Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
A ESCATOLOGIA CRISTÃ
ESCATOLOGIA E APOCALÍPTICA
É comum certa identificação de “apocalipse” com “escatologia”. A falta de precisão
no uso dos termos leva a equívocos. A palavra “apocalipse” vem de dois vocábulos
gregos: apo (dentro para fora) e kalypsis (cobertura, véu), portanto, apocalipse significa
“descobrir, tirar o véu para que algo possa ser visto”.
A literatura apocalíptica é um gênero literário surgido no Século II a.C. e que se
estende até o Século II d.C. A finalidade dos escritos apocalípticos é dar resposta aos
tempos de crise, quanto à expectativa de salvação. Também é uma teodiceia, pois procura
explicar o triunfo do mal na história, diante de um Deus que é essencialmente bom.
O Apocalipse se destina a consolar e fortalecer o Povo de Deus em tempos de
perseguição. Destina-se a recuperar a esperança. Não é um texto orientado para a “segunda
vinda de Cristo” ou para o “fim do mundo”, mas centrado na presença poderosa do Cristo
Ressuscitado, na comunidade e no mundo. A mensagem do Apocalipse é: se Cristo
ressuscitou, o tempo da ressurreição e do Reino de Deus já começou.
Enquanto o Apocalipse é um gênero literário para suscitar a esperança no Senhor
em tempos de perseguição, a escatologia é a mensagem sobre as realidades últimas
alicerçadas em Jesus Cristo e no Reino de Deus.
A escatologia cristã é uma disciplina da teologia, sustentada por sólidos trabalhos
exegéticos e interpretativos construídos a partir de dados bíblicos sobre a morte, o juízo
de Deus, o fim da história, o triunfo da esperança e do Reino de Deus.
Observação: O Livro de Daniel, é do gênero apocalipse, e como tal, trata dos tempos
difíceis que os judeus enfrentaram no reinado de Antíoco Epifanes, na esperança de
tempos melhores e que seriam superados com a ajuda da ação de Deus na história. Os
detalhes deste livro não serão explanados neste artigo, pois merece um estudo separado
pela sua própria complexidade.
Escatologia Individual
A experiência humana na morte; reflexão teológica sobre a morte, o purgatório, o
inferno e o juízo final.
Morte
A ideia de morte, atualmente, por causa da cultura secularista, que se desdobra em
racionalismo, materialismo, individualismo e hedonismo, é vista como o fim definitivo,
onde tudo acaba. Assim o cuidado vai para o corpo: a saúde, a beleza, a longevidade. A
morte aparece como grande inimiga. Para o individualismo, a morte é mais dolorosa,
porque representa a derrota do indivíduo.
Assim tende-se a amenizar a situação de morte, ela é vista como resultado de
guerras, de calamidades de violências urbanas, de pandemias e suas mazelas. Ela é
afastada do quotidiano e entregue a instituições “especializadas” como hospitais,
funerárias que “embelezam” o cadáver, e religião, onde são reduzidas a formalidades e
ritos, tornando a morte soft. Há ainda as propostas modernas de eutanásia, feita sob a
invocação de “morte digna”.
Podemos elencar três aproximações da morte:
1. A morte como fenômeno natural (ponto de vista biológico): é a mais superficial, ela
é da natureza, o ser humano é mortal, essa é a perspectiva do biólogo e do médico.
2. A morte do ponto de vista puramente humano (psico-filosófico): é mais profundo
que o anterior, pois é racional e ou filosófico. Nesse plano a morte é repugnante,
porque é sentida como ruptura e divisão, tanto no nosso interior como em relação
ao mundo vital. Podemos chamar essa morte de “morte existencial” ou “morte
pessoal”.
3. A morte do ponto de vista da fé (perspectiva teológica): é a síntese de uma visão
geral da morte. Pela fé, pela esperança e pela caridade, a morte adquire um sentido
novo e superior.
A Sagrada Escritura nos revela que “Deus não fez a morte nem tem prazer em
destruir os viventes” (Sb 1,13); ao contrário “Deus criou o homem para a incorruptibilidade
e o fez imagem de sua própria natureza” (Sb 2,23), mas “foi por inveja do diabo que a
morte entrou no mundo” (Sb 2,24), conforme Rm 5,12 a morte entrou no mundo pelo
pecado. Portanto a morte não é algo “natural”, como afirma o ponto de vista biológico, ela
não estava (e não está) nos planos de Deus, por isso a morte é penosa. Jesus mesmo chora
quando da morte de seu amigo Lázaro (Jo 11,35), e sua sangue (Lc 22,44) diante da
perspectiva da própria morte.
O exposto acima trata da morte corporal, mas a mais temível é a morte espiritual,
que consiste no afastamento de Deus. A morte da alma é a pior desgraça (sem a graça
divina), como ensinou Jesus (Mt 10,28); e foi essa morte que Adão e Eva, nossos primeiros
pais, perderam principalmente, desobedecendo a Deus. Foi essa que acarretou a morte do
corpo, isso é preciso lembrar, pois, falando da morte, tendemos hoje a nos fixar no seu
sentido apenas biológico, porque é nessa direção que a cultura materialista encaminha.
Assim a morte da alma fica praticamente esquecida pela morte do corpo. A bios (vida
biológica) “engole” a zoé (vida eterna).
Até aqui foi vista apenas uma porção do que a escatologia cristã entende por morte.
A outra porção nos é dada por Deus que através de Cristo devolve ao ser humano inteiro,
corpo e alma, a vida plena, imortal e eterna. O Ressuscitado venceu a morte em si mesmo,
como que em princípio, e a vencerá totalmente e para sempre, como que seu “último
inimigo” (1Cor 15,26), quando de sua Parusia no final dos tempos: “A morte e o Hades
foram então lançados no lago de fogo” (Ap 20,14).
Purgatório
Com exceção das santas e santos já elevados aos altares, ou não, os seres humanos
ainda não estão puros o suficiente para serem dignos de estarem face a face com Deus. O
coração permanece, ainda, muito estreito e o “eu interior” com muitas “arestas”. Daí a
necessidade de se purificar e “estagiar”, após a morte, no purgatório. O purgatório é a
purificação final dos que morreram na graça e na amizade de Deus, mas que, ainda, não
alcançaram a santidade necessária para usufruir da alegria celestial. A purificação final
nada tem a ver com o castigo dos condenados.
A fé no purgatório não está na Bíblia, mas surge a partir dela. Três textos bíblicos,
entre outros, são a base da doutrina do purgatório:
Mt 12,32: “Se alguém disser uma palavra contra o Filho do Homem, ser-lhe-á
perdoado, mas se disser contra o Espírito Santo, não lhe será perdoado, nem nesta era, nem
na outra”.
Aqui se deduz que alguns pecados poderão ser perdoados nos séculos futuros.
1Cor 3,12-15: “Se alguém sobre esse fundamento (Jesus Cristo) constrói com ouro,
prata, pedras preciosas, madeira, feno ou palha, a obra de cada um será posta em evidência,
o que vale a obra de cada um. Se a obra construída sobre o fundamento subsistir, o operário
receberá a sua recompensa. Aquele, porém, cuja obra for queimada perderá a recompensa.
Ele mesmo, entretanto, será salvo, mas como que através do fogo.”
Neste texto a evidência são para as obras do ser humano e a sua prova através da
“prova do fogo”.
2Mc12,45: “Mas se considerava que uma belíssima recompensa está reservada para
os que adormeceram na piedade, então era santo e piedoso o seu modo de pensar. Eis por
que ele mandou oferecer esse sacrifício expiatório pelos que haviam morrido, a fim de que
fossem absolvidos do seu pecado.”
Esse texto do Antigo Testamento fala das orações que Judas Macabeus mandou
fazer pelos mortos na guerra.
Os dois princípios que surgem desses textos e que sustentam a teologia do
purgatório são:
1. O princípio da santidade divina. O encontro com Deus exige a santidade do amor.
O purgatório é uma exigência do encontro com o próprio Amor; para chegar a Deus,
o ser humano precisa passar por uma espécie de “transubstanciação” poderosa. Que
santo chegou a Deus sem passar pelo fogo como ouro pela fornalha? Como nos
podemos fundir em Deus sem derreter em nós tudo o que não é Ele?
2. O princípio da responsabilidade humana. o encontro com Deus, por se dar na
reciprocidade, pressupõe nossa resposta pessoal de amor.
É preciso eliminar algumas ideias erradas sobre o que é o purgatório, que o
aproximam mais do inferno do que do céu, deve-se superar concepções fantasistas,
juridistas e mesmo terroristas dessa verdade da fé, que ainda perduram nos dias de hoje,
mesmo entre católicos.
Na verdade, o purgatório:
• É uma situação espiritual (de purificação) e não um lugar de horrores;
• É uma graça muito particular que Deus nos dá para nos purificar, em vista do
encontro com Ele, e não castigo ou, pior ainda, vingança. Portanto, é uma purificação
exigida pelo amor e não por uma misteriosa lei penal.
Quanto a ideia do “fogo purgatório”, no sentido de “purificador”, esse constitui
um símbolo com duplo sentido. Ele representa:
1. No plano da memória, a dor da consciência, o arrependimento;
2. No plano da esperança, as chamas do amor, da saudade e da ânsia de ver a Deus
para receber seu abraço eterno.
O purgatório é mistura de dor e felicidade, como no amor: quem ama sofre por
estar longe do(a) amado(a), ou por não ser bastante digna do seu amor.
Santa Catarina de Gênova explica de maneira inspirada e poética o purgatório, diz
ela: “Elas (as almas no purgatório) estão num estado que deveria antes ser ansiado do que
temido, pois aí as chamas são chamas de indizível saudade e amor…Depois da felicidade
do céu, a felicidade maior é a das almas do purgatório”.
A dimensão penitencial faz parte da vida cristã, enquanto busca permanente de
purificação e de aperfeiçoamento no amor. Se esta vida é insuficiente para nos deixar
“prontos” para o abraço eterno do Pai, então, ainda há a graça da purgação que se segue à
morte. O purgatório por ser considerado como um processo pessoal, histórico, em que a
pessoa vai superando suas contradições, seus egoísmos, até aquele momento final do
encontro com Deus. Aí os últimos resquícios serão apagados. Início da beatitude definitiva,
porque isso acontece envolvido pelo amor salvífico de Deus. É o amor que purifica. O
sofrimento é o reverso da medalha do amor. É o lado do coração que sofre por não ter
correspondido ao amor e apesar disso ter sido continuamente amado.
O ser humano não se constrói sozinho, mas dentro de um tecido social, numa
relação entre todos. Esta relação pode ser de integração ou desintegração, de purificação
ou corrupção. Por isso, o purgatório tem necessariamente uma dimensão social. As
estruturas de injustiça social que se criam dificultam o processo de purificação do ser
humano, antes reforçam-lhe a divisão interna, a desintegração, tornando o processo de
purificação mais difícil e doloroso. À medida que as estruturas sociais permitem maior
integração, coerência com a orientação fundamental para o amor, para Deus, tanto menos
doloroso se faz o processo de purgatório. Mais madura e integrada está a pessoa para o
encontro definitivo com Deus.
Reencarnação
A doutrina da reencarnação é muito antiga, anterior mesmo ao cristianismo. Muitos
cristãos e cristãs acreditam na reencarnação, no entanto, não é possível crer em Cristo e
crer na reencarnação. A doutrina da reencarnação contradiz duas verdades de fé cristã:
1. A verdade da Redenção, segundo a qual é o amor gratuito de Deus que nos salva e
não nossos méritos ou o nosso karma, o que equivaleria a uma autorredenção.
Vemos que, para Jesus, o Pai perdoa o “filho pródigo” sem exigir “cobrança” ou
reparação alguma (Lc 15,20-24; cf. Ef 1,6-8).
2. A verdade da Ressurreição. O destino último da pessoa não implica em libertar-se
da matéria ou “desencarnar”, mas em assumir a matéria e transfigurá-la. Na
antropologia cristã, o corpo está ligado “substancialmente”, ou seja, intimamente, à
alma, e não apenas exterior e acidentalmente.
Conclusão
“Ele (Deus) é, uma vez alcançado é o céu, uma vez perdido é o inferno; enquanto
examinador é o juízo; enquanto purificador é o purgatório…E é tudo isso no modo como
Ele se voltou para o mundo, ou seja, em seu Filho Jesus Cristo, que é a possibilidade de
revelação de Deus e, portanto, a síntese das coisas últimas” (Hans Urs Von
Balthasar in Ladaria, 2007.
Debate
Em que a escatologia alimenta nossa fé?