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Os

Batistas e as

Doutrinas
da
Graça
Um estudo histórico-teológico
da herança batista reformada

Thomas
Nettles
Este livro de Tom Nettles é um estudo pioneiro. Reunindo disciplinas acadêmicas,
cuidados pastorais e coração cristão, Nettles leva a nossa memória às convicções dos
pioneiros batistas e aquilo em que eles criam ser o evangelho.
Dr. Mark Dever,
pastor da Capitol Hill Baptist Church, Washington, D.C.

Este é simplesmente o melhor livro sobre o assunto em questão. O Dr. Nettles é


um historiador excelente e, aqui, ele traça, com muita atenção às fontes, a história
das doutrinas da graça dentro da herança batista. Um recurso importante para
recuperar o passado a serviço do futuro, segundo a grande tradição de Bunyan,
Keach, Fuller, Carey, Spurgeon, Boyce e Carroll.
Dr. Timothy George,
reitor da Beeson Divinity School, Samford University, Birmingham, AL

Vinte anos depois de sua primeira edição, o livro de Tom Nettles permanece como
uma importante obra para os batistas modernos. Sua principal tese histórica — de
que as doutrinas da graça formaram um consenso teológico entre os batistas dos
estados do Sul dos EUA desde meados do século 19 até o primeiro quarto do século
20 — não foi abordada, muito menos refutada, por opositores e outros que não se
sentem impactados por essa herança doutrinária. Este livro é de leitura essencial
para qualquer um que deseje ser honesto no exame histórico da teologia dos batistas
do Sul dos EUA.
Dr. Tom Ascol,
pastor da Grace Baptist Church, Cape Coral, FL

Por que este livro é necessário no Brasil? Simplesmente porque a resolução do


mal-estar soteriológico de nossos dias passa, inevitavelmente, pela rejeição do sofisma
de que um batista não pode ser calvinista. As alternativas, por mais sinceras que
sejam, só têm alimentado essa tensão. São elas: o combate ao calvinismo (como
estranho aos batistas e inimigo de missões) e a mescla entre as duas vertentes (que
sustenta a eleição condicional e trata o simples calvinista como extremista). Longe
de ser uma propaganda, este livro é, portanto, um chamado à reconciliação que deve
ser lido por todos aquele que têm se envolvido nessa questão tão atual e instigante.
Diogo Carvalho,
pastor batista, doutor em teologia e missiólogo

“Isso é coisa de presbiteriano!” Lembro-me de ter ouvido essa frase no início de


minha vida cristã. O fato é que dizer isso é um grave erro. A diferença entre os
batistas e os presbiterianos está em eclesiologia, não na doutrina da salvação.
A obra em suas mãos visa elucidar essa questão, e acredito que o saldo positivo
do lançamento deste livro será reforçar nossa identidade como batistas bem como
nossas convicções na graça soberana de Deus. Temos grandes nomes ao nosso lado,
temos poderosas forças que nos impulsionam avante. Fortaleçamo-nos no Senhor
e na força do seu poder para realizar sua obra em nossos dias.
Pr. Hugo Santos Zica,
pastor da Igreja Batista Plenitude em São Luís, MA

Esta obra clássica é referência para uma história do ensino das doutrinas da graça
entre os primeiros pregadores e teólogos batistas, sobretudo nos Estados Unidos.
Ela também inclui duas primorosas partes abordando o que a Escritura ensina e
explicando suas implicações práticas para os cristãos. Finalmente, temos em português
um excelente e denso recurso para os batistas que desejam conhecer sua história e
que procuram uma introdução teológica robusta para o estudo da salvação oferecida
por Deus por meio de Jesus, e que por ação do seu Espírito suscita fé mesmo no
coração do pior dos pecadores, para sua maior glória.
Franklin Ferreira,
reitor e professor no Seminário Martin Bucer, em São José dos Campos (SP), e
professor adjunto no Puritan Reformed Theological Seminary,
em Grand Rapids (MI), nos Estados Unidos

Nos últimos anos, o calvinismo tem sido foco de intenso debate entre os batistas.
É sabido, por exemplo, que há figuras influentes dentro da denominação que
combatem fervorosamente esta doutrina. Este debate é em parte geracional, em
parte teológico e, em tempos mais recentes, intensamente pessoal. A leitura séria e
honesta deste livro poderá corrigir esta tragédia. Nettles não é impulsionado pelo
calvinismo, mas pela esperança de que os batistas abracem, confessem, preguem e
ensinem as verdades da Palavra de Deus — e anunciem o evangelho de Jesus Cristo
até os confins da terra. Pela graça e para glória de Deus, o que se deseja aqui é ver
uma reforma genuína e um tempo de refrigério em nossas igrejas — e a chama da
Grande Comissão ardendo em nossos corações.
Leandro B. Peixoto,
pastor da Segunda Igreja Batista em Goiânia, GO

Aquelas mesmas verdades que incendiaram a Inglaterra através do príncipe dos


púlpitos, e que ajudaram os batistas a expandirem o evangelho além-mar, estão
destacadas nesta fantástica obra de Nettles! A relação entre as doutrinas da graça
e os batistas nos é apresentada com um estilo claro e objetivo. Parabéns à Pro
Nobis Editora por nos trazer esta riquíssima obra! Recomendo muito sua leitura!
Em tempos tão confusos, as antigas doutrinas da graça precisam ser anunciadas
por aqueles que pregam o puro evangelho!
Riedson Filho,
mestre em teologia pelo Southeastern Theological Baptist Seminary,
pastor presidente na Igreja Batista Monte Gerizim,
professor de teologia sistemática do Seminário Teológico Batista do Nordeste-
Salvador, primeiro vice-presidente da Convenção Batista Baiana

Durante o meu último ano acadêmico, o pastor batista Ernest Reisinger, do


sul da Flórida, financiou minha ida a uma conferência para pastores batistas.
Nesse evento, pude assistir às palestras proferidas por Tom Nettles, renomado
professor de teologia histórica. Foi por meio de suas explanações que Deus me
fez enxergar a profundidade das doutrinas da graça e o seu papel fundamental na
trajetória histórica do movimento batista. Este livro é um portal para décadas de
investigação e ensinamentos valiosos deste irmão, reconhecido como um dos mais
destacados historiadores batistas contemporâneos.
Sillas Campos,
pastor da Igreja Batista Central de Campinas,
presidente do Ministério Fiel

Neste livro, o Dr. Nettles argumenta de forma convincente que o evangelho da


graça de Deus está no coração do movimento batista e foi ensinado por homens
como Benjamin Keach, John Bunyan, Adoniram Judson e Charles Spurgeon.
Foi a tradição apostólica que eles seguiram, e é a mesma que pregamos ainda hoje.
Os batistas e as doutrinas da graça é uma obra historicamente credível, biblicamente
fundamentada e pastoralmente sensível.
Tiago Oliveira,
pastor da Primeira Igreja Baptista de Lisboa, Portugal
Os batistas e as doutrinas da graça: Gerência editorial
Um estudo histórico-teológico Judiclay Silva Santos
da herança batista reformada
Conselho editorial
Traduzido do original em inglês: Judiclay Santos
By His Grace And For His Glory: David Bledsoe
A Historical, Theological and Practical Study Paulo Valle
Of The Doctrines of Grace in Baptist Life Gilson Santos
Leandro Peixoto
Copyright © 2006 Founders Press
Tradução: Renan Lima, Shirley Lima
Publicado originamente por Preparação de texto: Shirley Lima
Founders Press Revisão de provas: Isabela Fontenelles,
P.O. Box 150931 Victor Hugo Pereira
Cape Coral, FL 33915 Capa: Rubens Durais
www.founders.org Ilustrações: Marcos Rodrigues
Diagramação: Marcos Jundurian
Todos os direitos em língua portuguesa
reservados por PRO NOBIS EDITORA Nesta obra, as citações bíblicas foram extraídas
Rua Professor Saldanha 110, Lagoa, da Bíblia Almeida Revista e Atualizada (ARA),
Rio de Janeiro-RJ, 22.461-220 salvo informação em contrário.

1ª edição: 2024 As opiniões representadas nesta obra são de inteira


responsabilidade do autor e não necessariamente
ISBN: 978-65-81489-51-9 representam as opiniões e os posicionamentos da
Pro Nobis Editora ou de sua equipe editorial.
Impresso no Brasil / Printed in Brazil

Proibida a reprodução por quaisquer meios,


salvo citações breves, com indicação da fonte.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Nettles, Thomas
Os Batistas e as doutrinas da graça: um estudo histórico-teológico da herança Batista
reformada/Thomas Nettles; [tradução Shirley Lima, Renan Lima]. – Rio de Janeiro: Pro Nobis
Editora, 2024.
Título original: By his grace and for his glory.
ISBN 978-65-81489-51-9
1. Batistas - Brasil - História 2. Batistas - Doutrinas - História 3. Doutrina cristã - Ensino
bíblico 4. Graça (Teologia) - Ensino bíblico 5. Igreja Reformada - Doutrinas 6. Teologia cristã
I. Título.

24-191111 CDD-263.041
Índices para catálogo sistemático:
1. Batistas : História 286
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

Tel.: (21) 2527-5184


contato@pronobiseditora.com.br
www.pronobiseditora.com.br
Rio de Janeiro, RJ
Sumário

Prelúdio editorial...................................................................... 13
Apresentação da edição em português..................................... 15
Prefácio original........................................................................ 21
Introdução................................................................................ 25

Primeira parte: Evidência histórica


1. A grande jornada se inicia.............................................. 71
2. Ponte sobre águas turbulentas........................................ 91
3. Na estrada novamente.................................................... 129
4. Uma estrada longa e sinuosa.......................................... 155
5. O temor de ti impede meus pés de se desviarem........... 189
6. Cuidado com a falta de vitalidade do arminianismo.... 219
7. Passos ao longo do caminho.......................................... 243
8. Uma casa na beira da estrada......................................... 263
9. A estrada não trilhada.................................................... 287
10. Jovens vigorosos tropeçam seriamente........................... 311
11. Guia-me por uma vereda plana por causa dos
meus inimigos................................................................. 349
Segunda parte: Exposição doutrinária
12. Eleição incondicional..................................................... 413
13. Depravação e chamado eficaz......................................... 433
14. Cristo morreu por nossos pecados, de acordo com as
Escrituras........................................................................ 447
15. Perseverança dos santos.................................................. 475

Terceira parte: Exortações práticas


16. Certeza da salvação......................................................... 505
17. Liberdade de consciência............................................... 523
18. Missões mundiais e evangelismo corajoso...................... 541

Conclusão................................................................................. 589
Índice onomástico.................................................................... 595
Índice de referências bíblicas.................................................... 601
Os batistas e as doutrinas da graça

Lista de retratos

Benjamin Keach 78
John Bunyan 82
John Gill 92
Andrew Fuller 130
Isaac Backus 157
John Leland 165
Adoniram Judson 173
Francis Wayland 181
John L. Dagg 195
P. H. Mell 210
Basil Manly, Sr. 219
J. P. Boyce 228
Basil Manly, Jr. 231
John A. Broadus 231
B. H. Carroll 264
A. H. Strong 276
E. Y. Mullins 289
Ernest C. Reisinger 352
Albert Mohler 360

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Os batistas e as doutrinas da graça

Prelúdio editorial

“A história deve ser escrita de fontes originais vindas de amigos e inimigos,


no espírito de verdade e amor, sine ira et studio, sem malícia e com cari-
dade para com todos.”

— Philip Schaff

Nos últimos vinte anos, houve um exponencial crescimento da deno-


minada teologia reformada no Brasil. Com o advento da internet, e seus
múltiplos canais de comunicação, milhares de evangélicos passaram a conhecer
a perspectiva calvinista. Alguns nomes tornaram-se bem conhecidos do
público brasileiro e exerceram uma grande influência. Editoras publicaram
centenas de livros sobre o assunto, atendendo às demandas e ao interesse
dos evangélicos. Foram realizadas grandes conferências teológicas em todo o
país. Denominações inteiras foram impactadas. Ao mesmo tempo, surgiram
dúvidas, críticas, resistências e animosidades em relação ao calvinismo.
Os batistas brasileiros também foram afetados pelo crescimento desse
movimento. Muitos abraçaram as chamadas doutrinas da graça e passaram
a descobrir e se deleitar em sua histórica herança confessional. Contudo,
à medida que partilhavam com seus irmãos, logo perceberam que, para a
maioria dos batistas, isso era bastante novo e estranho. As reações foram
distintas. Alguns rejeitaram, sob o argumento de ser doutrina presbiteriana,
enquanto outros assumiram uma posição agressiva, atacando o calvinismo
como se fosse herético.
Havia pouca literatura em português sobre a história dos batistas e sua
relação com a tradição calvinista. Os nomes mais influentes entre os batistas
no Brasil não faziam parte desta ala. Portanto, ser batista e calvinista parecia

13
Prelúdio editorial

incompatível. Surgiram conflitos, perseguições e divisões. Os reformados


são tratados como leprosos a serem evitados e, se possível, banidos da vida
batista por simplesmente serem calvinistas.
O Dr. Thomas Nettles, renomado professor de história batista, com
dezenas de livros e atuação em várias instituições de ensino, principalmente
no Seminário Teológico Batista do Sul (EUA), escreveu uma obra singular.
By His Grace And For His Glory foi escrito em 1986. Naqueles dias surgiu uma
controvérsia no coração da Convenção Batista do Sul em relação às doutrinas
da graça. Houve um acalorado debate e muita tensão entre os batistas do
sul, à medida que o calvinismo experimentava uma ressurgência nos EUA.
Curiosamente, as questões levantadas naquela época eram muito simi-
lares às que enfrentamos hoje no Brasil. O Dr. Nettles, assim, enfrentou
o desafio de escrever uma obra que pudesse apresentar os fatos de uma
forma clara e honesta. Seu estudo analisa o cenário batista dos dois lados
do Atlântico, no contexto batista anglo-saxão, e descreve a história deste
povo e sua estreita relação com a teologia reformada.
A primeira parte do livro apresenta as evidências históricas, o que faz com
irrefutável prova documental. Na segunda parte, o Dr. Nettles faz uma exposição
sobre as doutrinas da graça, demonstrando sua base bíblica, a fim remover
a visão superficial e caricata forjada por seus detratores. Por fim, o autor traz
uma brilhante apresentação sobre os batistas e alguns pontos centrais: certeza
da salvação, liberdade de consciência e o imperativo da evangelização global.
A Pro Nobis Editora carrega DNA batista. Nossa equipe trabalha para
promover literatura de qualidade, especialmente no resgate da herança histó-
rica confessional batista, visando fortalecer a igreja de Jesus Cristo e ajudá-la
na missão de proclamar o evangelho. Nossa intenção é apresentar a verdade
e defender o direito de qualquer batista, segundo a sua própria consciência,
de crer nas doutrinas da graça tal como os primeiros batistas e tantos outros
depois deles, sem sofrerem qualquer pressão ou estranhamento por causa disso.
Como bem disse o príncipe dos pregadores, C. H. Spurgeon, um dos maiores
batistas de todos os tempos: “Não, eu não levanto a bandeira de Calvino.
Só estou junto com ele levantando a bandeira do verdadeiro evangelho”.
Meu sincero desejo é que Deus seja glorificado e sua igreja, edificada.

Judiclay Santos,
pastor da Igreja Batista do Jardim Botânico,
fundador e diretor da Pro Nobis Editora

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Os batistas e as doutrinas da graça

Apresentação da edição em português

Meu primeiro contato com o autor deste livro foi em outubro de 1991.
Logo percebi tratar-se de um estudioso apaixonado pela história batista, para
a qual buscava oferecer um tratamento honesto, acadêmico e imensamente
relevante. Estabelecemos correspondência entre agosto de 1992 e janeiro
de 1993. À época, doutor Nettles era professor na Trinity Evangelical Divinity
School, no estado americano de Illinois. Na correspondência que me enviou
em 20 de janeiro de 1993, apresentou-me algum bom material de doutor W.
A. Criswell (1909—2002), conhecido líder batista e pastor da Primeira Igreja
Batista de Dallas. Um sermão de Criswell que ele sugeriu veio a ser publicado
em português. “Fiquei afligido pela deficiência da perspectiva teológica que
alguns líderes batistas têm”, opinou ele em relação as convicções correntes
de alguns líderes à época, inclusive no Brasil. Foi pela mesma época que
adquiri este livro que agora o leitor tem em mãos. A obra exerceu um grande
impacto em minha leitura pessoal da história batista. Mais de trinta anos
são passados! De lá para cá muita água passou debaixo da ponte, e o cenário
batista assistiu a algumas significativas mudanças.
Doutor Nettles tem sido bastante proficiente em demonstrar que, no
século vinte, a abordagem de importantes segmentos denominacionais para as
chamadas Doutrinas da Graça experimentou mudanças. F. H. Kerfoot (1847—
1901), em um texto amplamente usado pelos batistas no Brasil, escrevera
que, “em comum com um grande corpo de cristãos evangélicos, quase todos
os batistas creem no que são geralmente chamadas as doutrinas da graça”.
A soberania absoluta e presciência de Deus; Seus motivos e decretos
eternos e imutáveis; Que a salvação em seu começo, continuação e

15
Apresentação da edição em português

complemento, é dom gratuito de Deus; Que em Cristo, somos eleitos ou


escolhidos, pessoal ou individualmente, da eternidade, salvos e chamados
do mundo, não conforme as nossas obras, porém, de acordo com seu
próprio motivo e graça, por meio da santificação do Espírito e crença
da verdade; Que somos guardados pelo seu poder de cair em apostasia,
e que seremos apresentados sem culpa diante de sua presença na glória.1

No Brasil, não obstante as tendências alinhadas no século vinte, a


Confissão de Fé Batista de New Hampshire, que Zachary C. Taylor (1851—
1919) traduzira com o nome de “Declaração de Fé das Igrejas Batistas do
Brasil”, foi adotada oficialmente pela Convenção Batista Brasileira de 1920
até 1986, e ainda hoje é a que oficialmente consta dos estatutos de muitas
igrejas batistas no Brasil.2 Um documento confessional muito saudável e
biblicamente equilibrado, a Confissão Batista de New Hampshire enfatiza,
recorrentemente, tanto a livre graça de Deus como os deveres do homem,
realizando uma consistente e preciosa afirmação das doutrinas da graça.
Salomão L. Ginsburg (1867—1927) é considerado “o pai do Cantor
Cristão”, e o mais importante hinógrafo dos batistas no Brasil. Um ano
depois de sua chegada, Ginsburg publicou a primeira edição do Cantor
Cristão, que continha inicialmente apenas dezesseis hinos. A edição de
1921 tomou feições quase definitivas, com 571 hinos. As letras e melodias
populares do Cantor Cristão serviram para doutrinar sucessivas gerações.
Conquanto recebendo maior influência dos chamados “hinos evangelísticos”
(“gospel hymns”), lançados especialmente nas jornadas evangelísticas de
D. L. Moody (1837—1899) e seu compositor, Ira D. Sankey (1840—1908),
alguns dos hinos mais populares dos batistas no Brasil refletiram boa e
encadeada compreensão das doutrinas da graça.
Alguns teólogos batistas no Brasil ofereceram significativa contribuição
para uma saudável compreensão das referidas doutrinas. Entre eles, tomo

1 B. W. Spilman et al. Manual Normal da Escola Dominical. 2. ed. Rio de Janeiro: Casa
Publicadora Batista, 1921, pp. 5-6, 291-292. A primeira tradução deste livro, publicada
em português, é datada de 1918. Cf. ainda DARGAN, E. C. As Doutrinas de Nossa
Fé. Trad. W. E. Entzminger. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1918, 115 p.
As seguintes passagens bíblicas são remetidas pelo autor: Romanos 8.9, 10, 11; Atos
13.48; Efésios 1.4, 5; Efésios 2.1-10; I Pedro 1.2-5, Judas 24; II Timóteo 1.9; Tito 3.5.
2 Em 1986 a CBB aprovou a sua própria “Declaração Doutrinária”, redigida por uma
comissão de teólogos batistas brasileiros, tendo como corpo principal a declaração de
fé que fora aprovada pelo Seminário Batista do Sul, no Rio de Janeiro.

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Os batistas e as doutrinas da graça

a liberdade de referir William Edwin Entzminger (1859—1930), fundador


de A Casa Publicadora Batista e de O Jornal Batista; William Carey Taylor
(1886—1971), considerado por alguns como “o teólogo dos batistas brasileiros”
e, unanimemente, um dos principais doutrinadores dos batistas brasileiros;
David Gomes (1919—2003), conhecidíssimo ministro batista no Brasil;
Roque Monteiro de Andrade (1922—1990), influente docente de teologia
e escritor; Aníbal Pereira dos Reis (1924—1991), outrora sacerdote católico,
que, consagrado pastor batista, tornou-se um escritor prolífico e conferen-
cista itinerante por todo o país; doutor Russell Philip Shedd (1929—2016),
fundador de Edições Vida Nova e responsável direto pela publicação de um
acervo inestimável para a formação bíblico-teológica dos evangélicos no
Brasil; e Ary Veloso da Silva (1935—2012), plantador de igreja e idealizador
de influentes ministérios urbanos.
Outros grupos batistas têm contribuído para a evangelização do país.
Entre estes estão algumas alas surgidas no contexto do fundamentalismo
norte-americano, como os Batistas Regulares, os Batistas Bíblicos e outros grupos
batistas, inclusive independentes (os quais têm resistência em associar as suas
igrejas em torno de instituições para além da congregação local). Dentre
esses preciosos irmãos, em geral de hermenêutica dispensacional, também
tem havido quem tenha expressado seu apreço a uma leitura reformada de
doutrinas da graça. Dentre as escolas do segmento dispensacional, deve ser
salientado o Seminário Bíblico Palavra da Vida, em Atibaia, São Paulo, que
contou com alguns conhecidos docentes batistas, e no qual têm estudado
muitos pastores e líderes de confessionalidade batista, inclusive alguns
sabidamente calvinistas em sua soteriologia.
Nos pós-guerra, o movimento hoje denominado por alguns de
“Ressurgência Reformada” teve, desde o início, pretensões mais amplas do
que apenas abordagens pontuais, fragmentárias ou parciais das chamadas
doutrinas da graça. Em seu cerne e entre os seus desafios, tem tido este
movimento um ideal de recuperação do entendimento crucial do que seja
o Evangelho da Graça. Buscou-se, assim, uma compreensão integral, abran-
gente e coerente da graça, de forma consistentemente monergística, enfati-
zando que tal compreensão requer a confissão dos chamados “Cinco Pontos
do Calvinismo”. Suas aspirações irradiaram-se para além da soteriologia,
enfatizando a imperiosa e vital necessidade de resgate dos Cinco Pilares
da Reforma: Sola Scriptura, Sola Fide, Solus Christus, Sola Gratia e Soli Deo

17
Apresentação da edição em português

Gloria. Em termos sintéticos, o movimento tem tido como força propulsora


um empenho por nada menos que uma Cosmovisão Reformada. Assim,
a Cosmovisão (alemão Weltanschauung, visão de mundo) Reformada, em
rigor, diria respeito a tudo o que existe, e não apenas a recortes e frações
da realidade. Uma parcela significativa daqueles imbuídos deste desejo
de Reforma compreendiam que, tendo como núcleo o Cristo crucificado
que nos é apresentado pelo evangelho bíblico, a Reforma tem aspiração
global. Isto é, a Reforma avança em direção à forma pela qual o indivíduo,
a família, a igreja, a sociedade e a cultura percebem e interpretam o mundo
e interagem com ele.
Os batistas engajados neste movimento têm insistido que a Reforma
precisa necessariamente incluir a eclesiologia. A cosmovisão reformada
pressupõe uma coerência eclesiológica, e neste particular estes batistas vêm
enfatizando a singularidade e biblicidade de sua eclesiologia. Como sabemos,
nem todos os ortodoxos são evangélicos, nem todos os evangélicos são
reformados, nem todos os reformados são batistas... Os batistas têm histo-
ricamente chamado para a crucialidade de uma membresia regenerada,
pactuada, por oposição ao conceito de membresia por nascimento (em
lugar ou família) ou hereditariedade. Este entendimento está na base de seu
conceito de batismo, a saber, de que apenas os regenerados que confessem
sua fé devem ser batizados. Este modo de crer tem sido historicamente
apelidado de “credobatismo” (por oposição ao “pedobatismo”), porém os
batistas têm insistido que este é, em rigor, o único batismo ensinado e prati-
cado por Cristo e os apóstolos. Estes dois entendimentos, assumidos em
suas implicações, conduziram o governo congregacional, com forte ênfase
na competência das congregações locais e na importância de intencional
e empenhada cooperação entre elas. Este núcleo eclesiológico precisou
encontrar coerência na defesa que os batistas fazem da separação entre
Igreja e Estado. “Somente Deus é Senhor da consciência, e Ele a liberou
das doutrinas e mandamentos de homens que entrem em contradição
com a Palavra ou que não estejam contidos nela”, confessaram os batistas
ingleses em 1689. Reúna todos estes distintivos e você concluirá que eles
demandam ainda um elo na referida corrente, a saber: O único meio,
ensinado por Cristo e os apóstolos, para o crescimento da igreja, é um
abnegado compromisso com a Grande Comissão entregue por Jesus Cristo
à sua igreja. No final do século dezoito, batistas tais quais William Carey

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Os batistas e as doutrinas da graça

(1761—1834) e Andrew Fuller (1754—1815), em seus esforços missionários,


trataram de recuperar mais uma pérola do legado de fé bíblica, que desde
a Reforma se vinha resgatando. Em síntese, desde o século dezessete os
batistas vêm insistindo que sua eclesiologia é apenas a aplicação coerente
dos princípios bíblico-teológicos da Reforma do século dezesseis.
Sob alguns aspectos, não obstante, o movimento de Reforma entre os
batistas tem tido também como alvo um resgate ou retomada de uma confes-
sionalidade batista, notadamente a que caracterizou os batistas britânicos
e norte-americanos até fins do século dezenove. É neste sentido que alguns
têm afirmado tratar-se de uma “ressurgência”. Em rigor, não se almejava mera
replicação descontextualizada de uma realidade passada, mas de redescobrir
riquezas preciosas que ficaram cobertas ou relegadas ao longo dos anos, e que
por razões diversas tornaram-se grandemente alheias e desconhecidas pelas
atuais gerações batistas. Isto já assinalava para um problema, certamente:
Havia um desconhecimento de muitos batistas contemporâneos de sua própria
história doutrinal, resultando em que nem mesmo uma indagação se fazia
sobre o porquê de seus antepassados terem crido no que creram. Assim, nas
últimas décadas, muitas antigas obras e autores batistas foram redescobertos
e traduzidos, a começar de algumas das mais influentes confissões de fé.
E não foi por demais surpreendente que muitos batistas atuais exclamaram:
“Eu nunca imaginei que os batistas algum dia creram nisto!”.
A ressurgência reformada influenciou diferentes grupos batistas ao redor
do mundo. Entre os Batistas do Sul não se pode negligenciar o esforço de
Ernest Reisinger (1919—2004). Como pastor Batista do Sul, Ernie desejou
ver a reforma entre as igrejas daquela grande denominação. Com sua notória
perseverança, e por sua influência direta, foi realizada a primeira “Southern
Baptist Conference on the Faith of the Founders” em 1983. Esta conferência
expandiu-se e tornou-se o Founders Ministries. Hoje a influência reformada
entre os batistas do Sul é crescente: Na literatura, no ministério pastoral,
nos seminários, em conferências para jovens, em conferências de família, etc.
Pastores batistas calvinistas têm ocupado a liderança de algumas importantes
instituições. A influência desta ressurgência entre professores de seminários
tem sido igualmente crescente. Dentre estes, alguns vêm cumprindo um papel
importante ao oferecer aos batistas de sua geração uma visão mais abran-
gente de sua história. Thomas Nettles está entre os mais conhecidos. Neste
seu livro, capital na ressurgência reformada entre os batistas, em especial

19
Apresentação da edição em português

no contexto dos Batistas do Sul, doutor Nettles percorre a abordagem das


Doutrinas da Graça na história da denominação.
Desde a segunda metade da década de 1980, também no Brasil vários
líderes têm sido persuadidos da biblicidade das doutrinas da graça e de sua
historicidade entre os batistas, e alguns vêm exercendo influentes e frutíferos
ministérios. As convicções acerca destas doutrinas, assumidas publicamente
e por eles divulgadas, não têm deixado, por vezes, de encontrar resistência
e de reverberar fortemente em alguns setores da denominação. Alguns já
chegaram a dizer que “tais doutrinas não são batistas” e ainda outros, reagindo
mais fortemente, que se tratam de consumadas “heresias”. Há dentre aqueles
que esboçam suas resistências alguns que expressam uma melhor e razoável
articulação histórica e teológica; outros, entretanto, emergindo no calor da
premência e com ânimos inflamados, revelam notório desconhecimento de
história batista, mobilizados por simplificações e, não raramente, esbarran-
do-se em sensível ignorância. Em alguns momentos, esta reação reuniu tanto
segmentos de teologia mais conservadora quanto de líderes mais alinhados
ao liberalismo teológico.
Assim, lamentavelmente (e, segundo alguns, talvez inevitavelmente) a
ressurgência reformada no específico contexto batista brasileiro teve seu início
suscitando alguma polêmica. Não obstante, a polêmica cumpriu o papel de
abrir caminho para a consideração das doutrinas da graça, especialmente por
parte de uma nova geração de pastores e líderes. As ampliações das publica-
ções, e o advento da internet com múltiplos ministérios batistas ocupando
nela o seu lugar, vêm oferecendo, gradativamente, maior plausibilidade aos
esforços dos líderes batistas “reformados” nos contextos denominacionais.
Com este precioso livro em suas mãos, o leitor tem agora a oportuni-
dade de obter uma perspectiva histórica e pessoal, remetendo-se aos autores
e documentação original na história dos batistas. Que possamos lê-lo com
os nossos corações abertos e dispostos a aprender. Permita o Senhor que,
“pela sua graça e para a sua glória”, esta obra contribua para uma melhor
compreensão da preciosíssima Palavra do Senhor entre nós, e que, ao mesmo
tempo, ajude-nos a lançar raízes ainda mais profundas. O antigo provérbio
africano é instrutivo aqui: “O rio, quando esquece onde nasce, seca e morre”.

Gilson Santos
São José dos Campos, SP

20
Os batistas e as doutrinas da graça

Prefácio

Publicado, inicialmente, em 1986, este livro surgiu como uma resposta


às reações eclesiásticas ao January Bible Study de 1980. Efésios era o texto.
As doutrinas de Paulo — da eleição, da depravação e da regeneração —
tomaram muitos de surpresa, despertando-lhes muitas dúvidas perplexas e
impactantes. O que começou como um pequeno panfleto sobre a eleição
cresceu, enquanto outras importantes questões continuavam a surgir: “Por
que evangelizar? Por que lutar por santidade? Como é possível ter certeza
da salvação?”. Uma das questões mais persistentes era: “Isso é batista?”.
Embora a pergunta “Isso é bíblico?” devesse ser suficiente para os milhões
que têm entrelaçado suas vidas, em boa consciência, com as congregações
batistas ao redor do mundo, a questão não é irrelevante. O propósito deste
livro, à época, era o de lançar luz sobre a questão denominacional histórica.
Nos anos seguintes, essas questões tornaram-se mais visíveis, mais ampla-
mente aceitas pelos membros de igrejas, pastores, ministros denominacio-
nais, mais controvertida e acaloradamente contestadas por alguns, além de
constituir o assunto de muitas discussões de grupos nas igrejas e em diversos
espaços denominacionais. A atenção dispensada às doutrinas da graça é boa;
é saudável pensar mais robustamente nos elementos da santidade de Deus,
em sua soberania e em seu propósito eficaz e infinitamente sábio na justifi-
cação de pecadores sob a maldição de sua Lei. Embora eu esteja acostumado,
ainda fico aturdido com o fato de que as mesmas verdades que resultam em
um contexto de amor, alegria, humildade, gratidão e transformação na vida
de alguns, criam medo, raiva, ressentimento e oposição fervorosa entre os
que professam crer no evangelho. Alguns dissidentes até mesmo propõem

21
Prefácio

estratégias para a exclusão daqueles que, afetuosamente, confessam essas


doutrinas. Isso é triste, mas talvez normal. Os defensores mais perseverantes
das doutrinas da graça eram, outrora, seus opositores ferrenhos.
Isaías tinha palavras de alerta que poderiam muito bem aplicar-se a
historiadores, críticos doutrinários e estrategistas políticos: “Pois o tirano é
reduzido a nada, o escarnecedor já não existe, e já se acham eliminados todos
os que cogitam da iniquidade, os quais por causa de uma palavra condenam
um homem, os que põem armadilhas ao que repreende na porta, e os que
sem motivo negam ao justo o seu direito” (Is 29.20-21). Ao revisar a enorme
quantidade de literatura que agora é produzida a respeito do assunto deste
livro, creio que tenho visto muitos a considerarem ofensiva de imediato e,
então, criar preconceito, com muitas armadilhas para pegar os críticos e
muitos argumentos vazios com a intenção de reprimir os que estão certos.
De fato (o que não surpreende ninguém que tenha navegado nestas
águas), eu enxergo as mesmas tendências em minhas próprias tentativas de
defender um ponto de vista nesta discussão. E, quando as detecto, busco
corrigi-las e me arrepender delas. Mas estou certo de que, em alguns lugares,
o tipo de pecaminosidade egoísta descrita por Isaías tem-se atrelado com
tamanha intensidade à minha própria percepção pessoal que tenho sido
incapaz de extrair meus argumentos dela. Alegremente, considerarei interpre-
tações alternativas e sérias da narrativa histórica, dos argumentos teológicos
e do suporte bíblico em relação a qualquer passagem deste livro.
Dessa forma, não responsabilizo, por quaisquer erros, ninguém que
tenha tido a bondade de me encorajar e aconselhar no término desta segunda
edição. Eu não poderia tê-la finalizado em tempo oportuno se não fosse a
ajuda rápida e competente que obtive.
Quando sugeri a ideia de uma segunda edição à editora Founders
Press, o então editor, Dr. Tom Ascol, respondeu imediatamente com uma
anuência entusiasmada. Ele tem dado sugestões úteis ao longo de todo o
processo. Ken Puls, que faz mais do que acho que uma pessoa é capaz de
fazer, trabalhou na diagramação e em tudo o mais relacionado aos aspectos
técnicos da produção deste livro. Barb Reisinger e outros colaboradores
administrativos, da Grace Baptist Church, em Cape Coral, Flórida, têm
dado respostas imediatas a inúmeras solicitações.
Robert Nettles fez a capa. Ele atendeu à minha sugestão sobre seu
conteúdo com uma amabilidade na composição maior do que eu poderia
ter previsto. Também fez todas as ilustrações incluídas.
22
Os batistas e as doutrinas da graça

Minha amável e devotada esposa, Margaret, como em muitas ocasiões,


tem sacrificado seu tempo pessoal comigo, encorajando-me a perseverar no
trabalho de escrita. Ela, mais do que qualquer outra pessoa, sabe o tempo
e o investimento pessoal envolvidos ao passar, vez após vez, sobre orações
e parágrafos para que possam chegar mais perto da intenção esperada. Ela
deleita meu coração.
O departamento de Serviços de Mídia do Seminário do Sul prestou assis-
tência profissional, demonstrando real interesse pessoal na conclusão deste
projeto. Agradecimentos especiais vão para Michael Pate, docente do Seminário
Teológico Batista do Sul e membro de meu grupo ministerial na escola de
teologia, por suas horas dedicadas a escanear o texto da primeira edição deste
livro. Além disso, Andy Rawls, diretor de Serviços de Mídia, incluiu Michael
no projeto como parte das operações regulares daquele departamento. Andy
também fotografou o retrato a óleo que é a capa do livro [no original ameri-
cano] e o colocou em uma mídia, juntamente com as imagens, enviando tudo
à editora. Donald Corbin e Christopher Smith supervisionaram o processo
de escaneamento das imagens. Outras pessoas daquele departamento fizeram
partes do trabalho pesado e, por sua ajuda, sou verdadeiramente grato. Que
time de trabalhadores dedicados, com um verdadeiro espírito de serviço!
Jason Fowler supervisiona os arquivos da Boyce Library, no Seminário
do Sul. Ele e sua equipe competente responderam rapidamente, e com muita
eficiência, a cada pedido que fiz nas etapas finais da escrita. Obrigado, amigos.
Na primeira edição, reconheci minha dívida com as bibliotecas e equipes do
Seminário Teológico Batista do Sudoeste, do Seminário Teológico Batista
da Mid-America, Biblioteca do Museu Britânico e Biblioteca Dr. Williams
Dissenters, na Universidade de Londres. É uma dívida que, obviamente,
permanece. Camille Couch investiu sua mão de obra qualificada, horas
sem-fim de trabalho e seu senso de administração pessoal ao digitar todo o
manuscrito da primeira edição publicada pela Baker Book House. Minha
gratidão, tanto a ela como à editora Baker, não é menor.
Meus colegas de departamento no Seminário Teológico Batista do Sul
mantêm seu espírito de energia teológica e encorajamento, entendendo que
a escrita é um investimento no reino. Essa atmosfera tem sido incentivada
por sua administração: o presidente, R. Albert Mohler, e o reitor e vice-pre-
sidente, Russell Moore. Que vívida e agradável experiência em formação
teológica temos aproveitado juntos!

23
Prefácio

Por fim, às milhares de testemunhas batistas que foram fiéis até à morte
e encontraram grandes consolo e confiança no Senhor Jesus Cristo da forma
que a Bíblia o apresenta a nós, por meio do sangue da eterna aliança. Eles
não depositaram sua confiança na carne, pois entenderam que não tinham
bondade nem idoneidade moral capazes de recomendá-los ou levá-los a se
voltar a Deus; eles sabiam que nada poderia separá-los do amor de Deus,
pois Deus o colocara, incondicionalmente, sobre eles, antes da fundação
do mundo; eles adoraram segundo o Espírito de Deus, pois sabiam que ele
havia aberto seus corações para crer; eles não temeram condenação alguma,
pois confiaram na eficácia da morte sacrificial de Cristo; eles lutaram, cora-
josamente, contra os inimigos temíveis, que são o mundo, a carne e o diabo,
pois foram fortalecidos de acordo com seu glorioso poder, em cujas mãos
estavam seguros. “Ora, àquele que é poderoso para vos guardar de tropeços
e para vos apresentar com exultação, imaculados diante da sua glória, ao
único Deus, nosso Salvador, mediante Jesus Cristo, Senhor nosso, glória,
majestade, império e soberania, antes de todas as eras, e agora, e por todos
os séculos. Amém!” (Jd 24-25).

Thomas J. Nettles

24
Os batistas e as doutrinas da graça

Introdução

A definição do termo “batistas” não é fácil. O começo do movimento


batista e a expansão geográfica da denominação parecem diametralmente
diferentes da atual realidade. Mesmo aqueles que valorizam o nome
batista, tal como outros na história, nem sempre se mostram entusias-
mados ou receptivos.
A designação vernacular “comumente chamados anabatistas” aparece na
capa da Confissão Batista de Londres de 1644. Esse erro coloquial reaparece na
história sob uma variedade de termos: “igrejas de Cristo”, “cristãos (batizados
sob a profissão de sua fé)”, “congregações reunidas de acordo com o padrão
primitivo” e o mais simples de todos, “crentes batistas” — todas consideradas
designações dos batistas nos últimos trezentos anos. A gradual adoção do termo
“batistas” como uma identificação denominacional mais curta evidencia-se
por seu uso formal já em 1672, em alguns documentos da realeza inglesa.
Qual expressão (ou crença) específica traduz melhor a natureza do
Movimento Batista? É possível definir um movimento tão dinâmico e
complexo quanto a denominação batista em uma única expressão? Devemos
concentrar-nos na liberdade de consciência, na resposta voluntária, na expe-
riência religiosa, em uma visão específica da Escritura, em uma doutrina
particular da igreja, em uma visão peculiar sobre as missões ou em alguma
perspectiva de envolvimento sociológico ou político?
O foco específico deste livro é a soteriologia na vida batista. A tese do
autor é que o calvinismo — popularmente denominado como doutrinas da
graça — prevaleceu nas mais influentes e estáveis áreas da vida denominacional
batista até o fim da segunda década do século 20.

25
Introdução

Nos últimos setenta anos, tanto a negligência como a rejeição vêm


cobrando o seu preço no entendimento e, sobretudo, no comprometimento
com aquelas verdades que antes eram caras aos pioneiros batistas. Portanto,
o foco nas doutrinas da graça é intencional e destemido. Isso, contudo, de
forma alguma implica uma abordagem reducionista da vida batista.

Definindo o Movimento Batista


Selecionar qualquer categoria ideológica ou prática para um trata-
mento específico pode muito bem transformar-se em um retrato desbotado
e inexpressivo do que seria mais bem-compreendido como uma figura
tridimensional. Os batistas existem como uma combinação complexa de
muitos elementos — práticos e ideológicos, essenciais ou voluntários. Cada
fator envolve o outro e deve ser visto em sua relação com o todo. Nenhum
deles, sozinho, define o movimento batista.
Nessas categorias essenciais, reconhecemos muitos pontos conver-
gentes entre os batistas e todos os outros cristãos, entre os batistas e outros
protestantes; no entanto, também há divergências significativas em relação
a ambos. Essas categorias mais amplas devem receber alguma atenção, ainda
que mínima. Os termos ortodoxos, evangélicos e independentes proveem tanto os
parâmetros necessários como a liberdade indispensável para uma definição
do que significa ser batista. O prefácio ao livro Fé e a mensagem batista, de
1963, uma confissão de fé dos batistas do sul, estabelece isso muito bem:
Os batistas enfatizam a competência da alma diante de Deus, a liberdade
religiosa e o sacerdócio do crente. Contudo, essa ênfase não deveria ser
interpretada como se significasse haver carência de certas doutrinas
definidas em que os batistas creem e que valorizam, e com as quais têm
sido — e ainda são agora — identificados.1

Ortodoxia
Em primeiro lugar, os batistas são ortodoxos, embora esse termo tenha
vários significados: a ortodoxia católica medieval, a ortodoxia luterana e a
ortodoxia reformada. O significado mais amplo e mais largamente aceito
desse termo diz respeito às afirmações trinitárias e cristológicas da igreja

1 The Baptist Faith and Message (Nashville, TN: Sunday School Board of the Southern
Baptist Convention, 1963), p. 6.

26
Os batistas e as doutrinas da graça

primitiva. A Enciclopédia do conhecimento religioso, de Schaff, define o verbete


ortodoxia como “uma adesão consciente à fé cristã da forma que é ensinada
na Bíblia ou nos credos ecumênicos”. Todos os cristãos precisam indagar a
si mesmos: “Quem é esse Cristo a quem adoramos, e qual é sua relação com
a divindade?”. Os primeiros quatro concílios ecumênicos da igreja buscaram
formular uma resposta a essa dupla questão. O Credo de Niceia afirmou
que Jesus era da mesma essência de Deus, o Pai, e que havia tomado sobre
si, em sua encarnação, a natureza humana completa. Esse Credo também
declarou sua personalidade separada do Pai. Os concílios realizados em
Constantinopla e Éfeso protegeram essas afirmações contra várias diver-
gências heréticas até que uma definição cristológica assumisse seu formato
final no Concílio de Calcedônia. Embora exposta em termos negativos,
a declaração foi projetada para excluir determinados erros relacionados à
pessoa de Cristo. A declaração diz o seguinte:
Nós [...] ensinamos os homens a confessarem ao único e mesmo Filho,
nosso Senhor Jesus Cristo, perfeito em sua Divindade e perfeito em
sua Humanidade; verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem
de alma racional e corpo; consubstancial com o Pai de acordo com a
divindade, e consubstancial conosco de acordo com a humanidade [...]
a ser reconhecido em duas naturezas, de modo inconfundível, imutável,
indivisível e inseparável; a distinção das naturezas não é de modo algum
diminuída pela união, mas, em vez disso, a propriedade de cada uma é
preservada, sendo concomitantes em uma Pessoa.2

Embora os batistas não tenham assentido com essa declaração simples-


mente por se tratar de um credo, preferindo enfatizar sua fidelidade a toda
informação constante nas Escrituras e apresentada sobre Cristo, eles têm usado
a mesma linguagem dessa declaração em confissões, catecismos e teologias.
Talvez a cristologia tenha constituído a primeira controvérsia na vida
batista. John Smyth abriu espaço para a visão menonita de carne celestial em
sua cristologia; Thomas Helwys achava que, definitivamente, era perigoso
fazer tal concessão. A boa vontade de Smyth em ceder nesse aspecto causou,
em parte, a ruptura entre ambos, em 1610. Assim, Helwys afirmou em sua
Confissão de Fé, escrita em 1610 e publicada em 1611:

2 Philip Schaff, The Creeds of Christendom, 3 vols. (Grand Rapids, MI: Baker Book House,
1983 reprint), 2:62.

27
Introdução

JESUS CRISTO, o Filho de DEUS, a segunda Pessoa ou substância na


Trindade, na Plenitude dos tempos foi manifesto em Carne, sendo a
semente de Davi, e de entre os israelitas, de acordo com a Carne. [Em]
Romanos 1:3 e 8:5, o Filho da Virgem Maria, feito de sua substância,
[em] Gálatas 4:4, pelo poder do ESPÍRITO SANTO que estava sobre ele,
[em] Lucas 1:35, sendo assim verdadeiro Homem, igual a nós em todas as
coisas, menos no pecado. [Em] Hebreus 4:15, sendo uma pessoa em duas
naturezas distintas, VERDADEIRO DEUS e VERDADEIRO HOMEM.3

Essa última frase foi obviamente influenciada pela ortodoxia cristoló-


gica, e o segmento de frase “feito de sua substância” mostra forte aversão à
cristologia docética.
A Primeira Confissão de Londres, escrita pelos batistas em Londres, em
1644, também faz parte da ortodoxia patrística. O artigo II faz uma afirmação
sobre a Trindade em uma linguagem reminiscente dos Credos de Calcedônia
e de Atanásio, e até mesmo inclui a cláusula filioque:
Na Divindade, há o Pai, o Filho e o Espírito; sendo cada um deles um e
o mesmo Deus; portanto, não divididos, mas distinguidos um do outro
pelas suas propriedades; o Pai sendo de si mesmo, o Filho do Pai desde
a eternidade, e o Espírito Santo procedendo do Pai e do Filho.4

A Segunda Confissão de Londres, adotada, em 1677, pelos batistas parti-


culares na Inglaterra, seguiu muito de perto a Confissão de Fé de Westminster,
mas dela divergiu, de forma significativa, na eclesiologia, nas ordenanças
e na relação entre Igreja e Estado. Várias outras mudanças em segmentos
de frase e termos demonstram que essa confissão não é simplesmente uma
reprodução acrítica da Confissão de Fé de Westminster, representando uma
opinião estudada e precisa das igrejas batistas particulares de seu tempo.
O Capítulo VIII, intitulado “De Cristo, o Mediador”, alinha-se, de forma
clara, com uma cristologia ortodoxa:
O Filho de Deus, a segunda pessoa da Santíssima Trindade, é o verdadeiro
e eterno Deus, o resplendor da glória do Pai, da mesma substância, e igual
àquele que fez o mundo. Ele sustenta e governa todas as coisas que fez.
Quando a plenitude do tempo chegou, tomou sobre si a natureza humana,

3 William L, Lumpkin, Baptist Confessions of Faith (Valley Forge, PA: Judson


Press, 1969), p. 119.
4 Ibid., p. 156-57.

28
Os batistas e as doutrinas da graça

com todas as suas propriedades essenciais e debilidades comuns, ainda


que sem pecado. E, assim, ele nasceu de uma mulher da tribo de Judá,
da semente de Abraão e de Davi, de acordo com as Escrituras; a fim de
que duas naturezas completas, perfeitas e distintas estivessem insepara-
velmente unidas em uma pessoa, sem mudança, mistura ou confusão.
Tal pessoa é verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, ainda
que um só Cristo, o único mediador entre Deus e o homem.5

O trinitarianismo ortodoxo também é afirmado nessa Confissão:


Neste divino e infinito Ser, há três subsistências, o Pai, a Palavra (ou
Filho) e o Espírito Santo, de uma substância, poder e Eternidade, cada
um possuindo o todo da Divina Essência, embora Essência indivisa, pois
o Pai procede de nenhum, nem foi gerado, nem é procedente; o Filho
é Eternamente gerado do Pai, o Espírito Santo procedente do Pai e do
Filho, todo-infinito, sem começo, portanto um Deus, a não ser dividido
em natureza e Ser; mas distinguido por diversas propriedades peculiares e
relativas, e por relações pessoais; tal doutrina da Trindade é o fundamento
de toda a nossa Comunhão com Deus, e confortável dependência nele.6

Tal ortodoxia cristológica e trinitária não era limitada meramente


aos batistas particulares ou calvinistas. Os batistas arminianos também se
juntaram a seus irmãos calvinistas ao afirmar esas aceitação das decisões dos
antigos concílios da igreja. Em meados do século 17, surgiu uma confusão
no meio batista geral, relativa à pessoa de Cristo. Com o propósito de
corrigir aqueles que negavam as fórmulas cristológicas já aceitas da igreja, os
batistas gerais de Midlands produziram um documento intitulado O Credo
Ortodoxo. No prefácio, há uma afirmação surpreendente, feita por esses
batistas: “Estamos certos de que a negação do batismo é um mal menor do
que a negação da divindade ou da humanidade de Cristo”.7
O Credo Ortodoxo tem forte ênfase no trinitarianismo e na teologia
cristológica. Acerca da natureza divina de Cristo, a Confissão afirma que o
Filho de Deus é “real e verdadeiro Deus, de uma natureza e de uma subs-
tância com o Pai e o Filho por natureza — coigual, coessencial e coeterno
com o Pai e o Espírito Santo”.8

5 Confissão de fé batista de Londres (1689). Pro Nobis Editora, p. 53.


6 Ibid., p. 253.
7 Ibid., p. 295.
8 Ibid., p. 299.

29
Introdução

Além disso, a Confissão afirma que a segunda pessoa da Santa Trindade


tomou para si um “verdadeiro e real corpo carnal, com uma alma racional” e
“tornou-se verdadeiramente um homem real, como nós, em todas as coisas,
exceto quanto ao pecado”.9
Há mais da linguagem ortodoxa na Confissão, quando os autores dizem
que Cristo unificou a natureza de Deus e a natureza do homem em sua
pessoa: “As propriedades de cada natureza, sendo preservadas sem mudança
em qualquer uma delas, ou a mistura de ambas”. E a pessoa assim composta
é “um Cristo, Deus-Homem; ou Emanuel, Deus conosco”.10
Além disso, como se tal linguagem específica e longos artigos nestas áreas
não fossem suficientes, o artigo 38 de O Credo Ortodoxo recomenda o Credo
Niceno, o Credo de Atanásio e o Credo dos Apóstolos ao círculo batista.
Os autores criam que tais credos poderiam ser provados “pela indubitável auto-
ridade da Santa Escritura”, sendo necessário que todos os cristãos os compreen-
dessem. Os ministros batistas eram encorajados a ensiná-los, de acordo com a
analogia da fé como registrada nas Sagradas Escrituras, para a edificação dos
jovens e velhos, como meio de “prevenir heresia na doutrina e na prática”.11
No século 18, os batistas gerais tiveram novamente problemas internos
relacionados à cristologia. Os ministros que aceitavam a perspectiva soci-
niana12 da pessoa de Cristo, uma visão que comprometia sua deidade, foram
tolerados na assembleia-geral. Dan Taylor determinou que se começasse
uma nova conexão dos batistas gerais e formou o grupo em junho de 1770.
Entre os seis artigos que foram escritos para apresentar os princípios que
distinguiam sua organização, estava um artigo sobre a pessoa e a obra de
Cristo. A primeira parte afirma:
Nós cremos que nosso Senhor Jesus Cristo é Deus e homem, unido em
uma pessoa: ou possuidor da perfeição divina unida à natureza humana,
de tal maneira que não pretendemos explicar, mas julgamos estarmos
firmemente vinculados à palavra de Deus para crer.13

9 Ibid., p. 300.
10 Ibid., p. 300-1.
11 Ibid., p. 326.
12 Lélio Socino [Laelius Socinus] foi o fundador da seita herética unitarista conhecida
como socianismo, que surgiu durante o século 16. [N. T.]
13 Ibid., p. 326.

30
Os batistas e as doutrinas da graça

Fé e a mensagem batista, de 1963, embora traga menos detalhes do que


alguns dos documentos anteriores, ainda assim faz a mesma afirmação.
O artigo II afirma que Deus “revela a si mesmo a nós como Pai, Filho e
Espírito Santo com atributos pessoais distintos, mas sem divisão de natureza,
essência ou ser”. O Filho de Deus tomou sobre si “as demandas e necessi-
dades da natureza humana”, e após completar sua obra agora reside à mão
direita de Deus, de onde compartilha “a natureza de Deus e do homem”.14
Os catecismos batistas expressam a mesma ortodoxia. O Catecismo
de Keach [Pro Nobis Editora] diz que Cristo, o Filho de Deus, “tornou-se
homem ao tomar para si um corpo real e uma alma racional”.15 Esse catecismo
também confessa as três pessoas da Divindade: o Pai, o Filho e o Espírito
Santo; e “estes três são um Deus, o mesmo em essência, iguais em poder e
glória”.16 Os Catecismos de John Broadus, J. P. Boyce, Henry Fish, W. W.
Everts e outros seguem igualmente em sua afirmação da ortodoxia acerca
da trindade e da pessoa de Cristo.
As teologias sistemáticas dos batistas do sul também têm procurado manter
essa adesão à ortodoxia. John L. Dagg discute a cristologia sob o cabeçalho de
três proposições: “Jesus Cristo era um homem [...] Jesus Cristo era Deus. [...]
As duas naturezas de Jesus Cristo, divina e humana, são unidas em uma pessoa”.17
J. P. Boyce, em seu capítulo sobre a Trindade, apresenta o artigo do
“Resumo dos Princípios”,18 que pretende expor, afirmando o seguinte:
“A particularidade dessa definição é que se trata de uma mera afirmação dos
fatos escriturísticos revelados, enquanto, ao mesmo tempo, inclui cada ponto
envolvido na doutrina da Trindade da forma sustentada pelos cristãos ortodoxos
de todas as eras”.19 Ele também expressa claramente uma cristologia ortodoxa.20

14 Baptist Faith and Message, p. 8.


15 Benjamin Keach, “Keach’s Catechism” em Baptist Catechisms, ed. Tom J. Nettles
(Memphis, TN: Tom J. Nettles, 1983), p. 81.
16 Ibid., p. 79.
17 John J. Dagg, Manual of Theology, 3. ed. (Charleston, SC: The Southern Baptist
Publication Society, 1858; reimpressão, Harrisonburg, VA: Gano Books, 1982),
p. 179, 181, 201.
18 Resumo de Princípios (Abstract of Principles) é um documento histórico redigido
por Bansil Manly Jr. a fim de servir como Declaração de Fé do Seminário Teológico
Batista do Sul dos EUA, fundado em 1859 por James P. Boyce. [N. T.]
19 James P. Boyce, Abstract of Systematic Theology (Philadelphia: American Baptist Publication
Society, 1887; reimpressão, Cape Coral, FL: Founders Press, 2006), p. 125.
20 Ibid., p. 272-91.

31
Introdução

Mullins afirma que a Definição de Calcedônia “reúne, de forma plena,


as afirmações do Novo Testamento”.21
W. T. Conner também afirma a ortodoxia em seu livro Revelation and
God [Revelação e Deus]. Embora se mostre reticente acerca da base filosófica
dos credos ecumênicos e de algumas abstrações supostamente não bíblicas
concomitantes, endossa seu propósito básico:
A posição ortodoxa, tal como posta nos credos ecumênicos dos primeiros
séculos da história cristã, era a de que Cristo possuía duas naturezas
completas, a humana e a divina, e que essas naturezas não deveriam
ser confundidas, e que ele era uma pessoa que não deveria ser dividida.
Como dito, conquanto esses credos desejassem afirmar as ideias religiosas
e os valores da humanidade de Jesus, de sua deidade e sua personalidade
indivisa, não podemos discordar, mas sinceramente assentir.22

Algumas vezes, Dale Moody parecia manter-se nessa mesma firme


tradição, mas, vez ou outra, falhava. Após discutir o Credo Niceno, o Credo
dos Apóstolos e o Credo de Atanásio, afirma que “luteranos, calvinistas,
anglicanos, batistas e muitas outras denominações protestantes abraçaram
todos esses três credos”. Ele, então, recomenda O Credo Ortodoxo, dos batistas
gerais, observando que esse documento cita aqueles três. Moody também
reafirma a Calcedônia em seu ensino básico sobre a humanidade completa,
a deidade completa e a personalidade indivisa de Jesus. “Uma cristologia
calcedoniana crítica, baseada no Logos Joanino, ainda é o caminho mais
adequado para reafirmar a unidade entre Deus e Jesus Cristo”.23 Para Moody,24
contudo, isso significa uma interpretação de Calcedônia de acordo com as
categorias nestorianas, um comprometimento que dificilmente pode ser
distinguido do adocionismo.
A despeito do abandono de Moody do entendimento histórico de
Calcedônia, é possível concluir que os batistas são definidos, pelo menos

21 E.Y. Mullins, The Christian Religion in its Doctrinal Expression (Valley Forge, PA: Judson
Press, 1917), p. 178.
22 W.T. Conner, Revelation and God (Nashville, TN: Broadman Press, 1936), p. 187-89.
23 Dale Moody, The Word of Truth (Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans Pub. Co., 1981),
vol. 8, p. 413-26.
24 O leitor não deve confundir Dale Moody (1915-1992), professor de Teologia no
Seminário Teológico Batista do Sul, de 1948 a 1984, com o evangelista D. L. Moody
do século 19. [N. T.]

32
Os batistas e as doutrinas da graça

em parte, por sua adesão à ortodoxia. Obviamente, tal conclusão não é


exaustiva, pois falha em distinguir os batistas dos católicos romanos, dos
presbiterianos históricos, dos luteranos e da tradição ortodoxa grega; mas,
ainda assim, serve como o parâmetro essencial dentro do qual os batistas,
historicamente, têm-se encaixado.

Evangelicalismo
Em segundo lugar, os batistas são evangélicos. Daqui vem o material
para o conteúdo maior deste livro. Embora o autor argumente que a mais
pura e consistente expressão do evangelicalismo reside no interior dos
salões do calvinismo, reconhece a grande amplitude dentro dos evangelica-
lismos histórico e moderno. É preciso comparecer apenas a um encontro
da Sociedade Teológica Evangélica (composta por batistas, presbiterianos,
metodistas, congregacionais, anglicanos e outros) para ver que discordâncias
em certas construções teológicas são feitas com vigor, abertura à verdade e
amor. Portanto, o observador cuidadoso não identifica de maneira simplista
o evangelicalismo com o hiperfundamentalismo, o neofundamentalismo
ou o calvinismo “decisionista”, “ganhador de almas”, agressivo e estrito.
Embora uma grande abertura caracterize o evangelicalismo, é preciso
haver alguns parâmetros definidos. Algumas vezes, a nomenclatura tem
sido usada para esconder deslizes lamentáveis à heterodoxia e até mesmo
à heresia. Embora isso, literalmente, tenha tornado a palavra inútil em
alguns contextos, os evangélicos históricos devem esforçar-se para restaurar
a credibilidade de uma palavra à sua nobre herança. A ortodoxia, como já
discutido, certamente é uma parte da teologia evangélica. Tanto essa abertura
como essa exclusividade manifestaram-se na formação, em 1867, da Aliança
Evangélica pelos Estados Unidos. Além da afirmação dos nove pontos
doutrinários, adotados, em 1846, pelo ramo inglês da Aliança Evangélica,
o grupo americano recepcionou a seguinte declaração:
Resolvemos que, no mesmo espírito, não propomos nenhum credo novo,
mas assumimos o fundamento amplo, histórico e católico-evangélico,
reafirmando solenemente e professando nossa fé em todas as doutrinas
da inspirada palavra de Deus, e no consenso das doutrinas sustentadas
por todos os verdadeiros cristãos desde o começo. E afirmamos mais
especificamente nossa crença na pessoa divino-humana e na obra expia-
tória de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo como a única e suficiente

33
Introdução

fonte de salvação, como o coração e a alma do cristianismo, e como o


centro de toda a verdadeira união e a comunhão cristãs.25

A ortodoxia, no espírito de Atanásio, é percebida como uma salvaguarda


da soteriologia evangélica. Bruce Shelley concorda em sua descrição do
evangelicalismo como um “espírito, uma preocupação com os pecadores, um
modo de vida. Seu principal motivo é a salvação das almas, e sua imagem-guia
é o redentor Evangelho de Jesus Cristo. Todas as outras considerações são
subordinadas a esse padrão”.26
A mensagem evangélica declara a singularidade de Jesus Cristo como
a revelação pessoal de Deus, a completude de sua obra em humilhação e
exaltação para a redenção dos pecadores, a obra efetiva do Espírito Santo
por meio da pregação do evangelho e a necessidade de uma resposta não
coagida de arrependimento e fé. O coração do evangelicalismo bate com o
evangelho redentor da graça, expresso em uma paixão missionária que se
estende no evangelismo. Isso forma a divisa básica, ao determinar quem é
“cristão” e quem não é. Aqueles que estão perecendo recusam esse evangelho,
enquanto aqueles que estão sendo salvos o recebem.
Em resumo, a doutrina da justificação pela fé é a raison d’être do evange-
licalismo. O perdão de pecados e a justiça imputada minam e contradizem o
sacramentalismo sacerdotal do catolicismo. Todos os evangélicos — wesleyanos,
arminianos, luteranos, calvinistas — declaram essa realidade. O conflito
entre evangélicos concentra-se na discussão sobre como a fé vem — e a razão
pela qual vem. O fato de que ela vem, o objeto de sua vinda e o respectivo
resultado básico não admitem controvérsia entre os evangélicos.
Está bem claro nos documentos da história batista que os batistas têm
afirmado esse entendimento do evangelho alinhados com outros que pode-
riam ser considerados evangélicos. A Confissão de 1644 ensina claramente que
“o Evangelho que deve ser pregado a todos os homens como fundamento
da fé é que Jesus é o Cristo, o Filho do Deus bendito, cheio da perfeição de
todas as excelências celestiais e espirituais, e que a salvação é exclusivamente
possuída através da crença em seu Nome”.27

25 The New Schaff-Herzog Encyclopedia of Religious Knowledge, s. v., Evangelical Alliance.


26 Bruce Shelley, Evangelicalism in America (Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans, 1967), p. 17.
27 Lumpkin, Baptist Confessions, p. 162.

34
Os batistas e as doutrinas da graça

Mais explicitamente acerca dos elementos da justificação, o Catecismo


de Keach (ou o Batista) define a justificação como “um ato da livre graça
de Deus, em que ele perdoa todos os nossos pecados, e nos aceita como
justos à sua vista, somente pela justiça de Cristo imputada a nós, recebida
somente pela fé”. Essa definição é idêntica àquela do Catecismo Breve de
Westminster e demonstra a ampla unanimidade na verdade evangélica entre
as diferentes denominações protestantes.
Da mesma forma, a Segunda Confissão de Londres (1677) demonstra a
unidade batista com outros grupos evangélicos e ortodoxos. Destacando não
apenas seus pontos singulares, mas também os amplos campos de consenso,
esses batistas expressaram sua dívida com os cristãos de outras denominações
no prefácio dessa Confissão:
E aqui não concluímos ser necessário expressar-nos mais completa e
distintivamente, e também fixar-nos em tal método que possa vir a ser o
mais amplo daquelas coisas cujos sentido e crença desejamos explicar; e,
não encontrando falhas a respeito do que foi estabelecido na Assembleia,
e após eles por aqueles do caminho congregacional, prontamente
concluímos melhor reter a mesma ordem em nossa presente Confissão.
E também quando observamos que aqueles mencionados escolheram,
na Confissão (por razões que pareciam importantes tanto a eles como a
outros), não apenas expressar seu pensamento em palavras juntamente
com os outros no mesmo sentido, sobre todos aqueles artigos nos quais
têm concordância, mas também na maior parte sem qualquer variação
dos termos, da mesma maneira resolvemos que é melhor seguir seu
exemplo, fazendo uso das mesmas palavras com ambos em tais artigos
(os quais são muitos), onde nossa fé e nossa doutrina são as mesmas que as deles.
E isso fizemos, abundantemente concordando com ambos, em todos os
artigos fundamentais da religião cristã, como também com muitos outros
cujas confissões ortodoxas têm sido publicadas ao mundo, no nome dos
protestantes em diversas nações e cidades [itálico do autor].28

Da Confissão de Westminster e da Declaração de Savoia, um grande segmento


do evangelicalismo extrai seu alimento teológico. Os batistas na América
foram moldados nessa mesma tradição, em boa parte pela influência incal-
culável da Confissão de Fé da Filadélfia, praticamente idêntica à Segunda
Confissão de Londres.

28 Ibid., p. 245.

35
Introdução

C. H. Spurgeon, ainda aclamado por muitos como o pregador batista


mais influente da história, ajudou a fundar o braço britânico da Aliança
Evangélica. Ele se retirou de algumas associações batistas quando sentiu que
a visão evangélica estava sendo comprometida e procurou outro grupo batista
em que tais visões seriam apoiadas. Embora Spurgeon tenha confessado
firmemente a teologia calvinista, declarava, de forma clara, que o evange-
licalismo ortodoxo é o fundamento mais básico para a comunhão cristã.
Em abril de 1887, ele escreveu:
Em nossa comunhão com metodistas de todos os tipos, nós os temos
encontrado aderindo firmemente àquelas grandes doutrinas evangélicas
pelas quais lutamos. [...] Nós nos importamos muito mais com as verdades
evangélicas centrais do que com o calvinismo como um sistema; mas
acreditamos que o calvinismo tenha em si uma força conservadora que
ajuda os homens a sustentar a fé vital e, portanto, sentimos muito quando
vemos qualquer um abandonando-a, tendo-a aceitado anteriormente.29

Spurgeon expressa exatamente os sentimentos desta presente obra.


A mentalidade evangélica dos batistas do sul não pode estar divorciada
das raízes evangélicas. Em 1845, a formação da Convenção Batista do Sul
surgiu, em parte, da insatisfação dos evangélicos sulistas com as políticas
missionárias do norte, as quais se recusavam a nomear evangelistas para o
crescimento do oeste e do sul. As igrejas do sul ficaram tão frustradas em
razão de as necessidades do evangelho não serem atendidas que organizaram
uma reunião. Outra grande razão para a divisão foi sua exclusão, em tese,
do empreendimento das missões estrangeiras recém-iniciadas.
Os historiadores conectam as dinâmicas fundamentais pelo evange-
lismo e as missões — algo tão típico dos batistas do sul — ao estabelecimento
dos batistas separatistas em 1775, em Sandy Creek, Carolina do Norte.
Os batistas separados surgiram diretamente do “Grande Avivamento”
no congregacionalismo da Nova Inglaterra, correspondente à expressão
americana do reavivamento evangélico inglês. Antes desse avivamento,
das quarenta e sete igrejas batistas que existiam na América, apenas sete
ficavam na linha abaixo de Mason-Dixon.30 Daniel Marshall e Shubal Steams

29 Charles H. Spurgeon, Sword and Trowel, 1887, p. 195.


30 A linha Mason-Dixon é um limite demarcatório entre quatro estados americanos:
Pensilvânia, Virgínia Ocidental, Delaware e Maryland, e recebeu esse nome por ter
sido traçada por Charles Mason e Jeremiah Dixon. [N.R.]

36
Os batistas e as doutrinas da graça

lideraram os batistas de Sandy Creek no estabelecimento de quarenta e


duas igrejas, com a ordenação de cento e vinte e cinco pregadores em
apenas dezessete anos. Tanto Marshall como Stearns, assim como outros
líderes do avivamento na América, foram influenciados, de forma signi-
ficativa, pela pregação de George Whitefield, um líder do avivamento
inglês. O reavivamento evangélico na Inglaterra, que surgiu, em grande
medida, por causa do zelo dos wesleyanos, influenciou William Carey,
um batista, e levou ao nascimento das missões modernas ao redor do
mundo. Os wesleyanos eram metodistas; Whitefield, um independente.
Todos eram evangélicos.
Um fenômeno mais recente demonstra a consciência evangélica aberta
dos batistas do século 20. O reavivamento evangélico na Inglaterra, surgido
da pregação sobre o novo nascimento dos wesleyanos arminianos e do
calvinista Whitefield, não apenas contribuiu para o avivamento simul-
tâneo na América por intermédio de Whitefield, como também recebeu
vida prolongada no Novo Mundo pelos escritos de Jonathan Edwards.
Esses escritos afetaram grandemente os batistas Sutcliff, Fuller e Carey,
auxiliando, assim, o nascimento das missões modernas mundiais. O que
eles não aceitariam de Wesley — e pareciam desconfiados em relação a
Whitefield — receberam intensamente de Edwards, em boa parte pelo seu
tratado Freedom of the Will [A liberdade da vontade], e também porque
o consideraram “completamente consistente com o calvinismo mais
estrito”.31 A influência e os benefícios dessa rede evangélica de relacio-
namentos são óbvios.
“Evangélico” é um termo consistente, biblicamente baseado na palavra
grega εὐαγγελίζομαι, frequentemente usada na Escritura para descrever a
livre proclamação do evangelho. Os batistas receberam esse nome de alguns
observadores antipáticos, que viram na imersão dos crentes um rito estranho;
ignoravam, contudo, que seu protesto estava destinado a sustentar a natureza
essencial da igreja como uma comunidade reunida de crentes regenerados.
Os batistas têm pouca dificuldade em manter seu comprometimento evan-
gélico quando sua ordenança distintiva foca apropriadamente no evangelho
como o cerne de tudo o que são e fazem.

31 John Ryland, Life and Death of the Rev. Andrew Fuller (London: Button & Son,
1816), p. 9, 10.

37
Introdução

Elementos distintivos
Além do que é essencial na ortodoxia e no evangelicalismo, os batistas
têm ainda outro elemento de influência que jorra até sua forma final. Esse
ingrediente distingue os batistas de outros evangélicos, como os presbiterianos,
os congregacionais e assim por diante, e pode ser descrito pelo termo distin-
tivo. Esse fator cresce de antigas associações com o Movimento Separatista da
Inglaterra e o Movimento Anabatista no continente. Os batistas são herdeiros
da tradição particular, inicialmente enunciada pelos independentes e congre-
gacionais, mas confundida por eles por causa de sua prática do pedobatismo.
Os batistas insistem na seguinte questão: “Como a igreja pode ser uma comu-
nidade reunida de crentes quando a realidade do renascimento espiritual é
confundida pela prática do batismo apenas com base no nascimento natural?”.
A mudança mais revolucionária ocorrida na congregação separatista,
que migrou para Amsterdã sob a liderança de John Smyth, em 1608, e
retornou para a igreja sob a liderança de Thomas Helwys, em 1612, foi a
reorientação do batismo infantil para o batismo daquele que crê. Isso foi
parte de uma mudança ainda maior, segundo a qual os métodos magistrais
da reforma foram revogados e substituídos pelos princípios das igrejas livres.
A declaração de doutrinas intitulada A True Confession [Uma verdadeira
confissão] representa a teologia separatista da igreja em seus primeiros dias.
Sobre o batismo, afirma:
[...] assim como aqueles da semente, por estarem sob o governo de qual-
quer Igreja, e serem recebidos na infância pelo Batismo, sendo feitos
coparticipantes dos sinais da Aliança de Deus, que é realizada com os
fiéis e com a descendência deles ao longo de todas as gerações.32

Quando retornaram à Inglaterra, sua visão do batismo havia mudado.


A Confissão de Thomas Helwys, impressa em 1611, em Amsterdã, decla-
rava “que toda Igreja deve receber todos os seus membros pelo Batismo sob
a Confissão de sua fé e os pecados lavados pela pregação do Evangelho”.
Helwys adicionou “que o Batismo, ou a lavagem com água, é a manifestação
externa da morte para o pecado e o despertamento em novidade de vida,
portanto de forma alguma pertencente a infantes”.33

32 Baptist Confessions, p. 93.


33 Ibid., p. 120.

38
Os batistas e as doutrinas da graça

Em 1644, os batistas “comumente, porém falsamente, chamados anaba-


tistas” elaboraram uma Confissão de Fé em que o batismo pela imersão era
exposto pela primeira vez em uma confissão “moderna”. Tendo sido culpados
de “prática de atos estranhos à dispensação da ordenança do batismo, os
quais não se mencionam entre cristãos” (ou seja, batizando mulheres nuas),
a confissão repudiou especificamente esse fato, declarando que o batismo
significava o ato de mergulhar na água “com as vestimentas convenientes
tanto sobre o administrador como sobre o sujeito, com toda a modéstia”.
Eles também afirmaram que essa ordenança deveria ser “ministrada somente
aos que professam a fé, que são discípulos ou pessoas instruídos na verdade,
os quais, sob a profissão de fé, deveriam ser batizados”.34
A convicção batista tem permanecido literalmente a mesma até o tempo
de Fé e a Mensagem Batista, de 1963. O batismo do crente por imersão tem
agregado defesas bem vigorosas pelas melhores mentes produzidas na vida
batista — como John Gill, Adoniram Judson, John Dagg, B. H. Carroll e
outros, muito numerosos para que sejam nomeados aqui.
A verdadeira posição separatista, apoiada pelo batismo daquele que crê,
declara que o local e a igreja visível existem apenas como uma comunidade
de crentes congregados, opondo-se à ideia de que a igreja existe como aqueles
nascidos no Estado, ou que são associados aos verdadeiros crentes, como
parte de suas famílias sem regeneração pessoal. Assim, a natureza regenerada
da igreja fundamenta o comprometimento batista no batismo do crente,
no sacerdócio de todos os crentes, na autonomia da congregação local e em
outras doutrinas associadas.
Outros reivindicam esses distintivos, mas os batistas os aplicam com uma
demanda rigorosa pela pública profissão de fé, a qual eles veem como uma
prática escriturística, antes de ser confirmada a comunhão local.
John L. Dagg, em seu monumental Manual of Theology [Manual de
teologia] (a segunda parte intitulada de A Treatise on Church Order [Manual
de eclesiologia, Pro Nobis Editora]), inclui uma seção de quarenta páginas
discutindo as implicações da membresia de infantes nas igrejas. Um a um,
ele lida com os argumentos favoráveis ao batismo infantil, desconstruindo-os
com uma variedade de argumentações bíblicas e teológicas. Seu argumento
final contra a membresia infantil reduz todos os argumentos favoráveis a uma

34 Ibid., p. 167.

39
Introdução

analogia, ou seja, os gentios têm sido enxertados à oliveira e, então, a “bênção


de Abraão vem aos gentios; e o pacto que assegura a bênção envolve seus
filhos juntamente com eles”.35 Após diversas páginas de um arrazoamento
claro, conciso e convincente, Dagg conclui com as seguintes palavras:
Membresia infantil é defendida com base na identidade da oliveira;
mas, infelizmente para o argumento, as mudanças que os apóstolos têm
descrito infringem a identidade da árvore, exatamente no lugar errado.
Todas essas mudanças dizem respeito aos ramos, e são feitas sob um prin-
cípio — a substituição da fé pela descendência natural; como o vínculo
da conexão entre os ramos e a raiz. A membresia infantil depende da
descendência natural; e o único princípio sobre o qual todas as mudanças
são feitas, ao levar embora a descendência natural, deixa a membresia
infantil pendurada no nada.36

Outro elemento batista que contribui para a formação dos batistas


contemporâneos é o bloco de construção de três pontas, incluindo os coro-
lários da liberdade de consciência, da liberdade de religião e da separação
entre Igreja e Estado. Embora esses três pilares não devam ser identificados de
maneira simplista, estão atrelados uns aos outros. Liberdade de consciência,
pela qual os batistas têm sangrado desde o tempo de Thomas Helwys, significa
que nenhum homem ou doutrina humana é senhor sobre a consciência.
Nenhuma outra criatura tem o direito de cegar a consciência de um homem
por meio de doutrinas humanas. Thomas Helwys afirmou:
[...] a religião dos homens a Deus é entre Deus e eles; o rei não responderá
por ela, nem deve o rei ser juiz entre Deus e o homem. Deixe-os serem
heréticos, turcos, judeus, ou o que quer que seja. Não pertence ao poder
terreno a função de puni-los de forma alguma.37

Obviamente, Helwys não chamaria os “hereges, turcos, judeus ou


quem quer que seja” de batistas. A adoção da liberdade de consciência está
relacionada apenas ao funcionamento dos homens na sociedade civil e não
define o que é um batista. Trata-se de uma condição que os batistas buscam

35 John L. Dagg, A Treatise on Church Order (Charleston, SC: Southern Baptits Publication
Society, 1858), p. 165.
36 Ibid., p. 183.
37 Thomas Helwys, A Short Declaration of the Mistery of Iniquity (1612, n.p.).

40
Os batistas e as doutrinas da graça

para todos os homens, a fim de que sejam livres para ouvir e livremente
submeter-se à mensagem evangélica de Cristo.
Tanto John Murton como Leonard Busher, que seguiram Helwys
enquanto era pastor de uma pequena igreja batista geral, escreveram grandes
obras sobre a liberdade de consciência. Os batistas gerais e os particulares,
juntos, uniram-se na luta por liberdade de consciência até que ela, finalmente,
foi obtida, sob o reinado de William e Mary, por meio do Ato de Tolerância.
No entanto, embora a Inglaterra tenha obtido liberdade de consciência e
religião, seu povo nunca foi capaz de alcançar a extinção da Igreja Anglicana.
Contudo, os batistas na América, ajudados pela existência de uma grande
pluralidade de denominações, ao lado do ímpeto do libertarianismo jeffer-
soniano, obtiveram a separação entre Igreja e Estado, assim como as outras
duas liberdades. A luta foi travada na América principalmente por batistas
como Roger Williams, John Clarke, Isaac Backus e John Leland, até ser
garantida por escrito na Carta de Direitos da Constituição adotada em 1789.
Embora a afirmação dessas três liberdades seja um princípio basilar da
vida batista, os batistas podem muito bem estar presentes onde nenhuma
dessas três liberdades foi alcançada. De fato, no passado, os batistas pros-
peraram e continuam a prosperar em áreas em que não contam nem com
liberdade de consciência nem com liberdade de religião, tampouco com a
separação entre Igreja e Estado. Porém, uma igreja batista não pode existir
onde não exista uma membresia eclesiástica regenerada e a afirmação do
batismo do crente. Esses são os elementos eclesiológicos imprescindíveis.
Em resumo, ser batista significa ser ortodoxo em seu entendimento sobre
a Trindade e a pessoa de Cristo. Ser batista também significa ser evangélico
em sua soteriologia. Finalmente, ser batista significa ser consistentemente
distinto na eclesiologia e procurar a criação de condições em que todos
possam ouvir o evangelho.
Este trabalho detalha o evangelicalismo batista e declara, juntamente
com Spurgeon, que a representação bíblica mais autêntica do evangelho
brilha sobre as águas das doutrinas da graça. De fato, qualquer rejeição
dessas doutrinas carrega em si sementes que brotam como posições não
evangélicas. Nas palavras de Spurgeon, sua completa aceitação prepara um
homem para a batalha contra todos os inimigos de Deus:
Não se pode vencer um calvinista. Você pode achar que consegue, mas
não consegue. As pedras das grandes doutrinas encaixam-se de tal maneira

41
Introdução

umas às outras que, quanto maior a pressão aplicada para removê-las,


mais firmemente eles aderem. E preste muita atenção: você não pode
receber uma dessas doutrinas sem acreditar em todas elas. Sustente, por
exemplo, que o homem é completamente depravado, e você chegará a
inferir, então, que, certamente, se Deus tem de lidar com tal criatura, a
salvação tem de vir de Deus apenas, e dele, do ofendido, a uma criatura
ofensiva; então ele tem o direito de dar ou reter sua misericórdia da
forma que lhe apraz; você, então, é forçado à eleição e, quando obtiver
isso, terá obtido tudo; o resto segue naturalmente. Alguns, ao forçarem
seu julgamento, podem conseguir reter dois ou três pontos, e não todo
o resto, mas eu adoto a lógica como necessária para um homem reter
o todo ou rejeitá-lo; as doutrinas permanecem como soldados em uma
praça, apresentando em cada ângulo uma linha de defesa em que é
perigoso atacar, mas fácil de manter. E atenção! Nestes tempos em que
o erro é tão abundante e as novidades tentam ser tão desenfreadas, não
é algo sem importância colocar uma arma nas mãos de um jovem que
pode assassinar seu inimigo, uma arma que pode facilmente aprender a
manusear, que pode segurar firmemente, carregar prontamente, e sem
fadiga; uma arma, eu acrescento, que ferrugem alguma pode corroer e
nenhum baque pode quebrar, incisiva e bem preparada, uma verdadeira
lâmina de Jerusalém, cuja têmpera é apta a feitos de renome.38

Assim concluímos essa introdução para em seguida avançar com a


pesquisa sobre como essa formidável arma foi habilmente empunhada, para
depois ser, infelizmente, abandonada.

Panorama: um mapa da jornada batista


Uma pesquisa é uma espécie de mapa. Antes de uma viagem começar, os
viajantes precisam visualizar o mapa de todo o território, incluindo algumas
terras que se encontram fora da rota tomada. Os acontecimentos gerais do
calvinismo entre os batistas (essa justaposição de palavras não é apropriada,
mas, por ora, vai funcionar) na Inglaterra e na América constituem o guia
ao longo do caminho. Um pouco mais de espaço será dedicado à Inglaterra
nesse panorama, já que um tratamento textual subsequente se encerra no
início do século 19. Alguns leitores podem sentir que grandes pedidos de
desculpas são devidos por não incluir um capítulo sobre Spurgeon. Seus
sermões e outras obras, contudo, estão disponíveis em proporções tão

38 C. H. Spurgeon, “Exposition of the Doctrines of Grace”, em The Metropolitan Tabernacle


Pulpit, 63 vols. (Pilgrim Publications: Pasadena, TX, 1969), 7:304.

42
Os batistas e as doutrinas da graça

abundantes, e ele é citado tantas vezes em outras seções deste livro, que sua
inclusão pareceu desnecessária. Também o livro de Ian Murray, The Forgotten
Spurgeon [O Spurgeon esquecido],39 que contém uma notável discussão sobre
o calvinismo de Spurgeon, oferecendo grande contribuição, encontra-se
prontamente disponível. Vamos ao panorama.

Batistas e o calvinismo na Inglaterra


O capítulo 1 delineará as diferenças entre os batistas gerais e os particu-
lares. Esta obra, intencionalmente, enfatiza a seção calvinista da vida batista.
Lamentavelmente, a seção arminiana caracterizou-se pela apostasia dos séculos
17, 18 e 19, com o socinianismo desempenhando papel de destruidor nos
dois primeiros e o liberalismo no último. Os batistas particulares permane-
ceram fiéis durante todos esses anos até que se viram debilitados por várias
correntes na última metade do século 19, quando o estandarte calvinista foi
carregado pelos batistas estritos de uma forma bem truncada. A responsa-
bilidade humana, então, sofreu um grande baque do martelo da soberania
de Deus pela mão da extensão lógica equivocada.

Ortodoxia do século 17
Hanserd Knollys (1599-1691), William Kiffin [ou Kiffen] (1616-1701),
Benjamin Keach (1640-1704), John Spilsbury (1593-1668), Henry Jessey
(1601-1663) e John Bunyan (1628-1688), entre outros, permanecem como
representantes da firme convicção, da piedade fervorosa, da pregação pode-
rosa e da ortodoxia teológica dos batistas particulares do século 17. Embora
houvesse algumas divergências acerca da comunhão e da membresia da igreja
naqueles dias em que brotava o separatismo, havia unidade na soteriologia.
As duas Confissões de Londres, na verdade, representam o comprometi-
mento teológico dos batistas particulares na nação durante esse período,
com a Confissão de 1689 tendo sido assinada pelos representantes de mais
de 107 igrejas por toda a Inglaterra e o País de Gales.40 Algumas igrejas
no Ocidente que seguiram as mudanças teológicas de Thomas Collier
gradualmente foram saindo desse calvinismo acentuado para uma posição

39 Publicado no Brasil com o título O Spurgeon que foi esquecido, pela editora PES (2004). (N.E.)
40 Joseph Ivimey, A History of the English Baptists, 4 vols. (London: impresso pelo autor e
vendido por Burditt, Buxton, Hamilton, Baynes etc., 1811-1830), 1:503-511.

43
Introdução

reacionária, e o próprio Collier, por fim, tornou-se um universalista. Mas,


se alguns no Ocidente declinaram, outros resistiram vigorosamente a essa
apostasia. Em vez disso, cresceram em zelo e, de Bristol, buscaram promover
a comunhão e uma associação significativa entre as igrejas na região, e até
advertiram as igrejas de Londres por sua frouxidão em perseguir tamanho
encorajamento intereclesiástico.

Declínio no século 18
O século 18 tem sido definido como de declínio por muitos histo-
riadores. Deísmo, socinianismo [ou socianismo] e a teologia latitudinária
causaram danos severos às igrejas presbiterianas, anglicanas, congregacionais
e batistas gerais. Os batistas particulares, por outro lado, não incorreram
em tal erro teológico. Ao contrário, em 1777, John C. Ryland declarou:
“Não há apostasia aparente em nossos ministros e nas pessoas em relação
aos gloriosos princípios que professamos”. Embora se tenha assistido a um
declínio no número das igrejas batistas particulares em meados do século,
em 1798 eram, ao todo, 361 na Inglaterra, e 320 delas tinham pastores.
Outras 84 encontravam-se no País de Gales. Muito crescimento aconteceu
nos últimos quinze anos desse século.
O que causou consternação na comunhão veio na forma de “questão
moderna”. As consequências de longo alcance estavam na resposta à seguinte
pergunta: É possível um não regenerado ser chamado a exercer arrependimento
e fé salvíficos? John Brine (1703-1765) era o líder daqueles que escreviam
negativamente sobre a questão. Mas John Gill (1697-1771), amigo de Brine
e conhecido líder dos batistas por cinquenta anos durante esse século, nunca
escreveu a esse respeito. Isso, em si mesmo, é um fenômeno estranho, tendo
em vista que Gill se caracteriza como um conhecido hipercalvinista, mas não
é menos estranho do que o fato de Gill haver rejeitado o principal argumento
de Brine contra a questão. Por essa razão, um capítulo inteiro é concedido a
Gill, com uma nova investigação das acusações contra sua reputação.
Apesar de a maior parte do século ter sido abafada por uma lamentável
recessão no crescimento dos batistas particulares, um julgamento bastante
severo sobre a época falharia em reconhecer as incríveis contribuições feitas
por homens como Joseph Stennett (1692-1758), John Collett Ryland (1723-
1792), Benjamin Beddome (1718-1795), Samuel Medley (1738-1799) e John
Hirst (1736-1865). Alguns parecem sentir que uma adesão muito próxima ao

44
Os batistas e as doutrinas da graça

calvinismo seria o fator principal para esse declínio, mas cometem o erro fatal
em falhar na distinção entre calvinismo e hipercalvinismo. Assim, falham
em apreciar o zelo evangélico inerente ao primeiro. Uma visão mais ampla
de todo o cenário religioso pode conduzir a uma opinião contrária, e ver
o calvinismo como o fator que conservou a força dos batistas particulares,
tornando possível a propagação em todo o mundo do evangelho no século
seguinte. Esse parece ser o entendimento de Joseph Ivimey em suas conclusões
de um episódio contado sobre o presbítero Joseph Stennett (1663-1713):
Tivessem nossos ministros em geral manifestado sua adesão estrita às
doutrinas calvinistas, como fez o Sr. Stennett, em vez daquela candura
espúria e moderação expressas por alguns outros, não há dúvida de que
muitas igrejas teriam sido preservadas do turbilhão do socinianismo, o
qual tem engolido algumas sociedades batistas particulares, e quase todas,
ao fim do século 17, pertenciam aos batistas gerais.41

O livro Help to Zion’s Travelers [Ajuda aos viajantes de Sião], de Robert


Hall (1728-1791), foi publicado em 1781, a pedido da Associação de
Northamptonshire. Foi a adaptação em livro do que tinha sido entregue
oralmente como um sermão em Isaías 57.14. O conteúdo vindicava o calvi-
nismo das objeções de muitos detratores, incluindo arminianos, socinianos
e antinominianos. Além disso, fez uma declaração veemente sobre a neces-
sidade de chamar todos os homens ao arrependimento diante de Deus e à
fé em nosso Senhor Jesus Cristo. Esse livro figurou, de forma significativa,
nos movimentos de William Carey rumo à posição que ele expressa em An
Enquiry into the Obligations of Christians to Use Means for the Conversion of the
Heathen [Uma investigação sobre as obrigações dos cristãos de usar meios para
a conversão dos pagãos] (1791).42 Essa influência também esteve presente em
The Gospel Worthy of All Acceptation,43 de Andrew Fuller (1785). Um capítulo
inteiro (terceiro) da presente obra concentra-se na teologia de Fuller para
demonstrar que uma firme resposta afirmativa à “questão moderna” não
implicava o declínio do calvinismo histórico. Nem o surgimento das missões
modernas vieram como um resultado do tremor dos grilhões do calvinismo;

41 Ibid., p. 2:503-511.
42 Publicado pela Pro Nobis Editora sob o título Mobilização missionária: o clamor de
William Carey. [N.T.]
43 Publicado pela Pro Nobis Editora sob o título O evangelho digno de toda aceitação. [N.T.]

45
Introdução

ao contrário, figuraram como sua expressão necessária. Isso não pode ser
demasiadamente afirmado ou enfatizado no momento contemporâneo, em
que, em geral, acredita-se que as doutrinas da graça são inimigas da evan-
gelização. De fato, elas são inimigas dos sistemas e métodos que prosperam
em perversões reducionistas do evangelho; pois, a rigor, o verdadeiro evan-
gelismo não tem amigos mais próximos que tais doutrinas.

Tendências dos séculos 19 e 20


A história do calvinismo batista inglês nos séculos 19 e 20 pode ser
apresentada em forma de pesquisa por um método simples, envolvendo três
passos. Primeiro, uma avaliação da tendência teológica da União Batista
resultará em um quadro bem acurado sobre se as igrejas associadas ao grupo
consideravam o calvinismo tão estratégico ou absoluto na compreensão do
evangelho. Segundo, o surgimento e a história dos batistas estritos mostram
o desenrolar do calvinismo sob outra perspectiva. Terceiro, uma declaração
sobre o status contemporâneo das doutrinas da Reforma fecha o panorama
da cena inglesa.
A União Batista: Sob a figura de John Gill, com o conselho de John
Rippon na Igreja Batista em Carter Lane, Southwark, nas proximidades do
limite sul da velha Ponte de Londres, aproximadamente sessenta ministros
batistas encontraram-se em 1812, com o propósito de fundar a primeira União
Batista. Entre os participantes do encontro, estavam Andrew Fuller, John
Sutcliff, John Ryland Jr., John Rippon e Joseph Ivimey. Este último, por ser
a principal força por trás da reunião, havia feito um chamado nesse sentido,
em 1811, em The Baptist Magazine, em um artigo intitulado “Union Essential
to Prosperity” [União essencial para a prosperidade]. Ivimey entendeu que
se tratava de uma oportunidade para as várias sociedades e agências, por
contarem com organizações particulares — embora amplamente encorajadas
pelas mesmas igrejas, associações e indivíduos —, elaborarem relatórios de
seu respectivo progresso, com o fim de encorajar e renovar o zelo das igrejas.
Andrew Fuller tinha dúvidas sobre seu prospecto, pois pensava que isso
apenas “demonstraria a pobreza da denominação”, mas não poderia ter
ficado mais satisfeito quando uma coleta feita para a Sociedade Missionária
Batista totalizou 320 libras. Entre outras resoluções adotadas nessa reunião
consultiva, uma dizia respeito aos objetivos da união, pela “promoção da
causa de Cristo em geral; e os interesses da denominação em particular”.
46
Os batistas e as doutrinas da graça

Além disso, o primeiro encontro oficial da União foi marcado para os dias
25 e 26 de junho de 1813.
É digno de nota que, nessa reunião de 1813, uma Confissão de Fé enca-
beçou os tópicos que foram discutidos e aprovados. O parágrafo primeiro dessa
constituição original é redigido nos termos segundo os quais “o calvinismo
das igrejas batistas particulares era costumeiramente definido”.
Que esta sociedade de ministros e igrejas seja designada “A União Geral
de Ministros e Igrejas Batistas”, mantendo as importantes doutrinas
das “três pessoas iguais na Divindade; eleição eterna e pessoal; pecado
original; redenção particular; justificação gratuita pela justiça imputada de
Cristo; graça eficaz na regeneração; a perseverança final dos verdadeiros
crentes; a ressurreição dos mortos; o julgamento futuro; a alegria eterna
dos justos; e a miséria eterna de todos que morrem na impenitência, com
a inviolabilidade da ordem congregacional das igrejas”.44

A base doutrinária era firme e rigorosa. No entanto, o período de 1817


a 1831 foi marcado por lento avanço no conceito de união entre os batistas
ingleses. O exponencial crescimento da Sociedade Missionária Batista, bem
como o surgimento e o rápido avanço da Sociedade Batista Irlandesa absor-
veram a energia das igrejas. Pouco tempo e pouca criatividade restaram para
pavimentar o caminho até o funcionamento autônomo da União Batista.
Os batistas também assistiram à dolorosa separação entre a Missão Serampore
e a Sociedade Missionária Batista. Algumas controvérsias relativas à comu-
nhão estrita surgiram durante aqueles anos, posicionando Joseph Ivimey
no lado da comunhão estrita, contra Robert Hall e F.A. Cox, no lado da
comunhão aberta. Além disso, o prestígio do calvinismo entre os batistas
particulares começou a ganhar contornos mais definidos, de tal forma que
a semelhança, e não a distinção, passou a caracterizar a comparação entre os
batistas gerais e os batistas particulares. Os encontros da União continuaram
durante todos aqueles anos, contando com o incentivo de Joseph Ivimey,
mas eram tão pequenos e ineficazes que Ivimey foi forçado a escrever, em
1830, que seu propósito “nunca foi realmente alcançado”.45
Em 1832, houve uma reorganização, abrindo-se, então, as portas para a
expansão da União, mas apenas através de uma melhor definição dos limites

44 E. A. Payne, The Baptist Union (London: The Carey Kingsgate Press Limited, 1959), p. 26.
45 Ivimey, English Baptists, 4:382.

47
Introdução

doutrinários. O artigo 1º, contendo as doutrinas distintivas do calvinismo,


abriu caminho para uma declaração doutrinária, extraordinariamente breve,
suscetível a um grande abuso: “Primeiro. Estender o amor fraternal e a união
entre os ministros e as igrejas batistas que concordam com os sentimentos co-
mumente chamados evangélicos”.46
Tais palavras indicaram uma crescente alienação do calvinismo dos
primeiros dias. Embora muitos pastores ainda sustentassem os princípios
distintivos do calvinismo, sua satisfação com a nebulosidade da mera afir-
mação sobre “sentimentos evangélicos” mostra um apego decrescente ao que
era essencial. A história falha em revelar qual vantagem positiva as denomi-
nações de fato ganham ao se unirem em torno da crucificação da verdade.
Quaisquer projetos patrocinados sob tais auspícios estão fragmentados
desde o início, pois, na realidade, os fundamentos e objetivos são sempre
idênticos. O verdadeiro caráter cristão de qualquer empreendimento não
pode ser garantido no início nem mensurado no final, pois os perseguidores
do projeto confessarão nada além do mais pueril entendimento da fé cristã.
Nesse caso, somente um individualismo heroico e desafiador pode recuperar
o bem, e isso apesar de — e não em razão de — seu caráter.
O termo “evangélico”, quando precisamente definido, pode ser mara-
vilhosamente útil. Mas, quando deixado sem definição e combinado com o
incrivelmente insípido termo teológico sentimentos, mostra absoluta tendência
ao abandono. Ivimey enxergou isso com bastante clareza e lamentou. Embora,
duas décadas antes, ele tivesse criticado Gill, não pelo calvinismo, mas pelo
que ele considerava práticas falsas construídas sobre ele, agora via o perigo
em uma nova direção. Quase toda frase escrita por ele à imprensa soava
como um aviso contra o flerte com o arminianismo:
Nem posso disfarçar o fato de que, em minha opinião, o tom dignifi-
cado e o zelo denominacional manifestos por Booth, Fuller e outros
são grandemente rebaixados; e que um espírito geral de frouxidão foi
introduzido entre nós, como as “DOUTRINAS” da graça, assim como
a “DISCIPLINA” do Novo Testamento.47

46 Payne, Baptist Union, p. 61.


47 George Pritchard (org.), Memoir of the Life and Writings of the Reverend Joseph Ivimey
(London: George Wightman, 1835), p. 311.

48
Os batistas e as doutrinas da graça

Trinta anos mais tarde, John Howard Hinton (1791-1873) — secre-


tário da União Batista por mais de vinte anos, tendo procurado manter
o compromisso com os principais pilares da ortodoxia calvinista, embora
modificados em alguns pontos — fez uma avaliação surpreendentemente
amarga da base doutrinária da reconstituição da União em 1832. “Que
resolução empobrecida é esta que define estes assuntos. Desde o início tem
sido fortemente sentida; mas isto foi absolutamente tudo que os irmãos
reunidos poderiam suportar”.48
Outros eventos mostraram uma crescente determinação em direção à
evaporação da doutrina. Em 1842, John Gregory Pike — o líder da Nova
Conexão dos Batistas Gerais — foi convidado para presidir uma reunião da
União Batista. Em 1857, a reunião aconteceu em Nottingham, para que
fosse o mais próximo possível do maior número de igrejas batistas gerais,
encorajando, assim, o comparecimento de todos.
A abolição posterior dos distintivos doutrinários ficou evidente em 1864,
quando o presidente da reunião instou os participantes que um objetivo
imediato das igrejas deveria ser “a superação, em princípios praticáveis, sãos
e seguros, da distinção entre os batistas gerais e os batistas particulares”.49
Muito embora esses sentimentos estivessem presentes, nenhuma ação oficial
estava por vir. Em 1872, portanto, Thomas Thomas lembrou as igrejas de
que tal ação deveria ser tomada, já que as diferenças doutrinárias eram,
então, quase imperceptíveis:
Nossa comunhão está se tornando mais próxima e mais frequente. Não
apenas os membros de nossas igrejas são transferidos de uma seção à
outra, mas também os irmãos, se elegíveis para o ofício a outro respeito,
são independentes de sentimentos, eleitos para o diaconato nas igrejas
para as quais foram transferidos. E ainda mais: as igrejas batistas gerais
estão bem acostumadas a escolher pastores batistas particulares; e um
número proporcional mas não igual de pastores batistas gerais é instalado
nas igrejas batistas particulares.50

Ninguém realmente precisa perguntar quais doutrinas estavam


mudando tão radicalmente para tornar esse intercâmbio possível.

48 Payne, Baptist Union, p. 61.


49 Ibid., p. 98.
50 Ibid.

49
Introdução

Não apenas o calvinismo estava morrendo confessionalmente na vida


batista particular (a nomenclatura tem até mesmo um tom oco agora),
como também era cada vez menor o número daqueles que sustentavam
pessoalmente as doutrinas da graça, e menos ainda os que ousavam pregá-las
como essenciais a um entendimento do evangelho. Quando a união orgâ-
nica estava sendo seriamente discutida em 1874, John Clifford, editor da
General Baptist Magazine [Revista Geral Batista], pôde dizer candidamente:
“Nunca nos afastamos tanto do calvinismo quanto agora”.51 Ele não tinha
medo de que pudesse afetar negativamente a chance de uma eventual
união com tamanha franqueza. Os batistas particulares nunca pensariam
em se levantar contra uma união com Clifford e os seus, pois, em 1873,
até mesmo os escassos “sentimentos evangélicos” haviam sido deixados de
lado e substituídos por uma única declaração doutrinária: “A imersão dos
crentes é o único batismo cristão”.
Quando, em 1877, o Dr. Samuel Cox publicou Salvatore Mundi, negando
a doutrina da punição eterna, tornou-se evidente que a questão se havia
degenerado. O ponto não era mais calvinismo/arminianismo, mas se real-
mente importava, ou não, ser cristão. Não deveria ser surpresa, portanto,
que, por ocasião da união oficial entre batistas gerais e particulares, em
1891, o batista que realmente tinha o maior direito de permanecer, Charles
Haddon Spurgeon, tivesse abandonado a União Batista.
Spurgeon resplandeceu no meio batista como uma figura solitária
durante todo o seu ministério. Em meados de 1850, em Londres, seu
marcante calvinismo causou tal consternação que ele foi acusado de pregar
“doutrinas do mais desenfreado exclusivismo”. A posição de Spurgeon em
favor do calvinismo e contra o arminianismo tem sido bem documentada em
The Forgotten Spurgeon [publicado no Brasil como O Spurgeon que foi esquecido,
pela editora PES], de Ian Murray.52 Ele aderiu ao calvinismo estrito durante
seu ministério e nunca estava despreparado para defender essa teologia
contra o que percebia como as tendências destrutivas do arminianismo.
A situação na União Batista, contudo, tornara-se tão desesperada que, em

51 John Clifford, em A.C. Underwood, A History of the English Baptists (London: Kingsgate
Press, 1947), p. 215.
52 Ian Murray, The Forgotten Spurgeon (Edinburgh: The Banner of Truth Trust, 1966), ver
espec. p. 45-114.

50
Os batistas e as doutrinas da graça

1887, o wesleyanismo evangélico tinha mais em comum com Spurgeon do


que o vazio doutrinário da União Batista. Aqueles anos de controvérsia
(1887-1892) se haviam provado perturbadores, dolorosos e, algumas vezes,
embaraçosos aos historiadores da União Batista. O que se pode dizer quando
o grande pregador batista da história da denominação, um homem de coração
amplo, generoso e de amplo alcance, considera impossível manter a fachada
de comunhão? Até então, a situação fora conduzida com um tratamento
dispensado a Spurgeon de condescendência paternal, como um homem
bom mas doente, incapaz de lidar com a evolução e o desenvolvimento do
intelecto da teologia batista.53 Todavia, a verdade parece ser inegável: sua
preocupação com a inerrância da Escritura, a deidade de Cristo, a realidade
da punição eterna e outros princípios fundamentais da fé estava bem funda-
mentada. Os escritos de John Clifford após a morte de Spurgeon mostram
claramente sua heterodoxia — e a verdade das afirmações de Spurgeon — em
cada um desses pontos.
Apesar de as doutrinas distintivas do calvinismo não serem a questão
na “controvérsia rebaixada”, a anuência de Spurgeon a elas modelou de tal
forma seu entendimento sobre Deus e a verdade, comprometendo-o com a
importância dos princípios da teologia, que ele viu mais claramente do que
qualquer um a natureza das questões que estavam em jogo. Aqueles que
não tinham capacidade de entender a posição de Spurgeon criticavam-no
com pouca reserva, um fato melancólico que o levou a notar: “Aqueles que
são tão excessivamente liberais, de coração tão grande e largo, poderiam
ser tão bons a ponto de nos permitir ir aos encantos de sua sociedade sem
chegarmos sob a total violência de sua ira”.54 Um historiador contemporâneo
que compreendeu em detalhes os movimentos teológicos da última parte do
século 19 considerou o gesto de Spurgeon “o maior até aqui contra as forças
debilitantes que atuavam dentro do não conformismo inglês”.55
Muito recentemente, em 1971 , essa malformação teológica expressou a
si mesma vividamente da plataforma da assembleia anual da União Batista,
quando Michael Taylor aproveitou a ocasião para demonstrar sua negação
da deidade de Cristo:

53 Payne, Baptist Union, p. 127-43; Underwood, English Baptists, p. 229-33.


54 Spurgeon, Sword and Trowel (1888), p. 620.
55 Ian Sellers, Nineteenth-Century Nonconformity (Edward Arnold, 1977), p. 28.

51
Introdução

Creio que Deus estava ativo em Jesus, mas não é o suficiente para dizer
categoricamente que Jesus é Deus. Jesus é único, mas sua peculiaridade não
o faz diferente em tipo de nós. [...] A diferença está no que Deus fez em e
através deste homem e o grau em que ele respondeu e cooperou com Deus.56

Diversas igrejas e ministros abandonaram a União quando nenhuma


reprimenda oficial a Taylor veio do concílio, mas muitos defenderam o direito
de Taylor de declarar essa heresia nas fileiras de ministros credenciados.
Isso não deve surpreender quem já esteja familiarizado com o desenvol-
vimento do pensamento teológico nos círculos da União Batista. H. Wheeler
Robinson (1872-1945), reitor do Regents Park College, de 1920-1942, lide-
rando a teologia batista inglesa no século 20, propôs um método teológico
quase incapaz de corrigir Taylor. O próprio Robinson rejeitou a historicidade
de Adão e sua conexão com a pecaminosidade do homem.57 De fato, ele
chamou a narrativa do Antigo Testamento sobre a queda de “um pequeno e
insignificante elemento na literatura e na religião de Israel”58 e, finalmente,
concluiu que “as visões modernas sobre a Bíblia e a origem da raça removem
as transgressões de Adão dos dados sobre o problema” do pecado humano.59
Robinson rejeitou a doutrina da punição eterna em favor do aniqui-
lacionismo ou de “uma forma revisada da imortalidade condicional”.60
Oportunidades para salvação após a morte provavelmente serão oferecidas
aos homens, pois “não temos fundamento suficiente para asseverar que a
decisão final é sempre tomada no presente estágio de nosso desenvolvimento;
de fato, todos sabemos que muitos homens na face da terra nunca tiveram
a oportunidade adequada de tomá-la”.61 Toda a ideia do inferno parecia
repugnante a Robinson, e ele insistia que “há algo pouco saudável em ser
demasiadamente preocupado com o inferno”.62 Os batistas, nos séculos
passados, teriam concluído o contrário.

56 Discurso de Michael Taylor, Assembleia Anual da União Batista, em Reformation Today,


n. 10 (verão de 1972), p. 36.
57 H. Wheeler Robinson, Redemption and Revelation in the Actuality of History (London:
Nisbet & Co., Ltd., 1942), p. 65.
58 H. Wheeler Robinson, The Christian Doctrine of Man, 3. ed. (Edinburgh: T. & T. Clark,
1926; ed. reimpressa, 1934), p. 163.
59 Ibid., p. 269.
60 Robinson, Redemption and Revelation, p. 310.
61 Ibid., p. 309.
62 Ibid.

52
Os batistas e as doutrinas da graça

Mais devastadoras do que essas (porque são a base delas) são as visões
de Robinson acerca da revelação e do método de discernimento do erro.
A Revelação vem da interação entre a experiência cristã e o movimento
providencial da história. A Escritura não pode ser compreendida em sentido
literal ou proposicional, mas deve ser vista como um registro de encontros
divinos sobre consciências individuais. A Bíblia é “o registro suficientemente
preciso de uma experiência religiosa que é normativa e autoritativa”.63
Portanto, não temos o direito, afirma Robinson, “de assumir que a ética de
Amós ou mesmo a de Jesus são diretamente aplicáveis, da forma como se
apresentam, a qualquer geração”.64
No mesmo sentido, aparentemente, seria possível concluir que não
temos o direito de assumir as crenças proposicionais dos apóstolos como
normativas para os dias de hoje. Em sua abordagem ao “ministério do
erro”, Robinson abre caminho para essa posição ao afirmar: “Obviamente,
qualquer assertiva dogmática do que é a verdade e do que é erro na religião
contemporânea estaria fora de lugar nessa matéria”.65 Quando tais pequenas
plataformas são dadas para estabelecer a verdade e resistir ao erro, não causa
admiração que a negação da deidade de Cristo encontraria uma defesa dos
direitos por parte de quem fala.
Os anos que se passaram desde Clifford até Robinson, e para além desses,
parecem ter acomodado os membros da União Batista tão completamente
que não houve surpresa alguma em relação aos ventos frios da infidelidade.
Mas essa exposição contínua à doença e à morte também pode surtir o efeito
de baixar a imunidade, a ponto de a mínima infecção poder matar. Em todo
o mundo, os cristãos deveriam orar para que a denominação que produziu
Keach, Gill, Booth, Fuller, Carey e Spurgeon possa, mais uma vez, descobrir
o fundamento sobre o qual eles se encontravam. Seria trágico se o calvinismo
se juntasse a outras verdades vistas simplesmente como arcaísmos teológicos
na União Batista, pois, dessa maneira, não apenas a pureza evangélica estaria
comprometida, mas também a própria fé cristã estaria perdida.
Os batistas particulares [ou estritos]: A teologia calvinista, contudo,
ainda não havia sumido por completo da vida batista na Inglaterra. Nos anos

63 Ibid., p. 179.
64 Ibid., p. 171.
65 Ibid., p. 22.

53
Introdução

1820, a discussão teológica centrava-se não apenas na questão da comunhão,


mas também na invasão sutil do arminianismo no círculo batista particu-
lar.66 Os argumentos de Robert Hall (1764-1831) em prol da comunhão
aberta contemplaram a possibilidade de que, eventualmente, nenhuma
igreja “batista” como tal existiria, mas somente indivíduos “batistas”. Um
fervor romântico ateológico pela promoção das missões alarmou e alertou
alguns para os perigos de alguns estilos de evangelismo. Essas duas questões
caracterizaram as preocupações dos batistas estritos em seu começo como
uma entidade particular e reconhecível.
Por volta de 1830, algumas declarações contra o “fullerismo” e a comunhão
aberta começaram a se tornar comuns em determinadas áreas. Não apenas os
termos da comunhão eram típicos das definições feitas pelos grupos batistas
estritos, como também “a doutrina que afirma que a fé salvadora é dever
de todos os homens” era repetidamente rejeitada. Uma forma definitiva foi
dada ao movimento pela aparição de diversas publicações; entre elas, a mais
influente intitulava-se The Gospel Standard [O padrão do evangelho], em 1835,
prosseguindo até nossos dias. Seus adeptos são conhecidos como os “homens-
-padrão”, e as igrejas que patrocinam sua confissão de fé são apropriadamente
chamadas de “batistas do evangelho padrão”. The Gospel Herald [O arauto do
evangelho] começou a ser veiculado em 1833, afirmando a mesma doutrina
básica. Em 1887, fundiu-se com a revista The Earthen Vessel [O vaso de barro],
lançada em 1845, em Southwark, a área de Londres a ser invadida por Charles
Haddon Spurgeon. The Vessel criticava Spurgeon de forma severa, devido à sua
adesão ao “dever da fé” — ele insistia constantemente em que todos os homens,
em todos os lugares, deveriam abandonar o pecado e a rebelião, prostrando-se
aos pés de Jesus. A revista ainda formulava uma palavra de recomendação e
apoio a ele em sua luta com os “rebaixados”.
Em 1896, surgiu outra publicação, intitulada The Christian’s Pathway
[O caminho cristão]. A rejeição ao dever da fé e à comunhão aberta também
caracterizou seu conteúdo, além de uma posição positiva acerca da “eterna
filiação de Cristo”, desencadeada por uma controvérsia nas páginas de The
Earthen Vessel (1859-1860). Sua posição foi resumida, de forma clara, em
uma carta enviada a um diácono de uma igreja desejoso de ser incluído em
sua lista de igrejas aceitáveis:

66 Annual Report and Bulletin of the Strict Baptist Historical Society, n. 13 (1973), 5.7.

54
Os batistas e as doutrinas da graça

1. Sua igreja e seu pastor aprovam a doutrina declarada como o


topo do Diretório, a saber, a eterna filiação de nosso Senhor e
Salvador Jesus Cristo?
2. Sua igreja e seu pastor aprovam todos os pontos de doutrina
alicerçados no fundamento “particular”, e rejeitam o dever da fé,
ou algum termo como “spurgeonismo”?
3. Sua igreja e seu pastor aprovam tudo o que está implícito na palavra
“estrito”, ou seja, que ninguém além dos crentes batizados nas
igrejas da mesma fé e da mesma ordem podem comungar juntos
na Ceia do Senhor?

A declaração mais veemente desse princípio teológico veio em 1878, com


The Gospel Standard [O padrão do evangelho], quando surgiu uma confissão
que ampliava a antipatia batista estrita pelos chamados universais ao arrepen-
dimento e à fé (esse assunto é discutido, de forma sucinta, no capítulo 16).
Os avanços havidos desde a Segunda Guerra Mundial têm assistido
a todos os batistas particulares, exceto aqueles que sustentam a confissão
do Padrão do evangelho, diminuírem sua rejeição ao dever da fé. O perió-
dico Grace [Graça] substituiu as publicações Gospel Herald-Earthen Vessel,
enquanto a Reformation Today [Reforma hoje] substituiu The Christian’s Pathway
[O caminho cristão].67 O verdadeiro calvinismo tem sido recuperado nessas
revistas, e as doutrinas da Confissão de 1689, abertamente defendidadas.
Os posicionamentos de Fuller, Carey e Spurgeon são celebrados, e o hiper-
calvinismo, rejeitado em todas as formas. Em um período de alguns anos no
século 20, o Tabernáculo Metropolitano perdeu seu testemunho calvinista
tipicamente evangélico, mas, recentemente, o redescobriu sob o ministério
de Peter Masters. Muito embora mantendo e defendendo uma postura estri-
tamente particular [separatista], esse ministério tem-se mostrado instrumental
na liderança de muitos de volta às doutrinas da graça.
Situação contemporânea das doutrinas da Reforma: Com o lançamento
de Reformation Today (1970), a Conferência Carey para Ministros teve início.
Encontrando-se anualmente, reúne ministros batistas de igrejas batistas
independentes, bem como de igrejas da União Batista. Como seu nome
sugere, a aplicação experimental e prática das grandes verdades doutrinárias

67 Reformation Today, n. 1 (primavera de 1970).

55
Introdução

forma o centro do propósito da conferência. A Conferência de 1985 teve


como tema as missões, enquanto a Conferência de 1986 dedicou-se a uma
nova exploração dos parâmetros da Confissão de 1689, o que, em sentido
mais amplo, é a fé reformada.
Felizmente, o calvinismo histórico dos antigos batistas ingleses tem
sido arrebatado das garras da morte, trazendo muitas marcas saudáveis, e
promete multiplicar-se. Mas, ainda que possa fazer frente aos ataques das
tendências teológicas e eclesiásticas, mantendo — como Fuller, Carey, Ivimey,
Booth e Spurgeon — um coração afetuoso e uma espinha dorsal de aço, não
depende da força e da abrangência do sistema em si. Certamente nenhuma
outra visão sobre Deus, o homem, o mundo e todas as coisas visíveis e invi-
síveis pode aproximar-se da força do calvinismo. Ao contrário, sob Deus, a
tenacidade da presente Reforma dependerá da medida em que o coração
dos envolvidos tem sido capturado pela verdade e se sua afeição irradia na
direção do temporal ou do eterno.

Batistas e o calvinismo nos Estados Unidos


As raízes do século 17
Quando Roger Williams chegou ao Novo Mundo, em 1631, trouxe
consigo não apenas uma consciência irrepreensível, o que, por fim, resultaria
em seu banimento da Baía de Massachussetts, mas também o verdadeiro
calvinismo de seu puritanismo separatista. A igreja batista fundada sob sua
influência, em Providence, Rhode Island, em 1639, abraçou essa mesma
teologia. John Clarke, outro inglês que considerava pouco agradável a relação
entre Igreja e Estado na Baía de Massachussetts, também foi até Rhode
Island e, com a ajuda de Williams, comprou algumas terras dos indígenas.
Sob a provável influência de Williams, Clarke tornou-se um batista em
algum momento entre 1640 e 1644. A igreja que ele fundou em Newport,
a Segunda Igreja Batista da América, “manteve a doutrina da graça eficaz”
e, pelo menos até o tempo de Thomas Armitage, permaneceu calvinista.68
As Confissões de Fé de Clarke e Obadiah Holmes — sucessor de Clarke
como pastor — demonstram essa verdade além de qualquer dúvida. Clarke

68 Thomas Armitage, A History of the Baptists (New York: Bryan, Taylor & Co.,
1887), p. 671, 673.

56
Os batistas e as doutrinas da graça

deixou sua confissão por escrito, e uma porção foi inserida nos registros da
igreja. Isaac Backus, em seu notável A History of New England [Uma história
da Nova Inglaterra], publicou a principal porção do texto:
O decreto especial de Deus concernente a anjos e homens é chamado de
predestinação em Romanos 8:30 [...] deste último mais é revelado não
sem proveito para ser conhecido. Pode ser definido como uma sábia, livre,
justa, eterna e imutável sentença ou um decreto de Deus, determinando
a criação e o governo do homem para sua glória especial. [...] A eleição é
o decreto de Deus, de seu livre amor, graça e misericórdia, escolhendo
alguns homens para a fé, a santidade e a vida eterna, para o louvor de sua
gloriosa misericórdia. [...] A causa que moveu o Senhor a eleger aqueles
que são escolhidos foi nenhuma outra além de sua mera boa vontade
e seu prazer. [...] Um homem nesta vida pode ter certeza de sua eleição
[...] mas não de sua eterna reprovação, pois aquele que agora é profano
pode ser chamado posteriormente.69

O conteúdo de Confissão e testemunho, de Obadiah Holmes, está preser-


vado nesse mesmo volume.70 O espírito do calvinismo evangélico penetra
o todo: Deus “conhece os seus; e os eleitos o obterão”, pois, na aliança da
graça, “Deus lidou com a iniquidade de todos os seus eleitos sobre o Filho,
convocando-os a si mesmo” para que “nunca pereçam nem se desviem”.
Deus derrama sua salvação pela fé efetiva por meio do ministério de pregação
enviado ao mundo “para proclamar arrependimento ao pecador, e salvação,
e tudo isso através de Jesus Cristo”. Sim, esses ministérios devem proclamar
“a graça de Deus por intermédio de Jesus Cristo, mesmo àqueles que já estão
sob o poder de Satanás: sim, levar as boas-novas do Senhor Jesus Cristo”.71
A Primeira Igreja Batista de Boston surgiu debaixo do derramamento
da intimidação eclesiástica, na medida em que Thomas Gould procurava
respostas acerca do batismo de crianças, especialmente de seus próprios
filhos, nascidos em 1655. Após dez anos de uma desconcertante intimidação
da igreja estabelecida em Boston, Gould — junto com diversos outros que
haviam chegado recentemente da Inglaterra, incluindo um Sr. Goodall, da

69 John Clarke, “Confession of Faith”, em Isaac Backus, A History of New England, with
Particular Reference to the Denomination of Christians Called Baptists, 2 vols. (Boston, MA:
Edward Draper, 1777), 1:255, 256.
70 Ibid., p. 208-12, 256-60.
71 Ibid., p. 256, 258, 259.

57
Introdução

igreja de William Kiffen [ou Kiffin]— entrou em uma relação com uma igreja.
Essa igreja também era calvinista.72
Não se pode levar a sério a sugestão de que esses homens simplesmente
adotaram a soteriologia de seu meio teológico sem um exame crítico. Pelo
menos dois fatores devem dissuadir qualquer um de aceitar um argumento
desse tipo. Primeiro, o abandono radical da eclesiologia de seus contemporâ-
neos e vizinhos, ao lado de sua disposição de sofrer por causa dessa separação,
mostra que eles não eram desprovidos de iniciativa pessoal a respeito da
construção doutrinária. Sua abertura para debater o caso com os homens que
traziam credenciais de uma educação intimidadora os caracteriza não como
arrogantes (pois eram homens mansos), mas como pessoas que confiavam
nas conclusões obtidas em um questionamento honesto e independente.
Segundo, sua insistência de que toda crença e toda prática devem contar
com uma garantia plena e clara fala muito sobre sua retenção do calvinismo
enquanto iam mudando sua visão acerca do batismo. Outras opções soterio-
lógicas estavam disponíveis e eram conhecidas deles. Concluímos, portanto,
que eles, consciente e fundamentadamente, aderiram ao calvinismo como
bíblico em suas conexões soteriológicas.

Nos séculos 18 e 19
As Colônias Centrais, especialmente a Pensilvânia, beneficiaram-se da
influência da família de Keach quase na mesma medida dos batistas ingleses
do século 17. O filho de Benjamin Keach, Elias, chegou ao Novo Mundo
como um homem não convertido. Por um período muito breve, ele consi-
derou bem divertido enganar os cristãos dissidentes da Pensilvânia ao pregar
a eles alguns dos sermões de seu pai. Grandes multidões vinham para ouvir
o jovem teólogo de Londres, e seu experimento jocoso parecia andar bem.
Porém, em certa ocasião, bem no meio de sua pregação, ele foi tomado pelo
terror e, por algum tempo, viu-se impedido de continuar falando. Na mise-
ricórdia de Deus, o jovem Keach foi convertido sob sua própria pregação,
revelando-se um verdadeiro instrumento para a fundação da Primeira Igreja
Batista da Pensilvânia — em Pennepack, agora cidade da Filadélfia.
Keach, ao lado de Thomas Killingsworth, fundou outras igrejas. Outras
vieram, intactas, do País de Gales. Em 1707, essas igrejas, agora cinco,

72 Ibid., p. 355-415.

58
Os batistas e as doutrinas da graça

organizaram-se para formar a Primeira Associação Batista na América, a


Associação Batista da Filadélfia. Essa associação usava, regularmente, a
Segunda Confissão de Londres em suas discussões doutrinárias e, em 1742, a
adotou oficialmente, com dois acréscimos, como sua própria Confissão de Fé.
De longe, a mais influente associação na vida batista da América, seu poder
foi sentido grandemente no Primeiro Grande Avivamento, e sua teologia
calvinista foi formadora e dominante na vida batista, tanto do norte como
do sul. Tão forte era o calvinismo dessa associação que, em 1752, aprovou
uma resolução declarando que aqueles que negavam a doutrina da eleição
incondicional não poderiam tornar-se membros das igrejas:
Sobre tais doutrinas fundamentais do cristianismo, junto à crença em
um Deus eterno, nossa fé precisa descansar; e nós adotamos, e que todas
as igrejas pertencentes à Associação Batista estejam bem firmadas de
acordo com a nossa Confissão de Fé e nosso catecismo, não podendo
permitir que ninguém seja um verdadeiro membro de nossas igrejas se
negar esses princípios, não importando qual seja sua conversão lá fora.73

Em 1774, a Associação adotou a prática de fazer “observações e melhora-


mentos de alguns artigos particulares da fé, contidos em nossa Confissão”.74
Essas “cartas circulares” anuais formaram uma agradável exposição do
calvinismo evangélico. A correspondência mantida com William Carey e os
registros entusiasmados sobre o progresso das missões estrangeiras e entre os
indígenas, e também em locais que não contavam com igrejas na América,
mostram que os membros desse grupo mantinham uma aliança saudável
entre doutrina e prática.
No sul, a Primeira Igreja Batista também era calvinista. A Primeira Igreja
Batista de Charleston, Carolina do Sul (fundada em 1682, em Kittery, Maine),
adotou a Segunda Confissão de Londres como um resumo válido de sua fé bíblica.
William Screven, próximo à sua aposentadoria como primeiro pastor, em
1708, instou a igreja a garantir como pastor um homem que sustentasse as
doutrinas da forma como expostas naquela confissão. Em 1751, quando
a Associação de Charleston surgiu, seu entendimento doutrinário encon-
trou expressão precisa naquele mesmo documento. Um dos pastores mais

73 Minutes of the Philadelphia Baptist Association from 1707 to 1807 (Philadelphia, PA:
American Baptist Publication Society, 1851), p. 69.
74 Ibid., p. 136.

59
Introdução

notáveis do estado (e, de fato, em todo o sul), durante as décadas de virada


para o século 19, foi Richard Furman. De 1787 até 1825, ele serviu como
pastor na Primeira Igreja Batista de Charleston, Carolina do Sul. Além disso,
atuou como presidente da Convenção Missionária Geral da Denominação
Batista dos Estados Unidos pelas Missões Estrangeiras, também conhecida
como Convenção Trienal, fundada em 1814. Ele era um calvinista convicto.
Enquanto os batistas mudavam-se para outras regiões do sul, alguns
batistas gerais apareceram entre eles. Esses, contudo, foram completamente
engolidos por um calvinismo fervoroso no Primeiro Grande Avivamento, em
meados do século 18. Além disso, a membresia batista cresceu aos tropeços,
devido à invasão dos batistas particulares. Esse grupo, cujos primeiros líderes
foram Shubal Stearns e Daniel Marshall, pregava uma forte teologia da
conversão, manifestava uma responsabilidade admirável em relação à organi-
zação evangelística e esperava, com bastante fervor, pelos moveres do Espírito
Santo no curso de sua pregação. Eles haviam surgido inicialmente do congre-
gacionalismo da Nova Inglaterra. As Novas Luzes sofreram oposição das
Antigas Luzes, que insistiam na adesão identificatória da Confissão de Fé e
da moralidade externa com a verdadeira fé cristã. Jonathan Edwards defendia
a insistência da Nova Luz quanto à conversão. Quando muitos das Novas
Luzes começaram a adotar a eclesiologia batista, devido à sua harmonia com
o ideal de uma igreja regenerada, mostraram-se naturalmente insistentes em
relação ao uso de qualquer confissão de fé. Sua teologia, contudo, era calvinista
e quando, muitas vezes hesitante, produziam confissões, seu calvinismo era
óbvio. A Confissão de Fé da Associação Kehukee, uma associação batista regular,
pavimentou o caminho para a união com diversas igrejas batistas particulares.
Dois dos dezessete artigos abordam a soberania de Deus na salvação:
7. Nós acreditamos que, no tempo e no modo estabelecidos por Deus (que
ele mesmo ordena), os eleitos serão chamados, justificados, perdoados
e santificados, e que é impossível que eles possam recusar o chamado,
pois serão feitos desejosos pela graça divina de receber as ofertas da
misericórdia. [...]
9. Nós acreditamos, de igual modo, que os eleitos de Deus não serão
apenas chamados, e justificados, mas que também serão convertidos,
nascidos de novo e mudados pela obra efetiva do Espírito Santo de Deus.75

75 William L. Lumpkin, Baptist Confessions of Faith, 1. ed. (Philadelphia, PA: The Judson
Press, 1959), p. 355, 356.

60
Os batistas e as doutrinas da graça

De igual modo, a Associação de Sandy Creek, a reunião batista particular


mais influente do século 18, adotou uma Confissão em 1816. Os artigos III
e IV (de dez artigos) revelam o comprometimento soteriológico de Sandy
Creek e a multiplicidade de igrejas batistas particulares e associações que
surgiram a partir de sua influência:
III. Que Adão caiu de seu estado original de pureza, e que seu pecado é
imputado à sua posteridade; que a natureza humana é corrupta, e que
o homem, de sua própria vontade livre e habilidade, é impotente para
reconquistar o estado em que foi primariamente colocado.
IV. Nós acreditamos na eleição desde a eternidade, no chamado efetivo
pelo Espírito Santo de Deus e na justificação à sua vista somente pela
imputação da justiça de Cristo. E nós acreditamos que aqueles que são
assim eleitos, efetivamente chamados e justificados, perseverarão pela
graça até ao fim, para que ninguém se perca.76

Quando os batistas separatistas e regulares uniram-se na Virgínia,


a Confissão de Fé da Filadélfia formou sua base doutrinária. Portanto, no
momento em que a união estava completa, a vida batista no sul caracteriza-
va-se pelo forte comprometimento doutrinário com o calvinismo evangélico,
pelo senso de dependência da obra do Espírito Santo para trazer conversão
(muitas vezes de maneira dramática) e pela convicção de mordomia sobre
a organização evangelística.
O surgimento dos batistas do livre-arbítrio, sob a liderança de Benjamin
Randall, em 1780, em New Hampshire, levou os batistas da Nova Inglaterra a
trabalhar pela reafirmação de sua fé, com especial atenção às áreas permeadas
pelo Movimento do Livre-Arbítrio. Em 1833, a Confissão de Fé de New
Hampshire foi completada, recomendando-se, então, sua adoção nas igrejas da
região. Sua influência foi grandemente sentida em 1853, quando J. Newton
Brown, secretário editorial da Sociedade de Publicações Batista Americana,
publicou o The Baptist Church Manual [O manual da igreja batista]. Outros
manuais de igreja, incluindo o de J. M. Pendleton, também publicaram esse
conteúdo, fazendo dessa a maior declaração de credo amplamente dissemi-
nada entre os batistas americanos.
Muitos têm interpretado o conteúdo da Confissão de Fé de New Hampshire
como uma tentativa de transformar o calvinismo sólido dos dias antigos em

76 Ibid., p. 358.

61
Introdução

algo mais palatável, ao gosto das igrejas do século 18. É verdade que essa
Confissão não é tão detalhada ou longa quanto a Confissão da Filadélfia, mas
também é verdade que a essência de sua doutrina permanece intocada. Uma
de suas preocupações era a brevidade. Mas seus feitos desejaram mostrar, em
acréscimo, que as questões levantadas pela presença dos batistas do livre-ar-
bítrio não eram, certamente, estranhas ao conhecimento ou à preocupação
do calvinismo histórico. Uma ênfase recorrente no enquadramento teológico
do livre-arbítrio era a culpabilidade do homem. A culpabilidade estende-se
até a liberdade da vontade do homem e/ou as provisões da graça de Deus.
O “poder da livre escolha é a exata medida da responsabilidade do homem”,
declarou Benjamin Randall.77 E, se a queda tem afetado negativamente a
vontade, a redenção promovida pelo Deus Trino tem colocado todos os
homens no mesmo lugar — nenhum deles é excluído, mas a salvação não é
adquirida por qualquer um:
Eles são todos dependentes para salvação da redenção efetivada através
do sangue de Cristo, e para serem criados novos em obediência através
da operação do Espírito; ambos são livremente providos para cada
descendente de Adão.78

O mesmo ensino constituiu a essência de seu conceito de chamado


evangélico. A chamada do evangelho “é coextensiva com a expiação a todos
os homens”, como são os “atos do Espírito”. A salvação, portanto, é “tornada
possível a todos”. Se alguém falha em ser salvo, “a culpa é toda sua”.79
Os autores da Confissão de New Hampshire estavam justificadamente
ansiosos para que as pessoas entendessem e enxergassem, de forma plena
e inequívoca, que o calvinismo não é um sistema mecanicamente fatalista;
mas que, ao contrário, reconhece, plenamente, a natureza moral do homem,
os deveres que recaem sobre ele como resultado dessa natureza moral e a
relação do evangelho com esses deveres. O artigo sobre a queda do homem
estabelece o estágio teológico para essa progressão:
Cremos que o homem foi criado em estado de santidade sob a lei de
seu Criador, mas que, por voluntária transgressão, caiu daquele santo e

77 Ibid., p. 370.
78 Ibid., p. 371.
79 Ibid., p. 373.

62
Os batistas e as doutrinas da graça

bem-aventurado estado; em consequência disso, agora toda a humani-


dade é pecadora, não por constrangimento, mas por escolha, sendo por
natureza completamente vazia daquela santidade requerida pela lei de
Deus, completamente dada à satisfação do mundo, de Satanás e de suas
paixões pecaminosas, encontrando-se, portanto, sob justa condenação
da eterna ruína, sem defesa ou escusa.80

O pecado é intencional, a condenação é justa e nenhum homem (com ou


sem a provisão para a salvação) tem defesa ou desculpa. O dever do homem
para com Deus de forma alguma é ab-rogado pelo surgimento da graça.
O artigo VI, “Da liberdade da salvação”, delineia a maneira pela
qual a perversidade dos homens se relaciona com a pregação livre e
aberta do evangelho:
Cremos que as bênçãos da salvação são acessíveis a todos pelo Evangelho;
que é dever imediato de todos aceitá-las através da cordial, penitente e
obediente fé; e que nada impede a salvação do maior pecador sobre a
terra exceto sua própria depravação inerente e a voluntária recusa em
se submeter ao Senhor Jesus Cristo, recusa que o submeterá a uma
condenação ainda pior.81

O calvinismo não afasta, em absoluto, a responsabilidade do homem em


crer em tudo que Deus diz; sua declaração da perversidade e da necessidade
da iniciativa divina não é feita ao custo do dever do homem para com Deus.
A harmonia entre a lei e o evangelho demonstra essa verdade, pois a lei “é
santa, justa e boa; e... a inabilidade que as Escrituras atribuem aos homens
caídos para cumprir seus preceitos vem inteiramente de seu amor ao peca-
do”.82 Na regeneração, o Espírito Santo trabalha de tal forma a “assegurar
nossa obediência voluntária ao Evangelho”.83 Além disso, “o arrependimento
e a fé são deveres sagrados”, mas o fato de serem deveres não diminui a
realidade de que “também são graças inseparáveis, envoltas em nossa alma
pelo Espírito regenerador de Deus”.84 O fato de que a inabilidade vem do
pecado não afasta a realidade da inabilidade. A graça soberana deve reinar

80 Ibid., p. 362.
81 Ibid., p. 363.
82 Ibid., p. 365.
83 Ibid., p. 364.
84 Ibid.

63
Introdução

se algum desses pecadores desesperados tiver de ser salvo. Esse equilíbrio é


expresso, de forma clara, no artigo “Do Propósito da Graça de Deus”.
Cremos que a Eleição é o propósito gracioso de Deus, de acordo
com o qual ele graciosamente regenera, santifica e salva os pecadores;
o que é perfeitamente consistente com a livre agência do homem,
compreendendo todos os meios em conexão com o fim; essa é uma
amostra gloriosa da bondade soberana de Deus, que é infinitamente
livre, sábio, santo e imutável; que exclui completamente a jactância
e promove a humildade, o amor, a oração, o louvor, a confiança em
Deus e ativa a imitação de sua livre misericórdia; que encoraja o uso
dos meios no mais elevado grau; que é certo pelos seus efeitos em
todos os que verdadeiramente creem no evangelho; que é o funda-
mento da segurança cristã; e que afirmá-la a nós mesmos requer nossa
maior diligência.85

Essa mesma preocupação com a relação apropriada entre os aspectos


divinos e humanos da salvação estão presentes no artigo “Da Perseverança
dos Santos”. Os batistas do livre-arbítrio alertaram os crentes a “vigiarem e
orarem para que sua fé não naufrague e sejam perdidos”.86 Muito embora a
graça os ajude, as enfermidades e tentações podem ser tão fortes que “sua
futura obediência e salvação final nem são determinadas nem certas”.87
Os batistas calvinistas não foram menos solícitos a respeito da vigilância, mas
se mostraram determinados a atribuir essa vigilância e essa perseverança à
fidelidade de Deus ao seu povo. Se, de fato, alguém experimenta a bondade
soberana de Deus na regeneração, isso certamente será evidenciado em uma
nova afeição direcionada às coisas de Deus. Sua fonte e sua progressão não
dependem da força da vontade humana, mas do poder de Deus:
Nós cremos que os verdadeiros crentes são aqueles que perseveram até
o fim; que sua ligação perseverante a Cristo é a grande marca que os
distingue daqueles que meramente professam; que uma Providência
especial está sobre seu bem-estar; e que são mantidos pelo poder de Deus
através da fé para a salvação.88

85 Ibid.
86 Ibid., p. 374.
87 Ibid.
88 Ibid., p. 365.

64
Os batistas e as doutrinas da graça

Em vez de interpretar a Confissão de New Hampshire como uma retirada


gradual do calvinismo dos dias antigos, é melhor vê-la como uma afirmação
da posição calvinista sobre as questões particulares que surgiram com a
presença e o crescimento dos batistas do livre-arbítrio na Nova Inglaterra.
Os calvinistas não abandonaram seus princípios distintivos, e declaravam:
“Nós temos um entendimento defensável e bíblico da relação da vontade e
do dever do homem com as doutrinas da soberania de Deus”. Nos Estados
Unidos, as atividades e os líderes batistas do norte harmonizam-se com o
conteúdo principal dessa confissão. O capítulo 4 aborda esses conceitos nos
ministérios de Isaac Backus, John Leland, Luther Rice, Adoniram Judson,
Francis Wayland e David Benedict. Os batistas do sul ainda preferiam a
Confissão de Fé da Filadélfia, mas não vivenciaram divisão teológica em relação
aos seus irmãos do norte.
A última metade do século 19 assistiu a uma quase imperceptível e
gradual alienação de um calvinismo abrangente da parte dos batistas do
norte, que, em 1845, se separaram de seus companheiros do sul. David
Benedict (capítulo 4) temeu que isso fosse acontecer se a tendência observada
em 1860 se mantivesse. No tempo de A. H. Strong (capítulo 8), as forças do
criticismo bíblico e da evolução (tanto biológicas como ideológicas) foram
tão penetrantes e convincentes que as escolas e os teólogos do norte não
encontraram caminho para combatê-las. A tentativa de Strong de incorpo-
rá-las em uma defesa da ortodoxia, embora, muitas vezes, brilhante e sempre
valiosa, falhou em convencer seus contemporâneos e cedeu muito espaço
no processo. Ambas as mudanças — a perda do calvinismo e a intrusão do
liberalismo — fizeram-se notórias nas uniões e divisões que caracterizaram
a vida batista do norte no século 20.

Tendências do século 20
Na primeira década do século 20, os batistas do livre-arbítrio — de quem
os batistas do norte permaneceram, confessional e organizacionalmente,
distintos ao longo do século 19 — viram poucas diferenças entre si e seus
contemporâneos do norte. Em 1907, os batistas do norte haviam adotado
uma estrutura convencional para suas várias associações, denominando-se
oficialmente de Convenção Batista do Norte. Em 1911, os batistas do
livre-arbítrio surgiram com o grupo maior de batistas do norte, dando
uma demonstração visual e organizacional do desaparecimento daquele

65
Introdução

outrora calvinismo forte da denominação. Tal fusão não foi possível com
os batistas do livre-arbítrio do sul, já que o calvinismo dos batistas do sul
ainda era vigoroso.
A entrada do liberalismo provocou diversas divisões no grupo do
norte. O surgimento temporário da Comunhão Fundamental, em 1921,
conduziu, por fim, à formação da Associação Batista Conservadora, em 1947.
A Associação Geral dos Batistas Regulares foi formada por igrejas conserva-
doras que se retiraram da Convenção Batista do Norte em 1933. Eles adotaram
a Confissão de Fé de New Hampshire, com uma interpretação pré-milenista
do último artigo. Em 1923, a União Batista Bíblica da América, liderada
por T. T. Shields, foi formada. Alcançou seu ápice em 1928 e, por fim, se
dissolveu. A Confissão desse grupo era bem similar àquela da Confissão de
New Hampshire, com expressões adicionadas para se comunicar diretamente
com as doutrinas afetadas pelo liberalismo daqueles dias. Outros grupos
registraram protestos contra o liberalismo da Convenção Batista do Norte.
É significativo o fato de nenhum desses grupos ter sido formado para
proteger doutrinas estritamente calvinistas, embora a Confissão de New
Hampshire tenha exercido grande influência sobre todas elas. As principais
fontes de divisão diziam respeito à inerrância da Escritura, à deidade de
Cristo, ao nascimento virginal, à eternidade da punição do ímpio e, em
alguma medida, à natureza da segunda vinda de Cristo. Os calvinistas
individuais e as igrejas calvinistas surgiram desses grupos. Algumas igrejas,
sob a influência de T. T. Shields, sustentaram esses princípios. O Seminário
Batista da Liberdade, o presente eixo do fundamentalismo batista, havia
sido criticado pela Sword of the Lord [Espada do Senhor], por permitir que os
calvinistas ocupassem uma posição de influência em sua equipe. Ninguém
era, de forma consciente, calvinista em suas origens, mas eles se preocupavam
intensamente com a pureza da separação e o conservadorismo fundamental.
Entretanto, seus predecessores haviam sido estrita e entusiasticamente calvi-
nistas, já que sua origem repousava na vida batista do norte e, em certos
momentos, ao longo do caminho, receberam algum apoio dos fundamen-
talistas, separando-se dos batistas do sul.
Quando os complexos fatores seccionais de meados do século 19
incitaram a formação da Convenção Batista do Sul, em 1845, o desejo
por um envolvimento irrestrito nas missões ao redor do mundo cons-
tituiu o cerne da separação. A teologia calvinista formou a base para

66
Os batistas e as doutrinas da graça

o programa das missões. Livros e sermões sustentando as doutrinas da


depravação total, da eleição incondicional, da expiação certa e eficaz, do
chamado efetivo e da perseverança dos santos abundam entre esses primeiros
líderes. Os capítulos 5 e 6 demonstram isso ao discutir as contribuições de
W. B. Johnson, R. B. C. Howell, Richard Fuller, Jesse Mercer, John L. Dagg,
P. H. Mell, Basil Manly, Basil Manly Jr., J. P. Boyce e John A. Broadus.
Incluídos nessa lista, encontramos os presidentes da Convenção Batista
do Sul em seus primeiros cinquenta anos de existência, os primeiros
educadores, tanto na Faculdade como nos círculos do Seminário, e os
primeiros escritores teológicos da vida batista do sul. Essas formulações
doutrinárias não apenas representaram o comprometimento dos líderes,
como também foram fortemente sentidas nas igrejas e associações. Por
exemplo, os documentos fundadores da Associação Batista do Mississippi
— composta por grandes porções dos atuais estados do Mississippi e da
Louisiana — incluíram uma Confissão de Fé segundo a qual as doutrinas
da graça são bem proeminentes e extremamente claras:
3. Cremos na queda de Adão e na concessão de sua cabeça (pecado) a
toda a sua posteridade; na total depravação da natureza humana e na
inabilidade do homem de restaurar a si mesmo ao favor de Deus.
4. Cremos no amor eterno de Deus por seu povo e na eleição eterna
e incondicional de um número definido da família humana para a
graça e a glória.
5. Cremos que os pecadores são justificados apenas à vista de Deus
pela justiça imputada de Jesus Cristo, que é para todos e sobre
todos os que creem.
6. Cremos que todos os que foram escolhidos em Cristo antes da fundação
do mundo são chamados de forma eficaz, regenerados, convertidos, santi-
ficados e sustentados pelo poder de Deus, por meio da fé, para a salvação.
7. Cremos que há um mediador apenas entre Deus e o homem, o homem
Cristo Jesus; ele, por sua satisfação à lei e à justiça, “ao se tornar oferta
pelo pecado”, tem, por meio de seu precioso sangue, redimido os eleitos
da maldição do pecado, para que eles possam ser santos e inculpáveis
diante dele em amor.89

89 Albert E. Casey (org.), Arnite County, Mississippi, 1699-1865, 2 vols., p. 128-29.

67
Introdução

Esse consenso nas doutrinas da graça foi perpetuado na vida batista


do sul ao longo da segunda década do século 20. Os capítulos 8 e 9 buscam
estabelecer isso ao examinar o pensamento de F. H. Kerfoot, E. C. Dargan,
J. B. Gambrell, J. B. Tidwell e B. H. Carroll. Esses homens foram líderes das
agências na comunidade batista do sul, editores de jornais denominacionais,
educadores e escritores. Em 1905, F. H. Kerfoot ainda podia dizer: “Quase
todos os batistas creem no que é descrito, em geral, como ‘doutrinas da graça’”.
Essa crença praticamente unânime desintegrou-se ao longo do caminho.
Entre os diversos fatores, recheados de pontos de vista, estavam a meto-
dologia teológica de E. Y. Mullins e a metodologia evangelística de L. R.
Scarborough, presidentes do Seminário do Sul e do Seminário do Sudoeste,
respectivamente. (Esse fenômeno é discutido no capítulo 9.) Alguns vestígios
das antigas doutrinas ainda poderiam ser encontrados, como, por exemplo,
no ensino e nos escritos de W. T. Conner, do Seminário do Sudoeste (espe-
cialmente sobre a doutrina da eleição) e no ministério fiel de J. B. Tidwell,
na Baylor University (capítulo 7). Com uma rapidez crescente, contudo, as
preocupações se voltavam cada vez mais aos programas denominacionais
que minimizavam e simplificavam as matérias doutrinárias. Inicialmente, as
doutrinas foram ignoradas até que foram saindo de cena — e, por fim, foram
ou abertamente contestadas como causadoras de destruição da verdadeira
piedade e do zelo missionário ou discutidas como alguma idiossincrasia do
passado, algo a ser retratado com grande horror.
As crises relacionadas à autoridade bíblica, à necessidade de expiação e à
singularidade do cristianismo como o caminho que conduz a Deus chegaram
aos batistas do sul somente porque as doutrinas da soberania de Deus foram
inicialmente retiradas de seus lugares como a fonte da qual todas as outras
doutrinas recebem sua coerência. Algumas dessas questões são tratadas nos
capítulos teológicos (10 a 13). Os batistas do sul podem apenas esperar mais
fragmentação teológica a não ser que Deus, em sua misericórdia, garanta
uma Reforma comparável àquela que ocorreu no século 16, na Europa.
É a oração do autor que essa denominação, que reúne todos os adornos
da grandiosidade, possa escapar da realidade solene e graficamente exposta
na descrição do Senhor acerca de alguns em seu tempo: sepulcros caiados,
limpos e brilhantes por fora, mas, por dentro, cheios de ossos.

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