cangaço (Paulo Gil
em Couro de gato, curta dirigido por Joaquim Pedro de Andrade e fotografado Soares, 1964); no segundo órgão, atuou junto ao diplomata Arnaldo Carrilho
por Mário Carneiro. Aqui, novamente, é possível constatar o peso das relações na difusão internacional de filmes; e o terceiro foi uma iniciativa do antigo
pessoais, pois Joaquim Pedro travou conhecimento com David por intermé- estado da Guanabara, visando a colaborar no financiamento das produções.
dio de Alexandre Eulálio, intelectual primo do jovem crítico. Conforme Carlos Em todos esses órgãos, sempre batalhou em prol do Cinema Novo, então em
Augusto Calil anota, Alexandre Eulálio, Joaquim Pedro e Paulo Emílio Salles plena luta pela sua afirmação no campo cultural. Essa luta, que é dura pela
Gomes foram muito importantes na formação de David Neves.1 disputa por recursos financeiros e reconhecimento público, tornou-se, naque-
1
CALIL, Carlos Augusto. O jardim Paulo Antônio Paranaguá aponta Couro de gato, Arraial do Cabo (Paulo César le período, mais aguda devido ao forte enfrentamento político-ideológico entre
particular de David. In: NEVES, Saraceni e Mário Carneiro, 1959) e Barravento (Glauber Rocha, 1961) como os
David. Telégrafo visual – Crítica esquerda e direita que marcou os anos 1960 e que, a partir de 1964, com o
amável de cinema. Organizado “primeiros passos do Cinema Novo”.2 Começava aí uma das aventuras mais golpe militar, tornou a vida brasileira sombria.
por Carlos Augusto Calil. São
Paulo: Editora 34, 2004. P. 10. importantes da história do nosso cinema e que teria em David Neves um arti- David Neves também viajou frequentemente à Europa, estabelecendo rela-
2
culador fundamental. Mas essa articulação possuía caráter particular, assina- ções com intelectuais, críticos de cinema e diretores, com destaque para a ami-
PARANAGUÁ, Paulo Antônio. lado por Cacá Diegues: zade com o cineasta italiano Gianni Amico. E entre os amigos europeus é impos- 3
Cinema Novo. In: RAMOS, DIEGUES, Cacá. Vida de cinema
Fernão; MIRANDA, Luiz Felipe sível não citar François Truffaut, que conhecera no Brasil em 1962 e cujos filmes – Antes, durante e depois do
(orgs.). Enciclopédia do cinema Fraternal, interessado pelo outro, solidário e sempre disposto a ouvir, era uma Cinema Novo. Rio de Janeiro:
brasileiro. 3ª Ed. São Paulo: admirava a ponto de tomá-los como influência importante na sua obra futura. Objetiva, 2014. P. 62.
Senac, 2012. P. 178. espécie de confidente oficial do Cinema Novo, assumindo muitas vezes a res-

32 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 33
Talvez o exemplo mais representativo da militância de David Neves pelo Nacional de Cinema – de melhor diretor. Ambientado entre o Rio de Janeiro e
movimento tenha sido o seu livro Cinema Novo no Brasil, editado pela Vozes em Diamantina (MG), os créditos iniciais o anunciam como “um filme sentimental”,
1966. Nesse texto, o autor busca traçar algumas das principais características pois ele aborda a educação sentimental da personagem-título – interpreta-
do Cinema Novo, demarcando sua diferença em relação a outros grupos ou da por Rosa Maria Penna –, jovem tímida e indefinida sobre seus interesses
momentos do cinema brasileiro, bem como os principais problemas enfrenta- amorosos. Com uma estrutura narrativa marcadamente moderna, a película é
dos. A perspectiva do livro não possui nenhuma distância crítica e aí reside o atravessada pelos “filmezinhos” feitos por Helena ou pelo seu tio. Há também
seu principal defeito e, ao mesmo tempo, virtude. Logo de início, David assim citações de filmes brasileiros, em especial da obra de Humberto Mauro – que
define o seu objeto: faz um pequeno papel, justamente como o tio de Helena.
É a partir desse momento que o Cinema Novo, como movimento, começava
... ele [o Cinema Novo] é um estado de espírito, um estado revolucionário de a se dissolver. Se, como em outros setores da cultura brasileira, foi possível
espírito, relativamente às coisas de nossa cinematografia.4 resistir ao golpe militar de 1964, com o AI-5, em 1968, a situação política e cul-
tural deteriorou-se muito com o aumento da censura, dos exílios, das prisões
O livro é um importante documento da ideologia do grupo. Ele expressa, por
e da tortura. O projeto coletivo do Cinema Novo encontra um beco sem saída
exemplo, o elitismo que impregnou o Cinema Novo quando afirma que o pú-
e se tratava de cada diretor buscar, ao menos, continuar a sua obra. No início
blico, caracterizado como “mal-informado e comodista”, seria “um obstáculo a
dos anos 1970, o movimento esvai-se, embora seus quadros continuem a se
transpor”.5 Mas também contém germes de interpretação da “poética” do mo-
articular no âmbito da política cinematográfica.
vimento, que são deveras interessantes, tais como a constatação de que ele
Desde o final dos anos 1960, David Neves passou a publicar apenas de for-
seria marcado “por uma unidade dentro da diversidade estilística”, de maneira
ma esparsa textos críticos e deixou de lado o trabalho nas instituições cultu-
a destacar a extrema variedade de formas cinematográficas constituídas por
rais, concentrando-se na sua obra. Nesse estertor do Cinema Novo, dirigiu o
diretores como Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha e Paulo César Sa-
longa Lúcia McCartney – Uma garota de programa (1970), adaptação de dois
raceni6, embora possamos dizer que o desejo de revolucionar a linguagem
contos de Rubem Fonseca, com Adriana Prieto e Paulo Villaça no elenco. Neste
cinematográfica e de mudar o Brasil cristalizava a tal unidade.
filme, ambientado no Rio de Janeiro, novamente temos referências à história
A dedicação de David Neves ao projeto coletivo do Cinema Novo parece ser uma
do cinema por meio de partes em preto e branco, com letreiros sobrepostos
das causas que o levaram à direção tardiamente. Somente em 1968 dirigiu os
à imagem e sem diálogos na banda sonora. Em termos narrativos, o filme
seus primeiros curtas-metragens: Mauro, Humberto; Colagem; Jaguar e Vinicius de
também experimenta, ao articular por meio da mesma atriz as duas histórias
4 Moraes. São documentários de valor desigual, dos quais se destaca, sobretudo, o
NEVES, David. Introdução ao que o compõem.
Cinema Novo. In: Telégrafo primeiro. Acerca do grande pioneiro Humberto Mauro, ele busca demonstrar que
visual – Crítica amável de
Paulo Antônio Paranaguá, no verbete citado, aponta a dificuldade de se es-
cinema. Organizado por Carlos
as raízes do Cinema Novo – e do próprio cinema brasileiro – se encontrariam na
tabelecer uma datação para o fim do Cinema Novo, mas menciona a “implosão
Augusto Calil. São Paulo: obra desse diretor. A proposta vincula-se claramente ao que buscou fazer Glauber
Editora 34, 2004. P. 204. Nessa do grupo”. Ela se configura entre o final dos anos 1960 e o início dos 1970,
coletânea de textos de David Rocha no livro Revisão crítica do cinema brasileiro e, não por acaso, o realizador
Neves foram republicadas tendo como filme mais tardio mencionado por esse autor Uirá, um índio em
partes de Cinema Novo no baiano presta um depoimento sobre a importância de Mauro, em um plano que
busca de Deus (Gustavo Dahl, 1973).
Brasil. tem como fundo o cartaz de Deus e o diabo na terra do sol (1964).
A amizade de David Neves com diversos integrantes do Cinema Novo per-
5 Logo no ano seguinte, lançou o seu primeiro longa-metragem, desta feita
NEVES, David. Um obstáculo maneceu, o que não havia mais era um movimento orgânico, e isso devido à
a transpor: o público. In: Op. um filme de ficção, Memória de Helena, corroteirizado por Paulo Emílio Salles
cit. P. 210.
brutal repressão promovida pela ditadura militar e ao sucessivo empobreci-
Gomes. O filme teve reconhecimento de crítica e foi premiado como melhor
mento cultural do país. Por outro lado, com a abertura política lenta e gradual
6 filme no V Festival de Brasília e com os prêmios Golfinho de Prata – conce-
NEVES, David. Poética do do governo Ernesto Geisel, que incluiu a tomada da Embrafilme por cineastas
Cinema Novo. In: Op. cit. P. 213. dido pelo MIS do Rio de Janeiro – e Coruja de Ouro – concedido pelo Instituto
ligados ao Cinema Novo, os conflitos específicos da política cinematográfica

34 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 35
tomaram vulto dentro do próprio grupo. Até mesmo o diplomático David Neves
chegou a publicar, em 1981, texto sobre o que chamou “Cinema Novo-rico”, no
qual critica os grandes orçamentos de alguns filmes de então e seus pressu-
postos industriais e de mercado7.
Apesar das lutas no campo cinematográfico, a imagem de David Neves não
foi maculada. Em Revolução do Cinema Novo, Glauber Rocha escreveu:

A paixão de David por todos cinemanovistas e destes pelo suave, dedicado, inte-
ligente e excitante crítico cineasta é a explicação do amor que a todos até hoje
nos une na máxima varguista: “Só o Amor constrói pra [sic] Eternidade”.8

7 Símbolo desse amor entre os integrantes do Cinema Novo é a participação


NEVES, David. Cinema-Novo de David em uma ponta em um dos episódios de Veja esta canção (1994), filme
rico, Cinema Novo-rico. In: Op.
cit. P. 261-264. realizado por Cacá Diegues no contexto da grande crise que o cinema brasilei-
8 ro atravessou no início dos anos 1990 devido à política de terra arrasada para
ROCHA, Glauber. Revolução do
Cinema Novo. Rio de Janeiro:
o campo da cultura do governo de Fernando Collor de Mello.
Alhambra / Embrafilme, 1981. Foi nesse momento difícil para o nosso cinema que David Neves adoeceu,
P. 378-379.
vindo a falecer em 1994, sem chegar a dirigir a adaptação da obra de Lygia
9
A produção de As meninas teve Fagundes Telles, As meninas9. A sua ligação umbilical com o Cinema Novo era
continuidade e o projeto foi tão forte que, quando da morte do cineasta, o diplomata Arnaldo Carrilho, seu
dirigido por Emiliano Ribeiro. O
filme foi lançado em 1995, amigo, publicou um texto intitulado “Morreu o Cinema Novo”.

O Cinema da Indução
Hernani Heffner

Chefe de Preservação da Cinemateca do MAM-RIO, Professor de Cinema da PUC-RIO


e Curador do Festival CineMúsica de Conservatória.

36 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 37
Integrante de primeira hora do grupo que viria a formar o Cinema Novo, David exatamente filiado a vertentes emanadas de um ou do outro. Suas indicações
Neves assumiu muito rapidamente um múltiplo trabalho de bastidores, inte- quanto a retomar o Alex Viany e o Nelson Pereira dos Santos dos anos 50
grando equipes, promovendo e defendendo o movimento, incentivando lite- fornecem um lugar, o Rio de Janeiro, e um tempo, um momento sempre ligei-
ralmente todos os que quisessem filmar por um motivo qualquer. Tanta ação ramente anterior do qual procura intuir o prosseguimento – a permanência ou
positiva, mesmo criando uma imagem simpática, acabaria por ser contrapro- não do já-foi no presente. Mas não o inserem no realismo crítico e nacionalista
ducente. Mesmo escrevendo sobre cinema a partir de 1957, sua produção li- praticado pelos dois, ou como queria o Viany historiador, dentro do “programa
terária nunca teve o reconhecimento ou a repercussão reservada aos seus estético e temático para um futuro cinema popular-brasileiro”.
pares. Desde o tempo de O Metropolitano, “Davizinho”, como era conhecido, David parece tangenciar essas armadilhas ideológicas, embora venha a de-
sempre fez um balanço de suas atividades, encontros, preferências, filmes e nunciá-las mais à frente com lucidez. São ferramentas táticas e políticas, utili-
idéias. A escrita, porém, era rápida, episódica, um pouco ao sabor dos lança- zadas vez por outra, mas submetidas a outra lógica, ou mais concretamente a
mentos e acontecimentos cinematográficos. Daí as caracterizações de “leve”, um ponto de partida específico. É possível encontrar cada uma dessas e de ou-
“solta”, “descompromissada”... Uma posição mais distintiva lhe foi atribuída tras facetas na maioria dos textos críticos e teóricos, assim como nos filmes,
por Paulo César Saraceni – “O Cinema Novo é Glauber em uma ponta e Da- mas mitigadas por um ponto de vista que se considerava sempre “subjetivo”.
vid Neves na outra” –, colocando-o como linha de frente da revolução estética
em curso, mas a apreciação nunca foi interpretada devidamente, soando ora “Sempre me chama a atenção as atividades de engenharia topográfica onde
como retaguarda, ora como base, ora como pura práxis frente à torrente de haja teodolitos ou outros instrumentos óticos montados sobre tripé. É que em
tudo elas dão a impressão de uma equipe cinematográfica que procura objetivar
reflexões glauberiana. O estilo literário, considerado assim “ligeiro” e sem
com nitidez e equilíbrio algum projeto subjetivo” (Jornal do Brasil, 15/03/1970).
afetação, minou a percepção da condição vanguardista, que incluía uma es-
pécie de olhar crítico e dialético para com o próprio grupo, seus caminhos e
Esta posição, longe de ser mais uma metáfora passageira para o dispo-
descaminhos, e para consigo mesmo.
sitivo cinema, traz embutida um importante deslocamento, recusando uma
Por outro lado, a eterna pecha de cineasta desleixado, relaxado, “porco”,
suposta força natural do lado documental do cinema. Considerado o “ponto
pesou quase na mesma medida, senão até mesmo mais, dada a prolixidade
de equilíbrio”, o “articulador dos bastidores” e o “pau-pra-toda-obra” do Ci-
e polivalência fílmica de David – vamos assumir a corriqueira intimidade com
nema Novo, a revisão de suas reflexões aponta uma lúcida e surpreendente
que todos o tratam, mesmo não o tendo encontrado mais do que duas vezes
avaliação das opções estéticas em jogo. Além disso, em vez de assumir a ima-
na vida. Embora o estilo “grosseiro” também fosse atribuído na mesma época,
gem de narrador triunfante dos feitos do grupo, posiciona-se como um “irmão
por exemplo, a um Pier Paolo Pasolini, aspecto que não escapou à conside-
mais velho” que comenta, critica, esbraveja, se distancia, sempre com carinho,
ração positiva de Glauber Rocha e do próprio David, o brasileiro parecia não
generosidade e firmeza. Uma espécie de super-ego que não quer corrigir os
exibir nem a gravidade dos temas, nem a formulação teórica exuberante (o
desvios, pecados, perversões, historicamente inevitáveis, apenas registrá-los
“cinema de poesia” pasoliniano), necessários à reconsideração das supostas
e elocubrá-los em sua dialética irrupção. Em rápida olhada, era basicamente
incipiência e incompetência expressivas. Contudo, no seu ritmo hiperativo
um trabalho em torno dos estereótipos midiáticos que iam se formando com a
(para os outros) e ao mesmo tempo lento (para si), foi tecendo aspectos de
consagração dos filmes, dos cineastas, do Cinema Novo. De forma mais aguda,
uma hermenêutica do cinema brasileiro, ou ainda de uma teoria do novo cine-
um repensar constante de posições artísticas, pessoais e coletivas, em meio
ma, e até mesmo aspirou a uma ontologia da arte cinematográfica. No início
ao turbilhão da história.
muitas de suas idéias são debitárias do pensamento de Paulo Emílio Sales
É difícil seguir o pensamento de David Neves em sua profusão textual ainda
Gomes, sobretudo a famosa “incompetência criativa de copiar”, e de Humberto
não de todo recolhida e sistematizada, em que pese as coletâneas “Telégrafo
Mauro, de onde retira o modelo “artesanal” de produção e referências para a
Visual: crítica amável de cinema” e “Cartas do meu bar”. Nos limites deste
proposição pauloemiliana de uma “poética das coisas”. Mas já aqui não parece

38 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 39
pequeno texto serão considerados cinco artigos e duas entrevistas do reali- sobretudo porque criou um sistema brasileiro de produção, esnobando concei-
zador de Memória de Helena: “Guimarães Rosa e o cinema” (O Estado de São tos e condicionamentos vindos do exterior”.

Paulo, 27/01/1968), “Memória de Davi – Entrevista a Miriam Alencar” (Jornal


do Brasil, 15/03/1970), “Prêmio para o ‘Cinema Novo’” (Correrio da Manhã, Não que David assumisse uma perspectiva nacionalista estrita, ao contrá-
09/01/1971), “Um novo gênero à vista: o ‘disaster film’” (Ganga bruta, feverei- rio. Ainda que entendesse a função política e pragmática dessa corrente, sem-
ro 1979), “Vista para o mar” (O Pasquim, 22/01/1980), “A lua vista da Terra” (O pre denunciou a “mitologia do nacional”, preterindo-a ao machadiano “senti-
Dia, 13/04/1980) e “Cinema-Novo Rico Cinema Novo-Rico” (Luz e Ação, junho mento nacional”, perspectiva sobejamente mais complexa e dialética. Isto lhe
1981). O que se delineia neste pequeno conjunto é uma “teoria da história do permitia colocar lado a lado Joaquim Pedro de Andrade e Luis Buñuel, Hum-
cinema brasileiro”, que é ao mesmo tempo a crítica do presente histórico e berto Mauro e Robert Bresson, Júlio Bressane e Alfred Hitchcock, os cineastas
a tentativa de formulação de novos caminhos, cruzada com uma ontologia e de predileção.
uma teoria estética do cinema, postas a serviço de um modelo de cinema que Uma outra forma de ver a autenticidade passava por uma espécie de voca-
se queria “meio marginal”, “meio documental”, “meio casual”. ção original do cinema, resumida no cinema dos Irmãos Lumière, cuja “ânsia
De fato, desde o início David se considerava um “teórico”, isto é, um homem artística [deles e de seus seguidores] de retratar a realidade ultrapassava de
do pensamento e não da realização. Somente em meados dos anos 1960, tal muito os simples conceitos realizados para se cristalizarem no delírio do Re-
caracterização começará a ceder vez às imprecisas “ensaista” e “cronista”, gistro”. Para David, filmar por si só já implicava uma ultrapassagem ou deslo-
postas em segundo plano frente à posição agora dominante de cineasta, ainda camento do real que, no entanto, eram contidos por essa aspiração regressiva,
que a reflexão mais empenhada não saia de cena, em um campo ou outro. Nas grifada por ele. Ainda assim, havia virtudes nessa ideologia de “fascínio pela
palavras rememorativas da entrevista de 1970: realidade adjacente”, como a designava Joaquim Pedro, de acordo com a in-
dicação davidiana. Ela construíra a vertente mais significativa da história do
“Minha concepção de cinema brasileiro, desde que me filiei a êle em 1958, cinema e vivificara até mesmo entre nós. Dos Lumière ao Neo-realismo Italia-
permaneceu em linhas gerais, inalterada. Talvez ela possa ser resumida numa no havia como que uma linha evolutiva, transplantada para solo local, na sua
frase: uma necessidade obsessiva de autenticidade. Não posso negar que ela visão, por Alex Viany e Nelson Pereira dos Santos. Até mesmo o Cinema Novo,
vem sendo, de uma forma ou de outra, satisfeita através dêsses anos, apesar de
responsável pela “re-renovação” do cinema brasileiro, teria tido uma “fase Lu-
alguns renitentes abusos no campo da gratuidade e do artificialismo”.
mière” em seus primeiros tempos, em mais uma caracterização de Joaquim
Pedro. A periodização, segundo David, envolveria ainda uma fase ficcional do
Essa “autenticidade” admite várias aproximações na medida em que se re-
Cinema Novo e um “cinema-um-pouco-sem-nome-de-hoje” (anos 1970 e 80),
veste, por exemplo, da dimensão “nacional”. O elogio do ponto de vista local
por vezes também denominado “novo cinema ‘envernizado’”, que englobava
perpassa vários de seus textos mais antigos, como no comentário sobre as
“superpornochachadas” e “disasters films”, ou seja, um cinema de mercado
relações entre Guimarães Rosa e o Cinema Novo:
ou de grande espetáculo (fadado ao fracasso, na avaliação davidiana), quase
sempre de forte apelo erótico.
“A impressão que me vinha parecia ser a de gratidão do escritor para aquêle
[Glauber Rocha em Deus e o Diabo na Terra do Sol] que, sem basear-se direta-
O Realismo, portanto, tinha a força do próprio cinema e em solo brasileiro
mente nos seus escritos, buscara profundamente no seu estilo sincopado um conseguira engendrar um caminho significativo. Para David, em relação ao ci-
modo de ver brasileiro para problemas exclusivamente brasileiros”. nema brasileiro, isto se traduzia em que a “grande constante tem sido a visão
de conjunto, o mural”. Filmes como Rio, Zona Norte, Cinco Vezes Favela e Vidas
Ou na recordação de seu primeiro mestre: Secas expressavam esse compromisso ideológico e esse retrato estético. O
envolvimento inicial na realização documental (“[onde] aprendi a trabalhar
“Humberto Mauro é meu patrono porque tirou tudo de uma soberba intuição e praticamente sòzinho”) provavelmente reforçou este credo, mas pouco de-

40 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 41
pois de publicar Cinema Novo no Brasil (1966), reviu suas posições no artigo Cartney e Um amor de mulher, este filmado, montado, mas não finalizado): a
sobre Guimarães Rosa. O conselho do escritor – “Diga ao Glauber que Deus condição feminina reprimida, explorada e libertada, respectivamente. Apesar
está nos detalhes” – e a recomendação do guru Paulo Emílio – fazer filmes da caracterização estética desses filmes como “meio marginais” e não obras
sobre “coisas e não sôbre idéias” – se tornaram um “leit-motiv” e uma “luz” cinemanovistas. E apesar do rompimento conceitual com o próprio cinema
“de todas as minhas considerações acerca do cinema brasileiro”. Mais do que moderno brasileiro e internacional, as sendas abertas não progridem e uma
isso, se tornaram a base de sua ruptura com o passado (histórico, ideológico, crise se instala na sua criação.
estético), agora revisto deste lugar peculiar que é o presente imediato e sob A propensão em ser a versão erudita de um cinema inocente esbarra em
uma perspectiva por assim dizer “espiritual”. Em síntese: “O cinema sendo uma barreira invisível e instransponível, elaborada desta maneira obscura
(sic) o ponto de contato entre a realidade e a magia, [uma] arte não codificada ainda ao tempo do lançamento de Memória de Helena:
onde tudo é permitido, inclusive a presença mágica do mundo”. Dito de forma
menos conceitual, “O meu cinema só almeja esta perfeição [bressaniana]. Sou entretanto muito ten-
so para não tomar certas precauções, que me bloqueiam a liberdade procurada.
“Quando passei à realização, em 1966, depois de alguns anos de relutância, O lado cultura cinematográfica, por sua vez, me faz sempre homenagear ou re-
descobri ao vivo que não é pela teoria, não é na ideologia, não é na riqueza verenciar alguém (é uma tendência que não renego) e surgem então os compro-
de produção que se extrai de uma história essa almejada autenticidade. Mas missos que definiriam meu estilo como nostálgico, apesar de achar vaga essa
é um terrível corpo-a-corpo com êsse fugidio meio de expressão. O cinema é palavra. Geralmente (sempre quando estou em dúvida) adoto uma linha de ação
uma permanente aferição da realidade com nosso estado de espírito. (...) e que poderia ser resumida na frase a retomada oportuna do convencional e fico,
êsse corpo-a-corpo só começa no momento de rodar a primeira cena, quando o por isso mesmo, beirando perigosamente o simples” (grifos do texto).
roteiro e tôda a literatura começam a parecer obsoletos ou pertencentes a uma
outra realidade” (grifos do texto). Embora o “passado” o atraísse, David lutaria contra o conservadorismo es-
tético embutido na acomodação cinemanovista e se tornaria um crítico “amá-
Intui-se aqui todo um novo programa estético cuja elaboração solicita novas vel” dos descaminhos do movimento, seus desdobramentos, e da industriali-
categorias e novas referências, para as quais surpreendentemente David já zação de estado que se seguiu com a Embrafilme, fustigando o que chamou
tem a resposta na entrevista de 1970: de “cinema novo-rico”.
A crítica aos novos tempos foi dura. Percebendo uma crescente asfixia – “O
“É preciso, portanto, conceber uma nova teoria da criação cinematográfica que ‘desempenho industrial’ passou a ser arte” e “A boa arte passou a ser indús-
surja do relacionamento realizador-realidade a partir do seu contato direto na
tria” –, lança imagens como “desmatamento cultural”, “anacronismo”, “corrida
primeira locação e se prolongue até o dia da mixagem. As primeiras imagens
dos cineastas por status”. A produção cinematográfica teria se igualado à in-
condicionarão forçosamente todo o resto do filme (...) Não se trata de improvi-
sação, porque não há nada mais trabalhado. Talvez isso tenha alguma coisa
corporação imobiliária, em sua destrutividade do passado, busca incessante
a ver com uma hipersensibildiade visual (ou espiritual) e é inegável que deva pelo lucro e pasteurização estética. Na avaliação metafórica davidiana,
estar vinculada a uma cultura cinematográfica subjacente. Devia falar de mim, 1
neste depoimento, mas estou falando da pessoa que no momento mais admiro “Para começar estamos às voltas com os grandes empreendimentos, os con- David associa e ironiza a
voracidade do mercado
e procuro àrduamente seguir: Júlio Bressane, cujo Matou a Família e Foi ao juntos arquitetônicos, as áreas virgens como o caminho do mar na direção sul1. imobiliário pela zona sul do Rio
Cinema é tudo isso e é a obra mais coerente, densa e completa do cinema nos São pretextos materiais que os movem, sempre: compra e venda; e a desper- de Janeiro, particularmente a
orla dos bairros de Copacabana,
últimos anos” (grifos do texto). sonalização, com raras exceções, faz parte de sua estrutura íntima. O velho e Ipanema e Leblon, e o interesse
charmoso cinema artesanal acabou, pelo menos nessa faixa. O status decorre dos cineastas novos-ricos em
morar nesse locais e ostentar o
Caminho definido mas não trilhado de todo. Apesar da incursão por um desse dado e varia diretamente com o aumento do preço da ‘incorporação’” status oriundo do locus da elite.

novo território temático nos três longas iniciais (Memória de Helena, Lúcia Mc-

42 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 43
Superproduções, grandes sucessos de bilheteria, fórmulas repetitivas – so- direta, como que reforçando um sentido denotativo de método de coleta de
bretudo, o apelo ao erotismo –, todo um novo e desastroso sistema punha para informações, saberes, conhecimentos, coisas, emoções e, de forma mais pro-
fora das páginas de história, por exemplo, a transgressão encarnada em uma funda, sentimentos, ou afetos. Percepções para com lugares, espaços, sítios,
Luz del Fuego, incluindo aí seu projeto político, utilizado no filme homônimo pontos – nada mais belo do que o plano da árvore que inicia Fulaninha –, ou
como alegoria do próprio esgotamento do libertarismo cinemanovista origi- idades – o que se foi, o que se é, e o que se será, partindo-se na trilogia da
nal. E impedia a experimentação estética pela selvagem hierarquização da premissa do que seriam os meninos de Rio 40º no final dos anos 1970, como
classe em castas, umas com acesso aos polpudos recursos, outras alienadas estariam de fato em meados dos anos 1980 e no que se transformariam ao
deles. A triste conclusão não poderia ser diferente: final desta década. O retrato ecológico de uma nova sociedade, um tanto mais
arrivista, um tanto mais melancólica, formada agora também por homens e
“Talvez o projeto [de conquista progressiva do mercado], alcançado um momen- mulheres de média idade, por integrantes de uma classe média baixa, ou por
to impossível [por conta de filmes como Dona Flor e seus dois maridos e Xica da uma alta classe média, expõe um ponto de vista desiludido e ao mesmo tempo
Silva], seja todo ele hoje baseado num esquema reacionário, se comparado a
interessado para com o processo de aburguesamento do Rio de Janeiro. A re-
cinematografias similares”.
alidade se ficcionalizou em sua violência destituída de brutalidade, como nas
antigas comédias românticas em que todos encontram seus lugares no mun-
A batalha por um cinema industrial de qualidade era uma das premissas
do, confraternizando ao final, mas não para esconder algo e sim para revelar
do projeto cinemanovista, pelo menos na vertente abraçada por David Neves.
o que sobreviveu por baixo de todas essas transformações. Praticar a indução,
Para ele, no entanto, havia “cada vez mais despersonalização”, pois o “que
mesmo que voltada para essa zona sul decadente e amada, surge assim como
acresce o ‘peso’ de um filme é a sua personalidade e não o seu preço”. O diag-
a base de uma pesquisa conteudística e formal que atravessa o necessário
nóstico constata que os “acidentes do passado” acabaram (a fórmula paule-
contrabando que faz a ponte entre gerações, entre épocas, entre expressões
miliana da “incompetência criativa de copiar” está esgotada) e que a fórmula
cinematográficas distintas.
do espetáculo contemporâneo é “antidialética”, abriu mão do “nacional’ em
qualquer medida, padrão, característica mais saliente e íntegra. Nesse entron-
camento da história, se interroga se sua opinião é meramente derrogatória
ou se o enriquecimento é mesmo a saída para o Cinema Brasileiro, e neste
caso, como criar dentro de padrões em princípio rígidos e pouco inspirados.
Cobra da crítica o fim das discussões sobre gêneros, necessidade de argu-
mentos originais, e boas adaptações literárias, que “não podem mais impedir
a livre criação de bons filmes” como na era clássica, lembrando ainda que “o
fator preço deve ser sempre abstraído dessa equação”. Por seu turno, como
cineasta, aposta no conhecimento das regras do mercado (“a retomada opor-
tuna do convencional”), que quando são dominadas, permitem “certo tipo de
contravenção (artística)”, uma lição que orientaria a famosa “trilogia carioca”.
O delicado equilíbrio entre fazer parte do jogo e subvertê-lo ao mesmo tem-
po o desloca para a posição de observador mais do que a de pensador – as
ideias pelas coisas, ou em seus termos, a dedução pela indução. Curiosa ex-
pressão, “cinema de indução”, que aparece de tempos em tempos ao longo
de três décadas em seus textos, sem nunca merecer uma conceituação mais

44 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 45
ENTREVISTAS
46 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 47
Jom Tob Azulay DN: Isto foi mais ou menos no início da década de 70?
*foi fotógrafo do longa-metragem Muito Prazer (1979). JT: Exatamente. Em 1971. Eu fiquei lá até 1974. Fiz alguns cursos de cinema
por lá. Eu percebi o negócio do Cinema Direto. E o David, que era uma pessoa
DN: Como você conheceu o David? que enxergava na frente – e, neste sentido, ele via na frente de seus contem-
JT: Eu o conheci através do Edgard Telles Ribeiro. Eu era diplomata. E o David porâneos – percebeu que a bitola em 35mm, com som dublado, era um atraso,
foi o cineasta brasileiro – e eu estou falando do David “político de cinema” - que um passo atrás. Com este sistema de equipamento, não dava para fazer filmes
anteviu as possibilidades de interação entre a política externa e o Cinema. E ele como se faziam na Nouvelle Vague, ou algo do gênero. Ele notou isto. Então,
foi representante, creio que em 1962, indicado pelas entidades cinematográfi- comecei a estudar cinema e fotografia, e me tornei um interlocutor dele em
cas da época, talvez até mesmo pelo povo que se encontrava no bar da líder na questões importantes: que tipo de tecnologia criar para aquele momento do
época1, como representante do Cinema junto ao Itamaraty. E, então, o David co- Cinema Brasileiro?
meçou a fazer expediente no Itamaraty, na divisão cultural do Itamaraty. O David Até que idealizamos um sistema juntos. Um sistema em câmera 16mm,
fez várias amizades com pessoas como o Vinícius de Moraes, etc. Até mesmo com motor regulado a cristal, e o Nagra 4. Pela primeira vez era possível se
com os chefes de cúpula do departamento Cultural, no mesmo período em que gravar a imagem e o som independente um do outro. Isto foi o divisor de águas
o Itamaraty realiza o famoso concerto do Carnegie Hall2. E, como eu me tornei que criou o Cinema Direto, e toda a escola norte-americana à qual a gente se
diplomata e servia no Itamaraty, tornamo-nos amigos. filiava indiscutivelmente. O que contribuía para uma captação sem interme-
O David era extremamente querido dentro do Itamaraty; conseguia promo- diação tecnológica. Foi quando apareceu uma pessoa muito importante para
ções, conseguia ajudar as pessoas, etc. E foi lá também que ele conheceu o as nossas vidas: o Alberto Cavalcanti.
Arnaldo Carrilho, também diplomata, que se tornaria uma pessoa muito próxi- O Alberto Cavalcanti foi a Los Angeles, e logo me tornei amigo dele. O
ma. Era um homem que também muito dedicado que acabou se transforman- David, é claro, também era amigo dele. Então, quando eu saio do Itamaraty,
do em um militante do Cinema. por questões políticas óbvias, e volto ao Brasil, em 1975, o Alberto Caval-
Isto é importante, por que o David Neves contribuiu muito para que o Arnal- canti também estava no Brasil e o David o aconselha a me procurar para
do Carrilho desempenhasse o papel, a militância e auxílio ao cinema nacional produzir seu novo filme, “O Homem e o Cinema”. O David foi quem coorde-
que teve sua presença no exterior. O David tinha este lado de articulador po- nou isto tudo, ligando pro Alberto, falando que eu tinha que fazer, etc. O
lítico, que foi o que o levou ao Itamaraty. E um dos maiores esforços dos dois, que para nós foi muito bom, por que era um filme de antologia da obra do
principalmente a partir de 64, era não permitir que os filmes do Cinema Novo Cavalcanti, ficamos imersos naquilo.
fossem censurados pelo regime militar. Então, para este fim, criou-se uma
rede entre os cineastas do Cinema Novo e determinadas figuras do Itamaraty. DN: E depois que você produziu o filme do Cavalcanti, como foi que o
Inclusive com pessoas do exterior, que promoviam nosso cinema em lugares David se aproximou para te convidar para o “Muito Prazer”?
como o Festival de Cannes. Isto criou uma base de defensores externos que JT: Isto caiu do céu. Literalmente. Eu morava ali em um apartamento em
1 possibilitou que o Cinema Brasileiro se abrisse para o Cinema Mundial. E o Ipanema. Um dia, o David me chega lá com o Carlos Moletta e o Joaquim Car-
Famoso bar na Rua Álvaro
Ramos, em Botafogo, onde o David se dava com todo mundo, conhecia todo mundo, era grande amigo do valho. Dizem que estão produzindo um filme e que querem que eu o fotografe.
grupo que se transformou no Truffaut, do Bertolucci, etc.
Cinema Novo se encontrava Porra, eu já havia feito a fotografia de alguns curtas e tal, mas nunca tinha
para conversar sobre Cinema. Nós tínhamos, então, esta relação. E aí, eu fui ser Consul em Los Angeles, feito a fotografia de um longa-metragem. Mas eu pensei: “vambora então!”. Foi
(N.T.E)
um ponto estratégico para uma pessoa como o David, por conta dos contatos uma produção em 16mm, por que eu mesmo só filmava em 16mm. O primeiro
2
Famoso concerto em que a
que conseguira estabelecer lá. Nós marcamos e ele foi para lá, junto com o filme que eu fotografei foi no esquema mais tradicional possível, em 35mm.
Bossa Nova se consagrou Fernando Duarte e o Fernando Sabino. Saíamos muito juntos e foi aí que fica-
definitivamente nos
Mas, como eu tinha saído dos Estados Unidos e, por influência do Cinema Dire-
Estados Unidos. mos amigos de verdade. to, eu estava convencido que a bitola do momento era 16mm, com som direto.

48 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 49
DN: E o David já tinha filmado com som direto? DN: E como foi o trabalho de finalização?
JT: Não, não. Ele começou a filmar com som direto comigo. Eu tinha uma JT: Ah, eles fizeram uma coisa impensável, absolutamente herética até
câmera 16mm, de telejornalismo, na qual o som era gravado na banda sonora aquele momento. Eles ampliaram o filme de 16mm para 35mm na Líder! Nun-
dentro da câmera. Mas com o motor regulado a cristal. Nós adaptamos esta ca isto tinha sido feito antes! Pela simples razão de que a Líder não tinha equi-
câmera, fizemos inclusive um desenho para um visor, já que ela não foi feita pamentos para fazer o processo de ampliação de 16mm para 35mm.
para trabalhar no tripé, foi feita para ser trabalhada apenas no ombro. Nós
tivemos que fazer um desenho de visor novo, encomendar de uma ótica, tudo DN: Como conseguiram então?
isto para poder utilizar a câmera no tripé, utilizar carrinho e tudo mais. A gente JT: O David era esperto. O David conhecia das coisas. Ele deve ter chegado
adaptou aquela câmera para filmagens de um longa-metragem. ao Victor Bergman e, eu não me lembro desta conversa, mas, se ela tivesse
acontecido, o que é absolutamente possível, seria algo como: “Seu Victor, eu
DN: E vocês fizeram esta adaptação do visor pela primeira vez para não tenho dinheiro para ampliar, meu filme não tem dinheiro para mandar
o “Muito Prazer”? para Los Angeles, como o Jom Tob quer...” Eu já tinha ampliado o “Doces Bár-
JT: Não, não. Eu já havia feito isto para o “Os Doces Bárbaros”. E o David já baros” lá antes.
sabia disto e por isto me chamou. Por que orçamento que ele tinha não dava Então, o Victor retrucou que não tinha máquina para isto. “Mas eu estou com
para fazer em 35mm. O que ele me pedia era uma imagem na tela melhor do um negativo original positivo”, argumentou o David. Isto facilitava, por que a
que a imagem em 35mm. Uma expressão cinematográfica melhor, inclusive Líder tinha uma máquina redutora para fazer comerciais de TV. Então, o que se
utilizando a espontaneidade do som direto. Isto foi importante para tudo. O fez foi: virar a lente ao contrário e a máquina, de redutora, passa a ser amplia-
Octávio Augusto, a Ittala Nandi, grandes atores de cinema... Nunca foram po- dora! Eles fizeram isto e ganhamos Brasília. O que é uma coisa extraordinária.
tencializados da forma como o David fez. Isto não existe! Só no Brasil mesmo... É a tecnologia do cinema brasileiro.
E plasticamente, a gente faz a importação de um filme que ninguém nunca
mais o fez: o 7252 Ektachrome Comercial da Kodak. Era um filme com 15 ASA. DN: Mas o que você acha que este estilo de produção, de câmera e de
Quer dizer, quando se colocava o filtro, na luz do dia, ele caia para 15 ASA. Então filmagem possibilitou ao David?
eu filmava na praia, com uma luz intensa, com um diafragma 5.6. Além do mais, JT: Ah, isso para ele foi o paraíso. É o paraíso do cineasta poder trabalhar
esta película era reversível. Ou seja, era seu próprio positivo. O que era comum, diretamente, sem aquela parafernália tecnológica enchendo a paciência, di-
em realidade: toda produção em 16mm foi basicamente feita assim e o processo tando o que pode e o que não pode ser feito. Ele podia filmar na hora. E o filme
continuou até o filme colorido. Mas, o que isto nos permitiu? Isto permitiu que teve uma espontaneidade que nunca se viu no Cinema Brasileiro.
nós fizéssemos uma ampliação, já que o negativo original, que era 16mm, era já O trabalho com os atores... Ele tinha uma relação de amor com os atores.
um positivo. Já que, de positivo, só sai negativo, a gente ampliou para um nega- Eles sacavam o David de cara. O set era silenciosíssimo. O David sussurrava
tivo em 35mm. Ou seja, era uma ampliação direta, sem perda. as coisas para eles, gesticulava, quase não falava e eles se entendiam. Como
E a cor? No que bateu na tela do Festival de Brasília, todos ficaram impres- se estivessem preparados, ensaiados, e as cenas iam saindo. Aquele plano-
sionados, já que ninguém tinha visto uma cor destas. O David ficava rindo, -sequência da briga na cozinha, entre a Íttala e o Octávio...
dizendo que era Technicolor! O filme tinha uma latitude que me permitia filmar
na lagoa de tarde, com sol forte, e o céu ficava roxo. Ninguém tinha visto, ou DN: ... Que tem um movimento de câmera curioso, cheio de vai-e-vêm....
reproduzido, aquilo. Enfim, deram o prêmio de Melhor Fotografia para “Muito JT: Justamente. É um plano-sequência fixo. Então, você vê, é toda uma lin-
Prazer”, em 79. Melhor filme, fotografia e ator. Pra gente, foi uma consagração. guagem, por que a utilização do zoom é quase imperceptível. Naquele tipo de
E, para mim, até hoje, o que eu tenho como modelo de cinema é o “Muito Pra- filmagem, você faz o que dá. Você não tem tantas possibilidades de espaço,
zer”. Um modelo de produção. da luz, etc. A câmera tem que ficar onde tem que ficar. Você pode até ter três

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outros lugares, mas serão três piores do que este. Então, é tudo uma questão
Ittala Nandi
de conciliação. *foi atriz protagonista em Muito Prazer (1979) e atriz coadjuvante em Luz del Fuego(1981).

DN: E o David incentivava esta espontaneidade com algum mecanismo? DN: Como você conheceu o David?
JT: Ah, ele provocava. O que ele gostava era do inusitado. De algo que, de Ittala Nandi: Não sei dizer precisamente como que eu o conheci ou quando,
repente, acontecia (“aparecia”). porque éramos todos muito amigos. A gente vivia sempre juntos. Eu acho que
a gente se encontrou pela primeira vez foi num aniversário do Joaquim Pedro
DN: Você saberia lembrar de algum exemplo? de Andrade. Eram todos Cinemanovistas. Morávamos todos na mesma rua,
JT: Ele queria a câmera sempre pronta para filmar, entende? Muitas vezes a com a exceção do David. Mas o Joaquim, Tom Jobim, Raul Seixas, eu. Moráva-
gente demorava para dar início, e ele virava e dizia: liga a câmera. A coisa acon- mos todos ali na Nascimento Silva e a gente sempre estava junto. A casa do
tecia. Ele teve uma grande contribuição, que foi o Carlos Del Pino, seu assistente Joaquim era um point onde iam todos. O David também frequentava lá. E como
de direção, que o auxiliava bastante com estas questões de linguagem. eu era uma atriz que fazia o filme de todos eles, foi inevitável acabar conhe-
cendo o David. Ele era uma pessoa muito querida, muito doce.
DN: Mas ele ensaiava?
JT: Não. Era tudo na hora. Ele não gostava de ensaiar. A gente chegava e DN: Como foi o convite para você fazer o “Muito Prazer”?
fazia. O David tinha uma expressão que eu ouvi ele dizer muitas vezes na fil- Ittala Nandi: O David não tinha encontrado ainda a atriz pra fazer o papel, e
magem do “Muito Prazer”. Ele usava uma expressão mais ou menos “esta aí, as filmagens já estavam próximas. Um dia, eu estava entrando no meu apar-
como diria André Gide, é a la part de Dieu”. Ou seja, “a parte de Deus”. Que é a tamento na Nascimento Silva e ouvi uma voz que eu conhecia. Olhei para cima,
parte que ninguém controla. Ele citava em francês mesmo. e o David estava na varanda do quarto andar. Ele olhou pra mim lá de cima e
falou: “É você! É você que vai fazer o meu filme! É você!”. Eu estranhei e per-
DN: Tratando-se de David Neves, era assim quase o filme inteiro. guntei: “Que filme, David?” E daí ele gritou: “o Muito Prazer. Ainda não come-
JT: Ah! Ele era todo a parte de Deus. Ele era a parte de Deus. çou. É você!” Então ele desceu e me trouxe o roteiro. Lembro muito bem dessa
ocasião, porque foi muito engraçado.
Tem personagens que procuram o ator. Eu já tive prova concreta de que há
personagens que buscam o ator. Alguém cria uma história... Ou seja, os perso-
nagens foram criados. E a partir daí, eles existem. Eles estão andando pelos
ares. E tenho a impressão que eles se detém sobre alguém. E alguém chama
você pra fazer porque é ele que está pedindo. Eu acredito nisso. Tive prova con-
creta de mais de um personagem que não era pra ser meu, mas acabou sendo.
Tenho certeza que foi ideia do personagem querer que eu o corporalizasse.

DN: Neste caso do “Muito Prazer”, acredita que foi isto que aconteceu?
Ittala Nandi: Foi bem um caso de psicosincronicidade. O personagem é uma
entidade que foi criada. O autor é meio Deus, né? Quando ele cria, ele é um
Deus. E essa entidade busca uma corporalização também. Ela não é inativa.

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DN: Desse episódio do convite, até começarem as filmagens, passou DN: Ele sabia que você estava vivendo isso?
quanto tempo? Ittala Nandi: Não, ele não sabia.
Ittala Nandi: Muito rápido. Comecei a gravar no dia seguinte já. O filme es-
tava somente esperando a atriz. Como eu morava ali pertinho, na Nascimento DN: E quanto a “Luz del Fuego”?
Silva com Garcia D´Ávila, era só sair do meu apartamento e ir andando pra Ittala Nandi: O “Luz del Fuego” foi um filme mais burilado, mais complexo,
gravação. Era tudo perto. que exigia mais produção. E mais atenção dele. E de fato, ele dava maior aten-
ção às cenas. O meu personagem no “Luz del Fuego” não é um dos principais,
DN: Como era trabalhar com ele? mas com cenas bastante fortes com o Walmor . Foi muito bom de fazer, porque
Ittala Nandi: O “Muito Prazer” foi todo rodado aqui em Ipanema, perto da o Walmor era uma grande inspiração. Trabalhavamos muito bem juntos.
Garcia D´Ávila. Tudo foi feito nessa área. Gravamos em cima daquela estátua
do José Martí. Subi com um guindaste dos bombeiros, foi muito divertido. Os DN: Você mencionou que o processo foi um pouco diferente...
filmes com ele eram muito simples de se fazer. A escolha principal dele eram Ittala Nandi: Foi. Ele estava muito mais próximo do projeto, das gravações,
os atores. E aí, ele deixava a gente praticamente construir a cena. Ele confiava das filmagens, de tudo. Porque era mais complexo. Não era um filme “meio
nos seus atores. Costumava às vezes falar assim: “Bom, aqui é o lugar, e a Nouvelle Vague” como é o “Muito Prazer”, onde é o ator que comanda a história.
cena é essa. Agora vocês podem filmar. Quando tiver pronto, me chamem”. E O “Luz del Fuego” era um roteiro mais rígido, uma produção mais rígida. Exigia
ele saia para descansar. Ele fazia essas coisas malucas. Era muito divertido. outro tipo de enfoque.

DN: Ele costumava ensaiar muito? DN: Onde foram gravadas as suas cenas?
Ittala Nandi: Não, não. Ele posicionava a câmera, definia o quadro, e o resto Ittala Nandi: Gravamos numa casa em Santa Teresa.
era por nossa conta. Eram os chamados atores-autores. Ele deixava por nossa
conta. Era muito bom, muito interessante trabalhar assim. Pra mim não era DN: Em ambos os filmes, ele costumava intervir eventualmente
problema, porque eu venho de uma escola do teatro oficina onde a gente sem- na atuação de vocês?
pre foi ator-autores. Nós sempre construímos os nossos personagens. Fazia- Ittala Nandi: Ele nunca fez nenhuma intervenção. Nunca fez. Ele devia estar
mos as próprias pesquisas. Então isso pra mim era muito simples. satisfeito, acredito eu. E tem mais: a gente rodava uma vez só. E tchau. Para
mim, que sempre faço melhor na primeira vez do que na segunda ou na ter-
DN: E como foi a construção do seu personagem? ceira, era ótimo.
Ittala Nandi: Houve uma coincidência enorme. O “Muito Prazer” é a história
de um casal que está se separando. Por acaso, eu também estava me sepa- DN: Era tudo em um único take então?
rando. Há toda uma emoção, uma memória emocional, que acontece nesses Ittala Nandi: Em geral, sim. Haviam exceções, é claro. Quando tinha proble-
períodos. Uma dor misturada com uma visão nova de mundo que virá pela mas técnicos ou coisas do tipo. Mas não me recordo jamais de algum proble-
frente diante de uma separação. Eu estava vivenciando isso na vida real. E foi ma ligado à interpretação. Não me lembro de termos sido obrigados a refa-
uma coincidência aparecer esse filme, no momento em que eu estava vivendo zer nada. Claro que, às vezes esquecemos o texto, mas... Que eu me lembre,
isso. As coincidências, segundo Jung, não existem. São psicosincronicidades. nunca... Porque ele tinha o prazer de fazer isso. De ter um elenco que grava
Eu vi que atraí esse tema em função do que eu estava vivendo. no primeiro take. Para ele isso era o máximo. “Tudo feito no primeiro take,
entendeu?” E eu também acho isso o máximo.

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DN: Ele demorava muito montando luz, armando a cena?
Joaquim Vaz de Carvalho
Ittala Nandi: Não. Era tudo muito fluído. Muito simples, muito calmo. Era um *foi roteirista e produtor de Muito Prazer (1979), Luz del Fuego (1981) e Flamengo
ambiente calmo, descontraído. Isso é muito bom para o ator. É muito agradável Paixão (1980). Joaquim Vaz de Carvalho foi letrista da trilha sonora original deMuito Prazer.
para nós trabalharmos desse jeito.
DN: Gostariamos, primeiramente, de compreender sua relação com o David
DN: Em relação ao roteiro, ele te dava liberdade pra criar nas falas? no periodo anterior ao Muito Prazer, este momento onde tornam-se amigos
Ittala Nandi: Ele dava liberdade sim. Se a gente quisesse modificar, mudar e desenvolvem o roteiro e o projeto do filme.
alguma fala para soar melhor, ele permitia isso. Normalmente, os diretores Joaquim: A PUC, na década de 60, formou vários advogados, baixaréis, cine-
permitem. Porque uma frase construída de repente não cai bem na forma te- astas, e David era um deles. O Jabor, o Cacá, todos eles e eu fomos colegas de
mos de dizer. Daí, sugerimos: “Que tal se eu disser assim?”. É a mesma coisa, faculdade. O Jabor, por exemplo, foi meu colega de turma. Eu conhecia o David
mas fica mais fluente. E todos eles concordam com isso, geralmente. dessa época e, num determinado momento da minha vida, eu fui trabalhar em
publicidade, na área de criação. Eu aproveitei, então, pra retomar a relação
DN: Vocês conversavam sobre o personagem? que eu tive com esses amigos meus cineastas, e comecei a chamá-los para
Ittala Nandi: Sim, a gente sempre conversava sobre como ela era, seu com- dirigir filmes comerciais dessa agência. Por conta disso, eu retomei o contato
portamento, como ela funcionava, etc... A cena em que eu e o Otávio estamos com o David, que aliás de todos eles era o que eu era menos próximo, porque o
nos separando é uma cena muito difícil. É uma cena bem difícil. Precisamos David era mais velho que uns 4 anos mais ou menos e isso, numa determinada
ter uma concentração extra, uma emoção. fase, faz diferença, depois não.
Então, um dia, na minha casa, eu virei para o David e perguntei como anda-
DN: Havia alguma semelhança entre o David e o personagem principal vam seus projetos de longa. Ele me disse que tinha um projeto, e me contou
de “Muito prazer”? mais ou menos como era. O projeto era baseado em uns arquitetos do escritó-
Ittala Nandi: Não. Ele era muito diferente. O David era pacífico, uma pessoa rio do Oscar Niemeyer, que lá do alto viam alguns pivetes. Eu falei para o David
solitária. Ele tinha uma solidão criativa. Ele era notívago. Andava de noite, e que o escritório era muito alto, muito longe, que, com a altura do escritório,
dormia de dia. Ele era o mais particular de todos os cinemanovistas... Para como é que eles iriam interagir com os pivetes? Eu achava melhor que fosse
começar, ele era solteiro. Era o único solteiro de todos os rapazes da nossa algo mais perto, algo mais próximo.
família cinematográfica. O David era muito bonito. Todos eles eram muito bo- Nessa época, eu tinha uns amigos meus que estavam vivendo um triângulo
nitos. Eles eram todos muito bonitos, atraentes. Eu amava todos eles. amoroso. Um triângulo amoroso muito intense, até meio traumático, e eles
E o David tinha hábitos bem peculiares. Ele vivia uma vida muito solitária. eram sócios num escritório de arquitetura. Com isso, eu tive essa ideia de
botar os dois arquitetos tendo esse caso, esse caso de amor, com essa mulher,
DN: Ele chegou a te chamar pra trabalhar depois? interpretada pela Ittala Nandi. Mas, ao mesmo tempo, achei que tinha que ter
Ittala Nandi: Me chamou para fazer o “Memórias de Helena”, mas, na época, um terceiro arquiteto pra ser um contraponto meio crítico em relação a esses
não me recordo porque, eu não podia. dois, e, então, criamos o personagem do Antonio Pedro.
O David gostou da ideia, e me pediu que escrevesse o roteiro do filme, o que
eu fiz. Como eu não conhecia nada, mecanismo nenhum de cinema, eu achei
que, com o roteiro pronto, o filme sairia logo. O David havia me dito que tinha
conseguido um produtor…

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DN: Vocês escreveram o roteiro em 1978, um ano antes de filmarem? um filme! Além do que, David, eu to assim, no auge da forma como relator de
Joaquim: Não, em 1977. Enfim, um ano se passou e nada tinha andado. En- publicidade. A DPZ já ta querendo me levar pra São Paulo». A DPZ era o top do
tão, eu falei com o David, perguntei a ele por que ele não colocava o filme na top. Mas o David continuous dizendo que eu produziria. Aí eu fiquei com esse
Embrafilme. O David respondeu dizendo que não colocou por que achava que troço na cabeça, então, daí eu falei com o Carlos Moletta. Falei para ele o que
o Roberto Farias não aprovaria a ideia. Eu argumentei que não inscrevendo é estava acontecendo, e o Carlos achou a idéia ótima, querendo entrar, criar a
que o filme não seria feito mesmo, que o melhor era tentar. “Ah, mas eu não produtora e seguir com o projeto.
sei fazer um projeto”. Pronto, eu fiz um para ele.
DN: O Carlos ainda não conhecia o David?
DN: Foi então que o Carlos Moletta entrou na história? Joaquim - Conhecia, mas pouco, muito pouco. Quem tinha relação mesmo
Joaquim: Não, não, ainda não tinha o Carlos nessa história. Passaram-se com o David era eu. Nessa época, o Carlos era diretor da FEEMA, mas era
alguns alguns meses e, um belo dia, eu soube que tinha saído uma lista de época de eleição, ia mudar o governo e ele sabia que sambava na FEEMA,
filmes que tinham sido aprovados, mas que o Muito Prazer não estava na lista. então foi uma oportunidade. Eu procurei outro amigo meu, que era president
Eu fiquei muito chateado com a história, mas eu não queria ser o carteiro a dar do clube de criação, e falei para ele sobre a oportunidade de fazer o filme. Ele
essa notícia pro David. falou: «Ah, tem que ir correndo!.” Eu respondi dizendo que não sabia nada
Isto foi em uma sexta-feira. Quando foi na segunda feira, nós tinhamos um de cinema. Ele: «Aqui, o negócio é o seguinte, se cinema for a maluquice que
amigo que era diretor jurídico da Embrafilme e, quando foi mais ou menos dizem, você vai lá um ano, produz esse filme, se não der certo, você volta, em
duas horas da tarde, ele me ligou e me disse que houve uma reunião extra um ano ninguém te esqueceu aqui».
na Embrafilmes e que eles resolveram colocar mais dois filmes na lista de Eu comecei a produzir o Muito Prazer. Nessa época, o Festival de Brasília
aprovados, incluindo o filme do David. Aí, eu saí atrás do David, mas o David era o principal festival do Brasil. Corremos pra pegar a inscrição, quer dizer, o
tinha uma característica, uma época aí, que ele andava com uns problemas objetivo era aquele, e o filme foi selecionado entre os 6 participantes do Festi-
de grana, cheque sem fundo, essa coisa toda, em que você simplesmente não val. Aquilo ali pra nós já foi a glória, o prêmio já tava dado, mas pra melhorar a
conseguia falar com ele, você não achava David. Eu comecei a ligar pro tele- situação, o filme vai e ganha o prêmio de melhor ator, para o Octávio Augusto,
fone dele, mandei alguém ir na casa dele, procurei por vários meios, e não melhor filme, e fotografia com o Tom Job Azulay.
consegui. Então, eu tive uma ideia e liguei pra casa do Mario Carneiro. Eu falei Depois disto, eu produzi mais dois filmes com o David. O Flamengo Paixão,
com a Marilia, com quem o Mario era casado na época, e eu senti uma certa… um documentário, foi uma coisa de oportunidade na época, pois era aquela
uma certa… uma certa hesitação no que a Marilia falou. Aí, eu falei «Marilia, época encantada do Flamengo, com Zico e companhia. E foi curioso, por que
deixa eu te dizer um negócio, o David de uns tempos pra cá só tem tido notí- nós começamos a adquirir uns materiais e começamos a realizer umas fil-
cia ruim, eu tenho uma notícia boa pra ele, que o filme dele foi aprovado na magens, e o Flamengo, naquele ano, foi desclassificado, perdeu as quartas
Embrafilme». Ela respondeu correndo que era para eu ir na livraria Timbre, de final pro Palmeiras. Aí, poxa, material perdido, né? Mas o Campeonato bra-
no Shopping da Gávea, onde estava tendo a noite de autógrafos do Alexrande sileiro do ano seguinte, por algum motivo, foi no primeiro semester e não no
Eulálio, primo do David. Segundo. O Flamengo foi chegando, foi chegando, foi chegando até que chegou
Então, eu fui lá. A primeira coisa que ele fez foi virar para mim e dizer: «olha, na final. Eu chamei alguns fotógrafos, como o Walter Carvalho e o Fernando
aquela grana que eu to te devendo, eu vou te pagar semana que vem…”. E eu Duarte e finalizamos o filme.
respondi: “ mas, claro, teu filme saiu na Embrafilme». Ele ficou branco, saimos Depois, partimos para o Luz del Fuego, que era um projeto mais ambicioso.
de lá e fomos para o Álvaro conversar. Ele estava todo feliz que depois de Mas ocorreu uma circunstância interessante antes disto. Eu tinha terminado
nove anos iria poder filmar novamente. E, então, ele de vira e diz que eu vou de escrever o roteiro para Muito Prazer, e eu era muito amigo do Miguel Faria.
produzir. “Eu vou produzir o filme? Eu não sei nem o que significa produzir Ele leu o roteiro e adorou. Então, o Miguel se aproximou de mim e pediu que eu
escrevesse o roteiro para o Luz del Fuego, o projeto original.

58 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 59
DN: O David não ia dirigir à princípio? DN: Essa vontade de trabalhar com esse espírito extremamente carioca,
Joaquim; Não, era o Miguel que ia fazer. Eu escrevi uma primeira versão, ele isso veio de você, veio do David, ou veio sem querer?
leu e gostou. Depois, passaram-se alguns dias, ele veio até mim e pediu para Joaquim: Não, isso era uma coisa do David mesmo. Coisas do David. No Luz
mudar isto, aquilo. Eu, então, fiz um segundo tratamento. Então o Leopoldo del Fuego, eu me lembro do David falando para o montador, o Marco Antônio
Serran, quando ainda era vivo, me perguntou sobre o processo do roteiro com Cury, que o filme estava muito solar, muito limpo, que era necessário colocar
o Miguel Faria. Eu falei para ele que eu escrevia, ele gostava, mas que depois algo no meio para sujar o filme.
pedia para eu mudar as coisas. Foi quando o Leopoldo, que já havia trabalho O Luz del Fuego foi uma proposta minha, a partir do roteiro que já existia e
com todo mundo, de Glauber a Alcino Diniz, me falou que não havia pessoa eu fiz muita força pro David mexer no roteiro, mas ele falou que queria filmar
mais indecisa que o Miguel. este roteiro. Este roteiro, que ele recebeu, era uma proposta de um filme que
Bem, o tempo passou. Então, eu por acaso me encontrei com o Joaquim tinha o seu viéis artístico, evidentemente, mas era uma proposta de um filme
Pedro e fomos tomar um café, conversar. Eu perguntei pelo Miguel Faria e de sucesso, de sucesso comercial. E o David, de uma certa forma, ele não
o Joaquim Pedro me diz que ele está filmando, mas não era o Luz del Fuego. vibrou muito com esse sucesso comercial.
Fiquei sem entender nada e o Joaquim me diz que o Miguel disse que o projeto
era agora meu. “Po, o que que eu vou fazer com um projeto, eu sou redator de DN: Ele não entrou muito nessa.
publicidade, não sou produtor de cinema”. Joaquim: Tanto que ele fez questão de muito rapidamente, mas muito rapi-
Então eu me lembrei desse negócio que o Joaquim tinha me dito que o pro- damente mesmo, torrar todo o dinheiro que ele ganhou com o Luz del Fuego. E
jeto era meu e resolve procurar o David. Ele topou e foi para a minha casa ler não foi pouco. Por que, naquela época, você tinha um sistema na Embrafilme,
o roteiro. Foi engraçado, porque ele tava em uma sala e eu tava na outra, eu só em que o diretor tinha 5% sobre a renda do filme. Na medida em que ultrapas-
ouvia as gargalhadas do David lendo o roteiro. sasse determinado patamar, passava a 10%. Esse filme fez, sei lá, quase três
Então, nós demos entrada na Embrafilme com o projeto. Passado uns tem- milhões de espectadores, David ganhou uma boa grana, mas estourou tudo,
pos, não é que o Miguel Faria me procura querendo inscrever o Luz del Fuego tudo, tudo. Gastou rapidamente tudo e se perguntar “comprou um carro?”,
na Embrafilme? Foi um embróglio só. Conversamos todos e, no fim, o Miguel nada, comprou nada, gastou mesmo, estourou a grana.
abriu mão do projeto e eu fui fazer com o David. O Luz del Fuego foi um grande
sucesso, de audiência e de public. DN: Você participava também dos sets como roteirista?
Mas o David, até essa época do Luz del Fuego, ainda era um cara muito arraiga- Joaquim: Participava.
do numa coisa assim meio cult. Ele tinha um passado muito ligado ao Itamaraty,
antes mesmo dele dirigir, ele era crítico, ia muito lá fora, tudo quanto era festival DN: Como é que era isso? Os diálogos em Muito Prazer, eles foram
de cinema ele estava, era conhecido, sempre de gravata, um cara bem mais for- improvisados ou já estavam estabelecidos no roteiro?
mal nessa época. Quer dizer, o primeiro filme do David era muito mineiro. Joaquim: Não, basicamente eram os mesmos.

DN- O Memória de Helena? DN - Mas como que vocês criavam aqueles diálogos? Eles possuem
Joaquim: É. O Lucia McCartney é um filme mais paulista, um filme mais pu- uma autenticidade, uma vivacidade, impressionantes.
xado, Nouvelle Vague. Com o Muito Prazer, deu uma guinada pra uma coisa Joaquim: Tem muitas coisas, mas muitas mesmo, tiradas de episódios reais
mais carioca. Mas mesmo assim era um filme pequeno, mais intimista, essa que eu vivi. Eu ia anotando aqueles troços e, quando fui partir pra escrever o ro-
coisa toda bem do jeito dele. teiro, eu peguei várias coisas que eu tinha anotado como interessantes e coloquei.
Por exemplo, tem uma frase no filme que ficou famosa, que era uma frase,
assim, recorrente nas agências de publicidade. Quando o Otavio diz: “Bom,

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quarta feira, três horas da tarde, semana praticamente encerrada”. Isso daí eu DN: O David buscava isto, era uma vontade dele trabalhar com pessoas
não inventei, não foi da minha cabeça. Eu cheguei a trabalhar em mercado de que estavam iniciando?
capitais também, antes de trabalhar em publicidade, e tinha um cara que era Joaquim: Ele gostava das pessoas, mas aceitava sugestões. No Luz del Fuego,
um agente de investimentos. O cara vendia pra burro, e foi ele que mandou ele botou como cenógrafo o Fausto Baloni, que nunca tinha feito cenografia. Ele
essa daí um dia, ele tinha faturado a semana inteira, já tava satisfeito, “quarta dirigiu um filme que foi para o Festival JB, de 1966, nunca mais tinha feito cinema,
feira, três horas da tarde, semana praticamente encerrada”. era arquiteto e fez a cenografia. Os figurinos foram feitos por uma amiga nossa
que era produtora de moda da Vogue, que nunca tinha feito cinema também.
DN: “Jacaré que dorme vira bolsa” O David gostava dessas coisas mais experimentais, mas ele também não
Joaquim: Isso daí também são frases comuns. Tem uma outra cena, assim, deixava a coisa frouxa. Ele tava em cima de tudo.
que o cara de bicicleta bate no carro do Fernando. Ele ta com um negócio na
roupa, escrito “aspirante”. Aí o cara fala: «Você é aspirante, eu sou do primeiro DN: Ele tinha alguma parte do processo cinematográfico em que ele se
time aqui do Lagoa, você é aspirante!» dedicava mais?
Joaquim: Não, o David não tinha isto. Por que eu acho que o David escolhia
DN: Nós achamos impressionante como o filme consegue de fato retratar bem as pessoas com quem ele queria trabalhar.
uma informalidade tipicamente carioca.
Joaquim: É por que nessa época, particularmente nessa época, eu e o David DN: Ele confiava.
estávamos vivendo uma boemia desenfreada. Eu solteiro, o David também, Joaquim: É, então não tinha conflito. Os sets eram todos muito tranquilos,
então, a noite era nossa. Eu trabalhava na agência de publicidade, mas todo as pessoas muito harmônicas. E, quando eu fiz o Muito Prazer, eu confiava
dia saía de casa às 23h da noite. Isso é uma coisa impensável no Rio de hoje. por que eu achava tanto o Memória de Helena quanto o Lúcia McCartney filmes
Nessa época, tinha o Luna Bar, tinha o Álvaro, tinha aquele lá do sinal do Le- muito bem dirigidos, muito bem conduzidos dentro da proposta de cada um.
blon, tinha o Guanabara, o Diagonal. Esses lugares ficavam lotados de gente Então, eu também não tinha receios de estar naquela aventura.
até seis horas da manhã. Além disto, eu já tinha compreendido que existia o roteiro e existia a dire-
ção. Eu só não tinha a percepção da montage ainda. Inclusive, aquela coisa do
DN: Todos os dias? final, onde você tem os protagonistas de Muito Prazer agradecendo, aquele
Joaquim: Todo dia. Dia de semana, final de semana, direto. Então, o que que gesto teatral, isto foi coisa do David. Ele viu, gostou e falou que seria utilizado
eu fazia? Eu chegava em casa umas seis e meia da tarde. Eu dormia até umas na montagem. Ele sempre estava preocupado em como o filme iria terminar.
onze horas da noite, acordava, tomava banho e ia jantar fora. Nem marcava com
ninguém, era certo você encontrar várias pessoas, amigos, em todos os lugares. DN: Então aquilo não estava no roteiro.
Quando começou esse negócio de se pensar mesmo esse negócio do filme, Joaquim: Não, aquilo, não. Não me lembro se foi o Otávio ou o Cécil que, na
eu passei a não só prestar mais atenção nessas coisas, dos diálogos das coi- hora, disse que, como era o último dia dos quatro juntos contracenando, que o
sas interessantes, engraçadas, como também anotar. Muitas coisas, se eu não melhor era agradecer. E fizeram a cena.
tivesse anotado, teriam ficado esquecidas.
DN: Foi mais em um espírito de brincadeira?
DN: Outra coisa que nos chama atenção é o fato que a equipe era Joaquim; Não chegou a ser uma brincadeira, era uma coisa de despedida
basicamente de pessoas que estavam iniciando a fazer cinema. mesmo. O climea das filmagens foi muito gostoso. Muito legal. Eles gostaram
Joaquim: A nossa equipe era toda de pessoas que nunca tinham feito muito de ter feito o filme e eu também. Foi, inclusive, após assistir a esta ima-
cinema na vida. gem deles revereciando e agradecendo ao público que tivemos a ideia para o
título final do filme.

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Carlos Moletta ro. Isto era muito complicado para o produtor, por que a gente não conseguia
*foi produtor de Muito Prazer (1979), Flamengo Paixão (1980), Luz del Fuego orçar. Ele dizia que estava faltando uma cena, mas ela não estava no roteiro.
(1981), Fulaninha (1985) e Memória de Diamantina (1984). Carlos Moletta é “Ah, mas isto é coisa rápida”, dizia.
autor das trilhas sonoras de Muito Prazer e Luz del Fuego.
DN: Ele mantinha isto em segredo?
Carlos: O David conhecia o Joaquim Vaz de Carvalho da PUC, o que faz do Jo- Carlos: Sim, por que ele tinha medo que os produtores não deixassem ele
aquim mais ou menos contemporâneo dele. E o Joaquim trabalhava em publici- fazer. Eram coisas fora do roteiro, tipo esta cena da entrevista com os pive-
dade. Ele começou a escrever roteiros de publicidade e escreveu um roteiro que tes em Muito Prazer. Ele defendia que os filmes se dividem em dois grandes
se chamava Sinal Fechado. Era o embrião do Muito Prazer. Ele tinha uma história gêneros: o filme de personagem e o filme de roteiro. E ele gostava de filme
verídica, sobre alguns amigos dele. Era aquela história lá dos dois arquitetos. de personagem, onde o roteiro não interessa. Interessa o que o personagem
E o David tinha uma história sobre uns pivetes que ficavam no sinal vendendo faz. Então, dentro desta lógica, ele se permitia, na lógica do filme, a ter estes
bala. Não existia isso. Por incrível que pareça, era uma novidade. Sociológica. momentos, estas exceções.
Por exemplo: tem um momento no Muito Prazer em que a personagem da
DN: Realizar um filme com esta temática? Ittala está passando por um momento difícil. Está muito dividida, sem saber o
Carlos: Sim. Esta palavra, “pivete”, era novidade na época. A música tema, que fazer. Então, ele inventou uma andada dela na beira da Lagoa, ali próximo
“Coração Pivete”, com letra minha e do Joaquim, foi feita em 1976. Como “pi- ao Piraquê, no dia em que íamos filmar outra coisa. Do nada, ele pede para todos
vete” era uma palavra nova, o David queria saber o que pensavam aqueles pararem e diz que vão filmar ali mesmo. Ele e a Ittala já sabiam o que queria
pivetes da rua. Tanto é que aquela cena da entrevista dos pivetes não estava fazer, já tinham combinado. O David colocou a câmera ali e a Ittala ficou cami-
no roteiro. Estávamos realizando uma cena com o Cecil e a turma, com toda a nhando pela beira da Lagoa, com o salto alto na mão. Tinha gente que adorava
estrutura montada, com Kombi e tudo. Então, o David vira para os meninos e aquilo. Tinha uma americana que assistiu e disse que era um pregnant shot. Um
começa a realizar aquela entrevista no ato. plano grávido. Grávido por que dentro dele existia uma pulsão, algo em gestação.
Por que a Ittala ficava pensando alí, e o espectador pensa o que quiser. Ela quer
DN: Com os meninos comentando o próprio filme. e não quer se separar, mas ela não aguentava mais aquele bêbado.
Carlos: Exato. E isto foi genial por que eles realmente não sabiam, não ti-
nham lido o roteiro. Eles acompanhavam vendo, por que eles viviam nas fil- DN: E como ele trilhava este caminho entre o roteiro e o improviso?
magens. Então, era a impressão imediata dos meninos do próprio filme que Carlos: Ele basicamente tinha uma ideia e essa ideia ia sendo desenvolvida
estavam fazendo. Isto se encaixava perfeitamente com a proposta do projeto. conforme a banda tocava. No Memória de Helena, foi o Paulo Emílio. No Muito
É sensacional. Prazer, foi o Joaquim que tinha essa história dos arquitetos que juntou com a
dele. Mas a história dele que era dos pivetes está lá. A história do Fulaninha
DN: Era comum o David propor filmar de forma espontânea, criar cenas está lá também mas tem uma elaboração de roteiro em volta. E, no meio disto,
que estivessem fora do roteiro? ele colocava grandes atores, mesmo para as pontas. Em, Fulaninha, o David
Carlos: Gatos. colocou o Nelson Dantas para fazer um porteiro do prédio, e o Nelson está ma-
ravilhoso. Por isto, quando fui produzir o As Meninas, como uma homenagem
DN: Perdão? ao David, eu coloquei o Otávio em um papel pequeno. Tem uma frase lapidar
Carlos: Era como ele chamava estas filmagens. David preservava certas in- de David Neves: “Elenco é roteiro”. Se você acertar o elenco, metade dos pro-
formações, certas coisas que ele queria filmar mas que não estavam no rotei- blemas de roteiro estão resolvidos.

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DN: É extremamente impressionante a performance dos atores EMA, que era um negócio ligado ao meio-ambiente no Rio de Janeiro. Hoje já
em seus filmes. mudou de nome. Em 1979, estava me sentindo muito inseguro, por que eu saí
Carlos: Tem aquela cena da cozinha, em Muito Prazer. Aquela com a briga da FEEMA, que era uma coisa do Estado e o governo tinha mudado. Então, eu
entre os personagens do Otávio e da Ittala Nandi. Eu considero aquela cena era meio funcionário público, mas eu não era concursado. O Joaquim, então,
uma obra-prima dentro do Cinema Brasileiro. Para se ter a noção da ótima me convidou para fazer o filme. Fizemos uma sociedade e produzimos o fil-
relação entre os atores e o David Neves, aquela cena, com toda a sua comple- me. Arrumamos dinheiro. Tinha dinheiro da Embrafilme. E, assim, nasceu o
xidade, foi filmada em take único. Morena Produções de Arte. Criamos a empresa juntos, e, da administração, eu
passei a fazer a produção executiva, assinando todos os cheques. E, como eu
DN: Ele tinha este hábito, não? fazia música, passei a fazer a trilha também. Era uma aventura.
Carlos: Eu mesmo pedia para ele fazer mais um, só para garantir. Mas ele Muito Prazer foi filmado em Janeiro de 79. Ganhou o Festival de Brasília. Na
não deixava. Só se trocasse o chassis, se colocasse outro negativo. época eu estava basicamente desempregado, mas com o prêmio, tive certeza do
que eu queria. O David confiava muito em mim. Ele tinha este jeito dele de con-
DN: E por que ele dizia isto? fiar. Embora ele já fosse um diretor do Cinema Novo, e eu e o Joaquim, novatos.
Carlos: Por que ele não queria. Na verdade, por que não precisava mesmo. O
fotógrafo garantia. Ele perguntava: “Imprimiu?”. O Jom Tob Azulay confirmava DN: O David tinha este negócio de confiar nas pessoas, não?
e pronto, valeu. Eu ficava nervoso. Argumentava que podia dar problema. “Não Carlos: Sim. E às vezes até demais.
vai dar problema. Eles não vão fazer melhor”, dizia o David. E, realmente, os
atores rendiam muito mais no primeiro take. DN: Como?
Carlos: Por exemplo, tem um erro de continuidade no Fulaninha que eu acho
DN: Mas como você acabou entrando no Muito Prazer? imperdoável. A Kátia D’Angelo sai com um óculos numa cena, e chega com um
Carlos: Bom... nos bares. A gente saía muito. Ao contrário de hoje em dia, óculos de outra cor na outra. É claro que a plateia reparou. Isto aconteceu por
não existia Lei Seca. A noite do Rio de Janeiro bombava, a gente era super que ele adorava uma montadora, que foi também a primeira montadora de
jovem e gostava de beber. Creio que o Joaquim e o David tenham se conhecido Luz del Fuego. E ele queria colocar ela na equipe de Fulaninha. Então, a colocou
no Antônio’s. Papo vai, papo vem, eles resolveram juntar as duas histórias para fazer continuidade. Mas ela não fazia continuidade. Nunca tinha feito. En-
num roteiro só, colocando a história dos arquitetos com a dos pivetes. Mas fim, acabou acontecendo isto.
muito do que ligou a história foi feito na montagem, já que não existe nenhum Ele confiava muito nas pessoas e tentava se cercar dos melhores. E, com
plano que defina a relação geográfica. Tem os arquitetos olhando da janela, isto, os filmes ficavam organizados. Fulaninha é um dos filmes mais organi-
tem os pivetes no sinal. Na época, o roteiro se chamava Sinal Fechado. zados dele. Por que o roteiro foi muito trabalhado, por que o Paulo Thiago
sabia que ele não dava tanta importância ao roteiro e, então, chamou o Harol-
DN: E foi no bar que o David te aproximou com a ideia do Muito Prazer? do Marinho Barbosa para ajudar. O Haroldo era um grande roteirista, e eles
Carlos: Não. O papo com o David foi à parte. Não foi junto com o Joaquim. desenvolveram a primeira versão do Fulaninha, que tinha a ideia central do
A conversa do Joaquim com o David foi um papo criativo. Eles escreveram o argumento do David sobre a menina que passa na rua e os bêbados do bar
roteiro, entraram na Embrafilme, acho que em 1978. Depois, quando o filme querendo saber quem é ela.
virou realidade, aí então o Joaquim conversou comigo. Já éramos amigos, por
conta de nossa relação com a música. E já éramos parceiros: ele fazia a letra, DN: Depois que Muito Prazer deu certo, como foi a elaboração de
eu fazia a música. Flamengo Paixão e Luz del Fuego?
Eu era engenheiro. E por isso, um bom administrador. Eu trabalhava na FE- Carlos: Bem, o Flamengo Paixão foi um relativo improviso. O dinheiro do Luz

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del Fuego demorou dois anos para sair. E, enquanto atrasava, o Joaquim era casado com uma moça de família rica, e ele conseguiu uma garantia, um aval. A
muito bem relacionado no Flamengo. É até hoje. O pai dele era benemérito. O Embrafilme, à princípio, estava contrariada, por que não queria criar um preceden-
David Neves era vascaíno. Mas resolvemos fazer o Flamengo Paixão como um te. Mas, no final, não me lembro como, nós conseguimos o dinheiro todo de uma vez.
filme de passagem, enquanto o dinheiro de Luz del Fuego não saia. Foi um fil- E foi aquilo, se a gente não entregasse o filme, a Embrafilme executava a garantia.
me que fizemos sem dinheiro algum. E que também não deu dinheiro nenhum. Com este dinheiro na mão, eu fazia negócios. Eu ligava para a Líder e per-
Por que, como era filme de futebol, as mulheres não iam. A sessão das seis era guntava o orçamento dos processos de laboratório: “Quero fazer o serviço
boa, por que as pessoas saíam do trabalho e iam ver. todo, quanto fica?”. “Cem”. “Se eu pagar só em 30 dias depois de realizar o
O dinheiro para fazer Luz del Fuego só saiu em 1981. O filme deu dois mi- serviço, quanto fica?”. “Ah, aí já dá pra fazer um desconto de vinte por cento”.
lhões de espectadores. Ganhei dinheiro, o Joaquim foi para Cannes, eu fui para “Mas, e se eu pagar à vista”. “Ah, aí já podemos dar um desconto maior”. Isto
a Europa pela primeira vez com minha atual esposa. Por conta do sucesso do nunca acontecia, por que ninguém tinha dinheiro. Então, eu consegui fazer
Luz del Fuego, a minha carreira como produtor cinematográfico se estabeleceu tudo à metade do preço. Por isto, o filme conseguiu ter uma produção mais
de vez, e, então, continuei. Muita gente diz que Luz del Fuego não é um filme do presente, por que nós conseguimos fazer por onde. E não por causa de um
David. Eu acho que é. Se você olhar bem, é um filme mais sobre uma mulher orçamento exorbitante.
do que sobre “Luz del Fuego”. É a mesma personagem meio excêntrica, dife-
rente, “marginal”. Eu não gosto de usar a palavra “marginal”, mas era a palavra DN: E como o David se comportou dentro desta lógica de set do Luz del Fuego?
certa a ser usado na época. É algo da Prado Júnior. E o David adorava este con- Carlos: Ele ficava ansioso para filmar. Detestava o ritual do set. A fotografia
ceito de “marginal”. Não o marginal ou traficante, mas o “marginal” que está à demorava. O Luz del Fuego foi muito filmado em Paquetá e no inverno, por que
margem. À margem da sociedade organizada. Então, se você pensar bem: é a era a época que tínhamos para filmar. Então, acordava-se cedo e a Baia da
Helena, é a Ittala Nandi, é a Lúcia McCartney. Guanabara ainda estaria coberta de névoa. Com isto, não se podia filmar, não
imprimia. Então, ele ficava ansiosíssimo. O Fernando Duarte, o diretor de foto-
DN: Luz del Fuego foi o filme de maior orçamento que o David filmou, não? grafia, que também ganhou um prêmio, era super detalhista. E o David ficava
Carlos: Não sei. Maior que Fulaninha? O Fulaninha, embora fosse tudo pró- apressando o Fernando. E o Fernando calmo, lento. David ficava muito ansioso
ximo, nas redondezas da Prado Júnior, possuía uma estrutura de produção, com isto, ele queria filmar logo.
tinha grua, gravava-se na rua, etc. Luz del Fuego foi mais caro do que Muito
Prazer, já que a equipe era maior, mas o que importa mesmo é o que a gente DN: E o caso As Meninas?
conseguiu fazer com o que dispúnhamos. Este foi o grande pulo do gato. Carlos: O David tinha os direitos de adaptação do livro desde que ele foi
lançado, em 1972. A Lygia pessoalmente tinha dado a ele, através, é claro, do
DN: Por que? Paulo Emílio Salles Gomes, com quem a Lygia era casada na época. É um pro-
Carlos: A Embrafilme dava o dinheiro em parcelas. Isto era padrão. Sete jeto absolutamente autoral do David, mas que ele não teve tempo para fazer.
parcelas. Então, quando você assinava o contrato, eles te davam uma parcela, Quando saiu o primeiro dinheiro deste filme, que foi um dinheiro dado pela
que era de dez por cento do filme. Depois que você filmava sei mil pés, mais ou FINEP, em 94, o David já estava doente. O dinheiro não era muito. Era algo
menos. Aí, você voltava e recebia outra parcela, outros dez por cento. Depois, remanescente do que havia sobrado da Embrafilme depois que a empresa foi
você tinha que apresentar o primeiro copião, e, enfim, recebia outra parcela. liquidada. Era um dinheiro para começar a produção, mas não para filmar. E
Enfim, era complicado. Mas era bem feito. Nenhum absurdo. ele falava: “100 mil reais? tá na lata”. O plano real tinha acabado de sair. “200
Na época, eu já era um cara safo, da Engenharia e da Administração. Eu e o Jo- mil reais, David? Não dá pra filmar!”. “Não, tá na lata!”. Esta era uma expressão
aquim conversamos com a Embrafilme, e combinamos deles darem o dinheiro de que a gente usava, que não existe mais. Isto foi em setembro de 1994. Ele
uma só vez, na condição de apresentarmos uma garantia para eles. O Joaquim era morreu em novembro, dois meses depois.

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Mariana de Moraes
DN: Mas ele deixou algumas indicações do filme que queria fazer, * é a protagonista de Fulaninha (1985).
alguma decupagem?
Carlos: Decupagem não, por que ele não fazia isto. Em 94, ele já estava na DN: Você ficou próxima de David Neves ainda muito jovem...
cadeira de rodas e eu preocupado com isto. Por que, como é que eu ia fazer um Mariana de Moraes: A gente se aproximou por uma afinidade de sensibilida-
filme com um diretor que não podia nem se levantar da cadeira? E o Emiliano de. David era um cara muito doce. Muito sensível. Um modo de ser muito poli-
Ribeiro era um grande assistente de direção. Tinha sido assistente de direção do. Um gentleman, um cara carinhoso, um cara capaz de conversar com uma
no “Dona Flor”, por exemplo. Ele estava trabalhando no Ministério da Cultura, criança, por exemplo. E acho que ele se encantou comigo. Quando eu era muito
na Secretaria do Audiovisual e eu o convidei para ser assistente de direção, pequena eu queria, eu já sabia que eu queria cantar. E que eu queria tá no pal-
de modo a ajudar o David a fazer o filme. Ele era muito qualificado, teve três co. Era um sonho com a música que eu tinha. E o David ficava encantado com
encontros com o David e, antes de morrer, o David disse: “O Emiliano dirige”. isso porque o David também tinha um lado de artista plástico... Tinha aquare-
As Meninas é um filme do David Neves. las belíssimas. Também tinha um trabalho fotográfico de polaroids... Ele vivia
aqui nessa zona de Copacabana, que era mais ainda ligado à prostituição, e
tinha umas polaroids das putas e dos travestis. Umas fotos muito bonitas...
Fortes. Eu era encantada de alguma forma, com aquilo. Fui criada num am-
biente múltiplo, onde tinham cineastas, artistas plásticos, músicos e poetas.
Eu fui esse lado do sonho do David, da conversa calma do David, acho que ele
gostava de conversar comigo sobre música, sobre cinema... A gente não era
da mesma idade, e acho que ele gostava de mim justamente por isso. De ter
esses papos mais filosóficos, mais culturais. Ele ficava encantado por como eu
cantava, como eu tocava piano e como eu interessava por Cinema e por Artes
Plásticas. Ele ia pra casa da minha mãe e ficava conversando comigo.

DN: Como ele te convidou para trabalhar com ele no Luz del Fuego?
Mariana de Moraes: Quando ele fez o “Luz del Fuego”, eu tinha onze anos e
tava voltando da França. Minha mãe se auto-exilou lá por uns três anos, mais
ou menos dos meus sete até os meus onze anos. Eu me lembro do David dessa
fase, de dez anos... Ele me convidou pra fazer um pequeno papel. Foi uma cena
que depois até foi cortada, acabou que não apareço no filme. Mas eu tenho a
minha primeiro foto de equipe. E a gente foi pra Paquetá filmar. Foi incrível. Foi
uma experiência bem bonita.

DN: Como é que era essa cena que não entrou no Luz del Fuego?
Mariana de Moraes: Tem um delegado no filme que resolve implicar com a
Luz del Fuego. E então era uma cena em que a filha do delegado vinha falar
bem da Luz del Fuego, e o delegado ficava fora de si. “Essa mulher é uma pe-
caminosa, está contaminando...”. Hoje em dia, talvez o personagem fosse um

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delegado fosse um evangélico. Então tinha uma confusão familiar que ficou que fazia a namorada de um deles. Mas a fulaninha era um mistério. Era
um pouco exagerada. Alguma coisa estourou. Não sei se foi a atuação, não sei literalmente um mistério. Acredito que ele fosse me filmar passando, me
se foi o som... Estourou e eu tinha uma fala. Eu falava: “Pai, olha que linda essa vendo conversar, na esquina. De longe. Acho que no argumento original, não
mulher aqui no jornal”. Foi incrível. Eu lembro das serpentes na filmagem. Ti- se sabia absolutamente nada sobre ela. Todos aqueles personagens foram
nha aquele balde com aquelas serpentes. Eu peguei nas serpentes. E a Lucélia inventados em função da minha idade. Ele mudou o roteiro. Tem uma cena
Santos tinha umas unhas imensas... que alguém fala: “ela tá na farmácia, deve tá vendo remédio pra espinha”. Eu,
nua, na cama com o namorado. Aquilo não existia. Todo esse roteiro foi inven-
DN: E como foi o convite para Fulaninha? tado por causa da minha vida real.
Mariana de Moraes: Ele me convidou pra fazer “Luz del Fuego”, e quando
ele me convidou pra fazer “Luz del Fuego”, ele também me convidou pra fazer DN: E ele te perguntou sobre a sua vida para fazer estas mudanças?
o próximo projeto dele. Eu tinha alguma intimidade com a câmera. Vivi minha Mariana de Moraes: Não. Mas ele sabia. Ele frequentava a minha casa. Du-
primeira infância até os sete anos em sets de filmagem: do Neville de Almeida, rante o período em que estava tentando arrumar o dinheiro, ele continuava
do Julio Bressane, do Rogério Sganzerla, do próprio Joaquim Pedro. Eu fiz o frequentando a minha casa. A minha casa era muito frequentada. Minha mãe
“Anchieta”, do Paulo Cesar Saraceni. Não era uma pessoa que a primeira vez era uma pessoa acolhedora. Ele viu: “Ih, a Mariana arrumou um namorado!”,
ia tomar um susto com a câmera. Acho que isso tudo foi uma percepção bem “Ih, agora a Mariana não tá mais... Tá começando a tocar flauta doce”, “Ih, a
lógica do David, que assim como o Vinicius de Moraes, meu avô, era considera- Mariana tá com espinha”, “Ih, Mariana, nasceu sua primeira espinha!”. Ele
do um porra louca. Na verdade, ele sabia muito bem. Ele tava chamando uma acompanhou as coisas assim, era um amigo próximo.
criança pra fazer o papel de uma criança. Mas uma criança que, por acaso, era
acostumada com set de filmagem. Era filha de artistas. DN: E como foi para você fazer esse filme?
Do convite para a filmagem, demoraram uns quatro anos. Na época do con- Mariana de Moraes: Um dia, ele veio pra mim e disse: “Mariana, o filme vai
vite, eu tinha 11 anos. Mas até aquele dinheiro sair e levantar toda a estrutura, ser feito, finalmente! Eu continuo querendo que seja você. Só que você mudou
eu já tinha 14 pra 15 anos. Era uma personagem que não tinha nem nome. “A muito e eu não sei se você ainda gostaria de fazer”. Na época eu estava virando
Fulaninha”, simplesmente um mistério total. No roteiro original, não se sabe- uma ostra. Totalmente problemática. Eu não queria ser atriz, e já não queria
ria nada sobre a vida dela.. aparecer tanto assim. Lembro do que passou na minha cabeça: “Puxa, talvez
trabalhar com isso seja uma maneira de eu sair pra fora”. Aceitei fazer.
DN: Ele te apresentou um roteiro? Na verdade, eu acho “Fulaninha” um filme maravilhoso. É um filme que têm
Mariana de Moraes: Eu tinha onze anos. Não me lembro bem. Mas me lem- vários defeitos técnicos de continuidade. Uma hora apareço com o cabelo cur-
bro que, na concepção original do filme, eu era simplesmente a “Fulaninha”. to, outra com cabelo comprido. Tem uns erros bárbaros. Mas ele é tão bem
Você não sabia quem era o pai ou a mãe, e nem onde ela morava. Por sinal, feito, não é verdade? Numa época em que não estavam se fazendo filmes ma-
ela não teria um namorado. Era uma menina de 11 a 12 anos, né? ravilhosos, e não se tinham bilheterias maravilhosas, nós tivemos um sucesso
O David escolheu uma criança pra fazer esse filme. Só que quando ele foi estrondoso. Eu tinha um recorte de jornal que mostrava que ficamos uns dois
filmar essa criança, ela já não era mais uma criança. Era uma adolescente. meses em cartaz no Cinema Leblon. Com o bonequinho aplaudindo. Houve
Eu já tinha um namorado. Já tinha transado, já não era mais virgem. Estava uma enorme sacada de marketing do David. Além dele gostar de mim, ele
com espinhas na cara. Estava mais inibida. Foi então que ele mudou todo o achou que minha participação poderia dar certo.
roteiro pra fazer comigo. Ele inventou o personagem do namorado, que não Assim que me escolheu, imediatamente, muitos atacaram ele: “Você é
existia. Até a mãe, interpretada pela Kátia D’Angelo, acho que não existia. um porra louca! Como é que você vai botar essa menina, essa menina não
No argumento original, eram apenas esses homens. E a Zaira Zambelli, é atriz...”. Eu era, de fato, uma ninfeta. Mas ele não lançou uma ninfeta, ele

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lançou a ninfeta neta do Vinicius de Moraes. Entende? Eu fui a grande jogada encontravam no bar, né? Então enquanto se esperava, neguinho ficava aqui,
comercial do filme, digamos assim, entre aspas. Foi a grande sacada de ma- bebendo e comendo e esperando.
rketing do momento. Eu sei que ele não me chamou por isso, mas... Ele teve a
grande sacada. Naturalmente, queriam chamar uma menina da TV Globo, que DN: Havia muito estímulo para o improviso?
já tivesse fazendo sucesso na televisão. Isso era uma coisa comum na época. Mariana de Moraes: Total. Mas um improviso muito dentro da história. Ele
Foi um resultado estrondoso, apresentar para o Brasil a neta do Vinicius de sabia o que estava querendo fazer. Tinha um roteiro, e eram todos atores ex-
Moraes. Nem que tivessem pago mil outdoors e um milhão de publicidade, celentes, muito bem preparados, muito experientes. Haviam falas escritas. O
teriam o mesmo resultado. Foi uma sacada brilhante do David. David escrevia muito bem. E não eram muitos takes. E ele quase não ensaiava.
Todos os personagens, a escolha dos atores, o roteiro, a intimidade que o Não tinha muito o que inventar, né? Estavam todos muito bem no clima.
diretor tinha com esse universo, com esses personagens. O fato de ser filma- Ele quis fazer tudo em um único lugar. Então, esteticamente esse lugar é
do tudo na esquina da casa dele... a gente não saiu realmente daqui. Ele é um esse lugar. A portaria do prédio dele. Há ângulos que se repetem, né? Eu pas-
filme tão... Ele é maravilhoso. É um filme maravilhoso, né? sava na banca. O ângulo do ponto de vista deles era basicamente esse bar, ou
aquele outro bar do lado do Cinema, que aliás foi onde foi a primeira projeção
DN: Como foi o processo de filmagem do Fulaninha? do “Fulaninha”. Foi naquele Cinema, que eu não me lembro mais o nome, na
Mariana de Moraes: A casa do David ficou sendo o lugar onde se guardavam Prado Junior. Tinha um Cinema ali, entre essa farmácia aqui da esquina e a
as câmeras, e o equipamento de som, e o que mais de pesado tivesse. E onde Barata Ribeiro, tinha um Cinema. Foi um filme barato. Tivemos deslocamento
a gente trocava de roupa, e se maquiava. Era o nosso camarim e uma espécie zero de carro. Carregava-se a câmera muito poucas distâncias. Era um filme
de depósito de equipamento. Não tinham deslocamentos monstruosos. Tudo bem barato. As filmagens dentro de apartamento demoraram um pouco mais,
que a gente fez foi na Prado Junior. E foi muito divertido. Os homens faziam pois tinha que iluminar. Mas a maioria eram externas, né?
papéis de uns caras que bebem à beça, então eles ficavam bebendo aqui mes-
mo, nesses bares. O Claudio Marzo estava um pouco fazendo um papel que ele
conhecia. O personagem do Claudio é o David. Tem muita verdade no filme, né?
Eu me lembro que o primeiro Festival que o filme passou foi em Gramado.
E teve um debate. Foi o meu primeiro debate de Cinema na vida. E tinha umas
pessoas na plateia que começaram a falar assim: “Mas eles falam muito pala-
vrão”, “palavrão demais, muito palavrão”. E o David ficou todo orgulhoso porque
eu respondi: “Mas, meu amor, é um filme com personagens que trabalham, que
vivem no baixo meretrício de Copacabana, são cafajestes, você queria que ca-
fajestes dissessem o quê? Poemas? Por favor, obrigada, meu bem... Que tarde
encantandora, não? Eles falam “Porra”, “Caralho”, é o linguajar deles”.

DN: O David dava esse tipo de instrução pros atores?


Mariana de Moraes: Não. Eu acho que ele fez tudo de um jeito quase que
teatral. Ele trouxe todo mundo pra cá e fez um laboratório. Só que durante a
filmagem, que já era um laboratório, entende? Ele era amigo de todo mundo
aqui, dos porteiros e das putas. Naquela época não se ensaiava. De uma cer-
ta forma ele convidou amigos. Eram todos atores amigos. Esses amigos se

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PAULO THIAGO DN: Mas ele foi o único a procurar esta aproximação?
*foi produtor de Fulaninha (1986) e codiretor de Museu de Ouro (1974) PT: Foi um pouco sim. Ele e, de alguma maneira, o Gustavo Dahl. Ambos
eram pessoas muito abertas. Apesar de eu ter conhecido a todos do Cinema
DN: Primeiramente, gostaríamos de entender como você entrou em Novo, e ter, inclusive, trabalhado como assistente em Capitu, do Saraceni, O
contato com o David Neves. David tinha esta coisa de buscar se relacionar com as pessoas mais novas.
PT: Existe um certo folclore em torno do David Neves. As pessoas costu- Foi então que, nos anos sessenta, aconteceu o “Festival Jornal do Brasil de Ci-
mam dizer: “o David Neves é incrível, o David Neves era muito legal, etc.”. O Da- nema”, o famoso Festival JB. Nós éramos uma turma: eu, Haroldo Marinho Barbo-
vid Neves era integrante do Cinema Novo. Era do núcleo duro do Cinema Novo. sa, Sérgio Santeiro, Antônio Calmon e o Eduardo Escorel - embora o Calmon e o
Basta dizer que o David Neves morava em frente à Rua da Matriz, onde morou Escorel tenham encontrado, desde cedo, relações mais profundas com o pessoal
o Cacá Diegues. E foi lá que começaram os encontros do Cinema Novo do Rio do Cinema Novo através do Glauber Rocha. O David Neves participou do Festival
de Janeiro. O primeiro filme do Carlos Diegues, o Domingo, foi fotografado pelo JB: ia a todas as sessões e, acabou se transformando em uma ponte entre nós e
David. Então, eles criaram uma irmandade, uma amizade forte, antes mesmo a organização do Festival. Ele começou a nos auxiliar e incentivar internamente;
da chegada do Glauber Rocha. fazia a intermediação com o Alex Viany, defendia filmes, trazia informações sigilo-
No entanto, o David nunca se enquadrou dentro do esquema político/social sas pra gente: “o júri lá gostou mais deste filme, deste” e coisas do tipo.
maior do Cinema Novo. O gosto cinematográfico do David sempre foi mais in- Ele ligava para nós. Nos procurava. Assim, mantinha uma relação muito le-
timista. Era um rapaz que admirava Bresson, um pouco do Antonioni. Truffaut, gal. Para se ter noção da troca entre o David e a nova geração, ele entrou como
por exemplo, se tornaria um grande amigo e David adorava seus filmes. Me co-produtor do primeiro curta-metragem que eu realizei, chamado A Criação
lembro de conversarmos muito sobre Bresson, o David adorava Pickpocket, Literária de Guimarães Rosa.
adorava Nicholas Ray e seu Johnny Guitar, adorava Resnais. Este cinema da
emoção, da delicadeza, da feminilidade. Eu acredito que, dentro do Cinema DN: E como isto aconteceu?
Novo, o cineasta que o David mais admirava era o Joaquim Pedro de Andrade, PT: Eu nunca vou me esquecer. Estava na passeata dos Cem Mil. E ele apa-
por causa da estética intimista do O Padre e a Moça. receu. Chegou perto de mim e disse: “Escuta, Paulo, você gosta muito do Gui-
marães Rosa, não é? Eu tenho como arrumar algumas latas de filme no Itama-
DN: E como foi a sua relação inicial com o David e o Cinema Novo? raty e, com isto, você faz o filme”.
PT: A patota do Cinema Novo era uma patota muito forte, extremamente
unida. O que significa que era difícil se relacionar com eles. Especialmente DN: Então foi ele que puxou isto para você?
para a minha geração. Nós éramos cinemanovistas. Começamos a gostar de PT: Ah, sim. Ele foi o produtor do filme. Foi ele quem me indicou o fotogra-
cinema junto deles, mas eles eram muito fechados entre si; eram pessoas que fo, um cara que ele conhecia lá de Belo Horizonte. Tinha um padre em Belo
se gostavam, que se autovalorizavam e se autopromoviam. O David Neves era Horizonte ligado ao cinema, o Padre Massote, fundador da Escola de Cinema
um crítico, um propagador, talvez até mesmo um lobbista, já que tinha uma da Comunicação. Ele indicou o fotógrafo ao David, e o David o indicou a mim.
relação com o Itamaraty. Quando eu conheci o David, ele andava de terno e Enfim, ele já sabia deste meu desejo de realizar algo sobre o Guimarães Rosa.
gravata, com uma pastinha estilo james bond na mão... Daí, o David fazia todo Nós conversávamos muito sobre isto, principalmente depois do Festival JB,
um lobby internacional promovendo o Cinema Novo no mundo. onde passou o meu curta Memória e Ódio, que ele adorava.
Mas ele tinha uma característica dentro desta conjuntura do Cinema Novo
que era bastante diferente. Era uma pessoa muito generosa. Por isto, ele se DN: E depois desta experiência?
aproximou muito da geração mais nova. PT: Um belo dia, o David bateu na minha porta. Falou que eu gostava de li-
teratura e de escrever roteiros. Então, me apresentou o roteiro de Memória de

76 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 77
Helena, escrito pelo Paulo Emílio Salles Gomes a partir de um argumento dele. derno e fui bater na casa dele, na Viveiros de Castro.
O David me pediu para fazer uma revisão do roteiro; que eu visse e dissesse o Eu falei: “David, vem cá. Vamos em todos os lugares que você bolou esta his-
que eu gostava. Fiz este trabalho para ele, e nos demos bem. tória, onde você viu esta menina, por que este filme é a sua cara”. Então fomos
Após isto, houve um concurso do Ministério da Cultura para desenvolver de locação a locação. Anotei tudo e fiz um roteiro. Ele adorou. Mas, depois, fi-
um curta-metragem que ganhei. O projeto se chamava Museu do Ouro. Não me quei inseguro de produzir alguma coisa em cima de algo que eu mesmo havia
lembro como, mas o David se envolveu com aquilo. Ele chamou um poeta, que escrito. Então, na hora de produzir, chamei o Haroldo Marinho Barbosa, que
acabou escrevendo o texto deste documentário. Fui então filmar meu longa- também assina como roteirista, para fazer a versão final do roteiro. Eu nunca
-metragem, o Duelo, e acabei deixando o curta-metragem na mão dele. Foi ele me esqueço de como o David criava. Me lembro, caminhando com ele pelas
que finalizou o curta-metragem. locações, de já estar vendo esta filme já na minha frente. Nós fomos juntos e
Com o passar dos anos, continuamos muito amigos, se encontrando e con- contratamos a Mariana de Moraes para fazer a Fulaninha. Foi uma ideia dele.
versando frequentemente. O David tinha uma visão cinematográfica muito E ele sorria, feliz, dizendo que este filme era muito barato, que este filme “não
rica. Era um cineasta bastante rígido. Ele assistia o que eu estava fazendo, e tinha Kombi”. Eu perguntei como é que não havia Kombi. E ele dizendo que ele
comentava criticamente. Depois que ele foi morar lá na Prado Júnior, começou morava logo ali, que as cenas eram na esquina da casa dele.
a ter um período de mais esbórnia.
DN: Nós fizemos o caminho das locações com a Mariana. E, realmente,
DN: Parece-nos que este período difere bastante do anterior. era tudo muito próximo.
PT: Muito. O David Neves que eu conheci não era um frequentador de bar. PT: Era, mas não era. Acabaram que tiveram Kombi, como também quase
Era um cara de terno e gravata. Quer dizer, este período de esbórnia e bar foi não teve portaria. Por que você vai filmar em uma portaria e é sempre difícil,
posterior. Se você olhar o Memória de Helena, você percebe que é bastante as pessoas precisam ir e vir, dificulta muito o fluir da filmagem. Resultado da
diferente dos outros filmes que ele realizou. É um cinema rigoroso, orgânico, história: ali na Prado Júnior, existiam umas lojas de automóvel, que não sei se
até bressoniano. O que é bem diferente do que ele irá realizar depois, quando ainda existem, e nós fomos obrigados a alugar este espaço e fazer portarias,
começa um novo ciclo a partir do Muito Prazer. O Muito Prazer ainda preserva construir portarias! Nós fizemos umas três portarias, tivemos de misturar
um pouco do intimismo dele, mas Luz del Fuego já é outra coisa. portarias reais com portarias construídas nestes espaços.
Foi nesta época que o Moletta se aproximou de mim, e me falou sobre A Como o David estava passando por um período relativamente anárquico,
Fulaninha. Ou melhor, chegou até mim um recado do Moletta me convidando pós-Luz del Fuego, eu pedi auxílio ao Marco Antonio Cury, assistente de direção
para produzir o filme. Eu estava trabalhando com produção naquele momento. e montador, que se tornou uma figura fundamental no Fulaninha. Ele auxiliou
Tinha produzido um filme do Haroldo Marinho Barbosa, o Engraçadinha. Alias, na decupagem, na construção dos movimentos de câmera. Tem uma história
o David Neves aparecia nas sessões de montagem de Engraçadinha. Ele era muito engraçada: o Moletta um dia me ligou desesperado. Ele disse: “Paulo,
quase um irmão mais velho da gente. Eu acho que minha geração deve muito esta filmagem do David está uma loucura. O pessoal fica o dia inteiro no bar,
à generosidade do David. Quando ele me procurou para falar do Memória de está uma bagunça. Você vai lá por que você vai impor uma moral em cima do
Helena, eu tinha vinte anos. David...”. Eu não entendi direito mas eu fui lá. Chego lá e, bom, estava tudo
funcionando maravilhosamente! O David, o Marco Antônio... tudo indo bem!
DN: E Fulaninha? Eu cai na gargalhada. O David estava brincando com o Moletta. Eu falei: “Te
PT: Assim como no Memória de Helena, o David Neves apareceu na minha enrolou...”. E ainda tinha a questão das homenagens...
casa. Disse que queria fazer Fulaninha e trouxe o argumento base, que eu acho
que foi escrito pelo mesmo cara que depois fez com ele o Jardim de Alah. Ele DN: Que homenagens?
perguntou se eu não gostaria de entrar e participar. Eu aceitei, peguei um ca- PT: Ah, o filme era repleto de homenagens. Homenagem ao Joaquim Pe-

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dro, homenagem ao Glauber, homenagem ao Alexandre Eulálio, etc. E ele fazia
JOEL BARCELlOS
sessões privadas para estas pessoas, para poder mostrar o filme e a home- * foi ator coadjuvante em Memória de Helena (1968), Luz del Fuego (1981)
nagem. Então, o Marco Antônio Cury chegou para mim um dia e me disse que e Jardim de Alah (1988)
eu tinha que conversar com o David. Por que o Marco Antônio não conseguia
chegar ao corte final, já que as homenagens estavam empacando o ritmo. Era JB: Creio ter sido no bar da Líder. Na rua Álvaro Ramos. Era lá que todos nós
homenagem até dizer chega. Eu era sempre chamado para dar uma conversa nos reuniamos. Depois, quando eu fui à Europa, trabalhar no cinema europeu,
pessoal com o David, por que eu entendia de onde ele estava vindo. eu o reencontrei lá em Roma. Os italianos diziam que ele era il critico. Ele, il
Então, eu falei com ele sobre estas homenagens. À princípio, ele não queria critico, o Antônio Carrilho era il consul e o Glauber era il regista. Os três viviam
tirar, e eu entendia. Mas, então, eu falei para ele que, de certo modo, ele já tinha juntos por lá. Foi então ele me veio me tirar do pau de arar para fazer um ro-
mostrado a homenagem para todos os homenageados nas sessões privadas. mance, o Memória de Helena.
Ele concordou na hora, virou e mandou o Marco Antônio mudar o filme!
Enfim, eu adoro o filme. Aquele plano inicial... DN: Por que diz isto?
JB: Por conta de Os Fuzis. O Glauber dizia que eu nasci para fazer o papel
DN: Sim, é um plano impressionante, realmente marcante. de nordestino. Cangaço. E o David Neves veio e me dá um papel de galã em
Como ele foi realizado? Memória de Helena. Minha aparição é pequena, mas muito importante, já que
PT: Aquele plano foi feito com uma grua no meio da Prado Júnior. Foi ideia causa uma mudança profunda dentro da personagem principal, a Helena. Por
do David, ele queria começar o filme daquela maneira. Ele dizia: “vou começar coincidência, alias, a pessoa que faz a Helena Morley, a Rosa Maria Penna, era,
o filme com o plano daquelas árvores que é uma coisa, depois a câmera abre na época, namorada do Glauber Rocha.
e mostra outra, completamente diferente, que é este mundo da Prado Júnior”. Me lembro que eu li todo o romance1, eu era um ator super caxias, sabe? Eu
Não parece Copacabana. Parece outro lugar. Era um pouco esta a visão poéti- fui para Diamantina, eu adorei lá, que locação bonita. O David confiava muito
ca do David. Eu considero Fulaninha uma fábula, e não um filme realista. Não em mim e eu sou muito grato a isto. Ele não tinha muitas exigências comigo.
existe esta coisa crua, documental, este desejo de mostrar a “realidade” bra-
sileira. Ele não estava nesta. É um filme lírico. A fulaninha realmente existiu... DN: Mas ele te dava muitas indicações?
JB: Sim, claro. Mas ele não era um diretor de ficar pegando no nosso pé,
DN: Existiu? compreende? Ele, quando repetia, ia no máximo duas ou três vezes. Ele con-
PT: Sim. Ele me levou exatamente nos locais onde eles viam a Fulaninha. Os fiava por que eu tinha muita experiência já. Na época, eu fazia dois filmes por
bares onde eles a viam passar. Nós fomos atrás da fulaninha. Era uma menina ano. Eu trabalho desde 1964, então já tinha passado por O Desafio (Paulo César
bonita que passava, e todos comentavam. Uma espécie de “Garota de Ipane- Saraceni, 1965), A Falecida (Leon Hirszman, 1965), Copacabana me Engana (An-
1
ma”. É um filme biográfico, entende? O filme é a cara do David Neves. tônio Carlos Fontoura, 1968). Além disso, eu era um ator muito exigente, não Memória de Helena foi
fazia mais do que dois filmes ao ano, de modo a me dedicar. livremente inspirado no livro
O David era um cineasta diferente. Era alguém que trabalhava a partir do Minha vida de Menina, de Helena
afeto, da aproximação, da intimidade. E falava constantemente do universo Mas, ao mesmo tempo, era já um ritmo que eu conhecia, que era o jeito do Morley, publicado pela primeira
vez em 1942. O livro foi muito
feminino; o que é raro dentro do cinema brasileiro, principalmente na época. Cinema Novo. A gente sentava, botava o roteiro na mesa, os atores discutiam bem recebido e criticamente
com o diretor, dávamos palpites. O diretor acatava ou não, mantendo o conte- aclamado por literatos como
A maneira como ele falava, a delicadeza. E ele também foi um formador da Carlos Drummond de Andrade
gerações. Ele participava, indo nos sets, nas salas de montagem. É muito im- údo geral da obra. e João Guimarães Rosa. O livro
recebeu análises profundas do
portante que se lembre disto. crítico Alexandre Eulálio, primo
de David e razão pela qual o
DN: Memória de Helena foi realizado em 1967. Depois, você e David só diretor travou contato com a
trabalharam juntos novamente em Luz del Fuego, já na década de oitenta. obra de Morley. (N.E)

80 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 81
Como foi a reaproximação? personagem era meio alucinado, de um brasileiro que conquista a mulher de
JB: Luz del Fuego tinha muito mais gente. Mas, eu mesmo, apareço mais um milionário italiano e é internado, o milionário manda interna-lo. O David
para o final, assim como em Memória de Helena, após o momento que Luz adorou a cena. Em lembro que, no filme, o Gianni colocava a música “País
abandona o teatro e resolve morar na ilha. É na ilha, ou através da ilha, que Tropical”, do Jorge Ben, para acompanhar.
ela conhece o Canário.
Eu tinha a maior admiração pela Luz del Fuego. Ela era uma mulher fantás- DN: O David faz a mesma coisa.
tica, revolucionária. Eu fiquei muito, muito feliz em ser selecionado para fazer JB: É mesmo!? Então, é isto! É uma homenagem ao Gianni Amico. Eles se
o papel do derradeiro amor de sua vida. Eu a seguro no colo como uma filha. adoravam. O David apareceu um dia e filmou de forma livre. “Faz uma embai-
A Lucélia era pequenina. Na verdade, não era para ela fazer a Luz del Fuego, xada”. Deve ter, depois, encaixado isto no programa como forma de homena-
já que a Luz era cadeiruda, mulherona. Mas a Lucélia fez questão de fazer o gem secreta ao amigo. Ele fazia estas coisas.
filme, por que, como eu, era também louca pela Luz del Fuego. Quer dizer, ela
ligava para o David, implorou para fazer o papel. Ela foi maravilhosa. DN: Jardim de Alah?
JB: Me lembro que ele me fez andar de motocicleta. Imaginem, eu não sei
DN: E como foi a construção do personagem do Canário? dirigir motocicleta. Ele filmou dentro de um caminhão, colocando a câmera
JB: Eu mesmo, como se pode ver, moro em uma vila de pescadores. Eu te- baixa. Então, eu apareço dirigindo, fazendo tráfico de drogas. Aquela brinca-
nho muito trato com o mar, com puxar um barco, com o modo de agir. Me lem- deira do “Michael Caine” do filme.
bro da parte final, quando eu canto a música Juizo Final. A vitória do bem sobre Eu tenho muita gratidão a ele neste filme. Por que o David vivia naquele bar,
o mal. Eu grito lá em Paquetá, e foi um grito tão forte que ecoou lá em Mauá, eu o Santo Expedito, que até hoje existe na Prado Júnior. Eu, um dia, fui lá de ma-
atravessei a Baia de Guanabara. Por que ele vai preso, entende? Ele está até nhã e me encontrei com eles, o David e seus amigos. Todos estavam bebendo
hoje na cadeia, o assassino. Mas o David discordava disso, não acreditava que e eu resolvi acompanhar, enchendo a cara. Eu acho que fiquei três dias bêbado
o Canário era o assassino, e sim os pescadores que a Luz del Fuego denunciou com o David naquele bar.
por pesca cativa, pesca nociva, de jogar dinamite para pescar peixe. Então, meus deus, foi o único filme que eu fiz embriagado. Quando eu fui ver
o copião, eu não aguentei. Por que tudo o que eu conseguia olhar era aquela
DN: Isto foi um dos pontos centrais do personagem, do David querer minha cara amassada, de bêbado, horrível. Eu pedi ao David que tirasse aque-
que ele seja inocentado? la minha cena, que era uma cena de cama com a Françoise Forton. O David,
JB: Sim, ele falou, ele sabia que não era o Canário. Ele discorda da versão muito delicado, me disse que não, que eles iriam era refazer a cena. Imagina,
oficial. Na oficial, é o Canário, foi ele quem pagou o pato. chamar cenário, figurino, atriz. Foi uma grande delicadeza por parte do David.
Uma coisa boa foi quando eu fiz a cena novamente com a Françoise Forton e
DN: Em nossas pesquisas, descobrimos no CTAV um programa de ela disse: “Mas é um outro homem!”. Sóbrio, é diferente. Não dá pra trabalhar
televisão realizado através da Embrafilme, dirigido pelo David Neves. embriagado, não dá.
O programa chama-se Cinema e Futebol.
JB: Vocês conhecem isto? Nossa. Foi logo depois do Luz del Fuego. Isto ocor- DN: Você chegou a conviver de forma cotidiana com o David?
reu por conta de um filme que eu havia feito com o Gianni Amico, que era JB: Como eu disse, eu ia muito ao Santo Expedito. O David era um diplomata,
muito amigo do David Neves. O nome do filme era O Inquerito, e o roteiro era educadíssimo, incapaz de falar alto, um piadista fantástico, cheio de piadas
do Bernardo Bertolucci. Nele, tinha uma sequência em que eu apareço fazendo mineiras engraçadas. Ele era muito engraçado. Tinha um humor sutil, muito
uma mímica, jogando futebol. Eu brincando com uma bola imaginária, travan- sutil. Acho que se percebe isto nos filmes, a sua delicadeza. Quer dizer, ele não
do no peito, colocando no chão, dando drible da vaca na cadeira, na mesa. Meu mata a Luz del Fuego, não tem coragem de mata-la.

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Pudim e disse que eu estava duro, precisando de uma ajuda. Ele me deu 1500
DN: Quase todos os seus filmes são sobre personagens femininos. dólares. Fez um cheque e me deu. Depois, quando eu estava trabalhando na
JB: Ele era apaixonado pelo universo feminino. Pelo mundo feminino. E as Globo, ele já tinha estourado o dinheiro todo. Eu o encontrei no Santo Expedito,
mulheres também eram apaixonadas por ele. Ele era muito querido. Me lem- bebendo cachaça, triste. Cheguei perto e perguntei o que houve. Ele estava
bro do Jacaré, por exemplo. O David tinha muitos amigos e o Jacaré era um de- sem dinheiro algum. Então, eu puxei um cheque e lhe devolvi 1500 dólares.
les. O Jacaré era um mendigo que dormia debaixo de uma marquise na Nossa
Senhora de Copacabana. E o Jacaré almoçava com o David, o David pagava o DN: Mas você sabe quanto tempo eles ficaram presos naquela
almoço dele. Mas, o que é mais interessante é que o David era amigo também suíte presidencial?
de um ex-governador de Brasília, que era um político mineiro, da turma do JB: Até, mais ou menos, 700 mil dólares. Quer dizer, imagina, era 1989/1990.
Stanislaw Ponte Preta e do Antônio Maria. E este meu amigo, com sua limu- Era o fim da ditadura, o fim da repressão. Mas as coisas estavam difíceis. Di-
sine, ia lá com seu motorista falar com o David Neves no Santo Expedito. E o fícil fazer filme. Tudo parado, parando. Fim de uma era. Era difícil para eles.
David falava com ele, enquanto almoçava com o Jacaré. De um lado, o político. Muito. Talvez fizeram pela esbórnia, talvez fizeram como um ato de desespero.
Do outro, o lupen, o mendigo. Eles eram bastante ou é tudo, ou é nada.

DN: O David parece ter esta rara especialidade de se dar com que DN: E a fase final da vida do David? Você, por acaso, foi visita-lo,
encontrasse, de se adaptar e transformar os espaços onde convivia. acompanhou este momento?
JB: Sim. Mas existia o lado “B”, também. Como a história do Pudim. JB: Sim. Eu o acompanhei durante a doença, depois que ele pegou, bem, a pes-
te3. Eu sempre ia visita-lo, conversava com ele, lia os jornais da manhã. Me lembro
DN: Qual história do Pudim? que, quando piorou muito, foi morar novamente na casa da mãe, na São Clemente.
JB: Não conhecem a história? Bem, o Pudim2 ganhou certa de 700 mil dó- O Fernando Sabino foi, também, um grande amigo e um grande apoio para o
lares da Petrobrás. Então, ele alugou uma cobertura, uma suíte presidencial David. Foi o Fernando que pegou o David e o levou para fazer uma transfusão
do Hotel Ouroverde. Mas o Pudim não alugou para ele, ele alugou para todo geral de sangue, como um último recurso, entende? Para ver se conseguia
mundo. O David resolveu basicamente morar lá. salvar o David. O Fernando se esforçou demais, gostava muito do David.
Então, o Tininho, que era diretor de produção do Nelson Pereira dos San- Eu sinto muito as duras perdas que eu tive em minha vida, e o David Neves
tos, me ligou pedindo auxílio, por que as pessoas estavam lá dentro em uma foi uma das mais importantes. Pela amizade, pelo carinho. Imagina, nunca ti-
esbórnia total, ninguém querendo sair. Tinha de tudo: pó, maconha, bebida, e, vemos uma única discussão. Política, então, nunca. Não discuta política, não
ainda, basicamente todo o prostíbulo do Leme. Quer dizer, todas as meninas fique discutindo política. 3
que faziam programa no Leme foram ao apartamento. Imagina, era uma suíte “Por grandes ideologias, se perde grandes amigos. Por grandes amigos, se per- David Neves morreu em
decorrência de complicações
presidencial toda paga. Como eu sempre fui mais caxias e não usava nada, o de grandes ideologias”. Ele que dizia isto. E Hoje, eu penso: que frase profunda. através do virus da Aids. (N.E)
Tininho acreditou que eu pudesse entrar lá e conversar com eles, de modo a
tirar todos de lá.
Bem, eu fui. Quando eu entrei, eu senti um ambiente cinza, um ambiente pe-
sado, mulheres dormindo na cama e eles cheirando e bebendo. Uma esbórnia.
Então, eu falei com o Pudim, que foi produtor do Nelson Pereira dos Santos e
do Di-Glauber. Tentei dissuadi-los, acorda-los, sabe? Eu vire uma noite com
2 eles lá, conversando, buscando convence-los a abandonar aquela loucura.
Curta-metragem de Glauber
Rocha, rodado em 1977. Enfim, eu não consegui. Me lembro que logo antes de eu sair, eu virei para o

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TEXTOS DE
DAVID NEVES
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Duas peças de Bach
Uma coisa suave que existe ainda neste mundo de rispidez e desconforto é dois exemplos aludidos, ver a que ponto lhe era sincero e franco, simples e
este coral sublime de J. S. Bach: “Jesus alegria dos homens”. E outra, o “Si- cordial este “inexpressível”. Nosso espírito faz o possível (e o impossível) para
ciliano”, da Segunda sonata para cravo e flauta. Aliás, Bach prima pela suavi- adaptar-se à música ouvida. Ao fim do coral bachiano, voltamos ao mundo
dade (mais do que Mozart, outro apaziguador nosso) fluente que lhe jorra das ensurdecedor, vindos como que de um outro universo. Bach nos enleva e nos
composições tanto explícita como implicitamente. A primeira peça traz-nos conduz à mais profunda experiência interna. Temos a intuição, desde o início,
uma estabilidade interna tão grande que nos leva às mais variadas medita- do seu convite à meditação.
ções, podendo também nos conduzir a maravilhosas transformações. A se-
gunda, além desta estabilidade – em intensidade menor -, faz-nos meditar so-
bre o gênio do compositor de Eisenach. Ambas são estreitas variações sobre o
pequeno tema, o que, se não evita a redundância, causa um efeito imprevisível,
resultante direto dessa mesma redundância. Mas o principal sintoma, causa-
do pela primeira peça, é o do sentimento de fraternidade a que ele nos incita.
Este é o ponto de partida para outros, nele refletidos, que do ponto de vista
cristão é mais útil do que uma verdadeira catequese. O coral “Jesus alegria
dos homens” é de uma pureza que nos toca os sentidos. Sua melodia comove
e exalta, recoloca-nos dentro de nós mesmos. Seu tema nos induz à caridade,
ao amor; nos rememora a mesma infância cuja simplicidade vai até o exagero.
Outra característica essencial é a celestialidade que ele proclama.
O “Siciliano”, por sua vez, restringe-se mais ao terreno (no sentido em que
não é celestial) do que ao metafísico. Apesar do andamento ser acelerado, é
dolente o desenrolar da melodia. É então que nos comove a genialidade de
Bach. Parece-nos mais um pranto do compositor. Ele nos força à introspec-
ção pela tristeza evocada e assim ficamos concentrados até que, de volta em
volta, um acorde diferente, mas típico, nos adverte que despertemos; porque
realmente, daí a pouco, esvai-se a última sílaba musical. Se acordamos de
uma letargia triste e comovente, quase chegada às lágrimas, se nos havíamos
recolhido o mais possível para captar esta mensagem invisível, mas tão bela,
ficamos chocados com a realidade. Há agora um silêncio material, seco e rís-
pido. Não como havia antes, aquela profundidade silenciosa de Bach.
“After silence, that which comes nearest to expressing the inexpressible is mu-
1
Em inglês: “Depois do silêncio, sic. (And, significantly, silence is an integral part of all good music...)”1, nos ensina
o que mais chega perto de
expresser o inexprimível é a
Aldous Huxley no ensaio (que eu chamaria artigo) “The rest is silence”. A pró-
música. (E, significativamente, o pria música é uma experiência interna, auxiliada, naturalmente, pelo exterior.
silêncio é parte integral de toda
boa música…)”. Sendo, então, a música “expressão do inexpressível”, em Bach podemos, nos

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88 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 89
Relações Internas (para os desconhecedores) se, num filme, um indivíduo subisse à torre Eiffel e
de lá vislumbrasse o Pão de Açúcar e todo o contorno da baía de Guanabara.
A funcionalidade cinematográfica neste ponto realiza-se, não objetivamente
Embora surjam, invariável e intermitentemente, processos que visam à tridi-
na tela, mas na pessoa do assistente.1 O cinema realista começa, portanto, de
mensionalização do cinema, seu período vital é insignificante porque, conheci-
um pressuposto falso de realidade. Porque, de um modo geral, o seu realismo
da a novidade, o interesse geral retorna aos moldes clássicos e constantes da
espacial não é verdadeiro e tem caracteres de virtualidade. Para haver com-
tela plana. De todas as tentativas modernizadoras, o cinemascope foi o único
provação de uma ordem legítima e lógica de lugares, durante a movimentação
que manteve (e, ao que parece, não mais perderá) um atrativo mais intenso
dos personagens numa película, seria necessária minuciosa sequência eluci-
(talvez pela facilidade de adaptação ao grande público).
dativa de planos gerais e de grandes planos que nos dessem, dela, uma ideia
Tudo isto se explica por uma razão muito simples: o cinema já é, em si pró-
segura. Mas isto é quase impossível.
prio, uma arte tridimensional. E estas frequentes investidas nada mais de-
A montagem influi na questão, pois facilita o reconhecimento mais comple-
sejam do que inserir-lhe uma nova (e acessória) dimensão – a da sensação
to (e até repetido) através da sucessão de planos. Vai ser, porém, pelos movi-
palpável de profundidade.
mentos de câmera que mais nos aproximaremos de uma tomada de consciên-
Tal tridimensionalidade inerente ao cinema, de que falamos, refere-se, cla-
cia da realidade. Acreditamos sinceramente nesta capacidade dos travellings
ro está, às três medidas geralmente difundidas e, na última idéia de profun-
e panorâmicas, por meio da qual um lugar é reconhecido em relação a outros,
didade, agrupam-se ainda inúmeras outras que, não fora a síntese proposta,
quando a verificação se faz meticulosa. Mesmo neste setor, porém, estamos
trariam à sétima arte um caráter polidimensional.
reduzidos à constatação de gênero particular. Quase todos os filmes de Max
Incluem-se, portanto, nesta noção, inicialmente sua principal caracterís-
Ophuls exemplificam nossas palavras. Nos casos em que a descrição espacial
tica, aquela de proporcionar o cinema ao espectador uma verdadeira uni-
torna-se necessária, apela-se então para os planos fixos e curtos.
versalidade de lugares, que varia unicamente de acordo com a vontade do
No cinemascope, a atração do processo ainda reside na amplidão longi-
realizador, ou com as necessidades da obra filmada. Semelhante latência 1
tudinal da tela. Desde o seu primeiro êxito – Bad day at black rock de John Seria interessante lembrar
espacial é importantíssima e, através dela, o cinema cria as mais diversas aqui a relação que o exemplo
Sturges – este fascínio tem-se mostrado cada vez mais sensível. A overture
atmosferas, no mais exíguo dos ambientes. À guisa de exemplo, lembramos mantém com os resultados
do filme, à qual se sobrepõe os títulos, é o prenúncio do predomínio da en- da famosa experiência de
os efeitos magistrais obtidos por Bresson e Hitchcock em Un condamné à Kuleshov.
vergadura cinemascópica.2
mort s’est échappé e The wrong man, respectivamente. A noção típica de 2
As primeiras utilizações em profundidade, válidas, do sistema anamórfico,
Tomada do alto, em plano
profundidade faz parte também do grupo principal dos acessórios desta la-
deram-se com Sait-on jamais e Lola Montès, havendo também, a rigor, certo afastado, a cena de um trem
tência. O efeito acarretado pelas objetivas de foco curto requer, para sua correndo pelo deserto. A
virtuosismo em Forty guns e House of bamboo, de Samuel Fuller3. Este último câmera acompanha o avanço
definição mais adequada, certa largueza espacial (sua difusão provém, como da composição. A linha férrea
filme é menos um policial (o tema é banal e “organiza-se” com o transporte corta a tela de um lado a outro.
já vimos, de Orson Welles e William Wyler).
das ações para Tóquio) do que interessante advertissement turístico. A tela
Há, igualmente, atrás da variabilidade das extensões cinematográficas, um 3
ampla favorece, por outro lado, sintetizações espaciais que evitam a presen- Outros filmes nos quais revela-
profundo desentendimento com o real. Mesmo nos filmes ditos realistas, a se a utilidade do cinemascope:
çaa constante e obrigatória da elipse. O insignificante Cette sacrée gamine, de Oh! For a man e The girl can’t
relação espacial através de uma ordem de planos é produto direto dessa ca- help it, de Frank Tashlin,
Michel Boisrond, apresenta nos momentos finais, em que são convocados di-
Bonjour tristesse, de Otto
pacidade cinematográfica. Não se tem nunca, nem mesmo nos planos gerais,
versos amigos para exterminarem uma quadrilha de ladrões, todos os chama- Preminger, East of Eden,
a noção fiel das diversas relações espaciais. A intenção do cinema funda-se de Elia Kazan, etc.
dos telefônicos subsequentes no mesmo plano, com a progressiva iluminação
na fixação a um determinado local. A correlação entre dois ou mais ambientes 4
de diversas partes do écran4. O enquadramento colabora amiúde para uma Feuillade já havia feito, em
corre por conta da imaginação (nossa percepção fica determinada pelas nor- 1912, com Le Nain, repartição
transcendência do mero valor estético da imagem, dando-lhe funções outras,
mas da lógica tout court) do espectador. Por exemplo: nada haveria de anormal semelhante da tela, por ocasião
como a psicológica. Em decorrência, veremos que geralmente a câmera em de um chamado telefônico.

90 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 91
plongée pode fazer uma subjetivação evocadora de superioridade (de maneira
inversa, a posição de contre-plongés significa subserviência etc.).
Diário de Luz Del Fuego I
É muito comum a identificação dos dois conceitos bastante diferentes que
são tempo e espaço. (Ouve-se aqui e ali a expressão espaço de tempo, e esta
I
talvez seja a prova “popular” de sua permanente confusão). No cinema ela
Pânico em Paquetá
existe e se subordina a certos fatores cuja essência lhe necessita a presença
Meu deus, tem um bicho rodando em cima da minha cabeça, tenho medo
invariável. Em filmes de suspense não se pode distinguir um do outro. Volte-
que ele me morda, mas ele não vai se o Paquetá não permitir. Ele também tem
mos outra vez a Un condamné. É incontestevel o fato de contarmos, no íntimo,
medo, muito medo, mais que eu –
em termos de espaço (aquele que o separa do último muro), os minutos de que
5
Tratamos, no momento, de necessita para libertar-se. E vice-versa.
relacionar o suspense ao ***
Disto, deduzimos que o suspense cresce na razão direta do acréscimo espa-
espaço cinematográfico. Há 14.6.81
outros elementos, que não nos cial. Mas esta variação é simplesmente quantitativa.5
interessam aqui, colaboradores A escolha da Ilha do Sol foi uma das primeiras odisseias da preparação de
para o acréscimo do efeito De toda descrição minuciosa de um lugar decorre sua integração no conteúdo
suspensivo angustiante: Luz del Fuego. A possibilidade com que nos brindou Lucélia Santos unindo o
obstáculos, imprevistos etc.
da trama. Filmes típicos de introspecção podem ser realizados por meio de um
papel título com garra e empenho deixou para um plano muito longínquo a
apoio na funcionalidade da influência do espaço. Sua utilização mais poderosa
6 preocupação que me assaltava anteriormente.
O uso disseminado da solução está neste paradigma superior de filme intimista que é La Passion de Jeanne
temporal através das fusões Fiz algumas incursões à legítima ilha e confesso não ter podido ocultar meu
causou alguma discussão na d’Arc, de Carl Dreyer, onde todo o caráter de extensão se encontra fundido no de
época em que God’s little acre deslumbramento documental. Aquelas minhas eternas preocupações ficcio-
intensidade. (Espacialidade facial significa a temporalidade do espírito).
foi exibido. No filme de Anthony nais e a intenção prévia de glamourizar este filme com intuitos de comunica-
Mann há uma passage em que As fusões ou sobre-impressões são processos com os quais também se
a investida do personagem ção foram por água abaixo nas visitas àquela ilhazinha compacta, homogênea
(Aldo Ray) sobre uma das filhas visa à exploração dos âmagos anímicos e, por isso, temporais. Um fundido
(Tina Louise) do proprietário e, sobretudo, confortável.
do rincão (Robert Ryan) é
encadeado precede sempre a manifestação da memória, nas evocações do
A casa original de Luz, na sua arquitetura niemeyeriana, sua claridade in-
levada a cabo por meio de passado. Memória, para nós, não passa de um meio de realização indireta
sucessivas fusões, cujo efeito terior, sua permanente circulação de ar, seu duplo aspecto de conservação e
não confere com o que se deduz da (porque certas rememorações nos produzem em primeiro lugar, efeitos
após a complementação da decadência (necessário na sequência 55), tudo isso trazia um sintoma de con-
sequência. Sobre o emprego afetivos) recherche do tempo. Existem porém fusões que não têm este valor
extra-temporal das fusões, vale centração que foi por água abaixo com o abandonar da locação, em virtude do
retroativo e se constituem em meros processos retóricos para a passagem
lembrar os nomes Orson Welles preço exorbitante e incompreensível cobrado pelo novo concessionário.
e Citizen Kane. de um plano a outro.6

***
14.6.81
Visita de Marco Antônio Cury, Neville e Liége
O Homem das cobras, Noel de ------ tem acompanhado a Virgínia, Jiboia
de estimação da nossa Lux (Lucélia Santos). Noel é correspondente cor-
responde ao ator Marco Antônio Soares (Agildo) por sua(s) permanente(s)
intromissão(ões) nas filmagens, nos ensaios, etc. A comparação é excelente, é
até pérfida mas é o que acontece – ninguém é perfeito!
Noel é um grande curioso especialista – Marcos um ator enciumado (no
bom sentido da emulação). Este último guarda grandes cargas de histórias,

92 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 93
mesmo conservadoras seguramente prum filme s/ Luz Del Fuego que ele con-
cebeu e conservou na cabeça o Glamour que quero adicionar, como ficção, ao
O Primeiro Passo
documentário que estou finalizando. Luz Del Fuego está longe da concepção
Já faz algum tempo que assistimos a Caminhos, mas a impressão agradável
perceptiva que me propõe os atores (e outros) – mas que serão orquestrados
que sentimos permanece até hoje. O bom lado desta impressão foi significati-
na montagem final, à minha revelia – ou à revelia deles, os atores.
va e despertou-nos o desejo de revê-lo.
Noel e Lourival são gurus de um filme que de um certo ponto de vista é
Paradoxalmente, aquilo que mais nos agradou no filme de Paulo Saraceni
considerado MÍSTICO e, de outro, AMBÍGUO. Para mim, o ferve-a-ferra se
foi o seu lado amadorista: as experiências devem ser tomadas sempre como
transfigura no brilho do sol reminiscente das tardes da Ilha das Flores* e nos
buscas, jamais como descobertas consumadas.
highlights em contraluz de LIMITE de Mário Peixoto – Mar e Sol (sem trocadi-
O C.E.C. [Centro de Estudos Cinematográficos] talvez venha a exibi-lo e en-
lho) me fazem recordar a infância na inesquecível Hospedaria de Imigrantes
tão os interessados poderão conhecer a atração cinematográfica animadora
(I.dasF) do antigo MT.IC (Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio), onde
de grupos isolados, em nossa capital. Outro mérito de Caminhos reside no fato
meu avô, D.E.S exerceu a profissão de farmacêutico durante 43 anos – (foto
de ser uma realização baseada numa história fictícia. Como os iniciados em
– casa mamãe)
literatura fundam seus primeiros alicerces na poesia, no cinema é o docu-
* Explicar.
mentário o gênero dos principiantes. Talvez nos enganemos, mas acreditamos
ser falha esta orientação, pois o filme de documentação restringe em muito
a capacidade imaginativa do realizador. O progresso alcançado por cineastas
franceses da “velha guarda” se deve à excelente sedimentação que tiveram
através dos exercícios vanguardistas, os quais primavam pelas estranhas in-
cursões ao irreal...
Outra vantagem das experiências de cinema puro reside na familiarização
no manejo da câmera e da montagem. A objetiva permite ao iniciado uma sé-
rie de assuntos de estudo. A técnica do corte age como elemento introdutor à
verdadeira linguagem do cinema.
A rigidez do documentário apresenta-se avessa a essas facilidades. Quando
muito o gênero permite aprofundamentos na noção de ritmo e aguça o espírito
observador dos que se apegam à arte cinematográfica. Poderá haver um do-
cumentário com uma dinâmica mais desenvolvida, porém o arcabouço de tal
filme nunca ultrapassará certa norma predeterminada.
De tudo o que dissemos (aguardamos uma segunda visão para completar
nossas idéias), Caminhos é um exemplo cabal.

94 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 95
Diário de Luz Del Fuego II O MESTRE E O POETA1

II O C.E.C. [Centro de Estudos Cinematográficos] encerro na quinta-feira dia 17


15.6.81 as atividades cinematográficas que manteve ininterruptamente durante 1959.
As filmagens no Rio (diversas locações) trouxeram certa dose de aflição. Este encerramento, porém, não tem caráter definitivo, e assim provavelmente
Este é o primeiro filme que faço com um número maior de personagens (em em fevereiro do próximo ano retorne às suas projeções semanais. O programa
cena). Esse “tamanho” exige, por sua vez, uma equipe mais concentrada. Não de encerramento contou com Twelve angry men, de Sidney Lumet, e com um
chegou a criar tumulto, mas, as conversas simultâneas, as reinvindicações de complemento brasileiro que se constituiu, a nosso ver, o coroamento da ses-
prioridade (luz, som, câmera, intérprete) sem nenhuma dúvida perturbavam. são de despedida. Trata-se do documentário de Joaquim Pedro de Andrade:
A harmonia, o silêncio e a concentração só chegavam a muito custo. Mas eram O mestre de Apipucos e o poeta do Castelo2, que se refere respectivamente a
suficientes e compensadoras. Gilberto Freyre e Manuel Bandeira. O título deste curta-metragem realizado
Estou em busca de um reflexo de sol no mar reminiscente do ortocromático sob os auspícios do Instituto do Livro dá a entender a existência de dois e não
dos filmes de Flaherty, Epstein ou mesmo e mais ainda do Mário Peixoto (Li- de um só filme, mas na verdade o aspecto “dois-em-um” é meramente super-
mite). Na sequência 56, por exemplo, dois barcos à deriva, um ligado ao outro, ficial, existindo mesmo, no seu ponto de intersecção um plano intermediário,
são respectivamente bastidor e palco de uma bucólica cena de amor entre um traço de união que o transforma em filme composto.
Luz e Cenário. Este sol, este reflexo, são basicamente para esse momento Apesar de a verdadeira definição cinematográfica do filme dar-se somente
(envolvimento?) do filme. na parte dedicada ao poeta de “Pasárgada”, o quinhão do sociólogo de Casa-
-Grande & Senzala não desmerece, num cômputo definitivo, e em última aná-
Frases: lise acabamos por assistir, emocionados, a um sincero paradigma de quebra
1. Luz. da rigidez do documentário cinematográfico. O mestre de Apipucos e o poeta
do Castelo foi, para nossos olhos desiludidos com o atual panorama do cine- 1
2. abre as pernas, devagarinho Originalmente publicado em
3. agora, por favor, será que eu posso...? ma brasileiro, outro marco entre o escasso alinhamento destes pontos pelos O Metropolitano (RJ), 03 de
Janeiro de 1960.
4. Você gozou meu amor? quais aparece-nos o desejo de olhar para o futuro.
2
5. Fica encharcadinha para mostrar que você gosta de mim, tá bem? O roteiro já se apresenta, ele próprio, eivado de certa originalidade. De iní- Ficha técnica: O mestre de
6. Tá gostoso? Eu tô fazendo gostoso? cio, como já foi dito, vamos ao Recife, ao sítio de Gilberto Freyre. Como num Apipucos e o poeta do Castelo.
Realização e apresentação:
7. O que é que você quer agora? diário ou numa biografia, tomamos conhecimento de alguns fatos rotineiros Saga Filmes; Produtor: Sérgio
Montagna; Roteiro e direção:
8. Deixa assim, deixa...por favor. de um dia em Apipucos. Joaquim Pedro de Andrade;
A clareza fotográfica fornece uma documentação genuína – impressão que Fotografia: Afrodísio de Castro;
9. Chegou a pouco d/fora e estalou de raiva. Câmera: Jorge G. Veras;
10. Está emagrecendo tá passando a ver dura talvez se deva ao processo não habitual utilizado que emprega, na trilha sonora, Assistente de direção: Domingos
de Oliveira; Montagem: Carla
11. E lê o jornal “A tocha porque, o que os outros jornais não trazem ATOXA ATRÁS. a narração do próprio biografado, outra trouvaille3 colaborando, pela enfática Civelli e Giuseppe Baldaconi;
Música escolhida por Zito
extra-temporalidade das palavras, para a magnífica repercussão final da fita. Batista e Carlos Sussekind;
*** O fascínio das minúcias caracteriza, em parte, o estilo do realizador. Entre Letreiros de Bianco; Produzido
para o Instituto Nacional do
15.6.81 outras migalhas de vida, que o cinema sabe tão bem explorar, salientamos Livro, em 1959, por encomenda
de seu diretor José Renato
56: ainda no primeiro episódio o paralelismo de algumas reações do sociólogo, da Santos Pereira.

Lux: Eu não sei o que está em mim é você ou é a cobra? cozinheira e, finalmente, do gato que se encontra depois de um pulo no tempo,
3
postado na rede do repouso vespertino. Em francês: achado.

96 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 97
A transição para o segundo episódio, então, se faz naturalmente, pelo close- deixando-nos conhecer o amor pelos alcaloides, pelas prostitutas, orgulhoso 6
Aos focalizados queríamos
-up de um livro de Manuel Bandeira. de sua conivência com o rei... pedir que nos permitissem a
exaltação da simpatia emanada
O dinamismo dos cortes na aparentemente ininterrupta caminhada de nos lugares e nos momentos
“Não me interessa a paisagem; a Glória, a baía, a linha do horizonte. Manuel Bandeira confirma as tendências tipicamente cinematográficas de em que estiveram presentes.
(Desde o ato singelo com que o
- O que eu vejo é o beco”. Joaquim Pedro. O emprego comedido dos grandes planos e sua harmônica sociólogo faz escorrer as gotas
d’água acumuladas em uma
reunião durante uma passagem, a utilização válida da subjetivação, os en- folha à maneira meticulosa do
Os versos epigrafados talvez sejam uma das chaves do filme. A primeira quadramentos pouco rebuscados, ensinam a arte da clareza que é o cinema. poeta acabar de acender um
fogão à gás.) A Bandeira, dirigir-
oração sendo lida subitamente pelo poeta e as equipolentes seguintes tendo O gênio poético de Bandeira se extravasa desde os planos iniciais, quando nos-emos através de suas
próprias palavras a respeito de
as palavras substituídas pela imagem em panorâmicas seguidas de cortes a tosse (silenciosa, também) ou uma simples reunião de detritos que observa Wallace Reid: “O seu encanto era
bruscos e com duração, ao que parece, proporcional à sua mera menção ou apresentam-se sob aspecto afetivo bastante ampliado. E a máscara com que
indefinível como as elegâncias
do espírito. Nada de possessing
pronúncia. De tal modo que, em lugar da presença, na trilha sonora, da conti- surgem durante todo o tempo é irrepreensível.6 como Clark [Gable], nem de
lúbrico, como John Gilbert,
nuação do verso, temos uma visão repentina do outeiro. Adiante vemos a baía, nem de cínico, como Robert
e assim sucessivamente. No verso seguinte é o som coincidindo com a ima- Montgomery” (cf. “Manuel
Bandeira, cronista de cinema”
gem e, no momento em que o poeta o pronuncia, há um movimento de cima – artigos de Joaquim Pedro no
Suplemento Literário do Correio
para baixo, no fim do qual damos com o tão decantado beco.4 da Manhã). Mas a atração que
exerce agrupa-se entre as de
Não serão necessárias maiores explicações para o leitor compreender que um Kerniano (ao lado de Greta
já nos estamos adiantando na segunda parte. E caminhamos para a sequência Garbo), quase Dantas.

final, onde teremos, então, o coroamento, o clímax de toda a película.


A qualidade da narrativa oral do poeta traz ao conjunto mais um elemen-
to acessório colaborador dos estupendos efeitos de ritmo cinematográfico.
Neste particular, pode-se adiantar, existem dois esteios nos quais se apoia a
imagem: a narração e o fundo musical. A marcação do compasso tem certos
pontos fixos na atualidade da ação (ruídos, chamados telefônicos etc.), cujo
efeito muito se acentua através da insólita tática de contraste (a maior parte
dos sons do presente é afastada). Pois bem, o duplo acompanhamento permite
uma variação do sistema de contraponto utilizado e o efeito, dos mais expres-
4
A cópia exibida na sessão sivos, pode ser medido com um estudo minucioso das derradeiras passagens.
do C.E.C não continha esta
sequência, que foi suprimida
Desde o momento em que Bandeira, após o feliz contato telefônico,5 decide
por motivos alheios ao nosso sair, passando pelo outro feliz paralelismo (uma constante?) da mão no bolso
conhecimento.
– em casa, no jornaleiro -, já estamos indo para Pasárgada a todo vapor, como
5
Por que não classificar de já estávamos, minutos antes, em espírito, enquanto nosso guia ainda mudava
antológica, em nossas plagas, a roupa discretamente, apertava a gravata, sob a brisa fresca que sopra a cor-
essa tal cena do telefonema
em que, após a silenciosa tina ao lado da vitrola por duas vezes, a que refresca os bibelôs do quarto do
mas eufórica gargalhada
de reconhecimento do bardo, o qual, por fim, resolve desprezá-los. E em pleno movimento citadino,
interlocutor íntimo, vemos
os movimentos faciais do
eis-nos a acompanha-lo em busca da imortalidade, a violar os cânones da
poeta, as idas e vindas da montagem (propositadamente), namorando à distância o prédio da Academia.
cabeça, que provocam aquelas
desfocalizações propositais? Atravessando a rua para dele se aconchegar ainda mais, tendo na mente e

98 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 99
Diário de Luz Del Fuego III formando numa casa própria, usando recursos de cenografia e de locação. A
linha direta entre o detalhe e o plano geral é didaticamente explorado neste
pequeno comercial de 1 minuto aproximadamente. No geral está provado e
demonstrado a mentira que o cinema utiliza como veículo de verdade. Estas
III
preocupações são precedentes nestes breves depoimentos de filmagem por
19.6.81
que a verdadeira Ilha do Sol (que será inserida na realidade como elemento
Alguns transtornos na produção. Tormenta depois da bonança de uma lon-
mentiroso) nos foi negado pelo Concessionário. Na ausência do Banco (indis-
ga e impecável projeção dos últimos copiões. (A palavra impecável, aqui, corre
pensável no processo de economia cinematográfica), as diversas ilhas que
por conta da impressão geral – a minha também – mas é só remotamente
circundam Paquetá vão pouco a pouco reformulando a ilha original (vista volta
vinculável/relacionável ao filme a ser acabado (vamos ver).
e meia do luar) que parece glosar o jingle mencionado.
Mal-estar se deve à saída de dois elementos de equipe “pesada” o que vem
desfalcar bastante o trabalho no plateau até a chegada dos substitutos.
20.6.81
Na projeção do dia 17-6-81 veio à tona primeiro uma ideia de coisa passa-
LUZ
da a limpo, quase sempre ausente em meus trabalhos anteriores. Muito sol,
Salve cordão da Bonança
muito hiper-realismo, digamos assim. A noção de erro, que é um pouco a cha-
Oh! Que falta e que bem que me faz!
ve do meu “específico fílmico” apareceu, porém, em alguns momentos, para
Só lembrar e a simples lembrança
minha satisfação íntima e fora um trabalho silencioso de recompilação das
Me excita e a força me traz.
imagens recém-vistas sob o prisma daquele aneurisma que costumo chamar
Aceita o afeto que te entrego
de “oportuna retomada do convencional”. Luz-Lucélia, estátua com a jiboia, à
No meu peito tão febril.
espera petrificada do seu Canário, é sem dúvida uma imagem arcaica, de étos
e portanto sincrética e suculenta. Irá bem com toda a sequência (em preto e
CANÁRIO
branco) do hino à bandeira.
Só penso nas curvas dessas serras
O erro: para não ser “teatral”, isto é humano, isto é, realista, ou seja acadê-
Adoradas serras do Brasil!
mico, melhor dizendo, nos padrões normais de temperatura; pressão, expo-
sição, tiragem e sonorização, é necessário certo tempero de deficiência, de
Amanhecemos hoje outra vez com o tempo nublado. Ótimo, penso aqui com
dúvidas, do imprevisível, do acidente, de novidade, de erro, de cinema, enfim.
meus botões (que aumentaram, com a queda da temperatura). O filme, já disse
Organizar a imperfeição é um trabalho árduo que se aproxima da música, da
isso aí atrás, tem estado muito ensolarado. Sorte ou azar, hoje (e, espero, ama-
composição, da harmonia. Mas não é dentro de um esoterismo e da acronolo-
nhã também) filmaremos com um cinza que trará às cores uma tristeza ou
gia da linguagem cinematográfica em estado bruto, que esse erro se resolve,
densidade complementar. Estou, bem ou mal, em busca da alma da Luz e esta,
mas, na expectativa das etapas pelas quais passará o filme, do momento de
até agora tem estado escorregadia ou retraída como um caramujo invernil que
filmagem até a confirmação definitiva que o retake não é necessário.
se recolheu no seu musgo para evitar o sol.
Lucélia não filma. Filmou ontem e amanhã, domingo, com Paquetá regurgi-
***
tando de gente, começaremos a acabar nossa estada na ilha. E a famosa festa
19.6.81 (tarde)
da Ilha do Sol vai finalmente acontecer.
A troca de parte da equipe técnica atrasa a volta a Paquetá na 3a semana de
Ilha do Sol. Veio à lembrança um anúncio de TV sobre o financiamento da casa
***
própria pelo Banco Itaú onde a agência bancaria vai pouco a pouco se trans-

100 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 101
24.6.81
Último dia de Paquetá (1a parte). Paira no ar certo descontentamento. Pri-
Concessão é Conformismo
meiro por que ficaram algumas sequências pendentes. Segundo pelo bem que
esta ilha proporciona, sem falar daquilo que se poderia chamar de “geogra- Nunca tivemos, no Brasil, um filme tão polêmico. Mesmo a discussão que cer-
phie du rôle” – há uma verdade nessas queixas mas, depois de uma reunião cou o Rio 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos, não alcançou repercussão
conjunta Produção – equipe, aceitou-se um retorno ao Rio com a finalidade tão vibrante e espetacular. Violentamente combatido, Os Cafajestes é um filme
de apressar as 26 sequências restantes. (Entre estas, pelo menos 5 serão na predestinado a significar, para nós brasileiros, mais do que as interpretações
volta a Paquetá). O episódio da substituição de Sônia Dias por Maria Sibóia superficiais do impacto que trouxe e que ainda mantém na atmosfera carioca.
também causou certos transtornos profissionais – inevitáveis e justificáveis Já se disse e já se negou muita coisa a respeito da fita. Falou-se inclu-
(do nosso lado) porque a ex senhora Deodoro Dias estendeu sua permanência sive que se empregam métodos desonestos de publicidade, enganando o
nos EUA onde foi a convite da Embrafilme para uma conferência do C. Bras. povo, induzindo-o a ver coisas que não passavam de ampliações ilícitas do
Coisas de Cinema. sistema publicitário.
Não posso deixar Paquetá (corro o risco de me esquecer na segunda etapa) Protesto veementemente contra o rancor súbito e mal fundamentado que
sem mencionar a semelhança geográfica entre esta ilha e a ilha das Flores, nasceu no espectador carioca nesta perplexidade a que se submete ao se
recanto onde passei metade de minha infância e com grandes recordações deparar com um exemplo típico de ousadia (em oposição ao brasileiríssimo
difíceis de serem apagadas. complexo de inferioridade) e de autoconfiança. Tudo que foi anunciado está
sendo exibido nos cinemas do Rio. Mas, é preciso que se acrescente, quem o
apresenta é um homem que se dispõe a fazer do cinema um instrumento de
transmissão de suas ideias mais íntimas sobre os homens e as coisas. Uma
espécie de telégrafo visual. Cabe aos interessados aprender o Código. O filme
foi, na verdade, um pouco cruel com o espectador, pois não lhe fez concessão
alguma. Mas a culpa só pode ser dirigida a uma entidade ainda nebulosa e que
apenas começa a tomar consistência, o cinema nacional, cuja única função,
até hoje, foi a de levar o público para uma região deplorável onde os conceitos
têm valor diametralmente oposto à realidade. É por isso que um grupo ligado
à produção da fita resolveu, pela tesoura, “facilitar” a sua compreensão, dar
mais uma oportunidade aos ociosos.
Contra isso levanto novo grito de protesto. Na situação revolucionária em
que nos encontramos, qualquer concessão significa conformismo e retorno
à estagnação anterior. Não há argumentação que valide afronta semelhante,
mesmo os de ordem estética. Os cortes em Os cafajestes indicam pusilanimi-
dade. E, neste momento decisivo, significam recuo e retraimento. A produção
deve viver sob o espírito de luta que o público, inimigo em potencial, exige. As
rendições (em todos os setores da vida) deixam sempre marcas inapagáveis.

102 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 103
União e Censura Cultural1 quais o mais importante é o coeficiente de analfabetismo de nossa população.
A censura cinematográfica concorda e acata passivamente esse fato através de
uma postura que tem muito (paradoxalmente) de mimetismo. Ela, ao invés de
O público de cinema, no Brasil, ao que parece nunca atingirá a maioridade. O fato procurar resolver o que talvez venha a ser o problema básico da nossa indústria
é, em si, deplorável, porque está fadado a marcar eternamente o passo. Digo isso cinematográfica, concorda com a sua existência e, em concordando, o propaga. E
por vários motivos. Se antes me preocupava muito a relação que se estabelece mais, a censura brasileira, enquanto público, não possui um ponto de apoio artís-
entre um público impróprio e uma cinematografia incipiente e buscava incessan- tico, não o tem, tanto em referencia a concepções estéticas (por se tratar de uma
temente um elemento comum que ao menos ajudasse a resolver essa equação forma rudimentar de censura policial) como em relação ao seu funcionamento
insolúvel, hoje, quase me certifico de que, entre nós, o analfabetismo das massas orgânico (até hoje discute-se a sua verdadeira competência), sendo constantes
reflete suas influências às diversas classes e estas se encarregam de dar-lhe, os conflitos a respeito.
sempre negativamente, os aspectos mais desesperadores. No affaire Os cafajestes verificou-se mais um destes conflitos, aumentados des-
Chego hoje como que a um labirinto kafkiano numa situação ainda mais dra- ta vez por intromissões bastante reveladoras do flagrante desnorteamento buro-
mática do que a dos personagens do diabólico autor, isto é, tenho perfeita cons- crático desse órgão fundamental a uma democracia. Por outro lado, o seu lado
ciência da situação em que me encontro e para a qual desejo uma solução. Ela (a público colaborou efetivamente para a concretização de uma série de represálias
solução) está em mim enquanto célula de um organismo superior e depende da que os espectadores-mercadoria vinham fazendo durante as sessões em que se
colaboração das células adjacentes. E isso não se dá na medida necessária para pode ver a fita do Ruy Guerra. Felizmente o lado policial da censura se fez logo
que se rebata e conserve afastadas a ignorância e a burocracia, que hoje se unem, à mostra. Sempre defendi o ponto de vista de uma censura de fundo cultural e
para se opor ao possível renascimento de uma cinematografia quase nula. continuo convencido da impraticabilidade desta enquanto permanecer sob o jugo
Não se pode lutar só e não me parece, neste momento, haver o sentido de união de um departamento de segurança pública. Se um filme ultrapassa de longe os
que a oportunidade tanto requer. Vi grandes manifestações de solidariedade na conceitos éticos e estéticos de uma fiscalização inepta, que os tem catalogados
reunião organizada a fim de se procurar a saída de uma armadilha de cunho emi- através de fichas elaboradas nos moldes de um puritanismo démodé, se pelo me-
nentemente reacionário e despeitado. Vi uma classe totalmente congregada em nos um filme ético como é Os cafajestes mostra como num espelho esses concei-
prol de um ideal perene e fiquei achando pouco, sobretudo se penso em palavras tos, através de um processo catártico de didática, no qual a saturação tem função
como perene e ideal, cuja grafia me vem agora ao espírito de forma difusa e dis- precípua, como é que uma polícia, instigada por elementos alheios ao problema
tante. O ato que se combate é um ato de força, de prepotência, e me faz pensar e ao mister, uma polícia que nunca ouviu falar em filmologia ou desconhece as
através de certo princípio físico, fora do qual não vislumbro nenhuma possibilida- noções mais rudimentares de narração cinematográfica, pode querer intervir e
de de êxito, opinião pessimista sobre a qual não me quero deter. interditar de maneira irritante uma obra de alto gabarito?
Infelizmente, a censura cinematográfica no Brasil é também do público. E pú- Falei, mais acima, em união e espírito de solidariedade. E referi-me à reunião
blico de cinema brasileiro. Porque, em se tratando de produção nacional, ele não que foi levada a cabo com o intuito de congregar esforços em favor da liberdade
sabe distinguir a água do vinho e concede a mesma cotação (“boa qualidade”) tan- de expressão artística, em nosso país. Não acho que se obteve uma verdadeira co-
to a algumas produções de nível artístico acima do normal e sinceras na intenção, munhão de espíritos. Para um cinema nascente e inerme é preciso muito mais; se
como Mandacaru Vermelho, de Nelson Pereira dos Santos, quanto às conhecidas possível, que se chegue politicamente à convocação dos inimigos e dos neutros.
subproduções dirigidas ao grosso da freguesia cinematográfica. Em outras pala- Em todo caso, a luta que acompanha o renascimento de uma arte, num país,
vras, pode-se entender o que foi dito, qualificando-se a ambos, público e censura, não é coisa de espantar, nem é novidade. Seu valor é quantitativamente igual ao
1
Originalmente publicado em de conformistas. O público cinematográfico brasileiro, como se sabe, possui ca- dos esforços que adotam para a arte propriamente dita e, dentro de um subde-
O Metropolitano (RJ) em 28 de
Abril de 1962. pacidade inferior de percepção, fator condicionado por diversos elementos dos senvolvimento e um colonialismo persistentes, têm, ambos, o dever de serem de
franca, violenta e contínua oposição ao status quo.

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O Testemunho de Marcoreles1 cular dos nossos problemas cinematográficos e, dessa teoria, começou a de-
senvolver algumas teses, de modo ainda vago, no número 1.808 das Nouvelles
Littéraires (26/4/62). O artigo versa sobre o Festival de Mar del Plata, mas
A recente Semana do Cinema Francês, que a Unifrance fez realizar entre nós, dedica sua parte final (cuja tradução damos a seguir) ao cinema brasileiro.
trouxe aos cariocas contatos úteis com os mais recentes sucessos artísticos Chama-se “Cinema tropical”.
da Nouvelle Vague e com alguns dos responsáveis diretos desses mesmos su-
cessos. A coincidência da época com o fim das manifestações do Festival de REFAZER O BRASIL...
Mar del Plata deu lugar a que a delegação francesa enviada à Argentina, no Um filme argentino médio custa perto de 30 milhões de nossos antigos francos:
percurso de volta, incluísse na sua agenda alguns dias de permanência no Rio é rodado com uma equipe totalmente sindicalizada. É preciso passar de Buenos
e, durante quase duas semanas, nossa cidade hospedou artistas renomados Aires para o Rio, da Argentina amordaçada, policiada, ao Brasil explosivo, para
como um Truffaut, um De Broca, um Albicocco e um sem-número de outros reencontrar os mesmos problemas, a rotina dos veteranos, o desejo dos calouros
elementos importantes, entre produtores (Robert Dancinger, Marcel Berbert), em afirmar sua existência contra todos os colonialismos, econômicos, culturais...
vedettes (Pascale Petit, Jean-Paul Belmondo, Alexandra Stewart, Marie La- No Brasil, o Estado ignora tudo relativo ao cinema, a livre iniciativa reina sem
forêt), críticos (Louis Marcorelles, Marcel Martin) e jornalistas (René Goyonet, limites: um filme custa 12 milhões de nossos francos antigos, como esse Os cafa-
Raoul-Duval), sem contar com os patrocinadores e responsáveis diretos pelo jestes, de Ruy Guerra, antigo aluno de IDHEC, do qual ele felizmente não reteve o
certame (Robert Cravenne, Jerôme Brière e o já brasileiro Amy Courvoisier).2 sabor das idéias preconcebidas. Durante as noites, por volta de 24 horas, fica-se
O calor das relações mantidas com os franceses ainda repercute na críti- num pequeno restaurante de Copacabana, na orla marítima, onde se reúnem os
ca carioca. Nunca se havia chegado a um ambiente de tamanha franqueza e jovens do cinema, do teatro e da crítica. Esse domingo de abril é uma data memo-
compreensão, tendo felizmente o evento se dado num ano de risonha expec- rável para todos: em quatro dias, graças a um sucesso triunfal, o filme de Guerra
tativa para o nosso cinema. Mesmo as atitudes de oposição a Os cafajestes, recuperou o seu preço de produção. O que significa que toda uma corte de jovens,
por exemplo, não permitiram que se escondessem reações de espanto em que eu reencontrarei amanhã nos laboratórios, poderão realizar seu primeiro fil-
relação aos problemas de orçamento e produção das fitas brasileiras. Como me, que os velhos senhores ricos não lhes fecharão mais as portas.
foi cena rara e alvissareira a de François Truffaut acotovelado na moviola da Bem mais que em Buenos Aires ou Mar del Plata, encontro o entusiasmo no
Líder Cinematográfica, assistindo, entre Glauber Rocha e Nelson Pereira dos estado de pureza, sem traço de intelectualismo: vai-se realmente refazer o mun-
Santos, a algumas cenas recém-sincronizadas de Barravento. do, ou antes, o Brasil, e, através dele, o cinema. Três filmes estão em curso de
Mas, de tudo, o que ficou mais patente e enraizado no espírito dos que filmagem na Bahia, a região mais bela do país, e, também, a mais deserdada. Aqui
acompanharam o incessante roteiro dos diversos membros da delegação, também, Rouch e Godard são modelos por sua tomada direta do real, Truffaut
sobretudo, o que mais profundamente marcou o julgamento dos jovens do decepciona mais, pelas suas sutilezas literárias. Guerra em pessoa, “barbudo”
Cinema Novo, foi o interesse (sem desvirtuamentos) de Louis Marcorelles. do cinema e vencedor do dia, conduz a dança, fala como Castro, prepara-se a
Sem turismo, no Rio, não passou dos limites da rotina de homem integrado levantar montanhas.
1
Originalmente publicado em O no meio cinematográfico, cuja função ele perfaz de maneira tão séria e irre- Pode-se sorrir desse entusiasmo intempestivo. Esses jovens, como mais dis-
Metropolitano (RJ), em 09 de primível, que nos fez deixar a categoria de cicerones e nos transformou em
Junho de 1962 cretamente seus vizinhos argentinos, têm a intenção de dizer coisas importantes
assistentes, desses que lucram, passo a passo, com a vivencia do mestre. A sobre suas respectivas pátrias. Mesmo a recente interdição do cardeal do Rio
2
Não se pode esquecer a experiência universal de Marcorelles permitiu-lhe um conhecimento profundo relativamente a Os cafajestes não interromperá a marcha do tempo.
presença, também, da
romancista Christiane de
de nossos problemas. Seu retorno brusco não nos facultou o cálculo de até
Rochefort, cujo romance Le que ponto essa profundidade está alicerçada, mas, na pior das hipóteses, o
Repos du guerrie está sendo
levado à tela por Roger Vadim. crítico fordiano da equipe dos Cahiers du Cinéma elaborou uma teoria parti-

106 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 107
Afinal, o realismo1 representado, aqui, por um exemplo bem próximo do padrão ideal, tomado na
sua forma absoluta, nascente. Um mínimo de corpos-estranhos-mas-especi-
ficamente-funcionais a se interpor entre os criadores e a obra acabada. É, em
Talvez não se esteja diante de um filme, na acepção comum da palavra. Pelo suma, uma arte em estado de graça. Expressões como cinema-vérité, realismo
menos deve ser esse o pensamento do público durante os primeiros quarenta ou pris ou vif, podem vestir, agora, sua verdadeira roupagem.
e cinco minutos de projeção, se bem que, de vez em quando, a atenção seja Sendo extremamente realista (e convém que se torne a abordar esta ques-
atraída violentamente por um ou outro diálogo, por uma ou outra cena. Já se tão primordial), o filme, por vezes, eleva o grau de realismo a uma tal potência
pressente tal comportamento, no início, quando parece não haver assunto. que transfigura a própria realidade. Transfigura a realidade exterior (matéria-
Deve existir mais propriamente uma idéia geral de certa amplitude a dificultar -prima) antes de captada pelas objetivas e microfones. É um movimento de
sua colocação no écran e seu desenvolvimento em hora e meia de projeção. A dentro para fora, que provoca a metamorfose do próprio dado, diversa da que
sequência inicial, aliás, tem todo o caráter cronológico de começo. Os autores culmina com a transformação aparente ou virtual. Ao desejo extremado de
parecem estar, inclusive, tomados de uma emoção que caracteriza os neófitos realismo repugna a idéia de atores. Todos os elementos da fita são tomados
e lhes dá certo quê de instabilidade. O processo de realização só permite leve diretamente do quotidiano. Mas, ao se defrontarem com a câmera (como é o
dose de fluência depois de diversos ensaios, através dos quais os obstáculos caso de Marceline), esses elementos se acham sob forte e natural inibição e o
que a inexperiência gera vão sendo ultrapassados. É no próprio desenrolar de que resulta é uma nova natureza inicial que se diferencia à medida em que o
Chronique d’un été que essas inibições vão desaparecendo e que – fato inédito filme se desenvolve.2
– novas idéias vão surgindo. A base do filme já é, portanto, uma realidade interpretada, condicionada e,
Há certamente uma infraestrutura sociológica. Cabe agora esclarecer um até Chronique, tida como artificial: um indivíduo sendo entrevistado ante uma
conflito que naturalmente surge ante o lado espetáculo (finalidade do cinema câmera e um microfone. Desde o início, Chronique d’un été é um filme-enquete
tout court) e sua ausência ostensiva numa fita, como se dá no caso presen- que se dilui para transformar-se, ela (enquete) ou ele (filme) nessa própria
te. Apesar de não estar reduzido a um realismo simplista como o de alguns realidade. O seu valor realista, portanto, varia na razão direta de sua identifi-
documentários mais pretensiosos, Chronique d’un été situa-se mais próximo cação à vida, cujo resumo é, fora de dúvidas, o quotidiano. Ora, confundir-se
desse estágio. E, paradoxalmente, conseguindo, por implicações, pesquisas totalmente (pensamos sobretudo no fator quantitativo) com o quotidiano é fato
e enquetes, atingir o grau de interesse que o desenrolar dos filmes de en- impraticável, e, por isso, o filme apresenta elementos que mantêm o equilíbrio
redo proporcionam. Sendo, enfim, fiel a toda uma tradição dramática, a fita, da atenção do espectador. São imposições que não burlam de todo as viven-
dentro dos limites do documento, ultrapassa seu conceito vulgar e fornece, cias que se presenciam, porque não vêm de fora, mas dos realizadores que
à insaciável curiosidade do espectador, dados dos bastidores do quotidiano, constituem, eles mesmos, a realidade filmada. Dessa forma dirigem o assunto
constituindo-se desta forma (sob um estilo hiperdocumental) numa pesquisa segundo proposições mais ou menos intrometidas. São sempre assuntos da
de causas e na sua justaposição aos efeitos, estes últimos único objeto da atualidade, como o problema da Argélia, dos quais todos estão a par, com suas
escola documentarista em vigor até as primeiras experiências de Jean Rouch. teses na ponta da língua. Finalmente, o filme acaba por criar uma nova co-
Chronique d’un été��������������������������������������������������
é um filme que se pode chamar essencialmente rea- munidade que não deixa de ser, para o espectador comum, o enredo do filme.
lista, através de uma nova conceituação desse termo, relativamente às suas E a participação afetiva do público nesse plot e sua decorrente identificação
implicações com o cinema. Ele está, portanto, sob este aspecto, livre de qual- com algum personagem é aqui bastante diversa da que se verifica na per-
quer influência dissipante, de qualquer obstáculo que a essência e a evolu- cepção de um filme comum. Talvez seja quase nula, porque, de certa forma,
1 ção industrial-artístico-comercial traz normalmente às produções comuns. o público não pode identificar-se aos elementos entrevistados em decorrên-
2
Originalmente publicado em O Chronique d’un été pega o cinema de surpresa, o grifo servindo para chamar a
Metropolitano (RJ) em Junho cia do fato de ser, esse mesmo público, membro da comunidade apresentada O processo de filmagem deve
basear-se numa cronologia
de 1962. atenção do leitor para o caráter de pureza objetiva que desejo dar ao cinema, (membro, no sentido existencial do ���������������������������������������
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). São os que julgam apenas su- crescente e direta.

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perficialmente as “aparências” ou os que apenas “conhecem de vista” e que,
no máximo, podem nutrir leve simpatia pela gente que essa crônica revolucio-
A verdade do Nordeste1
nária de Jean Rouch e Edgar Morin nos apresenta.
Ao fim do filme, começam os debates e as perguntas na mente de cada es- O lançamento de Vidas secas no Rio serviu, entre outras coisas, para trazer
pectador. Rouch e Morin se assemelham ao cinegrafista da charge esportiva, à luz novas verdades a respeito do diálogo entre nosso público e nosso ci-
que, na ânsia de seguir a disputa das primeiras colocações, acompanha cor- nema. Não quero reproduzir as generalidades desse diálogo, mas creio ser
rendo toda a prova, cruzando a faixa antes dos próprios competidores. Assim, interessante anotar a ampliação do valor do filme enquanto mensagem de
os realizadores, antes de darem o fecho à obra, levam ao público o resumo cunho social. Sob esse aspecto, Vidas secas valeu mais do que valeria um
do que vai na mente de cada um, encaminhando, de modo mais racional, o documentário feito de encomenda. Não sei se houve diretamente intenção
processo particular de discussão crítica. Na tela, os personagens discutem do realizador ou do produtor em prover uma tomada de consciência geral a
a obra que acabaram de realizar e ver (sequência final, da sala de projeção), respeito dos problemas brasileiros. Desacreditei também do fato de o es-
dentro da mesma dialética réel-irréel, tão cara às teorias cinematográficas de copo de Nelson Pereira dos Santos ter sido a adaptação fiel do romance de
3
Na vida, o clima de ficção a Edgar Morin. Esse momento de Chronique d’un été demonstra a tese que, num Graciliano Ramos: sentia no realizador atração maior por detalhes da obra
tudo preside e muitas vezes se literária (sua trama, sua singeleza) e não via na documentação social apre-
dissipa, mais por incapacidade
mesmo continuum espácio-temporal, a vida e o filme (drama, ficção, docu-
ou deficiência de assimilação mento – qualificativos ou sinônimos, a escolher) se identificam ou se repelem.3 sentada senão uma decorrência que, enfim, dava validade a todo o conjunto.
(mimetismo) por parte do
homem. Existem bons e maus A teoria, nascida em Lé Cinéma ou l’homme imaginaire,4 vê-se, agora, compro- O resultado, porém, foi outro. De início o filme era apresentado (através de
“atores”. Cada “mau ator” vive publicidade natural) como “adaptação do romance de Graciliano Ramos”,
como sabe. O “bom ator” vive vada na prática.
a vida de seus antepassados Não se conformando em satisfazer o espectador, Morin e Rouch ainda vão isto é, a transcrição cinematográfica de uma obra literária e, aos poucos, sua
ou contemporâneos. Vale a
pena conferir a respeito alguns mais adiante, dando, ambos, subsídios para a crítica, através de uma causerie origem ia sendo desprezada em favor de uma aguda e fulminante tomara de
artigos de P. E. Salles Gomes
para o Suplemento Literário do descontraída (na verdade é a última etapa da fita e forçosamente a última consciência da realidade brasileira. De todos os rumos de opiniões políticas
Estado de S. Paulo, sobretudo sentia-se, em manifestações sobre Vidas secas, uma profunda intimidade
“Cinema e prostituição”
sequência a ser filmada, pois funda-se em dados fílmicos e não na realidade
(25/11/1961) filmada). A primeira discussão desculpa ou explicita o impacto do filme pe- com a miséria e ignorância, no sentido em que esta intimidade quer dizer
4 rante o espectador ainda perplexo. Tem a função específica de aumentar a revelação provocadora de asco e de revolta. Vidas secas despertava em cada
Edgar Morin, Ed. Minuit um uma ideia de distância, de contraste, e trazia a vontade de ser útil. O
(França), 1956. universalidade de uma obra de arte e limpá-la de todo e qualquer resquício de
subjetivismo. Não deve haver, para Chronique d’un été, interpretação alguma, próprio Graciliano Ramos nutria permanente preocupação pela ideia partici-
5
Em francês: discurso natural. particular ou intimista. pante de utilidade.2
A exagerada característica de “veículo participante” de Vidas secas surgiu,
portanto, quase que a posteriori, através de inúmeras sugestões publicitárias
que trouxeram nova luz ao problema, sobretudo aos que encaram o cinema 1
Originalmente publicado no
como método exclusivo de consciencialização. Houvesse, por exemplo, o pro- Suplemento Literário do Estado
de São Paulo, 07 de dezembro,
dutor apelado para essa tecla durante a campanha de lançamento do filme 1963.
e o resultado teria sido outro. Esse exemplo prova inúmeras verdades que 2
se tornaram latentes com o andamento comercial incompleto de fitas como Segundo o depoimento da
viúva de Graciliano Ramos, D.
Cinco vezes favela, Gimba, etc, isto é, que a maneira de apresentação, a quali- Heloísa Ramos, seu marido
finalizou certa vez uma oração
dade do veículo (como muitas vezes o rótulo de certos produtos alimentícios a uma turma de bacharelandos
e farmacêuticos) suprem, de início, totalmente, as necessidades populares da qual era paraninfo fazendo
a cada um votos não de
de satisfação, de lazer. A mensagem, a tese, a proposição, só se aceita se felicidade, mas de utilidade.

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vier dissimulada, confundida, com este mesmo veículo. O valor de Vidas secas de concluir definitivamente ao simples boato, e de fazer, de premissas insus-
torna-se muito maior quando se comprova seu engajamento e a fidelidade tentáveis, os pontos cardeais de sua existência.
à obra original. As opiniões relativas àquele prisma (positivas ou negati- Até aqui as fitas brasileiras têm sido de mera esquematização da realida-
vas) galgaram a escala de todas as classes sociais, independentemente da de. Seria, digamos, a “intenção” de aplicar o realismo crítico sob o disfarce
proveniência de seus responsáveis, do proletário ao burguês, do simples dos processos ultrapassados do realismo “psico-sociológico”. A função de
barbeiro ao presidente da República (e por causa de Vidas secas estendeu-se Vidas secas não para no simples “desglamourização” do Nordeste brasileiro;
até Seara vermelha, obra que, por assimilação, pode, cinematograficamente, ela, muito pelo contrário, revela um Nordeste novo, com um cheio de terra
ser considerada pálido reflexo da de NPS). Se disse acima “independente da que não poderá trazer desconfiança quanto à sua veracidade. O público,
naturalidade” não foi por acaso. Os nordestinos, aliás, são os únicos que emi- porém, conhece, dessas mesmas telas, outro Nordeste. A unanimidade das
tem sobre Vidas secas opiniões mais ou menos desconcertantes. Falta-lhes o opiniões favoráveis ao filme, partidas das camadas mais bem dotadas e
recuo que lhes permita livrar-se da preocupação com a verossimilhança de atingindo outras, menores, forçou um reconhecimento dessa veracidade. Por
pequenos detalhes. uma feliz convergência de opiniões deu-se a consagração de Vidas secas em
O que passa despercebido em tudo isso é o fato de que a forma de apre- termos de box-office e essa evolução dos acontecimentos pode ser verificada
sentação de Vidas secas é elemento primacial para ressaltar a pouca “aptidão pelo excelente ardil publicitário usado pelos produtores. Resta apenas saber
para consciencializar” da realidade objetiva. Assim, é a visão pessoal do autor se tal apreciação popular agiu relativamente a um despertar deste público
e do realizador que tornam mais real a realidade apresentada, tornando para certos conteúdos do cinema brasileiro. Vê o leitor, enfim, que não é da
preparado o espectador para assimilá-la. O mérito é repartido entre ambos realidade de que se nutre, fingindo recebe-la, o público. É uma falsa ideia
os autores, sendo que a fidelidade ao livro daria prioridade ao escritor, não desse conceito, que poderia chamar de “re-informação”, elemento básico na
fossem os achados da ordem do que se encontra na passagem de Fabiano cultura popular que não tem recebido, dos responsáveis diretos de seu apro-
vai acertar contas com o fazendeiro e se depara com o professor de violino, veitamento, o merecido estudo e a correta canalização. A “re-informação” e
assustando-se ao fixar a jovem aluna absorta. É este um dos momentos seus danos foram incrivelmente ampliados pelo aumento de popularidade da
culminantes da fita, e se deve à “estética do singelo” que NPS procura aper- televisão, do qual o exemplo típico reside no futebol, na ânsia dos telespec-
feiçoar, no âmbito rural, a partir do “rascunho” que foi Mandacaru vermelho. tadores pelas resenhas esportivas e pelo sucesso popular (verdadeiramente
A característica autoral de Vidas secas traz à imagem o drama que começa incompreensível) do videoteipe (neste gênero de transmissão).3
a faltar na atual encruzilhada do Cinema Novo. Falava de opiniões de nordes- Através desses elementos vão-se criando perigosas lacunas entre os
3
tinos que pude anotar em breves pesquisas particulares e me enveredei por fatores que concorrem para a definição do conceito de lazer. No cinema É incrível como se difunde o
gosto comodista da repetição
outro assunto: o da autoria. É que queria, por justaposição, assemelhar dois brasileiro a maior vítima dessa “automatização” das capacidade perceptivas que, a meu ver, tem íntimos
problemas básicos, o outro sendo, como ficou visto, o do realismo. parece ser Garrincha, alegria do povo, de Joaquim Pedro de Andrade. Sobre a contatos com problemas
pessoais de autoafirmação.
A busca da verdade não é no cinema, como pode parecer para muitos, o verdade, o realismo, a “re-informação” e o cinema, gostaria de tecer, ainda, Quem poderá negar a
segurança que se tem de ver
mero “decalque” do mundo exterior, mas a síntese ou o conflito dessa mes- mais considerações. Deixo, porém, para outra oportunidade. uma coisa “já vista”?
ma objetividade com a visão pessoal do artista. O comodismo do espectador
brasileiro faz com que ele julgue os filmes amparado pelo primeiro ponto
de referencia que encontra à sua disposição. No caso de Vidas secas, o livro,
bastante difundido, foi favorável a tal disposição e mais favorável ainda à
fita )mas um exemplo específico não suprirá as atuais carências do nosso
mercado cinematográficos: há outros filmes que sofrem com essa situação).
Faz-se necessária a denúncia dessa facilidade popular de aceitar “verdades”,

112 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 113
Garrincha decalcado?1 Essa queixa tem origem também no fenômeno da re-informação e provém dos
que “não viram o que esperavam”, como se o cinema fosse fonte obrigatória de
incentivo à auto-afirmação. (Triste a sina de nosso cineminha, vítima da pre-
A meta dos produtores de Garrincha, alegria do povo era a reprodução cine- potência de um público a manifestar sempre um sentimento de superioridade
matográfica do fenômeno Garrincha, fato que, desde o início do movimento sobre ele) Trocasse Garrincha, alegria do povo a sua nacionalidade e eis que,
publicitário, deve ter provocado forçosas previsões nos espectadores. A ânsia certamente, outra seria a sua receptividade. Por outro lado, na Europa, as figu-
de re-informação2 certamente agiu de maneira violenta (a ponto de facilitar a ras mais abalizadas que se pronunciaram com pouco entusiasmo pelo filme,
delimitação de suas características). Queria o público a repetição tal qual as via-se, estavam saturadas pelo dinamismo e pelo progresso do cinema-vérité
jogadas do ponta direita e não a sua interpretação cinematográfica; a fusão e não souberam distinguir o caráter híbrido de sua concepção.
interminável de passivos videoteipes e não o aproveitamento das possibili- Devo acrescentar aqui um pequeno glossário de termos afins e impor-
dades, diria estéticas, do jogador. O espectador carioca não quis despir-se tantes, em cinema: verdade, realismo e verossimilhança. Para o espectador
do pijama e do chinelo, armas com que, comodamente, assiste às resenhas é este último que quase sempre conta. O realismo ou a verdade (dos quais
esportivas ao fim de cada domingo de futebol. Preferiu continuar como sem- muitos fizeram questão, no Rio) em Garrincha, alegria do povo não se reduz
pre no seu comodismo inculto, na sua teimosa condição de assimilador, ou aos particularismos da verossimilhança e se dirige ao “mito” no que ele tem
melhor, de pseudo-analista pela assimilação. de mais geral. É aqui que se verificam as aspirações da montagem, ela vai do
No Rio, esse e outros fatores contribuíram contra a fita de Joaquim Pedro. particular ao geral, chegando a uma visão global tanto do jogador quanto do
Em São Paulo terá ocorrido o mesmo? Garrincha, alegria do povo também foi meio em que se insere.
visto como obra menor (o problema da duração), mas, é, na verdade, uma das O cuidado de elaboração que sofreu, posso imaginar, e sua finalidade ime-
mais completas da história do nosso cinema. diata, não serão percebidos pelo grosso do público; porém reduzido à função
Joaquim Pedro fizera, antes de realizar Garrincha, alegria do povo, um está- informativa, o filme se torna perfeitamente assimilável. O aparente intelec-
gio de dois anos no exterior, ora na França, ora na Inglaterra, ora nos EUA. Na tualismo tem como contraponto o espírito “radiofônico” do texto narrado. A
fase final cursara um ciclo de aulas particulares com David e Albert Maysles, crítica à forma da narração, de Novaes Teixeira, justifica-se sob muitos aspec-
operadores da equipe de Richard Leacock, figura que se constitui atualmente tos: primeiro, porque, visualmente, a forma de Garrincha, alegria do povo se
numa das coqueluches dos que estão mais em dia com o cinema, no mundo. aproxima à de um filme europeu (e entretanto as diferenças que lhe trazem a
A chegada de JP ao Brasil coincidiu com os preparativos para a produção de originalidade são inúmeras!) com que NT está bem familiarizado. Se a parte
Garrincha, alegria do povo. O esquema de um uniu-se à disponibilidade e à re- plástica é intelectualizante, sua explicação, seu complemento inseparável, a
cente experiência do outro e, assim, quase por um fatalismo, veio JP a realizar voz de Heron Domingues não o é, absolutamente. E o contraste, antes de tra-
o filme. A especificação de cinema-verdade ou de filme-verdade é precipitada zer o choque, contribui com certa simpatia, estranha forma de acessibilidade.
para a fita, mas não é, absolutamente, contraditória. Se os conceitos e a for- O que faz com que se critique a “facilidade do texto” é portanto o contraste
mação do realizador tendiam para esse tipo de filme, certos problemas téc- com as imagens.
1
Publicado originalmente em nicos não permitiram a consolidação do apelido. Garrincha, alegria do povo é, Assisti a várias sessões públicas de Garrincha, alegria do povo e posso ga-
O Estado de S. Paulo antes de tudo, um filme híbrido que reúne elementos de cinema-verdade com
(Suplemento Literário) em 29 rantir que não é o elemento intelectualizante – confundido também por muitos
de novembro de 1963 os do já conhecido cinema de montagem: a atração primeira da fita se fun- com o domínio da linguagem e da estética cinematográficas – que frusta a
2 da no fenômeno Garrincha enquanto evocação dos antigos sucessos de sua percepção. Muito pelo contrário. Ao aceitar com entusiasmo certos momentos
Sobre o fenômeno da re-
informação pedimos aos
carreira. Abandonar a montagem em favor de uma verdade despojada num como o clímax dos dribles de Garrincha, o Mainá, o twist (hoje já não estará
leitores que se reportem ao filme-de-montagem é fato inadmissível. Quando se fala, portanto, que a fita démodé?...) em Pau Grande, os rostos e as reações dos torcedores, o público
artigo “a verdade no Nordeste”.
(N.T.E. presente neste catálogo) não é fiel à realidade, a afirmação deve ser arguida e refutada imediatamente. está, antes de tudo, sob o efeito de uma transcendência, ou seja, de um veí-

114 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 115
culo magistralmente bem dominado – com imagem e drama combinados na filme temos um tipo de montagem por justaposição das jogadas principais
justa medida – pelo realizador. As opiniões contrárias foram todas condicio- do ponta-direita, reunindo material filmado pela equipe e recolhido de velhos
nadas pela re-informação: reclamações pela pouca duração do filme (faltam jornais de atualidades. Cada tema (jogadas pessoais, dribles, violência sobre
cenas de determinado jogo etc.), pela qualidade de certas “filmagens” (cenas Garrincha, arrancadas, gols etc.) é tratado a seu tempo, numa lógica crescen-
de arquivo em estado deplorável, em contraste com a nitidez da TV) etc., e não te. A utilização da montagem dá ênfase à ritmia que se resolve no espectador
devem ser imputadas ao intelectualismo. De certo, admito ser requintada a (de futebol e, mais ainda, no de cinema) naquele “congraçamento harmonioso
tendência formalista de aceitar estes defeitos como “funcionais” esteticamen- das sensações”. A terceira parte de Garrincha, alegria do povo sai um pouco
te (a imagem deteriorada realçaria o drama), mas, no caso, a crítica não se do tema central (Garrincha) e parte para uma análise do fenômeno futebol. A
justifica porque tudo se encaixa naturalmente em favor da informação. Sente- partir das cenas da derrota do Brasil em 1950 não é mais a estesia a emoção
-se, entretanto, que o público quando não esteve à altura do filme procurou, visada, mas o complexo psicológico do qual ela é elemento indissolúvel, po-
pelo menos apoiado no texto, alçar-se até ele. rém longínquo. O filme em determinados instantes (e sobretudo por causa de
O futebol pode ser considerado hoje, no Brasil, um dos elementos-chave certo público que o procura) dá a impressão de ser feito do ponto de vista do
para a conceituação de uma estética popular; se não, pelo menos constitui-se espectador de futebol em busca de confirmações para suas teses pessoais. Da
num correspondente daquelas fontes primitivas que eram o circo e as paradas terceira parte em diante sentimos que é o próprio Garrincha que nos parece
marciais. De um modo geral os dados estéticos das camadas menos favoreci- observar, talvez, com intuitos semelhantes.
das intelectualmente baseiam-se num congraçamento harmonioso das sen- A parte central trata de Garrincha em sua vida privada. A exuberância cria-
sações, coisa de que o futebol é especialmente pródigo. tiva que preside as duas outras partes, necessariamente, se faz ausente aqui,
A gratificação estética não é a única do futebol, mas dela partem os ve- revelando outra faceta do realizador e apresentando de forma bucólica o Gar-
tores que compõe as demais gratificações. O lazer e sua noção mais ampla rincha desconhecido do grande público.
fundam-se na estesia que o futebol proporciona às mais variadas camadas Deixo aqui esta pequena crônica rogando ao leitor que, se tiver oportuni-
da sociedade.3 dade, procure ver e encarar Garrincha, alegria do povo sem idéias preconce-
“O povo usa o futebol para gastar o potencial emotivo que acumula por um bidas ou preocupações futebolísticas. Que procure, sobretudo, a humanidade,
processo de frustração na vida quotidiana”, diz o narrador em determinado a inocência, a alegria e a tristeza desse grande jogador (e do fenômeno que
momento para justificar a grande afluência aos estádios. “Uma partida é a o engloba), cuja essência é apresentada não num decalque ocioso. Garrincha
representação de um combate e o universo lúdico do estádio é um terreno é sobretudo um personagem repleto de estímulos humanos verdadeiros. E é
3 mais cômodo que o da vida para o exercício das emoções humanas.” Assim dessas verdades que trata o filme.
É muito curioso que no campo
comum do futebol as opiniões o futebol é como uma válvula de escape para nossas tensões, sendo muitas
populares muitas vezes
encontrem as de intelectuais da vezes através da estética que essa válvula se manifesta. O processo de par-
mais alta estirpe e vice-versa. ticipação do público durante uma partida de futebol é semelhante à que se
4 verifica numa sessão de cinema. O jogo, porém, repetindo-se em esquemas
Garrincha, alegria do povo,
nessa sua terceira parte, semelhantes cada semana, favorece o nascimento de um simbolismo carac-
apresenta, não sem certo
ar irônico, duas teorias
terístico.4 Nossas manifestações mais inconscientes afloram à consciência no
psicanalíticas acerca do decorrer de uma partida; dessas, as mais características são justamente as
futebol. Da segunda, “mais
sensata” (sic). São as palavras mais reprimidas: satisfação pelo jogo violento (contra o nosso virtual adver-
alinhadas acima. A primeira
diz que a bola disputada pelo sário), indiferença para com a má arbitragem (sempre que nos favoreça) etc.
jogador (e, por extensão, pelo Em Garrincha, alegria do povo esses dois momentos convergentes do fu-
torcedor) simboliza “o seio ou
o ventre maternos”. tebol (estesia e, digamos, catarse) são apresentados. Na primeira parte do

116 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 117
Diário de Luz Del Fuego Iv razão pela qual estou quase sempre alheio aos problemas nessa faixa.
O diabo não é assim tão feio quanto é pintado. O monstrengo que é a ponte
Rio-Niterói, vista à noite, numa volta de Paquetá, tem seu charme particular!
Há alguns “finais suplementares” para o filme L. de F. entre os quais se en-
IV
quadra um no qual a ponte - símbolo opressivo de um sci fi caboclo, símbolo
24.6.81
de atualidade e até mesmo de estética visual.
Na lancha Neves, da ex-STBE, de volta ao Rio, depois de 21 dias “al mare”.
O rio fica como que emoldurado por ela.
Esta mistura de temas e lugares, este filme que avança e amaça chegar ao fim
No filme “Memória de Helena” (1968) a velha barca da Cantareira surge ao
só com problemas superficiais de produção. Minha displicência com a mise-
som do Scheherazade de Rimsky Korsakoff, com dois marinheiros na proa,
-en-scène não me traz agora, que enveredo pelo gênero “vale quanto pesa”,
reminiscentes de On the Town (Um dia em N.Y), de St. Donen e G. Kelly.
nenhuma preocupação suplementar.
Minha matriz agora é o L’Atalante de Jean Vigo. A marítima de L. d. F com
Este diário, ou hebdomadário, como queiram ou aceitem na sua irregular
sua jiboia seminua, sincretiza-se na Ilha do Sol e adoça com as do [Soire]-
concepção é, digamos assim, no fundo, uma solene e vaidosa aspiração à pos-
-[Sara] as poluídas águas da B. de Guanabara.
teridade. Mas, que fazer? Negar certa vaidade (talvez essa palavra seja uma
corruptela ou uma maneira caipira – será, quem sabe? – de se pronunciar
verdade). Seria muito autoflagelação para uma pessoa que acredita no que
está fazendo e o faz com extremo prazer.
Minhas mágoas até agora não são cinematográficas. Gosto muito mais do que
desgosto (já disse isso antes). Não sou nenhum Messias do Cinema mas tam-
bém não sou astro como queria o mestre P.E. gostava de classificar certas pes-
soas. Tampouco sou samaritano – curo o cinema, (o meu e o alheio) – logo existo.
Silenciosamente, como num sussurro que Canário (J.B) fará seguramente à
Luz Del Fuego, na nossa volta à Ilha do Sol (Última semana de filmagem – hélas!).
“Por aqui me chamam de Canário”, disse ele a ela, numa forma particular,
em prosa direta num lança-perfume oswaldiano. Um tete a tete anacrônico,
de época, indispensável para a atividade fechada deste filme até agora geral
como um outdoor, público como um jornal, livre como uma propaganda de TV.
Como “censurar” na censura uma coisa tão acessível a todos? O primo afim
do tio-avô do porteiro do prédio do meu pai teve um caso com essa tal de L.del
F. Recebo constantemente estas e outras informações de forma fria, insen-
sível, machista, desprezível. Luz, como o sol parece ter brilhado para todas,
mas eu, ciumento, quero que ela reserve seus raios, exclusivamente para o
indecifrável e misterioso Canário.
O clima de filmagem, com todos os prós e os contras, as trocas e as confu-
sões, chegou a uma homogeneidade que os italianos chamariam de bíblico. Uma
coisa periclitante sem perigo, a salvo. De certa forma, posso controlar, ao menos
sistematicamente, a equipe pesada, mas isso eu considero função empresarial,

>

118 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 119
Poética do Cinema Novo1 condenar (v. g. o episódio do deputado nordestino, ridículo, grosseiro, desto-
ante, verbalista, como se queria na festa primitiva). Defeituoso, maladroit, eis
a chave-mestra para se classificar formalmente o. seu mundo e o que lhe
seguirá. Esperar a perfeição, os ornatos, o rigor num filme brasileiro somente
Não se pode negar que uma visão de conjunto de uma obra artística qualquer,
se se tivesse uma visão brasileira desses elementos. O Brasil e seu cinema
mesmo a que não disponha de finalidades essenciais, faz sempre extravasar,
para os brasileiros. Num determinado momento, a ousadia máxima para um
bem ou mal, uma poética distinta. Assim, se fora do cinema novo tomamos
filme de produção pobre e de conceitos pobres a respeito da produção: a grua
a fase das chanchadas (ou das comédias musicais), elas, na sua grosseira
improvisada que termina por trucagem numa maquete da visão-tipo do Rio:
insuficiência artística, nos apresentarão sempre um universo específico como
o Pão de Açúcar e a Baía de Guanabara. Nelson Pereira dos Santos, usando
pano de fundo, e diversas peculiaridades, todas dependentes de ou imanentes
recursos de todo um Cinema que lhe antecedeu, traça as bases de uma nova
a esse mesmo universo.
escola: a da autenticidade.
Indago-me que critério usar para abranger, com clareza, e, com brevidade,
Rio, Zona Norte  confirma com mais secura a tese da unidade e da perso-
o problema. Uma divisão prática seria interessante no sentido de “visualizar”
nalidade ou autoria. O compositor Espírito da Luz Soares é a “voz do povo”
em detalhe essa poética ou esse universo específico em seus diversos seto-
e sua vida a nossa vida. Eis o samba-na-caixa-de-fósforos, o despojamento,
res. Digamos, adotando o método indutivo que, no cinema novo, as correntes
quase o cinema-verdade em 1957. Eis a coragem, a necessidade de utilização
principais são:
da inteligência, do amor ao cinema. Que tipo de universo é esse? A poesia do
a) a tradicional, que evoluiu do antigo cinema industrial; real, da crueza, do drama, da pobreza, da infelicidade. A poética do cinema
b) a híbrida que mantém pontos de contato com a anterior e com, novo, queiram ou não, é essa aparência, às vezes titubeante, ou a ilusão dessa
c) a moderna, originada no espírito jovem de jovens apaixonados pelo aparência. Titubeante, na verdade, tem sido o espectador brasileiro que não se
cinema, teóricos, estudiosos, cineclubistas e, finalmente, autores de filmes. entrega facilmente, que reage, que perde a seiva de um mundo novo, em busca
de contatos, de relações, de ressonância com uma concepção provinciana e
Essas três correntes ou saídas do atual cinema brasileiro são absolutamente alienada que traz consigo.
autênticas e cada uma comporta de  per si  uma característica própria que no Depois de Rio, Quarenta Graus, Rio, Zona Norte veio Mandacaru Vermelho e
entanto se liga com intimidade à sua congênere do outro grupo. Se poética e uni- Nelson Pereira dos Santos já entrava pelas outras correntes, formando, pen-
verso são a mesma coisa, não significarão, também, em última instância, estilo? sando, ruminando Vidas Secas.
E o cinema novo prima justamente por uma unidade dentro da diversificação Em outros planos, outros realizadores seguiram-lhe os passos: Glauber Ro-
estilística. As causas desse fenômeno residem de modo especial na formação cha, Roberto Pires, Roberto Farias. Sobretudo Glauber. Os demais, assistiam,
independente de cada realizador e na emulação inconsciente que existe no meio. apreendiam, debatiam. preparavam-se.
Na primeira corrente, fundam-se os princípios dessa poética. São, por as- Cinema é antes prosa do que verso, mas que melhor poeta do que Guima-
sim dizer, os alicerces do universo cinematográfico brasileiro, a origem dos rães Rosa?, devia pensar Glauber Rocha, digerindo o roteiro de Deus e o Diabo
vetores que orientarão um determinismo cultural. na Terra do Sol. Que afinidade sutil entre o jovem baiano e o grande escritor. “...
Para começar,  Rio, Quarenta Graus,  de Nelson Pereira dos Santos. Como ele será tanto mais original quanto mais fundo baixar na pesquisa, trazendo
transformar em palavras sua concepção? como resultado um mundo e um homem diferentes, compostos de elementos
Filme fragmentado em episódios que se interdependem entre si e se com- que deformou a partir dos modelos reais, consciente ou inconscientemente
1
Originalmente publicado no pletam. Cada uma, célula de poesia, ora realista, ora de referência cinemato- propostos”. Falando da técnica criadora de Guimarães Rosa, Antônio Cândido
livro Cinema Novo no Brasil.
Petrópolis: Editora Vozes. gráfica. Sublinhe-se e atente-se, no filme, a nostalgia relativamente à chan- não se refere também e com certa intimidade à elaboração de Deus e o Diabo
1966. Pg.20
chada que ele tanto como produção quanto como realização parece querer na Terra do Sol, ou, mais particularmente, à técnica de Glauber Rocha? Antônio

120 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 121
das Mortes, esse personagem fabuloso não seria, por exemplo, esse “homem O tempo favoreceu a abolição do supérfluo. De  Boca de Ouro  a Vidas Se-
diferente composto da deformação dos modelos reais?”2 cas, por exemplo, que incrível aumento de objetividade narrativa. Os estímu-
Dessa poesia viril, faceta de um mundo, região, como uma região geográfica los se filtram, o cinema novo busca a universalidade através da análise, da
de um Brasil imenso, se pode passar a outras aparências. consciência acerca de meios e fins, da autoria. Realiza-se, enfim, pelo amor
Cinema é crônica, pensaria Roberto Farias, seguindo a prosa narrativa de Nel- ao homem brasileiro e pela concentração em objetos realmente autênticos.
son Pereira dos Santos quanto à despreocupação com o veículo e renovando o es- Finalmente, se me perguntassem, à queima-roupa quais as raízes e origens
tilo em certos detalhes, fiel, porém, ao processo da découpage e dos vrais raccords. mais profundas do cinema novo, ou melhor, de sua poética, eu responderia de
Cinema é tudo, pensava ainda Nelson, que começa a ser menos cronista do que forma conclusiva:
cantador; dolente, rústico, singelo, despojado como Graciliano Ramos se revela,
ele próprio, em S. Bernardo: “extraio dos acontecimentos algumas parcelas: o 1) a autossuficiência do brasileiro, fator perigoso que às vezes, como no
resto é bagaço”. Como escritor, Nelson passa a ser evasivo, seco e intransigente. caso presente, age de maneira positiva; 
2) como causa material a influência direta, de um lado, da chanchada, o
Cinema é paixão, choraria Paulo Cézar Saraceni.
cinema industrial carioca decorrente da novela radiofônica; de outro lado,
Cinema é “música”, dirá, mais tarde, Sérgio Ricardo, completando a tempo:
uma forma de aculturação brasileira mais elevada (escritores) e os curtas
música popular. É ritmo e raciocínio, responderia Joaquim Pedro de Andrade. -metragens Caminhos, Cruz na Praça, Domingo, Arraial do Cabo, O Poeta do
Cinema é intimidade, replicaria Carlos Diegues. À polêmica que não chega a Castelo e Couro de Gato; 
ser está aí: porém todos concordam na aparente discordância. 3) a coragem, o amor do cinema como forma de expressão e, em sentido
Todas essas manifestações que transtornam nosso espírito, no fundo, exis- não pejorativo, a lei do menor esforço.
tem da forma a mais brasileira possível, isto é, displicente, balbuciante, tími-
da ainda. E não vão ser as tais correntes que para facilitar inventei, que as
separarão em compartimentos estanques. Assim, Nelson Pereira dos Santos
influencia Glauber Rocha que influencia Carlos Diegues que se exercita. O uni-
verso de Nelson, seus conceitos dramáticos agem sobre Joaquim Pedro que
também se estimula com a retórica de Glauber. Paulo Cézar acha que quase
tudo vem de Rossellini, mas, por exemplo, toma Viaggio in Italia como um meio
e nunca corno um fim. Pelo realizador italiano, o mundo de Paulo Cézar en-
contra o de Glauber Rocha e ambos se entrechocam, numa dialética criadora.
Eis aí resumida a poética do cinema novo. Falta, também, mencionar que os
problemas técnicos que assaltam quase sempre a realização de um filme, agem
de maneira a influir sobre a formação desses mesmos mundos. Aos poucos,
porém, a consciência vem chegando e universo pessoal e condições materiais
atingem uma fase quase familiar de concordância: são os casos de Vidas Secas,
Deus e o Diabo na Terra do Sol e o exemplo paulista de Noite Vazia.
Ao final, entretanto, tudo é válido e conta como aquilo que Louis Marcorelles
diz ser “a feitura concomitante da história de um povo e de um cinema”. O amor
2
ao cinema chega ao extremo de se realizarem filmes com o conhecimento pré-
Cândido, Antônio, “Tese vio de sua quase impossibilidade de recuperação financeira no mercado interno
e Antitese”, Cia. Editora
Nacional, 1964. do Brasil e já hoje em dia o mercado externo é visto com certa desconfiança.
>

122 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 123
Diário de Luz Del Fuego V

5.6.81
Luz Del Fuego, personalidade, personagem; o movimento e o cinema, como
enquadrar a emoção? Os personagens através dos outros, as pessoas através
dos olhos e do coração. Como desvincular o ato da forma? Como formalizar
o ato de certas vivências? O movimento é para fora! Mas há certas partes
escondidas. Como perceber quantos são verdadeiramente os personagens, ou
como são eles? Como criança que brincam de cabra cega tocam as pessoas
sem realmente vê-las, mas de fato, conseguem sentir. Tenho a impressão que
é simplesmente como um jogo de arma, todas as peças tem que estar em
quadro, não podendo haver falhas ou truques (bem que pode). Na verdade, é
um grande jogo sem perdas nem danos...ou não? Tanto faz...o fascínio está em
jogar luzes, câmera, ação…
O que se descobre em cada fragmento...ou meramente em cada ação.
Tantos rascunhos e nenhum compromisso. Acreditas - os impossíveis e os
reais sem contradição…
Ao ritmo do coração perceber sem susto e sem compromisso.
Afinal, não há riscos; tudo pode ser indefinível ou não. É só uma questão de
ponto de vista.
Cartas do Meu Bar I Até o desgaste filosófico está incluído neste saco. Escrevo qualquer coisa só
para não deixar espaços deste diário em branco./////// Estamos filmando na
casa de Gaspar (Em Santa Tereza, mansão de Septimus Clark) - um senador
que se envolve com Luz. Ele a ama? Acho que tudo faz parte de um grande
I
jogo político-amoroso.
“ Quando passei à realização, em 1966, depois de alguns anos de relutância, O dia se abre distraidamente. O frio rebate qualquer clima. Paira no ar….o
descobri “ao vivo” que não é pela teoria, não é na ideologia, não é na riqueza coração se apercebe e late aflito, um cobertor para o corpo e para a alma. O
de produção que se extrai de uma história a almejada autenticidade. É num inverno em seus olhos a alma mais fria e não há memória…
terrível corpo a corpo com esse fugidio meio de expressão. O cinema é uma
permanente aferição da realidade com nosso estado de espírito. Sempre me
chama a atenção as atividades de engenharia topográfica onde existem teodo-
litos ou outros instrumentos óticos montados sobre um tripé. É que, em tudo,
elas dão a impressão de uma equipe cinematográfica que procura objetivas,
com nitidez e equilíbrio, algum projeto subjetivo.”

124 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 125
Guimarães Rosa e o Cinema1 tinha sentido, ao ver o filme de Pasolini. Suas opiniões e o modo de tecê-las
nunca mais saíram da memória. Posso recordar aqui que o que foi dito era de
modo geral favorável ao filme, salvo no que respeita o episódio de Pilatos, que
fora tratado “muito superficialmente”, sem levar em conta o fato de “Pilatos
Tive a oportunidade de conhecer Guimarães Rosa antes de servir no setor de
por sete vezes ter tentado salvar a vida de Jesus”. A conversa passou a en-
Cinema da Divisão de Difusão Cultural do Ministério das Relações Exteriores.
veredar por esse assunto específico até o ponto em que Guimarães Rosa nos
Foi quase ao partir para a Itália, onde participaria, em Gênova, do Congresso
revelou estar ele próprio preparando uma novela com transposição do tema
sobre o Cinema Novo Brasileiro, organizado no quadro da V Resenha do Ci-
em questão, coisa que me recordo ter provocado uma enorme curiosidade.
nema Latino-Americano pelo Columbianum. Nossos contatos eram fortuitos,
As relações do escritor com Glauber Rocha pareciam nutrir-se de uma afi-
nos corredores do Itamaraty, e nossas conversas versavam sobre um pon-
nidade maior, a partir, naturalmente, da exibição de Deus e o Diabo na terra do
to comum de nossas vivencias, ou seja, a cidade de Diamantina, em Minas
sol, que provocou no seio da crítica especializada e nos meios culturais em
Gerais. Naquela época era habitual minha presença na DDC. Ajudava no que
geral um imediato esforço de aproximação com a obra do autor de Sagarana.
podia o secretario Arnaldo Carrilho, na preparação da retrospectiva que seria
A impressão que me vinha parecia ser a de gratidão do escritor para aquele
apresentada no auditório da Fiera del Mare. Não chegou a se formar entre
que, sem basear-se diretamente nos seus escritos, buscara profundamente
escritor e o visitante tímido uma amizade profunda, mas nossos contatos me
no seu estilo sincopado um modo de ver brasileiro para problemas exclusiva-
bastavam para armar um quadro humano da personalidade que sempre me
mente brasileiros. Essa especial simpatia me foi provada algum tempo depois
fascinara pelos seus escritos.
quando, já funcionário contratado da DDC (Divisão de Difusão Cultural do Ita-
Pouco tempo depois viajávamos os dois, rumo à Itália. Nosso destino era
maraty), era sempre arguido a respeito das atividades do cineasta baiano. Na
comum. As atividades do Columbianum estendiam-se a outros campos. Além
época da preparação de Terra em Transe lembro-me ter-lhe informado o título
das resenhas sobre os cinemas latino-americano e africano havia um con-
definitivo da fita e da sua desaprovação ao mesmo, seguida de um conselho
gresso sobre a literatura em nosso continente, com a preparação de uma
ao cineasta que transmiti logo que me foi possível: “Diga a Glauber que Deus
revista a ser chamada “América Latina” e, para essas duas últimas ativida-
está no detalhe”.
des, tinha Guimarães Rosa recebido um convite especial do Columbianum. Foi
Esse conselho nunca mais me abandonou. Chegou mesmo a se tornar um
em Gênova que as relações do cinema com o escritor ficaram mais estrei-
leitmotiv de todas as minhas considerações acerca do cinema brasileiro, cuja
tas. Cerca de 15 brasileiros ligados ao movimento de renovação cinemato-
grande constate tem sido a visão de conjunto, o mural. Partindo dele recon-
gráfica estavam presentes à Resenha, entre os quais Glauber Rocha, Carlos
siderei grande parte da própria obra de Guimarães Rosa, passando a revê-la
Diegues, Paulo Cezar Saraceni e Gustavo Dahl. Guimarães Rosa não era uma
sob o prisma novo e totalmente revelador. Recentemente tive nova luz a res-
personalidade fácil. Sua mineirice elevava o que me pareceu ser desconfiança
peito, com a recomendação de P.E. Salles Gomes de se fazerem filmes sobre
até um grau extremo. De modo geral, repetia-se em Gênova o contato rápido
“coisas e não sobre ideias”.
(mas sempre fértil) dos corredores itamaratianos. Houve, porém, dois ou três
Glauber, apesar de pretender em Terra em Transe um levantamento da si-
encontros fundamentais e me lembro bem da satisfação que nos foi trazida
tuação política do continente, ambição essa de difícil realização nas exíguas
por eles. Alguém (Glauber, talvez) havia recomendado ao escritor a visão de
duas horas de um longa-metragem, parece ter sido fiel, em tese, ao conselho.
O evangelho segundo São Mateus lançado há poucos dias num cinema da via
Seu sistema criativo parece ser muito mais indutivo do que dedutivo e é justa-
XX di Settembre.
1 mente nesse processamento que se realiza o princípio do escritor.
Publicado originalmente
Um desses encontros foi posterior, imediatamente posterior, a esse con-
Afora essas considerações de ordem pessoal que me vêm à memória num
em O Estado de S. Paulo selho. E foi deliberadamente provocado pelo escritor que nos procurou num
(Suplemento Literário), 27 momento de saudade, poderia dizer ainda que as relações de Guimarães Rosa
de Janeiro de 1968. tranquilo fim de jantar. Lembro-me que vinha decidido a prestar contas do que
com o Cinema não param aí. Há ainda um momento de tristeza no que se re-

126 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 127
fere à transposição para a tela de Grande Serão: Veredas levada a cabo pelos
irmãos Geraldo e José Renato Santos Pereira, que transformaram a trans-
cendência do sertão dos Gerais no mais reles estereótipo do western. E um
outro momento de desafogo, em A hora e a vez de Augusto Matraga, de Roberto
Santos, que, se não chegou a definir exatamente a visão sincrética do mundo
de Guimarães Rosa, pelo menos não deturpa a intenção final do autor. Na peri-
feria dessas obras acabadas (embora no caso de Grande Sertão seja imperiosa
a refilmagem) há um rebuliço em torno de algumas novelas, sendo que Buriti
(da coleção Corpo de baile) é uma das mais perseguidas, já tendo passado pela
cogitação de Joaquim Pedro de Andrade e, mais recentemente, de Leon Hir-
szman. (O realizador de O padre e a moça durante certo tempo ficou indeciso
entre Buriti e a A estória de lélio e lina.) Dos exemplos mais recentes está o de
Nelson Pereira dos Santos, que pensa em levar para a tela a Menininha2 da
coleção Novas Estórias.
Nada mais justo. Porque ninguém mais cinematográfico do que Guimarães
Rosa (o leitor há de nos perdoar o lugar-comum). O cinema sendo o ponto de
contato entre a realidade e a magia, arte não codificada onde tudo é permitido,
inclusive a presença mágica do mundo3. Sigamos Antonio Candido e teremos
a chave do caráter cinematográfico de Guimarães Rosa: “Parecia que, de fato,
o aturo quis e conseguiu elaborar um universo autônomo, composto de reali-
dades expressionais e humanas que se articulam em relações originais e har-
moniosas, superando por milagre o poderoso lastro de realidade tenazmente
observada, que é a sua plataforma”.4 E, mais adiante: “...a paixão pela coisa e
pelo nome da coisa [...] tudo se transformou em significado universal, graças
à invenção...”. Estamos, afinal, diante da cristalização das teses expostas nas
duas recomendações citadas acima: a do próprio Guimarães Rosa a Glauber
2
É provável que David Rocha e a de P.E. Salles Gomes aos novos cineastas.
Neves confundiu-se e
quisera mencionar o conto
O recente passamento do escritor e diplomata João Guimarães Rosa veio
A menina de lá, da coleção trazer, a meu ver, uma lacuna no meio cinematográfico brasileiro. É paradoxal
Novas Estórias. (N.E)
o fato, dado que ele não militasse entre os cineastas, mas, como pode ser
3
“O mundo é mágico”, visto, sua presença e seu élan, de alguma forma agiam sobre os processos
frase do discurso de posse criativos do Cinema Novo. Meu breve relacionamento com esta figura extra-
de Guimarães Rosa na
Academia Brasileira ordinária não me permitiu deixar passar incólume esta oportunidade de re-
de Letras
gistrar fatos que poderiam ser considerados apenas comezinhos pelos que
4
Antonio Candido em Tese
tiveram a grande chance de conviver com o grande escritor. Sua lição nos foi
e Antítese, São Paulo, inestimável: ele transformou o Sertão no próprio mundo. Cabe a nós promover
Companhia Editora
Nacional, 1964, p. 122. a ampliação desta aventura original.

128 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 129
Rio, Zona Norte1 Pereira dos Santos ele só encontra par no utilizado na feitura de Vidas Secas,
algum tempo depois. Nos demais “grandes filmes” de sua carreira, Nelson,
sem desprezar o resultado final, transferiu o sentimento de “rigor” puro e sim-
ples para o de “consciência crítica do métier”, o que, nas condições brasileiras
Rio Zona Norte é um marco estável na história do cinema novo brasileiro. Esta
de produção, permitiu resultados sempre novos e originais.
estabilidade tem pouco a ver com o ostracismo por que passou o filme no
A paixão que nutria pelos exemplos neorrealistas ainda vivos nas telas
tempo em que vigorou seu certificado de censura, isto é, no período em que
brasileiras dos anos cinquenta, só perdeu para a impregnação que a realida-
foi exibido no território nacional. No entanto é, ao meu ver, um dos filmes mais
de brasileira provocava, e o resultado formal é menos transparente estilisti-
inspirados do cineasta que acaba de nos dar Tenda dos Milagres, uma obra
camente e, portanto, mais pessoal. O realizador se colocou expressamente,
definitivamente madura.
como havia feito no filme de estréia, entre a realidade e a obra para evitar
A fita de estreia de Nelson, Rio Quarenta Graus tinha causado o devido im-
deturpações provenientes de influências alienígenas. Rio Zona Norte resultou
pacto, mas, como um primeiro produto autoral egresso do caos cinematográfi-
num canto de amor ao homem brasileiro e os ecos desse canto repercutem
co do meio da década de 50, não podia deixar de refletir essa desordem artísti-
ainda hoje nos seus trabalhos subsequentes.
ca que procurou, de um único golpe, suprir. Quando partiu para fazer Rio Zona
A tônica de Rio Zona Norte é, entretanto, a leveza. Como protesto pela con-
Norte, o realizador não só estava consciente de suas potencialidades como
dição do sambista marginal, engolido pelas emissoras de rádio, televisão, ou
sabia bem controla-las e concentrá-las.
pelas gravadoras, é um caso paradoxal de veemência pela suavidade. Nem
Do mural ambicioso que foi Rio Quarenta Graus passou a um filme com uma
mesmo os momentos de grand-quignol, como o roubo da tendinha de “seu”
bela estrutura arredondada, fazendo uso expresso do flashback como recur-
Figueiredo (Washington Fernandes), ou do assassinato do filho de Espírito
so narrativo e, por outro lado, apto a se dedicar à sua personagem central
(Norival: Haroldo de Oliveira), onde a fotografia de Hélio Silva apela para o
o compositor Espírito de Luz Soares, extraordinariamente protagonizado por
claro-escuro dos dramas policiais, nem mesmo aí se consegue suspeitar da
Grande Otelo.
violência áspera do ser humano acuado. A leveza do tom se não é deliberada
A filmagem na favela, na rua, no leito da ferrovia, substitui com a vantagem
parece ainda uma opção de estilo, quase um trompe l’oeil para disfarçar certo
da verossimilhança os estúdios artificiais da chanchada e os atores novos
encabulamento diante de uma condição humana insustentável (Na sequência
recrutados desde o filme de estreia (Vargas Junior, Haroldo de Oliveira, Wa-
da morte de Norival retoma-se, no filme, o uso da profundidade de campo.
shington Fernandes etc.) trouxeram um ar de realidade que faltava em nosso
Como as condições de produção certamente não favoreciam o uso de um par-
cinema.
que de luz necessário à plena possibilidade de aproveitamento desse método,
A estória de Espírito é triste: para começar, sabemos que está moribundo.
o resultado foi híbrido: Espírito em primeiro plano, caído ao chão e visto com
Caiu de um trem suburbano e aguarda socorro junto à linha da estrada de
nitidez e, ao fundo, os pivetes quase desfocados, esfaqueando Norival). Se é
ferro, assistido apenas de duas ou três pessoas que presenciaram o acidente.
essa a atmosfera dominante num momento de tensão dramática de Rio Zona
Esta revelação é feita logo na sequência inicial, ao fim dos letreiros. Uma apro-
Norte, podemos imaginar a inspiração irradiada nos momentos distendidos e
ximação da câmera no rosto do acidentado e o espectador passa a participar
alegres. Na verdade é a personalidade bonachona de Espírito, sempre enga-
de seu delírio retrospectivo.
nada, mas sempre esperançosa que preside, por opção do realizador, grande
O encadeamento dos diversos flash-backs se dá através de retornos ao
parte do desenrolar do filme.
local do acidente e essas passagens são feitas por meio de fusões, recurso
1 No início, quando tomamos conhecimento dos personagens, através do pri-
Publicado originalmente
aliás que o filme usa muito inteligentemente, na mesma linha ideológica de
em Filme Cultura #28 meiro flash-back (e há o recurso curioso de fundir o ruído de um trem subur-
simplificação e de economia de tempo. O rigor pressentido, neste respeito pela
(Fevereiro de 1978), bano com a batucada de uma Escola de Samba), Espírito canta na quadra da
pg. 90-107 estrutura pré-determinada, também é digno de nota. Na filmografia de Nelson
“Unidos da Laguna”, depois do incidente entre um marginal e uma sambista

130 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 131
(Malu). A gratificação de Espírito alcança a plenitude quando as atenções dos flexão do corpo oferece cerimoniosamente o rosto para o beijo de despedida.
espectadores convergem para ele e sua excepcional inspiração de compositor O uso da estrutura que estabelece a prioridade dos fatos passados sobre os
e, mais ainda, quando se vê correspondido pela sambista, que aceita sair da presentes favorece, em certa medida, a idéia da ascensão de Espírito; a volta
quadra sob sua proteção. Espírito e Adelaide iniciam uma vida em comum e, ao presente “afere” essa falsa idéia com a “realidade”. Foi esse procedimento
pelo menos mais dois momentos magistrais de Rio Zona Norte, encontram-se que, ao meu ver, fez de Rio Zona Norte um filme avançado para o seu tempo. Fui
sob a influência dessa nova união. Um desses momentos inicia-se na pas- vê-lo pela primeira vez em 1965. Ora, nesse ano o show Opinião (Nara Leão, Zé
sagem de um close up de Espírito na linha férrea em Silva Freire para um Keti e João do Valle) já havia vulgarizado os sambas de Zé Keti que constituem
outro em seu barraco, no instante em que acorda, ainda sob o efeito dos bons o suporte musical da trilha sonora (aliás Zé Keti participa do filme, numa pe-
fluídos da véspera. O ritual das abluções matinais que antecede a chegada de quena ponta: a do cantor Alaor Costa). Minha apreciação conta portanto com
Adelaide com a “bagagem” (o filho no colo, um embrulho e uma fruteira) para esse handicap, mas a oportunidade de vê-lo nessa época não pode ser exten-
estabelecer-se definitivamente ali é talvez um dos climaxes estéticos (em re- dida ao público em geral, razão pela qual passei a considerar Rio Zona Norte
alismo e poesia) da aventura cinematográfica brasileira. O diálogo que segue, como um filme refilmável. O instituto da refilmagem só com algumas exceções
transcrito na íntegra, pontua a sequência: vigora no Brasil. Não é comum um filme ser refeito, seja por motivos artísticos
seja em decorrência do sucesso comercial de sua versão original. Refilmar
Adelaide (Malu): Dá licença prá dois? Rio Zona Norte hoje (com, praticamente, os mesmos atores) seria revelar a
Espírito: Isso é que é a sua bagagem? um público já acostumado com as coisas de nosso cinema uma obra que ficou
Adelaide: Foi só isso que aquele bandido quis me devolver!
no ostracismo por ter nascido antes do tempo: moderna e contida; social e
Espírito: Boneco! Vem com o papai, vem! Vem, meu filho, vem com o papai...
intimista; crítica e romântica.
Tão bonito! Ó, que amor... Como ele é bonito, Adelaide... Seu boneco...
Adelaide: Parece até que nunca viu um garoto! A segunda metade de Rio Zona Norte começa praticamente com o reencon-
Espírito: Mas é que ele é muito lindo! tro de Espírito com o filho, fugido do Patronato. Essa nova preocupação é colo-
Adelaide: Que é feito da tua família? cada junto às investidas do compositor para o lançamento dos seus sambas.
Espírito: A mulher morreu... era uma boa companheira. Morreu quando Norival Os dois problemas passarão a correr paralelamente aos subtemas da intro-
nasceu.... vinte anos que eu sou solteiro... quem mais sofreu com isso foi o missão de Maurício (Jece Valadão), e da displicência de Moacir (Paulo Gou-
Norival! O Juiz achou que eu não podia educar ele. Pensando bem, não podia
lart). (Maurício usufrui a inocência de Espírito, fingindo trabalhar na promoção
mesmo não. Eu saía o dia todo, ele ficava largado no quintal. O quintal dele era
ou divulgação de suas músicas e Moacir, compositor frustrado e impotente,
o morro inteiro...
Adelaide: Deve ser uma boa bisca. E esse aqui: o que não vai ser! Estou atra- pretende sempre querer ajudar Espírito.) É curioso observar um detalhe que
sada. A patroa deve estar fula! E eu ainda tenho que levar esse trambolho... caracteriza as aparições de Moacir e pessoas ligadas a ele. Essas cenas são,
Espírito: Não precisa não! Coitadinho... Como é o nome dele? em geral, filmadas em estúdios e isso as distancia das demais, no morro ou
Adelaide: Cláudio. Mas ainda não está batizado. mesmo na rua. O refrão pronunciado por Moacir: “Precisamos conversar!”, en-
Espírito: Ainda não? Nós vamos dar um jeito nisso. Vem cá... Está vendo?! Da- fático e demagógico, ajuda também a aproximar todos esses momentos do
qui a pouco eu vou estar de casa nova... O compadre vai morar em cima, e eu
caricato sempre presente nas antigas comédias musicais, provocando aqui
fico com a tendinha e os dois cômodos embaixo. Vai sobrar muito lugar. Se tu
um pequeno desiquilíbrio estilístico. Outro problema cenográfico ocorre nas
quiser, Adelaide...
primeiras cenas do hospital quando Espírito é conduzido em maca para a sala
de operações. O realizador esforça-se para fazer combinar o visual dessas
Espírito, em seguida, acompanha Adelaide na descida do morro, exultante
passagens com a naturalidade das cenas filmadas em locação. Esse esforço é
com a nova situação, apresentando a parceira aos vizinhos e amigos. O melhor
em parte recompensado e a experiência devidamente assimilada para a futu-
momento da sequência, entretanto, ainda está por vir. Sem palavras, ao pé
ra transfiguração no Boca de Ouro (1963).
do morro, Adelaide guarda uma certa distância de Espírito e com uma meia

132 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 133
Os próximos momentos altos serão a morte do filho, a decisão de impedir e tecnicamente de 1958 até esta parte, mas a simplicidade e a pobreza de
novas interferências de Maurício na parceria de suas composições, o encontro recursos de Rio Zona Norte são hoje vistos como elementos altamente positi-
com Angela Maria e a volta para casa, onde o fim e o princípio da estória se en- vos na reconstrução realista do drama de um sambista carioca. Na época, po-
contram. Já falei a respeito da morte de Norival e, antes do encontro final com rém, o neo-realismo italiano começava a dar lugar a filmes mais elaborados,
Maurício, há uma breve passagem que descrevo aqui pela sua originalidade: alguns mesmo dentro do espírito do star-system americano. Por outro lado
Vemos na tela um plano aproximado de Espírito andando apreensivo. Sobre estávamos apenas iniciando a longa jornada que culminaria com a eclosão do
essa imagem, na trilha sonora, ouvimos um tom solente: cinema novo. Não havia a televisão nem as novelas. Os filmes dialogando em
“Como Norival devolvesse o dinheiro roubado a seu legítimo dono, o chefe português ainda eram vítimas da falta de hábito do espectador, hipnotizado
do bando, não acreditando na boa ação do companheiro, agrediu-o, tendo sido pelas legendas dos produtos estrangeiro
repelido a golpes de canivete. Daí nasceu o desejo de vingança que se consu- Tudo isso contribuiu para que até espíritos lúcidos como o do saudoso P.
mou à noite, quando o bando inteiro liquidou Norival com facadas e pedradas E. Salles Gomes não tivessem meios de interpretar devidamente o filme de
diante dos olhos do próprio pai.” Nelson Pereira dos Santos na época do seu lançamento. Entre outras coisas,
Tem-se quase a impressão de um jornal radiofônico (ou cine-jornal). A câ- dizia ele em seu artigo: “Rascunhos e Exercícios” publicado no Suplemento
mera corrige sua posição e, atrás de Espírito podem ser vistos Honório (Var- Literário do Estado de São Paulo #86 (21 de junho de 1958): “... a fraqueza mais
gas Junior) e “seu” Figueiredo, o primeiro jornal na mão lê para o segundo a evidente da fita reside na confiança excessiva depositada pelo realizador na
notícia sensacionalista do dia. virtualidade artística dos materiais a serem cinematografados.” (...) “Ele sim-
O encontro com Maurício se dá a seguir, na tendinha de “seu” Figueiredo. plesmente dispôs numa certa ordem os materiais, quase em estado bruto, de
Faz parte de uma decisão de Espírito, tomada no íntimo, de não mais aceitar uma realidade pouco trabalhada, na esperança de que a poesia e a beleza nela
a espoliação de seus direitos. A cena é provocada por uma nova tentativa de contidas se comunicassem espontaneamente ao espectador pelo milagre da
conciliação do intermediário sem escrúpulos. Há bastante violência na reação fotogenia e da sonogenia.” Tenho certeza que o despreparo para referenciar
de Espírito, e a mise-en-scène simples, mas eficiente, é soberana: um filme brasileiro a dados estéticos próprios e definitivos foi o culpado por
grande parte das opiniões a respeito dos filmes dessa fase árdua de estabe-
Maurício: Meus pêsames... Isso acontece, parceiro! Mas não há de ser nada. Eu lecimento de uma indústria cinematográfica entre nós. Um estudioso como P.
precisava falar com você. É pra você falar com o diretor da gravadora, sabe? E. Salles Gomes, o mesmo que algum tempo depois passou a alinhar os dados
Você precisava assinar outro documento. Formalidade, sabe?... Esse é pro meio
mencionados acima e a promover um estudo orgânico de nossa cinemato-
do ano? (vendo um papel na mão de Espírito). Deixa eu ver... Deve ser um tiro,
grafia, foi vítima aqui dessa armadilha inevitável. Ele pressentia em Rio Zona
hein? Vamos entrar com essa bomba logo depois da Quaresma. Deixa eu ver!
Espírito: (Com um safanão evita que Maurício peque a letra do samba.) Não, Norte os gérmens dessa autenticidade artística mas limitou-se, quando muito,
Maurício... Este não! Este samba é meu! Só meu!... Eu vou gravar ele sozinho, e a uma suposição tímida: “Apesar de tudo isso, é um exercício válido.” (...) “Pen-
há de ser com Ângela Maria! so sobretudo na sequência em que o personagem interpretado por Grande
Otelo acorda, levanta-se, faz a ‘toilette’ e recebe a noiva. Gostaria de saber se
Os jogos estão feitos; as demais sequências, até o desenlace, acompanharã. esses minutos de fita foram obtidos por acaso (o grifo é meu) ou se o diretor
Espírito e lhe trarão um sopro de esperança. Assim é o encontro com Ângela agiu conscientemente. De qualquer maneira, os movimentos do ator, as pala-
Maria que encerra alta dose de sentimentalismo, na medida, entretanto, para vras que troca com a noiva, o comportamento com a criança e sobretudo a ex-
contrabalançar os infortúnios anteriores. traordinária presença táctil dos objetos de uso corrente ou da ornamentação
A desventura de Rio Zona Norte, como já disse acima, vem do fato de ter sur- humilde do barracão, criam uma harmonia interior e comunicam uma doçura
gido antes do tempo. Cada vez mais me convenço da importância do momento que conferem a essa sequência modesta uma consistência artística e humana
histórico na relação obra cinematográfica-platéia. O cinema evoluiu artística rara no cinema brasileiro.”

134 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 135
Depois do seu encontro com Ângela Maria e a decisão desta de gravar “Fe-
chou o Paletó”, Espírito ainda tenta, sem sucesso, o auxílio de Moacir para con-
Diário de Luz Del Fuego VI
seguir uma partitura do samba. Volta para casa como que refeito dos reveses
pelo encontro com a cantora. Seu refrão, agora, é “Samba meu, que é do Brasil
VI
também...” O trem atravessa os subúrbios levando Espírito, um pingente ilu-
5.7.81
minado. Dá-se o acidente...
A obra posterior de Nelson Pereira dos Santos confirmou seu talento e
De Belo Horizonte, Geraldo Magalhães em a convite da Estrutural, a agên-
suas intenções. Há um ano, ou pouco mais, exibi Rio Zona Norte no auditório
cia que assegura um output anual de notícias sobre o filme. Geraldo, velho
da Cinemateca do MAM do Rio de Janeiro, para uma delegação de diretores
conhecido do embaixador do Brasil em Roma onde viveu e estudou cinema é
de Festivais Internacionais de Cinema (Los Angeles, New Orleans e Berlim). A
desses mineiros eternos que não negam a raça nem na cidade idem. Parci-
cópia apresentada não tinha legendas e eu me esforçava em promover uma
monioso, modesto, cavaleiro, generoso, não abre mão de certas ideias, ideias
compreensão geral do filme, durante a projeção, sem interferir nas condições
estas que sua mineirice não nos dá a honra de conhecer. Sobre Luz del Fuego,
ideais de percepção. O filme, que eu revia depois de algum tempo, revelava
por exemplo, insistiu todo o tempo de nosso périplo – Santa Tereza – Botafogo
força nova, uma perenidade que, acredito, não se esvairá mais. Os visitantes
(Sky Light) – sobre a inconveniência de Lucélia Santos1 para o papel principal
saíram entusiasmados.
para um divulgador contratado sugeri que abandonasse suas dúvidas críticas
e que se desfizesse daqueles pruridos documentais que assolaram e assolam
o cinema brasileiro até hoje e dos quais ele ainda não conseguiu desembara-
çar-se. Adiante tratarei com mais minúcias, deste assunto que chegou a me
atormentar com insistência – a do physique du rôle.

17.7.81
Joana d’Arc na fogueira, Lola Montès, Luz del Fuego, Lucélia Santos.1 Estou
chegando ao fim da primeira parte de uma aventura artística. Sentimental de
alta intensidade e os reflexos nas diversos espelhos d’alma (conhecidos ou
não) começam a faiscar neste inicio de montagem.
A variedade do material filmado - sou tentado a dizer: a genialidade - é tão
grande, que o filme, sem ser disforme, nem uniforme, transforma-se numa
cinebiografia, digamos assim, com notas de pé de página, com referências de
vida e de cinema, mudo, falado e, para minha surpresa, até cantado: 1
Por ser branca, muito
acreditavam que Lucélia
Santos não se parecia com a
“Estolas com Vision, morena Luz del Fuego, e isto
Cadillac com Chauffeur… foi visto como inverossímil,
comprometedor. Em
Viagens a Paris determinado momento da
produção, nomes como de
Ô lá lá!!! Sônia Braga estavam entre os
Preciso urgentemente de um coronel cotados. Foi a própria Lucélia,
por determinação, que lutou
Para minha vida enfeitar!” pelo papel-título. (N.E)

136 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 137
Tudo qual uma festa de formatura de colégio interno, da mesma maneira
como a Martine Carol rejuvenesceu pela maquilage no início de Lola Montès,
Uma Aventura Malgaxe1
de Max Ophuls, as luzes alaranjadas de Fernando Duarte, revelam uma jovem
e irreverente showgirl de corpo e alma, (in) experiente, disponível, linda, e so- Uma crônica publicada (ao que tudo indica) numa revista de cinema neozelan-
bretudo, com a cabeça sendo progressivamente feita. desa dá conta de um fato curioso acontecido há algum tempo na costa oeste
Fica difícil dizer que imagem de Luz del Fuego seduz mais. Se esta, arcaica, de Madagascar, a uma distância considerável de Tananarive, portanto. Não fica
longínqua ou se as subsequentes, da autossuficiência, do apogeu, ou, da cer- especificado na referida crônica o local exato, mas supõe-se, pela descrição ge-
teza. Caráter caprichoso, personagem sedutora, atriz determinada e simpáti- ográfica, tratar-se de um ponto vizinho a Androka, no litoral sudoeste da ilha.
ca, o filme Luz del Fuego persegue uma intriga jornalística, semi-policialesca, Essa aventura cinematográfica Malgaxe (nome atual da República consti-
anímica, sobre a qual não tenho mais, hoje, temor de levantar impressões nem tuída na antiga ilha de Madagascar) pode servir como padrão relativo da sig-
revelar alguns segredos. nificação do cinema nos dias de hoje. Tudo leva a crer que os acontecimentos
Adoro este material bruto pronto para a lapidação. A capacidade de recor- foram resultado de uma coincidência histórica.
dar sendo débil, o filme vai-se recriando no meu espírito dia a dia, para a pro- A arca ou espécie de arca que veio àquela praia sul-equatorial continha uma
curar, mas ignoro absolutamente qual será sua organização final. Dela tenho quantidade considerável de latas de filmes impressos e sua descoberta pro-
apenas uma ideia longínqua de vida e de amor. vocou uma sequência de eventos que vem finalmente provar que o cinema
Na verdade, apesar de ter tido alguma antipatia pela matriz, sou apaixonado tornou-se fenômeno que supera o conceito do nacional e reforça o vínculo
por minha Luz Del Fuego. Amo de paixão, amo sem perdição esta criatura por- indissolúvel entre arte e indústria. Mas, também, e paradoxalmente, demons-
ra louca e generosa, agridoce grosseira e suave - inesquecível na sua verdade tra o contrário.
e na sua virtualidade. Consta que, entre latas e imagens não identificadas, faziam parte desse
*** estranho acervo cenas de Aconteceu em Veneza, filme colorido e em cinemas-
17.7.81 (Paquetá) cope, de Roger Vadim, duas partes iguais de Quatro noites de um sonhador,
O mar quando brilha no horizonte “Limite” é por questão no mínimo inesperado! de Robert Bresson, uma das quais acompanhada de um maço de anotações
O que é o que é por cima de ti eu trepo no seu vai e vem o gozo contigo fica ao que parece do próprio cineasta. Em versão integral, Pett & Pott, de Alberto
e o leite comigo vem Cavalcanti, sendo que ainda deste cineasta havia uma espécie de trailer de O
canto do mar dublado em swahili, língua falada em toda a ilha. Este detalhe
S.A reforça a tese de alguns de que a arca fora deliberadamente lançada ao mar
A técnica do erro para ir ter à costa malgaxe.
cobras, paus, indústria, personalidade, arte Outras especulações, sobretudo devidas ao exame do material excedente,
FPessoa, Iglesias etc como a cena da dança de Rita Hayworth em Gilda, de Charles Vidor, ou uma
Sotaque dos atores visão da lua através do Corcovado, provavelmente filmada de algum ponto da
Do roteiro ao sanguíneo Baía da Guanabara, deduzem que o referido material cinematográfico teria al-
Época? guma relação com o fim dado pela Desilu (subsidiária da Paramount) ao filme
1950 {?} inacabado de Orson Welles, It’s all true.
Além de cenas de filmes totalmente desconhecidos tanto em idioma quanto
1
A preocupação com o começo e o fim de cada plano. Figuras em cena - no no estilo cinematográfico, outras, como o desfile de uma escola de samba na Originalmente publicado
centro do quadro? Quinta Avenida, em Nova York, produziram conjecturas, a respeito da filma- no livro Cartas do meu bar,
Rio de Janeiro: Editora 34.
Repetição do padrão inicial de cada sequência etc. gem clandestina de O rei do Rio, projeto do jovem cineasta brasileiro Bruno 1993, pg. 60.

138 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 139
Barreto. Em outras latas, curiosas “experiências” de montagem foram encon- reu célere e a arca acabou desembarcando em Tananarive depois de uma
tradas, assim como tentativa de levar o espectador a crer que o povo esbafo- sofrida viagem de caminhão. Nessa viagem, ainda perplexos com o achado,
rido e atordoado que fugia dos disparos dos cossacos na escadaria de Odessa esses nativos perdulários fizeram que se desenrolassem pela estrada alguns
dirigia-se pura e simplesmente para um Fla x Flu decisivo no Maracanã! Ou rolos de filme, não sem certo deslumbramento. Uma página, ao menos, dos
que Fabiano, personagem exemplar de Vidas secas, era visto nítida e delibe- escritos de Robert Bresson foi levada pelo vento. Um caixeiro-viajante que a
radamente a se intrometer na vida dos personagens femininos de As Deusas, encontrou dias depois leu várias vezes em voz alta a frase A Força Ejaculadora
do paulista Walter Hugo Khouri. Ou ainda, que, no momento em que Pedro do Olhar, tentando entender o que ela poderia significar tanto ao pé da letra
Arcanjo invoca os deuses para proteger seu grupo contra a intromissão da como metaforicamente.
polícia em Tenda dos milagres, associa-se a essas imagens à de Ney Sant’Anna
surgindo das águas em Amuleto de Ogum numa estranha tentativa de “sincre-
tizar” a obra de um mesmo autor, no caso, Nélson Pereira dos Santos.
Ignora-se até hoje de que maneira foi parar naquele ponto do Oceano Índi-
co essa preciosidade cinematográfica, bem como que trajeto, que correntes
marítimas a teriam levado até lá. Casto tenha ela partido do continente ame-
ricano, concebe-se até mesmo a possibilidade de um percurso contornando o
Cabo da Boa Esperança. E as inscrições diligentemente pintadas na sua parte
externa propõem outro dilema histórico: mencionam igualmente, sem distin-
ção, através das palavras cinéma e cinématographe o conteúdo da arca (usa o
francês como idioma universal, fornecendo assim uma pista concreta sobre
a prioridade dos irmãos Lumière sobre Thomas E. Edison na “fundação” da
sétima arte).
Um único filme, ou melho, uma única parte de filme foi descoberta na arca
em vários formatos (bitolas), até mesmo no fora de uso 9,5mm. Tratava-se de
Bang-bang, longa-metragem de André Tonacci. A rigor, o trecho repetido não
passa de uma sequência e ela se encontra na primeira parte do filme. As re-
ferências desse trecho que apresenta um quarto semelhante ao de um hotel,
onde um mágico vestido a rigor faz sumir e aparecer a seu bel-prazer alguns
dos outros personagens com feições de marginais típicos. Um dos estudos na
supracitada revista procura explicar a insistência na referida passagem Bang-
-bang, apelidando-a de “carta aberta aos roteiristas de todo mundo”, como se o
poder sobrenatural do mágico em tela (sic) devesse ser absorvido por aqueles
que escrevem filmes e não possuem a correspondente naturalidade com o
veículo.
A arca parece ter permanecido um longo período na praia vizinha a An-
droka. Quando foi encontrada conservava grande quantidade de calor solar
(isso danificou alguns filmes no seu interior, tornando-os inclassificáveis).
Foram nativos os que primeiro a descobriram. O rumor da descoberta cor-

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140 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 141
Cartas do Meu Bar II A Vida como Rascunho1

Não é fácil explicar como a gente chega a certos estágios da vida, sobretudo
II
quando eles são diametralmente opostos àquilo que se planejou. Minha “vo-
“Se ela ficasse de viés, ou melhor, para, só olhando... cação cinematográfica”, por exemplo, surgiu da maneira mais acidental, mais
improvisada que se possa imaginar. Leve-se em conta, também, certa “disponi-
A ideia de cinema me veio assim, vendo o mundo de lado, sem ser notado...
“eavesdrooping”. bilidade” vocacional de alguém que ingressa na Faculdade de Direito totalmente
desprovido do Esprit de corps e se vê subitamente envolvido numa coluna sema-
O presente livro tem todos os vícios dos livros de coletânea crítica, que termi- nal de um jornal universitário.
nam em estantes, como livros de referencia. Cinema, felizmente, tem muito a vez com a vida e a busca de ficção faz parte dela:
Ficção, para o espectador brasileiro, é o filme estrangeiro. reorganizar a vida a nosso bel-prazer, acrescentando música, ordenando o caos,
retocando esse ou aquele defeitinho incômodo, para todo o sempre. Nem o teatro
Eu amo meu bar. Ele é meu segundo lar. Já tive outros lares e bares. Lar é pode ser tão perfeito nesse sentido porque ele depende do mood desse ou daquele
como pai e mãe em geral: um bar é feito à sua imagem e semelhança – subs-
ator num determinado dia. P.E Salles Gomes colocou bem essa definição (por via de
tituindo carinho e afeto por uma solidão a sós ou mal acompanhada. O bar
fica bom quando todos, numa união silenciosa, parecem entrar num uníssono comparação com o teatro) do que vem a ser o cinema: “A aflitiva tranquilidade das
espiritual”. coisas definitivamente organizadas”.
Cá estou eu entre a realidade e a ficção, preferindo o xerox ao original, o ras-
cunho ao passado a limpo, o esboço ao trabalho acabado, a aquarela ao bronze,
a Polaroid à Kodak.
A fotografia sempre me fascinou: essa possibilidade de descartar para fora do
quadro os objetos ou as pessoas incômodas, essa recriação do mundo. Edgar Mo-
rin comenta com sabedoria: o Gênio da fotografia é para começar “químico”. Gênio,
palavra que para nós hoje tem significado especial, quase de interjeição, é usado ali
num sentido metafísico bastante procedente. O processo químico da fotografia, de
redução da prata, maior em minha cabeça do que todo e qualquer valor artístico ou
autoral. Tenho uma tese especial sobre a sensibilidade da película (variável para
cada tipo) sendo modificada pela vontade do fotógrafo, condicionada por sua vez
pela maior ou menor inspiração provocada pela pessoa ou objeto fotografado.
A vantagem da Polaroid é que o gênio químico é visível a olho nu. Pode-se re-
começar em seguida. Um rascunho infalível, automático (às vezes, você trabalha
contra o computador, o olho elétrico, como é chamado só de pirraça – e ganha dele!).
Você descobre que fotografar bem é olhar bem, saber escolher hora e local,
ter paciência. Ninguém ilumina melhor do que a natureza ( ia falar Deus, mas
1
não ousei: é muito gênio junto). Depois, vem as cantoneiras. Hoje, até os álbuns Manuscrito encontrado no
arquivo da Cinemateca do
de fotografias são de plástico e cheiram mal. A Polaroid acata a cantoneira e MAM-RJ. Artigo publicado
ambas combinam às mil maravilhas. Elas juntas restituem à fotografia sua dig- originalmente na revista
Homem Vogue, n. 28-B, na
nidade mítica de magia e simplicidade. edição de setembro, 1977.

142 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 143
Diário de Luz Del Fuego VII Feu Follet

VII Receptáculo oculto na caatinga, o material filmado de Cabra marcado para


16.9.81 morrer levou, mais ou menos, trinta anos no seu processo de vir à tona como
Depois do 1o corte, visto e ao que parece aprovado, começam a se deliberar filme pronto, acabado desde sua primeira concepção.
os contornos de Luz del Fuego. Neste período, o Cinema Novo ia-se desenvolvendo na superfície.
A sua história é variada e supera o cálculo previsto de nascimento, vida (e
[As protuberâncias, as saliências, não devem ser amenizadas [sob] nenhum morte?) do movimento. Trinta anos, data redonda que engloba o conteúdo de
pretexto] seus filmes e personagens.
Surpreendente (ou, há muito esperado) efeito de incessante bom humor Para mim, então, a classificação é perfeita. 1963 foi o ano de Garrincha, ale-
preside o compasso de Luz del Fuego. Tenho rido bastante com a verve dos gria do povo, de Joaquim Pedro de Andrade.
personagens que se não engendrei, in totum, deles assumirei total e irrestrita Eu havia finalmente deixado a crítica cinematográfica (a que voltaria espo-
responsabilidade. radicamente) e descoberto uma fonte de sobrevivência mais concreta, sempre
Eles atravessam e desfrutam a tragédia o drama ou mais simplesmente o ao lado de Joaquim Pedro, com quem havia “trabalhado” cinco anos antes em
sofrimento de maneira a fazer inveja a observadores intrometidos como Ro- Couro de gato. Joaquim e Mario Carneiro sempre “olharam” para mim de uma
senkrantz ou ……. forma especial, talvez pelo pistolão de que disponho: o primo Alexandre Eula-
Ainda estou longe do término desta empreitada. Ainda ficaram,, no material lio, amigo de ambos.
filmado, brechas para inserções de novas cenas (quem sabe mais criativas, Mas 1963 não foi um ano só meu. Era a chegada de Glauber Rocha da Bahia,
para amenizar a acidez ou o sarcasmo?), mas estou diante de 4hs e 5 minutos era a efervescência da amizade do grupo, eram as reuniões no bar da Líder, o
de um material pré-lapidado que continua a me instigar. Mudei muito ou não laboratório preto-e-branco, da rua Álvaro Ramos, em Botafogo.
mudei nada: quero que a simplicidade de todos meus outros filmes (Ave! Hum- Nelson Pereira prepara Vidas Secas. E a Europa começava a pensar em nós.
berto Mauro) se defina e se aprimore aqui. Cinema passou a ser coisa diferente de nossas concepções de críticos ou
intelectuais. As pessoas passaram de colegas de faculdade ou de colégio para
1a sequência na Delegacia participar de um mutirão numa atividade meio mágica considerada inacessí-
anotação após 1o corte: vel algum tempo antes.
Passar do bar Paladino para jantar com Ítala e Walmor (traduzir em per- Ainda não era fácil fazer cinema, mas chegávamos a ele com um desplante
sonagens) para subir de Luz nas escadas de Ivan Cândido (idem) [(escada+ de gente poderosa.
escada)] O mundo não era adverso até 1964.
começo fim O golpe militar paradoxalmente trouxe apenas uma complicação suplementar.
Continuar com o que já foi apresentado no 2o corte. Foi nessa época que, depois das primeiras experiências práticas pessoais
Justificativa desta proposta: alongar os tempos destas sequências (tri)- (Memória de Helena, Mauro, Humberto e Lúcia McCartney), passei a me de-
-gêmeas, reforçar, na sua quarta aparição, a personalidade de Luz del Fuego dicar aos estrangeiros. Viajei 13 anos, participando de Festivais, Debates e
(isto agora sob certa histeria, sobretudo com o contraste família oferecido por Palestras, saboreando o êxtase com que eles desfrutavam nossos filmes.
dois excelentes figurantes a mãe e a filha atordoadas na entrada da 5a D.P). Retrospectivamente, hoje, é difícil imaginar que uma precariedade de recur-
sos pudesse gerar uma quantidade tão farta de produtos notoriamente valiosos.
Tinha do que pensar e falar. Mas, temporariamente, abdiquei da fatura.

144 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 145
É rebarbativo falar da evolução de nomes e títulos, contar uma história vá-
rias vezes já contada. Eduardo Coutinho, sempre esquecido, vítima escolhida
Diário de Luz Del Fuego VIII
do golpe, pode servir aqui de exemplo sintético, como foi levantado no início
deste artigo.
VIII
Seu filme, como dei a entender, não durou trinta anos. Mas sua luta, sim.
Teve as filmagens interrompidas, sofrendo ininterrupta perseguição po-
21/11/81
licial, denunciado como subversivo. Parte do material foi confiscado, mas o
Ilha das Flores
principal devidamente escondido nas vizinhanças das locações.1 E tudo só res-
Luz del Fuego eu
gatado um bom tempo depois. Desta maratona, em que se destacam também
os nomes de Marcos Farias, Antônio Carlos Fontoura e Fernando Duarte, para
Minha alma, se isso é o amor, eu acho que estou feliz.
apenas citar três, resultou um filme-símbolo, refeito com requintes arqueoló-
gicos nos primórdios da década de 1980: Cabra marcado para morrer.
Ultimo dia de filmagem, depois de longa pausa. Estou muito emocionada. Na
O cineasta francês Louis Malle era um dos fanáticos pela novidade sul-ame-
verdade, sempre estive muito emocionada. Durante todo o tempo. Só que só
ricana, na época de minhas viagens. Ficou conhecido por um filme “de arte”,
1 agora sinto como uma despedida. Engraçado, não havia ainda tido despedida.
Durante os anos da chamado Trinta anos esta noite. Dei a este artigo o título original do filme, cuja
ditadura militar, o material
Agora está havendo.
tradução literal é “Fogo-fátuo”.
de Cabra Marcado para Luz del Fuego, eu, Paquetá, ilha do sol
Morrer foi guardado na casa Às vezes, das cavernas da cidade – os cinemas – saía um fogo assim: um
do general Luiz Neves, pai Minha alma, se isso é amor, eu acho que estou feliz.
de David Neves. filme brasileiro.
-------
Eu procuro ou espero a inspiração com certa aflição.

Diário Lux
1 - Chave do tamanho
2 - Atlântida + M. de Helena
3 - Material
4 - “Produção”
5 - Lucélia (sonho meu)
6 - Policial
7 - Lorival
8 - “Sem Pressa”
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Salve lindo cordão da bonança


É que falta e que bem que me faz!
Só lembrar e a simples lembrança
Me excita e a força me traz

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146 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 147
Vista para o Mar1

O título de um curta-metragem de Ney Costa Santos, Vista para o mar, pro-


vocou em mim, num momento descompromissado, uma série de divagações
sobre o cinema brasileiro.
Não é difícil achar afinidades cada dia maiores entre a produção de um fil-
me e uma incorporação imobiliária. Depois do sucesso financeiro de Dona Flor
e seus dois maridos, a produção (entidade abstrata e, no caso presente, restrita
a certa faixa entre Rio e São Paulo) começou a vislumbrar e mesmo adotar
novos sistemas, talvez numa tentativa de provar o limite da elasticidade do
mercado para os filmes brasileiros. E é esse inflacionamento orçamentário
dos novos filmes que nos traz de volta à comparação inicial.
O desmatamento cultural que a subida de preço dos filmes provocou é noci-
vamente proporcional à criação de um novo tipo de status entre os cineastas.
A desvalorização do cruzeiro provocaria (ou provocou) uma alta do custo das
produções, mas esse aumento já havia sido estabelecido como condição sine
qua non para a existência de um filme, antes da subida do dólar, como num
ato profético.
Mercado imobiliário, produção cinematográfica e status são três ele-
mentos reunidos como um jogo de bilhar francês, onde a carambola é
fator indispensável.
Aceita o afeto que te entrego
Voltemos ao mercado imobiliário. Essa ideia, vinculada ao cinema nacio-
no meu peito tão febril
nal, ainda necessita de um aprofundamento maior. Para começar, estamos às
voltas com grandes empreendimentos, os conjuntos arquitetônicos, as áreas
Só penso nas curvas dessas serras
virgens como o caminho do mar na direção sul. São pretextos materiais que os
adoradas serras do Brasil!
movem, sempre: compra e venda; e a despersonalização, com raras exceções,
faz parte de sua estrutura íntima.
Salve lindo cordão da bonança
O velho e charmoso cinema artesanal acabou, pelo menos nessa faixa. O
Só lembrar e a simples lembrança
status decorre desse dado e varia diretamente com o aumento do preço da
Aceita o afeto que te entrego
“incorporação”.
Só penso nas curvas dessas serras
Há tráfego direto entre as sedes desses empreendimentos, carteiras ou
credenciais estritamente personalizadas, além de certo prestígio sócio-cul-
Ó que falta e que bem que me faz 1
tural. Resta saber se a aplicação financeira é recuperável, se o investimento Originalmente publicado
Me excita e a força me traz. no livro Cartas do meu Bar.
vale a pena. Se toda essa comparação é derrogatória ou só ela é a saída para
no meu peito tão febril Rio de janeiro: Editora 34.
nosso cinema. 1993. Pg. 26
Adoradas serras do Brasil!

148 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 149
Quando se sabe que um filme tem de render três vezes mais do que seu exemplo preferido. Nelson Pereira dos Santos “fundou” o cinema novo com
custo de produção para que o produtor recupere o dinheiro aplicado, começa- Rio, quarenta graus, um filme neo-realista?
-se (ou se deveria começar a pensar mais seriamente na questão, sobretudo Trata-se de uma evolução irreversível, algo catastrófico, mas o tamanho
quando o governo, através da Embrafilme, pode vir a ser envolvido no negócio. territorial do Brasil, sua distância de Hollywood e a falta de toda técnica ci-
Este texto alicerça-se sobre exemplos mais ou menos alheios à faixa da Em- nematográfica desenvolvida em favor de uma perfeição anônima e insossa
brafilme. O fenômeno dos “filmes de status” ( e seu preço é, na maioria das permitiram-nos, como os italianos, viver um interregno mais ou menos imune
vezes, o agente no 1 dessa classificação) tem-se circunscrito quase que geral- à contaminação.
mente à área particular. O tom crítico que pode transparecer é, até mesmo, um O “filme de status” é hoje o primeiro no sentido de um cinema apátrida entre
pouco exagerado porque esses filmes não representam, ainda, saídas defini- nós: é como Veneza artificial da Côte d’Azur, Port Grimaud. Na verdade, esses
tivas para o futuro cinema brasileiro. Não passam de experiências, algumas filmes ainda não são construções idelogicamente deliberadas como esse pa-
das quais de alto nível artístico. raíso turístico francês, mas favorecem-se das facilidades e do charme de um
Defender, por outro lado, o filme de baixo orçamento seria meio anacrônico, trânsito financeiro artificial, isto é, originado fora do mercado cinematográfico
apesar de a História provar que tivemos, ou que alcançamos status com uma propriamente dito.
boa dezena de filmes bon marché. Mantendo o paralelo, não chegam a ser eles Na última safra de filmes brasileiros desponta, sem dúvida alguma, Bye Bye,
“quarto e sala”, mas eram bem acabados e sobre eles soprava certa brisa Brasil, de Carlos Diegues, trabalho primoroso sobre nosso sincretismo cultu-
marítima. Respiravam, sobretudo, personalidade. ral, mas com um título sintomático demais para deixar de fazer parte desse
O impasse, se é que existe impasse aqui, resolve-se através da televisão. artigo. Mesmo que venha a saber o dia e a hora da partida não irei ao bota-
Foi ela quem deu vida progressiva à venda de imóveis; transformou-a de ne- -fora. Ficarei em casa curtindo nostalgicamente os velhos tempos.
gócios em prova viva de ascensão social, e impregnou-a com o “estrelismo”
(star system) que vem a ser a peça nova ausente até agora desse novo “que-
bra-cabeça cultural”.
Uma construção, reta ou sinuosa, pode hoje ser comparada à Sonia Braga
(quem não gostaria de morar nela? De frente ou de fundo? Duplex ou tríplex?
Mas...e as chaves? E o maldito habite-se?...)
Há pontos de contato enormes entre living, carpetes, copas, cozinhas, corre-
dores, espelhos, decoração, enfim, com a tradução cinematográfica. O cinema
americano mais vulgar não apresenta um letreiro sequer, sobre fundo branco,
sem a sombra esvoaçante de uma ramagem, com o acréscimo de um tema
musical delirante.
Entro no nosso último departamento. Juro. O cinema americano é que é a
meta, o gol, o alvo, a mira, o objetivo, o termo, o limite, o fim deste artigo.
Do concreto às estruturas metálicas, de Oscar Niemeyer, do nordestino Joa-
quim Cardoso e Mies Van der Rohe, estamos americanizando nossas constru-
ções e tentando (des) nacionalizar nosso cinema.
Depois do neo-realismo, para chegar ao estado atual, o cinema italiano deve
ter atravessado a mesma via sacra que é, etimologicamente, sinônimo de so-
frimento. Estamos trilhando percurso semelhante. A Itália sempre foi nosso

150 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 151
Cartas do Meu Bar III David Neves e Rubem Fonsêca
falam de Lúcia McCartney
III

“As pessoas originariamente vinham do rádio para o cinema. Eu estou que-


rendo ir do cinema para a rádio com todas as implicações que isso possa ter.
Entrevista dirigida por João Carlos Horta
Minha voz analítica não permite!
O problema da transposição de uma obra literária para o cinema e as difi-
Fulaninha trabalha sobre o real, sobre o realismo, sem trapaças nem esnobis- culdades de adaptação de dois contos do livro “Lúcia McCartney” foram tema
mos para competir, ficcionalmente, com ficção industrializada. Foi lançado de de um insólito diálogo entre o cineasta David Neves (Memória de Helena) e o
pijama, contra os filmes feitos de smoking ou black-tie, para ganhar o merca-
do brasileiro, sem ônus excessivos para a Embrafilme. escritor Rubem Fonsêca (“Coleira do cão”), registrado para FILME CULTURA
pelo fotografo João Carlos Horta (Pecado Mortal). O cineasta deve ou não ser
Não confundir voyeur com visionário. fiel ao original literário ao transportá-lo para a tela? Em que ponto coincidem
linguagem cinematográfica e linguagem literária? O cinema pode subsistir no
A novela da tevê é dirigida para suprir climas de outros programas: sentimen-
to, crime, humor, etc. futuro sem recorrer à novelística? Discutindo essas (ainda polêmicas) questões,
o contista e o cineasta propõe novas maneiras de ver a tradicional e discutida
A ondas hertzianas parecem influir no comportamento dos personagens das relação cinema & literatura. Ao mesmo tempo, discorrem sobre seus métodos
novelas”.
de trabalho e sua posição dentro de seus respectivos domínios artísticos.

JCH: Até que ponto a vivacidade do diálogo de Rubem Fonseca, e em


particular a de “Lúcia McCartney” (livro), teria relações afins com a
linguagem cinematográfica?

Cartas do Meu Bar IV DN: Pessoalmente, acho que o estilo de narração de Rubem Fonsêca é um
estilo cinematográfico, embora não tenha sido isso a primeira coisa que me
atraiu para fazer o filme Lúcia McCartney. Foi mais a temática, o que realmente
me atraiu.
IV
RF: A linguagem escrita, que é a linguagem da cultura industrial, é uma
“A Cada filme ou evento cultural, as paredes se cobrem de pôsteres e carta- coisa, e a futura linguagem da cultura tecnológica será outra. A linguagem
zes, tudo discreto e útil. Nascimento da idéia de filmar “As Meninas”, de Lygia cinematográfica me parece ser, não sei se você também concorda com isso,
Fagundes Telles, tem, sem falar da relação quase familiar que persegue
David, uma linguagem de transição entre a cultura industrial e a cultura tecno-
inexoravelmente meus filmes desde Memória de Helena até hoje, seu funda-
mento numa pressão de fora para dentro, tanto da parte das pessoas, como lógica. A linguagem escrita é linear. Se você verificar bem, ela exige um tipo de
do elenco propriamente dito. Elenco é roteiro.” pensamento necessariamente diferente da nova linguagem.

DN: Nesse caso, você se considera entre uma coisa e outra?


RF: Sou um escritor que também gostaria de fazer cinema se tivesse tem-
po. Mas acho que o cinema não deve ser a reprodução de uma coisa que foi
escrita. Alguém disse que “Moby Dick” ficou melhor no cinema. Pode ter ficado

152 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 153
melhor ou não, mas certamente foi outra coisa. Lúcia McCartney de David Ne- RF: Você fez essa observação sobre o boliche por causa da dificuldade
ves será uma coisa diferente da “Lúcia McCartney” de Rubem Fonsêca. de transcrição?
DN: Não. Foi porque era a primeira coisa que filmei, e eu não tinha o com-
DN: A linguagem cinematográfica não será assim o fim de uma transição. passo ainda. Então descompassei, passei a filmar menos, de acordo com o
ritmo da narrativa da história que, inclusive, é sincopado. Resumindo, acho
RF: Acho que estamos debatendo o seguinte: qual será a linguagem que que na transcrição talvez tenha feito uma “redução”. Há um artigo de Paulo
prevalecerá na cultura tecnológica? Não será a linguagem escrita. Emílio Salles Gomes sobre o personagem cinematográfico, onde ele diz que
os olhos de Capitu, no romance de Machado de Assis, assumem uma posição
DN: Será uma linguagem mais direta. de primeiríssimo plano, enquanto que todo background é desprezado. Diz ele
que no cinema – o artigo foi escrito antes de Paulo César Saraceni filmar o
RF: Que também não será o cinema. romance – a Capitu seria, além dos olhos, cabelos, corpo, mão, decote, tudo.
Quer dizer, o cinema, de uma certa forma, “reduz” o sentido afetivo, a valoriza-
DN: Isso eu também acho. O que você estava dizendo me lembra um negócio ção psicológica dos olhos de Capitu. Com cinema, por ser muito generalizante,
em que tenho pensado muito ultimamente, devido aos filmes do Júlio Bressa- tende a “vulgarizar” muitas coisas. Em Lúcia McCartney essa “vulgarização”
ne. Vi recentemente O Anjo Nasceu, que é um filme de linguagem, quer dizer, foi proporcionalmente fiel aos elementos da obra original. O problema que
não tem nada por trás dele, e verifiquei que o Júlio não elaborou coisa alguma: encontrei foi ao tentar fazer do conto “O caso de F.A.” uma continuação do
se escreveu alguma coisa, foi como um índice, que não influiu diretamente “Lúcia McCartney”. Este é uma história sobre prostituição, e “O Caso de F.A.”
no resultado. Isso revela uma concepção maciçamente cinematográfica, uma fala de uma forma expressa de prostituição. Esse elo me levou a justapor os
linguagem totalmente autônoma, sem nenhuma vinculação com um texto pre- dois contos, a transformar um em prolongamento do outro, através das per-
existente. sonagens de Lúcia, Miriam, Elizabeth e Laura. Apesar de transcrever os dois
contos “quase ao pé da letra”, tive de fazer uma “redução”. Essa “redução” foi
JCH: Voltando ao problema da linguagem escrita: acho que ela é motivada pela realidade tout court. As implicações pessoais de duas histórias
analítica, tem que ser analítica, enquanto que a cinematográfica é foram ligeiramente modificadas, pois meu objetivo fundamental era o da fi-
diferente. Que pensam vocês disso? delidade. Muitas vezes sacrifiquei um conceito tradicional de mise-en-scene
DN: Acho que ela é diferente porque não tem antecedente literário. O que pelo da transcrição literária (Fui quase documental, sobretudo nas cenas de
se sente vendo o filme do Júlio é que ele partiu de uma concepção visual, não telefonemas do conto “O Caso de F.A.”).
especificamente visual porque o filme é muito falado, mas mista de imagem
e som em bloco. Não era, em suma, vinculada a um roteiro. Em Lúcia McCar- RF: Confesso que, no princípio, resisti muito a essa idéia de fundir os dois
tney, por exemplo, fui muito fiel ao livro dentro dos limites permitidos pela contos. Ambos são diferentes, do ponto de vista formal. Enquanto em “O Caso
própria autonomia do cinema. A primeira cena filmada foi a do boliche onde Zé de F.A.” procurei dar um ritmo sincopado, à base de diálogos e com um mínimo
Roberto encontra Aliete. Essa cena condicionou todo o resto e eu gastei mais de descrições, em “Lúcia McCartney” ocorre o contrário: a história está cheia
negativo nela, procurando um ritmo certo, do que em qualquer outra sequên- de cenas subjetivas, coisas que poderiam ter acontecido mas não acontece-
cia do filme. O boliche faz parte de uma carta que, no filme, vai ser ilustrada ram, coisas que aconteceriam mas que não são contadas.
com imagens.

154 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 155
DN: Essa diferença foi justamente o que me desafiou e que, em certo senti- DN: Acho que meus filmes não têm, de fato, ligações com nenhum outro. O
do, equilibrou um pouco o nível do filme. Realmente “Lúcia McCartney” é uma cineasta de quem mais me aproximo é Joaquim Pedro de Andrade. Mas Me-
história intimista, narrada do ponto de vista subjetivo, com diálogos mais mória de Helena não tem muita coisa a ver com os filmes de Joaquim. Meu
descritivos do que qualquer outra coisa. “O Caso de F.A.” é sincopado, com estilo se caracteriza mais pela sugestão, pela procura do sintético. Em Lúcia
personagens se movimentando bastante em um curto período de tempo. Foi McCartney, acho que me afastei um pouco dessa linha de sugerir mais do que
esse contraste, e a possibilidade de representá-lo numa progressão dramá- mostrar. Na verdade, sou meio marginal. Eu gostaria de fazer um tipo de cine-
tica, que aumentou meu interesse em relação ao problema de justaposição ma até mais convencional. Graças a você, Rubem, acho que consegui ser mais
dos dois pontos. universal, quer dizer, acho que consegui generalizar um pouco mais. Feliz-
mente, as pessoas se interessam pelo tipo de experiências que faço. Embora
JCH: Seu processo de narrar se definiria como uma pesquisa de haja algumas que consideram Memória de Helena um filme anormal. No en-
linguagem ou como uma pesquisa sobre o tema? tanto, meu cinema tem vínculos com o passado, e Memória de Helena é apenas
RF: Você está querendo estabelecer diferença entre forma e conteúdo, e isso: uma retomada cinematográfica do convencional.
isso não existe. Eu estava interessado em forma porque a linguagem escrita
é linear, e não queria ver o leitor fazendo para a direita a fim de ler “Lúcia RF: Eu não sou tão marginal quanto você, mas acho que não sou ligado a
McCartney”. Há histórias que escrevi num bloco só. “Matéria de Sonho”, por nenhum tipo de literatura anterior. Os críticos quando falam de meus livros
exemplo, só tem um parágrafo. Quis que ele fosse denso, sem parada, sem chegam inclusive a inventar coisas tremendas. A maior parte da literatura
ar. Sobretudo que o leitor não pudesse respirar, que fosse obrigado a ler com brasileira é regional, mas escrevo sobre o que sei e conheço: a cidade. Meus
dificuldade. Em “Lúcia McCartney”, para evitar a linearidade, forcei a leitura de valores são urbanos.
cima para baixo, em alguns momentos. Você vai dizer: “Mas isso é formal”. Não
é formal. Ao mesmo tempo em que fazia essa disposição gráfica do texto, eu DN: Bem, me chamam de marginal, mas é preciso distinguir “marginal” de
também procurava contar uma história que estava acontecendo dentro da ca- “maldito”. Eu me esforço por me aproximar das coisas que existem não com
beça dela. Embora, na realidade, também não fosse verdade que estava dentro um sentido de destruição, mas de compreensão. Por isso é que Memória de
da cabeça dela. Entendeu? Helena parece um filme anormal: ele faz um esforço sobre-humano para com-
preender as coisas. E para ser normal.
DN: Esse estilo de narração que você adotou, procurando fazer com que o
leitor não se condicione a um tipo padronizado de leitura, não é também um
meio de quebrar um pouco seu sentimentalismo em relação aos personagens?

RF: Não. Eu não fiquei preocupado em tirar isso do conto. O tema é sobre
uma call-girl, e eu não podia fazer uma história muito seca, como um tex-
to sociológico: seria chatíssimo. Você vê Vivre sa Vie, de Jean-Luc Godard: o
tempo inteiro ele fica botando estatística acolá, para no fim dizer que o filme
não é sobre a prostituição. Eu não quis fazer isso. Não me interessou colocar
em “Lúcia McCartney” informações sobre as call-girls cariocas. A sociologia
dos personagens, no caso, não é mais importante que o insight psicológico.
Falando nisso: como você se situaria no cinema brasileiro, com a sua maneira
diferente de narrar?

156 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 157
David Neves, Sem título

Quando a “Introdução ao Cinema Brasileiro” foi escrita e publicada, eu estava


cursando o 2 ano de Direito da Pontifície Universidade Católica. Foi mais ou
menos ao mesmo tempo que Paulo Alberto Monteiro de Barros me chamou para
escrever sobre cinema n’O Metropolitano”.
José Renato Santos Pereira tinha realizado com seu irmão gêmeo, Geraldo,
‘’Rebelião em Vila Rica” no qual Joaquim Pedro de Andrade exercia as funções de
Assistente de Dire������������������������������������������������������������
ção���������������������������������������������������������
. (Ele, Joaquim, encaminhar-me-ia na prática cinematográ-
fica logo depois: “Couro de Gato”). O mesmo José Renato era então diretor do In-
stituto Nacional do Livro e meu primo Alexandre Eulálio seu assistente editorial.
Essa intrincada teia editorial mostra como o Cinema Novo sempre se nutriu
dos laços “lispectorianos” de família. Tirante o exemplar comprado ali mesmo na
pequena livraria que existia na entrada dos fundos da Biblioteca Nacional (Rua
México) e logo emprestado
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a terceiros (leia-se: devidamente “surrupiado”), pas-
Diário Jardim de Alah1 sou o livro a ser peça de Museu: raro e de conhecimento indispensável.
Só muitos anos depois consegui (comprei logo mais 3) localizar uma boa
partida num sebo do Rio. Em boa hora a Embrafilme decide reeditar este livro
Dias finais de Jardim de Alah. Filme pretensioso de equipe, orçamento, mas
que pelas resenhas até de pessoas muito competentes pareceu incompreendido
com cenário (scenario) na linha dos antecedentes. Este diário pretende des-
na época. Tão incompreendido como o próprio cinema brasileiro.
culpar fatos decorrentes do meu estado de espírito, surpreendentemente
É que, como sempre, uma coisa leva à outra (umas coisas levam às outras) e
responsável, mesmo diante as crises de depressão das quais só fui tomar
era difícil “introduzir” quem quer que seja num maravilhoso e promissor “vazio”
consciência depois de análise.
audio-visual. Alex Viany, lembro-me bem, fascinou-me porque recém-chegado
Acho eu ser coisa orgânica, mais grave até, decorrente de minhas “aventu-
de Hollywood, não se deixou contaminar pela “mosca azul” da tecnologia “yank-
ras” post-mortem Gal.Neves. Elas, as crises, vão e vem num ritmo não doloro-
es” nem pelo fascinante “glamour” do “star- system”.
so, mas assim mesmo não agradáveis.
Mas elaborou um livro de pesquisa e referência, usando um estilo literário
Nas filmagens, guardava as forças para os momentos cruciais. Del Pino, Li-
delicioso (até hoje inédito em livros subsequentes (suscitados mais tarde pela
loye, Jaime Schwartz, estes baluartes seguraram a barra todo o tempo, a ponto
regularidade e consistência do Cinema Novo). Relido hoje, então, é ainda mais rico.
de esquecerem tanto a minha presença quanto a minha doentia displicência.
Capítulos sintéticos se sucedem quase como histórias de ficção tratando de
Meus pavores de encarar Raul Cortez e Imara Reis, ambos complicados,
pessoas, coisas (filmes) e lugares em envolventes descrições que nos remetem
mas fraternos cúmplices, evidencia o que eu disse acima. Falta pouco mas
a uma espécie de estado de graça cinematográfico-textual. O cinema brasileiro
chegaremos lá. A montagem, acredito, será outra história.
readquire hoje, nesta reedição, uma aura nostálgica de pureza que os avanços
tecnológicos e temáticos nos fizeram esquecer.
1
Manuscrito encontrado
David Neves 1 durante nossas pesquisas
no arquivo da Cinemateca
*Segundo a pesquisadora Silvia Oroz, este foi o último texto escrito por David Neves. do MAM-RJ.

158 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 159
FILMOGRAFIA

1958 PERSEGUIÇÃO de Paulo Perdigão (CM 16mm) fotografia. 1960 FUGA de


Carlos Diegues (CM 16mm) fotografia.

1960 DOMINGO, de Carlos Diegues (CM 16mm) fotografia.

1960 COURO DE GATO de Joaquim Pedro de Andrade (CM 35mm) assistente de


fotografia (incluído em 1962 na coletânea CINCO VEZES FAVELA).

1963 GARRINCHA, ALEGRIA DO POVO de Joaquim Pedro de Andrade (LM


35mm) assistente de direção.

1963 A NAVE DE SÃO BENTO de Mário Carneiro (CM 35mm) assistente de di-
reção, montagem

1964 MAIORIA ABSOLUTA de Leon Hirszman (CM 35mm) coordenação de


produção.

1964 INTEGRAÇÃO RACIAL de Paulo César Saraceni (MM 35mm) fotografia.

1965 ESPORTES NO BRASIL de Maurice Capovilla (CM 35mm) fotografia.

1966 BETHANIA BEM DE PERTO de Julio Bressane & Eduardo Escorel (MM
35mm) coprodução.

1967 LIMA BARRETO: TRAJETÓRIA de Julio Bressane (CM 35mm) coprodução.

1967 OITO UNIVERSITARIOS de Carlos Diegues (CM 35mm) fotografia, mon-


tagem.

1967 LAPA 67 de Renato Neumann (CM 35mm) fotografia da 2a unidade.

1968 MAURO, HUMBERTO (CM 35mm) direção, produção, fotografia.


Cartas do Meu Bar V
1968 COLAGEM (CM 35mm) direção, produção.

1968 JAGUAR (CM 35mm) direção, roteiro, fotografia, coprodução.


V
1968 VINICIUS DE MORAES (CM 35mm) direção, roteiro.
“O Brasil é o que ele é e não o que ele deve ser. Não façam ideias erradas
de mim”. 1968 CRISTO FLAGELADO de Fernando Coni Campos (CM 35mm) fotografia,
coprodução.

160 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 161
1968 O GUESA de Sérgio Santeiro (CM 35mm) produção. 1974 MUSEU DO OURO (CM 35mm) codireção (com Paulo Thiago) fotografia.

1969 UM MUSEU (CM 35mm) direção, roteiro. 1974-1976 Dez documentários em curta-metragem sobre escritores
brasileiros: O FAZENDEIRO DO AR (Carlos Drummond de Andrade); UM CON-
1969 TARZAN (CM 35mm) codireção (com Michel do Espirito Santo),coprodução, TADOR DE HISTÓRIAS (Érico Veríssimo); EM TEMPO DE NAVA (Pedro Nava); NA
coroteiro, fotografia. CASA DO RIO VERMELHO (Jorge Amado); O HABITANTE DE PASÁRGADA (Man-
uel Bandeira); O CURSO DO POETA (João Cabral de Melo Neto); O ESCRITOR NA
1969 MEMÓRIA DE HELENA (LM 35mm) direção, produção, roteiro. VIDA PÚBLICA (Affonso Arrinos); ROMANCISTA AO NORTE (José Américo de
Almeida); VEREDAS DE MINAS (João Guimarães Rosa); POESIA E AMOR (Viní-
1969 TARSILA DO AMARAL (CM 35mm) codireção (com Fernando Campos). cius de Moraes).

1970 A CRIAÇÃO LITERARIA DE JOÃO GUIMARÃES ROSA de Paulo Thiago (CM 1976 O BRASIL EM CANNES de Moisés Kendler (CM 35mm) coordenação de
35mm) coprodução. produção.

1970 TOSTÃO, A FERA DE OURO de Paulo Laender & Ricardo Gomes Leite (CM 1977 JORGE BEN de Paulo Veríssimo (CM 35mm) coprodução.
35mm) câmera.
1977 OS DOCES BARBAROS de Jom Tob Azulay (LM 35mm) câmera.
1970 EU SOU VIDA, EU NÃO SOU MORTE de Haroldo Marinho Barbosa (CM
35mm) coprodução. 1977 VIVA A PENHA! de José Mariani (CM 35mm) fotografia,montagem.

1970 GAL de Antonio Carlos Fontoura (CM 35mm) coprodução 1970. 1977 MAXIXE, A DANÇA PROIBIDA de Alex Viany (MM 16mm) fotografia.

1970 MUTANTES de Antonio Carlos Fontoura(CM 35mm) coprodução 1978 A NOIVA DA CIDADE de Alex Viany (LM 35mm) fotografia, coprodução.

1971 LÚCIA McCARTNEY, UMA GAROTA DE PROGRAMA (LM 35mm) direção, 1979 MUITO PRAZER (LM 35mm) direção, roteiro, produção.
produção, roteiro.
1980 FLAMENGO PAIXÃO (LM 35mm) direção, roteiro, coprodução.
1971 UM AMOR DE MULHER (LM 35mm) direção, produção,roteiro (inacabado).
1981 LUZ DEL FUEGO (LM 35mm) direção, roteiro, coprodução.
1971 CARTAS DO BRASIL (CM 35mm) direção, roteiro, fotografia.
1984 MEMÓRIA DE DIAMANTINA (CM 35mm) direção, roteiro.
1971 BIENAl - MÃO DO POVO (35mm) codireção (CM com Gilberto Santeiro),
coprodução, coroteiro. 1985 FULANINHA (LM 35mm) direção, roteiro, coprodução.

1971 O PALACIO DOS ARCOS (35mm) codireção (CM com Gilberto Santeiro), 1988 JARDIM DE AlAH (LM 35mm) direção, roteiro, coprodução.
coprodução, coroteiro.

1971 DESENHO INDUSTRIAL de Harry Roitman (CM 35mm) fotografia.


*Legenda
1971 PARATÍ, IMPRESSÕES de Harry Roitman (CM 35mm) fotografia.
CM: Curta-metragem
1972 CARLOS LEÃO de Suzana de Moraes (CM 35mm) coprodução. MM: Média-metragem
LM: Longa-metragem
1972 VIDA DE ARTISTA de Haroldo Marinho Barbosa (LM 35mm) coprodução.

1974 MUSEU DO OURO de Paulo Thiago (CM 35mm) fotografia

162 PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 163
*Todas as ilustrações e fotografias apresentadas são
do arquivo pessoal de David Neves.

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Realização e Produção CATÁLOGO
Dilúvio Produções
Coordenação Editorial
Apoio Pedro Henrique Ferreira
Arquivo Nacional Thiago Brito
Cinemateca Brasileira
Produção
Cinemateca do MAM - RJ
Eduardo Cantarino
CTAv - Centro Técnico Audiovisual
Isabella Raposo
Curadoria
Pedro Henrique Ferreira Identidade Visual
Thiago Brito Flávia Trizotto

Produção Executiva Textos


Eduardo Cantarino Arthur Autran
David Neves
Produção
Lila Foster
Eduardo Cantarino
Luís Alberto Rocha Melo
Isabella Raposo
Hernani Heffner
Identidade Visual
Flávia Trizotto Entrevistas
Carlos Moletta
Website Ittala Nandi
Gabriel Calderon Joaquim Vaz de Carvalho
Thais Gallart Joel Barcellos
Assessoria de Imprensa Jom Tob Azulay
Rômulo Pereira Mariana de Moraes
Paulo Thiago
Debatedores
Carlos Moletta Revisão e Padronização
Felipe Bragança Natália Francis
Hernani Heffner Transcrição das Entrevistas
Joaquim Vaz de Carvalho Marina Garcez
Luís Alberto Rocha Melo Carolina Aleixo
Revisão de Cópias Editora
Caroline Nascimento Dilúvio Produções
Cópias dos Acervos
Arquivo Nacional;
Cinemateca Brasileira;
Cinemateca do MAM - RJ; Produção Apoio Patrocínio

CTAv - Centro Técnico Audiovisual.


o
AGRADECIMENTOS ESPECIAIS Katia D’Angelo
Leandro Neves
Carlos Moletta
Leandro Pardi
Egídio Eulálio
Liana Cavalcanti
Hernani Heffner
Lucélia Santos
Joaquim Vaz de Carvalho
Maria de Andrade
Milton Eulálio
Maria Hirszman
Rosângela Sodré
Mariana de Moraes
Mariana Menezes
Mario Cascardo
AGRADECIMENTOS
Martha Carvana
Ana Beatriz Vasconcelos Mary Ribeiro
Ana Pessoa Moema da Cunha
Antonio de Andrade Paula Barreto
Antonio Laurindo Paulo Gil Ferreira
Bernardo Sabino Paulo Thiago
Carolina Lavigne Pedro Sabino
Centro Universitário Moacyr Bastos Pedro Thomé
Daniel Pech Rafael Saar
Diogo Cavour Regina Coeli Mourão
Eduardo Toledo Revista Contracampo
El Cid Ricardo Withers
Eugênio Puppo Rodrigo Castello Branco
Fabian Cantieri Sabrina Magalhães
Fabrício Felice Sergio Pedrosa
Fernanda Coelho Walter Goulart
Flávio Penner Yol
Gilberto Santeiro Zelito Viana
Gui Tostes
Heloisa Rezende
Ittala Nandi
Ivo Raposo Jr.
Joel Barcellos
Joel Pizzini
Jom Tob Azulay
Júlia Souza
Karla Alves
PAISAGENS DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA DE DAVID NEVES 171
Produção
Apoio
Patrocínio
Distribuição gratuita e venda proibida

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